Biblio "SEBO"
A vista de uma colina distante tangeu dentro do meu coração música de boas falas, com doçainas e violas d'arco, a ventura mais escondida clareia a alma. Ali estava bem na frente a terra do Brasil, eu a via pelos estores treliçados, lustrada pelo sol que deitava. Uxtix, uxte, xulo, cá! Verdadeira? Tão pequena quanto pudesse eu imaginar, lavada por uma chuva de inverno, verde, umas palmeiras altas no sopé, por detrás de nuvens de tapeçaria, véu de leve fumo. Hio, hio, huhá. Espantada que a alegria pudesse entrar tão profundamente em meu coração, em joelhos rezei. Deus, graças, fazes a mim, tua pequena Oribela, a mais vossa mercê em idade inocente, um coração novo e um espírito de sabedoria, já estou tão cegada pela porta de meus olhos que nada vejo senão deleitos, folganças do corpo, louvores, graças prazentes e meu coração endurecido, entrevado sem saber amar ou odiar. Assim como o azeite acende o lume, a vista acende o desejo. Dá a mim a graça de muitas lágrimas com que lavar o meu sonho, maior que meu corpo. Nossa carne quebrada, já sendo vencida pela fraqueza e ainda assim se batiam palmas. Cantai, cantai. Davam pancadas nas tábuas de nosso camarote para aviso da terra, não tivéssemos dois olhos bons em cada fuça, diziam para darmos mostra da ventura, queridas, boa a chegada, acabada a água do armário do camarote e só chuva para tomar, atinava eu que ia beber água fresca, água fresca, água fresca água fresca águafrescáguafresca larari lará, molhar as mãos, as ventas, derramar o que fosse, sem contar gota por gota, não ouvir mais gente bradar por água, molhar meus cabelos em um chafariz, bica, ter um lugar onde ficar só, sem ver caçarem os peixes, ferroarem seus olhos, rasgarem suas gargantas, pardeus, sem ouvir mais a litania do padre Antolim e suas gritarias para despossuir gente tomada pelo Diabo, as más línguas da Parva amarrada ao pé do condenado, ia eu ter uma cama onde pudesse estirar minhas pernas e sem me acordarem cotovelos alheios, nem o medo, nem o suor, nem as vacas batendo os chifres nas cavernas, será?
Ia tirar de mim o cheiro de lã podre, vestir camisa limpa, lavar o sal da pele, comer fruta da árvore, carne assada, esquentar as mãos num fogão de lenha, assentar à mesa, adeus ferrugem, adeus carne de porco na banha, ai um pão quente, um ceitil de cerejas, tudo parecia alta maravilha, qualquer botão de corno, qualquer fita, nova vida, sem rezar pelas monções nem temer as tempestades e jogar os pequenos ágnus-dei de cera na água para acalmar, rainha de nossa sorte, lançar às águas as cartas de baralho, os livros de pecados e fornicações fora o preço da nossa vida tão mal paga, que nada vale, ia poder andar numa relva, ter uma igreja onde assistir à missa e imagem de santa, deixar malga de leite à janela para os mortos, lavar minha boca, que sentia os dentes escuros da mula espanhola, ia deitar numa cama sem me importar se era dia santo ou domingo e ao acordar cõmer chorizos de sangue, depois de estômago cheio rezar pois, dissera meu pai, na hora do batismo encostaram em minha testa uma cruz e eu gritara muito, prova de haver coisa em mim. Amém, amém, mas nada podia eu compreender do mundo e do céu, meu modo era esquivar e renegar, no que fiz o sinal-da-cruz no peito, a face vazia, sem obra, sem costume, sem a memória do passado, os olhos alongados ao verde da terra, pensando naquelas coisas que desfazem um coração limpo.
Os fidalgos foram mascar bétele para ficar com os dentes cor-de-rosa e bom bafo, dom Fernão, dom Tuão Xerrafão, dom Christóvão Borralho, dom Fernandes Dabreu e os doentes, dom Tomé Lobo e Vaz Sermento, quase mortos alevantaram, o alcaide saiu e foi também se recolher debaixo do balandrau, como os mais miseráveis de nós, vinham os fidalgos maltratados e rotos, tontos, mareados, mesmo donos dos potes cheios, dando água na caneca a seus cães de regaço e boas carnes, seus criados arrastando os baús ricos, escravos abaixo das vacas no paiol, o capitão, o mestre, os oficiais regendo, compilando o entendimento dos marinheiros, entre as pedras do mar, à desejada e lenta meta, amainamos e gritou. Todos aos camarotes. Que adentrar uma baía, chegar a uma costa é o maior risco da viagem, mais que as ventanias e as tempestades, sus, pardeus, as damas copando seus cabelos carrapatentos, tirando do sol seus cabeçais de plumas, guardando os chapéus, todos nós querendo sair, num desprezo pelo barco, feito cão que mija onde dormiu a noite, uns pagando promessas, lanhando o rosto ou rapando os cabelos da cabeça, esquecidos de confessar, a tocar com os pés ali naquela terra onde nunca entrava o inverno, arribar, arribar, a salvamento, sem se perder a gente nem a carga, todos chegando o chegar, deleitando, gozo. Dizem que a felicidade desta carreira estava em que a nau fora feita numa madeira muito seca colhida na lua velha de janeiro, no último dia da minguante, na minguante do dia e que partimos com carga ordinária, não carregada, sem cobiça.
Na cidade nos fizeram salva de artilharia por mais de uma hora dando mostras e sinais de amizade, ficando o céu cortado de luzes que alumiavam os panos descendo e um cheiro de mato, barulho de mil corujas, mil puras batendo os dentes. Na Senhora Inês, de velas rotas, muitas avarias, lançados os ferros a canalha de marinheiros não esperou, tirou seus barretes e ao chão no convés os perros gritaram desatinados, uns muito para rir, outros em doidas lágrimas, com as mãos para o céu louvaram a Deus chegar vivos, que não esperavam, em naus, mulheres são mau agouro, em oceanos, fêmeas são baús cheios de pedras muito grandes e pesados, sem serventia nem a ratos a não ser turbar as vistas, nausear as tripas, alevantar as mãos em súplicas e trombetear por causa alguma, só pelo prazer, feito os demos. E fôramos sete mancebas, umas sete sombras negras alembrando os sete pecados. Qué? Sempre um dia chega o verão, com suas flores e rosetas. Não há mais que esperar e quando se abriu a portinhola do camarote a luz rompia do mundo para dentro de si e uma estrela muito grande supunha no céu rosado ser cristalina, nossos olhos namorando, cha cha cha, disse a Velha, depressa, lavar na água salgada as panelas, tirar os panos do secador, lançar a ourina pelo bordo, trançar o cabelo, o que fosse necessário e logo logo que vinham batéis, barinéis, galeotas, jangadas a rodear a nau grande, que o Diabo estava solto, o padre girava a chave, batia palmas, logo, já já, para dentro, descansai pois descansarão. Fizemos tudo trigosas, fomos avante, tornamos atrás, fugindo de Satanás, correndo da língua da Parva que sempre nos avistava e gritava. Almas enganadas, mancebas de danados apetites, putinhas contritas, lá vai a macha, lá vai a velha parida, lá vai a freira fodida, lá vai a virgem destapada, vão açoitar com vosso amor os cornos desse país e mais coisas de tal tormento, aquela entre os lobos. Blasfema das mulheres, dos padres, da Virgem Maria e de Deus. E gritou o padre. Vade retro! Arrenego! Deus perdoe tua boca esmerdada e te meta arreios.
Põe bandeiras na caravela, que é festa. Pousavam na nau, pela coberta, pelas vergas, travessões, nas partes altas, uns tipos de açores, hospedados na festa, umas garcetas e uns pardos, de bicos verdes, pequenos como adens e destes tais pés, cansados e correram os perros a lhes dar espingarda, muitos caíam no convés, outros na água, onde vinham duas barcas pequenas inçadas de homens da terra, as vistas presas em nós, de longe pareciam cristãos, aos nossos homens da nau. Corja, adeus, nunca mais eu ia querer avistar aquelas fuças, não que tivessem sido maus contra mim ou contra Deus, não que tivessem dito más palavras, nem tivessem maus sentidos, ou por suas fuças rudes, muitos cabelos, suas caras peludas ou suas ameias podres, seu cheiro de suor e o nunca entender da existência mulheril, uma canalha de feros homens, que devia eu admirar e lhes dedicar os meus respeitos, mas não, a força de suas brutas mãos dera velas ao vento, rumo ao leme, entenderam eles bem o mar e o passaram, entre as rochas de pedra, por grandes calmas, pela fúria de um temporal, pelas ondas desmandadas fazendo-lhes vantagem em grandeza, fortaleza, bondade, governaram a nau, mas cada dia me fizeram mais distante de onde fora eu arrancada com muita pena por serem meus pés quais umas abóboras nascidas no chão, minhas mãos uns galhos que se vão à terra e a agarram por baixo das pedras fundas. Aquele era o meu destino, não poder demandar de minha sorte, ser lançada por baías, golfos, ilhas até o fim do mundo, que para mim parecia o começo de tudo, era a distância, a manhã, a noite, o tempo que passava e não passava, a viagem infernal feita dos olhos das outras órfãs que me viam e descobriam, de meus enjôos, das náuseas alheias, da cor do mar e seu mistério maior que o mundo. O mar, lavrado pela natureza, o mar sobrepuja tudo, nos deixa feridos de morte e de amor. O mar nos deixa seus escravos, mar que não se pode tomar porto e se fica sendo dele inteiramente.
O cais inçado de gente que nos olhou partir e deu adeus, o choro das mulheres e a bênção da rainha, o vulto da cidade dando adeus, as pedras dando adeus, os paços dando adeus, os cães dando adeus, os ratos dando adeus, os falcões dando adeus, o tempo dando adeus. Deparara eu na viagem a vida, a morte, em meus sonhos os padres, o rei, a rainha. Mostrara medo meu rosto e minha cor pálida se tornara ruiva, meus cabelos grudavam e o sal na pele entranhava, o vento açoitava, minhas unhas quebraram, minhas gengivas ficaram azuis, meus dentes moles, os biscoitos murchos. Tudo era flutuar. Minhas perdições, o sangue dos meus costumes, o cheiro de entre minhas pernas, as histórias dos corsários que se serviam de mulheres nas naus apresadas que os perros contavam rindo no convés aos jogos de baralho, os relinchos dos cavalos, o mugir das vacas, a pele maltratada das órfãs e seus perfumes de cabelo, seus piolhos, as sufocações de dona Polionia e as perguntas de dona Urraca, os silên- cios da Velha, a voz esganiçada de dona Tareja que ataviava sem parar, os soluços meus, as faias do padre, sua piedade, suas turbações, seus beijos em meus lábios na confissão, para o perdão dos meus pecados, o cheiro de vinho e vômito em sua boca, as missas no convés, as longas e perseverantes vigílias de noite, a escuridade das coisas, as nuvens, a chuva, o fogo que não se podia acender na lenha úmida, a claridade do sol nas frestas do camarote, na escotilha embaçada, o capitão, o alcaide, a obediência, as baratas, a esmola que me faziam, não ter um pente e pentear os cabelos com os dedos, ter cobiça, o não colher segundo o que semear, os prometimentos de Deus, a castidade de meu corpo, os mandamentos, as mãos fornicadoras de dona Bernardinha, a cruz, o Agnus Dei, as procissões a bordo, a água salobra, o vinho amargo, as fitinhas de veludo, as ondas madrastas, as baleias na baía, a artilharia no céu, tudo era passado, chegamos a um novo país com o coração em júbilo, mas de dúvida e receio, para povoar um despejado lugar.
Um mordomo aparelhou o necessário, dois altares com frontais de seda, retábulos, círios, um no castelo da proa, fora da tolda a modo de capela, outro na popa, com toda prata e ornamentos de brocado, guadamecins e me fez meter um ágnus-dei grande com anjinhos dourados, amarrar as fitas do pálio para agasalhar o padre, cadeiras para os fidalgos franjadas e de panos, principais da nau mais suas mulheres. Tochas se acenderam, o padre incensou o altar, rezou missa com canto de órgão. Nunca deixou de haver as celebrações da igreja, fosse à chuva ou tempestade, fosse em calmaria, perto das ilhas, longe delas, em meio ao mar manso ou bravo, fomos todos criados na santa fé, crendo na providência, de almas razoáveis que por três maneiras chegavam a Deus, pelo amor, pelo temor e pelo trabalho, mas ainda assim cegados pela turvação e ignorância do pensamento, da mente, lançados aos perigos temporais, aos quebramentos de dentes e sem folgar com Abraão, Isaac e Jacó, nem com Maria Madanelha, Iscariotes e outros pecadores de fama das escrituras, em nossa simpleza do coração no grande mar, sem assentarmos às tabernas nem bêbados do grande vinho, ferventes na esperança, dados a grandes trabalhos, a serviço de Deus uma metade e a outra a serviço do Diabo. Aquele que semeia, colhe. E disse o padre, que era de missa e sermão. Quem quiser viver neste mundo, perderá a si mesmo, quem quiser perder a si mesmo por amor de Deus nesta vida, na verdadeira vida possuirá a si mesmo. E para ir ao céu, que se esforcem a sentir todos os sofrimentos e tribulações, dádivas, sem folganças nem vícios nem pecados soterrados na alma, corrigidos por trabalhos corporais, apartados do mal por cilícios, em si de si mesmo, de si mesmo a si, sem malícias, enfermidades. Não pude mais ouvir, tal em mim o ardor. Só pensava nisso, se tanto fazia viver numa parte como na outra, ou não, apartai-vos de mim, esperanças enganosas, das tais Ilhas Afortunadas, pelo Senhor Deus das terras remotas.
Acabada a missa se fez procissão no convés, um mancebo de sobrepeliz à frente levava a santa, atrás dele iam os religiosos, os cantores, ao coice os oficiais com alenternas nas mãos e uma folia que mostrava as Tentações. Um grumete vestido de diabo ofereceu que a pedra se tornasse pão para matar a fome no deserto, o filho de Deus disse. Não vive o homem em só pão mas em toda palavra que saia da boca de Deus, todala gente disse de volta. Não vive o homem em só pão, disse o diabo que lhe daria a glória desse mundo desde que se prostrasse a seus pés de cabra, disse Jesus que só adoraria ao Senhor seu Deus e lhe daria culto, disse o grumete que se lançasse o Jesus do pináculo para provar que seus anjos o sustentariam e fizeram ir abaixo o diabo para o fogo perdurável do inferno, com açoites e o pajem com a túnica de Jesus saiu vencedor da peleja, como sempre, que sempre nos autos e nos dramas e nas procissões venciam os anjos às manadas de gados, as virgens aos brutos animais da serra, as filhas do barro gozavam no anfiteatro, os enjeitados iam ao paraíso e a Mofina Mendes sempre se ia casar. As Virtudes dançam, os pastores bailam, os anjos tocam seus estromentos. Ai ai ai, acorda-te Tibaldinho, levanta-te Barba Triste. Que eu vou lá embora ter. Tarde, os perros lançaram dados, puseram as tábuas de carteado, riram e beberam vinho que se via, ser por toda a noite.
Qué aqui? Umas povoações não fortificadas, não podendo resistir a afrontas, vivendo os moradores tão atemorizados que deixavam suas coisas metidas em sacos para correrem ao mato a vista de qualquer vela, ou para o mar ao grito de um bugre, aldeias e vilas que mal se supunha onde se podia acabar, mais embaixo, um rio só de pratarias e de gente castelhana que se ajuntava a selvagens e corria mundo, matando, assacando, sem medo de abismos nem dos gigantes que lá viviam metidos em roupas de ciganos. Depois acabava a Terra e do oceano se podia cair numa negra voragem, por que se trocaram grandes falas opostas entre os oficiais, uns dizendo ser redonda a Terra coisa já provada, do que dava mostras a redondeza da Lua e a do Sol. Referir a pequenez do Sol com a grandeza da Terra? Tudo era diferente, como a água e o vinho. Que se via do alto de um monte o fim da Terra e era liso e reto. E acabava no mar oceano. Mas sendo redonda ou quadrada, do mesmo modo se podia cair no abismo, em se passando ao lado de baixo. Mas que havia de ter uma cerca feita pela misericórdia, para que não caíssem as naus, disso comprovara a verdade uma frota saída de San Lúcar que fora por um lado e tornara pelo outro. No que disseram ter a esquadra despencado no abismo ao dobrar o mundo, sobre o que houve muitos desentendimentos. Não está o Sol a surgir e ressurgir? Não faz a Lua vigília noturna e repouso de dia? Isso é prova de que a Terra termina no fim do liso, do comprido, do reto, nunca redonda. E um oficial que viajara o oceano disse, o mundo era feito uma pêra que numa parte dela houvera Deus ali posto uma teta de mulher. Teta? Vai-te d'hi, aramá vas. Mas o piloto da nau disse poder provar que a Terra era redonda, sabia ele medir seu âmbito e circunferência, tomando um astrolábio em noite clara e estrelada e a Terra jazia entre as alturas. Muito se falou em ursas, em pautas do Sol, em tábuas e reportórios, toleta de marteloio, no que se dava prova tanto da quadradeza como da redondeza do mundo.
As ondas davam na areia e a areia num outeiro, o outeiro nas estrelas onde tudo acabava porque o limite do céu não era outro senão o próprio céu e da porta aberta da fortaleza saía a gente da cidade com luzes nas mãos para olhar de mais perto a Senhora Inês. E da nau se olhava a cidade. Uma muralha de taipa e baluartes, bocas-de- fogo, uma fonte para aguada dos navios, uma montanha de paus em torno e nada mais, que diziam haver nesta terra mil homens de cavalo e oitenta padres, mas se avistava apenas um beguino muito roto, pedindo aos marinheiros, que lhe davam biscoitos mofados ou peixe salgado ou um punhado de trigo sujo, eram os pobres que davam do seu, decerto as boas coisas não foram feitas para esmolas, mas para os altares que assim se faziam revestidos de ouro. Os fidalgos se meteram nos esquifes, foram os primeiros a desembarcar, ainda noite, levando seus baús, recostados em seus caixotes de odoríferas e coisas preciosas que jaziam ao redor dos donos, hou lá hou, na confusa divisão com que Deus ordena o mundo. As tochas tomaram a areia, adamascaram o céu, a água amarela em maneiras de ondas e a noite assombrada de vultos, a singularidade dos céus pelo que mostravam e davam a conhecer, pelo que encerravam e se presumia pudessem vir a dar, tudo me fez apertado o coração, queria eu pisar terra firme, a me ver desentranhada das tenebrosas do mar, de minha gastura, em muita aflição e assim foi a noite.
Noite, as zanguizarras deitadas no camarote com a chave passada pelo padre, feito a cadeia que era esta vida, nos colos umas das outras, ouviam as cantorias, risos, rugidos daqueles infelizes mas mais que eu, pois para mim se acabara a infernal viagem e para eles ainda haveria seguir e tornar, Deus permitisse, eu esperava. As órfãs faziam sinal-da-cruz, iam arranjar marido bom e principal, ou então uns fideputas desdentados, trolocutores surdos, furtamelões, bêbados, cornos, condes das Barlengas, bem-me-queres mal-me-queres, lobo nas ovelhas, caminho de espinhos, azemel de estrebaria, mulo namorado, fosse o que fosse, desde que dissesse: Senhora, quereis companhia? Mas ordenara a rainha, que seriam uns gentilhomens. As mancebas, nenhuma de nós dormia, de boca fechada, os ouvidos alongados, cada qual a pesar em seu coração que dias viriam, que ventos assoprariam, o que haveria ali, recolhidas aos pensamentos de nossa fortuna, ocupando-os no sentimento das coisas que nos mais doíam, numa quietação de pouco sono e medo das nossas proprias imaginações, as quais nos faziam desejar grandemente a chegada da manhã, porque tudo quanto podíamos estender aos olhos era a pequena ordem com que a desventura nos tinha cortado a vida.
A Senhora Inês pousada na água, em seu saber alto que jazia escrito nos costados e mastros, nos panos muito espessos, do gurupés à popa, dava mostra de que pode uma nau saber mais que um grande sábio de natureza humana, sem aprender nos livros mas nas ondas, nos ventos e nas estrelas, por tratar tanto o mar quanto o marinheiro, tanto a água quanto o ar e a dar entendimento de sua criatura sem mudar seus costumes de madeira e sem traições nem falsidades, mas uma verdade infinita. Assim eram as naus. Do que havia trazido, que gente vinha, donde vinha e quantas eram as pessoas passageiras e as que iam ficar, veio o meirinho do mar saber, para dar as notícias ao governador. E se disse ter a nau mais de quatrocentas pessoas, sem contar escravos, uns tantos que ficavam na terra do Brasil, outros que seguiam às Índias, para onde iam uns viciosos, que antes se metiam lá os fidalgos para fazer suas mercas e ficar muito ricos, mas agora eram ladrões, chatins cobiçosos que lá iam fazer coisas feias e torpes, as almas penadas e os que queriam forçar as mulheres com desonestidades, matar, saquear casas, que estavam as Índias perdidas para nós, por isso diziam estar o rei tão afeiçoado ao Brasil e querendo dar salvamento a esta terra por umas linhas que passavam aqui e ali. Vieram mais e mais pessoas da cidade remando batéis e se fez uma conversação de homens principais, conhecia eu a fala deles, perguntaram da viagem, das drogas, da infinidade de fazendas e coisas preciosas, dos muitos trabalhos, dos mares grossos que nos rebentaram os aparelhos e se gastáramos mais tempo a navegar ou a remendar as velas, ho ho ho, chufaram eles, das cartas de marca, das guerras de corso, dos figos do Algarve, das mulheres públicas das pedras do cais e outras falas que se não podia ouvir.
O sol alevantara da terra, cursava um vento leve e as nuvens faziam mostras de muitas cores num segredo que se não poderia ter juízo de onde vinham, se do mesmo sol, se das mesmas nuvens, que pouco sabemos deste mundo, ainda menos do outro, só que fica por detrás das coisas que se vê e não se pode ver de olhos abertos. O porto e encoradouro estava defronte da cidade, a nova. E pareceu bem ao capitão que fosse nossa vez de deixar a nau, corria a água ao som de umas monções ordinárias, calma e baixas as ondas. Passado o mar em flor, o padre sem entender outra coisa saltou do escaler e saltamos as órfãs num estrado de paus levado por muitos escravos, para que não molhássemos as barras da roupa nem os pés se sujassem de areia, nos deixaram sobre umas pedras mas fosse duro o chão, parecia feito de água, mexia nos meus pés tontos, por baixo, como nunca mais fosse eu pisar em lugar firme, tivera eu tornado uma nau, nunca ia esquecer o rumor das ondas, o ranger dos cabos, o vento zunindo nos ouvidos, o chão maltratava os pés das órfãs, as pedras cortavam, não os meus que tinha eu sapatos, fossem malditos, quase roubados, mas eram meus, dera o destino por serem meus pés iguais aos da manceba que morrera.
Vieram no escaler nossos sacos de coisas, pouco era o que tínhamos nosso, uma camisa, um manto tecido, anágua e enxaravia, toalha. Só a Velha tinha seu baú, que fora freira, com livro de missa, outro de relatos, saias bordadas, colete de damasco, chapéus, anáguas de seda, toucas rendadas, umas coisas de matar de amor. Havia neste mundo tantos adornos que não eram feitos para nós, nem véu fino, nem colar, nem cintura, nem turvante ou luvas, nem rufo. Seda épele, pérola é lágrima. Angústia, paixão, merencória, suor, arre lá, uxte morena, darmos nossa mão e se gabarem de nós, nosso corpo emagrecido, em mau estado, nossa alma tinhosa perdida em labirintos, a armar pelejas pelas bocas e pelos ouvidos, nossas unhas sujas, carnes para serem gastadas, umas tristezas escondidas, ciúmes e invejas, enganos, este era o nosso enxoval. Há homem que se gaba de jamais ter pousado as vistas no rosto de uma mulher. Se sou desse modo, Deus perdoe. Mas não foi quem criou? Por que para entender o pecado? Nada mais que um saco em que se fazem crianças. Guardar a lei natural. Nem tão sem serventia, assim como querem fazer crer, nem o tão oposto, como crera eu. Nossa verdade aparecia, não podíamos esconder as imperfeições de nossos rostos como as fidalgas com brilho de solivão, rodiquelhe genovês vermelho, alvaiade, nós umas pastoras silvestres, oh que noivas tão suaves. Hi hi hi. Quanto mais se chega à casa de Deus, mais se há tentações. Pouco faltava para o fim de nossos sofrimentos. Tínhamos em uma parte o corpo e noutra o coração, já saído de nós, uxte, por onde? Disse a Velha. Ide, meninas, lavar essas carinhas de ladrilho feitas e os olhos de betume, que a juventude lhes faz muita vantagem, davante, antes que venham as unhas de um ladrão, que laranjeiras são para se colher laranjas assim como órfãs são para casar, guardai vossa virtude entre muralhas de pedra, meninas, antes que venham as unhas de um ladrão a vossas pérolas.
A beber da água fria da fonte, em suas pedrarias a refrescar os que vinham ao desembarcadouro das gentes dos navios, à sombra das árvores e dos nossos véus pretos ficamos, que o sol parecia morar neste país, tanto que logo se fazia o primeiro raio da manhã já se via a roda vermelha de seus mistérios, avistara eu do convés ao nos acordar a Velha para o leite de cabra que tinha levado à nau um morador da cidade. As conversações nunca tinham fim, no que se ajuntaram pouco a pouco umas gentes do lugar, mal podia eu repousar da vigília sobre nós, os homens seus olhos lançavam, fôramos cargas de uma azêmola, boceta de marmelada, alguidar de mel sendo eles pontas de arnelas, canas agudas, flechas de arcos, espadas de pau tostado, lanças de arremesso, ferrões, açoites, fetos animais, uma cutilada, uma estocada, tomando a cosso para nos possuir, o que lhes nas- cia de sua cobiça. Em suas mulas com poucos alforjes e borsoletes, suspiravam mais por carne branca de cristãs do que lobos por cordeiros. Gente natural da terra e do reino, num quieto rumor de quem se ajunta, muito atentos, fêmeas, machos, os da terra de cor vermelha, em camisas e sem barba segurando seus machados de ferro ou ferramentas da lavoura ou remos, de pestanas rapadas, cafres machos ou fémeas, os machos armados de dar temor e os demais portugueses, barbados, bragas, camisas rotas, uns de botas, barretes, braguilhas sujas de tinta vermelha. Diziam que eram aquela gente tanoeiros, carvoeiros, caldeireiros, cavaqueiros, soldados, sangradores, pedreiros, ferreiros, calheiros, pescadores, lavradores, eiros, eiros, ores, ores e tudo o mais necessário para se fazer do mato uma cidade.
Muitos em torno de nós eram degredados, do que se sabia por não terem suas orelhas, cortadas a modo de castigo no reino e para que os conhecêssemos sempre e sempre soubéssemos que não eram como pêssegos. De doer, a vista daqueles desorelhados, que deviam de estar nas cavernas mais fundas e aqui com suas moelas mostradas despenavam fugidos do inferno, das masmorras e avantajados os muchachos sem nada a lhes pesar à ilharga ou às costas, livres e leves, sem deles haver medo, sem deles se presumir, sem pasmo ou difamação, afastados a viver seus amores sem segredo, como se lhes não houvesse desterro, furta-cebolas hio hio, ratinhos de Jacó, ares de principais. A feição das gentes cristãs era escura, de ser cozida pelo sol a pele, todos pareciam donos da terra e do nariz, por não estarem aqui o rei nem a rainha nossa mãe. Degredados eram uma gente sem temor nem conhecimento de Deus e que diziam heresias como podia fazer qualquer animal bruto se soubesse falar porque eram homens sem sangue, sem lei, nação, língua, reino, sem terra e servos, o que se via claramente em suas obras, eram praga contagiosa, peçonhenta e em sua habitação, fosse nos montes bravios ou no mais distante, na serra dos vazios ou na linha do horizonte, iriam bramir de noite com as feras silvestres da sua mesma vil natureza. Uns cristãos mastigavam fumo, como se fossem bárbaros de costumes, quase todos num pobríssimo trato de suas pessoas e nos seus vestidos, por onde entendi não ser esta terra tão provida de vaidades e não matava a todos de gentilezas, o corpo deles mortificado por feridas, quedas, mordidas, larvas entre a carne e a pele, rosto roído pelo tempo, lacerado por gravetos, espinhos e umas abelhas que sugavam sangue. Escravas amamentavam suas crias, tendo parido filhos que de rosto saíam brancos mas tisnados em brasa, filhos dos cristãos que delas se enamoravam, na solidão destas terras desabafadas.
Um homem de cavalo, vestido ricamente e com bota de cordovão, capa, sombreiro, seguido de seus escravos naturais com armas e mais uns negros de Guiné, tilintando de metais, cintilando raios e cheirando às peles manchadas que forravam os da terra, fez com que todos se afastassem a deixarem passar tal majestade, o cabelo de mecha da cor do cobre e uma grande quantia de pêlo no braço, sempre ruço, veio num modo de querer alevantar o rebuço e verificar, fôramos putas ou barbadas, trasgos, mandrágoras. Depois de olhar cada uma, sem nos adivinhar a fuça, perguntou nosso nome, que disse a Velha. Ficara alguma mulher na nau? Ao que a Velha, que sabia dar falas às notícias, falou. Todalas mulheres estavam ali menos umas escravas que vinham no batel dos cavalos e as casadas que com seus esposos e filhos desembarcaram antes, com o alcaide, que tinham o direito de melhor sustentação e ele perguntou por dona Isobel. Caíra ao mar, moça de uns catorze anos na sua flor muito suave, que foram todos numa agonia olhar sem nada poder fazer, em joelhos se puseram a rezar. Disseram tinha sido caída ao mar por bondade, que havia o temor de sermos sete, dízimo do diabo, número de filho asinino, sete adros, sete pedras, desacerto, sangre, que sete órfãs eram sete cadelas ladrando à lua feito primo d'Isac Nafú, sete cabras que às almas más das sepulturas demoviam, que vinha o pecado lamber de noite. O homem ficou com os olhos longos no rumo do mar, trespassado, sem poder falar. E se fez um silencio.
Bebeu ele da água da fonte, molhou o rosto, os cabelos e perguntou à Velha onde estavam as coisas de dona Isobel, ao que disse ela o saco com umas roupas, coisas pequenas de seu uso e uns papéis estavam com o capitão da nau, mas fora lançada ao mar descalçada que os sapatos não teriam serventia aos peixes avoadores ou monstros do fundo e que muito serviam agora aos pés de uma órfã. Estava eu com os sapatos de dona Isobel, uns macios de pele, atados por fitas de veludo preto e os descalcei, levei-os ao homem que abriu o véu, espreitou muito a minha face num segredo de seu pensamento e perguntou se eu era órfã do mosteiro, murmurei que sim e nada mais que isso, cheia de tanto amor-próprio e tão sentida feito erva viva, que se arrufa e se quebranta com o mesmo ímpeto, sem mais mimos nem afagos. Um pouco menos que ninguém, atada nos atamentos de ser um dos famintos do mundo e nem presumia de mim mais que dos outros e seu olhar triste com manseza e dulçura me fez suspirar, nas partes em que se semeia e se granjeia o sentimento, aquentada no meu frio, fartada na minha fome, em frescos jardins. Ordenou ficasse com os sapatos, se me cabiam deviam ser meus e em joelho os meteu aos meus pés. Suas mãos tremiam, fosse embora bravo e destemido na sua maneira, o que lhe fez grande oposição.
Um do povo gritou. Bentafufa! O homem tirou sua espada e toda a gente com muito temor se calou. Não contestou ele de ser mouro ou de não ser, de modo que provava ser, embora não fosse de cor maura nem levasse lua vermelha no ombro, que diziam ter os mouros corrido fora acorrentados aos judeus para não se tornarem cristãos agarrados pelos cabelos e se os não havia mais no reino era que estavam batizados e mouriscos ou espalhados pelas feitorias, aldeias e vilas deste vasto mundo levando sua maldição de muçulmano, convertidos por Mafamede, cegos e bestiais, pondo sua crença em ser a virtude o deleite da carne, a vingança contra os inimigos, a valentia e ter cada homem muitas mulheres entre esposas, amantes, varredeiras, escravas e embostadoras. A mentira vem do pai da mentira. E diziam haver remos e remos só de mouros em muitos países, onde viviam eles em seus costumeiros pecados. Do mouro corri as vistas para fora, a modo de não agasalhar em minha lembrança a efígie de uma alma parida pelo Maomé. Mas no escuro de meu coração a vista dele se marcara, que dela me não podia livrar, fechando as vistas ou abrindo, de temor do blasfemo de alguma maldita seita, espírito atalaiado, estava ele dentro de mim ardendo como um feiticeiro, os mais desumanos e crueis inimigos que nunca se viu no mundo.
A uma ermida ali logo, aos pés da Senhora me lancei em joelhos e lhe pedi para proteger minha alma das coisas de fora e das coisas de dentro, que me esquadrinhasse, avisasse bem em minhas cuidações, em todas as minhas obras, em minha conversação, fossem as tribulações mais doces pois o derramamento do pensamento ninguém o pode vencer que não pelas virtudes sensíveis e pela ciência espiritual, que me ensinasse Deus a amar pobreza, a ser humilde, para ultrapassar o mar vil e fedorento posto entre nós e o paraíso, meu coração fosse uma nave de penitência, que me deixasse conhecer a mim mesma, grande míngua é quando não nos conhecemos, que me protegesse com seu precioso remédio de sangue e das tentações envoltas me afastasse, me libertasse dos fracos e dos mesquinhos pensamentos, protegesse contra os soberbosos em suas majestades, os mouros, os judeus, os luteranos, os maométicos, os massoleimões, os blasfemos, parasse eu de fazer demandas néscias e cheias de risos, fosse uma mulher sisuda, merecedora de um esposo bom, houvesse gente boa nesta terra que não pareceu ainda, fizesse o coração desencrespado, ai, que me não posso queixar, ai, quem me sacará o coração? Benditas as desposadas e casadas, para o meu varão me guardei perfeita, tu, tu, menina, tu, tu, chegasse com o pé direito, trouxesse Deus o bonamore, que não tenho nem uma burrinha, tirasse de mim os desejos, os temores, os fingimentos, as visões, dessas coisas que não se deixam bem entender e estando eu a me querer ver livre daquele fadário, aos calcanhares da santa avistei que um par de chifres saía de uma nuvem, foi coisa de uma serpente de que o homem não sabe a parte, pois sei, disseram, que a natureza cria e a vista transforma de uma natureza em outra, o que é arte do coração, dali corri para que não caísse desavisada num grande perigo de malícias. Vi que nesta terra o mal entra nos pés de uma Nossa Senhora e se aloja nas santas obras, quanto mais na escuridão do nosso pensamento e nos enganos dos inimigos.
Alma feita em metal frio, cortante de punhais, adagas trucidando fizeram sua fama, bravos e esquivos, seus sentimentos defendidos por muralhas, que os mouros penduravam pelos pés seus prisioneiros e lanceavam seus corações, de correr muito sangue pelos pátios floridos em suas almedinas e ladrões de tudo, de dar suas filhas a Mafoma, seus dentes e olhos, causadores de mortíferos duelos, com seus gritos em voz fina, gente que comia o barro do chão para refrescar a pele, gente que nunca se rendia e preferia morrer de feridas, com muito amor pela guerra e todos os defeitos da brutalidade e que ganhavam as coisas com a espada, vira eu havia pouco, travadores de grandes ligeirices com suas fêmeas e as alheias, que nas coisas de espírito provavam pelos corpos os filhos de lúçufe, a cavalgar em animais altos, homens capazes de fazer coisas que não se podiam pagar com nenhum ouro, amadores de mulheres e chegados a elas, que as enchiam de colares, manilhas de ouro arrendado, nas quermesses, dados a jogos e falas misturadas com beijos, sua bravura era a perfídia, seu brio a falsidade, sua honra a astúcia, caçadores de garças das alagoas muito maus, pardeus, hu, hu, suas manhas nunca encobriam seus desonestos fazeres, diziam ser o mar uma campina que ia dar nos nevoeiros e vapores do fim do mundo, conheciam os rumos do vento mas se deixavam ir pelas tentações marítimas e que quando se abriam ao capricho de alguém era para o tragar, feito fossem o próprio mar oceano, tenebrosas águas, numa irresistível tentação que os arrastava para a natureza, de dia a discorrer, de noite a interrogar junto aos demos, velados pelos mantos negros de seus mistérios, que sabiam navegar até sem agulha e sem balestilha, só por verem as estrelas e pelos ventos, por serem da mesma matéria das trevas do mar tão hortOtOsos em suas façanhas, que suas vistas abaixavam e alevantavam em razão das relíquias que encontravam e mesmo quando eram de boa feição aquilo só encobria a verdade de sua maldade bruta, sua ferocidade, sua rudeza de animais selváticos, feito cafres e faziam a mulher parir sapo, fosse cristã.
