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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DESLUMBRANTE
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Capítulo 18


A casa de Airymont situava-se no alto de uma elevação do terreno, varrida pelos ventos marítimos da costa do Essex, a cerca de dois quilômetros de distância. Assim como a casa de Londres, ostentava a opulência grandiosa dos solares do século anterior, com duas alas a enquadrar um grande pátio e uma escadaria elaborada que conduzia à entrada, no centro do bloco de pedra principal.

Os criados os cumprimentaram como se Sebastian fosse o senhor. Perfilaram-se para conhecer Audrianna. Conduziram-na aos seus aposentos e em seguida a governanta mostrou-lhe a casa enquanto Sebastian se reunia com o administrador.

Ela voltou aos aposentos. Fora escolhida uma empregada para ser a sua criada pessoal e a mulher desfazia suas malas. Audrianna espreitou para o pátio, da janela alta. Lá embaixo, Sebastian subia para um cavalo. Vestira a casaca e as botas de montar, e já tinha um homem posto a cavalo ao seu lado.

Apareceu um criado à porta com uma explicação. Lord Sebastian presumira que ela quereria descansar depois da viagem, e um assunto da propriedade o obrigava a sair com o administrador. Voltara ao fim do dia para o jantar que fora marcado.

– Vai querer este vestido para hoje à noite, senhora? – A criada segurava o seu vestido de noite de cetim rosa.

– Não. O branco.

Audrianna ficou vendo os dois cavalos trotarem para fora do pátio. A perspectiva que tinha, tal como as enormes alas da casa, deixavam-nos menores. Havia sem dúvida algum assunto da propriedade a que ele devia atender. Numa propriedade tão grande como aquela, haveria sempre. A viagem de carruagem fora cheia de silêncios ásperos entre as conversas de circunstância, e ela suspeitara que ele não lamentara ter sido chamado.

Sebastian encetou um galope logo que saiu do pátio. A velocidade não acalmava seu ânimo. E, sim, equiparava-o.

Devia tê-la deixado em Londres. Fora idiota em procurar razões para não o fazer. Tinha de levá-la para conhecer o campo algum dia, mas não necessariamente naquele momento específico.

Às vezes ela confundia seus sentidos. Era a sua única desculpa, e bem esfarrapada.

Claro que ela conheceria a localização das fábricas de pólvora reais. Kelmsleigh provavelmente falava daquelas coisas em casa com tanta naturalidade como Wellington falava da guerra e outros nobres falavam de cavalos e clubes.

Dadas as circunstâncias, fora estúpido pensar que naquela manhã ela o deixaria sair sossegado como fazia sempre em Londres, sem o interrogar acerca disso. Ela teria ignorado se pensasse que ele visitava uma amante, mas não conseguia ficar calada face à suspeita de que tinha ido à fábrica de pólvora.

A tentação de mentir havia sido forte. Não para evitar uma discussão, mas para evitar ver mágoa no olhar dela. Se ele soubesse que ela nomearia tão calmamente a sua insignificância, como se fosse uma verdade de aceitação geral, ele teria mentido. Se ele adivinhasse que ela diria o resto...

– Senhor!

Sebastian freou bruscamente o cavalo e virou-se para trás. O administrador acenava-lhe e apontava para a esquerda.

– Queria ir à quinta Mulder, não queria, senhor?

Queria? Não conseguia se lembrar. Confuso, era assim que ele estava. Tudo porque uma mulher se sentia infeliz.

Sebastian voltou a trote e encaminhou o cavalo para um caminho florestal que conduziria à quinta. Havia rendeiros a quem falar e benfeitorias a inspecionar. Ocuparia o seu tempo e a sua mente com coisas úteis, não os olhos verdes acusadores de uma mulher que nunca conseguiria confiar nele.

O jantar correu bem. Não fora um feito de Audrianna, porém. O administrador e a governanta tinha planejado e Sebastian fizera os convites. Audrianna não tivera de fazer nada, a não ser desempenhar o papel de anfitriã.

Os convidados eram todos desconhecidos para ela mas velhos conhecidos de Sebastian e conheciam-se entre si, como é hábito entre vizinhos no campo. O ambiente tornou-se informal e alegre. A atenção que recebeu como jovem esposa foi suficiente para se sentir incluída, sem ser tanta que se sentisse exposta.

Sebastian era um anfitrião excelente. Espirituoso. Tranquilo. Caloroso. Apresentava-se descontraído com aquelas pessoas que conhecera a vida inteira. O único constrangimento que existia – e não parecia a Audrianna que mais ninguém reparasse – era entre ele e ela.

A ferida ainda sangrava. Ela tentara tapá-la, aplacá-la, mas as implicações da discussão provocaram dores profundas que ela não dominava.

Ela não queria aquela brecha invisível que sentia entre eles. Não queria perder a familiaridade que se iniciara e que tornava a vida verdadeiramente mais tolerável. E, ainda assim, também não conseguia escapar do medo de que ele condenasse o pai a mais desgraça ainda, e aquele bom homem nunca teria sequer a possibilidade de se defender.

Olhou para ele, do outro lado da mesa, ao som de prata batendo em porcelana. As senhoras falavam de vestidos comprados para a temporada e os homens discutiam caça e política. O olhar dele encontrou brevemente o dela e ele sorriu.

Não era um dos seus sorrisos ganhadores, desenhado para hipnotizá-la. Nem mesmo o sorriso de um amigo. Visava a tranquilizar, mais nada. Um sorriso de aprovação, que dizia que a desajustada noiva estava se saindo bastante bem naquela noite.

Ele não foi ao quarto dela naquela noite. Chegou um momento, um momento distinto, em que ela soube que não o faria.

Aquilo a magoou. Assustou. O seu coração abriu um buraco, como se tivesse sido retirada alguma coisa vital.

Debruçou-se sobre a pequena discussão que provocara aquele afastamento. Ainda que breve, produzira um caos de emoções fortes. Raiva e mágoa e medo da parte dela. E da dele?

Raiva também, quando ela disse que ele iria até o fim, mesmo se a magoasse. A reação dele ocupava seu espírito agora. A expressão dele não era só raiva. Também estava surpreendido e... ultrajado. Desiludido?

Subitamente aquela discussão lhe pareceu muito diferente. Àquela nova perspectiva, ela não era a única a estar ressentida. Sentiu uma ponta de pânico trepidando no vazio, ao imaginar como parecera e soara aos olhos dele.

A reunião na fábrica o perturbara. Ele não quisera falar no assunto. Não quisera dizer em que direção apontara. Ele tentara poupá-la durante algum tempo, pelo menos. Em troca, ela o acusara de indiferença à sua felicidade.

Audrianna encontrou um roupão e vestiu. Embrulhou-se num xale comprido. Iria até ele e pediria desculpa. Não por estar magoada. Não por sentir medo ou raiva. Pediria desculpa por ter se esquecido de se interrogar sobre a razão da irritação e da mágoa dele.

* * *

Ele não estava no quarto dele. Ela ficou olhando para o aposento, desapontada. Reunira a sua coragem a cada passo que dera, e para nada.

Sons no quarto de vestir avançaram para a porta. Ela sentiu o coração dar um pulo ao ver a porta abrir. A sua disposição pensativa a fez pensar naquela reação. Não era medo. Nem um pouco. Era excitação e alegria e expectativa de repor as coisas. Era isso que ela sentia.

Não era Sebastian. O velho criado que cuidava do seu quarto espreitou atrás da porta.

– Foi para o observatório – disse. – Não se sabe quando virá, senhora.

– Onde fica esse observatório?

– Não é um observatório verdadeiro. É a cabana do jardineiro. Fica para lá do jardim principal, atravessando o bosquezinho, numa clareira do outro lado.

Ela saiu e desceu as escadas. A noite não estava assim tão fria e o xale era quente. Ia até ele, diria o que se sentia obrigada a dizer, e partiria. E talvez de manhã já tivessem deixado de parecer estranhos.

O Universo muitas vezes o acalmava. A sua vastidão absorvia qualquer escuridão que ele carregasse na alma. Uma gota de veneno não tem potência quando derramada no oceano.

Aquela noite, como em outras há muito tempo, afetou-o de forma diferente. A sua beleza comoveu-o profundamente. Perdeu noção dos dados científicos, de preocupações astronômicas e ficou apenas observando até flutuar lá em cima. O telescópio e a cabana, a distância e a sua própria corporalidade, cessaram de existir durante largo tempo.

Ocorrências assim sublimes aconteciam raramente agora. Estava grato por voltar a experimentá-lo mais uma vez, como uma memória vívida de um amigo de infância.

O mundo intrometia-se sempre, contudo. Uma brisa. O metal contra o seu rosto. Um suspiro ou uma respiração. Não era preciso muito para quebrar o feitiço.

Não foi um som que o quebrou daquela vez. Nem um toque. Apenas uma consciência de que já não estava sozinho. Desviou o rosto das estrelas.

Audrianna estava do lado de fora da porta aberta, observando. Tinha vestido um roupão adornado com babados de renda que contrastava com o xale de lã que a envolvia. O luar realçava o fogo escondido no seu cabelo, mas também lhe lançava o rosto na sombra.

– Entra, Audrianna.

Ela saiu da grama para o chão de madeira. Não havia candeeiros e só a porta de entrada e o buraco no telhado deixavam a luz desmaiada da lua crescente entrar.

Ela examinou o abrigo simples. Sem ser sequer uma casinha rústica, servira aos jardineiros de lugar de repouso das longas horas de trabalho. Sebastian colocara lá o telescópio há dez anos, quando reparara que era ideal, com a altura do terreno e a ausência de copas.

Ela passou os dedos pelo metal brilhante do telescópio.

– Isto fica aqui, assim, metido naquele buraco? E se chove?

O seu sentido prático o encantou.

– Eu o tiro daí quando saio e tapo o buraco. – Agarrou numa corda fina que caía do teto. – Desliza em ambos os sentidos quando puxo isto.

Ela admirou o telescópio, curvando-se para ver como apontava para o retalho de céu.

– É impressionante.

– Gostaria de espiar?

– Muito, se puder.

– Chega aqui, então.

Ele apontou a lente para Marte, depois a colocou no colo dele.

– Posicione o seu olho aqui.

Audrianna espiou, hesitante, como se receasse partir alguma coisa. Depois encostou o olho e arquejou.

– É maravilhoso – sussurrou. – Glorioso.

Ele a sentiu ser absorvida como acontecia com ele. Pôs o braço à volta dela para ela não ser incomodada pela necessidade de se equilibrar nos joelhos dele. Mechas sedosas roçavam seu rosto e a lã do xale aconchegava sua mão contra o corpo dela.

– Espera. – Ele inclinou sua cabeça para o lado, para apontar o telescópio para outro lugar, e verificou a vista. Ela voltou a espiar e arquejou novamente.

As estrelas tinham ajudado em muito a melhorar o seu mau humor. Segurá-la também. Não totalmente. Ressentimentos que ele não queria nomear ainda ressoavam profunda e gravemente, incoerentemente, como faziam desde há dois anos, mas pelo menos ele podia voltar a ignorá-los.

– E você se habitua a isso? – perguntou ela. – Torna-se trivial com a repetição?

– Nunca. – A resposta saiu tranquilamente, grave e masculina. Calma. Ela compreendia agora por que razão nenhuma da turbulência do dia viera recebê-la quando se pusera à porta. Aquela cabana oferecia um tipo de escape desconhecido da maioria das pessoas. Ele podia olhar para as estrelas, e qualquer emoção pareceria pequena em comparação.

Ela interferira com aquilo. Invadira. Fora gentil da parte dele permitir e lhe mostrar o que existia verdadeiramente no cintilante céu noturno.

Ela abdicou da glória. Deixou-se escorregar do colo dele.

– Obrigada. Foi espantoso.

– Um dia desses a levo a Greenwich e arranjo forma de te fazer entrar no observatório às escondidas, para poder olhar por um maior.

* * *

– Seria uma maravilha. Poder olhar. Entrar às escondidas também deve ser divertido.

Audrianna atravessou o chão de madeira e saltou para a grama. Olhou para o céu, tão diferente do que acabava de ver.

– Audrianna, por que veio até aqui?

Ela se virou. Ele não tinha voltado ao seu escape. Estava à porta da cabana.

– Não é dada a passeios noturnos – declarou ele. – Por que veio?

– Estava à sua procura. Queria me desculpar. Não pelo que senti, ou por proteger o nome do meu pai. Nem sequer por temer que você não fizesse isso.

– Por quê, então?

– Por só pensar nos meus próprios sentimentos e medos. E por não ser mais meiga. Acho que disse alguma coisa que feriu sem intenção e de formas que não compreendo. Se assim for, peço desculpa.

Ele desceu.

– Não se pode culpá-la por ver rapidamente algo que a mim mesmo levou tempo a mais para reconhecer.

– Nem sequer sei a que se refere. Acho que me entendeu mal.

– A vida que tem de dividir com o seu irmão. Foi a razão que havia dado para a minha investigação. Identificou uma verdade desconfortável.

– Não quis dizer que os dois vivem uma vida única.

– Só que vivemos.

– Não vejo...

– Então olhe novamente. Eu exerço a influência dele. Tenho o poder dele. Faço de senhor das propriedades e sento-me à mesa no lugar dele. Moldei a minha vida e a mim mesmo a este dever de fazer as vezes dele, mas sem o substituir. Tivesse ele morrido na guerra, teria sido uma razão mais trágica para tomar o seu lugar, mas o dever e o papel teriam sido uma herança natural.

À medida que falava, o seu tom de voz tornava-se mais áspero. Não era por ela. Os próprios pensamentos e palavras o enraiveciam.

– Você não é... É admirado por direito próprio, e qualquer poder advém do seu caráter e discernimento.

– Sendo verdade, ainda é pior. Vivo a vida dele, ocupo o lugar dele e ele ainda está vivo e me vê fazer isso tudo, inferno! Se ele pensa que eu vivo a vida dele melhor do que ele conseguiria... Maldição, essa existência conjunta me traz momentos de infelicidade profunda, mas deve causar muitos mais a ele. Eu sou o ladrão, afinal. A perda é dele.

Ela não sabia o que dizer. Compreendia, porém, a sua tenacidade no assunto da pólvora agora. Compreendia por que razão ele não desistia. A metade que estava na cadeira não podia, por isso a metade que andava no mundo fazia. Fosse por amor ou por se sentir em dívida, ele proporcionaria ao irmão algum tipo de justiça.

– Faz o que tem de ser feito. Não rouba nada.

– Quer eu roube ou ele dê, partilhamos de fato uma vida por decreto do destino. – Estendeu o braço na noite e tocou seu rosto. – Até partilhamos você.

Ela ficou sem ar, e só parcialmente por causa da carga que a atravessara com aquele toque.

– O que quer dizer?

– Você sabe o que quero dizer.

Ela temeu que sim. Teve uma ideia que lhe ocorrera antes. Só que naquele momento adquiria um novo significado.

– Aquele dia na sua casa... a boa disposição do seu irmão na minha companhia... Foi por isso que voltou a me pedir em casamento? Por ele?

– Quem sabe, em parte. Não foi consciente. Contudo, o fato de ele gostar tanto da sua companhia pode ter me encorajado a pressioná-la mais do que teria feito. – Sebastian cruzou os braços e voltou o olhar para as estrelas, como se procurasse distração. Ou uma nova fuga. – Duas metades de um todo. Tornou-se tão normal que nem sequer reparo, a não ser que a verdade não possa ser evitada. Claro, não esperava... Bom, não planejei partilhá-la assim tão literalmente.

O choque a deixou num estado de precisa lucidez. Desfilaram memórias, de comentários e perguntas, de reações e estados de espírito. Ela receou compreender bem demais aquilo a que ele se referia.

– Se acha que nutro sentimentos românticos pelo seu irmão, e que lamento a enfermidade dele por essa razão, está muito enganado.

Ele olhou para ela. Sombrio. Tenso.

– Ele é um amigo – declarou ela. – Um amigo querido. Tenho amor por ele como a um irmão. Certamente não como a um marido ou amante. Seja o que for que vocês dois partilhem, não inclui a mim.

Ela o abraçou, pois assim talvez ele acreditasse nela. Os braços dele puxaram-na mais para perto e a olhou como se pudesse ver seus pensamentos no escuro. Ela estendeu os braços e segurou seu rosto nas mãos e o fez se inclinar para beijá-lo e talvez ele ficasse sabendo que mesmo quando era um estranho não lhe excitara somente o corpo.

O desfecho era inevitável. Ela sabia que aquele beijo seria como lançar lenha para uma fogueira. Outro escape talvez, mas venceria o constrangedor abismo que se formara naquele dia.

A luz que a lua emanava na medida certa criava uma noite mágica. Árvores escuras revestiam a clareira, que, com o primeiro beijo, se tornou uma câmara privada, íntima e natural. As estrelas próximas converteram-se num dossel de pontos brilhantes.

A paixão cresceu num derramamento de abraços ávidos e beijos furiosos. Ela acolheu a investida, isso a incitou. Do seu poder e dureza fluiu uma emoção doce, nascida das confidências dele e, agora, do alívio dela por aquele dia complicado afinal não a ter deixado sozinha, vendo-o recuar em vez de avançar.

O abraço dele se apossava dela, amparava-a, controlava-a. Ele ajoelhou-se e os seus beijos assenhoraram-se do ventre e do quadril dela, das suas coxas e da sua elevação. Queimavam sua roupa até o sangue, até ela sentir línguas de um prazer fogoso lamberem sua pele.

Ele tirou o xale e o atirou para o chão, depois deixou-se cair levando-a consigo, pondo-a em cima de si, entrelaçados num abraço tão vigoroso que bem podiam estar tentando entrar na alma um do outro.

Ele fez com que se ajoelhase e acariciou a frente do roupão.

– Abra.

Ela se debateu impacientemente com os botões, erguendo-se para conseguir chegar a todos. Ele desapertou a sua própria roupa. O corpo dela tremia com o que estava para vir. Um pulsar profundo suplicava.

Ele puxou o tecido do roupão para o lado, deixando-o completamente aberto, e a ela exposta. As estrelas cintilaram nos olhos quando as suas mãos iniciaram voluptuosas carícias nos seios. Em breve, ela balançava ao sabor daquele pulsar profundo que se tornava insuportável.

Ela tirou o tecido de baixo de si para que aquele pulsar pudesse sentir a dureza e o calor e a promessa dele. Era delicioso estar assim ajoelhada, montada nele, provocada tão fisicamente ao luar.

Ele baixou-a para si, para conseguir torturar seus seios com a língua. Entrou nela apenas o bastante para excitá-la e deixá-la histérica. Os seios dela estavam tão sensíveis que parecia que cada passagem da língua provocava um arrepio de prazer entre eles.

Ela quase chorava quando ele finalmente entrou nela completamente. Atirou a cabeça para trás e abriu os olhos e viu as estrelas caindo e entrando nela. Depois, desabou no abraço dele enquanto ele a arrebatava.

Atravessaram o jardim antes do nascer da aurora. Saciados e com a pouca roupa desarrumada, entraram sorrateiramente na casa como dois criados com uma ligação clandestina.

Ele a deixou à porta do quarto. Ela o beijou antes de abri-la. Era o quarto beijo que ela lhe dava livremente, sem ele a conduzir primeiro ao abandono? Estava perdendo a conta.

– Você pode mudar a situação se quiser – disse ela. – Podemos sair daquela casa. Você pode deixar o governo. Eu farei aquilo que quiser. – Riu. – Podíamos ir para o Brasil.

A preocupação dela o tocou. Ele a beijou uma última vez antes de sair, para lhe dar nota disso.

– Você é boa demais e eu fico grato. Mas deixei de saber como quero que a minha vida seja. Já não sei o que quero.

Exceto ela. Ele sabia que a queria. À sua paixão como ao seu coração.

Ali estava.

Tão inesperado.


Capítulo 19


Quatro dias depois Sebastian concluiu que mesmo uma mulher agradável e apaixonada acabaria por se cansar do uso continuado do marido. Dado que não conseguia refrear-se naquele cenário idílico em que nada interferia, mandou dizer aos criados que ele e Audrianna retornariam a Londres.

Ela adormeceu nos braços dele assim que a carruagem saiu do pátio. Ele devia se sentir culpado por esgotá-la. Em vez disso, conhecia apenas o contentamento do Diabo.

Após uma noite na estalagem, Audrianna já se sentia mais ela mesma. Reparou, portanto, que não seguiam a mesma estrada pela qual tinham ido para o campo.

– Estamos no Middlesex – aventurou-se ela depois de examinar as quintas e edifícios pelos quais passavam ao se aproximarem de Londres. – Não estamos longe de Cumberworth.

– Já que estamos na estrada, achei que gostaria de ver suas amigas.

Ela sorriu de deleite. Ele se sentiu um rei magnânimo, dando a sua aprovação ao pedido dela de manter aquelas amizades, mesmo tendo ela deixado claro que faria o que quisesse. E era assim que as mulheres convertiam homens lúcidos em idiotas consentidos.

O sorriso dela se desvaneceu depressa, como uma bandeira que tivesse parado no meio mastro.

– Não será uma visita alegre. Tenho que falar com a Celia. Quando saímos, ainda não tinha escrito a ela. Não encontrei coragem, nem palavras.

– Poderá ser mais fácil se a vir. Será com certeza mais afável.

Mrs. Joyes saiu da casa quando a carruagem parou. Abraçou Audrianna e deu as boas-vindas aos dois.

– Lizzie e Celia estão na estufa. Deve ir até elas imediatamente. Ficarão tão felizes por terem vindo até aqui.

– Eu vou. Preciso falar com a Celia em particular, Daphne. – Olhou para ele.

– Então vai. Tenho certeza de que Lizzie dará a vocês a privacidade que procura.

– Eu ficarei aqui desfrutando do bonito dia – completou Sebastian. – Vá até o jardim quando estiver pronta para sair. Mrs. Joyes, vem dar uma volta comigo? Acho que há uma cancela ali.

Mrs. Joyes o acompanhou até a cancela e depois para o jardim. Sebastian viu Audrianna, com a sua touca de tecido crepe claro, entrar na estufa e saudar as suas amigas com abraços. As distorções do vidro não permitiam uma visão nítida dos traços do rosto, mas identificou Celia pelo cabelo loiro. A de cabelo escuro devia ser Lizzie.

Pouco depois a cabeça morena afastou-se e Audrianna ficou sozinha com Celia.

– Não será uma conversa agradável, não é? – indagou Mrs. Joyes, desviando o olhar preocupado dos painéis de vidro.

– Não. Sabe do que estão falando e por quê?

– Acho que sim. Você ficou sabendo da mãe da Celia e proibiu a Audrianna de ser amiga dela.

