Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
DESTINOS QUE SE AFASTAM
Cylia de Liancourt pelo menos, conheciam-na com este nome sofreu o seu primeiro grande desgosto no dia em que completou vinte anos.
Nessa tarde, a mãe revelou-lhe que não era filha do conde de Liancourt, como até ali acreditara, mas do pintor paisagista, Guy de Férias, seu primeiro marido, de quem se divorciara depois de quatro anos de casada.
Quanto às razões que tinham motivado a separação, a condessa não julgou necessário revelá-las por só a ela dizerem respeito; e Cylia, embora gostasse de conhecê-las, não se atreveu a interrogar a mãe.
Aterrada pela revelação, que estava bem longe de ouvir, ergueu para a mãe os lindos olhos verdes, ensombrados de tristeza, enquanto um turbilhão de pensamentos confusos se lhe desencadeava no cérebro.
Porque esperou por este dia para me revelar tudo isso? ’balbuciou em voz trémula Mais cedo... enquanto era criança, ter-me-ia custado menos.
Surpreendida e enervada por ser constrangida a dar-lhe explicações, a condessa levantou a cabeça:
Custar?... Não vejo em que a revelação possa afligir-te! Na tua vida nada mudou, o conde ama-te como filha, tu retribuis-lhe a afeição... e nem todas as raparigas podem dizer o mesmo do seu verdadeiro pai. Além disso acrescentou, vendo os olhos de Cylia enevoados de lágrimas, estòicamente reprimidas se adoptei este procedimento, de acordo com o conde, foi para teu bem, para te deixar viver em completa tranquilidade de espírito...
Calou-se de súbito, dolorosamente impressionada pelas reminiscências do passado, e, decorridos minutos, concluiu:
De resto, o silêncio não nos foi difícil de manter porque o meu primeiro marido nunca fez valer os direitos que o tribunal lhe concedeu sobre ti.
Quais direitos? perguntou Cylia, com brandura.
A mãe esboçou um gesto de enervamento, mas, ao notar o abatimento da filha, respondeu em tom compadecido:
O de te ver dois dias por mês.
A filha tornou-se ainda mais pálida.
O meu verdadeiro pai nunca desejou ver-me? murmurou Não gostava de mim?...
A senhora de Liancourt encolheu os ombros, já aborrecida. E, cada vez mais enervada à medida que se via forçada a responder, explicou com leve desdém:
Já te disse que era um artista... um pintor... um boémio, posso mesmo dizer, um estróina. Essa espécie de homens não conhece o amor da família e o teu pai menos do que nenhum!
A declaração foi lançada num tom tão brusco e desprezador que Cylia ergueu para a mãe um olhar carregado de censuras.
Santo Deus! exclamou a condessa, irritada com a atitude da filha, que parecia ter tomado a revelação pelo lado trágico Quem te visse poderia supor-me uma mulher excepcional! Falo desse homem com certa dureza porque me fez sofrer muito. A perspectiva do divórcio tornava-se-me odiosa, mas por fim compreendi... convenci-me de que não tinha outro caminho e, depois de muitas cenas bastante deploráveis, decidi-me pela separação... O divórcio não é desonra!... Pode antes considerar-se uma desgraça que atinge todas as classes sociais, embora tenha sido adoptado por todos como natural... Vendo bem, é preferível ao viver infernal dos casais que deixaram de entender-se.
Calou-se, arrependida de ter ido longe demais. Dando uma palmadinha na face da filha, concluiu:
Ainda és muito nova para compreender certas coisas. Basta dizer-te que o meu casamento foi anulado pela Cúria Romana e que, portanto, estou perfeitamente tranquila perante a minha consciência. Agora vai preparar-te, querida... Desejo ir contigo à quermesse do Bosque de Bolonha para festejarmos os teus vinte anos.
Cylia deteve a mãe, que se levantara.
Não, mãe pediu, pegando-lhe na mão Preferia não sair hoje... Deixe-me habituar um pouco... ao que acaba de me revelar.
A condessa mais uma vez encolheu os ombros.
És ridícula!... Contas ficar todo o dia com essa cara de enterro?... Diante de teu pai, seria pouco delicado!
Reconheço tudo quanto devo ao meu pai adoptivo. Por afeição... ou por compaixão, prodigalizou-me o carinho e as carícias de um verdadeiro pai. Quando me sentava nos seus joelhos e lhe lançava os braços ao pescoço, nada tinha que invejar a qualquer outra criança. No entanto, isso não pode fazer-me esquecer que outro tem direito aos meus pensamentos ou às minhas orações... porque ainda não me disse se o meu pai vivia ou não.
Vive, sim respondeu em voz surda a senhora de Liancourt, cujas pupilas se prendiam às de Cylia.
Estas duas palavras foram para a filha como dois golpes de punhal, ferindo-a até ao mais íntimo da alma: ”Vive, sim!...”.
Existia um homem que vivia em qualquer parte, longe dela... esse homem era seu pai e só naquele instante tivera conhecimento da sua existência!
A revelação fulminara-a como uma catástrofe de caminho de ferro fulmina o viajante que, muito tranquilo, segue na sua carruagem.
E no peito cresceu-lhe o imperioso desejo, um desejo espontâneo, irreflectido, de saber mais alguma coisa, de o conhecer.
Gostaria... poderia ver esse... o meu pai?
Que dizes tu?... Pois tu queres... Conquanto já devesse contar com o pedido,
a condessa empalideceu e as feições transtornaram-se-lhe.
Pois tu queres?... repetiu, quase aterrada.
Não peço para lhe falar explicou Cylia, constrangida e incomodada por ser obrigada a abordar um ponto cuja iniciativa, em sua opinião, deveria ter partido da mãe. Apenas desejo conhecê-lo, vê-lo de longe, a fim de poder criar uma imagem com rosto, quando pensar em meu pai.
Não sei como poderei satisfazer-te o desejo, minha pobre pequena protestou a condessa, cada vez mais desorientada. Perdi-o de vista e, desde que casei, tornou-se um estranho para mim. Deves compreender que o meu segundo marido não gostaria de que eu pensasse no outro... mesmo para fazer o que me pedes!
A avó deve conhecê-lo e poderia ocupar-se do assunto.
Completamente dominada pelo pensamento do pai, cuja existência só naquele dia conhecera, Cylia esquecia todo o resto. Nem sequer notava quanto a sua exigência era cruel para a mãe e desagradável para o conde de Liancourt, que a tinha educado e a amava como filha. A revelação atingira-a nas fibras mais íntimas, como se agudo punhal lhe tivesse penetrado na carne. Sentia-se ferida, humilhada e como que lesada. Parecia-lhe que, tendo-lhe ocultado a existência do verdadeiro pai, a mãe a privara intimamente dizia roubara de um bem que era seu, muito seu, e do qual ninguém tinha o direito de dispor sem a consultar.
Sem notar até que ponto se tornava egoísta e cruel, continuou:
A avó poderia substituí-la e mostrar-me o meu pai... Parece-me que tenho o direito de o conhecer!
O direito! repetiu a mãe, ofendida com essa palavra proferida pelos lábios de uma filha Um homem que expulsei da minha vida... que nunca se importou comigo... que esqueceu todos os deveres de pai!... Não, raciocina e reflecte. Viveste até hoje sem saber da sua existência... Há dezoito anos que nos separámos e nunca se preocupou contigo. Portanto, não vejo a razão que te leva a impor-lhe a tua presença e para que te aflijas assim por causa dele.
Carinhosamente, puxou-a para si, apertou-a nos braços, vibrante de amor maternal ou talvez impelida por ciúme instintivo contra aquele que, a despeito de todos os obstáculos, sem mesmo o ter procurado ou merecido, lhe roubava uma parcela do coração da filha.
As duas mulheres conservaram-se abraçadas por muito tempo. A mãe com o rosto inundado de lágrimas e Cylia, apesar dessas lágrimas, couraçada num mutismo feroz.
Depois de muitos beijos, a condessa, com um roçagar de sedas, abandonou o quarto branco e alegre, e Cylia, livre de qualquer constrangimento, pôde enfim dar largas à sua dor, expandir a angústia que lhe esmagava a alma.
Tenho outro pai!... O meu verdadeiro pai!... Um pai que não conheço nem se importa comigo! murmurava, perfeitamente desorientada.
Inconscientemente, as mãos uniam-se-lhe, apertavam-se numa crispação de sofrimento.
Ao ser-lhe revelada a existência de um desconhecido a quem estava unida pelos mais íntimos laços de sangue, sentira-se como que despenhada no vácuo, tinha a impressão de que, até ali, vivera embalada num sonho doce, do qual despertava agora, ao qual fora arrancada brutalmente, por forma que a deixava magoada e mal ferida.
A mãe, a quem, até ali, adorara com ardor e respeito infinitos, aparecia-lhe como que diminuída, humilhada a seus olhos, sem que pudesse explicar a natureza desse sentimento, desse golpe que atingira, sentia-o bem, a sua veneração filial.
E não podendo admitir que ele lhe fosse vibrado pela própria mão da mãe, traduzia o seu pesar por um grito ingénuo, nascido do mais fundo da alma:
Como tu me fazes sofrer, mãezinha!...
As sombras invadiram o quarto gracioso e perfumado e acumulavam-se nos cantos, afogando, pouco a pouco, as pessoas e as coisas no seu véu misterioso.
Pela janela aberta entrava a frescura da tarde e o rumor vago dos boulevards, crescendo com a aproximação da noite.
Esmagada pela intensa tristeza que toda a tarde a dominara, Cylia refugiara-se na enorme poltrona, onde desaparecia quase por completo e, com a cabeça encostada ao espaldar de seda, os olhos muito abertos na escuridão, parecia contemplar no espaço um quadro estranho e só visível para ela.
Pela milésima vez repetia as revelações da mãe, sem ter ainda conseguido habituar-se à ideia.
É impossível!... Estou a sonhar... um mau sonho de que vou despertar em breve... Não é possível que tenha outro pai... e que esse pai viva não muito longe de mim, talvez, sem eu o conhecer!...
Era principalmente o pensamento de que o pai era um desconhecido para ela e que considerava a filha como uma estranha, que mais a fazia sofrer.
Depois, aceitando o inevitável, conformando-se com esse pai verdadeiro, carne da sua carne, sangue do seu sangue, tentava descobrir no mais fundo da memória uma recordação material, uma imagem distante, perdida nas reminiscências infantis.
Devo recordar qualquer coisa, pequenina lembrança, um nada que lhe diga respeito... É inegável que vivi um pouco da sua vida.
O pai deveria ter sido uma das primeiras pessoas que o seu olhar de baby encontrara. E, decorridos dezoito anos, não conservaria na memória a imagem, ainda que diluída, do seu rosto alegre ou triste, no ouvido o som da sua voz mais ou menos grave, a impressão das carícias, dos beijos que lhe prodigalizara ou então de uma atitude reservada ou glacial que a tivesse afastado dele?...
São, em geral, factos muito impressionantes para os cérebros infantis e que ficam sempre gravados na memória, ainda que em traços apagados.
Mas, por muito que insistisse, não conseguia desenterrar e fazer ressurgir os contornos indecisos e vaporosos de um ser gracioso e meigo ou de um fantasma austero e temido.
Desanimada, perguntava então a si própria se chegara a conhecer o verdadeiro pai, a viver algum tempo junto dele, se o pai lhe tivera um bocadinho de afeição.
Nunca teria sido nada para ele?...
Era esta dúvida que a atingia em pleno peito. Numa crispação de todo o seu ser e num movimento brusco, levantou-se como para fugir a dolorosa suposição.
Um pai completamente estranho para a filha!... Uma filha completamente estranha para o pai!... Não, isto não é possível, meu Deus!... Uma coisa destas nunca poderia dar-se!
Para a sua lógica severa de adolescente, semelhante facto parecia-lhe uma monstruosidade, uma espécie de sacrilégio de que o Céu tivesse sido cúmplice.
Seria horrível! balbuciou. E, com a cabeça em fogo, começou a passear no quarto de um lado para o outro. A noite caíra de todo.
Às apalpadelas, procurou o comutador e, tendo-o encontrado e accionado, uma luz doirada ligeiramente velada pela túlipa de seda amarela que envolvia a lâmpada jorrou, envolveu-a, espalhou-se pelo aposento, reflectindo-se nas paredes claras e pondo em evidência os arabescos dos cortinados.
Respirou mais aliviada e, dominada por súbito pensamento, aproximou-se do espelho e contemplou-se demoradamente.
Batida pela luz, a palidez do rosto acentuava-se, a expressão triste e distante do semblante tornava-se mais evidente.
Com os braços erguidos, as mãos cruzadas na nuca, num gesto que lhe era familiar, examinava feição por feição: a testa alta e ligeiramente arqueada; o traço fino como feito a tinta da China das negras sobrancelhas; os olhos verdes, sonhadores e profundos, docemente sombreados pelos compridos cílios; o nariz um pouco grande; a boca de lábios vermelhos; as graciosas covinhas das faces; o queixo redondo, de desenho voluntarioso e firme; a cútis branca, quase luminosa, formando acentuado contraste com a massa dos cabelos negros.
Não me pareço nada com a mãe murmurou.
A condessa era loira, esbelta e franzina: ”Como um Saxe precioso”, dissera um dia o general de Siturne, amigo da família. E nada mais justo como comparação, nem mais completo como descrição poderia dizer-se a respeito da loira e deliciosa esposa do conde de Liancourt.
Recordando estas palavras, Cylia examinava o torso vigoroso, o peito desenvolvido, dificilmente comprimido no corpo do vestido, as ancas fortes, cujas linhas arredondadas a saia moldava perfeitamente, e repetiu:
Não, não me pareço com a mãe.
Os lábios entreabriram-se-lhe num sorriso tímido.
E se fosse com ele?...
Um lampejo de esperança e de alegria filtrou através das pestanas sedosas. Involuntariamente, e sem motivo justificado, o pai desconhecido tomara para ela proporções de herói. Sem o conhecer, sentia-se atraída para ele, adornava-o com todas as belezas e graças.
As mãos desenlaçaram-se da nuca para virem apertar-se, comprimindo o peito no ponto onde o coração fazia toque-toque e, enquanto a boca se entreabria num sorriso radioso, exclamou num tom vibrante:
Se me parecesse com ele, talvez viesse a gostar de mim!
No mesmo instante, porém, estremeceu e corou.
Falara em voz alta e as palavras, acordando o silêncio do aposento, perturbaram-na, tanto pelo sentido como pela singular alegria que, voluptuosamente, a dominou.
Curvou a cabeça num sentimento amargo e confuso, como um remorso.
Estou doida, na verdade!... E como sou má!... Podias ter ouvido a minha exclamação, mãe querida, e sofrer por minha causa... A tua Cylia adorada, correr assim atrás de uma quimera, quando tem uma mãezinha carinhosa e meiga, um pai que é o melhor dos pais!... Que doidice!...
Numa reviravolta súbita, prendia-se agora aos dois seres que até ali tinham sido tudo para ela.
Como pudera esquecer dois entes tão bons, tão delicados, que tinham sido toda a sua vida o único alvo da sua ternura, para, durante tantas horas, só pensar num homem que não conhecia e nunca se preocupara com ela?...
Chegara a murmurar censuras contra a mãe, a mãe cuja palidez traíra o intenso pesar sofrido ao adivinhar, pelas feições transtornadas da filha, o resultado desastroso das suas revelações.
Estremeceu e balbuciou:
Nunca deixei de amar-te, mãe querida.
Numa sequência natural, depois do rosto choroso da condessa, viu a fisionomia bondosa do padrasto, tão bom, tão indulgente, tão afectuoso!
Com o cérebro povoado pela fantástica imagem do outro, nem sequer tivera um pensamento para ele!
Oprimida pela tristeza, numa impressão de extrema lassidão, aproximou-se da janela, que fechou, encostando a testa aos vidros. Sem fixar a atenção, num olhar vago, abrangeu o céu todo negro, as casas cortadas pelos rectângulos das janelas iluminadas, a longa fila dos candeeiros da rua, derramando uma claridade intensa, a multidão compacta, os carros apressados, os autocarros pesados e cheios, todo o movimento que se lhe desenrolava aos pés, intenso de vida e que, na véspera ainda, tanto a tinha interessado.
Naquele instante, tinha a impressão de que coisa alguma seria suficiente para lhe desviar o espírito da dolorosa preocupação: a mãe, o pai e o outro pai!... A desorientação do seu cérebro era completa e como para beber o cálice da amargura até às fezes recordou algumas das frases proferidas pela mãe, como que as ouviu de novo e a perturbação aumentou.
”Essa espécie de homens não conhece o amor da família...”.
E outra, mais cruel para o seu espírito orgulhoso:
”Nunca fez valer os direitos que tinha sobre ti... Há dezoito anos que nos separámos e nunca se preocupou contigo...”.
Outra frase ainda, materialmente verdadeira, justa, mas revoltante, em sua opinião:
”Desde que casei segunda vez, tornou-se um estranho para mim...”.
O estilete agudo como que voltou a verrumar o cérebro de Cylia.
Um estranho!... O meu pai tornou-se um estranho para minha mãe! repetiu lentamente, como para melhor se compenetrar de palavras tão inverosímeis.
E, numa voz estrangulada pelos soluços que lhe morriam na garganta, acrescentou:
Depois foi ele quem, voluntariamente, de plena vontade, me tornou uma estranha na sua vida!
Vencida por este pensamento, que a deixou magoada e aterrada como criança a quem acabassem de bater, deixou-se cair numa cadeira a soluçar.
Não vás já, Cylia!... Quero falar contigo. Ao ouvir estas palavras, pronunciadas em voz hesitante pela condessa de Liancourt, Cylia, que ia a abandonar a sala de jantar, parou e, vagarosamente, voltou-se para a mãe.
Deseja dizer-me alguma coisa? perguntou. A mãe confirmou com a cabeça e, ao mesmo tempo, erguia para a filha um olhar pensativo.
Pelo modo hesitante da mãe, pela sua atitude algo fria, por qualquer coisa de subtil e indefinido que adivinhava mais do que via, Cylia teve a intuição de que a condessa ia abordar o assunto da véspera... a existência do seu outro pai.
Uma vaga de angústia como que se levantou e toldou os grandes olhos verdes.
Desde que recebera a revelação, a presença do seu verdadeiro pai, que tanto desejaria conhecer, como que se lhe impunha implacável, num pensamento obsidiante, doloroso, que a queimava e lhe martelava o cérebro, fazendo-lhe latejar as fontes numa violência que, a despeito de todos os seus esforços, não conseguira acalmar.
No entanto, experimentava uma sensação de amarga alegria por sofrer sozinha, por poder enterrar a dor no mais fundo da sua alma. Uma espécie de pudor levava-a a ocultar a todos a perturbação dos sentimentos, e tinha a impressão de que a menor alusão ao mal o tornava mais agudo.
Naquele instante, desejaria poder deter as palavras que adivinhava prestes a brotarem dos lábios maternais.
Que pretende dizer-me, mãe? insistiu com ansiedade.
Recordar-te certos deveres que parece teres esquecido.
Cylia corou, muito atrapalhada.
Quais deveres? repetiu surpreendida.
Os teus deveres filiais acentuou a mãe Desde ontem que a tua atitude não é a que devia ser e que eu esperava de ti.
Cylia empalidecera. Como temera, a mãe ia insistir sobre o cruel assunto, quando ela ambicionava que não voltasse a referir-se-lhe, pelo menos de momento.
”Mais tarde... quando eu estiver familiarizada com a ideia... então...”.
Os lindos olhos fixaram-se na mãe, exprimindo uma súplica ardente.
Mãe... peço-lhe! balbuciou.
A senhora de Liancourt não quis compreender o eloquente olhar da filha, pensando, pelo contrário, que as feridas, para se curarem depressa, devem ser cauterizadas até à carne sã.
Senta-te aqui, Cylia. Estamos sós e por isso quero aproveitar para dizer-te...
Calou-se um instante porque, também para ela, o assunto era difícil de abordar e lhe custava proferir as palavras que julgava necessárias para fazer voltar a calma ao espírito da rapariguinha ignorante.
Bruscamente, decidiu-se:
Desde ontem, tens chorado muitas vezes, não é verdade?
E em voz mais firme, embora tivesse ainda certa dificuldade em falar, prosseguiu:
Não deves chorar, Cylia... Não deves estar triste nem preocupada! O conde de Liancourt considera-te como uma verdadeira filha e a tua vida não mudou em coisa alguma... Por atenção para com ele, devias mostrar-te sorridente, impassível... como se a revelação que te fiz te deixasse indiferente. É a mais elementar delicadeza que to ordena, compreende-me bem.
Respirou profundamente, satisfeita por ter conseguido dizer parte do que desejava, e continuou:
Deves muito ao meu marido, que sempre te estimou e considerou como sua filha, é bom que não o esqueças... Representa uma ingratidão apresentares-te diante dele com esse aspecto de tristeza, com os olhos pisados pelas lágrimas, como fazes desde ontem. Contava que o teu coração, quando não fosse a sensatez, te indicasse o modo de proceder sem que eu necessitasse de te chamar a atenção.
Cylia baixou a cabeça, humildemente, como culpada.
Fiz o possível por ocultar as lágrimas, mãe.
Mas porque choras tu?
Não sei... é mais forte do que eu.
És, simplesmente, ridícula! Insensivelmente, falava com certa aspereza.
Na sua alma nascia um sentimento de ciúme contra o homem, contra o pai desconhecido a quem bastara referir-se para que o coração da filha logo o adoptasse. Esse ciúme tinha como base não só o egoísmo maternal, como todo o rancor acumulado no seu coração de mulher contra o homem que, sendo seu marido, tanto a fizera sofrer.
Não, não consentiria que Cylia amasse o pai. Para impedir semelhante abominação pensava estava disposta a tudo.
Com pouco tacto, como em geral acontece quando se procede sob o império do ciúme, em vez de deixar que o coração da filha readquirisse, pouco a pouco, a calma, com esta intervenção aumentou a dolorosa perturbação que Cylia ainda não conseguira dominar.
Que significam essa tristeza e essas lágrimas? continuou - Por acaso deixaste de ser hoje o que foste ontem?... O que te revelei sobre o teu nascimento modificou em alguma coisa a tua vida?... A tua felicidade não está assegurada, vivendo junto de mim e do conde?... Um dia casarás com um rapaz da nossa sociedade que te ame e a quem tu ames e respeites, e não com um boémio, um estróina sem educação, que te faça sofrer tanto como eu sofri. Pensa bem, minha Cylia...
Para melhor se insinuar no coração da filha, suavizou a voz, deu-lhe inflexões de extrema meiguice...
Esse homem de quem ontem te falei pela primeira vez... cuja existência te revelei... nunca poderá representar coisa alguma na tua vida...
Cylia fez um gesto instintivo de protesto que a mãe não deixou de notar.
Não estás de acordo?
É meu pai! observou docemente a filha Mesmo que eu o esquecesse, nem por isso deixaria de ser meu pai.
Teu pai!... Sim... mas tão pouco!
Tão pouco? admirou-se Cylia, sem compreender.
Pensa bem, filhinha... Não te conhece, não te educou, nunca viveu contigo... nunca tentou ver-te nem saber de ti... nem mesmo quando estiveste doente... A tua atitude obriga-me a dizer-te certas coisas que preferiria calar, mas, enfim... Há três anos, quando tiveste aquela febre de que ias morrendo, julguei ser meu dever avisá-lo de que a tua vida corria perigo. Mesmo assim...
Mesmo assim? repetiu a filha, ansiosa, parecendo beber as palavras que tombavam dos lábios da mãe.
Levou um mês para responder à carta que a tua avó lhe escreveu... a resposta chegou quando já estavas boa e tinhas ido para fora a fim de convalescer. Poderias ter morrido sem que viesse ver-te ou, simplesmente, se informasse do teu estado.
Há palavras que se assemelham a punhaladas e as da condessa pertenciam a esse número.
Cylia estremeceu e a sua palidez aumentou. Em voz estrangulada, murmurou numa espécie de hipnose:
Nesse caso, a minha vida ou a minha morte, tudo quanto me diz respeito é-lhe indiferente!
A despeito dos esforços para não chorar diante da mãe, as lágrimas subiram-lhe aos olhos e rolaram-lhe lentamente pelas faces.
O seu desgosto tornava-se tão evidente que a condessa, intensamente comovida, correu para ela e apertou-a nos braços.
Em voz meiga, onde vibrava todo o seu amor, lamentou:
Minha pobre pequenina! Como eu lamento ter sido obrigada a revelar-te todas estas coisas! Mas julgo preferível não tas ocultar, para que o mal-entendido, criado pela revelação inicial, não se agrave e, mais tarde, se erga entre ti e o conde, que tanto te estima, e entre ti e mim... eu que sou tua mãe e que tanto te quero, minha Cylia!
Apertava-a fortemente contra o peito, entremeando as palavras com beijos, para melhor a convencer.
És amiga da tua mãe, não é verdade?... Estimar-nos-ás sempre, a mim e ao conde, que desde sempre só vivemos e só viveremos para ti... Reflecte bem, minha queridinha, e reconhece que o laço entre ti e esse outro pouco vale comparado com o que nos une aos três!
Cylia passou os dedos finos pelos olhos e, numa espécie de rebeldia concentrada, como se pretendesse apagar todos os vestígios da sua fraqueza, afirmou:
Sim, quero estimar os dois... unicamente os dois entes que até hoje constituíram toda a minha vida... É a si e ao conde que amo e amarei sempre.
E, numa explosão de ternura, cobriu a mãe de beijos.
Mãezinha!... Minha adorada mãezinha!... As pupilas da condessa irradiaram de contentamento.
Meu amor!... Não penses mais no que lá vai!... Somos felizes os três e o passado que nos une é doce de recordar... Continuaremos sempre unidos e não ensombremos o afecto que nos prende!
Sim, mãezinha querida!
Era como se tivesse estado prestes a perder a mãe e de novo a encontrasse. Tantos tinham sido os pensamentos contraditórios que, desde a véspera, se lhe atropelavam no cérebro, que lhe ficara como que uma impressão de ter errado perdida por país desconhecido e perigoso. E quando a condessa, completamente tranquila, a deixou sair, Cylia convenceu-se de que a dolorosa obsessão estava dominada para sempre. Como ia adorar a mãe para que no seu pensamento não houvesse lugar para outras ideias!...
Bom dia, querida, como estás?... Passei e subi para te ver... mas que tens tu?... Choraste?...
Num movimento gracioso, a gentil rapariga rosada, com cabelos loiros e vaporosos, curvava-se para beijar Cylia, que abandonara o bordado para pensar na comovente conversa que acabava de ter com a mãe.
Tu choraste! repetia, sinceramente desolada, a visitante.
Cylia ergueu a cabeça, tentou sorrir e beijou a amiga, que entrara no quarto sem que ela pressentisse.
Não te preocupes... isto não tem importância. Estou hoje mal disposta.
Calou-se, procurando a forma de explicar as lágrimas e iludir as perguntas que adivinhava prestes a serem feitas por Odete.
Todos nós temos dias de aborrecimento, cinzentos, como eu lhes chamo, dias em que choramos sem motivo, sem saber porquê. Porque o sol brilha e o céu está azul ou porque a modista nos estragou o vestido em que fazíamos empenho... Eu estou num desses dias, minha pobre Odete, eis tudo...
Ao mesmo tempo corava e voltava a cabeça, incomodada com o olhar franco que a observava.
Fizeste bem em vir hoje acrescentou, para ocultar a confusão.
A amiga adivinhou que ela não queria revelar-lhe a razão por que chorara e, por discrição, não insistiu. Em tom despreocupado e alegre, respondeu:
Devia-te a visita, minha querida Cylia. Há quanto tempo não venho a tua casa!... Desculpas, não é assim?... Afirmo-te que nunca deixei de pensar em ti.
Cylia limitou-se a sorrir.
O procedimento da estouvada Odete de Chevreuse não lhe causava espanto. Acontecia-lhe frequentemente visitar as amigas duas vezes no mesmo dia ou, pelo menos, em dias seguidos, até que um capricho de criança amimada ou novos projectos nascidos no seu cerebrozito de passarinho tonto modificassem o programa e a lançassem noutra direcção. Então desaparecia durante algum tempo para reaparecer um belo dia, serena, tranquila, com as mesmas demonstrações de amizade como se tivesse visto a amiga na véspera.
Em voz clara e alegre, entrecortada com gargalhadas cristalinas, explicava a sua presença no palacete Liancourt:
Acompanhada pela Betsy, fui a casa da Branca Quernoy, que faz hoje anos, e como ao sair de lá vi que ainda podia dispor de uma hora, antes do chá de minha mãe... uma coisa muito aborrecida, sabes, mas da qual não me dispensam, sob pena de suprimirem o meu jive-o clock das quartas-feiras. Foi decisão da minha tia, da minha excelente tia que só tem destas ideias!... Então, como estava perto da tua casa, lembrei-me de vir até cá e aqui me tens...
Durante algum tempo a sua tagarelice encheu o quarto, descrevendo pequenas intrigas de sala, ligeiras críticas feitas pelo simples prazer de falar e de rir.
Cylia, de carácter sério e grave, ouvia distraidamente o desfiar da conversa quando Odete perguntou:
Não estiveste ontem na quermesse do Bosque?... Eu fui lá e posso garantir-te que foi um sucesso.
Cylia fez um gesto de indiferença.
A minha mãe queria levar-me, mas eu recusei... Não me interessava... Nessas coisas há sempre gente demais... Empurram, pisam-nos, sufoca-se...
Calou-se, pegou no bordado que abandonara e, sem reparar que falava de coisas que uma rapariga deve fingir ignorar, prosseguiu em tom amargo:
É irritante!... Encontramos gente de todas as qualidades: mulheres decentes e sérias e outras que o não são, homens de certa idade que nos olham à socapa e rapazes que nos encaram com atrevimento... E tudo isto para distribuir sorrisos e apertos de mão pouco sinceros e para comprar, por preço fabuloso, um ramo de violetas na barraca da menina Machin ou pagar por cem francos uma bugiganga que não vale mais de quatro cêntimos, só porque é vendida pela senhora Fulana de Tal... Achas isto muito interessante, dize-lá?...
Não... Mas é a vida, que queres tu?... Odete sorria, espantada com a pouco habitual ironia da amiga.
E a filantropia e a caridade, não contam para ti?
Os lábios de Cylia vincaram-se num trejeito trocista, e, como se experimentasse certa satisfação em encontrar um alvo para se vingar do seu recente desgosto, respondeu com vivacidade:
A filantropia?... Não passa de uma palavra retumbante, um pretexto para as senhoras encobrirem os flirts e as raparigas casadoiras tentarem encontrar o marido sonhado! As festas de caridade são um palco por detrás do qual, durante alguns dias, a alta sociedade oculta os seus manejos, nem sempre muito correctos... Quantas coisas se podem fazer com o rótulo da caridade!... Ah!... ah!...
As gargalhadas eram nervosas e soavam a falso. Odete olhou-a surpreendida.
Estás severa para a pobre humanidade!.. Que te fez ela, desde a última vez que nos encontrámos?...
Mas como visse Cylia franzir a testa, talvez sob o influxo de pensamentos dolorosos, mudou imediatamente de conversa. Além disso, não estava com disposição para ouvir falar de coisas tristes ou de assuntos graves.
Já sabes que a Lúcia Verrins foi pedida oficialmente?
Cylia abanou a cabeça e perguntou com indiferença:
Vai casar, então?...
Vai. Ficou ontem resolvido. O barão de Coudraie, pai do noivo, levantou dificuldades e não queria dar o consentimento... Segundo parece, a senhora Verrins não era viúva quando casou a segunda vez. Era divorciada e o primeiro marido ainda vive...
A senhora Verrins é divorciada! 32
No meio da surpresa, Cylia esteve a ponto de acrescentar:
Também ela!
