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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DESERTO / J. M. G. Lê Clézio
DESERTO / J. M. G. Lê Clézio

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Saguiet el Hamra, Inverno de 1909-1910
Surgiram, como num sonho, no alto da duna, meio escondidos pela névoa de areia que os seus pés levantavam. Desceram lentamente para o vale, seguindo a pista quase invisível. À testa da caravana, vinham os homens, envoltos nos seus mantos de lã e com os rostos disssimulados no véu azul. com eles caminhavam dois ou três dromedários, seguidos pelas cabras e pelos carneiros espicaçados pelos rapazes. As mulheres fechavam o cortejo. Eram silhuetas pesadas, embaraçadas nos pesados mantos, em que a pele dos braços e das testas parecia ainda mais escura nos véus cor de anil.
Andavam sem ruído na areia, devagar, sem olhar para onde iam. O vento soprava continuamente, o vento do deserto, quente de dia, frio à noite. A areia corria em torno deles, entre as patas dos camelos, fustigava a cara das mulheres que baixavam a tela azul sobre os olhos. As crianças corriam, os bebés choravam, enrolados em tecido azul às costas da mãe. Os camelos rosnavam, espirravam. Ninguém sabia para onde se ia.
O Sol ainda ia alto no céu vazio, o vento arrastava os ruídos e os cheiros. O suor escorria lentamente pela cara dos viajantes, cuja pele escura adquirira o reflexo do anil, nos rostos, nos braços, ao longo das pernas. As tatuagens azuis na testa das mulheres brilhavam como escaravelhos. Os olhos negros, semelhantes a gotas de metal, mal olhavam para a extensão da areia, preocupados em descobrir vestígios da pista entre as vagas das dunas.

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Não havia mais nada ao cimo da terra, mais nada, nem ninguém. Eles tinham nascido no deserto, nenhum outro caminho os podia conduzir. Eles não diziam nada. Eles não queriam nada. O vento passava por eles, através deles, como se não houvesse ninguém nas dunas. Caminhavam desde o romper da alva, sem parar, atolados na ganga da fadiga e da sede. A secura endurecera-lhes os lábios e a língua. A fome roía-os. Nem teriam podido falar. Havia muito que se tinham tornado mudos como o deserto, cheios de luz quando o Sol arde no centro do céu vazio e gelados pela noite crivada de estrelas imóveis.
Continuavam a descer devagar a encosta para o fundo do vale, ziguezagueando quando a areia se esboroava debaixo dos pés. Os homens escolhiam sem olhar o sítio onde iam pousar os pés. Era como se caminhassem sobre traços invisíveis que os conduziam para o outro lado da solidão, para a noite. Só um deles levava uma espingarda, uma carabina de pederneira com um longo cano de bronze escurecido. Levava-a ao peito, apertada nos braços, com o cano apontado para cima como o mastro de uma bandeira. Os irmãos caminhavam ao lado dele, envoltos nos seus mantos, um pouco curvados sob o peso dos fardos. Sob os mantos, os fatos azuis estavam em farrapos, rasgados pelos espinhos, gastos pela areia. Atrás do rebanho extenuado, Nour, o filho do homem da espingarda, caminhava diante da mãe e das irmãs. O seu rosto era escuro, queimado pelo sol, mas brilhavam-lhe os olhos e a luz do seu olhar era quase sobrenatural.
Eles eram os homens e as mulheres da areia, do vento, da luz, da noite. Tinham surgido, como num sonho, no cimo de uma duna, como se tivessem nascido do céu sem nuvens e como se tivessem nos membros a dureza do espaço. Levavam com eles a fome, a sede que faz sangrar os lábios, o silêncio duro onde luze o Sol, as noites frias, o clarão da Via Láctea, a Lua; com eles viajava a sua sombra gigante ao pôr do Sol, acompanhavam-nos as ondas de areia virgem tocadas pelos dedos afastados dos seus pés. Tinham sobretudo a luz do olhar, que brilhava tão claramente na esclerótica dos seus olhos.
O rebanho das cabras e dos carneiros seguia à frente das crianças. Os animais também iam sem saber para onde, pousando os cascos em pegadas antigas. A areia rodopiava entre as patas, agarrava-se às peles sujas. Um homem guiava os dromedários, só com a voz, resmungando e cuspindo como eles. O ruído rouco das respirações misturava-se ao vento, e desaparecia logo nas covas das dunas, em direcção ao sul. Mas o vento, a secura, a fome já não tinham importância. Os homens e o rebanho fugiam lentamente, desciam para o fundo do vale sem água, sem sombra.
Tinham partido há semanas, há meses, indo de um poço para o outro, atravessando as torrentes ressequidas que se perdiam na areia, galgando as colinas de pedras, os planaltos. O rebanho comia as ervas magras, os cardos, as folhas de eufórbio que partilhava com os homens. À tarde, quando o Sol se aproximava do horizonte e a sombra dos silvados se alongava desmesuradamente, os homens e os animais cessavam a sua marcha. Os homens
descarregavam os camelos, erguiam a grande tenda de lã castanha amparada ao poste único de madeira de cedro. As mulheres acendiam o lume, coziam o milho, preparavam o leite coalhado, a manteiga e as tâmaras. A noite caía muito depressa, o céu imenso e frio abria-se por cima da terra extinta. Nasciam então as estrelas, os milhares de estrelas petrificadas no espaço. O homem da espingarda, o guarda do grupo, chamava Nour e mostrava-lhe a ponta da Ursa Menor, a estrela solitária a que chamam Cabrita, depois, na outra extremidade da constelação, Kochab, a azul. Para oriente, mostrava a Nour o ponto onde brilham as cinco estrelas Alkaid, Mizar, Alioth, Megrez, Fecda. Mesmo no oriente, logo acima do horizonte cor de cinza, Orion acabava de nascer, com Alnilam um pouco inclinada de lado como o mastro de um navio. Ele conhecia todas as estrelas, às vezes dava-lhes nomes que eram como que começos de histórias. Então mostrava a Nour a rota que seguiriam de dia, como se as luzes que se alumiavam no céu traçassem os caminhos que os homens têm de percorrer na terra. Ele havia tantas estrelas! A noite do deserto estava cheia desses luzeiros que palpitavam suavemente, enquanto o vento passava e tornava a passar como um sopro. Era uma terra fora do tempo, longe da história dos homens, talvez, uma terra onde já nada podia aparecer ou morrer, como se já estivesse separada das outras terras, no
cume da existência terrestre. Os homens olhavam as estrelas muitas vezes, a grande estrada branca que parece fazer uma ponte de areia por cima da terra. Eles falavam um pouco, fumando folhas de kif enroladas, contavam histórias de viagens, os rumores que corriam a respeito da guerra contra os soldados dos cristãos, falavam de vinganças. Por fim, escutavam a noite.
As chamas da fogueira de ramiscos dançavam sob a chaleira de cobre, com um ruído de água que ferve. Do outro lado do braseiro, as mulheres conversavam e uma delas cantarolava para o bebé que adormecia ao peito. Os cães selvagens uivavam, e era o eco na cova das dunas que lhes respondia, como se fossem outros cães selvagens. O cheiro dos animais pairava e misturava-se à humidade da areia cinzenta, ao fumo acre dos braseiros.
Em seguida as mulheres e as crianças dormiam debaixo da tenda, e os homens deitavam-se em cima das túnicas, à roda do lume extinto. Todos desapareciam sobre a extensão de areia e de pedra, invisíveis, enquanto o céu negro resplandecia ainda mais.
Eles tinham caminhado assim durante meses, anos, talvez. Haviam seguido as rotas do céu por entre as vagas das dunas, as rotas que vêm do Draa, de Tamgrout, do Erg Iguidi, ou, mais ao norte, a rota dos Ait Atta, dos Gheris, de Tafilelt, que desembocam nos grandes ksours dos contrafortes do Atlas, ou então a rota sem fim que penetra no coração do deserto, até para lá do Hank, em direcção à grande cidade de Tombuctu. Alguns tinham morrido no caminho, outros tinham nascido, tinham casado. Também os animais tinham morrido, uns de pescoço cortado para fertilizar as profundezas da terra, outros atingidos pela peste e abandonados a apodrecer em cima da terra dura.
Era como se não houvesse nomes, aqui, como se não houvesse palavras. O deserto lavava tudo no seu vento, apagava tudo. Os homens tinham a liberdade do espaço no olhar, a sua pele era igual ao metal. A luz do Sol esplendia em todo o lado. A areia ocre, amarela, cinzenta, branca, a areia leve deslizava, mostrava o vento. Cobria todos os vestígios, todos os ossos. Repelia a luz, expulsava a água, a vida, longe de um centro que ninguém podia reconhecer. Os homens bem sabiam que o deserto não os queria para nada: por isso caminhavam sem parar, pelos caminhos que outros pés já haviam percorrido, para encontrar outra coisa. A água, essa, estava nos aiun, os olhos, cor de céu, ou então nos leitos húmidos dos velhos riachos de lama. Mas não era água para o prazer ou para o repouso. Era quando muito um vestígio de suor à flor do deserto, o dom parcimonioso de um Deus seco, o último movimento da vida. Água pesada arrancada à areia, água morta das fendas, água alcalina que provocava cólicas, que fazia vomitar. Era preciso ir ainda mais longe, um pouco curvado para a frente, na direcção que tinha sido apontada pelas estrelas.
Mas era o único, talvez o último país livre onde as leis dos homens já não tinham importância. Um país para as pedras e para o vento e também para os escorpiões e os gerbos, que sabem fugir e esconder-se quando o sol queima e a noite gela.
Agora, tinham surgido por cima do vale da Saguiet el Hamra, desciam lentamente as encostas de areia. No fundo do vale, começavam os traços da vida humana: campos de terra rodeados de muros de pedra seca, cercados para os camelos, barracas de folhas de palmeira anã, grandes tendas de lã que lembravam barcos voltados. Os homens desciam devagar, enterrando os calcanhares na areia que se esboroava. As mulheres abrandavam o andamento e iam-se deixando ficar para trás dos animais subitamente enlouquecidos pelo cheiro dos poços. Surgia então o imenso vale, abrindo-se sob o planalto de pedra. Nour procurava as altas palmeiras verde-escuras jorrando do solo, em filas apertadas à volta do lago de água clara, procurava os palácios brancos, os minaretes, tudo o que lhe tinham dito desde a infância, quando lhe haviam falado na cidade de Smara. Havia tanto tempo que não via árvores. De braços um pouco afastados, caminhava para o fundo do vale, com os olhos meio fechados por causa da luz e da areia.
À medida que os homens desciam para o fundo do vale, a cidade que tinham entrevisto por instantes desaparecia e apenas avistavam terra seca e nua. Fazia calor, o suor escorria abundantemente pela cara de Nour e colava-lhe a roupa azul aos rins e às costas.
Agora, outros homens, outras mulheres iam surgindo também, como que nascidos do vale. As mulheres
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tinham acendido o lume para a refeição da tarde, das crianças, dos homens que se perfilavam imóveis à frente das tendas poeirentas. Tinham acorrido de todos os pontos do deserto, para lá da Hamada de pedras, das montanhas de Cheheiba e de Ouarkziz, do Siroua, dos montes Oum Chakourt, para lá mesmo dos grandes oásis do Sul, do lago subterrâneo de Gourara. Tinham atravessado as montanhas pelo desfiladeiro de Maider, em direcção a Tarhamant, ou mais abaixo, lá onde o Draa vai ao encontro do Tingut, por Regbat. Tinham vindo todos eles, todos os povos do Sul, os nómadas, os comerciantes, os pastores, os ladrões, os mendigos. Alguns talvez tivessem vindo do reino de Biru, ou do grande oásis de Oualata. As caras tinham a marca do sol medonho, do frio mortal das noites, nos confins do deserto. Alguns deles eram de um negro quase vermelho, altos e longilíneos, falando uma língua desconhecida; eram os Tubbus vindos do outro lado do deserto, do Borku e do Tibesti, os comedores de nozes de cola, que iam até ao mar.
À medida que o rebanho de homens e animais se aproximava, multiplicavam-se as silhuetas negras dos homens. Por detrás das acácias retorcidas, surgiam as cabanas de ramos e lama, semelhantes a termiteiras. Casas de adobe, casamatas de tábuas e de lama e, sobretudo, esses pequenos muros de pedra seca, que nem chegavam ao joelho, e que dividiam a terra encarnada em alvéolos minúsculos. Nos campos, pouco maiores que panos de sela, escravos harratin tentavam fazer viver algumas favas, um pouco de pimenta ou milho miúdo. As acéquias mergulhavam os seus sulcos estéreis através do vale, procurando captar a mínima humidade.
Era ali que eles chegavam, agora, à grande cidade de Smara. Os homens, os animais, todos avançavam na terra ressequida, pelo fundo da grande ferida do vale da Saguiet.
Havia tantos dias, duros e agudos como o sílex, tantas horas que esperavam ver aquilo. Havia tanto sofrimento nos seus corpos magoados, nos lábios a sangrar, nos olhares queimados. Apressavam-se em direcção aos poços, sem ouvir os gritos dos animais nem o rumor dos outros homens. Quando chegaram ao pé dos poços, diante do muro de pedra que sustinha a terra mole,
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todos se detiveram. As crianças afastaram os animais à pedrada, enquanto os homens se ajoelharam para rezar. Depois todos mergulharam a cara na água e beberam demoradamente.
Era assim mesmo, os olhos da água no meio do deserto. Mas a água morna continha ainda a força do vento, da areia e do vasto céu gelado da noite. Enquanto bebia, Nour sentia entrar dentro de si o vazio que o empurrara de um poço para o outro. A água turva e enxabida enjoava-o, não conseguia estancar-lhe a sede. Era como se lhe instilasse no fundo do corpo o silêncio e a solidão das dunas e dos grandes planaltos de pedras. A água estava quieta nos poços, lisa como metal, só mostrando à superfície bocados de folha e a lã dos animais. No outro poço, as mulheres lavavam-se e penteavam o cabelo.
Perto delas, as cabras e os dromedários estavam imóveis, como se estivessem presos a estacas na lama do poço.
Outros homens iam e vinham, por entre as tendas. Eram os guerreiros azuis do deserto, mascarados, armados de punhais e de longas espingardas, que davam grandes passadas sem olhar para ninguém. Os escravos sudaneses vestidos de andrajos carregavam os fardos de milho ou de tâmaras, os odres de óleo. Gente de grande tenda, vestidos de branco e azul-escuro, chleuhs com a pele quase negra, homens da costa, com cabelos encarnados e a pele manchada, homens sem raça, sem nome, mendigos leprosos que não se aproximavam da água. Todos caminhavam pelo solo de pedras e poeira vermelha, todos se dirigiam para as muralhas da cidade santa de Smara. Tinham fugido ao deserto por algumas horas, por alguns dias. Tinham desenrolado a tela pesada das tendas, tinham-se envolvido nos mantos de lã, aguardavam a noite. Comiam agora a cozedura de milho regada com leite coalhado, o pão, as tâmaras secas que sabiam a mel e pimenta. As moscas e os mosquitos dançavam em torno do cabelo das crianças no ar da tarde, as vespas pousavam nas mãos, nos rostos sujos de poeira.
Falavam, agora, em voz muito alta, e as mulheres, na sombra abafada das tendas, riam e atiravam pedrinhas às crianças que brincavam. A palavra jorrava da boca dos homens como na embriaguez, as palavras cantavam,
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gritavam, soavam guturalmente. Atrás das tendas, ao pé das muralhas de Smara, o vento assobiava nos ramos das acácias, nas folhas das palmeiras anãs. Mas, no entanto, os homens e as mulheres, com os rostos e os corpos azulados pelo anil e pelo suor, conservavam o silêncio; afinal não tinham deixado o deserto.
Não esqueciam. Era no fundo do seu corpo, nas suas vísceras, aquele grande silêncio que passava continuamente por cima das dunas. Era o verdadeiro segredo. Por instantes, o homem da espingarda parava de falar a Nour, e olhava para trás, para o fundo do vale, além de onde vinha o vento.
Às vezes um homem de outra tribo aproximava-se da tenda e saudava estendendo as duas mãos abertas. Mal trocavam algumas palavras, alguns nomes. Mas eram palavras e nomes que se apagavam logo, simples traços ligeiros que o vento de areia ia desfazer.
Quando a noite aqui chegava, por cima da água dos poços, era de novo o reino do céu constelado do deserto. No vale da Saguiet el Hamra, as noites eram mais suaves e a lua nova subia no céu escuro. Os morcegos começavam a sua dança em redor das tendas, voavam ao rés da água dos poços. A luz dos braseiros vacilava, espalhava o cheiro do óleo quente e do fumo. Algumas crianças corriam por entre as tendas, soltando gritos guturais de cães. Os animais já dormiam, os dromedários com as patas presas, os carneiros e as cabras nos círculos de pedras secas.
Os homens já não estavam vigilantes. O guia tinha descansado a espingarda à entrada da tenda e fumava olhando em frente. Mal ouvia os ruídos suaves das vozes e dos risos das mulheres sentadas junto das braseiras. Talvez sonhasse com outras noites, com outros caminhos, como se a queimadura do sol na pele e a dor da sede na garganta não passassem do começo de outro desejo.
O sono passava devagar pela cidade de Smara. Algures, a sul, na grande Hamada de pedras, não havia sono na noite. Havia o torpor do frio, quando o vento soprava na areia e punha a nu o soco das montanhas. Não se podia dormir nos caminhos do deserto. Vivia-se, morria-se, olhando sempre com os olhos fixos queimados pela fadiga e pela luz. Por vezes os homens azuis encontravam um dos seus, sentado bem direito na areia, de
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pernas estendidas, com o corpo imóvel nos farrapos de roupa que esvoaçavam. No rosto cinzento, os olhos escuros fitavam o horizonte movediço das dunas, pois era assim que a morte o tinha surpreendido.
O sono é como a água, ninguém podia dormir realmente longe das nascentes. O vento soprava, semelhante ao vento da estratosfera, tirando todo o calor à terra.
Mas aqui, no vale vermelho, os viajantes podiam dormir.
O guia acordava antes dos outros, conservava-se imóvel diante da tenda. Olhava a bruma que subia lentamente ao longo do vale, na direcção do Mamada. A noite apagava-se à passagem da bruma. De braços cruzados no peito, o guia mal respirava, as pálpebras não se lhe moviam. Aguardava assim a primeira luz da alvorada, o fijar, a mancha branca que nasce a leste, por cima das colinas. Quando a luz surgia, debruçava-se para Nour e acordava-o docemente, pondo-lhe a mão no ombro. Juntos afastavam-se em silêncio, caminhavam pela pista de areia que se dirigia aos poços. Cães ladravam ao longe. Na luz parda da madrugada, o homem e Nour lavavam-se segundo a ordem ritual, uma parte de cada vez, recomeçando três vezes. A água do poço era fria e pura, a água nascida da areia e da noite. O homem e o rapaz banhavam mais uma vez a cara e lavavam as mãos, e depois voltavam-se para o Oriente para rezarem a primeira oração. O céu começava a iluminar o horizonte.
Nos acampamentos, as braseiras fulguravam na sombra derradeira. As mulheres iam buscar a água, as rapariguinhas corriam na água do poço gritando um pouco e, depois, regressavam, claudicantes, com a bilha em equilíbrio no pescoço magro.
Os rumores da vida humana começavam a subir dos acampamentos e das casas de lama: ruídos de metal, de pedras, de água. Os cães amarelos, reunidos no largo, andavam às voltas a latir. Os camelos e os animais escarvavam o chão, faziam subir a poeira vermelha.
Era nesse momento que a luz era bela na Saguiet el Hamra. Vinha simultaneamente do céu e da terra, uma luz de ouro e de cobre, que vibrava no céu nu, sem queimar, sem atordoar. As raparigas, afastando um pano da tenda, penteavam as pesadas cabeleiras, tiravam os piolhos, faziam o carrapito onde prendiam o véu azul. A luz
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maravilhosa refulgia no cobre dos seus rostos e dos seus braços.
Acocorado na areia, imóvel, Nour também contemplava a claridade que enchia o céu por cima dos acampamentos. Voos de perdizes atravessavam lentamente o espaço, subiam o vale vermelho. Onde iam? Talvez fossem até à origem da Saguiet, até aos estreitos vales de terra vermelha, entre os montes do Agmar. Depois, quando o Sol baixasse, voltariam ao vale aberto, por cima dos campos, lá onde as casas dos homens se assemelham às casas das térmitas.
Talvez conhecessem Aaiun, a cidade de lama e de tábuas, onde os telhados são às vezes de metal encarnado, talvez conhecessem mesmo o mar cor de esmeralda e de bronze, o mar livre?
Os viajantes começavam a chegar à Saguiet el Hamra, caravanas de homens e animais que desciam as dunas erguendo nuvens de pó vermelho. Passavam diante dos acampamentos, sem mesmo voltar a cabeça, ainda longínquos e sós como se estivessem no meio do deserto.
Caminhavam lentamente para a água dos poços, para dessedentarem as bocas a sangrar. O vento tinha começado a soprar, lá em cima, no Hamada. No vale, ia perdendo a força nas palmeiras anãs, nas sarças, nos dédalos de pedra seca. Mas, longe da Saguiet, o mundo cintilava aos olhos dos viandantes; planícies de rochas cortantes, montanhas revoltas, desfiladeiros, lençóis de areia que reverberavam o sol. O céu não tinha limites, de um azul tão duro que queimava a cara. Mais longe ainda, os homens caminhavam no labirinto das dunas, num mundo estranho.
Mas era o seu verdadeiro mundo. Essa areia, essas pedras, esse céu, esse Sol, esse silêncio, essa dor, e não as cidades de metal e de cimento, onde se ouvia o rumor das fontes e das vozes humanas. Era aqui, a ordem vazia do deserto, onde tudo era possível, onde se caminhava sem sombra à beira da sua própria morte. Os homens azuis avançavam pela pista invisível, em direcção a Smara, livres como nenhum ser no mundo o podia ser. À volta deles, a perder de vista, eram as cristas movediças das dunas, as ondas do espaço que não se podia conhecer. Os pés descalços das mulheres e das crianças pousavam na areia, deixando uma leve pegada que o vento logo
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apagava. Ao longe, as miragens pairavam entre o céu e a terra, cidades brancas, feiras, caravanas de camelos e de burros carregados de víveres, sonhos movimentados. E os próprios homens se assemelhavam a miragens, que a fome, a sede e a fadiga tinham feito despontar na terra deserta.
As estradas eram circulares, levavam sempre ao ponto de partida, traçando círculos cada vez mais estreitos em torno da Saguiet el Hamra. Mas era uma estrada que não tinha fim, pois era mais longa que a vida humana.
Os homens vinham do Leste, para lá das montanhas do Aadme Rieh, para lá do Yetti, de Tabelbala. Outros vinham do Sul, do oásis de el Haricha, do poço de Abd el Malek. Haviam caminhado para o Ocidente, para o Norte, até às ribeiras do mar, ou então através das grandes minas de sal de Teghaza. Tinham voltado, carregados de víveres e de munições, até à terra santa, o grande vale da Saguiet el Hamra, sem saber para onde voltariam a partir. Tinham viajado olhando os caminhos das estrelas, fugindo dos ventos de areia quando o céu se torna encarnado e as dunas começam a mexer.
Os homens, as mulheres viviam assim, sempre a andar, sem encontrar descanso. Morriam um dia, surpreendidos pela luz do Sol, atingidos por uma bala inimiga, ou então consumidos pela febre. As mulheres punham os filhos no mundo, simplesmente acocoradas na sombra da tenda, amparadas por duas mulheres, com o ventre comprimido pela grande faixa de pano. A partir do primeiro minuto da sua vida, os homens começavam a pertencer à extensão sem limites, à areia, aos cardos, às serpentes, aos ratos, ao vento sobretudo, pois era essa a sua verdadeira família. As meninas de cabelo cobreado cresciam, aprendiam os gestos sem fim da vida. O único espelho que tinham era a extensão fascinante das planícies de gesso, sob o céu únido. Os rapazes aprendiam a andar, a falar, a caçar e a combater, simplesmente para aprenderem a morrer na areia.
Em pé diante da tenda, do lado dos homens, o guia tinha ficado longamente imóvel observando as caravanas que se deslocavam para as dunas, para os poços. O sol
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iluminava-lhe o rosto moreno, o nariz adunco, os compridos cabelos anelados cor de cobre. Nour tinha-lhe falado, mas ele não havia ouvido. Depois, ao ficar calmo o acampamento, fizera um sinal a Nour e, juntos, haviam tomado a pista que seguia para o Norte, para o centro da Saguiet el Hamra. De vez em quando cruzavam-se com alguém que ia para Smara e trocavam algumas palavras:
- Quem és tu?
- Bou Sba. E tu?
- Yuemaia.
- De onde vens?
- Aain Rag.
- Eu, do Sul, de Iguetti.
Depois, separavam-se sem se despedirem. Mais longe, a pista quase invisível atravessava formações rochosas, matas de magras acácias. Era difícil andar, por causa dos calhaus afiados que saíam da terra vermelha, e Nour tinha dificuldade em seguir o pai. A luz brilhava mais forte, o vento do deserto levantava o pó sob os seus passos. Naquele lugar, o vale já não era aberto; era uma espécie de fenda cinzenta e encarnada, que faiscava como metal em certos sítios. Os calhaus atravancavam o leito da torrente seca, pedras brancas, vermelhas, sílices negros sobre os quais o sol fazia surdir chispas.
O guia caminhava contra o Sol, inclinado para a frente, com a cabeça tapada pelo manto de lã. As garras dos arbustos rasgavam as roupas de Nour, zebravam-lhe as pernas e os pés descalços, mas ele não fazia caso. Olhando em frente, não desviava os olhos do pai que se apressava. De repente, ambos pararam: o túmulo branco surgira entre as colinas de pedra, refulgindo à luz do dia. O homem mantinha-se imóvel, um pouco inclinado como se saudasse o túmulo. Depois, recomeçaram a caminhada sobre os calhaus que se desfaziam.
Lentamente, sem baixar os olhos, o guia subia para o túmulo. À medida que se aproximavam, o tecto arredondado parecia sair das pedras encarnadas, crescer para o céu. A luz muito bela e pura iluminava o túmulo, inchava-o no ar sobreaquecido. Não havia sombra naquele lugar, simplesmente as pedras aguçadas da colina e, por baixo, o leito seco da torrente.
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Chegaram diante do túmulo. Eram apenas quatro paredes de lama caiada, pousadas numa base de pedras encarnadas. Havia uma única porta semelhante à entrada de um forno, obstruída por uma grande pedra encarnada. Por cima das paredes, a abóbada branca tinha a forma de uma casca de ovo e terminava em ponta de lança. Nour olhava unicamente para a entrada do túmulo, e a porta ia aumentando nos seus olhos, tornava-se a porta de um monumento imenso com muralhas semelhantes a falésias de greda, com uma abóbada do tamanho de uma montanha. Aqui, detinham-se o vento e o calor do deserto, a solidão do dia; aqui, terminavam as pistas ligeiras, mesmo aquelas por onde caminham os transviados, os loucos, os vencidos. Era o centro do deserto, talvez, o lugar onde tudo tinha começado, outrora, quando os homens tinham vindo pela primeira vez. O túmulo brilhava no declive da colina vermelha. A luz do Sol reverberava-se na terra batida, queimava a abóbada branca, fazia cair, de vez em quando, pequenas cascatas de pó encarnado ao longo das gretas das paredes. Nour e o seu pai estavam sós ao pé do túmulo. Um denso silêncio reinava no vale da Saguiet el Hamra.
Pela porta redonda, depois de ter arredado a grande pedra, o guia viu a sombra forte e fria, e pareceu-lhe sentir na cara como que um bafo.
Em redor do túmulo, havia uma eira de terra vermelha batida pelos pés dos visitantes. Foi aí que o guia e Nour começaram por se instalar, a fim de rezarem. Aqui, no alto da colina, junto do túmulo do homem santo, com o vale da Saguiet el Hamra que estendia a perder de vista o seu leito ressequido, e o horizonte imenso onde surgiam outras colinas, outros rochedos recortados no céu azul, o silêncio era ainda mais pungente. Era como se o mundo tivesse parado de se mover e de falar, se tivesse transformado em pedra.
De vez em quando, Nour ainda ia ouvindo os estalidos das paredes de lama, o zumbido de um insecto, o gemido do vento.
"Aqui me tens", dizia o homem de joelhos na terra batida. "Ajuda-me, espírito do meu pai, espírito do meu avô. Eu atravessei o deserto, vim para pedir a tua bênção antes de morrer. Ajuda-me, dá-me a tua bênção, já que eu sou a tua própria carne. Aqui me tens."
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Ele falava assim, e Nour escutava as palavras do pai, sem compreender. Ele falava, umas vezes em voz alta, outras murmurando e cantarolando, com a cabeça a baloiçar, repetindo sempre estas simples palavras: "Aqui me tens, aqui me tens."
Inclinava-se para a frente, enchia as palmas das mãos de pó encarnado e entornava-o na cara, na testa, nas pálpebras, nos lábios.
Depois, erguia-se e aproximava-se da porta. Diante da abertura, ajoelhava e voltava a rezar, com a testa assente na pedra do limiar. A sombra dissipava-se lentamente no interior do túmulo, como um nevoeiro nocturno. As paredes do túmulo eram nuas e brancas, como no exterior, e o tecto baixo mostrava a armação de ramos misturados com lama seca.
Também Nour entrava, agora, de gatas. Sentia sob as palmas das mãos a laje dura e fria da terra misturada ao sangue dos carneiros. No fundo do túmulo, o guia estava estendido de barriga para baixo na terra batida. De braços estendidos, tocava a terra com as mãos, confundindo-se com o solo onde se deitava. Já não rezava, agora, já não cantava. Respirava devagar, com a boca encostada à terra, escutando o sangue que lhe batia na garganta e nos ouvidos. Era como se qualquer coisa de estranho entrasse nele, pela boca, pela testa, pelas palmas das mãos, pelo ventre, qualquer coisa que penetrava fundo dentro dele e que o modificava imperceptivelmente. Era o silêncio, talvez, vindo do deserto, do mar das dunas, das montanhas de pedras sob a claridade lunar, ou então das grandes planícies de areia cor-de-rosa onde a luz do Sol dança e ondula como uma cortina de chuva; o silêncio dos buracos de água verde, que contemplam o céu como olhos, o silêncio do céu sem nuvens, sem pássaros, onde o vento é livre.
O homem estendido no chão sentia os membros a entorpecer. A escuridão enchia-lhe os olhos como antes do sono. Contudo, ao mesmo tempo, uma energia nova entrava-lhe pelo ventre, pelas mãos, irradiava em cada um dos seus músculos. Nele, tudo se modificava, tudo se cumpria. Já não havia sofrimento, nem desejo, nem sequer vingança. Esquecia tudo, como se a água da oração lhe tivesse lavado o espírito. Também já não havia palavras, tornadas vãs pela sombra fria do túmulo. No seu
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lugar, havia aquela corrente estranha que vibrava na terra misturada de sangue, aquela onda, aquele calor. Aquilo não era como nada do que há sobre a terra. Era um poder directo, sem pensamento, que vinha do fundo da terra e ia para o fundo do espaço, como se um elo invisível unisse o corpo do homem estendido ao resto do mundo.
Nour mal respirava, observando o pai na sombra do túmulo. Os dedos afastados tocavam a terra fria e ela arrastava-o através do espaço numa corrida vertiginosa.
Assim estiveram muito tempo, o guia estendido na terra e Nour agachado, de olhos abertos, imóvel. Depois, quando tudo acabou, o homem ergueu-se devagar e fez sair o filho. Foi sentar-se encostado à parede do túmulo, ao pé da porta, e rolou de novo a pedra para tapar a entrada. Parecia esgotado como se tivesse andado durante horas sem beber nem comer. Mas no fundo de si havia uma força nova, uma felicidade que lhe iluminava o olhar. Era agora como se soubesse o que devia fazer, como se conhecesse antecipadamente o caminho que teria de percorrer.
Cobriu a cara com a ponta do manto; e agradecia ao homem santo, sem pronunciar palavras, mexendo simplesmente um pouco a cabeça e cantarolando no interior da garganta. As suas longas mãos azuis acariciavam a terra batida, agarrando a poeira fina.
À frente deles, o Sol seguia a sua curva no céu, lentamente, descendo do outro lado da Saguiet el Hamra. As sombras das colinas e dos rochedos alongavam-se, no fundo do vale. Mas o guia não parecia dar por nada. Imóvel, encostado à parede do túmulo, não sentia a passagem do dia, nem a fome nem a sede. Estava cheio de uma outra força, de um outro tempo, que o tinham tornado alheio à ordem dos homens. Talvez ele já não esperasse mais nada, talvez ele já não soubesse nada e se tivesse tornado semelhante ao deserto, silêncio, imobilidade, ausência.
Quando a noite começou a cair, Nour teve medo e tocou no ombro do pai. O homem olhou-o sem nada dizer, sorrindo de leve. Juntos, recomeçaram a descida da colina para o leito da torrente ressequida. Apesar da noite que chegava, ardiam-lhes os olhos e o vento quente queimava-lhes os rostos e as mãos. O homem vacilava
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um pouco ao avançar pelo caminho e teve de se apoiar ao ombro de Nour.
Em baixo, no fundo do vale, a água dos poços estava negra. Os mosquitos dançavam no ar, tentavam picar as pálpebras das crianças. Mais longe, perto das muralhas vermelhas de Smara, os morcegos voavam ao rés das tendas, giravam em torno das braseiras. Quando chegaram ao pé do primeiro poço, Nour e o pai voltaram a parar, para lavarem cuidadosamente cada parte do seu corpo. Depois recitaram a última oração, voltados para o lado de onde vinha a noite.
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Então eles vieram cada vez mais numerosos para o vale da Saguiet el Hamra. Chegavam do Sul, alguns com os seus camelos e os seus cavalos, mas a maior parte a pé, porque os animais morriam de fome e de sede no caminho. Todos os dias, em redor da muralha de lama de Smara, o rapaz via os novos acampamentos. As tendas de lã castanha acrescentavam novos círculos em torno dos muros da cidade. Todas as tardes, ao cair da noite, Nour observava os viajantes que chegavam envoltos em nuvens de poeira. Nunca ele vira tantos homens. Era um sussurro contínuo de vozes de homens e de mulheres, de gritos agudos de crianças, de choros, misturados aos apelos das cabras e dos cordeiros, ao estrondo dos atrelados, ao rosnido dos camelos. Um cheiro estranho, que Nour não conhecia bem, desprendia-se da areia e vinha às baforadas com o vento da tarde; era um cheiro forte, acre e doce ao mesmo tempo, o cheiro da pele humana, da respiração, do suor. As fogueiras de lenha, de galhos e de bosta acendiam-se na penumbra. O fumo das braseiras elevava-se por cima das tendas. Nour ouvia as melopeias suaves das mulheres que adormeciam os filhos.
A maior parte dos que chegavam agora eram velhos, mulheres e crianças, cansados pelas marchas forçadas através do deserto, com as roupas rasgadas e os pés descalços ou envoltos em trapos. Os rostos eram negros, queimados pela luz, e os olhos pareciam bocados de carvão. Os mais novos andavam nus, com as pernas chagadas e os ventres dilatados pela fome e pela sede.
Nour percorria o acampamento, esgueirava-se por entre as tendas. Estava espantado por ver tanta gente, e
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ao mesmo tempo sentia uma espécie de angústia, porque pensava, sem saber bem porquê, que muitos daqueles homens, daquelas mulheres e daquelas crianças iam morrer dentro em pouco.
Eram constantes os encontros com novos viajantes, que caminhavam lentamente pelos carreiros entre as tendas. Alguns deles vinham de mais ao sul, negros como sudaneses, e falavam uma língua que Nour não conhecia. Os homens andavam mascarados na sua maior parte, envoltos em túnicas de lã e em panos azuis, com os pés calçados em sandálias de pele de cabra. Empunhavam compridas espingardas de pederneira com cano de bronze, lanças, punhais. Nour afastava-se para os deixar passar e vi-os caminhar para a porta de Smara. Iam saudar o grande xeque Moulay Ahmed ben Mohammed el Fadei, aquele a quem chamavam Ma el Ainine, a Água dos Olhos.
Iam todos sentar-se nos bancos de lama seca, em volta do pátio da casa do xeque. Depois iam rezar a sua oração, ao pôr do Sol, a leste do poço, ajoelhados na areia, com o corpo virado na direcção do deserto.
Chegada a noite, Nour tinha voltado para a tenda do pai e sentara-se ao lado do irmão mais velho. No lado direito da tenda, a mãe e as irmãs conversavam, estendidas nos tapetes, entre os víveres e a albarda do camelo. Pouco a pouco, o silêncio regressava a Smara e ao vale, os ruídos das vozes humanas e os gritos dos animais extinguiam-se uns após outros. A lua cheia surgia no céu negro, disco branco magnificamente dilatado. A noite estava fria, apesar de todo o calor do dia que havia ficado na areia. Alguns morcegos voavam diante da Lua, descaíam rapidamente para o chão. Nour, deitado de lado, com a cabeça apoiada no braço, seguia-os com o olhar, enquanto aguardava o sono. Adormeceu de repente, sem dar por isso, com os olhos abertos.
Quando acordou, teve a estranha sensação de que o tempo não havia passado. Procurou com os olhos o disco da Lua, e foi ao ver que ela tinha principiado a sua descida para oeste que compreendeu que tinha dormido muito tempo.
O silêncio sobre os acampamentos era opressivo. Só se ouviam os gritos longínquos dos cães selvagens, algures nos confins do deserto.
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Nour levantou-se e viu que o pai e o irmão já não estavam na tenda. Só se vislumbravam no escuro, à esquerda da tenda, as formas vagas das mulheres e das crianças enroladas nos tapetes. Nour começou a andar pelo caminho de areia entre as tendas, na direcção dos muros de Smara. A areia iluminada pela luz da Lua era muito branca, com as sombras azuis dos calhaus e dos arbustos. Não havia nenhum ruído, como se todos os homens estivessem adormecidos, mas Nour sabia que os homens não estavam nas tendas. Só as crianças é que dormiam e as mulheres olhavam para fora, sem se mexer, enroladas nos mantos e nos tapetes. O ar da noite fazia tremer o rapaz e a areia era fria e dura sob os pés descalços.
Quando se aproximou dos muros da cidade, Nour ouviu o rumor dos homens. Viu, um pouco mais longe, a silhueta imóvel de um guarda, acocorado diante da porta da cidade com a longa carabina encostada aos joelhos. Mas Nour conhecia um lugar onde o muro de lama se tinha desmoronado e pôde entrar em Smara sem passar defronte da sentinela.
Descobriu logo a seguir a assembleia dos homens no pátio da casa do xeque. Estavam sentados no chão, em grupos de cinco ou seis à volta das braseiras onde as grandes chaleiras de cobre continham a água para o chá verde. Nour introduziu-se sem ruído na assembleia. Ninguém o olhava. Todos os homens estavam entretidos com um grupo de guerreiros postados diante da porta da casa. Havia alguns soldados do deserto, vestidos de azul, que se conservavam absolutamente imóveis a olhar para um homem idoso, vestido com um simples albornoz de lã branca que lhe cobria a cabeça, e dois jovens, armados, que falavam alternadamente com veemência.
Do lugar onde Nour estava sentado, devido ao rumor dos homens que repetiam ou comentavam o que já havia sido dito, não era possível compreender as palavras dos dois homens. Quando os seus olhos se habituaram ao contraste do escuro e dos clarões vermelhos das braseiras, Nour reconheceu a silhueta do velho. Era o grande xeque Ma el Ainine, aquele que já avistara quando o pai e o irmão o tinham ido cumprimentar, à sua chegada ao poço de Smara.
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Nour perguntou ao vizinho quem eram os dois homens que rodeavam o xeque. Deram-lhe os nomes:
"Saadbou e Larhdaf, os irmãos de Anmed ed Dehiba, aquele a quem chamam a Parcela de Ouro, aquele que será brevemente o nosso verdadeiro rei."
Nour não procurava entender as palavras dos dois jovens guerreiros. Olhava intensamente a figura frágil do velho, imóvel no meio deles, cujo manto iluminado pela lua formava uma mancha muito branca.
Todos os homens o olhavam também, como um só olhar, como se fosse ele que falasse de facto, como se ele fosse fazer um único gesto que tudo transformaria então, pois era ele quem distribuía a própria ordem do deserto.
Ma el Ainine não se movia. Não parecia ouvir as palavras dos filhos, nem o rumor contínuo que provinha das centenas de homens sentados diante dele no pátio. Às vezes, voltava um pouco a cabeça e olhava para longe, para lá dos homens e dos muros de lama da sua cidade, para o céu escuro, na direcção das colinas de pedras.
Nour pensava que ele talvez quisesse apenas que os homens voltassem para o deserto, de onde tinham vindo, e sentia um aperto no coração. Não compreendia as palavras dos homens que o rodeavam. Por cima de Smara, o céu não tinha fundo, parecia gelado, com as estrelas afogadas na névoa branca da luz lunar. E era um pouco como um sinal de morte, ou de abandono, como um sinal da terrível ausência que abria um vazio nas tendas imóveis e nos muros da cidade. Nour sentia isso sobretudo quando olhava a silhueta frágil do grande xeque, como se entrasse no próprio coração do velho e assim entrasse no seu silêncio.
Os outros xeques, os chefes da grande tenda e os guerreiros azuis vieram todos, um após outro. Todos diziam a mesma palavra, com a voz despedaçada pela fadiga e pela secura. Falavam dos soldados dos cristãos que entravam no oásis do Sul, e que levavam a guerra aos nómadas; falavam das cidades fortificadas que os cristãos construíam no deserto, e que fechavam o acesso dos poços até às margens do mar. Falavam das batalhas perdidas, dos homens mortos, tão numerosos que já nem se recordavam dos seus nomes, dos bandos de mulheres e crianças que fugiam para o Norte através do deserto, das
carcaças de animais mortos que se encontravam por todo o lado no caminho. Falavam das caravanas interrompidas, quando os soldados dos cristãos libertavam os escravos e os mandavam para o Sul, e quando os guerreiros tuaregues recebiam dinheiro dos cristãos por cada escravo que tivessem roubado aos viajantes. Falavam das mercadorias e do gado apreendidos, dos bandos de salteadores que tinham entrado no deserto ao mesmo tempo que os cristãos. Falavam também das tropas cristãs, guiadas pelos Negros do Sul, tão numerosas que cobriam as dunas de areia de um extremo ao outro do horizonte. Depois, os cavaleiros que cercavam os acampamentos e que matavam logo ali todos os que lhes resistiam, e que levavam em seguida as crianças para as porem nas escolas dos cristãos, nas fortalezas à beira do mar. Então, ao ouvirem aquilo, os outros homens diziam que era verdade, por Deus, e o rumor das vozes crescia e corria como o ruído do vento que chega.
Nour escutava o rumor das vozes que crescia e depois caía, como a passagem do vento do deserto pelas dunas, e a garganta estrangulava-se-lhe, porque havia uma ameaça terrível sobre a cidade e sobre todos os homens, uma ameaça que ele não conseguia compreender.
Quase sem pestanejar, olhava agora a silhueta branca do velho, imóvel entre os filhos apesar do cansaço e do frio da noite. Nour pensava que só ele, Ma el Ainine, podia modificar o curso daquela noite, acalmar a ira da multidão com um gesto da mão ou, pelo contrário, enfurecê-la apenas com algumas palavras que seriam repetidas de boca em boca e fariam nascer uma onda de raiva e de amargura. Como Nour, todos os homens olhavam para ele, com os olhos a arder de fadiga e de febre, com a tensão dada pelo sofrimento. Todos sentiam a pele endurecida pela queimadura do sol, e os lábios estavam ressequidos pelo vento do deserto. Aguardavam, quase sem se mexer, de olhos fixos, na esperança de um sinal. Mas Ma el Ainine não parecia aperceber-se. Dos olhos fixos desprendia-se um olhar distante que passava por cima das cabeças dos homens e se perdia para lá dos muros de lama seca de Smara. Talvez ele procurasse a resposta à angústia dos homens nas profundezas do céu nocturno, na estranha névoa de luz que nadava em torno do disco lunar. Nour olhou para cima, para o lugar onde
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normalmente se viam as sete estrelas da Ursa Menor, mas não viu nada. Só se avistava o planeta Júpiter, estático no céu gelado. A luz da Lua envolvera tudo com a sua bruma. Nour gostava das estrelas, pois o pai ensinara-lhe os nomes delas quando ainda era muito pequeno; mas naquela noite era como se não conseguisse reconhecer o céu. Tudo era imenso e gélido, a luz branca da Lua tudo afogava e cegava. Na terra, as brasas das fogueiras faziam buracos vermelhos que iluminavam estranhamente as caras dos homens. Talvez fosse o medo que tudo tivesse mudado, que tivesse descarnado os rostos e as mãos, e manchado de sombra negra as órbitas vazias; era a noite que tinha gelado a luz no olhar dos homens, que tinha aberto aquele buraco imenso no fundo do céu.
Quando os homens acabaram de falar, cada um por sua vez, em pé ao lado do xeque Ma el Ainine - todos aqueles de quem Nour ouvira os nomes pronunciados outrora pelo seu pai, os chefes das tribos guerreiras, os homens legendários, os Maqil, Arib, Oulad Yahia, Oulad Delim, Aroussiyine, Icherguiguine, os Reguibat com a cara velada de negro, e os que falavam as línguas dos chleuhs, os Idaou Belal, Idaou Meribat, Ait ba Amrane, e aqueles mesmo cujos nomes eram desconhecidos, vindos dos confins da Mauritânia, de Tombuctu, os que não se tinham querido sentar ao pé das braseiras, mas que tinham ficado perto da entrada da praça, de pé, envoltos nos seus mantos, com um ar simultaneamente de receio e de desprezo, os que não tinham querido falar. Nour olhava-os a todos, um após outro, e sentia o vazio terrível que se formava nos seus rostos, como se fossem morrer pouco depois.
Ma el Ainine não os via. Ele não tinha olhado para ninguém, excepto uma vez, provavelmente, quando o seu olhar se detivera um breve instante no rosto de Nour, como se estivesse admirado por o encontrar no meio de tantos homens. Era depois desse instante, rápido como um reflexo, quase imperceptível, mas o coração de Nour tinha desatado a bater mais depressa e com mais força, que Nour havia aguardado o sinal que o velho xeque devia fazer aos homens reunidos à sua frente. O velho conservava-se imóvel, como se pensasse noutra coisa, enquanto os seus dois filhos, inclinados para ele, falavam em voz baixa. Por fim, tirou do albornoz o rosário de
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ébano e acocorou-se na poeira, muito devagar, com a cabeça inclinada para a frente. Depois começou a rezar, recitando a fórmula que tinha escrito para si mesmo, enquanto os filhos se sentavam ao lado dele. Logo, como se esse simples gesto tivesse bastado, cessou o rumor das vozes humanas, e o silêncio instalou-se na praça, intenso e gelado na luz demasiado clara da lua cheia. Os ruídos longínquos, quase imperceptíveis, vindos do deserto, do vento, das pedras secas dos planaltos, e os gritos entrecortados dos cães selvagens recomeçaram a encher o espaço. Sem se cumprimentarem, sem soltarem uma palavra, os homens levantavam-se, uns atrás dos outros, e abandonavam a praça. Seguiam pelo caminho poeirento, um a um, porque já não sentiam vontade de conversar uns com os outros. Quando o pai lhe tocou no ombro, Nour ergueu-se e também se foi embora. Antes de sair da praça, voltou-se para olhar a estranha e frágil silhueta do velho, sozinho agora na claridade da Lua, salrnodiando a sua oração enquanto baloiçava o alto do corpo como alguém que vai a cavalo.
Nos dias seguintes, a inquietação aumentou ainda nos acampamentos de Smara. Era incompreensível, mas todos a sentiam, como um espinho no coração, como uma ameaça. O sol queimava com força durante o dia, reverberando a sua luz violenta nos ângulos das pedras e no leito das torrentes secas. Os contrafortes da Hamada rochosa vibravam ao longe, e avistavam-se constantes miragens por cima do vale da Saguiet. A cada hora do dia chegavam novas coortes de nómadas, fustigados pela fadiga e pela sede, vindos do Sul em marcha forçada, e as silhuetas confundiam-se no horizonte com o formigar das miragens. Caminhavam lentamente, com os pés enfiados em correias de pele de cabra, levando às costas os magros fardos. Às vezes, seguiam-nos camelos famélicos e cavalos coxos, cabras e carneiros. Erguiam apressadamente as tendas na orla do acampamento. Ninguém os ia saudar, nem perguntar-lhes de onde vinham. Alguns exibiam as marcas dos ferimentos recebidos em combates contra os soldados dos cristãos ou contra os salteadores do deserto; na maioria estavam sem forças, gastos pelas febres e pelas doenças intestinais. De vez em quando,
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chegavam os restos de um exército, dizimado, sem chefes, sem mulheres, homens de pele negra quase nus nas suas vestes em farrapos, com o olhar vazio, onde brilhavam a febre e a loucura. Iam dessedentar-se à fonte e depois deitavam-se no chão à sombra dos muros da cidade, como para dormir, mas com os olhos muito abertos.
Depois da noite da assembleia das tribos, Nour não tornara a ver Ma el Ainine nem os seus filhos. Mas sabia perfeitamente que o grande rumor que se calara quando o xeque havia começado a sua oração não havia cessado na realidade. O rumor já não estava nas palavras, agora. O pai, o irmão mais velho, a mãe nada diziam, e voltavam a cabeça como se quisessem que não os interrogassem. Mas a inquietação continuava a aumentar, nos ruídos do acampamento, nos gritos dos animais que se impacientavam, no som dos passos dos novos viajantes que chegavam do Sul, nas palavras duras que os homens lançavam uns aos outros ou que atiravam às crianças. A inquietação estava também nos cheiros violentos, no suor, na urina, na fome, toda aquela agrura que vinha da terra e do âmago dos acampamentos. E aumentava com a raridade da alimentação, algumas tâmaras picantes, o leite coalhado, o caldo de cevada que se comia depressa, às primeiras horas do dia, quando o Sol não tinha saído ainda das dunas. A inquietação estava na água suja do poço, turvada pelos passos dos homens e das bestas, e que o chá verde não conseguia melhorar. Há muito que já não havia açúcar, nem mel, e as tâmaras estavam secas como pedras, e a carne era a carne acre e dura dos camelos mortos de esgotamento. A inquietação crescia nas bocas secas e nos dedos que sangravam, no peso que os homens sentiam na cabeça e nos ombros, no calor do dia e depois no frio da noite que fazia tiritar as crianças enroladas nas pregas dos velhos tapetes.
Todos os dias, ao passar diante dos acampamentos, Nour ouvia as vozes das mulheres que choravam porque alguém tinha morrido durante a noite. Todos os dias se ia um pouco mais longe no desespero e na cólera, aumentando o desânimo de Nour. Ele pensava no olhar do xeque que flutuava ao longe sobre as colinas invisíveis da noite e que depois pousava nele, um breve instante, como um reflexo, e que o iluminava todo por dentro.
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Todos eles tinham vindo de tão longe para Smara, como se isso devesse ser o fim da sua viagem. Como se mais nada fosse preciso. Tinham vindo porque lhes faltava a terra debaixo dos pés, como se ela se tivesse desmoronado atrás deles, e já não fosse possível voltar para trás. E agora ali estavam, às centenas, aos milhares, numa terra que não os podia receber, uma terra sem água, sem árvores, nem alimento. O olhar de todos eles dirigia-se constantemente para todos os pontos do círculo do horizonte, para as montanhas torturadas do Sul, para o deserto do Leste, para os leitos secos das torrentes da Saguiet, para os planaltos do Norte. O olhar de todos eles também se perdia no céu vazio, sem uma nuvem, onde o sol de fogo cegava. Então a inquietação transformava-se em medo, e o medo em ira, e Nour sentia uma onda estranha que passava por cima do acampamento, um cheiro talvez, que subia dos panos das tendas e que circulava em torno da cidade de Smara. Era uma embriaguez também, a embriaguez do vazio e da fome que transformava as formas e as cores da terra, que fazia nascer grandes lagos de água pura nos fundos ardentes das salinas, que povoava o espaço de nuvens de pássaros e de moscas.
Nour ia sentar-se à sombra da muralha de lama, quando o Sol declinava, e contemplava o sítio onde Ma el Ainine tinha aparecido, naquela noite, na praça, o lugar invisível onde ele se tinha agachado para orar. Às vezes, outros homens vinham com ele, e conservavam-se imóveis à entrada da praça, para olhar a muralha de terra encarnada com janelas estreitas. Eles não diziam nada, olhavam apenas. Depois regressavam ao acampamento.
Seguidamente, depois de todos aqueles dias de cólera e de medo na terra e no céu, depois de todas aquelas noites geladas em que se dormia um pouco, com os olhos febris e o corpo coberto de um suor mau, depois de todo aquele tempo tão longo que extinguia a pouco e pouco os velhos e as crianças, de súbito, sem que ninguém soubesse como, soube-se que tinha chegado o momento da partida.
Nour bem o tinha entendido, antes mesmo que a mãe falasse nisso, antes mesmo que o irmão lhe dissesse a rir, como se tudo tivesse mudado: "Nós vamos partir,
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amanhã, ou depois de amanhã, ouve com atenção, nós vamos partir para o Norte, foi o xeque Ma el Ainine quem o disse, vamos partir para muito longe daqui!" Talvez a notícia tivesse vindo no ar, ou na poeira, ou talvez Nour a tivesse ouvido olhando para a terra batida, na praça de Smara.
Ela alastrara a todo o acampamento num ápice, e o ar ressoava como uma música. As vozes dos homens, os gritos das crianças, os sons dos cobres, o resmungo dos camelos, o escarvar e o bufar dos cavalos, tudo aquilo se assemelhava ao ruído que faz a chuva quando chega, descendo para o vale e levando de roldão as águas vermelhas das torrentes. Os homens e as mulheres corriam pelos caminhos, os cavalos escarvavam, os camelos amarrados roíam as cordas porque a impaciência era grande. Apesar do fogo do céu, as mulheres conservavam-se à frente das tendas, a falar e a gritar. Ninguém saberia dizer como tinha começado por chegar a notícia, mas todos repetiam a frase que os inebriava: "Nós vamos partir, vamos partir para o Norte."
Os olhos do pai de Nour brilhavam com uma espécie de alegria febril.
"Vamos partir em breve, foi o nosso xeque quem o disse, vamos partir em breve."
"Para onde?", perguntara Nour.
"Para o Norte, para lá das montanhas do Draa, para Souss, Tiznit. Lá, há água e terras para todos nós, à nossa espera, foi Moulay Hiba, o nosso verdadeiro rei, o filho de Ma el Ainine quem o disse, e Ahmed Ech Chems também."
Os grupos de homens seguiam pelos caminhos, para a cidade de Smara, e Nour via-se envolvido nos seus turbilhões. A poeira vermelha levantava-se sob os passos dos homens e dos animais, formava uma nuvem por cima do acampamento. Já se faziam ouvir as primeiras descargas das armas, e o cheiro acre da pólvora expulsava o relento de medo que reinara no acampamento. Nour avançava sem ver, empurrado pelos homens, atirado contra as paredes das tendas. A poeira secava-lhe a garganta e queimava-lhe os olhos. O calor do Sol era terrível, lançando chispas de brancura através da espessura da poeira. Nour caminhou um instante assim, ao acaso, com os braços estendidos para a frente. Depois caiu no chão
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e rastejou para o abrigo de uma tenda. Na penumbra, conseguiu recuperar os sentidos. Avistou uma velha, encostada à parte baixa da tenda, envolta no seu manto azul. Quando viu Nour, tomou-o primeiro por um ladrão e gritou-lhe injúrias enquanto lhe atirava pedras à cara. Depois aproximou-se e viu-lhe a cara suja de pó, onde as lágrimas tinham traçado sulcos vermelhos.
- Que tens tu? Estás doente? - disse ela com menos aspereza.
Nour abanou a cabeça. A mulher avançou para ele de gatas.
- Tu deves estar doente - disse ela. - vou dar-te chá.
Vazou o chá num púcaro de cobre.
- Bebe.
O chá escaldante e sem açúcar reconfortou Nour.
- Vamos partir brevemente daqui - disse ele, com a voz um pouco hesitante.
- Sim, é o que eles dizem.
- É um grande dia para todos nós - disse Nour. Mas a velha não tinha o ar de acreditar que era assim
tão importante, talvez simplesmente por ser velha.
- Tu, talvez chegues lá, onde eles dizem, no Norte. Mas eu morro antes.
E voltou a repetir:
- Eu morro antes de chegar ao Norte.
Mais tarde, Nour saiu da tenda. Os carreiros do acampamento estavam de novo desertos, como se todos os vivos tivessem partido. Mas, à sombra das tendas, Nour distinguiu as formas humanas: os velhos, os doentes que tremiam de febre, apesar do calor da fornalha, as raparigas que seguravam bebés nos braços e que olhavam em frente com olhos vazios e tristes. Nour voltou a sentir um aperto no coração, porque era a sombra da morte que estava debaixo das tendas.
Quando se aproximava dos muros da cidade, ouviu crescer o ruído ritmado da música. Os homens e as mulheres estavam reunidos diante da porta de Smara, formando um largo semicírculo em torno dos músicos. Nour ouviu o som agudo das flautas que subia, descia, subia e depois parava, enquanto os tambores e as rabecas retomavam incansavelmente a mesma frase. Uma voz de homem, grave e monótona, cantava uma canção
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andaluza, mas Nour não conseguia reconhecer as palavras. Por cima da cidade encarnada, o céu estava liso, muito azul, muito duro. A festa dos viajantes ia começar agora e duraria até ao dia seguinte. As bandeiras iam flutuar ao vento e os cavaleiros dariam a volta às muralhas descarregando as suas longas espingardas, enquanto as mulheres gritariam fazendo tremular a voz como guizos.
Nour sentiu a embriaguez da música e da dança, e esqueceu-se da sombra mortal que se acoitava nas tendas. Era como se já fosse a caminho das altas falésias do Norte, lá onde começam os planaltos, onde nascem as torrentes de água clara, a água que nunca ninguém olhou. Mas a angústia que dele se apossara quando vira chegar os bandos de nómadas refugiava-se algures no fundo de si mesmo.
Quis ver Ma el Ainine. Contornou a multidão, procurando avistá-lo do lado dos homens que cantavam. Mas o xeque não estava com a multidão. Então Nour voltou a dirigir-se à porta das muralhas. Penetrou na cidade pela mesma aberta de que se tinha servido na noite da assembleia. A grande praça de terra batida estava completamente vazia. As paredes da casa do xeque brilhavam à luz do Sol. Em torno da porta da casa, viam-se estranhos desenhos pintados em argila na parede branca. Nour ficou um longo momento a vê-los e a olhar as paredes gastas pelo vento. Depois caminhou para o meio do largo. A terra era dura e quente debaixo dos pés descalços, como as lajes de pedra do deserto. O ruído da música das flautas já aqui não chegava, a este pátio deserto, como se Nour estivesse no outro lado do mundo. Tudo se tornava imenso, enquanto o rapaz caminhava para o centro da praça. Distinguia com nitidez as batidas do sangue nas artérias do pescoço e das têmporas, enquanto o ritmo do coração parecia soar até no solo sob a planta dos seus pés.
Quando Nour chegou junto da parede de argila, ao lugar onde o velho se tinha acocorado para dizer a sua reza, atirou-se para o chão, com a cara encostada à terra, sem se mexer, sem pensar em mais nada. As mãos agarravam a terra como se as tivesse enclavinhadas na parede de uma altíssima falésia, e o gosto de cinza da poeira enchia-lhe a boca e as narinas.
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Após um longo momento, ousou erguer o rosto e viu a túnica branca do xeque.
- Que fazes aí? - perguntou Ma el Ainine. A voz era meiga e longínqua, como se estivesse na outra ponta da praça.
Nour hesitou. Pôs-se de joelhos, mas a cabeça continuou inclinada para a frente, porque não tinha coragem para olhar para o xeque.
- Que fazes aí? - repetiu o velho.
- Eu... eu rezava - disse Nour; e acrescentou: Eu queria rezar.
O xeque sorriu.
- E não conseguiste rezar?
- Não - disse simplesmente Nour. Pegou nas mãos do velho.
- Por favor, dá-me a bênção de Deus.
Ma el Ainine passou as mãos pela cabeça de Nour e afagou-lhe ligeiramente a nuca. Depois obrigou o rapaz a levantar-se e beijou-o.
- Como te chamas? - perguntou ele. - Não foi a ti que eu vi na noite da assembleia?
Nour disse-lhe o seu nome, o nome do pai e o nome da mãe. Ao ouvir este último nome, o rosto de Ma el Ainine iluminou-se.
- Então a tua mãe é da linhagem de Sidi Mohammed, aquele a quem chamavam Al Azraq, o Homem Azul?
- Ele era tio materno da minha avó - disse Nour.
- Então tu és realmente filho de um xerife - disse Ma el Ainine. Conservou-se silencioso um longo momento, com o olhar cinzento fixo no de Nour, como se procurasse uma recordação. Depois falou do Homem Azul, que tinha encontrado no oásis do Sul, do outro lado dos rochedos da Hamada, numa época em que nada do que havia aqui, nem mesmo Smara, ainda existia. O Homem Azul vivia numa cabana de pedras e de ramos, na orla do deserto, sem nada recear dos homens nem dos animais selvagens. Todas as manhãs encontrava diante da porta tâmaras e uma tigela de leite coalhado, mais uma bilha de água fresca, pois era Deus quem velava por ele e o alimentava. Quando Ma el Ainine o fora ver, para lhe pedir os seus ensinamentos, o Homem Azul não tinha querido recebê-lo. Durante um mês, obrigara-o
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a dormir à sua porta, sem lhe dirigir a palavra nem sequer olhá-lo. Simplesmente, ia deixando metade das tâmaras e do leite, e nunca Ma el Ainine havia comigo iguarias tão suculentas; quanto à água da bilha, tirava logo a sede e enchia-o de júbilo, pois era uma água virgem, feita do orvalho mais puro.
Ao fim de um mês, contudo, o xeque estava triste porque Al Azraq ainda não o tinha olhado. Resolvera então voltar para junto da família, pois pensava que o Homem Azul não o tinha julgado digno de servir Deus. Caminhava sem esperança em direcção à sua aldeia quando viu um homem que o aguardava. O homem era Al Azraq, que lhe perguntou porque o tinha deixado. Depois convidou-o a ficar com ele, no próprio lugar onde tinha parado. Ma el Ainine ficara ainda muitos meses junto dele, e um dia o Homem Azul disse-lhe que já nada tinha a ensinar-lhe. "Mas tu ainda não me transmitiste o teu ensinamento", disse Ma el Ainine. Então Al Azraq havia-lhe apontado o prato de tâmaras, a tigela de leite coalhado e a bilha de água: "Não partilhei tudo isto contigo, todos os dias, desde que chegaste?" Seguidamente mostrara-lhe o horizonte, na direcção do Norte, em direcção à Saguiet el Hamra, e dissera-lhe que construísse uma cidade santa para os seus filhos, e predissera-lhe mesmo que um deles se tornaria rei. Então Ma el Ainine deixara a sua aldeia com todos os seus e construíra a cidade de Smara.
Quando o xeque acabou de contar esta história, voltou a beijar Nour e regressou à sombra da sua casa.
No dia seguinte, ao cair do Sol, Ma el Ainine saiu de casa para recitar a última oração. Os homens e as mulheres do acampamento quase não tinham dormido, pois não tinham cessado de cantar e de bater no chão com os pés. Mas era já a grande viagem para o outro lado do deserto que havia começado, e a embriaguez da marcha ao longo do caminho de areia já se apoderara dos seus corpos, já os enchia do seu sopro ardente, já lhes fazia brilhar as miragens diante dos olhos. Ninguém tinha esquecido o sofrimento, a sede, a queimadura terrível do sol nas pedras e na areia sem fim, nem o horizonte que está sempre a recuar. Ninguém tinha esquecido a
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fome que rói, não só a fome dos alimentos, mas toda a fome, a fome de esperança e de libertação, a fome de tudo o que falta e cava a vertigem no solo, a fome que empurra para diante no meio da nuvem de poeira levantada pelos rebanhos aparvalhados, a fome que faz subir a encosta das colinas até ao ponto em que é necessário tornar a descer, tendo pela frente dezenas, centenas de outras colinas idênticas.
Ma el Ainine estava novamente acocorado na terra batida, no meio da praça, diante das casas caiadas. Mas desta vez os chefes das tribos estavam sentados ao lado dele. Ordenara que Nour e o seu pai se sentassem mesmo ao lado dele, enquanto o irmão mais velho e a mãe se tinham misturado à multidão. Os homens e as mulheres do acampamento estavam amontoados em semicírculo na praça, alguns agachados, envoltos nos mantos de lã para se protegerem do frio da noite, outros de pé, ou passeando ao longo dos muros da praça. Os músicos faziam soar a toada triste, dedilhando as cordas das violas e batendo com a ponta do indicador na pele dos tambores de barro.
O vento do deserto soprava agora intermitentemente, atirando à cara dos homens grãos de areia que queimavam a pele. Por cima do largo, o céu estava azul-escuro, já quase negro. Por todo o lado, em volta da cidade de Smara, era o silêncio infinito, o silêncio das colinas de pedra vermelha, o silêncio do azul profundo da noite. Era como se nunca tivesse havido outros homens que não estes, prisioneiros da sua minúscula cratera de lama seca, agarrados à terra encarnada em torno da sua poça de água cinzenta. Alhures, era a pedra e era o vento, as ondas das dunas, o sal, depois o mar, ou o deserto.
Quando Ma el Ainine começou a recitar o seu dzikr, a voz soou estranhamente no silêncio da praça, semelhante ao apelo longínquo de uma cabra. Ele cantava em voz quase baixa, baloiçando o alto do corpo da frente para trás, mas o silêncio na praça, na cidade, e em todo o vale da Saguiet el Hamra tinha a sua origem no vazio do vento do deserto, e a voz do velho era clara e segura como a de um animal vivo.
Nour escutou o longo apelo a tremer. Cada homem e cada mulher conservava-se imóvel, com o olhar como que voltado para o interior do seu próprio corpo.
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A ocidente, por cima das rochas quebradas da Hamada, já o Sol fizera uma vasta mancha vermelha. As sombras tinham-se esticado desmedidamente no chão e depois haviam-se unido umas às outras, como a água que sobe.
- Glória a Deus, ao Deus vivo, ao Deus que nunca morre, glória a Deus que não tem pai nem filho, que não tem sustentáculo, que é só e de si mesmo, glória a Deus que nos dirige, pois os Enviados de Deus vieram trazer-nos a verdade...
A voz de Ma el Ainine tremia no fim de cada invocação, desfalecida, ténue como uma chama, embora cada sílaba longa, destacada e pura, explodisse no centro do silêncio.
- Glória a Deus que é o único doador, o único senhor, aquele que sabe, que vê, aquele que compreende e que ordena, glória àquele que dá o bem e o mal, pois a sua palavra é o único refúgio, pois a sua vontade é o único desejo, contra o mal que fazem os homens, contra a morte, contra a doença, contra a infelicidade, que foram criados com o mundo...
A noite enchia lentamente primeiro a terra e as covas da areia, ao pé dos muros de lama, depois o espaço diante dos homens parados, o interior das tendas, os buracos onde dormiam os cães, a profundidade glauca da água do poço.
- É o nome daquele que protege, o nome daquele que vem até mim e me dá a força, pois o seu nome é o maior de todos, o seu nome é tal que eu já nada tenho a recear dos meus inimigos, e eu pronuncio o seu nome dentro de mim próprio quando vou para o combate, pois o seu nome é o nome que reina na terra e no céu...
No céu, onde a luz do Sol fugia para ocidente, enquanto o frio saía das profundezas da terra, passava através da areia dura e penetrava nas pernas dos homens.
- Glória ao Deus imenso, só o alto Deus tem a força e o poder, Deus altíssimo, Deus imenso, aquele que não é da terra nem do céu, aquele que vive para lá do meu olhar, para lá do meu saber, aquele que me conhece mas a quem eu não posso conhecer, Deus altíssimo, Deus imenso...
A voz de Ma el Ainine ressoava ao longe no deserto, como se chegasse aos confins da terra desolada, mais longe que as dunas e as ravinas, mais longe que os
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planaltos nus e os vales ressequidos, como se já chegasse às terras novas, do outro lado das montanhas do Draa, nos campos de trigo e de milho onde os homens iriam encontrar finalmente o seu alimento.
- Deus todo-poderoso, Deus perfeito, pois não há outra divindade fora de Deus, Deus que é sábio e dotado de poder, o altíssimo dotado de bondade, o próximo dotado de saber, o doador infinito, o único generoso, o favorável, aquele que manda nos exércitos do céu e da terra, o perfeito, o terno...
Mas a voz fraca e longínqua atingia cada homem, cada mulher, como que no interior do seu corpo, e era também como se ela saísse das suas gargantas, como se ela se misturasse aos seus pensamentos e às suas palavras para formar a sua música.
- Glória, louvado o eterno, glória, louvado aquele que nunca se destrói, aquele cuja existência é suprema, pois é aquele que escuta e que sabe...
O ar entrava no peito de Ma el Ainine, e depois ele expirava com força, quase sem mexer os lábios, de olhos fechados e o alto do corpo a baloiçar como o cimo de uma árvore.
- O nosso Deus, o nosso senhor, o nosso Deus, o melhor, o nosso Deus, luz da luz, astro da noite, sombra da sombra, o nosso Deus, a única verdade, a única palavra, glória e louvor àquele que combate no nosso combate, glória e louvor àquele cujo nome derrota os nossos inimigos, o senhor da terra de Deus...
Então, sem mesmo darem por isso, os homens e as mulheres pronunciam as palavras do dzikr, é a voz deles que se eleva sempre que a voz do velho se cala a tremer.
- É grande, o poderoso, o perfeito, aquele que é o nosso senhor e o nosso Deus, aquele cujo nome está escrito na nossa carne, o venerado, o santificado, o revelado, aquele que não tem senhor, aquele que disse: eu era um tesouro escondido, eu quis ser conhecido, e por causa disso fiz as criaturas.
- Ele é grande, não tem igual, nem rival, aquele que é anterior a toda a existência, aquele que criou a existência, aquele que dura, que possui, aquele que vê, que escuta e que sabe, aquele que é perfeito, aquele que não -tem igual...
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- Ele é grande, é belo no coração dos homens que lhe são fiéis, é puro no coração de todo aquele que o reconheceu, não tem rival na alma daquele que se lhe aproximou, ele é o nosso senhor, o melhor dos senhores...
- Ele não tem igual, nem rival, é aquele que vive no cume da mais alta montanha, aquele que está na areia do deserto, aquele que está no mar, no céu, na água, aquele que é a via, o que está na noite e nas estrelas...
Então, sem mesmo darem por isso, os músicos puseram-se a tocar, e a sua música leve falava com a voz de Ma el Ainine, sussurrando com as notas agudas e surdas dos bandolins, com o rumor dos tambores e, depois, explodindo de repente como o grito dos pássaros, com a melodia pura das flautas de cana.
A voz do homem velho e a música das flautas dialogavam agora, como se dissessem a mesma coisa, por cima das vozes dos homens e dos ruídos surdos dos passos na terra endurecida.
- Ele não tem igual, nem rival, pois é todo-poderoso, é aquele que não foi criado, a luz que deu vida às candeias, o lume que acendeu os outros lumes, o primeiro sol, a primeira estrela da noite, o que nasce antes de
todos os outros nascimentos, o que dá a vida e dá a
morte a toda a vida terrestre, o que faz e desfaz a forma das criaturas...
Então a multidão dançava, e gritava num tom lancinante:
- Houwa! Ele!
abanando a cabeça e erguendo as palmas das mãos para o céu negro.
- Ele é aquele que levou a verdade a todos os santos, aquele que abençoou o Senhor Mohammed, aquele que deu o poder e a palavra ao profeta nosso Senhor, ao enviado de Deus sobre a terra...
- Ah! Ele!
- Glória a Deus, louvado seja Deus, o imenso, o perfeito, o coração do segredo, aquele que está escrito no coração, o altíssimo, o imenso...
- Houwa! Ele!
- Glória a Deus pois nós somos as suas criaturas, nós somos pobres, somos ignorantes, somos cegos, surdos, nós somos imperfeitos...
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- Ah! Houwa!
- Ó tu que sabes, dá-nos a verdade! Ó tu, o suave, o terno, o paciente, o generoso, tu que não precisaste de ninguém para existir!
- Ah! Houwa!
- Glória a Deus que é o rei, o santo, o poderoso, o vitorioso, o glorioso, aquele que existe antes de toda a vida, o divino, o imenso, o único, o vitorioso de todos os inimigos, aquele que sabe, que vê, que ouve, o divino, o sábio, o imenso, o testemunho, o criador, único, imenso, que vê e ouve, o belo, o generoso, o forte, o perfeito, o alto, o imenso...
A voz de Ma el Ainine gritava agora. Depois interrompeu-se de súbito, como o canto de um grilo na noite. Então o rumor das vozes e dos tambores também se deteve, cessou a música das violas e das flautas, e só ficou, de novo, o longo e terrível silêncio que estrangulava as têmporas e fazia palpitar o coração. com os olhos rasos de água, Nour contemplava o velho inclinado para a terra, com o rosto oculto nas mãos, e sentiu no fundo de si mesmo, rápida como um gume, a extremidade desconhecida da angústia. Então foi a vez de Larhdaf, o terceiro filho de Ma el Ainine, se pôr a cantar. A sua voz forte explodiu na praça, não já com a nitidez pura da de Ma e l Ainine, mas igual a um som de cólera, e logo os músicos recomeçaram também a tocar.
- Ó Deus, nosso Deus! Aceita os testemunhos da fé e da verdade, os companheiros de Moulay bou Azza, de Bekkaia, os companheiros dos Goudfia, escuta as palavras da recordação tais como foram ditadas pelo nosso senhor o xeque Ma el Ainine!
O rumor da multidão transformou-se subitamente em grito:
- Glória ao nosso xeque Ma el Ainine, glória ao enviado de Deus!
- Glória a Ma el Ainine! Glória aos companheiros dos Goudfia!
- Ó Deus, escuta a recordação do seu filho, o xeque Ahmed, aquele a quem chamam Ech Chems, o Sol, escuta a recordação do seu filho Ahmed ed Dehiba, aquele a quem chamam Parcela de Oiro, Moulay Hiba, o nosso verdadeiro rei!
- Glória a eles! Glória a Moulay Hiba, nosso rei!
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Agora o entusiasmo apoderara-se de novo dos homens, e a voz rouca do jovem parecia despertar a ira e expulsar a fadiga.
- Ó Deus, nosso Deus, sê contente dos teus companheiros e dos que te seguem! Que Deus se mostre contente com os homens da glória e da grandeza! Que Deus se mostre contente com os homens da verdade! Que Deus se mostre contente com os homens da fidelidade e da pureza! Que Deus se mostre contente com os senhores, com os nobres e os guerreiros! Que Deus se mostre contente com os santos, com os abençoados e os servidores da fé! Que Deus se mostre contente com os pobres, com os errantes e os miseráveis! Que Deus nos conceda a sua grande bênção!
O rumor da multidão crescia, e as paredes das casas ressoavam, enquanto as vozes gritavam os nomes, inscreviam-nos para sempre na memória, na terra fria e nua e no céu constelado.
- Que a grande bênção do Senhor Enviado de Deus desça sobre nós, ó Deus, assim como a do Enviado Ilias, e a bênção de El Khadir que bebeu na própria nascente da vida, ó Deus, e a bênção de Ouways Qarni, ó Deus, e a do grande Abd el Qâdir ai Jilani, o santo de Bagdade, o Enviado de Deus sobre a terra, ó Deus...
Os nomes explodiam no silêncio da noite, por cima da música que murmurava e remexia, imperceptível como um sopro.
- Todas as pessoas da terra, e as pessoas do mar, ó Deus, as pessoas do Norte, as pessoas do Sul, ó Deus. As pessoas do Leste, as pessoas do Oeste, ó Deus. As pessoas do céu, as pessoas da terra, ó Deus...
As palavras da recordação eram as mais belas, as que vinham dos confins do deserto e que reencontravam finalmente o coração de cada homem, de cada mulher, como um velho sonho que recomeça.
- Dá-nos, ó Deus, a grande bênção dos senhores, Abou Yaza, Yalannour, Abou Madian, Maarouf, Al Jounaid, Al Hallaj, Al Chibli, os grandes senhores santos da cidade de Bagdade...
A luz da Lua surgia lentamente por cima das colinas de pedras, a leste da Saguiet, e Nour olhava-a baloiçando o corpo, de olhos imóveis perante a profundidade do céu negro. No centro do largo, o xeque Ma el Ainine
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continuava debruçado sobre si mesmo, muito branco, quase fantasmático. Só os seus dedos magros se moviam, desfiando o rosário de ébano.
- Dá-nos, ó Deus, a bênção dos senhores, Al Halwi, o que dançava para as crianças, Ibn Haouari, Tsaouri, Younous ibn Obaid, Baçri, Abou Yazrd, Mohammed as Saghir as Souhaili que ensinou a palavra do grande Deus, Abdesselaam, Ghazâli, Abou Chouhaib, Abou Mahdi, Malik, Abou Mohammed Abdelazziz ath Thobba, o santo da cidade de Marráquexe, ó Deus!
Os nomes eram a própria embriaguez da recordação, como se fossem semelhantes aos olhos das constelações, e a força viesse do seu olhar perdido, aqui, nesta praça gelada onde os homens estavam reunidos.
- Deus, ó Deus, dá-nos a bênção de todos os senhores, os companheiros, os que te seguem, o exército da tua vitória, Abou Ibrahim Tounsi, Sidi bei Abbas Sebti, Sidi Ahmed el Haritsi, Sidi Jakir, Abou Zakri Yahia an Nawâni, Sidi Mohammed ben Issa, Sidi Ahmed er Rifai, Mohammed ben Sliman ai Jazoúli, o grande senhor, o enviado de Deus na terra, o santo da cidade de Marráquexe, ó Deus!
Os nomes iam e vinham em todos os lábios, nomes de homens, nomes de estrelas, nomes dos grãos de areia no vento do deserto, nomes dos dias e das noites sem fim, para lá da morte.
- Deus, ó Deus, dá-nos a bênção de todos os senhores da terra, daqueles que conheceram o segredo, daqueles que conheceram a vida e o perdão, dos verdadeiros senhores da terra, do mar e do céu, Sidi Abderrhaman, aquele a quem chamavam Çahabi, o companheiro do profeta, Sidi Abdelqâdir, Sidi Embarek, Sidi Belkheir que tirou leite de um bode, Lalla Mançoura, Lalla Fathima, Sidi Ahmed ai Haroussi, que consertou uma bilha partida, Sidi Mohammed, aquele a quem chamavam Al Azraq, o Homem Azul, que mostrou o caminho ao grande xeque Ma el Ainine, Sidi Mohammed ech Cheikh el Kaamel, o perfeito, e todos os senhores da terra, do mar e do céu...
O silêncio voltou mais uma vez, cheio de embriaguez e de clarões. A música das flautas fazia-se ouvir por instantes, deslizava e extinguia-se de novo. Os homens levantavam-se e encaminhavam-se para as portas da
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cidade. Só Ma el Ainine não se movia, inclinado para o chão, fitando o mesmo ponto invisível na terra iluminada pela luz branca da Lua.
Quando a dança começou, Nour ergueu-se e juntou-se à multidão. Os homens batiam no solo duro com os pés descalços, sem avançar nem recuar, apertados num largo crescente que barrava a praça. O nome de Deus era exalado com força, como se todos os homens sofressem e se sentissem dilacerados no mesmo instante. O tambor de terra marcava cada grito:
- Houwa! Ele!
e as mulheres gritavam fazendo tremer a glote.
Era uma música que penetrava na terra fria, que ia até ao fundo do céu negro, que se misturava ao halo da Lua. Agora já não havia tempo, já não havia desgraça. Os homens e as mulheres batiam no solo com a ponta do pé, com o calcanhar, repetindo o grito invencível:
- Houwa! Ele!... HayyL. Vivo!...
de cabeça virada para a direita, para a esquerda, para a direita, para a esquerda, e a música que se encontrava no interior dos corpos atravessava a garganta e perdia-se no ponto mais afastado do horizonte. O sopro rouco e compassado levava-os como um voo, arrastava-os por cima do deserto imenso, ao longo da noite, para os pálidos livores da aurora, do outro lado das montanhas, no país de Souss, em Tiznit, em direcção à planície de Fez.
- Houwa! Ele!... Deus!... - gritavam as vozes roucas dos homens, inebriadas pelo ruído surdo dos tambores de terra e pelas notas das flautas de cana, enquanto as mulheres acocoradas balançavam o torso batendo com as palmas das mãos nos pesados colares de prata e de bronze. A voz delas tremia por instantes como a das flautas, no limite da percepção humana, e depois parava de súbito. Então os homens retomavam o seu martelar, e o ruído lancinante do seu sopro ressoava na praça:
- Houwa! Ele!... Hayy! Vivo!... Houwa! Hayy! Houwa! Hayy!
com os olhos semicerrados e a cabeça inclinada para trás. Era um ruído que ia para lá das forças naturais, um ruído que rasgava o real e infundia a tranquilidade ao mesmo tempo, o vaivém de uma serra imensa a devorar o tronco de uma árvore. Cada expiração dolorosa e
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profunda ainda mais aumentava a chaga do céu, que unia os homens ao espaço, que lhes misturava o sangue e a linfa. Cada cantor gritava o nome de Deus, cada vez mais depressa, de cabeça esticada como um boi que muge, com as artérias do pescoço tais cordas retesadas. A luz das braseiras e a luz branca da Lua iluminavam os corpos vacilantes, como se relâmpagos saltassem incessantemente no meio das nuvens de poeira. A respiração arquejava cada vez mais depressa, lançando os seus apelos quase mudos, pelos lábios imóveis e gargantas entreabertas, e na praça, no vazio da noite do deserto, só se ouvia o barulho de forja das gargantas que respiravam:
- Hh! Hh! Hh! Hh!
