Capítulo 12
Um dos homens do meu pai está me esperando do lado de fora da minha porta.
Olho de relance em sua direção, mas não o suficiente para reconhecer suas feições.
— Diga qual o assunto, soldado.
— Senhor — ele diz —, recebi ordens para lhe informar que o comandante supremo solicita sua presença em seus alojamentos para o jantar às vinte horas.
— Considere sua mensagem recebida. — Dou um passo para abrir minha porta.
Ele dá um passo à frente, bloqueando minha passagem.
Viro o corpo para olhar para ele.
Ele está parado a alguns passos de distância de mim: um ato implícito de desrespeito; um nível de intimidade que nem mesmo Delalieu se permite. No entanto, ao contrário dos meus homens, os bajuladores que cercam meu pai se consideram especiais. Ser um membro da guarda de elite do comandante supremo é considerado um privilégio e uma honra. Eles se reportam diretamente a ele.
E nesse exato momento, esse soldado está tentando provar que é superior a mim.
Ele tem inveja de mim. Pensa que sou indigno de ser o filho do comandante supremo do Restabelecimento. Isso está praticamente escrito no rosto dele.
Tenho que segurar meu impulso de cair no riso quando encaro seus frios olhos cinza e o buraco negro que é sua alma. Ele tem as mangas enroladas na altura do cotovelo, suas tatuagens militares claramente definidas e à mostra. Os círculos concêntricos de tinta preta em volta dos seus braços são acentuados em vermelho, verde e azul, o único sinal para indicar que ele é um soldado de patente elevada. É um ritual doentio do qual sempre fiz questão de me recusar a participar.
O soldado ainda está me encarando.
Inclino minha cabeça em sua direção, ergo minhas sobrancelhas.
— Recebi ordens — ele declara — de esperar uma resposta oral aceitando esse convite.
Demoro um pouco, pensando nas minhas escolhas, mas não havia nenhuma.
Eu, como todos os fantoches desse mundo, sou completamente subserviente aos desejos do meu pai. É verdade que sou forçado a lutar todos os dias: que nunca serei capaz de enfrentar o homem que tem seus punhos cerrados em volta da minha espinha vertebral.
Isso me faz odiar a mim mesmo.
Encaro os olhos do soldado e imagino, por um breve momento, qual o nome dele, antes de perceber que não me importo com isso.
— Considere-o aceito.
— Sim, s...
— E da próxima vez, soldado, não se aproxime a menos de um metro e meio de distância de mim, sem pedir permissão.
Ele pisca os olhos, confuso.
— Senhor, eu...
— Você está confuso — o interrompo. — Acredita que trabalhar com o comandante supremo lhe dá imunidade das regras que governam a vida dos outros soldados. Veja, você está errado.
Seu rosto se enrijece.
— Nunca se esqueça — digo baixinho agora — que se eu quisesse o seu emprego, eu o teria. E não se esqueça de que o homem que você serve tão ansiosamente é o mesmo homem que me ensinou a atirar com uma arma de fogo quando eu tinha apenas nove anos de idade.
Suas narinas se dilatam. Ele olha direto para frente.
— Entregue sua mensagem, soldado. E então relembre isso e nunca mais fale comigo novamente.
Os olhos dele agora estão presos num ponto diretamente atrás de mim, seus ombros rígidos.
Espero.
Seu maxilar ainda está rígido. Lentamente ele levanta sua mão em saudação.
— Está dispensado — digo.
Tranco a porta do meu quarto e me encosto nela. Preciso de apenas um momento. Pego o vidrinho que está na mesinha de cabeceira e tiro duas pílulas quadradas; as jogo na boca, fechando meus olhos enquanto se dissolvem.
A escuridão atrás das minhas pálpebras é um alívio reconfortante.
Até que a lembrança do rosto dela se impõe à minha percepção.
Me sento na cama e deixo a cabeça cair na minha mão. Não deveria estar pensando nela agora. Tenho horas de papelada para separar e o estresse da presença do meu pai para aguentar. Jantar com ele vai ser um espetáculo. Um espetáculo de arrasar a alma.
Fecho meus olhos com força e faço um pequeno esforço para construir as paredes que com certeza limpariam minha mente. Mas dessa vez elas não funcionam. O rosto dela insiste em surgir subitamente, seu diário me provocando lá no fundo do meu bolso.
E começo a perceber que tem uma pequena parte de mim que não deseja afastar os pensamentos dela. Uma parte de mim gosta da tortura.
Essa garota está me destruindo.
Uma garota que passou o último ano internada num sanatório de loucos. Uma garota que tentou me matar porque eu a beijei. Uma garota que fugiu com outro homem só para se afastar de mim.
É claro que essa é a garota por quem eu iria me apaixonar.
Coloco a mão na boca.
Estou perdendo a cabeça.
Tiro minhas botas. Me enfio na cama e deixo a cabeça cair nos travesseiros.
Ela dormiu aqui, penso. Ela dormiu na minha cama. Ela acordou na minha cama. Ela estava aqui e deixei que ela escapasse.
Falhei.
Perdi.
Nem percebo que tirei o diário dela do bolso e o estou segurando em frente do rosto. Olhando para ele. Estudando sua capa desbotada numa tentativa de entender onde ela pode ter adquirido isso. Ela deve ter roubado de algum lugar, embora não consiga imaginar onde.
Há tantas coisas que eu gostaria de perguntar a ela. Tantas coisas que gostaria de lhe dizer.
Ao invés disso, abro seu diário e leio.
Às vezes fecho meus olhos e pinto essas paredescom cores diferentes.
Imagino que estou usando meias quentinhas e estou sentada perto do fogo. Imagino que alguém me deu um livro para ler, uma história para me levar para longe da tortura da minha própria mente. Quero ser alguém em algum outro lugar com alguma outra coisa a ocupar minha cabeça. Quero correr, quero sentir o vento batendo nos cabelos. Quero fingir que isso é simplesmente uma história dentro de outra história. Que essa cela é apenas um cenário, que essas mãos não me pertencem, que essa janela dá para um lugar lindo, se pelo menos eu conseguisse abri-la. Finjo que essa fronha é limpa, finjo que a cama é macia. Finjo e finjo e finjo até que o mundo fica maravilhoso por trás dos meus olhos e já não consigo mais contê-lo. Mas então meus olhos se abrem e sou agarrada pela garganta por um par de mãos que não param de me sufocar sufocar sufocar...
Meus pensamentos, acho, logo serão ouvidos.
Minha mente, espero, logo será descoberta.
O diário cai da minha mão e bate no meu peito. Passo a mão pelo rosto, pelo meu cabelo. Massageio o pescoço e me puxo com força para cima a ponto de bater a cabeça na cabeceira da cama, e na verdade fico grato a isso. Me demoro um pouco sentindo a dor.
E viro a página.
Imagino o que eles estão pensando. Meus pais. Imagino onde estão. Penso se eles estão bem agora, se estão felizes agora,se eles finalmente conseguiram o que queriam.Imagino se minha mãe vai querer ter outro filho. Imagino se alguém vai ter a bondade de me matar, e imagino se o inferno não é melhor do que aqui. Imagino como está meu rosto agora. Imagino se algum dia vou poder respirar o ar fresco novamente.
Imagino tantas outras coisas.
Às vezes fico acordada durante dias simplesmente contando tudo que encontro. Conto as paredes, as rachaduras na parede, meus dedos dos pés e das mãos. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, quantos passos para ir para frente e para trás no meu quarto. Conto meus dentes e cada fio de cabelo na minha cabeça e o número de segundos em que consigo prender minha respiração.
Mas às vezes fico tão cansada que esqueço que não tenho mais permissão para desejar mais nada, e me descubro desejando a única coisa que sempre quis. A única coisa com a qual sempre sonhei.
Sempre desejei ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso de volta. Ter alguém em quem confiar que não iria jogar as coisas em mim, nem colocar minhas mãos no fogo ou me bater por ter nascido. Alguém que iria saber que fui colocada para fora de casa e tentaria me achar, que nunca teria medo de mim.
Alguém que soubesse que eu nunca o machucaria.
Me vejo num canto desse quarto e enfio a cabeça nos meus joelhos e me balanço para frente e para trás para frente e para trás para frente e para trás e desejo e desejo e desejo coisas impossíveis até cair no sono de tanto chorar.
Imagino como seria ter um amigo.
E então imagino quem mais está preso neste hospício. Imagino de onde estão vindo os outros gritos.
Imagino se estão vindo de mim.
Tento me concentrar, dizendo a mim mesmo que são palavras vazias, mas estou mentindo. Porque, de algum modo, simplesmente ler essas palavras é demais; e pensar nela sofrendo está me deixando agoniado.
Saber que ela vivenciou isso.
Ela foi colocada nesse inferno pelos próprios pais, abandonada e maltratada a vida inteira. Empatia é uma emoção que eu não conhecia, mas agora toma conta de mim, me levando para um mundo que eu não sabia que podia penetrar. E embora sempre tenha acreditado que ela e eu tivéssemos muita coisa em comum, não sabia que podia sentir isso com tanta profundidade.
Isso está me matando.
Fico em pé. Começo a andar pelo quarto até acalmar meus nervos para continuar a leitura. Então respiro fundo.
E viro a página.
Tem alguma coisa fervilhando dentro de mim.
Algo que nunca ousei descobrir, algo que tenho medo de saber. Tem uma parte de mim lutando para se libertar da jaula onde estou presa, batendo nas portas do meu coração, suplicando para ser libertada.
Suplicando para ir embora.
Todos os dias sinto que revivo o mesmo pesadelo. Abro a boca para gritar, para lutar, para girar meus punhos, mas minhas cordas vocais estão cortadas, meus braços estão pesados e densos como se estivessem presos no cimento molhado e eu estou gritando mas ninguém me ouve, ninguém se aproxima e estou enjaulada. E isso está acabando comigo.
Sempre tive de bancar a submissa, subserviente, um pano de chão suplicante e passivo que fazia todo mundo se sentir seguro e confortável. Minha existência se tornou uma luta para provar que eu era inofensiva, não uma ameaça, que eu era capaz de viver entre outros seres humanos sem feri-los.
E estou tão cansada tão cansada tão cansada e às vezes chego a ficar com raiva.
Não sei o que está acontecendo comigo.
— Meu Deus, Juliette. — Suspiro.
E caio de joelhos.
— Chame o transporte imediatamente. — Preciso sair. Preciso sair daqui agora.
— Senhor? Isso é, sim, senhor, é claro... mas onde...
— Tenho que visitar os complexos — digo. — Tenho que fazer minhas rondas antes do meu compromisso dessa noite. — Isso é tanto verdade quanto mentira. Porém agora estou disposto a fazer qualquer coisa que me afaste desse diário.
— Ah, certamente, senhor. Gostaria que o acompanhasse?
— Isso não será necessário, tenente, mas obrigado pela oferta.
— Eu... se-senhor — ele gagueja. — É claro, é u-uma honra servi-lo, senhor, ajudá-lo...
Deus do céu, onde estou com a cabeça. Eu nunca digo obrigado a Delalieu. É muito provável que o pobre homem vá ter um infarto agora.
— Estarei pronto para sair em dez minutos — interrompo.
Ele começa a gaguejar, mas para. Então diz:
— Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Estou pressionando a boca com o punho quando a ligação é desconectada.
Capítulo 13
Tínhamos lares. Antes.
De todos os tipos diferentes.
Casas térreas. Sobrados. Casas de três andares.
Comprávamos enfeites para o jardim e luzinhas pisca-pisca, aprendíamos a andar de bicicleta sem rodinhas. Adquirimos vidas confinadas em 1,2 e 3 andares já construídos, andares contidos em estruturas que não podíamos mudar.
Vivemos nesses andares por algum tempo.
Seguimos a história que nos era contada, o texto preso em cada metro do espaço que havíamos conquistado. Ficamos contentes com a mudança no enredo que redirecionou nossa vida. Assinamos nas linhas pontilhadas por coisas pelas quais não nos importávamos realmente. Comíamos coisas que não deveríamos, gastávamos dinheiro quando não podíamos, esquecíamos a Terra que tínhamos de habitar e desperdiçávamos desperdiçávamos desperdiçávamos tudo. Comida. Água. Recursos.
Logo, os céus ficaram cinza com a poluição química, e as plantas e os animais ficaram doentes devido à modificação genética. E doenças se impregnaram no nosso ar, nas nossas refeições, nossos sangues e nossas casas. A comida desapareceu. As pessoas estavam morrendo. Nosso império estava caindo aos pedaços.
O Restabelecimento disse que nos ajudariam. Nos salvariam. Reconstruiriam nossa sociedade.
Ao invés disso, eles nos destroçaram.
Gosto de visitar os complexos.
É um lugar estranho para se buscar refúgio, mas sinto alguma coisa ao ver tantos civis num espaço tão vasto e aberto que me faz lembrar da minha missão. Fico tanto tempo preso nos limites dos muros do quartel-general do Setor 45, que frequentemente me esqueço dos rostos daqueles por quem lutamos e daqueles com quem estamos lutando.
Gosto de me lembrar.
Geralmente, visito cada aglomerado dos complexos; cumprimento os moradores e pergunto sobre suas condições de vida. Não consigo deixar de ficar curioso em saber como é a vida deles agora. Porque enquanto o mundo se transformou inteiramente para eles, meu mundo continuou o mesmo. Disciplinado. Isolado. Desolador.
Houve um tempo quando as coisas foram melhores, quando meu pai não era tão irritado. Eu tinha cerca de 4 anos. Ele costumava me fazer sentar em seu colo e brincar com seus bolsos. Eu podia pegar o que quisesse, desde que meu argumento fosse bem convincente. Era seu jeito de brincar.
Mas tudo isso foi antes.
Aperto meu casaco no corpo, sentindo o tecido se encostar nas minhas costas. Vacilo sem querer.
A vida que tenho agora é a única que importa. O sufoco, o luxo, as noites mal dormidas, e os corpos dos mortos. Sempre me ensinaram a me concentrar no poder e na dor, em ganhar e infligir.
Não lamento nada.
Aceito tudo.
É o único modo que encontrei de continuar vivendo nesse corpo maltratado. Esvazio minha mente das coisas que me infestam e sobrecarregam minha alma, e aceito o que puder dos pequenos prazeres que aparecem à minha frente. Não sei o que é ter uma vida normal; não sei como simpatizar com os cidadãos que perderam suas casas. Não faço ideia de como era a vida deles antes de o Restabelecimento tomar o poder.
Por isso gosto de passear pelos complexos.
Gosto de ver como as outras pessoas vivem; gosto de ter o poder de fazer com que respondam às minhas perguntas. Do contrário não teria como saber.
Mas o momento é errado.
Não prestei muita atenção ao relógio quando saí da base, e não percebi que o sol estava se pondo. A maioria dos civis está voltando para casa para descansar à noite, seus corpos curvados, encolhidos pelo frio enquanto se encaminhavam em direção aos aglomerados de metal que dividem com pelo menos outras três famílias.
As casas improvisadas são construídas com containers de navios de doze metros quadrados; eles são empilhados lado a lado e um em cima do outro, agrupados em grupos de cinco ou seis. Cada container foi isolado; equipado com duas janelas e uma porta. Escadas para o andar superior foram colocadas de cada lado de fora da estrutura. Os tetos são alinhados com painéis solares que fornecem eletricidade gratuita para cada grupo.
É algo do qual muito me orgulho.
Porque foi minha ideia.
Quando estávamos procurando por abrigos temporários para os civis, sugeri reformar os velhos containers de carga que ocupavam as docas de todos os portos do mundo. Não apenas eram baratos, facilmente reaproveitados, e altamente adaptáveis, mas podiam ser empilhados, eram portáteis e construídos independentemente do clima do lugar. Eles exigiam o mínimo de construção e, com a equipe certa, milhares de unidades habitacionais poderiam estar prontas em alguns dias.
Dei essa ideia para meu pai, pensando que essa seria a opção mais eficiente; uma solução temporária que seria menos desumana do que barracas; algo que ofereceria um abrigo real e confiável. Mas o resultado foi tão eficiente que o Restabelecimento não viu necessidade de renovação. Aqui, num terreno que costumava ser um lixão, assentamos milhares de containers; aglomerados de cubos retangulares e desbotados que são fáceis de monitorar e vigiar.
As pessoas ainda acreditam que essa é uma solução temporária. Que um dia voltarão para as lembranças de suas antigas vidas e as coisas serão lindas e brilhantes novamente. Mas tudo isso é mentira.
O Restabelecimento não tem planos de mudá-los de onde estão.
Os civis devem permanecer nessas áreas regulamentadas; esses containers se tornaram suas prisões. Tudo foi numerado. As pessoas, suas casas, seu grau de importância para o Restabelecimento.
Aqui, eles se tornaram parte de um enorme experimento. Um mundo no qual trabalham para manter as necessidades de um regime que faz promessas que nunca serão cumpridas.
Essa é a minha vida.
Esse triste mundo.
Na maior parte do tempo, me sinto como um civil; e é provavelmente por isso que vim até aqui. É como se estivesse indo de uma prisão para outra; numa existência onde não há escape, não há refúgio. Quando até mesmo minha mente me trai.
Eu deveria ser mais forte do que isso.
Tenho treinado há mais de uma década. Tenho trabalhado todos os dias para aprimorar minhas forças física e mental. Tenho 1 metro e 79 de altura e 77 quilos de músculos. Fui preparado para sobreviver, para maximizar a resistência e a energia, e fico perfeitamente à vontade segurando uma arma. Posso desmontar, limpar, recarregar, desarmar e remontar mais de 150 tipos de armas de fogo. Posso atirar no centro de um alvo, de praticamente qualquer distância. Posso quebrar o pescoço de uma pessoa com a lateral da mão. Posso paralisar temporariamente um homem com apenas os nós dos meus dedos.
No campo de batalha, sou capaz de me desconectar dos movimentos que aprendi a memorizar. Criei a reputação de ser alguém frio, um monstro que não teme nada nem ninguém.
Mas tudo isso é ilusório.
Porque a verdade é que não passo de um covarde.
Capítulo 14
O sol está se pondo.
Logo vou ter que retornar à base, onde vou me sentar quieto e ouvir meu pai falar, em vez de mandar bala na sua boca aberta.
Então tento ganhar tempo.
Fico parado e ouço barulhos vindos de longe e observo as crianças correrem, enquanto seus pais as levam para casa. Penso se um dia eles vão crescer o bastante para sacar que os cartões do Registro do Restabelecimento na verdade estão rastreando todos seus movimentos. Que o dinheiro que seus pais recebem pelo trabalho em alguma das muitas fábricas existentes ali é monitorado de perto. Essas crianças crescerão e finalmente entenderão que tudo que elas fazem está gravado, cada conversa é dissecada para se descobrir murmúrios de rebeliões. Eles não sabem que estão sendo criados perfis para cada cidadão, e que cada arquivo é bem grosso com documentação das suas amizades, relacionamentos, e hábitos de trabalho; até mesmo como gostam de passar seu tempo livre.
Sabemos tudo sobre todo mundo.
Demais.
Tanto é verdade que raramente me lembro que estamos lidando com gente de verdade, seres vivos, até vê-los nos complexos. Sei de cor o nome de quase todos os cidadãos do Setor 45. Gosto de saber quem vive na minha jurisdição, não importa se são soldados ou civis.
Foi assim que tomei conhecimento, por exemplo, que o soldado Seamus Fletcher, 45B-76423, batia na esposa e nos filhos todas as noites.
Eu sabia que ele estava gastando todo seu dinheiro em bebidas; sabia que ele estava deixando sua família passar fome. Monitorei os dólares REST que ele gastava nas nossas centrais de abastecimento e observei atentamente a família dele no complexo. Sabia que seus três filhos tinham menos de 10 anos e não comiam há semanas; sabia que eles haviam estado inúmeras vezes no posto médico do complexo para tratar de ossos quebrados e levar pontos em machucados. Fiquei sabendo que ele deu um soco na boca de sua filha de 9 anos e cortou o lábio dela, fraturou o maxilar e quebrou dois de seus dentes da frente; e soube que sua esposa estava grávida. Também fiquei sabendo que certa noite ele bateu nela com tanta força que ela perdeu a criança na manhã seguinte.
Eu sei por que estava lá.
Eu estava parando em cada residência, visitando os civis, fazendo perguntas sobre sua saúde e como estavam suas vidas. Queria saber de suas condições de trabalho e se algum membro de suas famílias precisaria estar de quarentena.
Ela estava em casa naquele dia. A esposa de Fletcher. Seu nariz estava quebrado e seus olhos estavam tão inchados que ela nem conseguia abri-los direito. Seu corpo era tão magro e frágil, sua pele tão pálida, que achei que ela iria se quebrar em duas ao sentar-se. Quando lhe perguntei sobre os machucados, ela evitou meus olhos. Disse que tinha caído; que por causa da sua queda ela havia perdido a criança que carregava e conseguiu também quebrar o nariz no acidente.
Acenei com a cabeça. Agradeci por sua cooperação ao responder minhas perguntas.
E então convoquei uma reunião.
Estou ciente que a maioria dos meus soldados rouba dos armazéns dos nossos complexos. Analiso os relatórios cuidadosamente e sei que tem suprimentos desaparecendo o tempo todo. Mas permito essas pequenas infrações porque elas não perturbam o sistema. Alguns pães ou pedaços de sabão a mais deixam meus soldados mais animados; eles trabalham mais se estiverem saudáveis, e a maioria deles mantém esposa, filhos e parentes. Então essa é uma concessão que faço.
Mas algumas coisas não posso perdoar.
Não me considero um moralista. Não filosofo sobre a vida ou me importo com as leis e princípios que governam a vida das pessoas. Não pretendo saber a diferença entre o certo e o errado. Mas procuro viver sob certo código de vida. E às vezes, eu acho, tenho que aprender a atirar antes.
Seamus Fletcher estava matando sua família. E eu lhe dei um tiro na testa porque achei que assim seria menos doloroso do que destroçá-lo com minhas próprias mãos.
Mas meu pai completou o trabalho que Fletcher havia começado. Meu pai mandou matar os três filhos dele e sua mulher, tudo por causa de um bêbado cretino que deveria ter cuidado deles. Ele era o pai deles, o marido dela, e a razão de eles terem tido uma morte tão brutal e inesperada.
E alguns dias eu imagino por que insisto em continuar vivendo.
Capítulo 15
De volta à base, sigo direto em frente.
Ignoro os soldados e suas continências por onde passo, sem prestar atenção à mistura de curiosidade e desconfiança em seus olhos. Nem tinha percebido que havia tomado esse caminho ao chegar à base; mas meu corpo parece saber mais do que minha mente, do que precisa agora. Meus passos são pesados; regulares, o som das minhas botas ecoa ao longo do piso de pedras conforme chego aos andares de baixo.
Não venho aqui há quase duas semanas.
O quarto fora reformado desde a última vez em que estive aqui; o painel de vidro e a parede de concreto foram substituídos. E pelo que sei ela foi a última pessoa a usar esse quarto.
Eu mesma a havia trazido aqui.
Empurro as duas portas giratórias do vestiário que fica na sala adjacente ao deque de simulação. Minha mão procura no escuro pelo interruptor; as luzes piscam uma vez antes de se acenderem. Um zumbido monótono de eletricidade vibra nesses cômodos vastos. Tudo está quieto, abandonado.
Exatamente como eu gosto.
Tiro minhas roupas o mais rápido que consigo, devido aos ferimentos. Ainda tenho duas horas antes do esperado jantar com meu pai, então eu não deveria estar tão ansioso assim, mas meus nervos não estão ajudando. Tudo parece estar vindo para cima de mim de uma vez só. Meus fracassos. Minha covardia. Minha estupidez.
Às vezes fico tão cansado dessa vida.
Estou em pé, descalço no concreto, só usando a tipoia no meu braço, detestando como esse ferimento me deixa constantemente para baixo. Pego o shorts guardado no meu armário e o visto o mais rapidamente possível, me encostando à parede para me apoiar. Quando finalmente fico ereto, fecho a porta do armário e entro no cômodo ao lado.
Aperto mais um interruptor, e o sistema operacional principal começa a funcionar. Os computadores emitem um sinal sonoro e uns flashes se acendem enquanto o programa se prepara; passo os dedos pelo teclado.
Costumamos usar esses cômodos para simulações.
Manipulamos a tecnologia para criar lugares e experiências que existem apenas na mente humana.
Não apenas somos capazes de criar o cenário, mas também podemos controlar os mínimos detalhes. Sons, cheiros, falsa segurança, paranoia. O programa foi originalmente criado para ajudar soldados em missões específicas, e também para ajudá-los a superar medos que, do contrário, iria incapacitá-los no campo de batalha.
Eu o uso para meus próprios fins.
Costumava vir aqui todos os dias antes de ela chegar à base. Aqui era meu porto seguro; minha única fuga do mundo. Apenas gostaria que não precisasse de um uniforme. Esse short é engomado e desconfortável, o poliéster coça e irrita a pele. Mas é forrado com uma química especial que reage com a minha pele e alimenta o sensor com informações; me ajudam a me situar na experiência e me permitirá correr por quilômetros sem precisar correr de verdade, muros físicos no meu ambiente real. E para que o processo seja o mais eficiente possível, tenho que vestir quase nada. As câmeras são hipersensíveis ao calor do corpo, e funcionam melhor quando não entra em contato com materiais sintéticos.
Espero que esse detalhe fique anotado para a próxima geração do programa.
A central me solicita dados; rapidamente entro com o código de acesso que me garante permissão para levantar o histórico das últimas simulações. Olho para o alto por sobre meu ombro enquanto o computador processa os dados; olho de relance pelo recém-consertado espelho de duas faces que vê o cômodo principal. Ainda não acredito que ela quebrou uma parede inteira de vidro e concreto e continuou a caminhar sem um arranhão.
Inacreditável.
A máquina bipa duas vezes; me viro novamente. Os programas que solicitei estão carregados e prontos para serem executados.
O arquivo dela é o primeiro da lista.
Respiro fundo; tento afastar as lembranças. Não me arrependo de tê-la feito passar por uma experiência tão horrível. Não sei se ao final ela teria se permitido perder o controle — finalmente habitar seu próprio corpo — se eu não tivesse encontrado um modo eficiente de provocá-la. Ultimamente realmente acredito que isso a ajudou, exatamente como eu pretendia. Mas eu desejaria que ela não tivesse apontado uma arma na minha cara e saltado pela janela logo depois.
Suspiro devagar mais uma vez, acalmando minha respiração.
E seleciono a simulação que me motivou a vir até aqui.
Capítulo 16
Estou parado no cômodo principal.
Me encarando.
Essa é uma simulação bem simples. Não precisei trocar de roupa nem mexer no meu cabelo, nem alterar o piso carpetado. Não fiz nada a não ser criar uma duplicata de mim mesmo e lhe entregar uma arma.
Ele não para de me encarar.
Um.
Ele curva ligeiramente a cabeça.
— Você está pronto? — Uma pausa. — Está com medo?
Meu coração bate em disparada.
Ele ergue seu braço. Sorri um pouco.
— Não se preocupe — ele diz. — Está quase terminado agora.
Dois.
— Só um pouco mais e eu vou embora — ele diz, apontando a arma para a minha testa.
Minhas mãos estão suadas. Meu pulso está acelerado.
— Você vai ficar bem — ele mente. — Prometo.
Três.
Bummm.
Capítulo 17
— Tem certeza de que não está com fome? — meu pai pergunta, ainda mastigando. — Isso está realmente muito bom.
Me mexo na cadeira. Me concentro nos vincos bem passados das calças que estou usando.
— Hum? — ele indaga. Posso vê-lo sorrindo.
Estou intensamente ciente dos soldados alinhados nas paredes desta sala. Ele sempre os mantém perto de si, e sempre em constante competição uns com os outros. Sua primeira tarefa era determinar qual era o elo mais fraco dentre os onze. Aquele com o argumento mais convincente poderia dispor do seu alvo.
Meu pai acha essas práticas divertidas.
— Receio não estar com muita fome. Os remédios — minto — acabam com meu apetite.
— Ah — ele replica. Ouço o barulho de seus talheres quando ele os deposita na mesa. — É claro. Que inconveniência.
Não digo nada.
— Podem se retirar.
Duas palavras e seus homens se dispersam em questão de segundos. A porta se fecha atrás deles.
— Olhe para mim — ele ordena.
Levanto o olhar, meus olhos cuidadosamente desprovidos de emoção. Odeio seu rosto. Não suporto olhar muito tempo para ele; não gosto da experiência de observar como ele é desumano. Ele não se tortura pelo que faz ou pelo modo que vive. Na verdade ele gosta disso. Ele adora a adrenalina do poder; ele se vê como uma entidade invencível.
E, de certo modo, não está errado.
Passei a crer que o homem mais perigoso do mundo é aquele que não sente remorso. Aquele que nunca se desculpa e, portanto, não procura o perdão. Porque no final, são nossas emoções que nos torna fracos, não nossas ações.
Viro o rosto.
— O que encontrou? — ele pergunta sem preâmbulos.
Minha mente vai imediatamente para o diário que está guardado no meu bolso, mas não faço nenhum comentário. Nem pisco. As pessoas raramente percebem que, na maioria das vezes, mentem com os lábios e dizem a verdade com os olhos. Coloque um homem num cômodo com algo que ele tenha escondido, e então pergunte onde ele a escondeu; ele vai dizer que não sabe; vai dizer que você pegou a pessoa errada; mas quase sempre ele vai olhar na direção certa. E agora meu pai está me examinando, esperando ver para onde vou olhar, o que direi a seguir.
Mantenho meus ombros relaxados e respiro devagar, imperceptivelmente, para amansar meu coração. Não respondo. Finjo estar perdido em meus pensamentos.
— Filho?
Ergo o olhar. Finjo surpresa.
— Sim?
— O que achou? Quando revistou o quarto dela hoje?
Solto o ar. Sacudo a cabeça quando me recosto na cadeira.
— Vidros quebrados. Uma cama desarrumada. O armário dela, escancarado. Ela levou apenas alguns itens de higiene pessoal e algumas roupas extras e roupas de baixo. — Nada disso era sem sentido. Nada disso era mentira.
Ouço quando ele suspira. Ele afasta seu prato.
Sinto o contorno do caderninho dela queimando minha perna.
— E você diz que não sabe para onde ela pode ter ido?
— Apenas sei que ela, Kent e Kishimoto devem estar juntos — explico a ele. — Delalieu diz que roubaram um carro, mas as pistas desapareceram na entrada de um enorme terreno baldio. Fizemos as tropas vasculharem aquela área durante dias, mas não encontramos nada.
— E onde — ele pergunta — planeja procurar a seguir? Você acha que eles cruzaram para outro setor? — A voz dele está estranha. Divertida.
Olho seu rosto sorridente.
Ele só está me fazendo essas perguntas para me testar. Ele tem suas próprias respostas, sua solução já preparada. Ele quer me ver falhar ao responder incorretamente. Está tentando provar que, sem ele, eu tomaria as decisões erradas.
Ele está se divertindo às minhas custas.
— Não — digo a ele, com a voz sólida e firme. — Não acho que vão fazer algo tão idiota como atravessar para outro setor. Eles não têm acesso, meios ou capacidade para isso. Ambos os homens estão severamente feridos, perdendo sangue rapidamente, e estão distantes de qualquer ajuda de emergência. Provavelmente estão mortos agora. A garota talvez seja a única sobrevivente, e ela não pode ter ido muito longe, pois não conhece como andar por aquelas áreas. Ela ficou isolada muito tempo; tudo nesse lugar é completamente estranho para ela. Além do que, ela não sabe dirigir, e se por acaso ela conseguisse dirigir um veículo, teríamos sido informados da propriedade roubada. Se levarmos em consideração seu estado geral de saúde, sua propensão a se esgotar fisicamente muito rápido, e a falta de acesso à comida, água e atenção médica, ela deve estar desmaiada num raio de dez quilômetros desse suposto terreno baldio. Temos que encontrá-la antes que morra congelada.
Meu pai pigarreia.
— Sim — ele diz —, são teorias interessantes. E, talvez, sob outras circunstâncias, elas poderiam até ser verdadeiras. Mas você está se esquecendo de me falar do detalhe mais importante.
Olho nos olhos dele.
— Ela não é normal — ele conclui, recostado à sua cadeira. — E ela não é a única da sua espécie.
Meu coração acelera. Pisco rápido demais.
— Ah, vamos lá, você não suspeitou de nada? Não criou nenhuma hipótese? — Ele ri. — Parece impossível, estatisticamente, que ela seja a única desse tipo que foi produzida pelo nosso mundo. Você sabia disso, mas não quis acreditar. E eu vim aqui para lhe dizer que é verdade. — Ele curva a cabeça ligeiramente em minha direção. Dá um sorriso largo e vibrante. — Existem muitos deles. E eles a recrutaram.
— Não. — Solto o ar.
— Eles se infiltraram em suas tropas. Vivem no seu meio em segredo. E agora roubaram seu brinquedinho e fugiram com ele. Só Deus sabe como esperam manipulá-la em seu próprio benefício.
— Como pode ter tanta certeza? — indago. — Como sabe que eles conseguiram levá-la com eles? Kent estava meio morto quando o deixei...
— Preste atenção, filho. Estou lhe afirmando que eles não são normais. Eles não seguem suas regras; não há nenhuma lógica que os oriente. Você não tem ideia das esquisitices de que são capazes. — Uma pausa. — Além do mais, tenho conhecimento já há algum tempo, de um grupo deles que vive disfarçado nessa área. Mas durante todo esse tempo eles sempre se mantiveram afastados. Eles não interferem em meus métodos, e achei melhor deixá-los morrer sozinhos sem causar um pânico desnecessário na nossa população civil. Você entende, é claro — ele diz. — Afinal de contas, é muito difícil conter pelo menos um deles. Eles são a coisa mais bizarra de se ver.
— Você sabia? — Estou de pé agora. Tentando ficar calmo. — Você sabia da existência deles, durante todo esse tempo, e assim mesmo não fez nada? Não disse nada?
— Não julguei necessário.
— E agora? — exijo.
— Agora parece pertinente.
— Inacreditável! — Levanto as mãos para o alto. — Que você escondesse de mim tal informação! Quando sabia dos meus planos para ela... quando sabia o sacrifício que foi trazê-la aqui...
— Acalme-se — ele pede. Ele estica as pernas; apoia o tornozelo de uma perna no joelho da outra. — Vamos encontrá-los. Esse terreno abandonado que Delalieu mencionou — a área onde o carro deixou de ser rastreado? Esse é o nosso ponto de partida. Eles devem estar escondidos nos subterrâneos. Devemos encontrar a entrada e os destruir em silêncio, por dentro. Então os teremos punido, e evitamos que o resto se revolte e inspire a rebelião no nosso povo.
Ele se inclina para frente.
— Os civis escutam tudo. E, no momento, estão vibrando com um novo tipo de energia. Estão se sentindo motivados ao perceberem que um deles conseguiu escapar e que você saiu ferido no processo. Isso faz nossas defesas parecerem fracas e fáceis de serem penetradas. Precisamos destruir essa percepção reequilibrando a balança. O medo irá retornar tudo para seu devido lugar.
— Mas eles estão procurando — digo a ele. — Meus homens. Eles vasculham a área todos os dias e ainda não encontraram nada. Como pode ter certeza que iremos descobrir alguma coisa, afinal de contas?
— Porque — ele explica — você vai liderá-los. Todas as noites. Depois do toque de recolher, enquanto os civis dormem. Você não vai interromper as buscas durante o dia; não vai dar a eles motivo para terem o que falar. Aja em silêncio, meu filho. Não mostre suas jogadas. Vou permanecer na base e supervisionar suas responsabilidades com meus homens; vou dar ordens a Delalieu se for necessário. E nesse ínterim, você irá encontrá-los, para que eu possa destruí-los o mais rápido possível. Essa loucura já está durando tempo demais — ele diz — e eu não estou mais a fim de ser generoso.
Capítulo 18
Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito mesmo por favor me perdoe.
Foi um acidente.
Me perdoe
Por favor me perdoe
Há pouca coisa que eu permito que as pessoas descubram a meu respeito. Há ainda menos coisas que estou disposto a partilhar sobre mim mesmo. E entre as muitas coisas que nunca discuti com ninguém, é esta.
Gosto de tomar banhos demorados.
Sempre tive uma obsessão por limpeza desde que era pequeno. Sempre fui tão focado em morte e destruição que acho que compenso isso me mantendo o mais intacto possível. Tomo chuveiradas com frequência. Escovo e passo fio dental nos dentes pelo menos três vezes ao dia. Corto meu cabelo toda semana. Esfrego minhas mãos e unhas antes de me deitar e assim que acordo. Tenho uma preocupação doentia em usar apenas roupas que acabaram de ser lavadas. E todas as vezes que passo por alguma emoção mais forte, a única coisa que acalma meus nervos é um banho bem demorado.
Então é isso que vou fazer agora.
Os médicos me ensinaram como prender meu braço ferido no mesmo plástico que eles usaram antes, então posso mergulhar abaixo da superfície sem problemas. Afundo minha cabeça por um longo período, seguro a respiração e solto o ar pelo nariz. Sinto as borbulhas virem à tona.
