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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DESTINOS DE AMOR / Corin Tellado
DESTINOS DE AMOR / Corin Tellado

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DESTINOS DE AMOR

 

O SR. TEÓFILO alisou o bigode prateado, enquanto seus olhos penetrantes pousavam, divertidos, sobre o grupo de jovens amigos que, com o taco na mão di­reita, tentavam arrebatar-lhe a bola de marfim.

Luís José, aposto cinco contra oitocentos, como não conseguirá fazer nenhuma carambola. — Sorriu, enquanto   colocava   os óculos.   Você   não   sabe   nada além de perseguir saias... O jogo de bilhar é, para vocês, uma coisa inédita.

Alto lá, Sr. Teófilo! — retrucou Xavier Monreal, brandindo o taco em sinal de indigação. — As pequenas são deliciosas, mas o bilhar, para nós — e -indicou os dois amigos que contemplavam, divertidos, a cena —, é uma coisa tão velha quanto o vinho.

Deixe de conversa e faça a jogada — aconse­lhou Tomás Larra, com a fina ironia que lhe era pe­culiar.

Xavier ainda tentou protestar, mas logo desistiu, ao ver o brilho malicioso das pupilas de Teófilo. In­clinando-se sobre a mesa, fez a pontaria, arremessou o taco e... zás! A bola, novamente, saiu desviada. Uma vez mais, havia fracassado.

Uma gargalhada unânime brotou no salão e Xa­vier, murmurando algumas palavras ininteligíveis, deixou a mesa e dirigiu-se para o bar.

—Venham — resmungou mal-humorado. — É a minha vez de   pagar, mas   veremos o que   sucederá amanhã.

Encaminharam-se todos para o bar, Teófilo entre eles, esfregando as mãos de satisfação.

Acontecia sempre assim. Desafiavam-no. Preten­diam ganhar, na teoria, mas, na prática, Teófilo usando com inteligência e perícia seus dotes de joga­dor, não profissional mas suficientemente experiente, vencia-os facilmente e aos jovens nada restava senão aceitar a derrota, sem atreverern-sc a um novo desa­fio. No entanto, no dia seguinte, uma vez rnais tetfi-tavam vencer aquele simpático senhor que, invaria­velmente, derrotava-os.

—Vá lá, hoje pago eu — disse Xavier, recostan­ do-se indolentemente no balcão polido. — Sirva qua­tro vermutes, garçom, e também batatinhas fritas.

—Apetitosas, homem. Bem apetitosas.

—Ouviu, garçom! Como disse o Sr. Teófilo, que sejam apetitosas.

Teófilo acomodou-se entre os rapazes. Seus olhos negros, através das lentes, focalizaram o silencioso Luiz José. Era um rapaz taciturno, de olhos claros e cabelos negros, bastante simpático. Despertava a atenção de Teófilo, que o classificava como um apai­xonado por sua carreira de oficial da marinha mer­cante, aliás recém-nomeado, ou por uma mulher, ou, quem sabe, pela própria vida. Fosse qual fosse o mo­tivo, para Teófilo era um caso consumado e,, naquela manhã, como estava bem ao seu lado, bateu-lhe ami­gavelmente no ombro e disse familiarmente:

Na verdade,   Luís   José,   parece-me   que   seus olhos são os de um apaixonado. Quem é a pequena?

Heim!

Uma descoberta colossal — falou Xavier,

Juro que o Sr. Teófilo tem olhos de lince.

Acertou, Luís José?

Estas e outras exclamações foram ditas ironica­mente, enquanto o aludido limitava-se a encolher os ombros, bebericando seu vermute.

Era tranquilo por natureza. A ironia dos seus com­panheiros de carreira não o molestavam, estando acostumado a ser o centro dos olhares e naquela manhã, acolheu as perguntas de Teófilo com a indi­ferença habitual.

Minha musa é o navio — respondeu sem al­ terar-se. — E meu amor, o mar.

Mais nada?

Absolutamente nada.

Brindemos, então, pela frota!   — Xavier   per­ filou-se, levantando o cálice.

Todos imitaram-no. Luís José, com um leve sor­riso nos lábios, também levantou-se e saudando aos companheiros, esvaziou seu cálice de um trago.

Depois, Teófilo, tendo retirado os óculos, pôs-se a seguir com atenção a conversa dos seus jovens ami­gos, sem contudo, nela tomar parte. Apreciava ouví--los planejar o futuro, que segundo eles seria mara-,vilhoso, repleto de aventuras arriscadas e muitas emo­ções, proporcionadas pela vida no mar, sem se dete­rem um só momento a pensar nos perigos -que, con-seqúentemente tal tipo de vida traz consigo.

—Eu — disse Xavier, entusiasmado — serei um capitão, um verdadeiro lobo dg. mar. Gostaria de co­mandar um navio, desses que sulcam velozmente os mares.   Na ponte de comando,   olharei   com   indife­rença o barómetro,   pouco importando-me que suba ou desça. Meus olhos se alegrarão ao ver as nuvens tingirem-se de preto e as ondas encapelarem-se. Ja­mais desejei nada tão intensamente como entregar-me à esse mar misterioso   que adoro   apaixonada­mente, com toda minha alma.

Teófilo interrompeu-o com sua vozinha fanhosa, bastante zombeteira:

—E, ao chegar ao porto, há-de lançar-se, ardo­roso, nos braços de uma deliciosa pequena!

Os olhos negros de Xavier adquiriram uma ex­pressão estranha. Brilharam audazes, enquanto com ar enérgico murmurava:

Isso sobretudo, Sr. Teófilo. Já comprovei que a vida do homem do mar, sem a presença de uma mu­lher, não tem atrativos. Procurarei uma bela jovem e ensinar-lhe-ei a sentir e pensar da mesma forma que eu.

Mas se você não passa de um rapazinho! Que sabe você dessas coisas!

Um   rapazinho!   —   Soltou   uma   gargalhada forte, otimista, mostrando os dentes claros e sadios. — Já o fui, há algum tempo atrás. Mas hoje... Hoje sou um homem com vinte e seis anos feitos e ansioso por viver   intensamente   as   emoções   que   o   destino queira   proporcionar-me.   Além   disso — continuou, agora mais sério, tendo nos olhos uma expressão de­ cidida, autoritária — jamais me aproximei de uma mulher sem que esta não se rendesse, encantada, à minha masculinidade. Lidei com mulheres de trinta anos, bem como com as de vinte, e nunca me chama­ram de rapazinho, pois sempre me comportei   como um homem.         

Um sorriso malicioso surgiu nos lábios dos com­panheiros e Xavier encarou-os, um por um. Ao fitar o Sr. Teófilo, encontrou os olhos do velho milionário fixos nele.

Que diz o senhor, Dom Teófilo?

Que você me espanta, filho, que me espanta.

Não crê em minhas palavras?

Por Deus que sim. Você   está me parecendo Dom Juan Tenório.

Dito isto, Teófilo pôs-se a soçver o seu vermute, gole por gole. Em pensamento, divertia-se. Sempre ouvia as mesmas coisas, sempre as mesmas... fan-farronadas e, porque negar, estar entre eles era sua maior distração. Considerava-os uns frangotes, ainda que eles estivessem convencidos de que o relato das s,uas façanhas assustavam-no um pouco. Não suspei­tavam de que, no íntimo, ele ria-se deles.a valer.

Via Xavier forte e atlético, o rosto enérgico e a boca de traços firmes, mas, tinha certeza da sua ig­norância total no que concerne à vida e seus pro­blemas.

Encarando o silencioso Luís José, perguntou com velada ironia:

—E você, garboso oficial da marinha mercante? Que pensa fazer na ponte de comando de um navio?

— Aspirar, somente, ao amor de uma boa mulher.

Caramba, você me parece um santo!

E pode ser que o seja, Sr. Teófilo.

Hum!

Este engana bem, amigo Teófilo — disse Tomas Larra, irônico. — Quando estiver em alto mar, vendo do mundo apenas o oceano imenso e tendo por com­ panhia homens sujos de graxa, veremos se desejará o mesmo. Aposto que, ao pisar em terra, não haverá quem o possa conter.

A resposta inusitada de Luís José deixou-os um tanto abalados:

—Jamais sentirei falta da presença de uma mu­lher em meu navio, pois, tão logo tenha um comando, me casarei e levarei a minha mulher comigo.

—Como?

Assim será.

Mas, não disse há pouco que não tinha uma eleita?

Eu a procurarei. O mundo está repleto de mu­lheres decentes e simples.

E más!...

Não se preocupe, Tom. Meus olhos saberão di­ferenciar umas das outras. Buscarei entre as boas pe­quenas e hei de ensinar-lhe a querer-me apaixona­ damente.

Faz bem.

Teófilo,   depois   dessa   exclamação,   levantou-se consultando o relógio.

São   duas horas, amigos. Vou   indo. Até mais tarde, quando, então, os desafio para uma nova par­tida de bilhar...

Não toma outro vermute?

—Não, Xavier. Muito obrigado, de qualquer for­ma. Irei devagarinho para casa, onde me espera mi­nha cara metade. Irei caminhando e pensarei nas suas palavras. Não resta dúvida que você tem que moderar um pouco este seu ímpeto, caso contrário se conver­terá num Dom Juan moderno... E isso, meu caro, não será elogioso nem favorável a um homem como você que, mais dia menos dia, estará de pé na ponte de comando de um navio, o quépi enterrado até os olhos, perscrutando atentamente o horizonte.

Com essas palavras, saudou a todos em geral, abotoou o paletó e saiu, deixando os um pouco des­concertados.

Já na rua, Teófilo sorriu zombeteiro. Achava ex­tremamente divertido aqueles jovens que jamais ha-riam conhecido necessidades e agruras, empenharem--se em ver da vida apenas o lado bom, sem suspeitar como essa mesma vida pode ser penosa, quando o des-tno resolve fazer das suas.

Eram seus amigos, já há muito tempo. Já não f.:nha noção de quando datava aquela amizade. Re­cordava-se, somente, que um dia, estando no clube do qual acabava de sair agora, viu chegar um grupo de rapazinhos, os quais sentaram-se próximos dele. Desde então, aquele grupo juvenil, todos os dias e à mesma hora, com ele passava boa parte da manhã, e certa vez chegaram até a telefonar-lhe, convidan­do-o para acompanhá-los num passeio. Teófilo deu boas gargalhadas, quando sua esposa lhe disse ser ri­dículo, na sua idade, pretender unir-se à juventude. Mas ,êle, firme ern seu propósito, saiu com eles e ja­mais em sua vida divertiu-se tanto quanto ouvindo suas tolices... Forque, convenhamos, era cômico ou­vir a conversa livre daqueles futuros marujos, um cortando a palavra do outro para dizer uma barbari­dade ainda maior...

Desde então, Teófilo integrara-se naquele grupo de jovens, para espanto de sua esposa que, com as mãos na cabeça, chamou-o de desfrutável, introme­tido e outros adjetivos, para os quais Teófilo não ligou à mínima importância.

Mas, mulher — respondeu, num daqueles dias em que estalava de feiicidade. — Você não compre­ende que vejo neles os filhos que não tivemos?

Louvado seja Deus!   Você   ficou maluco, Teó­filo?

Ora, bem sabe que não! Eu gosto de conversar com   eles.   Agrada-me   ouvi-los   conversando   e   sinto prazer imaginando que algum deles poderia ser meu filho.

E, irredutível em seus argumentos, não restava à senhora, outro recurso senão o de unir seu riso ao do seu teimoso marido. Afinal, ela também simpatizava com aquele trio de jovens avoados e, certa tarde, convidou-os para tomarem chá, em sua própria casa.

Então — disse , o marido, brincalhão. – Você também não vê neles os filhos que não tivemos?'

Deixe-me em paz. Seja o que for que veja o que me importa é o desejo de conhecê-los.

E, se tão bem se davam com o Sr. Teófilo, melhor ainda o fizeram com D. Filomena.

O velho rememorando o passado, pôs-se a sorrir. Continuou caminhando e ao chegar a uma praça solitária e tranquila, resolveu sentar-se num dos bancos, já que se sentia um pouco fatigado. Desabotoou o pa­letó e, retirando os óculos de aro de ouro, entreteve-se a limpá-los, com seu lenço de linho. Depois...

         CADA vez que penso em enfiar-me, com este calor, na estufa que é o escritório, asseguro-lhes, tenho vontade de gritar. Para que viemos a este triste mundo? Ah, se eu fosse milionária...!

E Adela Blanco deixou-se cair no banco, desani­mada. Suas amigas, contemplaram-na, pensativas, e sentaram-se ao seu lado.

Formavam um lindo trio de moças.

Adela era loura e frágil, com um corpo jovem e delicado. Olhos azuis, vivos e sonhadores.

Marisa Torres, morena de olhos negros e profun­dos, tinha um olhar firme e apaixonado. Não muito alta, seu corpo era gracioso e bem proporcionado. Era bonita, sem ser uma beldade. Atraente, na sua simplicidade.

Quanto a Kety San Martin, possuía o rosto mais lindo já contemplado por olhos humanos. Cabelos negros como azeviche, entremeados com tonalidades azu­ladas, provocadas por tanto negrume... Levemente ondulados e penteados de um jnodo aparentemente descuidado, mas sempre perfeitos. Sem sequer um grampo para prendê-los, roçavam-lhe a face, for­mando uma moldura ideal para sua cútis lisa e ace­tinada. Os olhos radiosamente azuis, com pequeninos pontos- escuros, eram sombreados por longas e espes­sas pestanas. As sobrancelhas arqueadas, proporcio­navam maior realce aos olhos belíssimos, cheios de vida e paixão. A boca bem feita denotava certa sen­sualidade, de lábios úmidos e tentadores. Os dentes brancos, um pouquinho desiguais, davam maior char­me ao seu rostinho. Era linda, belíssima, digna de reinar em um palácio e, todavia, linha que encerrar-se num escritório, escrava de uma máquina de escrever, ouvindo mais tolices que coisas aproveitáveis. Limitando-se a ser mandada, nunca a mandar... Era desesperador, mas suportava aquela vida sem pro­testar ou desanimar, sempre com aquele jeito de princesa ofendida, escudando-se no orgulho inato que a impedia de rebelar-se contra a vida descolorida que lhe cabia viver.

Ao ouvir o desabafo de Adela, riu com gosto, deixando entrever os dentes brancos que tão lindo contraste faziam com sua pele amorenada. O Sr. Teófilo, sentado perto, oculto pelas folhagens de um arbusto, cravou os olhos, deleitado, naquele rosto ce­lestial e estalou a língua.

"Ah! se Xavier a visse, deusa!", disse para si mesmo, disposto a não mover-se dali para poder sa­borear a conversa daquelas três pequenas.

— Se eu ganhasse na Loteria — disse de repente Marisa, com sua voz modulada, rica de matizes — creio que ficaria louca.

Pois   estava   bem   arrumada.   Eu   não   ficaria louca pode estar certa.

E o que faria você, Adela?

Desfrutaria das coisas boas da vida,   como   é lógico. Creio que, também, me afastaria desse mundo.

Mas que   gosto!

No entanto, estaria mais ligada a ele do que nunca.

Não a compreendo, Adela.

Se eu ganhasse na Loteria, compraria um iate fabuloso e iríamos as três correr mundo.

Não deseja   mais nada?

Nada mais, Marisa.

Ficou pensativa. Teófilo, do outro lado, aguçou os ouvidos. Segundos após, continuou em voz sentida:

—Nunca aproveitei a vida... Desde que me lem­bre, sempre me vejo metida no escritório, debruçada sobre a máquina e sempre alerta, esperando alguma reprimenda do chefe. É desanimador.

Kety San Martin riu suavemente, com uma pon­tinha de amargura, talvez.

—Nunca desejou o amor, Adela — perguntou em voz baixa.

Agora, ainda mais do que antes, Teófilo procurou ouvir a resposta daquela mocinha, doria de tão lindos olhos.

—O amor? Suponho que enloqueceu, Kety, As mulheres sem posses que necessitam trabalhar para se manterem, não podem aspirar ao amor, pela simples razão de que   os homens de hoje não possuem uma só parcela de sentimentalismo. São pura matéria, egoísmo quase desprezível... O amor! — sorriu com ironia, encolhendo os ombros. — O amor é por de­ mais sublime e espiritual, inatingível, portanto, para os homens modernos.

Por que generaliza? Deve   haver   algum   que não seja assim.

Todos! — respondeu com raiva. — Eu sou leal, carinhosa e boa... — cerrou as pálpebras e Teófilo julgou ver uma aparição celestial. — Almejo ser feliz ao lado de um homem sadio e honrado, de bom coração e inteligente. Por que vou negá-lo? Saberia tor­nar feliz o homem mais» exigente, mas...   como não tenho   uma   conta corrente no banco, jóias, vestidos caros e tampouco posição social, ninguém nem ao me­nos deseja conhecer minhas qualidades. Hoje, os ho­mens procuram mulheres   ricas,   mesmo   que   sejam feias, ou de moral duvidosa... Para falar a verdade, tudo me causa asco:   o mundo, os homens e, sobre­ tudo, o egoísmo da humanidade. Desprezo até a pró­pria vida.

Marisa Torres assobiou baixinho.

Eu não analiso tanto, Adela — disse carinhosa. — Limito-me a viver e a esperar. Creio que, algum dia, Deus nos dará a recompensa.

Sim, talvez, mas enquanto esperamos, nos con­sumimos.

Kety San Martins riu com vontade. As três, sem sombra de dúvida, tinham pensamentos idênticos. Acalentavam as mesmas ideias, as mesmas aspirações, mas, enquanto Adela tinha a coragem- de expô-las, as outras" contentavam-se em sorrir e calar, Kety re­costou-se no banco duro, e disse otimisía:

Gostaria de saber o que você faria, Adela, se recebesse, agora, uma herança de .vários milhões?

Oh! Seria muito simples.

Conte, Adela — pediu alegremente Marisa. — Eu lhe direi, depois, se temos os mesmos planos,

Pois bem.   Em   primeiro   lugar,   eu   compraria um iate... Não posso evitar, pois adoro o mar e os marujos e, mais ainda, os barcos confortáveis. Com­praria um iate de linhas arrojadas, elegante, bonito, com todo o conforto e luxuoso, não de um luxo osten­sivo, mas o suficiente para nele sentir-me como uma rainha... Daria o comando a um capitão formoso, valente, forte, simpático e nobre, isento de orgulhos tolos...

E se apaixonaria por ele não?

Talvez, Marisa. Também as levasse comigo, e quem   sabe,   um   dos   meus   galantes   oficiais   não   se prenderia ao encanto dos seus olhos negros...

Isso seria felicidade em excesso!

Pois estaria ao nosso alcance com um só milhãozinho...

E, para você, parece pouco! — suspirou Kety.

Naturalmente. Quantos os têm de sobra! Bem podiam presentear-nos com um.

Marisa levantou a cabeça com vivacidade e deu alegres gargalhadas. Era simpática, alegre e espirituosa. Gostava de imaginar-se a heroína de sonhos fantásticos. Olhando suas amigas, disse com ironia:

—      Não haverá ninguém que se compadeça dessas três "belezinhas"? Afinal, somos moças solteiras, um artigo nada desprezível. Escutem, eu creio que deve­ríamos pôr um anúncio no jornal: "Quem estiver dis­posto a livrar-se de um milhão, procure Marisa Tor­res, Adela Blanco e Kety San Martin, as três lindas datilógrafas que se consomem diariamente no escri­tório de Abelardo Riquelme, o homem mais rabugento e implicante da cidade de Bilbao. "Que tal lhes pa­rece? Estou certa que surtiria efeito... — olhou seu relógio de pulso e assobiou. — Meninas! — gritou as­sustada. — São três horas! Nosso chefe hoje nos tira a pele. A caminho?

Como se fossem uma só, puseram-se de pé e apressaram-se a pegar o ônibus que as levaria ao tra­balho.

Teófilo colocou os óculos, curioso, e pôs-se, tam­bém, em pé. Viu-as afastando-se e sorriu misteriosa­mente, enquanto calmamente, guardava o papel onde havia anotado o texto do arfúncio para o jornal, exa-tamente como ouvira.

—Será fantástico — murmurou. — Não resta dú­vida de que tenho com o que entreter-me por uma semana ou mais. Seja o que Deus quiser! Minha que­rida Filomena terá, agora, mais um motivo para, cha­mar-me de intrometido. Mas...

E Teófilo retomou seu caminho, esfregando as mãos, satisfeito. Enquanto andava, ia conversando com seus botões.

—Está comprovado que vou eleger-me defensor e protetor da-juventude de Bilbao. Minha senhora fi­cará como uma fera, quando souber que vou desfa­zer-me de um milhão... Ora bolas, tenho muito di­nheiro e é todo meu!

Apertou, novamente, as mãos e, eufórico, chegou à sua bela casa.

—Sou o mais feliz dos mortais! — exclamou, pe­netrando no vestíbulo luxuoso.

Instalados no salãozinho, peça preferida do casal, conversavam, saboreando um aromático café.

  1. Filomena era uma mulher pequena, de rosto simpático e feições delicadas. Seus olhos negros eram meigos e também, extremamente vivazes. Maneiras aristocráticas e cabelos completamente brancos, coroando a face já um tanto enrugada.

Naquele momento, olhava o marido com atenção. Conhecia-o muito bem e pressentia que algo se pas­sava com o seu Teófilo, pois ele não colocara os óculos com o cuidado habitual, estavam um pouco tortos sobre o nariz e, de vez em quando, esfregava as mãos. Eram; sinais característicos que jamais falhavam. D. Filomena sentiu que alguma coisa ocorrera ao seu querido esposo e niais importante que das outras vezes, pois se assim não o fosse, ele já teria há muito tempo libertado a torrente de palavras que lhe quei­mava a língua.

—Vamos, meu caro — disse afinal, sem poder aguentar por mais tempo as caretas que seu marido fazia. — Diga logo o que houve porque eu estou muito curiosa.

Nosso velho amigo levantou a cabeça branca, como se tivesse sido picado por uma abelha.

Heim? — foi quase um grito. — E eu tenho que contar alguma coisa? Não, por Deus! Juro que não sei nada e nada tenho a contar.

Olhe,   fingido, nós estamos   casados há qua­renta anos, sabe?

E que tem isso?

Conheço-o tão bem que...   Vamos, é ridículo que você se dê ao trabalho de afirmar que não tem nada para   contar-me.

Na verdade...

Muito bem, continue.

Teófilo levantou-se. Andou, agitado, de um lado para o outro. Endireitou os óculos, mas continuou es­fregando as mãos.

Diga-me, Filomena — falou afinal, parando ao seu lado. — O que diria se soubesse que vou livrar-me do iate por uma temporada?

O quê?

Pois é isso mesmo;   tenciono emprestar o iate.

A seus amigos?

A meus amirgos?

Sim, se o empresta a eles...

Bem... sim. É isso sim.

Ai! querido, é o que eu já disse. Você tornou-se um filantropo.    

Olhe, Filomena   querida, a verdade é que nós não necessitamos dele. Já somos velhos, sabe?

Naturalmente que sei.

Melhor. Dizia-lhe que somos...

Velhos.

Sim. Eles são jovens, precisam gozar a vida um pouquinho e, nada mais natural que lhes ceda, meu iate...

Louvado seja Deus!

Teófilo sentou-se ao seu lado. Segurou-lhe as mãos com o carinho de um namorado. D. Filomena sorriu, meio terna e divertida.

às vezes você me parece um rapazinho, e te­nho que olhar seus cabelos brancos para   certificar-me de que já é um velhote.

Não me insulte, querida. É que me entristece ver essa juventude evaporar-se, sem saber porque vie­ram a este mundo. Nós já tivemos e desfrutamos do melhor. Não possuímos   família, nada além   de nós mesmos. Quando abandonarmos esta vida, nossos mi­lhões irão para o Estado e isso me dá pena, sabe?

—      Mas, o que tem a ver o dinheiro com o iate?       Teófilo levantou-se   novamente.   Desta   vez   não andou pela sala, limitando-se a ficar de costas para a esposa e, só depois de certificar-se que sua querida Filomena esperava maiores explicações, disse depressa, quase inaudível:

   —Também   pretendo   presenteá-los   corn   um milhão.

—O   quê?

Agora sim, D. Filomena alterou-se. Levantando do sofá, dirigiu-se para ele com as mãos estendidas, como se quissesse triturá-lo.

—O que disse, .insensato? Você ficou louco... ou será que fui   eu que enlouqueci? Jamais ouvi maior disparate. Um milhão! Está pior do que eu imaginava. Além do mais — a senhora gaguejava —, todos esses seus amigos são milionários. Os pais são riquíssimos e não há razão para que você cometa a estupidez... Convenhamos, é o cúmulo dos cúmulos!