Agora já não havia palavras. Era assim, directamente com o centro do céu e da terra, unido pelo vento violento das respirações dos homens, como se ao acelerar-se o ritmo do sopro abolisse os dias e as noites, os meses, as estações, abolisse mesmo o espaço sem esperança, e fizesse aproximar o fim de todas as viagens, o fim de todos os tempos. O sofrimento era enorme, e a embriaguez do sopro fazia vibrar os membros, dilatava a garganta. No centro do semicírculo dos homens, as mulheres dançavam apenas com os pés nus, de corpo imóvel, com os braços um pouco afastados do corpo e mal estremecendo. O ritmo surdo dos calcanhares entranhava-se na terra e provocava um ruído contínuo como um exército que passa. Perto dos músicos, os guerreiros do Sul, com os rostos velados de negro, davam pulos erguendo os joelhos muito alto, como grandes aves tentando levantar voo. Depois, a pouco e pouco, foram-se aquietando na noite. Uns a seguir aos outros, os homens e as mulheres agacharam-se, com os braços estendidos para a frente e as palmas das mãos voltadas para o céu; só a respiração rouca continuava a exalar-se, lançando no silêncio as mesmas sílabas incansáveis:
- Hh! Hh! Houwa! Hayy!... Hh! Hh!
O ruído das respirações era tão forte, tão violento, que era como se todos já tivessem partido para muito longe de Smara, através do céu, no vento, misturados ao luar e à fina poeira do deserto. O silêncio não era possível, nem a solidão. O ruído das respirações tinha enchido a noite toda, cobrira todo o espaço.
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Sentado no meio da praça, no meio do pó, Ma el Ainini não olhava para ninguém. As mãos apertavam as contas do rosário, faziam cair uma conta a cada expiração da multidão. Era ele o centro da respiração, aquele que mostrara aos homens o caminho do deserto, aquele que havia ensinado cada ritmo. Agora já não esperava por nada. Já não interrogava ninguém. Também ele respirava de harmonia com a respiração da oração, como se ele e os outros homens tivessem todos uma única garganta, um único peito. E o sopro de todos eles já tinha aberto a estrada para o Norte, para as novas terras. O velho já não sentia a velhice, nem a fadiga, nem a inquietação. O sopro circulava dentro dele, vindo de todas aquelas bocas, o sopro violento mas doce também, A FELICIDADE que lhe prolongava a existência. Os homens já não olhavam para Ma el Ainine. De olhos fechados e braços afastados, com a cara virada para a noite, planavam, deslizavam pelo caminho do Norte.
Quando o dia surgiu, a leste, por cima das colinas de pedras, os homens e as mulheres começaram a caminhar para as tendas. Apesar de todos aqueles dias e de todas aquelas noites de embriaguez, ninguém se sentia cansado. Selaram os cavalos, enrolaram os grandes panos de lã das tendas, carregaram os camelos. O Sol não ia muito alto no céu quando Nour e o seu irmão começaram a caminhar pela estrada poeirenta, em direcção ao Norte. Levavam às costas um fardo de roupa e de víveres. À frente deles, na mesma estrada, caminhavam outros homens e outras crianças, e a nuvem de poeira cinzenta começava a subir para o céu azul. Algures, às portas de Smara, rodeado dos guerreiros azuis a cavalo, rodeado dos seus filhos, Ma el Ainine contemplava a longa caravana que se estendia através da planície desértica. Depois, fechava o manto branco e apertava o pescoço do camelo com o pé. Lentamente, sem se voltar, afastava-se de Smara, encaminhava-se para o seu fim.
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O Sol ergue-se por cima da terra, as sombras espraiam-se na areia cinzenta, na poeira dos caminhos. As dunas detêm-se diante do mar. As pequenas plantas gordas tremulam ao vento. No céu muito azul, frio, não há um pássaro, -uma nuvem. Há o Sol. Mas a luz da manhã mexe um pouco, como se não estivesse perfeitamente segura.
Pelo caminho, abrigada pela linha das dunas pardas, Lalla move-se lentamente. De vez em quando, pára e observa qualquer coisa no chão. Ou então colhe uma folha de planta gorda, esmaga-a nos dedos para sentir o cheiro doce e picante da seiva. As plantas são verde-escuras, luzidias, parecem-se com algas. Às vezes há um grande moscardo dourado num tufo de cicuta, e Lalla persegue-o a correr. Mas não se aproxima demasiado, porque mesmo assim tem algum medo. Quando o insecto esvoaça, corre atrás dele, de mãos estendidas, como se quisesse realmente apanhá-lo. Mas é só para se divertir.
Aqui, à volta, não há senão isto: a luz do céu, até onde a vista alcança. As dunas vibram com os golpes desferidos pelo mar, que não se vê, mas que se ouve. As plantazinhas gordas estão luzidias de sal, como se fosse suor. Há insectos aqui e acolá, uma joaninha pálida, uma espécie de vespa com a cintura tão estreita que parece cortada ao meio, uma velha escolopendra que deixa um rasto fino na poeira; e moscas achatadas, cor de metal, que procuram as pernas e a cara da menina, para beber o sal.
Lalla conhece todos os caminhos, todas as covas das dunas. Poderia andar por todo o lado de olhos fechados e saberia logo onde se encontrava, bastava-lhe tocar a terra com os pés descalços. O vento salta por instantes a barreira das dunas, lança punhados de agulhas à pele da criança, emaranha-lhe os cabelos negros. O vestido de Lalla cola-se à pele húmida e ela tem que puxar pelo tecido para o despegar.
Lalla conhece todos os caminhos, os que se seguem a perder de vista pelas dunas cinzentas, pelo meio da silvas, os que fazem uma curva e
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voltam para trás, os que nunca vão dar a parte nenhuma. Contudo, quando por ali anda, aparece sempre algo de novo. Hoje, foi o moscardo dourado que a arrastou para longe, para lá das casas dos pescadores e da laguna de água morta. No meio do matagal, mais tarde, foi de repente aquela carcaça de metal enferrujado que mostrava as garras e os cornos ameaçadores. Depois, na areia do caminho, uma lata de conserva de metal branco, sem marca, com dois buracos de cada lado da tampa.
Lalla continua a andar, muito devagar, olhando a areia cinzenta com tanta atenção que até os olhos lhe doem um pouco. Procura as coisas no chão, sem pensar em mais nada, sem olhar o céu. Depois pára sob um pinheiro manso, ao abrigo da luz, e fecha os olhos um instante.
Junta as mãos em volta dos joelhos, balança um pouco da frente para trás e depois de lado, cantarolando um estribilho em francês, uma canção que diz apenas:
- Mediterrâ-ne-o...
Lalla não sabe o que aquilo quer dizer. Foi uma canção que ouviu na rádio, um dia, e só fixou aquela palavra, mas é uma palavra que lhe agrada muito. Por isso, de vez em quando, quando se sente bem, quando não tem nada que fazer, ou pelo contrário quando está um pouco triste sem saber porquê, canta a palavra, às vezes em voz baixa só para ela, tão baixinho que mal se ouve, ou então muito alto, quase aos berros, para despertar o eco e afugentar o medo.
Agora, canta a palavra em voz baixa, porque está feliz. As grandes formigas encarnadas com a cabeça preta caminham sobre as agulhas de pinheiro, hesitam, escalam os raminhos. Lalla afasta-as com um ramo seco. Ela sente o cheiro das árvores que chega no vento, misturado ao gosto acre do mar. A areia jorra por instantes no céu, forma trombas oscilantes, em equilíbrio no cimo das dunas, que se quebram de súbito, lançando milhares de agulhas sobre as pernas e o rosto da criança.
Lalla conserva-se à sombra do grande pinheiro até o Sol ir alto no céu. Então volta para trás, para a cidade, sem se apressar. Reconhece os seus próprios traços na areia. As pegadas parecem mais pequenas e mais estreitas do que os pés dela, mas, quando se volta, Lalla verifica que são mesmo as suas pegadas. Encolhe os ombros e começa a correr. Os espinhos dos cardos picam-lhe os dedos dos pés. Tem que parar de vez em quando, depois de ter coxeado alguns passos, para arrancar os espinhos do dedo grande.
Onde quer que se pare, há sempre formigas. Parecem sair do meio dos calhaus e correr pela areia cinzenta ardente de luz, como se fossem espiões. Mas Lalla gosta delas, apesar de tudo. Também gosta das escolopendras vagarosas, dos besouros castanho-dourados, dos escaravelhos, dos lucanos, dos doríforos, das joaninhas, dos grilos que parecem pontas de ramos queimadas. As grandes louva-a-deus metem medo, e Lalla espera
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que elas se afastem ou então faz um desvio sem deixar de olhar para elas, enquanto os insectos vão girando sobre se próprios mostrando as pinças.
Há mesmo lagartos cinzentos e vermes. Largam a correr para as dunas, batendo as caudas com força para andarem mais depressa. Às vezes Lalla consegue apanhar um e diverte-se a segurá-lo pelo rabo até este se partir. Olha então o pedaço de cauda que se retorce sozinho na poeira. Um rapaz disse-lhe um dia que, se a gente esperasse, veria as patas e a cabeça tornarem a crescer no rabo do lagarto, mas Lalla não acredita muito nisso.
Há moscas, sobretudo. Lalla gosta muito delas, apesar do barulho que fazem e das picadas. Já não sabe muito bem porque gosta delas, mas é assim mesmo. Talvez seja por causa das patas tão finas, das asas transparentes, ou então porque sabem voar depressa, para a frente, para trás, aos ziguezagues, e Lalla acha que é uma coisa boa saber voar assim.
Deita-se de costas na areia das dunas, e as moscas achatadas pousam-Ihe na cara, nas mãos, nas pernas nuas, umas atrás das outras. Não vêm todas de uma só vez, porque têm um certo receio de Lalla, ao princípio. Mas gostam de vir beber a transpiração salgada da pele, e depressa se tornam atrevidas. Quando andam com as patas ligeiras, Lalla põe-se a rir, mas com pouca força, para não as assustar. Às vezes, uma mosca achatada pica o rosto de Lalla e ela solta um gritinho de raiva.
Lalla brinca demoradamente com as moscas. São as moscas achatadas que vivem no sargaço da praia. Mas há também as moscas pretas nas casas da Cidade, nos oleados, nas paredes de cartão, nas vidraças. Há os edifícios dos Frigoríficos, com grandes moscas azuis que voam por cima dos contentores de lixo fazendo um ruído de bombardeiro.
Subitamente, Lalla levanta-se. Corre tão depressa quanto pode para as dunas. Trepa a encosta de areia que se desfaz sob os seus pés descalços. Os cardos picam os dedos dos pés, mas não faz caso. Quer chegar ao cimo das dunas para ver o mar, o mais depressa possível.
Assim que se chega ao alto das dunas, o vento sopra na cara com violência e Lalla por pouco que não cai ao chão. O vento frio do mar aperta-lhe as narinas e queima-lhe os olhos, o mar é imenso, azul-cinzento, manchado de espuma, ralhando em surdina, enquanto as vagas curtas caem na planície de areia onde se reflecte o azul quase negro do vasto céu.
Lalla está inclinada para a frente contra o vento. O seu vestido (na realidade, é uma camisa de rapaz, de algodão, a que a tia cortou as mangas) cola-se à barriga e às pernas, como se saísse da água. O barulho do vento e do mar grita-lhe nos ouvidos, umas vezes à esquerda, outras à direita, misturado às pequenas detonações produzidas pelas mechas de cabelos ao baterem nas fontes. Às vezes o vento apanha um punhado de areia que atira à cara de Lalla. Ela tem de fechar os olhos para não ficar cega. Mas mesmo assim o vento consegue fazer chorar-lhe os olhos e dentro da boca há grãos de areia que rangem entre os dentes.
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Então, quando se sente completamente embriagada pelo vento e pelo mar, Lalla torna a descer a muralha das dunas. Acocora-se um instante no sopé das dunas, só o tempo de recuperar o fôlego. O vento não dá no outro lado das dunas. Passa por cima, vai para o interior das terras, até às colinas azuis onde paira a bruma. O vento não espera. Faz só o que quer, e Lalla sente-se feliz quando há vento, mesmo que lhe queime os olhos e as orelhas, mesmo que lhe atire punhados de areia à cara. Pensa nele muitas vezes, e no mar também, quando se encontra na casa escura da Cidade, em que o ar é tão pesado e cheira tanto; pensa no vento, que é grande, transparente, que salta incessantemente por cima do mar, que atravessa o deserto num instante, até às florestas de cedros, e que dança lá longe, ao pé das montanhas, no meio dos pássaros e das flores. O vento não espera. Atravessa as serras, varre o pó, a areia, as cinzas, derruba os cartões, às vezes chega até à cidade de tábuas e de cartão alcatroado e diverte-se a arrancar alguns telhados e algumas paredes. Mas isso não tem importância. Lalla pensa que ele é belo, transparente como água, rápido como o raio, e tão forte que poderia destruir todas as cidades do mundo, se lhe apetecesse, mesmo aquelas onde as casas são altas e brancas com grandes janelas de vidro.
Lalla sabe dizer o nome dele, aprendeu-o sozinha, quando era pequena e o ouvia chegar por entre as tábuas da casa, à noite. Ele chama-se uooooooooohhhhh, assim mesmo, a assobiar.
Um pouco mais adiante, no meio do mato, Lalla volta a encontrá-lo. Ele afasta as ervas amarelas como uma mão que passa.
Um gavião está quase imóvel por cima da pradaria, com as asas cor de cobre desfraldadas ao vento. Lalla olha-o, admira-o, porque ele sabe voar no vento. O gavião quase não move a ponta das rémiges, abre um pouco a cauda em leque e plana sem esforço, com a sombra em cruz a tremular nas ervas amarelas. De vez em quando, geme, diz apenas cáiiiiq! cáiiiiq! e Lalla responde-lhe.
Depois, de súbito, mergulha para a terra com as asas fechadas e rasa demoradamente as ervas, como um peixe que desliza num fundo submarino onde se agitam as algas. E assim desaparece, ao longe, entre as folhas de erva revolvidas. Lalla bem teima em gemer e soltar o seu queixume, cáiiiiq! cáiiiiq!, mas o pássaro não volta.
Mas fica por muito tempo nos seus olhos, sombra em forma de seta que desliza ao rés das ervas amarelas como uma raia, sem fazer ruído, na sua onda de medo.
Lalla mantém-se agora imóvel, com a cabeça atirada para trás, os olhos muito abertos para o céu branco, a contemplar os círculos que nadam sempre no mesmo sítio, que se cortam, como quando se atiram calhaus para uma cisterna. Não há insectos, nem pássaros, nem nada deste género, e no entanto vêem-se milhares de pontos que se movem no céu, como se lá em
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cima houvesse povos de formigas, de gorgulhos e de moscas. Eles não voam no ar branco; caminham em todos os sentidos, animados de uma pressa febril, como se não soubessem para onde fugir. Talvez sejam os rostos de todos os homens que vivem nas cidades, nas cidades tão grandes que nunca se consegue sair delas, lá onde há tantos automóveis, tantos homens, e onde nunca se pode ver duas vezes a mesma cara. Isto é o velho Naman quem o conta, quando diz também os nomes estrangeiros, Algeciras, Madrid, Marselha, Lyon, Paris, Genebra.
Lalla não vê sempre essas caras. Só em certos dias, quando o vento sopra e empurra as nuvens para as montanhas, quando o ar está muito branco e vibra com a luz do Sol; então consegue-se vê-los, aos homens-insectos, que se mexem, que andam, e que correm e que dançam, lá muito em cima, quase invisíveis como se fossem mosquitinhos.
Em seguida o mar torna a chamá-la. Lalla corre pelo matagal até às dunas cinzentas. As dunas são como vacas deitadas, com a cabeça em baixo e a espinha curvada. Lalla gosta de trepar para cima delas, fazendo um caminho só para si, com as mãos e com os pés, e depois descer o outro lado a rebolar até à areia da praia. O oceano quebra na praia dura com um grande ruído de rasgão, depois a água retira-se e a espuma funde ao sol. Há tanta luz e tanto barulho aqui, que Lalla é obrigada a fechar a boca e os olhos. O sal do mar queima-lhe as pálpebras e os lábios, e o vento que sopra às rajadas suspende-lhe a respiração na garganta. Mas Lalla gosta de estar perto do mar. Entra na água, as ondas batem-lhe nas pernas e na barriga, colam-lhe a camisa azul à pele. Ela sente os pés que se enterram na areia como duas estacas. Mas não se aventura mais longe porque o mar apanha crianças de vez em quando, assim, como se nada fosse, e depois devolve-as dois dias mais tarde, à areia dura da praia, com a barriga e a cara todos inchados com a água, e o nariz, os lábios, a ponta dos dedos e o sexo roídos pelos caranguejos.
Lalla segue pela areia, ao longo da franja de espuma. O vestido molhado até ao peito seca ao vento. Os cabelos muito negros ficam entrançados pelo vento, num só lado, e o rosto tem a cor do cobre na luz do Sol.
De longe a longe, há alforrecas encalhadas na areia, com os filamentos espalhados à volta como uma cabeleira. Lalla observa os buracos que se formam na areia sempre que a onda se retira. Corre também atrás dos minúsculos caranguejos cinzentos que fogem de lado, ligeiros, como se fossem aranhas, com as pinças erguidas, o que a faz rir a valer. Mas não tenha apanhá-los, como fazem as outras crianças; deixa-os escapar para o mar, desaparecer na espuma rutilante.
Lalla caminha ainda ao longo da costa, cantarolando sempre a mesma canção que diz apenas um nome:
- Mediterrâneo...
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Em seguida, vai sentar-se ao pé das dunas, diante da praia, com os braços em torno dos joelhos e a cara escondida nas pregas da camisa azul, para não respirar a areia que o vento atira para cima dela.
Vai sentar-se sempre no mesmo sítio, onde há um poste de madeira podre que sai da água, no meio das ondas, e uma grande figueira que cresce nas pedras, no meio das dunas. Ela espera por Naman, o pescador.
Naman, o pescador, não é como toda a gente. É um homem bastante alto, magro, com os ombros largos, e uma cara ossuda com a pele cor de tijolo. Anda sempre de pés descalços, com umas calças de tecido azul e uma camisa branca maior do que ele, que flutua ao vento. Mas, mesmo assim, Lalla pensa que ele é muito bonito e muito elegante, e o coração dela bate sempre com mais força quando sabe que ele está para chegar. Ele tem umas feições muito definidas, endurecidas pelo vento do mar, com a pele da testa e das faces esticada e queimada pelo sol do mar. Tem cabelos fortes, da mesma cor da pele. Mas são sobretudo os olhos que são de uma cor extraordinária, um azul-verde-acinzentado, muito claros e transparentes no rosto moreno, como se tivessem conservado a luz e a transparência do mar. É para lhe ver os olhos que Lalla gosta de esperar pelo pescador na praia, ao pé da figueira grande, e também para lhe ver o sorriso assim que ele a avistar.
Espera por ele muito tempo, sentada na areia leve das dunas, à sombra da figueira grande. Cantarola um pouco, com a cabeça enfiada nos braços, para não engolir muita areia. Canta a palavra de que tanto gosta, a palavra comprida e bonita que diz apenas:
- Mediterrâ-ne-o...
Aguarda olhando o mar que se torna ameaçador, cinzento-azulado como o aço, e a espécie de bruma pálida que esconde a linha do horizonte. Às vezes, julga ver um ponto negro que dança no meio dos reflexos, entre as cristas das vagas, e empertiga-se um pouco, porque supõe que é o barco de Naman que chega. Mas o ponto negro desaparece. É uma miragem no mar, ou talvez o dorso de um golfinho.
Foi Naman quem lhe falou dos golfinhos. Descreveu-lhe os cardumes de dorsos negros que saltam nas ondas, à frente da roda da proa dos navios, alegremente, como se quisessem cumprimentar os pescadores, e que desaparecem de repente, perdendo-se no horizonte. Naman gosta muito de contar a Lalla histórias de golfinhos. Quando fala, a luz do mar brilha com mais força nos seus olhos, e é como se Lalla pudesse distinguir os negros animais através da cor da íris. Mas por muito que ela se esforce por olhar o mar, não consegue ver os golfinhos. O mais certo é eles não gostarem de se aproximar da costa.
Naman conta a história de um golfinho que guiou o barco de um pescador até à costa, num dia em que ele se tinha perdido no meio da tempestade. As nuvens tinham descido sobre o mar e cobriam-no como um véu, e o
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vento terrível tinha partido o mastro do barco. Então a tempestade tinha arrastado o barco do pescador para muito longe, para tão longe que ele já nem sabia onde ficava a costa. O barco andara à deriva durante dois dias, no meio das vagas que ameaçavam voltá-lo. O pescador julgava que estava perdido e rezava as suas orações, quando um golfinho de grande porte tinha aparecido no meio das ondas. Saltava em torno do barco e brincava nas ondas como os golfinhos costumam fazer. Mas este andava sozinho. Depois, subitamente, tinha começado a guiar o barco. Custava a compreender, mas era o que ele tinha feito: tinha nadado atrás do barco, empurrando-o à sua frente. Às vezes, o golfinho ia-se embora, desaparecia no meio das vagas, e o pescador pensava que ele o tinha abandonado. Mas depois regressava e recomeçava a empurrar o barco com a fronte, batendo o mar com a poderosa cauda. Daquele modo, tinham nadado um dia inteiro, e à noite, pela nesga de uma nuvem, o pescador avistara finalmente as luzes da costa. O homem gritara e chorara de alegria, porque sabia que estava salvo. Quando o barco chegou junto do porto, o golfinho deu meia volta e dirigiu-se para o largo, e o pescador viu-o desaparecer, com o grande dorso negro que luzia à luz do crepúsculo.
Lalla gosta muito desta história. Espreita muitas vezes o mar, para ver se avista o grande golfinho negro, mas Naman disse-lhe que tudo isto se passou há muito tempo, e que o golfinho já devia ser agora muito velho.
Lalla espera, como todas as manhãs, sentada à sombra da figueira grande. Observa o mar cinzento e azul onde avançam as cristas aguçadas das ondas. As ondas caem na areia, seguindo um percurso um pouco oblíquo; começam por rebentar a leste, na direcção do cabo rochoso, depois a oeste, do lado do ribeiro. Finalmente, rebentam no meio. O vento arremessa-se, apanha bocados de espuma e projecta-os ao longe, para as dunas; a espuma mistura-se à areia e à poeira.
Quando o Sol está bem alto no céu sem nuvens, Lalla regressa à Cidade sem se apressar, porque sabe que vai ter trabalho quando chegar. É preciso ir buscar água à fonte, levando uma velha lata enferrujada em equilíbrio na cabeça, depois é preciso ir lavar a roupa ao rio - mas isso ainda não é o pior, porque se pode conversar com as outras, e ouvi-las contar as histórias mais incríveis, sobretudo àquela rapariga que se chama Ikikr, o que quer dizer grão-de-bico em berbere, por causa de uma verruga que tem na cara. Mas há duas coisas de que Lalla não gosta mesmo nada, é ir buscar lenha para o lume e moer o trigo para fazer farinha.
Por isso faz o regresso muito devagar, arrastando um pouco os pés pelo caminho. Nesta altura já não canta, porque é a hora em que se encontram pessoas nas dunas, rapazes que vão levantar as armadilhas para os pássaros ou homens que vão trabalhar. Às vezes os rapazes troçam de Lalla, porque ela não sabe andar muito bem de pés descalços, e também porque não
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sabe palavrões. Mas Lalla ouve-os vir de longe, esconde-se atrás de uma moita de espinhos, ao pé de uma duna, e espera que se vão embora.
Há também aquela mulher que mete medo. Ela não é velha, mas anda muito porca, com os cabelos pretos e vermelhos emaranhados e as roupas rasgadas pelos espinhos. Quando aparece no caminho das dunas, é preciso ter muito cuidado porque ela é má e porque não gosta das crianças. As pessoas chamam-lhe Aicha Kondicha, mas não é este o seu verdadeiro nome. Dizem que ela leva as crianças para lhes fazer mal. Quando Lalla ouve chegar Aicha Kondicha esconde-se atrás de uma moita e contém a respiração. Aicha Kondicha passa resmungando frases incompreensíveis. Ela pára um instante, endireita a cabeça porque percebeu que há alguém. Mas está quase cega e não consegue ver Lalla. Então afasta-se de novo a coxear e a gritar injúrias com a sua voz feia.
Certas manhãs, há no céu qualquer coisa de que Lalla gosta muito: é uma grande nuvem branca, comprida e delgada, que atravessa o céu no sítio onde já não há azul. Na ponta do fio branco, vê-se uma cruzinha de prata que avança lentamente, tão alta que mal se distingue. Lalla contempla demoradamente a cruzinha que avança no céu, com a cabeça dobrada para trás. Ela gosta de a ver avançar no vasto céu azul, sem ruído, deixando atrás aquela comprida nuvem branca, formada de bolinhas de algodão que se misturam e alargam como uma estrada, até que o vento passa pela nuvem e lava o céu. Lalla pensa que gostaria muito de estar lá em cima, dentro da minúscula cruz de prata, por cima do mar, por cima das ilhas, assim, até às terras mais distantes. Fica ainda muito tempo a olhar o céu, depois de o avião já ter desaparecido.
A Cidade surge, na volta do caminho, quando a gente se afasta do mar e depois de ter caminhado uma boa meia hora na direcção do rio. Lalla não sabe por que aquilo se chama a Cidade, porque no começo só havia uma dúzia de cabanas feitas de tábuas e de papel alcatroado, do outro lado do rio, e uns terrenos vagos que a separam da verdadeira cidade. Talvez lhe tivessem posto este nome para que as pessoas se esquecessem de que viviam com os cães e os ratos, no meio da poeira.
Foi aí que Lalla veio habitar, quando a mãe morreu, há tanto tempo que nem já se lembra bem do tempo em que chegou. Fazia muito calor, porque era no Verão, e o vento erguia nuvens de poeira por cima das cabanas de madeira. Ela tinha caminhado de olhos fechados, atrás da silhueta da tia, até àquela cabana sem janelas, onde viviam os filhos da sua tia. Então tinha sentido vontade de fugir a correr, de seguir pela estrada que vai para as altas montanhas, para nunca mais voltar.
Sempre que Lalla regressa das dunas e avista os telhados de chapa ondulada e de papel alcatroado, sente um aperto no coração e lembra-se do dia em que chegou à Cidade pela primeira vez. Mas agora já está tudo
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tão distante, que é como se tudo o que se passou antes nunca tivesse realmente acontecido, como se fosse uma história que ela tivesse ouvido contar.
É como com o seu nascimento, nas montanhas do Sul, lá onde começa o deserto. Às vezes, no Inverno, quando não há nada a fazer cá fora, e o vento sopra com força na planície de poeira e de sal, e assobia pelas frinchas da casa de Aamma, Lalla instala-se no chão e escuta a história do seu nascimento.
É uma história muito longa e estranha, e Aamma não a conta sempre da mesma maneira. com a sua voz que canta um pouco, e oscilando a cabeça, como se fosse adormecer, Aamma diz:
- Quando chegou o dia em que devias nascer, era pouco tempo antes do Verão, antes da seca. Hawa sentiu que tu ias nascer e, como estavam todos ainda a dormir, saiu da tenda sem fazer barulho. Ela apertou simplesmente a barriga com um pano e caminhou conforme pôde até um sítio onde havia uma árvore e uma nascente, pois sabia que quando o Sol nascesse precisaria da sombra e da água. Eles têm lá este costume, tem que se nascer sempre ao pé de uma fonte. Ela caminhou portanto até lá e depois deitou-se ao pé da árvore e esperou pelo fim da noite. Ninguém sabia que a tua mãe tinha saído. Ela sabia andar sem fazer barulho, sem fazer ladrar os cães. Eu, que dormia mesmo ao lado, não a tinha ouvido queixar-se, nem levantar-se para sair da tenda...
- Que se passou em seguida, Aamma?
- Em seguida, nasceu o Sol e as mulheres levantaram-se todas e viram que a tua mãe não estava lá, e compreenderam porque é que tinha saído. Eu fui então à procura dela, na direcção da nascente, e quando cheguei, ela estava de pé encostada à árvore, com os braços agarrados a um ramo, e gemia baixinho, para não acordar os homens nem as crianças...
- Que se passou depois, Aamma?
- Tu nasceste logo, assim, ali no chão entre as raízes da árvore, e lavaram-te na água da nascente e embrulharam-te num manto, porque ainda fazia o frio da noite. O Sol rompeu e a tua mãe voltou para a tenda para dormir. Lembro-me que não tinham fraldas para te vestir e foi no manto azul da tua mãe que dormiste. A tua mãe estava satisfeita porque tu tinhas nascido muito depressa, mas estava também triste porque, por causa da morte do teu pai, ela julgava que não teriam dinheiro que chegasse para te educar, e tinha medo de ser obrigada a dar-te a outra pessoa.
Às vezes Aamma conta a história de maneira diferente, como se não se recordasse muito bem. Por exemplo, ela diz que Hawa não estava agarrada ao ramo da árvore, mas que estava agarrada à corda de um poço, e que puxava com toda a força para resistir às dores. Ou então diz que foi um pastor de passagem que tirou a criança e a envolveu no seu manto de lã. Mas tudo isto se encontra no fundo de um nevoeiro incompreensível, como
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se se tivesse passado num outro mundo, do outro lado do deserto, lá onde existe um outro céu, um outro Sol.
- Passadas algumas horas, a tua mãe conseguiu andar pela primeira vez até ao poço, para se lavar e pentear o cabelo. Ela levava-te enrolada no mesmo manto azul, preso à cintura. Dava passos miudinhos porque ainda não se sentia tão forte como antes, mas estava muito feliz por tu teres vindo, e quando lhe perguntavam o teu nome, ela dizia que tu te chamavas como ela, Lalla Hawa, porque eras filha de uma xerifa.
- Gostava que me falasses daquele a quem chamavam Al Azraq, o Homem Azul.
Mas Aamma abana a cabeça.
- Hoje não, noutro dia.
- Peço-te, Aamma, fala-me dele.
Mas Aamma abana a cabeça sem responder. Levanta-se e vai amassar o pão no grande alguidar de barro, ao pé da porta. Aamma é assim mesmo; nunca quer falar muito tempo, e nunca diz muitas palavras quando se trata do Homem Azul ou de Moulay Ahmed ben Mohammed el Fadei, aquele a quem chamavam Ma el Ainine, a Água dos Olhos.
O que é estranho, aqui, na Cidade, é que toda a gente é muito pobre, mas nunca ninguém se queixa. A Cidade é sobretudo aquele amontoado de barracas de tábuas e de zinco que têm, à laia de telhado, umas grandes folhas de papel alcatroado presas com pedras. Quando o vento sopra com demasiada força no vale, ouve-se bater as tábuas e ranger os bocados de zinco, enquanto as folhas de papel alcatroado crepitam e rasgam-se sob a fúria das rajadas. Tudo aquilo faz uma música que castanhola e dá estalidos, como se estivesse num grande autocarro desconjuntado a rolar por uma estrada esburacada, ou como se houvesse uma data de animais e de ratos a galoparem pelos telhados e ao longo das ruelas.
Às vezes, a tempestade é muito violenta e varre tudo. No dia seguinte é preciso reconstruir a cidade. Mas as pessoas fazem aquilo a rir, porque são tão pobres que não têm medo de perder o que têm. Talvez se sintam contentes também, porque depois da tempestade o céu por cima deles fica ainda maior, mais azul, e a luz ainda é mais bela. Seja como for, em redor da Cidade não há mais nada senão a terra muito plana, com o vento de poeira, e o mar, tão grande que não se consegue ver todo.
Lalla gosta muito de olhar o céu. Vai muitas vezes para os lados das dunas, para o sítio onde o caminho de areia segue sempre a direito, e deita-se de costas, no meio da areia e dos cardos, com os braços em cruz. O céu abre-se então sobre o seu rosto liso, brilhante como um espelho, calmo, tão calmo, sem nuvens, sem pássaros, sem aviões.
Lalla abre muito os olhos, deixa o céu entrar dentro dela. Aquilo faz um movimento de balance, como se estivesse num barco, ou como se
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tivesse fumado de mais, e a cabeça lhe andasse à roda. É por causa do Sol. Ele queima muito, apesar do vento frio do mar; queima tanto que o calor entra no corpo da menina, enche-lhe a barriga, os pulmões, os braços e as pernas. Aquilo também faz mal, mal aos olhos e à cabeça, mas Lalla conserva-se imóvel porque gosta muito do Sol e do céu.
Quando está lá, estendida na areia, longe das outras crianças, longe da Cidade cheia de ruídos e de cheiros, e quando o céu é muito azul, como hoje, Lalla pode pensar naquilo de que gosta. Ela pensa naquele a quem chama Es Ser, o Segredo, aquele cujo olhar é como a luz do Sol, que rodeia e protege.
Ninguém o conhece aqui, na Cidade, mas às vezes, quando o céu está muito bonito e a luz resplandece no mar e nas dunas, é como se o nome de Es Ser aparecesse em todo o lado, soasse em toda a parte, até ao fundo de si própria. Lalla julga ouvir-lhe a voz, escutar o ruído ligeiro dos seus passos, sente na pele da sua cara o fogo do olhar dele que tudo vê, que tudo penetra. É um olhar que vem do outro lado das montanhas, para lá do Draa, do fundo do deserto, e que brilha como uma luz que não pode desaparecer.
Ninguém sabe nada a respeito dele. Quando Lalla lhe fala de Es Ser, Naman, o pescador, abana a cabeça, porque nunca ouviu o nome dele, e nunca se lhe refere nas suas histórias. Mas trata-se com certeza do seu verdadeiro nome, pensa Lalla, visto que foi o que ela ouviu. Mas talvez fosse apenas um sonho. Mesmo Aamma não deve saber nada acerca dele. No entanto, é um nome bem bonito, pensa Lalla, um nome que faz bem quando se ouve.
É para ouvir o nome dele, para avistar a luz do seu olhar, que Lalla vai sempre até muito longe, no meio das dunas, lá onde já não há mais nada senão o mar, a areia e o céu. Pois Es Ser não pode fazer ouvir o seu nome, nem dar o calor do seu olhar, quando Lalla se encontra na Cidade de tábuas e de papel alcatroado. É um homem que não gosta do ruído nem dos cheiros. É preciso que esteja só no vento, só como um pássaro suspenso no céu.
As pessoas daqui não sabem porque é que ela se afasta. Talvez julguem que vai até às casas dos pastores, do outro lado das colinas rochosas. Elas não dizem nada.
As pessoas esperam. A verdade é que aqui, na Cidade, nada mais podem fazer. Estão paradas, não muito longe da ribeira do mar, nas cabanas de pranchas e de zinco, imóveis, deitadas na sombra espessa. Quando o dia rompe por entre os calhaus e a poeira, saem, por instantes, como se fosse passar-se qualquer coisa. Falam um pouco, as raparigas vão à fonte, os rapazes vão trabalhar nos campos, ou então vão vadiar pelas ruas da cidade verdadeira, do outro lado do rio, ou então vão sentar-se à beira da estrada para verem passar os camiões.
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Lalla atravessa a Cidade todas as manhãs. Vai buscar baldes de água à fonte. Enquanto anda, ouve a música de todos os aparelhos de rádio, que se propaga de uma casa à outra, sempre a mesma interminável canção egípcia que vai e vem através das ruelas da Cidade. Lalla gosta muito de ouvir essa música, que geme e arranha em cadência, misturada ao ruído dos passos das raparigas e ao ruído da água da fonte. Quando chega à fonte, aguarda a sua vez, baloiçando o balde de folha na ponta do braço. Observa as raparigas; algumas são pretas como negras, como Ikikr, outras são muito brancas, com olhos verdes, como Manem. Há velhas veladas que vêm buscar a água numa panela preta e que se vão depressa, em silêncio.
A fonte é uma torneira de latão no alto de um comprido cano de chumbo, que vibra e que range sempre que a abrem e a fecham. As raparigas lavam as pernas e a cara sob o jacto gelado. Às vezes atiram baldes de água umas às outras com gritos estridentes. Há sempre vespas que giram à volta da cabeça, que ficam presas nos cabelos emaranhados.
Lalla leva o balde à cabeça, caminhando muito empertigada, para não deixar cair uma gota de água. De manhã, o céu está azul e claro, como se tudo fosse ainda absolutamente novo. Mas quando o Sol se aproxima do zénite, a bruma ergue-se junto do horizonte, como uma poeira, e o céu pesa com mais força sobre a terra.
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Há um sítio onde Lalla gosta muito de ir. É preciso tomar pelos carreiros que se afastam do mar e que vão para leste e depois subir o leito seco da torrente. Quando se chega à proximidade das colinas de pedras, continua-se a andar pelas pedras encarnadas, seguindo as pegadas das cabras. O Sol brilha com intensidade no céu, mas o vento é frio, porque vem das regiões onde não há árvores nem água; é o vento que vem do fundo do espaço. É aqui que vive aquele a quem Lalla chama Es Ser, o Segredo, porque ninguém sabe o seu nome.
Então ela chega ao grande planalto de pedra branca que se estende até aos confins do horizonte, até ao céu. A luz é deslumbrante, o vento frio corta os lábios e enche os olhos de lágrimas. Lalla olha com toda a força, até que o coração lhe comece a bater com grandes pancadas surdas na garganta e nas fontes, até que um véu vermelho cubra o céu e que oiça nos seus ouvidos as vozes desconhecidas que falam e que resmungam todas juntas.
Depois avança para o meio do planalto de pedra, lá onde só vivem os escorpiões e as serpentes. No planalto já não há caminho. Só existem blocos partidos, agudos como punhais, que a luz faz faiscar. Não há árvores, nem erva, apenas o vento que vem do centro do espaço.
É lá que o homem vem por vezes ao seu encontro. Não sabe quem ele é, nem de onde vem. Às vezes é aterrador, e outras vezes é muito meigo e muito calmo, cheio de uma beleza celeste. Só lhe vê os olhos, porque o rosto está velado com um pano azul, como o dos guerreiros do deserto. Ele usa um grande manto branco que refulge como o sal ao Sol. Nos olhos arde-lhe um fogo estranho e sombrio, na penumbra do turbante azul, e Lalla sente o calor daquele olhar que passa pela sua cara e pelo seu corpo, como quando nos aproximamos de um braseiro.
Mas Es Ser nem sempre vem. O homem do deserto só aparece quando Lalla tem muita vontade de o ver, quando ela precisa realmente dele, quando tem uma necessidade tão forte como de falar, ou de chorar. Mas
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mesmo quando ele não vem, há sempre qualquer coisa dele que paira no planalto de pedras, o seu olhar ardente, talvez, que ilumina a paisagem, que vai de uma ponta à outra do horizonte. Então Lalla pode caminhar pelo meio da extensão de pedras partidas, sem fazer caso de para onde vai, sem procurar nada. Em certas rochas há sinais que ela não compreende, cruzes, pontos, manchas em forma de Sol e de Lua, setas gravadas na pedra. Talvez sejam sinais de magia; é o que dizem os rapazes da Cidade, e é por isso que não gostam de vir até ao planalto branco. Mas Lalla não tem medo dos sinais, nem da solidão. Ela sabe que o homem azul do deserto a protege com o olhar dele, e já não teme o silêncio, nem o vazio do vento.
É um lugar onde não há ninguém, ninguém. Só há o homem azul do deserto que a contempla continuamente, sem lhe falar. Lalla não sabe bem o que ele lhe quer, o que ele pede. Ela precisa dele, e ele vem em silêncio, com o seu olhar cheio de poder. Ela sente-se feliz quando se encontra no planalto de pedras, na luz daquele olhar. Sabe que não deve falar naquilo a ninguém, nem mesmo a Aamma, porque é um segredo, a coisa mais importante que já lhe aconteceu. É também um segredo porque ela é a única a não ter medo de vir com frequência ao planalto de pedras, apesar do silêncio e do vazio do vento. Só, talvez, o pastor chleuh, aquele a quem chamam o Hartani, vem às vezes ao planalto, mas é só quando uma das cabras do rebanho se tresmalha a correr ao longo das ravinas. Ele também não tem medo dos sinais nas pedras, mas Lalla nunca se atreveu a falar-lhe do seu segredo.
É este o nome que ela dá ao homem que aparece às vezes no planalto de pedra. Es Ser, o Segredo, porque ninguém deve saber o nome dele.
Ele não fala. Quer dizer, não fala a mesma linguagem que os homens. Mas Lalla ouve a voz dele no interior dos seus ouvidos, e ele diz com a sua linguagem coisas muito belas que lhe perturbam o interior do seu corpo, que a fazem arrepiar-se. Talvez ele fale com o ruído ligeiro do vento que vem do fundo do espaço, ou então com o silêncio entre cada sopro de vento. Talvez fale com as palavras da luz, com as palavras que explodem em chuva de faíscas, sobre as lâminas das pedras, as palavras da areia, as palavras dos calhaus que se esboroam em pó duro, e também as palavras dos escorpiões e das serpentes que deixam os seus rastos ligeiros na poeira. Ele sabe falar com todas essas palavras e o olhar salta de uma pedra para a outra, vivo como um animal, vai num ápice até ao horizonte, sobe a direito no céu, plana mais alto que as aves.
Lalla gosta de vir aqui, ao planalto de pedra branca, para ouvir essas palavras secretas. Ela não conhece aquele a quem chama Es Ser, não sabe quem ele é, nem de onde vem, mas gosta de o encontrar naquele lugar, porque ele traz consigo, no seu olhar e na sua linguagem, o calor das terras de dunas e de areia, das regiões sem árvores e sem água.
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Mesmo quando Es Ser não vem, é como se ela pudesse ver com o olhar dele. É difícil de compreender, porque é um pouco como num sonho, como se Lalla não fosse inteiramente ela própria, como se tivesse entrado no mundo que está do outro lado do olhar do homem azul.
Então aparecem as coisas belas e misteriosas. Coisas que ela nunca viu noutro lugar, que a perturbam e a inquietam. Ela vê a extensão de areia cor de oiro e de enxofre, imensa, semelhante ao mar, às grandes ondas imóveis. Nessa extensão de areia, não se avista ninguém, não há uma árvore, uma erva, nada senão a sombra das dunas que se espreguiçam, que se tocam, que formam lagos ao crepúsculo. Aqui, tudo é semelhante, e é como se ela estivesse ao mesmo tempo aqui, e depois mais longe, lá onde o seu olhar poisa ao acaso, depois ainda noutro lugar, muito próximo do limite entre a terra e o céu. As dunas movem-se sob o seu olhar, lentamente, afastando os seus dedos de areia. Há riachos de oiro que correm no próprio lugar, no fundo dos vales tórridos. Há ondulações duras, cozidas pelo calor terrível do Sol, e grandes praias brancas de curvatura perfeita, imóveis perante o mar de areia vermelha. A luz rutila e escorre por toda a parte, a luz que nasce de todos os lados ao mesmo tempo, a luz da terra, do céu e do Sol. No céu, não há fim. Apenas a bruma seca que ondula junto do horizonte, quebrando reflexos, dançando como ervas de luz - e a poeira ocre e rosa que vibra no vento frio, que sobe para o centro do céu.
Tudo isso é estranho e longínquo, embora pareça familiar. Lalla vê à sua frente, como com os olhos de um outro, o grande deserto onde a luz resplandece. Sente na pele o bafo do vento do Sul, que ergue as nuvens de areia, sente sob os pés nus a areia escaldante das dunas. Sente, sobretudo, por cima dela, a imensidade do céu vazio, do céu sem sombra onde brilha o Sol puro.
Então, durante muito tempo, deixa de ser ela própria; torna-se outra pessoa, distante, esquecida. Vê outras formas, silhuetas de crianças, homens, mulheres, cavalos, camelos, rebanhos de cabras; vê a forma de uma cidade, um palácio de pedra e de argila, muralhas de lama de onde saem bandos de guerreiros. Vê isso, pois não é um sonho, mas a recordação de uma outra memória em que ela entrou sem o saber. Ouve o ruído das vozes dos homens, os cantos das mulheres, a música, e talvez ela própria dance, girando sobre si mesma, batendo a terra com a ponta dos pés descalços e os calcanhares, fazendo soar os braceletes de cobre e os pesados colares.
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O que também é bom, são as vespas. A cidade está cheia delas, com os seus longos corpos amarelos riscados de preto e as asas transparentes. Andam por toda a parte, voando pesadamente e sem se preocuparem com os homens. Procuram arranjar comida. Lalla gosta muito delas, olha-as muitas vezes, suspensas nos raios de Sol, por cima dos montes de lixo ou então à volta dos balcões de carne, no talho. Às vezes aproximam-se de Lalla, quando ela come uma laranja; tentam poisar-lhe na cara ou nas mãos. Às vezes também, uma delas pica-a no pescoço, ou no braço, e aquilo faz um ardor que dura várias horas. Mas não faz mal. Lalla gosta de vespas mesmo assim.
As moscas já não são a mesma coisa. Para já, não têm aquele longo corpo amarelo e preto, nem aquela cintura tão fina, quando estão poisadas na borda de uma mesa. As moscas são rápidas, poisam de repente, todas achatadas, com os grandes olhos cinzento-encarnados todos esbugalhados na cabeça.
Na Cidade há sempre muito fumo por cima das cabanas de madeira, ao longo das vielas de terra batida. Há mulheres que cozinham a comida nos fogareiros de barro, há as queimadas que destroem o lixo, as fogueiras para aquecer o alcatrão para revestir os telhados.
Quando tem tempo, Lalla gosta de parar para observar as fogueiras. Ou então vai até às torrentes secas para apanhar galhos de acácia, ata-os com uma corda e traz o feixe à casa de Aamma. As chamas saltitam alegremente nos ramos, fazem estalar as hastes e os espinhos, fazem ferver a seiva. As chamas dançam no ar frio da manhã, produzindo uma música linda. Se olharmos para o interior das chamas, podemos ver os génios, pelo menos é o que Aamma diz. Também se podem ver paisagens, cidades, rios, toda a espécie de coisas extraordinárias que aparecem e se escondem, um pouco como as nuvens.
Em seguida chegam as vespas, porque sentiram o cheiro da carne de borrego a cozer na panela de ferro. As outras crianças têm medo das
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vespas, querem enxotá-las, tentam matá-las à pedrada. Mas Lalla deixa-as voar à volta do seu cabelo, procura compreender o que cantarolam ao fazer zumbir as asas.
Quando chega a hora da refeição, o Sol está alto no céu e queima a valer. O branco é tão branco que não se pode olhar de frente, as sombras são tão negras que parecem buracos na terra. Então chegam primeiro os filhos de Aamma. São dois, um de catorze anos chamado Ali, o outro de dezassete anos a quem chamam o Bareki, porque foi benzido no dia em que nasceu. São eles os primeiros a ser servidos por Aamma, e comem a correr, como glutões, sem falar. Enquanto comem, vão enxotando as vespas com as costas das mãos. Em seguida vem o marido de Aamma, que trabalha nas plantações de tomate, ao sul. Chama-se Selim, mas chamam-lhe o Soussi, porque é das bandas do rio Souss. É baixinho e magro, com bonitos olhos verdes, e Lalla gosta bastante dele, embora seja voz corrente que é um preguiçoso. Mas ele não mata as vespas, pelo contrário, às vezes coloca-as entre o polegar e o indicador e diverte-se a fazer sair o ferrão, depois põe-nas delicadamente no chão e deixa-as voar.
Há sempre pessoas que vêm de qualquer lado, e Aamma põe de parte um pedaço de carne para esses. Às vezes é Naman, o pescador, que vem comer à casa de Aamma. Lalla fica sempre muito contente quando sabe que ele há-de vir, porque Naman também gosta dela e conta-lhe belas histórias. Ele come devagar e de vez em quando diz-lhe qualquer coisa engraçada. Ele chama-lhe pequena Lalla, por ela ser descendente de uma verdadeira xerifa. Quando olha para os olhos dele, Lalla tem a impressão de ver a cor do mar, de atravessar o oceano, de estar do outro lado do horizonte, nessas grandes cidades onde há casas brancas, jardins, fontes. Lalla gosta muito de ouvir os nomes das cidades e pede muitas vezes a Naman que lhos diga, assim mesmo, só os nomes, lentamente, para ter tempo de ver as coisas que eles dissimulam:
- Algeciras
- Granada
- Sevilha
- Madrid
Os filhos de Aamma querem saber mais. Esperam que o velho Naman tenha acabado de comer e fazem toda a espécie de perguntas sobre a vida nesses lugares, do outro lado do mar. Eles querem é saber coisas sérias, não lhes interessam os nomes só para sonhar. Perguntam a Naman o dinheiro que se pode ganhar, que género de trabalho, quanto custam as roupas, a alimentação, quanto custa um carro, se há muitos cinemas. O velho Naman é demasiado velho, não sabe essas coisas ou então já as esqueceu, e depois, seja como for, a vida já deve ter mudado desde o tempo em que ele lá vivia, antes da guerra. Então os rapazes encolhem os
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ombros, mas não dizem nada, porque Naman tem um irmão que ficou em Marselha e que talvez lhes possa ser útil um dia.
Em certos dias, Naman tem vontade de falar do que viu, e é a Lalla que ele o conta, pois é a ela que prefere e porque não lhe faz perguntas.
Mesmo que não seja inteiramente verdade, Lalla gosta do que ele conta. Ela escuta-o atentamente, quando ele fala das grandes cidades brancas à beira do mar, com todas as suas alamedas de palmeiras, aqueles jardins que vão até ao cimo das colinas, cheios de flores, de laranjeiras, de romãzeiras, e aquelas torres tão altas como montanhas, aquelas avenidas tão compridas que não se lhes vê o fim. Ela também gosta quando ele lhe fala dos automóveis pretos que rodam lentamente, sobretudo à noite, com os faróis acesos, e das luzes de todas as cores nas frontarias das lojas. Ou ainda dos grandes barcos brancos que chegam a Algeciras, à tarde, que deslizam devagar ao longo dos cais molhados, enquanto a multidão grita e gesticula para acolher os que chegam. Ou então do caminho-de-ferro, que vai para o Norte, de cidade em cidade, que atravessa os campos enevoados, os rios, as -montanhas, que entra em longos tuneis escuros, assim, com todos os passageiros e as suas bagagens, até à grande cidade de Paris. Lalla escuta tudo isso e estremece um pouco de inquietação, e ao mesmo tempo pensa que bem gostaria de estar nesse caminho-de-ferro, ir de cidade em cidade, para os lugares desconhecidos, até esses países onde nada se sabe acerca da poeira e dos cães famintos, nem das cabanas de tábuas onde entra o vento do deserto.
- Leva-me contigo quando te fores embora - diz Lalla. O velho Naman abana a cabeça:
- Agora já estou muito velho, pequena Lalla, já não posso ir, acabava por morrer no caminho.
Para a consolar, acrescenta:
- Mas tu hás-de ir. Verás todas essas cidades e depois voltas para aqui, como eu.
Ela contenta-se em olhar para os olhos de Naman para ver o que ele viu, como quando se olha para o fundo do mar. Pensa demoradamente nos belos nomes das cidades e canta-os dentro da sua cabeça como se fossem as palavras de uma canção.
Às vezes, é Aamma quem lhe pede para falar desses países estrangeiros. Então ele conta outra vez a sua viagem através da Espanha, a fronteira, depois a estrada à beira-mar e a grande cidade de Marselha. Conta todas as casas, as ruas, as escadas, os cais sem fim, os guindastes, os barcos do tamanho de casas, do tamanho de cidades, de onde descarregam camiões, vagões, pedras, cimento, e que largam depois pela água negra do porto a fazer soar a sirene. Os dois rapazes prestam pouca atenção a isto, porque não acreditam no velho Naman. Quando Naman se vai embora, dizem que toda a gente sabe que ele era cozinheiro em Marselha, e, para
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troçarem dele, chamam-lhe Tayyeb, porque isso quer dizer: "Ele fez a comida."
Mas Aamma escuta o que ele diz. Tanto lhe faz que Naman tenha sido cozinheiro lá e pescador aqui. Faz-lhe sempre outras perguntas, de cada vez, para tornar a ouvir a história da viagem, da fronteira, e da vida em Marselha. Então Naman fala-lhe das lutas nas ruas, quando os homens atacam os Árabes e os Judeus nas ruas escuras, e que têm de se defender à facada, ou então atirar pedras e correr quanto podem para escapar aos camiões da polícia que apanham as pessoas e as levam para a cadeia. Fala também dos que passam a fronteira a salto, pelas montanhas, andando de noite e escondendo-se de dia nas grutas e nas moitas. Mas às vezes os cães dos polícias seguem-lhes o rasto e atacam-nos quando chegam cá abaixo, do outro lado da fronteira.
Naman fala de tudo isso com um ar sombrio e Lalla sente o frio que perpassa pelos olhos do velho. É uma impressão estranha, que ela não conhece bem, mas que infunde medo e ameaça, como a passagem da morte, a desgraça. Talvez Naman tenha trazido também isso de lá, dessas cidades do outro lado do mar.
Quando não fala das suas viagens, Naman conta as histórias que ouviu noutros tempos. Mas só as conta a Lalla e aos meninos mais novos, porque são os únicos que o escutam sem fazer muitas perguntas.
Certos dias, ele está sentado defronte do mar, à sombra da sua figueira, a consertar as redes. É nesse momento que ele conta as mais belas histórias, as que se passam no oceano, nos barcos, nos temporais, aquelas onde as pessoas naufragam e vão dar a ilhas desconhecidas. Naman é capaz de contar uma história a propósito seja do que for, é isso que é bom. Por exemplo, Lalla está sentada ao lado dele, à sombra da figueira, e vê-o remendar as redes. As grandes mãos morenas com as unhas partidas trabalham depressa, sabem fazer nós com ligeireza. Em certa altura, há um grande rasgão nas malhas da rede, e Lalla pergunta, naturalmente:
- Foi um peixe grande que fez isso?
Em vez de responder, Naman reflecte e diz:
- Não te contei aquele dia em que nós pescámos um tubarão, pois não?
Lalla abana a cabeça e Naman começa uma história. Como na maior parte das suas histórias, há um temporal com relâmpagos que vão de uma ponta à outra do céu, vagas altas como montanhas, trombas de chuva. A rede está pesada, tão pesada de puxar que o barco se inclina de lado e os homens têm medo que ele se volte. Quando a rede chega, descobrem que traz um gigantesco tubarão azul, que se debate e abre uma queixada cheia de dentes terríveis. Então os pescadores têm que lutar com o tubarão que tenta levar a rede. Batem-lhe com os croques e os machados. Mas o tubarão morde a borda do barco e desfá-lo como se fosse madeira de
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caixote. Finalmente, o patrão consegue matar o tubarão à paulada e içam o animal para o convés do barco.
- Então abriram-lhe a barriga para ver o que tinha dentro, e encontraram um anel de ouro com uma pedra preciosa toda encarnada, tão bela que ninguém conseguia desviar os olhos dela. Como é natural, todos queriam ficar com o anel e daí a pouco já estavam dispostos a matar-se uns aos outros para conseguirem o maldito anel. Então eu propus que o jogássemos aos dados, porque o patrão tinha com ele um par de dados de osso. Jogámos os dados no convés, apesar da horrível tempestade que ameaçava virar o barco. Nós éramos seis, e jogámos seis vezes, a ver quem alcançava o número mais alto. Depois da primeira volta, só restávamos eu e o patrão, pois ambos tínhamos obtido onze, seis mais cinco. Todos se acercavam de nós para ver quem ganharia. Lancei e fiz um duplo seis! Foi a mim portanto que calhou o anel e durante uns instantes nunca me senti tão feliz na minha vida. Mas pus-me a olhar para o anel com vagar e pareceu-me que a pedra encarnada brilhava como o fogo do Inferno, com uma luz má, vermelha como o sangue. Então reparei que nos olhos dos meus companheiros brilhava a mesma luz má e compreendi que se tratava de um anel maldito, como aquele que o tinha usado e que o tubarão tinha comido, e compreendi que quem ficasse com ele se tornaria maldito também. Tirei-o do dedo para fora e atirei-o ao mar. O patrão e os meus companheiros estavam furiosos e também me quiseram lançar ao mar. Foi então que eu lhes disse: "Porque estão zangados comigo? O que veio do mar voltou ao mar e agora é como se nada tivesse havido." Nessa altura, o temporal amainou de repente e o Sol pôs-se a brilhar em cima do mar. Então os marinheiros também se acalmaram e o próprio comandante, que tanto tinha desejado aquele anel, também o esqueceu de repente e disse-me que tinha andado bem lançando-o ao mar. Fizemos o mesmo com o corpo do tubarão e voltámos ao porto para consertar a rede.
- Achas mesmo que esse anel era maldito? - perguntou Lalla.
- Não sei se era maldito - disse Naman -; mas o que eu sei, é que se eu não o tivesse atirado ao mar, nesse mesmo dia um dos meus companheiros me teria matado para mo roubar, e todos teriam morrido da mesma maneira, até ao último homem.
São as histórias que Lalla gosta de ouvir contar, assim, sentada ao lado do velho pescador, em frente do mar, à sombra da figueira, quando o vento sopra e faz bater as folhas. É um pouco como se escutasse a voz do mar, e as palavras de Naman pesam-lhe nas pálpebras e fazem-lhe subir o sono no corpo. Então aninha-se na areia, com a cabeça encostada às raízes da figueira, enquanto o pescador continua a remendar a rede de corda encarnada e as vespas zumbem por cima das gotas de sal.
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- Olá! Hartani!
Lalla grita no vento com toda a força, enquanto se aproxima das colinas de calhaus e de silvas. Por aqui, há sempre lagartos que saltam das pedras, às vezes até serpentes que se esquivam silvando. Há ervas altas que cortam como facas, e muitas daquelas palmeiras anãs com que se fazem cestos e esteiras. Por todo o lado se ouvem assobiar os insectos, porque há minúsculas nascentes de água por entre as rochas, e grandes poços escondidos, onde a água fria espera. Lalla, ao passar, atira calhaus para as fendas, e escuta o ruído que ecoa profundamente no escuro.
- Harta-a-ani!
Às vezes ele esconde-se, para troçar dela, simplesmente estendido no chão ao pé de uma moita de espinhos. Está sempre vestido com o albornoz de burel puído nas mangas e em baixo e com um longo pano branco que enrola em torno da cabeça e do pescoço. Ele é comprido e delgado como uma liana, com belas mãos morenas de unhas cor de marfim, e pés feitos para a corrida. Mas o que Lalla mais aprecia nele é a cara, porque não se parece com ninguém que viva aqui, na Cidade. É uma cara muito estreita e lisa, com uma testa arqueada e sobrancelhas muito direitas, e uns grandes olhos escuros cor de metal. Os cabelos são curtos, quase crespos, e não tem bigode nem barba. Mas tem um ar forte e senhor de si, com um olhar penetrante que nos perscruta sem receio, e quando quer sabe rir com um riso sonoro que nos torna logo felizes.
Hoje, Lalla descobre-o facilmente, porque não está escondido. Está simplesmente sentado numa grande pedra, e olha a direito, na direcção do rebanho de cabras. Ele não se move. O vento faz flutuar um pouco a roupa castanha sobre o corpo, agita a ponta do turbante branco. Lalla aproxima-se dele sem o chamar, porque sabe que ele a ouviu chegar. O Hartani tem o ouvido fino, consegue distinguir o salto de uma lebre do outro lado da colina, e mostra a Lalla os aviões no céu muito tempo antes de ela ter ouvido o ruído dos seus motores.
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Quando chega mesmo ao pé dele, o Hartani levanta-se e volta-se. O sol brilha no seu rosto negro. Sorri e os dentes também brilham à luz. Embora seja mais novo do que Lalla, é tão alto como ela. Na mão esquerda, segura uma pequena faca sem cabo.
- Para que queres essa faca? - pergunta Lalla.
Como está cansada por ter andado tanto, senta-se no rochedo. Ele fica de pé, em frente dela, equilibrado numa só perna. Depois, de súbito, salta para trás e desata a correr pela colina cheia de calhaus. Alguns instantes depois, traz um punhado de vime que apanhou nos pântanos. Mostra-o a Lalla a sorrir. Está um pouco ofegante, como um cão que correu depressa de mais.
- É bonito - diz Lalla. - É para tocar música?
Ela não faz verdadeiramente a pergunta. Murmura as palavras, fazendo gestos com as mãos. Sempre que ela fala, o Hartani fica imóvel e olha-a com uma atenção séria, porque tenta compreender.
Talvez Lalla seja a única pessoa que ele compreende e ela seja a única a compreendê-lo. Quando ela diz "música", o Hartani põe-se aos saltos, afastando os longos braços, como se fosse dançar. Assobia por entre os dedos, com tanta força que as cabras e o bode estremecem, na encosta da colina.
Depois pega nuns tantos juncos cortados e reúne-os nas mãos. Sopra neles e provoca uma música esquisita um pouco rouca, como o grito dos noitibós na noite, uma música um pouco triste, como o canto dos pastores chleuhs.
O Hartani toca um instante, sem retomar o fôlego. Em seguida, estende os juncos a Lalla e ela toca por seu turno, enquanto o jovem pastor fica quieto, com um clarão de prazer no olhar sombrio. Divertem-se assim tocando alternadamente nos tubos de junco de tamanho diferente, e a música triste parece sair da paisagem branca de luz, dos buracos das grutas subterrâneas, do próprio céu onde se move o vento lento.
De vez em quando, detêm-se, sem respiração, e o jovem explode num riso sonoro, enquanto Lalla se põe também a rir, sem saber porquê.
Em seguida caminham através dos campos de pedras, e o Hartani pega na mão de Lalla, porque há pedras aguçadas por toda a parte que ela desconhece, no meio dos tufos de mato. Saltam por cima das pequenas paredes de pedra seca, ziguezagueiam pelo meio das moitas de espinhos. O Hartani mostra a Lalla tudo o que há nos campos de pedras e nas encostas das colinas. Ele conhece os esconderijos melhor do que ninguém: os dos insectos dourados, os dos grilos, os dos louva-a-deus e dos insectos-fojhas. Ele conhece também todas as plantas, as que cheiram bem quando se esmagam as folhas nos dedos, as que têm raízes cheias de água, as que sabem a anis, a pimenta, a hortelã-pimenta, a mel. Ele conhece os grãos que estalam nos dentes, as bagas minúsculas que tingem os dedos e os lábios de azul. Ele conhece mesmo os esconderijos onde se descobrem
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pequenos caracóis de pedra ou minúsculos grãos de areia em forma de estrela. Ele arrasta Lalla para longe, para lá das paredes de pedra seca, ao longo das veredas que ela não conhece, até às colinas de onde se avista o começo do deserto. Os olhos dele brilham com intensidade, a pele do seu rosto é escura e luzidia quando chega ao alto das colinas. Então, mostra a Lalla a direcção do Sul, lá onde nasceu.
O Hartani não é como os outros rapazes. Ninguém sabe realmente de onde veio. Só se sabe que, um dia, há muito tempo já, chegou um homem montado num camelo. Estava vestido como os guerreiros do deserto, com um grande manto azul-celeste e o rosto velado de azul. Parou junto do poço para dar de beber ao camelo e ele próprio bebeu demoradamente a água do poço. Foi Yasmina, a mulher do cabreiro, quem o viu quando foi buscar água. Parou para deixar o estranho beber à vontade, e quando ele se foi embora montado no seu camelo, reparou que o homem tinha deixado à beira do poço uma criancinha envolta num pano azul. Como ninguém quis ficar com ela, foi Yasmina quem guardou a criança. Criou-o e ele cresceu na família, como se fosse seu filho. A criança era o Hartani, foi esta a alcunha que lhe puseram porque ele tinha a pele negra como os escravos do Sul.
O Hartani cresceu no próprio lugar onde o guerreiro do deserto o deixou, perto dos campos de pedra e das colinas, lá onde começa o deserto. Foi ele quem guardou as cabras de Yasmina, tornou-se igual aos outros rapazes que são pastores. Sabe tratar do gado, sabe conduzi-lo onde quer, sem lhe bater, assobiando apenas com os dedos, pois os animais não têm medo dele. Também sabe falar aos enxames de abelhas, assobiando simplesmente por entre os dentes, enquanto os guia com as mãos. As pessoas têm um certo medo do Hartani, dizem que ele é mejnoun, que ele tem poderes que vêm do demónio. Dizem que ele sabe dar ordens às serpentes e aos escorpiões, que sabe obrigá-los a matar os animais dos outros pastores. Mas Lalla não acredita nisso, ela não tem medo dele. Talvez ela seja a única pessoa que o conhece bem, por lhe falar sem ser por palavras. Ela olha-o e lê na luz dos seus olhos negros, e ele olha-a no fundo dos seus olhos de âmbar; não olha apenas a cara dela, mas mesmo no fundo dos olhos, e é assim que ele compreende o que ela quer dizer.
Aamma não gosta muito que Lalla vá ver tantas vezes o pastor nos seus campos de pedras e nas suas colinas. Costuma dizer-lhe que é uma criança abandonada, um estranho, que não é companhia para ela. Mas assim que Lalla termina o seu trabalho na casa de Aamma, põe-se a correr pelo caminho que vai para as colinas e assobia nos dedos como os pastores e grita:
- Eh! Hartani!
Às vezes fica com ele lá no alto até ao cair da noite. Então o rapaz junta os animais para os conduzir ao curral, em baixo, ao pé da casa de
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Yasmina. Muitas vezes, como não falam, ficam quietos, sentados nas rochas diante das colinas de pedras. Custa a compreender o que eles fazem nessa ocasião. Talvez olhem em frente, como se vissem através das colinas, até para lá do horizonte. A própria Lalla não compreende lá muito bem como se passam as coisas, pois o tempo parece deixar de existir quando está sentada ao lado do Hartani. As palavras circulam livremente, vão para o Hartani e regressam a ela, carregadas de um outro sentido, como nos sonhos onde um é dois ao mesmo tempo.
Foi o Hartani quem a ensinou a ficar assim sem se mexer, a olhar o céu, as pedras, os arbustos, a ver voar as vespas e as moscas, a escutar o canto dos insectos escondidos, a sentir a sombra das aves de rapina e o palpitar das lebres nas moitas.
O Hartani não tem realmente família, como Lalla, não sabe ler nem escrever, nem sequer conhece as orações, não sabe falar, mas afinal é ele quem sabe todas as coisas. Lalla gosta da sua cara lisa, das suas mãos compridas, dos olhos de metal escuro, do seu sorriso, gosta da sua maneira de andar, vivo e ligeiro como um galgo, e depois da forma como sabe saltar de rocha em rocha, até desaparecer num abrir e fechar de olhos num dos seus esconderijos.
Ele nunca vem à cidade. Talvez tenha medo dos outros rapazes, por não ser como eles. Quando parte, é para o Sul que vai, na direcção do deserto, lá onde passam as pistas dos nómadas montados nos seus camelos. Desaparece assim durante vários dias, sem que se saiba onde está. Depois, regressa numa manhã e retoma o seu lugar no campo de pedras, com as cabras e o bode, como se só se tivesse afastado por alguns instantes.
Quando ela está sentada assim, numa rocha ao lado do Hartani, contemplando juntos a extensão das pedras à luz do Sol, com o vento que sopra de vez em quando, com as vespas que zunem por cima das plantazinhas cinzentas e o ruído dos cascos das cabras nos calhaus que rolam, não há realmente necessidade de mais nada. Lalla sente o calor no fundo de si mesma, como se toda a luz do céu e das pedras viesse até ao centro do seu corpo, estivesse a crescer. O Hartani segura a mão de Lalla na sua mão morena de dedos afilados e aperta-a tanto que quase lhe dói. Lalla sente a corrente de calor passar na palma da sua mão, como uma estranha e ténue sensação. Não sente vontade de falar, nem de pensar. Estão tão bem assim que poderia ficar o dia inteiro sem se mover, até que a noite enchesse as ravinas. Olha para diante de si, vê cada pormenor da paisagem de pedra, cada tufo de erva, ouve cada estalido, cada grito de insecto. Sente o movimento lento da respiração do pastor, está tão perto dele que vê pelos seus olhos, que sente com a sua pele. Aquilo dura um breve instante, mas parece tão longo que ela esquece tudo o resto, tomada pela vertigem.
Depois, subitamente, como se tivesse medo de alguma coisa, o jovem pastor ergue-se de um salto e abandona a mão de Lalla. Sem sequer a
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olhar, põe-se a correr depressa como um cão, saltando por cima dos rochedos e das ravinas ressequidas. Salta por cima dos muros de pedras secas e Lalla vê a silhueta clara que desaparece no meio das moitas de espinhos.
- Hartani! Hartani! Volta!
Lalla grita, encarrapitada na rocha, e a voz treme-lhe porque ela sabe que aquilo não adianta nada. O Hartani desapareceu de súbito, engolido por um daqueles buracos escuros na rocha calcária. Hoje já não torna a mostrar-se. Talvez amanhã, ou mais tarde? Então, Lalla desce a colina por sua vez, lentamente, de uma rocha para a outra, desajeitada, voltando-se de vez em quando para tentar avistar o pastor. Abandona os campos de pedras e os cercados de pedra seca, volta para baixo, para o fundo do vale, não muito longe do mar, lá onde os homens vivem nas casas de tábuas, de chapa e de papel alcatroado.
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Os dias são sempre os mesmos, aqui, na Cidade, e às vezes não há a certeza do dia que se está a viver. É um tempo já antigo, e é como se nada houvesse escrito, como se nada fosse certo. Aliás, ninguém pensa realmente nisso, aqui ninguém se pergunta quem é. Mas Lalla pensa muitas vezes nisso, quando vai até ao planalto de pedras onde vive o homem azul a quem ela chama Es Ser.
Talvez seja também por causa das vespas. Há tantas vespas na Cidade, muito mais que homens e mulheres. Entre a aurora e o crepúsculo, as vespas zumbem no ar, à procura de alimento, revoluteando na luz do Sol.
Contudo, num certo sentido, as horas nunca são todas iguais, como as palavras que diz Aamma, como as caras das raparigas que se encontram à volta da fonte. Há horas tórridas, quando o sol queima a pele através da roupa, quando a luz espeta agulhas nos olhos e faz sangrar os lábios. Então Lalla envolve-se completamente nos panos azuis, ata um grande lenço atrás da cabeça e com ele cobre o rosto até aos olhos, e envolve a cabeça noutro véu azul que lhe desce até ao peito. O vento ardente vem do deserto, sopra os grãos de poeira dura. Lá fora, nas vielas da Cidade, não há ninguém. Até os cães estão escondidos em buracos de terra, ao pé das casas, ou encostados aos bidões de gasolina vazios.
Mas Lalla gosta de andar por fora nesses dias, talvez precisamente por não haver ninguém. É como se não houvesse mais nada à face da terra, mais nada que pertencesse aos homens. É então que ela se sente mais longe de si própria, como se nada mais do que ela tivesse feito pudesse contar, como se já não houvesse memória nenhuma.
Então ela vai para o mar, lá onde começam as dunas. Senta-se na areia, envolta nos seus véus azuis, e contempla a poeira que sobe no ar. Por cima da terra, no zénite, o céu é de um azul muito denso, quase cor de noite, e quando olha para o horizonte, por cima da linha das dunas, avista aquela cor rosa, cendrada, como de madrugada. Nesses dias, a gente também fica livre das moscas e das vespas, empurradas pelo vento para as
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covas dos rochedos, para os seus ninhos de lama seca ou para os recantos sombrios das casas. Não há homens, nem mulheres, nem crianças. Não há cães, não há pássaros. Há só vento que assobia na rama dos arbustos, nas folhas das acácias e das figueiras bravas. Há só os milhares de partículas de pedra que chicoteiam a cara, que se dividem em torno de Lalla, que formam longas fitas, serpentes, fumo. Há o barulho do mar, o barulho do vento, o barulho rangente da areia e Lalla inclina-se para diante para respirar, com o véu azul colado às narinas e aos lábios.
É bom porque é como se tivéssemos embarcado num navio, como Naman, o pescador, e os seus companheiros, perdido no meio do grande temporal. O céu está nu, extraordinário. A terra desapareceu, ou quase, mal se vendo pelas chanfraduras de areia, rasgada, gasta, raras manchas de recifes no meio do mar.
Lalla não sabe porque é que sai nesses dias. É mais forte do que ela. Não consegue ficar fechada dentro da casa de Aamma, nem sequer passear pelas ruelas da Cidade. O vento escaldante seca-lhe os lábios e as narinas, ela sente o fogo a descer por si abaixo. Talvez seja o fogo da luz do céu, o fogo que vem do Oriente e que o vento enterra no seu corpo. Mas a luz não queima apenas: também liberta e Lalla sente o seu corpo tornar-se ligeiro, rápido. Resiste, agarrada com ambas as mãos à areia das dunas, com o queixo nos joelhos. Limita-se a respirar devagarinho, para não ficar leve de mais.
Lalla tenta pensar naqueles que ama, pois isso evita que o vento a leve. Pensa em Aamma, no Hartani, em Naman sobretudo. Mas nesses dias não há nada que realmente conte, nem ninguém, de todos os que ela conhece, e logo o seu pensamento se põe em debandada, se escapa como se o vento o arrancasse e o arrastasse ao longo das dunas.
Depois, de súbito, sente o olhar do homem azul do deserto pousado sobre ela. É o mesmo olhar que lá no alto, no planalto de pedra, na fronteira do deserto. É um olhar vazio e imperioso que lhe pesa nos ombros, com o peso do vento e da luz, um olhar de terrível secura que a faz sofrer, um olhar endurecido como as partículas de pedra que lhe batem na cara e na roupa. Ela não compreende o que ele quer, o que ele pede. Talvez ele nada queira dela, talvez passe apenas pela paisagem do mar, pelo rio, pela Cidade, e que vá para mais longe ainda, para abrasar as cidades e as casas brancas, os jardins e as fontes, as grandes avenidas dos países que estão do outro lado do mar.
Ela agora tem medo. Desejaria deter esse olhar, para-lo em cima de si para que não vá para lá daquele horizonte, para que cesse a sua vingança, o seu fogo, a sua violência. Ela não compreende porque é que a tempestade do homem do deserto quer destruir estas cidades. Lalla fecha os olhos para deixar de ver as serpentes de areia que se torcem em redor dela, aqueles fumos perigosos. Então ouve dentro dos seus ouvidos a voz do
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guerreiro do deserto, aquele a quem ela chama Es Ser, o Segredo. Ela nunca o tinha ouvido com tanta nitidez, mesmo quando ele lhe surgira, no planalto de pedra, vestido com o seu manto branco e com o rosto velado de azul. É uma voz bizarra a que ela ouve no interior da sua cabeça, uma voz que se mistura ao ruído do vento e ao ranger dos grãos de areia. É uma voz distante que diz palavras que ela não compreende bem, que repete interminavelmente as mesmas palavras, as mesmas frases.
- Faz com que o vento pare! - diz Lalla em voz alta, sem abrir os olhos. - Não destruas as cidades, faz com que o vento pare, com que o sol não queime, que tudo esteja em paz!
E depois ainda, mesmo sem querer:
- Que queres tu? Que vens cá fazer? Eu não te sou nada, porque me falas, porque falas só a mim?
Mas a voz continua o seu murmúrio, o seu arrepio no interior do corpo de Lalla. É apenas a voz do vento, a voz do mar, da areia, a voz da luz que cega e inebria a vontade dos homens. Ela vem ao mesmo tempo que o olhar estranho, quebra e arranca tudo o que lhe resiste na terra. Em seguida prossegue para mais longe, para o horizonte, perde-se no mar de portentosas vagas, arrasta as nuvens e a areia para as costas rochosas, do outro lado do mar, para os grandes deltas onde ardem as chaminés das refinarias.
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- Fala-me do Homem Azul - diz Lalla. Mas Aamma está entretida a amassar o pão no grande alguidar de barro. Abana a cabeça.
- Agora não. Lalla insiste.
- Sim, agora, Aamma, peço-te por tudo.
- Eu já te contei tudo o que sabia a respeito dele.
- Não faz mal, eu gostava de tornar a ouvir falar dele, e daquele a quem chamavam Ma el Ainine, a Água dos Olhos.
Então Aamma pára de amassar. Senta-se no chão e fala, porque lá no fundo gosta muito de contar histórias.
- Eu já te falei disso, foi há muito tempo, numa época que nem a tua mãe nem eu conhecemos, pois foi no tempo da infância da avó da tua mãe que morreu o grande Al Azraq, aquele a quem chamavam o Homem Azul, e nessa altura Ma el Ainine não era ainda senão um rapaz.
Lalla conhece-lhes bem os nomes, desde menina que ela os ouve frequentemente, mas mesmo assim, sempre que os ouve, estremece um pouco como se aquilo remexesse algo dentro dela.
- Al Azraq era da tribo da avó da tua mãe, vivia lá mesmo no Sul, para lá do Draa, para lá mesmo da Saguiet el Hamra, e nesse tempo não havia um único estrangeiro nessa região, os cristãos não tinham o direito de lá entrar. Nesse tempo, os guerreiros do deserto ainda não tinham sido vencidos, e todas as terras ao sul do Draa eram deles, até muito longe, até ao coração do deserto, até à cidade santa de Chinguetti,
De cada vez que Aamma conta a história de  Al Azraq, acrescenta um novo pormenor, uma frase nova, ou então altera qualquer coisa, como se pretendesse que a história nunca fosse dada por finda. A voz dela é forte, um pouco cantante, ressoa estranhamente na casa escura, com o ruído da chapa que estala ao sol e o zumbido das vespas.
- Chamavam-lhe Al Azraq porque antes de ter sido um santo, tinha sido um guerreiro do deserto, lá mesmo no Sul, na região de Chinguetti,
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pois era nobre e filho de um xeque. Mas, um dia, Deus chamou-o e ele tornou-se um santo, abandonou as roupas azuis no deserto e vestiu-se com um trajo de lã como os homens pobres, e caminhou pela região fora, de cidade em cidade, de pés descalços, com um cajado, como se fosse um mendigo. Mas Deus não queria que o confundissem com os outros mendigos e tinha feito de maneira que a pele da sua cara e das mãos ficasse azul, e esta cor nunca saía por muito que ele se lavasse com água. A cor azul ficava na cara e nas mãos e quando as pessoas viam aquilo, apesar da roupa de lã usada, compreendiam que não era um mendigo, mas um autêntico guerreiro do deserto, um homem azul que Deus tinha chamado, e foi por isso que lhe puseram aquele nome, Al Azraq, o Homem Azul...
Quando fala, Aamma balança um pouco da frente para trás, como se ritmasse uma música. Ou então cala-se durante um longo momento, debruçada sobre o grande alguidar, entretida a quebrar a massa do pão e a reuni-la de novo, depois a esmagá-la com os punhos fechados.
Lalla espera que ela prossiga, sem dizer nada.
- Ninguém desse tempo ainda está vivo - diz Aamma. - O que se diz dele é o que se conta, uma lenda, só uma recordação. Mas agora há pessoas que já não querem acreditar nisso, que dizem tratar-se de mentiras.
Aamma hesita, porque escolhe com cuidado o que vai contar.
- Al Azraq era um grande santo - diz ela. - Sabia curar os doentes, mesmo os que estavam doentes por dentro, os que tinham perdido a razão. Ele vivia em todo o lado, nas cabanas dos pastores, nos abrigos de folhas que são construídos em redor das árvores, ou mesmo nas grutas, no seio da montanha. As pessoas vinham de todo o lado para o ver e lhe pedir ajuda. Um dia, um velho trouxe o filho que era cego e disse-lhe: cura o meu filho, ó tu que recebeste a bênção de Deus, cura-o que eu te darei tudo o que tenho. E mostrou-lhe um saco cheio de ouro que trazia consigo. Al Azraq disse-lhe: para que serve o teu ouro aqui? E mostrava-lhe o deserto, sem uma gota de água, sem um fruto. E ele pegou no ouro do velho e atirou-o para o chão, e o ouro transformou-se em escorpiões e em serpentes que fugiam para longe, e o velho pôs-se a tremer de medo. Então Al Azraq disse ao velho: estás disposto a ficar cego no lugar do teu filho? O velho respondeu-lhe: eu já sou muito velho, para que me servem os olhos? Faz que o meu filho veja e eu ficarei satisfeito. Logo o rapaz recuperou a vista e ficou encandeado pela luz do Sol. Mas quando descobriu que o pai estava cego, deixou de se sentir feliz. Devolve a vista ao meu pai, disse ele, pois foi a mim que Deus condenou. Então Al Azraq deu-lhes a vista a ambos, porque sabia que tinham bom coração. E prosseguiu a sua caminhada para o mar, e parou para viver num sítio como este, perto das dunas, à beira-mar.
Aamma volta a calar-se um pouco. Lalla pensa nas dunas, lá onde vivia Al Azraq, escuta o ruído do vento e do mar.
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- Os pescadores davam-lhe de comer todos os dias, porque sabiam que o Homem Azul era um santo, e pediam-lhe a sua bênção. Alguns vinham de muito longe, das cidades fortificadas do Sul, vinham para escutar a sua palavra. Mas Al Azraq não ensinava a Sunna com as palavras, e quando alguém lhe vinha pedir: ensina-me o caminho, ele contentava-se em recitar o rosário horas a fio, sem dizer mais nada. Depois, dizia ao visitante: vai buscar lenha para o lume, vai buscar água, como se o outro fosse seu criado. E dizia-lhe: abana-me com o leque, e até lhe falava com dureza, chamava-lhe preguiçoso e mentiroso, como se ele fosse seu escravo.
Aamma fala lentamente, na casa escura, e Lalla julga ouvir a voz do Homem Azul.
- Era assim que ele ensinava a Sunna, não era com as palavras, mas com gestos e orações, para obrigar os visitantes a humilharem-se no seu íntimo. Mas quando eram pessoas simples que vinham, Al Azraq era muito bom para elas, dizia-lhes palavras muito meigas, contava-lhes lendas maravilhosas, porque sabia que elas não tinham o coração endurecido e que estavam verdadeiramente perto de Deus. Era por elas que ele às vezes fazia milagres, para as ajudar, porque elas não tinham outro recurso.
Aamma hesita:
- Eu já te contei o milagre da nascente que ele fez sair de um rochedo?
- Já, sim, mas torna a contá-lo outra vez - diz Lalla.
