Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
DESTINO FATAL
Orleães, 14 de Maio de 1974
Tão longe quanto chegam as minhas recordações, - mas, já nem memória tenho, - mantive sempre um diário. Sem dúvida, aliás, por causa desta falta de memória.
Mais do que um diário trata-se antes, para mim, de anotar alguns factos ou algumas frases, cada dia, num semanário: indico um acontecimento ou um encontro, tanto a respeito da minha vida privada como do meu ofício de advogada.
Tenho vinte e sete anos. Chamo-me Marie-Claire Dantec.
De alguns dias a esta parte faço mais do que anotar uma frase aqui, outra além. Conto. Conto tudo.
Quando casei, perdi o hábito destas notas. Davam vontade de rir a François. Ele era, - continua, aliás, a ser - um homem sério que se diverte com futilidades. Receava também que descobrisse nestes semanários certas indiscrições sobre a minha vida privada antes do casamento. Destruí-as, portanto.
O interesse de contar de novo o que fiz e vivi nestas últimas semanas é de duas ordens: lembrar-me primeiro, explicar depois.
Gostaria de começar por uma recordação pessoal.
Já lá vai uma dúzia de anos, ainda eu andava no liceu, um dos nossos professores levou-nos a visitar uma fábrica de tecelagem à entrada de Orleães. Numa das oficinas, tinham empilhado, por necessidades de trabalho, pouco mais ou menos duas mil caixas cilíndricas de metal muito leve. Achavam-se alinhadas umas em cima das outras ao longo de uma trintena de metros e com uma altura de três metros. Isto formava uma espécie de pirâmide, mas achatada. Ora acontece que uma das raparigas tropeçou numa das caixas da base. Por causa disso, cerca de quarenta começaram a cair umas por cima das outras. Até aqui era engraçado. Infelizmente estas caixas arrastaram as outras e isso começou a tornar-se quase enlouquecedor.
Foram precisos cinco bons minutos - e talvez mais -para que a pilha enorme chegasse ao solo e o enchesse. Já nada nem ninguém podia agir eficazmente para deter esta cascata inelutável de quedas. Nem o director, um homem frio, de óculos, nem o encarregado, que gritava, nem os operários. Ninguém. Foi, pois, necessário esperar - num silêncio consternado - que acabassem de cair todas.
Esta história, tal como a que estou a contar, começara de um modo divertido. E eis que inexoravelmente, e sem que fosse possível tentar qualquer coisa, ela se tornava trágica.
É a história que me acontece...
Há quatro anos, rebentou um grande processo penal em Orleães, e foi lá julgado. Toda a imprensa se lhe referiu na altura.
Como uma das partes possuía muito dinheiro, entendeu chamar um advogado conhecido. François era-o e ainda o é. Classifiquemo-lo, no plano da eficácia, entre os dez melhores advogados franceses em matéria penal.
François Dantec aceitou, pois, a causa mas, como não conhecia o processo e dispunha de pouco tempo para estudá-lo, socorreu-se, por intermédio do bastonário, de um jovem advogado de Orleães para desenredar o caso.
Nada descontente por pregar uma partida ao seu célebre colega parisiense, o bastonário designou-me. Sendo uma mulher e, ainda por cima, recém-inscrita, pensava que era muito mais capaz de lançar a confusão do que de ser realmente útil.
Dirigi-me, portanto, a Paris, a casa de François Dantec, que me infundia antecipadamente muito mais receio do que o júri e o tribunal que seria chamada a defrontar na altura do processo.
François é um belo homem de uns cinqüenta anos, com um metro e oitenta, um rosto sempre bronzeado, um nariz acentuado e cabelos brancos que lhe caíam muito abaixo da nuca, o que lhe dá uma espécie de majestade. A voz é magnífica.
Começou por desculpar-se de me ter pedido este trabalho ingrato. Tinha muito que fazer em todas as espécies de domínios mas a política já o ocupava muito. Impressionou-me enormemente. com o tempo, acabei por dar-me conta de que tudo aquilo não passava de uma máscara. Em especial, devia o seu bronzeamento a uma lâmpada de raios ultravioletas, os cabelos eram branqueados com tinta e mantinha a voz à custa do gargarejo e de exercícios vocais. Mas, enfim, a apresentação era aquela e isso contava mais do que tudo o resto para uma provinciana (ou quase) da minha idade.
Examinámos, pois, o processo e ele pareceu sentir-se satisfeito por ver-me disposta a ajudá-lo a sério. Passada uma hora, disse-me:
- Fale-me de Orleães, Marie-Claire.
Fiquei subjugada por tal simplicidade e, como mo pedira, expliquei-lhe Orleães: isto é, uma cidade que não é nem província, nem arredores, nem metrópole. É tudo isso ao mesmo tempo. Mas é preciso ver para compreender.
- Irei lá antes do processo - prometeu-me.
Este principiou dois meses mais tarde. Entretanto, trabalhei que me fartei e dirigi-me pelo menos uma dezena de vezes a casa de François Dantec, em Paris. Cada uma dessas visitas constituía para mim uma lição de Direito prático.
- Irei a sua casa no sábado de manhã - disse-me um dia Dantec. - E passaremos juntos o fim-de-semana.
O processo começava na segunda-feira. Ele pretendia ver antes a cidade.
Mostrei-lhe, portanto, Orleães, durante dois dias e, cheia de audácia, convidei François para jantar em minha casa. Como não sei cozinhar, comprei tudo numa loja de refeições prontas a servir. Também havia champanhe. Bebemos. Ele explicou-me que estivera casado dez anos atrás mas que tivera que divorciar-se, por falta de compreensão da mulher.
Eu deveria desconfiar, evidentemente, mas sentia-me como um coelho diante da serpente. Isso não impede que a. sua técnica para interessar as mulheres fosse igual à de qualquer dos homens que eu conhecera antes dele.
O caso é que em 1970 eu tinha vinte e três anos e não era experiência que me faltava. Mas como o lar formado pelos meus pais não era precisamente um sucesso, não sentia pressa de unir a minha vida à de um sujeito qualquer. Por conseguinte, quando desejava divertir-me, divertia-me.
Enquanto bebia o champanhe, François falou-me da sua existência de celibatário. Embora tivesse uma governanta e colaboradores, sentia-se muitas vezes só e interrogava-se mesmo acerca da oportunidade do seu sucesso, por não ter filhos do primeiro casamento.
Voltámos também a falar do processo que não parecia especialmente difícil, sobretudo para ele. Sem pretender fornecer demasiados pormenores, esclareço que actuávamos num processo cível.
O caso resumia-se assim.
A filha de um importante explorador agrícola da zona apaixonara-se por um jovem estudante que conhecera na Faculdade. E depois, um dia, encontrara um filho de um outro importante explorador agrícola e tratara-se de reunir ao mesmo tempo -para uma exploração comum - as terras e os jovens. Em certos meios é normal. Mas o estudante levara a coisa a mal e aproveitara uma caçada para disparar sobre a rapariga e feri-la seriamente. Ela conseguira escapar, apesar de tudo, depois de alguns meses no hospital.
Portanto nesse sábado à noite, François e eu terminámos o nosso repasto em plena euforia.
Ele tirou o casaco.
Passou a noite em minha casa.
Poderia, claro, entrar no pormenor e na descrição. Resumirei, dizendo que as coisas se passaram muito, muito bem. Tão bem como o processo porque em duas audiências o caso ficou arrumado. Mas houve luta. com efeito, os pais do estudante tinham, se assim posso dizer, fretado um outro advogado parisiense que sentia por François uma animosidade pessoal há mais de vinte anos. Quer isto dizer que os dois homens não se pouparam um ao outro. Mas François (e um pouco eu) ganhámos e nesta altura o cliente do seu adversário deve ter ainda três anos a cumprir.
Na terça-feira à noite festejámos este sucesso num restaurante da cidade, com os nossos clientes. Eles estavam espantosamente satisfeitos. A filha - que ainda coxeava um pouco em conseqüência da descarga da espingarda - casara com o filho dos seus vizinhos agricultores, o que permitia explorar os trezentos hectares em comum. Mas ressaltou desta reunião um facto evidente: a filha era uma perfeita doidivanas que sabia muito bem o que fazia.
Ao deixar este casal perfeitamente repugnante, dei parte do meu asco a François Dantec. Ele foi muito correcto. Sabia antes do processo e por instinto que os seus clientes eram velhacos - o que eu ignorava. Mas a grandeza do nosso papel não consistia em defender também os velhacos? Não lhe observei que, nesse caso, podia evitar intervir num processo cível, o que nunca é muito glorioso.
Tornou a acompanhar-me a casa e partiu na quarta-feira de manhã ao romper do dia porque, às dez horas, presidia a uma reunião política. Mas tínhamos falado até noite avançada e fizera-me propostas cujo sentido não conseguia compreender. De um modo geral, tratava-se disto: um celibatário dificilmente pode levar uma vida política e não lhe faltavam exemplos de homens cujo sucesso fora - em parte - construído pela presença, a seu lado, de uma mulher bonita, culta, compreensiva e sabendo receber.
- vou telefonar-lhe sexta-feira, Marie-Claire - disse-me.
Quando me deixou, senti-me triste.
Acabava de passar três dias excepcionais na sua companhia e estava persuadida de que nunca mais o tornaria a ver.
Na tarde da sexta-feira seguinte telefonou-me quatro vezes.
Queria ver-me nessa mesma noite e, finalmente, mandou-me um carro e um motorista.
No que se segue vou precisar de resumir imenso.
Por conseguinte, nessa mesma noite, no luxo e diante do cristal e da baixela de prata de um estabelecimento de alto prestígio, François declarou que desejava casar comigo.
Sentia-me de tal forma surpreendida que respondi afirmativamente, tal e qual como se me tivesse pedido para lhe passar o sal.
Quando agora penso nisso, acho-me um pouco ingênua por ter sido subjugada a esse ponto. Porque, em suma, não sou uma idiota, consideram-me uma bela rapariga e, de qualquer modo, tinha - aliás continuo a ter - vinte e quatro anos a menos do que ele. Nem sequer posso considerar que o facto de ele ser parisiense lhe desse uma vantagem suplementar a rajprahos. Mas havia também a sua situação.
Isto passava-se em 12 de Outubro de 1970, às 22 e 30 horas.
É fácil resumir e chegar ao casamento que se celebrou na intimidade, em princípios de Dezembro do mesmo ano.
Fui viver para Paris.
Durante meses, pode dizer-se que correu tudo bem. Tínhamos ficado com a governanta de François, Alice Tafanel que, no entanto, não gostava mesmo nada de mim. E depois, passados oito meses, a Tafanel voltou para o seu Aveyron natal e nós travámos conhecimento com o mundo dos criados estrangeiros.
Pode dizer-se que tudo começou nesse momento.
François Dantec, embora psicólogo, cometera a meu respeito alguns erros de apreciação, dos quais um era o mais grave de todos. Fiara-se, por exemplo, no jantar em minha casa e que provinha do melhor fornecedor de refeições prontas, De Orlleães. Tomara-me por uma perfeita dona de casa. Ora eu era precisamente o contrário.
Do mesmo modo se enganara acerca das minhas aptidões para acolher os seus convidados. Ora, vi-os de todas as espécies, de todos os meios e o menos que pode dizer-se é que esta sociedade nada tinha de agradável. Acresce ainda que alguns dos seus amigos ou amigas me eram francamente antipáticos e não lho ocultei. Admitimos, pois, uma cozinheira.
Em seguida, perante a minha carência doméstica, François escreveu a Alice Tafanel a suplicar-lhe que voltasse. Ela recusou deixando perceber que, enquanto eu permanecesse na casa, se manteria no seu retiro de Aveyron, sempre de reserva para o caso de...
A casa continuou, portanto, a andar aos baldões, com as criadas espanholas, a cozinheira portuguesa e os meus desfalecimentos cada vez mais freqüentes.
François sentia-se ainda mais decepcionado por eu voltar muitas vezes a Orleães. Na verdade, o processo defendido com ele dera-me publicidade e não me faltava trabalho. Chegava a passar lá freqüentemente as noites, donde a incidência que se adivinha nas relações sexuais cuja importância se conhece na vida de um casal.
Em fins de 1973 - abrevio - a minha carreira em Orleães conheceu uma certa quebra e fiquei mais freqüentemente na casa de Paris. O aborrecido é que nessa altura François quase nunca lá se encontrava. Desejoso de tornar-se conselheiro municipal, preparava os seus contactos e passava as noites em reuniões e comitês. Para melhor organizar o seu futuro, contratou então Didier Baruzzi para responder ao correio e às visitas que vinham reclamar condecorações, adiantamentos ou tabacarias.
Com vinte e dois anos de idade, Didier Baruzzi.
Era filho de Michelangelo e Clara Baruzzi, chegados a França vinte anos atrás, para fazerem fortuna. Isso fora alcançado. Construtor civil e sustentado por uma total falta de moralidade, comprando o que não podia roubar e roubando o que era inútil comprar, Michelangelo parecia ter compreendido o interesse que lhe adviria se tivesse na manga um futuro eleito e um grande advogado. François, pelo seu lado, necessitava de fundos para a sua campanha eleitoral.
Estes dois seres achavam-se, portanto, feitos para se entenderem.
De Clara Baruzzi não direi grande coisa a não ser que transportara para o duplex de dez divisões que habitava no bairro, os usos e costumes medievais da sua Sardenha natal.
Faltava Didier.
Incapaz de fazer fosse o que fosse, não tendo podido prosseguir nenhuns estudos, Didier nem sequer procurava situar-se na vida. Mas como Baruzzi não gostava de preguiçosos conseguira impô-lo a François como secretário. No dia da entrada em serviço de Didier, o meu marido disse-me:
- Vais reler as cartas deste palerma. Comete dois erros em cada linha.
Em suma, passei duas horas no escritório de Didier. À falta de ortografia, este pequeno imbecil sabia falar às mulheres. Ora, isso acontecia num momento em que François e eu já não mantínhamos relações. com efeito, ele regressava ao fim da tarde - mas a maior parte das vezes à noite - completamente enrouquecido pelas suas reuniões ou comitês ou com o espírito esvaziado por negociações ásperas. E todas as tardes ao bater das seis, quando a secretária partia, Didier começava a sua conversa fiada.
Era muito forte e praticava uma técnica que se harmonizava muito bem com o seu personagem. Não fazia de homem mas de adolescente. Não era um pai - como François – mas um filho. Dizia-se admirador das mulheres jovens, cultas e agradáveis, claro. Falava-me dos pais e não lhe agradava a casa, dizia ele, com gente tão pouco distinta. Ao passo que comigo...
Não sou o que se chama uma apaixonada e, ao contrário de muitas mulheres, não preciso de acreditar no amor para fazê-lo.
Em 15 de Outubro de 1973, ao bater as sete da tarde, um certo Frédéric Colbert surpreendeu-nos no divã, a Didier e a mim, numa posição que não se prestava a equívocos.
Durante o resto da tarde e à noite, meti-me a esperar que com um tal nome, o homem soubesse manter a altura de vistas do seu ilustre homônimo.
Engano!
Na manhã do dia seguinte, às dez horas, François entrou no escritório de Didier. O meu marido estava em mangas de camisa. Eu corrigia a ortografia de uma carta.
Com a sua bela voz de bronze que seduzia todos os jurados, François disse a Didier:
- Tu desaparece já ou levas um pontapé no cu! Didier retirou-se, claro, e François instalou-se na sua poltrona e encarou-me sem cólera.
- Ouve - disse-me - é mais que tempo de pormos as coisas a claro entre nós. O tal Colbert, que te surpreendeu ontem ao fim da tarde, não é precisamente um amigo político e começou a contar em todo o lado que tu te deitavas com esse palerma do Didier. Deixo-te apreciar o prejuízo que me pode causar. Em política o marido enganado está logo vencido à partida.
Expliquei o melhor que pude a François que não amava Didier e que era um pouco culpa dele, François, se...
- Quem é que te fala de amor? - replicou. - O casamento é uma coisa demasiado séria para ser uma questão de amor. É uma associação em que nos amparamos, é uma equipa onde cada qual deve fazer o seu trabalho no interesse comum.
Desconfiai dos homens que falam de equipa. Sucede sempre que são eles os patrões e que a palavra equipa é ainda o que se arranjou de melhor para enganar os subalternos e impingir-lhes as migalhas. E se François parecia aborrecido com o que sucedera com Didier, era porque eu traíra a equipa um pouco à maneira do guarda-rede de futebol que deixa passar a bola por entre as pernas.
Senti-me imensamente vexada com esta atitude mas, como não tinha o melhor papel, perguntei com bastante timidez:
- Que queres fazer?
- Já pensei nisso - respondeu. - É preciso que cada um de nós reflicta do "seu" lado. Vais voltar para Orleães, o que justificará a tua ausência de casa. Neste momento os negócios imobiliários andam muito bem e as sociedades precisam de advogados-conselheiros. Arranjar-te-ei trabalho lá,
- Quer dizer que me escorraças... Encarou-me com doçura.
- Estás enganada, querida. Apenas necessitamos de recuperar a calma e não se trata de divorciar. Põe-te no meu lugar. Isso já me aconteceu uma vez.
Finalmente, se aceitei foi porque a idéia de voltar a Orleães não me desagradava mesmo nada. Também eu precisava de recuperar a calma, de deixar esta vida de Paris para a qual não fui feita, esta canzoada mundana e toda esta politiquice mais ou menos adulterada...
Na véspera da partida para Orleães, Didier, que sabia o meu marido fora de casa, chamou-me.
Desculpou-se. Tinha vergonha do que acontecera. Nem toda a sua vida chegaria para conseguir fazer-se perdoar uma tal falta.
Por conseguinte, parti para Orleães na manhã seguinte, com François. À tarde, corremos juntos os antiquários. O meu marido comprou-me móveis no valor de seis milhões de francos e, com um belo trespasse, ofereceu-me o apartamento onde vivo actualmente, largo do Martroi.
- Voltarei cá para te ver - disse-me.
- E em casa, como arranjarás as coisas?
- Alice vai voltar - explicou-me. - Tenho de suportá-la. Beijámo-nos e, uma vez sozinha, dei, como se diz, livre
curso à minha mágoa.
Mas poucos dias foram precisos para as coisas se comporem. Primeiro, descobri que não amava François. Quero dizer que não estava apaixonada ao ponto de sofrer com a ausência. Por ele sentia apenas muita estima e amizade. Sinceramente.
Trabalhei no meu apartamento e retomei diferentes contactos com colegas no tribunal. Depois, apareceram outros clientes e numa dezena de dias olvidei a minha vida parisiense. Nem sequer tive de fornecer explicações acerca do meu regresso a Orleães, deixando a cada um o cuidado de pensar o que quisesse. Mas era Marie-Claire Dantec, advogada, e esta aliança bastava para me valer o respeito dos colegas.
Doze dias depois da minha instalação no largo do Martroi, recebi um visitante, ao fim da tarde: DidierBaruzzi desceu de um descapotável de desporto vermelho. No banco de trás tinha, a troixe-moixe, arrumado a um ramo de gladíolos.
Esta visita inspirou-me sentimentos diversos, em particular um: o apartamento que ocupo fica num imóvel burguês muito belo e esta chegada não podia passar despercebida. Mas também podiam julgar que era a visita de um cliente agradecido por se ver livre de sarilhos graças a mim.
Didier contou-me o que se passara a seguir à visita inopinada do referido Colbert: Michelangelo, o pai, considerara o caso muito mal e cortara-lhe praticamente os víveres. A mãe, pelo contrário, sentira um certo orgulho e dava-lhe dinheiro às escondidas.
Pertence a esse gênero de mulheres que apreciam nos filhos as liberdades de costumes que não poderiam tolerar nas filhas. Maneira de falar, aliás, pois Didier é filho único.
Outra coisa, sempre segundo Didier: os negócios políticos do meu marido apresentavam-se bem. Ia haver uma eleição parcial para o mês de Junho e ele seria candidato. Quanto a Colbert, tinham-lhe dado dinheiro para não contar o que vira. Parece também que François perdoara em parte a ele, Didier, o que era tranquilizador para mim. Um homem que perdoa ao sedutor não está longe de perdoar à esposa infiel.
- Nesse caso, poderías voltar para Paris.
- Por enquanto - retorqui - isso não está em causa.
- Tens alguém aqui?
- Não.
Tinha-me enganado sobre o sentido desta pergunta. Didier fazia-ma, para saber se estava disponível no momento. Ofereci-lhe um whisky. Declarou-me achar-se impressionado com o meu penteado. De facto, tinha soltado os cabelos, que me caíam pelas costas. Agora usava o carrapito, o que dá um ar mais sério no nosso ofício.
Aquele pequeno safado passou para trás de mim, desfez-me o carrapito e puxou-me o fecho éclair com uma destreza de ilusionista.
Numa cidade como Orleães onde, à parte os meus colegas e os meus clientes, não conheço muita gente, o verdadeiro problema é distrair-se. Fui, pois, puxar os reposteiros.
Aqui têm.
Em seguida, Didier e eu fizemos um jantarinho.
Não quero dar-vos sobre este rapaz outras explicações. Pelo menos por agora. Prefiro deixar correr a pena ao sabor dos acontecimentos, isto é, cronologicamente. Isso auxiliar-me-á a compreender muitas coisas. Mas bastante tardiamente.
Didier partiu já noite bem avançada, evitando os estampidos do motor do seu carro de desporto. Depois, tornei a meter-me ao trabalho.
Nos dias que se seguiram, François telefonou-me por causa de uma coisa importante. Um promotor imobiliário de Orleães pedira-lhe para estudar os problemas jurídicos levantados pelas vendas de apartamentos que estava a construir e para assegurar a defesa eventual da sociedade contra os processos possíveis dos compradores. Esta função era paga ao mês.
- Por assim dizer - explicou-me François - terás trabalho ao longo do ano e sem muito que fazer.
Em suma, trazia-me um negócio numa travessa e pedia-me para contactar Robert Janès, o promotor imobiliário de Orleães.
Fui procurá-lo nesse mesmo dia.
É um tipo que atingiu os quarenta e que preencheria fisicamente o gênero do aventureiro simpático. À primeira vista as coisas correram bem entre nós. O homem é inteligente e tem uma sorte monstra.
- Venha então jantar esta noite lá a casa - propôs-me. Como tinha poucos amigos em Orleães - e desejosa de não
falhar o negócio - aceitei e assim conheci Edith Janès, a mulher de Robert.
É uma burguesa bonita mas muito nervosa. Perguntei-me porquê até ao momento em que compreendi que sofria de ciúmes doentios. Mas como apenas falávamos de trabalho, o marido e eu, ela não tinha de que se inquietar. As duas falámos de François. Edith tinha assistido ao famoso processo - é necessário um pouco de distracção - e o meu marido causara-lhe uma forte impressão. Disse aos Janès que François e eu nos entendíamos admiravelmente e, para cimentar esta idéia, convidei o casal para minha casa, com o meu marido. Ele veio. Após a reunião, perguntei a François, como quem não quer a coisa, por delicadeza, se desejava que eu reintegrasse o domicílio conjugal. Não iriam interpretar mal a minha ausência? Não era um pouco delicado, tendo em vista os seus projectos, viver separado da esposa?
François respondeu-me que falaríamos disso depois da sua viagem aos Estados Unidos. Mandou-me, aliás, duas cartas de Nova Iorque nos dias seguintes.
Regressou quinze dias mais tarde e telefonou-me, logo a seguir, para me dar parte da sua decisão: não considerava a hipótese de retomarmos a vida em comum. Por agora ficava tudo bem assim mas, talvez um dia, devêssemos encarar o divórcio. Respondi-lhe secamente que não via necessidade disso e desliguei.
No fundo, François precisava mais de uma governanta do que de uma esposa. Apanhado por uma rapariga da minha idade num momento talvez crítico da sua vida de homem, cometera um erro ao desposar-me e em seguida saltara sobre a ocasião para se separar de mim. Agora pensava no divórcio. Mas o divórcio não me interessava. Encontrava-me muito bem assim, sendo ao mesmo tempo livre e protegida de longe. Ganhava bem a vida e o dinheiro é o melhor meio que existe para sermos respeitados pelos imbecis, isto é, pela maioria dos que nos rodeiam. E depois não há vergonha em ganhá-lo. Gastava muito. Saía. Por duas ou três vezes, Didier veio visitar-me de novo a Orleães e acolhi-o com prazer e discrição. Robert Janès também vinha muitas vezes ao meu escritório. Logo na sua segunda visita compreendi que os ciúmes da mulher não eram destituídos de fundamento. Após um rodeio discreto ele pusera-se a falar-me de Edith. Parece que com os ciúmes e os nervos ela o fazia passar uma vida dura. Conseguira, segundo ele, que se zangasse com a maior parte dos seus amigos casados com raparigas bonitas.
Eu queria ficar de boas relações com Robert Janès que era um cliente, e pude entender-me muito bem com ele. Mas mesmo para um lascar era evidente ser ele um coriáceo que não demoraria a meter-me o negócio na mão.
Em Março, portanto há coisa de dois meses, tive de deslocar-me a Paris e, não sabendo onde almoçar, dirigi-me ao restaurante do Palácio de Justiça.
E aí, coisa incrível, dei com François que nunca lá vai. Bastante divertido, não é verdade, este encontro, entre pessoas casadas? Não nos tínhamos tornado a ver desde a sua partida para Nova Iorque.
Almoçámos, pois, juntos e ele perguntou-me o que ia fazer à noite. Não tendo nada decidido, estava livre e disse-lho.
- Passa lá por casa -propôs-me. - Afinal de contas, a casa é tua.
Após uma tarde de passeio por Paris, voltei para casa. Alice Tafanel recebeu-me com delicadeza e François chegou, como de costume com uma hora de atraso. Encontrou-me com um arzinho de fadiga.
- Quando se vive sozinha - respondi - hesita-se um pouco em tomar férias.
François explicou-me então que tinha ido aos Estados Unidos com um grupo e que fora muitíssimo pândego. Raramente se divertira assim na vida.
- Deverias fazer como eu - acrescentou. -Existem clubes de férias onde pensam por ti: apenas tens de te deixar conduzir.
Bebemos uma garrafa de champanhe.
Instalada no divã do salão, fitava o meu marido. Ele também me encarava. Conhece-me bem, e é isso, aliás, o que me incomodava. Enganei-me nessa noite acerca do seu olhar e das suas intenções. Julgava que sentia desejo de mim.
- Não é possível - respondeu-me. - Madame Tafanel tem o hábito nojento de entrar sem bater.
- E o quarto?
É engraçado, mas ter-me-ia agradado, nessa noite. François recusou secamente e isso vexou-me. Ponham-se no meu lugar.
- Tens alguém? - perguntei num tom levemente ciciado.
- De vez em quando. Continuava a encarar-me e a sorrir.
- Escuta - disse-me - é preciso saber ver as coisas de frente. Os dois amamo-nos muito mas enganámo-nos. Ora não pode continuar a viver-se assim e vale mais que façamos alguma coisa.
- O quê?
- Divorciar, naturalmente. Admito que não é normal que vivamos separados. Um dia destes as pessoas hão-de admirar-se com esta situação. É tão verdade para ti como para mim. De acordo?
Respondi-lhe que esta situação não me incomodava e que era injusto querer fazer-me pagar tão caro uma falta sem importância com um Didier Baruzzi.
- Pensa mesmo assim nisso - disse-me ele a sorrir. Nessa noite não falámos mais em divórcio. Pedi a François
notícias da sua política. Explicou-me que, com alguns amigos, tinha criado um grupo de "Defesa dos interesses comunais". Tendo sido eleito presidente desse grupo, tornava-se o candidato evidente para a eleição. Podemo-nos sempre perguntar porque é que um advogado conhecido ainda precisa de fazer política. Sem dúvida porque François, como os outros, é um insaciável.
Notei, porém, que o grupo presidido pelo meu marido tinha alguns problemas de dinheiro. com efeito, o principal fornecedor de fundos, o citado Michelangelo Baruzzi, atravessava momentos difíceis. Em conseqüência de um controlo fiscal, tentara meter um sobrescrito no bolso de um inspector e o caso arriscava-se a tomar mau caminho. Sabia disto por intermédio de Didier Baruzzi, mas François não se lhe referiu.
Em suma, esta reunião em nossa casa foi enfadonha.
Às 23 horas, levantei-me e disse-lhe que regressava a Orleães. Devo notar que, uma hora antes, de modo algum era essa a minha intenção mas agora pensava que a condução na auto-estrada me faria bem aos nervos.
- Se quisesses passar a noite aqui, como camaradas...
- Não - retorqui. - Obrigada.
Bebemos um derradeiro copo e François a falar-me da sua viagem aos USA de onde voltara aparentemente em forma.
Por fim, peguei no carro e regressei a Orleães.
Isto passava-se na quinta-feira, 25 de Março último.
Acha-se anotado no meu bloco profissional.
Na verdade conduzi muito depressa pela auto-estrada.
Um pormenor que não escapou a ninguém. A minha vida de solteira agradava-me. Então porque me sentia tão mortificada com a proposta de divórcio abertamente formulada?
Hoje em dia, continuo a não ser capaz de responder a tal pergunta.
É verdade que tenho muitas outras a fazer-me.