Outeiro acima, numa ida fragosíssima, iam o padre e a Velha carregados em rede, mais subia, mais me sentia distante de mim até metermos fora a língua de cansaço por estarmos à porta principal ornada de umas letras na língua dos padres feitas de pau, não de pedra, para mostrar que ali era coisa de começar e acabar sem duração e uma ave, onde adentramos espantadas, admiradas ao avistar um terreiro debruçado sobre o mar e de artilharia muito grossa assentada, uma igreja que se fazia e lhe floresciam naves sobre pilares lavrados, esguios em arrojo, capelas nos topos ainda sem torres nem sinos, como que sustentada de estrelas, querendo ser como qualquer outra em tal ou qual reino da terra, que era onde iria morar Deus se chegasse a este fim do mundo e parecia ser catedral. Numas moradias de pedra e outras casas a serviço do rei, bem cerradas as portas, de umas frestas das janelas se viam sombras escuras de gente nos espreitando, deviam ser as mulheres do lugar, tivessem birra de nós, lá de trás da casa, ó sol, feito umas galinhas chocas. Por cima dos muros, umas varas davam grande cópia de melindrosas boninas e jasmins se enredavam pelos troncos e edifícios. Uma escrava saiu da porta e assombrada vi que suas vestes rangiam, os pendentes nas orelhas muito bem esmaltados, fosse uma fidalga num coche ao paço ou às Endoenças, alma a caminho do inferno, seu colo supunha jóias de ouro, margaridas, que são Jesus no colo das boas mulheres e pérolas no das putas e das regateiras.
Casas se erguiam por escravos que pilavam nos pilões a taipa, feito taipeiros, arrastavam pedras, batiam martelos e na mesma rua ferreiros trabalhavam em suas bigornas e carpinteiros em seus paus a formar umas peças de igrejas e outros ornamentos, ou de portais, até telhas de barro se punham num telhado, os outros eram de palhas secas. Metiam de tudo nos pilões de taipa, que pilavam com os pés uns escravos, pedras, paus, cascas, ferros, pregos enferrujados, cacos, fossem as casas de desdicha e quebrantos. A cidade sem ter divisa de antiguidade, já como que em ruínas, fosse velho o lugar, ficava por trás de umas palmeiras de frutos verdes, tâmaras, parreiras, laranjais em flor, nela espalhados cheiros de bom odor desvestido e defumado de seu mau fedor, assim como ver de olhos tonteados pelo mar é qual a bebedice do amor e seus pecados e beberagens que embebedam e todas as coisas nos parecem boas. Ao longe umas searas como de trigo e umas fumaças saindo de bocas de chaminés na mata. Currais. Uma verdura contínua e frescura de arvoredo, que diziam nunca aqui se perder folha e se diziam haver neve no alto dos morros era falsidade, não alvejavam as serras a não ser por neblinas e tudo era de tal modo que ficava eu sem saber determinar se das árvores carregadas de flores amarelas ou se de umas que pela viração faziam um suave rugido, se das florzinhas, se dos canudos pequenos e tenros, se das alcachofras, se do hortelão, se das águas liberais ou dos bosques, se fazia mais amor.
Uns vinham à rua e nós feito entrar em terreno alheio pisando espinhos, mas nos estendiam um ramo, um cravo de rochela, perpétua, mogarim, ou nos davam um corte de pano da Índia ou um alguidar de qualquer coisa para comer, conserva de gengibre, uma cesta de frutas pequenas como gemas de ovos, fio para tecer, água de cheirar, uma galinha magra com crista de penas e uns lançavam seus chapéus no chão ou suas capas para que nossos pés os conhecessem e nos faziam felizes com tal recebimento. Uns gritos de homem, gritos de mulher, choro de criança. Tocaram os sinos de uma igreja, que havia outra e mais outra, capelas, ermidas, oratórios nas ruas quando se cruzavam, fosse aquele um pedido a Deus, vem, pai nosso, morar neste país. Pobre daquele que crê que Deus provê todas as criaturas, Deus é feito rei que dá suas mercês aos condes e marqueses, Deus aos bons e puros. Como poderia Deus ouvir e amar as bestas más, os ladrões, os matadores e as serpentes de tentação? E os luxuriosos e os bêbados? Porque todos pecamos e mais pecamos numa terra assim distante por haver turbações maiores e à míngua e sentirmos ainda mais a substância de nosso corpo não solamente pelo ventre mas por todos estarmos negligentes de nosso próprio amor e de nossa própria vida e muitas coisas contrárias e desvairadas dentro do coração.
Manso o mar, desceram os baús, os barris, as caixas no desembarcadouro. Içados numas cordas nas gaiolas desce- ram os cavalos e as vacas, mareados, de náusea, que uns iam ao chão logo soltados dos cabos. Bares de pimenta do estreito de Meca e outras drogas sem que o rei tivesse notícia, corjas de roupas, azeite, vinho, ferramentas, mulheres africanas com algemas nas mãos que não traziam no corpo mais que a pele pregada aos ossos, duas crianças de leite mandadas pelo rei para crescerem línguas conhecedores das falas dos brasilos, tudo veio ao terreiro em carros rangidos por bois e cafres muito arduamente terra acima. Estenderam uns panos de palha no chão e ali mostraram suas folhas, sementes, o que tinham para mercar da terra e uns naturais ofereciam sacos de algodão, flechas, adornos de plumas de cores aberrantes e se vendia uma animalha, um veado ruivo de tamanho como uma cabra, uma alimária ao modo de um cachorro de cor preta e que tinha rosto de um cordeiro, unhas muito agudas. Assim como patos e gansos que vieram vivos por milagre, para trocar em açúcares. E saudaram com a bandeira de venlaga. Tudo aquilo se despejava da nau em riquezas, das pérolas a renda era certa, que se deviam taxas à Igreja, a soma do açúcar era de mais de mil caixas, cada uma de tantas libras, quase podiam encher uma outra Bretoa. E se carregarão os quintos do rei. Iam gatos, papa-gaios e uns bugios pequenos, no mais, se não havia especiarias, liberdade e franquia para todos. Que muitas coisas se perdiam por desgraça, outras por cobiça. Assinalaram aos naturais que embarcassem o açúcar, o que fizeram. E se disse a altas vozes, esse é meu, esse eu quero, aqui pago mais, hou, de tal forma que pareceu nesta terra um prego valer mais que uma seda. Santa Pata do céu! Santa Carne dos Lagartos! Santo Bicho da Seda! Santo Corno da Índia!
Bugres da terra vendiam suas fémeas nuas, mas assim que veio um padre da Companhia na rua as esconderam, não dos outros padres. Por meus brios e horrores, não despreguei os olhares das naturais, sem defeitos de natureza que lhes pudessem pôr e os cabelos da cabeça como se forrados de martas, não pude deixar de levar o olhar a suas vergonhas em cima, como embaixo, sabendo ser assim também eu, era como fora eu a desnudada, a ver em um espelho. Nunca fora dito haver mulheres assim, nem pudera inventar em minhas ignorâncias. Que nunca houvera mulher nenhuma nesta terra. Quem então há de parir naquelas terras? Os machos, por ordem de Deus. E por onde? Afirmam que são essas crianças lançadas pelos sovacos, pelo do braço direito machos e pelo do esquerdo fêmeas. E naqueles países se vive mais de trezentos anos e sendo muito felizes, sem dores, nem merencórias, nem angústias de tristezas, nem fome. Há homens de cauda, que andam de quatro. Não há mulheres e onde não há mulheres as poucas hão de ter a força dos homens em seus desejos e mandos, como rainhas. Onde há uma só mulher há de ela ser rainha, como foi a primeira, que de Eva vieram todas as rainhas e a segunda há de ser princesa e as seguintes suas fidalgas e as mais, suas aias. Na terra do Brasil viverás em mosteiros muito suntuosos e ricos, de paredes verdes e abóbadas azuis. Agora sei do que estavam dizendo. E se as havia, mulheres naturais, até eram graciosas em seus despudores, florescidas, feito aves, de pés embicados para dentro como duas naus a abalroar e fedendo igualmente aos machos, por um tipo de óleo que se esfregavam, semelhando a podre, a estrume, a gruta e de quem diziam dar uma febre muito maligna se as fodessem nos dias de lua, quando lhes havia sob os cabelos uns cornos pequenos. E vi um extravagante dentre eles, a se encostar numa libidinosa que lhe fez inchar a parte, tanto que parecia um bruto.
Por que andavam nus? Se era quente o lugar, uns assentavam em torno de uma fogueira, prova que necessitavam de abrigo. Eram filhos de Cham e netos de Noé bêbado. Descobrira Cham a vergonha do pai e o castigo era a maldição de viverem nus, enquanto os nascidos de Seth e de Japhet andavam vestidos Do Noé bêbado, fiquei metida em minha cabeça convertida à mágoa, por causa de meu pai. O vinho alegra o coração dos homens. O vinho é sangue dele e dizem que Deus manda as tenrações aos filhos que deseja provar, por os querer para si, os estar vendo diante de si e a seus pés e lhes manda mulheres nuas para atentar. No mosteiro ensinavam e mostravam que Deus era bom e amava seus filhos, mas por mim ouvia a leitura do livro novo e sabia que o pai destrói, destruiu toda a geração de Noé e salvou o bêbado, que era puro de coração. Destruiu então por luxúria? Porque fornicaram com as filhas de Caim e as cidades de Sodoma e Gomorra foram queimadas por luxúria. Era melhor dormir com um dragão que deitar com um homem no feito. Não querer com os olhos catar ora aqui ora acolá, não atalhar as palavras de quem fala e ouvir, que é sábio, não cuspir em ninguém nem diante de alguém, não consentir que cheguem ao corpo, não repreender os outros mas a si mesmo, não tomar emprestado dinheiro ou veste, limpar o corpo por fora como por dentro, saber ser menor que todos os Outros, não provar de tudo à mesa, não querer saber onde estão as baixelas dos inimigos, falar pouco e baixo, diante de uma porta, bater ou chamar e entrar só se mandarem. Tantas coisas nos ensinavam para nos lustrar e ver se havia entre as órfãs da rainha uma que fosse mais proveitosa.
A uma casa de moças do gentio paridas ou também órfãs, de padres, nos levaram, em um terreiro onde se chegava ao passar por uma rua larga de lojas de mercadores, na banda do mar, onde uns marranos mostravam o que no reino não podiam, suas barbas e chapéus de rodas, roupas de rabi e faziam suas mercas sem ser numa alcaçaria, seus preços, seus panos, sacas de farinha ou potes de mel, tapeçaria, ferros, pregos, coisas do reino e muito do que se pode que-ter ou de alguma utilidade. E âmbar gris, que se faziam em pedras pelas desérticas da costa. Os religiosos nos mandaram ir por escadas, corredores, vigiadas pelos olhos pretos de uns meninos em suas roupetas de padrezinhos muito remendadas, um lenço a fingir de camisa por dentro, as de todos eles e nos meteram em celas pequenas como os camarotes, nos deram redes de palha, panelas de refresco, mandaram as órfãs se calarem de seus ruídos e largarem os mirantes que davam vista para o mar e para umas teracenas onde embarcavam caças, peixes, frutas, de uns esquifes de naturais. E nos mandaram em joelhos rezar, que fazíamos pouco de nossos ímpetos mulheris dados ao demônio que devíamos temer e vigiar, vivia o Mau dentro de nossas almas negras, para não sermos arrebatadas pelo espírito do maligno e que depois nos fôssemos confessar em joelhos.
Filhas dos demos, mas os olhos que se punham em nós destarte, neste país, não eram mais vazios, avistavam curiosos e as gentes até queriam saber nossos nomes, feito agora fôssemos de carne e alma, humanas, talvez com um desprezo por sermos fracas moças mal vestidas, mas não mais aquele não ver as nossas pequenezas, nem parecia que pensavam no que nossas mãos podiam, manter acesos fornos e lumes, lavar roupas nos lavadouros, levar água ou girar as colheres nas panelas, lidar aos teares ou às agulhas e nossos corpos aos deleites da carne, não, nem mais despidas pelo silêncio que a cor de nossa pele branca e o nosso ar de cristãs, mancebas donzelas, era dote. De pobres, éramos ricas, de um tipo de cabedal nascido de nossa própria natureza, feito uma terra boa para plantar, ou uma mulher feia de alma boa. Celebrei em segredo a cegueira daqueles homens tão precisados, por dentro de mim sentia uma ninfa, falada no pregão feito fidalga, bofé, adeus à condição pesada e dura, um altivo coração me vinha, a eu ser um aljôfar que nas conchas nasce, meu orgulho despejado, que havia dentro de cada uma de nós, desfeita que fosse, um coração que lhe no peito não cabia e se há fogo no coração, há água nos olhos. Apenas mulheres, órfãs, pobres, mas tratadas como as italianas, as de pura pele e claros olhos e sem buços, que cheiravam como flores e brilhavam como o raio do sol, rainhas do purgatório, deusas dos infernos, cassandras dos desterros, flores de desertos.
Despimos dos vestidos os corpos para banhar nossas roupas rotas e encardidas que levaram às barrelas umas escravas naturais e quando fomos para as abluções muito se espantaram as bugras, que nos queriam desnudar e nos meter na água cálida, qui, si, si, meia, meia, qui, hi hi hi, açã, açu, a nos querer tirar as forças ou matar, jogando nossos corpos dentro de um bacio grande e nos pedindo as camisas, paieu? paieu? Meu pai mandava turvar a água do banho com leite para não ver o meu corpo de criança, uma vez alevantei da gameleira e ele me castigou com tantas vergastadas que verti sangue pela boca. Água nas mãos e na fuça, fidalga. Água no mais, puta. Na viagem para estas terras muitas vezes me dera um ímpeto de banhar, estando minha pele crestada de sal como peixe seco e minhas dobras em feridas dolorosas de calor, nem tanto por haver caído chuvas demais, nas costas de cá, de que eu banhara no convés as mãos e as fuças ficando uma melhoria nas minhas náuseas. Uma água que me veio amezinhando e consolando as partes interiores, refresco, mas um segredo que eu devia guardar, menos da Velha a quem eu contava tudo, mas às outras, não vender minhas novidades particulares para não dizerem que tinha eu moelas de bugio, mulher sem empacho, desvairada. Não fosse por uma febre de tremores que tive e o banho fora costumado e por ficarem medonhos os mares aos que no convés saíam. E diziam dela, a Velha, que acompanhava as órfãs, mas fez ver que havia alguma piedade nesta terra, por respeitarem uma mulher despejada da vida, no reino menosprezando a sua carne, ferida de uma chaga não visível, com a cara seca e omildosa por muitos silêncios que deitava de noite e uma grande ordem de lágrimas por dentro, o ventre já farto das pequenas coisas como das grandes.
A mulher do governador nos veio ofertar um bacio de frutos de urzes dos pomares e mais umas esmolas, que era o povo do lugar muito caridoso para dar e tinham suas cozinhas abertas aos padres na hora das refeições. Que maldição era esposa preguiçosa e tomou nossas mãos para ver se eram finas na pele, havia um tear em sua casa no que ensinava às naturais a tecer e se o sabíamos, sim, todas. Mas que deitássemos na nossa boa fortuna, aqui nesta terra, quem fazia comida? Quem colhia as ervas nas bordaduras dos caminhos para engordar coelhos ou porcos, quem tirava leite da cabra ou da vaca? Quem carregava água para os socalcos? Quem cultivava horta? As naturais. As naturais, as naturais, que neste país os pobres viviam feito fidalgos de até cem escravos, o pobre mais miserável que fosse podia ter três escravos salteados, que os havia feito gravetos pelo mato, quem lhes apanhava as castanhas e lhes ia à lenha, fazia o lume, caçava, cultivava horta? Aqui era mais preciso ter bons olhos do que boas mãos, para ver onde se deitava o marido, se em rede ou cama, se deitava as bugras e se as dormia, se as fazia parir, que fosse, mas lhes dar aromas e ouro em atavios, nunca. Olhassem. Bons olhos. E boas palavras para ensinar a remendar, coser, limpar, lavar, pastorear, ceifar e que as não deixássemos por demais fiar, eram preguiçosas, muito assentadas e paradas. Que nos fizéssemos de damas, só bordar, mas guardássemos o pudor, o dinheiro santo do trabalho, o homem por grosso e a mulher por miúdo, tostão por tostão, ceitil por ceitil, assim se alevantavam as fortunas, se ele faz o pão, ela vende, se ele prepara o quarto da carne, ela vende a tripa, tudo para a prosperidade que era nossa ventura e de nossos filhos os fizéssemos, para serem dignos de nossos frutos. Se fôramos filhas de fidalgos ou de atraia quis saber, que se disse cada uma filha de grande família sem pai nem mãe. Mortos nas vindimas, ou nas caçadas reais, ou no incêndio de uma candeia de ouro? Pobres as que não tiveram mães a lhes ensinar as artes mais altas e ficaram nas culinárias. Cortar cebolas, descascar maçãs, esfregar caçarolas.
Como foram nossas mães? Que uma boa mãe vendia ovos, engordava porcos e guardava o dote para a filha, mas as pobres sem mãe? E como? Como? Assim? A cada uma de nós fez ela tantas perguntas que mal sabíamos entender tanto interesse. Oh que canas açucaradas. Mosca no mel, provei de um amarelo corado de vermelho que travava na boca como uma sorva verde e um como que alfarroba de Espanha e um que cheirava muito bem, parecendo ameixa e umas limas e coisas feito peras pardas. Mal podia descansar, com a vigília de tantos olhos sobre nós, mesmo os de uma ave verde que sabia falar palavras humanas, a qual conhecera eu por lenda, sendo esta mais pequena e mais aborrida. Mas a rede sumamente agradável a balançar, em brisas. O bispo do lugar ia celebrar nosso casamento. E um padre Gago, muito apreciado do povo, era saído pela mata, a salvar gentios de seu barbarismo e doutrinar a gente natural das aldeias, era padre de andar em cima das águas, como fizera e com asas que lhe nasciam, mas que vendera ele um frade em leilão, tomado pelo Mau, mas era padre tão santo que se lhe lançavam flechas estas voltavam no rumo de quem as atirara. E mais, que os bárbaros vinham acometendo contra a cidade, que fazia muita falta o padre Gago, de boa paz, iam os selvagens acabar com tudo num grande fogo, iam comer a nossa carne que eram comedores de carne humana, no que vi muita falsidade nestas palavras, por nos estarem querendo assombrar e acovardar para quebrar nosso ânimo e nos submeter. Que viera o bispo para acirrar as disputas e com ele trouxera uma corja de padres famélicos, de feia tirania, nenhuma fé e maquinavam seus pecados de luxúria com peito insolente. Diziam ser o padre da nau escória e serem escória os clérigos que aqui havia, que o padre Gago era escória da universidade mas era bom e que havia neste país uma rocha onde passara são Tomé, que diziam Zomé e ficaram as marcas de seus pés ali figuradas, para onde ia o povo aos domingos refrescar. A terra dava uvas, mas as formigas comiam.
Ordenaram rezar e nos davam de suas comidas os padres, traziam coisas que nos mandavam os piedosos da cidade, de suas vitualhas e uma ou outra roupa, havia no lugar uma roupavelheira mercadora de vestes que trazia das naus ou de gente que morria. Os padres, nunca víamos, só pela janela a cruzar o pátio, nem olhavam para cima, puxavam as orelhas aos meninos que olhassem, estivesse o Demo ali, depois nem os ninos olhavam mais. As naturais só falavam suas falas, destarte ficamos muito em silêncio, cada uma em sua cela, comendo a portas fechadas, sem haver um bordado que fosse, uma tina de lavar, um nada a fazer, esquecidas ali, guardadas, esperando esperandesperando, de doer os pés, uxte, os joelhos de rezas, escutando as solfas dos meninos muito compridas e tristes, o sino, a sineta da missa, tiros no terreiro, conhecendo a cidade por seus barulhos, cascos de cavalos, rodas de carros, guinchos, asas de morcegos, ondas batendo nas pedras, uma procissão, uma venda de escravos, tudo eu queria avistar da grade da janela pequena e alta, mas não alcançava. Com o salmo do Miserere na boca, esperava passar de um dia a uma noite a outro dia. Tudo era devagar. De noite a porta se abria e entrava uma luz e uma sombra alta, pensava eu sempre que seria meu pai, que vinha primeiro sua sombra antes dele, mas era a natural com o lume para a candeia e às vezes um pouco de azeite, a sombra de meu pai subindo a escada ainda existia em mim e eu queria esquecer, antes, mas aqui não queria mais, que a distância e o tempo dela fizeram apagar a dor e o mistério. Na ponta dos pés dava para avistar uma parte do terreiro, uns telhados, a cruz, uma luzinha numa casa, o barrete de um homem caminhando, estreias, quieta era a cidade, quase sem gente, sem carros, sem ronda, sem luzes. Mas não uma cidade triste, não merencória, que havia um ar de festa profana, de colher frutos que se buscassem.
O sol me queria fazer cega, pouco via eu do mundo claro, até minhas vistas aceitarem a luz. Cruzamos o terreiro, andamos um pouco, as órfãs todas mais gordas e eu também, leitoas para abate, os pés dormindo, a uma grande casa onde uma gente esperava à porta e uns cavalos, que devia de ser casa de governo ou de audiências, fomos de porta em porta, passando, olhadas, seguidas, assentamos em umas cadeiras de espaldares, fôssemos cardeais e mais uma gente principal da cidade, oficiais da armada, o capitão da Senhora Inês, seu piloto e mestre. E um principal de aldeia de brasilos, com seu sombreiro azul de penas muito alto e espalhado, que tinha as mãos em algemas e vestia uma camisa rota suja de sangue. Esperamos uma boa e longa hora, até que se ouviu o latido de uns cães e se abriu a porta grande do fundo, uns soldados vieram, toda a gente alevantou, o padre alevantou e nós que éramos umas bestas ficamos assentadas e o padre disse. O governador, filhas de Deus, em pé. Entrou o governador com seus cães, que só o chapéu dele valia duzentos homens, fogo nas ventas, sapatos de couro tacheado, uns tremores na mão, cruzando seus dedos em uns arganéis de latão, tão soberbo e desarrazoado no modo que o reverenciaram feito rei se pondo em joelhos e tomou ele assento, deitaram a seus pés os cães, todos se assentaram, disse o governador que lhe dessem as cartas vindas na nau e os mais papéis e dissessem as notícias do rei, que muito se aguardara saber estava vivo ou morto, ouvira dizer de um tremor de terra tão forte que alevantara as águas do oceano e seus rumores tinham sido ouvidos daqui e se ainda havia o reino ou incendiara. Nada disso ocorrera, disse um. Estava o reino dado a umas mercas de judios, às mourarias, causa de muitas sombras de peste e fome? Haveria de faltar o trigo e não aqui no Brasil, terra de tudo.
Distante era este país, nem sabiam estar morto ou vivo o rei, mas diziam ser aqui terra de Sua Alteza, a seus reais pés estivesse e a amássemos, para cá mandara a coroa suas armadas, o galeão Velho e outros mercantes, governador-geral, ouvidor-geral e ajudadores, provedor-mor, alcaide-mor e mandara mil homens de peleja, mil cavalos, mil vacas de leite, casados e suas mulheres e filhos, mancebos, forçados, cafres, uma escrava moura que muito bem casou, fidalgos e tantas coisas, quatro galeotas armadas e grossa artilharia para enfrentar os corsários e os bárbaros da terra, que os franceses semeavam entre os bárbaros suas heresias da Alemania, as de Calvino que recebia meninos do gentio que iam ser mestres das tais heresias entre seu povo e que os franceses se iam confederar com o Turco prometendo lhe dar esta terra para aqui fazerem suas naus com a madeira daqui e que viviam os índios ladrando, atirando suas flechas e vinham os padres da Companhia para fazer dos bárbaros cristãos e lhes mostrar as entranhas do amor. Muita força do braço e algum deleito. Disso fora feita esta cidade. A ordem da rainha era custassem aqui as mercadorias o que se cobrava no reino e que cumprissem. Quantos iam ficar no Brasil? Os que fossem ficar submetessem suas vidas a Deus, suas almas aos padres, sua sorte ao vento e suas mercancias ao governador. No que uns riram e outros fizeram o sinal-da-cruz.
Cometiam os bárbaros muitos insultos contra a cidade, porque se havia de consertar as muralhas, estavam sempre tratando o governador e os homens bons de formarem infantarias e cavalarias para ataques aos bugres e tornavam dos sertões muito ricos de escravos. Alevantou um homem e disse que uma nau dera numa terra e brasis arremessaram flechas de que não puderam escapar, indo afora, deixando o batel e os marujos crivados, num aspecto de porco-espinho. Queriam os homens das naus levar naturais cativos, para os venderem e fazerem mostra pública, bem adornados, podiam ser fêmeas ou machos. Uns cristãos se metiam em roupeta da Companhia, iam às tribos saltear, diziam aos naturais que os iam levar para a terra do mel, mandavam as mães seus filhos, enganadas, que logo se viam embarcados eram os padres falsos seus senhores e os metiam em porões com algemas no pescoço e os vendiam como escravos. Outros fundeavam suas caravelas e faziam anúncio de que traziam coisas para vender, enchiam as naus de naturais da terra e logo assim vista a nau os metiam em algemas, zarpavam fazendo deles escravos e os vendiam pelas capitanias da costa do Brasil. Tribos faziam guerra entre si ou contra os cristãos e conservavam os prisioneiros dando as mulheres da tribo para que delas se servissem e que os nutrissem, depois num grande banquete os matavam e comiam, até meninos e meni- nas sem os deixar batizar pelos padres, do que disse outro padre, da Companhia, ser a coisa mais abominável, por que se trocou grandes falas, que ter muitas mulheres e comer os inimigos era a honra dos bárbaros, maior erro era dos cristãos que faziam batizar as escravas e as tomavam por barregãs e para com elas se amancebar cuidavam que não fora pecado e se disse que por causa dos padres que deixavam os costumes estremados dos bárbaros se faziam guerras muito cruéis e por não haver línguas que soubessem as falas dos índios, mas disse um padre que para comer carne humana iam à guerra os bárbaros e que era prática comum dos cristãos fazerem os gentios guerrear e os induzir, para se sentirem mais seguros, que se os bugres faziam as guerras entre si, deixavam os cristãos em paz.
O governador alevantou a mão, deixassem o comer carne humana, para haver paz, por ordem de Sua Alteza e que não escandalizassem os índios, que os deixassem matar e comer com festas seus escravos, nisso estava a segurança da terra, por eles assim não se amotinarem, viverem como seus avós, que se comessem entre si, que se furtassem uns aos outros e alevantou muito bravo um padre velho que tinha voz contra o governador. Que se queria com isso tomar as terras e as roças aos índios e queriam os terem escravos e os queriam tiranizar por todas as vias, que os não queriam doutrinados para servirem aos seus propósitos, que se deixava até dentro da cidade se comer carne humana sem se prenderem os culpados, sem lhes mostrar seu erro, que os deixavam andar bêbados em vez de lhes ensinarem o sinal-da-cruz, deixavam tosquiar os meninos e andarem todos nus que era grande pecado contra a lei da natureza, para não gastarem dinheiro com camisas, assim, nesta terra, não iam as pessoas públicas contentar a Nosso Senhor. Hou lá, Vossa Senhoria. Deus ia mandar castigos, monções contrárias, pragas, fechar a porta do céu, grande opróbio aos cristãos. Haveria muito de correr sangue, como o cordeiro derramara, ia a gente dali suar gotas de sangue aos vestidos, bater os dentes num choro, estavam em pecado mortal, ia mandar o pai muitas setas de fogo, gemidos, chamas de enxofre que nunca acabam de queimar, tal que o ímpeto de um rio de lágrimas não poderia apagar. Aguardai, aguardai.
O governador esteve muito embaraçado das palavras do padre. Que este Brasil trabalhoso e desventurado era uma desconsolação, ia mandar uma grande esmola às casas dos padres, tudo estava nas mãos de Deus, o que podia fazer ele? Havia demandas, as audiências ficavam cheias e os procuradores e escrivãos tratavam de concertar as partes por suas ordens, estava desengendrando paixões, evitando ofensas, trabalhando punindo blasfêmias, rapinas, castigando os delinquentes, sujeitando a terra como podia, mas era demais este país.
Ah, as órfãs. Vinde cá, bom padre. Em mim foi como se a terra tremera ou caíssem os dentes todos na mesma hora, feito chegasse a carne aos ossos. Deu o padre nossa notícia e as cartas de dona Catarina, muito manchadas das maresias mas em seus lacres reais, disse ele que era confessor, mestre-de-capela e mais honrarias que o dotavam da mais bendita confiança, viera para que fossem bem entregues as mancebas, a mãos limpas. O governador falou. Todas estas vidas aqui sonhavam nas noites estreladas desse nessa fortaleza do rei o bem que agora temos diante de nossos narizes mas teria sido melhor nos haver mandado com o que defendermos nossas vidas dos bárbaros que nos atrevem, demônios noitivos, cascavéis do açor, que ao rei faremos muita majestade e gratidão por mais esta graça e com muitos serviços haveremos de servir, de que sois testemunhas. Disse querer o melhor para as bodas das órfãs de dona Catarina, mandou baterem édito, que os noivos se apressassem a se apresentar, homens de muita honra, coração tornado em alteza pelo alvidro de seus feitos, para tais mulheres formosas e guarnidas quais os pavões que Salomão mandava buscar em Tarsis, escolheria ele, feito águias que no reino de Mufile colhem diamantes num campo de serpentes venenosas, homens sem vaidade no coração e que não fossem preguiçosos nem negligentes e vencedores de grandes batalhas e alguns outros barões ricos. Alevantou o governador e saiu seguido de seus cães que o tinham estado velando por amizade verdadeira, soldados sem soldo, as órfãs umas ovelhas santas, umas marias madanelhas sem lágrimas, secas as flores, novamente criadas e floridas, a ver estudosamente nas mesquinhas faces as daqueles que lhes iriam queimar os ramos da virtude, assim como cadelas querubins. Um temor me deu, havia umas vozes dentro de mim, que eu não queria ouvir.
Orfã, só o que restava, pudesse querer se mover a tão distante país, como se diz desse tipo de mulher que ninguém quer, tesoura aberta, martelo sem cabo, alfinete sem ponta, que como o cão Sorrateiro morde o cavalo e mata o cavaleiro. Filhas das pobres ervas e netas das águas correntes. As enjeitadas, as fideputas, que nem se rapta nem se dota, mulher da cafraria. Que teve a rainha de dotar e o rei de dar ofício. Mulher de pele branca e fala em bom português. Esta aqui estende à mesa um fricassé à romana com mãos de porco emborraçadas de carvonadas, esta aqui leva as receitas nas galinhas assadas relhanas guarnecidas de lingüiças, esta ademais de jovem émestre na potagem de coelhos. Nunca metera eu minhas mãos em cozinha, que não fosse açucarar a pedra para a freira ligar uma massa, ou bater uns OVOS em neve e moer cravos e canelas ou matar uma franga tenra, com engulhos da morte. Oribela era eu. Qué? Oribela de Mendo Curvo, onde florescem amendoeiras a perder de vista e entre elas as oliveiras, que eu via do alto da escada de Alpajares e pequena ia comer figos da figueira da igreja, deixassem as abelhas, de que se tirava muito mel. E as aves rapinas que davam terror, em gritos roucos. Os canhões de pedra. Poucas lembranças. Mais as tinha de haver visto a rainha. Que este era o meu tesouro, poder alembrar e poder esquecer.
Um homem de chapéu ao peito, criador de vacas, com aspecto grave e severo arrazoou. Vossa vinda a esta terra do rei étão agradável à nossa vida de fastio como a chuva em tempo seco na lavoura dos nossos açúcares. Tudo é pouquidade na presença de vosso resplendor. Como a estrela que aparece quando a manhã começa a ser clara, viestes nos animar com vossas virtudes e vossa suavidade mulheril. Entrai sem receio de nada, porque já todos somos vossos amigos e que seja assim até o derradeiro bocejo do mundo. Pondo três vezes o joelho no chão rezou a Deus e agradeceu as mulheres que chegavam nesta terra para ajudar nos trabalhos, para fecundar, parir, assim como cristãs e guardar todo o cabedal. A saudação fora até formosa nas palavras mas não sei se falsas. Eu, como estava de todo alheia de entender o segredo destas novidades, arrevezei. Homens que criavam vacas tinham filhos com orelhas de vacas. Feito os mais da terra. Seu aspecto era o de um cão danado, lhe faltavam dentes, tinha pernas finas, nariz quebrado, da cor de um desbotado seus olhares. Cheirava a vinho de açúcar, usava um chapéu roto, tinha tantos pêlos a modo de uma floresta desgrenhada e estava sujo, imundo. A pele de seu semblante parecia uma pedra lavrada, corroída pelas ventanias e pelas formigas, feita num áspero burel, seus cabelos como cerdas de javali de que se faziam cilícios. Tristes eram seus olhos de xamete e amorosos de doer. Atinei que queria casar, o que me deu uma angústia no coração.
Qué? Vou-me. Aquele era sobrinho da mulher do governador, feito fosse o sobrinho do irmão do rei, feito fosse fidalgo, quem só se aconselha só se depena. Um senhor nesse ermo estrangeiro. Disse o padre ser eu pura e virgem donzela criada em mosteiro de freiras, àluz da absconsa, que podia passar a papinhas de pão relado, leite fresco coado e uns alfinetinhos, de pele rosa bela e olhos madressilva, ainda a florescer o corpo, de alma que se podia amansar como se faz a um cavalo, se era defeituosa, deixasse a pão e água que me ia alimpar, como me houvera ferrado para vender por moura e ferro no pé. Valeria esta em ouro seu peso, que a pele desliza, descem acetinados os cachos. E que não fazia mal ser eu tão cheia de diversas opiniões e bravezas, minhas vistas eram tão admiráveis quanto as estrelas do céu e saberia ele se fazer obedecer com reverência e acatamento à sua humilde pessoa, não fazia mal ter perdido eu pai e mãe nos impetuosos ventos do destino o qual com sua fúria havia feito em mim a execução de sua mão poderosa. Reparasse o homem na formosura de minha feição, na suavidade mulheril e esquecesse da rebeldia, tudo o mais era infalível. O homem me veio a mirar e no rosto lhe cuspi. Muito triste se alimpou ele com a manga do gibão, meteu o sombreiro na cabeça e saiu dali sem dizer o que fosse do que o humilhava, água nos olhos e a cabeça baixa, em seu desconcerto muito desfeito sem levar a mão à espada, nem querer me olhar nem ao padre que mal sabia o que dizer, eh eh, pe-pe-pe, eisque eisque, não não não e o homem saiu, montou o cavalo, partiu como uma ave avoando e o padre tornou da porta, bebido num grande ódio.
Oh como és parva. Uma perdida! Decho que praga, tão bom homem parece ele e tu uma frouxa, rabugenta, pé-de-ferro, regateira baça, demoninhada, pardeus, forte birra é esta que tomas contigo, ora vai-te, eramá, como te amofinas, mexeriqueira e sonsa, que rosto de mau pesar para casarem contigo, tinhosa, que cheiras a raposa, rasto de burra, torta defumada. E d'arrancada deu com uma vara. Disse de mim o padre tantos males que hei vergonha de os pensar em altas vozes, que eu era sem palavra, sem promessa e sem coração. No sacrário me fez em joelhos rezar por perdão de minha rebeldia, me deu pancadas nas mãos até ver sangue, que não doeu tanto e foi murmurar mais castigos com outros padres.
Tornei à cela, fosse a uma cova para ser enterrada viva não estaria eu tão cara de coruja, com nojo muito verdadeiro e suspiros verdadeiros. Dizia meu pai. Que besta tu és e de asas, feito uma galinha que quer avoar e não pode. Assim eram as mancebas, fossem umas aves. Seria a dona Tareja uma ema, porque o corpo é grande e pesado, seria eu um açor bravo que tem que comer as coisas ruins do mundo, seria a Velha um galo que anuncia a luz e as outras órfãs umas pombas, que vão onde mandam, haja sombra, em suas desvairadas propriedades, que em lugar de cantar gemem e têm a alma fiel e simples, sem amargura nem sanha nem queixume e se beijam muito amiúde, gostam de estar juntas feito pombas e se eriçam aos falcões, enquanto eu, como açor bravo, dou meu coração a comer. Oh minha mãe onde estás? Minha mãe onde vou, por que me não buscas, mãe sem ventura de ter tido filha assim, desacordada do mundo e a dar suspiros por um nada? Meu pai falava de mim. Formosa e não presta nada. Bem pintada e mal lograda. Puta, puta, puta, três vezes puta, puta de Cananor, puta de Malabar, puta de Catchi.
Pensava eu estar indo prisioneira por cuspir no rosto de um principal, era de chorar, mas antes queria ser presa e açoitada do que casar com aquele. Me deram entrada em uma vivenda muito rica, de taipa e um repuxo d'água, um roseiral, me levaram por quartos e quartos, até uma grande sala onde coziam escravas a um fogão e detrás, deitada numa manta de palha a uma cama estava em camisas dona Brites de Albuquerque, comendo um doce de fruta, a calda lhe corria ao queixo, deu ela um riso. Assenta, menina, vem, perto de mim. Assentei aos pés dela, que a abanavam umas naturais com grandes abanos e fazia fresco. Tinha um livrinho na mão só de gravuras e mostrou para mim, disse da perfeição das mulheres, devia ser eu assim, assim, assim, cabelos longos, mãos delicadas, pés chicos, dentes miúdos, orelhas finas, seios redondos, testa lisa, ancas fornidas, lábios carnosos, pescoço longo, garganta suave, mas que me havia um riso muito fechado e um semblante triste. Dona Brites disse que me ia dar um presente, fez que uma criada abrisse um alforje e tirasse de dentro uma saia de franzido muito real, jacintos pela ourela, uns letreiros broslados. No que me fiz reconhecida de sua bondade. E disse ela. Quero que te cases com meu sobrinho, Francisco de Albuquerque.