A água morna me faz sentir leve. Ela carrega meu peso para mim, compreendendo que preciso de um momento para aliviar meus ombros desse peso. Para fechar meus olhos e relaxar.
Meu rosto rompe a superfície da água.
Não abro meus olhos; apenas meu nariz e minha boca respiram o oxigênio do outro lado. Faço respirações curtas e regulares para acalmar a mente. Já é tão tarde que nem sei mais que horas são; tudo que sei é que a temperatura caiu significativamente, e o ar frio está fazendo cócegas no meu nariz. É uma sensação estranha, ter 98 por cento do meu corpo boiando numa temperatura quente e agradável, enquanto meus lábios e meu nariz se contraem com o frio.
Mergulho meu rosto na água novamente.
Poderia viver aqui para sempre, eu acho. Viver onde a gravidade não sabe que eu existo. Aqui estou solto, sem restrições das amarras da vida. Sou um corpo diferente, uma concha diferente, e meu corpo é levado pelas mãos dos amigos. Tantas noites desejei poder cair no sono debaixo desse lençol.
Mergulho mais fundo.
Em uma semana, minha vida inteira mudou.
Minhas prioridades mudaram de foco. Minha concentração, destruída. Tudo com que me importo agora se resume a uma pessoa e, pela primeira vez na vida, não sou eu mesmo. Suas palavras estão marcadas na minha mente. Não consigo parar de imaginar como ela deve ter sido, não consigo deixar de imaginar o que ela deve ter vivenciado. Encontrar seu diário me deixou arrasado. Meus sentimentos por ela saíram do controle. Nunca estive tão desesperado para vê-la, para conversar com ela.
Quero que ela saiba que eu entendo agora. Que eu não entendia antes. Ela e eu somos iguais; em mais de uma maneira que eu possa ter imaginado.
Porém, agora, ela está fora do meu alcance. Ela foi para algum lugar com estranhos que não a conhecem e não se importam com ela do mesmo jeito que eu. Ela foi parar num ambiente estranho sem tempo para se adaptar e estou preocupado com ela. Uma pessoa na situação dela — com seu passado — não se recupera da noite para o dia. E agora, uma de duas coisas está prestes a acontecer: ou ela vai se fechar completamente, ou vai explodir.
Sento rápido demais, rompendo a barreira da água, ofegante.
Afasto o cabelo molhado do rosto. Me encosto na parede azulejada, deixando o ar frio me acalmar, clarear meus pensamentos.
Tenho que encontrá-la antes que ela se destrua.
Nunca antes quis cooperar com meu pai, nunca concordei com seus motivos ou seus métodos. Mas, nesse instante, estou disposto a fazer qualquer coisa para tê-la de volta.
E estou ansioso pela oportunidade de pular no pescoço de Kent.
O cretino traidor. O idiota que acha que conquistou uma garota bonita. Ele não tem ideia de quem ela seja. Não imagina no que ela pode se transformar.
E se ele pensa que é o par ideal para ela, está muito enganado, ele ainda é mais idiota do que eu imaginava.
Capítulo 19
— Onde está o café? — pergunto, meus olhos examinando a mesa.
Delalieu derruba o garfo. O talher de prata cai ruidosamente sobre os pratos de porcelana. Ele ergue os olhos, assustados.
— Senhor?
— Gostaria de experimentar — digo a ele, tentando passar manteiga na torrada com a mão esquerda. Olho em sua direção. — Você está sempre falando sobre o café, não é? Pensei em...
Delalieu dá um salto da mesa sem dizer uma palavra. Sai correndo pela porta.
Dou uma risada silenciosa para o meu prato.
Delalieu traz a bandeja do chá e café pessoalmente e a coloca perto da minha cadeira. Suas mãos tremem enquanto ele despeja o líquido escuro numa xícara de chá, a coloca sobre um pires, põe sobre a mesa e a empurra em minha direção.
Espero até ele se sentar para tomar um gole. É uma bebida estranha, terrivelmente amarga; nada como eu imaginava. Olho para ele surpreso por saber que um homem como Delalieu começa seu dia tomando um líquido de gosto tão forte e horrível. Descubro um novo respeito pelo homem.
— Não é tão ruim assim — digo a ele.
Seu rosto se abre num sorriso tão grande, tão sereno, que imagino se ele me entendeu mal. Ele está praticamente radiante quando responde:
— Tomo o meu com creme e açúcar. O gosto fica bem melhor do que...
— Açúcar. — Abaixo a xícara. Fechos os lábios e me controlo para não sorrir. — Você coloca açúcar nisso. Claro que sim. Isso faz mais sentido.
— Gostaria de um pouco, senhor?
Levanto minha mão. Sacudo a cabeça.
— Chame as tropas, tenente. Vamos suspender as missões durante o dia e, ao invés disso, faremos incursões noturnas depois do toque de recolher. Você vai permanecer na base — digo a ele — onde o supremo dará as ordens através de seus homens; cumpra as ordens que eles derem. Eu mesmo vou liderar o grupo. — Paro. Olho direto nos olhos dele. — Não se fala mais nada do que aconteceu. Não há nada para os civis verem ou falarem. Você entende?
— Sim, senhor — ele diz, esquecendo o café. — Vou dar as ordens imediatamente.
— Ótimo.
Ele se levanta.
Eu aceno com a cabeça.
Ele se retira.
Estou começando a sentir esperança pela primeira vez desde que ela foi embora. Vamos encontrá-la. Agora, com essa nova informação — com um exército inteiro contra um grupo de rebeldes despreparados — parece impossível não vencermos.
Respiro fundo. Tomo outro gole do café.
Estou surpreso ao perceber como gostei do seu gosto amargo.
Capítulo 20
Meu pai está à minha espera quando volto para meu quarto.
— As ordens foram dadas — digo a ele sem olhar em sua direção. — Vamos mobilizar as tropas hoje à noite. — Hesito. — Bem, se pode me desculpar, tenho outros assuntos para tratar.
— Qual a sensação? — ele indaga. — De estar tão incapacitado? — ele pergunta sorrindo. — Como você aguenta se ver no espelho, sabendo que foi atacado por um de seus próprios subordinados?
Faço uma pausa do lado de fora da porta que leva ao meu escritório.
— O que você quer?
— Qual — é seu interesse por essa garota? — ele indaga.
Minhas costas enrijecem.
— Ela é mais do que apenas uma experiência para você, não é?
Giro o corpo lentamente. Ele está parado no meio do meu quarto, com as mãos nos bolsos, e com um sorriso aparentando nojo.
— Do que você está falando?
— Dê uma olhada em si mesmo — ele diz. — Eu ainda nem disse o nome dela e parece que você vai desabar. — Ele sacode a cabeça, ainda me examinando de perto. — Seu rosto está pálido, sua mão que funciona está crispada. Está com a respiração ofegante e seu corpo está tenso. — Uma pausa. — Você se traiu, filho. Você se acha muito esperto — ele diz —, mas se esquece de quem lhe ensinou todos os truques.
Fico quente e gelado ao mesmo tempo. Tento relaxar as mãos, mas não consigo. Quero dizer a ele que não há nada errado, mas repentinamente estou me sentindo meio zonzo, desejando ter comido um pouco mais no café da manhã, e ao mesmo tempo desejando não ter comido nada.
— Tenho trabalho a fazer — consigo dizer.
— Me diga — ele pergunta — que você não se importa se ela morrer junto com os outros.
— O quê? — As palavras trêmulas e nervosas escapam rápido demais dos meus lábios.
Meu pai abaixa o olhar. Ele cerra e descerra os punhos.
— Você já me desapontou de tantas maneiras — ele diz com a voz aparentemente suave. — Por favor, não faça isso novamente.
Por um momento sinto como se estivesse fora do meu corpo, me olhando pela perspectiva dele. Vejo meu rosto, meu braço ferido, essas pernas que de repente parecem incapazes de carregar meu peso. Fendas começam a se criar ao longo do meu rosto, pelos meus braços, meu tronco e minhas pernas.
Imagino que seja assim que alguém desmorona.
Não percebo que ele disse meu nome, até ele repeti-lo uma segunda vez.
— O que você quer de mim? — pergunto, surpreso, ao perceber como pareço calmo. — Você entrou no meu quarto sem permissão; fica parado aí e me acusa de coisas que ainda nem consegui entender. Estou seguindo suas regras, suas ordens. Vamos partir hoje à noite; vamos encontrar o esconderijo deles. Você pode destruí-los do jeito que achar melhor.
— E sua garota? — ele diz inclinando a cabeça em minha direção. — Sua Juliette?
Me contraio ao ouvir o nome dela. Meu pulso bate tão forte que parece um sussurro.
— Se eu desse três tiros na cabeça dela, como se sentiria? — Ele me encara. Me observa. — Desapontado, porque você perdeu seu brinquedinho de estimação? Ou arrasado porque perdeu a garota que ama?
O tempo nesse momento parece estar mais lento, se derretendo à minha volta.
— Seria um desperdício — digo, ignorando o tremor que sinto por dentro, e que ameaça transbordar — perder algo no qual investi tanto tempo.
Ele sorri.
— É bom saber que você vê as coisas dessa forma — ele diz. — Mas projetos são facilmente substituíveis. E tenho certeza que poderemos encontrar um uso melhor e mais prático para seu tempo.
Pisco os olhos devagar. Parte do meu peito está destroçado.
— Claro. — Me ouço dizer.
— Sabia que entenderia. — Ele dá um tapinha no meu ombro machucado ao sair do quarto. Meus joelhos quase se dobram. — Valeu o esforço, filho. Mas ela nos custou muito tempo e dinheiro e se provou completamente inútil. Desse modo estaremos nos livrando de várias inconveniências ao mesmo tempo. Vamos considerar isso um efeito colateral. — Ele me dá um último sorriso antes de passar por mim e sair pela porta.
Caio de encontro à parede.
E me amontoo no chão.
Capítulo 21
É só engolir as lágrimas com bastante frequência que elas vão começar a parecer ácido escorrendo pela sua garganta. É aquele momento terrível quando você está sentada quieta tão quieta porque você não quer que a vejam chorar você não quer chorar, mas seus lábios não param de tremer e seus olhos estão cheios até a borda com súplica e eu imploro e por favor e me desculpe e tenha piedade e talvez dessa vez será diferente mas é sempre igual. Não tem onde se esconder. Ninguém ao seu lado.
Acenda uma vela para mim, eu costumava murmurar para o nada.
Alguém
Qualquer um
Se você está aí fora
Por favor me diga que pode sentir esse fogo.
É o dia cinco das nossas patrulhas, e nada ainda.
Lidero o grupo todas as noites, marchando em silêncio nessas paisagens frias de inverno. Procuramos por passagens escondidas, bueiros camuflados — qualquer indicação de que possa existir outro mundo sob nossos pés.
E toda noite retornamos para a base sem nada.
A futilidade desses últimos dias me atinge, amortecendo meus sentidos, me deixando numa espécie de torpor do qual não consigo me livrar. Todo dia acordo procurando uma solução para os problemas que eu mesmo provoquei, mas não tenho ideia de como consertar isso.
Se ela está lá fora, iremos encontrá-la. E ele a matará.
Só para me ensinar uma lição.
Minha única esperança é encontrá-la primeiro. Talvez possa escondê-la. Ou dizer a ela para fugir. Ou fingir que ela já está morta. Ou talvez convencê-lo que ela é diferente, melhor que os outros; que vale a pena deixá-la viver.
Pareço um idiota patético e desesperado.
Sou uma criança novamente, me escondendo nos cantos escuros e rezando para ele não me encontrar. Esperando que ele esteja de bom humor hoje. Que talvez tudo dê certo. Que talvez minha mãe não vá estar gritando dessa vez.
Incrível como eu rapidamente me reverto para outra versão de mim mesmo na presença dele.
Fico entorpecido.
Tenho realizado minhas tarefas mecanicamente; isso exige apenas um esforço mínimo. Andar é simples. Comer é algo ao qual me acostumei.
Não consigo parar de ler seu diário.
Meu coração sofre, de certo modo, mas não consigo deixar de virar as páginas. Sinto como se estivesse batendo num muro invisível, como se meu rosto estivesse envolto em plástico e eu não pudesse respirar, não pudesse ver, nem ouvir qualquer som a não ser as batidas do meu próprio coração pulsando nos meus ouvidos.
Quis poucas coisas nessa vida.
Não pedi nada a ninguém.
E, agora, tudo que estou pedindo é outra chance. Uma oportunidade de vê-la novamente. Mas a menos que descubra um jeito de impedi-lo, essas palavras são as únicas coisas que restarão dela.
Esses parágrafos e essas sentenças. Essas cartas.
Fiquei obcecado. Carrego esse caderninho comigo para todos os lugares por onde vou, passo todo meu tempo livre tentando decifrar as palavras que ela rabiscou nas margens, criando histórias para acompanhar os números que ela escreveu.
Também notei que a última página está faltando. Arrancada.
Não consigo imaginar por que. Procurei uma centena de vezes no livro todo, procurando nas outras seções onde essa página poderia estar, mas não achei nada. E de certa forma me sinto enganado, sabendo que tem um trecho que não vi. Não é nem mesmo o meu diário; não tenho nada a ver com isso, mas li as palavras dela tantas vezes que sinto que agora elas são minhas. Posso praticamente recitá-las de cor.
É estranho saber o que se passa na cabeça dela e não poder vê-la. Sinto que ela está aqui, bem na minha frente. Sinto que a conheço tão intimamente, tão secretamente. Fico seguro na companhia dos seus pensamentos; de certo modo me sinto acolhido. Compreendido. Tanto que às vezes eu esqueço que foi ela quem colocou esse buraco de bala no meu braço.
Quase esqueço que ela ainda me odeia, apesar de eu ter me apaixonado tão intensamente por ela.
E me apaixonei.
Perdidamente.
Fui até o fundo do poço. Até o fim. Nunca me senti assim na minha vida. Nada parecido. Senti vergonha e covardia, fraqueza e força. Conheci o terror e a indiferença, ódio de mim mesmo e repugnância geral. Vi coisas que não podem ser vistas.
E ainda assim nunca havia experimentado esse sentimento terrível, horrível e paralisante. Me sinto aleijado. Desesperado e fora de controle. E está ficando pior. Todos os dias me sinto doente. Vazio e ferido por dentro.
O amor é um cretino perverso e sem coração.
Estou ficando louco.
Caio de costas na cama, completamente vestido. Casaco, botas, luvas. Estou cansado demais para tirar a roupa. Essas rondas noturnas têm me deixado pouco tempo para dormir. Parece que estou em constante estado de exaustão.
Minha cabeça cai no travesseiro e pisco uma vez. Duas.
Desmaio.
Capítulo 22
— Não. — Me ouço dizer. — Você não deveria estar aqui.
Ela está sentada na minha cama. Está apoiada nos próprios cotovelos, com as pernas esticadas à sua frente, cruzadas nos tornozelos. E apesar de uma parte de mim saber que devo estar sonhando, tem um outro lado, uma parte esmagadoramente dominante que se recusa a aceitar isso. Parte de mim quer acreditar que ela está aqui, perto de mim, usando esse vestidinho preto justo que fica exibindo suas pernas. Mas tudo nela está diferente, estranhamente vibrante; as cores estão erradas. Seus lábios estão com um tom profundo de rosa, bem intenso; seus olhos estão maiores, mais escuros. Ela está usando sapatos que eu nunca a tinha visto usar. E o mais estranho de tudo: ela está sorrindo para mim.
— Oi — ela murmura.
É só uma palavra, mas meu coração dispara. Estou me afastando dela, quase batendo a cabeça na cabeceira da cama, quando percebo que meu braço não está mais ferido. Olho para baixo, para mim mesmo. Meus dois braços estão funcionando. Estou vestindo apenas uma camiseta e uma cueca.
Ela muda de posição num instante, ficando de joelhos antes de vir rastejando para cima de mim. Ela sobe no meu colo. Agora está montada sobre mim. De repente minha respiração se acelera.
Seus lábios encostam nos meus ouvidos. Suas palavras são meigas.
— Me beije — ela diz.
— Juliette...
— Vim até aqui. — Ela ainda está sorrindo para mim. É um sorriso raro, do tipo que ela nunca antes havia me presenteado. Mas por estranho que pareça, agora ela é minha. Ela é minha e é perfeita e me quer, e não vou lutar contra isso.
Não quero lutar.
Suas mãos estão puxando minha camiseta, tirando-a pela cabeça. Jogando-a no chão. Ela se inclina e beija meu pescoço, só uma vez, bem devagarzinho. Meus olhos se fecham.
Não há palavras no mundo para descrever o que estou sentindo.
Sinto suas mãos percorrerem meu peito, meu estômago; seus dedos deslizarem pela beirada da minha cueca. Seu cabelo despenca para frente, roçando minha pele, e tenho que fechar os punhos para evitar prendê-la na minha cama.
Cada terminação nervosa do meu corpo está pulsando. Nunca me senti tão vivo nem tão desesperado em toda a minha vida, e tenho certeza de que se ela pudesse saber o que estou pensando nesse momento, ela sairia por aquela porta e nunca mais voltaria.
Porque eu a quero.
Agora.
Aqui.
Em todo lugar.
Não quero nada entre nós.
Quero tirar suas roupas, acender as luzes e quero estudá-la de perto. Quero abrir o zíper do seu vestido e me demorar em cada centímetro do seu corpo. Não consigo deixar de querer olhar para ela; de conhecê-la e a seus traços: o declive do seu nariz, a curva dos seus lábios, a linha do seu rosto. Quero percorrer com meus dedos a pele macia do seu pescoço e deslizar até embaixo. Quero sentir o peso do corpo dela sobre o meu, me envolvendo.
Não consigo pensar numa razão para isso não ser certo nem real. Não consigo me concentrar em nada mais, a não ser nela sentada no meu colo, tocando meu peito, e me olhando nos olhos como se realmente me amasse.
Chego a imaginar que morri.
Mas bem quando eu me aproximo, ela se afasta, sorrindo antes de eu alcançá-la, nunca afastando seus olhos.
— Não se preocupe — ela sussurra. — Está quase acabado agora.
Suas palavras parecem tão estranhas, e ao mesmo tempo tão familiares.
— O que quer dizer com isso?
— Só um pouco mais e eu vou embora.
— Não. — Estou piscando rápido, tentando segurá-la. — Não, não vá. Onde você está indo...
— Você vai ficar bem — ela diz. — Prometo.
— Não...
Mas agora ela está segurando uma arma.
E a apontando para o meu coração.
Capítulo 23
Essas letras são tudo que me sobrou.
26 amigos para quem contar minha história.
26 letras são tudo que eu preciso para criar oceanos e ecossistemas. Posso combiná-las para formar planetas e sistemas solares. Posso usar letras para construir arranha-céus e metrópoles cheias de gente, lugares, coisas e ideias que são mais reais que essas quatro paredes.
Não preciso de nada além de palavras para viver. Sem elas eu não existiria.
Porque essas palavras que escrevo são a única prova de que ainda estou viva.
Está extraordinariamente frio esta manhã.
Sugiro que a gente faça um passeio descompromissado pelos complexos bem cedo só para ver se algum cidadão parece suspeito ou deslocado. Estou começando a imaginar se Kent e Kishimoto, e todos os outros, estão vivendo em segredo entre as pessoas. Eles devem, afinal de contas, receber alguma ajuda para encontrar comida e água — algo que os prenda à sociedade; duvido que possam plantar alguma coisa debaixo da terra. Mas é claro, são só suposições. Eles podem ter alguém que consegue plantar algo no ar.
Rapidamente dou instruções para meus homens; os oriento para se dispersarem e continuarem sem chamar a atenção. O trabalho deles é observar todo mundo hoje, e relatar o que descobriram para mim.
Assim que se foram, fico sozinho para olhar em volta e pensar. É um lugar perigoso para se esconder.
Meu Deus, ela parecia tão real nos meus sonhos.
Fecho os olhos, cobrindo o rosto com as mãos; meus dedos tocam meus lábios de leve. Posso sentir o toque dela. Na verdade, posso senti-la. Só de pensar nisso, meu coração acelera. Não sei o que vou fazer se continuar a ter sonhos tão intensos com ela. Não vou ser capaz de trabalhar direito.
Respiro fundo, controlando a respiração e me concentrando. Deixo meus olhos perambularem naturalmente, não posso evitar me distrair com as crianças correndo em volta. Parecem tão animadas e despreocupadas. Sei que parece estranho, mas fico triste ao ver que eles conseguiram encontrar felicidade nessa vida. Elas não têm nem ideia do que perderam; nem imaginam como o mundo costumava ser.
Alguma coisa se aproxima e bate nas minhas pernas.
Ouço um arquejo estranho e cansado; me viro.
É um cachorro.
Um cachorro cansado e faminto, tão magro e frágil que parece que pode ser levado pelo vento. Mas ele está me olhando. Sem medo. Com a boca aberta. A língua balançando.
Tenho vontade de dar risada.
Olho em volta rapidamente antes de pegar o cachorro nos braços. Não preciso dar ao meu pai outro motivo para me castrar, e não confio que meus soldados não irão contar uma coisa assim.
Que eu estava brincando com um cachorro.
Posso até escutar as coisas que meu pai iria me dizer.
Carrego a criatura chorosa até uma das casas que haviam sido desocupadas recentemente — vi apenas três famílias saindo para o trabalho — e me abaixo por trás de uma das cercas. O cachorro parece ser bem esperto para saber que agora não é hora de latir.
Tiro minhas luvas e ponho a mão no bolso para pegar um pãozinho doce que havia trazido como café da manhã; não tive tempo de comer nada antes de sairmos hoje cedo. E embora eu não faça ideia do que um cachorro coma, exatamente, eu lhe dou o pãozinho.
O cachorro praticamente o agarra da minha mão.
Ele engole o pãozinho em duas bocadas e começa a lamber os meus dedos, pulando no meu peito, todo empolgado, aproveitando o calor do meu casaco aberto. Não consigo segurar a risada que escapa dos meus lábios; nem quero. Há muito tempo não me sinto assim. E não posso evitar ficar espantado com o poder que animaizinhos tão pequenos exercem sobre nós; eles rompem nossas resistências com a maior facilidade.
Passo minhas mãos pelo seu pelo surrado, sentindo as pontas das costelas aparecendo em ângulos desconfortáveis. Mas o cachorro não parece se importar com seu estado de inanição, pelo menos não agora. Seu rabo está balançando furiosamente, e ele fica pulando no meu peito para me olhar. Começo a pensar que deveria ter enfiado mais alguns pãezinhos doces no meu bolso antes de sair.
Algo estala.
Ouço um suspiro.
Olho em volta.
Dou um pulo, alerta, procurando o barulho. Parecia bem perto. Alguém me viu. Alguém... Um civil. Ela já está escapando, seu corpo apertado de encontro a uma das paredes da casa.
— Ei! — grito. — Você aí...
Ela para. Olha para cima.
Eu quase desmaio.
Juliette.
Ela está me olhando. Ela realmente está aqui, olhando para mim, com os olhos arregalados e assustados. Minhas pernas parecem ser feitas de chumbo. Estou preso no chão, incapaz de dizer uma palavra sequer. Nem sei por onde começar. São tantas coisas que gostaria de dizer a ela, tantas coisas que eu nunca disse, e eu estou simplesmente tão feliz ao vê-la.
— Deus, estou tão aliviado...
Ela desapareceu.
Olho em volta, em pânico, imaginando se estou começando a perder meu senso de realidade. Meus olhos se voltam para o cachorrinho que ainda está parado ali, esperando por mim, e eu olho para ele estupefato, imaginando o que havia acontecido. Fico olhando para o lugar onde a vi, mas não vejo nada.
Nada.
Passo a mão pelos cabelos, tão confuso, tão horrorizado e irritado comigo mesmo, que fico tentado a arrancar minha cabeça.
O que está acontecendo comigo?
Capítulo 12
Um dos homens do meu pai está me esperando do lado de fora da minha porta.
Olho de relance em sua direção, mas não o suficiente para reconhecer suas feições.
— Diga qual o assunto, soldado.
— Senhor — ele diz —, recebi ordens para lhe informar que o comandante supremo solicita sua presença em seus alojamentos para o jantar às vinte horas.
— Considere sua mensagem recebida. — Dou um passo para abrir minha porta.
Ele dá um passo à frente, bloqueando minha passagem.
Viro o corpo para olhar para ele.
Ele está parado a alguns passos de distância de mim: um ato implícito de desrespeito; um nível de intimidade que nem mesmo Delalieu se permite. No entanto, ao contrário dos meus homens, os bajuladores que cercam meu pai se consideram especiais. Ser um membro da guarda de elite do comandante supremo é considerado um privilégio e uma honra. Eles se reportam diretamente a ele.
E nesse exato momento, esse soldado está tentando provar que é superior a mim.
Ele tem inveja de mim. Pensa que sou indigno de ser o filho do comandante supremo do Restabelecimento. Isso está praticamente escrito no rosto dele.
Tenho que segurar meu impulso de cair no riso quando encaro seus frios olhos cinza e o buraco negro que é sua alma. Ele tem as mangas enroladas na altura do cotovelo, suas tatuagens militares claramente definidas e à mostra. Os círculos concêntricos de tinta preta em volta dos seus braços são acentuados em vermelho, verde e azul, o único sinal para indicar que ele é um soldado de patente elevada. É um ritual doentio do qual sempre fiz questão de me recusar a participar.
O soldado ainda está me encarando.
Inclino minha cabeça em sua direção, ergo minhas sobrancelhas.
— Recebi ordens — ele declara — de esperar uma resposta oral aceitando esse convite.
Demoro um pouco, pensando nas minhas escolhas, mas não havia nenhuma.
Eu, como todos os fantoches desse mundo, sou completamente subserviente aos desejos do meu pai. É verdade que sou forçado a lutar todos os dias: que nunca serei capaz de enfrentar o homem que tem seus punhos cerrados em volta da minha espinha vertebral.
Isso me faz odiar a mim mesmo.
Encaro os olhos do soldado e imagino, por um breve momento, qual o nome dele, antes de perceber que não me importo com isso.
— Considere-o aceito.
— Sim, s...
— E da próxima vez, soldado, não se aproxime a menos de um metro e meio de distância de mim, sem pedir permissão.
Ele pisca os olhos, confuso.
— Senhor, eu...
— Você está confuso — o interrompo. — Acredita que trabalhar com o comandante supremo lhe dá imunidade das regras que governam a vida dos outros soldados. Veja, você está errado.
Seu rosto se enrijece.
— Nunca se esqueça — digo baixinho agora — que se eu quisesse o seu emprego, eu o teria. E não se esqueça de que o homem que você serve tão ansiosamente é o mesmo homem que me ensinou a atirar com uma arma de fogo quando eu tinha apenas nove anos de idade.
Suas narinas se dilatam. Ele olha direto para frente.
— Entregue sua mensagem, soldado. E então relembre isso e nunca mais fale comigo novamente.
Os olhos dele agora estão presos num ponto diretamente atrás de mim, seus ombros rígidos.
Espero.
Seu maxilar ainda está rígido. Lentamente ele levanta sua mão em saudação.
— Está dispensado — digo.
Tranco a porta do meu quarto e me encosto nela. Preciso de apenas um momento. Pego o vidrinho que está na mesinha de cabeceira e tiro duas pílulas quadradas; as jogo na boca, fechando meus olhos enquanto se dissolvem.
A escuridão atrás das minhas pálpebras é um alívio reconfortante.
Até que a lembrança do rosto dela se impõe à minha percepção.
Me sento na cama e deixo a cabeça cair na minha mão. Não deveria estar pensando nela agora. Tenho horas de papelada para separar e o estresse da presença do meu pai para aguentar. Jantar com ele vai ser um espetáculo. Um espetáculo de arrasar a alma.
Fecho meus olhos com força e faço um pequeno esforço para construir as paredes que com certeza limpariam minha mente. Mas dessa vez elas não funcionam. O rosto dela insiste em surgir subitamente, seu diário me provocando lá no fundo do meu bolso.
E começo a perceber que tem uma pequena parte de mim que não deseja afastar os pensamentos dela. Uma parte de mim gosta da tortura.
Essa garota está me destruindo.
Uma garota que passou o último ano internada num sanatório de loucos. Uma garota que tentou me matar porque eu a beijei. Uma garota que fugiu com outro homem só para se afastar de mim.
É claro que essa é a garota por quem eu iria me apaixonar.
Coloco a mão na boca.
Estou perdendo a cabeça.
Tiro minhas botas. Me enfio na cama e deixo a cabeça cair nos travesseiros.
Ela dormiu aqui, penso. Ela dormiu na minha cama. Ela acordou na minha cama. Ela estava aqui e deixei que ela escapasse.
Falhei.
Perdi.
Nem percebo que tirei o diário dela do bolso e o estou segurando em frente do rosto. Olhando para ele. Estudando sua capa desbotada numa tentativa de entender onde ela pode ter adquirido isso. Ela deve ter roubado de algum lugar, embora não consiga imaginar onde.
Há tantas coisas que eu gostaria de perguntar a ela. Tantas coisas que gostaria de lhe dizer.
Ao invés disso, abro seu diário e leio.
Às vezes fecho meus olhos e pinto essas paredescom cores diferentes.
Imagino que estou usando meias quentinhas e estou sentada perto do fogo. Imagino que alguém me deu um livro para ler, uma história para me levar para longe da tortura da minha própria mente. Quero ser alguém em algum outro lugar com alguma outra coisa a ocupar minha cabeça. Quero correr, quero sentir o vento batendo nos cabelos. Quero fingir que isso é simplesmente uma história dentro de outra história. Que essa cela é apenas um cenário, que essas mãos não me pertencem, que essa janela dá para um lugar lindo, se pelo menos eu conseguisse abri-la. Finjo que essa fronha é limpa, finjo que a cama é macia. Finjo e finjo e finjo até que o mundo fica maravilhoso por trás dos meus olhos e já não consigo mais contê-lo. Mas então meus olhos se abrem e sou agarrada pela garganta por um par de mãos que não param de me sufocar sufocar sufocar...
Meus pensamentos, acho, logo serão ouvidos.
Minha mente, espero, logo será descoberta.
O diário cai da minha mão e bate no meu peito. Passo a mão pelo rosto, pelo meu cabelo. Massageio o pescoço e me puxo com força para cima a ponto de bater a cabeça na cabeceira da cama, e na verdade fico grato a isso. Me demoro um pouco sentindo a dor.
E viro a página.
Imagino o que eles estão pensando. Meus pais. Imagino onde estão. Penso se eles estão bem agora, se estão felizes agora,se eles finalmente conseguiram o que queriam.Imagino se minha mãe vai querer ter outro filho. Imagino se alguém vai ter a bondade de me matar, e imagino se o inferno não é melhor do que aqui. Imagino como está meu rosto agora. Imagino se algum dia vou poder respirar o ar fresco novamente.
Imagino tantas outras coisas.
Às vezes fico acordada durante dias simplesmente contando tudo que encontro. Conto as paredes, as rachaduras na parede, meus dedos dos pés e das mãos. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, quantos passos para ir para frente e para trás no meu quarto. Conto meus dentes e cada fio de cabelo na minha cabeça e o número de segundos em que consigo prender minha respiração.
Mas às vezes fico tão cansada que esqueço que não tenho mais permissão para desejar mais nada, e me descubro desejando a única coisa que sempre quis. A única coisa com a qual sempre sonhei.
Sempre desejei ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso de volta. Ter alguém em quem confiar que não iria jogar as coisas em mim, nem colocar minhas mãos no fogo ou me bater por ter nascido. Alguém que iria saber que fui colocada para fora de casa e tentaria me achar, que nunca teria medo de mim.
Alguém que soubesse que eu nunca o machucaria.
Me vejo num canto desse quarto e enfio a cabeça nos meus joelhos e me balanço para frente e para trás para frente e para trás para frente e para trás e desejo e desejo e desejo coisas impossíveis até cair no sono de tanto chorar.
Imagino como seria ter um amigo.
E então imagino quem mais está preso neste hospício. Imagino de onde estão vindo os outros gritos.
Imagino se estão vindo de mim.
Tento me concentrar, dizendo a mim mesmo que são palavras vazias, mas estou mentindo. Porque, de algum modo, simplesmente ler essas palavras é demais; e pensar nela sofrendo está me deixando agoniado.
Saber que ela vivenciou isso.
Ela foi colocada nesse inferno pelos próprios pais, abandonada e maltratada a vida inteira. Empatia é uma emoção que eu não conhecia, mas agora toma conta de mim, me levando para um mundo que eu não sabia que podia penetrar. E embora sempre tenha acreditado que ela e eu tivéssemos muita coisa em comum, não sabia que podia sentir isso com tanta profundidade.
Isso está me matando.
Fico em pé. Começo a andar pelo quarto até acalmar meus nervos para continuar a leitura. Então respiro fundo.
E viro a página.
Tem alguma coisa fervilhando dentro de mim.
Algo que nunca ousei descobrir, algo que tenho medo de saber. Tem uma parte de mim lutando para se libertar da jaula onde estou presa, batendo nas portas do meu coração, suplicando para ser libertada.
Suplicando para ir embora.
Todos os dias sinto que revivo o mesmo pesadelo. Abro a boca para gritar, para lutar, para girar meus punhos, mas minhas cordas vocais estão cortadas, meus braços estão pesados e densos como se estivessem presos no cimento molhado e eu estou gritando mas ninguém me ouve, ninguém se aproxima e estou enjaulada. E isso está acabando comigo.
Sempre tive de bancar a submissa, subserviente, um pano de chão suplicante e passivo que fazia todo mundo se sentir seguro e confortável. Minha existência se tornou uma luta para provar que eu era inofensiva, não uma ameaça, que eu era capaz de viver entre outros seres humanos sem feri-los.
E estou tão cansada tão cansada tão cansada e às vezes chego a ficar com raiva.
Não sei o que está acontecendo comigo.
— Meu Deus, Juliette. — Suspiro.
E caio de joelhos.
— Chame o transporte imediatamente. — Preciso sair. Preciso sair daqui agora.
— Senhor? Isso é, sim, senhor, é claro... mas onde...
— Tenho que visitar os complexos — digo. — Tenho que fazer minhas rondas antes do meu compromisso dessa noite. — Isso é tanto verdade quanto mentira. Porém agora estou disposto a fazer qualquer coisa que me afaste desse diário.
— Ah, certamente, senhor. Gostaria que o acompanhasse?
— Isso não será necessário, tenente, mas obrigado pela oferta.
— Eu... se-senhor — ele gagueja. — É claro, é u-uma honra servi-lo, senhor, ajudá-lo...
Deus do céu, onde estou com a cabeça. Eu nunca digo obrigado a Delalieu. É muito provável que o pobre homem vá ter um infarto agora.
— Estarei pronto para sair em dez minutos — interrompo.
Ele começa a gaguejar, mas para. Então diz:
— Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Estou pressionando a boca com o punho quando a ligação é desconectada.
Capítulo 13
Tínhamos lares. Antes.
De todos os tipos diferentes.
Casas térreas. Sobrados. Casas de três andares.
Comprávamos enfeites para o jardim e luzinhas pisca-pisca, aprendíamos a andar de bicicleta sem rodinhas. Adquirimos vidas confinadas em 1,2 e 3 andares já construídos, andares contidos em estruturas que não podíamos mudar.
Vivemos nesses andares por algum tempo.
Seguimos a história que nos era contada, o texto preso em cada metro do espaço que havíamos conquistado. Ficamos contentes com a mudança no enredo que redirecionou nossa vida. Assinamos nas linhas pontilhadas por coisas pelas quais não nos importávamos realmente. Comíamos coisas que não deveríamos, gastávamos dinheiro quando não podíamos, esquecíamos a Terra que tínhamos de habitar e desperdiçávamos desperdiçávamos desperdiçávamos tudo. Comida. Água. Recursos.
Logo, os céus ficaram cinza com a poluição química, e as plantas e os animais ficaram doentes devido à modificação genética. E doenças se impregnaram no nosso ar, nas nossas refeições, nossos sangues e nossas casas. A comida desapareceu. As pessoas estavam morrendo. Nosso império estava caindo aos pedaços.
O Restabelecimento disse que nos ajudariam. Nos salvariam. Reconstruiriam nossa sociedade.
Ao invés disso, eles nos destroçaram.
Gosto de visitar os complexos.
É um lugar estranho para se buscar refúgio, mas sinto alguma coisa ao ver tantos civis num espaço tão vasto e aberto que me faz lembrar da minha missão. Fico tanto tempo preso nos limites dos muros do quartel-general do Setor 45, que frequentemente me esqueço dos rostos daqueles por quem lutamos e daqueles com quem estamos lutando.
Gosto de me lembrar.
Geralmente, visito cada aglomerado dos complexos; cumprimento os moradores e pergunto sobre suas condições de vida. Não consigo deixar de ficar curioso em saber como é a vida deles agora. Porque enquanto o mundo se transformou inteiramente para eles, meu mundo continuou o mesmo. Disciplinado. Isolado. Desolador.
Houve um tempo quando as coisas foram melhores, quando meu pai não era tão irritado. Eu tinha cerca de 4 anos. Ele costumava me fazer sentar em seu colo e brincar com seus bolsos. Eu podia pegar o que quisesse, desde que meu argumento fosse bem convincente. Era seu jeito de brincar.