Para ocultar a perturbação, levantou-se bruscamente no intuito aparente de compor as bugigangas que estavam sobre a mesa.
É como te digo prosseguiu Odete, que não podia adivinhar o ’Sentimento oculto da exclamação. Calculas, portanto, como o barão, tão refractário às ideias modernas, acolheu a escolha do filho. A filha de uma divorciada, isto é, de uma mulher casada sem a sanção da Igreja... Que horror! Era quase um sacrilégio!... Mais um pouco e consideraria a pobre Lúcia como uma leprosa! Chegou a ameaçar o filho de o deserdar, mas este não desistiu, porque gosta sinceramente da noiva.
Calou-se para tomar fôlego e, sem reparar na alteração das feições de Cylia, prosseguiu:
Foi então que interveio a madrinha da nossa amiga. Dobraram a importância do dote e, a despeito dos princípios rigorosos, o barão acabou por ceder... O dinheiro lavou a mancha, se mancha existia.
E sublinhou o comentário com uma gargalhada irónica.
A filha da condessa de Liancourt tornara-se lívida.
As palavras’ de Odete fustigavam-na como violentas chicotadas. Tinha ímpetos de tapar as orelhas ou de gritar, de ordenar a Odete que se calasse para não ouvir as frases cruéis que, na sua inconsciência, lhe feriam mais o orgulho do que se fossem ditas com intenção.
No entanto, por amor-próprio, dominou-se e dissimulou a surda humilhação. Agora, mais do que nunca, ocultaria a causa da sua tristeza porque, ouvindo as palavras da estouvada Odete, considerava o seu nascimento como uma mácula que devia ser de todos ignorada.
Foi-lhe necessária grande força de vontade para poder tornar o tom de conversa banal quando respondeu:
Tudo está bem quando acaba bem. Se a Lúcia amava o noivo, muito mais deve amá-lo agora, aquilatando o afecto que ele lhe dedica pela resistência que soube opor ao pai, lutando para a ter como mulher.
Calou-se, reflectiu durante algum tempo e comentou com violência, defendendo a própria causa:
O barão é ridículo com essas ideias de outros tempos. O divórcio existe em todos os países e em todos os meios é admitido!... Julgo que deve considerar-se uma infelicidade e não uma desonra. A senhora Verrins é honestíssima, bondosa, sensata e, por mim, prefiro-a a muitas outras que nunca se divorciaram, mas que estão longe de se lhe comparar em moralidade e linha de conduta.
Tremia de indignação.
O barão de Coudraie, por quem, até ali, tivera certa consideração, revelava-se-lhe agora como um pateta de ideias mesquinhas. Segundo este critério, Lúcia Verrins, com quem mantinha simples relações de sociedade, tornava-se-lhe infinitamente simpática.
Pobre Lúcia!... Que ferida para o seu orgulho, ao ver-se rejeitada dessa forma!... E como o seu amor filial deve ter sofrido!
Tremeu, numa espécie de calafrio, e, em voz surda, murmurou:
Por mim, preferia não casar nunca a sofrer semelhante humilhação.
De testa franzida, com o olhar perdido no espaço, parecia interrogar o futuro.
Leve roçagar de seda chamou-a à realidade.
Odete abandonara a cadeira e, diante do espelho, compunha o cabelo com gestos graciosos.
Quatro e meia!... Já!... Mal tenho tempo de chegar a casa a horas de servir o chá!
Apressada, calçou as luvas e, pondo-se diante de Cylia, que lhe seguia todos os gestos com ar pensativo, observou-a com atenção.
Não há forma de te degelar, minha linda tenebrosa. Estás carrancuda e rabugenta como nunca te vi.
Com um sorriso garoto, sacudiu-lhe o braço e pediu, gracejando:
Vamos, menina porco-espinho, mostre-me os dentinhos antes de eu sair.
Cylia tentou sorrir, mas aquela alegria exuberante chegava a enervá-la.
Irei ver-te na quarta-feira... se puder.
Quarta-feira?... Nesse caso, até breve e faz o possível por não faltar. Mostrar-te-ei as pulseiras que o meu irmão me mandou de Marrocos. São um amor!
Esta visita deixou Cylia ainda mais pensativa.
”A senhora Verrins é divorciada!... Nesse caso, a Lúcia... Não é filha do Verrins... Tem dois pais... como eu”.
Que estranha coincidência Odete ter-se referido ao casamento da amiga, precisamente naquele dia. Tudo a impelia a pensar no verdadeiro pai, a despeito da promessa em contrário feita à mãe.
Suspirou profundamente.
A história de Lúcia era tão semelhante à sua que difícil se lhe tornava fugir ao assunto proibido. Mesmo que quisesse pensar noutra coisa, não podia.
Aquele barão de Coudraie!... Que ridícula criatura com os seus preconceitos atrasados! A Lúcia não é responsável pelos actos dos pais. Há alguma coisa de humilhante ao facto da minha mãe, tendo sido infeliz com o primeiro marido, procurar reconstruir a sua vida com outro que me proporcionou uma infância cheia de mimos e me criou num meio respeitável?
Vendo bem, toda a compaixão que sentia pela amiga não era mais do que o reflexo da que sentia por si própria, e todos os argumentos empregados para a defender constituíam também a sua defesa... E, para fugir a reflexões importunas e não infringir a promessa feita à mãe, dirigiu-se para a rouparia, onde a Mariana, a sua velha ama, empilhava metodicamente a roupa.
No Salon, dos Campos Elísios, acotovelava-se todo o Paris mundano. Os quadros expostos eram numerosos, nesse ano, e o público enchia as salas para os admirar.
Cylia encontrava-se entre os visitantes, acompanhada pela avó e por algumas amigas.
O vestido de seda branca, leve, enfeitado com estreitas fitas de veludo jade, moldava-lhe as linhas perfeitas e acentuava-lhe a palidez.
Senta-se já, avó? perguntou, desapontada, vendo a velha senhora instalar-se num dos numerosos bancos de veludo que guarnecem o hall central.
Bem sabes que me fatigo depressa, filha.
Continua a tua volta com a Helena e com o pai. Encontrar-me-ás aqui.
Então fica sozinha, avó? protestou Cylia com gracioso trejeito.
A senhora de Hulons sorriu.
Ora vejam lá esta toleirona que se julga indispensável! gracejou - Aí vem a minha excelente amiga, a baronesa de Concilie, que vai fazer-me companhia... Anda, vai com os teus amigos. Repara que já se afastaram.
Então, até já, avòzinha.
Fez gracioso cumprimento à baronesa que acabava de chegar e, a correr, foi ter com Helena de Marson.
Esta aguardava-a no extremo da galeria, acompanhada pelo pai.
Prosseguindo a frase começada, Marson dizia, designando grande tela, diante da qual estacionavam muitos admiradores:
A arte de Postei é, na verdade, original. Com esta orgia de terra de sena e amarelo de cromo alcançou um efeito extraordinário, fantástico, mas admirável! É espantoso, este pintor!
Abrindo caminho por entre a multidão, parou um pouco mais adiante e assinalou à atenção das duas raparigas:
Reparem... vejam este quadro, assinado por Mortanne, um grande artista também, e comparem-no com o que acabámos de ver. Este abusa um pouco das cores: pinta cabelos cor de violeta, corpos de criança cor de laranja, árvores azuis e firmamentos lilases. O seu talento bizarro chega a exasperar... procura demasiado o ouro que deslumbra os ingénuos, mas a sua paleta rutilante fascina.
Encantada, Cylia escutava aquele príncipe da crítica, admirava a sua palavra fluida, a delicadeza das observações, a riqueza da linguagem, que empregava expressões sempre diferentes para falar do mesmo assunto.
Reconhecendo o talentoso escritor, muitas pessoas acorreram e cumprimentaram-no sorridentes. Eram, na maior parte, artistas que expunham os seus trabalhos e desejavam que o seu nome fosse citado nos artigos do crítico. Helena conhecia-os a quase todos e designava-os à amiga:
Aquele é Justai... que consegue vender os seus quadros por preço fabuloso. E o outro é Izoi, que se dedica, especialmente, à pintura do nu... tendo a mulher como principal modelo, segundo dizem... o que é estranho, não achas?...
E continuou a nomear todos quantos se aproximavam e cumprimentavam o pai.
Um senhor alto e magro era Portuno, amigo íntimo de uma duquesa a quem devia parte da sua celebridade. O outro era Guérin, um verdadeiro boémio... Depois Pottrzelles, que escolhia os modelos entre os seus conhecimentos para não ter que lhes pagar.
Ia citando nomes e, graças a ela, um desfile de celebridades, de talento mais ou menos discutível, passou, como na tela de um cinema, diante de Cylia, que ouvia a amiga com verdadeiro espanto.
Seria possível que toda aquela gente, considerada como o escol da aristocracia artística, ocultasse na sua vida tanta coisa escura e conciliasse a arte com um nível moral tão baixo?
Dolorosamente surpreendida, não pôde deixar de fazer este reparo à amiga, que começou a rir. Habituada a ouvir o pai falar e discutir todos estes assuntos, Helena não estranhava coisa alguma. Levemente trocista, respondeu:
É o reverso da medalha, minha pobre Cylia. Convence-te de que a vida só é limpa à superfície!
O carácter bastante puro de Cylia revoltou-se com esta concepção.
Para as criaturas vulgares, admito!... Mas para os que possuem certo valor... Se a nobreza obriga, julgo que o talento também tem os seus deveres.
E as suas fraquezas!
Um grupo de visitantes separou-as, Cylia avançou um pouco mais do que desejava e, quando o notou, quis romper por entre a multidão compacta e reunir-se de novo a Helena, mas já não a viu, nem ao pai.
Hesitante, não sabendo para que lado se dirigir a fim de os encontrar e incomodada por certos olhares demasiado insistentes que a observavam, encostou-se à parede onde os quadros de todas as dimensões se exibiam.
A aglomeração ali era menor e a filha da condessa respirou mais à vontade.
Observando atentamente os que passavam, contava ver Marson, cuja alta estatura devia sobressair à dos outros.
Sentia-se aborrecida com o incidente e, além disso, as reflexões de Helena sobre a vida íntima dos artistas de certo nome tinham-na impressionado desagradàvelmente... Desde a revelação da mãe interessava-se ao máximo por tudo quanto dizia respeito à pintura.
A menina de Liancourt aqui... sozinha! Ao ouvir esta exclamação proferida a seu lado, Cylia voltou-se sobressaltada, mas, no mesmo instante, o olhar iluminou-se-lhe numa expressão alegre.
Villaines!... Ainda bem que o encontro!
A presença do advogado expulsara, num momento, todas as borboletas negras. Radiante, com as faces levemente ruborizadas, estendeu-lhe a mão.
Como está sua mãe? informou-se ele, surpreendido por a encontrar sozinha no meio daquela multidão.
Em poucas palavras, Cylia pô-lo ao corrente do acontecido. Depois acrescentou:
Não calcula como estava enervada!... Leve-me para um sítio onde não se encontre tanta gente, sim?
Às suas ordens... com o maior prazer! respondeu o advogado, admirando, encantado, os lindos olhos, ingénuos e francos, que se erguiam para ele numa expressão confiante.
E o facto de se encontrarem sozinhos os dois, no meio daquela multidão que parecia isolá-los, perturbou-o de tal forma que esqueceu um pouco a habitual correcção.
Sinto-me feliz com o encontro balbuciou - Está hoje... ofender-se-ia se lhe dissesse que esse vestido lhe fica lindamente... que está encantadora?... Gostaria de ser pintor... um grande pintor... para poder transmitir à tela toda a sua beleza e sedução...
Comovido e atrapalhado, perdia um pouco a cabeça e tornava-se de uma ousadia que estava fora dos seus hábitos. A declaração, talvez intempestiva e que desejaria calar, subia-lhe aos lábios.
Cylia corara e baixava a cabeça, encantada com os inesperados cumprimentos, mas, ao mesmo tempo, confrangida com a presença do simpático rapaz, em quem, em sua opinião, já pensava demasiado.
Perdoe-me balbuciou o advogado cada vez menos senhor de si, perante o rubor que ele próprio provocara e a tornava ainda mais bonita Não pense que lhe dirijo simples galanteios... Sou sincero e se soubesse quanto...
Mas calou-se porque a viu de cabeça voltada, com um ar aflito de avezita prisioneira. Conseguiu então dominar-se porque reconheceu não ser aquele o momento próprio para uma declaração, e mediu toda a inconveniência da situação, calculando quanto seria desagradável para Cylia se a vissem sozinha com ele num lugar daqueles.
Para não lhe aumentar o constrangimento, propôs, tendo recuperado toda a calma:
Se quer, vou procurar Marson... Não deve estar longe e, além disso, suponho que eles também devem tentar encontrá-la...
Cylia volveu-lhe um olhar agradecido e concordou:
Vá, por favor... eu fico por aqui...
Não tardou que Villaines voltasse acompanhado pelo escritor e Helena, que já se tinham reunido à avó de Cylia e à baronesa.
Durante alguns minutos foi uma troca de perguntas e de respostas; todos queriam saber o que os outros tinham feito e para que lado se haviam dirigido. A senhora de Hulons, que ficara bastante inquieta com a desaparição da neta, não sabia como manifestar a sua alegria por a ter encontrado tão depressa. Marson, rindo, chamava ao advogado o ”terra-nova das meninas perdidas nas florestas e, com certa intenção, afirmava que a generosa acção seria recompensada... Villaines sorria, evitando olhar para Cylia, que, muito corada, não sabia como fugir à atenção de que era alvo por parte de todos.
Por fim, alguém se aproximou e, batendo no ombro de Marson, pôs termo a esta pequenina cena de família.
Era Choiseron, o grande crítico de arte, cujos vereditos todos acatavam com respeito.
Apertando a mão do escritor, disse-lhe:
É inadmissível a sua indiferença perante o mais belo quadro da Exposição!... Chegamos a acreditar que os escritores como você contam que as obras-primas venham apresentar-se-lhes por seu pé, palavra de honra!
Uma obra-prima!... Acho muito. Onde está ela? retorquiu o pai de Helena, pronto a discutir o mérito do quadro mencionado pelo amigo.
Bem perto de si... veja! respondeu o outro, designando grande quadro pendurado mesmo por trás deles.
Admire essa vista de Veneza, pintada por Guy Férias... É o melhor quadro do Salon, repito!
Entusiasmado, continuou, falando em voz alta, sem reparar que faziam roda em volta para o ouvir:
Repare nesses cinzentos azulados, nesses cambiantes tão suaves, nas cúpulas de mármore multicor, recortando-se no magnífico céu do Adriático... e tudo isto envolto numa atmosfera transparente, como um cristal húmido... Veja essa semelhança perfeita... É simplesmente feérico!
Ao ouvir o nome de Guy Férias o nome do pai Cylia estremeceu.
Muito pálida, com os olhos pregados no belo quadro, o coração dominado por uma sensação de felicidade quase angustiosa, escutava com avidez as palavras entusiásticas que o crítico proferia.
Marson concordava:
Sim, na verdade, está perfeito!... O talento de Férias é prodigioso!
Prodigioso, diz bem!... Quantos outros já pintaram a cidade dos doges com os seus canais e rios, os seus velhos palácios, o céu sempre azul e belo, mas nenhum deles conseguiu alcançar o que Férias nos apresenta aqui...
Em volta, os grupos aumentavam e um murmúrio de aprovação sublinhava os comentários do crítico. Todos admiravam sem reserva a obra tão delicadamente realizada e tão cheia de beleza.
Cylia quase desfalecia de contentamento e o coração dir-se-ia querer saltar-lhe do peito.
Falavam do pai, elogiavam-no... melhor do que isso, admiravam-no!... Referindo-se a ele, empregavam as palavras talento e génio!
Gostaria de poder gritar bem alto: ”É meu pai... sou filha do homem que pintou esse quadro”.
Com a emoção, as lágrimas subiam-lhe aos olhos e, ao mesmo tempo, tinha vontade de rir. Se estivesse só, como apreciaria a sua felicidade... e a sua tristeza! Como sofria por ser obrigada a calar-se, não poder confessar, abertamente, o laço íntimo que a unia ao grande pintor, ter de aparentar indiferença, como se ele fosse um estranho e, principalmente, pensar que quase todos os presentes o conheciam, quando ela, sua filha, tudo ignorava dele!
E esse misto de voluptuosa alegria que a fazia vibrar e do sofrimento que lhe apertava o coração, quebrantava-a, destilava-lhe nas veias uma sensação de fraqueza dolorosa e, ao mesmo tempo, suave.
Estava tão pálida que Villaines, que havia minutos a observava, inquieto, lhe perguntou em voz baixa:
Está indisposta?...
Cylia desviou, vagarosamente, os olhos do quadro e ergueu-os para o advogado, cuja solicitude a sensibilizava. Para o tranquilizar, tentou sorrir e murmurou:
Isto não é nada... efeitos do calor... Abafa-se aqui!
Mas o abalo fora tão grande e tão inesperado que não conseguia dominar-se. Pelo contrário, a reacção fê-la empalidecer mais ainda, transtornou-lhe as feições e as pernas vergaram-lhe.
Villaines supôs que fosse desmaiar e, instintivamente, estendeu o braço para a amparar. Ao mesmo tempo chamava a atenção dos outros, dizendo:
A menina de Liancourt não se sente bem! A avó e a baronesa, que conversavam sem se preocupar com os outros, voltaram-se como se tivessem ouvido mal. Villaines explicou:
Está muito calor e talvez fosse mais prudente levá-la para onde pudesse respirar à vontade. Esta atmosfera carregada não lhe convém. Vejam como está pálida...
Pobre filha!... Na verdade, tem razão, senhor Villaines!... Vamos despedir-nos.
Apoderando-se do braço da neta e insistindo com ele para que não as acompanhasse, afastou-se com Cylia.
Quando estavam longe, Choiseron comentou para o advogado, que seguia com a vista as três senhoras:
Deve ser doente, aquela rapariga... Na sua idade, em geral, suportam-se melhor estas alterações de temperatura.
Villaines não lhe respondeu, mas o seu olhar pensativo fixou o grande quadro em cujo canto se via o nome de Guy Férias.
Um nada, um nome ouvido por acaso, uma assinatura ao canto de um quadro e todas as minhas resoluções caíram por terra...
Deitada, com os olhos muito abertos, Cylia não conseguia dominar a agitação que a dominava desde que visitara a Exposição.
A lâmpada de noite, de vidros foscos, espalhava pelo quarto uma claridade branda, quase irreal, criava um ambiente de calma, mas os pensamentos de Cylia eram febris e a sua perturbação tocava as raias da angústia.
A existência do verdadeiro pai, que prometera tentar esquecer, obsidiava-a com extraordinária intensidade.
No entanto, lutava contra ela, pensando:
Que importância pode ter para mim o facto do meu pai ser célebre e talentoso?... Fui sempre estranha à sua vida de homem e de artista... não posso reivindicar parte da sua glória... Poucas pessoas devem conhecer o laço que nos une... Portanto, para que penso eu nele?... Ignora-me, nunca tentou conhecer-me... não se preocupa com a minha saúde... nem sequer sabe se vivo...
Este último pensamento era-lhe intolerável, fazia-a sofrer como se lhe tocassem o coração com um ferro em brasa.
O pai desinteressava-se da vida da filha... era abominável!
E, no entanto, se ele quisesse gostar dela, um bocadinho que fosse, como estava disposta a estimá-lo!... Como se sentiria orgulhosa de ser sua filha!
O conde de Liancourt era um homem de sociedade, delicadíssimo, de modos aristocráticos... expressava-se bem, recebia com requintada fidalguia, possuía belas coutadas, citavam-se as suas equipagens... em resumo, podia considerar-se um homem impecável. Até ali, Cylia tinha certa vaidade no pai, a sua filiação criava-lhe um ambiente de indiscutível superioridade mundana...
Mas ser filha de um artista de valor, cujo talento todos gabavam e cujo nome passaria à posteridade, também tinha certo encanto.
O génio e a glória valiam mais do que o snobismo.
E Cylia chegava a perguntar a si própria se não teria gostado mais de levar uma vida de trabalho, junto de um artista de valor, do que ser uma espécie de boneca de sala, cujos únicos méritos eram a beleza e a educação.
Perante o lindíssimo quadro que Choiseron classificara de obra-prima não se sentira transportada de orgulho?
Que deliciosa recordação!... Ouvir tantas palavras elogiosas e experimentar a íntima doçura de pensar que se referiam ao pai!
Teria sido possível ou aquele momento tão belo não passara de um sonho?... Ouvira, de facto, essas palavras?... Sim, fora realidade.
O pai era um génio... um génio!
De novo se sentiu como que embriagada e a suave alegria que a perturbara no Salon voltou a dominá-la.
Lamentava não poder comprar aquele belo quadro, por todos admirado.
Seria uma recordação... uma linda recordação que me falaria dele... Um objecto tangível que lhe pertenceu.
Deplorava também não ter tocado no quadro.
Os meus dedos afagariam qualquer coisa que esteve em contacto com ele... que ele criou e em que pôs o melhor da sua alma...
Por uma sequência de pensamentos, chegou a supor que, no grupo dos artistas, poderia ter-se encontrado com Guy Férias, e esta hipótese galvanizou-a como forte descarga eléctrica. Uma vaga de sentimentos desencontrados exasperou-a... um rubor febril tingiu-lhe as faces.
O pintor talvez se encontrasse perto do quadro.
Horrível suposição!... Cylia talvez tivesse estado junto do pai sem o reconhecer!
Este pensamento foi como uma punhalada em pleno peito e, mais uma vez, tudo voltou a ensombrar-se e a inconsciente alegria que pouco antes a animava foi substituída por negra melancolia.
Desalentada, murmurou:
Como seria bom não pensar... não ter sabido!... Será assim tão difícil esquecer... varrer do pensamento todas as reminiscências dolorosas?
A desmoralizadora meditação durou muito tempo.
Tinha os olhos fechados como se contemplasse dentro da própria alma pungente visão; na testa vincava-se profunda ruga como se travasse consigo mesma uma luta dolorosa; e quando, pouco depois, se sentou na cama, tinha tomado uma resolução.
Acabou-se! murmurou, sublinhando a frase com um gesto brusco Sou ridícula e pateta por me afligir assim. O meu pai não quis saber de mim e, portanto, eu não quero ser ninguém para ele!... Expulsarei do pensamento a ideia da sua existência e viverei como no passado, entre minha mãe e o conde, unindo-os no meu coração com o mesmo afecto... Eles, pelo menos, nunca me abandonaram e sempre gostaram de mim!
Dizia todas estas coisas com energia, certa de poder pô-las em prática, mas as lágrimas subiam-lhe aos olhos e corriam pelas faces pálidas.
Com movimentos nervosos, furiosa com a fraqueza, passou os dedos pelas pálpebras húmidas.
Sou covarde!... Muito covarde!... Basta um pouco de força de vontade e esquecê-lo-ei!
Instantes depois, porém, murmurou num lamento:
Não, não posso esquecê-lo!... No fim de contas, é meu pai!...
”Meu Deus, amparai-o!... Não o conheço, ignoro quais as suas necessidades, mas Vós, que sabeis tudo, socorrei-o... Deve ter, como todos, pesares e tristezas... tornai-as menos pesadas e menos amargas, Senhor!”
Com as mãos tinidas, as lágrimas correndo-lhe pelas faces, os olhos erguidos para o Cristo que, no altar, dir-se-ia abrir-lhe os braços misericordiosos, Cylia terminava a sua ardente prece.
Enxugou os olhos e depois de se ter recolhido durante alguns minutos ainda, levantou-se e, pisando ligeira o pavimento de mosaico preto e branco, saiu da igreja.
O velho Severino, que a acompanhava sempre que não saía com pessoas da família, aguardava-a à porta e seguiu-a, caminhando alguns passos atrás.
De cabeça baixa, pensativa, o coração ainda opresso, Cylia regressou a casa, insensível aos olhares admirativos dos homens, que se voltavam à sua passagem, e aos das mulheres, que reflectiam ciúme e despeito.
Quando, naquela manhã, se levantara, pensou:
Nunca fui à igreja rezar pelo meu verdadeiro pai. Irei lá hoje.
Assim fez e voltava agora ainda magoada, mas mais calma. Os pensamentos tinham perdido a amarga acuidade e tomavam um rumo melancólico e resignado.
O talento, a riqueza e a celebridade pensava não bastam à vida de um homem... Meu pai ainda terá mãe, pai, irmã ou viverá junto de nova família... com mulher e outros filhos?... Seja como for, nunca deixarei de pedir a Deus por ele... cumprirei assim os meus deveres de filha, visto não ter outra forma de o fazer... Pelo menos, aos olhos de Deus, deixaremos de ser estranhos um ao outro...
Não ser uma estranha para o pai ideia insustentável era a sua suprema ambição, o leit-motiv que lhe martelava constantemente o cérebro. Desde o dia em que visitara o Salon reconhecera ser impossível deixar de pensar no ausente e não tentara mais lutar.
Hei-de conseguir saber qualquer coisa a seu respeito... Seria tão bom conhecê-lo um pouco... mesmo de longe!
Mas não se atrevia a interrogar ninguém.
A mãe, boa e afável para todos, só tinha palavras duras quando falava no primeiro marido... o que muito magoava a filha.
Cylia poderia interrogar a avó, porque não se recusaria a responder-lhe, com certeza. Infelizmente, porém, a idosa senhora poucas vezes estava só. Detestando a solidão e sentindo-se envelhecer, rodeava-se de amigos e conhecimentos e as suas salas estavam sempre cheias de gente. Nestas condições, Cylia não podia pensar em falar-lhe de assunto tão íntimo e que a tocava tão de perto.
Quanto a pedir esclarecimentos a qualquer das pessoas amigas que tinham probabilidades de conhecer o pintor, não se sentia com coragem para isso... Era um assunto melindroso e muito perigoso para ela... Se, pela sua perturbação, pelo tremor da voz, adivinhassem a verdade?... Bastava este pensamento para a fazer corar de vergonha.
Mesmo assim, não renunciou ao desejo de saber. E, enquanto estava parada à borda do passeio, aguardando que a fila de carros passasse para poder atravessar a rua, procurava o meio de o conseguir.
Logo que pôde, recomeçou a andar e, de repente, o olhar iluminou-se-lhe.
Ocorrera-lhe interrogar Severino.
Como não pensara nisso há mais tempo?... O velhote devia saber muita coisa e com ele sentir-se-ia à vontade para falar.
Parou e voltou-se para ele.
Como o criado parasse também um pouco mais atrás, chamou-o.
Vem cá... caminha a meu lado.
Não pode ser, menina! protestou Severino, lembrando-se da condessa, rigorosa em questões de etiqueta.
Porquê?... Que mal há nisso? insistiu Cylia, que, naquele momento, pouco se preocupava com as conveniências mais ou menos tolas a que, habitualmente, se submetia de boa vontade.
Familiarmente, teimou:
Estou aborrecida e prefiro conversar a pensar!... E como não é cómodo conversar com quem vem atrás de nós, podes seguir ao meu lado.
Severino olhou-a com expressão de cão fiel. Adorava-a porque a tinha visto crescer. Docilmente, obedeceu-lhe.
Perdoe-me o atrevimento, mas já tenho dito muitas vezes que a menina Cylia anda triste há uns tempos para cá.
Cylia franziu a testa, descontente.
Não lhe agradava que, pela sua atitude, adivinhassem as preocupações que ultimamente a assediavam e acusava-se disso como de uma incorrecção.
Por outro lado, não contava recuperar tão cedo a serenidade de espírito que lhe permitisse o sorriso permanente e despreocupado doutros tempos.
Esforçando-se por expulsar os tristes pensamentos que a reflexão do criado provocara, perguntou com o ar mais inocente deste Mundo:
Há muito tempo que estás ao nosso serviço, não é verdade, Severino? Há quantos anos, ao certo?...
Há talvez vinte e oito anos. A senhora condessa, que, nesse tempo, era ainda a menina Renata de Hulons, ia fazer quinze anos quando eu entrei para a Abadia, como cocheiro.
Cylia relanceou-lhe breve olhar e prosseguiu:
Nesse caso, visto teres conhecido a minha mãe em solteira, assististe ao seu casamento e ao meu nascimento?...
Falava em tom indiferente, embora, ao fazer a pergunta, o coração lhe batesse mais apressado.
Sem desconfiar de coisa alguma, Severino respondeu:
Pois com certeza!... Fui até eu quem enviaram à Abadia, para dizer aos seus avós que já tinham uma netinha... e eles correram imediatamente a Mare-Bleu, para ver o lindo anjinho que acabava de nascer...
Cylia não conseguiu evitar um gesto de surpresa.
Mare-Bleu!... O grande castelo, sempre fechado, de aspecto desolado, que se erguia do outro lado do vale, mesmo diante da propriedade dos avós...
O pai e a mãe tinham vivido em Mare-Bleu... e lá tinha ela nascido!... Tinham-lhe dito sempre que fora na Abadia...
Agora percebia por que motivo quando iam passar algum tempo com a avó, duas vezes por ano, na Primavera e no Outono a mãe nunca fazia qualquer passeio para aquele lado.
”O castelo evoca-lhe tristes recordações pensava Cylia Pelo contrário, eu sempre me senti atraída para aquela grande casa e muitas vezes desejei poder passear no seu parque deserto”.
Despertava-lhe consciente prazer verificar que misteriosas afinidades a impeliam para a velha moradia, berço da família paterna.
Mas como contava que Severino lhe fizesse mais revelações, prosseguiu a conversa:
A minha mãe ficou contente por ter uma filha?... Talvez preferisse um rapaz?...
Não creio... A senhora condessa era ainda tão novinha que a menina deu-lhe a impressão de uma linda boneca.
Cylia fizera a primeira pergunta como preliminar da outra que lhe queimava os lábios. Ansiosa, formulou-a:
E o meu pai? inquiriu em tom mais baixo.
A despeito da sua vontade, a voz tremeu-lhe.
Esse ficou radiante! afirmou o velho criado, que não deu por coisa alguma Dava gosto vê-lo, correndo pelas salas do castelo a dar ordens desencontradas só pelo prazer de mostrar a sua alegria... Desde o primeiro instante que a adorou e, portanto, não é para admirar que estivesse mais vezes nos seus braços do que nos da ama... Era um excelente senhor... bondoso, cheio de caridade para os pobres... Não havia ninguém que não gostasse dele... era uma alma santa... Foi por isso mesmo que...
Calou-se, reconhecendo que ia dizer demais e que a sua tagarelice poderia desagradar à condessa.
Cylia, porém, já nem o ouvia. De toda a conversa só ouvira estas palavras: ”Ficou radiante”... afirmação tão doce para o seu pobre coração que a fazia vibrar numa emoção íntima e deliciosa.
”O meu pai ficou radiante com o meu nascimento! pensava num ímpeto de alegria Amou-me desde o primeiro instante!... Que felicidade!... Nem sempre fui uma estranha para ele!”
A sua alegria era tão grande que tinha vontade de chorar.
Após alguns minutos de silêncio, para saborear bem a sua ventura, voltou a interrogar o criado. Não se cansava de o ouvir falar no pai.
Até quando vivemos em Mare-Bleu? perguntou.
Severino hesitou.
Mas... até... até que...
Não se atrevia a concluir a frase. Cylia compreendeu logo.
Até aos preliminares do divórcio, não é verdade? concluiu com olhar distante.
O velhote sobressaltou-se e olhou-a assustado.
A menina sabe?...
Sei... a minha mãe disse-me tudo.