Na manhã seguinte, 26 de Março, à hora do pequeno almoço, chamada telefônica de Robert Janès. Tem absoluta necessidade de falar comigo por causa do trabalho mas preferiria, apesar disso, que tal ocorresse ao meio-dia no restaurante, com ambos a sós.
Sou imensamente desconfiada. Robert conhece todas as estalagens da região e, mais particularmente, as que possuem quartos no primeiro andar.
- Tenho muita pena - disse-lhe - mas só posso esta noite, se quiser, em sua casa.
Aceita, sem dúvida com a idéia de que me acompanhará a casa de carro e que nessa altura se verá.
À hora do almoço, chamada de Didier a perguntar se estou livre essa noite.
- Não. Tenho um jantar em casa de pessoas amigas. Mas nada me impede de te levar.
Acaba, de facto, de me ocorrer à idéia que Robert Janès é capaz de mandar embora Edith para ficarmos sós. Em todo o caso, se ela lá estiver, a presença de Didier nada terá de incômoda.
- Qual é o gênero dos teus camaradas? - interrogou-me.
- Muito agradáveis. Está aqui em casa às sete horas. Não tornara a ver Didier desde há algum tempo e dava-me
prazer encontrá-lo de novo. Existe neste pequeno cretino um lado divertido. Além disso, apenas o considero muito pouco responsável do que me aconteceu. Fui mesmo eu quem quis na noite em que o horrível Colbert nos surpreendeu. Único aspecto desagradável em Didier: é um parasita nato.
Dia de trabalho no Palácio de Justiça. Tenho um caso a defender e está a andar bem e depressa. Devo a François uma coisa importante: deixar de ter medo dos outros. Isto começa a ser conhecido no Palácio e tomam-me a sério.
Ao voltar para casa, a pé, compro um pequeno conjunto encarnado com sapatos a condizer. A vendedora garante-me que me fica muito bem. Além disso faz bom tempo e acho a vida bela... Enfim, pelo menos um tanto bela.
Um pouco antes das 19 horas chega Didier, muito descontraído. Traz um casaco de antílope e continua com a sua cabeleira de rapariga. Um sorriso ilumina um rosto bronzeado de traços regulares. Acaricia-me as ancas.
- Viste o meu espada?
Conduz-me à janela para mostrar-me um belo carro de desporto, vermelho, descapotável. É do mesmo modelo do anterior mas, parece, muito mais potente.
- Os negócios andam bem, confessa.
- Foi a mama - explicou ele. - Sabes que vou voltar ao Direito? Mas antes tenho um exame. Compreendes, vou ser forçado a trabalhar. No meu pai, por causa do seu caso, nem com pinças se lhe pode tocar neste momento.
Toma-me de novo pela cintura. É um pouco culpa minha. No momento em que tocou, acabava de tomar um duche e mal tive tempo para pôr um penteador de banho. Afasto-o molemente. Didier insiste. Não fez trezentos quilômetros mais o regresso - apenas para ir jantar a Orleães a casa de pessoas que não conhece.
Literalmente salta-me em cima e defendo-me com moleza.
Não sei que sexologista disse que a mulher que cede sem amor ao desejo de qualquer homem se acha às portas da ninfomania. Eu não sou ninfomaníaca mas começo a sentir-me bem na minha pele. François libertou-me. Talvez tenha feito mal ao dizer-lhe, ontem à noite, que recuso o divórcio. Dentro de algum tempo aceitarei, seguramente.
Para voltar a Didier, é um par muito bom e as suas exigências estão longe de me desagradarem. com ele, como de costume, deixo-me conduzir. Não é desagradável ser dominada por um companheiro, mesmo desconhecedor de ortografia. Presto-me, pois, à brincadeira. Deve dizer-se que uma advogada ouve confidências de toda a natureza em matéria sexual e por vezes isso dá idéias.
Passo, assim, um excelente momento com Didier e já sei que ficarei com ele toda a noite.
Deitados na cama, trocámos depois algumas impressões enquanto fumávamos um cigarro.
- Ontem à noite - disse eu - vi François.
- Ah! - sobressalta-se Didier. - E então?
- Então nada. Falámos de uma porção de coisas. Foi a primeira vez que voltei a casa depois de ter partido.
- Não fales mais nisso! - suspira ele. - Esse caso estragou-me a carreira. Sabes que o teu marido tencionava tomar-me como chefe de gabinete no caso de chegar a ministro?
- com dinheiro consegue-se tudo!
Em seguida ajuda-me a vestir, rejeita o conjunto encarnado, comprado algumas horas antes, e revista as minhas coisas.
- Põe isto! - ordenou. É uma mini-saia amarela, um collant preto, botas e uma camisola justa. Para dizer a verdade, tenho muito ar de puta. Didier pede-me para caminhar e obedeço. Ter feito cinco anos de Direito, ser uma boa advogada e
evoluir como uma puta às ordens de um chulo! Mas isto diverte-me. A vida não é só trabalho, pois não? Didier diz-me:
- Conheces-me bem para saber que a galantaria não é o meu gênero. Ora bem, juro-te que estás gira. Se Pedisses a minha mão...
- Mas porque não
De novo ele procura abusar da situação. Desta vez, porém, zango-me e ele cede. Didier é o único rapaz que me faz rir. Enfim, nem sempre.
Um pouco depois o descapotável - cuja capota fiz subir a fim de não ser reconhecida ao lado daquele sedutor galã
- segue a caminho da residência dos Janès. A certa altura digo:
- Didier, tu nem podes imaginar como estou ansiosa por férias.
- E onde?
- Ainda não sei. Ontem, François disse-me que tinha ido passar alguns dias aos Estados Unidos com um clube.
- Já sabia! - responde ele. - Olha que um clube é engraçado. Podes lá ir sozinha e encontras o que precisas no sítio. Isso conta, não? O mais interesse é que não fica caro. com cem mil francos antigos, passas uma quinzena bestial. Sem falar de que a mim também interessa partir.
Quando pára o carro em frente da casa dos Janès, a idéia já me anda na cabeça.
Edith vem abrir.
Acolhimento muito amável do casal. Desde a nossa chegada, Edith não perde praticamente Didier de vista. Ele tem o ar de causar-lhe uma forte impressão. Falta saber se eles o tomam bem pelo camarada que lhes anunciei.
- Temos de falar cinco minutos - diz-me Robert um pouco frio.
Leva-me para o escritório e interroga-me secamente:
- Quem é este tipo?
- O filho de um amigo do meu marido.
- Percebo - corta Robert Janès peremptório.
- Não percebes absolutamente nada - replico eu secamente. - Ou então percebes mal. Que tinhas a dizer-me em particular?
- Nada - responde Robert, desalentadamente. - Gostaria que almoçássemos juntos. Não podes saber quanto me chateio neste momento! O trabalho, as obras, os clientes... Quando se pode falar com uma rapariga como tu, isso faz subir o moral.
- E Edith...
- Ah, isso não! É mesmo o contrário.
Sou a primeira a deixar o escritório. Didier e Edith estão de joelhos, lado a lado, e fazem uma selecção de discos para a noite. Têm um ar de satisfação.
Em seguida toma-se um copo e passa-se à mesa.
Este serão não foi nem mais conseguido nem mais desagradável do que outro qualquer. Robert falou um pouco de trabalho. Didier, que tem camaradas no music-hall, fez o seu número diante de Edith, que ficara de boca aberta. Robert deu por isso e voltou a falar-me de trabalho. Tratava-se de estudar e de redigir estatutos e contratos de compra de um grupo de duzentos e cinqüenta apartamentos.
Terminado o jantar, Robert vai buscar champanhe. Didier, que se sente em casa como sempre, põe um disco e faz dançar Edith que tem um ar de grande disposição para a festa. Por volta da meia-noite tomo a iniciativa da partida e deixamos os Janès.
- É levada da breca, a tua camarada! - diz-me Didier, uma vez ao volante.
- O quê?
- Sim, sim! Nota bem que foi correcta. Queria saber se nós dois... Foi só depois que me disse que ia às vezes a Paris e que nos poderíamos encontrar. Tirando isso, o seu gajo e ela não são bem Romeu e Julieta, hein?
- Aparentemente.
- Não te faças parva. No fundo, só na província é que a gente pode divertir-se bem. E tu e Robert, as coisas vão?
- Não. Conduz mais devagar.
Obedece. Teria tido tendência para confundir o tranqüilo arrabalde Bannier com Montlhéry e à meia-noite isso compreende-se, sobretudo àquela hora.
Uma vez em casa, Didier exibiu de novo largamente a sua condição física. A vida é bela. Volto a pensar no projecto de férias que me trabalhou durante uma parte do jantar.
- Julgas que em Abril e Maio teríamos sol?
- Em Itália sim. Também me agradaria. Apenas existe um pequeno contratempo.
Passa uma mão ligeira por cima do meu ventre nu.
- Sempre o mesmo, aliás. Que chatice! Só com as letras do carro! Ponto final. Não tenho cheta. Mas se te interessa que partamos juntos, poderias avançar-se o dinheiro. Compreendes, não posso pedi-lo ao meu pai. Nem sequer à minha mãe. Ela perguntar-me-ia onde vou e com quem.
Naturalmente, já contava com um pequeno problema deste gênero com Didier.
- É caso para ver.
Mesmo assim, antes de decidir-me, quero examinar como estou, no lado trabalho. Vou buscar a minha agenda ao escritório. Nessa altura, não recomeçara o semanário de que falo no começo da minha história.
- Para mim - digo - pode ser no princípio de Maio.
- Para mim também - responde Didier. - Há apenas uma coisa. Tenho de estar em Paris a sete de Maio à tarde... devido ao exame no dia seguinte. É a minha última oportunidade. Admitindo que tomemos quinze dias, temos de partir a vinte e dois de Abril, um domingo. Mas ainda dispomos de quinze dias para decidir.
Levanta-se e começa a vestir-se.
- Não queres - diz - que decidamos esta noite o que faremos?
Se lhe dou dinheiro, é capaz de se raspar e de não tornar a aparecer.
- Já que queres partir esta noite - digo - nada te impede de me informares amanhã de manhã. Se houver alguma coisa a pagar, tratarei logo disso.
A minha desconfiança não o vexa. Didier não é susceptível. Apresta-se para partir quando me ocorre de súbito a idéia:
- Nunca mais tornaste a ver François - digo-lhe - nestes últimos dias?
- Não. Porquê?
- Então como sabes que foi aos Estados Unidos integrado num clube?
- Pelo meu pai. Imagina que ao voltar de Nova Iorque passou lá por casa. Precisava de dinheiro para a sua política. Falta de sorte, pois o meu pai tivera os quinze dias polivalentes antes. Terríveis, ao que parece, esses tipos. Ficaram uma semana. O meu pai conta com quatrocentos milhões de indemnização. Portanto, nem é bom falar de dar uma moeda ao teu marido. No dia seguinte, François telefona lá para casa. Parece que no decurso da viagem travou conhecimento com a viúva de um cirurgião. Um tipo que fazia cirurgia estética. Em suma, aquilo parecia ir correr bem. A fulana é rica. Telefono-te amanhã. Prometido.
E desce, deixando-me nas nuvens.
François não me falou da sua viúva. Mas ela explicaria bem as suas intenções de divórcio. Coloquei sempre o meu marido numa espécie de pedestal e a sua atitude decepciona-me. Mas existe também - para contrabalançar esta impressão desagradável - a perspectiva de uma quinzena de dias de férias.
No dia seguinte começo a minha consulta às nove horas e, entre três clientes, recebo duas chamadas. A primeira é de Robert e pergunta-me se voltei bem na véspera. Diz-me também que o meu camarada não lhe deixou uma boa impressão. Parece ser essa também a opinião de Edith.
- No teu lugar - conclui ele - desconfiaria.
Dez minutos mais tarde é Edith que telefona. Pergunta-me também se voltei bem.
- De facto - acrescenta - o teu amigo é encantador. O engraçado é que não agrada a Robert, o que nada tem de espantoso.
Levei tempo a perceber que o lar dos Janès não se entende lá muito bem. Agora as coisas tornam-se mais claras. Ao meio-dia, é Didier quem telefona.
- Fartei-me de andar de um lado para o outro - explica mas dei com uma coisa impecável. O clube chama-se "Sol Pleno" e possui uma aldeia em Itália, em Viareggio, no pinhal. Viareggio fica na Itália.
- Obrigado. Dá-me um minuto.
Consulto um guia que pertence, aliás, a François e o que leio acerca de Viareggio satisfaz-me. Retomo o combinado.
- E quanto à data?
- Como estava previsto -diz ele. -Do vinte e três de Abril ao sete de Maio. Tenho de estar em Paris na manhã de oito. Quanto ao dinheiro...
- Arranjar-nos-emos - replico. - Mas levaremos o teu carro.
Adivinho-lhe a careta: as portagens, a gasolina. Dá-me a morada de "Sol Pleno". Farei a marcação.
À tarde telefono para "Sol Pleno" e, no dia seguinte, recebo um folheto luxuoso sobre as actividades desta estimável sociedade de lazeres e sobre a aldeia de Viareggio.
Esta fica na borda do mar, num pinhal. Prepararam uma praia discreta, ao abrigo da curiosidade das pessoas estranhas a "Sol Pleno". O nudismo é possível. Além disso está tudo previsto para facilitar a vida: pequenas vivendas encantadoras (parece), a possibilidade de tomar sozinho as refeições e, sobretudo, a descontracção que se insufla logo à chegada aos sócios, que são amigos. Foram ainda previstos divertimentos com monitores: passeios de barco, excursões, campos de tênis privativos e lições particulares. A boa vida, pois então! Ainda ignoro como vou adaptar-me a uma existência que sinto dever ser totalmente colectiva, mas isso depois vê-se. E mando o cheque. Para duas pessoas.
Faltam passar quinze dias antes da partida. Defendo dois casos de divórcio e isso faz-me pensar em François a quem telefono, uma sexta-feira à noite.
Aparece-me Alice, a governanta. François não está. Volto a telefonar no dia seguinte, sábado. Continua a não estar.
- Se pudesse avisá-lo...
- Compreendido, senhora doutora - responde. Ocorreu nesse sábado uma coisa em que não pensei muito de momento.
A minha chamada para casa de François em Paris foi às nove horas.
Às dez horas chegou ele a minha casa, Alice avisara-o, e apenas demorara uma hora a vir de Paris até aqui.
No decurso desta manhã de sábado que precedeu a minha partida - era 13 de Abril - François e eu falámos do meu trabalho e ele deu-me, mais uma vez, excelentes conselhos. Mas até deixar-me, um pouco antes da hora do almoço, perguntei-me se ia falar-lhe da minha estada em Viareggio com Didier.
Questão delicada porque ele podia saber por Baruzzi. Ignoro de facto, precisamente, a natureza das relações entre Didier e os pais. Avancei, portanto, na ponta dos pés.
- Afinal continuas a falar com Michelangelo Baruzzi?
- Porquê?
- Por causa da tua campanha eleitoral.
François responde-me que continua a falar com Michelangelo Baruzzi. Mas não se refere à viúva do cirurgião com quem foi aos Estados Unidos e não insisto, com medo de parecer ciumenta. Tudo isto não me incita, porém, a brincar com ele. Pelo menos completamente. As nossas relações acham-se em vias de evoluir.
- Deverei ausentar-me de Orleães entre o vinte e dois de Abril e o sete de Maio. Parto para Itália.
François mostra um ar encantado. Responde-me que isso me fará bem e que nos veremos no regresso.
No dia seguinte, domingo, fui almoçar a casa dos Janès. Claro que poderia encontrar outras pessoas em Orleães, onde começo a ser conhecida, mas é em casa deles que me sinto melhor. E depois Robert é, no fim de contas, um grande cliente que deve ser bem tratado.
A propósito de Robert, ainda não tinha voltado quando cheguei nesse domingo e Edith levou-me para a cozinha a fim de falar de Didier. É a primeira vez que me fala quase com franqueza. Diz-me também que tenho sorte por ter um marido tão tolerante e liberal como François. Robert é, antes, do gênero ciumento. O que me admira um pouco, dados os avanços que me faz. Mas as confidências dela ficam por ali.
Domingo sem história.
Jogou-se bridge e Robert tocou-me com o pé debaixo da mesa. Mas o seu olhar permanecia frio e calmo quando o pousava em mim. O homem sabe dividir-se admiravelmente em dois: acima e abaixo da cintura.
Didier voltou a Orleães na semana seguinte e preveni Edith, que nos convidou.
No decorrer do jantar, vi como Didier actuava. Incontestavelmente sabe entender-se com as mulheres e não podia sentir vergonha por ter-me deixado apanhar por ele. Em plena lucidez, aliás. Foi encantador para Edith e soube excitar-lhe os sentimentos maternais e protectores. É a sua técnica.
Robert mostrava-se agastado.
No dia seguinte telefonou-me secamente. Mais ainda do que na primeira vez. Repetiu-me:
- Sabes que o teu camarada não me agrada nem um bocadinho?
- E o que isso me rala...
- Terias, pelo menos, interesse em desconfiar dele disse-me.
Intuição ou ciúmes? Ainda não sei. Robert aproveitou para me tornar a falar da redacção do contrato dos seus futuros comproprietários e afirmou-me que poderíamos falar disso e almoçar sozinhos.
- Veremos o assunto no meu regresso - respondi-lhe. Parto sábado.
Pode considerar-se que me repito, que dou pormenores a mais. Em suma, que não pareço ter pressa de chegar ao ponto principal.
Sobretudo não pensem assim.
Na realidade, tenho de explicar tudo.
Uma única coisa me incomoda nesta história: é que há nela um personagem a propósito do qual me pergunto, nesta terça-feira 14 de Maio de 1974, se devo falar no presente ou no passado.
Na manhã de 21 de Abril, um domingo, Didier veio procurar-me e começou por dizer-me que não tivera tempo de encher o depósito da gasolina. Perguntei-lhe se estava a gozar comigo e se tinha dinheiro.
- Mas é que já está tudo pago! - respondeu. - De qualquer modo, faremos as contas no regresso.
Como estava bom tempo e Orleães quase se esvazia nas manhãs de domingo, deixámos a capota descida.
Atravessámos a França devagar e, tanto nos restaurantes como nos hotéis, exigi que a conta fosse sempre dividida a meias.
De facto, Didier possuía dinheiro mas não lhe perguntei onde o arranjara. Sei, aliás, que não teria respondido a tal pergunta.
Levámos dois dias a chegar a Viareggio, uma cidade situada entre o Spezia e Livorno e a nossa viagem foi muito alegre. Paramos nas melhores casas que encontrámos na estrada e tínhamos dois dias de atraso quando chegámos a "Sol Pleno".
Mas estes dois dias - mesmo dois dias e meio - não foram perdidos e descobri em Didier tesouros de imaginação.
Passámos pela costa. Cada vez fazia melhor tempo e descobrimos locais cativantes para nos banharmos no trajo que a temperatura ambiente autorizava. Um dia, ele quis-nos fotogafar, aos dois, todos nus, graças a um aparelho com disparador automático. A gente põe-se à frente e aquilo faz o resto. De facto, parece que o disparador automático funcionava mal. Foi melhor assim. Mas, de qualquer modo, o clima que reinava entre nós durante esta viagem não excluía uma certa desconfiança da minha parte para com Didier.
No termo da viagem chegámos, portanto, à aldeia do "Sol Pleno". O organizador já não nos esperava.
Esta aldeia fica situada a alguns quilômetros de Viareggio, sob pinheiros e a cinqüenta metros da praia. Aí instalaram umas trinta vivendas para uma ou duas pessoas.
No meio delas, no largo em suma, ficam o restaurante e os serviços da administração: escritório do chefe da aldeia e escritório das hospedeiras. Ao lado, o bar.
O organizador, cabelos compridos e torso nu, explicou-nos logo que aqui toda a gente se tratava por tu, o que não impede que o nível social e médio dos membros seja bastante elevado: profissões liberais e quadros superiores; ao todo, umas sessenta pessoas em vez das quinhentas do pino do Verão, parece.
Para guardar as aparências havíamos reservado duas vivendas individuais ao lado uma da outra. Ficara, de facto, entendido tacitamente com Didier que nos concederíamos toda a liberdade desejável. Nada de ciúmes entre nós.
Como todos os outros, a minha vivenda é simples mas bem arranjada. O sítio é calmo. Faz um tempo soberbo.
À espera do meio-dia instalamo-nos num canapé e bebemos um copo oferecido pelo organizador. Em suma, as coisas começam bem.
Ao meio-dia, aparecem todos para almoçar em grupos barulhentos.
Reina entre esta gente - muito jovem no conjunto - um vício de mandar, um evidente desejo de distrair-se a todo o custo, o que soa um pouco falso. Na realidade, bem depressa darei por isso, entra-se logo no jogo e quase involuntariamente.
A mesa, Didier e eu estamos já instalados e almoçamos separadamente. O vinho corre e, à tarde, sou levada para a Praia onde durmo uma grande parte do tempo. Quando acordo, é para verificar que os meus companheiros e companheiras praticam todos um certo nudismo, para não dizer que metade das raparigas e dos rapazes andam completamente em pêlo. Mas muito felizmente, como precisava o folheto, estamos ao abrigo das indiscrições exteriores graças a bosquetes de árvores e arranjos de protecção: uma grande duna em especial, com um telheiro de colmo.
- São obrigados - explica-me a minha vizinha - por causa da polícia.
- Que dá multas?
- Não. Que nos espreita com binóculos. Tu não te despes?
Abandono o soutien. O calção, esse, ficará para amanhã. Devo dizer que fui educada burguesamente.
A seguir, terei ocasião de verificar que o nudismo que se pratica aqui não possui o lado casto e rigoroso tão reclamado pelos verdadeiros naturistas.
Sem ir ao ponto de pretender que as coisas foram organizadas para facilitar as relações sexuais, direi que elas se acham largamente facilitadas por um certo relaxamento dos dirigentes. Tudo se presta a isso, aliás. O pessoal de "Sol Pleno" - do director do campo aos cozinheiros, passando pelas hospedeiras e pelos quatro monitores (vela, equitação e tênis) - são jovens que vivem todo o ano em calção de banho e ao sol. Quanto aos clientes, ressalta claramente que prevenidos por uma publicidade sussurrada de boca para ouvido - vêm aqui para recuperar em quinze dias cinqüenta semanas de vida forçada e de rigorosa moralidade. Dito isto, admito muito bem que a direcção de "Sol Pleno" não faça qualquer alusão, no seu luxuoso catálogo, às grandes facilidades de aproximação que oferece à sua amável clientela.
Em suma, no dia seguinte à tarde, Didier explica-me que não estará livre nessa noite.
Depois do baile uma orquestra italiana anima os serões.
Vigio a porta da vivenda de Didier e vejo-o entrar com uma rapariga de uns vinte anos, puericultura em Châtellerault, e que partilha a minha mesa ao almoço.
- Ela é boa? - pergunto na manhã do dia seguinte.
- Sim... mas chata - responde Didier. - É uma rapariga para casar. Terei de largá-la logo a seguir.
Às oito horas, tenho encontro no campo de tênis para as minhas primeiras lições. O professor chama-se Jean-Pierre. É um moreno distinto cuja timidez é apenas aparente. Após algumas bolas, que devolvi por cima do gradeamento, chama-me à rede.
- Espero - diz-me - que sejas mais dotada para o resto.
- É caso para ver - digo com um sorriso ambíguo.
- Quando?
Atitude estupefacta da minha parte. Profissionalmente sei que tudo é, na vida, uma questão de circunstâncias. O amor e o vício. Dou por mim a replicar numa voz perfeitamente natural:
- Esta noite, se quiseres.
O mais engraçado é que ele vai consultar a sua agenda antes de responder-me. É nela que anota as lições, mas os serões parecem mais sobrecarregados do que os dias de trabalho.
- De acordo, por volta das onze. Mas não poderei ficar toda a noite. Volta para o teu lugar.
Volto a colocar-me no fundo do campo e devolvo-lhe as bolas. Ou, pelo menos, tento. Muito pouco reconhecido pelo que acabo de conceder-lhe, o tal Jean-Pierre solta uivos.
- O teu pé esquerdo mais para a direita, caramba! E o perfil? Dobras os joelhos... Tu armas em...
Não mostra um ar satisfeito. Uma vez terminada a lição convida-me apagar-lhe um copo e tranquilizo-o. Sou principiante no tênis mas não no que me pediu.
- Procura ser prudente esta noite com Elisabeth, a pequena hospedeira loura - pede-me. - Espero ficar com ela para este Inverno na aldeia da montanha.
Durante a tarde, quebrada por esta hora de tênis, dirijo-me à praia com os outros e dispo-me completamente. À sombra de dois chapéus de sol, um casal parece distrair-se. Não tornei a ver Didier de manhã. Disse-me que se tinha inscrito no clube de vela.
À noite, pelas 23 horas, Jean-Pierre entra na minha vivenda. Ao lado oiço Didier a discutir com a sua puericultora de Châtellerault. A despeito do que ele lhe disse na véspera, ela teve a lata de voltar a aparecer-lhe na vivenda.
Jean-Pierre, o monitor de tênis, deixa-me à meia-noite. É bom, mas esbanja-se demais. Sinto-o cansado.
Assim decorrem dez dias. Devo dizer que os organizadores conhecem muito bem o negócio e que tudo se encontra perfeitamente organizado. Além disso, o tempo continua excepcionalmente bom. Banhamo-nos. Tive duas vezes a visita - imprevista - de Jean-Pierre à minha vivenda. Infelizmente estava ocupada nas duas vezes. A primeira vez com um professor de matemática de Marselha e a segunda com um tipo que trabalha no cinema e fala em lançar-me, o que não é, aliás, o caso nas nossas relações amorosas.
Passo a maior parte das tardes na praia: primeiro ao sol e, em seguida, à sombra dos chapéus de sol. Jean-Pierre vem ter comigo muitas vezes. Contou-me que era estudante de arquitectura mas não sabia se não acabaria por abandonar os estudos para consagrar-se ao "Sol Pleno". Como é igualmente bom esquiador, dá também lições de esqui nas aldeias de inverno: quatro meses de esqui e quatro meses de tênis. A boa vida, pois então!
Didier concede-me uma paz total. Inscreveu-se para fazer vela, o que o leva a partir de manhã e só entrar à tardinha.
Devo dizer que, durante estes dez dias, não desci à terra, como se diz. Não pensei nem no meu ofício nem em François nem no meu eventual divórcio. Porque não praticar um certo deboche como meio de descontracção?
E eis chegado o momento de me aproximar mais dos actos que se passaram há, digamos... uma dezena de dias.
Três dias antes do nosso regresso - era, pois, o 4 de Maio senti vontade de beber um copo sozinha enquanto lia os jornais franceses trazidos por Didier, na véspera à noite, da aldeia vizinha. Dirigi-me, portanto, para a sua vivenda. Como elas estavam sempre abertas era fácil. Os jornais achavam-se na sua mala. Abri-a e tornei ao bar.
Aí, num canapé, de frente para um mar resplandecente e sob um céu de um azul denso, reflecti pela primeira vez desde a minha chegada a aldeia.
Tudo aquilo ia terminar em breve. Era bom demais. A gente que celebra aquela organização conhecia o negócio. Talvez voltasse a Viareggio. Sozinha? Não sozinha?
Este retorno à realidade deu-me cabo da moral. Até aos últimos tempos, esperei vagamente retomar a vida comum com François. Mas ele não estava de acordo e queria divociar-se porque descobrira uma viúva rica. Evidentemente, eu também podia encontrar alguém e tornar a casar. O aborrecimento é que François me tornara exigente, não sobre os parceiros de encontro ocasional, evidentemente, mas sobre a escolha de um companheiro sólido.
Achava-me, portanto, boa para passar a vida em Orleães porque não me via instalada em Paris.
Neste momento de penosas reflexões, o professor de matemática veio dar-me a conhecer que estava livre nessa noite.
Disse-lhe que eu não estava. Não se conformou.
Pelas 19 horas, Didier voltou antes dos outros. Estava em plena forma e capaz de fazer aqui a sua vida.
- São os meus jornais que estás a ler?
- Sim.
- Onde os encontraste?
- Na tua mala, naturalmente.
- Abriste-a?
- Claro que sim.
Achei-o, de súbito, nervoso. Não obstante, esboçou um sorriso ao qual respondi o melhor que pude. Mas a sua atitude espantou-me. Até então tudo se passara muito naturalmente entre nós. Entrávamos em casa um do outro sem problema.
- Precisas deles? - perguntei.
- De modo nenhum, de modo nenhum.
E fora ter com a sua guardiã de crianças de Châtellerault à qual se juntara, há dois dias, uma dentista do 18° bairro.
Quando devolvi os jornais, uma meia hora mais tarde, e antes de passar à mesa, verifiquei que Didier tinha fechado a mala à chave. Como as nossas coisas de valor estavam depositadas, desde a chegada, no gabinete do chefe da aldeia, admirei-me com tanta desconfiança da parte de um ser tão ligeiro como Didier. Admirei-me e reflecti, até mesmo nos braços do professor de tênis que não deixou de me assinalar o pouco interesse que dedicava às nossas relações, nessa noite. Desculpei-me.
Na manhã seguinte, depois do pequeno almoço, decidi ir à aldeia onde ainda não fora desde a chegada. Um dos criados do restaurante levou-me lá no carro do clube mas, como não havia grande coisa para ver, não me demorei e voltei sozinha a pé pelo caminho que acompanha o mar.