– Sem dúvida que considera a atitude severa. A Audrianna compreende, mesmo que você não.

– Eu também compreendo, Lord Sebastian. Mesmo as pessoas que confrontam o mundo têm de escolher as suas batalhas. A Audrianna está pouco equipada para lutar esta, e deve se retirar.

– Acho que ela pretende continuar a visitá-la aqui. A amizade não terminará completamente.

Ela ergueu as sobrancelhas, impressionada. Ele a deixou acreditar que havia concordado com aquilo, em vez de pouco lhe ter sido permitido opinar.

– Fico surpreendido por ter adivinhado de que se tratava – retomou Sebastian. – A Audrianna diz que nenhuma de vocês sabe a história completa das outras. Que há uma regra que desencoraja perguntas.

– Eu sei mais do que a maioria. Afinal, trata-se da minha casa. Eu as trago para aqui. É uma boa regra, embora me pareça que Lord Sebastian não a aprova.

– Como mostram os desenvolvimentos, é uma regra com riscos. Podia pelo menos ter avisado a Audrianna.

– Quer dizer, avisado a você, não é? Era muito provável que ninguém viesse a descobrir. Mais do que lhes dever uma explicação, tinha para com a Celia a dívida da discrição.

Ela parou para examinar uma rosa que trepava pela parede do conservatório de plantas. Murmurou algo para si mesmo sobre a necessidade de podá-la e retomaram a marcha.

– Há mais alguma surpresa a caminho? – perguntou ele. Havia ali mais duas mulheres com histórias pouco claras, incluindo a que estava agora ao lado dele.

– Possivelmente. Nunca se sabe. As mulheres muitas vezes deixam os seus passados para trás por muitas boas razões. Se o passado as encontra apesar dos seus esforços... – devolveu ela com um encolher de ombros.

– Desde que nenhuma de vocês seja assassina ou pirata, suponho que a reputação da minha mulher sobreviva a mais revelações.

Ela não achou graça no comentário.

– Vou contar-lhe uma história que explica a razão pela qual nem eu sei tudo. Quando cheguei a esta casa, tinha uma criada. Depois contratei outra. Esta segunda mulher era nova aqui e a sua história era imprecisa. Parecia honesta mas muito submissa, por isso a empreguei. Passou a ser uma irmã para mim. Pode-se dizer que ela iniciou o Flores Preciosas. A estufa que vê deve-se em grande parte ao conhecimento de horticultura que ela tinha e ao que ela me ensinou. Também aprendi com a amizade daquela doce mulher que uma mulher sem família não precisa ficar só.

– Foi simpático da sua parte acolhê-la e ambas se beneficiaram. No entanto, uma experiência feliz não significa que todas tenham o mesmo resultado.

– Ouça-me, senhor. Ela ganhou amizade com a outra criada e um dia confiou-lhe o que já haviam me dito. Que ela fugira de um marido que batia nela. Revelou o nome verdadeiro. A outra moça não foi discreta. Não foi a intenção dela prejudicar, mas deixou de ser segredo. O bruto do marido veio até aqui e a arrastou daqui para fora, como era seu direito por lei. – O rosto dela se contraiu. – Nunca esquecerei o terror que vi nos seus olhos. Eu me vi impotente, nada podia fazer para ajudar.

Daphne respirou fundo e travou a emoção que se introduzira na sua voz.

– Bateu nela uma vez, duas, na minha frente mesmo. Com o punho, e no rosto dela. Fez sangue e... seja como for, agora, quando uma das minhas irmãs não quer falar no passado dela eu respeito, Lord Sebastian, e conto que as outras mulheres daqui façam o mesmo.

Não havia nada a dizer em resposta a uma história como aquela. Confirmava, porém, a sua convicção de que as ambiguidades daquela casa seriam potencialmente perigosas.

– Espero que a sua bondade e generosidade sejam sempre retribuídas na mesma moeda, Mrs. Joyes.

– Chegará o dia em que não serão, acho eu. Porém, até o momento, a minha avaliação de caráter me protegeu. – Ela olhou para além dele, na direção da estufa. – Aí vem a Audrianna. Parece estar prestes a chorar. Devo confortar a Celia. Deixo a mágoa da sua mulher ao seu cuidado, Lord Sebastian.

* * *

O tempo de Sebastian depressa foi absorvido pelo governo e pelo início das sessões parlamentares. O tempo de Audrianna foi ocupado com as exigências de uma agenda social cada vez mais preenchida.

Começou a receber visitas. Escolheu as terças à tarde, pois sabia que Lady Wittonbury se ausentava de casa. Recebia os curiosos e os cruéis, os amistosos e os oportunistas. Havia uma quantidade mais do que apreciável de pessoas com a ilusão de que a mulher de Lord Sebastian podia influenciá-lo para benefício dos seus maridos e da sua família.

A maioria era de mulheres, mas alguns eram homens. Os últimos conseguiam ser muito diretos, mas as primeiras confiavam na lisonja e no tempo para conquistá-la. Perguntava-se o que pensaria Sebastian se ouvisse algumas das apreciações poéticas que lhe eram dirigidas durante as visitas.

Por outro lado, podia não ver estranheza nenhuma naquilo. Talvez ele visitasse a mulher de algum lorde ou membro do parlamento quando não estava em casa, aplicando os seus encantos para conquistar favor para um dos seus projetos de lei.

Duas semanas após a visita a Airymont, Audrianna levou um livro para a sala de visitas para aguardar os cartões e os visitantes. Lá fora, havia grande movimento nas ruas de carruagens e grandes carroças. O influxo anual das melhores famílias a Londres havia começado com força.

Fez deslizar uma carta de dentro do livro. Celia escrevera. Tinham combinado continuar com aquela comunicação, assim como com as visitas de Audrianna. Olhou para a caligrafia familiar da amiga e pensou no encontro em que perguntara a Celia se a história de Lady Ferris era verdade.

Celia não mostrou qualquer embaraço. Nenhuma vergonha. Foi um alívio. E ela soube imediatamente o peso que aquilo tinha na amizade delas. Nenhum ressentimento. Nenhuma mágoa que fosse visível. Audrianna foi quem chorou e Celia quem reconfortou.

Agora Celia escrevera uma carta e por sinal uma bem crítica. Talvez pensasse que Sebastian a poderia ler e não se atreveu a escrever claramente.

“Tenho razões para acreditar que as suas perguntas receberão em breve algumas respostas.” Referia-se às perguntas sobre Dominó. Até o momento não tinham chegado cartas para ela ao escritório de Mr. Loversall, o advogado que ela empregara como receptor de correio. Os empregados dos hotéis e teatros que ela abordara também não a tinham contatado com informação.

Era improvável que Celia tivesse se encontrado ela mesma com Dominó, por isso a sua misteriosa alusão não fazia grande sentido.

Desejou que ela tivesse escrito sobre outras coisas, como o estado de saúde de Lizzie e a ressurreição do jardim com a chegada da primavera. Audrianna deu por si visitando as floristas com quem o Flores Preciosas trabalhavam, e comprando ramos que a deixavam nostálgica.

– Senhora. – A voz a arrancou subitamente dos seus pensamentos. O mordomo estava à sua frente, de salva na mão.

Audrianna leu o cartão e ficou logo incomodada. Roger viera visitá-la. Aquilo é que era descaramento.

Ela aceitou vê-lo e preparou-se para sentir os ecos da velha dor. No entanto, quando ele entrou na sala, não sentiu nada a não ser uma pequena irritação por ele não ter o bom senso de não procurá-la.

Ele estava de uniforme e estava com uma aparência boa. O seu olhar percorreu a sala de estar, para se deter na figura solitária dela. Os olhos dele brilhavam com uma familiaridade que ele já não devia mostrar, mesmo estando os dois sozinhos.

– Vindo de Brighton, outra vez? – indagou ela.

– Sim, uma curta licença. Acho que conseguiremos todos passar grande parte da temporada aqui. Não há muito que fazer lá embaixo, a não ser nas visitas do príncipe regente. Os franceses não vão invadir agora, não é?

– Com certeza haverá convites em abundância em ambas as cidades. As anfitriãs gostam sempre de contar com a presença de jovens de uniforme.

Conversaram sobre os bailes e festas que estavam chegando.

– É minha esperança travar conhecimento com pessoas do governo que possam me orientar na minha carreira em tempo de paz – explicou ele. – O país tem necessidade de muito menos oficiais e não tenho talento para viver com metade do salário.

Audrianna reconheceu a abordagem. Fingiu que não.

– Talvez possa dar a eles uma palavrinha por mim – acrescentou ele ao ver que ela não se oferecia.

– Roger, só uma idiota pediria ao marido para ajudar um homem com o qual já esteve comprometida. Não é um rival, mas homens são homens.

A resposta dela o surpreendeu verdadeiramente.

– O seu marido? Lord Sebastian? Nunca pediria a você uma coisa dessas. Era minha esperança que pudesse interceder por mim junto do marquês.

– Wittonbury é inválido. Nunca sai de casa. Atualmente não tem influência.

– Não é nenhum eremita, certo? Disseram-me que exercia influência considerável antes de ir para a guerra e granjeia ainda mais simpatia agora. Uma carta bem dirigida da parte dele cairia nas graças do receptor, o qual quereria por sua vez prestar-lhe um serviço. Era amigo do exército e ainda é, e o Gabinete de Guerra não desvalorizaria a recomendação que fizesse de algum oficial.

– Ele nem sequer o conhece. Por que o recomendaria?

– Mas conhece você, não conhece? De que outra forma você pensa que isso se faz? Alguém conhece alguém que conhece alguém que faz um favor – explicou com ar divertido e matreiro. – Dizem que ele tem afeto por você. Se for assim, não terá problema em escrever a carta.

– Dizem? Quem?

Ele encolheu os ombros.

– É de conhecimento geral. Ouvi dizer que ele deu a conhecer a sua afeição por você para abrir o caminho a você, para não atingi-la tanto desdém por ter sido apanhada com o irmão perto de Brighton.

Ela subestimara o marquês. Podia ser um prisioneiro daqueles aposentos, mas, como Roger dissera, não era nenhum eremita. Ainda recebia alguns amigos e escrevia cartas. Tocou-a, que ele tentasse lhe facilitar o caminho.

– Se Wittonbury me favorece, sinto-me lisonjeada. Acho, no entanto, que não devo exagerar na avaliação da minha boa sorte. Só poderei beber água desse poço uma vez ou outra, acho.

Roger identificou a rejeição do seu pedido incluída naquela consideração. O seu rosto assumiu uma expressão de grave passividade. Disfarçou a sua desilusão com formalidade, e pouco depois se retirou.

Decidindo que esperara tempo suficiente pelas possíveis visitas, Audrianna subiu ao apartamento do marquês. Nas últimas semanas não o visitara tanto quanto antes. Em parte devia-se ao aumento das suas obrigações sociais, mas os dias dele também tinham se alterado.

Um dos médicos que foram chamados detectara alguma sensação nas pernas de Wittonbury. Sebastian ordenara que se retomassem os exercícios. Na maior parte das tardes, se alguém passasse por aqueles aposentos, ouviria Wittonbury praguejando enquanto o Dr. Fenwood forçava músculos flácidos a se moverem.

Quando entrou na biblioteca do apartamento, o esforço físico terminara. O marquês estava sentado à janela, com o rosto virado para a fresta de ar fresco.

– Ah, querida irmã. Fico aliviado por estar aqui. O Fenwood não se atreverá a se meter comigo agora.

Ela não conseguiu evitar olhar para as pernas dele. A manta nunca as cobria agora, a não ser que tivesse convidados. Parecia que mostravam mais volume. Já não se assemelhavam a rolos de trapos enfiados em calças.

– Não pergunte – diz ele. – Não passa de uma maluquice e estou farto de falar nisso.

– Então não falemos. Quer que leia para você, ou prefere um jogo de xadrez?

* * *

– Pettigrew & Eversham. P & E. – Mr. William Holmes, tesoureiro do Gabinete do Material de Guerra, murmurava repetidamente o nome enquanto examinava os livros de contas no seu escritório da Torre.

Sebastian precisara de duas semanas e considerável capital político para ter acesso àquela reunião. Mr. Holmes, como o resto do Gabinete, dependia diretamente da Coroa e não sentia nenhuma obrigação de atender a um mero membro da Casa dos Comuns. Só quando o primeiro-ministro dera a entender que a Coroa podia ser persuadida a reconsiderar a sua recém-adquirida posição e o bom salário que lhe correspondia, é que Mr. Holmes decidiu que podia afinal dispor de algum tempo para a averiguação.

– Ah, aqui está. Uma fábrica pequena, ao que tudo indica. Uma entrada bastante tardia. Parece que lhes foi comprada pólvora desde o início de 1811. Talvez se tenham pagado umas setenta mil libras ao todo. Pode parecer uma soma considerável, mas para um negócio industrial é bastante pequena. É de espantar que nos tenhamos relacionado com eles, mas a necessidade de reservas era severa.

– E o último pagamento?

Mr. Holmes correu a página com o dedo grosso.

– Maio de 1814. Provavelmente pensaram que a guerra duraria para sempre. Pergunto-me se terão sequer recuperado o investimento em três anos.

Talvez não tivessem. Aquele pensamento abriu um novo caminho na mente de Sebastian.

– Sabe quem detinha a P & E?

– Os registos não dizem. Provavelmente conseguiria descobrir o nome a quem foi enviado o dinheiro, mas pode não ser o dono. O próprio nome da firma implica uma parceria, embora nem Pettigrew nem Eversham me sejam nomes familiares. O meu predecessor, Mr. Alcock, talvez os conhecesse. Mas, claro, não está disponível.

– Se conseguisse descobrir a quem foram enviados os pagamentos, eu ficaria grato. Aguardarei a sua carta.

Sebastian voltou à cidade. Visitou um dos seus advogados. Encarregara o homem de descobrir o que conseguisse sobre a P & E, e agora ele tinha uma data de possível formação da empresa, o que, por si só, deveria tornar a investigação mais produtiva.


Capítulo 20


– Aquele sujeito está outra vez tentando seduzir a sua mulher. – Hawkeswell fez questão de não olhar na direção de Audrianna enquanto falava.

– Está mesmo? – Sebastian também não olhou para aquele lado. Ainda assim, andava vigilante.

– Confio que as semanas decorridas tenham atenuado a novidade do casamento e que não irá querer ser um asno dessa vez.

Isso ainda estava para se ver. O sujeito visitara Audrianna na semana anterior, segundo o seu criado pessoal, que recolheu a informação do mordomo. Parecia que os amigos que o sujeito tinha lhe garantiam o convite para mais festas do que seria esperado. De que servia ter um regimento em Brighton se os oficiais nunca ficavam lá?

– O nome dele é major Roger Woodruffe. Eu me informei sobre ele por você – disse Hawkeswell. – As apresentações dele vêm através de uma tia da mãe. A tia é casada com um baronete e ali o Roger explora a ligação tanto quanto pode.

Hawkeswell fizera uma pesquisa bastante completa. O que significava que provavelmente sabia que o major Woodruffe e Audrianna já tinham sido noivos.

– Prevejo então que passemos a temporada inteira tropeçando nele – concluiu Sebastian. Não se importava tanto assim com aquilo. Audrianna dissera que já não amava o major Woodruffe. Ele se sentia inclinado a acreditar nela, não fosse não querer ser um asno, nas palavras de Hawkeswell.

A presença de Woodruffe, no entanto, lhe recordava os estranhos caprichos do destino. Sebastian presumira que se não fosse a desgraça do pai de Audrianna, um anúncio crítico no Times e um desastroso primeiro encontro que resultou em escândalo, ele nunca a teria conhecido.

Só que o mais provável seria que a conhecesse, ao que tudo indicava. Ele podia ter ido a uma festa como aquela e tê-la visto depois de ela ter se casado com aquele oficial do exército.

E se ela o encantasse agora? Ele se veria forçado a seduzir a mulher de outro homem. Visto que não gostava muito do major Woodruffe, pelo que já conhecia, aquilo não iria incomodá-lo. Infelizmente, a Audrianna que ele conhecia podia muito bem recusar-se a ser seduzida.

– O Lorde Infame chegou, acho – disse Hawkeswell com ar sonhador.

Explicava a agitação que percorria a festa. Cabeças viraram-se e murmúrios soltaram-se quando Castleford fez a sua entrada. Ele sorria como um homem divertido com toda a atenção, embora a considerasse também um direito seu. As mães chamaram as filhas virginais para admirarem a obra do Flores Preciosas na outra ponta da propriedade.

– Pelo menos não está bêbado – comentou Sebastian.

– Não podia desfrutar da fama se estivesse. Não há nada como ser um patife dissoluto para ganhar popularidade. Quando se escrever o livro do escândalo, ele ficará com um capítulo inteiro, enquanto eu e você ficaremos reduzidos a notas de rodapé, apesar dos esforços concertados para deixarmos a nossa marca. E assim, mesmo moderada, a discrição resulta em obscuridade.

Enquanto as moças eram levadas dali para fora, os jovens gravitavam para Castleford como se ele fosse um ímã.

– Tem o dom de fazer uma pessoa se sentir velha e entediante, isso lhe concedo. Eu mesmo talvez vá me banhar na glória da sua infâmia ultrajante – disse Sebastian.

– Não é preciso. Parece que ele vem até nós. Promete me impedir de bater nele se ele começar com aquela veia sarcástica dele. Eu mesmo faço isso por você.

– Deixe-me desculpar, Audrianna. Fui atrevido demais na sua casa quando a visitei.

– Está sendo atrevido demais agora. Já não deve se dirigir a mim com tanta familiaridade. Especialmente quando outros possam ouvir.

Roger olhou ao redor e corou.

– Claro. É só que... – Lutou com as palavras, sempre com um olho nos corpos que circulavam à sua volta. – Devia ter imaginado que não podia falar livremente ali. Fiquei aliviado ao ver o seu anúncio.

– Anúncio?

– O do Times – sussurrou ele. – Não recebeu a minha resposta. Deixei-a segundo as instruções.

De repente ela percebeu. Vinha deixando anúncios para Dominó. No seu esforço de ser crítica, talvez tivesse sido demais. Roger concluíra, estupidamente, que a mensagem era para ele.

Não ia ao receptor do correio há dias. Fosse o que fosse que Roger tivesse escrito, ainda estava lá.

– Não sei a que se refere. Não escrevi nenhum anúncio para você. – Nunca mentira tão descaradamente na vida, mas não viu alternativa. E não tinha deixado nenhum anúncio para ele realmente.

– A.K. pede reunião com D para discutir assunto confidencial. Enviar resposta ao cuidado de Mr. Loversall, Portman Square 7. Não era você?

– Evidentemente que não. O que deu em você para pensar que era para você?

Ele corou.

– Você sabia que me chamavam Dumpfry na escola. Presumi que... – Olhou de relance na direção de Sebastian. – Dificilmente poderias usar R.W., não é? Seria flagrante.

– Deve haver milhares de A.K. em Londres. Lamento que tenha entendido mal.

– Céus! Ele está vindo aqui – sibilou Roger.

Sebastian avançava resoluto pelo túnel de flores concebido por Daphne, em direção a eles. Hawkeswell estava com ele e outro homem que ela reconheceu como sendo o duque de Castleford.

Roger deu meia-volta.

– Eu vou...

– Vai ficar aqui mesmo – ordenou ela. – Será apresentado. Se evitar o meu marido, ele pode interpretar mal o seu interesse e a nossa amizade, e eu não vou ficar explicando para ela a sua covardia pelo resto da vida.

Sebastian vinha apresentar-lhe Castleford. Alto e atlético, o duque fora abençoado com uma estatura elegante, e um rosto belo. Não obstante, apesar da sua postura quase obsequiosa, emanava algo que alarmou os seus instintos femininos. Quando se curvou para beijar sua mão, soaram campainhas de alarme.

Mau. Perigoso. Confusão e corações partidos, advertiam. Só uma mulher muito idiota não fugiria ao sentir os olhos dele em cima dela. O sorriso do duque sugeria, contudo, que o mundo estava cheio de mulheres muito idiotas.

– Fui negligente na minha amizade com o seu marido e não fiz a minha parte para a acolher no meio – disse Castleford a Audrianna. – Que beldade apanhou, Summerhays. Compreendo a sua prontidão para ser domesticado, se esta doce jovem era a cilada.

Sebastian percebeu que Audrianna olhava Castleford com um ceticismo velado, mas o elogio não deixou de fazê-la corar. Como sempre, ela se saiu bem na troca de cortesias que se seguiu.

O sujeito não tinha ido embora e fora também apresentado a todo mundo. Não pareceu notar que Castleford deixara de reparar que ele estava lá. O major Woodruffe continuava reagindo às tiradas do duque como se ele o observasse.

Sebastian se afastou e se dirigiu a Woodruffe.

– É um velho amigo da minha mulher, ela me disse.

– Sim, de muitos anos.

– Amigos de infância?

– Não faz tanto tempo assim, mas bastante tempo já.

Enquanto conversavam, Sebastian foi afastando Woodruffe dos outros, para terem alguma privacidade.

– Diz que o seu regimento está em Brighton. Sendo assim, nós o veremos mais vezes durante a temporada.

O idiota alegrou-se com o comentário, que interpretou como uma aproximação amigável.

– Espero que sim. Será um prazer.

Claro que sim, o velhaco.

– Peço que me desculpe, major Woodruffe. Sou novo no casamento e mais dado ao ciúme talvez do que alguns dos maridos mais experientes que conhecerá. É possível que procure apenas amizade com a minha mulher. Se, contudo, tem algum outro...

– Asseguro que não podia pensar menos em tal coisa.

– Então, major. Somos os dois homens. Ideias dessas nunca andam longe da nossa mente. Mas se fizer alguma coisa que me leve a pensar que a sua cabeça se demora nessa ideia em particular, vou ter que dar uma lição, acabo com você e provavelmente o mato.

Woodruffe limitou-se a olhar para ele, chocado com a audácia da ameaça. Sebastian sorriu.

– A carta foi um erro, senhor, asseguro, se ela a tem e você a descobriu – apressou-se ele a dizer. – Eu percebi mal o anúncio dela. Não voltará a acontecer. – Woodruffe não demorou a se despedir.

Carta? Anúncio? Que coisa curiosa e interessante para sair da boca de Woodruffe.

Hawkeswell reparara na conversa privada. Deixou Audrianna se desenvencilhar com as atenções do Lorde Infame e foi até Sebastian.

– Ele foi embora num instante.

– Foi, não foi?

– Parecia um pouquinho maldisposto.

– Acho que não se dá bem com bolos. As coberturas de creme são de evitar quando os dias ficam mais quentes.