É a história de que ela mais gosta. Sempre que a ouve, sente algo estranho que se move no fundo de si mesma, como se fosse chorar, como um arrepio de febre. Ela pensa como tudo se passou, há muito tempo, às portas do deserto, numa aldeia de lama e de palmas, com um grande largo vazio onde zumbiam as vespas, e a água da fonte que brilha ao sol, lisa como um espelho onde se reflectem as nuvens e o céu. Na praça da aldeia não há ninguém, porque o sol queima com muita força, e todos os homens estão abrigados na frescura das suas casas. Na água da fonte imóvel, aberta como um olho que contempla o céu, passa de vez em quando o lento arrepio do ar escaldante que lança para a superfície da água um pó fino e branco, como uma teia que logo se funde. A água é bela e profunda, azul-verde, silenciosa, imóvel na cavidade de terra encarnada onde os pés nus das mulheres deixaram rastos luzidios. Só as vespas vão e vêm por cima da água, roçam a superfície, dirigem-se para as casas onde sobe o fumo das braseiras.
- Era uma mulher que ia buscar uma bilha de água à fonte. Agora já ninguém se lembra do seu nome, pois tudo isto se passou há muito tempo. Mas era uma mulher muito velha, que já não tinha forças, e quando ela chegou à fonte, ia a chorar e a lamentar-se porque tinha que andar muito para levar a água para casa. Ela não saía dali, agachada no chão, a chorar
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e a gemer. Então, de repente, sem que ela o ouvisse chegar, Al Azraq apareceu ao lado dela.
Lalla vê-o distintamente agora. É alto e magro, envolto no seu manto cor de areia. O rosto está dissimulado pelo véu, mas os olhos brilham com uma estranha luz que tranquiliza e fortifica como a chama de uma lâmpada. Ela reconhece-o agora. É ele quem aparece no planalto de pedra, lá onde começa o deserto, e que envolve Lalla no seu olhar, com tanta insistência e tanta força que ela até sente vertigens. Ele chega assim, silenciosamente, como uma sombra, ele sabe estar presente quando é preciso.
- A velha continuava a chorar, então Al Azraq perguntou-lhe docemente por que chorava.
Mas não se pode ter medo quando ele chega silenciosamente, como que surgido do deserto. O olhar dele é cheio de bondade, a voz é lenta e calma, o próprio rosto resplandece de luz.
- A pobre velha contou-lhe a sua tristeza, a sua solidão, porque a casa dela ficava muito longe da água e não tinha forças para voltar carregada com a bilha cheia...
A voz e o olhar dele são uma e a mesma coisa, como se ele soubesse já o que deve acontecer, no futuro, e como se conhecesse o segredo dos destinos humanos.
- Não chores por causa disso, disse Al Azraq, eu vou ajudar-te a voltar para casa. E conduziu-a pelo braço até à casa dela, e quando chegaram diante da porta, disse-lhe simplesmente: levanta aquela pedra à beira do caminho e nunca mais terás falta de água. E a velha fez o que ele disse e debaixo da pedra havia uma nascente de água muito límpida que jorrou, e a água espalhou-se em volta, até formar uma fonte mais bela e mais fresca do que qualquer outra fonte do país. Então a velha agradeceu a Al Azraq e, mais tarde, as pessoas vieram dos arredores para ver a fonte e para provar a sua água, e todos louvavam Al Azraq por ter recebido um tal poder de Deus.
Lalla pensa na fonte que jorrou da pedra, pensa na água muito clara e lisa que brilhava à luz do Sol. Pensa nisso tudo demoradamente, na penumbra, enquanto Aamma continua a amassar o pão. E a sombra do Homem Azul retira-se silenciosamente, tal como tinha chegado, mas o seu olhar cheio de força fica suspenso por cima dela, envolve-a como um sopro.
Aamma cala-se agora, já não diz mais nada. Continua a bater a massa no grande alguidar que oscila. Talvez que também ela pense na bela fonte de água profunda brotada do caminho, como a ver ladeira palavra de Al Azraq, a verdadeira via.
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A luz é bela aqui, na Cidade, todos os dias. Lalla nunca tinha prestado tanta atenção à luz, até que o Hartani a ensinou a olhar para ela. É uma luz muito clara, sobretudo de manhã, logo depois do nascer do Sol, que ilumina as rochgs e a terra vermelhas e as torna vivas. Há lugares para ver a luz. O Hartani levou Lalla, uma manhã, a um desses lugares. É um precipício que se abre no fundo de uma ravina de pedras e o Hartani é o único que conhece esse esconderijo. É indispensável conhecer bem a passagem. O Hartani pegou na mão de Lalla e conduziu-a ao longo da estreita vereda que desce para o interior da terra. Quase imediatamente, sente-se a frescura húmida da sombra, e os ruídos cessam, como quando se mergulha a cabeça debaixo de água. A vereda penetra profundamente sob a terra e Lalla tem um pouco medo porque é a primeira vez que desce ao interior da terra. Mas o pastor aperta-lhe a mão com força e isso dá-lhe coragem.
Subitamente, detêm-se: o longo caminho subterrâneo está inundado de luz, porque desemboca em cheio no céu. Lalla não compreende como isso é possível, pois nunca deixaram de descer, mas é mesmo verdade: lá está o céu, ali à frente, imenso e leve. Ela fica imóvel, sem respirar, com os olhos muito abertos. Aqui, a única coisa que existe é o céu, tão claro que a gente julga ser um pássaro a voar.
O Hartani faz sinal a Lalla para que se aproxime da abertura. Depois senta-se nas pedras, devagar, para não provocar desmoronamentos. Lalla senta-se um pouco atrás dele, estremecendo por causa da vertigem. Em baixo, mesmo no fundo da falésia, divisa por entre a bruma a grande planície deserta, as torrentes ressequidas. No horizonte, alastra um vapor ocre: é o começo do deserto. É para lá que o Hartani vai, às vezes, sozinho, levando consigo apenas um pedaço de pão embrulhado num lenço. É a leste, lá onde a luz do Sol é mais bela, tão bela que apetece fazer como o Hartani, correr de pés descalços pela areia, saltar por cima das pedras cortantes e das ravinas, ir cada vez mais longe na direcção do deserto.
- É bonito, Hartani!
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Às vezes Lalla esquece-se de que o pastor não pode compreender. Quando ela lhe fala, ele vira a cara para ela e os seus olhos brilham, os lábios tentam imitar os movimentos da linguagem. Depois, ele faz uma careta e Lalla desata a rir.
- Oh!
Ela aponta-lhe com o dedo um ponto negro imóvel no centro do espaço. O Hartani olha um instante na direcção do ponto e faz com a mão o sinal do pássaro, com o indicador dobrado e os três últimos dedos afastados como as penas do pássaro. O ponto desliza devagar no centro do céu, gira um pouco sobre si mesmo, desce, aproxima-se. Agora, Lalla distingue-lhe bem o corpo, a cabeça, as asas com as rémiges afastadas. É um gavião que procura a sua presa e que desliza nas correntes do vento, silenciosamente, como uma sombra.
Lalla contempla-o demoradamente, com o coração a palpitar. Ela nunca viu nada tão belo como aquela ave que traça os seus círculos lentos no céu, muito alto por cima da terra vermelha, só e silenciosa no vento, na luz do Sol, e que descai por instantes para o deserto, como se fosse cair. O coração de Lalla bate com mais força, porque o silêncio da ave selvagem entra nela, faz surgir o medo. O seu olhar está fixo no gavião, não consegue desviá-lo. O terrível silêncio do centro do céu, o frio do ar livre, sobretudo a luz que queima, tudo isso a atordoa, provoca-lhe vertigens. Apoia a mão no braço do Hartani, para não cair para a frente no vazio. Ele também olha o gavião. Mas é como se o pássaro fosse seu irmão e que nada os separasse. Têm o mesmo olhar, a mesma coragem, partilham o silêncio interminável do céu, do vento e do deserto.
Quando Lalla se apercebe de que o Hartani e o gavião são semelhantes, estremece, mas deixa de sentir vertigens. O céu à sua frente é imenso, a terra é uma névoa parda e ocre que flutua no horizonte. Pois se o Hartani conhece tudo isso, Lalla já não tem medo de entrar no silêncio. Ela fecha os olhos, deixa-se deslizar no ar, no meio do céu, agarrada ao braço do jovem pastor. Lentamente, juntos, traçam grandes círculos por cima da terra, tão longe que já não se ouve qualquer ruído, apenas o leve roçar do vento nas rémiges, tão alto que quase já não se vêem os rochedos, as moitas de espinhos, as casas de tábuas e de papel alcatroado.
Depois, após terem voado juntos muito tempo, e ficarem embriagados pelo vento, pela luz e pelo azul do céu, regressam à boca da gruta, no cimo da falésia vermelha; pousam de leve, sem fazer rolar uma pedra, sem fazer mexer um grão de areia. São estas as coisas que o Hartani sabe fazer, sem falar, sem pensar, assim mesmo, só com o olhar.
Ele conhece toda a espécie de lugares onde se podem ver as luzes, porque não há apenas uma luz, mas muitas luzes diferentes. Ao princípio, quando levava Lalla através dos rochedos, pelas covas, para as velhas ravinas ressequidas ou então até ao cimo de uma rocha encarnada, ela julgava
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que era para ir caçar lagartos ou para pilhar os ninhos dos pássaros, como fazem os outros rapazes. Mas o Hartani mostrava-lhe então, apontando o dedo, com os olhos a brilharem de prazer, e na ponta desse gesto só havia o céu, imenso, delirante de brancura, ou então a dança dos raios de Sol ao longo das fendas de pedra, ou ainda essas espécies de luas que o sol faz através da folhagem dos arbustos. Às vezes ele também lhe mostrava os mosquitos suspensos no ar, semelhantes a bolas entre dois tufos de erva, como se houvesse uma imensa teia de aranha. Essas coisas eram mais belas quando ele as olhava, mais novas, como se ninguém as tivesse olhado antes dele, como no começo do mundo.
Lalla gosta de acompanhar o Hartani. Caminha atrás dele, ao longo da vereda que ele abre. Não é exactamente uma vereda, porque não há rastos, mas, apesar disso, quando o Hartani avança vê-se mesmo que a passagem é por ali mesmo, e não por outro lado qualquer. Talvez sejam atalhos para as cabras e para as raposas, e não para os homens. Mas ele, o Hartani, é como um deles, sabe coisas que os homens não sabem, vê-as com todo o seu corpo, não apenas com os olhos.
É como com os cheiros. Às vezes o Hartani vai até muito longe na planície de pedras, na direcção de leste. O sol arde nos ombros e na cara de Lalla e ela tem dificuldade em seguir o pastor. Ele não faz caso dela então. Procura qualquer coisa, quase sem parar, um pouco inclinado para o solo, saltando de rocha em rocha. Depois pára de repente e encosta a cara ao chão, estendido de barriga para baixo como se estivesse a beber. Lalla aproxima-se com cautela, enquanto o Hartani se ergue um pouco. Os seus olhos de metal brilham de prazer, como se tivesse descoberto a coisa mais preciosa do mundo. Entre os calhaus, na terra poeirenta, há um tufo verde e cinzento, um pequenino arbusto de folhas magras como há tantos por aqui, mas quando Lalla por sua vez aproxima o rosto, chega-lhe o perfume, primeiro fraco, depois cada vez mais profundo, o perfume das mais belas flores, o cheiro da hortelã-pimenta e da erva-chiba, o cheiro dos limões também, o cheiro do mar e do vento, dos prados no Verão. Há tudo isso e muito mais ainda naquela planta minúscula, suja e frágil, que cresce ao abrigo de calhaus no meio do grande planalto árido; e só o Hartani o sabe.
É ele quem mostra a Lalla todos os cheiros bonitos, porque sabe onde se escondem. Os cheiros são como os calhaus e os animais, cada um tem o seu esconderijo. Mas é preciso saber procurá-los, como os cães, através do vento, farejando as pistas minúsculas, depois aos saltos, sem hesitar, até ao esconderijo.
O Hartani mostrou a Lalla como se deve fazer. Dantes, ela não sabia. Dantes, ela era capaz de passar ao lado de uma moita, ou de uma raíz, ou de um favo de mel, sem dar por nada. O ar está cheio de cheiros! Estão sempre a mexer, como o ar, sobem, descem, cruzam-se, misturam-se,
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separam-se. Por cima do rasto de uma lebre flutua o estranho odor do medo, e um pouco mais adiante o Hartani faz sinal a Lalla para que se aproxime. Na terra encarnada, primeiro, não há nada, mas a pouco e pouco a rapariga distingue uma coisa acre, dura, o cheiro da urina e do suor, e de repente reconhece o cheiro: é o de um cão selvagem, esfomeado, com o pêlo eriçado, que corria através do planalto em perseguição da lebre.
Lalla gosta de passar os dias com o Hartani. É ela a única a quem ele mostra todas estas coisas. Dos outros, ele desconfia, porque não têm tempo para esperar, para procurar os cheiros, ou para ver voar os pássaros do deserto. Ele não tem medo das pessoas. O mais natural seria as pessoas terem medo dele. Elas dizem que ele está mejnoun, possesso dos demónios, que ele é feiticeiro, que tem o mau-olhado. Ele, o Hartani, é aquele que não tem pai nem mãe, que veio de parte nenhuma, aquele a quem um guerreiro do deserto deixou um dia, junto do poço, sem soltar uma palavra. Ele é o que não tem nome. Às vezes Lalla bem gostaria de saber quem ele é, bem gostaria de lhe perguntar:
- De onde vieste?
Mas o Hartani não conhece a linguagem dos homens, não responde às perguntas. O filho mais velho de Aamma diz que o Hartani não sabe falar porque é surdo. Foi isso pelo menos o que o professor lhe disse um dia; chama-se àquilo surdos-mudos. Mas Lalla bem sabe que não é verdade, pois o Hartani ouve melhor do que ninguém. Ele consegue ouvir ruídos tão finos, tão ligeiros, que mesmo encostando o ouvido ao chão ninguém os ouve. Ele é capaz de ouvir uma lebre que salta do outro lado do planalto de pedras, ou então quando um homem se aproxima pelo carreiro, no outro lado do vale. Ele é capaz de descobrir o sítio onde canta o grilo, ou então o ninho das perdizes nas ervas altas. Mas o Hartani não quer ouvir a linguagem dos homens porque veio de um país onde não há homens, onde só há a areia das dunas e o céu.
Às vezes, Lalla fala ao pastor, ela diz-lhe, por exemplo: "Biluuu-la!", lentamente, enquanto o olha no fundo dos olhos, e há uma estranha luz que lhe ilumina os olhos de metal escuro. Ele pousa a mão nos lábios de Lalla, e segue-lhes o movimento quando ela assim fala. Mas depois nunca pronuncia qualquer palavra.
Depois, passado um instante, ele fica farto, desvia o olhar e vai sentar-se mais longe, numa pedra. Mas isso não tem importância no fundo, porque Lalla sabe agora que as palavras não contam realmente. É só o que se quer dizer, lá mesmo no interior, como um segredo, como uma oração, é só essa a palavra que conta. E o Hartani não fala de outra maneira, sabe dar e receber essa palavra. Há tantas coisas que passam pelo silêncio. Lalla também não sabia isto, antes de ter encontrado o Hartani. Os outros só esperam por palavras, ou então por actos, por provas, mas o Hartani, esse,
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olha Lalla com o seu belo olhar de metal, sem dizer nada, e é na luz do seu olhar que se ouve o que ele diz, o que ele pede.
Quando está inquieto, ou quando pelo contrário se sente muito feliz, ele pousa as mãos nas fontes de Lalla, quer dizer, ele estende-as de cada lado da cabeça da rapariga, sem a tocar, e assim fica um longo momento, com o rosto inundado de luz. E Lalla sente o calor das palmas das mãos nas faces e nas têmporas, como se houvesse um fogo que a aquecesse. É uma impressão estranha, que por sua vez a enche de felicidade, que vai até ao mais fundo de si mesma, que a alivia, que a apazigua. É sobretudo por isso que Lalla gosta do Hartani, por ele ter esse poder nas palmas das mãos. Talvez ele seja efectivamente um feiticeiro.
Ela olha as mãos do pastor, para compreender. São mãos compridas com dedos delgados, com unhas nacaradas, mãos com uma pele fina e morena, quase negra do lado de cima, e de um rosa um pouco amarelado por debaixo, como as folhas de árvore que têm duas cores.
Lalla gosta muito das mãos do Hartani. Não são mãos como as dos outros homens da Cidade, e ela está convencida de que não há outras como estas em todo o país. São ágeis e ligeiras, cheias de força também, e Lalla pensa que são as mãos de alguém que é nobre, do filho de um xeque talvez, ou talvez mesmo de um guerreiro do Oriente, vindo de Bagdade.
O Hartani sabe fazer tudo com as mãos, não sabe só apanhar pedras ou partir lenha, mas sabe também fazer nós corredios com as fibras da palmeira, armadilhas para apanhar os pássaros, ou ainda assobiar, fazer música, imitar o grito da perdiz, do gavião, da raposa, e imitar o ruído do vento, da tempestade, do mar. As mãos dele sabem sobretudo falar. É isso que Lalla prefere. Às vezes, para falar, o Hartani senta-se num pedregulho achatado, ao sol, com os pés escondidos debaixo do albornoz de burel. A roupa dele é muito clara, quase branca, e então só se lhe vê a cara e as mãos cor de sombra, e é assim que ele começa a falar.
Não são verdadeiramente histórias o que ele conta a Lalla. São antes imagens que ele faz surgir no ar, só com os gestos, com os lábios, com a luz dos seus olhos. Imagens fugidias que traçam relâmpagos, que se acendem e se apagam, mas nunca Lalla ouviu coisa nenhuma tão bonita, tão verdadeira. Mesmo as histórias que conta Naman, o pescador, mesmo quando Aamma fala de Al Azraq, o Homem Azul do deserto, e da fonte de água cristalina que jorrou debaixo de uma pedra, nada disso é tão bonito. O que o Hartani diz com as mãos é tão insensato como ele, mas é como um sonho, porque cada imagem que ele faz aparecer surge no instante em que menos se espera, mas afinal era isso mesmo que se esperava. Ele fala assim, durante muito tempo, faz surgir pássaros com as penas afastadas, rochas fechadas como os punhos, casas, cães, temporais, aviões, flores gigantes, montanhas, o vento que sopra nos rostos adormecidos. Tudo aquilo não quer dizer nada, mas quando Lalla observa o rosto dele e o
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jogo das suas mãos negras, vê aparecerem essas imagens, tão belas e novas, resplandecentes de luz e de vida, como se jorrassem verdadeiramente da cova das suas mãos, como se saíssem dos seus lábios, como se viessem no raio desferido pelo seu olhar.
O que é bom sobretudo quando o Hartani fala assim, é não haver nada que perturbe o silêncio. O sol escalda no planalto de pedras, nas falésias vermelhas. O vento chega, por instantes, um pouco frio, ou então mal se ouve o ranger da areia que escorre pelas ranhuras das rochas. com as suas longas mãos de dedos flexíveis, o Hartani faz aparecer uma serpente que desliza no fundo de uma ravina e que depois pára, de cabeça erguida. Então escapa-se um grande íbis branco, batendo as asas com estrépito. No céu, à noite, a Lua é redonda e o Hartani vai acendendo as estrelas com o indicador, primeiro uma, depois outra e mais outra... No Verão, a chuva começa a cair, a água corre pelos ribeiros, faz crescer um charco redondo onde voam mosquitos. A direito para o centro do céu azul, o Hartani lança uma pedra triangular que sobe, sobe e zás!, de súbito abre-se e transforma-se numa árvore de folhagem imensa cheia de pássaros.
Às vezes o Hartani serve-se da cara para imitar as pessoas ou os animais. Ele sabe muito bem fazer de tartaruga, apertando os lábios e enfiando a cabeça nos ombros, com as costas abauladas. Lalla farta-se sempre de rir, como da primeira vez. Ou então faz de camelo, com os lábios estendidos para a frente e os incisivos de fora. Ele também imita muito bem os heróis que viu no cinema, Tarzan, ou Maciste, e os das bandas desenhadas.
Lalla leva-lhe de vez em quando pequenas revistas ilustradas que tirou ao filho mais velho de Aamma ou que comprou com as suas economias. Há as histórias de Akim, de Roch Rafai, as histórias que se passam na Lua ou nos outros planetas, e livrinhos de Mickey Mouse ou do Pato Donald. São esses que ela prefere. Ela não consegue ler o que está escrito, mas pediu ao filho de Aamma que lhe contasse a história duas ou três vezes, e fica a sabê-la de cor. Mas, seja como for, o Hartani não tem vontade de ouvir a história. Ele pega nos livrinhos e tem uma estranha maneira de os olhar, colocando-os de viés e pondo a cabeça um pouco de lado. Em seguida, depois de ter olhado bem os desenhos, dá um salto e imita Roch Rafai ou então Akim a cavalo num elefante (é um rochedo que faz de elefante).
Mas Lalla nunca fica muito tempo com o Hartani, porque há sempre uma altura em que o rosto dele parece fechar-se. Ela não compreende muito bem o que se passa, quando o rosto do jovem pastor endurece e se fixa e o olhar se torna distante. É como quando passa uma nuvem diante do Sol, ou como quando a noite desce muito depressa sobre as colinas e no fundo dos vales. É terrível, porque Lalla bem gostaria de segurar o tempo em que o Hartani tinha um ar feliz, agarrar-lhe o sorriso, a luz que brilhava nos seus olhos. Mas é impossível. De súbito, o Hartani vai-se embora,
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como um animal. Salta e desaparece num abrir e fechar de olhos, sem que Lalla consiga ver para onde foi. Mas ela agora já não procura retê-lo. Mesmo em certos dias, quando houve tanta luz no planalto de pedras, quando o Hartani falou com as mãos e fez nascer tantas coisas extraordinárias, é Lalla quem prefere ir-se embora primeiro. Levanta-se e afasta-se sem correr, sem se virar, pelo caminho que leva à Cidade de pranchas e de papel alcatroado. Talvez que à força de ter visto o Hartani, ela agora se tenha tornado como ele.
De resto, as pessoas não gostam muito que ela vá tantas vezes ver o Hartani. Talvez tenham medo que ela se torne mejnoun também, que fique com os espíritos malignos que há no corpo do pastor. O filho mais velho de Aamma diz que o Hartani é um ladrão, porque tem ouro num saquinho que traz pendurado ao pescoço. Mas Lalla sabe que não é verdade. O ouro, foi o Hartani quem o encontrou um dia, no leito de uma torrente seca. Ele pegou em Lalla pela mão e levou-a até ao fundo da ravina e lá, na areia cinzenta da torrente, Lalla viu o pó de ouro que reluzia.
- Não é um rapaz para ti - diz Aamma, quando Lalla regressa do planalto de pedras.
O rosto de Lalla está agora tão negro como o do Hartani, por causa do sol que queima mais lá no planalto. As vezes Aamma acrescenta:
- Tu não te vais casar com o Hartani, pois não?
- E porque não? - responde Lalla. E encolhe os ombros.
Ela não tem vontade de se casar, é coisa em que nunca pensa. Quando lhe vem à ideia que se poderia casar com o Hartani, desata a rir-se.
No entanto, sempre que pode, quando acha que já terminou o seu trabalho, Lalla sai da Cidade e vai para as colinas onde andam os pastores. É a leste da Cidade, lá onde começam as terras sem água, as altas falésias de pedra vermelha. Ela gosta muito de caminhar pelo carreiro muito branco que serpenteia por entre as colinas, escutando a música aguda dos grilos, observando os rastos das serpentes na areia.
Um pouco mais adiante, ouve os assobios dos pastores. São crianças na sua maioria, rapazes e raparigas, que se dispersam um pouco por toda a parte pelas colinas com os seus rebanhos de ovelhas e de cabras. Assobiam assim para se chamarem, para falarem entre si, ou para meterem medo aos cães selvagens.
Lalla gosta muito de andar pelas colinas, com os olhos muito franzidos por causa da luz branca, com todos aqueles assobios que saem de todo o lado. Aquilo fá-la arrepiar-se um pouco, apesar do calor, faz-lhe bater o coração mais depressa. Às vezes diverte-se a responder-lhes. Foi o Hartani quem lhe mostrou como se faz, enfiando dois dedos na boca.
Quando os jovens pastores vêm vê-la ao caminho, ficam primeiro um pouco à distância, porque são a puxar para o desconfiado. Têm as caras
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lisas, cor de cobre queimado, com testas abauladas e cabelos de uma cor esquisita, quase encarnados. Foi o sol e o vento do deserto que lhes queimou a pele e os cabelos. Apresentam-se andrajosos, vestidos apenas com longas camisas de pano cru, ou com fatos feitos de sacas de farinha. Não se aproximam porque falam o chleuh e não compreendem a língua falada pelas pessoas do vale. Mas Lalla gosta muito deles e eles não têm medo dela. Às vezes leva-lhes comida, o que consegue tirar às escondidas em casa de Aamma, um pouco de pão, bolachas, tâmaras secas.
Só o Hartani é que consegue andar com eles, por ser também pastor e por não viver com as pessoas da Cidade. Quando Lalla está com ele, lá longe no meio do planalto de pedras, eles chegam saltando de rocha em rocha, sem fazer barulho. Mas, de vez em quando, assobiam para prevenir. Quando chegam, rodeiam o Hartani, falando muito depressa na sua língua estranha, que faz um rumor de pássaros. Depois voltam a partir a correr, saltando através do planalto de pedras, sempre a assobiar, e às vezes o Hartani põe-se a correr com eles e até Lalla tenta segui-los, mas não consegue saltar tanto como eles. Eles riem-se todos muito, olhando para ela, e continuam a correr soltando grandes gargalhadas alegres.
Partilham com ela a sua refeição, nos rochedos brancos no meio do planalto. Debaixo da camisa, amarrado ao pescoço, trazem um pano que contém um pouco de pão preto, tâmaras, figos, queijo seco. Dão um bocado ao Hartani, um bocado a Lalla e em troca ela dá-lhes um pouco do seu pão branco. Às vezes, ela traz uma maçã encarnada, que comprou na Cooperativa. O Hartani puxa do seu canivete sem cabo e divide a maçã em gomos, para que calhe um bocado a cada um.
É bom, à tarde, no planalto de pedras. A luz do Sol não pára de faiscar nos ângulos dos calhaus, está-se rodeado de centelhas por todo o lado. O céu é azul profundo, escuro, sem aquele vapor branco que vem do mar e dos rios. Quando o vento sopra com força, têm que se encafuar nos buracos das rochas para se protegerem do frio, e então só se ouve o ruído do ar que assobia à superfície da terra, por entre o matagal. Aquilo faz um barulho como o mar, mas mais lento, mais demorado. Lalla escuta o ruído do vento, escuta as vozes franzinas das crianças pastores e também os balidos longínquos dos rebanhos. São os ruídos de que mais gosta no mundo, com os gritos das gaivotas e o estrondo das vagas. São ruídos como se nunca pudesse acontecer nada de mau sobre a terra.
Um dia, assim sem mais, depois de ter comido pão e tâmaras, Lalla seguiu o Hartani até ao pé das colinas vermelhas, lá onde estão as grutas. É lá. que dorme o pastor, na estação seca, quando o rebanho de cabras tem que se afastar para encontrar novas pastagens. Na falésia vermelha há aqueles buracos negros, meio escondidos pelas moitas de espinhos. Alguns desses buracos são pouco maiores que uma toca, mas, quando se entra, a caverna aumenta e toma-se grande como uma casa e tão fresca como ela.
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Lalla entrou assim, a rastejar, seguindo o Hartani. Ao princípio, ela não via mais nada e tinha medo. De repente, pôs-se a gritar:
- Hartani! Hartani!
O pastor voltou para trás, pegou-lhe no braço e içou-a para o interior da gruta. Então, quando voltou a ver de novo, Lalla avistou a grande sala. As paredes eram tão altas que não se lhes via o fim, com manchas cinzentas e azuis, com marcas de âmbar e de cobre. O ar era pardo, por causa da luz rara que vinha dos buracos na falésia. Lalla ouviu uma grande batida de asas e encostou-se toda ao pastor. Mas eram apenas morcegos incomodados no seu sono. Daí a pouco já estavam empoleirados noutro lugar a ranger e a gritar.
O Hartani sentou-se num pedregulho achatado, no centro da gruta, e Lalla sentou-se ao lado dele. Juntos, observaram a luz deslumbrante que entrava pela abertura da gruta, mesmo em frente deles. Na gruta, há a sombra, a humidade da noite perpétua, mas lá fora, no planalto de pedras, a luz faz mal aos olhos. É como estar-se num outro país, num outro mundo. É como. estar no fundo do mar.
Lalla não fala agora, não tem vontade de falar. Como o Hartani, ela está do lado da noite. O seu olhar é escuro como a noite, a sua pele é cor de sombra.
Lalla sente o calor do corpo do pastor, mesmo junto dela, enquanto a luz do seu olhar a vai penetrando a pouco e pouco. Ela bem gostaria de chegar até ele, até ao seu reino, estar totalmente com ele, para poder finalmente entendê-lo. Aproxima a boca da sua orelha, sente o cheiro dos seus cabelos, da sua pele, e diz o seu nome baixinho, quase mudamente. A sombra da gruta está em torno deles, envolve-os como um véu ligeiro e sólido. Lalla ouve com nitidez os ruídos da água que escorre pelas paredes da gruta, e os gritinhos emitidos pelos morcegos enquanto dormem. Quando a sua pele toca na do Hartani, aquilo provoca uma estranha onda de calor no seu corpo, uma vertigem. É o calor do Sol que entrou durante todo o dia nos seus corpos e que jorra agora em longas ondas febris. As respirações deles também se tocam, se misturam, pois já não há necessidade de palavras, mas só daquilo que sentem. É uma embriaguez que ela ainda não conhece, nascida da sombra da gruta, em poucos instantes, como se há muito as muralhas de pedra e a sombra húmida esperassem que eles viessem, para libertar o seu poder. A vertigem gira cada vez mais depressa no corpo de Lalla, e ela ouve distintamente a batida do seu sangue, misturada ao ruído das gotas de água nas paredes e aos guinchos dos morcegos. Como se ambos os corpos se tivessem fundido num só com o interior da gruta, ou então estivessem prisioneiros nas entranhas de um gigante.
O cheiro de cabra e de ovelha do Hartani mistura-se ao cheiro da rapariga. Ela sente o calor das mãos dele, o suor empapa-lhe a testa e os cabelos.
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De repente, Lalla não compreende o que lhe acontece. Ela tem medo, abana a cabeça e procura fugir ao abraço do pastor que lhe segura os braços de encontro à pedra e prende as longas pernas duras nas suas. Lalla quereria gritar, mas, como num sonho, nem um som consegue sair da sua garganta. A sombra húmida encerra-a e vela-lhe os olhos, o peso do corpo do pastor impede-a de respirar. Finalmente, dilacerada, consegue gritar e a sua voz retumba como um trovão nas paredes da gruta. Os morcegos, bruscamente despertados, começam a revolutear por entre as paredes, com o seu ruído de asas e o seu rangido.
Já o Hartani está de pé em cima da pedra e se afasta um pouco. Os seus braços compridos gesticulam para enxotar a nuvem de morcegos tontos que oscilam em torno dele. Lalla não lhe vê a cara, porque a sombra da gruta se tornou mais densa, mas adivinha a angústia que vai nele. Uma grande tristeza lhe acode, cresce sem parar. Ela já não tem medo do escuro, nem dos morcegos. É ela agora quem pega na mão do Hartani e sente que ele treme terrivelmente, que está todo agitado por sobressaltos. Ele não se move. com o busto lançado para trás, um braço diante dos olhos para não ver os morcegos, ele treme com tanta força que os dentes lhe batem. Então Lalla guia-o para a porta da gruta, e é ela quem o empurra para fora, até o sol lhes inundar as cabeças e os ombros.
À luz do dia, o Hartani tem uma cara tão descomposta, tão lamentável que Lalla não consegue evitar o riso. Ela limpa os vestígios de terra molhada no seu vestido rasgado e na comprida camisa do Hartani. Depois, descem juntos para o planalto de pedras. O sol brilha com força nos calhaus pontiagudos, a terra está branca e encarnada sob o céu quase negro.
É como mergulhar de cabeça na água fria quando se teve muito calor, e nadar demoradamente, para lavar todo o corpo. Depois, põem-se a correr através do planalto de pedras, o mais depressa que podem, saltando por cima das rochas, até que Lalla pára, sem fôlego, dobrada ao meio por causa de uma dor no lado. O Hartani continua a saltar de rocha em rocha como um animal, depois repara que Lalla já não vem atrás dele e descreve um grande círculo para voltar para trás. Ficam os dois sentados ao sol, numa pedra, segurando-se com força pela mão. O Sol declina no horizonte, o céu torna-se amarelo. De longe a longe, nas colinas, no fundo dos vales, conversam entre si os assobios agudos dos pastores que se interpelam e se respondem.
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Lalla gosta do fogo. Há toda a espécie de fogos, aqui, na Cidade. Há o lume da manhã, quando as mulheres e as raparigas põem a cozer a comida nas grandes panelas pretas, e o fumo corre pelo chão fora, misturado à bruma da alvorada, mesmo antes do Sol aparecer por cima das colinas vermelhas. Há os lumes de ervas e de ramos, que ardem demoradamente, sozinhos, quase abafados, sem chamas. Há os lumes dos braseiros, ao cair da tarde, à bela luz do Sol que declina, no meio dos reflexos de cobre. O fumo baixo rasteja como uma vaga e longa serpente, amparada de casa em casa, lançando anéis cinzentos para o mar. E há os fogos que se acendem nas velhas latas de conserva, para fazer aquecer o alcatrão, para tapar os buracos dos telhados e das paredes.
Aqui toda a gente gosta do fogo, sobretudo as crianças e os velhos. Sempre que se acende o lume, todos se vão sentar à volta, agachados em cima dos calcanhares, enquanto contemplam com olhos vazios as chamas que dançam. Ou então atiram de vez em quando gravetos secos que se inflamam de repente a crepitar, e punhados de erva que se consomem formando turbilhões azulados.
Lalla vai sentar-se na areia, à beira-mar, lá onde Naman, o pescador, ateou a sua grande fogueira de ramos para aquecer o pez, para calafetar o seu barco. É quase noite, o ar está muito suave, muito calmo. O céu, de um azul leve, está transparente, sem uma nuvem.
À beira-mar, há sempre aquelas árvores um pouco raquíticas, queimadas pelo sal e pelo sol, com uma folhagem feita de milhares de pequenas agulhas cinzento-azuladas. Quando Lalla passa ao pé delas, colhe um punhado de agulhas para a fogueira de Naman, o pescador, e também mete algumas na boca, para mascar lentamente, enquanto caminha. As agulhas são salgadas, azedas, mas aquilo mistura-se com o cheiro do fumo e é bom.
Naman acende o lume seja onde for, no lugar onde encontra grandes ramos mortos encalhados na areia. Faz um monte com os ramos e forra os vazios com rama seca que vai buscar à charneca, do outro lado das dunas.
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Também põe limo seco e cardos mortos. Isto é quando o Sol ainda vai alto no céu. O suor escorre pela testa e pelas faces do velho. A areia queima como fogo.
Em seguida acende o lume com o isqueiro de pederneira, tendo o cuidado de atear a chama do lado onde não há vento. Naman sabe acender muito bem o lume, e Lalla observa com atenção todos os gestos dele, para aprender. Ele sabe escolher o sítio, nem muito exposto, nem muito abrigado, nas covas das dunas.
O fogo pega e extingue-se duas ou três vezes, mas Naman não parece fazer caso. Sempre que a chama se apaga, ele esgaravata na rama com a mão, sem ter medo de se queimar. O fogo é assim, gosta daqueles que não o receiam. Então a chama brota de novo, primeiro pequena, só se vê a sua cabeça que brilha entre os ramos, até que de súbito incendeia toda a base da fogueira, fazendo um grande clarão e estalando muito.
Quando o lume está forte, Naman, o pescador, coloca o tripé de ferro sobre o qual pousa o grande caldeiro de pez. Depois senta-se na areia e contempla o fogo, atirando de vez em quando um graveto que as chamas logo devoram. Então as crianças vêm também sentar-se. Chegou-lhes o cheiro do fumo, e vieram de longe a correr pela praia. Soltam gritos, chamam uns pelos outros, riem às gargalhadas, porque o fogo é mágico, dá às pessoas vontade de correr e de gritar e de rir. Nessa altura, as chamas estão muito altas e claras, remexem e estalam, dançam, e vê-se uma data de coisas nas suas dobras. Aquilo de que Lalla mais gosta é a base da fogueira, os tições muito quentes envoltos nas chamas, e aquela cor ardente, que não tem nome e que se assemelha à cor do Sol.
Ela também contempla as faúlhas que sobem ao longo do fumo cinzento, que brilham e se extinguem, que desaparecem no céu azul. À noite, as faúlhas são ainda mais belas, semelhantes a ondas de estrelas cadentes.
As moscas da areia também vieram, atraídas pelo cheiro do limo que arde e pelo cheiro do pez quente, e irritadas pelas volutas de fumo. De quando em quando, ele levanta-se, mergulha um pau no caldeiro de pez para ver se está bem quente, depois mexe o líquido expesso, piscando os olhos por causa do fumo que revoluteia. O barco está a poucos metros, na praia, de quilha para o ar, pronto para ser calafetado. O Sol declina agora depressa, aproxima-se das colinas ressequidas, do outro lado das dunas. A sombra aumenta. As crianças estão sentadas na praia, encostadas umas às outras, e os risos diminuem um pouco. Lalla observa Naman, tenta descortinar a luz clara, cor de água, que costuma luzir no seu olhar. Naman reconhece-a, faz-lhe um pequeno sinal amistoso com a mão e logo a seguir diz, como se fosse a coisa mais natural do mundo:
- Eu já te falei de Balaabilou?
Lalla abana a cabeça. Sente-se feliz porque chegou precisamente o momento de ouvir uma história, assim mesmo, ali na praia, olhando o fogo
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que faz borbulhar o pez no caldeiro, o mar muito azul, cheirando o vento morno que empurra o fumo, com as moscas e as vespas que zumbem, e não muito longe, o ruído das ondas do mar que vêm lamber a velha barca voltada na areia.
- Então eu nunca te contei a história de Balaabilou?
O velho Naman levanta-se para olhar o pez que ferve com força. Mexe lentamente o pau no caldeiro e tem o ar de achar que tudo está em ordem. Então, dá a Lalla uma velha caçarola com o cabo queimado.
- bom, tu vais encher isso de pez e vais levar-ma além, quando eu estiver ao pé do barco.
Não espera pela resposta e vai instalar-se na praia ao lado do seu barco. Depois prepara uma quantidade de pincéis feitos de trapos amarrados a bocados de pau.
- Vem cá!
Lalla enche a caçarola. O pez fervente faz rebentar pequenas bolhas que picam, e o fumo queima os olhos de Lalla. Mas ela corre segurando o tacho cheio de pez na ponta do braço estendido. As crianças seguem-na a rir e sentam-se em redor da barca.
- Balaabilou, Balaabilou...
O velho Naman cantarola o nome do rouxinol como se procurasse lembrar-se bem de tudo o que há na história. Mergulha os paus no pez quente e começa a pintar o casco da barca, nos sítios onde há tampões de estopa, nas juntas das tábuas.
- Foi há muito tempo - diz Naman -, isto passou-se num tempo que nem eu, nem o meu pai, nem mesmo o meu avô conhecemos, mas mesmo assim a gente lembra-se perfeitamente do que se passou. Nesse tempo, não havia as mesmas pessoas que há agora, e não eram conhecidos os Romanos, nem tudo o que vem dos outros países. Era por isso que ainda havia djinns nesse tempo, porque ninguém os tinha posto fora. Por conseguinte, nesse tempo, havia numa grande cidade do Oriente um emir poderoso que tinha por único filho uma rapariga, chamada Leila, a Noite. O emir amava a filha mais que tudo no mundo, e ela era a mais bela rapariga do reino, a mais meiga, a mais ajuizada, e tinham-lhe prometido toda a felicidade do mundo.
A noite desce lentamente no céu, faz o azul do mar mais escuro, e a espuma das vagas parece ainda mais branca. O velho Naman mergulha com regularidade os pincéis na caçarola de pez e passa-os a rolar pelas ranhuras guarnecidas de estopa. O líquido escaldante penetra nos interstícios, pinga na areia da praia. Todas as crianças e Lalla observam as mãos de Naman.
- Então aconteceu uma coisa horrível nesse reino - continua Naman. Houve uma grande seca, um flagelo de Deus desabou sobre o reino, não havia uma gota de água nos ribeiros, nem nas cisternas, e toda a gente
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morria de sede, primeiro as árvores e as plantas, depois os rebanhos de animais, as ovelhas, os cavalos, os camelos, os pássaros, e finalmente os homens, que morriam de sede nos campos, à beira das estradas, era uma coisa pavorosa de se ver, e é por isso que a gente ainda hoje se lembra... As moscas achatadas chegam, pousam nos lábios das crianças, zumbem-lhes nos ouvidos. É o cheiro acre do pez que as embriaga, e as pesadas volutas de fumo que se contorcem no meio das dunas. Há vespas também, mas ninguém as enxota, porque, quando o velho Naman conta uma história, é como se elas também se tornassem um pouco mágicas, uma espécie de djinns.
- O emir daquele reino estava triste, e mandou convocar os sábios para escutar os seus conselhos, mas ninguém sabia o que se havia de fazer para acabar com a seca. Então apareceu um viajante estrangeiro, um egípcio, que era mágico. O emir convocou-o também, e pediu-lhe que acabasse com a maldição que pesava sobre aquele reino. O egípcio olhou para a mancha de tinta e de súbito ficou cheio de medo, pôs-se a tremer e recusou-se a falar. Fala!, dizia o emir, fala, que eu farei de ti o homem mais rico deste reino. Mas o estrangeiro recusava-se a falar. Senhor, dizia ele pondo-se de joelhos, deixa-me partir, não me peças que te revele este segredo.
Quando Naman pára de falar para molhar os pincéis no tacho, as crianças e Lalla quase que não se atrevem a respirar. Só ouvem os estalidos do lume e o ruído do pez que ferve no caldeiro.
- Então o emir encheu-se de ira e disse ao egípcio: fala ou será o teu fim. E os carrascos já se tinham apoderado dele e pegavam nos sabres para lhe cortar a cabeça. Então o estrangeiro gritou: pára! Vou-te dizer o segredo da maldição. Pois fica sabendo que foste amaldiçoado!
O velho Naman tem um modo muito especial de dizer, lentamente: Mlaaoune, amaldiçoado de Deus, o que faz arrepiarem-se as crianças. Ele interrompe-se um instante, para tirar o que resta de pez na caçarola. Depois estende-a a Lalla, sem dizer uma palavra, e ela tem que correr até à fogueira para a encher com o pez a ferver. Felizmente, ele espera que ela volte para continuar a história.
- Então o egípcio disse ao emir: não mandaste castigar em tempos um homem, por ter roubado ouro a um mercador? Sim, assim fiz, disse o emir, porque se tratava de um ladrão. Pois fica sabendo que esse homem estava inocente, disse então o egípcio, e tinha sido falsamente acusado, e que ele te amaldiçoou, e foi ele quem mandou esta seca, pois é um aliado dos espíritos e dos demónios.
Quando a noite chega assim, na praia, enquanto se ouve a voz grave do velho Naman, é um pouco como se o tempo não existisse, ou como se ele tivesse voltado para trás, para outro tempo, muito comprido e agradável, e Lalla bem gostaria que a história de Naman nunca mais acabasse, mesmo
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que tivesse de durar dias e noites e que ela e as outras crianças adormecessem, e quando tornassem a acordar, ainda ali estivessem a escutar a voz de Naman.
- Que é preciso fazer para acabar com essa maldição?, perguntou o emir, e o egípcio olhou-o bem nos olhos: Fica sabendo que só há um remédio, e eu vou-te dizer qual é por me teres pedido que to revelasse. Tens que sacrificar a tua filha única, aquela que amas mais que tudo no mundo. Vai, entrega-a aos animais ferozes da floresta para que a devorem, e assim terminará a seca que impera no teu país. Então o emir pôs-se a chorar e a gritar de dor e de cólera, mas como era um homem de bem, deixou o egípcio partir em liberdade. Quando a população do país soube daquilo, também chorou, porque amava Leila, a filha do seu rei. Mas tinha que se fazer o sacrifício e o emir resolveu levar a filha para a floresta, para a dar em pasto aos animais selvagens. Mas havia naquele país um jovem que amava Leila mais do que os outros e que estava resolvido a salvá-la. Ele tinha herdado de um mágico seu parente um anel que dava a quem o possuía o poder,. de se transformar em animal, mas nunca mais poderia voltar à forma primitiva e ficaria imortal. Quando chegou a noite do sacrifício, o emir partiu para a floresta, acompanhado da filha...
O ar está liso e puro, o horizonte é uma linha sem fim. Lalla olha o mais longe que pode, como se estivesse transformada em gaivota, e voasse a direito por cima do mar.
- O emir chegou ao meio da floresta, mandou a filha descer do cavalo e amarrou-o a uma árvore. Depois foi-se embora, chorando de dor, pois já se ouviam os gritos dos animais ferozes que se aproximavam da sua vítima...
O ruído das ondas na praia é mais nítido por instantes, como se o mar estivesse a chegar. Mas é só o vento que sopra e quando ele se enrosca nas covas das dunas faz jorrar trombas de areia que se misturam ao fumo.
- Na floresta, amarrada à árvore, a pobre Leila tremia de medo e pedia ao pai que lhe acudisse, porque não tinha coragem de morrer assim, devorada pelos animais selvagens... Já um lobo muito corpulento se aproximava dela e ela via os olhos dele a brilhar como chamas na noite. Então, de repente, ouviu-se na floresta uma música. Era uma música tão bela e tão pura que Leila deixou de sentir medo e todos os animais ferozes da floresta pararam para a escutar...
As mãos do velho Naman pegam nos pincéis, um atrás do outro, e fazem-nos deslizar às voltas pelo casco do barco. É também para elas que Lalla e as crianças olham, como se contassem uma história.
- A música celeste soava em toda a floresta e, ao ouvi-la, os animais selvagens deitavam-se no chão e ficavam mansos como cordeiros, porque o canto que vinha do céu dava-lhes volta, tocava-lhes na alma. Leila também escutava a música com arrebatamento e logo a seguir os nós que a seguravam desataram-se por si e ela pôs-se a caminhar pela floresta e por toda a
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parte por onde passava ouvia por cima de si o músico invisível, como se estivesse escondido na folhagem das árvores. E os animais ferozes estavam deitados à beira do caminho e lambiam as mãos da princesa, sem lhe fazer mal nenhum...
O ar está agora tão transparente, a luz tão suave, que se parece estar num outro mundo.
- Então Leila voltou de manhã para a casa do seu pai, depois de ter caminhado toda a noite, e a música foi acompanhando-a até às portas do palácio. Quando as pessoas viram aquilo ficaram todas muito contentes, porque gostavam muito da princesa. E ninguém reparou num passarinho que voava discretamente de ramo em ramo. E nessa mesma manhã a chuva voltou a cair sobre a terra...
Naman pára de pintar por um instante; as crianças e Lalla observam a cara de cobre onde brilham uns olhos verdes. Mas ninguém faz uma pergunta, ninguém diz uma palavra para saber.
- E debaixo da chuva que caía, o pássaro Balaabilou continuava a cantar, porque era ele que tinha salvo a vida à princesa que amava. E como não podia voltar à sua forma primitiva, todas as noites vinha pousar no ramo de uma árvore, ao pé da janela de Leila, para lhe cantar a sua bela música. Diz-se mesmo que, depois de ter morrido, a princesa também se transformou em pássaro e pôde juntar-se a Balaabilou e cantar eternamente com ele, nas florestas e nos jardins.
Quando a história acaba, Naman não diz nada. Continua a tratar do barco, rolando os pincéis de pez pelo casco. A luz declina, porque o Sol baixa do outro lado do horizonte. O céu fica muito amarelo, e um pouco verde, as colinas parecem recortadas em papel alcatroado. O fumo do braseiro é fino, ligeiro, mal se apercebe em contraluz, como se fosse só o fumo de um cigarro.
As crianças vão-se embora, umas depois das outras. Lalla fica sozinha com o velho Naman. Ele termina o seu trabalho sem nada dizer. Depois vai-se embora por sua vez, caminhando lentamente pela praia, levando os seus pincéis e a caçarola de pez. Então, só fica ao pé de Lalla o lume que se extingue. O escuro invade depressa o fundo do céu, todo o azul intenso do dia que se transforma a pouco e pouco em negro de noite. O mar acalma-se nesse instante, não se sabe porquê. As vagas esmorecem, muito moles, e caem na areia da praia, estirando as suas toalhas de espuma roxa. Os primeiros morcegos começam a ziguezaguear por cima do mar, à procura de insectos. Há alguns mosquitos, algumas borboletas cinzentas perdidas. Lalla ouve ao longe o grito abafado do noitibó. Na fogueira, só algumas brasas vermelhas continuam a arder, sem chama nem fumo, como estranhos animais palpitantes escondidos no meio das cinzas. Quando a última brasa se apaga, depois de ter brilhado com mais força durante alguns segundos, como uma estrela que se extingue, Lalla levanta-se e vai-se embora.
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Há rastos um pouco por toda a parte na poeira dos velhos caminhos, e Lalla diverte-se a segui-los. Às vezes não levam a parte nenhuma, quando são rastos de pássaro ou de insecto. Às vezes conduzem-nos até um buraco na terra, ou então até à porta de uma casa. Foi o Hartani quem lhe mostrou como se seguem os rastos, sem nos deixarmos desorientar pelo que está à volta, as ervas, as flores ou os calhaus que brilham. Quando o Hartani segue um rasto, é tal e qual um cão de caça. Os olhos cintilam, as narinas dilatam-se, todo o corpo fica tenso. De vez em quando ele até se deita no chão para sentir melhor a pista.
Lalla gosta muito dos carreiros ao pé das dunas. Ela lembra-se dos primeiros dias, após a sua chegada à Cidade, depois de a mãe ter morrido com as febres. Lembra-se da viagem no camião com um toldo, com a irmã do seu pai, aquela que se chama Aamma, envolta num grande manto de lã cinzenta, com a cara velada por causa da poeira do deserto. A viagem tinha durado vários dias e Lalla passava o dia sentada na retaguarda do camião, debaixo do toldo sufocante, no meio dos sacos e dos fardos poeirentos. Depois, um dia, pela abertura da lona, tinha avistado o mar muito azul, à beira da praia orlada de espuma, e tinha-se posto a chorar, sem saber se era de prazer ou de cansaço.
Sempre que Lalla caminha pelo carreiro, à beira-mar, pensa no mar tão azul, no meio da poeira toda do camião, e naquelas grandes ondas silenciosas que avançavam de viés, lá longe, pela praia fora. Pensa em tudo o que viu, de súbito, assim, através da fenda do toldo do camião, e sente as lágrimas nos olhos, porque é um pouco o olhar da sua mãe que se assesta nela, que a envolve, que a faz arrepiar-se.
É isso o que ela procura pelo caminho das dunas, com o coração a palpitar e o corpo muito tenso, como o Hartani quando segue um rasto. Ela procura os sítios de onde veio, depois desses dias, há tanto tempo que já nem mesmo se lembra de si própria.
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Às vezes ela diz: "Oummi", assim mesmo, muito baixinho, a murmurar. Às vezes fala-lhe, sozinha, muito baixo, num sopro, olhando o mar muito azul entre as dunas. Ela não sabe bem o que deve dizer, porque já foi há tanto tempo que até se esqueceu como era a mãe. Talvez até tenha esquecido mesmo o som da sua voz, até as próprias palavras que então gostava de ouvir?
- Para onde foste, Oummi? Gostava tanto que viesses cá para me ver, gostava tanto...
Lalla senta-se na areia, frente ao mar, e contempla os movimentos lentos das vagas. Mas não é tal e qual como no dia em que viu o mar pela primeira vez, depois da poeira sufocante do camião, nas estradas vermelhas que vêm do deserto.
- Oummi, não queres voltar, para me ver? Olha que eu não me esqueci de ti.
Lalla procura na memória o rasto das palavras que a mãe lhe dizia dantes, das palavras que ela cantava. Mas é difícil descobri-las. É preciso fechar os olhos e descair para trás, o mais atrás possível, como se se caísse num poço sem fundo. Lalla reabre os olhos, porque já não há mais nada na sua memória.
Levanta-se, passeia pela praia, olhando a água que derrama a espuma na areia. O sol queima nos ombros e na nuca, a luz é ofuscante. Lalla gosta muito daquilo. Também gosta do sal que o vento lhe põe nos lábios. Observa as conchas abandonadas na areia, os nácares cor-de-rosa, amarelo-palha, os velhos búzios gastos e vazios, e as longas fitas de algas verde-negras, cinzentas, púrpuras. Tem cuidado para não pisar uma alforreca ou uma raia. De vez em quando, há uma espécie de reboliço na areia, quando a água se retira, no sítio onde havia um peixe achatado. Lalla afasta-se muito ao longo da costa, arrastada pelo ruído das ondas. De vez em quando, pára, fica quieta, mirando a sua sombra negra desenhada aos seus pés, ou então o deslumbramento da espuma.
- Oummi - diz ainda Lalla -, não podes voltar só por um instante? Eu tenho vontade de te ver, porque me sinto sozinha. Quando tu morreste e a Aamma me veio buscar, eu não queria vir com ela, porque sabia que nunca mais te voltava a ver. Vem, só um instantinho, vem!
com os olhos meio fechados e fitando a luz que se reverbera na areia branca, Lalla consegue avistar os grandes campos de areia que havia por todo o lado, lá na terra de Oummi, em torno da casa. Até estremece, de súbito, porque julgou aperceber por um instante a árvore seca.
O coração bate-lhe mais depressa e põe-se a correr para as dunas, lá onde cessa o vento do mar. Deita-se de barriga para baixo na areia quente, os cardos rasgam-lhe um pouco o vestido e espetam as agulhas minúsculas no ventre e nas coxas, mas não faz caso. Sente uma dor fulgurante no meio do corpo, uma pontada tão forte que tem a impressão de que vai desmaiar.
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As mãos enterram-se na areia e deixa de respirar. Fica muito rija, como uma tábua de madeira. Por fim, consegue reabrir os olhos, muito devagar, como se fosse realmente ver a silhueta da árvore seca que espera por ela. Mas não há nada, o céu está enorme, muito azul, e apenas ouve o longo ruído das ondas atrás das dunas.
- Oummi, oh, Oummi - diz Lalla, a gemer.
Mas agora já consegue ver aquilo com toda a nitidez: há um grande campo de pedras encarnadas, e a poeira, ali, diante da árvore seca, um campo tão vasto que parece estender-se até aos confins da terra. O campo está vazio e a rapariga corre para a árvore seca no meio da poeira, e é tão pequena que se sente perdida de repente no meio do campo, ao pé da árvore negra, sem saber para onde ir. Então grita com todas as suas forças, mas a sua voz ressalta nas pedras vermelhas, dispersa-se na luz do Sol. Ela grita e o silêncio que a rodeia é terrível, um silêncio que magoa, que faz mal. Então a menina perdida segue em frente, cai, levanta-se, esfola os pés nos ângulos das pedras e tem a voz dilacerada pelos soluços e já não consegue respirar.
- Oummi! Oummi! - É isto o que ele grita, ouvindo agora distintamente a sua voz, a sua voz dilacerada que não consegue sair do campo de pedras e de pó, que volta para trás e vai ficando abafada. Mas são essas as palavras que ela ouve, no outro lado do tempo, e que a magoam, porque significam que a Oummi não vai voltar.
Então, de repente, diante da rapariguinha perdida, mesmo no meio do campo de pedras e de poeira, surge aquela árvore, a árvore seca. É uma árvore que morreu de sede ou de velhice, ou que foi fulminada por um raio. Não é muito grande, mas é extraordinária, porque está torcida em todos os sentidos, com alguns velhos galhos eriçados como espinhas, e um tronco negro, feito de tendões retorcidos, com longas raízes negras que se enroscam em torno dos rochedos. A rapariguinha aproxima-se da árvore, devagar, sem saber porquê, acerca-se do tronco calcinado, toca-lhe com as mãos. E, de repente, toda ela fica gelada de medo: do alto da árvore seca, muito esticada, desenrola-se e desce uma serpente. Deslizando ao longo dos ramos, interminavelmente, as escamas rangem na madeira morta fazendo um ruído metálico. A serpente desce sem se apressar, avança o seu corpo cinzento-azulado para o rosto da menina. Ela olha-a sem pestanejar, sem se mexer, quase sem respirar, e nenhum grito já lhe consegue sair da garganta. De súbito, a serpente detém-se e olha para ela. Então, ela salta para trás, desata a correr com todas as suas forças, sozinha através do campo de pedras, corre como se fosse atravessar a terra inteira, com a boca seca, os olhos encandeados pela luz, a respiração arquejante, corre para uma casa, para a sombra da Oummi que a aperta com força e lhe acaricia o rosto; e ela sente o cheiro doce dos cabelos da Oummi e ouve as suas palavras meigas.
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Mas hoje não há ninguém, ninguém mesmo no fim da extensão de areia branca, e o céu está ainda maior, mais vazio. Lalla está sentada na cova da duna, com o corpo dobrado ao meio e a cabeça enterrada nos joelhos. Sente a queimadura do sol na nuca, no sítio onde o cabelo se divide, e nos ombros, através do tecido quebradiço do vestido.
Ela pensa em Es Ser, aquele a quem chama o Segredo, e que encontrou no planalto de pedras, na direcção do deserto. Talvez ele lhe quisesse dizer qualquer coisa, dizer-lhe que não estava só, mostrar-lhe o caminho que leva à Oummi. Talvez seja o olhar dele que lhe queima agora os ombros e a nuca.
Mas quando reabre os olhos, não há ninguém à vista. O seu medo desvaneceu-se. A árvore seca, a serpente, o grande campo de pedras vermelhas e de poeira, tudo desapareceu como se não tivesse existido. Lalla regressa ao mar. Ele está quase tão belo como no dia em que Lalla o viu pela primeira vez, através da abertura do toldo do camião, e que se pôs a chorar. O Sol limpou o ar por cima do mar. Há centelhas que dançam à tona das ondas, e grandes rolos de espuma. O vento está morno, repleto dos cheiros das profundidades, algas, conchas, sal, espuma.
Lalla recomeça a caminhar lentamente à beira-mar, e sente uma espécie de embriaguez no fundo de si mesma, como se houvesse realmente um olhar que viesse do mar, da luz do céu, da praia branca. Ela não entende bem o que é, mas sabe que há alguém em toda a parte, que a observa, que a ilumina com o seu olhar. Isto preocupa-a um pouco, e ao mesmo tempo dá-lhe um certo calor, uma onda que irradia nela, que vai do centro do seu ventre até às extremidades do seus membros.
Pára e olha em tomo de si: não há ninguém, nenhuma forma humana. Há só as grandes dunas imóveis, semeadas de cardos, e as vagas que vêm, uma a uma, até ao areal. Talvez seja o mar que esteja sempre a olhar assim, olhar profundo das ondas da água, olhar resplandecente das vagas das dunas de areia e de sal? Naman, o pescador, diz que o mar é como uma mulher, mas nunca explica isso. O olhar vem de todos os lados ao mesmo tempo.
Então, nesse instante, há um grande voo de gaivotas e de andorinhas-do-mar que passa por cima do areal, cobrindo a praia de sombra. Lalla pára, com as pernas enterradas na areia molhada e a cabeça atirada para trás: assim vê passar as aves marítimas.
Elas passam devagar, subindo a corrente de vento morno, com as longas asas pontiagudas agitando o ar. As cabeças estão um pouco inclinadas de lado e os bicos entreabertos deixam escapar estranhos gemidos, estranhos rangidos.
No meio do voo, há uma gaivota que Lalla conhece bem, porque é toda branca, sem uma única mancha preta. Ela passa lentamente por cima de Lalla, remando lentamente contra o vento, com as penas das asas um pouco afastadas, de bico entreaberto, e quando passa assim, olha para
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Lalla com a cabecinha inclinada para baixo e o olhinho redondo brilhante como uma gota.
- Quem és tu? Onde vais? - pergunta Lalla. A gaivota branca olha-a e não responde. Vai juntar-se às outras, voa demoradamente por cima da praia, à procura de qualquer coisa para comer. Lalla pensa que a gaivota branca a conhece, mas que não se atreve a aproximar-se porque as gaivotas não foram feitas para viverem com os homens.
O velho Naman diz às vezes que as aves marítimas são as almas dos homens que morreram no mar durante um temporal, e Lalla pensa que a gaivota branca é a alma de um pescador muito alto e magro, com a tez clara e os cabelos cor de luz e cujos olhos brilham como uma chama. Talvez ele fosse um príncipe do mar.
Então ela senta-se na praia, no meio das dunas, e observa o bando de gaivotas que voa à beira-mar. Voam facilmente, sem fazer grandes esforços, com as longas asas curvas apoiadas no vento e a cabeça inclinada um pouco de lado. Procuram comida, porque não muito longe dali é o grande vazadouro da cidade, aonde vêm os camiões. Elas não param de gritar, emitindo aquele estranho gemido ininterrupto onde explodem de súbito, sem razão, gritos agudos, guinchos, risos.
E depois, de quando em quando, a gaivota branca, aquela que é como um príncipe do mar, vem voar ao pé de Lalla, descreve grandes círculos por cima das dunas, como se a tivesse reconhecido. Lalla faz-lhe sinais com os braços, tenta chamá-la, procura todos os nomes, na esperança de dizer o verdadeiro, aquele que talvez lhe devolva a sua forma primitiva, que fará aparecer no meio da espuma o príncipe do mar com cabelos de luz e um olhar onde brilham as chamas.
- Suleiman!
- Mumine!
- Daniel!
Mas a grande gaivota branca continua a girar no céu, do lado do mar, rasando as ondas com a ponta da asa, com o duro olhar fixo na silhueta de Lalla, sem responder. Às vezes, por se sentir um pouco despeitada, Lalla corre atrás das gaivotas, agitando os braços, e grita nomes à sorte, para irritar aquele que é o príncipe do mar:
- Frangos! Fardais! Borrachos! E até:
- Gaviões! Abutres! - Porque são aves de que as gaivotas não gostam. Mas ela, a ave branca, que não tem nome, continua o seu voo muito vagaroso, indiferente, afasta-se ao longo da praia, plana no vento de leste e por muito que Lalla corra pela areia dura, nunca consegue alcançá-la.
Ela vai-se embora, desliza no meio das outras aves ao longo da espuma, afasta-se; pouco depois não passam de pontos imperceptíveis que se fundem no azul do céu e do mar.
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O que também é bonito é a água. Quando começa a chover no meio do Verão, a água escorre pelos telhados de chapa e de papel alcatroado, entoa a sua canção suave nos grandes bidões, debaixo das goteiras. É de noite que a chuva vem, e Lalla escuta o ruído do trovão que rola e que cresce por cima do vale, ou então por cima do mar. Através dos interstícios das tábuas, ela observa a bela luz branca que se acende e se apaga sem parar, que faz sobressaltar as coisas no interior da casa. Aamma não se mexe no seu leito, continua a dormir com a cabeça debaixo do lençol, sem ouvir o barulho do temporal. Mas do outro lado do quarto, os dois rapazes estão acordados e Lalla ouve-os falar em voz baixa e rir sem fazer ruído. Eles estão sentados no colchão e também tentam ver o que se passa lá fora, pelas frestas das tábuas.
Lalla levanta-se e caminha sem fazer ruído até à porta, para ver os desenhos dos relâmpagos. Mas o vento começa a soprar e as grandes gotas frias caem na terra e crepitam no telhado; então Lalla volta a deitar-se entre os cobertores, porque é assim que gosta de ouvir o barulho da chuva; de olhos muito abertos no escuro, vendo por instantes iluminar-se o tecto e escutando as gotas todas a bater na terra e nas placas de chapa com violência, como se fossem pedrinhas que caíssem do céu.
Passado um instante, Lalla ouve o jorro de água que cai das goteiras e que bate no fundo dos bidões de petróleo vazios; sente-se feliz, como se fosse ela que bebesse a água. No princípio, aquilo faz um estrondo de metal e, depois, a pouco e pouco, os bidões vão-se enchendo e o ruído torna-se mais profundo. A água escorre de todos os lados ao mesmo tempo, para a terra, para os charcos, para as velhas panelas abandonadas na rua. A poeira seca do Inverno sobe no ar, quando a chuva bate no solo, e aquilo produz um estranho cheiro de terra molhada, de palha e de fumo que sabe bem respirar. Há crianças que correm na noite. Despiram-se por completo, e correm nuas debaixo da chuva, pelas ruas fora, soltando gritos e risadas. Lalla bem gostaria de fazer como elas, mas agora já é demasiado
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crescida e as raparigas da idade dela não podem andar nuas. Então volta a adormecer, sem deixar de ouvir o crepitar da água nas chapas de zinco, sem deixar de pensar nas duas belas fontes que jorram de cada lado do telhado e que fazem transbordar de água clara os bidões de petróleo.
O que é bom, quando a água cai assim durante dias e noites a fio, é que se pode ir tomar banho de água quente no balneário, do outro lado do rio, na cidade. Aamma resolveu levar Lalla ao banho, quando a tarde ia no fim, e o calor do Sol começa a apertar menos, enquanto as nuvens brancas principiam a acumular-se no céu.
É o dia do banho das mulheres, e toda a gente vai para o balneário, seguindo o carreiro estreito que corre ao longo do rio. A três ou quatro quilómetros a montante, há a ponte, com a estrada dos camiões; mas antes de lá chegar, há o vau. É aí que as mulheres atravessam o rio.
Aamma vai à frente, com Zubida, e a sua prima que se chama Zora, e outras mulheres que Lalla conhece de vista, mas de que esqueceu o nome. Elas arregaçam as saias para atravessar o vau, riem e falam muito alto. Lalla caminha um pouco mais atrás, e vai muito satisfeita porque nessa tarde não tem nada que fazer em casa, nem tem que ir buscar lenha para o lume. E, depois, ela gosta muito das grandes nuvens brancas, muito baixas, e da cor verde das ervas à beira do rio. A água do rio é gelada, cor de terra, vibra por entre as pernas quando Lalla atravessa o vau. Quando chega ao canal, no centro do rio, há um degrau e Lalla cai na água até à barriga; apressa-se a sair, com o vestido colado à barriga e às coxas. Há rapazes na outra margem, que espreitam as mulheres que arregaçam as saias para atravessar o rio, e que elas bombardeiam à pedrada.
O balneário é uma grande construção de tijolo, erguida mesmo ao lado do rio. Foi lá que Aamma levou Lalla, quando ela aqui chegou, à Cidade, pela primeira vez, e Lalla nunca tinha visto nada que se assemelhasse. Só há uma grande sala, com banheiras de água quente e fornos onde se aquecem as pedras. É um dia para as mulheres, outro dia para os homens. Lalla gosta muito daquela sala, porque entra muita luz pelas janelas, mesmo no alto das paredes, sob o telhado de chapa ondulada. O balneário só funciona no Verão porque aqui a água é rara. A água vem de uma grande cisterna construída em altura, e corre por uma canalização a céu aberto até ao balneário, caindo em cascata num grande depósito de cimento que parece um lavadouro. É aí que Aamma e Lalla se vão banhar em seguida, depois do banho de água quente, atirando uma à outra grandes selhas de água fria, e gritando um pouco, porque aquilo lhes faz bater o queixo.
Aqui também há uma coisa de que Lalla gosta bastante. É o vapor que enche toda a sala como um nevoeiro branco, e que faz camadas até ao tecto e se escapa pelas janelas fazendo vacilar a luz. Quando se entra na sala, sufoca-se por instantes, por causa do vapor. Depois tira-se a roupa, que se deixa dobrada em cima de uma cadeira ao fundo da sala. Nos
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primeiros tempos, Lalla tinha vergonha, não queria pôr-se toda nua diante das outras mulheres, porque não estava habituada aos banhos. Julgava que a olhavam e que troçavam dela, por não ter seios e por ter a pele tão branca. Mas Aamma ralhava com ela e obrigava-a a tirar a roupa toda e, depois, segurar o cabelo num carrapito atado com uma fita. Agora, já não se importa de se despir. Melhor ainda, já não faz caso das outras. Ao princípio, ela achava aquilo horrível, porque havia mulheres muito feias e muito velhas, com a pele engelhada como uma árvore morta, ou então gordas, adiposas, com seios que bailavam como odres, ou então outras que estavam doentes, que tinham pernas estragadas por úlceras e por varizes. Mas agora Lalla já não as olha do mesmo modo. Tem pena das mulheres feias ou doentes, mas já não tem medo delas. E depois a água é tão bela, tão pura, a água caída directamente do céu na cisterna, a água é tão nova que até deve curar as que precisam.
Quando Lalla entra na banheira pela primeira vez, após os longos meses de seca, é assim: a água envolve-lhe o corpo de uma só vez, aperta-lhe a pele com força, cinge-lhe as pernas, o ventre, o peito, de tal jeito que ela pára por um instante de respirar.
A água é muito quente, muito rija, faz afluir o sangue à pele, dilata os poros, envia as ondas do seu calor até ao interior do corpo, como se tivesse a força do céu e do Sol. Lalla escorrega no fundo da tina, até a água escaldante passar por cima do queixo e lhe tocar nos lábios, até parar mesmo por debaixo das narinas. Então fica assim um bom momento, sem se mexer, contemplando o tecto de chapa ondulada que parece avançar sob a nuvem de vapor.
Depois Aamma vem com o pau de saponária e o pó de pedra-pomes e esfrega o corpo de Lalla, para tirar o suor e a poeira que se acumularam nas costas, nos ombros, nas pernas. Lalla deixa-a fazer, porque Aamma sabe perfeitamente ensaboar e pulir; em seguida vai até ao lavadouro e mergulha na água fresca, quase fria, e a água aperta-lhe os poros, alisa-lhe a pele, retesa-lhe os nervos e os músculos. É este o banho que ela toma com as outras mulheres, escutando o ruído de cascata da água que vem da cisterna. É aquela a água que Lalla prefere. Ela é clara como a água das nascentes da montanha, é leve, desliza sobre a pele limpa como por cima de uma pedra gasta, salta na luz, esparrinha em milhares de gotas. Sob a fonte, as mulheres lavam os longos e pesados cabelos negros. Até os corpos mais feios ficam belos através do cristal da água pura, e o frio desperta as vozes, faz soar os risos agudos. Aamma lança grandes chapadas de água à cara de Lalla, e os seus dentes muito brancos brilham no rosto acobreado. As gotas luminosas deslizam lentamente pelos seios escuros, pelo ventre, pelas coxas. A água desgasta e brune a pele, torna a palma das mãos muito macia. Faz frio, apesar do vapor que enche a sala.
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Aamma envolve Lalla numa grande toalha e ela própria se enrola numa espécie de pano que ata por cima do peito. Ambas se dirigem para o fundo da sala, onde deixaram a roupa dobrada nas cadeiras. Sentam-se e Aamma começa a pentear demoradamente os cabelos de Lalla, madeixa a madeixa, alisando-os bem entre os dedos da mão esquerda para tirar as lêndeas.
Também aquilo sabe bem, como num sonho, porque Lalla olha a direito sem pensar em nada, cansada com tanta água, ensonada pelo pesado vapor que sobe com dificuldade até às janelas onde tremula a luz do Sol, entorpecida pelo ruído das vozes e pelas risadas das mulheres, pelas chapadas de água, pelo ronronar do forno onde cozem as pedras. Ela está então sentada na cadeira de metal, com os pés descalços pousados no cimento fresco do chão, a tremer na sua grande toalha molhada, e as mãos hábeis de Aamma penteiam-lhe incansavelmente os cabelos, estendem-nos, alisam-nos, enquanto as últimas gotas de água lhe escorrem pelas faces e pelas costas abaixo.
Em seguida, quando tudo está terminado e já se vestiram, vão ambas sentar-se lá fora, ao calor do sol-poente, e bebem chá de hortelã-pimenta em copinhos enfeitados de desenhos dourados, quase sem se falar, como se tivessem feito uma longa viagem e estivessem saciadas de tantas maravilhas. A caminhada é longa, para voltar à Cidade de pranchas e de papel alcatroado, do outro lado do rio. A noite já está azul-negra e as estrelas brilham por entre as nuvens, quando chegam a casa.
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Há os dias que não são como os outros, os dias de festa, e é um pouco para esses dias que se vive, que se espera, que se sonha. Quando o dia se aproxima, ninguém fala noutra coisa, nas ruas da Cidade, nas casas, junto da fonte. Toda a gente está impaciente e só quer que o dia de festa chegue o mais depressa possível. Às vezes, Lalla desperta de manhã, com o coração a palpitar, uns formigueiros esquisitos nos braços e nas pernas, só porque julga que é hoje o dia. Levanta-se a toda a pressa, sem mesmo ter tempo de passar a mão pelo cabelo, e sai a correr para a rua no ar frio da manhã, quando o Sol ainda não despontou e tudo está pardo e silencioso, excepto alguns pássaros. Mas como ninguém remexe na Cidade, ela compreende que o dia ainda não chegou e só lhe resta voltar a meter-se debaixo das mantas, a não ser que resolva aproveitar para ir sentar-se nas dunas a fim de contemplar os primeiros raios de Sol nas cristas das vagas.
O que é demorado e lento, o que faz vibrar a impaciência no corpo dos homens e das mulheres, é o jejum. Porque em todos os dias que precedem a festa se come pouco, só antes e depois do Sol, e também não se bebe. Então, à medida que o tempo passa, é como um vazio que vai crescendo dentro do corpo, que queima, que faz zumbir os ouvidos. Apesar disso, Lalla gosta bastante de jejuar, porque quando não se come e não se bebe durante dias é como se se lavasse o interior do corpo. As horas parecem mais compridas, e mais cheias, pois dá-se atenção à menor coisa. As crianças não vão à escola, as mulheres não trabalham no campo, os rapazes não vão à cidade. Toda a gente fica sentada à sombra das barracas e das árvores, falando um pouco e observando o movimento das sombras com o Sol.
Quando não se come durante dias, o céu também parece mais limpo, mais azul e liso por cima da terra branca. Os ruídos soam mais, duram, como se estivéssemos no interior de uma gruta, e a luz parece mais pura e mais bela.
Mesmo os dias são mais compridos, é difícil de explicar, mas, desde o instante em que nasce o Sol até ao crespúsculo, parece às vezes que passou um mês inteiro.
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Lalla gosta bastante de jejuar assim, quando o sol queima e a seca invade tudo. A poeira cinzenta deixa um gosto de pedra na boca e é preciso chupar de vez em quando as ervas com um perfume de limão, ou então as folhas ásperas da chiba, mas tendo o cuidado de cuspir a saliva.
Quando é a época do jejum, Lalla vai ver todos os dias o Hartani, nas colinas de pedras. Ele também fica todo o dia sem comer e sem beber, mas isto não altera em nada a sua maneira de ser, e a cara dele conserva sempre a mesma cor queimada. Os olhos brilham com intensidade na sombra do rosto, o sorriso mostra uns dentes luzidios. A única diferença é que ele se envolve completamente no seu manto de burel, para não perder a água do corpo. Ele fica assim, imóvel ao sol, apoiado numa perna e com o outro pé encostado à barriga da perna, por debaixo do joelho, e olha para longe, para os reflexos do ar que dança, para o rebanho de ovelhas e de cabras.
Lalla senta-se ao lado dele numa pedra achatada, escuta os ruídos que vêm de todos os lados da montanha, os gritos dos insectos, os assobios dos pastores, e também os ruídos dos estalidos produzidos pelo calor que dilata as pedras, e a passagem do vento. Tempo não lhe falta, pois durante o período do jejum já não é preciso ir buscar água ou lenha para cozinhar.
É bom estar naquela secura toda quando se jejua, porque é como uma dor aguda que nos repuxa todos, como um olhar que não nos larga. À noite, a Lua surge à beira das colinas de pedras, toda redonda, dilatada. Então Aamma serve a sopa de grão e o pão, e toda a gente come depressa; mesmo Selim, o marido de Aamma, aquele a quem chamam o Soussi, se apressa a comer, sem pôr azeite no pão como de costume. Ninguém diz nada, não há histórias. Lalla bem gostaria de falar, tinha uma data de coisas para contar, um pouco febrilmente, mas sabe que isso não é possível, pois não se deve perturbar o silêncio do jejum. Quando se jejua é assim, jejua-se também com as palavras e com a cabeça toda. E anda-se devagar, arrastando um pouco os pés, e não se apontam as coisas ou as pessoas com o dedo, não se assobia.
Às vezes as crianças esquecem-se do jejum, porque custa ter que se estar sempre a conter. Então desatam a rir ou largam a correr através das ruas, levantando nuvens de pó e fazendo ladrar todos os cães. Mas as velhas gritam com eles e atiram-lhes pedras e eles param de correr passado um bocado, talvez também porque lhes faltam as forças devido ao jejum.
Aquilo dura tanto tempo que Lalla já não se lembra bem como era antes de ter começado o jejum. Depois, um dia, Aamma parte para as colinas para comprar um carneiro, e toda a gente sabe que o dia se aproxima. Aamma parte sozinha, porque diz que Selim, o Soussi, não é capaz de comprar nada a preceito. Vai pelo estreito carreiro que serpenteia até às colinas de pedras, lá onde vivem os pastores. Lalla e as crianças seguem-na de longe. Quando ela chega às colinas, Lalla vê se o Hartani está lá, mas sabe que é escusado: o pastor não gosta das pessoas e vai-se embora
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quando os da Cidade vêm comprar os carneiros. São os pais adoptivos do Hartani quem vende os carneiros. Fizeram um curral com ramos espetados na terra, e esperam, sentados à sombra.
Há outros negociantes de carneiros, pastores também. Há um cheiro esquisito de sebo e de urina que paira sobre a terra seca, e ouvem-se os gritos agudos dos animais prisioneiros na cerca de ramos. Há muita gente que vem da Cidade, às vezes mesmo da própria cidade; deixaram o automóvel à entrada da Cidade, onde a estrada acaba, e vieram a pé pelo carreiro. São gente do Norte, de pele amarela, senhores envergando fatos, ou então camponeses do Sul, Soussis, Fassis, pessoas de Mogador. Eles sabem que há muitos pastores por aqui, às vezes conhecem parentes, amigos e esperam descobrir um bonito animal por bom preço, fazer um bom negócio. Então reúnem-se junto das cercas e regateiam, fazem gestos, debruçam-se para verem melhor os carneiros.
Aamma atravessa a feira sem se apressar. Não se detém, dá apenas a volta ao cercado, olha rapidamente, mas vê logo o que valem os animais. Depois de ter percorrido todo o cercado, não restam dúvidas de que já escolheu o animal que lhe convém. Então vai ter com o vendedor e pergunta-lhe qual é o preço. E como é aquele o carneiro que ela quer, e mais nenhum outro, quase que não regateia e dá logo o dinheiro ao dono. Ela teve o cuidado de trazer uma corda e um pastor ata-a ao pescoço do carneiro. Está o negócio concluído, só resta trazer o carneiro para casa. É ao filho mais velho de Aamma, aquele a quem chamam o Bareki, a quem cabe a honra de trazer o carneiro. É um carneiro grande e forte, com uma pele amarelo-sujo que cheira muito a urina, mas mesmo assim Lalla tem um pouco de pena dele quando o vê passar, de cabeça baixa e com olhos assustados, porque o rapaz puxa com toda a força pela corda que o esgana. Em seguida, prendem o carneiro atrás da casa de Aamma, num reduto de tábuas velhas feito especialmente para ele, e dão-lhe a comer e a beber tudo o que lhe apetece durante os dias de vida que lhe restam.
Então, uma bela manhã, quando Lalla desperta, sabe logo que é o dia da festa. Sabe-o sem que ninguém tenha tido que lho dizer, basta-lhe abrir os olhos e ver a claridade do dia. Levanta-se num segundo, corre para a rua com as outras crianças, e já anda no ar o rumor da festa, já sobe por cima das casas de tábuas e papel alcatroado, como o alarido dos pássaros.
Lalla corre pela terra ainda fria, tão depressa quanto pode, vai pelos campos fora, pelo estreito carreiro que leva ao mar. Quando chega ao alto das dunas, apanha de repente com o vento do mar, tão violento que as narinas logo se fecham e ela cambaleia para trás. O mar está escuro e brutal, mas o céu está ainda de um cinzento tão suave, tão leve, que Lalla já não tem medo. Despe-se a correr e sem hesitar mergulha de cabeça na água. A onda que rebenta cobre-a, bate-lhe nas pálpebras e nos tímpanos, penetra-lhe no nariz. A água salgada enche-lhe a boca, escorre-lhe pela
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garganta. Mas Lalla não tem medo do mar nesse dia, bebe grandes goles de água salgada e sai da onda a vacilar, como que embriagada, cega pelo sal. Em seguida volta novamente para a água, nada demoradamente, paralelamente à praia, com os joelhos a tocar na areia quando o mar se afasta, depois atirada para o cimo da onda que se entumesce à sua volta.
Então, a gaivota toda branca, de que Lalla gosta muito, passa devagar por cima da sua cabeça, gritando um pouco. Lalla faz-lhe sinal e grita-lhe nomes ao acaso, para a fazer vir:
- Eh! Kalla! Illa! Zemzar! Horriya! Habib! Cherara! Haim!... Quando grita o último nome, a gaivota inclina a cabeça, olha-a e põe-se a descrever círculos por cima da rapariga.
- Haim! Haim! - torna a gritar Lalla, agora com a certeza de que é o nome do marinheiro que se perdeu outrora no mar, porque é um nome que quer dizer: o Errante.
- Haim! Haim! Anda cá, por favor!
Mas a gaivota branca traça ainda um círculo e depois vai-se no vento, pela praia fora, para o lugar onde se reúnem as outras gaivotas, todas as manhãs, antes de largarem para o vazadouro da cidade.
