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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DESTINADA / P.C. Cast e Kristin Cast
DESTINADA / P.C. Cast e Kristin Cast

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Acho que minha mãe está morta.
Testei as palavras na minha mente. Elas pareceram erradas, estranhas, como se eu estivesse tentando compreender o mundo virando de cabeça para baixo ou como se o sol estivesse nascendo no oeste.
Dei um suspiro profundo e soluçante e virei de lado para pegar outro lenço de papel na caixa que estava no chão ao lado da cama.
Stark resmungou, franziu a testa e se remexeu inquieto.
Devagar e cuidadosamente, saí da cama, peguei o enorme blusão de Stark no lugar onde ele o tinha jogado, coloquei-o e me encolhi no pufe que ficava perto da parede do nosso pequeno quarto nos túneis.
O pufe fez aquele barulho de piscina de bolinhas de festa de criança, e Stark franziu a testa e murmurou algo novamente. Eu assoei meu nariz. Em silêncio. Pare de chorar, pare de chorar, pare de chorar! Isso não vai ajudar. Isso não vai trazer Mamãe de volta. Pisquei algumas vezes e limpei meu nariz outra vez. Talvez tenha sido só um sonho. Mas, no momento em que pensei nisso, meu coração já sabia a verdade. Nyx tinha me desviado dos meus sonhos para me mostrar uma visão de Mamãe entrando no Mundo do Além. Isso significava que Mamãe tinha morrido. Mamãe disse para Nyx que ela sentia muito por me decepcionar, eu lembrei a mim mesma, enquanto lágrimas escorriam pelas minhas bochechas de novo.
– Ela disse que me amava – suspirei.
Eu quase não tinha feito nenhum barulho, mas Stark se agitou todo irrequieto e murmurou: – Pare!
Fechei meus lábios, apesar de saber que não era o meu suspiro que estava atrapalhando o sono dele. Stark era meu guerreiro, meu Guardião e meu namorado. Não, namorado é uma palavra simples demais. Existe uma ligação entre mim e Stark mais profunda do que namoro, sexo e todas as coisas que fazem parte de relacionamentos normais. Era por isso que ele estava tão inquieto. Ele podia sentir minha tristeza – até nos seus sonhos, ele sabia que eu estava chorando, magoada, com medo e...

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Stark tirou o cobertor de cima do seu peito e eu percebi que seu punho estava cerrado. Olhei atentamente para o rosto dele. Ele ainda estava dormindo, mas sua testa estava franzida e cheia de rugas.
Fechei os olhos e inspirei profundamente para me equilibrar.
– Espírito – suspirei. – Por favor, venha para mim – instantaneamente, senti o elemento roçar minha pele. – Ajude-me. Não, na verdade, ajude Stark, protegendo-o da minha tristeza – e talvez, acrescentei mentalmente, você possa me proteger da minha própria tristeza também. Mesmo que seja só por um tempinho. Inspirei profundamente outra vez, enquanto o espírito se moveu dentro e em volta de mim, girando sobre a cama. Ao abrir os olhos, consegui ver uma agitação no ar envolvendo Stark. Sua pele parecia brilhar enquanto o elemento se acomodava sobre ele como um manto diáfano. Senti-me aquecida e dei uma olhadinha para os meus braços, e percebi o mesmo brilho suave repousando sobre a minha pele. Stark soltou um longo suspiro junto comigo enquanto o espírito operava uma magia reconfortante, e pela primeira vez em horas senti uma pequena parte da minha tristeza ir embora.
– Obrigada, espírito – sussurrei e cruzei meus braços, abraçando-me com força. Envolvida pelo toque suave do elemento ao qual eu me sentia mais próxima, senti-me um pouco sonolenta. Foi então que um tipo diferente de calor penetrou em minha consciência. Devagar, sem querer perturbar o feitiço de conforto que o elemento estava fazendo, soltei meus braços e toquei meu peito.
Por que a minha pedra da vidência está quente? A pedra pequena e redonda estava pendurada na minha corrente de prata, pousada entre os meus seios. Eu não a havia tirado desde que Sgiach me presenteara com ela antes de eu partir da linda e mágica Ilha de Skye.
Pensativamente, tirei a pedra de baixo do blusão, correndo meus dedos por sua superfície lisa de mármore. Ela ainda me lembrava uma pastilha Life Safer de coco, mas o mármore de Skye cintilava com uma luz sobrenatural, como se o elemento que eu invocara tivesse feito a pedra ficar viva – como se o calor que eu sentia fosse porque ela pulsava com vida própria.
A voz da rainha Sgiach ecoou na minha memória: Uma pedra da vidência está em sintonia apenas com a mais antiga das magias: o tipo que eu protejo na minha ilha. Eu a estou presenteando com uma pedra da vidência para que você possa, de fato, reconhecer a Antiga Magia, se ela ainda existir no mundo exterior.
Enquanto essas palavras se repetiam na minha mente, a pedra se virou devagar, quase preguiçosamente. O buraco no seu centro parecia um minitelescópio. Quando ela se virou, eu pude ver Stark iluminado através do buraco, e meu mundo se alterou também, estreitando-se, e então tudo mudou.
Talvez porque o espírito estivesse tão perto de mim naquele momento, o que eu vi não foi nada parecido com a alucinante primeira vez em que eu havia olhado através da pedra em Skye e acabara desmaiando.
Mas isso não significa que tenha sido nem um pouco menos perturbador.
Stark estava lá, deitado de costas, com a maior parte do seu peito nu. O brilho do espírito tinha desaparecido. No seu lugar, eu vi outra imagem. Era mal definida, no entanto, e eu não consegui perceber suas feições. Era como a sombra de alguém. O braço de Stark se contraiu e sua mão se abriu. A mão da sombra se abriu também. Enquanto eu olhava, a espada do Guardião – a enorme e longa espada que tinha vindo até Stark no Mundo do Além – tomou forma na mão de Stark. Eu arfei surpresa, e o guerreiro-fantasma virou sua cabeça na minha direção e fechou sua mão em volta da espada.
No mesmo instante, a espada se alterou e se transformou em uma longa lança negra – perigosa, letal e manchada de sangue, ela parecia familiar demais para mim. Pontadas de medo me atravessaram.
– Não! – eu gritei. – Espírito, fortaleça Stark! Faça essa coisa ir embora! – com um barulho parecido com o bater de asas de um pássaro gigante, o espectro desapareceu, a pedra da vidência ficou fria e Stark se sentou, franzindo a testa para mim.
– O que você está fazendo aí? – ele esfregou seus olhos. – Por que você está fazendo tanto barulho?
Abri minha boca para tentar explicar a coisa bizarra que eu tinha acabado de ver, quando ele deu um suspirou profundo e se deitou de novo, abrindo as cobertas e me chamando sonolentamente.
– Vem aqui. Eu não consigo dormir se você não estiver de conchinha comigo. E eu realmente preciso dormir um pouco.
– Eu também – eu disse. E, com as pernas bambas, fui rápido em direção a ele e me encostei do seu lado, com a cabeça sobre o seu ombro. – Ei, ahn, acabou de acontecer uma coisa estranha – comecei, mas, quando eu levantei a cabeça para olhar nos olhos dele, os lábios de Stark encontraram os meus. A surpresa não durou muito, e aos poucos eu comecei a beijá-lo também. Era bom, tão bom estar perto dele. Seus braços me envolveram. Pressionei meu corpo contra o dele, enquanto os seus lábios seguiam a curva do meu pescoço. – Pensei que você tinha dito que precisava dormir – minha voz soou ofegante.
– Eu preciso mais de você – ele respondeu.
– É, eu também – eu disse.
Então, nos entregamos um ao outro. O toque de Stark afugentou a morte, o desespero e o medo. Juntos, lembramos um ao outro sobre a vida, o amor e a felicidade. Depois de tudo, finalmente dormimos, e a pedra da vidência repousou fria e esquecida sobre os meus seios entre nós dois.

1

Aurox
A carne do humano era macia, suculenta.
Foi uma surpresa o fato de ter sido tão fácil destruí-lo e fazer o seu coração fraco parar de bater.
– Leve-me para o norte de Tulsa. Eu quero sair à noite – ela disse. Foi com essa ordem que a noite deles começou.
– Sim, Deusa – ele respondera instantaneamente, saindo cheio de vida do canto da varanda no topo do prédio no qual ele tinha sido feito.
– Não me chame de Deusa. Chame-me... – ela parecera contemplativa. – Sacerdotisa – seus lábios carnudos, rubros e brilhantes se curvaram em um sorriso. – Acho que é melhor se todo mundo me chamar simplesmente de Sacerdotisa, pelo menos por um breve período.
Aurox cruzou sua mão em punho sobre o peito, fazendo um gesto que ele instintivamente sabia ser de um tempo antigo, embora, de algum modo, achasse aquilo estranho e forçado.
– Sim, Sacerdotisa.
A Sacerdotisa passara rápido por ele, gesticulando imperiosamente para que ele a seguisse.
E ele a seguira.
Ele havia sido criado para segui-la. Para receber suas ordens. Para obedecer aos seus comandos.
Então, entraram em uma coisa que a Sacerdotisa chamara de carro, e o mundo voara. A Sacerdotisa ordenou que ele entendesse o funcionamento daquilo.
Ele observara e aprendera, como ela tinha mandado.
Pararam e saíram do carro.
A rua tinha um cheiro de morte, podridão, depravação e imundície.
– Sacerdotisa, este lugar não...
– Proteja-me! – ela respondeu rispidamente. – Mas não seja protetor! Eu sempre vou aonde quero, quando quero e faço exatamente o que quero. É o seu trabalho, ou melhor, o seu propósito, derrotar os meus inimigos. E criar inimigos é o meu destino. Observe. Reaja quando eu ordenar que você me proteja. Isso é tudo o que eu exijo de você.
– Sim, Sacerdotisa – ele disse.
O mundo moderno era um lugar confuso. Tantos sons inconstantes. Tanta coisa que ele não conhecia. Ele faria como a Sacerdotisa ordenara. Ele iria cumprir o propósito para o qual fora criado e...
Um homem deu um passo para a frente, bloqueando o caminho da Sacerdotisa.
– Você é bonita demais para estar aqui neste beco tão tarde só com um garoto para te acompanhar – os olhos dele se arregalaram quando ele viu as tatuagens da Sacerdotisa. – Então, vampira, você deu uma parada aqui para usar esse garoto como um lanchinho, é? Que tal você me dar essa bolsa e então eu e você vamos falar sobre como é estar com um homem de verdade, hein?
A Sacerdotisa suspirou e pareceu entediada.
– Você está errado em ambas as suposições: eu não sou simplesmente uma vampira e ele não é um garoto.
– Ei, o que você quer dizer com isso?
A Sacerdotisa ignorou o homem e olhou por sobre o ombro para Aurox.
– Agora você deve me proteger. Mostre-me que tipo de arma eu comando.
Ele a obedeceu sem pestanejar. Aurox se aproximou do homem sem hesitar. Com um movimento rápido, Aurox cravou seus polegares nos olhos arregalados do homem, o que fez a gritaria começar.
O pavor do homem o inundou, alimentando-o. Tão simplesmente quanto respirar, Aurox inalou a dor que ele estava causando. O poder do medo do homem se dilatou dentro dele, latejando quente e frio. Aurox sentiu suas mãos se endurecendo, mudando, tornando-se algo mais. O que eram dedos normais viraram garras. Ele as puxou dos olhos do homem quando o sangue começou a vazar dos ouvidos dele. Com o poder emprestado da dor e do medo, Aurox levantou o homem, e o arremessou com força contra o muro do prédio mais próximo.
O homem berrou de novo.
Que excitação maravilhosa e terrível! Aurox sentiu mais ondulações de transformações pelo seu corpo. Meros pés humanos tornaram-se patas de diabo. Os músculos de suas pernas se engrossaram. Seu peito inchou e rasgou a camiseta que ele estava usando. E o melhor de tudo, Aurox sentiu os chifres grossos e mortais que cresceram na sua testa.
No momento em que três amigos do homem correram para o beco para ajudá-lo, ele tinha parado de gritar.
Aurox deixou o homem na sujeira e se virou para se colocar entre a Sacerdotisa e aqueles que acreditavam que poderiam causar algum mal a ela.
– Que merda é essa? – o primeiro homem chegou correndo e parou de repente.
– Nunca vi nada parecido com isso – disse o segundo homem.
Aurox já estava absorvendo o medo que começava a irradiar deles. Sua pele pulsava com aquele fogo frio.
– Aquilo são chifres? Ah, merda, não! Tô fora! – o terceiro homem se virou e correu por onde tinha vindo. Os outros dois começaram a se afastar devagar, com os olhos arregalados, em choque e olhando fixamente.
Aurox se virou para a Sacerdotisa.
– Qual é a sua ordem? – em alguma parte distante da sua mente, ele ficou surpreso com o som da sua voz, em como ela tinha ficado tão gutural, tão bestial.
– A dor deles deixa você mais forte – a Sacerdotisa pareceu satisfeita. – E diferente, mais feroz – ela olhou para os dois homens em retirada e o seu carnudo lábio superior se levantou em um riso de escárnio. – Não é interessante? Mate-os.
Aurox se moveu tão rapidamente que o homem mais próximo não teve nenhuma chance de escapar. Ele espetou o peito do homem com seus chifres e o levantou, fazendo ele se debater, berrar e sujar as próprias calças de medo.
Isso deixou Aurox ainda mais poderoso.
Com uma forte sacudida de cabeça, o homem espetado voou para a parede e depois para o chão, encolhido e silencioso, ao lado do primeiro homem.
O outro homem não fugiu. Em vez disso, ele pegou uma faca longa e de aparência perigosa e arremeteu contra Aurox.
Aurox fez uma finta para o lado e então, quando o homem se desequilibrou, ele pisou com força com sua pata sobre o pé dele, rasgando o seu rosto enquanto o homem caía para a frente.
Com a respiração ofegante, Aurox olhou os corpos dos seus inimigos derrotados. Ele se voltou para a Sacerdotisa.
– Muito bem – ela disse sem emoção na voz. – Vamos sair deste lugar antes que as autoridades apareçam.
Aurox a seguiu. Ele andou pesadamente, suas patas escavavam sulcos no beco sujo. Fechou suas garras em punho ao seu lado, enquanto tentava compreender a tempestade emocional que fluía pelo seu corpo, levando com ela o poder que havia alimentado o seu frenesi de combate.
Fraco. Ele se sentia fraco. E mais. Havia algo mais.
– O que é? – ela perguntou de modo ríspido quando ele hesitou antes de entrar no carro de novo.
Ele balançou a cabeça.
– Não sei. Eu me sinto...
Ela gargalhou.
– Você não sente absolutamente nada. Você obviamente está pensando demais nisso. Minha faca não sente. Meu revólver não sente. Você é minha arma; você mata. Lide com isso.
– Sim, Sacerdotisa – Aurox entrou no carro e deixou o mundo ficar para trás em ritmo acelerado. Eu não penso. Eu não sinto. Eu sou uma arma.

Aurox

– Por que você está parado aqui olhando para mim? – a Sacerdotisa perguntou a ele, encarando-o com seus gélidos olhos verdes.
– Eu aguardo as suas ordens, Sacerdotisa – ele respondeu automaticamente, pensando em como era possível que ele a tivesse desagradado. Eles tinham acabado de voltar para a cobertura no alto do majestoso edifício chamado Mayo. Aurox havia andado até a varanda e simplesmente ficara ali parado, em silêncio, olhando para a Sacerdotisa.
Ela expirou o ar com força.
– Eu não tenho nenhuma ordem para você neste momento. E você precisa ficar sempre me encarando?
Aurox olhou para longe, focando nas luzes da cidade e em como elas brilhavam de modo atraente contra o céu da noite.
– Eu aguardo suas ordens, Sacerdotisa – ele repetiu.
– Ah, por todos os deuses! Quem iria imaginar que o Receptáculo criado para mim seria tão idiota quanto bonito?
Aurox sentiu a mudança na atmosfera antes que as Trevas se materializassem da fumaça, da sombra e da noite.
– Idiota, bonito e mortal...
A voz ressoou na sua cabeça. O enorme touro branco tomou forma diante dele. Seu hálito era fétido, ainda que doce. Seu olhar era horrível e maravilhoso ao mesmo tempo. Ele era mistério, magia e caos juntos.
Aurox se ajoelhou na frente da criatura.
– Levante-se e vá lá para trás... – ela balançou a mão, dispensando-o com um gesto em direção às sombras do canto mais distante da varanda.
– Não, prefiro que ele fique. Eu tenho prazer em observar minhas criações.
Aurox não sabia o que dizer. Essa criatura comandava a sua atenção, mas a Sacerdotisa comandava o seu corpo.
– Criações? – a Sacerdotisa colocou uma ênfase especial no final da palavra enquanto ela se movia languidamente em direção ao touro corpulento. – Você sempre cria presentes como esse para os seus seguidores?
A risada do touro foi terrível, mas Aurox percebeu que a Sacerdotisa não se sobressaltou nem um pouco – em vez disso, ela parecia ser atraída cada vez mais para perto do animal gigantesco enquanto ele falava.
– Que interessante! Você está mesmo me questionando. Você está com ciúmes, minha cara impiedosa?
A Sacerdotisa acariciou os chifres do touro.
– Tenho motivos para estar?
O touro a acariciou com o seu focinho. Onde ele tocou a Sacerdotisa, a seda do vestido dela se enrugou, expondo a carne macia e nua que estava por baixo.
– Diga-me, qual você acha que é o propósito do meu presente a você? – o touro respondeu à pergunta da Sacerdotisa com outra pergunta.
A Sacerdotisa piscou e balançou a cabeça, como se estivesse confusa. Então o olhar dela encontrou Aurox, ainda ajoelhado.
– Meu mestre, o propósito dele é proteção, e eu estou pronta para fazer o que você ordenar para agradecer.
– Eu vou aceitar suas deliciosas oferendas, mas eu devo explicar que Aurox não é só uma arma de proteção. Aurox tem um propósito, que é criar o caos.
A Sacerdotisa inspirou profundamente, em choque.
– Verdade? – ela perguntou com uma voz suave e reverente. – Através dessa única criatura eu posso comandar o caos?
Os olhos brancos do touro pareciam a lua se pondo.
– Verdade. Ele é, de fato, uma única criatura, mas seu poder é vasto. Ele tem a capacidade de deixar o desastre no seu rastro. Ele é o Receptáculo, que é a manifestação dos seus sonhos mais profundos, e eles não são o mais completo e absoluto caos?
– Sim, ah, sim – a Sacerdotisa suspirou as palavras. Ela se inclinou contra o pescoço do touro, acariciando seu dorso.
– Ah, e o que você vai fazer com o caos agora que ele está sob o seu comando? Você vai botar abaixo as cidades dos humanos e governar como rainha vampira?
O sorriso da Sacerdotisa era bonito e horrível.
– Rainha não. Deusa.
– Deusa? Mas já há uma Deusa dos vampiros. Você sabe muito bem disso. Você já esteve a serviço dela.
– Você quer dizer Nyx? A Deusa que permite que seus subordinados façam escolhas e tenham vontade própria? A Deusa que não intercede porque acredita com tanta força no mito do livre-arbítrio?
Aurox achou que podia ouvir um sorriso na voz da besta e ficou imaginando como isso era possível.
– Sim, eu me refiro a Nyx, Deusa dos vampiros e da noite. Você usaria o caos para desafiá-la?
– Não. Eu usaria o caos para derrotá-la. E se o caos ameaçar a estrutura do mundo? Nyx não iria intervir e desafiar suas próprias regras para salvar seus filhos? E fazendo isso a Deusa não iria rescindir a sua lei que concede livre-arbítrio aos humanos e trair a si mesma? O que acontecerá então ao seu divino reinado se Nyx mudar o que ele está destinado a ser?
– Eu não posso dizer, já que isso nunca aconteceu antes – o touro bufou como se estivesse se divertindo. – Mas é uma questão surpreendentemente interessante, e você sabe o quanto eu gosto de ser surpreendido.
– Eu apenas espero poder continuar a surpreendê-lo muitas e muitas vezes, meu mestre.
– Apenas é uma palavra tão pequena... – o touro disse.
Aurox continuou ajoelhado na varanda muito tempo depois de a Sacerdotisa e o touro terem partido, deixando-o de lado e esquecido. Ele ficou onde havia sido deixado, encarando o céu.

2

Zoey
– Um micro-ônibus escolar? Sério? – tudo o que eu podia fazer era balançar a cabeça e olhar para aquela coisa amarela e atarracada com letras pretas recém-pintadas nas laterais, onde se lia Morada da Noite. – Quero dizer, legal que o meu telefonema para Thanatos funcionou tão rápido e que a gente conseguiu permissão para voltar à escola, mas um micro-ônibus escolar?
– Gêmea! Eles mandaram o micro-ônibus dos retardados1 para a gente! – Erin disse, dando risadinhas.
– Gêmea, isso é muito maldoso – Shaunee falou.
– Eu sei, Gêmea. Não acredito que Neferet seja tão maldosa a ponto de enviar o micro-ônibus dos retardados para a gente – Erin continuou.
– Não, eu não quero dizer que Neferet é maldosa. Quero dizer que é maldoso dizer retardados – Shaunee explicou, revirando os olhos para a sua gêmea.
– Acho que Shaunee está correta e vocês deveriam pensar em expandir o seu vocabulário. Vocês estão usando maldoso muitas vezes, é redundante – Damien afirmou.
Shaunee, Erin, Stevie Rae, Rephaim e eu encaramos Damien. Eu sabia que todos nós estávamos pensando que era ótimo ouvi-lo obcecado por vocabulário de novo. Mas nós não queríamos dizer nada, pois estávamos todos com medo de que ele pudesse explodir em lágrimas e se afundar novamente na depressão que o assombrava desde a morte de Jack.
Aphrodite e Darius escolheram aquele momento para emergir do porão da estação e, como sempre, Aphrodite atravessou a ponte entre a decência e o desastre invocando a sua única regra verdadeira e experimentada: importe-se com as Aparências.
– Ah, que merda. Eu não vou entrar nisso. O micro-ônibus é para os retardados – Aphrodite falou, bufando e jogando os cabelos.
– Ei, pessoal, não é tão ruim assim. Quero dizer, está na cara que é um ônibus novo. Olhem só as letras fresquinhas de Morada da Noite – Stevie Rae observou.
– Poderia muito bem estar escrito suicídio social ali – Aphrodite retrucou, franzindo a testa para Stevie Rae.
– Não vou deixar você cortar o meu barato. Eu gosto da escola – Stevie Rae disse. Ela deu um passo e subiu no ônibus, sorrindo para o guerreiro Filho de Erebus que havia aberto a porta para ela com uma cara séria.
– Sacerdotisa – ele a saudou sombriamente com um aceno de cabeça e então, ignorando totalmente o nosso próprio guerreiro Filho de Erebus, Darius, ele olhou para mim. Com um cumprimento de cabeça ainda mais rápido, ele disse: – Zoey, eu devo comunicar você e Stevie Rae sobre a Reunião do Conselho da escola, que vai se reunir em trinta minutos. Vocês duas devem comparecer.
– Certo. Stark está avisando a todos que você está aqui, então poderemos partir em um segundo – eu disse sorrindo para ele, como se o seu rosto não parecesse uma nuvem de tempestade.
– Ei, pessoal, ainda tem cheirinho de novo aqui dentro – Stevie Rae gritou. Eu podia ver seus cachinhos loiros e curtos balançando enquanto ela admirava o interior do veículo. Então ela saiu de novo saltando alguns degraus para pegar a mão de Rephaim e sorrir para ele. – Você quer se sentar no banco de trás comigo? Tem bastante molejo!
– É sério – Aphrodite falou. – Esse micro-ônibus é perfeito para você; você é uma retardada. E eu odeio ser aquela que vai revelar isso a você... ah, espere, isso é mentira; eu não odeio não... mas mesmo que o Conselho Supremo dos Vampiros tivesse pressionado Neferet, forçando-a a nos levar de volta para a Morada da Noite, o menino-pássaro ainda não é bem-vindo lá. Você esqueceu, no êxtase do que quer que vocês dois andaram fazendo durante os poucos segundos entre o pôr do sol e agora, que ele era um pássaro?
Eu vi Stevie Rae apertar com mais força a mão de Rephaim.
– Vou ter que te informar que passaram mais de poucos segundos desde o pôr do sol, que não é da tua conta o que a gente andou fazendo e que Rephaim vai para a escola. Assim como todos nós.
Aphrodite levantou as suas sobrancelhas loiras.
– Você não está brincando, está?
– Não – Stevie Rae disse com firmeza. – E você deveria entender isso mais do que qualquer um.
– Eu? Entender? De que merda você está falando?
– Você não é uma novata, nem vermelha nem normal. Você não é vampira. Talvez você não seja nem humana.
– Porque ela é uma bruxa – eu ouvi Shaunee sussurrar.
– Do inferno – Erin sussurrou de volta.
Aphrodite franziu os olhos para as gêmeas, mas Stevie Rae ainda não tinha acabado.
– Assim como Rephaim, você é algo que não é muito normal, mas Nyx deu a sua benção a você, mesmo que ninguém no mundo entenda por que ela fez isso. Seja como for, você vai para a escola. Eu vou para a escola. E Rephaim também vai. Fim.
– O que Stevie Rae disse faz sentido – Stark falou enquanto se juntava a nós no estacionamento da estação, com o resto dos novatos vermelhos seguindo atrás dele. – Neferet não vai gostar disso, mas Nyx perdoou e abençoou Rephaim.
– Na frente da escola inteira – Stevie Rae acrescentou rapidamente.
– Eles sabem disso – Rephaim murmurou para Stevie Rae. Então ele desviou os olhos para nós, finalmente focando em mim. – O que você acha? – ele me surpreendeu ao perguntar. – Eu devo tentar ir para a Morada da Noite ou isso iria apenas causar problemas sem razão?
Todos olharam embasbacados para mim. Com uma rápida olhada para o rosto inflexível do guerreiro Filho de Erebus no ônibus, eu falei:
– Ahn, vocês não querem ir entrando? Eu preciso falar com o meu... ahn... – parei de falar e fiz um gesto que englobava Aphrodite, Stevie Rae e o resto dos meus amigos mais próximos.
– O seu círculo – Stevie Rae completou, sorrindo para mim. – Você quer falar com o seu círculo.
– E com o seu círculo acessório – Damien acrescentou, indicando com a cabeça Aphrodite, Darius e Kramisha.
Eu abri o sorriso.
– Gostei disso! Certo, vocês podem ir entrando no ônibus enquanto eu falo com o meu círculo principal e com o meu círculo acessório, por favor?
– Não tô certa se eu gostei de ser chamada de acessório – Kramisha falou, franzindo os olhos para mim.
– Isso significa... – Stevie Rae começou a explicar, mas Kramisha a interrompeu balançando a cabeça.
– Eu sei o que isso quer dizer. Só tô falando que não sei se gostei.
– Você pode escrever sobre isso no seu diário mais tarde e agora calar a boca e seguir Zoey, para acabarmos logo com isso? – Aphrodite disparou enquanto Kramisha respirou fundo e olhou com raiva para ela. – E só para registrar – ela apontou para todos menos para Darius. – Vocês são um bando de nerds. Eu sou o símbolo da popularidade e da perfeição.
As gêmeas pareceram prestes a retrucar Aphrodite, então eu disse:
– Pessoal, foco. A questão de Rephaim é importante – felizmente, aquilo calou todo mundo, e eu fiz um gesto para que os meus círculos principal e acessório me seguissem pela calçada até um ponto em que não pudéssemos ser ouvidos pelos novatos vermelhos, que estavam subindo no ônibus. E eu me esforcei realmente para pensar na questão muito importante de Rephaim.
Minha mente estava sentimental. A noite passada tinha sido horrível. Olhei para Stark e senti minhas bochechas esquentarem. Tudo bem vai, a noite não foi totalmente horrível, mas, mesmo assim, questões difíceis enchiam a minha cabeça. Dei uma sacudida mentalmente em mim mesma. Eu não era mais uma criança. Eu era a primeira Grande Sacerdotisa Novata e todo esse pessoal me olhava e esperava que eu soubesse as respostas certas (bem, para tudo, menos para Geometria, traduções de espanhol e sobre como estacionar paralelamente aos outros carros).
Por favor, Nyx, deixe-me dizer a coisa certa. Fiz uma prece rápida e silenciosa e então encontrei o olhar de Rephaim. Subitamente, percebi que não era da minha resposta que nós precisávamos.
– O que você quer? – perguntei a ele.
– Bem, ele quer... – Stevie Rae começou, mas minha mão levantada interrompeu minha melhor amiga.
– Não – eu disse. – Não pode ser o que você diz que Rephaim quer, nem o que você quer para ele. Eu preciso da resposta de Rephaim. E então, qual é sua resposta? O que você quer? – repeti.
Rephaim sustentou o meu olhar.
– Eu quero ser normal – ele respondeu.
Aphrodite bufou.
– Infelizmente, ser normal e ser adolescente significa ir para a chatice da escola.
– Ir para a escola não é chato – Damien disse e então olhou para Rephaim. – Mas ela está certa sobre a parte normal. Ir para a escola é o que garotos normais fazem.
– É – Shaunee concordou.
– É chato, mas é verdade – Erin falou. – Apesar de que é um incrível desfile de moda.
– Você está certa, gêmea – Shaunee disse.
– O que isso significa? – Rephaim perguntou para Stevie Rae.
Ela sorriu para ele.
– Basicamente, que você deve ir à escola com a gente.
Ele sorriu de volta para ela, com o rosto cheio de amor e ternura. Quando ele olhou para mim, aquela maravilhosa expressão ainda estava lá, e eu não pude deixar de sorrir para ele.
– Se ser normal significa ir para a escola, então é isso o que eu realmente gostaria de fazer. Se isso não causar muitos problemas.
– Isso vai causar problemas, sem a menor dúvida – Darius afirmou.
– Você acha que ele não deveria ir? – perguntei.
– Eu não disse isso. Concordo com você que a escolha é dele, a decisão é dele, mas, Rephaim, você deve entender que seria mais fácil se você escolhesse ficar aqui, fora do caminho, pelo menos até nós descobrirmos quais serão os próximos passos de Neferet e Kalona.
Pensei ter visto Rephaim se encolher com a menção ao seu pai, mas ele concordou e respondeu:
– Eu realmente entendo, mas estou cansado de me esconder sozinho nas sombras – ele olhou para Stevie Rae e depois para nós de novo. – E Stevie Rae pode precisar de mim.
– Certo, vocês sabem que essa coisa toda de “vamos deixar o menino-pássaro decidir” e “Stevie Rae pode precisar de mim” é toda bonitinha na teoria, mas na prática vamos entrar em um campus onde a louca da Grande Sacerdotisa morcegona nos odeia e vai usar qualquer coisa que ela tenha para derrotar a nós e principalmente a você, Z. Isso sem falar que Dragon, o líder dos guerreiros Filhos de Erebus, definitivamente não está agindo bem desde que sua companheira foi morta pelo cara que nós vamos levar de volta para o campus. Neferet vai usar Rephaim contra nós. Dragon vai apoiá-la. Ela vai jogar merda no ventilador – Aphrodite afirmou.
– Bem, não vai ser a primeira vez – eu ponderei.
– Ahn, eu posso dizer uma coisa? – a mão de Damien estava levantada, como se ele estivesse em sala de aula e quisesse ser chamado.
– É claro, querido, e você não precisa levantar a mão – eu respondi.
– Ah, obrigado. O que eu quero dizer é que nós precisamos nos lembrar de que Nyx, quando apareceu na Morada da Noite, perdoou e abençoou Rephaim. Assim, basicamente ela nos deu permissão para incluir Rephaim no nosso mundo. Neferet não pode ir contra isso, pelo menos não abertamente. Nem Dragon. O quanto eles não vão gostar disso não é o ponto.
– Mas eles já foram contra isso – Stark lembrou. – Neferet perguntou a Dragon se ele iria aceitá-lo e ele disse que não, e então ela o expulsou do campus. Stevie Rae chamou aquilo de papo furado, e foi por isso que todos nós acabamos indo embora.
– É, e só porque o Conselho Supremo deu um jeito de pressionar Neferet para nos deixar voltar à escola, isso não significa que nós vamos realmente ser aceitos. Eu posso jurar a vocês que Dragon e provavelmente um monte de outras pessoas não vão ficar numa boa com isso – Aphrodite remexeu seus dedos em direção a Rephaim.
Damien falou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.
– Bem, a verdade é que nem Neferet nem Dragon podem suplantar a vontade da Deusa.
– Suplan... o quê? – Shaunee perguntou.
– ...tar o quê? – Erin acrescentou.
– Significa se sobrepor, tomar o lugar – Stevie Rae explicou por Damien. – E esse é realmente um ponto interessante, Damien. Ninguém pode suplantar a Deusa, nem mesmo uma Grande Sacerdotisa.
– Vocês podem imaginar o que as vampiras irritadiças do Conselho Supremo diriam sobre isso? – Aphrodite revirou os olhos. – Elas são nervosinhas. Todas.
Eu pisquei surpresa e tive uma súbita vontade de abraçar Aphrodite. Bem, a vontade passou rápido, mas mesmo assim fiquei animada.
– Aphrodite, você é um gênio! E Damien também é! – eu disse.
– É claro que eu sou – Aphrodite disse toda convencida.
– Você vai falar sobre Neferet e Dragon ao Conselho Supremo, não vai? – Damien falou.
– Eu acho que “falar sobre eles” não é o modo correto de colocar a questão. Seu notebook está com você, não está? – perguntei.
Damien passou a mão sobre a bolsa masculina pendurada no seu ombro.
– É claro. Está na minha mochila.
– Bolsa masculina – Shaunee corrigiu.
– Só falamos por falar – Erin acrescentou.
– É uma mochila tipo satchel europeia – Damien disse com firmeza.
– Se a coisa tem penas... – Erin falou.
– ... e faz quá-quá – Shaunee completou.
– Seja o que for, estou feliz que você está com o seu computador – eu me adiantei antes que Damien falasse uma daquelas palavras complicadas para elas. – Você já baixou o Skype nele, certo?
– Sim – ele respondeu.
– Ótimo. Eu preciso dele emprestado para a Reunião do Conselho, se você não se importar.
– Sem problemas – Damien concordou, levantando as sobrancelhas com cara de interrogação para mim.
– O que você está planejando? – Stevie Rae fez a pergunta por ele.
– Bem, quando eu falei com Thanatos sobre nos ajudar a voltar para a escola, eu não mencionei aquele pequeno detalhe de que nós estamos criando uma espécie de filial da Morada da Noite aqui, mas que nós ainda vamos continuar indo para a aula e tal na nossa Morada da Noite original.
– Nós precisamos pensar em um nome incrível para o nosso lugar – Shaunee disse.
– Aaaah, você está certíssima, gêmea! – Erin se animou.
– Ei, aqui é a estação, então que tal Morada da Noite Pot Lot2? – Shaunee sugeriu.
Eu olhei para elas. Balancei minha cabeça e disse com firmeza:
– Não para Pot Lot – então voltei ao assunto original. – Mas eu realmente preciso fazer uma conferência no Skype com o Conselho Supremo dos Vampiros para obter permissão para o que queremos fazer. Uma Reunião do Conselho da escola parece uma boa hora para fazer isso, especialmente porque eu tenho certeza de que Neferet vai adorar se eu pedir para ela ser testemunha da minha chamada.
– Z., esse parece ser um plano de merda. Neferet vai adorar falar com o Conselho Supremo e descobrir um jeito de distorcer tudo o que você disser para fazer você parecer uma adolescente insana – Aphrodite opinou.
– Esse é mais ou menos o meu ponto – eu respondi. – Eu não vou ser a adolescente insana. Eu vou ser a Grande Sacerdotisa Novata que vai dar ao Conselho Supremo todos os detalhes sobre o dom incrível e milagroso que Nyx deu ao Consorte da Grande Sacerdotisa Vermelha, Rephaim, e sobre como ele está excitado por começar a estudar na Morada da Noite de Tulsa. Tenho certeza de que elas vão até querer cumprimentar Neferet por ela ser uma Grande Sacerdotisa tão incrível que consegue lidar com todas as mudanças que estão acontecendo aqui.
– Isso é diabólico. Eu gosto – Aphrodite falou. – Assim você coloca Neferet e até Dragon em uma posição na qual, se eles disserem “nós não vamos aceitar o menino-pássaro de jeito nenhum” ou mesmo se reclamarem um pouco por causa disso, vão parecer super do mal depois da aparição e do milagre de Nyx.
– Mesmo assim, esse não será um caminho fácil – Stark disse.
Rephaim olhou-o com firmeza.
– Não importa o quanto seja difícil, é um caminho melhor do que aquele que leva à escuridão, ao ódio e à morte. E acho que você sabe exatamente o que eu quero dizer.
– Eu sei – Stark respondeu, olhando de volta para ele sem vacilar.
– Eu também sei – Stevie Rae afirmou.
– E eu também – acrescentei.
– Então nós estamos de acordo. Rephaim volta para a Morada da Noite conosco – Darius disse.
– Espera aí!? Isso significa que a gente tem que entrar naquele maldito micro-ônibus? – Aphrodite perguntou.
– Sim! – todos nós respondemos juntos.
Rindo e me sentindo leve como não me sentia há dias, subi no ônibus com meus amigos e cutuquei Stark com meu ombro quando nós nos sentamos. Ele mal olhou para mim. Foi então que percebi que ele não tinha falado muito comigo (nem com ninguém) desde que a gente tinha acordado. Lembrando de como nós estivéramos próximos – de como ele havia me tocado e feito o mundo voltar para o lugar de novo –, acabei mordendo o lábio e me sentindo super confusa. Dei mais uma olhada para Stark. Ele estava encarando a janela. Parecia cansado. Muito cansado.
– Ei, o que há com você? – perguntei quando o ônibus arrancou pela Cincinnati Street em direção ao centro.
– Comigo? Nada.
– É sério, você parece muito cansado. Você está se sentindo bem?
– Zoey, você me acordou e me manteve alerta na maior parte do dia ontem. Daí você fez aquela ligação para Thanatos para resolver toda essa coisa da volta à escola, o que não foi exatamente uma conversa calma e sossegada. Eu tinha acabado de dormir quando você gritou qualquer coisa e me acordou de novo. Fazer amor foi ótimo – ele fez uma pausa, sorriu por um segundo e quase pareceu normal. Então ele abriu a boca e estragou tudo, dizendo: – Depois de tudo, você se remexeu muito de um lado para o outro antes de apagar. Não consegui dormir de novo. Então, estou cansado. É isso.
Pisquei surpresa para ele. Duas vezes. E tentei não me sentir como se ele tivesse acabado de me dar um tapa na cara. Mantendo a voz baixa porque eu não queria que meus amigos ouvissem, eu disse:
– Tudo bem, deixando de lado toda a coisa de eu ter que ligar para Thanatos para a gente poder voltar para a escola, o que é o que eu deveria ter feito? Porque eu sou a Grande Sacerdotisa, e o fato de que você veio para cima de mim quando tudo o que eu pretendia fazer era deitar de conchinha e dormir, minha mãe está morta, Stark. Nyx me deixou vê-la entrando no Mundo do Além. Como neste exato momento eu não sei como nem por que isso aconteceu, estou me esforçando muito para ficar o mais normal possível. Eu ainda nem falei com a minha avó.
– É verdade, você não falou. Eu disse que você deveria ter ligado para ela na mesma hora ou pelo menos ligado para a sua mãe. E se tudo foi apenas um sonho?
Eu olhei para Stark sem acreditar no que ouvia, lutando para manter minha voz e minhas emoções sob controle.
– Você é a única pessoa no mundo que deveria entender mais do que ninguém que eu sei a diferença entre ver o Mundo do Além e sonhar com ele.
– Sim, eu sei, mas...
– Mas você está dizendo que eu deveria passar por tudo isso sem perturbar o seu precioso sono? Ah, a não ser que seja para fazer sexo com você!
Fechei minha boca e tentei parecer normal quando vi Aphrodite se virar e dar uma olhada para mim com um ponto de interrogação no rosto.
Stark soltou um longo suspiro.
– Não, não é isso o que eu quero dizer. Desculpe-me, Z. – Então ele pegou minhas mãos. – É sério. Eu estou parecendo um idiota.
– Sim, está mesmo.
– Desculpe-me mesmo – ele disse e então cutucou o meu ombro com o dele. – A gente pode apagar essa conversa?
– Pode – respondi.
– Então vou começar de novo: estou cansado e isso está fazendo com que eu seja um imbecil. E sobre a sua mãe, nós não sabemos o que realmente aconteceu e isso está nos deixando tensos. Mas, seja como for, eu te amo, mesmo que eu seja um idiota. Melhorou?
– Melhorou – respondi.
Ainda deixando que ele segurasse a minha mão, olhei pela janela quando viramos à esquerda na Fifteenth Street, passamos por Gumpy’s Garden, que sempre deixava o ar com cheiro de pinhão, e seguimos pela Cherry Street. Na hora em que a gente estava na Utica, cruzando a Twenty-fisrt, eu já havia esquecido a briga e só tinha na cabeça a preocupação com a minha mãe e com a minha avó. E estava pensando se Stark poderia estar certo de questionar o que eu pensei ter sido uma visão. Quero dizer... Eu ainda não tinha falado com vovó. E se tudo não tivesse sido um sonho ruim...
– É sempre tão bonito – a voz de Damien veio do banco da frente, que ele tinha escolhido automaticamente ao entrar no ônibus. – Olhando daqui, é difícil acreditar que coisas tão horríveis e dolorosas possam ter acontecido lá.
Eu ouvi o soluço na sua voz, apertei a mão de Stark antes de soltá-la e fui sacolejando pelo corredor para sentar ao lado de Damien.
– Ei – eu disse, deslizando meu braço entre o dele. – Você precisa se lembrar das coisas maravilhosas e do amor que aconteceu ali também. Nunca se esqueça de que foi ali que você conheceu Jack e se apaixonou por ele.
Damien olhou para mim e eu pensei que ele parecia triste, mas muito, muito sábio.
– Como você está lidando com a falta de Heath?
– Sinto saudade dele – eu disse honestamente. Então algo me fez acrescentar: – Mas eu não quero ficar como Dragon, devorada pela tristeza.
– Nem eu – Damien falou suavemente. – Mesmo que às vezes seja difícil não ficar assim.
– É tudo muito recente.
Apertando os lábios para não chorar, ele concordou com a cabeça.
– Você vai superar – acrescentei. – E eu também vou. Nós vamos. Juntos – eu disse com firmeza.
Nesse momento, atravessamos o portão de ferro que tinha o símbolo de uma lua crescente no meio, e fomos em direção à entrada lateral da escola.
– A Reunião do Conselho da escola começa às sete e meia – o guerreiro Filho de Erebus disse quando o micro-ônibus parou. – As aulas começam às oito em ponto, como sempre.
– Obrigada – eu disse, como se ele tivesse sido amigável (ou pelo menos respeitoso). Então olhei para o meu telefone: 19h20. Faltavam dez minutos para a reunião e quarenta para as aulas começarem. Eu me levantei e olhei para o grupo de garotos nervosos. – Vão para os seus antigos quartos e esperem lá até serem informados sobre o que fazer. Stevie Rae, Stark e eu vamos para a Reunião do Conselho e, como diriam na Ilha de Skye, daremos uma solução para o horário escolar de Rephaim e para o de vocês.
– E eu? Não vou para a reunião? – Kramisha perguntou. – Normalmente é um tédio, mas aposto que hoje vai ser melhor.
– Você está certa – respondi. – Já está na hora de eles incluírem você, além de mim e Stevie Rae.
– Para onde eu vou? – Rephaim perguntou do fundo do ônibus.
Eu estava pensando, tentando imaginar um lugar para onde ele pudesse ir, quando Damien se levantou ao meu lado.
– Você pode vir comigo, pelo menos por hoje. Se Zoey e Stevie Rae concordarem.
Eu sorri para Damien. Acho que eu nunca senti tanto orgulho dele. Todo mundo estava preocupado com ele, tratando-o como se ele pudesse ficar histérico a qualquer momento, então, se ele ficasse ligado a Rephaim, ninguém iria questionar o garoto – eles teriam medo de perturbar Damien.
– Obrigada – eu disse.
– É mesmo uma ótima ideia, Damien – Stevie Rae concordou.
– Tudo certo, então. Tentem agir normalmente – falei. – Encontro vocês aqui de novo depois da escola.
– Minha primeira aula é de Feitiços e Rituais – escutei Aphrodite murmurar para Darius. – E quem dá essa aula é aquela vamp nova que parece ter doze anos. Vai ser engraçado.
– Lembre-se – Stevie Rae disse, dando um olhar duro para Aphrodite, que a ignorou totalmente –, seja agradável.
Nós saímos do micro-ônibus. Pude ver como foi difícil para Stevie Rae deixar Rephaim ir embora com Damien. Não sabíamos no que ele poderia estar entrando, mas tínhamos a noção de que as chances de ele ser tratado como o garoto normal que ele tanto queria ser eram de pequenas a nulas.
Quando Stevie Rae, Stark, Kramisha e eu ficamos sozinhos, perguntei:
– Prontos para entrar na cova do leão?
– Eu tô achando que é mais como entrar em um ninho de vespas nojento – Kramisha respondeu. – Mas eu tô pronta.
– Eu também. Vamos agarrar o touro à unha e acabar logo com isso – Stevie Rae afirmou.
– Fechado – eu disse.
– Fechado – eles repetiram.
E andamos em direção a um futuro que já estava fazendo o meu estômago se contrair, me dando a sensação de que um episódio agudo de síndrome do intestino irritável3 podia me atingir a qualquer momento.
Ai, que inferno.

1 Nos Estados Unidos, um micro-ônibus menor que o ônibus escolar normal é usado para transportar deficientes e alunos com problemas de comportamento. Na gíria politicamente incorreta, é chamado de retard bus. (N.T.)
2 Estação em inglês é “depot”; “pot” é uma gíria para maconha e “lot” quer dizer área, terreno. (N.T.)
3 A síndrome do intestino irritável tem como sintomas dor abdominal aguda, diarreia, gases e prisão de ventre, entre outros. (N.T.)

3

Kalona
Ele não teve que voar muito longe para encontrar seus filhos. Kalona seguiu o fio da conexão que o ligava à sua prole. Meus filhos leais, ele pensou enquanto circundava os morros ondulados cobertos de árvores da área menos habitada e cheia de mato que ficava a uma pequena distância do sudoeste de Tulsa. No topo do cume mais alto, Kalona desceu do céu, voando facilmente entre os galhos grossos e desfolhados pelo inverno até parar no meio de uma pequena clareira. Em volta dele, feitas nas próprias árvores, havia três construções de madeira, rústicas mas robustas. O olhar aguçado de Kalona viu quando, dentro das janelas, olhos vermelhos brilharam na sua direção.
Ele abriu seus braços.
– Sim, meus filhos, eu voltei! – o som de asas foi um bálsamo para a sua alma. Eles saíram rápido das cabanas e se ajoelharam ao redor dele, curvando-se bastante, respeitosamente. Kalona os contou; havia sete. – Onde estão os outros?
Todos os Raven Mockers se agitaram inquietos, mas apenas um rosto se voltou para cima para encarar o seu olhar e apenas uma voz sibilante respondeu.
– Essscondidosss no oessste. Perdidosss na área.
Kalona observou seu filho, Nisroc, comparando-o com aquele que ele sempre considerara seu filho favorito. Nisroc era quase tão desenvolvido quanto Rephaim. Seu modo de falar era quase humano. Sua mente era quase perspicaz. Mas era aquele quase, aquela linha tênue entre eles que havia feito de Rephaim o filho em quem Kalona confiava e não Nisroc.
Kalona cerrou e descerrou o maxilar. Ele havia sido tolo ao desperdiçar tanta atenção apenas com Rephaim. Ele tinha muitos filhos para escolher e favorecer. Era Rephaim quem tinha saído perdendo ao decidir partir. Rephaim só tinha um pai, e ele não iria conseguir substituí-lo por uma Deusa ausente e uma vampira que nunca iria amá-lo de verdade.
– É bom que vocês estejam aqui – Kalona disse, interrompendo os próprios pensamentos no seu filho ausente. – Mas eu preferia que todos vocês tivessem ficado juntos aguardando a minha volta.
– Elesss pegaram, eu não pude – Nisroc disse. – Rephaim morto...
– Rephaim não está morto! – Kalona o cortou rispidamente, fazendo Nisroc estremecer e abaixar a cabeça. O imortal alado fez uma pausa e recuperou o autocontrole antes de continuar. – Apesar de que seria melhor para ele se ele estivesse morto.
– Pai?
– Ele escolheu servir à Sacerdotisa vampira vermelha e à sua Deusa.
O grupo de Raven Mockers sibilou e se encolheu como se ele os tivesse golpeado.
– Posssível? Como? – Nisroc perguntou.
– É possível por causa das fêmeas e das suas manipulações – Kalona respondeu sombriamente. Ele sabia muito bem como alguém podia ser uma presa fácil para elas. Ele inclusive havia caído por...
Subitamente, ao se dar conta do que estava dizendo, o imortal piscou e falou, mais para si mesmo do que para seu filho:
– Mas as manipulações delas não vão durar muito! – ele balançou sua cabeça e quase sorriu. – Por que não pensei nisso antes? Rephaim vai se cansar de ser o animal de estimação da Vermelha e, quando isso acontecer, ele vai perceber o erro que cometeu; um erro que não é totalmente seu. A Vermelha o manipulou e o envenenou. Ela fez com que ele se voltasse contra mim. Mas isso é apenas temporário! Quando ela o rejeitar, porque no final das contas ela vai fazer isso, ele vai sair da Morada da Noite e voltar para o meu... – Kalona cortou as próprias palavras, decidindo rápido. – Nisroc, leve dois de seus irmãos com você. Volte para a Morada da Noite. Observe. Seja cuidadoso. Vigie Rephaim e a Vermelha. Quando aparecer uma oportunidade, fale com ele. Diga que mesmo que ele tenha cometido esse erro terrível e se afastado de mim... – Kalona fez uma pausa, cerrando o maxilar, totalmente desconfortável com a tristeza e a solidão que o invadiam sempre que ele pensava demais na escolha de Rephaim. O imortal alado reordenou seus pensamentos, dominou seus sentimentos e continuou a dar instruções para Nisroc. – Diga a Rephaim que, apesar de sua escolha ter sido me deixar, ainda há um lugar esperando por ele ao meu lado, mas esse lugar terá mais utilidade se ele permanecer na Morada da Noite, mesmo depois que ele quiser partir.
– Ele essspionar! – Nisroc disse, e os outros Raven Mockers refletiram sua excitação com suas grasnadas características.
– Ele vai, mas no momento ele pode não saber disso – Kalona falou. Então ele acrescentou: – Você entendeu, Nisroc? Você deve observá-lo. Não deve ser visto por ninguém, exceto por Rephaim.
– Não matar vampirosss?
– Não, a menos que você seja ameaçado; se isso acontecer, faça como quiser, desde que não seja pego, e não mate nenhuma Grande Sacerdotisa – Kalona falou devagar e claramente. – Nunca é bom provocar uma Deusa sem necessidade, então as Grandes Sacerdotisas de Nyx não devem ser mortas – ele franziu a testa para Nisroc, lembrando-se de seu outro filho que quase havia matado Zoey Redbird não muito tempo atrás e que tinha morrido por causa disso. – Você entendeu as minhas ordens, Nisroc?
– Sssim. Falar com ele eu vou. Rephaim observar. Rephaim espionar.
– Faça isso e volte antes que o amanhecer ilumine o céu. Voem alto. Voem rápido. Voem silenciosamente. Sejam como o vento da noite.
– Sssim, Pai.
Kalona olhou em volta para a floresta espessa, apreciando o fato de os seus filhos terem encontrado um lugar alto e isolado para fazer o seu ninho.
– Os humanos não vêm aqui? – ele perguntou.
– Sssó caçadores, e não maisss – Nisroc respondeu.
Kalona levantou as sobrancelhas.
– Vocês mataram humanos?
– Sssim. Doisss – Nisroc se remexeu excitado. – Contra a pedra nósss jogamosss elesss – ele apontou uma pequena trilha na frente deles.
Curioso, Kalona deu passos largos até a beirada do precipício para olhar para baixo, onde as enormes linhas de transmissão que carregavam a magia elétrica do mundo moderno se estendiam diante dele. Os humanos haviam limpado a área em volta dos altos pilares, de modo que havia uma grossa faixa de terra que avançava no horizonte. A clareira havia deixado expostos enormes afloramentos rochosos de arenito de Oklahoma, pontiagudos e letais, projetando-se em direção ao céu.
– Excelente – Kalona disse, concordando com a cabeça em sinal de aprovação. – Vocês fizeram parecer um acidente. Muito bom. – Então ele se voltou para a clareira e para os Raven Mockers, que se aglomeravam ali com todas as atenções focadas somente nele. – Este lugar foi bem escolhido. Quero todos os meus filhos aqui em volta de mim. Nisroc, vá para a Morada da Noite de Tulsa. Faça o que eu ordenei. Quanto ao resto de vocês, voem para o oeste. Chamem seus irmãos, tragam todos aqui para mim. Aqui nós vamos esperar. Aqui nós vamos observar. Aqui nós vamos nos preparar.
– Preparar? Para que, Pai? – Nisroc perguntou, inclinando a cabeça.
Kalona se lembrou de como o seu corpo havia sido aprisionado e a sua alma arrancada dele e enviada para o Mundo do Além. Ele se lembrou de como, após a sua volta, ela o havia açoitado e o escravizado, além de tê-lo tratado como se ele fosse sua propriedade.
– Nós vamos nos preparar para destruir Neferet – ele afirmou.

Rephaim

Todo mundo olhava para ele com desconfiança. Rephaim odiava isso, mas entendia. Ele havia sido um inimigo. Ele tinha matado um deles. Ele fora um monstro.
A verdade é que ele ainda podia ser um monstro.
Quando a primeira aula começou e uma professora que se apresentou como Penthasilea começou a ler e a falar sobre o livro Farenheit 451, escrito por um vampiro antigo chamado Ray Bradbury, e sobre a importância da liberdade de pensamento e de expressão, Rephaim tentou fazer as suas novas feições humanas aparentarem atenção e interesse, mas a sua mente escapulia. Ele queria escutar a professora e não ter mais nada para se preocupar além do que ela chamava de “interpretação do simbolismo”, mas a sua transformação de garoto em corvo o obcecava.
Esse processo foi tão doloroso e assustador quanto impressionante.
Ele não se lembrava de quase nada do que aconteceu depois disso.
Apenas algumas imagens e sensações daquele dia permaneceram com ele.
Stevie Rae foi com ele dos profundos túneis de terra até a árvore mais próxima da estação – aquela que, não muito tempo atrás, serviu de rota de fuga do sol escaldante para eles.
– Volte para dentro agora. Está começando a amanhecer – ele disse para ela, tocando gentilmente sua bochecha.
– Eu não quero te deixar – ela respondeu, envolvendo-o com os seus braços e abraçando-o forte.
Ele se permitiu abraçá-la de volta apenas por um instante, e então, delicadamente, soltou seus braços e a guiou de volta firmemente para as grades sombreadas da entrada do porão.
– Vá para baixo. Você está exausta. Precisa dormir.
– Eu vou ficar olhando até você virar, você sabe. Um pássaro.
Ela havia sussurrado a última parte como se o fato de não falar em voz alta pudesse mudar as coisas. Era certamente uma bobagem, mas fez Rephaim sorrir.
– Não importa se você diz isso ou não. Vai acontecer.
Ela suspirou.
– Eu sei. Mas mesmo assim não quero deixar você – Stevie Rae saiu das sombras, em direção à manhã que já clareava, e pegou a mão dele. – Quero que você saiba que eu estou aqui.
– Eu acho que um pássaro não sabe muita coisa sobre o mundo dos humanos – ele disse, pois não sabia mais o que falar.
– Você não vai ser um pássaro qualquer. Você vai se transformar em um corvo. E eu não sou uma humana. Sou uma vampira. Vermelha. Além disso, se eu não ficar aqui, como você vai saber para quem voltar?
Ele escutou um soluço na voz dela que fez seu coração doer.
Rephaim então beijou a mão dela.
– Eu vou saber. Dou minha palavra. Eu sempre vou encontrar o caminho de volta para você – ele esteve a ponto de dar um empurrãozinho nela em direção à entrada do porão quando uma dor nauseante atravessou seu corpo.
Agora, olhando para trás, ele percebia que devia ter esperado por isso. Como poderia não ser doloroso se transformar de garoto humano em corvo? Mas seu mundo havia sido preenchido com Stevie Rae e o prazer simples, mas absoluto, de tomá-la em seus braços, beijá-la, abraçá-la forte...
Ele não havia gasto seu tempo pensando na besta.
Pelo menos, ele estaria preparado da próxima vez.
A dor o havia rasgado. Ele ouviu o grito de Stevie Rae ecoar o seu próprio. O seu último pensamento humano foi de preocupação com ela. A sua última visão humana fora dela chorando e balançando a cabeça de um lado para o outro. Ela estendeu o braço em direção a ele quando o animal tomou totalmente o lugar do humano. Ele se lembrava de ter aberto suas asas como se estivesse se alongando depois de ficar preso em uma cela pequena ou uma jaula. E de voar.
Ele se lembrava de voar.
Quando o sol se pôs, ele se viu com frio e nu abaixo da mesma árvore ao lado da estação. Ele tinha acabado de pôr as roupas que haviam sido deixadas cuidadosamente dobradas para ele em um banquinho quando Stevie Rae irrompeu do porão.
Sem hesitar, ela se atirou nos seus braços.
– Você está bem? Mesmo? Está tudo ok? – ela ficou repetindo enquanto o examinava e apalpava seus braços, como se procurasse ossos quebrados.
– Eu estou bem – ele garantiu. Então ele percebeu que ela estava chorando e envolveu seu rosto com as mãos, perguntando: – O que foi? Por que você chora?
– Você sentiu muita dor. Você gritou como se estivesse morrendo.
– Não – ele mentiu. – Não foi tão ruim assim. Só me pegou de surpresa.
– Sério?
Ele deu um sorriso – como ele amava sorrir – e a puxou para seus braços, beijando seus cachos loiros e garantindo novamente:
– Sério.
– Rephaim?
Rephaim foi trazido bruscamente de volta para o presente pelo som do seu nome sendo chamado pela professora.
– Sim? – ele respondeu com seu próprio tom interrogativo.
Ela não sorriu para ele, mas também não zombou dele nem o repreendeu. Ela simplesmente disse:
– Eu perguntei o que você acha que a citação na página sete quer dizer. Aquela em que Montag diz que o rosto de Clarisse tem uma luz que é como “um frágil cristal leitoso” e “a estranhamente confortável, rara e agradável chama de uma vela”. O que você acha que Bradbury está tentando dizer sobre Clarisse com essa descrição?
Rephaim ficou completamente pasmo. A professora estava fazendo uma pergunta a ele. Como se ele fosse apenas mais um novato sonhador... normal... igual... aceito. Sentindo-se nervoso e totalmente exposto, ele abriu a boca e falou a primeira coisa que veio à cabeça.
– Acho que ele está tentando dizer que essa garota é única. Ele reconhece o quanto ela é especial e a valoriza.
A professora Penthasilea levantou a sobrancelha e por um instante terrível Rephaim achou que ela poderia ridicularizá-lo.
– É uma resposta interessante, Rephaim. Talvez, se você mantivesse a sua mente mais focada no livro e menos em outras coisas, suas respostas passariam de interessantes a brilhantes – ela observou, com uma voz seca e prática.
– O-obrigado – Rephaim gaguejou, sentindo o rosto esquentar.
Penthasilea fez um leve aceno de cabeça antes de se virar para um estudante sentado mais na frente da classe e perguntar:
– E sobre a pergunta final dela para ele nessa cena: “Você está feliz?”. Qual é o significado?
– Bom trabalho – Damien sussurrou da sua mesa ao lado para Rephaim.
Rephaim não conseguiu responder. Ele só fez um sinal com a cabeça e tentou entender a súbita leveza de espírito que ele sentia.
– Você sabe o que acontece com ela? Com essa garota especial? – o sussurro veio do novato sentado bem na frente de Rephaim. Era um rapaz baixo e musculoso, com um perfil forte. Rephaim pôde ver claramente o desdém no seu rosto quando ele se virou para trás rapidamente por sobre o ombro.
Rephaim balançou a cabeça. Não, ele não sabia.
– Ela é assassinada por causa dele.
Rephaim sentiu como se tivesse levado um chute no estômago.
– Drew, você tem algum comentário sobre Clarisse? – a professora perguntou, levantando sua sobrancelha de novo.
Drew deu de ombros indiferentemente.
– Não, senhora. Eu só estava dando ao menino-pássaro uma revelação sobre o futuro – ele fez uma pausa e olhou por sobre o ombro antes de dizer: – Sobre o futuro do livro, quero dizer.
– Rephaim – a professora pronunciou o seu nome com uma voz que havia se tornado dura. Rephaim ficou surpreso de sentir o poder dela na sua pele. – Na minha aula, todos os novatos são iguais. Todos são chamados pelos seus nomes corretos. O dele é Rephaim.
– Professora P., ele não é um novato – Drew disse.
A professora bateu a mão na sua mesa e a classe inteira vibrou com o som e a energia.
– Ele está aqui. E enquanto ele estiver aqui, na minha aula, ele vai ser tratado como qualquer outro novato.
– Sim, senhora – Drew respondeu, abaixando a cabeça respeitosamente.
– Ótimo. Agora que isso está resolvido, vamos discutir o projeto criativo que vocês vão fazer para mim. Quero que vocês escolham e deem vida a um dos muitos elementos simbólicos que Bradbury usa nesse livro maravilhoso...
Rephaim não se mexeu enquanto a atenção da classe se desviava dele e do novato Drew de volta para o livro. A frase “ela é assassinada por causa dele” não saía da sua cabeça. Era claro o que Drew queria dizer. Ele não estava falando sobre uma personagem em um livro. Ele estava se referindo a Stevie Rae, insinuando que ela acabaria morta por causa dele.
Nunca. Enquanto ele respirasse, ele nunca iria permitir que nada nem ninguém machucasse a sua Stevie Rae.
Quando o sino tocou sinalizando o final da aula, Drew encarou Rephaim com um ódio inabalável.
Rephaim teve que se segurar para não atacá-lo. Inimigo!, sua velha natureza gritava. Destrua-o! Mas Rephaim abaixou o queixo e sustentou o olhar de Drew sem piscar enquanto o novato esbarrava bruscamente ao passar por ele.
E não era só Drew que o encarava com ódio. Todos o encaravam de forma hostil, assustada ou horrorizada.
– Ei – Damien falou ao sair da classe com ele. – Não se incomode com Drew. Ele tem uma queda por Stevie Rae. Só está com ciúmes.
Rephaim concordou e então esperou até que eles se afastassem dos outros estudantes e ninguém pudesse ouvir. Então, em voz baixa, ele disse:
– Não é só Drew. São todos. Eles me odeiam.
Damien fez um sinal para que ele o seguisse um pouco para fora do caminho, então ele parou e falou:
– Você sabia que não seria fácil.
– Isso é verdade. Eu só... – Rephaim interrompeu o que ia dizer e balançou a cabeça. – Não. É a pura verdade. Eu sabia que seria difícil os outros me aceitarem – ele encontrou o olhar de Damien. O novato parecia abatido. A tristeza o havia envelhecido. Seus olhos estavam vermelhos e inchados. Ele havia perdido o amor da sua vida, mas mesmo assim estava ali sendo gentil. – Obrigado, Damien – ele disse.
Damien quase sorriu.
– Por dizer a você que não seria fácil?
– Não, por ser gentil comigo.
– Stevie Rae é minha amiga. A gentileza é para ela.
– Então você é um grande amigo – Rephaim falou.
– Se você realmente é o garoto que Stevie Rae acha que você é, você descobrirá que, quando está do lado da Deusa, você faz um monte de grandes amigos.
– Eu estou do lado da Deusa – Rephaim afirmou.
– Rephaim, se eu não acreditasse nisso, não estaria ajudando você, não importa o quanto eu gosto de Stevie Rae – Damien disse.
Rephaim concordou.
– É justo.
– Oi, Damien! – um dos novatos vermelhos, um garoto muito baixinho, correu em direção a eles, deu uma olhada para Rephaim e então acrescentou rapidamente: – Oi, Rephaim.
– Oi, Ant – Damien respondeu.
Rephaim fez um aceno com a cabeça, desconfortável com todo esse processo de saudações.
– Ouvi que você tem esgrima à esta hora. Eu também!
– Eu tenho – Damien confirmou. – Rephaim e eu estávamos apenas... – ele fez uma pausa e então Rephaim observou várias emoções passarem pelo seu rosto, terminando com constrangimento. Ele suspirou pesadamente antes de dizer: – Ahn, Rephaim, Dragon Lankford é o professor de esgrima.
Então Rephaim entendeu.
– Isso, ahn, não é bom – Ant comentou.
– Pode ser que ele ainda esteja na Reunião do Conselho – Damien disse esperançosamente.
– Acho que é melhor eu ficar aqui, esteja Dragon lá ou não. Se eu for com você só vai causar... – a voz de Rephaim desapareceu porque ele só conseguia pensar em palavras como caos, problema e desastre.
– Dissabor – Damien preencheu o silêncio por ele. – Provavelmente causaria dissabor. Talvez você deva matar a aula de esgrima hoje.
– Parece melhor – Ant opinou.
– Vou esperar por você – Rephaim fez um gesto vago em direção à área cheia de árvores em volta deles. Eles não estavam longe de um dos muros da escola onde, junto à fachada de pedra, havia um carvalho particularmente grande, embaixo do qual tinha um banco de ferro forjado. – Vou ficar sentado ali.
– Combinado, eu venho encontrar você depois da esgrima. A próxima aula é espanhol. A professora Garmy é muito agradável. Você vai gostar dela – Damien disse enquanto ele e Ant se dirigiam ao ginásio.
Rephaim concordou com a cabeça, acenou e se forçou a sorrir porque Damien continuou preocupado, dando olhadas por sobre o ombro para ele. Quando os dois novatos finalmente saíram de vista, Rephaim foi até o banco e se sentou pesadamente.
Ele ficou contente por ter um tempo sozinho, em que ele podia baixar a guarda, podia relaxar os ombros e não se preocupar com os olhares dos outros. Ele se sentia como um forasteiro! No que ele estava pensando quando disse que queria ser normal e ir para a escola como todo mundo? Ele não era como todo mundo.
Mas ela me ama. A mim. Assim como eu sou, Rephaim lembrou a si mesmo, e pensar isso o fez se sentir melhor – com o espírito um pouco mais leve.
Então, como ele estava sozinho, disse isso em voz alta.
– Eu sou Rephaim e Stevie Rae me ama do jeito que eu sou.
– Rephaim! Não!
A voz semi-humana sussurrada veio dos galhos do carvalho. Com uma terrível sensação de pavor, Rephaim olhou para cima para ver três Raven Mockers, três dos seus irmãos, empoleirados lá em cima, olhando para ele em choque e sem acreditar no que viam.