A cem metros da entrada do campo, uma espécie de ladeira conduz à duna que protege a aldeia e a sua pequena praia reservada. Era para esta que eu vinha regularmente todas as manhãs das 10 às 13 horas.
Uma vez na duna, lancei uma olhadela à praia. Uma vintena de membros do clube estava disseminada pela areia e outros agrupados em sítios mais discretos ou à sombra dos chapéus de sol. Continuei a minha caminhada e, de súbito, parei. Acabava de reconhecer, posta na areia, a ponta de uma toalha de banho: a de Didier. Recuei alguns metros até à vereda e dei uma olhadela.
Didier - que, no entanto, nunca lia e se vangloriava disso estava deitado num buraco de duna protegido por arbustos e lia. Graças à areia não podia ouvir-me.
Coisa ainda mais surpreendente, a minha máquina fotográfica achava-se pousada a seu lado, equipada com uma tele-objectiva.
Fiquei imóvel durante alguns minutos, muito intrigada.
A certa altura levantou-se e ajoelhou-se no seu buraco. Apenas a cabeça e a tele-objectiva ficavam à vista. Assim, via tudo o que se passava na praia e mal corria o risco de ser surpreendido pelos que tomavam o seu banho de sol, a trinta metros dele, mais abaixo. Depois, tornou a pousar a máquina na toalha. Dir-se-ia que procurava uma foto excepcional. Retomou a leitura.
Atitude espantosa que me deu tanto mais a reflectir quanto a aproximava da história da mala, na véspera à noite.
No bar, encontrei o chefe da aldeia e perguntei-lhe se continuava a tomar nota dos nomes de amadores para a escola de vela e as baladas no mar.
- Já era tempo de isso te interessar - disse ele. - Partes depois de amanhã, creio?
- Há uma razão mais forte. Didier disse-me que vale a pena.
- Como pode ele saber? Nunca a freqüentou. Tomas um copo comigo?
- De acordo.
Pensava, de whisky na mão. Se, portanto, Didier não saía para o mar, como pretendia, era talvez porque permanecia no seu buraco todo o dia. Nada mais fácil. Pegava no saco de manhã e instalava-se com a máquina fotográfica nas proximidades. Simples hipótese, claro, mas o incidente no caso dos jornais tornava-me, de súbito, desconfiada.
Voltei a passar pela sua vivenda. Estava, desta vez, fechada à chave e era, sem dúvida, uma das raras da aldeia a está-lo.
Os dois dias que faltavam passar em Viareggio foram bastante monótonos mas não revelei o meu estado de espírito. No último dia, começámos a trocar moradas e a fazer projectos para as próximas férias. Por sorte, o carro de Didier só tinha dois lugares. Senão, teríamos trazido uma ou duas raparigas para França.
Houve despedidas comovedoras e, à noite, um concerto. A orquestra atacou: "É apenas um até breve, meus irmãos". O chefe de campo de "Sol Pleno" distribuiu merendas para a estrada. Pediu-nos também para escrevermos à direcção a dar conta da nossa satisfação, pois o contrário era inconcebível. Toda a gente, de facto, parecia de acordo em dizer que a organização da aldeia era impecável.
Eu havia já preparado o itinerário de regresso. De facto, só havia um: acompanhar a costa até Gênova. Era mais curto e mais bonito do que ir procurar a auto-estrada a Reggio e permitir-nos-ia alterar o regresso, pois tínhamos vindo por lá.
Partida a 7 de Maio às oito horas da manhã, uma terça-feira.
Tendo-me deitado tarde por causa de Jean-Pierre, foi Didier quem teve de vir acordar-me.
- Estás bem? - interrogou-me.
- Estou. Poderíamos jantar em Turim e entrar pelos Alpes? - propus.
- De acordo.
Parecia de bom humor e contente por estarmos novamente juntos. É verdade que não nos tínhamos visto nem falado durante estes treze últimos dias. Em todo o caso não me falou da sua puericultura de Châteilerault durante o caminho. Nem eu de Jean-Pierre.
Pelas onze horas, paramos em Turim e ele quis tomar um copo num terraço. Disse-lhe que tinha umas compras a fazer mas que não me demoraria.
Efectivamente fiz uma ou duas compras em Turim e fui ter com Didier ao terraço, pouco depois.
- E se fôssemos até ao Monte Cénis? Daremos com alguma coisa mais tranqüila para almoçar do que aqui - propus.
Na verdade, Turim é uma cidade muito barulhenta. Didier retomou o volante sem protestar.
Depois de Turim, em direcção a Sestrières e ao Monte Cénis, a paisagem muda. Estava-se já na montanha. Não me senti, de súbito, muito à vontade ao pensar naquilo que ia fazer.
- Não és conversadora - disse-me Didier. - Deixaste alguma coisa em Viareggio? Um amor?
- E tu?
- Oh, eu, tu sabes, as raparigas... O principal é que os dois nos tenhamos divertido a valer, não é verdade?
- Sim - respondi. - Divertimo-nos a valer.
Havia dez minutos que viajávamos na montanha e não nos tínhamos cruzado com um único carro. O sítio era deserto, e sobretudo à hora do almoço. A vinte quilômetros do Monte Cénis iniciámos as curvas. Graças aos postos intercalares, sabia que dois quilômetros mais à frente daríamos com uma espécie de refúgio num dos lados.
- Serias gentil se parasses - disse eu. - Tenho de ir buscar uma coisa à mala.
Alguns minutos mais tarde, Didier aproveitou, portanto, o refúgio para parar desviado da estrada. Desceu e juntei-me a ele levando na mão o meu saco meio aberto. A minha mala encontrava-se no fundo da mala do carro. Era, pois, necessário que ele tirasse a sua, aquela onde eu descobrira os jornais, O que nesse momento me passou pela cabeça - refiro-me [ aos motivos que me levaram a agir como agi - ainda não é [explicável. Talvez uma intuição. Olhei e vi Didier como [nunca o tinha olhado nem visto.
- Abre a tua mala!
- O quê?
- Disse-te que abrisses a tua mala.
A partir deste momento, deixei de sentir-me inquieta. Passava-se seguramente qualquer coisa. Didier deu um passo atrás. Estava pálido mas, naturalmente, quis armar-se em forte e dirigiu-se para o volante. Mas vi que tinha medo. Eu sentia-me, ao mesmo tempo, inquieta e calma. Inquieta porque não convinha mesmo nada que um carro chegasse nesse momento.
- Didier!
Desta vez teve francamente medo e a sua cor modificou-se diante da arma que lhe apontava, sempre de costas voltadas
para a estrada. A sua atitude provou-me, pelo menos, que ele não era conhecedor de armas de fogo porque a pistola, comprada uma hora antes em Turim, não passava de uma arma de alarme que toda a gente pode comprar tanto em Itália como em França.
- De qualquer modo - disse-lhe - fiquei com a chave do carro. Não penses em raspar-te.
Esta precaução, junta à ameaça da arma e à cara que eu fazia, acabou por pô-lo completamente em pânico.
- Mas o que é que eu te fiz? -gemeu no tom de um gaiato que quer evitar uma tareia. - com certeza não é por causa de uma rapariga que nunca mais tornarei a ver.
- Abre a tua mala!
Ele assim fez. No meio da roupa tornei a ver a máquina fotográfica minha conhecida. Ao lado havia um rolo de película gasta na viagem de ida, a teleobjectiva e uma segunda máquina muito simples, do gênero Polaróide.
- Esta é boa! Então tu gostas da fotografia, tu? Como é que nunca te vi tirá-las, excepto na ida?
- Porque não prestaste atenção.
Obriguei-o a despejar toda a roupa. Mesmo no fundo dei com um sobrescrito de papel amarelecido com fotos no interior.
- Vamos partir - decidi. - vou ver isto durante a viagem. Ajudará a passar o tempo.
Continuava lívido e o suor gotejava-lhe pelo rosto fino de bicho vicioso.
- Tenho de explicar-te...
- Arruma a mala do carro. Partimos.
Didier arrumou a mala do carro e esperei que ele retomasse o volante para deitar uma olhadela à sua colecção. Meu Deus! Mesmo que tivesse previsto uma coisa pouco agradável, aquilo é que nunca preveria!
Se hoje, 14 de Maio, ainda me sucede relatar no presente certos episódios desta história é porque me parece que eles ocorrem neste mesmo instante, embora oito longos dias hajam já decorrido.
Portanto de volta ao carro, verifico com admiração que figuro em todas as fotos tiradas com a Polaróide, o que prova bem que era só a mim que aquele malandro do Didier queria lixar. Assim, eu era vista muitas vezes sozinha e nua, mas muito mais freqüentemente com Jean-Pierre, o tenista, e com o professor de matemática. Algumas fotos foram até tiradas na vivenda. Sou, pois, vista deitada, de peito nu, num canapé, enquanto uma mão de homem se passeia indiscretamente. É quase de acreditar que fui vítima de uma maquinação gigantesca na qual participaram involuntariamente, claro, todos os clientes de "Sol Pleno".
- Arranca!
- Não tenho chave - gemeu ele, lastimosamente. Atiro-lha e Didier mete-a com mão trêmula. Encostada à porta do carro, o mais longe possível dele, continuo a visá-lo. De súbito, sou surpreendida por um ruído de motor e um carro detém-se na berma da estrada, por cima do refúgio. Mal tenho tempo de baixar os braços para dissimular a arma.
Do carro desce um chui italiano, dirige-se para nós e examina a chapa de matrícula.
- Não precisam de nada? - interrogou em mau francês.
- Não - replico.
Isso não impede que continue a examinar-nos divertidamente. E se Didier contasse que eu o ameaçava? Mas não. Está lívido mas silencioso. Poderia julgar-se que estava doente.
- O local é perigoso - prossegue o chui. - Muitos acidentes aqui.
- Está bem. Obrigada. Vamos partir.
O polícia torna a subir lentamente a curta vereda que vai do refúgio-parque à estrada. Uma vez chegado ao seu carro pára de novo para nos fitar. Ei-los que, por fim, arrancam.
- Tens cá uma lata! - sopra Didier com admiração.
- Ainda não viste nada, meu safado!
Assento a mão na pistola de alarme para ocultá-la. Aquele velhaco é capaz de descobrir que não é a sério.
A menos de quatro metros do carro e à nossa direita, fica o barranco, o precipício. Enfim, não logo. Quero dizer que desta plataforma se desce - ou, antes, cai-se - na minúscula aglomeração que fica trezentos ou quatrocentos metros mais abaixo. Há duas ou três casas e prados. Mas a vertente que lá conduz é dura e rochosa com uma pequena vegetação mesquinha, incapaz de deter uma queda. Tudo isto é impressionante.
- Agora fala.
- Inteligente como és, deves compreender!
- Mesmo assim, conta. Preciso de pormenores.
O bluff, é sabido, pega muitas vezes. Sobretudo quando se enfrenta um rapaz pouco à vontade no seu papel.
- Tudo isto - começa depois de ter engolido a saliva - é por causa do que se passou quando fomos os dois surpreendidos por Louvois.
Na sua emoção engana-se de ministro e eu rectifico.
- O homem chama-se Colbert.
- Seja assim - diz ele. - Tudo isto para dizer que me sentia muito chateado. É verdade. O teu marido queria ocupar-se da minha carreira e eis que eu lhe criava problemas.
Dir-se-ia que procura afogar o peixe e ganhar tempo. Talvez me prepare uma partida! Não o perco de vista. Por sorte as suas pernas acham-se bloqueadas, aliás como as minhas, pela instalação da alavanca das mudanças que divide o chão em dois no sentido do comprimento do veículo. Mas sobram-lhe as mãos.
- As patas no volante e continua!
- Como quiseres - suspirou. - Em suma, o teu marido ficou bestialmente chateado contigo por causa do incidente com Colbert, mesmo se não o demonstrou. Isso custou-lhe dinheiro. E eis que há coisa de um mês me convidou para almoçar. Foi muito delicado e disse-me que não me queria mal pelo que se passara contigo. Continuava disposto na mesma a ajudar-me. No fim da refeição contou-me que tu tencionavas tomar férias. Ele tinha-te falado num clube, hein?
- Sim.
- Vês que não estou a inventar histórias. Foi nesse momento que François me propôs que te acompanhasse. Cabia a mim desenrascar-me para te decidir, mas ele pagava-me as férias e ainda me dava dinheiro por fora. Naturalmente isso admirou-me um pouco e pedi explicações. Foi então que o teu marido me disse que lhe agradaria se eu o pusesse ao corrente do que tu fizesses em Viareggio. Quando lhe falei em fotos ficou encantado com a idéia.
Gostaria de acreditar que estava a ser apenas vítima de Didier Baruzzi. O aborrecido é que as suas palavras parecem correctas e isso mete-me dó. Porque François foi sempre colocado por mim acima dos outros. Ambicioso e oportunista, decerto, mas regular e leal.
Acolho as confidencias de Didier com uma calma só aparente e insisto em saber mais.
- Naturalmente ele explicou-te o objectivo dessas manobras?
- Isso é fácil de adivinhar, não é? Falou-te em divórcio e tu recusaste. Nesse caso ele não podia insistir. Mas há a mulher que ele conheceu durante a viagem aos Estados Unidos e que é rica. Enquanto o meu pai podia pagar, François não precisava dela. Mas agora vê-se forçado a aturar Florence e a desposá-la. Porque ela insiste no casamento. Em suma, com as fotos, pensa levar-te depressa ao sítio.
Oiço, apanhada a frio.
- Compreendes - diz ainda Didier - eu estava entalado entre ti e ele. Se te dissesse a verdade ias procurá-lo e o teu marido dava cabo de mim.
- É talvez o que se vai passar.
- Em todo o caso teria falado sob ameaça e tu não tens o direito de me tomares por um velhaco. Eras a primeira a dizer que nós os dois só fazemos amor para nos divertirmos. Verdade ou não? Nota bem que não sinto orgulho do que faço. Mas é preciso pores-te no meu lugar. O teu marido tem futuro. Toda a gente o vê ministro um dia.
Dominada pela cólera aprestava-me para destruir as fotos e atirar o rolo de película para o barranco. Mas não, isso seria um grande disparate. Encafuo o sobrescrito de fotos e o rolo no meu saco. com eles irei falar a François.
- Agora, conduz. E não esqueças que se te der um tiro não ficarei forçosamente com o papel do vilão.
Mas antes de ele arrancar, palpo-lhe as algibeiras. Didier tem uma boa porção de dinheiro na carteira. Recupero o segundo jogo de chaves do carro no porta-luvas.
Um poste anuncia um restaurante para dali a alguns quilômetros.
Para lá nos dirigimos num silêncio glacial.
O patrão ouviu-nos chegar e está à nossa espera à entrada do estabelecimento, onde somos os únicos clientes.
Instalamo-nos na sala, Didier e eu.
O patrão italiano tem uma cabeça de carbonário e deixou aberta a porta que separa o café do restaurante. Uma mulher idosa vem pôr a mesa e fala-nos em italiano. Depois, vendo que não compreendemos, traz uma terrina, sem alternativa possível.
Estranho almoço. O patrão não nos perde de vista. Didier remexe no prato, ele que tem habitualmente um apetite enorme. Lança-me um olhar de cão escorraçado.
- Escuta, sinto-me bestialmente cansado e tenho de estar em Paris amanhã de manhã o mais tardar. Mesmo assim não vou percorrer sozinho os mil quilômetros que faltam percorrer. Estás de acordo em pegar no volante? - Não. Paga a conta.
Encomendo dois cafés muito fortes enquanto ele puxa pelas liras.
São apenas treze horas quando deixamos o parque. Andando bem por que, depois há a auto-estrada - chegaremos a Paris esta noite. A cinco quilômetros da fronteira franco-italiana metemos
gasolina e estala um incidente entre nós. Compreendi já que o objectivo de Didier é pôr-me os nervos à prova e estudar a maneira de se livrar de mim. Não caio na armadilha e reajo secamente. Arrancamos sob o olhar do homem da bomba, italiano, comicamente intrigado.
À entrada de uma aldeia italiana - deve ser a última antes da fronteira francesa - nova tentativa de Didier, que pretende sentir vontade de dormir.
- Anda até ao café! - digo eu. Temos dificuldade em descobri-lo nesta aldeola de uma
dezena de casas. Finalmente, lá entramos e servem-nos café.
- De qualquer modo não vais obrigar-me a conduzir até Paris - repetiu ele.
- Sim.
- Deixa-me, ao menos, ir mijar! - choraminga.
Os lavabos ficam no pátio, a alguns metros da janela. Vejo Didier entrar na espécie de barraca W. C. De qualquer modo, mesmo se tentar raspar-se, tenho os dois jogos de chaves no meu saco. Didier pensou certamente nisso porque regressa à sala, contristado e sonso.
E arranca novamente.
Mas quando estamos a dois quilômetros da fronteira tenta outro golpe. Trava e apeia-se. A cólera invade-me e também um certo nervosismo que domino mal.
Encontramo-nos na berma de uma estrada idêntica àquela onde tínhamos parado quando o polícia italiano nos interpelou, há pouco. Foi traçada no flanco da montanha. À nossa esquerda, esta ergue-se bastante a prumo. À direita é a ribanceira abrupta com trezentos a quatrocentos metros. Feita de cascalho, acha-se semeada de vegetação de arbustos, de silvas e termina, ao fundo, num regato e em casas minúsculas.
Didier parou o carro mesmo na curva. Este malandro fez de propósito para atrair as atenções. Desta vez meto a mão no saco. A cólera aumenta como uma vaga.
- Arranca - digo-lhe - ou disparo.
- Ganharias muito com isso - cacareja ele, com a cara torcida de medo. - Se não regressar amanhã de manhã o meu pai alertará os chuis. Acredita-me. O melhor, quando se comete um disparate, é fazer o jogo e reconhecer os erros. No fim de contas não fui eu que te lancei nos braços dos tipos de Viareggio. Estavas cheia de vontade deles, não?
Apesar do medo, quer empurrar-me e levar-me a perder a calma. O que faz pensar que julga ter uma boa possibilidade de se safar.
Dali a dois metros ficará à beira da estrada, no limite de uma queda pela ribanceira com vegetação. Compreendo, de súbito, que estou em vista de perder progressivamente a calma. Didier também o sente. Mas está menos tranqüilo do que eu. Diz:
- Liquidar alguém na estrada quando um carro pode aparecer, só de doido!
E ei-lo que se atira a mim raivosamente. Impossível puxar pela arma. Tem razão. Pode aparecer alguém. Agora agarra-me pelos cabelos e tenta arrancar-me o saco de mão.
Então o medo invade-me e atiro-lhe, mesmo na canela, com um pontapé que o faz uivar de dor. Larga-me e recua. Está agora a um metro da berma da ribanceira.
Passam-me então muitas coisas pela cabeça. Uma cólera louca invade-me. Sinto realmente desejos de fazer mal a Didier e de me vingar dele e de François.
E eis que aparece um carro. Oiço-o. Ainda se encontra talvez um pouco longe de nós mas na montanha os ruídos são enganadores. Avanço. Didier apenas está a cinqüenta centímetros da ribanceira.
E empurro-o. Ao mesmo tempo digo para comigo que, desportista como ele é, vai começar a rebolar pela ribanceira mas que poderá agarrar-se a um dos arbustos ou à vegetação. Ora, contrariamente ao que pensava, Didier não escorrega sobre o ventre mas cai de costas. Isto é, não pode controlar a queda.
O carro continua a aproximar-se. Dentro de alguns instantes estará ali. É-me, pois, impossível ficar naquele sítio. Seria muito perigoso para mim. Arranco, portanto, muito depressa e descubro, a duzentos metros de distância, e para a esquerda, um desvio de terra batida à entrada de uma quinta. Deixo aí o carro e volto a pé para o local onde Didier caiu.
Mal lá cheguei, o carro ouvido há pouco surge na curva. com efeito, trata-se de um pesado seguido por uma importante fila de carros de turismo que não podem ultrapassar este mastodonte, devido à estreiteza e às curvas contínuas.
Olho a ribanceira enquanto passam os veículos a meu lado. Tenho assim o ar de uma turista interessada pela beleza da paisagem.
De facto, a ribanceira acha-se guarnecida de arbustos bastante ligeiros, de espécies de moitas que brotavam na encosta rochosa e abrupta. Um homem pode dissimular-se muito bem no meio dessas moitas. Mais abaixo ficam as árvores. E, ainda mais abaixo, as casas ao longo do regato.
A minha cólera desaparece de súbito. Não me atrevo a gritar por causa dos carros que me roçam e circulam a vinte à hora atrás do camião.
Fico ali uns bons cinco minutos. Os carros agora já passaram. Estou sozinha na estrada.
- Didier! - grito. - Didier!
Nenhuma resposta. Neste instante estou persuadida de que ele está a fingir. É bem o seu gênero e o seu interesse.
- Didier... Vou-me embora.
De novo perscruto a ribanceira e a vegetação que tem, em certos sítios, um pouco mais de dois metros de altura.
A minha cólera desapareceu e os últimos carros passaram quando me decido a voltar à quinta. É impossível que tenha acontecido alguma coisa grave a Didier.
Instalo-me ao volante do carro e acendo um cigarro. Não posso partir logo. Mais vale deixar avançar os veículos que me precedem e que me arrisco a alcançar pois uma única estrada leva à fronteira franco-italiana. Mas não posso também ficar ali eternamente. Aliás, falta de sorte, uma mulher aparece à soleira de casa - uma espécie de mulher - fita-me e desaparece.
O meu saco continua no banco traseiro com a arma dentro. Saio da terra batida e faço uma centena de metros na estrada. Paro e atiro a arma pela porta. E torno a partir.
Como a estrada começa a alargar a um quilômetro dali, todos os carros já passaram quando atinjo a barreira da alfândega.
Invade-me o desejo de voltar para trás. Talvez consiga ver Didier? Posso, talvez, esperar mais um pouco por ele.
Um empregado da alfândega olha para mim.
Avanço até ele.
Era o dia 7 de Maio último, há alguns dias, e escrevo hoje o que realmente se passou.
Gostaria de explicar e de ter testemunhas.
Ora verifico que sou incapaz de explicar porque empurrei Didier Baruzzi para a ribanceira.
Porque, afinal, ele não me ameaçava. Pelo menos não me ameaçava a vida.
Teria podido regressar a França pelos meus próprios meios, ir ter com François e explorar a situação.
Ora agi de maneira diferente.
Na qualidade de advogada, ouvi muitas vezes acusados sustentarem que não podiam explicar os seus gestos. Por exemplo, o estudante que disparara sobre a filha do importante agricultor, esse caso defendido e ganho por François e graças ao qual o conheci.
Muito nos divertiu no tribunal, esse estudante!
Aliás, deram-lhe cinco anos. Era para o ensinar a explicar o seu gesto.
E eu, estagiária, ladrava atrás da vítima. Queria deslumbrar François, convencê-lo e agradar-lhe. E foi por causa desse mesmo homem que empurrei Didier. Se tivesse sabido!
O humor daqueles a quem se chama responsáveis da autoridade é, a maior parte do tempo, função de factos puramente pessoais ou familiares, Quero dizer que uma cena de zaragata caseira que preceda a entrada em funções de um gendarme é de natureza a engendrar muitas dificuldades. Para quem a elas recorre, claro. Pretender o contrário sempre me pareceu ser a pior hipocrisia e provém daquilo a que se chama espírito de corpo que é entre os trabalhadores extremamente comparável ao espírito do mundo do crime entre os gangsters.
Sob um olhar aparentemente aberto, o empregado francês da alfândega que me aguarda na barreira fronteiriça dissimula um espírito curiosamente desconfiado e evita responder ao meu sorriso um pouco crispado.
- Nada a...
- Não - corto eu.
- Ah! - diz ele, visivelmente descontente com uma resposta tão rápida.
Vai até à mala do carro mas não a manda abrir. Em seguida, volta para deitar uma olhadela ao banco traseiro e nota o sobrescrito amarelecido que contém as fotos e que eu não tive a idéia de tornar a meter no saco depois de ter deitado fora a pistola de alarme.
- Mostre!
Sinto-me empalidecer e passo-lhe o sobrescrito. Abre-o e põe-se a examinar minuciosamente as minhas fotos uma após outra. Mas continua de gelo.
- Sabe que a importação deste gênero de fotos é proibida em França! - sopra ele.
- Não é o que o senhor julga. Sou eu - retorqui. - Ah! eis que torna a examiná-las. O seu olhar já não exprime a reprovação glacial. Viu as fotos em pormenor e compara-as Kom a minha pessoa. E lá vai ao escritório, dois metros à minha direita. Passam-se alguns minutos e aparece, à janela do escritório, uma cara por cima de um casaco azul marinho.
O outro empregado da alfândega volta com o sobrescrito e me devolve.
- Visto que não é para venda...
- Quero ver as suas malas.
Dirijo-me à mala do carro com ele e aponta-me uma, ao Bcaso. Pertence a Didier e examina-a duma ponta à outra. Se aquele cretino tivesse tido a idéia de querer passar alguma coisa aos direitos eis-me metida num sarilho. Mas não há nada de anormal nesta mala. Apenas roupa suja acumulada em quinze dias.
- Não é sua? - observa o empregado da alfândega, - É de um amigo que tomou o avião para voltar a França.
- Está bem.
Maneira de falar, porque volta ao carro e examina com cuidado as duas máquinas fotográficas. Mas foram compradas em França.
- Está bem! - diz.
Este cretino ignora evidentemente que na vida é-se sempre a vítima de alguém e que ele próprio será talvez, nessa noite, a vítima de um funcionário dos correios mal intencionado ou a de um empregado da Previdência à procura de arrumar uma conta com alguém.
Retomo o volante em direcção a Chambéry. Aí ficarei a cento e dez quilômetros de Lião e em seguida será a auto estrada para Paris. Aí irá mais depressa. Até lá vou muito atenta à condução. É só quando já estou na auto-estrada que me ponho a pensar de novo em Didier e, sobretudo, na singularidade da minha atitude a seu respeito.
De facto, hoje, e repito-o, continuo a não ver explicação plausível para o meu gesto. Acontece muitas vezes que não pensamos fazer coisas que não podemos explicar. Digamos que estava furiosa com aquele pequeno imbecil, que sentia vontade de fazer-lhe mal, mas sem querer matá-lo, evidentemente. Do mesmo modo, e inconscientemente, não queria acabar a viagem na sua companhia com medo de que ele se recompusesse e recuperasse as fotos. Foi tudo isto ao mesmo tempo que provocou a minha espantosa reacção que, naturalmente, lamento,
Na auto-estrada quase deserta, apoio no acelerador sem ter em conta o limite de velocidade. De facto vou a cento e sessenta e ultrapasso toda a gente. Isso alivia-me um pouco.
Mas, como sempre, nesses casos, um carro azul agarra-se a mim, guiado por um tipo. Porque é inevitável que uma rapariga que conduz tão depressa dê nas vistas a um amador de velocidade e de mulheres. Tudo isto faz parte da grande caçada.
De Lião a Mâcon, o desafio prossegue entre o tipo e eu. Agita-me o sangue e impede-me de pensar. Chegamos juntos à portagem mas cada qual na sua fila, naturalmente. O que faz com que tornemos a arrancar ao mesmo tempo numa trepidação dupla de motor. O tipo ganha-me cinqüenta metros. Tem certamente um carro mais potente do que o meu. Enfim, do que o de Didier. Carrego no acelerador mas ele já vai longe. Mesmo assim fiz Lião-Mâcon a mais de cento e sessenta de média e o meu indicador de temperatura está no máximo.
Depois de dez quilômetros num andamento mais razoável, torno a ver o carro azul no ponto de mira. Segue tranquilamente a cem à hora na fila direita. Eis-nos lado a lado. O rapaz olha-me divertido. É um tipo louro e forte com uma camisola branca.
Passo por ele de supetão e ei-lo minúsculo no meu retrovisor. Acabo de ganhar-lhe dois quilômetros e acelero a fundo. Desta vez foi surpreendido e deve ter dificuldade em apanhar-me. Mas, enfim, lá vem ele.
E, logo nesse momento, oiço como que uma espécie de soluço debaixo do meu capot do motor. Depois o carro diminui o andamento e fica durante um quilômetro à velocidade adquirida. Devo dizer que me assalta o medo. com dificuldade passo para a fila da direita. Enganado, o motorista do carro azul passa a meu lado esboçando um gesto de vitória. Humilhada, paro, obrigada. Desço. O meu motor parece uma caldeira e larga fumo.
Deve ser uma avaria!
É uma avaria!
Mal repeti para comigo esta triste constatação vejo o carro azul voltar para junto de mim a toda a velocidade mas em marcha atrás. E o rapaz apeia-se e dirige-se-me. É efectivamente louro e forte: o gênero desportivo, talvez de uns trinta anos e bastante simpático.
- Aborrecimentos?
- Parece-me. Vai ao capot, levanta-o e pôe-se a farejar.
- Deu cabo de uma biela. Já desconfiava. com esse carro não se pode passar dos cento e cinqüenta e a certa altura ia a cento e oitenta.
Deita mais uma olhadela ao motor e depois aproxima-se do meu tablier. O espanto lê-se-lhe na cara. Interroga:
- Está em rodagem? - Sim.