Caí ao chão em joelhos. Tinha eu parentes muito ricos que por mim poderiam pagar quanto fosse, se me tornassem ao reino, ao que ela respondeu. Pois se és essa que dizes, que pecado foi o teu por onde vieste a tão triste estado como este em que te vejo? Eu então lhe dei conta da minha perdição, da minha mãe morta, de meu pai que duas vezes me quisera matar, porque era tão mau perto que continuamente andava bêbado, falando o que lhe vinha à vontade, como cão que ladrava a quantos via passar pela rua, nunca fora eu mulher pública e nunca fora provida à custa de mulheres públicas, minha casa fora em mosteiro de irmãs, em que vivia grande soma de moças órfãs, as quais umas se sustentavam pelas heranças de seus pais, ou pela bondade da rainha, outras providas pelos cabedais que perderam aquelas que seus maridos acusaram de adultério. Desde Çamorra até Salva-terra, desde Sintra até Torres Vedras. A isso deu dona Brites de Albuquerque muita razão, já que aquela se quis perder por sua desonestidade, que ampare com o seu uma órfã, para que assim se castiguem umas perdidas e se amparem outras virtuosas. No que me fez cortesia. Mas nem dobrou minha alma em joelhos, nem desvendou meu coração em seus traços. Guarda tuas misérias como secretas, do que te não arrependerás. Mais língua, mais dor. Tudo vem em seu tempo e os nabos pelo Advento. Nem és dom Diniz, que fez tudo o quanto quis. E me fez beijar uma cruz. Não gostaste da saia, menina? Não basta uma formosura dessa para ti? Que mais queres? Não se pode subir e descer uma escada ao mesmo tempo, há de ser uma ou outra coisa, ah, Deus sabe que quem não tem nada, nada quer e nada vem. Uh, queres viver na cozinha ou na taberna?
Seu sobrinho fora um mercador pobre e tão pobre, que por sua possibilidade não chegar a mais que cem tostões, metera-se neste trato de colônia para enriquecer. Agora tinha terras. Tinha pousada, mesa, cama, sapato, cativos e escravos, tinha um rio, tinha vacas de leite que ajuntara uma a uma passando fome e raramente mandando matar uma rês enquanto eram poucas as vacas. Fora nascido em uma aldeia em torno da Senhora do Castelo onde um alcaide mouro por muito tempo reinara e onde sua família se fora para fugir a um ataque de formigas perto do Mondego, uma terra negra que de sua lama brunida se faziam pucarinhos feito as cinzas do carvão, terra dos alifantes de pedra e que vivera ele com o pai e a mãe numa casa de boi a dormir numa alfaia de comichão em flores amarelas, onde fora criança muito feliz e perto de Deus. Dissera à tia, Francisco de Albuquerque. Não importa quantas as vacas que esta vale. Ficava com ela mesmo sem as vacas. Está namorado. E se arrasaram meus olhos d'água, com as mãos alevantadas para o céu, com tantos soluços quase não podia falar. Santa e misericordiosa senhora, peço-vos muito que não cerreis as orelhas neste pequeno arrazoado que vos quero falar, ainda que sou órfã, todavia por ser mulher honesta me deveis de ter algum ouvido, pondo piedosamente os olhos em meu desamparo. Sei que sou um charco de água turva, em minha natureza continuamente moram desvarios, como agora vim dar nesta terra, por caridade da rainha, foi ter com Deus meu pai há muitos anos, com os olhos turvos de odiar, pelo morrer a mãe por minha culpa, como morreu, causa das desgraças de suas vidas de amores fora eu mas venho agora pedir com lágrimas, em nome da piedosa rainha, amparo e escudo de minha orfandade, me quisésseis valer e socorrer em meu estorvo e minha angústia e me liberteis de casar, senhora, muito por mercê, porque tamanho mal fazeis, vede, que grande labirinto sou, não sirvo a homem algum, triste é meu peito pisado de coices, que me rugem as tripas de noite e sonho com fogo.
Seria eu feita à santa Catarina que para fortalecer o espírito sugava o pus das chagas dos doentes e comia piolhos? Fechasse meu coração aos chamados da carne, esquecesse meus amores, que a mulher era fraca. O homem jovem vai à taberna de noite mas o trabalho do velho nunca está feito, os moços esperdiçam seu tempo com as putas, o jogo e a beveragem mas o velho usa o dote para abrir negócio, uma casa de beber, um banho, o jovem não vai te dar uma muda de camisa enquanto o velho te encherá a arca de mais de trinta e duas. Nunca aprendeste? Ceroulas? Calças? Saios pardos? Conhecia eu cartas ou astrolábios todos dourados? O que não soube eu entender da pergunta, mas que as cartas eram rotas e sujas. Disse ela que eram as cartas e os astrolábios dos pilotos muito ferrugentos e cheios de azinhabre, mas com sua simplicidade levavam uma grande nau pelos mais grandes mares oceanos até a Índia, ou mais lugares distantes, porque tinham conta consigo e com o que sabiam e ensinavam. Assim era aquele homem velho e ferrugento, que me podia levar ao mais distante mar sem me perder na escuridão e sem cair em abismos. Tão pasmada e confusa, como mulher desatinada me arremessei aos pés de dona Brites de Albuquerque chorando. Peço, senhora, antes que me tomem por mulher, mandares me matar. Por Deus, como? Tão má mulher sou eu que isso faça? Então mandou trazer uma panela com refresco de que bebi uma quantidade e mandou também abanar com o abano, em que se gastou mais de uma grande hora. Neste mundo não há prazer permanente, nem tristeza que logo esvaneça, assim como as coisas todas têm fim e termo. E se diz. Quem vai ao longe casar ou vai enganado ou vai enganar. Veio um mau augúrio em mim, uma tristeza tão grande como me tivessem dado uma pena de açoites, na lembrança o que diziam. Para enrique- cer, tudo é bem. Agradeci não ter recebido o mais ruim de todos os males, que fora ser escolhida para casar com o mouro para ter minha alma direta ao fim de todos infernos e fiquei um grande tempo pensativa com o sangue gelado de medo do que podia ter o mouro, chifres debaixo do chapéu e paras nas botas de cordovão.
De noite escutei a voz da Parva na rua. Estúpida, hideputa can, que te mandem arrancar as ameIas, rota e triste, uma serpe por mulher, pura nascida de mosca encharcada no mais imundo monturo que se pode encontrar em pântanos e em masmorras, quem te deu atrevimento para cuspir nas coisas de noivado e de Deus? E vens com afrontas. Toque nos ouvidos de teu esposo a blasfêmia de tua soberba, fiques maldita da terra que te sustentará e sem filho, amém. Que o diabo haveis de ver. Língua ardida. Parecia que falava de mim. Pouco fez, pouco faz. Nem quero mesmo filhos daqui. Que vida era a tua? Que fazes acá, porquera? Que não quisera se casar? Não tens padre ó madre e te deram de improviso uma vida, queres uma desastrada vida, uma mulher tal bela como pura? O que quer, a tristura? Tu estás fora de ti.
Dormi quando viravam as estrelas pelo poente. Tão grande quantia eu vira quando ia despejar o vaso das ourinas antes do romper do sol, que fora esta tarefa minha por ser a de menos anos de vida entre as órfãs. No sonho apareceu minha mãe vestida numa túnica de muitas pedras por arredor guarnecida e disse. Filha minha, tu ontem me vestiste com a tua túnica, eu por semelhante quero te revestir hoje com outra minha túnica. Pareceu então que tirava ela, do lado direito, um vestido de que me vestia, luvas, sapatos de seda com picados e fivelas de ouro e prata, cravejadas pedras, meias bordadas. Passada assim aquela escura noite entre frios, lágrimas, suspiros, despertou o alvorecer. Tinha a mãe do sonho nenhum rosto. Nunca soube o nome de minha mãe, por vergonha de perguntar ao meu pai e ser indigna de dizer em meus lábios. Dela meu pai falava. Era uma cabeça muito grande, de bondade e pura, saúde e fertilidade, paz nos olhos, jovem como um bezerro e divertida como um arco-íris, que se adornava com tanto gosto que se venerava o de fora como o de dentro e da sua pele dizia ser mais dourada que a da cravação em cetim e corjas de caraças e lâminas de damasco e panos malaios, mais macia que dez carapuções de veludo verde, os olhos mais fulminantes que os fogos de Santelmo. Era assim mesmo que parecia, semelhava eu a estivesse vendo agora, sem mesmo fechar os olhos, como vivesse ela nos interiores de mim e eu nos arrabaldes dela, ateando sempre ela fogo à minha alma por me querer dar a vida, o Ímpeto e uma embarcação para avoar no céu como uma ave sem asas. Quisera eu ter.
A mim veio um oficial da embarcação, que por caridade me podia tornar à minha terra. Tendo ouvido meu suplicar, o faria, me dando uma passagem sua, que lhe ia custar e devia eu pagar o que gastasse comigo ao chegar no reino, mas antes lhe desse aqui alguma fazenda, para certificar o trato, de que disse eu não ter mais que minha palavra. Nem um tostão. Nem um brinco, nem adorno em ouro ou prata, nada para pagar e muito para dever. E ele. Espero por a senhora na noite antes que parta a nau, em um esquife, à fonte do desembarcadouro, onde irás ter com o que peço, umas moedas, que seja. Terás muito tempo, por custar muitas vezes quatro ou seis meses para se abarrotar a nau com os caixotes de açúcar e mais mercadorias. E se foi. Guardei este segredo. Não podia dizer nem à Velha, que era ainda cedo e queria nem pensar nisso, pois havia ali gente leitora de olhos e fantasias, sibilas, esposos em vigílias e se pensamos acabamos por dizer, que nos escapam aos lábios os corações, os sonhos, as lembranças. Falasse eu de meu segredo à Velha, ela nunca falaria a alguém. Se tivesse ela todavia um confidente, falaria ao confidente que nunca falaria a mais alguém. Se tivesse todavia o confidente um confidente que jamais falaria, falaria então e já lá se iriam quatro, que passariam, logo a oito, de confidente em confidente, que se falariam mais e a mais de vinte e no caminho se falaria a quem nunca devia saber de nada e o segredo de um seria o segredo de todos. Assim seria. Para não pensar fiz uma reza. Ó água tão doce, é água tão bela, venha a minha santa beber dela e mais e mais e mais, até esquecer do que pensava eu esquecer.
Em poucos dias a feira se acabou, a nau à espera de partir, sendo carregada, do que tudo tinha eu notícia por meus ouvidos. Rezava eu, era melhor que estar morta no fundo do mar, queria me livrar da minha alma criada entre os tigres do deserto e alimentada com o leite das víboras e aceitar meu destino, aceitar o noivo que me davam a rainha e a governadora, saber dar graças e querer bem a toda aquela gente de má inclinação, contumazes e pertlnazes em suas ignorâncias, que com suas próprias camisas não tinham lei, nem com suas carnes dó nem piedade e amor a coisa alguma, mais enquanto comiam e bebiam. Te aquieta em teu destino, Oribela, que estás no céu e não sabes. De noite, quando fechava as vistas para dormir, via o rosto pálido mas sereno e desassombrado de dona Isobel que em mim estava hóspede e a mim chamava ao fundo do mar, assim assim, sem dizer palavras, só com as mãos feito puxando a minha alma.
Veio a Velha nos dar banho em umas gamelas. Ela depois guardou as águas dos banhos numas crateras separadas, deviam os noivos beber para cativar seus sentimentos e desturvar seus amores e nos perfumou de sândalo, trançou nossos cabelos em réstias arrodeando a cabeça, vestiu as noivas de uns panos duros de algodão em forma de mantilhas, amarradas nas cinturas por cordas de esquifes, enfeitou com umas penas de aves avoadoras, de cores extremas. Amava e admirava eu a Velha, letrada e parecia homem santo, em chama que não se apaga logo, com muita presteza na palavra, digna de ser reverenciada em toda grandeza da terra. Mas diziam. No lábio da mulher há de cintilar o silêncio, onde floresce seu saber. Que nos era proibido rir e comer naquele dia, ficássemos assentadas na tribuna até soar um tiro ao romper da luz. Cada uma de nós teria quantia certa depois de consumado o matrimônio, cabendo ao esposo determinar e à esposa aceitar, fosse letra de câmbio ou água de rio ou moeda ou vento do ar. Deviam os noivos comer na sacristia com o padre, pão, queijo e vinho e deixar patacas de ouro debaixo da vasilha. A mim deu o ramo matrimonial da última rapariga. Quando a vela mais pequena está do lado da noiva é que ela morre primeiro e se do lado do noivo é ele quem morre. Aquele que no quarto apaga a luz é o primeiro que morre. Se na casa onde entram há luz acesa, nenhum dos dois vive muito. Morte ou casamento desfaz arrendamento. Mulher infiel levará a cabeça descoberta por tosquia em pena de decalvação e lha porá o esposo em cima dum sendeiro dalbarda, o rosto contra o rabo e se quiser, a pena da desnudação. E disse. Grande segredo é o morrer, maior segredo é viver.
Ora ouvi, filhas minhas. Aquela que chamar de vadio seu homem deve jurar que o disse em um acesso de cólera, nunca mais deixar os cabelos soltos, mas atados, seja em turvante, seja trançado, não morder o beiço, que é sinal de cólera, nem fungar com força, que é desconfiança, nem afilar o nariz, que é desdém e nem encher as bochechas de vento como a si dando realeza, nem alevantar os ombros em indiferença e nem olhar para o céu que é recordação, nem punho cerrado, que ameaça. Tampouco a mão torcer, que é despeito. Nem pá pá pá nem lati lará. Nem lengalengas nem conversa com vizinho, seja ele quem for, ou cigano, nem jogos nem danças de rua, nem olhar cão preto que pode ser o chifrudo, Deus te chame lá que ninguém te chama cá, temperar legume com sal, não apagar luz que alumia morto nem deitar as águas fora que é de judaísmo, não pedir favores nem pôr os olhos no vizinho nem o corpo na cama de outro, tem o esposo direito de acusar, para provar inocência a esposa deve lavrar a mão num ferro de arado em brasa. Açoite e língua furada àquela que arrenegar. Os esposos devem dar panos às mulheres, mas só nas festas reais, se lhes oferecer o mercador um bom preço, que eles não façam obra alguma desde o sol posto até o sol saído e dia de domingo e a viver, segundo o capricho dos homens. Aqui do rei. E disse eu. Ora, hei, hei, não é melhor morrer a ferro que viver com tantas cautelas? Ai, como sou, olhasse a minha imperfeição, olhasse meu lugar, sem eira nem beira nem folha de figueira.
Tirou a Velha de uma saca um véu de renda delicada com nata e um livro de rezas cristãs, tudo com a brancura da virgindade, de que todas as noivas se arregalaram em exclamações, cobiças e disse a Velha. Era para casar a mais ab'ençoada, que era eu e pegasse os presentes de meu bom noivo. E me cobriu as tranças a ninfêutria com o véu alvo como as nuvens mais limpas e mais altas, pelo que ouvi muitos ahs e ohs de admiração e foram buscar o espelho da Velha, que me visse eu e vi, como nunca fora, me quebrando um pouco o coração. As outras, um pouco afrontadas e confusas, viram então que tinham ganho presentes, uma pequena roda engastada em um brinco de ouro e um anel de prata fina que não cabia em dedo nenhum de Tareja, que o pendurou ao pescoço num cordel, um pó com canela numa boceta de ouro lavrado, que tingia as rodas do rosto, para dona Bernardinha que era a mais sem vaidades, uma corrente de pulso em ouro para dona Urraca e uma pedra verde a ser incrustada, para Pollonia. Se não há conhecimento não pode haver entendimento. Disse a Velha. Que esperem. Ainda haverão de muito ganhar. Não sei se falou de ironia, querendo dizer açoite e castigo, ou se falava de adorno.
Tudo se acalmou, rompeu a luz, demorou, nada foi servido de comer, antes de romper a outra manhã soou o tiro e nos alevantamos da tribuna. E se ouviu o som do sino tangido na igreja, tambores, sestros, tudo se moveu e se alegrou, a hora chegada, vieram as naturais com as roupas e a Velha nos vestiu de noivas, abriram a porta das celas, demos no terreiro. Tinham atravessado na rua fitas e as janelas com açafates de uns tipos de alecrim e outras diversidades de flores ou alcatifas. Irmãs minhas, não se escusa fortuna ao navegar, garridas, garridas filhas minhas, acá e alá, alá e acá, vé, cabreras, valentes, hermosas, falta pouco, falta pouco. Gritava a Parva. Os anjos iam em frente ao cortejo e os noivos chegaram, formou a fila. Ia o meu a modo de cortesão, limpo, chapéu e sapato, cabelos penteados. Era eu a fronteira, para ser fecunda e dar chuva e colheita, mais meu véu branco e meu missal, atrás, o cortejo, com archotes e vasos, aves vivas, cestas de ervas, sementes, uns estranhos nabos, um paninho de rebordado, ínfula e demais presentes sem distinção de guerra, casamento ou funeral, homens de um lado, mulheres do outro. Até bugios seguiam o cortejo. Ao passarmos por baixo de arcos atiravam em nós os habitadores um tipo de trigo de que se enroscavam na mantilha, tocavam adufes, a nau deu salvas.
Homens principais da cidade nos admiravam com rabos de olho, umas caras purgantes, suas bocas para favores, que já entravam uns bêbados a se desenfadar. Vinham com suas mulheres de vestidos leves abertos ao colo, os peitos pulando para fora, cabelos burreletados e fosse uma manhã quente, uma delas estava todavia com uma zibelina aos ombros que a afogava em seu respirar. Mas não eram como as mulheres do reino, não tinham os cabelos clareados de açafrão nem os cílios arrancados, o rosto pintado gravados em si os peca-dos para desfigurar, desfeitas de suas naturezas, tão pintadas que pareciam estátuas de madeira e que para virar a cabeça tinham que virar tudo. Mesmo no mosteiro umas preparavam suas pinturas com minhocas, urtigas e sangue. Aqui abriam os braços e riam, isso há de ser o assoprar e comer, mas de todos os pecados nos advertiram os padres da Companhia, que se vendiam mentiras para senhoras, era a vida de trabalho e amor a Deus que fizera o Demo mercante e dizendo da fraqueza de nosso coração mulheril e das virtudes de esposas que eram, vigília, oração, humildade, disciplina do corpo, contemplação da glória celestial, penitências, uma ribeira em nossos olhos a nos navegarmos ao céu da lua. Homens bons vieram com umas negras naturais da terra e que ficaram de fora da porta, não deixou o padre entrar nenhuma delas, ficaram nos calcanhares, assoprando fumaça de uns canudinhos, falando numa língua brava e rindo. Aquelas eram amancebadas de cristãos e de padres, que quando delas se cansavam as vendiam aos vizinhos que as desejavam e assim se faziam mercas de fêmeas.
Era a Sé mais que capela, com alguma prata e ornamentos do serviço, lampadário, relicário, que dizem foram pedir emprestados às confrarias, mas as capelas muito assombradas e de santos bem adornados. Tivesse suas naves, era a igreja de terra por baixo, umas paredes ainda por fazer, as feitas de barro com marcas das mãos, mais estrebaria que templo, em fé mais acordada, por se dizer, que nascera o filho de Deus na manjedoura do boi. O rei dotara a igreja da imagem do santo e sua veste e sino, chicos como fossem, dotara ele e fizera doação entre vivos e mortos valedoura, de jarro, bacia de água, saleiro, colher de prata relíquia, uma cruz povoada, cálice, luz, livro, tudo o que se precisava e viera com o bispo. Mas serviam de trono a Deus umas laranjeiras, um tanque, uma fonte, como se feridos pelos raios do luar. As laranjeiras aqui davam umas frutas vermelhas da feição dos murtinhos. Heresia que houvesse plumas e palhas, em lugar de círios, flores, ouro e alguns naturais de fora da capela em joelhos muito piedosos como se tivessem compreensão de Deus e fossem batizados, que muitos eram, estavam ali os padres de Jesus para a catequese dos índios, fossem fêmeas ou machos, de que tamanho fossem. Acreditei ser um lugar sagrado ao avistar os olhos doces do santo, os cristãos sem chapéus, nos peitos como numa igreja, mesmo, uns em joelhos feito fosse de verdade, tudo, então devia ser, que sabem os homens o que não sabem as fêmeas. Cada país com seu recurso. Deus mora em qualquer aldeia, por miúda, ou pobre, a ser verdade o que dizem. Mora em qualquer caverna, em qualquer desvão, em qualquer garganta ou covil.
O padre parecia outro, limpo da barba, cabelo asseado, unha sem pretume, mas usava uma túnica de um pano grosso e pintada de lama na barra. Entrou o governador com dona Brites, seus cães e seu filho feito uma alimária daninha, assentaram nas três cadeiras, muito soberbos. De trás do púlpito apareceu o bispo, segurando no peito o crucifixo, penado como estivesse doente, arrastando os pés e semelhando zangado com a obrigação, atrás dele as cinco dignidades, seis cônegos, os capelães, um cura, todos com seus maiores estomagos e suas sutilíssimas línguas com eficácia para persuadir com suas pregações, daqueles que têm mais palavras que obras, assim afamados na cidade. Os padres da Companhia com seus meninos naturais e mais uns meninos órfãos mandados pelo rei, meninos de cabelos tosquiados, cantaram com vozes de pássaros mui suaves e concertados, junto com os moços do coro e o mestre-de-capela, porque sabiam a solfa e os instrumentos. Falava o bispo e seus acólitos, para maior autoridade durante o sermão lhe alimpavam a boca, que nos inquietava o siso.
Em seu propósito o bispo nos abençoou com as mãos e nos fez dizer promessa de fidelidade, salvou-nos com uma cruz, com mostras e sinais de fé. Mandou cada mulher dar a mão a seu homem. Os esposos têm poder sobre as esposas e suas filhas, mas que não tenham para si que lhes pertençam as filhas como mulheres, nem as mulheres dos vizinhos como suas e nunca usar delas, a terem respeito às filhas das vizinhas e às filhas das filhas, que as chamem todas de filhas e nessa conta as tenham e não pecar de luxúria, nem os pecados conhecidos. Ali todos eram filhos de Deus, fiéis cordeiros do papa debaixo de cujos pés estavam submetidas todas as coroas que governavam a terra, acima dele só Deus, que lhe dera sagrado cetro de papismo e os reis infiéis seriam esmagados nas trilhas de seu calcanhar, que os vassalos não ousassem boquejar nem alevantar as vozes para nenhum padre de Deus, as insígnias em suas mãos significavam justiça e misericórdia, o que devia reinar naquele canto. Que ajuntassem os da mão direita com as da mão esquerda, fossem em suas vidas, jaezados de caridade, pasmados da majestade do matrimônio divino. A fazer filhos abençoados de alvura na pele.
E me deu uma tristeza funda, repetida, sem remédio, feito doença incurável, uma pobre à míngua. Não podia eu entender a fortuna? Deus fora bom para mim, me salvava das garras da liberdade, que era órfã largada no mundo, sem asas e agora coberta da caridade do Senhor e seu amor aos pobres, tinha esposo, amparo, não entendia, embora houvesse no fundo alguém em mim que entendesse, sempre houvera em meu ser um outro ser, que eu nem via direito, mas sentia e sempre o velara, como se apenas meu e mais entendedor, que não queria eu competições e invejas de minhas compreensões, o que se podia ver contra a Velha, não que pudesse eu me dizer como ela, uma estrelada pelos conheceres do mundo, suposta na religião, capaz de falar aos mais mestrados dos homens, acercada dos livros e quem a houvesse de venerar tinha certeza, pelo benefício da criação dos frutos que nela se produz a sabedoria. Não era eu tal alteza, tal estatura, tal cabeça trilhada de luzes. Mas nem era eu a que me mostrava dia após noite, nem sabia muito eu mesma nem havia de saber ninguém mais. Nem que me tornassem pelo avesso. Que meu vencimento no mundo era ser mistério. Vivia eu metida dentro de mim para saber o fundo e para onde endereçavam meus pensamentos e por que entradas vinham as palavras alheias, as boas e as impuras, que rotas tomavam, alcançar minha verdade, meus remansos, alturas, abrigos, saber como não entrarem em mim e me descobrirem.
Era esposa. Se perguntassem dizia que não, pois não temo o castigo nem a humilhação, soube de uma mulher que se negou a casar e teve suas mãos e pés cortados, foi mandada ao mosteiro. Arrastava a pobre sua carcaça nos pedregulhos do pátio, sem coisa alguma sobre suas carnes, arrancando compaixão de todas, uivando, ganindo, cadela brava e triste de ódio, servia a mais de nós, as fêmeas. Assim como o mar não tem sede nem o lume tem frio, nem meu Deus outros, assim se tire daqui esta dor roborada e sangria talhada, para que eu fique sã e salva pelo poder do apóstolo são Tiago. E fazia essas bênçãos em lágrimas. Até que foi um dia se arrastando às águas do rio e se afogou, por querer. Pobres dos sem fazenda, pobres dos sem cabedais, que nascem para alevantar os bares, feito meu pai, mercador de azeite, curvado pelos ombros ao peso do bar de óleo, ao peso da tristeza, que um dia teve fortuna mas nunca ventura. Veria ele agora do céu, a nata e o véu me cobrindo o rosto, ele de mãos com minha mãe, sem mais rancor de mim, assentados no trono do céu, entre as luzes mais altas? Pensara ele que ia eu ter tais bodas? Me dizia ter feição de puta, por meu nariz afilado e a minha rebeldia na língua e o estar sempre sonhando, coisa de mulher pública. Que morrera minha mãe de desgosto por adivinhar a filha. Que meus chifres da cabeça rasgaram o ventre de minha mãe. Mais olhava o rosto de Francisco de Albuquerque, sua sobrancelha, seu nariz, seu queixo, mais sofria. Sua mão a tocar minha mão, dava náusea.
Os homens se serviram de suas esposas. De um resplendor estava o céu, como que incitado de prata, insaciável e vastíssimo, uma região elevada, um luzimento que de baixo fazia impressão do cristal, uma vista tão infinita que dela não se podiam afastar os olhos, daqueles reflexos se não podiam esperar menos que grandezas, em tanta pequenez na vida desta terra, embaixo de tal cristalina maravilha uma temeridade fria que pareceu neve. Embora fizesse frio me ardeu a alma, fosse coisa do inferno. Ai, ainda é cedo para a morte, tempo há de se arrepender. Deixai os chapins, esses rabos tão sobejos. E se retirando toda a gente a suas casas, esposos levando esposas, ficou toda a povoação sem contradição nenhuma, sem vozerios, todos muito contentes, com suas moças ou muito ou pouco formosas, mais puras menos puras, de cada cor, modo, cabelo, sem lástimas, nem irem atadas com murrões. Fora eu assim, teria paz em meu coração. Levou-me Francisco de Albuquerque para dentro de uma casa pequena parecendo desabitada, só com os aparelhos de montarias e umas armas de fogo pelas paredes de barro, coberta de palha, uma fogueira apagada, uma panela e restos de comida. Umas vacas na sala. Para dei- tar, um monte de feno, mas a mim foi segurando Francisco de Albuquerque e derrubando. É acaso a leoa mais mansa que o leão? E lhe dei uma bofetada no rosto no que fez ele sem pensar uns modos de como se fosse quebrar minha caveira, que me fez tremer as carnes e o fervor dele, disto, era tão grande, em tal momento, que em muito breve espaço tudo meu estava como que em grilhões, entre suas forças, embaixo de seus pesos, a arrancar tudo que era seu e de Deus cobrar sua repartição, seu quinhão que lhe valia por direito de esposo, como em mim havia de ser tudo seu, mas eu rogava que nada fosse tanto, entendendo de querer escapar de embaixo dele, de modo que se tinha dentes devia ser para cobrar as penas, quem deu foi pensando nisso, assim foi Francisco de Albuquerque trabalhar sobre mim, recolher de minha boca o silêncio e a fechadura em sua boca.
Logo se tornou num cachorro que vi sobre uma cadela de rua, um ganso numa gansa, no Mendo Curvo, ou um padre na freira, no mosteiro, arfando, me pegar pelo cabelo, sem se prestar a mais nada, uma muito estranha coisa para ser criação de Deus, quem seria, que inventou de haver fêmea e macho e fazer uns mais fortes e umas mais débeis, que nem meus braços davam conta dos dele nem as pernas dele se apiedavam das minhas, que eu estava a temer de me quebrar os ossos e rasgar pela metade, de forma que demorou mais que um torneio, embora fosse demorado de menos, tal era a impressão, a uivar e amiúde, um barco em ondas altas e desmoronou sobre mim. Ele me abriu, explorou e olhando no lume a cor do molhado, de sangue, abanando a cabeça disse. Verdade disseste e agora és minha, terás o que quiseres, ao meu lado, junto a mim conquistar esta pátria e esta gente de terra alongada e te assentarás acima de uma tribuna, mui ricamente vestida e bem posta, teus formosos olhos àturquesca, teu aspecto grave, de quem tem pensar e querer, tua pele recamada, teus cabelos de canutilhos entressachados de diamantes, teus pés de cetim e tuas cerimônias, com que te amarei sempre. Te pagarei com espírito o estares ao cabo do mundo, para me esposar. E te darei tudo.
Comprou Francisco de Albuquerque para mim um carro dos que se tirava a boi e na veniaga sua gibeira ficou aberta, onde mais coisas havia de cabedais, faca, posses, letras, entre isto uma bolsa menor de onde o tilintar de patacas se ouvia, moedas de ouro, que me causaram engulhos, tentação do Aquele que não se diz o nome. Sendo eu tão inteiramente dele, consumado o matrimônio, certo e direito seria de não ir afundar na desgraça de um oceano de abismos, ou de mais o que fosse. Mas o querer tem seu mistério e nos apaga a luz do pensar e nos turva o saber, de ignorantes que somos em nossa mulheril natureza, o que é bom sempre está fora de nós e longe e sentindo dentro de meu peito a voz da discórdia, da traição esperei que se virasse ele, para enfiar a mão na gibeira e tirar dali duas moedas de ouro, que meti logo no meio do véu, já não mais puro.
Fui no carro ajaezado à portuguesa, franjado, onde fiquei em altar, em meu ombro o gibão de Francisco de Albuquerque, em minha cabeça seu chapéu, o mais honrado saimento que eu nunca vira em vida, como santa morta, o borrifo da noite no fresco jardim, adiante desses meus longos olhos que tenho no rosto, a várzea, os ventos bonanças, o mar chamando atrás. Dali tomada a carga partimos em derrota ao sertão, dezessete partes em gentes e cativos, acompanhados de uma cópia de naturais de carga, muitas vacas, havendo adiante e atrás como que soldados em tom de artilharia, com espingardas, espadas, uns quarteados de verde e roxo, em variedade de suspeitas nos guardando dos bárbaros, que ali não havia ladrões como nos caminhos do reino mas perigo maior e nos provendo de águas, umas raízes como nabos, farinhas, umas coisas que não sabia eu, tipo de umas castanhas assadas. Traziam muitos bares com mantimentos, munição, em que se afirmava vinham azeite, cetim, chamalote, vestimentas a modo de portugueses, panela, bacia, tudo mercado na feira em troco de leite. Francisco de Albuquerque ia em seu cavalo que arrematara numa disputa de dinheiro, cavalo ereto e alto, manchado de umas nódoas pretas e andador, por uma trilha estreita de carro, beirando um rio, por uma ermida, um engenho, uma roça, uma granjearia, outra ermida outro engenho outra roça e assim sempre, cada vez mais dentro e distante do mar oceano, no que se apertava mais meu coração, não bastava estar assim carecida de minha terra, até se acabarem as ermidas e os engenhos, acima, uma volta, um esteio, uma enseada, sempre beirando rio, o rio do rio, que tornava eu sempre as vistas para trás, cada vez mais longe se metia a vila e cada vez mais triste estava eu.
Onde é que estamos indo, que nem se avista mais o mar nem a cidade e nem estrada? Disse Francisco de Albuquerque. Cala tua boca. Se queres trocar palavras comigo, diz no escuro do ouvido e da chegada. Olha em torno e apresenta a teu conhecimento o caminho, que dele irás precisar, seja para ir seja para tornar e apura teus olhares e teus ouvidos, a modo de não tremer de arrepios de medo só por corujas. Se estava eu de boa paz, veio ele de zombaria a querer desafrontar de sua esposa. Tentei com assaz dor e Lágrimas baralhar o ímpeto dele, vendo o mato, léguas de arvoredo muito alto de ciprestes. Quando lá chegares te receberei como o antigo Salamão recebeu a nossa rainha de Sába na casa admirável de sua grandeza. Que te vou cobrir como merece o corpo e agasalhar. Tua mercê é muito bem-vinda, assim como tua companhia de donas que de falta há mulheres e confortos, naturais servem de um lado, cristãs são sonhos, das pazes que faço agora, que me dês que vou dar à esposa todo o favor quanto me for possível, por vassalo, que mulher mandada pela rainha éprincesa. Descuidara ele da piedade, da boa amizade, da lei verdadeira, da demência sem termo, havia de passar o meio dos tempos e ele ia se ver fuça a fuça com Deus e ter de admitir seus pecados, que não pecasse contra mim, sabia eu não ser poderosa e que não podia pelejar com tamanha força, ai, pelas alparcas douradas do rei, me libertasse de assentar à mesa como esposa e deitar à cama como mulher, sem entendimento de minha recusa, a preferir eu a dor do abandono e a sorte, em minha fraca e mulheril natureza. Depois de estar um pouco pensativo inquiriu ele das lágrimas, rogando, por que minha alma se ia perdendo a me meter no profundo, não fosse eu por meus desejos carregada e embaraçada.
Rogo que diga a que fique na memória o teu escusar do agasalho em minha casa sem nódoa pois casados fomos sob a bênção divina e por um bispo na maior das honras que pode ter uma mulher. A que eu não respondi por medo da faca em sua mão, mais que sorrisse para mim. Então fez ali trazerem de comer perante si, cortou da carne de uma ave e me mandou que comesse, o que fiz de muito boa vontade e ele, enfastiado da tristeza mostrou que folgava de me ver comer, como fora uma oferta de músicas suaves em minhas orelhas rogou, dormisse na sombra fresca sem mais palavras. Mais tarde se chegou a mim de modo a me despertar, com um peixe faiscando, para meu alimento. Não tens de andar tanto a ser esposa. É leve, levinho. E nem mais disse por querer vasculhar meu intimo, mas eu pensava, se dera ele licença para daqui onde fui lançada ir ver a face de minha terra, crê que assim avoaria meu corpo a ir beijar aquele chão, como o esfaimado prisioneiro no primeiro ímpeto de sua soltura. Que nem podia ter entendimento de deixar o mundo verdadeiro por um mundo sem existência a modo de enriquecer, riqueza nenhuma havia. Mas a riqueza minha, em terras no Mendo Curvo, desta terra desafeita a queria buscar e não podia. Viesse a minha mãe de onde estivesse, tomasse uma embarcação, enfrentasse as águas, a dor, a tormenta, a escuridão de sem rumo, no rabo da estrela do sul e dali tirasse uma reta que diria o caminho para onde estava eu, na terra onde já não estava eu, porque só em a pensar, àmae podia eu ver, mas com não a ver na escuridão dessa noite, não sei se na brancura da manhã me poderiam enxergar entre os vivos. E calei, sem dizer palavra. Disse Francisco de Albuquerque. Desterra da tua mente teus segredos. A franqueza é nobre e a amizade é capa dos desamparados, mulher desassossegada. Diz logo. Que fogo é este que te arça? Se tens amor deixado em outras terras diz agora. E disse eu. Meu silêncio te dirá o que meu coração em si cala.
Assim porque já não tenho boca para falar, como porque minha alma sofre estar tão órfã de ti quanto tu de teus pais, peço que venhas sem pranto, que não negues este que te mereço pelo que sempre te desejei. Porque a vida por sua injustiça te fez minha noiva, neste princípio de tua mocidade, em que agora por matrimônio te hei de senhorear até a morte, a qual, como senhor de ti, de ti afastarei, assim como afastarei de ti qualquer dor por tantos milhares de léguas quantas voltas o sol e a lua têm dadas ao mundo desdo princípio do seu nascimento. Todavia dissimulou Francisco de Albuquerque com prudência e tratava com muito vagar de olhar para a frente sem olhar atrás onde estava eu em pranto, que não queria eu cumprimentos e nem dele nada esperava, nem Sabá, nem rei de Narsinga, nem festa, nem pérolas de Borneo e Solor nem sacos de âmbar gris. Tinha ele receio pelo que estava de acontecer algum desastre, por serem os inimigos muitos e bárbaros, que me calasse para não me arrepender. Era caminho de vida ou morte.