4

Zoey
Sei que eu sou uma adolescente e tal, mas sou péssima para usar o Skype. Na verdade, sou meio monga com tecnologia em geral. Traçar um círculo... beleza. Entrar em contato com qualquer um dos cinco elementos... de boa. Descobrir como sincronizar meu iPhone com um computador novo... ah, provavelmente, não. Só de pensar em tuitar me dá dor de cabeça, e realmente sentir falta de Jack.
– Olha só, não é tão difícil. Você só tem que clicar ali – Kramisha pegou rapidamente o Magic Mouse1 por sobre o meu ombro. – E depois ali e pronto. A gente já tá no Skype e a câmera tá funcionando agora.
Levantei os olhos e vi Stevie Rae e todo mundo, incluindo Dragon, Lenobia e Erik, olhando incrédulos para mim.
Stevie Rae pelo menos sorriu e moveu os lábios em silêncio para dizer: – moleza.
– Qual é exatamente o objetivo por trás... – Dragon começou, mas a entrada de Neferet na Sala do Conselho o interrompeu. E, felizmente, foi naquele momento que a voz imponente da líder do Conselho Supremo dos Vampiros saiu clara e forte do computador de Damien.
– Merry meet, Zoey Redbird – Duantia disse. – É um prazer falar com você novamente.
Cruzei o punho fechado sobre o coração e me curvei respeitosamente.
– Merry meet, Duantia. Obrigada por encontrar tempo para esta chamada.
– Merry meet, Duantia – Neferet disse, aproximando-se do meu lado e se curvando formalmente. Eu a vi dar um rápido olhar de interrogação para Dragon antes de sorrir de modo cativante e continuar: – Devo me desculpar. Eu não sabia nada sobre esta chamada. Eu estava apenas esperando uma simples Reunião do Conselho da escola – então ela me atravessou com seus olhos de esmeralda. – Você é responsável por isso, Zoey?
– Sim, sem dúvida. Eu teria lhe contado antes, mas você só chegou aqui agora – eu respondi, sorrindo e parecendo super animada. Antes que Neferet pudesse responder, voltei minha atenção para Duantia. – Eu queria ter certeza de que o Conselho Supremo iria ouvir todos os detalhes sobre a incrível aparição de Nyx na escola ontem e – fiz uma pausa e um gesto com a cabeça indicando Neferet, como se eu a estivesse incluindo – eu sabia que Neferet estaria ansiosa para compartilhar isso com vocês também.
– Na verdade, nós sabemos muito pouco sobre isso, e essa é uma das razões pelas quais eu estava esperando impacientemente por esta ligação – Duantia desviou os olhos de mim para Neferet. – Eu tentei contatá-la durante o dia, depois que instruí Dragon a permitir que os novatos vermelhos e o grupo de Zoey começassem a frequentar as aulas hoje, mas não consegui encontrá-la, Grande Sacerdotisa.
Eu pude sentir a irritação de Neferet, mas ela apenas disse:
– Eu estava reclusa em profunda oração.
– Mais uma razão para esta chamada – Duantia falou.
– O que Nyx fez foi um milagre – gesticulei para que Stevie Rae entrasse no campo de visão da câmera. – Esta é Stevie Rae, a primeira Grande Sacerdotisa Vermelha.
Stevie Rae cruzou a sua mão em punho sobre o coração e se curvou profundamente.
– É um prazer enorme conhecê-la, senhora.
– Merry meet, Stevie Rae. Eu ouvi falar muito de você e dos novatos vermelhos. E, é claro, já conheci o guerreiro vermelho, Stark. De fato, Nyx é generosa com os seus milagres.
– Obrigada, mas, bem, o fato de nós sermos vermelhos e tal não é o milagre – Stevie Rae deu uma olhadinha para mim e acrescentou: – Bem, pelo menos não é o milagre sobre o qual Zoey está falando – ela limpou a garganta e então disse: – O milagre de Nyx tem a ver com o meu Consorte, Rephaim.
Duantia arregalou os olhos.
– Esse não é o nome de uma daquelas criaturas chamadas Raven Mockers?
– Sim – a voz de Dragon era tão dura quanto a sua expressão. – Esse é o nome da criatura que matou a minha Anastasia.
– Eu não entendo – Duantia falou. – Como essa abominação pode ser chamada de Consorte?
Rapidamente, antes que Neferet pudesse interromper dizendo algo horrível, comecei a tagarelar:
– Rephaim era um Raven Mocker e Dragon está certo, lá atrás ele realmente matou Anastasia – levantei os olhos para Dragon, mas foi realmente difícil encará-lo. – Rephaim pediu o perdão de Nyx por isso.
– E por tudo de ruim que ele fez quando era o filho de Kalona – Stevie Rae acrescentou.
– Perdão irrestrito é...
Neferet começou, mas eu a cortei, dizendo:
– O perdão irrestrito é uma dádiva que pode ser concedida pela nossa Deusa, e foi exatamente isso o que ela fez na noite passada – então eu olhei para Stevie Rae. – Conte à líder do Conselho Supremo o que você fez.
Stevie Rae concordou, engoliu em seco e então começou:
– Algumas semanas atrás, eu encontrei Rephaim quase morto. Ele tinha levado um tiro e despencado do céu. Eu não o entreguei – ela desviou os olhos da tela do computador e de Duantia para Dragon e disse de modo suplicante: – Eu não tive a intenção de machucar ninguém nem de fazer nada errado.
– Aquela abominação matou a minha companheira – Dragon afirmou. – Na mesma noite, ele foi abatido do céu e deveria ter morrido.
– Professor Lankford, por favor, permita que a Grande Sacerdotisa Vermelha continue a sua confissão – Duantia falou.
Eu vi Dragon cerrar o maxilar e seu lábio se levantar levemente em um riso sarcástico, mas as palavras de Stevie Rae atraíram minha atenção de volta para ela.
– Dragon está certo. Rephaim teria morrido naquela noite se eu não o tivesse salvado. Eu não contei a ninguém sobre ele. Bem, exceto para minha mãe, mas isso foi depois. Enfim, em vez de entregá-lo, eu cuidei dele. Eu salvei a sua vida. E então ele salvou a minha em retribuição. Duas vezes. Em uma delas, do touro branco das Trevas.
– Ele enfrentou as Trevas por você? – Duantia pareceu chocada.
– Sim.
– Realmente, ele rejeitou as Trevas por ela – eu resumi a história. – E na noite passada ele pediu perdão a Nyx e se comprometeu a seguir o seu caminho.
– E então a Deusa o transformou em um garoto! – Stevie Rae disse com tanto entusiasmo que até os lábios de Duantia se curvaram em um sorriso.
– Só do pôr do sol até o amanhecer – Neferet acrescentou, para tentar jogar um balde de água fria no momento. – Durante o dia ele está condenado a ser um corvo, uma besta, sem nenhuma memória da sua humanidade.
– Essa foi a consequência pelas coisas ruins que ele fez no passado – Stevie Rae explicou.
– E agora, no período que ele é um garoto, Rephaim gostaria de vir à escola como qualquer outro novato – eu completei.
– Notável – Duantia falou.
– Essa criatura não pertence a esta escola – Dragon afirmou.
– Essa criatura não está na escola – eu respondi. – O garoto está. O mesmo garoto que Nyx perdoou. O mesmo garoto que Stevie Rae escolheu como seu Consorte. O mesmo garoto que tentou servir a você sob juramento.
– Dragon, você o rejeitou? – Duantia perguntou.
– Sim – Dragon disse duramente.
– E foi por isso que eu expulsei a todos – Neferet acrescentou, usando um tom de voz calmo, racional e adulto. – Meu Mestre da Espada não consegue tolerar a presença dele e com toda a razão. Quando o grupo de Zoey decidiu trocar a sua lealdade a nós por Stevie Rae e Raven Mocker, eu não tive escolha a não ser fazer todos irem embora.
– Ele não é mais um Raven Mocker – Stevie Rae pareceu totalmente irritada.
– Mas ele ainda é o ser que matou a minha companheira – a voz de Dragon foi um açoite.
– Parem! – a ordem de Duantia foi disparada pelo computador. Mesmo a milhares de quilômetros de distância e através do Skype, o poder na voz dela era uma presença tangível no aposento. – Neferet, deixe-me ter certeza absoluta de que eu entendi com clareza os eventos da noite passada. Nossa Deusa, Nyx, apareceu na sua Morada da Noite e perdoou o Raven Mocker, Rephaim, e deu a ele a dádiva de ter a forma de um garoto durante a noite e, como penitência, amaldiçoou-o com a forma bestial de um corvo durante o dia?
– Sim – Neferet respondeu.
Duantia balançou sua cabeça devagar.
– Neferet, há uma parte de mim... os vestígios de minha remota juventude, imagine você... que entende a sua reação a esses eventos tão incomuns, apesar de você estar errada. Para colocar de modo bem simples, você não pode expulsar um grupo de novatos que não fez nada além de ficar ao lado dos seus amigos. Principalmente esse grupo de novatos – Duantia afirmou. – Esse grupo foi incrivelmente tocado pela Deusa e não pode ser descartado assim.
– Por falar nisso, há uma segunda coisa sobre a qual preciso falar com você – eu disse. – Por causa das diferenças entre os novatos vermelhos e os novatos normais, realmente é melhor que eles tenham sido expulsos – franzi a testa. – Espere, não me expressei direito.
– O que ela quer dizer é que nós não conseguimos descansar bem se estivermos debaixo da terra – Stevie Rae explicou por mim. – E não há muitos locais subterrâneos aqui.
– Então, durante a luz do dia eles preferem ficar nos túneis embaixo da estação de Tulsa e à noite, durante a semana, eles gostariam de ser trazidos de ônibus para cá para as aulas. Não há muitos novatos vermelhos no grupo de Stevie Rae, e além de mim e do meu grupo nenhum novato azul deixou a escola. E se eles ficarem perto de mim, de uma Grande Sacerdotisa Vermelha e de dois guerreiros Transformados, acho que todos estarão bem lá – coloquei um enorme sorriso no rosto e me voltei para Neferet. – E eu sei que Neferet é uma Grande Sacerdotisa tão incrível que vai ser capaz de lidar com todas as mudanças que estão acontecendo aqui.
Houve um longo silêncio no qual eu e Neferet nos fitamos intensamente. Finalmente, Duantia perguntou:
– Neferet, o que você diz?
Vislumbrei a presunção no rosto de Neferet antes de ela se virar para a câmera.
– Depois de ouvir a sua sabedoria, Duantia, eu realmente vejo que tomei uma decisão muito precipitada ontem à noite. Como alguém que foi, como eu, recentemente perdoada por Nyx, eu devo me esforçar muito para emular a benevolência da Deusa. Claramente, ela tem planos especiais para Zoey e seu grupo. Talvez um lugar de descanso separado de nós seja o melhor. É claro que eles devem continuar obedecendo às regras desta Morada da Noite e têm que me reconhecer como a sua Grande Sacerdotisa por direito.
– Não necessariamente – eu disse, ignorando o olhar cortante de Neferet e me concentrando em Duantia. – O tempo que eu passei em Skye com a rainha Sgiach realmente significou muito para mim. Nos tornamos próximas. Sgiach inclusive disse que gostaria de ser minha mentora, que ela iria começar a abrir Skye para o mundo moderno. Eu não posso ficar em Skye com ela, mas eu ainda gostaria de seguir seus passos – inspirei profundamente e concluí rápido: – Então, eu quero declarar oficialmente a estação de Tulsa fora da jurisdição da Morada da Noite, como Sgiach declarou Skye – olhei diretamente para Neferet. – E assim como Sgiach, não vou me intrometer nos seus negócios se você não se intrometer nos meus.
– Você se atreve a se autodeclarar uma rainha? – Neferet soou atordoada.
– Bem, eu não me declarei. Mas Sgiach me declarou, assim como seu Guardião. Além disso, Stark foi aceito como Guardião. No Mundo do Além, ele tinha a espada e tudo mais. Como ele é meu guerreiro, meio que por tabela isso significa que eu fui declarada uma rainha. Uma rainha iniciante, no entanto – acrescentei.
– Isso não parece certo para mim – Neferet disse.
– Concordo com Neferet – Dragon afirmou.
Eu o encarei, tentando telegrafar: Sério? Você está mesmo dizendo que concorda com Neferet, depois de tudo o que você sabe sobre ela? Mas Dragon olhou para a frente como se não me enxergasse.
– Eu preciso consultar o Conselho Supremo sobre esse assunto, Zoey Redbird. Nós não apoiamos a ideia de rainhas vampiras. Vampiros são Sacerdotisas, guerreiros e professores, e eles seguem os diversos caminhos de vida que têm origem nesses chamados. Há muito tempo essa é a nossa tradição.
– Mas Sgiach é uma rainha – eu insisti. – Há séculos. Isso é tempo demais para também poder ser considerado uma tradição.
– Não uma tradição vampira! – a voz levantada de Duantia fez os pelinhos do meu braço se eriçarem. A líder do Conselho Supremo respirou fundo, claramente para se estabilizar, antes de continuar em um tom mais calmo: – Sgiach mal é considerada uma vampira. Ela mantém a sua existência separada de nós há muitos séculos. Nós temos uma trégua incômoda com ela à revelia. Não podemos entrar na sua ilha. Ela não sai de lá – Duantia fez uma pausa e levantou uma sobrancelha. – Isso mudou, Zoey? Sgiach está planejando sair de Skye?
– Não – respondi. – Mas ela me disse que estava pensando em aceitar estudantes novamente.
– Permitir que gente de fora entre e saia de Skye seria extraordinário – o modo com que Duantia disse isso me fez pensar que ela não considerava “extraordinário” sinônimo de “uma coisa boa”.
– Eu acredito que se abrir para gente de fora é algo que todos nós devemos fazer nestes tempos de mudança – Neferet falou.
Todo mundo a encarou. Até Duantia ficou sem palavras.
– Como eu tenho tanta certeza disso, decidi abrir as portas da minha Morada da Noite, contratando humanos locais para alguns dos empregos mais servis. Acho que isso é sábio e responsável, principalmente nestes tempos difíceis na economia. Espero que Sgiach siga esse exemplo.
– É uma excelente ideia, Neferet – Duantia afirmou. – Como você sabe, os humanos têm sido uma presença constante aqui na Ilha de São Clemente nos últimos séculos – a Grande Sacerdotisa Vampira sorriu. – Desde que nós nos tornamos civilizados e modernos.
– Assim como a Morada da Noite de Tulsa gostaria de se tornar também – Neferet disse.
– Bem, então está decidido. A Morada da Noite de Tulsa vai empregar humanos locais. Rephaim, os novatos vermelhos e o grupo de Zoey vão frequentar a escola da Morada da Noite e descansar nos túneis embaixo da estação durante o dia. Vou anotar um lembrete para falar com o Conselho Municipal de Tulsa sobre a compra da estação abandonada.
– E sobre o status de Zoey como rainha e a submissão da estação de Tulsa a mim e a esta Morada da Noite? – Neferet perguntou.
Segurei o fôlego.
– Como eu já decretei, vou consultar o plenário do Conselho Supremo em uma questão tão séria como essa, uma novata jovem e dotada ser considerada uma rainha, ainda que seja somente uma rainha em treinamento. Até que uma decisão seja tomada, Zoey Redbird e a estação de Tulsa serão um prolongamento da Morada da Noite de Tulsa.
– E portanto eu continuo a sua Grande Sacerdotisa – Neferet concluiu.
Stevie Rae limpou a garganta.
– Ahn, sem querer ser mesquinha ou qualquer coisa do tipo, mas já que Z. não vai ser considerada rainha agora e nós temos que ter uma Grande Sacerdotisa, eu sou a próxima na fila. Meus novatos vermelhos precisam de alguém como eles para entendê-los. E esta sou eu. Portanto, pode nos chamar de uma filial da Morada da Noite se quiser, mas, se tem que existir uma Grande Sacerdotisa acima dos novatos vermelhos, então serei eu.
– Seus argumentos são válidos, jovem Sacerdotisa – Duantia disse sem hesitar, o que me fez pensar se ela só estava esperando a contestação de Stevie Rae. – Stevie Rae, até que a questão da posição de Zoey Redbird seja resolvida, você vai atuar como a Grande Sacerdotisa da estação, que será um prolongamento da Morada da Noite de Tulsa.
– Obrigada, senhora – Stevie Rae falou. – E eu não quis soar desrespeitosa.
As feições penetrantes de Duantia se suavizaram quando ela sorriu.
– Você não soou desrespeitosa. Você soou como uma Grande Sacerdotisa. Agora, se não há mais nada a ser tratado, eu vou desligar para colocar as outras integrantes do Conselho Supremo a par desses acontecimentos e decisões.
– Eu já terminei – afirmei.
– Sim, eu também – Stevie Rae disse.
– Acho que tudo o que nós discutimos já é o bastante para um dia – Neferet falou.
– Excelente. Então, me despeço e desejo que todos vocês sejam abençoados.
O computador fez aquele barulho estranho de final de chamada do Skype e a tela ficou branca.
– Bem, foi bastante interessante – Lenobia afirmou.
Percebi então que ela não havia dito nada durante toda a chamada no Skype. Isso me fez pensar nela. Quero dizer, antes ela havia ficado claramente ao meu lado contra Neferet, mas Dragon também já esteve ao meu lado.
– Sim, interessante é uma boa palavra para descrever o que aconteceu – Neferet concordou.
– Parabéns, Grande Sacerdotisa – eu me voltei para Stevie Rae.
– Sim, parabéns – Erik se manifestou.
– Você já era nossa Grande Sacerdotisa, mas é legal que oficializaram isso – Kramisha disse.
– Eu não quero aquela criatura na minha classe – Dragon falou de modo abrupto, cortando totalmente os cumprimentos.
Comecei a abrir minha boca para defender o direito de Rephaim de ir à aula de esgrima ou qualquer outra, mesmo que ainda fosse muito estranho defender Rephaim, mas a resposta de Stevie Rae me surpreendeu e me silenciou.
– Acho que você está certo. Sei que isso é difícil para você, Dragon. Que tal se eu pedir a Darius e Stark para darem aulas extras de armas brancas e coisas assim? Rephaim pode frequentar essas aulas.
– Essa é mesmo uma ótima ideia – Lenobia concordou. – Como todo novato precisa ter alguma aula de defesa pessoal, e com o inesperado aumento no número de alunos por causa dos novatos vermelhos, suas aulas vão ficar lotadas.
– É, a gente devia estar morto. O fato de a gente ter desmorrido realmente vai ferrar com o tamanho das classes – Kramisha comentou.
Neferet suspirou pesadamente e então disse:
– Todo novato precisa ter alguma aula de defesa pessoal por causa do ataque dos Raven Mockers. Eu sou a única que vê a terrível ironia no que vocês estão dizendo?
– Eu vejo isso... e mais – Dragon respondeu.
– E eu vejo que você continua jogando merda no ventilador – Stevie Rae afirmou. Ela se virou e ficou encarando Neferet bem de perto. Ela não piscou. Ela não recuou. Minha melhor amiga parecia forte, valente e muito mais velha do que era.
Stevie Rae parecia uma Grande Sacerdotisa.
Uma Grande Sacerdotisa que estava fazendo inimigos perigosos.
– Duantia resolveu que Rephaim e todos nós podemos ficar – eu falei enquanto me levantava, ficando entre Stevie Rae e Neferet. – Acho que o que nós devemos fazer é descobrir um jeito de fazer isso sem causar um monte de estresse e problemas – olhei para Dragon, tentando encontrar dentro dos seus olhos raivosos aquele Mestre da Espada sábio e gentil que eu conhecera. – Todos nós já tivemos estresse e problemas suficientes por bastante tempo, vocês não acham?
– Eu estarei no ginásio com os novatos normais – Dragon disse e saiu apressadamente do recinto.
– Stevie Rae, você pode dizer a Stark e Darius que eles podem dar aula nos estábulos – Lenobia ofereceu.
– Fico feliz de ouvir que você está com essa disposição conciliadora, professora Lenobia – Neferet começou. – Os primeiros humanos que eu vou contratar serão cavalariços para ajudá-la com todo o... – ela fez uma pausa e seu olhar intenso se voltou para Stevie Rae, Kramisha e eu – esgoto do estábulo.
– Esterco – a resposta de Lenobia foi imediata. – Não há esgoto em meus estábulos. Há esterco. E não preciso de nenhuma ajuda com isso.
– Ah, mas você vai aceitar a ajuda. Pois essa é a coisa certa a fazer, e o Conselho Supremo já endossou isso, não vai?
– Vou fazer o que eu acredito ser o certo.
– Então você vai fazer o que eu espero – Neferet deu as costas para Lenobia, dispensando-a. – Zoey e Stevie Rae, os novatos vermelhos devem retomar o horário de aulas que eles tinham antes de morrer – ela disse de modo prático. – E vocês duas devem se juntar a eles. Quer vocês sejam anormalmente Transformados – ele gesticulou os dedos para Stevie Rae – ou apenas novatos anormais – ela voltou sua atenção para Kramisha e para mim –, isso importa pouco. Vocês precisam ir para as aulas. Vocês são muito jovens para serem realmente interessantes se não tiverem uma formação melhor. A segunda aula deve estar em andamento agora. Vão para suas classes. Esta Reunião do Conselho está encerrada.
Sem falar nenhum “abençoados sejam”, ela saiu rapidamente do aposento.
– Ela é uma louca – Kramisha disse.
– Louca vezes dez – Stevie Rae acrescentou.
– Mas Neferet já é uma figura conhecida. Quando lidamos com ela, nós sabemos que estamos lindando com uma Grande Sacerdotisa que já errou e que é totalmente louca – Lenobia falou devagar. – É Dragon que me preocupa mais.
– Então você está conosco? – perguntei para a Mestra dos Cavalos.
Os olhos cinza de Lenobia encontraram os meus.
– Uma vez eu disse a você que já lutei contra o mal. Eu carrego as cicatrizes desse encontro, tanto fisica quanto emocionalmente, e nunca vou permitir que o mal e as Trevas destruam a minha vida de novo. Eu estou com você – ela acenou com a cabeça para Stevie Rae e Kramisha –, com você e com você, pois vocês estão do lado da Deusa – então ela se voltou para Erik, que estava de pé, mas não havia feito menção de sair da sala. – E onde está você nisso tudo?
– Eu sou o Rastreador da Morada da Noite de Tulsa.
– Nós sabemos, mas em que lado isso coloca você? – Stevie Rae perguntou.
– Eu estou do lado que Marca garotos e muda os seus destinos – Erik se esquivou.
– Erik, algum dia você vai ter que tomar uma posição – eu disse a ele.
– Ei, o fato de eu não estar combatendo Neferet abertamente não significa que não tomei uma posição.
– Não, só significa que é uma posição fraca – Stevie Rae rebateu.
– Que seja! Você não sabe de tudo, Stevie Rae – Erik saiu do recinto batendo pernas.
Kramisha bufou.
– É um desperdício de garoto bonito.
Isso me deixou triste, mas não pude deixar de concordar com ela.
– Vou começar a separar uma área com divisórias para as aulas dos guerreiros – Lenobia disse. – Enquanto isso, vocês podem encontrar os guerreiros e avisá-los que eles vão ser professores, ou pelo menos professores temporários.
– Não vai ser difícil encontrá-los – eu afirmei. – Stark e Darius provavelmente estão no ginásio, treinando com suas espadas.
– Eu vou com você – Stevie Rae falou.
– Acho que eu vou para a segunda aula – Kramisha disse com um pesado suspiro.
Quando Stevie Rae e eu saímos da sala, ela puxou meu braço e me fez ir mais devagar até que ficássemos sozinhas.
– Ei, você sabe que só porque o Conselho Supremo e os outros estão me chamando de Grande Sacerdotisa da estação, isso não significa que eu quero ser sua chefe nem nada parecido.
Eu pisquei surpresa para ela.
– Sim, é claro que sei disso. E de qualquer forma você é uma Grande Sacerdotisa incrível, o que significa que você não vai ser uma chefe vaca e “pé no saco”.
Ela não riu como eu imaginei. Em vez disso, ela começou a puxar um dos seus cachos, um sinal definitivo de que ela estava estressada.
– Ok, é legal dizer isso e tal, mas eu só sou uma Grande Sacerdotisa há tipo uns dois segundos. Eu preciso ter certeza de que você vai me ajudar.
Eu enganchei meu braço no dela e a cutuquei com meu ombro.
– Você sempre pode ter certeza de que pode contar comigo. Você sabe disso.
– Mesmo depois de Rephaim?
– Mesmo depois de Loren, Kalona e Stark? – eu contra-ataquei.
Ela abriu um sorriso.
– Você sempre está um passo na minha frente, não é?
– Infelizmente, acho que estou três passos na sua frente – eu respondi, o que nos fez dar risada, mas também me fez suspirar.
Saímos da parte da Morada da Noite que englobava o centro de mídia em forma de torre e dobramos à esquerda na calçada que serpenteava em volta do ginásio e dos estábulos. Estava uma noite fria, mas muito clara. O céu estava cheio de estrelas, e era muito fácil vê-las através dos galhos invernais dos velhos carvalhos que salpicavam os jardins do campus.
– Então, ele é uma graça, hein?
Eu me fingi de boba.
– Quem, Stark?
Ela me cutucou com o ombro.
– Estou falando sobre Rephaim.
– Ah, ele. Sim, acho que ele é ok – eu hesitei e quase não perguntei, mas então decidi ir em frente. Quero dizer, nós somos melhores amigas. E melhores amigas podem perguntar qualquer coisa uma para a outra. – Então, você viu ele se transformar em um pássaro?
Pude sentir a tensão que entrou no corpo dela, mas ela soou quase normal quando respondeu:
– Sim, eu vi.
– Como foi?
– Horrível.
– E ele, ficou por perto? Ou ele saiu voando e foi embora? – não consegui evitar. Foi uma curiosidade totalmente mórbida, dessas de quem fica observando carros acidentados.
– Ele saiu voando na hora. Mas assim que o sol se pôs ele voltou. Ele disse que sempre vai achar o caminho de volta para mim.
– Então ele vai – eu disse, odiando ouvir a preocupação na voz dela.
– Eu o amo, Z. Ele é realmente bom. Prometo.
Eu estava abrindo a boca para dizer que eu acreditava nela quando um grito me interrompeu. Por um segundo não entendi o que a voz estava dizendo, só reagi ao perigo contido nela. Mas Stevie Rae entendeu.
– Ah, não! É Dragon! Ele está convocando os guerreiros!
Ela soltou meu braço e começou a correr na direção da voz de Dragon. Com um péssimo pressentimento, disparei atrás dela.
1 Magic Mouse é o mouse da Apple, que vem com o iMac. (NT.)

5

Rephaim
– Por que vocês estão aqui?! – Rephaim berrou para os três Raven Mockers empoleirados acima dele. Ele olhou rapidamente em volta. Se ele tivesse tido tempo, teria suspirado aliviado por aquela parte do campus continuar vazia; todos os novatos haviam ido para a segunda aula. – Vocês têm que ir embora antes que alguém veja vocês – ele disse com uma voz bem mais baixa.
– Rephaim? Como?
Apesar de haver três Raven Mockers na árvore, apenas um deles estava falando. É claro que Rephaim reconheceu na mesma hora que aquele era Nisroc, um dos seus irmãos que mais se parecia com os humanos.
– Eu escolhi o caminho de Nyx. A Deusa me perdoou e me aceitou e, ao fazer isso, ela mudou a minha forma para a de um humano – Rephaim não sabia por que ele não havia acrescentado “durante a noite”. O que ele sabia era que qualquer coisa que contasse a Nisroc seria reportada diretamente para o seu pai.
– Perdão? Por quê?
Rephaim encarou seu irmão e ficou quase arrasado de tanta pena. Ele não percebe que há outro caminho além daquele ao qual nosso pai o leva, e ele não entende que o que ele faz em nome de Kalona é errado.
– Nisroc, quando nós... – Rephaim fez uma pausa. Não, ele pensou, eu só posso falar por mim. – Quando eu machuquei os outros, quando eu matei, violentei e peguei tudo o que eu desejava só porque eu podia... isso foi errado.
Nisroc balançou sua cabeça de um lado para o outro. Seus outros dois irmãos, da horda bestial, e sem nome, que seguiam as ordens de seu pai, sibilaram baixo, perturbados mas não desenvolvidos o suficiente para compreender o porquê.
Finalmente, seu irmão disse:
– Ordensss do Pai. Não errado.
Rephaim balançou a cabeça.
– Até o Pai pode estar errado – ele inspirou profundamente e acrescentou: – E até você pode escolher um caminho diferente.
As duas criaturas sem nome pararam de sibilar e olharam para ele em choque. Nisroc estreitou seus olhos humanos escarlate.
– Ela fe issso. A fêmea. Como o Pai dissse!
– Ninguém fez nada. Eu decidi sozinho – então, com um princípio de medo, uma súbita compreensão o atingiu. – Nisroc, a Vermelha, Stevie Rae, ela não fez nada para mim. Eu escolhi ficar com ela e sua Deusa. Você não pode nunca machucar a Vermelha. Ela pertence a mim. Você entendeu?
– Sssua. Grande Sssacerdotisa matar não podemosss – Nisroc repetiu automaticamente, mas Rephaim viu o brilho maldoso nos seus olhos em brasa.
– Vocês têm que ir embora. Agora – Rephaim disse. – Vocês não podem deixar ninguém ver vocês e não podem voltar.
– Primeiro, mensssagem do Pai – Nisroc desceu dos grossos galhos do carvalho, aterrissando na frente de Rephaim, seguido pelos dois outros Raven Mockers, que se posicionaram nos seus flancos. – Do lado do Pai você vai essstar. Masss aqui. Obssservando. Esssperando. Essspionando.
Rephaim balançou a cabeça novamente.
– Não. Eu não vou espionar para o Pai.
– Sssim! Como o Pai quer! – Nisroc abriu suas asas, uma ação imitada pelos dois outros Raven Mockers. Extremamente agitado, ele sacudiu a cabeça e fechou suas mãos em punho.
Rephaim não se sentiu ameaçado. Sua mente não registrou o perigo físico que ele corria. Ele estava acostumado demais aos seus irmãos, acostumado demais a ser um deles. Não, era mais do que isso. Rephaim estava acostumado demais a ser o líder deles, de modo que não conseguia temê-los.
– Não – ele repetiu. – Para mim, não é mais como o Pai quer. Eu mudei. Por dentro e por fora. Voltem para ele. Digam isso a ele – Rephaim hesitou e então concluiu: – Diga a ele que minha escolha continua a mesma.
– Odiar você ele vai – Nisroc afirmou.
– Sei disso – Rephaim sentiu uma dor profunda dentro dele.
– Odiar você eu vou – Nisroc falou.
Rephaim franziu a testa.
– Você não precisa me odiar.
– Eu preciso.
Devagar, Rephaim estendeu o braço, oferecendo o seu antebraço para Nisroc na saudação respeitosa e tradicional entre guerreiros, que também era um gesto de despedida.
– Você não precisa. Nós podemos nos despedir como amigos, como irmãos.
Nisroc fez uma pausa, inclinando sua cabeça para um lado e depois para o outro. Seus olhos estreitos relaxaram. Sua postura agressiva se alterou. Ele começou a se mover e a falar, mas Rephaim nunca saberia a verdadeira intenção de seu irmão, pois naquele momento o grito de Dragon Lankford dizendo “Filhos de Erebus! Comigo!” abalou a noite, e então o Mestre da Espada investiu na direção deles.
Rephaim experimentou um momento de pânico paralisante. Ele ficou congelado no meio do caos, enquanto seus irmãos, sibilando e rosnando, encontravam o ataque de Dragon. Ele ficou olhando e sabendo, de modo terrível e fatalista, que muito em breve os guerreiros começariam a brotar do ginásio, com suas espadas desembainhadas e seus arcos armados. Eles iriam se juntar a Dragon e massacrar completamente seus três irmãos.
– Dragon, não! – ele gritou. – Eles não estavam atacando!
Do meio da batalha, a voz de Dragon Lankford chegou até ele.
– Ou você está a favor ou contra nós! Não há meio-termo.
– Há meio-termo – Rephaim gritou de volta, abrindo os braços como se estivesse se rendendo. – É onde eu fico – ele deu um passo em direção a Dragon. – Eles não estavam atacando! – ele repetiu. – Nisroc, irmãos, parem de lutar!
Rephaim achou realmente que Nisroc havia hesitado. Ele estava quase certo de que seu irmão o estava ouvindo, entendendo e querendo se retirar. Então a voz de Neferet cortou a noite.
– Aurox! Proteja! Destrua!
A criatura de Neferet explodiu dentro da cena.
Ele veio do muro lateral do jardim, encarando Rephaim. No começo, ele aparentava ser humano. Ele tinha a forma de um jovem sem nenhuma Marca de novato ou vampiro. Mas seus movimentos eram rápidos demais para serem humanos. Em um borrão, ele atacou. Vindo por trás, ele agarrou o Raven Mocker mais próximo pelas suas asas abertas e, com um único e horrível movimento, ele as arrancou do seu corpo.
Em seus séculos de existência, Rephaim havia visto coisas terríveis – ele tinha cometido atos vis e tenebrosos. Mas, de algum modo, assistir a tudo aquilo deste novo ponto de vista humano fazia a violência que ele estava testemunhando ser mais medonha. Seu grito ecoou o de seu irmão quando o corpo do Raven Mocker caiu no chão, estremecendo de agonia e jorrando sangue.
Foi então que Aurox começou a se transformar. Apesar de Rephaim ver aquilo acontecendo, ele mal podia compreender.
O corpo dele ficou maior e mais largo.
Cresceram chifres nele.
Seus punhos se endureceram.
Sua pele se ondulou e se levantou, pulsando como se algo por baixo dela estivesse tentando sair.
Ele se inclinou e, quase graciosamente, torceu e arrancou a cabeça de seu irmão.
Até Dragon Lankford parou o seu ataque para observar.
Forçando a sua mente para pensar no meio do choque e do horror, Rephaim gritou para Nisroc:
– Vá embora! Saia voando!
Com um grito de desespero, Nisroc, seguido pelo irmão, levantou do chão ensopado de sangue.
A criatura transformada berrou e deu um salto, tentando, inutilmente, derrubá-los do céu. Quando ele caiu com um estrondo no chão, com seus enormes cascos de diabo freando no gramado do inverno, ele voltou seus olhos cor da lua em chamas para Rephaim.
Desejando ter asas ou uma arma, Rephaim se encolheu defensivamente e se preparou para o ataque violento da criatura.
– Rephaim! Cuidado!
Ele escutou a voz dela e o seu medo ficou mais quente e espesso quando Stevie Rae, seguida de perto por Zoey, correu na direção dele.
A criatura abaixou a cabeça e arremeteu.

Zoey

Eu estava bem atrás de Stevie Rae quando corremos para a briga. Afe, tudo o que eu posso dizer é que aquilo era repugnante, horrível e totalmente confuso.
Eu mal podia dizer o que estava acontecendo. Dois Raven Mockers estavam grasnando e voando acima de nós. Eu vi o corpo de outro Raven Mocker sem cabeça (eca!) se retorcendo e se esvaindo em um sangue com um cheiro estranho aos pés de Dragon. Rephaim estava em pé um pouco afastado deles, como se ele tivesse assistido mas não participado da luta. De algum modo, Neferet estava lá também, parecendo super louca e sorrindo de um jeito muito esquisito.
No meio da coisa toda estava uma criatura que era meio humana, mas não totalmente. No instante em que eu o vi, comecei a sentir um calor no meio do meu peito. Coloquei a mão ali e senti o círculo de mármore duro e quente que pendia de uma corrente de prata no meu pescoço.
– Minha pedra da vidência – murmurei para mim mesma. – Por que está quente de novo? Por que agora?
Como uma resposta, meu olhar foi atraído para a criatura bizarra. Ele tinha chifre e cascos, mas seu rosto era o de um garoto. Seus olhos estavam incandescentes. Ele tinha tentado agarrar um Raven Mocker no céu, mas depois de falhar ele voltou sua atenção para Rephaim, abaixou a cabeça e investiu contra ele.
– Rephaim! Cuidado! – Stevie Rae gritou e disparou na direção dele. Ela estendeu rapidamente seus braços e eu pude ouvi-la invocando a terra.
– Espírito! – eu chamei, tentando acompanhá-la. – Fortaleça Stevie Rae! – senti o elemento responder quando ele girou em um redemoinho para dentro de Stevie Rae, junto com o próprio elemento dela, a terra. Como se estivesse jogando uma grande bola para cima, ela levantou os braços, e uma barreira verde fosforescente se ergueu da terra como uma cachoeira ao contrário, protegendo Rephaim do ataque da criatura.
A criatura se chocou violentamente contra a barreira verde e caiu para trás de costas. Stevie Rae, forte, ereta e orgulhosa, parou perto de Rephaim. Ela pegou a mão dele. Então, minha melhor amiga levantou sua outra mão e, quando a criatura tentou se levantar, ela fez um movimento de palmada e disse:
– Não! Fique deitado – uma onda verde brilhante o abateu, prendendo-o ao chão.
– Chega! – Neferet disse, marchando em direção à criatura. – Aurox não é o inimigo aqui. Liberte-o imediatamente.
– Não se ele for atacar Rephaim – Stevie Rae respondeu. Ela se virou para Dragon e perguntou: – Rephaim estava aliado aos outros Raven Mockers?
Sem nem olhar para Rephaim, Dragon respondeu:
– Ele estava falando com eles, mas não atacou com eles.
– Eles não atacaram! – Rephaim afirmou. – Eles estavam aqui para me ver... só isso. Você os atacou!
Dragon finalmente olhou para Rephaim.
– Raven Mockers são nossos inimigos.
– Eles são meus irmãos – a voz de Rephaim soou incrivelmente triste.
– Você vai ter que decidir de que lado está – Dragon disse solenemente.
– Já fiz isso.
– E parece que a Deusa acredita nisso – Neferet falou. – Aurox – ela se dirigiu à criatura que ainda estava deitada de costas, presa pelo poder da terra –, a batalha terminou. Não é mais necessário proteger ou atacar – ela virou seu intenso olhar de esmeralda para Stevie Rae. – Agora, liberte-o.
– Obrigada, terra – Stevie Rae disse. – Você pode ir agora – com um aceno de sua mão, o brilho verde evaporou, permitindo que a criatura se levantasse.
Mas não era uma criatura o que ficou em pé. Um garoto estava lá – um menino bonito, loiro, com olhos parecidos com pedras da lua e o rosto de um anjo.
– Quem é ele? E que diabo todo aquele sangue está fazendo ali? – a voz de Stark subitamente ao meu lado me fez dar um pulo.
– Ah, que merda. É um Raven Mocker morto – Aphrodite falou quando ela, Darius e o que pareceu ser a maioria da escola se amontoaram em volta de nós.
– E é um garoto humano muito bonito – Kramisha disse, dando uma olhada nele.
– Ele não é humano – eu afirmei, segurando minha pedra da vidência.
– O que ele é? – Stark perguntou.
– Magia antiga – eu respondi quando as peças do quebra-cabeças na minha mente se juntaram.
– Desta vez você está certa, Zoey – Neferet se aproximou do garoto e anunciou com um floreio: – Morada da Noite, este é Aurox, o presente que Nyx me deu para provar o seu perdão!
Aurox deu um passo à frente. Seus olhos de uma cor estranha encontraram os meus. De frente para a multidão, mas olhando apenas para mim, ele cruzou seu punho sobre o coração e se curvou.
– De jeito nenhum ele é um presente de Nyx – Stevie Rae murmurou.
Pelo menos uma vez na vida concordando com Stevie Rae, Aphrodite bufou.
Tudo o que eu podia fazer era observar. Tudo o que eu sentia era o calor da pedra da vidência.
– Zoey, o que foi? – Stark perguntou em voz baixa.
Não respondi. Em vez disso, eu me forcei a desviar meu olhar de Aurox e encarei Neferet.
– De onde ele vem realmente? – minha voz saiu dura e forte, mas parecia que meu estômago estava tentando virar de cabeça para baixo.
Em algum lugar, no fundo da minha mente, eu conseguia ouvir o zunzum e os sussurros dos garotos a minha volta, e eu sabia que forçar um confronto com Neferet aqui e agora não seria inteligente da minha parte. Mas não consegui evitar. Neferet estava mentindo sobre essa coisa chamada Aurox, e por alguma razão isso era tudo o que importava para mim.
– Eu já disse de onde ele veio. E, Zoey, eu devo dizer que é exatamente por isso que você precisa voltar à escola, frequentar as aulas e se concentrar novamente nos estudos. Eu acredito que você perdeu a habilidade de escutar.
– Você disse que ele é magia antiga – eu ignorei aquela lorota meio agressiva dela. – A única magia antiga que eu conheço é a da Ilha de Skye – e essa, eu disse a mim mesma, foi a que eu vi na noite passada, quando olhei para Stark através da pedra; a magia antiga dos guerreiros Guardiões que ainda estava grudada nele desde a Ilha de Skye. Com a mente zunindo, mas ainda confrontando Neferet, continuei: – Você está me dizendo que ele veio da Ilha de Skye?
– Criança tola, a magia antiga não é restrita a uma ilha. Sabe, você deveria pensar duas vezes antes de acreditar em tudo o que ouve, principalmente quando isso vem de uma vampira que chama a si mesma de rainha e que não sai de uma ilha há séculos.
– E você ainda não respondeu minha pergunta. De onde ele vem?!
– Que magia pode ser mais antiga do que aquela que vem da Deusa em pessoa? Aurox é o meu presente de Nyx! – Neferet olhou intencionalmente para a multidão e riu do meu questionamento como se eu não fosse nada além de uma criança irritante e eles estivessem todos rindo da mesma piada adulta junto com ela.
– No que ele estava se transformando? – não consegui me conter, apesar de saber que eu estava parecendo totalmente rabugenta e teimosa, como uma daquelas garotas que quer ter sempre a última palavra, que por sinal é sempre negativa.
O sorriso de Neferet foi magnânimo.
– Aurox estava se transformando no Guardião da Morada da Noite. Você não pensou que era a única digna de ter um Guardião, pensou? – ela abriu bem os braços. – Todos nós somos! Venham, cumprimentem-no e então vamos voltar para as aulas e para aquilo que é a base da Morada da Noite, o aprendizado.
Eu queria gritar que ele não era um Guardião! Queria berrar que eu estava cansada de Neferet ficar distorcendo as minhas palavras. Eu não conseguia parar de olhar para Aurox quando os novatos (na maioria garotas) começaram a se aproximar dele, tomando cuidado para desviar do sangue nojento e dos restos do Raven Mocker.
Na verdade, eu não sabia por que, mas eu só queria gritar.
– Você não vai ganhar essa – Aphrodite disse. – Ela tem a multidão e o garoto bonito ao lado dela.
– Ele não é isso – ainda segurando firme na minha pedra da vidência em brasa, eu me afastei daquela cena ridícula e comecei a andar de volta para a escola. Pude sentir Stark me observando, mas continuei olhando para a frente.
– Z., qual é o seu problema? Então ele não é só um garoto bonito. Isso é tão terrível? – Aphrodite perguntou.
Eu parei e me virei para encará-los. Estavam todos lá, seguindo bem atrás de mim em fila, como patinhos atrás da mãe: Stark, Aphrodite, Darius, as gêmeas, Damien, Stevie Rae e até Rephaim. Foi para Rephaim que eu dirigi minha pergunta:
– Você também viu, não viu?
Ele assentiu de modo sóbrio.
– Se você se refere à transformação dele, sim.
– Viu o quê? – Stark perguntou, soando exasperado.
– Ele estava se transformando em um touro – Stevie Rae respondeu. – Eu também vi.
– Aquele garoto branco bonito estava virando um touro? Isso não tá certo – Kramisha falou, dando uma olhada para a multidão que havíamos deixado para trás.
– Garoto branco... touro branco – Stevie Rae concluiu. E então, falando como eu, ela acrescentou: – Ai, que inferno.

6

Erik
Ele estava indo devagar para a sala de teatro, desejando fortemente que em vez de estar a caminho de uma aula ele estivesse prestes a fazer uma grande entrada em um set de filmagem em L.A.1 , Nova Zelândia, Canadá... Droga! Em qualquer lugar, menos em Tulsa, Oklahoma! Ele também estava pensando em como havia deixado de ser o novato mais gostoso da escola e o próximo Brad Pitt, segundo o mais importante agente de elenco vampiro de L.A., e virado professor de teatro e Rastreador de vampiros.
– Zoey – Erik murmurou para si mesmo. – Minha vida começou a descer ladeira abaixo no dia em que eu a conheci.
Então ele se sentiu mal por dizer isso, mesmo que não tivesse ninguém por perto para ouvir. Ele estava realmente bem com Z. Eles eram até meio amigos. Com o que ele não lidava bem era com toda a loucura que rolava em volta dela. Ela é um imã para bizarrices, ele pensou. Não era de se estranhar que eles tivessem terminado. Ele não era bizarro.
Ele esfregou a palma da sua mão direita.
Vários novatos passaram correndo por ele, então ele estendeu o braço e puxou um deles pelo capuz da sua jaqueta xadrez da escola.
– Ei, por que a pressa, e por que você não está na aula? – Erik fez um olhar zangado para o garoto, mais porque ele estava irritado por soar como um daqueles professores, do tipo “volte já para a sala, jovenzinho!”, do que por realmente se importar aonde o novato estava indo.
Irritando Erik ainda mais, o novato se encolheu de medo e pareceu que ia molhar as calças.
– Alguma coisa está acontecendo. Uma luta ou algo assim.
– Vá em frente – Erik o soltou com um pequeno empurrão e o garoto saiu correndo.
Erik nem pensou em segui-lo. Ele sabia o que ia encontrar: Zoey no meio de uma confusão. Ela tinha um monte de gente para ajudá-la a sair da confusão. Ele não tinha a menor responsabilidade sobre ela, assim como acabar com o maldito mundo das Trevas também não era sua responsabilidade.
No momento em que ele colocou a mão na maçaneta da porta da classe sua palma direita começou a arder. Erik balançou a mão. Então ele parou e a observou.
A Marca em forma de labirinto em espiral estava levantada, como uma marca de ferro quente em gado que acabou de ser feita.
Então a compulsão o atingiu. Com força.
Erik arfou, virou-se e começou a correr na direção do estacionamento e do seu Mustang vermelho. Enquanto aquele ímpeto aumentava para níveis cada vez mais febris, ele não conseguia ficar quieto e seus pensamentos jorravam em pedaços de sentenças fragmentadas:
– Broken Arrow. Avenida South Jupiter, 2801. Andando. Em trinta e cinco minutos. Você tem que chegar lá. Você tem que estar lá. Shaylin Ruede. Shaylin Ruede. Shaylin Ruede. Vai, vai, vai, vai, vai...
Erik sabia o que estava acontecendo. Ele havia se preparado. O último Rastreadores da Morada da Noite, que chamava a si mesmo de Caronte2 , havia contado a ele exatamente o que esperar. Quando chegasse a hora de ele Marcar um novato, a palma da sua mão iria arder; ele iria saber um lugar, uma hora e um nome; e ele sentiria uma compulsão incontrolável de chegar lá.
Erik achou que estaria preparado, mas ele não tinha compreendido a profundidade da ânsia que se abateria sobre ele – o poder singular do foco que martelava dentro dele ao mesmo tempo que a batida pulsante, quente e urgente na palma de sua mão.
Shaylin Ruede seria a primeira novata que ele Marcaria na vida.
Levou trinta minutos para que ele fosse do centro de Tulsa até o pequeno condomínio espremido dentro do tranquilo distrito de Broken Arrow. Erik parou em uma vaga de visitantes do estacionamento. Suas mãos estavam tremendo quando ele saiu do Mustang. A compulsão o havia levado para a calçada que se estendia na frente do complexo, paralela à rua. O condomínio tinha luminárias com lâmpadas brancas suaves, que pareciam aquários gigantes e opacos sobre postes de ferro forjado, de modo que poças de luz cor de creme estavam espalhadas pela calçada. Cedros maduros e carvalhos se alinhavam no passeio de pedestres, no lado da rua. Erik olhou para o relógio. Eram 3h45. Um horário e um lugar estranhos para Marcar uma garota. Mas Caronte havia dito a ele que a compulsão do Rastreadores nunca estaria errada – que tudo o que ele tinha que fazer era segui-la, deixando seus instintos o guiarem, e então tudo daria certo. Mesmo assim, não havia absolutamente ninguém por perto e Erik estava começando a entrar em pânico quando ele ouviu um leve barulho, tap-tap-tap-tap. À frente dele, uma garota dobrou a esquina dentro do condomínio e apareceu no seu campo de visão. Ela se moveu devagar pela calçada, vindo na direção dele. A cada vez que ela passava por uma bolha de luz, Erik a examinava. Ela era pequena – uma garota tipo mignon com bastante cabelo castanho escuro. Tanto cabelo, de fato, que por um momento ele ficou tão distraído em como ele era grosso e brilhante que não reparou mais nada nela – até que o som tap-tap atravessou sua consciência. Ela estava segurando uma longa bengala branca que mantinha à sua frente, perscrutando o caminho, fazendo tap-tap-tap, portanto era pelo som e pelo toque que ela se orientava. A cada poucos passos, ela parava e tossia, uma tosse horrível e molhada.
Erik percebeu duas coisas ao mesmo tempo. Primeiro, essa era Shaylin Ruede, a adolescente que ele estava destinado a Marcar. Segundo, ela era cega.
Ele teria se contido se pudesse, mas nenhum poder mortal e, segundo Caronte, tampouco nenhum poder mágico poderia desviar Erik dessa garota até que ele a tivesse Marcado. Quando a garota estava apenas alguns passos na frente dele, ele levantou sua mão com a palma para fora e apontou para ela. Ele abriu sua boca para falar, mas ela falou primeiro:
– Oi? Quem é? Quem está aí?
– Erik Night – ele falou sem pensar. Então ele balançou a cabeça e limpou a garganta. – Não, não é bem isso.
– Você não é Erik Night?
– Sim. Quero dizer, não. Espere, não é bem isso também. Não era isso o que eu deveria dizer – suas mãos estavam tremendo e ele se sentia como se fosse vomitar.
– Você está legal? Você não parece muito bem – ela tossiu. – Você está com a mesma gripe que eu? Estou me sentindo muito mal o dia inteiro.
– Não, eu estou bem. É só que eu preciso dizer uma coisa a você, e não é o meu nome nem nada parecido. Ah, cara. Estou realmente todo atrapalhado. Eu nunca erro o texto. Está tudo errado.
– Você está ensaiando para uma peça?
– Não. E você nem imagina como essa pergunta é irônica – ele respondeu, esfregando seu rosto suado e se sentindo confuso.
Ela inclinou sua cabeça para o lado e franziu a testa.
– Você não vai me assaltar, vai? Sei que é tarde e tudo o mais, e que eu sou cega e não deveria estar aqui fora sem companhia. Mas é a melhor hora do dia para eu dar uma volta sozinha. Eu não tenho muito tempo comigo mesma.
– Eu não vou te assaltar – ele disse constrangido. – Eu não faria isso.
– Então o que você está fazendo aqui e no que você se atrapalhou?
– Isso não está sendo do jeito que deveria mesmo!
– E me sequestrar também não seria nenhuma vantagem para você. Estou morando aqui com a minha mãe adotiva. Ela não tem nenhum dinheiro. Na verdade, desde que comecei a trabalhar depois da aula na Biblioteca South BA no final da rua, eu tenho mais dinheiro do que ela. Ahn, não que eu tenha nada comigo aqui neste momento.
– Sequestrar você? Não! – então Erik se curvou, segurando a barriga. – Droga! Caronte não me disse que ia doer se eu não fizesse isso.
– Caronte? Você faz parte de uma gangue? Eu devo ser um sacrifício de iniciação?
– Não!
– Ótimo, porque isso seria realmente péssimo – ela sorriu mais ou menos na direção dele e então começou a se virar para o caminho por onde tinha vindo. – Então, tá. Se é só isso. Foi um prazer conhecê-lo, Erik Night. Ou pelo menos acho que esse é o seu nome.
Fazendo um esforço enorme, Erik se endireitou o bastante para erguer sua mão de novo, com a palma voltada para fora.
– É isto o que eu deveria estar fazendo – com uma voz de repente repleta de magia, mistério e determinação, Erik Night entoou as palavras ancestrais dos Rastreadores: – Shaylin Ruede! A noite escolheu a ti. Tua morte será teu nascimento. A noite a chama para si; escute sua doce voz. Seu destino te aguarda na Morada da Noite!
Todo o calor que crescia em seu estômago, deixando-o enjoado, confuso e quente demais saiu em um disparo pela palma da sua mão. Erik conseguiu até vê-lo de fato! Ele atingiu em cheio a testa de Shaylin. Ela exclamou um pequeno “Oh” de surpresa e caiu graciosamente no chão.
Tudo bem, ele sabia que devia agir feito um vampiro e se misturar nas sombras, voltando para a Morada da Noite e deixando a novata achar o seu próprio caminho para lá. Caronte havia dito que era assim que era feito. Ou pelo menos era assim no mundo moderno.
Erik pensou em se misturar nas sombras. Ele até começou a se afastar, mas então Shaylin levantou sua cabeça. Ela havia caído no meio de um facho de luz, portanto o seu rosto estava iluminado. Ela era simplesmente perfeita! Seus lábios rosados e carnudos se levantaram em um sorriso surpreso, e ela estava piscando como se fosse para clarear a visão. Se ela não fosse cega, ele poderia jurar que ela o estava encarando com aqueles olhos negros enormes. Sua pele pálida era imaculada e no meio da testa a sua nova Marca irradiava um bonito brilho escarlate.
Escarlate?
A cor o sacudiu e ele começou a ir em direção a ela, dizendo:
– Espere, não. Isso não está certo.
Ao mesmo tempo, Shaylin falou:
– Aimeudeus! Eu estou enxergando!
Erik correu em sua direção e ficou parado ali meio perdido, sem saber o que fazer, enquanto ela se recompunha e ficava em pé. Ela estava um pouco cambaleante, mas estava piscando e olhando para todo lado, com um sorriso enorme estampado no seu belo rosto.
– Eu estou mesmo enxergando! Aimeudeus! Isso é incrível!
– Não pode ser. Eu me atrapalhei todo com isso.
– Eu não me importo se você se atrapalhou ou não... Muito obrigada! Eu consigo ver! – ela gritou e atirou seus braços em volta dele, rindo e chorando ao mesmo tempo.
Erik meio que acariciou as suas costas. Ela tinha um cheiro doce, como morangos ou talvez pêssegos – ou algum tipo de fruta. E ela era mesmo macia.
– Ah, meu Deus! Desculpe – ela o soltou de repente e deu um passo para trás. Suas bochechas estavam rosadas e ela enxugou os olhos. Então aqueles olhos úmidos e negros se arregalaram para alguma coisa acima do ombro dele, e ele se virou rapidamente, com as mãos para cima, pronto para acertar alguém. – Ah, não. Desculpe de novo – os dedos dela pousaram no seu braço apenas por um segundo, enquanto ela passava por ele devagar. Ele olhou para Shaylin e percebeu que ela estava embasbacada com um carvalho grande e antigo. – É tão bonito! – com passos que estavam se tornando mais seguros, ela caminhou para a árvore e a alisou com as mãos. Observando atentamente os galhos, ela disse: – Eu tinha imagens na minha mente. Coisas das quais eu me lembrava da época em que eu enxergava, mas isso é tão, tão melhor – ela esfregou os olhos brilhantes de novo e se virou para ele, e então eles se arregalaram ainda mais. – Ah, uau!
Apesar da estranheza de tudo aquilo, Erik não conseguiu deixar de se virar para ela com aquele seu sorriso de estrela de cinema de cem watts.
– É, antes de eu virar um Rastreador de uma hora para a outra, eu estava a caminho de Hollywood.
– Não, eu não falei “uau” por causa da sua beleza, apesar de você ser bonito. Eu acho – ela disse rápido, ainda o encarando.
– Eu sou – ele garantiu a ela, lembrando a si mesmo que ela estava provavelmente em estado de choque.
– É, bem, o que eu quero dizer é que realmente posso ver você.
– Sim, e...? – Deusa, Shaylin Ruede, Marcada ou Desmarcada, é uma garota estranha, ele pensou.
– Eu perdi minha visão quando ainda era criança, um pouco antes do meu aniversário de cinco anos, mas eu realmente não me lembro de ser capaz de ver o interior das pessoas. E acho que, se fosse algo comum, pelo menos eu teria ouvido falar sobre isso na internet.
– Como você podia entrar na internet se você era cega?
– Sério? Você está mesmo me perguntando isso? Tipo, você não sabe nada sobre coisas para deficientes?
– Como eu podia saber? Não sou deficiente.
– De novo, sério? Não é o que o seu interior diz.
– Shaylin, de que droga você está falando? – ela era uma menina louca? Será que o fato de ele ter se atrapalhado todo com a coisa de Rastreador havia feito dela não apenas uma novata vermelha, mas uma novata vermelha louca? Que droga! Ele estava metido em problemas!
– Como você sabe meu nome?
– Todos os Rastreadores sabem o nome dos garotos que eles devem Marcar.
Shaylin tocou a própria testa.
– Ah, uau! É isso! Eu vou virar uma vampira!
– Bem, se você sobreviver. Na verdade, eu não sei muito bem o que está acontecendo. Você tem uma Marca vermelha.
– Vermelha? Eu achei que novatos tinham Marcas azuis e depois tatuagens azuis. Você tem – ela apontou para a tatuagem dele, que emoldurava seus olhos azuis de Clark Kent3 como uma máscara.
– É, bem, você deveria ter uma Marca azul. Mas você não tem. É vermelha. E a gente pode voltar para aquilo que você estava dizendo, sobre ver o meu interior?
– Ah, isso. Sim, é incrível. Eu posso ver você e também todos os tipos de cores à sua volta. É como se o que está dentro de você estivesse brilhando ao seu redor – ela balançou a cabeça, como se estivesse pensando, e olhou ainda mais intensamente para ele. Então ela piscou, franziu a testa e piscou novamente. – Hum. Isso é interessante.
– Cores? Isso não faz o menor sentido – ele percebeu que ela estava apertando seus lábios, como se não quisesse dizer mais nada, o que realmente o irritou por alguma razão. Então ele perguntou: – Que cores estão em volta de mim?
– Tem bastante verde cor de ervilha misturado com um tom aquoso. Isso me lembra das ervilhas polpudas que alguns lugares tentam servir quando você pede peixe com batatas, não que isso faça algum sentido mesmo.
Erik balançou a cabeça.
– Nada disso faz sentido. Por que diabos eu tenho cor de ervilhas polpudas em volta de mim?
– Ah, esta é a parte fácil. Quando eu me concentro na cor, posso ver o que ela quer dizer sobre você – ela fechou a boca e então deu de ombros. – Você tem também algumas pequenas partículas brilhantes que aparecem de vez em quando, mas eu não posso dizer de que cor elas são e só sei um pouco o que elas significam. Parece loucura, certo?
– O que o verde cor de ervilha e a coisa aquosa dizem a meu respeito?
– O que você acha que dizem?
– Por que você está respondendo minha pergunta com outra pergunta?
– Ei, você acabou de responder minha pergunta com outra pergunta – Shaylin argumentou.
– Perguntei primeiro.
– Isso realmente importa? – Shaylin perguntou.
– Sim – ele respondeu, tentando manter o seu temperamento sob controle, apesar de ela o estar irritando loucamente. – O que a cor de ervilha significa?
– Está bem. Significa que você nunca teve que batalhar muito para conseguir o que quer.
Ele a fuzilou com os olhos.
Ela deu de ombros.
– Foi você quem perguntou.
– Você não sabe merda nenhuma sobre mim.
Shaylin de repente pareceu irritada.
– Ah, por favor! Eu não sei por que, mas sei que eu sei o que estou vendo.
– Ei, eu não preciso estar ensopado em ervilhas polpudas para você descobrir que este sorriso aqui já me abriu portas – Erik disse sarcasticamente.
– É, então me explique por que eu também sei que a coisa cinza esfumaçada significa algo que deixou você triste – ela colocou as mãos nos quadris, franziu os olhos e o encarou. De verdade. Então ela assentiu, como se estivesse concordando consigo mesma. Parecendo convencida, ela acrescentou: – Acho que alguém próximo a você acabou de morrer.
Erik sentiu como ela tivesse lhe dado um tapa na cara. Ele não conseguiu dizer nada. Apenas desviou os olhos dela e tentou pensar no meio de uma onda de tristeza.
– Ei, desculpe.
Ele olhou para baixo e viu que ela havia corrido em direção a ele e colocado sua mão de volta no seu braço. Ela não parecia mais convencida.
– Isso foi muito errado da minha parte – ela falou.
– Não – ele respondeu. – Você não estava errada. Um amigo meu realmente acabou de morrer.
Ela balançou a cabeça.
– Não foi o que eu quis dizer. Eu estava errada por ter dito aquilo daquela maneira... como uma garota maldosa. Eu não sou essa pessoa. Eu não sou assim. Portanto, desculpe.
Erik suspirou.
– Eu também quero me desculpar. Nada disso aconteceu como deveria.
Shaylin tocou sua própria testa cuidadosamente.
– Você nunca Marcou ninguém de vermelho?
– Eu nunca Marquei ninguém além de você – ele admitiu.
– Ah, uau. Eu sou sua primeira?
– É, e eu me atrapalhei todo.
Ela sorriu.
– Se o fato de eu poder enxergar é uma trapalhada, sou totalmente a favor.
– Bem, estou feliz por você voltar a ver, mas eu ainda preciso descobrir como isso aconteceu – ele fez um gesto em direção à sua Marca vermelha. – E isto – Erik ondulou sua mão em volta dele. – A coisa da ervilha.
– A coisa da ervilha vem de você, mas há outras cores aí também. Quando você se desculpou, eu pude ver...
– Não! – ele levantou uma mão, cortando-a. – Acho que eu não quero saber o que mais você pode ver.
– Desculpe – ela disse em voz baixa, olhando para baixo e arrastando a ponta de um sapato na grama marrom do inverno. – Acho que é mesmo sobrenatural. Então, o que vai acontecer agora?
Erik suspirou de novo.
– Não precisa se desculpar e não tem nada de errado com o sobrenatural. Tenho certeza de que Nyx tem uma razão para dar a você esse dom e essa Marca vermelha.
– Nyx?
– Nyx é nossa Deusa. A Deusa da Noite. Ela é incrível e às vezes ela dá dons legais aos seus novatos – enquanto falava, Erik se sentiu um completo idiota. Ele devia ser o pior Rastreador da história da Morada da Noite. Ele havia transformado uma garota cega em uma novata vermelha que podia ver coisas interiores, e só agora ele estava falando a ela sobre a Deusa deles. – Vamos – ele não se importava se Caronte iria aprovar ou não, ele não estava seguindo o maldito roteiro mesmo. Ele podia muito bem arriscar ferrar com tudo. – Mostre-me onde você mora. Faça uma mala ou algo assim. Você vai vir comigo.
– Ah, sim. Para a Morada da Noite de Tulsa, certo?
– Na verdade, não. Primeiro, vou levar você até uma Grande Sacerdotisa Vermelha. Talvez ela possa descobrir o que eu fiz de errado.
– Ei, ela não vai tentar me consertar tornando-me cega de novo, vai?
– Shaylin, por mais que eu odeie admitir, acho que não é você quem precisa ser consertada. Sou eu.
1 Los Angeles, onde fica Hollywood (N.T.).
2 Na mitologia grega, Caronte era o barqueiro de Hades, que transportava as almas dos mortos pelos rios que separavam o mundo dos vivos do mundo dos mortos. (N.T.)
3 Clark Kent é o nome do Superman (N.T.).

7

Zoey
– Zoey, você me ouviu?
Percebi que enquanto eu estava escovando Persephone freneticamente, Lenobia tinha entrado na baia e falado comigo. Bem, quero dizer, eu reparei que ela havia dito alguma coisa em voz alta para mim. Mas eu não ouvi o que ela disse de fato. Suspirei e me virei para encarar a Mestra dos Cavalos, encostando-me no dorso quente e robusto da égua, tentando extrair calma e energia da sua presença familiar.
– Não, desculpe. Eu não estava prestando atenção. Estou muito distraída. O que você disse?
– Eu perguntei o que você sabe sobre esse garoto Aurox.
– Nada, exceto que eu posso jurar a você que ele não é só um garoto – respondi.
– Sim, já estão espalhando no campus que ele é um transmorfo.
Senti meus olhos se arregalarem de verdade.
– Sério? Essas coisas existem? Como Sam e sua mãe grosseirona e louca e seu irmão?
– Sam?
– True Blood – eu expliquei. – Eles são transmorfos. Eles podem se transformar em qualquer coisa que eles veem. Eu acho. Mas imagino que eles não podem se transformar em objetos inanimados. Caramba, eu preciso ler esses livros para entender a coisa direito. Enfim, de novo, essas coisas existem?
– Ah, eu não vejo TV. Nunca adquiri esse hábito. Também vou ter que ler os livros de True Blood.
– Na verdade, os livros se chamam As Crônicas de Sookie Stackhouse e foram escritos por uma autora humana legal chamada Charlaine Harris – percebi o olhar de Lenobia e acrescentei rapidamente: – Desculpe, desculpe, não é sobre isso que você quer falar. Qual é a questão?
– Minha questão volta para a sua pergunta anterior, existe um monte de coisas por aí, tanto neste mundo como no Mundo do Além.
Eu engoli em seco.
– Sei disso. Principalmente a parte do Mundo do Além.
– Isso posto, muitas culturas têm evidências de transmorfos nas suas lendas e na sua mitologia. Isso é um indício de que pelo menos algumas dessas histórias devem ser baseadas em fatos reais.
– Não consigo imaginar se isso é bom ou mau – eu disse.
– Acho que o melhor que podemos esperar é que eles sejam como nós, bons ou maus dependendo de cada indivíduo. O que me leva à minha próxima pergunta. Junto com os boatos sobre Aurox e sua capacidade de pelo menos parecer ser capaz de mudar de forma, estão dizendo que você teve uma reação muito forte a ele. É verdade?
Senti minhas bochechas esquentando.
– Infelizmente, sim. Fiz papel de idiota na frente da maioria da escola. De novo.
– Por quê? Se você sabe melhor do que ninguém como Neferet pode ser perigosamente manipuladora, por que você iria confrontá-la publicamente dessa forma?
– Porque eu sou uma retardada – respondi desolada.
– Não – ela sorriu gentilmente. – Você definitivamente não é uma retardada, e é por isso que eu quis falar com você sobre isso. Sozinha. Acho que você deve disfarçar sua reação a Aurox, talvez mesmo para os seus amigos mais próximos. Guarde o que você está sentindo para você mesma. Faça cara de pôquer.
– Cara de pôquer? Desculpe, eu só sei jogar Candyland1.
– Fazer cara de pôquer significa controlar a sua reação sobre o que você está vendo e como você se sente sobre isso, mantendo segredo, de modo que ninguém que a esteja observando perceba nada.
– Por quê? – agora ela realmente tinha conseguido a minha atenção. Não era típico de Lenobia (ou de qualquer vampiro sensato) pedir a um novato para guardar segredos.
Os olhos dela encontraram os meus e eu fiquei novamente espantada com a cor cinza incomum deles. Era como se ela represasse nuvens de tempestade dentro deles.
– Eu aprendi muito jovem que o mal às vezes gosta de se gabar, mesmo quando seria melhor uma atitude mais discreta. Pela minha experiência, a verdadeira batalha das Trevas não é contra a Luz e a força do amor, da verdade e da lealdade. Acho que a maior ameaça ao mal vem do seu próprio orgulho, arrogância e ganância. Nunca vi um brigão que não tripudia ou um ladrão que não se vangloria. É por isso que eles acabam pegos. As Trevas poderiam realizar muito melhor o seu trabalho destrutivo se fossem, digamos, mais circunspectas.
– Mas é da natureza das Trevas se gabar e tripudiar, então as Trevas percebem quando alguém chama atenção para suas ações e tal – eu disse, finalmente entendendo o que ela queria dizer. – O que significa que, quando alguém que está lutando pelo bem fica quieto, observa e espera pelo momento certo para agir, o mal é pego desprevenido.
– E é pego despreparado para a força que vem da honestidade, da serenidade e da determinação serena – Lenobia completou.
Respirei fundo, olhei em volta para ter certeza de que ninguém estava espreitando fora da baia de Persephone e então falei em voz baixa para Lenobia:
– No instante em que eu vi Aurox, minha pedra da vidência esquentou. Nas duas únicas vezes em que isso aconteceu antes, a magia antiga estava presente – eu hesitei e então admiti: – Na noite passada, eu olhei através da pedra da vidência e vi uma coisa estranha em volta de Stark. Isso me assustou.
– O que Stark disse sobre isso?
– Eu, ahn, não contei para ele.
– Não? Por quê?
– Bem, primeiro porque na hora ele me distraiu – continuei apressada, sabendo que eu estava ficando vermelha. – E desde então eu não sei por que não disse nada – pensei então na quase briga que havíamos tido a caminho da escola. – Não, espere, eu sei por quê. Desde toda aquela história do Mundo do Além, as coisas entre mim e Stark não são as mesmas. Em parte isso é bom, estamos realmente mais próximos. Mas em parte é estranho também.
Lenobia concordou com a cabeça.
– É compreensível. Uma experiência dessa magnitude pela qual vocês dois passaram deve mesmo mudar a dinâmica de um relacionamento. E ver de relance alguma magia antiga ligada a Stark pode ser simplesmente um resquício do período em que ele ficou no Mundo do Além – ela sorriu. – Imagino que, se você pudesse olhar através da pedra da vidência para si mesma, poderia ver...
– Ah, de jeito nenhum! Não quero ver nada pairando em volta de mim!
O sorriso de Lenobia se esvaeceu.
– Você pareceu amedrontada.
– Estou apavorada, sem dúvida. Acho que já estou farta de magia antiga, do Mundo do Além e de todas essas coisas por um bom tempo.
– Ah, entendo. Se Aurox carrega traços de magia antiga, é por isso que a presença dele te afeta tanto.
– Ele definitivamente me fez sentir esquisita, mesmo antes de eu vê-lo se transformar em um touro.
– Esquisita? Como se você estivesse com medo também?
– É, mas eu também tive uma sensação estranha de surpresa, como se a minha intuição estivesse vendo algo que a minha mente não conseguiu captar. E então eu fiquei super ansiosa. Tem alguma coisa errada com aquele cara, Lenobia, e é uma coisa muito, muito antiga.
– Mas você sabe que ele parece um adolescente bonito para o resto do mundo?
– Sim, eu acho – então eu bufei. – Gostaria de levá-lo até Skye e descobrir o que aquela parte do resto do mundo vê quando olha para ele.
– Sua pedra da vidência veio de Skye?
– Sim, a rainha deu a pedra para mim. Ela disse que, se houver magia antiga por perto quando eu olhar através dela, posso vê-la – pensei em Stark, em vultos e em coisas arrepiantes. – Lidar com o que eu posso ver com meus próprios olhos é mais que o bastante para mim. Não quero mais olhar através da pedra da vidência de novo – balancei a cabeça, envergonhada da minha fraqueza. – Desculpe. Sou tão criançona. Eu não deveria estar com tanto medo. Eu deveria ter olhado para Aurox através dessa pedra idiota.
– E o que teria acontecido se você tivesse visto algo terrível? Todo mundo que olha através da pedra pode ver a magia antiga?
– Não – enxuguei lágrimas nas minhas bochechas. – É um dom que só algumas Grandes Sacerdotisas têm.
– Então, se você visse algo das Trevas através da pedra, contasse para todo mundo e dependesse da pedra para mostrar a todos o que você estava vendo, você não teria nenhuma prova real?
– Sim, é isso aí. Eu estaria e estou ferrada.
– Não, você foi e é sábia de ouvir seus instintos. Algo está muito errado com esse fantoche de Neferet. Você percebeu isso no mesmo instante em que o viu, e por causa disso você não podia ficar lá parada, de boca fechada, fingindo ser uma garota insípida.
Tomei nota mentalmente para me lembrar de procurar “insípida” no dicionário ou pedir para Damien uma definição rápida da palavra.
Lenobia não havia acabado. Ela continuou a falar seriamente:
– Quero que você passe algum tempo pensando em Aurox. Preste atenção em como se sente e exatamente o que você percebe na próxima vez que você o vir; mas repare nessas coisas em silêncio. Mantenha sua cara de pôquer. Não deixe ninguém saber o que está se passando por baixo dessa linda fachada de adolescente.
– Você não acha que eu devo olhar para ele através da minha pedra da vidência?
– Não até que você deixe de ter tanto medo do que pode ver. Quando seus instintos disserem que é a hora certa, então, e só então, você deve olhar.
– E sobre Stark? – segurei o fôlego.
– Stark está comprometido com você e com a nossa Deusa. Acho que é uma coisa boa a magia antiga estar ligada a ele. Pare de se preocupar com o seu guerreiro, ele pode sentir e isso não vai fazer bem para ele.
– Sim, ok, isso faz sentido. Então, o fato de eu estar super aliviada por não precisar olhar através da pedra da vidência não faz de mim uma criançona ou uma covarde?
Ela sorriu.
– Não, nem uma retardada. Você é uma Grande Sacerdotisa Novata, a primeira da história, e você está simplesmente tentando encontrar seu caminho em um mundo muito confuso.
– Você é realmente sábia – eu afirmei.
Lenobia riu.
– Não, eu só sou muito velha.
Então eu ri junto, pois, apesar de eu saber que ela tinha uns cem anos, Lenobia parecia ter uns trinta.
– Bem, você parece ter uns vinte e poucos anos – eu menti –, o que faz que você seja apenas velha, não muito velha.
– Vinte e poucos anos! Com essa sua habilidade de dissimular, você vai se sair bem guardando seus pensamentos sobre Aurox para si mesma – Lenobia disse. Então eu juro que ela deu uma risadinha típica de adolescente, o que realmente a fez parecer super jovem. – Vinte e poucos! Eu não tenho essa idade há mais de dois séculos!
– Qual é o seu segredo? Botox e injeções labiais? – eu perguntei, dando risadinhas com ela.
– Sangue B negativo e protetor solar – ela respondeu.
– Ei, vocês, desculpem interromper – a cabeça loira e cacheada de Stevie Rae apareceu na nossa visão quando ela espiou dentro da baia.
– Você não está interrompendo, Stevie Rae – Lenobia disse ainda sorrindo. – Venha, junte-se a nós. Estamos apenas falando sobre como envelhecer bem.
– Minha mãe sempre disse que oito horas de sono por dia, beber muita água e não ter nenhum filho é uma receita anti-idade melhor do que qualquer uma que um médico ou a L’Oreal possam inventar – ela abriu o sorriso para Lenobia e então deu um olhar preocupado para Persephone. – E obrigada por me convidar para entrar, mas vou ficar aqui fora. Não gosto muito de cavalos. Sem ofensas; eles são muito grandes.
– Sem problemas – Lenobia respondeu. – Os guerreiros precisam de algo?
– Não. A arena é ótima para as aulas. Eles estão tendo um monte de diversão masculina, o que significa que eles estão se batendo com espadas de madeira e disparando flechas nas coisas enquanto gritam bastante – nós três reviramos os olhos. – Mas o seu cowboy está aqui, então eu vim buscar você.
– Meu cowboy? – Lenobia pareceu totalmente confusa. – Eu não tenho um cowboy.
– Bem, ele só pode ser seu, pois ele acabou de aparecer lá na entrada do curral com um trailer de cavalos gigante dizendo que ele estava se apresentando para o trabalho e perguntando onde ele podia descarregar suas coisas – Stevie Rae explicou.
Lenobia soltou um longo suspiro. Obviamente irritada, ela disse:
– Neferet. Isso é obra dela. Ele é o primeiro dos humanos locais que ela contratou.
– Eu não entendi o que Neferet está armando – Stevie Rae falou. – Sei muito bem que ela odeia humanos e não liga a mínima se o povo local gosta ou não do fato de a gente estar aqui.
– Neferet está querendo causar problemas – afirmei.
– E ela começou comigo porque sabe que estou do lado de vocês – Lenobia concluiu.
– Caos – quando eu disse a palavra, senti como era verdadeira. – Neferet quer causar o caos nas nossas vidas.
– Então vamos dar boas-vindas ao cowboy, fazer que ele se sinta em casa e mostrar como trabalhar nos meus estábulos pode ser não-caótico e totalmente maçante. Se nós fizermos isso, talvez, e apenas talvez, ele resolva se mudar para pastagens mais excitantes e Neferet volte a sua atenção para outro lugar.
Como se estivesse em uma missão, Lenobia marchou para fora da baia de Persephone. Stevie Rae e eu trocamos olhares.
– Não vou perder isso de jeito nenhum – fiz uma carícia de despedida no dorso quente de Persephone e atirei a escova de cavalo dentro da cesta cheia de tachas.
Stevie Rae entrelaçou seu braço ao meu enquanto seguíamos Lenobia.
– O que eu não contei a Lenobia é como o cowboy dela é incrivelmente fofo – ela sussurrou para mim.
– Sério?
– Espere e verá.
Agora eu estava super curiosa e apertei o passo, quase correndo pela areia da arena e apenas acenando rapidamente para Stark, que estava entregando um arco para Rephaim. Stevie Rae tentou jogar um beijo para ele, mas eu a mantive em movimento, então basicamente tudo o que ela fez foi dar uma risadinha e acenar. Tentei ignorar o olhar zangado de Stark e me concentrar em não deixar transparecer nenhum dos sentimentos curiosos, excitados e totalmente confusos que eu estava tendo.
Eu não sabia muito bem por que, mas não queria de modo algum que Stark ficasse me perguntando coisas sobre Aurox.
– Ali, lá está ele. O não-vampiro alto, com um chapéu de cowboy, perto da porta – Stevie Rae apontou para as amplas portas laterais da arena. Elas estavam levantadas. Logo do lado de fora, havia um grande trailer de cavalos e uma daquelas caminhonetes enormes que os caras de Oklahoma tanto gostam de comprar, de dirigir e de praticamente morar dentro. Em pé na frente do trailer, havia um homem super alto. E Stevie Rae estava totalmente certa. Ele era mesmo muito bonito, mesmo para um cara mais velho.
– Ele parece alguém que poderia estar no Western Channel2 – eu afirmei. – Fazendo o papel de um daqueles cowboys heróis dos velhos tempos.
– Sam Elliott, é com ele que o cowboy se parece.
– Quem? – olhei para ela com cara de interrogação.
Ela suspirou.
– Ele está em um monte de filmes de cowboy. Você sabe, como Tombstone – A Justiça Está Chegando.
– Você assiste a filmes de cowboy?
– Eu assistia, com minha mãe e meu pai, principalmente aos sábados à noite, antes de ir para a cama. E daí?
– E daí nada.
– Não conte para Aphrodite – ela disse.
– Não conte o que para Aphrodite? – Aphrodite perguntou.
Stevie Rae e eu demos um salto quando ela pareceu se materializar do ar atrás de nós.
– É feio assustar os outros e ficar espreitando por aí – eu a repreendi.
– Eu não faço isso. Sou apenas naturalmente graciosa. É porque eu tenho ossos delicados – ela respondeu. Então ela virou seu olhar azul gelado para Stevie Rae. – De novo, não conte o que para Aphrodite?
– Que o cowboy de Lenobia é super gostoso – Stevie Rae tentou despistar.
Aphrodite olhou para Stevie Rae de um jeito que dizia que ela mentia muito mal, o que era verdade, mas o seu olhar foi logo capturado pela silhueta de ombros largos do homem.
– Aaaaaah! Aquele é o...
– Empregado de Lenobia – eu completei para ela, apesar de Aphrodite não estar prestando a menor atenção em mim. – Ele deve trabalhar para Lenobia.
– Ele é gostoso – Aphrodite disse. – Não tanto quanto Darius, mas ainda assim GOSTOSO.
– Eu falei para vocês. E ele é tão alto que faz Lenobia parecer ainda menor do que é.
Enquanto Stevie Rae, Aphrodite e eu andávamos por ali como quem não quer nada até atingir uma distância em que podíamos ouvir, e tentávamos, sem sucesso, não parecer tão obviamente embasbacadas, o cowboy tocou seu chapéu em cumprimento a Lenobia e, com um sotaque anasalado típico de Oklahoma, disse:
– Olá, madame. Sou o novo treinador do estábulo. Agradeço se pudesse me indicar o homem responsável por aqui.
Não pude ver o rosto de Lenobia, mas a observei endireitando as costas.
– Xiiii... – Stevie Rae sussurrou.
– E lá se vai toda aquela coisa de boas-vindas calorosas – eu disse com um tom de voz suficiente apenas para Aphrodite e Stevie Rae ouvirem.
– O John Wayne3 simplesmente acabou de ferrar com tudo – Aphrodite comentou.
– Sou Lenobia – sua voz chegou facilmente até nós. Não achei que ela soou irritada, mas sim como uma tempestade de gelo. – Eu sou a mulher responsável por estes estábulos e a sua nova chefe – houve uma espécie de silêncio desconfortável quando Lenobia não ofereceu a mão para ele apertar.
– Brrrr – Aphrodite sussurrou. – Ela acabou de me lembrar minha mãe, e para o John Wayne isso não é nada bom.
– Sam Elliott – Stevie Rae sussurrou de volta.
Aphrodite franziu a testa para a minha melhor amiga. Eu contive um suspiro desanimado.
– Ele não se parece nem um pouco com John Wayne – ela continuou, sussurrando alto. – Mas ele é idêntico a Sam Elliott.
– Você assistiu a muita TV aberta quando era criança, provavelmente depois de jantar com sua família aos sábados à noite. Patético – Aphrodite balançou a cabeça em sinal de repúdio para Stevie Rae. Eu fiquei pensando o quanto era bizarro o fato de que Aphrodite tivesse acertado coisas sobre a família de Stevie Rae, quando nós três voltamos nossa atenção para o Show do Cowboy.
O homem tocou novamente seu chapéu para cumprimentar Lenobia, sorriu e desta vez pude ver, mesmo da distância em que estávamos, que os olhos dele brilharam.
– Bem, madame, parece que me deram informações erradas. Fico feliz que foi tudo esclarecido rapidamente. Meu nome é Travis Foster. Prazer em conhecê-la, senhora chefe.
– E você não se importou de descobrir que sua chefe é uma senhora?
– Não, madame. Minha mãe era uma senhora e eu nunca trabalhei tão duro e tão feliz quanto na época em que trabalhei para ela.
– Senhor Foster, eu faço o senhor se lembrar da sua mãe?
Achei que a voz de Lenobia seria capaz de congelar a água, mas Travis pareceu não perceber. Na verdade, parecia que ele estava se divertindo. Ele levantou seu chapéu um pouco para trás e abaixou seus olhos para Lenobia, como se a pergunta dela tivesse sido séria em vez de sarcástica.
– Não, madame, pelo menos ainda não – Lenobia não disse mais nada, e eu estava sentindo aquela sensação de embaraço que conversas estranhas com adultos podem trazer quando Travis meio que deu de ombros, enganchou um dedo no passador do cinto da sua calça Wrangler e falou: – Então, Lenobia, pode me mostrar onde minha égua e eu vamos nos abancar?
– Égua? Abancar? – Lenobia perguntou.
– Que merda, eu devia ter trazido pipoca – Aphrodite comentou.
– Ela vai fritá-lo com seu olhar de raio laser – acrescentei.
– Lenobia tem olhar de raio laser? – Stevie Rae se voltou para mim.
Aphrodite e eu olhamos para Stevie Rae como se ela tivesse acabado de perguntar se nós achávamos que Lindsay Lohan4 estava realmente reabilitada.
– Que tal se eu só olhar e não falar nada? – Stevie Rae sugeriu.
– Obrigada – Aphrodite e eu dissemos juntas, o que fez que ela me fuzilasse com os olhos, antes de nós três voltarmos a olhar estupidamente para a cena, tentando escutar.
– Bem, madame – Travis falou de modo arrastado. – Eu disse para a Grande Sacerdotisa de vocês quando ela me contratou que a minha égua e eu éramos um pacote fechado e que eu iria precisar de um lugar para ela no estábulo aqui. Como eu acabei de concluir uma temporada treinando cavalos nos estábulos de Durant Springs, vou precisar de um lugar para me acomodar também – o homem fez uma pausa e, como Lenobia não falou nada, ele acrescentou: – Durant Springs fica no Colorado, madame.
– Eu sei onde fica – Lenobia respondeu ríspida. – O que faz você pensar que pode ficar aqui no campus? Não temos acomodações para humanos.
– Sim, madame, foi o que a Grande Sacerdotisa disse. Como a vaga tinha que ser preenchida logo, eu disse a ela que ficaria bem acomodado junto com Bonnie até eu encontrar um lugar aqui por perto.
– Bonnie?
Travis arrumou seu chapéu, dando o primeiro sinal de que ele poderia estar pouco à vontade.
– Sim, madame, o nome da minha égua é Bonnie – como se fosse a sua deixa, um som surdo e forte veio de dentro do trailer de cavalos. Ele andou em direção à porta enquanto continuava a explicar para Lenobia: – Ficaria grato se eu tivesse a sua permissão para descarregá-la. Do Colorado até aqui, é um caminho longo para uma garota grande como ela.
– Vocês acham que o cavalo dele é gordo? – Stevie Rae perguntou em voz baixa.
– Caipira, achei que você não ia falar mais nada – Aphrodite disse.
– Acho que ele acabou de arrombar a porteira – eu falei. Lenobia não ia deixar de jeito nenhum um cavalo cansado ser rebocado para a Deusa sabe lá aonde.
– Descarregue sua égua. Você e eu vamos discutir sobre onde você vai ficar depois que ela estiver confortável – Lenobia afirmou.
Percebi que Travis já tinha soltado as alavancas e correntes que mantinham a porta do trailer fechada, então só tivemos que esperar uns segundos até a rampa abrir.
– Venha, garotona. Para tráááás – Travis disse em uma voz que tinha deixado de ser educada e às vezes ligeiramente divertida e se tornado afetuosa, gentil e doce.
Então o cavalo dele saiu de ré do trailer e ofegos de choque e espanto vieram de toda a nossa volta. Desviei os olhos do cavalo a tempo de ver que Stevie Rae e eu não éramos as únicas embasbacadas por ali. Darius, Stark, Rephaim e a maioria dos novatos tinha de algum modo dado um jeito de se aproximar da gente.
– Aquilo não pode ser um cavalo – Stevie Rae disse e deu um passo para trás, apesar de a gente estar a vários metros do animal.
– Caraca. É um dinossauro – Aphrodite falou.
– Tenho certeza de que é um cavalo – eu afirmei, observando a égua. – Mas é realmente um animal muito, muito grande.
– Ah, uma Percherão! Ela é rara! – Lenobia disse.
Todo mundo ficou olhando quando a pequena Lenobia foi em direção à égua enorme sem nenhuma hesitação. Ainda menor em comparação com a equina gigantesca, a Mestra dos Cavalos levantou levemente sua mão. A égua a observou por um instante e então abaixou seu focinho, bufando contra a palma da mão de Lenobia. Rindo como uma garota, ela acariciou o imenso focinho da égua e falou carinhosamente:
– Ah, você é mesmo uma menina muito boazinha e querida... – ela desviou os olhos do cavalo e se virou para o cowboy. O gelo na sua voz tinha derretido completamente e achei que ela estava quase efusiva. – Não vejo um Percherão desde que vim da França quando eu era criança, e isso faz mais tempo do que gosto de admitir. Havia um casal dessas belezonas no navio comigo. Lembro deles com carinho e desde então os cavalos de carga despertam minha curiosidade. Ela tem uma cor cinza mesclada adorável. Imagino que vai clarear conforme envelhecer. Posso dizer que ela acabou de completar cinco anos há um mês... – Lenobia fez uma pausa, inclinou a cabeça e olhou dentro dos olhos do cavalo antes de continuar. – Não, ela fez cinco anos há dois meses. Ela pertence a você desde que nasceu, não é?
Eu vi Travis piscar surpreso. Ele abriu a boca, fechou-a e depois a abriu de novo. Então limpou a garganta.
– Bem, sim, madame – ele fez uma pausa e começou a acariciar o pescoço incrivelmente grosso de Bonnie, como se precisasse se ancorar em algo para recobrar a razão.
Eu sabia por que ele estava tão confuso de repente. Todo mundo que já tivesse observado Lenobia perto de cavalos saberia por quê. Quando Lenobia entra em comunhão com cavalos, ela deixa de ser simplesmente muito bonita e passa a ser deslumbrante. E ela estava em forte comunhão com essa grande égua. A alta voltagem da sua adoração por cavalos deixou o cowboy excitado. Não que ele fosse o objeto pretendido do enorme poder de atração dela, ele estava apenas pegando a rebarba. Mas era uma rebarba e tanto.
Travis limpou a garganta novamente, mexeu seu chapéu e disse:
– A mãe dela morreu assim que Bonnie nasceu, de um jeito bizarro: atingida por um raio no meio de um pasto. Eu a criei dando mamadeira na boca dela.
Lenobia voltou seus olhos cinza para o cowboy. Ela pareceu surpresa, como se tivesse esquecido que ele estava ali. A sua adoração por cavalos desapareceu num lampejo, como se ela houvesse desligado um interruptor.
– Você fez um bom trabalho. Ela é grande, com certeza tem mais de um metro e oitenta. Boa musculatura. Está em excelente condição – apesar de ela ter continuado o que estava dizendo antes, o seu tom soou mais irritado do que agradável. Foi só quando ela olhou e sorriu para a égua que a sua expressão se alterou novamente para a adoração e o prazer verdadeiro. – Você é uma garota esperta, não é? – Lenobia disse para Bonnie, que estava parada em pé, nada irrequieta, apenas com suas orelhas agitadas, olhando admirada para todos nós enquanto olhávamos para ela. – E você é segura o bastante para se comportar bem mesmo em um ambiente novo – Lenobia desviou o olhar da égua para o cowboy e sua expressão se congelou em uma cordialidade fria. Ela então balançou a cabeça em um sinal rápido e decisivo de concordância. – Bem, então é isto. Você e Bonnie podem me seguir. Vou mostrar o estábulo onde vocês dois vão se acomodar.
Lenobia se virou e começou a andar rapidamente de volta pela arena. Quando ela atingiu o meio do caminho, parou e se dirigiu a todos nós:
– Novatos e vampiros, este é Travis Foster. Ele vai trabalhar para mim. O nome da sua égua é Bonnie. Deem a ela o respeito que ela merece como um exemplo perfeito da majestosa raça Percherão. Guerreiros, por favor, prestem atenção no seu tamanho e no seu porte. Os ancestrais dela eram cavalos de guerra no passado.
Eu olhei para o cowboy e o vi sorrir e concordar com o comentário de Lenobia, enquanto acariciava carinhosamente a grande égua, antes de disparar um olhar igualmente carinhoso na direção da Mestra dos Cavalos. Lenobia nem olhou para ele. Em vez disso, franziu a testa e fuzilou todos nós com os olhos.
– E agora vocês podem parar de bisbilhotar. Voltem ao trabalho – Lenobia marchou pela arena até o estábulo sem sequer dar uma olhadinha para Bonnie e Travis, que a seguiram como se eles fossem mariposas e ela, uma luz super brilhante.
– Isso traz possibilidades interessantes – Aphrodite comentou.
– Não brinca, aquela égua parece simplesmente demais. Quero dizer, grande, mas mesmo assim muito legal – eu disse.
Aphrodite revirou os olhos.
– Não estou falando sobre o cavalo, Z.
Eu estava franzindo a testa para Aphrodite quando Damien chegou correndo.
– Zoey, que bom, você está aqui. Você precisa voltar para o prédio principal.
– Você quer dizer depois da sexta aula? Já está quase acabando – respondi.
– Não, meu bem, agora. Sua avó está aqui, e tenho certeza de que ela andou chorando.
1 Candyland é um jogo de tabuleiro simples, muito popular nos Estados Unidos, que pode ser jogado por crianças pequenas. (N.T.)
2 Western Channel é um canal de TV norte-americano especializado em filmes de faroeste. (N.T.)
3 John Wayne foi um famoso ator norte-americano, conhecido por seus papéis de cowboy no Velho Oeste e por seus filmes pró-guerra. Morreu em 1979. (N.T.)
4 Lindsay Lohan é uma jovem atriz norte-americana que já teve muitos problemas com álcool e drogas. (N.T.)