Severino abanou a cabeça grisalha. Compreendia agora a causa da melancolia que Cylia demonstrava havia algum tempo. Observou-a com tristeza e notou-lhe a seriedade, o rosto afinado. Então, timidamente, receando abusar da benevolência com que ela o tratava, tentou animá-la:
Não se aflija por causa disso, menina Cylia... Nos tempos que vão correndo, o divórcio é vulgar e, muitas vezes, por coisas sem importância. Agora ninguém repara nisso... antigamente, sim.
Bem sei concordou Cylia com ar pensativo Deixam de se entender e vai cada um para seu lado... Mas se há filhos... concluiu como se falasse consigo própria.
Baixara a cabeça para ocultar as lágrimas que enevoavam as lindas pupilas verdes e, muito opressa para poder falar, continuou a andar sem proferir palavra.
A alegre excitação provocada pelas palavras de Severino extinguira-se lentamente, como que esmagada pela sensação de lassidão que lhe pesava no peito...
Como estivessem perto do palacete dos Liancourt, despertou do alheamento em que mergulhara.
Uma pergunta ainda, Severino... Tornaste a vê-lo depois?
A quem?... Ao senhor Férias?...
Exactamente.
O criado curvou a cabeça.
Nunca mais. Cylia suspirou.
É pena. Gostaria de ter notícias dele.
Estavam a poucos metros da casa e Cylia alongou o passo para se adiantar ao criado e entrar à frente, segundo as regras da etiqueta.
A senhora de Hulons poisou a chávena e, depois de ter passado pelos lábios finos o guardanapo bordado, declarou, satisfeita:
O chá é excelente... e os bolos deliciosos.
Sim, são muito bons concordou Cylia, distraída.
Com a cabeça voltada para a parede envidraçada que separava as duas salas do Serafim-, o salão de chá da moda, bebia maquinalmente a perfumada e fumegante infusão.
De súbito, o olhar iluminou-se.
Vem aí o Villaines murmurou a meia voz.
Aonde? perguntou a avó, procurando o advogado entre a assembleia perfumada e elegante que a rodeava.
Atravessou agora, a outra sala indicou Cylia, corando porque Villaines, tendo dado por elas, se aproximava.
Intimamente, alegrava-se com o encontro, como se constituísse uma felicidade para ela.
Combinei encontrar-me aqui com um amigo, mas vejo que cheguei adiantado explicou o rapaz, instalando-se na mesa mais próxima, que duas senhoras acabavam de deixar. Tanta gente!... Já tinha perdido a esperança de encontrar um lugar. Representa quase um acto de heroísmo aventurarmo-nos por entre tantas senhoras elegantes... Arriscamo-nos a estragar estas obras-primas de organdi bordado ou de crepe da China. Só com muita habilidade consegui chegar até aqui sem causar algum desastre.
Sorria com ironia, enquanto Cylia observava com curiosidade algumas das senhoras, audaciosamente pintadas, conversando e rindo com os companheiros.
O gracejo do advogado divertiu a senhora de Hulons, que replicou no mesmo tom:
Por isso não compreendo o empenho que os homens demonstram em vir tomar chá ao Serafim... como se não pudessem encontrar salas menos cheias em qualquer outro lado!... Graças à guloseima masculina, os nossos salões de chá transformam-se numa espécie de bazares cosmopolitas onde se acotovelam todas as raças e toda a qualidade de gente. Por este andar, daqui a pouco tempo, uma mulher séria não se atreve a entrar numa sala destas.
Calou-se um instante e, depois de ter saboreado uma amêndoa cristalizada, acrescentou:
E é pena, porque o Serafim serve-nos doces deliciosos.
Villaines sorriu sem lhe responder. A senhora de Hulons viu o sorriso e adivinhou o pensamento que o provocara.
Que quer?... Eu já não estou em idade de vir aqui para admirarem as minhas toilettes ou para despertar inveja às outras mulheres. Venho, simplesmente, para satisfazer a minha guloseima de velhota. Cada idade tem os seus prazeres próprios... e este ainda tem a vantagem de não prejudicar nem ofender a moral.
Em tom mais baixo, acrescentou:
Quantas, entre as que nos rodeiam, podem explicar a sua presença com um motivo tão inocente?
Essas senhoras também gostam, como nós, de tomar chá às cinco horas, avó protestou Cylia com ingenuidade Acho natural!
Infelizmente!... Porque, a pretexto de satisfazer essa necessidade material, perdem dia a dia a dignidade e o pudor... Observem estas salas saturadas de perfumes, examinem esses rostos carregados de pinturas, os cabelos oxigenados, as sobrancelhas rapadas, as olheiras carregadas a lápis, os corpos apertados em cintas para parecerem mais magros. Está aqui o escol da nossa sociedade; vejo autênticas marquesas e baronesas, a esposa de um embaixador, mais além a de um banqueiro muito conhecido e, aqui, perto de nós, a irmã de um médico. Será somente o desejo de tomar chá e de comer bolos que as trouxe?... Ou, quem sabe, o desejo de se exibirem? concluiu, encolhendo os ombros num gesto desdenhoso.
Com efeito concordou Villaines a meia voz salvo o nome e a posição que os maridos ocupam, pouca diferença existe entre essas senhoras e a actriz de variedades que vejo além, acompanhada por aquele sujeito gordo; entre elas e as três mundanas que estão sentadas perto da porta. Copiam-lhes os vestidos, imitam-lhes as atitudes e os modos, gastam da mesma modista e pintam-se da mesma maneira... Sendo assim, como poderemos distingui-las umas das outras?... Em certo meio, ainda se diferençam pelos seus ares arrogantes, que podem dar-lhes algum prestígio; mas, no fundo, para aqueles que sabem observar, não sei em que consiste a sua superioridade!
Na hipocrisia, talvez comentou, amargamente, a senhora de Hulons Com certas palavras, ditas, habilmente, em voz alta, supõem iludir a galeria, mas quando regressam a casa, vingam-se da íntima humilhação, simulando austera virtude e mordendo na reputação do próximo...
Sorrindo com tristeza, acrescentou:
Tudo isto é desolador, mas não tem remédio. Estes costumes corruptos são a consequência das exigências crescentes da vida actual. É inútil revoltarmo-nos porque não conseguiremos modificá-los.. Se, logo após a guerra, tivéssemos tido a coragem de os censurar e protestar contra esta falta de moralidade, talvez tivéssemos detido o mal... agora é tarde para o fazer! O melhor será aceitarmos aquilo que não podemos impedir, tentando ao mesmo tempo perservar os nossos da gangrena universal.
E com a cabeça indicou Cylia, que parecia reflectir e tentar compreender o que ouvia.
O tempo em que as mães continuou a senhora de Hulons velavam e evitavam que aos ouvidos e aos olhos das filhas chegasse tudo quanto era impuro, já lá vai. O papel agora é outro. Têm, pelo contrário, de abrir os olhos às filhas, armando-as para a luta, a fim de que, mais tarde, elas não pequem por ignorância, por surpresa ou por curiosidade. A tarefa é delicada e difícil, visto que, sendo obrigadas a apresentar-lhes as coisas pelo seu verdadeiro aspecto, devemos, apesar de tudo, respeitar e manter-lhes a inocência.
Villaines olhou para Cylia, que, pouco à vontade com a conversa, desviava a vista e voltava a cabeça.
É por isso que, apesar de ter o verdadeiro conhecimento do que vale a sociedade parisiense...
Veio encontrar-me aqui com a minha neta atalhou a avó de Cylia, misturando umas gotas de leite no chá muito forte Exactamente por isso, meu caro André. Para mais, há algum tempo para cá que esta pequena anda com mau parecer e, embora ela o negue, com um ar tristonho.
O advogado mostrou-se inquieto.
A menina de Liancourt estará doente?...
perguntou com interesse.
Cylia sorriu e volveu-lhe um olhar de agradecimento pela sua solicitude.
Não, que ideia!... A avó assusta-se sem motivo... Pelo contrário, eu sou bastante saudável.
Estás a querer iludir-me protestou a avó Comes muito menos do que comias e andas sempre com esse ar melancólico, como se o teu corpo estivesse aqui e o pensamento muito longe.
Voltando-se para o advogado, que, muito sério, observava Cylia com atenção, acrescentou:
Quer acreditar que, se a deixassem, ficaria fechada em casa dias seguidos... Foge da convivência das amigas, recusa todos os convites para festas... Mas eu cá estou para a meter na ordem!... Todas as tardes a obrigo a sair comigo.
O olhar penetrante de Villaines não se desviava do rosto pálido de Cylia. Notou as fundas olheiras, a expressão triste dos lindos olhos verdes e adivinhou o vinco amargo da boca, oculto com um sorriso forçado.
Involuntariamente, abanou a cabeça. De facto, Cylia andava triste e devia ocultar um desgosto muito íntimo, debaixo das aparências correctas de rapariga da sociedade. Mas qual?...
Esses passeios serão o bastante? perguntou, ao mesmo tempo que o coração se lhe apertava sob o império de pensamentos dolorosos.
Com certeza. O ar livre, exercício, distracções, restabelecê-la-ão. Esta pequena é muito reservada. Ainda ontem eu disse à minha filha: ”A Cylia precisa de distrair-se, sair” e como a mãe, presentemente, anda muito ocupada, eu me encarrego de o fazer...
Foram interrompidas pela chegada do conde de Liancourt, que logo explicou a sua presença:
Ia a passar e reconheci o seu carro. O motorista disse-me que estava aqui com a Cylia e resolvi entrar... Não me oferecem uma chávena de chá?... Também está por cá, Villaines?... Muito prazer em o ver, meu amigo... Vai escolher-me os bolos, filha.
Cylia levantou-se, perturbada pela súbita presença do padrasto.
E, enquanto este tomava lugar à mesa e a senhora de Hulons mandava vir outra chávena e mais chá, dirigiu-se para a pastelaria a fim de escolher os bolos pedidos.
Villaines notara o constrangimento de Cylia e adivinhara vagamente que a chegada do conde lhe alterara a serenidade. Qual seria a base dessa mudança?... Existiria qualquer desacordo entre eles?... Contudo, a atitude do conde não sofrera qualquer modificação e, ao dirigir-se à filha, fazia-o com a habitual ternura.
Na idade de Cylia, o mal-entendido podia resultar de um projecto de casamento.
Esta suposição foi bastante desagradável para o advogado. Seria o conde quem pretenderia impor-lhe um pretendente ou Cylia amaria alguém que o pai rejeitasse?... Em qualquer dos casos, as esperanças matrimoniais de André Villaines estavam ameaçadas.
Preocupado, resolveu visitar mais vezes a senhora de Hulons, que pressentia favorável aos seus projectos. Por ela saberia a verdade e ser-lhe-ia mais fácil, também, encontrar-se com Cylia e conquistá-la pouco a pouco.
Esta aproximava-se com o seu passo elegante, trazendo um prato de bolos.
Escolhi os seus bolos preferidos, pai... a casa aceitará aqueles que não comer.
A voz harmoniosa, ao dirigir-se ao conde, não tinha a firmeza habitual, e Villainçs, já desconfiado, notou este pormenor com crescente inquietação.
A própria Cylia reconhecia, com terror, que, dia a dia, aumentava o constrangimento que sentia em presença do conde.
O seu afecto pelo homem, que sempre acreditara ser seu pai, fora intenso e profundo. Até ao dia da revelação, quase podia afirmar que gostava mais dele do que da condessa... Mas, presentemente, tudo mudara. Com a mãe, continuava a ser confiante e terna, mas com o conde tornara-se reservada e taciturna.
Todavia, este era para ela o que sempre fora, isto é, um pai terno e carinhoso, e a pobre Cylia não conseguia explicar a si própria porque motivo a sua presença passara a tornar-se-lhe dolorosa.
A consciência de que ele não era mais do que padrasto bastava talvez para explicar o constrangimento dos primeiros dias. Mas agora, que se habituara à ideia dessa semi-paternidade, não compreendia porque ele persistia. Porque não voltara a ser para o conde a filha carinhosa, meiga e expansiva que fora noutros tempos?...
Pensativa, admirava o belo perfil que se recortava, numa expressão grave e distinta, sobre o fundo verdejante de uma palmeira, colocada atrás dele.
”Que pena não ser o meu verdadeiro pai! pensava com tristeza Gosto tanto dele e sentir-me-ia tão orgulhosa se fosse sua filha!”
Suspirou profundamente, ao verificar que um abismo profundo se tinha cavado entre ambos... um abismo cavado pelo fantasma do verdadeiro pai.
Que tristeza!
Entretanto, o conde levantou-se e despediu-se de Villaine e, dirigindo-se à sogra, desculpou-se:
Tenho imenso que fazer... Querem que as acompanhe ao carro antes de sair?...
Acompanhou-as e instalou-as no elegante automóvel que fora comprado na última Exposição. Depois despediu-se apressado, tendo dirigido a Cylia um sorriso impregnado de ternura, sorriso que a perturbou tanto que voltou a cabeça.
Como o motorista desse a volta com o carro, viram Villaine, que, por sua vez, saía da pastelaria e dirigiu o último cumprimento às duas senhoras.
Tem graça!... Eu supunha que Villaines estava à espera de um amigo comentou a senhora Hulons, seguindo-o com a vista.
Cylia calou-se, mas corou de prazer ao pensar que o advogado entrara somente por ter reconhecido o carro da avó parado à porta da sala de chá.
Esta suposição foi-lhe tão agradável que bastou para lhe iluminar os lindos olhos verdes com um clarão de alegria e expulsar todas as preocupações.
Os dedos finos, de unhas rosadas, percorreram o teclado negro e branco, dando os últimos acordes, calmos e majestosos; depois, mais algumas notas soaram, destacadas e leves e, por fim, tornaram-se mais espaçadas... e as mãos recaíram inertes.
A sonata interrompeu-se como um suspiro profundo que ficasse suspenso.
Cylia, mais uma vez, mergulhara em profunda abstracção...
A despeito da sua vontade, o cérebro trabalhava e as suas ideias como que girando num círculo vicioso passavam e tornavam a passar, repisando o mesmo assunto e voltando ao mesmo ponto: a existência do verdadeiro pai.
Decorridos alguns minutos de completa imobilidade, de absoluta inconsciência de tudo quanto a rodeava, ergueu lentamente a cabeça, as mãos voltaram a poisar no teclado e, maquinalmente, procurou a passagem interrompida na página coberta de notas, pequeninas e negras como andorinhas poisadas nos fios telegráficos.
Mais alguns compassos e, bruscamente, o piano calou-se.
Cylia teve a intuição de que alguém a observava. Para se certificar, voltou a cabeça.
O conde de Liancourt tinha entrado na sala sem que ela desse por isso e, de pé, atrás dela, estudava-a com atenção. Como se a presença do pai a amedrontasse, levantou-se de um salto.
Meto-te medo, Linita? perguntou ele com tristeza.
Ao mesmo tempo, o sorriso meigo parecia querer desmentir a ligeira censura. Cylia corou.
Medo, porquê?... Que ideia!
Mas calou-se, perturbada pelo olhar clarividente que a fitava...
Sentia-se envergonhada como se tivesse cometido uma falta e, ao mesmo tempo, impressionada com o ar triste e grave do conde. Adivinhava que viera ali para uma explicação à qual não poderia fugir.
Com efeito, o padrasto aproximou-se, pegou-lhe nas mãos e, mergulhando o olhar no dela, perguntou docemente:
Porque me foges, Cylia?
Engana-se, eu não fujo protestou Cylia, retraindo-se.
Foges, sim!... Noutros tempos, mal me vias, corrias para mim, procuravas a minha companhia e, quando eu me afastava, ficavas triste. Quantas vezes te instalavas junto de mim costurando e passavas longo tempo no meu gabinete... Não há muito tempo, também, saltavas-me para os joelhos como uma criancinha.. Que razões tiveste para modificar a tua atitude, tornando-te diferente para mim?...
Cylia curvou a cabeça ao ouvir evocar as carícias filiais que, presentemente, não se atrevia a prodigalizar-lhe.
Vendo-a calada, o conde insistiu com nervosismo:
Vês?.. Não protestas!...
Asseguro-lhe que se engana! balbuciou ela numa voz sem timbre.
O conde abanou a cabeça e, intimamente irritado com a pouca convicção dos seus protestos, prosseguiu com certa aspereza:
Não negues!... Foges-me e, exceptuando as horas das refeições, nunca te vejo... Tornei-me um estranho para ti... Um beijo de manhã e outro à noite, eis os únicos testemunhos de afeição que me dás... e mesmo esses... se pudesses, esquivavas-te a eles, suprimi-los-ias, porque mos dás de má vontade!...
Não diga isso!
Libertou as mãos que o conde ainda prendia e apertou o peito, porque tinha a impressão de que o coração se lhe despedaçava.
O conde viu-a empalidecer e censurou-se por lhe ter falado com tanta severidade.
Passando-lhe o braço pelos ombros, puxou-a para si e, levantando-lhe o queixo, obrigou-a a olhá-lo.
Dize lá, minha Cylia, já não és minha amiga? perguntou, dando à voz uma inflexão de ternura intensa e, ao mesmo tempo, de angústia paternal.
Cylia compreendeu a imensa ansiedade desse homem que a adorava... e que receava ter perdido a sua afeição.
Não pense uma coisa dessas, pai!... Juro-lhe que o estimo como sempre o fiz protestou, sinceramente comovida por ter podido nascer no espírito do conde semelhante suposição.
Feliz com esse protesto que reconheceu ser sincero, o pai cingiu-a mais contra si e beijou-a na testa, como para atenuar a insistência das suas perguntas.
Nesse caso, porque deixaste de ser carinhosa e expansiva e te mostras tão reservada comigo?...
Duas lágrimas rolaram pelas faces de Cylia... O interrogatório fazia-a sofrer horrivelmente!... Nunca, entre ela e o conde, se fizera qualquer alusão às revelações da mãe e, naquele momento, todos os esforços de Cylia tendiam para não deixar adivinhar ao padrasto o sofrimento que a torturava desde que soubera tudo e a levara, a despeito da sua vontade, àquela atitude constrangida para com ele.
Então não respondes, minha Cylia?
Perdoe-me, pai! balbuciou ela Na minha idade pensam-se tolices... Mas não torno, afirmo-lhe.
O conde sentia-a tremer e hesitou em prosseguir uma conversa que a fazia sofrer. Mas, depois de alguns momentos de incerteza, considerou que seria preferível entenderem-se e acabar, de uma vez para sempre, com o mal-entendido que os separava.
Com meiguice, levou-a até ao divã, coberto de almofadas, e obrigou-a a sentar-se junto dele. Depois, falando-lhe baixo, quase ao ouvido, como se quisesse tornar mais íntimas as confidências, perguntou com decisão:
Foi por saberes que não sou o teu verdadeiro pai, não é verdade?
Cylia sobressaltou-se, corou e não conseguiu responder-lhe.
Então, não dizes nada?... É por isso, não é?... Eu sei muito bem e tu não te atreves a responder-me com uma afirmativa, com receio de me magoar. No entanto, a tua atitude, nestes últimos tempos, tem sido para mim muito mais dolorosa do que tudo quanto pudesses dizer-me hoje. Ainda ontem, no Serafim, notei que mudaste de cor quando me viste chegar e, quando me despedi, voltaste a cabeça para não ver o meu sorriso que te comovia... Não protestes. Foste criada comigo, conheço-te e leio no teu coração como num livro aberto... Adivinho, sei o que te modificou e sofro com isso!
Chamou a si toda a coragem para não manifestar a comoção que lhe estrangulava a garganta ao referir-se à tristeza que sentia perante a atitude da enigmática rapariguinha. Depois, continuou:
A minha grande culpa, a teus olhos, é a de não ser o teu verdadeiro pai!... Todavia, se reflectisses melhor, minha filha, verias que, se perante as leis humanas a minha paternidade não existe, perante Deus, perante a minha consciência e pelo mútuo afecto que nos une, ela é uma realidade... Se não és a carne da minha carne, és filha do meu coração, aquela que, voluntariamente, eu reconheço como tal... Se o sangue que te corre nas veias não é o meu, o o espírito e a alma foram modelados por mim... És a minha obra porque criei a tua intelectualidade e fiz de ti o que hoje és... O laço carnal, repudiado durante vinte anos, poderá ser mais forte do que a tríplice cadeia, feita de confiança, de ternura, de hábitos comuns, que nos liga um ao outro?... O verdadeiro pai não será aquele que formou a alma da criança... que a amou e acarinhou, que viveu, dia a dia, a sua vida, sofreu com os seus pesares e se alegrou com as suas alegrias?...
Calou-se, vibrando, exaltado pelo ardor que pusera nas palavras, ansioso por convencê-la. Dizia simplesmente o que pensava, mas dizia-o com firmeza e convicção, pois reconhecia a necessidade de reconquistar a filha.
Cylia ouvia-o de pálpebras cerradas, como que bebia as palavras mágicas que lhe suavizavam o desgosto e faziam debandar as negras borboletas que lhe povoavam o cérebro exaltado, havia tantos dias.
O amor paternal em que o conde a envolvia como que lhe inundava a alma e saboreava-o como um bem que tivesse perdido e voltasse agora a encontrar.
Naquele momento sentia-se bem sua filha... só dele!... O conde tinha razão. O verdadeiro pai não era o outro... que não passava de um nome mencionado no registo civil... uma classificação perante a lei!
O conde continuou em tom persuasivo:
És minha filha, só minha, Cylia querida, porque, por muito longe que a tua memória alcance, encontras-me sempre a teu lado, interessando-me por tudo quanto te diz respeito, guiando-te, aconselhando-te!... A tua confiança em mim foi e é ilimitada e caminharias a meu lado com os olhos vendados, contanto que eu te pegasse na mão... Engano-me, por acaso?
Não se engana, não, pai!
Sendo assim, compara o que sentes por mim com o que sentirias se, de repente, te encontrasses com Guy Férias... a quem nunca viste, nem conheces...
Ao ouvir o nome do ausente, Cylia estremeceu involutàriamente.
O conde prosseguiu:
Tudo ignoras dele... o físico, o moral, a sua vida!... Se, inesperadamente, te encontrasses com ele, atrever-te-ias a beijá-lo como se beija um pai?... Se fosses obrigada a segui-lo, não o farias receosa e hesitante?... Julgo que estas provas são suficientes para reconheceres que um pai, a despeito dos laços de sangue, não passa de um estranho para os filhos, quando não foram criados com ele e ignora a sua infância. Nunca te ocorreu isto?...
Sim... algumas vezes... declarou Cylia com ar pensativo.
E então?...
Então... repetiu ela, com o olhar vago e como ensombrado por súbita ansiedade.
Recordava as compridas noites de insónia, durante as quais o cérebro parecia estalar-lhe ao tentar resolver o problema que o padrasto agora suscitava.
O conde notou a hesitação da voz, a expressão angustiada dos olhos verdes, fixos, como se interrogassem ansiosamente o vácuo, e ficou apreensivo.
Então, Cylia? insistiu Não dizes nada?
Quando pensava que o verdadeiro pai é aquele que possui o coração e o espírito da criança...
Calou-se, receando as palavras que devia proferir se não quisesse mentir.
Sim... e depois?
Depois...
Mas, numa defesa instintiva, protestou:
Para que me interroga?... Não sei, não sei... Não insista, pai, peço-lhe... Juro-lhe que o estimo e aprecio muito!... Não lhe basta este protesto do meu amor filial?
As mãos finas contorciam-se, numa manifestação de impotência, de aflição.
Não duvido da tua afeição afirmou o conde com tristeza Mas sinto que o teu coração está ferido e doente, e desejo curá-lo. Comecemos por sondar a ferida.
Para quê?... insistiu a filha.
Acabarás por te convencer de que a minha insistência é útil. Prefiro uma explicação franca e sincera a pensamentos mal definidos e encobertos. Fala com lealdade, peço-te como um favor.
Cylia hesitou.
E se as minhas palavras o fizerem sofrer?
Não te preocupes com isso, visto ser eu quem te pede para falares segundo a tua consciência... Começaste por dizer que o verdadeiro pai é aquele que conhece o coração e formou a alma dos filhos... e depois?
Pois bem... havia em mim qualquer coisa que não estava de acordo com essa concepção. ”O outro representa o teu sangue, a tua carne, a raça de que descendes” gritava uma voz no mais fundo da minha alma, uma voz que eu desejaria poder sufocar. A natureza, a hereditariedade, o atavismo, são mais fortes do que os laços convencionais, do que a educação, do que os hábitos!... Um leãozinho será menos feroz se for criado com animais domésticos e o cão deixará de ser fiel, embora pertença a um dono traiçoeiro?... A natureza, a raça, eis duas grandes forças.
Empolgada pelos próprios pensamentos, não via a alteração gradual do semblante do conde e continuou, explicando as suas ideias, os tormentos que sofrera durante os últimos meses:
Essa voz íntima, que parecia zombar das minhas teorias e as derrubava como um castelo de cartas, torturava-me noite e dia... e em vão lutava contra ela. A terna afeição que lhe dedico, pai querido, muitas vezes falava mais alto e protestava contra a obsessão do pensamento, que não conseguia desviar do outro a quem desconheço... Quantas vezes me alcunhei de ingrata... e desejei morrer, para destruir a ideia fixa... o pesadelo que me quebrava a energia, desvairava a razão e me obrigava a pensar nele... a despeito da minha vontade!
Minha pobre Cylia! murmurou o conde, aterrado com o mal, cuja gravidade só agora media Deveríamos ter aguardado mais algum tempo para te fazer a revelação... ou então, dizer-te a verdade quando eras pequena, para que te habituasses à ideia... Mas, se quiseres, verás como te curas. Todas as obsessões se podem dominar quando encaramos a verdade face a face. Pensas demais, entregas-te demasiado ao teu caso e acabaste por acreditar que era excepcional!...
Pensa na tua mãe, que foi obrigada a refazer a sua vida... pensa em mim, que não mereço as tuas hesitações nem as tuas controvérsias... Garanto-te que sofro com elas.
Só Deus sabe quanta ternura tenho por si, pai querido! protestou Cylia num impulso de todo o seu ser A minha vida inteira não seria demasiadamente longa para lho provar... O meu coração, a minha razão e o meu reconhecimento pertencem-lhe... mas ele... ele... chego a ter medo de enlouquecer!
Calou-se, de cabeça baixa como uma criminosa, quando não era mais do que a vítima inocente de uma lei cruel que, para proteger os pais, sacrifica os filhos.
Como o conde, impressionado e triste, a contemplasse em silêncio, Cylia ergueu a cabeça e surpreendeu o olhar pesaroso.
Fi-lo sofrer, paizinho querido!... Perdoe-me... não devia ter falado.
Assim foi melhor, filha. Fez-te bem desabafar.
Fez, sim reconheceu ela. Sentia o coração pesado... e agora sinto-me aliviada por lhe ter confessado as minhas dúvidas e terrores... Diga-me que não ficou zangado comigo, paizinho adorado... e que não deixou de gostar da sua Cylia.
O conde de Liancourt, que se levantara e passeava na sala, esboçou um sorriso desiludido. Mas, parando diante dela, afirmou com indulgência:
Os teus escrúpulos não podem fazer-me esquecer as carícias e a ternura que me prodigalizaste desde pequenita, filha. As tuas palavras foram sinceras, embora um tanto cruéis para o meu coração de pai... mas fizeste bem em as dizer. O amor filial é um sentimento muito nobre para que se possa mascarar com palavras.. Os sentimentos de uma filha, instintivamente, inclinam-se para quem tem direito a eles.
Nunca deixarei de o estimar, meu pai,. suceda o que suceder, juro-lhe!
Bem sei, minha Cylia... Além disso continuou, mais animado estou certo de que ocuparei sempre o melhor lugar no teu coração... porque pertenço ao teu passado!... Mais tarde, quando recordares a tua infância, não poderás separá-la de mim. Se a súbita revelação da existência do outro te prendeu pela novidade, fazendo valer os direitos que uma paternidade inconsciente lhe deu sobre ti, e dominou a tua atenção, não conseguirá roubar-me uma parcela da afeição a que tenho também direito pela ternura e afecto prodigalizados durante dezoito anos... No teu pensamento, serei sempre aquele que te educou e a quem, desde pequenina, te ensinaram a amar e respeitar.
Inclinou-se para Cylia, que enxugava os olhos, e, prendendo-lhe as mãos geladas entre as mãos ardentes, puxou-a para si.
Não chores, minha filha, nem te acuses de ingratidão para comigo... fica em paz com a tua consciência, amando os teus dois pais, se o coração te impõe essa partilha... Mas não sejas injusta comigo, porque não to mereço... nem me trates como um estranho de quem foges e afastas da tua vida como um importuno cuja presença te aborrece... A meus olhos, continuas a ser a minha filha adorada; por teu lado, prova-me que nunca deixaste de me considerar como teu pai.
Como é bom, meu paizinho!
A ternura do conde sensibilizava Cylia, mais do que o poderiam ter feito os mais convincentes argumentos.
Numa ânsia instintiva de afeição, passou-lhe os braços pelo pescoço e, aconchegando-se-lhe ao peito, acrescentou por entre lágrimas:
Adoro-te, paizinho querido... quero-te de todo o coração... E tu defender-me-ás, proteger-me-ás e conservar-te-ás sempre a meu lado, sim?... Tenho tanto medo do futuro!...
Soluçava com a cabeça poisada no ombro do conde, que a apertou contra si e, como única censura, murmurou estas palavras de perdão e de amor:
Minha Cylia... minha adorada filha!
E com o coração esmagado pela tristeza, voltou a cabeça para que ela não visse as lágrimas que lhe assomavam aos olhos.
Visto estares sozinha em casa, levo-te comigo. Vai pôr o chapéu.
Ao ouvir a proposta, Cylia soltou um grito de alegria, largou o trabalho de malha e saltou ao pescoço da senhora de Hulons.
Quer ir passear comigo, avó?... Não está a enganar-me?... perguntou entre dois beijos.
Que ideia!... Estou ansiosa por verdura e ar fresco e quero libertar-me da poeira da Suíça, donde cheguei esta manhã... Vamos folgar como duas garotas em férias.
Folgar e respirar ar fresco... ver o arvoredo dos boulevards? protestou Cylia com um trejeito depreciativo.
Nada disso. Vamos ao Bosque de Bolonha. Há mais de seis semanas que não ponho lá os pés e estou com saudades.
Falava com insinuante alegria, como se quisesse fazer-se perdoar pela mocidade de espírito, contrastando com os cabelos brancos.
Cylia, radiante com a perspectiva do passeio, correu a preparar-se, afirmando:
Nem calcula o prazer que me dá, avó!... Não me atrevia a pedir-lhe com receio de que tivesse compras a fazer.
A avó sorriu.
Não te agrada andar nas ruas de Paris? perguntou.
Por forma alguma! afirmou Cylia com energia Há muita gente e muito barulho.
Sendo assim, não te demores. Vamos errar pelos atalhos do Bosque, supondo que estamos perdidas, como tu gostavas, quando eras pequenina.
Decorrida meia hora, o carro da senhora de Hulons transpunha a Porte-Dauphme e depois, a pedido de Cylia, que gostava de andar, parou e ambas tomaram pela primeira vereda que se lhes deparou.
As duas passeantes percorreram, em passo vagaroso, os atalhos que, sob a abóbada de verdura, se desenrolavam longe das avenidas largas e conscienciosamente regadas de manhã e à tarde. O saibro estalava-lhes debaixo dos pés, por entre a copa das árvores avistavam-se retalhinhos de céu muito azul ou sulcado de leves farrapos de nuvens caprichosas e complicadas como arabescos.
Aqui e ali, sobre a relva, onde o sol punha largas manchas doiradas, viam-se pessoas estendidas preguiçosamente; mais além, embrenhando-se pelo arvoredo mais espesso, parzinhos de namorados, enlaçados, trocando beijos furtivos.
Cylia caminhava com ar pensativo e sério, enquanto a avó, de olhar brilhante e narinas dilatadas, aspirava com delícia o ar tépido e impregnado do cheiro da terra molhada.