Mas tudo isso foi antes.
Aperto meu casaco no corpo, sentindo o tecido se encostar nas minhas costas. Vacilo sem querer.
A vida que tenho agora é a única que importa. O sufoco, o luxo, as noites mal dormidas, e os corpos dos mortos. Sempre me ensinaram a me concentrar no poder e na dor, em ganhar e infligir.
Não lamento nada.
Aceito tudo.
É o único modo que encontrei de continuar vivendo nesse corpo maltratado. Esvazio minha mente das coisas que me infestam e sobrecarregam minha alma, e aceito o que puder dos pequenos prazeres que aparecem à minha frente. Não sei o que é ter uma vida normal; não sei como simpatizar com os cidadãos que perderam suas casas. Não faço ideia de como era a vida deles antes de o Restabelecimento tomar o poder.
Por isso gosto de passear pelos complexos.
Gosto de ver como as outras pessoas vivem; gosto de ter o poder de fazer com que respondam às minhas perguntas. Do contrário não teria como saber.
Mas o momento é errado.
Não prestei muita atenção ao relógio quando saí da base, e não percebi que o sol estava se pondo. A maioria dos civis está voltando para casa para descansar à noite, seus corpos curvados, encolhidos pelo frio enquanto se encaminhavam em direção aos aglomerados de metal que dividem com pelo menos outras três famílias.
As casas improvisadas são construídas com containers de navios de doze metros quadrados; eles são empilhados lado a lado e um em cima do outro, agrupados em grupos de cinco ou seis. Cada container foi isolado; equipado com duas janelas e uma porta. Escadas para o andar superior foram colocadas de cada lado de fora da estrutura. Os tetos são alinhados com painéis solares que fornecem eletricidade gratuita para cada grupo.
É algo do qual muito me orgulho.
Porque foi minha ideia.
Quando estávamos procurando por abrigos temporários para os civis, sugeri reformar os velhos containers de carga que ocupavam as docas de todos os portos do mundo. Não apenas eram baratos, facilmente reaproveitados, e altamente adaptáveis, mas podiam ser empilhados, eram portáteis e construídos independentemente do clima do lugar. Eles exigiam o mínimo de construção e, com a equipe certa, milhares de unidades habitacionais poderiam estar prontas em alguns dias.
Dei essa ideia para meu pai, pensando que essa seria a opção mais eficiente; uma solução temporária que seria menos desumana do que barracas; algo que ofereceria um abrigo real e confiável. Mas o resultado foi tão eficiente que o Restabelecimento não viu necessidade de renovação. Aqui, num terreno que costumava ser um lixão, assentamos milhares de containers; aglomerados de cubos retangulares e desbotados que são fáceis de monitorar e vigiar.
As pessoas ainda acreditam que essa é uma solução temporária. Que um dia voltarão para as lembranças de suas antigas vidas e as coisas serão lindas e brilhantes novamente. Mas tudo isso é mentira.
O Restabelecimento não tem planos de mudá-los de onde estão.
Os civis devem permanecer nessas áreas regulamentadas; esses containers se tornaram suas prisões. Tudo foi numerado. As pessoas, suas casas, seu grau de importância para o Restabelecimento.
Aqui, eles se tornaram parte de um enorme experimento. Um mundo no qual trabalham para manter as necessidades de um regime que faz promessas que nunca serão cumpridas.
Essa é a minha vida.
Esse triste mundo.
Na maior parte do tempo, me sinto como um civil; e é provavelmente por isso que vim até aqui. É como se estivesse indo de uma prisão para outra; numa existência onde não há escape, não há refúgio. Quando até mesmo minha mente me trai.
Eu deveria ser mais forte do que isso.
Tenho treinado há mais de uma década. Tenho trabalhado todos os dias para aprimorar minhas forças física e mental. Tenho 1 metro e 79 de altura e 77 quilos de músculos. Fui preparado para sobreviver, para maximizar a resistência e a energia, e fico perfeitamente à vontade segurando uma arma. Posso desmontar, limpar, recarregar, desarmar e remontar mais de 150 tipos de armas de fogo. Posso atirar no centro de um alvo, de praticamente qualquer distância. Posso quebrar o pescoço de uma pessoa com a lateral da mão. Posso paralisar temporariamente um homem com apenas os nós dos meus dedos.
No campo de batalha, sou capaz de me desconectar dos movimentos que aprendi a memorizar. Criei a reputação de ser alguém frio, um monstro que não teme nada nem ninguém.
Mas tudo isso é ilusório.
Porque a verdade é que não passo de um covarde.
Capítulo 14
O sol está se pondo.
Logo vou ter que retornar à base, onde vou me sentar quieto e ouvir meu pai falar, em vez de mandar bala na sua boca aberta.
Então tento ganhar tempo.
Fico parado e ouço barulhos vindos de longe e observo as crianças correrem, enquanto seus pais as levam para casa. Penso se um dia eles vão crescer o bastante para sacar que os cartões do Registro do Restabelecimento na verdade estão rastreando todos seus movimentos. Que o dinheiro que seus pais recebem pelo trabalho em alguma das muitas fábricas existentes ali é monitorado de perto. Essas crianças crescerão e finalmente entenderão que tudo que elas fazem está gravado, cada conversa é dissecada para se descobrir murmúrios de rebeliões. Eles não sabem que estão sendo criados perfis para cada cidadão, e que cada arquivo é bem grosso com documentação das suas amizades, relacionamentos, e hábitos de trabalho; até mesmo como gostam de passar seu tempo livre.
Sabemos tudo sobre todo mundo.
Demais.
Tanto é verdade que raramente me lembro que estamos lidando com gente de verdade, seres vivos, até vê-los nos complexos. Sei de cor o nome de quase todos os cidadãos do Setor 45. Gosto de saber quem vive na minha jurisdição, não importa se são soldados ou civis.
Foi assim que tomei conhecimento, por exemplo, que o soldado Seamus Fletcher, 45B-76423, batia na esposa e nos filhos todas as noites.
Eu sabia que ele estava gastando todo seu dinheiro em bebidas; sabia que ele estava deixando sua família passar fome. Monitorei os dólares REST que ele gastava nas nossas centrais de abastecimento e observei atentamente a família dele no complexo. Sabia que seus três filhos tinham menos de 10 anos e não comiam há semanas; sabia que eles haviam estado inúmeras vezes no posto médico do complexo para tratar de ossos quebrados e levar pontos em machucados. Fiquei sabendo que ele deu um soco na boca de sua filha de 9 anos e cortou o lábio dela, fraturou o maxilar e quebrou dois de seus dentes da frente; e soube que sua esposa estava grávida. Também fiquei sabendo que certa noite ele bateu nela com tanta força que ela perdeu a criança na manhã seguinte.
Eu sei por que estava lá.
Eu estava parando em cada residência, visitando os civis, fazendo perguntas sobre sua saúde e como estavam suas vidas. Queria saber de suas condições de trabalho e se algum membro de suas famílias precisaria estar de quarentena.
Ela estava em casa naquele dia. A esposa de Fletcher. Seu nariz estava quebrado e seus olhos estavam tão inchados que ela nem conseguia abri-los direito. Seu corpo era tão magro e frágil, sua pele tão pálida, que achei que ela iria se quebrar em duas ao sentar-se. Quando lhe perguntei sobre os machucados, ela evitou meus olhos. Disse que tinha caído; que por causa da sua queda ela havia perdido a criança que carregava e conseguiu também quebrar o nariz no acidente.
Acenei com a cabeça. Agradeci por sua cooperação ao responder minhas perguntas.
E então convoquei uma reunião.
Estou ciente que a maioria dos meus soldados rouba dos armazéns dos nossos complexos. Analiso os relatórios cuidadosamente e sei que tem suprimentos desaparecendo o tempo todo. Mas permito essas pequenas infrações porque elas não perturbam o sistema. Alguns pães ou pedaços de sabão a mais deixam meus soldados mais animados; eles trabalham mais se estiverem saudáveis, e a maioria deles mantém esposa, filhos e parentes. Então essa é uma concessão que faço.
Mas algumas coisas não posso perdoar.
Não me considero um moralista. Não filosofo sobre a vida ou me importo com as leis e princípios que governam a vida das pessoas. Não pretendo saber a diferença entre o certo e o errado. Mas procuro viver sob certo código de vida. E às vezes, eu acho, tenho que aprender a atirar antes.
Seamus Fletcher estava matando sua família. E eu lhe dei um tiro na testa porque achei que assim seria menos doloroso do que destroçá-lo com minhas próprias mãos.
Mas meu pai completou o trabalho que Fletcher havia começado. Meu pai mandou matar os três filhos dele e sua mulher, tudo por causa de um bêbado cretino que deveria ter cuidado deles. Ele era o pai deles, o marido dela, e a razão de eles terem tido uma morte tão brutal e inesperada.
E alguns dias eu imagino por que insisto em continuar vivendo.
Capítulo 15
De volta à base, sigo direto em frente.
Ignoro os soldados e suas continências por onde passo, sem prestar atenção à mistura de curiosidade e desconfiança em seus olhos. Nem tinha percebido que havia tomado esse caminho ao chegar à base; mas meu corpo parece saber mais do que minha mente, do que precisa agora. Meus passos são pesados; regulares, o som das minhas botas ecoa ao longo do piso de pedras conforme chego aos andares de baixo.
Não venho aqui há quase duas semanas.
O quarto fora reformado desde a última vez em que estive aqui; o painel de vidro e a parede de concreto foram substituídos. E pelo que sei ela foi a última pessoa a usar esse quarto.
Eu mesma a havia trazido aqui.
Empurro as duas portas giratórias do vestiário que fica na sala adjacente ao deque de simulação. Minha mão procura no escuro pelo interruptor; as luzes piscam uma vez antes de se acenderem. Um zumbido monótono de eletricidade vibra nesses cômodos vastos. Tudo está quieto, abandonado.
Exatamente como eu gosto.
Tiro minhas roupas o mais rápido que consigo, devido aos ferimentos. Ainda tenho duas horas antes do esperado jantar com meu pai, então eu não deveria estar tão ansioso assim, mas meus nervos não estão ajudando. Tudo parece estar vindo para cima de mim de uma vez só. Meus fracassos. Minha covardia. Minha estupidez.
Às vezes fico tão cansado dessa vida.
Estou em pé, descalço no concreto, só usando a tipoia no meu braço, detestando como esse ferimento me deixa constantemente para baixo. Pego o shorts guardado no meu armário e o visto o mais rapidamente possível, me encostando à parede para me apoiar. Quando finalmente fico ereto, fecho a porta do armário e entro no cômodo ao lado.
Aperto mais um interruptor, e o sistema operacional principal começa a funcionar. Os computadores emitem um sinal sonoro e uns flashes se acendem enquanto o programa se prepara; passo os dedos pelo teclado.
Costumamos usar esses cômodos para simulações.
Manipulamos a tecnologia para criar lugares e experiências que existem apenas na mente humana.
Não apenas somos capazes de criar o cenário, mas também podemos controlar os mínimos detalhes. Sons, cheiros, falsa segurança, paranoia. O programa foi originalmente criado para ajudar soldados em missões específicas, e também para ajudá-los a superar medos que, do contrário, iria incapacitá-los no campo de batalha.
Eu o uso para meus próprios fins.
Costumava vir aqui todos os dias antes de ela chegar à base. Aqui era meu porto seguro; minha única fuga do mundo. Apenas gostaria que não precisasse de um uniforme. Esse short é engomado e desconfortável, o poliéster coça e irrita a pele. Mas é forrado com uma química especial que reage com a minha pele e alimenta o sensor com informações; me ajudam a me situar na experiência e me permitirá correr por quilômetros sem precisar correr de verdade, muros físicos no meu ambiente real. E para que o processo seja o mais eficiente possível, tenho que vestir quase nada. As câmeras são hipersensíveis ao calor do corpo, e funcionam melhor quando não entra em contato com materiais sintéticos.
Espero que esse detalhe fique anotado para a próxima geração do programa.
A central me solicita dados; rapidamente entro com o código de acesso que me garante permissão para levantar o histórico das últimas simulações. Olho para o alto por sobre meu ombro enquanto o computador processa os dados; olho de relance pelo recém-consertado espelho de duas faces que vê o cômodo principal. Ainda não acredito que ela quebrou uma parede inteira de vidro e concreto e continuou a caminhar sem um arranhão.
Inacreditável.
A máquina bipa duas vezes; me viro novamente. Os programas que solicitei estão carregados e prontos para serem executados.
O arquivo dela é o primeiro da lista.
Respiro fundo; tento afastar as lembranças. Não me arrependo de tê-la feito passar por uma experiência tão horrível. Não sei se ao final ela teria se permitido perder o controle — finalmente habitar seu próprio corpo — se eu não tivesse encontrado um modo eficiente de provocá-la. Ultimamente realmente acredito que isso a ajudou, exatamente como eu pretendia. Mas eu desejaria que ela não tivesse apontado uma arma na minha cara e saltado pela janela logo depois.
Suspiro devagar mais uma vez, acalmando minha respiração.
E seleciono a simulação que me motivou a vir até aqui.
Capítulo 16
Estou parado no cômodo principal.
Me encarando.
Essa é uma simulação bem simples. Não precisei trocar de roupa nem mexer no meu cabelo, nem alterar o piso carpetado. Não fiz nada a não ser criar uma duplicata de mim mesmo e lhe entregar uma arma.
Ele não para de me encarar.
Um.
Ele curva ligeiramente a cabeça.
— Você está pronto? — Uma pausa. — Está com medo?
Meu coração bate em disparada.
Ele ergue seu braço. Sorri um pouco.
— Não se preocupe — ele diz. — Está quase terminado agora.
Dois.
— Só um pouco mais e eu vou embora — ele diz, apontando a arma para a minha testa.
Minhas mãos estão suadas. Meu pulso está acelerado.
— Você vai ficar bem — ele mente. — Prometo.
Três.
Bummm.
Capítulo 17
— Tem certeza de que não está com fome? — meu pai pergunta, ainda mastigando. — Isso está realmente muito bom.
Me mexo na cadeira. Me concentro nos vincos bem passados das calças que estou usando.
— Hum? — ele indaga. Posso vê-lo sorrindo.
Estou intensamente ciente dos soldados alinhados nas paredes desta sala. Ele sempre os mantém perto de si, e sempre em constante competição uns com os outros. Sua primeira tarefa era determinar qual era o elo mais fraco dentre os onze. Aquele com o argumento mais convincente poderia dispor do seu alvo.
Meu pai acha essas práticas divertidas.
— Receio não estar com muita fome. Os remédios — minto — acabam com meu apetite.
— Ah — ele replica. Ouço o barulho de seus talheres quando ele os deposita na mesa. — É claro. Que inconveniência.
Não digo nada.
— Podem se retirar.
Duas palavras e seus homens se dispersam em questão de segundos. A porta se fecha atrás deles.
— Olhe para mim — ele ordena.
Levanto o olhar, meus olhos cuidadosamente desprovidos de emoção. Odeio seu rosto. Não suporto olhar muito tempo para ele; não gosto da experiência de observar como ele é desumano. Ele não se tortura pelo que faz ou pelo modo que vive. Na verdade ele gosta disso. Ele adora a adrenalina do poder; ele se vê como uma entidade invencível.
E, de certo modo, não está errado.
Passei a crer que o homem mais perigoso do mundo é aquele que não sente remorso. Aquele que nunca se desculpa e, portanto, não procura o perdão. Porque no final, são nossas emoções que nos torna fracos, não nossas ações.
Viro o rosto.
— O que encontrou? — ele pergunta sem preâmbulos.
Minha mente vai imediatamente para o diário que está guardado no meu bolso, mas não faço nenhum comentário. Nem pisco. As pessoas raramente percebem que, na maioria das vezes, mentem com os lábios e dizem a verdade com os olhos. Coloque um homem num cômodo com algo que ele tenha escondido, e então pergunte onde ele a escondeu; ele vai dizer que não sabe; vai dizer que você pegou a pessoa errada; mas quase sempre ele vai olhar na direção certa. E agora meu pai está me examinando, esperando ver para onde vou olhar, o que direi a seguir.
Mantenho meus ombros relaxados e respiro devagar, imperceptivelmente, para amansar meu coração. Não respondo. Finjo estar perdido em meus pensamentos.
— Filho?
Ergo o olhar. Finjo surpresa.
— Sim?
— O que achou? Quando revistou o quarto dela hoje?
Solto o ar. Sacudo a cabeça quando me recosto na cadeira.
— Vidros quebrados. Uma cama desarrumada. O armário dela, escancarado. Ela levou apenas alguns itens de higiene pessoal e algumas roupas extras e roupas de baixo. — Nada disso era sem sentido. Nada disso era mentira.
Ouço quando ele suspira. Ele afasta seu prato.
Sinto o contorno do caderninho dela queimando minha perna.
— E você diz que não sabe para onde ela pode ter ido?
— Apenas sei que ela, Kent e Kishimoto devem estar juntos — explico a ele. — Delalieu diz que roubaram um carro, mas as pistas desapareceram na entrada de um enorme terreno baldio. Fizemos as tropas vasculharem aquela área durante dias, mas não encontramos nada.
— E onde — ele pergunta — planeja procurar a seguir? Você acha que eles cruzaram para outro setor? — A voz dele está estranha. Divertida.
Olho seu rosto sorridente.
Ele só está me fazendo essas perguntas para me testar. Ele tem suas próprias respostas, sua solução já preparada. Ele quer me ver falhar ao responder incorretamente. Está tentando provar que, sem ele, eu tomaria as decisões erradas.
Ele está se divertindo às minhas custas.
— Não — digo a ele, com a voz sólida e firme. — Não acho que vão fazer algo tão idiota como atravessar para outro setor. Eles não têm acesso, meios ou capacidade para isso. Ambos os homens estão severamente feridos, perdendo sangue rapidamente, e estão distantes de qualquer ajuda de emergência. Provavelmente estão mortos agora. A garota talvez seja a única sobrevivente, e ela não pode ter ido muito longe, pois não conhece como andar por aquelas áreas. Ela ficou isolada muito tempo; tudo nesse lugar é completamente estranho para ela. Além do que, ela não sabe dirigir, e se por acaso ela conseguisse dirigir um veículo, teríamos sido informados da propriedade roubada. Se levarmos em consideração seu estado geral de saúde, sua propensão a se esgotar fisicamente muito rápido, e a falta de acesso à comida, água e atenção médica, ela deve estar desmaiada num raio de dez quilômetros desse suposto terreno baldio. Temos que encontrá-la antes que morra congelada.
Meu pai pigarreia.
— Sim — ele diz —, são teorias interessantes. E, talvez, sob outras circunstâncias, elas poderiam até ser verdadeiras. Mas você está se esquecendo de me falar do detalhe mais importante.
Olho nos olhos dele.
— Ela não é normal — ele conclui, recostado à sua cadeira. — E ela não é a única da sua espécie.
Meu coração acelera. Pisco rápido demais.
— Ah, vamos lá, você não suspeitou de nada? Não criou nenhuma hipótese? — Ele ri. — Parece impossível, estatisticamente, que ela seja a única desse tipo que foi produzida pelo nosso mundo. Você sabia disso, mas não quis acreditar. E eu vim aqui para lhe dizer que é verdade. — Ele curva a cabeça ligeiramente em minha direção. Dá um sorriso largo e vibrante. — Existem muitos deles. E eles a recrutaram.
— Não. — Solto o ar.
— Eles se infiltraram em suas tropas. Vivem no seu meio em segredo. E agora roubaram seu brinquedinho e fugiram com ele. Só Deus sabe como esperam manipulá-la em seu próprio benefício.
— Como pode ter tanta certeza? — indago. — Como sabe que eles conseguiram levá-la com eles? Kent estava meio morto quando o deixei...
— Preste atenção, filho. Estou lhe afirmando que eles não são normais. Eles não seguem suas regras; não há nenhuma lógica que os oriente. Você não tem ideia das esquisitices de que são capazes. — Uma pausa. — Além do mais, tenho conhecimento já há algum tempo, de um grupo deles que vive disfarçado nessa área. Mas durante todo esse tempo eles sempre se mantiveram afastados. Eles não interferem em meus métodos, e achei melhor deixá-los morrer sozinhos sem causar um pânico desnecessário na nossa população civil. Você entende, é claro — ele diz. — Afinal de contas, é muito difícil conter pelo menos um deles. Eles são a coisa mais bizarra de se ver.
— Você sabia? — Estou de pé agora. Tentando ficar calmo. — Você sabia da existência deles, durante todo esse tempo, e assim mesmo não fez nada? Não disse nada?
— Não julguei necessário.
— E agora? — exijo.
— Agora parece pertinente.
— Inacreditável! — Levanto as mãos para o alto. — Que você escondesse de mim tal informação! Quando sabia dos meus planos para ela... quando sabia o sacrifício que foi trazê-la aqui...
— Acalme-se — ele pede. Ele estica as pernas; apoia o tornozelo de uma perna no joelho da outra. — Vamos encontrá-los. Esse terreno abandonado que Delalieu mencionou — a área onde o carro deixou de ser rastreado? Esse é o nosso ponto de partida. Eles devem estar escondidos nos subterrâneos. Devemos encontrar a entrada e os destruir em silêncio, por dentro. Então os teremos punido, e evitamos que o resto se revolte e inspire a rebelião no nosso povo.
Ele se inclina para frente.
— Os civis escutam tudo. E, no momento, estão vibrando com um novo tipo de energia. Estão se sentindo motivados ao perceberem que um deles conseguiu escapar e que você saiu ferido no processo. Isso faz nossas defesas parecerem fracas e fáceis de serem penetradas. Precisamos destruir essa percepção reequilibrando a balança. O medo irá retornar tudo para seu devido lugar.
— Mas eles estão procurando — digo a ele. — Meus homens. Eles vasculham a área todos os dias e ainda não encontraram nada. Como pode ter certeza que iremos descobrir alguma coisa, afinal de contas?
— Porque — ele explica — você vai liderá-los. Todas as noites. Depois do toque de recolher, enquanto os civis dormem. Você não vai interromper as buscas durante o dia; não vai dar a eles motivo para terem o que falar. Aja em silêncio, meu filho. Não mostre suas jogadas. Vou permanecer na base e supervisionar suas responsabilidades com meus homens; vou dar ordens a Delalieu se for necessário. E nesse ínterim, você irá encontrá-los, para que eu possa destruí-los o mais rápido possível. Essa loucura já está durando tempo demais — ele diz — e eu não estou mais a fim de ser generoso.
Capítulo 18
Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito mesmo por favor me perdoe.
Foi um acidente.
Me perdoe
Por favor me perdoe
Há pouca coisa que eu permito que as pessoas descubram a meu respeito. Há ainda menos coisas que estou disposto a partilhar sobre mim mesmo. E entre as muitas coisas que nunca discuti com ninguém, é esta.
Gosto de tomar banhos demorados.
Sempre tive uma obsessão por limpeza desde que era pequeno. Sempre fui tão focado em morte e destruição que acho que compenso isso me mantendo o mais intacto possível. Tomo chuveiradas com frequência. Escovo e passo fio dental nos dentes pelo menos três vezes ao dia. Corto meu cabelo toda semana. Esfrego minhas mãos e unhas antes de me deitar e assim que acordo. Tenho uma preocupação doentia em usar apenas roupas que acabaram de ser lavadas. E todas as vezes que passo por alguma emoção mais forte, a única coisa que acalma meus nervos é um banho bem demorado.
Então é isso que vou fazer agora.
Os médicos me ensinaram como prender meu braço ferido no mesmo plástico que eles usaram antes, então posso mergulhar abaixo da superfície sem problemas. Afundo minha cabeça por um longo período, seguro a respiração e solto o ar pelo nariz. Sinto as borbulhas virem à tona.
A água morna me faz sentir leve. Ela carrega meu peso para mim, compreendendo que preciso de um momento para aliviar meus ombros desse peso. Para fechar meus olhos e relaxar.
Meu rosto rompe a superfície da água.
Não abro meus olhos; apenas meu nariz e minha boca respiram o oxigênio do outro lado. Faço respirações curtas e regulares para acalmar a mente. Já é tão tarde que nem sei mais que horas são; tudo que sei é que a temperatura caiu significativamente, e o ar frio está fazendo cócegas no meu nariz. É uma sensação estranha, ter 98 por cento do meu corpo boiando numa temperatura quente e agradável, enquanto meus lábios e meu nariz se contraem com o frio.
Mergulho meu rosto na água novamente.
Poderia viver aqui para sempre, eu acho. Viver onde a gravidade não sabe que eu existo. Aqui estou solto, sem restrições das amarras da vida. Sou um corpo diferente, uma concha diferente, e meu corpo é levado pelas mãos dos amigos. Tantas noites desejei poder cair no sono debaixo desse lençol.
Mergulho mais fundo.
Em uma semana, minha vida inteira mudou.
Minhas prioridades mudaram de foco. Minha concentração, destruída. Tudo com que me importo agora se resume a uma pessoa e, pela primeira vez na vida, não sou eu mesmo. Suas palavras estão marcadas na minha mente. Não consigo parar de imaginar como ela deve ter sido, não consigo deixar de imaginar o que ela deve ter vivenciado. Encontrar seu diário me deixou arrasado. Meus sentimentos por ela saíram do controle. Nunca estive tão desesperado para vê-la, para conversar com ela.
Quero que ela saiba que eu entendo agora. Que eu não entendia antes. Ela e eu somos iguais; em mais de uma maneira que eu possa ter imaginado.
Porém, agora, ela está fora do meu alcance. Ela foi para algum lugar com estranhos que não a conhecem e não se importam com ela do mesmo jeito que eu. Ela foi parar num ambiente estranho sem tempo para se adaptar e estou preocupado com ela. Uma pessoa na situação dela — com seu passado — não se recupera da noite para o dia. E agora, uma de duas coisas está prestes a acontecer: ou ela vai se fechar completamente, ou vai explodir.
Sento rápido demais, rompendo a barreira da água, ofegante.
Afasto o cabelo molhado do rosto. Me encosto na parede azulejada, deixando o ar frio me acalmar, clarear meus pensamentos.
Tenho que encontrá-la antes que ela se destrua.
Nunca antes quis cooperar com meu pai, nunca concordei com seus motivos ou seus métodos. Mas, nesse instante, estou disposto a fazer qualquer coisa para tê-la de volta.
E estou ansioso pela oportunidade de pular no pescoço de Kent.
O cretino traidor. O idiota que acha que conquistou uma garota bonita. Ele não tem ideia de quem ela seja. Não imagina no que ela pode se transformar.
E se ele pensa que é o par ideal para ela, está muito enganado, ele ainda é mais idiota do que eu imaginava.
Capítulo 19
— Onde está o café? — pergunto, meus olhos examinando a mesa.
Delalieu derruba o garfo. O talher de prata cai ruidosamente sobre os pratos de porcelana. Ele ergue os olhos, assustados.
— Senhor?
— Gostaria de experimentar — digo a ele, tentando passar manteiga na torrada com a mão esquerda. Olho em sua direção. — Você está sempre falando sobre o café, não é? Pensei em...
Delalieu dá um salto da mesa sem dizer uma palavra. Sai correndo pela porta.
Dou uma risada silenciosa para o meu prato.
Delalieu traz a bandeja do chá e café pessoalmente e a coloca perto da minha cadeira. Suas mãos tremem enquanto ele despeja o líquido escuro numa xícara de chá, a coloca sobre um pires, põe sobre a mesa e a empurra em minha direção.
Espero até ele se sentar para tomar um gole. É uma bebida estranha, terrivelmente amarga; nada como eu imaginava. Olho para ele surpreso por saber que um homem como Delalieu começa seu dia tomando um líquido de gosto tão forte e horrível. Descubro um novo respeito pelo homem.
— Não é tão ruim assim — digo a ele.
Seu rosto se abre num sorriso tão grande, tão sereno, que imagino se ele me entendeu mal. Ele está praticamente radiante quando responde:
— Tomo o meu com creme e açúcar. O gosto fica bem melhor do que...
— Açúcar. — Abaixo a xícara. Fechos os lábios e me controlo para não sorrir. — Você coloca açúcar nisso. Claro que sim. Isso faz mais sentido.
— Gostaria de um pouco, senhor?
Levanto minha mão. Sacudo a cabeça.
— Chame as tropas, tenente. Vamos suspender as missões durante o dia e, ao invés disso, faremos incursões noturnas depois do toque de recolher. Você vai permanecer na base — digo a ele — onde o supremo dará as ordens através de seus homens; cumpra as ordens que eles derem. Eu mesmo vou liderar o grupo. — Paro. Olho direto nos olhos dele. — Não se fala mais nada do que aconteceu. Não há nada para os civis verem ou falarem. Você entende?
— Sim, senhor — ele diz, esquecendo o café. — Vou dar as ordens imediatamente.
— Ótimo.
Ele se levanta.
Eu aceno com a cabeça.
Ele se retira.
Estou começando a sentir esperança pela primeira vez desde que ela foi embora. Vamos encontrá-la. Agora, com essa nova informação — com um exército inteiro contra um grupo de rebeldes despreparados — parece impossível não vencermos.
Respiro fundo. Tomo outro gole do café.
Estou surpreso ao perceber como gostei do seu gosto amargo.
Capítulo 20
Meu pai está à minha espera quando volto para meu quarto.
— As ordens foram dadas — digo a ele sem olhar em sua direção. — Vamos mobilizar as tropas hoje à noite. — Hesito. — Bem, se pode me desculpar, tenho outros assuntos para tratar.
— Qual a sensação? — ele indaga. — De estar tão incapacitado? — ele pergunta sorrindo. — Como você aguenta se ver no espelho, sabendo que foi atacado por um de seus próprios subordinados?
Faço uma pausa do lado de fora da porta que leva ao meu escritório.
— O que você quer?
— Qual — é seu interesse por essa garota? — ele indaga.
Minhas costas enrijecem.
— Ela é mais do que apenas uma experiência para você, não é?
Giro o corpo lentamente. Ele está parado no meio do meu quarto, com as mãos nos bolsos, e com um sorriso aparentando nojo.
— Do que você está falando?
— Dê uma olhada em si mesmo — ele diz. — Eu ainda nem disse o nome dela e parece que você vai desabar. — Ele sacode a cabeça, ainda me examinando de perto. — Seu rosto está pálido, sua mão que funciona está crispada. Está com a respiração ofegante e seu corpo está tenso. — Uma pausa. — Você se traiu, filho. Você se acha muito esperto — ele diz —, mas se esquece de quem lhe ensinou todos os truques.
Fico quente e gelado ao mesmo tempo. Tento relaxar as mãos, mas não consigo. Quero dizer a ele que não há nada errado, mas repentinamente estou me sentindo meio zonzo, desejando ter comido um pouco mais no café da manhã, e ao mesmo tempo desejando não ter comido nada.
— Tenho trabalho a fazer — consigo dizer.
— Me diga — ele pergunta — que você não se importa se ela morrer junto com os outros.
— O quê? — As palavras trêmulas e nervosas escapam rápido demais dos meus lábios.
Meu pai abaixa o olhar. Ele cerra e descerra os punhos.
— Você já me desapontou de tantas maneiras — ele diz com a voz aparentemente suave. — Por favor, não faça isso novamente.
Por um momento sinto como se estivesse fora do meu corpo, me olhando pela perspectiva dele. Vejo meu rosto, meu braço ferido, essas pernas que de repente parecem incapazes de carregar meu peso. Fendas começam a se criar ao longo do meu rosto, pelos meus braços, meu tronco e minhas pernas.
Imagino que seja assim que alguém desmorona.
Não percebo que ele disse meu nome, até ele repeti-lo uma segunda vez.
— O que você quer de mim? — pergunto, surpreso, ao perceber como pareço calmo. — Você entrou no meu quarto sem permissão; fica parado aí e me acusa de coisas que ainda nem consegui entender. Estou seguindo suas regras, suas ordens. Vamos partir hoje à noite; vamos encontrar o esconderijo deles. Você pode destruí-los do jeito que achar melhor.
— E sua garota? — ele diz inclinando a cabeça em minha direção. — Sua Juliette?
Me contraio ao ouvir o nome dela. Meu pulso bate tão forte que parece um sussurro.
— Se eu desse três tiros na cabeça dela, como se sentiria? — Ele me encara. Me observa. — Desapontado, porque você perdeu seu brinquedinho de estimação? Ou arrasado porque perdeu a garota que ama?
O tempo nesse momento parece estar mais lento, se derretendo à minha volta.
— Seria um desperdício — digo, ignorando o tremor que sinto por dentro, e que ameaça transbordar — perder algo no qual investi tanto tempo.
Ele sorri.
— É bom saber que você vê as coisas dessa forma — ele diz. — Mas projetos são facilmente substituíveis. E tenho certeza que poderemos encontrar um uso melhor e mais prático para seu tempo.
Pisco os olhos devagar. Parte do meu peito está destroçado.
— Claro. — Me ouço dizer.
— Sabia que entenderia. — Ele dá um tapinha no meu ombro machucado ao sair do quarto. Meus joelhos quase se dobram. — Valeu o esforço, filho. Mas ela nos custou muito tempo e dinheiro e se provou completamente inútil. Desse modo estaremos nos livrando de várias inconveniências ao mesmo tempo. Vamos considerar isso um efeito colateral. — Ele me dá um último sorriso antes de passar por mim e sair pela porta.
Caio de encontro à parede.
E me amontoo no chão.
Capítulo 21
É só engolir as lágrimas com bastante frequência que elas vão começar a parecer ácido escorrendo pela sua garganta. É aquele momento terrível quando você está sentada quieta tão quieta porque você não quer que a vejam chorar você não quer chorar, mas seus lábios não param de tremer e seus olhos estão cheios até a borda com súplica e eu imploro e por favor e me desculpe e tenha piedade e talvez dessa vez será diferente mas é sempre igual. Não tem onde se esconder. Ninguém ao seu lado.
Acenda uma vela para mim, eu costumava murmurar para o nada.
Alguém
Qualquer um
Se você está aí fora
Por favor me diga que pode sentir esse fogo.
É o dia cinco das nossas patrulhas, e nada ainda.
Lidero o grupo todas as noites, marchando em silêncio nessas paisagens frias de inverno. Procuramos por passagens escondidas, bueiros camuflados — qualquer indicação de que possa existir outro mundo sob nossos pés.
E toda noite retornamos para a base sem nada.
A futilidade desses últimos dias me atinge, amortecendo meus sentidos, me deixando numa espécie de torpor do qual não consigo me livrar. Todo dia acordo procurando uma solução para os problemas que eu mesmo provoquei, mas não tenho ideia de como consertar isso.
Se ela está lá fora, iremos encontrá-la. E ele a matará.
Só para me ensinar uma lição.
Minha única esperança é encontrá-la primeiro. Talvez possa escondê-la. Ou dizer a ela para fugir. Ou fingir que ela já está morta. Ou talvez convencê-lo que ela é diferente, melhor que os outros; que vale a pena deixá-la viver.
Pareço um idiota patético e desesperado.
Sou uma criança novamente, me escondendo nos cantos escuros e rezando para ele não me encontrar. Esperando que ele esteja de bom humor hoje. Que talvez tudo dê certo. Que talvez minha mãe não vá estar gritando dessa vez.
Incrível como eu rapidamente me reverto para outra versão de mim mesmo na presença dele.
Fico entorpecido.
Tenho realizado minhas tarefas mecanicamente; isso exige apenas um esforço mínimo. Andar é simples. Comer é algo ao qual me acostumei.
Não consigo parar de ler seu diário.
Meu coração sofre, de certo modo, mas não consigo deixar de virar as páginas. Sinto como se estivesse batendo num muro invisível, como se meu rosto estivesse envolto em plástico e eu não pudesse respirar, não pudesse ver, nem ouvir qualquer som a não ser as batidas do meu próprio coração pulsando nos meus ouvidos.
Quis poucas coisas nessa vida.
Não pedi nada a ninguém.
E, agora, tudo que estou pedindo é outra chance. Uma oportunidade de vê-la novamente. Mas a menos que descubra um jeito de impedi-lo, essas palavras são as únicas coisas que restarão dela.
Esses parágrafos e essas sentenças. Essas cartas.
Fiquei obcecado. Carrego esse caderninho comigo para todos os lugares por onde vou, passo todo meu tempo livre tentando decifrar as palavras que ela rabiscou nas margens, criando histórias para acompanhar os números que ela escreveu.
Também notei que a última página está faltando. Arrancada.
Não consigo imaginar por que. Procurei uma centena de vezes no livro todo, procurando nas outras seções onde essa página poderia estar, mas não achei nada. E de certa forma me sinto enganado, sabendo que tem um trecho que não vi. Não é nem mesmo o meu diário; não tenho nada a ver com isso, mas li as palavras dela tantas vezes que sinto que agora elas são minhas. Posso praticamente recitá-las de cor.
É estranho saber o que se passa na cabeça dela e não poder vê-la. Sinto que ela está aqui, bem na minha frente. Sinto que a conheço tão intimamente, tão secretamente. Fico seguro na companhia dos seus pensamentos; de certo modo me sinto acolhido. Compreendido. Tanto que às vezes eu esqueço que foi ela quem colocou esse buraco de bala no meu braço.
Quase esqueço que ela ainda me odeia, apesar de eu ter me apaixonado tão intensamente por ela.