8

Zoey
Meu estômago se contraiu e eu me senti como se fosse vomitar.
– Estou indo – eu disse a Damien. – Mas eu adoraria que você fosse comigo – quando ele assentiu sombriamente, olhei para Stevie Rae e Aphrodite. – Vocês duas também, tá?
– É claro que nós vamos com você – Stevie Rae respondeu.
Desta vez Aphrodite não reclamou por Stevie Rae ter respondido por ela. Simplesmente concordou e falou:
– Estou dentro.
Estava me virando para procurar Stark quando de repente ele apareceu do meu lado. Sua mão desceu pelo meu braço até que nossos dedos se encontraram e se entrelassaram.
– É sobre a sua mãe?
Não confiei na minha voz, então apenas concordei com a cabeça.
– Sua mãe? Pensei que Damien tivesse dito que a sua avó estava aqui – Stevie Rae estranhou.
– Sim, ele disse isso – Aphrodite falou antes de Damien. Ela estava me observando com um olhar que a fez parecer mais velha (e mais agradável) do que era. – É sobre a sua mãe?
Stark olhou para mim e eu concordei de novo com a cabeça. Então ele explicou:
– A mãe de Zoey está morta.
– Oh, não! – Damien exclamou, com lágrimas instantaneamente nos seus olhos.
– Não, ok? – eu disse rápido. – Não vamos fazer isso aqui. Não quero todo mundo me observando.
Damien apertou os lábios, piscou forte e assentiu.
– Vamos lá, Z. Vamos todos ver a sua vovó – Stevie Rae veio para o meu outro lado e me deu o seu braço. Aphrodite segurou a mão de Damien e eles nos seguiram pela arena.
Durante todo o caminho, tentei me preparar para o que vovó ia me contar. Acho que eu estava tentando me preparar para isso desde que acordei do meu sonho em que visitei o Mundo do Além e testemunhei Nyx dando as boas-vindas para o espírito de minha mãe. Mas, na verdade, e eu somente percebi isso quando entrei no prédio principal da escola e me aproximei do saguão da frente, é que eu nunca estaria preparada para receber essas notícias.
Um pouco antes de atravessarmos a última porta, Stark apertou minha mão.
– Eu estou aqui. Te amo.
– Eu também te amo, Z. – Stevie Rae afirmou.
– Eu também – Damien falou e deu um pequeno soluço.
– Você pode pegar emprestado o meu brinco de diamantes de dois quilates – Aphrodite disse.
Eu parei e me virei para ela.
– Hã?
Ela deu de ombros.
– Isso é o mais próximo de uma declaração de amor que você vai ouvir de mim.
Ouvi Stevie Rae soltar um suspiro enorme e vi a testa de Damien ficar úmida quando ele se virou para ela sem acreditar.
Mas eu simplesmente respondi:
– Obrigada. Vou aceitar.
Isso fez Aphrodite franzir as sobrancelhas e resmungar:
– Deusa, eu odeio ser gentil.
Eu me soltei de Stark e Stevie Rae e abri a porta dupla. Vovó estava sozinha no salão, sentada em uma espaçosa poltrona de couro. Damien estava certo; vovó andara chorando. Ela parecia velha e muito, muito triste. Assim que ela me viu, ficou em pé. Nós nos encontramos no meio do salão e nos abraçamos. Quando ela finalmente parou de me abraçar, deu um passo para trás apenas o suficiente para olhar no meu rosto. Ela manteve suas mãos nos meus ombros. As mãos dela eram quentes, sólidas e familiares, e de algum modo aquele toque fez que o nó no meu estômago fosse suportável.
– Mamãe está morta – eu tive que dizer isso antes que ela o fizesse.
Vovó não pareceu surpresa por eu já saber. Ela simplesmente concordou e falou:
– Sim, u-we-tsi-a-ge-ya. Sua mãe está morta. O espírito dela veio até você?
– De certo modo. Na noite passada, enquanto eu estava dormindo, Nyx me mostrou mamãe entrando no Mundo do Além.
Pelas suas mãos, senti o tremor que atravessou o corpo de vovó. Ela fechou os olhos e cambaleou. Por um segundo, tive medo de que ela fosse desmaiar, então cobri suas mãos com as minhas.
– Espírito, venha para mim! Ajude vovó!
O elemento com o qual eu tinha a conexão mais forte respondeu imediatamente. Eu o senti girar como um redemoinho através de mim e entrar na vovó, que arfou e parou de cambalear, mas não abriu os olhos.
– Ar, venha para mim. Por favor, envolva a vovó Redbird e deixe-a respirar fundo – Damien deu um passo para o meu lado e tocou o braço de vovó suavemente, enquanto uma brisa impossível rodopiou em volta de nós.
– Fogo, venha para mim. Por favor, aqueça a avó de Zoey para que, mesmo que ela esteja triste, não sinta com frio.
Pisquei surpresa quando Shaunee se juntou a Damien.
Ela também tocou o braço de vovó por um segundo, então sorriu com os olhos molhados e falou:
– Kramisha disse que você precisava de nós.
– Água, venha para mim. Banhe a avó de Z. e, por favor, leve embora um pouco da tristeza dela com você – Erin tomou seu lugar ao lado de Shaunee, tocando as costas de vovó. Então, exatamente como sua gêmea, ela sorriu através de lágrimas para mim. – É, e a gente nem teve que ler o poema dela. Ela só disse para a gente vir para cá.
Os olhos de vovó ainda estavam fechados, mas eu vi seus lábios se curvarem levemente para cima.
– Mas o meu poema era bom – a voz de Kramisha veio de algum lugar atrás de mim.
Depois da bufada de Aphrodite, ouvi Stevie Rae dizer:
– Terra, por favor, venha para mim – ela veio para o meu outro lado e colocou o braço em volta de vovó. – Deixe a vovó de Z. pegar um pouco do seu poder emprestado para que ela possa ficar bem de novo logo.
Vovó inspirou profundamente três vezes. Quando ela soltou a respiração pela última vez, abriu os olhos e, apesar de ainda haver tristeza neles, seu rosto não estava mais com a aparência assustadora e desolada de uma pessoa velha que ela tinha na hora em que eu a vira.
– Explique a eles o que eu vou fazer, u-we-tsi-a-ge-ya.
Eu não estava certa sobre o que vovó estava aprontando, mas concordei. Eu sabia que ela ia me fazer entender, e eu estava certa. Ela foi até cada um dos meus quatro amigos. Começando por Damien, ela tocou seu rosto e disse:
– Wa-do, Inole. Você me fortaleceu.
Enquanto ela ia até Shaunee, eu expliquei para meus amigos:
– Vovó está agradecendo vocês nomeando-os com a palavra Cherokee para cada um dos seus elementos.
– Wa-do, Egela. Você me fortaleceu – vovó tocou as bochechas de Shaunee e se voltou para Erin. – Wa-do, Ama. Você me fortaleceu – por último, ela tocou o rosto de Stevie Rae, ainda molhado de lágrimas. – Wa-do, Elohine. Você me fortaleceu.
– Obrigado, vovó Redbird – cada um dos quatro murmurou.
– Gv-li-e-li-ga – vovó disse, repetindo em inglês: – Obrigada – então ela olhou para mim. – Agora eu consigo suportar contar para você – ela parou na minha frente e pegou minhas duas mãos. – Sua mãe foi assassinada na minha plantação de lavanda.
– O quê? – senti um choque me atravessar. – Eu não entendo. Como? Por quê?
– O xerife disse que foi um roubo e que ela estava no caminho dos bandidos. Ele acha que, como levaram meu computador, minha televisão e minhas câmeras, e por causa da violência gratuita do crime, provavelmente foram viciados que roubaram para comprar drogas – vovó apertou minhas mãos. – Ela tinha deixado o marido, Zoey Passarinha, e vindo me procurar. Eu estava no powwow1. Eu não estava lá para acolhê-la – a voz de vovó ficou estável, mas lágrimas se empoçaram nos seus olhos e então começaram a cair.
– Não, vovó, não se culpe. Não foi culpa sua e, se você estivesse lá, eu teria perdido vocês duas e não conseguiria suportar isso!
– Eu sei, u-we-tsi-a-ge-ya, mas a morte de uma filha, mesmo uma que havia se perdido da mãe, é um fardo muito pesado.
– Foi muito... ela... mamãe sofreu? – minha voz era pouco mais que um sussurro.
– Não. Ela morreu rápido – vovó respondeu sem hesitar, mas eu pensei ter visto algo passar pelos seus olhos.
– Você a encontrou?
Vovó concordou, com lágrimas descendo cada vez mais rápido pelo seu rosto.
– Sim. Ela estava no campo bem ao lado de casa. Linda estava deitada ali e parecia tão em paz que no começo achei que ela estava dormindo – a voz de vovó foi interrompida por um soluço. – Mas ela não estava.
Segurei firme nas mãos de vovó e disse as palavras que eu sabia que ela precisava ouvir:
– Ela está feliz, vovó. Eu a vi. Nyx tirou a tristeza dela. Ela está esperando por nós no Mundo do Além e ela tem a benção da Deusa.
– Wa-do, u-we-tsi-a-ge-ya. Você me fortaleceu – vovó sussurrou para mim enquanto me abraçava de novo.
– Vovó – eu falei contra a sua bochecha. – Por favor, fique comigo, pelo menos por um tempinho.
– Não posso, u-we-tsi-a-ge-ya – ela deu um passo para trás, mas continuou segurando minha mão. – Você sabe que vou seguir as tradições de nosso povo e vou prantear por sete dias inteiros, e este não é o lugar certo para fazer isso.
– A gente não está ficando aqui, vovó – Stevie Rae disse, enxugando o rosto com a manga. – Zoey e todo o nosso grupo nos mudamos para os túneis embaixo da estação de Tulsa. Eu sou a Grande Sacerdotisa oficial de lá e adoraria se você viesse ficar com a gente, por sete dias, sete meses ou pelo tempo que quiser.
Vovó sorriu para Stevie Rae.
– É uma oferta generosa, Elohine, mas a sua estação também não é o lugar certo para eu ficar durante o período de luto – os olhos dela encontraram os meus e eu sabia o que ela ia dizer antes que começasse a falar. – Preciso ficar na minha terra, na minha fazenda. Tenho que passar a próxima semana comendo e dormindo bem pouco. Preciso me concentrar em purificar a minha casa e a minha terra desse horrível malfeito.
– Sozinha, vovó? – Stark estava ali ao meu lado, com sua presença forte e afetuosa. – É seguro depois do que aconteceu?
– Tsi-ta-ga-a-sh-ya, não se iluda com a minha aparência – ela chamou Stark de galo, o nome de animal que ela o batizou. – Eu posso ser muitas coisas, mas não sou uma mulher velha e indefesa.
– Nunca achei que você fosse indefesa – Stark emendou. – Mas talvez não seja uma boa ideia você ficar sozinha.
– É, vovó. O que Stark diz faz sentido – eu falei.
– U-we-tsi-a-ge-ya, eu preciso purificar minha casa, minha terra e a mim mesma durante meu pranto e meu luto. Não posso fazer isso a menos que eu esteja em paz com a terra, e eu não vou ficar dentro de casa até que ela esteja totalmente purificada e os sete dias tenham passado. Vou acampar no jardim de trás, na clareira perto do riacho – vovó sorriu para Stark, Stevie Rae e o resto dos meus amigos. – Acho que você não ia passar muito bem exposto à luz do sol por tanto tempo.
– Bem, vovó, eu... – comecei, mas ela me interrompeu.
– Isso é algo que eu tenho que fazer sozinha, u-we-tsi-a-ge-ya. Mas há algo que eu preciso pedir a você.
– Qualquer coisa – eu falei.
– Daqui a sete dias, você pode ir até a minha fazenda com seus amigos? Você pode traçar um círculo e conduzir o seu próprio ritual de limpeza?
– Eu vou – concordei e meu olhar se voltou para os meus amigos que me rodeavam.
– Nós vamos – Stevie Rae acrescentou. Suas palavras foram ecoadas pelos garotos que estavam em pé ao meu lado e à minha volta.
– Então é assim que vai ser – vovó disse com firmeza. – A tradição Cherokee de luto e purificação vai ser acoplada ao ritual vampiro. É bom que seja assim, já que minha família se expandiu para incluir tantos vampiros e novatos – ela olhou ao redor para o meu grupo. – Eu peço mais uma coisa. Que cada um de vocês tenha pensamentos de luz sobre mim e a mãe de Zoey pelos próximos sete dias. Não importa que Linda tenha vacilado durante sua vida. O que importa é que ela seja lembrada com amor e pensamentos bondosos.
As frases “pode deixar” e “ok, vovó” soaram em volta de mim.
– Agora eu vou embora, u-we-tsi-a-ge-ya. O sol não vai demorar a nascer, e eu vou saudá-lo na minha terra – ainda de mãos dadas, vovó e eu caminhamos até a porta. Quando passamos pelos meus amigos, cada um deles a tocou e disse “até logo, vovó”, o que a fez sorrir entre lágrimas.
Ao atravessarmos a porta, tivemos uma pequena bolha de privacidade, e eu a abracei de novo, dizendo:
– Eu entendo por que você tem que ir, mas eu realmente preferia que você não fosse.
– Eu sei, mas daqui a sete dias...
Então a porta foi aberta e de repente Neferet estava lá, parecendo sombria e ilusoriamente bonita.
– Sylvia, eu soube da sua perda. Por favor, aceite meu sincero pesar por ter sido a sua filha quem morreu.
Vovó ficou tensa ao som da voz de Neferet e se soltou do meu abraço. Ela respirou fundo e encontrou o olhar da vampira.
– Eu aceito os seus pêsames, Neferet. Realmente sinto a sinceridade nas suas palavras.
– Existe algo que a Morada da Noite possa fazer por você? Há alguma coisa de que você precise?
– Os elementos já me fortaleceram e a Deusa já deu as boas-vindas para a minha filha no Mundo do Além.
Neferet assentiu.
– Zoey e seus amigos são gentis e a Deusa é generosa.
– Eu não acredito que seja gentileza ou generosidade o que estava por trás das ações de Zoey, seus amigos e a Deusa. Acho que foi amor. Você não acha, Grande Sacerdotisa?
Neferet fez uma pausa, como se ela realmente estivesse pensando na pergunta de vovó, e então respondeu:
– O que eu acho é que você pode estar certa.
– Sim, eu posso. E há uma coisa que eu preciso da Morada da Noite.
– Nós ficaremos honrados em ajudar uma Sábia Cherokee em um momento de necessidade – Neferet afirmou.
– Obrigada. Gostaria de pedir que Zoey e o seu círculo tenham permissão para ir até a minha fazenda daqui a sete dias para realizar um ritual de purificação. Isso vai complementar o meu luto e limpar minha casa de qualquer mal que ainda possa ter restado.
Eu vi algo passar dentro dos olhos intensos de Neferet – algo que, pelo menos por um momento, pode ter sido medo. Mas, quando ela falou, sua expressão e sua voz refletiam apenas um interesse educado.
– É claro. Eu dou permissão para esse ritual de bom grado.
– Obrigada, Neferet – vovó disse e então ela me abraçou mais uma vez e me beijou suavemente. – Daqui a sete dias, u-we-tsi-a-ge-ya, eu vou vê-la de novo.
Pisquei com força para evitar que minhas lágrimas caíssem. Não queria que a última visão que a vovó tivesse de mim fosse relacionada a choro e meleca de nariz.
– Sete dias. Eu a amo muito, vovó. Nunca se esqueça disso.
– Eu não posso esquecer disso assim como não esqueço de respirar. Eu também te amo, filha.
Então vovó se virou e foi embora. Eu fiquei parada na entrada da escola, observando suas costas fortes e eretas até que a noite a encobriu totalmente.
– Vamos, Z. – Stark colocou seu braço em volta do meu ombro. – Acho que já chega de escola por hoje. Vamos para casa.
– É, Z. Vamos para casa – Stevie Rae concordou.
Eu estava assentindo e me preparando para dizer “tudo certo” quando senti um calor súbito queimando o meu peito. No começo fiquei confusa. Ergui minha mão para esfregar o local da ardência e toquei o círculo duro que estava irradiando o calor.
De repente, Aurox deu um passo e entrou no meu campo de visão. Ele estava com Dragon Lankford.
– Zoey, eu ouvi as notícias sobre sua mãe. Sinto muito – Dragon disse.
– O-obrigada – murmurei. Não olhei para Aurox. Lembrei das palavras de Lenobia, de que eu precisava fazer cara de pôquer perto dele, mas eu me sentia tão machucada e ferida que não consegui fazer nada além de falar sem pensar para Stark: – Quero ir para casa, mas primeiro preciso de um momento comigo mesma – antes mesmo que ele pudesse dizer “tudo bem”, eu me desvencilhei do seu braço e passei rápido por Dragon e Aurox.
– Zoey? – Stark me chamou. – Aonde você...
– Vou estar no chafariz do jardim perto do estacionamento – eu disse por sobre o ombro para ele. Pude ver que ele estava franzindo a testa preocupado, mas eu não consegui evitar. Eu precisava sair dali naquela hora. – Venha me chamar quando todos já estiverem dentro do ônibus e a gente puder partir.
Não esperei pela sua resposta. Abaixei a cabeça e andei apressada pela calçada que ladeava o prédio principal da escola. Quase correndo, virei à direita e fui direto para o banco de ferro que ficava abaixo de uma das árvores em círculo que emolduravam o chafariz e o pequeno jardim, que os novatos chamavam de jardim dos professores, pois era perto da parte da escola em que eles moravam. Eu sabia que se alguém olhasse pelas janelas amplas e ornamentadas eu seria vista, mas eu também sabia que todos os professores deveriam estar terminando a sexta aula nas suas classes, o que significava que este era o único lugar do campus em que eu podia quase com certeza ficar sozinha a esta hora.
Então eu me sentei ali, na sombra de um grande ulmeiro, tentando controlar meus pensamentos. A presença de Aurox tinha confundido minha mente, e eu não sabia por quê. Agora, neste segundo, eu não me importo nem um pouco. Mamãe está morta. Seja o que for que Neferet e o Mal estejam preparando para mim, eles podem tirar o cavalo da chuva. Todo mundo pode tirar o cavalo da chuva. Meus pensamentos pareceram maldosos e duros, mas a lágrima que estava deslizando pelo meu rosto contava uma história diferente.
Mamãe não está mais neste mundo. Ela não está mais em casa esperando pelo padrasto-perdedor e cuidando da cozinha. Eu não posso ligar para ela e deixá-la brava comigo e ouvi-la me dar um sermão por eu ser uma filha horrível. Era uma sensação estranha ser órfã. Quero dizer, eu e ela não fomos próximas por mais de três anos, mas mesmo assim sempre continuava no fundo da minha mente a esperança de que um dia ela ia recobrar a razão, abandonar aquele idiota com quem ela tinha se casado e voltar a ser a Mamãe.
– Ela o tinha abandonado – eu falei. – Tenho que lembrar disso – minha voz deu um nó, mas limpei a garganta e falei em voz alta novamente para a noite. – Mamãe, sinto muito que nós não pudemos nos despedir. Eu amo você. Sempre amei. Sempre vou amar – então coloquei meu rosto entre minhas mãos, cedi à terrível tempestade de tristeza que estava dentro de mim e comecei a chorar convulsivamente.

Aurox

A novata chamada Zoey – aquela com as tatuagens estranhas que cobriam não apenas seu rosto, mas também seus ombros, mãos e, como Neferet havia contado, algumas outras partes do seu corpo – fez que ele se sentisse estranho.
Neferet dissera que Zoey era inimiga dela. Isso fazia de Zoey sua inimiga também. Ela era inimiga de sua mestra e representava perigo – e esse perigo deve ter sido a causa da estranheza que ele sentiu quando ela estava por perto. Aurox prestara atenção na direção que Zoey havia tomado quando ela saiu apressada. Ele deveria estar atento a tudo relacionado a ela. Zoey era perigosa.
– Neferet, preciso falar com você sobre as novas aulas que estão sendo ministradas na arena de Lenobia – Dragon Lankford estava dizendo.
Os olhos frios de Neferet se voltaram para Dragon.
– Foi decidido pelo Conselho Supremo que esses novatos vão ficar na escola, pelo menos por enquanto.
– Eu entendo, mas...
– Mas você prefere ter o Raven Mocker na sua classe? – Neferet foi ríspida.
– Rephaim não é mais um Raven Mocker – a Grande Sacerdotisa Vermelha saiu rapidamente em defesa do seu companheiro.
– E ainda assim ele chama aquelas criaturas, aqueles Raven Mockers, de irmãos – Aurox disse.
– De fato, Aurox, essa é uma observação relevante – Neferet falou sem olhar para ele. – Como você é o presente de Nyx para mim, acho que é importante que nós escutemos as suas observações.
– O que isso tem de mais? Eles são seus irmãos. Ele não está tentando esconder isso – balançando a cabeça, a Grande Sacerdotisa Vermelha encontrou seus olhos. Aurox viu tristeza e raiva ali, mas essas emoções não eram fortes o bastante para que ele as sentisse e extraísse poder delas. – Você não deveria ter matado aquele Raven Mocker. Ele tinha parado de atacar.
– Você acha que nós devemos esperar que aquelas criaturas destruam outro de nós antes de agirmos contra elas? – Dragon Lankford perguntou.
A ira do Mestre da Espada era mais tangível e Aurox absorveu algum poder dela. Ele a sentiu ferver seu sangue, pulsando, alimentando-o, transformando-o.
– Aurox, você não é necessário aqui. Pode continuar com as suas funções. Comece aqui no prédio principal da escola e ande em volta de todo o perímetro do campus. Patrulhe os jardins. Certifique-se de que nenhum Raven Mocker volte – sua mestra deu uma olhada para a Grande Sacerdotisa Vermelha e acrescentou: – Minha ordem é atacar apenas aqueles que ameacem você ou a escola.
– Sim, Sacerdotisa – ele se curvou para ela e então voltou para a porta e saiu para a noite, enquanto ouvia a Grande Sacerdotisa Vermelha ainda defendendo seu companheiro. Ela também é uma inimiga, apesar de minha mestra dizer que é uma espécie diferente de inimiga, uma espécie que pode ser usada.
Aurox pensou sobre a dificuldade daqueles que se opunham a Neferet. Ela havia explicado a ele que em breve todos esses novatos e vampiros ou iriam se submeter à vontade dela ou seriam destruídos. Sua mestra esperava ansiosa por esse dia. Aurox também.
Ele saiu da calçada, virando à direita em direção à extremidade do prédio principal da escola. Aurox se manteve afastado da luz bruxuleante dos lampiões de gás. Instintivamente, ele preferia as sombras mais profundas e os cantos mais escuros. Seus sentidos estavam sempre em alerta, sempre procurando. Então foi estranho que o lenço de papel o alarmasse. Era um simples retângulo branco. Ele flutuou no vento, esvoaçando na frente dele quase como um pássaro. Ele parou e estendeu o braço, arrancando o lenço da noite.
Que estranho, ele pensou, um lenço de papel flutuando. Inconscientemente, ele o enfiou no bolso da sua calça jeans. Dando de ombros para o mau pressentimento, ele continuou andando.
As emoções dela o atingiram depois que ele deu mais dois passos.
Tristeza – um pesar muito sério e profundo. E culpa. Havia culpa entre os sentimentos dela também.
Aurox sabia que era a jovem Grande Sacerdotisa Novata – Zoey Redbird. Ele disse a si mesmo que havia se aproximado dela apenas porque era sábio observar o inimigo. Mas enquanto ele se aproximava, enquanto os sentimentos dela o inundavam, algo inesperado aconteceu dentro dele. Em vez de absorver as suas emoções e se alimentar delas, Aurox as absorveu e as sentiu.
Ele não se transformou. Ele não começou a tomar a forma da criatura de grande poder.
Em vez disso, Aurox sentiu.
A tristeza de Zoey o puxou para a frente e, quando ele parou nas sombras ao redor dela e a observou chorando convulsivamente, a emoção dela fluiu para dentro dele e se acumulou em um lugar pequeno, quieto e escondido bem no fundo do seu espírito. Enquanto Aurox absorvia a tristeza, a culpa, a solidão e o desespero de Zoey, alguma coisa se agitou dentro dele em resposta.
Era totalmente inesperado e completamente inaceitável, mas Aurox sentiu vontade de confortar Zoey Redbird. O impulso era tão estranho a ele que o choque fez que ele se movesse instintivamente, como se o seu subconsciente comandasse o seu corpo.
Ele saiu da escuridão no mesmo momento em que ela pressionou a palma da sua mão em um lugar no meio dos seus seios. Ela piscou, obviamente tentando ver entre as lágrimas, e os olhos dela encontraram os seus. O corpo dela se endireitou e ela pareceu prestes a sair em disparada.
– Não, você não precisa ir embora – ele se ouviu dizer.
– O que você quer? – ela falou e então deu outro pequeno soluço.
– Nada. Eu estava passando. Você estava chorando. Eu ouvi.
– Quero ficar sozinha – ela afirmou, enxugando o rosto com as costas da mão e fungando.
Aurox não percebeu o que ele fez até que ele e a garota ficaram olhando para o lenço de papel que ele havia tirado do bolso para oferecer a ela.
– Então vou deixar você sozinha, mas você precisa disto – ele disse, soando constrangido e estranho aos seus próprios ouvidos. – Seu rosto está muito molhado.
Ela olhou para o lenço de papel por um instante antes de pegá-lo. Então ela levantou os olhos para ele.
– Meu nariz fica cheio de muco quando eu choro.
Ele sentiu sua cabeça assentir.
– Sim, é verdade.
Ela assoou o nariz e enxugou seu rosto.
– Obrigada. Eu nunca tenho um lencinho Kleenex quando preciso.
– Eu sei – então ele sentiu seu rosto ficar vermelho e quente e seu corpo ficar frio, pois não havia motivo nenhum para ele dizer uma coisa dessas. Ele não devia falar com essa novata inimiga de modo algum.
Ela estava olhando para ele de novo, com uma expressão esquisita.
– O que você disse?
– Que eu preciso ir – Aurox se virou e saiu rápido em direção à noite. Ele esperava que as emoções que ela o havia feito sentir desaparecessem, saíssem dele, como tinha acontecido com as emoções dos outros depois que ele as absorveu, usou-as e as deixou de lado. Mas um pouco da tristeza de Zoey ficou dentro dele, assim como a sua culpa e, o mais peculiar de tudo, como a solidão dela, que ficou empoçada em um abismo profundo e escondido na sua alma.
1 Powwow é uma cerimônia dos índios norte-americanos conduzida por uma xamã. (N.T.)

9

Zoey
Eu fiquei olhando Aurox se afastar por um bom tempo.
Que droga é essa?
Assoei meu nariz de novo, balancei a cabeça e olhei para o chumaço molhado e amassado de Kleenex na minha mão. Qual era a jogada da criatura de Neferet? Será que ela o tinha enviado atrás de mim de propósito para me oferecer um lenço e bagunçar a minha cabeça já bagunçada?
Não, não podia ser isso. Neferet não sabia que o fato de Aurox me oferecer um Kleenex me faria lembrar de Heath. Ninguém saberia disso exceto Heath. Bem, e Stark.
Então só podia ter sido uma coincidência esquisita. Claro, Aurox era uma espécie de criatura de Neferet, mas isso não significava que ele era imune aos efeitos de lágrimas de garotas. Ele era um cara – pelo menos eu tinha certeza de que ele era um cara. E, ele poderia ser, de alguma forma, um pouco diferente daqueles subordinados estúpidos de Neferet. Ele poderia ser um cara legal – ou pelo menos ele podia ser legal quando não estava se transformando em uma máquina de matar que parecia um touro. Que inferno, Stevie Rae tinha encontrado um Raven Mocker bom. Quem sabe o...
E então eu percebi o que estava fazendo. Eu estava Kalonizando Aurox. Estava vendo bondade onde não existia nenhuma.
– Ah, que droga! Eu não vou fazer isso de jeeeeeeito nenhum – eu me recriminei em voz alta.
– Não vai fazer o que, Z.? – Stark entrou no jardim com uma caixa de Kleenex nas mãos. – Ei, parece que você estava preparada para a primeira leva de catarro – ele disse, fazendo um gesto em direção ao meu chumaço amassado de papel.
– Ah, eu vou aceitar outro. Obrigada – respondi, puxando alguns lenços da caixa e enxugando meu rosto de novo.
– Então, o que você não vai fazer? – ele se sentou ao meu lado no banco. O ombro dele roçou o meu e eu me recostei nele.
– Eu só estava lembrando a mim mesma para não deixar que as coisas malucas que acontecem aqui me deixem louca, ou pelo menos mais louca do que já sou.
– Você não é louca, Z. Você está passando por coisas difíceis, mas vai ficar bem – ele falou.
– Espero que você esteja certo – eu murmurei e então outro pensamento ainda mais depressivo me atingiu. – Ei, você falou para o resto do pessoal não ficar me tratando de um jeito todo estranho por causa da minha mãe?
– Não tive que dizer isso. Eles são seus amigos, Z. Eles vão tratar você como quem se importa, não de um jeito estranho – Stark respondeu.
– Eu sei, eu sei, é só que... – minha voz perdeu o trilho. Eu não sabia como organizar e colocar em palavras a dor, a culpa e a terrível sensação de solidão que não ter uma mãe estava me provocando.
– Ei – Stark olhou para mim. – Você não está sozinha.
– Você está escutando meus pensamentos? Você sabe que eu não gosto quando...
Ele segurou meus ombros e me sacudiu levemente.
– Não é preciso usar a conexão do Juramento Solene do Guerreiro para saber que você está se sentindo sozinha. Eu não conheço nenhum outro garoto que tenha perdido a mãe, você conhece?
– Não. Só eu – mordi o lábio para evitar o berreiro. De novo.
– Viu, não é difícil sacar o que se passa com você – então ele me beijou. Não de boca aberta, de um jeito quente, do tipo “quero que você tire a roupa”. O beijo de Stark foi suave, doce e tranquilizador. Quando os seus lábios deixaram os meus, ele sorriu dentro dos meus olhos. – Mas, como eu já disse, você vai passar por tudo isso numa boa e sem ficar louca porque você é inteligente, forte, bonita e simplesmente fora de série.
Dei uma risadinha inesperada.
– Fora de série? Você realmente acabou de dizer isso?
– É claro que eu acabei de dizer isso! Você é incrível, Z.
– Mas fora de série? – dei uma risadinha de novo e senti meu estômago começar a descontrair. – Essa foi a expressão mais ridícula que já ouvi você dizer.
Ele colocou a mão no peito como se eu tivesse acabado de apunhalá-lo.
– Z., isso doeu. Eu estava tentando ser romântico.
– Bem, pelo menos você tentou – eu respondi. – Por favor, diga que você não inventou essa expressão sozinho.
– Nããão – ele deu aquele seu sorriso fofo e metidinho. – Eu ouvi um grupo de garotas terceiro-formandas dizer que eu era fora de série quando elas estavam me observando disparar flechas na arena na última aula.
– Sério? – levantei uma sobrancelha e o fuzilei com os olhos. – Terceiro-formandas?
A parte metidinha do seu sorriso desapareceu.
– Eu quis dizer terceiro-formandas sem atrativos.
– Tenho certeza de que foi exatamente isso o que você quis dizer.
Os olhos dele faiscaram.
– Ciúme?
Eu bufei e menti:
– Não!
– Você não precisa ter ciúme. Nunca. Porque você não é simplesmente fora de série. Você é de uma série única e exclusiva, e jogaram fora a forma em que você foi feita.
– Você tem certeza?
– Tenho.
– Jura?
– Sim.
Eu me encostei nele.
– Tá bom, eu acredito em você, seu ridículo – descansei minha cabeça no seu ombro e ele colocou seu braço em volta de mim. – Podemos ir para casa agora?
– Claro. Sua limusine pequena e amarela está carregada e esperando por você – ele se levantou e me puxou para que eu ficasse em pé. De mãos dadas, andamos em direção ao estacionamento. Olhei de lado furtivamente para Stark. Ele parecia satisfeito consigo mesmo (e totalmente gostoso). É óbvio que aquela expressão ridícula que ele usou tinha sido parte da sua estratégia para me tirar do buraco de depressão em que senti que eu estava caindo.
Stark deve ter sentido isso também, não porque ele estava escutando meus pensamentos indevidamente, mas porque ele era meu Guardião, meu guerreiro e muito, muito mais.
Eu apertei a mão dele.
– Obrigada.
Ele deu uma olhadinha para mim, sorriu e então levou minha mão aos seus lábios.
– Sem problemas. Espere até ouvir a expressão que estou criando para descrever os seus peitos. Desta vez, vou inventar sozinho. Não preciso da ajuda de nenhuma terceiro-formanda sem atrativos para isso.
– Não. Simplesmente não.
– Mas você pode precisar de algo mais para levantar seu astral.
– Não. Eu estou bem. Conversar sobre peitos não é nem um pouco necessário.
– Bem, lembre-se de que eu estou aqui se você precisar de mim – ele disse, abrindo o sorriso de novo. – Preparado, disposto e capaz.
– É um conforto. Obrigada.
– Tudo parte da descrição do trabalho de Guardião.
Levantei as duas sobrancelhas nessa hora.
– Você realmente leu a descrição do trabalho de Guardião?
– Mais ou menos. Seoras disse: “Tome conta da sua rainha ou vou terminar os minúsculos arranhões que comecei a fazer em você” – ele falou, soando incrivelmente igual ao antigo Guardião escocês.
– Minúsculos? – eu estremeci, lembrando dos ferimentos sangrentos que haviam retalhado todo o peito dele. Como eu poderia esquecer algum dia? Nem se eles não fossem ainda cicatrizes recentes e rosadas, apesar dos poderes curativos dos meus elementos e do meu sangue. – Minúsculos definitivamente não é a palavra que eu usaria para descrevê-los.
– Ach1, moçoila. Não foi nada além de alguns arranhões de gatinha2.
Senti meus olhos se arregalarem e então dei um soquinho no braço dele.
– Gatinha!
Ele esfregou o braço e então disse com sua voz normal:
– Z., na Escócia isso quer dizer gato animal mesmo. Sério.
– Você é um cara – olhei zangada para ele.
Por algum motivo bobo, aquilo o fez rir. Então ele colocou seus braços em volta de mim e me deu um abraço gigante.
– É, eu sou um cara. O seu cara. E quero que você se lembre que, mais importante do que tudo isso – ele fez uma pausa e se afastou um pouco para poder fazer um gesto indicando a Morada da Noite e o ônibus que estava esperando um pouco adiante de onde nós estávamos –, mais importante do que a coisa do guerreiro e mais até do que a coisa do Guardião, eu amo você, Zoey Redbird. E eu sempre vou estar por perto quando você precisar de mim.
Voltei para dentro dos seus braços e dei um longo suspiro de alívio.
– Obrigada.
– Ali está ela! – ouvi a voz de Kramisha gritando e suspirei, certa de que eu era a “ela” a quem ela se referia. Levantei os olhos e, de fato, Kramisha estava parada em frente do micro-ônibus lotado com Stevie Rae, Aphrodite, Damien, as gêmeas, Erik e uma novata vermelha que eu não reconheci. De mãos dadas com Stark, andei o resto do caminho até lá.
– Sinto muito sobre a sua mãe. É muito triste – Kramisha falou quando eu cheguei.
– Hum, o-obrigada – gaguejei e estava começando a pensar que eu precisava descobrir um modo não tão desajeitado de responder às pessoas que viessem me dar os pêsames pela morte da minha mãe quando Kramisha continuou a falar.
– Z., eu sei que não é uma boa hora, mas nós temos um problema.
Reprimi outro suspiro.
– Com esse “nós”, você quer dizer “eu” ou “você”?
– Nós achamos que esse problema pode afetar a todos – Stevie Rae afirmou.
– Ótimo – respondi.
– Zoey, esta é Shaylin – Erik me apresentou a garota desconhecida, que estava me examinando como se ela desejasse me ter embaixo da lente de um microscópio. Afe, era um saco conhecer garotos novos.
– Oi, Shaylin – eu disse, tentando ignorar o modo como ela me encarava.
– Roxa – ela falou.
– Pensei que Erik tivesse dito que seu nome era Shaylin – eu disse, apesar de querer gritar Sim! Sou eu! Aquela com as tatuagens esquisitas!
– Meu nome é Shaylin – ela me deu um sorriso realmente afetuoso e agradável. – Você é roxa.
– Ela não é Roxa, ela é Zoey – Stark respondeu, soando tão confuso quanto eu estava.
– Você também tem algumas partículas prateadas – Shaylin parou de me encarar e então voltou seu olhar intenso para ele. – Você é vermelho, dourado e um pouco preto. Hum. Isso é estranho.
– Eu não sou...
– Ah, que merda – Aphrodite interrompeu e apontou para Shaylin. – O nome dessa nova garota é Shaylin e ela não está chamando vocês de cores, ela está vendo as suas cores.
– Minhas cores? Não tenho a menor ideia do que isso significa – eu disse, franzindo a testa para Aphrodite e olhando para Shaylin com um ponto de interrogação enorme na cara.
– Eu também não sei muito bem o que isso significa – Shaylin respondeu. – Isso simplesmente aconteceu comigo, logo depois que fui Marcada.
– Acho que Shaylin recebeu um dom chamado Visão Verdadeira – Damien explicou. – É raro. Acho que há algo sobre isso no Manual Avançado do Novato, mas eu só dei uma olhada em um deles – ele pareceu constrangido e querendo se desculpar. – Eu não estudei esse livro de fato.
– Damien, você é só um quarto-formando. Isso não faz parte do conteúdo do seu ano.
– Hello, conversa de obcecados por lição de casa – Erin resmungou.
– É brincadeira! – Shaunee acrescentou.
– Olha só – levantei minha voz para que todos olhasses para mim em vez de começarem aquelas briguinhas que eu tinha certeza que estavam por vir. – Eu não sei o que é a Visão Verdadeira, mas se é um dom, e eu imagino que vocês querem dizer um dom de Nyx, então qual é o problema? – perguntei.
– Ela é uma novata vermelha – Aphrodite respondeu.
– E daí? Há um ônibus inteiro cheia de novatos vermelhos – afirmei, indicando o micro-ônibus atrás deles.
– Sim, e cada um de nós teve que morrer e então desmorrer antes de ter isto aqui – Kramisha apontou para o contorno vermelho de uma lua crescente na sua testa.
Olhei para ela e depois para a garota nova, até que finalmente minha mente captou o que meus olhos viam. Voltei-me para Erik.
– Você acabou de Marcá-la em vermelho?
– Não. Sim – Erik balançou a cabeça e também pareceu preocupado. – Eu não tinha a intenção. Eu a Marquei. Tudo bem, não foi exatamente como o planejado, mas isso aconteceu porque ela era cega e fiquei surpreso – todos nós o encaramos e ele passou a mão pelo seu cabelo grosso e escuro. Seus ombros desabaram. Então ele acrescentou: – Eu me atrapalhei, e é por isso que agora ela é uma novata vermelha e consegue ver nossas cores.
– Você não se atrapalhou, Erik – pareceu que Shaylin começou a levantar a mão para acariciar o braço de Erik, mas no meio do caminho mudou de ideia. O olhar dela se voltou para mim e ela continuou: – Antes de ele me Marcar, eu era cega. Eu era cega desde criança. No segundo em que ele me Marcou, consegui enxergar novamente, e isso não foi uma trapalhada. Foi incrível.
– Ah! Eu sabia que havia sentido uma nova novata entre nós! – ao som da voz de Neferet, todos nós demos um pulo como se ela tivesse nos atingido com um Taser3. Ela estava vindo rápido em nossa direção, com seu vestido longo de veludo verde arrastando-se no chão, fazendo parecer que ela deslizava em vez de andar (o que era super assustador). – Merry meet, eu sou Neferet, sua Grande Sacerdotisa – ela voltou rapidamente sua atenção para Erik e pude ver um lampejo de aborrecimento nos seus olhos. – Professor Night, você não deveria ter trazido a garota aqui – Neferet chegou perto de Shaylin e fez um gesto gracioso de desculpas para ela. – Jovem novata, o Rastreador deveria tê-la instruído para ir até o dormitório feminino, onde você vai encontrar o resto das... – ela perdeu a fala quando finalmente viu a Marca de Shaylin.
– Sim – eu falei, incapaz de manter minha boca fechada por mais tempo. – Ela é vermelha. O que significa que ela está no lugar certo.
– E eu sou a Grande Sacerdotisa dela. Não você – Stevie Rae concluiu por mim.
– Ah! Você é... ah, eu não estou me sentindo bem! – Shaylin estava encarando Neferet quando de repente desmaiou. Erik a segurou antes que ela batesse a cabeça no chão, dando um jeito de parecer assustado e heroico ao mesmo tempo (sério, ele é um ator excelente).
– Ela passou por muita coisa – Aphrodite disse, dando um passo para ficar face a face com Neferet. – Ela precisa ir para casa. Para a estação. Com a gente. Agora.
Prendi a respiração quando os olhos de Neferet se estreitaram e ela começou a encarar cada um dos garotos do nosso grupo. Todos os vampiros eram intuitivos, mas Neferet era mais do que isso. Ela podia ler mentes. Bem, a maioria das mentes dos novatos – ou pelo menos a superfície dos seus pensamentos. Fiz uma prece rápida e silenciosa para Nyx: Por favor, faça que cada um deles pense em qualquer coisa, menos no fato de que essa garota nova pode ter a Visão Verdadeira, seja o que for que isso signifique.
De repente, a expressão desconfiada de Neferet se alterou. Ela riu alto. Na verdade, ela gargalhou. Eu não tinha ideia como isso era possível, mas a risada dela soou maldosa, horrível e sarcástica. Como uma risada podia ser tão péssima?
– Ela era cega. Foi por isso que ela foi Marcada em vermelho. Ela já estava destruída. Simplesmente, ela não precisou morrer para ficar assim. Bem, pelo menos ela não morreu ainda.
Kramisha estava em pé ao meu lado, então eu a vi se contrair de medo. Neferet também viu. A falsa Grande Sacerdotisa sorriu para a nossa Poeta Laureada.
– O que foi? Você acreditava realmente que esse contorno vermelho era a garantia da sua transformação? – ela inclinou a cabeça para o lado, lembrando-me um réptil. – Sim, eu posso sentir o seu choque e o seu medo. Você não tinha pensado nisso. O seu corpo ainda pode rejeitar a transformação.
– Você não tem certeza disso – Stevie Rae se aproximou de Kramisha.
– Não tenho? – de novo, a risada de Neferet foi maldosa e horrível. Ela levantou o queixo na direção de Shaylin, que ainda estava desmaiada nos braços de Erik. – Aquela ali parece bizarra para mim – ela voltou seu olhar para Aphrodite. Eu vi Aphrodite colocar os punhos na cintura, como se estivesse se preparando para explodir. – Um pouco como você é bizarra, e você nem é mais uma novata.
– Não, eu não sou. Mas eu estou feliz do jeito que sou. E você, Neferet?
Em vez de responder, Neferet disse:
– Levem a nova novata com vocês. Você está certa em uma coisa, Aphrodite. O lugar dela é com vocês e com o resto dos desajustados, não aqui. Em nome de todos os deuses, o que mais Nyx vai inventar?
E então, gargalhando, ela deu as costas para nós e foi embora deslizando.
Quando ela estava longe o bastante para não ouvir, soltei um longo suspiro.
– Bom trabalho, vocês todos, por não pensarem na coisa da Visão Verdadeira.
– Ela me dá medo – Kramisha disse com uma voz que soou muito, muito jovem.
Stevie Rae colocou o braço em volta de Kramisha.
– Tudo bem ter medo dela. Isso só vai nos fazer lutar com mais força contra ela.
– Ou correr mais rápido – Erik disse sombriamente.
– Alguns de nós não estão fugindo – Stevie Rae respondeu.
– Você tem certeza? – Shaylin falou.
– Ei, você está de volta? – Erik perguntou.
– Na verdade, eu não fui a lugar nenhum. Hum. Você pode me colocar no chão agora. Por favor.
– Ah, sim claro – Erik gentilmente a colocou no chão. Ele manteve uma mão no seu braço, como que para se certificar de que ela não ia cambalear e cair, mas ela ficou em pé parecendo totalmente equilibrada.
– Então você fingiu um desmaio. Por quê? – Aphrodite fez a pergunta antes de mim.
– Bem, não é difícil imaginar – Shaylin olhou para Kramisha. – Eu concordo com você. Ela me dá medo – então ela continuou: – Eu fingi desmaiar porque ou eu fazia isso ou eu fugia correndo e gritando – ela trocou um olhar com Erik. – É, eu concordo com você também – Shaylin deu de ombros. – Mas ela disse que era uma Grande Sacerdotisa. Eu não sei muito sobre vampiros, mas todo mundo sabe que as Grandes Sacerdotisas são as que comandam. Fugir gritando de uma no meu primeiro dia como novata não me pareceu uma boa opção.
– Então você pensou em bancar o espantalho – Stevie Rae disse.
– Bancar a quê?
– É um jeito caipira de dizer que você se fingiu de morta para que Neferet deixasse você em paz – Aphrodite explicou.
– Sim, foi exatamente o que eu fiz – Shaylin concordou.
– Não foi má ideia – Stark falou. – Conhecer Neferet e ser Marcada, tudo no mesmo dia, foi demais para você.
– O que você viu? – minha pergunta pareceu pegar todo mundo de surpresa, menos Shaylin. Ela encontrou meu olhar intenso e o sustentou com firmeza enquanto me respondeu.
– Um pouco antes de ficar cega, estive com a minha mãe na Nam Hi, aquela grande mercearia vietnamita na Garnett quase esquina com a Twenty-first. Eles tinham peixes inteiros para vender, que ficavam em uma grande caixa de gelo. Eles me assustaram tanto que eu me lembro de só ter conseguido ficar ali parada, olhando fixamente para os seus olhos mortos e leitosos e para os seus horríveis ventres abertos.
– Neferet tem a cor de ventre de peixe morto? – Stevie Rae perguntou.
– Não. A cor de Neferet é a mesma da dos olhos de um peixe morto. É a única cor dela.
– Isso não pode ser nada bom – Kramisha falou.
– O que não pode ser nada bom? – Darius perguntou enquanto se juntava ao nosso grupo e pegava a mão de Aphrodite.
Ela se encostou nele e disse:
– Darius, guerreiro garanhão, esta é Shaylin, novata vermelha recém-Marcada, que não morreu para ficar vermelha e que tem a Visão Verdadeira. Ela acabou de “ver” – Aphrodite fez aspas com os dedos – Neferet, e aparentemente a cor verdadeira dela é de olhos de peixe morto.
Darius não se abalou nem um pouco. Ele apenas se curvou levemente para a nova garota e a saudou com um “Merry meet, Shaylin”, o que ou mostrou que o guerreiro tinha um autocontrole impressionante ou era apenas mais uma prova de que as nossas vidas tinham virado uma completa loucura.
– Nós precisamos estudar mais sobre a Visão Verdadeira – Damien sugeriu. – É assunto de sexto-formando para cima. Você sabe alguma coisa sobre isso? – ele perguntou a Darius.
– Não muito. Eu me foquei mais em facas, não em Sociologia Vampírica – Darius respondeu.
– Bem, eu tenho esse manual avançado idiota – Aphrodite falou. Quando todos nós olhamos admirados na sua direção, ela franziu as sobrancelhas. – O que foi? Eu era uma sexta-formanda antes disto acontecer – ela apontou para a sua testa desMarcada. – Infelizmente, hoje eu tive que voltar para o meu antigo horário escolar – quando nós continuamos a encarando sem falar nada, ela revirou os olhos. – Ah, que merda, eu tenho lição de casa, é só isso. O livro está na minha bolsa incrivelmente linda da Anahata Joy Katkin dentro do micro-ônibus dos retardados.
– Aphrodite, pare de dizer retardados! – Stevie Rae gritou para ela. – Juro que você precisa entrar no site www.r-word.org. Talvez você aprenda que algumas pessoas ficam magoadas com essa palavra com “r”.
Aphrodite piscou várias vezes e então esfregou a testa.
– Um site? Fala sério.
– Sim, Aphrodite. Como eu tentei dizer a você zilhões de vezes, usar essa palavra com “r” é ofensivo e simplesmente uma maldade pura.
Aphrodite inspirou profundamente e soltou o ar junto com um discurso inflamado:
– E que tal um site para uma palavra com “x”, xoxota, que ofende metade do mundo? Ou, espere, melhor ainda. Vamos manter o site www.r-word.org, mas vamos trocar a palavra com “r” para “rapto seguido de estupro”, que causa danos piores do que magoar os sentimentos de mamãezinhas de classe média alta. Ou...
– Chega – entrei no meio das duas. – Nós entendemos. Podemos voltar para o assunto de Shaylin e a Visão Verdadeira?
– Sim, que seja – Aphrodite respondeu, jogando o cabelo para trás.
– Aphrodite é maldosa, Z., mas o que ela disse faz sentido – Erin opinou.
Eu fuzilei Shaunee com os olhos, que apenas concordou entusiasticamente, sem entrar na conversa. Minha cabeça parecia que ia explodir.
– Ah, que inferno – eu falei, jogando as mãos para cima de frustração. – Não sei mais o que a gente estava falando antes da parte sobre os retardados.
– A informação sobre a Visão Verdadeira está dentro do ônibus – Rephaim disse, surpreendendo a todos nós. Ele sorriu com timidez. – Eu realmente não compreendi muito do resto da conversa. Também entendi que Aphrodite é maldosa, mas isso eu já sabia.
Ao meu lado, Stark transformou uma explosão de risada em uma tosse.
Eu suspirei.
– Tudo bem, vamos entrar no ônibus e voltar para a estação. Aphrodite e Damien, encontrem-me na cozinha com o manual avançado – fiz uma pausa e dei uma olhada para Stevie Rae, que ainda estava segurando a mão de Rephaim. – Você quer se juntar a nós depois de, hãm, você sabe, depois de o sol nascer e tal?
– Z., você não tem que pisar em ovos para falar disso. Sim, Rephaim vai se transformar em um pássaro quando o sol nascer e eu gostaria de ficar com ele até lá – Stevie Rae levantou os olhos para Rephaim, que estava sorrindo para ela como se fosse aniversário dele e ela fosse um presente incrível que ele tinha acabado de abrir.
– Isso é sério? – escutei Shaylin perguntar para Erik.
– Sim. É uma longa história – Erik respondeu.
– Não é de se estranhar que a cor dele seja tão esquisita – ela falou.
Fiquei curiosa sobre a cor de Rephaim, mas eu sabia que agora não era a hora de fazer um monte de perguntas, então eu simplesmente disse:
– Kramisha, você pode por favor descobrir onde Shaylin vai ficar?
– Não vou dividir meu quarto – Kramisha respondeu. Então ela deu um olhar de pedido de desculpas para Shaylin. – Sinto muito. Não quis ofender.
– Tudo bem. Eu sempre tive gente em volta de mim desde que fiquei cega. Eu também prefiro ter o meu próprio quarto.
Kramisha sorriu.
– Está certo. Gosto de ser uma mulher independente e vou ajudar você a encontrar um quarto só seu.
– Fechado – Shaylin concordou.
– Aham – Erik limpou a garganta para atrair nossa atenção. Achei que ele parecia nervoso e estranhamente inseguro. – Que tal se eu seguir o ônibus com o meu carro e Shaylin vier comigo? Eu posso colocá-la a par de algumas coisas no caminho, como Rephaim e toda a história dos novatos vermelhos em geral.
– Rastreadores só devem rastrear e Marcar – Aphrodite disse.
– É, e novatos só devem ser Marcados com um crescente azul e então se Transformar ou morrer – ele contra-atacou.
– Acho que tudo bem se Erik nos seguir – Stevie Rae falou, o que me surpreendeu, pois eu sabia que ela não era exatamente muito fã de Erik. – O que você acha, Z.?
Dei de ombros.
– Por mim, tudo bem.
Erik assentiu levemente e então ele e Shaylin foram em direção ao seu carro no estacionamento.
– Estamos prontos para partir? – Darius perguntou.
– Acho que sim, ou pelo menos estaremos assim que o nosso motorista sempre tão amigável chegar – respondi.
Darius sorriu.
– Eu serei o motorista. Eu disse a Christophe que de agora em diante vou assumir a direção do ônibus daqui para a estação e de lá para cá.
Não consegui resistir a dar uma olhada em Aphrodite. Seu rosto estava congelado e seus olhos, arregalados.
– Ei, Aphrodikey está saindo com um motorista de ônibus! – Shaunee não perdoou.
Pareceu que Erin ia acrescentar algum comentário espertinho, mas Aphrodite chegou bem perto das gêmeas e disse:
– Darius não é um motorista de ônibus. Ele é um guerreiro Filho de Erebus. Ele pode matar vocês, mas ele é bom e honrado e portanto não vai fazer isso. Eu, por outro lado, não sou honrada nem guerreira. Eu vou matar vocês ou pelo menos machucar tanto que vocês não vão conseguir ir à próxima venda exclusiva da Miss Jackson’s.
As gêmeas sugaram o ar e, antes que elas respondessem, eu disse rapidamente:
– Certo, então, vamos voltar para a estação. Parece que a gente vai ter que estudar um pouco – segurei o pulso de Aphrodite e praticamente a arrastei para dentro do micro-ônibus. Ela deu um puxão para se soltar de mim, mas continuava me seguindo quando comecei a subir os degraus. Então uma bola laranja de pelos se atirou nos meus braços. – Nala! – eu gritei, quase a derrubando de susto. – Ah, minha bebê! Eu senti tanto a sua falta – eu a acariciei e a beijei. E depois dei risada quando ela espirrou em mim e começou a resmungar com sua voz de velha senhora, “minhaaaaaauuuu”, mesmo enquanto ronronava feito louca.
Enquanto eu estava afagando Nala, houve um barulho de grunhido terrível vindo de dentro do ônibus, e de repente Aphrodite estava forçando a passagem por mim, dizendo:
– Malévola! Mamãe está aqui!
Pareceu chover pelo branco. Os garotos no ônibus tiraram rápido braços e pernas do caminho enquanto o gato mais feio, com a cara mais amassada, maior e mais detestável do universo percorreu o corredor chiando e uivando. Aphrodite parou, pegou sua gata e começou a falar como ela era bonita, maravilhosa e inteligente.
– Aquele gato não é normal – Kramisha afirmou, olhando por sobre o meu ombro. – Mas Aphrodite não é normal também, então acho que funciona bem. – Seu olhar se voltou para Nala, que ainda estava resmungando para mim. – Não é verdade, um monte desses gatos não é normal.
– Um monte desses gatos? – olhei por sobre a cabeça laranja e peluda de Nala e, como eu suspeitava, a minilimusine amarela estava cheia de novatos vermelhos e gatos. – Quando isso aconteceu?
– Eles estavam aqui quando a gente chegou – Kramisha respondeu. – Como eu disse, eles não são normais.
– Hum, bem, então acho que isso significa que a estação é realmente o nosso novo lar – falei, sentindo pela primeira vez que isso podia ser verdade.
– Z., o lar é onde você está – Stark disse, estendendo o braço na minha direção e acariciando a cabeça de Nala.
Eu sorri para ele e me senti aquecida por dentro – quase aquecida o suficiente para esquecer de olhos cor de pedra da lua e do fato de que pessoas em volta de mim continuavam morrendo...
1 Ach é uma expressão escocesa de impaciência, surpresa ou desgosto. (N.T.)
2 Pussy, em inglês, quer dizer gatinha ou gatinho e também é uma gíria para vagina. (N.T.)
3 Arma de eletrochoque fabricada pela empresa norte-americana Taser International. (N.T.)

10

Kalona
– O que você acabou de dizer? – Kalona berrou para o Raven Mocker, que se encolheu de medo.
– Rephaim é um garoto humano – Nisroc repetiu. Seu irmão menos desenvolvido, que havia escapado da ira da criatura mutante, remexeu-se todo agitado, escondendo-se atrás dele.
Kalona andou de um lado para o outro na clareira entre os esconderijos de caça. Ainda não havia amanhecido, mas os outros Raven Mockers, que haviam voltado depois da busca feita pelos seus irmãos no interior de Oklahoma já estavam amontoados dentro das casas nas árvores, escondendo-se, escapando, encolhendo-se de medo da possibilidade de encarar olhos inquisidores. Ele havia ficado lá, olhando cada um deles retornar, procurando por algo que era difícil admitir a si mesmo. Ele estava procurando por humanidade – por um filho com quem pudesse conversar, compartilhar, fazer planos. Mas tudo o que ele havia encontrado eram bestas choramingantes e medrosas. Rephaim era o mais humano de todos eles, Kalona estava pensando pela milésima vez quando Nisroc aterrissou na clareira com um filho a menos ao seu lado e com notícias inacreditáveis de outro.
Kalona rodeou Nisroc.
– Rephaim não pode ter uma forma humana. Isso é impossível! Ele é um Raven Mocker, como você, como seus irmãos.
– A Deusa. Ela o transssformou – Nisroc sibilou.
Uma sensação estranha e agridoce tomou conta de Kalona. Nyx havia transformado seu filho em humano, presenteando-o com a forma de um garoto.
Ela perdoara Rephaim? Como isso era possível?
Quase sem palavras, o imortal perguntou sem pensar:
– Você falou com Rephaim?
Nisroc balançou levemente sua enorme cabeça de corvo para cima e para baixo.
– Sssim.
– Ele realmente disse que estava a serviço de Nyx?
– Sssim – Nisroc curvou sua cabeça, mas continuou olhando furtivamente para ele. – Para você ele ssse recusou a essspionar.
Kalona deu um olhar severo para Nisroc e então voltou sua atenção para o Raven Mocker exaurido que estava se escondendo inutilmente atrás dele. De repente, ele percebeu que havia apenas um irmão de Nisroc ali, onde deveria haver dois.
– Onde está... – Kalona teve que fazer uma pausa para lembrar qual dos seus filhos estava faltando. – Maion? Por que ele não voltou com você?
– Morto – Nisroc pronunciou a palavra sem emoção nenhuma.
– Rephaim o matou? – a voz de Kalona era tão fria quanto o seu coração.
– Não. A criatura. Maion ela matou.
– Que criatura? Fale claramente!
– A criatura da Tsssi Sssgili.
– Um vampiro?
– Não. Primeiro humano, depoisss touro.
Kalona deu um salto de surpresa.
– Você tem certeza? A criatura tomou a forma de um touro?
– Sssim.
– Rephaim se juntou a ela para atacar vocês?
– Não.
– Ele lutou ao lado de vocês contra ela?
– Não. Nada ele fez – Nisroc disse.
Kalona cerrou e depois descerrou o maxilar.
– Então o que parou a besta?
– A Vermelha.
– Então ela e Neferet se enfrentaram? – Kalona disparou rispidamente as perguntas, amaldiçoando-se silenciosamente por ter enviado seres inferiores para testemunhar o que ele deveria ter visto.
– Não. Nenhuma batalha aconteceu. Nós voamos.
– E você afirma que o touro era uma criatura de Neferet.
– Sssim.
– Então é verdade... Neferet se entregou para o touro branco – Kalona começou a andar de um lado para o outro de novo. – Ela não tem ideia das forças que está despertando. O touro branco é a encarnação das Trevas em sua forma mais pura e poderosa.
Em algum lugar lá no fundo de Kalona, algo se agitou dentro dele, algo que não havia voltado à superfície desde que ele caíra. Por um rápido instante, de uma batida do coração, o ancestral guerreiro da Deusa da Noite, o imortal alado que defendera sua Deusa contra o ataque das Trevas por incontáveis séculos teve um desejo automático de ir até Nyx... para avisá-la... para protegê-la.
Kalona afastou esse impulso ridículo quase tão rápido quanto ele o havia sentido. E começou a andar de novo. Pensando em voz alta, ele refletiu:
– Então Neferet tem um aliado que a liga ao touro branco, mas ela deve ter criado um disfarce para ele para apresentá-lo à Morada da Noite, ou vocês teriam visto pelo menos o começo de uma grande luta.
– Sssim, a criatura dela.
Kalona ignorou os comentários repetitivos de Nisroc e continuou raciocinando em voz alta.
– Rephaim começou a servir à Deusa. Ela o presenteou com a forma humana – ele cerrou o maxilar. Kalona se sentia duplamente traído, por seu filho e pela Deusa. Ele havia pedido, praticamente implorado para Nyx perdoá-lo. E qual tinha sido a resposta dela? “Se um dia você se mostrar digno de perdão, peça-o para mim. Mas não antes disso.”
A lembrança da sua breve passagem pelo Mundo do Além e do vislumbre que ele teve da Deusa provocaram uma dor horrível em seu coração. Em vez de senti-la, de pensar nela ou de se influenciar por ela, Kalona abriu os portões da ira que sempre entrava em ebulição logo abaixo dos diques da sua alma. Ao inundá-lo, a ira levava embora quaisquer outros sentimentos mais nobres e honestos.
– Meu filho precisa aprender uma lição sobre lealdade – Kalona afirmou.
– Leal eu sou! – Nisroc gritou.
Kalona sorriu desdenhosamente.
– Não falei de você. Falei de Rephaim.
– Essspionar Rephaim não vai – Nisroc repetiu.
Kalona deu uma bofetada nele e o Raven Mocker cambaleou para trás e se chocou contra o seu irmão.
– Rephaim fez muito mais do que espionar para mim no passado. Ele era um segundo par de punhos, um segundo par de olhos, quase uma extensão de mim. É o hábito que me faz olhar o céu procurando por ele. Estou descobrindo que o hábito é algo difícil de quebrar. Talvez Rephaim também esteja achando isso difícil – o imortal alado deu as costas aos seus filhos e encarou o leste, sobre as montanhas cobertas de árvores, na direção da adormecida Tulsa. – Eu devo visitar Rephaim. Nós temos, afinal de contas, um inimigo comum.
– A Tsssi Sssgili?
– Certo. A Tsi Sgili. Rephaim não vai chamar de espionagem se nós estivermos servindo a um objetivo comum: derrubar Neferet.
– Governar no lugar dela você vai?
Kalona voltou seus olhos âmbar para seu filho.
– Sim. Eu sempre vou governar. Vamos descansar agora. Ao pôr do sol, eu parto para Tulsa.
– Conosssco? – o Raven Mocker perguntou.
– Não. Vocês ficam aqui. Continuem a reunir meus filhos. Fiquem escondidos e esperem.
– Esssperar?
– Pelo meu chamado. Quando eu governar, aqueles que permanecerem leais a mim ficarão ao meu lado. E aqueles que não ficarem serão destruídos, não importa quem sejam. Você entendeu, Nisroc?
– Sssim.

Rephaim

– Sua pele é tão macia – Rephaim desceu as pontas dos dedos pelas curvas das costas nuas de Stevie Rae, maravilhado com o prazer que ele sentia por ser capaz de abraçá-la e de pressionar seu corpo totalmente humano contra o dela.
– Eu gosto que você me ache especial – Stevie Rae disse, sorrindo um pouco tímida para ele.
– Você é especial – ele respondeu. Então ele deu um suspiro e começou a gentilmente se soltar dela. – O amanhecer está próximo. Tenho que subir.
Stevie Rae se sentou e cobriu seus seios nus com o edredom grosso que ficava sobre a cama do seu pequeno e surpreendentemente bonito quarto nos túneis. Ela piscou seus grandes olhos azuis para ele. Seu cabelo estava despenteado e cacheado e emoldurava seu rosto, fazendo-a parecer uma jovem virgem inocente. Rephaim colocou sua calça jeans, pensando que ela era a coisa mais linda que ele já tinha visto na vida. E as próximas palavras dela tocaram o seu coração.
– Eu não quero que você vá, Rephaim.
– Você sabe que eu também não quero, mas preciso.
– Vo-você não pode simplesmente ficar aqui? Comigo? – ela perguntou com hesitação.
Ele suspirou e se sentou na beirada da cama que eles haviam acabado de compartilhar. Ele pegou a mão de Stevie Rae e entrelaçou os dedos dela entre os seus.
– Você iria me colocar numa gaiola?
Ele sentiu o corpo dela estremecer de choque – ou de repulsa?
– Não! Eu não quis dizer isso. Eu simplesmente pensei, bem, que talvez você pudesse tentar ficar aqui por um dia. Quero dizer, que tal a gente simplesmente continuar de mãos dadas, assim, até você acabar de se transformar?
Ele sorriu com tristeza para ela.
– Stevie Rae, um corvo não tem mãos. Estas aqui – ele pressionou suas palmas contra as dela – logo, logo irão virar garras. Eu vou, muito em breve, virar uma besta. Não vou reconhecer você.
– Então, que tal se eu mantiver meus braços em volta de você? Talvez daí você não tenha medo. Talvez você apenas deite ao meu lado de conchinha, fique aqui e durma. Quero dizer, você tem que dormir em algum momento, não tem?
Rephaim pensou antes de responder e então começou devagar a tentar explicar o inexplicável.
– Eu devo dormir, Stevie Rae, mas eu não me lembro de nada do período em que eu sou um corvo – de nada, exceto da agonia da transformação física e do prazer quase insuportável do vento contra as minhas asas, ele pensou. Mas ele não podia contar nenhuma dessas coisas para Stevie Rae. Uma iria afligi-la; a outra podia assustá-la. Então, em vez da verdade crua, ele contou a ela uma versão que pareceu mais civilizada, mais compreensível. – Um corvo não é um animal de estimação. É um pássaro selvagem. E se eu entrar em pânico e, ao tentar escapar, acabar machucando você?
– Ou a si mesmo – Stevie Rae disse solenemente. – Entendi. Realmente entendi. Eu só não gosto muito disso.
– Eu também não, mas acho que esse é o objetivo de Nyx. Estou pagando as consequências dos meus atos passados – ele envolveu as bochechas macias dela com as mãos e pressionou seus lábios contra os dela, murmurando: – É um preço que eu pago de bom grado porque o outro lado da moeda, a parte boa, são as horas que nós desfrutamos furtivamente enquanto sou humano.
– Não são horas furtivas! – Stevie Rae disse seriamente. – Nyx deu essas horas a você pelas boas escolhas que você fez. As consequências são de mão dupla, Rephaim. Elas podem ser boas e más.
De algum modo, aquilo fez o coração dele se sentir mais leve e então ele sorriu, beijando-a novamente.
– Vou me lembrar disso.
– Quero que você se lembre de outra coisa também. Você fez uma coisa boa hoje quando não deu as costas para os seus irmãos – os dedos dela puxaram um cacho loiro, e ele sabia que, não importava o que ela estivesse dizendo, aquilo era difícil para ela. Então, apesar de precisar sair dos túneis e subir para o céu que estava à sua espera, ele permaneceu sentado ao lado dela, segurando a sua mão, enquanto ela continuava: – Sinto muito que o seu irmão foi morto.
– Obrigado – ele disse em voz baixa, sem confiar muito na sua voz.
– Eles vieram até a Morada da Noite chamar você para ir embora com eles, não foi?
– Não exatamente. Meu Pai de fato os enviou para me encontrar, mas não para me levar embora com eles – Rephaim fez uma pausa, sem saber muito bem como explicar o resto para Stevie Rae. Eles não falaram sobre seus irmãos quando ficaram finalmente sozinhos; estavam ávidos demais para se tocarem, para ficarem próximos, para se amarem.
Stevie Rae apertou a mão dele.
– Você pode me contar. Eu confio em você, Rephaim. Por favor, confie em mim também.
– Eu confio! – ele exclamou, odiando a mágoa que viu nos olhos dela. – Mas você precisa entender que, apesar de meu pai ter me renegado, isso não muda nada aqui – ele tocou seu peito em cima do coração. – Eu sempre vou ser filho dele. Vou trilhar o caminho da Deusa. Vou lutar pela luz e pelo que é certo. Vou amar você. Sempre. Mas você precisa entender que, em algum lugar dentro de mim, eu sempre vou amá-lo também. Virar humano me ensinou isso.
– Rephaim, eu preciso lhe contar uma coisa que pode parecer maldosa, mas acho que você precisa ouvir isto.
Ele assentiu.
– Vá em frente. Conte-me.
– Antes de ser Marcada, eu era colega de escola de uma garota chamada Sallie. A mãe dela tinha sumido e abandonado Sallie e seu pai quando ela tinha dez anos. Isso porque a mãe dela era basicamente uma puta nojenta que não queria ter a responsabilidade de criar uma criança. Sallie ficou arrasada quando sua mãe foi embora, apesar de o pai dela fazer tudo o que podia por ela. Mas a pior parte da coisa toda é que a mãe dela não sumiu para sempre. Ela costumava voltar e, como dizia minha mãe, jogar merda no ventilador.
Ele olhou para ela com cara de interrogação. Stevie Rae explicou:
– Desculpe, isso quer dizer que a mãe dela voltava e ficava por perto só para ferrar a cabeça de Sallie, só para deixar a vida dela cheia desse drama idiota e tal. Sua mãe era egoísta, maldosa e totalmente louca.
– O que aconteceu com essa garota? – Rephaim perguntou.
– Quando eu fui Marcada e saí da escola, ela estava a caminho de ficar tão louca quanto a sua mãe porque ela não tinha força suficiente para dizer para a mãe ficar longe dela. Sallie ainda queria que a sua mãe fosse uma boa pessoa, que a amasse e se preocupasse com ela, apesar de isso simplesmente não ser possível – Stevie Rae inspirou profundamente e soltou o ar em um longo suspiro. – O que eu estou tentado dizer, e provavelmente não estou conseguindo fazer muito bem, é que você vai ter que decidir se você quer ser tão perturbado quanto o seu pai ou se você quer realmente começar uma vida nova.
– Eu já escolhi uma vida nova – ele respondeu.
Stevie Rae encontrou os olhos dele e balançou a cabeça com tristeza.
– Não por inteiro.
– Eu não posso traí-lo, Stevie Rae.
– Não estou pedindo para você fazer isso. Tudo o que estou pedindo é para você não deixar que ele jogue merda no seu ventilador.
– Ele queria que eu espionasse para ele. Foi isso que ele mandou meus irmãos me falaram. Eu disse não a Nisroc – Rephaim falou as palavras rápido, como se assim ele pudesse se livrar do gosto amargo delas.
Stevie Rae assentiu.
– Sim, está vendo só, jogando merda no ventilador.
– Eu realmente vejo isso, apesar de não ser uma coisa fácil de olhar. A gente pode ficar sem falar dele por um tempo? Tudo isso é novo para mim. Eu preciso descobrir como encontrar meu lugar neste mundo – Rephaim olhou dentro dos olhos meigos de Stevie Rae, desejando que ela entendesse. – Eu estive com meu pai por centenas de anos. Vai levar algum tempo até que eu me acostume a não estar ao seu lado.
– Isso faz sentido. Que tal isto: vou dizer para Zoey e o resto da turma que os seus irmãos foram lá para informá-lo de que Kalona o aceitaria de volta se você admitisse que cometeu um erro. Você disse não, então eles estavam indo embora quando Dragon e aquele tal de Aurox viram vocês. Essa é a verdade, certo?
– Sim. E o resto, a parte sobre o meu pai me pedir para espionar para ele?
– Bem, eu aposto que todo mundo imagina que Kalona iria tentar usar você contra nós se você deixasse. Você não vai deixar, então acho que não é preciso explicar tudo nos mínimos detalhes.
– Obrigado, Stevie Rae.
Ela sorriu.
– Sem problemas. Como eu disse, confio em você.
Ele a beijou novamente, mas nesta hora ele começou a sentir um formigamento já bastante familiar, como se as suas penas estivessem se formando, crescendo, pressionando a pele para sair.
– Tenho que ir – então ele começou a sair rapidamente do quarto. Ele pôde ouvi-la se levantar da cama atrás dele e, quando olhou para trás, ela estava colocando uma camiseta e procurando pela sua calça jeans. – Não – ele disse com mais força do que pretendia, mas seu corpo já tinha começado a doer e ele sabia que não tinha muito tempo. – Não venha comigo. Você tem que se encontrar com Zoey.
– Mas depois eu posso...
– Não quero que você veja eu me transformar em uma besta!
– Eu não me importo com isso – ela disse, parecendo prestes a chorar.
– Mas eu me importo. Por favor. Não me siga – sem dizer mais nada, ele passou por baixo do cobertor que servia de porta do quarto de Stevie Rae. Na hora em que ele chegou na escada de metal que levava ao porão, já estava correndo. O suor brotava no seu corpo todo e ele tinha que ranger os dentes para não berrar com a agonia ardente da transformação que estava tomando conta dele. Ele saiu em disparada pelo portão e abriu a grade com ímpeto no momento em que o sol surgiu no horizonte. E, com um grito que se transformou em um grasnido de corvo, seu corpo mudou de forma e o corvo negro que não tinha a memória do garoto se lançou no sedutor céu da manhã à sua espera.

Stevie Rae

Stevie Rae não foi atrás dele, mas terminou de se vestir; enxugou os olhos antes de sair do quarto e tomar a direção oposta à que Rephaim havia tomado. Então rumou para o centro dos túneis da estação – a área tipo um beco sem saída que eles haviam transformado em cozinha e central de computadores. Montain Dew1, ela pensou enquanto sufocava um bocejo. Eu preciso de um pouco de cafeína e açúcar.
Ela dobrou uma esquina nos túneis e sorriu sonolenta para Damien, Zoey, Aphrodite e Darius. Os quatro estavam sentados em volta de uma mesa cheia de livros no meio da cozinha.
– Tem um monte de refrigerantes naquela geladeira – Zoey disse, indicando com um gesto uma das duas grandes geladeiras de duas portas.
– Só refrigerantes marrons ou tem mais do que isso?
– Tem refrigerantes marrons, verdes e transparentes. Ah, e um pouco de Orange Crush2, porque Kramisha disse que ela acha que é saudável – Z. respondeu.
– O que é uma bobagem – Aphrodite falou antes de virar uma garrafa de água Fiji3. – Prefira água. Qualquer outra coisa vai fazer você engordar. Bem, exceto sangue – ela fez uma pausa e o seu rosto bonito fez cara de nojo. – Não sei quantas calorias o sangue tem e, desde que deixei de ser novata, não quero nem pensar nisso.
Stevie Rae abriu a geladeira e olhou embasbacada para o seu interior carregado.
– De onde veio tudo isso?
Zoey deu um pequeno suspiro.
– Kramisha. Ela disse que, em vez de assistir à terceira aula, resolveu fazer um “estudo do meio” – Z. colocou aspas com os dedos – em Utica Square e, por acaso, ela esbarrou com alguns caras do turno da noite que estavam repondo as prateleiras no empório Petty’s.
Stevie Rae deu uma olhada para Z. através do braço da geladeira.
– Oh-oh. Baixou a vampira vermelha nela e ela acabou com eles?
– Ela definitivamente acabou com tudo que eles tinham – Damien disse. – É por isso que toda essa comida foi entregue aqui. Ela inclusive falou para eles trazerem esta mesa, que era de um dos conjuntos para colocar amostras de comida.
– Ela não os comeu, certo? – Stevie Rae perguntou, cruzando os dedos nas costas.
– Não, mas ela também não os pagou – Aphrodite respondeu. – Ela só fez que eles obedecessem às suas ordens e depois fossem embora e esquecessem tudo. Acho que vou levá-la comigo para Nova York da próxima vez que tiver uma venda exclusiva da Yoana Baraschi.
– Não. De jeito nenhum – Zoey falou e então olhou para Stevie Rae – Você está mesmo acordada? Stark e todos os novatos vermelhos, incluindo a Senhorita Kramisha Faça o que Eu Mando, estão roncando alto.
Stevie Rae pegou um Montain Dew e se juntou a eles na mesa, sentando pesadamente e bocejando.
– É, mais ou menos. É mais fácil ficar acordada durante o dia aqui embaixo, mas vou te contar, estou super cansada. Stark já está dormindo?
– Já – Z. pareceu preocupada. – Ele tem tido problemas para dormir desde, bem, você sabe, desde que ele voltou do Mundo do Além. Então, quando ele apagou, eu o deixei sozinho.
– Vai levar um tempo, mas logo ele vai voltar ao normal – Stevie Rae disse.
– Espero que sim – Zoey falou e então mordeu seu lábio.
– Falando em namorados, o seu já virou um pássaro? – Aphrodite perguntou.
– Sim – Stevie Rae franziu os olhos para ela. – E não quero falar sobre isso.
– Mas nós precisamos saber exatamente por que os Raven Mockers foram até a escola hoje – Darius disse sem ser indelicado. – E já que Rephaim não pode responder nossas perguntas agora, esperamos que você possa.
– Eu pensei que esta reunião era sobre a coisa da Visão Verdadeira – Stevie Rae respondeu, sentindo-se imediatamente na defensiva por Rephaim.
– Sim, mas também é uma reunião de revisão dos últimos acontecimentos – Damien afirmou. – Acho que nós precisamos fazer isso, você não acha?
Não havia meio de discutir com Damien, principalmente porque ele tinha aquele olhar doce e interessado no rosto. Stevie Rae encontrou seus olhos.
– Sim, acho que precisamos. Então, para começar, como você está lidando com tudo isso?
Damien piscou várias vezes, como se ele tivesse ficado surpreso com a pergunta, o que fez Stevie Rae se sentir péssima. Será possível que todo mundo tinha esquecido que Damien havia perdido seu namorado há apenas alguns dias?
– Eu me senti melhor indo para a escola hoje. Parece que foi um passo em direção à normalidade – Damien falou devagar e cuidadosamente, como se ele tivesse que pensar em cada palavra. – Mas eu tenho muita saudade de Jack. Na verdade, e sei que isso pode parecer loucura, mas eu ainda fico esperando cruzar com ele em cada canto dos corredores.
– Isso não é loucura – Zoey disse. – Eu ainda fico esperando ver Heath também. É difícil e totalmente errado quando alguém morre tão cedo – todo mundo observou várias expressões passarem pelo rosto de Zoey, e então ela acrescentou: – Minha mãe também. Sei que estou na Morada da Noite desde o ano passado, e mesmo antes disso eu e ela não éramos próximas já há algum tempo, mas é difícil realmente entender que ela está morta. Então eu compreendo o que você disse sobre Jack.
– Isso também faz que eu me sinta melhor – Damien afirmou. – O fato de que vocês entendem como é perder alguém próximo – ele sorriu para Stevie Rae. – Então, a minha resposta à sua pergunta é que eu estou lidando com tudo da melhor forma possível.
– Ótimo. Próxima pergunta ou, na verdade, a pergunta original – Aphrodite falou. – O que os meninos-pássaros estavam fazendo na Morada da Noite?
– Kalona os enviou para dizer a Rephaim que o seu papaizinho iria aceitá-lo de volta assim que ele admitisse que cometeu um erro por escolher a mim e a Deusa – Stevie Rae balançou a cabeça. – Às vezes eu acho que Kalona é completamente burro.
– O que você quer dizer? – Z. perguntou.
– Caramba, Rephaim não é o meu namorado oficial nem há um mês. Era de se imaginar que ele pelo menos nos desse a chance de ter a nossa primeira briga antes de falar “aaaah, você cometeu um erro”.
– Qual foi exatamente a resposta de Rephaim? – Darius quis saber.
– Bem, o que você acha? Santo Deus, ele ainda está aqui – Stevie Rae sentiu sua raiva crescer. – Ele mandou dizer a Kalona que não havia cometido nenhum erro e que não iria voltar. Ponto. Fim da história.
– Sim, mas é só isso? – Aphrodite insistiu.
– Só isso o quê? – Stevie Rae rebateu.
– Esse é o fim? Kalona não vai continuar rondando, tentando fazer Rephaim ver a luz ou qualquer coisa assim?
– E daí se ele fizer isso? Rephaim não está mais no time dele. Aliás, ele não está mais no time dele há bastante tempo.
– Assim você diz.
– Assim ele diz! – Stevie Rae sentia que ia explodir. – Assim o pai dele diz. Assim os irmãos dele dizem. Assim até Nyx diz! A maldita Deusa apareceu em pessoa e o perdoou. O que mais Rephaim precisa fazer para provar a vocês que ele mudou?
– Ei, ninguém está dizendo que Rephaim tem que provar nada – Zoey afirmou, disparando um olhar de você não está ajudando para Aphrodite. – Mas nós realmente precisamos saber se está rolando algo com Kalona e os Raven Mockers.
– Z., não está rolando nada com eles. Bem exceto que Rephaim ficou realmente triste por aquele touro maldito ter matado um deles. É sério, pessoal, os irmãos de Rephaim não estavam fazendo nada além de conversar com ele. Dragon apareceu e ficou enfurecido, é claro, mas todos sabemos que por causa de Anastasia. Mesmo assim, os Raven Mockers só estavam se defendendo. A gente deveria estar fazendo perguntas sobre Aurox, isso sim.
– É, mas a gente não tem as respostas sobre Aurox aqui, e nós deveríamos ter as respostas sobre Rephaim – Aphrodite disse.
– Eu já dei as respostas sobre ele – mesmo fraca e cansada como ela se sentia porque o sol já havia nascido, Stevie Rae automaticamente começou a extrair poder da terra. Não que ela fosse mesmo machucar Aphrodite, mas bem que a garota merecia uma boa palmada.
– Ei, você está com um brilho verde – Z. observou.
– É claro, estou irritada! – Stevie Rae viu Darius se mover para perto de Aphrodite, o que realmente a incomodou. – E quer saber de uma coisa, Darius, você precisa pensar melhor no que faz. Nós estamos todos do mesmo lado aqui, mas isso não significa que a gente não possa ficar bravo um com o outro de vez em quando.
– Acho que todos nós entendemos isso. Não é mesmo, Darius? – Damien falou com a sua voz mais calma e tranquilizadora.
– Sim, é claro – Darius respondeu.
Aphrodite bufou.
– Então, basicamente, Rephaim disse não a Kalona e os Raven Mockers eram só mensageiros – Z. concluiu. – Certo?
– Totalmente certo – Stevie Rae disse.
– Então vamos passar para a Visão Verdadeira – Zoey olhou para Damien. – Você pode resumir o que descobriu?
– Sim, mas não é muito. Há só uma pequena referência a ela no manual avançado. Basicamente, é rara e não tem aparecido há bastante tempo. Tipo, há mais de uns duzentos anos. É frustrante porque não há muita documentação sobre ela, mas, pelo que pude observar, parece que um novato ou vampiro que recebe o dom da Visão Verdadeira tem a capacidade de ver a verdade sobre as pessoas. E, a propósito, normalmente são os vampiros que a recebem.
– É um donzinho bem conveniente – Aphrodite comentou.
– Seria, mas o problema é que a visão é tão precisa quanto a pessoa que tem o dom – Damien acrescentou.
– Ahn? – Zoey não entendeu.
– É assim: Shaylin tem que ser boa usando o seu dom. Ela tem que entender o que está vendo e interpretar corretamente – Damien explicou.
– E se ela não for, só vai ver um monte de cores? – Zoey perguntou.
– Pior – Damien respondeu. – Porque a Visão Verdadeira nunca é só um monte de cores. Todos nós sabemos que ela enxerga o interior da alma das pessoas – ele balançou a cabeça. – No manual, há trechos de histórias sobre como a Visão Verdadeira já foi mal compreendida e usada erroneamente. Pode ser ruim, muito ruim.
– E não há diretrizes, regras ou nada parecido? – Zoey quis saber.
– Nada. É diferente para cada um que tem a Visão – Damien disse.
– Então nós estamos atirando no escuro – Stevie Rae falou, sentindo-se completamente arrasada. – de novo.
– Acho que vai depender totalmente do tipo de pessoa que Shaylin é – Damien afirmou.
– Ela está andando com Erik, o que não é um bom sinal – Aphrodite comentou.
– Ei, algumas de nós que também costumavam andar com Erik acabaram sendo pessoas legais – Zoey respondeu. – Além disso, uma garota que pode ver as verdadeiras cores dele pode ser uma boa para ele.
Aphrodite bufou.
– Se ela realmente conseguir traduzir as cores dele corretamente... ou sei lá como se chama isso.
– Quero acreditar que ela consegue – Damien disse.
– É, eu também – Stevie Rae falou, mas em quem ela realmente estava pensando era em Rephaim e Kalona. Por favor, Nyx, permita que Rephaim seja capaz de enxergar a verdade. Depois de fazer essa prece fervorosa em silêncio, ela levantou a cabeça e encontrou o olhar intenso da sua melhor amiga.
– Eu também quero acreditar – Zoey afirmou suavemente, como se pudesse ler a mente de Stevie Rae.
– Bem, eu quero acreditar que, quando eu colocar meu pé para fora desta cozinha e começar a andar pelo corredor, vou ser instantaneamente transportada para uma suíte do Ritz-Carlton nas Ilhas Cayman. Eu entendo que vocês têm problemas com o sol, mas eu poderia tostar um pouco e agitar – Aphrodite fez uma pausa e sorriu de um jeito sexy para Darius. – Deixa a parte de tostar comigo e você aguenta o agito.
Stevie Rae se levantou e bocejou.
– Bem, antes que vocês fiquem totalmente indecentes, vou dar uma apagada. Vejo todo mundo quando anoitecer.
– Eca, escola e não Ritz. Duplo eca, realidade. Deusa, estou feliz que amanhã é sexta-feira – Aphrodite levantou uma sobrancelha loira para Zoey. – Prometo a você que eu vou fazer umas boas compras e visitar lojas de decoração neste fim de semana. A luta contra o mal, as Trevas ou o que quer que seja vai ter que esperar.
– Ei, por falar em quartos, alguém sabe onde Erik acomodou Shaylin? – Stevie Rae perguntou junto com outro bocejo.
– No quarto de Elizabeth Sem Sobrenome – Damien respondeu.
– Meio assustador – Stevie Rae afirmou.
– Elizabeth não está aparecendo mais por lá – Aphrodite comentou.
– Vou para a cama – Zoey disse. – Boa noite, pessoal.
Todos falaram “boa noite” para Zoey, e Stevie Rae a observou enquanto caminhava devagar pelo corredor em direção ao antigo quarto de Dallas, que agora ela e Stark estavam usando. Seus passos eram lentos e seus ombros estavam caídos, como se ela estivesse se esforçando muito para carregar peso demais sobre eles.
Stevie Rae suspirou. Ela sabia exatamente como Z. se sentia.
1 Montain Dew (orvalho da montanha, na tradução literal) é um refrigerante verde-limão de sabor cítrico, fabricado pela Pepsi, que contém cafeína entre os seus ingredientes. É bastante popular principalmente no sul dos EUA e no interior do país. (N.T.)
2 Orange Crush é um refrigerante de laranja. (N.T.)
3 Fiji é uma água vulcânica engarrafada nas Ilhas Fiji, no Oceano Pacífico, e comercializada pela companhia norte-americana Fiji Water. (N.T.)