- É perfeita! Tem de comprar um motor novo. Vai para Paris?
- Sim,
- Eu também. vou tratar de si.
Tem um ar deveras decidido. Aconselha-me a fechar tudo à chave e a ir telefonar com ele a um posto da auto-estrada. De uma garagem virão buscar o carro e depois regressaremos ambos a Paris. Visivelmente este programa encanta-o. A mim não, mas não havia outro remédio. Fecho, portanto, as portas e vou com ele até um posto telefônico da auto-estrada.
- Terá um carro para a desempanar dentro de meia hora!
- respondem.
Voltamos, pois, para trás, o rapaz e eu, até ao meu carro e ficamos à espera. O carro da desempanagem chega e o mecânico confirma-me o diagnóstico: uma biela partida. O carro ficará pronto dentro de uma semana. Dá-me o seu cartão: é garagista em Mâcon.
Só me resta transferir as bagagens de um carro para o outro. A de Didier fica na mala. Deixo naturalmente as suas duas máquinas fotográficas mas recupero o sobrescrito cujo conteúdo tanto interessara o empregado da alfândega, há pouco. A película está no meu saco.
Voltamos a partir.
Dez minutos passam em silêncio. Este incidente contraria-me imenso. vou ter de telefonar para casa de Didier porque não duvido que este cretino há-de acabar por alcançar o domicílio pelos seus próprios meios.
O rapaz louro, a meu lado, tem algo de tranquilizador e de são. Estendo as pernas bronzeadas. Ele deita-lhes uma olhadela.
São quase dezassete horas.
Olho para as grandes mãos do meu companheiro bem assentes no volante.
- Esqueci-me de me apresentar - diz. - Chamo-me Roland Cardin. Tenho uma garagem em Paris Enfim, o meu pai. E você?
- Marie-Claire Dantec. Sou advogada.
- Em Paris?
- Em Orleães.
- Já pensava nisso para comigo. Há em si qualquer coisa que não é como nas outras. Habitualmente, as raparigas cheias de massa aparecem muitas vezes de óculos e de costas encurvadas. Então forçosamente, consigo...
Todos eles possuem o seu estilo. Este tem o gênero desportivo que não é o que prefiro nos atiradiços. Também não o daquele pequeno cretino de Didier. Não. O meu gênero é François. Embora com o golpe que me prepara... A este propósito, tenho de ir falar-lhe esta noite e explicar-me com ele.
Continuamos a avançar. O meu companheiro pergunta-me de onde venho para estar assim bronzeada. Falo-lhe de Viareggio e isso descontrai-me um pouco.
A cento e vinte quilômetros de Paris, Roland Cardin pára para oferecer-me um copo.
Ficamos uma meia hora à mesa e ele explica-me que vem de Marselha. Vai lá sempre que pode, para fazer mergulhos submarinos com camaradas. Também entra em ralis automobilísticos. Gostaria de ser jornalista. Infelizmente nunca deu nada na escola.
Tornamos a partir.
Às dezanove e trinta deixa-me em frente da casa de François... e em minha casa.
- Tornaremos a ver-nos?
- Talvez - digo eu.
Entrega-me o cartão de visita e arranca. Em suma, este tipo portou-se muito bem comigo. Ou então está menos apressado do que os outros atiradiços.
Deixo as malas no vestíbulo de entrada e subo até à casa de François. Alice Tafanel, a governanta, não parece estar lá. Torno a descer e toco a campainha da porteira.
- bom dia, doutora Dantec - diz-me. - Queria falar ao seu marido? Não está. Só regressará depois de amanhã.
- Não está mais ninguém?
- Não. A secretária partiu e Alice nunca me deixa as chaves. Se quer que dê algum recado...
- Não, obrigada.
Em suma, apenas me resta voltar para a minha casa de Orleães. A meu pedido a porteira chama-me um táxi que me conduz à estação.
São 21, 30 horas quando desembarco em Orleães. Ou entro em casa ou telefono aos Janès, os únicos amigos em cuja casa me posso apresentar a esta hora e que me farão mudar de idéias.
É Robert que atende.
- Voltaste quando?
- Estou na estação com as malas. - vou já - diz-me ele.
Efectivamente, dez minutos mais tarde estava lá, solícito, volúvel e muito contente por me ver. Tenho um aspecto magnífico, diz-me. Leva-me para casa. As férias foram boas? Enfim, todas as perguntas do costume.
Mal o seu carro arrancou, arrependo-me de lhe ter telefonado. Teria ficado muito melhor sozinha a reflectir, em minha casa, em tudo o que me sucedeu hoje. Mas é demasiado tarde. Subo com Robert para sua casa.
- E Edith?
- Está muito bem - garante.
Entramos. Prevendo a minha vinda, pôs uma garrafa de champanhe num balde de gelo. Mas o apartamento parece-me muito vazio.
- Edith não está cá?
- Não - responde. - Esqueci-me de to dizer. Sempre que há as festas de Joana d'Arc vai para casa da mãe. Oh, não é que aquilo a divirta mas o desfile faz-lhe mal à cabeça... o barulho. Conhece-la?
Robert tem um ar de alegria esfuziante por estarmos sós. Já estabeleceu o seu programa.
- Vamos preparar o jantar como camaradas. A menos que tu prefiras que vamos ao restaurante os dois.
- Não, obrigada. Queres que te ajude a preparar alguma coisa?
- Se isso te agradar.
Ponho a mesa enquanto ele abre caixas de conserva. Ao abrir o frigorífico, verifico a presença de duas outras garrafas de champanhe. Para o caso, sem dúvida, de a primeira não chegar para me convencer.
Pomo-nos à mesa.
Tenho fome!
Isso lembra-me o almoço ao meio-dia, na companhia do cretino Didier. Onde está ele neste momento? Que faz?
- Como correram as tuas férias? - interroga o meu anfitrião.
Pergunta delicada. Robert sabe que eu estava no "Sol Pleno", mas desconhece que aí estivesse com Didier. Falo-Lhe, pois, de Viareggio mas não de Didier. Em suma, as reticências e as mentiras começam. Terei de telefonar amanhã a Didier porque me admiraria que ele tomasse a iniciativa. Telefonarei também a François para pôr os pontos nos is em uma entrevista.
Bebe-se champanhe. Robert diz-me que também gostaria de ir para um clube de férias. Mas há Edith! Ah, Edith! Nada fácil de aturar, mau grado o seu ar sorridente. E, ainda por cima, ciumenta. Sobretudo das amigas demasiado bonitas, demasiado inteligentes. Eu à cabeça, naturalmente.
- Todos temos os nossos pequenos defeitos - digo eu. Mas não sigo nada da conversa. Por pouco ia telefonar a Didier, ao menos para lhe contar que lhe partira o carro novo. Mas seguramente ainda não voltou. É verdade que tem dinheiro. Ou então regressou a pedir boleias.
Depois do jantar Robert põe um disco. Mas como não sinto vontade de dançar vem instalar-se a meu lado, coloca a mão no meu joelho e sobe um pouco. Recuo.
- Foi para isto que me convidaste?
Não responde. Vejo-o pensar e depois, de súbito, corre para oescritório e abre uma gaveta fechada à chave.
- Olha para isto - diz-me, com má carranca.
Passa-me um sobrescrito endereçado a Edith Janès, posta restante, correios centrais de Orleães. No interior vejo um postal do clube e reconheço a letra de Didier. Deve tê-lo escrito em Viareggio.
- Podes ler! - sopra Robert.
Nada no texto deixa pensar que houve alguma coisa entre Edith e Didier.
Mas este deve pensar no futuro. Explica que estará em Paris a 8 de Maio de manhã e que é possível telefonar-lhe para casa.
- Estiveram juntos em férias? - insiste Robert.
- Sim.
- É um belo patifório. Prefiro dizer-te que se lhe ponho a mão em cima...
Depois, compreendendo que esta cena não serve o seu prestígio, Robert acalma-se e pergunta-me se amanhã estarei em casa. Não sei. A cidade vai ficar cheia de gente. Primeiro, há Orleães em peso que olha ou desfila, mais os curiosos vindos de fora. E como as minhas janelas dão para o largo do Martroi nem pensar em ficar em casa a trabalhar.
- Talvez te telefone - digo-lhe eu. - Acompanhas-me a casa?
- Um pouco de champanhe antes?
- Se fazes gosto nisso.
A dois esvaziamos a segunda garrafa ouvindo um disco. Depois, pelas vinte e três horas, Robert leva-me a casa. Tem um ar decepcionado quando lhe estendo a mão.
A porteira ainda está levantada e ajuda-me a subir as malas.
Abro a minha janela.
Acha-se tudo pronto para o desfile do dia seguinte. Os estrados estão montados e as barreiras metálicas colocadas ao longo dos passeios.
Fatigada e deprimida deito-me. Sinto que vou dormir até muito tarde. Pelo menos até à hora do início do desfile, isto é, até às dez.
Não.
É o telefone que me desperta muito antes das dez horas.
- Aqui Roland - diz uma voz que reconheço mal. - Regressou bem?
- Quem é o senhor?
- Tem uma memória curta. Nem sequer reconhece o seu salvador da auto-estrada?
Concedo-me uma pausa nesta história.
Não foi fácil para mim arranjar uma situação e impor-me entre os homens, embora haja quem pense que as mulheres têm facilidades para triunfar.
Erro. À parte o strip-tease e a prostituição, naturalmente.
Advogada em Orleãcs, muito bem.
Mas houve François, Didier, Robert Janès que me complicaram a vida ou ma complicarão.
E agora este Roland.
Todavia nesta manhã de 8 de Maio a sua chamada quase que me deu prazer.
Mas passo já ao que se seguiu.
Capítulo nono
Admiro-me, um pouco parvamente, com esta chamada.
- Como deu comigo?
- Disse-me que era advogada, que se chamava Marie-Claire Dantec e que morava em Orleães. Não acha que chegue como informações Diga-me, acabo de ter uma idéia. Como irá recuperar o seu carro na próxima semana, à garagem de Mâcon?
- De comboio, naturalmente - respondo eu em vez de dizer-lhe a verdade.
- Era mesmo o que eu pensava -replica peremptoriamente. - Mas pense um pouco. Um motor novo como o seu, pode custar entre cinco e sete mil francos. Confie na minha experiência. com um profissional a seu lado as coisas serão melhores para si, não?
Tem lata como todos os homens quando querem alcançar os seus fins.
- Admitamos - digo-lhe. - Nesse caso telefonar-lhe-ei dentro de uma semana.
Mas isto não parece bastar-lhe e insiste:
- E que faz hoje?
- Trabalho.
Pôe-se a rir amargamente e censura-me por falta de gentileza para com ele. Não lhe disse ontem na estrada que em 8 de Maio, dia da festa de Joana d'Arc, ninguém trabalha em Orleães, quer por respeito à santa, quer por causa do barulho que reina na cidade, quer porque é agradável tomar um pouco de descanso? E depois, de qualquer modo, diante de quem ia defender uma causa se os magistrados tomam parte do desfile?
- E mesmo se fosse verdade?
- Oiça, Marie-Claire - corta ele - estou um pouco aborrecido. Sim. Tenho uma coisa para me ser perdoada. E afirmo-lhe que é sério. Aceite receber-me de manhã e contar-Lhe-ei.
Desta vez enervo-me e ele insiste.
- Apenas uma meia hora. Prometo-lhe. Até já. Cansada, dou-lhe o meu acordo. Uma vez que a estrada
não lhe mete medo, que apareça. Mas não ficará muito tempo. Está decidido.
Em seguida passo à casa de banho e ponho em ordem a secretária. Amanhã é quinta-feira. Concedo-me até segunda-feira de manhã para retomar o trabalho. Depois telefono para casa de Didier. Tenho de me tirar de cuidados a seu respeito.
É a criada que me responde que o Sr. Didier ainda não voltou. Ora ele deveria estar lá. Pergunta-me se quero falar com a mãe, Madame Clara.
- Não, obrigada. Voltarei a telefonar.
Caminho nervosamente da secretária para a janela e, ao fim de duas ou três idas e vindas, reparo que continuo com o telefone na mão. A ausência de Didier inquieta-me.
Com muita precisão recordo-me de tudo quanto se passou na estrada, na véspera. Teria também telefonado para a polícia a fim de saber notícias. Infelizmente aquilo ocorreu em Itália. E em que aldeia, aliás?
Espantosa curiosidade! Julgava-me mais senhora de mim!
Volto a descer para ir buscar um mapa das estradas ao carro, na garagem, e abro-o em cima da secretária. Assinalo o local do incidente. Situa-se entre o restaurante onde almaçámos e o posto fronteiriço. Infelizmente, este pedaço de estrada representa uma dezena de quilômetros e está cheio de curvas. Até só há curvas. Ora nada se parece mais com uma curva do que outra curva. Por conseguinte, impossibilidade de situar o local da queda.
Tocam à porta.
É Roland Cardin.
Mal passou uma hora e meia que me telefonou e, tendo em conta o trânsito na estrada e na cidade, não perdeu tempo.
Entra, sorridente, sólido e bem vestido, olha o meu apartamento-escritório e deita uma espreitadela pela janela.
- A sua festa de Joana d'Arc dá-me vontade de lá ir dar uma volta. Leva-me?
- Diga-me primeiro o que pretende.
- Contar-lhe uma coisa. Evidentemente teria podido enviá-la pelo correio ou aguardar que fôssemos buscar juntos o seu carro. Mas tinha vontade de voltar a vê-la antes e de desculpar-me.
Tira um sobrescrito da algibeira. É da garagem Cardin, avenida de Versalhes em Paris. Extraio uma foto. É uma daquelas em que estou na praia, de seios nus, com Jean-Pierre, o professor de tênis da aldeia de Viareggio. Nem pensar em admitir qualquer engano acerca do que fizemos ou vamos fazer.
Recordo-me de que pus o sobrescrito no meu saco antes de transferir as bagagens do carro de Didier para o deste rapaz. Um pouco incomodado, Roland explica-me que fanou esta foto do meu saco quando me encontrava nos lavabos do bar da auto-estrada.
- Apenas tirei essa, pode verificar. Só falta efectivamente uma foto. Pelo menos, assim penso.
- A si sobra-lhe lata - digo-lhe.
Parece divertir-se um pouco mas não o acho nem irônico nem insinuante e não sinto vontade de zangar-me. Em suma, Roland é antes o atiradiço obstinado mas simpático.
As primeiras músicas da cabeça do desfile chegam ao meu escritório apesar das janelas fechadas. Ele vai abri-las. Como toda a gente está à janela não me arrisco a fazer notar e ponho-me a seu lado.
- Gosto bestialmente de música militar - diz ele. - Há alguém que disse que está para a música como a justiça militar está para a Justiça.
- Foi Clemenceau - digo eu.
Robert desata a rir. Tenho de admitir que no meu destrambelhamento nascente este rapaz é um elemento de alívio indiscutível.
vou juntar às outras a foto que acaba de devolver-me. Não falham mais, efectivamente, e meto o sobrescrito no cofre. Precisarei delas quando falar com François, como prova.
Depois, como Roland insiste, saímos. Isso evitar-me-á, pelo menos, ter Robert ao telefone.
As ruas são ruidosas e claras, com cores e músicas. Adoro isto. A certa altura Roland agarra-me no braço. Convido-o a largar-me. Arrisco-me a encontrar gente: clientes, magistrados e colegas.
Ao cabo de uma hora a secar à espera do desfile que espreitamos da esquina da rua, Roland vai buscar-me amendoins torrados. Acho-o realmente muito descontraído. Interrogo-o:
- Não trabalha hoje?
- Pensava que tivesse compreendido que era um filho de família - respondeu. - É o papá quem dirige a garagem. Adora isso, o papá. Então eu não devo mostrar-me mais papista do que o papa. De acordo?
Logo após a passagem do desfile propõe-me levar-me a almoçar e aceito. Mas não na cidade. Antes numa pequena estalagem dos arredores. Olha, precisamente naquela onde Robert quis levar-me uma vez. Voltamos ao seu carro e, cerca do meio-dia, chegamos à estalagem. Embora saboreasse o encanto do meu companheiro não pude impedir-me de estar nervosa e de ter o espírito distante. Ele dá por isso e pergunta-me se é o trabalho que assim me preocupa.
- Sim - digo-lhe.
E ei-lo que se mete em cabeça fazer-me explicar-lhe o meu ofício de advogada. Em que consiste isso? Tem-se o direito de mentir aos juizes? Acaso sou parente de François Dantec cujo nome leu no jornal? A esta pergunta respondo afirmativamente, sem mais, mas durante uma parte da refeição torno a pensar em François.
O que me parece ainda mais difícil, no momento que atravesso, é admitir a traição do meu marido. Porque se comportou ele assim para comigo? Para dispor de uma carta forte a jogar no nosso divórcio?
Depois do café, senti irresistivelmente vontade de partir e o meu companheiro acede ao meu desejo. Acho-o muito mais simpático do que aquando do nosso encontro na auto-estrada. Regressamos a Orleães e deixa-me à entrada da avenida. Volto para casa, a pé, por entre a multidão.
A tribuna de honra está erguida no largo, quase debaixo das minhas janelas. Mas com elas fechadas é-me, mesmo assim, possível trabalhar. Ponho um pouco de ordem nos meus papéis. Recebi bastante correio durante os quinze dias de ausência. Mas nada de muito importante.
Tinha voltado há pouco mais de uma hora quando o telefone toca e só por sorte o aparelho não me caiu das mãos, tamanhas são a minha surpresa e a minha inquietude.
- Aqui Michelangelo Baruzzi, o pai de Didier.
- Faça favor, senhor Baruzzi.
- Gostava que me recebesse logo que lhe fosse possível, senhora antec. Estou em Orleães, a cem metros de sua casa.
Impossível recusar. Sinto que se passa alguma coisa séria. Todavia, Deus sabe como este homem, que vi diversas vezes lá em casa, me é pouco simpático: grosseiro e mal educado. Mas não posso deixar de recebê-lo.
- Venha quando quiser, senhor Baruzzi.
Engulo um copo de conhaque enquanto o espero. Ou antes, enquanto reflicto no que vou responder-lhe. Mas isso também dependerá, evidentemente, das perguntas que me vai fazer.
Tocam à porta dez minutos mais tarde.
Baruzzi entra.
O que me tranqüiliza um pouco é que ele mostra um ar mais inquieto do que ameaçador. Afunda-se numa poltrona.
- Tive dificuldade, - diz, - para conseguir chegar a sua casa.
O caso é que a esta hora o desfile da tarde começa a partir do largo e as grandes artérias ficam cortadas, donde a necessidade de escolher percursos complicados.
Baruzzi assemelha-se a um chimpanzé mas falta-lhe, no olhar, a chispa do humor. É de altura média, largo de ombros e sempre mal vestido. François considera-o como um homem muito inteligente e tanto mais temível quanto toda essa inteligência se acha posta ao serviço da sua actividade profissional. Este sujeito é capaz de trabalhar dezasseis horas por dia, sem fadiga.
- Estou inquieto - explica - por causa do pequeno. Ou, antes, Clara, a mãe, está inquieta. Devia voltar para casa ontem à noite ou, o mais tardar, esta manhã. É que tinha um exame a fazer. Como sei que estava com a senhora em Itália...
Agora que o perigo se encontra em minha casa, procuro enfrentá-lo ganhando tempo.
- Foi ele quem lho disse?
- A mim não - responde Baruzzi. - Nunca me diz o que faz e eu não o teria deixado ir assar ao sol. Quando tem histórias a contar é à mãe que as conta e ela dá-lhe dinheiro sem eu saber. Ela, pois, é que sabia que ele se encontrava em Itália e o seu marido confessou-me que estava ao corrente dessa viagem. Devo dizer que passei o serão em casa dele, ontem em Malesherbes.
François em Malesherbes! A sessenta quilômetros daqui. Eis uma novidade.
Baruzzi é apenas temível no seu ofício mas não na vida privada. Percebe evidentemente - ao ver o meu espanto - que acaba de cometer um lapso mas não procura disfarçá-lo e explica-me que desde há dois meses o meu marido se desloca muitas vezes a Malesherbes para trabalhar.
- Oiça, senhor Baruzzi, penso que François talvez possa ajudá-lo a encontrar Didier. Mas para isso é preciso que ele venha cá. Continua em Malesherbes neste momento?
- Sim.
- Dê-me a morada.
É o meio - um pouco desesperado - que acabo de arranjar para enfrentar Baruzzi e ganhar tempo. Constrangido e forçado, François será obrigado a ajudar-me. Baruzzi - sem compreendef bem - dá-me, pois, o número de François e telefono.
É uma mulher que atende.
- Não desligue - diz-me. Depois oiço-a dizer a alguém:
- É para ti, bichaneco.
Decididamente, hoje vou de surpresa em surpresa. Enquanto me ouve, François tem todo o ar da maior ingenuidade.
- Peço desculpa - digo-lhe - por te incomodar, mas tens de vir imediatamente a minha casa. O pai de Didier Baruzzi está aqui e quer ter notícias do filho.
- Mas como queres tu que eu responda?
- Sabes bem que sim. Até já. E desligo.
Michelangelo Baruzzi encara-me. Há algo que ele não percebe bem. Ofereço-lhe um copo e esforço-me por levantar-lhe o moral. Afinal, Didier tem um pouco de atraso, mas não há nada de grave. Baruzzi rectifica. Ele não diz que é grave. É a sua mulher quem o pensa. Ele, Michelangelo Baruzzi, quer saber se Didier regressou comigo. É tudo.
Vai no segundo whisky. Sirvo-lhe um terceiro que engole com a mesma facilidade dos dois primeiros. Sem falar nos que deve ter mamado em casa de François! Este tipo é uma força da natureza e congratulo-me por a sua desconfiança não estar completamente despertada. Pelo menos de momento. Mas daqui a bocado?
Ei-lo que caminha de um lado para o outro. O barulho que reina no largo parece irritá-lo. Se, com o seu dinheiro, pudesse mandar suprimir a festa de Joana d'Arque, fá-lo-ia seguramente.
- Mas afinal - resmunga - ele não lhe disse que tinha de estar em Paris esta manhã por causa do exame? Um exame não é uma brincadeira! E sobretudo para ele que não faz nada de nada. Olhe, até o seu marido se recusa ocupar-se dele. Então disse a Didier: "Ou passas no exame ou ponho-te
na rua."
- Evidentemente, se ele não queria fazer esse exame, o melhor meio era não se apresentar.
Mas esta resposta não passa de um expediente.
Baruzzi está colado à janela. A festa atinge o auge e o largo do Martroi mostra-se negro de gente.
É Joana d'Arc em pessoa - se posso dizê-lo - quem abre o desfile. Vem de armadura e rodeada pelos companheiros, também de armadura. A tradição quer que o papel seja representado por uma rapariga da cidade e, para levantar um pouco o prestígio da santa defunta, exige-se que seja uma menina da boa sociedade, de preferência diplomada, para fazer olvidar que a verdadeira...
Baruzzi está apoiado à janela. Vejo-lhe os rins enormes, as pernas curtas de coxas espessas e a nuca vermelha de apopléctico.
Boa idéia aquela que me ocorreu de súbito de mandar chamar François. Assim ficarei menos só numa situação embaraçosa. Daí uma aliança possível com o meu marido. Ou, pelo menos, uma ajuda... uma conivência.
Uma boa hora passa-se antes de tocarem à minha porta. Para fazer admitir ao amigo que ele e eu ficámos nas melhores relações, a despeito das aparências, François beija-me com muita gentileza. Depois encara-nos aos dois, Baruzzi e eu, perplexo e vagamente inquieto.
- Que se passa?
- Passa-se - diz Baruzzi - que Didier não voltou, como sabes, e que vim perguntar à tua mulher se sabia alguma coisa. Mas daí a incomodar-te... Sobretudo, se não sabes nada...
- Mas é que não sei nada - afirma François com altivez e com aquela voz de bronze que emocionou tantos jurados.
Hoje sozinha, diante da minha folha de papel na qual conto tudo, afirmo que, uma vez mais, quase me deixei levar pela lata do meu marido e pela atitude ameaçadora de Baruzzi. Mas conhecia-os a ambos. E depois tive medo. Desde logo a única forma de me defender era atacar e dizer a verdade. Então dirigi-me a François, secamente:
- Mas sim, querido, sabes qualquer coisa, pois foste tu que encarregaste Didier de me acompanhar a Viareggio!
- Insensata! - clama François.
- Vejamos! Ele até tinha por missão tirar-me fotos o mais comprometedoras possível.
François, bestialmente senhor de si, ripostou com uma voz bem colocada na máscara:
- E com que fim, querida?
- Falaremos disso os dois.
- Pois é! - berra Baruzzi, cuja voz fica meio abafada por uma música militar. - Falarão disso depois! Mas eu quero saber onde está o meu filho. E se lhe aconteceu alguma coisa, tanto pior. Apresento queixa.
Fito François.
Ele começa a mostrar-se inquieto.
Então, no silêncio que se segue a esta ameaça, digo:
- Senhor Baruzzi, deixei o seu filho ontem, às treze horas, na estrada do Monte Cénis a alguns quilômetros da fronteira francesa. Tínhamos discutido por causa das fotos que ele me tirara conforme as instruções do meu marido. E regressei sozinha a França. É tudo o que sei e tudo o que tenho a dizer. Agora nada o impede de apresentar queixa. Mas cuidado. Ou nada de grave se passou com Didier - e difama a mulher de um amigo - ou então ocorreu um acidente e arrisca-se muito - sempre se apresentar queixa - a comprometer com um escândalo a carreira do seu amigo. Mas não vou deixar-me enrolar!
A careta feita pelos dois valeria a minha deslocação se já não estivesse no local.
Um silêncio estupefacto acolhe, pois, esta declaração de que, uma hora antes, não me teria julgado capaz. Mas vê-los a ambos prestes a chatearem-se um com o outro e a atacarem-me, deu-me ânimo. A isto devo também acrescentar o medo, que pode conseguir muitas coisas.
Seja lá como for, o problema acha-se agora apresentado e eis os meus dois fulanos muitíssimo enrascados.
Baruzzi, primeiro, que sabe o que difamar quer dizer.
E François que não conseguiria recuperar de um escândalo.
Foi ele, aliás, quem primeiro reagiu, secamente.
- Tu - resmunga para Baruzzi ouvir - acalma-te. Não estamos aqui para andarmos à zaragata mas para vermos os factos de frente.
- Meu Deus, não faço outra coisa que não seja acalmar-me! - resmunga Baruzzi. - Mas gostaria de te ver se te anunciassem que sucedeu um acidente ao teu filho.
- Marie-Claire falou numa disputa e não num acidente.
- Então porque não voltou ele para casa?
- Não seria essa a primeira vez - riposta François. - Sabes tão bem como eu.
- Desta vez devia ter vindo... por causa do exame. Tamanha candura da parte de um ser tão hostil, mesmo desonesto, alivia um pouco a atmosfera durante alguns segundos.
- Temos de considerar - recomeça François - que Marie-Claire nos disse a verdade. Eu por mim não duvido. Um instante.
Vai buscar dois copos ao armário: um para ele e um para mim. Baruzzi já tem o seu. François serve toda a gente. Este interregno permite-lhe reflectir. Retoma a palavra.
- Agora, querida - diz-me - é talvez preciso tranqüilizar mais Michelangelo. Estavam, portanto, os dois numa estrada da montanha a alguns quilômetros da fronteira francesa. Não é lá um bom sítio para uma separação, tanto mais que apenas tinham um carro para os dois. Portanto zangaram-se!
Conduz o caso como um juiz de instrução e eis que me obriga a responder. Mas é também um ensaio do que poderia muito bem passar-se no caso de a queda de Didier ter sido mais grave do que previsto.
- com efeito, zangámo-nos - admito.
- No carro ou fora do carro?
- Fora do carro.
- É isso - diz François com bonomia. - Por conseguinte, na estrada. Podes explicar-nos exactamente o que se passou, querida?
- Naturalmente. Didier estava furioso porque eu descobrira as fotos. Avançou, pois, para mim. Nessa altura estava de costas voltadas para a ribanceira.
Intervenção de Baruzzi que clama:
- Ela matou-o!
- Cala o bico! - diz François. - Continua, querida.
- Escorregou. Didier é forte demais para eu o poder fazer cair empurrando-o.
- É o bom senso em pessoa - corta François, peremptório.
- Continua, querida. Portanto escorregou.
- Exactamente. Claro que me aproximei então da berma da estrada e olhei. Mas devido à vegetação abundante não vi Didier. Além disso, passavam carros nessa altura. Fui, pois, arrumar o carro um pouco mais longe e voltei ao local. E não tornei a ver Didier.
Baruzzi está de pé. Quase tenho a certeza de que a sua intenção nesse momento é estrangular-me.
- Nem sequer preveniu a polícia! - sopra ele. - E a falta de assistência a uma pessoa em perigo para que serve?
- Serias gentil se nos deixasses compreender - corta François, visivelmente perturbado com a minha história. -Agora explica-nos como é a ribanceira. Não é uma parte saliente, pois não?
Dou todas as explicações possíveis: trata-se de uma ribanceira com uma inclinação de cinqüenta por cento, guarnecida de vegetação que amorteceu forçosamente a escorregadela de Didier o qual, aliás, é um desportista.