E me apaixonei.
Perdidamente.
Fui até o fundo do poço. Até o fim. Nunca me senti assim na minha vida. Nada parecido. Senti vergonha e covardia, fraqueza e força. Conheci o terror e a indiferença, ódio de mim mesmo e repugnância geral. Vi coisas que não podem ser vistas.
E ainda assim nunca havia experimentado esse sentimento terrível, horrível e paralisante. Me sinto aleijado. Desesperado e fora de controle. E está ficando pior. Todos os dias me sinto doente. Vazio e ferido por dentro.
O amor é um cretino perverso e sem coração.
Estou ficando louco.
Caio de costas na cama, completamente vestido. Casaco, botas, luvas. Estou cansado demais para tirar a roupa. Essas rondas noturnas têm me deixado pouco tempo para dormir. Parece que estou em constante estado de exaustão.
Minha cabeça cai no travesseiro e pisco uma vez. Duas.
Desmaio.
Capítulo 22
— Não. — Me ouço dizer. — Você não deveria estar aqui.
Ela está sentada na minha cama. Está apoiada nos próprios cotovelos, com as pernas esticadas à sua frente, cruzadas nos tornozelos. E apesar de uma parte de mim saber que devo estar sonhando, tem um outro lado, uma parte esmagadoramente dominante que se recusa a aceitar isso. Parte de mim quer acreditar que ela está aqui, perto de mim, usando esse vestidinho preto justo que fica exibindo suas pernas. Mas tudo nela está diferente, estranhamente vibrante; as cores estão erradas. Seus lábios estão com um tom profundo de rosa, bem intenso; seus olhos estão maiores, mais escuros. Ela está usando sapatos que eu nunca a tinha visto usar. E o mais estranho de tudo: ela está sorrindo para mim.
— Oi — ela murmura.
É só uma palavra, mas meu coração dispara. Estou me afastando dela, quase batendo a cabeça na cabeceira da cama, quando percebo que meu braço não está mais ferido. Olho para baixo, para mim mesmo. Meus dois braços estão funcionando. Estou vestindo apenas uma camiseta e uma cueca.
Ela muda de posição num instante, ficando de joelhos antes de vir rastejando para cima de mim. Ela sobe no meu colo. Agora está montada sobre mim. De repente minha respiração se acelera.
Seus lábios encostam nos meus ouvidos. Suas palavras são meigas.
— Me beije — ela diz.
— Juliette...
— Vim até aqui. — Ela ainda está sorrindo para mim. É um sorriso raro, do tipo que ela nunca antes havia me presenteado. Mas por estranho que pareça, agora ela é minha. Ela é minha e é perfeita e me quer, e não vou lutar contra isso.
Não quero lutar.
Suas mãos estão puxando minha camiseta, tirando-a pela cabeça. Jogando-a no chão. Ela se inclina e beija meu pescoço, só uma vez, bem devagarzinho. Meus olhos se fecham.
Não há palavras no mundo para descrever o que estou sentindo.
Sinto suas mãos percorrerem meu peito, meu estômago; seus dedos deslizarem pela beirada da minha cueca. Seu cabelo despenca para frente, roçando minha pele, e tenho que fechar os punhos para evitar prendê-la na minha cama.
Cada terminação nervosa do meu corpo está pulsando. Nunca me senti tão vivo nem tão desesperado em toda a minha vida, e tenho certeza de que se ela pudesse saber o que estou pensando nesse momento, ela sairia por aquela porta e nunca mais voltaria.
Porque eu a quero.
Agora.
Aqui.
Em todo lugar.
Não quero nada entre nós.
Quero tirar suas roupas, acender as luzes e quero estudá-la de perto. Quero abrir o zíper do seu vestido e me demorar em cada centímetro do seu corpo. Não consigo deixar de querer olhar para ela; de conhecê-la e a seus traços: o declive do seu nariz, a curva dos seus lábios, a linha do seu rosto. Quero percorrer com meus dedos a pele macia do seu pescoço e deslizar até embaixo. Quero sentir o peso do corpo dela sobre o meu, me envolvendo.
Não consigo pensar numa razão para isso não ser certo nem real. Não consigo me concentrar em nada mais, a não ser nela sentada no meu colo, tocando meu peito, e me olhando nos olhos como se realmente me amasse.
Chego a imaginar que morri.
Mas bem quando eu me aproximo, ela se afasta, sorrindo antes de eu alcançá-la, nunca afastando seus olhos.
— Não se preocupe — ela sussurra. — Está quase acabado agora.
Suas palavras parecem tão estranhas, e ao mesmo tempo tão familiares.
— O que quer dizer com isso?
— Só um pouco mais e eu vou embora.
— Não. — Estou piscando rápido, tentando segurá-la. — Não, não vá. Onde você está indo...
— Você vai ficar bem — ela diz. — Prometo.
— Não...
Mas agora ela está segurando uma arma.
E a apontando para o meu coração.
Capítulo 23
Essas letras são tudo que me sobrou.
26 amigos para quem contar minha história.
26 letras são tudo que eu preciso para criar oceanos e ecossistemas. Posso combiná-las para formar planetas e sistemas solares. Posso usar letras para construir arranha-céus e metrópoles cheias de gente, lugares, coisas e ideias que são mais reais que essas quatro paredes.
Não preciso de nada além de palavras para viver. Sem elas eu não existiria.
Porque essas palavras que escrevo são a única prova de que ainda estou viva.
Está extraordinariamente frio esta manhã.
Sugiro que a gente faça um passeio descompromissado pelos complexos bem cedo só para ver se algum cidadão parece suspeito ou deslocado. Estou começando a imaginar se Kent e Kishimoto, e todos os outros, estão vivendo em segredo entre as pessoas. Eles devem, afinal de contas, receber alguma ajuda para encontrar comida e água — algo que os prenda à sociedade; duvido que possam plantar alguma coisa debaixo da terra. Mas é claro, são só suposições. Eles podem ter alguém que consegue plantar algo no ar.
Rapidamente dou instruções para meus homens; os oriento para se dispersarem e continuarem sem chamar a atenção. O trabalho deles é observar todo mundo hoje, e relatar o que descobriram para mim.
Assim que se foram, fico sozinho para olhar em volta e pensar. É um lugar perigoso para se esconder.
Meu Deus, ela parecia tão real nos meus sonhos.
Fecho os olhos, cobrindo o rosto com as mãos; meus dedos tocam meus lábios de leve. Posso sentir o toque dela. Na verdade, posso senti-la. Só de pensar nisso, meu coração acelera. Não sei o que vou fazer se continuar a ter sonhos tão intensos com ela. Não vou ser capaz de trabalhar direito.
Respiro fundo, controlando a respiração e me concentrando. Deixo meus olhos perambularem naturalmente, não posso evitar me distrair com as crianças correndo em volta. Parecem tão animadas e despreocupadas. Sei que parece estranho, mas fico triste ao ver que eles conseguiram encontrar felicidade nessa vida. Elas não têm nem ideia do que perderam; nem imaginam como o mundo costumava ser.
Alguma coisa se aproxima e bate nas minhas pernas.
Ouço um arquejo estranho e cansado; me viro.
É um cachorro.
Um cachorro cansado e faminto, tão magro e frágil que parece que pode ser levado pelo vento. Mas ele está me olhando. Sem medo. Com a boca aberta. A língua balançando.
Tenho vontade de dar risada.
Olho em volta rapidamente antes de pegar o cachorro nos braços. Não preciso dar ao meu pai outro motivo para me castrar, e não confio que meus soldados não irão contar uma coisa assim.
Que eu estava brincando com um cachorro.
Posso até escutar as coisas que meu pai iria me dizer.
Carrego a criatura chorosa até uma das casas que haviam sido desocupadas recentemente — vi apenas três famílias saindo para o trabalho — e me abaixo por trás de uma das cercas. O cachorro parece ser bem esperto para saber que agora não é hora de latir.
Tiro minhas luvas e ponho a mão no bolso para pegar um pãozinho doce que havia trazido como café da manhã; não tive tempo de comer nada antes de sairmos hoje cedo. E embora eu não faça ideia do que um cachorro coma, exatamente, eu lhe dou o pãozinho.
O cachorro praticamente o agarra da minha mão.
Ele engole o pãozinho em duas bocadas e começa a lamber os meus dedos, pulando no meu peito, todo empolgado, aproveitando o calor do meu casaco aberto. Não consigo segurar a risada que escapa dos meus lábios; nem quero. Há muito tempo não me sinto assim. E não posso evitar ficar espantado com o poder que animaizinhos tão pequenos exercem sobre nós; eles rompem nossas resistências com a maior facilidade.
Passo minhas mãos pelo seu pelo surrado, sentindo as pontas das costelas aparecendo em ângulos desconfortáveis. Mas o cachorro não parece se importar com seu estado de inanição, pelo menos não agora. Seu rabo está balançando furiosamente, e ele fica pulando no meu peito para me olhar. Começo a pensar que deveria ter enfiado mais alguns pãezinhos doces no meu bolso antes de sair.
Algo estala.
Ouço um suspiro.
Olho em volta.
Dou um pulo, alerta, procurando o barulho. Parecia bem perto. Alguém me viu. Alguém... Um civil. Ela já está escapando, seu corpo apertado de encontro a uma das paredes da casa.
— Ei! — grito. — Você aí...
Ela para. Olha para cima.
Eu quase desmaio.
Juliette.
Ela está me olhando. Ela realmente está aqui, olhando para mim, com os olhos arregalados e assustados. Minhas pernas parecem ser feitas de chumbo. Estou preso no chão, incapaz de dizer uma palavra sequer. Nem sei por onde começar. São tantas coisas que gostaria de dizer a ela, tantas coisas que eu nunca disse, e eu estou simplesmente tão feliz ao vê-la.
— Deus, estou tão aliviado...
Ela desapareceu.
Olho em volta, em pânico, imaginando se estou começando a perder meu senso de realidade. Meus olhos se voltam para o cachorrinho que ainda está parado ali, esperando por mim, e eu olho para ele estupefato, imaginando o que havia acontecido. Fico olhando para o lugar onde a vi, mas não vejo nada.
Nada.
Passo a mão pelos cabelos, tão confuso, tão horrorizado e irritado comigo mesmo, que fico tentado a arrancar minha cabeça.
O que está acontecendo comigo?
Capítulo 12
Um dos homens do meu pai está me esperando do lado de fora da minha porta.
Olho de relance em sua direção, mas não o suficiente para reconhecer suas feições.
— Diga qual o assunto, soldado.
— Senhor — ele diz —, recebi ordens para lhe informar que o comandante supremo solicita sua presença em seus alojamentos para o jantar às vinte horas.
— Considere sua mensagem recebida. — Dou um passo para abrir minha porta.
Ele dá um passo à frente, bloqueando minha passagem.
Viro o corpo para olhar para ele.
Ele está parado a alguns passos de distância de mim: um ato implícito de desrespeito; um nível de intimidade que nem mesmo Delalieu se permite. No entanto, ao contrário dos meus homens, os bajuladores que cercam meu pai se consideram especiais. Ser um membro da guarda de elite do comandante supremo é considerado um privilégio e uma honra. Eles se reportam diretamente a ele.
E nesse exato momento, esse soldado está tentando provar que é superior a mim.
Ele tem inveja de mim. Pensa que sou indigno de ser o filho do comandante supremo do Restabelecimento. Isso está praticamente escrito no rosto dele.
Tenho que segurar meu impulso de cair no riso quando encaro seus frios olhos cinza e o buraco negro que é sua alma. Ele tem as mangas enroladas na altura do cotovelo, suas tatuagens militares claramente definidas e à mostra. Os círculos concêntricos de tinta preta em volta dos seus braços são acentuados em vermelho, verde e azul, o único sinal para indicar que ele é um soldado de patente elevada. É um ritual doentio do qual sempre fiz questão de me recusar a participar.
O soldado ainda está me encarando.
Inclino minha cabeça em sua direção, ergo minhas sobrancelhas.
— Recebi ordens — ele declara — de esperar uma resposta oral aceitando esse convite.
Demoro um pouco, pensando nas minhas escolhas, mas não havia nenhuma.
Eu, como todos os fantoches desse mundo, sou completamente subserviente aos desejos do meu pai. É verdade que sou forçado a lutar todos os dias: que nunca serei capaz de enfrentar o homem que tem seus punhos cerrados em volta da minha espinha vertebral.
Isso me faz odiar a mim mesmo.
Encaro os olhos do soldado e imagino, por um breve momento, qual o nome dele, antes de perceber que não me importo com isso.
— Considere-o aceito.
— Sim, s...
— E da próxima vez, soldado, não se aproxime a menos de um metro e meio de distância de mim, sem pedir permissão.
Ele pisca os olhos, confuso.
— Senhor, eu...
— Você está confuso — o interrompo. — Acredita que trabalhar com o comandante supremo lhe dá imunidade das regras que governam a vida dos outros soldados. Veja, você está errado.
Seu rosto se enrijece.
— Nunca se esqueça — digo baixinho agora — que se eu quisesse o seu emprego, eu o teria. E não se esqueça de que o homem que você serve tão ansiosamente é o mesmo homem que me ensinou a atirar com uma arma de fogo quando eu tinha apenas nove anos de idade.
Suas narinas se dilatam. Ele olha direto para frente.
— Entregue sua mensagem, soldado. E então relembre isso e nunca mais fale comigo novamente.
Os olhos dele agora estão presos num ponto diretamente atrás de mim, seus ombros rígidos.
Espero.
Seu maxilar ainda está rígido. Lentamente ele levanta sua mão em saudação.
— Está dispensado — digo.
Tranco a porta do meu quarto e me encosto nela. Preciso de apenas um momento. Pego o vidrinho que está na mesinha de cabeceira e tiro duas pílulas quadradas; as jogo na boca, fechando meus olhos enquanto se dissolvem.
A escuridão atrás das minhas pálpebras é um alívio reconfortante.
Até que a lembrança do rosto dela se impõe à minha percepção.
Me sento na cama e deixo a cabeça cair na minha mão. Não deveria estar pensando nela agora. Tenho horas de papelada para separar e o estresse da presença do meu pai para aguentar. Jantar com ele vai ser um espetáculo. Um espetáculo de arrasar a alma.
Fecho meus olhos com força e faço um pequeno esforço para construir as paredes que com certeza limpariam minha mente. Mas dessa vez elas não funcionam. O rosto dela insiste em surgir subitamente, seu diário me provocando lá no fundo do meu bolso.
E começo a perceber que tem uma pequena parte de mim que não deseja afastar os pensamentos dela. Uma parte de mim gosta da tortura.
Essa garota está me destruindo.
Uma garota que passou o último ano internada num sanatório de loucos. Uma garota que tentou me matar porque eu a beijei. Uma garota que fugiu com outro homem só para se afastar de mim.
É claro que essa é a garota por quem eu iria me apaixonar.
Coloco a mão na boca.
Estou perdendo a cabeça.
Tiro minhas botas. Me enfio na cama e deixo a cabeça cair nos travesseiros.
Ela dormiu aqui, penso. Ela dormiu na minha cama. Ela acordou na minha cama. Ela estava aqui e deixei que ela escapasse.
Falhei.
Perdi.
Nem percebo que tirei o diário dela do bolso e o estou segurando em frente do rosto. Olhando para ele. Estudando sua capa desbotada numa tentativa de entender onde ela pode ter adquirido isso. Ela deve ter roubado de algum lugar, embora não consiga imaginar onde.
Há tantas coisas que eu gostaria de perguntar a ela. Tantas coisas que gostaria de lhe dizer.
Ao invés disso, abro seu diário e leio.
Às vezes fecho meus olhos e pinto essas paredescom cores diferentes.
Imagino que estou usando meias quentinhas e estou sentada perto do fogo. Imagino que alguém me deu um livro para ler, uma história para me levar para longe da tortura da minha própria mente. Quero ser alguém em algum outro lugar com alguma outra coisa a ocupar minha cabeça. Quero correr, quero sentir o vento batendo nos cabelos. Quero fingir que isso é simplesmente uma história dentro de outra história. Que essa cela é apenas um cenário, que essas mãos não me pertencem, que essa janela dá para um lugar lindo, se pelo menos eu conseguisse abri-la. Finjo que essa fronha é limpa, finjo que a cama é macia. Finjo e finjo e finjo até que o mundo fica maravilhoso por trás dos meus olhos e já não consigo mais contê-lo. Mas então meus olhos se abrem e sou agarrada pela garganta por um par de mãos que não param de me sufocar sufocar sufocar...
Meus pensamentos, acho, logo serão ouvidos.
Minha mente, espero, logo será descoberta.
O diário cai da minha mão e bate no meu peito. Passo a mão pelo rosto, pelo meu cabelo. Massageio o pescoço e me puxo com força para cima a ponto de bater a cabeça na cabeceira da cama, e na verdade fico grato a isso. Me demoro um pouco sentindo a dor.
E viro a página.
Imagino o que eles estão pensando. Meus pais. Imagino onde estão. Penso se eles estão bem agora, se estão felizes agora,se eles finalmente conseguiram o que queriam.Imagino se minha mãe vai querer ter outro filho. Imagino se alguém vai ter a bondade de me matar, e imagino se o inferno não é melhor do que aqui. Imagino como está meu rosto agora. Imagino se algum dia vou poder respirar o ar fresco novamente.
Imagino tantas outras coisas.
Às vezes fico acordada durante dias simplesmente contando tudo que encontro. Conto as paredes, as rachaduras na parede, meus dedos dos pés e das mãos. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, quantos passos para ir para frente e para trás no meu quarto. Conto meus dentes e cada fio de cabelo na minha cabeça e o número de segundos em que consigo prender minha respiração.
Mas às vezes fico tão cansada que esqueço que não tenho mais permissão para desejar mais nada, e me descubro desejando a única coisa que sempre quis. A única coisa com a qual sempre sonhei.
Sempre desejei ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso de volta. Ter alguém em quem confiar que não iria jogar as coisas em mim, nem colocar minhas mãos no fogo ou me bater por ter nascido. Alguém que iria saber que fui colocada para fora de casa e tentaria me achar, que nunca teria medo de mim.
Alguém que soubesse que eu nunca o machucaria.
Me vejo num canto desse quarto e enfio a cabeça nos meus joelhos e me balanço para frente e para trás para frente e para trás para frente e para trás e desejo e desejo e desejo coisas impossíveis até cair no sono de tanto chorar.
Imagino como seria ter um amigo.
E então imagino quem mais está preso neste hospício. Imagino de onde estão vindo os outros gritos.
Imagino se estão vindo de mim.
Tento me concentrar, dizendo a mim mesmo que são palavras vazias, mas estou mentindo. Porque, de algum modo, simplesmente ler essas palavras é demais; e pensar nela sofrendo está me deixando agoniado.
Saber que ela vivenciou isso.
Ela foi colocada nesse inferno pelos próprios pais, abandonada e maltratada a vida inteira. Empatia é uma emoção que eu não conhecia, mas agora toma conta de mim, me levando para um mundo que eu não sabia que podia penetrar. E embora sempre tenha acreditado que ela e eu tivéssemos muita coisa em comum, não sabia que podia sentir isso com tanta profundidade.
Isso está me matando.
Fico em pé. Começo a andar pelo quarto até acalmar meus nervos para continuar a leitura. Então respiro fundo.
E viro a página.
Tem alguma coisa fervilhando dentro de mim.
Algo que nunca ousei descobrir, algo que tenho medo de saber. Tem uma parte de mim lutando para se libertar da jaula onde estou presa, batendo nas portas do meu coração, suplicando para ser libertada.
Suplicando para ir embora.
Todos os dias sinto que revivo o mesmo pesadelo. Abro a boca para gritar, para lutar, para girar meus punhos, mas minhas cordas vocais estão cortadas, meus braços estão pesados e densos como se estivessem presos no cimento molhado e eu estou gritando mas ninguém me ouve, ninguém se aproxima e estou enjaulada. E isso está acabando comigo.
Sempre tive de bancar a submissa, subserviente, um pano de chão suplicante e passivo que fazia todo mundo se sentir seguro e confortável. Minha existência se tornou uma luta para provar que eu era inofensiva, não uma ameaça, que eu era capaz de viver entre outros seres humanos sem feri-los.
E estou tão cansada tão cansada tão cansada e às vezes chego a ficar com raiva.
Não sei o que está acontecendo comigo.
— Meu Deus, Juliette. — Suspiro.
E caio de joelhos.
— Chame o transporte imediatamente. — Preciso sair. Preciso sair daqui agora.
— Senhor? Isso é, sim, senhor, é claro... mas onde...
— Tenho que visitar os complexos — digo. — Tenho que fazer minhas rondas antes do meu compromisso dessa noite. — Isso é tanto verdade quanto mentira. Porém agora estou disposto a fazer qualquer coisa que me afaste desse diário.
— Ah, certamente, senhor. Gostaria que o acompanhasse?
— Isso não será necessário, tenente, mas obrigado pela oferta.
— Eu... se-senhor — ele gagueja. — É claro, é u-uma honra servi-lo, senhor, ajudá-lo...
Deus do céu, onde estou com a cabeça. Eu nunca digo obrigado a Delalieu. É muito provável que o pobre homem vá ter um infarto agora.
— Estarei pronto para sair em dez minutos — interrompo.
Ele começa a gaguejar, mas para. Então diz:
— Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Estou pressionando a boca com o punho quando a ligação é desconectada.
Capítulo 13
Tínhamos lares. Antes.
De todos os tipos diferentes.
Casas térreas. Sobrados. Casas de três andares.
Comprávamos enfeites para o jardim e luzinhas pisca-pisca, aprendíamos a andar de bicicleta sem rodinhas. Adquirimos vidas confinadas em 1,2 e 3 andares já construídos, andares contidos em estruturas que não podíamos mudar.
Vivemos nesses andares por algum tempo.
Seguimos a história que nos era contada, o texto preso em cada metro do espaço que havíamos conquistado. Ficamos contentes com a mudança no enredo que redirecionou nossa vida. Assinamos nas linhas pontilhadas por coisas pelas quais não nos importávamos realmente. Comíamos coisas que não deveríamos, gastávamos dinheiro quando não podíamos, esquecíamos a Terra que tínhamos de habitar e desperdiçávamos desperdiçávamos desperdiçávamos tudo. Comida. Água. Recursos.
Logo, os céus ficaram cinza com a poluição química, e as plantas e os animais ficaram doentes devido à modificação genética. E doenças se impregnaram no nosso ar, nas nossas refeições, nossos sangues e nossas casas. A comida desapareceu. As pessoas estavam morrendo. Nosso império estava caindo aos pedaços.
O Restabelecimento disse que nos ajudariam. Nos salvariam. Reconstruiriam nossa sociedade.
Ao invés disso, eles nos destroçaram.
Gosto de visitar os complexos.
É um lugar estranho para se buscar refúgio, mas sinto alguma coisa ao ver tantos civis num espaço tão vasto e aberto que me faz lembrar da minha missão. Fico tanto tempo preso nos limites dos muros do quartel-general do Setor 45, que frequentemente me esqueço dos rostos daqueles por quem lutamos e daqueles com quem estamos lutando.
Gosto de me lembrar.
Geralmente, visito cada aglomerado dos complexos; cumprimento os moradores e pergunto sobre suas condições de vida. Não consigo deixar de ficar curioso em saber como é a vida deles agora. Porque enquanto o mundo se transformou inteiramente para eles, meu mundo continuou o mesmo. Disciplinado. Isolado. Desolador.
Houve um tempo quando as coisas foram melhores, quando meu pai não era tão irritado. Eu tinha cerca de 4 anos. Ele costumava me fazer sentar em seu colo e brincar com seus bolsos. Eu podia pegar o que quisesse, desde que meu argumento fosse bem convincente. Era seu jeito de brincar.
Mas tudo isso foi antes.
Aperto meu casaco no corpo, sentindo o tecido se encostar nas minhas costas. Vacilo sem querer.
A vida que tenho agora é a única que importa. O sufoco, o luxo, as noites mal dormidas, e os corpos dos mortos. Sempre me ensinaram a me concentrar no poder e na dor, em ganhar e infligir.
Não lamento nada.
Aceito tudo.
É o único modo que encontrei de continuar vivendo nesse corpo maltratado. Esvazio minha mente das coisas que me infestam e sobrecarregam minha alma, e aceito o que puder dos pequenos prazeres que aparecem à minha frente. Não sei o que é ter uma vida normal; não sei como simpatizar com os cidadãos que perderam suas casas. Não faço ideia de como era a vida deles antes de o Restabelecimento tomar o poder.
Por isso gosto de passear pelos complexos.
Gosto de ver como as outras pessoas vivem; gosto de ter o poder de fazer com que respondam às minhas perguntas. Do contrário não teria como saber.
Mas o momento é errado.
Não prestei muita atenção ao relógio quando saí da base, e não percebi que o sol estava se pondo. A maioria dos civis está voltando para casa para descansar à noite, seus corpos curvados, encolhidos pelo frio enquanto se encaminhavam em direção aos aglomerados de metal que dividem com pelo menos outras três famílias.
As casas improvisadas são construídas com containers de navios de doze metros quadrados; eles são empilhados lado a lado e um em cima do outro, agrupados em grupos de cinco ou seis. Cada container foi isolado; equipado com duas janelas e uma porta. Escadas para o andar superior foram colocadas de cada lado de fora da estrutura. Os tetos são alinhados com painéis solares que fornecem eletricidade gratuita para cada grupo.
É algo do qual muito me orgulho.
Porque foi minha ideia.
Quando estávamos procurando por abrigos temporários para os civis, sugeri reformar os velhos containers de carga que ocupavam as docas de todos os portos do mundo. Não apenas eram baratos, facilmente reaproveitados, e altamente adaptáveis, mas podiam ser empilhados, eram portáteis e construídos independentemente do clima do lugar. Eles exigiam o mínimo de construção e, com a equipe certa, milhares de unidades habitacionais poderiam estar prontas em alguns dias.
Dei essa ideia para meu pai, pensando que essa seria a opção mais eficiente; uma solução temporária que seria menos desumana do que barracas; algo que ofereceria um abrigo real e confiável. Mas o resultado foi tão eficiente que o Restabelecimento não viu necessidade de renovação. Aqui, num terreno que costumava ser um lixão, assentamos milhares de containers; aglomerados de cubos retangulares e desbotados que são fáceis de monitorar e vigiar.
As pessoas ainda acreditam que essa é uma solução temporária. Que um dia voltarão para as lembranças de suas antigas vidas e as coisas serão lindas e brilhantes novamente. Mas tudo isso é mentira.
O Restabelecimento não tem planos de mudá-los de onde estão.
Os civis devem permanecer nessas áreas regulamentadas; esses containers se tornaram suas prisões. Tudo foi numerado. As pessoas, suas casas, seu grau de importância para o Restabelecimento.
Aqui, eles se tornaram parte de um enorme experimento. Um mundo no qual trabalham para manter as necessidades de um regime que faz promessas que nunca serão cumpridas.
Essa é a minha vida.
Esse triste mundo.
Na maior parte do tempo, me sinto como um civil; e é provavelmente por isso que vim até aqui. É como se estivesse indo de uma prisão para outra; numa existência onde não há escape, não há refúgio. Quando até mesmo minha mente me trai.
Eu deveria ser mais forte do que isso.
Tenho treinado há mais de uma década. Tenho trabalhado todos os dias para aprimorar minhas forças física e mental. Tenho 1 metro e 79 de altura e 77 quilos de músculos. Fui preparado para sobreviver, para maximizar a resistência e a energia, e fico perfeitamente à vontade segurando uma arma. Posso desmontar, limpar, recarregar, desarmar e remontar mais de 150 tipos de armas de fogo. Posso atirar no centro de um alvo, de praticamente qualquer distância. Posso quebrar o pescoço de uma pessoa com a lateral da mão. Posso paralisar temporariamente um homem com apenas os nós dos meus dedos.
No campo de batalha, sou capaz de me desconectar dos movimentos que aprendi a memorizar. Criei a reputação de ser alguém frio, um monstro que não teme nada nem ninguém.
Mas tudo isso é ilusório.
Porque a verdade é que não passo de um covarde.
Capítulo 14
O sol está se pondo.
Logo vou ter que retornar à base, onde vou me sentar quieto e ouvir meu pai falar, em vez de mandar bala na sua boca aberta.
Então tento ganhar tempo.
Fico parado e ouço barulhos vindos de longe e observo as crianças correrem, enquanto seus pais as levam para casa. Penso se um dia eles vão crescer o bastante para sacar que os cartões do Registro do Restabelecimento na verdade estão rastreando todos seus movimentos. Que o dinheiro que seus pais recebem pelo trabalho em alguma das muitas fábricas existentes ali é monitorado de perto. Essas crianças crescerão e finalmente entenderão que tudo que elas fazem está gravado, cada conversa é dissecada para se descobrir murmúrios de rebeliões. Eles não sabem que estão sendo criados perfis para cada cidadão, e que cada arquivo é bem grosso com documentação das suas amizades, relacionamentos, e hábitos de trabalho; até mesmo como gostam de passar seu tempo livre.
Sabemos tudo sobre todo mundo.
Demais.
Tanto é verdade que raramente me lembro que estamos lidando com gente de verdade, seres vivos, até vê-los nos complexos. Sei de cor o nome de quase todos os cidadãos do Setor 45. Gosto de saber quem vive na minha jurisdição, não importa se são soldados ou civis.
Foi assim que tomei conhecimento, por exemplo, que o soldado Seamus Fletcher, 45B-76423, batia na esposa e nos filhos todas as noites.
Eu sabia que ele estava gastando todo seu dinheiro em bebidas; sabia que ele estava deixando sua família passar fome. Monitorei os dólares REST que ele gastava nas nossas centrais de abastecimento e observei atentamente a família dele no complexo. Sabia que seus três filhos tinham menos de 10 anos e não comiam há semanas; sabia que eles haviam estado inúmeras vezes no posto médico do complexo para tratar de ossos quebrados e levar pontos em machucados. Fiquei sabendo que ele deu um soco na boca de sua filha de 9 anos e cortou o lábio dela, fraturou o maxilar e quebrou dois de seus dentes da frente; e soube que sua esposa estava grávida. Também fiquei sabendo que certa noite ele bateu nela com tanta força que ela perdeu a criança na manhã seguinte.
Eu sei por que estava lá.
Eu estava parando em cada residência, visitando os civis, fazendo perguntas sobre sua saúde e como estavam suas vidas. Queria saber de suas condições de trabalho e se algum membro de suas famílias precisaria estar de quarentena.
Ela estava em casa naquele dia. A esposa de Fletcher. Seu nariz estava quebrado e seus olhos estavam tão inchados que ela nem conseguia abri-los direito. Seu corpo era tão magro e frágil, sua pele tão pálida, que achei que ela iria se quebrar em duas ao sentar-se. Quando lhe perguntei sobre os machucados, ela evitou meus olhos. Disse que tinha caído; que por causa da sua queda ela havia perdido a criança que carregava e conseguiu também quebrar o nariz no acidente.
Acenei com a cabeça. Agradeci por sua cooperação ao responder minhas perguntas.
E então convoquei uma reunião.
Estou ciente que a maioria dos meus soldados rouba dos armazéns dos nossos complexos. Analiso os relatórios cuidadosamente e sei que tem suprimentos desaparecendo o tempo todo. Mas permito essas pequenas infrações porque elas não perturbam o sistema. Alguns pães ou pedaços de sabão a mais deixam meus soldados mais animados; eles trabalham mais se estiverem saudáveis, e a maioria deles mantém esposa, filhos e parentes. Então essa é uma concessão que faço.
Mas algumas coisas não posso perdoar.
Não me considero um moralista. Não filosofo sobre a vida ou me importo com as leis e princípios que governam a vida das pessoas. Não pretendo saber a diferença entre o certo e o errado. Mas procuro viver sob certo código de vida. E às vezes, eu acho, tenho que aprender a atirar antes.
Seamus Fletcher estava matando sua família. E eu lhe dei um tiro na testa porque achei que assim seria menos doloroso do que destroçá-lo com minhas próprias mãos.
Mas meu pai completou o trabalho que Fletcher havia começado. Meu pai mandou matar os três filhos dele e sua mulher, tudo por causa de um bêbado cretino que deveria ter cuidado deles. Ele era o pai deles, o marido dela, e a razão de eles terem tido uma morte tão brutal e inesperada.
E alguns dias eu imagino por que insisto em continuar vivendo.
Capítulo 15
De volta à base, sigo direto em frente.
Ignoro os soldados e suas continências por onde passo, sem prestar atenção à mistura de curiosidade e desconfiança em seus olhos. Nem tinha percebido que havia tomado esse caminho ao chegar à base; mas meu corpo parece saber mais do que minha mente, do que precisa agora. Meus passos são pesados; regulares, o som das minhas botas ecoa ao longo do piso de pedras conforme chego aos andares de baixo.
Não venho aqui há quase duas semanas.
O quarto fora reformado desde a última vez em que estive aqui; o painel de vidro e a parede de concreto foram substituídos. E pelo que sei ela foi a última pessoa a usar esse quarto.
Eu mesma a havia trazido aqui.
Empurro as duas portas giratórias do vestiário que fica na sala adjacente ao deque de simulação. Minha mão procura no escuro pelo interruptor; as luzes piscam uma vez antes de se acenderem. Um zumbido monótono de eletricidade vibra nesses cômodos vastos. Tudo está quieto, abandonado.
Exatamente como eu gosto.
Tiro minhas roupas o mais rápido que consigo, devido aos ferimentos. Ainda tenho duas horas antes do esperado jantar com meu pai, então eu não deveria estar tão ansioso assim, mas meus nervos não estão ajudando. Tudo parece estar vindo para cima de mim de uma vez só. Meus fracassos. Minha covardia. Minha estupidez.
Às vezes fico tão cansado dessa vida.
Estou em pé, descalço no concreto, só usando a tipoia no meu braço, detestando como esse ferimento me deixa constantemente para baixo. Pego o shorts guardado no meu armário e o visto o mais rapidamente possível, me encostando à parede para me apoiar. Quando finalmente fico ereto, fecho a porta do armário e entro no cômodo ao lado.
Aperto mais um interruptor, e o sistema operacional principal começa a funcionar. Os computadores emitem um sinal sonoro e uns flashes se acendem enquanto o programa se prepara; passo os dedos pelo teclado.
Costumamos usar esses cômodos para simulações.
Manipulamos a tecnologia para criar lugares e experiências que existem apenas na mente humana.
Não apenas somos capazes de criar o cenário, mas também podemos controlar os mínimos detalhes. Sons, cheiros, falsa segurança, paranoia. O programa foi originalmente criado para ajudar soldados em missões específicas, e também para ajudá-los a superar medos que, do contrário, iria incapacitá-los no campo de batalha.
Eu o uso para meus próprios fins.
Costumava vir aqui todos os dias antes de ela chegar à base. Aqui era meu porto seguro; minha única fuga do mundo. Apenas gostaria que não precisasse de um uniforme. Esse short é engomado e desconfortável, o poliéster coça e irrita a pele. Mas é forrado com uma química especial que reage com a minha pele e alimenta o sensor com informações; me ajudam a me situar na experiência e me permitirá correr por quilômetros sem precisar correr de verdade, muros físicos no meu ambiente real. E para que o processo seja o mais eficiente possível, tenho que vestir quase nada. As câmeras são hipersensíveis ao calor do corpo, e funcionam melhor quando não entra em contato com materiais sintéticos.
Espero que esse detalhe fique anotado para a próxima geração do programa.
A central me solicita dados; rapidamente entro com o código de acesso que me garante permissão para levantar o histórico das últimas simulações. Olho para o alto por sobre meu ombro enquanto o computador processa os dados; olho de relance pelo recém-consertado espelho de duas faces que vê o cômodo principal. Ainda não acredito que ela quebrou uma parede inteira de vidro e concreto e continuou a caminhar sem um arranhão.
Inacreditável.
A máquina bipa duas vezes; me viro novamente. Os programas que solicitei estão carregados e prontos para serem executados.
O arquivo dela é o primeiro da lista.
Respiro fundo; tento afastar as lembranças. Não me arrependo de tê-la feito passar por uma experiência tão horrível. Não sei se ao final ela teria se permitido perder o controle — finalmente habitar seu próprio corpo — se eu não tivesse encontrado um modo eficiente de provocá-la. Ultimamente realmente acredito que isso a ajudou, exatamente como eu pretendia. Mas eu desejaria que ela não tivesse apontado uma arma na minha cara e saltado pela janela logo depois.
Suspiro devagar mais uma vez, acalmando minha respiração.
E seleciono a simulação que me motivou a vir até aqui.
Capítulo 16
Estou parado no cômodo principal.
Me encarando.
Essa é uma simulação bem simples. Não precisei trocar de roupa nem mexer no meu cabelo, nem alterar o piso carpetado. Não fiz nada a não ser criar uma duplicata de mim mesmo e lhe entregar uma arma.
Ele não para de me encarar.
Um.
Ele curva ligeiramente a cabeça.
— Você está pronto? — Uma pausa. — Está com medo?
Meu coração bate em disparada.
Ele ergue seu braço. Sorri um pouco.
— Não se preocupe — ele diz. — Está quase terminado agora.
Dois.