Capítulo 11
Lenobia
Lenobia farejou o ar. Misturado ao cheiro de serragem, couro, ração doce e cavalo havia algo mais – alguma coisa defumada e vagamente familiar. Ela deu uma última escovada em Mujaji – sua égua favorita, uma Quarto de Milha preta e forte – e, guiada pelo olfato, saiu da baia. Ela seguiu pelo corredor comprido e largo em que havia, de ambos os lados, uma fileira de baias espaçosas. Seu nariz a levou exatamente para onde ela esperava: a grande baia para animais prenhos perto da selaria. Movendo-se sem fazer barulho, Lenobia disse a si mesma que não estava propriamente o espionando. Ela só estava tomando cuidado para não assustar a égua dele.
Travis estava de costas para ela. O cowboy estava em pé no meio da baia. Em uma mão ele segurava um bastão grosso de ervas secas fumegantes; com a outra, ele fazia movimentos para trazer a fumaça clara para cima de si mesmo. Bonnie, sua grande égua Percherão, estava na frente dele, tirando uma soneca com uma pata flexionada. Ela apenas contraiu levemente uma orelha quando ele foi até ela e passou a erva fumegante por todo o contorno do seu enorme corpo. Depois ele foi até a cama portátil que ele tinha armado no outro canto da baia, dando a ela o mesmo tratamento de fumaça que havia dispensado à égua e a si mesmo. Foi só quando ele começou a se virar que Lenobia deu um passo para trás e saiu do seu campo de visão. Refletindo sobre o que tinha visto, Lenobia saiu pela porta lateral do estábulo e andou um pouco até um banco, onde ela se sentou, inspirou o ar calmo e frio da noite e tentou analisar seus pensamentos.
O cowboy havia queimado sálvia. Na verdade, Lenobia tinha certeza pelo aroma de que era sálvia branca. Excelente para purificar um espaço. Mas por que um cowboy de Oklahoma estaria fazendo isso?
Comportamento humano? O que ela sabia sobre isso? Ela havia tido apenas um contato superficial com os humanos por... Lenobia pensou enquanto girava a aliança fina de ouro com uma esmeralda em forma de coração que dava voltas no seu dedo anular da mão esquerda. Ela sabia exatamente há quanto tempo ela havia estado próxima de um ser humano, mais especificamente, de um humano masculino: duzentos e vinte e três anos.
Lenobia olhou para seu dedo anular. Não havia muita claridade ainda. O amanhecer estava apenas começando a tingir o céu de um cinza-azulado, e ela quase pôde ver o verde puro da esmeralda. Nesta luz, a sua beleza era ilusória, sombreada – como as memórias de rostos do seu passado.
Lenobia não gostava de se lembrar desses rostos. Ela havia aprendido há muito tempo a viver o aqui e o agora. O dia de hoje já representava uma batalha mais do que suficiente. Ela olhou para o leste e franziu os olhos com a luz que estava surgindo no horizonte.
– O dia de hoje também tem alegria suficiente. Cavalos e alegria. Cavalos e alegria – Lenobia repetiu as palavras que eram o seu mantra há mais de dois séculos. – Cavalos e alegria...
– Para mim, os dois sempre andaram juntos.
Até o cérebro de Lenobia processar que era o cowboy humano quem havia falado e não alguma ameaça horrível, seu corpo já tinha dado um giro rápido e se agachado defensivamente – e então, de dentro do estábulo, veio um relincho que era o grito de guerra de uma égua.
– Oooa, calma lá – Travis disse enquanto levantou as mãos, mostrando que elas estavam vazias, e então deu um passo para trás. – Eu não queria...
Lenobia o ignorou, abaixou a cabeça, inspirou profundamente e falou:
– Não há perigo. Estou bem. Durma, minha linda – então ela levantou a cabeça e seus olhos cinza fuzilaram o homem. – Lembre-se disto: não fique me espreitando. Nunca.
– Sim, madame. Aprendi a lição, apesar de eu não estar espreitando você. Não imaginava que uma vampira estaria aqui fora a esta hora do dia.
– Nós não queimamos com a luz do sol. Isso é um mito – Lenobia estava pensando se ele precisava saber que os novatos e vampiros vermelhos realmente queimavam, mas a resposta dele a fez perder sua linha de pensamento.
– Sim, madame. Eu sei disso. Também sei que a luz do sol é desconfortável para vocês, por isso imaginei que eu estaria sozinho aqui fora, bem, para fumar isto aqui – Travis fez uma pausa e pegou um cigarro fino no bolso da frente do seu casaco de couro com franjas – e ver o sol nascer. Eu não tinha nem visto a senhora sentada aí até ouvir sua voz – o sorriso dele era charmoso e aquecia seus olhos, dando a eles um brilho que transformava a sua cor castanha normal em um tom mais claro de avelã, algo que Lenobia não tinha visto acontecer antes. Reparar nisso agora fez o estômago dela se contrair. Ela desviou os olhos rapidamente e se sacudiu mentalmente para prestar atenção nas palavras dele: – Ouvir você dizer “cavalos e alegria” me fez falar sem pensar. Da próxima vez, vou limpar a garganta, tossir ou fazer outra coisa antes.
Sentindo-se estranhamente desconcertada, Lenobia fez a primeira pergunta que lhe veio à cabeça:
– Por que você sabe coisas sobre vampiros? Você já foi o companheiro de alguma vampira?
O sorriso dele se abriu mais.
– Não, nada parecido. Eu sei um pouco sobre vampiros porque minha mãe gostava de vocês.
– De nós? Sua mãe me conhece?
Ele balançou a cabeça.
– Não, madame. Eu não me referi à senhora ou a vocês especificamente. Quis dizer vampiros em geral. Veja bem, minha mãe tinha uma amiga que havia sido Marcada quando elas eram crianças. Elas permaneceram em contato e costumavam trocar cartas, muitas cartas. E continuaram escrevendo uma à outra até o dia em que minha mãe morreu.
– Sinto muito pela sua mãe – Lenobia disse, sentindo-se sem jeito. Os humanos viviam tão pouco. Eles podiam ser mortos tão facilmente. Era estranho que ela quase tivesse se esquecido disso a respeito deles. Quase.
– Obrigado. Foi câncer. A doença avançou rápido. Faz cinco anos que ela se foi – Travis olhou em direção ao sol nascente. – A sua hora favorita do dia era o amanhecer. Gosto de me lembrar dela nesta hora.
– Esta também é a minha hora favorita do dia – Lenobia se surpreendeu dizendo isso.
– É uma coincidência agradável – Travis falou, voltando seu olhar para ela e sorrindo. – Madame, posso fazer uma pergunta?
– Sim, acho que sim – Lenobia respondeu, pega desprevenida mais pelo sorriso do que pelo pedido de pergunta.
– Sua égua a chamou quando eu assustei a senhora.
– Você não me assustou. Você me deixou alarmada. Há uma grande diferença.
– Você pode ter razão. Mas, como eu estava dizendo, sua égua a chamou. Então você falou e ela se acalmou, apesar de não ser possível que ela tenha escutado você aqui fora.
– Isso não é uma pergunta – Lenobia respondeu secamente.
Ele levantou as sobrancelhas.
– Você é uma senhora inteligente. Você sabe o que eu quero perguntar.
– Você quer saber se Mujaji pode ouvir meus pensamentos.
– Sim – Travis respondeu, observando-a e assentindo devagar.
– Não estou acostumada a conversar com humanos sobre os dons da nossa Deusa.
– Nyx – Travis falou. Quando ela o encarou, ele apenas deu de ombros e continuou: – Esse é o nome da sua Deusa, não é?
– É.
– Nyx vai se importar se você falar com humanos sobre ela?
Lenobia o analisou atentamente. Ele não parecia ser nada além de autenticamente curioso.
– Qual seria a resposta da sua mãe para essa pergunta?
– Ela diria que Willow havia escrito bastante sobre Nyx para ela e que a Deusa não parecia se importar nem um pouco com isso. É claro que Willow e eu não trocamos cartas, e eu não tive mais notícias dela desde que ela veio ao funeral da minha mãe, mas nessa ocasião ela me pareceu bastante saudável e definitivamente não tinha sido golpeada por nenhuma Deusa.
– Willow?
– Elas eram crianças nos anos 1960. O primeiro nome de minha mãe era Rain1. Você vai me responder ou não?
– Vou, desde que você me responda uma pergunta também.
– Feito – ele concordou.
– O dom que recebi de Nyx é a minha afinidade com cavalos. Eu não posso literalmente ler as mentes deles, assim como eles também não podem literalmente ler a minha, mas eu realmente capto imagens e emoções deles, especialmente de cavalos com os quais eu tenho uma conexão próxima, como a minha égua Mujaji.
– E você captou essas coisas, imagens e tal de Bonnie sobre mim?
Lenobia teve que se esforçar para não rir da ansiedade dele.
– Sim. Ela o ama muito. Você tem cuidado bem dela. Sua égua Percherão tem uma mente interessante.
– Ela tem, mas às vezes é meio cabeça-dura.
Então Lenobia realmente sorriu.
– Mas nunca é maldosa, nem quando ela se esquece que pesa mais de novecentos quilos e quase passa por cima de meros humanos.
– Bem, madame, eu acho que Bonnie vai passar por cima de meros vampiros também se ela tiver a oportunidade.
– Vou me lembrar disso – ela disse. – E agora a minha pergunta. Por que você estava fazendo defumação?
– Ah, a senhora viu? Bem, madame, meu pai é em parte descendente de índios Muscogee, que provavelmente a senhora conhece como o povo Creek. Eu herdei alguns dos seus hábitos; defumar um ambiente novo é um deles – ele fez uma pausa e deu um meio sorriso. – Eu pensei que você ia me perguntar por que aceitei este emprego.
– Bonnie já meu deu essa resposta.
Ela ficou satisfeita por ver os olhos dele se arregalarem de surpresa.
– Você disse que não podia ouvir os pensamentos dos cavalos.
– O que eu captei de Bonnie é que você tem viajado sem parar há algum tempo. Isso me leva a crer que nós somos apenas a próxima parada na sua jornada.
– Ela está bem com essas viagens todas? Quero dizer, isso não está fazendo mal a ela, certo?
Um pouco de simpatia pelo cowboy correu dentro das veias dela e pulsou através do seu corpo.
– Sua égua está bem. Ela está feliz, desde que esteja com você.
Ele colocou o chapéu para trás e coçou a testa.
– Bem, é um alívio. Para mim tem sido difícil me fixar em algum lugar desde a morte da minha mãe. O rancho simplesmente não é o mesmo sem...
Não muito longe deles, a manhã tranquila foi perturbada pelo barulho de motores e gritos.
– Bem, que diabo é isso?
– Não tenho a menor ideia, mas vou descobrir – Lenobia se levantou e começou a andar a passos largos em direção ao som de caos. Ela percebeu que Travis a acompanhou e continuou ao seu lado, então deu uma olhada para ele. – Quando Neferet entrevistou você, ela chegou a mencionar que algumas coisas bem desagradáveis aconteceram recentemente nesta Morada da Noite?
– Não, madame – ele respondeu.
– Bem, você ainda pode querer pensar duas vezes antes de aceitar este emprego. Se você está procurando por paz, este é definitivamente o lugar errado para você.
– Não, madame – ele repetiu. – Eu nunca fujo de uma briga. Também não procuro encrenca, mas quando ela me encontra eu não corro.
– Que pena que os cowboys não andam mais armados – ela murmurou.
Travis deu um tapinha na lateral do seu casaco e sorriu sombriamente.
– Alguns de nós ainda andam, madame. Oklahoma tem o bom senso de ser um Estado em que é permitido portar arma de forma discreta.
Ela arregalou levemente os olhos.
– Fico feliz de ouvir isso. Uma dica rápida: se avistar algo que tem asas como um pássaro e olhos vermelhos que parecem humanos, prepare-se para atirar.
– Você não está brincando, certo?
– Não.
Juntos eles seguiram o barulho pelo campus já iluminado e se aproximaram dos jardins centrais da escola. Quando eles chegaram ao bonito gramado da frente, diminuíram o passo e então pararam. Lenobia balançou a cabeça.
– Eu não acredito.
– Você não quer que eu atire neles, quer?
Ela franziu a testa.
– Não ainda – então ela marchou para o meio da caravana de caminhões, carretas, equipamentos de jardinagem e homens (humanos, sem sombra de dúvida) e se juntou à vampira de olhos embaçados e cara de quem tinha acabado de acordar, mas que estava realmente muito nervosa, enfrentando todos eles com coragem.
– Você é surdo ou burro? Eu disse para você não tocar nos meus jardins, principalmente nesta hora ridícula do dia em que os professores e estudantes estão tentando dormir.
– Gaea, o que está acontecendo aqui? – Lenobia segurou o braço da vampira, pois parecia que ela ia se lançar contra o pobre e confuso homem que estava segurando uma prancheta e havia imprudentemente se identificado como o líder do grupo. Ele estava olhando para Gaea com uma mistura de pavor e admiração, a qual Lenobia compreendeu. Gaea era alta, magra e tinha uma beleza incomum, mesmo para uma vampira. Ela poderia ter sido uma fabulosa modelo de sucesso, se não estivesse completamente feliz cuidando da terra.
– Esses homens – Gaea pronunciou a palavra como se ela tivesse um gosto ruim – simplesmente apareceram do nada e começaram a atacar meus jardins!
– Veja bem, patroa, como eu disse antes, nós fomos contratados ontem como o novo serviço de jardinagem da Morada da Noite. Nós não estamos atacando nada, estamos cortando a grama.
Lenobia conteve um grito de frustração total. Em vez disso, ela perguntou ao homem:
– E quem contratou vocês?
Ele olhou para a sua prancheta.
– O nome que o chefe me passou é Neferet. É você?
Lenobia balançou a cabeça.
– Não, mas é o nome da nossa Grande Sacerdotisa – ela se virou para a responsável pelo jardim. – Gaea, você não foi informada de que Neferet iria contratar humanos para trabalhar na Morada da Noite?
– Fui informada sim. Só não recebi a informação de que os humanos iriam usurpar a minha posição.
É claro que você não recebeu, Lenobia pensou sombriamente, Neferet não queria que nenhuma de nós estivesse preparada para o que ela está fazendo, e você é tão protetora com os seus gramados, arbustos e flores quanto eu sou com os meus cavalos. E isso é algo que a nossa Grande Sacerdotisa manipuladora sabe muito bem. Lenobia balançou a cabeça, irritada com o xeque-mate de Neferet.
– Não, Gaea – ela explicou com a sua voz mais moderada. – Você não está sendo usurpada. Você está sendo ajudada.
Lenobia via a batalha interna nos olhos de Gaea. Obviamente, da mesma forma que ela, Gaea não queria ajuda humana, mas ir contra uma norma criada pela Grande Sacerdotisa e sancionada pelo Conselho Supremo dos Vampiros iria trazer um clima de discórdia para a escola.
E a verdade ancestral dos vampiros era que eles não deviam mostrar nenhuma discórdia na frente dos humanos.
– Sim, bem, eu entendo – quando Gaea preferiu seguir a verdade ancestral dos vampiros em vez do orgulho e do poder, Lenobia soltou um pouco da tensão do seu corpo. – Eu fui pega desprevenida. Obrigada, Lenobia, por me ajudar a enxergar esta situação mais claramente – então ela se virou para o homem e para os trabalhadores que estavam cortando a grama nervosos atrás dele. Gaea sorriu e Lenobia viu os homens ficarem de queixo caído e de olhos arregalados quando toda a força da beleza dela os atingiu. – Quero pedir desculpas pela confusão inicial. Parece que houve um problema de comunicação. Nós podemos discutir agora exatamente o que o trabalho de vocês vai exigir e como seria melhor se...
Lenobia se retirou enquanto Gaea se lançava em uma longa explanação sobre a melhor época para cortar a grama e as fases da lua. Travis novamente a acompanhou.
Ele limpou a garganta.
Sem olhar para ele, Lenobia falou:
– Vá em frente. Diga seja lá o que você quer dizer.
– Bem, madame, para mim parece que está havendo muita confusão relacionada a trabalho nesta escola.
– Para mim também parece – Lenobia concordou.
– Sua chefe não deve ser...
– Neferet não é minha chefe – Lenobia o interrompeu.
– Certo, vou reformular o que eu disse. Parece que a minha chefe andou contratando muitos trabalhadores sem avisar nada às pessoas que mais vão ser afetadas por essas contratações. Então, eu estava pensando, será que isso tem algo a ver com as coisas desagradáveis que você mencionou antes?
– Pode ser – Lenobia afirmou. Nessa hora, eles já estavam de volta à porta principal do estábulo. Ela parou e encarou Travis. – Você deve se acostumar a não ficar surpreso com confusão e caos. Pode haver muito dos dois por aqui.
– Mas você não vai me dar os detalhes. Estou certo?
– Está – Lenobia respondeu.
Travis inclinou seu chapéu para trás.
– E que tal uma explicação sobre aqueles pássaros de olhos vermelhos?
– Raven Mockers – Lenobia falou. – É assim que eles são chamados. Os cavalos não gostam deles; eles não gostam de cavalos. Eles têm causado problemas aqui ultimamente.
– O que eles são? – Travis perguntou.
Lenobia suspirou.
– Não são humanos. Nem pássaros. Nem vampiros.
– Bem, madame, parece que eles não são coisa boa. Devo atirar se eles se aproximarem dos cavalos?
– Atire se eles atacarem os cavalos – Lenobia sustentou o olhar dele. – Minha regra geral é: proteja os cavalos primeiro, faça perguntas depois.
– Boa regra – Travis aprovou.
– Também acho – Lenobia inclinou a cabeça na direção do estábulo. – Você tem tudo o que precisa lá dentro?
– Sim, madame, Bonnie e eu não precisamos de muita coisa – ele fez uma pausa e então acrescentou: – A senhora quer que eu troque o meu horário de sono para acompanhar o seu?
– Bem, eu quero que você mude o seu padrão de sono, mas para acompanhar a escola inteira, não apenas a mim – Lenobia falou depressa, perguntando-se por que havia ficado constrangida com o que ele havia dito. – E você vai ficar surpreso de ver como Bonnie vai se adaptar rápido à troca do dia pela noite.
– Bonnie e eu já cavalgamos muito à noite por aí.
– Ótimo, então você já está um pouco preparado para a mudança – houve um momento embaraçoso, quando os dois apenas ficaram parados ali, então Lenobia disse: – Ah, meu alojamento é ali em cima – ela apontou para o segundo andar de pé-direito alto acima do estábulo. – O resto dos professores fica lá atrás – Lenobia levantou o queixo na direção do prédio principal do campus. – Eu prefiro ficar mais perto dos cavalos.
– Parece que eu e você concordamos plenamente em pelo menos uma coisa.
Ela levantou as sobrancelhas em uma pergunta silenciosa.
Travis sorriu.
– Preferimos cavalos – ele abriu a porta para ela.
Lenobia entrou no estábulo e eles caminharam juntos até chegarem à escada que levava ao andar de cima.
– Eu suponho que vou vê-lo ao anoitecer – ela disse.
Travis tocou seu chapéu em cumprimento a ela.
– Sim, madame, vai ver. Boa noite.
– Boa noite – Lenobia respondeu e então subiu rápido a escada, sentindo o olhar dele nas suas costas mesmo depois de sair do seu campo de visão.

1 Em inglês, willow quer dizer salgueiro e rain, chuva. Nos anos 1960, época do movimento hippie, era comum dar aos filhos nomes de elementos da natureza. (N.T.)

12

Aurox
Aurox seguiu sua Sacerdotisa do prédio dos professores até a luz pálida do pôr do sol. Apesar de ser inverno e de o sol não aquecer e, verdade seja dita, ter pouca luminosidade, ela se encolheu como se aquela réstia de sol tivesse provocado nela alguma dor. Ele observou enquanto ela puxava mais o capuz do seu manto verde sobre a cabeça, de modo que ele encobrisse completamente seu rosto.
– Luz do sol! – Neferet fez as palavras soarem amargas. – Vou fazê-los pagar por me fazerem sair à luz do sol. Ela olhou para ele antes de colocar seus óculos escuros espelhados. – Na verdade, você deve fazer que eles paguem.
– Sim, Sacerdotisa – ele disse automaticamente.
Regiamente, Neferet foi até o grande carro preto que ela havia ordenado que ele aprendesse a dirigir e parou ao lado da porta, esperando que ele a abrisse, o que ele fez rapidamente. Aurox reparou que, mesmo à luz do sol, Neferet emitia uma sombra que era escura de um modo sobrenatural. As Trevas sempre a acompanham, ele pensou.
Depois que ele deu a partida no carro, ela apertou um botão no espelho retrovisor e uma voz perguntou:
– Sim, Neferet, aonde o OnStar1 vai levá-la hoje?
– Will Rogers High School, Tulsa, Oklahoma – ela respondeu à voz e então ordenou para ele: – Siga exatamente as instruções.
– Sim, Sacerdotisa – era tudo o que ele devia dizer.
Desde o momento em que estacionou na frente do prédio, Aurox achou o edifício de tijolos claros e pedra trabalhada agradável aos seus olhos. Ele seguiu Neferet para dentro, entrando no primeiro dos seus corredores amplos e iluminados, e foi surpreendido pela impressão que teve do lugar. Era quase como se o prédio fosse dotado de sensibilidade. Ele tinha uma sábia capacidade de ouvir que Aurox achou incrivelmente tranquilizadora.
Mas como isso era possível? Como um prédio podia fazê-lo sentir alguma coisa?
Havia ali apenas um segurança idoso. Ele havia se aproximado de Neferet, andando devagar e mancando, mais curioso e educado do que precavido.
– Posso ajudá-los?
– Sim, a escola tem algum subsolo? Um grande porão ou um sistema de túneis? – Neferet perguntou, colocando o capuz para trás e tirando os óculos escuros.
Os olhos do guarda primeiro se arregalaram com a sua beleza e depois se fixaram nas suas tatuagens cor de safira.
– Nós temos alguns velhos túneis no porão que, na verdade, não têm sido usados desde a época dos abrigos antibomba. Quer dizer, ou como um refúgio contra tornados de vez em quando. Por que você...
– Como se chega aos túneis? – Neferet o cortou.
– Desculpe, eu precisaria de permissão administrativa para qualquer...
– Isso não será necessário – desta vez ela acrescentou um sorriso sedutor às suas palavras. – Estou simplesmente levantando informação histórica sobre o prédio da escola. Os túneis ainda são acessíveis, não são?
O homem pareceu igualmente confuso com a sua pergunta e deslumbrado com o seu sorriso.
– Ah, sim. É fácil chegar até eles. É só seguir este corredor principal aqui até chegar à biblioteca – ele fez um gesto indicando a direita deles. – Há escadas no canto do corredor de intersecção. Desça um lance de escada. O acesso é através de uma velha sala de música, que fica depois do próximo corredor à direita. Eu tenho a chave-mestra comigo. Acho que não teria nenhum problema se você desse uma olhada rápida. Não está havendo nenhuma aula agora ou...
– Incapacite-o, mas não o mate – Neferet ordenou. – Ah, e me dê a chave.
Aurox o atingiu com força o bastante para deixá-lo inconsciente. Ele achava que o velho homem não tinha morrido, mas não tinha certeza. Não havia tempo para conferir. Ele entregou as chaves tilintantes a Neferet e ela se apressou na direção que o homem havia imprudentemente indicado. Neferet fez uma pausa quando chegou à sala grande à sua esquerda, dando uma olhada pelo vidro das portas fechadas. Aurox olhou junto com ela. Era um lugar elegante. Amplo, com luminárias decorativas que pendiam sobre as mesas e as prateleiras de livros.
Foi estranho que Aurox percebeu uma capacidade de espera vinda lá de dentro.
– Biblioteca – ela disse. – Toda essa arquitetura art déco é completamente desperdiçada com adolescentes humanos – Neferet deixou de lado a beleza e a majestade do prédio e indicou com a cabeça o corredor de intersecção na frente deles. – Este é o caminho certo.
Quase com relutância, Aurox a seguiu.
– Esta é uma escola, assim como a Morada da Noite é uma escola? – Aurox teve que dar voz a algumas das perguntas que estavam passando pela sua mente.
Neferet nem olhou para ele.
– É uma escola humana, uma escola pública. Não é como a Morada da Noite – ela deu de ombros suavemente. – Praticamente posso ver os hormônios e a testosterona. Por que você pergunta?
– Estou apenas curioso.
Ela olhou rapidamente para ele.
– Não seja curioso.
– Sim, Sacerdotisa – ele disse em voz baixa.
Eles seguiram seu caminho dentro do edifício silencioso e o corredor ficou cada vez menos banhado pela luz do sol. As sombras em volta de Neferet se agitaram quando ela parou na frente de uma porta com notas musicais pintadas.
– É aqui – ela disse, enquanto destrancava a porta e entrava em uma área suja que tinha cheiro de pó e desleixo. À sua esquerda, havia uma sala cheia de cadeiras e suportes metálicos. Diante deles, havia um espaço atravancado que levava a mais escuridão. Neferet hesitou e emitiu um som baixo de frustração. – Já me cansei de procurar.
Então Neferet levantou a mão direita e pressionou a unha afiada do seu dedo médio da mão esquerda contra a sua palma, abrindo uma ferida que derramou gotas vermelhas.
“Para os vermelhos, eu ordeno, você me levará;
Meu sangue o seu pagamento será.”
Fascinado, Aurox observou as Trevas se soltarem das sombras embaixo e em volta de Neferet, bem como dos cantos da sala. Gavinhas serpentearam na direção dela. Enroscando-se no seu corpo, elas subiram pela sua pele até alcançarem o sangue que estava empoçado na palma de sua mão. Ali as Trevas se alimentaram, fazendo Neferet tremer e gemer como se estivesse com dor, mas a Sacerdotisa não fechou a mão e não a puxou para trás.
Aurox ficou excitado por prever que uma batalha estava a caminho e por acolher com prazer a ira e o poder que aquela batalha iria despertar; ao mesmo tempo sentiu repulsa. As Trevas pulsavam ao redor de Neferet, malévolas, grudentas e perigosas. Aurox estava analisando aquelas sensações diferentes quando Neferet sacudiu as gavinhas, derrubando-as, e fechou seu ferimento com uma lambida.
“Vocês se alimentaram por ora.
Guiada eu serei agora.”
As palavras do feitiço rimado de Neferet emitiram um poder que roçou em Aurox, e ele estremeceu quando as Trevas se contorceram e saíram deslizando, deixando uma trilha fina como um laço de fita, que era mais negro que uma noite de lua nova e que indicava o caminho.
– Venha – Neferet disse.
Aurox fez o que ela ordenou.
Eles seguiram a fita até um corredor aparentemente abandonado, que virou uma descida cada vez mais para baixo, como um túnel. Finalmente eles chegaram a um espaço sem saída mais amplo. Ali Neferet fez uma pausa.
Aurox os farejou antes de vê-los. O cheiro deles era horrível, podre, imundo. Morte, ele pensou. Eles têm o cheiro da morte.
– Inaceitável – Neferet disse nervosamente em voz baixa. – Totalmente inaceitável – ela andou a passos largos dentro da sala subterrânea, foi até a parede e apertou o interruptor. Uma única lâmpada nua acendeu uma luz amarela fraca.
Aurox achou que aquilo parecia um ninho.
Colchões estavam empilhados uns contra os outros. Corpos estavam amontoados embaixo dos cobertores. Alguns estavam nus. Alguns estavam vestidos. Era difícil ver onde um começava e onde outro terminava. Uma cabeça se levantou. As tatuagens do vampiro eram vermelhas e elas se pareciam muito com as gavinhas de Trevas que os haviam guiado até ali. Seu olhar era duro. Sua voz, nervosa.
– Kurtis, cuide de quem está nos incomodando.
Um vulto grande se moveu lentamente embaixo das cobertas e uma testa larga apareceu do outro lado do ninho. Esse tinha o contorno de um crescente vermelho na testa; era um novato.
– Já está quase de noite. Simplesmente acabe com eles usando eletricidade ou outra coisa e...
– E o quê? – a voz de Neferet era gelada. – Kurtis, você era burro e desajeitado antes de morrer. Agora você é burro, desajeitado e fede – Neferet deu uma olhada para Aurox. – Jogue-o contra a parede.
Aurox se moveu para obedecer ao comando dela, mas o fez lentamente, dando tempo para o novato sentir medo. Aurox se alimentou daquele medo e o seu corpo se transformou, virando outra coisa, algo mais poderoso, e o medo do novato se alterou para um terror delicioso. Com um rugido, Aurox levantou o garoto do seu ninho e o atirou contra a parede. Houve um barulho de algo se quebrando e o garoto ficou deitado imóvel.
– Oooa, oooa! Espere um segundo. Neferet! Eu não sabia que era você! – o vampiro vermelho ficou em pé, sem camisa, com as mãos para cima, encarando a Sacerdotisa. Aurox sentiu o medo dele. Foi bom.
Ele deu um passo em direção ao vampiro. Suas patas ecoaram contra o chão de cimento frio.
– Pare por enquanto, Aurox – Neferet ordenou. Então ela deu as costas a ele e se concentrou no vampiro e no seu ninho. – Você realmente achou que podia se esconder de mim, Dallas?
– Eu não estava me escondendo de você! Eu não sabia o que fazer... onde encontrar você.
– Não minta para mim – a voz de Neferet havia ficado suave, e nessa suavidade Aurox escutou um perigo ameaçador e infinito. – Nunca minta para mim.
– Desculpe – o vampiro disse rapidamente. – Acho que eu simplesmente não pensei.
O ninho de novatos começou a se remexer e a despertar enquanto o vampiro e Neferet falavam, e agora Aurox podia ver rostos, com olhos arregalados de medo, voltados para Neferet e para ele.
Ele ansiava por esmagar embaixo das suas patas aqueles rostos que o encaravam.
Uma tosse barulhenta veio do ninho.
Neferet olhou com desprezo.
– Quantos de vocês estão ali?
– Depois da estação, quando Zoey e a sua turma de idiotas lutaram contra nós, sobraram dez além de mim – ele deu uma olhada para Kurtis. – E ele.
– Ele não está morto. Ainda – Neferet falou. – Então há onze novatos e um vampiro. Quantos dos seus novatos começaram a tossir?
Dallas deu de ombros.
– Uns dois ou três.
– Há muitos novatos. Eles precisam ficar perto de vampiros ou vão morrer. De novo – ela acrescentou com um sorriso cruel.
Mais medo, vindo do ninho de novatos, inundou Aurox. Ele cerrou os dentes, lutando contra o desejo de se alimentar desse medo.
– Então você vai vir nos visitar? Como costumava fazer?
– Não. Mudança de planos. Está na hora de vocês se juntarem a mim. Todos vocês.
– Você quer dizer na Morada da Noite? Isso é impossível. A gente não é mais o que era antes e nós não queremos...
– O que vocês querem não quer dizer nada para mim desde que vocês me obedeçam. E se vocês não me obedecerem vão morrer.
O vampiro pareceu ficar mais ereto. A raiva dele ardeu com mais força, assim como a única lâmpada elétrica.
– Eu não vou morrer. Já me Transformei. Pode ser que alguns deles morram – ele indicou com um gesto os novatos que estavam encolhidos aos seus pés –, mas eu diria que isso é seleção natural2.
– Você não é tão esperto quanto eu pensava, Dallas. Deixe-me falar de um jeito bem claro e simples para que até você consiga entender: se você e os seus novatos não me obedecerem, você vai ser o primeiro a morrer. Minha criatura vai matar você. Agora. Ou a qualquer momento em que eu ordenar. Faça sua escolha.
A luz da lâmpada ficou mais fraca.
– Eu escolho obedecer a você – Dallas respondeu.
– Sábia escolha. Quero que vocês se limpem e voltem para a Morada da Noite a tempo de assistir as aulas hoje à noite.
– Mas como...
– Usem os chuveiros da escola para tirar o mau cheiro de vocês. Roubem roupas. Limpas. Ou comprem-nas. Às sete e meia, um pouco antes de as aulas começarem, um ônibus da Morada da Noite vai estar esperando no fim da rua, na entrada leste da Universidade de Tulsa. Vocês vão entrar no ônibus. Vão retomar suas aulas. Vão dormir na Morada da Noite – Neferet fez uma pausa, gesticulando de modo arrogante. – Vou mandar cobrir as janelas, abrir um porão ou algo assim. Mas vocês vão viver na Morada da Noite.
– Como nós vamos satisfazer a nossa fome?
– Cuidadosamente. E o que não conseguirem satisfazer com cuidado vocês terão que controlar, pelo menos até o mundo ter se transformado para atender às suas necessidades.
– Eu não entendo! Por que você nos quer por lá?
– Rephaim, o Raven Mocker que vocês não conseguiram matar mais de uma vez, recebeu o dom de ter a forma humana durante a noite e agora é o companheiro de Stevie Rae. Ele recebeu permissão para frequentar a Morada da Noite, junto com Aphrodite e os outros novatos vermelhos. Os novatos vermelhos de Stevie Rae.
– Eu terei que ir para a escola com ele? E com ela? Juntos?
A lâmpada brilhou intensamente de novo.
– Você os odeia, não é mesmo?
– Sim.
– Ótimo. Essa é a razão pela qual eu quero você lá. Todos vocês.
– Por que a gente os odeia?
– Não, por causa daquilo que o seu ódio, controlado por mim, vai causar – ela disse.
– E o que ele vai causar? – ele perguntou.
Neferet sorriu.
– Caos.
Eles saíram logo depois de Neferet terminar de instruir o vampiro chamado Dallas sobre os meios que ele podia e não podia usar para causar caos. Aparentemente, o propósito dele era muito parecido com o de Aurox: Neferet comandava e controlava a sua violência e o tinha como aliado. Ele não deveria matar – ainda. E como fio condutor oculto havia sempre a ideia de semear a discórdia, a inquietação e o ódio.
Aurox entendia. Aurox obedecia.
Quando Neferet ordenou que ele controlasse a besta dentro de si, ele obedeceu e a seguiu daquele ninho putrefato até os corredores frescos e limpos da escola.
Na porta da frente, o velho guarda ainda jazia onde Aurox o havia deixado.
– Ele está vivo? – Neferet perguntou.
Aurox o tocou.
– Sim.
Neferet suspirou.
– Acho que é melhor assim, apesar de ser ligeiramente inconveniente. Você vai ter que voltar lá embaixo e dizer a Dallas que eu quero que ele apague a memória desse velho. Diga a ele para implantar na cabeça do homem a sugestão de que ele foi ferido quando a escola foi roubada – ela coçou o queixo pensativamente e então olhou para o corredor que ostentava em mostruários de vidro objetos dignos de lembrança e, mais à frente, para a biblioteca, com suas fileiras impecáveis de livros e suas luminárias ornamentadas e cintilantes. – Não, eu tenho uma ideia mais divertida. Diga a Dallas para fazer o humano acreditar que ele foi ferido quando a escola foi atacada por vândalos. Depois, no caminho de saída, quero que você estilhace os mostruários de vidro e destrua a biblioteca. Faça isso rapidamente. Vou esperar do lado de fora. E eu não gosto de esperar muito tempo.
– Sim, Sacerdotisa – ele falou.
– Como eu disse, esta arquitetura é um desperdício com adolescentes humanos... – ela deu uma gargalhada ao sair do edifício.
Apressadamente, ele refez seu trajeto de volta ao covil subterrâneo. Assim que Dallas o viu, ele se levantou e o encarou, colocando-se entre Aurox e o grupo de novatos. O vampiro vermelho levantou seu braço sujo e o encostou em uma caixa de metal aparafusada na parede de cimento. Aurox sentiu o poder que ressoou lá dentro, movendo-se em espiral, querendo obedecer ao comando dele.
– O que você quer? – Dallas perguntou.
– Neferet me enviou com uma nova ordem para você.
Dallas tirou sua mão da caixa de metal.
– O que ela quer que eu faça?
– Há um segurança inconsciente perto da entrada da escola. A Sacerdotisa não quer que ele se lembre da nossa presença. Em vez disso, ele deve acreditar que vândalos o atacaram.
– Tudo bem. Que seja – Dallas disse e então, antes que Aurox se virasse para ir embora, ele perguntou: – Ei, que diabo é você?
A pergunta surpreendeu Aurox. A resposta dele saiu automaticamente:
– Eu obedeço às ordens de Neferet.
– Sim, mas o que você é? – perguntou uma novata de cabelos pretos que o observava atentamente atrás de Dallas. – Eu vi bem. Você estava se transformando em algo com chifres e cascos. Você é algum tipo de demônio?
– Não. Não sou um demônio. Eu obedeço às ordens de Neferet – então Aurox deu as costas para eles, deixando-os para trás, mas ele não pôde deixar as palavras deles para trás. Elas o seguiram pelo corredor. Ele é uma aberração, eles sussurraram. É uma coisa totalmente esquisita.
Ele usou uma mesa feita de madeira e aço para estilhaçar e destruir as preciosidades no corredor amplo e claro. Ele despedaçou as luminárias ornamentadas que pendiam do teto no salão cheio de livros. Enquanto fazia isso, Aurox se alimentava do medo e da raiva que ainda permanecia em seu corpo. Quando essas emoções foram usadas, ele canalizou o medo que o vampiro vermelho e seus novatos estavam provocando no velho homem enquanto o novato que ele havia machucado bebia o sangue dele e os outros ficavam em volta, olhando e rindo. Quando eles terminaram e limparam a mente do guarda, Aurox usou os vestígios da aversão que os novatos sentiram por ele como um combustível de que precisava, até que essa emoção também se acabou. Então ele desenterrou as únicas emoções que haviam sobrado. Emoções das quais ele não tinha se alimentado, mas, pelo contrário, que ele tinha conservado de algum modo, como se fossem suas. Então foi banhado na solidão, na tristeza e na culpa de Zoey que ele terminou de depredar a escola. E então, depois de se transformar e voltar a ter a aparência de um garoto, Aurox andou pesadamente pela destruição que havia causado, apressando-se para ter certeza de que Neferet não ia esperar por mais tempo.
1 OnStar é um serviço de comunicação da General Motors, que oferece sistema de navegação, orientação sobre o tráfego e auxílio em caso de acidente, entre outras funções. (N.T.)
2 Seleção natural é um conceito criado pelo naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) para explicar a evolução das espécies. Segundo esse modelo, os indivíduos mais adaptados ao ambiente sobrevivem e passam suas características aos seus descendentes, enquanto os menos adaptados morrem e, portanto, geram menos descendentes com características desfavoráveis à sobrevivência. (N.T.)

13

Stark
O sonho de Stark começou bem. Ele estava em uma praia incrível, com areia branca em volta e água azul diante dele. O sol ainda não o havia queimado. Na verdade, era como antes de ele ter sido Marcado, era ótimo sentir o sol no rosto e nos ombros. Ele estava disparando flechas em um grande alvo redondo com forma de olho de touro, que magicamente absorvia as flechas, que por sua vez depois reapareciam na areia ao seu lado, de modo que ele podia ficar disparando flechas sem parar.
Ele só estava pensando em como o sonho ficaria realmente excelente se Zoey aparecesse na praia de biquíni.
Ou talvez fosse uma praia europeia e Zoey aparecesse fazendo topless. Isso seria ainda melhor.
E então, como acontece muito em sonhos, a cena se alterou e de repente Zoey estava lá, só que eles não estavam na praia. Ela estava toda envolvida nos braços dele, quente, macia e com um cheiro muito bom.
– Ei, você está acordado e o sol não se pôs ainda – ela disse, sorrindo para ele.
– É. Deixa eu te mostrar o quanto estou acordado – ele abriu o sorriso para ela e a beijou; o gosto dela era doce. O corpo dela encaixava com o dele perfeitamente. Ela deu aquele gemidinho suspirado que ela dava quando estava se sentindo bem de verdade.
Mas bem no momento em que ele estava realmente entrando no sonho, Zoey se afastou dele. Ele olhou para ela com cara de interrogação, pensando que talvez fosse um sonho incrível e que ela iria fazer um striptease para ele. Então ele viu a expressão do rosto dela. Era de pavor com olhos arregalados.
– Detenha-as! – ela gritou. – Stark! Guardião! Ajude-me!
Ela estava estendendo os braços em direção a ele enquanto gavinhas escuras tipo serpentes a arrastavam para longe.
Stark ficou em pé em um pulo e a espada do Guardião apareceu na sua mão. Ele correu na direção dela, saltou sobre o seu corpo caído e se estatelou no meio daqueles filamentos de Trevas. Atacando com a espada do Guardião, ele cortou as gavinhas seguidamente, mas onde ele cortava uma, duas outras cresciam no seu lugar e grudavam novamente como velcro no corpo de Zoey.
– Stark! Ah, Deusa! Ajude-me!
– Estou tentando! Zoey, estou fazendo o melhor que eu posso! – mas ele não estava fazendo diferença contra as Trevas. Nessa hora, Z. estava completamente tomada pelas gavinhas, como se fosse um casulo de algum bicho que uma aranha gigante iria comer, e ela estava consciente e gritando para que ele a salvasse.
Stark lutava e lutava, mas não havia nada que ele pudesse fazer e, quando as Trevas puxaram Zoey, ele viu Neferet comandando os fios negros e grudentos como se fossem marionetes. Ela estava fora do alcance da sua espada. Ela gargalhou alto enquanto apertava os filamentos em volta de Zoey, até o seu amor, sua rainha, ser estrangulada e morrer, absorvida pela sua inimiga.
No sonho Stark ficou parado ali, chorando e soluçando, completamente perdido sem a sua Zoey. Na sua mente, ele ouviu uma voz forte e clara: Isso vai acontecer a menos que Zoey Redbird rompa publicamente com Neferet. Ela precisa se levantar contra a Tsi Sgili e parar com essa simulação de trégua entre elas.
Stark, ainda chocado e arrasado com a perda em sonho da sua rainha, apenas ouviu as palavras e não a voz. Ele não pensou sobre de onde vinha a mensagem, apenas no alerta que ela continha.
Ele deu um suspirou profundo e acordou com Zoey segura, quente e desejosa nos seus braços. Ela sorriu para ele, dizendo:
– Ei, você está acordado e o sol não se pôs ainda.
Um calafrio horrível e agourento fez o corpo dele estremecer. Havia sido mais do que um sonho; ele sabia disso. O que significava que o alerta também era mais do que apenas palavras; era uma profecia. Stark abraçou Zoey, pressionando-a com força contra o seu corpo.
– Diga que está tudo certo. Diga que você está bem.
– Eu digo, se você parar de me sufocar – ela falou meio engasgada.
Ele afrouxou o aperto de seu braço, enquanto apalpava as costas dela de cima a baixo, olhando por sobre o ombro, certificando-se de que não havia nenhuma gavinha ali – nenhuma memória pegajosa do seu sonho.
– Stark, ei, pare – ela segurou a mão dele e olhou dentro dos seus olhos. – O que está rolando?
– Tive um sonho incrivelmente ruim. Tipo de proporções apocalípticas. Então eu acordei e você disse exatamente as mesmas palavras que tinha dito para mim no sonho, antes de as Trevas pegarem você.
– Primeiro, eca, Trevas me pegando é nojento. Como isso aconteceu?
– Você não vai querer saber – ele falou.
– Sim, é claro que eu vou. Pode ter sido um sonho profético, e se for isso, eu preciso saber o que evitar.
– É, eu também estava pensando nisso. Na verdade, eu estava tentando não pensar nisso, mas você está certa – ele se recostou e passou a mão pelos cabelos, procurando espantar o sono e o mau agouro. – Pode ser profético e você precisa saber; as Trevas pegaram você, do mesmo jeito que Laracna1 pegou Frodo, só que pior – ele contou.
Stark viu o rosto de Zoey ficar pálido.
– Como uma garota que morre de medo de aranhas, não sei como esse sonho pode ser pior.
– Coloque Neferet no lugar da aranha e as Trevas no lugar da teia.
– É, nisso você tem razão. Isso é pior – ela deu um sorriso que ele sabia que foi corajoso. – Mas você me salvou, certo?
Ele não disse nada. Não conseguiu.
– Hello, Guardião fortão! Você me salvou, certo?
– Não – ele admitiu. – Eu tentei, mas as Trevas que Neferet controlavam eram demais para mim.
– Que droga, eu odeio quando isso acontece – Zoey disse. – então ela balançou a cabeça e acrescentou com firmeza: – Ei, isso não aconteceu de verdade. Pelo menos por enquanto, foi só um sonho.
– Muitas malditas coisas que aparentemente só podem acontecer em sonho acabaram virando realidade – ele disse sombriamente. – E tem mais uma coisa. Alguém ficava me dizendo que o que eu sonhei iria realmente acontecer a menos que você começasse a enfrentar Neferet.
Zoey franziu a testa.
– Ei, eu já enfrento Neferet! Toda hora. E o que você quer dizer com “alguém” ficava dizendo isso? Era Nyx? A Deusa falou com você?
Stark ficou pensativo, tentando se lembrar da voz do sonho, mas, apesar de o pavor ser recente, os detalhes já estavam desaparecendo de volta para o seu subconsciente.
– Eu não consigo me lembrar muito bem, mas acho que não era a voz de Nyx, ou pelo menos não era uma voz dela que eu reconhecesse.
– Acho que você teria certeza se tivesse sido a Deusa. Além disso, como eu falei, eu já enfrento Neferet, então não sei do que a voz do seu sonho estava falando.
– Na verdade, neste momento você está em um tipo de trégua com ela – Stark afirmou devagar.
– Acho que isso depende da sua definição de trégua. Se significa “eu não posso chutar Neferet para fora da Morada da Noite porque o Conselho Supremo a perdoou”, então sim, nós estamos em uma trégua.
– Ei – ele tocou o queixo dela. – Não quis irritar você. Esse sonho me assustou, só isso.
Ela se aconchegou nos braços dele, e ele sentiu a tensão no corpo dela começar a relaxar.
– Você não me irritou. Você só me surpreendeu. Achei que estávamos em sintonia com o que diz respeito a Neferet.
– Nós estamos – ele a abraçou forte. – A gente sabe que Neferet é louca e do mal, e todos nós que estamos do lado de Nyx sabemos que precisamos ficar atentos e tomar cuidado com seja o que for que ela vai aprontar agora.
Zoey estremeceu e escondeu o rosto no ombro dele.
– Isso me dá vontade de voltar correndo para Skye.
– Me dá vontade de levar você de volta para Skye – ele hesitou e quase não disse mais nada, mas algo no fundo da sua mente não permitiu que ele deixasse para lá. – No sonho, Z., as Trevas pegaram você e eu não consegui salvá-la. Eu acho que foi um aviso, realmente acho. E a conclusão que eu consigo tirar disso é que você precisa continuar enfrentando Neferet.
– Eu vou continuar – ela respondeu e então levantou a cabeça para olhar para ele. – Você parece cansado e acordou cedo.
Ele deu seu sorriso metidinho.
– Acordei cedo para que a gente possa passar um tempo de qualidade juntos antes de pegar o ônibus da escola. E eu posso parecer cansado, mas não estou tão cansado – ele deslizou sua mão por baixo do camisetão que ela estava usando e fez cócegas leves nas costelas dela. Zoey deu uma risadinha. Ele capturou a risada doce e alegre com seus lábios e a transformou em um beijo quente e longo. E então ele parou de fazer cócegas e quase toda a preocupação que o seu sonho havia causado desapareceu enquanto ele a amava... quase...

Zoey

– Ah, que inferno – resmunguei quando Darius entrou com o ônibus no caminho longo que contornava a parte de trás da Morada da Noite e levava ao estacionamento. A gente tinha acabado de entrar no campus quando eu vi Neferet, Dragon e cinco guerreiros Filhos de Erebus parados ali como se eles fossem uma estranha comitiva de boas-vindas de vampiros. – Vá devagar – eu disse a Darius. – A gente precisa se preparar para isso.
– É, não parece coisa boa – Kramisha falou.
– Uau, vocês não acreditariam em todas as cores que estou vendo – Shaylin estava olhando embasbacada de boca aberta para o grupo de professores e guerreiros. – Eca, e ali está aquela Mulher Olho de Peixe Morto, tão nojenta!
– Mulher Olho de Peixe Morto, eu gostei disso – Aphrodite aprovou. – Combina bem com ela.
– A Mulher Olho de Peixe Morto é super intuitiva – eu lembrei a todos, apesar de estar falando diretamente com Shaylin.
– E todos nós decidimos que é melhor ela não saber sobre o dom de Shaylin – Stevie Rae afirmou, levantando do seu assento com Rephaim na traseira do ônibus. – Z., você não quer chamar o espírito e pedir que ele ajude a encobrir os pensamentos de Shaylin, pelo menos até nós passarmos por Neferet agora?
– Sim, parece uma boa ideia – inspirei profundamente e sussurrei: – Espírito, venha para mim. – senti o ar sobre a minha pele se agitar com o poder do elemento. – Proteja Shaylin. Mantenha os pensamentos dela privados.
– Aaaaah! – Shaylin deu uma risadinha quando foi banhada pelo elemento. – Isso é tão bacana, e você fica roxa quando faz isso.
– Obrigada, eu acho – respondi. A garota nova era definitivamente esquisita, mas ela parecia bem legal. Dei uma olhada para o resto do ônibus, focando nas gêmeas e em Damien. – Mantenham seus elementos próximos também.
– Acho que sempre que Neferet estiver por perto é uma excelente oportunidade para todos nós concentrarmos nossos pensamentos em assuntos acadêmicos – Damien afirmou.
Todos nós olhamos para ele.
– Assuntos acadêmicos – Shaunee perguntou?
– Tipo lição de casa e coisas assim? – Erin acrescentou.
– Ou você está falando sobre os desfiles que são uma verdadeira academia de moda para nós? – Shaunee disse.
– Estamos confusas – Erin concluiu.
Damien suspirou dramaticamente.
– Com assuntos acadêmicos eu me refiro a trabalho escolar. Por exemplo, quando Neferet estiver perto, vocês devem praticar memorização de definições de vocabulário – ele abaixou seu longo nariz e olhou para as gêmeas. – Vocês duas podem começar com a palavra infames.
– Eu não tenho a menor ideia do que isso significa, gêmea. E você? – Erin perguntou.
– Nem uma pista, gêmea – Shaunee respondeu.
– Fiquem quietas, compartilhadoras de cérebro. A Rainha Damien tem razão. A gente não tem ficado tão perto de Neferet assim há algum tempo. Todo mundo precisa se concentrar e manter o cérebro ocupado, não com os nossos assuntos, mas com assuntos idiotas da escola – Aphrodite deu uma olhada para Rephaim. – Neferet consegue ler a sua mente?
Rephaim pareceu surpreso com a pergunta, mas quase não hesitou antes de responder:
– Ela não consegue.
– Você tem certeza? – eu perguntei.
– Sim – ele respondeu.
– Como? – Aphrodite quis saber.
– Ele não tem que explicar isso para você – Stevie Rae disse.
– Sim, ele tem – Stark falou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. – Stevie Rae, você precisa parar de ficar tão na defensiva em relação a Rephaim. Ele já esteve do lado de Neferet. Ele pode ter informações que nós podemos usar.
– Nunca estive ao lado de Neferet – a voz de Rephaim foi tão dura quando o olhar que ele dirigiu a Stark. – Eu estive ao lado de Kalona. Assim como você.
Aquilo calou totalmente Stark, e eu aproveitei a oportunidade para me colocar entre eles e dizer:
– Seja quais forem os detalhes, o que nós queremos dizer é que você já esteve em um lado oposto ao nosso, e isso pode nos ajudar agora – ele olhou para mim e seu olhar se suavizou, apesar de a sua expressão ainda estar cautelosa.
– Sei que Neferet não consegue ler a minha mente porque ela não sabia sobre mim e Stevie Rae – ele pegou a mão de Stevie Rae. – Eu tentava não pensar em você quando ela estava por perto, mas não conseguia evitar. Eu pensava em você o tempo todo.
Stevie Rae abriu o sorriso e ficou na ponta dos pés para beijá-lo.
– Eca – Aphrodite disse. – Então, continuando rapidamente antes que eu vomite, é certo que Neferet não consegue ler a minha mente, a mente de Zoey e a do menino-pássaro. O resto de vocês precisa tomar cuidado.
– Há outro ônibus escolar que acabou de entrar na pista atrás de nós – Darius falou, olhando pelo espelho retrovisor. – Está escrito Morada da Noite na sua lateral também.
De um dos assentos traseiros, Johnny B. anunciou:
– E não é um micro-ônibus. Por que nós não podemos pegar o ônibus de tamanho normal?
– Você não é normal – Kramisha respondeu.
– Sua mãe não é...
– Tudo bem, vamos nos preparar para a escola – eu o cortei.
– O que significa nos preparar para a batalha – Stark afirmou.
– Estacione – eu falei para Darius.
Darius parou e então ele, Stark e Rephaim saíram do micro-ônibus primeiro, seguidos pelo resto de nós. Pensei que eu poderia muito bem enfrentar seja o que fosse que estivesse acontecendo. Com Stevie Rae e Stark nos meus flancos, marchei direto para Neferet, curvando-me semirrespeitosamente para ela e então mais respeitosamente para Dragon e os guerreiros. Então eu disse formalmente:
– Merry meet.
– Ah, Zoey, Stevie Rae, fico feliz que vocês e seus estudantes tenham chegado junto com o outro ônibus. Vou poupar tempo para explicações – Neferet falou enigmaticamente.
Antes que eu pudesse dizer brilhantemente “Ahn?” ou qualquer coisa assim, o outro ônibus parou ao lado do nosso e, com aquele barulho estranho tipo Star Trek que todos eles tinham, sua porta se abriu.
E minha pedra da vidência começou a esquentar.
Aurox desceu primeiro.
Atrás dele, Dallas saiu do ônibus. Eu ouvi o suspiro chocado de Stevie Rae. Foi então que fiquei de queixo caído porque, depois de Dallas, um grupo inteiro de novatos vermelhos desceu do ônibus. Os novatos vermelhos do mal, incluindo a totalmente péssima Nicole e Kurtis, que estava cheio de hematomas, mas continuava gordo.
Os novatos vermelhos e Aurox fizeram uma fila oposta à nossa. Tive um flashback bizarro de uma cena de dança de West Side Story2. Tudo estava estranhamente quieto, até que Stevie Rae, com um tom de voz alto e não usual, perguntou:
– Dallas, que diabos você está fazendo aqui?
Dallas deu um meio sorriso.
– Eu não respondo a você – ele olhou para Neferet e devagar, distintamente, colocou seu punho direito sobre o coração, curvou-se profundamente e disse: – Merry meet, minha Grande Sacerdotisa – todos os novatos vermelhos atrás dele imitaram a sua saudação.
Neferet sorriu graciosamente. Sua voz era afetuosa e ilusoriamente gentil.
– Que saudação adorável. Obrigada, Dallas – quando seu olhar esmeralda se desviou dos novos garotos e mirou Stevie Rae, sua voz e sua expressão se endureceram. – Vou responder à sua pergunta, Stevie Rae. O que eles vão fazer aqui é o mesmo que vocês: assistir aulas. Ah, espere. Há uma pequena diferença entre eles e o seu grupinho. Dallas e seus novatos vermelhos vão morar aqui na escola e eu serei a sua Grande Sacerdotisa.
– É ele? – Dallas estava encarando Rephaim, que estava ao lado de Stevie Rae. Eu praticamente pude ver a raiva dele transbordando.
– Deixem-me apresentar vocês. Dallas, este é Rephaim. Ah, mas vocês já se conheciam, não é mesmo? – Neferet soou como se estivesse fazendo apresentações em um baile de formatura. Juro que foi tão bizarro que tive que conter meu impulso de pedir a Stark que me desse um tapa para eu ver que não estava sonhando.
Então meu olhar se voltou para Dallas, e o medo que ele me fez sentir me mostrou que eu não estava dormindo de jeito nenhum. Os olhos dele brilharam levemente em vermelho. Ele parecia selvagem e muito, muito perigoso. Eu me lembrei que já tinha achado ele tão fofo e legal. Bem, aquele garoto fofo e legal devia ter morrido quando esse novo vampiro vermelho se Transformou e recebeu tatuagens parecidas com chicotes.
Ao meu lado, Stark impacientemente se aproximou de mim.
Ao lado de Dallas, Aurox, para quem eu estava tentando não olhar, também se moveu para mais perto de mim de modo inquieto.
– É, exatamente, já nos conhecemos – Dallas disse.
– Sim, é verdade – a voz de Rephaim era tão dura e fria quanto a de Dallas, e isso me fez lembrar que eu não deveria subestimá-lo só porque ele sorria de um jeito tão doce para Stevie Rae.
– Aproveitando que estão todos juntos, gostaria de deixar algumas coisas bem claras – Neferet afirmou e nossos olhos se viraram na sua direção. Ela parecia tão normal! Bonita e régia, ela soava tão razoável que por um momento senti uma grande tristeza pela perda de quem ela poderia ter sido. – Aconteceram desentendimentos entre nós no passado recente. Agora isso está superado. Não vou admitir brigas aqui, sejam vocês novatos ou vampiros, vermelhos ou azuis.
– Desentendimentos? – a voz de Stevie Rae era incrédula. – Eles tentaram matar Zoey e eu!
– Zoey realmente matou alguns de nós! – Dallas gritou e juro que ouvi o zumbido da eletricidade nos fios que alimentavam a escola e estavam acima de nossas cabeças.
– Espere, eu não queria fazer isso. Nicole, Kurtis e esses caras me atacaram e...
– Chega! – a ordem de Neferet emitiu um poder ameaçador que pulsou em volta de nós, parecendo sugar até a luz prateada da lua que subia ao céu. – Já disse que o passado está superado. Stevie Rae e Zoey, se vocês não conseguirem se controlar, serão expulsas desta escola. Dallas, o mesmo serve para você. Aurox e os guerreiros Filhos de Erebus vão patrulhar os corredores e as salas de aula. Se qualquer violência começar, eles vão acabar com ela. Imediatamente. Fui clara? – ninguém disse uma palavra. O sorriso de Neferet era frio. – Ótimo. Agora, vão para suas classes – ela deu uma volta e, com aquele andar estranho e deslizante, foi em direção ao prédio principal do campus e à sala de aula à sua espera.
– Há Trevas em toda a volta dela – Stark disse em voz baixa, mas não baixa o suficiente.
– Neferet está totalmente engolfada por elas – Rephaim concordou.
– Com certeza – Stevie Rae falou. Então ela olhou para Dragon e os outros guerreiros. – Vocês não veem? São como teias de aranha pegajosas – ela indicou com o polegar Dallas e os outros novatos vermelhos. – Aposto que eles conseguem ver.
– Não sei de que diabo você está falando – Dallas respondeu.
– Você ainda faz chás de bonecas imaginárias no porão? – Nicole perguntou sarcasticamente.
Dallas e seus novatos vermelhos gargalharam.
– Dallas, Neferet quer que você se reporte ao centro de mídia. Eles estão tendo problemas com os computadores e ela precisa da sua ajuda para endireitar as coisas – Dragon disse, colocando-se entre os dois grupos. Os guerreiros Filhos de Erebus se juntaram a eles, assim como Aurox. – Shaylin, este é o seu horário escolar. Stevie Rae pode guiá-la por aí hoje – ele entregou um pedaço de papel para a nova novata. – Stark, Darius, vão para o estábulo e comecem a se preparar para as suas aulas. O resto de vocês deve fazer o que a Grande Sacerdotisa determinou. As primeiras aulas começam logo.
– Qualquer coisa que a Grande Sacerdotisa quiser está bom para mim – Dallas falou e passou roçando por Rephaim, com um olhar de desprezo.
Eu observei Rephaim aguentar firme. Ele não pareceu irritado, no estilo Pitboy, como se quisesse socar um armário ou qualquer coisa assim, mas ele realmente pareceu seguro e forte e permaneceu de modo protetor perto de Stevie Rae.
– Vamos para a aula e tentem ignorar esses idiotas – eu afirmei, segurando a mão de Stark.
– Eles não querem ser ignorados – Rephaim disse enquanto andávamos devagar em direção ao campus. – Eles estão aqui para causar problemas.
– Para jogar merda no ventilador – Stevie Rae falou e, por alguma razão, aquilo fez ela e Rephaim sorrirem.
Rephaim parecia tanto um garoto humano sorrindo para a sua namorada que eu tive que lembrar a mim mesma que ele não era exatamente o que aparentava. Precisei me lembrar de que eu já tinha visto Raven Mockers lutarem, e que eu sabia que eles eram malvados e perigosos. Então eu estava pensando sobre ele, tentando imaginar se, caso ele realmente viesse a lutar com Dallas, isso iria despertar algum canto de Trevas dentro dele. Foi quando eu vi a mudança que tomou conta da sua expressão. Em um segundo, ele estava sorrindo para Stevie Rae, e no instante seguinte seu rosto tinha ficado imóvel, como se ele pudesse ouvir um som que ninguém mais podia. Então eu pisquei e ele pareceu normal de novo.
– Ei, eu realmente vou ter que cavalgar na sexta aula? – Shaylin perguntou, lendo seu horário enquanto tentava nos acompanhar.
– Se aí diz Estudos Equestres, vai sim – Stevie Rae respondeu. – Vejo vocês no almoço – ela sorriu para Rephaim mais uma vez, acenou para nós e então se debruçou sobre Shaylin. – Deixe-me ver – ela leu o horário da novata. – Ah, ótimo, você tem Feitiços e Rituais na primeira aula. Você vai gostar. Ouvi dizer que a nova professora é legal.
– Ei, o que você tem? – Stark me perguntou.
– Não sei bem – eu disse em voz baixa. – Na verdade, provavelmente nada além do fato de que estou indo para a aula de sociologia, que é dada por Neferet. Vamos falar sobre estresse.
– Você vai ficar bem. Neste momento ela está fingindo ser uma professora e Grande Sacerdotisa – ele falou.
– É, o que significa que ela só vai me humilhar um pouquinho, em vez de arrancar minha cabeça com suas garras – eu resmunguei.
– Se ela tentar, corra bastante e fique com medo para que eu sinta e consiga chegar a você a tempo de salvá-la – ele deu aquele sorriso metidinho para mim, e eu sabia que ele estava tentando (sem sucesso) fazer que eu me sentisse melhor.
– Vou me lembrar disso. Vejo você no almoço.
Ele me beijou e então, depois de mais um olhar preocupado, foi em direção ao estábulo com Darius. Todo mundo se dispersou, sobrando apenas Damien, Rephaim e eu a caminho das nossas aulas.
– Você está bem? – perguntei para Rephaim.
– Sim, tudo bem – ele falou.
Eu realmente não acreditei e acho que minhas olhadas furtivas para ele foram muito óbvias, porque ele finalmente parou, suspirou e então me surpreendeu de verdade ao dizer:
– Ei, Damien, eu preciso falar com Zoey. Posso encontrar com você na aula?
Damien pareceu mais do que apenas um pouco curioso, mas ele era educado demais para protestar.
– Claro, sem problemas. Mas não demore. Os professores aqui realmente ficam incomodados com atrasos.
– Não vou deixar ele se atrasar – garanti a Damien, e então diminuí o passo para que Rephaim e eu ficássemos fora do prédio quando todo mundo entrou. – O que foi?
– Meu pai está aqui. Posso sentir a sua presença.
– Kalona? Onde? – eu sabia que meus olhos estavam enormes enquanto olhava em volta de nós, como se esperasse que o imortal fosse surgir das sombras a qualquer momento.
– Eu não sei onde, mas quero que você saiba que eu não o contatei, que eu não o tenho visto e que eu não tenho falado com ele desde que ele me libertou – Rephaim balançou a cabeça. – E-eu não quero que você e os seus amigos pensem que estou escondendo coisas de vocês.
– Isso é uma coisa boa. Você tem alguma ideia sobre o que ele quer?
– Não!
– Fique tranquilo, não estou acusando você de nada. Foi você que veio me contar isso, lembra?
– Sim, mas eu... – seu rosto ficou imóvel de novo. Então os olhos dele encontraram os meus, e a tristeza dentro deles era tão intensa que fez meu estômago doer. – Ele está me chamando.
1 Laracna (Shelob, no original em inglês) é uma aranha gigante que, em O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, aprisiona o personagem Frodo em sua teia, mas depois ele é salvo. (N.T.)
2 West Side Story é um filme norte-americano de 1961, cujo título no Brasil é Amor, Sublime Amor. O enredo tem como pano de fundo a briga entre gangues de rua da zona oeste de Manhattan, em Nova York. (N.T.)

14

Zoey
– Chamando você? Que diabo você quer dizer? Não estou ouvindo nada – continuei olhando assustada em volta, esperando o bicho-papão pular em cima de mim.
– Não – ele balançou a cabeça. – Você não pode ouvir. Nem eu mesmo realmente ouço. Meu pai consegue me chamar por meio do sangue imortal que nós compartilhamos. Eu achava que ele não seria mais capaz de fazer isso depois que Nyx me transformou – ele olhou ao longe, parecendo totalmente infeliz. – Mas eu não sou totalmente humano. Ainda sou uma mistura de besta, humano e imortal. Eu ainda compartilho o sangue com ele.
– Ei, tudo bem. Você está fazendo o melhor que pode. Eu vejo o modo como você olha para Stevie Rae. Sei que você a ama. E Nyx em pessoa o perdoou.
Ele assentiu e passou a mão pelo rosto, o que me fez perceber que ele tinha começado a suar. Muito.
Obviamente, ele percebeu que eu percebi e disse:
– É difícil não responder ao seu chamado. Eu nunca resisti a ele antes.
– Olha só, fique aqui. Vou chamar Stark, Darius e Stevie Rae. Daí você pode seguir o chamado de Kalona. Nós vamos todos com você para mostrar para ele que você realmente é um de nós e que ele tem que deixar você em paz.
– Não! Eu não quero que todos saibam que ele está aqui. Principalmente Stevie Rae. Ela acha que eu tenho que dar as costas completamente a ele, mas é tão difícil! – ele juntou as mãos, como se estivesse implorando que eu entendesse. – Ele ainda é meu Pai.
Apesar de não querer, eu estava começando a entender o que ele estava dizendo.
– Minha mãe errou. Ela preferiu um cara em vez de mim, mas lá no fundo eu ainda a amava e queria que ela me amasse. Queria que ela me amasse de verdade. Acho que a parte mais difícil de ela estar morta é que não há mais nenhuma chance de ela ser minha mãe de novo.
– Então você entende – ele falou.
– É, de certo modo acho que sim, mas eu também concordo com Stevie Rae. Veja bem, Rephaim, você pode se sentir como qualquer outro garoto que tem um pai completamente louco, mas o problema no seu caso é que o seu pai não é apenas um Zé Mané qualquer. Ele é um imortal perigoso que está no lado errado de uma batalha muito real do bem contra o mal.
Rephaim fechou os olhos, como se minhas palavras o tivessem ferido fisicamente. Mas ele assentiu e, quando abriu os olhos novamente e me encarou, pude ver a força da sua decisão.
– Você está certa. Tenho que enfrentá-lo e fazê-lo entender que nós realmente temos caminhos separados. Venha comigo para que eu faça isso. Por favor, Zoey.
– Tudo bem. Deixa só eu chamar Stark e...
– Só você. Sei que isso é idiota, mas não quero humilhar meu pai, e se eu fizer isso na frente de Stark vai ser um grande insulto.
– Rephaim, eu não posso ir sozinha. Você está se esquecendo de que seu pai tentou me matar?
– Neferet aprisionou o corpo dele e o obrigou a seguir você no Mundo do Além. Ele não queria. Ele nunca quis machucar você. Zoey, meu Pai me disse que ele não ia matar você nem nenhuma Grande Sacerdotisa da Deusa.
– É sério, se liga – balancei minha cabeça incrédula. – Kalona não hesitaria em matar qualquer um que se colocasse no caminho do que ele quer.
– Você já foi próxima a ele quando ele escapou da terra. Você pode realmente dizer que nunca notou um vislumbre do guerreiro de Nyx ainda dentro dele?
Eu hesitei, sem querer me lembrar do quanto fui tola antes de Heath ser morto.
– Kalona matou Heath porque eu fui idiota o bastante em baixar a guarda perto dele.
– Heath não era uma Grande Sacerdotisa a serviço de Nyx. E você não me respondeu. Diga sinceramente. Você percebeu de relance o que ele já foi um dia, não percebeu?
Pela milionésima vez, eu desejei saber mentir. Suspirei.
– Está bem, sim. Achei ter visto o que ele já foi um dia. Pensei que enxerguei nele o guerreiro de Nyx – respondi honestamente e então acrescentei: – Mas eu estava errada.
– Acho que você não estava, pelo menos não completamente. Acho que esse guerreiro ainda está dentro dele. Afinal, depois de tudo, ele realmente permitiu que eu fosse livre para escolher meu próprio caminho.
– Mas ele não está deixando que você se liberte dele. Ele está aqui, chamando por você.
– E se ele estiver me chamando porque sente a minha falta?! – Rephaim gritou e passou a mão no seu rosto tenso e suado. Com uma voz mais controlada, ele continuou: – Por favor, Zoey. Eu prometo a você que não vou permitir que meu pai a machuque, do mesmo modo que nunca vou deixar que ele machuque Stevie Rae. Por favor, venha comigo e seja testemunha de que eu rompi com ele, para que ninguém na Morada da Noite possa questionar a minha lealdade – então ele disse uma coisa que fez que eu me transformasse na Rainha da Idiotalândia. – Ele não me viu desde que virei um garoto. Talvez, quando ele vir a prova do perdão de Nyx, o guerreiro dentro dele desperte. Nyx não gostaria que você desse mais uma chance ao seu guerreiro?
Olhei para ele e vi o que Stevie Rae deve ter visto quando se apaixonou por ele. Basicamente, ele era um garoto fofo que queria que seu pai o amasse.
– Ah, que inferno – eu disse. – Tudo bem. Eu vou com você desde que a gente não saia do campus. E saiba que, se eu ficar assustada, perturbada ou qualquer coisa assim, Stark vai sentir e vir correndo com seu arco que não pode errar, qualquer que seja o alvo para onde ele atire. E juro que ele vai atirar. Não posso fazer nada quanto a isso.
Rephaim pegou meu braço e começou a praticamente me arrastar em direção ao muro leste.
– Não vou colocá-la em perigo. Você não vai sentir nenhuma dessas coisas.
Eu ia falar algo sobre galinhas nascerem com dentes, mas em vez disso poupei meu fôlego e corri para acompanhá-lo.
É claro que eu sabia para onde estávamos indo. Fazia todo o sentido.
– A árvore idiota perto do muro idiota – falei de modo ofegante. – Não estou gostando nada disso.
– É fácil chegar lá e não costuma ter ninguém por perto – Rephaim explicou. – É por isso que ele está lá.
– Isso não deixa as coisas nem um pouco melhores – respondi.
Nós corremos pelo gramado. Olhei por sobre o meu ombro. Pude ver a iluminação a gás do estábulo que alcançava aquela área do campus, e eu estava pensando que provavelmente eu deveria abdicar do meu reinado na “Idiotalândia” e enviar um pedido de ajuda mental assustado para Stark quando de repente Rephaim diminuiu o passo e então parou.
Voltei minha atenção e meu olhar para o que estava acontecendo na minha frente e vi Kalona parado em pé ao lado da árvore rachada. Ele estava de costas para nós. Mais tarde eu tive tempo para pensar no fato de que ele deveria pelo menos estar olhando para a direção de onde ele sabia que Rephaim viria, mas na hora a sua presença ofuscou tudo, e ele sabia disso. Ele era alto, forte e, como sempre, estava nu da cintura para cima. Suas incríveis asas negras estavam dobradas em repouso, e parecia que um deus as havia feito com pedaços do céu da noite.
Eu tinha me esquecido de como ele era bonito, poderoso e majestoso. Cerrei os dentes e me sacudi mentalmente. Eu não havia me esquecido de como ele era perigoso.
– Pai, eu estou aqui – Rephaim disse com uma voz que soou tão pequena e infantil que eu coloquei minha mão na dele, que ainda segurava meu braço.
Kalona se virou. Seus olhos âmbar se arregalaram. Por um momento, seu rosto perdeu toda a expressão e ele pareceu completamente atordoado.
– Rephaim? É você mesmo, meu filho?
Senti o tremor que atravessou o corpo de Rephaim e apertei mais sua mão.
– Sim, pai – sua voz ficou mais forte enquanto ele falava. – Sou eu, Rephaim, seu filho.
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CONTINUA
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Eu sabia que o imortal já tinha fingido um monte de coisas. Sabia que ele estava do lado das Trevas e era um assassino, um mentiroso e um traidor. Mas acho que vou me lembrar pelo resto da vida do rosto de Kalona ao ver Rephaim naquele dia. Por um instante, Kalona sorriu, e tanta alegria encobriu o seu ser que acabei soltando Rephaim. Fiquei parada ali, boquiaberta, pasma com a felicidade de Kalona. E percebi que vi na expressão dele o mesmo amor que eu vira no seu olhar para Nyx no Mundo do Além.
– Nyx me perdoou – Rephaim disse.
Aquelas três palavras apagaram a alegria de Kalona.
– E então ela o presenteou com a forma de um garoto humano? – o imortal falou com uma voz sem emoção.
Pude sentir a hesitação de Rephaim e eu sabia que ele ia fazer o que eu costumava fazer muito frequentemente (contar toda a verdade quando o melhor era ficar de boca fechada), então falei rapidamente por ele a versão mais curta e semicorreta da história.
– Sim, ele é um garoto agora e está com a gente.
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O olhar âmbar de Kalona se voltou para mim.
– Zoey, você parece muito bem. Pensei que meu filho era o companheiro da Vermelha. Ela o está compartilhando com você?
– Eca, não. Aqui não é esse tipo de escola. Ela é minha amiga, só isso – eu disse, afastando totalmente a lembrança de como Kalona havia ficado mexido quando viu Rephaim. Este é o verdadeiro Kalona, lembrei a mim mesma. – E você não precisa ser tão ridículo. Você chamou Rephaim, não o contrário.
– Sim, eu chamei meu filho. Não uma Grande Sacerdotisa Novata.
– Eu pedi que ela viesse comigo falar com você – Rephaim explicou.
– Você pediu para Zoey vir e não a Vermelha. Isso é porque ela já está se cansando de você?
– Não, e o nome dela é Stevie Rae e não Vermelha. Eu sou o companheiro dela e vou continuar sendo – toda aquela adoração pelo papai-herói tinha sumido da voz de Rephaim e eu gostei disso. – Foi por isso que eu respondi ao seu chamado, porque eu precisava dizer a você, assim como eu disse a Nisroc, que vou trilhar o caminho da Deusa com Stevie Rae. É isso o que eu quero. É isso o que vou querer...
Acho que minha mãe está morta.
Testei as palavras na minha mente. Elas pareceram erradas, estranhas, como se eu estivesse tentando compreender o mundo virando de cabeça para baixo ou como se o sol estivesse nascendo no oeste.
Dei um suspiro profundo e soluçante e virei de lado para pegar outro lenço de papel na caixa que estava no chão ao lado da cama.
Stark resmungou, franziu a testa e se remexeu inquieto.
Devagar e cuidadosamente, saí da cama, peguei o enorme blusão de Stark no lugar onde ele o tinha jogado, coloquei-o e me encolhi no pufe que ficava perto da parede do nosso pequeno quarto nos túneis.
O pufe fez aquele barulho de piscina de bolinhas de festa de criança, e Stark franziu a testa e murmurou algo novamente. Eu assoei meu nariz. Em silêncio. Pare de chorar, pare de chorar, pare de chorar! Isso não vai ajudar. Isso não vai trazer Mamãe de volta. Pisquei algumas vezes e limpei meu nariz outra vez. Talvez tenha sido só um sonho. Mas, no momento em que pensei nisso, meu coração já sabia a verdade. Nyx tinha me desviado dos meus sonhos para me mostrar uma visão de Mamãe entrando no Mundo do Além. Isso significava que Mamãe tinha morrido. Mamãe disse para Nyx que ela sentia muito por me decepcionar, eu lembrei a mim mesma, enquanto lágrimas escorriam pelas minhas bochechas de novo.
– Ela disse que me amava – suspirei.
Eu quase não tinha feito nenhum barulho, mas Stark se agitou todo irrequieto e murmurou: – Pare!
Fechei meus lábios, apesar de saber que não era o meu suspiro que estava atrapalhando o sono dele. Stark era meu guerreiro, meu Guardião e meu namorado. Não, namorado é uma palavra simples demais. Existe uma ligação entre mim e Stark mais profunda do que namoro, sexo e todas as coisas que fazem parte de relacionamentos normais. Era por isso que ele estava tão inquieto. Ele podia sentir minha tristeza – até nos seus sonhos, ele sabia que eu estava chorando, magoada, com medo e...
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Stark tirou o cobertor de cima do seu peito e eu percebi que seu punho estava cerrado. Olhei atentamente para o rosto dele. Ele ainda estava dormindo, mas sua testa estava franzida e cheia de rugas.
Fechei os olhos e inspirei profundamente para me equilibrar.
– Espírito – suspirei. – Por favor, venha para mim – instantaneamente, senti o elemento roçar minha pele. – Ajude-me. Não, na verdade, ajude Stark, protegendo-o da minha tristeza – e talvez, acrescentei mentalmente, você possa me proteger da minha própria tristeza também. Mesmo que seja só por um tempinho. Inspirei profundamente outra vez, enquanto o espírito se moveu dentro e em volta de mim, girando sobre a cama. Ao abrir os olhos, consegui ver uma agitação no ar envolvendo Stark. Sua pele parecia brilhar enquanto o elemento se acomodava sobre ele como um manto diáfano. Senti-me aquecida e dei uma olhadinha para os meus braços, e percebi o mesmo brilho suave repousando sobre a minha pele. Stark soltou um longo suspiro junto comigo enquanto o espírito operava uma magia reconfortante, e pela primeira vez em horas senti uma pequena parte da minha tristeza ir embora.
– Obrigada, espírito – sussurrei e cruzei meus braços, abraçando-me com força. Envolvida pelo toque suave do elemento ao qual eu me sentia mais próxima, senti-me um pouco sonolenta. Foi então que um tipo diferente de calor penetrou em minha consciência. Devagar, sem querer perturbar o feitiço de conforto que o elemento estava fazendo, soltei meus braços e toquei meu peito.
Por que a minha pedra da vidência está quente? A pedra pequena e redonda estava pendurada na minha corrente de prata, pousada entre os meus seios. Eu não a havia tirado desde que Sgiach me presenteara com ela antes de eu partir da linda e mágica Ilha de Skye.
Pensativamente, tirei a pedra de baixo do blusão, correndo meus dedos por sua superfície lisa de mármore. Ela ainda me lembrava uma pastilha Life Safer de coco, mas o mármore de Skye cintilava com uma luz sobrenatural, como se o elemento que eu invocara tivesse feito a pedra ficar viva – como se o calor que eu sentia fosse porque ela pulsava com vida própria.
A voz da rainha Sgiach ecoou na minha memória: Uma pedra da vidência está em sintonia apenas com a mais antiga das magias: o tipo que eu protejo na minha ilha. Eu a estou presenteando com uma pedra da vidência para que você possa, de fato, reconhecer a Antiga Magia, se ela ainda existir no mundo exterior.
Enquanto essas palavras se repetiam na minha mente, a pedra se virou devagar, quase preguiçosamente. O buraco no seu centro parecia um minitelescópio. Quando ela se virou, eu pude ver Stark iluminado através do buraco, e meu mundo se alterou também, estreitando-se, e então tudo mudou.
Talvez porque o espírito estivesse tão perto de mim naquele momento, o que eu vi não foi nada parecido com a alucinante primeira vez em que eu havia olhado através da pedra em Skye e acabara desmaiando.
Mas isso não significa que tenha sido nem um pouco menos perturbador.
Stark estava lá, deitado de costas, com a maior parte do seu peito nu. O brilho do espírito tinha desaparecido. No seu lugar, eu vi outra imagem. Era mal definida, no entanto, e eu não consegui perceber suas feições. Era como a sombra de alguém. O braço de Stark se contraiu e sua mão se abriu. A mão da sombra se abriu também. Enquanto eu olhava, a espada do Guardião – a enorme e longa espada que tinha vindo até Stark no Mundo do Além – tomou forma na mão de Stark. Eu arfei surpresa, e o guerreiro-fantasma virou sua cabeça na minha direção e fechou sua mão em volta da espada.
No mesmo instante, a espada se alterou e se transformou em uma longa lança negra – perigosa, letal e manchada de sangue, ela parecia familiar demais para mim. Pontadas de medo me atravessaram.
– Não! – eu gritei. – Espírito, fortaleça Stark! Faça essa coisa ir embora! – com um barulho parecido com o bater de asas de um pássaro gigante, o espectro desapareceu, a pedra da vidência ficou fria e Stark se sentou, franzindo a testa para mim.
– O que você está fazendo aí? – ele esfregou seus olhos. – Por que você está fazendo tanto barulho?
Abri minha boca para tentar explicar a coisa bizarra que eu tinha acabado de ver, quando ele deu um suspirou profundo e se deitou de novo, abrindo as cobertas e me chamando sonolentamente.
– Vem aqui. Eu não consigo dormir se você não estiver de conchinha comigo. E eu realmente preciso dormir um pouco.
– Eu também – eu disse. E, com as pernas bambas, fui rápido em direção a ele e me encostei do seu lado, com a cabeça sobre o seu ombro. – Ei, ahn, acabou de acontecer uma coisa estranha – comecei, mas, quando eu levantei a cabeça para olhar nos olhos dele, os lábios de Stark encontraram os meus. A surpresa não durou muito, e aos poucos eu comecei a beijá-lo também. Era bom, tão bom estar perto dele. Seus braços me envolveram. Pressionei meu corpo contra o dele, enquanto os seus lábios seguiam a curva do meu pescoço. – Pensei que você tinha dito que precisava dormir – minha voz soou ofegante.
– Eu preciso mais de você – ele respondeu.
– É, eu também – eu disse.
Então, nos entregamos um ao outro. O toque de Stark afugentou a morte, o desespero e o medo. Juntos, lembramos um ao outro sobre a vida, o amor e a felicidade. Depois de tudo, finalmente dormimos, e a pedra da vidência repousou fria e esquecida sobre os meus seios entre nós dois.