O pobre Teófilo tapou os ouvidos. Quando perce­beu que a sua enfurecida esposa se acalmara um pouco, deixou-se cair no sofá e suspirou alto. Depois, puxando D. Filomena pela cintura a fez sentar-se ao seu lado.

Vem. Antes de recomeçar a falar, deixe-me ex­plicar.

Não quero saber .de nada. Você está maluco! Chamarei hoje mesmo um psiquiatra para examiná-lo e não duvido que o levem daqui para o hospício. Sim, senhora!

Deus meu! Deixe que eu me explique, mulher. Logo verá, é claro, que eu tenho boas razões..

Ah, sim? Um milhão, além do iate! Não, não é possível! Meu pobre Teófilo perdeu o juízo!

Nosso amigo apoiou a cabeça no encosto macio do sofá e limpou o suor que porejava em sua testa. Depois, ignorando as ironias da esposa, começou a falar...

A princípio, D. Filomena ouvia com indiferença. Não a emocionava a torrente de palavras nem a eloquência de Teófilo e, tampouco ligava aos esforços que seu marido fazia para ser entendido. Porém, quando a narrativa chegou ao incidente ocorrido ria praça e seu marido retratou as três lindas jovens, sua atenção foi despertada e quando Teófilo terminou, estava esperando atentamente a conclusão.

—Mas...

O marido impediu-a de continuar, pondo a mão sobre sua boca e dizendo baixinho, com estranho brilho no olhar:

—Não fale, até que eu conte o plano que tracei. Escute...

  1. Filomena não teve outro recurso senão ouvir. Quando seu astuto esposo concluiu, arregalou os olhos, dizendo estupefata:

Quanta sutileza, meu querido!

De verdade, minha mulher, não se importa de perder o milhão?

Ai! um milhão!

Será em prol da juventude desvalida, Filomena querida.

Sim, mas...

E Teófilo continuou falando, falando até que sua mulher resignou-se. A imaginação do seu velho in­trometido, era inconcebível... E assim, convenceu-se. Perdia um milhão, mas, quem sabe, talvez ganhasse uma filha... Tomada a resolução, D. Filomena pro­meteu não dizer mais nada.

Naquela mesma tarde, Teófilo telefonou para a redaçao do jornal mais lido de Bilbao. Falou por longo tempo com o diretor e ao desligar, tornou a esfregar as mãos, satisfeito.

Nunca se sentira assim tão feliz.

 

O ESCRITÓRIO era amplo, Kety achava-se sentada diante da sua máquina, em meio aos companhei­ros, Mais adiante, no outro extremo da sala, Marisa batia sem cessar. O chefe da seção, passeando de um lado para outro, observava, atento, o trabalho dos seus subordinados, os quais, tão logo não se sentiam observados, relaxavam um pouco a atenção dedicada ao trabalho que, executavam.

Súbito, a porta se abriu e um menino de recados entrou na sala, dirigindo-se diretamente para a mesa de Kety.

—      O chefe pede-lhe que se apresente em seu ga­binete.

Dito aquilo, virou-se e, incontinente, encaminhou-se para a mesa de Marisa, a quem repetiu as mesmas palavras.

Ambas levantaram-se e juntas caminharam até a porta. Seus corações batiam mais depressa, um tanto assustados. Quando atingiram o corredor, Marisa agarrou o braço da companheira e disse, amedrontada:

—O que quererá conosco? Estou com medo! Kety, um pouco mais controlada, tentou aparentar

indiferença, sem, no entanto, atingir seu objetivo pois também estava atemorizada. Contudo, conseguiu dizer com voz trémula:

—Já saberemos Marisa. Não me agrada esta for­ma de chamar-nos ao seu gabinete. Acho que ganha­mos o bilhete azul.

— Mas, por quê?

Isso também eu me pergunto.

Meu Deus, Kety! Se perco o emprego, jogo-me no mar..

Não diga asneiras.

E o que fará você?

Não sei. Espere e tenha paciência. Logo sabe­remos o que quer este carrasco.

Estou apavorada!

Alcançaram a porta do gabinete e Marisa, levan­tando as mãos comprimiu cojn força o coração.

     — Acho que meu coração está falhando, Kety.

Não fale tolices.

Ai!

Sem importar-se com o desespero da amiga, Kety bateu levemente na porta, também nervosíssima.

Um seco "entre", franqueou-lhes a entrada. Como ratinhos encurralados por um gato, as duas moças examinaram o ambiente e, abriram desmesurada­mente "os olhos, ao depararem com Adela no meio da sala, firme e em atitude de desafio. O patrão, em pé ao lado da grande mesa, assemelhava-se a um mons­tro mitológico.

—Entrem, senhoritas — disse com voz descon­trolada.

As três ficaram juntas. Muito pálidas e com vi­sível tremor nos lábios descorados.

Que surpresa as aguardava? O que havia acon­tecido? Aquele homem, a imagem viva da fúria, bran­dia um jornal como se este fosse um punhal e esti­vesse prestes a enterrá-lo nos corações das três. Ma­risa, a mais tímida, procurou um pouco de apoio e segurou a mão de Adela, uma mão gelada cqmo a neve.

"Deus meu! — pensou a pobrezinha. —, Isto é o final, a miséria. Devemos ter ofendido este homem. Seus olhos clamam vingança. Mas, vingar-se de que? Ai!" Não pôde conter uma lágrima solitária, que deslizou livremente pela face fria.

Kety observou-a com pena e seus olhos transmi­tiram-lhe uma mensagem de coragem. Pareciam di­zer:   "Ânimo,   Marisa,   não   se   rebaixe.   Não   somos culpadas de nada. Veja a serenidade de Adela e pro­cure imitá-la."

Sim, claro, falar ou pensar é fácil mas fazer... bem, isso é outra   coisa...!

A voz do patrão estremeceu o gabinete.

— Quem colocou isto no jornal? Quem? As três, não é verdade. Ah, como me conhecem pouco! Além de   despedí-las,   vou processá-las,   para   que   passem uma temporada deliciosa na cadeia.

A atordoada Marisa, agora, ainda entendia muito menos. Adela, ao contrário,   a julgar pela expressão dos seus olhos, já começava a compreender e permaneceu inalterada. Kety, reunindo toda a   calma que pôde juntar, avançou um passo e pediu:

— Não   consigo   compreendê-lo.   Deixe-me ler o que menciona e talvez, então, possa dar-lhe uma res­posta.

— Resposta? — bradou o patrão. — Que resposta pode dar-me que eu não tenha aqui! E, com voz .cor­tante, começou a ler: — "Quem estiver disposto a des­fazer-se de um milhão, procure Marisa Torres, Adela Blanco e Kety San Martin, as três lindas datilógrafas do escritório de Abelardo Riquelme, o homem mais... — neste ponto, sua voz atingiu o auge da fúria. As moças jamais haviam experimentado tal sensação de pasmo e desespero "o homem mais rabugento e im­plicante de toda a cidade de Bilbao."

Calou-se. Contraindo os lábios, cravou os olhos injetados de sangue nas três mocinhas, visivelmente desconcertadas.

— Agora mesmo apresentarei a queixa — voci­ferou.

Escute, senhor...

Não quero saber de nada.

Kety, resoluta, adiantou-se.

—Não me interessa quê queira ouvir-nos ou não. Desejo, somente, que saiba que ignoramos a procedên­cia deste anúncio, porquê nós, as três, apenas agora tomamos conhecimento dele. Pode processar-nos, pode despedir-nos, mais saiba que será injustamente pois, definitivamente,   não   fomos   nós   que   colocamos   o anúncio no jornal.

Marisa procurava ocultar-se, trêmula, atrás de Adela. Esta permanecia impassível, enquanto se per­guntava quem seria o velhaco que tinha escutado a conversa da tarde anterior. Sim, só podia ser isso: "Alguém ouviu-nos e não perdeu tempo...! Pobre de nós!" Procurou dissimular sua angústia.

O chefe aproximou-se e, sem pena, indicou-lhes a porta.

Fora! Por agora,, estão apenas despedidas. Esta tarde, apresentarei a queixa, irão a julgamento e diretas para a cadeia.

Bem — disse Kety, dando-lhe as costas e im­pelindo as amigas para a porta. — Vamos embora.

Já no corredor, Marisa desatou o pranto, há tanto contido, qual uma garotinha.

—Que vai ser de nós? Ai, pobre de mim! Não tenho outro dinheiro além do ordenado deste mês e, este, talvez nem cheguemos a receber.

A pobrezinha chorava de tal maneira que as ou­tras, sufocando suas preocupações, procuraram consolá-la.

— Não se desespere, Marisinha. Em breve tudo se arrumará. Depois, somos três e daremos um jeito de defender-nos. Mas, quem pode ter sido o gaiato...? É incompreensível, realmente inexplicável!

Chegaram à calçada e, ali, encontraram a expli­cação. Um automóvel grande e elegantíssimo, estava estacionado diante do edifício. Marisa, ainda solu­çando, viu quando dele saltou um senhor idoso, cujos óculos de aro de ouro escondiam um par de olhos vi­vos e astutos. Aquele senhor, Teófilo em pessoa, avan­çou rapidamente e, parando diante das três moças assustadas, abordou-as sem hesitação.

— Esperava-as.

Esperava-as. Como?

Sim. Sou o homem que está disposto a desfa­zer-se do milhão. Que lhes parece? Venham, venham, entrem no meu carro. Minha esposa as espera.

Mas...

Nada ue mas. Lemos o jornal e estamos dis­postos a ceder-lhes o milhão.

Heim?

E Marisa, depois da exclamação, caiu desmaiada nos braços, bem trêmulos, por sinal, de Adela.

Instantes depois, sem mesmo saberem como, vi­ram-se sentadas no luxuoso automóvel, que, silen­ciosamente, meteu-se no tráfego intenso de uma ave­nida.

 

AINDA não sabiam como haviam chegado ali. Recor­davam, apenas, que tinha cruzado velozmente ruas e ruas, até que se detiveram diante daquele palace­te, de muros brancos como o leite.

Marisa tinha voltado a si e olhava-as, os lindos olhos negros inteiramente arregalados... Ninguém ousou pronunciar uma só palavra durante todo o trajeto. Fitavam o ancião um pouco assustadas, enquan­to este, ao volante, concentrava toda a sua atenção ao trânsito.

Quem seria? Que razões ocultas o teriam levado a interessar-se pelo anúncio? Que angústia sentiam , nossas amigas! Além do mais, estavam certas de que pouco aproveitariam do milhão que a generosidade daquele senhor colocava em suas mãos, já que o che­fe apresentaria queixa naquela mesma tarde. Esta­vam mais do que convencidas que Biquelme, impla­cável, cumpriria sua ameaça.

Adela suspirou fundo. Não conseguia desviar os olhos da cabeça calva daquele homem e tentava in­terpretar o sórrisinho que pairava em seus lábios. Es­taria mofando delas?

A pobre Marisa aconchegou-se a ela e chorou baixinho.

—Adela, temos que provar ao chefe nossa ino­cência — disse, entre dois soluços. — Eu não quero perder o emprego.

Kety fez-lhe um sinal de silêncio.

É melhor esperarmos — segredou. — Este se­nhor disse estar disposto a nos dar um milhão...

E você acreditou? Na melhor hipótese, é um policial.

Como? Está alucinada, Marisa. Basta olhá-lo para se ver que não é da polícia.

Pois eu penso o contrário!

A coitadinha, completamente descontrolada, es­condeu o rosto no regaço de Adela, cujas mãos acà-çiciavam de vez em quando o rostinho pálido. Afinal, era apenas uma pobre pequena e as emoções do dia tinham sido fortes demais para seus nervos. Adela, maternalmente, apertou-a contra o coração e entregou a solução de tudo a Deus. Somente o destino po­deria esclarecer aquela confusão.    Agora já se encontravam instaladas num, peque­no salão, obra-prima de bom gosto. Não sabiam o que fazer   ou   o   que dizer. O   misterioso   senhor   não   se achava à vista e as três entreolharam-se interrogati­vamente.

— Pobre de nós, Adela — disse Marisa, tremen­do. — Creio que ninguém nos livrará da prisão.

—Acalme-se, Marisinha — aconselhou Kety, ao mesmo tempo em que lhe afagava as mãos. — Afi­nal, ainda não sabemos o que nos sucederá.

Justo naquele momento, Teófilo reapareceu. Seu rosto expressivo denotava evidente satisfação e seus olhos pareciam dizer: "Jamais fiz algo tão bem feito."

Queridas senhoritas — parecia estar   dirigin­do-se a uma plateia exigente, tal o cuidado com que pronunciava cada sílaba. — Para ser sincero, ao ler o jornal desta   manhã,   fiquei um pouco   espantado. Primeiro, duvidei se realmente teria lido com acerto. Depois, após colocar os óculos, certifiquei-me de que não me enganara. Realmente, o que lera, era exatamente o que estava escrito e não   fruto da minha imaginação.

Mas...

O "mas" de Aleda morreu no ar, já que Teófilo, afastando-se da porta, deu passagem à sua esposa.

Não me interrompam. Apresento-lhe minha es­posa. — E, como se aquela apresentação fosse o su­ficiente, deu alguns passos, conduzindo D. Filomena pela mão e parando diante delas. — Querida esposa, estas são as senhoritas que puseram o anúncio   em que...

Não, não fomos nós — exclamou Marisa, recomeçando a chorar.

"Com que facilidade chora esta criatura! — pen­sou Teófilo. — É bonita, mas muito medrosa. Não serve para Xavier. Adela agrada-me mais. Tem um ar de rainha. Ah, como vou enganá-los e divertir-me!"

Continuou em voz alta, como se não tivesse sido interrompida por Marisa:

—Pedem um milhão. Pensei que, como nós pos­suímos bastante dinheiro, não nos importaríamos em perder um milhão. Que lhe parece?

  1. Filomena sorriu com malícia. Aquele seu ma­rido tinha ideias extravagantes, mas muito diverti­das. Já não lhe desagradava ter concordado. As três eram tão bonitas!

—Que está tudo bem, querido. Afinal, é neces­sário que estas lindas moças possam gozar uma tem­porada de descanso e diversão.

Adela e Kety trocaram um olhar significativo. “Divertem-se conosco", disseram os olhos de Adela. "Penso como você", responderam os de Kety.

  1. Filomena prosseguiu:

Esta   manhã, quando   meu marido   irrompeu em meu quarto e mostrou-me   o anúncio, concordei em dar-lhes o milhão   e   agora, ao conhecê-las,   tão bonitas e educadas, torno a   repetir que sim. Esta­mos resolvidos a proporcionar-lhes uma   temporada de diversões.

Meu Deus!   — suspirou Marisa, ainda   atôni­ta. Belisque-me; Kety. Tem certeza de que não esta­mos sonhando?

— Não, minha filha. Quantos anos tem?

Dezoito.

É quase um menina.

  1. Filomena, pela primeira vez, despojou-se da velada frieza que até então mantivera, e olhou-as compadecida. Eram tão jovens! Ocorreu-lhe o pensamento de como se sentiria, se alguma delas fosse sua,,filha e se a visse, tão jovem ainda, necessitada de lutar pelo direito de viver, rodeada de perigos. In­tensa emoção sufocou-lhe o coração e (conílrmouj para si mesma, que não lhe pesava ter concordado com o capricho extravagante do seu querido Teo.

Aproximou-se um pouco mais e pousou a mão, já um tanto enrugada, sobre a cabeça de Marisa.

Não   tem mãe? — perguntou, emocionada.

Não a conheci — respondeu Marisa, com uma sombra de amargura no olhar. — Fui criada por uma tia, que faleceu há três anos. Desde então, trabalho e moro numa pensão para moças, onde conheci mi­nhas amigas Adela e Kety.

Como se chama?

Marisa   Torres,   e   trabalho   no   escritório   de Abelardo Riquelme.

A pronunciar o nome do partão, lembrou-se do emprego perdido e seus olhos, novamente, encheram-se de lágrimas. Adela e Kety procuraram consolá-la, dizendo-lhe com meiguice:

Não chore, Marisinha. Não sabemos, ainda, o que nos reserva o destino.

Uma vida agradável — complementou Teófilo.

E meu emprego? Ai, meu Deus, depois de todo o trabalho que tive para arranjá-lo!

Não precisará voltar para lá — finalizou D. Filomena, com toda segurança.

Pela primeira vez, as três moças compreenderam o que o idoso casal falava a sério e se interrogaram com que finalidade o fazia e por que se desfaziam com tanta indiferença de uma pequena fortuna. Um milhão! Era para se morrer de susto e no entanto, ali estavam, bem vivas e tentando aparentar sere­nidade.

É imprescindível que me deixem falar duran­te alguns minutos, sem interrupções — advertiu Teó­filo, aproximando-se e encarando as três com firme­za. — Repito que li o anúncio e decidi proporcionar-lhes uma temporada feliz. Quanto ao futuro, bem..., veremos o que se poderá fazer. No presente, vou em­prestar-lhes meu iate, no   qual realizarão uma viagem pelas costas da Espanha. Infelizmente, não po­derão ir ao estrangeiro, mas suponho que lhes é in­diferente. O essencial, é que possam gozar a liberda­de de ter dinheiro...

Mas... o senhor deve estar brincando conosco.

Por Deus, não! Nunca me permitiria enganar tão lindas e adoráveis jovens...

Então...

E a já não tão infeliz Marisa arregalou uns olhos quase do tamanho de maçanetas, enquanto levava as mãos ao peito, como se tencionasse conter as ba­tidas de seu agitado coração.

Sim, senhoritas, já tenho tudo planejado. Meu iate é tripulado   por excelentes marujos:   o   capitão chama-se Luís José Ibanez e os dois oficiais, Xavier Monreal e Tomás Larra, respectivamente;   além de­les, alguns marinheiros e um telegrafista... São to­dos pessoas de confiança. Há muito tempo os tenho a meu srviço... Podem confiar neles como em mim mesmo. São rapazes que necessitam   trabalhar para viver — mentiu, deslavadamente. — Afianço-lhes que não as molestarão, limitando-se a receber suas ordens, sem perguntas. Estarão convencidos de que são três senhoritas milionárias, amigas da minha esposa. Com­preendido? Acho que não me resta mais nada a dizer.

Mas...

Adela já tinha compreendido tudo, mas ainda du­vidava de tanto desprendimento. Qual seria o motivo?

— Não aceito mais dúvidas, Senhorita Adela. Eu sou um filantropo e minha mulher, que é uma san­ta — Teófilo olhou de relance para D. Filomena que, atenta ao seu marido,   sorria complacentemente — e   pensa da mesma forma que eu, não é exato, Filo?

— Completamente.

Adela e Kety trocaram um olhar de entendimento. Sem a menor dúvida, nenhuma das duas alcan­çava o que havia por trás de tudo. Sabiam, somente, o que aquele homem dizia, mas ignoravam porque o fazia e como... Adela sentia que havia uma razão oculta, mas não conseguia defini-la.

—      Nós não podemos aceitar — disse, o mais se­renamente possível.

—      Não podem?   Não diga disparates, senhorita. Aceitarão, porque eu lhes peço e, se ainda tentarem recusar, eu serei obrigado a ordenar-lhes e, pronto. Não imaginem que se prolongará por toda a vida. Se­rá só uma temporada de Verão, durante a qual terão tempo suficiente para encontrar um marido rico, que as manterá depois.

—      Mas...

Teófilo não ligou importância à objeção e conti­nuou :

—      É uma boa oportunidade, o que   desejo pro­ porcionar-lhes. Durante   o Verão visitarão   a Espa­nha em meu iate, o iate que,   aparentemente, em­presto a três amigas de minha mulher. As senhoritas se apresentarão em   todos os lugares como milioná­rias e, se ao término   do Verão não tiverem conse­guido um noivo, comprometo-me a arranjar-lhes uma boa colocação e reiniciarão a luta pela vida.

Adela levantou-se e disse com voz insegura:

— Senhor, eu não quero um marido de ocasião, por mais milionário que seja. Casar não me interessa

muito, se eu não puder fazê-lo por amor.

O óculos de Teófilo dançaram nervosos em seu na­riz e suas pupilas penetrantes cravaram-se na face pálida da moça.

"Esta é, sem tirar, nem pôr, a exata" metade da laranja" de que Luís José necessita", pensou, novamente esfregando as mãos. Interrompendo seus pen­samentos, respondeu:

— A senhorita conta com toda a minha simpa­tia. O amor é o elemento mais essencial da vida. Um casamento sem amor, é como um bote sem fundo. Bem vê que a comparação é pobre, mas sou tão iná­bil com as palavras, que não encontro as adequadas quando mais as necessito. Dizia-lhe, .que concordo com a senhorita e afirmo que encontrará o amor em seu caminho e será muito feliz.

Mas eu não quero essa felicidade.

Não? Por quê?

Porque não se procura   o amor:   ele surge e lhe damos as boas vindas quando está à nossa frente.

Oh, não! Deus disse:   "Ajude-se e Eu o aju­darei". Não concorda, senhorita?

Kety intrometeu-se no diálogo. Sua bela figura interpôs-se entre os dois, tão serena e simples, que Teófilo piscou, nervoso, deslumbrado por tanta be­leza.

Eu concordo com o senhor — sua voz era do­ce e acariciante. — Minha   amiga Adela,   também. Apenas não sabe expressá-lo. O senhor nos oferece uma oportunidade; nós a aproveitaremos e se nada conseguirmos, é que esta não era a vontade de Deus. — Virou-se para Adela e disse com calor: — Ele não quer dar um amor, Adela. Dá, somente, a oportuni­dade de encontrá-lo.

Eu   compreendi,   mas   continuo pensando   do mesmo modo. Talvez encontremos o amor no cami­nho que este senhor nos oferece. Mas esses homens serão   milionários.   A cada   passo encontraremos ri­cos magnatas, crentes que nós também possuímos uma fonte inesgotável, prender-se-ão   aos nossos milhões imaginários... — Sorriu com desdém e acrescentou, encolhendo os ombros:   —   Imagine   o   que   sucederá quando a venda cair e souberem que não possuímos outra renda além do céu acima e a terra abaixo.

Don Teófilo aparteou, vivamente:

—Já então, Cupido terá feito uma das suas.

— Cupido!   Meu senhor, esse Cupido que   men­ciona é demasiado inteligente para flechar um coração onde não há riquezas.

"Não se pode com esta menina! — pensou o ve­lho, desanimado. — Tem resposta para tudo e, en­quanto não a compreender melhor, a deixarei com as suas tolas teorias. De qualquer maneira, irá em meu iate e tocará o coração de Xavier, aquele sabe-tudo. .. Já não acho que seja a pequena para Luís José. Ele precisa de uma mulher mais ardente, que saiba desinibí-lo."

— Apesar de todas as suas objeções — falou com voz persuasiva —, a senhorita aceita, como suas ami­gas, o meu desinteressado oferecimento. Não imponho nada, pode fazer como quiser. Se não quiser enamo­rar-se, nada terei a dizer. Também asseguro-lhe que, se quiser apaixonar-se pelo foguista, será seu o pro­blema pois eu, graças a Deus, continuarei bem à von­tade.

Aquela conclusão espirituosa provocou uma gar­galhada geral, e as três não puderam deixar de reconhecer que aquele senhor possuía uma simpatia ca­tivante.

Marisa, até então calada, levantou-se e caminhou em direção ao casal. Com sua vozinha meiga, disse:

—Eu aceito, encantada. Não sei com que fim o fazem e tampouco o motivo, mas isso não me impor­ta. Permitem que os beije?

E a mocinha, com a encantadora expontaneida-de que a caracterizava, abraçou e beijou muitas vezes a face de D. Filomtma, a qual, emocionada, julgou ter em seus braços a filha tão desejada, mas que Deus lhe negara. Em seguida, beijou o Sr. Teófilo com o mesmo carinho e efusão. Passada a alegria dos bei­jos e abraços, entreolharam-se, todos com lágrimas nos olhos.

—Agora retiro-me — Teófilo procurava   disfar­çar a emoção. — Fiquem com D. Filomena. Vou sair para ultimar os detalhes da viagem.

Aproximou-se de Adela e colocou a mão em seu ombro, carinhoso.

—Não   analise   tanto,   as   coisas,   amiguinha   — aconselhou, algo divertido. — Desta forma, não se chega a parte alguma. Diz o ditado, que quem não arrisca, não petisca. Arrisque-se um   pouco e, mais tarde, quando o Verão terminar, continuaremos esta conversa.

Dito isto, saiu mansamente.

Ainda com as palavras de Teófilo ressoando em seus ouvidos, Adela se perguntou por que tudo esta­va saindo tão bem. Uma vez mais teve a convicção de que havia algo oculto em tudo aquilo, mas, como não tinha elementos para se aprofundar na análise do que ignorava, limitou-se a ficar calada, olhando, pensativa, para o chão.

—Vou trazer-lhes alguma coisa para comer   — anunciou D. Filomena, saindo do salão.