— Só um pouco mais e eu vou embora — ele diz, apontando a arma para a minha testa.
Minhas mãos estão suadas. Meu pulso está acelerado.
— Você vai ficar bem — ele mente. — Prometo.
Três.
Bummm.
Capítulo 17
— Tem certeza de que não está com fome? — meu pai pergunta, ainda mastigando. — Isso está realmente muito bom.
Me mexo na cadeira. Me concentro nos vincos bem passados das calças que estou usando.
— Hum? — ele indaga. Posso vê-lo sorrindo.
Estou intensamente ciente dos soldados alinhados nas paredes desta sala. Ele sempre os mantém perto de si, e sempre em constante competição uns com os outros. Sua primeira tarefa era determinar qual era o elo mais fraco dentre os onze. Aquele com o argumento mais convincente poderia dispor do seu alvo.
Meu pai acha essas práticas divertidas.
— Receio não estar com muita fome. Os remédios — minto — acabam com meu apetite.
— Ah — ele replica. Ouço o barulho de seus talheres quando ele os deposita na mesa. — É claro. Que inconveniência.
Não digo nada.
— Podem se retirar.
Duas palavras e seus homens se dispersam em questão de segundos. A porta se fecha atrás deles.
— Olhe para mim — ele ordena.
Levanto o olhar, meus olhos cuidadosamente desprovidos de emoção. Odeio seu rosto. Não suporto olhar muito tempo para ele; não gosto da experiência de observar como ele é desumano. Ele não se tortura pelo que faz ou pelo modo que vive. Na verdade ele gosta disso. Ele adora a adrenalina do poder; ele se vê como uma entidade invencível.
E, de certo modo, não está errado.
Passei a crer que o homem mais perigoso do mundo é aquele que não sente remorso. Aquele que nunca se desculpa e, portanto, não procura o perdão. Porque no final, são nossas emoções que nos torna fracos, não nossas ações.
Viro o rosto.
— O que encontrou? — ele pergunta sem preâmbulos.
Minha mente vai imediatamente para o diário que está guardado no meu bolso, mas não faço nenhum comentário. Nem pisco. As pessoas raramente percebem que, na maioria das vezes, mentem com os lábios e dizem a verdade com os olhos. Coloque um homem num cômodo com algo que ele tenha escondido, e então pergunte onde ele a escondeu; ele vai dizer que não sabe; vai dizer que você pegou a pessoa errada; mas quase sempre ele vai olhar na direção certa. E agora meu pai está me examinando, esperando ver para onde vou olhar, o que direi a seguir.
Mantenho meus ombros relaxados e respiro devagar, imperceptivelmente, para amansar meu coração. Não respondo. Finjo estar perdido em meus pensamentos.
— Filho?
Ergo o olhar. Finjo surpresa.
— Sim?
— O que achou? Quando revistou o quarto dela hoje?
Solto o ar. Sacudo a cabeça quando me recosto na cadeira.
— Vidros quebrados. Uma cama desarrumada. O armário dela, escancarado. Ela levou apenas alguns itens de higiene pessoal e algumas roupas extras e roupas de baixo. — Nada disso era sem sentido. Nada disso era mentira.
Ouço quando ele suspira. Ele afasta seu prato.
Sinto o contorno do caderninho dela queimando minha perna.
— E você diz que não sabe para onde ela pode ter ido?
— Apenas sei que ela, Kent e Kishimoto devem estar juntos — explico a ele. — Delalieu diz que roubaram um carro, mas as pistas desapareceram na entrada de um enorme terreno baldio. Fizemos as tropas vasculharem aquela área durante dias, mas não encontramos nada.
— E onde — ele pergunta — planeja procurar a seguir? Você acha que eles cruzaram para outro setor? — A voz dele está estranha. Divertida.
Olho seu rosto sorridente.
Ele só está me fazendo essas perguntas para me testar. Ele tem suas próprias respostas, sua solução já preparada. Ele quer me ver falhar ao responder incorretamente. Está tentando provar que, sem ele, eu tomaria as decisões erradas.
Ele está se divertindo às minhas custas.
— Não — digo a ele, com a voz sólida e firme. — Não acho que vão fazer algo tão idiota como atravessar para outro setor. Eles não têm acesso, meios ou capacidade para isso. Ambos os homens estão severamente feridos, perdendo sangue rapidamente, e estão distantes de qualquer ajuda de emergência. Provavelmente estão mortos agora. A garota talvez seja a única sobrevivente, e ela não pode ter ido muito longe, pois não conhece como andar por aquelas áreas. Ela ficou isolada muito tempo; tudo nesse lugar é completamente estranho para ela. Além do que, ela não sabe dirigir, e se por acaso ela conseguisse dirigir um veículo, teríamos sido informados da propriedade roubada. Se levarmos em consideração seu estado geral de saúde, sua propensão a se esgotar fisicamente muito rápido, e a falta de acesso à comida, água e atenção médica, ela deve estar desmaiada num raio de dez quilômetros desse suposto terreno baldio. Temos que encontrá-la antes que morra congelada.
Meu pai pigarreia.
— Sim — ele diz —, são teorias interessantes. E, talvez, sob outras circunstâncias, elas poderiam até ser verdadeiras. Mas você está se esquecendo de me falar do detalhe mais importante.
Olho nos olhos dele.
— Ela não é normal — ele conclui, recostado à sua cadeira. — E ela não é a única da sua espécie.
Meu coração acelera. Pisco rápido demais.
— Ah, vamos lá, você não suspeitou de nada? Não criou nenhuma hipótese? — Ele ri. — Parece impossível, estatisticamente, que ela seja a única desse tipo que foi produzida pelo nosso mundo. Você sabia disso, mas não quis acreditar. E eu vim aqui para lhe dizer que é verdade. — Ele curva a cabeça ligeiramente em minha direção. Dá um sorriso largo e vibrante. — Existem muitos deles. E eles a recrutaram.
— Não. — Solto o ar.
— Eles se infiltraram em suas tropas. Vivem no seu meio em segredo. E agora roubaram seu brinquedinho e fugiram com ele. Só Deus sabe como esperam manipulá-la em seu próprio benefício.
— Como pode ter tanta certeza? — indago. — Como sabe que eles conseguiram levá-la com eles? Kent estava meio morto quando o deixei...
— Preste atenção, filho. Estou lhe afirmando que eles não são normais. Eles não seguem suas regras; não há nenhuma lógica que os oriente. Você não tem ideia das esquisitices de que são capazes. — Uma pausa. — Além do mais, tenho conhecimento já há algum tempo, de um grupo deles que vive disfarçado nessa área. Mas durante todo esse tempo eles sempre se mantiveram afastados. Eles não interferem em meus métodos, e achei melhor deixá-los morrer sozinhos sem causar um pânico desnecessário na nossa população civil. Você entende, é claro — ele diz. — Afinal de contas, é muito difícil conter pelo menos um deles. Eles são a coisa mais bizarra de se ver.
— Você sabia? — Estou de pé agora. Tentando ficar calmo. — Você sabia da existência deles, durante todo esse tempo, e assim mesmo não fez nada? Não disse nada?
— Não julguei necessário.
— E agora? — exijo.
— Agora parece pertinente.
— Inacreditável! — Levanto as mãos para o alto. — Que você escondesse de mim tal informação! Quando sabia dos meus planos para ela... quando sabia o sacrifício que foi trazê-la aqui...
— Acalme-se — ele pede. Ele estica as pernas; apoia o tornozelo de uma perna no joelho da outra. — Vamos encontrá-los. Esse terreno abandonado que Delalieu mencionou — a área onde o carro deixou de ser rastreado? Esse é o nosso ponto de partida. Eles devem estar escondidos nos subterrâneos. Devemos encontrar a entrada e os destruir em silêncio, por dentro. Então os teremos punido, e evitamos que o resto se revolte e inspire a rebelião no nosso povo.
Ele se inclina para frente.
— Os civis escutam tudo. E, no momento, estão vibrando com um novo tipo de energia. Estão se sentindo motivados ao perceberem que um deles conseguiu escapar e que você saiu ferido no processo. Isso faz nossas defesas parecerem fracas e fáceis de serem penetradas. Precisamos destruir essa percepção reequilibrando a balança. O medo irá retornar tudo para seu devido lugar.
— Mas eles estão procurando — digo a ele. — Meus homens. Eles vasculham a área todos os dias e ainda não encontraram nada. Como pode ter certeza que iremos descobrir alguma coisa, afinal de contas?
— Porque — ele explica — você vai liderá-los. Todas as noites. Depois do toque de recolher, enquanto os civis dormem. Você não vai interromper as buscas durante o dia; não vai dar a eles motivo para terem o que falar. Aja em silêncio, meu filho. Não mostre suas jogadas. Vou permanecer na base e supervisionar suas responsabilidades com meus homens; vou dar ordens a Delalieu se for necessário. E nesse ínterim, você irá encontrá-los, para que eu possa destruí-los o mais rápido possível. Essa loucura já está durando tempo demais — ele diz — e eu não estou mais a fim de ser generoso.
Capítulo 18
Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito mesmo por favor me perdoe.
Foi um acidente.
Me perdoe
Por favor me perdoe
Há pouca coisa que eu permito que as pessoas descubram a meu respeito. Há ainda menos coisas que estou disposto a partilhar sobre mim mesmo. E entre as muitas coisas que nunca discuti com ninguém, é esta.
Gosto de tomar banhos demorados.
Sempre tive uma obsessão por limpeza desde que era pequeno. Sempre fui tão focado em morte e destruição que acho que compenso isso me mantendo o mais intacto possível. Tomo chuveiradas com frequência. Escovo e passo fio dental nos dentes pelo menos três vezes ao dia. Corto meu cabelo toda semana. Esfrego minhas mãos e unhas antes de me deitar e assim que acordo. Tenho uma preocupação doentia em usar apenas roupas que acabaram de ser lavadas. E todas as vezes que passo por alguma emoção mais forte, a única coisa que acalma meus nervos é um banho bem demorado.
Então é isso que vou fazer agora.
Os médicos me ensinaram como prender meu braço ferido no mesmo plástico que eles usaram antes, então posso mergulhar abaixo da superfície sem problemas. Afundo minha cabeça por um longo período, seguro a respiração e solto o ar pelo nariz. Sinto as borbulhas virem à tona.
A água morna me faz sentir leve. Ela carrega meu peso para mim, compreendendo que preciso de um momento para aliviar meus ombros desse peso. Para fechar meus olhos e relaxar.
Meu rosto rompe a superfície da água.
Não abro meus olhos; apenas meu nariz e minha boca respiram o oxigênio do outro lado. Faço respirações curtas e regulares para acalmar a mente. Já é tão tarde que nem sei mais que horas são; tudo que sei é que a temperatura caiu significativamente, e o ar frio está fazendo cócegas no meu nariz. É uma sensação estranha, ter 98 por cento do meu corpo boiando numa temperatura quente e agradável, enquanto meus lábios e meu nariz se contraem com o frio.
Mergulho meu rosto na água novamente.
Poderia viver aqui para sempre, eu acho. Viver onde a gravidade não sabe que eu existo. Aqui estou solto, sem restrições das amarras da vida. Sou um corpo diferente, uma concha diferente, e meu corpo é levado pelas mãos dos amigos. Tantas noites desejei poder cair no sono debaixo desse lençol.
Mergulho mais fundo.
Em uma semana, minha vida inteira mudou.
Minhas prioridades mudaram de foco. Minha concentração, destruída. Tudo com que me importo agora se resume a uma pessoa e, pela primeira vez na vida, não sou eu mesmo. Suas palavras estão marcadas na minha mente. Não consigo parar de imaginar como ela deve ter sido, não consigo deixar de imaginar o que ela deve ter vivenciado. Encontrar seu diário me deixou arrasado. Meus sentimentos por ela saíram do controle. Nunca estive tão desesperado para vê-la, para conversar com ela.
Quero que ela saiba que eu entendo agora. Que eu não entendia antes. Ela e eu somos iguais; em mais de uma maneira que eu possa ter imaginado.
Porém, agora, ela está fora do meu alcance. Ela foi para algum lugar com estranhos que não a conhecem e não se importam com ela do mesmo jeito que eu. Ela foi parar num ambiente estranho sem tempo para se adaptar e estou preocupado com ela. Uma pessoa na situação dela — com seu passado — não se recupera da noite para o dia. E agora, uma de duas coisas está prestes a acontecer: ou ela vai se fechar completamente, ou vai explodir.
Sento rápido demais, rompendo a barreira da água, ofegante.
Afasto o cabelo molhado do rosto. Me encosto na parede azulejada, deixando o ar frio me acalmar, clarear meus pensamentos.
Tenho que encontrá-la antes que ela se destrua.
Nunca antes quis cooperar com meu pai, nunca concordei com seus motivos ou seus métodos. Mas, nesse instante, estou disposto a fazer qualquer coisa para tê-la de volta.
E estou ansioso pela oportunidade de pular no pescoço de Kent.
O cretino traidor. O idiota que acha que conquistou uma garota bonita. Ele não tem ideia de quem ela seja. Não imagina no que ela pode se transformar.
E se ele pensa que é o par ideal para ela, está muito enganado, ele ainda é mais idiota do que eu imaginava.
Capítulo 19
— Onde está o café? — pergunto, meus olhos examinando a mesa.
Delalieu derruba o garfo. O talher de prata cai ruidosamente sobre os pratos de porcelana. Ele ergue os olhos, assustados.
— Senhor?
— Gostaria de experimentar — digo a ele, tentando passar manteiga na torrada com a mão esquerda. Olho em sua direção. — Você está sempre falando sobre o café, não é? Pensei em...
Delalieu dá um salto da mesa sem dizer uma palavra. Sai correndo pela porta.
Dou uma risada silenciosa para o meu prato.
Delalieu traz a bandeja do chá e café pessoalmente e a coloca perto da minha cadeira. Suas mãos tremem enquanto ele despeja o líquido escuro numa xícara de chá, a coloca sobre um pires, põe sobre a mesa e a empurra em minha direção.
Espero até ele se sentar para tomar um gole. É uma bebida estranha, terrivelmente amarga; nada como eu imaginava. Olho para ele surpreso por saber que um homem como Delalieu começa seu dia tomando um líquido de gosto tão forte e horrível. Descubro um novo respeito pelo homem.
— Não é tão ruim assim — digo a ele.
Seu rosto se abre num sorriso tão grande, tão sereno, que imagino se ele me entendeu mal. Ele está praticamente radiante quando responde:
— Tomo o meu com creme e açúcar. O gosto fica bem melhor do que...
— Açúcar. — Abaixo a xícara. Fechos os lábios e me controlo para não sorrir. — Você coloca açúcar nisso. Claro que sim. Isso faz mais sentido.
— Gostaria de um pouco, senhor?
Levanto minha mão. Sacudo a cabeça.
— Chame as tropas, tenente. Vamos suspender as missões durante o dia e, ao invés disso, faremos incursões noturnas depois do toque de recolher. Você vai permanecer na base — digo a ele — onde o supremo dará as ordens através de seus homens; cumpra as ordens que eles derem. Eu mesmo vou liderar o grupo. — Paro. Olho direto nos olhos dele. — Não se fala mais nada do que aconteceu. Não há nada para os civis verem ou falarem. Você entende?
— Sim, senhor — ele diz, esquecendo o café. — Vou dar as ordens imediatamente.
— Ótimo.
Ele se levanta.
Eu aceno com a cabeça.
Ele se retira.
Estou começando a sentir esperança pela primeira vez desde que ela foi embora. Vamos encontrá-la. Agora, com essa nova informação — com um exército inteiro contra um grupo de rebeldes despreparados — parece impossível não vencermos.
Respiro fundo. Tomo outro gole do café.
Estou surpreso ao perceber como gostei do seu gosto amargo.
Capítulo 20
Meu pai está à minha espera quando volto para meu quarto.
— As ordens foram dadas — digo a ele sem olhar em sua direção. — Vamos mobilizar as tropas hoje à noite. — Hesito. — Bem, se pode me desculpar, tenho outros assuntos para tratar.
— Qual a sensação? — ele indaga. — De estar tão incapacitado? — ele pergunta sorrindo. — Como você aguenta se ver no espelho, sabendo que foi atacado por um de seus próprios subordinados?
Faço uma pausa do lado de fora da porta que leva ao meu escritório.
— O que você quer?
— Qual — é seu interesse por essa garota? — ele indaga.
Minhas costas enrijecem.
— Ela é mais do que apenas uma experiência para você, não é?
Giro o corpo lentamente. Ele está parado no meio do meu quarto, com as mãos nos bolsos, e com um sorriso aparentando nojo.
— Do que você está falando?
— Dê uma olhada em si mesmo — ele diz. — Eu ainda nem disse o nome dela e parece que você vai desabar. — Ele sacode a cabeça, ainda me examinando de perto. — Seu rosto está pálido, sua mão que funciona está crispada. Está com a respiração ofegante e seu corpo está tenso. — Uma pausa. — Você se traiu, filho. Você se acha muito esperto — ele diz —, mas se esquece de quem lhe ensinou todos os truques.
Fico quente e gelado ao mesmo tempo. Tento relaxar as mãos, mas não consigo. Quero dizer a ele que não há nada errado, mas repentinamente estou me sentindo meio zonzo, desejando ter comido um pouco mais no café da manhã, e ao mesmo tempo desejando não ter comido nada.
— Tenho trabalho a fazer — consigo dizer.
— Me diga — ele pergunta — que você não se importa se ela morrer junto com os outros.
— O quê? — As palavras trêmulas e nervosas escapam rápido demais dos meus lábios.
Meu pai abaixa o olhar. Ele cerra e descerra os punhos.
— Você já me desapontou de tantas maneiras — ele diz com a voz aparentemente suave. — Por favor, não faça isso novamente.
Por um momento sinto como se estivesse fora do meu corpo, me olhando pela perspectiva dele. Vejo meu rosto, meu braço ferido, essas pernas que de repente parecem incapazes de carregar meu peso. Fendas começam a se criar ao longo do meu rosto, pelos meus braços, meu tronco e minhas pernas.
Imagino que seja assim que alguém desmorona.
Não percebo que ele disse meu nome, até ele repeti-lo uma segunda vez.
— O que você quer de mim? — pergunto, surpreso, ao perceber como pareço calmo. — Você entrou no meu quarto sem permissão; fica parado aí e me acusa de coisas que ainda nem consegui entender. Estou seguindo suas regras, suas ordens. Vamos partir hoje à noite; vamos encontrar o esconderijo deles. Você pode destruí-los do jeito que achar melhor.
— E sua garota? — ele diz inclinando a cabeça em minha direção. — Sua Juliette?
Me contraio ao ouvir o nome dela. Meu pulso bate tão forte que parece um sussurro.
— Se eu desse três tiros na cabeça dela, como se sentiria? — Ele me encara. Me observa. — Desapontado, porque você perdeu seu brinquedinho de estimação? Ou arrasado porque perdeu a garota que ama?
O tempo nesse momento parece estar mais lento, se derretendo à minha volta.
— Seria um desperdício — digo, ignorando o tremor que sinto por dentro, e que ameaça transbordar — perder algo no qual investi tanto tempo.
Ele sorri.
— É bom saber que você vê as coisas dessa forma — ele diz. — Mas projetos são facilmente substituíveis. E tenho certeza que poderemos encontrar um uso melhor e mais prático para seu tempo.
Pisco os olhos devagar. Parte do meu peito está destroçado.
— Claro. — Me ouço dizer.
— Sabia que entenderia. — Ele dá um tapinha no meu ombro machucado ao sair do quarto. Meus joelhos quase se dobram. — Valeu o esforço, filho. Mas ela nos custou muito tempo e dinheiro e se provou completamente inútil. Desse modo estaremos nos livrando de várias inconveniências ao mesmo tempo. Vamos considerar isso um efeito colateral. — Ele me dá um último sorriso antes de passar por mim e sair pela porta.
Caio de encontro à parede.
E me amontoo no chão.
Capítulo 21
É só engolir as lágrimas com bastante frequência que elas vão começar a parecer ácido escorrendo pela sua garganta. É aquele momento terrível quando você está sentada quieta tão quieta porque você não quer que a vejam chorar você não quer chorar, mas seus lábios não param de tremer e seus olhos estão cheios até a borda com súplica e eu imploro e por favor e me desculpe e tenha piedade e talvez dessa vez será diferente mas é sempre igual. Não tem onde se esconder. Ninguém ao seu lado.
Acenda uma vela para mim, eu costumava murmurar para o nada.
Alguém
Qualquer um
Se você está aí fora
Por favor me diga que pode sentir esse fogo.
É o dia cinco das nossas patrulhas, e nada ainda.
Lidero o grupo todas as noites, marchando em silêncio nessas paisagens frias de inverno. Procuramos por passagens escondidas, bueiros camuflados — qualquer indicação de que possa existir outro mundo sob nossos pés.
E toda noite retornamos para a base sem nada.
A futilidade desses últimos dias me atinge, amortecendo meus sentidos, me deixando numa espécie de torpor do qual não consigo me livrar. Todo dia acordo procurando uma solução para os problemas que eu mesmo provoquei, mas não tenho ideia de como consertar isso.
Se ela está lá fora, iremos encontrá-la. E ele a matará.
Só para me ensinar uma lição.
Minha única esperança é encontrá-la primeiro. Talvez possa escondê-la. Ou dizer a ela para fugir. Ou fingir que ela já está morta. Ou talvez convencê-lo que ela é diferente, melhor que os outros; que vale a pena deixá-la viver.
Pareço um idiota patético e desesperado.
Sou uma criança novamente, me escondendo nos cantos escuros e rezando para ele não me encontrar. Esperando que ele esteja de bom humor hoje. Que talvez tudo dê certo. Que talvez minha mãe não vá estar gritando dessa vez.
Incrível como eu rapidamente me reverto para outra versão de mim mesmo na presença dele.
Fico entorpecido.
Tenho realizado minhas tarefas mecanicamente; isso exige apenas um esforço mínimo. Andar é simples. Comer é algo ao qual me acostumei.
Não consigo parar de ler seu diário.
Meu coração sofre, de certo modo, mas não consigo deixar de virar as páginas. Sinto como se estivesse batendo num muro invisível, como se meu rosto estivesse envolto em plástico e eu não pudesse respirar, não pudesse ver, nem ouvir qualquer som a não ser as batidas do meu próprio coração pulsando nos meus ouvidos.
Quis poucas coisas nessa vida.
Não pedi nada a ninguém.
E, agora, tudo que estou pedindo é outra chance. Uma oportunidade de vê-la novamente. Mas a menos que descubra um jeito de impedi-lo, essas palavras são as únicas coisas que restarão dela.
Esses parágrafos e essas sentenças. Essas cartas.
Fiquei obcecado. Carrego esse caderninho comigo para todos os lugares por onde vou, passo todo meu tempo livre tentando decifrar as palavras que ela rabiscou nas margens, criando histórias para acompanhar os números que ela escreveu.
Também notei que a última página está faltando. Arrancada.
Não consigo imaginar por que. Procurei uma centena de vezes no livro todo, procurando nas outras seções onde essa página poderia estar, mas não achei nada. E de certa forma me sinto enganado, sabendo que tem um trecho que não vi. Não é nem mesmo o meu diário; não tenho nada a ver com isso, mas li as palavras dela tantas vezes que sinto que agora elas são minhas. Posso praticamente recitá-las de cor.
É estranho saber o que se passa na cabeça dela e não poder vê-la. Sinto que ela está aqui, bem na minha frente. Sinto que a conheço tão intimamente, tão secretamente. Fico seguro na companhia dos seus pensamentos; de certo modo me sinto acolhido. Compreendido. Tanto que às vezes eu esqueço que foi ela quem colocou esse buraco de bala no meu braço.
Quase esqueço que ela ainda me odeia, apesar de eu ter me apaixonado tão intensamente por ela.
E me apaixonei.
Perdidamente.
Fui até o fundo do poço. Até o fim. Nunca me senti assim na minha vida. Nada parecido. Senti vergonha e covardia, fraqueza e força. Conheci o terror e a indiferença, ódio de mim mesmo e repugnância geral. Vi coisas que não podem ser vistas.
E ainda assim nunca havia experimentado esse sentimento terrível, horrível e paralisante. Me sinto aleijado. Desesperado e fora de controle. E está ficando pior. Todos os dias me sinto doente. Vazio e ferido por dentro.
O amor é um cretino perverso e sem coração.
Estou ficando louco.
Caio de costas na cama, completamente vestido. Casaco, botas, luvas. Estou cansado demais para tirar a roupa. Essas rondas noturnas têm me deixado pouco tempo para dormir. Parece que estou em constante estado de exaustão.
Minha cabeça cai no travesseiro e pisco uma vez. Duas.
Desmaio.
Capítulo 22
— Não. — Me ouço dizer. — Você não deveria estar aqui.
Ela está sentada na minha cama. Está apoiada nos próprios cotovelos, com as pernas esticadas à sua frente, cruzadas nos tornozelos. E apesar de uma parte de mim saber que devo estar sonhando, tem um outro lado, uma parte esmagadoramente dominante que se recusa a aceitar isso. Parte de mim quer acreditar que ela está aqui, perto de mim, usando esse vestidinho preto justo que fica exibindo suas pernas. Mas tudo nela está diferente, estranhamente vibrante; as cores estão erradas. Seus lábios estão com um tom profundo de rosa, bem intenso; seus olhos estão maiores, mais escuros. Ela está usando sapatos que eu nunca a tinha visto usar. E o mais estranho de tudo: ela está sorrindo para mim.
— Oi — ela murmura.
É só uma palavra, mas meu coração dispara. Estou me afastando dela, quase batendo a cabeça na cabeceira da cama, quando percebo que meu braço não está mais ferido. Olho para baixo, para mim mesmo. Meus dois braços estão funcionando. Estou vestindo apenas uma camiseta e uma cueca.
Ela muda de posição num instante, ficando de joelhos antes de vir rastejando para cima de mim. Ela sobe no meu colo. Agora está montada sobre mim. De repente minha respiração se acelera.
Seus lábios encostam nos meus ouvidos. Suas palavras são meigas.
— Me beije — ela diz.
— Juliette...
— Vim até aqui. — Ela ainda está sorrindo para mim. É um sorriso raro, do tipo que ela nunca antes havia me presenteado. Mas por estranho que pareça, agora ela é minha. Ela é minha e é perfeita e me quer, e não vou lutar contra isso.
Não quero lutar.
Suas mãos estão puxando minha camiseta, tirando-a pela cabeça. Jogando-a no chão. Ela se inclina e beija meu pescoço, só uma vez, bem devagarzinho. Meus olhos se fecham.
Não há palavras no mundo para descrever o que estou sentindo.
Sinto suas mãos percorrerem meu peito, meu estômago; seus dedos deslizarem pela beirada da minha cueca. Seu cabelo despenca para frente, roçando minha pele, e tenho que fechar os punhos para evitar prendê-la na minha cama.
Cada terminação nervosa do meu corpo está pulsando. Nunca me senti tão vivo nem tão desesperado em toda a minha vida, e tenho certeza de que se ela pudesse saber o que estou pensando nesse momento, ela sairia por aquela porta e nunca mais voltaria.
Porque eu a quero.
Agora.
Aqui.
Em todo lugar.
Não quero nada entre nós.
Quero tirar suas roupas, acender as luzes e quero estudá-la de perto. Quero abrir o zíper do seu vestido e me demorar em cada centímetro do seu corpo. Não consigo deixar de querer olhar para ela; de conhecê-la e a seus traços: o declive do seu nariz, a curva dos seus lábios, a linha do seu rosto. Quero percorrer com meus dedos a pele macia do seu pescoço e deslizar até embaixo. Quero sentir o peso do corpo dela sobre o meu, me envolvendo.
Não consigo pensar numa razão para isso não ser certo nem real. Não consigo me concentrar em nada mais, a não ser nela sentada no meu colo, tocando meu peito, e me olhando nos olhos como se realmente me amasse.
Chego a imaginar que morri.
Mas bem quando eu me aproximo, ela se afasta, sorrindo antes de eu alcançá-la, nunca afastando seus olhos.
— Não se preocupe — ela sussurra. — Está quase acabado agora.
Suas palavras parecem tão estranhas, e ao mesmo tempo tão familiares.
— O que quer dizer com isso?
— Só um pouco mais e eu vou embora.
— Não. — Estou piscando rápido, tentando segurá-la. — Não, não vá. Onde você está indo...
— Você vai ficar bem — ela diz. — Prometo.
— Não...
Mas agora ela está segurando uma arma.
E a apontando para o meu coração.
Capítulo 23
Essas letras são tudo que me sobrou.
26 amigos para quem contar minha história.
26 letras são tudo que eu preciso para criar oceanos e ecossistemas. Posso combiná-las para formar planetas e sistemas solares. Posso usar letras para construir arranha-céus e metrópoles cheias de gente, lugares, coisas e ideias que são mais reais que essas quatro paredes.
Não preciso de nada além de palavras para viver. Sem elas eu não existiria.
Porque essas palavras que escrevo são a única prova de que ainda estou viva.
Está extraordinariamente frio esta manhã.
Sugiro que a gente faça um passeio descompromissado pelos complexos bem cedo só para ver se algum cidadão parece suspeito ou deslocado. Estou começando a imaginar se Kent e Kishimoto, e todos os outros, estão vivendo em segredo entre as pessoas. Eles devem, afinal de contas, receber alguma ajuda para encontrar comida e água — algo que os prenda à sociedade; duvido que possam plantar alguma coisa debaixo da terra. Mas é claro, são só suposições. Eles podem ter alguém que consegue plantar algo no ar.
Rapidamente dou instruções para meus homens; os oriento para se dispersarem e continuarem sem chamar a atenção. O trabalho deles é observar todo mundo hoje, e relatar o que descobriram para mim.
Assim que se foram, fico sozinho para olhar em volta e pensar. É um lugar perigoso para se esconder.
Meu Deus, ela parecia tão real nos meus sonhos.
Fecho os olhos, cobrindo o rosto com as mãos; meus dedos tocam meus lábios de leve. Posso sentir o toque dela. Na verdade, posso senti-la. Só de pensar nisso, meu coração acelera. Não sei o que vou fazer se continuar a ter sonhos tão intensos com ela. Não vou ser capaz de trabalhar direito.
Respiro fundo, controlando a respiração e me concentrando. Deixo meus olhos perambularem naturalmente, não posso evitar me distrair com as crianças correndo em volta. Parecem tão animadas e despreocupadas. Sei que parece estranho, mas fico triste ao ver que eles conseguiram encontrar felicidade nessa vida. Elas não têm nem ideia do que perderam; nem imaginam como o mundo costumava ser.
Alguma coisa se aproxima e bate nas minhas pernas.
Ouço um arquejo estranho e cansado; me viro.
É um cachorro.
Um cachorro cansado e faminto, tão magro e frágil que parece que pode ser levado pelo vento. Mas ele está me olhando. Sem medo. Com a boca aberta. A língua balançando.
Tenho vontade de dar risada.
Olho em volta rapidamente antes de pegar o cachorro nos braços. Não preciso dar ao meu pai outro motivo para me castrar, e não confio que meus soldados não irão contar uma coisa assim.
Que eu estava brincando com um cachorro.
Posso até escutar as coisas que meu pai iria me dizer.
Carrego a criatura chorosa até uma das casas que haviam sido desocupadas recentemente — vi apenas três famílias saindo para o trabalho — e me abaixo por trás de uma das cercas. O cachorro parece ser bem esperto para saber que agora não é hora de latir.
Tiro minhas luvas e ponho a mão no bolso para pegar um pãozinho doce que havia trazido como café da manhã; não tive tempo de comer nada antes de sairmos hoje cedo. E embora eu não faça ideia do que um cachorro coma, exatamente, eu lhe dou o pãozinho.
O cachorro praticamente o agarra da minha mão.
Ele engole o pãozinho em duas bocadas e começa a lamber os meus dedos, pulando no meu peito, todo empolgado, aproveitando o calor do meu casaco aberto. Não consigo segurar a risada que escapa dos meus lábios; nem quero. Há muito tempo não me sinto assim. E não posso evitar ficar espantado com o poder que animaizinhos tão pequenos exercem sobre nós; eles rompem nossas resistências com a maior facilidade.
Passo minhas mãos pelo seu pelo surrado, sentindo as pontas das costelas aparecendo em ângulos desconfortáveis. Mas o cachorro não parece se importar com seu estado de inanição, pelo menos não agora. Seu rabo está balançando furiosamente, e ele fica pulando no meu peito para me olhar. Começo a pensar que deveria ter enfiado mais alguns pãezinhos doces no meu bolso antes de sair.
Algo estala.
Ouço um suspiro.
Olho em volta.
Dou um pulo, alerta, procurando o barulho. Parecia bem perto. Alguém me viu. Alguém... Um civil. Ela já está escapando, seu corpo apertado de encontro a uma das paredes da casa.
— Ei! — grito. — Você aí...
Ela para. Olha para cima.
Eu quase desmaio.
Juliette.
Ela está me olhando. Ela realmente está aqui, olhando para mim, com os olhos arregalados e assustados. Minhas pernas parecem ser feitas de chumbo. Estou preso no chão, incapaz de dizer uma palavra sequer. Nem sei por onde começar. São tantas coisas que gostaria de dizer a ela, tantas coisas que eu nunca disse, e eu estou simplesmente tão feliz ao vê-la.
— Deus, estou tão aliviado...
Ela desapareceu.
Olho em volta, em pânico, imaginando se estou começando a perder meu senso de realidade. Meus olhos se voltam para o cachorrinho que ainda está parado ali, esperando por mim, e eu olho para ele estupefato, imaginando o que havia acontecido. Fico olhando para o lugar onde a vi, mas não vejo nada.
Nada.
Passo a mão pelos cabelos, tão confuso, tão horrorizado e irritado comigo mesmo, que fico tentado a arrancar minha cabeça.
O que está acontecendo comigo?
Capítulo 12
Um dos homens do meu pai está me esperando do lado de fora da minha porta.
Olho de relance em sua direção, mas não o suficiente para reconhecer suas feições.
— Diga qual o assunto, soldado.
— Senhor — ele diz —, recebi ordens para lhe informar que o comandante supremo solicita sua presença em seus alojamentos para o jantar às vinte horas.
— Considere sua mensagem recebida. — Dou um passo para abrir minha porta.
Ele dá um passo à frente, bloqueando minha passagem.
Viro o corpo para olhar para ele.
Ele está parado a alguns passos de distância de mim: um ato implícito de desrespeito; um nível de intimidade que nem mesmo Delalieu se permite. No entanto, ao contrário dos meus homens, os bajuladores que cercam meu pai se consideram especiais. Ser um membro da guarda de elite do comandante supremo é considerado um privilégio e uma honra. Eles se reportam diretamente a ele.
E nesse exato momento, esse soldado está tentando provar que é superior a mim.
Ele tem inveja de mim. Pensa que sou indigno de ser o filho do comandante supremo do Restabelecimento. Isso está praticamente escrito no rosto dele.
Tenho que segurar meu impulso de cair no riso quando encaro seus frios olhos cinza e o buraco negro que é sua alma. Ele tem as mangas enroladas na altura do cotovelo, suas tatuagens militares claramente definidas e à mostra. Os círculos concêntricos de tinta preta em volta dos seus braços são acentuados em vermelho, verde e azul, o único sinal para indicar que ele é um soldado de patente elevada. É um ritual doentio do qual sempre fiz questão de me recusar a participar.
O soldado ainda está me encarando.
Inclino minha cabeça em sua direção, ergo minhas sobrancelhas.
— Recebi ordens — ele declara — de esperar uma resposta oral aceitando esse convite.
Demoro um pouco, pensando nas minhas escolhas, mas não havia nenhuma.
Eu, como todos os fantoches desse mundo, sou completamente subserviente aos desejos do meu pai. É verdade que sou forçado a lutar todos os dias: que nunca serei capaz de enfrentar o homem que tem seus punhos cerrados em volta da minha espinha vertebral.
Isso me faz odiar a mim mesmo.
Encaro os olhos do soldado e imagino, por um breve momento, qual o nome dele, antes de perceber que não me importo com isso.
— Considere-o aceito.
— Sim, s...
— E da próxima vez, soldado, não se aproxime a menos de um metro e meio de distância de mim, sem pedir permissão.
Ele pisca os olhos, confuso.
— Senhor, eu...
— Você está confuso — o interrompo. — Acredita que trabalhar com o comandante supremo lhe dá imunidade das regras que governam a vida dos outros soldados. Veja, você está errado.
Seu rosto se enrijece.
— Nunca se esqueça — digo baixinho agora — que se eu quisesse o seu emprego, eu o teria. E não se esqueça de que o homem que você serve tão ansiosamente é o mesmo homem que me ensinou a atirar com uma arma de fogo quando eu tinha apenas nove anos de idade.
Suas narinas se dilatam. Ele olha direto para frente.
— Entregue sua mensagem, soldado. E então relembre isso e nunca mais fale comigo novamente.
Os olhos dele agora estão presos num ponto diretamente atrás de mim, seus ombros rígidos.
Espero.
Seu maxilar ainda está rígido. Lentamente ele levanta sua mão em saudação.
— Está dispensado — digo.