Fui calada. Ruim do calar é que mais se pensa, mais se alembra e mais se ouve o outro e não a si. Dizia Francisco de Albuquerque, o grande pecado destas plagas fora de suave, de grande cabedal, que atraía volúpia, ambição e desmando, o pecado viera nas gentes tristes e ensopadas na bebedice do sono da carne, gentes estrangeiras com barbas compridas e corpos de ferro, botando com desprezo seus marcos no meio da terra, dando risadas como demônios obstinados e contumazes no primeiro pecado e no segundo e nos cinco outros, da luxúria, da riqueza, da inveja, do ciúme, do ódio, da ambição, da falsa fé e da mentira e que sendo cristãos, chamavam que os socorressem, acudissem em suas almas retintas, com a penitência, o latim, o cortejo da santa, a comunhão, o joelho no tabuleiro da igreja. Trabalharia para nos ver a salvo porque a terra, o ar, os ventos, as águas, os gados, os peixes, as aves, as plantas e tudo o mais que hoje é criado nos haveria de morder tanto sem piedade que só aquele que vivia no céu nos poderia valer. Um dia Deus alagaria o velho mundo com as águas do céu em que se afogaria todo o gênero humano como se matasse uma vaca brava e a terra ficaria deserta, restando os que tinham vindo ao novo país e quem aqui fosse o mais forte seria o rei do mundo.
Entre divagar sobre o poder de Deus, do rei, do papa, sendo cada um soberano, um da alma, um do corpo, um da fé, seus sacerdotes e seus círios, fiquei. Que governavam nosso espírito em trabalho de agonia, só na reverência havia salvação, uma triste hora antes que anoitecesse tão pasmada estava eu, com tanto medo de ser castigada, que me não atrevera a declarar com palavras mais nada enquanto pensava no poder que movia meu ser infeliz, a alma em despedaços e quem é que fazia a justiça deste mundo, se Deus tinha orelhas tão grandes assim para meu ínfimo murmúrio. Fora eu roubada de tudo quanto levava, sem deixarem nem um pai ou a mãe. E afinal viria a pena, conforme requerimento de que se provavam alguns ruins indícios em minha alma, que em minha defesa se contrariava coisa alguma, para que com o castigo público emendasse minha vida. Algo havia de celeste no meio do corpo, que não ossadas, que não o pecado, a miséria, a corrupção suja, em fêmeas e machos, por dentro a alma vivia num castelo douro e porta de ferro coado e me banqueteará a vida, ostras de pérolas, as mais finas réstias de sol. Dissera na nau a Velha, que vertia para fora as tripas, com um semblante tão assaz. Que gente somos? Como andamos destarte? Deves olhar as coisas por dentro e saber o que referem e se igualar na prudência aos velhos. Passara a ler um livro inteiro que trouxera num baú, explicando a compreensão, história que se compunha em verso, desculpando em ser a leitura tanta que pudesse causar fastio e já a conhecia eu de longe pela voz, que fizera passar o tempo, sem entender o sentido dos versos, mas acalentada pelo cantar, pelo tratado das coisas de que eu não entenderia, da compreensão das estrelas, do fim do oceano, do abismo, da língua dos padres, como uma cega levada pelo vento, de gosto, sem nada a temer. Mistério é o mar, a fundura, o princípio e o fim, mistério o céu, o redondo, as ondas, mistério o sangue, a bússola, o vento, o suceder das coisas, o querer, o florescer das flores, o ver e o não ver, o sentir, a fome, o nutrir do trigo, o compasso, o descompasso, mistério é tudo.
Sei que foi a Velha boa freira do mosteiro da Anunciada, em exercícios de virtude, boa religiosa, boa estudante, com fama sabedoria e quantas vezes seus moestamentos soaram em minhas endireitei meu coração porque incorri em graves tentações alma muito danosas, porque sempre a vi mostrando os erros padecia. E fizera ela confissão, como se padre fora eu, que ela ser eu mais pura que qualquer padre, no que não acredita- eu, conhecendo meu coração. Ela se confessava não para padre, mas para Deus, com quem se entendia a seus pés. Era esposa de Deus e mãe dos órfãos e só acreditava em outra existência ao se fechar os olhos e sonhar. Mas não no convento. Ali era o do melhor. Desde as mais frescas frutas do pomar, as hortas florescidas, o mais alto couval, aves de bolateria e as de regaço, limões e frutas-da-paixão, passas-de-fumeiro, frutas que iam em caldos às panelas, pois vinham homens provar das mesas de doces, maçapão, folhado de amêndoas e de sais, lacão cozido, espetadas de caça miúda, que caçavam gentis-homens e enviavam às irmãs, em troca de favores do corpo e da alma, que se deleitavam elas ali em liberdades de tudo o que houvesse, de amor, de poesia, vinho, uva, veludo, espírito, uma sala de livros recoberta, onde se achava escrita toda a sabedoria do mundo, em palavras e iluminuras, quadros de beleza, de cenas, de países, de céus e infernos e música, umas violas, pandeiros de fitas e fora mesmo um dia lá o rei a se banquetear no convento, para ver um auto levado pelas noviças de rosto d'alfeni e doces vozes, a comer Sua Alteza umas lebres, pernas de veados, congos, lampreias, filhós de manteiga, frutas de urzes e ordenar de seu dinheiro roupas de seda para as freiras e perfumadas águas da Alirnania e de mais longe, filtros de amor, arminhos aos regaços e luzes para a noite completa, quantas luzes se quisessem nas celas, nas salas, nos passadiços e escuros desvãos por se assim querer, para encontros de homens e mulheres, conversas sem hora, sem assunto, com a gente mais sabida e a mais lustrada, de tudo que já se soube neste mundo, as mais estranhas lendas, a abismar, a assombrar.
Visitas, passeios em carruagens, pelos campos, pelos altos dos morros, abas das colinas, pelas nuvens, idas à Espanha e festas pelas santas, Festa do Cuco, Dia dos Enganos, o corte do cepo, quendas, requendas, Porco em Preto, o Bispo dos Loucos, as Ladainhas de Maio e olhos desvendados para se ver no mundo o que se queira, os quebrantos, os jogos, as profecias, o prazer de saber um pouco mais e mais e mais, do que se quiser, até mesmo a saber a cor do Diabo, as crenças de Finisterra, as origens da vida e da morte. Que tudo se pode averiguar. Com várias astúcias conseguira a Velha iludir a barriga, mas o suposto crescera tanto que viera a abadessa num exame rigoroso, descobrindo ser a verdade o que de mal se pensava. Seria filho de Deus? Negara a Velha, por honesta, que pudera inventar ser como Maria, mãe de Deus, mas o pecado seria maior. A sentença dissera que, por mostrar arrependimento de suas culpas e não constar em o sobredito pecado coisa que ajudasse o demônio, nem que com ele tivesse pacto, tácito ou expresso, a condenaram à privação de cargo, de voz ativa ou passiva, para que perpetuamente não pudesse mais servir à religião. Que lhe tirassem o seu véu preto e que fosse ela encerrada em cárcere num convento dos arrabaldes, para cumprir penitências, jejuns e prostrações. Ficara sem permissão de comungar e que não fosse àgrade ou à portaria nem escrevesse cartas nem mandasse recados nem os recebesse e que os sobejos de sua comida se não pudessem misturar com os das outras freiras. Dissera eu. Mas que severidade, se outras irmãs pariram e vivem em tantos conventos? E dissera ela. Foi a mulher do pai que assim ordenou e era aquela mulher uma sombra poderosa. A Velha cumpria a penitência com humildade quando o que fora causa da maternidade, pai, dela se compadecera e a livrara das penas, desde que fosse embora do reino.
Mesmo em tanta idade, de quase quarenta anos, velha nos confins da vida, teria que enfrentar uma travessia, desde que não morresse. Mereço eu, dissera. A honra a Deus devida, dera ela às coisas terrais e mais a seu corpo, que menos merecia, com pouca reverência estava nos santos lugares e tantas vezes tomara o nome em vão, despendera dias em prazeres, o corpo obrara a fazer o que se não defende. No seio de minha piedade de órfã, buscava achar o perdão. Dela havia uma grande inveja, por ter sido mulher parida de um fidalgo, falaram até de ser o rei. E dissera a Velha da inveja. Assim. Se te dizem algum aleive, ou se é verdade o que te dizem, a tua consciência que não se agrave e se hás temor de ser dito que és maliciosa, ligeira coisa te deve ser a injúria, para que te não fira o coração, que teus fatos são merecedores de outros maiores. Não temas a crueldade dos perseguidores, que crueldade é sinal de fraqueza. Nem tenha inveja dos maus, que fazem semblante de bons e tais parecem, porque um dia virá em que se saberá segundo não as obras de fora, mas as de dentro. E onde estava a sua filha parida? Onde só Deus sabia. Teria como eu a minha idade, que nascera também nos dias da praga.
A secar as panelas no mosteiro encontrava eu com a dona Bernardinha, irmã de Tareja e Giralda, a morta, filhas de pai rico em Coimbra e sempre vestidas, arraiadas, adoradas e servidas, todas delgadas de narizes, sem lombrigas, com tal fortuna viveram anos, em jardins, músicas de boas falas, louça do Japão, chá verde, em morada com capela e altar, mas um dia lhes morreram os pais, por cair ao rio o carro que os levava e sendo a mãe prima de uma tia de uma dama da rainha foram as meninas levadas ao mosteiro. Dizia dona Bernardinha, muito mais quisera morrer que perder a mãe, sendo já menina de treze anos, nem feia nem bonita, soubera de seus cabedais sendo cuidados por tutor cobiçoso que sem freio passava a si os proveitos, quisera ela viver com uma tia e não pudera por ser casada com fidalgo de muitos ciúmes ofendido, assim ficara ela no mosteiro, pobre dona Bernardinha, de mãos delicadas, que mostrava feridas na água suja, marchetadas de dores, que nunca servira ela com as mãos e nos primeiros tempos padecera grandes aflições, mas era da força de um varão, aceitando as dores sem soluços nem urros, que logo a chamaram de macha, ela negava mostrando dois peitos grandes, suaves, redondos, de fêmea. Ela se agastava em defender suas irmãs mais novas, guardava seus biscoitos para a fome de Tareja, fazia ameaças a quem murmurasse contra Giralda, de ourinar na cama e Tareja de não ser donzela, que diziam, tanto chumbo há no mundo, todo o esta menina comeu, um dia morreu Giralda de impetigo, quase danada ficou dona Bernardinha, mas assossegava das alterações em mim, que dizia ser eu sua fonte de beber água pura, que se havia neste mundo pessoa a quem amasse feito sua mãe, era eu, estávamos sempre segredando nossas fantasias, ela me beijava a mão com um cuspe frio de que eu tinha assombro, até que madre Jacinta lhe deu uma áspera disciplina em nos separar, que não mais falasse ela a mim e nem eu dela nada ouvisse, nem a visse, que devia ela dormir na cabana dos porcos. E não nos vimos mais, até o dia da partida.
De dona Urraca se dizia por detrás terem sido seus pais judios, uma gente de fazer violas d'arco, que sabia muito lindamente tanger, a menina. Houvera no tempo do rei dom Manuel uma paz, finda pelo casamento de Sua Alteza e pelos brados do povo, que havia muito ódio contra os judeus vindos de Castela, como eram os avós de dona Urraca, por onzenarem. No mosteiro pregavam contra dona Urraca e ela ouvia em lágrimas, assassina de Jesus, filha de gente sem rei nem terra, que alevantavam os preços das coisas, era seu povo causa da peste e da fome que matava os cristãos por os cristãos mercadejarem as suas janelas e que tinham os judios contas com Deus e escrituras falsas desdo começo do mundo, que adoravam uma bezerra de metal e a ela sangravam seus filhos em gratidão por Deus que os tirara do cativeiro do faraó e se pareciam aos bestiais mouros, adoravam também as rãs e os galos. E mandavam dona Urraca comer barata, cuspiam em seu rosto, faziam o sinal-da-cruz no peito depois que ela passava e não pisavam em sua sombra, que era pecado e lhe formavam nas fuças cruz com os dedos, puxavam seus cabelos, o que fazia a dona Urraca chorar e não havendo ninguém para a consolar, ela dizia. É esta a virtude que os teus deuses ensinam? Pediram àmadre que dona Urraca não usasse vestidos ricos e só trajes por que fosse conhecida, lhe tomassem os sapatos, não andasse em qualquer parte do mosteiro para não se misturar com cristãs, morasse aguizada numa cela, nem fosse amiga de pessoa alguma, lhe arrancassem os livros que tinha, coisas escritas por blasfemos Para atender aos continuados clamores mandara madre Jacinta separar das mancebas a dona Urraca. Sua irmã, Sabina, fugira do mosteiro para buscar o grande casamento requerido a filhas de ricos e de grandes homens, tendo sido matada por uns salteadores que dela se serviram e a deixaram nua. Passou dona Urraca a viver entre as enfermas por saber untar com óleos e qualquer remédio de consolação. Foi ela a primeira escolhida para o Brasil, que fez grande graça às mais órfãs do mosteiro, mas alevantou a suspeita de que era castigo.
Tinha eu grande temor de dona Urraca, não a queria olhar nem respirar do mesmo ar saído das suas ventas no camarote, vigiava que não fosse de noite deitar chifres pela cabeça ou vomitar enxofre do diabo, suas rezas murmuradas me queimavam os ouvidos. Mas era ela a que mais suportava as forças do oceano e se foi fazendo menos odiada pelas órfãs, com sua grande esperança fundada sobre pedra, crendo que ia ao paraíso da terra se livrar da fraqueza humana, casar e viver em claustro, sem ver manceba ou pessoa viva que fosse, só animais. Estava roubada de suas coisas todas, usava uma veste rude, virava tanto de noite que muitas vezes acordava no oposto lado, os pés onde estivera a cabeça e murmurava, feito tomasse em seus sonhos muitos cilícios de cerdas de cavalo ou de pele de bode tosquiado.
Por entre o arvoredo de mato havia muito grande quantidade de bichos de admiráveis grandezas, também uma muito nova feição de animais, na maneira muito manhosos e nariz adiante, uma listra preta feito colar, pulseiras, três unhas, com uma ordem de plumas como rabo, bichos de vôo, a modo de mergulho, que caçavam os peixes e outros por cima das rochas, bugios que tinham barba de velho, que se barbeavam cortando os cabelos com os dentes e mais habilidades que fazer momos e atiçar pedras. Nem patos na lagoa, nem o porco, nem a cabra, a ovelha, a lebre, nem alifante, mas uma pomba brava e também gatos pardos do tamanho de javalis, ou menores, ou amarelos leões, muitas vezes pintados, dos quais estes e aqueles tinham os homens muito maior medo que de todos aqueloutros animais, cometiam com tanto atrevimento que lhes ninguém podia resistir, que os cativavam os naturais se podiam, ou matavam com setas e mercavam as peles de que se faziam alcatifas ou bolsas, até cha- péus, se da flor. E um animal coberto de uma concha de peças a modo de armadura vivendo nos buracos cavados de unha. E uns com agulhas. Galinhas, mas tinham alguma diferença das nossas. Pássaros verdes e de mais formosas penas e passarada branca ou parda ou vermelha como grã, de bicos longos ou não, de pernas longas ou não. Os papagaios, muitos. Todos esses bichos, os viam os homens de Francisco de Albuquerque, atiravam e os matavam quase sempre e os despelavam, assavam, comiam, fosse a carne de mau sabor. E um rio caudaloso com que moíam as canas, por onde entrava a maré, largo, de boa barra, sem baixio nem alfaique, em si podiam navegar desde velas a remeiros, que carregavam cem quintais de qualquer coisa, como que porto para embarcações. Tiras de água se viam alvejar por entre matas que iam ao fim.
As árvores agrestes muito rijas, aos seus pés nasciam uns vimes que subiam até o mais alto delas como que mastros de navios e os seus ovéns. Lançavam odores de bálsamos, de castanhas e grandes ervaçais, seus troncos choravam suavíssimos licores, a mata era um pomar formoso de uns figos amarelos e frutas de espinho que cobriam o morro, matas de mangues, florescidas sobre a lama, que dos ramos lhes desciam as raízes ao lado, depois, de cima lançavam outras raízes no charco e assim seguiam até formar uma entranhada floresta, coisa de muita admiração, assim mesmo de uma árvore um fruto grande entre suas folhas largas, rijas, as castas de palmeiras, as árvores de roxo, de amarelo, jaspeadas, tão grossas como tonéis, tão finas como cabos, cujos frutos eram uns vasos tapados e as amêndoas, outras como verdeais, uma formosura para fazer sombra onde se mitigavam as dores do calor e todos os ruins humores que se achavam no corpo, por isso argúi a sua bondade, que desfaz a alma em areias.
Depois de uma ponta a légua e meia, uma ribeira, um engenho de um principal, uma olaria, um curral de vacas e uma calheta onde caravelões fundeavam, após um esteiro muito fundo, uma praia e seguindo para dentro por um rio de engenhos chegamos ao pé de uma serra que se dizia dos Bugios, povoada de muitos gentios naturais da terra amansados, uns vaqueiros do reino e muitas vacas, tantas que tingiam a terra seus pastos morro acima e morro abaixo, pela várzea e não se acabava com o fim da vista. Mugiam e delas havia um odor de leite e estrume. Disse Francisco de Albuquerque. Esta éa tua casa. E nos receberam com alegria e cópia de lágrimas porque ainda que, como se dissera, ali estivessem muito à vontade sendo em tudo senhores absolutos de toda a terra com tudo não se davam por satisfeitos por ser aquilo degredo, não tinham amor pela terra, queriam tornar ao reino. Moravam todos feito uns naturais, num lugar coberto de palmas secas e fortificado de uns paus amarrados. Uns roçados em torno, uma roça distanciosa, ajudada pelo sentido, de onde se podia avistar o longo campo de trás, o da frente, os dos quatro lados, acima e acima do acima. Antes de entrar na casa, mandei que apagassem as luzes. Achei que devia meter a vela mais pequena do lado do noivo. Mas não havia nem vela nem lado, mesmo, que fosse. E ordenou Francisco de Albuquerque, tirassem frutos de árvores de espinho e mais frutas, fizessem boa comida. Aquele boi preto, mandou para ser vendido a um engenho, que estava velho e os gatos o iam comer. Foi dando suas ordens, que se iam os bugres a fazer, trazia cal, breu, azeite e o mais pedido para os serviços das casas e do curral. Trazia esposa, filha da rainha, de modo que se meteram em joelhos por mim, num grande desentendimento.
Provido de algo, pouco para um paço, demais para uma pobre de mim, de uma grande porta, fileirados os aposentos, em meio ao escuro da noite. Ao ver o lume apagado, quis acender e disse ele que o ordenasse, agora era a dona e tinha muitas criadas. Atrás o nosso cortejo de cativos era de muitas naturais, de quem Francisco de Albuquerque lhes falava a língua, como vi, novinhas de pele e amelas, revestidas de panos a modo de roupas, caladas, olhos em mim. De que uma, como falasse nossa língua, mais vivida, se pôs a alumiar a casa, tirando umas brasas do fogo alto, em meio de tudo e afastar os animais, que eram uns papagaios verdes, um bugio agrilhoado, galinhas pintadas e um galo. Umas esteiras no chão a modo de camas e um catre entre tudo, forrado de pele daqueles gatos, muito formoso, mas me agastei de estar em meio a elas e dei a ordem, alevantasse um quarto mais na casa, para mim, do que riu Francisco de Albuquerque, dando conta de que minha ordem era tardia, mandara fazerem a alcova para nossos amores, avermelhei o rosto como o delas. Abriu uma porta que dava num aposento, um silêncio de sapos e águas finas, que repousava em uma penumbra de sonho, terminando em uma abertura viva dita varanda, coberta de palhas secas, acima de uma pedra muito grande que se desfazia por baixo de nós, dava num rio que caminhava mais um tanto até o mar, que se via longe. Disse ele. Foi aqui a espera de ti. Disse um sonho que tu serias assim como és. Logo que te avistei te conheci. Disse eu. Que nem saberias. Aqui é lugar de dormir e descansar. É de recolher a alma. E disse eu. Que minha alma se recolhe ao longe, além de acima daquelas estrelas. E disse ele. Lá estarei.
Acaba das as conversações fomos a uma mesa alumiada com círio de igreja, onde havia uma mulher, os cabelos feito tições com a alvura das cinzas, de mais idade que o rei, que no aspecto e na gravidade de sua pessoa mostrava bem ser quem era, a qual vendo da maneira que estava eu pasmada me mandou tomar lugar e disse. Comei vossoutros. Partiu das comidas e serviu, mulher fria como se de neve fora feita e assim mesmo alva, de olhos longos por nós, trespassada, dando ordens às naturais, que vertiam vinho numas canecas de barro e uns pães brancos como a lua, enrolados como os palitos de mel. Disse Francisco de Albuquerque à mulher. Por tua obrigação de amor maternal que te a natureza obriga, sendo tu a minha própria mãe que me pariu, eu te peço de coração que nesse cabo do mundo receba minha esposa pela lei de Deus, como se tua filha de ti nascida e a quem deste teu leite e conserves comigo a nossa amizade. Ficando num silêncio triste virou a mãe para mim e alimpando os olhos das lágrimas que a oração do filho fizera derramar, perguntou meu nome, o que eu disse e ela falou. Nome de vaca. E ela, dona Branca de Albuquerque, me esteve perguntando por algumas particularidades do reino, dos reis, repeti as notícias ditas ao governador, nem tão miudamente, mas a impressionar de boa sabedoria. De meus pais perguntou ela, não dizendo eu mais do que ser órfã. De minha terra muito falei, do Mendo Curvo, das flores, das abelhas, dos figos na igreja, das escadarias, do castelo, do vale, tanto que me fazia levar a alma até meu passado e minha casa pobre, ao que ela ouvia sem um riso, passando assim a hora de deitar e Francisco de Albuquerque me mandou recolher. Os murmurares da casa todos se faziam ouvir, sem que eu pudesse enxergar as palavras ditas, mas as não ditas, estas sim. Que de mim diziam, sem contento, que de mim arrazoavam em sins e nãos, mais em nãos que em sins da parte dela, dona Branca, que seu rosto gelado asseverou.
Ao leito Francisco de Albuquerque sussurrou que a mãe me apreciara e dissera, tua esposa sabe assentar, no que dizia saber eu me conduzir à mesa sem asneiras e disse eu. Não sou asno. Disse ele. Entende e respeita minha mãe, mas tu és a senhora da casa, que ela já teve a sua e está aqui de caridade, pois a arrasto comigo de cristão que sou, sabe Deus quanto contra minha vontade, porque sempre lhe fui muito bom filho, para minha mãe não ficar como ficam outras muito viúvas, pobres e desamparadas, a tomei por viver em minha casa e para estar com ela enjeitei outras mulheres com que dantes fora cometido, assim em Toro, como em Timules, em D'uero, com que poderiam dar muito dote. E para evitar murmurações de maldizentes que falam sem medo quanto lhe vem à boca, mandei
lançar pregão que ninguém falasse mais neste caso. Assim foi, no reino, parti trazendo a mãe, de quem não mais serei tão filho, por ter a ventura te mandado a mim, por quem meu coração se perde em amores, darás filhos que comerão à mesa, dê a natureza uma língua suave para murmurar às tuas orelhas. Era dona Branca um pouco soberbosa, que a perdoasse, coisa leve de se ir pelos primeiros ventos da manhã, mas conhecia e respeitava ela os preceitos e todas as coisas um dia acabavam.
Tinha ela muitos olhos, de mãe, de abadessa, de falcão, os olhos de inquirir o mais fundo, em seu calado modo via por dentro das almas, como fosse uma sibila e devia de saber ver nas panelas de água, nas pedras de cristal. Sabia feitiços? Que lhe fora outorgado um poder do céu e da terra e podia olhar para os raios do sol sem cegar suas vistas, sua alma se desfazia do corpo e avoava pelos céus até a cidade, cada noite, a visitar a irmã, ou até o reino, onde bailava nas festas ou via do lado da rainha os autos e sabia do que se passava nas câmaras do rei, onde se decidiam as guerras e as moedas, os destinos das armadas e tudo o mais. Sabia ela fazer partos, rezas, sabia cuidar das deleitações do corpo, sabia dizer quando era anjo que se tornou carne, ou diabo em corpo de mulher, que a ouvisse eu, era de bom entendimento, bom conhecimento do evangelho, sabia prosar com as cegonhas e com as vacas tinha parte, tirar as quenturas do estômago de mulher e tirar de mulher a sensualidade. Com isto arremeteu ele a mim, tomando minha mão para beijar. Disse eu. Acho a mim assaz embaraçada com a novidade da rua saudação, que mãe é mais dona que esposa. E ele. Tu és a senhora de tudo. É bom deixarmos isto para outro dia, porque te farás mais à casa, não estranharás se ver no que agora te vês. Veio Francisco metendo seu corpo em mim. Isso é que era o falado amor? Era isso? Se já não causava tanta pena, ao menos me deixava nos intróitos de uma coisa mais admirável que o mistério.
Despertei com uma grita de pássaros, deles havia em gaiolas ao pé da casa, do que arrevezei e mandei calarem. E se fez um silêncio grande. Percorri os lugares, a cozinha, a sala dos potes de aguada, as montanhas de lenha, o armazém cheirando a couro e canela, os fumeiros de carne, o salgador, o pátio de descanso dos vaqueiros, onde naturais varriam, fiavam, cozinhavam em um grande forno de barro, às tontas com o cheiro do gato bravo que rosnava em sua gaiola, fui admirar, de olhos solares, pintas das mais pretas sobre um pêlo amarelo e uma malícia no caminhar que se diria ser uma fêmea, mas era macho. Um pavão de voz espantosa, de que tinha o nome, fazia pavor aos que ouviam de noite. Muitos cães, uns galgos em casa, cavalos para correr as vacas, uma animalha grande e soube que saíra com o sol Francisco de Albuquerque a levar vacas ali e além, aos pastos, como todas as manhãs sempre fora, ia ele acolá, avistei pelo chapéu, de modo que seu vulto fazia impressão da sua alma mortificada, castigada, de oficial que fazia por suas próprias mãos, a cara como se lhe houvessem um cilício amarrado e sendo ele rude queria se fazer por todos admirar, dizendo suas palavras de grito e depois de noite tratando de mostrar que seu espírito se ornava de ciência e claridade, amor, dulçura, mas comia uma farinha tão esfaimado que não se contentava com suas carnes e suas ervas e havendo seis diversidades de carneçarias à mesa, disse ele. E só?
Da casa se avistava o curral, as vacas deitadas ou tangidas para distante das reses, os machos longe das fêmeas, os doentes longe dos sãos, um mugir triste vindo daqueles lados, após o rio, uma ponte de paus muito rude, que antes do romper da luz iam vacas das ilhas tocadas por vaqueiros pela trilha servir leite às portas das vivendas na cidade e nas fazendas dos caminhos e no paço do governador. Se ficava velha uma vaca, sua gente a levava à cidade e a matavam e se vendia pedaço por pedaço de carne ao que viesse comprar, escolhendo o que queria, ficando uma ossada repugnante que vinham umas aves rapinar, aos restos vinham pobres lazarentos tomar caldos dessas podridões. Tinham as vacas os mais tristes olhares, eram tão boas que se contentavam com ervas naturais, até umas ramas espinhentas e das pessoas se afeiçoavam, feito cães, mesmo dos que lhes cortavam os chifres para fazer botões e se deixavam levar. Eram aquelas vacas e touros pacífico gado do Cabo. As fêmeas vacas davam bezerros todos os anos, desde novilhas e mesmo as velhas seguiam parindo até a morte, umas pretas e lisas que pareciam vidradas no resplendor e brandura e outras de muita virtude, que eram leves e duras, vacas como que umas órfãs da rainha, oh que trabalhos tinham aqui por nossos pecados, obrigadas a mísera vida cumprindo uma sentença, vacas do céu, desconfiadas, cada uma a penar por si, sem tempo, cha cha cha, samicas doudejais vós? cha cha cha demoninhadas, de olhos tão marejados, senhoras, que cada momento de hora são mil anos de tristura.
Por todo lado umas crianças tisnadas se escondiam de mim fosse eu uma besta e outras se acercavam, bé mé, de olhos grandes, curiosos e entre elas uma menina alva, ricamente vestida como filha de senhores, contando uns oito anos ou assim, que vi logo, era de simpleza ignorante, pelo modo como chamamos simples os parvos, correu ela das minhas vistas, feito um coelho a ter visões horríveis. Perguntei a Francisco de Albuquerque se era dele a menina alva, ele disse que era sua irmã, Viliganda e que servia para lhe descalçar as botas, nada mais. Eram ela e sua mãe como feras e Francisco de Albuquerque feito uma alimária do mato. Mas não era a vaca uma alimária? Que depois de mortas, pelo leite que nos dão, as vacas se convertem em outras vacas do mar. Viliganda me fazia ainda mais espezinhada, sem saber nem mesmo quem era eu e o que fazia ali naquele fim de tudo no meio de umas vacas, sem capela onde deitar meus joelhos e sem olhos de santa de quem se sentir mirada, um gado entre gados, uma raposa entre lobos, tresmontada nas lágrimas a ser mesmo a besta de meu pai, que ele dizia, que besta és, qué? Por que nasci assim? Que isso é? Se me teve ódio meu pai é que sou fonte de ódio, dizia ele, dada a falsidades, sempre acreditei e dona Branca se me tem ódio é recolhido dos meus erros, cada um com sua culpa, mas não tenho medo dos olhos da menina, não temo seu braseiro das vistas, não baixo as ventas para a mãe, feitiço sempre se pode desfazer, não vou gritar pela intensidade das aflições nem derramar água nos olhos pela minha pena, Viliganda, xou.
Nas panelas as naturais preparavam uma gosma, servida nas tigelas aos cafres que ficavam de fora, uns de Guiné, outros brasis, de que se nutriam pelo almoço, para nós uns tipos de carneçarias singulares, bofes, baço e toda a outra mais cabedela tudo tirado das entranhas de um novilho nascido nos currais, farto d'alhos, pão da farinha do reino de que muito desenfadei por melancolia, mas daquele trigo cheio de terra porque nunca o faziam joeirar e nem o passavam para moer aos moinhos de vento, tão sujo como o levantaram da eira e pichéis de vinho das Estrelas, muitas coisas do açúcar do lugar, sua rapa, seu caldo em cozidos de frutas, maçapães e berbigões, a fazer grande impressão a mim que muito passara eu a pão com cebolas em minha vida, sonhando com as queijadas, trancada na cozinha enquanto meu pai variava de puta e de vinho. Dizia meu pai. É esta menina tão má que nunca dá peneirada que não derrame farinha, ieramá, muitieramá. E tornava meu pai com sua boca cheirando a enguia, sempre a dizer que havia fome, como dizia o povo, ele todo dia come, ele toda a noite dorme, ele não faz nunca nada e sempre diz que há fome. Carregavam os escravos suas armas pelas cintas e nas paredes deixavam os arcabuzes ou do que se armavam para a vigia dos bárbaros, uns traziam paus de lavrar, que iam à roça pela manhã e à tarde com muita humilhação, que era coisa de mulheres e preferiam morrer. Nos jantares e nas ceias a guarda assentava atrás do fortim, repousava, ficavam as portas muito sem guarida e sem vigílias, quando se trocava um pelo outro. As naturais se metiam em alguns matos a fazer covas, plantar e amansar plantas bravas, para seu sustento e dos cativos, que sem suas armas mesmo assim se metiam no mato e traziam uns javalis grandes ou uns gatos ou bichos feito bugios, de se comer e os comiam com grande gosto.
No mosteiro fora uma vida de temores, a Deus, ao Demo, àmadre, ao pecado, à tentação, de dia muito se trabalhava, nas lavagens das pedras, varrendo os quintais que nem uma folha seca se via sobre a terra e nas colheitas do pomar e da horta e no calor dos panelões de cobre e a fumaçada vista, nos fumadores, nas lingüiça- rias, nos vinhos, licores, no torrar grãos, no peneirar farinha, no pendurar uvas nas gorgomileiras, no tirar leite das cabras, no tirar azeite ao pote e catar ovos de pata, lavar os burros, no matar coelhos, no catar pulgas, na carregação de bacias de água do chafariz, nos banhos e vasos de ourinas e mais sujidades do corpo, nas lavagens das roupas no córrego, arear panelas, lavar serviços de cozinha e mais outros, lavorar na floração dos jardins e poda, na roca e tear, no adorno da capela, nos bordados, no levar leitão ao cura, catar feixe de lenha, encher palheiro, no ensino das tarefas às que chegavam, no cuidado com as doentes e as possessas, que era essa a maior causa de males, na vigia dos castigos às rebeladas que eram açoites ou preces na capela ou cela escura ou fel na boca, no serviço às freiras que era o mais disputado dos trabalhos pois nas celas moravam sozinhas as religiosas e comiam doces, pucarinha de mel, que sempre sobrava um resto, tinham boas águas-de-cheiro para os banhos, espelho para toucar, linho nos lençóis, cãezinhos de regaço, ócio, toalhas rebordadas, brincos de ametistas, ais ais uis uis, os menos apreciados trabalhos eram o de lavar bispotes, levar bares ao rio, lavar as toalhas de sangue do costume e varrer as folhas do telhado, sendo este um que aprazia, mesmo havendo o risco de escorregar, mas se via um campo de oliveiras, uns caçadores, colinas, os muros das terecenas e a cidade ali, ao pé, linda feito canteiro de rosas e se ouvia o canto das mouras. Tanto lavor de dia até o começo da noite, não havia tempo para as recolhidas se darem a gastamentos noturnos.
Mas no fortim de Francisco de Albuquerque os dias eram de estar à varanda sem ter o que fazer, ver as águas do rio escorrendo, os naturais com seus dedos desbaratados levando da vaca o leite aos bacios e alguidares, ver no meio do mato os galhos deitando e chegando nas jaulas as capturas e os preparos das armadilhas, mais aves verdes para comerciar com as naus, assim como outros gatos bravos e ver as naturais às panelas, sempre agachadas e no mais era comer e comer. Estando todavia a noite deitada em toda a terra, em suas trevas escuras e em todas as vistas as estrelas, as candeias apagadas, as velas assopradas, era que o mundo se dizia mundo, o do suspirar, namorar sonhos, minha alma viajava por nuvens pretas, pelas moradas do zodíaco, meus olhares esvaneciam, as lágrimas saíam, meu espírito mulheril andava pelos chavascais, portos, pelas Índias, casas dos amores, pelos pecados, nas raivas moídas, no querer bem, nos altares, nas danças do vento nos campos de oliveiras, a adivinhar no curso das estrelas e nesse escuro dos gritos em silêncio corria a vida de falsidade como de verdade fosse, mais funda se fazia em mim. Da vida em minha terra não queria recordar por ser um falso lume a derramar pelo mundo o alembrar como fora uma verdade, querendo animar e esforçar minha alma perdida, como nessa ajuda subir à alteza das virtudes falsas. Alembrasse eu de meu desígnio e de minha esperança, embarcar na nau, rija e direita, fortemente levada com ventos a ir guiar pelo meu desrumo à terra minha. E a dizer, sem mais meu desejo torcido com amarguras. Sentia eu os olhos de Viliganda a espiar para todo lado, qualquer canto, onde ia e não ia eu, a espreitar, pesar, medir, julgar, apertando seus olhos pelas frestas, pelos escuros da noite e das portas fechadas.
Partia a nau na manhã do outro dia, de que sempre dava Francisco de Albuquerque notícias, apertei nos dedos as moedas de ouro que roubara e decidi. Na ceia os homens e cafres, tomei do véu e do missal com que casara, me escondi em um desvão do quarto onde estavam os cativos atados uns nos outros por cordas, esperando amansar sua selvageria. Foi um momento em que não soube bem, ao alembrar da viagem, do balanço das ondas, da lâmina do sal, dos ferimentos na gengiva, das maldades do mar tenebroso, mundo só de portas escuras que se abrem para baixo, entre o escorrer de suor e o tiritar de frio, escutando os gemidos e dores alheias, as cuspidas dos machos e seus jogos de baralhos, ouvindo os dentes estalando, pele com pele, osso com osso, a sentir uma perdição no mundo, sem o em torno, sem o chão, sem o chegar. E se fosse de novo eu, poderia? Assim esperei, a pesar o passado, tornar a ser como fora. Haveria algum caminho para trás? Saindo o sol a termo, para o outro lado do mundo, com seu desraiar, esperei nada mais ver que sombras, o vigia adormeceu no fundo da guarita, abri o portão devagar e pelos cantos da pedra escorreguei, tomando o caminho aprendido, sem pressa, para não ver perdida minha sorte nem ser encontrada de bárbaros ou bugios bravos ou gatos ou serpes, no rumo da cidade, que parecia nunca chegar, ai Deus, Aldeia Galega, Landeira, Ranginha, ui ui, tudo é terra minha, me perdendo pelas matas a lamentar minha pouca preparação, até que avistei umas luzes alumiando o céu e mudei a este rumo, mais uma caminhada e entrei na cidade.