Ao aproximarem-se do lago, que resplandecia como um espelho de prata, reflectindo o céu, despertou bruscamente da sua abstracção e o semblante animou-se-lhe.
Vamos alugar um barco, avó?...
A senhora de Hulons estranhou o pedido e, depois de breve hesitação, respondeu:
Pouca diferença fará dos meus passeios cotidianos nos lagos da Suíça... Mas se te dá muito prazer...
Imenso... Com este calor sufocante, respiraríamos melhor... e poderíamos conversar, longe das orelhas indiscretas dos passeantes... Seria delicioso, avó!
A avó encolheu os ombros, sorrindo:
Uma confidente da minha idade parece-me um tanto velha para ti...
Afirmo-lhe que é a única pessoa com quem gosto de falar abertamente.
Minha lisonjeira!...
Sou sincera, garanto-lhe!... Está combinado?... Vamos alugar um barco e eu remo... Que bom!
O quê!... Vais remar?...
Pois claro. Há dias, em Enghien, também remei. Se recusa, adeus confidências.
Sempre tens ideias!... Com uma temperatura quase insuportável, pensares num exercício tão violento!...
Porque não?... Iremos muito devagar, até perto das ilhas, e depois navegaremos junto à margem para aproveitarmos a sombra... Não vê como há tanta, naquele cantinho?...
Enervada com a resistência da avó, arrancou um ramito de alfeneiro, que desfolhou.
Preferia alugar o barco com remador propôs a avó.
Como queira... Mas vai estragar todo o prazer que me proporcionaria o passeio de barco e o que eu desejava, isto é, uma hora de absoluto isolamento consigo.
Que teimosa é a minha neta! murmurou a avó, divertida com a insistência de Cylia.
Pensando melhor, calculou que o desejo de estarem completamente a sós ocultava, por parte de Cylia, a intenção de qualquer confidência, e decidiu alegremente:
Seja como queres. Escolhe o barco e vamos!...
Mas nada de imprudências!... Olha que os banhos frios no lago estão proibidos!
Como é boa, avòzinha, e como estou contente!
Sou boa porque te faço todas as vontades, minha marota! comentou a boa senhora com terna indulgência.
Cylia, porém, não ouviu o comentário. Tendo obtido a permissão desejada, saltou para um barquito que um homem segurava, encostado à margem. E, enquanto a avó se instalava, abriu um pouco a gola do vestido, a fim de ter os movimentos mais livres, e pegou nos remos.
Vê como é fácil, avó!... O barco parece voar e oiço o glu-glu da água, batendo no costado.
Ria satisfeita, rosada pelo esforço, com os lábios entreabertos e a respiração mais apressada.
Rema mais devagar... não quero pressas. Se continuamos assim, fazemos a volta em vinte minutos.
Nada disso... porque vamos parar além, debaixo daquele freixo que pende para a água... Como isto é divertido!... Falhei a profissão. Aos doze anos devia ter embarcado como grumete, porque tenho verdadeira aptidão para isto e foi pena não a aproveitar... Veja estas remadas, admire!
O barco cortava a água com rapidez, abrindo largos círculos que iam morrer ao longe e deixavam para trás uma esteira de espuma.
A certa altura deixou de remar:
Cá estamos!... Ficaremos lindamente debaixo desta árvore!... Agrada-lhe este caminho?...
Abandonou os remos e, encostando os cotovelos aos joelhos, apoiou o queixo na concha das mãos.
Toda a alegria fictícia que exibira até ali se desvaneceu e ficou calada e pensativa, seguindo com olhar vago os grandes cisnes que deslizavam lentamente e quase davam a impressão de estarem parados.
Então esse desejo de trocar ideias com a velha avó já passou?... perguntou a senhora de Hulons, simulando desapontamento, mas intimamente aborrecida com o silêncio da neta querida.
É verdade! concordou Cylia com sinceridade Há pouco pensava ter muita coisa para lhe dizer... para lhe pedir, principalmente!... E agora não me atrevo... é muito difícil.
Difícil!... O assunto é de tanta gravidade?...
Sorria, inclinada para a neta, mas o olhar inquieto interrogava ansiosamente o rostozinho delicado, tão pálido que nem o esforço feito a remar conseguira colori-lo. Por fim, abanou a cabeça.
Estás muito pensativa, minha Cylia... Que foi feito da minha garota travessa?...
Está longe... muito longe! respondeu, surdamente, a neta A Cylia de outros tempos morreu e a de hoje chora por ela... porque conhece a tristeza que a outra ignorava.
Tu choras!... Que significam essas lágrimas... tens algum desgosto? Vamos, fala!
Tenho um desgosto, tenho confessou Cylia.
Um desgosto! repetiu a avó, que, com a surpresa, deixou cair o leque Eu já o pressentia... já tinha adivinhado. Mas afinal o que é?... Não chores mais, meu amor, e conta-me tudo...
Apoquentada, puxou a neta para si e apertou entre as suas as mãozinhas febris, que não lhe fugiram.
Conta-me tudo, vá... É por causa da tua mãe, não é verdade?... Tenho a impressão de que entre vocês duas existe qualquer sombra... além disso, ela deixa-te muitas vezes sozinha em casa e tu aborreces-te, sem querer confessá-lo...
Está enganada, avó... A mãezinha continua a ser a mesma para mim... Não é isso...
Curvou a cabeça e, numa voz quase indistinta, acrescentou:
É por causa do meu pai...
A senhora de Hulons teve um sobressalto de surpresa.
O conde de Liancourt teria deixado de... Cylia, porém, não a deixou concluir.
Eu disse o meu pai e o conde não é meu pai... A mãe já lhe devia ter dito que eu sabia... Não calcula quanto me custou... quanto sofri com a revelação!... Não consigo habituar-me à ideia do outro...
Ergueu para a avó os lindos olhos marejados de lágrimas e a boa senhora ficou impressionada até ao mais fundo da alma com esse desespero que, até ali, não pressentira.
Mas eu supunha... a tua mãe disse-me que a revelação te deixara indiferente... Nesse caso?...
Cylia soltou profundo suspiro. Debruçada na borda do barco, com os dedos mergulhados na água, seguia com olhar distraído as pequeninas ondas provocadas pelo movimento da mão. Em voz surda, confessou:
Diante da mãe disfarço e evito que adivinhe as minhas lágrimas, porque, se suspeitasse o meu desgosto, ralhava-me. Ela tem razão... eu não devia pensar mais no caso, mas ninguém consegue evitar que o pensamento tome o rumo proibido... Saber uma coisa destas, assim, de repente, transtornou-me... Há muito tempo que desejava conversar com a avó a este respeito, mas não tive ensejo para o fazer. Há pouco, quando me propôs este passeio, pensei logo: ”Vou dizer-lhe tudo. Talvez a avó possa auxiliar-me”... Há ocasiões em que chego a recear enlouquecer... e passo as noites a chorar, sempre obsidiada pela mesma ideia. É horrível!
As lágrimas corriam-lhe pelas faces sem que ela pensasse em enxugá-las e a própria senhora de Hulons, intensamente comovida com o desgosto da neta, tinha os olhos húmidos.
Como eu te compreendo, minha pobre filhinha... A tua mãe demorou muito tempo a revelação... Devia ter-te habituado, pouco a pouco, à ideia da existência do teu verdadeiro pai. Mas, além da recordação do primeiro marido lhe ser dolorosa, o seu ciúme maternal era tão admissível e racional que não tive coragem para a censurar pelo silêncio.
Compreendo e adivinho quanto deveria ter sofrido... É por isso que não me atrevo a aumentar-lhe a amargura das recordações, pedindo... Tenho tanto medo que me recuse e me ralhe... e, ao mesmo tempo, ficarei tão triste se tiver de renunciar à minha esperança...
Calou-se, com a garganta estrangulada de comoção, os olhos enevoados de lágrimas, vagueando pela superfície espelhada do lago onde os cisnes evolucionavam.
Por fim, encorajando-se, baixou a voz e explicou:
Espero que a avó não me recuse o que vou pedir-lhe e me auxilie... eu queria ver o meu pai.
Ver o teu pai!
Sim, de longe, sem lhe falar, nem me aproximar... simplesmente para o conhecer e poder dar-lhe um rosto quando pensasse nele... para acabar com o receio de me encontrar na sua presença sem saber que é o meu pai... Quero confessar-lhe tudo... Quando um desconhecido passa por mim na rua e me fixa com mais atenção, o coração começa a bater-me apressado e quase desfaleço de angústia, ao pensar que esse homem pode ser o autor dos meus dias... Este receio de estar ao lado do meu pai sem o saber é tão grande que evito sair ou frequentar a sociedade. Se, pelo contrário, o conhecesse, como eu apreciaria os felizes acasos que provocassem um encontro entre nós!... Vê-lo sem que ele o saiba, sem que pressinta sequer a minha presença, isso seria para mim a maior das alegrias!... Ficaria com a alma iluminada para muitos dias!... Vê-lo!... É o meu maior desejo, seria a minha mais íntima consolação... Vê-lo, radiosa esperança!... Diga-me, avó, não quer satisfazer-me esse desejo?...
E apertava entre as mãos ardentes os dedos enrugados da avó.
Sossega, meu amor, não te exaltes assim... Sim, hás-de conhecê-lo... Mas não compreendo como te interessa tanto esse homem que nunca viste!
Cylia ergueu para o céu as pupilas luminosas e, numa voz fervorosa, vibrante de convicção, declarou como quem faz uma profissão de fé:
Penso nele constantemente. De princípio, tentei reagir contra a obsessão desse pensamento sempre presente, mas foi mais forte do que eu. Inoculou-se-me nas veias, como um vírus poderoso, e hoje deixei de lutar. A despeito de tudo, sou sua filha e julgo que, instintivamente, o amo!... Ainda ontem, quando estava a bordar, piquei-me e o sangue correu. Pois bem, ao ver as gotazinhas vermelhas, eu ria pensando que o sangue das suas veias era o mesmo que tingia o meu lenço... As leis dos homens não podem destruir os laços da carne. O meu verdadeiro pai pode recusar ver-me, pode renegar-me até, entre mim e ele podem existir mil obstáculos materiais, mas não existe poder algum, neste Mundo, que destrua esta verdade: ele é meu pai e eu sou sua filha!
Calou-se, com as faces afogueadas, vibrante de emoção mal contida. Inquieta e preocupada com tanta exaltação, a senhora de Hulons suplicou:
A tua excitação assusta-me, filha... Acalma-te, suplico-te.
Acicatada pela ideia fixa, Cylia tranquilizou-a:
Deixe-me desabafar, avó... Se soubesse como me sinto melhor agora... principalmente desde que me prometeu que veria o meu pai... Tenho a sua promessa, não é assim?... Proporcionar-me-á ensejo de o conhecer?...
Vêjlo-ás, prometo-te... Pensando bem, o teu desejo é natural.
É natural, concorda! Os laços de sangue são indestrutíveis e não podem submeter-se às conveniências... Mas tenho muito medo de que a mãe não pense como a avó e me recuse...
Sim, é possível que se oponha ao teu desejo murmurou a avó, com ar perplexo.
Cylia entristeceu e uma sombra enevoou-lhe as pupilas verdes:
E nesse caso?... interrogou ansiosa.
Nesse caso... repetiu a senhora de Hulons, hesitando.
Mas, ao notar a ansiedade da neta, declarou com firmeza:
Advogarei a tua causa e insistirei com ela, mas, se recusar, passaremos sem a sua autorização...
Não creio ultrapassar os meus direitos e deveres de mãe e de avó, tomando a iniciativa. Ao ouvir a promessa formal, o coração de Cylia palpitou de alegria.
A avó seria capaz de fazer uma coisa dessas?
A sua alegria era tanta que não conseguiu reprimir as lágrimas e os soluços nervosos que a sacudiam.
Vou conhecê-lo!... Como sou feliz!... Vou ver o meu pai, avòzinha!
A atmosfera estava carregada e a trovoada aproximava-se. Pesadas nuvens toldavam o céu, projectando a sua sombra pelas encostas da margem do Sena.
Na esplanada do Pavilhão de Armenonville, os zíngaros, de olhar ardente e sorriso aliciante nos lábios finos, sublinhados pelo negro bigode, tocavam os últimos compassos de uma valsa lenta, lânguida, que fizera passar um frémito de voluptuosidade pela elegante clientela do afamado estabelecimento.
Sentadas junto de uma das mesas, na extremidade da galeria, a condessa de Liancourt e a filha observaram o aspecto do céu.
A condessa parecia nervosa e o movimento apressado do leque devia ter outra causa além do calor excessivo.
De facto, as palavras em breve revelaram a causa do mau humor.
Receio que o teu pai e o teu tio não consigam vir ter connosco antes de rebentar a trovoada. Aquela nuvem de poeira que não sobe e fica rente à estrada e o voo baixo da passarada indicam que a chuva não deve tardar muito.
Mal acabara de falar e já um relâmpago sulcava as nuvens, quase logo seguido por violento trovão que dir-se-ia abalar tudo.
Como se as nuvens aguardassem apenas este sinal para deixarem fugir o seu conteúdo, a chuva começou a cair em fortes bátegas.
Contrariada por ver que os seus receios se confirmavam, a senhora de Liancourt fez um gesto de aborrecimento.
Que ideia a deles, descerem a Auteuil e atravessarem o Bosque, para virem até aqui! É preciso não terem a cabeça no seu lugar para pensar em dar um passeio a pé, com um calor destes!
Foi o tio que desejou ver o campo das corridas por causa do seu cavalo, que deve correr em breve lembrou Cylia.
Um disparate! Passaria por lá qualquer outro dia, quando nós não estivéssemos aqui à espera deles. Vão chegar todos molhados e cheios de lama, verás. Os tapetes do carro devem ficar em bonito estado, não haja dúvida!... Sem falar na perspectiva da vizinhança dos seus fatos húmidos junto dos nossos vestidos!
Calou-se, suspirando, mas tornava-se evidente que o seu mau humor aumentava à medida que a chuva redobrava de violência.
A voz do criado arrancou-a às amargas reflexões:
A senhora deseja que recue a mesa?... Com a força do vento, a água vai chegar até aqui.
Com efeito, mais de metade da esplanada estava inundada e quase todos se tinham refugiado no interior do estabelecimento.
...Salvo se quiserem ir lá para dentro?... lembrou ainda o criado Isto é um verdadeiro dilúvio.
A senhora de Liancourt, porém, não estava muito disposta a misturar-se, com Cylia, à clientela pouco escolhida, que o receio da chuvada impelira para o interior do café. Limitou-se, portanto, a mandar recuar a mesa para um recanto protegido com uma espécie de biombo, encoberto com vasos de plantas.
Desta forma, ficaram sentadas lado a lado, voltadas para a entrada principal e podiam ver quem chegava, na ânsia de reconhecer aqueles por quem esperavam com impaciência.
Há mais de uma hora que nos separámos daqueles senhores e presumo que, nesta altura, foram surpreendidos pela chuva em plena mata, tendo as árvores como único abrigo. Vão chegar encharcados e o teu pai, que se constipa com facilidade, muito feliz será se, desta vez, não apanhar uma bronquite.
Calou-se bruscamente, perturbada, sem poder fazer um gesto, sem forças para se dominar. Uma onda de sangue tingiu-lhe as faces.
Diante da porta do café parara um carro e um homem descera, começando a subir a escada que dava acesso à esplanada. Era alto, magro, aparentando cinquenta anos, embora tivesse os cabelos quase brancos. No rosto, de feições regulares, brilhavam dois olhos verdes, um pouco tristes... como os de Cylia.
Com efeito, a senhora de Liancourt reconhecia nele Guy Férias, o primeiro marido, o pai da sua filha!
Um estremecimento nervoso percorreu-a da cabeça aos pés e, instintivamente, estendeu o braço para Cylia como se quisesse defendê-la... ou impedir que o pai a visse.
Mas o recém-chegado nem sequer deu por elas e mostrava-se solícito e cuidadoso com uma senhora loira, cheia, vestida com luxo algo espalhafatoso, que, por sua vez, descera do carro. Com infinitas precauções talvez com receio de rasgar as delicadas rendas que lhe guarneciam o vestido de seda escura ajudou-a a despir o casaco.
Depois, rindo e conversando, agarrando-lhe familiarmente no braço, levou-a para o local donde os músicos tinham desertado.
A condessa respirou. O marido não tinha dado por ela e, sentada a três quartos, quase de costas voltadas para ele, seria muito provável que não a reconhecesse. No entanto, por precaução, recuou mais a cadeira, de forma a ficar completamente escondida por uma palmeira.
Por um sentimento íntimo de pudor, tanto por causa da presença de Cylia como por uma questão de conveniências, não gostaria de ser reconhecida por aquele com quem partilhara a vida durante algum tempo.
Calada, prostrada por um abatimento que quase lhe dava a sensação de uma dor física, recordou o passado, esse passado que supunha morto e agora surgia, de repente, bem vivo diante dela. Relembrou com emoção os sonhos de rapariga, o primeiro casamento e os dias de felicidade que se lhe seguiram; depois a catástrofe, a dor sem nome de surpreender o marido bem-amado, apertando nos braços outra mulher, a sua legítima cólera de esposa enganada, as censuras, as lágrimas e, por fim, o divórcio... história lamentável, semelhante a tantas outras!
A presença inesperada daquele homem dava vida às coisas perdidas na sombra do passado, animava-as como se estivessem ainda próximas. Em pensamento, identificava-se com a mulher doutros tempos e chegava a esquecer que possuía outro lar e outro marido, que construíra nova vida, e Guy Férias se tornara um estranho. A ferida rasgada no seu orgulho e amor-próprio voltava a sangrar e, o ver o pintor ao lado doutra mulher uma mulher qualquer, supunha ela, que encontrara na véspera e abandonaria no dia seguinte representava para ela nova traição, era mais um agravo a juntar aos outros, uma infâmia sobre as anteriores, uma chicotada, fustigando o seu orgulho de mulher honesta, como um desafio lançado ao seu coração de mãe, exibindo, impudicamente, diante de Cylia, a amante excêntrica, carregada de pintura, rindo alto a fim de evidenciar bem a sua ligação com o pintor conhecido.
A culpa doutro tempo agravava-se com a injúria do presente. A cólera, o rancor e o despeito da condessa reavivavam-se.
Calada, de olhar fixo, lábios apertados, a cada minuto a sua cólera aumentava e os mais contraditórios pensamentos se lhe desencadeavam no cérebro exaltado. Reconhecia, nitidamente, que a sua indignação contra o pai de Cylia nunca fora tão grande como naquele momento e quase se assustava com a intensidade dos sentimentos que lhe subiam do fundo da alma. Em vão repetiu a si mesma que todos os laços entre ela e o primeiro marido, estavam quebrados, que, com o divórcio, perdera o direito de interferir na sua vida, que os dezassete anos decorridos depois da separação os tinham, mais do que todo o resto, transformado em dois indiferentes... Procurava, por todas as formas, recuperar a calma, o indulgente e habitual desdém. Mas as vozes que lhe murmuravam ao ouvido e lhe inspiravam pensamentos de ódio e de vingança eram mais fortes de que a sua vontade.
Tudo, desde a atitude de Guy Férias, amorosamente inclinado para a companheira, até ao riso estridente desta, as próprias flores que o pintor mandara vir para lhe oferecer, tudo era para ela motivo de amargura e de irritação.
Detestava aquele homem!
Depois de ter, naqueles longos anos, feito apelo a sua dignidade de mulher, à razão, ao orgulho, à coragem e até ao dever, para o esquecer, os pensamentos de vingança renasciam de súbito.. Como seria doce vingar-se do pintor frívolo e sedutor que, depois de ter despertado o seu coração de rapariga, a desiludira tão cruelmente!... Vingar-se desse homem, cuja voz acariciadora, naquele momento, murmurava palavras de amor aos ouvidos de outra mulher.
O cérebro exaltado pelo doloroso encontro e, talvez, pela influência da trovoada, trabalhava procurando o meio de saciar a ânsia vingadora.
Nesse instante, o olhar da condessa poisou em Cylia, que, não suspeitando, nem notando a agitação da mãe, brincava maquinalmente com a corrente de oiro, que enrolava nos dedos finos, e, então, o olhar iluminou-se-lhe, numa expressão de cruel prazer.
Um pensamento malfazejo, que nem sequer tentou repelir, tomou vulto no seu espírito.
A vingança ambicionada estava ao seu alcance: castigar o pintor por intermédio da filha, atingi-lo no amor filial, que, a despeito de tudo, lhe pertencia; denegrir a imagem do pai na alminha pura de Cylia... Tal abominação pareceu-lhe uma coisa naturalíssima... Mais do que o desdém da mulher, mais do que o divórcio, o desprezo de Cylia feriria o pintor, vingando a esposa ultrajada. Atrevia-se a exibir-se, publicamente, como cavaleiro andante de mulheres daquela categoria, a fazer alarde da sua vergonhosa leviandade diante da própria filha?... Pois bem, Cylia ia sabê-lo e julgá-lo.
Não pensou que esse procedimento se tornava mais indigno do que a própria presença de Guy Férias, que não podia adivinhar a presença das duas. Não reconhecia que, no seu espírito, o desejo de reconquistar e de guardar só para si a afeição e a estima da filha sobrepujavam a íntima satisfação de se vingar do pai. A sua exaltação era tão grande que não a deixava raciocinar.
Sem a mais pequena hesitação, aproximou-se mais de Cylia e, dando à voz a inflexão grave que as circunstâncias pediam, disse-lhe:
A tua avó disse-me há dias que lhe manifestaras o desejo de conhecer o teu pai. Recusei ou, pelo menos, transferi para mais tarde o meu consentimento. Mas o destino parece ter empenho em me constranger. O homem que desempenhou tão triste papel na minha vida está aqui, é aquele. Já que tinhas tanto empenho em conhecê-lo, olha bem para ele!
A surpresa de Cylia, ao ouvir estas palavras, foi tão grande que vacilou na cadeira e tornou-se pálida como se fosse desmaiar.
Dos lábios trémulos fugiu-lhe uma exclamação que era, ao mesmo tempo, de espanto e de alegria:
O meu pai!... O meu pai está aqui?... Mas a mãe agarrou-lhe no braço e, em voz imperiosa, intimou-lhe silêncio:
Cala-te!... Nada de escândalo!... Bem vês que está aqui muita gente e ele não está sozinho.
Cylia olhou longamente aquele que a senhora de Liancourt acabava de lhe apontar. O coração batia-lhe ’apressado, a garganta contraía-se-lhe como se dedos de ferro a apertassem, e teve de fazer apelo a toda a sua força de vontade para que as lágrimas não lhe saltassem dos olhos.
Era aquele o pai tão ardentemente amado, o pai a quem, havia tanto tempo, desejava conhecer. Sim, era ele, não podia duvidar. Pareciam-se tanto que um estranho adivinharia imediatamente um laço de parentesco muito próximo a uni-los. Finalmente, via-o, conhecia-o... Que felicidade.
Radiante com a presença do pai, não se cansava de o admirar e o rostozinho puro reflectia divina alegria.
Pelo contrário, o semblante da condessa anuviou-se. Não era aquilo o que desejava. Contara com perguntas e com o desapontamento, mas adivinhava agora que ao espírito puro de Cylia não aflorara a sombra de um mau pensamento.
Insistindo na ideia, repetiu:
Como vês, não está só... não poderias falar-lhe agora...
Ansiosa, espreitava o efeito produzido pelas suas palavras.
Cylia como que despertou do êxtase. Mal ouvia o que a mãe dizia... regressava de tão longe! Pouco a pouco, porém, fez reparo na frase, sem, contudo, lhe perceber o sentido e, curiosamente, examinou a mulher que acompanhava o pintor.
O aspecto da loura criatura, de feições grosseiras, que a pintura acentuava, o olhar vivo, a voz aguda, o decote audacioso do vestido, tudo lhe desagradou, sem poder explicar o sentimento quase de repulsa que, desde o primeiro instante, lhe provocava. Pensativa, observava-a com um olhar de espanto e, voltando-se para a mãe, perguntou:
É mulher dele?...
Sem hesitar, embora tendo consciência da má acção que ia cometer, a condessa elucidou:
Mulher?... Que ideia!... Uma ligação passageira, depois de muitas outras e que amanhã será substituída... Uma aventura, em resumo! concluiu com uma risadinha irónica.
Uma aventura! repetiu Cylia, muito corada.
Sem medir bem a significação da palavra, que deixava perceber relações muito íntimas entre o pai e aquela mulher, o seu pudor de rapariga sentiu-se instintivamente ferido.
Dominou-a vaga sensação de mal-estar. Aquela criatura ao lado do pintor representava uma profanação e diminuía o seu ídolo.
Teria preferido não a ver, embora soubesse que existia, ou, vendo-a, não saber quem ela era; e, intimamente, censurou a mãe pela iniciação.
No entanto, nada disse que pudesse deixar adivinhar toda a extensão do desapontamento sofrido e, procurando, por todas as formas, ocultá-lo, recomeçou a brincar com o comprido cordão de oiro, evitando olhar para o casal, cuja atitude expansiva a perturbava e se lhe tornava odiosa.
A senhora de Liancourt, que adivinhava o que lhe ia na alma como se lesse num livro aberto, notou-lhe o constrangimento, a emoção e a repulsa, e leve sorriso de satisfação lhe perpassou pelos lábios.
Conseguira amesquinhar a imagem do pai no espírito da filha; no futuro, sempre que a evocasse, não a poderia separar da silhueta profana.
Mas isso não lhe bastou... Conhecendo como conhecia o temperamento impetuoso do primeiro marido, contava que, de um minuto para o outro, ele esquecesse a correcção que se deve observar em público.
E foi o que aconteceu.
Supondo-se isolado no terraço deserto e não se sabendo observado, Guy Férias aproximou mais a cadeira, passou o braço pelos ombros da companheira, puxou-a para si, aflorando-lhe levemente o pescoço com os lábios.
Que vergonha!... Aquele homem não tem o sentido das conveniências.
Esta exclamação, soltada a meia-voz pela condessa de Liancourt, arrancou Cylia às suas reflexões. Ergueu os olhos e viu a cena pouco recomendável de que o pai era o herói. Uma bofetada não a teria ferido mais do que esse espectáculo atrevido.
Empalideceu... as mãos contraíram-se e, numa expressão de extrema angústia, murmurou:
Diante de mim, não!
O coração parecia estalar-lhe. Gostaria de poder gritar, suplicar ao pintor que pusesse termo à brincadeira, tão cruel para o seu orgulho como para o seu coração de filha... mas, num esforço supremo, conseguiu resistir à violência do impulso.
Mas, no mais fundo da alma desencadeava-se uma tempestade de cólera como até ali nunca sentira e que o sofrimento devia ter despertado... a rapariguinha dócil e meiga revoltou-se por fim.
Notou o sorriso triunfante que adejou nos lábios da condessa e não lhe custou adivinhar o móbil odioso que a tinha guiado.
Aprumando-se numa atitude severa, lívida, com as mãos geladas, fixou a mãe com expressão dura e exclamou fora de si:
A ocasião foi mal escolhida para me fazer conhecer o meu pai... e não lhe agradeço, mãe!... Não devia ter feito uma coisa destas... Mesmo pelo respeito que deve a si própria, foi mal feito!...
Vem dar uma volta pelo jardim, Cylia...
Como queiras...
Levantou-se vagarosamente, com ar indiferente, como alheia a tudo quanto a rodeava e seguiu Odete Chevreuse, que transpusera a porta envidraçada e já se encontrava no terraço.
A senhora de Hulons, que ficara na salinha fresca, seguiu-a com a vista e comentou pensativa:
A Odete cresceu muito... está quase da altura da Cylia.
Sem erguer os olhos dos figurinos que percorria com atenção, a senhora de Liancourt respondeu:
Na família todos são altos... e a própria mãe é de estatura mais do que mediana... mas pouco elegante... muito magra e esguia, pouco proporcionada com a altura...
Mudando de assunto, prosseguiu, interessada:
Voltam a usar-se os casacos curtos e soltos, este Verão... adeus cinturas finas e ancas bem vincadas. Que moda tão feia!...
Não acho!... Conseguem-se vestidos graciosos, nesse género... Simplesmente, nem a todos ficam bem. Por exemplo, para ti, como és franzina e magra, um casaco solto roubava-te toda a elegância... Pelo contrário, a Cylia ficaria deliciosa, assim vestida.
Sim... talvez não lhe ficasse mal.
A propósito da tua filha prosseguiu a senhora de Hulons em tom menos frívolo não tens reparado como está mais magra?... Ainda há pouco estive a olhar para ela e fiquei surpreendida com a diferença... a blusa que lhe estava justa parece agora flutuar-lhe em volta do corpo.
Sempre lhe ficou larga...
Tanto, não... e a saia está-lhe compridíssima...
Talvez as molas do cós não fechem bem...
Não, não é nada disso!... A Cylia emagreceu muito e acho-a diferente nestes últimos tempos... Também não notaste a sua palidez?...
A senhora de Liancourt encolheu os ombros e respondeu despreocupada:
É a crise natural em todas as raparigas!... É a idade da transição e, se estiver doente, julgo que o casamento bastará para a curar. Deve recordar-se de que eu...
Mas a mãe atalhou:
A tua constituição era diferente. Nunca foste tão forte e tão saudável como a Cylia... e é isso que, justamente, me preocupa. As mudanças que noto nela não estão em proporção com as perturbações da transição que há pouco citaste.
A filha franziu a testa.
Os seus receios são infundados e exagerados.
E a tua indiferença inexplicável!... Vives dia a dia com ela e não vês...
A insistência da mãe irritou a condessa, que replicou secamente:
Que quer a mãe que eu faça?... O médico examinou-a por mais de uma vez e não lhe encontrou nada...
Porque o mal não reside onde ele supõe... Enervada, a condessa levantou-se bruscamente:
Voltamos ao assunto!... Já o discutimos durante três horas...
E chegámos a acordo sobre a forma de remediar o mal.
Exactamente.
O mau humor da filha deixava a senhora de Hulons completamente indiferente. Com calma, prosseguiu:
Se concordas, para que esperas?... Combinaste comigo satisfazer-lhe o desejo e mostrar-lhe o pai...
Foi o que fiz respondeu a condessa com serenidade.
A avó de Cylia teve um sobressalto de surpresa.
Ela já viu o pai?...
Viu.
Quando?
Anteontem, em Armenonville.
Em Armenonville?
No Pavilhão... quando aguardávamos o Paulo e o meu irmão.
Cada vez mais admirada, como se procurasse a chave de um mistério, a senhora de Hulons repetiu:
A Cylia já viu o pai!... Voltando-se para a filha, insistiu:
Tens a certeza?...
Se tenho respondeu a condessa, começando a rir Não posso ter a mais pequena dúvida porque fui eu quem lho mostrou.
Nesse caso, ela devia ter ficado satisfeita.
Pois devia...
Retomara o seu lugar e voltara a folhear os figurinos com ar indiferente.
A senhora de Hulons parecia reflectir. A meia voz, murmurou:
É espantoso!... Fazia tanto empenho em o conhecer, afirmando que isso constituiria a sua maior alegria... e ficou mais triste!
A Cylia não sabe o que quer... ou antes, talvez queira tornar-se interessante.
A mãe abanou tristemente a cabeça.
A Cylia não é daquelas que procura chamar sobre si as atenções... Há qualquer outra coisa!... Mas, visto que estavas com ela, deves ter notado as suas reacções... Que disse quando o viu?...
Nada.
Nada?...
Absolutamente nada... Mostrou-se apenas desapontada, como se tivesse construído castelos no ar!... Não sei que fantasias imaginou... supôs encontrar um deus e só viu um homem!... Uma decepção sem importância.
E ria, despreocupada.