Hawkeswell olhou o sobretudo vermelho que se afastava.

– Você foi um estúpido, não foi?

Sebastian suspirou.

– Sim, receio que tenha sido.

E sabia mesmo.

Audrianna disse ao cocheiro para parar na esquina de Portman Square. Caminhou depois até o edifício onde se localizavam os escritórios de Mr. Loversall.

Não era uma estrutura imponente, mas Mr. Loversall também não era um advogado imponente. Os poucos xelins que ganhava para disponibilizar a morada provavelmente eram importantes para ele, por isso desempenhava aqueles deveres com toda a discrição.

Ela cumprimentou o escrivão que organizava o correio. Entrara vezes suficientes nos escritórios nas últimas semanas para não ter de se identificar como A.K.

O empregado viu os ficheiros e abanou a cabeça.

– Continua a não ter nada, minha senhora.

– Passaram quatro dias desde a minha última visita. Tem certeza de que não há aí nenhuma dos primeiros dias? Estou muito certa de que deve ter pelo menos uma.

Ele verificou novamente e abanou a cabeça.

Era estranho. A carta do Robert devia ter chegado logo depois de sua última visita. Talvez ele tivesse endereçado errado.

– Não estive aqui na segunda-feira – informou o empregado. – Posso perguntar a Mr. Loversall se arrumou correspondência em outro lugar na minha ausência.

– Poderia fazer isso? Sei que houve uma resposta.

O escrivão entrou no escritório do advogado. Mr. Loversall apareceu em pessoa, aparentemente confuso. Olhou bem para Audrianna.

– Esta é A.K.? – perguntou ele ao empregado. – Foi ela que pagou o serviço? Tem certeza?

O empregado confirmou a sua identidade secreta.

– É altamente irregular – alvoroçou-se Mr. Loversall. – Ontem apareceu outro A.K. e levou o que havia. Presumi apenas que, se ele sabia do acordo, era realmente A.K. O A.K. correto, quero dizer.

– Ele? – Parecia que Roger resgatara a sua irrefletida carta de amor. – Era um homem alto, bonito, jovem, de cabelo ruivo?

Mr. Loversall acenou com a cabeça em cada ponto, exceto no último.

– Cabelo escuro, senhora. Muito escuro. As minhas humildes desculpas pela confusão e pelo erro. – Olhou furioso para o empregado. – Se puder oferecer alguma reparação, por favor, diga. Asseguro-lhe que não será entregue mais nenhum correio a ninguém além da senhora.

Ela mal o ouviu depois de pronunciadas as duas primeiras palavras.

Sebastian tinha a carta de Roger.

Audrianna preparou-se para uma reprimenda na melhor das hipóteses, ou suspeitas, na pior. Em vez disso, Sebastian portou-se tão normalmente nos dois dias seguintes, tão desprovido de ciúme, que ela começou a se perguntar se não poderia teria sido outra pessoa que tinha levado a carta de Roger.

Ocorreu-lhe que, tendo interferido com um eventual encontro secreto, ele tivesse dado o assunto por terminado. Ou podia ter descarregado o seu ciúme ou raiva em Roger, poupando-a. Embora pudesse ser muito justo, ela não gostava de pensar que Roger pudesse pagar caro demais o seu equívoco, por mais arrogante e presunçoso que fosse.

Ela se cansou de esperar que a espada tombasse. Portanto, quando davam um pequeno passeio em Hyde Park três dias mais tarde, juntando-se às centenas de outros que procuravam ver e ser vistos durante a hora da vaidade, Audrianna abordou o assunto.

– Tem uma carta minha?

Ele pareceu ficar perplexo com a pergunta.

– Uma carta dirigida a mim – explicou ela. – Tem alguma que eu não tenha visto?

– Não tenho nenhuma carta dirigida a você. Não roubo as suas cartas dos criados. Que sugestão tão imprópria.

Ficou mais descansada e procurou imaginar que outro homem alto e de cabelo escuro pudesse ter interferido. Mas voltou a ouvir as palavras dele.

– Não estava dirigida exatamente a mim. Não como seria esperado. Só figuravam as minhas iniciais.

– Ah! – Acenou a um amigo que o cumprimentou. – Essa carta.

– Sabia a que carta me referia, acredito.

– Sabia. Tem certeza de que quer falar sobre isto aqui e agora?

Ela percebeu uma advertência. Deixou-a suficientemente preocupada para que a decisão de adiar a conversa durasse apenas alguns minutos.

– Está muito ruim? Muito indiscreta?

– Ruim o bastante para desafiá-lo e acertar contas, se...

– Um duelo! Não pense nisso!

– Ia terminar dizendo se pensasse que ele era um verdadeiro rival. Havia dito que não é. Escolhi acreditar em você.

Saiu de cima dela um peso de dois dias.

– Obrigada. Estou grata pela sua confiança. Receei perguntar, mas é evidente que é um homem razoável que não se dá a reações precipitadas.

Ele recebeu o elogio dela com um sorriso pouco pronunciado.

– Audrianna, se tivesse concluído que era um rival, não teria sido tão razoável. Só para que saiba.

– Não é minha intenção nos desviar do assunto, mas, lembro você que havia concordado que aceitaria rivais e seria razoável. Muito especificamente. Quando nascesse uma criança. Foi parte do acordo, se assim se pode dizer.

Ele parou de caminhar e virou-se para ela. Fez aquele sorriso deslumbrante.

– Disse realmente que podia ter amantes. Mas nunca prometi que não os mataria.

Devolveu o cumprimento de uma senhora que passou por eles. Continuaram a caminhar. Audrianna considerou que devia repreendê-lo por negociar de má-fé, mas aquele momento não era mesmo o mais adequado.

– Como ficou sabendo da carta?

– O próprio major Woodruffe me disse, e disse também que era tudo um mal-entendido.

– Foi o Roger que disse? – Mas que homem estúpido.

– Sim, no dia da festa. De que outra forma saberia onde encontrá-la?

De que outra forma, realmente? Ela decidiu que tudo estava bem, quando acabava bem, e ficou por ali.

As circunstâncias da história da carta não a deixaram sossegar durante o resto do dia. A conversa reproduziu-se na sua mente no teatro e na festa que se seguiu. Depois de ele sair da cama dela à noite, e passado o enlevo da satisfação, algumas ambiguidades no que ele dissera revelaram-se, tornando obrigatória uma explicação.

Na manhã seguinte, ela esperou até as onze horas, momento em que ele terminaria o café da manhã com Wittonbury, e se apresentou à sua porta. Aguardou que o criado acabasse e pediu ao homem para se retirar.

– Gostaria de ver a carta – declarou ela.

– Eu a queimei. Posso recitar as passagens poéticas, se desejar. Esqueci o resto, a parte em que combina um encontro secreto.

Novamente a advertência. Por mais humor que mostrasse, ele não gostara do que lera.

– Acho estranho ele lhe ter dito onde encontrar a carta. Se lhe parecesse que alguém devia resgatá-la, poderia tê-lo feito ele mesmo. Não estou vendo ele dando indicações a você para o escritório de Mr. Loversall.

– Ele apenas aludiu a anúncios nos jornais. Encontrei a morada num deles.

O que significava que ele lera o anúncio e que, por causa de Roger, sabia quem o pagara.

– Havia mais alguma carta que não a do Roger à minha espera?

Ele olhou para ela, exasperado, divertido e aborrecido, tudo ao mesmo tempo. E ela ficou sabendo.

– Havia, não havia? Como se atreve a não me dizer? Paguei pelos anúncios e pelo serviço de Mr. Loversall com o meu dinheiro, e se respondeu alguém além do vaidoso e tonto major Woodruffe, tenho direito de saber.

– Havia mais uma – disse ele com resignação. Foi rapidamente até o quarto e voltou com uma carta. Colocou na mão dela.

– Ainda está selada – comentou ela.

– Sim.

– Por quê?

– Estava decidindo o que fazer com ela. Dar a você, ficar com ela ou queimá-la sem a abrir.

– Queimá-la por abrir? Que opção tão sem sentido.

– Mesmo assim, ponderei.

Ela partiu o selo simples e se aproximou da janela.

– É dele! Olha, identifica-se com um desenho de dominó, para eu ter certeza. – Audrianna leu a mensagem escrita às pressas. Sebastian aproximou-se atrás dela e também a leu, por cima do seu ombro.

Covent Garden. Pórtico da igreja. Duas horas, daqui a uma semana.

Audrianna verificou a data que estava no topo.

– É amanhã. Graças a Deus que não adiei perguntar a você sobre o assunto, ou teria faltado ao encontro.

– Você não vai.

– Mas claro que vou.

Ele arrancou a carta das suas mãos.

– Não, não vai. Ele é perigoso. Não sabemos nada sobre ele. Pode querer silenciar a sua curiosidade, e não satisfazê-la. Eu que vou e lhe conto como foi.

– Não é justo. E também não é prático. A última vez que ele tentou marcar um encontro, a sua presença afastou ele. Ele pensa que você é o homem que o aguardava no Duas Espadas com uma pistola. A praça está cheia de gente e dificilmente ele consegue me levar dali em segredo. Bastaria eu gritar para ter cem homens prontos para me socorrer.

– Você não vai.

A insistência dele a tirou do sério. Às vezes os maridos conseguiam ser muito inconvenientes.

– Se não fossem os meus anúncios, não haveria encontro nenhum. Só está com ciúmes por eu ter me lembrado de fazer como ele, e por ter constatado que um homem que coloca anúncios provavelmente lê.

– Não estou com ciúmes. Sinto admiração. Você publicou anúncios tão ambíguos que um antigo amante pensou que procurava marcar um encontro secreto com ele. Ainda assim, o nosso amigo não deixou de compreender e aqui estamos nós. Bravo! – Enfiou a carta na sobrecasaca e cruzou os braços. – Não vai.

Discutir não levava a lugar nenhum. Ela não queria acusá-lo de querer esconder a verdade dela. Não queria acreditar naquilo. No entanto, não se tratava de um encontro com um empregado de uma fábrica. Tratava-se do Dominó e ela precisava ouvir o que ele tinha a dizer.

Sebastian assumira um ar muito austero. Tinha uma expressão inflexível. Ela foi para perto dele. Muito perto.

Ergueu os olhos para ele.

– Quer apenas me proteger, eu sei. No entanto, estarei segura se for comigo. Eu sabia que tinha de levá-lo. Era minha intenção, encontrá-lo para podermos nós dois falar com ele e ver se conseguia se fazer alguma luz.

– Tinha planejado me levar com você? – Parecia incrédulo, e também se sentir insultado por ela pensar que ele era estúpido a ponto de acreditar naquilo.

– Claro. – Enlaçou-o com os braços.

– Pretendia ser uma boa esposa e me dar a carta para nós dois podermos ouvir o que ele tinha a dizer?

– Com certeza.

Ele lhe mostrou um cenho franzido. Que ela retribuiu com um sorriso. Ele se sentiu vacilar, o que o deixou ainda mais irritado.

– Falamos mais tarde. Tenho de ir para Whitehall2. – Sebastian libertou-se do abraço dela e saiu.

Ela foi para o quarto, sentou-se à escrivaninha e começou a escrever a lista das perguntas que era necessário fazer ao Dominó.

Sebastian iria permitir que fosse com ele. Ela trataria de fazê-lo mudar de ideia.

Ela não mentira. Teria mostrado a ele a carta e teria pedido para acompanhá-la. Ela precisava da proteção dele.

Também contava que o Dominó pedisse muito mais dinheiro do que ela tinha.

2 Rua do centro de Londres onde se situam várias instituições governamentais. (N. da T.)


Capítulo 21


De manhã, Sebastian admitiu para si mesmo que a mulher o derrotara.

Primeiro, a lógica que usou era tão boa que o encurralou. Dominó marcara o encontro com ela, não com um homem, e desapareceria se ela não estivesse lá. Além disso, era ela quem saberia se o homem que apareceria era mesmo o Dominó.

Depois de esmagá-lo com o seu bom senso, derramara os seus encantos femininos sobre ele. Fora arrancada uma promessa no momento de derrota, quando ele estava tão preocupado com o prazer que não queria saber do amanhã.

– Seria melhor se não estivesse comigo no início – disse ela quando a carruagem se aproximou de Covent Garden. – Ele pode desaparecer se o vir.

Ele não se importava nem um pouco que o homem fugisse. Ela estava entusiasmada e otimista e certa de que o dia terminaria com o nome do pai resgatado. Ele não estava nada convencido de que as coisas correriam assim.

Ele se arrependeria por não ter queimado a carta, como todos os instintos o incitavam. Podia arrepender-se ainda mais de tê-la autorizado a estar ali naquele dia. Mas ela queria saber o que ele soubesse, na totalidade, porque continuava a não confiar que ele desse o peso apropriado à prova da inocência do seu pai quando a ouvisse.

Não fora realmente a carta que ele quisera destruir. Desejara erradicar o episódio inteiro dos seus passados.

– Deixo-o falar com você primeiro, mas não estarei longe. – A praça e as bancas do mercado estariam muito movimentadas à tarde. Tão movimentadas que Audrianna não conseguiria examinar todos os homens. Tinham de contar que Dominó a encontrasse.

A carruagem parou e eles saíram. Sebastian percorreu com ela a parte lateral da igreja. Antes de chegarem ao fim e entrarem na praça, ele explicou o plano.

– Coloque-se no lado oeste do pórtico, perto da segunda coluna. Não saia dali. Mesmo se ele chamá-la, mesmo que ele queira mais privacidade, não deixe aquele lugar sem mim ao seu lado.

Ela assentiu com a cabeça e se afastou. Ele gritou que parasse. Olhou para a bolsa dela.

– Trouxe uma pistola? Juro que se fez isso eu...

– Não seja bobo. Está em Cumberworth. A pistola é da Daphne, não minha. Nem cabia numa bolsa. Contava que você trouxesse a arma desta vez.

Quando ela dobrou a esquina, um homem atraente entrou na praça, vindo de oeste. Caminhava como alguém com tempo para gastar, à procura de uma diversão. Acenou com a cabeça na direção de Sebastian. Este lhe devolveu o cumprimento e depois deu meia-volta para contornar o edifício e entrar no pórtico frontal pelo outro lado.

Audrianna colocou-se ao lado da segunda coluna a contar da que ficava mais a oeste no pórtico de St. Paul. Esperava que Sebastian fosse discreto. Se estivesse visível demais, o amigo deles podia desaparecer.

Uma massa humana movimentava-se na praça. Vendedores de fruta e de cestos, flores, e até roupa usada, apregoavam mercadorias ao abrigo dos telhados de madeira das suas barracas toscas. Mulheres de todos os lugares faziam compras sozinhas ou com cavalheiros de chapéu alto. Crianças sujas e cães corriam entre as pernas de todo mundo.

Comparativamente, o pórtico estava calmo. Só ela se encontrava lá. Dominó escolhera bem. Podia observá-la entre a multidão e aguardar até ter a certeza de que era seguro para se aproximar. Mesmo se não a reconhecesse do Duas Espadas, a mera presença dela fazia-a anunciar-se como A.K.

Um cavalheiro passou pelas bancas mais próximas, de aspecto mais refinado do que a maioria dos presentes mas não mais do que todos eles. Reconheceu-o, era Lord Hawkeswell. Ele a viu e levantou o chapéu para cumprimentá-la, depois continuou.

Ela não via Sebastian em lugar nenhum.

– Pardon, madame. – A voz dirigia-se a ela com palavras e sotaque franceses. Ela se sobressaltou e olhou por cima do ombro.

Um homem entrou no pórtico pelo lado do arco. Estava de botas altas e calças justas, com uma capa por cima da casaca castanha. Viam-se cachos ruivos por baixo do chapéu largo e baixo. O seu rosto era mais cheio do que ela se lembrava e bastante rosado, ali à luz do dia.

Era esquisita, a capa. O dia estava quente demais para se usar uma. Dava-lhe um ar dramático, assim atirada para trás. O forro branco no tecido preto tinha um aspecto teatral e, com o chapéu e as calças justas, parecia saído de um drama de época.

Então percebeu que a capa era o seu cartão de visita.

Ele colocou-se à direita dela e abarcou a praça com o olhar.

– Desculpe o atrevimento, mas é uma capa muito bonita – disse ela. – Preta e branca, como a de um Dominó.

Ele ficou radiante.

– Dizia-se que tinham sido capas como estas, usadas pelo clero de França, que inspiraram o nome das peças.

Deram nota do reconhecimento mútuo mais pelo olhar do que por palavras.

– O homem com quem queria se encontrar no Duas Espadas era o meu pai. Faz algum tempo que ele morreu. Eu fui no lugar dele, assim como vim agora.

– Eu sei que ele está morto. Agora sei. Na época eu não sabia.

– Por que queria se encontrar com ele?

– Ouvira dizer que ele estava com dificuldades. Achei que talvez pudesse ajudar.

– Conhecia-o?

Dominó balançou a cabeça.

– Nunca nos encontramos.

O sotaque dele deixara de ser francês. Ficara mais germânico.

– É da Holanda? – perguntou ela.

– Madame, não é do meu interesse me identificar.

– Claro. Mil perdões. O meu pai continua necessitando da sua ajuda, se ainda se sentir disposta a dar. – Enquanto falava, viu Sebastian entrando pelo lado oposto do pórtico.

Dominó flagrou-a olhando para lá. A sua cabeça virou-se logo para trás. Os seus olhos ficaram alerta. Começou a andar para o arco oeste mas imobilizou-se.

Audrianna olhou naquela direção. Viu Lord Hawkeswell, emoldurado pelo arco.

– Preparou uma armadilha para o Dominó, madame.

– Não. Trouxe proteção, é verdade. Sou mulher, afinal. – Falou depressa para tentar que ele não fugisse. Enquanto o fazia, apareceu outro rosto familiar.

O duque de Castleford entrou cambaleante na praça, a esfregar os olhos e a apertar o casaco. Com todo o aspeto de quem acabava de sair da cama. Atendendo à infame ocupação que povoava muitas das ruas adjacentes, o mais provável era tratar-se exatamente disso.

O duque semicerrava os olhos, parecendo incomodado com o sol que batia na praça. Recompondo-se, pôs o chapéu sobre o cabelo desalinhado e caminhou através das pedras em frente a Audrianna.

Viu Sebastian e acordou. Parou para examinar o pórtico. Deteve o olhar nela e no Dominó.

– Lady Sebastian, um bom dia para si. Passa-se alguma coisa? Esse ator importuna-a?

O Dominó olhou para ambos os lados, espreitando a seguir o novo jogador. Ela conseguia vê-lo a calcular uma forma de se esquivar e se misturar na multidão.

– Queríamos que este sujeito ficasse onde está – gritou Sebastian, caminhando na direção dela mas tentando não assustar mais o Dominó. – Se ele for na tua direção, Castleford, ficaria agradecido se o desencorajasses de partir.

– Queres dizer, apanhá-lo? Impedi-lo?

– Sim.

– Não querias mais nada. – O duque bocejou. Começou às apalpadelas por baixo do casaco. A sua mão surgiu segurando uma pistola. Apontou-a direitinha ao Dominó.

– Eu não me mexeria se fosse o senhor. Sou um excelente atirador, mas dói-me tanto a cabeça neste preciso momento que provavelmente lhe apontaria à perna mas acabaria por lhe arrancar os tomates.

O homem tinha o ar de estar encurralado. Examinou Sebastian dos pés à cabeça quando ele se aproximou. – Você.

– Sim, eu. Não fique preocupado. O meu braço está curado e não procuro vingança. Nem sequer tenho arma e não o deterei se escolher partir depois de nos ouvir. – Olhou Castleford. – Não posso falar por ele, contudo.

– Se conseguir que ele aponte a pistola para outro sítio qualquer, ouvirei o que tem a dizer.

– Estamos bem agora, Castleford. Aprecio a tua ajuda – gritou Sebastian. Procurou Hawkeswell com o olhar. – A tua também, Hawkeswell.

Lord Hawkeswell olhou Audrianna e levou a mão ao chapéu, rodou nos calcanhares e foi-se embora. O duque de Castleford deixou cair o braço e a pistola ficou a apontar para o chão. Esquecendo que a segurava sequer, passou os olhos pela praça como se nunca a tivesse visto antes. Afastou-se, murmurando alguma coisa.

– Foi uma estratégia elaborada – cumprimentou o Dominó.

– Atendendo a que desapareceu depois de me ver na livraria, da última vez, considerei que devia desencorajá-lo de o fazer novamente.

– Pertence às autoridades? Militares, ou fiscais da alfândega?

– Pertenço ao governo, mas não estou interessado em si. Apenas no que sabe.

– Acho um risco excessivamente grande. Não quereria que aquilo que sei me pusesse na prisão.

O que significava que podia. O que significava que era importante. Audrianna olhou para Sebastian desesperadamente. Ali estava ela, cara a cara com o homem que poderia limpar o nome do pai, e ele ia escapar.

– Não existe risco – garantiu ela. – Fico grata por ter visto o meu anúncio e ter reconhecido que era para você. Há muito tempo que alimento a esperança de conhecê-lo.

– Não foi por acaso que vi o seu anúncio. Foi-me indicado.

Sebastian achou aquilo bastante mais interessante do que ela desejava.

– Foi-lhe indicado? – perguntou.

O Dominó sorriu como um rapazinho e corou.

– Estava num... – olhou para Audrianna e corou ainda mais. – ... Num lugar de entretenimento, e alguém me perguntou se não era o Dominó. Imagine a minha surpresa. Disseram-me para procurar um anúncio do meu interesse no jornal. Acho que agora seria melhor ir embora.

Fez uma reverência, preparando-se para partir. Ela quis gritar por Castleford, que voltasse com a pistola.

– Cem libras – disse Sebastian. – Fale livremente e são suas.

O Dominó estacou no meio da reverência. Olhou para cima, impressionado. Endireitou-se. Olhou em volta da praça.

– Temos de fazer isto onde eu disser. Não aqui.

– Onde preferir – apressou-se a dizer Audrianna.

Ele os chamou com um gesto e começou a andar.

Saíram os dois da praça atrás do Dominó e seguiram para o sul, pelas ruas de Covent Garden.

– O que quer dizer, não trouxe pistola? – sussurrou Audrianna a Sebastian.

– Ele nunca acreditaria que eu a usasse em plena luz do dia na cidade. Seja como for, não precisava de uma arma para protegê-la.

– Ele acreditou que Castleford a usaria.

– Isso é porque o pouco juízo de Castleford é por demais evidente. Cheira a imprudência.

– E você não é nada precipitado. Cem libras? Ele teria se contentado com cinquenta.