O terreiro sozinho se espalhava em luares, as janelas vertiam luzes, queria eu dar adeus à Velha, que fora tão amiga e protetora, mas em sua casa ao espreitar, em vez de a ver reinando em suas glórias merecidas de letrada, em vez de a saber sobre livros ou a arrazoar entre os mais ouvidos, estava ela assentada num canto do chão com a boca amarrada em uma mordaça e uma inchação no rosto, como um castigo de ser mais que os outros e quedei a pensar, mas fui ao desembarcadouro. Que pode um prisioneiro fazer por outro? Par-deus, ali estava o mar aos meus pés, ardia, em luzes resplendidas, tudo em diamantes, jaezes de encantamento, num grande primor, luminárias de custoso feitio e argentaria, cadeias e maças agradáveis aos olhos, como um altar de reis, mitras, coroas dos peixes e das estrelas marinhas, a jóia suprema do tesouro de Deus, uma vista das marés se desfazendo em guirlandas efêmeras de um casamento, meu com a vida, com as estrelas, o vento, meu com as ondas do mar, com a aspereza e a vã glória que o mundo me dá por satisfação de estar desenterrada. No cais estava o que dissera o oficial, o batei da nau, os remos, mas nenhum remeiro, nenhum homem que me levasse, longe a Senhora Inês no remanso, pesada dentro d'água, calada, em algum lume de bordo, uns vozerios de quando em quando, entre as pedras da fonte assentei e encolhi, tirei os sapatos a esperar. Os pés doíam. Eu queria ver minha mãe, mas ela nem sonhava vir, mandava uma outra, mulher velha redobrada, que me tirava as roupas todas e lavava estes todos vestimentos num riacho, o que ficava eu a esperar, nua como as naturais, tendo as partes como as delas mas em muita vergonha de que me avistassem, me metendo no mato até que secassem os vestidos, o que nunca se fazia e eu ali, vergonha de ter pélos, que o despudor das negras devia ser que eram como meninas despeladas, ai que medo de ficar nua. Sonhar é bom, mas nem sempre é. Se é sonho, fica na cortesia, seja no bem seja no mal.
Um graveto quebrando me despertou, vi o sol rompendo e no batei, mas ao lado, esperando o oficial, atentei, que devia ter cautela. Bufava um cavalo, tudo o mais era silêncio. Um vozerio se ouviu do navio, alguém chamando pelo nome de Estevão, o oficial tomou do remo e se meteu no batei para remar à nau, no que me apresentei. Alembra? Trato feito, trato cumprido, que somos de honra e honestos no fazer. Confiei em ti e aqui estou. Trouxe vossa mercê o ouro, senhora? Estendi as moedas roubadas, mas meio, pois minhas eram de direito, em parte, que sou esposa e as dei. Não soube por que ele fez sinal. Senti uns passos e atrás na areia vinham dois marujos, com seus barretes, em um modo de arremeter e saltei, corri com toda a ligeireza de minhas pernas, mas logo me alcançaram, na areia rasgaram a minha camisa e se lançaram sobre mim, se servindo um como esposo, outro me agarrando as mãos. Por amor de Deus, não me faças mal, eu pobre mulher te peço com lágrimas prostrada, que não arranques tua força contra minha fraqueza porque sou mulher que não me sei defender, nem sei mais que chorar diante de Deus a sem razão, que há de castigar com justiça e com potência tão espantosa os maus e te peço e te rogo, de minhas entranhas te suplico, de que me serviu só que tapassem a boca com mãos areadas, que eu mordia sem poder e todas as forças de meu assombro e revolta se faziam poucas em frente ao poder deles, que o segundo veio querer trabalhar sobre mim, cães, perros, malditos cains, aieramá, santa Joana de Valdez, onde está vossa senhoria e se fez um barulho de artilharia, que me vi solta, alevantei, os dois tinhosos correram num rumo qualquer feito tivessem avistado o próprio Demo com sua língua estirada até o chão.
O oficial estava morto estendido, vinha aos dois perros Francisco de Albuquerque com sua espada acometendo pelos peitos do marujo, enquanto o outro se metia pelas águas, onde foi Francisco de Albuquerque levando a faca na boca e se deu no mar uma luta, um tempo comprido, tentei escapar mas dois vaqueiros me tiveram, cativada, esperava pelo meu castigo. No he temor, piedoso es el Señor. Que me matassem. Saiu do mar Francisco de Albuquerque, arrastando o morto que sangrava na areia. Minhas mãos amarrou com um cabo e disse. O sulco de tua cegueira e tua danada tenção te trouxe a ti ao oficial dos infernos e à côncava funda do lago da noite, porque em vez de dares graça à mercê que Deus te fez, te vais a fazer motim. E se puseram num trabalho alongado ao pino do sol, cortando umas árvores, cavando a areia, metendo ali os paus, formando pelourinhos como cruzes dos ladrões, depois amarraram os mortos, debaixo das cabeças deles amontoaram lenhas e atiçaram uma chama, os três se incendiaram. Disse Francisco de Albuquerque. Assim pagam os patifes o tributo de suas velhacarias. Que se possa ver de longe o castigo a modo de que não mais se metam. Avistem os oficiais da nau, de aviso, os da cidade, os naturais, todos. Que sou manso e bom se meu coração não apunhalam. Disse ele a mim. Por quê? Fiquei a pensar, para saber como explicar pois era meu desejo claro e alumiado, mas meu motivo escuro e desalumiado, uma coisa decidida assim o é e não se muda. Nada eu disse. E se fez à vela a nau, com sua bandeira, toldo, as gáveas, sobregáveas guarnecidas de telilha, estandartes muito compridos, acompanhada de uma barcaça de remo, levando as minhas esperas, uma naviarra honrada, formosa, suave, oferecida a Deus, deixando os perros incendiados com suas almas surtas na areia.
Partiu Francisco de Albuquerque em seu cavalo, sem tornar atrás os olhos para ver se eu me arrastava ou caminhava, pela estrada, trilhas, lonjuras, espinhos, cascalhos, pedras, sementes, gravetos, estrume, sem paradas para um repouso, sem nunca em esse tempo me dar de comer coisa alguma, nem água, os pés cada vez mais em suas gritas e sangue brotando deles, por todas as léguas entre a cidade e o fortim, horas que pareceram cem anos de inferno, sem respeito por minha pena, sem ouvido por minhas súplicas, bem afrontada e chorando minhas desventuras. Que não era veado a ser caçado e arrastado nas trilhas, não era aqueles gatos jaspeados, bicho nem natural nem mulher pública, devia ele o respeito de matrimônio e agora é que era, me desatasse as mãos e desse de calçar, deixasse partir, faria menor mal então se me matasse, como lhe pedira à tia, que nunca dissera eu sim, mas adeus. Fazia ele que não escutava, os gritos retinham pela serra, eu arrastada. Em casa amarrou com a corda me prendendo aos pés do catre, onde me fez deitar e disse em voz mansa como esquecido da raiva. Vem uma mulher te curar. Muda este teu mau propósito, não consente que em tua fantasia entre tamanho pecado, fia-te de mim que te amo e te sou esposado, assim, enquanto viveres, viverás em paz. Depois de estar um pouco pensativo alevantou e se foi, mandando a natural que falava em minha língua tratar dos meus pés com águas de um pau que fervia e esfriava e me banhava, de modo que a dor acabou. Passando uns dias lhe pedi liberdade, mas disse ele, liberdade em mim era espada na mão de menino e ali fiquei no catre, sem Francisco de Albuquerque me visitar de dia nem de noite, que se deitava com as naturais e as fornicava à minha vista, como para humilhar, mas a um modo de cachorros, em joelhos. Fosse para dar ciúmes, nem se perdesse nisso, de mim não teria mais que a raiva.
Só uma vez ele veio, sem eu enxergar, era escuro, um barulho de sapatos me despertou e vi a sombra como que de alma de duque, que assombra rei. Ia gritar quando pelo halo dos cabelos avistei que seria Francisco de Albuquerque, que a mim mirava como se suas vistas fossem de corujas que enxergam no escuro e comem o azeite das alâmpadas das igrejas e ele se virou e se foi, sem tocar em mim, no que me deu uma gastura e não dormi mais aquela noite, numa vigília de condenada, a ouvir as conversações da casa, da Perra, os tilintares das espadas e arcabuzes e as vozes dos vaqueiros. Alevantada a lua e já querendo baixar no morro, se ouviam das entranhas do mundo seus ruídos escritos, pequenos bichos que roíam as almas, as plumas das aves negras, todos os gusanos rugindo, os cozinheiros do fogo e os mastigadores das maçãs, vinham do fundo da terra os seres que Deus esquecera de terminar para um mundo que vivíamos nele apenas por não sabermos que despertamos, cujas luzes serviam para cegar, os fundos segredos desenterrados, tudo em cem mil pedaços, heu mihi, heu mihi, Belial avoando nas nuvens, com os meirinhos de sua corte abrindo os alforjes, ai ai ai, o que fizemos no pomar é o alicesse em que se fundou nosso desatino, que não é mudável, somos uns bugios muito mal inclinados. Uma coisa bonita, mas como flor, se vai acabando.
Agastar em tão más palavras sua boca, de mim dizia dona Branca, que era eu virtude fingida, de furtar e negar e renegar e que grande era a cegueira de seu filho pois confiado na esposa não queria mais à mãe ouvir as alertas, que se arrependera muito ela de ter cometido aquela viagem, encerrada que estava ali como panela sem asa, sempre no mesmo lugar deixada, podia estar no palácio com a irmã. Disse o filho, não se consumisse a mãe por tão pouco, que se agastaria ele por muito mais, percebera a mãe a fuga da esposa e sua boca calara em traição, deixando que escapasse. Maldisse a mãe o infernal apetite do filho, dizendo estar sua alma macha às portas do monturo da carne para dentro, que decerto, soubera ela da fuga da nora, quem fora cegado ali pela paixão era o filho, que nada via nem se deixava ver a serpe que alimentava em um berço de ouro, para que lhe mais tarde roesse os calcanhares, assim eram os homens cães esfaimados e sendo homem, disso não escapava, de que não havia sentir nem medir nos olhos do filho aos sofreres da mãe desde que chegara a esposa jovem, deixando a mãe passar dias de esterilidade, com escassos bocados de amor, se soubesse que ia parir uma mula, tinha arrancado a ferros. O filho pediu perdão e se apartou para a mata, do que me fez muita alegria, mas compaixão da pobre, que se arremessava em prantos, dela e de mim. Por muitos dias não se viu Francisco de Albuquerque na casa e se fez um tempo silencioso, como tudo estivera tomado de um dilúvio, as naturais e dona Branca se deixavam em joelhos diante da Senhora Mãe de Deus em devota prostração, a orar pela paz nas almas e no secreto de suas vontades, pela minha partida.
Nesse tempo se deu de minha amizade se encantar por uma natural, de cor muito baça, bons dentes brancos e miúdos, alegre rosto, pés pequenos, cabelo aparado e que me falava a língua, com a rudeza dos matos e modos de animais silvestres. Vinha sempre ela ter a mim com o prato de comida, no mais colhia figos que assava na fogueira e trazia frutas, mel e me tratava os cabelos untando com óleo de cocos-bravos e foi quem me curara os ferimentos dos pés. Espantava morcegos das palhas, ria de qualquer coisa triste, vestia um tafetá verde e chamava Temericô. Acenava muito ao falar, em voz desentoada dizia que saísse a que abanava, uma que não sabia entender minha linguagem e a que banhava, três aias me tratavam. Preparava Temericô uma cuia de comida, sem alvoroço chegava, sempre contente, descalça, sem coisa nenhuma na cabeça e me banhava na gamela, com uma barrela que fazia de cinzas, ervas e lama, perfumada, que deixava a pele escorrendo. E me vestia, trançava os cabelos, abanava. Cantava cantigas, tocava um pífano de graveto, contava de sua povoação, onde amava os pais e irmãos, de quem mais nada sabia, que lhe falavam deles as estrelas, fora ela caça do mato e palavras mansas. Era de um gentio muito antigo que fora lançado fora da sua terra das vizinhanças do mar por outro gentio seu contrário que descera do sertão pela fama da fartura da riba do mar e seus pais e avós perderam as terras que tinham senhoreado muitos anos e lhes destruíram as aldeias, roças, matando os que lhes faziam rosto, sem perdoar a ninguém, em frontaria com os contrários numa crua guerra, onde se comiam uns aos outros, os que cativavam ficavam escravos dos vencedores, numas batalhas navais, ciladas por entre as ilhas, grande mortandade e se comiam e se faziam escravos, até chegar o tempo dos portugueses. O-îo-akypûer-i, um trás outro, trás de um o outro, mokõî, mokõ'-mokõî. Tinga.
Tinha Temericô muita graça quando falava, era compendiosa na forma da linguagem, copiosa no orar e lhe faltavam umas letras, dizia Pancico o nome de Francisco de Albuquerque e Rorenço e Rodigo aos vaqueiros, ria do nome Janafonso. Cruz, era curusu, selvagem era sarauaia, sapato era sapatú, cabra era cabará. E cantava canções.
Pe ió rí Tupana piri Pabinhé angaipá bóra Peicó imé iabábora Tupãsuí
Para ela, brincar e esquecer eram a mesma coisa. Comia no chão, agachada e quando vinha seu costume atava ela ao cinto um fio de algodão e em cada bucho dos braços outro fio, onde ali metia uma flor, desflorada por um que não seria seu marido, mas outro, não queria romper ela o fio de sua virgindade. Usava ramais de contas ao pescoço, nos braços debaixo dos panos, tinha as pernas engrossadas pelas barrigas a modo de disformidade, do que disse ter metido ali sua mãe, enquanto era Temericô uma cachopa, um fio de algodão apertado. Eram suas vergonhas de criança? Ela rapava todos os cabelos. Amava? Amava um mancebo. E como era o mancebo que ela amava? Um depenado, de forte corpo, coberto em suas partes, por galantaria e de lavores pretos, umas penas amarelas e arrecadas de ossos nas orelhas e manilhas de penas. E disse eu. Os de sapatos amarelos, na minha terra, são fidalgos.
De minha terra falei, não do Mendo Curvo, que para ela não faria graça, mas da Princesa do Mar Oceano, dos seus cavalos aos milhares, da cortina de muralhas até as terecenas com mais de cem portas e cem torres, dos paços, onde ficava toda a gente rica do mundo vestida nas mais sedosas peças, estátuas nas paredes, das naus em mais de mil velas no cais de pedras e das gentes nos terreiros a vender de tudo e a falar em mais de mil falas de todos os remos e países, biscainhos, genoveses, flamengos, numa imensidão de comércios de chão de feira no Santa Justa, a vender de tudo, ouro, tecas, coiramas, águas perfumadas e as fábricas, as ferrarias, os fornos de tijolo, as gritarias dos bufarinheiros e que podia eu ir a todo lado, onde fosse, até à rua da mancebia sem ser mulher pública, que estas levavam todas uma franja escarlate no ombro e uma capinha da mesma cor.
Como se vestiam e ornavam as mulheres, quis ela saber se era feito eu, do que ri, feito eu só as criadas e as camponesas que queriam casar, as mulheres das feiras, mas com sombreiros de palma, vestido pardo de lã meirinha, rebuçadas à la mourisca, liripipe, ai quem dera, que meu chapéu sempre fora uma cesta com cabrito ou figos ou ameixas, minhas jóias umas gotas d'água. Puxavam as mulheres os cabelos para trás, ali os trançavam e se cobriam com uns véus que chamavam nébola, ou faziam umas rodas de cabelos chamadas temporais e metiam umas almofadas, tão largos arranjos que mal se podia passar por uma porta, pareciam muita vez uma vaca de chifres, como a vaca Tormenta, que lhe nunca os cortaram por ser muito brava. Ou metiam nas cabeças turvantes tão altos que se chamavam chaminés, rematavam tudo com gorros ou capuzes, as mangas broladas com muito luxo terminavam em palatinas que arrastavam no chão e faziam umas saias cortadas em tiras, à moda germana no que se gastavam às vezes dezesseis varas de tafetá, ou ainda mais, debaixo de tudo usavam as damas uma camisa e sobre isso a beca de cintura apertada, pregas, anáguas, mais anáguas, até o chão, barras de pele de animais macios rematando as mangas, lince, zibelina, lobo e umas rapavam as sobrancelhas e os cabelos da testa para semelharem as de Itália e como as italianas, se metiam em uma solana, que era um cha- péu de largas abas, sem copa, untavam os cabelos de ruibarbo ou limão, ou enxofre, ou açafrão a modo de os ter dourados. Tybytaba? Banceia? Banceia? Do mesmo modo arrancavam as pestanas. E umas mostravam as tetas tingidas de vermelho, pelo decote. Quase sempre negro ou carmesim e quanto mais rica era a mulher, mais cores tinha sua roupa, mais vestidos fazia ela a si, até uma salvaguarda acolchoada para viagens, para as festas se podia haver um veludo púrpura bordado em ouro e tantas pedras preciosas que escondiam o tecido, fosse uma rainha.
E se admirava ela queda a escutar o que contava eu. Perguntou o que era rainha. É ser a dona de tudo, a que cintila mais que as estrelas, a quem se cobre de riquezas e leva na cabeça uma tiara de realeza, mulher que tem mando e voz. Perguntou se era eu uma. Ai, besta demais para ser mulher. A pobre de mim fora pouco menos que nada, uma mísera filha de um mercador de azeite que um dia fora rico e lhe morrera a mulher e se embriagara ele para sempre, nada mais restando, a se curvar então ao lado dos que foram seus mandados, a ser mandado, no lombo os barris de azeite do que fora dono, a entortar o dorso. Que fosse rainha eu? Só se um dia ainda seria. Onde morava a rainha? Num tão distante mundo que nem se podiam contar as léguas, tudo se passando em águas de oceano, que até se podia perder o mais conhecido navegador, devia haver instrumentos para se ir lá e grandes naus, que se precisava das estrelas para guiar mesmo assim de tanta estima e mesmo assim se não chegava. Se era mais o rei ou a rainha, era mais a rainha por ser quem mandava nas almas, as rainhas pariam os reis e os tinham mamando em seus peitos, iam para a guerra os reis e os remos ficavam às rainhas e se era mais que o Deus nosso, nem tanto assim. Falava eu de minhas renembranças, do modo que alembrava na minha fantasia e se não, em falsidades, mas formosas, de seduzir meu coração partido.
Se era a feição da rainha a de uma mulher perguntou a natural, como que firmando sua parecença com as mais de nós, cristãs, sendo ela uma brasil como quem bebeu do pau de tinta, tinha todavia seu nariz e olhos que enxergavam, boca que falava, cabelos que caíam aos ombros. Vi um dia a rainha e é ela mulher como eu e foi no caminho do mosteiro de Xobregas, na noite das Endoenças, a ver a farsa, cuja não pude ver mas ouvir, que se falava numa mesa posta de iguarias, da formação da alma, de nenhuma coisa feita, conversações entre anjos e diabos de que muito riam, que era numa estalagem no caminho onde paravam para refeição e descanso das almas que vão para o céu ou para o inferno. O que diziam? Do Diabo alembro assi assi, em seus rabos sobejos, que era o mais gracioso. E cantei.
Esta vicia é descanso
suave, belo e manso
não são debalde prazeres
e os doces comeres
o que a vontade quiser
o que o corpo desejar
ouro, brocados, sedas
o que o corpo reclamar
o que o desejo tiver
o que o sonho sonhar
não se há de lho recusar
De que muito riu a natural. Mas viste a rainha? Que vi! Como a meus dedos, assim de perto como de longe, vi a rainha, huf.
Uma visão, no carro aos ombros de homens, de cortinas e d'ouro bem lavrado, que se abria o povo ao passar, a ver, em meio aos cornos dos soldados e ao jaez dos cavalos, um tempo tão curto, que atiça, branca cobrada e sagrada, cabelos polidos como manadas de éguas, em pós e roupa de escarlata, de tantos pontos de luzes que nem o céu de Deus saberia fazer, rendas feito avoassem, aqueles metais fazendo flores se despregando dos cabelos, do pescoço e musselinas subindo florescidas como trigo e volutas e mais volutas nos desenhos, uma barra de pérolas fileiradas, em tão precioso tesouro como anjo de recado em seu vôo altivo, a querer me salvar de minhas peregrinações, perdições, maldições, que se oferecessem um saco de cruzados pelo lugar onde assentara, não aceitara. Temericô perguntou. E donde? No alto, bem no alto de um caixote de peras. Depois de ver a rainha, dona Oribela, vossa fortuna mudou? Quem mirou como eu a rainha pode morrer, que nada mais há de haver neste mundo. E se quedou Temericô em fantasias. Como eu, no mesmo. De que valera haver visto tanta majestade? Valera não pelo fora, mas pelo dentro, a vida sempre era a mesma, uma rede de tristuras tenebrosas mas que de escura, fria e magoada me fez doce e gloriosa e de minha alma, delicada e alva pomba, fez no escuro de mim, este mundo. Há de haver luz é dentro da casa. Tornou Temericô naquela mesma hora trazendo uma nata de vimes, ramos e me coroou, jurou ser eu desde então sua rainha, jamais vira tão longos cabelos nem alvura. Chamasse Alteza e se pusesse em joelhos sempre ao me avistar, curvasse a alma, dobrasse a cabeça, logo se fez vassala, do que me dava uma conciliação entre as inimizades da alma. E lhe ordenava muito beijar meus pés, ao lavar.
Por que quisera eu tornar? Era promessa e tinha eu palavra firme. Não é sacramento o esposar, feito uma promessa divina? Sim, mas a promessa fora antes. Se queria ainda eu tornar. Nada muda em nosso dever, só no querer. Se eu não amava o meu esposo Que não faltasse com o respeito, de me crivar em questões de mais fundeza, sou humana e não me curei de meu desconsolo. Até que uns dias depois veio feito uma cadela, se amansou aos meus joelhos, correu os dedos nos meus cabelos e me penteou. Tinha feitas para mim umas ervas de acalmar, de beber a fumaça. Aprendi os fumos de naturais, que me deixavam pasmada e sonhadora, sem ver o correr dos dias, o parar das noites, quando na minha fantasia eu procurava o que não queria achar. E trouxe Temericô uma ave que nem era de gaiola e nem de avoar, ficava em nossos dedos, bicando o bico de leve, apertando as garras sem ferir. Aprendi a me desnudar, no quarto, após o banho, que havia um frescor sobre a pele e se entranhando nela, uma luva de vento, um véu de seda fria, que a roupagem abafava e incendiava. E ria ela. E ria. Bom era viver numa casa sem homem a ordenar.
As plantas não têm alma, as mulheres não têm barba, os passarinhos não têm leite, abá supé-pe oro-ikó-né? Muitas mais coisas ensinou a natural, de sua fala, kûarasy sem'îanondé, xe mo-mbak-i, que dizia, Antes do nascer do sol ele me acordou, e xe r-ausu'-poir-eym-i, que dizia, Não deixou de me amar e outra coisa, a-î-ty'- rung soó, que dizia, Pus acompanhamento à carne, e mais, a-nhe-embé-suú, que queria dizer, Mordo os meus beiços, e mais, quando secou a água do rio, era t-y-pab e batia com a palma da mão e dizia, petek e se bebia água dizia, a-y-ú e furava os olhos de seu passarinho e dizia, doinha Oibeinha, a-s-esá-kutuk xe r-e-imbaba gûyrá. Dar à luz era membyr-ar, a água que cai da pedra era ytu e Hoje estou à toa, nhó-té e mará o-ikó-bo-pe asé anhanga suí i nhe-pysyrõ, ybak-pe o-îe-e-rasó-uká, que era para perguntar, Como faz para se livrar do demônio e se fazer levar ao céu? Se tinha sede, dizia, ú-seî e querer comer era, karu-seî. Para estrela, se dizia îasy-t-atá. Vestir era mo-ndeb. Ter filho era mo-ayr. Por-ausub era amar. E muito mais coisas aprendi a dizer. Está na hora de dormir? Está fingindo que dorme? A árvore estalou. Faz frio, faz calor, faz lua, chove e um dia ela disse, pe-î-é tenhé pe-îabap-a, que era, Fugiste à toa, sem necessidade. Que nunca se podia fugir de nada que estava dentro de nós, doinha Oibeinha, dissesse, ai virgem sagrada e eu a ensinava a cantar. Da rosa nasceu a flor, em Belém vila do amor, nasceu a rosa do rosa , Deus e homem natural, da rosa nasceu a flor, para nosso salvador. Trazia ela do mato umas flores, que dissera eu não existir disso aqui, mas havia muitas diversidades e ela conhecia seus nomes, mas eu lhes dava outros, de barriga-de-mãe, vaca-da-folia, favas-de-Viana, vem-para- casa-mesmo-bêbado-papai, ou então, nem-coelhos, cu-da-senhora-dona Branca, de que muito se riu a Temericô. Eu pintava o rosto de urucum, comia do prato das naturais e me desnudava nos dias quentes, deixava os chicos chuparem meus peitos, dançava, de modo que dona Branca veio baixar umas regras, antes que virasse eu uma bárbara da selva e me metesse a comer de carne humana.
Nas noites escuras sem brisas, feito um fogo habitasse este país, me punha eu em joelhos e rezava por Francisco de Albuquerque pois via quanta necessidade tinha disso, fosse morto, ou vivo. Vivo, estaria no inferno da perdição das matas ou metido em uns caldeirões de bárbaros, a modo de ser comido perna por perna, ou amarrado a estaus, ou se metendo cada dia mais adentro do sertão, ido, subindo as montanhas, avistando os brilhos da prata e do ouro, cavando minas, tirando diamantes das madres dos rios, esmeraldas, safiras nas raízes das folhas, ou na cidade nos leitos macios das barregãs. Morto, estaria no céu, que mais se remiu de seus pecados por seu degredo neste país, que podia ser aqui o mesmo inferno. Se estava Francisco de Albuquerque no céu, lhe havia de ser o céu uma cidade com muitas veniagas de coisas boas, mulheres alvas e bem assombra- das que vestiam panos de seda e traziam xorcas d'ouro nos pés, o céu em si abastado de trigos, carnes e sobretudo abundantíssimo de mel de cera e nas dez léguas em volta só havia de haver flores, relvas, refrescos, torneios de cavalos, bosques de grandes arvoredos, jardins, pomares e muitos veados apascentados por homens a cavalo e que nunca ficava noite. Numa tarde se passou um rumor e ouvi a voz de Francisco de Albuquerque, no que se desmanchou toda a tristeza das mulheres, em risos se pôs uma mesa a modo de banquete, com pífaros de naturais, uns tamborezinhos de que me alegrei, sem me dar de todo a isso, mas sentindo. Viliganda descalçou as botas de Francisco de Albuquerque. Veio uma raiva de estar sempre atada pelos pés feito grilhão, no escuro breu, sem ver a festa e os festejos, só pelas frestas feito cadela de rua, sabendo das danças, até que se apagou a última voz e a derradeira luz da casa, por todos estarem dormindo. Chorei sem querer me ouvirem, quase a ponto de dar um basta e pedir perdão.
Passaram os dias, a voz do senhor da casa ordenando, em alturas como a se oferecer, sem se dar. Mas numa noite veio e se serviu de mim, sem falar mais que ufas. Veio na outra noite e na outra dando por a peleja acabada, a falar algumas coisas, a contar que me desejara a morte como a um inimigo, que se tinha visto consumido e recolhera ao campo para se aquietar das fêmeas, que bem conhecem o deslugar das cabeças e suas idéias, mas se vira em tamanho carecimento de mim que quase morrera, mais longe do que se estivera nos Gucos, Pafuas, na Cauchenchina, no arquipélago das ilhas de Ainão, onde de fato fora em uns tempos, quando jovem, deixar os infortúnios e buscar a ventura, em que fora seis vezes preso, doze vezes ferido, duas cativo e duas vendido, nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, na pestana do mundo, que tudo pode a natureza humana se ajudada por Deus. Fora por este mundo no clima mais tempestuoso e na maior calmaria, por cavalgaduras de mulas, de cavalos, de monstros de corcovas, de alifantes, por naus das redondas, de velas latinas, juncos, calaluzes, lancharas, de todas bandeiras, vivera entre turcos, mouros, ianiçaros, chalões, armênios, tártaros, magotes, abexins e só não fora avoando por não ter asas, falara com reis sem se curvar e papas de mais religiões, vira as mais igrejas que as há, nos perdidos do mundo, nas alturas do céu.
As mais vestimentas vestira, das míseras às luxuriantes, tivera para si as fêmeas mais diversas, em cores, peles, cheiros, tamanhos, suavidade, formosuras, doçuras, as mais naifes ou fidalgadas, das nações persas, tuparaas, malavares, siamesas, guzarates, calaminhãs e tivera todos os dinheiros, cruzados, taéis, diamantes, ouro em pó, tostões, até um dia não ter nem onde cair morto. Das comidas todas comera neste mundo, formigas ou vitualhas divinas, comera cafres, mouros e até um cristão, um português morto, magro e de carne amarga. Tivera do mais medo ao mais ódio, ao mais amor, de tudo provara e ainda queria mais provar, só nunca provara da sodomia com homem, embora fossem uns persas feito meninas, lábios tingi-dos e vozes doces, como verdadeiras fêmeas, criados desde sempre para isso, em serem suaves, versados nas mesmas artes das cortesãs mais sabedoras dos prazeres, de atentar a um e outro. E se eram os mouros tão inimigos? Podiam cortar com um golpe de espada três cabeças cristãs reunidas, viviam sempre nos mares e nas terras alheias e quando avistavam um cristão tinham tanto ódio que lhes saía fogo pela boca e navegavam a mais de mil veias. E quem, os mouros? De Kalidoku, Malabar, do Soldão, do reino de Canará, todos. E como, as cidades deles? Umas casas de pedra, uns palmares de palmeiras de tâmaras e poços de água, diante de grandes serranias de pedras vivas, récuas de cavalos pela areia e no mar zambucos carregados de gengibres, tamarinhos, azougue, brocados. Nos jardins de rosas, pássaros cantavam e das hortas alevantavam plátanos ou negros aciprestes. Descia neve das suas montanhas perfumadas. Amor era comércio entre todos, as mulheres, ai ai ai, alvas e de anéis nas pernas, tudo tão rico, ai ai ai, os homens sempre matavam com armas tauxiadas de ouro e prata, seus arcos de corno de búfalo com cordas de seda, navios couraçados de algodão. E quantos mataste? Matei uns oitenta mouros.
A Perra advertira o filho de estar eu em conluios com as naturais, em um despudor, a me despir, tingir de urucum e a lhes aprender a fala, serem elas das que riam pelos ódios e nunca se cativavam demais, traiçoeiras como gatas. Tivesse eu cuidado, nas menarcas possuíam elas venenos em suas entranhas que davam febres malignas, pareciam demônios percutientes, em suas aldeias pecando todos os pecados da luxúria, as velhas desestimadas granjeavam os meninos, dormiam pelos matos pais com filhas e se esfalfavam os homens em muitas mulheres, falavam sujidades, punham peçonha a fazer inchar o genital, disforme e grosso e se afeiçoavam ao pecado nefando, sem afronta, tomando por proeza o que serviu de macho e numa tenda pública machos se faziam de mulheres, nas aldeias vendiam os pais suas filhas meninas aos portugueses por pouco cabedal, um espelho ou alguidar e as índias que amavam seus maridos lhes buscavam mulheres para os desenfadar. Francisco de Albuquerque as tinha em seus desejos, que me fazia ver e ouvir, pelos lumes acesos e pelas vozes. Mas esposa era só uma, ele disse.
E se eu queria um rico presente, daria, uma pele, uma pedra preciosa, bastava dizer, pois estava mansa e assim pedi e me soltou o pé do catre cortando a corda. Queria mais uma outra coisa, que seria de grande serventia à alma, ir ver a Velha, na cidade e travar conversações, ressentia eu de nossa amizade. O que permitiu Francisco de Albuquerque, fosse com ele num domingo, para a missa. Vivia a Velha ainda na casa de gentias, mas fora mandada tapar a boca com a mordaça, que o conhecer numa mulher é coisa do Demo e só a podia tirar para a confissão ou à ceia, andara dizendo umas coisas da terra, do bispo vil, do governador, que os erros das gentias eram menores que os dos cristãos, as puras eram ovelhas de Jesus assim como as casadas, cujas eram puras de um homem só, ficavam as pessoas atônitas daquilo que ela falava e de querer fazer sua própria justiça, enquanto a Parva podia gritar nas ruas todas as verdades. Mas deu o padre licença para que a Velha pudesse falar e sem mordaça me beijou. De uma mordida de cobra foram suas maiores penas, estivera para morrer, de rosto cheio e a sair um caldo de inferno, sem trégua, um espírito maléfico entrado por ali, traindo com a desordem, dentes serrilhando, sem gritos para não aborrir os padres que demais já se sentiam aborridos com as intrigas. Viera um cirurgião, com umas águas de ervas, fervedouros, unturas, estopadas, a ensalmar, de nada servindo, depois um natural selvagem lhe viera com uns chocalhos, cantorias, archote queimado e um físico, com uma talha de vinho, cinza de palha, alho pisado e pólvora, a fazer a Velha vestir uma camisa de homem pelo avesso para beijar a cruz, a reverter, depois fizera rezas de feitiços do achaque, como um anjo custódio, dizendo que para si passasse o mal e ficando ao fim deitado numa cama feito morto, espumara tanto na boca que dali saíra o espírito maligno da Velha, ficando esta boa de um dia ao outro.
Num ímpeto falei de minhas desventuras, do que disse a Velha não ser eu tão infeliz assim, de boa índole era meu esposo, que me conformasse e parisse crias. Do que disse eu, assim por dizer, nunca querer parir de tal aventureiro e dei notícia dele nos confins do Oriente, entre mafamedes e homens que serviam de mulher em pecados abomináveis, devia ele de ser tocado pelos maus sopros daquelas bandas, comera carne de caíres, fossem mouros e tinha Francisco de Albuquerque, em sua carne, carne moura. Assim como no engolir o pão sagrado tem a nossa carne a carne de Deus. Da mãe, tivesse eu por ela respeito, sendo mãe de meu esposo lhe devia eu reverência por ser de mais posto e que a filha frutificada do filho com a mãe, se assim fosse, eu a tomasse por minha menina e a amasse como fruto meu. E tantos mais menininhos de sangue misturado, tudo aquilo queria dizer filho e mais filho, que Francisco de Albuquerque era de apetite bravo de touro nas mulheres. E disse ela. Mais melhor para ti. Que te deleitarás se souberes. Disse a Velha daquelas mulheres do gentio forras, que amava como suas filhas, umas cristãs boas de muito grande entendimento sobre seus pecados, mais perto de Deus que aqueles padres todos, por terem fervor, tanto que umas tornavam ao sertão ensinando meninos parentes seus de Deus, que traziam para a casa dos padres a se fazerem cristãos. E que mais lhe queriam tapar a boca por defender que amancebadas pudessem entrar na igreja e ver missa, mesmo as nuas. E disse ela. Eu ladrarei quanto puder. Escrevia cartas e mandava ao rei, que jamais respondera. Tornasse à cidade o padre Gago, teria ela suas penas suspensas e muito maior cuidados das ovelhas.
Deu a Velha notícia de Pollonia, emprenhada, redonda e que estivera sempre a juntar cabedais, de Tareja, que hipócrita se fazia de santa em rebuços negros e rezas em joelhos, em nome de toda virtude, de dona Urraca que vivia trancada em sua morada sem que lhe pusessem as vistas de dia, lhe ouviam a viola d'arco, mas murmuravam na cidade que se vertia ela de noite numa alimária e assustava os vizinhos, a assoprar fogo, se dizia até em juramento, do que a Velha pouco acreditava. Felizes as esposas, sendo diversa a dona Bernardinha, quebrava seus ossos aquele que a devia acariciar e bêbado a desnudava, lançava pela porta fora, desgraçando a pobre com seus brutos intentos de esposo e em altas vozes, sua mulher lhe parecia macha, querendo mostrar que era a ela forçado a amar e com ela vivia contra ciência, não sendo nem por feitiços vencido, que recitava aos berros de cabra. Sabistisanto, Coronguena Santa Cruz de Madalena, Jeque Domenada do mais do nunca do nada, Sabistisanto, anto, anto e mais cantos a se lavar com cebolas. As órfãs tinham seus destinos selados e me doía de dona Bernardinha, que gostava de afetos e de roubar uns brincos e as bocas das moças em beijos. Espreitavam muitas armadilhas a nós.
Sai a colher tuas flores agora que és jovem e os bens da vida, os felizes espaços. Se era formosa minha feição, boa fortuna tinha eu, que as pobres e feias sem dotes esposavam mecânicos e viviam a parir sem poder criar seus filhos, até que morriam desfeitas e que as pobres formosas sem dotes eram levadas pela sedução dos moços de espora e se davam a pecados e se perdiam, mas não eu, que esposara um bom homem. Bom homem? E por que queria estar sempre numa tão grande distancia, ao rabo da mãe? Por que não declarava a razão disso? A uma feia nada se pede, a uma formosa tudo se promete. Para o formoso, a forca, para a formosa, o bordel. Fosse me conformando, que um dia seria eu, e todas, umas velhas à luz das panelas e se fomos feitas solamente para mães e esposas, a nos resignar cabe o coração, apenas. Mas se fomos assim feitas, por que fora a Velha freira de convento? Pois não seria eu feliz em tal lugar, senão em outro. O que não queria fazer o meu esposo, que o deixasse quebrar a cabeça, pois qualquer embaixada iria custar treze varas, presa e com caroça na cabeça à porta da igreja. Largasse, a vida corre sem nós e os homens mais, que ouvem o que querem. Que mal há de fazer um erro? Mal nenhum. Este mundo aqui é mui maravilhoso, mas também um alongamento da mísera vida eterna e ninguém pode se abster. Se sente as malignidades e as sofre, é que é bom e terá salvação, porque o sentir é sinal de curar. E nenhum coração que vive em paz pode ser verdadeiro, pois não existe a paz, senão de iludir a si.