Pelo contrário, se houve decepção, tem muita importância... mas não a percebo... Guy Férias é um homem perfeito, elegante, de porte distinto...
A condessa limitou-se a fazer um gesto de desdenhoso protesto.
Não negues. Deves fazer-lhe justiça. É um homem de sociedade, em toda a acepção do termo... qualquer rapariga pode ter orgulho em chamar-lhe pai... Portanto, não consigo perceber a decepção da minha neta, repito. Hei-de interrogá-la...
Como se de repente lhe ocorresse uma ideia, disse para a filha:
A propósito... no fim da semana vou para a Abadia.
Tão cedo... porque vai já?...
Está muito calor em Paris. O Verão antecipou-se, pelo menos, três semanas e eu não estou disposta a esperar por Agosto para sair de cá... O calor mata-me.
O conde não pensa deixar Paris antes do mês que vem.
Isso não importa. Vão quando quiserem... A casa será menos alegre sem vocês, mas as pessoas da minha idade não se preocupam com isso... De resto, tenciono levar a Cylia comigo. Serve-me de companhia, e a mudança de ares deve fazer-lhe bem. Salvo se não lhes agradar.
Por mim, não me importo. Estou perfeitamente descansada quando a sei a seu lado... Quanto ao conde, estou certa de que não recusará... Além disso, julgo que tem razão... Paris não lhe convém, por agora. O campo, o ar puro e leite fresco valem mais do que todos os remédios que o doutor Boston lhe possa receitar. Voltará mais gorda e com boas cores.
A chegada do criado, que lhe apresentou a salva de prata com um cartão de visita, interrompeu a conversa.
Chegou a senhora de Chevreuse... vou recebê-la.
Ao sair da sala ordenou para o criado:
Vá prevenir as meninas, que estão no jardim.
É escusado atalhou a senhora de Hulons Naturalmente, ouviram a sineta do portão e vêm aí.
Dirigindo-se às duas raparigas que subiam a escada do terraço, gritou-lhes alegremente:
Venham depressa, pequenas. Tenho excelentes novidades a dar-lhes.
Quando elas se aproximaram, revelou em tom misterioso:
Parto no sábado para a Abadia. Já fiz as malas.
Cylia abanou a cabeça com tristeza.
É a isso que chama uma excelente novidade, avòzinha? Tantas semanas sem a ver...
A avó sorriu com ar alegre e declarou:
Enganas-te!... Vais comigo. Cylia quase pulou de alegria.
Fala sério?... Já falou à mãe?... Ela consente?...
Já combinámos tudo e ficou decidido que te levo.
Como estou contente!
Coube a vez a Odete de ficar amuada.
Bonito!... Esqueceram-se de mim... Vou ficar um mês sem a Cylia.
Salvo se a senhora sua mãe quiser passar alguns dias na Abadia,... É o que vou imediatamente propor-lhe.
Que boa ideia!
É muito amável, avòzinha!
Visto que estamos de acordo, juntemo-nos e vamos atacar a senhora de Chevreuse!...
Risonha e satisfeita, arrastou as duas raparigas para casa.
Sentada à sombra de um salgueiro, junto do lago em miniatura, de margens irregulares, que embelezava um recanto do parque da Abadia, Cylia, de olhos cerrados, revivia uma cena dolorosa.
Uma voz alegre arrancou-a à semi-inconsciência em que mergulhara.
Dize lá, minha linda e melancólica neta. Lamentas teres vindo enterrar-te com a velha avó?...
O rosto sorridente e bondoso da senhora de Hulons inclinava-se para a neta com meiga solicitude.
A avó bem sabe que prefiro o campo à cidade... e junto de si parece-me mil vezes mais belo... adoro-o!
Sendo assim, não me deixes tanta vez sozinha... Isolas-te, e eu, quando te afastas, aborreço-me e fico inquieta...
O sorriso carinhoso atenuava a censura expressa nas palavras. Com brandura, prosseguiu:
Tem paciência, mas eu sou como as crianças. Para estar contente e feliz é preciso que a minha Cylia me encha de mimos e esteja o mais possível junto de mim.
Com certa dificuldade, sentou-se na erva, ao lado da neta, e examinou-a com interesse.
Então como te sentes?... Acho que tens melhor parecer nestes últimos dias.
Tem razão... sinto-me reviver nestes lindos campos que o sol inunda de luz... O silêncio e o perfume penetrante dos fenos cortados embriagam-me e entorpecem-me... Há dias em que desejaria viver aqui sempre... toda a vida a seu lado... longe de todo o bulício e do constrangimento da cidade... ficar neste cantinho onde se pode chorar e rir sem termos de explicar o sentimento íntimo que provoca a nossa alegria ou as nossas lágrimas.
Calou-se, talvez arrependida por ter falado tanto e também porque, subitamente, o espírito como que se evadiu do cenário tranquilo para evocar a atmosfera ruidosa de Paris que a condessa de Liancourt tanto apreciava.
Maquinalmente, arrancou um punhado de erva e com os dedos finos acariciava a macia cabeleira verde.
Não fazer coisa alguma continuou deixarmo-nos viver sem pensar, sem tomar qualquer iniciativa, numa inacção completa do corpo e do espírito... como seria agradável!
O semblante da avó ensombrou-se. De soslaio observou a neta, notou-lhe as profundas olheiras, e o coração sobressaltou-se-lhe.
Como pudera iludir-se com o tom rosado das faces, devido mais ao queimado do sol do que a uma melhoria de saúde?...
Suspirou profundamente porque pressentiu inquietações, horas de insónia, durante as quais o pensamento inquieto e o coração palpitariam de ansiedade por causa dos entes queridos.
Entregas-te demasiado a meditações improfícuas, Cylia. Gostaria de ver-te ocupada com coisas materiais... Pinta, toca, borda, anda a cavalo, faz o que quiseres, mas não te deixes arrastar por inúteis devaneios, suplico-te. Acabarás por adoecer de verdade.
Sem entusiasmo, a neta concordou:
Se faz muito empenho nisso, avó, procurarei trabalhar... embora não me apeteça... Mas, para lhe fazer a vontade, experimentarei.
Mais comovida do que desejaria, a senhora de Hulons beijou-a com ternura.
Exactamente. Trabalha e reage, expulsa essas detestáveis borboletas negras que te entristecem tanto.
Tentarei prometeu Cylia, com o olhar perdido no espaço.
Calaram-se ambas com o cérebro povoado por pensamentos demasiado dolorosos para poderem falar. Com olhar distraído seguiam as evoluções dos cisnes, que mergulhavam a cabecita na água, procurando algum verme invisível.
O ar vibrava com o zumbido dos insectos, a aragem era tépida, quase quente. Nos arbustos, as flores exalavam agradáveis perfumes, intensificados pelo sol de fogo.
O lago cintilava como salpicado de palhetas de oiro.
Em volta delas tudo era suavidade e alegria, mas, apesar disso, tanto a avó como a neta pareciam contemplar melancólica paisagem.
A senhora de Hulons foi a primeira a quebrar o silêncio.
Recebi a resposta de Villaines ao convite que lhe fiz... aceita e virá para a semana.
Leve rubor tingiu as faces de Cylia ao ouvir o nome do advogado. Para ocultar o seu embaraço, fingiu observar com atenção as pequenas cabanas de palha onde os cisnes se recolhiam para passar a noite.
A mãe acompanha-o?...
Não... o filho pede-me que a desculpe... mas a senhora de Villaines foi tratar de um tio que está muito doente e, provavelmente, não volta antes do Inverno.
Tenho pena declarou Cylia Gostaria de a conhecer... Se Villaines vem para a semana, deve encontrar-se com a Odete, que chega na segunda-feira.
Chegarão aqui ao mesmo tempo.
Ainda bem.
Os Saint-Rémy, os Montbois e Varanger também serão nossos hóspedes durante o mês de Julho... Desta forma, teremos agradável companhia e poderemos aguardar a chegada dos teus pais, sem grande monotonia. Depois, receberemos uma série ininterrupta de amigos. Não quero que a minha Cylia se aborreça na Abadia.
Com um trejeito de indiferença, a neta respondeu:
Bem sabe que detesto a sociedade e não me importaria de viver aqui isolada, recebendo de tempos a tempos a visita de raros amigos.
Quem são os felizes privilegiados?... perguntou a avó com um sorriso.
Cylia pensou durante algum tempo e acabou por confessar com ar travesso:
Não sei dizer-lho, ao certo... Mesmo, acho mais caridoso não os mencionar, por causa daqueles, muito mais numerosos, que teria de omitir.
A senhora de Hulons sorriu do gracejo.
Bonito! Desconfio que, se deixasse os convites à tua conta, não receberíamos ninguém este ano.
Não digo isso!... Viriam alguns convidados, mas muito poucos.
E, com grande contentamento da avó, começou a rir com gosto.
Vendo-a tão bem disposta, decidiu abordar o assunto que a intrigava, desde a conversa com a condessa de Liancourt.
Diz-me uma coisa, Cylia... tu já viste o teu pai!... Porque não mo revelaste?...
Cylia não fez um movimento, não mudou de atitude. Dir-se-ia que já contava com a pergunta ou que o seu espírito, completamente absorvido pela ideia fixa, apesar das aparências, não exigia qualquer esforço para abordar o assunto em que não deixara de pensar.
Sem desviar a vista do lago banhado pelo sol, respondeu:
Não lhe disse nada porque não valia a pena... Mas quem a pôs ao corrente do facto?...
A tua mãe.
Foi ela...
Havia mais tristeza do que surpresa nesta exclamação. Mesmo assim admirava-se de que a mãe tivesse sido a primeira a referir-se ao encontro no Pavilhão de Armenonville.
O seu carácter recto sofria com a inconsciência materna e, intimamente, não podia deixar de censurá-la, sentindo-se, ao mesmo tempo, ferida no seu respeito filial.
A senhora de Hulons explicou:
A tua mãe disse-me que o acaso as pôs em presença do teu pai e ela to mostrou... Foi assim?...
Exactamente.
Nesse caso, viste o teu pai?
Vi.
E então?...
Então... nada.
O laconismo da resposta acicatou a curiosidade da avó. Adivinhou que, sob a indiferença e reserva das palavras, se ocultava profundo pesar e insistiu:
Dize-me qualquer coisa... ficaste contente?...
Fiquei.
Ninguém o dirá!... Falas com tanta frieza... Depois do que me disseste há dias, contava com mais entusiasmo.
Pode crer que estou encantada, avó.
A voz calma, resignada, quase sem inflexões, tornava-se dolorosa de ouvir. A senhora de Hulons pressentia que ela se quebraria num soluço se a neta tentasse variar de tom.
Voltando-se para Cylia, pegou-lhe nas duas mãos e obrigou-a a olhar de frente para ela.
O que houve, Cylia?... Quero saber... A tua mãe disse-me que, ao veres o teu pai, te mostraras desapontada...
Também lhe contou isso?...
Franziu a testa a ponto de unir as sobrancelhas.
Contou... porque não o faria?... Mas eu não consigo perceber o motivo da tua decepção. Que tinhas tu imaginado?...
Nada...
A solicitude da avó, querendo saber tudo, irritava-a ao máximo. Num gesto de inconsciente nervosismo, libertou-se dos dedos que lhe aprisionavam as mãos.
A avó teimou:
Estranho a tua atitude, os teus modos... Andas mais triste do que antes de satisfazeres o desejo que, segundo dizias, te daria tanta alegria!... De princípio, notei que já não choravas e fiquei satisfeita... Mas desde que vivemos juntas, convenci-me de que a tua aparente serenidade é mais dolorosa do que as lágrimas... Portanto, fosse o que fosse, há uma coisa de que tenho a certeza... O facto de conheceres o teu pai não te causou o prazer com que contavas.
Nos lindos olhos verdes passou uma vaga de desespero, as feições contraíram-se e, para que o olhar clarividente da avó não descobrisse toda a sua amargura, voltou a cabeça. Sem convicção, declarou:
A avó engana-se... fiquei muito contente.
Estás a enganar-me!.. Sofres e eu quero saber porquê!
Muito comovida, passou-lhe o braço pela cintura e puxou-a para si, mas, de novo, Cylia se lhe escapou.
A cena do Pavilhão de Armenonville, que tanto a chocara, desenrolou-se-lhe diante dos olhos com tal nitidez que supôs revivê-la e foi como se um ferro em brasa tocasse uma ferida ainda sangrando.
Num brado angustioso, protestou:
Não insista, avó!... Não vê que me tortura?... Não compreende que não quero, que não posso dizer nada?...
Com as mãos parecia querer afastar o espectro importuno de novas perguntas.
Deixe-me avó, deixe-me! pediu em voz trémula Há certas dores de que nos envergonhamos, que não devemos confessar, porque já é uma tortura sermos obrigados a pensar que existem. Se me ama, se me ama por mim e não por si, não torne a referir-se diante de mim ao que sabe ou mesmo ao que pode adivinhar.
Não compreendo, Cylia!... Pelo menos, explica-me...
Suplico-lhe, avó!...
Se a tua mãe tivesse sido mais explícita, eu adivinharia, sem custo, a origem do teu pesar.
Mas ela não soube dizer-me coisa alguma porque tu nada lhe disseste...
Pois então, avó, não insista. Deixe-me esquecer, se for possível!
Esquecer?... Esquecer o quê?murmurou a avó, completamente desorientada.
A súplica de Cylia fora tão pungente que a senhora de Hulons não sabia se, para bem da neta, devia insistir nas perguntas ou evitá-las. Hesitante, explicou como desculpa:
Se insisti, Cylia, foi por supor que poderia auxiliar-te mais uma vez com os meus conselhos e com a minha boa vontade. Sou velha e a experiência revelou-me que não há mal sem remédio.
Cylia abanou a cabeça.
Há, sim replicou em tom quase indistinto A morte é um deles...
A avó teve um sobressalto.
Daqueles que estimas, ninguém morreu, suponho protestou instintivamente.
Na verdadeira acepção da palavra, não! Mas, para mim, morreu murmurou Cylia involuntariamente e sem reparar que, depois de ter lutado para ocultar o segredo, acabava de se trair sem dar por isso.
Referes-te ao teu pai? murmurou a senhora de Hulons em tom doloroso, voltando para a neta o semblante cavado numa expressão angustiosa.
Cylia não lhe respondeu, mas soltou uma espécie de gemido e ocultou o rosto nas mãos a fim de não deixar ver as lágrimas que lhe inundavam as faces.
”Meu pai!” pensava, recordando quantas miragens e quantas desilusões encerrava, para ela, essa palavra.
Nome radioso que, durante algumas semanas, lhe fizera palpitar de esperança o coração juvenil.
O pai!... Luz que surgia no horizonte como alvorada de uma vida nova, mas que arrastara consigo a desilusão, encarnada na mulher loira que vira ao lado dele... A recordação dessa mulher denegria a imagem querida.
E na alminha ulcerada perpassava a desoladora certeza de uma paternidade inconfessável!
Sem proferir palavra, a senhora de Hulons, com ar pensativo, tentava adivinhar o mistério do inexplicável desgosto.
É para desesperar uma pessoa! comentava com tristeza Vejo que sofres e sei que foi o teu pai a origem desse desgosto. Mas porquê... Não lhe falaste... viste-o de longe!... Deve existir em tudo isto um terrível mal-entendido. Que poderia ter dito a tua mãe ou ter feito o teu pai, para te magoar dessa maneira?...
Cylia, trémula, com o lindo semblante vincado numa expressão de infinito sofrimento, protestou:
Nunca mais me fale nesse homem, avó! Dir-se-ia que, ao falar em Guy Férias, se recusava a dar-lhe o nome de pai. O facto impressionou a avó.
Esse homem... esse homem! repetiu, espantada Mas esse homem é teu pai, minha filha!
Legalmente é, não o ignoro!... Mas é uma coisa que desejo esquecer.
Foste tu quem desejou conhecê-lo...
Não sabia... estava iludida!
Voltou a esconder o rosto nas mãos finas, como se quisesse evitar que o olhar perspicaz da avó descobrisse, por ele, toda a extensão do mal.
Vamos, minha pobre Cylia, não chores assim... Se soubesses como tudo nesta vida acaba por ter solução...
Não sabendo onde residia o mal nem as palavras que devia empregar para o suavizar, limitou-se a consolar a neta em termos vagos. Mas apertava-a nos braços e embalava-a como se embala uma criança.
Cylia abandonava-se a essa ternura maternal, pensando, desesperada e sem forças para lutar, que seria infinitamente agradável adormecer aninhada contra o peito afectuoso e morrer sem mais complicações.
”O pai que eu adorava e erguera tão alto na minha estima, morreu! pensava, numa ideia fixa Morreu e foi substituído por outro.. Em volta de mim tudo se quebrou e vejo só destroços... a minha própria mãe... É horrível!”
Este lamento silencioso morreu afogado em pranto.
Era a primeira vez que chorava desde o incidente do Pavilhão Armenonville. Por orgulho ou por excesso de dor, vivera aqueles dias como entorpecida e inconsciente.
O coração e o espírito tinham erguido muito alto as suas aspirações filiais, mas o lindo edifício ruira perante a desoladora realidade. E, sem consolação possível, chorava perdidamente, prostrada, como um pobre animal ferido, que se estende na erva para morrer.
Desamparada, comovida até ao mais íntimo da alma, a senhora de Hulons assistia ao desespero da neta, sem saber como minorá-lo. As lágrimas saltaram-lhe dos olhos e correram pelas faces enrugadas.
Minha filha.. meu pobre amor, era
tudo quanto sabia dizer.
Sem insistir nas perguntas nem tentar suavizar esse desgosto misterioso com palavras que não significavam coisa alguma, limitou-se a apertá-la nos braços, encostando a face pálida à cabecita que lhe repousava contra o peito. Silenciosamente, as lágrimas das duas confundiram-se, tornando menos amarga a dor de Cylia.
Está a ver o castelo, menina Cylia?... Tem um aspecto tristonho não acha?...
Cylia voltou-se para a pessoa que se lhe dirigia com tanta familiaridade. Era o jardineiro da Abadia.
Reconhecendo-o, sorriu.
Gosto das moradias antigas, tio Ancry. Penso que têm alma e que choram ao recordar os dias passados. Aquele castelo tem o aspecto triste e silencioso das coisas que o rodeiam. Está perdido no meio do arvoredo...
O homenzinho aprovou com um movimento de cabeça.
Sim, se as paredes tivessem boca como dizem que têm ouvidos, por certo reconheceriam que não foram os gritos de alegria nem o ruído das festas que lhes abalaram a solidez.
E começou a rir, satisfeito com o gracejo.
Cylia contemplou mais uma vez os torreões escuros e ameados, que dominavam o vale com ar ameaçador.
Após demorado exame, perguntou:
Não está habitado, pois não?
Creio que não... Pode dizer-se que está completamente abandonado. Nem sombra de vivos! E se lá habitam fantasmas... não costumam fazer barulho!
Não tem um guarda?
Lá isso, tem. É o tio Arsénio... um velho resmungão que vive ali como um mocho na sua toca.
Um antigo criado, talvez?...
Muito antigo, com efeito. Há quantos anos serve aquela casa! Mas é desconfiado ou talvez imagine que o castelo está forrado de oiro e que todos são ladrões!
O castelo é tão grande!... É natural que, vivendo ali, sòzinho, o pobre homem tenha medo!
Não é isso, menina. Ele é que tem um feitio de selvagem e esquisito. Não vai a casa de ninguém... Se não fosse daquela idade, a sua maneira de viver já teria provocado ditinhos e comentários.
Enquanto falava, pegou na enxada e recomeçou a tarefa por instantes interrompida. A terra fresca esboroava-se em volta do buraco que abria para arrancar um loureiro seco e punha uma mancha escura no tom fresco da relva.
Cylia aproveitou a ocasião para se afastar. Caminhava devagar, como se desse um passeio ao acaso; mas quando alcançou a espessura do arvoredo e teve a certeza de que não podiam vê-la da Abadia, apressou o passo e tomou direcção definida.
O sol matinal penetrava através da folhagem ainda húmida do orvalho e, afagadas pelos raios doirados, as árvores cintilavam como se estivessem salpicadas de pedras preciosas. Nos valados e mesmo no meio dos atalhos, a água depositara, formando pequenas poças lamacentas, que Cylia evitava com cuidado, temendo que, no regresso, os sapatos sujos deixassem adivinhar o verdadeiro destino do passeio.
Quando transpôs a sebe que limitava o parque do castelo, parou um pouco, intimidada com a distância a que ficava o alvo que procurava atingir. A hesitação, porém, pouco durou e logo recomeçou a caminhar com o seu passo leve e ritmado de parisiense, mais habituado ao asfalto das avenidas do que às pedras dos atalhos campesinos.
Desceu a encosta quase a correr, escolhendo de preferência as veredas apertadas onde havia menos probabilidades de encontrar alguém. Depois, um pouco esbaforida, começou a subir o talude oposto. Ao longe, avistou a mancha sombria dos pinheiros, destacando-se no fundo mais claro e brilhante dos carvalhos e castanheiros que cobriam a encosta.
”Mare Bleu deve ficar para estes lados” pensou.
Lamentou não encontrar alguém que pudesse informá-la, porque não queria cansar-se inutilmente e a subida começava a fatigá-la.
Obliquou para o lado onde avistara a massa do arvoredo, pois tinha quase a certeza de que os torreões do castelo se elevavam perto.
Todavia, à medida que se aproximava, a emoção que a dominava ao avizinhar-se do fim obrigou-a a abrandar o passo. Não se arrependia pelo facto em si, mas simplesmente por ter tentado essa excursão sem avisar a avó, tão boa e tão indulgente.
Desde que lhe fora revelado o segredo do seu nascimento e a existência do verdadeiro pai, andava com a cabeça transtornada e chegava a ignorar onde estava o bem ou o mal.
Admirava-se por não ter tido confiança na excelente senhora e reconhecia ter cometido censurável acção. Daí a impressão desagradável que sentia ao aproximar-se do fim.
De súbito, viu à esquerda o muro de pedra escura e, mais além, os telhados esguios dos torreões que se erguiam orgulhosamente para o céu. O coração alvoroçou-se e palpitou com força, ao pensar que estava diante dos muros que limitavam o parque de Mare Bleu, o velho castelo silencioso e triste que os pais tinham habitado e onde ela nascera.
Com efeito, andados alguns passos, no ponto onde o atalho entroncava com a estrada principal, encontrou-se diante do portão de ferro forjado, entrada principal do grande parque deserto.
Parou emocionada, com as fontes latejantes. Chegara à misteriosa mansão, ia ver de perto o velho solar dos seus antepassados, de quem ela era, talvez, a última descendente.
Havia muito que desejava fazer aquela visita e, desde que chegara à Abadia, esse desejo transformara-se em verdadeira obsessão.
Visto que o contacto com as pessoas amadas apenas lhe causava pesares, lágrimas e lhe deixara tristes reminiscências, iria procurar nas coisas inanimadas, mas que o seu coração sedento de ternura adoptara, o conforto, um ambiente que, de futuro, pudesse recordar sem sofrer.
Sorria, criando uma fantasia ingénua, convencendo-se de que as velhas paredes erguidas havia tantos séculos, as árvores centenárias e tudo quanto constituíra o cenário do seu nascimento, ao vê-la vibrariam numa palpitação de alegria e festejariam a sua presença como a do filho pródigo ao regressar ao lar paterno.
Influenciada por este pensamento, alheia a qualquer outra impressão, sem hesitar tocou a sineta que pendia do pequeno portão, que, em toda a evidência, dava entrada para uma casita construída em estilo normando, de tijolos vermelhos e madeira, que devia ser a habitação do guarda.
O som da pesada sineta de bronze repercutiu-se longamente, com a lentidão de um suspiro de agonia.
Cylia aguardou sem impaciência, até que um passo pesado fez estalar a areia, indicando a aproximação de alguém.
O postigo abriu-se vagarosamente e a medo indício de desconfiança pela insólita visita uma bela cabeça de velho apareceu, espreitando pelo rectângulo gradeado.
Cylia ia pedir para visitar o castelo, quando, sem mesmo ter tempo de dizer o nome, o homem abriu o portão de par em par e, de chapéu na mão, afastou-se para o lado para a deixar entrar.
Cylia examinou-o com interesse. Nesse velho magro, alto, com os ombros ligeiramente curvados, cabelos brancos e compridos, adivinhou o tio Arsénio, o guarda a quem o jardineiro da Abadia se referira pouco antes.
Sorriu-lhe com amabilidade.
Passei por aqui... e lembrei-me de visitar o parque de Mare Bleu, que dizem ser maravilhoso.
O guarda fixava-a com olhar penetrante, como se a estudasse.
Algo constrangida com a intensidade desse olhar e com a atitude grave do velho criado, Cylia explicou:
Disseram-me também que o castelo não estava habitado... O seu aspecto imponente, lembrando as fortalezas dos tempos antigos, encantou-me... e como adoro as velhas moradias... toquei e gostaria de visitá-lo... se é permitido o acesso a estranhos.
Não, não tenho ordem para mostrar o castelo, mas consigo é diferente, menina respondeu gravemente o velho guarda Pode entrar, o tio Arsénio dá-lhe as boas-vindas.
E, inclinando-se, convidou-a a entrar.
Cylia corou. Pelas palavras do guarda compreendeu que ele a conhecera e sabia porque viera ali.
Um tanto constrangida, subiu a larga alameda sombreada por árvores centenárias, cujas ramadas, unindo-se, formavam abóbadas e davam ao ambiente uma tonalidade branda, apesar do sol brilhar em todo o seu esplendor.
À medida que se aproximava do castelo, ia aumentando o receio de que não estivesse desabitado, como lhe tinham afirmado. O guarda não tinha respondido à pergunta que, à entrada, lhe fizera. E se, de um momento para o outro, visse aparecer o vulto alto e elegante que, no dia da trovoada, em Armenonville, lhe deixara tão dolorosa recordação, que atitude deveria tomar?...
A ansiedade despertada por semelhante perspectiva não a deixou apreciar como devia o grandioso esplendor da alameda de cerca de vinte metros de largura e que, na extensão de duzentos metros, se desdobrava sob as frondosas ramadas dos carvalhos seculares e imponentes, que pareciam desafiar o tempo e o espaço e ao lado dos quais ela não passava de insignificante pigmeu.
Os homens modernos podem construir palácios, arranha-céus, lançar sobre os rios as pontes mais altas e ousadas, mas nunca conseguirão alcançar, de um dia para o outro, a maravilhosa alameda que Cylia percorria. Podem plantar árvores, mas nem todo o oiro do Mundo, a força ou o génio conseguirão fazê-las crescer; só o tempo, o decorrer dos séculos podem transformar delgados troncos em majestosos gigantes.
Diante do castelo, Cylia parou.
Está desabitado? insistiu.
Está, sim, menina.
Hesitou, mas, logo em seguida, informou:
O senhor nunca vem nesta época... Se quiser ter a bondade de esperar um bocadinho, vou dar a volta para abrir a porta principal.
Cylia deteve-o com um gesto.
Não vale a pena!... Eu vim só para visitar o parque... unicamente o parque...
E voltou as costas à imponente fachada de pedra escura, datando do século XV, e que merecia mais do que o rápido exame que Cylia lhe concedera quando subira a alameda principal.
Este movimento de recuo tinha uma causa. Ao chegar diante do castelo silencioso, caiu em si e reconheceu que, se a sua visita se tornasse conhecida, lhe poderiam dar significação muito diferente da que, de facto, tinha. O pai poderia supor uma tentativa de aproximação; a mãe considerá-la-ia como uma censura muda à sua atitude... ou, pelo menos, uma falta de respeito... O conde de Liancourt poderia pensar que Cylia o renegava publicamente... e os estranhos o que diriam?... A sociedade é má e está sempre pronta a regozijar-se com os dissabores que atingem os outros!... Quanto à avó, tão boa, tão confiante, como seria censurada pela sua pouca vigilância, pela demasiada condescendência com que tratava a neta e que lhe dera ensejo para tão grande disparate.
Todas estas coisas que até ali lhe não tinham ocorrido ao pensamento, movida apenas pelo desejo de saber tudo quanto pudesse da família do pai, surgiram de súbito ao encontrar-se diante da entrada do grande castelo adormecido.
Com as paredes sombrias, as janelas fechadas, torres imponentes, o aspecto pesado da moradia não era convidativo.
Cylia, ao encará-lo, teve a sensação de que o ambiente lhe era hostil e que ali não passava de uma estranha. Todo o seu entusiasmo morreu e, desaparecendo todo o interesse emotivo, não quis visitar os vastos e históricos aposentos, simplesmente por curiosidade, como qualquer turista estrangeiro, que toma como obrigação visitar todos os castelos antigos, encontrados durante a viagem.
Só me interessa o parque repetiu. Com afectada indiferença, acrescentou:
Não gosto de visitar casas antigas... Sofre-se, quase sempre, uma decepção! Fantasiamo-las povoadas por espectros e génios fantásticos, formamos ideias estranhas sobre o aspecto das salas imensas, das escadarias, dos sótãos poeirentos, dos subterrâneos com as inevitáveis masmorras e, por fim, é tudo muito diferente do que imaginámos!... As salas são iluminadas a electricidade e têm aquecimento central, em todos os andares há água encanada, no sótão instalaram salas de bilhar ou estúdios, os subterrâneos estão transformados em adegas bem fornecidas! As próprias escadarias perderam o misterioso encanto e achamo-las fatigantes, custosas de subir... quase admitimos a instalação de um elevador concluiu, rindo.
Engana-se, minha menina! protestou o velho criado, que tomava as palavras de Cylia quase como um sacrilégio O senhor de Maré Bleu adora o castelo tal como está e...
Mas ela não o deixou continuar porque não queria ouvir o nome do pai ou ser obrigada a referir-se a ele.
Eu prefiro o ar livre, o arvoredo e a verdura declarou, peremptória Um ribeirito que serpenteia por entre a erva, um fiozito cristalino, um passarito, cantando empoleirado num ramo, uma nuvem leve, correndo por cima das árvores... tudo isso vale mil vezes mais do que os castelos pesados e sombrios. E, ainda há pouco, ao avistar este parque majestoso, fui impelida pelo desejo de me perder pelos seus caminhos, de respirar o ar puro, de encantar os olhos com os seus aspectos maravilhosos. Adoro a natureza em todas as suas manifestações magníficas.
O velhote abanou a cabeça, seguindo-a, desapontado e triste com a rápida e superficial visita.
”Não vê, não repara em coisa alguma pensava Não pára um instante, olha para tudo com indiferença, como se este castelo não fosse dela depois da morte do senhor!... A mocidade de hoje não sabe sentir... Vai andando, quase a correr, para fazer desporto, como costumam dizer... E chama ela a isto adorar a natureza!”
Pobre tio Arsénio!... Formava o seu critério apenas pelas aparências, sem poder adivinhar que a petulância de Cylia não passava de uma máscara para ocultar a profunda emoção que a dominava...
A visita terminara e fora, por assim dizer, feita a toque de caixa. Junto do portão, prestes a sair, parou.
Fiquei radiante por ter visitado este lindo parque, sr. Arsénio! Agradeço-lhe o ter-me proporcionado conhecer este cantinho do Paraíso.
Ao mesmo tempo metia-lhe uma nota na mão. O guarda protestou:
A menina não vai pagar-me por a ter deixado visitar Mare Bleu! Pode cá vir sempre que deseje.
Obrigada agradeceu Cylia mais uma vez Vou encantada, pode acreditar.
E afastou-se, acompanhada pelos agradecimentos e saudações do guarda, que, depois dela ter saído, fechou, cuidadosamente, o portão.
”Que visita tão singular! pensava ele Uma verdadeira rapariga moderna... a mocidade de hoje não é dada a sentimentalismos... mas, mesmo assim, a menina Cylia é muito bonita, na verdade!...”