Lalla estremece um pouco, porque acaba de sentir o frio do mar e do vento. O Sol não está agora longe. O alvor rosa e amarelo está a surgir por detrás das colinas de pedras onde vive o Hartani. Na pele de Lalla, a luz faz brilhar as gotas de água de mar, porque está com pele de galinha. O vento sopra com força e a areia tapou quase inteiramente o vestido azul de Lalla. Sem esperar que esteja seca, veste-se e vai-se embora, meio a correr, meio a andar, para a Cidade.
Acocorada à porta de casa, Aamma está a fritar as filhos no grande tacho cheio de óleo a ferver. O fogareiro de barro produz uma claridade avermelhada no escuro que se arrasta ainda junto das casas.
Talvez seja aquele o momento da festa que Lalla prefere. Ainda arrepiada da frescura do mar, senta-se diante do lume quente e come as filhos a estalar, saboreando o gosto da massa doce e o perfume acre da água do mar que lhe ficou no fundo da garganta. Aamma repara nos cabelos molhados e ralha um pouco com ela, mas não muito porque é um dia de festa. Os filhos de Aamma vêm sentar-se por sua vez à roda do lume, com os olhos ainda inchados pelo sono, e depois chega Selim, o Soussi. Comem as filhos sem nada dizerem, levando a mão à grande travessa de barro cheia de fritos cor de âmbar. O marido de Aamma come devagar, movendo as maxilas como se ruminasse, e de vez em quando pára de comer para lamber as gotas de óleo que escorrem pelas mãos. Mesmo assim sempre fala um pouco, para dizer coisas sem importância que ninguém ouve.
Nesse dia há como que um gosto de sangue, porque é o dia em que se mata o carneiro. Aquilo faz uma impressão esquisita, como se fosse uma sensação dura e tensa, a recordação de um sonho mau que faz bater o
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coração. Os homens e as mulheres estão contentes, toda a gente está contente porque é o fim do jejum e vai-se poder comer sem parar até já não se poder mais. Mas Lalla não consegue estar completamente satisfeita por causa do carneiro. É difícil de explicar, é como uma pressa no interior do seu corpo, uma vontade de fugir. Pensa nisso sobretudo nos dias de festa. Talvez ela seja como o Hartani e as festas não sejam feitas para ela.
Vem o açougueiro, para matar o carneiro. Às vezes é Naman, o pescador, porque é judeu e pode matar o carneiro sem se desonrar. Ou então é um homem vindo de outro lado, um Aissaoua que tem uns grandes braços musculosos e cara de mau. Lalla detesta-o. com Naman, não é o mesmo, ele só faz aquilo quando lhe pedem, para prestar serviço, e a única paga que aceita é um bocado de carne assada. Mas o açougueiro, esse, é mau e só mata o carneiro se lhe derem dinheiro. O homem leva o animal puxando pela corda, e Lalla foge para o mar, para não ouvir os berros lancinantes do carneiro que arrastam até ao largo de terra batida, não longe da fonte, e para não ver o sangue que jorra às golfadas quando o homem corta a goela do animal com o seu grande facalhão, o sangue negro que enche as bacias esmaltadas a fumegar. Mas Lalla não tarda a regressar, porque há no fundo de si aquele desejo que vibra, aquela fome. Quando volta para junto da casa de Aamma, ouve o ruído claro do lume que crepita, sente o cheiro delicioso da carne a assar. Para assar os melhores bocados do carneiro, Aamma não quer que a ajudem. Prefere ficar sozinha agachada diante do lume, e ela própria faz girar os espetos, os bocados de arame em que estão enfiados os pedaços de carne. Quando as pernas e as costeletas estão bem passadas, ela tira-as do lume e põe-nas numa grande travessa de barro colocada ao lado das brasas. Em seguida, chama Lalla porque é a altura de fumar a came. Este é também um dos momentos da festa que Lalla prefere. Senta-se junto do lume, não muito longe de Aamma. Lalla observa-lhe a cara através das chamas e do fumo. De vez em quando, há volutas de fumo negro, quando Aamma atira para o lume um punhado de ervas húmidas ou de lenha verde.
Aamma fala um pouco, por instantes, preparando a carne, e Lalla escuta-a, ao mesmo tempo que ouve os estalidos do lume, os gritos das crianças que brincam em redor e as vozes dos homens; sente o cheiro quente e forte que lhe impregna a cara, o cabelo, a roupa. com um canivete, Lalla corta a carne em tiras finas que coloca em cima de um caniçado de lenha verde, suspenso por cima do lume, no sítio onde o fumo se separa das chamas. É o momento também em que Aamma fala dos tempos antigos, da vida nas terras do Sul, do outro lado das montanhas, lá onde começa a areia do deserto e onde as nascentes de água são azuis como o céu.
- Fala-me de Hawa, se fazes favor, Aamma - diz ainda Lalla.
E como o dia é comprido e a única coisa que há a fazer é olhar as tiras de carne que secam nos turbilhões de fumo, deslocando-as de vez em
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quando com um galho, ou lambendo os dedos para não se queimar, Aamma começa então a falar. A voz dela é lenta e hesitante ao princípio, como se fizesse esforços para se lembrar, e aquilo liga bem com o calor do Sol que avança muito lentamente no céu azul, com o crepitar das chamas, com o cheiro da carne e do fumo.
- Lalla Hawa (é assim que Aamma a chama) era mais velha do que eu, mas lembro-me perfeitamente da primeira vez em que entrou em casa, quando o teu pai veio com ela. Ela vinha do Sul, do grande deserto, e era lá que ele a tinha conhecido, porque a sua tribo era do Sul, na Saguiet el Hamra, perto da cidade santa de Smara, e a sua tribo era da família do grande Ma el Ainine, aquele a quem chamavam a Água dos Olhos. Mas a sua tribo fora obrigada a sair das suas terras, expulsa pelos soldados dos cristãos, todos sem excepção, homens, mulheres e crianças, e tinham tido que caminhar dias e meses através do deserto. Foi isto o que a tua mãe nos contou mais tarde. Nós éramos pobres nesse tempo, lá no Souss, mas vivíamos juntos felizes porque o teu pai gostava muito de Lalla Hawa. Ela sabia rir e cantar, até tocava viola, costumava sentar-se ao sol diante da porta da nossa casa e cantava cantigas...
- O que cantava ela, Aamma?
- Eram cantigas do Sul, algumas na língua dos chleuhs, cantigas de Assaka, de Goulimine, de Tan-Tan, mas eu não era capaz de as cantar como ela.
- Não faz mal, Aamma, canta só para eu ouvir.
Então Aamma canta em voz baixa, através do ruído da chama que estala. Lalla contém a respiração para ouvir melhor a cantiga da sua mãe.
- Um dia, oh, um dia o vento não soprará mais no deserto, os grãos de areia ficarão doces como o açúcar, debaixo de cada pedra branca haverá uma nascente à minha espera, um dia, oh, um dia as abelhas cantarão uma canção para mim, pois nesse dia já terei perdido o meu amor...
Mas a voz de Aamma mudou agora, é mais forte e ligeira, vai muito acima como a voz da flauta, ressoa como as campainhas de cobre; já não é a voz dela, agora, é uma voz completamente nova, a voz de uma jovem desconhecida, que canta através da cortina de fumo e de chamas, para Lalla, para ela somente.
- Um dia, oh, um dia haverá o Sol na noite e a água da Lua deixará as suas poças no deserto, quando o céu estiver tão baixo que eu possa tocar nas estrelas, um dia, oh, um dia verei a minha sombra dançar à minha frente, e será esse o dia em que eu hei-de perder o meu amor...
A voz distante desliza sobre Lalla como um arrepio, envolve-a, e o seu olhar perturba-se enquanto observa as chamas que dançam na luz do Sol. O silêncio que se segue às palavras da canção é muito longo e Lalla distingue ao longe os ruídos da música e os ritmos dos tambores da festa. Ela agora está só, como se Aamma se tivesse ido embora, deixando-a com a voz estranha que canta a canção.
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- Um dia, oh, um dia olharei o espelho e verei o teu rosto, e ouvirei o som da tua voz no fundo do poço, e descortinarei a marca dos teus passos na areia, um dia, oh, um dia conhecerei o dia da minha morte, pois será nesse dia que perderei o meu amor...
A voz torna-se mais grave e surda, semelhante a um suspiro, trémula na chama que vacila, perde-se nas volutas do fumo azul.
- Um dia, oh, um dia o Sol ficará escuro, a terra há-de abrir-se até ao meio, o mar há-de cobrir o deserto, um dia, oh, um dia os meus olhos não verão mais a luz, a minha boca nunca mais poderá dizer o teu nome, o meu coração deixará de sofrer, pois será nesse dia que eu deixarei o meu amor...
A voz estranha extingue-se num murmúrio, desaparece no fogo e no fumo azul, e Lalla tem que esperar muito, sem se mover, antes de compreender que a voz não voltará mais. Os olhos dela estão cheios de lágrimas e dói-lhe o coração, mas não diz nada, enquanto Aamma volta a cortar as tiras de carne e a colocá-las na grade de madeira em cima do fumo.
- Conta-me mais coisas dela, Aamma.
- Ela sabia muitas cantigas, a Lalla Hawa tinha uma voz bonita, como tu, e sabia tocar viola e flauta e sabia dançar. Depois, quando o teu pai teve aquele desastre, ela mudou de repente, nunca mais cantou nem tocou viola, mesmo quando tu nasceste ela não quis cantar mais, excepto para ti, quando choravas, de noite, para te embalar, para te adormecer...
Agora chegaram as vespas. O cheiro da carne assada atraiu-as e vieram às centenas. Zumbem em redor do lume, tentando pousar nas tiras de carne. Mas o fumo enxota-as, sufoca-as, e elas atravessam o lume, tontas. Algumas caem nas brasas e ardem com uma breve chama amarela, outras caem no chão, atordoadas, meio queimadas. Pobres vespas! Vieram para obter o seu quinhão de carne, mas não sabem como hão-de fazer. O fumo acre entontece-as e torna-as furiosas, porque não podem pousar na grade de madeira. Então voam a direito, cegas, estúpidas como borboletas nocturnas e deixam-se morrer. Lalla atira-lhes um bocado de carne, para lhes mitigar a fome, para as afastar do lume. Mas uma delas ataca Lalla, pica-a no pescoço. "Ai!", grita Lalla, que a arranca e a atira para longe, toda dorida mas cheia de pena, porque no fundo gosta .bastante das vespas.
Aamma, essa, não presta atenção às vespas. Afasta-as com um trapo e continua a virar as fatias de carne na grade e a falar:
- Ela não gostava muito de ficar em casa... - diz ela; a voz é um pouco abafada, como se contasse um sonho muito antigo. -Saía muitas vezes, contigo pendurada às costas, e ia longe, longe... Ninguém sabia onde ela ia. Tomava o autocarro e ia até ao mar, ou então às aldeias vizinhas. Ia aos mercados, às fontes, aos sítios onde havia gente que não conhecia, sentava-se numa pedra e punha-se a olhar para as pessoas. Talvez eles
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pensassem que ela fosse uma pedinte. Mas ela não queria trabalhar em casa, porque a minha família era muito exigente com ela, mas eu gostava muito dela, como se fosse minha irmã...
- Fala-me outra vez da sua morte, Aamma.
- Não fica bem falar disso num dia de festa - diz Aamma.
- Não faz mal, Aamma, fala-me mesmo assim do dia da sua morte.
Separadas pelas chamas, Aamma e Lalla não se vêem bem. Mas é como se houvesse outro olhar, que tocasse o interior dos seus corpos, no próprio lugar onde aquilo lhes dói.
As volutas cinzentas e azuis do fumo sobem e dançam, abrem-se e fecham-se como as nuvens, e na grade de madeira verde as tiras de carne adquiriram o tom castanho-escuro do couro velho. Lá longe, há o Sol que declina suavemente, a maré que sobe com o vento, o canto dos grilos, os gritos das crianças que correm nas ruas da Cidade, as vozes dos homens, a música. Mas Lalla não ouve nada disso. Está toda entregue ao segredar da voz que conta a morte da sua mãe, há muito, muito tempo.
- Não se sabia o que ia acontecer, ninguém sabia. Um dia, Lalla Hawa deitou-se, porque se sentia muito cansada e sentia um grande frio pelo corpo todo. Ficou assim vários dias, sem comer, sem se mexer, mas não se queixava. Quando lhe perguntavam o que tinha, dizia só que não tinha nada, nada, sinto-me cansada, mais nada. Era eu então que tratava de ti, que te dava de comer, porque Lalla Hawa nem forças tinha para se levantar da cama... Mas não havia médico na aldeia e o dispensário era muito longe e ninguém sabia o que era preciso fazer. E depois um dia, foi no sexto dia, acho eu, Lalla Hawa chamou-me, com uma voz muito fraca, fez-me sinal que me aproximasse e disse-me apenas isto: eu vou morrer, mais nada. A voz dela era estranha e tinha a cara toda cinzenta e os olhos a arder. Então tive medo, saí de casa a correr e levei-te para o sítio mais longe que pude, pelo campo fora, até uma colina, e fiquei lá todo o dia, sentada debaixo de uma árvore, enquanto tu brincavas ao pé de mim. E quando voltei para casa, tu já vinhas a dormir, mas ouvi as vozes da minha mãe e das minhas irmãs que estavam a chorar, e encontrei o meu pai diante da casa e ele disse que Lalla Hawa tinha morrido...
Lalla escuta com todas as suas forcas, de olhos fitos nas chamas que dançam e que crepitam, diante dos turbilhões de fumo que sobem para o céu azul. As vespas prosseguem o seu voo tonto, atravessam as chamas como projécteis e caem no chão com as asas queimadas. Lalla também escuta a música delas, a única verdadeira música da Cidade das tábuas e do papel alcatroado.
- Ninguém sabia que aquilo ia acontecer - diz Aamma. - Mas quando aconteceu, toda a gente chorou, e eu senti um frio como se também fosse morrer, e toda a gente estava triste por causa de ti, porque ainda eras muito nova para saberes. Mais tarde, fui eu que te trouxe,
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quando o meu pai morreu e tive que vir aqui para a Cidade, para viver com o Soussi.
Ainda falta muito tempo para os bocados de carne ficarem fumados e por isso Aamma continua a falar, mas não diz mais nada a respeito de Lalla Hawa. Ela fala de Al Azraq, aquele a quem chamavam o Homem Azul, que sabia dar ordens ao vento e à chuva, aquele que sabia fazer-se obedecer por todas as coisas, mesmo pelas pedras e pelas moitas. Fala da barraca de ramos e de palmas que era a casa dele, isolada no meio do grande deserto. Ela diz que, por cima do Homem Azul, o céu se povoava de pássaros de todas as espécies, que cantavam cânticos celestes, para se unirem às preces dele. Mas só os homens que tinham o coração puro é que eram capazes de encontrar a casa do Homem Azul. Os outros perdiam-se no deserto.
- Ele também sabia falar às vespas? - pergunta Lalla.
- Às vespas e às abelhas selvagens, pois era o senhor delas e conhecia as palavras que as domesticam. Mas também conhecia o canto que envia as nuvens de vespas, de abelhas e de moscas contra os inimigos, e se ele quisesse poderia ter destruído uma cidade inteira. Mas era justo e só se servia do seu poder para espalhar o bem.
Ela também fala do deserto, do grande deserto que nasce ao sul de Goulimine, a leste de Taroudant, para lá do vale do Draa. É lá, no deserto, que Lalla nasceu, ao pé de uma árvore, como o conta Aamma. Lá, na região do grande deserto, o céu é imenso, o horizonte não tem fim, pois não há nada que detenha a vista. O deserto é como o mar, com as ondas do vento na areia dura, com a espuma do mato a rolar, com as pedras chatas, as manchas de líquen e as placas de sal e a sombra negra que cava os seus buracos quando o Sol se aproxima da terra. Aamma fala demoradamente do deserto e, enquanto fala, as chamas vão baixando devagar, o fumo fica leve, transparente, e as brasas cobrem-se lentamente de uma espécie de poeira de prata que tremula.
- Lá longe, no grande deserto, os homens podem andar dias a fio sem encontrar uma única casa, sem ver um poço, pois o deserto é tão grande que ninguém consegue conhecê-lo todo. Os homens vão para o deserto e são como os barcos no mar, ninguém sabe quando irão regressar. Às vezes, há tempestades, mas não é como aqui, são tempestades terríveis e o vento arranca a areia e atira-a até ao céu e os homens ficam perdidos. Eles morrem afogados na areia, morrem perdidos como os barcos no temporal, e a areia fica com os corpos deles. Tudo é tão diferente nesse lugar, o Sol não é o mesmo que aqui, queima com mais força, e há homens que voltam cegos, com a cara queimada. À noite, o frio faz gritar de dor os homens perdidos, o frio parte-lhes os ossos. Até os homens não são como aqui... São cruéis, espreitam a presa como a raposa, aproximam-se em silêncio. São negros como o Hartani, vestidos de azul e com a cara velada. Não são
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homens, mas sim djinns, filhos do demónio, e têm relações com o demónio, são como feiticeiros.
Então Lalla pensa de novo em Al Azraq, no Homem Azul, o senhor do deserto, aquele que sabia fazer surgir a água sob as pedras do deserto. Aamma também pensa nele e diz:
- O Homem Azul era como os homens do deserto, depois recebeu a bênção de Deus e deixou a sua tribo, a sua família, para viver sozinho... Mas ele sabia as coisas que sabem as pessoas do deserto. Tinha recebido o poder de curar com as mãos e Lalla Hawa também tinha esse poder, e ela sabia interpretar os sonhos e predizer o futuro e encontrar os objectos perdidos. E quando as pessoas sabiam que ela era da linhagem de Al Azraq, vinham pedir-lhe conselho Q às vezes ela dizia-lhes o que queriam, e outras vezes não queria responder...
Lalla olha para as suas mãos e tenta compreender o que há nelas. As suas mãos são grandes e fortes, como as dos rapazes, mas a pele é macia e os dedos são compridos.
- Achas que também tenho esse poder, Aamma? Aamma põe-se a rir. Levanta-se e espreguiça-se.
- Não penses nisso - diz ela. - Agora a carne está pronta, temos que a pôr na travessa.
Quando Aamma se afasta, Lalla retira a grade e estende as tiras de carne na grande travessa de barro, mordiscando um bocadinho aqui, um bocadinho acolá. Desde que o lume baixou, as vespas regressaram em elevado número e zumbem com mais força, dançam em torno das mãos de Lalla e agarram-se aos seus cabelos. Lalla não tem medo delas. Afasta-as devagarinho e atira-lhes ainda um bocado de carne fumada visto que, para elas também, trata-se do dia de excepção.
Em seguida, vai para o mar, segue o caminho estreito que conduz até às dunas. Mas não se aproxima da água. Fica do outro lado das dunas, ao abrigo do vento, e procura uma cova na areia para se estender. Assim que descobre um lugar onde não há muitos cardos nem formigas, deita-se de costas, com os braços estendidos ao longo do corpo, e fica de olhos abertos cravados no céu. Há grandes nuvens brancas que circulam. Há o ruído lento do mar que raspa a areia da praia, e é bom estar a ouvi-lo sem o ver. Há os gritos das gaivotas que escorregam no vento, que fazem piscar a luz do Sol. Há os ruídos dos arbustos secos, as folhinhas das acácias, o ranger das agulhas dos pinheiros, como se fosse água. Há ainda algumas vespas que zumbem em redor das mãos de Lalla, porque sentem o cheiro da carne.
Então Lalla tenta de novo ouvir a voz estrangeira que canta, muito longe, como num outro país, a voz que sobe e desce agilmente, clara, semelhante ao ruído das fontes, semelhante à luz do Sol. O céu vai-se velando a pouco e pouco, mas a noite tarda muito a chegar, porque é o fim do
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Inverno e o começo da estação da luz. O crespúsculo é cinzento primeiro, depois encarnado, com grandes nuvens semelhantes a crinas de fogo. Lalla fica estendida na sua cova de areia, entre as dunas, sem desviar os olhos do céu e das nuvens. Ela ouve realmente, no interior do ruído do mar e do vento, os gritos agudos das gaivotas que procuram o seu poiso nocturno, ela ouve a meiga voz que repete o seu queixume, a voz clara mas que tremula um pouco como se soubesse que a morte virá extingui-la, a voz pura como a água que se bebe sem se ficar saciado após os longos dias de fogo. É uma música que nasce do céu e das nuvens, que soa na areia das dunas, que se propaga por todo o lado e que vibra, mesmo nas folhas secas dos cardos. Ela canta para Lalla, só para ela, envolve-a e mergulha-a na sua água macia, passa-lhe a mão pelos cabelos, pela testa, pelos lábios, diz-lhe o seu amor, desce sobre ela e dá-lhe a sua bênção. Então Lalla volta-se e esconde o rosto na areia, porque sente desfazer-se dentro de si qualquer coisa, algo que se quebra enquanto as lágrimas rolam silenciosamente. Ninguém lhe vem pousar a mão no ombro e dizer: "Porque choras tu, Lalla?" Mas a voz estrangeira faz correr as lágrimas mornas, revolve dentro dela imagens que estavam paradas há anos. As lágrimas tombam na areia e desenham uma pequena mancha debaixo do queixo, colam a areia à cara e aos lábios. Depois, de repente, não há mais nada. A voz calou-se no fundo do céu. A noite veio agora, uma bela noite de veludo azul-escuro onde as estrelas brilham entre nuvens fosforecentes. Lalla treme, como quando a febre passa. Caminha ao acaso, pelas dunas, no meio do piscar dos pirilampos. Como tem medo das serpentes, volta ao estreito carreiro onde ainda se vêem as marcas dos seus pés, e dirige-se lentamente para a Cidade, onde a festa continua.
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Lalla espera qualquer coisa. Não sabe muito bem o quê, mas espera. Os dias são compridos na Cidade, os dias de chuva, os dias de vento, os dias de Verão. Às vezes Lalla julga que só espera que os dias cheguem, mas, quando chegam, percebe que não era por eles que esperava. Espera, é só isso. As pessoas têm muita paciência, talvez esperem toda a vida por qualquer coisa que afinal nunca chega.
Os homens ficam frequentemente sentados numa pedra, ao sol, com a cabeça tapada por uma ponta do manto ou por uma toalha. Olham em frente. Que olham? O horizonte poeirento, os caminhos por onde rodam os camiões, semelhantes a grandes escaravelhos de todas as cores, e as silhuetas das colinas de pedras, as nuvens brancas que passeiam no céu. É isso que eles olham. Não sentem necessidade de outra coisa. As mulheres também esperam, diante da fonte, sem falar, veladas de negro, com os pés descalços bem espalmados no chão.
Mesmo as crianças sabem esperar. Sentam-se diante da casa do merceeiro e esperam, assim, sem brincar, sem gritar. De vez em quando, um deles levanta-se e vai trocar as suas moedas por uma garrafa de Fanta ou por um punhado de rebuçados de hortelã-pimenta. Os outros olham-no, sem nada dizer.
Há dias em que se não sabe onde se há-de ir, em que não se sabe o que vai acontecer. Toda a gente espreita a rua ou olha para a beira da estrada, as crianças em andrajos aguardam a chegada do autocarro azul ou a passagem dos grandes camiões que trazem o gasóleo, a madeira, o cimento. Lalla conhece bem o ruído dos camiões. Às vezes, vai sentar-se com as outras crianças, no talude de pedras novas, à entrada da Cidade. Quando um camião chega, todas as crianças se voltam para o fim da estrada, muito longe, lá onde o ar dança por cima do alcatrão e faz ondular as colinas. Ouve-se o ruído do motor muito tempo antes de aparecer o camião. É um ribombo agudo, quase um assobio, acompanhado por uma buzinadela ocasional que fere os ouvidos e ecoa nas paredes das casas.
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Depois vê-se uma nuvem de pó, uma nuvem amarela a que se mistura o fumo branco do motor. O camião encarnado chega a toda a velocidade pela estrada alcatroada. Por cima da cabina do motorista, há uma chaminé que cospe o vapor azulado e o sol brilha com força no pára-brisas e nos cromados. Os pneus devoram a estrada de alcatrão, ele vai ziguezagueando um pouco por causa do vento e sempre que as rodas do atrelado mordem as bermas da estrada ergue-se uma nuvem de pó que se perde no ar. Depois, passa diante das crianças a buzinar com muita força e a terra treme sob os seus catorze pneus pretos, e o vento de poeira e o cheiro acre da gasolina queimada passam por cima deles como um hálito quente.
Muito tempo depois, ainda as crianças falam do camião encarnado, e contam histórias de camiões, de camiões encarnados, de camiões-cisternas brancos e de camiões-gruas amarelos.
Quando se espera, é assim. Vai-se ver muito as estradas, as pontes e o mar, para ver passar os que não ficam, os que se vão embora.
Há dias que são mais compridos do que os outos, porque se tem fome. Lalla conhece perfeitamente esses dias, quando já não há dinheiro nenhum em casa e Aamma não consegue arranjar trabalho na cidade. Mesmo Selim, o Soussi, o marido de Aamma, já não sabe onde ir buscar dinheiro, e todos se tornam sombrios, tristes, quase maus. Então Lalla fica fora de casa o dia inteiro, vai o mais longe possível, até ao planalto de pedras, onde vivem os pastores, e procura o Hartani.
É sempre assim: quando tem muita vontade de o ver, ele surge numa cova, sentado numa pedra, com a cabeça enrolada num pano branco. Toma conta das ovelhas e das cabras. O rosto é negro, as mãos são magras e fortes como as mãos de um velho. Partilha o seu pão negro e as tâmaras com Lalla e até dá alguns pedaços aos pastores que se aproximaram. Mas faz aquilo sem orgulho, como se o que desse não tivesse importância.
Lalla olha-o de quando em quando. Ela gosta do seu rosto impassível, do seu perfil de águia e da luz que brilha no fundo dos seus olhos escuros. Também o Hartani espera por qualquer coisa, mas é talvez o único que sabe o que espera. Ele não o diz, visto não saber falar a linguagem dos homens. Mas no seu olhar pode-se adivinhar o que espera, o que procura. É como se uma parte dele próprio tivesse ficado no lugar onde nasceu, para lá das colinas de pedras e das montanhas cobertas de neve, na imensidade do deserto, e que tivesse um dia de reencontrar essa parte de si próprio, para poder ser só um.
Lalla fica todo o dia com o pastor, só que não se aproxima muito dele. Senta-se numa pedra, não muito afastada dele, e olha para diante, olha o ar que dança e se empurra por cima do vale ressequido, a luz branca que faz faíscas, e o andar lento dos carneiros e das cabras no meio das pedras brancas.
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Quando são dias tristes, dias de angústia, a única pessoa que lhe resta é o Hartani e esse nem precisa de palavras. Basta um olhar, e ele sabe dar pão e tâmaras sem nada pedir em troca. Ele até prefere que se conservem a alguns passos de distância, como fazem as cabras e as ovelhas, que nunca pertencem completamente a ninguém.
Lalla escuta durante todo o dia os gritos dos pastores nas colinas, os assobios que perfuram o silêncio branco. Quando regressa à Cidade de tábuas e de papel alcatroado, sente-se mais livre, mesmo que Aamma lhe ralhe por não ter trazido nada para comer.
Foi num desses dias que Aamma a levou a casa da vendedora de tapetes. É do outro lado do rio, num bairro pobre da cidade, numa grande casa branca com janelas estreitas gradeadas. Quando entra na sala que serve de oficina, Lalla ouve o ruído dos teares. Há vinte, talvez mais, alinhados uns atrás dos outros, na penumbra leitosa da grande sala, onde catrapiscam três tubos de néon. Diante dos teares, há raparigas acocoradas ou sentadas em tamboretes. Trabalham depressa, empurrando a lançadeira entre os fios da urdidura, pegando nas tesourinhas de aço, cortando as pontas, amontoando a lá na trama. A mais velha deve ter catorze anos, a mais nova não tem provavelmente oito anos. Não falam, nem sequer olham para Lalla, que entra na oficina com Aamma e a fabricante de tapetes. A proprietária chama-se Zora, é uma mulher alta vestida de preto, que tem sempre nas mãos gordas uma vara flexível com que bate nas pernas e nos ombros das raparigas que não trabalham depressa, ou que conversam com a vizinha do lado.
- Ela já trabalhou? - pergunta Zora, sem olhar sequer para Lalla. Aamma diz que em tempos lhe ensinou a tecer. Zora abana a cabeça.
Parece muito pálida, talvez por causa do seu vestido preto, ou talvez por nunca sair da loja. Dirige-se lentamente para um tear desocupado, onde está um grande tapete encarnado-escuro com pontos brancos.
- Ela vai acabar este - diz ela.
Lalla senta-se e começa o trabalho. Durante várias horas, trabalha na grande sala escura, fazendo gestos mecânicos com as mãos. Ao princípio, vê-se obrigada a parar porque os dedos se lhe cansam, mas sente em cima de si o olhar da mulher pálida e logo retoma o trabalho. Ela sabe que a mulher pálida não lhe dará vergastadas porque é mais velha do que as outras raparigas que trabalham. Quando os olhares se cruzam, é como se sentisse um choque no fundo de si e há uma chispa de cólera nos olhos de Lalla. Mas a gorda mulher vestida de preto vinga-se nas mais pequenas, as que são magras e receosas como cadelas, as filhas de mendigos, as raparigas abandonadas que vivem todo o ano na casa de Zora, e que não têm dinheiro. Assim que abrandam o trabalho ou trocam algumas palavras a murmurar, a gorducha pálida corre para elas com uma agilidade surpreendente e zurze-lhes as costas com a vara. Mas as raparigas nunca choram.
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Só se ouve o assobio da vara e a pancada surda nas costas. Lalla aperta os dentes, inclina a cabeça para o chão para não ver nem ouvir, porque lhe apetecia gritar e bater por sua vez em Zora. Mas não diz nada por causa do dinheiro que tem que levar para casa. Somente, para se vingar, dá alguns nós mal dados no tapete encarnado.
No dia seguinte, contudo, Lalla não aguenta mais. Como a gorducha pálida recomeça a vergastar Mina, uma miúda com pouco mais de doze anos, magra e franzina, por ela ter partido a lançadeira, Lalla levanta-se e diz friamente:
- Não lhe bata mais!
Zora olha um momento para Lalla, sem compreender. O rosto gordo e pálido assumiu uma tal expressão de estupidez que Lalla repete:
- Não lhe bata mais!
De súbito, o rosto de Zora deforma-se, devido à ira. Dá uma violenta chibatada no rosto de Lalla, mas a vara só a toca no ombro esquerdo, porque Lalla soube esquivar-se ao golpe.
- Já vais ver como te bato! - grita Zora, agora com o rosto já um pouco corado.
- Larga-me! Estupor!
Lalla empunha a vara de Zora e parte-a na perna. Então, é o temor que se estampa no rosto da mulher gorda. Recua a gaguejar:
- Vai-te embora! Vai-te embora! Desaparece, já!
Mas Lalla já corre através da grande sala, salta para fora, para a luz do Sol; corre sem parar, até à casa de Aamma. A liberdade é bela. Pode-se olhar de novo as nuvens que deslizam ao contrário, as vespas buliçosas à roda dos montes de lixo, os lagartos, os camaleões, as ervas que tremulam ao vento. Lalla senta-se diante da casa, à sombra da parede de tábuas, e escuta avidamente todos os ruídos minúsculos. Quando Aamma regressa, quase noite, diz-lhe simplesmente:
- Nunca mais vou trabalhar para a Zora, nunca mais. Aamma olha-a um instante, mas não diz nada.
Foi a partir desse dia que as coisas mudaram realmente para Lalla, aqui, na Cidade. É como se tivesse ficado adulta de repente e as pessoas começassem a reparar nela. Mesmo os filhos de Aamma já não são como antes, duros e desdenhosos. Às vezes, sente um pouco de saudades dos tempos em que era realmente pequena, quando mal acabara de chegar à Cidade e ninguém sabia o nome dela, quando se podia esconder atrás de um arbusto, num balde, numa caixa de cartão. Ela bem gostava daquilo, de ser como uma sombra, de ir e vir sem que a vissem, sem que lhe falassem.
Só o velho Naman e o Hartani é que não mudaram nada. Naman, o pescador, continua a contar histórias inverossímeis, enquanto conserta as redes na praia, ou quando vem comer broas de milho a casa de Aamma. Já
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não apanha peixe, mas as pessoas gostam dele e continuam a convidá-lo para casa. Os seus olhos claros são transparentes como a água e a cara é um tecido de rugas profundas como as cicatrizes de feridas antigas.
Aamma ouve-o falar de Espanha, de Marselha, de Paris e de todas essas cidades que viu, por onde andou, onde conhece os nomes das ruas e os nomes das pessoas. Aamma faz-lhe perguntas, pergunta-lhe se o irmão dele o pode ajudar a arranjar trabalho lá fora. Naman abana a cabeça: "Porque não?" É a resposta dele a tudo, mas sempre vai prometendo escrever ao irmão. Mas é complicado emigrar, é preciso dinheiro, papéis. Aamma fica pensativa, com os olhos fitos ao longe, sonhando com as cidades brancas onde há tantas ruas, tantas casas, tantos carros. Talvez seja isso o que ela espera.
Lalla não pensa muito nisso. Tanto lhe faz. Observa os olhos de Naman e é um pouco como se tivesse sido ela a conhecer esses mares, esses países, essas casas.
O Hartani também não pensa nisso. Continua a ser uma criança, embora esteja tão alto e tão forte como um adulto. O seu corpo é delgado e esguio, tem o rosto puro e liso como um bocado de ébano. Talvez seja por não saber falar a linguagem dos outros homens.
Ele está sempre sentado num rochedo, olhando para longe, envolto no seu fato de burel e com o pano branco descaído para a cara. À volta há sempre os pastores negros como ele, selvagens, vestidos de andrajos, que saltam de rocha em rocha a assobiar. Lalla gosta de ir ter com eles, àquele lugar cheio de luz branca, lá onde o tempo não passa, lá onde não se pode crescer.
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O homem entrou na casa de Aamma, uma manhã, no começo do Verão. Era um homem da cidade, vestido com um fato cinzento de reflexos verdes, calçando sapatos de cabedal preto que brilhavam como espelhos. Veio com alguns presentes para Aamma e para os seus filhos, um espelho eléctrico emoldurado em plástico branco, um rádio de transístores pouco maior que uma caixa de fósforos, canetas com tampas douradas e um saco cheio de açúcar e de latas de conserva. Quanto entrou em casa, cruzou-se com Lalla na porta, mas mal reparou nela. Pôs todos os presentes no chão. Aamma disse-lhe que se sentasse e ele procurou uma cadeira com os olhos, mas só havia almofadas e a arca de Lalla Hawa, que Aamma tinha trazido do Sul com Lalla. Foi na arca que o homem se sentou, depois de a ter limpo um pouco com a palma da mão. O homem esperou que lhe trouxessem chá e bolinhos.
Quando soube, um pouco mais tarde, que o homem tinha vindo para a pedir em casamento, Lalla teve muito medo. Sentiu uma espécie de tontura e o coração desatou a bater com muita força. Não foi Aamma quem lhe falou naquilo, mas sim o Bareki, o filho mais velho de Aamma.
- A nossa mãe resolveu casar-te com ele, porque ele é muito rico.
- Mas eu não quero casar-me! - gritou Lalla.
- Tu não tens opinião, só tens que obedecer à tua tia - disse o Bareki.
- Nunca! Nunca!... - Lalla saiu a correr, com os olhos cheios de lágrimas de raiva.
Depois tornou à casa de Aamma. O homem do fato cinzento-esverdeado tinha-se ido embora, mas as prendas continuavam lá. Ali, o filho mais novo de Aamma, escutava mesmo a música, com o minúsculo rádio de transístores encostado à orelha. Quando Lalla entrou, lançou-lhe um olhar sorna.
Lalla falou com dureza a Aamma:
- Porque ficaste com os presentes desse homem? Eu não me caso com ele.
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O filho de Aamma escarneceu.
- Ela se calhar quer casar-se com o Hartani!
- Sai daqui! - disse Aamma. O rapaz afasta-se com o transístor.
- Tu não podes obrigar-me a casar com esse homem! - diz Lalla.
- Será um bom marido para ti - diz Aamma. -Já não é muito novo, mas é rico e tem uma grande casa na cidade, e conhece muita gente importante. Tu deves casar com ele.
- Eu não quero casar-me, nunca!
Aamma conserva-se silenciosa um bom momento. Quando fala de novo, a voz tornou-se mais suave, mas Lalla mantém-se na defensiva.
- Eu criei-te como se fosses minha filha, gosto de ti, e tu, hoje, queres fazer-me esta afronta
Lalla olha Aamma com fúria, porque descobre pela primeira vez o que há de mentiroso nela.
- Quero lá saber - diz ela. - Eu não quero casar com esse homem. Não estou interessada nesses presentes ridículos!
Aponta para o espelho eléctrico que está de pé na sua base, pousado no chão de terra batida.
- Tu nem tens electricidade!
Depois, subitamente, sente-se farta. Sai de casa de Aamma e vai até ao mar. Mas desta vez não corre pelo carreiro; caminha muito devagar. Hoje, já nada é igual. É como se todas as coisas estivessem embaciadas, gastas à força de serem vistas.
- vou ter que me ir embora - diz Lalla em voz alta, para si própria. Mas pensa logo a seguir que nem mesmo sabe para onde há-de ir. Então, passa para o outro lado das dunas e segue pela grande praia, à procura de Naman. Gostaria que ele lá estivesse, como sempre, sentado numa raíz da velha figueira, entretido a consertar as redes. Far-lhe-ia toda a espécie de perguntas, a respeito daquelas cidades de Espanha com nomes mágicos, Algeciras, Málaga, Granada, Teruel, Saragoça, e desses portos de onde largam os navios grandes como cidades, das estradas por onde os automóveis vão para o Norte, dos comboios que partem, dos aviões. Ela gostaria de o ouvir falar durante horas dessas montanhas cobertas de neve, dos túneis, dos rios que são grandes como o mar, das planuras cobertas de trigo, das florestas imensas, e sobretudo dessas cidades perfumadas onde estão os palácios brancos, as igrejas, as fontes, as lojas rutilantes de luz. Paris, Marselha, e todas essas ruas, os prédios tão altos que mal se vê o céu, os jardins, os cafés, os hotéis, e as encruzilhadas onde se encontra gente vinda de todos os lados da terra.
Mas Lalla não encontra o velho pescador. Só se avista a gaivota branca que voa devagar, que dá voltas por cima da sua cabeça. Lalla grita:
- Olá! Olá! Príncipe!
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O pássaro branco dá ainda umas voltas por cima de Lalla e depois afasta-se muito depressa, levado pelo vento na direcção do rio.
Então Lalla fica muito tempo na praia, sozinha com o ruído do vento e do mar nos ouvidos.
Nos dias seguintes, mais ninguém falou em nada, na casa de Aamma, e o homem do fato cinzento-esverdeado não tornou a aparecer. O rádio de transístores já estava escangalhado e todas as latas de conservas tinham sido comidas. Só o espelho eléctrico de plástico ficou no sítio onde o tinham deixado, no chão de terra batida, ao pé da porta.
Lalla dormiu mal todas essas noites, sobressaltando-se ao menor ruído. Lembrava-se das histórias que contavam, das raparigas levadas à força, durante a noite, porque não se queriam casar. Todas as manhãs, ao nascer do Sol, Lalla saía antes de toda a gente, para se lavar e ir buscar água à fonte. Deste modo, podia vigiar a entrada da Cidade.
Depois houve o vento de desgraça que soprou vários dias a fio sobre a região. O vento de desgraça é um vento estranho que só aparece uma ou duas vezes por ano, no fim do Inverno ou no Outono. O que é mais estranho é que no princípio não se sente bem. Sopra com pouca força e às vezes extingue-se completamente e a gente esquece-o. Não é um vento frio como o dos temporais, no coração do Inverno, quando o mar se enfurece em vagas alterosas. Também não é um vento escaldante que seca tudo como o que vem do deserto e que acende um clarão vermelho no interior das casas, que faz ranger a areia dos telhados de zinco e de papel alcatroado. Não, o vento de desgraça é um vento muito suave que rodopia, que lança algumas rajadas e que depois pesa nos telhados das casas, que pesa nos ombros e no peito dos homens. Quando aparece, o ar fica mais quente e mais pesado, como se houvesse tristeza por toda a parte.
Quando chega esse vento lento e suave, as pessoas adoecem um pouco por todo o lado, sobretudo as crianças e os velhos, e morrem. É por isso que lhe chamam o vento de desgraça.
Quando nesse ano começou a soprar na Cidade, Lalla reconheceu-o logo. Ela avistou as nuvens de poeira cinzenta que avançavam pela planície, que turvavam o mar e o estuário do rio. As pessoas só saíam então agasalhadas nos seus mantos, apesar do calor. As vespas tinham desaparecido e os cães esconderam-se, de focinho enfiado na poeira, nas covas ao pé das casas. Lalla estava triste, porque pensava naqueles que o vento iria levar consigo. Então, quando ouviu dizer que o velho Naman estava doente, sentiu um aperto no coração e esteve um instante sem conseguir respirar. Ela nunca tinha sentido nada daquilo antes e teve que se sentar para não cair.
Em seguida caminhou e correu até à casa do pescador. Pensava que haveria gente ao pé dele, para o ajudar, para o tratar, mas Naman estava
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sozinho, deitado na esteira de palha, com a cabeça encostada ao braço. Ele tirita tanto que os dentes lhe batem e nem se consegue soerguer nos cotovelos quando Lalla entra em casa. Sorri um pouco e os olhos brilham com mais força quando reconhece Lalla. Os olhos dele continuam a ter a cor do mar, mas o rosto magro adquiriu um tom branco-acinzentado que mete medo.
Ela senta-se ao lado dele e fala-lhe, em voz quase baixa. Habitualmente, é ele quem conta as histórias e ela quem escuta, mas hoje tudo está mudado. Lalla fala-lhe de qualquer coisa, para lhe acalmar a angústia e para tentar encorajar o velho. Conta-lhe o que ele próprio lhe contou outrora, a propósito das suas viagens pelas cidades de Espanha e da França. Fala-lhe disso como se fosse ela que tivesse visto essas cidades, como se fosse ela que tivesse feito essas grandes viagens. Fala-lhe das ruas de Algeciras, das ruas estreitas e sinuosas ao pé do porto, onde se sente o vento do mar e o cheiro do peixe, depois da estação com as plataformas cobertas de vidro azul e das grandes pontes do caminho-de-ferro que galgam as ravinas e os rios. Fala-lhes das ruas de Cádis, dos jardins de flores multicores, das grandes palmeiras alinhadas diante dos palácios brancos, e de todas essas ruas onde a multidão vai e vem, com os automóveis pretos, os autocarros, no meio dos reflexos de espelhos, defronte dos edifícios altos como falésias de mármore. Fala das ruas de todas as cidades, como se lá tivesse andado, Sevilha, Córdova, Granada, Almaden, Toledo, Aranjuez, e da cidade tão grande que a gente se poderia perder nela durante dias, Madrid, onde as pessoas vêm de todos os cantos da terra.
O velho Naman escuta Lalla sem nada dizer, sem se mover, mas os seus olhos claros brilham com força e Lalla sabe que ele gosta de ouvir essas histórias. Quando pára de falar, ouve o corpo do velho a tremer e a sua respiração sibilante; então, apressa-se a continuar para deixar de ouvir aqueles ruídos horríveis.
Agora fala da grande cidade de Marselha, na França, do porto com cais imensos onde estão amarrados os barcos de todos os países do mundo, os cargueiros grandes como cidadelas, com castelos muito altos e mastros mais grossos que árvores, os paquetes tão brancos, com milhares de janelas, e que têm nomes estranhos, pavilhões misteriosos, nomes de cidades, Odessa, Riga, Bergen, Limasol. Nas ruas de Marselha a multidão comprime-se, avança, entra e sai incessantemente dos armazéns gigantes, empurra-se à porta dos cafés, dos restaurantes, dos cinemas, e os automóveis negros rodam pelas avenidas cujo fim não se adivinha, e os comboios sobrevoam os telhados pelas pontes suspensas, e os aviões descolam e giram lentamente no céu pardo, por cima dos prédios e dos terrenos vagos. Quando é meio-dia, os sinos das igrejas tocam e o seu ruído vai-se repercutindo ao longo das ruas, pelas esplanadas, no fundo dos túneis subterrâneos. À noite, a cidade ilumina-se, os faróis varrem o mar com os seus
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pincéis de luz, as luzes dos automóveis cintilam. As ruas estreitas ficam silenciosas, e os bandidos armados de facas de ponta e mola espreitam no esconso das portas os transeuntes atrasados. Às vezes há batalhas terríveis nos terrenos vagos, ou então nos molhes, à sombra dos cargueiros adormecidos.
Lalla fala demoradamente e a sua voz é tão suave que o velho Naman adormece. Quando adormece o corpo deixa de tremer e a respiração torna-se mais regular. Então Lalla pode sair finalmente da casa do pescador, com os olhos todos doridos pela luz do exterior.
Há muitas pessoas que sofrem com o vento da desgraça, os pobres, as crianças muito novas. Quando passa diante das casas deles, Lalla ouve os queixumes, os gemidos das mulheres, os choros das crianças e sabe que, também ali, talvez alguém vá morrer. Ela está triste, gostaria de estar longe, do outro lado do mar, nessas cidades que inventou para o velho Naman.
Mas o homem do fato cinzento-esverdeado tornou a voltar. Esse não deve certamente -saber que o vento da desgraça sopra sobre a Cidade de tábuas e de papel alcatroado; mesmo que soubesse, não lhe faria diferença, porque o vento da desgraça não atinge as pessoas como ele. Ele não tem nada a ver com a desgraça, nem com tudo isso.
O homem voltou a casa de Aamma e encontrou Lalla diante da porta. Quando ela o viu, teve medo e soltou um gritinho, porque tinha a certeza de que ele havia de voltar e porque receava esse momento. O homem do fato cinzento-esverdeado olhou-a com um ar esquisito. Tem olhos parados e duros, como as pessoas que mandam, e a pele da cara dele é branca e seca, com a sombra azul da barba no queixo e nas faces. O homem traz mais sacos com novos presentes. Lalla afasta-se quando ele passa à frente dela e olha para os embrulhos. O homem deixa-se enganar pelo seu olhar e dá um passo na sua direcção, estendendo os presentes. Mas Lalla corre o mais depressa que pode e desaparece sem se voltar para trás, até sentir debaixo dos pés a areia da vereda que leva às colinas de pedras.
Ela não sabe onde a vereda acaba. com os olhos marejados de lágrimas e um aperto no coração, Lalla caminha o mais depressa que pode. Aqui, o sol queima sempre mais, como se estivéssemos mais perto do céu. Mas o vento pesado não sopra sobre as colinas cor de tijolo e de giz. As pedras são duras, com o feitio de lâminas, eriçadas; os arbustos negros estão cobertos de espinhos, onde se agarram aqui e acolá tufos de lã dos carneiros; até as ervas cortam como facas. Lalla vagueia muito tempo pelas colinas. Algumas são altas e abruptas, com falésias semelhantes a muralhas; outras são pequenas, pouco maiores que um monte de calhaus, dir-se-ia que feitas por mãos de crianças.
Sempre que Lalla chega àquele lugar, sente que já não pertence ao mesmo mundo, como se o tempo e o espaço se tornassem maiores, como
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se a luz ardente do céu lhe entrasse nos pulmões e os dilatasse e como se o seu corpo se tornasse semelhante ao de um gigante que vivesse muito, muito tempo, muito, muito devagar.
Sem se apressar, Lalla sobe ao longo do leito de uma torrente seca, na direcção do grande planalto de pedras, lá onde mora aquele a quem ela chama Es Ser.
Ela não sabe muito bem porque vai nessa direcção; é um pouco como se houvesse duas Lallas, uma que não sabia, cega pela angústia e pela cólera, fugindo ao vento da desgraça, e a outra que sabia e que fazia mover as pernas na direcção da morada de Es Ser. Trepa então para o planalto de pedras, com a cabeça vazia, sem compreender. Os seus pés descalços reencontram os rastos antigos, que o vento e o sol não conseguiram apagar.
Lentamente, sobe para o planalto de pedras. O sol queima-lhe a cara e os ombros, queima-lhe as pernas e as mãos. Mas ela mal o sente. É a luz que liberta, que apaga a memória, que a torna pura como uma pedra branca. A luz lava o vento de desgraça, queima as doenças, as maldições.
Lalla avança, com os olhos quase fechados pela reverberação da luz, e o suor cola-lhe o vestido ao ventre, ao peito, às costas. Talvez nunca tivesse havido tanta luz na terra, e nunca Lalla teve tanta sede dela, como se proviesse de um vale tenebroso onde reinam sempre a morte e a escuridão. O ar aqui está imóvel, treme e vibra sem se mover e tem-se a impressão de ouvir o ruído das ondas da luz, a estranha música que se assemelha ao canto das abelhas.
Quando chega ao imenso planalto deserto, o vento sopra de novo contra ela, fá-la vacilar. É um vento frio e duro, que não cessa, que se encosta a ela e a faz tremer na roupa encharcada de suor. A luz é deslumbrante, explode no vento, abrindo estrelas no cume dos rochedos. Aqui, não há ervas, não há árvores nem água, há só a luz e o vento de há séculos para cá. Não há caminhos, não há traços humanos. Lalla avança ao acaso, pelo centro do planalto onde só vivem os escorpiões e as escolopendras. É um sítio onde ninguém vai, nem mesmo os pastores do deserto, e quando um dos seus animais lá se perde, eles saltam a assobiar e obrigam-nos a voltar para trás à pedrada.
Lalla caminha devagar, de olhos quase fechados, pousando a ponta dos pés descalços nas rochas escaldantes. É como estar-se num outro mundo, perto do Sol, em equilíbrio, prestes a cair. Ela avança, mas o seu coração está ausente, ou antes, todo o seu ser se lhe antecipa, no olhar que espreita, nos sentidos vigilantes; só o seu corpo fica para trás, ainda hesitante nas rochas de arestas cortantes.
Lalla aguarda com impaciência aquele que deve vir agora, ela sabe-o, tem de ser. Desde que começou a correr, para escapar ao homem do fato cinzento-esverdeado, para escapar à morte do velho Naman, soube que
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alguém a esperava no planalto de pedras, lá onde não há homens. É o guerreiro do deserto velado de azul, de que só conhece o olhar cortante como uma lâmina. Ele olhou-a do alto das colinas desertas e esse olhar veio até ela e tocou-a e atraiu-a até aqui, sem remissão.
Agora está imóvel no centro do grande planalto de pedras. À volta dela não há nada, só aquele amontoado de calhaus, aquela poeira de luz, aquele vento frio e duro, aquele céu intenso, sem nuvens, sem vapor.
Lalla fica sem se mexer, empoleirada numa grande laje de pedra um pouco inclinada, uma laje dura e seca que nunca foi polida por nenhuma água. A luz do Sol dardeja sobre ela, vibra-lhe na testa, no peito, no ventre, a luz que é um olhar.
O guerreiro azul vai certamente chegar agora. Ele já não pode tardar. Lalla crê ouvir o ranger dos seus passos no pó, o coração bate-lhe com força. Os turbilhões de luz branca envolvem-na, enrolam as suas chamas em redor das pernas, misturam-se aos seus cabelos e sente a língua áspera que lhe queima os lábios e as pálpebras. As lágrimas salgadas deslizam pelas faces, entram na boca, o suor salgado escorre gota a gota das axilas, arde-lhe nas costelas, forma riachos no pescoço e entre as omoplatas. O guerreiro azul do deserto deve vir agora, o olhar dele será ardente como a luz do Sol.
Mas Lalla fica sozinha no meio do planalto deserto, de pé em cima da lousa um pouco inclinada. O vento frio queima-a, esse vento terrível que não gosta da vida dos homens, sopra para a abrasar, para a reduzir a pó. O vento que aqui sopra só gosta dos escorpiões e das escolopendras, dos lagartos e das serpentes, quando muito das raposas de pêlo queimado. Mas Lalla não tem medo dele, porque sabe que algures, entre os rochedos, ou então no céu, há o olhar do Homem Azul, daquele a quem ela chama Es Ser, o Segredo, porque ele se esconde. É ele quem vai vir certamente, o olhar dele irá direito ao fundo dela para lhe dar forças para combater o homem do fato completo e a morte que ronda Naman; vai transformá-la em ave e lançá-la no meio do espaço; talvez ela então possa juntar-se à grande gaivota branca que é um príncipe e que voa infatigavelmente por cima do mar.
Quando o olhar pousa nela, aquilo produz-lhe um grande turbilhão na cabeça, como uma vaga de luz que se desenrola. O olhar de Es Ser é mais brilhante do que o fogo, desprende um clarão azul e ardente como o das estrelas.
Lalla pára de respirar alguns instantes. Os seus olhos estão dilatados. Agacha-se na poeira, de olhos fechados, com a cabeça inclinada para trás, porque há um peso terrível naquela luz, um peso que entra nela e a torna pesada como a pedra.
Ele veio. Mais uma vez, sem fazer ruído, deslizando por cima dos calhaus aguçados, vestido como os antigos guerreiros do deserto, com um
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grande manto de lã branca e o rosto velado por um pano azul-escuro. Lalla olha-o com todas as suas forças, vê-o avançar no seu sonho. Vê as mãos cor de anil, vê o clarão desferido pelo seu olhar sombrio. Ele não fala. Ele nunca fala. É com o olhar que ele sabe falar, porque vive num mundo onde já não são necessárias as palavras dos homens. Em tomo do seu manto branco, há grandes turbilhões de luz dourada, como se o vento soerguesse nuvens de areia. Mas Lalla só ouve as pancadas do seu próprio coração, que bate muito devagar, muito longe.
Lalla não precisa de palavras. Não precisa de fazer perguntas, nem mesmo de pensar. De olhos fechados, agachada na poeira, sente o olhar do Homem Azul pousado nela, enquanto o calor lhe invade o corpo e vibra nos seus membros. É isso que é extraordinário. O calor do olhar insinua-se em todos os recantos do seu corpo, expulsa as dores, a febre, os coágulos, tudo o que obstrui e faz mal.
Es Ser não se move. Agora está de pé à frente dela, enquanto as vagas de luz se enrolam e deslizam em torno do seu manto. Que faz ele? Lalla já não tem receio, sente o calor subir dentro dela, como se os raios lhe atravessassem a cara, iluminassem todo o seu corpo.
Ela vê o que há no olhar do Homem Azul. Está tudo à volta dela, até ao infinito, o deserto que rutila e ondeia, os feixes de chispas, as lentas vagas das dunas que avançam para o desconhecido. Há cidades, grandes burgos brancos com torres esguias como os troncos das palmeiras, palácios vermelhos ornados de folhagens, de lianas, de flores gigantes. Há grandes lagos de água azul como o céu, uma água tão pura e tão bela que não há outra assim à face da terra. É um sonho que Lalla fabrica, de olhos fechados, com a cabeça virada para trás à luz do Sol e os braços apertando os joelhos. É um sonho que vem de outro lado, que existia aqui no planalto de pedras muito tempo antes dela, um sonho no qual ela entra agora, como que a dormir, e que estende a sua praia diante dela.
Para onde vai a estrada? Lalla não sabe para onde vai, à deriva, arrastada pelo vento do deserto que sopra, umas vezes queimando-lhe os lábios e as pálpebras, vento cruel que cega, outras, frio e lento, vento que apaga os homens e derruba as rochas ao pé das falésias. É o vento que vai para o infinito, para lá do horizonte, para lá do céu, até às constelações imóveis, para a Via Láctea, para o Sol.
O vento leva-a pela estrada sem limites, pelo imenso planalto de pedras onde rodopia a luz. O deserto expõe os seus campos vazios, cor de areia, semeados de fendas, enrugados, semelhantes a peles mortas. O olhar do Homem Azul anda por ali, está em toda a parte, até nos confins do deserto, e é através do seu olhar que Lalla vê agora a luz. Ela sente na pele a queimadura do olhar, o vento, a secura, e os lábios têm o gosto do sal. Ela vê a forma das dunas, grandes animais adormecidos, e as altas muralhas negras da Hamada, e o imenso vale ressequido de terra encarnada. É a
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terra onde não há homens, nem cidades, nada que se detenha e cause perturbação. Há só a pedra, a areia, o vento. Mas Lalla tem uma sensação de felicidade, porque reconhece cada coisa, cada pormenor da paisagem, cada arbusto calcinado do grande vale. É como se tivesse andado por lá, antigamente, de pés descalços queimados pela terra, com os olhos postos no horizonte, no ar que dança. Então o seu coração bate com mais força e mais depressa, e ela vê à sua frente os sinais, os rastos perdidos, os ramos partidos, as moitas que estremecem ao vento. Ela espera, ela sabe que vai chegar em breve, agora já está muito perto. O olhar do Homem Azul guia-a através das fendas, das pedreiras, pelas torrentes ressequidas. Depois, subitamente, ouve aquela estranha canção, incerta, nasalada, que tremula muito longe, que parece sair da própria areia, mesclada ao resvalar contínuo do vento nas pedras, ao ruído da luz. A canção estremece no interior de Lalla, reconhece-a: é a canção de Lalla Hawa, que cantava Aamma, e que dizia: "Um dia, oh, um dia, o corvo ficará branco, o mar secará, há-de-se descobrir o mel na flor do cacto, alguém fará uma cama com os ramos da acácia..." Mas Lalla já não compreende as palavras, porque é alguém que canta com uma voz muito distante, na língua dos chleuhs. O que não evita que a canção lhe vá direita ao coração, enchendo-lhe os olhos de lágrimas, apesar de conservar as pálpebras cerradas com toda a força.
A música dura muito tempo, embala-a tanto tempo que as sombras das pedras já se estendem na areia do deserto. Então Lalla avista também a cidade vermelha que fica no fim do imenso vale. Não é verdadeiramente uma cidade, como as que Lalla conhece, com ruas e casas. É uma cidade de lama, arruinada pelo tempo e gasta pelo vento, semelhante aos ninhos das térmitas ou das vespas. A luz por cima da cidade vermelha é bela, forma um zimbório de doçura, claro e puro no céu de aurora eterna. As casas estão agrupadas em torno da boca do poço, e há algumas árvores imóveis, acácias brancas semelhantes a estátuas. Mas o que Lalla vê, sobretudo, é um túmulo branco, simples como uma casca de ovo, pousado na terra encarnada. É de lá que parece vir a luz do olhar, e Lalla compreende que se trata da morada do Homem Azul.
É algo de terrível, e ao mesmo tempo de muito belo, que chega até Lalla. É como se alguma coisa, no fundo dela, se rasgasse e se quebrasse, e deixasse passar a morte, o desconhecido. A queimadura do deserto expande-se nela, corre-lhe pelas veias, aglutina-se às suas vísceras. O olhar de Es Ser é terrível e faz mal, porque é o sofrimento que vem do deserto, a fome, o medo, a morte, que chegam, que desabam. A bela luz dourada, a cidade vermelha, o túmulo branco e ligeiro de onde emana a claridade sobrenatural, levam também consigo a desgraça, a angústia, o abandono. É um longo olhar de desespero aquele que vem, porque a terra é dura e o céu não quer nada com os homens.
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Lalla fica imóvel, prostrada, de joelhos nas pedras. O sol queima-lhe os ombros e a nuca. Ela não abre os olhos. As lágrimas formam dois rios que traçam sulcos na poeira encarnada colada às faces.
Quando levanta a cabeça e abre os olhos, tem a vista turvada. Tem de fazer um esforço para se adaptar. As silhuetas agudas das colinas aparecem, seguidas da extensão deserta do planalto, onde não há uma erva, uma árvore, só a luz e o vento.
Então começa a andar, cambaleando, desce lentamente a vereda que conduz ao vale, ao mar, à Cidade de tábuas e de papel alcatroado. As sombras são agora compridas, o Sol aproxima-se do horizonte. Lalla sente o rosto entumescido pela queimadura do deserto e pensa que ninguém a conseguirá reconhecer, agora que se tornou como o Hartani.
Quando chega lá abaixo, perto do estuário do rio, já é noite na Cidade. As lâmpadas elécricas formam pontos amarelos. Na estrada, os camiões avançam lançando a direito, estupidamente, os pincéis brancos dos faróis.
Lalla vai umas vezes a correr, outras vezes devagar, como se fosse parar, dar meia volta e desatar a fugir. Há alguns rádios que emitem a sua música maquinal na noite. O lume dos fogareiros apaga-se por si e nas casas de tábuas mal unidas as mulheres e as crianças já estão enroladas nas mantas, por causa da humidade da noite. De vez em quando o vento fraco faz rolar uma lata vazia, faz bater um bocado de chapa. Os cães estão escondidos. Por cima da Cidade, o céu negro está cheio de estrelas.
Lalla caminha sem fazer ruído e pensa que ninguém precisa dela, que tudo é perfeito sem ela, como se se tivesse ido embora há anos, como se nunca tivesse existido.
Em lugar de ir para a casa de Aamma, Lalla dirige-se devagar para a outra ponta da Cidade, lá onde vive o velho Naman. Estremece, porque o ar da noite é muito húmido, e tremem-lhe os joelhos porque não comeu nada desde a véspera. O dia foi tão comprido, lá no alto, no planalto de pedras, que Lalla tem a impressão de ter partido há dias, talvez há meses. É como se tivesse dificuldade em reconhecer as ruas da Cidade, as barracas de tábuas, os ruídos dos aparelhos de rádio e os choros das crianças, o cheiro de urina e de poeira. De súbito, pensa que talvez se tenham realmente passado meses enquanto esteve lá em cima, no planalto de pedras, meses que não pareceram mais que um único e longo dia. Então pensa no velho Naman e sente uma dor no coração. Apesar da sua fraqueza, põe-se a correr pelas ruas vazias da Cidade. Os cães ouvem-na correr, o que os faz rosnar e ladrar um pouco. Quando chega diante da casa de Naman, o coração bate-lhe com tanta força que mal consegue respirar. A porta está entreaberta, não há luz.
O velho Naman está deitado na esteira, como ela o deixou. Respira ainda, muito devagar, assobiando, e tem os olhos muito abertos no escuro.
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Lalla inclina-se para o seu rosto, mas ele não a reconhece. A boca aberta está tão entretida a tentar respirar que já não consegue sorrir.
- Naman... Naman... - murmura Lalla.
O velho Naman já não tem forças. O vento de desgraça pegou-lhe a febre, aquela que pesa no corpo e na cabeça e que não deixa comer. O vento talvez o vá levar. com angústia, Lalla debruça-se para o rosto do pescador e diz-lhe:
- Tu não te vais embora já. Ainda não, está bem?
Ela gostava tanto de ouvir Naman falar-lhe, contar ainda uma vez a história do pássaro branco que era príncipe do mar, ou então a história da pedra que o anjo Gabriel deu aos homens, e que se tornou negra por causa dos pecados deles. Mas o velho Naman já não pode contar histórias, mal tem força para erguer o peito, para respirar, como se tivesse um peso invisível em cima dele. O suor mau e a urina banham-lhe o corpo magro, que parece estar partido no chão.
Lalla está agora muito cansada para contar outras histórias, para continuar a dizer o -que há lá longe, do outro lado do mar, todas essas cidades da Espanha e da França.
Então senta-se ao lado do velho e contempla pela porta entreaberta a luz da noite. Escuta o silvo da respiração, ouve o ruído mau do vento na rua, que arrasta as latas de conserva e faz bater as chapas. Depois adormece, assim, sentada, com a cabeça encostada aos joelhos. De vez em quando, a respiração ofegante do velho Naman acorda-a e ela pergunta:
- Tu estás aí? Tu ainda aí estás?
Mas ele não responde, não dorme; o rosto cinzento está virado para a porta, mas os olhos brilhantes parecem já não ver, como se apercebessem o que está do lado de lá.
Lalla tenta lutar contra o sono, porque receia o que vai acontecer se se deixar adormecer. É como os pescadores, os que estão longe, perdidos no mar, sem nada ver, baloiçados pelas ondas, enredados nos turbilhões da tempestade. Nunca se devem deixar adormecer para que o mar não tome conta deles e os atire para as profundezas, tragando-os. Lalla quer resistir, mas as pálpebras cerram-se contra a sua vontade e sente que cai para trás. Nada muito tempo, sem saber para onde vai, levada pelo ruído lento da respiração do velho Naman.
Depois, antes do nascer do dia, acorda em sobressalto. Olha o velho que está estendido no solo, com o rosto sereno encostado ao braço. Ele agora já não faz barulho, porque deixou de respirar. Lá fora, o vento parou de soprar, já não há perigo. Tudo está calmo, como se nunca houvesse morte, em parte nenhuma.
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Quando Lalla resolveu ir-se embora, não disse nada a ninguém. Resolveu ir-se embora porque o homem do fato cinzento-esverdeado voltou várias vezes a casa de Aamma e, de cada vez, olhou para Lalla com os seus olhos brilhantes e duros como calhaus pretos, e sentou-se na arca de Lalla Hawa para beber um copo de chá de hortelã-pimenta. Lalla não tem medo dele, mas sabe que, se não se for embora, ele há-de levá-la um dia à força para casa dele para se casar com ela, porque é rico e poderoso e não gosta que lhe resistam.
Ela partiu esta manhã, antes do nascer do Sol. Nem olhou sequer para o fundo da casa, onde se via o vulto de Aamma a dormir enrolada no seu lençol. Pegou simplesmente num pedaço de pano azul onde guardou o pão duro e algumas tâmaras secas, assim como uma pulseira de ouro que pertencia à mãe.
Saiu sem fazer ruído, sem mesmo acordar um cão. Caminhou de pés descalços pela terra fria, entre as filas de casas adormecidas. O céu diante dela está um tudo-nada pálido, porque o dia vai romper. A bruma vem do mar, forma uma grande nuvem mole que sobe ao longo do rio, estendendo dois braços recurvados como um pássaro gigantesco de asas cinzentas.
Por instantes, Lalla sente vontade de ir até à casa de Naman, o pescador, para o ver uma última vez, por ser ele a única pessoa que Lalla perdeu com pesar. Mas tem medo de se atrasar e afasta-se da Cidade, pelo carreiro das cabras, na direcção das colinas de pedras. Quando começa a escalar os rochedos, sente o vento frio que a penetra. Aqui, também não há ninguém. Os pastores ainda dormem nas suas choças de ramos, ao lado dos currais, e é a primeira vez que Lalla entra na região das colinas sem lhes ouvir os assobios agudos. Aquilo mete-lhe algum medo, como se o vento tivesse transformado a terra em deserto. Mas a luz do Sol aparece a pouco e pouco, do outro lado das colinas, uma mancha vermelha e amarela que se mistura ao cinzento da noite. Lalla sente-se satisfeita por a ver e
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pensa que é aí que ela irá, mais tarde, ao sítio onde o céu e a terra se encontram cheios pela grande mancha da primeira luz.
As ideias atropelam-se um pouco na sua cabeça, enquanto caminha pelas rochas. É porque sabe que nunca mais voltará à Cidade, que nunca mais verá tudo aquilo de que tanto gostava, a grande planície árida, a extensão da praia branca, onde as ondas se desfazem umas atrás das outras; ela está triste porque pensa nas dunas imóveis onde tinha o hábito de se sentar para observar as nuvens a correr no céu. Nunca mais tornará a ver o pássaro branco que era príncipe do mar, nem a silhueta do velho Naman sentado à sombra da figueira, junto da barca voltada. Então afrouxa um pouco o andamento e sente por instantes a vontade de olhar para trás. Mas à frente dela estão as colinas silenciosas, as pedras aguçadas onde a luz começa a cintilar e as pequenas moitas de espinhos onde tremulam algumas gotas da humidade do céu e também os mosquitos ligeiros que se deixam levar pelo vento.
Então volta a caminhar, sem se voltar, apertando a trouxa de pão e de tâmaras de encontro ao peito. Quando a vereda termina é porque já não há homens nas cercanias. Aí os calhaus pontiagudos saem da terra e é preciso saltar de uma rocha para a outra, subindo para a colina mais alta. É lá que a espera o Hartani, mas ela ainda não o avista. Talvez ele esteja escondido numa gruta, do lado da falésia, no local onde pode vigiar todo o vale, até ao mar. Ou talvez esteja muito próximo, atrás de um arbusto queimado, enterrado até ao pescoço no buraco de uma pedra, como uma serpente.
Ele está sempre à espreita, como os cães selvagens, prestes a saltar, a lançar-se em fuga. Talvez que hoje ele já não queira fugir? No entanto, ontem, Lalla disse-lhe que viria, e apontou-lhe a extensão longínqua, a grande barra de gesso que parece sustentar o céu, lá onde começa o deserto. Os olhos dele brilharam com mais força, porque sempre teve essa ideia, desde que era pequeno nunca deixou de pensar naquilo um só instante. É uma coisa que se vê no modo que tem de olhar para o horizonte, com os olhos fixos no rosto tenso. Ele nunca se senta, está sempre apoiado nos calcanhares, como se fosse saltar. Foi ele quem mostrou a Lalla a estrada do deserto, a estrada onde a gente se perde, a estrada de onde nunca se volta, o céu, tão puro e tão belo, lá longe.
O Sol ergueu-se agora e surge como um grande disco de fogo à frente dela, deslumbrante, subindo lentamente, a encher-se por cima do caos de pedra. Nunca lhe pareceu tão belo. Apesar da dor e das lágrimas que lhe saltam dos olhos e deslizam pelas faces, Lalla olha-o de frente, sem pestanejar, como o velho Naman disse que fazem os príncipes do mar. A luz entra dentro dela e vai tocar o que está escondido no seu corpo, sobretudo o coração.
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Agora, já não há nenhuma passagem marcada no chão. Lalla tem de procurar o caminho através dos rochedos. Salta de pedra em pedra, por cima das torrentes secas, contorna as muralhas das falésias. O Sol que se ergue fez uma grande mancha luminosa nas suas retinas e ela avança um pouco ao acaso, inclinada para a frente para não cair. Passa as colinas, umas após outras, e depois caminha pelo meio de um grande campo de pedras. Não há ninguém. Tão longe quanto a vista alcança, só há aquelas extensões de pedra seca, com alguns tufos de eufórbios e cactos. Foi o Sol que despovoou a terra, queimou e gastou tudo até só restarem aquelas pedras brancas, aquelas moitas. Lalla agora já não o olha de frente; ele já vai muito alto no céu, e as pupilas ficariam queimadas num segundo, como se um raio as atingisse. O céu está em brasa. É azul e arde como uma grande chama e Lalla tem de franzir muito os olhos para olhar para a frente. À medida que o Sol sobe no céu, as coisas da terra aumentam, impregnam-se de luz. Aqui não há ruídos, mas julga-se ouvir de quando em quando os calhaus que se dilatam, que estalam.
Há muito tempo que ela anda. Quanto tempo? Horas, sem dúvida, sem saber para onde" vai, simplesmente na direcção oposta à sua sombra, para o outro lado do horizonte. Lá longe, há altas montanhas vermelhas que parecem suspensas no céu, aldeias, um rio talvez, lagos de água cor de céu.
Depois, subitamente, sem que descortinasse de onde ele veio, o Hartani está ali, postado diante dela. Está imóvel, vestido como todos os dias com a sua roupa de burel, com a cabeça enrolada num pedaço de pano branco. A cara é negra, mas ilurnina-se quando Lalla se aproxima dele:
- Oh, Hartani! Hartani!...
Lalla agarra-se a ele, reconhece o cheiro do seu suor nas roupas poeirentas. Ele também trouxe um pouco de pão e tâmaras num trapo molhado pendurado à cintura.
Lalla abre a sua trouxa e divide um pouco de pão com ele. Comem de pé, depressa, porque há muito tempo que têm fome. O jovem pastor olha em torno de si. Os seus olhos perscrutam todos os pontos da paisagem, e parece uma ave de rapina que não pisca os olhos. Mostra um ponto, longe, no horizonte, do lado das montanhas encarnadas. Encosta a palma das mãos aos lábios: além, há água.
Recomeçam a andar. O Hartani vai adiante, salta com ligeireza sobre os rochedos. Lalla tenta pôr os pés nas pegadas dele. Vê sempre em frente dela a silhueta frágil e ligeira do rapaz, que parece dançar em cima das pedras brancas; ele tem o ar de uma chama, de um reflexo, e os seus pés parecem andar sozinhos ao ritmo do Hartani.
O sol agora é duro, pesa na cabeça e nos ombros de Lalla, faz doer no interior do corpo. É como se a luz que entrou dentro dela de manhã se pusesse a queimar, a transbordar, e ela sente as grandes ondas dolorosas que sobem ao longo das pernas, dos braços, que se alojam na cavidade da
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cabeça. A queimadura da luz é seca e poeirenta. Não há uma gota de suor no corpo de Lalla e o seu vestido azul roça-lhe no ventre e nas coxas produzindo crepitações eléctricas. As lágrimas secaram nos olhos, as crostas de sal formam pequenos cristais agudos como grãos de areia no canto das pálpebras. A boca está dura e seca. Passa a ponta dos dedos pelos lábios e pensa que a sua boca ficou igual à dos camelos e que pouco faltará para poder comer cactos e cardos sem sentir nada.
Ele, o Hartani, continua a saltar de rocha em rocha, sem se voltar. A silhueta branca e ligeira está cada vez mais distante, parece um animal que foge, sem parar, sem se voltar. Lalla quereria juntar-se a ele, mas já não tem forças. Cambaleia através do caos de pedras, ao acaso, com os olhos fixos na lonjura. Os pés esfolados sangram e ao cair, várias vezes, feriu-se nos joelhos. Mas quase não sente a dor. Só sente a terrível reverberação da luz, vinda de todos os lados. Aquilo é como uma data de animais que saltam à volta dela, por cima das pedras, cães selvagens, cavalos, ratos, cabras que dão saltos prodigiosos. Também há grandes pássaros brancos, íbis, serpentários, cegonhas; todos batem as grandes asas flamejantes, como se quisessem levantar voo, e começam uma dança que nunca mais acaba. Lalla sente o sopro das asas deles nos cabelos, distingue o remexer das suas rémiges no ar espesso. Então volta a cabeça, olha para trás, para os ver, a todos esses pássaros, a todos esses animais, mesmo os leões que avistou pelo canto do olho. Mas quando os olha, eles dissolvem-se logo, desaparecem como miragens, para se voltarem a formar atrás dela.
O Hartani já mal se vê. A silhueta ligeira dança por cima das pedras brancas, como uma sombra destacada da terra. Lalla já não tenta seguir-lhe os passos. Ela já nem vê a massa vermelha da montanha imóvel no céu, no outro lado da planície. Talvez já não consiga avançar? Os pés descalços tropeçam nos calhaus, esfolam-se, desequilibram-se nos buracos. Mas é como se o caminho se desfizesse incessantemente atrás dela, como a água dos rios que desliza entre as pernas. É a luz subretudo que passa, desce sobre a grande planície vazia, passa com o vento, varre o espaço. A luz faz um ruído de água, e Lalla ouve o seu canto, sem poder beber. A luz vem do centro do céu e fica a queimar na terra, no gipso e na mica. De vez em quando, no meio da poeira ocre, entre os calhaus brancos, há uma pedra de fogo, cor de brasa, aguda como um croque. Lalla caminha olhando intensamente a faísca, como se a pedra lhe desse força, como se fosse um sinal deixado por Es Ser, para lhe mostrar a via a seguir. Ou então, mais adiante, uma placa de mica semelhante ao ouro, cujos reflexos são como um ninho de insectos, e Lalla julga ouvir o zumbido das suas asas. Mas às vezes, na terra poeirenta, ao acaso, há um calhau redondo, cinzento e baço, um simples seixo do mar, e Lalla olha-o com todas as suas forças; mete-o na mão e aperta-o com força, para se salvar. O calhau é
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ardente, todo estriado de veias brancas que desenham uma estrada no seu centro, onde se vêm ramificar outras estradas finas como cabelos de crianças. com ela na mão fechada, Lalla segue a direito. O Sol já desce, para o outro lado da planície branca. O vento da tarde ergue por instantes trombas de poeira que dissimulam a grande montanha encarnada ao pé do céu.
- Hartani! Harta-a-ni! - grita Lalla. Caiu de joelhos em cima dos calhaus, porque as pernas já não querem andar. Por cima dela, o céu está vazio, maior ainda, ainda mais vazio. Não há um único eco.
Tudo é nítido e puro. Lalla consegue distinguir o mínimo calhau, o mínimo arbusto, quase até ao horizonte. Não há vivalma. Ela bem gostaria de ver as vespas, pensa que gostaria disso, de as ver fazer os seus nós invisíveis no ar, em torno dos cabelos das crianças. Gostaria muito de ver um pássaro, mesmo um corvo, nem que fosse um abutre. Mas não há nada, ninguém. Só a sua sombra negra, estendida atrás dela, como um fosso na terra demasiado branca.
Então deita-se no chão e pensa que vai morrer a seguir, porque o seu corpo já não tem força e o fogo da luz lhe consome o coração e os pulmões. Lentamente, a luz decresce e o céu vela-se, mas talvez seja a fraqueza que há nela que apague o sol.
Subitamente, o Hartani surge de novo ao pé dela. Está mesmo à frente dela, empoleirado numa perna, em equilíbrio como um pássaro. Aproxima-se dela e debruça-se. Lalla agarra-se ao fato de burel, aperta o tecido com toda a força, não o quer largar, quase faz cair o rapaz. Ele agacha-se ao lado dela. O rosto está sombrio, mas os olhos brilham com muita força, cheios de uma expressão intensa. Toca no rosto de Lalla, na testa, nos olhos, passa os dedos pelos lábios gretados. Mostra um ponto na planície de pedras, na direcção do sol-poente, lá onde há uma árvore ao pé de uma rocha: a água. Será perto, será longe? O ar é tão puro que não se pode saber. Lalla faz um esforço para se levantar, mas o corpo já não responde.
- Hartani, eu não posso mais... - Lalla murmura, mostrando as pernas esfoladas, dobradas debaixo dela.
- Vai-te embora! Deixa-me, vai-te embora!
O pastor hesita, sempre agachado ao pé dela. Talvez ele se vá embora? Lalla olha-o sem dizer nada, tem vontade de dormir, de desaparecer. Mas o Hartani passa os braços em torno do corpo de Lalla e ergue-a devagar. Lalla sente os músculos das pernas do rapaz que tremem com o esforço e agarra-se-lhe ao pescoço com os braços, procurando confundir o seu peso com o do pastor.
O Hartani caminha pelos calhaus, salta depressa, como se estivesse só. Corre com as longas pernas vacilantes, atravessa as ravinas, salta por cima das fendas. O sol e o vento de poeira já terminaram os seus turbilhões na planície de pedras, mas há ainda lentos movimentos que vêm do horizonte vermelho, que fazem saltar chispas no sílex. Há como que um enorme funil
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de luz mesmo à frente deles, no sítio onde o Sol pendeu para a terra. Lalla escuta o coração do Hartani, que lateja nas artérias do pescoço, ouve a sua respiração arquejante.
Chegaram antes da noite ao rochedo e à árvore, lá onde há o olho de água. É um simples buraco no chão com água cinzenta. O Hartani pousa suavemente Lalla à beira da água e dá-lhe de beber na palma da mão. A água é fria, um pouco amarga. Depois o pastor debruça-se e bebe demoradamente, com a cabeça junto da água.
Ficam aguardando a noite. Aqui ela chega depressa, no género de uma cortina que se fecha, sem fumos, sem nuvens, sem espectáculo. É como se quase não houvesse ar, nem água, só a luz do Sol que as montanhas apagam.
Lalla está deitada no chão, encostada ao Hartani. Não se move. Tem as pernas desfeitas, laceradas, e o sangue coagulado formou uma crosta semelhante a uma sola preta nos pés. Às vezes, a dor sobe dos pés, atravessa as pernas, ao longo dos ossos e dos músculos, até à virilha. Geme um pouco, de dentes cerrados para não gritar, enquanto as mãos se crispam nos braços do rapaz. Ele não olha para ela; olha a direito para o horizonte, para o lado das montanhas negras, ou talvez seja para o grande céu nocturno. O rosto tornou-se muito negro, por causa do escuro. Pensará nalguma coisa? Lalla gostaria de entrar dentro dele, para saber o que ele quer, para onde vai... Lalla fala, mais para ela do que para ele. O Hartani escuta-a à maneira dos cães, que arrebitam a cabeça e seguem o ruído das sílabas.
Ela fala-lhe do homem do fato cinzento-esverdeado, dos seus olhos duros e negros como pedaços de metal, e depois da noite ao pé de Naman, quando o vento mau soprava na Cidade. Lalla diz:
- Agora que foi a ti que escolhi para marido, mais ninguém me pode levar nem obrigar-me a ir ao juiz para me casar... Agora, vamos viver os dois juntos, e havemos de ter um filho, e já mais ninguém há-de querer casar comigo, estás a compreender, Hartani? Mesmo que eles nos apanhem, eu digo que tu és o meu marido e que vamos ter um filho e isso eles não conseguem evitar. Eles então hão-de-nos deixar ir embora, e nós poderemos ir viver nos países do Sul, muito longe, no deserto...
Ela já não sente o cansaço, nem a dor, mas apenas a embriaguez desta liberdade, no meio do campo de pedras, no silêncio da noite. Aperta com muita força o corpo do jovem pastor, até que os cheiros e os hálitos se misturem por completo. Delicadamente, o rapaz entra nela e possui-a e ela ouve o ruído precipitado do coração dele de encontro ao seu peito.
Lalla vira a cara para o centro do céu e olha com toda a força. A noite fria e bela envolve-os, cinge-os no seu azul profundo. Lalla nunca viu uma noite tão bela. Lá na Cidade, ou à beira-mar, havia sempre qualquer coisa que separava da noite, um vapor, uma poeira. Havia sempre um véu que turvava, porque os homens estavam lá, em redor, com as suas fogueiras, os
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seus alimentos e o seu hálito. Mas aqui tudo é puro. O Hartani deita-se agora ao lado dela e há uma grande vertigem que os trespassa, que lhes dilata as pupilas.