1

Aurox
A carne do humano era macia, suculenta.
Foi uma surpresa o fato de ter sido tão fácil destruí-lo e fazer o seu coração fraco parar de bater.
– Leve-me para o norte de Tulsa. Eu quero sair à noite – ela disse. Foi com essa ordem que a noite deles começou.
– Sim, Deusa – ele respondera instantaneamente, saindo cheio de vida do canto da varanda no topo do prédio no qual ele tinha sido feito.
– Não me chame de Deusa. Chame-me... – ela parecera contemplativa. – Sacerdotisa – seus lábios carnudos, rubros e brilhantes se curvaram em um sorriso. – Acho que é melhor se todo mundo me chamar simplesmente de Sacerdotisa, pelo menos por um breve período.
Aurox cruzou sua mão em punho sobre o peito, fazendo um gesto que ele instintivamente sabia ser de um tempo antigo, embora, de algum modo, achasse aquilo estranho e forçado.
– Sim, Sacerdotisa.
A Sacerdotisa passara rápido por ele, gesticulando imperiosamente para que ele a seguisse.
E ele a seguira.
Ele havia sido criado para segui-la. Para receber suas ordens. Para obedecer aos seus comandos.
Então, entraram em uma coisa que a Sacerdotisa chamara de carro, e o mundo voara. A Sacerdotisa ordenou que ele entendesse o funcionamento daquilo.
Ele observara e aprendera, como ela tinha mandado.
Pararam e saíram do carro.
A rua tinha um cheiro de morte, podridão, depravação e imundície.
– Sacerdotisa, este lugar não...
– Proteja-me! – ela respondeu rispidamente. – Mas não seja protetor! Eu sempre vou aonde quero, quando quero e faço exatamente o que quero. É o seu trabalho, ou melhor, o seu propósito, derrotar os meus inimigos. E criar inimigos é o meu destino. Observe. Reaja quando eu ordenar que você me proteja. Isso é tudo o que eu exijo de você.
– Sim, Sacerdotisa – ele disse.
O mundo moderno era um lugar confuso. Tantos sons inconstantes. Tanta coisa que ele não conhecia. Ele faria como a Sacerdotisa ordenara. Ele iria cumprir o propósito para o qual fora criado e...
Um homem deu um passo para a frente, bloqueando o caminho da Sacerdotisa.
– Você é bonita demais para estar aqui neste beco tão tarde só com um garoto para te acompanhar – os olhos dele se arregalaram quando ele viu as tatuagens da Sacerdotisa. – Então, vampira, você deu uma parada aqui para usar esse garoto como um lanchinho, é? Que tal você me dar essa bolsa e então eu e você vamos falar sobre como é estar com um homem de verdade, hein?
A Sacerdotisa suspirou e pareceu entediada.
– Você está errado em ambas as suposições: eu não sou simplesmente uma vampira e ele não é um garoto.
– Ei, o que você quer dizer com isso?
A Sacerdotisa ignorou o homem e olhou por sobre o ombro para Aurox.
– Agora você deve me proteger. Mostre-me que tipo de arma eu comando.
Ele a obedeceu sem pestanejar. Aurox se aproximou do homem sem hesitar. Com um movimento rápido, Aurox cravou seus polegares nos olhos arregalados do homem, o que fez a gritaria começar.
O pavor do homem o inundou, alimentando-o. Tão simplesmente quanto respirar, Aurox inalou a dor que ele estava causando. O poder do medo do homem se dilatou dentro dele, latejando quente e frio. Aurox sentiu suas mãos se endurecendo, mudando, tornando-se algo mais. O que eram dedos normais viraram garras. Ele as puxou dos olhos do homem quando o sangue começou a vazar dos ouvidos dele. Com o poder emprestado da dor e do medo, Aurox levantou o homem, e o arremessou com força contra o muro do prédio mais próximo.
O homem berrou de novo.
Que excitação maravilhosa e terrível! Aurox sentiu mais ondulações de transformações pelo seu corpo. Meros pés humanos tornaram-se patas de diabo. Os músculos de suas pernas se engrossaram. Seu peito inchou e rasgou a camiseta que ele estava usando. E o melhor de tudo, Aurox sentiu os chifres grossos e mortais que cresceram na sua testa.
No momento em que três amigos do homem correram para o beco para ajudá-lo, ele tinha parado de gritar.
Aurox deixou o homem na sujeira e se virou para se colocar entre a Sacerdotisa e aqueles que acreditavam que poderiam causar algum mal a ela.
– Que merda é essa? – o primeiro homem chegou correndo e parou de repente.
– Nunca vi nada parecido com isso – disse o segundo homem.
Aurox já estava absorvendo o medo que começava a irradiar deles. Sua pele pulsava com aquele fogo frio.
– Aquilo são chifres? Ah, merda, não! Tô fora! – o terceiro homem se virou e correu por onde tinha vindo. Os outros dois começaram a se afastar devagar, com os olhos arregalados, em choque e olhando fixamente.
Aurox se virou para a Sacerdotisa.
– Qual é a sua ordem? – em alguma parte distante da sua mente, ele ficou surpreso com o som da sua voz, em como ela tinha ficado tão gutural, tão bestial.
– A dor deles deixa você mais forte – a Sacerdotisa pareceu satisfeita. – E diferente, mais feroz – ela olhou para os dois homens em retirada e o seu carnudo lábio superior se levantou em um riso de escárnio. – Não é interessante? Mate-os.
Aurox se moveu tão rapidamente que o homem mais próximo não teve nenhuma chance de escapar. Ele espetou o peito do homem com seus chifres e o levantou, fazendo ele se debater, berrar e sujar as próprias calças de medo.
Isso deixou Aurox ainda mais poderoso.
Com uma forte sacudida de cabeça, o homem espetado voou para a parede e depois para o chão, encolhido e silencioso, ao lado do primeiro homem.
O outro homem não fugiu. Em vez disso, ele pegou uma faca longa e de aparência perigosa e arremeteu contra Aurox.
Aurox fez uma finta para o lado e então, quando o homem se desequilibrou, ele pisou com força com sua pata sobre o pé dele, rasgando o seu rosto enquanto o homem caía para a frente.
Com a respiração ofegante, Aurox olhou os corpos dos seus inimigos derrotados. Ele se voltou para a Sacerdotisa.
– Muito bem – ela disse sem emoção na voz. – Vamos sair deste lugar antes que as autoridades apareçam.
Aurox a seguiu. Ele andou pesadamente, suas patas escavavam sulcos no beco sujo. Fechou suas garras em punho ao seu lado, enquanto tentava compreender a tempestade emocional que fluía pelo seu corpo, levando com ela o poder que havia alimentado o seu frenesi de combate.
Fraco. Ele se sentia fraco. E mais. Havia algo mais.
– O que é? – ela perguntou de modo ríspido quando ele hesitou antes de entrar no carro de novo.
Ele balançou a cabeça.
– Não sei. Eu me sinto...
Ela gargalhou.
– Você não sente absolutamente nada. Você obviamente está pensando demais nisso. Minha faca não sente. Meu revólver não sente. Você é minha arma; você mata. Lide com isso.
– Sim, Sacerdotisa – Aurox entrou no carro e deixou o mundo ficar para trás em ritmo acelerado. Eu não penso. Eu não sinto. Eu sou uma arma.

Aurox

– Por que você está parado aqui olhando para mim? – a Sacerdotisa perguntou a ele, encarando-o com seus gélidos olhos verdes.
– Eu aguardo as suas ordens, Sacerdotisa – ele respondeu automaticamente, pensando em como era possível que ele a tivesse desagradado. Eles tinham acabado de voltar para a cobertura no alto do majestoso edifício chamado Mayo. Aurox havia andado até a varanda e simplesmente ficara ali parado, em silêncio, olhando para a Sacerdotisa.
Ela expirou o ar com força.
– Eu não tenho nenhuma ordem para você neste momento. E você precisa ficar sempre me encarando?
Aurox olhou para longe, focando nas luzes da cidade e em como elas brilhavam de modo atraente contra o céu da noite.
– Eu aguardo suas ordens, Sacerdotisa – ele repetiu.
– Ah, por todos os deuses! Quem iria imaginar que o Receptáculo criado para mim seria tão idiota quanto bonito?
Aurox sentiu a mudança na atmosfera antes que as Trevas se materializassem da fumaça, da sombra e da noite.
– Idiota, bonito e mortal...
A voz ressoou na sua cabeça. O enorme touro branco tomou forma diante dele. Seu hálito era fétido, ainda que doce. Seu olhar era horrível e maravilhoso ao mesmo tempo. Ele era mistério, magia e caos juntos.
Aurox se ajoelhou na frente da criatura.
– Levante-se e vá lá para trás... – ela balançou a mão, dispensando-o com um gesto em direção às sombras do canto mais distante da varanda.
– Não, prefiro que ele fique. Eu tenho prazer em observar minhas criações.
Aurox não sabia o que dizer. Essa criatura comandava a sua atenção, mas a Sacerdotisa comandava o seu corpo.
– Criações? – a Sacerdotisa colocou uma ênfase especial no final da palavra enquanto ela se movia languidamente em direção ao touro corpulento. – Você sempre cria presentes como esse para os seus seguidores?
A risada do touro foi terrível, mas Aurox percebeu que a Sacerdotisa não se sobressaltou nem um pouco – em vez disso, ela parecia ser atraída cada vez mais para perto do animal gigantesco enquanto ele falava.
– Que interessante! Você está mesmo me questionando. Você está com ciúmes, minha cara impiedosa?
A Sacerdotisa acariciou os chifres do touro.
– Tenho motivos para estar?
O touro a acariciou com o seu focinho. Onde ele tocou a Sacerdotisa, a seda do vestido dela se enrugou, expondo a carne macia e nua que estava por baixo.
– Diga-me, qual você acha que é o propósito do meu presente a você? – o touro respondeu à pergunta da Sacerdotisa com outra pergunta.
A Sacerdotisa piscou e balançou a cabeça, como se estivesse confusa. Então o olhar dela encontrou Aurox, ainda ajoelhado.
– Meu mestre, o propósito dele é proteção, e eu estou pronta para fazer o que você ordenar para agradecer.
– Eu vou aceitar suas deliciosas oferendas, mas eu devo explicar que Aurox não é só uma arma de proteção. Aurox tem um propósito, que é criar o caos.
A Sacerdotisa inspirou profundamente, em choque.
– Verdade? – ela perguntou com uma voz suave e reverente. – Através dessa única criatura eu posso comandar o caos?
Os olhos brancos do touro pareciam a lua se pondo.
– Verdade. Ele é, de fato, uma única criatura, mas seu poder é vasto. Ele tem a capacidade de deixar o desastre no seu rastro. Ele é o Receptáculo, que é a manifestação dos seus sonhos mais profundos, e eles não são o mais completo e absoluto caos?
– Sim, ah, sim – a Sacerdotisa suspirou as palavras. Ela se inclinou contra o pescoço do touro, acariciando seu dorso.
– Ah, e o que você vai fazer com o caos agora que ele está sob o seu comando? Você vai botar abaixo as cidades dos humanos e governar como rainha vampira?
O sorriso da Sacerdotisa era bonito e horrível.
– Rainha não. Deusa.
– Deusa? Mas já há uma Deusa dos vampiros. Você sabe muito bem disso. Você já esteve a serviço dela.
– Você quer dizer Nyx? A Deusa que permite que seus subordinados façam escolhas e tenham vontade própria? A Deusa que não intercede porque acredita com tanta força no mito do livre-arbítrio?
Aurox achou que podia ouvir um sorriso na voz da besta e ficou imaginando como isso era possível.
– Sim, eu me refiro a Nyx, Deusa dos vampiros e da noite. Você usaria o caos para desafiá-la?
– Não. Eu usaria o caos para derrotá-la. E se o caos ameaçar a estrutura do mundo? Nyx não iria intervir e desafiar suas próprias regras para salvar seus filhos? E fazendo isso a Deusa não iria rescindir a sua lei que concede livre-arbítrio aos humanos e trair a si mesma? O que acontecerá então ao seu divino reinado se Nyx mudar o que ele está destinado a ser?
– Eu não posso dizer, já que isso nunca aconteceu antes – o touro bufou como se estivesse se divertindo. – Mas é uma questão surpreendentemente interessante, e você sabe o quanto eu gosto de ser surpreendido.
– Eu apenas espero poder continuar a surpreendê-lo muitas e muitas vezes, meu mestre.
– Apenas é uma palavra tão pequena... – o touro disse.
Aurox continuou ajoelhado na varanda muito tempo depois de a Sacerdotisa e o touro terem partido, deixando-o de lado e esquecido. Ele ficou onde havia sido deixado, encarando o céu.

2

Zoey
– Um micro-ônibus escolar? Sério? – tudo o que eu podia fazer era balançar a cabeça e olhar para aquela coisa amarela e atarracada com letras pretas recém-pintadas nas laterais, onde se lia Morada da Noite. – Quero dizer, legal que o meu telefonema para Thanatos funcionou tão rápido e que a gente conseguiu permissão para voltar à escola, mas um micro-ônibus escolar?
– Gêmea! Eles mandaram o micro-ônibus dos retardados1 para a gente! – Erin disse, dando risadinhas.
– Gêmea, isso é muito maldoso – Shaunee falou.
– Eu sei, Gêmea. Não acredito que Neferet seja tão maldosa a ponto de enviar o micro-ônibus dos retardados para a gente – Erin continuou.
– Não, eu não quero dizer que Neferet é maldosa. Quero dizer que é maldoso dizer retardados – Shaunee explicou, revirando os olhos para a sua gêmea.
– Acho que Shaunee está correta e vocês deveriam pensar em expandir o seu vocabulário. Vocês estão usando maldoso muitas vezes, é redundante – Damien afirmou.
Shaunee, Erin, Stevie Rae, Rephaim e eu encaramos Damien. Eu sabia que todos nós estávamos pensando que era ótimo ouvi-lo obcecado por vocabulário de novo. Mas nós não queríamos dizer nada, pois estávamos todos com medo de que ele pudesse explodir em lágrimas e se afundar novamente na depressão que o assombrava desde a morte de Jack.
Aphrodite e Darius escolheram aquele momento para emergir do porão da estação e, como sempre, Aphrodite atravessou a ponte entre a decência e o desastre invocando a sua única regra verdadeira e experimentada: importe-se com as Aparências.
– Ah, que merda. Eu não vou entrar nisso. O micro-ônibus é para os retardados – Aphrodite falou, bufando e jogando os cabelos.
– Ei, pessoal, não é tão ruim assim. Quero dizer, está na cara que é um ônibus novo. Olhem só as letras fresquinhas de Morada da Noite – Stevie Rae observou.
– Poderia muito bem estar escrito suicídio social ali – Aphrodite retrucou, franzindo a testa para Stevie Rae.
– Não vou deixar você cortar o meu barato. Eu gosto da escola – Stevie Rae disse. Ela deu um passo e subiu no ônibus, sorrindo para o guerreiro Filho de Erebus que havia aberto a porta para ela com uma cara séria.
– Sacerdotisa – ele a saudou sombriamente com um aceno de cabeça e então, ignorando totalmente o nosso próprio guerreiro Filho de Erebus, Darius, ele olhou para mim. Com um cumprimento de cabeça ainda mais rápido, ele disse: – Zoey, eu devo comunicar você e Stevie Rae sobre a Reunião do Conselho da escola, que vai se reunir em trinta minutos. Vocês duas devem comparecer.
– Certo. Stark está avisando a todos que você está aqui, então poderemos partir em um segundo – eu disse sorrindo para ele, como se o seu rosto não parecesse uma nuvem de tempestade.
– Ei, pessoal, ainda tem cheirinho de novo aqui dentro – Stevie Rae gritou. Eu podia ver seus cachinhos loiros e curtos balançando enquanto ela admirava o interior do veículo. Então ela saiu de novo saltando alguns degraus para pegar a mão de Rephaim e sorrir para ele. – Você quer se sentar no banco de trás comigo? Tem bastante molejo!
– É sério – Aphrodite falou. – Esse micro-ônibus é perfeito para você; você é uma retardada. E eu odeio ser aquela que vai revelar isso a você... ah, espere, isso é mentira; eu não odeio não... mas mesmo que o Conselho Supremo dos Vampiros tivesse pressionado Neferet, forçando-a a nos levar de volta para a Morada da Noite, o menino-pássaro ainda não é bem-vindo lá. Você esqueceu, no êxtase do que quer que vocês dois andaram fazendo durante os poucos segundos entre o pôr do sol e agora, que ele era um pássaro?
Eu vi Stevie Rae apertar com mais força a mão de Rephaim.
– Vou ter que te informar que passaram mais de poucos segundos desde o pôr do sol, que não é da tua conta o que a gente andou fazendo e que Rephaim vai para a escola. Assim como todos nós.
Aphrodite levantou as suas sobrancelhas loiras.
– Você não está brincando, está?
– Não – Stevie Rae disse com firmeza. – E você deveria entender isso mais do que qualquer um.
– Eu? Entender? De que merda você está falando?
– Você não é uma novata, nem vermelha nem normal. Você não é vampira. Talvez você não seja nem humana.
– Porque ela é uma bruxa – eu ouvi Shaunee sussurrar.
– Do inferno – Erin sussurrou de volta.
Aphrodite franziu os olhos para as gêmeas, mas Stevie Rae ainda não tinha acabado.
– Assim como Rephaim, você é algo que não é muito normal, mas Nyx deu a sua benção a você, mesmo que ninguém no mundo entenda por que ela fez isso. Seja como for, você vai para a escola. Eu vou para a escola. E Rephaim também vai. Fim.
– O que Stevie Rae disse faz sentido – Stark falou enquanto se juntava a nós no estacionamento da estação, com o resto dos novatos vermelhos seguindo atrás dele. – Neferet não vai gostar disso, mas Nyx perdoou e abençoou Rephaim.
– Na frente da escola inteira – Stevie Rae acrescentou rapidamente.
– Eles sabem disso – Rephaim murmurou para Stevie Rae. Então ele desviou os olhos para nós, finalmente focando em mim. – O que você acha? – ele me surpreendeu ao perguntar. – Eu devo tentar ir para a Morada da Noite ou isso iria apenas causar problemas sem razão?
Todos olharam embasbacados para mim. Com uma rápida olhada para o rosto inflexível do guerreiro Filho de Erebus no ônibus, eu falei:
– Ahn, vocês não querem ir entrando? Eu preciso falar com o meu... ahn... – parei de falar e fiz um gesto que englobava Aphrodite, Stevie Rae e o resto dos meus amigos mais próximos.
– O seu círculo – Stevie Rae completou, sorrindo para mim. – Você quer falar com o seu círculo.
– E com o seu círculo acessório – Damien acrescentou, indicando com a cabeça Aphrodite, Darius e Kramisha.
Eu abri o sorriso.
– Gostei disso! Certo, vocês podem ir entrando no ônibus enquanto eu falo com o meu círculo principal e com o meu círculo acessório, por favor?
– Não tô certa se eu gostei de ser chamada de acessório – Kramisha falou, franzindo os olhos para mim.
– Isso significa... – Stevie Rae começou a explicar, mas Kramisha a interrompeu balançando a cabeça.
– Eu sei o que isso quer dizer. Só tô falando que não sei se gostei.
– Você pode escrever sobre isso no seu diário mais tarde e agora calar a boca e seguir Zoey, para acabarmos logo com isso? – Aphrodite disparou enquanto Kramisha respirou fundo e olhou com raiva para ela. – E só para registrar – ela apontou para todos menos para Darius. – Vocês são um bando de nerds. Eu sou o símbolo da popularidade e da perfeição.
As gêmeas pareceram prestes a retrucar Aphrodite, então eu disse:
– Pessoal, foco. A questão de Rephaim é importante – felizmente, aquilo calou todo mundo, e eu fiz um gesto para que os meus círculos principal e acessório me seguissem pela calçada até um ponto em que não pudéssemos ser ouvidos pelos novatos vermelhos, que estavam subindo no ônibus. E eu me esforcei realmente para pensar na questão muito importante de Rephaim.
Minha mente estava sentimental. A noite passada tinha sido horrível. Olhei para Stark e senti minhas bochechas esquentarem. Tudo bem vai, a noite não foi totalmente horrível, mas, mesmo assim, questões difíceis enchiam a minha cabeça. Dei uma sacudida mentalmente em mim mesma. Eu não era mais uma criança. Eu era a primeira Grande Sacerdotisa Novata e todo esse pessoal me olhava e esperava que eu soubesse as respostas certas (bem, para tudo, menos para Geometria, traduções de espanhol e sobre como estacionar paralelamente aos outros carros).
Por favor, Nyx, deixe-me dizer a coisa certa. Fiz uma prece rápida e silenciosa e então encontrei o olhar de Rephaim. Subitamente, percebi que não era da minha resposta que nós precisávamos.
– O que você quer? – perguntei a ele.
– Bem, ele quer... – Stevie Rae começou, mas minha mão levantada interrompeu minha melhor amiga.
– Não – eu disse. – Não pode ser o que você diz que Rephaim quer, nem o que você quer para ele. Eu preciso da resposta de Rephaim. E então, qual é sua resposta? O que você quer? – repeti.
Rephaim sustentou o meu olhar.
– Eu quero ser normal – ele respondeu.
Aphrodite bufou.
– Infelizmente, ser normal e ser adolescente significa ir para a chatice da escola.
– Ir para a escola não é chato – Damien disse e então olhou para Rephaim. – Mas ela está certa sobre a parte normal. Ir para a escola é o que garotos normais fazem.
– É – Shaunee concordou.
– É chato, mas é verdade – Erin falou. – Apesar de que é um incrível desfile de moda.
– Você está certa, gêmea – Shaunee disse.
– O que isso significa? – Rephaim perguntou para Stevie Rae.
Ela sorriu para ele.
– Basicamente, que você deve ir à escola com a gente.
Ele sorriu de volta para ela, com o rosto cheio de amor e ternura. Quando ele olhou para mim, aquela maravilhosa expressão ainda estava lá, e eu não pude deixar de sorrir para ele.
– Se ser normal significa ir para a escola, então é isso o que eu realmente gostaria de fazer. Se isso não causar muitos problemas.
– Isso vai causar problemas, sem a menor dúvida – Darius afirmou.
– Você acha que ele não deveria ir? – perguntei.
– Eu não disse isso. Concordo com você que a escolha é dele, a decisão é dele, mas, Rephaim, você deve entender que seria mais fácil se você escolhesse ficar aqui, fora do caminho, pelo menos até nós descobrirmos quais serão os próximos passos de Neferet e Kalona.
Pensei ter visto Rephaim se encolher com a menção ao seu pai, mas ele concordou e respondeu:
– Eu realmente entendo, mas estou cansado de me esconder sozinho nas sombras – ele olhou para Stevie Rae e depois para nós de novo. – E Stevie Rae pode precisar de mim.
– Certo, vocês sabem que essa coisa toda de “vamos deixar o menino-pássaro decidir” e “Stevie Rae pode precisar de mim” é toda bonitinha na teoria, mas na prática vamos entrar em um campus onde a louca da Grande Sacerdotisa morcegona nos odeia e vai usar qualquer coisa que ela tenha para derrotar a nós e principalmente a você, Z. Isso sem falar que Dragon, o líder dos guerreiros Filhos de Erebus, definitivamente não está agindo bem desde que sua companheira foi morta pelo cara que nós vamos levar de volta para o campus. Neferet vai usar Rephaim contra nós. Dragon vai apoiá-la. Ela vai jogar merda no ventilador – Aphrodite afirmou.
– Bem, não vai ser a primeira vez – eu ponderei.
– Ahn, eu posso dizer uma coisa? – a mão de Damien estava levantada, como se ele estivesse em sala de aula e quisesse ser chamado.
– É claro, querido, e você não precisa levantar a mão – eu respondi.
– Ah, obrigado. O que eu quero dizer é que nós precisamos nos lembrar de que Nyx, quando apareceu na Morada da Noite, perdoou e abençoou Rephaim. Assim, basicamente ela nos deu permissão para incluir Rephaim no nosso mundo. Neferet não pode ir contra isso, pelo menos não abertamente. Nem Dragon. O quanto eles não vão gostar disso não é o ponto.
– Mas eles já foram contra isso – Stark lembrou. – Neferet perguntou a Dragon se ele iria aceitá-lo e ele disse que não, e então ela o expulsou do campus. Stevie Rae chamou aquilo de papo furado, e foi por isso que todos nós acabamos indo embora.
– É, e só porque o Conselho Supremo deu um jeito de pressionar Neferet para nos deixar voltar à escola, isso não significa que nós vamos realmente ser aceitos. Eu posso jurar a vocês que Dragon e provavelmente um monte de outras pessoas não vão ficar numa boa com isso – Aphrodite remexeu seus dedos em direção a Rephaim.
Damien falou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.
– Bem, a verdade é que nem Neferet nem Dragon podem suplantar a vontade da Deusa.
– Suplan... o quê? – Shaunee perguntou.
– ...tar o quê? – Erin acrescentou.
– Significa se sobrepor, tomar o lugar – Stevie Rae explicou por Damien. – E esse é realmente um ponto interessante, Damien. Ninguém pode suplantar a Deusa, nem mesmo uma Grande Sacerdotisa.
– Vocês podem imaginar o que as vampiras irritadiças do Conselho Supremo diriam sobre isso? – Aphrodite revirou os olhos. – Elas são nervosinhas. Todas.
Eu pisquei surpresa e tive uma súbita vontade de abraçar Aphrodite. Bem, a vontade passou rápido, mas mesmo assim fiquei animada.
– Aphrodite, você é um gênio! E Damien também é! – eu disse.
– É claro que eu sou – Aphrodite disse toda convencida.
– Você vai falar sobre Neferet e Dragon ao Conselho Supremo, não vai? – Damien falou.
– Eu acho que “falar sobre eles” não é o modo correto de colocar a questão. Seu notebook está com você, não está? – perguntei.
Damien passou a mão sobre a bolsa masculina pendurada no seu ombro.
– É claro. Está na minha mochila.
– Bolsa masculina – Shaunee corrigiu.
– Só falamos por falar – Erin acrescentou.
– É uma mochila tipo satchel europeia – Damien disse com firmeza.
– Se a coisa tem penas... – Erin falou.
– ... e faz quá-quá – Shaunee completou.
– Seja o que for, estou feliz que você está com o seu computador – eu me adiantei antes que Damien falasse uma daquelas palavras complicadas para elas. – Você já baixou o Skype nele, certo?
– Sim – ele respondeu.
– Ótimo. Eu preciso dele emprestado para a Reunião do Conselho, se você não se importar.
– Sem problemas – Damien concordou, levantando as sobrancelhas com cara de interrogação para mim.
– O que você está planejando? – Stevie Rae fez a pergunta por ele.
– Bem, quando eu falei com Thanatos sobre nos ajudar a voltar para a escola, eu não mencionei aquele pequeno detalhe de que nós estamos criando uma espécie de filial da Morada da Noite aqui, mas que nós ainda vamos continuar indo para a aula e tal na nossa Morada da Noite original.
– Nós precisamos pensar em um nome incrível para o nosso lugar – Shaunee disse.
– Aaaah, você está certíssima, gêmea! – Erin se animou.
– Ei, aqui é a estação, então que tal Morada da Noite Pot Lot2? – Shaunee sugeriu.
Eu olhei para elas. Balancei minha cabeça e disse com firmeza:
– Não para Pot Lot – então voltei ao assunto original. – Mas eu realmente preciso fazer uma conferência no Skype com o Conselho Supremo dos Vampiros para obter permissão para o que queremos fazer. Uma Reunião do Conselho da escola parece uma boa hora para fazer isso, especialmente porque eu tenho certeza de que Neferet vai adorar se eu pedir para ela ser testemunha da minha chamada.
– Z., esse parece ser um plano de merda. Neferet vai adorar falar com o Conselho Supremo e descobrir um jeito de distorcer tudo o que você disser para fazer você parecer uma adolescente insana – Aphrodite opinou.
– Esse é mais ou menos o meu ponto – eu respondi. – Eu não vou ser a adolescente insana. Eu vou ser a Grande Sacerdotisa Novata que vai dar ao Conselho Supremo todos os detalhes sobre o dom incrível e milagroso que Nyx deu ao Consorte da Grande Sacerdotisa Vermelha, Rephaim, e sobre como ele está excitado por começar a estudar na Morada da Noite de Tulsa. Tenho certeza de que elas vão até querer cumprimentar Neferet por ela ser uma Grande Sacerdotisa tão incrível que consegue lidar com todas as mudanças que estão acontecendo aqui.
– Isso é diabólico. Eu gosto – Aphrodite falou. – Assim você coloca Neferet e até Dragon em uma posição na qual, se eles disserem “nós não vamos aceitar o menino-pássaro de jeito nenhum” ou mesmo se reclamarem um pouco por causa disso, vão parecer super do mal depois da aparição e do milagre de Nyx.
– Mesmo assim, esse não será um caminho fácil – Stark disse.
Rephaim olhou-o com firmeza.
– Não importa o quanto seja difícil, é um caminho melhor do que aquele que leva à escuridão, ao ódio e à morte. E acho que você sabe exatamente o que eu quero dizer.
– Eu sei – Stark respondeu, olhando de volta para ele sem vacilar.
– Eu também sei – Stevie Rae afirmou.
– E eu também – acrescentei.
– Então nós estamos de acordo. Rephaim volta para a Morada da Noite conosco – Darius disse.
– Espera aí!? Isso significa que a gente tem que entrar naquele maldito micro-ônibus? – Aphrodite perguntou.
– Sim! – todos nós respondemos juntos.
Rindo e me sentindo leve como não me sentia há dias, subi no ônibus com meus amigos e cutuquei Stark com meu ombro quando nós nos sentamos. Ele mal olhou para mim. Foi então que percebi que ele não tinha falado muito comigo (nem com ninguém) desde que a gente tinha acordado. Lembrando de como nós estivéramos próximos – de como ele havia me tocado e feito o mundo voltar para o lugar de novo –, acabei mordendo o lábio e me sentindo super confusa. Dei mais uma olhada para Stark. Ele estava encarando a janela. Parecia cansado. Muito cansado.
– Ei, o que há com você? – perguntei quando o ônibus arrancou pela Cincinnati Street em direção ao centro.
– Comigo? Nada.
– É sério, você parece muito cansado. Você está se sentindo bem?
– Zoey, você me acordou e me manteve alerta na maior parte do dia ontem. Daí você fez aquela ligação para Thanatos para resolver toda essa coisa da volta à escola, o que não foi exatamente uma conversa calma e sossegada. Eu tinha acabado de dormir quando você gritou qualquer coisa e me acordou de novo. Fazer amor foi ótimo – ele fez uma pausa, sorriu por um segundo e quase pareceu normal. Então ele abriu a boca e estragou tudo, dizendo: – Depois de tudo, você se remexeu muito de um lado para o outro antes de apagar. Não consegui dormir de novo. Então, estou cansado. É isso.
Pisquei surpresa para ele. Duas vezes. E tentei não me sentir como se ele tivesse acabado de me dar um tapa na cara. Mantendo a voz baixa porque eu não queria que meus amigos ouvissem, eu disse:
– Tudo bem, deixando de lado toda a coisa de eu ter que ligar para Thanatos para a gente poder voltar para a escola, o que é o que eu deveria ter feito? Porque eu sou a Grande Sacerdotisa, e o fato de que você veio para cima de mim quando tudo o que eu pretendia fazer era deitar de conchinha e dormir, minha mãe está morta, Stark. Nyx me deixou vê-la entrando no Mundo do Além. Como neste exato momento eu não sei como nem por que isso aconteceu, estou me esforçando muito para ficar o mais normal possível. Eu ainda nem falei com a minha avó.
– É verdade, você não falou. Eu disse que você deveria ter ligado para ela na mesma hora ou pelo menos ligado para a sua mãe. E se tudo foi apenas um sonho?
Eu olhei para Stark sem acreditar no que ouvia, lutando para manter minha voz e minhas emoções sob controle.
– Você é a única pessoa no mundo que deveria entender mais do que ninguém que eu sei a diferença entre ver o Mundo do Além e sonhar com ele.
– Sim, eu sei, mas...
– Mas você está dizendo que eu deveria passar por tudo isso sem perturbar o seu precioso sono? Ah, a não ser que seja para fazer sexo com você!
Fechei minha boca e tentei parecer normal quando vi Aphrodite se virar e dar uma olhada para mim com um ponto de interrogação no rosto.
Stark soltou um longo suspiro.
– Não, não é isso o que eu quero dizer. Desculpe-me, Z. – Então ele pegou minhas mãos. – É sério. Eu estou parecendo um idiota.
– Sim, está mesmo.
– Desculpe-me mesmo – ele disse e então cutucou o meu ombro com o dele. – A gente pode apagar essa conversa?
– Pode – respondi.
– Então vou começar de novo: estou cansado e isso está fazendo com que eu seja um imbecil. E sobre a sua mãe, nós não sabemos o que realmente aconteceu e isso está nos deixando tensos. Mas, seja como for, eu te amo, mesmo que eu seja um idiota. Melhorou?
– Melhorou – respondi.
Ainda deixando que ele segurasse a minha mão, olhei pela janela quando viramos à esquerda na Fifteenth Street, passamos por Gumpy’s Garden, que sempre deixava o ar com cheiro de pinhão, e seguimos pela Cherry Street. Na hora em que a gente estava na Utica, cruzando a Twenty-fisrt, eu já havia esquecido a briga e só tinha na cabeça a preocupação com a minha mãe e com a minha avó. E estava pensando se Stark poderia estar certo de questionar o que eu pensei ter sido uma visão. Quero dizer... Eu ainda não tinha falado com vovó. E se tudo não tivesse sido um sonho ruim...
– É sempre tão bonito – a voz de Damien veio do banco da frente, que ele tinha escolhido automaticamente ao entrar no ônibus. – Olhando daqui, é difícil acreditar que coisas tão horríveis e dolorosas possam ter acontecido lá.
Eu ouvi o soluço na sua voz, apertei a mão de Stark antes de soltá-la e fui sacolejando pelo corredor para sentar ao lado de Damien.
– Ei – eu disse, deslizando meu braço entre o dele. – Você precisa se lembrar das coisas maravilhosas e do amor que aconteceu ali também. Nunca se esqueça de que foi ali que você conheceu Jack e se apaixonou por ele.
Damien olhou para mim e eu pensei que ele parecia triste, mas muito, muito sábio.
– Como você está lidando com a falta de Heath?
– Sinto saudade dele – eu disse honestamente. Então algo me fez acrescentar: – Mas eu não quero ficar como Dragon, devorada pela tristeza.
– Nem eu – Damien falou suavemente. – Mesmo que às vezes seja difícil não ficar assim.
– É tudo muito recente.
Apertando os lábios para não chorar, ele concordou com a cabeça.
– Você vai superar – acrescentei. – E eu também vou. Nós vamos. Juntos – eu disse com firmeza.
Nesse momento, atravessamos o portão de ferro que tinha o símbolo de uma lua crescente no meio, e fomos em direção à entrada lateral da escola.
– A Reunião do Conselho da escola começa às sete e meia – o guerreiro Filho de Erebus disse quando o micro-ônibus parou. – As aulas começam às oito em ponto, como sempre.
– Obrigada – eu disse, como se ele tivesse sido amigável (ou pelo menos respeitoso). Então olhei para o meu telefone: 19h20. Faltavam dez minutos para a reunião e quarenta para as aulas começarem. Eu me levantei e olhei para o grupo de garotos nervosos. – Vão para os seus antigos quartos e esperem lá até serem informados sobre o que fazer. Stevie Rae, Stark e eu vamos para a Reunião do Conselho e, como diriam na Ilha de Skye, daremos uma solução para o horário escolar de Rephaim e para o de vocês.
– E eu? Não vou para a reunião? – Kramisha perguntou. – Normalmente é um tédio, mas aposto que hoje vai ser melhor.
– Você está certa – respondi. – Já está na hora de eles incluírem você, além de mim e Stevie Rae.
– Para onde eu vou? – Rephaim perguntou do fundo do ônibus.
Eu estava pensando, tentando imaginar um lugar para onde ele pudesse ir, quando Damien se levantou ao meu lado.
– Você pode vir comigo, pelo menos por hoje. Se Zoey e Stevie Rae concordarem.
Eu sorri para Damien. Acho que eu nunca senti tanto orgulho dele. Todo mundo estava preocupado com ele, tratando-o como se ele pudesse ficar histérico a qualquer momento, então, se ele ficasse ligado a Rephaim, ninguém iria questionar o garoto – eles teriam medo de perturbar Damien.
– Obrigada – eu disse.
– É mesmo uma ótima ideia, Damien – Stevie Rae concordou.
– Tudo certo, então. Tentem agir normalmente – falei. – Encontro vocês aqui de novo depois da escola.
– Minha primeira aula é de Feitiços e Rituais – escutei Aphrodite murmurar para Darius. – E quem dá essa aula é aquela vamp nova que parece ter doze anos. Vai ser engraçado.
– Lembre-se – Stevie Rae disse, dando um olhar duro para Aphrodite, que a ignorou totalmente –, seja agradável.
Nós saímos do micro-ônibus. Pude ver como foi difícil para Stevie Rae deixar Rephaim ir embora com Damien. Não sabíamos no que ele poderia estar entrando, mas tínhamos a noção de que as chances de ele ser tratado como o garoto normal que ele tanto queria ser eram de pequenas a nulas.
Quando Stevie Rae, Stark, Kramisha e eu ficamos sozinhos, perguntei:
– Prontos para entrar na cova do leão?
– Eu tô achando que é mais como entrar em um ninho de vespas nojento – Kramisha respondeu. – Mas eu tô pronta.
– Eu também. Vamos agarrar o touro à unha e acabar logo com isso – Stevie Rae afirmou.
– Fechado – eu disse.
– Fechado – eles repetiram.
E andamos em direção a um futuro que já estava fazendo o meu estômago se contrair, me dando a sensação de que um episódio agudo de síndrome do intestino irritável3 podia me atingir a qualquer momento.
Ai, que inferno.

1 Nos Estados Unidos, um micro-ônibus menor que o ônibus escolar normal é usado para transportar deficientes e alunos com problemas de comportamento. Na gíria politicamente incorreta, é chamado de retard bus. (N.T.)
2 Estação em inglês é “depot”; “pot” é uma gíria para maconha e “lot” quer dizer área, terreno. (N.T.)
3 A síndrome do intestino irritável tem como sintomas dor abdominal aguda, diarreia, gases e prisão de ventre, entre outros. (N.T.)

3

Kalona
Ele não teve que voar muito longe para encontrar seus filhos. Kalona seguiu o fio da conexão que o ligava à sua prole. Meus filhos leais, ele pensou enquanto circundava os morros ondulados cobertos de árvores da área menos habitada e cheia de mato que ficava a uma pequena distância do sudoeste de Tulsa. No topo do cume mais alto, Kalona desceu do céu, voando facilmente entre os galhos grossos e desfolhados pelo inverno até parar no meio de uma pequena clareira. Em volta dele, feitas nas próprias árvores, havia três construções de madeira, rústicas mas robustas. O olhar aguçado de Kalona viu quando, dentro das janelas, olhos vermelhos brilharam na sua direção.
Ele abriu seus braços.
– Sim, meus filhos, eu voltei! – o som de asas foi um bálsamo para a sua alma. Eles saíram rápido das cabanas e se ajoelharam ao redor dele, curvando-se bastante, respeitosamente. Kalona os contou; havia sete. – Onde estão os outros?
Todos os Raven Mockers se agitaram inquietos, mas apenas um rosto se voltou para cima para encarar o seu olhar e apenas uma voz sibilante respondeu.
– Essscondidosss no oessste. Perdidosss na área.
Kalona observou seu filho, Nisroc, comparando-o com aquele que ele sempre considerara seu filho favorito. Nisroc era quase tão desenvolvido quanto Rephaim. Seu modo de falar era quase humano. Sua mente era quase perspicaz. Mas era aquele quase, aquela linha tênue entre eles que havia feito de Rephaim o filho em quem Kalona confiava e não Nisroc.
Kalona cerrou e descerrou o maxilar. Ele havia sido tolo ao desperdiçar tanta atenção apenas com Rephaim. Ele tinha muitos filhos para escolher e favorecer. Era Rephaim quem tinha saído perdendo ao decidir partir. Rephaim só tinha um pai, e ele não iria conseguir substituí-lo por uma Deusa ausente e uma vampira que nunca iria amá-lo de verdade.
– É bom que vocês estejam aqui – Kalona disse, interrompendo os próprios pensamentos no seu filho ausente. – Mas eu preferia que todos vocês tivessem ficado juntos aguardando a minha volta.
– Elesss pegaram, eu não pude – Nisroc disse. – Rephaim morto...
– Rephaim não está morto! – Kalona o cortou rispidamente, fazendo Nisroc estremecer e abaixar a cabeça. O imortal alado fez uma pausa e recuperou o autocontrole antes de continuar. – Apesar de que seria melhor para ele se ele estivesse morto.
– Pai?
– Ele escolheu servir à Sacerdotisa vampira vermelha e à sua Deusa.
O grupo de Raven Mockers sibilou e se encolheu como se ele os tivesse golpeado.
– Posssível? Como? – Nisroc perguntou.
– É possível por causa das fêmeas e das suas manipulações – Kalona respondeu sombriamente. Ele sabia muito bem como alguém podia ser uma presa fácil para elas. Ele inclusive havia caído por...
Subitamente, ao se dar conta do que estava dizendo, o imortal piscou e falou, mais para si mesmo do que para seu filho:
– Mas as manipulações delas não vão durar muito! – ele balançou sua cabeça e quase sorriu. – Por que não pensei nisso antes? Rephaim vai se cansar de ser o animal de estimação da Vermelha e, quando isso acontecer, ele vai perceber o erro que cometeu; um erro que não é totalmente seu. A Vermelha o manipulou e o envenenou. Ela fez com que ele se voltasse contra mim. Mas isso é apenas temporário! Quando ela o rejeitar, porque no final das contas ela vai fazer isso, ele vai sair da Morada da Noite e voltar para o meu... – Kalona cortou as próprias palavras, decidindo rápido. – Nisroc, leve dois de seus irmãos com você. Volte para a Morada da Noite. Observe. Seja cuidadoso. Vigie Rephaim e a Vermelha. Quando aparecer uma oportunidade, fale com ele. Diga que mesmo que ele tenha cometido esse erro terrível e se afastado de mim... – Kalona fez uma pausa, cerrando o maxilar, totalmente desconfortável com a tristeza e a solidão que o invadiam sempre que ele pensava demais na escolha de Rephaim. O imortal alado reordenou seus pensamentos, dominou seus sentimentos e continuou a dar instruções para Nisroc. – Diga a Rephaim que, apesar de sua escolha ter sido me deixar, ainda há um lugar esperando por ele ao meu lado, mas esse lugar terá mais utilidade se ele permanecer na Morada da Noite, mesmo depois que ele quiser partir.
– Ele essspionar! – Nisroc disse, e os outros Raven Mockers refletiram sua excitação com suas grasnadas características.
– Ele vai, mas no momento ele pode não saber disso – Kalona falou. Então ele acrescentou: – Você entendeu, Nisroc? Você deve observá-lo. Não deve ser visto por ninguém, exceto por Rephaim.
– Não matar vampirosss?
– Não, a menos que você seja ameaçado; se isso acontecer, faça como quiser, desde que não seja pego, e não mate nenhuma Grande Sacerdotisa – Kalona falou devagar e claramente. – Nunca é bom provocar uma Deusa sem necessidade, então as Grandes Sacerdotisas de Nyx não devem ser mortas – ele franziu a testa para Nisroc, lembrando-se de seu outro filho que quase havia matado Zoey Redbird não muito tempo atrás e que tinha morrido por causa disso. – Você entendeu as minhas ordens, Nisroc?
– Sssim. Falar com ele eu vou. Rephaim observar. Rephaim espionar.
– Faça isso e volte antes que o amanhecer ilumine o céu. Voem alto. Voem rápido. Voem silenciosamente. Sejam como o vento da noite.
– Sssim, Pai.
Kalona olhou em volta para a floresta espessa, apreciando o fato de os seus filhos terem encontrado um lugar alto e isolado para fazer o seu ninho.
– Os humanos não vêm aqui? – ele perguntou.
– Sssó caçadores, e não maisss – Nisroc respondeu.
Kalona levantou as sobrancelhas.
– Vocês mataram humanos?
– Sssim. Doisss – Nisroc se remexeu excitado. – Contra a pedra nósss jogamosss elesss – ele apontou uma pequena trilha na frente deles.
Curioso, Kalona deu passos largos até a beirada do precipício para olhar para baixo, onde as enormes linhas de transmissão que carregavam a magia elétrica do mundo moderno se estendiam diante dele. Os humanos haviam limpado a área em volta dos altos pilares, de modo que havia uma grossa faixa de terra que avançava no horizonte. A clareira havia deixado expostos enormes afloramentos rochosos de arenito de Oklahoma, pontiagudos e letais, projetando-se em direção ao céu.
– Excelente – Kalona disse, concordando com a cabeça em sinal de aprovação. – Vocês fizeram parecer um acidente. Muito bom. – Então ele se voltou para a clareira e para os Raven Mockers, que se aglomeravam ali com todas as atenções focadas somente nele. – Este lugar foi bem escolhido. Quero todos os meus filhos aqui em volta de mim. Nisroc, vá para a Morada da Noite de Tulsa. Faça o que eu ordenei. Quanto ao resto de vocês, voem para o oeste. Chamem seus irmãos, tragam todos aqui para mim. Aqui nós vamos esperar. Aqui nós vamos observar. Aqui nós vamos nos preparar.
– Preparar? Para que, Pai? – Nisroc perguntou, inclinando a cabeça.
Kalona se lembrou de como o seu corpo havia sido aprisionado e a sua alma arrancada dele e enviada para o Mundo do Além. Ele se lembrou de como, após a sua volta, ela o havia açoitado e o escravizado, além de tê-lo tratado como se ele fosse sua propriedade.
– Nós vamos nos preparar para destruir Neferet – ele afirmou.

Rephaim

Todo mundo olhava para ele com desconfiança. Rephaim odiava isso, mas entendia. Ele havia sido um inimigo. Ele tinha matado um deles. Ele fora um monstro.
A verdade é que ele ainda podia ser um monstro.
Quando a primeira aula começou e uma professora que se apresentou como Penthasilea começou a ler e a falar sobre o livro Farenheit 451, escrito por um vampiro antigo chamado Ray Bradbury, e sobre a importância da liberdade de pensamento e de expressão, Rephaim tentou fazer as suas novas feições humanas aparentarem atenção e interesse, mas a sua mente escapulia. Ele queria escutar a professora e não ter mais nada para se preocupar além do que ela chamava de “interpretação do simbolismo”, mas a sua transformação de garoto em corvo o obcecava.
Esse processo foi tão doloroso e assustador quanto impressionante.
Ele não se lembrava de quase nada do que aconteceu depois disso.
Apenas algumas imagens e sensações daquele dia permaneceram com ele.
Stevie Rae foi com ele dos profundos túneis de terra até a árvore mais próxima da estação – aquela que, não muito tempo atrás, serviu de rota de fuga do sol escaldante para eles.
– Volte para dentro agora. Está começando a amanhecer – ele disse para ela, tocando gentilmente sua bochecha.
– Eu não quero te deixar – ela respondeu, envolvendo-o com os seus braços e abraçando-o forte.
Ele se permitiu abraçá-la de volta apenas por um instante, e então, delicadamente, soltou seus braços e a guiou de volta firmemente para as grades sombreadas da entrada do porão.
– Vá para baixo. Você está exausta. Precisa dormir.
– Eu vou ficar olhando até você virar, você sabe. Um pássaro.
Ela havia sussurrado a última parte como se o fato de não falar em voz alta pudesse mudar as coisas. Era certamente uma bobagem, mas fez Rephaim sorrir.
– Não importa se você diz isso ou não. Vai acontecer.
Ela suspirou.
– Eu sei. Mas mesmo assim não quero deixar você – Stevie Rae saiu das sombras, em direção à manhã que já clareava, e pegou a mão dele. – Quero que você saiba que eu estou aqui.
– Eu acho que um pássaro não sabe muita coisa sobre o mundo dos humanos – ele disse, pois não sabia mais o que falar.
– Você não vai ser um pássaro qualquer. Você vai se transformar em um corvo. E eu não sou uma humana. Sou uma vampira. Vermelha. Além disso, se eu não ficar aqui, como você vai saber para quem voltar?
Ele escutou um soluço na voz dela que fez seu coração doer.
Rephaim então beijou a mão dela.
– Eu vou saber. Dou minha palavra. Eu sempre vou encontrar o caminho de volta para você – ele esteve a ponto de dar um empurrãozinho nela em direção à entrada do porão quando uma dor nauseante atravessou seu corpo.
Agora, olhando para trás, ele percebia que devia ter esperado por isso. Como poderia não ser doloroso se transformar de garoto humano em corvo? Mas seu mundo havia sido preenchido com Stevie Rae e o prazer simples, mas absoluto, de tomá-la em seus braços, beijá-la, abraçá-la forte...
Ele não havia gasto seu tempo pensando na besta.
Pelo menos, ele estaria preparado da próxima vez.
A dor o havia rasgado. Ele ouviu o grito de Stevie Rae ecoar o seu próprio. O seu último pensamento humano foi de preocupação com ela. A sua última visão humana fora dela chorando e balançando a cabeça de um lado para o outro. Ela estendeu o braço em direção a ele quando o animal tomou totalmente o lugar do humano. Ele se lembrava de ter aberto suas asas como se estivesse se alongando depois de ficar preso em uma cela pequena ou uma jaula. E de voar.
Ele se lembrava de voar.
Quando o sol se pôs, ele se viu com frio e nu abaixo da mesma árvore ao lado da estação. Ele tinha acabado de pôr as roupas que haviam sido deixadas cuidadosamente dobradas para ele em um banquinho quando Stevie Rae irrompeu do porão.
Sem hesitar, ela se atirou nos seus braços.
– Você está bem? Mesmo? Está tudo ok? – ela ficou repetindo enquanto o examinava e apalpava seus braços, como se procurasse ossos quebrados.
– Eu estou bem – ele garantiu. Então ele percebeu que ela estava chorando e envolveu seu rosto com as mãos, perguntando: – O que foi? Por que você chora?
– Você sentiu muita dor. Você gritou como se estivesse morrendo.
– Não – ele mentiu. – Não foi tão ruim assim. Só me pegou de surpresa.
– Sério?
Ele deu um sorriso – como ele amava sorrir – e a puxou para seus braços, beijando seus cachos loiros e garantindo novamente:
– Sério.
– Rephaim?
Rephaim foi trazido bruscamente de volta para o presente pelo som do seu nome sendo chamado pela professora.
– Sim? – ele respondeu com seu próprio tom interrogativo.
Ela não sorriu para ele, mas também não zombou dele nem o repreendeu. Ela simplesmente disse:
– Eu perguntei o que você acha que a citação na página sete quer dizer. Aquela em que Montag diz que o rosto de Clarisse tem uma luz que é como “um frágil cristal leitoso” e “a estranhamente confortável, rara e agradável chama de uma vela”. O que você acha que Bradbury está tentando dizer sobre Clarisse com essa descrição?
Rephaim ficou completamente pasmo. A professora estava fazendo uma pergunta a ele. Como se ele fosse apenas mais um novato sonhador... normal... igual... aceito. Sentindo-se nervoso e totalmente exposto, ele abriu a boca e falou a primeira coisa que veio à cabeça.
– Acho que ele está tentando dizer que essa garota é única. Ele reconhece o quanto ela é especial e a valoriza.
A professora Penthasilea levantou a sobrancelha e por um instante terrível Rephaim achou que ela poderia ridicularizá-lo.
– É uma resposta interessante, Rephaim. Talvez, se você mantivesse a sua mente mais focada no livro e menos em outras coisas, suas respostas passariam de interessantes a brilhantes – ela observou, com uma voz seca e prática.
– O-obrigado – Rephaim gaguejou, sentindo o rosto esquentar.
Penthasilea fez um leve aceno de cabeça antes de se virar para um estudante sentado mais na frente da classe e perguntar:
– E sobre a pergunta final dela para ele nessa cena: “Você está feliz?”. Qual é o significado?
– Bom trabalho – Damien sussurrou da sua mesa ao lado para Rephaim.
Rephaim não conseguiu responder. Ele só fez um sinal com a cabeça e tentou entender a súbita leveza de espírito que ele sentia.
– Você sabe o que acontece com ela? Com essa garota especial? – o sussurro veio do novato sentado bem na frente de Rephaim. Era um rapaz baixo e musculoso, com um perfil forte. Rephaim pôde ver claramente o desdém no seu rosto quando ele se virou para trás rapidamente por sobre o ombro.
Rephaim balançou a cabeça. Não, ele não sabia.
– Ela é assassinada por causa dele.
Rephaim sentiu como se tivesse levado um chute no estômago.
– Drew, você tem algum comentário sobre Clarisse? – a professora perguntou, levantando sua sobrancelha de novo.
Drew deu de ombros indiferentemente.
– Não, senhora. Eu só estava dando ao menino-pássaro uma revelação sobre o futuro – ele fez uma pausa e olhou por sobre o ombro antes de dizer: – Sobre o futuro do livro, quero dizer.
– Rephaim – a professora pronunciou o seu nome com uma voz que havia se tornado dura. Rephaim ficou surpreso de sentir o poder dela na sua pele. – Na minha aula, todos os novatos são iguais. Todos são chamados pelos seus nomes corretos. O dele é Rephaim.
– Professora P., ele não é um novato – Drew disse.
A professora bateu a mão na sua mesa e a classe inteira vibrou com o som e a energia.
– Ele está aqui. E enquanto ele estiver aqui, na minha aula, ele vai ser tratado como qualquer outro novato.
– Sim, senhora – Drew respondeu, abaixando a cabeça respeitosamente.
– Ótimo. Agora que isso está resolvido, vamos discutir o projeto criativo que vocês vão fazer para mim. Quero que vocês escolham e deem vida a um dos muitos elementos simbólicos que Bradbury usa nesse livro maravilhoso...
Rephaim não se mexeu enquanto a atenção da classe se desviava dele e do novato Drew de volta para o livro. A frase “ela é assassinada por causa dele” não saía da sua cabeça. Era claro o que Drew queria dizer. Ele não estava falando sobre uma personagem em um livro. Ele estava se referindo a Stevie Rae, insinuando que ela acabaria morta por causa dele.
Nunca. Enquanto ele respirasse, ele nunca iria permitir que nada nem ninguém machucasse a sua Stevie Rae.
Quando o sino tocou sinalizando o final da aula, Drew encarou Rephaim com um ódio inabalável.
Rephaim teve que se segurar para não atacá-lo. Inimigo!, sua velha natureza gritava. Destrua-o! Mas Rephaim abaixou o queixo e sustentou o olhar de Drew sem piscar enquanto o novato esbarrava bruscamente ao passar por ele.
E não era só Drew que o encarava com ódio. Todos o encaravam de forma hostil, assustada ou horrorizada.
– Ei – Damien falou ao sair da classe com ele. – Não se incomode com Drew. Ele tem uma queda por Stevie Rae. Só está com ciúmes.
Rephaim concordou e então esperou até que eles se afastassem dos outros estudantes e ninguém pudesse ouvir. Então, em voz baixa, ele disse:
– Não é só Drew. São todos. Eles me odeiam.
Damien fez um sinal para que ele o seguisse um pouco para fora do caminho, então ele parou e falou:
– Você sabia que não seria fácil.
– Isso é verdade. Eu só... – Rephaim interrompeu o que ia dizer e balançou a cabeça. – Não. É a pura verdade. Eu sabia que seria difícil os outros me aceitarem – ele encontrou o olhar de Damien. O novato parecia abatido. A tristeza o havia envelhecido. Seus olhos estavam vermelhos e inchados. Ele havia perdido o amor da sua vida, mas mesmo assim estava ali sendo gentil. – Obrigado, Damien – ele disse.
Damien quase sorriu.
– Por dizer a você que não seria fácil?
– Não, por ser gentil comigo.
– Stevie Rae é minha amiga. A gentileza é para ela.
– Então você é um grande amigo – Rephaim falou.
– Se você realmente é o garoto que Stevie Rae acha que você é, você descobrirá que, quando está do lado da Deusa, você faz um monte de grandes amigos.
– Eu estou do lado da Deusa – Rephaim afirmou.
– Rephaim, se eu não acreditasse nisso, não estaria ajudando você, não importa o quanto eu gosto de Stevie Rae – Damien disse.
Rephaim concordou.
– É justo.
– Oi, Damien! – um dos novatos vermelhos, um garoto muito baixinho, correu em direção a eles, deu uma olhada para Rephaim e então acrescentou rapidamente: – Oi, Rephaim.
– Oi, Ant – Damien respondeu.
Rephaim fez um aceno com a cabeça, desconfortável com todo esse processo de saudações.
– Ouvi que você tem esgrima à esta hora. Eu também!
– Eu tenho – Damien confirmou. – Rephaim e eu estávamos apenas... – ele fez uma pausa e então Rephaim observou várias emoções passarem pelo seu rosto, terminando com constrangimento. Ele suspirou pesadamente antes de dizer: – Ahn, Rephaim, Dragon Lankford é o professor de esgrima.
Então Rephaim entendeu.
– Isso, ahn, não é bom – Ant comentou.
– Pode ser que ele ainda esteja na Reunião do Conselho – Damien disse esperançosamente.
– Acho que é melhor eu ficar aqui, esteja Dragon lá ou não. Se eu for com você só vai causar... – a voz de Rephaim desapareceu porque ele só conseguia pensar em palavras como caos, problema e desastre.
– Dissabor – Damien preencheu o silêncio por ele. – Provavelmente causaria dissabor. Talvez você deva matar a aula de esgrima hoje.
– Parece melhor – Ant opinou.
– Vou esperar por você – Rephaim fez um gesto vago em direção à área cheia de árvores em volta deles. Eles não estavam longe de um dos muros da escola onde, junto à fachada de pedra, havia um carvalho particularmente grande, embaixo do qual tinha um banco de ferro forjado. – Vou ficar sentado ali.
– Combinado, eu venho encontrar você depois da esgrima. A próxima aula é espanhol. A professora Garmy é muito agradável. Você vai gostar dela – Damien disse enquanto ele e Ant se dirigiam ao ginásio.
Rephaim concordou com a cabeça, acenou e se forçou a sorrir porque Damien continuou preocupado, dando olhadas por sobre o ombro para ele. Quando os dois novatos finalmente saíram de vista, Rephaim foi até o banco e se sentou pesadamente.
Ele ficou contente por ter um tempo sozinho, em que ele podia baixar a guarda, podia relaxar os ombros e não se preocupar com os olhares dos outros. Ele se sentia como um forasteiro! No que ele estava pensando quando disse que queria ser normal e ir para a escola como todo mundo? Ele não era como todo mundo.
Mas ela me ama. A mim. Assim como eu sou, Rephaim lembrou a si mesmo, e pensar isso o fez se sentir melhor – com o espírito um pouco mais leve.
Então, como ele estava sozinho, disse isso em voz alta.
– Eu sou Rephaim e Stevie Rae me ama do jeito que eu sou.
– Rephaim! Não!
A voz semi-humana sussurrada veio dos galhos do carvalho. Com uma terrível sensação de pavor, Rephaim olhou para cima para ver três Raven Mockers, três dos seus irmãos, empoleirados lá em cima, olhando para ele em choque e sem acreditar no que viam.