- Nesse caso porque não tornou a subir? - interroga malvadamente Michelangelo. -E julga que vou engolir isso?
- Ninguém te pede para engolires seja o que for - replica François' - mas para compreenderes que o teu filho, não querendo apresentar-se a exame, aproveitou a ocasião. Voltará mais tarde.
- E com que viverá durante esse tempo?
- O meu marido tinha-lhe dado dinheiro, senhor aruzzi.
Baruzzi reflectiu. Conhecendo o filho deve julgá-lo perfeitamente capaz de uma tal habilidade. Mesmo assim pensa no caso.
- E o carro - interrogou.
- Voltei com ele mas tive uma avaria na auto-estrada. Por enquanto encontra-se numa garagem em Mâcon.
Passo-lhe o cartão da garagem e explico o que sucedeu. Baruzzi fulmina e constata: o filho não regressou e são precisas, pelo menos, quinhentas mil notas para a reparação do carro. Um belo dia. Quanto a isso, sim.
Um silêncio.
Depois, o construtor resume a situação no estilo que lhe é peculiar:
- Por agora não tenho motivos para armar barulho clama - mas constato um certo número de coisas. A tua mulher atira o meu filho para uma ribanceira, fana-lhe o carro e dá cabo dele. E eu tenho de agüentar. Então merda, merda e merda! É preciso fazer alguma coisa! E os chuis para que servem? com os impostos que pagamos?
- Ouve, Michelangelo - intervém o meu marido - é preciso ver a situação de frente. Não se alerta a polícia por um dia de atraso. Não é caso para tanto. Além disso Didier é maior e tem uma boa razão para não voltar. Tu sabes tão bem como eu.
Sentindo que se arrisca a ser enrolado por um homem de lábia largamente superior à sua, Baruzzi riposta com um bom senso injurioso:
- O que também vejo é que se deitavam juntos e que Didier talvez tenha querido livrar-se da tua mulher. Tu não vais pretender que não havia nada entre eles; pois não? Foste tu mesmo que mo disseste. Agora, maior ou não, Didier sempre voltou a casa para comer. Para ele a refeição é sagrada.
François, lívido, não sabe que responder. Baruzzi ri, zombeteiro. Eu sinto vontade de assentar a mão na cara deste grande porco. Olho-os a ambos com um certo asco.
Entre estes dois fulanos há, como se diz, alguns cadáveres no armário. Quero dizer que François tirou este "imundo" de situações difíceis. Conseguiu mesmo que fosse arquivado um caso grave. Dois anos atrás, uma das realizações de Baruzzi ruiu por vício de construção. Houve três mortos. E nenhuma queixa.
François evita encarar-me. Responde calmamente:
- Se queres a minha opinião, Michelangelo, estás a ralar-te por nada. Aguarda dois ou três dias antes de fazeres qualquer coisa e fala-me antes. Será melhor para todos. Acredita-me.
- A tua mulher - interroga Baruzzi muito impressionado com estas afirmações - pode dar-me a sua palavra de que as coisas se passaram tal como conta?
- Sim - digo.
De facto relatei a verdade. Mas não toda. Didier caiu de costas, o que é mais grave do que uma escorregadela ventral. Baruzzi pensa e, finalmente, levanta-se.
- bom - diz. - Assim espero. Mas há Clara. Tu conhece-la. Tem reacções estranhas. Mesmo assim, vou aguardar dois ou três dias e tentar fazer-lhe compreender que Didier nos pregou mais uma partida. Mas é tudo quanto posso fazer. Ou tentar fazer.
E eis que François também se levanta, nada descontente por se raspar com o camarada e por ir reencontrar-se com a rapariga que me atendeu ao telefone. Pisca-me até o olho de modo encorajador como a dizer-me que vai falar a sós com Baruzzi e que as coisas se comporão. Mas eu não vou nisso.
- Fica um instante! - digo-lhe.
Acompanho o pai de Didier ao patamar e venho juntar-me ao meu marido que caminha de um lado para o outro no salão. O sucesso - mesmo temporário - que acabo de alcançar deu-me alento.
- Estás assim tão apressado?
- Sim e não - responde-me. - Finalmente, talvez seja melhor que falemos um pouco os dois. Tens a certeza de que as coisas se passaram assim?
Se lhe pedi para ficar não foi apenas para me tranqüilizar mas para que se fale um pouco de nós e desta história das fotos, em particular, que me caiu mal no estômago.
- Pouco mais ou menos, sim.
- Que te disse, exactamente, esse pequeno cretino a meu respeito?
- A verdade. Sabias que eu queria partir para férias e deste-lhe dinheiro para ele me espiar.
- Pura invenção - protesta molemente.
- Tenho as fotos, François, e até tás posso mostrar. Mas como acreditas em mim... Devo-te muita coisa e, até hoje, julgava que era o melhor: um certo gosto pelo trabalho, uma confiança em mim própria e, digamos, um certo triunfo. Agora compreendo que também adquiri o gosto do golpe sujo. O ofício, claro! Querias provas para me convenceres a divorciar em caso de reticências da minha parte. É uma acção baixa. Mas um bravo pela idéia!
- Não é o que tu julgas.
- Deixa-me terminar. Hoje em dia, quero acreditar que Didier nos está a pregar uma partida mas é talvez grave. Nesse caso, estamos iguais. Ou tu me ajudas ou enterro-te, se houver sarilho. Percebido?
- Muito bem percebido.
Volta a servir-se do whisky. O meu ponto da situação foi calmo. François pensa.
- Conheço Didier - diz-me. - É um mentiroso e um vicioso. Como é que recuperaste as fotos?
Explico-lhe o que se passou no campo, a compra da pistola de alarme em Turim e a cena na estrada tal como se desenrolou. Tudo, sem omissões. Isso alivia-me.
- E a pistola, que fizeste dela?
- Atirei-a fora ali perto. Estás a preparar a minha defesa?
- Penso, o que vem a dar no mesmo. Mais vale pensar no pior. Se suceder alguma coisa já estamos prevenidos!
Pensa nisso, visivelmente, o que me tranqüiliza. Pela força das coisas, François ajudar-me-á. Tanto mais que o caso aconteceu em Itália e uma investigação pode ser sempre demorada.
- O único problema - explica-me - é Clara Baruzzi. com ele podemos entender-nos, mesmo nos casos graves. É suficientemente inteligente para compreender. Mas com ela...
Mais uma golada de whisky.
Explica-me que Clara Baruzzi não está ao corrente de nada dos negócios do marido. Ficou sempre italiana do Sul, é uma mama frenética com reacções delirantes e que dedica ao seu Didier querido uma admiração total e incondicional. O marido saberá acalmar esta criatura de amor torrencial e convencê-la de que se trata apenas de uma fuga? Eis o problema. Aliás uma fuga não pode durar sempre.
Um silêncio.
Já falámos bastante por agora.
Como sinto que ele deseja partir pergunto a François se a sua campanha eleitoral vai bem. Parece que não vai mal. O aborrecido é que necessita de dinheiro. Muito dinheiro. É preciso comprar pessoas, desistências e adesões.
- Já nem moral há! - digo-lhe eu. -Na verdade ignorava que vinhas passar os teus fins-de-semana a Malesherbes...
- Ah, sim - replica - tinha-me esquecido de to dizer. É a casa de Florence.
- Florence?
- Sim. Florence Wiekfield, a rapariga que conheci durante a viagem aos Estados Unidos. É uma amiga excelente.
- Didier explicou-me isso vagamente. A viúva do cirurgião? É assim não é?
- Sim. Oh! evidentemente já não é uma rapariguinha. Mas o marido deixou-lhe bom dinheiro. Em suma, a política diverte-a. Isto que te digo tem talvez um ar pouco elegante pois somos, afinal de contas, casados, mas enfim não fui eu quem rompeu o contrato. Não é verdade?
Fito-o.
- Agora que te conheço bem - digo-lhe - pergunto-me se não terás metido Didier no barulho para provocares a nossa separação... Recordas-te? com Colbert?
- És doida. Custou-me caro fazê-lo calar.
Noto que François está vestido jovem, como se diz: camisa azul escura de colarinho aberto com um lenço de seda amarela atado por baixo, calças claras e sapatos gêneros golfo com protectores brancos. Há mais de cinqüenta anos dir-se-ia um Don Juan do cinema antes da guerra.
Um ano atrás ainda François se vestia de um modo muito mais estrito e nunca partíamos para um fim-de-semana.
- Vais desculpar-me. Estão à minha espera. Para o teu caso, confia em mim. Não te abandonarei.
E, após um beijo ligeiro na ponta dos meus dedos, ei-lo que sai. Mal deve ter chegado ao rés-do-chão e logo desço, por minha vez, no seu encalce.
Nada mais fácil do que segui-lo no meio da multidão densa que se comprime ao longo dos passeios. François encaminha-se para uma avenida por onde o desfile não passa. Afogada na massa, sigo-o. Ele caminha depressa.
Mesmo ao fundo, à esquerda e em frente da catedral, ergue-se um café. François dirige-se para lá.
Uma rapariga está sentada no terraço. Ele senta-se a seu lado e beija-a. Não consigo distinguir a cara desta mulher. Estou demasiado longe deles.
Aguardo.
O desfile afastou-se e a assistência apresta-se para dispersar. Avanço. Falam de nariz no nariz.
Assim decorrem dez minutos, antes de se levantarem.
O carro de François acha-se arrumado em frente da catedral. Aproximam-se dele, mudam de idéias e desaparecem para a direita. Tenho a impressão de que decidiram dar uma volta. Efectivamente, caminham de braço dado.
Então sigo-lhes os passos, continuando a nem sequer procurar explicar-me esta atitude espantosa da minha parte.
Quando, por meu turno, alcanço o terraço que eles acabaram de deixar, apenas tenho trinta metros de atraso do casal que caminha à minha frente.
A rapariga veste umas calças escuras, muito estreitas, uma camisola branca e avança com um ar de bailarina, segura nos ombros por François. Encabeçam o desfile que serpenteia pela cidade segundo um percurso complicado e ritual.
Porque sou assim tão estúpida de súbito? Porque me deixo arrebatar por um sentimento que bem sinto ser confuso, turvo mas suficientemente poderoso para me guiar os passos quase a contragosto?
Acabam de alcançar uma rua e estou tentada a segui-los. E depois, não. Ficarei melhor ali. Verei melhor quando passarem junto de mim e eles não me verão. Mas, de súbito, perco-os de vista. Então lanço-me em sua perseguição e descubro-os.
Aguardam, lado a lado, na berma do passeio, e de cada vez que basbaques se intrometem entre nós procuro um lugar para me aproximar.
Encontro-me agora a alguns metros deles.
A rapariga traz um lenço na cabeça. Há muito sol. Ele passa-lhe os óculos escuros e sinto uma picada estranha.
Há dois anos, François levou-me a Aix-en-Provence. Ia lá defender uma causa. Estávamos casados de fresco. Como havia muito sol na estrada e era eu quem guiava, pedi-lhe que me emprestasse os óculos de sol. Disse-me que lhe faziam falta, que não podia separar-se deles e lembro-me de que tive de comprar um par que, aliás, perdi... como estou prestes a perder algumas ilusões. Muitas mesmo.
A rapariga com quem ele está, posso vê-la melhor agora. Não deve ser tão nova como deixa pensar o seu ar de bailarina. Mas continuo a distingui-la mal e é, digamos, uma curiosidade feminina que me impele para eles. Ainda mais perto. Desta vez não me incomodo. Estou a dez metros.
Quando se é advogada sabem-se coisas, por tê-las aprendido ao vivo, como se diz, com gente que tem experiência. Por exemplo, pode pegar-se num revólver sem ter vontade de utilizá-lo... Mas, mesmo assim, pega-se nele. E podemos tirá-lo do saco ou da algibeira sem a intenção de tirá-lo. E, finalmente, pode-se disparar sem ter a intenção de matar. Há jurados que compreendem isso e outros não. É a lotaria da Justiça.
A mulher volta-se.
Estou a menos de cinco metros.
Oh! ela tem uns bons sessenta anos, Florence Wiekfield, apesar das pernas e do ar de bailarina.
A manhã do dia seguinte. Quinta-feira 9 de Maio. A cidade torna a ser Orleães e recupera das suas músicas. Arrumam-se as armaduras do desfile e limpam-se as ruas. Não se passa nada.
Pelo menos comigo.
Dormi muito, graças ao soporífero. Não queria preocupar-me mais com François nem com a sua horrível avozinha Wiekfield. Mas esta manhã, ao acordar, penso que é por causa dessa mulher que ele me quis obrigar a divorciar: no caso de...
No caso de... É uma expressão sua. François - é a sua força - prevê tudo. Quando estuda um processo e quando o defende encara sempre o pior. Quando o pior não acontece, tanto melhor. Senão François lá está, pronto para o que der e vier. Por exemplo, estou certa de que o que me sucede não o surpreende mesmo nada. Até a minha reacção para com ele pode ser prevista.
Portanto, nesta quinta-feira 9 de Maio, levantei-me tarde e a porteira, que também me faz a limpeza, foi arranjar-me de comer. Ao procurar no meu saco, deu com o rolo de película na mala daquele malandro do Didier. Apresenta-me o mesmo problema que as fotos que continuam no meu cofre. A prudência exigiria que as destruísse, mas, como advogado, acho-me em situação de saber que nunca se deve destruir a mínima peça de um processo. Ora estas fotos são talvez a prova de uma conduta, digamos, ligeira da minha parte, mas também a prova de que Didier as tirou. Mas como mandar revelar as películas? Onde e por quem? Em Orleães parece-me difícil. Conhecem-me. Terei que aproveitar uma viagem a Paris. Torno, pois, a meter a película no saco.
Depois, indecisa quanto ao que vou fazer hoje, olho pela janela as equipas de limpeza afadigadas a pôr o largo em ordem. Começam a desmontar os estrados e a encher camiões com os papéis que ficaram no chão.
Poderia talvez telefonar aos Janès porque Edith já regressou de certeza. Mas, no caso contrário, arrisco-me a dar com Robert que ficará furioso por não me ter encontrado ontem. Sempre que o vejo lembra-me um certo Larbi Ben Moussa. Era um caso que o meu marido me passara, alguns meses depois do nosso casamento. Larbi era acusado de violências para com uma jovem. Mas esta possuía um passado galante muito carregado e François aconselhara-me a pedir o testemunho de todos os tipos que ela tivera. Apenas metade compareceu na audiência mas isso fazia, mesmo assim, seis pessoas cujo desfile impressionou o tribunal. No dia seguinte ao da sua libertação, Larbi veio agradecer-me a casa e cheguei a pensar que era a minha vez de ser violentada.
Ocupo, portanto, o meu dia da quinta-feira 9 de Maio a pôr um pouco em ordem os arquivos e a terminar o meu correio.
E, sobretudo, aguardo.
François deve ter telefonado a Michelangelo Baruzzi. Mas Didier com certeza que não voltou. Senão, de um modo ou de outro, já o saberia.
Sexta-feira, 10 de Maio.
Hoje decidi recomeçar a viver. Não quero ficar assim à espera. Irei ao Palácio da Justiça e telefonarei a Edith a fim de restabelecer o contacto.
Mas às dez horas o telefone toca e compreendo logo que as complicações vão talvez começar.
O meu correspondente chama-se Julien Berdol. É o director de uma agência privada encarregada por Madame Clara Baruzzi de uma investigação sobre o desaparecimento do seu filho Didier. Parece que eu seria capaz de auxiliá-lo nas suas pesquisas. Posso recebê-lo hoje?
Prudentemente, peço-lhe o seu número de telefone e a morada. Tornarei a telefonar-lhe.
Ele concorda e telefono a François em Paris. Explico-lhe o que está a nos acontecer. Insisto no "nos". François tem um ar muito agastado.
- Sei disso. Baruzzi telefonou-me. Se só dependesse dele, teria ainda esperado alguns dias. Mas Clara exigiu-lhe que fizesse as diligências e tive imensa dificuldade para limitar o sarilho.
- Chamas a isto limitar o sarilho?
- Claro que sim - responde. - Ela queria ir à polícia. Berdol é um chui privado que conheço um pouco. Como se faz pagar ao dia, podemos contar com ele para ganhar tempo. Quando o receberes, não hesites em insistir no aspecto valdevinos de Didier, um rapaz que ainda não fez nada de bom que nem interessado estava em passar no exame. Além disso é maior e sabes, tal como eu, que a própria polícia é muito reservada neste gênero de desaparecimentos.
François tem razão. Sei-o e isso tranquiliza-me. Calcula-se que dez mil pessoas desaparecem em França todos os anos, mas este número é constituído por uma enorme maioria de gente que não quer regressar a casa. Daí a distância um pouco altiva que a polícia adopta neste gênero de investigação.
- vou falar-lhe nas fotos?
- Inútil - responde François. - Baruzzi não referiu isso a Clara e, portanto, Berdol não sabe nada. Agarra-te estritamente ao que nos contaste com o motivo a menos. Ou um outro mais anódino.
- Olha - digo-lhe antes de desligar - vi a tua noiva anteontem. É encantadora.
Parece incomodado para me responder e desliga com palavras vagas.
Em seguida, prudente, faço-me confirmar pelas informações do número de Julien Berdol. Detective particular em Paris. O número que me dão e de facto o do homem, a quem ligo imediatamente para marcar um encontro em minha casa, hoje às quinze horas.
Logo a seguir, telefona-me Edith Janès. Tem uma coisa importante a dizer-me e gostaria que almoçássemos juntas. É urgente, parece, e grave.
- Vem a minha casa e traz o que for preciso. Não tenho tempo para ir às compras. Até já - digo-lhe.
Uma hora mais tarde, chega Edith com um cabaz preparado.
Como não nos voltáramos a ver desde a minha partida para Viareggio, a sua primeira reacção foi extasiar-se com o meu bom aspecto.
- Estás formidável! E como correram as coisas nesse clube?
Presto muita atenção às minhas respostas. Deve saber que Didier estava comigo pois ele escreveu-lhe um postal. Falo, pois, de Viareggio e do ambiente que reina no "Sol Pleno".
Mas depressa me apercebo de que o caso não é aquele. Há algo que a rói. Olha-me de viés e em atitude desconfiada. Ei-la que põe a mesa, mas sempre sem me encarar.
- Estavas lá sozinha?
- Não. Parti com Didier. Sabes, é um amigo do meu marido e preferi ir com ele a chegar lá sozinha. Mas, naturalmente, entre ele e eu não há nada. Claro que não.
- Naturalmente - responde.
Parece que os homens contam de boa vontade entre si as suas aventuras. Entre mulheres é diferente. Nunca somos camaradas para estas questões. Edith, aparentemente descontraída, pergunta-me como é que Didier passava os dias e se é verdade que, em certos clubes, os costumes são um pouco livres. Protesto com indignação. Se isso fosse verdade não teria ido ao "Sol Pleno". Não, Didier portou-se notavelmente. É acima de tudo um desportista: vela e tênis... e um pouco de dança à noite. Mas é tudo.
E agora Edith e eu encaramo-nos muito francamente.
- Ora - diz-me Edith - tenho uma coisa importante a revelar-te. Não tens, por acaso, um cigarro?
- Sim, no meu saco.
Ela esvaziou o seu maço. Abre o meu saco e extrai dele, ao mesmo tempo, um maço de cigarros e a minha película por revelar.
- Então tiraste lá fotos? Tens de mostrar-me isso. Adoro ver fotos. Eu também tas mostrarei. Tenho-as justamente a revelar.
Põe o rolo ao lado do meu saco e retoma o fio da sua idéia.
- Onde ia eu? Ah, sim! Robert tem uma ligação. É uma certeza.
- Que assenta em quê?
- vou explicar-te. Na terça à tarde fui a casa da minha mãe. Ora nessa noite ele trouxe uma puta para casa. Tenho a certeza. Fui contar as garrafas de champanhe à cave. É o estilo dele. Para ter as putas, embebeda-as. Nota bem que elas já estão a consentir ao chegar, mas uma vez embriagadas...
- Apenas tens isso como prova? - perguntei, um pouco incomodada.
- Por enquanto sim. Nota bem que ele é esperto. Mas eu procuro. Se me quisesse divorciar, poderias encarregar-te do caso?
Tenho bom jogo para responder a Edith. A falta do champanhe (abstenho-me de enunciar o número de garrafas foram três -para não semear a dúvida no espírito de Edith) não constitui uma prova. Robert pôde ter bebido sozinho.
Ora ela apenas tem isto como prova. Quanto a ocupar-me do seu divórcio é muito delicado. Não sou a advogada-conselheira dos negócios do marido que foi sempre correcto para comigo?
- E contigo - insiste - ele é correcto?
- A tua pergunta vexa-me, querida - digo-lhe calmamente. - Melhor seria explicares-te com Robert.
Não havia meio de fazê-la mudar de idéias. Está obcecada. Pomo-nos à mesa num silêncio embaraçoso e quase hostil. Edith cozinha muito bem e é uma bela rapariga. Mas isso não chega para Robert. Os homens são sonhadores e insatisfeitos. A referir que Robert também tem as suas qualidades. Mas é esse o drama da vida a dois: que as qualidades de cada um se esbatam para deixarem só lugar ao que é mau.
Acabamos de almoçar por volta das 14, 30 horas e a seguir lavamos a loiça.
Vai pedir-me notícias de idier Telefonou para casa dele ou dizer-lhe que passei a noite de 7 de Maio com o marido?
Edith arruma as suas coisas no grande cabaz.
- Naturalmente - diz-me - guarda para ti o que te disse. Sabes, Robert é realmente um tipo indecente. Levar putas lá para casa e para a minha cama! Até breve, querida.
Apenas alguns segundos decorrem entre a sua partida e a chegada do meu visitante.
Julien Berdol - estou certa de que é ele - desce de um carro antigo com a matrícula de Paris. Ao longe aparenta uns sessenta.
De perto também. Verifico isso ao abrir-lhe a porta. Entra.
À primeira vista é um personagem de uma banalidade total tanto no aspecto físico como nos modos. Cara redonda, cabelos curtos e tez colorida. Único pormenor mas que não engana: os olhos são pequenos, negros e rápidos. - Os meus cumprimentos, senhora doutora. Agradeço-lhe muito ter-me recebido. Tenho a honra de conhecer o seu marido, o doutor François Dantec. É um grande advogado, um homem que honra a profissão.
Mando entrar Julien Berdol e ofereço-lhe qualquer coisa para beber. Aceita um conhaque e começa:
- Sabe o que me traz a sua casa! A minha agência especializou-se um pouco em "pesquisas no interesse das famílias". São assuntos que não interessam à polícia e que, quase sempre, não são sérios. E nada me faz pensar que este o seja mais do que outro qualquer. Mas esta manhã recebi a visita da Madame Clara Baruzzi. Conhece-a talvez?
- Não.
E é verdade. Embora amigo de François, Baruzzi nunca trouxe a mulher a casa no tempo em que eu lá estava. Para dizer a verdade não sente muito orgulho nela. É uma criatura enorme, parece, que ele teve o azar de desposar sem contrato nupcial. O que significa que os haveres de Michelangelo pertenciam também à mulher, salvo, claro, o dinheiro que passa de mão para mão com os fornecedores e os clientes...
- Não perde nada, senhora doutora - suspira Julien Berdol. - É uma pessoa muito veemente. Queixa-se, pois, de que o filho não reintegrou o domicílio familiar, embora ele seja maior. Eis as informações que me deu para começar o meu inquérito.
Extrai da algibeira um bloco de folhas cheias de anotações.
- Partiu, portanto, para Viareggio em vinte e seis de Abril último com Didier Baruzzi e no carro dele. Tinha reservado, parece, os seus lugares numa organização de férias que se chama "Sol Pleno". Estas férias terminaram em sete de Maio de manhã e Didier devia estar em Paris a oito de Maio sem falta. Ora não apareceu.
Isso sabe-o ele de cor. Conhece o assunto. Interrompo-o.
- O melhor, senhor Berdol, seria fazer-me perguntas precisas.
- É exacto. Desculpe-me. Em que momento deixou Didier Baruzzi?
Fico desconfiada. É muito possível - apesar de tudo - que Baruzzi tenha falado à mulher. Talvez não das fotos mas pelo menos do nosso regresso. Repito, pois, tudo o que disse ao pai diante do meu marido anteontem, isto é, a cena na estrada, o meu regresso e o acidente do carro.
Da algibeira - prova de que estava bem informado Berdol tira um mapa das estradas da região onde se desenrolou o incidente. Desculpa-se quase lastimosamente mas tem de escrever um relatório que a Madame Baruzzi quer receber rapidamente. Está mesmo autorizado a tomar o avião para ir ao local e muito depressa.
Dou-lhe pormenores sobre o nosso regresso: almoço, pausa na estrada e compra de gasolina. Berdol anota no seu bloco cada explicação e, finalmente, assinala, aproximadamente, o local onde nos deixámos, Didier e eu.
Neste ponto crucial da minha história, as suas perguntas tornam-se mais prementes.
- Então pararam? Mas quem quis parar? Quem guiava o carro? Estavam perto da ribanceira? Didier, ao apear-se, não teria tropeçado? E nesse caso pode ter escorregado. E porque parti em vez de esperar por ele? De socorrê-lo? Todas estas perguntas que me faz, ajudam-me a encontrar respostas.
Explico que Didier se apeou do carro e que me raspei sem olhar para trás. Para evitar a fila de veículos que chegava da curva - precedida por um enorme camião -, conduzi até uma quinta e aí estacionei. Depois voltei ao sítio onde deixara Didier e não o tornei a ver. Gritei. Chamei. Nada de resposta. Para mim, Didier pregara-me uma partida. Era o seu gênero. E depois havia aquele exame que ele falhara com grande furor do pai. Berdol não se deixa afogar.
- Como é essa quinta? - interroga.
Dou as indicações. Berdol pergunta-me a seguir porque é que não avisei a polícia. Repito que julguei tratar-se de uma partida do meu companheiro. E Berdol tem o ar de acreditar-me. Menos, porém, num pormenor.
- É possível. Mas confesse que deixar o carro e fazer-me abandonar numa estrada de montanha também não é uma partida vulgar.
Suspira. As pessoas nem sempre são fáceis de compreender. E recomeça:
- Portanto, regressou a França sem se ralar mais com ele. Na estrada teve uma avaria que a obrigou a deixar o carro numa garagem de Mâcon.
- Exacto.
Berdol mostra-se preocupado. Examina-me com perplexidade. O meu testemunho deixa-lhe, apesar de tudo, uma impressão estranha e pouco satisfatória. Percebo-o muito bem, Eu reagiria exactamente da mesma maneira. As minhas explicações são tão pouco convincentes.
- Existe certamente - diz ele - um outro aspecto do problema que poderia esclarecer melhor o que acaba de contar-me. Esta manhã, depois de lhe ter telefonado, liguei para casa do doutor François Dantec que me disse que Didier era um rapaz leviano, instável, pouco trabalhador e literalmente estragado pela mãe. De facto, nunca foi capaz de conservar um emprego. Mesmo no vosso escritório. E no entanto...
Sobressalto-me.
- Em suma, e reunindo as afirmações do seu marido com as da Madame Baruzzi, julguei compreender que a senhora manteve com Didier Baruzzi relações...
- Completamente exacto, senhor Berdol - digo eu. - Mas isso nada altera o que se passou na estrada.
- O que parece motivar a inquietação da Madame Baruzzi - acrescenta Berdol - é que o filho era demasiado sério para não se apresentar a um exame. Mas naturalmente também não tomo esta informação como indiscutível. Seja como for, agradeço-lhe vivamente o seu amável acolhimento. Não é à senhora doutora que revelarei que nada a obrigava a receber-me.
Sábado 11.
Nada no que respeita a Didier. Portanto, não voltou. Senão seria posta ao corrente por François que deve também andar em felgas. Em todo o caso o nervosismo invade-me e só dormi - nestas últimas noites - graças a soporíferos. Além disso, não fiz praticamente nada desde o meu regresso, isto é, desde quarta-feira. Por sorte nenhum cliente me chamou. Ignoram, sem dúvida, que já regressei.
Mas neste clima difícil surgiu um outro aborrecimento.
Edith Janès voltou a visitar-me hoje, à tarde, aproveitando, disse-me ela, o facto de Robert andar a trabalhar nas suas obras de Olivet. E logo à entrada, põe-me um novo problema:
- Voltei a pensar no que me disseste ontem, querida. Compreendo muito bem que te seria difícil o meu divórcio. Mas achas que o teu marido aceitaria?
- Neste momento - replico - isso muito me admiraria. Tem imenso trabalho.
- Também me parece. E Didier? Encaro-a estupefacta.
- Sim, sim - insiste. - Didier Baruzzi também trabalhou com o teu marido.
- Exacto. Mas não é vergonha. Desse lado, posso até dizer-te que não te faria grande serviço.
Mas a idéia anda-lhe na cabeça e compreendo que acaba apenas de arranjar um pretexto para telefonar ao pequeno Baruzzi, em suma dar seguimento ao postal.
- Ele poderia, pelo menos, aconselhar-me - replica – pois o caso é mais simples do que parece. Sabes que tenho uma testemunha para o caso da puta levada lá para casa na terça à noite? Sim. Tornaram a sair às vinte e três horas. A puta tinha um impermeável e um lenço na cabeça. A vizinha não pôde dizer-me senão isso para já - esclarece Edith. - Mas bem compreendes que ela não foi lá a casa, na minha ausência, para discutir um orçamento.