Tranco a porta do meu quarto e me encosto nela. Preciso de apenas um momento. Pego o vidrinho que está na mesinha de cabeceira e tiro duas pílulas quadradas; as jogo na boca, fechando meus olhos enquanto se dissolvem.
A escuridão atrás das minhas pálpebras é um alívio reconfortante.
Até que a lembrança do rosto dela se impõe à minha percepção.
Me sento na cama e deixo a cabeça cair na minha mão. Não deveria estar pensando nela agora. Tenho horas de papelada para separar e o estresse da presença do meu pai para aguentar. Jantar com ele vai ser um espetáculo. Um espetáculo de arrasar a alma.
Fecho meus olhos com força e faço um pequeno esforço para construir as paredes que com certeza limpariam minha mente. Mas dessa vez elas não funcionam. O rosto dela insiste em surgir subitamente, seu diário me provocando lá no fundo do meu bolso.
E começo a perceber que tem uma pequena parte de mim que não deseja afastar os pensamentos dela. Uma parte de mim gosta da tortura.
Essa garota está me destruindo.
Uma garota que passou o último ano internada num sanatório de loucos. Uma garota que tentou me matar porque eu a beijei. Uma garota que fugiu com outro homem só para se afastar de mim.
É claro que essa é a garota por quem eu iria me apaixonar.
Coloco a mão na boca.
Estou perdendo a cabeça.
Tiro minhas botas. Me enfio na cama e deixo a cabeça cair nos travesseiros.
Ela dormiu aqui, penso. Ela dormiu na minha cama. Ela acordou na minha cama. Ela estava aqui e deixei que ela escapasse.
Falhei.
Perdi.
Nem percebo que tirei o diário dela do bolso e o estou segurando em frente do rosto. Olhando para ele. Estudando sua capa desbotada numa tentativa de entender onde ela pode ter adquirido isso. Ela deve ter roubado de algum lugar, embora não consiga imaginar onde.
Há tantas coisas que eu gostaria de perguntar a ela. Tantas coisas que gostaria de lhe dizer.
Ao invés disso, abro seu diário e leio.
Às vezes fecho meus olhos e pinto essas paredescom cores diferentes.
Imagino que estou usando meias quentinhas e estou sentada perto do fogo. Imagino que alguém me deu um livro para ler, uma história para me levar para longe da tortura da minha própria mente. Quero ser alguém em algum outro lugar com alguma outra coisa a ocupar minha cabeça. Quero correr, quero sentir o vento batendo nos cabelos. Quero fingir que isso é simplesmente uma história dentro de outra história. Que essa cela é apenas um cenário, que essas mãos não me pertencem, que essa janela dá para um lugar lindo, se pelo menos eu conseguisse abri-la. Finjo que essa fronha é limpa, finjo que a cama é macia. Finjo e finjo e finjo até que o mundo fica maravilhoso por trás dos meus olhos e já não consigo mais contê-lo. Mas então meus olhos se abrem e sou agarrada pela garganta por um par de mãos que não param de me sufocar sufocar sufocar...
Meus pensamentos, acho, logo serão ouvidos.
Minha mente, espero, logo será descoberta.
O diário cai da minha mão e bate no meu peito. Passo a mão pelo rosto, pelo meu cabelo. Massageio o pescoço e me puxo com força para cima a ponto de bater a cabeça na cabeceira da cama, e na verdade fico grato a isso. Me demoro um pouco sentindo a dor.
E viro a página.
Imagino o que eles estão pensando. Meus pais. Imagino onde estão. Penso se eles estão bem agora, se estão felizes agora,se eles finalmente conseguiram o que queriam.Imagino se minha mãe vai querer ter outro filho. Imagino se alguém vai ter a bondade de me matar, e imagino se o inferno não é melhor do que aqui. Imagino como está meu rosto agora. Imagino se algum dia vou poder respirar o ar fresco novamente.
Imagino tantas outras coisas.
Às vezes fico acordada durante dias simplesmente contando tudo que encontro. Conto as paredes, as rachaduras na parede, meus dedos dos pés e das mãos. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, quantos passos para ir para frente e para trás no meu quarto. Conto meus dentes e cada fio de cabelo na minha cabeça e o número de segundos em que consigo prender minha respiração.
Mas às vezes fico tão cansada que esqueço que não tenho mais permissão para desejar mais nada, e me descubro desejando a única coisa que sempre quis. A única coisa com a qual sempre sonhei.
Sempre desejei ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso de volta. Ter alguém em quem confiar que não iria jogar as coisas em mim, nem colocar minhas mãos no fogo ou me bater por ter nascido. Alguém que iria saber que fui colocada para fora de casa e tentaria me achar, que nunca teria medo de mim.
Alguém que soubesse que eu nunca o machucaria.
Me vejo num canto desse quarto e enfio a cabeça nos meus joelhos e me balanço para frente e para trás para frente e para trás para frente e para trás e desejo e desejo e desejo coisas impossíveis até cair no sono de tanto chorar.
Imagino como seria ter um amigo.
E então imagino quem mais está preso neste hospício. Imagino de onde estão vindo os outros gritos.
Imagino se estão vindo de mim.
Tento me concentrar, dizendo a mim mesmo que são palavras vazias, mas estou mentindo. Porque, de algum modo, simplesmente ler essas palavras é demais; e pensar nela sofrendo está me deixando agoniado.
Saber que ela vivenciou isso.
Ela foi colocada nesse inferno pelos próprios pais, abandonada e maltratada a vida inteira. Empatia é uma emoção que eu não conhecia, mas agora toma conta de mim, me levando para um mundo que eu não sabia que podia penetrar. E embora sempre tenha acreditado que ela e eu tivéssemos muita coisa em comum, não sabia que podia sentir isso com tanta profundidade.
Isso está me matando.
Fico em pé. Começo a andar pelo quarto até acalmar meus nervos para continuar a leitura. Então respiro fundo.
E viro a página.
Tem alguma coisa fervilhando dentro de mim.
Algo que nunca ousei descobrir, algo que tenho medo de saber. Tem uma parte de mim lutando para se libertar da jaula onde estou presa, batendo nas portas do meu coração, suplicando para ser libertada.
Suplicando para ir embora.
Todos os dias sinto que revivo o mesmo pesadelo. Abro a boca para gritar, para lutar, para girar meus punhos, mas minhas cordas vocais estão cortadas, meus braços estão pesados e densos como se estivessem presos no cimento molhado e eu estou gritando mas ninguém me ouve, ninguém se aproxima e estou enjaulada. E isso está acabando comigo.
Sempre tive de bancar a submissa, subserviente, um pano de chão suplicante e passivo que fazia todo mundo se sentir seguro e confortável. Minha existência se tornou uma luta para provar que eu era inofensiva, não uma ameaça, que eu era capaz de viver entre outros seres humanos sem feri-los.
E estou tão cansada tão cansada tão cansada e às vezes chego a ficar com raiva.
Não sei o que está acontecendo comigo.
— Meu Deus, Juliette. — Suspiro.
E caio de joelhos.
— Chame o transporte imediatamente. — Preciso sair. Preciso sair daqui agora.
— Senhor? Isso é, sim, senhor, é claro... mas onde...
— Tenho que visitar os complexos — digo. — Tenho que fazer minhas rondas antes do meu compromisso dessa noite. — Isso é tanto verdade quanto mentira. Porém agora estou disposto a fazer qualquer coisa que me afaste desse diário.
— Ah, certamente, senhor. Gostaria que o acompanhasse?
— Isso não será necessário, tenente, mas obrigado pela oferta.
— Eu... se-senhor — ele gagueja. — É claro, é u-uma honra servi-lo, senhor, ajudá-lo...
Deus do céu, onde estou com a cabeça. Eu nunca digo obrigado a Delalieu. É muito provável que o pobre homem vá ter um infarto agora.
— Estarei pronto para sair em dez minutos — interrompo.
Ele começa a gaguejar, mas para. Então diz:
— Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Estou pressionando a boca com o punho quando a ligação é desconectada.
Capítulo 13
Tínhamos lares. Antes.
De todos os tipos diferentes.
Casas térreas. Sobrados. Casas de três andares.
Comprávamos enfeites para o jardim e luzinhas pisca-pisca, aprendíamos a andar de bicicleta sem rodinhas. Adquirimos vidas confinadas em 1,2 e 3 andares já construídos, andares contidos em estruturas que não podíamos mudar.
Vivemos nesses andares por algum tempo.
Seguimos a história que nos era contada, o texto preso em cada metro do espaço que havíamos conquistado. Ficamos contentes com a mudança no enredo que redirecionou nossa vida. Assinamos nas linhas pontilhadas por coisas pelas quais não nos importávamos realmente. Comíamos coisas que não deveríamos, gastávamos dinheiro quando não podíamos, esquecíamos a Terra que tínhamos de habitar e desperdiçávamos desperdiçávamos desperdiçávamos tudo. Comida. Água. Recursos.
Logo, os céus ficaram cinza com a poluição química, e as plantas e os animais ficaram doentes devido à modificação genética. E doenças se impregnaram no nosso ar, nas nossas refeições, nossos sangues e nossas casas. A comida desapareceu. As pessoas estavam morrendo. Nosso império estava caindo aos pedaços.
O Restabelecimento disse que nos ajudariam. Nos salvariam. Reconstruiriam nossa sociedade.
Ao invés disso, eles nos destroçaram.
Gosto de visitar os complexos.
É um lugar estranho para se buscar refúgio, mas sinto alguma coisa ao ver tantos civis num espaço tão vasto e aberto que me faz lembrar da minha missão. Fico tanto tempo preso nos limites dos muros do quartel-general do Setor 45, que frequentemente me esqueço dos rostos daqueles por quem lutamos e daqueles com quem estamos lutando.
Gosto de me lembrar.
Geralmente, visito cada aglomerado dos complexos; cumprimento os moradores e pergunto sobre suas condições de vida. Não consigo deixar de ficar curioso em saber como é a vida deles agora. Porque enquanto o mundo se transformou inteiramente para eles, meu mundo continuou o mesmo. Disciplinado. Isolado. Desolador.
Houve um tempo quando as coisas foram melhores, quando meu pai não era tão irritado. Eu tinha cerca de 4 anos. Ele costumava me fazer sentar em seu colo e brincar com seus bolsos. Eu podia pegar o que quisesse, desde que meu argumento fosse bem convincente. Era seu jeito de brincar.
Mas tudo isso foi antes.
Aperto meu casaco no corpo, sentindo o tecido se encostar nas minhas costas. Vacilo sem querer.
A vida que tenho agora é a única que importa. O sufoco, o luxo, as noites mal dormidas, e os corpos dos mortos. Sempre me ensinaram a me concentrar no poder e na dor, em ganhar e infligir.
Não lamento nada.
Aceito tudo.
É o único modo que encontrei de continuar vivendo nesse corpo maltratado. Esvazio minha mente das coisas que me infestam e sobrecarregam minha alma, e aceito o que puder dos pequenos prazeres que aparecem à minha frente. Não sei o que é ter uma vida normal; não sei como simpatizar com os cidadãos que perderam suas casas. Não faço ideia de como era a vida deles antes de o Restabelecimento tomar o poder.
Por isso gosto de passear pelos complexos.
Gosto de ver como as outras pessoas vivem; gosto de ter o poder de fazer com que respondam às minhas perguntas. Do contrário não teria como saber.
Mas o momento é errado.
Não prestei muita atenção ao relógio quando saí da base, e não percebi que o sol estava se pondo. A maioria dos civis está voltando para casa para descansar à noite, seus corpos curvados, encolhidos pelo frio enquanto se encaminhavam em direção aos aglomerados de metal que dividem com pelo menos outras três famílias.
As casas improvisadas são construídas com containers de navios de doze metros quadrados; eles são empilhados lado a lado e um em cima do outro, agrupados em grupos de cinco ou seis. Cada container foi isolado; equipado com duas janelas e uma porta. Escadas para o andar superior foram colocadas de cada lado de fora da estrutura. Os tetos são alinhados com painéis solares que fornecem eletricidade gratuita para cada grupo.
É algo do qual muito me orgulho.
Porque foi minha ideia.
Quando estávamos procurando por abrigos temporários para os civis, sugeri reformar os velhos containers de carga que ocupavam as docas de todos os portos do mundo. Não apenas eram baratos, facilmente reaproveitados, e altamente adaptáveis, mas podiam ser empilhados, eram portáteis e construídos independentemente do clima do lugar. Eles exigiam o mínimo de construção e, com a equipe certa, milhares de unidades habitacionais poderiam estar prontas em alguns dias.
Dei essa ideia para meu pai, pensando que essa seria a opção mais eficiente; uma solução temporária que seria menos desumana do que barracas; algo que ofereceria um abrigo real e confiável. Mas o resultado foi tão eficiente que o Restabelecimento não viu necessidade de renovação. Aqui, num terreno que costumava ser um lixão, assentamos milhares de containers; aglomerados de cubos retangulares e desbotados que são fáceis de monitorar e vigiar.
As pessoas ainda acreditam que essa é uma solução temporária. Que um dia voltarão para as lembranças de suas antigas vidas e as coisas serão lindas e brilhantes novamente. Mas tudo isso é mentira.
O Restabelecimento não tem planos de mudá-los de onde estão.
Os civis devem permanecer nessas áreas regulamentadas; esses containers se tornaram suas prisões. Tudo foi numerado. As pessoas, suas casas, seu grau de importância para o Restabelecimento.
Aqui, eles se tornaram parte de um enorme experimento. Um mundo no qual trabalham para manter as necessidades de um regime que faz promessas que nunca serão cumpridas.
Essa é a minha vida.
Esse triste mundo.
Na maior parte do tempo, me sinto como um civil; e é provavelmente por isso que vim até aqui. É como se estivesse indo de uma prisão para outra; numa existência onde não há escape, não há refúgio. Quando até mesmo minha mente me trai.
Eu deveria ser mais forte do que isso.
Tenho treinado há mais de uma década. Tenho trabalhado todos os dias para aprimorar minhas forças física e mental. Tenho 1 metro e 79 de altura e 77 quilos de músculos. Fui preparado para sobreviver, para maximizar a resistência e a energia, e fico perfeitamente à vontade segurando uma arma. Posso desmontar, limpar, recarregar, desarmar e remontar mais de 150 tipos de armas de fogo. Posso atirar no centro de um alvo, de praticamente qualquer distância. Posso quebrar o pescoço de uma pessoa com a lateral da mão. Posso paralisar temporariamente um homem com apenas os nós dos meus dedos.
No campo de batalha, sou capaz de me desconectar dos movimentos que aprendi a memorizar. Criei a reputação de ser alguém frio, um monstro que não teme nada nem ninguém.
Mas tudo isso é ilusório.
Porque a verdade é que não passo de um covarde.
Capítulo 14
O sol está se pondo.
Logo vou ter que retornar à base, onde vou me sentar quieto e ouvir meu pai falar, em vez de mandar bala na sua boca aberta.
Então tento ganhar tempo.
Fico parado e ouço barulhos vindos de longe e observo as crianças correrem, enquanto seus pais as levam para casa. Penso se um dia eles vão crescer o bastante para sacar que os cartões do Registro do Restabelecimento na verdade estão rastreando todos seus movimentos. Que o dinheiro que seus pais recebem pelo trabalho em alguma das muitas fábricas existentes ali é monitorado de perto. Essas crianças crescerão e finalmente entenderão que tudo que elas fazem está gravado, cada conversa é dissecada para se descobrir murmúrios de rebeliões. Eles não sabem que estão sendo criados perfis para cada cidadão, e que cada arquivo é bem grosso com documentação das suas amizades, relacionamentos, e hábitos de trabalho; até mesmo como gostam de passar seu tempo livre.
Sabemos tudo sobre todo mundo.
Demais.
Tanto é verdade que raramente me lembro que estamos lidando com gente de verdade, seres vivos, até vê-los nos complexos. Sei de cor o nome de quase todos os cidadãos do Setor 45. Gosto de saber quem vive na minha jurisdição, não importa se são soldados ou civis.
Foi assim que tomei conhecimento, por exemplo, que o soldado Seamus Fletcher, 45B-76423, batia na esposa e nos filhos todas as noites.
Eu sabia que ele estava gastando todo seu dinheiro em bebidas; sabia que ele estava deixando sua família passar fome. Monitorei os dólares REST que ele gastava nas nossas centrais de abastecimento e observei atentamente a família dele no complexo. Sabia que seus três filhos tinham menos de 10 anos e não comiam há semanas; sabia que eles haviam estado inúmeras vezes no posto médico do complexo para tratar de ossos quebrados e levar pontos em machucados. Fiquei sabendo que ele deu um soco na boca de sua filha de 9 anos e cortou o lábio dela, fraturou o maxilar e quebrou dois de seus dentes da frente; e soube que sua esposa estava grávida. Também fiquei sabendo que certa noite ele bateu nela com tanta força que ela perdeu a criança na manhã seguinte.
Eu sei por que estava lá.
Eu estava parando em cada residência, visitando os civis, fazendo perguntas sobre sua saúde e como estavam suas vidas. Queria saber de suas condições de trabalho e se algum membro de suas famílias precisaria estar de quarentena.
Ela estava em casa naquele dia. A esposa de Fletcher. Seu nariz estava quebrado e seus olhos estavam tão inchados que ela nem conseguia abri-los direito. Seu corpo era tão magro e frágil, sua pele tão pálida, que achei que ela iria se quebrar em duas ao sentar-se. Quando lhe perguntei sobre os machucados, ela evitou meus olhos. Disse que tinha caído; que por causa da sua queda ela havia perdido a criança que carregava e conseguiu também quebrar o nariz no acidente.
Acenei com a cabeça. Agradeci por sua cooperação ao responder minhas perguntas.
E então convoquei uma reunião.
Estou ciente que a maioria dos meus soldados rouba dos armazéns dos nossos complexos. Analiso os relatórios cuidadosamente e sei que tem suprimentos desaparecendo o tempo todo. Mas permito essas pequenas infrações porque elas não perturbam o sistema. Alguns pães ou pedaços de sabão a mais deixam meus soldados mais animados; eles trabalham mais se estiverem saudáveis, e a maioria deles mantém esposa, filhos e parentes. Então essa é uma concessão que faço.
Mas algumas coisas não posso perdoar.
Não me considero um moralista. Não filosofo sobre a vida ou me importo com as leis e princípios que governam a vida das pessoas. Não pretendo saber a diferença entre o certo e o errado. Mas procuro viver sob certo código de vida. E às vezes, eu acho, tenho que aprender a atirar antes.
Seamus Fletcher estava matando sua família. E eu lhe dei um tiro na testa porque achei que assim seria menos doloroso do que destroçá-lo com minhas próprias mãos.
Mas meu pai completou o trabalho que Fletcher havia começado. Meu pai mandou matar os três filhos dele e sua mulher, tudo por causa de um bêbado cretino que deveria ter cuidado deles. Ele era o pai deles, o marido dela, e a razão de eles terem tido uma morte tão brutal e inesperada.
E alguns dias eu imagino por que insisto em continuar vivendo.
Capítulo 15
De volta à base, sigo direto em frente.
Ignoro os soldados e suas continências por onde passo, sem prestar atenção à mistura de curiosidade e desconfiança em seus olhos. Nem tinha percebido que havia tomado esse caminho ao chegar à base; mas meu corpo parece saber mais do que minha mente, do que precisa agora. Meus passos são pesados; regulares, o som das minhas botas ecoa ao longo do piso de pedras conforme chego aos andares de baixo.
Não venho aqui há quase duas semanas.
O quarto fora reformado desde a última vez em que estive aqui; o painel de vidro e a parede de concreto foram substituídos. E pelo que sei ela foi a última pessoa a usar esse quarto.
Eu mesma a havia trazido aqui.
Empurro as duas portas giratórias do vestiário que fica na sala adjacente ao deque de simulação. Minha mão procura no escuro pelo interruptor; as luzes piscam uma vez antes de se acenderem. Um zumbido monótono de eletricidade vibra nesses cômodos vastos. Tudo está quieto, abandonado.
Exatamente como eu gosto.
Tiro minhas roupas o mais rápido que consigo, devido aos ferimentos. Ainda tenho duas horas antes do esperado jantar com meu pai, então eu não deveria estar tão ansioso assim, mas meus nervos não estão ajudando. Tudo parece estar vindo para cima de mim de uma vez só. Meus fracassos. Minha covardia. Minha estupidez.
Às vezes fico tão cansado dessa vida.
Estou em pé, descalço no concreto, só usando a tipoia no meu braço, detestando como esse ferimento me deixa constantemente para baixo. Pego o shorts guardado no meu armário e o visto o mais rapidamente possível, me encostando à parede para me apoiar. Quando finalmente fico ereto, fecho a porta do armário e entro no cômodo ao lado.
Aperto mais um interruptor, e o sistema operacional principal começa a funcionar. Os computadores emitem um sinal sonoro e uns flashes se acendem enquanto o programa se prepara; passo os dedos pelo teclado.
Costumamos usar esses cômodos para simulações.
Manipulamos a tecnologia para criar lugares e experiências que existem apenas na mente humana.
Não apenas somos capazes de criar o cenário, mas também podemos controlar os mínimos detalhes. Sons, cheiros, falsa segurança, paranoia. O programa foi originalmente criado para ajudar soldados em missões específicas, e também para ajudá-los a superar medos que, do contrário, iria incapacitá-los no campo de batalha.
Eu o uso para meus próprios fins.
Costumava vir aqui todos os dias antes de ela chegar à base. Aqui era meu porto seguro; minha única fuga do mundo. Apenas gostaria que não precisasse de um uniforme. Esse short é engomado e desconfortável, o poliéster coça e irrita a pele. Mas é forrado com uma química especial que reage com a minha pele e alimenta o sensor com informações; me ajudam a me situar na experiência e me permitirá correr por quilômetros sem precisar correr de verdade, muros físicos no meu ambiente real. E para que o processo seja o mais eficiente possível, tenho que vestir quase nada. As câmeras são hipersensíveis ao calor do corpo, e funcionam melhor quando não entra em contato com materiais sintéticos.
Espero que esse detalhe fique anotado para a próxima geração do programa.
A central me solicita dados; rapidamente entro com o código de acesso que me garante permissão para levantar o histórico das últimas simulações. Olho para o alto por sobre meu ombro enquanto o computador processa os dados; olho de relance pelo recém-consertado espelho de duas faces que vê o cômodo principal. Ainda não acredito que ela quebrou uma parede inteira de vidro e concreto e continuou a caminhar sem um arranhão.
Inacreditável.
A máquina bipa duas vezes; me viro novamente. Os programas que solicitei estão carregados e prontos para serem executados.
O arquivo dela é o primeiro da lista.
Respiro fundo; tento afastar as lembranças. Não me arrependo de tê-la feito passar por uma experiência tão horrível. Não sei se ao final ela teria se permitido perder o controle — finalmente habitar seu próprio corpo — se eu não tivesse encontrado um modo eficiente de provocá-la. Ultimamente realmente acredito que isso a ajudou, exatamente como eu pretendia. Mas eu desejaria que ela não tivesse apontado uma arma na minha cara e saltado pela janela logo depois.
Suspiro devagar mais uma vez, acalmando minha respiração.
E seleciono a simulação que me motivou a vir até aqui.
Capítulo 16
Estou parado no cômodo principal.
Me encarando.
Essa é uma simulação bem simples. Não precisei trocar de roupa nem mexer no meu cabelo, nem alterar o piso carpetado. Não fiz nada a não ser criar uma duplicata de mim mesmo e lhe entregar uma arma.
Ele não para de me encarar.
Um.
Ele curva ligeiramente a cabeça.
— Você está pronto? — Uma pausa. — Está com medo?
Meu coração bate em disparada.
Ele ergue seu braço. Sorri um pouco.
— Não se preocupe — ele diz. — Está quase terminado agora.
Dois.
— Só um pouco mais e eu vou embora — ele diz, apontando a arma para a minha testa.
Minhas mãos estão suadas. Meu pulso está acelerado.
— Você vai ficar bem — ele mente. — Prometo.
Três.
Bummm.
Capítulo 17
— Tem certeza de que não está com fome? — meu pai pergunta, ainda mastigando. — Isso está realmente muito bom.
Me mexo na cadeira. Me concentro nos vincos bem passados das calças que estou usando.
— Hum? — ele indaga. Posso vê-lo sorrindo.
Estou intensamente ciente dos soldados alinhados nas paredes desta sala. Ele sempre os mantém perto de si, e sempre em constante competição uns com os outros. Sua primeira tarefa era determinar qual era o elo mais fraco dentre os onze. Aquele com o argumento mais convincente poderia dispor do seu alvo.
Meu pai acha essas práticas divertidas.
— Receio não estar com muita fome. Os remédios — minto — acabam com meu apetite.
— Ah — ele replica. Ouço o barulho de seus talheres quando ele os deposita na mesa. — É claro. Que inconveniência.
Não digo nada.
— Podem se retirar.
Duas palavras e seus homens se dispersam em questão de segundos. A porta se fecha atrás deles.
— Olhe para mim — ele ordena.
Levanto o olhar, meus olhos cuidadosamente desprovidos de emoção. Odeio seu rosto. Não suporto olhar muito tempo para ele; não gosto da experiência de observar como ele é desumano. Ele não se tortura pelo que faz ou pelo modo que vive. Na verdade ele gosta disso. Ele adora a adrenalina do poder; ele se vê como uma entidade invencível.
E, de certo modo, não está errado.
Passei a crer que o homem mais perigoso do mundo é aquele que não sente remorso. Aquele que nunca se desculpa e, portanto, não procura o perdão. Porque no final, são nossas emoções que nos torna fracos, não nossas ações.
Viro o rosto.
— O que encontrou? — ele pergunta sem preâmbulos.
Minha mente vai imediatamente para o diário que está guardado no meu bolso, mas não faço nenhum comentário. Nem pisco. As pessoas raramente percebem que, na maioria das vezes, mentem com os lábios e dizem a verdade com os olhos. Coloque um homem num cômodo com algo que ele tenha escondido, e então pergunte onde ele a escondeu; ele vai dizer que não sabe; vai dizer que você pegou a pessoa errada; mas quase sempre ele vai olhar na direção certa. E agora meu pai está me examinando, esperando ver para onde vou olhar, o que direi a seguir.
Mantenho meus ombros relaxados e respiro devagar, imperceptivelmente, para amansar meu coração. Não respondo. Finjo estar perdido em meus pensamentos.
— Filho?
Ergo o olhar. Finjo surpresa.
— Sim?
— O que achou? Quando revistou o quarto dela hoje?
Solto o ar. Sacudo a cabeça quando me recosto na cadeira.
— Vidros quebrados. Uma cama desarrumada. O armário dela, escancarado. Ela levou apenas alguns itens de higiene pessoal e algumas roupas extras e roupas de baixo. — Nada disso era sem sentido. Nada disso era mentira.
Ouço quando ele suspira. Ele afasta seu prato.
Sinto o contorno do caderninho dela queimando minha perna.
— E você diz que não sabe para onde ela pode ter ido?
— Apenas sei que ela, Kent e Kishimoto devem estar juntos — explico a ele. — Delalieu diz que roubaram um carro, mas as pistas desapareceram na entrada de um enorme terreno baldio. Fizemos as tropas vasculharem aquela área durante dias, mas não encontramos nada.
— E onde — ele pergunta — planeja procurar a seguir? Você acha que eles cruzaram para outro setor? — A voz dele está estranha. Divertida.
Olho seu rosto sorridente.
Ele só está me fazendo essas perguntas para me testar. Ele tem suas próprias respostas, sua solução já preparada. Ele quer me ver falhar ao responder incorretamente. Está tentando provar que, sem ele, eu tomaria as decisões erradas.
Ele está se divertindo às minhas custas.
— Não — digo a ele, com a voz sólida e firme. — Não acho que vão fazer algo tão idiota como atravessar para outro setor. Eles não têm acesso, meios ou capacidade para isso. Ambos os homens estão severamente feridos, perdendo sangue rapidamente, e estão distantes de qualquer ajuda de emergência. Provavelmente estão mortos agora. A garota talvez seja a única sobrevivente, e ela não pode ter ido muito longe, pois não conhece como andar por aquelas áreas. Ela ficou isolada muito tempo; tudo nesse lugar é completamente estranho para ela. Além do que, ela não sabe dirigir, e se por acaso ela conseguisse dirigir um veículo, teríamos sido informados da propriedade roubada. Se levarmos em consideração seu estado geral de saúde, sua propensão a se esgotar fisicamente muito rápido, e a falta de acesso à comida, água e atenção médica, ela deve estar desmaiada num raio de dez quilômetros desse suposto terreno baldio. Temos que encontrá-la antes que morra congelada.
Meu pai pigarreia.
— Sim — ele diz —, são teorias interessantes. E, talvez, sob outras circunstâncias, elas poderiam até ser verdadeiras. Mas você está se esquecendo de me falar do detalhe mais importante.
Olho nos olhos dele.
— Ela não é normal — ele conclui, recostado à sua cadeira. — E ela não é a única da sua espécie.
Meu coração acelera. Pisco rápido demais.
— Ah, vamos lá, você não suspeitou de nada? Não criou nenhuma hipótese? — Ele ri. — Parece impossível, estatisticamente, que ela seja a única desse tipo que foi produzida pelo nosso mundo. Você sabia disso, mas não quis acreditar. E eu vim aqui para lhe dizer que é verdade. — Ele curva a cabeça ligeiramente em minha direção. Dá um sorriso largo e vibrante. — Existem muitos deles. E eles a recrutaram.
— Não. — Solto o ar.
— Eles se infiltraram em suas tropas. Vivem no seu meio em segredo. E agora roubaram seu brinquedinho e fugiram com ele. Só Deus sabe como esperam manipulá-la em seu próprio benefício.
— Como pode ter tanta certeza? — indago. — Como sabe que eles conseguiram levá-la com eles? Kent estava meio morto quando o deixei...
— Preste atenção, filho. Estou lhe afirmando que eles não são normais. Eles não seguem suas regras; não há nenhuma lógica que os oriente. Você não tem ideia das esquisitices de que são capazes. — Uma pausa. — Além do mais, tenho conhecimento já há algum tempo, de um grupo deles que vive disfarçado nessa área. Mas durante todo esse tempo eles sempre se mantiveram afastados. Eles não interferem em meus métodos, e achei melhor deixá-los morrer sozinhos sem causar um pânico desnecessário na nossa população civil. Você entende, é claro — ele diz. — Afinal de contas, é muito difícil conter pelo menos um deles. Eles são a coisa mais bizarra de se ver.
— Você sabia? — Estou de pé agora. Tentando ficar calmo. — Você sabia da existência deles, durante todo esse tempo, e assim mesmo não fez nada? Não disse nada?
— Não julguei necessário.
— E agora? — exijo.
— Agora parece pertinente.
— Inacreditável! — Levanto as mãos para o alto. — Que você escondesse de mim tal informação! Quando sabia dos meus planos para ela... quando sabia o sacrifício que foi trazê-la aqui...
— Acalme-se — ele pede. Ele estica as pernas; apoia o tornozelo de uma perna no joelho da outra. — Vamos encontrá-los. Esse terreno abandonado que Delalieu mencionou — a área onde o carro deixou de ser rastreado? Esse é o nosso ponto de partida. Eles devem estar escondidos nos subterrâneos. Devemos encontrar a entrada e os destruir em silêncio, por dentro. Então os teremos punido, e evitamos que o resto se revolte e inspire a rebelião no nosso povo.
Ele se inclina para frente.
— Os civis escutam tudo. E, no momento, estão vibrando com um novo tipo de energia. Estão se sentindo motivados ao perceberem que um deles conseguiu escapar e que você saiu ferido no processo. Isso faz nossas defesas parecerem fracas e fáceis de serem penetradas. Precisamos destruir essa percepção reequilibrando a balança. O medo irá retornar tudo para seu devido lugar.
— Mas eles estão procurando — digo a ele. — Meus homens. Eles vasculham a área todos os dias e ainda não encontraram nada. Como pode ter certeza que iremos descobrir alguma coisa, afinal de contas?
— Porque — ele explica — você vai liderá-los. Todas as noites. Depois do toque de recolher, enquanto os civis dormem. Você não vai interromper as buscas durante o dia; não vai dar a eles motivo para terem o que falar. Aja em silêncio, meu filho. Não mostre suas jogadas. Vou permanecer na base e supervisionar suas responsabilidades com meus homens; vou dar ordens a Delalieu se for necessário. E nesse ínterim, você irá encontrá-los, para que eu possa destruí-los o mais rápido possível. Essa loucura já está durando tempo demais — ele diz — e eu não estou mais a fim de ser generoso.
Capítulo 18
Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito mesmo por favor me perdoe.
Foi um acidente.
Me perdoe
Por favor me perdoe
Há pouca coisa que eu permito que as pessoas descubram a meu respeito. Há ainda menos coisas que estou disposto a partilhar sobre mim mesmo. E entre as muitas coisas que nunca discuti com ninguém, é esta.
Gosto de tomar banhos demorados.
Sempre tive uma obsessão por limpeza desde que era pequeno. Sempre fui tão focado em morte e destruição que acho que compenso isso me mantendo o mais intacto possível. Tomo chuveiradas com frequência. Escovo e passo fio dental nos dentes pelo menos três vezes ao dia. Corto meu cabelo toda semana. Esfrego minhas mãos e unhas antes de me deitar e assim que acordo. Tenho uma preocupação doentia em usar apenas roupas que acabaram de ser lavadas. E todas as vezes que passo por alguma emoção mais forte, a única coisa que acalma meus nervos é um banho bem demorado.
Então é isso que vou fazer agora.
Os médicos me ensinaram como prender meu braço ferido no mesmo plástico que eles usaram antes, então posso mergulhar abaixo da superfície sem problemas. Afundo minha cabeça por um longo período, seguro a respiração e solto o ar pelo nariz. Sinto as borbulhas virem à tona.
A água morna me faz sentir leve. Ela carrega meu peso para mim, compreendendo que preciso de um momento para aliviar meus ombros desse peso. Para fechar meus olhos e relaxar.
Meu rosto rompe a superfície da água.
Não abro meus olhos; apenas meu nariz e minha boca respiram o oxigênio do outro lado. Faço respirações curtas e regulares para acalmar a mente. Já é tão tarde que nem sei mais que horas são; tudo que sei é que a temperatura caiu significativamente, e o ar frio está fazendo cócegas no meu nariz. É uma sensação estranha, ter 98 por cento do meu corpo boiando numa temperatura quente e agradável, enquanto meus lábios e meu nariz se contraem com o frio.
Mergulho meu rosto na água novamente.
Poderia viver aqui para sempre, eu acho. Viver onde a gravidade não sabe que eu existo. Aqui estou solto, sem restrições das amarras da vida. Sou um corpo diferente, uma concha diferente, e meu corpo é levado pelas mãos dos amigos. Tantas noites desejei poder cair no sono debaixo desse lençol.
Mergulho mais fundo.
Em uma semana, minha vida inteira mudou.
Minhas prioridades mudaram de foco. Minha concentração, destruída. Tudo com que me importo agora se resume a uma pessoa e, pela primeira vez na vida, não sou eu mesmo. Suas palavras estão marcadas na minha mente. Não consigo parar de imaginar como ela deve ter sido, não consigo deixar de imaginar o que ela deve ter vivenciado. Encontrar seu diário me deixou arrasado. Meus sentimentos por ela saíram do controle. Nunca estive tão desesperado para vê-la, para conversar com ela.
Quero que ela saiba que eu entendo agora. Que eu não entendia antes. Ela e eu somos iguais; em mais de uma maneira que eu possa ter imaginado.
Porém, agora, ela está fora do meu alcance. Ela foi para algum lugar com estranhos que não a conhecem e não se importam com ela do mesmo jeito que eu. Ela foi parar num ambiente estranho sem tempo para se adaptar e estou preocupado com ela. Uma pessoa na situação dela — com seu passado — não se recupera da noite para o dia. E agora, uma de duas coisas está prestes a acontecer: ou ela vai se fechar completamente, ou vai explodir.
Sento rápido demais, rompendo a barreira da água, ofegante.
Afasto o cabelo molhado do rosto. Me encosto na parede azulejada, deixando o ar frio me acalmar, clarear meus pensamentos.
Tenho que encontrá-la antes que ela se destrua.
Nunca antes quis cooperar com meu pai, nunca concordei com seus motivos ou seus métodos. Mas, nesse instante, estou disposto a fazer qualquer coisa para tê-la de volta.
E estou ansioso pela oportunidade de pular no pescoço de Kent.
O cretino traidor. O idiota que acha que conquistou uma garota bonita. Ele não tem ideia de quem ela seja. Não imagina no que ela pode se transformar.
E se ele pensa que é o par ideal para ela, está muito enganado, ele ainda é mais idiota do que eu imaginava.
Capítulo 19
— Onde está o café? — pergunto, meus olhos examinando a mesa.
Delalieu derruba o garfo. O talher de prata cai ruidosamente sobre os pratos de porcelana. Ele ergue os olhos, assustados.
— Senhor?
— Gostaria de experimentar — digo a ele, tentando passar manteiga na torrada com a mão esquerda. Olho em sua direção. — Você está sempre falando sobre o café, não é? Pensei em...
Delalieu dá um salto da mesa sem dizer uma palavra. Sai correndo pela porta.