– Fala comigo de imprudência? Não faltava mais nada. Não ficou só nos anúncios nos jornais, ao que parece. Pagou a pessoas para ficarem de olho por você. E o que fez, entrou nos lugares acenando com notas de libra e perguntando quem queria se fazer de espião?

– Não foi nem um pouco assim. Foi muito discreto. E funcionou. Ele disse que contaram a ele dos meus avisos num lugar de entretenimento. Provavelmente algum espião o encontrou num teatro.

– Não me parece que ele soubesse do seu anúncio num teatro. De tão vermelho e hesitante que ficou em falar disso na presença de uma senhora, suspeito que se tratava de um estabelecimento com um tipo diferente de entretenimento. Existem em abundância neste bairro.

Ela parou de andar.

– Seguramente que não.

– Certamente que sim.

– Mas eu não contratei observadores em bor... – Dois pensamentos travaram suas palavras na garganta. Celia recomendando precisamente observadores desses, e a sua carta recente informando que as suas indagações poderiam dar fruto brevemente.

Sebastian pegou o seu braço e a apressou, para alcançarem o líder.

– Fico lhe devendo uma longa reprimenda. Mas cada coisa na sua vez.

Dominó os levou para uma das pequenas docas do rio, onde estavam atracados os barcos privados. Subiu em um dos veleiros. Sebastian o seguiu e depois agarrou-a pela cintura e puxou-a para bordo.

– É seu? – perguntou Audrianna. Não houve qualquer reação à pergunta, quanto mais uma resposta.

Dominó tirou a capa e esticou-a em cima de uma caixas, para ela ter onde se sentar. Sebastian instalou-se num barril.

– Cem, você diz. Seja o que for que ouvir de mim.

Sebastian assentiu com a cabeça.

– Tem procurado vender informação. Eu estou preparado para comprá-la.

O Dominó sentou-se numa caixa.

– Não quis encontrar-me com o pai desta senhora apenas para lhe vender informação. Tinha igualmente intenção de vender o meu silêncio. Por cem libras, incluo isso também.


Capítulo 22


Sebastian não sentiu surpresa pela insinuação de chantagem. Audrianna, contudo, parecia que levara uma bofetada.

Ele viu uma objeção se formando. Lançou a ela um olhar para avisá-la para engolir.

– Por que seria o seu silêncio valioso para Kelmsleigh? – inquiriu ele. – E embora compreenda que não queira nos dar o seu nome, podemos tratá-lo por outro que não Dominó?

– Podem me chamar de Frans. É um nome tão bom como qualquer outro.

– Preferia que tivesse usado Frans desde o início – comentou Audrianna. – Por que Dominó?

– Como sugestão do que me levara a solicitar o encontro, madame. É uma brincadeira comum de criança enfileirar as pedras em linhas compridas e depois... – Atirou o dedo contra o ar. Uma linha invisível de dominós começou a cair depois do primeiro. – Quis dar a entender que os restantes envolvidos ajudariam o seu pai a reunir dinheiro para me pagar, se compreendessem que a exposição dele também os ameaçava. – Apontou para Sebastian. – Quando, no Duas Espadas, vi a pistola na mão dele, achei que tinha sido escolhido um meio diferente de obter o meu silêncio.

Tirou o chapéu de aba larga. O cabelo ruivo brilhou ao sol.

– Então agora sou só Frans. Menos importante do que quem sou é o que sou. Pratico uma profissão que não é bem-vista pelos governos nem agentes alfandegários, mas o meu negócio dá a ganhar às bolsas de todos os envolvidos.

– É contrabandista – concluiu Sebastian.

– Chame do que quiser. Como em qualquer negócio, o lucro é maior se o barco transportar carga em ambos os sentidos. Vinho para um lado, lã para o outro. Orgulho-me do uso eficiente que dou a todas as embarcações de que disponho.

– Deve ter prosperado durante a guerra.

– Prosperamos sempre durante as guerras, mas sim, Napoleão abriu caminho para uma idade dourada. Não me parece que volte a ver algo semelhante antes de morrer. O que a tornou especialmente lucrativa foi o tamanho do exército francês. Precisavam de muitas coisas em muita quantidade, e os mercadores deles não conseguiam obter tudo de nações amigas. Tecido. Comida. Ferro.

– Pólvora.

Frans assentiu com a cabeça.

– Pode imaginar o meu deleite quando descobri que podia levar mercadoria francesa de luxo para a Inglaterra e sair de lá com pólvora para vender aos franceses. Em ambos os casos, primeiro levaria a mercadoria para casa a fim de que a fonte inimiga não fosse tão óbvia. A pólvora, o meu irmão vendia a um francês que tinha amigos no exército deles. – Suspirou de satisfação. – Pareciam barris de ouro.

– Só que continham pólvora de má qualidade – objetou Audrianna.

– Madame, eu nunca venderia falsa mercadoria. Uma má reputação me afastaria do negócio. O que levei destas águas era de boa qualidade. Havia sido retirado, umas medidas aqui e outras ali, de barris de pólvora fabricados segundo os padrões mais rigorosos, para venda ao exército inglês.

Sebastian levantou-se e começou a andar de um lado para o outro enquanto reorganizava os pensamentos. Suspeitara de uma conspiração, mas nada daquilo. Presumira que a pólvora ruim fora feita a baixo custo. Que materiais inferiores tinham redundado em custos menores, mas os barris seriam vendidos ao preço definido.

Em vez disso, alguém pegara em pólvora perfeitamente boa e subtraíra alguma. Olhou para Frans.

– Os barris que foram violados... teria que ter sido misturada alguma substância, para ficarem com o peso completo. Foi isso que estragou a pólvora?

– Exatamente. Durante o transporte para o arsenal, os vagões e embarcações eram desviados e os barris, abertos.

– Era um esquema muito perigoso. Abrir os barris, mexer nos conteúdos... Foi uma sorte não ter havido nenhuma grande explosão.

– Foi perigoso de várias formas. Muito complexo, também. Eu presumi que tinham roubado os barris de um arsenal. Quando me relataram o esquema elaborado, fiquei chocado. Seria apenas uma questão de tempo, disse, até sermos todos descobertos. Os exércitos não enviam uma coisa qualquer para as tropas a que chamam pólvora. Há procedimentos para garantir a sua qualidade. Eu vi a mim mesmo encontrando-me com os meus contatos uma noite para recolher os barris e estando à espera um regimento para me matar. – Bateu no joelho para enfatizar. – Eu estava pronto para pôr fim, ali mesmo, quando compreendi os riscos na sua totalidade.

– E, contudo, não fez aquilo – concluiu Audrianna, com censura no tom de voz. Ouvira atenta e silenciosamente. Via-se nos seus olhos uma boa dose de apreensão.

Ela sabia aonde aquilo ia dar. Sebastian se amaldiçoou por ter permitido ir com ele. Lamentou duplamente que Frans tivesse começado por falar em chantagear Kelmsleigh. Não fosse isso e poderia ainda haver uma forma de protegê-la do que estava para vir.

– Eu não pus fim, madame. Eles me convenceram de que nada seria descoberto. Explicaram-me que os barris adulterados só seriam descobertos quando fossem abertos no campo, e nessa altura quem se importaria? Um barril está estragado, abrem outro. As provas seriam diluídas pela chuva.

– Quem eram eles? – perguntou Sebastian, tanto para evitar a próxima pergunta lógica como para obter as identidades. – Os administradores da fábrica?

– Se os meus contatos tivessem sido indiscretos a ponto de informá-lo, não teria transacionado com eles. Não prosperei fazendo negócio com homens estúpidos. Eu me encontrava com intermediários. Transportadores. Mas não poderia acontecer sem que alguém com autoridade daquela fábrica estivesse ao corrente. Não era um esquema engendrado por ladrões e contrabandistas.

– Como é que o convenceram? – disparou Audrianna. – Disse que o tinham convencido explicando-lhe por que razão não seriam descobertos.

Frans a olhou longa e duramente. Provavelmente viu o que Sebastian via. Ela se preparou para ouvir a resposta com uma expressão consternada.

– Eles me disseram que os barris deles passavam por um arsenal, madame. Tinham lá um homem, dos que faziam a verificação da qualidade. Tinham pagado eles para deixar passar todos os barris provenientes daquela fábrica. Quando ele às vezes não conseguia tratar dos barris e outro homem o fazia, e encontravam pólvora, tinham pagado uma soma simpática a um funcionário aqui de Londres para se certificarem de que os relatórios desapareciam.

Ela quase não reagiu. Sebastian percebeu que ela deixara de ver o pequeno veleiro e os dois homens que estavam com ela. Mantinha a compostura, mas o ar estava saturado da sua tristeza.

– Chegou aos meus ouvidos que um tanto daquela pólvora tivera consequências imprevistas – continuou Frans, falando apenas para Sebastian agora. – Ouvi o suficiente para saber que o governo daqui tinha suspeitas de que um funcionário de Londres responsável por garantir a qualidade das munições estava sendo investigado. Então, quando os meus negócios voltaram a me trazer à você, tentei me encontrar com esse homem. – Fez um gesto largo. – Já sabem o resto.

– Ia esfolá-lo.

– Ia informá-lo, por um preço, de fatos dos quais podia ou não estar consciente. Se ele escolhia ignorar os fatos ou usá-los para de alguma forma se redimir, não era minha preocupação. No entanto, depois de ele comprar os fatos, deixavam de ser meus e deixava de poder vendê-los em outro lugar. Teria sido muito semelhante ao meu acordo agora com vocês, não?

Sebastian tirou cem libras em notas do bolso. Trouxera mais. Esperara pagar caro pela informação. Acabaria tendo que fazer, mas não com libras.

Colocou as notas na mão de Frans.

– O barco é seu?

Frans sorriu evasivamente.

– Se for, faça isso discretamente. Se não for, volte pelo mesmo caminho que veio. Deve evitar prosseguir a sua atividade na costa inglesa durante um bom tempo.

Frans fez uma mesura para acusar a ameaça.

– Há mais uma coisa que pode achar interessante. Digo isso pensando no bem da senhora.

– O que é?

– Saí da Inglaterra logo depois do nosso desafortunado encontro perto de Brighton e só voltei há duas semanas. Nunca desapareci de nenhuma livraria. Nunca fui a nenhum encontro em nenhuma. Não faço ideia de onde fica a livraria nem de que encontro estão falando.

Audrianna mal reparou no caminho que tomaram de volta à praça. Os sons daquela parte movimentada da cidade pareciam uma algazarra distante. Sentia-se como se alguém tivesse violentado seu coração e ele sangrasse no peito, inchado e dolorido.

Summerhays a conduziu. Não disse nada durante o caminho todo. Manteve-se muito próximo, contudo, com um braço atrás das costas dela como se adivinhasse que ela podia não se lembrar de pôr um pé à frente do outro.

Colocou-a na carruagem e sentou-se ao lado dela. Rumaram para oeste em silêncio.

O seu torpor se desvaneceu lentamente. Baixou os olhos e viu a sua mão na dele. Tocou-a que ele tentasse reconfortá-la. A garganta ardia e ela continha a emoção com dificuldade.

– Quanto acha que lhe pagaram? – perguntou.

– A quem?

– Ao funcionário do gabinete de Londres que compunha os relatórios. Qual é o custo dessas coisas nos dias de hoje?

– Não faço ideia. É uma pergunta curiosa, Audrianna.

– Tanto quanto pagou a Frans? Se procurasse comprar um homem desses, o que ofereceria?

– Audrianna...

– Por favor, diga-me.

Ele expirou profundamente

– Provavelmente ofereceria pelo menos metade do seu salário anual, e talvez outro tanto.

– Então menos do que acaba de pagar a Frans. – Refletiu sobre o assunto. – Imagino que, se esse homem tivesse uma mulher e uma família sempre querendo coisas, sempre pedindo vestidos e entretenimento, ele pudesse se sentir tentado até por uma soma pequena. Imagino que se a sua mulher achasse humilhante não ter uma carruagem, e a filha mais velha precisasse de um dote para o bom casamento que esperava fazer, e a mais nova cobiçasse roupas da moda, ele pudesse se convencer de que era uma coisa sem importância.

Ela tentou imaginar o pai fazendo aquele raciocínio. Não conseguia. Mais difícil ainda era vê-lo dando aquele passo. No entanto, não teve dificuldade nenhuma em vê-lo atormentado pela culpa, quando veio a saber que a chuva não levara a pólvora naquela situação terrível. Se ele tinha feito aquilo... nunca se perdoaria.

Um homem que tivesse nascido ladrão, como Frans, poderia viver aquela vida com desassombro. Um homem que soubesse que vendera a sua integridade, o seu bom nome e causara a morte de outros nunca conseguiria.

Os seus pensamentos tornaram-se caóticos e horrivelmente tristes. Estivera tão certa da inocência do pai até na menor das acusações. Agora dava por si temendo que a verdade pudesse ser muito pior do que ela sequer achara possível.

A mão de Sebastian apertava a sua.

– Nunca deram nome nenhum a Frans. Ele não sabia quem era o funcionário de Londres. Só partiu do pressuposto de que era o seu pai quando a nossa atenção se virou para ele. Não deve presumir o pior.

A visão dela se turvou. Comoveu-a que ele fingisse que as provas não eram condenatórias, para atenuar a desilusão que ela sentia.

Audrianna encontrou algo a que se agarrar, para manter sua compostura, e aguentou. Já era mau ele ter se sentido obrigado a casar com a filha de Kelmsleigh. Não devia se sentir na obrigação de defender um criminoso por causa dela, mesmo que fosse dentro dos limites daquela carruagem.

– Falemos de outras coisas – declarou ela, forçando um sorriso. – Fale da sua juventude desperdiçada e dos sarilhos em que se meteu com o Hawkeswell e o Castleford.

Ele a regalou com histórias de três moleques pouco dados ao decoro e ao bom senso. Ela parecia prestar atenção, chegando a rir de tempo a tempo, mas ele duvidava que ouvisse realmente.

No entanto, Audrianna manteve a compostura e o aprumo.

Durante toda a viagem de volta, e quando entraram em casa e subiram as escadas, só os seus olhos revelavam as profundezas do seu triste espanto. A bravura dela o impressionava e partia o coração.

A porta da biblioteca abriu de rompante à passagem deles.

Saiu a mãe dele.

– Voltou. Graças a Deus. Deve ir imediatamente até ele. Deve vê-lo. Tem que fazer com que admita e chamar os médicos e...

– Acalme-se. O que aconteceu?

Ela inspirou profundamente.

– A perna do seu irmão se mexeu quando eu estava lá. Nitidamente. Estávamos tendo uma... conversa e quando ele defendia agitadamente uma opinião, a perna direita se mexeu para o lado. Foi muito claro. Não deixou margem para dúvidas. Ele nega, contudo, apesar do Dr. Fenwood ter dito que os médicos vieram na semana passada e descobriram de fato que ele tinha alguma sensação. Deve subir imediatamente e falar com ele.

Audrianna tocou no seu braço.

– Vou me retirar para o meu quarto e descansar. Vai até ele.

Continuou a subir as escadas. Sebastian ficou vendo-a partir enquanto a mãe esperava com impaciência.

– A perna do Morgan se mexeu há algumas semanas – disse ele. – O Fenwood anda forçando-o a se exercitar. Fico contente por saber que há mais sinais de que ele possa recuperar um dia.

– Por que é que ninguém me disse que tinha havido essa alteração? Acho que tinha direito de saber.

– Só se ele escolhesse lhe dizer é que teria direito de saber. Aparentemente, a escolha dele não foi essa.

– Bem, agora sei. Anda, vamos juntos até ele e convencê-lo a se esforçar mais. Vamos fazê-lo se empenhar mais. Precisa de nós mais do que nunca.

Ele olhou para as escadas e imaginou Audrianna subindo. Costas direitas e cabeça erguida, graciosa e digna, fizera uma bela representação.

– Visitarei Morgan ao final da tarde. Neste momento, há outra coisa que quero fazer.

Sebastian deixou a mãe de boca aberta pelo pouco caso que fez das suas exigências. Subiu aos seus aposentos e entrou no quarto. Parou atrás da porta que dava para o quarto de Audrianna, para ouvir. Não houve nenhum som no início. Depois ouviu vozes femininas num burburinho suave e uma porta fechando. Ela devia ter mandado Nellie embora.

Em seguida, silêncio. Talvez ela estivesse exausta do drama do dia e adormecesse.

Deu meia-volta, para procurar o seu próprio silêncio e poder pensar no que tinham descoberto, e decidir o que fazer com isso. Ou se devia fazer alguma coisa sequer. Queria ponderar particularmente as implicações da última coisa que Frans dissera.

Se Dominó não colocara o anúncio para aquele último encontro na livraria Musas e Audrianna também não, quem tinha feito?

Um som atravessou subitamente a parede. Um estrondo musical, como porcelana partindo, acompanhado por um impropério angustiado numa voz feminina. Depois soluços abafados, estrangulados.

Abriu a porta. Viam-se cacos de porcelana espalhados pelo chão. As cortinas estavam corridas para impedir a luz do sol de entrar. Audrianna estava deitada na cama com o roupão branco, com a cara enterrada numa camada protetora de almofadas.

Chorava violentamente. A intensidade da emoção despedaçou o coração de Sebastian. Ouvia-se raiva nos seus soluços, e uma desilusão tão forte que era impossível de suportar.

Aproximou-se dela. Se ela quisesse privacidade, deixaria que soubesse, mas ele só conseguiria deixá-la assim se o mandasse embora.

Ela sobressaltou-se quando o sentiu ao lado da cama. Só a fez chorar mais, como se ele a recordasse de outra dor. Ele pegou nela e sentou-se na cama, segurando-a no colo com ela aninhada no seu abraço, para expulsar todo o choro que tinha no coração.

O abraço dele libertou-a. Ela parou de combater a horrível desolação que sentia e deixou manifestar-se. A certa altura ficou meio enlouquecida, tão perdida na dor que nada mais existia. Ele a segurou com mais força e deu-lhe um beijo na fonte que lhe devolveu a sanidade. Um gesto pequenino, na verdade. Um pequenino gesto de cuidado. Que originou, porém, uma brisa de paz que lhe deu vida e afastou as nuvens negras da tempestade.

Ela encontrou calma naquela brisa e no reconforto que lhe trouxe. Espasmos sacudiram-na quando o pior da emoção se dissipou. Ele deu o seu lenço e aproximou-a de si, aconchegando-a.

– Fiz uma cena, não fiz? – perguntou ela quando conseguiu por fim voltar a falar. – Até parti alguma coisa. Nem sequer sei o que atirei.

– Estava revoltada.

– Não sei por quê, nem com quem.

– Talvez estivesse revoltada com ele. E comigo.

– Com você não. Por favor, não pense isso. – Não era mesmo com ele, apesar de ele não estar longe das suas emoções na loucura que sentira. Ela detestara a presença daquela ferida no casamento deles e o efeito doloroso que provocava mencionar ou pensar no pai dela.

– Com ele, principalmente – admitiu ela. – E comigo, por estar tão segura e ter pensado o pior de você.

Ela também libertara o resto de um tipo diferente de raiva, percebeu. O tipo que nascia da certeza absoluta de que o pai fora injustiçado. Enterrara nela a sua dor e agora, naquele dia, essa dor fora finalmente libertada e tivera o seu momento. A dor tornara-se mais trágica, porém, e terrivelmente confusa nas suas memórias.

A certeza desaparecera, mas ela não conseguia deixar completamente de acreditar no pai. Não conseguia aceitar que ele fora responsável pelos jovens soldados mortos e mutilados. Não conseguia suportar pensar no medo que ele sentira se semelhante pecado o tivesse acossado. Uma verdade terrível procurava espaço na sua mente, mas o seu coração não ia, não podia, reconhecê-la.

Sebastian não fez nenhum movimento para libertá-la. Limitou-se a segurá-la num abraço reconfortante enquanto ela fungava e limpava os olhos com o lenço.

– Deveria estar com o seu irmão – murmurou ela.

– Não, o meu lugar é aqui. Enquanto me quiser.

Ela inclinou o rosto e beijou-o na face. Encostou a cabeça ao corpo dele e deixou que a sua força contivesse emoções que ainda queriam explodir.

Naquele silêncio apaziguador, ela se sentiu preencher por uma nova emoção, confiante e doce, em vez de frágil e furiosa. Libertada também pelo fim da certeza que ela sentira, a emoção tocou seu coração com memórias da intimidade das noites deles. Forçou-a a reconhecer a importância daquele abraço.

Ela ergueu os olhos para ele. O velho deslumbramento regressou, só que agora enchia seu coração com o ardor do afeto crescente, comovendo-a de tal maneira que ela suspeitou ser impossível de negar a partir daquele dia.

Beijou-o novamente, porque tinha de fazer. O seu espírito estava tão maltratado que ela não conseguia fingir que não precisava que ele a segurasse como segurava. Ela acabaria por ser capaz de enfrentar todas aquelas verdades sozinha, mas queria se esconder na proteção do seu cuidado por bastante mais tempo.

Ele olhou para ela, tão profundamente que ela se perguntou onde andariam os seus pensamentos.

– Não vai me devolver o beijo? – perguntou ela.

– Esperava para ver se esperar a faria me beijar mais algumas vezes.

Ela achou graça no comentário, achando-o de uma leveza adequada à disposição e à proximidade deles. Então percebeu que não era realmente uma brincadeira.

Outra verdade. Quase tinham sido em excesso naquele dia. Ela intuía que havia mais naquela verdade do que ela compreendia. Ouviu um convite para exprimir a dor bela e calorosa que sentia no coração.

Deixou-se escorregar do colo dele e depois voltou a subir, ficando de frente para ele, com os joelhos apoiando-a. Pôs os braços à volta do pescoço e o beijou outra vez. Mais longamente. A gratidão pelo carinho dele, a mágoa pelo pai, a vulnerabilidade de se reconhecer naquele amor... O beijo a comoveu profundamente porque todas as emoções do seu coração se derramaram no momento em que encostou os lábios aos dele.

Ela desapertou o roupão e deixou-o deslizar pelo corpo, para ele saber o que ela queria. Ele fez correr levemente as pontas dos dedos pela sua pele, pelo pescoço, os seios e o peito, enquanto ela o puxava pela gravata.

– Tem certeza? – perguntou ele. – Está muito triste.

– Não estou só triste. Estou muito certa. Preciso disso agora. – Ela se desembaraçou da gravata dele e começou a desapertar os botões da sua camisa. – Me toca e me beija enquanto faço isso. Pouquinho, para eu não me descontrolar.

Ele obedeceu. Os seus dedos e a sua boca instaram uma delicada excitação a fluir como água cálida, que a preencheu docemente enquanto ela tirava sua roupa para acariciá-lo.