Ando realmente com muito azar neste momento. Esforço-me por enfrentar este novo problema:
- Isso não me parece muito sério - digo-lhe - e estou persuadida de que se a vizinha se visse na presença de Robert perderia logo a arrogância.
- Talvez. Do que eu precisava era de um detective para segui-lo. Conhece algum?
Quase tive vontade de rir. Claro que conheço um. Berdol, por exemplo.
- Não - digo - mas posso pensar nisso. Em todo o caso evita falar no assunto a Didier. Ele conhece o meu marido que conhece o teu. Ora os homens entre eles, sabes...
Edith não se acalma muito com a sagacidade do meu conselho. Até aí esposa arrumada e dócil, acaba, não sem razão, de tomar o freio nos dentes e nada há de mais perigoso do que um tímido ou um fraco encolerizado. Enquanto Edith se agita no meu salão, faço-lhe ainda algumas perguntas acerca da vizinha que me viu chegar com Robert. Responde-me por alto. Nada me prova que seja sério. Mas, enfim, essa mulher viu bem o meu impermeável e o meu lenço.
Quando Edith me deixa, telefono a Robert, o marido, que trabalha efectivamente nas obras de Olivet. Ponho-o em guarda, protejo-me a mim própria.
- Está completamente chalada - diz-me ele. - Em todo o caso, se insistir, vou mostrar-lhe o postal do palerma do teu camarada. Olha, passei por tua casa na última quarta-feira, por volta do meio-dia. Onde estavas?
- Tinha saído. De qualquer modo, acautela-te com as reacções de Edith. Voltamos a falar na segunda-feira. Amanhã estou ocupada.
E estive-o de facto.
Porque no dia seguinte, domingo, o telefone tocou muito cedo lá em casa. Era François.
- Temos de ver-nos imediatamente - diz-me. - Vem a Malesherbes. Florence não está. Espero por ti.
- Há novidade?
- Sim. De certeza.
Dá-me a morada da propriedade e, por desafio, aceito. Porque conheço-lhe todos os cordelinhos. Prefere falar-me num terreno pessoal, especulando com a minha atrapalhação. Engana-se.
- Estarei contigo dentro de uma hora - digo-lhe. Embora tenha passado toda a juventude em Orleães, não me recordo de ter já vindo a Malesherbes, o que me leva a perder na cidade antes de dar com a residência.
Trata-se daquilo a que se chama uma "loucura", isto é, uma espécie de pavilhão de caça do século XVIII, rodeado de um gradeamento alto de cor verde-escuro. Uma escadaria de mármore conduz-me a uma porta de ferro forjado. O vesti bulo tem o chão forrado de placas de mármore preto e branco.
François espera-me e arrasta-me para um salão mobilado num Luís XV que suponho autêntico.
- Parece-me - digo maldosamente - que o marido da tua amiga era cirurgião estético. Está bem certo dizer-se que em casa de ferreiro espeto de pau. Vi-vos quando saiste de minha casa, na quarta-feira.
François empalidece sob a ironia um pouco forçada, mas depressa recupera a calma.
- Queria mostrar-te uma cópia do relatório de Berdol diz pausadamente. - Foi investigar ao próprio local. Queres lê-lo?
E passa-me três folhas de papel de seda.
- Andou depressa - afirmo.
- Clara deu-lhe quatrocentos mil francos para ele andar depressa. Mas ela ainda não recebeu o relatório. Se quiseres beber um copo enquanto o lês... Esse exemplar é para ti.
Aceito o copo e inicio a leitura do relatório.
De facto, aliás, trouxe-o para casa.
Aqui está o texto:
"Segundo as indicações fornecidas pela doutora Marie-ClaireDantec", escreve Berdol, "dirigi-me na sexta-feira de manhã a uma parte do percurso seguido, na terça-feira 7 de Maio em território italiano, por ela própria e por Didier Baruzzi. Tinham saído de Turim no fim da manhã.
"Almoçaram em seguida na estrada a uma vintena de quilômetros da fronteira franco-italiana. O dono do restaurante, M. Da Piero, Lembra-se muito bem dos seus dois clientes e não lhe pareceu que as relações entre eles fossem muito boas durante a refeição. A doutora Dantec e Didier Baruzzi não se dirigiram a palavra ou quase. Deixaram o restaurante pouco antes das 13 horas e tornaram a partir no carro.
"A alguns quilômetros dali, detiveram-se numa estação de gasolina e o empregado lembra-se de uma muito ligeira altercação do casal, na sua presença. Tratava-se, desta vez, de pagar a gasolina. A mulher foi a primeira a subir para o carro e parece que a querela prosseguiu no momento em que arrancaram.
Pouco mais ou menos a dez quilômetros do posto fronteiriço, fica uma aglomeração de algumas casas entre as quais Um café-mercearia. Segundo a doutora Dantec pararam igualmente aí.
"A proprietária lembra-se efectivamente da sua visita. Tomaram dois cafés e rebentou mais um ligeiro incidente entre os viajantes que tornaram a partir pelas 13, 10 horas.
"Passada Suza, a nacional 25 separa-se em duas. Didier Baruzzi e a doutora Dantec tomaram a estrada do Monte Cénis que é toda em curvas e contra-curvas e domina o vale.
"Penso haver dado com o local onde terá acontecido o acidente. A estrada é, com efeito, nesse sítio, muito estreita. Para a esquerda, em direcção ao Monte Cénis, ergue-se o flanco da montanha e à direita descobre-se o vale. Examinando este sítio, como eu o fiz, é impossível confirmar ou contradizer as declarações da doutora Marie-Claire Dantec sobre o eventual acidente de Didier Baruzzi.
"A ribanceira possui, aproximadamente e no seu conjunto, uma inclinação de cinqüenta por cento, mas constituída por uma sucessão de declives mais ou menos importantes. O flanco da ribanceira é, no começo, do lado da estrada, constituído por uma vegetação relativamente ligeira mas muito espessa. Um homem que escorregue neste sítio só dificilmente pode agarrar-se à vegetação sem rasgar as mãos e a roupa.
"Há também árvores mas ficam situadas muito mais abaixo e insuficientemente aproximadas umas das outras. Não podem, pois, constituir uma barragem sistemática para um corpo que resvale pela ribanceira.
"No fundo do vale há um regato que é um afluente do Dora Riparia. Este regato está agora seco. Nas margens encontram-se três ou quatro habitações. Por falta de tempo, a investigação não foi efectuada junto dos habitantes destas residências. Tudo leva, no entanto, a crer que se Didier Baruzzi rebolou até ao regato deve ter ficado seriamente ferido. Neste caso, as autoridades italianas teriam sido avisadas e não deixariam de prevenir os seus colegas franceses, admitindo que a vítima ainda esteja na posse dos seus papéis.
Esta investigação teria sido infrutífera se não me ocorresse a idéia de prossegui-la até duzentos metros mais além.
"Situa-se aí uma pequena quinta e as informações que lá colhi da boca da proprietária pareceram-me extremamente interessantes.
"Esta mulher lembra-se tanto melhor do carro de Didier Baruzzi quanto é certo a motorista tê-lo estacionado precisamente na sua terra batida (sem dúvida após a queda de Didier Baruzzi).
"O carro ficou sozinho na terra batida durante uma boa dezena de minutos e, depois, a doutora Dantec voltou. Acendeu um cigarro. Intrigada, a lavradora saiu e o carro então arrancou.
"Nesse instante, o filho da lavradora seguiu o carro discretamente, aproveitando um atalho da montanha. Foi assim que este rapaz de doze anos de idade viu um objecto a ser lançado por cima da porta. Após a partida do carro, a criança pode recuperar esse objecto, atirado pela doutora Dantec. Trata-se de um revólver, que veio entregar à mãe. Esta vive sozinha e desembaraçou-se imediatamente da arma atirando-a, por sua vez, para o vale, em frente da casa.
"Conduzi até à alfândega.
"Tal como esperava, foi naturalmente impossível recolher a mínima informação.
"Em resumo, nada do que pude apurar no decurso desta investigação confirma ou contradiz as declarações da doutora Marie-Claire Dantec, a não ser a existência de um revólver, arma em que ela não falara.
"Deve acrescentar-se que um crime nestas condições, e tendo em conta o trânsito, só poderia ser cometido sob o império dos nervos. Não é, no entanto, duvidoso, nesta eventualidade, que o corpo devesse ser encontrado facilmente pela polícia de Suza. Assinado: Julien Berdol.
"Em anexo, junto um apanhado das despesas provocadas por esta investigação no próprio local. Ou seja: ida e volta Paris-Turim de avião (primeira classe) mais aluguer de um carro e almoço e jantar em Turim. "
Ponho o relatório de lado. François diz-me:
- Não devias ter deitado fora o revólver. Que prova agora que se tratava de uma arma de alarme?
- O armeiro de Turim.
- Isso não prova que não tivesses um segundo. E depois exigiria a abertura de um inquérito, o que não é de desejar. Este relatório é muito mau para ti. Quando os Baruzzi tiverem isto entre mãos, amanhã à tarde...
- De qualquer modo não acreditas que matei Didier?
- Claro que não. Esse palerma está seguramente a pregar-nos uma partida. Mas confessa que a faz bem feita, se quer chatear-nos...
É ainda a versão mais optimista do caso.
Mas Didier também pode ter-se ferido na queda.
Berdol não quis correr o risco de descer a ribanceira. É quase trabalho para um alpinista. Em todo o caso descreve bem o local e explica o que teria podido passar-se: o corpo ultrapassar o obstáculo constituído pela vegetação ligeira, embora espessa. Pode ter, em seguida, rebolado entre as árvores e resvalar pelo rochedo. E aí as coisas tornavam-se sérias, talvez mortais.
- vou voltar para casa - digo.
François não me retém mas sinto-o preocupado.
- Afinal - diz - que fizeste tu às fotos?
- Ainda as tenho.
- És doida - protesta. - É preciso destruí-las. Sabes lá o que se passaria se...
- Se soubessem que me comportei como uma puta? Confesso que isso seria um desastre. Infelizmente, é a única prova que possuo do golpe preparado contra mim. Como bom advogado que és não ignoras que se o caso der para o torto, isso poderia pelo menos explicar o meu nervosismo. Até breve.
E deixo-o.
Ataco os sessenta quilômetros que me separam de casa. De súbito, paro. As fotos encontram-se decerto no meu cofre mas não dou com o rolo de película que, no entanto, se achava no meu saco.
E, de repente, volto a pensar na visita de Edith, quinta-feira, quando veio almoçar lá a casa. Abriu o meu saco para tirar cigarros e deu com a película!
Volto a arrancar e chego a casa pelas treze horas.
Logo a seguir, telefono aos Janès. Robert responde-me e diz-me que Edith está deitada com uma forte enxaqueca.
- Pergunto-lhe, mesmo assim, se não teria levado um rolo de película de minha casa.
- Quando?
- Pergunta-lhe isso apenas.
Ele volta alguns minutos mais tarde.
- Quanto ao rolo de película, não te inquietes - diz-me. Edith entregou-o ao seu fotógrafo ao mesmo tempo que os seus. O tipo trabalha muito bem. Quando nos encontramos?
- Em breve.
Esta nova chatice consterna-me. De notar que ignoro tudo o que há na película gasta por Didier. Talvez eu, em postura delicada. Quando Edith veja isso...
Decido dormir um pouco.
No domingo, a cidade é calma, mas não consigo conciliar o sono.
Nesse domingo, escrevi uma boa parte desta história. Muito exactamente a parte que pára no facto seguinte.
São dezoito horas quando o telefone toca em minha casa.
A voz que oiço é meiga. Pertence a uma mulher muito jovem ou a uma rapariga.
- Doutora Dantec. - bom dia, senhora doutora. Sou Annick. Didier deve ter-lhe falado de mim...
- Não.
- Não me admira - admite a jovem Annick. - Parece que ele não voltou na terça à noite como estava previsto. Ora, devia fazer um exame no dia seguinte. Estou muito inquieta. Senhora doutora, tenho de vê-la com a máxima urgência. É muito, muito importante.
- Em minha casa, amanhã segunda-feira, às onze horas. Serve?
- Oh, muito bem, senhora doutora. Obrigada!
Sábado 13 de Maio.
Mau, muito mau serão ontem, domingo, depois da chamada telefônica daquela rapariga da qual nunca Didier me falara. Notar a este respeito que Didier é um rapaz muito discreto com as suas ligações. Em todo o caso falou-lhe de mim pois ela telefonou-me.
Se se acrescentar a este incidente o problema levantado pela película entregue por Edith a não sei que fotógrafo local, compreender-se-á que o domingo não foi um êxito.
Quanto a Edith, justamente, telefonou-me pelas vinte horas, ontem à noite, ainda domingo.
- Porque não vens cá a casa? - propôs-me. - Faremos qualquer coisa simples.
Naturalmente aproveitei a ocasião e precipitei-me para casa deles. Ela acolheu-me com bom humor.
- Vais desculpar-me, hein, pela minha precipitação. Não posso dizer-te o que se passou. Mas como tinha películas para revelar, foi sem dar por isso que meti as tuas no saco. Mas isso não tem qualquer espécie de importância, não é verdade, querida?
- Nenhuma - digo num tom desprendido - Ao menos o fotógrafo é bom?
- Saberás isso na semana que vem.
A harmonia parece regressada a casa dos Janès. É preciso dizer que Edith é uma ciclotímica. Insuportável um dia, uma hora, uma semana. Em seguida recompõe-se e depois volta à mesma sob o mais simples pretexto. Robert, seguramente, não tem as culpas todas. Isso não impede que procure tocar-me no pé debaixo da mesa e quase me obrigue a instalar-me na cadeira à maneira de um faquir na tábua de pregos. Edith não demonstra dar por nada.
Robert fala das reivindicações dos operários da construção, da gente que, segundo ele, lhe aperta a garganta. E ainda há clientes que pagam mal e fornecedores que querem ser pagos logo. Um autêntico inferno!
- Se tivesses podido trazer o teu camarada Didier - diz Edith.
Há um silêncio. Robert, interrompido por um momento, retoma depressa o curso das suas lamentações. Não voltará a ser ele próprio, quanto a mim, senão quando vier acompanhar-me à porta do seu prédio, cerca da meia-noite.
- Então isso não vai bem? - sopra ele enquanto apoia a mão nas minhas nádegas.
- Sim. E Edith está melhor, hein?
- Impecável desde ontem... Enfim, na aparência. Mas acredita que se chego a apanhá-la com esse palerma do Didier, vai ser lindo...
Robert, ainda não o precisei, é fisicamente um sujeito gordo mas temivelmente forte, e a simples idéia de que poderia dar uma tareia a Didier - se o encontrarmos - basta para me subir o moral.
Esta manhã, Edith telefonou-me para saber se tinha regressado bem mas, sobretudo, para me pedir que jurasse que nunca, mas mesmo nunca, falaria das suas intenções de divórcio a Robert. Parece que ontem à noite, depois de eu partir, eles se explicaram e que o que se seguiu foi maravilhoso sob todos os pontos de vista.
Um pouco tranqüilizada desse lado - mas por quanto tempo? - ponho-me ao trabalho até às onze.
Nessa hora, precisa, tocam à minha porta como estava previsto. Abro.
- A doutora Dantec? Sou Annick.
- Entre, menina.
De facto, esta Annick não é de modo algum a rapariguinha que a sua voz deixa supor ao telefone. Deve ter entre vinte e vinte e cinco anos. O que noto em primeiro lugar é que não parece muito impecável, embora seja incontestavelmente bonita: belos olhos, nariz preciso e fino e boca bastante grande mas de lábios um pouco estreitos, o que lhe dá um certo caracter de dureza. Veste uma camisola preta de mangas arregassadas, um blue-jeans e tamancos de solas grossas. Os cabelos castanhos e ásperos caem-lhe pelas costas num movimento assaz gracioso.
Com muito donaire, e não sem uma certa timidez, senta-se em frente da minha secretária. Ofereço-lhe um cigarro. Recusa-o. Um copo. Recusa igualmente. O seu olhar é grave. Hesita em falar.
- Foi Didier quem lhe deu a minha morada?
- Não exactamente - diz-me. - Tinha-me apenas dado o seu nome e dito que habitava em Orleães.
Isto começa já a admirar-me mas logo me faz pensar que não cheguei ao fim das surpresas com esta rapariga.
- Estamos noivos - acrescenta - e devemos casar o mais cedo possível.
Examina a minha secretária e prossegue numa voz de menina bem educada:
- Não a incomodo, pois não, senhora doutora?
- Não. Estou a ouvi-la.
- É muito amável em ter-me recebido, senhora doutora. Eis do que se trata. Na quarta-feira de manhã, telefonei para casa de Didier e apanhei a Madame Baruzzi. Estava muito inquieta por o filho não ter ainda voltado e eu também, por causa do seu exame. Devo dizer-lhe, senhora doutora, que forcei um pouco Didier a inscrever-se nesse exame. Ora as Provas começavam na última quarta-feira. com certeza lhe falou nisso.
Por instinto seria tentada a dizer que não estou ao corrente, mas desconfio. Esta rapariga sabe, certamente, muito mais do que diz por enquanto.
- Sim. Efectivamente - replico.
- Sabe, tive dificuldade para saber que ele partia para férias consigo, para Itália. Mas ele disse-me que eram bons amigos dos pais, o seu marido e a senhora, e isso descansou-me. Em suma, na quarta de manhã, senti a Madame Baruzzi inquieta... Cada vez mais inquieta até, à medida que os dias se passam, porque tornei a telefonar-lhe. Então disse para comigo que tinha de vir falar com a senhora. Por causa disto.
E a rapariga passa-me uma carta escrita por Didier.
- Trata-se de uma fotocópia - precisa Annick - e sublinhei as passagens que lhe dizem particularmente respeito.
Leio:
Quanto ao assunto de que te falei antes da minha partida, lamento ter aceitado o que me foi pedido por quem tu sabes. Mas quando se precisa de dinheiro pela razão que conheces, aceita-se um pouco seja do que for. E como to expliquei, não podemos contar com o meu pai para me desenrascar, sobretudo se chumbar no exame.
"Mas ontem à noite, no campo, compreendi que M. -C. devia estar ao corrente de alguma coisa. Terá sido alguém que a preveniu? Não sei. Mas o que é certo é que ela me revistou a mala com o pretexto de lá ir buscar jornaisDepois, a sua atitude é estranha.
"Se sabe que a traí, posso recear as suas reacções. Vai, em particular, exigir que me restitua as fotos que lhe tirei, as quais o marido não deixará de aproveitar da melhor maneira. E se não trago as fotos, François D. vai ralhar-me L' certeza e posso confiar nele para me complicar a vida com o meu pai.
"Partimos dentro de três dias de carro e devo dizer que sinto apreensões por este regresso com Marie-Claire. Ela é esperta demais - se sabe alguma coisa - para me fazer uma cena no clube, onde vivemos. Vai esperar que fiquemos sós.
"Claro que Marie-Claire não me mete medo. Mas é muito inteligente e não me atrevo a desconfiar visivelmente dela. Se não duvida de nada, seria falta de tacto da minha parte. "
Segue-se uma longa declaração de amor daquele malandro à rapariga mas só a leio por alto, enquanto reflicto.
A letra é bem a de Didier e os erros ortográficos não faltam.
Razoavelmente, pôde escrever em Viareggio, no dia seguinte àquele em que lhe abri a mala para tirar os jornais. A carta não tem sobrescrito mas, como é uma fotocópia, compreende-se.
Devolvo-lha a sorrir. Sinto Annick muito atenta às minhas reacções e interrogo.
- Esta carta chegou às suas mãos quando, menina?
- Três ou quatro dias depois da sua partida, senhora doutora.
- E não tem o sobrescrito?
- Porque o teria guardado? - responde.
Sustenta o meu olhar e não leio nada no seu, salvo muita candura, muita inocência.
Penso a uma velocidade de que não me teria julgado capaz. Ou, antes, as idéias atravessam-me a cabeça. A rapariga mente? Talvez com um par de estalos conseguisse saber a verdade. Continua a falar-se das brutalidades policiais. Mas, em certos casos, são talvez úteis.
- O que lhe faz pensar, menina, que essa carta tem uma relação com a ausência do seu noivo?
A rapariga finge a maior confusão e baixa a cabeça sobre a minha secretária enquanto responde embaraçada:
- Mas... mas não sei, senhora doutora. Procuro perceber o que se passa. Sabe, não tenho nenhuma instrução. Quando Didier me conheceu, era criada num bar.
Decididamente caminho de surpresa em surpresa. Vejo mal Michelangelo Baruzzi a deixar o filho casar com uma criada e ainda menos Clara Baruzzi que pensa que nada é bastante bom para o seu querido Didier.
- Disse-me que estava noiva dele - insisto.
- Sim, senhora doutora - corta Annick, com um pudor delicado. - Noiva pela força das coisas. É mesmo por causa disso que vim falar-lhe. Oh! não procuro uma consulta gratuita. Mas já que é amiga de Didier. Aqui está... Admitindo que lhe tenha acontecido alguma coisa, acha que o meu filho terá algum direito?
Espanto. Regresso à terra.
- Na condição - digo-lhe maquinalmente - de que tenha uma prova de que Didier é o pai da criança que espera.
Com um sorriso meigo e sempre a mesma requintada timidez - que começa aliás a inquietar-me - Annick tira uma nova carta do saco depois de ter arrumado a fotocópia que acabo de ler. Aquela rapariga é ordenada.
- Pode lê-la, senhora doutora. Então é o delírio.
Numa declaração inflamada, Didier extasia-se perante a grande felicidade que lhe cai em cima. Vai ser pai. Está louco de alegria. O único problema que se lhe apresenta - escreve é a sua situação e também a reacção do pai. Mas que importa se for deserdado, pois terá a ventura de criar um lar e de ter um filho seu.
- Evidentemente - digo-lhe - com um tal documento, o seu filho tem certos direitos.
Examino de novo a carta. Letra de Didier, ortografia de Didier. Mas o que me surpreende, mesmo assim, um pouco é a espantosa ligeireza que representa escrever uma tal carta. Porque se não sabe ortografia, aquele pequeno vicioso tem astúcia. Ora esta carta compromete-o.
Volto a lê-la. Mais exactamente, ganho tempo fingindo relê-la.
- A senhora doutora deve estar admirada por Didier se comprometer assim comigo tão nitidamente. Mas tenho tantos outros testemunhos contra ele sobre as provas da sua paternidade. Compreende bem, senhora doutora, que eu o amo mais do que ele me ama. E que se tivéssemos de nos divorciar...
Um silêncio.
Annick exprime a sua emoção com uma impressionante sobriedade. Recupera a carta e encafua-a no saco.
Sinto-me inquieta. Tão inquieta como no dia em que François me pediu para defender um vigarista: um tipo terrível de astúcia e de inteligência. O próprio juiz de instrução era obrigado a socorrer-se de um perito financeiro para destrinçar as respostas do réu. E sinto a mesma sensação com esta rapariga que, bem o noto, ainda não descobriu as suas baterias.
Geme com uma voz lastimosa:
- Não vivo desde quinta-feira, senhora doutora. Não pode realmente dizer-me se lhe sucedeu alguma coisa? Bem sei que não tem de me responder, mas ninguém quer responder-me. Só a Madame Baruzzi me explicou que a senhora deixou Didier em plena montanha e que ele teria, por assim dizer, partido a pé, ele que detesta caminhar. Talvez esteja morto... ou ferido.
- O que a leva a pensar mais nisso do que numa fuga?
- Mas porquê numa fuga? -geme Annick. - Porque faria isso a mim? E à sua mãe? Não, o que eu quero, senhora doutora, é dar com ele indo ao local, em Itália.
- Mas é isso que deve fazer, menina!
Acho mesmo que é uma idéia excelente. Se esta donzela quer descobrir a todo o custo Didier talvez o consiga e isso servir-me-ia bem. - com que dinheiro? - larga ela secamente. - Preciso de dois mil francos novos.
As coisas tornam-se agora mais claras. Tive poucos contactos com chantagistas na minha carreira. Talvez François me pudesse ser útil. Necessito de ganhar tempo.
- Oiça, menina - digo-lhe - hoje não tenho meios para lhe emprestar a soma que me pede. Mas o meu marido encontra-se em Paris. Dê-me o seu nome e morada e ele mandará depositar um pequeno avanço reembolsável.
Mas Annick levantou-se.
A cara permaneceu muito meiga, marcada por uma dor discreta e digna.
- Senhora doutora - diz - prefiro telefonar-lhe esta noite ou amanhã de manhã. Mas insisto particularmente na necessidade, para mim, de me deslocar a Itália com essa quantia.
- Percebido, menina - digo-lhe. - Telefone-me amanhã de manhã. Não quer deixar-me o seu nome?
- Não vale a pena, ssenhora doutora. Reconhecerá a minha voz.
Levanta-se com dignidade.
- Se isso não a incomoda, e tendo em conta a inquietação que sinto preferiria passar amanhã por volta das dezoito horas. Compreende... Gostaria realmente de saber o que sucedeu a Didier. Até amanhã, senhora doutora.
Mal ela saiu sinto-me tentada a precipitar-me no seu encalço para saber onde vai e quem ela é exactamente. Mas penso haver melhor a fazer. Então telefono a François em Paris.
E logo de entrada as coisas correm mal entre nós.
- Tenho algo importante a dizer-te.
- Eu também - replica François.
A prática do ofício de advogado ensinou-me que vale mais nunca falar em primeiro lugar. Mas-este problema não se apresenta com François pois estamos metidos no mesmo saco e um não se safará sem o outro.
- Vá, diz!
Então digo. Conto-lhe, em pormenor a visita da tal Annick. Ele escuta-me. Interroga:
- Annick quê?
- Não me deu nem o apelido nem a morada. Mas talvez se pudessem obter essas informações através de Baruzzi, pois ela foi falar com Clara, parece.
Ele pôe-se a rir zombeteiramente.
- Clara Baruzzi receber uma criada de café por assim dizer noiva do filho! Bem se vê que não conheces Clara.
- Mesmo se o filho engravidou a rapariga? Vi o reconhecimento da paternidade!
- Um reconhecimento de paternidade datado não prova nada se a rapariga não estiver grávida.
- Que quer isso dizer?
- Que Diddier e Annick se puseram de acordo para te levarem à certa. Percebes? Nada prova que a carta que a rapariga te mostrou tenha sido enviada de Viareggio pois não viste o sobrescrito.
- Queres dizer com isso que Didier pode ter visto Annick ontem, por exemplo, e escrever-lhe essa carta a fim de ela exercer a sua chantagem? Portanto, que ele estaria em França!
Desta vez François rebenta. E a sua explosão é a sério, autêntica. Não é um número que faz.
- Merda, merda e merda - grita - Mas nunca duvidei disso. A única chatice é que esse pequeno malandro é igualmente um vicioso. Se só houvesse o pai, não seria muito grave. Mas há Clara Baruzzi e Didier sabe como servir-se dela. Acredita-me. Sabe bem que ela fará queixa ou que irá à polícia. E, em seguida, ele regressará sem riscos. Até pode acusar-te de tentativa de assassínio, de roubo de viatura ou de falta de assistência a pessoa em perigo. Não sei se compreendes as conseqüências de um escândalo. O mais certo é que não. Tu em Orleães o que é que arriscas?
Sempre sustentei, e ainda o sustento, que François é um homem galante e um homem calmo. Mas este assomo de cólera - o primeiro que realmente lhe conheço
- surpreende-me e causa-me também imenso prazer. Prova-me que ele se sente enrascado e, por conseguinte, solidário comigo pela força das circunstâncias.
- Ouve, querido - digo-lhe calmamente - não tenho a impressão de ser uma esposa maçadora mas peço-te um mínimo de ajuda e de solidariedade. Até porque tudo aconteceu por tua causa. Se não tivesses querido mandar-me fotografar não estaríamos onde estamos. Portanto, é preciso dar com essa Annick e obrigá-la a dizer onde está Didier.
- Um minuto. Eu também tenho novidades. Desde ontem à noite, Clara Baruzzi tem o relatório de Berdol que não pôde evitar de lho enviar, tanto mais que ela foi a casa dele. Portanto, para ela, o filho foi assassinado. Espera, ainda não acabei. Depois da leitura do relatório Berdol, os Baruzzi foram a Mâcon ontem à noite, à garagem. Sim. Um domingo! Parece que Clara queria recuperar à viva força as coisas do seu queridinho. E sabes o que ela encontrou no impermeável do filho? Um bilhete garatujado à pressa por Didier no qual ele conta que tu o ameaçaste na estrada, um pouco antes, com uma pistola. Inútil dizer-te que não fala de uma pistola de alarme. Estás a ouvir-me?
- Naturalmente. E quando teria escrito essa carta?
- No restaurante Da Piero. Aliás, Berdol fala no relatório desta casa. Didier pôde ausentar-se durante a refeição, escrever e pôr a carta depois no impermeável.
- Possível, com efeito. Mas teria voltado comigo para o Karro apesar do revólver? Não é muito lógico, o seu argumento.