Quando ficaram sós, Kety disse, suspirando:

Não entendo nada. E você, Adela?

Tampouco.

Pois eu sim.

Ambas olharam para Marisa, em cujos lábios bai­lava um sorriso inocente.

—Você?   Que compreende você?

—Que vamos ser felizes por uma temporada. Já não me importa ter perdido o emprego. Afinal, gra­ças a isso estamos aqui.

—      E no entanto, você não se deteve para pensar na pessoa que se atreveu a desafiar-nos dessa ma­neira.   ,

—Não a compreendo, Kety.

Não entende que não fomos nós que coloca­mos esse anúncio no jornal? Alguém o fez. Mas, quem foi?

Ah, sim, é verdade!

Naturalmente que é. Que cabeça oca você tem, Marisinha!

A mocinha suspirou resignada.

É que eu não quero me preocupar, sabe?

Sim, nota-se.

Não se zangue comigo, Adela.

Como esta visse os olhos negros rasos d'água, foi até ela e abraçou-a estreitamente, bastante emocio­nada.

—Você é muito inocente, Marisa — disse mui­to baixo. — Merece muita felicidade e quem lhe fi­zer mal...

Deixou a frase em suspenso e beijou-a, carinho­sa, na testa. Depois, voltando-se para Kety, pergun­tou:

— Não lhe parece estranho que nos empreste o iate?

Sim.

Ontem, na praça, falamos sobre isso...

Recordo-me muito bem.E que pensam? — perguntou Marisa, com sua inocência característica.

Ambas   olharam-na com ternura.

Não acho   nada   e nem   penso nada, Marisa — retorquiu Kety, encolhendo os ombros. — É me­lhor que deixemos as coisas tal como estão e nos li­mitemos a viver tranquilamente.

Creio que tem razão, Kety — concordou Ade­la, pensativa.

Tentaram por todos os meios averiguar o que acontecera e, como não o conseguissem, finalmente desistiram.

Pouco depois as três, tendo em D. Filomena aten­ta ouvinte, falavam de suas vidas, tornando-a conhe­cedora da amargura da existência que lhes tocara viver.

 

NAQUELA mesma hora, Teófilo, apoiado em sua ben­gala, chegou ao clube que frequentava todas as manhãs. Sempre aparecia alegre e espirituoso, disposto a não poupar ninguém das suas tiradas iróni­cas. Mas naquele dia apresentou-se mudado. Uma ru­ga sulcava sua testa e os olhos não sorriam com a malícia habitual. Entrou sério e cabisbaixo, apoia­do na sua bengala.

Claro que, por dentro, estava se divertindo lin­damente, zombando de tudo e de todos, mas isso seus jovens amigos não podiam notar, tão bem o disfar­çava. Ao verem o idoso amigo aparecer, apressaram-se em ir ao seu encontro e, de momento, viram que algo de anormal o preocupava.

Olá filhos — saudou indiferente, deixando-se cair numa poltrona.

O senhor está doente?

Obrigado,   Luís José;   não,   não estou doente mas, talvez, esteja um pouco preocupado.

Preocupado? Nós, com toda a certeza, pode­ mos ajudá-lo, Sr. Teófilo.

São muito amáveis, caro Xavier. Têm que per­doar-me hoje. Não creio que possa acompanhá-los no jogo.

Sr. Teófilo, já sabe que estamos à sua intei­ra disposição. Não podemos ser-lhe úteis em algo?

Teófilo tossiu, nervoso.

—Sim, talvez possam ajudar-me, mas receio abu­sar de vocês, Tomás.

Todos protestaram indignados.

Abusar de nós? Ora, Sr. Teófilo, não diga to­lices. Sabe muito bem que somos todos seus amigos,

Sr. Teófilo não hesite em contar-nos,   seja o que for.

Embora tenhamos que atingir a lua, não he­sitaremos, se com isso   afugentarmos sua preocupa­ção.

Os três rapazes assim se exprimiram, rodeando o astuto velhinho, cujos lábios por pouco não deixa­ram escapar um certo sorrizinho... No entanto, conteve-se e assumiu uma expressão de dúvida. Enru­gou o nariz e contraiu os lábios repetidas vezes. Afi­nal, depois de todas aquelas caretas dispôs-se a falar, não sem antes soltar fundo suspiro de resigna­ção.

—Verão, a coisa é séria e eu, como sempre, com minhas   atitudes   quixotescas,   comprometi-me   tola­mente — fez uma pausa e passeou os olhos penetran­tes sobre os três ansiosos rostos. — Onde pensam passar este Verão?

Quê!   Os três ficaram boquiabertos. O que tinha uma coisa a ver com a outra?

Eu perguntei, quais são os seus planos para o Verão. Ele não tarda a chegar.

Ainda falta quase um mês — disse Luís José. — Mas, não entendo aonde quer chegar, Sr. Teófilo.

Bem, já compreenderão. No momento, digam-me aonde pensam ir neste Verão.

Para dizer a verdade, ainda não fiz planos especiais — disse Xavier. — Minha família costuma veranear em São Sebastião e eu sempre os acompa­nho. Este ano, creio, farei o mesmo.

E você Luís José?

Na Costa Brava.

Muito bem. Quanto a você, Tomás?

Na Galícia.

Compreendido.   Vão sempre contentes?

Arre! não estou compreendendo nada! — ex­clamou Xavier, impaciente.

Teófilo concluiu que chegara a hora de disparar a bala e, sem mais delongas, apertou o gatilho.

Ontem recebi a visita de três damas, perten­centes à mais alta sociedade catalã... São três ami­gas de minha esposa e, a verdade é que não ousei ne­gar o favor que me pediram...

Chega de rodeios, amigo. Estamos sobre bra­sas. Por favor, vá direto ao fim.

Lá   chegarei agora mesmo, Xavier. O caso é que pensaram e decidiram fazer um cruzeiro pela Espanha e, segundo elas, não encontraram um iate a seu gosto; lembrando-se que eu possuía um, vieram a mim e...

E bem?

Teófilo tornou a suspirar, dessa vez com tal an­gústia, que os três resolveram revirar mundos e fun­dos para ajudá-lo, se bem que ignorassem como fazê-lo,

—      E eu lhes disse que sim. Quiseram saber em que condições o iate se encontrava e foi então, que eu cometi a estupidez de dizer que sempre o mantinha pronto para zarpar...— Limpou o suor, imaginário, que lhe umedecia as têmporas. — Como sa­bem, isto não é verdade, mas eu não sei se quis fa­zer-me de importante, ou outra coisa, porém a ver­dade é que falei de um capitão e dois pilotos... — Fez outra pausa. Os três amigos bebiam, atentos, as suas palavras. — Não contava que me perguntassem o nome dos oficiais, mas, sem a menor dúvida, o fi­zeram ...

Xavier, mais perspicaz que os outros, soltou um assovio agudo. Parecia ter entendido o que se segui­ria, mas, mesmo assim, continuou ardendo de curio­sidade pelo fim da explicação.

O nosso "artista" inspirou com força, como que tomando coragem, e prosseguiu, lentamente:

O certo é que me vi obrigado a dar nomes e, como conhecia somente vocês, cometi a leviandade de dar os seus.

Como?

Formidável!

Colossal!

As três exclamações soaram ao mesmo tempo. Teófilo julgou ver visões. Será que aqueles três iam cair com tanta facilidade na sua armadilha? Não se atre­vera a pensar que aceitariam de pronto o seu estra­tagema, e sobretudo, com tanta naturalidade e en­tusiasmo. O problema tinha se solucionado com mais facilidade do que supusera. Percebeu nos rostos da Tomás e Xavier uma interrogação, cujo sentido in­terpretou de imediato.

— Sim — disse malicioso:   as três são jovens e bonitas.

Olhando para Luís José, viu qualquer coisa que lhe fez enrugar a testa. Aquele tolo, logo ele que es­tava destinado a capitanear o barco, tinha nos olhos uma expressão nada tranquilizadora. Com voz ino­cente, perguntou:

—Que pensa você, Luís José? Será que não vai querer ajudar-me?

Este pareceu reagir lançando um olhar espe­culativo ao ancião, respondeu:

Naturalmente   que   quero,   mas   isto   não   me agrada. Pressinto que o senhor está ocultando alguma coisa.

Sempre desconfiado. Que diabos vou esconder de vocês?

E Teófilo empertigou-se, fazendo um trejeito ds desagrado.

Sempre pensei que — observou   com desgos­to —, se preciso, você seria o primeiro a ajudar-me. Vejo, porém, que me equivoquei.

Não se zangue, Teófilo. A verdade é que, até agora, ainda não exerci minha profissão e tenho re­ceio de cometer algum erro.

—Não seja tolo;   até parece   mentira que, aos trinta anos, ainda pense bobagens. Pensei que, como é o mais velho, deve ser você o comandante do iate.

—Mas, eu não sou capitão...

—Ora, ora! Isso se arruma facilmente. Além do mais, o meu iate pode ser comandado por um piloto.

—Então, não há mais nada a   dizer — excla­mou o sempre entusiasmado Xavier.

Teófilo levantou-se.

—Venham comigo. Vamos ao cais onde está o iate. Há dias atrás, justamente, limparam o casco. O contramestre se encarregará de encontrar o pes­soal necessário. Quanto aos das máquinas, falarei com um amigo. Vamos?

E" os três, ladeando Teófilo, saíram do clube ru­mo ao cais.

O iate era realmente uma maravilha. Branco co­mo a neve, tinha camarotes confortáveis, um salão-zinho de jantar e outro de estar, com pequena pista de dança. Tudo em proporções reduzidas, é verdade, mas de primeiríssima.

Os três rapazes já o conheciam, mas naquela ma­nhã ainda pareceu mais bonito, já que iria abrigar três lindas damas, de fascinante beleza...

—-É exato que são assim tão lindas, Teófilo?          Este revirou os olhos.

Jamais vi nada semelhante. Kety San Martin é de uma beleza deslumbrante. Adela Blanco, serena e decidida, não acredita na nobreza do amor...

Heim?

Assim é, Tomás. Não se espante.

Mas, como o senhor sabe?

Não se esqueça que sou ótimo psicólogo. Vejo e logo deduzo.

Xavier, encostado na amurada, lançou um olhar de esguelha a Luís José e sorriu.

O que tem a dizer? — perguntou baixo, apro­veitando um momento em que Teófilo estava entre­tido com Tomás. — Que acha dessa novela?

Receio que esta velha raposa esteja nos pas­sando a perna.

Não acredito. Ele nos estima de verdade.

Naturalmente, mas não se esqueça de que pos­sui uma petulância assombrosa e quem sabe...

Consegue vislumbrar as razões que o levaram a meter-nos nesse embrulho?

Não, não consigo   nem consiguirei, por mais que tente.

Bem, afinal não   tínhamos planos para este Verão. Creio que esta aventura será, maravilhosa.

Isso veremos...

— Você é desconfiado e poroso otimista.

—Sou   observador.

A conversa terminou assim, pois Teófilo e Tomás aproximaram-se.

Devo dizer-lhes — advertiu o senhor — que essas senhoritas estão   certas que vocês são apenas marujos. Ignoram a que família pertencem.

E ignorarão sempre. Aprecio a aventura. O que dizem, amigos? — Xavier riu alegremente.

Estupendo!

E você o que pensa, Luís José?

Direi quando a viagem terminar. Por ora, es­tamos ao seu inteiro dispor. Daqui há alguns dias, à disposição dessas extravagantes senhoritas.

De acordo.

Quando poderemos   conhecê-las?

Ah, isso é outro assunto!   Serão apresentados depois de amanhã, quando o iate zarpar. Lembrem-se que as saudações não devem exceder a um aperto de mãos. Já sabem que essas milionárias consideram os marujos apenas como assalariados.

—Nós lhes demonstraremos o contrário.          Xavier não disse aquelas palavras com o orgulho de quem conhece a sua posição na escala social. Foi o homem do mar quem as pronunciou, com sua arro­gância e dignidade, com sua voz de entonação firme e segura.

Era a primeira vez que Teófilo o ouvia expres­sar-se assim e gostou do que ouviu.

"Veremos o resultado dessa história", pensou, ao saltar para o cais.

Instantes depois, um táxi os levava de volta ao clube.

Dois dias depois, a sorte foi lançada. O iate esta­va ancorado na baía de Santurce, próximo ao clube Náutico e sua silhueta elegante destacava-se sobre o mar. O iate branco, com suas chapas cromados re­luzindo ao sol e as velas enfunadas pelo vento, asse­melhava-se a um pombo, prestes a alçar voo.

Os três estavam no convés, com impecáveis uni­formes brancos, o boné no ângulo exato, esperando, impacientes, que a lancha deixasse, o cais e se apro­ximasse.

—      Estou impaciente por conhecê-las — disse Xa­vier à meia voz. — Jamais desejei nada tão inten­samente.

A voz profunda do capitão, ainda mais rica de belas entonações quanto mais sério estava, arrefeceu um pouco a excitação dos companheiros.

É imprescindível   que,   por ora,   esqueça   seus dotes de conquistador, Xavier. A honra de um mari­nheiro não pode ser arranhada, sob hipótese alguma. Estas senhoritas estarão sob nossa responsabilidade e, antes dos prazeres humanos, está a dignidade de um honrado marujo.

O que quer dizer, precisamente, Luís José?

Que não esqueça, por nada neste mundo, o que acaba de ouvir. Hoje não somos os rapazes despreo­cupados, à cata de uma nova diversão. Este unifor­me é sagrado para nós e temos que honrá-lo, acima de tudo: do amor, do prazer, de um rosto bonito, de um corpo elegante e atraente e até da provocação...

Todos assentiram. Ninguém ousou pronunciar uma sp palavra. Tinham compreendido e estavam dispostos a seguir seu conselho, pois, como ele, traziam nas veias o sangue nobre de um bom marinheiro.

Os olhos atentos de Luís José perscrutaram a baía.

— A lancha está vindo. Vamos recebe-las condig-namente.

Seu porte atlético parecia ainda mais viril sob o uniforme branco. Os rostos bronzeados pelo sol, vòltaram-se para o mar, enquanto ordenavam que lançassem a escada.

A lancha avançava pela baía, por entre as demais embarcações lá ancoradas.

—      Estou muito nervosa — disse Marisa numa vozinha débil. — Não sei porque, mas a verdade é que não consigo controlar as batidas loucas do meu co­ração.

Teófilo, que as acompanhava, riu com gosto, afa­gando, carinhoso, o rosto da mocinha, a quem se ha­via afeiçoado nos dias que as três tinham passado em sua casa.

É muito natural. Já navegou antes?

Nunca.

É possível que enjoe,   mas não se preocupe, passa logo.

A lancha manobrou e parou ao lado do iate. Teó­filo foi o primeiro a saltar, e Luís José, adiantando-se, ofereceu a mão a Kety, para auxiliá-la a subir a bordo.

A moça o fez com agilidade. Seu corpo gracioso não deslumbrou os rapazes, mas os olhos azuis, de expressão serena e decidida, causaram uma impres­são especial a Tomás, já que este estremeceu imper-ceptivelmejite. "Puxa! como é bonita!", pensou o ga­lante segundo oficial.

Xavier ficou quase boquiaberto. Luís José, feitas as apresentações, permaneceu impassível. Inclinando-se novamente- sobre a borda, estendeu a mão e Ade-la e Marisa subiram, uma atrás da outra.

Teófilo concluiu as apresentações. A impressão causada pelas três lindas jovens era grande, mas não menor que o impacto sofrido pelas moças, que nem por longe imaginaram fossem os três oficiais tão jo­vens, fortes e simpáticos.

Marisa, com seu arzinho ingénuo, olhou o capi­tão e soltou , gostosa gargalhada.

—      Meu Deus — balbuciou entre risos —, sempre imaginei um capitão com barbas e um grande bigo­de e, afinal... — Interrompeu a frase ao ver a cen­sura estampada nos olhos de Kety. Sem graça, mor­deu os lábios e deu a volta, seguindo os passos de Teófilo.

Adela enviou-lhes um sorriso e também encami­nhou-se para o camarote. Kety fez o mesmo.

Nossos marujos ficaram no convés, pensativos, e sem saber o que comentar. O maquinista veio inter­romper o seu mutismo. Era um senhor de cabelos grisalhos, com cerca de cinquenta anos, de rosto no -tare e olhar suave. Trazia um sorriso permanente nos lábios.

—Roubaram-lhe o dom   da   palavra,   amigos?          Os três pareceram   despertar de um sono pro­fundo. Trataram de sorrir ao voltarem-se para ele.

Olá, mestre Juan. Já viu as passageiras?

Fui   apresentado   ontem.   O Sr. Teófilo trouxe-as para conhecer o iate, quando ainda não haviam chegado.

São muito bonitas.

Realmente, Xavier. Bonitas e simpáticas. Olhe, o resto da tripulação está chegando. Vou chamar o contramestre, para que se ocupe deles.

Enquanto esta conversa se desenrolava na co­berta, nossas amigas bebiam um cálice de vinho em companhia de seu protetor.

Não entendo porque não aceitaram uma cria­da de quarto — disse Teófilo, um pouco contrariado.

Para quê? Estamos acostumadas a nos arru­marmos sozinhas, caro Sr. Teófilo.

Eu compreendo, Adela, mas   a   tripuação   es­tranhará.

Que nada! Pensarão que é uma excentricida­de. Além do mais, não nos importa.

Muito bem. Agora, vou deixá-las. O iate está pronto   para   partir.   Apesar   do   tamanho   reduzido, creio que não sentirão falta   de nenhuma   comodi­dade.

Beijou-as uma por uma. Quando chegou a vez de Marisa, esta abraçou-se a ele, soluçando. Teófilo, por sua vez, estreitou-a, emocionado.

O senhor é para mim o pai que não conheci — murmurou.

j&u também vejo em você a filhinha que Deu, não me deu.

Subiu ao convés, acompanhado pelas três mocas Arjêrtos de mãos, algumas recomendações finais e des­ceu para a lancha.

Pouco depois, qual garça real. o iate cortava as águas calmas da baía, rumo ao alto mar.

Adela e Kety retiraram-se para seus camarotes, mas Marisa, numa alegria infantil, dirigiu-se para a ponte, onde se achavam os três marujos.

Gosta do mar, não, senhorita?

Sim, é   encantador — respondeu, sonhadora.          Estava um encanto!   À luz do sol, seus cabelos negros desprendiam reflexos intensamentes azulados. Os olhos também negros, cheios de vida e deliciosa­mente ingénuos, fitavam o horizonte, como se quisessem absorver, sôfregos, toda a mescla de emoções que o balanço das ondas lhe proporcionava. Trajava um costumezinho branco, muito simples (o primeiro presente do seu protetor) e calçava delicadas san­dálias vermelhas, que deixavam aparecer os dedinhos rosados... Era muito bonita, pois, apesar de não pos­suir uma beleza clássica, tinha um charme especial.

Ao virar a cabeça, ruborisou-se. Os olhos dos três marujos estavam cravados nela, de uma maneira es­tranha e algo constrangedora: dois deles pareciam detalhá-la; o outro, o que Teófilo apresentara como capitão, observava-a, como se em realidade não a es­tivesse olhando. Era algo estranho, que dada a sua grande inocência, não soube definir.

Girou sobre si mesma e, um tanto apressada, dei­xou a ponte.

Os três acompanharam-na com os olhos.

Que tal acha, Luís José?

Muito bonita.

Gosto mais da que se chama Kety. Repara­ram que maravilha de olhos?

Não comece a sonhar.            Xavier suspirou fundo.

Ah, se as tivesse conhecido em terra...!

Mas como não foi assim...

—Sim, claro que não foi assim... — Ande, Xávier, pela primeira vez em sua vida, domine seu lou­co coração. Maldição!

Tomás não pôde deixar de soltar uma boa garga­lhada. Não havia a menor sombra de dúvida que, dos três, Xavier Monreal era o mais impetuoso. Está cla­ro que não disse nada, pois se o dissesse...

 

Uma lua imensa, redonda e petulante, mostrava sua face no céu. As estrelas oram pontos fosfores­centes, rodeando a rainha da noite, cujos raios brin­cavam nas águas tíanqiiilas, nas que o elegante iate deixava sulcos cintilantes.

Kety revolvia-se na cama. Não conseguia dormir. O balanço do iate causava-lhe inquietação e mal-estar. Abrindo os formosos olhos ficou deslumbrada ao se ver imersa no luar que, penetrando pela esco­tilha, banhava sua cama. Colocando os braços sob a nuca, ficou por algum tempo silenciosa e impressio­nada. Não podia evitá-lo: aquele silêncio, interrom­pido apenas pelo ruído das máquinas e pelo marulho do mar batendo contra o costado, deixavam-na an­gustiada. Quantas e quantas vezes, sozinha no quar­to frio e impessoal da pensão, tinha sonhado em cru­zar os mares num grande navio. Agora, um dos seus sonhos mais caros tornara-se realidade. Não obstan­te, algo . . . algo que não sabia definir, empanava sua alegria. Tudo lhe parecia falso e irreal. Por que es­tava ali? Por que aquele bondoso senhor comporta­ra-se com tanto desprendimento em relação a três desconhecidas? Não fazia sentido e, sem a menor dú­vida, tinha a certeza que tal atitude não era normal, Lembrou-se do capitão e dos oficiais que as recebe­ram a bordo. Eram belos tipos de homem, fortes e elegantes. Eram homens do .mar, habituados à luta pela vida. Eram também, quem sabe, seres sacrifica­dos e sentiu admiração por eles.

Sentou-se na cama e vendo que continuava in­quieta, levantou-se. Sufocava na cabina. Precisava de ar puro e de encher seus olhos com a imensidão do mar.

Em pé, no meio do camarote, procurou certifi­car-se se as amigas dormiam. Apurou os ouvidos, mas não ouviu riem um só ruído vindo dos camarotes con­tíguos. Apenas o silêncio, embalado pelo zumbido das máquinas e pelo marulho do mar.

Vestiu um robe sobre o pijama. Ao atar sua fita, recordou-se que há uma semana atrás, não possuíam nem robes nem pijamas finos, ou trajes bonitos... Agora tudo estava mudado. O Sr. Teófilo e sua mu­lher tinham-nas levado a uma famosa casa de mo­das, onde as tinham feito escolher um guarda-rou-pa de milionárias. Era justamente isso e outras coi­sas mais, que intrigavam Kety. Por que aqueles des­prendimento material? Será que ainda restavam nes­te mundo seres desinteressados e generosos? Com um suspiro, pôs ponto final em suas divagações, pois, se insistisse, terminaria por ficar mal-humorada.

Espreguiçou-se e abrindo a porta do camarote, rumou para a coberta.

O mar sereno estendia-se ao seu redor. Parecia infinito, e na realidade, o era. As estrelas rodeavam a lua, cuja luz cintilante banhava o iate e o mar, onde dava pinceladas azuladas,

Kety, impressionada por tanta grandiosidade, de­bruçou-se na amurada, mergulhando o olhar no mar. Estava linda. Seus cabelos; sedosos e: perfuma­dos, tocados pelo vento, afagavam o rostinho de tra­ços delicados, onde os olhos, de um azul-escuro e fascinante, pareciam raras safiras. Mantinha os lá­bios entreabertos, como se quisesse embriagar-se do cheiro penetrante do mar. O robe de gase branca es­voaçava, deixando aparecer nesgas do pijama de ce­tim azul. Lembrava uma sereia dos mares, um ser de sonhos e irreal.

Xavier, que vinha caminhando pelo convés, o bo­né enterrado na cabeça e as mãos nos bolsos, parou subitamente, maravilhado, como se aquela figura de mulher fosse uma aparição, uma quimera, fruto da sua exaltada imaginação. Após alguns segundos, pis­cou, nervoso e deu alguns passos e, sem mesmo per­ceber o que fazia, debruçou-se ao seu lado.

— Um   espetáculo   belíssimo,   não   é   mesmo?   — disse com sua voz rouca e muito pessoal.

Kety,   que   não   o   tinha   pressentido,   virou-se   e sorriu.

Boa-noite, capitão.

Não sou o capitão. Conformo-me de fazer, às vezes, de primeiro oficial.

— Ah! Asseguro-lhe que não sou   entendida em navios e iates.

Xavier empurrou o boné para trás e sorriu, mos­trando os belos dentes, brancos e iguais. Kety certi­ficou-se que jamais vira outros tão perfeitos. O rosto viril pareceu-lhe possuir estranha beleza. Imaginou se seria o luar, que escondia os defeitos, mas, apesar dele, gostou daquele homem de sorriso um pouco ex­citante e olhar profundo.

Tornou a olhar para o mar, um pouco incomo­dada, porque os olhos do companheiro insistiam em fitá-la com certo atrevimento. Perguntou:

Que horas são?

Quatro da madrugada.

Pensei que todos dormiam.

E estão. Eu estou de vigia.