Enquanto calculou que o guarda pudesse vê-la, Cylia manteve a atitude desembaraçada e o passo rápido, o mesmo com que percorrera todo o parque, mas quando teve a certeza de não ser vista andou mais devagar e, por fim, parou.
Ao mesmo tempo, livre de todo o constrangimento, desabafou toda a sua emoção num único brado:
Meu Deus... meu Deus!
E os soluços sufocaram-na.
O imponente e silencioso castelo, o parque majestoso, o lago banhado pelo sol, cuja superfície brilhante era sulcada pelas evoluções harmoniosas dos cisnes, a alameda secular, que percorrera à entrada e à saída, tudo isso tomava, de repente, a seus olhos, um aspecto de trágica grandeza.
Como o velho guarda de Mare Bleu se enganara ao supor que a visita obedecera a simples capricho e que, no fundo, Cylia pouca importância dera à moradia ancestral!... Pelo contrário, com uma acuidade, duplicada pela emoção que se lhe impunha ocultar, a tudo prestara a maior atenção e não houve um pormenor que lhe escapasse...
E agora, com o coração ulcerado pela vida, aquela filha de dois pais estabelecia a comparação entre o seu destino e o do castelo adormecido...
Somos ambos ricos... ricos de amor, de sublimes visões, de bens materiais, mas estamos sós... ele e eu... sós e abandonados!
Visto não ter acompanhado os seus amigos, permite-me que lhe faça um bocadinho de companhia?...
Cylia voltou-se admirada ao ver o advogado quando supunha que tivesse saído com os outros convidados.
Então não foi passear, Villaines?... perguntou com alegre surpresa.
Não. Preferi ficar e muito feliz serei se puder conversar um bocadinho consigo... à vontade... como dois amiguinhos de infância!
Ao mesmo tempo, a expressão ardente dos belos olhos negros que a fixavam, perturbou Cylia sem que ela pudesse explicar porquê.
O meu pedido será inconveniente ou posso esperar que lhe cause prazer ou, pelo menos, não lhe desagrade?...
Desagradar-me, porquê? balbuciou Cylia, muito atrapalhada Pelo contrário...
No entanto, não podia deixar de sentir certa apreensão pela conversa a sós que o advogado procurava ter com ela.
Villaines poisou as luvas e o kodak na mesa de rotin e aproximou uma cadeira do rocking-chair onde Cylia se instalara antes da sua chegada.
Visto estar autorizado a fazer-lhe companhia, instalemo-nos e conversemos como dois velhos amigos,.. Permite-me a ousadia de lhe fazer certas perguntas e de lhe pedir que me responda?
Cylia olhou-o com espanto, ao mesmo tempo que o coração lhe batia com força.
Perguntas... a mim?...
Tranquilize-se... são perguntas simples e, se lhe desagradarem, diga-mo e eu prometo-lhe que as suspenderei... Está combinado?...
All right concordou ela, ainda um tanto desconfiada Estou pronta a ouvi-lo.
O advogado conservou-se calado durante alguns instantes e, por fim, começou com voz grave:
Nestes últimos meses acho-a diferente, Cylia... tem mudado muito... Onde está a rapariguinha alegre e travessa que, ainda na Primavera passada, corria, despreocupada e feliz, pelas alamedas do parque?
Cylia esboçou um sorriso triste.
Acha-me tão mudada como diz?...
Muito... já não encontro em si a minha amiguinha doutros tempos.
Envelheci, Villaines... As preocupações chegam com os anos, sem que nos apercebamos que caminham de mãos dadas e passam a acompanhar-nos para toda a parte, seja para onde for.
O advogado abanou a cabeça com incredulidade.
Não posso admitir que uma cabecita de vinte anos seja ensombrada por graves preocupações... principalmente, quando se tem pais ricos e se está livre de cuidados materiais...
Sim, a situação dos meus pais, com efeito, é de molde a libertar-me de todas as inquietações pelo futuro concordou Cylia com leve sorriso.
Nesse caso...
Nesse caso, você exagerou, e eu não estou tão mudada como disse.
Não, não exagerei teimou o advogado A sua avó já o notou também e ainda esta manhã me confessava quanto estava preocupada consigo... porque atribui a mudança a uma causa física.
A avó assusta-se sem motivo protestou Cylia com vivacidade Não sei como dizer-lhe que não estou doente... Estou farta de lho repetir, mas ela não se convence e não sabe o que mais inventar para me amimar.
Villaines sorriu, por forma alguma convencido.
Digamos antes que a sua avó se enganou sobre a origem do mal, mas não sobre a existência do mesmo... O meu interesse por si impede-me que incorra no mesmo erro... conheço-a bem, minha amiguinha querida, e há muitos dias que a observo... A sua doença não é física... sinto que a consome profundo pesar, minha querida Cylia... Adivinhei?...
Talvez... confirmou ela.
E como esse pesar continuou Villaines não se reflecte no semblante de qualquer das pessoas que vive consigo, concluí que é puramente pessoal e a Cylia foi a única atingida por ele... salvo se alguma das suas amigas...
Não... ninguém!
Mal soltou esta exclamação, a pobre Cylia corou, arrependida por ter, assim, confessado tacitamente um desgosto que não desejava dar a saber aos outros.
Tendo obtido a confirmação das suas suspeitas, o advogado aproximou ainda mais a cadeira e, envolvendo-a num olhar carinhoso, murmurou:
Os pesares partilhados tornam-se menos dolorosos... Consente que sejamos dois a carregar o peso do seu?...
Como Cylia abrisse a boca para protestar, ele deteve-a com um gesto:
Não rejeite a minha sugestão, suplico-lhe... Garanto-lhe que não é resultado de vã curiosidade, mas, sim, de uma verdadeira... simpatia... Se me atrevesse, dar-lhe-ia um nome mais suave, mais forte e mais sagrado! É em nome desse sentimento, que as conveniências me obrigam a calar neste momento, mas que por certo já adivinhou, Cylia, lhe peço que fale, que me confesse o seu desgosto!
Cylia ouvia-o num transporte de alegria e profundamente comovida.
A declaração de amor brotava, finalmente, dos lábios do advogado em palavras de quente ternura, palavras que a faziam vibrar, porque havia mais de um ano que o amava.
De súbito, recordou o barão de Coudraie e a história contada por Odete e, num esforço de vontade, conseguiu dominar a comoção.
Não queria sofrer a humilhação que fora infligida a Lúcia Verrins... Não, tudo menos isso!... Embora tivesse de esmagar o coração, a sua dignidade não seria atingida.
Portanto, respondeu às palavras apaixonadas do advogado, esforçando-se por aparentar completa indiferença.
Está enganado, Villaines. Não tenho nada a confessar-lhe... nem segredos, nem pesares!... Lamento não poder distribuir-lhe o papel de confidente que parece solicitar, mas ao qual não tem qualquer direito, julgo eu!
O advogado não se deixou iludir. Prendendo entre as suas as mãozinhas delicadas, protestou contra as pouco convincentes negativas:
Não fale assim, Cylia... Os seus lábios não sabem mentir e tenho a certeza de que os meus sentimentos encontraram eco em seu coração... Há muito que leio nos seus olhos profundos e eles não conseguem reflectir o contrário do que pensa.
Cylia curvou a cabeça.
Tenha dó de mim, Villaines! balbuciou Deixe-me... Suplico-lhe que me deixe! acrescentou, tentando libertar as mãos da pressão imperiosa que as encerrava.
Não o farei antes que me oiça e eu lhe possa dizer qual o motivo que me levou a falar-lhe hoje... Já não posso sustentar esta vida de incerteza, de lutas e de dúvidas que a sua atitude enigmática provocou! Oiça-me e consinta que lhe diga tudo quanto desejo!
Seja como quer!... Fale, mas não me faça perguntas, porque não poderia responder-lhe.
Em primeiro lugar, quero dizer-lhe quanto a melancolia que tem aparentado nestes últimos dias me tem feito sofrer. Via-a triste, mas não conseguia adivinhar a causa dessa tristeza... Às vezes pensava ser a sua família a origem do mal, mas havia momentos em que, inspirado pelo ciúme, temia que existisse outra razão.
Ciúmes?... repetiu Cylia a meia voz.
Ciúmes, sim... Um homem nem sempre é senhor dos seus reflexos e eu sofria atrozmente.
Cylia não lhe respondeu. Cerrara as pálpebras para prolongar o encanto suave daqueles minutos deliciosos e absorver-se na doce miragem nascida na sua alma. Villaines amava-a tão profundamente que chegara a ter ciúmes!
Cylia, minha adorada, diga-me que o meu ciúme não tinha razão de existir e que a primeira suposição a que visa a sua família é a verdadeira?...
Cylia sobressaltou-se.
A minha família?
Fitava-o com expressão de susto, tremendo pelas palavras que o advogado pudesse dizer.
Teria descoberto o segredo do seu nascimento e iria referir-se-lhe?
A minha família, porquê?... Qual a sua ideia, Villaines?...
O advogado ficou surpreendido com a perturbação manifestada.
Talvez esteja enganado respondeu, hesitante mas, se assim foi, perdoe-me a ousadia. Baseei-me em aparências...
Aparências... quais?...
Pequenos nadas!... Só uma pessoa verdadeiramente inquieta e interessada podia descobri-los... Tive a impressão de que a presença do conde de Liancourt a constrangia... Pareceu-me que a sua mãe a tratava com reserva e frieza... e procurava todos os pretextos para ralhar consigo.
Cylia sorriu completamente tranquilizada. Respirava melhor porque o advogado não tinha feito qualquer alusão ao verdadeiro pai, nem ao divórcio da mãe.
Talvez não se enganasse concordou imediatamente porque, desde que o advogado nada sabia, não queria que ele pudesse suspeitar, nem de longe, a verdade tão dolorosa para o seu espírito altivo Os pais aborrecem-se porque gostam de frequentar a sociedade e eu tenho horror às visitas, às reuniões, todas essas obrigações mundanas a que eles se submetem por gosto... E por isso me censuram... com razão. Compreende, não é verdade?
Villaines fixou-a com esse olhar leal e sincero que parecia penetrá-la até ao mais íntimo da alma.
Compreendo muito bem... adivinho muita coisa!... Mas não têm outro motivo de queixa contra si?... É só isso que a torna tão triste, minha pobre Cylia?... Supunha que fosse mais grave...
A filha da condessa de Liancourt sustentou corajosamente o olhar que parecia estudá-la e, no desejo de pôr fim a uma conversa que a constrangia, acabou por dizer:
Como vê, enganou-se, Villaines... nem sei o que poderia supor. Entre mim e os meus pais continuam a existir os mesmos laços de afecto.
Calou-se ao notar que o advogado se mostrava magoado com a vivacidade das suas palavras e com o tom bastante frio em que as dizia.
Sim, talvez me enganasse replicou este com decisão mas, nesse caso, seja caridosa e acalme a dúvida torturante que, por vezes, me assalta e me inspira o pensamento de que a sua tristeza é provocada por um desgosto de carácter íntimo... um desgosto de amor, que as raparigas procuram sempre ocultar.
Ansioso, contava com um protesto, mas Cylia limitou-se a voltar a cabeça e as pupilas cor do mar, esquivando-se à muda interrogação das suas, pareciam fixar o horizonte numa expressão dura.
Assustado com o silêncio, Villaines insistiu surdamente:
Não me responde, Cylia?... Não pressente quanto sou infeliz, neste momento?... Um desgosto de amor?... É isso que a faz sofrer?
De dentes cerrados, imobilizada numa atitude rígida, Cylia conservou-se impassível.
Não queria revelar a verdade... Por outro lado, não podia inventar uma razão admissível para as suas lágrimas... Custava-lhe tanto mentir!
Portanto, que importância poderia ter para ela que Villaines supusesse uma coisa ou outra?...
Dissesse o que dissesse, fizesse o que fizesse, seria sempre infeliz. Não poderia amar... nunca casaria!
As outras raparigas da sua idade podiam escolher livremente o companheiro da sua vida... ela, porém, via-se forçada a repelir o amor e o casamento se não quisesse, como Lúcia Verrins, ver a família do homem amado afastar-se dela com desdém... se não quisesse que o seu nome e o da mãe fossem alvo dos malévolos comentários da sociedade... Como certas linguinhas acolheriam a notícia com prazer: ”A senhora de Liancourt é divorciada! O verdadeiro pai de Cylia é um sujeito pouco recomendável e com quem as pessoas correctas não convivem!”...
Que terríveis perspectivas esta última consideração fazia surgir na sua mente, perspectivas mais torturantes do que quaisquer outras!
Os novos são mais severos do que os velhos, diz-se muita vez. Exageram as coisas e dão-lhes demasiada importância.
Naquelas circunstâncias, a ingenuidade de Cylia agia como força desmoralizadora, aniquilando-lhe todas as faculdades da inteligência, destruindo-lhe as possibilidades afectivas, dando-lhe a impressão de estar, para sempre, à margem do amor e da felicidade!
A sua falta de experiência era tão grande que, em tudo quanto a rodeava, só via motivos para humilhação e tristeza, erguendo montanhas de opróbrio e de desprezo, como se o facto de ser filha de uma divorciada a amesquinhasse.
Todo o seu orgulho pelo nome, pela família e pela posição que ocupava na sociedade, orgulho que se lhe tinha insuflado no espírito desde criança, transformara-se numa arma que a feria em tudo quanto tinha de mais querido.
Perante as insistentes perguntas do advogado, que lhe pedia para falar e ter confiança nele, resistia, apertava os lábios com receio de deixar fugir o seu segredo, desviava a vista, temendo fraquejar.
Por seu lado, Villaines enervava-se com esta indiferença, com essa atitude rígida, quase glacial que não estava habituado a ver-lhe e lhe feria o amor-próprio.
Incapaz de se dominar, agarrou-lhe no braço.
Fale, Cylia, diga alguma coisa. Não tem o direito de se recusar a responder quando lhe digo que a amo. Amo-a apaixonadamente e é o meu maior desejo que seja minha mulher... Até hoje, alimentei a esperança, quase a certeza de que partilhava os meus sentimentos... Tudo, o seu olhar, o sorriso, as palavras, revelavam ternura e incitamento... Mas, se me enganei, se pensa noutro, diga-mo com franqueza, suplico-lhe! Seja sincera e não me deixe por mais tempo conservar uma esperança que a Cylia sabe ser ilusória!
Consternada, desesperada, a pobre rapariga ocultou o rosto com as mãos.
Como ele a amava, santo Deus!... Como ele sabia encontrar as palavras mais próprias para suavizar o seu mal e lhe oferecia a ternura por que ansiava. Teria coragem para repelir o coração que se lhe entregara eferir aquele que também amava havia tanto tempo?
Hesitava, debatendo-se entre o impulso do seu afecto e a força do orgulho. Mas foi a última que venceu.
Villaines observava-a... adivinhou a hesitação e o semblante irradiou de esperança.
Supondo que todo o obstáculo consistia no pudor um pouco exagerado, puxou-a para si, tão ’perto que a sua respiração opressa fazia esvoaçar os escuros caracóis.
Minha adorada Cylia!
Num minuto de vertigem, Cylia abandonou-se à deliciosa sensação e encostou a cabeça ao peito do advogado. Durante curtos instantes permaneceram assim enlaçados. Com os olhos cerrados, Cylia saboreava a doçura imensa daqueles instantes de pura embriaguez.
Meu amigo... meu grande e querido amigo!
As palavras de ternura passaram como um sopro pelos lábios entreabertos.
Mas, de súbito, recordou a situação e, num gesto brusco, libertou-se-lhe dos braços e fitou-o quase com terror.
Não... eu não disse nada... Vá-se embora!... Deixe-me!
Cylia... minha Cylia, porque fugiu assim, de repente?...
Foi mal feito... parta... deixe-me...
Considera a minha atitude incorrecta?... Mas, entre dois corações que se amam, estas pequeninas coisas podem consideraf-se incorrecção?... Não acabei de ouvir dizer as palavras que tanto desejava?
Eu não disse nada que pudesse... Valhame Deus!... Não... não disse.
Cylia, meu amor... adoro-a... Não quer repetir as palavras, tão doces para o meu coração, que há pouco murmurou?...
Tentava agarrá-la para a apertar de novo contra o peito.
Cylia, porém, esquivou-se e fugiu.
Deixe-me, Villaines... Vá-se embora.
Não podia aceitar o amor que ele lhe oferecia, visto ser impossível casar sem revelar o doloroso segredo do primeiro casamento de sua mãe!
O próprio Villaines, quando soubesse, não ficaria desagradàvelmente surpreendido... não recuaria? Não ficaria diminuída a seus olhos?...
Não... tudo menos isso!... Que, pelo menos, ele conservasse dela e dos seus uma recordação sem mancha.
Esforçando-se por ocultar o seu desespero e dar-lhe a impressão da mais absoluta sinceridade, disse-lhe:
Vou falar-lhe com toda a franqueza, Villaines... Depois do que me disse, seria incorrecto o mais pequeno equívoco... Sinto-me infinitamente lisonjeada com o seu afecto, mas impõe-se que lhe roube... todas as ilusões... Eu... não...
Com o coração despedaçado por si própria e pelo sofrimento que via reflectir-se nas feições transtornadas do advogado, gaguejava, não encontrando palavras para exprimir o que desejava dizer-lhe.
Tenha coragem e não olhe para mim com esse olhar desesperado, suplico-lhe!... Sofro com isso... tenho a impressão de que me considera um carrasco...
O advogado aprumou o busto e, pegando-lhe nas mãos geladas apertou-as entre as suas.
Será possível o que ouvi, Cylia?... Repele-me?... Foi isso o que disse?...
Assim é preciso... Meu Deus, tende piedade!... Não tenho forças para mais!
Repele-me... Não aceita o meu amor!... Foi para me experimentar, não é verdade?... Eu sei que me ama, Cylia... Diga-me que será minha mulher!
Não posso.
Mas porquê?... Isto é de endoidecer!... Não me disse há pouco que...
Cylia interrompeu-o, numa impressão de tão profundo desalento que consideraria um bem morrer ali a seus pés.
Disse, sim... disse que era o meu amigo... o meu grande e querido amigo... o único!...
Não quis dizer mais do que isso... Não quero casar... nunca me casarei!
Imobilizado pelo assombro, o advogado não conseguia conciliar as ideias.
Ama outro, não é verdade? balbuciou tão baixo que Cylia mais adivinhou do que ouviu as palavras.
Não, não amo! afirmou com desespero Disse-lhe a verdade... Não quero casar... nunca me casarei!
Lágrimas enormes rolavam-lhe pelas faces pálidas, mas a dor manifestada com tanta sinceridade não atenuou a amargura do advogado.
Na sua idade, diz-se isso quando se oculta uma desilusão ripostou com hostilidade quando o homem que nos propõe casamento não é aquele que desejaríamos... Seja leal, Cylia, e confesse que me repele por amar outro.
Não afirmou ela, com convicção Não amo ninguém.
Ninguém!... Talvez não ame outro... mas pensa em alguém, com certeza, alguém que desejaria ver no meu lugar acrescentou, vendo-a acenar negativamente com a cabeça que ainda não falou, mas que Cylia anseia por ouvir... um outro que...
Não, não!... Não é isso! protestou ela, num brado sincero Não penso em qualquer outro homem, volto a garantir-lhe... Não quero casar, eis tudo.
Villaines estava como que fulminado e fixava-a com expressão duvidosa, não se rendendo à evidência. Como o rostozinho delicado reflectisse verdadeiro desespero, todo o seu rancor se desvaneceu num segundo.
Nesse caso, diga-me, minha Cylia adorada, porque me tratou há pouco por seu grande e querido amigo?...
Referia-me à consoladora certeza da sua amizade... mais nada.
Os lábios contraídos a custo reprimiam os soluços que lhe estrangulavam a garganta.
Não dando por coisa alguma, Villaines insistiu com sinceridade:
E antes... há dois anos?... O seu olhar animava-me... a confiança que me manifestava, as suas atenções, a voz que, quando me falava, vibrava em ternas inflexões... Nunca me deu a entender que a minha corte lhe desagradasse... Nesse caso, representava uma comédia para me iludir?...
Porque me tortura?...
Não conseguia reprimir as lágrimas e sentia-se desfalecer... Nunca pensara que lhe custasse tanto mentir, lutar contra o seu próprio coração...
O advogado olhava para ela e julgava sonhar... sentia-se esmagado pela brusca desilusão.
Nunca, até àquele dia, tivera a menor dúvida quanto ao resultado da discreta corte que fazia a Cylia. A família acolhia-o favoravelmente e ela amava-o, estava certo, correspondia aos seus sentimentos.
Nos dias de incerteza, que tinham precedido aquela conversa, quando as lindas pupilas de esmeralda reflectiam um pesar profundo, a atitude de Cylia para com ele não se modificara, acolhia-o com afectuoso sorriso, rodeava-o de atenções.
Pouco antes, num instante de abandono, deixara fugir dos lábios o mais doce dos epítetos, que valia uma confissão.
Mas, quando ele confessava abertamente os seus sentimentos e lhe falava de casamento, repelia-o... sem motivo plausível... afirmando, unicamente, que não queria casar.
Qualquer coisa, portanto, a assustava, no casamento... mas o quê... ou quem?...
Villaines não encontrava resposta para esta dupla pergunta. A família de Cylia dera-lhe, claramente, a entender que seria bem acolhido... a sua ficaria encantada com aquele enlace... as fortunas de ambos equivaliam-se, pertenciam ao mesmo meio... Por muito que procurasse, não descobria onde estava o obstáculo.
Estas reflexões, que lhe desfilaram pela mente escandecida, esmagaram-no por tal forma que perdeu a faculdade de reagir. Insistir para quê?... Pressentia que, naquela ocasião, por muito que suplicasse, não obteria outra resposta.
Após demorado silêncio, respirou fundo, aprumou o busto alquebrado e, num tom que tentava ser calmo, mas que traduzia a mais intensa amargura, desculpou-se:
Releve-me a insistência, Cylia... Supus ter alguns direitos ao seu coração e à sua confiança. Não devia ter levado tão longe as minhas perguntas, mas não conseguia convencer-me da realidade da sua indiferença... Não voltarei a importuná-la com a confissão do meu amor, desejando, acima de tudo, que seja feliz.
Nunca o serei! protestou Cylia com tristeza, porque ao mesmo tempo que ansiava por que ele deixasse de interrogá-la, sofria ao pensar que, depois daquela conversa, cessariam as atenções de Villaines... Era o fim de um lindo sonho... o aniquilamento total de um coração virgem que se entregara para sempre em toda a plenitude da mocidade, com toda a confiança.
Ele consolar-se-ia... e, mais tarde, amaria outra!... Mas ela!... Ela ficaria só, confinada na sua dor imensa, com o coração destroçado para sempre, com o seu amor impossível em cujo horizonte jamais brilharia a esperança.
Perdoe-me continuou ele, sem deixar de a fitar, observando a mais pequena contracção do lindo semblante, na esperança de que Cylia não o deixasse afastar sem uma palavra que o animasse. Mas, as pupilas claras reflectiam apenas um desespero sem nome.
Não tem que me pedir perdão protestou ela com tristeza Se alguém tem que o fazer, devo ser eu, pois lhe infligi tão grande desilusão...
Villaines fez um gesto vago e não respondeu.
Vejo que sofre... continuou ela e eu sinto-me desolada!
O que eu sofro não importa... só desejo que seja feliz!
E você?... perguntou Cylia com voz débil.
Eu... tentarei esquecê-la!
Mas a voz máscula desfaleceu, soçobrou numa vaga de desalento.
Mas, como Cylia pegasse no bordado, gesto que tomou por indiferença, quando, no fundo, ela tentava simplesmente ocultar-lhe a intensa emoção, uma onda de cólera desvairou o advogado:
Porque zombou de mim, menina de Liancourt? bradou, esquecendo o doce e familiar tratamento. Eu amei-a sinceramente... quando, da sua parte, só existia garridice e vaidade... Supunha-a leal e nunca esperei de si tão cruel atitude!
Transtornado com as lágrimas que enevoavam os olhos de Cylia, furioso consigo próprio porque esteve quase a fraquejar e a lançar-se-lhe aos pés, suplicando-lhe que revogasse a implacável decisão, reagiu e, muito aprumado, com o olhar duro, voltou-lhe as costas e abandonou o terraço, lançando-lhe estas palavras de despedida:
Adeus... Faço votos para que nunca se arrependa da indiferença com que hoje me tratou.
Cylia seguiu-o com a vista... sufocava e estava pálida como um cadáver.
Se tivesse querido gritar, chamá-lo... não teria podido porque não conseguia articular um som.
Quando ele desapareceu, oculto com as laranjeiras que acompanhavam o ângulo da parede, levou as mãos ao peito, com a impressão de que o coração cessara de bater.
Eu não podia fazer outra coisa, não podia dizer-lhe a verdade! murmurou por fim, numa expressão desvairada Isto é horrível!... Eu... ai!
E, agitando os braços, caiu inanimada no pavimento de mosaico, entre duas cadeiras de verga.
Na vasta sala da Abadia, os hóspedes, reunidos, falavam em voz baixa, em atitude grave a voz e a atitude que, em geral, se adopta perante uma desgraça.
As frases cruzavam-se, visando o mesmo assunto:
Quando saímos não parecia doente...
Doente, não... mas adoentada, talvez.
Sim, isso é verdade...
Há tempo já que não andava bem disposta.
Mas coisa alguma fazia prever...
Não, isso não...
Ainda esta manhã esteve conversando e rindo connosco!
E ontem acompanhou-nos no passeio a cavalo...
É espantoso!
Um deles aproximou-se mais dos companheiros e murmurou intencionalmente:
Quase podemos supor que esta brusca indisposição resulta de qualquer coisa...
Um mistério?... Supõe isso?...
Villaines, que entrava nessa altura, parou, entre as portas, de testa franzida, tentando compreender.
Prolongado passeio pelo campo apaziguara um tanto a sua excitação e inspirará-lhe a resolução de não precipitar as coisas e dar tempo aos corações para acalmarem. Revogou a decisão de partir nesse mesmo dia. Antes de abandonar a Abadia, queria conversar com a senhora de Hulons e conhecer as razões que tinham motivado a recusa de Cylia. No seu coração apaixonado albergava a esperança de que a resposta da sua amada não fosse definitiva.
Por fim, perguntou:
Adoeceu alguém?...
De Mousset voltou-se e respondeu:
O quê... pois não sabe?... Tem razão, o senhor não estava...
Acabei agora de chegar...
Pois dou-lhe a desagradável notícia de que a neta de senhora de Hulons está muito doente, segundo parece.
O advogado a custo reprimiu um sobressalto de surpresa.
Refere-se à menina de Liancourt?... perguntou, ansioso.
Exactamente. O médico chegou agora. Villaines empalideceu. A inquietação subia como vaga alterosa e avassalava-o.
O médico! repetiu Parece-me um sonho mau! Às duas horas, ela...
Estava bem, com efeito!... Mas agora são quatro e está doente...
Aterrado com a notícia, Villaines tentava ocultar do seu interlocutor a angústia que o fazia tremer.
Cylia doente!... Quando, às duas horas, a deixara bem!
Começou a despontar-lhe no espírito uma desconfiança, um receio. Se, depois da discussão entre ambos, Cylia tivesse atentado contra a própria vida?...
Seria um suicídio falhado... por desespero?...
Era horrível!... A hora indicada por Mousset coincidia com a do seu afastamento.
Numa espécie de hipnose, perguntou:
Como aconteceu o desastre?... A menina de Liancourt está ferida?...
Ferida!... Porque supõe isso?...
Porque ninguém adoece assim, de repente... Começa-se sempre por andar indisposto!... E, ao meio-dia, ela estava completamente boa.
De Mousset fez um gesto vago.
Por agora, ignoramos completamente do que se trata... Disseram-nos: ”Cylia está doente”... E não sabemos mais nada.
Como Villaines continuasse com ar preocupado e olhar interrogador, explicou com complacência:
Segundo parece, um criado encontrou-a desmaiada, no terraço... Levaram-na imediatamente para o quarto e deitaram-na, mas, até agora, ainda não recuperou os sentidos... Tenhamos esperança de que o médico, depois de a observar, nos tranquilize e nos diga que a doença não é grave.
Villaines não lhe respondeu porque não tinha forças para isso. No seu espírito fizera-se a terrível aproximação e o que ouvira ao seu interlocutor confirmava-lhe as suspeitas. Cylia fora encontrada desmaiada logo em seguida à conversa que tivera com ele, no terraço.
Que singular desmaio!... Precisamente àquela hora e naquele sítio!
Teria recebido alguma notícia desagradável depois dele a ter deixado... salvo se fora, precisamente, a discussão que a transtornara.
Às quatro horas, disse o senhor?...
Foi essa a hora indicada pelos criados... Quando regressámos, à hora do chá, já tinham chamado o médico pelo telefone, porque a senhora de Hulons tentara tudo para a reanimar, mas sem resultado. De facto, impressiona encontrar alguém caído no chão, sem sentidos, e não sabermos como chamá-lo a si.
É justamente isso que nos intriga atalhou uma das senhoras presentes, a senhora de Concil A que horas desmaiou Cylia... devido a qualquer incidente ou a indisposição?... Não se pode saber porque, quando a encontraram estava sozinha e não devia ter falado fosse com quem fosse, depois de nós termos saído.
Porque não foi ela connosco?... observou Choirel Em que tencionava empregar o seu tempo, quando ficasse sozinha?
Villaines escutara estes comentários com a maior atenção.
É tudo quanto se sabe, por agora? insistiu, não deixando de pensar na conversa que tivera com Cylia.
Sim, é tudo. Que mais poderíamos dizer... Cylia é uma rapariguinha tão sossegada!...
Fora a senhora de Chevreuse que, generosamente, interviera para defender a amiga da filha, cuja indisposição poderia ser malèvolamente interpretada.
Descem a escada acrescentou É o médico que se retira... Vamos saber qualquer coisa.
Bruscamente, todos se calaram. A senhora de Hulons entrou na sala com os olhos vermelhos e as feições transtornadas.
Que calamidade, meus amigos exclamou, reprimindo a custo os soluços que a sufocavam.
Antes de a interrogar, todas aquelas mãos amigas se estenderam para a confortar. Depois, algumas vozes tímidas arriscaram:
Então... que disse o médico?... A pobre avó começou a chorar.
Ainda não sabe... fala de congestão. Cylia recuperou os sentidos, mas está variada e o médico receia que seja uma febre cerebral! Não quis ocultar-me a gravidade do caso... Voltará esta noite!... Minha querida neta... isto é tremendo!
Unânime exclamação de pesar acolheu esta notícia.
Pobre menina! murmurou a senhora de Chevreuse.
Já não andava bem, nestes últimos dias.
A Cylia é uma sensitiva!,.. Um nada a comove!
É tão simpática...
Uma rapariga encantadora!
Talvez se assustasse...
Ou alguém a arreliasse...
Também é possível!
Que ideia!... Nunca tomaria uma simples arrelia tanto a sério... a ponto de ficar doente.
Sabe-se lá!... Se tivesse sofrido verdadeiro desgosto... um golpe doloroso...
Quem lho teria vibrado?...
A minha neta depois do almoço não recebeu cartas nem visitas declarou a senhora de Hulons, não querendo que se perdessem em suposições Perguntei aos criados e as respostas foram todas iguais: não veio ninguém, depois de saírmos. Se a minha neta está doente, a causa deve ser outra... Talvez um resfriamento... demasiado calor ou sol que provocasse uma congestão... sabe-se lá!... Todos estimam a Cylia, portanto, quem a teria desgostado a tal ponto?...
Em todo o caso, não foi nenhum de nós... Saímos todos...