- Sim. Lembra-te de que ele devia regressar a Paris custasse o que custasse, mas também que tu podias mantê-lo sob a ameaça da tua arma. Porque Didier nem sequer procura ocultar o medo que tu lhe inspiras... por assim dizer. Conheces bem a justiça para saberes que tais argumentos têm o seu peso. Aliás, mesmo Michelangelo Baruzzi começa a fazer perguntas. Quanto à mulher, vai hoje à Polícia Judiciária. Se é que já não foi.
- Mais uma razão - digo-lhe eu - para descobrirmos Didier mandando seguir Annick.
- Talvez - admite ele.
Já que cheguei a este ponto, pergunto-lhe se está de acordo em participar nas despesas da chantagem. Diz-me que me vai
mandar um cheque. Preparo-me para desligar quando me ocorre de súbito a idéia.
Como é que não pensei nisso há mais tempo? Ataco:
- Disseste-me que a carta escrita no restaurante Da Piero por Didier foi encontrada no impermeável que estava no carro?
- Sim.
- Didier partiu para Viareggio sem impermeável. Tenho a certeza absoluta porque da única vez em que tivemos chuva durante os quinze dias, era à partida, ele pediu-me o meu.
- Pode ter comprado um em Itália
- Quando e porquê? Tivemos sempre sol. Estou agora certa do facto.
Portanto, alguém foi à garagem de Mâcon para pôr o impermeável - e a carta - no carro.
- Já que falámos nisso, quanto me vais mandar?
François diz-me ter pensado em mil francos. Actualmente tem despesas consideráveis, dificuldades.
- E Florence?
- Ah, essa agora! - replica-me secamente. - Por quem me tomas?
Está simplesmente a esquecer-se de que foi para tornar a casar que tentou exercer a sua chantagem sobre mim com Didier. Finalmente mandar-me-á dois mil francos ainda hoje.
- Serve - digo eu. - Vamos manter-nos ao corrente. Depois de ter desligado, tomo uma chávena de café e vou preparar uma sanduíche. A seguir ponho-me a pensar.
Espero não me enganar afirmando que Didier não tinha impermeável. Mas não. Não tinha impermeável. Não o vi no banco de trás. Nem na mala do carro que nós próprios carregámos antes de deixarmos o campo.
Portanto, estou segura do que afirmo. Esse impermeável foi, por conseguinte, posto por alguém no carro de Didier. E certamente não pelos Baruzzi.
Uma outra chávena de café.
Na impossibilidade de eu mesma telefonar para a garagem de Mâcon, veio-me à idéia ligar para Roland Cardin. De qualquer modo não posso escolher e o tempo urge.
Telefono a Roland para a garagem. Dão-me o seu número particular porque não está lá. No seu domicílio, atende.
- Aqui Marie-Claire.
Tem um ar encantado por me ouvir e começa por perguntar-me quando nos encontraremos.
- Talvez em breve. Tenho um pequeno serviço a pedir-Lhe. Recorda-se exactamente do que fiz na altura em que transferi as bagagens do meu carro para o seu?
- Porquê?
- Porque preciso de sabê-lo.
Pede-me um instante, apaga o rádio que grita a seu lado. A minha espera dura ainda um pouco. Por fim, torna a pegar no aparelho.
- Agora está melhor - diz. - Lembro-me de que peguei nas suas bagagens para as meter na minha mala. Havia duas malas.
- Exacto - digo eu. - Havia também um impermeável. Um único, o meu, não é verdade?
- Não vi mais nenhum. Alguma coisa corre mal?
- Sim e não. O que tenho a pedir-lhe é um pouco delicado. Como lhe disse, este carro não me pertence. Mas gostaria de saber se veio alguém à garagem para tratar do assunto, nestes últimos dias.
- Mas se o vamos buscar dentro de alguns dias...
- É muito menos seguro. Tenho de explicar-lhe. Tirando um casal que deve ter ido ontem à noite, gostaria de saber se alguém mais se aproximou do carro. Como garagista deve ser-lhe fácil perguntar a um colega.
Roland Cardin é um entusiasta.
- Mas podemos ir lá já. Em quatro horas pomo-nos lá.
- Não - digo eu - não é possível. Sou obrigada a ficar em casa todo o dia. Peço-lhe só que telefone ao seu colega para saber quem andou a rondar perto do carro e como era essa pessoa. Se levava, por exemplo, um impermeável. Pode telefonar-me logo que seja possível?
- De acordo. E desliga.
Tomo mais uma chávena de café.
São mais de treze horas e Roland que não me telefona.
Ponho-me um pouco no seu lugar. O menos esperto dos rapazes desconfiaria um pouco da minha atitude um tanto ambígua.
Mesmo assim, às 14 horas, decido ligar-lhe para casa. Ninguém atende. Na garagem uma empregada diz-me que ele não vai lá nessa tarde.
Desta vez é a debandada.
É preciso compreender este rapaz!
Às 15 horas torno a ligar.
Roland Cardin continua sem ter voltado para casa.
Às 15, 30 horas tocam à porta.
O mais curioso é que nem só um instante imagino que possa tratar-se de um cliente. Aliás, nunca mais pensei em clientes depois do meu regresso.
E, de facto, é Roland. Tem um rosto sombrio. Agradeço-Lhe por ter vindo ter comigo e faço-o entrar para o salão que também me serve de escritório.
- Que posso oferecer-lhe? Mas ele permanece de mármore.
- Ainda conta tomar-me muito tempo por um palerma?
- interroga com uma voz glacial.
Não conheço o meio desportivo. Mas sei, por tê-lo visto na televisão, que essa gente tem reacções por vezes vivas. O que ignoro completamente, pelo contrário, é como acalmar este gênero de rapazes quando estão casmurros como parece ser o caso do meu visitante.
- Mas enfim, não o percebo - digo.
- É apenas advogada?
- Evidentemente. Presumo que não vai exigir que lhe mostre os meus diplomas, pois não?
- Ah! está boa essa, hein!
E catrapuz! Enfia-me um tabefe. A minha surpresa é tal que, caída no divã, nem tenho a presença de espírito de baixar a saia sobre os joelhos.
E num repente, sacudida por tudo quanto acaba de suceder nestes últimos dias, ponho-me a chorar desesperadamente.
Então também ele está contra mim!
Pude notar que isto não parece comovê-lo. Porque se serve de um copo e volta para junto de mim.
- Pare com o seu cinema - resmunga. - O seu amante, matou-o ou não? - Porque me diz isso?
- Porque ontem à noite, os pais do proprietário do carro foram à garagem. São italianos.
- Chamam-se Baruzzi.
- Como quiser. Naturalmente o patrão mostrou-lhes o carro do filho.
Roland caminha de um lado para o outro no meu escritório. Em suma, ao pegar na bagagem do filho, a mulher
encontrou o impermeável e, numa algibeira, um bilhete dele. iParece que então se deu uma cena terrível. O patrão da garagem não compreendeu tudo, visto que a mulher falava
metade em francês e metade em italiano. Mas ela é formal. Mataram-lhe o filho e a assassina é a amante que, além disso, roubou o carro. Portanto, a senhora matou esse rapaz! Olho para Roland. É preciso que ele se acalme.
Quando volta, não sem ter antes repetido várias vezes que não gosta que o tomem por parvo, levanto-me e vou ao guarda-fatos do qual tiro o meu impermeável.
- E agora - digo-lhe - se me escutasse? Este impermeável é o único que se encontrava no carro e nós levámo-lo para o seu. Portanto, quando o carro acidentado chegou à garagem, não havia impermeável no interior. Correcto?
- Hum, sim.
- E se telefonou para a garagem para me fazer um favor, era para saber quem poderia ter lá posto esse impermeável na mala. Estou a ser clara?
- Num sentido, sim. Mas isso não impede que o garagista tenha querido saber porque é que aquele carro me interessava tanto.
- Quando tiver respondido à minha pergunta, explicar-Lhe-ei o que se passa. Andou ou não andou alguém a rondar em volta do carro com um impermeável?
- Parece que apareceu um cliente para comprá-lo, um jovem louro e bronzeado. Foi ontem, domingo, de manhã. Como a garagem faz reparações na auto-estrada, nunca fecha.
- E que foi feito desse rapaz?
- Naturalmente não insistiu, por o carro estar acidentado. Não tem para aí qualquer coisa que se coma?
Foi uma muito boa idéia que ele teve, pedir-me qualquer coisa para comer, Roland Cardin.
Sozinha na cozinha, preparo-lhe, pois, uma sanduíche enorme e este pequeno trabalho permite-me ao mesmo tempo descontrair e reflectir acerca do que o meu visitante acaba de revelar-me. Imagino então o que pode ter-se passado.
Prevenido pela amiguinha Annick que sabe - graças a Clara Baruzzi - tudo o que fiz depois do incidente da estrada, Didier foi à garagem com um impermeável e um bilhete na algibeira. Astúcia esperta, porque apenas eu existo para sustentar que não havia impermeável no carro. Esse bilhete, mais a carta, digamos, enviada a Annick, deveria levar-me a um acordo com esta criatura.
Terá, pois, de ser Annick a mostrar as cartas.
Regresso com a bandeja ao salão.
Roland Cardin, a quem tudo isto não cortou o apetite, ataca a sua sanduíche. com a boca cheia diz-me:
- Desculpe-me aquilo de há bocado. Mas confesse que este caso não é claro.
Como lhe prometi algumas explicações, dou-lhas, adaptando-as naturalmente aos novos factos. De vez em quando ele faz "pois... pois claro ah bom!". Mas bem vejo que há coisas que lhe escapam. Então interroga:
- E esse tipo, o que foi ao carro, queria fazer-se passar por morto para se julgar que a senhora o matara!
- Sim.
- Mas porque é que o teria matado? Era seu amante?
- Não.
- Então porquê?
- Fotos que me tirou.
- E que a senhora queria recuperar?
- Tenho-as.
- Ah, bom! - disse Roland Cardin. -Então recuperou-as. Deve perguntar-se como e por que meios eu as recuperei. E se fosse ao matar Didier? Vejo o esforço que lhe vai no crânio. Diz-me:
- Não tem um pouco de cerveja? Dirijo-me à cozinha. Se aceitasse seguir Annick quando ela saísse de minha casa e pudesse dizer-me onde ela habita... Porque Annick fala com Didier. E, se damos com Didier, o seu plano de chantagem falha.
Volto ao salão, com a cerveja. Roland Cardin está de pé e diz-me que não valia a pena ter-lhe trazido um copo. Teria bebido bem pela garrafa. É, aliás, o que faz. Depois conclui:
- Se mo permite, vou retirar-me. Tenho de estar na garagem ao fim da tarde. Não é trabalho que falta neste momento, sobretudo porque o meu pai vai um pouco para férias. Mas talvez a gente se encontre um destes dias, hein? Não há motivo...
Uma vez na porta, estende-me a mão e toma um ar embaraçado.
- E mais uma vez as minhas desculpas pelo meu gesto de há pouco. Estava um pouco enervado. Compreende, dei o meu nome ao colega de Mâcon. Assim, se a polícia vai lá e ele fala em mim, isso pode ser aborrecido.
- Mas percebeu bem o que lhe disse?
- Oh, muito bem! Então até um dia destes, senhora doutora. Em todo o caso estou contente por tê-la conhecido.
Raramente vi um homem raspar-se tão depressa. O seu carro, de capota descida, está arrumado em frente do meu prédio.
Enfia-se-lhe dentro, liga o motor e o bólido salta literalment através do largo do Martroi.
Bom.
Vou esclarecer-me.
Ligo para François a fim de perguntar-lhe como proceder com Annick que deve aparecer ao fim da tarde. Ele está numa reunião no escritório. Mas como insisto, vem atender a chamada no local da secretária a quem o oiço pedir para sair um momento.
François não vê como proceder com Annick. Talvez lhe pudesse mandar essa detestável criatura e ele fá-la-ia seguir. Mas ela certamente desconfiaria. Também não serviria de grande coisa gravar as palavras que ela me dissesse pois, de qualquer modo, este gênero de testemunho não possui nenhum valor legal.
Também ele está sem notícias de Michelangelo Baruzzi. Não há maneira de apanhá-lo ao telefone. Foge.
Lado político, François revela-me também a sua decepção. Parece amargo, fatigado e explica-me que nesse ofício é preciso saber ser ao mesmo tempo pelo aumento do preço do trigo e pela diminuição do preço do pão. Em suma, em certas alturas quase que sente vontade de largar tudo.
- Felizmente que tens Florence.
- Oh, isso vai indo! - corta ele. - A propósito, mandei-te um cheque esta manhã. Vais recebê-lo durante o dia. E procura desembaraçar-te dessa Annick.
E desligamos sem termos decidido nada. Como saberemos onde habita Annick e onde se encontra Didier neste momento?
Para me distrair e tomar um pouco de ar, decido ir dar uma volta pelo Palácio da Justiça. Mas passo também pelos correios. Não tenho mais dinheiro na conta. Pego em duzentos mil francos antigos em quatro notas grandes cujos números anoto. Felizmente mandou-me o seu cheque. Mas aquela detestável criatura que é Annick não voltará, a seguir, à carga? São assim, os chantagistas.
Chego ao Palácio onde encontro os colegas.
Devo dizer que o meu casamento com um tenor da teia parisiense me fez imensamente bem junto dos meus colegas masculinos. Claro que dantes se interessavam por mim, mas mais para a cama. Foi François quem me ensinou a manter certas distâncias. O que faz com que tenha agora direito à pancadinha amistosa no ombro mas não nas nádegas. Promoção social.
Dois colegas convidaram-me a tomar um copo e falam-me de François, esse advogado admirável, descendente em linha recta dos De Moro-Giafferi, Campinchi e outros Maurice Garçon. E eu que não sou vista muitas vezes no Palácio, nem nos grupos profissionais, nem nos cocktails! Mas porquê? Não somos colegas? Amigos?
Tudo isto faz-me subir o moral.
Terça-feira, 14 de Maio.
Ontem à noite jantei com os dois colegas em questão e fomos depois tomar um copo. Vim deitar-me por volta das dez. Nada a dizer deste serão. Bebemos pouco e falámos muito.
Esta manhã, a porteira traz-me um sobrescrito espesso. Provém de "Robert Janès, promotor imobiliário" e contém certos documentos que vão servir-me de base para elaborar os contratos-tipo que devem assinar os futuros ocupantes comproprietários do bairro residencial que ele está a construir em Olivet.
E depois almoço sozinha.
No quadro dos meus aborrecimentos, bem gostaria de saber o que foi feito das fotos que Edith mandou revelar. E de que fotos se trata, afinal?
Sei que Didier tirou várias, durante a ida. E não com o polaróide. Tirou-me a mim e eu a ele. Graças ao disparador automático, tirámos mesmo aos dois. Basta colocar o aparelho em boa posição, accionar o disparador e voltar a tomar a pose em frente da objectiva. Tirámos muitas numa pequena praia onde nos banhámos, antes da fronteira Franco-italiana.
É um pouco como uma velada de armas que hoje faço.
Daqui a seis horas, chegará Annick e ainda não arranjei maneira de caçá-la quando sair.
Às quinze horas volto ao Palácio de Justiça por causa de um processo fácil, o primeiro que defendo desde o meu regresso. Leva menos de uma hora.
Apenas me resta uma para dar com uma solução para o caso de Annick. Em último caso poderia ir à polícia, mas o remédio arriscava-se a ser pior que a doença.
Finalmente, decido isto no caminho, vou ligar o meu gravador.
São 17, 20 horas quando entro no prédio. A porteira precipita-se para mim.
- Há um homem que veio cá procurá-la, senhora doutora - diz-me ela. - Penso que deve estar à sua espera lá fora. Tem o ar de dizer que é importante.
- É certamente um cliente. Há já muito tempo que me procurou
- Aí uns dez minutos.
Subo até casa e vou à janela para ver de quem se trata. Ninguém. Mal tenho tempo para passar o pente pelos cabelos e logo tocam à porta. vou abrir.
- Desculpe vir incomodá-la, senhora doutora! Penso que me reconhece
- Para dizer a verdade, não - replico. - Pelo menos não muito bem. Mas parece-me, apesar disso, tê-lo já visto.
Ele sorri amavelmente.
- Agora, evidentemente, tem outros casos, mais importantes, senhora doutora. Sobretudo casada com um dos nossos maiores advogados. Comissário Guillebeau. - com efeito, senhor comissário. Entre, então.
Está tão elegante como no tempo ha cinco anos atrás, emque eu ia rondar pela sua esquadra à procura de processos para defender. Aliás, nesse momento não era ele quem me recebia. Era o seu secretário quem me indicava que um fulano ou uma cicrana iam talvez precisar dos serviços de um advogado. Isso pegou uma vez e o cliente nem sequer me "pagou.
Mas a minha situação modificou-se, como já disse.
Guillebeau usa um fato Príncipe de Gales, camisa azul lavanda e gravata azul escura. Ouvi dizer que tinha muito sucesso junto das damas mas é um homem muito discreto e sem história.
Aceita um dedo de whisky e explica-me que não veio ali em serviço. Pelo menos oficialmente. Mas um pouco de tudo ao mesmo tempo. Caso contrário não se teria permitido incomodar-me. Telefonou-me há uma hora, mas não estava em casa. Eis do que se tratava. Vinha avisar-me, a título amistoso e em seguimento de um pedido (verbal) de informações (sobre mim) proveniente de um colega de Paris.
Na polícia é-se prudente... com alguns, pelo menos.
Numa palavra, como em cem, e esta notícia - segundo Guillebeau - vai seguramente divertir-me muito - uma Madame Clara Baruzzi foi à Polícia Judiciária - Quai dês Orfèvres - para me acusar de ter feito desaparecer o seu filho Didier. Essa pessoa, muito excitada, não teria sido, aliás, recebida pelo colega parisiense se não fosse anunciada por uma personalidade amiga de Baruzzi que é um importante construtor civil.
- Não é à senhora doutora - diz Guillebeau - que vou explicar que as relações são sempre importantes. Mas, por outro lado, o meu colega de Paris queria saber se a senhora era a esposa do doutor François Dantec, o advogado bem conhecido. Disse-lhe que sim e isso atrapalhou-o. Não obstante, pediu-me para preveni-la do que se passa.
Sinto a diferença. Previnem-me, portanto, de que uma espécie de louca está em vias de difamar-me. Mas para o caso dessa mulher não ser tão louca como isso tomam-se, pelo sim pelo não, algumas precauções. Abre-se o guarda-chuva, como se diz.
- Agradeço-lhe a sua amável atenção, senhor comissário.
Volto a servir-lhe um pouco de whisky. Aceita e repete-me que não veio ali em serviço mas a casa de uma jovem e encantadora notável de Orleães a quem queria ser útil. Pelo meu lado não posso ter o ar de desinteressar-me das acusações da Clara Baruzzi. Seria insólito, anormal, suspeito.
No meu relógio são 17, 30 horas. Daqui a trinta minutos chegará Annick. Se ele pudesse ali estar a ouvir. Digo:
- Não conheço a Madame Baruzzi que é uma amiga do meu marido.
- Não gostava de ser indiscreto, senhora doutora.
- De modo algum, de modo algum. Pelo contrário, os seus conselhos poderiam ser-me preciosos. Não estou a aborrecê-lo?
- Absolutamente nada.
Como ele conhece, sem dúvida, já a história não arrisco nada em contar-lhe. "E assim que, em poucos minutos, me torno uma jovem que vive sozinha para conseguir nome em Orleães, ao passo que o marido prossegue a sua carreira em Paris. Mas sou perseguida pelo casal Didier Baruzzi e Annick. O primeiro finge ter desaparecido e a segunda faz chantagem.
Guillebeau ouve-me com atenção, um pouco estupefacto certamente, porque existe verdade na história que lhe contou o seu camarada polícia de Paris.
- E essa Madame Clara Baruzzi?
- É sincera, e o filho sabe explorar a sua sinceridade.
- Os chantagistas - diz-me Guillebeau que sinto, de súbito, reservado - são gente desprezível mas particularmente perigosa quando armada. É difícil, para não dizer impossível, apanhá-los em flagrante delito. Mesmo se gravar a conversa com a pessoa em questão sabe tão bem como eu, até, melhor do que eu, que isso não terá valor aos olhos da lei.
São 17, 44 horas.
Normalmente Annick deveria chegar dentro de quinze minutos.
- Sei-o muito bem, senhor comissário - digo-lhe. - Mas se essa pessoa viesse a minha casa e repetisse as suas intenções na sua presença?
- Naturalmente, isso seria completamente diferente, senhora doutora. Mas era preciso que aparecesse.
- É que, justamente, vai aparecer.
Sirvo-lhe mais um pouco de whisky. Se lhe contei a minha história foi porque esta idéia de entalar Annick me ocorreu de repente.
- Seria magnífico, senhora doutora - diz Guillebeau.
É também o que eu penso mas já que, enfim, sou ajudada pelas circunstâncias, faria mal se me queixasse. Em suma, após um período de falta de sorte, esta oportunidade consegue restabelecer a situação.
O comissário consulta o relógio e explica-me que tem uma reunião à noite. Para o entreter falo-lhe de François, que vai apresentar-se às eleições. Isto leva quase dez minutos. Escuta-me delicadamente mas sinto, mesmo assim, que tem vontade de ir-se embora. Acredita ele, aliás, na chegada da minha visitante? E mesmo na minha história?
Tocam à porta.
Quando acabei de arranjar o apartamento, mandei instalar um ralo por por conselho de François. O meu marido até me aconselhou a compra de uma pequena pistola automática que ainda está no estojo, na mesinha de cabeceira e com um carregador. Mas não tenho tempo de olhar pelo ralo. Oiço uma voz.
- É o correio! - anuncia a porteira atrás do batente.
Tiro-lho das mãos, um pouco secamente, e volto para o escritório-salão. O comissário consulta o relógio mas finjo não dar pelo seu nervosismo e começo a abrir as minhas cartas, pretexto para ganhar um pouco de tempo diante daquele homem cheio de impaciência.
São 17, 54 horas.
O comissário Guillebeau revela-se francamente febril. O chantagista, torna-me ele a explicar, é um ser desconfiado e muitas vezes timorato. Não se acha, pois, excluída que a menina que faz de chantagista -não apareça esta noite, nem amanhã, nem nunca...
Já não sei como reter este homem que é a minha oportunidade inesperada de pôr termo aos meus aborrecimentos. Não vou, apesar disso, sugerir a Guillebeau que ponha um disco, com o fim de retê-lo para aguardar a chegada de Annick.
E ele mostra-se cada vez mais perplexo e nervoso. Bem sinto que está a reflectir. Passam muitas vezes pensamentos estranhos pela cabeça de um polícia. E quem, aliás, lho pode censurar? Essa gente não tem ilusões quanto à espécie humana.
Guillebeau não pára de me olhar a caminhar de um lado para o outro à sua frente.
Os vários copos bebidos desde ontem com os meus colegas, mais os três esvaziados com Guillebeau dão-me ao rosto uma certa coloração e aos gestos uma insólita secura. O comissário deve pensar que abuso da bebida.
Dezoito horas e sete minutos.
O comissário e eu terminamos, enfadados, uma volta pela vida mundana em Orleães. Falamos também de personalidades locais em vista. Ligo com as festas de Joana d'arque e pergunto-lhe a opinião sobre o desenrolar das cerimônias. Espero que o seu comentário seja longo. Responde-me:
- Correu muito bem, senhora doutora, obrigado. E ei-lo que se levanta.
- Agora, se mo permite, não abusarei mais do seu amável acolhimento, senhora doutora. Claro que não deixarei de relatar as suas palavras ao meu colega de Paris.
- Posso perguntar-lhe o seu nome?
- O comissário principal Boulard.
Levo imenso tempo a anotar este nome e as coordenadas.
- Não duvido - diz Guillebeau - que o comissário Boulard saberá acalmar essa dama e pô-la em guarda contra os riscos de difamação. E é evidente que, se achar útil avisar-me a tempo, é com prazer que lhe mandarei um dos meus homens para apanhar a sua chantagista em flagrante delito.
Falhou. A não ser que me dispa diante de Guillebeau para retê-lo eis-me, pois, obrigada a abrir-lhe a porta da escada para a qual ele se dirigiu irresistivelmente.
E o milagre produz-se nesse momento.
A porta de entrada do rés-do-chão bate violentamente e oiço passos na escada.
- Onde vai a menina? - interroga a porteira.
- A casa da doutora Dantec - responde Annick. - Tenho um encontro marcado.
Deus seja louvado!
É ela.
Embora continuando a consultar o relógio - mas agora perante o facto consumado - o comissário aceita tomar lugar na sala que liga com o meu salão-escritório. Daí ouvirá toda a conversa com Annick. Mesmo assim avisa:
- Peço-lhe que seja o mais breve possível.
Desse lado, nenhum problema. Mais ainda do que ele, tenho pressa de ver-me livre desta criatura detestável. Annick toca à porta, convido-a a entrar e, depois, a sentar-se em frente de mim e diante da porta que separa o meu escritório da sala onde se encontra o comissário.
- Vim atrasada - desculpa-se. - Espero que tenha pensado no que lhe pedi.
- Naturalmente - digo eu. - Naturalmente.
Pego no meu saco em cima da chaminé e tiro dele quatro notas que coloco na secretária.
- Aqui tem o dinheiro. Mas há uma coisa que gostaria de saber, menina... menina?
- Annick.
- Annick...
A jovem faz um sorriso um pouco deslocado. Aquilo serve para alguma coisa? O primeiro nome chega-me, não?
- Admitamos. Disse-me que vai procurar o seu noivo Didier Baruzzi. Mas como?
- Deslocando-me ao local, senhora doutora. Uma vez em Itália informar-me-ei, irei à polícia e falarei às pessoas. A Madame Baruzzi explicou-me pouco mais ou menos como dar com o sítio onde... onde o acidente aconteceu.
- E no caso de não descobrir o seu noivo desta vez, não será tentada a voltar a ver-me?
Annick fixa-me agora com uma insoléncia incrível.
- É muito possível, senhora doutora. Mas não acha isso preferível a um escândalo?
Estende a mão para todas as notas que eu recupero depressa.
- Só mais uma palavra - digo-lhe. - Os pais de Didier foram no domingo à noite à garagem de Mâcon onde se encontrava a viatura acidentada do filho. Descobriram lá um impermeável que foi posto por um cliente fingido que tinha o aspecto de Didier... um rapaz alto, louro e bronzeado.
- É a senhora que o diz!
- Sou efectivamente eu quem o diz. Digo também que está a fazer-me chantagem com a cumplicidade de Didier. De acordo?
- De acordo. Mas que vantagem lhe traz isso?
A porta abre-se nesse momento nas minhas costas.
O comissário Guillebeau entra, rígido - se assim posso dizê-lo - como a justiça.
Quarta-feira 15 de Maio.
Depois da prisão de Annick, ontem, telefonei para casa de François. Estava ausente. Pedi à secretária - uma nova, cuja voz não conheço - que me telefonasse logo que possível. É urgente, precisei.
- Ele não lhe telefonará certamente antes de amanhã respondeu a rapariga.
Restava-me, pois, um longo serão a ocupar e pensei em ligar para os Janès, nem que fosse para ter notícias das fotos que Edith levou a revelar. Mas não quis ter o ar de me prender demais a eles nem estava interessada em provocar novas confidências. Não telefonei portanto.
Então na manhã, pois, cedinho, tocou o telefone. Era François a quem contei tudo: a visita de Guillebeau como conseqüência da queixa de Clara Baruzzi e a detenção de Annick apanhada em flagrante delito de chantagem.
Esta notícia satisfaz François, o que não o impede, conforme o seu hábito, de reflectir e, portanto, de encarar o pior.
- Suponhamos que a chantagem esteja apurada e que descubram Didier, o que sucederá fatalmente; isso, porém, não obstará a que te acusem eventualmente de tentativa de assassínio, de falta de assistência a pessoa em perigo e de roubo de viatura.
- Muito me admirará que cheguem a esse ponto - riposto eu. - Nem que fosse pelo papel pouco agradável que ele representou ao fotografar-me. Ora continuo a ter a prova.
- Talvez - admite François, muito agastado com esta lembrança. - Mas talvez fosse melhor arranjar as coisas antes com a polícia. Como se chama o comissário que foi falar com Clara Baruzzi?
- Boulard - digo eu.
- vou tratar disso e voltarei a ligar para aí assim que me? for possível. Sempre recebeste o dinheiro?
- Ainda não.
Agora que aquela quantia se tornou inútil, pensa talvez que vou devolver-lhe os duzentos mil francos ou que vou oferecê-los ao seu comitê de apoio...
Desligo e passa uma hora e meia.
Às 9, 30 horas, tocam à porta.
Guillebeau!
Traz um fato leve, de tecido claro, uma camisa branca e uma gravata às flores. Um verdadeiro manequim da moda!
Mas é também um chui que conhece o ofício. Acho-o muito mais à vontade do que na visita anterior. É verdade que, com o que ouviu na véspera, me conhece melhor: que eu seja advogada e esposa de uma celebridade não impede o sexo de falar. Sinto-o indulgente e cúmplice.
- Passou-se tudo muito bem ontem à tarde, senhora doutora. Aquela jovem mostrou-se ao princípio um pouco cabeçuda. Mas, por fim, sabe como é... Naturalmente não quis acareá-la com ele. Mas antes de restituí-la à liberdade obriguei-a a fazer um depoimento que assinou. A título puramente pessoal aqui o tem.