Houvera sonhado eu que via nas águas, feito adivinho e que numa panela via uma terra ficar muito seca, de galhos, de pó, de cinzas do fogo, sem um bicho que se virasse, sem um só, mulher ou homem. Dissera um rei antigo, não devemos dar fé aos feitos e burlas, que de agouros, sonhos, dar à vontade, sinais do céu e da terra, uma boa mulher não deve de fazer conta. E qualquer pessoa que espíritos diabólicos invocar irá a ferros ou em degredo para a ilha de São Tomé ou suas comarcas e terá pena corporal. Perguntei se o mouro de cabelos vermelhos era bruxo mas a Velha não sabia. Bruxos são velhos imundos de aspecto repelente que resmungam um latim de sortilégios. Fosse ele, seria um feiticeiro, que são os feiticeiros de muita formosura, metidos dentro de si mesmos em soturnos cárceres, que iludem os fracos e os ignorantes para lhes incutir os desejos de Satã e arrastar suas almas pelas ruas da amargura. E por que suspeitava eu ser ele de tal qualidade? Vira eu o mouro a ver na espada ou qualquer coisa luzente, ou adivinhar em cabeça de alimária, ou a fazer abusões ou a rezar missas infernais? Ou o próprio Lusbel. Vade. Que a figura do mouro me espreitava nos escuros vãos da noite. Muitas vezes abria eu os olhos e estava ele avoando acima do meu catre e se fechava eu os olhos ainda estava ele, metido dentro de mim e se tinha eu lembrança de um sonho era ele quem me tomava as mãos e levava pelos ares ou vinha a cavalo com vestidos e arreios muito lustrosos, um gentil-homem que fosse meu esposo ou aquele maldito marujo a se servir de mim. Do mouro tinha eu um tal medo que, houvera deparado uma onça preta, corria com menos pavor do que deparar o mouro numa trilha. Depois de estar um grande espaço pensativa, a Velha disse. Deves deixar os moimentos da alma e aceitar teu destino à sombra de teu esposo e se desenfadar. Mas os sonhos não são males. São desejos.
Estava a igreja muito desconcertada, sem ornamentos e algumas coisas arruinadas. Baixei os olhos e pus a pedir, meu pai, me alumiasse por dentro, me não deixasse vacilar em meus intentos e promessas, de firmeza devia ser eu feita, como terra, sem terremoto, sem valados, numa lonjura de vista, que me desse de ver nas águas feito em meu sonho e visse eu o que fazer mais acertado, meu coração não mais caísse pelos lados, em divertir, que houvesse uma só certeza, se assim foram os homens seria o mundo mais adentrado de religião e respondesse Deus se tudo o que fazia eu era traição de me destinar a sagradas bodas, com homem de bem, de cabedais, de sonhos de procriar e em tanto me metia eu a morrer no desamparo. Não mais o chamasse de cão. Fossem treze os dias da lua, treze as noites de sol. Mas depois, o clarear da aurora. Alumiasse, a não deixar de cumprir o que devia. O que está escrito nos volumes da nossa verdade acerca dos bens que devemos de fazer aos nossos e aos outros. Amém, Pai. Tornamos à casa, no caminho eu a admirar os bandos de bugios se lançando das alturas nos galhos, com tanta graça nos meneios como se bailassem no céu. Quando chegamos vi que no rio se banhavam as naturais, desnudas de suas vestes, no que me meti sem medo pelas admoestações de madre Jacinta, no mosteiro, de que a água era maléfica, que se umedeciam os pêlos e se abriam furos na pele por onde se metiam maus humores e miasmas e os espíritos danados. Francisco de Albuquerque se veio banhar, me beijando em frente às naturais, que riam. Até que me quis esconder, veio ele nos arbustos, relva, me deitou em uma mantilha, cariciou com o dedo desenhando os traços do rosto e dos meus ombros, ele me queria feliz e prenha. Assim foi que trabalhou sobre mim em fervor para seu sonho.
Uma nau portuguesa fundeara na baía diante da cidade velha, mercante e de passageiros. Francisco de Albuquerque se tomou de receios em me perder de vista e as vigias eram de noite e de dia, com gente em revés, saindo o guarda da porta nas horas do banho quando vinha Francisco de Albuquerque em pessoa vigiar. Havia ainda em meu coração o desejo de tornar, embora fosse a cada anoitecer mais pálida a vista da Princesa, suas torres e muralhas dentro de mim, mais apagada a vista do rio, mais borrada a face de minhas amizades, de Sabina, de Giralda, de dona Isobel morta. Nem em sonhos vinha mais minha mãe, vinha sim uma terra seca de cinzas e a mulher velha, a lembrança má dos marujos se servindo de mim, o mouro em fogo avoando sobre minha cama a atentar com sua beleza má, seus olhos de pérolas brancas, nos meus quilates de virtude em que devia exercitar minha vida, afastada da igreja por maldade de um esposo que só queria se adentrar pelo mato a ter para consolação um pé de santa a beijar no oratório, pequena como porcelana. De bom, só restavam as flores do Mendo Curvo e o mel de suas abelhas. E a tanto me agarrava eu, como se fosse um fio de seda que levasse ao mundo, estando eu no desmundo.
Havia naqueles tempos uma agonia, preparo, movimentos, umas chegadas de arcas em seus mistérios, o barulho de um ou outro arcabuz ao longe, um reunir de homens, em rodas de conversas a entabular, riscar a terra com linhas e marcas, daqui e dali e mais ala, umas visitas de gente da cidade e de uns naturais muito bárbaros que tinham intérprete e se empilhavam umas coisas cobertas de mantas, tudo se fazia sem palavras a mim, mesmo Temericô me escondia o que devia saber, saindo das perguntas, esquivando das respostas, mas um pouco triste de merencória, de olho longo no que acontecia. Umas ferrações, umas batidas estridentes na bigorna, o ferreiro veio da cidade a faiscar com seus braços duros e um costurar de agulhas em couro grosso, a modo de armaduras, umas armas de algodão às quais não passava besta nem flecha nenhuma, diziam eles, de que se queriam antes armar que de cossoletes nem couraças, porque a flechada que dava nessas armas resvalava por elas e fazia dano aos companheiros. De tal estofado de uma palha armavam eles seus corpos, faziam o mesmo para as cabeças, muito boas adargas, paveses, rodelas leves e estopentas, hastes de lanças de muito comprimento, picaria, dardos de arremesso. Ficavam a cozinhar farinhas e carnes salgadas socadas em cornos ou alguidares, umas borrachas de águas ardentes ou mais beveragens e biscoitos. Chegando ao principal, que era a pólvora, tão fina que pegava fogo como de pólvora muito refinada, pelo que se podia dela fazer munição para toda uma guerra contra os malditos da Espanha e os perros luteranos da França.
Um dia, nem nascido o sol, Francisco de Albuquerque fez a Temericô me vestir e cobrir de um chapéu de abas largas e sobre isso um véu de rebuço, tudo fechado até por baixo dos pés e costurado, de modo que parecia eu um grande saco e me levou ele entrouxada até fora da casa. Qué? Qué? O que vi me causou receio, uma hoste de homens de cavalo, armas aos dentes, às cintas, aos flancos, em capas escuras trançadas, barretes negros feito as mascarras do carvão da forja e barris de munição, guerra houvesse. Era como se todos os homens da cidade ali estivessem e mais uns tantos e todos os homens de Francisco de Albuquerque e os homens das fazendas dos engenhos e os do governador. Um tanto de suas escravas, com grandes cestos na cabeça carregados e mesmo uns filhotes fêmeas ou machos pendurados em suas tetas, dois padres calçando tão rudes sapatos que lhes deviam roer os pés em vez de os cobrir. Comandava a todos o filho do governador. E me meteram num cavalo, adiante nas mãos de um guarda da confiança de Francisco de Albuquerque, o Janafonso e fui seguindo, levada no rumo do sertão onde nunca se ia, pelo mato se encerrando a cada hora ainda mais, a ouvir uns berros de veados, bugios raivosos, aves escuras, umas serpes assaltando patas de cavalos e nos galhos, abelhas de tamanhos e feições diversos, mutucas. moscas azuladas das que comiam as orelhas dos cães e varejas pousavam sobre o véu, a querer sugar e se virava eu, avistava a pobre da Temericô sem as coberturas, de modo tal que nela os bichos avançavam e ela nem parecia sentir, por um encantamento de seu sangue, ou de uma tinta em sua pele de que se tinha pintado, ou de saber ela falar aos bichos ou o que fosse. Pousavam nos seus olhos, nariz, não a deixavam de dia no campo se não fazia vento e lhe chupavam as chagas, iam meter peçonha nos demais para fazer boubas, seguiam em bando a Temericô suja de seu costume.
Por muitas léguas, guiados por uns naturais selvagens que vendiam prisioneiros de suas guerras em vez de os comer, sem avistar um só homem, uma só casa, cada vez mais adentrando a serra propriamente, acima, num desconforto, ferir, desprazer, cortando os paus, por caminhos que nem havia. Muitas vezes caía um e morria de picadas ou das febres e todos com ordem de não falar nem atirar, fosse em gato ou javali. Numa parada perguntei a Francisco de Albuquerque a modo de que estava eu ali, naquela selva brava como o inferno. Que te não levem os portugueses em suas naus, pois lá não quero tornar. Que és brava, assim como deve de ser mulher minha. E rija. Vamos aos bárbaros, que não atrevam mais a cristãos, por ordem do governador. E o que fizeram contra cristãos? Despovoaram e roubaram quatro engenhos e comeram uns cristãos com grande crueldade, estorvando e desobedecendo ao governador e aos padres, e comeram um padre. Subimos o alto da serra, de onde então se avistou uma lonjura tão distante que pareceu esta terra ser mais do que o Mendo Curvo, mais que o reino e a Espanha e mais outra, ia tão longe o depois da serra, fazendo as vistas de um infinito, de um ir às beiras, aos limites da terra, que me perdi em muitas admirações. No baixio se via um tipo de aldeia, de modo que nunca conhecera eu, na forma de uma ferradura de cavalo em palhas, umas casas redondas e uma comprida. Todos foram mandados se meter nos matos. O servo Janafonso me apeou a uma árvore e me deixou Francisco de Albuquerque na companhia de um vaqueiro muito armado, dois soldados, as naturais e Temericô, e se foram, de modo que ficamos na condição de sermos comidas dos bichos e dos bugios, ouvindo os tilintares, as gritas, mas a ter um bom repouso. Podia eu ver a descida da hoste e se arrumarem os naturais numas danças e cantorias que se faziam demônios.
Fartar, rapazes! Vingar! Vilanagem! Cercaram os cristãos a aldeia, com suas armas apontadas, postos em suas ordens e em suas capitanias, com muita soma de guiões e bandeiras, os selvagens dispararam flechas que tombaram uns dos animais e se fez uma tal grita que pensei estar na batalha do fim do mundo, por fora dos naturais andava uma grande cópia de homens correndo de uma parte a outra com suas lanças nas mãos a meterem os naturais em cerco, mais uma fileira de gente, avançaram, entraram na aldeia, davam com as espadas nas cabeças dos velhos e das mulheres ou metiam uns disparos para todo lado, de modo que o terreiro deles se foi cobrindo de mortos, uns nus e vermelhos, outros de suas capas e cabelos negros e vermelho de sangue, de miolos e uns pedaços de gente, até o fim. A pobre da Temericô enxergava tudo, parada na mata feito uma pedra, depois de algumas gritas se curvou sobre a barriga e gemeu feito cantasse, uma coisa estranha de se ver. Mandei assentar ao meu lado, o que ela fez. Não sabia que brasil sente dor. Os vaqueiros amarraram num fio os guerreiros brasilos, um trás outro, escolhendo e metendo uma espada no peito dos que não tinham serventia, ou quebrando os miolos deles e veio o gentio assim puxado, um espetáculo tão piedoso que não havia bom homem ou mulher que não pasmasse de tristeza. Eram mil os cativados que iam agora servir de escravos.
Em contar as moedas de ouro e prata e mais outras e fazendas, se pregou toda a noite. Os naturais foram levados para a cidade, que lhes seria ensinada a ciência do branco, no cortar paus, no lavrar, no cozinhar, no pastorear, no que fosse. Os mais formosos iam embarcar, para divertir os fidalgos com seus modos bárbaros de cantorias e lutas com espadas de pau, ou para os venderem aos árabes ou aos nobres para a lavoura no Sul do reino, ou aos aragonenses e genoveses. Ficaram no fortim uns trinta naturais para vaqueiros, por quem se cortava meu coração, mesmo sabendo não terem almas, os via eu a puxar das pernas os grilhões e tanto, que se faziam em carne viva, a morrerem uns de estar parados sem abrir a boca para um nada, nem de comer ou beber, a esmorecer e definhar, se descarnando de tal forma que se viam seus esqueletos florirem na pele, eis que se foram os mais de todos falados tanto pelos padres que os vinham catequizar, que se dispuseram a ser mandados e assim iam sendo soltos os ferros e mandavam os brasis a uma grande casa que se fizera em palha, donde os instruíam e faziam de gente metida em roupas, uns trapos, de animais se tornavam pedintes do chão de Alcami, andarilhos das trilhas e engordavam. Nos estábulos, com pastores da serra da Estrela aprendiam a tirar leite das vacas, levar ao pasto animais, fazer manteiga, montar os touros, a lhes meter rédeas ou carros, castrar ou matar para cortar carne, despelar, curtir os couros, fosse de que fedor fosse, as couramas indo vender à cidade. Se um dia iam as vacas querer vingança dos homens atolados em suas cobiças, não sei, mas os bárbaros, os deixavam criar tal ódio em seus corações que se iam ver em tanta força e poder que quando se quisesse refrear não se poderia, por estarem eles em suas verdades muito claras e seus capitães bem atrevidos.
Vieram os padres da Companhia numa pendenga que tinha de forriar Francisco de Albuquerque aos índios salteados, era contra a vontade de Deus saltear índios, do rei, do papa, que grande dor era esta de virem os cristãos em uma má vizinhança causando tantos estorvos, ensinando os gentios a furtar, adulterar, fornicar, se embriagar e contar suas coisas vergonhosas e outros males, os brancos ficavam absolutos, quebravam as pazes com o gentio em vez de sujeitar seus barbarismos ao jugo da razão e fazia um padre língua pregação do catequismo aos naturais mais novos que depois pregavam aos seus pais e avós, fizeram ofício das Fontes mui solene, assim batizaram os que estavam confessados e aparelhados. Tudo tinha de ajuizar Francisco de Albuquerque, que pouco se fazia mais ao meu leito, muito atarefado e sonhador, que se deixava a admirar os matos, um pé na pedra, a mão no joelho, o chapéu na outra, a buscar as vacas com seus olhares, conhecer as cabeças, soubesse ele contar, que não sabia, nunca fora letrado, se via, mas um leigo do colégio isso vinha fazer todos os meses, que alevantava muitas perguntas sobre a missa e as obrigações, esmolas, procissões. E se Francisco de Albuquerque me disse uma palavra nesse tempo, foi de estar mandando construir uma igreja a uma santa que parecesse comigo em minha qualidade, que me protegesse dos males e a modo de promessa para havermos um varão, seria a mãe Virgem Maria, que virgem viera eu. Riscou com o pé do sapato um risco grande que ia de um lado ao outro, formou a nave, a capela, a sacristia, o altar, o confessionário, a torre do sino. Ia mandar trazer padre de missa e capelão para viverem na fazenda. Que me deu uma dor de me sentir ficando ali para sempre.
E se ouviu ribombar de salvas, vieram anunciar que era entrada uma grande nau com bandeira do rei e foi Francisco de Albuquerque com seus vaqueiros rumo à cidade levando suas armas todas a modo de guerra, que se fez um ar suspenso entre todos, por poder serem os franceses de que se tinha notícia navegarem perto. Mas tornou logo a hoste e Francisco de Albuquerque contou que ia se fazer uma feira na cidade, chegara a nau dita Patifa, eram mercantes com dois padres de missa, um capelão, oficiais, um muito experimentado piloto, do que se certificaram os nossos meirinhos e se abriram as portas da cidade para a entrada deles. Ordenou Francisco de Albuquerque a todas as fêmeas se guardarem, não pusessem os pés fora do fortim. Não o tivesse eu por escasso, por dar tão pouco e deu um fio de seda para bordado, comprado aos judeus. Pedi que vestissem as múlheres suas roupas de festa e fossem à cidade guardadas pelos homens, mal nenhum faria. Ele muito pensou, mas querendo fazer um agrado concedeu, com cautelas e regras, que me metesse em um rebuço, mas vesti o véu sobre a camisa, uns panos brancos, um bordado para o regaço, saia de flores desenhadas muito desejada de formosura, trancei os cabelos, metidas neles umas flores do campo e mais um colar de contas que fiara Temericô, de umas cores açoitadas, uma pouca jóia, tingi as fuças e os lábios de urucum. E se meteu em joelhos a natural, riu de tanta formosura, do que disse, saber ser eu a rainha da casa, da aldeia toda e das mais aldeias que houvesse no mundo. Apareceu dona Branca e diante dela pensei estar a uma dama da rainha daquelas que vira eu, vestia a mãe sua graça e malefício num drapeado de saia, blusa de quebra-luz, em pano pesado de luxo preto, estofado e chapeado, nas filigranas das rendas, num véu que lhe moldava a face, o seio na plenitude de uma seda escura a atrair, com pendores, em um brocado e uma musselina, em seu rosto uma alvura de leite e uma jóia no colo, no modo de ir ver um rei.
Senti uma vergonha de meu estado, que arrevezei numa secura e numa solidão de meus pensamentos, de boca murcha sem querer partir, no que veio Francisco de Albuquerque no quarto saber. Que me negligencias, nada tenho para vestir e tua mãe anda feito princesa. O vestir da Perra fora da avó e um dia seria meu, que não havia filhas mais que eu, esquecendo ele de numerar a Viliganda. Mas estou tão feia. Estás vestida com a mais bela das vestimentas, tua juventude, necessitas de nada mais que tua pele fina como o véu da cebola, tens as mais negras opalas em teus olhares, teus lábios da cor dos pucarinhos se deixam beber em néctares, a capela de rosas de tua cabeça é mais sedosa por teus cabelos, não te queimes em desejares do que é menos que o teu. Tudo terás a tempo. Pela beleza das mulheres, os homens nunca se apartaram dos pecados. Guarda tua boca fria, por não me dar mais um desgosto.
Da nau oficiais, o padre e mais gentes, os remadores tangendo os remos dos batéis, os mercadores numas vestimentas boas e que só por isso pareciam ser muito ricos, quiçá fidalgos, trouxeram, a mais das drogas e azeite, uns cornos a vender, para livrarem homens de infortúnios ou enfermidades, que viera na nau um unicórnio mas morrera e fora lançado de noite ao mar com penedos arados nos pés e no pescoço para que fosse ao fundo restando dele o corno, torcido, mostrado numa almofada de veludo. Traziam mantimento e munições para fornir a cidade, outros vendiam pimentas cheirosas, barris de frutas douradas e secas com gosto de limão e açúcar, peças dos mais bordados tecidos, de que me deu um corte para um corpete Francisco de Albuquerque, botões, fios, uma almofadinha, seda e dedal, um coxim e tudo o mais, que apreciava meu semblante voltado para dentro. Uma grande soma de coisas se vendia. O armador veio numa lanchara com estandartes, uma coisa formosa, ele e suas mantas aveludadas, unhas compridas, cabelos e barba coados d'ouro, olhos azuis, todo comido pelo sal e uma coberta em pedrarias, que se dizia genovês. Muito admirei Francisco de Albuquerque, que lhe sabia falar com diversas palavras, que se trocaram entre eles sem o língua e um respondia as perguntas do outro. O genovês se curvou em mesuras pela vista da Perra, como se fora ela a rainha do lugar, a mulher do governador não se via, parece que estavam ali as perdidas e desonradas, as putas, a Parva. O governador fez os recebimentos e saudações, arrastando seu peso do corpo sobre um pau a modo de bengala, as duas pernas fracas e se foi com seus cães.
Falava o genovês ao ouvido de Francisco de Albuquerque, que de semblante severo se fazia em riso, mas se tomava dos assuntos e acenava a cabeça, acariciava a feição, de quando em quando se virava para me ver, em minha cerca de vigias. Nem quis mais eu olhar Francisco de Albuquerque, quando me chegou às vistas a nau grande, com sua lenha, seus barris de alcatrão, fardos de breu, seus panos e amarras. O ranger se ouvia e fez frio dentro de mim. Trouxera com ela, suas velas, seus ventos, um gosto na boca, de fugir. Busquei com os olhares aquele que poderia me dar passagem para a nau, mas de temor me tomei, entre aqueles cossairos, só se fora uma protegida do padre, mas que padre daria asas a uma esposa fugir de seu matrimônio? Que me poderia eu revender a este em troca de uma torna-viagem até o reino, mas tinha aspecto de padre santo. Tal minha enge- nharia do coração me agradou e fez vir ao lábio um bom gosto de felicidade por ser quem sou, fosse eu menos desafortunada e seria uma venturosa mulher, jurada no livro das flores. Nos instrumentos, naturais tocavam músicas, cristãos dançavam, comiam, faziam as mais veniagas, mercavam e se queriam se servir das fêmeas iam ao mato, uns vinham bêbados, parecendo que o diabo ia neles, ou iam a bordo com elas, na desordem e na desconformidade de seus desejos, escalavrados.
Quis eu saber de que vinha uma grita de machos na porta da casa de dona Bernardinha. O perro do esposo dela fazia servir sua mulher por dinheiro, que se fez uma espera na frente da vivenda e dela se ouviam os gritos, deles os risos, uns davam por isso uma moeda, outros um pedaço de uma qualquer coisa, não havendo ali um padre que pusesse fim a tal desmando e chegando a Francisco de Albuquerque lhe pedi que encerrasse o tal assunto mas seu coração se desmoveu sem piedade. Não te mete com a mulher do outro, inda que o crime seja o qual é. Alembra que o oficio mais aceito por Deus se diz misericórdia, tem demência, abre teus beiços, tira teu sabre e arranca o coração daquele malvado que Deus na hora de tua morte há de olhar para ti e te recompensar por tua piedade desta pobre mulher, lançasse pela boca o conceito de seu coração. Fez tal promessa Francisco de Albuquerque. Foi à porta da casa de dona Bernardinha, disse e disse mais, a vozes altas, os homens tiraram as espadas, os de Francisco de Albuquerque apontaram arcabuzes, veio o capitão deles e fez que seus homens tornassem ao terreiro nas veniagas, nos bailes, deixando assim em paz a pobre da mulher. Entrando eu, estava ela em um quarto muito feio e sujo, sem nada que fosse para deitar que não umas esteiras de naturais, ela nua da cinta para baixo, a camisa salpicada de sangue, com uma ladainha muito sentida a maldizer seus cruéis algozes, que a rigorosa justiça de Deus se fora nas águas, nos ventos e disse eu, não maldizer de Deus que era pecado com castigo de raio, de trovão, de morte e aquela miserável padecente com assaz de lágrimas me abraçou, aquele tempo todo estivera como morta. Consola-me a vista de tua presença. Se requeria eu justiça lhe fizera meu esposo, em não sendo o dela e que marcava vingança perpétua, ainda se havia de ver.
Sempre farto de vinho nas noites cometia ele a ela com seu membro viril que entrava no vaso traseiro dela e instigado da carne tinha ali polução, contra a vontade dela, a qual com medo consentia. Com isso encostou a cabeça no meu colo sem mais nenhuma palavra, sinalou uma pouca d'água e a tomou. Disse querer ir embora deste país e tornar ao seu. Nós vamos partir daqui, dona Bernardinha, juntas. Como? Não sei. A fingir de homem, em roupas e chapéu, botas. Com as primeiras bafugens da monção. Tu consegues as moedas e eu as passagens, que nós podemos insinuar numa das naus dessa corja e feito homens nos vão respeitar e embarcamos e tornamos. Assim será. Eu disse sim, cintilando nos olhos. Tivemos algum pequeno alívio, que as lembranças não serviam nada mais que se magoarem uns aos outros e não permitia Deus males que não fossem para muitos maiores bens. Não há no mundo parte tão remota onde se possam esconder de Deus os pecados. E me pus a enxergar Francisco de Albuquerque como numa despedida. Lançava ele dados a uma távola, entre uns homens, ria e se alegrava nos odres de vinho mas sempre vigiando, que me assentava em umas banquetas com
dona Branca, abanadas pelas naturais, debaixo de uma sombra que nos faziam. Francisco de Albuquerque seguia o jogo e nem podia haver em sua fantasia uma idéia de que pensava eu. Estava navegando, junto aos mares, chegando ao rio e nas teracenas, rezando com os joelhos na pedra da capela de Nossa Senhora d'Oliveira da devoção dos homens do mar, isso me fazia sentir leve o esposo, como se não oprimisse mais, nem pesasse nem esmagasse nem sufocasse o ar, quase o apreciando estava eu, mas a saber do que se tratava, uma insuave forma de adeus.
De noite a costurar umas flores de pano, que dizia como fazer dona Branca, com umas linhas de seda numas cores formosas feito as flores do cabelo da rainha, estava eu assim ausentada do mundo, ponto por ponto fazendo meus pensares e larari larará, entre os risos das naturais e os mugidos das vacas, quando se ouviram latidos dos cães de caça, inquietos feito houvesse gato no mato rondando o fortim, depois uns pios como de coruja e veio um silêncio, um grito de homem, abafado. Lá fora o mundo estava escuro sem lua nem estrelas, o céu coberto de umas nuvens tão ariscas como aves. Enxerguei umas coisas pretas rentes com a água, navios de remo que vinham até os currais mas muito silenciosos, como remassem numa água de algodão e umas vozes de homens. Francisco de Albuquerque, com o Borralho e Janafonso no pátio em suas camisas, a espada na mão, subiu à muralha, desceu correndo e bradou umas quatro vezes. Armas! Os escravos, os vaqueiros apareceram no terreiro, num grande tilintar e Francisco de Albuquerque os repartiu pelas estâncias mais importantes. As panelas de pólvora estejam muito prestes, porque com elas e às cutiladas parece que se há isto de averiguar. Mandou que escondessem bem os murrões de fogo e se fizesse silêncio e atenção a suas ordens, que se iam ver em uma briga muito acesa. Veio um zunido, um tiro, um grito, depois uma grita de lobos, um tropel de asininos, urros de touros, dragões cavalgando, feras que nunca ouvi, mais buzinas, tamboris e me deu um temor tão grande que caí em joelhos. Senhor, de aquesto fazer sem ti não temos poder, porém seja teu querer a nós fracos ajudar, Senhor, à trindade acabada muita glória seja dada, que de nós seja alembrada em todos nossos misteres, Senhor abre Senhor os meus olhos e esguardarei as maravilhas da lua e o terror da terra, salva Senhor tua Oribela de todalas bestas e alimárias selvagens, Senhor e dos homens maus.
Em meu quarto aos gritos, num alvoroço, passo apressado, muito acesa Temericô altercou com tanta variedade de pareceres que nem pude tomar conclusão de coisa alguma e a mandei acalmar, deixar de ficar tão agastada, disse ela nas suas falas desencontradas que gentios atreviam aos currais e me metesse eu na cozinha por ordem de Francisco de Albuquerque. Escravas cruzavam o terreiro do fortim para a cozinha, com suas crias, correria, cavalos relinchavam, os homens alevantados com suas camisas desatadas ou em ceroulas das guaritas atiravam e das frestas da muralha, setas caíam do céu feito uma chuva. Estavam os currais abertos e as vacas indo para o rio se afogavam e muitas mortas, ou deitadas morrendo, espetadas de setas, o chão se fazia de índios que morriam aos tiros e de cristãos, de escravos, que ia acabar o mundo, pedisse eu ao Deus meu que nos salvas- se. Afundaram nossos homens umas canoas deles e quebravam eles agora os barris de manteiga e tudo o mais até que acometidos por muito ímpeto, logo se sentiu um fumo espalhando e penetrando os narizes e um grandíssimo ruído à porta do fortim, com vozes que diziam. Fogo! Acudi! Os bárbaros entraram com uns paus à feição de arrochos, com uma quina por uma ponta davam a primeira pancada na cabeça do escravo ou do vaqueiro que viam pela frente e a faziam em pedaços e uns deles, tão carniceiros, cortavam aos vencidos machos suas naturas, que disse Temericô serem para dar os guerreiros às suas mulheres mirrar ao fogo para nas festas eles comerem por relíquias, o que me fez revirar de náusea. A batalha durou por mais de uma grande hora, até que os bárbaros escaparam pela água do rio levando o que puderam da casa, machados, martelos, facas, panelas, mantas, o que apanhassem e se embrenharam no mato, no que os seguiram uns homens do fortim, mas logo tornaram que haviam deparado um caiçá, que pensei ser um bicho feio e mau, mas soube que era uma cerca de espinhos muito liada que nada a podia romper.
Ficou o chão coberto de mortos por riba e por baixo, braços pernas cabeças, uns agarrados em panelas outros em suas armas, em gestos tão disformes que davam notícia das suas dolorosas mortes e da maneira por que tinham ido coxeando até o purgatório. Cresceu um crepitar que parecia estar descendo o caldeirão à terra. Francisco de Albuquerque com muita cólera passou o portão da muralha, a ponte, correu para o curral, com seus homens e numa sem razão se lançou de joelhos desconsolado, as mãos alevantadas para o céu em tantos soluços que não podia falar. Ai ui, arrancando suspiros do mais intrínseco de seu peito e por detrás disse dona Branca. Senhor Iesu Cristo. Pardeus, um assado de vacas. Numa embaçada sufocação irrompiam pelos céus umas lavaredas tão altas e belas que seus calores fogosos vinham até nós, umas fornalhas, um ruído de nos fazer surdos como mais de mil guizos e mil tambores batessem e mil martelos em bigornas em cada uma das quais malhassem cem homens a compasso tão apressadamente que quase não davam lugar a os enxergarem e no ardor que chamuscava a pele senti medo de esturricar mas um desejo de chegar perto, ser um fogo, uma chama e me elevar aos céus além do que podiam as minhas poucas mãos e me nutrir daquelas árvores, lamber os pêlos daqueles bichos que escapavam, aquelas vacas e alimárias, bezerros, novilhos, todos aqueles paus como que edifícios nobres, os currais se iam curvando em silêncio, tombando e desmanchando, deitando suas sepulturas de alabastro cozidas em ouro, ferro coado, ardiam, tanto que se alastravam pelos lados e as riquezas de seus tesouros como numa fundição de se apurar pastas de cobre que era eu na minha tenra idade onde em meu coração o tumulto e o estrondo era tamanho que se havia coisa na terra que pudesse parecer o inferno havia de ser aquela e não outra. Uns homens tentavam deitar água do rio em panelas ou salvar vacas, mas vacas caíam ardidas na festa do inferno, a que se via sem se estar pagando nenhum pecado.
Não me pude livrar da natureza de minha alma e do meu estado tormentoso, perdida no meu mesmo labirinto em que o desassossego se mostra em diversas figuras para nos fazer dar mais crédito a seus enganos e falsidades. Estava eu ali, metida nas tribulações, caída nas mãos da inciência, num afogamento de mim, a me provar Deus diante do confundimento, da sanha, da heresia, caída em minha natureza de estar sempre andando pelos lugares sós e apartados de minha alma a esperar colher nos hortos alheios um grão de amor, uma semente de caridade, consumida pelos desejos da fantasia e o sonho de ter só meu o que quero e as mais graves tentações deste mundo. Qué? Me vi esquecida de meus guardas, solta feito um sapo que não se deseja cativar por não ser doméstico e assim desfiz dos olhares de Temericô, entrei na casa em grande confusão de gente que ia de um a outro lado, me dissimulei numa roupa de Francisco de Albuquerque, que ficava grande em mim, mas cabia e um capote, um chapéu e com a faca que tomei à cozinha cortei meus cabelos bem tosados, joguei-os no fogo com as roupas minhas e sem me deterem por ver sem saberem do vulto de homem ser mulher montei um cavalo e me arremessei pelos caminhos, o rufo de um tambor ressoando em meu peito a atrapalhar meus pensamentos, numa rapidez tamanha, em escapulir, sem fazer nenhuma conta, ainda alembrando das lavaredas que se ateavam por todas as partes.
Fui procurando o rumo da cidade, na noite tão escura, pelo vôo das aves, que iam para o mar e pelo cheiro de sal, pelo vento fresco que assoprava, os olhos de dentro meus na nau fundeada na baía e em dona Bernardinha, vergadalta, âncoras a pique, pardeus, velas mareadas, para perder o medo dos galhos ásperos da mata, das unhas dos falcões, dos dentes dos morcegos e das cobras que andavam pelas árvores e as caninanas dos côncavos dos paus podres e as dos formigueiros e dos bugios que saíam das covas à noite e dos gatos de rapina cujos olhos via eu luzirem no mato espreitando, eu com o ânimo de uma galinha branca. Temor dos chiados, rugidos, assovios, restolhares, crepitações, todo tipo de ameaça. Não me dava por segura dos lagartos, porque eram tantos os uivos, os assopros, os roncos e os rinchos dos cavalos marinhos, as paradas das alimárias de fogo, o rufar das raposas de gelo, que nem me atrevia eu a abrir os olhos. Feito cego no cavalo, sempre em frente, mas tonta de tal modo que me desfaleceram as forças, no que vi vir em mim um esmorecer e senti girar e girar e cair.
Numa casa à maneira de igreja, via corpos por trás e pela frente em tudo o que apresentavam, nua eu também entre mulheres de cabelos soltos, com espantosas feições de medo de uns monstros de dentes afiados, unhas, fogo pelas ventas a modo de dragos e caudas. Todas queriam fugir, mas na porta atravessava um guarda com uma espada. E me levavam a uma outra parte da casa, onde estava Francisco de Albuquerque em grande aparato de majestade assentado numa cadeira com um menino aos seus joelhos, cadeias d'ouro aos braços e ao peito. O menino vestia cetim branco e se havia coberto na cabeça de rosas, à testa um fio de pérolas entressachadas lhe dava muitas voltas aos cabelos trançados com fitas de carmesim. Seus lábios cintilavam num vermelhão, era bem-assombrado e de tal maneira formoso que nenhuma mulher lhe pudera fazer vantagem. Francisco de Albuquerque o beijava detrás, fazia nele o que gostava de nas naturais, a modo de animal, tendo nas mãos umas navalhinhas como lancetas de sangrar. E dizia. Se pecares, hás de pagar, por isso olha o que fazes. Vinha um gigante fantástico de cara de cachorro, das sobrancelhas pingavam gotas de sangue, os seios eram de mulher, o corpo de peixe e as paras com garras curvas. Atrás estava um homem assentado, juiz ou corregedor e o desembargador, o bispo, os oficiais do crime, todos em vestes de cetim preto muito compridas, na mesa um escritoriozinho com tinteiro e poeira. Ali os algozes, ministros da ira, com capuzes, vergastas, alguns tinham chifres e rabos. Eu me dava a um terrível respeito dos ministros e um grandíssimo espanto. Quatro pancadas na tribuna, um disse em voz alta que calassem todos os desinquietadores da santa justiça, ia começar a publicação da sentença, me fizeram assentar em joelhos, inclinar a cabeça ao chão, as mãos ambas alevantadas como quem faz uma reza.
Em nome do rei, que governava a terra por graça e vontade dos céus que a ele fizera eu agravo, eram apresentadas as culpas, diziam ser eu culpada no pecado da gula, que não tinha feito abstinência, devia eu pagar isso com a minha língua, no que vinha um algoz e me cortava a língua, disse o juiz que era eu culpada na sensualidade, devia pagar com meus seios, no que o outro algoz veio a os mamar e depois de tomar um leite vermelho os cortou e comeu. Fora eu tíbia no amor a Deus e avarenta no dar esmolas, pelo que havia de pagar com meus dedos, veio um outro algoz a cortar os ditos das mãos e dos pés. E como pecara de inveja, tive que pagar com minhas orelhas e doze bofetadas no rosto. O pecado da soberba era preciso pagar com o que restava de meus pés sangrados sem dedos, no que me cortaram os pés, ficando eu estendida. E porque pecara ao falar muito em prejuízo do próximo, paguei com meus cabelos da cabeça, que logo ali os tosquiou um homem com uma tesoura na mão, jogando cada cacho num fogo. Por ser culpada de ladra de moedas alheias e nisso gastar minha vida com ofensa grave do alto Senhor que me criou, assim eu era condenada à pena de olhos arrancados, no que me segurou pelos braços o gigante e me amarrou a um catre, vieram os algozes com seus capuzes, enfiaram seus dedos nos meus olhos deixando dois buracos no lugar, o calor do sangue sentia eu no rosto mas nada via, a língua do demônio lambendo o sangue que escorria, uma língua de amor, que me fazia suspirar e gemer ais e uis, apertando meus ombros e fazendo arrepiar, adúltera. Por culpada de traição ao esposo, era eu devedora de pagar com meu coração, no que de mim abriram o peito, um corte fino de dor e as mãos dedudas e grosseiras do algoz se meteram no meu peito a arrancar o coração, quis gritar mas era como se uma boca me beijasse, senti a língua do demônio me calando e seu genital me entrando entre as pernas e assim sem meu coração me rebelei, gritei, me sacudiram, vi que estava no mundo dos sonhos, queria sair, mas não queria, sem saber qual dos mundos era o mais ruim e sem querer ver o que ia. Mas abri os olhos. E vi.