Ah! sim.

O silêncio os envolveu. Xavier aproximou-se mais e fitou-a bem de perto.

Ainda não tinha navegado?

É a primeira vez.

E no entanto, não enjoou. E suas amigas...?

Dormindo.

Também não enjoaram?

         — Também não.

É extraordinário.

Por quê?

É muito raro não enjoar, quando se navega pela primeira vez.

Será que nós temos alma de marinheiros?

—      Talvez.            Ambos riram.

Súbito, uma figura, de homem apareceu muito perto deles. Era Tomás, que acordado pelo murmú­rio das vozes, levantou-se para investigar quem es­tava conversando. Vestia calças cinzas e suéter azul, de gola alta. Tinha os cabelos apenas escovados para trás, e os olhos ainda sonolentos. Era um tipo e tan­to e Kety, ao vê-lo, resolveu que lhe agradava mais do que o primeiro oficial.

Ora, aqui temos o Tomazinho — riu Xavier, mas com vontade de morder porque o intruso   iria roubar-lhe alguns minutos, a sós, com aquela divin­dade.

Boa-noite —   saudou Tomás alegremente.   — Que ideia foi essa de despertar as pessoas? Chamo-me Tomás, senhorita, e sou o segundo oficial deste barco de sonhos.

Seu sorriso alegre contagiou Kety, embora esta pudesse ver um traço de ironia nos olhos castanhos do nosso zombeteiro amigo. Estendeu-lhe a mão e To­más apressou-se em apertá-la com força entre as suas.

A senhorita é admirável. Aprecio as mulheres assim.

Como?

Assim, como a senhorita. Não fica mareada, não se impressiona ante a solidão do mar e não se altera diante dos marujos... Estou apostando como Xavier não conseguiu entretê-la um só minuto.

Que história é essa? — Não estou gostando!

Não se exalte, Xavier. Já sabe que eu não me aborreço. — Voltou-se para Kety, que observava-os, divertida, e acrescentou num atropelo de palavras: A senhorita, o que diz? Não é verdade que Xavier é um idiota?

Olha, olha...

Mas foi inútil. Xavier compreendeu que o ami­go estava manobrando para ficar só com aquela bel­dade cinematográfica, e achando que estava sobran­do, não teve outro remédio senão bater em retirada, ante tal evidência. Ninguém podia com aquele Dom Juan, embora ele, Xavier, presumisse ser muito me­lhor. Quando Tomás se dispunha a roubar-lhe a da­ma, tinha que cedê-la, porque, em se tratando   de saias, lutar com ele era pura perda 'de tempo. Era muito pacífico, quando não lhe   interessava a   mu­lher que os amigos disputavam. Mas, sem a menor dúvida, roubava-a com facilidade quando a dama des­pertava o seu interesse e parecia que a belíssima Kety despertara os sentidos do nosso segundo oficial. Não .dizemos que despertara o coração,   porque teríamos mentido. O coração de Tomás era uma pedra.

Ouça, Xavier, a ponte de comando está tão aban­donada quanto um cão sarnento. Ande, Xavierzinho, porque se o capitão aparecer, você estará perdido.

Xavier compreendeu que aquilo era o fim, era uma ordem, e como notou nos olhos cinzentos uma súplica mal dissimulada, saudou Kety com uma in­clinação de cabeça e encaminhou-se para a ponte.

Após certificar-se que ele não podia ouvi-lo, in­clinou-se para Kety e disse baixinho, em tom grave:

É um Dom Juan. É preciso ter cuidado com ele

—É o senhor não é?

As pupilas de Tomás faiscaram.

— Eu não. Sonho com o amor. Quero senti-lo com toda a força do meu temperamento exclusivista. An­seio possuir uma mulherzinha e entregar-lhe, intei­ro, o meu coração. — Riu suavemente e inclinando-se mais um pouco, murmurou, atrevido: — A senho­rita me agrada.

Heim!

Bem, "não me leve a mal. A verdade é que me agradou desde que a vi subir no iate. Além do mais, sou um rapaz muito sincero, compreende? Outro, em meu lugar, não teria confessado a admiração que a senhorita despertou, com tanta simplicidade.

Calma, calma, meu amigo. Pelo que vejo, pos­sui um coração de manteiga, que se derrete à toa.

Não caçoe, pois digo-lhe a verdade — mentiu o espertalhão. — Agora   mesmo, deitado em minha cama, sonhava com a senhorita. Ao ouvir a sua voz, saltei da cama como um alucinado e, ao   vê-la no convés, senti-me o mais feliz dos homens.

—Tenho, que   dizer,   então,   que   sou a   mulher mais feliz deste planeta, por merecer sua admiração,

Tomás compreendeu que aquela bonequinha tinha um coração bastante "duro", mas, mesmo assim não desanimou. Recordou as recomendações do capitão: "Demonstrem que são marinheiros nobres e honrados. Usem este uniforme como se fosse uma coi­sa sagrada." O capitão estava louco. Qual deles não se derreteria ante uma beldade como: aquela? Ne­nhum. Claro que o capitão tinha o coração bem go­vernado pelo cérebro mas, mesmo assim, gostaria de ver como agiria nas mesmas circunstâncias, ao lado daquela beleza, tendo por fundo o céu pontilhado de estrelas cintilantes.

—Torno a repetir que não zombe. Estou dizen­do a verdade. Nunca fui compreendido por mulher alguma — sorriu como se a amargura sufocasse sua voz. Que artista, santo Deus! E continuou, pesaroso: —Se eu fosse um magnata, as mulheres disputariam as minhas atenções, mas, como sou apenas um pobre marujo..., nada,   senhorita,   nada. Perdôe-me falar-lhe desta maneira, mas nunca tive com quem desaba­far e a verdade, é que tenho sofrido muito. A senho­rita já sabe que os homens" do mar são volúveis, mas, eu lhe afirmo que isso é mais fama do que a reali­dade. Ninguém crê em nós e, no entanto, nossa mais ardente   aspiração é sermos amados e amar inten­samente. Ah, que vida mais cruel!

Suspirou fundo, como que sufocado por intensa emoção. Kety olhou-o fixamente, não podendo con­ter uma risada cristalina.

Nunca esteve apaixonado?

Ah, senhorita! Quem quereria este pobre ma­rinheiro?

Não me diga que jamais teve uma namorada.

Pois é assim. Nunca tive, porque ninguém ja­mais me quis — soltou um tremendo suspiro e aper­tou os lábios. — Não se ria de mim, porque lhe falo com franqueza. A verdade é que a senhorita inspi­ra-me muita confiança. Jamais falei com uma mu­lher, como faço agora. Sou um incompreendido.

Um assobio longo e agudo partiu da ponte.

—O que é isso? — perguntou Kety, um tanto assustada.

Tomás enviou um olhar fulminante através da escuridão, como se quisesse pulverizar o intrometido Xavier, que tentava atrapalhar seu "comovente" de­sabafo. "Ah, invejoso, o que você não daria para estar no meu lugar!" Sem parecer ter notado a per­gunta formulada por Kety, continuou:

Quisera ser seu amigo, senhorita.

Chame-me Kety. Eu prefiro assim. O que foi aquele assobio?

Não se preocupe, é uma contra-senha, um si­nal de bordo. Dizia que posso chamá-la Kety? Não sei se poderei.

Por que não? — após pequena pausa disse: — Que esquisito! Nunca pensei que as contra-senhas fossem assim.

Pois são assim. Bem, eu a chamarei Kety. Tem um nome muito lindo.

Kety ouvia-o distraída. Sua atenção estava vol­tada para a ponte de comando, dei onde procedia aquele estranho assobio. Um, sinal de bordo! Bem, talvez o fosse mas... O melhor era recolher-se.

Vou voltar ao leito — disse o mais sorridente possível. —   Amanhã pode continuar fazendo-me a corte.

Oh, como está zombando de mim, ingrata!

Kety vislumbrou zombaria naqueles olhos e ju­rou fazer p tal oficialzinho meter a viola no saco, ao comprovar que não se enganava Kety San Martin as­sim tão facilmente. Se ele pretendia brincar, não havia dúvida que ela entraria na brincadeira, com muito prazer, aliás. Estendeu a mão, que ele apertou entre as suas e, subitamente, beijou a palma fria.

Kety estremeceu sob o impacto daqueles beijos. O contato dos lábios quentes daquele homem em sua mão, deixou-a suspensa um pouco atemorizada. To­más olhou-a suplicante.

      Perdoe   minha   audácia, Senhorita   Kety.   Es­tou envergonhado de mim mesmo.

Kety sorriu um pouco forçada e, sem responder, desapareceu pela porta que levava aos camarotes.

Tomás ficou alguns minutos imóvel. Depois, gi­rou sobre os calcanhares e encaminhou-se para a ponte.

Você é um sem-vergonha — vociferou Xavier,indignado. Se Luís José soubesse, lançava-o pela bor­da para que servisse de pasto aos tubarões.

Que medo!

Não ironize. E sou eu quem tem má fama no que concerne a mulheres, mas, como é um hipócrita, ninguém desconfia e apenas eu sei corno você na rea­lidade é.

Dói que eu tenha lhe roubado a presa, heim amigo?

Xavier   levantou a   mão, ameaçador.

      Não insulte, porque, pela primeira vez na vi­da, não sei se vou poder conter-me.

Tomás não deu importância à ameaça. Sentou-se no convés e .disse, inalterável, enquanto acendia o cachimbo:

      Sabe muito bem que saí do camarote com o objetivo de estragar a sua conversa e se assim fiz, foi porque sou leal. Você estava ao lado dela pen­sando na sua beleza e no que esta podia proporcio­nar-lhe, e como lobo mau, disposto a beijá-la tão logo se apresentasse a ocasião — lançou uma bafo­rada   de fumaça e sem dar importância ao cenho terrivelmente franzido do amigo, acrescentou, sereno: — Eu sou diferente. A moça agrada-me e sei que, ape­sar de tudo, é uma inocente. Disse-lhe mil tolices, nas quais, naturalmente,   não   acreditou.   Você não lhe teria dito nada do que eu disse. Você se teria li­mitado a calar e aproveitar. Somos diferentes, Xa­vier. Tem um conceitp pouco lisongeiro sobre as mulheres, e não se detém para pensar que nem todas são iguais. Estas que hoje estão sob nossa custódia, são sagradas para nós. Pode brincar, se a ocasião for propícia, mas não tente abusar da sua inocência, porque, então, terá que se haver comigo.

As feições de Xavier estavam alteradas. Ele bem compreendia e no funda estava convencido, de que Tomás tinha razão, mas não menos certo de que, no que dizia respeito àquelas mulheres...

—Vou voltar para a cama — finalizou Tomás, levantando-se e sacudindo o cachimbo. — Estou mor­to de sono.

Xavier deteve-o pelo braço.

Por que afirma que são umas inocentes?

Porque está   estampado em seus rostos. Será que está cego?

E virando-lhe as costas, desceu da ponte, indo para seu camarote.

Já estavam no terceiro dia de viagem. Kety e suas amigas passavam muitas horas conversando com os três rapazes, e a intimidade entre eles aumentou de tal forma que, certa ocasião, entretidos em ani­mada conversa, sentados no salãozinho de estar, sur­preenderam-se usando o tratamento familiar, como a coisa mais natural do mundo.

O único que sempre se mantinha mais distante, embora estivesse muito perto, era Luís José, que sé­rio e silencioso, limitava-se a ouvir a conversa dos companheiros, sem nela tomar parte.

Naquela tarde, estavam no salão, com o rádio li­gado.

Luís José, recostado na amurada, olhava o mar, alheio à animação que reinava na sala de estar.

—      Sempre só e silencioso — disse uma voz feminina, às suas costas.

Luís José tirou o cachimbo da boca e voltou-se. Adela estava à sua frente. Para seu gosto, a mais bonita de todas. Pitou-a, muito sério, e encolheu os ombros.

—      São muito, barulhentos.

—     O silêncio atrai tmais ao senhor.

—      Por que chama aos outros de você e a mim, não?

Perdôe-me. A verdade é que seu aspecto se­vero impressiona-me um pouco.

Pois asseguro-lhe que não sou casmurro.

Vamos, pode dizer isso a Marisa, que   certa­mente acreditará.   Mas,   tratando-se de mim, perde seu tempo, já que o vejo.

E o que vê?

É sério por natureza, concentrado, anda sem­pre perdido nos seus pensamentos, sem reparar nos que o rodeiam. Vai rir de mim, mas muitas vezes já me disse, muitas vezes, que você está apaixonado por uma coisa impossível.

O rosto de Luís José iluminou-se num grande sorriso, que depois transformou-se em alegre garga­lhada.

Acertei?

Por Deus, não. Venha, se não se importa, pas­searemos pelo convés e eu lhe direi o que sinto.

Adela não hesitou, e começaram a caminhar lentamente.

É exato que estou enamorado — disse de re­pente —. Adela sentiu que um amargo   desencanto feria seu coração bondoso. — Tremendamente apai­xonado. Que lhe parece?

Muito natural. Continue.

Estou enamorado do amor.

Como?

Sim. É ridículo   que   na minha idade   ainda pense assim. Você é a primeira mulher que me ouve falar assim. — E era verdade. — Desde muito jovem comecei a lidar com mulheres. Mulheres boas e mu­lheres más. Perdoe por falar   assim tão cruamente, mas é imprescindível, se quiser saber o que sinto. Esta experiência ensinou-me muito. Compreendi que a maior felicidade de um homem   consiste em en­contrar uma mulher   boa, que saiba compreendê-lo e amá-lo de verdade. Eu procuro essa mulher e não consigo encontrá-la. Mas estou enamorado. Estou re­pleto de amor e não sei a quem entregá-lo. Gosto de uma e logo descubro que gosto de todas. Entende? Por isso, estou   sempre   taciturno e mal-humorado. Gostaria de dedicar esse amor a uma só mulher, vi­ver para ela e que ela vivesse só para mim.

Procure-a.

Sem   dúvida. Mas requer paciência   e obser­vação.

Luís José parou subitamente. Olhou-a bem no fundo dos olhos. Adela sentiu uma estranha sensa­ção percorrer-lhe o corpo.

Seria capaz de amar-me como eu desejo?          Adela estremeceu.

Não sei. Podemos experimentar.

—      E não se importaria, você, uma milionária, de unir sua vida risonha à de um pobre marujo   co­mo eu?

O coração leal de Adela pareceu sair do lugar. Milionária! Pela primeira vez, desde que a viagem tinha começado, lembrou-se da fraude e sentiu raiva de si mesma.

—      Os milhões   — respondeu —,   são para mim uma coisa sem importância. Não me importaria de amar um rapaz pobre — acrescentou, com raiva. - Desejo apenas amar um homem leal, nobre e hon­rado. Quanto ao dinheiro, desprezo-o.

—      Então, Adela, se eu lhe pedisse que experi­mentasse querer-me...

—      Nada poderia -responder-lhe, porque até que a viagem termine, não quero saber de amores. Não que­ro pensar, não quero sentir, está ouvindo? Não quero!

E, deixando-o só e atônito, correu para o salãozinho, onde suas amigas dançavam ao som do rádio.

Luís José ficou parado por alguns instantes. De­pois, sem pressa, dirigiu-se para o seu camarote.

Estava convencido de que era um idiota. Com que fim pedia carinho, àquela moça? Conheciam-se há dois dias, no máximo, três... No entanto, estava con­vencido de que Adela encarnava o seu ideal. Via em seus olhos bondade, nobreza de coração e sua boca revelava uma deliciosa inocência, tal como desejava encontrar na mulher que compartilharia de sua vida. Não obstante, uma vez mais chamou-se de visionario. Por que estava convicto da sua bondade, se ain­da não tivera provas? Era seu instinto que o afirma­va e ele jamais se enganara.

Suspirou com força e saiu do camarote. Entrou no salãozinho no momento em que os alegres Xa­vier e Tom enlaçavam as duas moças, digpondo-se a dançar um samba. Adela estava sentada numa pol­trona macia, calada e pensativa, com o olhar distan­te a boca crispada.

—Dance, capitão. Ali está o seu par — disseram, ao mesmo tempo, seus amigos. Luís José avançou lentamente. Parou diante da silenciosa Adela e disse muito baixo, ao inclinar-se para ela:

Aborreci-a, mocinha?

Que tolice!

Pois então, venha. Vamos dançar. Estou cer­to de que, assim, eu lhe parecerei menos sério.

 

O iate tinha ancorado em Santander.

Eram onze horas de uma noite cálida e luminosa. Marisa, sentada na amurada, olhava, invejosa, as, lu­zes da cidade.

—Vamos à terra, Marisa?

Ao ser interpretada, virou-se e deparou com os olhos de Xavier fitando-a alegremente.

Agrada-me e não me agrada.

Como se entende isso?

Vai ver. Agrada-me ir, se formos todos. Não me agrada, se for sozinha com você

Tem medo de mim?

Ora, rapaz, não delire — disse, gaiata. Não tenho medo nem do bicho papão e vou ter de você, um coitadinho.

Muito obrigado.

A moça, sem se dar conta de sua ironia, afastou-se, indo ao encontro das suas companheiras.

Que acham de irmos dar uma volta? Assim, continuaríamos a viagem amanhã, ao amanhecer.

Não seria mal — disse Kety, olhando Tomás.

O capitão consentiu e logo os três casais saltavam no cais.    

A noite estava bonita. Nossos amigos não preci­saram de um táxi, pois Xavier conhecia todos os re­cantos da cidade e guiou-os pelas ruas iluminadas.

Gostaria de me casar com você e que esta fos­se a minha viagem de núpcias — sussurrou Tomás ao ouvido de Kety. — Não se emociona?

Não.

E por que, não?

Porque não acredito nas suas palavras. Sei que não o interesso e não me quererá jamais.

Pois se engana, porque já estou querendo:

Está certo?

A pergunta era profunda e séria. Tomás calou-se e, a seu pesar, se fez a mesma pergunta. Gostava dela de verdade? Não estava muito seguro do contrá­rio. Estava levando as coisas na brincadeira, mas, tal­vez, caísse na rede.

—      Não, não estou — disse francamente. — Mas, talvez, logo esteja.

Mais adiante, Marisa. de braço dado com seu par, ia entusiasmada. Não ligava muito aos protestos da amor daquele atrevido, mas, sem dúvida, gostava de ouvi-lo. Das três, era a mais inocente. Por isso, talvez, sentia o amor de outro modo. A imagem de Xavier estava gravada na sua retina, e... o que era pior: es­tava chegando ao seu coraçãozinho.

"Sou um desalmado — se dizia Xavier. — Estou enganando-a. É óbvio que me agrada, mas não me apaixona e não me apaixonará nunca. E, no entanto, gosto de iludi-la. Bem, é jovem, logo me esquecerá. Esta viagem será grande e quando terminar, já estará convencida de que não há nada a fazer, a meu respeito.

E, chegado a esta conclusão, Xavier continuava a cortejar a ingênua pequena, sem preocupar-se com o que pudesse suceder depois.

Atrás deles, completando o grupo, Luís José e Adela caminhavam lado a lado, ambos silenciosos.

Nossos amigos entraram numa buate, a mais ele­gante da cidade. O bar ficava na entrada, uma pista de dança no cefntro da sala luxuosamente decorada e as mesas ao redor...

Sentaram-se numa mesa bastante afastada da pista de dança. Marisa e Xavier foram dançar. Os dois outros pares ficaram sentados.

—      Quero   dizer-lhe algo,   Luís José   — insinuou Adela.

—      Vamos dançar? Assim poderá falar livremente.        Adela levantou-se e começou a andar. Antes de chegar à pista voltou-se e disse:

Não estou com vontade de dançar.

Então venha. Vamos para o terraço.        Ficaram em silêncio por alguns minutos. Depois,

Luís José segurou-lhe a mão.

Fale, Adela.   Você está muito pensativa. Que teme? O que está pensando?

Diga-me — perguntou, sem olhá-lo. — Que es­pécie de homem é Xavier?

Xavier! Por que faz esta pergunta?

 

Porque estou interessada em saber. ,       — È um cavalheiro.

Sim, isso eu sei que ele é.

Então...

Pode ser um cavalheiro e não ter sentimentos.

Os cavalheiros sempre têm sentimentos.

A moça fitou-o, com seus olhos grandes e serenos.

—      Não diga tolices. Bem sabe que não está dizen­do o que realmente pensa — suspirou e acrescentou, preocupada: — Tenho medo, por Marisa. É uma menina doce e confiante e seu amigo Xavier não me inspira nenhuma confiança.

— Não tema. Xavier é um rapaz honrado. Ele está convencido de que não é. Imagina-se um Dom Juan, um homem experiente, mas no fundo, não passa de um rapazinho.

Ditas aquelas palavras, enlaçou a cintura delicada e juntos, lançaram-se no torvelinho da dança. Foi en­tão, ao ver a preocupação de Adela em relação à sua amiga, que teve a certeza dos seus sentimentos. Ela tinha tomado posse do seu coração e, sem poder con-ter-se, apertou-a com força contra seu corpo. Incli­nando a cabeça, colou seu lábios ardentes na orelhinha rosada, murmurando com paixão:

— Eu a amo, Ade. Não sei, na realidade, quem você é, nem de onde veio. Sei apenas que chegou ao meu coração que eu jamais permitirei que se afaste de mim.

A moça embriagada por aquelas palavras de amor, pela doçura com que ele pronunciou, deixou-se condu­zir suavemente, sem protestos, inundada por infinita ternura.

Quando, três horas depois, regressaram ao iate, iam muito felizes. Todos estavam contentes e, ainda que cada um tivesse a sua preocupação, a felicidade do momento fazia — os esquecer todo o resto.

O iate partiu ao amanhecer.

Adela, recostada nos grandes travesseiros da sua cama, estava acordada, imersa em mil pensamentos. Sentia que uma força poderosa empurrava-a para Luís José, mas receava entregar-se àquele sentimento, com medo de um desengano. Além disso, ignorava por com­pleto tudo relacionado àquele homem. Não sabia de onde procedia e nem quem era. Desejou, ardentemente, ter ao seu lado a bondosa D. Pilomena, quê, estava certa, saberia aconselhá-la, como a uma filha.

Seus pensamentos foram interrompidos pelo ba­rulho que fez a porta ao ser aberta bruscamente. A linda figura de Kety apareceu na entrada do seu ca­marote.

Está dormindo, Adela?

Não. Entre e feche a porta.

Kety, de um salto, estendeu-se na cama. Cobriu o rosto com as mãos e suspirou com desespero.

Sempre tive a certeza de que você era a mais sensata das três, mais nunca estive tão convencida como agora.

O que aconteceu?... Fale claro, para que possa compreender.

Oh! Adela, de nós três, você foi a única que não se apaixonou! Meu Deus! E eu o estou, como uma colegial, por esse fingido, que jura que me ama e eu, como uma boba que sou, na hora acredito para depois quando estou sozinha, chamar-me de imbecil e estú­pida e começar a duvidar. Duvido do amor que ele diz sentir por mim.

—      Acalme-se — aconselhou Adela, emocionada. — Vamos, conte-me tudo.

Kety descobriu o rosto. O brilho emprestado pela amargura, dava maior beleza aos seus olhos. Estava linda! As lágrimas molhavam a face morena e os lá­bios carnudos tremiam, incontroláveis.

Você é mais esperta, Adela. Como faz bem em não acreditar no amor!

Sim, é claro. Eu não acredito.

E a angustiada Adela apertava as mãos, enquanto seus olhos continuavam interrogando a chorosa Kety.

— Esta noite ele me beijou. Pensei morrer. Meu Deus!

—      Como você consentiu? Beija-la! É vergonhoso que uma mulher como você,..   Parece até mentira, Kety!

Kety ia dizer alguma coisa mas não pôde. A porta do camarote foi novamente aberta e Marisa entrou, meio sem graça.

—      Marisa! — gritou Adela, assustada.

A mocinha jogou-se na cama, por cima de Kety, e começou a soluçar alto.

—      Já o conseguiu... Pobre de mim! Estou per­dida. Ah, Adela, você é a mais sensata, a mais mulher, a mais...!

Calou-se. Levantou o rostinho molhado pelo pran­to e, com os olhos muitos abertos, gritou angustiada:

Beijou-me com tal força que até agora, ainda não recobrei a respiração!

Que está dizendo, Marisa? Como pôde permi­tir? ... Que espécie de mulher é você? Meu Deus, é desesperador! Acabou-se a viagem. Amanhã regressare­mos a Bilbao.

Andar? Digo, regressar? De modo nenhum. Está ouvindo? Pode voltar sozinha porque nós vamos con­tinuar nosso cruzeiro. Não faltava mais nada!

Ao concluir, Kety rompeu em grandes soluços, sa­indo da cama. Marisa também se levantara, e olhava, desafiante, para Adela, que estava com ar tristonho.