O rosto do Hartani está tenso, como se a pele da sua testa e das suas faces fosse de pedra polida. Lentamente, por cima deles, o espaço povoa-se de estrelas, de milhares de estrelas. Elas cintilam, palpitam, desenham as suas figuras secretas. Os dois fugitivos observam-nas, quase sem respirar, com os olhos muito abertos. Sentem pousar no rosto o desenho das constelações, como se só existissem através do olhar, como se bebessem a doce luz da noite. Não pensam em mais nada, nem no caminho do deserto, nem no sofrimento do dia seguinte, nem nos outros dias; já não sentem as feridas, nem a sede e a fome, nem nada de terrestre; até esqueceram a queimadura do sol que lhes enegreceu os rostos e os corpos, que lhes devorou o interior dos olhos.
A luz das estrelas cai suavemente como uma chuva. Não faz barulho, não levanta poeira, não provoca vento. Ilumina agora o campo de pedras e, junto da boca do poço, a árvore calcinada toma-se leve e fraca como o fumo. A terra já não é muito plana, esticou como a proa de um barco e agora avança molemente, desliza a baloiçar, segue devagar pelo meio das belas estrelas, enquanto as duas crianças, aconchegadas uma à outra, leves de corpo, fazem os gestos do amor.
Em cada instante surge uma nova estrela, minúscula, quase sem ser possível no negrume, e os fios imperceptíveis da sua luz juntam-se aos demais. Há florestas de luz cinzenta, encarnada, branca, que se misturam ao azul profundo da noite e se imobilizam como bolhas.
Mais tarde, enquanto o Hartani adormece tranquilamente de cara encostada a ela, Lalla olha todos os sinais, todos os pontos de luz, tudo o que bate, treme ou fica parado como os olhos. Mais acima ainda, mesmo por cima dela, há a grande Via Láctea, o caminho traçado pelo sangue do cordeiro de Gabriel, conforme contava o velho Naman.
Ela bebe a luz muito ténue que vem do monte de estrelas e de repente parece-lhe estar tão perto, como na canção que entoava a voz de Lalla Hawa, que lhe bastaria estender a mão para agarrar um punhado da bela luz cintilante. Mas não se move. A mão encostada ao pescoço do Hartani escuta o sangue que bate nas artérias e a passagem calma da sua respiração. A febre do sol e da secura é extinta pela noite. A sede, a fome, a angústia são apaziguadas pela luz da galáxia, e na sua pele, como se fossem gotas, há a marca de cada estrela do céu.
Neste momento, eles já não vêem a terra. As duas crianças, agarradas uma à outra, viajam em pleno céu.
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Cada dia acrescentava um pouco de terra. A caravana tinha-se dividido em três troços, distantes duas ou três horas de marcha. O de Larhdaf seguia à esquerda, junto dos contrafortes do Haua, na direcção de Sidi el Hach. O de Saadbou, o filho mais novo do grande xeque, na extrema direita, subia o leito seco do Jang Saccum, no centro do vale da Saguiet el Hamra. No meio, e mais atrás, avançava Ma el Ainine com os seus guerreiros montados em camelos. Depois, a caravana dos homens, das mulheres e das crianças, empurrando o gado à sua frente e seguindo à distância a grande nuvem de poeira encarnada que se erguia no céu.
Caminhavam todos os dias pelo fundo do vale imenso, enquanto o Sol, por cima deles, fazia o percurso inverso. Era o fim do Inverno e as chuvas ainda não tinham amolecido a terra. O fundo da Saguiet el Hamra estava estalado e duro como uma pele velha. Até a sua própria cor vermelha queimava os olhos e a pele da cara.
De manhã, antes mesmo do nascer do Sol, soava o grito para a primeira oração. Depois ouvia-se o ruído dos animais. O fumo das fogueiras enchia o vale. Ao longe, havia os gritos salmodiados dos soldados de Larhdaf, a que respondia a gente de Saadbou. Mas os homens azuis do grande xeque rezavam em silêncio. Quando o primeiro pó encarnado subia no céu, os homens punham os rebanhos em marcha. Cada um pegava na sua carga e recomeçava a andar na terra ainda cinzenta e fria.
Lentamente, a luz nascia no horizonte, por cima da Hamada. Os homens contemplavam o disco
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resplandecente que iluminava o fundo do vale, franziam os olhos e curvavam-se já um pouco, como se quisessem lutar contra o peso e a dor da luz que incidia nas testas e nos ombros.
Às vezes, as tropas de Larhdaf e de Saadbou estavam tão próximas que se ouvia o barulho dos cascos dos cavalos e os grunhidos dos camelos. Então as três nuvens de pó uniam-se no céu e quase velavam o Sol.
Quando o Sol atingia o zénite, o vento levantava-se e varria o espaço, enxotando muralhas de poeira vermelha e areia. Os homens juntavam os rebanhos em semicírculo, e abrigavam-se atrás dos camelos deitados, ou então encostados aos arbustos espinhosos. A terra parecia tão grande como o céu, tão vazia, tão deslumbrante.
Atrás da tropa do grande xeque, Nour caminhava levando a sua carga de víveres num grande pano atado ao peito. Todos os dias, desde a alva ao pôr do Sol, caminhava assim, seguindo as pisadas dos cavalos e dos homens, sem nunca ver o pai, nem a mãe, nem as irmãs. Voltava a vê-las, às vezes, à tardinha, quando os viajantes acendiam a fogueira de mato para o chá e o caldo de sêmola. Não falava a ninguém e ninguém lhe falava. Era como se a fadiga e a secura tivessem queimado as palavras na sua garganta.
Quando já era noite e os animais tinham feito uma cova para dormir, Nour podia olhar em torno de si o imenso vale deserto. Afastando-se um pouco do acampamento, conservando-se de pé na planície ressequida, Nour tinha a impressão de ser tão grande como uma árvore. O vale parecia não ter limites, extensão infinita de pedras e de areia encarnada que não mudara desde o começo dos tempos. De longe em longe, havia as silhuetas calcinadas das pequenas acácias, das moitas, e os tufos das cactáceas e das palmeiras anãs, nos locais onde a humidade do vale colocava vagas manchas escuras. Na penumbra da noite, a terra adquiria uma cor mineral. Nour aguardava de pé, absolutamente imóvel, que a escuridão descesse e enchesse o vale, lentamente, como uma água impalpável.
Mais tarde, outros grupos de nómadas se vieram juntar ao grupo de Ma el Ainine. Parlamentaram com os chefes das tribos, para lhes perguntarem onde iam, e seguiram o mesmo caminho. Agora eram ao todo vários
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milhares, caminhando pelo vale, na direcção dos poços de Hausa, de el Faunat, de Yorf.
Nour já não sabia há quantos dias tinha começado a viagem. Talvez não fosse mais que um único e interminável dia que se passava assim, enquanto o Sol subia e descia no céu ardente e a nuvem de poeira rolava sobre si mesma, rebentando como uma onda. Os homens dos filhos de Ma el Ainine iam bastante adiantados à frente, já deviam ter atingido o fundo da Saguiet el Hamra, para lá do túmulo de Rayem Mohamed Embarec, no local onde se abre, no planalto da Hamada, o vale lunar do Mesuar. Talvez os seus cavalos trepassem já as encostas das colinas rochosas e se abrisse diante deles o imenso vale da Saguiet el Hamra, onde rodopiavam as nuvens ocre-encarniçadas dos homens e dos rebanhos de Ma el Ainine.
Agora, os homens e as mulheres afrouxavam a marcha da última coluna. De vez em quando, Nour parava para aguardar o grupo onde estavam a mãe e as irmãs. Sentava-se nas pedras escaldantes, com a ponta do manto a tapar-lhe a cabeça, e observava o rebanho que avançava lentamente pela pista. Os guerreiros sem montada caminhavam curvados para diante, esmagados pelos fardos que levavam aos ombros. Alguns apoiavam-se às longas espingardas ou às lanças. Os rostos eram negros, e através do ranger dos seus passos na areia Nour conseguia ouvir o ruído doloroso da respiração.
Atrás, seguiam as crianças e os pastores, que perseguiam o rebanho de cabras e ovelhas e as iam enxotando à pedrada. Os turbilhões de poeira envolviam-nos como um nevoeiro vermelho, e Nour observava as silhuetas estranhas, desgrenhadas, que pareciam dançar na poeira. As mulheres caminhavam ao lado dos camelos de carga, algumas com os bebés envoltos na túnica, andando lentamente com os pés descalços na terra escaldante. Nour ouvia o ruído claro dos colares de ouro e de cobre, das pulseiras dos artelhos. Elas caminhavam entoando uma canção interminável e triste, que ia e vinha como o ruído do vento.
Mas mesmo em último lugar vinham os que já não podiam mais, os velhos, as crianças, os feridos, as jovens cujos homens tinham morrido, e que não tinham mais ninguém para as ajudar a encontrar comida e água.
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Eram numerosos, espalhados ao longo da pista no vale da Saguiet, e continuavam a chegar durante horas a fio, depois de terem passado os soldados do xeque. Eram eles que Nour olhava sobretudo com compaixão.
De pé ao lado da pista, via-os caminhar lentamente, mal conseguindo erguer as pernas derreadas pela fadiga. Tinham caras cinzentas, macilentas, com olhos que brilhavam de febre. Os lábios sangravam, as mãos e o peito tinham marcas de chagas onde o sangue coagulado se tinha misturado ao ouro da poeira. O sol dardejava neles, como nas pedras encarnadas do caminho, e era como se recebessem verdadeiras pancadas. As mulheres não tinham sapatos e os pés descalços eram queimados pela areia e roídos pelo sal. Mas o que era mais doloroso, o que fazia despertar a inquietação e a dó, era o silêncio deles. Nenhum falava, nem cantava. Ninguém chorava nem gemia. Todos, homens, mulheres, crianças de pés ensanguentados, avançavam sem fazer ruído, como vencidos, sem pronunciar uma palavra. Só se ouvia o ruído dos passos na areia e o arquejar curto da respiração. Depois afastavam-se lentamente, fazendo rolar os fardos nos rins, semelhantes a insectos estranhos depois da tempestade.
Nour mantinha-se à beira da pista, com o fardo pousado aos seus pés. De vez em quando, sempre que uma velha ou um soldado ferido se aproximava dele, tentava falar-lhes, acercava-se deles, dizia:
- Salve, salve, não estás muito cansado, não queres que te ajude a levar a tua carga?
Mas eles mantinham-se silenciosos, nem sequer o olhavam, e no seu rosto havia a dureza das pedras do vale, contraído pela dor e pela luz.
Chegava um grupo de homens do deserto, guerreiros de Chinguetti. Os grandes mantos azul-celeste estavam em farrapos. Tinham ligado as pernas e os pés com trapos manchados de sangue. Esses não levavam nada, nem um saco de arroz, nem mesmo um odre de água. Só lhes restavam as espingardas e as lanças, e caminhavam dolorosamente, como os velhos e as crianças.
Um deles era cego e segurava-se aos outros por uma ponta do manto, cambaleando nas pedras do caminho, tropeçando nas raízes das moitas más.
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Quando passou ao pé de Nour e ouviu a voz do rapaz que os cumprimentava, largou o manto do camarada e deteve-se:
- Já chegámos? - perguntou ele.
Os outros prosseguiram o caminho, sem mesmo se voltarem. O guerreiro do deserto tinha um rosto ainda jovem, mas esgotado pela fadiga, e tapava-lhe os olhos queimados um pedaço de pano sujo.
Nour deu-lhe a beber um pouco da sua água, voltou a pôr-lhe a carga aos ombros e colocou a mão do guerreiro no seu manto.
- Vem, agora sou eu que te guio. Recomeçaram a andar pela pista, precedendo a grande
nuvem de poeira encarnada, na direcção do fim do vale.
O homem não falava. A mão enclavinhava-se no ombro de Nour com tanta força que fazia doer. À tarde, quando se detiveram no poço de Yorf, o rapaz já quase não tinha forças. Estavam agora ao pé das falésias encarnadas, no local onde começam as mesas do Haua e o vale que vai para o Norte.
Aqui, todas as caravanas se tinham reunido, as de Larhdaf e de Saadbou e os homens azuis do grande xeque. Na luz do crepúsculo, Nour observava aqueles milhares de homens sentados na terra seca, de roda da mancha negra do poço. A poeira encarnada acamava devagar e o fumo das fogueiras já subia no céu.
Depois de ter descansado, Nour pegou no seu fardo, mas sem o atar à volta do peito. Tomou a mão do guerreiro cego e encaminharam-se para o poço.
Já todos tinham bebido, os homens e as mulheres a leste do poço, os animais a oeste. A água estava turva, misturada à lama encarnada das bordas. Apesar disso, nunca ela parecera tão bela aos homens. O céu sem nuvens brilhava na sua superfície negra, como num metal polido.
Nour inclinou-se para a água e bebeu em longos sorvos, contendo a respiração. Ajoelhado à beira do poço, o guerreiro cego bebia também, avidamente, quase sem se ajudar com a cova da mão. Quando ficou saciado, sentou-se à beira do poço, com a cara escura e a barba a escorrerem água.
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Depois, voltaram para trás, juntando-se aos rebanhos. Eram as ordens do xeque, pois ninguém podia ficar ao pé do poço, para não turvar a água.
A noite caía depressa, junto da Hamada. A sombra entrava no fundo do vale, só deixando os picos de pedra vermelha à chama do Sol.
Nour procurou um instante o pai e a mãe, sem os ver. Talvez eles já tivessem partido para a entrada da pista do Norte, com os soldados de Larhdaf. Nour escolheu o lugar para passar a noite, ao pé dos rebanhos. Largou o fardo, partilhou um bocado de pão de milho e tâmaras com o guerreiro cego. O homem comeu depressa e depois estendeu-se no chão com as mãos debaixo da cabeça. Então Nour falou-lhe, para lhe perguntar quem era. O homem contou devagar, com a sua voz um pouco rouca à força de estar calada, tudo o que se tinha passado lá longe, muito longe, em Chinguetti, perto do grande lago salgado de Chinchan, os soldados dos cristãos que tinham atacado as caravanas, que tinham queimado as aldeias, que tinham levado as crianças para os acampamentos. Quando os soldados dos cristãos tinham vindo do Ocidente, das margens do mar, ou então do Sul, guerreiros vestidos de branco montados em camelos e homens negros do Niger, a gente do deserto tivera de fugir para o Norte. Fora no decorrer de um combate que ele tinha sido ferido por um tiro e perdera a vista. Então os seus companheiros tinham-no trazido para o Norte, para a cidade santa de Smara, porque diziam que o grande xeque sabia sarar as feridas feitas pelos cristãos, que ele tinha o poder de devolver a vista. Enquanto falava, as lágrimas corriam-lhe das pálpebras fechadas, porque pensava agora em tudo o que tinha perdido.
- Tu sabes onde nós estamos agora? - Era isto que ele estava sempre a perguntar a Nour, como se tivesse medo de ficar abandonado ali, no meio do deserto.
- Tu sabes onde nós estamos? Ainda estamos longe do sítio onde poderemos parar?
- Não - dizia Nour. - Nós estamos quase a chegar às terras que o xeque nos prometeu, ao lugar onde não nos há-de faltar nada, onde será como se fosse o reino de Deus.
Mas ele não sabia nada e, no fundo do seu coração, julgava que talvez nunca chegasse a esse país, mesmo
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que atravessassem o deserto, as montanhas e até o mar, até ao sítio onde o Sol nasce no horizonte.
O guerreiro cego continuava a falar, mas já não falava da guerra. Contava em voz baixa a sua infância em Chinguetti, a rota do sal, com o pai e os irmãos. Contava a aprendizagem na mesquita de Chinguetti e depois a partida das imensas caravanas, através das extensões do deserto, para o Adrar, e mais longe ainda, a leste, para as montanhas do Hank, para o poço de Abd el Malek, onde se encontra o túmulo miraculoso. Falava daquilo suavemente, quase a cantar, estendido na terra, com a noite a cobrir-lhe de sombra fresca a cara e os olhos queimados.
Nour deitava-se ao lado dele, envolto no seu manto de lã, com a cabeça apoiada no fardo, e adormecia de olhos abertos, mirando o céu e escutando a voz do homem que falava só para ele.
As noites do deserto eram frias, mas a língua e os lábios de Nour continuavam a queimar e parecia-lhe que lhe colocavam nas pálpebras peças aquecidas ao lume. O vento passava nos rochedos, soprava nas dunas, fazia tremer de febre os homens andrajosos. Algures, no meio dos seus guerreiros adormecidos, o velho xeque envergando o seu manto branco contemplava a noite sem dormir, como o fazia de há meses para cá. O seu olhar perdia-se no formigueiro de estrelas que banhavam a terra com a sua luz difusa. Em certos momentos, dava alguns passos pelo meio dos seus homens adormecidos. Depois voltava a sentar-se no seu lugar, e bebia chá, lentamente, escutando os estalidos do carvão na braseira.
Os dias passaram assim, ardentes e terríveis, enquanto o rebanho de homens e animais subia o vale, para o Norte. Seguiam agora a pista do Tindouf, através do árido planalto da Mamada. Os filhos de Ma el Ainine, com os homens mais válidos, cavalgavam como batedores pelos vales estreitos dos montes Ouarkziz, mas era um caminho demasiado duro para as mulheres e as crianças e o xeque tinha optado pela pista de leste.
Na retaguarda da caravana, Nour caminhava com a mão do guerreiro cego que lhe apertava o ombro. O fardo de comida ficava cada dia mais leve e Nour
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sabia que não havia o suficiente para chegar até ao fim da viagem.
Agora avançavam pelo imenso planalto de pedras, mesmo ao pé do céu. Às vezes atravessavam as ravinas, grandes feridas negras na rocha branca, montes de cascalho afiado como facas. O guerreiro cego apertava com muita força o ombro e o braço de Nour, para não cair.
Os homens tinham gasto os sapatos de pele de cabra e muitos tinham ligado os pés com tiras da roupa, para estancar o sangue que corria. As mulheres seguiam de pés descalços, porque estavam habituadas desde pequenas, mas às vezes um calhau mais aguçado cortava-lhes a carne e elas gemiam enquanto se moviam.
O guerreiro cego nunca falava durante o dia. O seu rosto escuro estava oculto pelo manto azul e pelo penso que lhe tapava os olhos como o capuz de um falcão. Andava sem se queixar e desde que Nour o guiava já não tinha medo de se perder. Mas quando sentia chegar a noite e os homens de Larhdaf e de Saadbou, lá longe à frente nos vales, gritavam com as suas vozes cantantes o sinal de paragem, o guerreiro cego só perguntava, sempre com a mesma inquietação:
- Achas que é aqui? Já chegámos? Diz-me se já chegámos ao sítio onde deveremos parar para sempre?
Nour olhava à sua volta e só via a extensão sem fim da pedra e da poeira, a terra sempre igual debaixo do céu. Desatava o fardo e dizia simplesmente:
- Não, ainda não é aqui.
Então, como todas as noites, o guerreiro cego bebia alguns goles de água do odre, comia algumas tâmaras e pão, depois estendia-se no chão e continuava a falar das coisas do seu país, da grande cidade santa de Chinguetti, perto do lago de Chinchan. Falava do oásis onde a água é verde, onde as palmeiras são imensas e dão frutos doces como o mel, onde a sombra está cheia do canto dos pássaros e do riso das raparigas que vão buscar água. Contava tudo aquilo com a sua voz que cantava um pouco, como se se embalasse a si próprio para atenuar o seu sofrimento. Às vezes, os companheiros dele vinham sentar-se ao pé, partilhavam com Nour o pão e as tâmaras, ou então faziam chá com erva-chiba. Escutavam o monólogo do guerreiro cego e depois também falavam da sua terra, dos poços do Sul, Atar, Oujeft, Tamchakatt
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e da grande cidade de Oualata. Falavam uma língua estranha e suave como a das orações, e os rostos magros eram da cor do metal. Quando o Sol estava próximo do horizonte e o planalto deserto resplandecia de luz, ajoelhavam-se e diziam a sua oração com a testa na poeira. Nour ajudava o guerreiro cego a prosternar-se na direcção do Levante, depois deitava-se envolto no seu manto, e escutava o ruído de vozes dos homens, até adormecer.
Assim atravessaram os montes do Ouarkziz, seguindo as falhas e os leitos das torrentes secas. A caravana estendia-se por todo o planalto, de uma ponta à outra do horizonte. A grande nuvem de poeira encarnada subia todos os dias no céu azul, inclinando-se com o vento. Os rebanhos de cabras e de ovelhas, os camelos de carga caminhavam no meio dos homens, cegavam-nos de poeira. Longe, atrás deles, as mulheres doentes, as crianças abandonadas, os guerreiros feridos, caminhavam na dor da luz, de cabeça inclinada, pernas a fraquejarem, deixando por vezes no seu rasto algumas gotas de sangue.
Da primeira vez que Nour vira cair alguém, à beira da pista, sem um grito, tinha querido parar; mas os guerreiros azuis, e os que marchavam com ele, tinham-no empurrado para diante, sem nada dizer, porque não havia mais nada a fazer. Agora, Nour já não parava. Às vezes, havia a forma de um corpo, deitado na poeira, com os braços e as pernas dobrados como se dormisse. Era um velho, ou uma mulher, que a fadiga e a doença tinham deixado ali, à beira da pista, marcado atrás da cabeça como por uma martelada, com o corpo já ressequido. O vento que sopra lançaria punhados de areia sobre o corpo, sem que fosse preciso cavar a sepultura.
Nour pensava na velha que lhe tinha dado chá, no acampamento de Smara. Talvez ela também tivesse caído um dia, atingida pelo sol, e a areia do deserto a tivesse tapado. Mas não pensava muito tempo nela, porque sempre que o fazia era como a morte de uma pessoa, que apagava todas as recordações: como se a travessia do deserto tivesse que destruir tudo, queimar tudo na sua memória, fazer dele outro homem. A mão do guerreiro cego empurrava-o para diante quando a fadiga lhe tolhia as pernas e talvez que sem essa mão pousada no
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seu ombro ele também tivesse caído, ficando de braços e pernas dobrados, à beira da pista.
Havia sempre novas montanhas no horizonte, o planalto de pedras e de areia parecia infindável, como o mar. Todas as noites, o guerreiro cego dizia a Nour, quando ouvia os gritos de paragem:
- É aqui? Já chegámos? E depois dizia:
- Diz-me o que vês.
Mas Nour respondia simplesmente:
- Não, não é aqui. Aqui só há o deserto, temos de ir para mais longe.
Agora, o desespero apoderava-se dos homens. Mesmo os guerreiros do deserto, os homens azuis invisíveis de Ma el Ainine, estavam cansados e havia vergonha no seu olhar, como no dos homens que deixavam de crer.
Eles ficavam sentados formando pequenos grupos, com as espingardas encostadas aos braços, sem falar. Quando Nour ia ver o pai e a mãe para lhes pedir água, era o silêncio deles o que mais o assustava. Era como se a ameaça da morte tivesse atingido os homens e eles já não tivessem força para se amar.
A maior parte das pessoas da caravana, as mulheres, as crianças, estavam prostradas na terra, esperando que o Sol se extinguisse no horizonte. Já nem tinham forças para dizer a oração, apesar do apelo dos religiosos de Ma el Ainine que soava no planalto. Nour estendia-se no chão, com a cabeça pousada no seu fardo quase vazio, e contemplava o céu sem fundo que mudava de cor, escutando a voz do velho que cantarolava.
Por vezes tinha a impressão de que tudo aquilo era um sonho, um terrível, um interminável sonho que ele sonhava de olhos abertos e que o arrastava ao longo das rotas das estrelas, na terra lisa e dura como uma pedra polida. Então o sofrimento era uma lança cravada e ele avançava sem compreender o que o dilacerava. Era como se saísse de si mesmo, abandonando o seu corpo na terra calcinada, o seu corpo imóvel no deserto de pedras e de areia, semelhante a uma mancha, a um monte de trapos velhos atirados para o solo no meio de outros montes de trapos abandonados, e a sua alma aventurava-se no céu gelado, pelo meio das estrelas, percorrendo num abrir e fechar de olhos todo o espaço que nem toda
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a sua vida seria suficiente para reconhecer. Via então, como que surgindo de miragens, as cidades extraordinárias com palácios de pedra branca, as torres, as cúpulas, os grandes jardins inundados de água pura, as árvores carregadas de frutos, os canteiros de flores, as fontes onde se reuniam as raparigas soltando risos ligeiros. Ele via aquilo distintamente, deslizava na água fresca, bebia nas cascatas, provava cada fruto, respirava cada cheiro. Mas o que era mais extraordinário, era a música que escutava quando saía do seu corpo. Nunca tinha ouvido nada semelhante. Era uma voz de rapariga que cantava na língua chleuh, uma doce canção que tremulava no ar e que repetia sempre as mesmas palavras, assim:
- Um dia, oh, um dia, o corvo ficará branco, o mar há-de secar, alguém descobrirá o mel na flor do cacto, alguém fará uma cama com os ramos da acácia, oh, um dia, já não haverá veneno na boca da serpente, e as balas das espingardas já não produzirão a morte, pois será o dia em que deixarei o meu amor...
De onde vinha aquela voz, tão clara, tão doce? Nour sentia o seu espírito deslizar ainda para mais longe, para lá desta terra, para lá deste céu, para o país onde há nuvens negras carregadas de chuva, rios profundos e lagos onde a água nunca pára de correr.
- Um dia, oh, um dia, o vento não soprará sobre a terra, os grãos de areia serão doces como o açúcar, debaixo de cada pedra do caminho haverá uma nascente à minha espera, um dia, oh, um dia, as abelhas cantarão para mim, pois será o dia em que eu deixarei o meu amor...
É lá que ribombam os ruídos misteriosos da tempestade, é lá que reinam o frio, a morte.
- Um dia, oh, um dia, haverá o Sol da noite, a água da Lua deixará as suas poças na terra, o céu dará o ouro das estrelas, um dia, oh, um dia, verei a minha sombra dançar para mim, pois será o dia em que eu deixarei o meu amor...
É de lá que vem a nova ordem, aquela que expulsa os homens azuis do deserto, que faz irromper o medo em todo o lado.
- Um dia, oh, um dia, o Sol será negro, a terra há-de-se abrir até ao centro, o mar cobrirá a areia, um dia, oh, um dia, os meus olhos já não verão a luz, a minha
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boca já não poderá dizer o teu nome, o meu coração deixará de bater, pois será o dia em que eu deixarei o meu amor...
A voz desconhecida afastava-se a murmurar e Nour ouvia de novo a canção lenta e triste do guerreiro cego que falava sozinho, com o rosto voltado para o céu que não conseguia ver.
A caravana de Ma el Aínine chegou uma tarde à beira do Draa, do outro lado das montanhas. Lá, descendo para oeste, avistaram o fumo dos acampamentos das tropas de Larhdaf e de Saadbou. Quando os homens se voltaram a encontrar, houve um novo surto de esperança. O pai de Nour veio ao seu encontro e ajudou-o a transportar a carga.
- Onde estamos? É aqui? - perguntava o guerreiro cego.
Nour explicou-lhe que tinham feito a travessia do deserto e que já não estavam muito longe do objectivo.
Nessa noite houve como que uma festa. Pela primeira vez num longo período de tempo, ouviu-se o som das violas e dos tambores e o canto claro das flautas.
A noite era mais amena no vale, havia erva para os animais. Na companhia do pai e da mãe, Nour comeu o pão de milho e as tâmaras e o guerreiro cego recebeu também o seu quinhão. Falou com eles do caminho que tinham percorrido, da Saguiet el Hamra até ao túmulo de Sidi Mohammed el Quenti. Depois caminharam juntos, guiando o guerreiro cego através dos matagais, até ao leito seco do Draa.
Havia muitos homens e animais, pois aos homens e aos rebanhos da caravana do grande xeque tinham-se juntado os nómadas do Draa, os dos poços do Tassouf, os homens de Messeied, de Tcart, de El Gaba, de Sidi Brahim el Aattami, todos aqueles a quem a miséria e a ameaça da chegada dos Franceses tinham expulso das régios da costa e tinham sabido que o grande xeque Ma el Ainine ia dar início à guerra santa, para banir os estrangeiros das terras dos crentes.
Então já ninguém reparava nas falhas que a morte tinha provocado nas fileiras dos homens e das mulheres. Já ninguém via que quase todos os homens estavam
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feridos ou doentes, que as crianças morriam lentamente nos braços das mães, devoradas pela febre e pela desidratação.
Só se viam, por toda a parte, no leito negro do rio ressequido, as silhuetas que caminhavam devagar e aqueles rebanhos de cabras e de ovelhas, e aqueles homens montados nos seus camelos, nos seus cavalos, que se dirigiam não se sabe bem para onde, para o seu destino.
Durante dias subiram o imenso vale do Draa, pela planura de areia ressequida, dura como a terra cozida no forno, pisando o leito negro do rio onde o Sol no zénite queimava como uma labareda. Do outro lado do vale, os homens de Larhdaf e de Saadbou lançaram os cavalos ao longo de uma estreita torrente, e os homens, as mulheres e as crianças seguiram pela pista que eles tinham aberto. Agora eram os guerreiros de Ma el Ainine que iam em último lugar, montados nos seus camelos, e Nour caminhava com eles, guiando o guerreiro cego. A maioria dos soldados de Mal el Ainine ia a pé, escalando as ravinas com o auxílio das espingardas e das lanças.
Nessa mesma tarde, a caravana atingiu o poço profundo, aquele a que chamavam Ain Rhatra, não longe de Torkoz, ao pé das montanhas. Como sempre o fazia, Nour foi buscar água para o guerreiro cego e ambos fizeram as suas abluções e recitaram a sua oração. Depois, Nour instalou-se para passar a noite, não longe dos guerreiros do xeque. Ma el Ainine não tinha armado a sua tenda. Dormia ao relento, como os homens do deserto, enrolado simplesmente no seu manto branco, acocorado no seu tapete de sela. A noite caía depressa, porque estavam próximas as altas montanhas.
O frio fazia tremer os homens. Ao lado de Nour, o guerreiro cego já não cantava. Talvez não se atrevesse por causa da presença do xeque, ou então estaria cansado de mais para falar.
Quando Ma el Ainine tomou a refeição nocturna com os seus guerreiros, mandou que levassem um pouco de comida e de chá a Nour e ao seu companheiro. O chá sobretudo fez-lhes bem, e Nour pensava que nunca tinha bebido nada tão bom. Os alimentos e a água fresca do poço eram como uma luz no corpo deles, uma luz que
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lhes devolvia a força toda. Nour comia o pão olhando a silhueta sentada do velho, envolto na sua grande túnica branca.
De vez em quando, aproximavam-se pessoas do xeque pedindo-lhe a sua bênção. Ele recebia-os, mandava-os sentar ao seu lado, oferecia-lhes uma parte do seu pão, falava-lhes. Eles afastavam-se, depois de terem beijado a aba do manto. Eram homens nómadas do Draa, pastores andrajosos, ou mulheres azuis que levavam os filhos enrolados nos mantos. Queriam ver o xeque para obter um pouco de força, um pouco de esperança, para que lhes acalmasse as chagas do corpo.
Mais tarde, Nour acordou em sobressalto. Viu o guerreiro cego que estava debruçado para ele. A claridade das estrelas fazia brilhar vagamente o rosto cheio de sofrimento. Como Nour tivesse recuado, quase assustado, o homem disse-lhe em voz baixa:
- Achas que ele me vai devolver a vista? Eu poderei ver de novo?
- Não sei - disse Nour.
O guerreiro cego gemeu e voltou a cair no chão, com a cabeça na poeira.
Nour olhava à sua volta. Ao fundo do vale, junto das montanhas, não havia qualquer movimento, qualquer ruído. Os homens dormiam em todo o lado, enrolados nas suas mantas, para lutarem contra o frio. Sozinho, sentado no seu tapete de sela, como se a fadiga não existisse para ele, Ma el Ainine mantinha-se imóvel, de olhos fitos na paisagem nocturna.
Então Nour deitava-se de lado, com a cara encostada ao braço e contemplava demoradamente o velho que rezava, e era como se embarcasse mais uma vez num sonho interminável, um sonho maior do que ele, que o conduzia para um outro mundo.
Todos os dias, mal o Sol rompia, os homens punham-se de pé. Pegavam nas suas cargas sem proferirem uma palavra e as mulheres prendiam os filhos às costas. Os animais também se levantavam, pisavam o solo fazendo erguer a primeira poeira, pois eram essas as ordens do velho que os conduzia através do calor do Sol e da embriaguez do vento.
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Prosseguiam a sua marcha para o Norte, através das montanhas torturadas do Taissa, ao longo dos desfiladeiros escaldantes como os flancos de um vulcão.
Às vezes, à tarde, quando chegavam à beira do poço, homens e mulheres azuis, saídos do deserto, acorriam com oferendas de tâmaras, de leite coalhado, de pão de milho. O grande xeque dava-lhes a sua bênção, pois eles tinham trazido os filhos doentes da barriga ou dos olhos. Ma el Ainine ungia-os com um pouco de terra misturada à sua saliva, pousava-lhes as mãos na testa; depois as mulheres afastavam-se, regressavam ao deserto vermelho, tal como tinham vindo. Por vezes, também vinham homens com as suas espingardas e as suas lanças, para se juntarem às tropas. Eram camponeses rudes de cara, com cabelos loiros ou ruivos e estranhos olhos verdes.
Do outro lado da montanha a caravana tinha chegado ao palmar de Taidalt, no local onde começam o rio Noun e a pista de Goulimine. Nour julgava que poderiam descansar e beber até à saciedade, mas o palmar era pequeno e estava roído pela seca e pelo vento do deserto. As grandes dunas pardas tinham devorado o oásis e a água era cor de lama. Não havia quase ninguém no palmar, apenas alguns velhos esgotados pela fome. Então, a tropa de Ma el Ainine largou no dia seguinte, ao longo do rio seco, em direcção a Goulimine.
Antes de chegar à cidade, as tropas do filho de Ma el Ainine tomaram a dianteira. Regressaram dois dias depois, trazendo as más notícias: os soldados dos cristãos tinham desembarcado em Sidi Ifni e também avançavam para o Norte. Apesar disso, Larhdaf teimava em ir a Goulimine, para se bater com os Franceses e os Espanhóis, mas o xeque apontou-lhe para os homens que acampavam na planície e perguntou-lhe simplesmente: "São os teus soldados?" Então Larhdaf baixou a cabeça e o grande xeque deu ordem de partida, ao largo de Goulimine, para o palmar dos Ait Boukha, e depois pela serra, até à pista de Bou Izakarn, a leste.
Apesar da fadiga, os homens e as mulheres caminharam durante semanas através das montanhas vermelhas, ao longo das torrentes sem água. Os homens azuis, as mulheres, os pastores com os seus rebanhos, os camelos de carga, os cavaleiros, todos tinham que se esgueirar entre os blocos de pedra, descobrir uma passagem pelos
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montões de cascalhes. Assim chegaram à cidade santa de Sidi Ahmed ou Moussa, o padroeiro dos acrobatas e dos funâmbulos. A caravana espalhou-se por todo o vale árido. Só o xeque e os seus filhos, assim como os da Goudfia, ficaram no recinto do túmulo, enquanto os homens da nobreza lhes vinham prestar vassalagem.
Nessa tarde, houve uma oração comum e já o céu se enchia de estrelas quando homens e mulheres se reuniram em torno do túmulo do santo. Junto das fogueiras, o silêncio só era interrompido pelo crepitar dos ramos secos, e Nour via a silhueta frágil do xeque acocorado no chão, entretido a recitar em voz baixa a fórmula do dzikr. Mas nessa noite era uma oração sem gritos e sem música, porque a morte estava demasiado próxima e a fadiga tinha estrangulado as gargantas. Havia só a voz muito suave, leve como o fumo, que cantarolava no silêncio. Nour olhava à volta e via os milhares de homens vestidos com os seus mantos de lã, sentados no chão, iluminados de longe em longe pelas fogueiras. Todos eles se conservavam imóveis e silenciosos. Era a oração mais intensa, mais dolorosa que ele jamais ouvira. Ninguém se mexia, excepto, de vez em quando, alguma mulher que amamentava o filho para o adormecer, ou um velho que tossia. No vale de altos muros não havia um sopro de ar e as fogueiras ardiam muito direitas e com intensidade. A noite estava bela e gelada, cheia de estrelas. Depois, a claridade da Lua surgia no horizonte, por cima das falésias negras, e o disco de prata, absolutamente redondo, subia hora a hora para o zénite.
O xeque rezou toda a noite, enquanto as fogueiras se extinguiam, umas a seguir às outras. Os homens, moídos de cansaço, deitavam-se onde estavam, para dormir. Nour só se tinha afastado duas ou três vezes, para ir urinar atrás das moitas, no fundo do vale. Não conseguia dormir, como se a febre lhe devorasse o corpo. Junto dele, o pai, a mãe e as irmãs dormitavam, envoltos nos seus mantos, e o guerreiro cego dormia também com a cabeça em cima da terra fria.
Nour continuava a observar o velho sentado junto do túmulo branco, cantando suavemente, no silêncio da noite, como se embalasse uma criança.
Ao romper do dia, a caravana pôs-se de novo em movimento, acompanhada dos Ait ou Moussa e dos
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montanheses vindos de Hirth, de Tafermit, os Ida Gougmar, os Ifrane, os Tirhmi, todos aqueles que queriam seguir Ma el Ainine na sua guerra pelo reino de Deus.
Muitos dias decorreram ainda através das montanhas desertas, ao longo das ravinas e das torrentes secas. Todos os dias recomeçava a queimadura do sol, a sede, o encandeamento do céu branco de mais, as rochas demasiado vermelhas, a poeira que sufocava os animais e os homens. Nour já não se recordava do que era a terra quando se estava imóvel. Já não se lembrava dos poços, quando as mulheres vão buscar água com as suas bilhas e pairam como os pássaros. Já não se lembrava da canção dos pastores que deixam tresmalhar os rebanhos, nem das brincadeiras das crianças na areia das dunas. Era como se tivesse andado desde sempre, avistando continuamente colinas idênticas, ravinas, rochas encarnadas. Havia momentos em que só desejava sentar-se numa pedra, qualquer pedra à beira da pista, e ver partir a caravana, ver passar as silhuetas negras dos homens e dos camelos no ar tremente, como se tudo aquilo fosse uma miragem que se estivesse a dissolver. Mas a mão do guerreiro cego não lhe largava o ombro, empurrava-o para diante, obrigava-o a andar.
Quando chegavam à vista de uma aldeia, paravam. O nome da aldeia corria de homem em homem, sussurrava em todas as bocas: "Tirhmi, Anezi, Assaka, Asserssif..." Seguiam agora ao lado de um verdadeiro rio, onde corria um fio de água. As margens eram povoadas de acácias brancas e de silvas. Depois caminhavam por uma imensa planície de areia, branca como o sal, onde a luz do Sol cegava as pessoas.
Um dia, enquanto a caravana se instalava para passar a noite, chegou do Norte um grupo de guerreiros, acompanhando um homem a cavalo que envergava uma grande túnica branca.
Era o grande xeque Lahoussine que vinha trazer o concurso dos seus soldados e distribuir comida pelos viajantes. Então, os homens compreenderam que a viagem estava a chegar ao seu termo, pois iam entrar no vale do grande rio Souss, onde haveria água e pastagens para os animais, e terra para todos os homens.
Quando a nova se espalhou pelos viajantes, Nour sentiu mais uma vez a impressão do vazio e da morte,
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como antes de partir de Smara. As pessoas iam e vinham a correr pela poeira, lançavam gritos, interpelavam-se: "Chegámos! Já chegámos!" O guerreiro cego apertava o ombro de Nour com força e também gritava: "Já chegámos!"
Mas só dois dias depois é que atingiram o vale do grande rio, diante da cidade de Taroudant. Durante horas, subiram o curso do rio, caminhando pelos estreitos fios de água que deslizavam nos seixos encarnados. Apesar da água do rio, as margens eram secas e despidas, e a terra era dura, cozida pelo sol e pelo vento.
Nour avançava pelos calhaus do rio, arrastando o guerreiro cego. Apesar do calor do Sol, a água estava gelada. Alguns arbustos enfezados tinham crescido no meio do rio, nos ilhéus de pedras. Também havia grandes troncos brancos trazidos da montanha pelas cheias.
Nour já tinha esquecido a sensação de morte. Sentia-se feliz porque também pensava que era o fim da viagem, que era ali a terra que Ma el Ainine lhes tinha prometido, antes de deixarem Smara.
O ar quente estava carregado de cheiros, pois estava-se no começo da Primavera. Nour respirava aquele cheiro pela primeira vez. Por cima dos cursos de água, dançavam insectos, vespas, moscas ligeiras. Havia tanto tempo que Nour não via animais que se sentia feliz por ver aquelas vespas e aquelas moscas. Mesmo quando um moscardo o picou de repente através da roupa, não se zangou e contentou-se em enxotá-lo com a mão.
Do outro lado do rio Souss, encostada à montanha vermelha, havia aquela grande cidade de casas de lama, que se erguia como uma visão celeste. Irreal, como que suspensa na luz do Sol, a cidade parecia aguardar os homens do deserto, para lhes oferecer um refúgio. Nour nunca tinha visto uma cidade tão bela. As altas paredes de pedra encarnada e de lama, sem janelas, resplandeciam na luz do poente. Um halo de poeira flutuava por cima da cidade como um pólen, envolvia-a na sua nuvem mágica.
Os viajantes detiveram-se no vale, um pouco abaixo da cidade, e contemplaram-na demoradamente, com amor e receio ao mesmo tempo. Agora, pela primeira vez desde o início da sua viagem, é que sentiam como estavam extenuados, com a roupa em farrapos, os pés
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enrolados em trapos sangrentos, os lábios e as pálpebras queimados pelo sol do deserto. Estavam sentados nas pedras do rio e alguns tinham erguido as suas tendas ou então tinham construído abrigos de ramos e de folhas. Como se também ele receasse a multidão, Ma el Ainine tinha-se detido, com os seus filhos e os seus guerreiros, na margem do rio.
Agora erguiam as grandes tendas dos chefes de tribo, descarregavam os camelos de carga. A noite desceu sobre as muralhas da cidade, o céu apagou-se e a terra encarnada tornou-se escura. Só os altos cumes do Atlas, o monte Tichka, o monte Tinergouet, cobertos de gelo, luziam ainda ao sol quando o vale já estava mergulhado na noite. Ouvia-se o apelo para a oração da noite, na cidade; uma voz que soava estranhamente, como um queixume. Nas pedras do rio, os viajantes também se prosternavam e rezavam, sem levantar a voz, com o ruído suave da água que corria.
Foi de manhã que Nour ficou deslumbrado. Tinha dormido de um só sono, sem sentir os calhaus que lhe magoavam as costas, nem o frio e a humidade do rio. Quando despertou, viu a bruma que descia lentamente pelo vale abaixo, como se a luz do dia a empurrasse à sua frente. No leito do rio, no meio dos homens adormecidos, as mulheres já se moviam para ir buscar água ou para apanhar alguns gravetos. As crianças procuravam camarões debaixo das pedras achatadas.
Mas foi ao olhar a cidade que Nour ficou maravilhado. No ar puro da alvorada, no sopé das montanhas, a cidade de Taroudant erguia a sua fortaleza. Os muros de pedra encarnada, os terraços, as torres, eram nítidos e precisos, pareciam ter sido esculpidos na própria rocha da montanha. A bruma branca passava por instantes entre o leito do rio e a cidade, quase a escondendo, como se a cidadela flutuasse por cima do vale, espécie de navio de terra e de pedra que vogava lentamente diante das ilhas das montanhas coroadas de neve.
Nour contemplava aquilo sem conseguir desviar os olhos. Fascinavam-no as altas muralhas sem janelas. Havia algo de misterioso e de ameaçador naqueles muros, como se não vivessem lá homens, mas sim espíritos
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sobrenaturais. Lentamente, a luz ia surgindo no céu, rosada e depois cor de âmbar, assim, até o azul violento invadir tudo. A luz crepitava nas paredes de lama, nos terraços, nos jardins de laranjeiras e nas altas palmeiras. Mais em baixo, os terrenos áridos, atravessados pelas acéquias, eram de um encarnado quase violáceo.
Imóvel na praia, rodeado pelos homens do deserto e pelo silêncio, Nour contemplava a cidade maravilhosa que despertava. Fumos ligeiros subiam no ar, e ouviam-se, quase irreais, os ruídos familiares da vida, as vozes, os gritos das crianças, o canto de uma rapariga.
Para os homens do deserto, imóveis no leito do rio, aquele fumo, aqueles ruídos pareciam imateriais, como se estivessem a sonhar aquela cidade fortificada no flanco da montanha, aqueles campos, aquelas palmeiras, aquelas laranjeiras.
Agora, o Sol já ia alto no céu, queimando as pedras do leito do rio. Um cheiro estranho chegava ao acampamento dos nómadas, e Nour tinha dificuldade em reconhecê-lo. Não era o cheiro amargo e frio dos dias de fuga e de medo, aquele cheiro que ele respirava há tanto tempo através do deserto. Era um cheiro de almíscar e de azeite, forte, inebriante, o cheiro dos braseiros onde arde o carvão de cedro, o cheiro do coentro, da pimenta, da cebola.
Nour respirava aquele cheiro sem se atrever a mexer-se com medo de o perder, e também o guerreiro cego reconhecia esse deleite. Todos os homens estavam imóveis, contemplando com os olhos dilatados, que não pestanejavam, num esforço que os fazia sofrer, a alta muralha vermelha da cidade. Olhavam para a cidade, tão próxima e ao mesmo tempo tão distante, aquela cidade que talvez fosse abrir as suas portas, e o coração batia-lhes mais depressa. À volta deles, as praias de seixos do rio já tremulavam ao calor do dia. Contemplavam sem se mover a cidade mágica. Depois, à medida que o Sol continuava a subir no céu azul, iam tapando a cabeça, uns após outros, com a aba do manto.
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A VIDA NA TERRA DOS ESCRAVOS
Encostada à amurada, Lalla observa a estreita faixa de terra que aparece no horizonte, como uma ilha. Apesar da fadiga, olha a terra com todas as suas forças, tenta distinguir as casas, as estradas, talvez até as silhuetas das pessoas. Ao seu lado, os viajantes estão amontoados ao pé da amurada. Gritam, fazem gestos, falam com veemência, interpelam-se em todas as línguas de um lado ao outro do convés da ré. Há tanto tempo que aguardam este momento! Há muitas crianças e adolescentes. Trazem, presa na roupa, a mesma etiqueta com o seu nome, a data de nascimento, e o nome e a morada da pessoa que os espera em Marselha. Na parte de baixo da etiqueta há uma assinatura, um carimbo e uma pequena cruz vermelha dentro de um círculo negro. Lalla não gosta da pequena cruz vermelha; tem a impressão de que lhe queima a pele através da blusa, que lhe vai marcando o peito a pouco e pouco.
O vento frio sopra às rajadas no convés e as ondas pesadas fazem vibrar a chapa do barco. Lalla sente náuseas, porque, durante a noite, em vez de dormirem, as crianças fizeram circular os tubos de leite condensado que os comissários da Cruz Vermelha tinham distribuído antes do embarque. E depois, como não há cadeiras que cheguem no convés, Lalla teve de dormir no chão, no calor enjoativo do porão, com o cheiro do mazute, da massa lubrificante, sacudida pela trepidação da máquina. Agora as primeiras gaivotas voam por cima da popa, gritam e piam, como se estivessem furiosas por ver chegar o vapor. Não se parecem nada com príncipes do mar; são de um cinzento sujo, com um bico amarelo e olhos que brilham com dureza.
Lalla não assistiu à alvorada. Estava a dormir, morta de fadiga, deitada em cima da lona do porão, com a cabeça apoiada a um bocado de cartão. Quando acordou, já toda a gente estava no tombadilho com os olhos cravados na faixa de terra. No porão já só restava uma jovem muito pálida, que segurava nos braços um minúsculo bebé. O bebé estava doente, tinha vomitado no chão, gemia baixinho. Quando Lalla se aproximou para perguntar o que ele tinha, a jovem olhou-a sem responder, com olhos vazios.
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Agora a terra já está muito próxima, parece flutuar num mar verde cheio de imundícies. A chuva começa a cair no tombadilho, mas ninguém se vai abrigar. A água fria escorre pelos cabelos encaracolados das crianças, forma gotas nas pontas dos narizes. Vestem todas pobremente, com camisinhas leves, calças de pano azul ou saias cinzentas, às vezes com um grande vestido tradicional de burel. Os pés nus estão calçados com sapatos de cabedal preto grandes de mais. Os homens adultos têm velhos casacos usados, calças demasiado curtas e barretes de esqui de lã. Lalla observa as crianças, as mulheres, os homens que a rodeiam; têm um ar triste e medroso, têm rostos amarelados inchados pela fadiga, as pernas e os braços arrepiados pela pele de galinha. O cheiro do mar mistura-se ao da fadiga e da inquietação e, ao longe, como uma nódoa no mar verde, também a terra parece triste e cansada. O céu está baixo, as nuvens cobrem o alto dos montes; por muito que Lalla olhe, não consegue ver a cidade branca de que falava Naman, o pescador, nem os palácios, nem as torres das igrejas. Agora, só se avistam cais infindáveis, cor de pedra e de cimento, cais que se abrem sobre outros cais. O-harco carregado de viajantes desliza lentamente pela água negra das docas. Nos cais, há alguns homens que vêem passar o barco com indiferença. Mas as crianças berram desalmadamente, agitam os braços, sem que ninguém lhes responda. A chuva continua a cair, fria e fina. Lalla olha a água da doca, água negra e gordurosa onde flutuam restos que nem mesmo as gaivotas querem.
Talvez não haja cidade? Lalla contempla os cais molhados, as silhuetas dos cargueiros parados, os guindastes e, mais longe ainda, os grandes prédios brancos que formam uma parede no fundo do porto. A pouco e pouco, a alegria das crianças do barco da Cruz Vermelha Internacional começa a diminuir. Ainda se ouvem, de vez em quando, alguns gritos, mas são de curta duração. Os comissários e as encarregadas já começam a movimentar-se no tombadilho, gritam ordens que ninguém compreende. Conseguem reunir as crianças, mas a voz deles perde-se no ruído do motor e no sussurro da multidão.
- ... Makel...
- ... Séfar...
- ... Ko-di-ki... -... Hamal... -... Lagor...
Aquilo não quer dizer nada e ninguém responde. Depois o altifalante põe-se a vociferar, como se ladrasse, por cima da cabeça dos passageiros, e há uma espécie de pânico. Uns correm para a proa, outros tentam subir as escadas para o tombadilho superior, onde são repelidos pelos oficiais. Finalmente, todos se acalmam porque o barco acaba de acostar e parou as máquinas. No cais, há uma feia barraca de cimento com as janelas
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iluminadas. As crianças, as mulheres e os homens debruçam-se da amurada na esperança de avistarem um rosto familiar entre as pessoas que se vêem a andar lá em baixo, do outro lado da barraca, pouco maiores do que insectos.
Começa o desembarque. Isto significa que durante largas horas os passageiros ficam no tombadilho do barco da Cruz Vermelha Internacional aguardando um sinal qualquer. À medida que o tempo passa, o enervamento também cresce no seio das crianças amontoadas no tombadilho. Os mais novos põem-se a chorar, emitindo um gemido contínuo que não concorre para melhorar a situação. As mulheres gritam, ou então são os homens que o fazem. Lalla sentou-se em cima de um monte de cordas, com a mala ao seu lado, e espera olhando para as gaivotas cinzentas que voam no céu cinzento.
Chega finalmente a altura de descer para terra. Os passageiros estão tão cansados de esperar que sentem dificuldade em se pôr em movimento. Lalla segue a coorte até à grande barraca cinzenta. Aí, há três polícias e intérpretes que Jazem perguntas aos que chegam. com as crianças, tudo se passa mais depressa, porque o polícia se contenta em ler o que está escrito nas etiquetas e em copiá-lo para as suas fichas. Quando termina, o homem olha para Lalla e pergunta-lhe:
- Tens intenção de trabalhar em França?
- Tenho - diz Lalla.
- Que género de trabalho?
- Não sei.
- Empregada doméstica. - O polícia diz isto e escreve-o na folha. Lalla pega na mala e vai esperar com os outros, na grande sala de paredes cinzentas onde brilha a luz eléctrica. Não há nada para se sentarem, e apesar do frio da chuva que cai lá fora, faz um calor sufocante na sala. As crianças mais novas adormeceram nos braços das mães, ou então no chão, deitadas em cima de roupa. São as crianças mais velhas que se queixam agora. Lalla tem sede, sente a garganta seca, os olhos ardem-lhe de febre. Está demasiado cansada para pensar seja no que for. Espera, encostada à parede, ora apoiada numa perna, ora na outra. Do outro lado da sala, diante da barreira dos polícias, está a mulher muito pálida de olhar vazio, que segura o bebé minúsculo nos seus braços. Está de pé diante da secretária do inspector, de olhar esgazeado, sem dizer nada. O polícia fala-lhe demoradamente, mostra os papéis à intérprete da Cruz Vermelha Internacional. Há qualquer coisa que não bate certo. O inspector faz perguntas, que o intérprete repete à mulher, mas ela olha-os com ar de quem não compreende. Eles não a querem deixar passar. Lalla observa a mulher tão pálida que segura o bebé. Ela aperta-o com tanta força nos seus braços que ele acaba por acordar e põe-se a gritar, até que a mãe, num gesto calmo, solta o seio e lhe dá de mamar. O polícia mostra-se embaraçado.
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Volta-se, olha à sua volta como se procurasse alguma coisa. O seu olhar e o de Lalla cruzam-se, faz-lhe sinal para que se aproxime.
- Tu falas a língua dela?
- Não sei - diz Lalla.
Lalla diz algumas palavras em chleuh, a mulher olha-a por instantes e depois responde-lhe.
- Diz-lhe que os papéis dela não estão em regra, falta a autorização para a criança.
Lalla tenta traduzir a frase. Julga que a mulher não compreendeu, mas, de súbito, esta deixa-se cair e põe-se a chorar. O polícia diz ainda algumas palavras e o intérprete da Cruz Vermelha Internacional ajuda a mulher a levantar-se e leva-a para o fundo da sala, onde há duas ou três cadeiras forradas de napa.
Lalla está triste, porque compreende que a mulher terá de tomar o barco em sentido inverso, com o seu bebé doente. Mas está tão cansada que nem consegue pensar muito naquilo e volta a encostar-se à parede, ao pé da mala. No alto da parede, do outro lado da sala, há um relógio com os números escritos em palas. De minuto a minuto, gira uma pala com um estalo. As pessoas agora não falam. Esperam sentadas no chão, ou encostadas à parede, de olhar fixo, rosto tenso, como se a cada estalo a porta do fundo se fosse abrir para os deixar sair.
Finalmente, depois de uma espera tão longa que já ninguém tinha esperança, os homens da Cruz Vermelha Internacional atravessam a grande sala. Abrem a porta do fundo e recomeçam a chamar pelas crianças. O rumor das vozes eleva-se de novo, as pessoas acotovelam-se ao pé da saída. Lalla, com a mala de cartão na mão, estica o pescoço para ver por cima dos outros, espera que chamem o seu nome com tanta impaciência que as pernas lhe desatam a tremer. Quando o homem da Cruz Vermelha diz o seu nome, parece ter dado um latido e Lalla nem compreende. Então ele repete a gritar:
- Hawa! Hawa ben Hawa!
Lalla corre com a mala a baloiçar na ponta do braço e atravessa a multidão. Pára diante da porta enquanto o homem verifica a sua etiqueta, depois sai para fora de um salto, como se a empurrassem pelas costas. Há tanta claridade no exterior, depois daquelas horas passadas na sala cinzenta, que Lalla cambaleia tomada de vertigens. Avança entre as filas de mulheres e de homens, sem os ver, sempre a direito, ao acaso, até que sente que alguém a agarra pelo braço, a aperta, a abraça. Aamma arrasta-a para a saída dos cais, para a cidade.
Aamma mora sozinha num apartamento da cidade velha, ao pé do porto, no último andar de uma casa em ruínas. É só uma divisão com um divã, um quartinho escuro com uma cama de campanha e uma cozinha. As
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janelas do apartamento dão para um pátio, mas vê-se bem o céu por cima dos telhados de telhas. De manhã, até ao meio-dia, há mesmo um pouco de sol que entra pelas duas janelas do quarto onde há o divã. Aamma diz a Lalla que teve muita sorte em descobrir aquele apartamento e também muita sorte em arranjar aquele trabalho de cozinheira na cantina do Hospital. Quando chegou a Marselha, há vários meses, foi viver primeiro para um quarto mobilado nos arredores, onde eram cinco mulheres no mesmo quarto, com a polícia que vinha todas as manhãs e as zaragatas na rua. Até tinha havido dois homens que tinham brigado à facada e Aamma teve de fugir largando uma mala, com medo de ser levada pela polícia e depois expulsa.
Aamma mostra-se muito satisfeita por tornar a ver Lalla, depois deste tempo todo. Não lhe faz perguntas a respeito do que se passou, quando fugiu para o deserto com o Hartani e quando a levaram para o hospital da cidade, por estar a morrer de sede e de febre. O Hartani, esse, continuou o seu caminho solitário, para o Sul, para as caravanas, porque era isso o que ele devia fazer desde sempre. Aamma envelheceu muito em poucos meses. Tem um rosto magro e cansado, uma tez cinzenta e grandes olheiras roxas. À tarde, quando regressa do trabalho, enquanto come bolachas e bebe chá de hortelã-pimenta, conta a sua viagem através de Espanha, com outras mulheres e outros homens que iam procurar trabalho. Durante dias andaram pelas estradas, atravessaram cidades, serras e rios sem conta. E um dia o condutor do carro mostrou uma cidade onde havia muitas casas de tijolo, todas iguais, com telhados pretos. O homem disse, pronto, chegámos. Aamma desceu com os outros e, como toda a viagem tinha sido paga com antecedência, pegaram nas coisas deles e começaram a andar pelas ruas da cidade. Mas quando Aamma mostrou o sobrescrito onde figurava o nome e a morada do irmão de Naman, as pessoas puseram-se a rir, e disseram-lhe que não estava em Marselha, mas sim em Paris. Então, teve de tomar o comboio e viajar ainda toda a noite até chegar.
Quando Lalla ouve esta história, farta-se de rir, porque imagina os passageiros do carro a andarem pelas ruas de Paris julgando que estão em Marselha.
Esta cidade é realmente muito grande. Lalla nunca tinha imaginado que pudesse haver tanta gente vivendo no mesmo sítio. Desde que chegou, passa os dias a andar pela cidade, de sul para norte, e de leste para oeste. Não conhece os nomes das ruas nem sabe para onde vai. Tanto segue pelos cais, olhando a silhueta dos navios de carga, como sobe as grandes avenidas, até ao centro da cidade, ou então enfia pelo dédalo das ruelas da cidade velha, sobe as escadas, vai de largo em largo, de igreja em igreja, até à grande esplanada de onde se avista o castelo por cima do mar. Ou então vai sentar-se nos bancos dos jardins, olha os pombos a saltitar pelas áleas poeirentas. Há tantas ruas, tantas lojas, tantas casas, janelas,
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automóveis; aquilo até faz andar a cabeça à roda, e o barulho e o cheiro a gasolina queimada enjoam e causam dor de cabeça. Lalla não fala às pessoas. Às vezes senta-se nos degraus das igrejas, bem escondida no seu casaco de lã castanha, e vê passar as pessoas. Há homens que a olham e que depois param à esquina da rua a fingir que fumam enquanto a espreitam. Mas Lalla sabe desaparecer muito depressa, aprendeu aquilo com o Hartani; atravessa duas ou três ruas, uma loja, esgueira-se por entre os carros estacionados e ninguém a consegue seguir.
Aamma gostaria que ela trabalhasse consigo no Hospital, mas Lalla ainda é muito nova, tem de atingir a maioridade. E depois é difícil obter trabalho.
Alguns dias depois da chegada, foi visitar o irmão do velho Naman, que se chama Asaph, mas as pessoas daqui tratam-no por Joseph. Ele tem uma mercearia na Rua dos Chapeliers, não muito longe da gendarmaria. Ele ficou com um ar contente ao ver Lalla, beijou-a, falando-lhe do irmão, mas Lalla desconfiou logo dele. Não se parece nada com Naman. É baixo, quase careca, com uns olhos cinzento-esverdeados muito antipáticos, salientes, e um sorriso que não promete nada de bom. Quando soube que Lalla procurava trabalho, ficou com os olhos a brilhar e pôs-se todo nervoso. Disse a Lalla que andava precisamente à procura de uma rapariga para o ajudar na mercearia, para fazer as arrumações e a limpeza e talvez até para estar à caixa. Mas enquanto dizia aquilo, estava sempre a olhar para a barriga e para os seios de Lalla, com aqueles horríveis olhos húmidos, e então ela disse-lhe que voltaria no dia seguinte e foi-se logo embora. Como não voltou, foi ele que apareceu uma noite em casa de Aamma. Mas Lalla saiu logo assim que o viu e foi dar uma grande volta pelas ruelas da cidade velha, fazendo-se tão invisível como uma sombra, até ter a certeza de que o merceeiro já tinha voltado para casa.
É uma terra esquisita, esta cidade, com toda esta gente, porque ninguém repara em nós se não nos mostrarmos. Lalla aprendeu a deslizar silenciosamente ao longo das paredes, pelas escadas. Conhece todos os lugares de onde se pode ver sem ser visto, os esconderijos atrás das árvores, nos grandes parques de estacionamento pejados de carros, nos cantos das portas, nos terrenos vagos. Mesmo no meio das avenidas muito direitas onde há um fluxo contínuo de homens e de automóveis que avançam, que descem, Lalla sabe que pode tornar-se invisível. Ao princípio, ainda estava toda marcada pelo sol escaldante do deserto, e os seus cabelos longos, negros e encaracolados estavam todos cheios de centelhas de sol. Então as pessoas olhavam-na com espanto, como se viesse de outro planeta. Mas, agora, os meses passaram e Lalla transformou-se. Cortou o cabelo curto e ele tornou-e baço, quase grisalho. Na sombra das ruelas, no frio húmido do apartamento de Aamma, a pele de Lalla também perdeu o brilho, tornou-se pálida e cinzenta. E depois há este casaco castanho que ela
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encontrou num adelo judeu, ao pé da Catedral. Chega-lhe quase até aos tornozelos, tem umas mangas muito compridas e uns ombros que descaem, e sobretudo é feito de uma espécie de tapete de lã, gasto e lustroso, cor de muralha, cor de papel velho; quando Lalla veste o seu casaco, tem de facto a sensação de se tornar invisível.
Agora ela já aprendeu os nomes das ruas, só de ouvir falar as pessoas. São nomes estranhos, tão estranhos que às vezes recita-os em voz baixa, enquanto anda por entre as casas:
La Major La Tourette Place de Lenche Rue du Petit-Puits Place Vivaux Place Sidi-Carnot La Tarasque Impasse dês Muettes Rue du Cheval Cours Belsunce
Há tantas ruas, tantos nomes! Lalla sai todos os dias, antes de a tia acordar, mete um velho pedaço de pão no bolso do seu casaco castanho, e começa a andar, a andar, primeiro fazendo círculos em redor do Panier, até chegar ao mar, pela Rua de la Prison, com o sol que ilumina as paredes da Câmara Municipal. Senta-se um momento, para ver passar os automóveis, mas não se demora muito para evitar que os polícias lhe venham perguntar o que faz ali.
Em seguida continua para norte, sobe as grandes avenidas ruidosas, a Canebière, o Boulevard Dugommier, o Boulevard d Athènes. Há pessoas de todos os países do mundo, que falam toda a espécie de línguas; pessoas muito pretas, de olhos estreitos, vestidas com albornozes brancos e com babuchas de plástico. Há pessoas do Norte, com cabelos e olhos claros, soldados, marinheiros, depois também homens de negócios corpulentos que andam com pressa, levando umas estranhas pastas pretas.
Lalla também gosta de se sentar aí, no limiar de uma porta, para observar todas aquelas pessoas que vão e vêm, que andam, que correm. Quando há muita gente, ninguém repara nela. Talvez julguem que ela é como eles, que está à espera de alguém, de alguma coisa, ou talvez a tomem por um pedinte.
Nos bairros onde há gente, há muitos pobres e são esses sobretudo que Lalla observa. Vê mulheres andrajosas, muito pálidas apesar do sol, que seguram pela mão crianças muito pequenas. Vê homens velhos, vestidos com grandes sobretudos todos remendados, bêbados de olhar turvo, vadios, estrangeiros que têm fome, que levam malas de cartão e sacos de
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compras vazios. Vê crianças sozinhas, de caras sujas, cabelos desgrenhados, com roupas grandes de mais para os corpos magros; andam depressa como se fossem a algum lado e têm um olhar fugidio e feio como o dos cães perdidos. Do seu esconderijo, atrás dos automóveis parados, ou então no escuro de uma porta, Lalla observa toda aquela gente que tem um ar desorientado, que anda como se estivesse meio a dormir. Os seus olhos brilham estranhamente enquanto olha para eles e, nesse instante, talvez incida neles um pouco da grande luz do deserto, mas mal se apercebem disso, sem saber de onde aquilo vem. Talvez eles sintam um arrepio fugitivo, mas afastam-se rapidamente e logo se perdem na multidão desconhecida.
Em certos dias ela vai para muito longe, caminha tanto tempo pelas ruas que fica com dores nas pernas e tem de se sentar na borda do passeio para descansar. Vai para leste, ao longo da grande avenida ladeada de árvores, por onde rodam muitos automóveis e camiões, embrenhando-se depois por montes e vales. São bairros onde há muitos terrenos vagos, prédios do tamanho de falésias, todos brancos, com milhares de janelas idênticas; mais adiante, há vivendas rodeadas de loureiros e de laranjeiras, com um cão feroz que corre ao longo do gradeamento a ladrar com toda a força. Também há muitos gatos vadios, magros, eriçados, que vivem no cimo dos muros e debaixo dos carros parados.
Lalla também anda ao acaso pelas estradas. Atravessa os bairros distantes, onde serpenteiam canais cheios de mosquitos, entra no cemitério do tamanho de uma cidade, com filas de pedras cinzentas e de cruzes enferrujadas. Sobe até ao alto das colinas, tão longe que mal se vê o mar, como uma mancha azul suja entre os cubos dos prédios. Há uma bruma estranha que flutua por cima da cidade, uma grande nuvem parda, rosa e amarela onde a luz enfraquece. O Sol já desce a ocidente e Lalla sente a fadiga que lhe invade o corpo, o sono que se apodera dela. Olha ao longe a cidade que cintila, escuta o seu ruído de motor, os comboios que passam, que entram nos buracos negros dos túneis. Não tem medo, mas, mesmo assim, há qualquer coisa que gira dentro dela, como uma vertigem, uma rajada de vento. Talvez seja o chergui, o vento do deserto que chega até aqui, que atravessou o mar todo, que saltou as montanhas, as cidades, as estradas, e que chega? É difícil saber. Há aqui tantas forças, tantos ruídos, tantos movimentos, e o vento talvez se tenha perdido nas ruas, nas escadas, nas esplanadas.
Lalla olha um avião que sobe lentamente no céu pálido, fazendo um ruído de trovão. Vira por cima da cidade, passa diante do Sol, que apaga por uma fracção de segundo, e afasta-se para o mar, tornando-se cada vez mais pequeno. Lalla olha-o com toda a força, até se tornar apenas um ponto imperceptível. Talvez vá voar por cima do deserto, lá longe, por cima das extensões de areia e de pedras, lá onde anda o Hartani?
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Então Lalla também se vai embora. com as pernas um bocado moles, torna a descer para a cidade.
Também há uma coisa que Lalla gosta muito de fazer: vai sentar-se nos degraus da grande escadaria defronte da estação de caminho-de-ferro e observa os viajantes que sobem e descem. Há os que chegam todos esbaforidos, com olhos cansados, todos despenteados, e que descem as escadas a cambalear na luz. Há os que se vão embora, que se apressam, porque têm medo de perder o comboio; sobem os degraus a dois e dois, com as malas e os sacos a bater-lhes nas pernas, e não desviam o olhar da entrada da gare. Tropeçam nos últimos degraus, interpelam-se com medo de se perderem.
Lalla gosta bastante de ficar ao pé da estação. Ali, é como se a grande cidade não estivesse ainda completamente acabada, como se houvesse ainda aquele grande buraco por onde as pessoas continuavam a chegar e a partir. Pensa muitas vezes que gostaria bastante de se ir embora, de subir para um comboio que parte para o Norte, com todos aqueles nomes de terras que atraem e que assustam um pouco, Irun, Bordéus, Amsterdão, Lyon, Dijon, Paris, Calais. Quando tem algum dinheiro, Lalla entra na gare, compra uma Coca-Cola no bufete e um bilhete de cais. Dirige-se para o local das partidas e vai passear por todas as plataformas, diante dos comboios que acabam de chegar ou que vão partir. Às vezes até sobe para uma carruagem, e senta-se um instante no banco de marroquim verde. As pessoas chegam, umas atrás das outras, instalam-se no compartimento, perguntam mesmo: "Está livre?" e Lalla faz-lhes um pequeno sinal com a cabeça. Depois, quando o altifalante anuncia que o comboio vai partir, Lalla desce da carruagem a correr e salta para o cais.
A gare é também um dos sítios onde se pode ver sem ser visto, porque a agitação e a pressa não deixam prestar atenção a coisa nenhuma. Há pessoas de todos os géneros na gare, pessoas más, pessoas violentas com a cara encarniçada, pessoas que gritam como possessos; há pessoas tristes e também muito pobres, velhos perdidos que procuram angustiadamente a plataforma de onde parte o comboio deles, mulheres que têm filhos a mais e que coxeiam arrastando a sua carga ao longo das carruagens altas de mais. Há todos aqueles a quem a pobreza trouxe aqui, os negros desembarcados dos navios, a caminho dos países frios, vestidos de camisas vistosas, tendo como única bagagem um saco de praia; os norte-africanos, escuros, cobertos de fatos velhos, com bonés para a neve ou gorros de lã na cabeça; turcos, espanhóis, gregos, todos com um ar preocupado e cansado, errando pelos cais ao vento, indo de encontro uns aos outros no meio da multidão dos viajantes indiferentes e dos militares gozões.
Lalla observa-os, quase escondida entre a cabina telefónica e o painel dos horários. Está bem dissimulada no escuro, com a cara cor de cobre protegida pela gola do casaco. Mas, de vez em quando, o coração dela bate
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mais depressa e os olhos lançam um brilho que parece o reflexo do sol nas pedras do deserto. Lalla observa todos os que partem para outras cidades, para a fome, o frio, a desgraça, os que vão ser humilhados, que vão viver na solidão. Passam um pouco curvados, de olhos vazios, com a roupa já gasta pelas noites a dormir no chão, semelhantes a soldados vencidos.
Eles vão para as cidades negras, para os céus baixos, para o fumo, para o frio, para a doença que dilacera o peito. Vão para os seus bairros nos terrenos lamacentos, abaixo das auto-estradas, para os quartos cavados na terra, como túmulos, rodeados de muros altos e de grades. Talvez esses homens nunca voltem, esses seres que passam como fantasmas, arrastando as bagagens e os filhos que pesam tanto, talvez eles vão morrer nesses países que não conhecem, longe das suas aldeias, longe das suas famílias? Vão para esses países estrangeiros que lhes ficarão com as vidas, que os irão esmagar e devorar. Lalla fica imóvel no seu canto de sombra e a vista turva-se-lhe porque é aquilo o que pensa. Ela gostava tanto de se ir embora, de caminhar através das ruas da cidade até não haver mais casas, mais jardins, até nem mesmo haver estradas, nem margens de rios, mas apenas uma vereda, como outrora, que iria estreitando até ao deserto.
A noite desce sobre a cidade. As luzes acendem-se nas ruas, em torno da gare, nos postes, e nas riscas encarnadas, brancas, verdes, por cima dos cafés e dos cinemas. Lalla caminha sem fazer ruído, esgueirando-se ao rés das paredes. Os homens têm caras assustadoras quando chega a noite e ficam meio iluminados pelos candeeiros. Os olhos deles brilham com dureza, o ruído dos seus passos soa nos corredores, nas entradas dos prédios. Lalla caminha depressa agora, como se tentasse fugir. Um homem segue-a por instantes, procura aproximar-se dela, pegar-lhe no braço; Lalla então esconde-se atrás de um automóvel e depois desaparece. Recomeça a deslizar como uma sombra, envereda pelas ruas da cidade velha, até ao Panier, lá onde vive Aamma. Sobe a escada sem luz, para que não vejam onde entrou. Bate levemente à porta e, quando ouve a voz da tia, diz o seu nome com alívio.
São estes os dias de Lalla, aqui, na grande cidade de Marselha, no meio destas ruas, com todos estes homens e todas estas mulheres que ela nunca poderá conhecer.
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Há muitos mendigos. Nos primeiros tempos, logo depois de ter chegado, Lalla ficava muito admirada. Agora, já se habituou. Mas não se esquece de os ver, como a maioria das pessoas da cidade, que fazem um pequeno desvio para não os pisarem ou que até passam por cima deles quando estão com pressa.
Radicz é um mendigo. Foi assim que ela o conheceu, ao andar pelas grandes avenidas ao pé da gare. Um dia, saiu cedo do Panier, ainda era de noite, porque se estava no Inverno. Não havia muita gente nas ruelas e nas escadas da cidade velha e a grande avenida por debaixo da Misericórdia ainda estava deserta, só com os camiões que circulavam com os faróis acesos e alguns homens e algumas mulheres nas suas motorizadas, bem agasalhados nos seus sobretudos.
Foi aí que ela viu Radicz. Estava sentado na entrada de uma porta e abrigava-se conforme podia do vento e da chuva fina. Estava com ar de quem tinha muito frio e, quando Lalla chegou ao pé dele, olhou-a com uma expressão esquisita, nada que se parecesse com o modo como os rapazes geralmente olham para uma rapariga. Olhou-a sem baixar os olhos, e não se podia adivinhar grande coisa naquele olhar, tal como nos olhos dos animais.
Lalla parou em frente dele e perguntou-lhe:
- Que fazes tu aí? Não tens frio?
O rapaz abanou a cabeça sem sorrir. Depois estendeu a mão.
- Dá-me qualquer coisa.
Lalla só tinha um pedaço de pão e uma laranja que tinha trazido para o seu almoço. Deu-os ao rapaz. Ele pegou na laranja bruscamente, sem dizer obrigado, e começou a comê-la.
Foi assim que Lalla travou conhecimento com ele. Depois, tornou a vê-lo com frequência, nas ruas, na gare, ou então na grande escadaria, quando o tempo o permitia. Ele fica sentado horas sem fim, a olhar em frente, sem prestar atenção às pessoas. Mas gosta muito de Lalla, talvez
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por causa da laranja. Ele disse-lhe que se chamava Radicz, escreveu mesmo o nome no chão com um pauzinho, mas mostrou-se admirado quando Lalla lhe disse que não sabia ler.
Ele tem belos cabelos, muito negros e rijos, e a pele cor de cobre. Tem olhos verdes e um bigodinho como uma sombra por cima dos lábios. Tem, sobretudo, um belo sorriso que às vezes lhe faz brilhar os incisivos muito brancos. Usa uma argolinha na orelha esquerda e pretende que é de ouro. Mas está pobremente vestido, com umas velhas calças rasgadas e cheias de nódoas, uma data de camisolas de lã enfiadas umas por cima das outras e um casaco de homem que lhe está grande de mais. Anda com os pés nus dentro de uns sapatos de cabedal preto.
Lalla gosta muito de o encontrar, ao acaso, na rua, porque ele nunca é precisamente o mesmo. Há dias em que tem os olhos tristes e velados, como se andasse perdido num sonho e que nada o pudesse distrair. Noutros dias, está alegre e tem um brilho nos olhos; conta toda a espécie de histórias absurdas, que vai inventando à medida que as conta, e ri-se demoradamente, sem ruído, de tal modo que Lalla não tem outro remédio senão rir-se com ele.
Lalla gostaria muito que ele a viesse visitar à casa da tia, mas não se atreve, porque Radicz é um cigano, e isso não agradaria certamente a Aamma. Quanto a ele, não vive no Panier, nem mesmo na vizinhança. Vive muito longe, algures a oeste, junto da via-férrea, no sítio onde há muitos terrenos vagos e depósitos de gasolina e chaminés que fumegam de dia e de noite. Foi ele quem o disse, mas nunca fala muito da sua casa, nem da sua família. Diz simplesmente que habita longe de mais para poder vir todos os dias e, quando vem, prefere dormir ao relento a voltar para casa. Para ele tanto lhe faz, diz que conhece uns bons esconderijos onde não se tem frio, onde não se sente o vento e onde ninguém, mas ninguém mesmo, o poderia descobrir.
Por exemplo, existem vãos de escadas, nos edifícios degradados das alfândegas. Há um buraco, mesmo do tamanho de uma criança, a gente esgueira-se para dentro e depois tapa o buraco com um bocado de cartão. Ou então há as barracas da ferramenta, nas obras, ou as camionetas com toldos. Radicz conhece perfeitamente todas essas coisas.
A maior parte das vezes, é nas cercanias da estação que a gente o pode encontrar. Quando está bom tempo e o sol está bem quente, senta-se nos degraus da grande escadaria e Lalla vai pôr-se ao lado dele. Ficam juntos a ver passar as pessoas. Às vezes, Radicz repara em alguém e diz a Lalla: "Tu vais ver." Vai direito ao viajante que sai da estação, um pouco encandeado pela luz, e pede-lhe uma moeda. Como tem um sorriso bonito e também qualquer coisa triste nos olhos, o viajante pára e rebusca nos bolsos. São sobretudo os homens na casa dos trinta, bem vestidos, com pouca bagagem, os que dão a Radicz. com as mulheres, é mais
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complicado, elas querem fazer perguntas e Radicz não gosta disso. Por isso, quando vê uma jovem com bom ar, empurra Lalla e diz-lhe:
- Vai tu, vai pedir-lhe.
Mas Lalla não se atreve a pedir dinheiro. Tem uma certa vergonha. No entanto, há momentos em que gostaria de ter algum dinheiro, para comer um bolo ou ir ao cinema.
- É o último ano que faço isto - diz Radicz. - No ano que vem, vou-me embora, vou trabalhar para Paris.
Lalla pergunta-lhe porquê.
- No ano que vem já estou muito velho, as pessoas deixam de dar quando ficamos muito velhos, dizem para irmos trabalhar.
Olha Lalla um instante e depois pergunta-lhe se ela trabalha. Lalla abana a cabeça.
Radicz aponta alguém que passa lá adiante, do lado dos autocarros.
- Aquele também trabalha comigo, temos o mesmo patrão.
É um rapaz negro muito magro, que tem o ar de uma sombra; aproxima-se dos viajantes e tenta pegar-lhes nas malas, mas aquilo parece não resultar. Radicz encolhe os ombros.
- Ele não sabe ajeitar-se. Chama-se Baki, não sei o que quer dizer, mas os outros pretos desatam a rir quando dizem o nome dele. Ele nunca leva muito dinheiro ao patrão.
E ao ver o olhar admirado de Lalla:
- Ah, sim, tu não sabes, o patrão é um cigano como eu, chama-se Lino, e lá onde vivemos todos chamam àquilo o hotel, é uma grande casa cheia de miúdos e todos trabalham para o Lino.
Ele conhece todos os mendigos da cidade pelo seu nome. Sabe onde moram, com quem trabalham, mesmo aqueles que são mais vadios do que outra coisa e que vivem sozinhos. Há as crianças que trabalham em família, com os irmãos e as irmãs, e que andam a gamar também nos grandes armazéns e nos supermercados. Os mais pequenos aprendem a pôr-se de atalaia ou então distraem os negociantes e às vezes servem de agentes de ligação. Há as mulheres, sobretudo, as ciganas vestidas com saias floridas e com a cara velada de preto, só se lhes vendo os olhos brilhantes e negros como os das aves. E depois há também os velhos e as velhas, os miseráveis, os esfomeados, que se agarram aos casacos e às saias dos burgueses e nunca mais os largam remoendo feitiços, até que lhes dêem uma pequena moeda.
Lalla sente um aperto no coração quando os vê, ou então quando encontra uma jovem feia, com um miúdo agarrado ao seio, que mendiga à esquina da grande avenida. Ela não sabia bem o que era o medo porque, lá na terra onde vivia o Hartani, só havia serpentes e escorpiões, quando muito os espíritos maus que fazem gestos de sombra na noite; mas aqui é o medo do vazio, do desespero, da fome, o medo que não tem nome e que
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parece brotar das janelas entreabertas de caves horríveis, fedorentas, que parece subir dos pátios escuros, entrar nos quartos frios como tumbas, ou percorrer como um vento mau essas grandes avenidas onde sem parar os homens andam, andam, afastam-se, empurram-se, sempre assim, sem fim, dia e noite, durante meses, durante anos, no ruído interminável dos seus sapatos de sola de crepe, enquanto sobe no ar pesado o ribombo das palavras e dos motores, num perpétuo resmungo arquejante.
Às vezes, a cabeça começa a andar à roda com tanta força que tem de se sentar depressa, logo a seguir, e Latia procura com a vista um ponto de apoio. O seu rosto metálico torna-se cinzento, os olhos extinguem-se e vai caindo muito devagar, como no fundo de um grande poço, sem qualquer esperança de voltar à superfície.
- Que é isso? Menina? Sente-se melhor? Como está?...
A voz grita algures, muito longe do seu ouvido, ela sente o cheiro de alho do hálito antes de recobrar a vista. Está meio encostada à base de uma parede. Um homem pega-lhe na mão e debruça-se para ela.
-... Já me sinto melhor, já estou melhor...
Ela consegue falar, muito lentamente, ou talvez esteja só a pensar as palavras?
O homem ajuda-a a andar, leva-a até à esplanada de um café. As pessoas que se tinham juntado afastam-se, mas mesmo assim Lalla ouve a voz de uma mulher que diz com nitidez:
- Ela está grávida, é só isso.
O homem manda-a sentar-se a uma mesa. Continua a debruçar-se para ela. É baixo e gordo, com uma cara bexigosa, um bigode, quase sem cabelo.
- Vai beber qualquer coisa, verá que lhe faz bem.
- Tenho fome - diz Lalla. Tudo lhe é indiferente, talvez pense que vai morrer.
- Tenho fome. -Ela repete aquilo lentamente.