4

Zoey
Sei que eu sou uma adolescente e tal, mas sou péssima para usar o Skype. Na verdade, sou meio monga com tecnologia em geral. Traçar um círculo... beleza. Entrar em contato com qualquer um dos cinco elementos... de boa. Descobrir como sincronizar meu iPhone com um computador novo... ah, provavelmente, não. Só de pensar em tuitar me dá dor de cabeça, e realmente sentir falta de Jack.
– Olha só, não é tão difícil. Você só tem que clicar ali – Kramisha pegou rapidamente o Magic Mouse1 por sobre o meu ombro. – E depois ali e pronto. A gente já tá no Skype e a câmera tá funcionando agora.
Levantei os olhos e vi Stevie Rae e todo mundo, incluindo Dragon, Lenobia e Erik, olhando incrédulos para mim.
Stevie Rae pelo menos sorriu e moveu os lábios em silêncio para dizer: – moleza.
– Qual é exatamente o objetivo por trás... – Dragon começou, mas a entrada de Neferet na Sala do Conselho o interrompeu. E, felizmente, foi naquele momento que a voz imponente da líder do Conselho Supremo dos Vampiros saiu clara e forte do computador de Damien.
– Merry meet, Zoey Redbird – Duantia disse. – É um prazer falar com você novamente.
Cruzei o punho fechado sobre o coração e me curvei respeitosamente.
– Merry meet, Duantia. Obrigada por encontrar tempo para esta chamada.
– Merry meet, Duantia – Neferet disse, aproximando-se do meu lado e se curvando formalmente. Eu a vi dar um rápido olhar de interrogação para Dragon antes de sorrir de modo cativante e continuar: – Devo me desculpar. Eu não sabia nada sobre esta chamada. Eu estava apenas esperando uma simples Reunião do Conselho da escola – então ela me atravessou com seus olhos de esmeralda. – Você é responsável por isso, Zoey?
– Sim, sem dúvida. Eu teria lhe contado antes, mas você só chegou aqui agora – eu respondi, sorrindo e parecendo super animada. Antes que Neferet pudesse responder, voltei minha atenção para Duantia. – Eu queria ter certeza de que o Conselho Supremo iria ouvir todos os detalhes sobre a incrível aparição de Nyx na escola ontem e – fiz uma pausa e um gesto com a cabeça indicando Neferet, como se eu a estivesse incluindo – eu sabia que Neferet estaria ansiosa para compartilhar isso com vocês também.
– Na verdade, nós sabemos muito pouco sobre isso, e essa é uma das razões pelas quais eu estava esperando impacientemente por esta ligação – Duantia desviou os olhos de mim para Neferet. – Eu tentei contatá-la durante o dia, depois que instruí Dragon a permitir que os novatos vermelhos e o grupo de Zoey começassem a frequentar as aulas hoje, mas não consegui encontrá-la, Grande Sacerdotisa.
Eu pude sentir a irritação de Neferet, mas ela apenas disse:
– Eu estava reclusa em profunda oração.
– Mais uma razão para esta chamada – Duantia falou.
– O que Nyx fez foi um milagre – gesticulei para que Stevie Rae entrasse no campo de visão da câmera. – Esta é Stevie Rae, a primeira Grande Sacerdotisa Vermelha.
Stevie Rae cruzou a sua mão em punho sobre o coração e se curvou profundamente.
– É um prazer enorme conhecê-la, senhora.
– Merry meet, Stevie Rae. Eu ouvi falar muito de você e dos novatos vermelhos. E, é claro, já conheci o guerreiro vermelho, Stark. De fato, Nyx é generosa com os seus milagres.
– Obrigada, mas, bem, o fato de nós sermos vermelhos e tal não é o milagre – Stevie Rae deu uma olhadinha para mim e acrescentou: – Bem, pelo menos não é o milagre sobre o qual Zoey está falando – ela limpou a garganta e então disse: – O milagre de Nyx tem a ver com o meu Consorte, Rephaim.
Duantia arregalou os olhos.
– Esse não é o nome de uma daquelas criaturas chamadas Raven Mockers?
– Sim – a voz de Dragon era tão dura quanto a sua expressão. – Esse é o nome da criatura que matou a minha Anastasia.
– Eu não entendo – Duantia falou. – Como essa abominação pode ser chamada de Consorte?
Rapidamente, antes que Neferet pudesse interromper dizendo algo horrível, comecei a tagarelar:
– Rephaim era um Raven Mocker e Dragon está certo, lá atrás ele realmente matou Anastasia – levantei os olhos para Dragon, mas foi realmente difícil encará-lo. – Rephaim pediu o perdão de Nyx por isso.
– E por tudo de ruim que ele fez quando era o filho de Kalona – Stevie Rae acrescentou.
– Perdão irrestrito é...
Neferet começou, mas eu a cortei, dizendo:
– O perdão irrestrito é uma dádiva que pode ser concedida pela nossa Deusa, e foi exatamente isso o que ela fez na noite passada – então eu olhei para Stevie Rae. – Conte à líder do Conselho Supremo o que você fez.
Stevie Rae concordou, engoliu em seco e então começou:
– Algumas semanas atrás, eu encontrei Rephaim quase morto. Ele tinha levado um tiro e despencado do céu. Eu não o entreguei – ela desviou os olhos da tela do computador e de Duantia para Dragon e disse de modo suplicante: – Eu não tive a intenção de machucar ninguém nem de fazer nada errado.
– Aquela abominação matou a minha companheira – Dragon afirmou. – Na mesma noite, ele foi abatido do céu e deveria ter morrido.
– Professor Lankford, por favor, permita que a Grande Sacerdotisa Vermelha continue a sua confissão – Duantia falou.
Eu vi Dragon cerrar o maxilar e seu lábio se levantar levemente em um riso sarcástico, mas as palavras de Stevie Rae atraíram minha atenção de volta para ela.
– Dragon está certo. Rephaim teria morrido naquela noite se eu não o tivesse salvado. Eu não contei a ninguém sobre ele. Bem, exceto para minha mãe, mas isso foi depois. Enfim, em vez de entregá-lo, eu cuidei dele. Eu salvei a sua vida. E então ele salvou a minha em retribuição. Duas vezes. Em uma delas, do touro branco das Trevas.
– Ele enfrentou as Trevas por você? – Duantia pareceu chocada.
– Sim.
– Realmente, ele rejeitou as Trevas por ela – eu resumi a história. – E na noite passada ele pediu perdão a Nyx e se comprometeu a seguir o seu caminho.
– E então a Deusa o transformou em um garoto! – Stevie Rae disse com tanto entusiasmo que até os lábios de Duantia se curvaram em um sorriso.
– Só do pôr do sol até o amanhecer – Neferet acrescentou, para tentar jogar um balde de água fria no momento. – Durante o dia ele está condenado a ser um corvo, uma besta, sem nenhuma memória da sua humanidade.
– Essa foi a consequência pelas coisas ruins que ele fez no passado – Stevie Rae explicou.
– E agora, no período que ele é um garoto, Rephaim gostaria de vir à escola como qualquer outro novato – eu completei.
– Notável – Duantia falou.
– Essa criatura não pertence a esta escola – Dragon afirmou.
– Essa criatura não está na escola – eu respondi. – O garoto está. O mesmo garoto que Nyx perdoou. O mesmo garoto que Stevie Rae escolheu como seu Consorte. O mesmo garoto que tentou servir a você sob juramento.
– Dragon, você o rejeitou? – Duantia perguntou.
– Sim – Dragon disse duramente.
– E foi por isso que eu expulsei a todos – Neferet acrescentou, usando um tom de voz calmo, racional e adulto. – Meu Mestre da Espada não consegue tolerar a presença dele e com toda a razão. Quando o grupo de Zoey decidiu trocar a sua lealdade a nós por Stevie Rae e Raven Mocker, eu não tive escolha a não ser fazer todos irem embora.
– Ele não é mais um Raven Mocker – Stevie Rae pareceu totalmente irritada.
– Mas ele ainda é o ser que matou a minha companheira – a voz de Dragon foi um açoite.
– Parem! – a ordem de Duantia foi disparada pelo computador. Mesmo a milhares de quilômetros de distância e através do Skype, o poder na voz dela era uma presença tangível no aposento. – Neferet, deixe-me ter certeza absoluta de que eu entendi com clareza os eventos da noite passada. Nossa Deusa, Nyx, apareceu na sua Morada da Noite e perdoou o Raven Mocker, Rephaim, e deu a ele a dádiva de ter a forma de um garoto durante a noite e, como penitência, amaldiçoou-o com a forma bestial de um corvo durante o dia?
– Sim – Neferet respondeu.
Duantia balançou sua cabeça devagar.
– Neferet, há uma parte de mim... os vestígios de minha remota juventude, imagine você... que entende a sua reação a esses eventos tão incomuns, apesar de você estar errada. Para colocar de modo bem simples, você não pode expulsar um grupo de novatos que não fez nada além de ficar ao lado dos seus amigos. Principalmente esse grupo de novatos – Duantia afirmou. – Esse grupo foi incrivelmente tocado pela Deusa e não pode ser descartado assim.
– Por falar nisso, há uma segunda coisa sobre a qual preciso falar com você – eu disse. – Por causa das diferenças entre os novatos vermelhos e os novatos normais, realmente é melhor que eles tenham sido expulsos – franzi a testa. – Espere, não me expressei direito.
– O que ela quer dizer é que nós não conseguimos descansar bem se estivermos debaixo da terra – Stevie Rae explicou por mim. – E não há muitos locais subterrâneos aqui.
– Então, durante a luz do dia eles preferem ficar nos túneis embaixo da estação de Tulsa e à noite, durante a semana, eles gostariam de ser trazidos de ônibus para cá para as aulas. Não há muitos novatos vermelhos no grupo de Stevie Rae, e além de mim e do meu grupo nenhum novato azul deixou a escola. E se eles ficarem perto de mim, de uma Grande Sacerdotisa Vermelha e de dois guerreiros Transformados, acho que todos estarão bem lá – coloquei um enorme sorriso no rosto e me voltei para Neferet. – E eu sei que Neferet é uma Grande Sacerdotisa tão incrível que vai ser capaz de lidar com todas as mudanças que estão acontecendo aqui.
Houve um longo silêncio no qual eu e Neferet nos fitamos intensamente. Finalmente, Duantia perguntou:
– Neferet, o que você diz?
Vislumbrei a presunção no rosto de Neferet antes de ela se virar para a câmera.
– Depois de ouvir a sua sabedoria, Duantia, eu realmente vejo que tomei uma decisão muito precipitada ontem à noite. Como alguém que foi, como eu, recentemente perdoada por Nyx, eu devo me esforçar muito para emular a benevolência da Deusa. Claramente, ela tem planos especiais para Zoey e seu grupo. Talvez um lugar de descanso separado de nós seja o melhor. É claro que eles devem continuar obedecendo às regras desta Morada da Noite e têm que me reconhecer como a sua Grande Sacerdotisa por direito.
– Não necessariamente – eu disse, ignorando o olhar cortante de Neferet e me concentrando em Duantia. – O tempo que eu passei em Skye com a rainha Sgiach realmente significou muito para mim. Nos tornamos próximas. Sgiach inclusive disse que gostaria de ser minha mentora, que ela iria começar a abrir Skye para o mundo moderno. Eu não posso ficar em Skye com ela, mas eu ainda gostaria de seguir seus passos – inspirei profundamente e concluí rápido: – Então, eu quero declarar oficialmente a estação de Tulsa fora da jurisdição da Morada da Noite, como Sgiach declarou Skye – olhei diretamente para Neferet. – E assim como Sgiach, não vou me intrometer nos seus negócios se você não se intrometer nos meus.
– Você se atreve a se autodeclarar uma rainha? – Neferet soou atordoada.
– Bem, eu não me declarei. Mas Sgiach me declarou, assim como seu Guardião. Além disso, Stark foi aceito como Guardião. No Mundo do Além, ele tinha a espada e tudo mais. Como ele é meu guerreiro, meio que por tabela isso significa que eu fui declarada uma rainha. Uma rainha iniciante, no entanto – acrescentei.
– Isso não parece certo para mim – Neferet disse.
– Concordo com Neferet – Dragon afirmou.
Eu o encarei, tentando telegrafar: Sério? Você está mesmo dizendo que concorda com Neferet, depois de tudo o que você sabe sobre ela? Mas Dragon olhou para a frente como se não me enxergasse.
– Eu preciso consultar o Conselho Supremo sobre esse assunto, Zoey Redbird. Nós não apoiamos a ideia de rainhas vampiras. Vampiros são Sacerdotisas, guerreiros e professores, e eles seguem os diversos caminhos de vida que têm origem nesses chamados. Há muito tempo essa é a nossa tradição.
– Mas Sgiach é uma rainha – eu insisti. – Há séculos. Isso é tempo demais para também poder ser considerado uma tradição.
– Não uma tradição vampira! – a voz levantada de Duantia fez os pelinhos do meu braço se eriçarem. A líder do Conselho Supremo respirou fundo, claramente para se estabilizar, antes de continuar em um tom mais calmo: – Sgiach mal é considerada uma vampira. Ela mantém a sua existência separada de nós há muitos séculos. Nós temos uma trégua incômoda com ela à revelia. Não podemos entrar na sua ilha. Ela não sai de lá – Duantia fez uma pausa e levantou uma sobrancelha. – Isso mudou, Zoey? Sgiach está planejando sair de Skye?
– Não – respondi. – Mas ela me disse que estava pensando em aceitar estudantes novamente.
– Permitir que gente de fora entre e saia de Skye seria extraordinário – o modo com que Duantia disse isso me fez pensar que ela não considerava “extraordinário” sinônimo de “uma coisa boa”.
– Eu acredito que se abrir para gente de fora é algo que todos nós devemos fazer nestes tempos de mudança – Neferet falou.
Todo mundo a encarou. Até Duantia ficou sem palavras.
– Como eu tenho tanta certeza disso, decidi abrir as portas da minha Morada da Noite, contratando humanos locais para alguns dos empregos mais servis. Acho que isso é sábio e responsável, principalmente nestes tempos difíceis na economia. Espero que Sgiach siga esse exemplo.
– É uma excelente ideia, Neferet – Duantia afirmou. – Como você sabe, os humanos têm sido uma presença constante aqui na Ilha de São Clemente nos últimos séculos – a Grande Sacerdotisa Vampira sorriu. – Desde que nós nos tornamos civilizados e modernos.
– Assim como a Morada da Noite de Tulsa gostaria de se tornar também – Neferet disse.
– Bem, então está decidido. A Morada da Noite de Tulsa vai empregar humanos locais. Rephaim, os novatos vermelhos e o grupo de Zoey vão frequentar a escola da Morada da Noite e descansar nos túneis embaixo da estação durante o dia. Vou anotar um lembrete para falar com o Conselho Municipal de Tulsa sobre a compra da estação abandonada.
– E sobre o status de Zoey como rainha e a submissão da estação de Tulsa a mim e a esta Morada da Noite? – Neferet perguntou.
Segurei o fôlego.
– Como eu já decretei, vou consultar o plenário do Conselho Supremo em uma questão tão séria como essa, uma novata jovem e dotada ser considerada uma rainha, ainda que seja somente uma rainha em treinamento. Até que uma decisão seja tomada, Zoey Redbird e a estação de Tulsa serão um prolongamento da Morada da Noite de Tulsa.
– E portanto eu continuo a sua Grande Sacerdotisa – Neferet concluiu.
Stevie Rae limpou a garganta.
– Ahn, sem querer ser mesquinha ou qualquer coisa do tipo, mas já que Z. não vai ser considerada rainha agora e nós temos que ter uma Grande Sacerdotisa, eu sou a próxima na fila. Meus novatos vermelhos precisam de alguém como eles para entendê-los. E esta sou eu. Portanto, pode nos chamar de uma filial da Morada da Noite se quiser, mas, se tem que existir uma Grande Sacerdotisa acima dos novatos vermelhos, então serei eu.
– Seus argumentos são válidos, jovem Sacerdotisa – Duantia disse sem hesitar, o que me fez pensar se ela só estava esperando a contestação de Stevie Rae. – Stevie Rae, até que a questão da posição de Zoey Redbird seja resolvida, você vai atuar como a Grande Sacerdotisa da estação, que será um prolongamento da Morada da Noite de Tulsa.
– Obrigada, senhora – Stevie Rae falou. – E eu não quis soar desrespeitosa.
As feições penetrantes de Duantia se suavizaram quando ela sorriu.
– Você não soou desrespeitosa. Você soou como uma Grande Sacerdotisa. Agora, se não há mais nada a ser tratado, eu vou desligar para colocar as outras integrantes do Conselho Supremo a par desses acontecimentos e decisões.
– Eu já terminei – afirmei.
– Sim, eu também – Stevie Rae disse.
– Acho que tudo o que nós discutimos já é o bastante para um dia – Neferet falou.
– Excelente. Então, me despeço e desejo que todos vocês sejam abençoados.
O computador fez aquele barulho estranho de final de chamada do Skype e a tela ficou branca.
– Bem, foi bastante interessante – Lenobia afirmou.
Percebi então que ela não havia dito nada durante toda a chamada no Skype. Isso me fez pensar nela. Quero dizer, antes ela havia ficado claramente ao meu lado contra Neferet, mas Dragon também já esteve ao meu lado.
– Sim, interessante é uma boa palavra para descrever o que aconteceu – Neferet concordou.
– Parabéns, Grande Sacerdotisa – eu me voltei para Stevie Rae.
– Sim, parabéns – Erik se manifestou.
– Você já era nossa Grande Sacerdotisa, mas é legal que oficializaram isso – Kramisha disse.
– Eu não quero aquela criatura na minha classe – Dragon falou de modo abrupto, cortando totalmente os cumprimentos.
Comecei a abrir minha boca para defender o direito de Rephaim de ir à aula de esgrima ou qualquer outra, mesmo que ainda fosse muito estranho defender Rephaim, mas a resposta de Stevie Rae me surpreendeu e me silenciou.
– Acho que você está certo. Sei que isso é difícil para você, Dragon. Que tal se eu pedir a Darius e Stark para darem aulas extras de armas brancas e coisas assim? Rephaim pode frequentar essas aulas.
– Essa é mesmo uma ótima ideia – Lenobia concordou. – Como todo novato precisa ter alguma aula de defesa pessoal, e com o inesperado aumento no número de alunos por causa dos novatos vermelhos, suas aulas vão ficar lotadas.
– É, a gente devia estar morto. O fato de a gente ter desmorrido realmente vai ferrar com o tamanho das classes – Kramisha comentou.
Neferet suspirou pesadamente e então disse:
– Todo novato precisa ter alguma aula de defesa pessoal por causa do ataque dos Raven Mockers. Eu sou a única que vê a terrível ironia no que vocês estão dizendo?
– Eu vejo isso... e mais – Dragon respondeu.
– E eu vejo que você continua jogando merda no ventilador – Stevie Rae afirmou. Ela se virou e ficou encarando Neferet bem de perto. Ela não piscou. Ela não recuou. Minha melhor amiga parecia forte, valente e muito mais velha do que era.
Stevie Rae parecia uma Grande Sacerdotisa.
Uma Grande Sacerdotisa que estava fazendo inimigos perigosos.
– Duantia resolveu que Rephaim e todos nós podemos ficar – eu falei enquanto me levantava, ficando entre Stevie Rae e Neferet. – Acho que o que nós devemos fazer é descobrir um jeito de fazer isso sem causar um monte de estresse e problemas – olhei para Dragon, tentando encontrar dentro dos seus olhos raivosos aquele Mestre da Espada sábio e gentil que eu conhecera. – Todos nós já tivemos estresse e problemas suficientes por bastante tempo, vocês não acham?
– Eu estarei no ginásio com os novatos normais – Dragon disse e saiu apressadamente do recinto.
– Stevie Rae, você pode dizer a Stark e Darius que eles podem dar aula nos estábulos – Lenobia ofereceu.
– Fico feliz de ouvir que você está com essa disposição conciliadora, professora Lenobia – Neferet começou. – Os primeiros humanos que eu vou contratar serão cavalariços para ajudá-la com todo o... – ela fez uma pausa e seu olhar intenso se voltou para Stevie Rae, Kramisha e eu – esgoto do estábulo.
– Esterco – a resposta de Lenobia foi imediata. – Não há esgoto em meus estábulos. Há esterco. E não preciso de nenhuma ajuda com isso.
– Ah, mas você vai aceitar a ajuda. Pois essa é a coisa certa a fazer, e o Conselho Supremo já endossou isso, não vai?
– Vou fazer o que eu acredito ser o certo.
– Então você vai fazer o que eu espero – Neferet deu as costas para Lenobia, dispensando-a. – Zoey e Stevie Rae, os novatos vermelhos devem retomar o horário de aulas que eles tinham antes de morrer – ela disse de modo prático. – E vocês duas devem se juntar a eles. Quer vocês sejam anormalmente Transformados – ele gesticulou os dedos para Stevie Rae – ou apenas novatos anormais – ela voltou sua atenção para Kramisha e para mim –, isso importa pouco. Vocês precisam ir para as aulas. Vocês são muito jovens para serem realmente interessantes se não tiverem uma formação melhor. A segunda aula deve estar em andamento agora. Vão para suas classes. Esta Reunião do Conselho está encerrada.
Sem falar nenhum “abençoados sejam”, ela saiu rapidamente do aposento.
– Ela é uma louca – Kramisha disse.
– Louca vezes dez – Stevie Rae acrescentou.
– Mas Neferet já é uma figura conhecida. Quando lidamos com ela, nós sabemos que estamos lindando com uma Grande Sacerdotisa que já errou e que é totalmente louca – Lenobia falou devagar. – É Dragon que me preocupa mais.
– Então você está conosco? – perguntei para a Mestra dos Cavalos.
Os olhos cinza de Lenobia encontraram os meus.
– Uma vez eu disse a você que já lutei contra o mal. Eu carrego as cicatrizes desse encontro, tanto fisica quanto emocionalmente, e nunca vou permitir que o mal e as Trevas destruam a minha vida de novo. Eu estou com você – ela acenou com a cabeça para Stevie Rae e Kramisha –, com você e com você, pois vocês estão do lado da Deusa – então ela se voltou para Erik, que estava de pé, mas não havia feito menção de sair da sala. – E onde está você nisso tudo?
– Eu sou o Rastreador da Morada da Noite de Tulsa.
– Nós sabemos, mas em que lado isso coloca você? – Stevie Rae perguntou.
– Eu estou do lado que Marca garotos e muda os seus destinos – Erik se esquivou.
– Erik, algum dia você vai ter que tomar uma posição – eu disse a ele.
– Ei, o fato de eu não estar combatendo Neferet abertamente não significa que não tomei uma posição.
– Não, só significa que é uma posição fraca – Stevie Rae rebateu.
– Que seja! Você não sabe de tudo, Stevie Rae – Erik saiu do recinto batendo pernas.
Kramisha bufou.
– É um desperdício de garoto bonito.
Isso me deixou triste, mas não pude deixar de concordar com ela.
– Vou começar a separar uma área com divisórias para as aulas dos guerreiros – Lenobia disse. – Enquanto isso, vocês podem encontrar os guerreiros e avisá-los que eles vão ser professores, ou pelo menos professores temporários.
– Não vai ser difícil encontrá-los – eu afirmei. – Stark e Darius provavelmente estão no ginásio, treinando com suas espadas.
– Eu vou com você – Stevie Rae falou.
– Acho que eu vou para a segunda aula – Kramisha disse com um pesado suspiro.
Quando Stevie Rae e eu saímos da sala, ela puxou meu braço e me fez ir mais devagar até que ficássemos sozinhas.
– Ei, você sabe que só porque o Conselho Supremo e os outros estão me chamando de Grande Sacerdotisa da estação, isso não significa que eu quero ser sua chefe nem nada parecido.
Eu pisquei surpresa para ela.
– Sim, é claro que sei disso. E de qualquer forma você é uma Grande Sacerdotisa incrível, o que significa que você não vai ser uma chefe vaca e “pé no saco”.
Ela não riu como eu imaginei. Em vez disso, ela começou a puxar um dos seus cachos, um sinal definitivo de que ela estava estressada.
– Ok, é legal dizer isso e tal, mas eu só sou uma Grande Sacerdotisa há tipo uns dois segundos. Eu preciso ter certeza de que você vai me ajudar.
Eu enganchei meu braço no dela e a cutuquei com meu ombro.
– Você sempre pode ter certeza de que pode contar comigo. Você sabe disso.
– Mesmo depois de Rephaim?
– Mesmo depois de Loren, Kalona e Stark? – eu contra-ataquei.
Ela abriu um sorriso.
– Você sempre está um passo na minha frente, não é?
– Infelizmente, acho que estou três passos na sua frente – eu respondi, o que nos fez dar risada, mas também me fez suspirar.
Saímos da parte da Morada da Noite que englobava o centro de mídia em forma de torre e dobramos à esquerda na calçada que serpenteava em volta do ginásio e dos estábulos. Estava uma noite fria, mas muito clara. O céu estava cheio de estrelas, e era muito fácil vê-las através dos galhos invernais dos velhos carvalhos que salpicavam os jardins do campus.
– Então, ele é uma graça, hein?
Eu me fingi de boba.
– Quem, Stark?
Ela me cutucou com o ombro.
– Estou falando sobre Rephaim.
– Ah, ele. Sim, acho que ele é ok – eu hesitei e quase não perguntei, mas então decidi ir em frente. Quero dizer, nós somos melhores amigas. E melhores amigas podem perguntar qualquer coisa uma para a outra. – Então, você viu ele se transformar em um pássaro?
Pude sentir a tensão que entrou no corpo dela, mas ela soou quase normal quando respondeu:
– Sim, eu vi.
– Como foi?
– Horrível.
– E ele, ficou por perto? Ou ele saiu voando e foi embora? – não consegui evitar. Foi uma curiosidade totalmente mórbida, dessas de quem fica observando carros acidentados.
– Ele saiu voando na hora. Mas assim que o sol se pôs ele voltou. Ele disse que sempre vai achar o caminho de volta para mim.
– Então ele vai – eu disse, odiando ouvir a preocupação na voz dela.
– Eu o amo, Z. Ele é realmente bom. Prometo.
Eu estava abrindo a boca para dizer que eu acreditava nela quando um grito me interrompeu. Por um segundo não entendi o que a voz estava dizendo, só reagi ao perigo contido nela. Mas Stevie Rae entendeu.
– Ah, não! É Dragon! Ele está convocando os guerreiros!
Ela soltou meu braço e começou a correr na direção da voz de Dragon. Com um péssimo pressentimento, disparei atrás dela.
1 Magic Mouse é o mouse da Apple, que vem com o iMac. (NT.)

5

Rephaim
– Por que vocês estão aqui?! – Rephaim berrou para os três Raven Mockers empoleirados acima dele. Ele olhou rapidamente em volta. Se ele tivesse tido tempo, teria suspirado aliviado por aquela parte do campus continuar vazia; todos os novatos haviam ido para a segunda aula. – Vocês têm que ir embora antes que alguém veja vocês – ele disse com uma voz bem mais baixa.
– Rephaim? Como?
Apesar de haver três Raven Mockers na árvore, apenas um deles estava falando. É claro que Rephaim reconheceu na mesma hora que aquele era Nisroc, um dos seus irmãos que mais se parecia com os humanos.
– Eu escolhi o caminho de Nyx. A Deusa me perdoou e me aceitou e, ao fazer isso, ela mudou a minha forma para a de um humano – Rephaim não sabia por que ele não havia acrescentado “durante a noite”. O que ele sabia era que qualquer coisa que contasse a Nisroc seria reportada diretamente para o seu pai.
– Perdão? Por quê?
Rephaim encarou seu irmão e ficou quase arrasado de tanta pena. Ele não percebe que há outro caminho além daquele ao qual nosso pai o leva, e ele não entende que o que ele faz em nome de Kalona é errado.
– Nisroc, quando nós... – Rephaim fez uma pausa. Não, ele pensou, eu só posso falar por mim. – Quando eu machuquei os outros, quando eu matei, violentei e peguei tudo o que eu desejava só porque eu podia... isso foi errado.
Nisroc balançou sua cabeça de um lado para o outro. Seus outros dois irmãos, da horda bestial, e sem nome, que seguiam as ordens de seu pai, sibilaram baixo, perturbados mas não desenvolvidos o suficiente para compreender o porquê.
Finalmente, seu irmão disse:
– Ordensss do Pai. Não errado.
Rephaim balançou a cabeça.
– Até o Pai pode estar errado – ele inspirou profundamente e acrescentou: – E até você pode escolher um caminho diferente.
As duas criaturas sem nome pararam de sibilar e olharam para ele em choque. Nisroc estreitou seus olhos humanos escarlate.
– Ela fe issso. A fêmea. Como o Pai dissse!
– Ninguém fez nada. Eu decidi sozinho – então, com um princípio de medo, uma súbita compreensão o atingiu. – Nisroc, a Vermelha, Stevie Rae, ela não fez nada para mim. Eu escolhi ficar com ela e sua Deusa. Você não pode nunca machucar a Vermelha. Ela pertence a mim. Você entendeu?
– Sssua. Grande Sssacerdotisa matar não podemosss – Nisroc repetiu automaticamente, mas Rephaim viu o brilho maldoso nos seus olhos em brasa.
– Vocês têm que ir embora. Agora – Rephaim disse. – Vocês não podem deixar ninguém ver vocês e não podem voltar.
– Primeiro, mensssagem do Pai – Nisroc desceu dos grossos galhos do carvalho, aterrissando na frente de Rephaim, seguido pelos dois outros Raven Mockers, que se posicionaram nos seus flancos. – Do lado do Pai você vai essstar. Masss aqui. Obssservando. Esssperando. Essspionando.
Rephaim balançou a cabeça novamente.
– Não. Eu não vou espionar para o Pai.
– Sssim! Como o Pai quer! – Nisroc abriu suas asas, uma ação imitada pelos dois outros Raven Mockers. Extremamente agitado, ele sacudiu a cabeça e fechou suas mãos em punho.
Rephaim não se sentiu ameaçado. Sua mente não registrou o perigo físico que ele corria. Ele estava acostumado demais aos seus irmãos, acostumado demais a ser um deles. Não, era mais do que isso. Rephaim estava acostumado demais a ser o líder deles, de modo que não conseguia temê-los.
– Não – ele repetiu. – Para mim, não é mais como o Pai quer. Eu mudei. Por dentro e por fora. Voltem para ele. Digam isso a ele – Rephaim hesitou e então concluiu: – Diga a ele que minha escolha continua a mesma.
– Odiar você ele vai – Nisroc afirmou.
– Sei disso – Rephaim sentiu uma dor profunda dentro dele.
– Odiar você eu vou – Nisroc falou.
Rephaim franziu a testa.
– Você não precisa me odiar.
– Eu preciso.
Devagar, Rephaim estendeu o braço, oferecendo o seu antebraço para Nisroc na saudação respeitosa e tradicional entre guerreiros, que também era um gesto de despedida.
– Você não precisa. Nós podemos nos despedir como amigos, como irmãos.
Nisroc fez uma pausa, inclinando sua cabeça para um lado e depois para o outro. Seus olhos estreitos relaxaram. Sua postura agressiva se alterou. Ele começou a se mover e a falar, mas Rephaim nunca saberia a verdadeira intenção de seu irmão, pois naquele momento o grito de Dragon Lankford dizendo “Filhos de Erebus! Comigo!” abalou a noite, e então o Mestre da Espada investiu na direção deles.
Rephaim experimentou um momento de pânico paralisante. Ele ficou congelado no meio do caos, enquanto seus irmãos, sibilando e rosnando, encontravam o ataque de Dragon. Ele ficou olhando e sabendo, de modo terrível e fatalista, que muito em breve os guerreiros começariam a brotar do ginásio, com suas espadas desembainhadas e seus arcos armados. Eles iriam se juntar a Dragon e massacrar completamente seus três irmãos.
– Dragon, não! – ele gritou. – Eles não estavam atacando!
Do meio da batalha, a voz de Dragon Lankford chegou até ele.
– Ou você está a favor ou contra nós! Não há meio-termo.
– Há meio-termo – Rephaim gritou de volta, abrindo os braços como se estivesse se rendendo. – É onde eu fico – ele deu um passo em direção a Dragon. – Eles não estavam atacando! – ele repetiu. – Nisroc, irmãos, parem de lutar!
Rephaim achou realmente que Nisroc havia hesitado. Ele estava quase certo de que seu irmão o estava ouvindo, entendendo e querendo se retirar. Então a voz de Neferet cortou a noite.
– Aurox! Proteja! Destrua!
A criatura de Neferet explodiu dentro da cena.
Ele veio do muro lateral do jardim, encarando Rephaim. No começo, ele aparentava ser humano. Ele tinha a forma de um jovem sem nenhuma Marca de novato ou vampiro. Mas seus movimentos eram rápidos demais para serem humanos. Em um borrão, ele atacou. Vindo por trás, ele agarrou o Raven Mocker mais próximo pelas suas asas abertas e, com um único e horrível movimento, ele as arrancou do seu corpo.
Em seus séculos de existência, Rephaim havia visto coisas terríveis – ele tinha cometido atos vis e tenebrosos. Mas, de algum modo, assistir a tudo aquilo deste novo ponto de vista humano fazia a violência que ele estava testemunhando ser mais medonha. Seu grito ecoou o de seu irmão quando o corpo do Raven Mocker caiu no chão, estremecendo de agonia e jorrando sangue.
Foi então que Aurox começou a se transformar. Apesar de Rephaim ver aquilo acontecendo, ele mal podia compreender.
O corpo dele ficou maior e mais largo.
Cresceram chifres nele.
Seus punhos se endureceram.
Sua pele se ondulou e se levantou, pulsando como se algo por baixo dela estivesse tentando sair.
Ele se inclinou e, quase graciosamente, torceu e arrancou a cabeça de seu irmão.
Até Dragon Lankford parou o seu ataque para observar.
Forçando a sua mente para pensar no meio do choque e do horror, Rephaim gritou para Nisroc:
– Vá embora! Saia voando!
Com um grito de desespero, Nisroc, seguido pelo irmão, levantou do chão ensopado de sangue.
A criatura transformada berrou e deu um salto, tentando, inutilmente, derrubá-los do céu. Quando ele caiu com um estrondo no chão, com seus enormes cascos de diabo freando no gramado do inverno, ele voltou seus olhos cor da lua em chamas para Rephaim.
Desejando ter asas ou uma arma, Rephaim se encolheu defensivamente e se preparou para o ataque violento da criatura.
– Rephaim! Cuidado!
Ele escutou a voz dela e o seu medo ficou mais quente e espesso quando Stevie Rae, seguida de perto por Zoey, correu na direção dele.
A criatura abaixou a cabeça e arremeteu.

Zoey

Eu estava bem atrás de Stevie Rae quando corremos para a briga. Afe, tudo o que eu posso dizer é que aquilo era repugnante, horrível e totalmente confuso.
Eu mal podia dizer o que estava acontecendo. Dois Raven Mockers estavam grasnando e voando acima de nós. Eu vi o corpo de outro Raven Mocker sem cabeça (eca!) se retorcendo e se esvaindo em um sangue com um cheiro estranho aos pés de Dragon. Rephaim estava em pé um pouco afastado deles, como se ele tivesse assistido mas não participado da luta. De algum modo, Neferet estava lá também, parecendo super louca e sorrindo de um jeito muito esquisito.
No meio da coisa toda estava uma criatura que era meio humana, mas não totalmente. No instante em que eu o vi, comecei a sentir um calor no meio do meu peito. Coloquei a mão ali e senti o círculo de mármore duro e quente que pendia de uma corrente de prata no meu pescoço.
– Minha pedra da vidência – murmurei para mim mesma. – Por que está quente de novo? Por que agora?
Como uma resposta, meu olhar foi atraído para a criatura bizarra. Ele tinha chifre e cascos, mas seu rosto era o de um garoto. Seus olhos estavam incandescentes. Ele tinha tentado agarrar um Raven Mocker no céu, mas depois de falhar ele voltou sua atenção para Rephaim, abaixou a cabeça e investiu contra ele.
– Rephaim! Cuidado! – Stevie Rae gritou e disparou na direção dele. Ela estendeu rapidamente seus braços e eu pude ouvi-la invocando a terra.
– Espírito! – eu chamei, tentando acompanhá-la. – Fortaleça Stevie Rae! – senti o elemento responder quando ele girou em um redemoinho para dentro de Stevie Rae, junto com o próprio elemento dela, a terra. Como se estivesse jogando uma grande bola para cima, ela levantou os braços, e uma barreira verde fosforescente se ergueu da terra como uma cachoeira ao contrário, protegendo Rephaim do ataque da criatura.
A criatura se chocou violentamente contra a barreira verde e caiu para trás de costas. Stevie Rae, forte, ereta e orgulhosa, parou perto de Rephaim. Ela pegou a mão dele. Então, minha melhor amiga levantou sua outra mão e, quando a criatura tentou se levantar, ela fez um movimento de palmada e disse:
– Não! Fique deitado – uma onda verde brilhante o abateu, prendendo-o ao chão.
– Chega! – Neferet disse, marchando em direção à criatura. – Aurox não é o inimigo aqui. Liberte-o imediatamente.
– Não se ele for atacar Rephaim – Stevie Rae respondeu. Ela se virou para Dragon e perguntou: – Rephaim estava aliado aos outros Raven Mockers?
Sem nem olhar para Rephaim, Dragon respondeu:
– Ele estava falando com eles, mas não atacou com eles.
– Eles não atacaram! – Rephaim afirmou. – Eles estavam aqui para me ver... só isso. Você os atacou!
Dragon finalmente olhou para Rephaim.
– Raven Mockers são nossos inimigos.
– Eles são meus irmãos – a voz de Rephaim soou incrivelmente triste.
– Você vai ter que decidir de que lado está – Dragon disse solenemente.
– Já fiz isso.
– E parece que a Deusa acredita nisso – Neferet falou. – Aurox – ela se dirigiu à criatura que ainda estava deitada de costas, presa pelo poder da terra –, a batalha terminou. Não é mais necessário proteger ou atacar – ela virou seu intenso olhar de esmeralda para Stevie Rae. – Agora, liberte-o.
– Obrigada, terra – Stevie Rae disse. – Você pode ir agora – com um aceno de sua mão, o brilho verde evaporou, permitindo que a criatura se levantasse.
Mas não era uma criatura o que ficou em pé. Um garoto estava lá – um menino bonito, loiro, com olhos parecidos com pedras da lua e o rosto de um anjo.
– Quem é ele? E que diabo todo aquele sangue está fazendo ali? – a voz de Stark subitamente ao meu lado me fez dar um pulo.
– Ah, que merda. É um Raven Mocker morto – Aphrodite falou quando ela, Darius e o que pareceu ser a maioria da escola se amontoaram em volta de nós.
– E é um garoto humano muito bonito – Kramisha disse, dando uma olhada nele.
– Ele não é humano – eu afirmei, segurando minha pedra da vidência.
– O que ele é? – Stark perguntou.
– Magia antiga – eu respondi quando as peças do quebra-cabeças na minha mente se juntaram.
– Desta vez você está certa, Zoey – Neferet se aproximou do garoto e anunciou com um floreio: – Morada da Noite, este é Aurox, o presente que Nyx me deu para provar o seu perdão!
Aurox deu um passo à frente. Seus olhos de uma cor estranha encontraram os meus. De frente para a multidão, mas olhando apenas para mim, ele cruzou seu punho sobre o coração e se curvou.
– De jeito nenhum ele é um presente de Nyx – Stevie Rae murmurou.
Pelo menos uma vez na vida concordando com Stevie Rae, Aphrodite bufou.
Tudo o que eu podia fazer era observar. Tudo o que eu sentia era o calor da pedra da vidência.
– Zoey, o que foi? – Stark perguntou em voz baixa.
Não respondi. Em vez disso, eu me forcei a desviar meu olhar de Aurox e encarei Neferet.
– De onde ele vem realmente? – minha voz saiu dura e forte, mas parecia que meu estômago estava tentando virar de cabeça para baixo.
Em algum lugar, no fundo da minha mente, eu conseguia ouvir o zunzum e os sussurros dos garotos a minha volta, e eu sabia que forçar um confronto com Neferet aqui e agora não seria inteligente da minha parte. Mas não consegui evitar. Neferet estava mentindo sobre essa coisa chamada Aurox, e por alguma razão isso era tudo o que importava para mim.
– Eu já disse de onde ele veio. E, Zoey, eu devo dizer que é exatamente por isso que você precisa voltar à escola, frequentar as aulas e se concentrar novamente nos estudos. Eu acredito que você perdeu a habilidade de escutar.
– Você disse que ele é magia antiga – eu ignorei aquela lorota meio agressiva dela. – A única magia antiga que eu conheço é a da Ilha de Skye – e essa, eu disse a mim mesma, foi a que eu vi na noite passada, quando olhei para Stark através da pedra; a magia antiga dos guerreiros Guardiões que ainda estava grudada nele desde a Ilha de Skye. Com a mente zunindo, mas ainda confrontando Neferet, continuei: – Você está me dizendo que ele veio da Ilha de Skye?
– Criança tola, a magia antiga não é restrita a uma ilha. Sabe, você deveria pensar duas vezes antes de acreditar em tudo o que ouve, principalmente quando isso vem de uma vampira que chama a si mesma de rainha e que não sai de uma ilha há séculos.
– E você ainda não respondeu minha pergunta. De onde ele vem?!
– Que magia pode ser mais antiga do que aquela que vem da Deusa em pessoa? Aurox é o meu presente de Nyx! – Neferet olhou intencionalmente para a multidão e riu do meu questionamento como se eu não fosse nada além de uma criança irritante e eles estivessem todos rindo da mesma piada adulta junto com ela.
– No que ele estava se transformando? – não consegui me conter, apesar de saber que eu estava parecendo totalmente rabugenta e teimosa, como uma daquelas garotas que quer ter sempre a última palavra, que por sinal é sempre negativa.
O sorriso de Neferet foi magnânimo.
– Aurox estava se transformando no Guardião da Morada da Noite. Você não pensou que era a única digna de ter um Guardião, pensou? – ela abriu bem os braços. – Todos nós somos! Venham, cumprimentem-no e então vamos voltar para as aulas e para aquilo que é a base da Morada da Noite, o aprendizado.
Eu queria gritar que ele não era um Guardião! Queria berrar que eu estava cansada de Neferet ficar distorcendo as minhas palavras. Eu não conseguia parar de olhar para Aurox quando os novatos (na maioria garotas) começaram a se aproximar dele, tomando cuidado para desviar do sangue nojento e dos restos do Raven Mocker.
Na verdade, eu não sabia por que, mas eu só queria gritar.
– Você não vai ganhar essa – Aphrodite disse. – Ela tem a multidão e o garoto bonito ao lado dela.
– Ele não é isso – ainda segurando firme na minha pedra da vidência em brasa, eu me afastei daquela cena ridícula e comecei a andar de volta para a escola. Pude sentir Stark me observando, mas continuei olhando para a frente.
– Z., qual é o seu problema? Então ele não é só um garoto bonito. Isso é tão terrível? – Aphrodite perguntou.
Eu parei e me virei para encará-los. Estavam todos lá, seguindo bem atrás de mim em fila, como patinhos atrás da mãe: Stark, Aphrodite, Darius, as gêmeas, Damien, Stevie Rae e até Rephaim. Foi para Rephaim que eu dirigi minha pergunta:
– Você também viu, não viu?
Ele assentiu de modo sóbrio.
– Se você se refere à transformação dele, sim.
– Viu o quê? – Stark perguntou, soando exasperado.
– Ele estava se transformando em um touro – Stevie Rae respondeu. – Eu também vi.
– Aquele garoto branco bonito estava virando um touro? Isso não tá certo – Kramisha falou, dando uma olhada para a multidão que havíamos deixado para trás.
– Garoto branco... touro branco – Stevie Rae concluiu. E então, falando como eu, ela acrescentou: – Ai, que inferno.

6

Erik
Ele estava indo devagar para a sala de teatro, desejando fortemente que em vez de estar a caminho de uma aula ele estivesse prestes a fazer uma grande entrada em um set de filmagem em L.A.1 , Nova Zelândia, Canadá... Droga! Em qualquer lugar, menos em Tulsa, Oklahoma! Ele também estava pensando em como havia deixado de ser o novato mais gostoso da escola e o próximo Brad Pitt, segundo o mais importante agente de elenco vampiro de L.A., e virado professor de teatro e Rastreador de vampiros.
– Zoey – Erik murmurou para si mesmo. – Minha vida começou a descer ladeira abaixo no dia em que eu a conheci.
Então ele se sentiu mal por dizer isso, mesmo que não tivesse ninguém por perto para ouvir. Ele estava realmente bem com Z. Eles eram até meio amigos. Com o que ele não lidava bem era com toda a loucura que rolava em volta dela. Ela é um imã para bizarrices, ele pensou. Não era de se estranhar que eles tivessem terminado. Ele não era bizarro.
Ele esfregou a palma da sua mão direita.
Vários novatos passaram correndo por ele, então ele estendeu o braço e puxou um deles pelo capuz da sua jaqueta xadrez da escola.
– Ei, por que a pressa, e por que você não está na aula? – Erik fez um olhar zangado para o garoto, mais porque ele estava irritado por soar como um daqueles professores, do tipo “volte já para a sala, jovenzinho!”, do que por realmente se importar aonde o novato estava indo.
Irritando Erik ainda mais, o novato se encolheu de medo e pareceu que ia molhar as calças.
– Alguma coisa está acontecendo. Uma luta ou algo assim.
– Vá em frente – Erik o soltou com um pequeno empurrão e o garoto saiu correndo.
Erik nem pensou em segui-lo. Ele sabia o que ia encontrar: Zoey no meio de uma confusão. Ela tinha um monte de gente para ajudá-la a sair da confusão. Ele não tinha a menor responsabilidade sobre ela, assim como acabar com o maldito mundo das Trevas também não era sua responsabilidade.
No momento em que ele colocou a mão na maçaneta da porta da classe sua palma direita começou a arder. Erik balançou a mão. Então ele parou e a observou.
A Marca em forma de labirinto em espiral estava levantada, como uma marca de ferro quente em gado que acabou de ser feita.
Então a compulsão o atingiu. Com força.
Erik arfou, virou-se e começou a correr na direção do estacionamento e do seu Mustang vermelho. Enquanto aquele ímpeto aumentava para níveis cada vez mais febris, ele não conseguia ficar quieto e seus pensamentos jorravam em pedaços de sentenças fragmentadas:
– Broken Arrow. Avenida South Jupiter, 2801. Andando. Em trinta e cinco minutos. Você tem que chegar lá. Você tem que estar lá. Shaylin Ruede. Shaylin Ruede. Shaylin Ruede. Vai, vai, vai, vai, vai...
Erik sabia o que estava acontecendo. Ele havia se preparado. O último Rastreadores da Morada da Noite, que chamava a si mesmo de Caronte2 , havia contado a ele exatamente o que esperar. Quando chegasse a hora de ele Marcar um novato, a palma da sua mão iria arder; ele iria saber um lugar, uma hora e um nome; e ele sentiria uma compulsão incontrolável de chegar lá.
Erik achou que estaria preparado, mas ele não tinha compreendido a profundidade da ânsia que se abateria sobre ele – o poder singular do foco que martelava dentro dele ao mesmo tempo que a batida pulsante, quente e urgente na palma de sua mão.
Shaylin Ruede seria a primeira novata que ele Marcaria na vida.
Levou trinta minutos para que ele fosse do centro de Tulsa até o pequeno condomínio espremido dentro do tranquilo distrito de Broken Arrow. Erik parou em uma vaga de visitantes do estacionamento. Suas mãos estavam tremendo quando ele saiu do Mustang. A compulsão o havia levado para a calçada que se estendia na frente do complexo, paralela à rua. O condomínio tinha luminárias com lâmpadas brancas suaves, que pareciam aquários gigantes e opacos sobre postes de ferro forjado, de modo que poças de luz cor de creme estavam espalhadas pela calçada. Cedros maduros e carvalhos se alinhavam no passeio de pedestres, no lado da rua. Erik olhou para o relógio. Eram 3h45. Um horário e um lugar estranhos para Marcar uma garota. Mas Caronte havia dito a ele que a compulsão do Rastreadores nunca estaria errada – que tudo o que ele tinha que fazer era segui-la, deixando seus instintos o guiarem, e então tudo daria certo. Mesmo assim, não havia absolutamente ninguém por perto e Erik estava começando a entrar em pânico quando ele ouviu um leve barulho, tap-tap-tap-tap. À frente dele, uma garota dobrou a esquina dentro do condomínio e apareceu no seu campo de visão. Ela se moveu devagar pela calçada, vindo na direção dele. A cada vez que ela passava por uma bolha de luz, Erik a examinava. Ela era pequena – uma garota tipo mignon com bastante cabelo castanho escuro. Tanto cabelo, de fato, que por um momento ele ficou tão distraído em como ele era grosso e brilhante que não reparou mais nada nela – até que o som tap-tap atravessou sua consciência. Ela estava segurando uma longa bengala branca que mantinha à sua frente, perscrutando o caminho, fazendo tap-tap-tap, portanto era pelo som e pelo toque que ela se orientava. A cada poucos passos, ela parava e tossia, uma tosse horrível e molhada.
Erik percebeu duas coisas ao mesmo tempo. Primeiro, essa era Shaylin Ruede, a adolescente que ele estava destinado a Marcar. Segundo, ela era cega.
Ele teria se contido se pudesse, mas nenhum poder mortal e, segundo Caronte, tampouco nenhum poder mágico poderia desviar Erik dessa garota até que ele a tivesse Marcado. Quando a garota estava apenas alguns passos na frente dele, ele levantou sua mão com a palma para fora e apontou para ela. Ele abriu sua boca para falar, mas ela falou primeiro:
– Oi? Quem é? Quem está aí?
– Erik Night – ele falou sem pensar. Então ele balançou a cabeça e limpou a garganta. – Não, não é bem isso.
– Você não é Erik Night?
– Sim. Quero dizer, não. Espere, não é bem isso também. Não era isso o que eu deveria dizer – suas mãos estavam tremendo e ele se sentia como se fosse vomitar.
– Você está legal? Você não parece muito bem – ela tossiu. – Você está com a mesma gripe que eu? Estou me sentindo muito mal o dia inteiro.
– Não, eu estou bem. É só que eu preciso dizer uma coisa a você, e não é o meu nome nem nada parecido. Ah, cara. Estou realmente todo atrapalhado. Eu nunca erro o texto. Está tudo errado.
– Você está ensaiando para uma peça?
– Não. E você nem imagina como essa pergunta é irônica – ele respondeu, esfregando seu rosto suado e se sentindo confuso.
Ela inclinou sua cabeça para o lado e franziu a testa.
– Você não vai me assaltar, vai? Sei que é tarde e tudo o mais, e que eu sou cega e não deveria estar aqui fora sem companhia. Mas é a melhor hora do dia para eu dar uma volta sozinha. Eu não tenho muito tempo comigo mesma.
– Eu não vou te assaltar – ele disse constrangido. – Eu não faria isso.
– Então o que você está fazendo aqui e no que você se atrapalhou?
– Isso não está sendo do jeito que deveria mesmo!
– E me sequestrar também não seria nenhuma vantagem para você. Estou morando aqui com a minha mãe adotiva. Ela não tem nenhum dinheiro. Na verdade, desde que comecei a trabalhar depois da aula na Biblioteca South BA no final da rua, eu tenho mais dinheiro do que ela. Ahn, não que eu tenha nada comigo aqui neste momento.
– Sequestrar você? Não! – então Erik se curvou, segurando a barriga. – Droga! Caronte não me disse que ia doer se eu não fizesse isso.
– Caronte? Você faz parte de uma gangue? Eu devo ser um sacrifício de iniciação?
– Não!
– Ótimo, porque isso seria realmente péssimo – ela sorriu mais ou menos na direção dele e então começou a se virar para o caminho por onde tinha vindo. – Então, tá. Se é só isso. Foi um prazer conhecê-lo, Erik Night. Ou pelo menos acho que esse é o seu nome.
Fazendo um esforço enorme, Erik se endireitou o bastante para erguer sua mão de novo, com a palma voltada para fora.
– É isto o que eu deveria estar fazendo – com uma voz de repente repleta de magia, mistério e determinação, Erik Night entoou as palavras ancestrais dos Rastreadores: – Shaylin Ruede! A noite escolheu a ti. Tua morte será teu nascimento. A noite a chama para si; escute sua doce voz. Seu destino te aguarda na Morada da Noite!
Todo o calor que crescia em seu estômago, deixando-o enjoado, confuso e quente demais saiu em um disparo pela palma da sua mão. Erik conseguiu até vê-lo de fato! Ele atingiu em cheio a testa de Shaylin. Ela exclamou um pequeno “Oh” de surpresa e caiu graciosamente no chão.
Tudo bem, ele sabia que devia agir feito um vampiro e se misturar nas sombras, voltando para a Morada da Noite e deixando a novata achar o seu próprio caminho para lá. Caronte havia dito que era assim que era feito. Ou pelo menos era assim no mundo moderno.
Erik pensou em se misturar nas sombras. Ele até começou a se afastar, mas então Shaylin levantou sua cabeça. Ela havia caído no meio de um facho de luz, portanto o seu rosto estava iluminado. Ela era simplesmente perfeita! Seus lábios rosados e carnudos se levantaram em um sorriso surpreso, e ela estava piscando como se fosse para clarear a visão. Se ela não fosse cega, ele poderia jurar que ela o estava encarando com aqueles olhos negros enormes. Sua pele pálida era imaculada e no meio da testa a sua nova Marca irradiava um bonito brilho escarlate.
Escarlate?
A cor o sacudiu e ele começou a ir em direção a ela, dizendo:
– Espere, não. Isso não está certo.
Ao mesmo tempo, Shaylin falou:
– Aimeudeus! Eu estou enxergando!
Erik correu em sua direção e ficou parado ali meio perdido, sem saber o que fazer, enquanto ela se recompunha e ficava em pé. Ela estava um pouco cambaleante, mas estava piscando e olhando para todo lado, com um sorriso enorme estampado no seu belo rosto.
– Eu estou mesmo enxergando! Aimeudeus! Isso é incrível!
– Não pode ser. Eu me atrapalhei todo com isso.
– Eu não me importo se você se atrapalhou ou não... Muito obrigada! Eu consigo ver! – ela gritou e atirou seus braços em volta dele, rindo e chorando ao mesmo tempo.
Erik meio que acariciou as suas costas. Ela tinha um cheiro doce, como morangos ou talvez pêssegos – ou algum tipo de fruta. E ela era mesmo macia.
– Ah, meu Deus! Desculpe – ela o soltou de repente e deu um passo para trás. Suas bochechas estavam rosadas e ela enxugou os olhos. Então aqueles olhos úmidos e negros se arregalaram para alguma coisa acima do ombro dele, e ele se virou rapidamente, com as mãos para cima, pronto para acertar alguém. – Ah, não. Desculpe de novo – os dedos dela pousaram no seu braço apenas por um segundo, enquanto ela passava por ele devagar. Ele olhou para Shaylin e percebeu que ela estava embasbacada com um carvalho grande e antigo. – É tão bonito! – com passos que estavam se tornando mais seguros, ela caminhou para a árvore e a alisou com as mãos. Observando atentamente os galhos, ela disse: – Eu tinha imagens na minha mente. Coisas das quais eu me lembrava da época em que eu enxergava, mas isso é tão, tão melhor – ela esfregou os olhos brilhantes de novo e se virou para ele, e então eles se arregalaram ainda mais. – Ah, uau!
Apesar da estranheza de tudo aquilo, Erik não conseguiu deixar de se virar para ela com aquele seu sorriso de estrela de cinema de cem watts.
– É, antes de eu virar um Rastreador de uma hora para a outra, eu estava a caminho de Hollywood.
– Não, eu não falei “uau” por causa da sua beleza, apesar de você ser bonito. Eu acho – ela disse rápido, ainda o encarando.
– Eu sou – ele garantiu a ela, lembrando a si mesmo que ela estava provavelmente em estado de choque.
– É, bem, o que eu quero dizer é que realmente posso ver você.
– Sim, e...? – Deusa, Shaylin Ruede, Marcada ou Desmarcada, é uma garota estranha, ele pensou.
– Eu perdi minha visão quando ainda era criança, um pouco antes do meu aniversário de cinco anos, mas eu realmente não me lembro de ser capaz de ver o interior das pessoas. E acho que, se fosse algo comum, pelo menos eu teria ouvido falar sobre isso na internet.
– Como você podia entrar na internet se você era cega?
– Sério? Você está mesmo me perguntando isso? Tipo, você não sabe nada sobre coisas para deficientes?
– Como eu podia saber? Não sou deficiente.
– De novo, sério? Não é o que o seu interior diz.
– Shaylin, de que droga você está falando? – ela era uma menina louca? Será que o fato de ele ter se atrapalhado todo com a coisa de Rastreador havia feito dela não apenas uma novata vermelha, mas uma novata vermelha louca? Que droga! Ele estava metido em problemas!
– Como você sabe meu nome?
– Todos os Rastreadores sabem o nome dos garotos que eles devem Marcar.
Shaylin tocou a própria testa.
– Ah, uau! É isso! Eu vou virar uma vampira!
– Bem, se você sobreviver. Na verdade, eu não sei muito bem o que está acontecendo. Você tem uma Marca vermelha.
– Vermelha? Eu achei que novatos tinham Marcas azuis e depois tatuagens azuis. Você tem – ela apontou para a tatuagem dele, que emoldurava seus olhos azuis de Clark Kent3 como uma máscara.
– É, bem, você deveria ter uma Marca azul. Mas você não tem. É vermelha. E a gente pode voltar para aquilo que você estava dizendo, sobre ver o meu interior?
– Ah, isso. Sim, é incrível. Eu posso ver você e também todos os tipos de cores à sua volta. É como se o que está dentro de você estivesse brilhando ao seu redor – ela balançou a cabeça, como se estivesse pensando, e olhou ainda mais intensamente para ele. Então ela piscou, franziu a testa e piscou novamente. – Hum. Isso é interessante.
– Cores? Isso não faz o menor sentido – ele percebeu que ela estava apertando seus lábios, como se não quisesse dizer mais nada, o que realmente o irritou por alguma razão. Então ele perguntou: – Que cores estão em volta de mim?
– Tem bastante verde cor de ervilha misturado com um tom aquoso. Isso me lembra das ervilhas polpudas que alguns lugares tentam servir quando você pede peixe com batatas, não que isso faça algum sentido mesmo.
Erik balançou a cabeça.
– Nada disso faz sentido. Por que diabos eu tenho cor de ervilhas polpudas em volta de mim?
– Ah, esta é a parte fácil. Quando eu me concentro na cor, posso ver o que ela quer dizer sobre você – ela fechou a boca e então deu de ombros. – Você tem também algumas pequenas partículas brilhantes que aparecem de vez em quando, mas eu não posso dizer de que cor elas são e só sei um pouco o que elas significam. Parece loucura, certo?
– O que o verde cor de ervilha e a coisa aquosa dizem a meu respeito?
– O que você acha que dizem?
– Por que você está respondendo minha pergunta com outra pergunta?
– Ei, você acabou de responder minha pergunta com outra pergunta – Shaylin argumentou.
– Perguntei primeiro.
– Isso realmente importa? – Shaylin perguntou.
– Sim – ele respondeu, tentando manter o seu temperamento sob controle, apesar de ela o estar irritando loucamente. – O que a cor de ervilha significa?
– Está bem. Significa que você nunca teve que batalhar muito para conseguir o que quer.
Ele a fuzilou com os olhos.
Ela deu de ombros.
– Foi você quem perguntou.
– Você não sabe merda nenhuma sobre mim.
Shaylin de repente pareceu irritada.
– Ah, por favor! Eu não sei por que, mas sei que eu sei o que estou vendo.
– Ei, eu não preciso estar ensopado em ervilhas polpudas para você descobrir que este sorriso aqui já me abriu portas – Erik disse sarcasticamente.
– É, então me explique por que eu também sei que a coisa cinza esfumaçada significa algo que deixou você triste – ela colocou as mãos nos quadris, franziu os olhos e o encarou. De verdade. Então ela assentiu, como se estivesse concordando consigo mesma. Parecendo convencida, ela acrescentou: – Acho que alguém próximo a você acabou de morrer.
Erik sentiu como ela tivesse lhe dado um tapa na cara. Ele não conseguiu dizer nada. Apenas desviou os olhos dela e tentou pensar no meio de uma onda de tristeza.
– Ei, desculpe.
Ele olhou para baixo e viu que ela havia corrido em direção a ele e colocado sua mão de volta no seu braço. Ela não parecia mais convencida.
– Isso foi muito errado da minha parte – ela falou.
– Não – ele respondeu. – Você não estava errada. Um amigo meu realmente acabou de morrer.
Ela balançou a cabeça.
– Não foi o que eu quis dizer. Eu estava errada por ter dito aquilo daquela maneira... como uma garota maldosa. Eu não sou essa pessoa. Eu não sou assim. Portanto, desculpe.
Erik suspirou.
– Eu também quero me desculpar. Nada disso aconteceu como deveria.
Shaylin tocou sua própria testa cuidadosamente.
– Você nunca Marcou ninguém de vermelho?
– Eu nunca Marquei ninguém além de você – ele admitiu.
– Ah, uau. Eu sou sua primeira?
– É, e eu me atrapalhei todo.
Ela sorriu.
– Se o fato de eu poder enxergar é uma trapalhada, sou totalmente a favor.
– Bem, estou feliz por você voltar a ver, mas eu ainda preciso descobrir como isso aconteceu – ele fez um gesto em direção à sua Marca vermelha. – E isto – Erik ondulou sua mão em volta dele. – A coisa da ervilha.
– A coisa da ervilha vem de você, mas há outras cores aí também. Quando você se desculpou, eu pude ver...
– Não! – ele levantou uma mão, cortando-a. – Acho que eu não quero saber o que mais você pode ver.
– Desculpe – ela disse em voz baixa, olhando para baixo e arrastando a ponta de um sapato na grama marrom do inverno. – Acho que é mesmo sobrenatural. Então, o que vai acontecer agora?
Erik suspirou de novo.
– Não precisa se desculpar e não tem nada de errado com o sobrenatural. Tenho certeza de que Nyx tem uma razão para dar a você esse dom e essa Marca vermelha.
– Nyx?
– Nyx é nossa Deusa. A Deusa da Noite. Ela é incrível e às vezes ela dá dons legais aos seus novatos – enquanto falava, Erik se sentiu um completo idiota. Ele devia ser o pior Rastreador da história da Morada da Noite. Ele havia transformado uma garota cega em uma novata vermelha que podia ver coisas interiores, e só agora ele estava falando a ela sobre a Deusa deles. – Vamos – ele não se importava se Caronte iria aprovar ou não, ele não estava seguindo o maldito roteiro mesmo. Ele podia muito bem arriscar ferrar com tudo. – Mostre-me onde você mora. Faça uma mala ou algo assim. Você vai vir comigo.
– Ah, sim. Para a Morada da Noite de Tulsa, certo?
– Na verdade, não. Primeiro, vou levar você até uma Grande Sacerdotisa Vermelha. Talvez ela possa descobrir o que eu fiz de errado.
– Ei, ela não vai tentar me consertar tornando-me cega de novo, vai?
– Shaylin, por mais que eu odeie admitir, acho que não é você quem precisa ser consertada. Sou eu.
1 Los Angeles, onde fica Hollywood (N.T.).
2 Na mitologia grega, Caronte era o barqueiro de Hades, que transportava as almas dos mortos pelos rios que separavam o mundo dos vivos do mundo dos mortos. (N.T.)
3 Clark Kent é o nome do Superman (N.T.).

7

Zoey
– Zoey, você me ouviu?
Percebi que enquanto eu estava escovando Persephone freneticamente, Lenobia tinha entrado na baia e falado comigo. Bem, quero dizer, eu reparei que ela havia dito alguma coisa em voz alta para mim. Mas eu não ouvi o que ela disse de fato. Suspirei e me virei para encarar a Mestra dos Cavalos, encostando-me no dorso quente e robusto da égua, tentando extrair calma e energia da sua presença familiar.
– Não, desculpe. Eu não estava prestando atenção. Estou muito distraída. O que você disse?
– Eu perguntei o que você sabe sobre esse garoto Aurox.
– Nada, exceto que eu posso jurar a você que ele não é só um garoto – respondi.
– Sim, já estão espalhando no campus que ele é um transmorfo.
Senti meus olhos se arregalarem de verdade.
– Sério? Essas coisas existem? Como Sam e sua mãe grosseirona e louca e seu irmão?
– Sam?
– True Blood – eu expliquei. – Eles são transmorfos. Eles podem se transformar em qualquer coisa que eles veem. Eu acho. Mas imagino que eles não podem se transformar em objetos inanimados. Caramba, eu preciso ler esses livros para entender a coisa direito. Enfim, de novo, essas coisas existem?
– Ah, eu não vejo TV. Nunca adquiri esse hábito. Também vou ter que ler os livros de True Blood.
– Na verdade, os livros se chamam As Crônicas de Sookie Stackhouse e foram escritos por uma autora humana legal chamada Charlaine Harris – percebi o olhar de Lenobia e acrescentei rapidamente: – Desculpe, desculpe, não é sobre isso que você quer falar. Qual é a questão?
– Minha questão volta para a sua pergunta anterior, existe um monte de coisas por aí, tanto neste mundo como no Mundo do Além.
Eu engoli em seco.
– Sei disso. Principalmente a parte do Mundo do Além.
– Isso posto, muitas culturas têm evidências de transmorfos nas suas lendas e na sua mitologia. Isso é um indício de que pelo menos algumas dessas histórias devem ser baseadas em fatos reais.
– Não consigo imaginar se isso é bom ou mau – eu disse.
– Acho que o melhor que podemos esperar é que eles sejam como nós, bons ou maus dependendo de cada indivíduo. O que me leva à minha próxima pergunta. Junto com os boatos sobre Aurox e sua capacidade de pelo menos parecer ser capaz de mudar de forma, estão dizendo que você teve uma reação muito forte a ele. É verdade?
Senti minhas bochechas esquentando.
– Infelizmente, sim. Fiz papel de idiota na frente da maioria da escola. De novo.
– Por quê? Se você sabe melhor do que ninguém como Neferet pode ser perigosamente manipuladora, por que você iria confrontá-la publicamente dessa forma?
– Porque eu sou uma retardada – respondi desolada.
– Não – ela sorriu gentilmente. – Você definitivamente não é uma retardada, e é por isso que eu quis falar com você sobre isso. Sozinha. Acho que você deve disfarçar sua reação a Aurox, talvez mesmo para os seus amigos mais próximos. Guarde o que você está sentindo para você mesma. Faça cara de pôquer.
– Cara de pôquer? Desculpe, eu só sei jogar Candyland1.
– Fazer cara de pôquer significa controlar a sua reação sobre o que você está vendo e como você se sente sobre isso, mantendo segredo, de modo que ninguém que a esteja observando perceba nada.
– Por quê? – agora ela realmente tinha conseguido a minha atenção. Não era típico de Lenobia (ou de qualquer vampiro sensato) pedir a um novato para guardar segredos.
Os olhos dela encontraram os meus e eu fiquei novamente espantada com a cor cinza incomum deles. Era como se ela represasse nuvens de tempestade dentro deles.
– Eu aprendi muito jovem que o mal às vezes gosta de se gabar, mesmo quando seria melhor uma atitude mais discreta. Pela minha experiência, a verdadeira batalha das Trevas não é contra a Luz e a força do amor, da verdade e da lealdade. Acho que a maior ameaça ao mal vem do seu próprio orgulho, arrogância e ganância. Nunca vi um brigão que não tripudia ou um ladrão que não se vangloria. É por isso que eles acabam pegos. As Trevas poderiam realizar muito melhor o seu trabalho destrutivo se fossem, digamos, mais circunspectas.
– Mas é da natureza das Trevas se gabar e tripudiar, então as Trevas percebem quando alguém chama atenção para suas ações e tal – eu disse, finalmente entendendo o que ela queria dizer. – O que significa que, quando alguém que está lutando pelo bem fica quieto, observa e espera pelo momento certo para agir, o mal é pego desprevenido.
– E é pego despreparado para a força que vem da honestidade, da serenidade e da determinação serena – Lenobia completou.
Respirei fundo, olhei em volta para ter certeza de que ninguém estava espreitando fora da baia de Persephone e então falei em voz baixa para Lenobia:
– No instante em que eu vi Aurox, minha pedra da vidência esquentou. Nas duas únicas vezes em que isso aconteceu antes, a magia antiga estava presente – eu hesitei e então admiti: – Na noite passada, eu olhei através da pedra da vidência e vi uma coisa estranha em volta de Stark. Isso me assustou.
– O que Stark disse sobre isso?
– Eu, ahn, não contei para ele.
– Não? Por quê?
– Bem, primeiro porque na hora ele me distraiu – continuei apressada, sabendo que eu estava ficando vermelha. – E desde então eu não sei por que não disse nada – pensei então na quase briga que havíamos tido a caminho da escola. – Não, espere, eu sei por quê. Desde toda aquela história do Mundo do Além, as coisas entre mim e Stark não são as mesmas. Em parte isso é bom, estamos realmente mais próximos. Mas em parte é estranho também.
Lenobia concordou com a cabeça.
– É compreensível. Uma experiência dessa magnitude pela qual vocês dois passaram deve mesmo mudar a dinâmica de um relacionamento. E ver de relance alguma magia antiga ligada a Stark pode ser simplesmente um resquício do período em que ele ficou no Mundo do Além – ela sorriu. – Imagino que, se você pudesse olhar através da pedra da vidência para si mesma, poderia ver...
– Ah, de jeito nenhum! Não quero ver nada pairando em volta de mim!
O sorriso de Lenobia se esvaeceu.
– Você pareceu amedrontada.
– Estou apavorada, sem dúvida. Acho que já estou farta de magia antiga, do Mundo do Além e de todas essas coisas por um bom tempo.
– Ah, entendo. Se Aurox carrega traços de magia antiga, é por isso que a presença dele te afeta tanto.
– Ele definitivamente me fez sentir esquisita, mesmo antes de eu vê-lo se transformar em um touro.
– Esquisita? Como se você estivesse com medo também?
– É, mas eu também tive uma sensação estranha de surpresa, como se a minha intuição estivesse vendo algo que a minha mente não conseguiu captar. E então eu fiquei super ansiosa. Tem alguma coisa errada com aquele cara, Lenobia, e é uma coisa muito, muito antiga.
– Mas você sabe que ele parece um adolescente bonito para o resto do mundo?
– Sim, eu acho – então eu bufei. – Gostaria de levá-lo até Skye e descobrir o que aquela parte do resto do mundo vê quando olha para ele.
– Sua pedra da vidência veio de Skye?
– Sim, a rainha deu a pedra para mim. Ela disse que, se houver magia antiga por perto quando eu olhar através dela, posso vê-la – pensei em Stark, em vultos e em coisas arrepiantes. – Lidar com o que eu posso ver com meus próprios olhos é mais que o bastante para mim. Não quero mais olhar através da pedra da vidência de novo – balancei a cabeça, envergonhada da minha fraqueza. – Desculpe. Sou tão criançona. Eu não deveria estar com tanto medo. Eu deveria ter olhado para Aurox através dessa pedra idiota.
– E o que teria acontecido se você tivesse visto algo terrível? Todo mundo que olha através da pedra pode ver a magia antiga?
– Não – enxuguei lágrimas nas minhas bochechas. – É um dom que só algumas Grandes Sacerdotisas têm.
– Então, se você visse algo das Trevas através da pedra, contasse para todo mundo e dependesse da pedra para mostrar a todos o que você estava vendo, você não teria nenhuma prova real?
– Sim, é isso aí. Eu estaria e estou ferrada.
– Não, você foi e é sábia de ouvir seus instintos. Algo está muito errado com esse fantoche de Neferet. Você percebeu isso no mesmo instante em que o viu, e por causa disso você não podia ficar lá parada, de boca fechada, fingindo ser uma garota insípida.
Tomei nota mentalmente para me lembrar de procurar “insípida” no dicionário ou pedir para Damien uma definição rápida da palavra.
Lenobia não havia acabado. Ela continuou a falar seriamente:
– Quero que você passe algum tempo pensando em Aurox. Preste atenção em como se sente e exatamente o que você percebe na próxima vez que você o vir; mas repare nessas coisas em silêncio. Mantenha sua cara de pôquer. Não deixe ninguém saber o que está se passando por baixo dessa linda fachada de adolescente.
– Você não acha que eu devo olhar para ele através da minha pedra da vidência?
– Não até que você deixe de ter tanto medo do que pode ver. Quando seus instintos disserem que é a hora certa, então, e só então, você deve olhar.
– E sobre Stark? – segurei o fôlego.
– Stark está comprometido com você e com a nossa Deusa. Acho que é uma coisa boa a magia antiga estar ligada a ele. Pare de se preocupar com o seu guerreiro, ele pode sentir e isso não vai fazer bem para ele.
– Sim, ok, isso faz sentido. Então, o fato de eu estar super aliviada por não precisar olhar através da pedra da vidência não faz de mim uma criançona ou uma covarde?
Ela sorriu.
– Não, nem uma retardada. Você é uma Grande Sacerdotisa Novata, a primeira da história, e você está simplesmente tentando encontrar seu caminho em um mundo muito confuso.
– Você é realmente sábia – eu afirmei.
Lenobia riu.
– Não, eu só sou muito velha.
Então eu ri junto, pois, apesar de eu saber que ela tinha uns cem anos, Lenobia parecia ter uns trinta.
– Bem, você parece ter uns vinte e poucos anos – eu menti –, o que faz que você seja apenas velha, não muito velha.
– Vinte e poucos anos! Com essa sua habilidade de dissimular, você vai se sair bem guardando seus pensamentos sobre Aurox para si mesma – Lenobia disse. Então eu juro que ela deu uma risadinha típica de adolescente, o que realmente a fez parecer super jovem. – Vinte e poucos! Eu não tenho essa idade há mais de dois séculos!
– Qual é o seu segredo? Botox e injeções labiais? – eu perguntei, dando risadinhas com ela.
– Sangue B negativo e protetor solar – ela respondeu.
– Ei, vocês, desculpem interromper – a cabeça loira e cacheada de Stevie Rae apareceu na nossa visão quando ela espiou dentro da baia.
– Você não está interrompendo, Stevie Rae – Lenobia disse ainda sorrindo. – Venha, junte-se a nós. Estamos apenas falando sobre como envelhecer bem.
– Minha mãe sempre disse que oito horas de sono por dia, beber muita água e não ter nenhum filho é uma receita anti-idade melhor do que qualquer uma que um médico ou a L’Oreal possam inventar – ela abriu o sorriso para Lenobia e então deu um olhar preocupado para Persephone. – E obrigada por me convidar para entrar, mas vou ficar aqui fora. Não gosto muito de cavalos. Sem ofensas; eles são muito grandes.
– Sem problemas – Lenobia respondeu. – Os guerreiros precisam de algo?
– Não. A arena é ótima para as aulas. Eles estão tendo um monte de diversão masculina, o que significa que eles estão se batendo com espadas de madeira e disparando flechas nas coisas enquanto gritam bastante – nós três reviramos os olhos. – Mas o seu cowboy está aqui, então eu vim buscar você.
– Meu cowboy? – Lenobia pareceu totalmente confusa. – Eu não tenho um cowboy.
– Bem, ele só pode ser seu, pois ele acabou de aparecer lá na entrada do curral com um trailer de cavalos gigante dizendo que ele estava se apresentando para o trabalho e perguntando onde ele podia descarregar suas coisas – Stevie Rae explicou.
Lenobia soltou um longo suspiro. Obviamente irritada, ela disse:
– Neferet. Isso é obra dela. Ele é o primeiro dos humanos locais que ela contratou.
– Eu não entendi o que Neferet está armando – Stevie Rae falou. – Sei muito bem que ela odeia humanos e não liga a mínima se o povo local gosta ou não do fato de a gente estar aqui.
– Neferet está querendo causar problemas – afirmei.
– E ela começou comigo porque sabe que estou do lado de vocês – Lenobia concluiu.
– Caos – quando eu disse a palavra, senti como era verdadeira. – Neferet quer causar o caos nas nossas vidas.
– Então vamos dar boas-vindas ao cowboy, fazer que ele se sinta em casa e mostrar como trabalhar nos meus estábulos pode ser não-caótico e totalmente maçante. Se nós fizermos isso, talvez, e apenas talvez, ele resolva se mudar para pastagens mais excitantes e Neferet volte a sua atenção para outro lugar.
Como se estivesse em uma missão, Lenobia marchou para fora da baia de Persephone. Stevie Rae e eu trocamos olhares.
– Não vou perder isso de jeito nenhum – fiz uma carícia de despedida no dorso quente de Persephone e atirei a escova de cavalo dentro da cesta cheia de tachas.
Stevie Rae entrelaçou seu braço ao meu enquanto seguíamos Lenobia.
– O que eu não contei a Lenobia é como o cowboy dela é incrivelmente fofo – ela sussurrou para mim.
– Sério?
– Espere e verá.
Agora eu estava super curiosa e apertei o passo, quase correndo pela areia da arena e apenas acenando rapidamente para Stark, que estava entregando um arco para Rephaim. Stevie Rae tentou jogar um beijo para ele, mas eu a mantive em movimento, então basicamente tudo o que ela fez foi dar uma risadinha e acenar. Tentei ignorar o olhar zangado de Stark e me concentrar em não deixar transparecer nenhum dos sentimentos curiosos, excitados e totalmente confusos que eu estava tendo.
Eu não sabia muito bem por que, mas não queria de modo algum que Stark ficasse me perguntando coisas sobre Aurox.
– Ali, lá está ele. O não-vampiro alto, com um chapéu de cowboy, perto da porta – Stevie Rae apontou para as amplas portas laterais da arena. Elas estavam levantadas. Logo do lado de fora, havia um grande trailer de cavalos e uma daquelas caminhonetes enormes que os caras de Oklahoma tanto gostam de comprar, de dirigir e de praticamente morar dentro. Em pé na frente do trailer, havia um homem super alto. E Stevie Rae estava totalmente certa. Ele era mesmo muito bonito, mesmo para um cara mais velho.
– Ele parece alguém que poderia estar no Western Channel2 – eu afirmei. – Fazendo o papel de um daqueles cowboys heróis dos velhos tempos.
– Sam Elliott, é com ele que o cowboy se parece.
– Quem? – olhei para ela com cara de interrogação.
Ela suspirou.
– Ele está em um monte de filmes de cowboy. Você sabe, como Tombstone – A Justiça Está Chegando.
– Você assiste a filmes de cowboy?
– Eu assistia, com minha mãe e meu pai, principalmente aos sábados à noite, antes de ir para a cama. E daí?
– E daí nada.
– Não conte para Aphrodite – ela disse.
– Não conte o que para Aphrodite? – Aphrodite perguntou.
Stevie Rae e eu demos um salto quando ela pareceu se materializar do ar atrás de nós.
– É feio assustar os outros e ficar espreitando por aí – eu a repreendi.
– Eu não faço isso. Sou apenas naturalmente graciosa. É porque eu tenho ossos delicados – ela respondeu. Então ela virou seu olhar azul gelado para Stevie Rae. – De novo, não conte o que para Aphrodite?
– Que o cowboy de Lenobia é super gostoso – Stevie Rae tentou despistar.
Aphrodite olhou para Stevie Rae de um jeito que dizia que ela mentia muito mal, o que era verdade, mas o seu olhar foi logo capturado pela silhueta de ombros largos do homem.
– Aaaaaah! Aquele é o...
– Empregado de Lenobia – eu completei para ela, apesar de Aphrodite não estar prestando a menor atenção em mim. – Ele deve trabalhar para Lenobia.
– Ele é gostoso – Aphrodite disse. – Não tanto quanto Darius, mas ainda assim GOSTOSO.
– Eu falei para vocês. E ele é tão alto que faz Lenobia parecer ainda menor do que é.
Enquanto Stevie Rae, Aphrodite e eu andávamos por ali como quem não quer nada até atingir uma distância em que podíamos ouvir, e tentávamos, sem sucesso, não parecer tão obviamente embasbacadas, o cowboy tocou seu chapéu em cumprimento a Lenobia e, com um sotaque anasalado típico de Oklahoma, disse:
– Olá, madame. Sou o novo treinador do estábulo. Agradeço se pudesse me indicar o homem responsável por aqui.
Não pude ver o rosto de Lenobia, mas a observei endireitando as costas.
– Xiiii... – Stevie Rae sussurrou.
– E lá se vai toda aquela coisa de boas-vindas calorosas – eu disse com um tom de voz suficiente apenas para Aphrodite e Stevie Rae ouvirem.
– O John Wayne3 simplesmente acabou de ferrar com tudo – Aphrodite comentou.
– Sou Lenobia – sua voz chegou facilmente até nós. Não achei que ela soou irritada, mas sim como uma tempestade de gelo. – Eu sou a mulher responsável por estes estábulos e a sua nova chefe – houve uma espécie de silêncio desconfortável quando Lenobia não ofereceu a mão para ele apertar.
– Brrrr – Aphrodite sussurrou. – Ela acabou de me lembrar minha mãe, e para o John Wayne isso não é nada bom.
– Sam Elliott – Stevie Rae sussurrou de volta.
Aphrodite franziu a testa para a minha melhor amiga. Eu contive um suspiro desanimado.
– Ele não se parece nem um pouco com John Wayne – ela continuou, sussurrando alto. – Mas ele é idêntico a Sam Elliott.
– Você assistiu a muita TV aberta quando era criança, provavelmente depois de jantar com sua família aos sábados à noite. Patético – Aphrodite balançou a cabeça em sinal de repúdio para Stevie Rae. Eu fiquei pensando o quanto era bizarro o fato de que Aphrodite tivesse acertado coisas sobre a família de Stevie Rae, quando nós três voltamos nossa atenção para o Show do Cowboy.
O homem tocou novamente seu chapéu para cumprimentar Lenobia, sorriu e desta vez pude ver, mesmo da distância em que estávamos, que os olhos dele brilharam.
– Bem, madame, parece que me deram informações erradas. Fico feliz que foi tudo esclarecido rapidamente. Meu nome é Travis Foster. Prazer em conhecê-la, senhora chefe.
– E você não se importou de descobrir que sua chefe é uma senhora?
– Não, madame. Minha mãe era uma senhora e eu nunca trabalhei tão duro e tão feliz quanto na época em que trabalhei para ela.
– Senhor Foster, eu faço o senhor se lembrar da sua mãe?
Achei que a voz de Lenobia seria capaz de congelar a água, mas Travis pareceu não perceber. Na verdade, parecia que ele estava se divertindo. Ele levantou seu chapéu um pouco para trás e abaixou seus olhos para Lenobia, como se a pergunta dela tivesse sido séria em vez de sarcástica.
– Não, madame, pelo menos ainda não – Lenobia não disse mais nada, e eu estava sentindo aquela sensação de embaraço que conversas estranhas com adultos podem trazer quando Travis meio que deu de ombros, enganchou um dedo no passador do cinto da sua calça Wrangler e falou: – Então, Lenobia, pode me mostrar onde minha égua e eu vamos nos abancar?
– Égua? Abancar? – Lenobia perguntou.
– Que merda, eu devia ter trazido pipoca – Aphrodite comentou.
– Ela vai fritá-lo com seu olhar de raio laser – acrescentei.
– Lenobia tem olhar de raio laser? – Stevie Rae se voltou para mim.
Aphrodite e eu olhamos para Stevie Rae como se ela tivesse acabado de perguntar se nós achávamos que Lindsay Lohan4 estava realmente reabilitada.
– Que tal se eu só olhar e não falar nada? – Stevie Rae sugeriu.
– Obrigada – Aphrodite e eu dissemos juntas, o que fez que ela me fuzilasse com os olhos, antes de nós três voltarmos a olhar estupidamente para a cena, tentando escutar.
– Bem, madame – Travis falou de modo arrastado. – Eu disse para a Grande Sacerdotisa de vocês quando ela me contratou que a minha égua e eu éramos um pacote fechado e que eu iria precisar de um lugar para ela no estábulo aqui. Como eu acabei de concluir uma temporada treinando cavalos nos estábulos de Durant Springs, vou precisar de um lugar para me acomodar também – o homem fez uma pausa e, como Lenobia não falou nada, ele acrescentou: – Durant Springs fica no Colorado, madame.
– Eu sei onde fica – Lenobia respondeu ríspida. – O que faz você pensar que pode ficar aqui no campus? Não temos acomodações para humanos.
– Sim, madame, foi o que a Grande Sacerdotisa disse. Como a vaga tinha que ser preenchida logo, eu disse a ela que ficaria bem acomodado junto com Bonnie até eu encontrar um lugar aqui por perto.
– Bonnie?
Travis arrumou seu chapéu, dando o primeiro sinal de que ele poderia estar pouco à vontade.
– Sim, madame, o nome da minha égua é Bonnie – como se fosse a sua deixa, um som surdo e forte veio de dentro do trailer de cavalos. Ele andou em direção à porta enquanto continuava a explicar para Lenobia: – Ficaria grato se eu tivesse a sua permissão para descarregá-la. Do Colorado até aqui, é um caminho longo para uma garota grande como ela.
– Vocês acham que o cavalo dele é gordo? – Stevie Rae perguntou em voz baixa.
– Caipira, achei que você não ia falar mais nada – Aphrodite disse.
– Acho que ele acabou de arrombar a porteira – eu falei. Lenobia não ia deixar de jeito nenhum um cavalo cansado ser rebocado para a Deusa sabe lá aonde.
– Descarregue sua égua. Você e eu vamos discutir sobre onde você vai ficar depois que ela estiver confortável – Lenobia afirmou.
Percebi que Travis já tinha soltado as alavancas e correntes que mantinham a porta do trailer fechada, então só tivemos que esperar uns segundos até a rampa abrir.
– Venha, garotona. Para tráááás – Travis disse em uma voz que tinha deixado de ser educada e às vezes ligeiramente divertida e se tornado afetuosa, gentil e doce.
Então o cavalo dele saiu de ré do trailer e ofegos de choque e espanto vieram de toda a nossa volta. Desviei os olhos do cavalo a tempo de ver que Stevie Rae e eu não éramos as únicas embasbacadas por ali. Darius, Stark, Rephaim e a maioria dos novatos tinha de algum modo dado um jeito de se aproximar da gente.
– Aquilo não pode ser um cavalo – Stevie Rae disse e deu um passo para trás, apesar de a gente estar a vários metros do animal.
– Caraca. É um dinossauro – Aphrodite falou.
– Tenho certeza de que é um cavalo – eu afirmei, observando a égua. – Mas é realmente um animal muito, muito grande.
– Ah, uma Percherão! Ela é rara! – Lenobia disse.
Todo mundo ficou olhando quando a pequena Lenobia foi em direção à égua enorme sem nenhuma hesitação. Ainda menor em comparação com a equina gigantesca, a Mestra dos Cavalos levantou levemente sua mão. A égua a observou por um instante e então abaixou seu focinho, bufando contra a palma da mão de Lenobia. Rindo como uma garota, ela acariciou o imenso focinho da égua e falou carinhosamente:
– Ah, você é mesmo uma menina muito boazinha e querida... – ela desviou os olhos do cavalo e se virou para o cowboy. O gelo na sua voz tinha derretido completamente e achei que ela estava quase efusiva. – Não vejo um Percherão desde que vim da França quando eu era criança, e isso faz mais tempo do que gosto de admitir. Havia um casal dessas belezonas no navio comigo. Lembro deles com carinho e desde então os cavalos de carga despertam minha curiosidade. Ela tem uma cor cinza mesclada adorável. Imagino que vai clarear conforme envelhecer. Posso dizer que ela acabou de completar cinco anos há um mês... – Lenobia fez uma pausa, inclinou a cabeça e olhou dentro dos olhos do cavalo antes de continuar. – Não, ela fez cinco anos há dois meses. Ela pertence a você desde que nasceu, não é?
Eu vi Travis piscar surpreso. Ele abriu a boca, fechou-a e depois a abriu de novo. Então limpou a garganta.
– Bem, sim, madame – ele fez uma pausa e começou a acariciar o pescoço incrivelmente grosso de Bonnie, como se precisasse se ancorar em algo para recobrar a razão.
Eu sabia por que ele estava tão confuso de repente. Todo mundo que já tivesse observado Lenobia perto de cavalos saberia por quê. Quando Lenobia entra em comunhão com cavalos, ela deixa de ser simplesmente muito bonita e passa a ser deslumbrante. E ela estava em forte comunhão com essa grande égua. A alta voltagem da sua adoração por cavalos deixou o cowboy excitado. Não que ele fosse o objeto pretendido do enorme poder de atração dela, ele estava apenas pegando a rebarba. Mas era uma rebarba e tanto.
Travis limpou a garganta novamente, mexeu seu chapéu e disse:
– A mãe dela morreu assim que Bonnie nasceu, de um jeito bizarro: atingida por um raio no meio de um pasto. Eu a criei dando mamadeira na boca dela.
Lenobia voltou seus olhos cinza para o cowboy. Ela pareceu surpresa, como se tivesse esquecido que ele estava ali. A sua adoração por cavalos desapareceu num lampejo, como se ela houvesse desligado um interruptor.
– Você fez um bom trabalho. Ela é grande, com certeza tem mais de um metro e oitenta. Boa musculatura. Está em excelente condição – apesar de ela ter continuado o que estava dizendo antes, o seu tom soou mais irritado do que agradável. Foi só quando ela olhou e sorriu para a égua que a sua expressão se alterou novamente para a adoração e o prazer verdadeiro. – Você é uma garota esperta, não é? – Lenobia disse para Bonnie, que estava parada em pé, nada irrequieta, apenas com suas orelhas agitadas, olhando admirada para todos nós enquanto olhávamos para ela. – E você é segura o bastante para se comportar bem mesmo em um ambiente novo – Lenobia desviou o olhar da égua para o cowboy e sua expressão se congelou em uma cordialidade fria. Ela então balançou a cabeça em um sinal rápido e decisivo de concordância. – Bem, então é isto. Você e Bonnie podem me seguir. Vou mostrar o estábulo onde vocês dois vão se acomodar.
Lenobia se virou e começou a andar rapidamente de volta pela arena. Quando ela atingiu o meio do caminho, parou e se dirigiu a todos nós:
– Novatos e vampiros, este é Travis Foster. Ele vai trabalhar para mim. O nome da sua égua é Bonnie. Deem a ela o respeito que ela merece como um exemplo perfeito da majestosa raça Percherão. Guerreiros, por favor, prestem atenção no seu tamanho e no seu porte. Os ancestrais dela eram cavalos de guerra no passado.
Eu olhei para o cowboy e o vi sorrir e concordar com o comentário de Lenobia, enquanto acariciava carinhosamente a grande égua, antes de disparar um olhar igualmente carinhoso na direção da Mestra dos Cavalos. Lenobia nem olhou para ele. Em vez disso, franziu a testa e fuzilou todos nós com os olhos.
– E agora vocês podem parar de bisbilhotar. Voltem ao trabalho – Lenobia marchou pela arena até o estábulo sem sequer dar uma olhadinha para Bonnie e Travis, que a seguiram como se eles fossem mariposas e ela, uma luz super brilhante.
– Isso traz possibilidades interessantes – Aphrodite comentou.
– Não brinca, aquela égua parece simplesmente demais. Quero dizer, grande, mas mesmo assim muito legal – eu disse.
Aphrodite revirou os olhos.
– Não estou falando sobre o cavalo, Z.
Eu estava franzindo a testa para Aphrodite quando Damien chegou correndo.
– Zoey, que bom, você está aqui. Você precisa voltar para o prédio principal.
– Você quer dizer depois da sexta aula? Já está quase acabando – respondi.
– Não, meu bem, agora. Sua avó está aqui, e tenho certeza de que ela andou chorando.
1 Candyland é um jogo de tabuleiro simples, muito popular nos Estados Unidos, que pode ser jogado por crianças pequenas. (N.T.)
2 Western Channel é um canal de TV norte-americano especializado em filmes de faroeste. (N.T.)
3 John Wayne foi um famoso ator norte-americano, conhecido por seus papéis de cowboy no Velho Oeste e por seus filmes pró-guerra. Morreu em 1979. (N.T.)
4 Lindsay Lohan é uma jovem atriz norte-americana que já teve muitos problemas com álcool e drogas. (N.T.)