Ela fechou os olhos para melhor sentir o calor e a textura com as mãos. Saboreou cada toque, cada centímetro físico. Depois inclinou para a frente, fazendo-o cair de costas na cama, e colocou-se em cima dele para ver o movimento das mãos.

Acariciá-lo era tão bom. O amor irradiava de cada pedacinho de prazer que lhe dava. Ela percebia que a ele agradava aceitar aquele afago lento. Ela inclinou-se e beijou sua boca, depois o pescoço e o ombro. Provou, provou e pasmou com a forma como as sensações do seu corpo tocavam as do seu coração.

Ele pegou nela e rolou e fez nela o que ela acabava de fazer nele, beijando seu corpo com cuidado, acariciando docemente. Uma excitação mais agitada começou a querer se impor, mas ela impediu sua progressão. Não queria se deixar perder. Não queria que nada obscurecesse a comoção profunda que as suas emoções criavam naquele preciso momento.

Ele despiu o resto das roupas, beijando-a.

Ela pegou no falo dele e acariciou-o tão cuidadosamente como ele a acariciara, para ambos partilharem a intimidade intensa que ela experimentara.

Reconheceu que não queria nada além dele. No seu corpo e nos seus braços. Disse. Pediu para tomá-la ali mesmo, para poder se unir a ele e conhecer a plenitude daquela emoção que inundava sua alma.

Ele inseriu-se nela profundamente. De forma perfeita. Ela permitiu que preenchesse tudo o mais dela também, todos os seus sentidos, e perdeu-se finalmente, nele e no seu odor e na sua força. E, agarrada a ele, aceitando tanto a necessidade como o cuidado dele, sentiu-se tão profundamente comovida que de novo chorou, só que desta vez não foi de tristeza.


Capítulo 23


– Mostre-lhes. É um pequeno pedido de amigos que têm afeto e preocupação com você – incentivou Sebastian. Morgan olhou-o furioso.

– Não sou nenhum animal selvagem em exposição, fazendo truques para a multidão.

Kennington reagiu com surpresa.

– Animal? Truques? Apresento as minhas desculpas. Não quero insultá-lo. Se na minha alegria com a notícia mostrei desrespeito, fico desolado.

– Não é culpa sua – declarou Sebastian. – É minha, por ter sido indiscreto. Não fazia ideia de que o meu irmão não os tinha informado do seu progresso.

– Terminemos o jogo e não falemos mais no assunto – disse Symes-Wilvert.

Todos pegaram as cartas. Kennington e Symes-Wilvert espiaram silenciosamente as suas, tentando parecer indiferentes, mas comunicando mágoa com os ângulos submissos das suas cabeças loiras.

Morgan atirou as cartas para a mesa.

– Arruma lá o raio da mesa – disse, exasperado.

Sebastian pôs-se de pé e puxou a mesa. As pernas de Morgan já não pareciam tão sem vida dentro das calças. Os exercícios tinham devolvido a massa. Não fora a imobilidade completa, podia-se nem sequer reparar na sua debilidade, vendo-o assim.

– Não esperem que me levante e comece a dançar – disse ele bruscamente. – É uma coisa muito pequena, o que o meu irmão celebra, e provavelmente nunca será mais do que isso.

Os amigos assentiram com a cabeça, mas os seus olhos continuavam postos nas pernas dele.

Morgan fechou os olhos. Os seus dentes cerraram-se de concentração. A perna direita flexionou ligeiramente por baixo do tecido das calças e moveu-se ligeiramente para a direita.

– Meu Deus, é milagre – sussurrou Symes-Wilvert. Virou-se para Kennington. – Viu aquilo? Viu?

– Vi, sim. A-ah! Maldição, como pôde manter isso em segredo? É espantoso. Um milagre, como aqui o Symes disse.

– Não façam disso mais do que é. Também não vão contar ao mundo inteiro. Não ficarei fazendo truques para sacanas curiosos que de repente se lembraram de que eu ainda estou vivo.

– Claro. Com certeza. Mas então, o que dizem os médicos? Quando é que aconteceu? – perguntou Kennington. – Somos todos ouvidos e deve nos relatar o sucedido.

Esquecido o jogo de cartas, Sebastian saiu discretamente, para tratar de assuntos privados na cidade. Mandou vir o cavalo, montou e rumou até ele.

O segredo de Morgan sobre a melhora na sua condição era peculiar. Quase como se se recusasse a acreditar que estava acontecendo.

A negligência em informar a mãe era compreensível. Visitava Morgan todos os dias desde que soubera a verdade, e qualquer homem pode ser desculpado por evitá-lo durante tanto tempo quanto possível. Kennington e Symes-Wilvert, contudo, eram amigos, e Sebastian acreditara mesmo que eles sabiam.

Quando chegou à cidade, visitou os escritórios do advogado, perto do Colégio de Lincoln. Mr. Dowgill não era o advogado da família. Sebastian fizera-se cliente de Mr. Dowgill quando, ainda jovem, concluíra que a existência de privacidade em certos assuntos requeria os serviços de outro advogado que não aquele que não se cansava de bajular uma Lady Wittonbury demasiado curiosa e impiedosa.

Dowgill mostrara-se mais do que competente nesses deveres juvenis. Homem insípido e pálido de aparência desinteressante, tinha uma habilidade particular para convencer até a amante mais obstinada de que o acordo de separação proposto por Sebastian era o melhor que ela alguma vez conseguiria.

Dowgill o cumprimentou com o comedimento habitual. Sentaram-se no gabinete interior. Dowgill pousou alguns papéis na mesa pequena que os separava.

– Investiguei a P & E, como pediu. Tive dificuldade de saber mais informação do que aquela que já tinha me dado. Construíram uma fábrica em 1810 e começaram a fabricar pólvora no ano seguinte, que era vendida ao Gabinete do Material de Guerra. Depois de a guerra terminar, encerraram a atividade.

– Encontrou alguma informação acerca dos proprietários da P & E?

– A princípio, quase nada. Daquilo que pude apurar, era uma sociedade, não um consórcio. Comuniquei com um colega do condado, astuto, e ele indicou que, embora não tendo particular conhecimento sobre o negócio, ficara com a opinião de que os proprietários não se chamavam Pettigrew e Eversham, apesar do nome da fábrica.

– Isso é realmente intrigante.

Mr. Dowgill pressionou as pontas dos dedos de uma mão contra os da outra. Olhou pensativamente para o edifício lá fora.

– Claro que é impossível saber o porquê da ocorrência deste esquema. Ninguém do condado chegou a conhecer os donos. Não beneficiaram da hospitalidade de que poderiam desfrutar por serem proprietários de um negócio tão relevante. Dei por mim ponderando sobre essa peculiaridade, pois com certeza poderia ser a chave das respostas que procura. A explicação mais lógica seria os donos serem fidalgos e não quererem os seus nomes relacionados com um local de comércio.

Sebastian conseguia pensar numa explicação ainda melhor. O dono ou donos tinham o esquema da pólvora em mente desde o início, e esconderam as identidades para tentar salvar a pele na eventualidade de se vir a descobrir.

– E aí confirmei que a fábrica fora vendida, como me disse que tinha ouvido – prosseguiu Dowgill. – A solução tornou-se óbvia e simples. Não se pode usar um nome fictício para comprar nem vender propriedade. A assinatura tem de ser feita e testemunhada. Escrevi, então, para Mr. Skeffley, o pisoador que comprou a propriedade, perguntando-lhe de quem a obtivera. – Olhou detidamente para os papéis que colocara em cima da mesa.

– Tem um nome para me dar?

– Tenho, senhor.

Sebastian aguardou. Mr. Dowgill bateu com o dedo indicador nos papéis.

– Lord Sebastian, encontro-me numa situação delicada. Sou seu criado, mas não deixo de ser advogado. Não sei por que razão queria esta informação. No entanto, a não ser que os seus objetivos sejam completamente benignos, aconselho-o a reconsiderar agora se devo revelar este nome.

– Estou muito certo de que deve.

Embora não fosse a resposta que ele queria, Dowgill resignara-se à certeza de ouvi-la.

– Pois bem. Sendo assim, devo pedir-lhe que não mencione o meu nome em nenhuma discussão que possa ter com o indivíduo em questão. Não só o meu nome, mas o meu envolvimento, incluindo qualquer referência ao seu advogado. Há quem esteja a par de que lhe prestei alguns serviços no passado.

Dowgill fazia uma negociação esmiuçada, o que, por si só, espicaçou a curiosidade de Sebastian.

– Claro, se assim pede. Limitou-se, contudo, a cumprir o seu dever comigo, como meu advogado.

– Qualquer pessoa sensata veria dessa forma. Lamentavelmente, este indivíduo não é conhecido por ser assim. Pelo contrário.

– Conhece-o, então?

– Sei da sua existência. Os seus círculos são mais elevados do que aqueles a que alguma vez acederei. Repare, ele não é apenas um cavalheiro, como eu suspeitei. É nobre.

O longo preâmbulo e a cautela do advogado subitamente fizeram mais sentido.

– Ele nunca saberá por mim que o investigou a meu pedido. Se descobrir de outra forma, me certificarei de que nada de adverso lhe aconteça por essa razão.

Dowgill exprimiu uma gratidão silenciosa com o rosto.

– Devo lhe parecer um covarde, e a aconselhá-lo a comportar-se como um também. Fosse qualquer outra pessoa... Ele envolve-se em duelos, sabe. É sabido que ele faz isso, e...

– O nome dele, Mr. Dowgill. Gostaria que me dissesse, agora.

Mr. Dowgill tirou um papel do meio dos outros. Estendeu-o.

– Senhor, como pode ler, Mr. Skeffling informa que comprou a fábrica ao duque de Castleford.

Sebastian não fez uma visita matinal a Castleford. Escreveu e solicitou uma reunião privada para um assunto de grande importância. Visto que se conheciam há muito tempo e tinham sido bons amigos outrora, incluiu a sugestão de que ajudaria em muito se Castleford estivesse sóbrio e não houvesse por perto traseiros bonitos para distraí-lo.

A resposta chegou dois dias depois:

Se faz questão de ser maçante, vem a minha casa na terça às duas da tarde. Visto ser esse o dia reservado para a minha sessão de tédio semanal, não terei de me esforçar muito para ser maçante também.

Quando Sebastian chegou, foi conduzido para a biblioteca, onde encontrou Castleford tratando de assuntos com o secretário. As pilhas ordenadas de documentos e as ordens firmes que bombardeavam o jovem ocupante da escrivaninha revelavam que, desde a sua sessão de tédio, o duque conseguia ser tão maçante como qualquer homem com responsabilidades significativas.

– Descobri que se esticasse bem um dia, podia mandar tudo para o diabo nos outros seis – disse, quando a presença de Sebastian o interrompeu. – Deixe-nos Edwards, mas não vá para longe.

O jovem desculpou-se. Castleford sentou-se num divã e esticou as pernas.

– Espero que não seja sobre nenhum projeto de lei. Se for, os seus amos pedem vezes demais para vir beber ao poço.

– Não é sobre nenhum assunto parlamentar.

– Graças a Deus que é assim. Gosta tanto desse jogo que há quem pense que não levará muito para que seja primeiro-ministro. Aposto o meu dinheiro em como algum escândalo assinalável dá cabo de você primeiro. Um com o qual não possa se casar. Aquela doce mulher sabe com o que conta?

– O governo não é um jogo. Nem a lei.

– A política é. Parte xadrez, parte falcatrua, parte corrida de cavalos, parte loteria. Não teria se dado tão bem com ela se não fosse assim. Mas então, o que quer de mim?

Sebastian passara a maior parte da noite debatendo sobre a forma de abordar o assunto. Existira alguma angústia na sua vigília, assim como uma dose considerável de raiva. Ele e Castleford já não enfrentavam o mundo lado a lado como haviam feito nos velhos tempos, e entrara alguma aspereza na relação que ainda mantinham, mas ser obrigado a fazer aquela acusação o perturbava.

– Como sabe, andei investigando aquela questão da pólvora ruim. Encontrei a fonte e soube como foi adulterada. Sei que foi responsável.

Castleford mal reagiu. Apenas olhou para ele.

– Senti que devia isso a você, fazer-se saber que todo foi revelado.

– De que diabos está falando?

– A pólvora veio da sua fábrica. Quero acreditar que os seus administradores engendraram o resto, a remoção da pólvora e a sua substituição nos barris por outra substância que a tornava inútil. Se disser que foi assim que se passou, que não sabia nada do esquema, é tudo de que preciso.

– Tudo de que precisa? Uma desculpa é tudo de que eu preciso. Agora, ou juro que o desafio! – Castleford levantou-se e começou a andar, furioso. Passou a mão pelo cabelo, girou sobre seus pés e fulminou-o com o olhar. – Enlouqueceu? Sou eu. Eu não tenho fábricas. Por que raio quereria uma? Muito menos uma que fosse pelos ares. Quanto à remoção da pólvora e o que mais for que você pensa que eu fiz, por que me daria ao trabalho?

– Pela diversão? Você também gosta dos seus jogos.

– Se acredita que poria as vidas daqueles soldados em perigo, é um idiota. Podia comer as irmãs deles, mas não faria nada disso.

– Você era dono da fábrica. Vi a escritura que documentava que a vendera recentemente. É a sua assinatura.

Castleford estacou, estupefato. Avançou para a porta a passos largos e abriu-a completamente. Berrou o nome de Edwards.

O jovem entrou numa corrida. Castleford imobilizou-o com um olhar contundente, atirando um dedo na direção de Sebastian.

– Edwards, explique-lhe que eu não tenho, nem nunca tive, nenhuma fábrica.

Edwards parecia um homem encurralado por um leão. Os seus olhos muito abertos e temerosos voaram para Sebastian. Depois tirou as medidas ao duque e ficou branco.

– Então, diga-lhe – rugiu Castleford.

– Hã... senhor... na verdade... – Edwards engoliu em seco. – Já foi dono de uma fábrica, por um breve período. Lembra-se? Foi-lhe atribuída como pagamento da dívida de um cavalheiro. Recordo-me de escrever a carta ao seu advogado indicando-lhe que a vendesse por qualquer valor.

Castleford voltou uma expressão ameaçadora para o jovem, que recuou um passo.

– Posso procurar a cópia da carta se desejar, meu senhor.

– Quem é que me deu essa fábrica, raios?

– Não sei. Só me lembro da carta ao advogado.

– Vai procurar a cópia da carta.

Edwards executou a ordem prontamente.

– Estaria no escritório. Vou procurá-la de imediato.

Castleford atirou-se novamente no divã.

– Falarei com o meu advogado e o enviarei tudo o que ele tem, Summerhays. Se o lugar estava na minha posse durante a altura em questão, ele provavelmente sabe o nome dos administradores e tudo o mais. – A sua expressão mostrou certo grau de consternação. – Se este esquema que descreve aconteceu enquanto a fábrica estava na minha posse, assumirei, evidentemente, toda a responsabilidade.

A ironia não escapou a nenhum dos dois. Todos os dias Castleford provocava a sociedade com o seu comportamento. Dedicava a sua vida a transgredir o que era aceitável. Os seus excessos eram tão indiscretos que já nem sequer se fazia escândalo por eles. Contudo, este defensor da rebelião calculada poderia finalmente ser derrubado por força de um incidente que desconhecia completamente.

– Não há pressa – afirmou Sebastian. – Aguardarei notícias do seu advogado, ou suas, sobre os particulares.

– É muito generoso. – O tom sarcástico trouxe à lembrança de Sebastian um Castleford mais jovem, feito da mesma cepa mas menos fascinado pelo pecado.

Sebastian teve de sorrir ao sentir entre eles a memória da velha amizade.

– Espero não ter sido maçante demais desta vez.

– De jeito nenhum. Não é que me importasse, contudo, de não me ver confrontado com um xeque-mate num jogo que eu nem sabia que jogava.

* * *

– Decidi que não vou ter amantes – afirmou Audrianna.

Disse aquilo de noite, no pacífico rescaldo da paixão, no momento exato em que o êxtase se converte em contentamento, e falar já não destrói o fascínio sagrado que suspende o tempo.

O cérebro preguiçoso de Sebastian deu voltas ao que ela dissera.

– Não sabia que pretendia ter.

– Não pretendia, de uma forma específica. Combinamos, porém, que podia fazê-lo, mais tarde, se assim escolhesse.

– E agora decidiu que não o escolherá?

– Não se preocupe. Já sabe que eu não sou como a sua mãe, e não o bombardeio com perguntas e ressentimentos ciumentos.

Ele analisou as suas reações. Uma alegria infantil, claro, por se eternizar a posse única dele sobre ela.

Alívio por ela compreender o veneno que o ressentimento e o ciúme podem introduzir num casamento.

Dominante, porém, era um aborrecimento inexplicável pelos pressupostos a que ela aludia.

– Não é, talvez, uma decisão que se possa tomar – contrapôs ele. – Daqui a dez anos pode...

– Não, não terei. – Ela olhou-o nos olhos. – Não terei.

Ele não ia discutir a certeza dela. Se ela decidira ser fiel, não era do seu interesse convencê-la do contrário. No entanto...

– É porque disse que os mataria?

Ela riu.

– Claro que não. Sei que não mataria realmente.

Mais uma vez, não era do seu interesse explicar que seria bem provável que sim. O mais certo era ela ter lhe poupado um duelo ou dois com aquela decisão. No total, ele não via ali nenhuma desvantagem que pudesse atingi-lo. No entanto...

– O que quer dizer, que eu já sabia que não é como a minha mãe no que toca a ciúmes e ressentimentos?

– Não é óbvio? Não mostrei nem um nem outro até hoje, ou mostrei?

– Não. Mas... – Ele partira do pressuposto de que ela sabia que não tinha razões para tais sentimentos. Mas, ao que parecia, ela pensava que tinha.

Ele deu por si oscilando num estranho precipício. Podia dizer que até então não havia razão para ela sentir ciúmes e que, portanto, ainda não fora realmente testada no que dizia respeito a ele. Ou podia se sentir grato por a sua mulher, numa fase tão inicial do casamento, ter aceitado as indiscrições tão típicas dos homens.

O senso comum dizia-lhe que, a bem da paz e da harmonia dos anos vindouros, devia deixar o assunto em paz. Definitivamente.

Por outro lado...

– Por que pensa você ter alguma razão para revelar ciúme até agora? Dificilmente a negligenciei. Maldição, mulher, não durmo uma noite inteira há mais de um mês!

Ela ficou quieta, depois se sentou. Olhou para ele, deitado.

– Estou perplexa. Ganho finalmente coragem para dizer que decidi ser fiel e agora está irritado.

– Não estou irritado.

– Parece irritado. Não vejo por que razão haveria de ficar. De certa forma, isto não tem nada a ver com você.

– Claro que tem a ver comigo. Vai ser fiel a mim, não é?

– Preferia que não fosse?

– Claro que não. Só quero saber por que pensa que já fui infiel.

– Por que não pensaria? Um homem não deixa de ser um libertino por causa de um casamento por obrigação. Há quem diga que não deixa nunca de ser, independentemente do tipo de casamento que faça. Quando só volta a esta casa de manhã, não diz aonde vai nem eu pergunto. Sou capaz de tirar algumas conclusões, porém. Não sou tão inocente que não saiba como corre esse tipo de casamento.

Ele a puxou para baixo e ergueu-se nos braços para olhar para o rosto dela.

– Tirou as conclusões erradas. Não estou com mais ninguém há muito tempo. Meses. – Não muitos meses, mas pelo menos não desde que eles se conheceram. No entanto, não havia necessidade de esmiuçar excessivamente o assunto.

– De verdade? – perguntou ela, surpreendida, fascinada e incrédula. Sebastian notou também alguma hesitação, como se a resposta fosse muito importante para ela.

– Sim. Quanto a esse tipo de casamento e à forma como corre... – Parte dele ordenou silêncio agora, antes que se dissesse algo que pudesse vir a ser lamentado. Ignorou a voz e seguiu em frente. – Por que me disse que queria romper com a norma?

– Queria que soubesse.

– Por quê? A não ser por uma promessa idêntica, porque queria que eu soubesse?

Ela deteve os olhos nele.

– Era importante para mim dizer isso, é tudo. Para você saber, e poder estar certo quanto a mim, se alguma vez importou quando se questionou.

Se alguma vez importou quando se questionou. A sua irritação esvaziou como um balão. Que coisa triste para ela dizer ou pensar.

Na realidade ela fora muito sensata. Não esperara nada daquela união a não ser os termos previamente acordados entre eles, e o direito dele de se comportar como entendesse ficara igualmente explícito e implícito em tudo.

O “se” dela ficou ali pairando, porém. Se o fato de ela ter um amante não importava, então ela não importava. Incomodava-o profundamente que ela partisse do princípio que não.

– Seria de grande importância se alguma vez me questionasse, por isso me deu um presente ao me dizer isso – declarou ele. Ela tinha realmente direito de saber aquilo.

Ele ficara com ciúmes, afinal. Até se comportara como um idiota por causa dela. Beijou-a, e sentiu uma umidade levemente salgada no seu rosto.

– Teve importância para você quando se questionou?

Ela anuiu com a cabeça, mas não falou.

Você a beija, dá prazer e fica em silêncio agora, seu tolo piegas. Ele sabia perfeitamente que devia pôr um fim à conversa. Não gostava, contudo, de deixá-la pensando com os seus botões e presumindo que não podia sequer perguntar sem considerarem-na uma intrometida insistente e pouco sofisticada.

Supunha-se que os votos que tinham trocado tratassem daquela questão, mas, claro, habitualmente não o faziam.

– É mais do que justo que troquemos presentes, acho eu. Eu também não terei amantes.

Ela ficou com um ar tão espantado, tão absolutamente abismado, que ele quase riu. Mas outra coisa que viu em seus olhos o tocou profundamente, e ele nunca esqueceria a expressão dela naquele momento.

– Será muito agradável não ficar quebrando a cabeça daqui para frente – observou ela, com voz suave. – Se um dia, porém, você...

Ele tocou nos seus lábios para silenciá-la. Não queria que ela o desobrigasse da promessa antes até de ele descobrir se conseguia mantê-la.

– Se algum dia um de nós se arrepender da escolha, falaremos sobre isso, Audrianna, e tentaremos nos lembrar de quando importava.

E por quê.


Capítulo 24


Ainda era de manhã cedo quando Audrianna desceu da carruagem. No entanto, um dia cheio a esperava e não podia adiar aquela visita. Felizmente, uma mulher não precisava se preocupar tanto assim com horas adequadas para visitas quando ia para a casa da própria mãe.

A mãe ficou contente por vê-la. Quando entravam na sala, Audrianna reparou na nova alcatifa vermelha da biblioteca. Perguntou-se se Sebastian ainda fazia penitência.