O homem, esse, desorienta-se e gagueja. Levanta-se, corre para o balcão e volta logo a seguir com uma sanduíche e uma cesta de brioches. Lalla não o ouve; come depressa, primeiro a sanduíche e depois todos os brioches, uns atrás dos outros. O homem vê-a comer, com a cara gorda ainda toda agitada pela emoção. Fala às lufadas e depois pára com receio de cansar Lalla.
- Quando a vi cair, assim, à minha frente, nem imagina o susto que apanhei! É a primeira vez que isto lhe acontece? Quero dizer, é horrível, com toda aquela gente ali na avenida, as pessoas que iam atrás de si quase a pisaram e nem sequer pararam, é... Eu chamo-me Paul, Paul Esteve, e você? Fala francês? Não é daqui, pois não? Já comeu o suficiente? Quer que lhe vá buscar outra sanduíche?
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O hálito dele cheira muito a alho, a tabaco e a vinho, mas Lalla está satisfeita por ele ali estar, acha-o simpático e os olhos até lhe brilham um pouco. Ele apercebe-se disso e recomeça a falar, como é seu hábito, em todos os sentidos, fazendo as perguntas e as respostas.
- Então, já não tem mais fome? Quer beber qualquer coisa? Um conhaque? Não, mais vale uma coisa doce, é melhor quando se está fraco, uma Coca? Ou um sumo de fruta? Não estou a maçá-la? Sabe, é a primeira vez que vejo alguém desmaiar à minha frente, assim, caída no chão e aquilo deu-me um abalo que nem queira saber. Eu trabalho. Estou empregado nos C.T.T. e, pronto, não estou habituado - enfim, quero dizer, talvez fosse melhor ir ver um médico, quer que vá telefonar?
Ele já está a pôr-se de pé, mas Lalla abana a cabeça e ele torna a sentar-se. Daí a bocado, ela bebe um pouco de chá quente e a fadiga desvanece-se. O rosto voltou a adquirir a cor de cobre, a luz brilha de novo no seu olhar. Ergue-se e o homem acompanha-a até à rua.
- Tem a certeza que já se sente melhor? Consegue andar?
- Sim, sim, muito obrigada - diz Lalla.
Antes de se afastar, Paul Esteve escreve o seu nome e a sua morada num pedaço de papel.
- Se precisar de alguma coisa...
Aperta a mão de Lalla. Pouco maior é do que ela. Os seus olhos azuis ainda estão todos embaciados de emoção.
- Até qualquer dia - diz Lalla. E vai-se embora o mais depressa que pode, sem se voltar.
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Há cães um pouco por todo o lado. Mas eles não são como os mendigos, preferem viver no Panier, entre a Praça de Lenche e a Rua du Refuge. Lalla olha-os quando passa, faz caso deles. Têm todos o pêlo eriçado, são muito magros, mas não se parecem com os cães selvagens que roubavam as galinhas e as ovelhas, antigamente, na Cidade; estes são maiores e mais fortes, e há qualquer coisa de perigoso e de desesperado no seu aspecto. Remexem em todos os montes de lixo, para comer, roem os ossos velhos, as cabeças de peixe, os restos que lhes atiram os açougueiros. Há um cão que Lalla conhece bem. Está todos os dias no mesmo sítio, ao fundo das escadas, ao pé da rua que leva à grande igreja zebrada. É todo preto, com um colar de pêlos brancos que desce para o peito. Chama-se Dib, ou Hib, não sabe bem, mas no fundo o nome não tem nenhuma importância porque ele não tem dono. Lalla ouviu um rapazinho chamá-lo assim na rua. Quando avista Lalla, fica com um ar satisfeito, e abana o rabo, mas não se aproxima dela e não deixa que ninguém se aproxime dele. Lalla diz-lhe simplesmente algumas palavras, pergunta-lhe como está, mas sem parar, só de passagem, e, se tem qualquer coisa de comer, atira-lhe um bocadinho.
Toda a gente conhece mais ou menos toda a gente, aqui, no Panier. Não é como no resto da cidade, onde há aqueles magotes de homens e de mulheres que desfilam pelas avenidas, fazendo um grande ruído de motores e de calçado. Aqui, no Panier, as ruas são curtas, dão voltas, desembocam noutras ruas, em vielas, em becos, em escadinhas, e aquilo parece antes um grande apartamento com corredores e divisões que se encaixam umas nas outras. No entanto, exceptuando o grande cão preto Dib ou Hib, e algumas crianças de quem nem sabe os nomes, a maioria das pessoas nem parece dar por ela. Lalla desliza sem fazer ruído, vai de uma rua à outra, segue a rota do Sol e da luz.
Talvez as pessoas aqui tenham medo? Medo de quê? É difícil de dizer, é como se se sentissem vigiadas e tivessem que ter cuidado com os seus
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gestos, com as suas palavras. Mas ninguém as vigia a sério. Então talvez seja porque falam tantas línguas diferentes? Há a gente da África do Norte, os Magrebianos, os Marroquinos, os Argelinos, os Tunisinos, os Mauritanos, e depois as pessoas de África, os Senegaleses, os Malianos, os Daomeanos e depois os judeus que vêm de todo o lado mas nunca falam completamente a língua do seu país; há os Portugueses, os Espanhóis, os Italianos, e também pessoas estranhas que não se parecem com os outros, jugoslavos, turcos, arménios, lituânios; Lalla não sabe o que querem dizer estes nomes, mas é assim que os tratam aqui e Aamma sabe bem todos estes nomes. Há sobretudo os ciganos, como os que vivem na casa ao lado, tão numerosos que nunca se sabe se os vimos já ou se acabam de chegar; eles não gostam dos Árabes, nem dos Espanhóis, nem dos Jugoslavos; não gostam de ninguém, porque não estão habituados a viver num lugar como o Panier, por isso estão sempre dispostos a brigar, mesmo os rapazes, mesmo as mulheres, que, segundo o que diz Aamma, andam com uma lâmina de barba dentro da boca. Às vezes, à noite, acorda-se com o barulho de uma zaragata nas ruas. Lalla desce as escadas e vê, à luz lívida do candeeiro, um homem que se arrasta pela rua com uma faca espetada no peito. No dia seguinte, há um longo rasto pegajoso no chão, onde as moscas vêm zunir.
Às vezes também vêm os homens da polícia, param o grande carro negro ao fundo das escadas e entram nas casas, sobretudo naquelas onde vivem árabes e ciganos. Há polícias que têm uma farda e um boné, mas não são esses os mais perigosos; são os outros, os que andam vestidos como toda a gente, com um fato cinzento e uma camisola de gola alta. Batem às portas, com muita força, porque têm de lhas abrir logo, e entram nos apartamentos sem dizer nada, para ver quem mora ali. Na casa de Aamma, o polícia vai sentar-se no divã de plástico que serve de cama a Lalla e ela pensa que ele lhe vai fazer um buraco e que, nessa noite, quando se deitar, ainda haverá a marca no sítio onde o homem esteve sentado.
- Nome? Apelido? Nome da tribo? Autorização de estada? Licença de trabalho? Nome da entidade patronal? Número da segurança social? Contrato de arrendamento, recibo da renda de casa?
Ele nem olha sequer para os papéis que Aamma lhe entrega, um atrás do outro. Esta sentado no divã, fuma o seu cigarro como ar de se aborrecer. Olha, no entanto, para Lalla, que está em sentido diante da porta do quarto de Aamma. O polícia diz a Aamma:
- É tua filha?
- Não, é minha sobrinha - responde Aamma. Ele pega nos papéis todos e examina-os.
- Onde estão os teus pais?
- Morreram.
- Ah - diz o polícia. Olha os papéis como se reflectisse.
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- Ela trabalha?
- Não, ainda não, senhor guarda - diz Aamma; ela diz "senhor guarda" quando tem medo.
- Mas vai trabalhar cá?
- Sim, senhor guarda, se arranjar trabalho. Não é fácil arranjar trabalho para uma rapariga.
- Tem dezassete anos?
- Sim, senhor.
- É preciso cuidado, aqui há muitos perigos para uma rapariga de dezassete anos.
Aamma não diz nada. O polícia julga que ela não compreendeu e insiste. Fala devagar, destacando cada palavra, com os olhos a brilhar como se aquilo agora o interessasse mais.
- Vê se evitas que a tua filha não acabe na Rua du Poids de Ia Farine, hem? Há muitas como ela que andam por lá, estás a compreender?
- Sim, senhor - diz Aamma. Não se atreve a repetir que Lalla não é sua filha.
Mas o polícia sente o olhar duro de Lalla cravado nele e não se sente à vontade. Não acrescenta mais nada durante alguns segundos e o silêncio torna-se intolerável. Então o homem gordo explode e recomeça com uma voz raivosa, com os olhos todos franzidos pela fúria:
- Sim, compreendo, dizem isso, e depois um dia a tua filha aparece ao engate, transformada numa puta a dez francos a bandeirada, mas nessa altura já não vale a pena vires chorar e dizeres que não sabias, porque eu bem te preveni.
Quase grita, com as veias das fontes inchadas. Aamma conserva-se imóvel, paralisada, mas Lalla não tem medo do homem gordo. Olha-o com dureza, avança para ele e diz-lhe apenas.
- Desapareça.
O polícia olha-a atónito, como se tivesse proferido um insulto. Vai abrir a boca, vai levantar-se, vai esbofetear Lalla talvez. Mas o olhar da rapariga é duro como o metal, difícil de sustentar. Então o polícia ergue-se brutalmente e num instante está lá fora, desce as escadas a quatro e quatro. Lalla ouve bater a porta da rua. O homem foi-se embora.
Aamma chora agora, com a cabeça nas mãos, sentada no divã. Lalla aproxima-se dela, passa-lhe os braços pelos ombros, beija-a para a consolar.
- Talvez seja melhor eu ir-me embora daqui - diz ela suavemente, como quem fala a uma criança. - Talvez fosse melhor eu ir-me embora.
- Não, não - diz Aamma, enquanto chora cada vez mais.
À noite, quando tudo dorme à sua volta, quando só há o ruído do vento no zinco dos telhados e a água que pinga em qualquer lado, numa valeta, Lalla fica estendida no divã, de olhos abertos no escuro. Pensa na
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casa da Cidade, lá na terra, tão longe, quando vinha o vento frio da noite. Pensa que gostaria de abrir a porta e achar-se logo na rua, como dantes, rodeada pela noite profunda repleta de milhares de estrelas. Sentiria a terra dura e gelada debaixo dos pés nus. Ouviria os estalos do frio, os gritos dos noitibós, o ulular dos mochos e os latidos dos cães selvagens. Pensa que caminharia, assim, sozinha na noite, até às colinas de pedras, no meio do canto dos grilos, ou então pelo carreiro das dunas, guiada pela respiração do mar.
com toda a sua força, perscruta o escuro como se o olhar pudesse abrir de novo o céu, fazer ressurgir as figuras desaparecidas, as linhas dos telhados de chapa e de papel alcatroado, as paredes de tábuas e de cartão, as silhuetas das colinas e todos eles, o velho Naman, as raparigas da fonte, o Soussi, os filhos de Aamma e sobretudo ele, o Hartani, tal como era, quieto no calor do deserto, empoleirado numa perna, com o corpo e a cara cobertos, sem uma palavra, sem um sinal de zanga ou de fadiga; quieto diante dela, como se aguardasse a morte, enquanto os homens da Cruz Vermelha a vinham buscar para a levar. Ela também quer ver aquele a quem chamava Es Ser, o Segredo, aquele cujo olhar vinha de longe e a envolvia, a penetrava como a luz do Sol.
Mas poderão eles vir até aqui, do outro lado do mar, do outro lado de tudo?
Conseguirão eles encontrar o seu caminho no meio de todas aquelas estradas, descobrir a porta no meio de tantas portas? A penumbra conserva-se opaca, o vazio é grande, tão grande, no quarto, que se põe a girar e abre um abismo diante do corpo de Lalla, enquanto a boca da vertigem a morde e a puxa para diante. Agarra-se com toda a força ao divã, resiste, com o corpo tão retesado que parece ir partir-se. Apetecia-lhe gritar, berrar, para romper o silêncio, arrancar o peso da noite. Mas a garganta contraída não deixa escapar nenhum som e só consegue respirar graças a um esforço doloroso. Durante minutos, horas talvez, luta a arfar com uma cãibra que se apodera de todo o seu corpo. Finalmente, de súbito, enquanto a primeira claridade da manhã assoma no pátio do prédio, Lalla sente o turbilhão desfazer-se, afastar-se. O corpo volta a cair no divã, mole e informe. Pensa no ser que traz dentro de si e pela primeira vez sente a angústia de ter feito mal a alguém que depende dela. Coloca as duas mãos de cada lado do seu ventre até o calor se tornar profundo. Chora longamente, sem ruído, soluçando calmamente, como se respirasse.
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Estão todos prisioneiros do Panier. Talvez não o saibam realmente. Talvez julguem que poderão ir-se embora um dia, ir para outro lado, regressar às suas aldeias das montanhas e dos vales lamacentos, reencontrar aqueles que deixaram, os pais, os filhos, os amigos. Mas é impossível. As ruas estreitas de velhas paredes decrépitas, os apartamentos sombrios, os quartos húmidos e frios onde o ar cinzento pesa no peito, as oficinas abafadas onde as raparigas trabalham diante das máquinas que fazem calças e vestidos, as salas de hospital, os estaleiros, as estradas onde explode o estrondo dos martelos pneumáticos, tudo os segura, tudo os cerca, os faz prisioneiros, e nunca poderão libertar-se.
Agora Lalla arranjou trabalho. É empregada de limpeza no Hotel Sainte-Blanche, à entrada da cidade velha, ao norte, não muito longe da
grande avenida onde encontrou Radicz pela primeira vez. Sai todos os dias de manhã cedo, antes da abertura das lojas. Agasalha-se bem no seu casa- 3 co castanho por causa do frio e atravessa toda a cidade velha, seguindo " pelas ruelas sombrias, subindo as escadas onde a água suja escorre de degrau em degrau. Não há muita gente na rua, só alguns cães de pêlo i eriçado, que procuram restos nos montes de lixo. Lalla guarda no bolso um bocado de pão duro, porque não lhe dão de comer no hotel; às vezes, partilha-o com o velho cão negro, aquele a que chamam Dib ou Hib. Assim que chega, o dono do hotel entrega-lhe um balde e uma escova para que lave as escadas, embora estas estejam tão sujas que Lalla pensa que é trabalho perdido. O proprietário é um homem não muito velho, mas com um rosto amarelo e olhos inchados como se não dormisse bastante. O Hotel Sainte-Blanche é um prédio de três andares, meio em ruína, com o rés-do-chão ocupado por uma agência funerária. Na primeira vez que Lalla lá entrou teve medo e esteve mesmo para se ir logo embora, de tal modo aquilo era frio, sujo e malcheiroso. Mas agora já se habituou. É como o apartamento de Aamma, ou como o bairro do Panier, é uma questão de hábito. Basta simplesmente fechar a boca e respirar devagar, a pequenos
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sorvos, para não deixar entrar no interior do corpo o cheiro da pobreza, da doença e da morte que reina aqui, nestas escadas, nestes corredores, nestes recantos onde vivem as aranhas e as baratas.
O dono do hotel é um grego, ou um turco, Lalla não sabe bem. Depois de lhe entregar o balde e a escova, vai deitar-se outra vez no seu quarto, no primeiro andar, onde há uma porta envidraçada para poder vigiar da cama as entradas e saídas. O hotel só é habitado por pessoas miseráveis, unicamente homens. São norte-africanos que trabalham nos estaleiros, negros das Antilhas, espanhóis também, que não têm família, nem casa, e que vivem ali até encontrarem outra coisa melhor. Mas acabam por se habituar e vão ficando, e às vezes voltam para os seus países sem terem encontrado nada, porque as habitações são caras e ninguém os quer na cidade. Então vivem no Hotel Sainte-Blanche, aos dois e três num quarto, sem se conhecerem. De manhã, quando vão para o trabalho, batem na porta envidraçada do dono, pagam a dormida com antecedência.
Quando acaba de esfregar com a escova os degraus porcos da escada e o oleado dos corredores, Lalla limpa os W. C. é a única casa de banho, onde a camada de porcaria é tanta que os pêlos duros da escova nem conseguem entrar nela. Em seguida, faz as camas; despeja os cinzeiros e varre as migalhas e o pó. O patrão entrega-lhe a chave-mestra e ela vai de quarto em quarto. Já não há ninguém no hotel. Os quartos arrumam-se num instante, porque os homens que lá vivem são muito pobres e praticamente não têm nada que lhes pertença. Há só as malas de cartão, os sacos de plástico que contêm a roupa suja e um pedaço de sabão embrulhado em jornal. Às vezes há fotografias em cima da mesa; Lalla olha momentaneamente os rostos incertos no papel com brilho, rostos meigos de crianças, de mulheres, meio apagados, como através do nevoeiro. Às vezes também há cartas, dentro de grandes envelopes; ou então chaves, porta-moedas vazios, recordações compradas nos bazares, ao pé do porto velho, brinquedos de plástico para as crianças que se vêem nas fotografias desfocadas. Lalla olha tudo isso um bom momento, segura esses objectos nas suas mãos molhadas, observa esses tesouros precários como se estivesse meio a sonhar, como se pudesse ir entrar no universo das fotografias tremidas, reencontrar o som das vozes, dos risos, entrever a luz dos sorrisos. Depois tudo aquilo se esfuma de súbito e continua a varrer os quartos, a tirar as migalhas deixadas pelas refeições rápidas dos hóspedes, a restaurar o anonimato triste e cinzento que os objectos e as fotos haviam perturbado por um instante. Às vezes, numa cama aberta, Lalla encontra uma revista cheia de fotos obscenas, de mulheres nuas com as coxas abertas, com seios obesos inchados como enormes laranjas; mulheres com os lábios pintados de encarnado-claro, com um olhar pesado manchado de azul e verde, com cabeleiras loiras e ruivas. As páginas da revista estão amarrotadas, coladas com esperma, as fotos estão sujas e gastas como se tivessem sido arrastadas na
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rua pelos pés das pessoas. Lalla também olha durante um bom momento para a revista e o seu coração põe-se a bater mais depressa, de angústia e de mal-estar; depois, coloca a revista na cama feita, após ter alisado bem as páginas e ter posto a capa em ordem, como se se tratasse também de uma recordação preciosa.
Enquanto trabalha nas escadas e nos quartos, Lalla não vê ninguém. Não conhece o rosto dos homens que dormem no hotel e eles, quando partem de manhã para o trabalho, estão com pressa e passam diante dela sem a ver. Aliás, Lalla está vestida para que não a vejam. Por cima do casaco castanho, enfia um vestido cinzento de Aamma que lhe desce quase até aos artelhos. Ata um grande lenço à volta da cabeça e anda calçada com sandálias de borracha pretas. Nos corredores escuros do hotel, no oleado cor de borra de vinho e diante das portas manchadas, ela é uma silhueta quase invisível, cinzenta e negra, semelhante a um molho de trapos. Os únicos que a conhecem aqui são o dono do hotel e o porteiro de noite, que fica até de manhã, um argelino alto e muito magro, com uma cara dura e belos olhos verdes como os de Naman, o pescador. Esse cumprimenta sempre Lalla, em francês, e diz-lhes umas palavras simpáticas; como fala sempre muito cerimoniosamente com a sua voz grave, Lalla responde-lhe com um sorriso. Ele talvez seja aqui o único que notou que Lalla é uma rapariga, o único a descortinar sob a sombra dos trapos o seu belo rosto cor de cobre e os seus olhos cheios de luz. Para os outros, é como se ela não existisse.
Quando acaba o trabalho no Hotel Sainte-Blanche, o Sol ainda vai alto no céu. Então Lalla desce a grande avenida, até ao mar. Nessa altura, não pensa em mais nada, como se tivesse esquecido tudo. Na avenida, nos passeios, a multidão continua a apressar-se, sempre na direcção do desconhecido. Há homens com óculos que faíscam, que se apressam dando grandes passadas, há pobres vestidos com roupas puídas, que vão em sentido inverso, olhando desconfiados como as raposas. Há grupos de raparigas vestidas com roupas justas, que andam batendo com os saltos, assim: cra-cab, cra-cab, cra-cab. Os automóveis, as motos, as motorizadas, os camiões, os autocarros passam a toda a velocidade, na direcção do mar, ou do alto da cidade, todos carregados de homens e de mulheres com caras idênticas. Lalla caminha pelo passeio, vê tudo aquilo, aqueles movimentos, aquelas formas, aquelas explosões de luz, e tudo aquilo penetra nela e produz um turbilhão. Tem fome, o corpo está fatigado pelo trabalho do hotel, mas apesar disso sente vontade de continuar a andar, para ver mais luz, para expulsar toda a escuridão que ficou dentro de si. O vento gelado do Inverno sopra às rajadas na avenida, levanta a poeira e as folhas velhas de jornais. Lalla semicerra os olhos, avança um pouco inclinada para a frente, como outrora no deserto, para a fonte de luz, lá adiante, no fim da avenida.
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Quando chega ao porto, sente uma espécie de embriaguez dentro de si, e cambaleia à beira do passeio. Aqui o vento sopra em liberdade, empurra à sua frente a água do porto, faz ranger a mastreação dos barcos. A luz vem ainda de mais longe, para lá do horizonte, mesmo ao sul, e Lalla caminha pelos cais fora, em direcção ao mar. O ruído dos homens e dos motores gira à volta dela, mas não presta atenção. Umas vezes a correr, outras a andar, dirige-se para a grande igreja zebrada e depois para mais longe ainda, entra na zona abandonada dos cais, no lugar onde o vento levanta trombas de pó de cimento.
Aqui, de súbito, é o silêncio, como se tivesse realmente chegado ao deserto. À frente dela, há a extensão branca dos cais onde a luz do Sol brilha com força. Lalla caminha lentamente, ao longo das silhuetas dos grandes cargueiros, passando por debaixo dos guindastes metálicos, por entre as filas de contentores encarnados. Aqui não há homens, nem motores de automóveis, há só a pedra branca e o cimento, e a água escura das docas. Então escolhe um lugar, entre duas filas de carga cobertas com uma lona azul e senta-se ao abrigo do vento para comer pão com queijo, enquanto olha a água do porto. Às vezes, passam grandes aves marítimas piando e Lalla pensa no seu lugar no meio das dunas e no pássaro branco que era um príncipe do mar. Divide o seu pão com as gaivotas, mas há também alguns pombos que aparecem. Aqui tudo está calmo, nunca vem ninguém ter com ela. Lá de vez em quando há um pescador que passa pelo cais, com a cana na mão, à procura de um lugar que seja bom para as bogas; mas ele mal olha para Lalla pelo canto do olho e afasta-se para o fundo do porto. Ou então uma criança que vai de mãos nos bolsos, que brinca sozinha dando pontapés numa lata de conservas enferrujada.
Lalla sente o sol invadi-la, enchê-la a pouco e pouco, expulsar tudo o que há de negro e de triste dentro de si. Já não pensa na casa de Aamma, nos pátios escuros por onde escorre a água das barreias. Já não pensa no Hotel Sainte-Blanche, nem mesmo em todas aquelas ruas, avenidas e bulevares onde as pessoas caminham e discutem sem cessar. Ela transforma-se num pedaço de rocha, coberto de líquen e de musgo, imóvel, sem pensamento, dilatada pelo calor do Sol. Por vezes até adormece, encostada ao oleado azul, com os joelhos debaixo do queixo, e sonha que desliza num barco sobre o mar chão, até ao outro lado do mundo.
Os grandes cargueiros deslizam lentamente pelas docas negras. Vão para a entrada do porto, vão à procura do mar. Lalla diverte-se a segui-los correndo pelos cais fora, até tão longe quanto consegue ir. Não é capaz de ler os nomes deles, mas olha para as bandeiras, para as manchas de ferrugem nos cascos, e para os grandes mastros de carga dobrados como antenas, e para as chaminés onde há desenhos de estrelas, de cruzes, de quadrados, de sóis. À frente dos cargueiros, o barco dos pilotos avança
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gingando como um insecto, e quando os navios entram no alto mar apitam com a sirene, uma ou duas vezes, assim, só para dizerem adeus.
A água do porto também é bela e Lalla instala-se frequentemente encostada a um pilar de amarração, com as pernas pendentes para a água. Observa as manchas de petróleo irisadas que fazem e desfazem as suas nuvens e todas as coisas esquisitas que derivam à superfície, as garrafas de cerveja, as cascas de laranja, os sacos de plástico, os pedaços de madeira e de corda e aquela espécie de espuma castanha que vem não se sabe de onde, que se estende como uma baba ao longo dos cais. O vento sopra de quando em quando com muita força, faz rugas nas docas, arrepios, turva os reflexos dos barcos.
Em certos dias de Inverno, quando há muito sol, Radicz, o mendigo, vem visitar Lalla. Caminha vagarosamente pelo cais fora, mas Lalla reconhece-o ao longe, sai do seu abrigo entre os toldos e assobia-lhe com os dedos, como dantes o faziam os pastores na terra do Hartani. O rapaz chega a correr, senta-se ao lado dela à beira do cais e ficam um momento calados a olhar a água do porto.
Depois o rapaz mostra a Lalla qualquer coisa que ela nunca tinha notado: à superfície da água negra, há pequenas explosões silenciosas que provocam ondas. Primeiro Lalla olha para o ar, porque julga que são gotas de chuva. Mas o céu está azul. Então, compreende: são bolhas que vêm do fundo e que explodem à superfície da água. Ambos se divertem a observar as explosões das bolhas:
- Olha, ali, ali! Outra, mais outra!
- Olha, aquela!
- E além!...
De onde vêm aquelas bolhas? Radicz diz que são os peixes a respirar, mas Lalla acha que são antes as plantas e pensa naquelas ervas misteriosas que se movem devagar no fundo do porto.
Depois disto, Radicz tira a sua caixa de fósforos. Ele diz que é para fumar, mas, na realidade, não é de fumar que ele gosta; o que lhe agrada é acender fósforos. Quando tem algum dinheiro, Radicz vai a uma tabacaria e compra uma grande caixa de fósforos, daquelas que têm uma cigana a dançar na tampa. Vai sentar-se num canto sossegado e começa a riscar fósforos, uns atrás dos outros. Faz aquilo muito depressa, só para ter o prazer de ver a pequena cabeça encarnada que se acende com um barulho de foguete e depois a bela chama laranja que dança na ponta do palito de madeira, bem abrigada na cova da mão.
No porto há muito vento e Lalla tem de fazer uma espécie de tenda com as abas do casaco, e sente o calor acre do fósforo que lhe pica as narinas. De cada vez que Radicz risca um fósforo, riem-se ambos com muita força e tentam segurar alternadamente no pau de fósforo. Radicz mostra a Lalla como se consegue queimar um fósforo inteiro, lambendo a
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ponta dos dedos e pegando na ponta carbonizada. Ouve-se chiar um pouco quando Lalla pega no fósforo pelo carvão ainda incandescente, queimando o polegar e o indicador, mas não é uma queimadura desagradável; depois, olha a chama que queima todo o fósforo e o carvão que se torce como se estivesse vivo.
Em seguida fumam, um cigarro para os dois, encostados à lona azul, de olhar perdido na distância, do lado da água escura do porto e do céu cor de pó de cimento.
- Que idade tens tu? - pergunta Radicz.
- Dezassete anos, mas estou quase a fazer dezoito - responde Lalla.
- Eu vou fazer catorze no próximo mês - diz Radicz. Reflecte um pouco, franzindo as sobrancelhas.
- Tu já... dormiste alguma vez com um homem? Lalla mostra-se surpreendida com a pergunta.
- Não, quero dizer sim, porquê?
Radicz está tão preocupado que se esquece de dar o cigarro a Lalla; puxa fumaças umas a seguir às outras sem engolir o fumo.
- Eu nunca fiz isso - diz ele.
- Não fizeste o quê?
- Nunca dormi com uma mulher.
- Ainda és muito novo.
- Não é verdade! - diz Radicz. Enerva-se e gagueja um pouco. - Os meus amigos já fizeram todos isso e alguns até têm uma mulher só deles e fazem troça de mim, dizem que sou maricas porque não tenho mulher.
Reflecte mais uma vez, fumando o seu cigarro.
- Mas não me ralo com o que eles dizem. Eu acho que não está bem dormir com uma mulher, assim, só para... para armar em esperto, pelo gozo. É como os cigarros. Sabes, nunca fumo diante dos outros lá no hotel, e eles então julgam que nunca fumei e também gozam com isso. Mas é só porque não sabem, a mim tanto me faz, e até prefiro que não saibam.
Agora torna a dar o cigarro a Lalla. A beata está quase inteiramente consumida. Lalla tira só uma fumaça e depois esmaga-a no chão do cais.
- Tu sabes que eu vou ter um miúdo?
Ela não sabe bem porque disse aquilo a Radicz. Ele olha-a um longo momento sem responder, há como que uma sombra no seu olhar, mas de súbito todo ele se ilumina.
- Óptimo - diz ele, muito sério. - Ainda bem, fico muito contente. Fica tão contente que não consegue manter-se sentado. Levanta-se, caminha diante da água e depois aproxima-se outra vez de Lalla.
- Vais visitar-me lá ao sítio onde eu moro?
- Se quiseres - diz Lalla.
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- Sabes, é longe, é preciso tomar o autocarro e depois andar muito tempo, até aos depósitos. Quando quiseres, vamos juntos porque senão, perdias-te.
Desaparece a correr. O Sol desceu agora, já não está muito afastado da linha dos grandes prédios que se vê do outro lado dos cais. Os cargueiros continuam imóveis, semelhantes a grandes falésias enferrujadas, enquanto o voo das gaivotas passa lentamente diante deles, dança por cima dos mastros.
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Há dias em que Lalla ouve os ruídos do medo. Não sabe bem o que é, parecem pancadas fortes dadas nas chapas de zinco e é também um rumor surdo que não vem dos ouvidos, mas que entra pela planta dos pés e que soa no interior do corpo. É a solidão, talvez, e a fome também, a fome de ternura, de luz, de canções, a fome de tudo.
Assim que sai a porta do Hotel Sainte-Blanche, terminado o seu trabalho, Lalla sente a luz excessivamente clara do céu que cai sobre ela, que a faz desequilibrar-se. Enfia a cabeça conforme pode na gola do casaco castanho, tapa os cabelos até às sobrancelhas com o lenço cinzento de Aamma, mas a brancura do céu e o vazio das ruas continuam a atingi-la. É como uma náusea, que vem do centro do ventre, que lhe assoma à garganta, que lhe enche a boca de amargura. Lalla senta-se depressa, não importa onde, sem procurar entender, sem se preocupar com as pessoas que a olham, porque tem medo de desmaiar outra vez. Resiste com todas as suas forças, tenta acalmar as pancadas do coração, os movimentos que sente nas entranhas. Põe as duas mãos em cima do ventre, para que o calor suave das palmas das mãos atravesse o vestido, entre nela, vá até à criança. Era assim que se tratava antigamente, quando vinham as dores terríveis na parte de baixo do ventre, como se um animal a estivesse a roer por dentro. Depois embala-se um pouco, da frente para trás, assim, sentada na borda do passeio, ao lado dos automóveis estacionados.
As pessoas passam sem parar. Afrouxam um pouco o passo, como se fossem aproximar-se dela, mas, quando Lalla levanta a cabeça, há tanto sofrimento nos seus olhos que logo se afastam com medo do que vêem.
Daí a pouco, a dor diminui sob as mãos de Lalla. Já consegue respirar de novo, sente-se liberta. Apesar do vento frio, está coberta de suor, com o vestido todo molhado colado às costas. Talvez seja o ruído do medo, o ruído que não se ouve com as orelhas, mas que se ouve com os pés e com todo o corpo, o que faz despejar as ruas da cidade.
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Lalla sobe para a cidade velha, sobe lentamente os degraus das escadas arruinadas por onde corre o esgoto malcheiroso. No alto das escadas, vira à esquerda e depois segue pela Rua du Bon Jesus. Nas velhas paredes leprosas, há sinais escritos a giz, letras e desenhos incompreensíveis, meio apagados. No chão, há várias manchas encarnadas, como de sangue, onde rondam as moscas. A cor encarnada ecoa na cabeça de Lalla, faz um ruído de sirene, um assobio que abre um buraco e lhe despeja o espírito. Lentamente, com esforço, Lalla salta uma primeira mancha, uma segunda, uma terceira. Há umas coisas brancas esquisitas misturadas às manchas encarnadas, como cartilagens, ossos partidos, peles, e a sirene soa ainda com mais força na cabeça de Lalla. Tenta correr pela rua inclinada, mas as pedras são húmidas e escorregadias, sobretudo quando se tem sandálias de borracha. Na Rua du Timon há ainda sinais escritos a giz nas paredes velhas, palavras, nomes talvez? Depois uma mulher nua, com seios como olhos, e Lalla pensa na revista pornográfica aberta em cima da cama, no quarto do hotel. Mais adiante é um falo enorme desenhado a giz numa velha porta, como uma máscara grotesca.
Lalla continua a andar, respirando com dificuldade. O suor continua a correr pela testa, pelas costas abaixo, molha-lhe os rins, arde-lhe nas axilas. Não há ninguém na rua àquela hora, só alguns cães de pêlo hirsuto, que roem o seu osso a rosnar. As janelas a rasar o chão são fechadas por grades, por barras de ferro. Mais acima, as persianas estão descidas, as casas parecem abandonadas. Há um frio de morte que sai dos respiradouros, das caves, das janelas negras. Parece um hálito de morte que sopra nas ruas, que enche os recantos podres na base das paredes. Onde ir? Lalla avança lentamente de novo, vira outra vez à direita, na direcção da parede da velha casa. Lalla tem sempre um certo medo quando vê aquelas grandes janelas guarnecidas de grades, porque julga que é uma cadeia onde as pessoas morreram antigamente; até se diz que, por vezes, à noite, se ouvem os gemidos dos prisioneiros atrás das grades das janelas. Desce agora a Rua dês Pistoles, sempre deserta, e a Travessa de la Charité, para ver, através do pórtico de pedra cinzenta, a estranha cúpula rosa de que tanto gosta. Em certos dias, senta-se na entrada de um prédio e fica ali sentada a olhar para a cúpula que se assemelha a uma nuvem, e esquece tudo, até que uma mulher lhe vem perguntar o que pretende e obriga-a a ir-se embora.
Mas hoje até a cúpula cor-de-rosa lhe mete medo, como se houvesse uma ameaça atrás das suas janelas estreitas, ou como se fosse um túmulo. Sem se voltar, afasta-se depressa, torna a descer para o mar, seguindo pelas ruas silenciosas. O vento que passa às rajadas faz bater a roupa, grandes lençóis brancos com as bainhas rasgadas, roupa de criança, de homem, roupa interior azul e rosa de mulher; Lalla não quer olhar para aquilo, porque lhe lembra corpos invisíveis, pernas, braços, peitos,
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autênticos despojos sem cabeça. Percorre a Rua Rodillat e também aí há as mesmas janelas baixas, cobertas de grades, fechadas com barras de ferro, onde os homens e as crianças estão prisioneiros. Lalla ouve por vezes farrapos de frases, os ruídos da louça ou de cozinha, ou então a música roufenha, e pensa em todos aqueles que estão prisioneiros, naqueles quartos escuros e frios, com as baratas e os ratos, todos aqueles que nunca mais verão a luz, que nunca mais respirarão o vento.
Além, atrás daquela janela de vidros rachados e sujos, está aquela mulher gorda e impotente, que vive sozinha com dois gatos escanzelados, e que está sempre a falar no seu jardim, nas suas rosas, nas suas árvores, no seu grande limoeiro que dá os melhores frutos do mundo, ela que só tem a sua alfurja fria e negra e os seus dois gatos cegos. Aqui, é a casa de Ibrahim, um velho soldado oranês que se bateu com os Alemães, com os Turcos, com os Sérvios, naqueles sítios cujos nomes ele repete incansavelmente sempre que Lalla lhos pergunta: Salonica, Varna, Bjala. Mas não irá ele morrer também, vítima da armadilha que é a sua casa leprosa onde cada degrau da escada escura e escorregadia é um alçapão que se abre debaixo dos seus pés, onde as paredes lhe pesam no peito magro como um capote encharcado? Além, ainda, a espanhola que tem seis filhos, que dormem todos no mesmo quarto com uma janela estreita, ou que se vêem errando pelo bairro do Panier, andrajosos, pálidos, sempre esfomeados. Ali, naquela casa com uma grande fenda na fachada, com paredes cobertas de humidade que parece um suor mau, há o casal doente, que tosse com tanta força que Lalla se sobressalta às vezes, de noite, como se pudesse realmente ouvi-los através de todas as paredes. E o casal estrangeiro, ele italiano e ela grega, e o homem todas as noites se embebeda, e todas as noites bate na mulher, vibrando-lhe grandes murros na cabeça, assim, sem mesmo se zangar, só porque ela ali está e o olha com lágrimas nos olhos inchados pela fadiga. Lalla odeia aquele homem, aperta os dentes quando pensa nele, mas também tem medo daquela embriaguez tranquila e desesperada, e da submissão daquela mulher, pois é isso precisamente o que aparece em cada pedra e em cada mancha das malditas ruas daquela cidade, em cada sinal escrito nas paredes do Panier.
A fome está em todo o lado, a fome, o medo, a pobreza fria, como roupas velhas gastas e húmidas, como velhos rostos murchos e decadentes.
Rua du Panier, Rua du Bouleau, Travessa du Bouleau, Travessa Boussenoue, sempre as mesmas paredes leprosas, o cimo dos prédios onde aflora a luz fria, as bases das paredes onde estagna a água verde, onde apodrecem os montes de lixo. Aqui não há vespas, nem moscas que saltam livremente no ar onde se move a poeira. Só há homens, ratazanas, baratas, tudo o que vive nos buracos sem luz, sem ar, sem céu. Lalla gira pelas ruas como um velho cão preto de pêlo eriçados, sem descobrir o seu lugar. Senta-se um instante nos degraus das escadas, junto do muro atrás do qual
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cresce a única árvore da cidade, uma velha figueira cheia de cheiros. Pensa por um momento na árvore distante que tanto amava, quando o velho Naman ia consertar as redes, enquanto contava as suas histórias. Mas não consegue ficar muito tempo no mesmo lugar, como os velhos cães cheios de moléstias. Segue de novo através do dédalo sombrio, enquanto a luz do céu declina a pouco e pouco. Senta-se ainda um momento nos bancos do largo onde há o parque infantil. Há dias em que lhe sabe bem ficar ali, olhando para os miudinhos que tremelicam nas pernas, tentando andar com os braços afastados. Mas agora já só resta a sombra e, num dos bancos, uma velha negra com um vestido todo sarapintado. Lalla vai sentar-se ao lado dela, tenta falar-lhe.
- A senhora mora aqui?
- De onde veio? Qual é o seu país?
A velha olha-a sem compreender, depois tem medo e tapa a cara com uma aba do vestido saparintado.
No fundo do largo, há uma parede que Lalla conhece bem. Conhece cada mancha de humidade, cada racha, cada rasto de ferrugem. Mesmo no alto da parede, há os tubos pretos das chaminés e as goteiras. Por baixo do telhado, janelinhas sem persianas com os vidros sujos. Por baixo do quarto da velha Ida, pende roupa numa corda, endurecida pela chuva e pelo pó. Por baixo, há as janelas dos ciganos. A maior parte das vidraças estão partidas, algumas janelas já não têm caixilhos, são apenas buracos negros como órbitas escancaradas.
Lalla fita atentamente aquelas aberturas escuras e sente ainda a presença fria e tenebrosa da morte. Estremece. Há um grande vazio nesta praça, um turbilhão de vazio e de morte que nasce naquelas janelas, que gira entre as paredes das casas. No banco, ao lado dela, a velha mulata não se mexe, não respira. Lalla só lhe vê o braço descarnado onde as veias parecem cordas, e a mão com os dedos manchados de hené, que segura a aba do vestido na parte da cara que está do lado de Lalla.
Talvez também haja aqui uma armadilha? Lalla desejaria levantar-se e afastar-se a correr, mas sente-se pregada ao banco de plástico, como num sonho. A noite cai a pouco e pouco sobre a cidade, a escuridão invade o largo, afoga os recantos, as fendas, entra pelas janelas com os vidros partidos. Faz frio agora, e Lalla aconhega-se no seu casaco castanho, sobe a gola até aos olhos. Mas o frio sobe pelas solas de borracha das sandálias, pelas pernas, pelas coxas, pelos rins. Lalla fecha os olhos para resistir, para deixar de ver o vazio que gira na praça, em torno dos objectos abandonados do parque infantil, sob os olhos cegos das janelas.
Quando torna a abrir os olhos, já não vê ninguém. A velha mulata com o vestido pintalgado foi-se embora sem que Lalla desse por isso. Curiosamente, o céu e a terra estão menos escuros, como se a noite tivesse recuado.
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Lalla recomeça a caminhada pelas ruelas silenciosas. Desce as escadas no sítio onde o solo está rasgado pelos martelos pneumáticos. O frio varre a rua, faz bater as chapas das barracas de ferramenta.
Quando desemboca no mar, Lalla vê que o dia ainda não terminou. Há uma grande mancha clara por cima da Catedral, entre as torres. Lalla atravessa a avenida a correr, sem ver os carros que passam, que apitam e que fazem sinais com os faróis. Aproxima-se lentamente do adro alto, sobe os degraus, passa por entre as colunas. Lembra-se da primeira vez que veio à Catedral. Tinha muito medo, porque era uma coisa tão grande e abandonada, como uma falésia. Depois foi Radicz, o mendigo, quem lhe mostrou onde passa as noites, no Verão, quando o vento que vem do mar é morno como um bafo. Ele mostrou-lhe o lugar de onde se avistam os grandes cargueiros que entram no porto, à noite, com as luzes de posição vermelhas e verdes. Também lhe mostrou o lugar de onde se pode ver a Lua e as estrelas, entre as colunas do adro.
Mas aquela tarde não há ninguém. A pedra branca e verde está gelada, o silêncio pesa, perturbado apenas pelo ranger distante dos pneus dos automóveis e pelos pios dos morcegos que esvoaçam debaixo da abóbada. Os pombos já dormem, empoleirados nas cornijas, todos encostados uns aos outros.
Lalla senta-se um instante nos degraus, ao abrigo da balaustrada de pedra. Olha para o pavimento manchado de guano e para a terra poeirenta em frente do adro. O vento passa com violência, assobiando nos gradeamentos. A solidão aqui é grande, como num navio no alto mar. Faz doer, arrepanha a garganta e as fontes, faz soar estranhamente os ruídos, faz palpitar as luzes ao longe, ao longo das ruas.
Mais tarde, quando a noite já chegou, Lalla regressa ao interior da cidade, em direcção à parte alta. Atravessa a Praça de Lenche, onde os homens se acotovelam às portas dos bares, toma pela subida das Accoules, como um desses grandes cães de pêlo eriçado, que vagueiam pelas valetas à procura de um osso para roer. É a fome, sem dúvida, a fome que lhe rói o ventre, que provoca um vazio na cabeça, mas a fome de tudo, de tudo o que é recusado, inacessível. Há muito tempo que os homens não conseo [sic] ventre, que provoca um vazio na cabeça, mas a fome de tudo, de tudo o que é recusado, inacessível. Há muito tempo que os homens não conseguem saciar a fome, há tanto tempo que não conseguiram descanso, nem amor, nem felicidade, mas apenas quartos subterrâneos, frios, onde flutua o vapor da angústia, só aquelas ruas escuras onde correm os ratos, onde escorrem as águas podres, onde se amontoam as imundícies. O mal.
Enquanto avança ao longo das ranhuras estreitas das ruas, Rua du Refuge, Rua dês Moulins, Rua dês Belles-Ecuelles, Rua de Montbrion, Lalla vê todos os detritos como que rejeitados pelo mar, latas de conserva enferrujadas, papéis velhos, bocados de ossos, laranjas tocadas, legumes, trapos,
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garrafas partidas, anilhas de borracha, cápsulas, pássaros mortos com as asas arrancadas, baratas esmagadas, lixo, pó, podridão. São as marcas da solidão, do abandono, como se os homens já tivessem fugido desta cidade, deste mundo, como se os tivessem deixado entregues à doença, à morte, ao esquecimento. Como se já restassem apenas alguns homens neste mundo, os desgraçados que continuavam a viver nestes prédios em ruínas, nestes apartamentos que já se assemelhavam a túmulos, enquanto o vazio entra pelas janelas escancaradas, o frio da noite que oprime os peitos, que vela os olhos dos velhos e das crianças.
Lalla continua a avançar pelo meio dos escombros, caminha por cima dos montes de caliça caída. Não sabe para onde vai. Passa várias vezes pela mesma rua, à volta dos altos muros da Misericórdia. Talvez Aamma esteja lá, na grande cozinha subterrânea com clarabóias sujas, entretida a passar a esfregona pelas lajes escuras que nunca serão limpas por ninguém? Lalla não quer voltar a casa de Aamma, nunca mais quer voltar. Vagueia pelas ruas escuras, enquanto uma chuva fina começa a cair do céu, pois o vento desapareceu. Passam homens, silhuetas negras, sem rosto, que parecem perdidas, também. Lalla encolhe-se para os deixar passar, desaparece nos portais das casas, esconde-se atrás dos automóveis parados. Quando a rua fica novamente deserta, sai, continua a andar sem ruído, cansada, morta de sono.
Mas não quer dormir. Onde poderia abandonar-se, esquecer-se? A cidade é perigosa de mais e a angústia não deixa dormir as raparigas pobres, como os filhos dos ricos.
Há demasiados ruídos no silêncio da noite, ruídos da fome, ruídos do medo, da solidão. Há os ruídos das vozes avinhadas dos vadios, nos asilos, os ruídos dos cafés árabes onde não cessa a música monótona e os risos lentos dos haxixados. Há o ruído terrível do louco que todas as noites agride a mulher a murro, e a voz aguda da mulher que chora primeiro e que depois choraminga e geme. Lalla ouve todos esses ruídos, agora, distintamente, como se nunca mais parassem de soar. Há sobretudo um ruído que a persegue por toda a parte, que lhe entra na cabeça e no ventre e repete sempre a mesma desgraça: é o ruído de uma criança que tosse, algures, de noite, na casa ao lado, talvez seja o filho da mulher tunisina tão gorda e tão pálida, com olhos verdes um pouco loucos? Ou talvez seja outra criança que tosse numa casa, a várias ruas de distância, e depois outra que responde de outro lado, numas águas-furtadas com o telhado furado, uma outra, que não consegue dormir na alcova gelada, e uma outra ainda, como se houvesse dezenas, centenas de crianças doentes que tossissem na noite produzindo o mesmo ruído rouco que dilacera a garganta e os brônquios. Lalla pára encostada a uma porta, e tapa as orelhas apoiando as palmas das mãos com toda a força, para ver se deixa de ouvir a tosse das crianças que ladram na noite fria, de casa em casa.
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Mais adiante, há a ponta da rua onde se avista num plano mais baixo, como do alto de uma varanda, a grande encruzilhada das avenidas, semelhantes ao estuário de um rio, e todas as luzes que cintilam, que cegam. Então Lalla desce a colina, pelas escadas abaixo, e entra na passagem de Lorette, atravessa o grande pátio com as paredes enegrecidas pelo fumo e pela miséria, com o ruído dos rádios e das vozes humanas. Detém-se um instante, de cabeça voltada para as janelas, como se alguém fosse aparecer. Mas só se ouve o ruído desumano de uma voz de rádio que grita qualquer coisa, que repete lentamente a mesma frase:
- Ao som desta música os deuses entram em cena!
Mas Lalla não compreende o que aquilo quer dizer. A voz desumana sobrepõe-se ao ruído das crianças que tossem, ao ruído dos homens embriagados e da mulher que choraminga. Em seguida, há outra passagem escura, como um corredor, e desemboca-se no bulevar.
Aqui, durante um instante, Lalla já não sente o medo, nem a tristeza. A multidão comprime-se nos passeios, de olhos a brilhar, mãos ágeis, pés que calcam o solo de cimento, ancas que baloiçam, roupas que se amarrotam, se electrizam. Na calçada rodam os automóveis, os camiões, as motos com os faróis acesos, e os reflexos.das montras estão sempre a acender-se e a apagar-se. Lalla deixa-se arrastar pelo movimento das pessoas, já não pensa em si, está vazia, como se realmente já não existisse. É por isso que volta sempre às grandes avenidas, para se perder naquela maré, para se deixar ir à deriva.
Há muitas luzes! Lalla olha para elas enquanto caminha a direito. As luzes azuis, vermelhas, alaranjadas, violetas, as luzes fixas, as que avançam, as que dançam sempre no mesmo sítio como chamas de fósforos. Lalla pensa um pouco no céu constelado, na grande noite do deserto, quando estava estendida na areia dura ao lado do Hartani e respiravam suavemente, como se só tivessem um único corpo. Mas é difícil recordar. É preciso andar, andar, com os outros, como se soubéssemos para onde vamos, mas é uma viagem que não tem fim, não há nenhum esconderijo na cova da duna. É preciso andar para não cair, para não se ser espezinhado pelos outros.
Lalla desce até ao. fim da avenida, depois sobre outra avenida e outra ainda. Há luzes por toda a parte e o ruído dos homens e dos seus motores forma um rugido incessante. Então, subitamente, regressa o medo, a angústia, como se todos os ruídos de pneus e de passos formassem grandes círculos concêntricos nas bordas de um gigantesco funil.
Agora, Lalla está de novo a vê-los: estão ali, por toda a parte, sentados de encontro aos velhos muros enegrecidos, amontoados no chão no meio dos excrementos e das imundícies: os mendigos, os velhos cegos de mãos estendidas, as raparigas com os lábios gretados e uma criança agarrada ao seio flácido, as miúdas vestidas de andrajos, com a cara coberta de crostas,
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e que se penduram às roupas de quem passa, as velhas cor de fuligem, de cabelo emaranhado, e todos aqueles a quem a fome e o frio expulsaram dos seus pardieiros e que são empurrados como rebotalho pelas vagas. Estão todos ali, no centro da cidade indiferente, envoltos pelo ruído embriagador dos motores e das vozes, molhados pela chuva, eriçados pelo vento, mais feios e mais pobres ainda à luz pérfida das lâmpadas eléctricas. Olham para quem passa com um olhar torvo, com olhos húmidos e tristes que fogem e regressam de nós continuamente, como os olhos dos cães. Lalla passa devagar diante dos mendigos, olha-os com um aperto no coração, e é outra vez o mesmo vazio terrível que vem formar um turbilhão aqui, diante daqueles corpos abandonados. Caminha tão devagar que uma vagabunda a agarra pelo casaco e a quer puxar para si. Lalla resiste, desfaz com violência os dedos que se enclavinham no tecido do casaco; contempla com pena e horror o rosto ainda jovem da mulher, as suas faces inchadas pelo álcool, violáceas por causa do frio, e sobretudo aqueles dois olhos azuis de cega, quase transparentes, onde a pupila não é maior do que a cabeça de um alfinete.
- Anda! Anda cá! - repete a vagabunda, enquanto Lalla tenta tirar os dedos com as unhas partidas. Depois o medo sobrepõe-se e Lalla arranca o casaco das mãos da vagabunda, e foge a correr, enquanto os outros mendigos se põem a rir e a mulher, meio erguida no meio do seu monte de trapos, desata a berrar injúrias.
com o coração aos saltos, Lalla corre pela avenida fora; dá encontrões nas pessoas que se passeiam, que entram e saem dos cafés, dos cinemas; homens de fato completo, que acabam de jantar e que trazem ainda o rosto luzidio pelo esforço que fizeram para comer de mais e para beber de mais; rapazes perfumados, casais, militares na paródia, estrangeiros de pele negra e cabelo encarapinhado, que lhe dizem palavras que ela não compreende ou que tentam agarrá-la de passagem rindo com muita força.
Nos cafés, há uma música que não pára de bater, uma música lancinante e selvagem que ecoa surdamente na terra, que vibra através do corpo, no ventre, nos tímpanos. É sempre a mesma música que sai dos cafés e dos bares, que esbarra na luz dos tubos de néon, nas cores vermelhas, verdes, laranja, nas paredes, nas mesas, nas caras pintadas das mulheres.
Há quanto tempo avança Lalla pelo meio desses turbilhões, dessa música? Ela já nem sabe. Há horas; talvez há noites inteiras, noites sem nenhum dia para as interromper. Pensa na imensidade dos planaltos de pedras, na noite, nos montículos de calhaus cortantes como lâminas, nos carreiros das lebres e das víboras ao luar, e olha em torno dela, aqui, como se o fosse ver aparecer. O Hartani vestido com o seu manto de burel, com os olhos a brilhar no rosto muito negro, com gestos longos e lentos como o
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andar dos antílopes. Mas a única coisa que há é esta avenida, e mais esta, e estes cruzamentos cheios de caras, de olhos, de bocas, estas vozes gritadas, estas palavras, estes murmúrios. Estes ruídos de motores e de buzinas, estas luzes brutais. Não se vê o céu, como se houvesse uma teia branca que cobrisse a terra. Como poderiam eles chegar até aqui, o Hartani, e o outro, o guerreiro azul do deserto, Es Ser, o Segredo, como ela lhe chamava dantes? Não conseguiriam distingui-la através desta teia branca, que separa esta cidade do céu. Não conseguiriam reconhecê-la, no meio de tantas caras, de tantos corpos, com todos aqueles automóveis, todos aqueles camiões, todas aquelas motocicletas. Nem sequer conseguiriam ouvir a voz dela, aqui, com todos aqueles ruídos de vozes que falam em todas as línguas, com aquela música que retumba e faz tremer o chão. É por isso que Lalla já não os procura, já não lhes fala, como se tivessem desaparecido para sempre, como se estivessem mortos para ela.
Os mendigos estão ali, no próprio coração da cidade, todos juntos na noite. A chuva parou de cair e a noite está muito branca, longínqua, vai quase a meio. Os homens são raros. Entram e saem dos cafés e dos bares, mas fogem de carro a toda a velocidade. Lalla volta à direita, na rua estreita que sobe um pouco, e anda dissimulando-se atrás dos automóveis parados. No outro passeio, há alguns homens. Olham para o alto da rua, para a entrada de um prédio sórdido, uma portazinha pintada de verde, meio aberta para um corredor iluminado.
Lalla também pára e espreita, escondida atrás de um carro. O coração bate depressa e sopra na rua o grande vazio da angústia. O prédio ergue-se como uma fortaleza suja, com as suas janelas sem persianas e as vidraças forradas de papel de jornal. Algumas janelas estão iluminadas, com uma luz dura e má, ou então com uma estranha luz mortiça, cor de sangue. Dir-se-ia um gigante imóvel, com dezenas de olhos que espiam ou que dormem, um gigante cheio da força do mal, que vai devorar os homenzinhos que esperam na rua. Lalla está tão fraca que tem de se encostar à carroçaria do automóvel, a tremer com o corpo todo.
O vento do mal sopra na rua, é ele que provoca o vazio na cidade, o medo, a pobreza, a fome; é ele que forma aqueles turbilhões nas praças, e que faz pesar o silêncio nos quartos solitários onde sufocam as crianças e os velhos. Lalla odeia-o, ao vento, e a todos esses gigantes de olhos abertos, que reinam na cidade, só para devorar os homens e as mulheres, triturá-los no seu ventre.
Em seguida, a porta verde do prédio abre-se por completo e agora, no passeio, em frente de Lalla, está uma mulher imóvel. É ela que os homens olham quietos, fumando cigarros. É uma mulher muito pequena, quase anã, gorda de corpo, com uma cabeça grande pousada em cima dos ombros, sem pescoço. Mas a expressão é infantil, com uma boquinha cor de cereja e olhos muito negros pintados de verde. O que mais espanta nela,
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depois da pequena estatura, é o cabelo: curto, encaracolado, é de um vermelho-acobreado que cintila esquisitamente à luz do corredor atrás dela, e que forma como que uma auréola de chamas na sua cabeça de boneca gorda, como se fosse uma aparição sobrenatural.
Lalla observa o cabelo da mulherzinha, fascinada, sem se mexer, quase sem respirar. O vento frio sopra com violência à roda dela, mas a mulherzinha conserva-se diante da entrada do prédio, com os cabelos a flamejarem na cabeça. Usa uma saia preta muito curta, que descobre as coxas gordas e brancas, e uma espécie de camisola violeta decotada. Calça sapatos de verniz de salto alto. Devido ao frio, esboça alguns passos que fazem soar o ruído dos saltos no vazio da ruela.
Alguns homens aproximam-se dela, agora, fumando os seus cigarros. São árabes, na sua maior parte, com cabelo muito negro e uma tez cinzenta que Lalla desconhece, como se vivessem debaixo da terra e só saíssem à noite. Não falam. Têm um ar brutal, obstinado, lábios cerrados, olhar duro. A mulherzinha de cabelos de fogo nem os olha. Acende um cigarro e fuma depressa, girando no mesmo lugar. Quando vira as costas, parece marreca.
Depois, no alto da ruela surge outra mulher. Esta, pelo contrário, é muito alta e muito forte, já envelhecida, desgastada pela fadiga e pela falta de sono. Traz vestida uma gabardina azul e tem o cabelo preto despenteado pelo vento.
Desce lentamente a rua, fazendo bater os saltos dos sapatos, chega ao lado da anã e também pára diante da porta. Os árabes aproximam-se dela, falam-lhe. Mas Lalla não ouve o que dizem. Afastam-se, uns atrás dos outros, e param à distância, de olhos cravados nas duas mulheres que fumam. O vento passa às rajadas pela rua, pega a roupa aos corpos das mulheres, agita-lhes o cabelo. Há tanto ódio e desespero nesta ruela, que é como se ela descesse infindavelmente através de todos os degraus do inferno, sem nunca encontrar o fundo, sem nunca se deter. Há tanta fome, tanto desejo insatisfeito, tanta violência. Os homens silenciosos olham, imóveis à beira do passeio como soldados de chumbo, com os olhos fitos no ventre das mulheres, nos seios, na curva das ancas, na carne pálida da garganta, nas pernas nuas. Talvez não haja amor em parte nenhuma, talvez a piedade e o carinho não existam. Quem sabe se a teia branca que separa a terra do céu não terá sufocado os homens, não terá parado as palpitações dos seus corações, não lhes terá destruído todas as recordações, todos os desejos antigos, toda a beleza?
Lalla sente a vertigem contínua do vazio que entra nela, como se o vento que passava na rua fosse provocado por um grande movimento giratório. O vento talvez vá arrancar os telhados das casas sórdidas, rebentar com portas e janelas, demolir as paredes podres, transformar todos os carros num monte de sucata? É inevitável que isso aconteça, pois há ódio
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de mais, sofrimento a mais... Mas o grande prédio sujo mantém-se de pé, esmagando os homens com toda a sua grandeza. São os gigantes imóveis, de olhos sanguinolentos, de olhos cruéis, os gigantes devoradores de homens e de mulheres. Nas suas entranhas, as raparigas são atiradas para cima dos velhos colchões cheios de nódoas, e possuídas em alguns segundos pelos homens silenciosos cujo sexo arde como um tição. Depois, eles voltam a vestir-se e vão-se embora, sem dar tempo a que se extinga o cigarro que deixaram a arder na borda da mesa. No interior dos gigantes devoradores, as mulheres usadas são esmagadas pelo peso dos homens que lhes sujam as carnes amarelecidas. Então, em todos aqueles ventres de mulheres nasce o vazio, o vazio intenso e gelado que se escapa delas e que sopra como se fosse vento pelas ruas e ruelas, lançando os seus turbilhões sem fim.
De repente, Lalla não pode esperar mais. Quer gritar, chorar mesmo, mas é impossível. O vazio e o medo contraíram-lhe a garganta e só com dificuldade consegue respirar. Então resolve fugir. Corre com todas as suas forças pela ruela," enchendo o silêncio com o ruído pesado dos seus passos. Os homens voltam-se e vêem-na fugir. A anã grita qualquer coisa, mas um homem agarra-a pelo pescoço e empurra-a para o interior do prédio. O vazio, perturbado um instante, toma a fechar-se sobre eles, cinge-os. Alguns homens atiram o cigarro para a valeta e dirigem-se para a avenida, deslizando como sombras. Outros chegam e detêm-se à beira do passeio, olhando para a mulher alta de cabelo preto que se conserva à porta do prédio.
À porta da gare, há muitos mendigos que dormem, entrouxados nos seus trapos, ou então rodeados de cartões, diante das portas. Ao longe, brilha o edifício da gare, com os seus grandes candeeiros brancos como astros.
No canto de uma porta, ao abrigo de um marco de pedra, num grande lago de sombra húmida, Lalla deitou-se no chão. Enfiou a cabeça e os ombros o mais que pôde no interior do grande casaco castanho, tal e qual como uma tartaruga. A pedra é fria e dura, e o ruído molhado dos pneus dos automóveis fá-la bater o queixo. Mas, apesar disso, vê o céu abrir-se, como dantes, no planalto de pedras, e entre as bordas da teia que se rasga, abrindo bem os olhos, consegue ver ainda a noite do deserto.
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Lalla mora no Hotel Sainte-Blanche. Tem um quartinho, um cubículo escuro sob o telhado, que partilha com as vassouras, os baldes, as coisas velhas ali esquecidas há anos. Há uma lâmpada eléctrica, uma mesa e uma velha cama de lona. Quando perguntou ao patrão se podia viver ali, ele disse-lhe simplesmente que sim, sem lhe fazer perguntas. Não fez comentários, disse-lhe que podia dormir lá, que a cama não fazia falta. Também lhe disse que descontaria o dinheiro da electricidade e da água do ordenado, e foi tudo. Depois voltou à leitura do seu jornal, estendido na cama. É por isso que Lalla acha que o patrão é boa pessoa, mesmo que ande sujo e com a barba por fazer, só porque não faz perguntas. Tudo lhe é indiferente.
com Aamma, as coisas não se passaram da mesma maneira. Quando Lalla lhe disse que se ia embora de casa, a cara dela fechou-se e disse uma data de coisas desagradáveis, porque julgava que Lalla se ia embora para ir viver com um homem. Mas, no entanto, acabou por concordar, porque lhe convinha, visto que os filhos deviam estar a chegar e não haveria lugar para tanta gente.
Agora, Lalla conhece um pouco melhor as pessoas do Hotel Sainte-Blanche. São todos muito pobres, vindos de países onde não se come, onde não há quase nada para viver. Têm rostos duros, mesmo os mais novos, e não são capazes de falar muito tempo. No andar onde vive Lalla não há ninguém, porque é o sótão onde moram os ratos. Mas, mesmo por baixo, há um quarto onde moram três negros, todos irmãos. Esses não são maus, nem tristes. Estão sempre bem-dispostos, e Lalla gosta de os ouvir rir e cantar ao sábado à tarde e ao domingo. Não conhece os nomes deles, não sabe o que fazem na cidade. Mas às vezes encontra-os no corredor, quando vai ao W.C., ou quando desce de manhã cedo para esfregar os degraus da escada. Mas já saíram quando lhes vai limpar o quarto. Eles quase que não têm objectos de uso, só umas caixas de cartão cheias de roupa e uma viola.
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Ao lado do quarto dos negros, há dois quartos ocupados por norte-africanos que trabalham na construção civil e que pouco param em casa. São simpáticos, mas taciturnos, e Lalla também não fala muito com eles. Não há nada nos seus quartos, porque guardam a roupa toda nas malas e enfiam as malas debaixo das camas, porque têm medo que os roubem.
Aquele que Lalla prefere é um jovem negro africano que vive com o irmão num quartinho do segundo andar, mesmo no fundo do corredor. É o quarto mais bonito, porque dá para um pedaço de pátio onde há uma árvore. Lalla não sabe o nome do mais velho, mas sabe que o mais novo se chama Daniel. Ele é muito, muito preto, com o cabelo tão encarapinhado que há sempre coisas que lá se agarram, bocados de palha, penas, folhas de erva. Tem uma cabeça toda redonda e um pescoço desmesurado. Aliás, é todo em comprimento, com braços enormes e pernas altas, e um andar esquisito, como quem dança. Ele é muito alegre, está sempre a rir quando fala com Lalla. Ela não compreende bem o que ele diz, porque tem um sotaque esquisito que canta. Mas o caso não tem grande importância, porque faz uns gestos disparatados com as mãos grandes e toda a espécie de caretas com a sua grande boca cheia de dentes muito brancos. É ele quem Lalla prefere, por causa da sua cara lisa, por causa do seu riso, porque se parece um pouco com uma criança. Ele trabalha no hospital, com o irmão, e ao sábado e ao domingo vai jogar futebol. É a sua grande paixão. Tem o quarto cheio de cartazes e de fotografias, espetadas com pioneses nas paredes, nas portas e no interior do armário. Sempre que encontra Lalla, pergunta-lhe quando é que ela o vai ver jogar ao estádio.
Foi lá uma vez, num domingo à tarde. Instalou-se no alto das bancadas e pôs-se a olhá-lo. Ele formava uma pequena mancha negra no verde da relva, e foi graças a isso que o conseguiu reconhecer. Ele jogava a avançado direito, com o grupo que dirigia o ataque. Mas Lalla nunca lhe disse que o tinha ido ver, talvez para que ele continuasse a pedir-lhe que o fosse ver, com aquele riso que soa com força nos corredores do hotel.
Há também um velho que vive num quarto muito pequeno, na outra ponta do corredor. Esse nunca fala a ninguém, e ninguém sabe muito bem de onde veio. É um homem com uma cara que foi devorada por uma doença terrível, sem nariz nem boca, só com dois buracos no lugar das narinas e uma cicatriz no lugar dos lábios. Mas tem uns belos olhos profundos e tristes, é sempre muito bem-educado e delicado e Lalla gosta dele por causa disso. Vive muito pobremente naquele quarto, quase sem comer, e só sai de manhã muito cedo para ir apanhar a fruta caída no mercado e para ir passear ao sol. Lalla não sabe o nome dele, mas gosta muito dele. O homem assemelha-se um pouco ao velho
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Nanan, tem o mesmo género de mãos, fortes e ágeis, mãos queimadas pelo sol e cheias de saber. Quando olha para as mãos dele, é como se reconhecesse um pouco a paisagem escaldante, as extensões de areia e de pedras, os arbustos calcinados, os rios secos. Mas ele nunca fala da sua terra nem de si próprio, conserva tudo isso fechado dentro de si mesmo. Apenas troca breves palavras com Lalla, quando se cruzam no corredor, a respeito do tempo que faz lá fora, ou das notícias que ouviu na rádio. Talvez ele seja o único no hotel que conhece o segredo de Lalla, pois perguntou-lhe duas vezes, olhando-a com aqueles seus olhos cheios de profundidade, se não era um grande sacrifício para ela ter que trabalhar. Não acrescentou mais nada, mas Lalla pensou que ele sabia que ela trazia um bebé no ventre e até teve um certo receio que o velho tocasse no assunto ao patrão e que este a quisesse despedir. Mas o velho não diz nada a mais ninguém. Todas as segundas-feiras paga antecipadamente uma semana de aluguer, sem que ninguém saiba de onde lhe vem o dinheiro. Lalla é a única a saber que ele é muito pobre, porque no seu quarto a única comida que há é fruta tocada que ele apanha no chão do mercado. Então, às vezes, quando lhe sobra algum dinheiro, compra uma ou duas bonitas maçãs, umas laranjas, e vai pô-las em cima da única cadeira do quarto, quando faz a limpeza. O homem nunca lhe disse obrigado, mas ela percebe nos olhos dele que fica contente quando a vê.
Quanto aos outros hóspedes, Lalla conhece-os sem os conhecer. São pessoas de passagem, árabes, portugueses, italianos, que só lá vão dormir. Há também os que ficam, mas de que Lalla não gosta, dois árabes do primeiro andar que têm um aspecto brutal e que se embebedam com álcool para queimar. Há aquele que lê revistas pornográficas e que as deixa em cima da cama desmanchada para que Lalla as apanhe e veja as fotos das mulheres nuas. É um jugoslavo, que se chama Gregori. Um dia, Lalla entrou no quarto e ele estava lá. Agarrou-a pelo braço e quis atirá-la para cima da cama, mas Lalla desatou a gritar e ele teve medo. Deixou-a sair gritando-lhe palavrões. A partir desse dia, Lalla nunca mais voltou a pôr os pés no quarto quando ele lá está.
Mas nenhum deles tem existência real, excepto o velho com a cara roída. Não existem porque não deixam vestígios da sua passagem, como se não passassem de sombras, de fantasmas. Quando se vão embora, um dia, é como se nunca tivessem vindo. A cama de lona continua a ser a mesma, assim como a cadeira desconjuntada, o oleado manchado, as paredes gordurosas com a tinta a descascar e a lâmpada eléctrica pendurada no fio todo coberto de cagadelas de mosca. Tudo se mantém imutável.
Mas é sobretudo a luz que vem do exterior, através das vidraças sujas, a luz parda do pátio interior, os reflexos pálidos do Sol e os ruídos: ruídos
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dos aparelhos de rádio, ruídos dos motores dos automóveis na grande avenida, vozes dos homens que brigam. Ruídos das torneiras que pingam, ruído do autoclismo, o ranger das escadas, o ruído do vento que agita as chapas e as goteiras.
Lalla escuta todos estes ruídos, à noite, deitada na cama, contemplando a mancha amarela da lâmpada acesa. Os homens aqui não podem existir, nem as crianças, nem nada do que vive. Escuta os ruídos da noite, como no interior de uma gruta, e é também como se ela já não existisse muito bem. Agora, há qualquer coisa que estremece dentro do seu ventre, que palpita como um órgão desconhecido.
Lalla aninha-se na cama, de joelhos encostados ao queixo, e tenta escutar o que remexe dentro dela, o que começa a viver. Há o medo, outra vez, o medo que faz fugir pelas ruas e faz saltar de um ângulo para o outro como uma bala. Mas ao mesmo tempo há uma onda de estranha felicidade, de calor e de luz, que parece vir de muito longe, do lado de lá dos mares e das cidades, e que une Lalla à beleza do deserto. Então, como todas as noites acontece, Lalla fecha os olhos e respira profundamente. Lentamente, apaga-se a luz cinzenta do quarto e surge a noite cheia de beleza. Está povoada de estrelas, fria, silenciosa, solitária. Descansa sobre a terra sem limites, sobre a extensão das dunas imóveis. Ao lado de Lalla, está o Hartani, vestido com o seu manto de burel, com o rosto de cobre negro a brilhar à luz das estrelas. É um olhar que chega até ela, que a encontra aqui, neste quarto estreito, à claridade doentia da lâmpada eléctrica, e o olhar do Hartani mexe dentro dela, no seu ventre, desperta a vida. Há tanto tempo que ele desapareceu, há tanto tempo que ela se veio embora, do outro lado do mar, como se a tivessem expulsado, mas mesmo assim o olhar do jovem pastor tem muita força; ela sente-o a mexer verdadeiramente dentro de si, no segredo do seu ventre. Então quem se apaga são os outros, as pessoas desta cidade, os polícias, os homens da rua, os locatários do hotel, todos eles desaparecem, e a cidade com eles, as suas casas, as suas ruas, os seus automóveis, os seus camiões, e só resta a extensão do deserto, onde Lalla e o Hartani estão deitados juntos. Ambos estão envolvidos no manto de burel, rodeados pela noite negra e por miríades de estrelas, e chegam-se muito um ao outro para não sentirem o frio que invade a terra.
Quando morre alguém no Panier, é a agência funerária do rés-do-chão do hotel que trata de tudo. Ao princípio, Lalla julgava que era alguém da família do dono do hotel; mas afinal é um comerciante como os outros. Primeiro, Lalla julgava que as pessoas vinham morrer ao hotel e que as mandavam depois para a agência funerária. Não há muita gente na loja, só o patrão, o senhor Cherez, dois gatos-pingados e o motorista do carro funerário.
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Quando alguém morre no Panier, os empregados saem com o carro e vão pendurar os grandes panejamentos pretos com lágrimas prateadas por cima da porta. À frente da porta, no passeio, instalam uma mesinha coberta com um pano preto, que também tem lágrimas prateadas. Na mesa há um prato para as pessoas deixarem o cartão-de-visita com o nome, quando vão velar o morto.
Quando morreu o senhor Ceresola, Lalla soube logo porque viu o filho dele na loja do rés-do-chão do hotel. O filho do senhor Ceresola é um homenzinho gordo, com o cabelo ralo e um bigode em escova, que olha sempre para Lalla como se ela fosse transparente. Mas o senhor Ceresola, esse, era diferente. Lalla gostava bastante dele. Era um italiano, não muito alto, mas velho e magro, que andava com dificuldade por causa do reumatismo. Andava sempre vestido com um fato preto, que também devia ser bastante velho, porque o tecido estava todo gasto, sobretudo nos cotovelos e nos joelhos. Também usava uns sapatos velhos de cabedal preto, sempre muito bem engraxados, e quando fazia frio usava um cachecol de lã e um boné. O senhor Ceresola tinha uma cara muito seca e enrugada, mas queimada pelo ar livre, cabelos brancos cortados curtos e uns óculos engraçados com armação de tartaruga, todos remendados com adesivo e cordel.
Toda a gente gostava dele, aqui, no Panier, porque era educado e amável com todos e porque tinha um ar digno com o seu fato fora de moda e os seus sapatos engraxados. E, depois, toda a gente sabia que ele tinha sido carpinteiro, um verdadeiro mestre carpinteiro, e que tinha vindo da Itália antes da guerra, porque não gostava de Mussolini. Era isto o que ele contava às vezes, quando encontrava Lalla na rua, quando andava às compras. Dizia que tinha chegado a Paris sem um chavo, apenas com o suficiente para pagar duas ou três dormidas de hotel, e que não falava uma palavra de francês; por isso, quando pediu sabão para se lavar, levaram-lhe uma panela de água quente.
Quando Lalla o encontrava, ajudava-o a levar os embrulhos, porque ele andava com dificuldade, sobretudo quando tinha de subir as escadas para a Rua du Panier. Então, enquanto caminhava, falava-lhe da Itália, da sua aldeia, e do tempo em que era operário na Tunísia, e das casas que construía por todo o lado em Paris, em Lyon, na Córsega. Tinha uma voz estranha um pouco forte, e Lalla tinha dificuldade em compreender o sotaque dele, mas gostava muito de o ouvir falar.
Agora está morto. Quando Lalla se apercebeu disso, ficou com um ar tão triste que o filho do senhor Ceresola olhou-a com espanto, como se ficasse surpreendido por alguém pensar no pai dele. Lalla foi-se logo embora, porque não gosta muito de respirar o ar da agência funerária, nem de ver todas aquelas coroas de celulóide, aqueles caixões e sobretudo aqueles gatos-pingados que têm olhos maldosos.
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Então Lalla seguiu pelas ruas, lentamente, de cabeça baixa, e assim chegou à porta do senhor Ceresola. À volta da porta, havia os panejamentos e a mesinha com o pano preto e o prato. Também havia um grande quadro preto por cima da porta com duas letras em forma de crescentes de lua, assim:
Lalla entra na casa, sobe a escada de estreitos degraus, como quando levava os embrulhos do senhor Ceresola, devagar, parando em cada patamar para respirar fundo. Ela hoje está tão cansada, sente-se tão pesada, que é como se fosse adormecer, como se fosse morrer ao chegar ao último andar.
Pára diante da porta, hesita um pouco. Depois empurra a porta e entra no pequeno apartamento. Primeiro, não reconhece o local, porque as portadas estão fechadas e faz escuro. Não há ninguém no apartamento e Lalla avança para a sala principal, onde há uma mesa coberta com um oleado e com uma fruteira no meio. Ao fundo da sala, há a alcova com a cama. Quando se aproxima, Lalla depara com o senhor Ceresola, que está deitado de costas, na cama, como se dormisse. Tem um ar tão calmo, na penumbra, com os olhos fechados e as mãos encostadas ao corpo, que Lalla julga por um instante que ele está apenas dormitando, que vai acordar daqui a pouco. Num murmúrio, diz, para não o incomodar:
- Senhor Ceresola? Senhor Ceresola?
Mas o senhor Ceresola não dorme. Vê-se pela roupa, sempre o mesmo fato preto, os mesmos sapatos engraxados; mas o casaco está um pouco de banda, com a gola levantada atrás da cabeça, e Lalla pensa que vai ficar amarrotado. Há uma sombra cinzenta nas faces e no queixo do velho, e olheiras azuis em torno dos olhos, como se lhe tivessem batido. Lalla pensa ainda no velho Naman, quando estava deitado no chão da sua casa e não conseguia respirar. Pensa nele com tanta força que, durante uns segundos, é ele que ela vê, deitado na cama, com o rosto apagado pelo sono e as mãos encostadas ao corpo. A vida tremula ainda na penumbra do quarto, com um murmúrio muito baixo, quase imperceptível. Lalla chega-se mesmo à cama, olha melhor o rosto extinto, cor de cera, os cabelos brancos que caem nas têmporas em madeixas tesas, a boca entreaberta, as faces descaídas devido ao peso da maxila que pende. O que torna a cara estranha é ele já não usar os velhos óculos de tartaruga; parece nu, fraco, por causa daquelas marcas que já não servem, no nariz, em torno dos olhos, ao longo das têmporas. O corpo do senhor Ceresola ficou subitamente
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demasiado pequeno, demasiado magro para aquele fato preto, e é como se ele tivesse desaparecido, como se apenas restasse aquela máscara e aquelas mãos de cera, e aquela roupa mal ajustada num cabide complicado. Então, de súbito, o medo volta a apoderar-se de Lalla, o medo que queima a pele, que turva o olhar. A penumbra é sufocante, é um veneno que paralisa. A penumbra vem do fundo dos pátios, vai pelas ruas estreitas, através da cidade velha, afoga todos aqueles que encontra, prisioneiros nos quartos estreitos: as crianças, as mulheres, os velhos. Entra nas casas, insinua-se sob os telhados húmidos, nas caves, ocupa as mais pequenas falhas.
Lalla conserva-se imóvel diante do cadáver do senhor Ceresola. Sente o frio que se apodera dela, aquela estranha cor de cera que cobre a pele da cara e das mãos. Ainda se lembra do vento mau que soprou naquela noite lá na Cidade, quando o velho Naman estava a morrer; e do frio que parecia sair de todos os buracos da terra para destruir os homens.
Lentamente, sem desviar os olhos do corpo do morto, Lalla recua para a porta do apartamento. A morte está na sombra cinzenta que flutua por entre as paredes, na escada, na pintura falhada dos corredores. Lalla desce o mais depressa que pode, com o coração aos saltos, os olhos cheios de lágrimas. Salta para fora e tenta correr, para a cidade baixa, para o mar, rodeada pelo vento e pela luz. Mas uma dor no ventre obriga-a a sentar-se no chão, toda dobrada ao meio. Geme, enquanto as pessoas vão passando diante dela, olhando-a furtivamente e afastando-se. Eles também têm medo, vê-se pela maneira como se esgueiram encostados às paredes, um pouco arqueados, como os cães de pêlo hirsuto.
A morte anda por toda a parte, pensa Lalla, ameaça todos, ninguém lhe consegue escapar. A morte está instalada na loja negra, no rés-do-chão do Hotel Sainte-Blanche, no meio dos ramos de violetas de gesso e das lousas de aglomerado de mármore. Mora lá adiante, na velha casa apodrecida, nos quartos dos homens, nos corredores. Eles não sabem, nem sequer desconfiam. À noite, ela sai da agência funerária, sob a forma de baratas, de ratos, de percevejos e espalha-se por todos os quartos húmidos, por todos os enxergões, rasteja e formiga nos soalhos, nas fendas, enche tudo como uma sombra envenenada.
Lalla torna a levantar-se, caminha a cambalear, com as mãos apoiadas na parte de baixo do ventre, onde sente uma dor aguda. Já não olha para ninguém. Onde poderia ir? Os outros vivem, comem, bebem, falam e entretanto a armadilha vai-se fechando sobre eles. Eles perderam tudo, exilados, agredidos, humilhados, trabalham no vento gelado das estradas, sob a chuva, abrem buracos na terra pedregosa, partem as mãos e a cabeça, enlouquecem com os martelos pneumáticos. Têm fome, têm medo, estão gelados pela solidão e pelo vazio. E quando param, há a morte que sobe à roda deles, além, mesmo debaixo dos pés deles, na loja, no rés-do-chão do Hotel Sainte-Blanche. Lá, os gatos-pingados com olhos maus apagam-nos,
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extinguem-nos, fazem desaparecer os corpos deles, substituem os rostos por máscaras de cera, as mãos por luvas que saem dos fatos vazios.
Para onde ir, desaparecer para onde? Lalla gostaria de descobrir um esconderijo, como dantes, na gruta do Hartani, no alto da falésia, um lugar onde se avistasse finalmente apenas o mar e o céu.
Chega ao largo e senta-se no banco de plástico, diante da parede da casa escalavrada, com janelas vazias como os olhos de um gigante morto.
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Em seguida, houve um pouco por toda a cidade uma espécie de febre. Talvez fosse por causa do vento que se pôs a soprar no fim do Inverno, não o vento de desgraça e de doença, como quando o velho Naman tinha começado a morrer; mas um vento de violência e de frio, que percorria as grandes avenidas da cidade levantando a poeira e os jornais velhos, um vento que embriagava, que fazia cambalear. Lalla nunca sentiu um vento assim. Aquilo penetra no interior da cabeça e provoca turbilhões, atravessa o corpo como uma corrente fria, despertando grandes arrepios. Então, assim que vai para a rua esta tarde, afasta-se a correr, sempre a direito, sem mesmo olhar a loja da agência funerária onde se aborrece o homem vestido de preto.
No exterior, nas grandes avenidas, há muita luz, porque o vento a trouxe consigo. A luz salta, cintila nas carroçarias dos automóveis e nas vidraças das casas. Também aquilo entra para o interior da cabeça de Lalla, vibra na sua pele, faz brilhar o cabelo. Ela vê à sua volta, pela primeira vez de há muito tempo para cá, a brancura eterna das pedras e da areia, as chispas cortantes como o sflex, as estrelas. Lá longe, ao fundo da grande avenida, na bruma de luz aparecem as miragens, as cúpulas, as torres, os minaretes e as caravanas que se misturam ao formigueiro das pessoas e dos automóveis.