Dou uma risada silenciosa para o meu prato.
Delalieu traz a bandeja do chá e café pessoalmente e a coloca perto da minha cadeira. Suas mãos tremem enquanto ele despeja o líquido escuro numa xícara de chá, a coloca sobre um pires, põe sobre a mesa e a empurra em minha direção.
Espero até ele se sentar para tomar um gole. É uma bebida estranha, terrivelmente amarga; nada como eu imaginava. Olho para ele surpreso por saber que um homem como Delalieu começa seu dia tomando um líquido de gosto tão forte e horrível. Descubro um novo respeito pelo homem.
— Não é tão ruim assim — digo a ele.
Seu rosto se abre num sorriso tão grande, tão sereno, que imagino se ele me entendeu mal. Ele está praticamente radiante quando responde:
— Tomo o meu com creme e açúcar. O gosto fica bem melhor do que...
— Açúcar. — Abaixo a xícara. Fechos os lábios e me controlo para não sorrir. — Você coloca açúcar nisso. Claro que sim. Isso faz mais sentido.
— Gostaria de um pouco, senhor?
Levanto minha mão. Sacudo a cabeça.
— Chame as tropas, tenente. Vamos suspender as missões durante o dia e, ao invés disso, faremos incursões noturnas depois do toque de recolher. Você vai permanecer na base — digo a ele — onde o supremo dará as ordens através de seus homens; cumpra as ordens que eles derem. Eu mesmo vou liderar o grupo. — Paro. Olho direto nos olhos dele. — Não se fala mais nada do que aconteceu. Não há nada para os civis verem ou falarem. Você entende?
— Sim, senhor — ele diz, esquecendo o café. — Vou dar as ordens imediatamente.
— Ótimo.
Ele se levanta.
Eu aceno com a cabeça.
Ele se retira.
Estou começando a sentir esperança pela primeira vez desde que ela foi embora. Vamos encontrá-la. Agora, com essa nova informação — com um exército inteiro contra um grupo de rebeldes despreparados — parece impossível não vencermos.
Respiro fundo. Tomo outro gole do café.
Estou surpreso ao perceber como gostei do seu gosto amargo.
Capítulo 20
Meu pai está à minha espera quando volto para meu quarto.
— As ordens foram dadas — digo a ele sem olhar em sua direção. — Vamos mobilizar as tropas hoje à noite. — Hesito. — Bem, se pode me desculpar, tenho outros assuntos para tratar.
— Qual a sensação? — ele indaga. — De estar tão incapacitado? — ele pergunta sorrindo. — Como você aguenta se ver no espelho, sabendo que foi atacado por um de seus próprios subordinados?
Faço uma pausa do lado de fora da porta que leva ao meu escritório.
— O que você quer?
— Qual — é seu interesse por essa garota? — ele indaga.
Minhas costas enrijecem.
— Ela é mais do que apenas uma experiência para você, não é?
Giro o corpo lentamente. Ele está parado no meio do meu quarto, com as mãos nos bolsos, e com um sorriso aparentando nojo.
— Do que você está falando?
— Dê uma olhada em si mesmo — ele diz. — Eu ainda nem disse o nome dela e parece que você vai desabar. — Ele sacode a cabeça, ainda me examinando de perto. — Seu rosto está pálido, sua mão que funciona está crispada. Está com a respiração ofegante e seu corpo está tenso. — Uma pausa. — Você se traiu, filho. Você se acha muito esperto — ele diz —, mas se esquece de quem lhe ensinou todos os truques.
Fico quente e gelado ao mesmo tempo. Tento relaxar as mãos, mas não consigo. Quero dizer a ele que não há nada errado, mas repentinamente estou me sentindo meio zonzo, desejando ter comido um pouco mais no café da manhã, e ao mesmo tempo desejando não ter comido nada.
— Tenho trabalho a fazer — consigo dizer.
— Me diga — ele pergunta — que você não se importa se ela morrer junto com os outros.
— O quê? — As palavras trêmulas e nervosas escapam rápido demais dos meus lábios.
Meu pai abaixa o olhar. Ele cerra e descerra os punhos.
— Você já me desapontou de tantas maneiras — ele diz com a voz aparentemente suave. — Por favor, não faça isso novamente.
Por um momento sinto como se estivesse fora do meu corpo, me olhando pela perspectiva dele. Vejo meu rosto, meu braço ferido, essas pernas que de repente parecem incapazes de carregar meu peso. Fendas começam a se criar ao longo do meu rosto, pelos meus braços, meu tronco e minhas pernas.
Imagino que seja assim que alguém desmorona.
Não percebo que ele disse meu nome, até ele repeti-lo uma segunda vez.
— O que você quer de mim? — pergunto, surpreso, ao perceber como pareço calmo. — Você entrou no meu quarto sem permissão; fica parado aí e me acusa de coisas que ainda nem consegui entender. Estou seguindo suas regras, suas ordens. Vamos partir hoje à noite; vamos encontrar o esconderijo deles. Você pode destruí-los do jeito que achar melhor.
— E sua garota? — ele diz inclinando a cabeça em minha direção. — Sua Juliette?
Me contraio ao ouvir o nome dela. Meu pulso bate tão forte que parece um sussurro.
— Se eu desse três tiros na cabeça dela, como se sentiria? — Ele me encara. Me observa. — Desapontado, porque você perdeu seu brinquedinho de estimação? Ou arrasado porque perdeu a garota que ama?
O tempo nesse momento parece estar mais lento, se derretendo à minha volta.
— Seria um desperdício — digo, ignorando o tremor que sinto por dentro, e que ameaça transbordar — perder algo no qual investi tanto tempo.
Ele sorri.
— É bom saber que você vê as coisas dessa forma — ele diz. — Mas projetos são facilmente substituíveis. E tenho certeza que poderemos encontrar um uso melhor e mais prático para seu tempo.
Pisco os olhos devagar. Parte do meu peito está destroçado.
— Claro. — Me ouço dizer.
— Sabia que entenderia. — Ele dá um tapinha no meu ombro machucado ao sair do quarto. Meus joelhos quase se dobram. — Valeu o esforço, filho. Mas ela nos custou muito tempo e dinheiro e se provou completamente inútil. Desse modo estaremos nos livrando de várias inconveniências ao mesmo tempo. Vamos considerar isso um efeito colateral. — Ele me dá um último sorriso antes de passar por mim e sair pela porta.
Caio de encontro à parede.
E me amontoo no chão.
Capítulo 21
É só engolir as lágrimas com bastante frequência que elas vão começar a parecer ácido escorrendo pela sua garganta. É aquele momento terrível quando você está sentada quieta tão quieta porque você não quer que a vejam chorar você não quer chorar, mas seus lábios não param de tremer e seus olhos estão cheios até a borda com súplica e eu imploro e por favor e me desculpe e tenha piedade e talvez dessa vez será diferente mas é sempre igual. Não tem onde se esconder. Ninguém ao seu lado.
Acenda uma vela para mim, eu costumava murmurar para o nada.
Alguém
Qualquer um
Se você está aí fora
Por favor me diga que pode sentir esse fogo.
É o dia cinco das nossas patrulhas, e nada ainda.
Lidero o grupo todas as noites, marchando em silêncio nessas paisagens frias de inverno. Procuramos por passagens escondidas, bueiros camuflados — qualquer indicação de que possa existir outro mundo sob nossos pés.
E toda noite retornamos para a base sem nada.
A futilidade desses últimos dias me atinge, amortecendo meus sentidos, me deixando numa espécie de torpor do qual não consigo me livrar. Todo dia acordo procurando uma solução para os problemas que eu mesmo provoquei, mas não tenho ideia de como consertar isso.
Se ela está lá fora, iremos encontrá-la. E ele a matará.
Só para me ensinar uma lição.
Minha única esperança é encontrá-la primeiro. Talvez possa escondê-la. Ou dizer a ela para fugir. Ou fingir que ela já está morta. Ou talvez convencê-lo que ela é diferente, melhor que os outros; que vale a pena deixá-la viver.
Pareço um idiota patético e desesperado.
Sou uma criança novamente, me escondendo nos cantos escuros e rezando para ele não me encontrar. Esperando que ele esteja de bom humor hoje. Que talvez tudo dê certo. Que talvez minha mãe não vá estar gritando dessa vez.
Incrível como eu rapidamente me reverto para outra versão de mim mesmo na presença dele.
Fico entorpecido.
Tenho realizado minhas tarefas mecanicamente; isso exige apenas um esforço mínimo. Andar é simples. Comer é algo ao qual me acostumei.
Não consigo parar de ler seu diário.
Meu coração sofre, de certo modo, mas não consigo deixar de virar as páginas. Sinto como se estivesse batendo num muro invisível, como se meu rosto estivesse envolto em plástico e eu não pudesse respirar, não pudesse ver, nem ouvir qualquer som a não ser as batidas do meu próprio coração pulsando nos meus ouvidos.
Quis poucas coisas nessa vida.
Não pedi nada a ninguém.
E, agora, tudo que estou pedindo é outra chance. Uma oportunidade de vê-la novamente. Mas a menos que descubra um jeito de impedi-lo, essas palavras são as únicas coisas que restarão dela.
Esses parágrafos e essas sentenças. Essas cartas.
Fiquei obcecado. Carrego esse caderninho comigo para todos os lugares por onde vou, passo todo meu tempo livre tentando decifrar as palavras que ela rabiscou nas margens, criando histórias para acompanhar os números que ela escreveu.
Também notei que a última página está faltando. Arrancada.
Não consigo imaginar por que. Procurei uma centena de vezes no livro todo, procurando nas outras seções onde essa página poderia estar, mas não achei nada. E de certa forma me sinto enganado, sabendo que tem um trecho que não vi. Não é nem mesmo o meu diário; não tenho nada a ver com isso, mas li as palavras dela tantas vezes que sinto que agora elas são minhas. Posso praticamente recitá-las de cor.
É estranho saber o que se passa na cabeça dela e não poder vê-la. Sinto que ela está aqui, bem na minha frente. Sinto que a conheço tão intimamente, tão secretamente. Fico seguro na companhia dos seus pensamentos; de certo modo me sinto acolhido. Compreendido. Tanto que às vezes eu esqueço que foi ela quem colocou esse buraco de bala no meu braço.
Quase esqueço que ela ainda me odeia, apesar de eu ter me apaixonado tão intensamente por ela.
E me apaixonei.
Perdidamente.
Fui até o fundo do poço. Até o fim. Nunca me senti assim na minha vida. Nada parecido. Senti vergonha e covardia, fraqueza e força. Conheci o terror e a indiferença, ódio de mim mesmo e repugnância geral. Vi coisas que não podem ser vistas.
E ainda assim nunca havia experimentado esse sentimento terrível, horrível e paralisante. Me sinto aleijado. Desesperado e fora de controle. E está ficando pior. Todos os dias me sinto doente. Vazio e ferido por dentro.
O amor é um cretino perverso e sem coração.
Estou ficando louco.
Caio de costas na cama, completamente vestido. Casaco, botas, luvas. Estou cansado demais para tirar a roupa. Essas rondas noturnas têm me deixado pouco tempo para dormir. Parece que estou em constante estado de exaustão.
Minha cabeça cai no travesseiro e pisco uma vez. Duas.
Desmaio.
Capítulo 22
— Não. — Me ouço dizer. — Você não deveria estar aqui.
Ela está sentada na minha cama. Está apoiada nos próprios cotovelos, com as pernas esticadas à sua frente, cruzadas nos tornozelos. E apesar de uma parte de mim saber que devo estar sonhando, tem um outro lado, uma parte esmagadoramente dominante que se recusa a aceitar isso. Parte de mim quer acreditar que ela está aqui, perto de mim, usando esse vestidinho preto justo que fica exibindo suas pernas. Mas tudo nela está diferente, estranhamente vibrante; as cores estão erradas. Seus lábios estão com um tom profundo de rosa, bem intenso; seus olhos estão maiores, mais escuros. Ela está usando sapatos que eu nunca a tinha visto usar. E o mais estranho de tudo: ela está sorrindo para mim.
— Oi — ela murmura.
É só uma palavra, mas meu coração dispara. Estou me afastando dela, quase batendo a cabeça na cabeceira da cama, quando percebo que meu braço não está mais ferido. Olho para baixo, para mim mesmo. Meus dois braços estão funcionando. Estou vestindo apenas uma camiseta e uma cueca.
Ela muda de posição num instante, ficando de joelhos antes de vir rastejando para cima de mim. Ela sobe no meu colo. Agora está montada sobre mim. De repente minha respiração se acelera.
Seus lábios encostam nos meus ouvidos. Suas palavras são meigas.
— Me beije — ela diz.
— Juliette...
— Vim até aqui. — Ela ainda está sorrindo para mim. É um sorriso raro, do tipo que ela nunca antes havia me presenteado. Mas por estranho que pareça, agora ela é minha. Ela é minha e é perfeita e me quer, e não vou lutar contra isso.
Não quero lutar.
Suas mãos estão puxando minha camiseta, tirando-a pela cabeça. Jogando-a no chão. Ela se inclina e beija meu pescoço, só uma vez, bem devagarzinho. Meus olhos se fecham.
Não há palavras no mundo para descrever o que estou sentindo.
Sinto suas mãos percorrerem meu peito, meu estômago; seus dedos deslizarem pela beirada da minha cueca. Seu cabelo despenca para frente, roçando minha pele, e tenho que fechar os punhos para evitar prendê-la na minha cama.
Cada terminação nervosa do meu corpo está pulsando. Nunca me senti tão vivo nem tão desesperado em toda a minha vida, e tenho certeza de que se ela pudesse saber o que estou pensando nesse momento, ela sairia por aquela porta e nunca mais voltaria.
Porque eu a quero.
Agora.
Aqui.
Em todo lugar.
Não quero nada entre nós.
Quero tirar suas roupas, acender as luzes e quero estudá-la de perto. Quero abrir o zíper do seu vestido e me demorar em cada centímetro do seu corpo. Não consigo deixar de querer olhar para ela; de conhecê-la e a seus traços: o declive do seu nariz, a curva dos seus lábios, a linha do seu rosto. Quero percorrer com meus dedos a pele macia do seu pescoço e deslizar até embaixo. Quero sentir o peso do corpo dela sobre o meu, me envolvendo.
Não consigo pensar numa razão para isso não ser certo nem real. Não consigo me concentrar em nada mais, a não ser nela sentada no meu colo, tocando meu peito, e me olhando nos olhos como se realmente me amasse.
Chego a imaginar que morri.
Mas bem quando eu me aproximo, ela se afasta, sorrindo antes de eu alcançá-la, nunca afastando seus olhos.
— Não se preocupe — ela sussurra. — Está quase acabado agora.
Suas palavras parecem tão estranhas, e ao mesmo tempo tão familiares.
— O que quer dizer com isso?
— Só um pouco mais e eu vou embora.
— Não. — Estou piscando rápido, tentando segurá-la. — Não, não vá. Onde você está indo...
— Você vai ficar bem — ela diz. — Prometo.
— Não...
Mas agora ela está segurando uma arma.
E a apontando para o meu coração.
Capítulo 23
Essas letras são tudo que me sobrou.
26 amigos para quem contar minha história.
26 letras são tudo que eu preciso para criar oceanos e ecossistemas. Posso combiná-las para formar planetas e sistemas solares. Posso usar letras para construir arranha-céus e metrópoles cheias de gente, lugares, coisas e ideias que são mais reais que essas quatro paredes.
Não preciso de nada além de palavras para viver. Sem elas eu não existiria.
Porque essas palavras que escrevo são a única prova de que ainda estou viva.
Está extraordinariamente frio esta manhã.
Sugiro que a gente faça um passeio descompromissado pelos complexos bem cedo só para ver se algum cidadão parece suspeito ou deslocado. Estou começando a imaginar se Kent e Kishimoto, e todos os outros, estão vivendo em segredo entre as pessoas. Eles devem, afinal de contas, receber alguma ajuda para encontrar comida e água — algo que os prenda à sociedade; duvido que possam plantar alguma coisa debaixo da terra. Mas é claro, são só suposições. Eles podem ter alguém que consegue plantar algo no ar.
Rapidamente dou instruções para meus homens; os oriento para se dispersarem e continuarem sem chamar a atenção. O trabalho deles é observar todo mundo hoje, e relatar o que descobriram para mim.
Assim que se foram, fico sozinho para olhar em volta e pensar. É um lugar perigoso para se esconder.
Meu Deus, ela parecia tão real nos meus sonhos.
Fecho os olhos, cobrindo o rosto com as mãos; meus dedos tocam meus lábios de leve. Posso sentir o toque dela. Na verdade, posso senti-la. Só de pensar nisso, meu coração acelera. Não sei o que vou fazer se continuar a ter sonhos tão intensos com ela. Não vou ser capaz de trabalhar direito.
Respiro fundo, controlando a respiração e me concentrando. Deixo meus olhos perambularem naturalmente, não posso evitar me distrair com as crianças correndo em volta. Parecem tão animadas e despreocupadas. Sei que parece estranho, mas fico triste ao ver que eles conseguiram encontrar felicidade nessa vida. Elas não têm nem ideia do que perderam; nem imaginam como o mundo costumava ser.
Alguma coisa se aproxima e bate nas minhas pernas.
Ouço um arquejo estranho e cansado; me viro.
É um cachorro.
Um cachorro cansado e faminto, tão magro e frágil que parece que pode ser levado pelo vento. Mas ele está me olhando. Sem medo. Com a boca aberta. A língua balançando.
Tenho vontade de dar risada.
Olho em volta rapidamente antes de pegar o cachorro nos braços. Não preciso dar ao meu pai outro motivo para me castrar, e não confio que meus soldados não irão contar uma coisa assim.
Que eu estava brincando com um cachorro.
Posso até escutar as coisas que meu pai iria me dizer.
Carrego a criatura chorosa até uma das casas que haviam sido desocupadas recentemente — vi apenas três famílias saindo para o trabalho — e me abaixo por trás de uma das cercas. O cachorro parece ser bem esperto para saber que agora não é hora de latir.
Tiro minhas luvas e ponho a mão no bolso para pegar um pãozinho doce que havia trazido como café da manhã; não tive tempo de comer nada antes de sairmos hoje cedo. E embora eu não faça ideia do que um cachorro coma, exatamente, eu lhe dou o pãozinho.
O cachorro praticamente o agarra da minha mão.
Ele engole o pãozinho em duas bocadas e começa a lamber os meus dedos, pulando no meu peito, todo empolgado, aproveitando o calor do meu casaco aberto. Não consigo segurar a risada que escapa dos meus lábios; nem quero. Há muito tempo não me sinto assim. E não posso evitar ficar espantado com o poder que animaizinhos tão pequenos exercem sobre nós; eles rompem nossas resistências com a maior facilidade.
Passo minhas mãos pelo seu pelo surrado, sentindo as pontas das costelas aparecendo em ângulos desconfortáveis. Mas o cachorro não parece se importar com seu estado de inanição, pelo menos não agora. Seu rabo está balançando furiosamente, e ele fica pulando no meu peito para me olhar. Começo a pensar que deveria ter enfiado mais alguns pãezinhos doces no meu bolso antes de sair.
Algo estala.
Ouço um suspiro.
Olho em volta.
Dou um pulo, alerta, procurando o barulho. Parecia bem perto. Alguém me viu. Alguém... Um civil. Ela já está escapando, seu corpo apertado de encontro a uma das paredes da casa.
— Ei! — grito. — Você aí...
Ela para. Olha para cima.
Eu quase desmaio.
Juliette.
Ela está me olhando. Ela realmente está aqui, olhando para mim, com os olhos arregalados e assustados. Minhas pernas parecem ser feitas de chumbo. Estou preso no chão, incapaz de dizer uma palavra sequer. Nem sei por onde começar. São tantas coisas que gostaria de dizer a ela, tantas coisas que eu nunca disse, e eu estou simplesmente tão feliz ao vê-la.
— Deus, estou tão aliviado...
Ela desapareceu.
Olho em volta, em pânico, imaginando se estou começando a perder meu senso de realidade. Meus olhos se voltam para o cachorrinho que ainda está parado ali, esperando por mim, e eu olho para ele estupefato, imaginando o que havia acontecido. Fico olhando para o lugar onde a vi, mas não vejo nada.
Nada.
Passo a mão pelos cabelos, tão confuso, tão horrorizado e irritado comigo mesmo, que fico tentado a arrancar minha cabeça.
O que está acontecendo comigo?
Capítulo 12
Um dos homens do meu pai está me esperando do lado de fora da minha porta.
Olho de relance em sua direção, mas não o suficiente para reconhecer suas feições.
— Diga qual o assunto, soldado.
— Senhor — ele diz —, recebi ordens para lhe informar que o comandante supremo solicita sua presença em seus alojamentos para o jantar às vinte horas.
— Considere sua mensagem recebida. — Dou um passo para abrir minha porta.
Ele dá um passo à frente, bloqueando minha passagem.
Viro o corpo para olhar para ele.
Ele está parado a alguns passos de distância de mim: um ato implícito de desrespeito; um nível de intimidade que nem mesmo Delalieu se permite. No entanto, ao contrário dos meus homens, os bajuladores que cercam meu pai se consideram especiais. Ser um membro da guarda de elite do comandante supremo é considerado um privilégio e uma honra. Eles se reportam diretamente a ele.
E nesse exato momento, esse soldado está tentando provar que é superior a mim.
Ele tem inveja de mim. Pensa que sou indigno de ser o filho do comandante supremo do Restabelecimento. Isso está praticamente escrito no rosto dele.
Tenho que segurar meu impulso de cair no riso quando encaro seus frios olhos cinza e o buraco negro que é sua alma. Ele tem as mangas enroladas na altura do cotovelo, suas tatuagens militares claramente definidas e à mostra. Os círculos concêntricos de tinta preta em volta dos seus braços são acentuados em vermelho, verde e azul, o único sinal para indicar que ele é um soldado de patente elevada. É um ritual doentio do qual sempre fiz questão de me recusar a participar.
O soldado ainda está me encarando.
Inclino minha cabeça em sua direção, ergo minhas sobrancelhas.
— Recebi ordens — ele declara — de esperar uma resposta oral aceitando esse convite.
Demoro um pouco, pensando nas minhas escolhas, mas não havia nenhuma.
Eu, como todos os fantoches desse mundo, sou completamente subserviente aos desejos do meu pai. É verdade que sou forçado a lutar todos os dias: que nunca serei capaz de enfrentar o homem que tem seus punhos cerrados em volta da minha espinha vertebral.
Isso me faz odiar a mim mesmo.
Encaro os olhos do soldado e imagino, por um breve momento, qual o nome dele, antes de perceber que não me importo com isso.
— Considere-o aceito.
— Sim, s...
— E da próxima vez, soldado, não se aproxime a menos de um metro e meio de distância de mim, sem pedir permissão.
Ele pisca os olhos, confuso.
— Senhor, eu...
— Você está confuso — o interrompo. — Acredita que trabalhar com o comandante supremo lhe dá imunidade das regras que governam a vida dos outros soldados. Veja, você está errado.
Seu rosto se enrijece.
— Nunca se esqueça — digo baixinho agora — que se eu quisesse o seu emprego, eu o teria. E não se esqueça de que o homem que você serve tão ansiosamente é o mesmo homem que me ensinou a atirar com uma arma de fogo quando eu tinha apenas nove anos de idade.
Suas narinas se dilatam. Ele olha direto para frente.
— Entregue sua mensagem, soldado. E então relembre isso e nunca mais fale comigo novamente.
Os olhos dele agora estão presos num ponto diretamente atrás de mim, seus ombros rígidos.
Espero.
Seu maxilar ainda está rígido. Lentamente ele levanta sua mão em saudação.
— Está dispensado — digo.
Tranco a porta do meu quarto e me encosto nela. Preciso de apenas um momento. Pego o vidrinho que está na mesinha de cabeceira e tiro duas pílulas quadradas; as jogo na boca, fechando meus olhos enquanto se dissolvem.
A escuridão atrás das minhas pálpebras é um alívio reconfortante.
Até que a lembrança do rosto dela se impõe à minha percepção.
Me sento na cama e deixo a cabeça cair na minha mão. Não deveria estar pensando nela agora. Tenho horas de papelada para separar e o estresse da presença do meu pai para aguentar. Jantar com ele vai ser um espetáculo. Um espetáculo de arrasar a alma.
Fecho meus olhos com força e faço um pequeno esforço para construir as paredes que com certeza limpariam minha mente. Mas dessa vez elas não funcionam. O rosto dela insiste em surgir subitamente, seu diário me provocando lá no fundo do meu bolso.
E começo a perceber que tem uma pequena parte de mim que não deseja afastar os pensamentos dela. Uma parte de mim gosta da tortura.
Essa garota está me destruindo.
Uma garota que passou o último ano internada num sanatório de loucos. Uma garota que tentou me matar porque eu a beijei. Uma garota que fugiu com outro homem só para se afastar de mim.
É claro que essa é a garota por quem eu iria me apaixonar.
Coloco a mão na boca.
Estou perdendo a cabeça.
Tiro minhas botas. Me enfio na cama e deixo a cabeça cair nos travesseiros.
Ela dormiu aqui, penso. Ela dormiu na minha cama. Ela acordou na minha cama. Ela estava aqui e deixei que ela escapasse.
Falhei.
Perdi.
Nem percebo que tirei o diário dela do bolso e o estou segurando em frente do rosto. Olhando para ele. Estudando sua capa desbotada numa tentativa de entender onde ela pode ter adquirido isso. Ela deve ter roubado de algum lugar, embora não consiga imaginar onde.
Há tantas coisas que eu gostaria de perguntar a ela. Tantas coisas que gostaria de lhe dizer.
Ao invés disso, abro seu diário e leio.
Às vezes fecho meus olhos e pinto essas paredescom cores diferentes.
Imagino que estou usando meias quentinhas e estou sentada perto do fogo. Imagino que alguém me deu um livro para ler, uma história para me levar para longe da tortura da minha própria mente. Quero ser alguém em algum outro lugar com alguma outra coisa a ocupar minha cabeça. Quero correr, quero sentir o vento batendo nos cabelos. Quero fingir que isso é simplesmente uma história dentro de outra história. Que essa cela é apenas um cenário, que essas mãos não me pertencem, que essa janela dá para um lugar lindo, se pelo menos eu conseguisse abri-la. Finjo que essa fronha é limpa, finjo que a cama é macia. Finjo e finjo e finjo até que o mundo fica maravilhoso por trás dos meus olhos e já não consigo mais contê-lo. Mas então meus olhos se abrem e sou agarrada pela garganta por um par de mãos que não param de me sufocar sufocar sufocar...
Meus pensamentos, acho, logo serão ouvidos.
Minha mente, espero, logo será descoberta.
O diário cai da minha mão e bate no meu peito. Passo a mão pelo rosto, pelo meu cabelo. Massageio o pescoço e me puxo com força para cima a ponto de bater a cabeça na cabeceira da cama, e na verdade fico grato a isso. Me demoro um pouco sentindo a dor.
E viro a página.
Imagino o que eles estão pensando. Meus pais. Imagino onde estão. Penso se eles estão bem agora, se estão felizes agora,se eles finalmente conseguiram o que queriam.Imagino se minha mãe vai querer ter outro filho. Imagino se alguém vai ter a bondade de me matar, e imagino se o inferno não é melhor do que aqui. Imagino como está meu rosto agora. Imagino se algum dia vou poder respirar o ar fresco novamente.
Imagino tantas outras coisas.
Às vezes fico acordada durante dias simplesmente contando tudo que encontro. Conto as paredes, as rachaduras na parede, meus dedos dos pés e das mãos. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, quantos passos para ir para frente e para trás no meu quarto. Conto meus dentes e cada fio de cabelo na minha cabeça e o número de segundos em que consigo prender minha respiração.
Mas às vezes fico tão cansada que esqueço que não tenho mais permissão para desejar mais nada, e me descubro desejando a única coisa que sempre quis. A única coisa com a qual sempre sonhei.
Sempre desejei ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso de volta. Ter alguém em quem confiar que não iria jogar as coisas em mim, nem colocar minhas mãos no fogo ou me bater por ter nascido. Alguém que iria saber que fui colocada para fora de casa e tentaria me achar, que nunca teria medo de mim.
Alguém que soubesse que eu nunca o machucaria.
Me vejo num canto desse quarto e enfio a cabeça nos meus joelhos e me balanço para frente e para trás para frente e para trás para frente e para trás e desejo e desejo e desejo coisas impossíveis até cair no sono de tanto chorar.
Imagino como seria ter um amigo.
E então imagino quem mais está preso neste hospício. Imagino de onde estão vindo os outros gritos.
Imagino se estão vindo de mim.
Tento me concentrar, dizendo a mim mesmo que são palavras vazias, mas estou mentindo. Porque, de algum modo, simplesmente ler essas palavras é demais; e pensar nela sofrendo está me deixando agoniado.
Saber que ela vivenciou isso.
Ela foi colocada nesse inferno pelos próprios pais, abandonada e maltratada a vida inteira. Empatia é uma emoção que eu não conhecia, mas agora toma conta de mim, me levando para um mundo que eu não sabia que podia penetrar. E embora sempre tenha acreditado que ela e eu tivéssemos muita coisa em comum, não sabia que podia sentir isso com tanta profundidade.
Isso está me matando.
Fico em pé. Começo a andar pelo quarto até acalmar meus nervos para continuar a leitura. Então respiro fundo.
E viro a página.
Tem alguma coisa fervilhando dentro de mim.
Algo que nunca ousei descobrir, algo que tenho medo de saber. Tem uma parte de mim lutando para se libertar da jaula onde estou presa, batendo nas portas do meu coração, suplicando para ser libertada.
Suplicando para ir embora.
Todos os dias sinto que revivo o mesmo pesadelo. Abro a boca para gritar, para lutar, para girar meus punhos, mas minhas cordas vocais estão cortadas, meus braços estão pesados e densos como se estivessem presos no cimento molhado e eu estou gritando mas ninguém me ouve, ninguém se aproxima e estou enjaulada. E isso está acabando comigo.
Sempre tive de bancar a submissa, subserviente, um pano de chão suplicante e passivo que fazia todo mundo se sentir seguro e confortável. Minha existência se tornou uma luta para provar que eu era inofensiva, não uma ameaça, que eu era capaz de viver entre outros seres humanos sem feri-los.
E estou tão cansada tão cansada tão cansada e às vezes chego a ficar com raiva.
Não sei o que está acontecendo comigo.
— Meu Deus, Juliette. — Suspiro.
E caio de joelhos.
— Chame o transporte imediatamente. — Preciso sair. Preciso sair daqui agora.
— Senhor? Isso é, sim, senhor, é claro... mas onde...
— Tenho que visitar os complexos — digo. — Tenho que fazer minhas rondas antes do meu compromisso dessa noite. — Isso é tanto verdade quanto mentira. Porém agora estou disposto a fazer qualquer coisa que me afaste desse diário.
— Ah, certamente, senhor. Gostaria que o acompanhasse?
— Isso não será necessário, tenente, mas obrigado pela oferta.
— Eu... se-senhor — ele gagueja. — É claro, é u-uma honra servi-lo, senhor, ajudá-lo...
Deus do céu, onde estou com a cabeça. Eu nunca digo obrigado a Delalieu. É muito provável que o pobre homem vá ter um infarto agora.
— Estarei pronto para sair em dez minutos — interrompo.
Ele começa a gaguejar, mas para. Então diz:
— Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Estou pressionando a boca com o punho quando a ligação é desconectada.
Capítulo 13
Tínhamos lares. Antes.
De todos os tipos diferentes.
Casas térreas. Sobrados. Casas de três andares.
Comprávamos enfeites para o jardim e luzinhas pisca-pisca, aprendíamos a andar de bicicleta sem rodinhas. Adquirimos vidas confinadas em 1,2 e 3 andares já construídos, andares contidos em estruturas que não podíamos mudar.
Vivemos nesses andares por algum tempo.
Seguimos a história que nos era contada, o texto preso em cada metro do espaço que havíamos conquistado. Ficamos contentes com a mudança no enredo que redirecionou nossa vida. Assinamos nas linhas pontilhadas por coisas pelas quais não nos importávamos realmente. Comíamos coisas que não deveríamos, gastávamos dinheiro quando não podíamos, esquecíamos a Terra que tínhamos de habitar e desperdiçávamos desperdiçávamos desperdiçávamos tudo. Comida. Água. Recursos.
Logo, os céus ficaram cinza com a poluição química, e as plantas e os animais ficaram doentes devido à modificação genética. E doenças se impregnaram no nosso ar, nas nossas refeições, nossos sangues e nossas casas. A comida desapareceu. As pessoas estavam morrendo. Nosso império estava caindo aos pedaços.
O Restabelecimento disse que nos ajudariam. Nos salvariam. Reconstruiriam nossa sociedade.
Ao invés disso, eles nos destroçaram.
Gosto de visitar os complexos.
É um lugar estranho para se buscar refúgio, mas sinto alguma coisa ao ver tantos civis num espaço tão vasto e aberto que me faz lembrar da minha missão. Fico tanto tempo preso nos limites dos muros do quartel-general do Setor 45, que frequentemente me esqueço dos rostos daqueles por quem lutamos e daqueles com quem estamos lutando.
Gosto de me lembrar.
Geralmente, visito cada aglomerado dos complexos; cumprimento os moradores e pergunto sobre suas condições de vida. Não consigo deixar de ficar curioso em saber como é a vida deles agora. Porque enquanto o mundo se transformou inteiramente para eles, meu mundo continuou o mesmo. Disciplinado. Isolado. Desolador.
Houve um tempo quando as coisas foram melhores, quando meu pai não era tão irritado. Eu tinha cerca de 4 anos. Ele costumava me fazer sentar em seu colo e brincar com seus bolsos. Eu podia pegar o que quisesse, desde que meu argumento fosse bem convincente. Era seu jeito de brincar.
Mas tudo isso foi antes.
Aperto meu casaco no corpo, sentindo o tecido se encostar nas minhas costas. Vacilo sem querer.
A vida que tenho agora é a única que importa. O sufoco, o luxo, as noites mal dormidas, e os corpos dos mortos. Sempre me ensinaram a me concentrar no poder e na dor, em ganhar e infligir.
Não lamento nada.
Aceito tudo.
É o único modo que encontrei de continuar vivendo nesse corpo maltratado. Esvazio minha mente das coisas que me infestam e sobrecarregam minha alma, e aceito o que puder dos pequenos prazeres que aparecem à minha frente. Não sei o que é ter uma vida normal; não sei como simpatizar com os cidadãos que perderam suas casas. Não faço ideia de como era a vida deles antes de o Restabelecimento tomar o poder.
Por isso gosto de passear pelos complexos.
Gosto de ver como as outras pessoas vivem; gosto de ter o poder de fazer com que respondam às minhas perguntas. Do contrário não teria como saber.
Mas o momento é errado.
Não prestei muita atenção ao relógio quando saí da base, e não percebi que o sol estava se pondo. A maioria dos civis está voltando para casa para descansar à noite, seus corpos curvados, encolhidos pelo frio enquanto se encaminhavam em direção aos aglomerados de metal que dividem com pelo menos outras três famílias.
As casas improvisadas são construídas com containers de navios de doze metros quadrados; eles são empilhados lado a lado e um em cima do outro, agrupados em grupos de cinco ou seis. Cada container foi isolado; equipado com duas janelas e uma porta. Escadas para o andar superior foram colocadas de cada lado de fora da estrutura. Os tetos são alinhados com painéis solares que fornecem eletricidade gratuita para cada grupo.
É algo do qual muito me orgulho.
Porque foi minha ideia.
Quando estávamos procurando por abrigos temporários para os civis, sugeri reformar os velhos containers de carga que ocupavam as docas de todos os portos do mundo. Não apenas eram baratos, facilmente reaproveitados, e altamente adaptáveis, mas podiam ser empilhados, eram portáteis e construídos independentemente do clima do lugar. Eles exigiam o mínimo de construção e, com a equipe certa, milhares de unidades habitacionais poderiam estar prontas em alguns dias.
Dei essa ideia para meu pai, pensando que essa seria a opção mais eficiente; uma solução temporária que seria menos desumana do que barracas; algo que ofereceria um abrigo real e confiável. Mas o resultado foi tão eficiente que o Restabelecimento não viu necessidade de renovação. Aqui, num terreno que costumava ser um lixão, assentamos milhares de containers; aglomerados de cubos retangulares e desbotados que são fáceis de monitorar e vigiar.
As pessoas ainda acreditam que essa é uma solução temporária. Que um dia voltarão para as lembranças de suas antigas vidas e as coisas serão lindas e brilhantes novamente. Mas tudo isso é mentira.
O Restabelecimento não tem planos de mudá-los de onde estão.
Os civis devem permanecer nessas áreas regulamentadas; esses containers se tornaram suas prisões. Tudo foi numerado. As pessoas, suas casas, seu grau de importância para o Restabelecimento.
Aqui, eles se tornaram parte de um enorme experimento. Um mundo no qual trabalham para manter as necessidades de um regime que faz promessas que nunca serão cumpridas.
Essa é a minha vida.
Esse triste mundo.