E Guillebeau tira do bolso uma folha que me apresenta. Leio.
Resumo para evitar os pormenores fastidiosos.
Annick Belavoine, vinte e um anos, criada de bar, rua de Sèvres, 12 em Paris, reconhece que me pediu dinheiro para se deslocar a Itália. E admite igualmente ter-me dito que "vista a minha situação e a do meu marido, um gesto para ajudá-la arranjaria bem as coisas e que seria preferível a um escândalo". Reconhece também ter dito que "poderia voltar a procurar-me se a viagem que vai fazer a Itália para encontrar o noivo se revelasse infrutífera. "
- Pode ficar com este exemplar do seu depoimento diz-me Guiüebeau. - Naturalmente procurei conseguir que essa pessoa dissesse que estava em contacto com Didier Baruzzi. Mas ela mantém que não o viu nestes últimos dias, o que bem compreendo da sua parte. Senão a chantagem ficaria completamente caracterizada. Ao passo que assim, não fica. Mas como remeti um exemplar desta declaração ao meu colega de Paris, o comissário Boulard vai certamente fazer o máximo para encontrar Didier Baruzzi. Tendo em conta a sua personalidade e a de seu marido, as coisas hão-de compor-se.
Isto significa bem o que quer dizer e Guillebeau não precisou de insistir mais. Compreendemo-nos e começo a lamentar um pouco - apesar do meio sucesso com Annick Belavoine - ter-me socorrido dos serviços de Guillebeau. Existem, com efeito, remédios piores do que a doença e, a partir de agora, fico um pouco à mercê deste polícia demasiado prestimoso.
Guillebeau recusa o café que lhe ofereço. Tem muito que fazer, parece. Deixa-me, pois, a cópia do depoimento de Annick e retira-se.
Torno a ler o depoimento que, para dizer a verdade, não revela grande coisa. A menos que Annick não tenha dito mais ontem à noite.
Ligo para casa de François que não me telefonou, como prometido.
Não está nem em casa nem no Palácio da Justiça. Mas a secretária recebeu um recado e dá-me o número onde posso apanhar o meu marido.
Nova chamada para esse número. Esta história vai custar-me bastante em telefonemas. Mas, enfim, se for só isso...
François está numa reunião e faz-me esperar alguns minutos antes de aparecer. Não tem um ar satisfeito. Parece, que, politicamente, as coisas não lhe correm bem.
- Está às treze horas - diz-me - no meu escritório. Fica na rua de Rivoli duzentos e vinte e dois. Temos encontro na Polícia Judiciária. O chefe é um amigo e deve ficar tudo em ordem. Mas é preciso que lá apareças.
Fica-me uma boa hora antes de partir e ligo para casa de Edith Janès. É a mulher a dias quem responde que a senhora está ocupada.
Estranha esta atitude de Edith. Insisto. Respondem-me, mais secamente desta vez, que a senhora está muito ocupada.
Mas já é tempo de partir e, após algumas dezenas de quilômetros na auto-estrada, torno a pensar na atitude de Edith Janès. Robert, por acaso, ter-lhe-ia revelado que eu sou a rapariga do 7 de Maio, aquela que levou a jantar a sua casa? Seria espantoso da parte de Robert. É muito hábil e muito bom mentiroso.
Ou então as fotos reveladas mostraram alguma coisa que não agradou à caprichosa Edith.
Mas, por agora, há coisas mais importantes. Bastaria a entrevista, que vai talvez ser menos fácil do que pensa François, com o polícia.
Todos estes pensamentos me ajudam a achar o tempo menos longo.
Passada a ponte de Sèvres perco um pouco de tempo em Paris mas chego a horas à rua de Rivoli.
Segundo a porteira, o escritório do doutor Dantec fica no fundo do pátio, no quinto andar. Subo. Há um cartão na porta. Atrás está o partido político fantasma ou, antes, o grupo de apoio a que preside François.
Digamo-lo já de seguida: o local é tão miserável como o caminho que lá conduz: três salas sórdidas miseravelmente mobiladas com cadeiras e mesas de madeira branca. Atrás de uma delas, François.
- Eh, sim! - constatou com tristeza. - Dás-te conta da dose de devoção que é precisa à coisa pública para aceitar trabalhar aqui. Mas quando falta o dinheiro...
Explica-me como as coisas se passam em política. Segundo ele, não é nada bonito. Um grande partido precisa de dinheiro para viver. Mas para um pequeno é ainda mais grave, sobretudo quando começa. Um industrial importante, por exemplo, está sempre pronto a ajudar mas exige, em compensação, serviços. E um partido principiante não possui meios para prestá-los. Grande suspiro de François. Pouco faltou para me pedir um donativo.
- E Florence já não te ajuda?
- Não a vejo há dois dias. Voltou para Malesherbes. Comeste?
- Não.
- Nem eu. Vamos ali ao lado. Temos encontro às duas e meia com o director da Polícia Judiciária. É um amigo.
Leva-me a um café manhoso próximo e faz-me explicar o que se passou na véspera. Repito-lhe, pois, tudo o que ele já sabe. Pensa.
- Vidalin - explica - o director da polícia, é o melhor tipo que se pode arranjar. Conhece a vida e compreenderá muito bem o que te aconteceu. É, portanto, inútil contar-lhe histórias. A verdade basta-se a si própria: foste vítima de uma maquinação mas passamos uma esponja por cima. Estou, aliás, persuadido de que Baruzzi me ficará grato. Tanto mais que ele não teve nada a ver com a diligência da mulher junto desse Boulard.
- Não achas - digo eu - que, por largo de espírito que seja esse teu amigo Vidalin, poderá talvez admirar-se por eu ter partido para férias com o filho dos Baruzzi?
- E porquê? - espanta-se François. - Decides tomar férias num clube turístico e o filho de um amigo propõe-se levar-te lá. Aceitas. Que mal há nisso? Vidalin não é assim tão tapadinho! Digo-te que é um rapaz que compreende a vida.
- Esperemos que compreenda isto.
E mostro-lhe o depoimento feito por Annick na esquadra da polícia de Orleães. Para François é claro como água. Didier está ligado a ela. Encontra-se, pois, em Paris e a chantagem é evidente. com este documento eis-nos descansados. Bastar-nos-á fazer vista grossa e tudo regressará à normalidade.
Embora ainda tenhamos tempo, François engole o almoço a toda a velocidade. Sempre o vi comer assim depressa. Olho para ele. Mantém intacta a sua distinção mas acho-o fatigado e com olheiras.
Um pouco depois das catorze horas vamos até ao meu carro e tomo o volante.
À entrada do Quai dês Orfèvres, um chui novo intervém para me impedir de estacionar no parque reservado. François apeia-se e dirígi-se ao guarda com uma lata espantosa. Explica quem é e que tem um encontro com Vidalin. O chui novo vai procurar um chefe que tem ar de conhecer François, pelo menos de nome. O chefe cumprimenta com deferência e arrumo o carro.
Depois do pátio, embrenhamo-nos pelos corredores sinistros e, apesar da segurança do meu marido, sinto-me muito pouco à vontade.
- Acreditas que vai correr bem?
- Naturalmente - responde ele. - Julgava que tivesses compreendido, de uma vez para sempre, que a um certo nível as coisas correm sempre bem.
Muito gostava de acreditar nele. A um certo nível as coisas correm muitas vezes bem com efeito. Mas também há grãos de areia, incidentes de percurso e pormenores que desarranjam os mecanismos mais lógicos.
Uma antecâmara.
Um oficial de diligência.
- O senhor Vidalin - diz François. - Da parte do doutor Dantec.
O oficial de diligências apressa-se a levantar-se.
- Está à sua espera, senhor doutor - diz o homem.
Vidalin levanta-se.
Tem muita personalidade e está muito bem vestido. No decorrer daquilo que nos serviu de almoço, François explicou-me que Vidalin fez a sua carreira na Prefeitura". É um homem que tem muitos amigos, que conhece a música e que tanto sabe prestar serviços como recebê-los.
Acolhe-nos com muita afabilidade e trata o meu marido por tu. Comigo emprega uma graça de grande burguês, beija-me a mão e olha-me para as pernas quando me sento.
- Não tinha o prazer de conhecer a tua mulher, meu caro.
- Está a exercer advocacia em Orleães - responde François.
- Perfeito. E o teu partido vai ou quê?
- Difícil - responde François.
E ei-los que se põem durante um momento a falar de política como só os homens sabem fazer, isto é, com gravidade e importância. Mas parece-me que Vidalin não se interessa lá muito pela coisa. Dir-se-ia que procura ganhar tempo. Consulta, por fim, o relógio.
- Ouve Dantec - diz - à falta de tempo para estudar o teu processo, sou obrigado a mandar chamar Boulard, meu colaborador. A seu respeito gostava de dizer-te que é um tipo muito susceptível com quem já me aconteceu ter pequenos problemas". A diuturnidade... os sindicatos... Sabes o que é? Portanto, é precisa prudência.
Não aprecio mesmo nada este preâmbulo. Vidalin põe-se a explicar que o seu antecessor foi posto a andar um ano mais cedo por causa de uma indiscrição no serviço, uma fuga como se diz. Alguém passou caixas, aliás cxactas, a um semanário acerca de um caso católico que se procurava abafar. Pensou-se - sem poder prová-lo - que partira de Boulard. Hoje em dia, Boulard acha-se a alguns meses da reforma e dir-se-ia que adquiriu um prazer abólico em complicar as coisas.
- Podias ter-me dito isso antes - protesta François.
- E porque é que te diria? - responde o outro. - O teu processo é seguramente excelente. Basta saber jogar com Boulard.
A minha impressão confirma-se. Nem pensar em contar com Vidalin que desconfia de Boulard.
Finalmente levanta o telefone e pede a Boulard para vir imediatamente ao seu gabinete.
Isso não impede que, passados dez minutos, o comissário Boulard ainda lá não esteja e, durante esse tempo, falámos do nosso caso. Visivelmente Vidalin topa depressa as coisas. Parece muito reservado. François mostra-se cada vez mais nervoso. Quando as coisas não correm como ele entende, tem uma espécie de tique que o faz fechar o olho esquerdo intermitentemente.
- É melhor não nos tratarmos por tu diante de Boulard diz Vidalin.
São 15, e 10 quando o tal Boulard bate à porta do seu chefe.
Logo à entrada o personagem desagrada-me.
É um homem baixinho, vestido como um burocrata modesto: fato escuro e sapatos amarelos. No pescoço magro ergue-se uma cabeça que lembra um pouco a de um galo mas não vejo a que feição particular do rosto se deve tal semelhança. Os olhos são pequenos, a tez fresca e o gesto rígido. Boulard esboça, ao ver-nos, um sorriso frio para não dizer gelado.
- Meu caro Boulard - diz Vidalin - apresento-lhe o doutor Dantec, que o senhor conhece, e a mulher que exerce, como sabe, advocacia em Orleães. Gostariam que pudéssemos fazer juntos um pequeno exame do processo de que o senhor se ocupa.
Vidalin explica-se com muita elegância. Apenas se esqueceu - embriagado pelas próprias palavras - de mandar sentar Boulard que fica portanto de pé, diante de nós, à maneira de um gaiato que comparece perante o conselho de disciplina da escola. O pior é que só havia duas poltronas previstas para os visitantes e, portanto, nenhuma para Boulard.
François deu pela falta e remedeia as conseqüências.
- Meu caro comissário - diz a Boulard, levantando-se - aqui tem a minha poltrona.
Gesto frio de Boulard que recusa. Vidalin chama a secretária e pede-lhe para trazer uma cadeira. A rapariga entra, alguns segundos mais tarde, com uma cadeira de dactilógrafa, o que faz com que o afastamento entre Boulard e nós tenha evoluído muito com a chegada da cadeira. O comissário senta-se, portanto. A sua cabeça chega-me ao queixo e tem o ar de um galo furioso.
O que me espanta em Vidalin é o seu ar de saber.
Só lhe falaram muito pouco do caso - apenas alguns minutos graças, aliás, ao atraso de Boulard - mas dá a impressão de conhecer o processo a fundo.
- Como sabe, meu caro comissário -diz ele -o seu colega de Orleães obteve uma confissão completa de uma tal Annick Belavoine que reconheceu a sua chantagem, com a cumplicidade de Didier Baruzzi, sobre a pessoa da doutora Marie-Claire Dantec.
Boulard continua sentado na borda das nádegas e na sua cadeira baixa, o que lhe permite ter os pés bem assentes no chão e poder abrir os joelhos, que adivinho pontiagudos, o processo fino que trouxe consigo. Diz:
- Permito-me, senhor director, não partilhar completamente o seu ponto de vista. A rapariga, Annick Belavoine, somente reconhece que poderia ser obrigada a voltar a procurar a doutora Dantec se a sua primeira diligência em Itália não desse o resultado que espera. Diz igualmente que pagar uma viagem é preferível a um escândalo. Mas o único ponto que nos diz respeito continua a ser o estranho desaparecimento de Didier Baruzzi.
- Sabe muito bem que um desaparecimento...
- Sei, senhor director, mas este não é talvez um desaparecimento como os outros. Madame Clara Baruzzi comunicou-me o relatório de um polícia privado que passa por ser muito sério. Ora este Julien Berdol fornece um certo número de informações importantes, mesmo graves. Além disso, o senhor e a senhora Baruzzi descobriram no impermeável do filho um bilhete preciso...
Pela primeira vez, desde o começo desta conversa que se encaminha mal, reajo vivamente:
- Didier não levara o impermeável com ele, tenho a certeza.
- Sinto muita pena, senhora doutora - replica Boulard mas o impermeável encontrado no carro é o de Didier Baruzzi. Foi comprado por ele o ano passado, numa loja do bulevar Voltaire e foi pago com um cheque assinado por Madame Baruzzi, a mãe.
- Oiça, senhor comissário - digo eu - tudo isso não é sério.
- Tanto como o seu testemunho segundo o qual não havia impermeável no carro. Porque, então, teria sido preciso que Didier Baruzzi viesse buscá-lo a casa na ausência dos pais a fim de ir metê-lo no carro na garagem de Mâcon.
- Poderia fornecer a prova de que ele lá foi no domingo de manhã e que se acercou do carro. Viram-no lá!
- Nessas condições, o juiz apreciará, senhora doutora.
- Meu caro comissário - intervém François - nada disso parece sério. O acidente que motivou a queixa de Clara Baruzzi teve lugar em sete de Maio, isto é, há uma semana. Então de duas um? ou Didier Baruzzi foi ferido ou morto e, nesse caso, tê-lo-iam encontrado. Ou voltou, o que penso, e esconde-se.
- Mas admitirá que em qualquer dos casos a inquietação dos pais se justifica e motiva um inquérito - replica Boulard.
- Ouviu Annick Belavoine? - interroga Vidalin, muito reservado até aí.
- com o pessoal reduzido de que disponho - replica Boulard - isso não foi possível. Mas tenho, naturalmente, a intenção de fazê-lo. Excepto se me retirar o caso.
Torna a fechar o processo após esta bisca.
Disse tudo. Mais precisamente, acrescenta:
- Os meus respeitos, senhor director... Senhores doutores.
E sai.
- Quando vos dizia que é um chato... - afirma calmamente Vidalin depois da sua partida. - Mas é preciso reconhecer que este caso é incômodo. Podes voltá-lo em todos os sentidos. Nem sequer existe a possibilidade de ultraje a magistrados porque os Baruzzi estão de boa fé. Quanto ao filho, nada disse e nada pediu a ninguém, pelo menos oficialmente. O único serviço que poderia prestar-te é fazer cantar Annick Belavoine. Mas como ela nada disse sobre Didier em Orleães, também não vai dizer mais aqui. Porque confessar que o viu é confessar a chantagem. Mas talvez tu a possas fazer falar.
Estende-nos uma mão franca e leal e levanta-se.
Pela primeira vez, desde há anos, assisto a uma derrota de François.
Deixamos Vidalin e tornamos ao carro. Debaixo do meu limpa pára-brisas há uma multa porque os polícias de há bocado foram substituídos enquanto estávamos com Vidalin.
- Deixa ver - diz-me François.
Mas sinto que o coração já ali não está, que perdeu a moral. Instala-se a meu lado.
- Voltas para Orleães? - pergunta-me.
- Não - digo-lhe. - Vamos os dois falar com Annick Belavoine. É a nossa derradeira esperança.
Ele não protesta.
Não pretendo, decerto, que François tenha ficado subitamente diminuído pelo que nos sucede. Longe disso. Mas está cansado, decepcionado e deprimido. Sempre trabalhou muito e basta que um contratempo venha acrescentar-se a outros para fazer extravasar a taça e avariar o mecanismo. Em todo o caso, compreendo que sou eu a decidir e arranco.
Até à rua de Sèvres 12 não trocamos uma palavra. Em frente do prédio sou a primeira a sair mas François - que parece ter recuperado - precede-me na entrada.
A porteira diz-nos que a menina Belavoine não está em casa. A esta hora deve estar a trabalhar no "Pinson", um bar que fica a duzentos metros à direita de quem sai.
- Vive sozinha? - interroga François.
- Sim.
Agradecemos à porteira e saímos do prédio.
A duzentos metros dali fica o "Pinson", um desses cafés como já não se encontram na capital, com balcão de zinco seguido de uma sala minúscula com três mesas de fórmica e serradura nos ladrilhos.
A patroa está atrás do balcão mas tenho tempo para vislumbrar Annick que não nos vê entrar.
Instalamo-nos na salinha. Mal Annick aí põe os pés e logo se imobiliza ao ver-nos.
- Menina Belavoine? - diz François com a sua bela voz de bronze.
- Bem sabe que sim! - riposta a rapariga.
- Traga-nos dois cafés e um para si, se quiser.
Quando ela se afasta para fazer o pedido, François levanta-se e vai buscar um maço de cigarros ao bar. Mas o seu objectivo é, sobretudo, impedir Annick de fugir.
Um pouco depois, a rapariga volta com os dois cafés.
- Sente-se - ordena François. - O comissário de Orleães disse-lhe que íamos apresentar queixa contra si?
- Não.
- Confesse que com isto faríamos mal se não aproveitássemos. Leia.
E François apresenta a cópia do depoimento. Mas Annick não lhe liga.
- Conheço-o - responde - pois assinei-o. Mas não mejo onde está a chantagem. Procuro o meu noivo, é tudo.
- Então porque não partiu?
- Porque não tenho dinheiro - replica. - Bem o sabe.
- Diz estar noiva de Didier Baruzzi mas sabe que ele não tem situação e que nunca teve. Vive, portanto, à custa do pai.
- E porque não?
François pensa e, de súbito, um sorriso fino torce-lhe a boca.
- Venha comigo - diz, arrastando Annick.
Leva-a até ao balcão onde fica o telefone. Atrás da caixa a patroa, uma senhora idosa cujo lábio superior se mostra guarnecido por uma penugem muito acentuada, continua a tricotar.
Sinto que se vai passar alguma coisa, uma dessas jogadas de póquer que valeram muitos êxitos ao meu marido que, por enquanto, forma um número no marcador. Devem atender.
François fala.
- Está! És tu, Michelangelo? Aqui François Dantec. com um pulso enérgico retém Annick Belavoine. Entre ele e Michelangelo ocupam-se de Didier e da queixa de Clara.
- O que seria interessante - diz o meu marido passando o aparelho de escuta a Annick -é que conversássemos eu, tu e a noiva de Didier. Estou justamente com ela.
Nos instantes que se seguiram François fica silencioso. É Michelangelo Baruzzi quem fala. François ouve. Oh, aquilo dura um bom minuto. François intervém:
- Sabes, Michelangelo, não é vergonha trabalhar num bar. Não queres receber a menina Belavoine? Muito bem.
Quando volta a trazer Annick para a nossa mesa, ela está lívida de cólera. Então François torna-se caloroso e persuasivo.
- Ouviu o pai de Didier, minha pequena. Isso deveria fazê-la reflectir, não? Nunca foi questão de casamento entre vocês. Didier conheço eu. É um pequeno malandro que tirou fotos a minha mulher em Itália. Ela pode prová-lo. Recuperou-as. E é porque essa chantagem não triunfou que ele se serve de si.
Aí exagera um pouco. Mas, enfim, está em vias de levar Annick à certa. Prossegue o seu trabalho de sapa.
- O dinheiro que pediu à minha mulher era para ele, não é verdade?
- Sim - responde a rapariga. - Mas só o conheço há cinco dias.
- Ora bem! Quando lhe tivesse entregue o dinheiro ele largá-la-ia e todas as maçadas seriam para si. Ao passo que fazendo o jogo comigo...
Da carteira tira duas notas das grandes. Nem sequer precisava disso para convencer Annick que, não obstante, se apressa para agarrar nas notas.
- Onde está ele?
- Em minha casa - responde a rapariga. - Pode lá ir. vou avisar a porteira que lhes abrirá a minha porta.
Mete as notas na algibeira do avental e corre para o telefone. Infelizmente a porteira não atende. Annick volta para a nossa mesa e rabisca raivosamente algumas palavras numa folha do seu livro de encomendas. É para a porteira.
François e eu deixamos o café. Não vale a pena pegar no carro que estacionei em frente. Vamos mais depressa a pé e quase saltamos na rua para chegarmos mais depressa.
Por falta de sorte não há ninguém no cubículo, que está fechado à chave.
Ficamos então especados no corredor da entrada à espera da porteira. Assim, pelo menos, aquele pequeno malandro do Didier não poderá raspar-se.
Temos de esperar uns bons dez minutos antes de vermos descer a porteira a quem François entrega o bilhete de Annick.
- Ah bom! - diz a mulher. - Bem, vamos até lá. Entra no seu cubículo, pega numa chave e subimos atrás
dela até ao terceiro. Assim que a porta do apartamento de Annick é aberta, lançamo-nos para o interior. Comporta uma cozinha e um quarto mas está vazio.
- São da polícia? - interroga a porteira.
- Não - responde o meu marido. - Havia aqui alguém nestes últimos dias?
- Sim, claro - diz a porteira. - Um rapaz louro muito gentil. Mas saiu há coisa de meia hora.
- Sabe para onde foi?
- Certamente ter com Annick ao "Pinson". Ela termina habitualmente o serviço às quatro horas.
- Obrigado, madame - diz François.
E arrasta-me para a escada. Alcançamos a rua e voltamos ao "Pinson".
Annick Belavoine está sozinha ao balcão e resmunga atrás da caixa enquanto enxuga os copos.
- Didier apareceu?
- Sim. E tornou a partir com um belo par de estalos.
- Mas de qualquer modo falaram, não - insiste François.
- Não muito - responde Annick. - Mas ele sabe que lhes falei. Tinha reparado no carro em frente da porta. François chama-me à parte:
- É melhor que voltes para casa. Nunca se sabe. Eu vou entender-me com ela para obter o seu testemunho. Telefono daqui a duas horas para tua casa.
Mal o deixo terminar a frase.
Se ele deita a mão a Didier, François não terá nenhuma dificuldade em desmontar a maquinação e explicará a jogada do impermeável. Nada impediu Didier de voltar a casa e de levá-lo discretamente pois tem as chaves. Portanto, tudo se deveria esclarecer.
São pouco mais ou menos 17, 30 horas quando estaciono o carro em frente de casa.
O cubículo está aberto e tiro o correio do meu compartimento. Mas não vejo lá o segundo jogo de chaves. Então corro para casa.
A porta está aberta.
- Ora cá chegaste! - diz Didier todo risonho.
Sinto que procura levar-me pelo bleffe e que vou precisar de toda a minha calma para lhe fazer frente.
- Não te zangues! - diz ele. - No fundo era uma partida. Mas confessa que a mereceste bem. com o que me fizeste na estrada... Sem falar no carro que me estragaste. Fui vê-lo à garagem, no domingo passado. Há ali obra para, pelo menos, seiscentos mil francos. E sempre sem contar com a minha queda e o meu regresso em boleia. E o exame que não pude fazer! Entendes este prejuízo?
- Viste Annick há bocado?
- Claro que sim - zomba ele. - Nem precisei de que ela me explicasse. Só de ver o teu carro em frente do "Pinson" compreendi. Vim, portanto, dizer-te que não te quero mal. É melhor assim, hein? Sempre generoso, este Didier! À parte que me pagues a reparação do carro e uma pequena indemnização. Visto que o meu regresso a casa vai ser delicado.
Compreendes?
Parece perturbado pela minha calma aparente, mas que estou longe de sentir.
- É tudo?
- Por agora, sim! - responde. - Mas tornaremos a ver-nos.
Vejo-o esboçar um gesto para a porta. Tem, de súbito, um ar cheio de pressa de partir e isso faz-me desconfiar. "?
Necessito de alguns instantes para compreender. Os meus móveis foram revistados. Dirijo-me àquilo a que chamo o meu cofre e que não passa, com efeito, de um baú maciço de carvalho que nunca fecho à chave.
Abro a gaveta.
O sobrescrito de papel amarelado já lá está.
Recuperou as minhas fotos de Viareggio, sabendo por Annick que eu as tinha em casa.
Mas a automática continua no seu estojo, com o carregador. Empunho-a.
- Não te mexas - digo-lhe. - São as fotos que vinhas procurar? Ainda te podem servir junto de François... e de mim. Ora devolve-mas imediatamente.
- Tu - ri-se ele - não sabes pedir fotos sem uma arma na mão. É uma mania.
- Exacto. Mas esta é verdadeira. Não te mexas.
Tem as costas voltadas para a porta que dá para o meu vestíbulo e, apesar da minha injunção, continua a recuar. Deve ter percebido na primeira vez, na estrada, que eu não era capaz de disparar. O que faz com que não se inquiete ao ver-me carregar a arma pela coronha, como François me mostrou.
- Confessa - ri-se ele - que seria uma parvoíce perder tudo e ser posto fora de casa. com estas fotos vou poder defender-me junto do teu marido, não?
Atravessa o vestibulo lentamente e sempre às arrecuas.
Apenas disponho de alguns segundos para me decidir. Ou grito ou disparo. Mas não posso matá-lo. É impossível!
Ei-lo agora que abre a porta da escada.
Está no patamar. Ri zombeteiramente. Só lhe faltam alguns passos para alcançar a escada de mármore que leva ao rés-do-chão.
Quatro. Três. Dois.
Se disparo para o ar, ficarão marcas no tecto. E isso meter-lhe-á medo.
Aliás, mesmo contra vontade, disparo.
Para o ar.
O ruído repercute-se no vestíbulo de entrada do pátio, como uma bomba.
Quinta-feira de manhã, 16 de Maio.
Eles chegaram logo a seguir. Quero dizer que havia um inspector e quatro agentes no carro da polícia de socorro
Nenhuma dúvida para eles! Didier caiu de costas.
Dei algumas explicações que escutaram com paciência e interesse. Diria até com simpatia. Mas, naturalmente, teria ainda outras explicações a dar sobre este acidente. Farei jogar a legítima defesa, o roubo.
O comissário vai chegar, senhora doutora, disse-me o inspector. Até à sua visita, peço-lhe que não abandone o seu domicílio. Simples formalidade, não é?
Inútil dizer que esta história deu muito que falar, primeiro no largo -quando a ambulância levou Didier - e no prédio, a porteira já não sabia onde se havia de meter.
Quando bateram à porta, uma hora mais tarde, comecei por ver Guillebeau e, atrás dele, a porteira com uma carta na mão.
- Eu mesmo entregarei o correio à senhora Dantec -disse o comissário, tomando-lha.
Ainda tinha o sobrescrito na mão quando se sentou à minha frente. Estendeu-me a carta.
- Faça favor, leia o seu correio, senhora doutora.
O sobrescrito contém um jogo de fotografias que quase me cai das mãos: a quase totalidade foi obtida por Didier na estrada que nos levava a Viareggio. Numa fracção de segundo, recordo-me das condições em que foram obtidas.
Em duas delas estamos muito despidos, Didier e eu. Estamos de pé, na areia daquela pequena enseada onde nos banháramos. Achamo-nos completamente encostados um ao outro. Didier tinha instalado a máquina à beira do rochedo e voltávamos as costas ao mar, todos nus. Mas as outras foram tiradas com tele-objectiva na praia do "Sol Pleno".
- Faça favor, senhora doutora, leia a carta. É da mão de Edith Janès.
Diz ela:
"Envio-te as fotos onde estás com aquele que não era, parece, para ti mais do que um bom camarada.
"Quanto à pessoa que passou o serão cá em casa em 7 de Maio, conheço-a agora. Robert disse-me que eras tu. Nessa noite, também foste certamente uma boa camarada para o meu marido.
Edith. "
- Com licença - diz-me Guillebeau friamente. Tira-me as fotos das mãos, olha para elas demoradamente e lê também a carta de Edith. Depois, põe tudo a seu lado.
Didier Baruzzi morreu em conseqüência da queda na escada ao chegar ao hospital, senhora doutora. Encontraram com ele fotos que lhe dizem respeito e que fazem pensar numa chantagem. Poderia, pois, admitir-se à legítima defesa. Mas há também fotos que podem apoiar a tese do crime passional. Nos dois casos, senhora doutora, haverá sempre gente que pensará que há pouco não falhou. Posso pedir-lhe, com toda a confiança, que passe amanhã de manhã pelo meu gabinete para assinar o seu depoimento?
Roger Faler
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