É o vento da luz, vindo de ocidente e que vai na direcção das sombras. Lalla ouve, como outrora, o ruído da luz a crepitar no asfalto, o ruído prolongado dos reflexos nas vidraças, todos os estalidos de brasa. Onde está? Há tanta luz que se sente como que isolada no centro de uma rede de agulhas. Talvez ela caminhe agora por sobre a imensa extensão de pedras e de areia, no lugar do centro do deserto onde o Hartani está à espera? Talvez ela sonhe enquanto anda, por causa da Lua e do vento, e que a grande cidade se vá dissolver, evaporar-se no calor do Sol que nasce, após a noite terrível?
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À esquina de uma rua, junto das escadas que levam à gare, está Radicz, o mendigo. Tem um ar cansado e ansioso e Lalla só com dificuldade o reconhece, porque o rapaz se tornou semelhante a um homem. Veste roupa que Lalla nunca viu, um fato castanho que flutua no seu corpo ossudo e grandes sapatos de cabedal preto que lhe devem magoar os pés nus.
Lalla gostaria de lhe falar, de lhe dizer que o senhor Ceresola morreu e que ela nunca mais voltará a trabalhar no Hotel Sainte-Blanche, nem em nenhum daqueles quartos onde a morte pode chegar a cada instante e transformar-nos numa máscara de cera; mas há demasiado vento e demasiado frio para se falar e ela então mostra a Radicz o punhado de notas de banco todas amarrotadas na sua mão:
- Olha!
Radicz abre muito os olhos, mas não faz perguntas. Talvez pense que Lalla roubou aquele dinheiro, ou pior ainda.
Lalla torna a guardar as notas no bolso do casaco. É tudo o que resta daqueles dias passados na porcaria do hotel, a esfregar os oleados com a escova e a varrer os quartos cinzentos que cheiram a suor e a tabaco. Quando disse ao dono do hotel que se ia embora, ele também não disse nada. Saltou da sua velha cama sempre por fazer e dirigiu-se ao cofre-forte, no fundo do quarto. Pegou no dinheiro, contou-o, acrescentou-lhe uma semana antecipada, deu tudo aquilo a Lalla e foi deitar-se sem dizer mais nada. Fez tudo sem pressas, em pijama, com a cara mal barbeada e o cabelo sujo, e em seguida retomou a leitura do jornal como se mais coisa nenhuma fosse importante.
Então, agora, Lalla está ávida de liberdade. Olha tudo à sua volta, as paredes, as janelas, os automóveis, as pessoas, como se fossem simples formas, imagens, fantasmas prestes a ser varridos pelo vento e pela luz.
Radicz tem um ar tão infeliz que Lalla sente pena dele.
- Vem! - Arrasta o rapaz pela mão, através dos redemoinhos da multidão. Entram juntos nuns grandes armazéns, onde brilha a luz, não a bela luz do Sol, mas uma claridade branca e dura reflectida por inúmeros espelhos. Mas esta claridade também embriaga, atordoa e cega. com Radicz, que vacila um pouco atrás dela, Lalla atravessa a secção dos perfumes, dos cosméticos, das perucas, dos sabonetes. Pára aqui e acolá, compra vários sabonetes de todas as cores, que dá a cheirar a Radicz. Depois, frasquinhos de perfume que respira um instante, enquanto caminha pelos corredores, e aquilo faz andar a cabeça à roda até causar enjoo. Batons, verdes para os olhos, pretos, ocres, bases, brilhantinas, cremes, pestanas postiças, madeixas postiças, tudo Lalla pede que lhe mostrem e ela mostra a Radicz, que não diz nada; depois escolhe demoradamente um frasquinho quadrado de verniz para as unhas, cor de tijolo, e um tubo de baton escarlate. Está sentada num tamborete, diante de um espelho, e experimenta as
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cores nas costas da mão, enquanto a caixeira de cabelos cor de palha a observa com olhos estúpidos.
No andar de cima, Lalla passeia-se por entre as roupas, sempre com Radicz pela mão. Escolhe uma t-shirt, um macaco de ganga azul, depois sapatos de ténis e peúgas encarnadas. Na sala de provas deixa o seu velho vestido-avental cinzento e as sandálias de borracha, mas fica com o casaco castanho porque gosta muito dele. Agora, caminha com mais ligeireza, saltitando sobre as solas elásticas, de mão enfiada no bolso do macaco. Os cabelos negros caem em pesados caracóis sobre a gola do casaco, cintilando à luz da electricidade branca.
Radicz olha para ela e acha-a bonita, mas não ousa dizer-lho. Os olhos dela brilham de alegria. Há como que o brilho do fogo nos cabelos de Lalla, no cobre vermelho do seu rosto. Agora é como se a luz da electricidade tivesse reanimado a cor do Sol do deserto, como se ela ali tivesse chegado, ao Prisunic, vinda directamente do caminho que desce dos planaltos de pedras.
Talvez, realmente, tudo tenha desaparecido e os grandes armazéns estejam isolados no centro de um deserto sem fim, semelhante a uma fortaleza de pedra e de lama. Mas o que a areia cerca, o que ela encerra é a cidade inteira, e ouvem-se estalar as superstruturas dos edifícios de cimento, enquanto as fendas riscam as paredes e caem os painéis de vidro espelhado dos arranha-céus.
É o olhar de Lalla que contém a força ardente do deserto. A luz é ardente nos seus cabelos negros, na trança espessa que ela faz na cova do ombro, enquanto anda. A luz é ardente nos seus olhos cor de âmbar, na sua pele, nas maçãs do rosto salientes, nos seus lábios. Então, nos grandes armazéns cheios de ruído e de electricidade branca, toda a gente se afasta, todos param à passagem de Lalla e de Radicz, o mendigo. As mulheres param, param os homens, porque nunca viram ninguém que se parecesse com eles. Lalla avança pelo meio do corredor, com o seu macaco escuro, com o seu casaco castanho que se abre no pescoço e no rosto cor de cobre. Não é alta, mas, contudo, parece imensa quando avança pelo centro do corredor e depois quando desce nas escadas rolantes para o rés-do-chão.
É por causa de toda a luz que jorra dos seus olhos, da sua pele, dos seus cabelos, dessa luz quase sobrenatural. Atrás dela vem o estranho rapaz magro, nas suas roupas de homem, com os pés nus enfiados em sapatos de couro preto, os seus cabelos negros e compridos, o rosto triangular de faces chupadas e de olhos encovados. Ele vai atrás, sem mover os braços, silencioso, um pouco de banda como os cães medrosos. As pessoas também o olham com espanto, como se ele fosse uma sombra separada de um corpo. Leva o medo estampado no rosto, mas procura disfarçá-lo com um sorriso esquisito que mais parece uma careta.
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Às vezes, Lalla volta-se, faz-lhe um pequeno sinal ou pega-lhe na mão:
- Anda!
Mas o rapaz logo se deixa distanciar.
Quando se encontram novamente no exterior, na rua, ao sol e ao vento, Lalla pergunta-lhe:
- Tens fome?
Radicz olha-a com olhos brilhantes, febris.
- Vamos comer - diz Lalla. E mostra-lhe o que resta do punhado de notas amarrotadas no bolso do macaco novo.
Pelas grandes avenidas rectilíneas, as pessoas caminham, umas depressa, outras devagar, arrastando os pés. Os automóveis continuam a rodar ao longo dos passeios, como se espreitassem alguma coisa, alguém, um lugar para se arrumarem. Há andorinhões no céu sem nuvens, que descem pelos vales das ruas soltando gritos estridentes. Lalla sente-se feliz por andar, assim, de mão dada com Radicz, sem dizer nada, como se fossem para o outro lado do mundo para nunca mais voltarem. Pensa nos países que há do outro lado do mar, nas terras vermelhas e amarelas, nas rochas negras que despontam da areia como dentes. Pensa nos olhos da água doce abertos para o céu e no gosto do chergui, que levanta a pele da poeira e faz avançar as dunas. Pensa ainda na gruta do Hartani, no alto da falésia, lá onde viu o céu, só o céu e mais nada. Agora é como se voltasse para essa terra, pelas avenidas fora, como se regressasse. As pessoas afastam-se à sua passagem, com os olhos franzidos pela luz, sem compreenderem. Ela passa diante dos outros sem os ver, como através de um povo de sombras. Lalla não fala. Aperta a mão de Radicz com força, vai sempre em frente, na direcção do Sol.
Quando chegam ao mar, o vento sopra com mais força, torna-se incomodativo. Os carros apitam com violência, prisioneiros dos engarrafamentos do porto. O medo lê-se de novo no rosto de Radicz e Lalla aperta-lhe bem a mão para o sossegar. Ela não pode hesitar, senão desaparece a embriaguez do vento e da luz, deixando-os entregues a si próprios e então nunca mais teriam coragem de ser livres.
Caminham pelos cais, sem olhar os barcos cujos mastros estalam. Os reflexos da água dançam no rosto de Lalla, fazem brilhar a sua pele de cobre, os seus cabelos. A luz à volta dela está encarnada, de um encarnado de brasa. O rapaz olha para ela e deixa-se penetrar pelo calor que sai de Lalla, que o embriaga. O coração dele bate com força, ecoa-lhe nas têmporas e no pescoço.
Agora surgem as altas paredes brancas, as largas vidraças do restaurante. É lá que ela quer ir. Por cima da porta, há mastros com bandeiras que estalam ao vento. Lalla conhece bem aquela casa, há muito que a vê de longe, muito branca, com as suas grandes vidraças que reflectem o clarão do sol-poente.
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Entra sem hesitar, empurrando a porta de vidro. A grande sala é escura, mas, nas mesas redondas, as toalhas formam manchas deslumbrantes. Num só instante, Lalla vê tudo distintamente: os ramos de flores cor-de-rosa em jarras de cristal, os talheres de prata, os copos facetados, os guardanapos imaculados, depois as cadeiras forradas de veludo azul-marinho e o parque de madeira encerada por onde circulam os criados vestidos de branco. É irreal e distante tudo aquilo. Não obstante, é ali que ela entra, andando devagar e sem ruído pelo parque, e segurando com muita força a mão de Radicz, o mendigo.
- Anda - diz Lalla. - Vamos sentar-nos além.
Aponta uma mesa, ao pé de uma grande janela. Atravessam a sala do restaurante. Em redor das mesas, os homens, as mulheres afastam a cabeça do prato e param de mastigar, de falar. Os criados ficam em suspenso, com a colher mergulhada na travessa do arroz, ou a garrafa de vinho branco um pouco inclinada, deixando cair no copo um fio muito delgado que se esgarça como uma chama que se está a apagar. Depois Lalla e Radicz sentam-se diante da mesa redonda, cada um do seu lado da bela toalha branca, separados por um ramo de rosas. Então as pessoas recomeçam a mastigar, a falar, mas mais baixo, e o vinho recomeça a correr, a colher serve o arroz e as vozes sussurram um pouco, cobertas pelo ruído dos automóveis que passam em frente das grandes vidraças como monstruosos peixes de aquário.
Radicz não se atreve a olhar em volta de si. Olha só para a cara de Lalla, com toda a força. Nunca viu uma cara tão bela, tão clara. A luz da janela ilumina os pesados cabelos negros, forma uma chama em torno do rosto de Lalla, no seu pescoço, nos seus ombros, mesmo nas suas mãos espalmadas em cima da toalha branca. Os olhos de Lalla são semelhantes a dois sílices, cor de metal e de fogo, e o seu rosto assemelha-se a uma máscara de cobre liso.
Um homem de alta estatura está agora diante da mesa. Veste um fato preto e a camisa é tão branca como as toalhas das mesas. É um gordo de ar aborrecido e mole, com uma boca sem lábios. Vai precisamente abrir a boca para dizer às duas crianças que se ponham a andar sem arranjar complicações, quando o seu olhar triste se cruza com o de Lalla e logo se esquece do que ia dizer. O olhar de Lalla é duro como o sílex, cheio de uma tal força que o homem de preto se vê obrigado a desviar os olhos. Dá um passo atrás, como se fosse retirar-se, e depois diz, numa voz esquisita um pouco sufocada:
- Desejam... Desejam tomar alguma coisa? Lalla continua a fitá-lo, sem pestanejar.
- Nós temos fome - diz ela simplesmente. - Traga-nos de comer. O homem de preto afasta-se e volta com a ementa, que coloca em cima
da mesa. Mas Lalla devolve o cartão, sem nunca desviar os olhos do
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homem. Talvez daqui a pouco ele se volte a lembrar do seu ódio e tenha medo da sua vergonha.
- Dê-nos a mesma coisa que a eles - ordena Lalla. Mostra o grupo da mesa vizinha, aqueles que a observam de quando em quando por cima dos óculos e meio voltados para ela.
O homem vai falar a um dos criados que se aproxima empurrando um carrinho carregado de travessas de todas as cores. O criado coloca nos pratos fatias de tomate, folhas de alface, filetes de anchovas, azeitonas e alcaparras, batatas frias, ovo cozido esfarelado e muitas outras coisas mais. Lalla observa Radicz, que come depressa, debruçado sobre o prato como um cão entretido a roer, e sente vontade de rir.
A luz e o vento continuam a dançar para ela, mesmo aqui, por cima dos copos e dos pratos, por cima dos espelhos das paredes e dos ramos de flores. As travessas chegam à mesa umas atrás das outras, enormes, flamejantes, cheias de toda a espécie de iguarias que Lalla não conhece: peixes a nadar em molhos cor de laranja, montículos de legumes, pratos de encarnado, de verde, de castanho, cobertos com uma cúpula de prata que Radicz levanta para fungar os cheiros. O escanção serve-lhe cerimoniosamente um vinho cor de âmbar, depois, num outro copo grande e leve, um vinho cor de rubi, quase negro. Lalla molha os lábios na bebida, mas é mais a cor o que ela bebe, olhando-a à transparência. É a luz que os embriaga mais do que o vinho, são as cores e os odores dos alimentos. Radicz come depressa, de tudo ao mesmo tempo, e bebe copos de vinho uns atrás dos outros. Mas Lalla quase não come; limita-se a contemplar o rapaz entretido a comer e as outras pessoas na sala, que parecem petrificadas diante dos seus pratos. O tempo parece ter parado, ou então é o seu olhar que imobiliza tudo, com a luz. Na rua, os carros continuam a passar diante das janelas, e vê-se a cor cinzenta do mar por entre os barcos.
Quando Radicz acaba de comer tudo o que há nas travessas, limpa a boca ao guardanapo e encosta-se ao espaldar da cadeira. Está um pouco corado e os olhos brilham com intensidade.
- Era bom? - pergunta Lalla.
- Era, sim - diz simplesmente Radicz. Está quase com soluços, de tanto comer. Lalla obriga-o a beber um copo de água e diz-lhe que a olhe nos olhos até desaparecerem os soluços.
O homem gordo de preto aproxima-se da mesa.
- Café?
Lalla abana a cabeça. Quando o chefe de mesa traz a conta numa bandeja, Lalla devolve-lha.
- Leia-a.
Tira do bolso do casaco o maço de notas amarrotadas e desdobra-as umas atrás das outras em cima da toalha. O chefe de mesa pega no dinheiro e prepara-se para se afastar, mas muda de intenções.
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- Há um senhor que gostaria de lhe falar, naquela mesa, além, ao pé da porta.
Radicz pega no braço de Lalla, puxa-a com violência.
- Anda, vamo-nos embora daqui!
Quando se aproxima da porta, Lalla vê na mesa vizinha um homem de uma trintena de anos, com um ar um pouco triste. Ele levanta-se e acerca-se dela. Balbucia.
- Eu, desculpe-me abordá-la deste modo, mas eu... Lalla olha bem para ele, a sorrir.
- Sabe, sou fotógrafo e gostava muito de a fotografar, quando quisesse. Como Lalla não lhe responde, e continua a sorrir, ele fica cada vez
mais embaraçado.
- É porque eu... vi-a além, há bocado, quando entrou no restaurante e era... era extraordinário, você é... Era realmente extraordinário.
Tira uma esferográfica do bolso do casaco e escreve rapidamente a sua morada e o seu nome num pedaço de papel. Mas Lalla abana a cabeça e não pega no papel.
- Eu não sei ler - diz ela.
- Então diga-me onde mora? - pede o fotógrafo. Ele tem olhos azul-
- acinzentados, muito tristes e húmidos como os olhos dos cães. Lalla olha-o com os seus olhos cheios de luz e o homem procura ainda qualquer coisa que lhe possa dizer.
- Eu moro no Hotel Sainte-Blanche - diz Lalla. E sai apressadamente.
Lá fora, Radicz, o mendigo, espera por ela. O vento espalma os cabelos compridos no seu rosto magro. Não parece satisfeito. Quando Lalla lhe fala, encolhe os ombros.
Juntos, dirigem-se ao mar, sem saber para onde vão. O mar, aqui, não é como na praia de Naman, o pescador. É um grande muro de cimento que se estende ao longo da costa, agarrado às rochas cinzentas. As ondas pequenas batem nos buracos das rochas produzindo explosões; a espuma sobe como um nevoeiro. Mas é bom, Lalla gosta de passar a língua pelos lábios e sentir o gosto do sal. Acompanhada de Radicz, desce até aos rochedos, até uma anfractuosidade ao abrigo do vento. O sol está muito quente neste sítio, brilha sobre o mar, ao largo, e nos rochedos salgados. Depois do ruído da cidade e depois de todos os cheiros bizarros do restaurante, sabe bem estar aqui, tendo à frente apenas o mar e o céu. Um pouco a ocidente, há ilhéus, alguns rochedos pretos que saem do mar como baleias - é Radicz quem o diz. Também há barquinhos com uma grande vela grande, dir-se-ia brinquedos de criança.
Quando o Sol começa a baixar no céu e a luz esmorece nas ondas e nos rochedos, quando o vento também sopra com menos força, sente-se um
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desejo de sonhar, de falar. Lalla olha as minúsculas plantas gordas que cheiram a mel e a pimenta; tremem a cada rajada de vento, nas concavidades das rochas cinzentas, em frente do mar. Pensa que gostaria de se tornar tão pequena que pudesse viver num bosque daquelas plantas; viveria então num buraco da rocha e uma única gota de água bastaria para lhe matar a sede durante todo o dia, uma migalha de pão seria mais que suficiente para se alimentar durante dois dias.
Radicz tira da algibeira do seu velho casaco castanho um maço de cigarros um pouco amarrotado e dá um a Lalla. Ele diz que nunca fuma diante dos outros, só quando está num sítio de que gosta. Diz que, com Lalla, é a primeira vez que fuma à frente de alguém. São cigarros americanos com um pedaço de cartolina e de algodão numa ponta e que cheiram enjoativamente a mel. Fumam os dois lentamente, olhando para o mar. O vento afasta o fumo azul.
- Queres que te conte como é o lugar onde moro, lá ao lado dos depósitos?
A voz de Radicz está agora toda alterada, um pouco rouca, como se a emoção lhe contraísse a garganta. Fala sem olhar para Lalla, fumando o cigarro até ele lhe queimar os lábios e a ponta dos dedos.
- Antes, eu não vivia com o patrão, tu sabes. Morava com o meu pai e a minha mãe num atrelado, andávamos de feira em feira, tínhamos uma barraca de tiro, bem, não era com carabinas, era com bolas e latas de conserva. E depois o meu pai morreu e como éramos muitos e o dinheiro era pouco, a minha mãe vendeu-me ao patrão e eu vim morar para aqui, em Marselha. Ao princípio, não sabia que a minha mãe me tinha vendido, mas um dia quis-me ir embora e o patrão apanhou-me e depois deu-me uma sova e disse-me que eu não podia voltar para o pé da minha mãe porque ela me tinha vendido e que agora era como se ele fosse o meu pai. Então, depois disto, nunca mais saí da casa dele, porque não queria tornar a ver a minha mãe. Ao princípio sentia-me muito triste, porque não conhecia ninguém e me sentia muito só. Mas depois habituei-me, porque o patrão é simpático, ele deixa-nos comer tudo o que nos apetece e mais valia isso do que ficar com a minha mãe, que não queria saber de mim. Nós éramos seis rapazes com o patrão, bem, primeiro éramos sete, houve um que morreu, teve uma pneumonia e morreu logo. Nós íamos sentar-nos nos sítios que o patrão tinha pago e pedíamos, e à noite levávamos o dinheiro, ficávamos com algum para nós e o resto era para o patrão, era com esse dinheiro que ele comprava a comida. O patrão estava sempre a recomendar-nos que não nos deixássemos apanhar pela polícia, porque nesse caso íamos parar à assistência pública e depois ele não nos conseguia sacar de lá. Nunca ficávamos muito tempo no mesmo lugar por causa disso e depois o patrão levava-nos para outro lado. Primeiro morámos num barracão, ao norte, depois tivemos um atrelado como o do meu pai e
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íamos acampar com os ciganos nos terrenos à saída da cidade. Agora, temos uma grande casa para nós todos, mesmo antes dos depósitos, e há outros miúdos que trabalham para um patrão chamado Mareei, e há também a Anita com outros miúdos, dois rapazes e três raparigas, acho que a mais crescida é mesmo filha dela. Trabalhamos do lado da estação, mas todos os dias não, para não sermos reconhecidos. Também vamos para o porto, e para o Cours Belsunce ou para a Canebière. Mas o patrão agora diz que eu já estou velho para andar a pedir, ele diz que isso é bom para os mais pequenos e para as raparigas, mas quer que eu trabalhe a sério e ensina-me a roubar das algibeiras nas lojas e nos mercados. Olha, estás a ver este fato, esta camisal, estes sapatos, tudo isto foi palmado por ele numa loja, enquanto eu estava à coca. Há bocado, se quisesses, podias ter ficado com esses trapos de borla, era fácil, bastava teres escolhido e eu passava-te as coisas, conheço os truques todos. Por exemplo, para as carteiras, têm que ser dois, há um que palma e passa-a logo ao outro para não ser apanhado com ela. O patrão diz que eu tenho jeito para o negócio, porque tenho mãos compridas e ágeis. Ele diz que são as melhores para tocar música ou para roubar. Agora, somos três a fazer isso, com a filha da Anita, vamos aos supermercados, enfim, por onde calha. Às vezes o patrão diz à Anita, pronto, vamos às compras ao supermercado, então escolhe dois rapazes, às vezes é a filha da Anita e um rapaz, pois o rapaz sou sempre eu. Os supermercados, sabes, são enormes, há tantos corredores que a gente até se perde neles, com coisas para comer, roupas, calçado, sabonetes, discos, tudo. Aos pares, o trabalhinho faz-se num instante. A gente tem um saco com fundo duplo para as coisas mais pequenas, para as coisas de comer, e o resto é a Anita quem põe em cima da barriga, ela tem uma coisa redonda que põe debaixo do vestido como se estivesse grávida, e o patrão, esse, tem uma gabardina toda cheia de bolsos por dentro, depois é só apanharmos tudo o que nos apetece e irmo-nos embora! Sabes, ao princípio, eu tinha medo que me apanhassem, mas o que é preciso é saber escolher a altura e nunca hesitar. Se hesitares, a segurança repara logo em ti. Eu agora já consigo descobrir logo quem são os vigilantes, mesmo ao longe, eles têm todos a mesma maneira de andar, de espreitar pelo canto do olho, era capaz de os reconhecer a um quilómetro de distância. Eu, o que prefiro, é trabalhar nas ruas, com os carros. O patrão diz que vai ensinar-me a trabalhar com os carros, é a especialidade dele. Às vezes, vai à cidade e traz um carro para eu me treinar. Ensinou-me a abrir as fechaduras com um arame ou com uma chave falsa. A maior parte das portas podem abrir-se com uma chave falsa. Depois, ensinou-me a tirar os fios debaixo do tablier para desligar o anti-roubo. Mas ele diz que ainda sou muito novo para guiar. Por isso tiro tudo o que posso dos automóveis, às vezes há uma data de coisas no compartimento das luvas, livros de cheques, papéis, mesmo dinheiro, e debaixo dos bancos, máquinas fotográficas,
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aparelhos de rádio. Eu gosto de trabalhar é de manhã muito cedo, sozinho, quando não há ninguém nas ruas, só um gato lá de vez em quando, e gosto de ver o Sol nascer, com o céu muito limpo de manhã. O patrão também quer que eu aprenda a trabalhar com as fechaduras das portas das casas, das moradias ricas, aqui para estes lados, ao pé do mar, ele diz que a dois podíamos fazer um bom trabalho, porque somos leves e sabemos subir muros com facilidade. Então, ensina-nos os truques para abrir as fechaduras e as janelas também. Ele já não quer meter-se nisso, diz que está velho de mais e que já não era capaz de correr se fosse preciso, mas não é por isso, é porque já foi caçado uma vez e tem medo. Eu já fui uma vez com um tipo que se chama Rito, ele é mais velho do que eu, já trabalhou em tempos para o patrão e levou-me com ele. Fomos a uma rua ao pé do Prado, ele tinha lá uma casa debaixo de olho e sabia que não estava ninguém. Eu não entrei, fiquei no jardim enquanto o Rito fazia a mudança de tudo o que podia, depois levámos tudo para o carro onde o patrão estava à nossa espera. Tive medo, porque fui eu que fiquei no jardim à coca e acho que não teria tido tanto medo se tivesse entrado na casa para trabalhar. Mas temos que aprender tudo antes de começar, senão deixamo-nos apanhar. Para entrar, primeiro, é preciso descobrir qual é a melhor janela e depois trepar por uma árvore ou pelo algeroz. Não se pode ter vertigens. E não se pode perder a cabeça, se os chuis vierem, tem que se ficar quieto ou esconder-se debaixo do telhado, porque se cavares a correr eles apanham-te num ai. Por isso, o patrão mostra-nos como se faz tudo, lá no nosso hotel, obriga-nos a escalar a casa, a andar em cima do telhado de noite, até nos ensina a saltar como os pára-quedistas. Mas ele diz que não vamos ficar eternamente ali, que vamos comprar uma caravana e partir para Espanha. Eu antes queria ir para Nice, mas acho que o patrão prefere a Espanha. Tu não queres vir connosco? Sabes, eu dizia ao patrão que tu eras uma amiga e ele não te perguntava nada, eu dizia-lhe só que tu eras minha amiga e que ias viver connosco na caravana, era bem bom. Talvez tu também pudesses aprender a trabalhar nas lojas, ou podíamos andar os dois aos carros, um de cada vez, assim ninguém desconfiava de nós. Sabes, a Anita é muito simpática, tenho a certeza que havias de gostar dela, é uma mulher de cabelo loiro e olhos azuis, ninguém acredita que é uma cigana. Se tu viesses connosco, não me importava de ir para Espanha, podia ir para qualquer lado...
Radicz pára de falar. Apetecia-lhe perguntar coisas a Lalla, a respeito da criança que ela traz na barriga, mas não se atreve. Acendeu outro cigarro e fuma; de vez em quando, passa o cigarro a Lalla para que tire uma fumaça. Ambos contemplam o mar tão belo, as ilhas negras como baleias, e os barcos brinquedos que avançam lentamente pelo mar cheio de luz. De quando em quando, o vento sopra com tanta força que se diria que mar e céu se vão voltar.
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Lalla observa agora as suas fotos nas folhas das revistas e nas primeiras páginas dos jornais. Olha para os maços de fotos, para as provas de contacto, para as maquetas a cores onde o seu rosto aparece, quase em tamanho natural. Folheia as revistas de trás para a frente, com elas um pouco de través e inclinando a cabeça de lado.
- Agradam-te? - pergunta o fotógrafo, com uma certa inquietação na voz, como se isso fosse importante.
Mas a ela tudo aquilo lhe dá vontade de rir, rir com aquele seu riso sem ruído que faz cintilar os dentes muito brancos. Ri-se de tudo, das fotografias, dos jornais, como se fosse uma brincadeira, como se não fosse ela a pessoa que figurasse naquelas folhas de papel. Para começar, não é ela. É Hawa, foi este o nome que adoptou, que deu ao fotógrafo, e é assim que ele a trata; foi assim que ele a chamou, da primeira vez que a encontrou, nas escadas do Panier, e que a trouxe a casa dele, aquele grande apartamento vazio no rés-do-chão do prédio novo.
Agora, Hawa está em toda a parte, nas páginas das revistas, nas provas de contacto, nas paredes do apartamento. Hawa vestida de branco, com um cinto preto à volta da cintura, sozinha no meio das rochas, sem sombra; Hawa, de seda preta, com um lenço apache à volta da testa; Hawa de pé no meio do dédalo das ruas da cidade velha, ocre, vermelho, ouro; Hawa diante do Mediterrâneo, Hawa no meio da multidão do Cours Belsunce, ou então nos degraus das escadas da estação; Hawa vestida de anil, de pés descalços no asfalto da esplanada tão grande como um deserto, com as silhuetas dos depósitos e das chaminés que fumegam; Hawa a andar, a dançar, Hawa a dormir, Hawa do belo rosto cor de cobre, do corpo longo e liso, que brilha na luz, Hawa do olhar de águia, dos pesados cabelos negros que escorrem pelos ombros, ou então alisados pela água do mar como um capacete de galalite.
Mas quem é Hawa? Todos os dias, quando desperta no grande living-room cinzento e branco onde dorme num colchão pneumático posto no
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chão, vai lavar-se na casa de banho, sem ruído, depois salta pela janela e vai pelas ruas do bairro, ao acaso, até chegar ao mar. O fotógrafo acorda, abre os olhos, mas não se mexe, faz de conta que não ouviu nada, para não incomodar Hawa. Ele sabe que ela é assim, que não se deve tentar retê-la. Limita-se a deixar a janela aberta, para ela poder entrar como um gato.
Às vezes só volta à noite. Entra pela janela. O fotógrafo ouve-a; sai do laboratório e vai sentar-se ao lado dela no living-room, para lhe falar um pouco. Fica sempre comovido quando a vê, por haver tanta luz e tanta vida no rosto dela, e pisca um pouco os olhos porque ao sair do escuro do laboratório fica encandeado. Ele julga sempre ter muitas coisas a dizer-lhe, mas, quando vê Hawa à sua frente, já não sabe o que há-de contar. É ela quem fala, quem conta o que viu, o que ouviu nas ruas, e vai comendo um pouco enquanto fala, pão que comprou, fruta, tâmaras que traz aos quilos para casa do fotógrafo.
O mais extraordinário de tudo isto são as cartas: chegam de todos os lados, com o nome de Hawa no sobrescrito. São os jornais de modas, as revistas que as enviam, acrescentando o nome do fotógrafo e a sua morada. Ele fica feliz mas também inquieto por receber todas aquelas cartas. Hawa pede-lhe que as leia e escuta sempre com a cabeça um pouco inclinada de lado, bebendo chá de hortelã-pimenta (agora a kitchenette do fotógrafo está cheia de caixas de gunpowder e de chá de jasmim, e de pacotinhos de hortelã-pimenta). As cartas dizem às vezes coisas extraordinárias, coisas muito estúpidas escritas por raparigas que viram a foto de Hawa em qualquer lado e que lhe falam como se a conhecessem desde sempre. Ou então cartas de rapazes que ficaram apaixonados por ela e que dizem que ela é bela como Nefertiti ou como uma princesa inça, e que gostavam muito de se encontrarem com ela um dia.
Lalla põe-se a rir:
- Que mentiroso!
Quando o fotógrafo lhe mostra as fotos que acaba de fazer, Hawa, com os seus olhos em amêndoa, brilhantes como gemas, e a sua pele cor de âmbar, cheia de centelhas de luz, e os seus lábios com um sorriso um pouco irónico, e o seu perfil agudo, Lalla Hawa põe-se a rir outra vez e repete:
- Que mentiroso! Que mentiroso!
Porque pensa que aquilo não se parece com ela.
Há também cartas sérias, que falam de contratos, de dinheiro, de encontros, de passagens de modelos. É o fotógrafo quem decide tudo, quem trata de tudo. Telefona aos costureiros, anota os encontros na sua agenda, assina os contratos. É ele quem escolhe os modelos, as cores, quem indica o local onde se farão as fotos. Depois leva Hawa na sua carrinha Volkswagen encarnada e vão para muito longe, para onde já não há casas, só
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colinas cinzentas cobertas de moitas espinhosas, ou então para o delta do grande rio, para as praias lisas dos pauis, onde o céu e a água são da mesma cor.
Lalla Hawa gosta muito de viajar na carrinha do fotógrafo. Vê a paisagem correr pelos vidros das janelas, a estrada negra que serpenteia na sua direcção, as casas, os jardins, as bermas que se esboroam de ambos os lados. Há pessoas ao lado da estrada que olham com um ar vazio, como num sonho. Talvez seja um sonho que está a ser vivido por Lalla Hawa, um sonho onde já não há verdadeiramente dia nem noite, fome nem sede, mas apenas o deslizar das paisagens de gesso, das silvas, dos cruzamentos das estradas, das cidades que passam, com as suas ruas, os seus monumentos, os seus hotéis.
O fotógrafo não pára de fotografar Hawa. Muda de aparelho, mede a luz, dispara. O rosto de Hawa está em todo o lado, em toda a parte. Está na luz do Sol, aceso como uma glória no céu de Inverno, ou então no âmago da noite, vibra nas ondas dos aparelhos de rádio, nas mensagens telefónicas. O fotógrafo fecha-se sozinho no seu laboratório, debaixo da lampadazinha laranja, e contempla indefinidamente o rosto que adquire forma no papel mergulhado no banho de ácido. Primeiro os olhos, imensos, manchas que se aprofundam, depois os cabelos negros, a curva dos lábios, a forma do nariz, a sombra sob o queixo. Os olhos olham não se sabe para onde, como Hawa sempre faz, não se sabe bem para onde, do outro lado do mundo, e o coração do fotógrafo põe-se a bater mais depressa, de cada vez, como na primeira vez em que captou a luz do seu olhar, no restaurante das Galères, ou então quando a voltou a encontrar, mais tarde, ao acaso das escadas da cidade velha.
Ela dá-lhe a sua forma, a sua imagem, mais nada. Às vezes o contacto da palma da sua mão, ou a faísca eléctrica quando os cabelos dela lhe roçam pelo corpo, e depois o seu odor, um pouco acre, um pouco picante como o cheiro dos citrinos, e o som da sua voz, do seu riso claro. Mas quem é ela? Talvez não seja mais que o pretexto de um sonho, sonho que ele persegue no seu laboratório obscuro com as suas máquinas de fole e as lentes que ampliam a sombra dos olhos dela, a forma do seu sorriso? Um sonho que partilha com os outros homens, nas páginas dos jornais e nas fotos brilhantes das revistas.
Ele leva Hawa de avião até à cidade de Paris, circulam de táxi sob um céu pardo, à beira do rio Sena, para os encontros de negócios. Tira fotografias nos cais do rio lamacento, nas grandes praças, nas avenidas sem fim. Fotografa incansavelmente o belo rosto cor de cobre onde a luz desliza como a água. Hawa vestindo uma combinação de cetim preto. Hawa com uma gabardina azul-escura e os cabelos apanhados numa só trança espessa. Sempre que o seu olhar encontra o de Hawa, é como se sentisse um beliscão no coração, e é por isso que se apressa a tirar fotografias, cada
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vez mais fotografias. Avança, recua, muda de máquina, põe um joelho no chão. Lalla troça dele:
- Parece que estás a dançar.
Ele desejaria zangar-se, mas é impossível. Enxuga a testa molhada de suor, a arcada supraciliar que escorrega contra o visor. Depois, subitamente, Lalla sai do campo de luz, porque está farta de ser fotografada. Vai-se embora. Ele, para não sentir o vazio, vai continuar a olhá-la ainda durante horas, na noite do laboratório improvisado na sala de banho do seu quarto de hotel, aguardando a contar as pancadas do seu coração que o belo rosto surja na bacia de ácido, sobretudo o olhar, a luz profunda que jorra dos olhos oblíquos, a luz cor de sombra. Do mais longe, como se outra pessoa, alguém mais secreto, olhasse por essas pupilas, julgasse em silêncio. E depois o que vem em seguida, lentamente, semelhante a uma nuvem que se forma, a testa, a linha das maçãs do rosto altas, o pigmento da pele acobreada, gasta pelo sol e pelo vento. Há algo de secreto nela, que se revela ao acaso no papel, algo que se pode ver, mas nunca possuir, mesmo se se tirassem fotografias em cada segundo da sua existência, até à hora da morte. Há o sorriso também, muito meigo, um pouco irónico, que afunda os cantos dos lábios, que encolhe os olhos oblíquos. É tudo isso que o fotógrafo desejaria agarrar, com os seus aparelhos fotográficos, para depois fazer renascer na obscuridade do seu laboratório. Às vezes tem a impressão de que tudo aquilo vai aparecer realmente, o sorriso, a luz dos olhos, a beleza das feições. Mas aquilo só dura um breve instante. Na folha de papel mergulhada no ácido, o desenho mexe, modifica-se, turva-se, cobre-se de sombra, e é como se a imagem apagasse a pessoa que está viva.
Talvez esteja noutra coisa que não seja a imagem? Talvez seja o andar, o movimento? O fotógrafo olha os gestos de Lalla Hawa, a sua maneira de se sentar, de mexer as mãos, com a palma aberta, formando uma linha curva perfeita desde o interior do cotovelo até à ponta dos dedos. Olha a linha da nuca, as costas flexíveis, as mãos e os pés largos, os ombros e a pesada cabeleira negra de reflexos cendrados, que cai em caracóis espessos nos ombros. Olha Lalla Hawa e é como se, por instantes, vislumbrasse uma outra figura a aflorar o rosto da jovem, um outro corpo atrás do seu corpo; quase imperceptível, leve, passageira, outra pessoa surge na profundidade e logo se apaga, deixando uma recordação tremulante. Quem é? Aquela a quem chama Hawa, quem é, qual será o seu verdadeiro nome?
Às vezes, Hawa olha para ele, ou então olha as pessoas, nos restaurantes, nas salas de espera dos aeroportos, nos escritórios, olha-as como se os seus olhos fossem simplesmente apagá-las, fazê-las regressar ao nada a que devem pertencer. Quando tem aquele olhar estranho, o fotógrafo sente um arrepio, como se um frio se entranhasse nele. Mas não sabe o que é. Talvez seja o outro ser que vive em Lalla Hawa que olha e que julga o
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mundo, pelos seus olhos, como se nesse instante tudo isso, aquela cidade gigante, aquele rio, aqueles largos, aquelas avenidas, tudo desaparecesse e deixasse ver a extensão do deserto, a areia, o céu, o vento.
Então o fotógrafo leva Hawa aos lugares que se assemelham ao deserto; as grandes planícies pedregosas, os pântanos, as alamedas, os terrenos vagos. Para ele, Hawa caminha na luz do Sol e o seu olhar varre o horizonte como o das aves da rapina, à procura de uma sombra, de uma silhueta. Ela olha demoradamente, como se procurasse realmente alguém; depois fica imóvel sobre a própria sombra, enquanto o fotógrafo começa a fotografar.
Que procura ela? Que pretende ela da vida? O fotógrafo observa-lhe os olhos, o rosto, e sente a profundidade da inquietação atrás da força da sua luz. Há também a desconfiança, o instinto de fuga, aquela espécie de clarão esquisito que atravessa fugazmente o olhar dos animais selvagens. Ela disse-lho um dia, quando ele esperava por isso, falou-lhe docemente na criança que traz dentro de si, que lhe arredonda o ventre e lhe incha os seios, e:
- Um dia, sabes, vou-me embora, hei-de partir, e é escusado reter-me, porque irei para sempre...
Ela não quer dinheiro, isso não lhe interessa. Sempre que o fotógrafo lhe dá dinheiro - o preço das horas de pose - Hawa pega nas notas de banco, escolhe uma ou duas e devolve-lhe o resto. Às vezes, mesmo, é ela quem lhe dá dinheiro, punhados de notas e de moedas que tira do bolso do macaco, como se não quisesse guardar nada para si.
Ou então percorre as ruas da cidade, à procura dos mendigos às esquinas, e dá-lhes dinheiro, aos punhados de moedas também, apoiando bem a mão na deles para que não percam nada. Dá dinheiro às ciganas de lenço na cabeça que erram descalças pelas grandes avenidas e às velhas de preto acocoradas à entrada das estações de correio; aos vadios estendidos nos bancos, nas praças, e aos velhos que remexem nos caixotes dos ricos, ao cair da noite. Todos eles a conhecem bem e quando a vêem chegar, olham-na com olhos que brilham. Os vagabundos julgam que ela é uma prostituta, porque só as prostitutas é que lhes dão tanto dinheiro, e dizem graças e riem muito alto, mas mesmo assim têm um ar contente por a ver.
Agora, fala-se em todo o lado de Hawa. Em Paris, os jornalistas vêm vê-la, e há uma mulher que lhe faz perguntas, uma tarde, no vestíbulo do hotel.
- Fala-se de si, do mistério de Hawa. Quem é Hawa?
- Eu não me chamo Hawa, quando nasci não tinha nome, nessa altura chamava-me Bla Esm, o que quer dizer "Sem Nome".
- Então, porquê Hawa?
- Era o nome da minha mãe, e eu chamo-me Hawa, filha de Hawa, é tudo.
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- De que país veio?
- O país de onde eu vim não tem nome, como eu.
- Onde é?
- É onde não há mais nada, mais ninguém.
- Porque está aqui?
- Gosto de viajar.
- Do que é que gosta na vida?
- Da vida.
- Comida?
- A fruta.
- A sua cor preferida?
- O azul.
- A pedra preferida?
- As pedras do caminho.
- A música?
- As canções de embalar.
- Diz-se que escreve poemas?
- Eu não sei escrever.
- E quanto ao cinema? Tem projectos?
- Não.
- O que é o amor para si?
Mas subitamente Lalla Hawa fica farta e afasta-se muito depressa, sem se voltar, empurra a porta do hotel e desaparece na rua.
Agora há pessoas que a reconhecem na rua, raparigas que lhe dão uma das suas fotos para que ela a assine. Mas como Hawa não sabe escrever, desenha apenas o sinal da sua tribo, aquele que marcam na pele dos camelos e das cabras e que se parece um pouco com um coração:
Há tanta gente em toda a parte, nas avenidas, nos armazéns, nas estradas. Tantas pessoas que se empurram, que se olham. Mas quando o olhar de Lalla Hawa passa por elas, é como se tudo se apagasse, se tornasse mudo e deserto.
Lalla Hawa quer atravessar esses lugares muito depressa, para saber o que há depois. Uma noite, o fotógrafo leva-a a um dancing que se chama o Palace, o Paris-Palace, um nome assim. Para dançar, pôs um vestido preto decotado nas costas, porque o fotógrafo quer fazer fotos.
Também aquele é um lugar que se parece com as grandes praças vazias onde só há as silhuetas dos prédios e as carroçarias dos automóveis parados ao sol. É um lugar terrível e vazio, onde os homens e as mulheres se
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comprimem e fazem caretas na escuridão abafante, com os clarões da luz eléctrica nas nuvens do fumo dos cigarros e o ruído do trovão que agride, que faz vibrar o chão e as paredes.
Lalla Hawa senta-se num canto, num degrau, e olha os que dançam, os rostos luzidios de suor, as roupas a faiscar. Ao fundo da sala, numa espécie de gruta, há os músicos: agitam as guitarras, batem nos tambores, mas o ruído da música parece vir de outro lado, semelhante a gritos de gigantes.
Depois, também ela dança, no meio das pessoas. Dança como aprendeu outrora, só no meio das pessoas, para disfarçar o medo, porque há barulho de mais, luz a mais. O fotógrafo fica sentado no degrau, sem se mover, sem mesmo pensar em fotografar. Ao princípio, as pessoas não reparam em Hawa, porque estão cegas pela luz. Depois, é como se sentissem que tinha chegado qualquer coisa de extraordinário, sem que dessem por isso. Afastam-se, param de dançar, uns atrás dos outros, para olharem Lalla Hawa. Ela está sozinha no círculo de luz e não vê ninguém. Dança ao ritmo lento da música eléctrica e é como se a música estivesse no interior do seu corpo. A luz brilha no tecido negro do vestido, na pele cor de cobre, nos cabelos. Não se lhe vêem os olhos por causa do escuro, mas o olhar dela passa pelas pessoas e enche a sala, com toda a sua força, com toda a sua beleza. Hawa dança descalça no soalho liso, os pés longos e chatos batem ao ritmo dos tambores, ou antes, é ela que parece ditar com a planta dos pés e os calcanhares o ritmo da música. O seu corpo flexível ondula, as ancas, os ombros e os braços estão ligeiramente afastados como se fossem asas. A luz dos projectores reflecte-se nela, envolve-a, cria turbilhões em torno dos seus passos. Ela está absolutamente só na grande sala, só como no meio de uma esplanada, só como no meio de um planalto de pedras, e a música eléctrica toca só para ela, no seu ritmo lento e pesado. Talvez eles tenham desaparecido todos, finalmente, todos aqueles que estavam ali em torno dela, homens, mulheres, reflexos passageiros dos espelhos fascinados, devorados? Ela já não os vê, já não os ouve mais. Até o fotógrafo desapareceu, sentado no seu degrau. Tornaram-se semelhantes a rochedos, semelhantes a blocos de calcário. Mas ela, ela pode mover-se, está livre, finalmente gira sobre si mesma, de braços afastados, enquanto os pés batem no chão, com a ponta dos dedos e depois com o calcanhar, como nos raios de uma grande roda cujo eixo sobe até à noite.
Ela dança, para se ir, para se tornar invisível, para subir como um pássaro para as nuvens. Sob os pés descalços, o pavimento de plástico torna-se escaldante, leve, cor de areia, e o ar gira em torno do seu corpo à velocidade do vento. A vertigem da dança já faz surgir a luz, não a luz dura e fria dos spots, mas a bela luz do Sol, quando a terra, as rochas e mesmo o céu são brancos. É a música lenta e pesada da electricidade, das guitarras, do órgão e dos tambores, que entra nela mas que talvez ela já não ouça. A música é tão lenta e profunda que cobre a sua pele de cobre,
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os seus cabelos, os seus olhos. A embriaguez da dança espalha-se à volta dela, e os homens e as mulheres, após uma breve pausa, retomam os movimentos da dança, mas seguindo o ritmo do corpo de Hawa, batendo no chão com os dedos dos pés e os calcanhares. Ninguém diz nada, ninguém respira. Aguarda-se, com êxtase, que o movimento da dança entre em nós, nos arraste, como aquelas trombas que avançam pelo mar. A pesada cabeleira de Hawa ergue-se e bate nos ombros em cadência, as mãos estremecem com os dedos afastados. No pavimento vitrificado, os pés descalços dos homens e das mulheres batem cada vez mais depressa, cada vez com mais força, enquanto se acelera o ritmo da música eléctrica. Na grande sala já não há todas aquelas paredes, todos aqueles espelhos, todos aqueles clarões. Desapareceram todos, aniquilados pela vertigem da dança, destruídos. Já não há aquelas cidades sem esperança, aquelas cidades de abismos, aquelas cidades de mendigos e de prostitutas, onde as ruas são ciladas, onde as casas são túmulos. Já não há nada disso, o olhar inebriado dos bailarinos eliminou todos os obstáculos, todas as mentiras antigas. Agora, à volta de Lalla Hawa, há uma extensão infindável de poeira e de pedras brancas, uma extensão viva de areia e de sal, e as ondas das dunas. É como dantes, no fim do carreiro das cabras, lá onde tudo parecia parar, como se se estivesse no fim do mundo, ao pé do céu, no limiar do vento. É como quando ela sentiu pela primeira vez o olhar de Es Ser, aquele a quem ela chamava o Segredo. Então, mesmo no centro da sua vertigem, enquanto os pés continuam a fazê-la girar sobre si própria, ela sente de novo, pela primeira vez de há muito tempo para cá, o olhar que se aproxima dela, que a examina. No centro da eira imensa e nua, longe dos homens que dançam, longe das cidades brumosas, o olhar do Segredo entra nela, toca-lhe o coração. A luz põe-se a arder de repente com uma força insustentável, é uma explosão branca e quente que estende os seus raios através de toda a sala, um relâmpago que deve quebrar todas as lâmpadas eléctricas, os tubos de néon, que fulmina os músicos de dedos nas guitarras e que faz rebentar todos os altifalantes.
Lentamente, sem deixar de girar, Lalla cai sobre si mesma, desliza no pavimento vitrificado, semelhante a um manequim desarticulado. Fica um longo momento só, estendida no chão, com o rosto escondido pelos cabelos, antes que o fotógrafo se aproxime dela, enquanto os dançarinos se afastam, sem compreenderem ainda o que lhes aconteceu.
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A morte veio. Começou pelos carneiros e pelas cabras, os cavalos também, que ficavam pelo leito do rio, de ventre inchado e patas afastadas. Depois foi a vez das crianças e dos velhos, que deliravam e já não se conseguiam levantar. Morriam em número tão elevado que tiveram de fazer um cemitério para eles, a jusante do rio, numa colina de poeira vermelha. Levavam-nos de madrugada, sem cerimónia, amarrados em serapilheiras velhas, e enterravam-nos num simples buraco cavado à pressa, em cima do qual pousavam depois algumas pedras para que os cães selvagens não os desenterrassem. Ao mesmo tempo que a morte, também tinha vindo o vento do Chergui. Soprava às rajadas, envolvendo os homens nas suas dobras escaldantes, apagando toda a humidade da terra. Nour errava todos os dias pelo leito do rio, com outras crianças, à procura dos camarões. Também colocava armadilhas feitas com laços de ervas e gravetos, para capturar as lebres e os gerbos, mas as mais das vezes as raposas já tinham passado antes dele.
Era a fome que roía os homens e fazia morrer as crianças. Desde que tinham chegado à cidade encarnada, os viajantes não tinham recebido quaisquer alimentos e as provisões estavam a esgotar-se. O grande xeque enviava todos os dias os seus guerreiros até às muralhas da cidade, para pedirem alimentos e terras para o seu povo. Mas os notáveis prometiam sempre e nunca davam nada. Também eram pobres, diziam. As chuvas tinham faltado, a seca tinha endurecido a terra, e as reservas da colheita já se haviam esgotado. Às vezes, o xeque e os seus filhos iam até às muralhas da cidade para pedir terras, sementes,
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uma parte dos palmares. Mas as terras não chegavam para eles próprios, diziam os notáveis, da nascente do rio até ao mar as terras férteis já estavam ocupadas, e os soldados dos cristãos vinham muitas vezes à cidade de Agadir e apoderavam-se da maior parte das colheitas.
De cada vez, Ma el Ainine escutava a resposta dos notáveis sem nada dizer e depois regressava à sua tenda, no leito do rio. Mas já não era a cólera nem a impaciência o que agora se avolumava no seu coração. com a vinda da morte, em cada dia, e o vento escaldante do deserto, era o desespero o que ele partilhava com o seu povo. Era como se os homens que erravam pelas margens vazias do rio, ou se acocoravam na sombra dos seus abrigos, tivessem diante dos olhos a evidência da sua condenação. Aquelas terras vermelhas, aqueles campos ressequidos, aquelas magras plataformas plantadas de oliveiras e de laranjeiras, aqueles palmares escuros, tudo aquilo lhes era alheio, distante, semelhante às miragens.
Apesar do seu desespero, Larhdaf e Saadbou queriam atacar a cidade, mas o xeque recusava essa violência. Os homens azuis do deserto estavam agora demasiado cansados, havia já muito tempo que caminhavam e jejuavam. A maioria dos guerreiros estavam febris, doentes do escorbuto, com as pernas cobertas de chagas envenenadas. Mesmo as armas já não serviam para nada.
As pessoas da cidade desconfiavam dos homens do deserto, e as portas conservavam-se fechadas todo o dia. Todos aqueles que se tinham querido aventurar do lado das muralhas haviam sido alvejados a tiro: era um aviso.
Então, quando compreendeu que mais nada havia a esperar, que iam morrer todos, uns atrás dos outros, no leito escaldante do rio, diante das muralhas da cidade impiedosa, Ma el Ainine deu o sinal de partida para norte. Desta vez, não houve oração, nem cantos, nem dança. Uns após os outros, vagarosamente, como animais doentes que desdobram os membros e se erguem a cambalear, os homens azuis abandonaram o leito do rio e recomeçaram a sua marcha para o desconhecido.
Agora a tropa do xeque já não tinha a mesma aparência. Caminhavam com o préstito dos homens e dos animais, moídos como eles, com as roupas em farrapos, o olhar febril e vazio. Talvez tivessem deixado de acreditar nas razões daquela longa marcha, talvez
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continuassem a avançar por hábito, no extremo limite das suas forças, prestes a cair a cada instante. As mulheres avançavam inclinadas para a frente, com o rosto dissimulado nos véus azuis, e muitas já não tinham os seus filhos consigo, porque haviam ficado na terra vermelha do vale de Souss. Depois, no fim do cortejo que se estendia por todo o vale, eram as crianças, os velhos, os guerreiros feridos, todos os que andavam devagar. Nour encontrava-se neste grupo, guiando o guerreiro cego. Ele já nem sabia onde estava a sua família, perdida algures na nuvem de poeira. Só alguns guerreiros tinham ainda a sua montada. O grande xeque seguia no meio deles, montado num camelo branco, envolto na sua túnica.
Ninguém falava. Cada um ia por si, com a cara enegrecida, os olhos febris olhando fixamente a terra vermelha das colinas, para oeste, para ver se descobriam a pista que transpunha as montanhas até à cidade santa de Marráquexe. Caminhava-se na luz que agride o crânio, a nuca, que faz vibrar a dor dos membros, que queima até ao centro do corpo. Já não se ouvia o vento, nem o ruído dos passos dos homens raspando o deserto. Cada um só ouvia o ruído do próprio coração, o ruído dos seus nervos, o sofrimento que silva e range atrás dos tímpanos.
Nour já não sentia a mão do guerreiro cego agarrada ao seu ombro. Prosseguia apenas, sem saber porquê, sem esperança de nunca mais parar. Quem sabe se no dia em que o seu pai e a sua mãe tinham resolvido abandonar os acampamentos do Sul não teriam sido condenados a errar até ao fim da sua existência, naquela marcha sem fim, de poço em poço, por aqueles vales ressequidos? Mas haveria no mundo outras terras sem ser aquelas, extensões infinitas, amalgamadas ao céu pela poeira, montanhas sem sombra, pedras agudas, rios sem água, moitas de espinhos em que apenas um deles basta para dar a morte através de uma minúscula ferida? Todos os dias, ao longe, nos flancos das colinas, os homens avistavam novas casas, fortalezas de barro vermelho, rodeadas de campos e de palmares. Mas viam-nas como se vêem miragens, tremulando no ar sobreaquecido, longínquas, inacessíveis. Os habitantes das aldeias não se mostravam. Tinham fugido para as montanhas ou então escondiam-se
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atrás das muralhas, dispostos a combater os homens azuis do deserto.
À testa da caravana, nos seus cavalos, os filhos de Ma el Ainine mostravam a abertura estreita do vale, no meio do caos das montanhas.
- A estrada! A estrada do Norte!
Então atravessaram a serra durante dias. O vento escaldante soprava nas ravinas. O céu azul era imenso por cima das rochas vermelhas. Não havia ninguém por aqui, nem homem nem animal, só às vezes o rasto de uma serpente na areia ou, muito alto no céu, a sombra de um abutre. Avançava-se sem procurar a vida, sem avistar um sinal de esperança. Como cegos, homens e mulheres caminhavam atrás uns dos outros, colocando os pés nas marcas dos passos que os precediam, misturados aos animais do rebanho. Quem os guiava? A pista de terra serpenteava pelas ravinas, transpunha os montes de entulho, confundia-se com os leitos das torrentes secas.
Os viajantes chegaram finalmente à beira do oued Issene, engrossado pelo degelo. A água era bela e pulava, saltava entre as margens áridas. Mas os homens olharam-na sem emoção, porque esta água não era deles, não podiam ficar com ela. Ficaram vários dias na margem do oued, enquanto os guerreiros do grande xeque, acompanhados de Larhdaf e de Saadbou, subiam a pista de Chichaoua.
- Já chegámos, é aqui a nossa terra? - continuava a perguntar o guerreiro cego. A água fria do rio descia em cascata pelas rochas e a estrada tornava-se mais difícil. Depois a caravana chegou diante de uma aldeia chleuh, no fundo do vale. Os guerreiros do xeque esperavam-nos lá. Tinham erguido a sua grande tenda, e os xeques da montanha tinham sacrificado carneiros para receber Ma el Ainine. Era a aldeia de Aglagla, no sopé da alta montanha. As gentes do deserto instalaram-se ao pé dos muros da aldeia, sem nada pedir. À tarde, as crianças da aldeia vieram, trazendo a carne assada e o leite coalhado, e todos se puderam saciar como se não o fizessem há muito. Depois acenderam grandes fogueiras de cedro, porque a noite estava fria.
Nour contemplou demoradamente a dança das chamas na noite muito negra. Também ouve cantos, uma música estranha como ele nunca tinha ouvido, triste e
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lenta, acompanhada do som da flauta. Os homens e as mulheres da aldeia pediram a bênção de Ma el Ainine, para que os curasse das suas doenças.
Agora, os viajantes seguiam para o outro lado da montanha, na direcção da cidade santa. Talvez fosse lá que as gentes do deserto vissem o fim do seu sofrimento, conforme diziam os guerreiros azuis de Ma el Ainine, pois era em Márraquexe que Moulay Hafid, o Comendador dos Crentes, recebera a vassalagem de Ma el Ainine, catorze anos antes. Era lá que o rei tinha dado ao xeque um terreno, para que ele pudesse mandar construir a casa de ensino dos Goudfia. E depois, era na cidade santa que o filho mais velho de Ma el Ainine aguardava o seu pai para se juntar à guerra santa; e todos veneravam Moulay Hiba, aquele a quem chamavam Dehiba, a Parcela de Ouro, aquele a quem chamavam Moulay Sebaa, o Leão, pois ele era aquele a quem tinham escolhido para rei das terras do Sul.
À tarde, quando a caravana se detinha e as fogueiras se acendiam, Nour conduzia o guerreiro cego ao lugar onde os soldados de Ma el Ainine estavam sentados, e escutavam as narrativas do que se tinha passado antigamente, quando o grande xeque e os seus filhos tinham vindo com os guerreiros do deserto, todos montados em camelos rápidos, e como tinham entrado na cidade santa e sido recebidos pelo rei, com os dois filhos de Ma el Ainine, Moulay Sebaa, o Leão, e Mohammed Ech Chems, aquele a quem chamavam o Sol; também contavam as oferendas que o rei tinha feito para que o xeque pudesse erguer as muralhas da cidade de Smara; e a viagem que tinham feito, com rebanhos de camelos tão numerosos que cobriam toda a planície, enquanto as mulheres e as crianças, as provisões e os víveres eram embarcados a bordo do grande barco a vapor a que chamavam Bachir, e tinham navegado vários dias e várias noites de Mogador a Marsa Tarfaya.
Também contavam a legenda de Ma el Ainine, com vozes que cantavam um pouco, e era como que a descrição de um sonho que tivessem tido outrora. A voz dos guerreiros misturava-se ao ruído das chamas, e Nour via por instantes a silhueta ligeira do velho, através das volutas do fumo, semelhante a uma chama, no centro do acampamento.
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- O grande xeque nasceu longe, no Sul, no país chamado Hodh, e o pai dele era filho de Moulay Idriss, e a mãe era de linhagem do Profeta. Quando o grande xeque nasceu, o pai pôs-lhe o nome de Ahmed, mas a mãe chamou-le Ma el Ainine, a Água dos Olhos, porque tinha chorado de alegria na altura do seu nascimento...
Nour escutava na noite, com a cabeça encostada a uma pedra, ao lado do guerreiro cego.
- Quando tinha sete anos, já recitava o Corão sem dar uma falta e, então, o pai dele, Mohammed el Fadei, resolveu mandá-lo para a cidade santa de Meca e, pelo caminho, o menino ia fazendo milagres... Sabia curar os doentes e a quem lhe pedia água, ele dizia, o céu te dará a água, e logo uma grande chuvada caía sobre a terra...
O guerreiro cego baloiçava um pouco a cabeça, como se ritmasse as palavras, e Nour era lentamente arrastado para o sono.
- Então as pessoas vieram de todos os pontos do deserto para ver o menino que sabia fazer milagres, e o menino, o filho do grande Mohammed Fadei ben Maminna, punha só um pouco de saliva nos olhos do doente, soprava-lhe nos lábios, e o doente logo se erguia e beijava a mão do menino, porque estava curado...
Nour sentia o corpo do guerreiro cego a tremer de encontro a si, enquanto baloiçava lentamente a cabeça. Eram a voz monótona do narrador e o balanço das chamas e do fumo; até a terra parecia mover-se segundo o ritmo da voz.
- Então o grande xeque instalou-se na cidade santa de Chinguetti, no poço de Nazaran, perto de Ed Dakhla, para transmitir o seu saber, pois ele sabia a ciência dos astros e dos números, e a palavra de Deus. Então os homens do deserto tornaram-se seus discípulos, e chamavam-lhes Berik Allah, aqueles que receberam a bênção de Deus...
A voz do guerreiro azul continuava a salmodiar na noite, diante das chamas que subiam, dançavam, com o fumo que envolvia os homens e os fazia tossir. Nour escutava as descrições dos milagres, as nascentes que jorravam do deserto, as chuvas que regavam os campos áridos, e as palavras do grande xeque, na praça de Chinguetti, ou defronte da sua morada de Nazaran. Escutava o início da longa caminhada de Ma el Ainine através do
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deserto, até à smara, a terra dos matagais, onde o grande xeque tinha fundado a sua cidade. Escutava a legenda dos seus combates contra os espanhóis, em El Aaiun, em Ifni, em Tiznit, com os seus filhos, Rebbo, Taaleb, Larhdaf, Ech Chems, e aquele a quem chamavam Moulay Sebaa, o Leão.
Assim, todas as tardes, a mesma voz prosseguia a legenda, assim, em cantilena, e Nour esquecia onde estava, como se fosse a sua própria história o que o homem azul contava.
Do outro lado das montanhas, alcançaram a grande planície vermelha e avançaram para o Norte, indo de aldeia em aldeia. Em cada aldeia, homens de olhar febril, mulheres, crianças vinham juntar-se à caravana, e ocupavam o lugar dos que tinham morrido. O grande xeque seguia à frente, no seu camelo branco, rodeado pelos fiJhos e pelos guerreiros, e Nour avistava ao longe a nuvem de pó que parecia guiá-los.
Quando chegaram diante da grande cidade de Marráquexe, não ousaram aproximar-se e montaram o acampamento ao pé do rio seco, a sul. Os homens azuis aguardaram durante dois dias, quase sem esboçarem um movimento, abrigados nas suas tendas e nas cabanas de ramos. O vento quente do Verão cobria-os de poeira, mas eles esperavam, as forcas que lhes restavam eram para esperar.
Enfim, no terceiro dia, voltaram os filhos de Ma el Ainine. Ao lado deles, montado num cavalo, havia um homem de alta estatura, vestido como os guerreiros do Norte, e logo o seu nome correu de boca em boca: "Moulay Hiba, aquele a quem chamam Moulay Dehiba, a Parcela de Ouro, Moulay Sebaa, o Leão."
Quando o guerreiro cego ouviu o nome dele, pôs-se a tremer e as lágrimas escorriam-lhe dos olhos queimados. Correu a direito, de braços afastados, soltando um longo grito, uma espécie de grito agudo que dilacerava os ouvidos.
Nour tentou alcançá-lo, mas o cego corria com todas as suas forças, tropeçando nas pedras, vacilando no chão poeirento. As gentes do deserto afastavam-se à sua passagem, e alguns mesmo até tinham medo e desviavam os olhos, porque pensavam que o velho estava possesso do demónio. O guerreiro cego parecia devorado por um
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júbilo e um sofrimento sobre-humanos. Várias vezes caiu no chão, tropeçando numa raíz ou numa pedra, mas sempre se levantou e continuou a correr para o local onde se encontrava Ma el Ainine e Moulay Hiba, sem os ver. Finalmente, Nour alcançou-o e segurou-o pelo braço; mas o homem continuava a correr aos gritos, arrastando Nour com ele. Seguia sempre em frente, como se visse Ma el Ainine e o seu filho, avançava para eles sem se enganar. Então os guerreiros do xeque assustaram-se e empunharam as armas para impedir o cego de avançar. Mas o xeque disse simplesmente:
- Deixem-no vir.
Depois, desceu do seu camelo e aproximou-se do guerreiro cego.
- Que queres?
O guerreiro cego atirou-se para o chão, com os braços estendidos para diante, enquanto os soluços lhe sacudiam o corpo, o sufocavam. Só da sua garganta se continuava a escapar o longo gemido agudo, agora transformado num queixume fraco e plangente. Então foi Nour quem falou:
- Dá-lhe a vista, grande rei - disse ele.
Ma el Ainine olhou demoradamente o homem estendido no chão, com o corpo sacudido pelos soluços, as roupas em farrapos, os pés e as mãos ensanguentados pelo caminho. Sem nada dizer, ajoelhou-se ao lado do cego e pousou-lhe a mão na nuca. Os homens azuis e os filhos do xeque ficaram imóveis. O silêncio era tão grande nesse instante que Nour sentiu uma vertigem. Uma força estranha, desconhecida, jorrava da terra poeirenta, envolvia os homens no seu turbilhão. Era a luz do ocaso, talvez, ou então o poder do olhar que se tinha fixado naquele lugar, que procurava escapar-se como uma água prisioneira. Lentamente, o guerreiro cego endireitou-se e o seu rosto surgiu à luz, maculado pela areia e pela água das lágrimas. com uma ponta do seu haik azul-celeste, Ma el Ainine limpou o rosto do homem. Depois, passou-lhe a mão pela testa, pelas pálpebras queimadas, como se pretendesse apagar qualquer coisa. com a ponta dos dedos molhada em saliva, esfregou as pálpebras do cego e soprou delicadamente no seu rosto, sem pronunciar uma palavra. O silêncio durou tanto tempo que Nour já não se lembrava do que tinha havido antes, do que tinha
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dito. De joelhos na areia ao lado do xeque, olhava apenas o rosto do cego, onde uma nova luz parecia crescer. O homem já não gemia. Conservava-se imóvel diante do xeque, com os braços um pouco afastados, os olhos feridos desmesuradamente abertos, como se se embriagasse lentamente com o olhar do xeque.
Em seguida, os filhos de Ma el Ainine aproximaram-se e Moulay Hiba também se acercou, e ajudaram o velho a levantar-se. Cuidadosamente, Nour pegou no guerreiro pelo braço, e também o ajudou a levantar-se. O homem pôs-se a caminhar, apoiado ao ombro do rapaz, e a luz do poente brilhava-lhe no rosto como uma poeira de ouro. Não falava. Avançava muito devagar, como um homem que sofreu uma doença prolongada, assentando bem os pés no terreno pedregoso.
Caminhava vacilando um pouco, mas já não levava os braços afastados, e não se notava sofrimento no seu corpo. As gentes do deserto conservavam-se imóveis e silenciosas, vendo-o afastar-se para o outro lado da planície. Já não havia sofrimento e agora o rosto conservava-se calmo e sereno, com o olhar cheio da luz dourada do Sol que tocava o horizonte. E no ombro de Nour, a sua mão tinha-se tornado ligeira, como a de um homem que sabe para onde vai.
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Oued Tadla, 18 de Junho de 1910
Os soldados deixaram Zettat e Ben Ahmed antes da alvorada. Era o general Moinier quem comandava a coluna saída de Ben Ahmed, dois mil soldados de infantaria armados com espingardas Lebe. A formação avançava lentamente pela planície queimada, na direcção do vale do rio Tadla. À cabeça da coluna, havia o general Moinier, dois oficiais franceses e um observador civil. Acompanhava-os um guia mouro, vestido como os guerreiros do Sul, montado a cavalo, como os oficiais.
No mesmo dia, a outra coluna, contando apenas quinhentos homens, saíra da cidade de Zettat, para formar o outro braço da tenaz que devia esmagar os rebeldes de Ma el Ainine no seu caminho para o Norte.
À frente dos soldados, a terra nua estendia-se a perder de vista, ocre, vermelha, cinzenta, brilhante sob o azul do céu. O vento ardente do Verão varria a terra, levantava a poeira, velava a luz como uma névoa.
Ninguém falava. Os oficiais, à frente, apressavam as montadas para se separarem do resto das tropas, na esperança de escaparem um pouco à nuvem de poeira sufocante. Os olhos perscrutavam o horizonte, para descortinar o que haveria: a água, as aldeias de lama, ou o inimigo.
Havia tanto tempo que o general Moinier aguardava este momento. Sempre que se falava do Sul, do deserto, o general pensava nele, em Ma el Ainine, o irredutível, o fanático, o homem que havia jurado expulsar todos os cristãos do solo do deserto, ele, o chefe da rebelião, o assassino do governador Coppolani.
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"Não tem importância", dizia o estado-maior, em Casablanca, em Fort-Trinquet, em Fort-Gouraud. "Um fanático. Uma espécie de feiticeiro, um manda-chuva, que arrastou atrás dele todos os miseráveis do Draa, do Tindouf, todos os negros da Mauritânia."
Mas não se conseguia deitar a mão ao velho do deserto. Assinalavam-no no Norte, perto dos primeiros postos de controlo do deserto. Quando se ia ver, já tinha desaparecido. Depois voltava-se a falar dele, desta vez na costa, no Rio de Ouro, em Ifni. Naturalmente, com os espanhóis ele estava nas suas sete quintas! Que se passava lá no fim da picada, em El Aaiun, em Tarfaya, no cabo Juby? Despachado o serviço, o velho xeque, matreiro como uma raposa, regressava com os seus guerreiros para o seu "território", lá longe, ao sul do Draa, na Saguiet el Hamra, na sua "fortaleza" de Smara. Era impossível desalojá-lo. E depois havia o mistério, a superstição. Quantos homens tinham podido atravessar aquela região? Enquanto cavalgava ao lado dos oficiais, o observador recordava-se da viagem de Camille Douls, em 1887. A descrição do seu encontro com Ma el Ainine, diante do seu palácio de Smara: envergando o seu grande haik azul-celeste, com o seu alto turbante branco, o xeque aproximara-se dele e olhara-o demoradamente. Douls estava prisioneiro dos mouros, com as roupas em farrapos, o rosto marcado pela fadiga e pelo sol, mas Ma el Ainine olhara-o sem ódio, sem desprezo. Era esse longo olhar, esse silêncio, que ainda duravam, que faziam estremecer o observador sempre que pensava em Ma el Ainine. Mas talvez ele fosse o único a sentir isso, ao ler outrora o relato de Douls. "Um fanático", diziam os oficiais, "um selvagem, que só pensa em pilhar e matar, em pôr a ferro e fogo as províncias do Sul, como em 1904, quando Coppolani tinha sido assassinado no Tagant, como em Agosto de
1905, quando Mauchamp tinha sido assassinado em Oudja."
Não obstante tudo isto, enquanto marchava com os oficiais, o observador não se conseguia alhear dessa inquietação, dessa apreensão que não podia compreender. Era como se receasse deparar de súbito, ao voltar de uma colina, no leito de um riacho seco, com o olhar do grande xeque, sozinho no meio do deserto.
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"Ele agora está acabado, já não se consegue aguentar, é uma questão de meses, de semanas talvez, é obrigado a render-se, ou então terá de se atirar ao mar ou perder-se no deserto, já ninguém o apoia e ele sabe-o bem..."
Há tanto tempo que os oficiais aguardam este momento, eles e o estado-maior do exército, em Orão, em Rabat, em Dacar mesmo. O "fanático" está encurralado, de um lado o mar, do outro o deserto. A velha raposa vai ser obrigada a capitular. Não o abandonaram todos? No Norte, Moulay Hafid assinou o Acordo de Algeciras, que põe fim à guerra santa. Aceita o protectorado da França. E depois, houve a carta de Outubro de 1909, assinada pelo próprio filho de Ma el Ainine, Ahmed Hiba, aquele a quem chamam Molay Sebaa, o Leão, na qual oferece a submissão do xeque à lei do Makhzen, e implora socorro. "O Leão! Ele agora está bem só, o Leão, mais os outros filhos do xeque, Ech Chems, em Marráquexe, e Larhdaf, o bandido, o salteador da Hamada. Eles já estão sem recursos, sem armas, e foram abandonados pela população do Souss... Só lhes resta um punhado de guerreiros, uns maltrapilhos, que têm como única arma as velhas carabinas com canos de bronze, os iatagãs e as lanças! A Idade Média!"
Enquanto cavalga com os oficiais, o observador civil pensa em todos aqueles que aguardam a queda do velho xeque. Os europeus da África do Norte, os "cristãos" como lhes chamam as gentes do deserto - mas a sua verdadeira religião não será a do dinheiro? Os espanhóis de Tânger, de Ifni, os ingleses de Tânger, de Rabat, os alemães, os holandeses, os belgas, e todos os banqueiros, todos os homens de negócios que espreitam a queda do império árabe, que já traçaram os seus planos de ocupação, que dividem entre si os campos de lavoura, os montados de sobreiros, as minas, os palmares. Os agentes do Banque de Paris et dês Pays-Bas, que calculam o montante dos direitos aduaneiros em todos os portos. Os homens-de-mão do deputado Étienne, que criaram a Société dês Émeraudes du Sanara, a Société dês Nitrates du Gourara-Touat, para as quais a terra nua deverá dar passagem aos caminhos-de-ferro imaginários, às vias transariana, transmauritana, e é o exército que abre passagem a tiros de espingarda.
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Que pode o velho de Smara, sozinho contra essa vaga de dinheiro e de balas? Que pode o seu olhar feroz de animal encurralado contra os que especulam, cobiçam as terras, as cidades, contra aqueles que querem a riqueza prometida pela miséria deste povo?
Ao lado do observador civil, os oficiais cavalgam, de rosto impassível, sem pronunciar uma palavra inútil. Têm o olhar cravado no horizonte, para lá das colinas de pedras, no lugar onde se espraia o vale brumoso do oued Tadla.
Talvez nem pensem no que fazem? Cavalgam pela pista invisível que vai sendo aberta para eles pelo guia targui montado no seu cavalo fulvo.
Atrás deles, os atiradores senegaleses, sudaneses, envergando as fardas cinzentas de pó, inclinados para diante, caminham pesadamente levantando muito as pernas, como se transpusessem barreiras. Os passos raspam a terra dura, produzindo um som regular. Atrás deles, a nuvem de poeira encarnada e cinzenta sobe lentamente, suja o céu.
Há muito tempo que aquilo começou. Agora, já não se pode fazer mais nada, como se este exército fosse atacar fantasmas. "Mas ele nunca aceitará render-se, sobretudo a franceses. Preferirá deixar morrer todos os seus homens até ao último, e fazer-se matar a ele, ao lado dos filhos, a deixar-se capturar... E ainda será o melhor para ele, porque, podem acreditar no que lhes digo, o Governo nunca aceitará a sua rendição, sobretudo depois do assassínio de Coppolani, não se esqueçam disso. Não, é um fanático, cruel, selvagem, ele tem que desaparecer, ele e toda a sua tribo, os Berik Al-lah, os Abençoados de Deus como eles se chamam... É a Idade Média, não acha?"
A velha raposa foi traída pelos seus, abandonada. As tribos separaram-se dele umas atrás das outras, porque os chefes sentiam que o avanço dos cristãos era irresistível, ao Norte, ao Sul, até vinham pelo mar, atravessavam o deserto, em Tindouf, em Tabelbala, em Ouadane, ocupavam mesmo a cidade santa de Chinguetti, lá onde Ma el Ainine tinha começado a ministrar o seu ensino.
Em Bou Denib, talvez tivesse sido a última grande batalha travada, quando o general Vigny esmagou os seis mil homens de Moulay Hiba. Então, o filho de Ma el
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Ainine fugiu para as montanhas, desapareceu, sem dúvida, para esconder a sua vergonha, porque se tinha tornado um lakhme, uma carne sem osso, como eles dizem, um vencido. O velho xeque ficou só, prisioneiro da sua fortaleza de Smara, sem compreender que não eram as armas, mas sim o dinheiro que o tinha vencido; o dinheiro dos banqueiros que tinha pago os soldados do sultão Moulay Hafid e as suas belas fardas; o dinheiro que os soldados dos cristãos vinham procurar nos portos, fazendo a cobrança do seu quinhão nos direitos de alfândega; o dinheiro das terras espoliadas, dos palmares usurpados, das florestas dadas a quem sabia apoderar-se delas. Como teria ele compreendido isto? Saberia ele o que era o Banque de Paris et dês Pays-Bas, saberia o que era um empréstimo para a construção dos caminhos-de-ferro, saberia o que era uma sociedade para a exploração dos nitratos do Gourara-Touat? Saberia ele só que, enquanto orava e dava a sua bênção aos homens do deserto, os Governos da França e da Grã-Bretanha assinavam um acordo que dava a um um país chamado Marrocos, e ao outro um país chamado Egipto? Enquanto ele dava a sua palavra e o seu ânimo aos últimos homens livres, aos Izarguen, aos Aroussiyine, aos Tidrarin, aos Ouled Bou Sebaa, aos Taubalt, aos Reguibat Sahel, aos Ouled Delim, aos Imraguen, enquanto ele dava o seu poder à sua própria tribo, aos Berik Al-lah, saberia ele que um consórcio bancário, cujo principal membro era o Banque de Paris et dês Pays-Bas, concedia ao rei Moulay Hafid um empréstimo de 62 5000 francos-ouro, cujo juro de cinco por cento era garantido pelo produto de todos os direitos de alfândega dos portos da costa, e que os soldados estrangeiros tinham entrado no país para garantir que pelo menos sessenta por cento das receitas diárias das alfândegas fossem entregues ao banco? Saberia ele que na altura do Acordo de Algeciras, que punha fim à guerra santa no Norte, a dívida do rei Moulay Hafid era de 206 000 000 francos-ouro, e que já então era evidente que nunca conseguiria reembolsar os seus credores? Mas o velho xeque não sabia isto, porque os guerreiros não combatiam pelo ouro, mas só por uma bênção, e porque a terra que defendiam não lhes pertencia, nem a eles nem a ninguém, por se tratar simplesmente do espaço livre abarcado pelo seu olhar, um dom de Deus.
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"... Um selvagem, um fanático, que diz aos seus guerreiros antes do combate que vai torná-los invencíveis e imortais, que os envia ao assalto das espingardas e das metralhadoras armados simplesmente com as lanças e os sabres..."
Agora, o troço dos atiradores negros ocupa todo o vale do rio Tadla, diante do vau, enquanto os notáveis de Kasbah Tadla vêm apresentar a sua submissão aos oficiais franceses. O fumo das fogueiras do acampamento sobe no ar da tarde, e o observador civil contempla, como o faz em cada etapa, o belo céu nocturno que se descobre lentamente. Pensa ainda no olhar de Ma el Ainine, misterioso e profundo, o mesmo olhar que pousou em Camille Douls disfarçado de mercador turco e que o perscrutou até ao fundo da alma. Talvez ele tenha então adivinhado o que trazia esse homem vestido de andrajos, esse primeiro ladrão de imagens, que escrevia todas as tardes o seu diário nas páginas do Corão? Mas agora já é tarde de mais, e nada consegue evitar que se cumpra o destino. De um lado o mar, do outro o deserto. Os horizontes fecham-se sobre o povo de Smara, encerram os últimos nómadas. A fome e a sede sitiam-nos, conhecem o medo, a doença e a derrota.
"Já há muito tempo que podíamos ter acabado com o vosso xeque e com os seus maltrapilhos, se tivéssemos querido. Um canhão de 75 diante do seu palácio de argamassa, algumas metralhadoras, e ficava varrido do mapa. Talvez achassem que não valia a pena. Devem ter pensado que mais valia esperar que ele caísse por si, como um fruto maduro... Mas agora, depois do assassínio de Coppolani, já nem se trata de guerra: é mais uma operação policial contra um bando de salteadores, é o que é..."
O velho foi traído por aqueles mesmo a quem queria defender. Foram os homens do Souss, de Taroudant, de Agadir que deram a notícia: "O grande xeque Moulay Ahmed ben Mohammed el Fadei, aquele a quem chamam Ma el Ainine, a Água dos Olhos, está em marcha para o Norte com os seus guerreiros do deserto, os de Draa, os da Saguiet el Hamra, e mesmo os homens azuis de Oualata, de Chinguetti. São tão numerosos que cobrem uma planície inteira. Marcham em direcção ao Norte, à cidade santa de Fez, para depor o sultão, e
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fazer nomear em seu lugar Moulay Hiba, aquele a quem chamam Sebaa, o Leão, o filho mais velho de Ma el Ainine."
Mas o estado-maior não acreditou na notícia. Os oficiais até se fartaram de rir.
"O velho de Smara ficou louco. Como se fosse capaz, com a sua tropa-fandanga de maltrapilhos, depor o sultão e expulsar o exército francês!" Era o que parecia: a velha raposa está encurralada entre o mar e o deserto, e preferiu suicidar-se; é a única saída que lhe resta, fazer-se matar com toda a sua tribo.
Então, hoje, 21 de Junho de 1910, a companhia de atiradores negros vai a caminho, com três oficiais franceses e o observador civil à cabeça. Obliquou para sul, para se encontrar com as outras tropas que partiram de Zettat. As mandíbulas da tenaz estão a fechar-se, para aniquilarem o velho xeque mais os seus maltrapilhos.