—      Bem, continuaremos a viagem, já que o exigem, mas, não me façam responsável por suas fraquezas — disse Adela, friamente.

Marisa atirou-se em seus braços, suplicando:

Adela, pelo que tem de mais sagrado, não me olhe assim. Sei que fiz mal, mas... — fechou os olhos e murmurou sonhadora: — os lábios de Xavier tinham gosto de mel.

Marisa!

— Não posso mentir! Gostei tanto, que estou de­sejando voltar para seu lado.

— Marisa!

—Como me senti feliz! — continuou, não dando importância à exclamação da amiga. — Nunca me senti tão feliz como quando ele me abraçou. — Suspirou profundamente e, como quem sai de um sonho para um pesadelo, gritou, entre soluços: - Mas, como pude fazê-lo? Como consenti que me beijasse?

Como uma menina, e na realidade quase era, abra­çou-se novamente a Adela, chorando desconsoladamen­te. Esta, compassiva e carinhosa, acariciou seus cabe­los e apertou-a contra o coração.

Kety não sabia o que dizer. Estava tão, profun­damente emocionada!...

Contou tudo a Luís José, naquela mesma manhã,

E que quer que eu faça?

Que chame a atenção dos seus oficiais.

É impossível, Adela. Xavier já é um homem e Marisa, uma mulher já feita.

É uma menina.

Talvez o tenha sido até agora.

—Não posso consentir que a viagem continue. Luís José olhou-a fixamente.

—E por quê? Afinal, não há nada extraordiná­rio que se queiram. Com isso demonstra que tem mais coração do que você.

Por alguns instantes, Adela ficou extática. Depois virou-se e foi para seu camarote.

Luís José, com um sorrizinho divertido nos lábios, encaminhou-se para a ponte, onde se encontravam seus dois amigos. Ao aproximar-se, o sorriso cedeu seu lugar à uma expressão exageradamente séria.  

Olá! — saudou friamente.

Olá, companheiro. Está com cara de poucos amigos.

— É claro!   Quem pode   sorrir,   vendo-os à sua frente?

O capitão estava furioso

São dois canalhas — vociferou, indignado. Por que abusam dessas mocinhas inocentes?

Abusar! — retorquiu Xavier, petulante.— Bei­jar sua pequena não é abusar... Aposto cinco contra mil, como você beijaria, com a máxima boa vontade, esta sua esquiva donzela.

Cale-se! Você é ridículo.

Juro que nunca me senti tão bem!   — disse, pondo-se de pé e enfrentado o enfurecido capitão.

E repito que nunca me diverti tanto.

É tudo o que tem a dizer?

Parece-lhe pouco?

Que pensam fazer quando esta viagem terminar? Pelo que sei, os dois são ferrenhos adversários ao casamento. Já ouvi você apregoar, Xavier, em altas rozes, que se aferraria ao celibato, enquanto Deus lhe desse forças para tanto. Será que mudou de ideia?

Jamais!

E no entanto, afirma que Marisa é sua pequena.

Assim é.    .        .       '

—Que fará dela, quando a viagem findar?          Á resposta foi rápida:

— Adivinhe, sabichão!

—São uns malandrões e eu tenho pena de vocês. Parece incrível que tenham tão pouco juízo.

Xavier lançou sobre o enfurecido Luís José um olhar zombeteiro e disse, alegremente:

—Escute, Luís José. Pode ser que não suceda na­da de anormal entre Marisa e eu. Não pesso negar que ela me atrai muito, tanto que, às vezes, me afasto para não cometer uma loucura. Mas ainda assim, é possível que eu me case com ela. Se, quando a via­gem acabar, eu chegar à conclusão que, realmente, gosto dela, mando o celibato para o diabo. Também, se tenho a certeza de que continuo brigado com o ca­samento, nem Marisa, ou outra mulher, me conquis­tará. Amo a liberdade, me entende? Amo-a apaixona­damente, como agora amo Marisa.

—      E o que mais você quer? Se está certo de amar Marisa, case-se com ela. Estou convencido de que não haverá nada que iguale o carinho de uma esposa.

A gargalhada de Xavier foi estridente.

Tomás passou a mão pelo queixo, enquanto man­tinha os olhos fixos nos amigos. Adorava vê-los discutirem. Sabia, também, que as palavras de Xavier não correspondiam aos seus sentimentos. Havia algo na­quele rapaz que não conseguia classificar, mas ape­sar disso, tinha a certeza de que ele gostava de apresentar-se aos olhos do capitão como um cínico, quan­do, na realidade, era um ótimo rapaz.

Não estou interessado em experimentar o cari­nho de uma esposa, sua dedicação, nem nada seme­lhante. Não sabe que as mulheres são todas iguais?

Se pensa assim, como se atreve à jurar amor a uma moça?

—      E o que tem? Alguém precisa Iniciá-la no amor. A indignação de Luís José atingiu o auge.

—      Ou você é um estúpido ou um malvado! Farei Marisa ciente do que a espera.

E deu meia volta. Xavier sentou-se ao lado de To­más, que tinha achado a cena extremamente divertida.

Você o assustou — disse irónico.

Foi exatamente o que quis fazer,

O que sente por Marisa?

Ainda não sei. Agrada-me muito. Nunca lidei com uma mulher tão excessivamente ingênua.

É uma mocinha.

Sim, uma menininha deliciosa. E você, por Kety?

Creio que a adoro. É muito bonita.

Só por isso?

Breve saberemos.

Sem dar mais explicações, acendeu o cachimbo e ficou contemplando as caprichosas espirais que a fu­maça traçava no ar.

A manhã estava clara e radiosa. O mar, acaricia­do pelos raios dourados do sol, parecia arder, enquan­to se abria em sulcos borbulhantes por onde passava, veloz, o lindo iate.

 

ENTARDECIA.

Luís José, estendido na cama, estava quieto e pen­sativo. Tinha na mão um jornal de dias atrás. En­contrara-o, por acaso, numa maleta e na falta de coi­sa melhor para fazer, passava os olhos, distraído, pe­las suas páginas.

Fumava um cigarro, cuja fumaça desenhava for­mas sem nexo no ar, ora subindo, ora descendo, con-' forme os caprichos da brisa suave que penetrava pela escotilha.

Tinham aportado em Gijon. Seus amigos tinham saído para dançar, mas ele preferira permanecer a bordo.

Pensava em Adela, que imaginava em seu cama­rote, lendo ou pensando. Era estranha aquela moça. Séria e decidida, empenhava-se em viver sua vida, sem se importar com os desejos e vontades dos demais. Muitas vezes, quando ficava a pensar nela, o que por sinal era bem frequente, sentia que havia algo estra­nho em sua vida, já que vislumbrara, por várias vezes, bem no fundo dos seus olhos, uma expressão indefiní­vel. Seria temor? O que sentia Adela? O que lhe acon­tecera? Por que, invariavelmente, estremecia quando ele chegava perto? Qual seria o motivo da sua obsti­nada recusa à sua oferta de amor?

Não que Adela, fosse uma moça fria e incapaz de amar. Não, isso não. Quase podia jurar que havia no seu coração uma boa dose de paixão, numa luta ingente para se libertar, sempre vencida pela sua vontade e auto-controle.

Distraidamente, virou uma página e seus olhos fixaram-se num parágrafo. A princípio ficou em sus­penso, mas depois...

"Quem estiver disposto a livrar-se de um milhão procure Marisa Torres, Adela Blanco e Kety San Martin, as datilógrafas que..."

Pulou da cama e soltou uma gargalhada estridente. Qual seria o significado daquilo? Febrilmente, pro­curou a data do jornal. Era, precisamente, a do dia em que tinham decidido ajudar o seu velho amigo. Então... A coisa era bem própria de Teófilo! Luís José riu-se até as lágrimas. Depois, destruiu o jornal e, sem hesitação, saiu do camarote. Estava tudo explica­do. Agora que compreendia, achava uma graça enorme. Era hilariante! Era exato que podia desejar o amor de uma mulher, mesmo que esta possuísse vin­te milhões, mas não menos exato que, se contivera seus impulsos em relação à Adela, fora porque pen­sava ser ela dona de fabulosa fortuna. Mas agora ao saber, quem ela era, sentia-se o homem mais feliz do mundo.

Não, nada diria a Xavier e Tomás, nem uma pa­lavra. Somente ele saberia a verdade, e quando che­gasse a hora de pôr as cartas na mesa, bem...

Chegou á coberta. Lá encontrou Adela, debruçada sobre a amurada, com os lindos olhos, como sempre um pouco tristes, cravados no pôr do sol. Era a moça mais bonita de quantas havia conhecido.

Por que não saiu? — perguntou, parando atrás dela.

Não tive nenhuma vontade.

Você é uma moça que não gosta de diversões.

Tudo isso me cansa.

Porque você já viveu muito.

Adela virou-se de repente, e seus olhos seíenQS fitaram o rosto sorridente de Luís José.

Por que fala assim? Ainda não tinha vivido até agora, e você está vendo bem como vivo.

Estou.

Adela desviou o olhar, porque o que lera no olhar dele lhe dava medo. Sentiu-o muito próximo e pres­sentiu que naquela tarde algo iria suceder entre os dois. Algo talvez terrível para sua tranquilidade espi­ritual .

Quer sair, Adela? Eu a levarei a um lugar mui­to bonito.

Não tenho vontade.

Luís aproximou-se ainda mais, muito lentamente, sem deixar de fitá-la.

Adela, por que é tão esquiva? Já me disse mui­tas vezes, muitas mesmo, que você não tem coração. Outras...

O que?

Que ama outro homem.

Tolice!

A distância entre os dois deixou de existir. Segu­rou-a pela cintura, sem que ela esboçasse reaçãe, g apertou-a contra o peito, sussurrando, em tom intenso e apaixonado:

Amo-a, Adela, Não me pergunte desde quan­do, nem por que, pois estou certo que não saberia res­ponder. Sei que a amo, que necessito da sua presença em minha vida.

Deixe-me!

—     Nunca amou ninguém, Adela?

Nunca.

E agora?

Não quero amar.

Olhe-me   bem   nos   olhos   e   repita.   Vamos, olhe-me.

Adela levantou os olhos devagar. Toda a luz que se irradiava daqueles olhos azuis, de expressão tão suave, ofuscou o rapaz, que ficou como que deslumbrado.

Apertou-a mais ainda contra seu corpo. Estava nervoso e emocionado.

Jamais a desejara tanto e tão intensamente como naquele instante.

—      Adela! — suplicou com voz suave, quase um sussurro. — Adela, minha criança, vou beijá-la.

Adela tentou soltar-se, mas não o conseguiu. Aque­les braços prendiam-na como tenazes.

—      Deixe-me, Luís! Pelo que tem de mais sagrado, volte para seu camarote!

Reinava um grande silêncio. Não se via ninguém na coberta. Apenas eles, muito juntos, abstraídos do mundo e concentrados em si mesmos.

Subitamente, como que tocado por uma descarga elétrica, o corpo de Luís José pareceu vibrar. Apertou ainda mais o corpo esbelto de Adela e colou sua ca­beça à dela.

—      Tenho que beljá-a — disse, quase sem voz. — Tenho que beija-la, Ade. Necessito-o

Não pôde conter-se. Esqueceu tudo. Sua condição de moça humilde, as circunstâncias que a tinham colocado ali e até o lugar onde se encontravam. Uma sensação desconhecida a dominava. Não lutou maia. Levantando os braços, abraçou-o, apertando-se contra ele.

Luís José perdeu a noção de tudo, Sabia apenas que a tinha em seus braços, passiva e apaixonada, e que necessitava beijá-la com toda a sua alma.

Colou seus lábios nos dela, comprimindo com for­ça aquela boca rosada. Depois, uma ternura infinita invadiu seu coração e foi então que se viu dominado por uma ânsia louca de protegê-la e adorá-la até a morte.

—      Minha vida! — disse veemente. — Jamais imaginei que o amor fosse assim. Você é minha, Adela. Minha para sempre.

Uma gaivota voava lá longe. O mar sereno e azu­lado continuava batendo suavemente no costado do late.

 

—      Estou com vontade de dançar, Xavier. Por que não me leva ao Clube Náutico?

O marujo assobiou, brincalhão.

E que mais quer a minha menina?

Não brinque.

— Mas, minha pequena, como vou zombar de vo­cê? Digo-lhe simplesmente que é impossível.

Estavam encostados na amurada que cercava a praia. Xavier passara o braço em sua cintura e Marisa, sonhadora, contemplava a praia imensa, deserta àquela hora da noite.

A moça fez um trejeito de desagrado.

—      Creio que não seria assim tão difícil para você, Xavier soltou um rizinho sufocado. Claro .que não era, mas... e se encontrasse algum conhecido no luxuoso salão do Náutico? Não, impossível. Seus. pais estavam convencidos que tinha acompanhado Tomás nas suas férias, é era necessário que continuassem acreditando, até que a viagem terminasse. Depois con­taria .

—      Está na hora de voltarmos, Marisa. Amanhã partiremos de novo e, dentro de quinze dias tudo terá terminado.

A maça voltou-se, impetuosa.

O que disse? - quase gritou,

Que   dentro   de   quinze   dias   regressamos   a Bilbao.

—Suponho que nem por isso tudo há de acabar.

— Naturalmente.   Nosso amor continuará até a sacristia.

—Imagina que sou idiota e acho que sou mesmo. Sei que está dizendo mentiras, e no entanto, acredito.

Xavier puxou-a para si. Inclinando a cabeça, con­fessou, num sussurro:

Quero você de uma maneira muito intensa. Po­de ser que procure esquecê-la e, entretanto, para mi­nha desgraça, não poderei conseguí-lo.

E ainda confessa que gostaria de esquecer-me? Que espécie de amor é o seu, Xavier?

Este..

E, sem esperar resposta, demonstrou-lhe. A pobre Marisa, não pôde continuar resistindo, porque que­ria-o com toda a sua candura.

—É um cínico, mais ainda assim gosto de você. Não muito longe deles, Tomás e Kety conversavam baixinho. Estavam sentados num banco da praga solitária, muito juntos, mãos nas mãos.

Tenho medo deste amor, Tomás — disse Kety, com voz sofrida.

Medo? Eu, nenhum. Asseguro-lhe.

E quando nosso cruzeiro terminar?

Nós nos veremos em Bilbao.

— Oh, Tomás! Eu.não poderei vê-lo em Bilbano, já que vivo em Barcelona.

Tomás apertou as mãos dela entre as suas e levou-as aos lábios, beijando-as com carinho.

Nós nos casarentos, Kety — prometeu. Eu juro que nos casaremos.

É verdade, Tom?

A pura verdade, minha vida.

E era sincero. Tinha a certeza de que, apesar do seu horror ao casamento, Kety o faria chegar a ele de olhos vendados, porque de outra forma, a vida lhe pareceria insípida e fria.

 

NAQUELA mesma noite, Kety procurou Adela no seu camarote.

—Tenho uma coisa para lhe dizer — anunciou, sentando-se numa poltrona, em frente à sua amiga, a qual permanecera recostada na cama. — Tomás me quer o suficiente para casar-se comigo.

Adela lançou um olhar penetrante ao rosto radi­ante de Kety.

—Esta bem eerta?            — Completamente.

Eu, em seu lugar não estaria tanto, Kety. Já se lembrou, que dentro de quinze dias a viagem ter­minará e que, então, as três recobraremos nossa ver­dadeira personalidade. O que sucederá então?

Oh, Adela, você me assusta!

Você não pode fiar-se apenas nas aparências, Kety. Não ignora que o mundo está cheio de egoístas. Suponha, só por um momento, que Tomás se casa com você por seu dinheiro.

Adela!        

Eu disse que suponha, nada mais.

Não quero nem imaginar.

Pois é uma tola e isso uma tolice — disse com amargura. — É preciso pensar mais com o cérebro do que com o coração.

Kety atalhou-a, indignada.

Você pode proceder assim, mas eu, não. Te­nho coração, sabe? E, talvez, me falte o cérebro.

Outra rematada tolice.

Kety nervosa, apertava suas mãos, uma contra a outra.

—      Escute, Adela.   Será que nunca vai enamo­rar-se?

O rosto bonito de Adela ficou sombrio. Fechou os olhos e, ao tornar a abri-los, já estava novamente se­rena,

Não falemos de mim. Eu sou um alguém à parte. Diga-me o que pretende fazer quando esta far­sa chegar ao fim.

Nada. Irei à casa do sr. Teófilo e pedir-lhe-ei que me arranje um emprego. Nada direi a Tomás, até que esteja colocada.

É mal feito.

Eu agirei assim.

Com estas palavras, Kety levantou-se. Deu mela volta e tomou a direção da porta.

Adela também se levantou. Seus olhos cravaram-se nas costas da amiga, marejados de pranto. Teve ímpetos de confessar-lhe que também se encontrava nas mesmas condições, mas não pôde fazê.-lo, porque um nó de angústia apertava-lhe a garganta.

Quando Kety fechou a porta, atirou-se sobre a cama e rompeu em desesperados soluços.

Os dias sucederam-se vertiginosamente.

Fizeram escala em vários portos. Adela estava cansada da viagem, e tinha infinita vontade de re­gressar a Bilbao, de começar uma nova vida...

Via muito pouco a Luís José. Evitava-o sempre que podia. Antecipava, em pensamento, a hora da verda­de e, pessimista, via os três rapazes dizendo "se a co­nheci, não me lembro". Como isso doía, e como se de­sesperava, quando a sós consigo mesma, afirmava-se que esta seria a reação deles.

Faltavam dois dias para chegarem a Bilbao. Marisa e Kety, a cada dia que passava, ficavam mais apai­xonadas. Se havia reciprocidade de sentimentos, era algo que preocupava e entristecia a generosa Adela. A inconsciência de suas amigas preocupa-a profunda­mente, porque pressentia que o desenlace seria fatal para a confiança que ambas tinham no destino.

Na noite que antecedeu o dia da chegada, Luís José procurou os amigos e conduziu-os ao seu cama­rote.

—      Tenho que falar-lhes — disse, fechando a porta e indo sentar-se na cama. É preciso que me digam, sem rodeios, o que tencionam fazer com seus amores.

— Eu — respondeu Tomás, um pouco emocionado — quero casar-me com Adela. Concluí que a amo de verdade.

Luís José levantou-se e apertou-lhe, efusivamente, a mão.

—      Bravos, Tomás. Sempre pensei que você possuia nobreza de alma, Além do mais, Kety merece todo o seu carinho. Ê uma moça linda e boa.

Voltando-se para Xavier, que permanecera silen­cioso, interrogou:         ,        ,

—      E você?

Xavier se pôs de pé, meio nervoso. Andou, agita~ do, pelo camarote, e depois parou diante do seu ami­go, dizendo-lhe com esforço:

—      Não posso seguir os passos de Tomás Não me sinto com forças para ser fiel ao casamento. No mo­mento, gosto de Marisa, porque não vejo outras mu­lheres além dela. Amanhã, quando voltar à terra e me vir diante de mil rostos bonitos, tanto fará Marisa ou outra... — suspirou com força. — Não posso, Luís. É de todas as maneiras, impossível. Se algum dia me casar, será para ser fiel à mulher que escolhi. Se o fizesse agora, me desprezaria a mim mesmo.

Luís contraiu os punhos.

Você me causa pena, Xavier — disse friamente. — Sempre pensei que fosse um rapaz de sentimentos nobres, mas vejo que não nos enganava, ao assegu­rar que ainda não estava farto da vida de solteiro. Sim, eu o reconheço, você é um homem infeliz.

E você?

Eu?

Seus olhos adquiriram uma expressão muito doce.

Eu, Xavier, vou casar-me dentro de uma se­mana. Que lhe parece?

Casar-se!

Sim. Caso-me com a mulher que amo. Caso-me com Adela Blanco. O que diz?

O outro nada respondeu. Ficou um tanto pálido, enquanto escondia as mãos nos bolsos das calças dó uniforme, e reiniciava seu passeio pelo exíguo cama­rote.

—      E eis tudo, Xavier. Se você seguisse o nosso exemplo, estou certo de que seus pais aprovariam esta viagem, levada a efeito sem o seu consentimento.

Apesar de tudo, não julgo perder a sua amiza­de. Afinal, cada um é livre para fazer o que mais lhe apraz.

Certamente. Mas, nem por isso, pode evitar que censuremos a sua maneira de agir. Por que a enganou?

Xavier voltou-se, e lançou um olhar que caiu co­mo um raio na face serena de Luís José.

Nunca lhe disse que tencionava casar-me com ela — declarou com indiferença. — Estimo-a como uma boa amiga, mas, nada além disso.

Nunca me ocorreu beijar uma mulher por ser apenas minha amiga.

Novamente, o rosto de Xavier se alterou. Pareceu querer dizer alguma coisa, mas não o fez. Primeiro, ficou imóvel e, depois, dirigiu-se para a porta. An­tes de sair, porém, perguntou, com voz gelada:

É tudo o que tinha para dizer-me?

Não. Se eu quisesse, teria muitíssimo mais, mas, não tenho vontade de querer.

Muito bem.

Xavier saiu pisando com força e fechando a porta atrás de si. Luís e seu amigo entreolharam-se. De­pois, o capitão encolheu os ombros e disse:

É um caso perdido. Não há nada a fazer.

Acho, Luís, que ele ainda não se disse a últi­ma palavra. Kety e eu nos casaremos logo. Meus pais, há muito, desejam que eu o faça, não se importando com a mulher que eu ame, desde que seja boa e goste de mim. Espero que, quando Xavier nos vir em nos­sos lares, lhe entre na cabeça dura o desejo de, tam­bém, formar o seu.

É muito problemático.

É alguma Coisa e, tratando-se de Xavier Monreal, é bastante. É muito, mesmo.

Luís sorriu, duvidoso. Depois, dando a conversa por encerrada, estendeu, novamente, a mão ao ami­go, e logo em seguida ficou só.

Xavier, taciturno e mal-humorado, estava em pé, na ponte. Tinha brigado com Marisa naquela manhã. Tinha lhe dito, sem rodeios, que não se casaria com ela, simplesmente porque não a queria o suficiente. Contra sua espectativa, Marisa permaneceu inaltera­da, fria, como se aquilo não a afetasse, quando, na realidade, via destruídos todos os sonhos, todas suas ilusões, os desejos que pensou satisfazer e a própria vontade de continuar vivendo. Contudo, pela primeira vez, soube ocultar os seus sentimentos aos olhos dos outros, e ninguém avaliou corretamente, a dor inten­sa que lhe atormentava a alma. Valente e digna, com a dignidade que só surge nos grandes acontecimentos, ouviu as explicações de Xavier e quando este termi­nou, disse apenas, com voz fria e comedida:

—      Nunca esperei de você outra coisa, Xavier. Pas­sei esses dias ao seu lado, como os teria passado aolado de outro. — Não imagine que me colheu de surpresa. Afinal, sempre o vi tal como é.

A frase atingiu em cheio o seu orgulho masculino. Lançou-lhe um olhar irritado, Indagando;

Como me viu? Diga, como?

Tal como você é. Parece-lhe pouco?

Sou um homem digno.

Se estivesse tão certo disso, estou certa tambem de que não teria a necessidade de apregoá-lo em altas vozes. Não, rapaz.   Não fale em dignidade, pois a parte que dela lhe coube é mínima. Você é um presunçoso   desagradável e eu estou muito feliz por ter despertado a tempo dessa tola fantasia. Digo-lhe mais: para mim, você não passou de uma distração. Apenas isso, entendeu?

—      E você fala de dignidade? Você, que é mulher, não a mostrou em parte alguma. A uma "distração" não se beija com tanto ardor.

Foi um insulto bem próprio dele. Marisa levan­tou a cabeça e olhou-o desdenhosamente, da cabeça aos pés. Sentindo-se muito magoada, jurou a si mes­ma vingança, uma vingança muito cara para seme­lhante afronta.

—      Você é um canalha, Xavier — disse entredentes. — É um canalha e juro por Deus que algum dia há de sofrer muito. Lembra-se sem dó que lhe digo agora. Não esqueça nunca, ainda pagará por este in­sulto, e o remorso o acompanhará por toda a vida.          — Não creia que por eu ser ingênua e insignificante, pode zombar de mim impunemente.

Não esperou resposta e deixou-o. Entrou no ca­marote de Adela, que se ocupava em arrumar sua ba­gagem. Faltavam apenas horas para chegarem a Bil-bao e preparava-se para desembarcar. A bagagem de Marisa já estava pronta desde muito cedo.

Quando Adela reparou na figura encostada à por­ta, deu um grito e largou tudo, correndo para ela. O rosto de Marisa estava branco, de uma palidez transparente e assustadora. Tinha nos olhos uma tal expressão de fria imponência, como Adela não vira igual, Era como se o espirito adormecido da moça tivesse acabado de despertar de um profundo letargo. Em outras palavras, era como se ela tivesse amadu­recido de repente. Adela logo viu que sua jovem ami­ga sofria e, teve a certeza de que a menina que ha­via nela estava morta, cedendo seu lugar à mulher. Abraçou-a e beijou-a várias vezes na face fria, espan­tosamente gelada.