À minha frente o mouro, com seus cabelos cobreados e sua barba por fazer, me olhava, havia nas mãos um pÚcaro e a seu lado um cachorro preto muito alto, tomada de um tão grande temor daquele homem saltei avoando num ímpeto para detrás do fogão feito um açor esfaimado quando lhe tiram as prisões e da alcândata se vai, a faca da cinta segurei firme em minha mão. Se vier, eu mato. O cachorro partiu para atacar e o mouro gritou de tal modo que o demo negro assentou e baixou a cabeça, dando mostras de ser o homem seu dono e não o contrário disso, que abriu a fera sua boca lançando a língua fora muito longa e os olhos em mim afogueados. Não tenhais medo de mim, que vos mal não farei. Bebei, senhora. Bebei. Assegurou o mouro que era mezinha e remediava com isso meu mau sentir, que me encontrara desacordada no caminho, pensando ser homem morto pelos bárbaros e vira com grande espanto que se tratava da órfã da rainha ao tirar meu chapéu, mulher de Fran- cisco de Albuquerque, que estava eu sem os formosos cabelos e me levara a cuidar em sua casa, tomou a faca da mão feito fosse eu uma criança e eu disse que lhe dava um caixote de ouro em pó se me soltasse, mas ele andava muito esquecido de cobiçar os tesouros da terra. Pelo amor que tendes a vosso Deus, senhor, não me mateis, que muitas recompensas tereis, nesta terra e em outra. E falou ele, muito assombrado, que me não ia matar, saísse eu daquele lugar e assentasse à mesa muito seguramente sem correr perigo. Pedi a minha faca, ele deu, sem muita confiança assentei. Se eu havia fome, fiz que sim com a cabeça, ele foi buscar.
Como escapar dali? Onde estava eu? Que casa, aquela? Tinha morrido e era o inferno? Podia ser que sim, era o mouro também defunto por isso tinha uma leveza para saltear feito gente morta do outro mundo e cabelos de fogo, mas parecia que era osso e carne, a verdadeira verdade, não me havia tirado o mundo a memória nem me faltavam os pedaços que fazia um pouco tinham arrancado com muita crueldade, fora um sonho, como verdade tanta que meu corpo ainda ardia da língua do demônio. Alembrei da bezerra de ouro que diziam dele adorar e havendo um medo tão grande fui a procurar com os olhos pelos cantos, mas aqui, ali, mais além e adiante, tudo era barro, paus e um archote, uma candeia, um baú, uma alcatifa, barricas de vinho, trigo, um pichel de azeite, duas serpentinas de luzes, coisas de naus para se navegar, uma escrivaninha de tinteiro, areeiro, sinete de ouro, estojo de navalhas, sal, umas coisas tão nobres que pareceram notáveis segundo o grande aparato dos principais. Por diante uma loja de coisas de naus, o instrumento por que se olham as estrelas, o por que se mede a altura, astrolábio, quadrante, balestilha, cartas por que se vê onde ficam as pedras, os ratones, os países, de onde vêm e para onde vão as correntes e os ventos, ampulhetas de areia que os pajens devem dar a volta quando lhes cai toda a areia e mais instrumentos de se governar pelos mares. Pela metade, um monte de caixotes dividiam a pousada em duas casas, a de trás onde habitava o mouro e seu cavalo e seu cachorro preto, com uma escada indo para cima, uma casa de naturais e cafres da Guiné, vestidos em boas roupas, assentados nos calcanhares comendo de pratos nos joelhos, falando, rindo, com suas muitas armas de fogo e espadas pousadas ao lado e os cavalos a um cocho, cães, aves soltas, fogão onde cozia uma natural a uma panela e uns sacos, barris, caixotes. Um bacio e gomil, com pano e navalha com que fazia a barba o mouro. tudo tão desordenado que se via, casa de homem sem mulher.
Da porta sem tranca se avistava o terreiro, a igreja onde me casara, o mar e adiante a casa de gentias onde morava a Velha, o que me deu alguma paz, temi ser vista dos padres, pensava o que fazer quando veio a fumaça que cheirava a carne muito bem, senti a boca se molhar de desejo, o mouro veio com uma panela. Comei, senhora. Comi, tanto que nem pude falar, ao final ele me deu tâmaras pisadas de um pote. Os pés dele estavam calçados, fiz a cruz em meu peito, rezei. Anjos do céu, justos da terra, santos de aquém-mar, em meu coração vos ajuntai, parto, não parto, que parto, coração e entranhas de mouro, que não fale nem venha falar e não me faça mal e tudo dê e tudo traga. Num silencioso espaço em que se ouviam as vozes das gentes na cidade, se viam uns lumes a se acender e então uns risos de mulher e de homem e estalos, um mover de tudo, veio o temor. Ao descobrir minha nova fuga, Francisco de Albuquerque se ia ver numa fúria tão repleta de assombro que podia cometer outros pecados, lhe dariam o inferno para sempre. Dele me apiedei em uma grandíssima dor, a quase nela afogar, um sentimento de o miserável, por me ter perdido e a suas vacas, perder seu rumo, que pouco se sabia fazer desvaler das mulheres. Ora, ficasse com as naturais, que na frente delas sabia se portar tão bem e tão despejadamente, segundo as fanfarrices da sua mostra prometiam. Disse o mouro. Me levaria escoltada, que ia me devolver ao meu senhor, era o meu esposo dono de mim e por certo me havia de ter amizade e estar naquele momento um tanto agastado com minha falta. Mas ia eu tomar a nau Patifa e tratar de embarcar como passageira, tudo era certo assim. Disse o mouro que se fora a nau uns poucos dias antes, se fizera à vela com muita festa e regozijo. Que falas? Que falas?
Com as mãos lhe dei muitas bofetadas em seu peito, com meus pés bati em suas canelas, ele nem se moveu, nem tentou segurar minhas poucas forças, feito fosse eu uma brisa do mar, o mui soberbo lobo poderoso com as unhas cruéis tingidas no sangue das ovelhas fracas, sereno, vil raposa que mata sem temor, homem encoberto, ai senhor, o rabi vai ao mouro e o mouro ao rabi, um despachar a mercadoria e outra empachar à porta, guai dos tristes, guai de mim que não guarecera de levar pedra tão pesada serra acima serra abaixo, ai que negra razão, da murada das bocas-de-fogo avistei o mar, que se fazia dourado pelos primeiros raios do sol, a nau não estava entre os barcos fundeados, não fora a nau à cidade velha, ou a outro embarcadouro, outra baía, outra capitania, mas se fora a Patifa para onde todos queriam, o reino, terra do rei e do rio e das ovelhas e das oli- veiras, ai, onde as mancebas tudo faziam com cerimônia, onde quem lá entrava tinha logo pão e vinho à mesa, isto aqui era um pagode de vidas perdidas. Assentada no muro sem saber o que pensar, fiquei, até que veio o mouro e me levou de volta à sua casa, disse eu que queria ficar escondida até vir outra nau, não podia tornar à casa de Francisco de Albuquerque, nunca mais até o fim de minha vida, em joelhos supliquei, me ia ele matar. Meu esposo muito me maltrata, põe em tormento, açoite, manteiga quente nos pés, vive tentado do Demo, mal pode dormir de tanto sofrer as malignidades de sua alma. Sim, ó sim, assim por dizer, que mesmo sem saber devia fazer de saber o certo. Ide à casa dos padres, que vos recolherão. Ai, não, lá ele me há de arrancar em um dia, por sua tia. Eramá, muitieramá.
Ficasse eu ali ou onde quisesse, que me ia dar comida e não poria nenhuma suspeita no meu valor de saber os desejos, fosse eu quem fosse como mulher de alguém, não pusesse igualmente eu suspeita nele, que por mim teria lealdade, por compaixão, de saber minha desventura, mas aquele seu era um lugar de tão pouco aparato que mais parecia de pescadores e gente pobre que vivia de seu trabalho, tivera eu o costume de muito folgar a riqueza de meu esposo como rico senhor de currais que era, em casa de fêmeas. E se chamava Ximeno Dias. Muito bem podia eu viver longe de Francisco de Albuquerque, da Perra e dos olhos pregados de Viliganda, com o pouco que fosse, sem falta de veludos ou peles de gatos. das escravas naturais para meus cuidados, embora sentisse Temericô a me fazer de rainha, mas viveria sem as alterações que continuamente combatiam em minha alma. Até que viesse a nau do rei, que eu tomaria. E se não viesse a nau? Viria. Oxalá.
E me fez ele subir uma escada que dava num quarto pequeno com vistas sobre o mar, onde havia uma cama, uma mesa com um livro e mais outros numa ordem serena, celebrassem em si um grande saber, de um reino que não é deste mundo mas de outro, ornado e composto pelos sábios, pontífices, profetas, todos subidos no mais alto grau, de que senti querer cair em joelhos. O que ensinam estes livros? De seu pai ouvia, serve o saber ao ensino, ao bom procedimento, ao juízo e eqüidade, a dar aos simples prudência e aos jovens conhecimento e bom siso, a ter habilidade na vida, a entender palavras e enigmas de profetas e de outros povos, à boa paz entre rei-nos e a não temer o próprio rosto. A isso serve o princípio do conhecer e só os loucos desprezam a sabedoria e os livros, O ensino do pai e a instrução da mãe são diademas de graças para nossas cabeças. Senti angústia, por disso nada ter havido para mim. Mas disse. Assim era meu pai. Quis saber o contido no livro preto de letras em ouro, disse o Ximeno Dias ser aquele um com as peregrinações pelo mundo, riscados numa carta as baías, montes, lagos, os peixes avoadores, os monstros marinhos, promontórios, canais, coroas, arrecifes, as aldeias de naturais, os fortes, rios, as ilhas, que formavam a costa do Brasil, as anotações das léguas, dos alísios. Singraduras, outras cartas com as teias de rumos que disse ele servirem para navegar. Havia riscados de naus conhecidas e outras naus de que nunca tivera eu notícia e o poderio que tinham, mas faziam sonhar e davam o gosto do vento.
Deitei sem poder dormir, despertada, desentendida, tentando enxergar minha alma, tendo para mim que daquela vez não escaparia. Tudo parecia aviso, certo era que me ia matar aquele infiel que se fazia de bom para iludir, me meter em prisão, fazer perder-me e tirar da cinta sua faca e me retalhar o corpo, disso fora indício o sonho. Ao mentiroso vês ali, já ficas em mentira e aquele, enchendo sua livraria de livros de escritores que em qualquer gênero alcançaram ilustre nome, fosse profanidades ou blasfêmias. Devia escapar, ir pelas brenhas até sei lá onde a buscar uma nau que me acolhesse ou viver selvaticamente da caça do mato, de algum manioque, de uns frutos até ir à vila dos ilhéus de onde embarcasse no modo como estava eu em traje de homem, viver nestes trajes, não era a Parva homem que vestia de mulher? Cumpria eu uma pena, ia descumprir outra, que os olhos de Deus não viam tudo, se não, por que não viram na criação dos anjos o desmancho e a ofensa que Lúcifer iria fazer contra seu criador, como veria este mundo de homens que ladram como cães com baba que lhes corre dos beiços, de cólera? Havia de ter ânimo e esforço para o que viria por davante e tratar de coisas muito necessárias aos meus propósitos, a enxergar um novo espírito e ousadia para não duvidarem cometer eu o que levava determinado. Mas se estava prisioneira do mouro, por que não metera ele cordas em minhas mãos e pés e atara à cama? Podia alevantar, abrir a janela, a porta, descer a escada, tudo estava ao redor, no que fiquei repartida entre as interrogações dos motivos do Ximeno, nunca me ajudara ninguém em minha vida, por que ia querer ele nada em troca de tão arriscada empresa? Ainda mais sendo da maldita raça, de mafamede, se é que era e da tal religião de paganismo. De modo que em seu vulto não fazia impressão a mortificação de sua alma e o contínuo castigo onde os pecados sopesam, por andar essa alma de si descontente e como servo do demônio andava com gesto ledo e desmelancolizado. Mas os quais prática e discurso não eram de homem simples e ignorante.
Não havia gente assim no mundo, feita só de caridade, nem padre nem bispo, não havia alguém que fosse todo bom, devia sempre de haver na bondade uma revolta da má consciência, alguma coisa de cobiça, um desmancho de tomar o alheio, um se inclinar àperdição dos machos, que eram o ouro e as fêmeas, todos sempre esquivavam na hora do desespero, ainda mais a uma cadelinha feito eu, que se devia fartar com as migalhas, assim como as ovelhas de Jó, de desdém cobertas, mocidade desdichada, à meia-noite mijar, ai ai ai, que dolor. Podia estar indo o mouro me delatar, em troca de recompensa, que é parte da natureza humana essa mercancia, tudo era indício de me haverem mal e disso eu sempre soubera, se era eu só no mundo, haveria de me saber cuidar, espreitar, que bastava o perigo de não ter pai nem mãe, ser mulher que excomungada nasceu, ignorante e principiante, tentada dos espíritos dos ventos, dos cabelos desgrenhados, dos lírios de orvalho. Porque Deus, com seus juízos ocultos, ordena as coisas muito suavemente. E o esperei, com a faca na mão.
No fim do dia me acordou o mouro Ximeno com umas frutas, um púcaro de água, uma fatia de peixe seco no pão e azeite, no que me valeu bem à fome, de novo fazia o estômago muito desconsolado, uns vagados acudiam, uma manta de forrar e aquecer para a noite, um odre com refresco, assentou comigo, acendeu o lume, olhando com seus entendimentos e pusemos a falar sobre mistérios, de como se formavam as pérolas, que era de lágrimas da lua que nas noites tristes escorriam ao fundo do mar, ele riu de mim. Sou besta? Não, dizia eu palavras mais formosas que os apontamentos de um filósofo. Não se deve acreditar senão em que diz o coração. Onde era que habitavam nesta terra de brasilos os homens que tinham olhos e boca no peito? Disse ele que nem existia no Brasil nem além nada que semelhasse tal monstro e não crendo eu, afirmou ele ter estado em todas as terras do mundo e visto os mais estranhos seres, mas todos tinham no lugar a boca e os olhos. Que estranhos seres tinha ele visto? O unicórnio? Sim, era um bicho grande como um cavalo e de um chifre torcido. Os alifantes. Homens que se arrastavam em sítios ermos, as mãos pelo chão. O homem-peixe, coberto de escamas. Lunáticos. Energtimenos. Uma mulher de duas cabeças e uma que tinha os pés para trás? Umas aberrações da natureza, que ocorriam. Desde que fossem filhos de pecadores? Que não e afirmou, não existiam nem homens com patas de cabra, nem sereias que encantassem, nem orelhas que iam até o chão, nem éguas prenhadas pelo vento, nem pedras que viravam fumo ao raio da lua, nem gente com duas línguas, uma perguntando e outra respondendo, nem ilhas de mulheres sem homens, embora houvesse algumas de homens sem mulheres, nem figueiras que davam laranjas, que o mundo e a natureza eram de uma ordem perfeita, tudo fora designado por um só criador e tudo se parecia, embora nada fosse igual e que todos os homens de todos os países eram filhos do mesmo pai. Assim meu peito tremeu, de ter entendido estar ele me querendo converter ao catecismo de sua maldita seita e rapei os meus ouvidos, ao que ele se calou arrependido.
Por Deus, pelas gotas de leite da Mãe Santíssima na âmbula de cristal na igreja de São Miguel, mas eu sem querer muito averiguar as discórdias e enfadamentos sumidos no fundo de minha alma, vivendo sem afronta, muito contente, confiada e segura dele, que desvendava os olhos comidos de abutre de tanta ignorância em que sempre eu vivera, contava do mundo, dos países, dos seus saberes de homem, das multidões de navios nos mares, passei grandes pedaços das noites em perguntas de coisas novas, do mundo de fora, que me desfiz em dúvidas de dentro de mim, para onde iria a minha alma depois de morrer, de que coisa era feita minha carne, se era eu boa ou má, se podia discrepar dos padres ou não. Disse ele dos segredos do céu, tinha cartas das constelações, falou dessa estrela aqui, aquela estrela ali. Havia uma que era o ombro do gigante, uma que era a águia avoadora, umas serpentárias, as estrelas Plêiades, umas pregadas no céu, umas que iam e vinham e a história de uma grande torre de sete andares dedicada ao Sol e à Lua e aos cinco planetas, a terra habitada, as quatro regiões, os quatro pontos cardeais, o templo dos sete compartimentos do Céu e da Terra. E muitas mais coisas que podia ele mostrar. Da Terra, da Lua, do Sol e do mais. Para que existia o Sol e disse ele. O Sol existia e se encontrava no centro do mundo apenas para nos iluminar e dar vida. O Sol era Deus? Não, mas parte de Deus. Um rei? Um como que rei. E a Lua, uma rainha? Sim, senhora. E a que lonjura está a Lua? Disse ele que era uma distância ínfima comparada à que nos separava das estrelas.
E se o conhecer do mundo pelo homem é verdadeiro ou falso, disse ele. Pouco importa sejam verdadeiros ou falsos as hipóteses, a fé, o cálculo, desde que descrevam e reproduzam o que tem existência, que eu não temesse as contradições. E perguntei se o sonho era verdade ou mentira. O sonho é como uma estrela sombria, de natureza tenebrosa, um longo inverno, mas onde se podem avistar coisas admiráveis que nossos olhos abertos não nos podem mostrar. E onde ficava o mundo dos sonhos? O mundo dos sonhos ficava, disse ele, dentro de nós mesmos. E que mais mundos havia dentro de nós? Isso ele disse não saber, disse não saber tudo, saber quase nada. E que mais que ele, devia saber eu, por modo de minha fuça muito curiosa, como de um gato. Se era o Ximeno um feiticeiro, se mal fizesse, havia de fazer menos que meu mesmo coração alojado de vozes.
Mas que vida era essa, ficar em uma casa pouco avistando mais que a rua por umas janelas pequenas e o mar, numa câmara de dormir, sem aia que me cuidasse, sem haver nada do que se dá às senhoras, o que faria eu? Se ia eu haver vestida feito homem em um tão desconcertado sucesso, que já supunham as escravas do Ximeno e seus naturais e seus cafres de ser eu homem desbaratado, ou o que mais, querendo verificar meu mistério por sua natureza curiosa, que desatino era este, estando todos eles certificados da fuga da esposa de Francisco de Albuquerque pois pusera ele pregão na igreja para ter notícia da mulher, foram uns às aldeias buscar a branca, tornando sempre sem novas e se faziam muitos juízos de onde a moça podia estar, rezara o padre missa para que tornasse viva, mandara dona Brites de Albuquerque por súplicas de seu sobrinho buscar certas casas que ele apontara, mas o governador escusara por temer a afronta aos senhores e que tal desmancho causasse motim, mas se dizia que juntava seus homens Francisco de Albuquerque, ambicioso de sua honra, determinado a levar a cabo seu intento.
Francisco de Albuquerque se enfurecera assaz de minha nova fuga, que se obrigava me haver de retorno e por uma notícia minha daria em troca dezessete jazigos de rei, que se dava bofetadas no rosto, com a cabeça pelas paredes por desespero de ter perdidas a mulher e as vacas. E lhe disseram que me tinham visto em trajo de homem, assim como tornara ao fortim o cavalo. Tudo era uma baralhada de dúvidas que assolavam e sem alvíssaras nem conserto nem aparato nem boas coisas que se trazia consigo. A guarda do governador fazia ronda na cidade e nos arredores, que era dona Brites empenhada em encontrar a mulher de seu sobrinho, na rua estavam um e outro em seus tilintares de arcabuz e saquitel de pólvora, suas espadas velhas de ferro, ao que lhes fosse determinado conforme os estatutos da honra e outras coisas que nem a natureza nos ensinou, com mostras de terem em seus olhos,muita atenção por todos os lados e da força do governador que se inclinava mais ao clamor dos ricos que às tristezas dos inchados da terra, em verdade aquilo me causava grande temor. E perguntei ao Ximeno se tinha medo. Não tinha ele medo de nada deste mundo, apenas das coisas que lhe faziam o coração em tormentas, sobretudo o amor, por onde comumente as nossas almas se consomem. Mas eu, sim, o temia. Vos sou leal, senhora, como sempre serei assim nesta terra como nas outras, antes ficasse cego que me tirasse de suas vistas, antes lhe caísse a cabeça a me ser infiel, encareceu a mim a muita razão que tinha de pôr sua vida por uma tão boa mulher, para me socorrer se faria açoitado, arranhado de espinhos e por fim de tudo morto, para certificar sua doce amizade e esmaltar minha alma com seu sangue. Tudo faria por mim em minha suavidade mulheril. Muito provou o Ximeno sua fala, tendo a mim naquela alcova sem nenhum destrato ou requerimento, uma tão boa apuração que me fazia um vazio no peito quando não estava ele perto. Tanto que atinei poder estar sendo encantada por feiticeiro.
A coisa já andava tão acesa que não se podia mais pôr em paz acidade e vieram entrar nas casas os homens de Francisco de Albuquerque, nas que lhe parecia estar eu escondida, numa grande confusão, de muitos cavalos e se desacatavam homens e se voltava fúria contra fúria, que se ia a gente retirando de suas casas à casa do governo para pedir ao governador em pessoa acudir com a guarda porem nem isso lhe aproveitou, os homens de Francisco de Albuquerque atacaram a casa das gentias e acusando a Velha de me esconder, com fúria, desatino, ia matar quem me tivesse, assim saídos por detrás da vivenda me levou o Ximeno às teracenas e me fez entrar num barco pequeno, soltou as amarras, remou pela ardência da água do mar, rio adentro e me deixou em uma casa para fugir do diabólico alevantamento, no meio de um bosque e me encerrou, fez um fogo. Ia pela manhã, deitasse eu à rede, era uma casa de escravos seus e havia duas velhas, fez uma cama de palha para mim e disse. Vereis, senhora, que gentes estranhas, nascidas no fim das terras e sem conhecimento de vossas doutrinas vos aceitarão como a uma oferta de música suave em suas orelhas. E rogou dormisse, vivesse ali sem ir a lugar algum, que se via estar a coisa muito arreceada, que se gastava debalde toda a distância do tempo e grandes perigos, mas não temesse eu, viria ele à miserável prisão em que quisera eu estar, sem ser carregada de ferros me arrastava pelo mundo mas que havia apelação, poderia fazer desagravo ao governador pela aspereza com que estava eu sofrendo e que penitência era o maltrato, ou mesmo ao rei, porque nenhuma coisa se bastava para fazer torcer a mais pequena parte do que seria a Justiça e visto o processo de minhas culpas se provaria não haver em mim partes contrárias à virtude, nem males criminosos. Que não. E não.
Passado o espaço de uns dias, veio ele me ver e disse que a dona Bernardinha havia morto seu esposo com umas punhaladas, de noite, ao lhe ter dado de beber umas águas ardentes e por ele não ter deixado escapar vestida feito homem, que dizia ela estar uma nau esperando para tornar ao reino, acutilara ela tanto seu peito e seu corpo rodo que se contaram mais de cem furos na carne e que o pobre estava sendo enterrado. A dona Bernardinha puseram numa gaiola no terreiro, a pele marcada pelas pedras lançadas, de apedrejamentos que lhe fizeram uns pouco apiedados, no malentender de suas desventuras, não fosse uma cristã. Desatinada, que por minha culpa estava ela em tal estado, ia eu tratar de remediar o muito mal que lhe havia feito. Disse o Ximeno que me cuidasse e não me pusesse à luz do dia, Francisco de Albuquerque muitas vezes dava as caras na cidade em busca de noticia da mulher e ainda chorava ele feito um danado, sempre caindo em seus joelhos. E perguntou se era mesmo verdade que ele me maltratava. Não, era que me havia na alma um como que buraco, por onde se esvaíam as minhas razões, não merecia Francisco de Albuquerque uma como eu, de rebeldias, de males atormentada, de coração fraco e desesforçado, com injustos mandados, impacífico espírito desconjuntado, repartido, de grande ímpeto, trigoso, a contrastar as tentações em uns diabos avoando de noite, como uma maligna velha endurentada, em palavras cheias de espinhos, falsas e sorretícias letras confeitas, por trair meu coração, que houvera eu de responder a meus desígnios, que houvera eu de fazer e saber. Numa noite de lua cris cuidara ele que uma cobra tinha engolido a lua e tirara a sua espingarda para o céu e fora dar na porta, gritara para o céu mandando que deixasse a lua e não a engolisse, que quando morresse seus dentes iam bater debaixo da terra. Nesta noite trouxe o Ximeno uma caravela de dois mastros que cabia em minha mão, fizera para mim, com todas as velinhas.
Perguntou o Ximeno. Se nem um pouco eu amava meu esposo, por lhe ser tão cruel. Disse eu. O que é amar? É ter a pessoa tão dentro de nós tão fundo e num tão incomportável grilhão que dela nos sentimos marcar a fogo e basta fechar os olhos para a ver em si e de noite ela nos faz tormentas e de nosso corpo uma fornalha e é a quem queremos ter sempre mais, a quem nos queremos desvelar e por quem partimos ou por quem ficamos e para quem queremos dar toda a limpeza do sol e das estrelas, dizer todas as falas de nosso saber e nos deixa metidos em correntes, colares aos pescoços, algemas nas mãos e ainda assim avoamos feito as aves. Depois de ter o seu rosto por um muito longo espaço tão perto do meu e seus olhos tão dentro dos meus, se foi pelo rio e por tantos dias não tornou que pensei ter sido morto pelos homens de Francisco de Albuquerque. Ai, espelho claro da luz incriada, que nunca minha alma tem acatamento de mim e faz de mim o que quer, sem pena de me consumir com seu bravo ímpeto. 178 19 Estava a casa do Ximeno escura, os lumes apagados, uma luz de lua peregrina pintava às avessas o mundo, do escuro ao claro, assim como o sol fizera as sombras fazia a lua as luzes e avistei no catre o Ximeno adormecido, desnudado de suas vestes, descalçado dos sapatos, eram seus pés de gente, fosse naquela noite, nas outras não se sabia. Mas assim o vi. Era tal, que atraiu em tudo que há em mim e lhe fui sentir a boca, ele despertou e me tomou em seus braços num desatino e grandíssimo ímpeto, correndo com as mãos pelo meu corpo, dizendo suas falas de amante, a beijar meus beiços e outras obras bem desconcertadas, famintos afagos, a soltar o meu gibanete de homem, arrancar colchetes, desatar os cordões da camisa, a me querer deixar feito as naturais, a mim dava um gosto bom, fino punhal frio arrastando em toda a pele, a querer sentir que ele se fazia em mim, um prazer perseverante tragando minhas tentações para vencer minhas malícias, inferno glorioso tirado de meu corpo, de minha natureza humana, minha perdição e minha alma indo àluz, portas se abrindo, minha boca bem-aventurada, ele um todo-poderoso a me desfalecer, demandar, huhá, hio hio, digo que sim, re-si, eia, sus, lago dos cães, hua, hua, ala ala, saca saca, hao, hao, mas ele disse que não, e foi dizendo que não e não, que ia causar um grandíssimo mal, tamalavez, ieramá muitieramá, se vos eu arrebatar, de maneira que estando ele sobre mim vi entre seus cabelos os chifres, endureci a seus suspiros e me desfiz do encantamento.
Sem me conhecer, dona Bernardinha cuspiu em meu rosto e murmurei, fecha esta tua boca, que aqui estou eu, tua amiga. Muito pasmada ela se fez, nos espantos de meus trajes e riu, numa demência, que estiveram os miolos da sua cabeça cozinhando ao sol e à chuva, a estupidez se alastrava em seu rosto, o espírito da desrazão habitava em seus olhares de raio e seu cuspe, em sua língua suja e obscena, repugnantes palavras de ódio, maldizendo a Deus, aos santos, à Virgem, sua pele se marcava de rodas, apedrejada, seu rosto em dessemelhança de carne se fazia, até os pés, seus peitos feridos com tão admirável crueza que a toda a gente faria um temor muito medonho de modo que a horribilidade que ali se via me causou tamanha tristeza que apertou o coração. Sussurrou ela tão fundo que parecia querer inclinar a si as orelhas de Deus. E disse eu mais uma vez, sem compreender o justo juízo de seu desentendimento Não arreceie, que sou eu nestes trajes. A Oribela. Caiu ela de joelhos. Não sei como o matei. Tivera razão para o matar, havia sido ele um soberbo capitão dos espíritos danados, dos sulfurosos fogos e de entendimento feito com a peçonha das víboras, um cão tinhoso que beijara a cauda recurva de Maimont e que bebera sangue de rato e de cágado macho e que agora morto rodeava o coração de dona Bernardinha como um luzir de pirilampos e um inimigo capital a alumiar os soturnos cárceres dela e arrastar sua alma pela rua da amargura. E ela disse. Este mundo é um desterro e nós, estrangeiros. Nada mais que fosse de entender e caiu no chão de focinhos a executar o triste castigo de sua desfortuna de sem razão emudeceu de tal maneira que só suas lágrimas davam testemunho do que sentia seu coração.
Ó alta potência do Deus todo-poderoso, quem poderá compreender o justo juízo da tua divina justiça, que não tendo respeito à inocência desta que nunca pecou por maldade, tão boa para as irmãs e os estranhos, que nunca deixou de pagar com seu sangue, suas lágrimas, seu orgulho, sempre apagando suas carreiras de fogos, dá lugar à tua ira que passe adiante daquilo a que nosso entendimento não pode chegar. Este mundo é um desterro e nós, estrangeiros. Quis ter os braços da Velha ao meu redor, feito mãe acolhedora que acariciasse os cabelos, beijasse, acudisse de minhas penas, respondesse a propósito ao que lhe eu perguntasse, acalmasse da tormenta na alma que me demandava meu sangue e minha miséria, derramei as mais magoadas lágrimas por sentir se acabar a dona Bernardinha, por sua desgraça, devia de ser assim, de uma em uma cada uma de nós seria consumida, éramos como as drogas que por elas havia muita cobiça mas na primeira refrega furiosa do mar se iam os caixotes ao fundo, como se faz com os cravos, que se masca e cospe, não como senhores mas para desfrutarem e deixarem, fau fau, vacas atadas por cordas, caças de mato, peles em cabelo, passatempos. Sempre disseram estar a virtude no cimo da montanha e os males nas encostas, que os fracos não levam a boa obra ao fim e os tolos mudam como a lua.
A Velha deitada e uma bugra a seus pés ao modo de uma camareira-mor, ainda que ardesse pouco lume numa só candeia, viu e conheceu meu rosto, fosse por estar sem chapéu, fosse por ser mais boa de vista, nos escondemos para falar, ela estava sem a mordaça. Como te deixaste esquecer tanto tempo numa noite? Que pensei estares morta. E mais lati lara. E lhe disse de minha culpa, por ter eu metido no coração de dona Bernardinha o desejo de fuga, não tens culpa de nada, deixa-me com isso, porque eu tomo à minha conta. Quis saber onde estivera eu e por que me escondera, mas nada contei sobre o Ximeno. Disse ela de suas dores, sempre assaz atribulada a tomar mezinhas para sua enfermidade, em fastio sem poder comer coisa alguma, não havia físico que a curasse, nem quem aprendera essa ciência e a tratavam com um pau cuja água curava muito maiores enfermidades que a de estar na cama sem poder bulir nem os braços. Tudo estava mal, soubera do ataque dos bárbaros contra o fortim e outras fazendas, esperavam a torna dos bárbaros de muitas aldeias, que com sua fúria iriam arrasar a cidade do rei sem deixar osso em cima de osso a nenhum cristão que encontrassem, nem vestígio do que ali se fizera com muito suor e lágrima, o temor marcava os rostos dos cristãos e dos naturais, estivesse para chegar o fim do mundo. Que fosse. Assim como por natureza a água lava tudo e o sol aquenta as criaturas, assim se deve por natureza fazer o bem a todos e cuidar do que é do rei. As brigas do filho do governador com o bispo se faziam tão severas e ferozes como as dos cristãos e luteranos, ou a dos brancos contra os bárbaros, que ia uma nau ao reino levar as queixas e nela se ia partir a Velha, a ser vista dos físicos do reino, que ia chegar a armada do rei pela graça de Deus e dos ventos.
Ai que incredível maravilha, a armada, a capitânia, a almiranta, o Velho com os tratos e animais, uma das naus tinha dado num charco d'água, as mais deviam chegar por mais dias, que já se preparava veniaga de gado vacum e açúcares e se esperavam as vistas das velas, trouxessem por mercadoria lagares de vinho e de azeite que muito faltavam às mesas dos principais da terra, chacinavam, salgavam, pesavam toda sorte de carne de vaca, amontoavam os caixotes no desembarcadouro, os meirinhos preparavam seus dedos e os anéis os malsins, muitas onças de canela, incenso e macela e nêvoda, estava um nevoeiro que nunca se vira, feito em cume de serra no alto dos outeiros e nas penedias, o que podia atrasar a entrada na baía e muito se ajuntavam gentes da cidade a olhar o silêncio que vinha do mar escondido pelo véu, num mistério branco apavorante, a especular em suas imaginações. Nem se podia fechar a mão feito um avarento aos precisares alheios, nem se podia torcer o focinho para outra parte sem dar remédio deixando os pobres no charco da noite sem mando bradando como rãs e assim os admoestara o governador, pelo seu cargo, que era compromisso de missão. Que de tudo faltava ali por esquecimento do rei e se fazia a cidade mais ruim que antes.
Então quedei de novo a pesar o coração do Ximeno. Podia alguém se fiar no maronita? A Velha nada sabia dele e disse eu que era batizado, levava o nome cristão de seu padrinho, amava as naus, sabia respostas a todas as perguntas feito um grande sábio e havia em sua casa uma tal quantia de livros que jamais eu pudera supor em uma só mão, uns mais de dez e fazia naus nas teracenas da ribeira de modo que devia ser algo e não tinha mulher nem se servia das naturais suas escravas, muitas e bem-apessoadas, os pés dele não eram de cabra nem lhe havia rabo mas uns chifres em sua cabeça que apareciam em noites de lua cheia e os cabelos viravam fogo nessas mesmas noites quando dormia ele desnudo como um natural, branco e sem pêlos no peito mas um corpo tão formoso que faria vista a uma baixela de prata e não era mouro. Como sabia eu tanto assim dele? De ouvir falar. O que era a bezerra? Uma estátua dourada de ouro banhada e de chifres mas as suas heresias pagãs estavam escritas num livro de capa preta dito de Corão. Se bezerra era o que dizia a Velha, não havia uma de tal forma em sua casa. Assim falamos por toda a noite, até que a Velha me mandou entrar em um esconderijo no fundo de sua casa onde se guardavam algodões para fiar, que logo se ia ver no céu o primeiro raio de sol. Mal podia eu dormir, aos gemidos e blasfêmias de dona Bernardinha soando no escuro entre as estrelas de minha mente e as do verdadeiro céu onde deu um espantosíssimo estrondo de coriscos que fez os ratos todos entrarem nas tocas e tao desamparada estive que seiscentos cavalos não me fariam alevantar, só podia eu ouvir a agua tornar a terra num mar e muito frio passei, muito ódio de nosso desamparo.
Lavada de toda a água do mundo, como que morta, sem que nenhuma alma caridosa lhe houvesse coberto a gaiola fui eu fazer, com a manta do Ximeno que me aquecia, aquecer a pobre homicida. Estava dona Bernardinha sem ânimo, em suas chagas padecia sem dar mostras, a cabeça a cavaleiro de si mesma, nem via ela a criminosa justiça do mundo que se fazia em sua triste sina nem mais se fazia ela de desfeita dos entendimentos, mas desfazia do mundo e seus divertires, coisa viva que lhe era a vida em si, nada mais, nem pensar, nem sofrer, nem sonhar e como se pisasse a rosa das cabeças dos anjos embarcou ela nas tristes névoas do sonho, mas ao ver a mim disse em vozes tão fracas que se nem ouvia, olhando para mim com rosto já de trespassada como se uma luz destrevasse seu coração, suplicou que a beijasse, o que fiz sem pensar. Que era dia da invocação da casa do rei e que agora reinava a si mesma, no labirinto de suas milhares de leis, que o paraíso se abria em portas armadas sobre trezentos e sessenta pilares de pedra, ia haver uma grande dança e tangeres no reino de Deus.
Homens armados desentocaram dos desvãos e da guarita, de umas casas, todos no meu rumo, tantos que pareciam nascer do chão e corri pelas ruas, seguida dos homens ajuntados em quadrilha que gritavam tendo suas espadas tiradas, eu pedia socorro a Deus, entrava por onde fosse, sem atinar do rumo, até a muralha de taipa, avistei um buraco onde ruíra e havia passagem, para lá corri mas dei com Francisco de Albuquerque muito desestimado em seu cavalo que vinha no meu rumo. Quis eu tornar ao terreiro a escapar, mas passou ele os braços em torno e me prendeu, a agradecer a Deus sua boa fortuna, disse. Dona Oribela, minha, tua falta me abriu no coração quatro largos e fundos rios de tristeza. Quis ele saber onde estivera eu neste tempo agasalhada e disse eu que estivera perdida na mata, que não, dissesse eu a verdade e me negando a dizer quis ele dar castigo à Velha por suas culpas acusando-a de me ter feito mal, como fugida e que se bastava olhar a boa circunstância de minhas carnes, que se houvera estado eu perdida na mata teria a apresentação de um mau-trato e a aparência de um soçobrado, quis meter em tormentos para que confessasse seu crime quando em joelhos lhe pedi misericórdia, que não fora minha amiga a dar agasalho, quem fora, que dera? E disse eu, sem haver em meu coração uma suspeita ou uma dor, como se o quisera ver morto e acabado, mas como se não fosse eu a falar e sim a outra que vivia dentro de mim, a mais entendida do mundo e das verdades, como que um meu anjo a me querer tomar das garras do encantamento, da servidão ao feitiço, de que dava prova a vasta trunfa avermelhada que lhe coroava a cabeça, de má-fé, desatino, um pérfido todo ternura e inconstância, seus olhos de um aveludado que inspiravam torrentes de poesia e lábios de onde pareciam brotar perfumes, que dificilmente se lhe podiam descobrir as manhas e o pacto, a quem não havia leviandade que lhe resistisse, pelos recursos de que se valia. Foi o mouro.