Todos estes comentários feriam Villaines em pleno peito. Só ele sabia que Cylia falara com alguém depois do almoço, durante a ausência dos outros hóspedes do castelo, e esse alguém fora ele.
Tornou a vê-la, pálida, com expressão enigmática, declarando em voz trémula, a despeito de todos os esforços para a tornar firme: ”Nunca me casarei!”
E ele respondera-lhe com palavras cruéis, filhas da decepção que sofrera.
Naquela altura, Cylia não se mostrara impressionada nem esmagada com a avalanche de recriminações que lhe dirigira, mas, sob a calma aparente, não teria ficado profundamente ferida... ou, pelo menos, com o sistema nervoso abalado?...
Admitindo que Cylia não o amasse e não ambicionasse casar com ele, quem pode estar certo de conhecer o que se passa no coração de uma rapariga de vinte anos? Não havia razão para que a conversa entre ambos a emocionasse a ponto de lhe abalar a saúde. Se, pelo contrário, tomara a peito e se afligira com as suas censuras, então não o olhava com tanta indiferença como pretendera fazer-lhe acreditar.
Tinham sido sempre dois amigos, dois camaradas.
Sim, dois excelentes camaradas. Tinham brincado e crescido juntos, até ao dia em que cada um deles fora para seu lado, a fim de prosseguir estudos. Cylia, alcançado o bacharelato, regressou para junto dos seus, enquanto Villaines passou para a Faculdade de Direito e, depois, para o Palácio da Justiça... Mas, durante esses anos de estudo, sempre que se lhes proporcionava ensejo, encontravam-se e sentiam real prazer com esses encontros.
E agora, quando se propunha transformar em realidade o sonho da infância, Cylia esquivava-se!
Ao espírito de Villaines acudiram as mais variadas suposições, todas elas pouco animadoras. Se, apresentando-se a Cylia como pretendente declarado, tivesse avivado qualquer desgosto íntimo que a impedisse de corresponder ao seu afecto?...
A suspeita da existência de um rival ou de um amor contrariado voltou a aparecer-lhe como a pior das hipóteses, a mais desmoralizadora de todas.
Reagiu contra estes pensamentos, pôs de parte todas as suspeitas para só pensar na doença do ente amado. Visionou-a estendida no leito, o rosto pálido, confundindo-se com a brancura das almofadas, o cérebro soçobrando na inconsciência ou criando visões dolorosas, o coração ferido pela sua insistência intempestiva ou por qualquer chaga oculta que ele fizera sangrar sem o saber... salvo se a forma arrebatada como lhe falara... a cólera que não conseguira dominar...
Deus do Céu!... O que poderia ter dito, antes de a deixar?...
Pensar que, em parte, era ele o responsável pela doença de Cylia, causava-lhe uma angústia sem nome e sentia-se enlouquecer.
Como seria bom ter o direito de lhe entrar no quarto... de a poder tratar. Apertá-la-ia nos braços, obrigá-la-ia a encostar-lhe a cabeça ao peito para a embalar com palavras de ternura e de amor. Sentia que só ele poderia acalmar a febre, extinguir o fogo que a devorava.
E ter de ficar ali como um estranho, demonstrar o simples interesse de um amigo da casa, fosse qual fosse o andamento da doença! Essa impotência punha-lhe os nervos numa tensão máxima, dando-lhe a impressão de que pelas veias lhe corria não sangue, mas chumbo derretido.
Os comentários sobre a doença prosseguiam. Mas, é justo reconhecê-lo, todos os hóspedes da Abadia manifestavam pela avó e pela neta afectuosa simpatia e sincera compaixão. Nenhum deles se regozijava, intimamente, com a desgraça que ferira aquela casa, e todos se interessavam pela doentinha.
Villaines foi dar uma volta pelo parque... Não tinha forças para ouvir tantas palavras inúteis, comentários feitos por pessoas felizes e que, embora lamentassem o inesperado desastre, só muito superficialmente e por gratidão podiam compartilhar a aflição da dona da casa.
Em grandes passadas, percorria as alamedas, não só procurando acalmar os nervos e o tumulto que se lhe desencadeara no cérebro, como também para traçar uma linha de conduta e decidir qual a atitude a tomar naquelas circunstâncias. Como devia proceder com a senhora de Hulons?... Se lhe revelasse a entrevista que tivera com a neta, o médico ficaria conhecendo a origem do mal. Mas esse conhecimento influiria no tratamento e seria de utilidade para a família de Cylia?... Não seria preferível deixar ignorada a conversa que tão mal terminara?... A própria Cylia, quando se restabelecesse, que pensaria dele, se contasse tudo à avó?...
A lealdade do advogado impelia-o para a primeira solução. Devemos acrescentar que, embora considerasse um dever pôr a boa e indulgente avó ao facto do que se passara, Villaines, no estado de espírito em que se encontrava, procurava alguém com quem pudesse falar de Cylia e lhe desse notícias dela.
A recusa que ela lhe opusera, agora que a sabia doente, não lhe parecia tão grave nem definitiva.
Por fim, a ansiedade de apaixonado e a consciência de amigo que, nestas circunstâncias, devia prevalecer a tudo, levou-o a procurar a senhora de Hulons com a mesma brevidade com que saíra do castelo.
Gostaria de lhe falar, minha senhora disse quando a encontrou.
A pobre senhora ergueu para ele o olhar angustiado e quase indiferente porque, naquele momento, só a neta lhe ocupava o pensamento.
Estou ao seu dispor, André... Mas, se o que deseja dizer-me não é de muita urgência, seria preferível falarmos mais tarde...
Calou-se, mas notando-lhe a expressão transtornada e ansiosa, acrescentou em voz branda:
Estou tão apoquentada, meu amigo!
Calculo, minha senhora concordou o advogado É, justamente, por isso que desejo falar-lhe. Quero dizer-lhe que tive uma conversa com Cylia, depois do almoço...
Com a Cylia?...
Tomei a liberdade de lhe falar... de lhe confessar o meu amor... Perdoe-me, minha senhora... a benevolência que sempre me demonstrou, levou-me a supor que aprovava os meus sentimentos e o nosso casamento.
A senhora de Hulons mal o ouvia. De tudo quanto o advogado dissera, uma única coisa lhe despertara a atenção: o advogado falara com a neta. E, sabendo também qual o assunto dessa conversa, pensava quais teriam sido as reacções dela.
Acompanhe-me ao quarto, por favor. Estaremos mais à vontade, longe de toda esta gente... de tanta confusão... Com franqueza, nesta altura, não tenho cabeça para desempenhar os meus deveres de dona de casa.
A pobre senhora, tão benevolente, tão amavelmente dedicada aos seus hóspedes, sentia-se cansada, aspirava, instintivamente, por se ver livre de todas aquelas pessoas amigas, mas que, no fundo, não passavam de estranhas e a obrigavam a mostrar boa cara, a criar em volta delas um ambiente de calma e de alegria, quando o seu maior desejo seria encontrar-se sozinha, na grande casa silenciosa para poder instalar-se à cabeceira da neta.
A senhora de Hulons fez entrar o advogado no quarto agasalhado, cheio de estofos e cortinados, como tanto apreciam as pessoas de idade.
Depois de instalados, começou:
Não se enganou quando supôs que aprovava o seu casamento com a Cylia. Conheço-o de pequeno e estimo-o como se fosse da família.
Por meu lado, também, posso afirmar-lhe...
Sim... bem sei atalhou ela o André ama a Cylia!... Há muito que o adivinhei e deu-me a impressão de que a minha neta não se mostrava indiferente ao seu afecto...
O advogado abanou, tristemente, a cabeça.
Também eu o acreditei! murmurou com desalento.
A senhora de Hulons agarrou-lhe na mão e apertou-a com amizade.
Então... não desanime.,. Trata-se de um mal-entendido, com certeza... Que lhe respondeu a Cylia?
Repeliu a minha proposta... Manifestei-lhe o meu desejo, depois de obtido o seu consentimento, de falar aos pais... Apelei para a confiança que sempre me manifestou... aos laços de simpatia que, desde pequenos, nos uniram...
Só disse a verdade...
Pelo menos, assim o supus.
A Cylia não lhe disse, com certeza, que o meu amigo lhe era indiferente.
Infelizmente, foi isso mesmo.
Talvez não tivesse compreendido bem as suas intenções.
Compreendeu, tanto que me afirmou que nunca casaria!
A avó ficou pensativa, evocando o semblante preocupado e triste da neta.
É impossível que, aos vinte anos, se renuncie ao amor e a todas as alegrias da vida... murmurou, soltando profundo suspiro.
”Como é dolorosa esta história do primeiro casamento da mãe, que foi preciso dar a conhecer à filha continuou de si para si Depois de estar ao facto do divórcio a minha Cylia passou a andar tão triste!...”
Vejamos, André disse, voltando-se para o advogado A Cylia não lhe deu outras razões para a recusa?
Nenhumas, minha senhora... Quero dizer, disse-me que eu me enganava e que nunca me tinha amado.
Mas isso é mentira!... Quando a via tristonha e calada, bastava-me pronunciar o seu nome para que o sorriso voltasse a desabrochar-lhe nos lábios!... Era como se um raio de sol iluminasse de repente uma paisagem sombria... E o André afirma que...
Que ela me repeliu?... Exactamente.
De cabeça baixa, revivia os minutos atrozes que passara junto da bem-amada. Depois, como a velha castelã não parecesse ainda muito convencida, acrescentou com humildade:
Quero fazer-lhe outra revelação... A recusa foi definitiva e a Cylia não me deixou a mais pequena esperança...
É extraordinário!
Diga antes, desesperador... Eu adoro-a.
Pobre rapaz!...
Há tantos anos que alimento esta esperança... A Cylia era para mim como uma estrela a brilhar no horizonte, a minha madona... Pensava que seria a minha companheira, a mãe dos meus filhos, aquela para quem trabalharia e tentaria elevar-me, alcançar renome... Não pode supor, minha senhora, os sonhos que eu fazia... os projectos que tracei, tendo sempre como base o meu casamento com a sua neta...
Não desespere, André... é impossível que a Cylia o tivesse repelido definitivamente.
Já não espero nada!
Pense bem e veja se recorda qualquer palavra... qualquer coisa que nos deixe entrever o verdadeiro motivo da recusa... Um apaixonado vê tudo pelo lado trágico... perde a coragem às primeiras contrariedades e não dá atenção ao resto.
O advogado abanou a cabeça.
Acredite que ouvi bem tudo quanto ela disse.
Começou por uma recusa... seja... Mas depois... que mais razões opôs?... Conte-me tudo, André.
Assombrada com o que Villaines acabava de lhe dizer, mas, ao mesmo tempo, inquieta pelo estado de espírito que a recusa revelava, tentava reconstituir a conversa dos dois.
Que mais disse ela, André? insistiu.
Mais nada. Julgo que proferi algumas frases duras para estigmatizar a forma como me repelia... Perdoe-me... Sei que não o deveria ter feito, mas sentia-me terrivelmente desapontado... Nem sempre somos senhores dos nossos reflexos e é muito difícil dominar a revolta perante uma decepção deste género... tanto maior quanto é certo que Cylia nunca demonstrou que a minha corte lhe desagradasse.
Pelo contrário, acolhia-o sempre com agrado.
Também o notou?... Por isso... talvez a tivesse magoado... involuntariamente... nessa ocasião.
E depois? perguntou a avó, que tentava encontrar a relação entre a cena descrita por André e a doença da neta.
Depois... mais nada repetiu ele Afastei-me e deixei-a no terraço.
E as últimas palavras... quais foram?... As dela e as suas...
Por mim, manifestei o pesar por ter acreditado no seu amor e não poder realizar os meus sonhos de futuro, enganadores e inúteis. Não respondeu... Curvou a cabeça, desviou a vista, numa atitude glacial! Nunca esquecerei a sua frieza... nunca... Foi o minuto mais cruel de toda a minha vida!
O silêncio caiu entre ambos. Depois, a senhora de Hulons, condoída com o desgosto do rapaz a quem gostaria de poder chamar neto, estendeu-lhe a mão:
Pobre André!... Adivinho o que sente e lamento-o... Agradeço-lhe ter-me revelado o que se passou... agora, julgo compreender as causas da doença da Cylia... Não sei ainda bem quais as da recusa, mas recordo certas coisas... serão elas que a terão impelido a recusar o seu nome?... Talvez... Nestes últimos tempos a Cylia teve um desgosto que a mina...
Também me pareceu e, muitas vezes, tentei adivinhar qual fosse... Não o consegui... ou, quer dizer, pareceu-me... Não, não... é impossível!... Não podia ter sido isso... concluiu depois de ligeira hesitação.
Talvez adivinhasse, André.
Deteve-se, mas como visse o olhar leal do advogado, erguido para ela numa expressão interrogadora, prosseguiu com confiança:
O André sabe que a Cylia não é filha do conde de Liancourt?
Muito bem.
A minha filha não quis dizer-lho em pequena... Ciúmes de mãe, que não quer partilhar com outro o afecto da criança. Proibiu-nos a todos de falar no seu primeiro casamento e Cylia foi crescendo na ideia de ser filha do conde de Liancourt... Usava-lhe o nome e como ele se mostrava carinhoso e meigo com ela, nunca pôde suspeitar a verdade... Mas, quando a Cylia fez vinte anos, a mãe revelou-lhe tudo, como se fosse a coisa mais natural, como se não houvesse motivo para se perturbar. Disse-lhe que o conde não era o seu verdadeiro pai e usava um nome que não lhe pertencia. ”És filha de um artista, de um estróina que expulsei da minha vida por não o considerar digno de ser meu marido”.
Villaines protestou, indignado:
Guy Férias é um grande pintor. Cylia não deve envergonhar-se do pai.
Bem sei, bem sei... e suponho que não é esse o mal. Aflige-a encontrar-se numa situação estranha e inesperada, de que nunca suspeitou... Devemos pensar bem, André. A mãe iludiu a criança, deixou-a viver na mentira até aos vinte anos e, quando lhe revelou a verdade, estranhou que ficasse transtornada, aterrada...
A Cylia adorava o conde de Liancourt.
E não deixou de o estimar! Mas eu conheço-a... passou a encarar tudo pelo lado trágico e a pensar o pior: ”Fui criada por um homem que não é meu pai!... Por muito que me estime, o conde não pode amar-me como se fosse sua verdadeira filha!”... E, como estas, muitas outras coisas... Estou certa de que, se o repeliu, foi para não ser obrigada a revelar-lhe a verdade... Não quis pô-lo ao corrente da situação... Julgo que se considera amesquinhada pelo facto da mãe se ter divorciado!... Foge dela, do conde, da sociedade, das amigas, das reuniões, de tudo quanto apreciava. Evita as festas que dantes frequentava com tanto prazer, toda a convivência... sou eu a única pessoa com quem se compraz viver, porque não deixei de ser a avó, compreende?... A revelação não afectou em coisa alguma os laços que nos unem... sou a mesma que sempre conheceu, que ninguém pode roubar-lhe... Quanto aos outros, todos lhe parecem diferentes...
À medida que a senhora de Hulon explicava assim a tristeza de Cylia, a fisionomia do advogado desanuviava-se, o coração dilatava-se-lhe e tinha a sensação de respirar melhor.
Porque não teve confiança em mim e não me pôs, com toda a lealdade, ao corrente do que tanto a afligia? comentou com indulgência.
Talvez achasse a confidência muito difícil de fazer.
Não sei porquê... entre nós existem tantos laços, tantas recordações de infância e de boa camaradagem, que a Cylia devia saber que estou apto a compreender e sentir tudo quanto lhe diz respeito.
A dona da casa fez um gesto evasivo... Não ignorava quanto a neta era reservada e no meio do seu desgosto, retraíra-se involuntariamente... mesmo com a avó que tanto amava.
Soltando profundo suspiro, continuou:
O André sabe que ela viu o pai?... Viu-o e nunca quis dizer-me a impressão que lhe causou o encontro.
Será possível?...
Nunca fez o mais pequeno comentário...
Viu o pai quando estava com a minha filha, no Pavilhão de Armenonville, creio eu. Brusca trovoada obrigou muita gente a procurar refúgio no elegante recinto. O pintor instalou-se numa mesa próxima daquela onde ambas se encontravam... acompanhava-o uma mulher... um dos seus modelos, provavelmente... uma das suas numerosas ligações, com certeza... O que pensou Cylia nessa ocasião, quais as suas impressões?... Ignoro-o. Mas, desde esse dia, não voltou a referir-se ao pai. Interroguei a mãe... nada me disse porque não sabe ou não quer dizer e, desta forma, eu nada mais posso fazer do que vagas suposições... No entanto, afigura-se-me que, a partir desse dia, a sua tristeza se tornou mais profunda. Enganar-me-ei?... Nada posso afirmar, porque fico sempre aborrecida quando faço juízos temerários.
O advogado parecia reflectir.
Da forma que a senhora de Hullons lhe apresentava as coisas, a atitude de Cylia tornava-se mais explicável.
A má vontade da senhora de Liancourt contra o primeiro marido persiste, não é verdade? perguntou decorrido algum tempo.
Creio que sim. Quando se divorciou, aborrecia-o, quase não podia vê-lo. Guy Férias é um homem de valor, mas leviano, não podendo resistir às tentações femininas... A minha filha sofreu muito, antes de tomar uma resolução definitiva, porque adorava o marido.
Evidentemente concordou o advogado Férias foi culpado, acredito, muito culpado! Mas, depois de tantos anos passados, de tão prolongada separação, julgo que todos os agravos deviam estar esquecidos... definitivamente, enterrados.
A senhora de Hulons aprovou com um gesto de cabeça... em toda a evidência, concordava com a opinião do advogado, mas, com o olhar vago, dir-se-ia contemplar uma visão longínqua. Mas não era a silhueta esguia das grandes árvores do parque, recortando-se no azul... não... pode dizer-se que não via coisa alguma... porque reflectia na estranha complexidade do carácter da filha.
A condessa amava o segundo marido, que a adorava e a tornava infinitamente feliz. Depois de tantos anos de casados, os dois esposos entendiam-se como no primeiro dia... E, por isso, a mãe não compreendia por que motivo ainda não perdoara ao primeiro marido os agravos recebidos e o seu rancor se mantinha tão vivo como na altura do divórcio... Não vibrara ela de indignação ao saber que Cylia desejava conhecer o pai?... E exaltada, colérica, verberara o marido infiel e leviano de quem, no entanto, estava separada havia mais de dezoito anos.
A excelente senhora não podia conformar-se com esse ódio que persistia a despeito dos anos decorridos, que não desarmava e se erguia entre Cylia e o pai.
Sem a hostilidade da condessa, tudo se teria passado simplesmente... Por intermédio da avó, Cylia, numa situação digna e correcta, teria conhecido o pintor, aquele que, voluntariamente, se apagara diante da esposa ultrajada e levara a sua cortesia ao ponto de renunciar, em seu favor, a todos os direitos paternais, só para não ferir aquela que tanto ofendera.
Embora culpado, a sua atitude fora perfeita durante e depois do divórcio... só a condessa se mostrava intransigente, pouco generosa e vingativa, negando-lhe o perdão.
Não compreendo a minha filha murmurou a senhora de Hulons Adora a filha e, no entanto, tenho a impressão de que a sacrificaria ao seu ressentimento, sem a mais pequena hesitação...
Há um provérbio que diz: ”para sabermos até onde irá o nosso ódio, basta recordarmos a intensidade do nosso amor”.
Deve concordar que é estúpido!... O rancor deve ser proporcionado ao mal que nos causaram... Ora a minha filha é feliz, o conde é o mais perfeito dos maridos, portanto, não sofreu prejuízo com o divórcio, que lhe proporcionou o segundo casamento. Pelo contrário, os resultados foram tão favoráveis para ela que devia estar grata a Guy Férias.
Calou-se, reconhecendo que, levada pelos seus temores e pelas suas perplexidades, deixara adivinhar o que sentia, com demasiada franqueza.
Digo-lhe tudo isto porque o André está ao facto de muita coisa e o seu afecto pela minha neta me leva a considerá-lo como se já fosse meu neto.
Não lamente o seu desabafo, minha senhora. Considero a sua confiança e a amizade que me demonstra muito preciosas, para as desiludir... além disso, estou-lhe muito reconhecido por me ter acolhido por forma tão afectuosa e consentir que procuremos ambos as causas da tristeza de Cylia e da recusa que tanto me magoou...
Infelizmente, pouco descobrimos...
Talvez não... entrevejo uma luzinha no meio de toda a escuridão que nos rodeia... e se me permite que manifeste a minha opinião... se não me considera indiscreto por interferir neste assunto...
Fale sem receio, André... visto ter sido eu a primeira a pô-lo ao corrente do que se passava.
Parece-me que teria sido preferível a senhora de Liancourt não dar a conhecer a Cylia o pai, visto ele estar acompanhado explicou o advogado, constrangido e hesitando, por ter de censurar o procedimento da condessa.
O amor tornava uma das suas vítimas clarividentes e o advogado tinha a intuição do que deveria ter sentido aquela que amava ao ver Guy Férias acompanhado por uma mulher.
Não sei se me compreende prosseguiu, explicando o seu pensamento Um pai, por certo preferiria estar só ao encontrar-se pela primeira vez com a filha, depois de tantos anos de separação... Invertendo os papéis, a Cylia por certo ficou desapontada ao ver uma mulher junto daquele que, instintivamente, desejaria encontrar sozinho.
A senhora de Hulons fez um gesto de surpresa.
O André tem razão!... O seu amor por Cylia deu-lhe a intuição do ponto sensível, do mal... Impõe-se que eu interrogue a minha filha, que eu saiba o que se passou... Terá de me responder. Toda a tristeza da situação provém daí, com certeza.
Exaltava-se, recordando pequeninas coisas a que, até ali, não dera atenção.
Depois de tantos dias de inquietação, em que se perdera em mil suposições, sem conseguir explicar a tristeza de Cylia, a verdade revelava-se-lhe naquele instante e os pequenos pormenores que lhe tinham passado despercebidos tomavam a sua significação.
Aí está porque a Cylia deixou de falar no pai... ficou magoada, desiludida nos seus sentimentos filiais... Qualquer coisa a feriu profundamente... o quê, não posso saber... com um temperamento sensível como o seu, todas as suposições são permitidas...
Tanto mais que os novos exageram tudo murmurou Villaines com ar pensativo.
E exaltado pelo amor, cheio de esperança, acrescentou:
Se ela soubesse a importância que tudo isso tem na vida e como poderíamos ser felizes, ela e eu, longe de todas essas convenções, do casamento, do divórcio, do nome que usa... Que ela consinta em ser minha mulher e verá como eu saberei tornar-lhe a vida tão feliz, tão cheia de suavidade, que todos os desgostos e decepções serão esquecidos.
A senhora de Hulons levantou-se e, maternalmente, poisou a mão no ombro do advogado.
Não desanime, André... eu advogarei a sua causa, mas, antes de mais nada, teremos de a salvar... curar-lhe o mal do corpo antes de lhe sararmos a ferida da alma... Por agora, nada mais poderemos fazer do que aguardar os acontecimentos com serenidade. O médico recomendou o maior sossego e silêncio... Vou tentar consegui-los.
Se lhe posso ser útil...
Por enquanto, não... Mas, logo que ela melhore, pedirei o seu auxílio, pois estou certa de que a sua presença será o melhor remédio para a cura completa... Adeus, André...
Adeus, minha senhora. Separaram-se com um aperto de mão, pois a avó ansiava por se encontrar à cabeceira da neta.
Depois desta conversa, Villaines sentiu-se mais animado, mas, ao mesmo tempo, indignado e descontente, quando pensava na condessa de Liancourt.
Vaidade das vaidades! monologava Para estas senhoras da sociedade, nada mais conta senão o orgulho e a vaidade!... E no meio de tudo isto, é a minha pobre Cylia quem sofre!
O quarto confortável e gracioso mobilado em estilo moderno, mais higiénico e mais prático do que o das instalações antigas que a avó destinara para a neta, há muito fora invadido pelas sombras da noite.
Na Abadia todos dormiam, excepto Cylia.
A noite estival estava quentíssima e uns restos de febre escaldavam as faces de Cylia. No entanto, o período agudo do mal tinha passado e a doentinha entrara em plena convalescença e ia recuperando lentamente as forças.
Passava algumas horas por dia estendida num divã e nessa manhã conseguira ir até ao terraço para respirar um pouco de ar puro e apanhar sol. Mas, se o corpo melhorava, o cérebro continuava doente, a despeito das semanas de calma e de absoluto isolamento em que estivera confinada.
Todavia, pode alguém impedir o pensamento de trabalhar, embora se esteja apertado entre as quatro paredes de uma prisão ou de um quarto de doente? Uma vez curada, voltava a sentir todas as impressões, a sofrer como sofrera nos meses anteriores à doença.
O pai... Villaines... o desfiar de um rosário de desilusões e de pesares!... Um ciclo doloroso que envolvia todos os seus.
Mas, de repente, o silêncio da noite como que despertou, povoou-se de ruídos... ao longe, o sino da igreja começou a tocar a rebate. Cylia ergueu-se a meio, apoiada num cotovelo e escutou com atenção os desusados sons.
Seria alucinação dos sentidos ou efeitos da febre?... Que significava o toque dos sinos, soando tragicamente no silêncio da noite?
A ansiedade foi tal que se levantou e correu à janela.
O toque a rebate chegou-lhe distintamente aos ouvidos... Nada mais lúgubre, mais impressionante do que o apelo plangente como um grito de angústia, implorando socorro.
Cylia estremeceu. Os seus nervos ainda não estavam muito fortes e o som do bronze impressionou-a... Pouco depois, outro sino, mais longe, começou a tocar e não tardou muito que a sineta de alarme do castelo se fizesse ouvir também...
Que seria?... A noite estava linda, cintilante de estrelas, o firmamento completamente límpido e, portanto, não podia tratar-se de uma perturbação atmosférica... Nesse caso, seria uma inundação... incêndio?...
Era isso, com certeza.
Maquinalmente, Cylia passou a mão pela testa febril... a sua inquietação amplificava-se.
No entanto, o campo parecia adormecido e, além dos sinos, ruído algum lhe chegava aos ouvidos.
Mas o toque a rebate era eloquente... A desgraça instalara-se em qualquer ponto, perto do castelo adormecido...
Tragicamente, aproveitando as horas de sono, o inimigo insinuara-se e uma das casas da aldeia estava em chamas.
Cylia visionou a pobre gente chorando, mulheres gritando de terror, crianças agarrando-se-lhe às saias, impotentes na sua fragilidade.
Ainda hesitava, quando as portas da Abadia se abriram e muitos dos seus habitantes saíram, correndo, prontos a acudir àqueles que sofriam, levando-lhes o auxílio que os sinos imploravam.
Embora fraca, visto que, havia poucos dias, a deixavam levantar, Cylia vestiu-se. Não podia dormir sabendo que alguém sofria, ali, a dois passos dela.
E depois, quem poderia sabê-lo?... Talvez o subconsciente a impelisse, a levasse para o ponto onde o dramático debate, há tanto tempo travado no seu íntimo, iria ter solução.
Vestindo o casaco por cima do pijama de seda, saiu para o corredor. Na escada esbarrou com Joana, uma das criadas de quarto.
Então a menina levantou-se!... Mas que imprudência!
Quero ver o que se passa, Joana...
Seria mais sensato voltar para a cama, menina.
Não, quero ver, já disse!... É um incêndio, não é verdade?
É, sim, menina.
Aonde?...
É na herdade Martel.
Que horror, meu Deus!
Cylia lembrou-se imediatamente dos três pequenitos a quem, quando estava bem disposta, visitava muitas vezes, levando-lhes gulodices... três graciosos garotinhos que saudavam a sua aparição como se vissem chegar até eles um raio de sol.
Havia também a mãe Maturina, muito velhinha, cujas mãos trémulas e olhar sem brilho indicavam que ultrapassara os oitenta. Depois o dono da herdade, esmagado por um dia de trabalho porque, não dispondo de meios, se via forçado a desempenhar com um só cavalo a tarefa que chegaria para dois homens e dois cavalos... Por fim, a mulher, trabalhadora e económica, que fazia prodígios para sustentar todo aquele pequenino mundo com os rendimentos da herdade, já sobrecarregada de hipotecas.
O coração generoso de Cylia confrangeu-se... Toda aquela gente fazia parte da sua vida e, naquele minuto, partilhou a sua aflição.
Um incêndio, para eles representava a derrocada final e, conhecendo como conhecia, a situação e as anteriores desventuras, Cylia não duvidava de que os pobres iriam ficar reduzidos à mais completa miséria.
Quero vê-los, saber ao certo o que se passa repetiu Teriam conseguido salvar as crianças... e a velha Maturina teria conseguido fugir?...
A senhora de Hulons já está para lá com todo o pessoal explicou a criada A maior parte dos hóspedes do castelo, pelo menos aqueles que ouviram os sinos tocar a rebate, acompanharam-na. O fogo é uma desgraça universal, pode dizer-se, e a que ninguém fica indiferente.
Sim, é pavoroso!
Não há razão para nos assustarmos tranquilizou a criada, iludindo-se sobre os sentimentos da jovem castelã A herdade Martel fica muito afastada do castelo e por isso nem o parque, nem a mata devem ser atingidos. Quanto a eles, se tinham as coisas no seguro, ainda podem considerar o incêndio como um benefício.
”O bem nunca pode resultar do mal” pensou Cylia, temendo que, por economia, os donos da herdade tivessem segurado apenas a casa. Quanto ao gado e aos cavalos, que tinham comprado à custa de tantos sacrifícios, receava muito que não tivessem tomado essa precaução.
O ar fresco da noite restituiu as forças à convalescente, que vacilava nas pernas ainda fracas. Dando o braço à criada de quarto, caminhava com certa dificuldade, mas com muito mais firmeza do que nos dias anteriores.
Não vale a pena andar tão depressa, menina... Bem sabe que não pode remediar o mal...
Quero ver teimava Cylia com energia São meus protegidos, conheço-os bem... Além disso, se a avó está lá, eu também quero comparecer.
Bastava a presença da senhora insistiu a criada.
Deixa-me, Joana!... Não podes adivinhar o meu estado de espírito. Se ficasse fechada no quarto, teria enlouquecido de inquietação e, neste momento, choraria a minha impotência.
Visto que não posso evitar que vá lá, peço-lhe, pelo menos, que ande devagarinho. Assim pode recair... Tanto mais que a sua presença não pode evitar o mal... O que tiver de arder, há-de arder e a menina não tem o poder de deter as chamas.
Podemos sempre fazer alguma coisa retorquiu Cylia com gravidade quanto mais não seja, animar aqueles que sofrem!... Quando somos infelizes, uma palavra carinhosa parece dar-nos alento.
A alma generosa de Cylia revelava-se toda neste comentário, tão comovente pela sua ingénua simplicidade.
Ainda longe, as duas mulheres avistaram o enorme clarão do incêndio, que transformava a herdade Martel numa imensa fogueira... as chamas iluminavam o céu e os plátanos que rodeavam a cerca pareciam esbraseados.
Como tudo arde! murmurou Cylia, aterrada.
Abandonaram a estrada e seguiram por estreito e pedregoso atalho que descia até ao vale. Quando atingiram as proximidades da herdade, o incêndio apareceu-lhes em toda a sua horrível majestade.
O fogo manifestara-se nas cavalariças e todas as dependências ardiam. Tinham morrido dois animais: um cavalo e um boi que não tinham conseguido soltar a tempo.
O pior acrescentou a mulherzinha que lhes deu informações é que a casa foi atingida pelas traseiras... para este lado não se vê, mas já está a arder lá por dentro.
E as crianças... e a velha Maturina?
Estão salvos... Como devem calcular, o Sabino pensou, antes de mais nada, na sua gente.
Só nesse momento a senhora de Hulons deu pela neta.