A mãe falava com boca cheia sobre amizades renovadas e parentes redescobertos. A sua prontidão para esquecer desencontros passados tanto animava como entristecia Audrianna.

Desde a conversa com o Dominó que a estoica reação da mãe à desgraça do pai vinha assumindo outros significados potenciais, como tantas outras coisas na memória de Audrianna daquele tempo longo e terrível.

– A Sarah tem um jovem que está lhe fazendo a corte – confiou finalmente a mãe. O seu olhar brilhava de deleite. – Um cavalheiro.

– Que maravilha, mãe. Ele vive em Londres?

– Claro, não é? Embora tenha propriedade no Yorkshire. A profissão dele requer a sua presença aqui, porém. É advogado.

– É realmente notável.

– Prometi obter um convite para visitar Lord Sebastian. Eu sabia que não iria se importar.

– Claro que não.

A mãe não era estúpida. Ouviu a resignação. Provavelmente também viu a prova do ressentimento que Audrianna sentia por ser tão “útil”, apesar das suas tentativas de esconder.

– Estou com grandes esperanças quanto a isso. – A mãe baixou os olhos e falou como quem pede desculpa, como um peticionário que pisasse na linha que circundava a rainha. – Talvez mais do que o devido. Podemos adiar se quiser, até as intenções dele serem mais explícitas.

– Não, não é necessário. Tratarei da apresentação para quando quiser. Será um prazer fazer isso. – Era pouco provável que as intenções do advogado ficassem mais explícitas enquanto a utilidade dela não se revelasse. Era por essa razão que tinha se casado, não era? Não devia deixar que as novas descobertas do seu coração turvassem esse fato.

Tinham sido aquelas novas descobertas que a levaram lá. Isso e a sua recente falta de certeza sobre o pai, e a confusão emocional a respeito dele que não a largava a não ser quando a paixão a bania por um curto período. Olhou para o rosto da mãe, suave e doce, tão bem enquadrado pela touca branca debruada a renda, e reuniu coragem para abordar um assunto nunca antes discutido.

– Tenho pensado no meu pai recentemente – avançou ela. – E sobre aquelas acusações que fizeram a respeito da negligência dele.

A mãe não disse nada, mas foi tomada por uma nova imobilidade, mesmo que antes ela não se mexesse. Continuou com os olhos baixos, como tantas outras vezes na presença do pai naqueles derradeiros meses.

– Acha que ele esteve envolvido de alguma forma, mãe? Nunca deu motivos para que pensass assim e, eu sei, mas as atenções voltaram-se para ele por uma razão. Ele era a pessoa que via todos os relatórios sobre a qualidade da pólvora. Ele deu aval para que fosse distribuída. A mãe o defendeu, eu sei, mas...

A mãe de Audrianna suspirou profundamente, como se um fardo do qual tivesse se libertado recentemente voltasse a ser imposto ao seu espírito. Ergueu os olhos, mas não era o olhar de uma mãe. Era muito mais honesto do que isso.

– Ele se preocupava. Notava-se que aquele escândalo todo deixava marcas. Ele definhava a olhos vistos – principiou. – Sempre fora dado a períodos de melancolia. Escondia de você e da Sarah, mas não conseguia esconder de mim. A guerra havia feito aquilo com ele. Era uma disposição que se instalava nele e daquela vez não foi embora. Ele deixou de falar comigo, por causa daquela escuridão.

– Nunca lhe disse que era inocente?

– Ele receava não estar, acho eu. Muito cedo, mesmo antes de se começarem a ouvir as histórias, o exército soube e ele passou semanas esquadrinhando a memória comigo, tentando se lembrar se tinha cometido semelhante erro. O erro deve ter sido no arsenal, não parava de dizer. O meu gabinete não aprovou pólvora ruim para distribuição.

– Então ele negou. – O coração de Audrianna ficou mais leve adiante da pequena prova. A mãe não lhe descrevia um homem culpado, com receio de ser descoberto num crime, mas um homem honesto que se preocupava com a possibilidade de ter cometido um erro.

– Ele não estava certo do que sabia, Audrianna. A preocupação não foi embora. A melancolia veio e ficou.

– Ele estava sendo perseguido e desonrado. Claro que ficaria melancólico. Acredita certamente na sua inocência em tudo isso.

Aguardou, o coração batendo com força, que a mãe enveredasse pela velha defesa do pai. O peso que sentia no peito tornou-se doloroso, e a sua compostura, um pouco desesperada quando o silêncio se prolongou.

– Acredita nisso, não acredita, mãe?

Os olhos da mãe de Audrianna ficaram evasivos, como se olhasse para dentro da sua mente e do seu coração para ver aquilo em que acreditava. Depois ganharam mais vida e o seu olhar voltou a ser o de uma mãe que olha para uma filha.

– Claro que acredito. Afinal sou mulher dele.

* * *

– Não devia ter feito isso – repreendeu Daphne, enquanto revolvia o solo em redor de uma roseira com uma enxada. – O que tinha na cabeça, Celia?

– Ela disse que resultou – replicou Celia enquanto podava, do outro lado do canteiro. – Deve-me dez libras, Audrianna, para me reembolsar o que paguei à minha mãe.

– A sua mãe pagou dez libras àqueles bordéis para procurarem pelo Dominó?

– Eu não sei o que ela pagou a eles. Isso é o que temos de pagar a ela.

Daphne parou de trabalhar e observou Celia por baixo da aba da touca de palha. Audrianna suspeitou que Daphne estava pensando naquilo que ela mesma se perguntava.

– Onde conseguiu as dez libras, Celia? – perguntou Daphne.

A atenção de Celia foi absorvida pelo exame dos caules da roseira.

– Espero que não tenha pedido emprestado – continuou Daphne. – Sabe a regra. Não contraímos dívidas.

Celia suspirou com dramatismo.

– Não se contraem dívidas com uma mãe. Ela pagou e eu pago a ela. Ficou tão feliz em saber de mim que não se importou minimamente.

Voltaram à jardinagem. Audrianna fora visitá-las naquele dia glorioso, sabendo que seria passado trabalhar assim. Calçara umas botas velhas e pusera um vestido simples, pedindo um avental emprestado ao chegar.

Precisava da companhia das amigas naquele dia, em que a sua cabeça revia a conversa que tivera no dia anterior com a mãe. Dissera a si mesma que iria se encontrar com a mãe para ouvir a verdade, mas constatava agora que fora em busca de um novo reforço para a sua certeza. Só que agora, apesar das conscienciosas últimas palavras da mãe, Audrianna suspeitava de que a única pessoa que alguma vez tivera verdadeira certeza de que Horatio Kelmsleigh não podia ser culpado de nada a respeito daquela pólvora era ela mesma.

Agora, a atitude do seu pai não estava assim tão certa. Muito pelo contrário, por mais que desejasse estar. Tampouco seria uma resolução para o seu coração aceitar a culpa dele.

Pelo menos, havia outra parte do seu coração que já não se encontrava confusa. Isso era muito reconfortante.

O sol irradiava bom calor e todas entre os canteiros se debruçavam sobre o trabalho, protegidas por toucas e luvas. Uma fila populosa de grandes tulipas ladeava o canteiro de rosas onde elas podavam e tiravam ervas. As corolas aveludadas mostravam a exuberância que as flores atingem logo antes da queda das pétalas.

Via-se Lizzie do outro lado do vidro da estufa, fazendo a sua magia com um tabuleiro de plantas jovens que ela chamara à vida. Não demoraria a vir para fora e elas deixariam de poder falar livremente sobre o assunto, pois Lizzie ainda não sabia da mãe de Celia.

– Lamento que o que soube do Dominó tenha a desanimado, Audrianna. – Daphne continuava trabalhando o solo com pequenos golpes. – Sei que escolheu acreditar no seu pai.

Era mesmo típico de Daphne saber o que ocupava a sua mente. Reparou, porém, que Daphne abordava uma lição importante no que dizia respeito ao espírito humano. Por mais que fossem os instintos e emoções, impunha-se escolher aquilo em que acreditar sobre os outros. Talvez a pior parte da desilusão fosse nos fazer sentir idiotas por acreditarmos em coisas boas. Talvez fosse essa a razão pela qual ela ainda não conseguia aceitar os fatos por aquilo que pareciam revelar.

A porta da estufa abriu. Lizzie saiu com o tabuleiro nas mãos. Aproximou-se de um viveiro colocado ao sol, abriu-o e pôs o tabuleiro lá dentro. Estava na altura de endurecer as plantas a serem plantadas em meados de maio.

Lizzie foi então até elas, adorável na sua touca simples, lilás, e o vestido de musselina azul. Havia várias semanas que as dores de cabeça a deixavam em paz e tinha um aspecto saudável e muito fresco.

Audrianna olhou para as amigas. A marquesa estava certa e algumas jovens matronas do seu novo mundo haviam-na procurado. Ela começara a ser absorvida por alguns círculos. Às vezes ria sem se perguntar se devia ou não.

Mas nunca seria como ali. Amigas nenhumas poderiam substituir aquelas.

Curvou-se para arrancar um intrusivo pedaço de relva do canteiro.

– Acho que me apaixonei. – Dizer aquilo, colocar em palavras, arrepiava-a e assustava-a ao mesmo tempo. Só conseguia dizer aquilo àquelas mulheres, claro. Nunca se atreveria a fazer tal revelação a mais ninguém.

O silêncio instalou-se à volta delas até se ouvirem apenas o chilreio dos pássaros e o restolhar das folhas caídas do outono. Ergueu os olhos e se deparou com três pares de olhos nela.

– Oh, Céus... – disse Lizzie. – Parece ser pouco sensato.

– Considerando as circunstâncias pouco promissoras que deram origem ao casamento, provavelmente tem razão. No entanto, é assim – disse Audrianna.

– Não é pouco sensato. Não necessariamente – refutou Daphne.

– Só é insensato se esperar que o amor seja correspondido – completou Lizzie. – E o casamento não é isso, se formos honestas. E o nome dele não deixa de estar ligado a mulheres nos pasquins. Se está preparada para aceitar um casamento desigual nessa área, a vida continua a ser tolerável, imagino.

– Eu acho que nos apaixonarmos é uma coisa boa – interveio Celia. – Mesmo que doa, pelo menos sabe que não está morta. Por isso fico feliz por você. Digo para ter cuidado com as urtigas e amar apaixonadamente e perder nove décimos do seu coração. – Tirou uma parte morta da sua roseira com um corte seguro. – Só não perca a cabeça também e fica com o último décimo para você. Dizer para nós está bem, mas não diga a ele, senão faz de você escrava.

Audrianna preferia não ter sabido da ascendência de Celia. Não conseguia evitar pensar que era Mrs. Northrope falando, ensinando à filha as realidades mundanas. Infelizmente, sendo uma mulher que servia de amante a maridos de outras mulheres, era provável que Mrs. Northrope possuísse uma sabedoria acerca dos homens que poucas delas conseguiriam reproduzir.

– Eu me sinto muito velha – rematou Daphne com uma risadinha. – Ou muito nova. Não tenho certeza de qual das duas. Sou a única, parece, que acha que é muito bonito ter se apaixonado, Audrianna, especialmente por existirem boas razões para isso não acontecer. Apele à otimista que há em mim, suponho.

Celia examinou os arbustos à sua volta.

– Terminamos. Mais prontos do que isso é impossível. Venham as flores. Vamos entrar.

Entraram todas na casa, tirando luvas e aventais pelo caminho. Lá dentro, desembaraçaram-se das toucas e das botas.

– Tenho uma canção nova – anunciou Audrianna. – Trouxe para a Celia cantar para nós.

– Deu esta a Mr. Trotter? – perguntou Lizzie.

– Não me atrevi. Quereria publicá-la com o meu nome e não me parece uma opção sensata, em vista do meu casamento e da infâmia da “O meu amor inconstante”. Não quero reavivar o escândalo de forma nenhuma.

– Provavelmente ele colocaria outra gravura, com você e Lord Sebastian na cama fazendo amor. – Foi o comentário de Celia. – Me dê. Eu canto e imaginamos a imagem que ele escolheria.

Audrianna tirou a folha da bolsa e lhe entregou. Sentaram-se na saleta de trás enquanto Celia se familiarizava com a canção e as notas.

– É a sua melhor até agora, acho – disse ela enquanto os olhos desciam até o final da página. – Pediria uma imagem muito terna, acho eu.

– Obrigada. Acho que saiu bem. Acho que vou chamá-la de “Coração e alma”.

Celia olhou para ela com aquela expressão madura que assumia de vez em quando. Ergueu a folha bem alto e começou a cantar.

Era muito especial para Audrianna ouvir as suas canções serem cantadas por outra pessoa, e não apenas na sua cabeça. Escrevera aquela um dia depois de se encontrar com Frans, o Dominó, enquanto o seu coração ainda parecia exposto a emoções tão dolorosas quanto belas. Encontrara consolo na melodia, e libertação, ao dar expressão à intimidade que experimentara nos braços de Sebastian.

Daphne e Lizzie ouviam, quietas. A voz límpida e jovem de Celia emprestava comoção às palavras. Soava muito melhor do que Audrianna alguma vez esperara.

O silêncio prolongou-se durante vários segundos depois de Celia terminar a última nota. Daphne sorriu com alguma melancolia.

– É linda. É mesmo uma pena que não arrisque dá-la a Mr. Trotter.

Lizzie limpava os olhos com o lenço.

– Receio que tenha perdido todo o seu coração, se essa canção revela as suas emoções. Quem consegue, porém, não a ouvir sem desejar conhecer a doçura dessa dor? Me faz me lamentar não estar apaixonada.

Celia olhou longa e seriamente para a música.

– É errado não voltar a ser apresentada. Merece um público grande.

– Estou satisfeita por ter ouvido você cantá-la. Se nunca tiver maior público do que nós quatro, estou bem com isso.

– Posso ficar com ela, para cantá-la depois? Quando não estiver aqui, a trará até nós em espírito.

– Essa cópia é sua e pode usá-la como bem entender. Talvez uma noite dessas a ouça mais uma vez na minha cabeça e saiba que você está cantando novamente. – Pôs-se de pé e beijou uma de cada vez. – Agora tenho de deixar vocês, por mais que desejasse ficar mais tempo. Lady Wittonbury dará um jantar esta noite e precisarei de horas para me preparar para a sua inspeção.

* * *

No dia seguinte ao jantar, Audrianna visitou o marquês. A agenda da temporada levava a que o visitasse com menos frequência, e quando o fazia, tinha uma longa lista de festas e bailes para descrever.

Para sua surpresa, Sebastian foi se encontrar com eles meia hora depois. Sentou-se na biblioteca para ouvir ela e o irmão, como se não tivesse uma dúzia de outros lugares para estar.

– As suas descrições são tão vívidas que parece que estive lá – afirmou o marquês, a título de elogio. – Teria gostado de ver a cara do Halliwell quando a cera de abelha do lustre aterrou mesmo na luneta dele.

Imitou o susto que imaginava e todos deram umas boas risadas.

– Gostaria? – perguntou Sebastian. – De ter visto?

A alegria de Wittonbury desapareceu. Pela maneira como os irmãos se entreolharam, parecia que Audrianna acabava de interromper uma discussão.

– Pergunto porque resiste a todos os esforços capazes de lhe permitirem um dia. Os médicos dizem que deve tentar pôr-se de pé e contudo se recusa.

– Se conseguisse me pôr de pé, eu faria. Não consigo, por isso não faço.

– Não é assim. Já foi explicado a você que se os músculos não forem trabalhados, nunca se recuperarão.

– Está se tornando tão cansativo quanto a nossa mãe. Eu lhe disse que não pode vir aqui a não ser que eu a convide. Devia ter seguido o seu conselho a esse respeito há meses.

– O Kennington e o Symes-Wilvert também foram banidos, ouvi dizer. Portanto a única visita a que se dispõe agora é a da minha mulher, porque ela é boa demais para fazê-lo se sentir um covarde.

Audrianna levantou-se para se retirar da conversa, que tomara um rumo muito particular. O marquês objetou.

– Não, vai ele, não a Audrianna.

– Eu não vou a lugar nenhum, até você tentar se pôr de pé.

– Então pode ficar aí sentado até ir para o inferno.

Sebastian cruzou as pernas, como se aquilo lhe servisse perfeitamente.

– Não tentará por você mesmo, pela nossa mãe nem por mim. Tenta por ela? – Inclinou a cabeça na direção dela. – Se ela pedir, você fará?

Wittonbury lançou-lhe um olhar fulminante.

– Pede, Audrianna.

Wittonbury deixou escapar uma risada triste e resignada.

– Seu idiota.

– Pede. Ordeno-lhe.

Ela desejou que ele não a tivesse ordenado. Não era justo usar daquela forma a amizade que ela tinha com o irmão dele. Nem ela queria saber das partes não verbalizadas da conversa, as partes que não compreendia.

– Poderia tentar? – perguntou ela calmamente. – Seria maravilhoso poder sair destes aposentos um dia. É verdade que me preocupo com você. Se houver um incêndio... Se não conseguir não será pior, e as tentativas, até agora, só o fizeram melhorar.

Ele não disse nada. Não culpava a ela, via-se. A raiva dele dirigia-se toda a Sebastian.

Wittonbury agarrou-se aos braços da cadeira. Forçou o corpo a se erguer uns centímetros. Depois, a força dos seus braços não suportou o peso e ele caiu pesadamente.

Sebastian levantou-se, aproximou-se dele, curvou-se e enfiou os braços por baixo dos do irmão. Endireitando-se, ergueu o marquês até segurá-lo em pé, direito, com duas botas firmemente apoiadas no chão. Aconteceu tudo tão rápido que Audrianna se sobressaltou com a abrupta atividade.

Depois Sebastian recuou e deixou o irmão sem apoio nenhum. A boca do marquês escancarou-se de choque. Depois voltou a cair sobre a cadeira.

– Está louco?! – gritou.

– Elas se aguentaram, que raio. Brevemente, antes de darem por si, aguentaram. Não me diga que não sentiu os músculos se recusarem e cederem.

O marquês fechou os olhos e se recompôs. A raiva deixou de desfigurar seu rosto.

– Foi indecoroso fazer isto na frente da Audrianna.

– Preciso de uma testemunha que você saiba que é solidária com você. Pergunte a ela se se aguentaram ou não.

Não perguntou. Compreendeu então que o marido tinha razão e que o irmão resistia a fazer o que devia para resgatar a vida dele.

Ela se aproximou dele e o beijou no rosto. Os olhos dele ainda estavam fechados, como se ele se resguardasse deles e também da verdade.

– Vou me retirar agora. Virei sempre contar-lhe dos bailes da temporada, o tempo e as vezes que quiser – declarou ela. – Confesso, todavia, que preferia dançar num baile com você um dia.

Passaram duas semanas sem que Sebastian tivesse notícias do advogado de Castleford. Não era um bom sinal. Talvez a informação tivesse sido desenterrada em outro dia que não terça-feira. Tristan poderia concluir que afinal não tinha de arcar com responsabilidade nenhuma, se o dever não fosse conforme ao seu prazer.

E assim, três semanas a contar do dia em que tivera a reunião, Sebastian ficou surpreendido quando uma carta do duque foi entregue por mensageiro.

Esteja aqui esta tarde antes das cinco ou espera até a próxima terça-feira.

Significava ter que enviar notas de cancelamento a dois homens com quem havia combinado se encontrar, mas, às três horas, Sebastian pôs-se a caminho do palácio de Castleford, no lado oeste de Piccadilly Street.

Quando Sebastian entrou na biblioteca, Castleford atirava ordens ao pobre Edwards. Apontou para o divã, como forma de dizer ao convidado para se sentar e aguardar.

Quinze minutos mais tarde, depois de ditada uma carta ao seu administrador, Castleford dignou-se a falar com Sebastian.

– Vem comigo. Ele está na sala.

Sebastian foi atrás dele.

– Quem está na sala?

– Mr. Goodale. Um dos meus advogados. Trata de assuntos pessoais para mim, inconvenientes, à semelhança do seu Mr. Dowgill.

– Você o fez esperar a tarde inteira?

– Se tem bebidas e livros e o bom ar do jardim, pode me extorquir o dia todo. Não se importa, estou certo.

Parecia que Mr. Goodale não se importava com nada. Assentara o corpo roliço e baixo no cadeirão maior, puxara um apoio de pés e lia à luz da janela aberta com um copo de brandy na mão. Era de admirar que não tivesse tirado os sapatos. Mostrou aborrecimento com a interferência quando a porta abriu, mas levantou-se imediatamente quando viu Castleford entrar.

Castleford se sentou na poltrona que Goodale desocupara, deixando o advogado meio calvo à frente dele como um rapazinho.

– Conte ao Summerhays da tal fábrica.

– Vossa Excelência vendeu a fábrica a Mr. Skeffley em outubro de 1816.

– Ele sabe essa parte. Conte-lhe da minha aquisição da fábrica.

Goodale pigarreou para começar o relato:

– A fábrica tornou-se propriedade de Vossa Excelência como pagamento de uma dívida de jogo no valor de sete mil libras. O cavalheiro e eu realizamos demoradas negociações, pois segundo ele a propriedade valia bem mais do que isso, na expectativa, acho eu, de que a diferença lhe fosse paga. Sua Excelência não esteve neste processo, desnecessário dizer.

– Razão pela qual não me lembro de nada sobre isso – esclareceu Castleford.

– Sua Excelência apenas assinou os documento após eu os elaborar, juntamente com outros documentos que lhe levei naquele dia.

– Foi uma sexta-feira – acrescentou expressivamente Castleford.

– Aqui o Goodale tem fama de faltar às terças.

Goodale corou.

– As minhas renovadas desculpas, Vossa Excelência, mas devo me encontrar com advogados e eles são igualmente zelosos do seu tempo.

– Limito-me a deixar claro que se tivesse trazido os documentos em uma terça eu me lembraria de tê-los assinado. – Castleford marcou a posição dele por causa de Sebastian.

– Quando foi esta aquisição, Mr. Goodale? – perguntou Sebastian.

– Naquele mesmo ano. Em maio de 1816.

Sendo assim, depois da guerra.

– Goodale, pode ir embora – ordenou o duque.

O advogado partiu imediatamente.

– As minhas desculpas por ter insinuado mais envolvimento da sua parte do que aquele que poderia ter existido – disse Sebastian.

– Desculpas aceitas. Não o desafio nem mato.

– Demorou para encontrar a informação.

– De jeito nenhum. Deu na minha mão na noite da sua última visita. Só a dei hoje porque as minhas outras terças-feiras estavam tomadas com outros assuntos.

– Claro. Afinal todas as terças-feiras têm um número de horas limitado. Vai me dizer quem pagou sua dívida com a fábrica? É importante.