      Marisa! O que aconteceu? O que tem, querida? Meu Deus, fale, diga alguma coisa!

A moça parecia um autómato. Finalmente, Adela soltou-a, e nela cravou seu olhar.

      Sempre chorou com facilidade, Marisa.   Por que hoje não o faz? Sei que aconteceu alguma coisa, algo terrível que a feriu profundamente.   Diga-me a verdade, Marisa.

A mocinha balançou   a cabeça repetidas vezes.

Dizem que as grandes   dores secam o pranto. Creio que é verdade.

      O que aconteceu?

Por resposta, Marisa escondeu o resto entre as mãos e assim ficou por muito tempo.

— Marisa!

— Sim, foi horrível, Adela — declarou, sem mo­ver-se. — Entreguei-me ao amor confiante, sem ima­ginar que me traria esta dor. Minha alma infantil se entregou toda, toda, sem suspeitar da realidade. Mi­nha alma, meu corpo, tudo está morto, Adela. Morto de tal forma, que não espero que ressuscite de novo. É horrível, não pelo que aconteceu, pois prefiro ter sabido agora que mais tarde. Eu sofro porque jamais poderei acreditar em outro homem. Jamais! descobriu o rosto e estremeceu. Parecia uma boneca e, contudo, Adela nunca a vira tão mulher. — E gostaria de acreditar, sabe? Amar intensamente. Viver e morrer por um amor. Não obstante, sufocarei meus anseios e não retrocederei até que Xavier caia a meus pés, suplicando tudo o que agora despreza. — Hei-de vingar-me! — finalizou, com um tom tão frio que Adela ficou arrepiada.

      Conte-me o que sucedeu.

Marisa sentou-se. Ocultando o rosto nas mãos, com visível esforço, contou-lhe o sucedido, sem omitir um só detalhe. Ao terminar, seu rosto estava pá­lido, mas os olhos inteiramente secos.

Kety, que tinha entrado sem que, ambas perce­bessem, estava encostada na porta, contemplando-a penalizada. Não se atrevia a denunciar a sua presença. Um silêncio prolongado segui-se à confissão de Marisa. Não mais se contendo, Kety adiantou-se e as três abraçarani-se, emocionaSas.

— Eu me vingarei! — disse Marisa, sentenciosa.

O camarote parecia sombrio e amedrontador. Adela enxugou uma lágrima enquanto dizia para si mesma que Marisa, a verdadeira Marisa, tinha nasci­do naquele momento. Kety, abraçada à amiga, pen­sou que a via pela primeira vez. O drama vivido por Marisa parecia-lhe espantoso e a ameaça que lia nos olhos negros era impressionante.

Kety teve medo, um medo imenso de sofrer a mesma decepção que sua amiga e, sem mesmo saber o que fazia, caminhou em linha reta ao encontro do capitão.

Encontrou-o na proa. Ao vê-la, Luiz José sorriu e deu alguns passos era sua direção.

      O que aconteceu, Kety? Está muito pálida e tremendo.

A moça segurou suas mãos e apertou-as com an­siedade.

Luís — disse com dificuldade. — Dentro de uma hora chegaremos a Bilbao. Tudo estará termi­nado tão logo o late ancore no porto e... Meu Deus!

Mas, o que aconteceu, ou acontece, para que você esteja chorando?

Kety suspirou. Faltava-lhe o ânimo para concluir e, no entanto, tinha que confessar tudo, naquele mesmo Instante.

Escute, Lute. Adela o ama com toda a sua alma. Disse-me, francamente, esta madrugada. Disse, tam­bém, que este amor é recíproco, mas, que prefere mor­rer a casar, sem que você saiba da verdade. E ela não se atreve a confessá-la. Não lhe dirá!

A reação do capitão foi contrária da que espera­va. Imaginava ver um rosto sombrio e o que via era uma expressão radiante.

—      Conte-me você, Kety — pediu sorridente, aper­tando as mãozinhas trêmulas da moça. — Creio que assim nos evitará grandes males.

—      É que..., Deus meu, temo que Tomás...   —Levantando o rosto molhado de lágrimas, balbuciou: — Eu tampouco direi a ele. Você é que tem que con­tar... Ah, Luís, estou sem coragem para continuar!

Como resposta, Luís tirou a carteira do bolso. Pro­curou algo dentro dela e retirou um recorte de jornal.

— Será isso, talvez, o que tem para contar-nos?

Os olhos de Kety abriram-se desmesuradamente. Empalideceu ainda mais e ficou boquiaberta.

—Já... Já sabia? — disse gaguejando.

Luís soltou uma grande gargalhada. Fez um gesto e a figura de Tomás surgiu ante a assustada Kety.

—Há vários dias que sei disso, minha pequena — disse Tomás, enlaçando-a pela cintura.

—      Acredita que me interessa saber se tem dinhei­ro ou não? O que me interessa é você, linda Kety. Suas arcas e todo o dinheiro que nelas possa guardar, deixam-me   completamente   despreocupado.   Preciso confessar que eu...

— Você, o quê?

Tomás esforçou-se por conter o riso.

— Eu — prosseguiu alegremente — ainda, ignoro o que aconteceu e porque o Sr. Teófilo, essa velha raposa, enganou-nos como se fôssemos nenens.

— Conte-nos a verdade, Kety. Nós só sabemos o que disse o anúncio — pediu Luís, transbordando de felicidade.

E Kety contou-lhes o que acontecera. Quando narrou a conversa que tínha mantido na praça, na tarde anterior aos acontecimentos, Tomás soltou uma gargalhada estrondosa.

— Já está tudo claro!... O Sr. Teófilo as ouviu e, tal como Marisa redigiu o anúncio, colocou-o no Jornal da manhã seguinte. Rapaz! — voltou-se para Luís José, que ainda ria muito — esse homem é in­corrigível, e sua esposa, tão brincalhona quanto ele. O caso é para rir e eu não posso deixar de fazê-lo. Luís   saiu disparado   ao encontro de Adela, en­quanto Kety e Tomás ali ficaram um ao lado do ou­tro, olhando-se bem nos olhos, como dois colegiais.

Também enganou a vocês — disse, divertido.            — Quem ele disse que nós éramos?

Simples marinheiros.

Pois precisa saber que conheço o Sr. Teófilo desde -que tinha vinte anos. Conheci-o no clube, e esta é a primeira vez que navego, desde que me formei.

Pois, então...

O milhão que nosso trocísta amigo entregou a você, eu também tenho. Não se preocupe.

Oh!

Incomoda-a?

Seria melhor se fosse eu a milionária.

—Os dois somos milionários, minha vida. O Sr. Teófilo se empenhou em trazer o amor às nossas vi­das. Não está nada mal. Se escrevemos uma novela sobre nosso caso, estou certo que o título mais adequado seria mais ou menos assim:   "Cupido Chegou numa Bandeja". Que tal?

—      Parece-me   maravilhoso   e eu   o   amo   muito. Veja, já nos aproximamos de Bilbao.

Enquanto esta cena tinha lugar na coberta, Luís, no interior do camarote de Adela, mantinha esta apertada em seus braços e, docemente, ia lhe con­tando seus planos.

—      Não viajarei durante um ano — concluiu, feliz. — Moraremos num lindo apartamento que tenho em Bilbao. Não tenho país, sabe? Vivo com uma tia que está na América. Eu tenho muito dinheiro e pos­so dar-me ao prazer de ficar sempre ao seu lado, toda a vida, porque quando decidir navegar, a leva­rei comigo.

Adela suspirou, tonta de felicidade. Depois, fez a pergunta que lhe queimava a língua.

E Xavier?

O quê?

Sabia que nós somos   apenas pobres datilógrafas?

Não. Contei apenas a Tomás, porque sabia de que maneira reagiria. Quanto a Xavier, nada disse. Não por acreditar que ele daria importância ao fato de sua mulher ser pobre ou rica, mas porque assim, Marisa nunca poderá dizer que Xavier renunciou a casar-se com ela por ser pobre. Compreende? Se ele a amasse de verdade, a riqueza ou pobreza de sua noiva, ser-lhe-ia indiferente.

Pobre Marisa!

Sofre muito, não é verdade?

Muito. Aparentemente, contudo, não se nota que sofre. Revelou ter uma vontade de ferro e sabe domínar-se. A que família pertence esse rapaz?

É   o herdeiro do   marquês de Penaflor.   Tem duas irmãs já casadas e ele vive com seus pais.          —Pobre Marisa! — repetiu Adela, com lágrimas nos olhos.

—Não se preocupe. Quero que vá morar conosco, e asseguro que não sentirá falta do amor desse tolo.

Com carinho infinito, beijou e acariciou as faces úmidas da sua querida. Buscou-lhe os lábios e apertou-a apaixonadamente entre seus braços.

Quando subiram ao convés, lá encontraram Ma­risa, olhando para o infinito. Luís foi até ela e aper­tou-lhe as mãos.

—      Coragem, Marisa. Não desanime nunca. Alguém há sentir essa amargura, muito mais do que você.

A moça agradeceu suas palavras com um sor­riso suave. Não respondeu. Voltou a cabeça e per­maneceu quieta e silenciosa. Kety tinha lhe contado os últimos acontecimentos. Já não ignorava nada.

Duas horas depois, uma lancha trazia o alegre Sr. Teófilo para bordo. Marisa abraçou-se a ele e o velho não precisou de muitas explicações para des­cobrir a verdade. E então, jurou terminar a obra em­preendida.

 

As penetrantes pupilas de Teófilo cravaram-se nos seis personagens que a sua   astúcia havia reu­nido.

—      Que tal a viagem, amigos? — riu, enquanto ia apertando mãos e distribuindo abraços.

Quando chegou a vez de Xavier e viu seu cenho franzido, redobrou sua alegria. Disse-lhe, brincando:

—Ora, ora! A julgar pela expressão do seu ros­to, senhor, parece que não se saiu bem na deliciosa viagem !

Logo, sem considerar o mau-húmor de Xavier, dispôs a voltar à terra na lancha.

Vamos, vamos, D. Pilomena espera-os em casa. Hoje passam o resto do dia conosco.

Sinto muito — atalhou Xavier, — Passei um telegrama e esperam-me em casa.

— Esperam-no! Não diga mentiras, rapaz. Sua fa­mília está em San Sebastian. Vamos, andando.

Mas Xavier, sem olhar para o velho, insistiu em ir para casa. Nosso velho amigo, então, compreen­deu que havia acontecido algo entre Xavier e Marisa, já que notara nos olhos negros, bonitos como ne­nhum, uma expressão fria e rígida, delatando desen­contradas sensações, ante a presença daquele rapaz.

"Bom — pensou Teófilo, parece que entre os ou­tros há qualquer coisa e esta, a que mais estimo, fi­cou sem par. Pior para você, Xavier Monreal."

Manifestou-se, em voz alta:

—Não insisto, rapaz. Não obstante, mesmo que depois vá para sua casa, espero que venha tomar um café em minha casa.

Contudo, Xavier não foi.

  1. Filomena recebeu-as com esfusiante alegria. Tinha seguido o cruzeiro com ansiedade e esperava, como seu marido, que algo de bom resultasse do esratagema.

Teófilo deu boas gargalhadas, quando Luís contou os incidentes da viagem, sem omitir o detalhe da des­coberta do anúncio e suas consequências.

O que tinha em mente, ao engendrar este pla­ no, Sr. Teófilo? — perguntou Tomás, também rindo.          — Por minha fé o senhor saíu-se maravilhosamente, pois conseguiu dois noivados: o meu com Kety, e o de Luís José com Adela.

E você acha pouco? Deus bem sabe que ape­nas me propus a demonstrar-lhes, que no mundo ainda existem mulheres boas, honradas e dignas de se­rem amadas. Aí as têm. Sempre tive a vaidade de ser um bom psicólogo e agora ainda mais, depois de ter vivido tantos anos. Quando ouvi a conversa des­sas belas jovens, verifiquei que se estava perdendo uma fonte inesgotável de amor, pois subentendi nas suas palavras, um desencanto muito grande da vida e do mundo e achei que seria imperdoável da minha par­te, deixá-las morrer no anonimato, quando tinha três amigos aos quais tinha jurado, a mim mesmo, é cla­ro, fazer felizes. Que acham vocês?

O nome de Xavier flutuava no ar. Entretanto, ninguém ousou pronunciá-lo, em consideração à imen­sa dor estampada nos negros olhos de Marisa. Esta tinha a boca contraída e os olhos secos, demasiada­mente brilhantes, talvez.

Teófilo buscou a mãozinha da jovem, sob a mesa, e apertou-a com força, como se com isso pudesse dar-lhe mais ânimo. Marisa sorriu, mas nada disse, limitando-se a apertar, também, a mão amiga, perma­necendo silenciosa e à margem da conversa.

—Sr. Teófilo — disse Kety, um pouco assusta­da. — Com seu estratagema, por pouco que não nos manda para a prisão. Abelardo Riquelme jamais nos perdoará que tivéssemos posto no jornal, aquilo que considera um insulto.

A risada do ancião fêz-se ouvir, sadia e alegre.

Não se preocupem — tranquilizou. — Depois que o iate partiu, fui até o escritório desse senhor e conversei com ele, horas e horas. Quando saí, éra­mos os melhores amigos do mundo. O que pensam fazer agora?

Casar-nos, Sr. Teófilo.

Isso me faz feliz. Seremos seus padrinhos, pois suponho, que não se casarão na mesma hora. Diz que traz má sorte.

Eu planejei casar-me dentro de uma semana. Tomás só poderá fazê-lo daqui a um mês.

— Está ótimo, Luís José. Você é um homem de sorte, porque ganhar uma jóia como Adela, é extre­mamente invejável.

E riu novamente, com o seu riso contagiante.

— Fiquem sabendo que, enquanto não se reali­za nada, as moças ficam em nossa casa, ocupando o lugar das filhas que não tivemos.

E assim foi. Os dias transcorreram, felizes. Os noivos visitavam todos os dias a casa de Teófilo, pas­seavam pelas ruas de Bilbao, dançavam no Náutico e mais tarde, despediam-se das suas noivas na casa que se transformara em lar para elas.

A vida era nova para elas. Apenas Marisa sentia o peso dos dias, com infinito desespero.

Teófilo quis saber, com detalhes, do que suce­dera e conversou por muito tempo, a sós, com Luís José, que o inteirou dos mínimos detalhes do inci­dente.

Sempre achei que Xavier seria o primeiro a se render — lamentou o velho. — Sinto muito. Ima­ginei que fosse um bom rapaz e vejo que me equivo­quei. Sabe por onde anda?

Partiu para San Sebastian, no mesmo dia da nossa chegada.

Sabe que as garotas não são milionárias?

Não. Pensando em Marisa, decidi ocultar-lhe... Não há nada que se possa fazer quanto a ele. Disse que Marisa lhe agradava muito, mas que não estava seguro se a amava.

— Idiota! Tive uma grande desilusão, Luís. Não pode nem imaginar como é grande. No fim, quem per­de é ele.

Casaram-se numa manhã de sol, clara é trans­parente. As cerimónias foram em dias diferentes, mas ambas esplêndidas. Os jornais ocuparam-se com eles e as biografias das noivas foram relatadas em deta­lhes. Despertaram viva simpatia é eram olhadas com admiração e carinho. Luís casou-se primeiro. Ao sair do templo trazendo pelo braço a que já era sua es­posa, o público amontoado à porta da igreja gritou um "viva" altíssimo, um viva aos noivos, enquanto, pétalas de flores eram atiradas à belíssima noiva.

Marisa, sempre silenciosa, fitava-os com olhos úmidos, lamentando a felicidade perdida. Xavier não compareceu à cerimónia, dando a impressão de ter desertado à amizade que sempre os havia unido.

— Isso passará — dizia Luís, como único comen­tário.

E Teófilo concordava em silêncio, bailando, po­rém, em seus olhos uma expressão de astúcia.

O casamento de Tomás não foi menos esplêndi­do. Os padrinhos foram Marisa e o irmão mais velho de Tomás, uma vez que Teófilo empenhou-se por ceder-lhes o lugar.

Durante a recepção, Marisa esteve sempre ao la­do de Arturo, o irmão de Tomás, um belo rapaz, de rosto moreno, expressivos olhos cinzentos e corpo de atleta, que denotava sua força física, cultivada nos esportes.

Tinha olhado para Marisa, desde o primeiro ins­tante, com olhos analíticos, e a mocinha pareceu-lhe um sonho, embora tivesse notado no fundo dos olhos bonitos um desencanto total pela vida e por tudo que a rodeava. "O que lhe sucede, sendo ainda tão jovem?" se perguntou Arturo. E não se conformou, até que pôde separar seu irmão dos convidados e ter com ele uma eonversa, da qual participava Kety. QuandoTomás terminou, Arturo ficou pensativo.

Deve ter sido um grande amor, é claro...

Foi um sonho de menina. Se alguém se empe­ nhar em fazê-la esquecer, conseguirá sem muito es­ forço.

É muito bonita — comentou Arturo, enigmati­camente, separando-se deles.

Quando tudo terminou e o Jovem casal embarcou para a viagem de núpcias, Marisa expôs ao idoso ca­sal seus planos para o futuro. Queria voltar a tra­balhar e... Nem pôde continuar, pois Teófilo e D, Filomena puseram a casa abaixo.

Você vai ficar conosco até o fim dos seus dias, menina. Sempre desejamos ter uma filha e é isso que você representa agora para nós.

Mas...

Não há mais, nem menos. Teófilo falou por mim: viverá conosco e será nossa herdeira.

Marisa arregalou os olhos. Tentou protestar, e o fez de forma enérgica, e foi preciso que D. Filome­na chorasse, para que, finalmente consentisse.

E assim, começou uma nova vida, cômoda e mi­mada. Deram-lhe um lindo carro branco e com D. Filomena percorreu as casas de modas e logo a meiga Marisa, a filha adotiva dos Senhores Iriarte, foi co­nhecia na alta sociedade de Bilbao.

Apresentaram-na à sociedade com uma festa es­plêndida. Marisa foi a rainha daquele baile. Apre­sentou-se elegante e encantadora e até a sombra de melancolia que se espelhava no fundo dos seus olhos, tornava-a mais interessante, Sua beleza morena fascinava e entontecia. Os homens mantinham o olhar preso na sua figura encantadora, como se ela fosse uma aparição e não um ser humano.

Arturo foi seu par constante. Teófilo tinha envia­do um convite à família de Xavier e a este, mas ape­nas suas irmãs compareceram, acompanhadas de seus elegantes maridos. Quanto a ele, nem deu resposta.

Luís e Adela regressaram da viagem, precisamen­te na noite do baile. Quando Luís falou em levar Ma­risa para viver com eles, teve uma inesperada amostra do temperamento violento do velho Teófilo.

— Essa menina é minha, entendeu? Pertence-me por completo, e pobre daquele que pretenda discutir os meus direitos!

Assim Marisa permaneceu naquele lar, ocupando o lugar de verdadeira filha.

Já tinham transcorrido dois meses, quando acon­teceu o inesperado encontro.

 

Beijou seus padrinhos   (chamava-os assim)   e dis­se-lhes que ia dar uma volta   de carro. Talvez fosse dançar um pouco no Náutico.

Graciosa e bonita, naquela tarde vestia um costumezinho de meia estação, de linda tonalidade acin­zentada e calçada com sapatos de salto alto de camurça azul, desceu com agilidade até o jardim, onde o automóvel branco aguardava a chegada da sua dona. Entrou e logo o carro luxuoso perdeu-se, veloz, numa rua central.

Dirigia maquinalmente. Já há algum tempo a lem­brança de Xavier se tornara menos dolorosa. A presença constante de Arturo, cortês e carinhoso, ajudava-a a afugentar a imagem do ingrato Xavier, mas não podia esquecê-lo totalmente, pois amara-o muito. Quando se aproximou de um barzinho elegante, diminuiu a velocidade, como era seu costume fazer quando passava por um local concorrido. De repente, quando já ia novamente acelerar, ouviu seu nome, pronunciado por uma voz grave. Pensou que fosse Arturo e freou.

Recostada, no assento macio, esperava que ele se aproximasse, quando um rosto moreno, de olhos vi­vos e penetrantes, surgiu na janela.

A moça estremeceu, mas seu semblante perma­neceu inalterado. Suas desencontradas emoções não transpareceram em seu rosto.

— Olá, meu bem. Já faz um século que não a vejo e, para dizer a verdade, desejava-o ardente­mente.

A voz que tantas vezes a havia empolgado e aca­riciado, a mesma voz, naquele dia, soou como uma chicotada. Para ela, pelo menos, parecia, porque a voz de Xavier era a mesma de sempre.

Será que aquele homem se esquecera do mal que lhe tinha feito? O que teria em lugar da dignidade? Ah, sempre convencido, habituado a ter seu caminho facilitado!...

Olá Xavier! Você anda sumido. Está se poupando?

Em compensação, você está sempre bem acom­panhada.

Marisa teve a satisfação de ver o rosto de Xavier crispar-se ao responder.

—      O que quer que eu faça? De alguma maneira eu tenho que passar o tempo.

— Permite que eu vá com você?

—      Naturalmente. Como pode duvidar?            Xavier entrou depressa. O carro retomou o seu caminho. Os olhos do rapaz contemplaram-na deti­damente. Estava linda, mais do que antes. Cortara os cabelos muito curtos, de acordo com a moda, e uma espessa franja caía suavemente sobre a testa lisa, deliciosamente amorenada. Os olhos negros, vivos e penetrantes, pareciam espelhos, e a boca que ele tan­tas vezes beijara... Suspirou com força. Tinha que reconhecer que, realmente, sentira muita falta dela, naquele período em que procurara esquecê-la. Nenhu­ma era como ela, nenhuma tinha o seu encanto, aque­le tom de voz suave e carinhoso era único. Ela era sem igual, e por isso estava ao seu lado. No entanto, tinha que confessar, nunca esperou ser recebido da­quela maneira, e isto deixava-o insatisfeito. Espe­rava vê-la irritada, pronta a censurá-lo. Nada disso acontecera. Era assim tão indiferente, para ela, revê-lo? Ou, pelo contrário, o seu amor apagara tudo: o mal que lhe mantivera durante aqueles meses. Uma interrogação dançava nos seus olhos, e Marisa bem percebia, mas agia como se não notasse, e Xavier estava desconcertado.

Marisa — disse com   voz tensa, chegando-se para ela. A moça continuou impassível e até pare­cia estar feliz. — Durante todo esse tempo não tive tranquilidade. Não fui ao seu baile de apresentação, por medo de parecer ridículo aos olhos dos meus ami­gos, mas, o certo, o que me desespera, é que continuo querendo-a com a mesma intensidade.

Já sabia.

Sabia?

Sim.

Precisa explicar-me esse fenômeno, querida.

Quando   eu amo, Xavier, torno-me inesquecí­vel. Sei que você continuará querendo-me por toda a vida, por mais que se empenhe em esquecer-me.

Essas palavras foram   ditas com tal   serenidade e firmeza,   que Xavier   ficou impressionado.

Ainda não consegui compreender como pude viver tantos meses sem você.

Precisava saber   de que   forma me   queria,   e agora já sabe.

Assim é, Marisa. Sua intuição é maravilhosa.

Sempre a tive assim.

Xavier aproximou-se ainda mais. Procurou abra­çá-la e abaixou a cabeça à altura do ombro perfu­mado, murmurando com ansiedade:

Que posso esperar de você, Marisa?

Em primeiro   lugar, comporte-se corretamentamente - replicou, afastando-se   um pouco.   - Depois,   eu lhe direi.

Contrariado, endireitou-se.

Eu a amo muito, Marisa. Quase posso afirmar, que não me importa que você não me corresponda, porque   o meu amor é suficientemente grande para os dois e, com o tempo, saberei despertar o seu.

O riso de Marisa soou falso. Sob aquele olhar de aparência serena, ocultava-se uma alma apaixona­da. Ninguém adviniharia o que acontecia em seu co­ração. E no entanto, lá sucediam muitas coisas, mui­tas. Algumas delas permitiram-lhe descobrir algo que jamais houvera imaginado.

Aonde quer ir?

Que ideias você tem! Para onde você vai.

Hoje, não.

Os olhos negros voltaram-se para ele, e então, Xavier sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. O que significava aquele olhar? Eram os mesmos olhos e, entretanto, pareciam diferentes. Se antes tinham-no cativado agora, com aquela expressão tranquila e profunda, agora o repeliam de tal forma que neces­sitou de todo o seu controle para conter-se.