Tu aqui, Cylia!... Que vens cá fazer?... Que ideia foi essa de sair nesse estado?...
Não podia ficar em casa, avó... Bem sabe que protejo esta pobre gente.
Bem sei... Mas podes estar sossegada. Eles têm a herdade no seguro. Ainda há pouco interroguei o Sabino e ele disse-me: ”Felizmente, renovei a apólice há poucos dias”... Portanto, já vês... Não vejo razões para te afligires assim... E agora, que já estás mais sossegada, seria melhor recolheres a casa, filhinha. Cylia abanou a cabeça e teimou:
Não, avó... deixe-me ficar... Afirmo-lhe que me sinto bem...
Não dizia que uma espécie de pressentimento a levara para ali e enquanto sentisse o peito esmagado por aquela sensação de peso... de dolorosa angústia... ficaria à espera...
À espera de quê?...
Não saberia dizê-lo... Sabia apenas que vibrava de ansiedade, como se o seu destino e o destino dos seus dependesse daquele minuto e se decidisse naquele local.
De repente, foi como se um frémito de horror fizesse estremecer todos quantos tinham vindo socorrer os infelizes sinistrados.
Os quartos estão a arder!
A notícia espalhou-se e todos comentavam:
O desastre é total... Não conseguiram salvar coisa alguma!
Bruscamente, ouviu-se um grito dilacerante:
A minha mulher!
O marido, de súbito, notara que a mulher não estava junto dele e temeu que, à perda dos bens, outra desgraça maior tivesse a acrescentar.
A minha mulher!... Voltou para dentro de casa e vai morrer queimada!
Foram precisos dois homens para o agarrar e impedir que, por sua vez, se lançasse no braseiro.
Com efeito, a dona da herdade tinha desaparecido e o incêndio podia, assim, transformar-se num drama ainda mais atroz.
A infeliz conseguira salvar a mãe e os filhos, abrigando-os num barracão, longe da casa em chamas. Depois, como a habitação propriamente dita não parecesse ainda muito atingida, supôs ter tempo de voltar ao quarto para trazer consigo alguns objectos de estimação, mas, enquanto os reunia, o fogo envolveu tudo.
A minha mulher!... Salvem a minha mulher!
Louco de dor, o pobre homem não sabia dizer outra coisa... Que mais poderia ele fazer?... Para combater utilmente um flagelo daqueles, impõe-se o maior sangue-frio e o pobre estava completamente desorientado!...
Mas um homem apareceu com uma escada e tomou a direcção dos trabalhos de salvamento.
Pedindo a outro que a segurasse bem, envolveu-se num lençol molhado e começou a subi-la.
Por várias vezes, Cylia, que o seguia com olhar ansioso, o viu aparecer e desaparecer, envolto pelas chamas, invulnerável como se o fogo tivesse sido toda a vida o seu elemento.
E, pela janela do primeiro andar, donde saíam rolos de fumo negro e as chamas começavam a surgir, lambendo as paredes e devorando as frágeis cortinas das janelas, o salvador, tendo previamente tapado a boca com um lenço molhado, penetrou na casa.
Nesse momento, o vento, soprando com mais força, ateou as chamas. Imóveis, suspensos e aterrados, os presentes aguardavam, com os olhos fitos na janela, a aparição do homem que, com tanta simplicidade, arriscava a vida.
O incêndio redobrava de violência. As chamas já atingiam a janela por onde o corajoso salvador tinha penetrado na casa e ele não aparecia.
A ansiedade de todos era terrível e um silêncio de morte pairava no ambiente.
Iria pagar com a vida o impulso generoso que o levara a correr em auxílio de uma pobre mãe de família em perigo?... Haveria duas vítimas, em vez de uma, a deplorar?...
Este receio fazia palpitar todos os corações e aumentava o horror daqueles trágicos momentos.
Segurando a escada, com o rosto iluminado pelas chamas, os olhos cheios de lágrimas, provocadas pelo fumo que o vento, por vezes, impelia para cima dele, o segundo dos dois homens, com a cabeça levantada, sondava o mistério da janela iluminada por ameaçadores clarões.
E, de repente, quando um desses clarões mais vivos lhe bateu em cheio, Cylia, com o maior espanto, reconheceu André Villaines.
Transtornada e aflita, dominada por súbita fraqueza, teve de segurar com força o braço de Joana para não cair, porque sentiu as pernas vergarem.
O André... Está ali, afrontando o perigo, cumprindo o seu dever!
A presença do advogado a quem não tornara a ver desde a discussão como que lhe apaziguou o espírito.
Talvez, daí a pouco, pudesse apertar-lhe a mão... descobrir-lhe no olhar o lampejo de ternura que o iluminava sempre que se lhe dirigia... Ou, vendo-se repelido, teria deixado de a amar?...
Mas, de momento, todas as reflexões sobre o lindo idílio, interrompido por sua vontade, foram postas de parte e eclipsadas pela angústia presente do terrível incêndio que ameaçava algumas vidas.
A presença do advogado no local do sinistro despertava-lhe, também, loucos receios, muito justificados, porque André manifestava o intento de, por sua vez, subir a escada.
Como o primeiro salvador não aparecesse e o roncar das chamas e o estalar das madeiras aumentassem de minuto a minuto, André, sem deixar de vigiar a janela para além da qual talvez se desenrolasse um drama horrível, decidiu ir socorrer se ainda fosse tempo os desgraçados que, lá dentro, lutavam contra os elementos. Alguns dos presentes, considerando inútil a tentativa, tentaram dissuadi-lo.
Arriscar a vida para quê, quando já uma se tinha sacrificado sem resultado?...
Mas, de repente, de todas as bocas saiu um ”ah!” de alívio, como que um suspiro que distendeu todos os peitos.
Lá em cima, no meio da fumarada, o corajoso salvador apareceu, com as roupas a arder, os cabelos crestados, quase asfixiado, porque o pano molhado que lhe protegia a boca secara completamente.
O rosto, apesar de enfarruscado, estava lívido e as forças pareciam prestes a faltar-lhe.
O corpo da mulher que trazia nos braços, o peso do lençol molhado em que o envolvera, as saias compridas que pendiam e se lhe metiam nas pernas, tudo contribuía para lhe dificultar a tarefa.
Corajosamente, André correu a auxiliá-lo e os dois, apesar do fumo e do calor do braseiro, apesar das chamas que consumiam as madeiras da frontaria, conseguiram fazer deslizar pelos degraus o corpo da mulher.
Lentamente, o grupo heróico descia a escada. Quando chegaram a pouca altura do solo, muitos homens acorreram e mais de trinta braços se estenderam para os amparar e à carga humana.
Era tempo.
Quase logo, com um fragor imenso, o tecto abateu.
Mais uns segundos e os três, salvadores e vítima, teriam perecido no meio das chamas.
Trémula, dominada pelo pavor do perigo que ameaçava André, Cylia deixou-se cair no chão, meio desmaiada. Reanimou-a e fê-la abrir os olhos o brado de alegria que saiu de todas as bocas.
O murmúrio de aprovação, as palavras elogiosas, que todos proferiam numa confusão, num desabafo, necessário depois de tantos minutos de angustiosa espectativa, revelaram a Cylia que André estava livre de perigo e a mulher salva. Foi o bastante para lhe restituir as forças. Amparada por Joana, conseguiu levantar-se e dar alguns passos para o corpo da rendeira, que estava estendido no chão, a pouca distância.
Está morta? perguntou aos homens que a rodeavam.
Não, simplesmente desmaiada.
Cylia soltou um suspiro de alívio e o olhar perdeu a expressão aterrada.
Salvar-se-á?...
Com certeza... Não deve ter sido atingida pelo fogo, porque o lençol molhado a defendeu... mas está quase asfixiada.
Que Deus a salve...
Deus a oiça, menina.
Enquanto os homens faziam o possível para reanimar a mulher, Cylia procurou com a vista o homem heróico que arriscara a vida para a salvar.
Estava a poucos passos, de costas voltadas para ela, o torso atlético coberto com o pull-over de malha, os cabelos crestados, passando pelo rosto um pano molhado.
Cylia aproximou-se, no desejo de felicitá-lo. Muitos outros já o tinham feito, mas Cylia pensava que, protegendo os sinistrados, devia a esse homem um agradecimento especial.
Eu queria...
Deteve-se, muito pálida, com as pupilas dilatadas numa expressão de assombro.
Aquele homem de rosto enfarruscado... aquele homem... o salvador... era o castelão de More Bleu, era Guy Férias... seu pai!
O pintor voltou-se e, ao ver Cylia, um lampejo de surpresa lhe perpassou pelo olhar. Foi apenas um relâmpago, mas Cylia ficou certa de que o pai a reconhecera.
Mas, no mesmo instante, ele desviou a vista, de forma que Cylia hesitou, não sabendo se a sua primeira impressão fora verdadeira ou se o olhar do pai a aflorara sem a ver.
Férias não fez um gesto, não proferiu uma palavra e, sem afectação, afastou-se alguns passos, e Cylia, que parara diante dele, ficou como que pregada ao chão por esta manifestação de indiferença.
Como resposta ao impulso que a impelira para o pai, este não tivera um reflexo de interesse perante a filha desconhecida... a carne da sua carne... a criança que, até ali, evitara encontrar, mas, ainda que fosse só por curiosidade, devia gostar de conhecer melhor!
Pela primeira vez, Cylia entreviu a verdade...
A sua exaltação filial arquitectara um romance: a sua ternura pelo pai que devia amá-la e desejar conhecê-la... Mas tudo isso não passava de uma fantasia alimentada pelo cérebro excitado por falsas visões... Sempre fora uma desconhecida para o pai e desconhecida continuaria a ser... o resto não passava de uma quimera!... Durante alguns meses a imaginação criara asas e fora construir castelos no ar, que a realidade acabava de demolir em poucos minutos.
Foi como se a febre imensa em que se debatia havia tanto tempo caísse de repente. E a sensação foi tão forte que se sentiu estremecer como se tivesse frio.
Enquanto ela, como hipnotizada, não podia dar um passo, o pintor ergueu-se na ponta dos pés e, com a vista, pareceu procurar, para além dos limites da herdade incendiada, ainda iluminada pelos clarões esbraseantes das chamas, qualquer coisa ou alguém que o interessava.
Devia ter encontrado o que desejava, porque ergueu o braço e agitou a mão para se fazer reconhecer.
Maquinalmente, Cylia voltou-se e seguiu-lhe a direcção do olhar.
No caminho, para lá da barreira branca que limitava o pátio da herdade, estava parado um automóvel e dentro uma mulher que se levantou e correspondeu ao gesto de Guy Férias. Dois pequenitos, que estavam de pé, nos bancos, também agitaram as mãozitas.
Apesar da distância, Cylia reconheceu a mulher que acompanhava o pai em Armenonville e sentiu-se envergonhada por ele. Aquela presença amesquinhava o homem que, havia pouco, atingira os limites do sublime e do heroísmo, salvando a rendeira.
Uma sombra caminhava ao lado do herói. Aquela mulher representava uma fraqueza, uma mancha negra que Cylia não podia admitir na vida de seu pai.
Nem mesmo aceitava as crianças com as suas manifestações espontâneas. Em sua opinião, naquele momento, só duas pessoas contavam, ela e o pintor... e, visto ele não ter querido reconhecê-la, afigurava-se-lhe que mais ninguém poderia aspirar à sua atenção.
Mas Guy Férias não dava importância à multidão que o rodeava nem parecia importar-se com o que pudessem pensar a seu respeito.
Quando uma vida estivera ameaçada, cumprira o seu dever, mas, desde que não havia mais ninguém para salvar, voltava a ser um pobre mortal, seguindo simplesmente a sua vida, dirigindo-a segundo a sua vontade, como todos os seres humanos que hora a hora evolucionam em todos os pontos da Terra.
Numa espécie de hipnose, Cylia viu-o apertar a mão de André Villaines, sentado a pouca distância, no talude semeado de pequenitos carvalhos, como é uso em certas regiões da França. Depois os dois homens separaram-se e Guy Férias, em passo apressado, atravessou o pátio e atingiu o automóvel que parecia aguardá-lo.
Cylia viu-o subir para o carro e desde que o pai dera os primeiros passos não perdeu um só dos seus gestos... Tinha-se despedido afectuosamente de Villaines, apertado algumas mãos de pessoas que o cumprimentaram à passagem, mas não teve um olhar para a filha da condessa de Liancourt. Talvez nem sequer a conhecesse... Ou então, afastando-se do seu caminho, não a reconhecendo como filha, tinha querido significar-lhe o desejo de que ela se conservasse sempre estranha para ele.
E essa certeza radicou-se-lhe por tal forma no coração que se conformou com a indiferença manifestada pelo pai e não sofreu com ela. Mais uma ilusão se desvanecia...
Ocorreu-lhe então à memória uma novela lida antes de adoecer, um conto assinado por uma escritora russa, cujo nome, difícil de fixar para um ocidental, ela esquecera por completo.
A acção desenrolava-se nos primeiros dias da revolução russa, quando os dirigentes do movimento acabavam de abolir o casamento, decretando que os homens podiam pretender todas as mulheres, porque o Estado se encarregaria dos filhos que as mães não pudessem criar.
Essa lei procurava libertar o povo russo de preocupações e encargos e tornava os sexos iguais, tanto para o trabalho como para o prazer, abolindo todos os deveres mútuos.
Actualmente a Rússia considerou este ideal como uma utopia e restabeleceu o casamento, fazendo compreender aos homens que a verdadeira felicidade consiste no lar, com todos os seus deveres e alegrias. A romancista, porém, pretendera focar o primeiro caso e o resumo da novela era este:
Baseando-se nos direitos que a revolução lhe conferira, um homem modesto operário, robusto e forte levara para casa uma rapariga distinta e bonita, pela qual se apaixonou. Durante o dia ia cada qual para o seu trabalho e só se encontravam à noite, mas o homem ignorava tudo da companheira, que nunca lhe falava na família, no passado, e que iludia todas as perguntas.
O idílio durou algum tempo, quando, certa noite, a rapariga faltou ao encontro marcado. Estupefacto e desesperado, o homem procurou por toda a parte aquela que não conseguia esquecer e cuja desaparição não sabia explicar. Todas as pesquisas foram vãs... a rapariga eclipsara-se para sempre da sua vida.
Decorridos meses, o destino apiedou-se do pobre apaixonado e, certa noite, percorrendo, por acaso, um bairro afastado, ele reconheceu numa mulher que passava apressada aquela que nunca se lhe apagara do coração.
Correu para ela e deteve-lhe o passo. De princípio, esmagou-a com censuras. Por que motivo o abandonara?... Não fora sempre correcto com ela?... Amava-a e exigia que voltasse para ele.
A desconhecida, porém, sorriu e negou-se.
Não!... A revolução, suprimindo o casamento, dera liberdade à mulher. Portanto, era livre e livre continuaria a ser.
”Nesse caso protestou ele para que me fizeste conhecer a felicidade se tencionavas privar-me dela?... Para que consentiste em me acompanhar, no primeiro dia?...”
A mulher sorriu com ironia.
”Porquê?... Porque desejava ter um filho, um filho robusto e belo... e como tu és forte e perfeito, escolhi-te para pai desse filho... No dia em que obtive a certeza de que os meus desejos iam realizar-se, deixei-te. Interessava-me a criança e não o companheiro... Esse, só me serviria de peso”.
E, num ar desdenhoso e altivo, afastou-se...
A lei russa, abolindo o casamento, abolira também todos os deveres da mulher para com o companheiro de ocasião.
O pobre abandonado sentou-se na borda do passeio e, ocultando o rosto com as mãos, começou a chorar. Compreendeu, de súbito, que, fora dos laços convecionais do casamento que estabelece deveres ao homem deveres que, na sua ânsia de liberdade, o povo russo repeliu em absoluto fora dos deveres matrimoniais, o homem nada valia... era um zero... nada mais do que o companheiro de passagem que hoje se conhece e amanhã se despreza!
No instante em que Guy Férias se afastava da herdade incendiada, Cylia recordou a novela.
Quando a leu não lhe medira bem o sentido profundo. Impressionara-se e indignara-se contra a supressão do casamento, vendo apenas nessa lei o desejo dos bolchevistas de demolir a sociedade, destruindo todas as instituições sagradas.
Naquela altura, porém, certas frases destacavam-se e tomavam novo sentido, iluminadas pela luz dos acontecimentos.
Os laços convencionais do casamento... os deveres criados ao homem. O homem nada valia... não era mais do que um companheiro de passagem!...”
Sim, não era marido... não era pai... nada mais do que um companheiro.
Nesta frase, principalmente, o pensamento da romancista russa revelava-se e impressionava-a pelo seu materialismo, despido de toda a sentimentalidade, de qualquer ilusão. Só então compreendia o verdadeiro significado da palavra, colocada no plano humano.
Era assustador, mas verdadeiro!
Quanto tempo permaneceu parada no mesmo sítio, fixando o caminho que o automóvel tomara?... Não poderia dizê-lo.
Alguém lhe tocou no braço e a despertou da abstracção.
Não fique aqui parada, Cylia... está frio e ainda se encontra muito fraca.
Era Villaines, que se conservara a distância, mas sem deixar de a observar. Impressionado com a expressão triste do rostozinho pálido e afinado pela doença, não pôde resistir à tentação de a animar e proteger.
Encontravam-se pela primeira vez depois da tarde em que os seus destinos pareciam ter-se separado para sempre.
O advogado devia estar ressentido com a recusa, mas dava a impressão de que tanto ele como ela a tinham esquecido, porque Cylia não se mostrou ofendida com a intervenção e consentiu que ele, depois de lhe ter levantado, cuidadosamente, a gola do casaco, lhe tomasse o braço, arrastando-a consigo.
Que imprudência!... Deus permita que não lhe faça mal, com uma noite tão fresca!
Havia qualquer coisa que me chamava... Falava-lhe sem emoção aparente, como se
entre eles não se tivesse passado coisa alguma.
Foi muito corajoso, Villaines observou depois Cheguei a recear por si. Que imprudência subir também!... A escada era muito frágil para aguentar o peso de três pessoas.
Guy Férias atingira o último limite das forças e não podia sustentar por mais tempo a mulher que, com risco da própria vida, acabava de salvar. Cabe-lhe todo o mérito...
Sim, podia ter morrido concordou Cylia.
É um herói e o seu gesto foi natural... Sem medir o perigo, lançou-se na fogueira. Reconheço, mais uma vez, os impulsos do seu generoso coração.
Cylia escutava a voz querida e as palavras como que a embalavam. Ao mesmo tempo, uma consoladora esperança penetrava-lhe pouco a pouco na alma.
André conhecia o pai, o pintor falara-lhe com intimidade. Não deviam ignorar a vida um do outro e, portanto, a hipótese que Cylia formulara e tanto a assustara, quando o advogado lhe oferecera o seu nome, não tinha fundamento.
A revelação do seu verdadeiro estado civil não influiria, de qualquer modo, na resolução de André Villaines. O divórcio da mãe, do qual ele devia estar ao facto, era essa, agora, a sua convicção, não podia ser obstáculo ao casamento, nem a personalidade do primeiro marido constituía uma espécie de mancha no passado da condessa de Liancourt, como Cylia imaginara.
Apoiada no braço do advogado, numa atitude de confiante abandono, conversavam familiarmente e ele sentia-se infinitamente feliz com o renascer das suas esperanças.
Por vezes, os olhares de ambos confundiam-se e as pupilas masculinas brilhavam numa promessa de felicidade e de confiança.
Se soubesse como me sinto feliz, esta noite, André murmurou ela, quase inconscientemente.
Acredito... As nuvens negras começam a dissipar-se.
Decorreram alguns minutos, durante os quais André se apoderou da mãozita trémula que se abandonou entre as suas. Cylia, porém, nem dava pela terna pressão dos dedos masculinos.
Diga-me uma coisa, André... conhece-o bem?...
A quem?...
A Guy Férias.
Por uma reviravolta involuntária do subconsciente, não conseguia dizer ”o meu pai”, referindo-se ao pintor.
Muito bem. É amigo dos meus pais e conhece-me de pequenino.
Sabe quais os laços que, outrora, o uniram a minha mãe?...
Sei... foi o primeiro marido da senhora de Liancourt...
O divórcio...
Separou-os, não o ignoro!... Os carácteres não se harmonizavam e, portanto, foi preferível separarem-se e cada um deles refazer a sua vida. Os seus destinos afastam-se, mas assim ambos são felizes, não acha?...
E sabe que eu...
É filha do primeiro matrimónio?... Mas nunca o ignorei, minha Cylia.
O André sabia! exclamou ela, lamentando o seu inútil sofrimento e aquele que infligira ao advogado.
Como seria possível ter arquitectado semelhantes disparates... atormentar-se com fantasias criadas pela sua imaginação doentia!... O pai era um homem digno, com irrepreensível reputação e um carácter de inegável heroísmo de que ela podia orgulhar-se...
As respostas de Villaines modificavam por completo as tristes perspectivas que, por gosto, fantasiara.
Seria possível que, durante aqueles dias intermináveis, se entregasse a tão ridículos temores?... A única responsável pelo mal fora a sua falta de experiência. A mocidade é severa e dá enormes proporções à mais pequena complicação.
Vagarosamente, tomaram o caminho da Abadia.
A lua, rompendo as pesadas nuvens, inundava a paisagem nocturna de uma claridade branda. As duas sombras, alongando-se pelo chão, dír-se-iam de dois garotos que, por brincadeira, imitassem os gestos um do outro.
Não falavam, mas os dedos de Cylia continuavam unidos aos do advogado.
Eu não sabia, André! exclamou ela, por fim E tinha tanto medo que viesse a conhecer a verdade.
Qual verdade?...
A vida de meu pai...
Mas o que pode haver na vida de Guy Férias que deva ocultar-se? perguntou, admirado É um grande artista, de indiscutível talento, vive honestamente com uma mulher a quem adora e que está em perpétua adoração diante dele... Convidam-me algumas vezes para jantar e considero esses convites como uma honra.
Cylia fez um gesto de surpresa e o semblante pálido traduziu profundo desagrado.
Não, não é possível!... Visita aquela mulher!... A mulher com quem meu pai vive!...
Como marido e mulher..
Eles não são casados! gritou Cylia, com indignação.
Quem lhe disse uma coisa dessas, minha pobre amiguinha?... Casaram há mais de dez anos.
Casaram!... Meu pai é casado?... Não é possível!
Não sei porquê!... Posso garantir-lhe que casaram, porque um dos meus professores, Danton, uma celebridade do foro parisiense, serviu de testemunha de casamento a Guy Férias.
A minha mãe afirmou-me o contrário.
É natural que a senhora de Liancourt não estivesse ao facto do enlace, que foi celebrado na mais estrita intimidade.
Assistiu às cerimónias?...
Eu, não, mas os meus pais.
Cylia, num gesto maquinal, passou a mão pela testa. Havia mais confusão no seu cérebro do que pesar no coração.
Ainda não estou em mim murmurou Nunca encarei a hipótese de meu pai ter casado.
O contrário seria para admirar. A senhora de Liancourt também fez o mesmo.
Concordo... Mas esse facto vem modificar por completo a face das coisas... e foi tão inesperado para mim!
Docemente, Villaines apertou o braço de Cylia contra o seu.
Mas não lhe causa tristeza, julgo eu.
Pelo contrário. Se tivesse sabido mais cedo desse casamento, não teria sofrido como sofri...
Meu pai construiu o seu lar e, portanto, é natural que me considere uma estranha. Há pouco, procedeu como se não me conhecesse...
Não podia fazer outra coisa. A mulher estava perto com os dois filhos... por conseguinte, qualquer manifestação de interesse por si poderia magoá-la.
Cylia estremeceu.
Dois filhos?... Os pequenitos são dele?...
Dois lindos rapazinhos que são todo o seu orgulho.
Dois rapazes!... O quinhão dos deuses!... Nunca me passou pela ideia que tivesse outros filhos... Compreendo agora e admiro que a minha existência não pese na balança dos seus sentimentos... Tem dois filhos que lhe perpetuarão a raça e o nome... sonha para eles um futuro risonho... os filhos procurando honrar os êxitos gloriosos do pai... São todo o seu orgulho, como disse, neles se baseiam todas as suas esperanças. Que interesse pode ter pela filha?...
Principalmente, uma filha que não foi criada com ele observou André.
Cylia fixou-o com atenção, tentando descobrir o verdadeiro sentido da frase.
Uma filha que não foi criada com ele repetiu vagarosamente, pesando todas as palavras Sim, a filha desconhecida...
Desconhecida... uma verdadeira estranha!
Se não me conhece, a culpa não foi minha retorquiu Cylia.
Evidentemente. Mas todo o homem sente a necessidade de cultivar o sentimento paternal, que o prende aos filhos...
Que pretende dizer com isso?
Seu pai prefere aqueles porque usam o seu nome, porque a sua fraqueza tem necessidade da protecção e da força paternal, porque tem direitos sobre eles e lhe lisonjeiam o orgulho; fazem parte integrante da sua vida, do seu ambiente, pertencem-lhe em tudo e por tudo! Por isso todo o seu amor vai para eles.
Percebo... O amor paternal é feito, talvez, dessas pequeninas coisas.
Curvou a cabeça, absorvida em tumultuosas reflexões. Villaines assustou-se.
Oiça, Cylia... gostava de lhe explicar... Tenho a impressão de que vai passar uma noite horrível, a repisar todos estes acontecimentos e a afligir-se com a indiferença que Guy Férias aparentou demonstrar-lhe.
Ela protestou imediatamente:
Não... antes de adoecer, talvez isso me preocupasse, me causasse dolorosa amargura... Teria chorado, e a certeza do seu casamento e da existência de dois pequenitos provocar-me-ia profundo desgosto... Por causa desta filiação, tanto tempo ignorada, eu supus endoidecer e fiz sofrer todos a quem estimo... a si também, André!... No meu desvario, sacrifiquei tudo à ideia hostil de um divórcio que me revoltava, sem atender às razões que o motivaram... Reneguei tudo quanto havia de belo no passado, tudo quanto devia ser a minha felicidade no futuro... Estava como dementada pela ideia fixa e perdi todas as minhas faculdades de raciocínio.
Querida Cylia!... Como sofreu inutilmente!...
Tem razão... Fui o meu próprio carrasco e supliciei-me, sem pensar que a revolta de uma pobre e ingénua rapariga não podia lutar contra as leis e contra os usos adoptados... Os homens admitem o divórcio que desagrega a família, mas que os salva de um casamento falhado... Talvez o segundo caso lhes dê mais vantagens do que o primeiro...
E agora, visto ter compreendido as coisas, vai aceitar com coragem e resignação a sua situação de filha de dois pais?
Creio que sim.
Deus a oiça, Cylia!... Para os que a estimam será consolador vê-la recuperar a calma e a alegria de outros tempos.
Assim será, meu grande amigo!
Sinto-me encantado com a promessa!
Seguiu-se breve silêncio. Cylia analisava os factos. Por fim, explicou:
Julgo que muita coisa se modificou, André, e se partiu o fio que unia a minha vida passada à presente... Despeito, exagero ou sentimentalidade ridícula, não posso sabê-lo... mas tudo isso passou e quero afirmar-lhe que me causou mais espanto do que sofrimento, o facto do meu verdadeiro pai me considerar como estranha. O primeiro impulso impeliu-me para ele, mas fiquei gelada pela sua indiferença e, de repente, senti que seria incapaz de fazer um gesto para quebrar o gelo que nos separava. Mesmo se ele tivesse dado o passo da aproximação, não conseguiria dizer-lhe uma palavra de afectuoso acolhimento... Foi como se todas as sombras que me obscureciam o cérebro se tivessem dissipado num ’segundo como quiméricas miragens. A despeito da minha vontade, considerei o meu pai como um desconhecido, sem que, entre nós, existisse o mais pequeno laço de sangue. Foi uma impressão nítida e incontestável: não havia nada de comum entre mim e ele... coisa alguma do que eu tinha fantasiado... Para que um homem se sinta verdadeiramente pai impõe-se que tenha assumido todos os encargos referentes ao filho, caso contrário, não é, para ele, mais do que o homem que lhe deu a vida e nada mais... e isso não cria laços nem direitos!
Embora andassem devagar, durante a conversa chegaram à entrada do castelo. Mais alguns passos, os degraus da escadaria a subir e encontrar-se-iam diante da porta.
Antes de entrarem, Cylia agarrou o braço de André e concluiu:
Fiquei sabendo que o amor paternal não nasce do instinto, como o amor maternal. É um sentimento convencional, criado pelos usos e pelas leis, que impõem ao homem o dever de proteger e amar os filhos, nascidos da mulher com quem casou!... Se os laços do casamento se despedaçam, o resto não conta!
Villaines ficou impressionado. Quanto a sua amiguinha deveria ter sofrido para chegar a semelhante conclusão, tão desoladora, tão triste para uma rapariga de vinte anos que acreditava na força dos laços criados pelo amor paternal e pelo amor filial!
Docemente, passou-lhe o braço pelos ombros.
Devemos, acima de tudo, ter confiança no poder do amor, minha Cylia, o amor fonte da felicidade, da beleza e de todos os heroísmos... venha ele de um pai ou de um marido, seja ele conjugal ou paternal... Mais tarde, quando escolher o companheiro da sua vida, deve ir para ele com toda a confiança no seu amor, na sua fidelidade, no seu afecto pelos filhos... Crer... crer com fé em tudo quanto é belo e generoso!...
Nunca duvidar, minha amiga... A confiança é como um sol a iluminar a vida!
Tem razão, André concordou ela, tentando encontrar-lhe o olhar, apesar da escuridão Nunca duvidarei de si... terei sempre confiança... Creio em si, meu bom amigo!
Louco de alegria, André apertou-a contra si.
Será possível... não me enganei?... Não duvida de mim, foi o que disse?...
Foi, sim, Andréconfirmou ela sem falso pudor No outro dia estava louca... Amava-o e repeli-o...
Meu amor!... Minha bem-amada!... Não me engana? Consente em ser minha mulher?
Na voz grave de André vibrava ainda um vislumbre de dúvida e de ansiedade, mas Cylia, comovida, mas resoluta, confirmou:
Consinto, sim, André. Serei sua mulher!... Amo-o e sei que a sua concepção do casamento é idêntica à minha. Construiremos um lar cristão, povoá-lo-emos de lindos bebés que hão-de crescer ao abrigo do nosso carinho...
Educá-los-emos numa colaboração mútua e faremos deles homens de carácter... O pai nunca os olhará como estranhos...
E a mãe ensiná-los-á a honrar e respeitar o autor dos seus dias.
Minha muito querida!...
Estava tão comovido que não encontrava palavras em que pudesse exprimir-lhe tudo quanto sentia e limitou-se a apertá-la nos braços, como se quisesse que os seus corações batessem mais perto um do outro...
Em volta deles tudo era calma e silêncio...
Com respeitosa ternura, o advogado aflorou com os lábios a testa de Cylia, que lhe encostara a cabeça ao ombro.
Obsidiada pelas tristes recordações, Cylia murmurou baixinho:
Tenha confiança em mim, André... porque toda a minha alma lhe pertence... Sei que será sempre o companheiro fiel... o único... o verdadeiro.
O único, simrepetiu ele em voz ardente.
Mais uma vez se constituía a trindade humana... Os lábios dos dois noivos uniram-se de novo. Tinham chegado à entrada do castelo.
Adeus, meu amor!... Não pense mais no passado... Volte-se para o futuro, para o nosso futuro!... Durma bem, adorada!... Até amanhã.
Até sempre, André! respondeu ela Ficaremos unidos para toda a vida!
E com esta frase Cylia desviou de si todas as ilusões que naqueles quatro meses tanto a tinham feito sofrer. Agora, no seu espírito, nascera a confiança no futuro!
Max Du Veuzit
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