Castleford olhou para o decantador de brandy, mas claramente pensou melhor no assunto.

– Por sinal, esse era o assunto que ocupou as outras terças. Não gostei que alguém tenha usado o meu nome para encobrir os seus crimes desta forma. Sem dúvida que essa pessoa presumiu que quando as provas apontassem para mim seria o fim de qualquer investigação. Essas considerações especiais são o tipo de injustiça que torna tão agradável ser duque, mas é deselegante nos aproveitarmos dessa vantagem se não o formos. – Abafou um bocejo. – Sente-se por favor. Você me lembra o meu antigo tutor, aí plantado.

Sebastian sentou-se.

– O nome dele?

– Não é nada querido no gabinete das munições. Sabia disso? Usam linguagem forte quando falam de você. O Oakes me deixou com as orelhas fervendo e o Mulgrava não confia nada em você.

– Passou as últimas terças-feiras falando com os funcionários superiores do Gabinete do Material de Guerra?

– Uma coisa não fazia sentido e me pareceu que eles podiam esclarecê-la. Agrada-me que as coisas façam sentido à terça-feira.

– É o que faz a sobriedade.

– Daí o tédio. – Castleford inclinou-se para a frente com os cotovelos apoiados nos joelhos e olhou muito sobriamente para Sebastian. – Aqui está. Ao que parece, e eu não me lembro de nada, recebi a fábrica como pagamento de uma dívida de jogo por parte de Percival Kennington.

– O Kennington?

– Estranho, não é? Quem adivinharia que ele se dedicara ao negócio? E segundo Goodale, não foi sozinho. O Symes-Wilvert, o amigo, também estava metido nisso. Dois insuspeitos filhos de barões, dando o corpo ao manifesto juntos, literalmente, para produzir pólvora para a grande causa.

Sebastian estava tão surpreso quanto Castleford desejara. Nunca pensara que Pettigrew e Eversham fossem dois homens que eles conhecessem. Maldição! O que eles teriam na cabeça? Fossem quais fossem os ganhos financeiros, não valiam o risco. E agora, viver sabendo que causaram a morte de homens inocentes... Céus! Ele quisera dar a Morgan o presente da justiça, mas agora os seus amigos mais chegados...

– Você se dispôs a ser um anjo vingador, mas, aparentemente, encontra-se no caminho do demônio, Summerhays.

Castleford o observava de perto. Não com alegria. Os seus olhos eram os de um amigo de há anos que acabava de ler seu pensamento, e que mandara sair Goodale por uma razão.

– Qual foi a razão real que o levou a falar com os funcionários do Gabinete do Material de Guerra?

– Para exprimir o meu profundo desagrado. Todo mundo sabe que aqueles dois são uns idiotas. Por que comprar-lhes pólvora? Raios, não lhes comprava uma palha se a vendessem. Não me interessa que eles tentassem ser espertos e dessem o nome de tias-avós ou de cavalos prediletos à fábrica. Os homens do gabinete tinham de saber de quem era a fábrica. No entanto, ainda assim contrataram o serviço. – Reclinou-se na cadeira. – É de uma pessoa se perguntar por quê.

Castleford não disse mais. Aquela última frase revelava a sua opinião. A sua expressão mostrava a preocupação de um velho amigo.

Ambos sabiam que não havia como Kennington e Symes-Wilvert obterem um contrato com o Gabinete do Material de Guerra sozinhos.

Alguém intercedera por eles.

Uma mulher sabe quando a atenção do homem não está nela. Especialmente quando se encontram na cama.

Ainda que as carícias de Sebastian fossem as mesmas e os seus beijos tão apaixonados como sempre, uma parte essencial do seu marido não lhe prestava atenção, reparou Audrianna.

Consequentemente, sentiu o próprio desejo refluir. Pôs a mão em cima da dele e segurou-a contra o peito.

Ela nunca o detivera antes, mas não conseguia fingir que não existia mais presença nenhuma no quarto além da excitação do prazer mútuo.

Ele não pareceu se importar. Deixou-se ficar no abraço durante um bom tempo, com a mão por baixo da dela. Depois se sentou e pegou o robe.

– Desculpa.

Partiu. Ela ouviu sons no quarto, na porta ao lado. Levantou-se e foi espiar. Ele se vestira e calçava as botas.

Reparou nela.

– Preciso pegar um ar para clarear as ideias.

Parecia triste e resignado. Ela nunca o vira assim.

– O que é que o preocupa tanto?

Ele forçou-se a sorrir, foi até ela e beijou a sua testa.

– Vai dormir.

Era coisa que não aconteceria agora. Ela nem sequer tentou. Voltou para o quarto e instalou-se atrás das cortinas para olhar para lá fora. Não demorou até verve-lo no jardim, de pé, à luz do luar. Talvez fosse da noite, ou do estado de espírito que sentira nele, mas parecia tragicamente solitário ali embaixo.

Enrolou-se no xale e calçou os chinelos. Pegou uma vela para ter luz, desceu as escadas e saiu para o jardim.

No início ele nem sequer reparou nela, de tão absorto que estava nos seus pensamentos. Ela duvidava de que ele soubesse que não saía do mesmo lugar há uns bons quinze minutos.

Finalmente, a viu. Esticou um braço e ela se aproximou dele. Ele a envolveu nos braços e o seu estado de espírito também a contagiou. Tornou-se evidente o seu pesar, e o coração dela também se entristeceu.

– O que aconteceu? – insistiu ela.

Ele beijou sua nuca.

– Estou perdido num dilema. Pela primeira vez não sei o que fazer. Nunca esperei... Fiz uma interpretação tão errada de uma coisa que devia ser fuzilado por estupidez.

– Não sobre mim, espero.

– Não sobre você. Você é só bondade e honestidade. É sobre o meu irmão. Acho... Não queria suspeitar disso, mas... Acho que ele sempre soube a verdade acerca daquela pólvora. Receio que... acredito que o interesse que sempre mostrou pelo assunto não era de um homem à procura de justiça, mas de um homem à procura de confirmação de que o seu próprio papel não seria descoberto.

Ficou mais tenso ao falar, mas se acalmou depois de terminar, o que teve mais importância para ela do que o choque que sentiu pelo que ouviu.

– Deve ter boas razões para pensar assim, ou não pensaria. No entanto, é quase inconcebível.

Ele a incitou a seguirem um caminho por entre as plantas. A umidade da noite avivava os odores da primavera, que zombavam da sua disposição invernal.

– A pólvora era produzida numa fábrica cujos donos eram Kennington e Symes-Wilvert, os dois amigos que o visitam todas as semanas. Conhecem-se todos desde rapazes. Deus me valha, agora até questiono a dedicação que eles têm a você.

– Se os amigos fizeram isso, ele pode não estar a par.

– Pode não ter certeza, mas não o desconhece. Há tantas coisas que recordo agora. As perguntas dele, até a preocupação dele com você... Acho que ele sabe, e isso não o deixa sossegado.

– Acha que ele investiu? Que lhes deu dinheiro? Certamente que não planejou o contrabando e o resto. Recuso-me a acreditar nisso.

– Acho que ele usou a influência dele para garantir que a pólvora da fábrica fosse comprada. O resto, espero, não foi obra dele. – Caminhavam lentamente. – Mas acho que ele sabe. Acho que há muito tempo que ele sabe.

Ela compreendeu o caos dentro dele, porque agora também o sentia. E talvez compreendesse também as próprias oscilações do marquês e a melancolia que se abatia sobre ele.

– O que vai fazer?

– Não sei. Talvez não faça nada. Ou tente obter certeza. Abordar o assunto com ele... não posso fazer isso, a não ser que esteja completamente certo. O que quero é esquecer o assunto. Sinto-me tentado, mas...

Ela não disse nada. Não lhe cabia encaminhá-lo para nenhuma decisão.

– Mas não estaria correto, nem seria justo – prosseguiu ele, mas sem grande convicção. – Não seria justo para os homens nem para o artilheiro mutilado que finalmente apresentou a chave da verdade. Nem para você.

Qual seria o peso daquela última parte para ele? O nome do pai dela arcava presentemente com a inteira responsabilidade pelo escândalo, e se havia outros, não era justo.

Ela não queria, porém, imaginá-lo confrontando o irmão com as suas suspeitas, ou mesmo com a verdade, pois destruiria algo entre os dois que nunca seria substituído. Receava que também destruísse algo dentro de cada um deles.

– Com toda a probabilidade, procurou apenas ajudar os amigos – disse ela. – Não há nenhum crime nisso.

– É verdade que não há nenhum crime nisso se ele não tiver feito mais nada. No entanto, se eu trouxer tudo à tona, ele será envolvido, independentemente do papel que tiver tido. Acho que ele sabe disso. E receia que aconteça.

Ele ainda estava atormentado, mas já não parecia perdido. Ela parou e o abraçou.

– Você parece você mesmo, agora. Ainda perturbado, mas não tão sombrio. Parece que o ar fresco o ajudou mesmo.

– Não foi o ar, mas o seu bom coração e a sua solidariedade. – Olhou ao redor. – Sabe onde estamos?

Ela olhou por cima do ombro. Tinham ido parar no lugar resguardado onde ele a levara na primeira vez que ela visitara a casa.

– Acho que tenho coisas por terminar com você aqui – disse ele. – Acho que vou tratar disso e escapar do inferno por um tempo.

– Tem certeza de que consegue se abstrair?

– Desta vez terá a minha atenção completa. – Conduziu-a para o banco.

– Talvez deva me certificar disso. – Ela pôs a mão na prova de que já tinha a maior parte da sua atenção. – O que seria preciso para se abstrair completamente esta noite? Para eu transformar o inferno em céu, como você fez por mim quando eu estava perdida?

– Se se sentar naquele banco e levantar essa camisa, eu levo nós dois ao céu num instante, prometo.

– Isso pode esperar. Estou gostando disto. Quero comandar, não quero só seguir. Tenho permissão para cuidar de você às vezes, não tenho? Quando está triste, ou com dilemas.

Ela se sentou no banco para lhe desapertar as calças. Libertou-o e tomou o seu comprimento nas mãos e acariciou. Levou o seu tempo, para ele ter o maior prazer e se esquecer do mundo agreste.

Ele a deixou tomar conta dele. Não tentou impedi-la, nem sequer devolver suas carícias. Ficou ali em pé enquanto as mãos dela deslizavam e acariciavam, os seus olhos intensos observando-a.

Aquilo também a excitou, apesar de estar só dando. Beijou timidamente seu membro para mostrar a ele. O corpo dele enrijeceu-se todo em resposta. Beijou a ponta de modo provocador. Ele deixou sair um suspiro grave e abafado e tocou levemente na sua nuca.

Ela percebeu, então. Soube. Lambeu a ponta com a língua. Envolveu-a corajosamente com os lábios.

Os vestígios da preocupação dele desapareceram. Entregou-se a ela. Atirou a cabeça para trás e permitiu que ela o levasse ao êxtase.


Capítulo 25


O som da confusão subiu pela escada. Ouviu-se a voz de Lady Wittonbury, sobrepondo-se a todo o resto. A seguir uma voz mais alta, de Sebastian, ordenando à marquesa que fizesse silêncio.

Audrianna desceu para ver que desastre acontecera. Deparou com Sebastian a executar táticas que impressionariam um marechal.

Wittonbury estava sentado numa cadeira de madeira de braços no alto das escadas, cercado por quatro criados. Havia mais dois no meio da escada, de frente para ele.

Lady Wittonbury foi logo até ela.

– Ele pediu para o levarem para o jardim. Não sei se fico entusiasmada por ele desejar a mudança ou preocupada por poder adoecer.

– Não acho que o ar fresco lhe faça mal. Devemos ficar entusiasmadas, acho eu.

– Sim, claro. Ainda assim... – Observou os preparativos com ar preocupado.

Os criados mexiam-se como uma unidade. Agarraram a cadeira em vários lugares determinados por Sebastian e, ao seu sinal, pegaram nela e começaram a transportá-la para baixo.

– Tem certeza absoluta de que as criadas foram embora? – quis saber Wittonbury. – Pareço um idiota e não quero que essas moças deem com a língua nos dentes por aí com as criadas de outras casas.

– Trataram todas de ficar a milhas de distância – jurou Sebastian. – Colocamos você lá fora num instante, e o trazemos para dentro ainda mais rápido, quando quiser voltar.

Audrianna admirou o cuidado que Sebastian mostrava com a expedição. Mostrava-se, como sempre, muito cioso da saúde e do orgulho do irmão.

Eles não tinham voltado a falar do dilema a respeito da pólvora. Ela sabia, contudo, que Sebastian não abordara o assunto com Morgan. Ainda sentia preocupação nele, e no dia anterior, enquanto passavam alguns minutos com o marquês, vira Sebastian olhando para o irmão de uma forma pensativa, que refletia o quanto a decisão o angustiava.

A cadeira chegou a um patamar e fez uma curva. Agora Wittonbury via a mãe e a ela.

– Venham, então – chamou ele. – Não pretendo contemplar a natureza sozinho.

Lady Wittonbury voltou expeditamente ao cimo da escada. O marquês reparou.

– Você também, irmã. Vamos fazer uma festa ao ar livre.

Seguiram a cadeira pelo terraço até um gramado ladeado por dois caminhos de pedras. Os criados pousaram-na. O Dr. Fenwood pôs uma manta à volta do marquês e afastou-se, posicionando-se a uns bons cinquenta metros.

Criados e jardineiros apressaram-se a transportar algumas cadeiras de ferro. Uma pequena mesa veio da casa. Sebastian andava com dois livros e pousou-os no colo.

Olhou para o relógio de bolso.

– Apesar do aparato, mal levou quinze minutos. No futuro consegue fazer mais rápido e eles conseguem colocá-lo no quarto em menos de dez hoje mesmo. Só tem de dizer a Fenwood que os chame.

Wittonbury assentiu com a cabeça. A mãe sentou a sua pessoa de ferro numa cadeira de ferro, com um radiante sorriso de aprovação. Audrianna caminhou lentamente para a casa com o marido.

– Foi ideia do marquês? – indagou ela.

– Ele estava à janela admirando o jardim. Eu disse que devia descer e não o ouvi objetar.

– Parece bastante satisfeito.

– Sabe que a antiga vida está ao alcance dele. Consegue sentir. Recusa-se a ter esperança, sem que isso consiga impedi-lo de começar a tê-la. – Entreouviu conversa calma entre mãe e filho.

– Seria um inferno se o que o aguardasse quando finalmente pudesse sair da casa fosse o desprezo.

– Decidiu o que fazer?

Ele balançou a cabeça.

– A coragem falha sempre que tento falar com ele.

Saiu para tratar dos assuntos dele. O marquês a chamou para uma das cadeiras. Lady Wittonbury a incitou a se sentir uma intrusa, com o sorriso forçado de clemência que mostrou.

Audrianna sentou-se como observadora, não como participante. Seguiu as expressões e a conversa animada do marquês, deliciado por se encontrar no exterior. Talvez até excitado. No entanto, ela sentia nele, como sempre sentira, uma melancolia profunda que era demasiado rápida aceitando o destino.

– Foi bom ter podido me acompanhar durante este tempo – disse ele à mãe meia hora depois. – Sei que tem visitas a fazer, e deve fazê-las. A Audrianna me faz companhia mais um pouquinho antes de eu voltar a entrar.

Outra mulher poderia não ter sido sensível ao pedido para se retirar. Lady Wittonbury não. Tinha o poder de emanar uma graça acutilante e despediu-se com uma irritação invisível mas incisiva.

Wittonbury inclinou a cabeça para o rosto receber o sol por inteiro. Fechou os olhos.

– O calor é apaziguador. Me deixa deliciosamente preguiçoso.

– Descanse se quiser. Eu fico aqui com você.

Pareceu que ele o fazia, mas, alguns minutos depois, falou:

– Está feliz, Audrianna? Fez amigas?

– Estou feliz. Tenho algumas amigas novas.

– Fico contente por saber que está feliz. O meu irmão tem andado preocupado com alguma coisa ultimamente. Fico satisfeito por não ter a ver com você.

– Na verdade, acho que tem. Ele ficou sabendo mais algumas coisas acerca daquela pólvora. Descobrimos que o meu pai provavelmente foi cúmplice, mas que houve outros envolvidos também, de maneiras piores.

Ele não se mexeu. Os olhos continuaram fechados. Ela o sentiu mais alerta, porém.

– É interessante. Que mais descobriu ele?

Ela lhe contou do jovem artilheiro e das marcas nos barris e da descoberta do nome da empresa. Descreveu o esquema para tirar pólvora dos barris para vendê-la a um contrabandista, e que um homem no arsenal e outro em Londres tinham sido pagos para se certificarem de que os testes cobriam a pólvora ruim ou que relatórios acerca de pólvora ruim fossem desviados.

Não foi mais longe. Não disse que Sebastian sabia quem tinham sido os donos da fábrica durante a guerra. Contudo, o que revelou era suficiente para ele adivinhar o resto, se já soubesse a verdade.

Ele abriu os olhos e olhou para o jardim. Com alguma tristeza, mas também um ar pensativo.

Wittonbury inspirou profundamente.

– Então em breve saberá tudo, se já não o sabe. – Protegeu os olhos com uma mão. – Graças a Deus.

A compostura dele vacilou e protegeu ainda mais o rosto. Recompôs-se e olhou para ela. Parecia verdadeiramente aliviado. E assustado e desesperado.

O coração dela se compadeceu dele.

– Ele soube recentemente acerca dos seus dois amigos. Agora não tem certeza se quer saber a história toda.

– Não, claro que não. Mas decidirá que deve. É a escolha honrada. – Wittonbury desceu o olhar para o colo e as pernas. – Acreditei que esse fosse o meu castigo. Quando soube o que o Kenny e o Symes tinham feito, e como eu os tinha ajudado... Um homem não manda os amigos mais antigos para a prisão, ou pior. Por isso fui à luta, para ajustar contas. Quando o destino decidiu que se impunha um preço mais alto, aceitei que a minha perda era justa.

– É por essa razão que tem resistido ao tratamento? Porque pensou que o destino lhe exigiria um preço ainda maior?

– Não, minha querida. Eu merecia este castigo, por isso desde logo não acreditei que pudesse existir tratamento.

Ela estendeu o braço por cima da mesa. Ele pegou na mão dela.

– Os seus amigos sabem que sabe?

Ele abanou a cabeça.

– Acharam que eram muito espertos, mas quando se conhece um homem a maior parte da vida, consegue-se ver quando se passa alguma coisa. Foi assim que aconteceu com eles. Poucos comentários entre os dois, e defasados. Uma carruagem nova que Kennington dificilmente poderia pagar. Jogo desenfreado, quando antes não havia nenhum. Suspeitei que estivessem em algum esquema com a fábrica. Havia um terceiro sócio, um homem que eu não conhecia. Aliciara-os com promessas de grandes riquezas. Nenhum dos dois é rico, por isso se encantaram com o investimento e insistiam que ganhariam uma quantia exorbitante.

– Talvez ganhassem. O fato de eles terem sorte não era razão para o marquês saber o que andavam fazendo.

– E foi isso que disse a mim mesmo. Mas eu sabia. Na alegria de terem aquele dinheiro todo para gastar havia também medo e culpa. Eu sentia. Estava preocupado, porque intercedera a favor deles. Foi o meu nome que obteve o contrato, não o deles. E depois, os primeiros relatos referiram-se àquele massacre... Muito antes de a guerra terminar, muito antes da primeira palavra nos jornais, o exército soube que alguma coisa tinha corrido muito mal naquele monte com aqueles homens. E eu fiquei sabendo, como muitos homens influentes ficam muitas vezes sabendo.

Desviou o olhar e balançou a cabeça. Ela sentiu a mão dele agarrar a sua com mais força. Quase lhe disse para não falar naquilo, de tão óbvia que era a sua angústia. Tendo começado, contudo, parecia determinado a terminar.

– Contei ao Kenny e ao Symes que tinha havido um revés horrível com alguma pólvora e perguntei-lhes como podia acontecer, com todas as verificações de qualidade. Apelei ao conhecimento deles. Afinal, tinham uma fábrica que produzia aquilo. Não era possível, juraram. E contudo acontecera. – Ele olhou para ela, com olhos tão intensos como os do irmão conseguiam ser. – E eu soube. Simplesmente soube que era a pólvora deles, da fábrica deles. Estava no rosto e nas vozes deles, quando fingiam ignorância. Nem um nem outro são dissimulados por natureza, ou bons em mentir. Eu convencera o exército a comprar munições a dois idiotas que tinham feito alguma coisa que matara homens bons. E soube também que nunca me perdoaria.

E assim aceitara o cárcere da invalidez quando ele chegou como uma forma de justiça. Ela o imaginou passando os últimos anos à espera de que a verdade viesse ao de cima, esperando que o irmão descobrisse tudo mas temendo ao mesmo tempo esse dia.

O que tinha dito Sebastian? Faço por ele. E fez, mas de formas que nunca adivinharia.

– Diga ao Sebastian o que eu acabo de dizer, quando souber que ele decidiu avançar – declarou Morgan. – Não quero que ele me faça perguntas sobre o assunto. Merece melhor do que ter de interrogar o próprio irmão sobre uma coisa destas. Nem eu suportaria encará-lo nessa situação. Mais vale acabar isso em covardia moral, como comecei, imagino.

– Não foi covarde. O crime não foi seu. Foi enganado por dois bons amigos.

– Devia ter adivinhado que estavam tramando alguma. O Kenny e o Symes investindo numa fábrica? O meu irmão teria sido cético, como seria de esperar, e como eu deveria ter sido. Eu devia ter dito que queria conhecer o homem que lhes propôs o negócio. Devia ter dito ao Sebastian onde procurar quando ele iniciou a investigação, em vez de temer que o pouco que me restava da minha dignidade me fosse levado pela desgraça.

– E, contudo, não o deteve. Incentivou-o. De outra forma, ele nunca teria persistido.

– Imagino que os assassinos tenham igualmente esperança de serem apanhados, para o medo de a captura terminar. Tais são as contradições da alma. Passei a conhecer as minhas bem demais. – Levantou a mão dela e a beijou. – Lamento que o nome do seu pai tenha sido arrastado para isso, Audrianna. Quando foi, perguntei-lhes se sabiam se era o tipo de homem que podia ser comprado. Ambos disseram que não, e tenho certeza de que falaram a verdade.

– O meu pai dava a aprovação final antes da pólvora ser distribuída. Se chegaram relatórios de pólvora ruim do arsenal, ele teria visto. Gostaria de acreditar que pode se basear na opinião dos seus amigos acerca da honra dele, mas as suspeitas recaíram sobre o meu pai por alguma razão.