O sol queima os olhos dos soldados, com a sua luz misturada à poeira. Ao longe, na colina que domina a planura cheia de pedras, surge uma aldeia ocre, mal se distinguindo do deserto. "Kasbah Zidaniya", diz só o guia. Mas logo detém o cavalo. Ao longe, um grupo de guerreiros a cavalo galopa pelas colinas. Os atiradores negros tomam posição, enquanto os oficiais afastam os cavalos para os lados. Soam tiros, disseminados, sem que se ouça qualquer bala assobiar ou bater. O observador civil pensa que aquilo se parece mais com o barulho que fazem os caçadores no campo. Um homem ferido é feito prisioneiro, um árabe da tribo dos Beni Amir. O xeque Ma el Ainine não está longe, os seus guerreiros avançam pela estrada de El Borouj, ao sul. A companhia põe-se de novo em movimento, mas desta vez os oficiais ficam ao pé dos soldados. Todos perscrutam o matagal. O Sol ainda,está alto no céu quando se dá a segunda escaramuça, na pista de El Borouj. Os tiros soam de novo no silêncio tórrido. O general Moinier ordena uma carga na direcção do vale. Os senegaleses disparam de joelhos em terra e depois correm com a baioneta para a frente. A tribo dos Beni Moussa matou doze soldados negros antes de se pôr em fuga pelo mato, deixando no terreno dezenas de mortos. Então, as tropas senegalesas continuam a carga na direcção do fundo do vale. Os soldados descobrem homens azuis em toda a parte, mas não são
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os guerreiros invencíveis que se esperava. São homens em andrajos, hirsutos, sem armas, que correm a coxear, que caem no chão pedregoso. Mais mendigos que outra coisa, magros, queimados pelo sol, roídos pela febre, que vão de encontro uns aos outros e que soltam gritos de desespero, enquanto os senegaleses, possuídos de uma vingança assassina, descarregam neles as armas, espetam-nos a golpes de baioneta na terra vermelha. É em vão que o general Moinier manda tocar a reunir. Diante dos soldados negros, homens e mulheres fogem em desordem, caem no chão. As crianças correm pelo meio das moitas, mudas de pavor, e as ovelhas e as cabras atropelam-se aos gritos. O terreno está juncado com os corpos dos homens azuis. Soam os últimos tiros e depois não se ouve mais nada, até que de novo só o silêncio tórrido pesa sobre a paisagem.
Imóveis no alto de uma colina, montando os cavalos que se agitam com impaciência, os oficiais contemplam a enorme extensão de mato onde os homens azuis já desapareceram, como se tivessem sido tragados pela terra. Os atiradores senegaleses regressam carregando os seus companheiros mortos, sem um olhar para as centenas de homens e de mulheres em farrapos que estão deitados na terra. Algures, na encosta do vale, no meio dos espinheiros, um rapaz está sentado à beira do corpo de um guerreiro morto e olha com toda a sua força o rosto ensanguentado onde os olhos já se extinguiram.
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Na rua iluminada pelo Sol que nasce, o rapaz avança sem pressa ao longo dos carros parados. O corpo delgado desliza ao longo das carroçarias, o seu reflexo corre nos vidros das janelas, nos guarda-lamas envernizados, nos faróis, mas não é isso o que ele olha. Inclina-se um pouco para cada automóvel, enquanto o olhar perscruta o interior, os assentos, o pavimento debaixo dos bancos, o óculo traseiro, o compartimento das luvas.
Avança em silêncio, completamente só na grande rua vazia onde o Sol acende a primeira luz da manhã, pura e nítida. O céu já está muito azul, límpido, sem uma nuvem. O vento do Verão sopra do mar, enfia pelas ruas, pelas avenidas rectilíneas, rodopia nos jardinzinhos sacudindo as palmeiras e as grandes araucárias.
Radicz gosta bastante do vento do Verão; não é um vento mau, como aquele que arranca a poeira ou como o que penetra no interior do corpo e gela até aos ossos. É um vento leve, carregado de cheiros doces, um vento que cheira a mar e a erva, que dá vontade de dormir. Radicz sente-se feliz porque dormiu, ao relento, num jardim abandonado, com a cabeça entre as raízes de um grande pinheiro manso, não muito longe do mar.
Acordou antes do nascer do Sol e sentiu logo que o vento do Verão tinha começado. Então rebolou-se um pouco na erva como fazem os cães e a seguir correu sem parar até à beira do mar. Contemplou-o um longo momento, do alto da estrada, tão belo e tão calmo, ainda cinzento da noite, mas já manchado em certos lugares pelo azul e pelo rosa da madrugada. Por instantes, ainda lhe veio a vontade de descer pelas rochas ainda frias, tirar a roupa e mergulhar na água. Foi o vento do Verão que o chamou até ao mar, que lhe mostrou a água. Mas lembrou-se de que já não dispunha de muito tempo à sua frente, que tinha de se despachar porque pouco faltava para as pessoas começarem a acordar. Foi então que subiu para as ruas, à procura dos automóveis.
Agora chega defronte de um grande conjunto de prédios e de jardins. Caminha pelas áleas do parque, onde os automóveis estão arrumados. Não
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há ninguém nos jardins, tão longe quanto a vista alcança. As persianas dos prédios estão ainda corridas, as varandas estão vazias. O vento do Verão sopra nas fachadas dos prédios e faz bater os estores. Há também o ruído suave na ramaria das mimosas e dos loureiros, e as grandes palmas que se balançam a ranger.
A luz chega lentamente, primeiro ao céu, depois ao alto dos prédios, e os candeeiros acesos começam a empalidecer. Radicz gosta muito daquela hora, porque as ruas ainda estão silenciosas, as casas fechadas, sem ninguém, e é como se estivesse só no mundo. Caminha vagarosamente pelas áleas do prédio e pensa que toda a cidade lhe pertence, que não há mais ninguém. Quem sabe se, enquanto dormia no jardim abandonado, como numa catástofe, não fugiram todos os homens e todas as mulheres, se não se escaparam a correr para as montanhas, abandonando as suas casas e os seus automóveis. Radicz avança ao longo das carroçarias imóveis, observando o interior, os assentos vazios, os volantes imóveis, e tem a impressão estranha de que há um olhar que o observa também, que o ameaça. Pára e ergue a cabeça para as altas paredes dos edifícios. A luz da aurora ilumina já o alto das fachadas com a sua tonalidade rósea. Mas os estores e as janelas conservam-se fechados e as grandes varandas estão vazias. O ruído do vento que passa é um ruído muito suave, muito lento, um ruído que não é para os homens, e Radicz volta a sentir o vazio que se abriu sobre a cidade, que substituiu o ruído e o movimento dos homens.
Provavelmente, enquanto ele dormia com a cabeça entre as raízes do velho pinheiro manso, o vento do Verão, misterioso e como que vindo de um outro mundo, é capaz de ter adormecido todos os habitantes, homens e mulheres, deixando-os estendidos nas suas camas, nos seus apartamentos com as persianas corridas, mergulhados num sono mágico que nunca mais acabará. Então a cidade poderá finalmente repousar, respirar, com as grandes ruas vazias cheias de automóveis parados, as lojas fechadas, os candeeiros e os semáforos apagados; a erva poderá então crescer tranquilamente nas fendas da calçada, os jardins irão transformar-se em florestas e os ratos e os pássaros poderão andar por todo o lado sem receio, como antes de haver homens.
Radicz detém-se um instante para escutar. Os pássaros acordam justamente nas árvores, os estorninhos, os pardais, os melros. Os melros sobretudo gritam muito alto e voam pesadamente de uma palmeira para a outra, ou então avançam saltitando sobre o alcatrão molhado dos grandes parques de estacionamento. O rapaz gosta muito dos melros. Têm uma bela roupagem preta e um bico amarelo e aquela maneira especial de saltitar, com a cabeça um pouco virada de lado, para espreitar os perigos. Parecem-se com ladrões e é por isso que Radicz gosta deles. São como ele, um pouco estouvados, um pouco larápios, e sabem soltar assobios estridentes para prevenir quando há perigo; sabem rir, com uns gargarejos que
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também o fazem rir a ele. Radicz avança lentamente pelos estacionamentos e, de quando em quando, assobia para responder aos melros. Quem sabe se, enquanto o rapaz dormia no jardim abandonado, com a cabeça entre as raízes do grande pinheiro manso, os homens e as mulheres não teriam abandonado a grande cidade, assim, sem fazer ruído, enquanto o seu lugar era tomado pelos melros. Radicz fica todo contente com esta ideia e assobia com mais força, com a ajuda dos dedos, para dizer aos melros que concorda com eles, que é tudo deles, tudo, as casas, as ruas, os automóveis e mesmo as lojas com o que têm lá dentro.
A luz cresce depressa no parque, em torno dos edifícios. As gotas de orvalho brilham nos tejadilhos dos carros, nas folhas dos arbustos. Radicz tem de fazer grandes esforços para não parar e ficar a olhar todas essas gotas de luz. No vazio do grande parque de estacionamento, com aquelas paredes brancas, aquelas persianas corridas, aquelas varandas vazias, as gotas brilham com uma intensidade maior, como se fossem as únicas coisas verdadeiras e vivas. O vento que sopra do mar fá-las tremer um pouco e parecer milhares de olhos fixos entretidos a contemplar o mundo.
Então, de novo, confusamente, Radicz sente a ameaça que pesa sobre tudo aquilo, ali, no estacionamento dos prédios, o perigo que ronda. É um olhar, ou talvez uma luz, que o rapaz não vê, não pode compreender. A ameaça está escondida debaixo das rodas dos automóveis estacionados, no reflexo dos espelhos, no pálido clarão dos candeeiros que continuam acesos apesar de já ser dia. Aquilo provoca um arrepio e o rapaz sente que o coração muda o ritmo da batida enquanto as palmas da mão ficam todas húmidas.
Todos os pássaros desapareceram, com excepção dos martinetes, que voam a toda a velocidade soltando gritos. Os melros voaram para o outro lado dos blocos de cimento e o ar tornou-se silencioso. Até o vento baixa a pouco e pouco. A madrugada não se demora por cima da grande cidade, mostra o seu milagre um instane e logo se apaga. Agora é o dia que chega. O céu já não está cinzento e rosa, invade-o uma cor baça. Há uma espécie de névoa, do lado oeste, no lugar onde as grandes chaminés dos depósitos já começaram a cuspir os seus fumos envenenados.
Radicz vê tudo isso, tudo o que acontece, e sente um aperto no coração. Daqui a pouco, os homens e as mulheres vão abrir as persianas e as portas, vão assomar às varandas, vão andar pelas ruas da cidade e pôr em marcha os motores dos seus automóveis e dos seus camiões e vão circular olhando para tudo com os seus olhos maus. É por isso que há aquele olhar, aquela ameaça. Radicz não gosta do dia. Só gosta da noite e da madrugada, quando tudo está silencioso, desabitado, quando só há os morcegos e os cães vadios.
Então, continua a percorrer as áleas do grande parque de estacionamento, vasculhando com mais atenção o interior dos automóveis parados.
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De vez em quando, vê qualquer coisa que poderia ser interessante e tacteia o fecho das portas, assim, rapidamente, de passagem, não se dê o caso de estarem abertas. Já assinalou três carros que não estão fechados à chave, mas deixa-os de parte por agora, pois não tem a certeza se valem a pena. Ficam para daí a pouco, depois de ter dado a volta completa ao bloco, porque os carros abertos despacham-se num instante.
À luz do Sol aumenta no céu, por cima das árvores, mas o astro ainda não se avista. Vê-se apenas a bela luz quente que se abre, que se espalha no céu. Radicz não gosta do dia, mas gosta muito do Sol, e a ideia de que ele vai aparecer deixa-o contente. Surge finalmente o disco incandescente que lança um clarão no fundo dos seus olhos, e Radicz pára de andar por um momento, com a luz a cegá-lo.
Espera, enquanto escuta as pancadas do coração nas artérias. A ameaça envolve-o, sem que possa saber de onde vem. O dia cresce e com ele o peso do medo, do alto das grandes paredes brancas às centenas de estores azuis, do alto dos telhados planos eriçados de antenas, do alto dos pilares de cimento, do alto das grandes palmeiras de troncos lisos. É o silêncio sobretudo que faz medo, o silêncio do dia, e as luzes eléctricas dos candeeiros que continuam a arder com um zumbido agudo. É como se os ruídos habituais dos homens e dos seus motores nunca mais pudessem reaparecer, como se o sono os tivesse parado, numa confusão, motores gripados, gargantas cortadas, rostos com os olhos fechados.
- bom, vamos a isto.
Foi Radicz quem falou em voz alta, para se dar coragem. A mão volta a tactear os puxadores das portas, os olhos vasculham o interior frio das carroçarias. A luz do Sol cintila nas gotas de orvalho agarradas às chapas e aos pára-brisas.
- Nada... nada.
A pressa afasta agora um pouco a angústia. O dia está tenso, branco, o Sol está prestes a ultrapassar os telhados dos grandes edifícios. Já brilha intensamente no ar, despertando reflexos cintilantes nas cristas das ondas. Radicz avança sem olhar à sua volta.
- Vai-se andando, obrigado.
Uma porta abriu-se. Sem ruído, o rapaz enfia o corpo no interior do carro; as mãos rebuscam tudo, debaixo dos bancos, nos recantos, nos bolsos das portas, abrem o compartimento das luvas. As mãos tacteiam depressa, com habilidade, como mãos de cego.
- Nada!
Nada; o interior do automóvel está vazio, frio e húmido como uma cave.
- Malandros!
A inquietação sucede a cólera, e o rapaz percorre a álea ao longo do Prédio, perscrutando o interior de cada carro. Um ruído súbito fá-lo
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sobressaltar-se, um barulho de motor e de chapas. Escondido atrás de uma station verde, Radicz vê passar o camião do lixo que despeja os caixotes. O camião anda à volta dos prédios, sem entrar no parque de estacionamento. Desaparece, meio escondido pelos renques de loureiros e pelos troncos das palmeiras, e Radicz acha que ele parece um estranho insecto de metal, com as costas redondas e aquele andar aos tropeços.
Quando tudo fica de novo silencioso, Radicz vê na plataforma da station formas que poderiam ser interessantes. Aproxima-se do vidro traseiro e distingue roupas, muitas roupas empilhadas na retaguarda, metidas em sacos de plástico cor de laranja. Também há roupas à frente, caixas de sapatos, e no chão, mesmo ao pé do assento, difícil de ver para quem não
estiver habituado, o canto de um rádio de transístores. As portas da station estão trancadas, mas o vidro da frente está entreaberto; Radicz puxa com toda a força, pendura-se no rebordo do vidro para alargar a abertura. Milímetro a milímetro, o vidro cede e pouco depois Radicz já pode enfiar o
longo braço magro até que a ponta dos dedos toque na tranca e a puxe. Abre a porta e entra para a frente do carro.
A station é enorme, com assentos de napa verde-escura. Radicz está satisfeito por estar no interior do carro. Fica um instante sentado no banco frio, com as mãos pousadas no volante, e olha para o parque de estacionamento e para as árvores através do grande pára-brisas. O alto do pára-brisas é colorido de verde-esmeralda, o que provoca uma claridade estranha no céu branco, quando se mexe a cabeça. À direita do volante, há um aparelho de rádio. Radicz move os botões, mas o aparelho não se acende. A mão carrega no botão do compartimento das luvas e a tampa abre-se.
No compartimento, há papéis, uma esferográfica e uns óculos escuros.
Radicz salta por cima das costas do banco para a plataforma traseira. Examina rapidamente as roupas. São roupas novas, fatos, camisas, saias-casacos e calças de mulher, blusas, todos dobrados no seu saco de plástico. Radicz faz ao seu lado uma pilha de roupa, depois acrescenta as caixas de sapatos, as gravatas, os lenços. Mete as roupas nas calças, fazendo nós nas pernas para fazer embrulhos. De repente, lembra-se do rádio de transístores. Salta para o banco da frente, de cabeça para baixo, e as mãos tacteiam o objecto, levantam-no um pouco. Gira um botão e desta vez a música jorra, umas notas de viola que deslizam e correm como o canto das aves na madrugada.
É então que ele ouve o barulho dos polícias que chegam. Não os viu chegar, talvez nem mesmo tenha ouvido realmente aquele ruído macio dos pneus no cascalho betumado da álea circular, o ranger do estore que se levanta, algures na fachada imensa e silenciosa do edifício branco de luz;
talvez tenha sido qualquer outra coisa que o alertou, enquanto estava de cabeça para baixo a ouvir a música de pássaros do rádio de transístores.
i No interior do seu corpo, atrás dos olhos, ou então nas suas entranhas,
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algo se enovelava, se apertava e o vazio enchia a carroçaria de station como um frio. Foi então que se levantou e o viu.
O carro preto da polícia chega depressa pela rua do parque de estacionamento. Os pneus fazem um ruído de água no alcatrão e no cascalho e Radicz distingue com nitidez as caras dos polícias, as suas fardas pretas. Ao mesmo tempo, sente o olhar duro e assassino que o observa do alto de uma das varandas do prédio, lá onde o estore acaba de se erguer rapidamente.
Convirá ficar escondido no grande carro, acachapado como um animal? Mas é na sua direcção que os polícias vêm, ele sabe-o, não tem qualquer dúvida. Então o seu corpo distende-se num ápice, salta pela porta da frente da station e começa a correr pelo passeio, na direcção do muro que rodeia o parque de estacionamento.
O carro preto acelera de repente, porque os polícias o avistaram. Há ruídos de vozes, gritos breves que soam no parque, que se repercutem nos grandes muros brancos. Radicz ouve as apitadelas estridentes, e enfia a cabeça nos ombros como se fossem balas. O coração bate com tanta força que quase não consegue ouvir mais nada, como se toda a supefície do parque de estacionamento, os prédios, as árvores do parque e as ruas alcatroadas se pusessem a palpitar com ele, a doer de tanto pular.
As suas pernas correm, correm, tropeçam no pavimento alcatroado, tropeçam na terra mole dos canteiros. As pernas saltam por cima dos maciços de flores, por cima dos anteparos dos relvados. Movem-se a toda a força, desorientadas e sacudidas pelo pânico, sem saberem para onde vão, sem saberem onde irão parar. Agora há o alto muro de separação do estacionamento e as pernas não conseguem voar. Correm ao longo do muro, ziguezagueiam por entre os carros imóveis. O rapaz não precisa de se voltar para saber que o carro preto da polícia continua a segui-lo, vai-se aproximando, entrando nas curvas a toda a velocidade, fazendo ranger os pneus e rugir o motor. Depois fica atrás dele, numa longa linha recta, ao fim da qual há a avenida aberta, e o corpo minúsculo de Radicz que galopa como um coelho assustado. O carro preto da polícia cresce, aproxima-se, as rodas devoram a álea de alcatrão e cascalho. Enquanto corre, Radicz ouve o ruído dos estores que se abrem, um pouco por toda a parte, na fachada do prédio, e pensa que agora toda a gente está nas varandas a vê-lo correr. E de súbito há uma abertura no muro, uma porta talvez, e o corpo de Radicz salta através da abertura. Agora, está do outro lado do muro, completamente só na avenida que conduz ao mar, com três, quatro Minutos de avanço, o tempo que o carro preto da polícia leva a atingir a saída do parque de estacionamento e a inverter a marcha na avenida. Isto, também o rapaz o sabe mesmo sem pensar, como se fossem o seu coração
enlouquecido e as suas pernas que pensassem por ele. Mas onde ir? Há a avenida, a menos de cem metros, há o mar, as rochas. É para lá
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que o rapaz continua, instintivamente, tão depressa que o ar quente do dia o faz chorar. Os seus ouvidos só ouvem o ruído do vento e a única coisa que consegue ver é a fita preta da estrada onde brilha com intensidade a luz do Sol e, mesmo no fim, por cima do muro da marginal, a cor leitosa do mar e do céu misturados. Corre tão depressa que já não consegue ouvir os pneus do carro preto da polícia na calçada, nem os terríveis dois tons da sereia que enchem todo o espaço entre os prédios.
Mais alguns saltos, só mais alguns, pernas, só mais umas batidas, coração, pois o mar já não está longe, o mar e o céu misturados, onde já não há casas, nem homens, nem carros. Então, no próprio instante em que o corpo do rapaz salta sobre a calçada da marginal, correndo a direito para o mar e para o céu misturados, como um cabrito acossado de perto pela matilha, nesse mesmo instante surge um grande autocarro azul, com os faróis ainda acesos, em cujo pára-brisas incide um raio de Sol que nasce, ao mesmo tempo que o corpo de Radicz se desfaz no capot e nos faróis, com um estrondo de chapa e de travões que chiam. Não muito longe dali, na orla do parque das palmeiras, há uma rapariga escura, imóvel, como uma sombra, que olha intensamente. Ela não se mexe, olha apenas, enquanto as pessoas acorrem de todos os lados, juntam-se na estrada à volta do autocarro, do automóvel preto e do cobertor que esconde o corpo despedaçado do ladrão.
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Tiznit, 23 de Outubro de 1910
No lugar onde a cidade se confunde com a terra vermelha do deserto, velhos muros de pedra seca, ruínas de casas de adobe, no meio das acácias, algumas delas já ardidas, lá onde passa livremente o vento de poeira, longe dos poços, longe da sombra das palmeiras, é lá que o velho xeque está a morrer.
Ele chegou aqui, à cidade de Tiznit, após a sua longa marcha inútil. No Norte, no país do rei vencido, os soldados estrangeiros progridem, de cidade em cidade, destruindo tudo o que lhes resiste. No Sul, os soldados dos cristãos entraram no vale santo da Saguiet el Hamra e ocuparam mesmo a cidade de Smara, o palácio vazio de Ma el Ainine. O vento da desgraça começou a soprar nos muros de pedra, pelas seteiras estreitas, esse vento que gasta tudo, que esvazia tudo.
Aqui também sopra agora o vento mau, o vento morno que vem do Norte, que traz a bruma do mar. Em redor de Tiznit, disseminados como animais perdidos, os homens azuis aguardam, abrigados nas suas cabanas de ramos.
Em todo o acampamento o único ruído que se ouve é o do vento que faz bater os ramos das acácias e, de vez em quando, o apelo de um animal preso. Há um grande silêncio, um silêncio terrível que não cessou desde o ataque dos soldados senegaleses, no vale do oued Tadla. As vozes dos guerreiros já se calaram, já se extinguiram todos os cantos. Ninguém fala já do que está para vir, talvez porque já nada esteja para vir.
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É o vento da morte que sopra sobre a terra ressequida, o vento mau que vem das terras ocupadas pelos estrangeiros, em Mogador, em Rabat, em Fez, em Tânger. O vento morno que traz o rumor do mar e mesmo do que está para lá dele, o zumbido das grandes cidades brancas onde reinam os banqueiros e os comerciantes.
Na casa de lama, com o telhado meio desmoronado, o velho xeque está deitado, estendido em cima da sua túnica pousada no chão de terra batida. O calor é sufocante, o ar está cheio do ruído das moscas e das vespas. Saberá ele que já tudo está perdido, tudo está acabado? Ontem, anteontem, vieram os mensageiros do Sul trazer-lhe notícias, mas não quis ouvi-los. Os mensageiros guardaram para si as notícias do Sul, o abandono de Smara, a fuga de Hassena e de Larhdaf, os filhos mais novos de Ma el Ainine, para o planalto de Tagant, a fuga de Moulay Hiba para as montanhas do Atlas. Mas agora levam consigo a notícia que vão dar aos que os esperam lá longe: "O grande xeque Ma el Ainine vai morrer em breve. Os seus olhos já não vêem e os seus lábios já não conseguem falar." Dirão que o grande xeque está a morrer na casa mais pobre de Tiznit, como um mendigo, longe dos seus filhos, longe do seu povo.
À volta da casa em ruínas, estão sentados alguns homens. São os últimos guerreiros azuis da tribo dos Berik Al-lah. Fugiram através da planície do rio Tadla, sem se voltarem, sem tentarem compreender. Os outros voltaram para o Sul, para as suas pistas, porque compreenderam que já nada havia a esperar, que as terras prometidas nunca lhes seriam dadas. Mas eles, não era a terra o que eles queriam. Eles amavam o grande xeque, veneravam-no como se fosse um santo. Ele tinha-lhes dado a sua bênção divina e aquilo tinha-os ligado a ele como as palavras de um juramento.
Nour está hoje com eles. Sentado na terra poeirenta, ao abrigo de um tecto de ramos, não desvia os olhos da casa de lama com o telhado meio destruído onde o grande xeque está fechado. Ainda não sabe que Ma el Ainine está moribundo. Há vários dias que não o vê sair, vestido com a sua túnica branca suja, apoiado ao ombro do seu servidor, seguido de Meymuna Laliyi, a sua primeira mulher, a mãe de Moulay Sebaa, o Leão. Ao princípio, quando chegou a Tiznit, Ma el Ainine enviou
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mensageiros para que os filhos o viessem buscar. Mas os mensageiros não regressaram. Todas as tardes, antes da oração, Ma el Ainine saía de casa para olhar na direcção do Norte, a pista por onde Moulay Hiba deveria ter vindo. Agora já é tarde e é evidente que os seus filhos já não virão.
Há dois dias que perdeu a vista, como se a morte ficasse primeiro com os olhos. Já quando saía para se voltar para o Norte, já não era os olhos que procuravam o filho, eram a cara inteira, as mãos, o corpo que desejavam a presença de Moulay Hiba. Nour olhava aquela silhueta ligeira, quase fantasmática, rodeada dos seus servidores, seguida pela sombra negra de Lalla Meymuna. E sentia o frio da morte que obscurecia a paisagem, como se uma nuvem tivesse escondido o Sol.
Nour pensava no guerreiro cego, deitado na ravina,
no leito do rio Tadla. Pensava no rosto extinto do seu
amigo, talvez já devorado agora pelos chacais, e pensava
também em todos os que tinham morrido pelo caminho,
abandonados ao sol e à noite.
Mais tarde, juntara-se aos restos da caravana que tinham escapado ao massacre, e tinham caminhado durante dias, morrendo de fome e de fadiga. Tinham fugido como proscritos pelos caminhos mais difíceis, evitando as cidades, mal se atrevendo a provar a água dos poços. Fora então que o grande xeque adoecera, obrigando-os a parar ali, às portas de Tiznit, naquela terra poeirenta onde soprava o vento mau.
A maior parte dos homens azuis tinha continuado a sua viagem, sem objectivo, sem fim, para os planaltos do Draa, tentando reencontrar as pistas que haviam abandonado. O pai e a mãe de Nour tinham voltado para o deserto. Mas ele não os tinha podido seguir. Talvez ainda esperasse um milagre, essa terra que o xeque lhes tinha prometido, onde haveria paz e abundância, onde os soldados estrangeiros nunca poderiam entrar? Os homens azuis tinham-se ido todos embora, levando consigo a sua trouxa de roupa. Mas havia tantos mortos no caminho por onde tinham passado! Eles nunca mais voltariam a reencontrar a paz de outrora, o vento da desgraça nunca mais os deixaria em paz.
Às vezes, corria o boato: "Vem aí Moulay Hiba, vem aí Moulay Sebaa, o Leão, nosso rei!" Mas não passava
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de uma miragem que logo se dissolvia no silêncio tórrido.
Agora já é muito tarde, porque o xeque Ma el Ainine vai morrer. O vento pára de soprar de repente, o peso do ar faz levantar os homens. Todos se erguem, olhando par1", ocidente, para o lado onde o Sol desce no horizonte baixo. A terra poeirenta, de pedras aguçadas como lâminas, cobre-se de uma tonalidade que brilha como o metal em fusão. O céu fica velado por uma fina névoa através da qual o Sol aparece como um disco vermelho, enormemente dilatado.
Ninguém compreende porque é que o vento cessou de súbito, nem porque é que há no horizonte aquela cor estranha e queimada. Mas Nour volta a sentir o frio que o penetra, como se tivesse febre, e põe-se a tremer. Volta-se para a velha casa em ruínas, onde se encontra Ma el Ainine. Aproxima-se devagar da casa, sem saber o que o atrai, com o olhar fixado na porta negra.
Os guerreiros de Ma el Ainine, os Berik Al-lah de rosto escuro, observam o rapaz que avança para a casa, mas nenhum se interpõe para lhe barrar o caminho. Têm um olhar vazio e cansado, como se vivessem um sonho. Quem sabe se eles também não perderam a vista durante a marcha inútil, com os olhos queimados pelo sol e pela areia do deserto?
Nour avança lentamente pelo terreno pedregoso, na direcção da casa com paredes de barro. O sol-poente faz brilhar as velhas paredes, cava a sombra da porta.
É por essa porta que Nour entra agora, como outrora, com o pai, no túmulo do santo. Conserva-se imóvel, momentaneamente, cego pelo escuro, sentindo a frescura húmida da casa. Quando os olhos se habituam, vê a grande sala nua, o chão de terra batida. No fundo da sala, o velho xeque está deitado na sua túnica, com a cabeça pousada numa pedra. Lalla Meymuna está sentada ao lado dele, envolta na sua túnica preta e com o rosto velado.
Nour não faz ruído nenhum, contém a respiração. Passado um longo momento, Lalla Meymuna volta a cara para o rapaz, porque sentiu o olhar dele. O véu negro afasta-se e descobre o belo rosto cor de cobre. Os olhos brilham na penumbra e as lágrimas correm pelas faces. O coração de Nour põe-se a bater com muita força, e ele
sente uma dor pungente no centro do seu corpo. Vai recuar para a porta, sair, quando a velha lhe diz que entre. Aproxima-se lentamente do centro da sala, um pouco curvado por causa da dor no meio do corpo. Quando chega ao pé do xeque, sente as pernas fraquejarem-lhe e cai pesadamente no chão, de braços estendidos para a frente. As suas mãos tocam na túnica branca de Ma el Ainine, e conserva-se estendido com a cara encostada à terra húmida. Não chora, não diz nada, não pensa em nada, mas as mãos estão agarradas ao manto de lã e apertam-no tanto que lhe doem. Ao lado dele, Lalla Meymuna conserva-se imóvel, sentada junto do homem que ama, envolta na sua túnica negra, e já não vê mais nada e já não ouve coisa nenhuma.
Ma el Ainine respira lentamente, dolorosamente. A respiração mal lhe levanta o peito, produzindo um ruído rouco que enche toda a casa. Na penumbra, o rosto exangue parece ainda mais branco, quase transparente.
Nour observa o velho, com toda a sua força, como se o seu olhar pudesse afrouxar a marcha da morte. Os lábios entreabertos de Ma el Ainine pronunciam pedaços de palavras, logo abafados pelo estertor. Talvez ele cantarole ainda os nomes dos seus filhos, Mohammed Rebbo, Mohammed Larhdaf, Taaleb Hassena, Saadbou, Ahmed Ech Chems, aquele a quem chamam o Sol, e sobretudo o nome daquele que esperou ver chegar todas as tardes pela pista do Norte, aquele que ele ainda espera, Ahmed Dehiba, aquele a quem chamam Moulay Sebaa, o Leão.
Lalla Meymuna limpa o suor que cobre o rosto de Ma el Ainine com a sua túnica negra, mas ele nem sequer sente o contacto do tecido na testa e nas faces.
De vez em quando, os braços dele entesam-se e o busto faz um esforço, porque quer sentar-se. Os lábios tremem e os olhos rolam nas órbitas. Nour aproxima-se mais e ajuda Meymuna a levantar Ma el Ainine, conservando-o sentado. Durante alguns segundos, com uma energia incrível no seu corpo tão leve, o velho xeque fica sentado, com os braços estendidos para diante, como se fosse pôr-se de pé. O rosto magro exprime uma angústia intensa e Nour sente-se cheio de medo por causa daquele olhar vazio, daquelas íris pálidas. Nour recorda-se do guerreiro cego, da mão de Ma el Ainine que lhe tocou
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nos olhos, do seu bafo no rosto do homem ferido. Agora, Ma el Ainine conhece a mesma solidão, a solidão de que se não escapa e não há ninguém que possa apaziguar o vazio do seu olhar.
O sofrimento de Nour é tão grande que desejaria ir-se embora, afastar-se daquela casa de sombra e de morte, fugir a correr pela planície poeirenta, para a luz dourada do ocaso.
Mas subitamente é nas suas mãos que ele sente o poder, na sua própria respiração. Lentamente, como se procurasse recordar-se de gestos antigos, Nour passa a palma da mão pela testa de Ma el Ainine, sem pronunciar uma palavra. Molha a ponta dos dedos com saliva e toca as pálpebras que estremecem de inquietação. Sopra suavemente no rosto, nos lábios, nos olhos do velho xeque. Rodeia o busto com o braço e o corpo ligeiro abandona-se, descai para trás.
Agora, o rosto de Ma el Ainine parece tranquilo, liberto do seu sofrimento. De olhos fechados, o velho respira calmamente, sem ruído, como se fosse adormecer. Nour também sente a paz dentro de si, a dor desatou-se no interior do seu corpo. Recua um pouco, sem deixar de olhar o xeque. Depois, sai da casa, enquanto a sombra negra de Lalla Meymuna se estende no chão para dormir.
Lá fora, a noite cai devagar. Ouvem-se os gritos dos pássaros que sobrevoam o leito do oued, na direcção do palmar. O vento tépido do mar recomeça a soprar intermitentemente, roçando as folhas do tecto em ruínas. Meymuna acende a candeia e dá de beber ao xeque. Diante da porta da casa, Nour sente a garganta contraída e a arder, não consegue dormir. Várias vezes durante a noite, a um sinal de Meymuna, aproxima-se do velho, passa-lhe a mão pela testa, sopra-lhe nos lábios e nas pálpebras. Mas a fadiga e o desespero destruíram-lhe o poder e já não consegue apagar a inquietação que faz tremer os lábios de Ma el Ainine. Talvez seja a dor no interior do seu próprio corpo o que lhe aniquila o sopro.
Precisamente antes do primeiro alvor, quando o ar lá fora está silencioso e imóvel e não há um ruído nem um grito de insecto, nesse mesmo instante morre Ma el Ainine. Meymuna, que lhe segura a mão, apercebe-se disso, deita-se no chão ao lado daquele que ama e começa a chorar sem já abafar os soluços. Então, Nour, que se conserva ao pé da porta, olha uma última vez a silhueta frágil do grande xeque, deitado na sua túnica branca, tão ligeiro que parece flutuar por cima da terra. Depois, afasta-se a recuar até se encontrar só na noite, naquela planície cor de cinza iluminada pela lua cheia. A dor e a fadiga impedem-no de caminhar para longe. Cai no chão, ao pé das moitas de espinhos, e adormece logo, sem ouvir a voz de Lalla Meymuna que chora, como uma canção.
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Foi assim que ela partiu um dia, sem prevenir. Levantou-se uma manhã, mesmo antes do nascer do Sol, como costumava fazer lá no seu país, para ir até ao mar, ou até às portas do deserto. Escutou a respiração do fotógrafo que dormia na sua grande cama, acabrunhado pelo calor do Verão. Lá fora, já havia os gritos dos martinetes e ao longe, talvez, o ruído suave do jacto de água do homem que regava as ruas. Lalla hesitou, porque queria deixar qualquer coisa ao fotógrafo, um sinal, uma mensagem, para lhe dizer adeus. Como não tinha nada, pegou num bocado de sabão e desenhou o famoso sinal da sua tribo, com o qual assinava as suas fotos em Paris:
porque era o desenho mais velho que conhecia e porque se parece com um coração.
Depois partiu pelas ruas da cidade, para nunca mais voltar.
Viajou de comboio durante dias e noites, de cidade em cidade, de país em país. Esperou por comboios nas estações, durante tanto tempo que ficava com as pernas transidas e cheia de dores nas costas e nas coxas.
As pessoas iam e vinham, conversavam, olhavam. Mas não prestavam atenção à silhueta daquela rapariga de rosto fatigado, que estava envolta, apesar do calor, num estranho e velho casaco castanho que descia até aos pés. Talvez pensassem que ela fosse pobre ou estivesse doente. Às vezes as pessoas falavam-lhe, nas carruagens, mas não compreendia a língua em que falavam e limitava-se a sorrir.
Em seguida, o barco avança lentamente pelo mar oleoso, afasta-se de Algeciras, vai para Tânger. No convés, o sol e o sal queimam e as pessoas amontoam-se à sombra, homens, mulheres, crianças, sentados ao lado das
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caixas e das malas. Alguns cantam, de vez em quando, para afugentar a angústia, uma canção nasalada e triste, depois o canto extingue-se e só se ouve a trepidação das máquinas.
Lalla contempla por cima da amurada o mar azul-escuro, liso, onde os rolos da ondulação avançam lentamente. Na esteira branca do barco, os golfinhos saltam, perseguem-se, separam-se. Lalla pensa no pássaro branco, naquele que era um verdadeiro príncipe do mar, que voava por cima da praia, no tempo do velho Naman. O seu coração bate mais depressa e o olhar torna-se estático, como se fosse realmente avistá-lo, com os braços estendidos por cima do mar. Na pele sente a queimadura do sol, a queimadura antiga, e vê a luz tão bela e tão cruel do céu.
A voz dos homens que cantam a canção nasalada perturba-a de súbito e sente as lágrimas que lhe correm dos olhos, sem bem compreender porquê. Há tanto tempo que ela ouviu aquela canção, como num sonho antigo, meio esquecido. São homens de pele negra, vestidos apenas com uma camisa de caqui e uma calças curtas de pano, com os pés descalços enfiados em chinelas japonesas. Um após outro, vão entoando a canção nasalada e triste, que mais ninguém pode compreender, assim, a baloiçar e com os olhos semicerrados.
E quando ouve aquela canção, Lalla sente no fundo de si mesma o desejo muito secreto de rever a terra branca, as altas palmeiras nos vales vermelhos, as extensões de pedras e de areia, as grandes praias solitárias, e mesmo as aldeias de lama e de tábuas, com telhados de chapa e papel alcatroado. Fecha um pouco os olhos e vê aquilo tudo, à frente dela, como se nunca tivesse partido, como se tivesse dormido apenas uma ou duas horas.
No fundo dela, no interior do seu ventre inchado, há também aquele movimento, aqueles safanões que fazem doer, que atingem o interior da pele. Agora, pensa na criança que quer nascer, que já vive, que já sonha. Estremece um pouco e aperta nas mãos o ventre dilatado, abandona o corpo ao balanço pesado do barco, encostada à parede de ferro que treme. Canta até um pouco para si própria, por entre os dentes, e um pouco para a criança que deixa de lhe bater e escuta a canção antiga, aquela que Aamma cantava e que vinha da sua mãe:
- Um dia, o corvo será branco, o mar secará, hão-de encontrar mel na flor do cacto, farão uma cama com os ramos da acácia, um dia, oh, um dia, já não haverá veneno na boca da serpente, e as balas da espingarda já não trarão a morte, pois nesse dia eu deixarei o meu amor...
A trepidação da máquina cobre-lhe o som da voz, mas, no interior do seu ventre, a criança desconhecida escuta as palavras com atenção e adormece. Então, para fazer mais barulho, e para se dar coragem, Lalla canta mais alto as palavras da canção que preferia:
- Mediterrâneo...
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O barco desliza lentamente pelo mar chão, sob o céu pesado. Agora, há uma feia mancha cinzenta no horizonte, como uma nuvem agarrada ao mar: Tânger. Todas as caras estão viradas para a mancha e as pessoas deixaram de falar; mesmo os negros já não cantam. A África chega devagar pela proa do barco, indecisa, deserta. A água do mar torna-se cinzenta, menos profunda. No céu voam as primeiras gaivotas, cinzentas também, magras e assustadiças.
Então tudo mudou? Lalla pensa na primeira viagem, para Marselha, quando tudo ainda era novo, as ruas, as casas, os homens. Pensa no apartamento de Aamma, no Hotel Sainte-Blanche, nos terrenos vagos junto dos depósitos, em tudo o que deixou para trás na grande cidade assassina. Pensa em Radicz, o mendigo, no fotógrafo, nos jornalistas, em todos aqueles que se transformaram numa espécie de sombras. Agora, só lhe resta a roupa e o casaco castanho que Aamma lhe deu quando chegou. O dinheiro também, o maço de notas novas, presas com um alfinete, que tirou do bolso do casaco do fotógrafo, antes de se ir embora. Mas é como se nada se tivesse passado, como se nunca tivesse saído da Cidade de tábuas e papel alcatroado, nem do planalto de pedras e das colinas onde vive o Hartani, como se tivesse dormido apenas uma ou duas horas.
Olha o horizonte vazio, à popa do navio, e depois a mancha de terra parda e a montanha onde vão aumentando as máculas que são as casas da cidade árabe. Estremece, porque no seu ventre a criança se pôs a mexer com violência.
No autocarro que roda pela estrada poeirenta, que pára para receber camponeses, mulheres, crianças, Lalla sente ainda a estranha embriaguez. A luz rodeia-a, e a poeira fina que sobe como um nevoeiro de ambos os lados do autocarro, que entra no interior da carlinga, que se agarra à garganta e range sob os dedos, a luz, a secura, a poeira; Lalla sente a presença de tudo isso e é como se tivesse uma pele nova, como se a respiração fosse outra.
Será possível que tenha existido outra coisa diferente? Haverá um outro mundo, outros rostos, outra luz? A mentira das recordações não pode sobreviver ao ruído do autocarro arquejante, nem ao calor, nem à poeira. A luz limpa tudo, abrasa tudo, como dantes, no planalto de pedras. Lalla volta a sentir o peso do olhar secreto que incide nela, que está à volta dela; não já o olhar dos homens, cheio de desejo e inveja, mas o olhar de mistério daquele que conhece Lalla e que reina sobre ela como um deus.
O autocarro roda pela pista de poeira, sobe ao alto das colinas. Por toda a parte impera a terra seca, queimada, semelhante a uma velha pele de serpente. Por cima do tejadilho do carro, o céu e a luz ardem intensamente, e o calor aumenta na carlinga tal como no interior de um forno. Lalla sente as gotas de suor que correm pela testa, pelo pescoço, pelas
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costas abaixo. No autocarro, as pessoas estão imóveis, impassíveis. Os homens estão envoltos nas suas túnicas de lã, as mulheres estão agachadas no chão, entre os assentos, cobertas com os seus véus azul-negros. Só o motorista se mexe, faz caretas e espreita pelo retrovisor. O olhar dele cruza-se várias vezes com o de Lalla e ela desvia a cara. O honum gordo com uma cara achatada regula o retrovisor para a olhar melhor e, depois, com um gesto furioso, torna a colocá-lo na sua posição. O rádio, com o som todo aberto, assobia e cospe, e deixa ouvir, quando se passa ao pé de um poste eléctrico, um longo rasto de música roufenha.
O autocarro roda durante todo o dia pelas estradas alcatroadas e pelas pistas de poeira, atravessa os rios ressequidos, pára diante das aldeias de lama onde as crianças nuas o esperam. Os cães magros correm ao lado do autocarro, tentam morder-lhe as rodas. Por vezes, o autocarro pára no meio de uma planície desértica, porque o motor fraqueja. Enquanto o motorista de nariz achatado se debruça sobre o capot aberto, para limpar o carburador, os homens e as mulheres apeiam-se, sentam-se à sombra do autocarro, ou então vão urinar, acocorados no meio das moitas de eufórbios. Alguns tiram do bolso pequenos limões que chupam demoradamente, fazendo estalar a língua.
Depois o autocarro torna a arrancar, aos solavancos pelas estradas, sobe as colinas, assim, interminavelmente, na direcção do sol-poente. A. noite cai depressa na extensão das planícies desérticas, cobre as pedras ; transforma a poeira em cinza. Então, de súbito, na noite, o autocarro oára e Lalla avista ao longe umas luzes, do outro lado do rio. Lá fora, a noite está quente, cheia do ruído dos insectos, dos gritos dos sapos. Aquilo assemelha-se ao silêncio, após tantas horas passadas no autocarro.
Lalla desce e caminha lentamente à beira do rio. Reconhece o edifício do balneário e depois o vau. O rio está negro, a maré repeliu a corrente de água doce. Lalla atravessa o vau, com água até meia altura da coxa, mas a frescura do rio faz-lhe bem. Na penumbra, Lalla vê a silhueta de uma mulher que leva um embrulho à cabeça, com o longo vestido arregaçado até à barriga.
Um pouco mais adiante, na outra margem, começa o carreiro que vai até à Cidade. Depois as casas de barro e de tábuas, uma, mais outra. Lalla não reconhece as casas. Há casas novas por todo o lado, mesmo ao pé da margem do rio, no sítio onde passa a água quando há cheia. A luz iléctrica ilumina mal as ruelas de terra batida, e as casas de tábuas e de chapa têm um ar abandonado. Quando caminha pelas ruas, Lalla ouve o ruído de vozes que segredam, choros de crianças. Algures, para lá da cidade, irreal, o uivo de um cão selvagem. Os passos de Lalla coincidem com rastos antigos e ela descalça os sapatos de ténis para melhor sentir a frescura e a textura da terra.
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Aqui é sempre o mesmo olhar que nos guia; é um olhar muito demorado e muito meigo, que vem de todos os lados ao mesmo tempo, do fundo do céu, que se move com o vento. Lalla caminha diante das casas que conhece, sente o cheiro de brasas que estão prestes a extinguir-se, reconhece o ruído do vento nas folhas de papel alcatroado e nas chapas de zinco. Tudo aquilo volta de repente, como se nunca se tivesse ido embora, como se tivesse apenas dormido uma ou duas horas.
Então, em vez de se dirigir para a casa de Ikiker, além, ao pé da fonte, Lalla mete pelo caminho das dunas. A fadiga torna-lhe o corpo pesado, inflige-lhe uma dor nos rins, mas é o olhar desconhecido que a guia e ela sabe que tem de sair da aldeia. De pés descalços, anda o mais depressa que pode, pelo meio dos maciços de espinhos e das palmeiras anãs, até chegar às dunas.
Aí, nada mudou. Caminha pelas dunas cinzentas, como antigamente. De vez em quando, pára, olha à sua volta, apanha uma haste de planta gorda para a esmagar entre os dedos e sentir o cheiro apimentado que amava. Reconhece todas as covas, todos os carreiros, os que levam às colinas pedregosas, os que vão para o pântano salgado, os que não vão dar a parte nenhuma. A noite está profunda e serena e por cima dela as estrelas brilham. Quanto tempo terá passado para elas? Elas não mudaram de lugar, a sua chama não se consumiu, como a das lâmpadas mágicas. Talvez as dunas tenham mudado, mas como sabê-lo? A velha carcaça que mostrava as garras e os cornos, e que lhe metia tanto medo, já desapareceu. Já não há as latas de conservas abandonadas e certos arbustos arderam; os ramos foram partidos aos pedaços para alimentar as braseiras.
Lalla já não consegue encontrar o seu lugar, no alto das dunas. A passagem que conduzia à praia foi invadida pela areia. Lalla trepa com dificuldade as dunas de areia fina, até chegar ao cimo. A respiração assobia-lhe na garganta, e a dor nos rins é tão pungente que geme sem querer. Apertando os dentes, transforma o gemido em canção. Pensa na canção que gostava de cantar, outrora, quando tinha medo:
- Metiterrâneo!...
Tenta cantar, mas a voz não tem força.
Agora segue pela areia dura da praia, mesmo junto à espuma do mar. O vento não sopra com muita força e as ondas produzem um ruído manso; Lalla sente de novo aquela embriaguez, como no barco e no autocarro, como se tudo aquilo estivesse ali à espera dela. Talvez seja o olhar de Es Ser, aquele a quem ela chama o Segredo, que esteja na praia, misturado à luz das estrelas, ao ruído do mar, à brancura da espuma. É uma noite sem medo, uma noite longínqua, uma noite como Lalla não conheceu outra igual.
Ela agora chega ao pé do sítio onde o velho Naman gostava de parar o barco para aquecer o pez ou para remendar as redes. Mas o lugar está
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vazio, a praia estende-se na noite, deserta. Só resta a velha figueira, encostada à duna, com os largos ramos atirados para trás pelo hábito do vento. Lalla reconhece deliciada o seu cheiro forte e insosso, observa os movimentos das suas folhas. Senta-se ao pé da duna, não longe da árvore, e contempla-a demoradamente, como se a cada instante o velho pescador fosse reaparecer.
A fadiga pesa no corpo de Lalla, a dor entorpece-lhe as pernas e os braços. Deixa-se descair para trás na areia fina e adormece logo, tranquilizada pelo ruído do mar e pelo cheiro da figueira.
A Lua ergue-se a leste, sobe na noite por cima das colinas de pedras. A sua luz pálida ilumina o mar e as dunas, banha o rosto de Lalla. com a noite mais adiantada, vem o vento também, o vento morno que sopra do mar. O vento passa pelo rosto de Lalla, pelos seus cabelos e salpica-lhe o corpo de areia. É o céu que é tão grande, e a terra ausente. Por baixo das constelações, as coisas mudaram, moveram-se. As cidades alargaram o seu árculo, parecem uma mancha de bolor no fundo dos vales, abrigadas nas Daías e nos estuários. Homens morreram, casas ruíram numa nuvem de poeira e de baratas. No entanto, na praia ao pé da figueira, onde costuma
a aparecer o velho Naman, é como se nada se tivesse passado. É como se a rapariga nunca tivesse deixado de dormir.
A Lua avança lentamente, até ao zénite. Depois desce para oeste, do lado do mar alto. O céu está puro, sem nuvens. No deserto, para lá das planícies e das colinas de pedras, o frio surdo da areia espraia-se como se fosse água. É como se toda a terra aqui, e mesmo o céu, a Lua : as estrelas tivessem contido a respiração, tivessem suspendido o seu tempo.
Todos eles estão agora parados, enquanto chega o fijar, a primeira madrugada.
No deserto já não correm a raposa, o chacal, atrás do gerbo ou da lebre. A víbora, o escorpião, a escolopendra estão parados na terra fria, sob o céu negro. O fijar apanhou-os, transformou-os em pedras, em pó de pedra, em vapor, porque é a hora em que o tempo do céu se espalha sobre a terra, gela os corpos, e às vezes até interrompe a vida e a respiração. Na cova da duna, Lalla não se move. A pele estremece, em longos arrepios que lhe sacodem os membros e lhe fazem bater os dentes, mas continua nergulhada no sono.
Então chega a segunda madrugada, o branco. A luz começa a misturarse à escuridão do ar. Logo cintila na espuma do mar, nas crostas de sal dos rochedos, nas pedras cortantes ao pé da velha figueira. A claridade cinzenta e pálida ilumina o cimo das colinas de pedras, apaga pouco a pouco as estrelas: a Cabra, o Cão, a Serpente, o Escorpião e as três estrelas irmãs, Mintaka, Alnilam, Alnitak. Depois o céu parece baloiçar, uma grande teia esbranquiçada cobre-o e extingue os últimos astros. Nas
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concavidades das dunas, as pequenas ervas espinhosas tremulam um pouco, enquanto as gotas de orvalho formam pérolas nos seus pêlos.
Nas faces de Lalla, as gotas rolam um pouco, como lágrimas. A rapariga desperta e geme baixinho. Ainda não abre os olhos, mas o seu queixume sobe, mistura-se ao ruído ininterrupto do mar, que lhe chega de novo aos ouvidos. A dor vai e vem dentro do seu ventre, lança apelos cada vez mais próximos, ritmados como o ruído das vagas.
Lalla endireita-se um pouco no leito de areia, mas a dor é tão forte que lhe corta a respiração. Então, de súbito, compreende que chegou o momento do nascimento da criança, agora, aqui, nesta praia, e o medo invade-a, atravessa-a como uma vaga, porque sabe que está só, que ninguém virá ajudá-la, absolutamente ninguém. Quer levantar-se, esboça alguns passos na areia fria, a vacilar, mas volta a cair e o queixume transforma-se em grito. Aqui só há a praia cinzenta e as dunas que ainda estão na noite, e defronte dela o mar, pesado, cinzento e verde, misturado ainda ao negrume.
Deitada de lado na areia, com os joelhos dobrados, Lalla geme de novo segundo o ritmo lento do mar. A dor vem às vagas, em longas ondulações espaçadas, cuja crista mais alta avança à superfície escura da água, agarrando por instantes um pouco de luz pálida, até que rebenta. Lalla segue a marcha da dor no mar, cada arrepio vindo do fundo do horizonte, da zona obscura onde a noite se conserva espessa e irradiando lentamente, até aos confins da praia, a leste, e espraiando-se um pouco de viés, lançando toalhas de espuma, enquanto o rangido da água na areia dura se aproxima dela e a recobre. Por vezes, a dor é demasiado violenta, como se o seu ventre se esvaziasse, rasgando-se, e o gemido cresce na garganta, cobre o estrondo da onda que rebenta na areia.
Lalla põe-se de joelhos e tenta andar de gatas pela duna, até ao carreiro. O esforço é tão intenso que, apesar do frio da alvorada, o suor lhe inunda o rosto e o corpo. Espera ainda, sem desviar os olhos do mar que embranquece. Volta-se para o caminho, do outro lado das dunas, e grita, chama: "Harta-a-ni! Harta-a-ni!" como dantes, quando ia ao planalto de pedras e ele se escondia no buraco de uma rocha. Também tenta assobiar, como os pastores, mas tem os lábios gretados e trémulos.
Daqui a pouco tempo, as pessoas vão acordar na Cidade, vão afastar os
lençóis e as mulheres saem a caminho da fonte para irem buscar a primeira água. Talvez as raparigas vão dar uma volta pelas moitas, à procura de ramos mortos para o lume, e as mulheres vão acender os braseiros para assar um pouco de carne, para aquecer o caldo de aveia, a água para o chá. Mas tudo isso está longe, num outro mundo. É como um sonho que se continue a representar lá adiante na planície lodosa onde vivem os homens, na foz do grande rio. Ou então, mais longe ainda, do outro lado do mar, na grande cidade dos mendigos e dos ladrões, a cidade assassina de
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prédios brancos e de carros armadilhados. O fijar espalhou por toda a parte a sua claridade branca, fria, no instante em que os velhos encontram a morte, no meio do silêncio e do pavor.
Lalla sente que se esvazia e o seu coração põe-se a bater muito devagar, dolorosamente. As vagas de sofrimento são tão aproximadas, agora, que já só existe uma única dor contínua que ondula e bate no interior do ventre. Lentamente, com infinita dificuldade, Lalla arrasta o corpo, sobre os antebraços, ao longo da duna. Em frente dela, a poucas braçadas, perfila-se a silhueta da árvore sobre o monte de pedras, muito negra contra o céu branco. Nunca a figueira lhe tinha parecido tão grande e tão forte. O tronco largo está torcido para trás, os grossos ramos desgrenhados e as belas folhas dentadas tremem um pouco no ar fresco, brilhando à luz do dia. Mas é sobretudo o cheiro que é belo e forte. O cheiro da figueira envolve Lalla, parece atraí-la, embriaga-a e enjoa-a ao mesmo tempo, ondula com as vagas da dor. Mal conseguindo respirar, Lalla iça o corpo devagar, ao longo da areia que a vai travando. Atrás dela, as pernas afastadas deixam um rasto na areia, como um barco que é alado para terra enxuta.
Lentamente, com esforço, arrasta o fardo demasiado pesado, gemendo quando a dor se torna excessivamente forte. Os olhos não largam a silhueta da árvore, da grande figueira de tronco negro, com folhas claras que luzem à claridade do dia. À medida que se aproxima, a figueira cresce mais ainda, torna-se imensa, parece ocupar todo o céu. A sua sombra estende-se em redor como um lago escuro a que se agarram ainda as últimas cores da noite. Lentamente, arrastando o corpo, Lalla entra no interior dessa sombra, sob os altos ramos, fortes como braços de gigantes. É isso o que ela quer, ela sabe que só a figueira a poderá ajudar agora.
O cheiro forte da árvore penetra-a, envolve-a, apazigua-lhe o corpo dolorido, mistura-se ao cheiro do mar e das algas. Ao pé da grande árvore, a areia deixa a descoberto os rochedos enferrujados pelo ar marítimo, polidos, gastos pelo vento e pela chuva. Entre os rochedos, há as raízes vigorosas, semelhantes a braços de metal.
Apertando os dentes para não se queixar, Lalla cinge o tronco da figueira com os braços e iça-se devagar, endireita-se em cima dos joelhos trémulos. A dor dentro do corpo é agora como uma ferida, que se abre
1 pouco e pouco e se rasga. Lalla não consegue pensar senão no que vê, no que ouve, no que cheira. O velho Naman, o Hartani, Aamma, e mesmo o fotógrafo, quem são eles, que é feito deles? A dor que jorra do ventre da rapariga e se espalha por toda a superfície do mar, por toda a extensão das dunas, até no céu pálido, é mais forte que tudo, ipaga tudo, esvazia tudo. A dor enche-lhe o corpo, como um ruído violento, faz o seu corpo do tamanho de uma montanha que repousa deitada na terra.
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O tempo afrouxou por causa da dor, bate ao ritmo do coração, ao ritmo dos pulmões que respiram, ao ritmo das contracções do útero. Lentamente, como se erguesse um peso enorme, Lalla encosta o corpo ao tronco da figueira. Ela sabe que só a árvore a poderá ajudar, tal como a árvore que outrora ajudou a mãe, no dia do seu nascimento. Instintivamente, redescobre os gestos ancestrais, os gestos cujo significado a ultrapassam, e sem que ninguém lhos tivesse ensinado. Agachada ao pé da grande árvore escura, desata o cinto do vestido. O casaco castanho está estendido no chão, em cima do solo cheio de calhaus. Prende o cinto ao primeiro ramo principal da figueira, depois de ter torcido o tecido para o tornar mais resistente. Quando se agarra com as duas mãos ao cinto de pano, a árvore oscila um pouco, fazendo cair uma chu"a de gotas de orvalho. A água virgem corre pelo rosto de Lalla e ela bebe-a deliciada, passando a língua pelos lábios.
No céu, é a hora vermelha que começa agora. As últimas manchas da noite desaparecem, e a brancura leitosa cede o lugar ao incêndio da última alvorada, a leste, por cima das colinas de pedras. O mar torna-se mais escuro, quase violáceo, enquanto no cimo das vagas se acendem as centelhas de púrpura e a espuma resplandece, mais branca ainda. Nunca Lalla olhou com tanta força o nascer do dia, com os olhos dilatados, dolorosos, o rosto queimado pelo esplendor da luz.
É o momento em que os espasmos se tornam subitamente violentos, terríveis, e a dor se assemelha à grande luz encarnada que cega. Para não gritar, Lalla morde o tecido do vestido, no ombro, e os dois braços erguidos por cima da cabeça puxam o cinto de pano com tanta força que a árvore cede e o corpo se levanta. A cada facada da dor, Lalla suspende-se no ramo da árvore. O suor corre-lhe agora pelo rosto e cega-a, a cor sangrenta da dor está na frente dela, no mar, no céu, na espuma de cada onda que rebenta. Por vezes, mesmo sem querer, escapa-se um grito através dos dentes cerrados, logo abafado pelo ruído do mar. É um grito de dor e de desespero, por causa de toda aquela luz, de toda aquela solidão. A árvore verga um pouco a cada sacudidela, faz faiscar as suas largas folhas. Lalla respira-lhe o cheiro, aos goles, aquele cheiro do açúcar e da seiva, e é como se fosse um cheiro familiar que a tranquiliza e a acalma. Puxa pelo ramo com os rins de encontro ao tronco da figueira, enquanto as gotas de orvalho continuam a chover nas suas mãos, no seu rosto, no seu corpo. Há mesmo formigas pretas muito pequenas que lhe correm pelos braços agarrados ao cinto, e que descem pelo corpo abaixo para fugirem.
Aquilo dura muito tempo, tanto tempo que Lalla sente os tendões dos braços retesados como cordas, mas os dedos apertam o cinto de pano com tanta força que nada os conseguiria abrir. Depois, subitamente, sente que o corpo se lhe esvazia, incrivelmente, enquanto os braços puxam com violência pelo cinto. Muito devagar, com gestos de cega, Lalla deixa-se
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escorregar para trás ao longo do cinto de pano, até os rins e as costas tocarem nas raízes da figueira. O ar entra-lhe finalmente nos pulmões e, no mesmo instante, ouve o grito agudo da criança que começa a chorar.
Na praia, a luz vermelha tornou-se alaranjada e, depois, cor de ouro. O Sol já deve tocar nas colinas de pedras a leste, na terra dos pastores. Lalla segura a criança nos braços, corta o cordão com os dentes e ata-o como um cinto em torno do ventre minúsculo sacudido pelas lágrimas. Muito devagar, rasteja pela areia rija até ao mar, ajoelha-se na espuma ligeira e mergulha a criança que berra na água salgada, dá-lhe banho e lava-a com cuidado. Depois, volta para a árvore, pousa o bebé no grande casaco castanho. com os mesmos gestos instintivos que não compreende, abre com as mãos uma cova na areia e enterra a placenta.
Depois estende-se finalmente ao pé da árvore, com a cabeça mesmo junto ao tronco tão forte; abre o casaco, toma o bebé nos braços e aproxima-o dos seios tumefactos. Quando a criança começa a mamar, com a cara minúscula de olhos fechados encostada ao seu seio, Lalla deixa de resistir à fadiga. Olha um instante a bela luz do dia que começa, e o mar tão azul, com ondas oblíquas semelhantes a animais que correm. Os seus olhos fecham-se. Não dorme, mas é como se flutuasse à superfície das águas, demoradamente. Sente encostado a si o pequeno ser quente que se apoia no seu peito, que quer viver, que suga gulosamente o seu leite. "Hawa, filha de Hawa", pensa Lalla, uma única vez, porque aquilo é engraçado e lhe faz bem, como um sorriso, depois de tanto sofrimento. Depois, aguarda sem impaciência que venha alguém da Cidade das tábuas e do papel alcatroado, um pescador de caranguejos, uma velha à procura de lenha, ou então uma rapariguita que goste simplesmente de passear pelas dunas para ver os pássaros do mar. Aqui, acaba sempre por aparecer alguém, e a sombra da figueira é bem fresca e agradável.
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Agadir, 30 de Março de 1912
Foi então que eles vieram pela última vez, surgindo na grande planície, perto do mar, na foz do rio. Vinham de todas as direcções, os do Norte, os Ida ou Trouma, os Ida ou Tamane, os Ait Daoud, os Meskala, os Ait Hadi, os Ida ou Zemzen, os Sidi Amil, os de Bigoudine, de Amizmiz, de Ichemraren. Os do Oriente, para lá de Taroudant, os de Tazenakht, de Ouarzazate, os Ait Kalla, os Assarag, os Ait Kedif, os Amtazguine, os Ait Toumert, os Ait Youss, Ait Zarhal, Ait Oudinar, Ait Moudzit, os dos montes Sarhro, dos montes Bani; os das ribeiras do mar, de Essaouira até Agadir, a fortificada, os de Tiznit, de Ifni, de Aoreora, de Tan-Tan, de Goulimine, os Ait Melloul, os Lahoussine, os Ait Bella, Ait Boukha, os Sidi Ahmed ou Moussa, os Ida Gougmar, os Ait Baha; e sobretudo os do grande Sul, os homens livres do deserto, os Imraguen, os Arib, os Oulad Yahia, Oulad Delim, os Aroussiyine, os Khalifiya, os Reguibat Sanei, os Sebaa, os povos de língua chleuh, os Ida ou Belal, Ida ou Meribat, os Ait ba Amrane.
Reuniram-se todos no leito do rio e eram tão numerosos que enchiam todo o vale. Mas a maior parte deles não eram guerreiros. Eram mulheres e crianças, homens feridos, velhos, todos os que haviam fugido interminavelmente pelas estradas de poeira, desalojados pela chegada dos soldados estrangeiros e que já não sabiam para onde ir. O mar detivera-os aqui, diante da grande cidade de Agadir.
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Quase todos eles não sabiam porque tinham vindo parar aqui, ao leito do rio Souss. Talvez fosse apenas a fome, a fadiga, o desespero que os tinha conduzido à foz daquele rio. Para onde poderiam ir? Há meses, há anos que erravam à procura de uma terra, de um rio, de um poço onde pudessem instalar as suas tendas e armar os currais para as ovelhas. Muitos tinham morrido, perdidos nas pistas que não vão ter a parte nenhuma, no deserto, à volta da grande cidade de Marráquexe ou nas ravinas do oued Tadla. Os que tinham podido escapar haviam voltado para o Sul, mas os antigos poços estavam secos e os soldados estrangeiros surgiam de todos os lados. Na cidade de Smara, onde se erguia o palácio de pedras vermelhas de Ma el Ainine, soprava agora o vento do deserto, que tudo abrasa. Os soldados dos cristãos tinham erguido lentamente uma barreira que cercava os homens livres do deserto, ocupavam os poços do vale santo da Saguiet el Hamra. Afinal, que queriam esses estrangeiros? Queriam a terra toda e só descansariam quando a tivessem devorado completamente, disso não havia dúvidas.
Havia dias que as gentes do deserto estavam aqui, a sul da cidade fortificada, à espera de qualquer coisa. Às tribos das montanhas tinham-se reunido os últimos guerreiros de Ma el Ainine, os Berik Al-lah; todos eles tinham estampado no rosto o desespero, o abandono suscitado pela morte de Ma el Ainine. No olhar de todos eles brilhavam estranhamente a febre e a fome. Todos os dias, os homens do deserto olhavam na direcção da cidadela, para o lugar onde devia aparecer Moulay Sebaa, o Leão, com os seus guerreiros a cavalo. Mas, ao longe, as muralhas vermelhas da cidade mantinham-se silenciosas e as portas estavam fechadas. E aquele silêncio que durava há vários dias tinha algo de ameaçador. Grandes pássaros negros voavam no céu azul e, à noite, ouviam-se os uivos dos chacais.
Nour também lá estava, sozinho no meio dos homens vencidos. Há muito tempo que se habituara àquela solidão. O pai, a mãe e as irmãs tinham voltado para o Sul, para as pistas infindáveis. Mas ele não tinha podido regressar, mesmo depois da morte do xeque.
Todas as noites, estendido na terra fria, pensava na estrada que Ma el Ainine tinha aberto para o Norte,
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para as novas terras e por onde o Leão iria enveredar agora, para se tornar o verdadeiro rei. Há dois anos que o seu corpo estava habituado à fome e à fadiga, e o seu espírito apenas ansiava por aquela estrada que se abriria em breve.
Então, numa manhã, o boato propagou-se através do acampamento: "Moulay Hiba, Moulay Sebaa, o Leão! O nosso rei! O nosso rei!" Soaram tiros e as crianças e as mulheres gritaram com as vozes a tremer. A multidão voltou-se para a planície poeirenta e Nour viu os cavaleiros do xeque envoltos numa nuvem vermelha.
Os gritos e os tiros cobriam o ruído dos cascos dos cavalos. O nevoeiro encarnado subia bem alto no céu da manhã, girava por cima do vale do rio. Os guerreiros correram ao encontro dos cavaleiros, disparando para o céu as carabinas de canos compridos. Eram; quase todos eles, homens das montanhas, chleuhs vestidos com túnicas de burel, homens selvagens, hirsutos, com olhos ferinos. Nour não reconhecia os guerreiros do deserto, os homens azuis que tinham seguido Ma el Ainine até à morte. Estes não tinham sido marcados pela fome e pela sede, não tinham sido queimados pelo deserto durante dias e meses; vinham dos seus campos, das suas aldeias, sem saber porquê e contra quem se iam bater.
Durante todo o dia os guerreiros correram pelo vale, até às proximidades das muralhas de Agadir, enquanto os cavalos de Moulay Sebaa, o Leão, galopavam erguendo a grande nuvem vermelha. Que queriam eles? Corriam e gritavam apenas, ao passo que as vozes das crianças e das mulheres tremelicavam no leito do rio. De vez em quando, Nour via passar os cavaleiros, na sua nuvem de poeira encarnada, rodeados de chispas de luz que se soltavam das lanças dos cavaleiros do Leão.
"Moulay Hiba! Moulay Sebaa, o Leão!" As vozes das crianças gritavam à volta dele. Depois os cavaleiros desapareciam para o outro lado da planície, na direcção das muralhas de Agadir.
A embriaguez reinou no vale durante todo aquele dia, juntamente com o fogo do Sol que queimava os lábios. O vento do deserto pôs-se a soprar à tarde, tapando os acampamentos com um nevoeiro dourado, escondendo os muros da cidade. Nour abrigou-se debaixo de uma árvore, envolto na sua túnica.
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A pouco e pouco, com a chegada da noite, a embriaguez dissipou-se. A frescura do entardecer baixou sobre a terra ressequida, à hora da oração, quando os animais se ajoelharam para se protegerem da humidade da noite.
Nour pensava ainda no Verão que ia chegar, na seca, nos poços, nos lentos rebanhos que o seu pai ia conduzir até às salinas, do outro lado do deserto, em Oualata, em Ouadane, em Chinchan. Pensava na solidão dessas terras sem fronteiras, tão distantes que nada se sabe do mar nem das montanhas. Havia tanto tempo que ele não sabia o que era um pouco de repouso. Era como se, em todas as direcções, só houvesse aquilo: as extensões de poeira e de calhaus, os desfiladeiros, os rios secos, os rochedos eriçados como facas e o medo sobretudo, como uma sombra que cobre tudo o que se vê.
À hora da comida, quando ia partilhar o pão e o caldo de milho dos homens azuis, Nour olhava a noite constelada que cobria a terra. A fadiga queimava-lhe a pele, tal como a febre que lança os seus grandes arrepios ao longo do corpo.
No acampamento precário, sob os abrigos de ramos e de folhas, os homens azuis já não falavam. Já não contavam a legenda de Ma el Ainine e já não cantavam também. Envoltos nos mantos esburacados, fitavam o lume de brasas, batendo as pálpebras quando o vento fazia baixar o fumo. Talvez eles já não esperassem mais nada, ali sentados de olhar turvo e com o coração a bater ao retardador.
As fogueiras vão-se extinguindo e a escuridão invade o vale. Ao longe, entrando pelo mar negro, a cidade de Agadir pisca debilmente. Nour deita-se então no chão, com a cabeça virada para as luzes e, como nas outras noites, pensa no grande xeque Ma el Ainine que havia sido enterrado diante da casa em ruínas, em Tiznit. Tinham-no deitado na vala, com a cara virada para o Oriente; nas mãos haviam-lhe posto as suas únicas riquezas, o livro santo, o cálamo, o rosário de ébano. A terra mole cobrira-lhe o corpo, depois fora a poeira encarnada do deserto, seguida de grandes calhaus para que os chacais não desenterrassem o corpo; e os homens tinham batido a terra com os pés descalços, até ela ficar dura e lisa como uma laje. Perto da sepultura, havia uma jovem
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acácia de espinhos brancos, igual à que estava diante da casa da oração, em Smara.
Então, um a um, os homens azuis do deserto, os Berik Al-lah, os últimos companheiros da Goudfia, tinham ajoelhado sobre a sepultura, e tinham passado a mão devagar pela terra lisa e logo a seguir pela cara, como que para receberem a última bênção do xeque.
Nour pensava nessa noite, quando todos os homens tinham deixado a planície de Tiznit e ele havia ficado só com Lalla Meymuna ao pé da sepultura. Na noite fria, tinha escutado a voz da velha que chorava interminavelmente, no interior da casa em ruínas, como se cantasse. Ele adormecera no chão, deitado ao lado do túmulo, e o seu corpo ficara sem se mover, sem sonhar, como se também estivesse morto. No outro dia e nos dias seguintes quase que não se afastara da sepultura, sentado na terra escaldante, envolto na sua túnica de lã, com os olhos e a garganta ardendo de febre. O vento já cobria de poeira a terra do túmulo, já o ia apagando lentamente. Depois, a febre apoderara-se do seu corpo e tinha perdido a consciência. Umas mulheres de Tiznit tinham-no levado para casa delas e tinham-no tratado, enquanto delirava, à beira da morte. Quando ficara curado, após várias semanas, havia caminhado de novo para a casa em ruínas onde Ma el Ainine tinha morrido. Mas já não havia ninguém; Lalla Meymuna regressara à sua tribo, e o vento que tinha soprado havia trazido tanta areia que nem sequer conseguira localizar a sepultura.
Talvez fosse assim que as coisas se deveriam passar, pensava Nour; quem sabe se o grande xeque não teria voltado para os seus verdadeiros domínios, perdidos na areia do deserto, levados pelo vento. Agora, Nour contemplava a grande extensão do rio Souss, na noite, fracamente iluminado pela bruma da galáxia, o grande clarão que é o rasto do sangue do cordeiro do anjo Gabriel, segundo dizem. Era a mesma terra silenciosa, como ao pé de Tiznit, e Nour tinha por vezes a impressão de escutar o longo queixume cantado de Lalla Meymuna, mas era provavelmente a voz de um chacal que uivava na noite. Aqui, o espírito de Ma el Ainine ainda vivia, cobria a terra inteira, misturado à areia e à poeira, escondido nas fendas ou então luzindo vagamente em cada pedra afiada.
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Nour sentia o olhar dele, além, no céu, nas manchas de sal na terra. Sentia o olhar em cima dele, como outrora, na praça de Smara, enquanto um arrepio lhe percorria o corpo. O olhar entrava dentro dele, causava-lhe vertigens. Que quereria ele dizer? Talvez estivesse a pedir alguma coisa, assim, mudamente, na planície, envolvendo os homens com a sua luz. Talvez estivesse a pedir aos homens que se lhe juntassem, lá onde estava, misturado à terra cinzenta, disperso no vento, transformado em pó... Nour adormecia, arrastado pelo olhar imortal, sem se mexer, sem sonhar.
Quando ouviram o ruído dos canhões pela primeira vez, os homens azuis e os guerreiros desataram a correr para as colinas, para olhar o mar. O ruído fazia estremecer o céu como um trovão. Isolado, ao largo de Agadir, um grande barco couraçado, semelhante a um animal monstruoso e lento, lançava os seus clarões. O ruído chegava um longo momento depois, um ribombo seguido do ruído dilacerante dos obuses que explodiam no interior da cidade. Em poucos instantes, as altas paredes de pedra encarnada não mais eram que um montão de ruínas de onde se elevava o fumo negro dos incêndios. Depois, das paredes em escombros, saiu a população, homens, mulheres e crianças, ensanguentados e aos gritos. Movidos pelo pânico, encheram o vale do rio, afastando-se do mar o mais que podiam.
A chama curta brilhou várias vezes na boca dos canhões do cruzador Cosmao, e o estrépito dilacerante dos obuses que rebentavam no Kasbah de Agadir repercutiu-se por todo o vale do rio Souss. O fumo negro dos incêndios subiu bem alto no céu azul, cobrindo com a sua sombra o acampamento dos nómadas.
Então surgiram os guerreiros a cavalo de Moulay Sebaa, o Leão. Atravessaram o leito do rio, recuando para as colinas, à frente dos habitantes da cidade. Ao longe, o cruzador Cosmao estava imóvel no mar cor de metal, e os seus canhões viraram-se devagar para o vale por onde fugiam os homens do deserto. Mas a chama não voltou a brilhar na ponta dos canhões. Houve um longo silêncio, apenas interrompido pelo ruído das pessoas que corriam
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e pelos gritos dos animais, enquanto o fumo negro continuava a subir no céu.
Quando os soldados dos cristãos apareceram diante das muralhas em ruínas da cidade, ninguém compreendeu logo quem eles eram. Quem sabe mesmo se Moulay Sebaa e os seus homens não julgaram por instantes que se tratava dos guerreiros do Norte enviados por Moulay Hafid, o Comendador dos Crentes, para travarem a guerra santa.
Mas eram os quatro batalhões do coronel Mangin, vindos em marcha forçada até à cidade rebelde de Agadir - quatro mil homens com as fardas dos atiradores africanos, senegaleses, sudaneses, sarianos, armados de espingardas Lebel e de uma dezena de metralhadoras Nordenfeldt Os soldados avançaram cautelosamente para a margem do rio, postando-se em semicírculo, enquanto, do outro lado do rio, ao pé das colinas pedregosas, o exército dos três mil cavaleiros de Moulay Sebaa começou a girar sobre si mesmo, formando um grande turbilhão que atirava a poeira vermelha para o céu.
Afastado do turbilhão, Moulay Sebaa, vestido com a sua túnica branca, observava inquieto a longa linha dos sol-, dados dos cristãos, semelhante a uma coluna de insectos em marcha pela terra ressequida. Ele sabia que a batalha estava antecipadamente perdida, como antes em Bou Denib, quando as balas dos atiradores negros tinham ceifado mais de um milhar dos seus cavaleiros vindos do Sul. Imóvel no seu cavalo, que estremecia de impaciência, olhava os homens estranhos que avançavam placidamente pelo rio, como se praticassem um exercício. Moulay Sebaa tentou várias vezes dar a ordem de retirada, mas os guerreiros das montanhas não acatavam as suas ordens. Lançavam os cavalos a galope numa ronda frenética, inebriados pela poeira e pelo cheiro a pólvora, soltando gritos na sua língua selvagem, invocando os nomes dos seus santos. Quando a ronda acabar, irão cair na cilada que lhes armaram, irão morrer todos.
Moulay Sebaa já nada podia fazer agora e lágrimas de dor enevoavam-lhe os olhos. Do outro lado do leito do rio seco, o coronel Mangin mandou colocar as metralhadoras em cada ala do seu exército, no cimo das colinas de pedras. Quando os guerreiros mouros carregarem para o centro, no momento em que atravessarem o leito
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do rio, o tiro cruzado das metralhadoras vai varrê-los e depois só haverá que lhes dar o golpe de misericórdia, à baioneta.
Ainda houve um silêncio pesado, enquanto os cavaleiros tinham parado de girar na planície. O coronel Mangin olhava pelo binóculo, tentava compreender: eles não iriam bater em retirada, agora? Nesse caso, seria necessário marchar de novo dias e dias, naquela terra desértica, ao encontro daquele horizonte que vai rugindo e causa o desespero. Mas Moulay Sebaa conservava-se imóvel no seu cavalo, porque sabia que se aproximava o fim. Os guerreiros das montanhas, os filhos dos chefes de tribo, tinham vindo aqui para combater e não para fugir. Só tinham parado de girar para rezar, antes do assalto.
Depois, tudo se passou rapidamente, sob o céu cruel do meio-dia. Os três mil cavaleiros carregaram em formação cerrada, como numa parada, brandindo as espingardas de pederneira e as longas lanças. Quando atingiram o leito do rio, os oficiais subalternos que comandavam as metralhadoras olharam o coronel Mangin, que tinha levantado o braço. Ele deixou passar os primeiros cavaleiros e, depois, subitamente, baixou o braço e os canos de aço começaram a lançar a enxurrada de balas, seiscentas por minuto, com um ruído sinistro que cortava o ar e retumbava em todo o vale, até às montanhas. Existirá o tempo, quando bastam alguns minutos para matar mil homens, mil cavalos? Quando os cavaleiros compreenderam que tinham caído numa armadilha, que não conseguiriam transpor aquele muro de balas, quiseram arrepiar caminho, mas já era tarde de mais. As rajadas das metralhadoras varriam o leito do rio, e os corpos dos homens e dos cavalos não paravam de cair, como se fossem ceifados por uma grande foice invisível. Pelas pedras, corriam riachos de sangue que se misturavam aos delgados fios de água. Depois, voltou o silêncio, enquanto os últimos cavaleiros se refugiavam nas colinas, todos ensanguentados e montando cavalos com o pêlo eriçado pelo pavor.
Sem pressa, o exército dos soldados negros pôs-se em marcha pelo leito do rio, companhia após companhia, com os oficiais e o coronel Mangin à testa. Dirigiram-se para a pista de leste, para Taroudant, em perseguição de Moulay Sebaa, o Leão. Afastaram-se sem se voltarem
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para o lugar do massacre, sem olharem os corpos desfeitos dos homens estendidos nas pedras, nem os cavalos virados de pernas para o ar, nem os abutres que já se tinham aproximado. Também não olharam para as ruínas de Agadir, para o fumo negro que ainda subia no céu azul. Ao longe, o cruzador Cosmao deslizava lentamente no mar cor de metal e aproava em direcção ao Norte.
Cessou então o silêncio, e ouviram-se todos os gritos dos vivos, dos homens e dos animais feridos, das mulheres, das crianças, como um só gemido interminável, como uma canção. Era um ruído cheio de horror e de sofrimento que subia de todos os lados ao mesmo tempo, na planície e no leito do rio.
Agora, Nour caminhava por cima dos seixos, no meio dos corpos estendidos. As moscas vorazes e as vespas já zumbiam em nuvens negras por cima dos cadáveres e Nour sentia a náusea que lhe apertava a garganta.
com gestos muito lentos, como se saíssem de um sonho, as mulheres, os homens, as crianças afastavam as silvas e caminhavam pelo leito do rio, sem falar. Todo o dia, até ao cair da noite, levaram os corpos dos homens para a margem do rio, a fim de os enterrarem. Quando a noite chegou, acenderam fogueiras em ambas as margens, para afastarem os chacais e os cães selvagens. As mulheres das aldeias vieram, trazendo pão e leite coalhado, e Nour comeu e bebeu com prazer. Depois dormiu, deitado no chão, sem mesmo pensar na morte.
No dia seguinte, mal luziu a aurora, os homens e as mulheres abriram outras covas para os guerreiros e depois enterraram também os cavalos deles. Em cima das sepulturas, colocaram grandes calhaus do rio.
Quando tudo acabou, os últimos homens azuis recomeçaram a caminhada pela pista do sul, aquela que é tão comprida que parece não ter fim. Nour seguia com eles, de pés descalços, levando apenas a sua túnica e um pouco de pão atado num pano húmido. Eles eram os últimos Imazighen, os últimos homens livres, os Taubalt, os Tekna, os Tidrarin, os Aroussiyine, os Sebaa, os Reguibat Sahel, os últimos sobreviventes dos Berik Al-lah, os Benditos de Deus. Não tinham mais nada senão o que os seus olhos viam, senão o que os seus pés tocavam. À frente deles, a terra muito plana estendia-se como o mar, cintilante de sal. Ondulava, criava as suas cidades brancas com muralhas magníficas, com cúpulas que rebentavam como bolhas. O sol queimava-lhes as caras e as mãos, a luz causava vertigem, quando as sombras dos homens são iguais a poços sem fundo.
Todas as tardes, os lábios sangrentos procuravam a frescura dos poços, a lama salobra das ribeiras alcalinas. Depois, a noite fria abraçava-os, quebrava-lhes os membros e a respiração, punha-lhes um peso na nuca. Não havia fim para a liberdade, ela era tão vasta como a extensão da terra, bela e cruel como a luz, doce como os olhos de água. Todos os dias, ao primeiro alvor, os homens livres regressavam à sua morada, lá para o Sul, onde mais ninguém sabia viver. Todos os dias, com os mesmos gestos, apagavam os vestígios das fogueiras, enterravam os seus excrementos. Voltados para o deserto, faziam a sua oração sem palavras. Como num sonho, iam-se embora, desapareciam.

 

 

                                                                  J. M. G. Lê Clézio

 

 

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