8

Zoey
Meu estômago se contraiu e eu me senti como se fosse vomitar.
– Estou indo – eu disse a Damien. – Mas eu adoraria que você fosse comigo – quando ele assentiu sombriamente, olhei para Stevie Rae e Aphrodite. – Vocês duas também, tá?
– É claro que nós vamos com você – Stevie Rae respondeu.
Desta vez Aphrodite não reclamou por Stevie Rae ter respondido por ela. Simplesmente concordou e falou:
– Estou dentro.
Estava me virando para procurar Stark quando de repente ele apareceu do meu lado. Sua mão desceu pelo meu braço até que nossos dedos se encontraram e se entrelassaram.
– É sobre a sua mãe?
Não confiei na minha voz, então apenas concordei com a cabeça.
– Sua mãe? Pensei que Damien tivesse dito que a sua avó estava aqui – Stevie Rae estranhou.
– Sim, ele disse isso – Aphrodite falou antes de Damien. Ela estava me observando com um olhar que a fez parecer mais velha (e mais agradável) do que era. – É sobre a sua mãe?
Stark olhou para mim e eu concordei de novo com a cabeça. Então ele explicou:
– A mãe de Zoey está morta.
– Oh, não! – Damien exclamou, com lágrimas instantaneamente nos seus olhos.
– Não, ok? – eu disse rápido. – Não vamos fazer isso aqui. Não quero todo mundo me observando.
Damien apertou os lábios, piscou forte e assentiu.
– Vamos lá, Z. Vamos todos ver a sua vovó – Stevie Rae veio para o meu outro lado e me deu o seu braço. Aphrodite segurou a mão de Damien e eles nos seguiram pela arena.
Durante todo o caminho, tentei me preparar para o que vovó ia me contar. Acho que eu estava tentando me preparar para isso desde que acordei do meu sonho em que visitei o Mundo do Além e testemunhei Nyx dando as boas-vindas para o espírito de minha mãe. Mas, na verdade, e eu somente percebi isso quando entrei no prédio principal da escola e me aproximei do saguão da frente, é que eu nunca estaria preparada para receber essas notícias.
Um pouco antes de atravessarmos a última porta, Stark apertou minha mão.
– Eu estou aqui. Te amo.
– Eu também te amo, Z. – Stevie Rae afirmou.
– Eu também – Damien falou e deu um pequeno soluço.
– Você pode pegar emprestado o meu brinco de diamantes de dois quilates – Aphrodite disse.
Eu parei e me virei para ela.
– Hã?
Ela deu de ombros.
– Isso é o mais próximo de uma declaração de amor que você vai ouvir de mim.
Ouvi Stevie Rae soltar um suspiro enorme e vi a testa de Damien ficar úmida quando ele se virou para ela sem acreditar.
Mas eu simplesmente respondi:
– Obrigada. Vou aceitar.
Isso fez Aphrodite franzir as sobrancelhas e resmungar:
– Deusa, eu odeio ser gentil.
Eu me soltei de Stark e Stevie Rae e abri a porta dupla. Vovó estava sozinha no salão, sentada em uma espaçosa poltrona de couro. Damien estava certo; vovó andara chorando. Ela parecia velha e muito, muito triste. Assim que ela me viu, ficou em pé. Nós nos encontramos no meio do salão e nos abraçamos. Quando ela finalmente parou de me abraçar, deu um passo para trás apenas o suficiente para olhar no meu rosto. Ela manteve suas mãos nos meus ombros. As mãos dela eram quentes, sólidas e familiares, e de algum modo aquele toque fez que o nó no meu estômago fosse suportável.
– Mamãe está morta – eu tive que dizer isso antes que ela o fizesse.
Vovó não pareceu surpresa por eu já saber. Ela simplesmente concordou e falou:
– Sim, u-we-tsi-a-ge-ya. Sua mãe está morta. O espírito dela veio até você?
– De certo modo. Na noite passada, enquanto eu estava dormindo, Nyx me mostrou mamãe entrando no Mundo do Além.
Pelas suas mãos, senti o tremor que atravessou o corpo de vovó. Ela fechou os olhos e cambaleou. Por um segundo, tive medo de que ela fosse desmaiar, então cobri suas mãos com as minhas.
– Espírito, venha para mim! Ajude vovó!
O elemento com o qual eu tinha a conexão mais forte respondeu imediatamente. Eu o senti girar como um redemoinho através de mim e entrar na vovó, que arfou e parou de cambalear, mas não abriu os olhos.
– Ar, venha para mim. Por favor, envolva a vovó Redbird e deixe-a respirar fundo – Damien deu um passo para o meu lado e tocou o braço de vovó suavemente, enquanto uma brisa impossível rodopiou em volta de nós.
– Fogo, venha para mim. Por favor, aqueça a avó de Zoey para que, mesmo que ela esteja triste, não sinta com frio.
Pisquei surpresa quando Shaunee se juntou a Damien.
Ela também tocou o braço de vovó por um segundo, então sorriu com os olhos molhados e falou:
– Kramisha disse que você precisava de nós.
– Água, venha para mim. Banhe a avó de Z. e, por favor, leve embora um pouco da tristeza dela com você – Erin tomou seu lugar ao lado de Shaunee, tocando as costas de vovó. Então, exatamente como sua gêmea, ela sorriu através de lágrimas para mim. – É, e a gente nem teve que ler o poema dela. Ela só disse para a gente vir para cá.
Os olhos de vovó ainda estavam fechados, mas eu vi seus lábios se curvarem levemente para cima.
– Mas o meu poema era bom – a voz de Kramisha veio de algum lugar atrás de mim.
Depois da bufada de Aphrodite, ouvi Stevie Rae dizer:
– Terra, por favor, venha para mim – ela veio para o meu outro lado e colocou o braço em volta de vovó. – Deixe a vovó de Z. pegar um pouco do seu poder emprestado para que ela possa ficar bem de novo logo.
Vovó inspirou profundamente três vezes. Quando ela soltou a respiração pela última vez, abriu os olhos e, apesar de ainda haver tristeza neles, seu rosto não estava mais com a aparência assustadora e desolada de uma pessoa velha que ela tinha na hora em que eu a vira.
– Explique a eles o que eu vou fazer, u-we-tsi-a-ge-ya.
Eu não estava certa sobre o que vovó estava aprontando, mas concordei. Eu sabia que ela ia me fazer entender, e eu estava certa. Ela foi até cada um dos meus quatro amigos. Começando por Damien, ela tocou seu rosto e disse:
– Wa-do, Inole. Você me fortaleceu.
Enquanto ela ia até Shaunee, eu expliquei para meus amigos:
– Vovó está agradecendo vocês nomeando-os com a palavra Cherokee para cada um dos seus elementos.
– Wa-do, Egela. Você me fortaleceu – vovó tocou as bochechas de Shaunee e se voltou para Erin. – Wa-do, Ama. Você me fortaleceu – por último, ela tocou o rosto de Stevie Rae, ainda molhado de lágrimas. – Wa-do, Elohine. Você me fortaleceu.
– Obrigado, vovó Redbird – cada um dos quatro murmurou.
– Gv-li-e-li-ga – vovó disse, repetindo em inglês: – Obrigada – então ela olhou para mim. – Agora eu consigo suportar contar para você – ela parou na minha frente e pegou minhas duas mãos. – Sua mãe foi assassinada na minha plantação de lavanda.
– O quê? – senti um choque me atravessar. – Eu não entendo. Como? Por quê?
– O xerife disse que foi um roubo e que ela estava no caminho dos bandidos. Ele acha que, como levaram meu computador, minha televisão e minhas câmeras, e por causa da violência gratuita do crime, provavelmente foram viciados que roubaram para comprar drogas – vovó apertou minhas mãos. – Ela tinha deixado o marido, Zoey Passarinha, e vindo me procurar. Eu estava no powwow1. Eu não estava lá para acolhê-la – a voz de vovó ficou estável, mas lágrimas se empoçaram nos seus olhos e então começaram a cair.
– Não, vovó, não se culpe. Não foi culpa sua e, se você estivesse lá, eu teria perdido vocês duas e não conseguiria suportar isso!
– Eu sei, u-we-tsi-a-ge-ya, mas a morte de uma filha, mesmo uma que havia se perdido da mãe, é um fardo muito pesado.
– Foi muito... ela... mamãe sofreu? – minha voz era pouco mais que um sussurro.
– Não. Ela morreu rápido – vovó respondeu sem hesitar, mas eu pensei ter visto algo passar pelos seus olhos.
– Você a encontrou?
Vovó concordou, com lágrimas descendo cada vez mais rápido pelo seu rosto.
– Sim. Ela estava no campo bem ao lado de casa. Linda estava deitada ali e parecia tão em paz que no começo achei que ela estava dormindo – a voz de vovó foi interrompida por um soluço. – Mas ela não estava.
Segurei firme nas mãos de vovó e disse as palavras que eu sabia que ela precisava ouvir:
– Ela está feliz, vovó. Eu a vi. Nyx tirou a tristeza dela. Ela está esperando por nós no Mundo do Além e ela tem a benção da Deusa.
– Wa-do, u-we-tsi-a-ge-ya. Você me fortaleceu – vovó sussurrou para mim enquanto me abraçava de novo.
– Vovó – eu falei contra a sua bochecha. – Por favor, fique comigo, pelo menos por um tempinho.
– Não posso, u-we-tsi-a-ge-ya – ela deu um passo para trás, mas continuou segurando minha mão. – Você sabe que vou seguir as tradições de nosso povo e vou prantear por sete dias inteiros, e este não é o lugar certo para fazer isso.
– A gente não está ficando aqui, vovó – Stevie Rae disse, enxugando o rosto com a manga. – Zoey e todo o nosso grupo nos mudamos para os túneis embaixo da estação de Tulsa. Eu sou a Grande Sacerdotisa oficial de lá e adoraria se você viesse ficar com a gente, por sete dias, sete meses ou pelo tempo que quiser.
Vovó sorriu para Stevie Rae.
– É uma oferta generosa, Elohine, mas a sua estação também não é o lugar certo para eu ficar durante o período de luto – os olhos dela encontraram os meus e eu sabia o que ela ia dizer antes que começasse a falar. – Preciso ficar na minha terra, na minha fazenda. Tenho que passar a próxima semana comendo e dormindo bem pouco. Preciso me concentrar em purificar a minha casa e a minha terra desse horrível malfeito.
– Sozinha, vovó? – Stark estava ali ao meu lado, com sua presença forte e afetuosa. – É seguro depois do que aconteceu?
– Tsi-ta-ga-a-sh-ya, não se iluda com a minha aparência – ela chamou Stark de galo, o nome de animal que ela o batizou. – Eu posso ser muitas coisas, mas não sou uma mulher velha e indefesa.
– Nunca achei que você fosse indefesa – Stark emendou. – Mas talvez não seja uma boa ideia você ficar sozinha.
– É, vovó. O que Stark diz faz sentido – eu falei.
– U-we-tsi-a-ge-ya, eu preciso purificar minha casa, minha terra e a mim mesma durante meu pranto e meu luto. Não posso fazer isso a menos que eu esteja em paz com a terra, e eu não vou ficar dentro de casa até que ela esteja totalmente purificada e os sete dias tenham passado. Vou acampar no jardim de trás, na clareira perto do riacho – vovó sorriu para Stark, Stevie Rae e o resto dos meus amigos. – Acho que você não ia passar muito bem exposto à luz do sol por tanto tempo.
– Bem, vovó, eu... – comecei, mas ela me interrompeu.
– Isso é algo que eu tenho que fazer sozinha, u-we-tsi-a-ge-ya. Mas há algo que eu preciso pedir a você.
– Qualquer coisa – eu falei.
– Daqui a sete dias, você pode ir até a minha fazenda com seus amigos? Você pode traçar um círculo e conduzir o seu próprio ritual de limpeza?
– Eu vou – concordei e meu olhar se voltou para os meus amigos que me rodeavam.
– Nós vamos – Stevie Rae acrescentou. Suas palavras foram ecoadas pelos garotos que estavam em pé ao meu lado e à minha volta.
– Então é assim que vai ser – vovó disse com firmeza. – A tradição Cherokee de luto e purificação vai ser acoplada ao ritual vampiro. É bom que seja assim, já que minha família se expandiu para incluir tantos vampiros e novatos – ela olhou ao redor para o meu grupo. – Eu peço mais uma coisa. Que cada um de vocês tenha pensamentos de luz sobre mim e a mãe de Zoey pelos próximos sete dias. Não importa que Linda tenha vacilado durante sua vida. O que importa é que ela seja lembrada com amor e pensamentos bondosos.
As frases “pode deixar” e “ok, vovó” soaram em volta de mim.
– Agora eu vou embora, u-we-tsi-a-ge-ya. O sol não vai demorar a nascer, e eu vou saudá-lo na minha terra – ainda de mãos dadas, vovó e eu caminhamos até a porta. Quando passamos pelos meus amigos, cada um deles a tocou e disse “até logo, vovó”, o que a fez sorrir entre lágrimas.
Ao atravessarmos a porta, tivemos uma pequena bolha de privacidade, e eu a abracei de novo, dizendo:
– Eu entendo por que você tem que ir, mas eu realmente preferia que você não fosse.
– Eu sei, mas daqui a sete dias...
Então a porta foi aberta e de repente Neferet estava lá, parecendo sombria e ilusoriamente bonita.
– Sylvia, eu soube da sua perda. Por favor, aceite meu sincero pesar por ter sido a sua filha quem morreu.
Vovó ficou tensa ao som da voz de Neferet e se soltou do meu abraço. Ela respirou fundo e encontrou o olhar da vampira.
– Eu aceito os seus pêsames, Neferet. Realmente sinto a sinceridade nas suas palavras.
– Existe algo que a Morada da Noite possa fazer por você? Há alguma coisa de que você precise?
– Os elementos já me fortaleceram e a Deusa já deu as boas-vindas para a minha filha no Mundo do Além.
Neferet assentiu.
– Zoey e seus amigos são gentis e a Deusa é generosa.
– Eu não acredito que seja gentileza ou generosidade o que estava por trás das ações de Zoey, seus amigos e a Deusa. Acho que foi amor. Você não acha, Grande Sacerdotisa?
Neferet fez uma pausa, como se ela realmente estivesse pensando na pergunta de vovó, e então respondeu:
– O que eu acho é que você pode estar certa.
– Sim, eu posso. E há uma coisa que eu preciso da Morada da Noite.
– Nós ficaremos honrados em ajudar uma Sábia Cherokee em um momento de necessidade – Neferet afirmou.
– Obrigada. Gostaria de pedir que Zoey e o seu círculo tenham permissão para ir até a minha fazenda daqui a sete dias para realizar um ritual de purificação. Isso vai complementar o meu luto e limpar minha casa de qualquer mal que ainda possa ter restado.
Eu vi algo passar dentro dos olhos intensos de Neferet – algo que, pelo menos por um momento, pode ter sido medo. Mas, quando ela falou, sua expressão e sua voz refletiam apenas um interesse educado.
– É claro. Eu dou permissão para esse ritual de bom grado.
– Obrigada, Neferet – vovó disse e então ela me abraçou mais uma vez e me beijou suavemente. – Daqui a sete dias, u-we-tsi-a-ge-ya, eu vou vê-la de novo.
Pisquei com força para evitar que minhas lágrimas caíssem. Não queria que a última visão que a vovó tivesse de mim fosse relacionada a choro e meleca de nariz.
– Sete dias. Eu a amo muito, vovó. Nunca se esqueça disso.
– Eu não posso esquecer disso assim como não esqueço de respirar. Eu também te amo, filha.
Então vovó se virou e foi embora. Eu fiquei parada na entrada da escola, observando suas costas fortes e eretas até que a noite a encobriu totalmente.
– Vamos, Z. – Stark colocou seu braço em volta do meu ombro. – Acho que já chega de escola por hoje. Vamos para casa.
– É, Z. Vamos para casa – Stevie Rae concordou.
Eu estava assentindo e me preparando para dizer “tudo certo” quando senti um calor súbito queimando o meu peito. No começo fiquei confusa. Ergui minha mão para esfregar o local da ardência e toquei o círculo duro que estava irradiando o calor.
De repente, Aurox deu um passo e entrou no meu campo de visão. Ele estava com Dragon Lankford.
– Zoey, eu ouvi as notícias sobre sua mãe. Sinto muito – Dragon disse.
– O-obrigada – murmurei. Não olhei para Aurox. Lembrei das palavras de Lenobia, de que eu precisava fazer cara de pôquer perto dele, mas eu me sentia tão machucada e ferida que não consegui fazer nada além de falar sem pensar para Stark: – Quero ir para casa, mas primeiro preciso de um momento comigo mesma – antes mesmo que ele pudesse dizer “tudo bem”, eu me desvencilhei do seu braço e passei rápido por Dragon e Aurox.
– Zoey? – Stark me chamou. – Aonde você...
– Vou estar no chafariz do jardim perto do estacionamento – eu disse por sobre o ombro para ele. Pude ver que ele estava franzindo a testa preocupado, mas eu não consegui evitar. Eu precisava sair dali naquela hora. – Venha me chamar quando todos já estiverem dentro do ônibus e a gente puder partir.
Não esperei pela sua resposta. Abaixei a cabeça e andei apressada pela calçada que ladeava o prédio principal da escola. Quase correndo, virei à direita e fui direto para o banco de ferro que ficava abaixo de uma das árvores em círculo que emolduravam o chafariz e o pequeno jardim, que os novatos chamavam de jardim dos professores, pois era perto da parte da escola em que eles moravam. Eu sabia que se alguém olhasse pelas janelas amplas e ornamentadas eu seria vista, mas eu também sabia que todos os professores deveriam estar terminando a sexta aula nas suas classes, o que significava que este era o único lugar do campus em que eu podia quase com certeza ficar sozinha a esta hora.
Então eu me sentei ali, na sombra de um grande ulmeiro, tentando controlar meus pensamentos. A presença de Aurox tinha confundido minha mente, e eu não sabia por quê. Agora, neste segundo, eu não me importo nem um pouco. Mamãe está morta. Seja o que for que Neferet e o Mal estejam preparando para mim, eles podem tirar o cavalo da chuva. Todo mundo pode tirar o cavalo da chuva. Meus pensamentos pareceram maldosos e duros, mas a lágrima que estava deslizando pelo meu rosto contava uma história diferente.
Mamãe não está mais neste mundo. Ela não está mais em casa esperando pelo padrasto-perdedor e cuidando da cozinha. Eu não posso ligar para ela e deixá-la brava comigo e ouvi-la me dar um sermão por eu ser uma filha horrível. Era uma sensação estranha ser órfã. Quero dizer, eu e ela não fomos próximas por mais de três anos, mas mesmo assim sempre continuava no fundo da minha mente a esperança de que um dia ela ia recobrar a razão, abandonar aquele idiota com quem ela tinha se casado e voltar a ser a Mamãe.
– Ela o tinha abandonado – eu falei. – Tenho que lembrar disso – minha voz deu um nó, mas limpei a garganta e falei em voz alta novamente para a noite. – Mamãe, sinto muito que nós não pudemos nos despedir. Eu amo você. Sempre amei. Sempre vou amar – então coloquei meu rosto entre minhas mãos, cedi à terrível tempestade de tristeza que estava dentro de mim e comecei a chorar convulsivamente.

Aurox

A novata chamada Zoey – aquela com as tatuagens estranhas que cobriam não apenas seu rosto, mas também seus ombros, mãos e, como Neferet havia contado, algumas outras partes do seu corpo – fez que ele se sentisse estranho.
Neferet dissera que Zoey era inimiga dela. Isso fazia de Zoey sua inimiga também. Ela era inimiga de sua mestra e representava perigo – e esse perigo deve ter sido a causa da estranheza que ele sentiu quando ela estava por perto. Aurox prestara atenção na direção que Zoey havia tomado quando ela saiu apressada. Ele deveria estar atento a tudo relacionado a ela. Zoey era perigosa.
– Neferet, preciso falar com você sobre as novas aulas que estão sendo ministradas na arena de Lenobia – Dragon Lankford estava dizendo.
Os olhos frios de Neferet se voltaram para Dragon.
– Foi decidido pelo Conselho Supremo que esses novatos vão ficar na escola, pelo menos por enquanto.
– Eu entendo, mas...
– Mas você prefere ter o Raven Mocker na sua classe? – Neferet foi ríspida.
– Rephaim não é mais um Raven Mocker – a Grande Sacerdotisa Vermelha saiu rapidamente em defesa do seu companheiro.
– E ainda assim ele chama aquelas criaturas, aqueles Raven Mockers, de irmãos – Aurox disse.
– De fato, Aurox, essa é uma observação relevante – Neferet falou sem olhar para ele. – Como você é o presente de Nyx para mim, acho que é importante que nós escutemos as suas observações.
– O que isso tem de mais? Eles são seus irmãos. Ele não está tentando esconder isso – balançando a cabeça, a Grande Sacerdotisa Vermelha encontrou seus olhos. Aurox viu tristeza e raiva ali, mas essas emoções não eram fortes o bastante para que ele as sentisse e extraísse poder delas. – Você não deveria ter matado aquele Raven Mocker. Ele tinha parado de atacar.
– Você acha que nós devemos esperar que aquelas criaturas destruam outro de nós antes de agirmos contra elas? – Dragon Lankford perguntou.
A ira do Mestre da Espada era mais tangível e Aurox absorveu algum poder dela. Ele a sentiu ferver seu sangue, pulsando, alimentando-o, transformando-o.
– Aurox, você não é necessário aqui. Pode continuar com as suas funções. Comece aqui no prédio principal da escola e ande em volta de todo o perímetro do campus. Patrulhe os jardins. Certifique-se de que nenhum Raven Mocker volte – sua mestra deu uma olhada para a Grande Sacerdotisa Vermelha e acrescentou: – Minha ordem é atacar apenas aqueles que ameacem você ou a escola.
– Sim, Sacerdotisa – ele se curvou para ela e então voltou para a porta e saiu para a noite, enquanto ouvia a Grande Sacerdotisa Vermelha ainda defendendo seu companheiro. Ela também é uma inimiga, apesar de minha mestra dizer que é uma espécie diferente de inimiga, uma espécie que pode ser usada.
Aurox pensou sobre a dificuldade daqueles que se opunham a Neferet. Ela havia explicado a ele que em breve todos esses novatos e vampiros ou iriam se submeter à vontade dela ou seriam destruídos. Sua mestra esperava ansiosa por esse dia. Aurox também.
Ele saiu da calçada, virando à direita em direção à extremidade do prédio principal da escola. Aurox se manteve afastado da luz bruxuleante dos lampiões de gás. Instintivamente, ele preferia as sombras mais profundas e os cantos mais escuros. Seus sentidos estavam sempre em alerta, sempre procurando. Então foi estranho que o lenço de papel o alarmasse. Era um simples retângulo branco. Ele flutuou no vento, esvoaçando na frente dele quase como um pássaro. Ele parou e estendeu o braço, arrancando o lenço da noite.
Que estranho, ele pensou, um lenço de papel flutuando. Inconscientemente, ele o enfiou no bolso da sua calça jeans. Dando de ombros para o mau pressentimento, ele continuou andando.
As emoções dela o atingiram depois que ele deu mais dois passos.
Tristeza – um pesar muito sério e profundo. E culpa. Havia culpa entre os sentimentos dela também.
Aurox sabia que era a jovem Grande Sacerdotisa Novata – Zoey Redbird. Ele disse a si mesmo que havia se aproximado dela apenas porque era sábio observar o inimigo. Mas enquanto ele se aproximava, enquanto os sentimentos dela o inundavam, algo inesperado aconteceu dentro dele. Em vez de absorver as suas emoções e se alimentar delas, Aurox as absorveu e as sentiu.
Ele não se transformou. Ele não começou a tomar a forma da criatura de grande poder.
Em vez disso, Aurox sentiu.
A tristeza de Zoey o puxou para a frente e, quando ele parou nas sombras ao redor dela e a observou chorando convulsivamente, a emoção dela fluiu para dentro dele e se acumulou em um lugar pequeno, quieto e escondido bem no fundo do seu espírito. Enquanto Aurox absorvia a tristeza, a culpa, a solidão e o desespero de Zoey, alguma coisa se agitou dentro dele em resposta.
Era totalmente inesperado e completamente inaceitável, mas Aurox sentiu vontade de confortar Zoey Redbird. O impulso era tão estranho a ele que o choque fez que ele se movesse instintivamente, como se o seu subconsciente comandasse o seu corpo.
Ele saiu da escuridão no mesmo momento em que ela pressionou a palma da sua mão em um lugar no meio dos seus seios. Ela piscou, obviamente tentando ver entre as lágrimas, e os olhos dela encontraram os seus. O corpo dela se endireitou e ela pareceu prestes a sair em disparada.
– Não, você não precisa ir embora – ele se ouviu dizer.
– O que você quer? – ela falou e então deu outro pequeno soluço.
– Nada. Eu estava passando. Você estava chorando. Eu ouvi.
– Quero ficar sozinha – ela afirmou, enxugando o rosto com as costas da mão e fungando.
Aurox não percebeu o que ele fez até que ele e a garota ficaram olhando para o lenço de papel que ele havia tirado do bolso para oferecer a ela.
– Então vou deixar você sozinha, mas você precisa disto – ele disse, soando constrangido e estranho aos seus próprios ouvidos. – Seu rosto está muito molhado.
Ela olhou para o lenço de papel por um instante antes de pegá-lo. Então ela levantou os olhos para ele.
– Meu nariz fica cheio de muco quando eu choro.
Ele sentiu sua cabeça assentir.
– Sim, é verdade.
Ela assoou o nariz e enxugou seu rosto.
– Obrigada. Eu nunca tenho um lencinho Kleenex quando preciso.
– Eu sei – então ele sentiu seu rosto ficar vermelho e quente e seu corpo ficar frio, pois não havia motivo nenhum para ele dizer uma coisa dessas. Ele não devia falar com essa novata inimiga de modo algum.
Ela estava olhando para ele de novo, com uma expressão esquisita.
– O que você disse?
– Que eu preciso ir – Aurox se virou e saiu rápido em direção à noite. Ele esperava que as emoções que ela o havia feito sentir desaparecessem, saíssem dele, como tinha acontecido com as emoções dos outros depois que ele as absorveu, usou-as e as deixou de lado. Mas um pouco da tristeza de Zoey ficou dentro dele, assim como a sua culpa e, o mais peculiar de tudo, como a solidão dela, que ficou empoçada em um abismo profundo e escondido na sua alma.
1 Powwow é uma cerimônia dos índios norte-americanos conduzida por uma xamã. (N.T.)

9

Zoey
Eu fiquei olhando Aurox se afastar por um bom tempo.
Que droga é essa?
Assoei meu nariz de novo, balancei a cabeça e olhei para o chumaço molhado e amassado de Kleenex na minha mão. Qual era a jogada da criatura de Neferet? Será que ela o tinha enviado atrás de mim de propósito para me oferecer um lenço e bagunçar a minha cabeça já bagunçada?
Não, não podia ser isso. Neferet não sabia que o fato de Aurox me oferecer um Kleenex me faria lembrar de Heath. Ninguém saberia disso exceto Heath. Bem, e Stark.
Então só podia ter sido uma coincidência esquisita. Claro, Aurox era uma espécie de criatura de Neferet, mas isso não significava que ele era imune aos efeitos de lágrimas de garotas. Ele era um cara – pelo menos eu tinha certeza de que ele era um cara. E, ele poderia ser, de alguma forma, um pouco diferente daqueles subordinados estúpidos de Neferet. Ele poderia ser um cara legal – ou pelo menos ele podia ser legal quando não estava se transformando em uma máquina de matar que parecia um touro. Que inferno, Stevie Rae tinha encontrado um Raven Mocker bom. Quem sabe o...
E então eu percebi o que estava fazendo. Eu estava Kalonizando Aurox. Estava vendo bondade onde não existia nenhuma.
– Ah, que droga! Eu não vou fazer isso de jeeeeeeito nenhum – eu me recriminei em voz alta.
– Não vai fazer o que, Z.? – Stark entrou no jardim com uma caixa de Kleenex nas mãos. – Ei, parece que você estava preparada para a primeira leva de catarro – ele disse, fazendo um gesto em direção ao meu chumaço amassado de papel.
– Ah, eu vou aceitar outro. Obrigada – respondi, puxando alguns lenços da caixa e enxugando meu rosto de novo.
– Então, o que você não vai fazer? – ele se sentou ao meu lado no banco. O ombro dele roçou o meu e eu me recostei nele.
– Eu só estava lembrando a mim mesma para não deixar que as coisas malucas que acontecem aqui me deixem louca, ou pelo menos mais louca do que já sou.
– Você não é louca, Z. Você está passando por coisas difíceis, mas vai ficar bem – ele falou.
– Espero que você esteja certo – eu murmurei e então outro pensamento ainda mais depressivo me atingiu. – Ei, você falou para o resto do pessoal não ficar me tratando de um jeito todo estranho por causa da minha mãe?
– Não tive que dizer isso. Eles são seus amigos, Z. Eles vão tratar você como quem se importa, não de um jeito estranho – Stark respondeu.
– Eu sei, eu sei, é só que... – minha voz perdeu o trilho. Eu não sabia como organizar e colocar em palavras a dor, a culpa e a terrível sensação de solidão que não ter uma mãe estava me provocando.
– Ei – Stark olhou para mim. – Você não está sozinha.
– Você está escutando meus pensamentos? Você sabe que eu não gosto quando...
Ele segurou meus ombros e me sacudiu levemente.
– Não é preciso usar a conexão do Juramento Solene do Guerreiro para saber que você está se sentindo sozinha. Eu não conheço nenhum outro garoto que tenha perdido a mãe, você conhece?
– Não. Só eu – mordi o lábio para evitar o berreiro. De novo.
– Viu, não é difícil sacar o que se passa com você – então ele me beijou. Não de boca aberta, de um jeito quente, do tipo “quero que você tire a roupa”. O beijo de Stark foi suave, doce e tranquilizador. Quando os seus lábios deixaram os meus, ele sorriu dentro dos meus olhos. – Mas, como eu já disse, você vai passar por tudo isso numa boa e sem ficar louca porque você é inteligente, forte, bonita e simplesmente fora de série.
Dei uma risadinha inesperada.
– Fora de série? Você realmente acabou de dizer isso?
– É claro que eu acabei de dizer isso! Você é incrível, Z.
– Mas fora de série? – dei uma risadinha de novo e senti meu estômago começar a descontrair. – Essa foi a expressão mais ridícula que já ouvi você dizer.
Ele colocou a mão no peito como se eu tivesse acabado de apunhalá-lo.
– Z., isso doeu. Eu estava tentando ser romântico.
– Bem, pelo menos você tentou – eu respondi. – Por favor, diga que você não inventou essa expressão sozinho.
– Nããão – ele deu aquele seu sorriso fofo e metidinho. – Eu ouvi um grupo de garotas terceiro-formandas dizer que eu era fora de série quando elas estavam me observando disparar flechas na arena na última aula.
– Sério? – levantei uma sobrancelha e o fuzilei com os olhos. – Terceiro-formandas?
A parte metidinha do seu sorriso desapareceu.
– Eu quis dizer terceiro-formandas sem atrativos.
– Tenho certeza de que foi exatamente isso o que você quis dizer.
Os olhos dele faiscaram.
– Ciúme?
Eu bufei e menti:
– Não!
– Você não precisa ter ciúme. Nunca. Porque você não é simplesmente fora de série. Você é de uma série única e exclusiva, e jogaram fora a forma em que você foi feita.
– Você tem certeza?
– Tenho.
– Jura?
– Sim.
Eu me encostei nele.
– Tá bom, eu acredito em você, seu ridículo – descansei minha cabeça no seu ombro e ele colocou seu braço em volta de mim. – Podemos ir para casa agora?
– Claro. Sua limusine pequena e amarela está carregada e esperando por você – ele se levantou e me puxou para que eu ficasse em pé. De mãos dadas, andamos em direção ao estacionamento. Olhei de lado furtivamente para Stark. Ele parecia satisfeito consigo mesmo (e totalmente gostoso). É óbvio que aquela expressão ridícula que ele usou tinha sido parte da sua estratégia para me tirar do buraco de depressão em que senti que eu estava caindo.
Stark deve ter sentido isso também, não porque ele estava escutando meus pensamentos indevidamente, mas porque ele era meu Guardião, meu guerreiro e muito, muito mais.
Eu apertei a mão dele.
– Obrigada.
Ele deu uma olhadinha para mim, sorriu e então levou minha mão aos seus lábios.
– Sem problemas. Espere até ouvir a expressão que estou criando para descrever os seus peitos. Desta vez, vou inventar sozinho. Não preciso da ajuda de nenhuma terceiro-formanda sem atrativos para isso.
– Não. Simplesmente não.
– Mas você pode precisar de algo mais para levantar seu astral.
– Não. Eu estou bem. Conversar sobre peitos não é nem um pouco necessário.
– Bem, lembre-se de que eu estou aqui se você precisar de mim – ele disse, abrindo o sorriso de novo. – Preparado, disposto e capaz.
– É um conforto. Obrigada.
– Tudo parte da descrição do trabalho de Guardião.
Levantei as duas sobrancelhas nessa hora.
– Você realmente leu a descrição do trabalho de Guardião?
– Mais ou menos. Seoras disse: “Tome conta da sua rainha ou vou terminar os minúsculos arranhões que comecei a fazer em você” – ele falou, soando incrivelmente igual ao antigo Guardião escocês.
– Minúsculos? – eu estremeci, lembrando dos ferimentos sangrentos que haviam retalhado todo o peito dele. Como eu poderia esquecer algum dia? Nem se eles não fossem ainda cicatrizes recentes e rosadas, apesar dos poderes curativos dos meus elementos e do meu sangue. – Minúsculos definitivamente não é a palavra que eu usaria para descrevê-los.
– Ach1, moçoila. Não foi nada além de alguns arranhões de gatinha2.
Senti meus olhos se arregalarem e então dei um soquinho no braço dele.
– Gatinha!
Ele esfregou o braço e então disse com sua voz normal:
– Z., na Escócia isso quer dizer gato animal mesmo. Sério.
– Você é um cara – olhei zangada para ele.
Por algum motivo bobo, aquilo o fez rir. Então ele colocou seus braços em volta de mim e me deu um abraço gigante.
– É, eu sou um cara. O seu cara. E quero que você se lembre que, mais importante do que tudo isso – ele fez uma pausa e se afastou um pouco para poder fazer um gesto indicando a Morada da Noite e o ônibus que estava esperando um pouco adiante de onde nós estávamos –, mais importante do que a coisa do guerreiro e mais até do que a coisa do Guardião, eu amo você, Zoey Redbird. E eu sempre vou estar por perto quando você precisar de mim.
Voltei para dentro dos seus braços e dei um longo suspiro de alívio.
– Obrigada.
– Ali está ela! – ouvi a voz de Kramisha gritando e suspirei, certa de que eu era a “ela” a quem ela se referia. Levantei os olhos e, de fato, Kramisha estava parada em frente do micro-ônibus lotado com Stevie Rae, Aphrodite, Damien, as gêmeas, Erik e uma novata vermelha que eu não reconheci. De mãos dadas com Stark, andei o resto do caminho até lá.
– Sinto muito sobre a sua mãe. É muito triste – Kramisha falou quando eu cheguei.
– Hum, o-obrigada – gaguejei e estava começando a pensar que eu precisava descobrir um modo não tão desajeitado de responder às pessoas que viessem me dar os pêsames pela morte da minha mãe quando Kramisha continuou a falar.
– Z., eu sei que não é uma boa hora, mas nós temos um problema.
Reprimi outro suspiro.
– Com esse “nós”, você quer dizer “eu” ou “você”?
– Nós achamos que esse problema pode afetar a todos – Stevie Rae afirmou.
– Ótimo – respondi.
– Zoey, esta é Shaylin – Erik me apresentou a garota desconhecida, que estava me examinando como se ela desejasse me ter embaixo da lente de um microscópio. Afe, era um saco conhecer garotos novos.
– Oi, Shaylin – eu disse, tentando ignorar o modo como ela me encarava.
– Roxa – ela falou.
– Pensei que Erik tivesse dito que seu nome era Shaylin – eu disse, apesar de querer gritar Sim! Sou eu! Aquela com as tatuagens esquisitas!
– Meu nome é Shaylin – ela me deu um sorriso realmente afetuoso e agradável. – Você é roxa.
– Ela não é Roxa, ela é Zoey – Stark respondeu, soando tão confuso quanto eu estava.
– Você também tem algumas partículas prateadas – Shaylin parou de me encarar e então voltou seu olhar intenso para ele. – Você é vermelho, dourado e um pouco preto. Hum. Isso é estranho.
– Eu não sou...
– Ah, que merda – Aphrodite interrompeu e apontou para Shaylin. – O nome dessa nova garota é Shaylin e ela não está chamando vocês de cores, ela está vendo as suas cores.
– Minhas cores? Não tenho a menor ideia do que isso significa – eu disse, franzindo a testa para Aphrodite e olhando para Shaylin com um ponto de interrogação enorme na cara.
– Eu também não sei muito bem o que isso significa – Shaylin respondeu. – Isso simplesmente aconteceu comigo, logo depois que fui Marcada.
– Acho que Shaylin recebeu um dom chamado Visão Verdadeira – Damien explicou. – É raro. Acho que há algo sobre isso no Manual Avançado do Novato, mas eu só dei uma olhada em um deles – ele pareceu constrangido e querendo se desculpar. – Eu não estudei esse livro de fato.
– Damien, você é só um quarto-formando. Isso não faz parte do conteúdo do seu ano.
– Hello, conversa de obcecados por lição de casa – Erin resmungou.
– É brincadeira! – Shaunee acrescentou.
– Olha só – levantei minha voz para que todos olhasses para mim em vez de começarem aquelas briguinhas que eu tinha certeza que estavam por vir. – Eu não sei o que é a Visão Verdadeira, mas se é um dom, e eu imagino que vocês querem dizer um dom de Nyx, então qual é o problema? – perguntei.
– Ela é uma novata vermelha – Aphrodite respondeu.
– E daí? Há um ônibus inteiro cheia de novatos vermelhos – afirmei, indicando o micro-ônibus atrás deles.
– Sim, e cada um de nós teve que morrer e então desmorrer antes de ter isto aqui – Kramisha apontou para o contorno vermelho de uma lua crescente na sua testa.
Olhei para ela e depois para a garota nova, até que finalmente minha mente captou o que meus olhos viam. Voltei-me para Erik.
– Você acabou de Marcá-la em vermelho?
– Não. Sim – Erik balançou a cabeça e também pareceu preocupado. – Eu não tinha a intenção. Eu a Marquei. Tudo bem, não foi exatamente como o planejado, mas isso aconteceu porque ela era cega e fiquei surpreso – todos nós o encaramos e ele passou a mão pelo seu cabelo grosso e escuro. Seus ombros desabaram. Então ele acrescentou: – Eu me atrapalhei, e é por isso que agora ela é uma novata vermelha e consegue ver nossas cores.
– Você não se atrapalhou, Erik – pareceu que Shaylin começou a levantar a mão para acariciar o braço de Erik, mas no meio do caminho mudou de ideia. O olhar dela se voltou para mim e ela continuou: – Antes de ele me Marcar, eu era cega. Eu era cega desde criança. No segundo em que ele me Marcou, consegui enxergar novamente, e isso não foi uma trapalhada. Foi incrível.
– Ah! Eu sabia que havia sentido uma nova novata entre nós! – ao som da voz de Neferet, todos nós demos um pulo como se ela tivesse nos atingido com um Taser3. Ela estava vindo rápido em nossa direção, com seu vestido longo de veludo verde arrastando-se no chão, fazendo parecer que ela deslizava em vez de andar (o que era super assustador). – Merry meet, eu sou Neferet, sua Grande Sacerdotisa – ela voltou rapidamente sua atenção para Erik e pude ver um lampejo de aborrecimento nos seus olhos. – Professor Night, você não deveria ter trazido a garota aqui – Neferet chegou perto de Shaylin e fez um gesto gracioso de desculpas para ela. – Jovem novata, o Rastreador deveria tê-la instruído para ir até o dormitório feminino, onde você vai encontrar o resto das... – ela perdeu a fala quando finalmente viu a Marca de Shaylin.
– Sim – eu falei, incapaz de manter minha boca fechada por mais tempo. – Ela é vermelha. O que significa que ela está no lugar certo.
– E eu sou a Grande Sacerdotisa dela. Não você – Stevie Rae concluiu por mim.
– Ah! Você é... ah, eu não estou me sentindo bem! – Shaylin estava encarando Neferet quando de repente desmaiou. Erik a segurou antes que ela batesse a cabeça no chão, dando um jeito de parecer assustado e heroico ao mesmo tempo (sério, ele é um ator excelente).
– Ela passou por muita coisa – Aphrodite disse, dando um passo para ficar face a face com Neferet. – Ela precisa ir para casa. Para a estação. Com a gente. Agora.
Prendi a respiração quando os olhos de Neferet se estreitaram e ela começou a encarar cada um dos garotos do nosso grupo. Todos os vampiros eram intuitivos, mas Neferet era mais do que isso. Ela podia ler mentes. Bem, a maioria das mentes dos novatos – ou pelo menos a superfície dos seus pensamentos. Fiz uma prece rápida e silenciosa para Nyx: Por favor, faça que cada um deles pense em qualquer coisa, menos no fato de que essa garota nova pode ter a Visão Verdadeira, seja o que for que isso signifique.
De repente, a expressão desconfiada de Neferet se alterou. Ela riu alto. Na verdade, ela gargalhou. Eu não tinha ideia como isso era possível, mas a risada dela soou maldosa, horrível e sarcástica. Como uma risada podia ser tão péssima?
– Ela era cega. Foi por isso que ela foi Marcada em vermelho. Ela já estava destruída. Simplesmente, ela não precisou morrer para ficar assim. Bem, pelo menos ela não morreu ainda.
Kramisha estava em pé ao meu lado, então eu a vi se contrair de medo. Neferet também viu. A falsa Grande Sacerdotisa sorriu para a nossa Poeta Laureada.
– O que foi? Você acreditava realmente que esse contorno vermelho era a garantia da sua transformação? – ela inclinou a cabeça para o lado, lembrando-me um réptil. – Sim, eu posso sentir o seu choque e o seu medo. Você não tinha pensado nisso. O seu corpo ainda pode rejeitar a transformação.
– Você não tem certeza disso – Stevie Rae se aproximou de Kramisha.
– Não tenho? – de novo, a risada de Neferet foi maldosa e horrível. Ela levantou o queixo na direção de Shaylin, que ainda estava desmaiada nos braços de Erik. – Aquela ali parece bizarra para mim – ela voltou seu olhar para Aphrodite. Eu vi Aphrodite colocar os punhos na cintura, como se estivesse se preparando para explodir. – Um pouco como você é bizarra, e você nem é mais uma novata.
– Não, eu não sou. Mas eu estou feliz do jeito que sou. E você, Neferet?
Em vez de responder, Neferet disse:
– Levem a nova novata com vocês. Você está certa em uma coisa, Aphrodite. O lugar dela é com vocês e com o resto dos desajustados, não aqui. Em nome de todos os deuses, o que mais Nyx vai inventar?
E então, gargalhando, ela deu as costas para nós e foi embora deslizando.
Quando ela estava longe o bastante para não ouvir, soltei um longo suspiro.
– Bom trabalho, vocês todos, por não pensarem na coisa da Visão Verdadeira.
– Ela me dá medo – Kramisha disse com uma voz que soou muito, muito jovem.
Stevie Rae colocou o braço em volta de Kramisha.
– Tudo bem ter medo dela. Isso só vai nos fazer lutar com mais força contra ela.
– Ou correr mais rápido – Erik disse sombriamente.
– Alguns de nós não estão fugindo – Stevie Rae respondeu.
– Você tem certeza? – Shaylin falou.
– Ei, você está de volta? – Erik perguntou.
– Na verdade, eu não fui a lugar nenhum. Hum. Você pode me colocar no chão agora. Por favor.
– Ah, sim claro – Erik gentilmente a colocou no chão. Ele manteve uma mão no seu braço, como que para se certificar de que ela não ia cambalear e cair, mas ela ficou em pé parecendo totalmente equilibrada.
– Então você fingiu um desmaio. Por quê? – Aphrodite fez a pergunta antes de mim.
– Bem, não é difícil imaginar – Shaylin olhou para Kramisha. – Eu concordo com você. Ela me dá medo – então ela continuou: – Eu fingi desmaiar porque ou eu fazia isso ou eu fugia correndo e gritando – ela trocou um olhar com Erik. – É, eu concordo com você também – Shaylin deu de ombros. – Mas ela disse que era uma Grande Sacerdotisa. Eu não sei muito sobre vampiros, mas todo mundo sabe que as Grandes Sacerdotisas são as que comandam. Fugir gritando de uma no meu primeiro dia como novata não me pareceu uma boa opção.
– Então você pensou em bancar o espantalho – Stevie Rae disse.
– Bancar a quê?
– É um jeito caipira de dizer que você se fingiu de morta para que Neferet deixasse você em paz – Aphrodite explicou.
– Sim, foi exatamente o que eu fiz – Shaylin concordou.
– Não foi má ideia – Stark falou. – Conhecer Neferet e ser Marcada, tudo no mesmo dia, foi demais para você.
– O que você viu? – minha pergunta pareceu pegar todo mundo de surpresa, menos Shaylin. Ela encontrou meu olhar intenso e o sustentou com firmeza enquanto me respondeu.
– Um pouco antes de ficar cega, estive com a minha mãe na Nam Hi, aquela grande mercearia vietnamita na Garnett quase esquina com a Twenty-first. Eles tinham peixes inteiros para vender, que ficavam em uma grande caixa de gelo. Eles me assustaram tanto que eu me lembro de só ter conseguido ficar ali parada, olhando fixamente para os seus olhos mortos e leitosos e para os seus horríveis ventres abertos.
– Neferet tem a cor de ventre de peixe morto? – Stevie Rae perguntou.
– Não. A cor de Neferet é a mesma da dos olhos de um peixe morto. É a única cor dela.
– Isso não pode ser nada bom – Kramisha falou.
– O que não pode ser nada bom? – Darius perguntou enquanto se juntava ao nosso grupo e pegava a mão de Aphrodite.
Ela se encostou nele e disse:
– Darius, guerreiro garanhão, esta é Shaylin, novata vermelha recém-Marcada, que não morreu para ficar vermelha e que tem a Visão Verdadeira. Ela acabou de “ver” – Aphrodite fez aspas com os dedos – Neferet, e aparentemente a cor verdadeira dela é de olhos de peixe morto.
Darius não se abalou nem um pouco. Ele apenas se curvou levemente para a nova garota e a saudou com um “Merry meet, Shaylin”, o que ou mostrou que o guerreiro tinha um autocontrole impressionante ou era apenas mais uma prova de que as nossas vidas tinham virado uma completa loucura.
– Nós precisamos estudar mais sobre a Visão Verdadeira – Damien sugeriu. – É assunto de sexto-formando para cima. Você sabe alguma coisa sobre isso? – ele perguntou a Darius.
– Não muito. Eu me foquei mais em facas, não em Sociologia Vampírica – Darius respondeu.
– Bem, eu tenho esse manual avançado idiota – Aphrodite falou. Quando todos nós olhamos admirados na sua direção, ela franziu as sobrancelhas. – O que foi? Eu era uma sexta-formanda antes disto acontecer – ela apontou para a sua testa desMarcada. – Infelizmente, hoje eu tive que voltar para o meu antigo horário escolar – quando nós continuamos a encarando sem falar nada, ela revirou os olhos. – Ah, que merda, eu tenho lição de casa, é só isso. O livro está na minha bolsa incrivelmente linda da Anahata Joy Katkin dentro do micro-ônibus dos retardados.
– Aphrodite, pare de dizer retardados! – Stevie Rae gritou para ela. – Juro que você precisa entrar no site www.r-word.org. Talvez você aprenda que algumas pessoas ficam magoadas com essa palavra com “r”.
Aphrodite piscou várias vezes e então esfregou a testa.
– Um site? Fala sério.
– Sim, Aphrodite. Como eu tentei dizer a você zilhões de vezes, usar essa palavra com “r” é ofensivo e simplesmente uma maldade pura.
Aphrodite inspirou profundamente e soltou o ar junto com um discurso inflamado:
– E que tal um site para uma palavra com “x”, xoxota, que ofende metade do mundo? Ou, espere, melhor ainda. Vamos manter o site www.r-word.org, mas vamos trocar a palavra com “r” para “rapto seguido de estupro”, que causa danos piores do que magoar os sentimentos de mamãezinhas de classe média alta. Ou...
– Chega – entrei no meio das duas. – Nós entendemos. Podemos voltar para o assunto de Shaylin e a Visão Verdadeira?
– Sim, que seja – Aphrodite respondeu, jogando o cabelo para trás.
– Aphrodite é maldosa, Z., mas o que ela disse faz sentido – Erin opinou.
Eu fuzilei Shaunee com os olhos, que apenas concordou entusiasticamente, sem entrar na conversa. Minha cabeça parecia que ia explodir.
– Ah, que inferno – eu falei, jogando as mãos para cima de frustração. – Não sei mais o que a gente estava falando antes da parte sobre os retardados.
– A informação sobre a Visão Verdadeira está dentro do ônibus – Rephaim disse, surpreendendo a todos nós. Ele sorriu com timidez. – Eu realmente não compreendi muito do resto da conversa. Também entendi que Aphrodite é maldosa, mas isso eu já sabia.
Ao meu lado, Stark transformou uma explosão de risada em uma tosse.
Eu suspirei.
– Tudo bem, vamos entrar no ônibus e voltar para a estação. Aphrodite e Damien, encontrem-me na cozinha com o manual avançado – fiz uma pausa e dei uma olhada para Stevie Rae, que ainda estava segurando a mão de Rephaim. – Você quer se juntar a nós depois de, hãm, você sabe, depois de o sol nascer e tal?
– Z., você não tem que pisar em ovos para falar disso. Sim, Rephaim vai se transformar em um pássaro quando o sol nascer e eu gostaria de ficar com ele até lá – Stevie Rae levantou os olhos para Rephaim, que estava sorrindo para ela como se fosse aniversário dele e ela fosse um presente incrível que ele tinha acabado de abrir.
– Isso é sério? – escutei Shaylin perguntar para Erik.
– Sim. É uma longa história – Erik respondeu.
– Não é de se estranhar que a cor dele seja tão esquisita – ela falou.
Fiquei curiosa sobre a cor de Rephaim, mas eu sabia que agora não era a hora de fazer um monte de perguntas, então eu simplesmente disse:
– Kramisha, você pode por favor descobrir onde Shaylin vai ficar?
– Não vou dividir meu quarto – Kramisha respondeu. Então ela deu um olhar de pedido de desculpas para Shaylin. – Sinto muito. Não quis ofender.
– Tudo bem. Eu sempre tive gente em volta de mim desde que fiquei cega. Eu também prefiro ter o meu próprio quarto.
Kramisha sorriu.
– Está certo. Gosto de ser uma mulher independente e vou ajudar você a encontrar um quarto só seu.
– Fechado – Shaylin concordou.
– Aham – Erik limpou a garganta para atrair nossa atenção. Achei que ele parecia nervoso e estranhamente inseguro. – Que tal se eu seguir o ônibus com o meu carro e Shaylin vier comigo? Eu posso colocá-la a par de algumas coisas no caminho, como Rephaim e toda a história dos novatos vermelhos em geral.
– Rastreadores só devem rastrear e Marcar – Aphrodite disse.
– É, e novatos só devem ser Marcados com um crescente azul e então se Transformar ou morrer – ele contra-atacou.
– Acho que tudo bem se Erik nos seguir – Stevie Rae falou, o que me surpreendeu, pois eu sabia que ela não era exatamente muito fã de Erik. – O que você acha, Z.?
Dei de ombros.
– Por mim, tudo bem.
Erik assentiu levemente e então ele e Shaylin foram em direção ao seu carro no estacionamento.
– Estamos prontos para partir? – Darius perguntou.
– Acho que sim, ou pelo menos estaremos assim que o nosso motorista sempre tão amigável chegar – respondi.
Darius sorriu.
– Eu serei o motorista. Eu disse a Christophe que de agora em diante vou assumir a direção do ônibus daqui para a estação e de lá para cá.
Não consegui resistir a dar uma olhada em Aphrodite. Seu rosto estava congelado e seus olhos, arregalados.
– Ei, Aphrodikey está saindo com um motorista de ônibus! – Shaunee não perdoou.
Pareceu que Erin ia acrescentar algum comentário espertinho, mas Aphrodite chegou bem perto das gêmeas e disse:
– Darius não é um motorista de ônibus. Ele é um guerreiro Filho de Erebus. Ele pode matar vocês, mas ele é bom e honrado e portanto não vai fazer isso. Eu, por outro lado, não sou honrada nem guerreira. Eu vou matar vocês ou pelo menos machucar tanto que vocês não vão conseguir ir à próxima venda exclusiva da Miss Jackson’s.
As gêmeas sugaram o ar e, antes que elas respondessem, eu disse rapidamente:
– Certo, então, vamos voltar para a estação. Parece que a gente vai ter que estudar um pouco – segurei o pulso de Aphrodite e praticamente a arrastei para dentro do micro-ônibus. Ela deu um puxão para se soltar de mim, mas continuava me seguindo quando comecei a subir os degraus. Então uma bola laranja de pelos se atirou nos meus braços. – Nala! – eu gritei, quase a derrubando de susto. – Ah, minha bebê! Eu senti tanto a sua falta – eu a acariciei e a beijei. E depois dei risada quando ela espirrou em mim e começou a resmungar com sua voz de velha senhora, “minhaaaaaauuuu”, mesmo enquanto ronronava feito louca.
Enquanto eu estava afagando Nala, houve um barulho de grunhido terrível vindo de dentro do ônibus, e de repente Aphrodite estava forçando a passagem por mim, dizendo:
– Malévola! Mamãe está aqui!
Pareceu chover pelo branco. Os garotos no ônibus tiraram rápido braços e pernas do caminho enquanto o gato mais feio, com a cara mais amassada, maior e mais detestável do universo percorreu o corredor chiando e uivando. Aphrodite parou, pegou sua gata e começou a falar como ela era bonita, maravilhosa e inteligente.
– Aquele gato não é normal – Kramisha afirmou, olhando por sobre o meu ombro. – Mas Aphrodite não é normal também, então acho que funciona bem. – Seu olhar se voltou para Nala, que ainda estava resmungando para mim. – Não é verdade, um monte desses gatos não é normal.
– Um monte desses gatos? – olhei por sobre a cabeça laranja e peluda de Nala e, como eu suspeitava, a minilimusine amarela estava cheia de novatos vermelhos e gatos. – Quando isso aconteceu?
– Eles estavam aqui quando a gente chegou – Kramisha respondeu. – Como eu disse, eles não são normais.
– Hum, bem, então acho que isso significa que a estação é realmente o nosso novo lar – falei, sentindo pela primeira vez que isso podia ser verdade.
– Z., o lar é onde você está – Stark disse, estendendo o braço na minha direção e acariciando a cabeça de Nala.
Eu sorri para ele e me senti aquecida por dentro – quase aquecida o suficiente para esquecer de olhos cor de pedra da lua e do fato de que pessoas em volta de mim continuavam morrendo...
1 Ach é uma expressão escocesa de impaciência, surpresa ou desgosto. (N.T.)
2 Pussy, em inglês, quer dizer gatinha ou gatinho e também é uma gíria para vagina. (N.T.)
3 Arma de eletrochoque fabricada pela empresa norte-americana Taser International. (N.T.)

10

Kalona
– O que você acabou de dizer? – Kalona berrou para o Raven Mocker, que se encolheu de medo.
– Rephaim é um garoto humano – Nisroc repetiu. Seu irmão menos desenvolvido, que havia escapado da ira da criatura mutante, remexeu-se todo agitado, escondendo-se atrás dele.
Kalona andou de um lado para o outro na clareira entre os esconderijos de caça. Ainda não havia amanhecido, mas os outros Raven Mockers, que haviam voltado depois da busca feita pelos seus irmãos no interior de Oklahoma já estavam amontoados dentro das casas nas árvores, escondendo-se, escapando, encolhendo-se de medo da possibilidade de encarar olhos inquisidores. Ele havia ficado lá, olhando cada um deles retornar, procurando por algo que era difícil admitir a si mesmo. Ele estava procurando por humanidade – por um filho com quem pudesse conversar, compartilhar, fazer planos. Mas tudo o que ele havia encontrado eram bestas choramingantes e medrosas. Rephaim era o mais humano de todos eles, Kalona estava pensando pela milésima vez quando Nisroc aterrissou na clareira com um filho a menos ao seu lado e com notícias inacreditáveis de outro.
Kalona rodeou Nisroc.
– Rephaim não pode ter uma forma humana. Isso é impossível! Ele é um Raven Mocker, como você, como seus irmãos.
– A Deusa. Ela o transssformou – Nisroc sibilou.
Uma sensação estranha e agridoce tomou conta de Kalona. Nyx havia transformado seu filho em humano, presenteando-o com a forma de um garoto.
Ela perdoara Rephaim? Como isso era possível?
Quase sem palavras, o imortal perguntou sem pensar:
– Você falou com Rephaim?
Nisroc balançou levemente sua enorme cabeça de corvo para cima e para baixo.
– Sssim.
– Ele realmente disse que estava a serviço de Nyx?
– Sssim – Nisroc curvou sua cabeça, mas continuou olhando furtivamente para ele. – Para você ele ssse recusou a essspionar.
Kalona deu um olhar severo para Nisroc e então voltou sua atenção para o Raven Mocker exaurido que estava se escondendo inutilmente atrás dele. De repente, ele percebeu que havia apenas um irmão de Nisroc ali, onde deveria haver dois.
– Onde está... – Kalona teve que fazer uma pausa para lembrar qual dos seus filhos estava faltando. – Maion? Por que ele não voltou com você?
– Morto – Nisroc pronunciou a palavra sem emoção nenhuma.
– Rephaim o matou? – a voz de Kalona era tão fria quanto o seu coração.
– Não. A criatura. Maion ela matou.
– Que criatura? Fale claramente!
– A criatura da Tsssi Sssgili.
– Um vampiro?
– Não. Primeiro humano, depoisss touro.
Kalona deu um salto de surpresa.
– Você tem certeza? A criatura tomou a forma de um touro?
– Sssim.
– Rephaim se juntou a ela para atacar vocês?
– Não.
– Ele lutou ao lado de vocês contra ela?
– Não. Nada ele fez – Nisroc disse.
Kalona cerrou e depois descerrou o maxilar.
– Então o que parou a besta?
– A Vermelha.
– Então ela e Neferet se enfrentaram? – Kalona disparou rispidamente as perguntas, amaldiçoando-se silenciosamente por ter enviado seres inferiores para testemunhar o que ele deveria ter visto.
– Não. Nenhuma batalha aconteceu. Nós voamos.
– E você afirma que o touro era uma criatura de Neferet.
– Sssim.
– Então é verdade... Neferet se entregou para o touro branco – Kalona começou a andar de um lado para o outro de novo. – Ela não tem ideia das forças que está despertando. O touro branco é a encarnação das Trevas em sua forma mais pura e poderosa.
Em algum lugar lá no fundo de Kalona, algo se agitou dentro dele, algo que não havia voltado à superfície desde que ele caíra. Por um rápido instante, de uma batida do coração, o ancestral guerreiro da Deusa da Noite, o imortal alado que defendera sua Deusa contra o ataque das Trevas por incontáveis séculos teve um desejo automático de ir até Nyx... para avisá-la... para protegê-la.
Kalona afastou esse impulso ridículo quase tão rápido quanto ele o havia sentido. E começou a andar de novo. Pensando em voz alta, ele refletiu:
– Então Neferet tem um aliado que a liga ao touro branco, mas ela deve ter criado um disfarce para ele para apresentá-lo à Morada da Noite, ou vocês teriam visto pelo menos o começo de uma grande luta.
– Sssim, a criatura dela.
Kalona ignorou os comentários repetitivos de Nisroc e continuou raciocinando em voz alta.
– Rephaim começou a servir à Deusa. Ela o presenteou com a forma humana – ele cerrou o maxilar. Kalona se sentia duplamente traído, por seu filho e pela Deusa. Ele havia pedido, praticamente implorado para Nyx perdoá-lo. E qual tinha sido a resposta dela? “Se um dia você se mostrar digno de perdão, peça-o para mim. Mas não antes disso.”
A lembrança da sua breve passagem pelo Mundo do Além e do vislumbre que ele teve da Deusa provocaram uma dor horrível em seu coração. Em vez de senti-la, de pensar nela ou de se influenciar por ela, Kalona abriu os portões da ira que sempre entrava em ebulição logo abaixo dos diques da sua alma. Ao inundá-lo, a ira levava embora quaisquer outros sentimentos mais nobres e honestos.
– Meu filho precisa aprender uma lição sobre lealdade – Kalona afirmou.
– Leal eu sou! – Nisroc gritou.
Kalona sorriu desdenhosamente.
– Não falei de você. Falei de Rephaim.
– Essspionar Rephaim não vai – Nisroc repetiu.
Kalona deu uma bofetada nele e o Raven Mocker cambaleou para trás e se chocou contra o seu irmão.
– Rephaim fez muito mais do que espionar para mim no passado. Ele era um segundo par de punhos, um segundo par de olhos, quase uma extensão de mim. É o hábito que me faz olhar o céu procurando por ele. Estou descobrindo que o hábito é algo difícil de quebrar. Talvez Rephaim também esteja achando isso difícil – o imortal alado deu as costas aos seus filhos e encarou o leste, sobre as montanhas cobertas de árvores, na direção da adormecida Tulsa. – Eu devo visitar Rephaim. Nós temos, afinal de contas, um inimigo comum.
– A Tsssi Sssgili?
– Certo. A Tsi Sgili. Rephaim não vai chamar de espionagem se nós estivermos servindo a um objetivo comum: derrubar Neferet.
– Governar no lugar dela você vai?
Kalona voltou seus olhos âmbar para seu filho.
– Sim. Eu sempre vou governar. Vamos descansar agora. Ao pôr do sol, eu parto para Tulsa.
– Conosssco? – o Raven Mocker perguntou.
– Não. Vocês ficam aqui. Continuem a reunir meus filhos. Fiquem escondidos e esperem.
– Esssperar?
– Pelo meu chamado. Quando eu governar, aqueles que permanecerem leais a mim ficarão ao meu lado. E aqueles que não ficarem serão destruídos, não importa quem sejam. Você entendeu, Nisroc?
– Sssim.

Rephaim

– Sua pele é tão macia – Rephaim desceu as pontas dos dedos pelas curvas das costas nuas de Stevie Rae, maravilhado com o prazer que ele sentia por ser capaz de abraçá-la e de pressionar seu corpo totalmente humano contra o dela.
– Eu gosto que você me ache especial – Stevie Rae disse, sorrindo um pouco tímida para ele.
– Você é especial – ele respondeu. Então ele deu um suspiro e começou a gentilmente se soltar dela. – O amanhecer está próximo. Tenho que subir.
Stevie Rae se sentou e cobriu seus seios nus com o edredom grosso que ficava sobre a cama do seu pequeno e surpreendentemente bonito quarto nos túneis. Ela piscou seus grandes olhos azuis para ele. Seu cabelo estava despenteado e cacheado e emoldurava seu rosto, fazendo-a parecer uma jovem virgem inocente. Rephaim colocou sua calça jeans, pensando que ela era a coisa mais linda que ele já tinha visto na vida. E as próximas palavras dela tocaram o seu coração.
– Eu não quero que você vá, Rephaim.
– Você sabe que eu também não quero, mas preciso.
– Vo-você não pode simplesmente ficar aqui? Comigo? – ela perguntou com hesitação.
Ele suspirou e se sentou na beirada da cama que eles haviam acabado de compartilhar. Ele pegou a mão de Stevie Rae e entrelaçou os dedos dela entre os seus.
– Você iria me colocar numa gaiola?
Ele sentiu o corpo dela estremecer de choque – ou de repulsa?
– Não! Eu não quis dizer isso. Eu simplesmente pensei, bem, que talvez você pudesse tentar ficar aqui por um dia. Quero dizer, que tal a gente simplesmente continuar de mãos dadas, assim, até você acabar de se transformar?
Ele sorriu com tristeza para ela.
– Stevie Rae, um corvo não tem mãos. Estas aqui – ele pressionou suas palmas contra as dela – logo, logo irão virar garras. Eu vou, muito em breve, virar uma besta. Não vou reconhecer você.
– Então, que tal se eu mantiver meus braços em volta de você? Talvez daí você não tenha medo. Talvez você apenas deite ao meu lado de conchinha, fique aqui e durma. Quero dizer, você tem que dormir em algum momento, não tem?
Rephaim pensou antes de responder e então começou devagar a tentar explicar o inexplicável.
– Eu devo dormir, Stevie Rae, mas eu não me lembro de nada do período em que eu sou um corvo – de nada, exceto da agonia da transformação física e do prazer quase insuportável do vento contra as minhas asas, ele pensou. Mas ele não podia contar nenhuma dessas coisas para Stevie Rae. Uma iria afligi-la; a outra podia assustá-la. Então, em vez da verdade crua, ele contou a ela uma versão que pareceu mais civilizada, mais compreensível. – Um corvo não é um animal de estimação. É um pássaro selvagem. E se eu entrar em pânico e, ao tentar escapar, acabar machucando você?
– Ou a si mesmo – Stevie Rae disse solenemente. – Entendi. Realmente entendi. Eu só não gosto muito disso.
– Eu também não, mas acho que esse é o objetivo de Nyx. Estou pagando as consequências dos meus atos passados – ele envolveu as bochechas macias dela com as mãos e pressionou seus lábios contra os dela, murmurando: – É um preço que eu pago de bom grado porque o outro lado da moeda, a parte boa, são as horas que nós desfrutamos furtivamente enquanto sou humano.
– Não são horas furtivas! – Stevie Rae disse seriamente. – Nyx deu essas horas a você pelas boas escolhas que você fez. As consequências são de mão dupla, Rephaim. Elas podem ser boas e más.
De algum modo, aquilo fez o coração dele se sentir mais leve e então ele sorriu, beijando-a novamente.
– Vou me lembrar disso.
– Quero que você se lembre de outra coisa também. Você fez uma coisa boa hoje quando não deu as costas para os seus irmãos – os dedos dela puxaram um cacho loiro, e ele sabia que, não importava o que ela estivesse dizendo, aquilo era difícil para ela. Então, apesar de precisar sair dos túneis e subir para o céu que estava à sua espera, ele permaneceu sentado ao lado dela, segurando a sua mão, enquanto ela continuava: – Sinto muito que o seu irmão foi morto.
– Obrigado – ele disse em voz baixa, sem confiar muito na sua voz.
– Eles vieram até a Morada da Noite chamar você para ir embora com eles, não foi?
– Não exatamente. Meu Pai de fato os enviou para me encontrar, mas não para me levar embora com eles – Rephaim fez uma pausa, sem saber muito bem como explicar o resto para Stevie Rae. Eles não falaram sobre seus irmãos quando ficaram finalmente sozinhos; estavam ávidos demais para se tocarem, para ficarem próximos, para se amarem.
Stevie Rae apertou a mão dele.
– Você pode me contar. Eu confio em você, Rephaim. Por favor, confie em mim também.
– Eu confio! – ele exclamou, odiando a mágoa que viu nos olhos dela. – Mas você precisa entender que, apesar de meu pai ter me renegado, isso não muda nada aqui – ele tocou seu peito em cima do coração. – Eu sempre vou ser filho dele. Vou trilhar o caminho da Deusa. Vou lutar pela luz e pelo que é certo. Vou amar você. Sempre. Mas você precisa entender que, em algum lugar dentro de mim, eu sempre vou amá-lo também. Virar humano me ensinou isso.
– Rephaim, eu preciso lhe contar uma coisa que pode parecer maldosa, mas acho que você precisa ouvir isto.
Ele assentiu.
– Vá em frente. Conte-me.
– Antes de ser Marcada, eu era colega de escola de uma garota chamada Sallie. A mãe dela tinha sumido e abandonado Sallie e seu pai quando ela tinha dez anos. Isso porque a mãe dela era basicamente uma puta nojenta que não queria ter a responsabilidade de criar uma criança. Sallie ficou arrasada quando sua mãe foi embora, apesar de o pai dela fazer tudo o que podia por ela. Mas a pior parte da coisa toda é que a mãe dela não sumiu para sempre. Ela costumava voltar e, como dizia minha mãe, jogar merda no ventilador.
Ele olhou para ela com cara de interrogação. Stevie Rae explicou:
– Desculpe, isso quer dizer que a mãe dela voltava e ficava por perto só para ferrar a cabeça de Sallie, só para deixar a vida dela cheia desse drama idiota e tal. Sua mãe era egoísta, maldosa e totalmente louca.
– O que aconteceu com essa garota? – Rephaim perguntou.
– Quando eu fui Marcada e saí da escola, ela estava a caminho de ficar tão louca quanto a sua mãe porque ela não tinha força suficiente para dizer para a mãe ficar longe dela. Sallie ainda queria que a sua mãe fosse uma boa pessoa, que a amasse e se preocupasse com ela, apesar de isso simplesmente não ser possível – Stevie Rae inspirou profundamente e soltou o ar em um longo suspiro. – O que eu estou tentado dizer, e provavelmente não estou conseguindo fazer muito bem, é que você vai ter que decidir se você quer ser tão perturbado quanto o seu pai ou se você quer realmente começar uma vida nova.
– Eu já escolhi uma vida nova – ele respondeu.
Stevie Rae encontrou os olhos dele e balançou a cabeça com tristeza.
– Não por inteiro.
– Eu não posso traí-lo, Stevie Rae.
– Não estou pedindo para você fazer isso. Tudo o que estou pedindo é para você não deixar que ele jogue merda no seu ventilador.
– Ele queria que eu espionasse para ele. Foi isso que ele mandou meus irmãos me falaram. Eu disse não a Nisroc – Rephaim falou as palavras rápido, como se assim ele pudesse se livrar do gosto amargo delas.
Stevie Rae assentiu.
– Sim, está vendo só, jogando merda no ventilador.
– Eu realmente vejo isso, apesar de não ser uma coisa fácil de olhar. A gente pode ficar sem falar dele por um tempo? Tudo isso é novo para mim. Eu preciso descobrir como encontrar meu lugar neste mundo – Rephaim olhou dentro dos olhos meigos de Stevie Rae, desejando que ela entendesse. – Eu estive com meu pai por centenas de anos. Vai levar algum tempo até que eu me acostume a não estar ao seu lado.
– Isso faz sentido. Que tal isto: vou dizer para Zoey e o resto da turma que os seus irmãos foram lá para informá-lo de que Kalona o aceitaria de volta se você admitisse que cometeu um erro. Você disse não, então eles estavam indo embora quando Dragon e aquele tal de Aurox viram vocês. Essa é a verdade, certo?
– Sim. E o resto, a parte sobre o meu pai me pedir para espionar para ele?
– Bem, eu aposto que todo mundo imagina que Kalona iria tentar usar você contra nós se você deixasse. Você não vai deixar, então acho que não é preciso explicar tudo nos mínimos detalhes.
– Obrigado, Stevie Rae.
Ela sorriu.
– Sem problemas. Como eu disse, confio em você.
Ele a beijou novamente, mas nesta hora ele começou a sentir um formigamento já bastante familiar, como se as suas penas estivessem se formando, crescendo, pressionando a pele para sair.
– Tenho que ir – então ele começou a sair rapidamente do quarto. Ele pôde ouvi-la se levantar da cama atrás dele e, quando olhou para trás, ela estava colocando uma camiseta e procurando pela sua calça jeans. – Não – ele disse com mais força do que pretendia, mas seu corpo já tinha começado a doer e ele sabia que não tinha muito tempo. – Não venha comigo. Você tem que se encontrar com Zoey.
– Mas depois eu posso...
– Não quero que você veja eu me transformar em uma besta!
– Eu não me importo com isso – ela disse, parecendo prestes a chorar.
– Mas eu me importo. Por favor. Não me siga – sem dizer mais nada, ele passou por baixo do cobertor que servia de porta do quarto de Stevie Rae. Na hora em que ele chegou na escada de metal que levava ao porão, já estava correndo. O suor brotava no seu corpo todo e ele tinha que ranger os dentes para não berrar com a agonia ardente da transformação que estava tomando conta dele. Ele saiu em disparada pelo portão e abriu a grade com ímpeto no momento em que o sol surgiu no horizonte. E, com um grito que se transformou em um grasnido de corvo, seu corpo mudou de forma e o corvo negro que não tinha a memória do garoto se lançou no sedutor céu da manhã à sua espera.

Stevie Rae

Stevie Rae não foi atrás dele, mas terminou de se vestir; enxugou os olhos antes de sair do quarto e tomar a direção oposta à que Rephaim havia tomado. Então rumou para o centro dos túneis da estação – a área tipo um beco sem saída que eles haviam transformado em cozinha e central de computadores. Montain Dew1, ela pensou enquanto sufocava um bocejo. Eu preciso de um pouco de cafeína e açúcar.
Ela dobrou uma esquina nos túneis e sorriu sonolenta para Damien, Zoey, Aphrodite e Darius. Os quatro estavam sentados em volta de uma mesa cheia de livros no meio da cozinha.
– Tem um monte de refrigerantes naquela geladeira – Zoey disse, indicando com um gesto uma das duas grandes geladeiras de duas portas.
– Só refrigerantes marrons ou tem mais do que isso?
– Tem refrigerantes marrons, verdes e transparentes. Ah, e um pouco de Orange Crush2, porque Kramisha disse que ela acha que é saudável – Z. respondeu.
– O que é uma bobagem – Aphrodite falou antes de virar uma garrafa de água Fiji3. – Prefira água. Qualquer outra coisa vai fazer você engordar. Bem, exceto sangue – ela fez uma pausa e o seu rosto bonito fez cara de nojo. – Não sei quantas calorias o sangue tem e, desde que deixei de ser novata, não quero nem pensar nisso.
Stevie Rae abriu a geladeira e olhou embasbacada para o seu interior carregado.
– De onde veio tudo isso?
Zoey deu um pequeno suspiro.
– Kramisha. Ela disse que, em vez de assistir à terceira aula, resolveu fazer um “estudo do meio” – Z. colocou aspas com os dedos – em Utica Square e, por acaso, ela esbarrou com alguns caras do turno da noite que estavam repondo as prateleiras no empório Petty’s.
Stevie Rae deu uma olhada para Z. através do braço da geladeira.
– Oh-oh. Baixou a vampira vermelha nela e ela acabou com eles?
– Ela definitivamente acabou com tudo que eles tinham – Damien disse. – É por isso que toda essa comida foi entregue aqui. Ela inclusive falou para eles trazerem esta mesa, que era de um dos conjuntos para colocar amostras de comida.
– Ela não os comeu, certo? – Stevie Rae perguntou, cruzando os dedos nas costas.
– Não, mas ela também não os pagou – Aphrodite respondeu. – Ela só fez que eles obedecessem às suas ordens e depois fossem embora e esquecessem tudo. Acho que vou levá-la comigo para Nova York da próxima vez que tiver uma venda exclusiva da Yoana Baraschi.
– Não. De jeito nenhum – Zoey falou e então olhou para Stevie Rae – Você está mesmo acordada? Stark e todos os novatos vermelhos, incluindo a Senhorita Kramisha Faça o que Eu Mando, estão roncando alto.
Stevie Rae pegou um Montain Dew e se juntou a eles na mesa, sentando pesadamente e bocejando.
– É, mais ou menos. É mais fácil ficar acordada durante o dia aqui embaixo, mas vou te contar, estou super cansada. Stark já está dormindo?
– Já – Z. pareceu preocupada. – Ele tem tido problemas para dormir desde, bem, você sabe, desde que ele voltou do Mundo do Além. Então, quando ele apagou, eu o deixei sozinho.
– Vai levar um tempo, mas logo ele vai voltar ao normal – Stevie Rae disse.
– Espero que sim – Zoey falou e então mordeu seu lábio.
– Falando em namorados, o seu já virou um pássaro? – Aphrodite perguntou.
– Sim – Stevie Rae franziu os olhos para ela. – E não quero falar sobre isso.
– Mas nós precisamos saber exatamente por que os Raven Mockers foram até a escola hoje – Darius disse sem ser indelicado. – E já que Rephaim não pode responder nossas perguntas agora, esperamos que você possa.
– Eu pensei que esta reunião era sobre a coisa da Visão Verdadeira – Stevie Rae respondeu, sentindo-se imediatamente na defensiva por Rephaim.
– Sim, mas também é uma reunião de revisão dos últimos acontecimentos – Damien afirmou. – Acho que nós precisamos fazer isso, você não acha?
Não havia meio de discutir com Damien, principalmente porque ele tinha aquele olhar doce e interessado no rosto. Stevie Rae encontrou seus olhos.
– Sim, acho que precisamos. Então, para começar, como você está lidando com tudo isso?
Damien piscou várias vezes, como se ele tivesse ficado surpreso com a pergunta, o que fez Stevie Rae se sentir péssima. Será possível que todo mundo tinha esquecido que Damien havia perdido seu namorado há apenas alguns dias?
– Eu me senti melhor indo para a escola hoje. Parece que foi um passo em direção à normalidade – Damien falou devagar e cuidadosamente, como se ele tivesse que pensar em cada palavra. – Mas eu tenho muita saudade de Jack. Na verdade, e sei que isso pode parecer loucura, mas eu ainda fico esperando cruzar com ele em cada canto dos corredores.
– Isso não é loucura – Zoey disse. – Eu ainda fico esperando ver Heath também. É difícil e totalmente errado quando alguém morre tão cedo – todo mundo observou várias expressões passarem pelo rosto de Zoey, e então ela acrescentou: – Minha mãe também. Sei que estou na Morada da Noite desde o ano passado, e mesmo antes disso eu e ela não éramos próximas já há algum tempo, mas é difícil realmente entender que ela está morta. Então eu compreendo o que você disse sobre Jack.
– Isso também faz que eu me sinta melhor – Damien afirmou. – O fato de que vocês entendem como é perder alguém próximo – ele sorriu para Stevie Rae. – Então, a minha resposta à sua pergunta é que eu estou lidando com tudo da melhor forma possível.
– Ótimo. Próxima pergunta ou, na verdade, a pergunta original – Aphrodite falou. – O que os meninos-pássaros estavam fazendo na Morada da Noite?
– Kalona os enviou para dizer a Rephaim que o seu papaizinho iria aceitá-lo de volta assim que ele admitisse que cometeu um erro por escolher a mim e a Deusa – Stevie Rae balançou a cabeça. – Às vezes eu acho que Kalona é completamente burro.
– O que você quer dizer? – Z. perguntou.
– Caramba, Rephaim não é o meu namorado oficial nem há um mês. Era de se imaginar que ele pelo menos nos desse a chance de ter a nossa primeira briga antes de falar “aaaah, você cometeu um erro”.
– Qual foi exatamente a resposta de Rephaim? – Darius quis saber.
– Bem, o que você acha? Santo Deus, ele ainda está aqui – Stevie Rae sentiu sua raiva crescer. – Ele mandou dizer a Kalona que não havia cometido nenhum erro e que não iria voltar. Ponto. Fim da história.
– Sim, mas é só isso? – Aphrodite insistiu.
– Só isso o quê? – Stevie Rae rebateu.
– Esse é o fim? Kalona não vai continuar rondando, tentando fazer Rephaim ver a luz ou qualquer coisa assim?
– E daí se ele fizer isso? Rephaim não está mais no time dele. Aliás, ele não está mais no time dele há bastante tempo.
– Assim você diz.
– Assim ele diz! – Stevie Rae sentia que ia explodir. – Assim o pai dele diz. Assim os irmãos dele dizem. Assim até Nyx diz! A maldita Deusa apareceu em pessoa e o perdoou. O que mais Rephaim precisa fazer para provar a vocês que ele mudou?
– Ei, ninguém está dizendo que Rephaim tem que provar nada – Zoey afirmou, disparando um olhar de você não está ajudando para Aphrodite. – Mas nós realmente precisamos saber se está rolando algo com Kalona e os Raven Mockers.
– Z., não está rolando nada com eles. Bem exceto que Rephaim ficou realmente triste por aquele touro maldito ter matado um deles. É sério, pessoal, os irmãos de Rephaim não estavam fazendo nada além de conversar com ele. Dragon apareceu e ficou enfurecido, é claro, mas todos sabemos que por causa de Anastasia. Mesmo assim, os Raven Mockers só estavam se defendendo. A gente deveria estar fazendo perguntas sobre Aurox, isso sim.
– É, mas a gente não tem as respostas sobre Aurox aqui, e nós deveríamos ter as respostas sobre Rephaim – Aphrodite disse.
– Eu já dei as respostas sobre ele – mesmo fraca e cansada como ela se sentia porque o sol já havia nascido, Stevie Rae automaticamente começou a extrair poder da terra. Não que ela fosse mesmo machucar Aphrodite, mas bem que a garota merecia uma boa palmada.
– Ei, você está com um brilho verde – Z. observou.
– É claro, estou irritada! – Stevie Rae viu Darius se mover para perto de Aphrodite, o que realmente a incomodou. – E quer saber de uma coisa, Darius, você precisa pensar melhor no que faz. Nós estamos todos do mesmo lado aqui, mas isso não significa que a gente não possa ficar bravo um com o outro de vez em quando.
– Acho que todos nós entendemos isso. Não é mesmo, Darius? – Damien falou com a sua voz mais calma e tranquilizadora.
– Sim, é claro – Darius respondeu.
Aphrodite bufou.
– Então, basicamente, Rephaim disse não a Kalona e os Raven Mockers eram só mensageiros – Z. concluiu. – Certo?
– Totalmente certo – Stevie Rae disse.
– Então vamos passar para a Visão Verdadeira – Zoey olhou para Damien. – Você pode resumir o que descobriu?
– Sim, mas não é muito. Há só uma pequena referência a ela no manual avançado. Basicamente, é rara e não tem aparecido há bastante tempo. Tipo, há mais de uns duzentos anos. É frustrante porque não há muita documentação sobre ela, mas, pelo que pude observar, parece que um novato ou vampiro que recebe o dom da Visão Verdadeira tem a capacidade de ver a verdade sobre as pessoas. E, a propósito, normalmente são os vampiros que a recebem.
– É um donzinho bem conveniente – Aphrodite comentou.
– Seria, mas o problema é que a visão é tão precisa quanto a pessoa que tem o dom – Damien acrescentou.
– Ahn? – Zoey não entendeu.
– É assim: Shaylin tem que ser boa usando o seu dom. Ela tem que entender o que está vendo e interpretar corretamente – Damien explicou.
– E se ela não for, só vai ver um monte de cores? – Zoey perguntou.
– Pior – Damien respondeu. – Porque a Visão Verdadeira nunca é só um monte de cores. Todos nós sabemos que ela enxerga o interior da alma das pessoas – ele balançou a cabeça. – No manual, há trechos de histórias sobre como a Visão Verdadeira já foi mal compreendida e usada erroneamente. Pode ser ruim, muito ruim.
– E não há diretrizes, regras ou nada parecido? – Zoey quis saber.
– Nada. É diferente para cada um que tem a Visão – Damien disse.
– Então nós estamos atirando no escuro – Stevie Rae falou, sentindo-se completamente arrasada. – de novo.
– Acho que vai depender totalmente do tipo de pessoa que Shaylin é – Damien afirmou.
– Ela está andando com Erik, o que não é um bom sinal – Aphrodite comentou.
– Ei, algumas de nós que também costumavam andar com Erik acabaram sendo pessoas legais – Zoey respondeu. – Além disso, uma garota que pode ver as verdadeiras cores dele pode ser uma boa para ele.
Aphrodite bufou.
– Se ela realmente conseguir traduzir as cores dele corretamente... ou sei lá como se chama isso.
– Quero acreditar que ela consegue – Damien disse.
– É, eu também – Stevie Rae falou, mas em quem ela realmente estava pensando era em Rephaim e Kalona. Por favor, Nyx, permita que Rephaim seja capaz de enxergar a verdade. Depois de fazer essa prece fervorosa em silêncio, ela levantou a cabeça e encontrou o olhar intenso da sua melhor amiga.
– Eu também quero acreditar – Zoey afirmou suavemente, como se pudesse ler a mente de Stevie Rae.
– Bem, eu quero acreditar que, quando eu colocar meu pé para fora desta cozinha e começar a andar pelo corredor, vou ser instantaneamente transportada para uma suíte do Ritz-Carlton nas Ilhas Cayman. Eu entendo que vocês têm problemas com o sol, mas eu poderia tostar um pouco e agitar – Aphrodite fez uma pausa e sorriu de um jeito sexy para Darius. – Deixa a parte de tostar comigo e você aguenta o agito.
Stevie Rae se levantou e bocejou.
– Bem, antes que vocês fiquem totalmente indecentes, vou dar uma apagada. Vejo todo mundo quando anoitecer.
– Eca, escola e não Ritz. Duplo eca, realidade. Deusa, estou feliz que amanhã é sexta-feira – Aphrodite levantou uma sobrancelha loira para Zoey. – Prometo a você que eu vou fazer umas boas compras e visitar lojas de decoração neste fim de semana. A luta contra o mal, as Trevas ou o que quer que seja vai ter que esperar.
– Ei, por falar em quartos, alguém sabe onde Erik acomodou Shaylin? – Stevie Rae perguntou junto com outro bocejo.
– No quarto de Elizabeth Sem Sobrenome – Damien respondeu.
– Meio assustador – Stevie Rae afirmou.
– Elizabeth não está aparecendo mais por lá – Aphrodite comentou.
– Vou para a cama – Zoey disse. – Boa noite, pessoal.
Todos falaram “boa noite” para Zoey, e Stevie Rae a observou enquanto caminhava devagar pelo corredor em direção ao antigo quarto de Dallas, que agora ela e Stark estavam usando. Seus passos eram lentos e seus ombros estavam caídos, como se ela estivesse se esforçando muito para carregar peso demais sobre eles.
Stevie Rae suspirou. Ela sabia exatamente como Z. se sentia.
1 Montain Dew (orvalho da montanha, na tradução literal) é um refrigerante verde-limão de sabor cítrico, fabricado pela Pepsi, que contém cafeína entre os seus ingredientes. É bastante popular principalmente no sul dos EUA e no interior do país. (N.T.)
2 Orange Crush é um refrigerante de laranja. (N.T.)
3 Fiji é uma água vulcânica engarrafada nas Ilhas Fiji, no Oceano Pacífico, e comercializada pela companhia norte-americana Fiji Water. (N.T.)