Ele abanou ligeiramente a cabeça.

– Fosse qual fosse o homem deles no Gabinete do Material de Guerra, não era o seu pai. Foi talvez essa a pior parte, ver outro homem bom sofrendo e morrer por causa da minha fraqueza. Nunca pensei que ele fosse se matar. O Kenny e o Symes provavelmente também não. Foi assim que três idiotas covardes magoaram a sua família.

Ela não ousou acreditar nele. Ele mentia para que resultasse dali alguma coisa de bom para alguém; era tudo. Ele não tinha nada a perder, agora. No entanto, o coração dela se encheu de esperança, e afeto por ele ter contado, mesmo se não fosse verdade.

Ele largou sua mão. Procurou o lenço dele e limpou o rosto.

– Os católicos dizem que a confissão é boa para a alma. Talvez tenham razão.

Chamou o Dr. Fenwood e lhe disse para chamar os criados.

* * *

Naquela noite ela deu a Sebastian todo o amor que conseguiu a par do prazer. Deixou que o seu carinho queimasse em cada beijo que deu ao seu corpo e que o cheiro e o toque dele lhe marcassem a alma. Tomou-o finalmente em si, absorvendo-o profundamente, agarrando-se a ele intimamente, e moveu-se ao ritmo cru que permitiria aos dois a evasão última.

Ela se desfez nele, o coração rebentando com as emoções que trouxera para a cama. Veio uma memória, nada remota, de querer fazê-lo admitir que se enganava acerca do pai dela. De culpá-lo pela sua dor. Depois outra memória, da sua doce atenção quando ela percebeu que ele não se enganara completamente.

Deixou-se ficar no abraço que a segurava contra o corpo dele. Virou o rosto, aproximando a boca da sua orelha.

– Tenho pensado no seu dilema. Acho que é melhor deixar morrer a investigação.

O abraço dele se estreitou. Ele rolou, para ela ficar de costas e conseguir ver seu rosto.

– Deseja que eu desista, agora que toca na minha família?

Ela desejou que ele não o visse daquela forma, apesar de ser exatamente aquilo que ela dissera.

– Seja o que for que o seu irmão tenha feito, já pagou, não acha?

– São duas coisas distintas. A condição dele é trágica e ele sofreu, é verdade. Mas não foi como pagamento pela sua negligência.

Ele pensa que sim. O marquês dera-lhe permissão para transmitir a confissão dele, mas ela preferia não fazer isso. Se Sebastian estivesse seguro do envolvimento do irmão, poderia ser impossível para ele deixar tudo morrer.

– Se lhe perguntar sobre o assunto, se o acusar, criará um abismo, por mais honesto que seja e diga ele o que disser.

– Droga! Acha que eu não sei disso? – Ele voltou a rolar, sem ela. Para longe dela. Ficou de costas, com o perfil delineado pela luz do candeeiro da mesa do outro lado.

– Não seria melhor, então, simplesmente não saber?

– Achei que queria saber tudo. Saber a verdade. Não há como redimir o seu pai, se ele era inocente, se eu encerrar isso agora.

– O Frans disse...

– O Frans encontrou um nome num jornal – interrompeu ele. – Agora que conheço o esquema, o planeamento e os perigos, não estou convencido de que o seu pai tenha participado. Muito pelo contrário.

Então aquilo também lhe ocupava o espírito, enquanto pesava e contrabalançava o dever e o irmão que ele amava. E, contudo, a opinião dele custava-lhe apenas porque a colocava no centro da dor que poderia se abater sobre a família dele.

– Eles recorreriam a alguém que conheciam, da confiança deles, não abordariam um estranho. Seria arriscado demais – declarou ele. – Podemos, realmente, ter atirado um homem inocente para a sepultura com a nossa perseguição, como sempre pensou. Não pode haver compensação para isso, certamente que não para ele, nem mesmo para você, mas pelo menos o nome dele pode ser limpo. O constrangimento do meu irmão será um preço pequeno a pagar por ser feita justiça.

A ferida ainda magoava ao ser remexida, ainda que já não sangrasse. Uma boa dose de culpa ensombrava-a ao decidir o que fazer, especialmente desde que o marquês dissera que o pai dela seria de fato redimido. Mas a sua velha demanda parecia muito pequena quando via a angústia que a decisão provocava em Sebastian.

– Recordarei do meu pai como ele era. Não preciso que venha outra vítima ocupar o lugar dele. Tome a decisão que tomar, por favor, não faça por minha causa.

Ele virou a cabeça, para vê-la de frente. Ficou olhando para ela durante muito tempo. Começou a se instalar entre eles o tipo de intimidade que existe normalmente após o êxtase da paixão que desnuda a alma.

A mão dele procurou a dela entre os dois corpos.

– Às vezes você me faz sentir pequeno. Oferece-se de formas que...

Colocou-se em cima dela e ficaram pele com pele desde o peito até as pernas. Ele olhava para ela tão pensativo, com tanta intensidade, que ela receou o que ele pudesse perceber.

– Por que me darias isso quando a verdade era tão importante para você?

A garganta dela queimava. O seu coração encheu-se da mais bela das dores.

– Porque você é mais importante agora.

– É um presente de amor, então? – perguntou ele calmamente. Foi um convite inesperado, e mais difícil de aceitar do que ela imaginava. – Sim. É um presente de amor, Sebastian.

Ainda pensativo. Ainda intenso. Mas com aquele sorriso, agora, que a entorpecia.

– Então aceito com amor, Audrianna. Mais amor do que imagina. Tanto que me deixa sem palavras.

A dor dela transformou-se em alegria ao ouvir as palavras dele. Uma alegria beatífica, radiante, como ela jamais experimentara. Derramou-se através dela e de dentro dela e a fez rir de prazer. Ele também riu, pela surpresa dela e a sua própria surpresa, e trocaram o beijo mais doce.

Ele se mexeu ligeiramente. Ela abriu as pernas para aceitá-lo. Ele entrou nela para os seus corpos imitarem os seus corações.

Ele voltou a ficar pensativo.

– Estou me decidindo se a sensação é diferente, agora que sei que me ama. Acho que talvez seja. Interessante.

– Como? Como é que é diferente?

Ele ponderou.

– Um desejo insustentável, é certo. Só que há também um... contentamento perfeito. – Ele se mexeu um pouco e ela riu. – E também uma felicidade inesperada dentro do desejo. E também... – Fechou os olhos, saboreando e nomeando. – E também a satisfação vaidosa de estar completamente seguro de possuí-la absolutamente e por inteiro.

– A última parte não parece muito romântica.

Ele se curvou para chegar com a boca ao peito dela.

– Posso estar perdido de amor, mas continuo a ser um homem, Audrianna.

A língua dele contornou seus mamilos, num caminho torturante. Não demorou muito até ela ficar à beira do delírio. Deixou o seu amor jorrar em gritos pelo prazer. Não refreou nada, para ele saber e ficar completamente seguro de tê-la, como tanto ansiava.

Rapidamente, só senti-lo dentro de si importava. A satisfação que ali encontrava o seu centro, nas sensações maravilhosas do movimento dele. Estocadas longas e profundas a preenchiam, completavam-na, e faziam o prazer se intensificar lentamente, até pequeníssimos e indizíveis frêmitos pulsarem para o resto do seu corpo.

Ela não se rendeu ao abandono. Permaneceu atenta o tempo todo, sentindo-o, amando-o. Até no fim, quando aquelas correntes se juntaram e apertaram e gritaram, permaneceu atenta.

Ele estava igualmente com ela, no reconhecimento claro de que tinha de ser daquela maneira, que não podiam nunca esquecer aquela noite de amor, nenhum momento. Ainda maravilhados com a beleza e pureza do seu amor inesperado, olharam-se nos olhos, no auge perfeito da sua paixão, e na felicidade do clímax, no qual se uniram completamente.

– Eu não lhe disse? Ele não me disse nada. Está aqui no café da manhã como se ignorasse tudo – inquiriu o marquês vários dias depois. Chamara-a mesmo só com aquele propósito.

– Não lhe disse – revelou ela, sincera. – Acho que ele decidiu tratar o assunto de outra forma.

O marquês fez careta. Ela se perguntou se as complexidades da sua alma fariam com que lamentasse ver-se só com a sua culpa privada. Talvez desejasse verdadeiramente a desgraça pública.

– Seja o que for que ele tenha decidido, não aceitará o seu sacrifício. – Apontou para a cadeira. – Ele vai brigar com você, porque acredita que conseguirá voltar a andar um dia.

– Se algum dia o fizer, irá diminuí-lo.

– Nenhum outro homem pode diminuí-lo. Ele não quer a sua vida, seja como presente ou devido à sua invalidez. Devolverá alegremente o que é seu assim que estiver pronto para voltar a assumi-lo.

Não pareceu convencido.

– Ele lhe disse isso?

– Não precisou. Eu sei.

Ele abriu um sorriso cético.

– Eu sei – repetiu ela com firmeza, e algum aborrecimento.

Foi apanhado de surpresa. Deu o assunto por terminado pegando no relógio de bolso.

– O Kennington e o Symes-Wilvert chegarão em breve. Chame o Dr. Fenwood para eu me sentar à janela durante algum tempo antes de eles chegarem. Não vá embora. Volte quando ele tiver terminado.

Audrianna foi à antessala e disse ao Dr. Fenwood para entrar. Quando ele regressou, ela voltou para junto do marquês. Estava sentado perto da janela aberta.

– O mundo é tão belo – murmurou ele. Ela pôs-se ao seu lado e olhou pela janela, para o jardim com as suas erupções de cor entre as plantas e as árvores verdes e as pedras cinzentas dos caminhos.

Enquanto as admiravam, uma cabeça ficou à vista. Três homens entraram no jardim e enveredaram por um dos caminhos. Pararam e puseram-se a conversar.

Os olhos do marquês se estreitaram.

– O que ele está fazendo? Por que chamaria o Kenny e o Symes para falar com ele?

Ela não sabia. Mesmo não conseguindo ouvi-los, Sebastian era o que falava mais. Os outros dois homens só escutavam. Com ar sério.

– Parece que estava enganada – comentou o marquês. – Afinal o meu irmão sempre exigirá que a justiça cobre o que lhe é devido.

* * *

Kennington e Symes-Wilvert não tinham nada a dizer. Nem sequer tentaram se defender ou se desculpar. Limitaram-se a pregar os olhos no chão, com ar de desalento.

– Não imaginamos... – começou Kennington. O que quer que fosse dizer deve ter parecido pobre ao seu próprio espírito, por isso parou.

– Tenho certeza de que nunca imaginaram que podia haver soldados no campo de batalha a quem só restava pólvora adulterada – disse Sebastian.

– Exatamente – apressou-se Kennington. – Os barris misturavam-se todos no transporte, nos disseram. Haveria sempre pólvora boa quando se encontrasse um barril de pólvora má.

– Quem lhes disse isso? Não acredito que o esquema fosse obra de vocês. – Não era no caráter deles em que ele se baseava. Sebastian só não acreditava nem por um minuto que aqueles dois tivessem esperteza suficiente para engendrar e executar um esquema tão elaborado.

Symes-Wilvert olhou para Kennington com algum medo.

Kennington mordeu o lábio inferior.

– Um tipo abordou a ideia de uma fábrica de pólvora. Ele tinha tudo planejado. Eu tinha aquele pedaço de terra perto do rio, no Kent, e seria perfeito, disse ele. Aqui o Symes, pela parte dele, investiu algum dinheiro. Pediu emprestado ao irmão.

– No início pensamos que ia ser só uma fábrica normal – confessou Symes, desesperadamente.

– Só que não foi – rebateu Sebastian.

Ficaram ambos olhando para as botas, com ar deplorável.

– Quem era esse homem? Esse terceiro sócio? – insistiu.

Kennington limpou a garganta.

– O nome era Patterson. Tinha trabalhado na fábrica de Waltham Abbey e sabia como se fazia. Foi o contributo dele.

– Não o vemos há mais de um ano – murmurou Symes. – Ouvimos dizer que ele pegou nos lucros e rumou para a América.

Eis a história. Dois tolos ludibriados por alguém muito mais esperto do que eles. Aquele Patterson escolhera bem os parceiros. Talvez por o melhor amigo deles ser um marquês com ligações com o Departamento de Guerra e o Gabinete dos Materiais de Guerra.

– Apareceu um anúncio há algum tempo, de um encontro na livraria Templo das Musas. A minha mulher pensou que fosse para ela. Acho agora que foi uma tentativa dos dois localizarem o homem que disparou em mim em Brighton.

Kennington ficou muito vermelho.

– Fiquei chocado ao vê-la lá. Achei que o anúncio estava muito bem escrito e só ele conseguiria...

– Só souberam daquele episódio em Brighton, e a razão da minha presença lá, por causa do meu irmão. Ele o descreveu e tentaram encontrar o Dominó antes de mim, para comprar o silêncio dele ou o que ele pudesse saber.

– O Wittonbury pode ter mencionado alguma coisa – disse Symes-Wilvert. – Mas logo que o escândalo rebentou e vimos que era o senhor e a filha do Kelmsleigh que estavam envolvidos, pensamos que seria sensato saber o que vocês sabiam. – Pigarreou. – E foi.

– Usaram o meu irmão da forma mais ignóbil. Quero acreditar que as visitas de vocês tenham sido por amizade e não apenas para se manterem informados sobre o que ele ficava ou não a saber acerca do crime, ou por culpa de terem traído a amizade dele de forma tão ignóbil.

– Existiu culpa o bastante, mas não ouvirei insinuações de que a nossa amizade não é honesta – redarguiu Symes-Wilvert com algum ressentimento.

Sebastian contemplou os dois homens. Tinham confessado com bastante rapidez. Provavelmente aguardavam há anos a oportunidade de fazer aquilo. E o instigador, o tal Patterson, provavelmente vivia luxuosamente na América.

– Acho que não servirá o país, nem o exército, tornarmos isto... – Foi interrompido por alguma agitação. Muito pouca, mas impossível de ignorar.

Quatro criados chegavam ao terraço, carregando uma cadeira na qual Morgan estava sentado, como um rei no seu trono real. O Dr. Fenwood e Audrianna caminhavam atrás deles.

Kennington e Symes-Wilvert foram interrompidos pelo espetáculo. Morgan gesticulou na direção do jardim e disse algo aos criados. A cadeira desceu os degraus do terraço. A comitiva percorreu o caminho de pedra onde Sebastian estava. Os quatro criados pousaram a cadeira.

Kennington sorriu de satisfação por ver o amigo sair da sua prisão.

Morgan não lhe devolveu o sorriso.

– O meu irmão está contando a vocês o que descobriu sobre a sua pólvora, acho eu. Decidi que é tempo de parar de fingir que não aconteceu, e que eu não sabia nada a respeito disso.

Ninguém se mexeu. Kennington ficou com uma expressão aflita.

– Você estava a par disso? Oh, meu Deus!

– Sim, estúpido. Estava a par. E me arrependi por deixar a amizade me impelir a fazer uma coisa que o meu bom senso me dizia que não devia fazer, e depois a me impelir ainda mais para me manter em silêncio quando devia ter falado. – Enxotou os criados. – Audrianna, por favor, chegue aqui. Peço a sua ajuda, se me permitir.

Ela olhou para Sebastian com ar inquiridor, mas aproximou-se da cadeira.

– Mais perto, querida irmã.

Ela avançou mais.

Morgan olhou para os amigos. Depois, a sua concentração voltou-se para dentro. Mexeu-se na cadeira, pôs as mãos nos seus braços, e lentamente, dolorosamente, se levantou.

As pernas quase dobraram ao arcar com o peso. Ele se agarrou ao ombro de Audrianna para se equilibrar. Rosto tenso, olhos inflamados, sustinha-se nas próprias pernas e encarava os amigos estupefatos.

– Pareciam ambos aliviados quando eu saí da casa. O meu irmão nos oferecia absolvição? Que generoso da parte dele. Lamentavelmente, não cabe a ele dá-la.

Kennington e Symes-Wilvert baixaram novamente os olhos. Os rostos coraram. Sabiam que não era um amigo quem lhes falava agora. Morgan era todo marquês, erguido por força de vontade e pouco mais. O perfeito Lord Wittonbury.

– Disse a esta querida senhora que o nome do pai dela tinha caído em desgraça por erro. Que não foi culpa do meu irmão, nem dos jornais, nem de mais ninguém a não ser nossa. A morte dele mancha apenas as nossas mãos. Eu lhes direi agora a verdade, qualquer que seja, para que ela finalmente saiba.

Sebastian olhou para Audrianna. Ela tentou evitar o seu olhar, mas acabou por lhe corresponder.

Ela sabia. Quando oferecera o seu presente de amor, ela sabia de tudo. Falara com Morgan e ficara sabendo da verdade. E também ficara sabendo que a verdade podia limpar o nome do pai dela.

Sebastian estava contente por ser o irmão a falar agora. Ele não conseguiria fazê-lo sem revelar as suas emoções. Comovia-o profundamente que ela tivesse tentado protegê-lo do inferno de expor o próprio irmão, a ponto de sacrificar a própria justiça que procurava.

– Havia um homem na Torre que recebia pagamento. Tratava dos registros e dos armazéns. Não era o seu pai, mas um funcionário que estava abaixo dele e que conseguia retirar relatórios de pólvora ruim se chegasse algum sobre a nossa fábrica, e que conseguia também mudar coisas nos relatórios depois de o seu pai dar a aprovação – revelou Kennington, calmamente.

– As nossas sinceras desculpas, senhora – balbuciou Symes-Wilvert.

– As desculpas são devidas, isso é certo, a ela e a muitos outros. Mas não é suficiente. Sabem que não é – interveio Wittonbury. – Irão dar o nome do outro homem ao meu irmão, juntamente com os nomes de todos os homens que conspiraram com vocês. – Olhou para Sebastian. – Depois ele e eu faremos o que tem de ser feito.

Kennington e Symes-Wilvert tinham o aspecto de quem levara uma sova. Não se atrevendo a falar, fizeram uma mesura e se retiraram apressadamente.

Wittonbury levantou a voz e lhe disses para parar. Não podia voltar-se para vê-los, por isso falou para o ar.

– Não importa o que acontecer, serão sempre meus amigos.

Não viu a perplexidade deles. Perfeitamente intimidados, deram meia-volta e saíram do jardim.

Morgan fez um esgar. O seu equilíbrio vacilou.

– Ajude-me a sentar, Sebastian. Rápido, antes que dê com o nariz no chão e leve a sua querida mulher comigo.

O jardim estava silencioso, à exceção dos sons da primavera e do movimento leve dos passos dela. Audrianna perambulava pelos caminhos de pedra enquanto absorvia o drama que tão inesperadamente acabara de se desenrolar. Sebastian entrara com o irmão. Provavelmente falariam em particular durante um bom tempo.

Ela também precisava ter algumas conversas particulares. Visitaria a mãe amanhã. A mãe merecia saber que a lealdade que mantivera para com o pai não tinha sido em vão.

Audrianna deixou as velhas memórias virem ao de cima enquanto caminhava. Não lhe causavam raiva, agora, nem medo. Não queria chorar. Imaginou o pai em tempos melhores e isso lhe trouxe alegria, não medo. Instalara-se nela uma paz preciosa desde a confissão dos amigos de Wittonbury. O marquês tinha razão quando dizia que os homens não eram bons mentirosos. Haviam dito a verdade quando redimiram o seu pai, tinha certeza.

Viu o rosto do pai com clareza, nítido como não via há meses. Pareceu a ela que os seus olhos escuros se tornavam ternos de gratidão. Depois ele sorriu e acenou com a cabeça, e a imagem dele começou a tomar formas na sua imaginação.

Sentiu botas ao seu lado, acompanhando o seu passo. Não notara que Sebastian voltara ao jardim. Ele pegou sua mão e caminharam os dois, desfrutando juntos daquela nova paz.

– O seu presente, naquela noite, foi ainda mais despojado do que eu imaginava – disse ele. – O Morgan confiara tudo a você, não confiara?

Ela fez que sim com a cabeça.

– Ele queria que você soubesse. Queria que eu lhe dissesse. Eu não consegui. Tive esperança de que achasse um caminho que lhe poupasse a desgraça. Se tivesse certeza, talvez a honra não lhe permitisse.

– Eu ia tentar. Ele não permitiu. – Fez um sorriso meio conformado. – Perguntou pelo médico alemão. Quando o levávamos para cima, falou de ir para fora, depois do assunto estar tratado. Depois mandou chamar a nossa mãe.

Audrianna olhou para a janela da biblioteca de Wittonbury. Ficaria Lady Wittonbury encantada por ver o herdeiro do marido reclamar a vida e a autoridade dele? Ou aturdida com a desgraça que diminuiria a sua influência juntamente com a dele?

– Eu acho que ele foi muito corajoso – declarou ela. – E muito bondoso para os amigos no fim, com aquilo que disse.

– Eles ficaram com ele quando ele foi esquecido. Ele não os abandonará. – Parou e puxou-a para os braços dele. – Fico feliz pelo seu pai estar inocentado. Feliz por você e por mim, e pelo nosso amor. E estou grato por ter acreditado nele quando mais ninguém acreditava.

– Grato?

– Se não fosse a sua determinação, nunca terias ido ao Duas Espadas naquela noite. Podia nunca a ter conhecido, nem ter roubado aquele primeiro beijo.

– Você teria roubado de outra mulher, e ficado bem satisfeito – provocou ela.

– Não teria sido a mesma coisa.

– É um sedutor, meu amor. Mas longe de mim desencorajar os seus elogios.

Ele sorriu aquele sorriso encantador. Enquanto ela se deixava deslumbrar e entontecer, ele ficou mais sério.

– Você deixou bem transtornado naquela noite. Foi... inesperado. Ocorreu-me, enquanto esperávamos o juiz de paz, que se fosse degredada, aquele beijo poderia na verdade ter de me suster para sempre, como, segundo dizem os poetas, é da natureza dos beijos importantes.

Aquilo não era lisonja. O tom de voz dele indicava que não. Ela não riu e também não tratou aquilo como se fossem meras palavras bem-dispostas.

– Perdi-me naquele beijo – admitiu ela. – Foi muito difícil detestar você depois disso.

– Por mais que tentasse?

Ela riu.

– Sim.

– Bom, pelo menos nunca me achou entediante.

Ela enrolou seus braços à volta do pescoço.

– Isso nunca. E agora a amo tanto que não contenho. Beija-me, para eu dar vazão a algum amor antes de rebentar.

Ele a beijou, e foi um beijo digno das vozes dos poetas, um beijo que ela recordaria a vida inteira.a sonhou: pôr em jogo o seu coração.

 

                                                                  Madeline Hunter

 

 

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