Você me parece outra — disse, quase sem voz. - E, todavia, é a mesma. Os mesmos olhos negros, cheios de vida. A mesma boca linda, de feitio doce e suave. O mesmo rosto, os mesmos cabelos e, sem a menor dúvida...   

Sem a menor dúvida, passaram-se vários me­ses.

—      E o   que   tem isso?

Não sei,   Xavier. Talvez tenha relação com a minha transformação.

Não... Seu coração tem que continuar sendo o mesmo.

E se você estiver equivocado?

Não;   estou certo de não estar.

Apesar dela estar dirigindo, tentou abraçá-la.

Solte-me   —   ordenou,   enérgica.   — Você   fica aqui. Tenho um encontro com Arturo, no Náutico.

Ah!   E você   pensa que eu vou consentir que esse namoro continue.   Não, Marisa. Você me   amou muito. Quero que continue amando-me.

Nos olhos da moça surgiu um brilho estranho.

Vou pensar e analisar-me — disse, detendo o carro diante do mesmo bar onde tinha encontrado Xavier. — Agora, é necessário que me deixe.

—      Assim?

Assim mesmo.

Ela mesma abriu a porta e indicou-lhe a   cal­çada.

É cruel, Marisa.

Ela esteve a ponto de dizer que mais cruel ain­da ele tinha sido com ela, mas calou. Para que rea­brir a ferida que sentia quase cicatrizada? Não, não. Mais sofrimentos, impossível. Ao vê-lo agora, com­preendera que restava muito pouco daquele amor e, como dizem que onde há cinzas, ainda há fogo, compenetrou-se de que para manter a sua dignidade de mulher, precisava apagar o pouco que restara daque­le amor...

Quando a verei de novo?

Não sei, Xavier. Talvez amanhã.

Permite-me que vá visitá-la na casa   do Sr. Teófilo?

Um sorriso sarcástico aflorou nos   lábios carnu­dos.

Suponho que, depois do ocorrido, não se atre­verá.

Por que não?

Fez a pergunta já na calçada.

Sorridente, como se não sentisse por aquele ho­mem nada além da mais absoluta indiferença, Marisa disse acremente:

—      O Sr. Teófilo não esquece facilmente as des­considerações dos seus amigos.

A frase ainda flutuava no ar, quando o carro ar­rancou bruscamente.

—      Marisa!   — gritou, querendo retê-la e pedir-lhe uma explicação mais ampla. — Marisa!

Marisa mordeu os lábios e dedicou toda a sua atenção ao volante.

Não foi ao Náutico. Estava por demais confusa para apresentar-se em semelhante lugar, onde sem­pre impera a alegria. Momentos depois, penetrava na sala da linda casa de Adela.

 

Alegrou-se ao saber que Luís José não estava em casa. Os dois eram imensamentes felizes naque­le apartamento, um verdadeiro ninho de amor.

— Ora, viva, pensei que se tinha esquecido de nós — queixou-se Adela, beijando-a carinhosamente. — Que fez durante esta semana? — Fitando-a mais atentamente, acrescentou, inquisítiva: — O que tem?

Está pálida e seus lábios tremem como quando fica nervosa.

Marisa afundou-se na pottrona. Adela sentou-se à sua frente.

Por acaso desentendeu-se com Arturo?

Você   está sempre empenhada em ver coisas novas no meu rosto. Não tenho nada.

Está bem certa? Luís me disse que você se en­contra muito com Arturo. Estão noivos?

Ainda não.

Parece-me que não lhe desagrada essa possi­bilidade.

Ele gosta muito de mim.

É muito leal, sabe? Conheço-o bem. Todos os dias passa alguns momentos conosco. É muito amigo de Luís José. Fala muito de você, e às vezes com tan­to entusiasmo, que começamos a rir. Já lhe contou?

Sim, muitas vezes. — Após uma pausa, prosseguiu: — Hoje vi Xavier.

Ah! Eu sabia que alguma coisa acontecera com você. Suponho que o mandou passear, não?

—      Não.

—      Marisa!

A moça levantou-se.

—      Pode ser que acabe casando-me com ele.

—      Enlouqueceu, Marisa? Nunca pensei isso de vo­cê. Se se casar com esse homem, as portas desta casa estarão fechadas para você.

—      Bem, eu sinto muito.

Marisa   fez   menção   de   sair.   Adela,   entretanto, aproximou-se dela,   sacudindo-a pelos   ombros.

—      Marisa! Pensa bem no que vai fazer. Esse homem   não lhe convém. Eu   sei,   estou   absolutamente certa do que digo.

—      Quem tem que saber sou eu, e eu creio que já o sei.

Marisa pegou a bolsa e, ignorando os apelos de Adela, saiu, deixando a amiga imersa em perplexida­de. Era uma inconsciente, uma tola...

      Ficou louca — disse a seu marido, quando o colocou a par do sucedido. — Creio que pela primeira vez, vi os olhos de Marisa fitarem-me com frieza.

Tenha   calma.   Apesar   dos   pesares,   Xavier   é um bom rapaz.

Você também... ?

Querida, nós sempre fomos amigos. Hoje en­contrei-me com ele e disse-me   estar louco por Ma­risa, e que esperava casar-se com ela, tão logo ela o aceitasse.

Nem ele nem ela, demonstram ter a mínima dignidade.

Luís José prendeu-a em seus braços, atraindo-a docemente para si. Beijou-a com ternura e depois, comprimindo os lábios na garganta perfumada, sus­surrou, com uma doçura que a arrebatava:

      Suponha que eu voltasse para você, depois de proceder   como Xavier. O que faria?   Teria a   cora­gem de repelir-me, sabendo que me amava e que era correspondida?

Adela suspirou com força. Levantando os bra­ços, apertou entre as mãos a cabeça adorada. Seu olhar se fundiu com aqueles olhos apaixonados e dis­se com veemência, contendo um suspiro fundo e es­tremecido:

      Você nunca seria capaz de fazer isso, meu amor. Nunca!

E dessa vez, foi ela que o fez perder a noção de tudo. Sua boca buscou a carícia e nenhum dos dois soube mais dizer sobre o que estavam falando...

Marisa, com os lábios contraídos e pensativa, che­gava ao Náutico. Parou seu carro no cais e daí a instantes penetrava   nos   amplos   salões   da   luxuosa sede.

—Como demorou!   — exclamou Arturo, sentido.- Pensei que não a veria esta tarde.

Estava completamente enamorado. Contempla­va-a com adoração e fazia esforços inauditos para não confessar-lhe que a amava. Marisa não o igno­rava. Além disso, na presença daquele rapaz forte e Jovial, seu coração parecia expandir-se. Nutria por ele um sentimento muito complexo. Talvez fosse amor, mas não estava certa. Entretanto, tinha jurado a si mesma fazer uma coisa, e tinha que cumprir, acima de tudo e de todos, mesmo que para isso fosse neces­sário perder a liberdade e a felicidade ao lado de Arturo.

—Venha — convidou Arturo, levando-a para o terraço. — Necessito dizer-lhe algo muito importante.

Marisa deixou-se conduzir. Lá chegando, debru­çou-se na balustrada e esperou, sem fitá-lo.

Marisa, você amou-o muito, não é verdade?

Não sei.

Sim, você sabe e vai dizer-me.

Você nunca amou?

Arturo sorriu. Tomou as mãos femininas e aper­tou-as, docemente, entre as suas.

Não, criança. Nunca amei, até agora. Quer casar-se comigo?

Não posso responder-lhe agora, Arturo — disse suspirando. — Talvez quando possa fazê-lo, seja tar­de e você não queira mais saber de mim — seus olhos adquiriram uma expressão dura. Apertou a boca, co­mo se quisesse sufocar uma dor aguda e depois acres­centou, com voz suave, mas enérgica:   — Tenho que cumprir uma promessa. Fizeram-me muito mal, mui­to! Ninguém pôde avaliar sua extensão, porque sou­be dissimular a minha amargura... — Fez uma pausa e, em tom profundo e sério, concluiu: — Se sair incólume da prova a qual vou submetê-lo, e se seu amor for suficientemente constante para saber espe­rar, será amado intensamente, como não imaginou... Eu o adorarei, Arturo, mas, até lá...

Será que quer que, como nos contos de fadas, eu vá buscar um talismã na floresta encantada?

Não. Só lhe peço que tenha paciência e, veja o que veja, jamais duvide do meu amor.

Não duvidarei!

Mas chegou a duvidar e aquilo foi um tremendo golpe para Marisa...

 

A PARTIR daquele dia, Marisa mudou seus hábitos. Já não ia mais ao Náutico. Absteve-se de visitar suas amigas e para ela não havia mais outra pessoa no mundo que Xavier Monreal.

Falava-se muito deles. Comentava-se que pensa­vam casar-se em breve e eles eram vistos juntos em todas as partes: salas de chá, festas mundanas, bai­les e passeios.

Teófilo ignorava o que acontecia. Notava apenas, quando sua pupila chegava em casa, que trazia no rosto uma sombra de cansaço e uma nuvem de amar­gura toldava os olhos bonitos. Será que sofria? E qual seriam as causas daquele sofrimento?

Num daqueles dias, ao ver uma lágrima furtiva rolar dos olhos tristonhos, abraçou-a com carinho e quis saber as causas daquele pesar.

Talvez esteja um pouco   cansada desta roda-víva em que ando. Nada mais, além disso.

Não — interveio D. Filomena. — Leio algo nos seus olhos;   algo muito doloroso.   Terá brigado com Arturo?

O rosto da moça empalideceu de verdade. Olhou suplicante para sua protetora e beijou   com fervor as mãos enrugadas. 

Arturo e eu — disse muito baixo. —     Já faz muito tempo que não há nada entre nós.          O casal levantou-se,   sobressaltado.

O que disse? Arturo era o homem que lhe con­vinha. Não vai nos dizer, que não pensa   mais em casar-se com ele.

Oh, meu Deus!

Depois da exclamação, Marisa correu em direção ao seu quarto, sem querer ouvir as palavras dos seus queridos protetores.

Ambos fitaram-se consternados.

—      O que acha disso, Teo?

Ele balançou a cabeça, preocupado.

Não   sei   o   que   dizer.   Esta   menina   está   so­frendo, sofrendo de uma maneira intensa e dolorosa.

O que acha que está acontecendo?

Não sei, mas vou saber agora mesmo. Vou ime­diatamente à casa de Kety. Ela me porá a par de tudo. Entretanto, é melhor que você fique aqui. Não vá procurá-la. Acho que ela necessita ficar a sós.

Está bem. Mas não se demore.

 

Teófilo entrou na sala, e com seus passos miú­dos, foi ao encontro do casal.

Ora, ora!   como estão   felizes os dois pombinhos!   — Mudando a   expressão   do   rosto,   deixou-se cair na poltrona que Kety lhe oferecia e disse, desa­nimado:   — Meus   filhos,   estou preocupado,   muito mesmo.

Nós também..

Sim. Por acaso pelo mesmo motivo?

Receio que sim, Sr. Teófilo. Refere-se a Marisa, não?

         É exato.

E o pobre velho limpou com o lenço as gotinhas de suor que umedecia sua testa.

         Esta menina parece estar - prisioneira de uma preocupação. O que houve entre ela e Arturo? Vocês têm que saber.

Sabemos comente que Marisa não aparece por aqui há mais de um mês...

E que tem isso?

Será que ignora que ela está quase noiva de Xavier Monreal?

Agora sim, o velho sobressaltou-se. Os óculos de ouro executaram um bailado ridículo sobre o nariz. Alisou o bigode e estalou a língua.

Caramba! — exclamou. — Será que vamos ter casamento?

— Pensei que o senhor ia receber a notícia en­furecido.

Não, Tomás. É certo que preferia seu   irmão para esposo de Marisa, mas se ela prefere o outro, não direi uma só palavra.

Pois o casamento está em vias de realizar-se. Xavier participou-nos ontem. Ela ainda não se mani­festou, mesmo porque, só a temos visto de longe.

E o que diz Arturo?

O senhor pode supor. Marisa foi hipócrita, pois nunca repeliu o seu amor.

Valha-me Deus — murmurou Teófilo. — É de se esperar que seu irmão a perdoe. Afinal, são coisas da juventude e além do mais, não se manda no co­ração. Mas, o que não entendo, é por que não nos contou nada.

Terá as suas razões.

Logo depois, Teófilo se encontrava com sua es­posa, a quem narrou os detalhes ,da visita à casa de Kety.

Sabe de uma coisa, Teo? Não me agrada esse rapaz para noivo da nossa filhinha.

Vamos, vamos, se ela o ama...!

Não sei... Sinto que aqui há gato escondido.

Qual o quê! Estas são coisas bem próprias da Juventude. Sou bom observador e vi muito amor nos olhos da menina. Você vai ver como será muito feliz com Xavier. Apesar da sua petulância, Xavier sem­pre foi meu amigo predileto.

Isso ainda vamos ver, torno a repetir-lhe.

Está se tornando vidente!   O que está vendo de obscuro e misterioso nesse caso?

Não sei. Mas quisera ver.

Bobagens, é isso o que você imagina.

E Teófilo, verdadeiramente aborrecido com os te­mores de D. Filomena, afundou-se na poltrona e ascendeu um cigarro, dando o assunto por encerrado.

 

O rosto de Marisa estava pálido. Tinha perdido o colorido e profundas olheiras rodeavam seus olhos. Apenas quando estava ao lado de Xavier, os olhos tristes e sem expressão brilhavam de uma maneira estranha, quase terrível. A boca, então, sorria sem cessar e falava atropeladamente, como se quisesse es­quecer alguma coisa... algo que a atormentava.

Naquela tarde, Xavier e ela, de braços dados, penetraram numa casa de chá e foram sentar-se numa mesa no fim do salão. Ao virar o rosto, Marisa encontrou o olhar de Arturo cravado nela, um olhar que censurava o seu procedimento. Marisa tentou sor­rir, mas o que conseguiu foi uma careta, tal a angústia que sentia. Arturo virou o rosto e concentrou a atenção na moça que o acompanhava.

Algo brilhou no olhar de Marisa, um brilho especial que se apagou de momento.

—      O que tem? — perguntou Xavier. — Veja co­mo suas mãos estão crispadas. Marisa, o que acon­teceu ?

A moça fez um esforço por dominar-se.

—      Vamos   embora   daqui   —   pediu,   pondo-se em pé.

Xavier segui-a, a seu pesar. Estava louco por ela. Nunca a amara tanto e tão intensamente como agora, quando a tinha a seu lado e, no entanto, ele a sentia afastada, desesperadamente longe.

Saíram lentamente. Marisa tinha a certeza de que o olhar penetrante de Arturo a tinha seguido, até que sumisse de vista. Nunca tinha sentido tanta dor e jamais soube dissimulá-la tão bem, como agora, em que soubera o resultado da prova a que sub­metera Arturo. Quisera chorar, mas não o fez. Ain­da lhe restava orgulho suficiente para suportar o des­prezo que sentira no seu olhar, com dignidade e al­tivez.

Mais   tarde, quando   Xavier levou-a   para casa, quis beijá-la.

Não — negou com veemência. — Uma vez me beijou,   lembra-se?   Não,   não   foi   uma   vez,   foram muitas, não me recordo quantas... Agora, só torna­rá a beijar-me quando for meu marido, antes, não.

Está bem, minha linda. Se   me permite, en­trarei para ver Teófilo e amanhã pedirei a sua mão.

Amanhã!

Parece-lhe muito cedo?

Bem faça como quiser. Mas não é preciso que visite o Sr. Teófilo. Eu mesma lhe participarei.

Você está estranha esta tarde, Marisa. O que tem? Será que não me ama?

O rosto de Marisa ficou sombrio. Depois, contro­lou-se e pousando as mãos   nos ombros de Xavier, disse, como se pronuncia um juramento:

—Eu o amo tanto quanto você merece.            Naquelas palavras havia   um sentido   oculto que fez Xavier estremecer, mesmo sem conseguir   deci­frá-lo. Olhou-a com paixão. Estava louco por ela. Ela soubera fazer-se querer. Era inteligente e tinha em­pregado seu poder em conquistá-lo.

Inclinou-se para ela e buscou o   seu olhar, mas ela voltou-se, obstinada.

Marisa! — exclamou com voz rouca. — Se você não chegasse a ser minha esposa, creio que mor­reria.

Não morrerá, Xavier; eu sei.

Olhe-me.

Para quê? Eu estou aqui; serei sua, tal como deseja. Que mais quer?

O seu amor.

Tentou apertá-la em seus braços. Marisa desvencilhou-se e se afastou, soltando uma risada. Ele não soube interpretar seu significado e procurou segui-lu, mas Marisa já tinha desaparecido.

Deu meia volta. Afundou as mãos nos bolsos e pos-se a caminhar lentamente. Adorava-a e naquela noite, como em tantas outras, não tinha podido satisfazer seu mais caro desejo, beijá-la. Era cruel, re­conhecia-se, e, no entanto... Santo Deus! Continuava esperando com ansiedade o dia seguinte, quando a teria novamente ao seu lado.

 

Já passava de meia noite, quando Marisa entrou no seu quarto.

Não estava com sono, mas mesmo assim se dei­taria. Já fazia muito tempo que o sono se negava a cerrar seus olhos. As repetidas noites insones já mi­navam sua saúde, ainda que, graças à sua vontade de ferro, no dia seguinte dissimulasse as fundas olheiras de desespero, que   as noites passadas em claro deixavam na face pálida.

Naquela noite, ainda tinha menos vontade de dor­mir do que nas anteriores. Estava muito bonita. O cabelo curto dava ao seu rosto mais personalidade, destacando o oval perfeito. Mirou-se ao espelho e se achou atraente. Apenas o nariz punha uma nota dis­sonante nas feições harmoniosas, mas, talvez, ali re­sidisse o seu maior encanto. Os olhos brilhantes, com o brilho que a febre lhes empresta, pousaram no es­pelho e não conteve um grito afogado, ao ver algu­ma coisa através dele. Seria aquele rosto uma visão provocada pela sua imaginação exaltada?

Voltou-se devagar, enquanto apertava nervosa­mente as mãos contra o peito. Seus olhos, então, fita­ram fixamente o rosto rígido de Arturo.

— Que faz aqui? — conseguiu perguntar, sem sa­ber se a voz tinha saído da sua boca ou do coração descompassado. — Com que direito tomou tal liberdade? Como se atreveu?

Arturo deu alguns passos. Depois parou e afun­dando as mãos nos bolsos das calças escuras, balan­çou-se levemente sobre suas longas pernas. Um sor­riso sarcástico desenhou-se na boca de traços enér­gicos.

— Nunca imaginei que eu pudesse chegar ao ex­tremo de enganar dois anciãos — disse, tentando apa­rentar indiferença. — Saí da casa de chá atrás de vocês e consegui chegar aqui duas horas antes dos dois. Entrei sob o pretexto de visitar Teo e sua mu­lher e quando chegou a hora de dar por terminada a visita, em vez de sair, subi as escadas e vim me­ter-me no seu quarto. Há apenas um momento a cria­da veio abrir sua cama e colocar sua camisola sobre o travesseiro — riu, irônico. — Quanta comodidade, Marisa! Estou assombrado. Quando ela entrou, eu recuei para a varanda e ela saiu sem ter-me visto. Uma sorte para você, não?

—Termine logo — pediu entredentes.

—Não quero dar por terminadas as nossas re­lações, até que o saiba por sua própria boca. Você me deixou sem razões e explicações e eu as quero conhecer, antes que una sua vida a Xavier Monreal.

—      Não tenho que lhe dar explicações — replicou secamente. — Disse-lhe que tivesse paciência e que soubesse esperar. Vejo que seu amor era bem frágil.

Arturo soltou uma gargalhada suave.

—      Pensa que sou um rapazinho?

—      Não, sempre pensei que fosse   um homem   e vejo com tristeza que está longe de ser.

O rosto de Arturo retesou-se.

—      Não me obrigue a medir minhas forças com as suas, Marisa, pois sou um cavalheiro e pretendo con­tinuar sendo até o fim dos meus dias.

A moça não respondeu. Apertou as mãos uma con­tra a outra e as lágrimas rolaram de seus olhos.

Ele aproximou-se. Seu rosto revelou uma gran­de ternura. Procurou suas mãos, que ela não tentou negar, e apertou-as entre as suas, apaixonadamente.

—      Não sei o que ocorre em seu coração, Marisa — disse baixo. — Sei que alguma coisa lhe está acon­tecendo, mas não acerto com a explicação.

Marisa continuou silenciosa.

Ainda há tempo, Marisa. Amo-a tanto e de tal forma, que   amanhã mesmo   caso-me com   você,   se quiser.

Meu Deus!

Diga-me que sim, criança. Diga-me que deixará esse homem. Ele nunca poderá amá-la como eu a amo. Mas não espero, Marisa. Não posso esperar.

Puxou-a para si e Marisa não ofereceu resistên­cia   Os braços de Arturo rodearam-na   suavemente.

Com a mão, levantou o queixo de Marisa, buscando seus olhos.

Diga-me que me ama, Marisa. Diga-me!

Meu Deus, é claro que o amo.

Então, por que me faz sofrer? Por que dizem que vai casar-se com esse homem?

Tenha paciência.

Não. Esta é a última vez que lhe peço que se case comigo. Se não quiser assim, jamais tornarei a importuná-la.

Os olhos de Marisa inundaram-se de lágrimas.

Criança!

Deixe-me. Vá embora.

Assim, sem resposta?

Só posso responder-lhe   que tenha paciência.

Não. Esta   será a última vez   que a   procuro. Case-se com ele;   não recordarei que você   existiu.

Não!   — gritou apaixonada.

E com desespero, abraçou-se a ele. Mais uma vez, Arturo teve certeza de que na vida de Marisa havia algo que ele ignorava e teve medo. Medo de perde-la, medo de que a roubassem.

Retrocedeu alguns passos. Com as mãos estendi­das em súplica, ela ainda lhe pedia que tivesse pa­ciência.

Arturo moveu a cabeça em negação e sua voz soou como uma sentença.

Se quando sair deste quarto, não tiver a cer­teza de que amanhã deixará esse homem, estará mor­ta para mim.

Nem mesmo sabendo que o amo com toda a minha alma e que você é o único homem que exis­te em minha vida?

Nem mesmo assim.

Então, vá embora e não torne a importunar-me. Comecei uma obra e a terminarei, mesmo que me custe a felicidade.

De repente, Arturo compreendeu.

Avançou até ela e segurou-a rudemente pelos ombros.    

Você ficou maluca? Como pude ter   sido tão cego, não adivinhando até agora   a verdade. Sabe o que vai fazer? Se esse homem lhe causou dano, dei­xe-o agora, que já chega; já leva seu troco. O que ainda quer fazer mais?

Recordará   eternamente   que   ninguém   zomba de uma mulher como eu.

Falou com tanto ímpeto, que Arturo, por um mo­mento, ficou pasmo, impressionado... Quando rea­giu, sacudiu-a novamente pelos ombros e disse, com os olhos brilhando de raiva:

—      Você é um monstro e se leva a cabo a sua ameaça, jamais quererei saber de você.

Eu a levarei, até ao pé do altar!   Eu juro!      

Arturo retrocedeu, assustado. Aquele olhar som­brio causou-lhe mal-estar. Abriu a porta e, sem pro­nunciar mais uma só palavra, retirou-se.

Marisa atirou-se na cama e rompeu em soluços.

Logo o vulto de Arturo surgiu na porta. Contem­plou o corpo estendido sobre a cama e uma sombra toldou-lhe o semblante. Depois, falou com amargura:

—      Se não desistir, jamais voltarei para seu lado. Virou-se e desapareceu.

 

NA manhã seguinte, Marisa apareceu na sala de jan­tar com a boca crispada e os olhos cercados por sombras violáceas. D. Filomena, imediatamente, reparou no seu abatimento.

Não dormiu, minha filha?   — perguntou in­quieta.

Dormi.

Está me enganando. Seu rosto parece de cera e quanto a seus olhos, parecem   apagados. Por que não é franca comigo? Afinal, estou fazendo por você, às vezes, de mãe. Ande, menina, conte-me o que es­tá acontecendo e verá como depois se sentirá me­lhor.

Marisa empenhou-se em afirmar que não tinha nada. Depois de insistirem para que falasse, tanto D. Filomena como seu marido, terminaram por deixá-la em paz, e quando a viram sair à rua, Teófilo ba­lançou a cabeça branca várias vezes.

—      Não posso entendê-la — confessou desanima­do. — Sei que uma grande dor a atormenta, mas ig­noro   como afugentá-la. É desesperador!