Capítulo 11
Lenobia
Lenobia farejou o ar. Misturado ao cheiro de serragem, couro, ração doce e cavalo havia algo mais – alguma coisa defumada e vagamente familiar. Ela deu uma última escovada em Mujaji – sua égua favorita, uma Quarto de Milha preta e forte – e, guiada pelo olfato, saiu da baia. Ela seguiu pelo corredor comprido e largo em que havia, de ambos os lados, uma fileira de baias espaçosas. Seu nariz a levou exatamente para onde ela esperava: a grande baia para animais prenhos perto da selaria. Movendo-se sem fazer barulho, Lenobia disse a si mesma que não estava propriamente o espionando. Ela só estava tomando cuidado para não assustar a égua dele.
Travis estava de costas para ela. O cowboy estava em pé no meio da baia. Em uma mão ele segurava um bastão grosso de ervas secas fumegantes; com a outra, ele fazia movimentos para trazer a fumaça clara para cima de si mesmo. Bonnie, sua grande égua Percherão, estava na frente dele, tirando uma soneca com uma pata flexionada. Ela apenas contraiu levemente uma orelha quando ele foi até ela e passou a erva fumegante por todo o contorno do seu enorme corpo. Depois ele foi até a cama portátil que ele tinha armado no outro canto da baia, dando a ela o mesmo tratamento de fumaça que havia dispensado à égua e a si mesmo. Foi só quando ele começou a se virar que Lenobia deu um passo para trás e saiu do seu campo de visão. Refletindo sobre o que tinha visto, Lenobia saiu pela porta lateral do estábulo e andou um pouco até um banco, onde ela se sentou, inspirou o ar calmo e frio da noite e tentou analisar seus pensamentos.
O cowboy havia queimado sálvia. Na verdade, Lenobia tinha certeza pelo aroma de que era sálvia branca. Excelente para purificar um espaço. Mas por que um cowboy de Oklahoma estaria fazendo isso?
Comportamento humano? O que ela sabia sobre isso? Ela havia tido apenas um contato superficial com os humanos por... Lenobia pensou enquanto girava a aliança fina de ouro com uma esmeralda em forma de coração que dava voltas no seu dedo anular da mão esquerda. Ela sabia exatamente há quanto tempo ela havia estado próxima de um ser humano, mais especificamente, de um humano masculino: duzentos e vinte e três anos.
Lenobia olhou para seu dedo anular. Não havia muita claridade ainda. O amanhecer estava apenas começando a tingir o céu de um cinza-azulado, e ela quase pôde ver o verde puro da esmeralda. Nesta luz, a sua beleza era ilusória, sombreada – como as memórias de rostos do seu passado.
Lenobia não gostava de se lembrar desses rostos. Ela havia aprendido há muito tempo a viver o aqui e o agora. O dia de hoje já representava uma batalha mais do que suficiente. Ela olhou para o leste e franziu os olhos com a luz que estava surgindo no horizonte.
– O dia de hoje também tem alegria suficiente. Cavalos e alegria. Cavalos e alegria – Lenobia repetiu as palavras que eram o seu mantra há mais de dois séculos. – Cavalos e alegria...
– Para mim, os dois sempre andaram juntos.
Até o cérebro de Lenobia processar que era o cowboy humano quem havia falado e não alguma ameaça horrível, seu corpo já tinha dado um giro rápido e se agachado defensivamente – e então, de dentro do estábulo, veio um relincho que era o grito de guerra de uma égua.
– Oooa, calma lá – Travis disse enquanto levantou as mãos, mostrando que elas estavam vazias, e então deu um passo para trás. – Eu não queria...
Lenobia o ignorou, abaixou a cabeça, inspirou profundamente e falou:
– Não há perigo. Estou bem. Durma, minha linda – então ela levantou a cabeça e seus olhos cinza fuzilaram o homem. – Lembre-se disto: não fique me espreitando. Nunca.
– Sim, madame. Aprendi a lição, apesar de eu não estar espreitando você. Não imaginava que uma vampira estaria aqui fora a esta hora do dia.
– Nós não queimamos com a luz do sol. Isso é um mito – Lenobia estava pensando se ele precisava saber que os novatos e vampiros vermelhos realmente queimavam, mas a resposta dele a fez perder sua linha de pensamento.
– Sim, madame. Eu sei disso. Também sei que a luz do sol é desconfortável para vocês, por isso imaginei que eu estaria sozinho aqui fora, bem, para fumar isto aqui – Travis fez uma pausa e pegou um cigarro fino no bolso da frente do seu casaco de couro com franjas – e ver o sol nascer. Eu não tinha nem visto a senhora sentada aí até ouvir sua voz – o sorriso dele era charmoso e aquecia seus olhos, dando a eles um brilho que transformava a sua cor castanha normal em um tom mais claro de avelã, algo que Lenobia não tinha visto acontecer antes. Reparar nisso agora fez o estômago dela se contrair. Ela desviou os olhos rapidamente e se sacudiu mentalmente para prestar atenção nas palavras dele: – Ouvir você dizer “cavalos e alegria” me fez falar sem pensar. Da próxima vez, vou limpar a garganta, tossir ou fazer outra coisa antes.
Sentindo-se estranhamente desconcertada, Lenobia fez a primeira pergunta que lhe veio à cabeça:
– Por que você sabe coisas sobre vampiros? Você já foi o companheiro de alguma vampira?
O sorriso dele se abriu mais.
– Não, nada parecido. Eu sei um pouco sobre vampiros porque minha mãe gostava de vocês.
– De nós? Sua mãe me conhece?
Ele balançou a cabeça.
– Não, madame. Eu não me referi à senhora ou a vocês especificamente. Quis dizer vampiros em geral. Veja bem, minha mãe tinha uma amiga que havia sido Marcada quando elas eram crianças. Elas permaneceram em contato e costumavam trocar cartas, muitas cartas. E continuaram escrevendo uma à outra até o dia em que minha mãe morreu.
– Sinto muito pela sua mãe – Lenobia disse, sentindo-se sem jeito. Os humanos viviam tão pouco. Eles podiam ser mortos tão facilmente. Era estranho que ela quase tivesse se esquecido disso a respeito deles. Quase.
– Obrigado. Foi câncer. A doença avançou rápido. Faz cinco anos que ela se foi – Travis olhou em direção ao sol nascente. – A sua hora favorita do dia era o amanhecer. Gosto de me lembrar dela nesta hora.
– Esta também é a minha hora favorita do dia – Lenobia se surpreendeu dizendo isso.
– É uma coincidência agradável – Travis falou, voltando seu olhar para ela e sorrindo. – Madame, posso fazer uma pergunta?
– Sim, acho que sim – Lenobia respondeu, pega desprevenida mais pelo sorriso do que pelo pedido de pergunta.
– Sua égua a chamou quando eu assustei a senhora.
– Você não me assustou. Você me deixou alarmada. Há uma grande diferença.
– Você pode ter razão. Mas, como eu estava dizendo, sua égua a chamou. Então você falou e ela se acalmou, apesar de não ser possível que ela tenha escutado você aqui fora.
– Isso não é uma pergunta – Lenobia respondeu secamente.
Ele levantou as sobrancelhas.
– Você é uma senhora inteligente. Você sabe o que eu quero perguntar.
– Você quer saber se Mujaji pode ouvir meus pensamentos.
– Sim – Travis respondeu, observando-a e assentindo devagar.
– Não estou acostumada a conversar com humanos sobre os dons da nossa Deusa.
– Nyx – Travis falou. Quando ela o encarou, ele apenas deu de ombros e continuou: – Esse é o nome da sua Deusa, não é?
– É.
– Nyx vai se importar se você falar com humanos sobre ela?
Lenobia o analisou atentamente. Ele não parecia ser nada além de autenticamente curioso.
– Qual seria a resposta da sua mãe para essa pergunta?
– Ela diria que Willow havia escrito bastante sobre Nyx para ela e que a Deusa não parecia se importar nem um pouco com isso. É claro que Willow e eu não trocamos cartas, e eu não tive mais notícias dela desde que ela veio ao funeral da minha mãe, mas nessa ocasião ela me pareceu bastante saudável e definitivamente não tinha sido golpeada por nenhuma Deusa.
– Willow?
– Elas eram crianças nos anos 1960. O primeiro nome de minha mãe era Rain1. Você vai me responder ou não?
– Vou, desde que você me responda uma pergunta também.
– Feito – ele concordou.
– O dom que recebi de Nyx é a minha afinidade com cavalos. Eu não posso literalmente ler as mentes deles, assim como eles também não podem literalmente ler a minha, mas eu realmente capto imagens e emoções deles, especialmente de cavalos com os quais eu tenho uma conexão próxima, como a minha égua Mujaji.
– E você captou essas coisas, imagens e tal de Bonnie sobre mim?
Lenobia teve que se esforçar para não rir da ansiedade dele.
– Sim. Ela o ama muito. Você tem cuidado bem dela. Sua égua Percherão tem uma mente interessante.
– Ela tem, mas às vezes é meio cabeça-dura.
Então Lenobia realmente sorriu.
– Mas nunca é maldosa, nem quando ela se esquece que pesa mais de novecentos quilos e quase passa por cima de meros humanos.
– Bem, madame, eu acho que Bonnie vai passar por cima de meros vampiros também se ela tiver a oportunidade.
– Vou me lembrar disso – ela disse. – E agora a minha pergunta. Por que você estava fazendo defumação?
– Ah, a senhora viu? Bem, madame, meu pai é em parte descendente de índios Muscogee, que provavelmente a senhora conhece como o povo Creek. Eu herdei alguns dos seus hábitos; defumar um ambiente novo é um deles – ele fez uma pausa e deu um meio sorriso. – Eu pensei que você ia me perguntar por que aceitei este emprego.
– Bonnie já meu deu essa resposta.
Ela ficou satisfeita por ver os olhos dele se arregalarem de surpresa.
– Você disse que não podia ouvir os pensamentos dos cavalos.
– O que eu captei de Bonnie é que você tem viajado sem parar há algum tempo. Isso me leva a crer que nós somos apenas a próxima parada na sua jornada.
– Ela está bem com essas viagens todas? Quero dizer, isso não está fazendo mal a ela, certo?
Um pouco de simpatia pelo cowboy correu dentro das veias dela e pulsou através do seu corpo.
– Sua égua está bem. Ela está feliz, desde que esteja com você.
Ele colocou o chapéu para trás e coçou a testa.
– Bem, é um alívio. Para mim tem sido difícil me fixar em algum lugar desde a morte da minha mãe. O rancho simplesmente não é o mesmo sem...
Não muito longe deles, a manhã tranquila foi perturbada pelo barulho de motores e gritos.
– Bem, que diabo é isso?
– Não tenho a menor ideia, mas vou descobrir – Lenobia se levantou e começou a andar a passos largos em direção ao som de caos. Ela percebeu que Travis a acompanhou e continuou ao seu lado, então deu uma olhada para ele. – Quando Neferet entrevistou você, ela chegou a mencionar que algumas coisas bem desagradáveis aconteceram recentemente nesta Morada da Noite?
– Não, madame – ele respondeu.
– Bem, você ainda pode querer pensar duas vezes antes de aceitar este emprego. Se você está procurando por paz, este é definitivamente o lugar errado para você.
– Não, madame – ele repetiu. – Eu nunca fujo de uma briga. Também não procuro encrenca, mas quando ela me encontra eu não corro.
– Que pena que os cowboys não andam mais armados – ela murmurou.
Travis deu um tapinha na lateral do seu casaco e sorriu sombriamente.
– Alguns de nós ainda andam, madame. Oklahoma tem o bom senso de ser um Estado em que é permitido portar arma de forma discreta.
Ela arregalou levemente os olhos.
– Fico feliz de ouvir isso. Uma dica rápida: se avistar algo que tem asas como um pássaro e olhos vermelhos que parecem humanos, prepare-se para atirar.
– Você não está brincando, certo?
– Não.
Juntos eles seguiram o barulho pelo campus já iluminado e se aproximaram dos jardins centrais da escola. Quando eles chegaram ao bonito gramado da frente, diminuíram o passo e então pararam. Lenobia balançou a cabeça.
– Eu não acredito.
– Você não quer que eu atire neles, quer?
Ela franziu a testa.
– Não ainda – então ela marchou para o meio da caravana de caminhões, carretas, equipamentos de jardinagem e homens (humanos, sem sombra de dúvida) e se juntou à vampira de olhos embaçados e cara de quem tinha acabado de acordar, mas que estava realmente muito nervosa, enfrentando todos eles com coragem.
– Você é surdo ou burro? Eu disse para você não tocar nos meus jardins, principalmente nesta hora ridícula do dia em que os professores e estudantes estão tentando dormir.
– Gaea, o que está acontecendo aqui? – Lenobia segurou o braço da vampira, pois parecia que ela ia se lançar contra o pobre e confuso homem que estava segurando uma prancheta e havia imprudentemente se identificado como o líder do grupo. Ele estava olhando para Gaea com uma mistura de pavor e admiração, a qual Lenobia compreendeu. Gaea era alta, magra e tinha uma beleza incomum, mesmo para uma vampira. Ela poderia ter sido uma fabulosa modelo de sucesso, se não estivesse completamente feliz cuidando da terra.
– Esses homens – Gaea pronunciou a palavra como se ela tivesse um gosto ruim – simplesmente apareceram do nada e começaram a atacar meus jardins!
– Veja bem, patroa, como eu disse antes, nós fomos contratados ontem como o novo serviço de jardinagem da Morada da Noite. Nós não estamos atacando nada, estamos cortando a grama.
Lenobia conteve um grito de frustração total. Em vez disso, ela perguntou ao homem:
– E quem contratou vocês?
Ele olhou para a sua prancheta.
– O nome que o chefe me passou é Neferet. É você?
Lenobia balançou a cabeça.
– Não, mas é o nome da nossa Grande Sacerdotisa – ela se virou para a responsável pelo jardim. – Gaea, você não foi informada de que Neferet iria contratar humanos para trabalhar na Morada da Noite?
– Fui informada sim. Só não recebi a informação de que os humanos iriam usurpar a minha posição.
É claro que você não recebeu, Lenobia pensou sombriamente, Neferet não queria que nenhuma de nós estivesse preparada para o que ela está fazendo, e você é tão protetora com os seus gramados, arbustos e flores quanto eu sou com os meus cavalos. E isso é algo que a nossa Grande Sacerdotisa manipuladora sabe muito bem. Lenobia balançou a cabeça, irritada com o xeque-mate de Neferet.
– Não, Gaea – ela explicou com a sua voz mais moderada. – Você não está sendo usurpada. Você está sendo ajudada.
Lenobia via a batalha interna nos olhos de Gaea. Obviamente, da mesma forma que ela, Gaea não queria ajuda humana, mas ir contra uma norma criada pela Grande Sacerdotisa e sancionada pelo Conselho Supremo dos Vampiros iria trazer um clima de discórdia para a escola.
E a verdade ancestral dos vampiros era que eles não deviam mostrar nenhuma discórdia na frente dos humanos.
– Sim, bem, eu entendo – quando Gaea preferiu seguir a verdade ancestral dos vampiros em vez do orgulho e do poder, Lenobia soltou um pouco da tensão do seu corpo. – Eu fui pega desprevenida. Obrigada, Lenobia, por me ajudar a enxergar esta situação mais claramente – então ela se virou para o homem e para os trabalhadores que estavam cortando a grama nervosos atrás dele. Gaea sorriu e Lenobia viu os homens ficarem de queixo caído e de olhos arregalados quando toda a força da beleza dela os atingiu. – Quero pedir desculpas pela confusão inicial. Parece que houve um problema de comunicação. Nós podemos discutir agora exatamente o que o trabalho de vocês vai exigir e como seria melhor se...
Lenobia se retirou enquanto Gaea se lançava em uma longa explanação sobre a melhor época para cortar a grama e as fases da lua. Travis novamente a acompanhou.
Ele limpou a garganta.
Sem olhar para ele, Lenobia falou:
– Vá em frente. Diga seja lá o que você quer dizer.
– Bem, madame, para mim parece que está havendo muita confusão relacionada a trabalho nesta escola.
– Para mim também parece – Lenobia concordou.
– Sua chefe não deve ser...
– Neferet não é minha chefe – Lenobia o interrompeu.
– Certo, vou reformular o que eu disse. Parece que a minha chefe andou contratando muitos trabalhadores sem avisar nada às pessoas que mais vão ser afetadas por essas contratações. Então, eu estava pensando, será que isso tem algo a ver com as coisas desagradáveis que você mencionou antes?
– Pode ser – Lenobia afirmou. Nessa hora, eles já estavam de volta à porta principal do estábulo. Ela parou e encarou Travis. – Você deve se acostumar a não ficar surpreso com confusão e caos. Pode haver muito dos dois por aqui.
– Mas você não vai me dar os detalhes. Estou certo?
– Está – Lenobia respondeu.
Travis inclinou seu chapéu para trás.
– E que tal uma explicação sobre aqueles pássaros de olhos vermelhos?
– Raven Mockers – Lenobia falou. – É assim que eles são chamados. Os cavalos não gostam deles; eles não gostam de cavalos. Eles têm causado problemas aqui ultimamente.
– O que eles são? – Travis perguntou.
Lenobia suspirou.
– Não são humanos. Nem pássaros. Nem vampiros.
– Bem, madame, parece que eles não são coisa boa. Devo atirar se eles se aproximarem dos cavalos?
– Atire se eles atacarem os cavalos – Lenobia sustentou o olhar dele. – Minha regra geral é: proteja os cavalos primeiro, faça perguntas depois.
– Boa regra – Travis aprovou.
– Também acho – Lenobia inclinou a cabeça na direção do estábulo. – Você tem tudo o que precisa lá dentro?
– Sim, madame, Bonnie e eu não precisamos de muita coisa – ele fez uma pausa e então acrescentou: – A senhora quer que eu troque o meu horário de sono para acompanhar o seu?
– Bem, eu quero que você mude o seu padrão de sono, mas para acompanhar a escola inteira, não apenas a mim – Lenobia falou depressa, perguntando-se por que havia ficado constrangida com o que ele havia dito. – E você vai ficar surpreso de ver como Bonnie vai se adaptar rápido à troca do dia pela noite.
– Bonnie e eu já cavalgamos muito à noite por aí.
– Ótimo, então você já está um pouco preparado para a mudança – houve um momento embaraçoso, quando os dois apenas ficaram parados ali, então Lenobia disse: – Ah, meu alojamento é ali em cima – ela apontou para o segundo andar de pé-direito alto acima do estábulo. – O resto dos professores fica lá atrás – Lenobia levantou o queixo na direção do prédio principal do campus. – Eu prefiro ficar mais perto dos cavalos.
– Parece que eu e você concordamos plenamente em pelo menos uma coisa.
Ela levantou as sobrancelhas em uma pergunta silenciosa.
Travis sorriu.
– Preferimos cavalos – ele abriu a porta para ela.
Lenobia entrou no estábulo e eles caminharam juntos até chegarem à escada que levava ao andar de cima.
– Eu suponho que vou vê-lo ao anoitecer – ela disse.
Travis tocou seu chapéu em cumprimento a ela.
– Sim, madame, vai ver. Boa noite.
– Boa noite – Lenobia respondeu e então subiu rápido a escada, sentindo o olhar dele nas suas costas mesmo depois de sair do seu campo de visão.

1 Em inglês, willow quer dizer salgueiro e rain, chuva. Nos anos 1960, época do movimento hippie, era comum dar aos filhos nomes de elementos da natureza. (N.T.)

12

Aurox
Aurox seguiu sua Sacerdotisa do prédio dos professores até a luz pálida do pôr do sol. Apesar de ser inverno e de o sol não aquecer e, verdade seja dita, ter pouca luminosidade, ela se encolheu como se aquela réstia de sol tivesse provocado nela alguma dor. Ele observou enquanto ela puxava mais o capuz do seu manto verde sobre a cabeça, de modo que ele encobrisse completamente seu rosto.
– Luz do sol! – Neferet fez as palavras soarem amargas. – Vou fazê-los pagar por me fazerem sair à luz do sol. Ela olhou para ele antes de colocar seus óculos escuros espelhados. – Na verdade, você deve fazer que eles paguem.
– Sim, Sacerdotisa – ele disse automaticamente.
Regiamente, Neferet foi até o grande carro preto que ela havia ordenado que ele aprendesse a dirigir e parou ao lado da porta, esperando que ele a abrisse, o que ele fez rapidamente. Aurox reparou que, mesmo à luz do sol, Neferet emitia uma sombra que era escura de um modo sobrenatural. As Trevas sempre a acompanham, ele pensou.
Depois que ele deu a partida no carro, ela apertou um botão no espelho retrovisor e uma voz perguntou:
– Sim, Neferet, aonde o OnStar1 vai levá-la hoje?
– Will Rogers High School, Tulsa, Oklahoma – ela respondeu à voz e então ordenou para ele: – Siga exatamente as instruções.
– Sim, Sacerdotisa – era tudo o que ele devia dizer.
Desde o momento em que estacionou na frente do prédio, Aurox achou o edifício de tijolos claros e pedra trabalhada agradável aos seus olhos. Ele seguiu Neferet para dentro, entrando no primeiro dos seus corredores amplos e iluminados, e foi surpreendido pela impressão que teve do lugar. Era quase como se o prédio fosse dotado de sensibilidade. Ele tinha uma sábia capacidade de ouvir que Aurox achou incrivelmente tranquilizadora.
Mas como isso era possível? Como um prédio podia fazê-lo sentir alguma coisa?
Havia ali apenas um segurança idoso. Ele havia se aproximado de Neferet, andando devagar e mancando, mais curioso e educado do que precavido.
– Posso ajudá-los?
– Sim, a escola tem algum subsolo? Um grande porão ou um sistema de túneis? – Neferet perguntou, colocando o capuz para trás e tirando os óculos escuros.
Os olhos do guarda primeiro se arregalaram com a sua beleza e depois se fixaram nas suas tatuagens cor de safira.
– Nós temos alguns velhos túneis no porão que, na verdade, não têm sido usados desde a época dos abrigos antibomba. Quer dizer, ou como um refúgio contra tornados de vez em quando. Por que você...
– Como se chega aos túneis? – Neferet o cortou.
– Desculpe, eu precisaria de permissão administrativa para qualquer...
– Isso não será necessário – desta vez ela acrescentou um sorriso sedutor às suas palavras. – Estou simplesmente levantando informação histórica sobre o prédio da escola. Os túneis ainda são acessíveis, não são?
O homem pareceu igualmente confuso com a sua pergunta e deslumbrado com o seu sorriso.
– Ah, sim. É fácil chegar até eles. É só seguir este corredor principal aqui até chegar à biblioteca – ele fez um gesto indicando a direita deles. – Há escadas no canto do corredor de intersecção. Desça um lance de escada. O acesso é através de uma velha sala de música, que fica depois do próximo corredor à direita. Eu tenho a chave-mestra comigo. Acho que não teria nenhum problema se você desse uma olhada rápida. Não está havendo nenhuma aula agora ou...
– Incapacite-o, mas não o mate – Neferet ordenou. – Ah, e me dê a chave.
Aurox o atingiu com força o bastante para deixá-lo inconsciente. Ele achava que o velho homem não tinha morrido, mas não tinha certeza. Não havia tempo para conferir. Ele entregou as chaves tilintantes a Neferet e ela se apressou na direção que o homem havia imprudentemente indicado. Neferet fez uma pausa quando chegou à sala grande à sua esquerda, dando uma olhada pelo vidro das portas fechadas. Aurox olhou junto com ela. Era um lugar elegante. Amplo, com luminárias decorativas que pendiam sobre as mesas e as prateleiras de livros.
Foi estranho que Aurox percebeu uma capacidade de espera vinda lá de dentro.
– Biblioteca – ela disse. – Toda essa arquitetura art déco é completamente desperdiçada com adolescentes humanos – Neferet deixou de lado a beleza e a majestade do prédio e indicou com a cabeça o corredor de intersecção na frente deles. – Este é o caminho certo.
Quase com relutância, Aurox a seguiu.
– Esta é uma escola, assim como a Morada da Noite é uma escola? – Aurox teve que dar voz a algumas das perguntas que estavam passando pela sua mente.
Neferet nem olhou para ele.
– É uma escola humana, uma escola pública. Não é como a Morada da Noite – ela deu de ombros suavemente. – Praticamente posso ver os hormônios e a testosterona. Por que você pergunta?
– Estou apenas curioso.
Ela olhou rapidamente para ele.
– Não seja curioso.
– Sim, Sacerdotisa – ele disse em voz baixa.
Eles seguiram seu caminho dentro do edifício silencioso e o corredor ficou cada vez menos banhado pela luz do sol. As sombras em volta de Neferet se agitaram quando ela parou na frente de uma porta com notas musicais pintadas.
– É aqui – ela disse, enquanto destrancava a porta e entrava em uma área suja que tinha cheiro de pó e desleixo. À sua esquerda, havia uma sala cheia de cadeiras e suportes metálicos. Diante deles, havia um espaço atravancado que levava a mais escuridão. Neferet hesitou e emitiu um som baixo de frustração. – Já me cansei de procurar.
Então Neferet levantou a mão direita e pressionou a unha afiada do seu dedo médio da mão esquerda contra a sua palma, abrindo uma ferida que derramou gotas vermelhas.
“Para os vermelhos, eu ordeno, você me levará;
Meu sangue o seu pagamento será.”
Fascinado, Aurox observou as Trevas se soltarem das sombras embaixo e em volta de Neferet, bem como dos cantos da sala. Gavinhas serpentearam na direção dela. Enroscando-se no seu corpo, elas subiram pela sua pele até alcançarem o sangue que estava empoçado na palma de sua mão. Ali as Trevas se alimentaram, fazendo Neferet tremer e gemer como se estivesse com dor, mas a Sacerdotisa não fechou a mão e não a puxou para trás.
Aurox ficou excitado por prever que uma batalha estava a caminho e por acolher com prazer a ira e o poder que aquela batalha iria despertar; ao mesmo tempo sentiu repulsa. As Trevas pulsavam ao redor de Neferet, malévolas, grudentas e perigosas. Aurox estava analisando aquelas sensações diferentes quando Neferet sacudiu as gavinhas, derrubando-as, e fechou seu ferimento com uma lambida.
“Vocês se alimentaram por ora.
Guiada eu serei agora.”
As palavras do feitiço rimado de Neferet emitiram um poder que roçou em Aurox, e ele estremeceu quando as Trevas se contorceram e saíram deslizando, deixando uma trilha fina como um laço de fita, que era mais negro que uma noite de lua nova e que indicava o caminho.
– Venha – Neferet disse.
Aurox fez o que ela ordenou.
Eles seguiram a fita até um corredor aparentemente abandonado, que virou uma descida cada vez mais para baixo, como um túnel. Finalmente eles chegaram a um espaço sem saída mais amplo. Ali Neferet fez uma pausa.
Aurox os farejou antes de vê-los. O cheiro deles era horrível, podre, imundo. Morte, ele pensou. Eles têm o cheiro da morte.
– Inaceitável – Neferet disse nervosamente em voz baixa. – Totalmente inaceitável – ela andou a passos largos dentro da sala subterrânea, foi até a parede e apertou o interruptor. Uma única lâmpada nua acendeu uma luz amarela fraca.
Aurox achou que aquilo parecia um ninho.
Colchões estavam empilhados uns contra os outros. Corpos estavam amontoados embaixo dos cobertores. Alguns estavam nus. Alguns estavam vestidos. Era difícil ver onde um começava e onde outro terminava. Uma cabeça se levantou. As tatuagens do vampiro eram vermelhas e elas se pareciam muito com as gavinhas de Trevas que os haviam guiado até ali. Seu olhar era duro. Sua voz, nervosa.
– Kurtis, cuide de quem está nos incomodando.
Um vulto grande se moveu lentamente embaixo das cobertas e uma testa larga apareceu do outro lado do ninho. Esse tinha o contorno de um crescente vermelho na testa; era um novato.
– Já está quase de noite. Simplesmente acabe com eles usando eletricidade ou outra coisa e...
– E o quê? – a voz de Neferet era gelada. – Kurtis, você era burro e desajeitado antes de morrer. Agora você é burro, desajeitado e fede – Neferet deu uma olhada para Aurox. – Jogue-o contra a parede.
Aurox se moveu para obedecer ao comando dela, mas o fez lentamente, dando tempo para o novato sentir medo. Aurox se alimentou daquele medo e o seu corpo se transformou, virando outra coisa, algo mais poderoso, e o medo do novato se alterou para um terror delicioso. Com um rugido, Aurox levantou o garoto do seu ninho e o atirou contra a parede. Houve um barulho de algo se quebrando e o garoto ficou deitado imóvel.
– Oooa, oooa! Espere um segundo. Neferet! Eu não sabia que era você! – o vampiro vermelho ficou em pé, sem camisa, com as mãos para cima, encarando a Sacerdotisa. Aurox sentiu o medo dele. Foi bom.
Ele deu um passo em direção ao vampiro. Suas patas ecoaram contra o chão de cimento frio.
– Pare por enquanto, Aurox – Neferet ordenou. Então ela deu as costas a ele e se concentrou no vampiro e no seu ninho. – Você realmente achou que podia se esconder de mim, Dallas?
– Eu não estava me escondendo de você! Eu não sabia o que fazer... onde encontrar você.
– Não minta para mim – a voz de Neferet havia ficado suave, e nessa suavidade Aurox escutou um perigo ameaçador e infinito. – Nunca minta para mim.
– Desculpe – o vampiro disse rapidamente. – Acho que eu simplesmente não pensei.
O ninho de novatos começou a se remexer e a despertar enquanto o vampiro e Neferet falavam, e agora Aurox podia ver rostos, com olhos arregalados de medo, voltados para Neferet e para ele.
Ele ansiava por esmagar embaixo das suas patas aqueles rostos que o encaravam.
Uma tosse barulhenta veio do ninho.
Neferet olhou com desprezo.
– Quantos de vocês estão ali?
– Depois da estação, quando Zoey e a sua turma de idiotas lutaram contra nós, sobraram dez além de mim – ele deu uma olhada para Kurtis. – E ele.
– Ele não está morto. Ainda – Neferet falou. – Então há onze novatos e um vampiro. Quantos dos seus novatos começaram a tossir?
Dallas deu de ombros.
– Uns dois ou três.
– Há muitos novatos. Eles precisam ficar perto de vampiros ou vão morrer. De novo – ela acrescentou com um sorriso cruel.
Mais medo, vindo do ninho de novatos, inundou Aurox. Ele cerrou os dentes, lutando contra o desejo de se alimentar desse medo.
– Então você vai vir nos visitar? Como costumava fazer?
– Não. Mudança de planos. Está na hora de vocês se juntarem a mim. Todos vocês.
– Você quer dizer na Morada da Noite? Isso é impossível. A gente não é mais o que era antes e nós não queremos...
– O que vocês querem não quer dizer nada para mim desde que vocês me obedeçam. E se vocês não me obedecerem vão morrer.
O vampiro pareceu ficar mais ereto. A raiva dele ardeu com mais força, assim como a única lâmpada elétrica.
– Eu não vou morrer. Já me Transformei. Pode ser que alguns deles morram – ele indicou com um gesto os novatos que estavam encolhidos aos seus pés –, mas eu diria que isso é seleção natural2.
– Você não é tão esperto quanto eu pensava, Dallas. Deixe-me falar de um jeito bem claro e simples para que até você consiga entender: se você e os seus novatos não me obedecerem, você vai ser o primeiro a morrer. Minha criatura vai matar você. Agora. Ou a qualquer momento em que eu ordenar. Faça sua escolha.
A luz da lâmpada ficou mais fraca.
– Eu escolho obedecer a você – Dallas respondeu.
– Sábia escolha. Quero que vocês se limpem e voltem para a Morada da Noite a tempo de assistir as aulas hoje à noite.
– Mas como...
– Usem os chuveiros da escola para tirar o mau cheiro de vocês. Roubem roupas. Limpas. Ou comprem-nas. Às sete e meia, um pouco antes de as aulas começarem, um ônibus da Morada da Noite vai estar esperando no fim da rua, na entrada leste da Universidade de Tulsa. Vocês vão entrar no ônibus. Vão retomar suas aulas. Vão dormir na Morada da Noite – Neferet fez uma pausa, gesticulando de modo arrogante. – Vou mandar cobrir as janelas, abrir um porão ou algo assim. Mas vocês vão viver na Morada da Noite.
– Como nós vamos satisfazer a nossa fome?
– Cuidadosamente. E o que não conseguirem satisfazer com cuidado vocês terão que controlar, pelo menos até o mundo ter se transformado para atender às suas necessidades.
– Eu não entendo! Por que você nos quer por lá?
– Rephaim, o Raven Mocker que vocês não conseguiram matar mais de uma vez, recebeu o dom de ter a forma humana durante a noite e agora é o companheiro de Stevie Rae. Ele recebeu permissão para frequentar a Morada da Noite, junto com Aphrodite e os outros novatos vermelhos. Os novatos vermelhos de Stevie Rae.
– Eu terei que ir para a escola com ele? E com ela? Juntos?
A lâmpada brilhou intensamente de novo.
– Você os odeia, não é mesmo?
– Sim.
– Ótimo. Essa é a razão pela qual eu quero você lá. Todos vocês.
– Por que a gente os odeia?
– Não, por causa daquilo que o seu ódio, controlado por mim, vai causar – ela disse.
– E o que ele vai causar? – ele perguntou.
Neferet sorriu.
– Caos.
Eles saíram logo depois de Neferet terminar de instruir o vampiro chamado Dallas sobre os meios que ele podia e não podia usar para causar caos. Aparentemente, o propósito dele era muito parecido com o de Aurox: Neferet comandava e controlava a sua violência e o tinha como aliado. Ele não deveria matar – ainda. E como fio condutor oculto havia sempre a ideia de semear a discórdia, a inquietação e o ódio.
Aurox entendia. Aurox obedecia.
Quando Neferet ordenou que ele controlasse a besta dentro de si, ele obedeceu e a seguiu daquele ninho putrefato até os corredores frescos e limpos da escola.
Na porta da frente, o velho guarda ainda jazia onde Aurox o havia deixado.
– Ele está vivo? – Neferet perguntou.
Aurox o tocou.
– Sim.
Neferet suspirou.
– Acho que é melhor assim, apesar de ser ligeiramente inconveniente. Você vai ter que voltar lá embaixo e dizer a Dallas que eu quero que ele apague a memória desse velho. Diga a ele para implantar na cabeça do homem a sugestão de que ele foi ferido quando a escola foi roubada – ela coçou o queixo pensativamente e então olhou para o corredor que ostentava em mostruários de vidro objetos dignos de lembrança e, mais à frente, para a biblioteca, com suas fileiras impecáveis de livros e suas luminárias ornamentadas e cintilantes. – Não, eu tenho uma ideia mais divertida. Diga a Dallas para fazer o humano acreditar que ele foi ferido quando a escola foi atacada por vândalos. Depois, no caminho de saída, quero que você estilhace os mostruários de vidro e destrua a biblioteca. Faça isso rapidamente. Vou esperar do lado de fora. E eu não gosto de esperar muito tempo.
– Sim, Sacerdotisa – ele falou.
– Como eu disse, esta arquitetura é um desperdício com adolescentes humanos... – ela deu uma gargalhada ao sair do edifício.
Apressadamente, ele refez seu trajeto de volta ao covil subterrâneo. Assim que Dallas o viu, ele se levantou e o encarou, colocando-se entre Aurox e o grupo de novatos. O vampiro vermelho levantou seu braço sujo e o encostou em uma caixa de metal aparafusada na parede de cimento. Aurox sentiu o poder que ressoou lá dentro, movendo-se em espiral, querendo obedecer ao comando dele.
– O que você quer? – Dallas perguntou.
– Neferet me enviou com uma nova ordem para você.
Dallas tirou sua mão da caixa de metal.
– O que ela quer que eu faça?
– Há um segurança inconsciente perto da entrada da escola. A Sacerdotisa não quer que ele se lembre da nossa presença. Em vez disso, ele deve acreditar que vândalos o atacaram.
– Tudo bem. Que seja – Dallas disse e então, antes que Aurox se virasse para ir embora, ele perguntou: – Ei, que diabo é você?
A pergunta surpreendeu Aurox. A resposta dele saiu automaticamente:
– Eu obedeço às ordens de Neferet.
– Sim, mas o que você é? – perguntou uma novata de cabelos pretos que o observava atentamente atrás de Dallas. – Eu vi bem. Você estava se transformando em algo com chifres e cascos. Você é algum tipo de demônio?
– Não. Não sou um demônio. Eu obedeço às ordens de Neferet – então Aurox deu as costas para eles, deixando-os para trás, mas ele não pôde deixar as palavras deles para trás. Elas o seguiram pelo corredor. Ele é uma aberração, eles sussurraram. É uma coisa totalmente esquisita.
Ele usou uma mesa feita de madeira e aço para estilhaçar e destruir as preciosidades no corredor amplo e claro. Ele despedaçou as luminárias ornamentadas que pendiam do teto no salão cheio de livros. Enquanto fazia isso, Aurox se alimentava do medo e da raiva que ainda permanecia em seu corpo. Quando essas emoções foram usadas, ele canalizou o medo que o vampiro vermelho e seus novatos estavam provocando no velho homem enquanto o novato que ele havia machucado bebia o sangue dele e os outros ficavam em volta, olhando e rindo. Quando eles terminaram e limparam a mente do guarda, Aurox usou os vestígios da aversão que os novatos sentiram por ele como um combustível de que precisava, até que essa emoção também se acabou. Então ele desenterrou as únicas emoções que haviam sobrado. Emoções das quais ele não tinha se alimentado, mas, pelo contrário, que ele tinha conservado de algum modo, como se fossem suas. Então foi banhado na solidão, na tristeza e na culpa de Zoey que ele terminou de depredar a escola. E então, depois de se transformar e voltar a ter a aparência de um garoto, Aurox andou pesadamente pela destruição que havia causado, apressando-se para ter certeza de que Neferet não ia esperar por mais tempo.
1 OnStar é um serviço de comunicação da General Motors, que oferece sistema de navegação, orientação sobre o tráfego e auxílio em caso de acidente, entre outras funções. (N.T.)
2 Seleção natural é um conceito criado pelo naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) para explicar a evolução das espécies. Segundo esse modelo, os indivíduos mais adaptados ao ambiente sobrevivem e passam suas características aos seus descendentes, enquanto os menos adaptados morrem e, portanto, geram menos descendentes com características desfavoráveis à sobrevivência. (N.T.)

13

Stark
O sonho de Stark começou bem. Ele estava em uma praia incrível, com areia branca em volta e água azul diante dele. O sol ainda não o havia queimado. Na verdade, era como antes de ele ter sido Marcado, era ótimo sentir o sol no rosto e nos ombros. Ele estava disparando flechas em um grande alvo redondo com forma de olho de touro, que magicamente absorvia as flechas, que por sua vez depois reapareciam na areia ao seu lado, de modo que ele podia ficar disparando flechas sem parar.
Ele só estava pensando em como o sonho ficaria realmente excelente se Zoey aparecesse na praia de biquíni.
Ou talvez fosse uma praia europeia e Zoey aparecesse fazendo topless. Isso seria ainda melhor.
E então, como acontece muito em sonhos, a cena se alterou e de repente Zoey estava lá, só que eles não estavam na praia. Ela estava toda envolvida nos braços dele, quente, macia e com um cheiro muito bom.
– Ei, você está acordado e o sol não se pôs ainda – ela disse, sorrindo para ele.
– É. Deixa eu te mostrar o quanto estou acordado – ele abriu o sorriso para ela e a beijou; o gosto dela era doce. O corpo dela encaixava com o dele perfeitamente. Ela deu aquele gemidinho suspirado que ela dava quando estava se sentindo bem de verdade.
Mas bem no momento em que ele estava realmente entrando no sonho, Zoey se afastou dele. Ele olhou para ela com cara de interrogação, pensando que talvez fosse um sonho incrível e que ela iria fazer um striptease para ele. Então ele viu a expressão do rosto dela. Era de pavor com olhos arregalados.
– Detenha-as! – ela gritou. – Stark! Guardião! Ajude-me!
Ela estava estendendo os braços em direção a ele enquanto gavinhas escuras tipo serpentes a arrastavam para longe.
Stark ficou em pé em um pulo e a espada do Guardião apareceu na sua mão. Ele correu na direção dela, saltou sobre o seu corpo caído e se estatelou no meio daqueles filamentos de Trevas. Atacando com a espada do Guardião, ele cortou as gavinhas seguidamente, mas onde ele cortava uma, duas outras cresciam no seu lugar e grudavam novamente como velcro no corpo de Zoey.
– Stark! Ah, Deusa! Ajude-me!
– Estou tentando! Zoey, estou fazendo o melhor que eu posso! – mas ele não estava fazendo diferença contra as Trevas. Nessa hora, Z. estava completamente tomada pelas gavinhas, como se fosse um casulo de algum bicho que uma aranha gigante iria comer, e ela estava consciente e gritando para que ele a salvasse.
Stark lutava e lutava, mas não havia nada que ele pudesse fazer e, quando as Trevas puxaram Zoey, ele viu Neferet comandando os fios negros e grudentos como se fossem marionetes. Ela estava fora do alcance da sua espada. Ela gargalhou alto enquanto apertava os filamentos em volta de Zoey, até o seu amor, sua rainha, ser estrangulada e morrer, absorvida pela sua inimiga.
No sonho Stark ficou parado ali, chorando e soluçando, completamente perdido sem a sua Zoey. Na sua mente, ele ouviu uma voz forte e clara: Isso vai acontecer a menos que Zoey Redbird rompa publicamente com Neferet. Ela precisa se levantar contra a Tsi Sgili e parar com essa simulação de trégua entre elas.
Stark, ainda chocado e arrasado com a perda em sonho da sua rainha, apenas ouviu as palavras e não a voz. Ele não pensou sobre de onde vinha a mensagem, apenas no alerta que ela continha.
Ele deu um suspirou profundo e acordou com Zoey segura, quente e desejosa nos seus braços. Ela sorriu para ele, dizendo:
– Ei, você está acordado e o sol não se pôs ainda.
Um calafrio horrível e agourento fez o corpo dele estremecer. Havia sido mais do que um sonho; ele sabia disso. O que significava que o alerta também era mais do que apenas palavras; era uma profecia. Stark abraçou Zoey, pressionando-a com força contra o seu corpo.
– Diga que está tudo certo. Diga que você está bem.
– Eu digo, se você parar de me sufocar – ela falou meio engasgada.
Ele afrouxou o aperto de seu braço, enquanto apalpava as costas dela de cima a baixo, olhando por sobre o ombro, certificando-se de que não havia nenhuma gavinha ali – nenhuma memória pegajosa do seu sonho.
– Stark, ei, pare – ela segurou a mão dele e olhou dentro dos seus olhos. – O que está rolando?
– Tive um sonho incrivelmente ruim. Tipo de proporções apocalípticas. Então eu acordei e você disse exatamente as mesmas palavras que tinha dito para mim no sonho, antes de as Trevas pegarem você.
– Primeiro, eca, Trevas me pegando é nojento. Como isso aconteceu?
– Você não vai querer saber – ele falou.
– Sim, é claro que eu vou. Pode ter sido um sonho profético, e se for isso, eu preciso saber o que evitar.
– É, eu também estava pensando nisso. Na verdade, eu estava tentando não pensar nisso, mas você está certa – ele se recostou e passou a mão pelos cabelos, procurando espantar o sono e o mau agouro. – Pode ser profético e você precisa saber; as Trevas pegaram você, do mesmo jeito que Laracna1 pegou Frodo, só que pior – ele contou.
Stark viu o rosto de Zoey ficar pálido.
– Como uma garota que morre de medo de aranhas, não sei como esse sonho pode ser pior.
– Coloque Neferet no lugar da aranha e as Trevas no lugar da teia.
– É, nisso você tem razão. Isso é pior – ela deu um sorriso que ele sabia que foi corajoso. – Mas você me salvou, certo?
Ele não disse nada. Não conseguiu.
– Hello, Guardião fortão! Você me salvou, certo?
– Não – ele admitiu. – Eu tentei, mas as Trevas que Neferet controlavam eram demais para mim.
– Que droga, eu odeio quando isso acontece – Zoey disse. – então ela balançou a cabeça e acrescentou com firmeza: – Ei, isso não aconteceu de verdade. Pelo menos por enquanto, foi só um sonho.
– Muitas malditas coisas que aparentemente só podem acontecer em sonho acabaram virando realidade – ele disse sombriamente. – E tem mais uma coisa. Alguém ficava me dizendo que o que eu sonhei iria realmente acontecer a menos que você começasse a enfrentar Neferet.
Zoey franziu a testa.
– Ei, eu já enfrento Neferet! Toda hora. E o que você quer dizer com “alguém” ficava dizendo isso? Era Nyx? A Deusa falou com você?
Stark ficou pensativo, tentando se lembrar da voz do sonho, mas, apesar de o pavor ser recente, os detalhes já estavam desaparecendo de volta para o seu subconsciente.
– Eu não consigo me lembrar muito bem, mas acho que não era a voz de Nyx, ou pelo menos não era uma voz dela que eu reconhecesse.
– Acho que você teria certeza se tivesse sido a Deusa. Além disso, como eu falei, eu já enfrento Neferet, então não sei do que a voz do seu sonho estava falando.
– Na verdade, neste momento você está em um tipo de trégua com ela – Stark afirmou devagar.
– Acho que isso depende da sua definição de trégua. Se significa “eu não posso chutar Neferet para fora da Morada da Noite porque o Conselho Supremo a perdoou”, então sim, nós estamos em uma trégua.
– Ei – ele tocou o queixo dela. – Não quis irritar você. Esse sonho me assustou, só isso.
Ela se aconchegou nos braços dele, e ele sentiu a tensão no corpo dela começar a relaxar.
– Você não me irritou. Você só me surpreendeu. Achei que estávamos em sintonia com o que diz respeito a Neferet.
– Nós estamos – ele a abraçou forte. – A gente sabe que Neferet é louca e do mal, e todos nós que estamos do lado de Nyx sabemos que precisamos ficar atentos e tomar cuidado com seja o que for que ela vai aprontar agora.
Zoey estremeceu e escondeu o rosto no ombro dele.
– Isso me dá vontade de voltar correndo para Skye.
– Me dá vontade de levar você de volta para Skye – ele hesitou e quase não disse mais nada, mas algo no fundo da sua mente não permitiu que ele deixasse para lá. – No sonho, Z., as Trevas pegaram você e eu não consegui salvá-la. Eu acho que foi um aviso, realmente acho. E a conclusão que eu consigo tirar disso é que você precisa continuar enfrentando Neferet.
– Eu vou continuar – ela respondeu e então levantou a cabeça para olhar para ele. – Você parece cansado e acordou cedo.
Ele deu seu sorriso metidinho.
– Acordei cedo para que a gente possa passar um tempo de qualidade juntos antes de pegar o ônibus da escola. E eu posso parecer cansado, mas não estou tão cansado – ele deslizou sua mão por baixo do camisetão que ela estava usando e fez cócegas leves nas costelas dela. Zoey deu uma risadinha. Ele capturou a risada doce e alegre com seus lábios e a transformou em um beijo quente e longo. E então ele parou de fazer cócegas e quase toda a preocupação que o seu sonho havia causado desapareceu enquanto ele a amava... quase...

Zoey

– Ah, que inferno – resmunguei quando Darius entrou com o ônibus no caminho longo que contornava a parte de trás da Morada da Noite e levava ao estacionamento. A gente tinha acabado de entrar no campus quando eu vi Neferet, Dragon e cinco guerreiros Filhos de Erebus parados ali como se eles fossem uma estranha comitiva de boas-vindas de vampiros. – Vá devagar – eu disse a Darius. – A gente precisa se preparar para isso.
– É, não parece coisa boa – Kramisha falou.
– Uau, vocês não acreditariam em todas as cores que estou vendo – Shaylin estava olhando embasbacada de boca aberta para o grupo de professores e guerreiros. – Eca, e ali está aquela Mulher Olho de Peixe Morto, tão nojenta!
– Mulher Olho de Peixe Morto, eu gostei disso – Aphrodite aprovou. – Combina bem com ela.
– A Mulher Olho de Peixe Morto é super intuitiva – eu lembrei a todos, apesar de estar falando diretamente com Shaylin.
– E todos nós decidimos que é melhor ela não saber sobre o dom de Shaylin – Stevie Rae afirmou, levantando do seu assento com Rephaim na traseira do ônibus. – Z., você não quer chamar o espírito e pedir que ele ajude a encobrir os pensamentos de Shaylin, pelo menos até nós passarmos por Neferet agora?
– Sim, parece uma boa ideia – inspirei profundamente e sussurrei: – Espírito, venha para mim. – senti o ar sobre a minha pele se agitar com o poder do elemento. – Proteja Shaylin. Mantenha os pensamentos dela privados.
– Aaaaah! – Shaylin deu uma risadinha quando foi banhada pelo elemento. – Isso é tão bacana, e você fica roxa quando faz isso.
– Obrigada, eu acho – respondi. A garota nova era definitivamente esquisita, mas ela parecia bem legal. Dei uma olhada para o resto do ônibus, focando nas gêmeas e em Damien. – Mantenham seus elementos próximos também.
– Acho que sempre que Neferet estiver por perto é uma excelente oportunidade para todos nós concentrarmos nossos pensamentos em assuntos acadêmicos – Damien afirmou.
Todos nós olhamos para ele.
– Assuntos acadêmicos – Shaunee perguntou?
– Tipo lição de casa e coisas assim? – Erin acrescentou.
– Ou você está falando sobre os desfiles que são uma verdadeira academia de moda para nós? – Shaunee disse.
– Estamos confusas – Erin concluiu.
Damien suspirou dramaticamente.
– Com assuntos acadêmicos eu me refiro a trabalho escolar. Por exemplo, quando Neferet estiver perto, vocês devem praticar memorização de definições de vocabulário – ele abaixou seu longo nariz e olhou para as gêmeas. – Vocês duas podem começar com a palavra infames.
– Eu não tenho a menor ideia do que isso significa, gêmea. E você? – Erin perguntou.
– Nem uma pista, gêmea – Shaunee respondeu.
– Fiquem quietas, compartilhadoras de cérebro. A Rainha Damien tem razão. A gente não tem ficado tão perto de Neferet assim há algum tempo. Todo mundo precisa se concentrar e manter o cérebro ocupado, não com os nossos assuntos, mas com assuntos idiotas da escola – Aphrodite deu uma olhada para Rephaim. – Neferet consegue ler a sua mente?
Rephaim pareceu surpreso com a pergunta, mas quase não hesitou antes de responder:
– Ela não consegue.
– Você tem certeza? – eu perguntei.
– Sim – ele respondeu.
– Como? – Aphrodite quis saber.
– Ele não tem que explicar isso para você – Stevie Rae disse.
– Sim, ele tem – Stark falou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. – Stevie Rae, você precisa parar de ficar tão na defensiva em relação a Rephaim. Ele já esteve do lado de Neferet. Ele pode ter informações que nós podemos usar.
– Nunca estive ao lado de Neferet – a voz de Rephaim foi tão dura quando o olhar que ele dirigiu a Stark. – Eu estive ao lado de Kalona. Assim como você.
Aquilo calou totalmente Stark, e eu aproveitei a oportunidade para me colocar entre eles e dizer:
– Seja quais forem os detalhes, o que nós queremos dizer é que você já esteve em um lado oposto ao nosso, e isso pode nos ajudar agora – ele olhou para mim e seu olhar se suavizou, apesar de a sua expressão ainda estar cautelosa.
– Sei que Neferet não consegue ler a minha mente porque ela não sabia sobre mim e Stevie Rae – ele pegou a mão de Stevie Rae. – Eu tentava não pensar em você quando ela estava por perto, mas não conseguia evitar. Eu pensava em você o tempo todo.
Stevie Rae abriu o sorriso e ficou na ponta dos pés para beijá-lo.
– Eca – Aphrodite disse. – Então, continuando rapidamente antes que eu vomite, é certo que Neferet não consegue ler a minha mente, a mente de Zoey e a do menino-pássaro. O resto de vocês precisa tomar cuidado.
– Há outro ônibus escolar que acabou de entrar na pista atrás de nós – Darius falou, olhando pelo espelho retrovisor. – Está escrito Morada da Noite na sua lateral também.
De um dos assentos traseiros, Johnny B. anunciou:
– E não é um micro-ônibus. Por que nós não podemos pegar o ônibus de tamanho normal?
– Você não é normal – Kramisha respondeu.
– Sua mãe não é...
– Tudo bem, vamos nos preparar para a escola – eu o cortei.
– O que significa nos preparar para a batalha – Stark afirmou.
– Estacione – eu falei para Darius.
Darius parou e então ele, Stark e Rephaim saíram do micro-ônibus primeiro, seguidos pelo resto de nós. Pensei que eu poderia muito bem enfrentar seja o que fosse que estivesse acontecendo. Com Stevie Rae e Stark nos meus flancos, marchei direto para Neferet, curvando-me semirrespeitosamente para ela e então mais respeitosamente para Dragon e os guerreiros. Então eu disse formalmente:
– Merry meet.
– Ah, Zoey, Stevie Rae, fico feliz que vocês e seus estudantes tenham chegado junto com o outro ônibus. Vou poupar tempo para explicações – Neferet falou enigmaticamente.
Antes que eu pudesse dizer brilhantemente “Ahn?” ou qualquer coisa assim, o outro ônibus parou ao lado do nosso e, com aquele barulho estranho tipo Star Trek que todos eles tinham, sua porta se abriu.
E minha pedra da vidência começou a esquentar.
Aurox desceu primeiro.
Atrás dele, Dallas saiu do ônibus. Eu ouvi o suspiro chocado de Stevie Rae. Foi então que fiquei de queixo caído porque, depois de Dallas, um grupo inteiro de novatos vermelhos desceu do ônibus. Os novatos vermelhos do mal, incluindo a totalmente péssima Nicole e Kurtis, que estava cheio de hematomas, mas continuava gordo.
Os novatos vermelhos e Aurox fizeram uma fila oposta à nossa. Tive um flashback bizarro de uma cena de dança de West Side Story2. Tudo estava estranhamente quieto, até que Stevie Rae, com um tom de voz alto e não usual, perguntou:
– Dallas, que diabos você está fazendo aqui?
Dallas deu um meio sorriso.
– Eu não respondo a você – ele olhou para Neferet e devagar, distintamente, colocou seu punho direito sobre o coração, curvou-se profundamente e disse: – Merry meet, minha Grande Sacerdotisa – todos os novatos vermelhos atrás dele imitaram a sua saudação.
Neferet sorriu graciosamente. Sua voz era afetuosa e ilusoriamente gentil.
– Que saudação adorável. Obrigada, Dallas – quando seu olhar esmeralda se desviou dos novos garotos e mirou Stevie Rae, sua voz e sua expressão se endureceram. – Vou responder à sua pergunta, Stevie Rae. O que eles vão fazer aqui é o mesmo que vocês: assistir aulas. Ah, espere. Há uma pequena diferença entre eles e o seu grupinho. Dallas e seus novatos vermelhos vão morar aqui na escola e eu serei a sua Grande Sacerdotisa.
– É ele? – Dallas estava encarando Rephaim, que estava ao lado de Stevie Rae. Eu praticamente pude ver a raiva dele transbordando.
– Deixem-me apresentar vocês. Dallas, este é Rephaim. Ah, mas vocês já se conheciam, não é mesmo? – Neferet soou como se estivesse fazendo apresentações em um baile de formatura. Juro que foi tão bizarro que tive que conter meu impulso de pedir a Stark que me desse um tapa para eu ver que não estava sonhando.
Então meu olhar se voltou para Dallas, e o medo que ele me fez sentir me mostrou que eu não estava dormindo de jeito nenhum. Os olhos dele brilharam levemente em vermelho. Ele parecia selvagem e muito, muito perigoso. Eu me lembrei que já tinha achado ele tão fofo e legal. Bem, aquele garoto fofo e legal devia ter morrido quando esse novo vampiro vermelho se Transformou e recebeu tatuagens parecidas com chicotes.
Ao meu lado, Stark impacientemente se aproximou de mim.
Ao lado de Dallas, Aurox, para quem eu estava tentando não olhar, também se moveu para mais perto de mim de modo inquieto.
– É, exatamente, já nos conhecemos – Dallas disse.
– Sim, é verdade – a voz de Rephaim era tão dura e fria quanto a de Dallas, e isso me fez lembrar que eu não deveria subestimá-lo só porque ele sorria de um jeito tão doce para Stevie Rae.
– Aproveitando que estão todos juntos, gostaria de deixar algumas coisas bem claras – Neferet afirmou e nossos olhos se viraram na sua direção. Ela parecia tão normal! Bonita e régia, ela soava tão razoável que por um momento senti uma grande tristeza pela perda de quem ela poderia ter sido. – Aconteceram desentendimentos entre nós no passado recente. Agora isso está superado. Não vou admitir brigas aqui, sejam vocês novatos ou vampiros, vermelhos ou azuis.
– Desentendimentos? – a voz de Stevie Rae era incrédula. – Eles tentaram matar Zoey e eu!
– Zoey realmente matou alguns de nós! – Dallas gritou e juro que ouvi o zumbido da eletricidade nos fios que alimentavam a escola e estavam acima de nossas cabeças.
– Espere, eu não queria fazer isso. Nicole, Kurtis e esses caras me atacaram e...
– Chega! – a ordem de Neferet emitiu um poder ameaçador que pulsou em volta de nós, parecendo sugar até a luz prateada da lua que subia ao céu. – Já disse que o passado está superado. Stevie Rae e Zoey, se vocês não conseguirem se controlar, serão expulsas desta escola. Dallas, o mesmo serve para você. Aurox e os guerreiros Filhos de Erebus vão patrulhar os corredores e as salas de aula. Se qualquer violência começar, eles vão acabar com ela. Imediatamente. Fui clara? – ninguém disse uma palavra. O sorriso de Neferet era frio. – Ótimo. Agora, vão para suas classes – ela deu uma volta e, com aquele andar estranho e deslizante, foi em direção ao prédio principal do campus e à sala de aula à sua espera.
– Há Trevas em toda a volta dela – Stark disse em voz baixa, mas não baixa o suficiente.
– Neferet está totalmente engolfada por elas – Rephaim concordou.
– Com certeza – Stevie Rae falou. Então ela olhou para Dragon e os outros guerreiros. – Vocês não veem? São como teias de aranha pegajosas – ela indicou com o polegar Dallas e os outros novatos vermelhos. – Aposto que eles conseguem ver.
– Não sei de que diabo você está falando – Dallas respondeu.
– Você ainda faz chás de bonecas imaginárias no porão? – Nicole perguntou sarcasticamente.
Dallas e seus novatos vermelhos gargalharam.
– Dallas, Neferet quer que você se reporte ao centro de mídia. Eles estão tendo problemas com os computadores e ela precisa da sua ajuda para endireitar as coisas – Dragon disse, colocando-se entre os dois grupos. Os guerreiros Filhos de Erebus se juntaram a eles, assim como Aurox. – Shaylin, este é o seu horário escolar. Stevie Rae pode guiá-la por aí hoje – ele entregou um pedaço de papel para a nova novata. – Stark, Darius, vão para o estábulo e comecem a se preparar para as suas aulas. O resto de vocês deve fazer o que a Grande Sacerdotisa determinou. As primeiras aulas começam logo.
– Qualquer coisa que a Grande Sacerdotisa quiser está bom para mim – Dallas falou e passou roçando por Rephaim, com um olhar de desprezo.
Eu observei Rephaim aguentar firme. Ele não pareceu irritado, no estilo Pitboy, como se quisesse socar um armário ou qualquer coisa assim, mas ele realmente pareceu seguro e forte e permaneceu de modo protetor perto de Stevie Rae.
– Vamos para a aula e tentem ignorar esses idiotas – eu afirmei, segurando a mão de Stark.
– Eles não querem ser ignorados – Rephaim disse enquanto andávamos devagar em direção ao campus. – Eles estão aqui para causar problemas.
– Para jogar merda no ventilador – Stevie Rae falou e, por alguma razão, aquilo fez ela e Rephaim sorrirem.
Rephaim parecia tanto um garoto humano sorrindo para a sua namorada que eu tive que lembrar a mim mesma que ele não era exatamente o que aparentava. Precisei me lembrar de que eu já tinha visto Raven Mockers lutarem, e que eu sabia que eles eram malvados e perigosos. Então eu estava pensando sobre ele, tentando imaginar se, caso ele realmente viesse a lutar com Dallas, isso iria despertar algum canto de Trevas dentro dele. Foi quando eu vi a mudança que tomou conta da sua expressão. Em um segundo, ele estava sorrindo para Stevie Rae, e no instante seguinte seu rosto tinha ficado imóvel, como se ele pudesse ouvir um som que ninguém mais podia. Então eu pisquei e ele pareceu normal de novo.
– Ei, eu realmente vou ter que cavalgar na sexta aula? – Shaylin perguntou, lendo seu horário enquanto tentava nos acompanhar.
– Se aí diz Estudos Equestres, vai sim – Stevie Rae respondeu. – Vejo vocês no almoço – ela sorriu para Rephaim mais uma vez, acenou para nós e então se debruçou sobre Shaylin. – Deixe-me ver – ela leu o horário da novata. – Ah, ótimo, você tem Feitiços e Rituais na primeira aula. Você vai gostar. Ouvi dizer que a nova professora é legal.
– Ei, o que você tem? – Stark me perguntou.
– Não sei bem – eu disse em voz baixa. – Na verdade, provavelmente nada além do fato de que estou indo para a aula de sociologia, que é dada por Neferet. Vamos falar sobre estresse.
– Você vai ficar bem. Neste momento ela está fingindo ser uma professora e Grande Sacerdotisa – ele falou.
– É, o que significa que ela só vai me humilhar um pouquinho, em vez de arrancar minha cabeça com suas garras – eu resmunguei.
– Se ela tentar, corra bastante e fique com medo para que eu sinta e consiga chegar a você a tempo de salvá-la – ele deu aquele sorriso metidinho para mim, e eu sabia que ele estava tentando (sem sucesso) fazer que eu me sentisse melhor.
– Vou me lembrar disso. Vejo você no almoço.
Ele me beijou e então, depois de mais um olhar preocupado, foi em direção ao estábulo com Darius. Todo mundo se dispersou, sobrando apenas Damien, Rephaim e eu a caminho das nossas aulas.
– Você está bem? – perguntei para Rephaim.
– Sim, tudo bem – ele falou.
Eu realmente não acreditei e acho que minhas olhadas furtivas para ele foram muito óbvias, porque ele finalmente parou, suspirou e então me surpreendeu de verdade ao dizer:
– Ei, Damien, eu preciso falar com Zoey. Posso encontrar com você na aula?
Damien pareceu mais do que apenas um pouco curioso, mas ele era educado demais para protestar.
– Claro, sem problemas. Mas não demore. Os professores aqui realmente ficam incomodados com atrasos.
– Não vou deixar ele se atrasar – garanti a Damien, e então diminuí o passo para que Rephaim e eu ficássemos fora do prédio quando todo mundo entrou. – O que foi?
– Meu pai está aqui. Posso sentir a sua presença.
– Kalona? Onde? – eu sabia que meus olhos estavam enormes enquanto olhava em volta de nós, como se esperasse que o imortal fosse surgir das sombras a qualquer momento.
– Eu não sei onde, mas quero que você saiba que eu não o contatei, que eu não o tenho visto e que eu não tenho falado com ele desde que ele me libertou – Rephaim balançou a cabeça. – E-eu não quero que você e os seus amigos pensem que estou escondendo coisas de vocês.
– Isso é uma coisa boa. Você tem alguma ideia sobre o que ele quer?
– Não!
– Fique tranquilo, não estou acusando você de nada. Foi você que veio me contar isso, lembra?
– Sim, mas eu... – seu rosto ficou imóvel de novo. Então os olhos dele encontraram os meus, e a tristeza dentro deles era tão intensa que fez meu estômago doer. – Ele está me chamando.
1 Laracna (Shelob, no original em inglês) é uma aranha gigante que, em O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, aprisiona o personagem Frodo em sua teia, mas depois ele é salvo. (N.T.)
2 West Side Story é um filme norte-americano de 1961, cujo título no Brasil é Amor, Sublime Amor. O enredo tem como pano de fundo a briga entre gangues de rua da zona oeste de Manhattan, em Nova York. (N.T.)

14

Zoey
– Chamando você? Que diabo você quer dizer? Não estou ouvindo nada – continuei olhando assustada em volta, esperando o bicho-papão pular em cima de mim.
– Não – ele balançou a cabeça. – Você não pode ouvir. Nem eu mesmo realmente ouço. Meu pai consegue me chamar por meio do sangue imortal que nós compartilhamos. Eu achava que ele não seria mais capaz de fazer isso depois que Nyx me transformou – ele olhou ao longe, parecendo totalmente infeliz. – Mas eu não sou totalmente humano. Ainda sou uma mistura de besta, humano e imortal. Eu ainda compartilho o sangue com ele.
– Ei, tudo bem. Você está fazendo o melhor que pode. Eu vejo o modo como você olha para Stevie Rae. Sei que você a ama. E Nyx em pessoa o perdoou.
Ele assentiu e passou a mão pelo rosto, o que me fez perceber que ele tinha começado a suar. Muito.
Obviamente, ele percebeu que eu percebi e disse:
– É difícil não responder ao seu chamado. Eu nunca resisti a ele antes.
– Olha só, fique aqui. Vou chamar Stark, Darius e Stevie Rae. Daí você pode seguir o chamado de Kalona. Nós vamos todos com você para mostrar para ele que você realmente é um de nós e que ele tem que deixar você em paz.
– Não! Eu não quero que todos saibam que ele está aqui. Principalmente Stevie Rae. Ela acha que eu tenho que dar as costas completamente a ele, mas é tão difícil! – ele juntou as mãos, como se estivesse implorando que eu entendesse. – Ele ainda é meu Pai.
Apesar de não querer, eu estava começando a entender o que ele estava dizendo.
– Minha mãe errou. Ela preferiu um cara em vez de mim, mas lá no fundo eu ainda a amava e queria que ela me amasse. Queria que ela me amasse de verdade. Acho que a parte mais difícil de ela estar morta é que não há mais nenhuma chance de ela ser minha mãe de novo.
– Então você entende – ele falou.
– É, de certo modo acho que sim, mas eu também concordo com Stevie Rae. Veja bem, Rephaim, você pode se sentir como qualquer outro garoto que tem um pai completamente louco, mas o problema no seu caso é que o seu pai não é apenas um Zé Mané qualquer. Ele é um imortal perigoso que está no lado errado de uma batalha muito real do bem contra o mal.
Rephaim fechou os olhos, como se minhas palavras o tivessem ferido fisicamente. Mas ele assentiu e, quando abriu os olhos novamente e me encarou, pude ver a força da sua decisão.
– Você está certa. Tenho que enfrentá-lo e fazê-lo entender que nós realmente temos caminhos separados. Venha comigo para que eu faça isso. Por favor, Zoey.
– Tudo bem. Deixa só eu chamar Stark e...
– Só você. Sei que isso é idiota, mas não quero humilhar meu pai, e se eu fizer isso na frente de Stark vai ser um grande insulto.
– Rephaim, eu não posso ir sozinha. Você está se esquecendo de que seu pai tentou me matar?
– Neferet aprisionou o corpo dele e o obrigou a seguir você no Mundo do Além. Ele não queria. Ele nunca quis machucar você. Zoey, meu Pai me disse que ele não ia matar você nem nenhuma Grande Sacerdotisa da Deusa.
– É sério, se liga – balancei minha cabeça incrédula. – Kalona não hesitaria em matar qualquer um que se colocasse no caminho do que ele quer.
– Você já foi próxima a ele quando ele escapou da terra. Você pode realmente dizer que nunca notou um vislumbre do guerreiro de Nyx ainda dentro dele?
Eu hesitei, sem querer me lembrar do quanto fui tola antes de Heath ser morto.
– Kalona matou Heath porque eu fui idiota o bastante em baixar a guarda perto dele.
– Heath não era uma Grande Sacerdotisa a serviço de Nyx. E você não me respondeu. Diga sinceramente. Você percebeu de relance o que ele já foi um dia, não percebeu?
Pela milionésima vez, eu desejei saber mentir. Suspirei.
– Está bem, sim. Achei ter visto o que ele já foi um dia. Pensei que enxerguei nele o guerreiro de Nyx – respondi honestamente e então acrescentei: – Mas eu estava errada.
– Acho que você não estava, pelo menos não completamente. Acho que esse guerreiro ainda está dentro dele. Afinal, depois de tudo, ele realmente permitiu que eu fosse livre para escolher meu próprio caminho.
– Mas ele não está deixando que você se liberte dele. Ele está aqui, chamando por você.
– E se ele estiver me chamando porque sente a minha falta?! – Rephaim gritou e passou a mão no seu rosto tenso e suado. Com uma voz mais controlada, ele continuou: – Por favor, Zoey. Eu prometo a você que não vou permitir que meu pai a machuque, do mesmo modo que nunca vou deixar que ele machuque Stevie Rae. Por favor, venha comigo e seja testemunha de que eu rompi com ele, para que ninguém na Morada da Noite possa questionar a minha lealdade – então ele disse uma coisa que fez que eu me transformasse na Rainha da Idiotalândia. – Ele não me viu desde que virei um garoto. Talvez, quando ele vir a prova do perdão de Nyx, o guerreiro dentro dele desperte. Nyx não gostaria que você desse mais uma chance ao seu guerreiro?
Olhei para ele e vi o que Stevie Rae deve ter visto quando se apaixonou por ele. Basicamente, ele era um garoto fofo que queria que seu pai o amasse.
– Ah, que inferno – eu disse. – Tudo bem. Eu vou com você desde que a gente não saia do campus. E saiba que, se eu ficar assustada, perturbada ou qualquer coisa assim, Stark vai sentir e vir correndo com seu arco que não pode errar, qualquer que seja o alvo para onde ele atire. E juro que ele vai atirar. Não posso fazer nada quanto a isso.
Rephaim pegou meu braço e começou a praticamente me arrastar em direção ao muro leste.
– Não vou colocá-la em perigo. Você não vai sentir nenhuma dessas coisas.
Eu ia falar algo sobre galinhas nascerem com dentes, mas em vez disso poupei meu fôlego e corri para acompanhá-lo.
É claro que eu sabia para onde estávamos indo. Fazia todo o sentido.
– A árvore idiota perto do muro idiota – falei de modo ofegante. – Não estou gostando nada disso.
– É fácil chegar lá e não costuma ter ninguém por perto – Rephaim explicou. – É por isso que ele está lá.
– Isso não deixa as coisas nem um pouco melhores – respondi.
Nós corremos pelo gramado. Olhei por sobre o meu ombro. Pude ver a iluminação a gás do estábulo que alcançava aquela área do campus, e eu estava pensando que provavelmente eu deveria abdicar do meu reinado na “Idiotalândia” e enviar um pedido de ajuda mental assustado para Stark quando de repente Rephaim diminuiu o passo e então parou.
Voltei minha atenção e meu olhar para o que estava acontecendo na minha frente e vi Kalona parado em pé ao lado da árvore rachada. Ele estava de costas para nós. Mais tarde eu tive tempo para pensar no fato de que ele deveria pelo menos estar olhando para a direção de onde ele sabia que Rephaim viria, mas na hora a sua presença ofuscou tudo, e ele sabia disso. Ele era alto, forte e, como sempre, estava nu da cintura para cima. Suas incríveis asas negras estavam dobradas em repouso, e parecia que um deus as havia feito com pedaços do céu da noite.
Eu tinha me esquecido de como ele era bonito, poderoso e majestoso. Cerrei os dentes e me sacudi mentalmente. Eu não havia me esquecido de como ele era perigoso.
– Pai, eu estou aqui – Rephaim disse com uma voz que soou tão pequena e infantil que eu coloquei minha mão na dele, que ainda segurava meu braço.
Kalona se virou. Seus olhos âmbar se arregalaram. Por um momento, seu rosto perdeu toda a expressão e ele pareceu completamente atordoado.
– Rephaim? É você mesmo, meu filho?
Senti o tremor que atravessou o corpo de Rephaim e apertei mais sua mão.
– Sim, pai – sua voz ficou mais forte enquanto ele falava. – Sou eu, Rephaim, seu filho.

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                                                    CONTINUA
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Eu sabia que o imortal já tinha fingido um monte de coisas. Sabia que ele estava do lado das Trevas e era um assassino, um mentiroso e um traidor. Mas acho que vou me lembrar pelo resto da vida do rosto de Kalona ao ver Rephaim naquele dia. Por um instante, Kalona sorriu, e tanta alegria encobriu o seu ser que acabei soltando Rephaim. Fiquei parada ali, boquiaberta, pasma com a felicidade de Kalona. E percebi que vi na expressão dele o mesmo amor que eu vira no seu olhar para Nyx no Mundo do Além.
– Nyx me perdoou – Rephaim disse.
Aquelas três palavras apagaram a alegria de Kalona.
– E então ela o presenteou com a forma de um garoto humano? – o imortal falou com uma voz sem emoção.
Pude sentir a hesitação de Rephaim e eu sabia que ele ia fazer o que eu costumava fazer muito frequentemente (contar toda a verdade quando o melhor era ficar de boca fechada), então falei rapidamente por ele a versão mais curta e semicorreta da história.
– Sim, ele é um garoto agora e está com a gente.

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O olhar âmbar de Kalona se voltou para mim.
– Zoey, você parece muito bem. Pensei que meu filho era o companheiro da Vermelha. Ela o está compartilhando com você?
– Eca, não. Aqui não é esse tipo de escola. Ela é minha amiga, só isso – eu disse, afastando totalmente a lembrança de como Kalona havia ficado mexido quando viu Rephaim. Este é o verdadeiro Kalona, lembrei a mim mesma. – E você não precisa ser tão ridículo. Você chamou Rephaim, não o contrário.
– Sim, eu chamei meu filho. Não uma Grande Sacerdotisa Novata.
– Eu pedi que ela viesse comigo falar com você – Rephaim explicou.
– Você pediu para Zoey vir e não a Vermelha. Isso é porque ela já está se cansando de você?
– Não, e o nome dela é Stevie Rae e não Vermelha. Eu sou o companheiro dela e vou continuar sendo – toda aquela adoração pelo papai-herói tinha sumido da voz de Rephaim e eu gostei disso. – Foi por isso que eu respondi ao seu chamado, porque eu precisava dizer a você, assim como eu disse a Nisroc, que vou trilhar o caminho da Deusa com Stevie Rae. É isso o que eu quero. É isso o que vou querer...

 

 

                                                                                                   

 

 

                                       

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