Ah, Deus, que esculpiste meu destino numa tora em brasa, que mais me pode esperar por ser eu tão má e desconcertadora das vidas alheias? Não pude eu sair do leito sentindo as penas do meu pecado em meu ventre, num tipo de mal lunático, que vinha quando saía a lua, a ver eu candeinhas diante dos olhos, parecendo enferma, a só ter no escuro de dentro de mim a visão do Ximeno e o desejo dele, como se houvera um triste soar de sua voz em murmúrios sobre mim, nunca saía da lembrança a pele dele em seu catre toda desnuda, um grande pecado, tão mau que devia eu de dar suplício ao corpo, minhas unhas afiei na parede e raspei a minha pele dela tirando sangue numas trilhas infernais, sem lágrimas ou gemidos, a pagar com minha dor a dele e vinha ele a bafejar, ai amor, eu bem vejo o teu coração dando saltos, ilusão da língua, toques de mão, união de corações, a nos saírem pela boca resplendores de fogo e vivia eu disso, sacramentada ao Ximeno, dele sendo toda possuída, a suspeitar que era o demo, ele, que me precipitava nos fingimentos, a ungir meu peito de abismos, a apertar os meus pulsos, lançar aos estímulos carnais, ah, Deus, que me salvasse, a quem podia eu confessar? Tanto foi meu mal passar que não podia tornar ao fortim e mandou Francisco de Albuquerque vir o físico a cujo pediu que olhasse por mim. Mandou Francisco de Albuquerque vir uma canastra donde tirou um vestido já feito e me fez vestir e chamou as naturais para me mostrar que riram em contentamento e me consolaram com boas palavras. Salve, mulher abençoada, flor e fruto de germe erupit, flor suavíssima emictens odores, fruto saborosíssimo e doce, flor cuja bonitas expellit mesticiam, fruto cuja saciedade plena dá leite, bendita flor que de ti ascende, bendita árvore, bendita árvore e fruto, tua flor alegra, teu fruto da miséria retira, para sempre bendita, amém. Estás com a graça da vida em teu ventre.
Cerrai os olhos corporais, vós senhora convidada, benzei a mesa vós, senhor, ó incréus, nunca Satan me pôde burlar nem fartar, ai que calado se faz, o gado não muge, não balem ovelhas, mil bandos de veados, gentil gado, gado erreiro, as vacas todas no céu de Deus, na terra um silêncio preto de cinzas, uma hora derradeira, depois de passar a vida inteira trabalhando, juntando rês a rês, a engordar, fartar o gado, apascentar, mu mu, se via Francisco de Albuquerque assim num vácuo e tão vazio, sem esperança que tudo para ele seria o meu ventre que lhe faria entender o dom da vida feito uma profecia, a ver quem chora primeiro e quem chora por fim. Eu nunca tivera caminho para trás, agora vivia sempre amarrada feito só houvesse o passado, que gritara a Parva à minha vista, fazia se não grunhir. Ai caganeira esforricada, que não saio da privada e tu és eira de caranguejo, passos atrás ao inferno, empuxai, minha pombinha, ansí vivas tú y ella, como yo acá porne el pie, dizei uma Ave-maria enquanto eu vou mij ar. Ai que extremo em minha vida. Já esperavam com muito alvoroço e a mesa posta, a Temericô me beijou as mãos, rindo, as outras brasilas prepararam cheiros e me agasalharam com tanto amor como se foram minhas mães ou irmãs, Viliganda a olhar sem atinar bem e dona Branca com seu olho de faca, ferindo e seu silêncio de pedra. Francisco de Albuquerque logo atou a meus calcanhares as suas cordas, de tamanho que pudesse eu ir pela casa e parasse à porta. No meu quarto o tapete lá estava, as peles no catre, vestidos, bordados, tudo limpo como se me esperassem, uma ordem de Francisco de Albuquerque de quem disse Temericô ter andado em mundos secretos, os olhos perdidos nas lonjuras, sem se servir de naturais, que de noite se metia na capela que não se acabara de fazer e ali ficava ele assuntando a escuridão em vigília, agonias, tristeza.
Em vestido de fidalga dona Branca nos deu água às mãos e todo o tempo que durou a mesa veio perguntar onde estivera eu, por que voltara e mais questões. Que meu sangue do costume ia verter em leite pelos peitos, era eu mulher de boa aguada e bom surgidouro, por ter fruto no ventre feito num pomar do céu e nem era uma terra que azedava o trigo, nem uma terra degenerada que como cão esfaimado parece que todo o trigo do mundo a não poderá fartar, que em vez de dar, o toma. Dona Branca não fez rezas nem salvas, disse apenas um tanto agastada como cuspisse palavras. Então a cachopa éprenhada. Esta é a saudação que dás a mim e ao filho de teu filho? Se ficaste prenhe, basta. Não tens freio na língua nem chave na boca. E mais, estás tosquiada? Os cabelos carcomidos. Nem se sabe se és fêmea ou se és macho. E ainda as mãos e o que se pode ver de pele, escarificadas. Não sei por que respeito o filho trouxe uma mulher tal, tão contra o nosso jeito. E vais ficar? Ou te atiça ainda o coração em fugas e grandes pecados? Disse Francisco de Albuquerque à mãe. Cala tua boca e recebe tua filha sem o fel de teu coração, por tua causa é que dona Oribela vive a querer fugir de nossa casa. Em joe lhos e com as mãos alevantadas dona Branca disse o Páter-nóster e a Ave-maria e o Credo e a Salve-regina orando por seu filho, dizendo que desde o tempo de Adão tinham os machos orelhas de mulas. Antes morrer pelejando que consumida pelo tempo pouco a pouco como uma vaca enferma. Sou sabia rebuçada, também trago o meu mantel, mas só tiro a carapuça a quem me tira o chapéu.
Queria eu roupas de fidalga para assombrar o Ximeno. Ia vestir e fazer a Temericô me tratar dos cabelos, que virassem cachos e da noite para o dia descessem aos ombros e de véu, o rosto ataviado de tinta e as mãos de perfume, ia eu fazer de dama para que ele avistasse e se cortasse em seu coração de respeito por não ser eu uma ninguém, mas algo, que então parecia ter eu pernas duras para ficar em alteza maior que antes e me tendo em seu respeito se daria o Ximeno ao temor de me fazer sua cativa e me livraria o rosto da vergonha, o corpo de trabalhos, a alma da pena e da luxúria, para por mim poder passar limpo e puro o filho de meu ventre, sem espinhos que o ferissem, que dissera a Velha ser por onde se vinha à luz, para meu grandíssimo espanto. Ia o Ximeno nunca me perdoar, como meu pai nunca perdoara e devia me odiar, como meu pai. Nas noites de sexta- feira à hora de vênus vinha o Ximeno em forma de vento ou de luz da lua e se metia em mim, fazia uma tão grande agonia que virava eu no catre de um a outro lado. Sabia eu que a voz de um sapo no silêncio da noite era o Ximeno me convocando às águas do rio, que o urro do gato era o Ximeno me chamando à mata, que o berro de uma ave era o Ximeno me querendo levar a andar de noite em telhados e a comer das frutas verdes do cimo das árvores e a botar ovos pela boca e a morder com dentes de gato alguém que estava dormindo e a comer ratos. Na janela apareceu o Ximeno em forma de um estorninho de rabo preto, depois na forma de um bugio felpudo de pêlo amarelo. Estava eu ainda toda assombrada dele e marcada de seu fogo em mim, com a impressão viva de suas mãos em meu seio e de seus beiços bafejando calor nos meus, como se fora uma ciência infusa que tinha ele, para seus efeitos, a me ferir em todas as partes de meu corpo, a me sujeitar e instruir em prazeres torpes, descendo em mim seu perfume em impetuosa corrente, em vultos extraordinários e por seu amor que não pudesse eu descansar nem outra coisa fazer até o nascimento do sol.
Por que permitia Deus, pela minha maldade, que as luxúrias e as paixões me arrastassem? Por que não salvava minha alma, pois disse que somos seus filhos e me livrava das aflições e me dava repouso de tanto desejar o pecado e um pecador? Não deve a mulher pedir para outrem, mas para si porque se ela não é bastante para pedir para si, como pedirá para outrem? Mas assim que vinha a noite me punha eu de joelhos, a olhar as nuvens pedia pelo Ximeno piedosamente e não punha obstáculos de pecado à minha oração porque da mesma maneira como a nuvem tolhe a Lua, o pecado em que a mulher está tolhe sua oração e orava eu perseveradamente, suspeitava que o que sentia meu coração era amor. Se era amor, amor seria coisa do Diabo. E se era o amor coisa de Deus? Meu coração saltava em pensamentos. Que por um dos dois modos amamos alguma coisa, ou por vista ou por sonhada. Sonhada, amamos quando cremos aquilo que dela sonhamos e quanto mais dela sonhamos e cremos tanto a mais amamos. A meu amor, amar não podia eu por vista porque o não podia ver, então o amava por sonho. O amor não era coisa criada por Deus, que criara o mundo, o homem, as feras, as estrelas e tudo o mais e não criara o amor e nem a mulher, tivera que nos tirar de uma costela do homem para nos fazer do que logo se arrependera assim como de ter feito as carnes quentes nossas e as frias dos lagartos. Dizia meu pai que um cão comera a costela de Adão e dali fizera Deus a mulher não da costela mas do excremento. E se Deus não criara o amor então fora criado por quem? A tomar pelo que causa dentro de nós deve mesmo ser coisa infernal. Pensei em Ximeno mas logo o tirei das minhas vistas, cantando, Dormirei, dormirei, boas novas acharei, Dormirás, dormirás, boa nova me trarás, Õ fi-de-puta ruim, sapatos tens amarelos, hi hi hi hi hi hi hi, comendo ao demo a mulher, nem casada nem solteira, nenhuma negra tripeira, na charneca não nos quer. que de meu segredo podia atinar o Ximeno em sua sabedoria de mago, pois só de Deus os segredos ninguém pode rastejar.
Em vez de ser o mais radiante na alegria ao conhecer a notícia do filho cravado no meu corpo, que sempre tanto quisera, se deu Francisco de Albuquerque a ter escuridões nas vistas, como desabitado, às vezes de olhos cravados em mim feito tentasse adivinhar alguma coisa. Deitava ele a cabeça em meus joelhos e dizia. O que passado, passou-se. O tempo dá lugar. Mas vivia triste e revolto, sofria conjurado contra mim por sua mãe que lhe assoprava malignidades aos ouvidos e tramas em que se ia ele enredando até os agros de sua alma. Vivia sujo da tinta das naturais, metia na boca uma comida cuspida por elas, tomava do cauim, falava mais a língua do gentio que a do reino, pescava com eles e aprendia a lançar as setas feito um deles, tão diretas, que um dia ainda ia virar quebrador de caveira. Vivia pela mata com seus naturais, vaqueiros, machados da Casa da Índia a buscar mais pau para alevantar currais, juntando uma a uma vaca, que mais se fazia ver pelo sertão adentro e cada dia mais longe e ia ele muito mais que antes, quando apreciava ficar na rede esperando os naturais, mas agora ia como se não me quisesse ter em suas vistas, feito fosse eu uma vaca verde e ia ele, pela manhã e por todo o sol alto, até o escurecer e pelas seis da noite tornava com uma ou outra caça ou peixe, que comia ao fogo, sem falar nada, cuspia os OSSOS para o lado, alevantava e ia dormir na camilha de seu quarto, mas pelas duas da noite ouvia eu suas passadas pela casa, assentava ele num escuro de breu, alumiava um candeeiro, acendia um fumo de naturais e ficava ali, a noite toda, ou a falar com as estrelas ou com os diabinhos filhos dos anões, que pouco dormia, pouco descansava, pouco me olhava, pouco se dava a este mundo, vivendo no outro, o mais fundo de si, sem nenhum governo, sem nenhuma execução àcasa, sem olhar meu ventre que crescia e nisso estando tão cego como que tivesse um respondente lá no céu e se houvesse convertido numa alma.
Numa manhã deu em mim uma ânsia que revirava minha tripa, gemi de dor na cama. Veio dona Branca, meteu seus ouvidos em meu ventre e sussurrou a voz de ladainha, fez um tipo de cravagem de centeio para que eu tomasse e umas águas fortes, me fez cheirar umas fumaças a modo de turíbulos em que ardiam pivetes de perfume suavíssimo e ficar em repouso. Mas da noite para a outra manhã estava eu mais fria e branca a vomitar as tripas para fora, só tinha certeza da vida de meu filho pelo seu mover como se num combate e me fazia tanta dor que só as lágrimas eram as que falavam e davam testemunho do que meu filho sentia e fazia sentir. Buscava eu salvação nas preces e passaram muitos dias assim, sangue vertia nas minhas camisas de que assombrava eu e Francisco de Albuquerque assim também muito penado a me cobrir com uma pele de gato, que era fria a noite. Ficou Francisco de Albuquerque ao meu lado tomado da minha mão e a beijando continuadamente sem piscar as vistas e a me fazer tomar uns caldos quentes que eu vomitava, cada vez mais fraca e débil mas acompanhada de modo que os maus espíritos não chegassem a mim. Estava para morrer, em tantos suores e penas. Pedi a Deus que me levasse só depois de dar à luz, por misericórdia com um anjo e que meu corpo fosse lançado ao mar, onde as correntes levassem aonde estaria a minha alma.
O fisico na fé de suas virtudes esteve um grande espaço algum tanto confuso, determinou que nada mais da cozinha tomasse eu, no que passou a purgar com eleição a miserável doença de que eu padecia, com rum, batata, outras mais violentas, como a purga do pinhão dos andazes que conhecia, possuía essa purga um mistério que provocava vômito, ou a purga do mechuacão que também havia muito pelos matos. As raízes de jurubeba, que eram contra-peçonha. E ao me ver mais forte cozinhou umas couves, um caldo de pato, umas papas de farinha e mais umas mezinhas particulares no que a cor veio de novo florir no meu rosto, vi a matéria e o modo com que a natureza se descorrompeu, acudiu e se desfez uma inchação dos meus pés, uma força de mexer na cama me veio atalhando a vida, sem sangrar, sem embustes e me livrei das artes. Dona Branca desvaneceu e não veio mais, só a dar umas vistas pelas frestas da porta. Alumiou uma luz no meu coração, de entender o princípio daquilo tudo e das minhas cruezas do estômago, queixas, males e doenças ser o leite azedo que trazia de noite a dona Branca, o cujo pudera ser uma peçonha de abortar ou de matar, parecendo que aquilo bastava para saber o certo, no que via em seu rosto um ar de quem me tinha esmagada na trilha de seu calcanhar. Com o que disse a mim que meu coração entendera o correto. Dona Branca me quisera matar com veneno e a meu filho. Nisso não acreditou Francisco de Albuquerque, que se agastou muito e disse que não se havia de disputar a razão com punhadas senão com zelo, porque no espírito manso e humilde se agasalhava a alma mulheril das boas mulheres que sabiam dormir um sono quieto. Se ajudar a minha rudeza, quisera a mãe provar por sua diabólica filosofia que era ali o fim do mundo.
Enfadado da pertinácia com que lhe dizia eu, Francisco de Albuquerque se foi enredar nas tramas mulheris, de quem disse ele serem o escarcéu de uma tormenta que arrebenta em flor. Foi ele ao quarto da mãe e se passou um longo espaço de vozes dele e gemidos dela. Caiu uma tempestade com tanta violência que parecia querer Deus acabar com a terra, a casa se abalava aos raios, árvores no chão se espedaçavam ou arrancadas com suas raízes. Todos se abrigaram ao fogão, com rezas. E se ouviu por entre os trovões a voz agastada de dona Branca e seu filho, acusou ele de o querer tomar à mulher com quem casara, que se era ela de maior entendimento e juízo que eu, me não devia censurar mas tratar mais para edificar do que para perverter, dona Branca a vangloriar da nobreza de seu sobrenome e da pouquidade do meu sem nome, disse ele que com nome ou sem nome estivera ela sua própria mãe a lhe desgraçar toda a vida e mais altas se faziam suas vozes numa tão grande discórdia, sem alívio para suas diferenças, a mãe sempre a acusar o filho, com língua de víbora a lhe tirar o valor, comparar com o pai, a lhe dizer de sua indiferença pela Viliganda que devia tratar como filha mas a só querer saber da pestilenta mulher, que tinha eu uma bela língua para esconder os agudos dos dentes e ele a se inebriar com a esposa como fora uma pura, fosse, com a tal mania de escapar, ir aos homens da cidade, ou um apenas, que me agasalhara em sua cama, que me eu entregara ao mouro e dava os restos ao cão de meu esposo e que o filho que trazia eu era um bastardo chifrudo que ia nascer com os cabelos ruços e se ouviram gritos de dona Branca para que a socorressem, fomos ao quarto, estava Viliganda contra a parede e no meio do quarto, com uma faca de cintura, de punhal, o filho acutilava a mãe no peito e tantas vezes o fez até que ela se quedasse sem mover no chão com a morte na face e ele, com todo o sangue da mãe em suas roupas correu porta afora e na chuva à luz dos raios e dos trovões, em joelhos, gritou. Piedade, piedade. E era tal a visão daquele sofrimento que me certifiquei para sempre de estarmos no inferno.
Por que vivemos presos todos uns nos outros atados pelos mais fortes grilhões, por que causa somos todos tão estrangeiros uns dos outros e pouco sabemos da alma alheia mais que umas coisas que se podem dizer com palavras duras mas nossas almas afundadas na ignorância de nós, ai Deus, que fabricaste a formosura da noite, quem é o procurador do desamparo desta vida? Não pode ser que o mundo seja mesmo assim, tudo que vejo são as cegueiras das minhas vistas. Porque não tenho eu entendimento de nada das coisas deste e do outro mundo e de o não entender, o quero mal, por esta minha alma de tempestades. O que há de ser há de ser. Uma criancinha enjeitada nos cueiros pode ser recolhida? O mundo x'era, mundo x'era, mundo x'he, ai como partiu tão sentida a mãe, por mexeriqueira, ru ru, menina, ru ru, mouram as velhas e fiques tu c~ a tranca no cu, pessoa alguma me ninava com essa cantiga, sopazinhas da panela e leite fresco coado, dera ela e do filho acutilada, pobre mãe, tu ru tu, mal me queres bem me queres, que meu filho fosse, diabos, por meu amor, um senhor que me amasse e respeitasse, bé, como estão pasmados todos os cordeirinhos, bé, que filho malcriado. E ela se foi pelos abismos dos mistérios ao horto cerrado, à janela radiosa do fogo, descansar ao lado de seu esposo.
Com duas moedas sobre os olhos dona Branca foi enterrada na capela entre as pedras, num triste pesar do filho que parecia mais morto ao lado da mãe do que vivo neste mundo, olhos tão suplicantes de perdão que cortava o coração em despedaços. Ele mesmo foi buscar o padre, ele mesmo cavou a sepultura, ele mesmo a cobriu de terra e pôs uma pedra com o nome da mãe talhado, feito fidalga que diziam se houvesse uma pedra o morto virava santo e se não, virava mal-assombrada alma de vermes ou cabritos ou larvas, foi ela com o meu vestido preto para o purgatório a negociar com os barqueiros seus pecados, que havia vento forte e era indício de que Satanás mercava sua alma e ia haver debate no juízo final, pelo menos umas três noites ia ela vagar entre as árvores com os bugios em gritos de nojo. Eu chorava e disso se fazia muita pena a quem via, mas minhas lágrimas eram mais pelo vestido que se ia para as profundas, do que pela morte de uma tal mulher. Tinha eu todavia compaixão de Francisco de Albuquerque. E medo de meus pensamentos serem grandes pecados. Como os confessar? E se fosse meu filho mesmo o que dissera dona Branca? Se viesse de cabelos vermelhos? Pecava eu muito por pensar no Ximeno e devia confessar. Mas a quem, se não havia padre? Por que era preciso confessar os pecados se Deus os já conhecia? Eu era má, meu Deus. Não se devia odiar o mau, nem desprezar os pecadores, pois quem agora era mau um dia podia acontecer que fosse santo. Como não tinha padre, confessava a Deus meu coração e a ele mesmo contava as minhas maldades e diante dos seus anjos as diria e confessaria por minha boca confessaria que pela luxúria eu era movida e do meu deleitoso tangimento não calaria, Deus, se ele ouvisse, da baixura de mim naquela véspera do fim e pedi ao Senhor que me redimisse ou castigasse e lançasse de mim a vil gula, a festa que devera eu fazer a Deus, fizera em meu próprio ventre. Que nem podia eu olhar para a frente nem para tras.
Feito de luzes, a falar e a ouvir, a me visitar no catre e acariciar minha barriga prenha e dar ordem à casa, ao trabalho e seus olhos enxutos, sem mais segredos escuros, sem mais desterros, dulcíssimo a esconjurar as lágrimas, a se assentar à mesa e me fazer dar água a suas mãos feito dona da casa como fizera antes sua mãe, Francisco de Albuquerque parecia outro e me ele deu os baús e as mais coisas da dona Branca, mantas de gato, um sapato, as roupas de criança, uma tesoura, agulhas e linhas, bastidor, um pequeno gorro, uma alcatifa, o tear. Ia ele comigo aos bosques frescos da ribeira, estendia uma pele na relva e me fazia assentar, falava de suas lembranças de chico, quando guardava as ovelhas, pascentava e de uma cabana que fizera para as lãs, dos cabaneiros que se embriagavam e falavam das mulheres. Das glandes de carvalho secas que pisava para fazer o pão, das castanhas que descascava, das broas que as crianças iam roubar aos padres quando abriam as fechaduras, do moinho de mão que moía cevada, da caldeirada de carneiro que sua avó fazia, dos figos secos e mais tantas comidas de que gostava. Falou de seu primeiro amor, uma rapariga casada que ele fodia nos estábulos, num monte de feno, ou na beira do riacho onde ela ia lavar roupa, ela, de quem nunca esqueceu o nome, Ciméria. Houvera se livrado de grilhões muito pesados e enterrado nas pedras da capela dentro do coração de sua mãe. És a grande duquesa muito alta, da paz e do repouso. E mandou que prendessem a Viliganda no armazém, tampouco podia ele suportar aqueles malditos olhos.
Mas se estava ele tão feliz, eu me havia em profunda matéria para meu fraco cuidado, caminhava inquieta pela casa até a porta, nos dias quentes, que para isso servia a palha de cobertura muito fresca, nos dias frios bordava assentada ao fogão, os pés aquecidos numa água a olhar o rio que se ia ao horizonte donde se desvanecera o meu passado, que nunca tornava, o Ximeno todo o apagara com suas grandes chuvas de cegueira. De noite chorava eu pelo mouro, atentada. Fazia a Temericô bolo de beiju e farinha de guerra, caldo de peixe, aipim assado, até suas folhas pisadas e cozidas, tudo descia na goela feito veludo, numa prova de boa substância e bom comerimen-to, bons eram os humores das mãos que preparavam o prato e bons eram os espíritos daquelas mãos suadas, o que diziam das naturais era falsidade, de serem feitas de uma doença de mordexim, uma secreta, que enfraquece e faz lançar fora o que tém em seu corpo, cuja havia por motivo os desejos insaciáveis das naturais e suas exigências que poderiam reduzir o homem ao pó e varrer a poeira. Eram elas uns animais mansos e de alguma alma humana, nos sentimentos, feito umas gazelas, do que dera provas a Temericô muitas vezes e mais no meu recebimento de prenhe, na minha salvação, na amizade que me fazia valer, isso se fazia muito maduro em uma alma verde de natural, ao seu entendimento bastava me amar e a mim tomar como senhora, fora ordem de seu dono e assim era ela justa como uma dama branca das mais rebuçadas em respeito, honra, cristianismo. Fizemos no Natal a matança de porcos com uma casta de javalis que tinham umas presas compridas, muito bravos, que os naturais espantavam com alarde, flechavam, cortavam o umbigo das costas se fazendo a carne muito saborosa. E se fez beberete, que se deu convite na cidade pelos sete dias das vésperas do nascimento do filho de Deus e se cantaram por mais de trinta goelas as antífonas todas com a letra O na frente, uma a cada dia dos sete e campainhas.
Era meu filho nascido no canto onde anoitece o mundo, cujo se deu nome de um pau, um mero e místico império da majestade real mas que para nada ainda prestava, que nem era português e nem da Cauchinchina. Eta donde? No que olhava eu os olhos dele, em alvíssaras e o mais do rosto, tudo feito à perfeita sombra dos céus, de mãe que era. Não vais contar quantos dedos há? Alevanta os panos e olha o que é macho nele, a ver se o tem bom. Olha, que é teu. E a gente do fortim o veio visitar com presentes de muitas invenções, manjares, refrescos, frutas em tanta abundância que pasmei do que vi e principalmente do grande aparato que traziam consigo. Era domingo antemanhã, nos deram uma boa alvorada com uma música de excelentes falas, com tambores, que por ser natural pareceu bem. Sendo pouco mais de duas horas antemanhã, com noite quieta e de grande luar, se fizeram luminárias Era o cabelo dele claro da cor do mel.
Vivi numa modorra no catre, servindo de vaca, meu filho chorava no lago da noite como um cao esfaimado que sempre havia de ser, mais sugava, mais os peitos meus se faziam em pedras indo pelos sobacos, que mal podia eu ter descanso e pingava pelas roupas um grande espaço da noite, que fazia derramar muitas lágrimas e gemer. Haveria eu de dar pouco leite, por ter cortados os cabelos, mas era o jorrar de uma fonte. Davam ao menino umas côdeas de beiju para chupar. Seu ar delicado e seus olhos cinzentos se foram gravando fundamente em meu coração. A Temericô trazia para mim umas folhas e bringelas de gosto ruim e cada vez mais me sentia alei- tada, de uma força que se fazia cumprir nas dobras da carne do meu filho se estendendo e as brancuras fazendo ver. Numa noite despertei e o menino chorava de gritos, apertava os braços como tivesse uma grande dor no estômago. Outro dia apareceram feridas em sua boca, fosse o meu leite azedo. Para lhe esconjurar o mal meti em seu pescoço um escapulário e numa noite veio uma natural fazer uma benzedura para o proteger da morte súbita e dos malefícios. E se procuravam gencianas nas matas para as suas feridas na boca, camomila para calmar o choro. Com as minhas mãos lhe nunca deixei de enfaixar as pernas e de lhe manter o corpo quente, alimentado e não consentia que seu ventre se enchesse de verme. Mandei que se fizesse para ele um berço em pau, mas chorava faminto, que pássaro não tem leite e tornou o chico a se deitar em meu catre, mal podia eu dormir por temer seu sufocamento. E o ouvia a sussurrar sua voz de ovelha. Mas veio um dia Francisco de Albuquerque olhar seu filho, não o quis ter em seus braços e se foi num ímpeto de ciúmes. Disse a Temericô, de noite, que o meu filho tinha os cabelos vermelhos do mouro, disso se falava em todo o país.
Que por minhas mãos pecadoras não havia nem de fazer o bem, que não estava eu segura e sem receio, antes houvera eu de curar as feridas de sua alma e nos traços de minha mão via um como que retrato do pecado e que todas as maliciosas astúcias fizera eu com as mesmas mãos atoladas em suas luxúrias, não podia meu ventre parir alma nenhuma a nenhum céu e assim não deixava de cumprir o que devia, nem por quatro jarras de tâmaras e quatro corjas de panos malaios. E querendo eu responder ao que com tanta mágoa me dizia, não respondi coisa alguma, que me desfez Francisco de Albuquerque todas as minhas razões com suas verdades tão claras, por que dali em diante apontou ele algumas coisas assaz feias de suas mãos e o remate disso foi ter eu uma demência por lhe conhecer a natureza assim e com isso me recolhi em meus desejos, mas meus olhos não se fechavam nas noites, vigiava eu o menino das unhas do Inimigo e suas quarenta facas de punhal, que era de sua natureza castigar os puros e premiar os maus. Mas um dia ele veio de noite, que vi de manhã ao despertar o mal que me havia feito.
Francisco de Albuquerque partira levando meu filho e seu saco de coisas, a santa do oratório, vacas, vaqueiros, armas, o mesmo que dizer, não iam tornar tão cedo. Não iam tornar nunca mais. Restaram uns naturais doentes, escravas e seus filhos pequenos, tudo dando a entender que fora uma partida furtiva para me deixar ali, não uma fuga apressada no rumo da cidade. Teria matado meu filho? Ai, dá-me Deus meu tamanino, não tenho outro menino, que não o possam ferrar para vender. Veio uma ânsia, por cortesia da dor, como que tomada d'ele, Belial, o remador das trevas do porto, que torna o nosso entendimento parvo e nos faz adoecer de tolice, mentir das coisas feitas por manha, dissimular em palavras doces a amargura, a deixar minha alma como ardendo em grande brasio, espezinhada, escura. Por minha ordem se ateou fogo à casa com as coisas dentro, queria eu nada do que me deram ali, desde o mais pequeno lume de cera às canrateiras de louça, os baús de dona Branca, o vestido preto, vestida eu estava com a pobre roupa de órfã com que viera pelo mar, a coifinha lavrada, a almofadinha de seda e o dedal, o coxim, o rosário, fiquei só com a caravelinha. Fogo às palhas, aos paus do fortim, aos currais que se faziam, ao armazém, quando veio a Temericô dizer que lá estava Viliganda, naquele caldeirão de sua família, mas me roeu o coração a pena de a matar e depois ser vingada por sua alma de criança e a mandei soltarem. Saiu ViLiganda tão acabada das carnes e imunda que era de espedaçar o coração, sem chorar subiu no carro, assentou feito uma fidalga, que me deu um arrepio de sentir que nela estava viva a alma de sua mãe. Quis eu ver o incêndio até a derradeira chama, custou pouco a se desfazer a casa e todas as suas fortalezas viraram um monte de brasas, coisas retorcidas, nada que se pudesse conhecer por nome, só de cinza, no que queria eu dizer para mim, devia esquecer tudo no meu passado, ardendo o fogo na madeira ardia também em minha alma, onde se agasalhavam as renembranças.
Longe se viam as velas de uma nau portuguesa com a cruz do rei, gente do reino e se ia partindo a nau, não chegando e tudo clareou feito um raio no meu coração, aquela era a nau que levava o bispo sardinha a deitar suas queixas aos pés do rei e gritei tudo o que pude com a minha voz, tornassem a me buscar, mas não fui ouvida por ínfima na terra, numa vã esperança, sabendo que me dava Francisco de Albuquerque o mais cruel de todos os castigos e ainda levando meu filho, ia ficar eu sozinha com a gente rude da terra, viver entre eles e me ver tornar cada dia mais um animal besta, até nem sabia quando, mas que se salvasse deste degredo meu filho, se é que o cão não o havia morto. Passou o cavalo ruão de Francisco de Albuquerque, puxado por um estrangeiro, que eu conhecia pelas manchas pardas no pêlo branco. O dono? Minha propriedade, comprei. A quem? O homem apontou o mar, disse. Um cristão que se foi na nau. Lancei pedras que lá não se deram conta, feito Deus aos nossos bramidos e cuspi, rasguei minha veste, arramquei cabelos, esbofeteei o meu rosto até não poder mais, caí em terra e chorei. Diante da mais funda pena em meu coração, fiz minhas lágrimas escorrerem na pedra com todo o ódio e a marcassem feito os pés de Zomé. A uma casa se temperava uma triste viola d'arco, logo se tangeu e cantou, d'amores jaço, quando as torço d'amores dormo, pela porta aberta vi que era a dona Urraca, fiquei a escutar, com as gentes que escutavam, tão tristes música que parecia se derramar do coração em rosinhas orvalhadas, ai, ai, quanta melodia, umas lavandeiras com suas trouxas de roupas à barrela, ai morenicas las pretas, também pararam pela música, o que
ia eu fazer de minha vida? Na casa das gentias soube que a Velha partira com o bispo, o que ia eu fazer de minha vida? Muito fiquei ao pé da igreja assentada numa espera de não sei o que, de que o sol se fosse, a noite se fosse, o tempo, a vida, numa bontemplação de pensamento, os olhos perdidos na fonte e nas apartações por convinhável mesura a esfriar da quentura e a memória dos males e pecados.
Assim foi que com grande fervor nos prostramos, de forma a o povo da cidade sair ao terreiro para nos admirar em suas cuidações contrárias e a guarnecer suas almas de enganos e maldades contra nós. Deleitaram-se os homens mas houve respeito de eles terem piedade e se doerem de minha pena, de estar eu assim negligente todo o dia de comer e dormir ou de falar, ociosa e embargada das coisas térreas a escorrer minha alma em lágrimas muito verdadeiras que rompiam sem minha ordem ou permissão, uma digna coisa de demandar o reino de Deus e justiça. Se atirassem pedras, que fosse, pouco fazia, mas certamente estava meu coração soterrado. Na igreja se ouvia que tangiam uma viola a portas fechadas e um velho deitava suas lágrimas. E no ir o dia, a me livrar das serpentes de luzes que alumiavam minha desgraça, a besta má que era eu foi olhar as águas e a linha do fim do mundo, o mar ardia em luzes resplendidas do sol, em jaezes de encantamento, num grande primor, luminárias de custoso feitio, cadeias e maças agradáveis aos olhos, como um altar de reis e mitras, coroas dos peixes e das estrelas marinhas, a jóia suprema do tesouro divinal, no que vi que havia graça e temperança na vida que nos dava Deus. Visto o mar, justo assim fui onde tanto queria.
A tortor depois que perde o companheiro nunca mais pousa em ramo verde. A casa estava escura mas ao menos uma luz havia de candeia, fina e pobre de azeite e um rumor de cavalo. Estava tudo quebrado no chão, os livros rasgados e a mesa em pedaços, o tinteiro e a poeira largados de qualquer modo, como se tivesse havido ali uma forte luta, ou Francisco de Albuquerque ou o cão preto o devia de ter matado e a seus versículos de diretor espiritual e para esconjurar haviam lançado sal pela casa toda, rezei a oração talismã, que Nosso Senhor foi de setenta e dois espinhos coroado, de três pregos pregado e de cinco chagas chagado, cuspido e esbofeteado. Uma panela de comida num canto, carne, meti as mãos e tirei um pedaço do guisado frio, comi numa ânsia de nunca ter sentido assim, tudo o que se havia preparado para umas mais de três bocas, fome é um tipo de fogo que se acende no meio das gentes, que se areia com tanto ímpeto que até os olhos ardem e resseca tudo por dentro e vai sendo uma faca que revira o dentro como se buscando o fio da vida e em nosso rosto se forma um diabólico labirinto, sonhamos com grandes feiras e que se comeria um rato da lama, é a fome feito um monstro que assenta em nosso ventre e nos rasga estripando, com suas garras longas, língua asquerosa de lagarta, se banqueteia de nós, sugando nossa força e nossa razão, que perdemos de arrazoar e fracas estimativas, é como cem anos de inferno, uma dor incomportável, de zargunchadas e cutiladas por dez ou doze partes, uma coisa tão lastimosa de se sentir que não há homem que a possa dissimular. Por medo da fome, da orfandade, do abandono, quis que tornasse Francisco de Albuquerque.
O homem sempre perdoa, haveria de me perdoar a alma de Ximeno ser eu causa de suas desgraças, como sempre fora eu assim nascida, que há dois tipos de mulheres, as que vêm para servir e as que vêm para a discórdia, assim como há mares mansos e bravios, assim como há lagartos com rabo e sem rabo sendo eu das piores serventias, mesmo às outras mulheres. Fácil era sair daqui, um cortezinho no punho, um deitar na água, um pular do galho alto, cortar o vessadre que se põe ao açor, fio de seda da memória, correia que fazem de couro de animalha morta, mas ficava todala gente por aqui prezando o viver, feito este mundo fosse o melhor ou o apenas e bom estar arrojado aqui nestes mangues junto dos maléficos, rufiões, ciganas, arrenegando a santa fé e oferecendo os dedos dos pés a Belzebut esquecidos de Deus por nossa maldade, vivendo acordados de noite e dando gritos, que esta é a nossa ventura neste mundo, estamos aqui para purgar a alma, feito as corujas que matam as cobras, a nos fazer lanhar pelas tristezas. Uxtix, uxte, xulo, cá! Por que me mandou Deus para tal fim? Todo o meu mundo esvaneceu, estava eu endoidando, dormindo, sonhando? Ouvi o choro de meu filho, virei e na porta, atravessado pelos raios derradeiros do sol, os cabelos em fogo puro, estava o Ximeno com uma trouxa de criança no colo. Hou ha.
Ana Miranda
O melhor da literatura para todos os gostos e idades