  1. Filomena enxugou uma lágrima e permaneceu em silêncio.

Marisa sentiu, já na rua, necessidade de conversar com Deus, e dirigiu-se para a igreja mais próxi­ma. Ele era o único que poderia compreendê-la... Compreendê-la? Sim, claro, mas nem por jsso apro­varia a vil ação que ia cometer, com o objetivo de vingar a afronta de um homem... Que satisfação esperava? É claro que o prazer de destruir as espe­ranças de um homem. Mas, e ela? Poderia ser feliz depois de consumada a vingança? Pura ilusão! A vingança era prazer dos deuses, mas nunca de uma alma boa. "Desista, ainda está a tempo — exortava uma voz interior. — Vá para o lado do seu amor e procura refúgio e felicidade nos braços leais de Arturo. Esqueça tudo mais. Deixe-o assim; não busque mais vinganças. Somente Deus tem o poder de dar a cada qual o castigo que merece..."

A moça sobressaltou-se, ao toque suave de uma mão sobre o seu ombro. Levantou a cabeça e seus olhos cheios de lágrimas, fitaram a face bondosa de um sacerdote.

Quer   confessar — perguntou, com brandura.

Não.

Creio que necessita.

Marisa negou novamente, meneando a cabeça.

—      Por que chora? As almas boas o fazem, mas... vejo nos seus olhos uma expressão de desafio.

Marisa levantou-se.

—      Confessarei algum   dia. Hoje, ainda não...

O sacerdote pousou novamente a mão em seu ombro.

—      Não se esqueça que a morte está sempre à es­preita. Confesse agora, e desafogue em Deus as suas atribulações. Verá como sua consciência ficará tran­quila. Confesse, minha filha...

O coração de Marisa palpitava descompassado. Suas mãos, que matinha junto ao peito, retorciam-se em desespero. Depois, segurou a mão do representan­te do Senhor e levou-a aos lábios.

Sim, padre, eu quero confessar.

Pois venha.

Duas horas depois, saía do templo um vulto de mulher, encurvado e silencioso. O sacerdote acompanhou-a até a rua. Segurou-a pelo ombro e disse docemente, com voz suave e persuasiva:

—      Não torne a permitir que seu coração abrigue maus pensamentos. Despreze esses sentimentos, e ca­minhe pela senda da vida, que conduz ao céu, com a cabeça erguida.

Marisa pôs-se a andar para sua casa, com a cabeça inclinada e as mãos muito apertadas sobre o peito.

 

Tão logo chegou, meteu-se na cama. Uma intensa dor de cabeça privou-a de sair por várias semanas.

  1. Filomena e seu marido estavam constantemen-te ao seu lado. Ela permanecia silenciosa, como que ausente de tudo o que a rodeava. O rosto pálido, os olhos cerrados e a boca sempre contraída, davam-lhe o aspecto de um cadáver. E não que estivesse muito doente. Sucedia apenas um conflito interior: sua mente desejava levar avante seus maus propósitos e seu coração ansiava dar-lhes fim, exterminá-los completamente, como lhe aconselhara o padre. Dominá-los sob uma vontade de ferro, para que nunca mais voltassem ao seu coração que desejava ser bondoso... Uma mescla de paixões desencontradas batalhavam em seu íntimo. Empenhava-se em destruí-la, e de novo voltavam a macular seus bons sentimentos e já não mais podia esquecer o mal feito. Tinha sem­pre presente o sorriso irónico de Xavier, quando es­te assegurava ,que ela agradava-lhe muito, mas que em troca, não estava muito seguro de querê-la. O mundo lhe parecia tão mesquinho, tão sombrio e des­prezível, que ela mesma, sem saber ao certo a razão porque o fazia, se empenhava em adulterar seus sen­timentos, que sempre haviam sido nobres e puros.

Ignorava o que Arturo fazia. Sabia somente, que uma noite saíra da sua presença, chamando-a de monstro, e o resto permanecia morto para ela.

Quanto a Xavier, sabia que, todos os dias e em horas diversas, telefonava perguntando por ela.

—      Diga-lhe que estou melhor, padrinho — disse naquela tarde, com voz cansada e fria. — Não tenho vontade de tornar a saber dele.

Teófilo olhou-a, achando muito estranho.

—      Será que já não o ama?

Nem   sequer se   incomodou   em   responder. Era cruel com aqueles velhos que a adoravam e a quem devia todo o seu conforto. Era cruel, e no entanto, ignorava que o era.

Teófilo aproximou-se e suas mãos acariciaram a fronte febril.

—      Necessita muito repouso,   minha filha, muito mesmo. Tem sofrido intensamente, sozinha, sem com­preender que as dores partilhadas, tornam-se mais leves. Por que não desabafa conosco?

Marisa sentiu as lágrimas deslizarem por seu ros­to. D. Filomena, com sua característica doçura, en­xugou-as, sem pronunciar palavra. Deixaram-na só. Compreendiam que a sua menina necessitava de re­pouso e tranquilidade.

Kety veio visitá-la.

Quando Marisa abriu os olhos e viu-a em pé na porta, olhando-a e disposta a aproximar-se, afundou-se mais na cama e gritou, histericamente:

Não entre! Não quero vê-la.

Não seja criança, Marisa!

Tornou a recostar-se nos travesseiros e suspirou profundamente.

Não me faça caso, Kety sou uma tola.

Como se atormenta sem necessidade!

Sem necessidade!...

Nunca pensei que o que aconteceu com Xa­vier, lhe afetara tanto. Sempre a tive por uma mo­cinha um tanto despreocupada. Nunca imaginei, tam­bém, que seu amor por Xavier fosse tão intenso. Sin­to muito, Marisa.

A moça inspirou com força, com se lhe faltasse o ar. Sem abrir os olhos, respondeu.

Não amo Xavier. Creio que nunca o amei.

E a meu cunhado?

A esse, sim.

Por que, então, age dessa maneira? Não lhe traz benefício algum, Marisa, eu sei. Arturo a adora, mas não ignora como são os homens;   amam muito, quando incentivados, e deixam de querer, quando não encontram eco. É necessário que reconsidere. Xavier pode merecê-la, pois mudou muito; por outro lado, Arturo sempre demonstrou ter um grande coração.

Eu sei.

Por que, então, se   empenha por ver o con­trário?

Ignoro-o.

Eu, em seu lugar, trataria de não ignorá-lo.

Escute, Kety, tenho pensado em   entrar para o convento. Reconciliar-me com Deus. Se ao fim de certo tempo compreendo que não posso   ser   freira, que não tenho vocação, e se Arturo ainda me qui­ser, me casarei com ele.

O rosto de Kety expressou uma grande dor.

Você ficou maluca? — exclamou espantada. —Jamais teve vocação para freira, e não tente procu­rá-la agora, pois será inútil.

E se, apesar disso, insistir em procurá-la e a encontrar?     

Não a encontrará!

—Pois mesmo assim eu tentarei!

—Você é insensata.

Marísa nada respondeu. Recostou-se novamente nos travesseiros e ficou silenciosa.

Kety contemplou-a longamente. Depois, inclinan­do-se sobre ela, falou muito baixo:

—Escute,   Marisa:   pode-se servir a   Deus   em qualquer parte; solteira, casada, sendo mãe de mui­tos filhos, os quais educará no Seu amor... Marisa, você pode ser uma dessas mães, com vantagem, por­ que leva à sua frente alguns meses de sofrimento... Eu vou ser mãe, Marisa. Estou louca de alegria, in­teiramente louca e tenho um marido perdidamente enamorado de mim; ele me ama com toda a sua al­ma e ambos esperamos o momento de sermos pais, como se fôssemos receber um dom do céu. E é uma bênção, não é verdade, Marisa?

A moça levantou o rosto e seus olhos grandes e bonitos cravaram-se no rosto radiante de Kety. Bus­cou sua mão e apertou-a com força.

Kety, a ideia de que vai ter um filho me faz muito feliz...!   Meu Deus,   quanta   felicidade   para você!

Pode desfrutar de outra semelhante.

Oh, eu sou diferente.

É uma mulher.

Sim, uma mulher que sofreu   um   desengano muito grande... Você não sabe, nem pode imaginar, o que aquilo foi para mim... Entreguei-me ao amor com absoluta fé. Não havia nada para mim como o amor de Xavier;   nem mais mundo nem mais vida. Depois...   o   golpe foi demasiado duro.   Não estava acostumada a suportá-los e por isso afetou-me as­sim. ..

Mas agora, tem Arturo.

Sim, eu o tenho. Mas, também receio não ser uma esposa carinhosa e amante, como ele merece. Perdi minhas ilusões, e agora sinto-me seca e ári­da; as que restaram, são muito poucas.

Você ama Arturo!

Nunca duvide. Desde que o conheci soube que chegaria e tomaria meu coração.   Mas...

Mas, o quê?

Deixe-me, Kety. Talvez depois de ter meditado muito, torne a encontrar a vontade de viver   neste mundo.

Kety compreendeu que sua amiga precisava ficar sòzinha, e depois de beijá-la na testa, com o carinho com que beijaria a sua filha, saiu do quarto.

Quando Marisa se viu só, chorou muito, quieta e docemente. Era a primeira vez que sentia alívio no pranto.

Adela veio naquela mesma tarde.

Já que Maomé não vai à montanha, a mon­tanha vem a Maomé — disse rindo, sentando-se ao seu lado. — Como vai, querida?

Aquela maneira de chegar encantava Marisa. Sim, Adela sempre a compreendera melhor do que nin­guém. Sabia quando devia zombar dela e calar, quando necessário.

Muito melhor, Adela. Pode ser que amanhã me levante. E seu querido Luís José?

Deixei-o no clube,   com o Sr. Teófilo. Depois virá vê-la. Sabe quem esteve lá em casa?

Se não me diz...

Xavier. Veio saber notícias suas. Disse que não lhe dizem   a verdade, quando   telefona. Anda   como uma alma penada. Asseguro-lhe que   a ama de ver­dade.

Diga-me, Adela: quem você prefere para meu marido, ele ou Arturo?

—      Pois não sei. Arturo me agrada bastante;   é um rapaz que vale muitíssimo. Xavier... - fez umgesto vago. -  Não sei, querida;   creio que só você mesma pode saber.

É que eu não amo nem um pouco a Xavier.

Então, por que alimenta o seu amor? Quando um homem não interessa, nós o mandamos andar.

— Tem visto Arturo?

Sim, esteve em casa ontem.

—      Não lhes contou nada?

Nada, sobre o quê?

—      Dele e de mim.

Não, nada.   Um dia falou no seu nome, para dizer que estava apaixonado por você. Esses dias tem andado muito pensativo e triste.

Sabe que estou doente?

Não creio. Pelo menos não me disse nada. Ficaram silenciosas. Logo Adela inclinou-se sobre sua amiga, e segurando o rostinho, já não tão pálido, entre as mãos, disse baixinho, com uma docura que comoveu a doente:

Estou muito feliz, Marisinha. Luís não cabe em si de alegria. Vamos ser papais.

— Você também?

Sim. Imagina se Luís não é um tolo! Quer ter dois de uma só vez. Um casalzinho.

Que loucura!

Gostaria de ve-la casada, Marisa. É algo ma­ravilhoso .

Quando Adela partiu, Marisa se disse que sua amiga, antes de vê-la, tinha estado com Kety e sabia de tudo o que ela tinha contado à mulher de Tomás.

No entanto, não fez menor menção.

 

PASSARAM-SE os dias, Marisa retornou à sua vida normal. Uma tarde, quando saía de casa, encon­trou-se com Xavier, que parecia estar ali à sua es­pera, espreitando a porta.

Correu para ela, com as mãos estendidas.

Coração!   exclamou   apaixonadamente.   — Julguei que esses dias eram anos, anos intermináveis... Por que não me permitiu entrar na sua casa? Sei que Teófilo teria acedido.

— Não duvido.

Por que, então, a criada me dizia que eu não podia ir?

Eu não tinha vontade de ver ninguém.

— Malvada!

O rosto da moça continuava impertubável. Sentou-se ao volante e Xavier acomodou-se ao seu lado. E foi naquele momento, que Marisa compreendeu que nem valia a pena mencionar a indiferença que aquele homem lhe inspirava, pois era infinita e, a bem da verdade, já não lhe interessava continuar sua vingança.

Marisa, falei com meus pais a respeito do nosso casamento. Quando você quiser, eles virão falar com Teófilo.

O automóvel partiu, ligeiro. As mãos de Marisa não se crisparam sobre o volante; ao contrário, per­maneciam imóveis, frias.

Você ouviu, Marisa?

Sim.

E o que diz?

Que não é preciso — olhou-o rapidamente e depois concentrou sua atenção à direção. — Não me casarei com você, Xavier!

O que...? O que disse? Que não se casa co­migo? Ficou louca?

Não. Creio que nunca estive tão sensata. Pen­sei dizer-lhe de outro modo, mas já não me interessa. Não me caso com você porque deixei de amá-lo naque­le dia, a bordo do iate... Lembra-se? A desilusão que tive foi tremenda. Tanto ou mais do que a experi­mentada agora. Diz bem quem afirma que tudo chega a seu ponto de saturação na vida... Naquele dia fui eu a desiludida... Hoje é você!

O rosto de Xavier estava branco, a boca contraí­da, e os olhos brilhantes, muito abertos. Foi ele mesmo quem freou o automóvel, e, sem pronunciar uma pa­lavra, saltou para a calçada, seguido por Marisa, em cujos olhos se via a mais completa indiferença.

      Não quero entrar aí — disse. — Caminhemos. Começaram   a   andar.   Marisa   caminhava   como uma autômata e Xavier, ao seu lado,   parecia uma sombra.

Vai se casar com Arturo, não é verdade?

Ainda não sei. Creio que vou ser freira.

Você ficou louca — repetiu.

A moça encolheu os ombros.

Se quer saber a verdade, quisera estar. Penso que se não houvesse acontecido nada entre você e eu no iate, seríamos, dos três casais, o mais feliz...

E ainda está em tempo.

Não; já é muito tarde. Se me casar, você será o último homem que escolherei.

Xavier parou de chofre. Seus olhos buscaram a face inalterável de Marisa. Tinha pressentido aquele desenlace. Nunca saberia dizer por que, mas é certo é que tinha pressentido. Não ignorava, tampouco, o mal que lhe causara. Não que o soubesse antes, quan­do o tinha feito, e sim agora, agora que conhecia a dor e o que representava perder o seu amor. Não pro­testou.

Como bem havia dito Teófilo, Xavier era um ra­paz meio inconsequente, mas não mau. Tinha sempre encarado a vida com leviandade, e essa leviandade agora lhe negava a vida. Não podia atribuir a culpa a ninguém. Agora colhia ó fruto do seu infeliz pro­ceder, do seu temperamento discordante, volúvel e desconcertante...

Sinto que a sua vingança tenha se realizado desta maneira — disse, sentido. — Eu a amo tanto, Marisa, tanto e de tal forma, que não protesto. Um dia soube ganhar, hoje tenho que saber perder.

Quisera amá-lo — respondeu com franqueza. - Sempre o tive como um rapaz leviano, de tempe­ramento demasiado apaixonado para saber com cer­teza o que desejava. Hoje mudei meu modo de pensar.

Não tem mais nada para dizer-me?

Nada mais. Portanto...

Portanto,   eu   me   vou.   Marisa.   Farei   uma grande viagem. Irei sem data de regresso, e ao voltar, quisera encontrá-la casada e com filhos. Não entre para um convento. Pode-se ser boa sem necessidade de sacrificar a juventude. Um homem precisa de você, Marisa — disse tristemente. — Poderia ter sido eu, mas não soube ganhá-la, e não me resta outro recurso senão retirar-me...

Apertou a mão que a moça lhe estendia e, em si­lencio, rliMi meia volta e afastou-se da mulher que, sem saber, acabava de demonstrar-lhe que não basta ser milionário, elegante e simpático. Existe algo mais, e isso, ele tinha esquecido...

Marisa seguiu seu vulto, com os olhos rasos d'água. Uma lágrima desprendeu-se dos seus olhos e foi molhar a calçada. Com um gesto de mão secou a face e entrou no carro. Arrancou, com a intenção de ir visitar Adela.

O passado estava morto. Na sua alma não ficaram desgostos nem remorsos. Elevou os olhos ao céu, e seu coração dedicou uma prece fervorosa àquele que a tinha ensinada a esquecer.

 

Pela primeira vez em sua vida, Xavier tremeu ao tocar uma campainha. Era uma sensação inconcebível nele, que nunca tinha se sentido fraco diante de nada e de ninguém.

Uma criada abriu a porta. Pediu para ver o Sr. Teófilo e conduziram-no à uma salinha. Logo depois, a figura miúda do velho amigo surgia no umbral. Ao ver Xavier, suas pupilas brilharam e os óculos dança­ram no nariz.

—Ora viva! Imaginei que o Senhor Xavier Monreal tinha se esquecido da minha existência — disse, avançando com as mãos estendidas. — Alegro-me de vê-lo em minha casa, que é a sua, porque eu a ofereço — riu zombeiteiramente.

Xavier não estava para brincadeiras, mas vendo a disposição do velho, teve que abrir os lábios num meio sorriso. Era o mesmo de sempre, com suas iro­nias, seus risinhos trocistas e seu nariz pontiagudo, sobre o qual cavalgavam os aros de ouro.

Acolheu suas mãos entre as suas e apertou-as vi­gorosamente.

Vim despedir-me do senhor. Já há muito tempo deveria ter vindo, mas...

Mas não o fez. Bem! o que se vai fazer. Lem­bro-me que na   minha mocidade, conheci um velho que se   dava  ares de   filósofo   e   que   afirmava isto: "Quando uma pessoa amiga se afasta de você, deixe-a; é que algo lhe fez..."

Sr. Teófilo!

Ora, ora! Aonde deixou Marisa? — perguntou, como não notasse o sobressalto do jovem amigo. — Saiu esta tarde e eu vi como a esperava na calçada.

Fêz-se um silêncio profundo. Teófilo olhou-o fi­xamente,   como   se   quisesse   esquadrinhar     aqueles olhos, sempre tão audazes e que agora olhavam sem brilho.

—      Não me responde, Xavier?

Este estremeceu. Levantou a cabeça e olhou a face amiga, com evidente tristeza.

Lembra-se quando fingia-me de experiente?.. Uma vez acreditei que nenhuma mulher podia resis­ tir aos meus pedidos, e agora...

Agora, o quê?

Perdi a minha   felicidade por ser   demasiado convencido.        v

Então...

Sim,   Teófilo;   Marisa   não   se   casará   comigo. Ela escolheu outro homem, alguém que soube ganhar o que eu perdi.

O velho não pareceu surpreender-se. Como bem afirmava, era um excelente psicólogo e tinha conse­guido vislumbrar algo, em tudo aquilo que estava acontecendo. Bem, afinal não lhe desagradava Arturo como marido da sua menina e, se Xavier não tinha logrado alcançar o coração da moça, tanto pior para ele; aprenderia, assim, a não desperdiçar as ocasiões.

—      Eu sinto, Xavier — disse sério. — Quando os Juntei no iate, inventando uma saborosa farsa, bem que pensei que de lá. sairiam   três casamentos. Você desertou por ser cabeçudo, por ser demasiado vaidoso e presunçoso. Creio que, daqui por diante, aprenderá a não desperdiçar o tempo precioso que Deus nos pro­porciona.

Quando Xavier se retirou, anunciando que na­quela mesma noite partiria em viagem, Teófilo ficou pensativo e um pouco contrariado; mas depois enco­lheu os ombros, dizendo-se que o mundo era para os espertos e que Xavier não o havia sido...

        

Entrementes, Marisa penetrava no apartamento da sua amiga Adela.

Ao ve-la, Adela sentiu que seu coração se alegrava mas, ao invés de correr para ela, retrocedeu.

— Adela — chamou Marisa, quando a viu afas­tar-se.

—      Espere um pouquinho, Marisa. Agora mesmo estou com você.

Entrou numa salinha. Falou muito baixo com al­guém que se achava no seu interior, e depois, radiante e feliz, correu ao encontro da, amiga.

—      Quanto me alegro, querida. Já está completamente bem?

—      Sim.

Inclinando-se para ela, esquadrinhou seu rosto.

—      O que tem? Seus lábios tremem, como quando está muito nervosa. Será que teve algum desgosto?

A outra contraiu os lábios com força. Pareceu querer dizer algo, mas calou-se.

Não tenha segredos para mim, Marisa. É a primeira vez que me oculta alguma coisa. O que lhe está acontecendo?

Acabo de falar com Xavier pela última vez.

E o que falaram?

Rompemos   para   sempre. Creio   que   amanhã mesmo irei para o convento.

Não tem vocação para isso, Marisa. Não pode tê-la, porque nasceu para ser feliz ao lado de um ho­mem honrado, que a ame muito e que lhe dê alguns filhos, aos quais ensinará a amar a Deus e respeitá-lo acima de tudo, Essa é a sua verdadeira vocação.

Marisa retorcia as mãos, em evidente nervosismo. Adela foi até ela e abraçou-a com força.

Não seja criança. Está amando realmente e se empenha em não interpretá-lo assim.

Você se engana. Eu sei interpretar o que sinto.

Pois então?

Ele me despreza — murmurou desanimada. — Sei que uma vez lhe pareci um monstro e agora... Meu Deus! Agora não quererá saber de mim!

Por toda resposta, _ Adela saiu da sala.

—      Aonde vai?

Adela voltou-se. Um sorriso cómico iluminava seu rosto. Ao abrir a porta, soltou uma alegre gargalhada e cedeu passagem a um vulto masculino, forte e arrogante, cujos olhos   tinham o brilho que   delata   o amor.

Arturo!   — disse a   moça,   quase   sem voz.   — Onde estava?

Arturo avançou lentamente. Seus olhos refletiam todo o amor que os lábios ainda não se tinham atre­vido a expressar.  i

Adela saiu, fechando a porta de mansinho. Na saleta, abraça-se ao seu marido, dizendo num suspiro:

Verá como afinal nossa querida menina en­contra o amor que buscava.

— Será tão grande como o nosso?

Tanto, sim;   mais, impossível.

Na sala, Arturo e Marisa, um na frente do outro, permaneciam silenciosos, os olhos nos olhos, as mãos unidas e os lábios calando o que já sabiam.

—      Sua   vocação   é esta,   criança — disse   final­mente, atraindo-a brandamente para si. — A vocação do matrimónio, os filhos,   a   doçura   do lar. Marisa! Minha vida. Nunca pensei que me parecia um mons­tro;   é que desejava fazê-la desistir da vingança, já que o meu amor a faria esquecer toda a dor passada. Amo-a apaixonadamente, meu amor;   tanto, tanto.

Depois apertou-a em seus braços e Marisa julgou estar no próprio céu.

—      Nós nos casaremos em seguida, Marisa! Não posso saber que em breve vai ser minha e tê-la aqui, sem poder desfrutar do seu amor.

Ela, muda, parecia não ter se recuperado da sur­presa. Quando o fez, já a boca de Arturo, pela pri­meira vez, lhe roubava um beijo de amor.

E foi então, que Marisa despertou completamente do letargo. Abraçou-se estreitamente contra aquele corpo vigoroso e seus lábios retribuíram a carícia, com uma força poderosa que a arrebatou. Perdeu a noção do tempo e das coisas. Sabia, somente, que ali tinha o seu amor e que estava vivendo dele...

—      Meu   amor!   —murmurou, segurando o rosto de Arturo. — Você é o amor e me dá um pouco de medo, mas...

Nós nos amamos — concluiu ele, com voz rouca, emocionada, porque jamais a tinha imaginado tal como era. E a revelação deixava-o deslumbrado.

 

Naquela noite, Teófilo ofereceu uma grande festa, na qual se reuniu a mais seleta sociedade de Bilbao.

Seus óculos de ouro dançavam sobre o nariz com mais alegria que nunca, enquanto contemplava a fe­licidade dos "seus" três casais, os mais bonitos e ele­gantes entre todos ali.

Que lhe parece minha obra, Senhora Filomena? — perguntou trocista, presenteando-a com uma coto­velada.

Esta olhou-o com seus olhos vivos e respondeu, emocionada:

Não tenho outro remédio senão confessar que reconheço a sua "genialidade."

Nada mal, mulher!   Não tem vontade de dar um rodopio? Eu estou disposto a dançar, se você me acompanhar.

E todos os presentes abriram um palmo de boca, vendo o Sr. Teófilo e D. Filomena dançando alegre­mente ao som da orquestra. Imitaram-nos e foi então que tiveram a surpresa de constatar que os simpáticos velhinhos dançavam nada mais nada menos que uma polca, enquanto a orquestra tocava um fox dos mais modernos.

Teófilo levantou o dedo e a orquestra teve que tocar a polca que ele desejava e aquilo foi cômico. No entanto, em todos os olhos havia uma lágrima de emoção.

Quando a festa terminou, os dois abraçaram-se em silêncio, trêmulos pela emoção que os embargava.

Estamos loucos, meu caro Teo — disse a es­posa, com os olhos cheios de lágrimas.

Não, querida. Somos felizes porque o Senhor premiou-nos com seis filhos...

 

                                                                                Corin Tellado  

 

                      

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