Na maior parte do tempo, me sinto como um civil; e é provavelmente por isso que vim até aqui. É como se estivesse indo de uma prisão para outra; numa existência onde não há escape, não há refúgio. Quando até mesmo minha mente me trai.
Eu deveria ser mais forte do que isso.
Tenho treinado há mais de uma década. Tenho trabalhado todos os dias para aprimorar minhas forças física e mental. Tenho 1 metro e 79 de altura e 77 quilos de músculos. Fui preparado para sobreviver, para maximizar a resistência e a energia, e fico perfeitamente à vontade segurando uma arma. Posso desmontar, limpar, recarregar, desarmar e remontar mais de 150 tipos de armas de fogo. Posso atirar no centro de um alvo, de praticamente qualquer distância. Posso quebrar o pescoço de uma pessoa com a lateral da mão. Posso paralisar temporariamente um homem com apenas os nós dos meus dedos.
No campo de batalha, sou capaz de me desconectar dos movimentos que aprendi a memorizar. Criei a reputação de ser alguém frio, um monstro que não teme nada nem ninguém.
Mas tudo isso é ilusório.
Porque a verdade é que não passo de um covarde.
Capítulo 14
O sol está se pondo.
Logo vou ter que retornar à base, onde vou me sentar quieto e ouvir meu pai falar, em vez de mandar bala na sua boca aberta.
Então tento ganhar tempo.
Fico parado e ouço barulhos vindos de longe e observo as crianças correrem, enquanto seus pais as levam para casa. Penso se um dia eles vão crescer o bastante para sacar que os cartões do Registro do Restabelecimento na verdade estão rastreando todos seus movimentos. Que o dinheiro que seus pais recebem pelo trabalho em alguma das muitas fábricas existentes ali é monitorado de perto. Essas crianças crescerão e finalmente entenderão que tudo que elas fazem está gravado, cada conversa é dissecada para se descobrir murmúrios de rebeliões. Eles não sabem que estão sendo criados perfis para cada cidadão, e que cada arquivo é bem grosso com documentação das suas amizades, relacionamentos, e hábitos de trabalho; até mesmo como gostam de passar seu tempo livre.
Sabemos tudo sobre todo mundo.
Demais.
Tanto é verdade que raramente me lembro que estamos lidando com gente de verdade, seres vivos, até vê-los nos complexos. Sei de cor o nome de quase todos os cidadãos do Setor 45. Gosto de saber quem vive na minha jurisdição, não importa se são soldados ou civis.
Foi assim que tomei conhecimento, por exemplo, que o soldado Seamus Fletcher, 45B-76423, batia na esposa e nos filhos todas as noites.
Eu sabia que ele estava gastando todo seu dinheiro em bebidas; sabia que ele estava deixando sua família passar fome. Monitorei os dólares REST que ele gastava nas nossas centrais de abastecimento e observei atentamente a família dele no complexo. Sabia que seus três filhos tinham menos de 10 anos e não comiam há semanas; sabia que eles haviam estado inúmeras vezes no posto médico do complexo para tratar de ossos quebrados e levar pontos em machucados. Fiquei sabendo que ele deu um soco na boca de sua filha de 9 anos e cortou o lábio dela, fraturou o maxilar e quebrou dois de seus dentes da frente; e soube que sua esposa estava grávida. Também fiquei sabendo que certa noite ele bateu nela com tanta força que ela perdeu a criança na manhã seguinte.
Eu sei por que estava lá.
Eu estava parando em cada residência, visitando os civis, fazendo perguntas sobre sua saúde e como estavam suas vidas. Queria saber de suas condições de trabalho e se algum membro de suas famílias precisaria estar de quarentena.
Ela estava em casa naquele dia. A esposa de Fletcher. Seu nariz estava quebrado e seus olhos estavam tão inchados que ela nem conseguia abri-los direito. Seu corpo era tão magro e frágil, sua pele tão pálida, que achei que ela iria se quebrar em duas ao sentar-se. Quando lhe perguntei sobre os machucados, ela evitou meus olhos. Disse que tinha caído; que por causa da sua queda ela havia perdido a criança que carregava e conseguiu também quebrar o nariz no acidente.
Acenei com a cabeça. Agradeci por sua cooperação ao responder minhas perguntas.
E então convoquei uma reunião.
Estou ciente que a maioria dos meus soldados rouba dos armazéns dos nossos complexos. Analiso os relatórios cuidadosamente e sei que tem suprimentos desaparecendo o tempo todo. Mas permito essas pequenas infrações porque elas não perturbam o sistema. Alguns pães ou pedaços de sabão a mais deixam meus soldados mais animados; eles trabalham mais se estiverem saudáveis, e a maioria deles mantém esposa, filhos e parentes. Então essa é uma concessão que faço.
Mas algumas coisas não posso perdoar.
Não me considero um moralista. Não filosofo sobre a vida ou me importo com as leis e princípios que governam a vida das pessoas. Não pretendo saber a diferença entre o certo e o errado. Mas procuro viver sob certo código de vida. E às vezes, eu acho, tenho que aprender a atirar antes.
Seamus Fletcher estava matando sua família. E eu lhe dei um tiro na testa porque achei que assim seria menos doloroso do que destroçá-lo com minhas próprias mãos.
Mas meu pai completou o trabalho que Fletcher havia começado. Meu pai mandou matar os três filhos dele e sua mulher, tudo por causa de um bêbado cretino que deveria ter cuidado deles. Ele era o pai deles, o marido dela, e a razão de eles terem tido uma morte tão brutal e inesperada.
E alguns dias eu imagino por que insisto em continuar vivendo.
Capítulo 15
De volta à base, sigo direto em frente.
Ignoro os soldados e suas continências por onde passo, sem prestar atenção à mistura de curiosidade e desconfiança em seus olhos. Nem tinha percebido que havia tomado esse caminho ao chegar à base; mas meu corpo parece saber mais do que minha mente, do que precisa agora. Meus passos são pesados; regulares, o som das minhas botas ecoa ao longo do piso de pedras conforme chego aos andares de baixo.
Não venho aqui há quase duas semanas.
O quarto fora reformado desde a última vez em que estive aqui; o painel de vidro e a parede de concreto foram substituídos. E pelo que sei ela foi a última pessoa a usar esse quarto.
Eu mesma a havia trazido aqui.
Empurro as duas portas giratórias do vestiário que fica na sala adjacente ao deque de simulação. Minha mão procura no escuro pelo interruptor; as luzes piscam uma vez antes de se acenderem. Um zumbido monótono de eletricidade vibra nesses cômodos vastos. Tudo está quieto, abandonado.
Exatamente como eu gosto.
Tiro minhas roupas o mais rápido que consigo, devido aos ferimentos. Ainda tenho duas horas antes do esperado jantar com meu pai, então eu não deveria estar tão ansioso assim, mas meus nervos não estão ajudando. Tudo parece estar vindo para cima de mim de uma vez só. Meus fracassos. Minha covardia. Minha estupidez.
Às vezes fico tão cansado dessa vida.
Estou em pé, descalço no concreto, só usando a tipoia no meu braço, detestando como esse ferimento me deixa constantemente para baixo. Pego o shorts guardado no meu armário e o visto o mais rapidamente possível, me encostando à parede para me apoiar. Quando finalmente fico ereto, fecho a porta do armário e entro no cômodo ao lado.
Aperto mais um interruptor, e o sistema operacional principal começa a funcionar. Os computadores emitem um sinal sonoro e uns flashes se acendem enquanto o programa se prepara; passo os dedos pelo teclado.
Costumamos usar esses cômodos para simulações.
Manipulamos a tecnologia para criar lugares e experiências que existem apenas na mente humana.
Não apenas somos capazes de criar o cenário, mas também podemos controlar os mínimos detalhes. Sons, cheiros, falsa segurança, paranoia. O programa foi originalmente criado para ajudar soldados em missões específicas, e também para ajudá-los a superar medos que, do contrário, iria incapacitá-los no campo de batalha.
Eu o uso para meus próprios fins.
Costumava vir aqui todos os dias antes de ela chegar à base. Aqui era meu porto seguro; minha única fuga do mundo. Apenas gostaria que não precisasse de um uniforme. Esse short é engomado e desconfortável, o poliéster coça e irrita a pele. Mas é forrado com uma química especial que reage com a minha pele e alimenta o sensor com informações; me ajudam a me situar na experiência e me permitirá correr por quilômetros sem precisar correr de verdade, muros físicos no meu ambiente real. E para que o processo seja o mais eficiente possível, tenho que vestir quase nada. As câmeras são hipersensíveis ao calor do corpo, e funcionam melhor quando não entra em contato com materiais sintéticos.
Espero que esse detalhe fique anotado para a próxima geração do programa.
A central me solicita dados; rapidamente entro com o código de acesso que me garante permissão para levantar o histórico das últimas simulações. Olho para o alto por sobre meu ombro enquanto o computador processa os dados; olho de relance pelo recém-consertado espelho de duas faces que vê o cômodo principal. Ainda não acredito que ela quebrou uma parede inteira de vidro e concreto e continuou a caminhar sem um arranhão.
Inacreditável.
A máquina bipa duas vezes; me viro novamente. Os programas que solicitei estão carregados e prontos para serem executados.
O arquivo dela é o primeiro da lista.
Respiro fundo; tento afastar as lembranças. Não me arrependo de tê-la feito passar por uma experiência tão horrível. Não sei se ao final ela teria se permitido perder o controle — finalmente habitar seu próprio corpo — se eu não tivesse encontrado um modo eficiente de provocá-la. Ultimamente realmente acredito que isso a ajudou, exatamente como eu pretendia. Mas eu desejaria que ela não tivesse apontado uma arma na minha cara e saltado pela janela logo depois.
Suspiro devagar mais uma vez, acalmando minha respiração.
E seleciono a simulação que me motivou a vir até aqui.
Capítulo 16
Estou parado no cômodo principal.
Me encarando.
Essa é uma simulação bem simples. Não precisei trocar de roupa nem mexer no meu cabelo, nem alterar o piso carpetado. Não fiz nada a não ser criar uma duplicata de mim mesmo e lhe entregar uma arma.
Ele não para de me encarar.
Um.
Ele curva ligeiramente a cabeça.
— Você está pronto? — Uma pausa. — Está com medo?
Meu coração bate em disparada.
Ele ergue seu braço. Sorri um pouco.
— Não se preocupe — ele diz. — Está quase terminado agora.
Dois.
— Só um pouco mais e eu vou embora — ele diz, apontando a arma para a minha testa.
Minhas mãos estão suadas. Meu pulso está acelerado.
— Você vai ficar bem — ele mente. — Prometo.
Três.
Bummm.
Capítulo 17
— Tem certeza de que não está com fome? — meu pai pergunta, ainda mastigando. — Isso está realmente muito bom.
Me mexo na cadeira. Me concentro nos vincos bem passados das calças que estou usando.
— Hum? — ele indaga. Posso vê-lo sorrindo.
Estou intensamente ciente dos soldados alinhados nas paredes desta sala. Ele sempre os mantém perto de si, e sempre em constante competição uns com os outros. Sua primeira tarefa era determinar qual era o elo mais fraco dentre os onze. Aquele com o argumento mais convincente poderia dispor do seu alvo.
Meu pai acha essas práticas divertidas.
— Receio não estar com muita fome. Os remédios — minto — acabam com meu apetite.
— Ah — ele replica. Ouço o barulho de seus talheres quando ele os deposita na mesa. — É claro. Que inconveniência.
Não digo nada.
— Podem se retirar.
Duas palavras e seus homens se dispersam em questão de segundos. A porta se fecha atrás deles.
— Olhe para mim — ele ordena.
Levanto o olhar, meus olhos cuidadosamente desprovidos de emoção. Odeio seu rosto. Não suporto olhar muito tempo para ele; não gosto da experiência de observar como ele é desumano. Ele não se tortura pelo que faz ou pelo modo que vive. Na verdade ele gosta disso. Ele adora a adrenalina do poder; ele se vê como uma entidade invencível.
E, de certo modo, não está errado.
Passei a crer que o homem mais perigoso do mundo é aquele que não sente remorso. Aquele que nunca se desculpa e, portanto, não procura o perdão. Porque no final, são nossas emoções que nos torna fracos, não nossas ações.
Viro o rosto.
— O que encontrou? — ele pergunta sem preâmbulos.
Minha mente vai imediatamente para o diário que está guardado no meu bolso, mas não faço nenhum comentário. Nem pisco. As pessoas raramente percebem que, na maioria das vezes, mentem com os lábios e dizem a verdade com os olhos. Coloque um homem num cômodo com algo que ele tenha escondido, e então pergunte onde ele a escondeu; ele vai dizer que não sabe; vai dizer que você pegou a pessoa errada; mas quase sempre ele vai olhar na direção certa. E agora meu pai está me examinando, esperando ver para onde vou olhar, o que direi a seguir.
Mantenho meus ombros relaxados e respiro devagar, imperceptivelmente, para amansar meu coração. Não respondo. Finjo estar perdido em meus pensamentos.
— Filho?
Ergo o olhar. Finjo surpresa.
— Sim?
— O que achou? Quando revistou o quarto dela hoje?
Solto o ar. Sacudo a cabeça quando me recosto na cadeira.
— Vidros quebrados. Uma cama desarrumada. O armário dela, escancarado. Ela levou apenas alguns itens de higiene pessoal e algumas roupas extras e roupas de baixo. — Nada disso era sem sentido. Nada disso era mentira.
Ouço quando ele suspira. Ele afasta seu prato.
Sinto o contorno do caderninho dela queimando minha perna.
— E você diz que não sabe para onde ela pode ter ido?
— Apenas sei que ela, Kent e Kishimoto devem estar juntos — explico a ele. — Delalieu diz que roubaram um carro, mas as pistas desapareceram na entrada de um enorme terreno baldio. Fizemos as tropas vasculharem aquela área durante dias, mas não encontramos nada.
— E onde — ele pergunta — planeja procurar a seguir? Você acha que eles cruzaram para outro setor? — A voz dele está estranha. Divertida.
Olho seu rosto sorridente.
Ele só está me fazendo essas perguntas para me testar. Ele tem suas próprias respostas, sua solução já preparada. Ele quer me ver falhar ao responder incorretamente. Está tentando provar que, sem ele, eu tomaria as decisões erradas.
Ele está se divertindo às minhas custas.
— Não — digo a ele, com a voz sólida e firme. — Não acho que vão fazer algo tão idiota como atravessar para outro setor. Eles não têm acesso, meios ou capacidade para isso. Ambos os homens estão severamente feridos, perdendo sangue rapidamente, e estão distantes de qualquer ajuda de emergência. Provavelmente estão mortos agora. A garota talvez seja a única sobrevivente, e ela não pode ter ido muito longe, pois não conhece como andar por aquelas áreas. Ela ficou isolada muito tempo; tudo nesse lugar é completamente estranho para ela. Além do que, ela não sabe dirigir, e se por acaso ela conseguisse dirigir um veículo, teríamos sido informados da propriedade roubada. Se levarmos em consideração seu estado geral de saúde, sua propensão a se esgotar fisicamente muito rápido, e a falta de acesso à comida, água e atenção médica, ela deve estar desmaiada num raio de dez quilômetros desse suposto terreno baldio. Temos que encontrá-la antes que morra congelada.
Meu pai pigarreia.
— Sim — ele diz —, são teorias interessantes. E, talvez, sob outras circunstâncias, elas poderiam até ser verdadeiras. Mas você está se esquecendo de me falar do detalhe mais importante.
Olho nos olhos dele.
— Ela não é normal — ele conclui, recostado à sua cadeira. — E ela não é a única da sua espécie.
Meu coração acelera. Pisco rápido demais.
— Ah, vamos lá, você não suspeitou de nada? Não criou nenhuma hipótese? — Ele ri. — Parece impossível, estatisticamente, que ela seja a única desse tipo que foi produzida pelo nosso mundo. Você sabia disso, mas não quis acreditar. E eu vim aqui para lhe dizer que é verdade. — Ele curva a cabeça ligeiramente em minha direção. Dá um sorriso largo e vibrante. — Existem muitos deles. E eles a recrutaram.
— Não. — Solto o ar.
— Eles se infiltraram em suas tropas. Vivem no seu meio em segredo. E agora roubaram seu brinquedinho e fugiram com ele. Só Deus sabe como esperam manipulá-la em seu próprio benefício.
— Como pode ter tanta certeza? — indago. — Como sabe que eles conseguiram levá-la com eles? Kent estava meio morto quando o deixei...
— Preste atenção, filho. Estou lhe afirmando que eles não são normais. Eles não seguem suas regras; não há nenhuma lógica que os oriente. Você não tem ideia das esquisitices de que são capazes. — Uma pausa. — Além do mais, tenho conhecimento já há algum tempo, de um grupo deles que vive disfarçado nessa área. Mas durante todo esse tempo eles sempre se mantiveram afastados. Eles não interferem em meus métodos, e achei melhor deixá-los morrer sozinhos sem causar um pânico desnecessário na nossa população civil. Você entende, é claro — ele diz. — Afinal de contas, é muito difícil conter pelo menos um deles. Eles são a coisa mais bizarra de se ver.
— Você sabia? — Estou de pé agora. Tentando ficar calmo. — Você sabia da existência deles, durante todo esse tempo, e assim mesmo não fez nada? Não disse nada?
— Não julguei necessário.
— E agora? — exijo.
— Agora parece pertinente.
— Inacreditável! — Levanto as mãos para o alto. — Que você escondesse de mim tal informação! Quando sabia dos meus planos para ela... quando sabia o sacrifício que foi trazê-la aqui...
— Acalme-se — ele pede. Ele estica as pernas; apoia o tornozelo de uma perna no joelho da outra. — Vamos encontrá-los. Esse terreno abandonado que Delalieu mencionou — a área onde o carro deixou de ser rastreado? Esse é o nosso ponto de partida. Eles devem estar escondidos nos subterrâneos. Devemos encontrar a entrada e os destruir em silêncio, por dentro. Então os teremos punido, e evitamos que o resto se revolte e inspire a rebelião no nosso povo.
Ele se inclina para frente.
— Os civis escutam tudo. E, no momento, estão vibrando com um novo tipo de energia. Estão se sentindo motivados ao perceberem que um deles conseguiu escapar e que você saiu ferido no processo. Isso faz nossas defesas parecerem fracas e fáceis de serem penetradas. Precisamos destruir essa percepção reequilibrando a balança. O medo irá retornar tudo para seu devido lugar.
— Mas eles estão procurando — digo a ele. — Meus homens. Eles vasculham a área todos os dias e ainda não encontraram nada. Como pode ter certeza que iremos descobrir alguma coisa, afinal de contas?
— Porque — ele explica — você vai liderá-los. Todas as noites. Depois do toque de recolher, enquanto os civis dormem. Você não vai interromper as buscas durante o dia; não vai dar a eles motivo para terem o que falar. Aja em silêncio, meu filho. Não mostre suas jogadas. Vou permanecer na base e supervisionar suas responsabilidades com meus homens; vou dar ordens a Delalieu se for necessário. E nesse ínterim, você irá encontrá-los, para que eu possa destruí-los o mais rápido possível. Essa loucura já está durando tempo demais — ele diz — e eu não estou mais a fim de ser generoso.
Capítulo 18
Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito mesmo por favor me perdoe.
Foi um acidente.
Me perdoe
Por favor me perdoe
Há pouca coisa que eu permito que as pessoas descubram a meu respeito. Há ainda menos coisas que estou disposto a partilhar sobre mim mesmo. E entre as muitas coisas que nunca discuti com ninguém, é esta.
Gosto de tomar banhos demorados.
Sempre tive uma obsessão por limpeza desde que era pequeno. Sempre fui tão focado em morte e destruição que acho que compenso isso me mantendo o mais intacto possível. Tomo chuveiradas com frequência. Escovo e passo fio dental nos dentes pelo menos três vezes ao dia. Corto meu cabelo toda semana. Esfrego minhas mãos e unhas antes de me deitar e assim que acordo. Tenho uma preocupação doentia em usar apenas roupas que acabaram de ser lavadas. E todas as vezes que passo por alguma emoção mais forte, a única coisa que acalma meus nervos é um banho bem demorado.
Então é isso que vou fazer agora.
Os médicos me ensinaram como prender meu braço ferido no mesmo plástico que eles usaram antes, então posso mergulhar abaixo da superfície sem problemas. Afundo minha cabeça por um longo período, seguro a respiração e solto o ar pelo nariz. Sinto as borbulhas virem à tona.
A água morna me faz sentir leve. Ela carrega meu peso para mim, compreendendo que preciso de um momento para aliviar meus ombros desse peso. Para fechar meus olhos e relaxar.
Meu rosto rompe a superfície da água.
Não abro meus olhos; apenas meu nariz e minha boca respiram o oxigênio do outro lado. Faço respirações curtas e regulares para acalmar a mente. Já é tão tarde que nem sei mais que horas são; tudo que sei é que a temperatura caiu significativamente, e o ar frio está fazendo cócegas no meu nariz. É uma sensação estranha, ter 98 por cento do meu corpo boiando numa temperatura quente e agradável, enquanto meus lábios e meu nariz se contraem com o frio.
Mergulho meu rosto na água novamente.
Poderia viver aqui para sempre, eu acho. Viver onde a gravidade não sabe que eu existo. Aqui estou solto, sem restrições das amarras da vida. Sou um corpo diferente, uma concha diferente, e meu corpo é levado pelas mãos dos amigos. Tantas noites desejei poder cair no sono debaixo desse lençol.
Mergulho mais fundo.
Em uma semana, minha vida inteira mudou.
Minhas prioridades mudaram de foco. Minha concentração, destruída. Tudo com que me importo agora se resume a uma pessoa e, pela primeira vez na vida, não sou eu mesmo. Suas palavras estão marcadas na minha mente. Não consigo parar de imaginar como ela deve ter sido, não consigo deixar de imaginar o que ela deve ter vivenciado. Encontrar seu diário me deixou arrasado. Meus sentimentos por ela saíram do controle. Nunca estive tão desesperado para vê-la, para conversar com ela.
Quero que ela saiba que eu entendo agora. Que eu não entendia antes. Ela e eu somos iguais; em mais de uma maneira que eu possa ter imaginado.
Porém, agora, ela está fora do meu alcance. Ela foi para algum lugar com estranhos que não a conhecem e não se importam com ela do mesmo jeito que eu. Ela foi parar num ambiente estranho sem tempo para se adaptar e estou preocupado com ela. Uma pessoa na situação dela — com seu passado — não se recupera da noite para o dia. E agora, uma de duas coisas está prestes a acontecer: ou ela vai se fechar completamente, ou vai explodir.
Sento rápido demais, rompendo a barreira da água, ofegante.
Afasto o cabelo molhado do rosto. Me encosto na parede azulejada, deixando o ar frio me acalmar, clarear meus pensamentos.
Tenho que encontrá-la antes que ela se destrua.
Nunca antes quis cooperar com meu pai, nunca concordei com seus motivos ou seus métodos. Mas, nesse instante, estou disposto a fazer qualquer coisa para tê-la de volta.
E estou ansioso pela oportunidade de pular no pescoço de Kent.
O cretino traidor. O idiota que acha que conquistou uma garota bonita. Ele não tem ideia de quem ela seja. Não imagina no que ela pode se transformar.
E se ele pensa que é o par ideal para ela, está muito enganado, ele ainda é mais idiota do que eu imaginava.
Capítulo 19
— Onde está o café? — pergunto, meus olhos examinando a mesa.
Delalieu derruba o garfo. O talher de prata cai ruidosamente sobre os pratos de porcelana. Ele ergue os olhos, assustados.
— Senhor?
— Gostaria de experimentar — digo a ele, tentando passar manteiga na torrada com a mão esquerda. Olho em sua direção. — Você está sempre falando sobre o café, não é? Pensei em...
Delalieu dá um salto da mesa sem dizer uma palavra. Sai correndo pela porta.
Dou uma risada silenciosa para o meu prato.
Delalieu traz a bandeja do chá e café pessoalmente e a coloca perto da minha cadeira. Suas mãos tremem enquanto ele despeja o líquido escuro numa xícara de chá, a coloca sobre um pires, põe sobre a mesa e a empurra em minha direção.
Espero até ele se sentar para tomar um gole. É uma bebida estranha, terrivelmente amarga; nada como eu imaginava. Olho para ele surpreso por saber que um homem como Delalieu começa seu dia tomando um líquido de gosto tão forte e horrível. Descubro um novo respeito pelo homem.
— Não é tão ruim assim — digo a ele.
Seu rosto se abre num sorriso tão grande, tão sereno, que imagino se ele me entendeu mal. Ele está praticamente radiante quando responde:
— Tomo o meu com creme e açúcar. O gosto fica bem melhor do que...
— Açúcar. — Abaixo a xícara. Fechos os lábios e me controlo para não sorrir. — Você coloca açúcar nisso. Claro que sim. Isso faz mais sentido.
— Gostaria de um pouco, senhor?
Levanto minha mão. Sacudo a cabeça.
— Chame as tropas, tenente. Vamos suspender as missões durante o dia e, ao invés disso, faremos incursões noturnas depois do toque de recolher. Você vai permanecer na base — digo a ele — onde o supremo dará as ordens através de seus homens; cumpra as ordens que eles derem. Eu mesmo vou liderar o grupo. — Paro. Olho direto nos olhos dele. — Não se fala mais nada do que aconteceu. Não há nada para os civis verem ou falarem. Você entende?
— Sim, senhor — ele diz, esquecendo o café. — Vou dar as ordens imediatamente.
— Ótimo.
Ele se levanta.
Eu aceno com a cabeça.
Ele se retira.
Estou começando a sentir esperança pela primeira vez desde que ela foi embora. Vamos encontrá-la. Agora, com essa nova informação — com um exército inteiro contra um grupo de rebeldes despreparados — parece impossível não vencermos.
Respiro fundo. Tomo outro gole do café.
Estou surpreso ao perceber como gostei do seu gosto amargo.
Capítulo 20
Meu pai está à minha espera quando volto para meu quarto.
— As ordens foram dadas — digo a ele sem olhar em sua direção. — Vamos mobilizar as tropas hoje à noite. — Hesito. — Bem, se pode me desculpar, tenho outros assuntos para tratar.
— Qual a sensação? — ele indaga. — De estar tão incapacitado? — ele pergunta sorrindo. — Como você aguenta se ver no espelho, sabendo que foi atacado por um de seus próprios subordinados?
Faço uma pausa do lado de fora da porta que leva ao meu escritório.
— O que você quer?
— Qual — é seu interesse por essa garota? — ele indaga.
Minhas costas enrijecem.
— Ela é mais do que apenas uma experiência para você, não é?
Giro o corpo lentamente. Ele está parado no meio do meu quarto, com as mãos nos bolsos, e com um sorriso aparentando nojo.
— Do que você está falando?
— Dê uma olhada em si mesmo — ele diz. — Eu ainda nem disse o nome dela e parece que você vai desabar. — Ele sacode a cabeça, ainda me examinando de perto. — Seu rosto está pálido, sua mão que funciona está crispada. Está com a respiração ofegante e seu corpo está tenso. — Uma pausa. — Você se traiu, filho. Você se acha muito esperto — ele diz —, mas se esquece de quem lhe ensinou todos os truques.
Fico quente e gelado ao mesmo tempo. Tento relaxar as mãos, mas não consigo. Quero dizer a ele que não há nada errado, mas repentinamente estou me sentindo meio zonzo, desejando ter comido um pouco mais no café da manhã, e ao mesmo tempo desejando não ter comido nada.
— Tenho trabalho a fazer — consigo dizer.
— Me diga — ele pergunta — que você não se importa se ela morrer junto com os outros.
— O quê? — As palavras trêmulas e nervosas escapam rápido demais dos meus lábios.
Meu pai abaixa o olhar. Ele cerra e descerra os punhos.
— Você já me desapontou de tantas maneiras — ele diz com a voz aparentemente suave. — Por favor, não faça isso novamente.
Por um momento sinto como se estivesse fora do meu corpo, me olhando pela perspectiva dele. Vejo meu rosto, meu braço ferido, essas pernas que de repente parecem incapazes de carregar meu peso. Fendas começam a se criar ao longo do meu rosto, pelos meus braços, meu tronco e minhas pernas.
Imagino que seja assim que alguém desmorona.
Não percebo que ele disse meu nome, até ele repeti-lo uma segunda vez.
— O que você quer de mim? — pergunto, surpreso, ao perceber como pareço calmo. — Você entrou no meu quarto sem permissão; fica parado aí e me acusa de coisas que ainda nem consegui entender. Estou seguindo suas regras, suas ordens. Vamos partir hoje à noite; vamos encontrar o esconderijo deles. Você pode destruí-los do jeito que achar melhor.
— E sua garota? — ele diz inclinando a cabeça em minha direção. — Sua Juliette?
Me contraio ao ouvir o nome dela. Meu pulso bate tão forte que parece um sussurro.
— Se eu desse três tiros na cabeça dela, como se sentiria? — Ele me encara. Me observa. — Desapontado, porque você perdeu seu brinquedinho de estimação? Ou arrasado porque perdeu a garota que ama?
O tempo nesse momento parece estar mais lento, se derretendo à minha volta.
— Seria um desperdício — digo, ignorando o tremor que sinto por dentro, e que ameaça transbordar — perder algo no qual investi tanto tempo.
Ele sorri.
— É bom saber que você vê as coisas dessa forma — ele diz. — Mas projetos são facilmente substituíveis. E tenho certeza que poderemos encontrar um uso melhor e mais prático para seu tempo.
Pisco os olhos devagar. Parte do meu peito está destroçado.
— Claro. — Me ouço dizer.
— Sabia que entenderia. — Ele dá um tapinha no meu ombro machucado ao sair do quarto. Meus joelhos quase se dobram. — Valeu o esforço, filho. Mas ela nos custou muito tempo e dinheiro e se provou completamente inútil. Desse modo estaremos nos livrando de várias inconveniências ao mesmo tempo. Vamos considerar isso um efeito colateral. — Ele me dá um último sorriso antes de passar por mim e sair pela porta.
Caio de encontro à parede.
E me amontoo no chão.
Capítulo 21
É só engolir as lágrimas com bastante frequência que elas vão começar a parecer ácido escorrendo pela sua garganta. É aquele momento terrível quando você está sentada quieta tão quieta porque você não quer que a vejam chorar você não quer chorar, mas seus lábios não param de tremer e seus olhos estão cheios até a borda com súplica e eu imploro e por favor e me desculpe e tenha piedade e talvez dessa vez será diferente mas é sempre igual. Não tem onde se esconder. Ninguém ao seu lado.
Acenda uma vela para mim, eu costumava murmurar para o nada.
Alguém
Qualquer um
Se você está aí fora
Por favor me diga que pode sentir esse fogo.
É o dia cinco das nossas patrulhas, e nada ainda.
Lidero o grupo todas as noites, marchando em silêncio nessas paisagens frias de inverno. Procuramos por passagens escondidas, bueiros camuflados — qualquer indicação de que possa existir outro mundo sob nossos pés.
E toda noite retornamos para a base sem nada.
A futilidade desses últimos dias me atinge, amortecendo meus sentidos, me deixando numa espécie de torpor do qual não consigo me livrar. Todo dia acordo procurando uma solução para os problemas que eu mesmo provoquei, mas não tenho ideia de como consertar isso.
Se ela está lá fora, iremos encontrá-la. E ele a matará.
Só para me ensinar uma lição.
Minha única esperança é encontrá-la primeiro. Talvez possa escondê-la. Ou dizer a ela para fugir. Ou fingir que ela já está morta. Ou talvez convencê-lo que ela é diferente, melhor que os outros; que vale a pena deixá-la viver.
Pareço um idiota patético e desesperado.
Sou uma criança novamente, me escondendo nos cantos escuros e rezando para ele não me encontrar. Esperando que ele esteja de bom humor hoje. Que talvez tudo dê certo. Que talvez minha mãe não vá estar gritando dessa vez.
Incrível como eu rapidamente me reverto para outra versão de mim mesmo na presença dele.
Fico entorpecido.
Tenho realizado minhas tarefas mecanicamente; isso exige apenas um esforço mínimo. Andar é simples. Comer é algo ao qual me acostumei.
Não consigo parar de ler seu diário.
Meu coração sofre, de certo modo, mas não consigo deixar de virar as páginas. Sinto como se estivesse batendo num muro invisível, como se meu rosto estivesse envolto em plástico e eu não pudesse respirar, não pudesse ver, nem ouvir qualquer som a não ser as batidas do meu próprio coração pulsando nos meus ouvidos.
Quis poucas coisas nessa vida.
Não pedi nada a ninguém.
E, agora, tudo que estou pedindo é outra chance. Uma oportunidade de vê-la novamente. Mas a menos que descubra um jeito de impedi-lo, essas palavras são as únicas coisas que restarão dela.
Esses parágrafos e essas sentenças. Essas cartas.
Fiquei obcecado. Carrego esse caderninho comigo para todos os lugares por onde vou, passo todo meu tempo livre tentando decifrar as palavras que ela rabiscou nas margens, criando histórias para acompanhar os números que ela escreveu.
Também notei que a última página está faltando. Arrancada.
Não consigo imaginar por que. Procurei uma centena de vezes no livro todo, procurando nas outras seções onde essa página poderia estar, mas não achei nada. E de certa forma me sinto enganado, sabendo que tem um trecho que não vi. Não é nem mesmo o meu diário; não tenho nada a ver com isso, mas li as palavras dela tantas vezes que sinto que agora elas são minhas. Posso praticamente recitá-las de cor.
É estranho saber o que se passa na cabeça dela e não poder vê-la. Sinto que ela está aqui, bem na minha frente. Sinto que a conheço tão intimamente, tão secretamente. Fico seguro na companhia dos seus pensamentos; de certo modo me sinto acolhido. Compreendido. Tanto que às vezes eu esqueço que foi ela quem colocou esse buraco de bala no meu braço.
Quase esqueço que ela ainda me odeia, apesar de eu ter me apaixonado tão intensamente por ela.
E me apaixonei.
Perdidamente.
Fui até o fundo do poço. Até o fim. Nunca me senti assim na minha vida. Nada parecido. Senti vergonha e covardia, fraqueza e força. Conheci o terror e a indiferença, ódio de mim mesmo e repugnância geral. Vi coisas que não podem ser vistas.
E ainda assim nunca havia experimentado esse sentimento terrível, horrível e paralisante. Me sinto aleijado. Desesperado e fora de controle. E está ficando pior. Todos os dias me sinto doente. Vazio e ferido por dentro.
O amor é um cretino perverso e sem coração.
Estou ficando louco.
Caio de costas na cama, completamente vestido. Casaco, botas, luvas. Estou cansado demais para tirar a roupa. Essas rondas noturnas têm me deixado pouco tempo para dormir. Parece que estou em constante estado de exaustão.
Minha cabeça cai no travesseiro e pisco uma vez. Duas.
Desmaio.
Capítulo 22
— Não. — Me ouço dizer. — Você não deveria estar aqui.
Ela está sentada na minha cama. Está apoiada nos próprios cotovelos, com as pernas esticadas à sua frente, cruzadas nos tornozelos. E apesar de uma parte de mim saber que devo estar sonhando, tem um outro lado, uma parte esmagadoramente dominante que se recusa a aceitar isso. Parte de mim quer acreditar que ela está aqui, perto de mim, usando esse vestidinho preto justo que fica exibindo suas pernas. Mas tudo nela está diferente, estranhamente vibrante; as cores estão erradas. Seus lábios estão com um tom profundo de rosa, bem intenso; seus olhos estão maiores, mais escuros. Ela está usando sapatos que eu nunca a tinha visto usar. E o mais estranho de tudo: ela está sorrindo para mim.
— Oi — ela murmura.
É só uma palavra, mas meu coração dispara. Estou me afastando dela, quase batendo a cabeça na cabeceira da cama, quando percebo que meu braço não está mais ferido. Olho para baixo, para mim mesmo. Meus dois braços estão funcionando. Estou vestindo apenas uma camiseta e uma cueca.
Ela muda de posição num instante, ficando de joelhos antes de vir rastejando para cima de mim. Ela sobe no meu colo. Agora está montada sobre mim. De repente minha respiração se acelera.
Seus lábios encostam nos meus ouvidos. Suas palavras são meigas.
— Me beije — ela diz.
— Juliette...
— Vim até aqui. — Ela ainda está sorrindo para mim. É um sorriso raro, do tipo que ela nunca antes havia me presenteado. Mas por estranho que pareça, agora ela é minha. Ela é minha e é perfeita e me quer, e não vou lutar contra isso.
Não quero lutar.
Suas mãos estão puxando minha camiseta, tirando-a pela cabeça. Jogando-a no chão. Ela se inclina e beija meu pescoço, só uma vez, bem devagarzinho. Meus olhos se fecham.
Não há palavras no mundo para descrever o que estou sentindo.
Sinto suas mãos percorrerem meu peito, meu estômago; seus dedos deslizarem pela beirada da minha cueca. Seu cabelo despenca para frente, roçando minha pele, e tenho que fechar os punhos para evitar prendê-la na minha cama.
Cada terminação nervosa do meu corpo está pulsando. Nunca me senti tão vivo nem tão desesperado em toda a minha vida, e tenho certeza de que se ela pudesse saber o que estou pensando nesse momento, ela sairia por aquela porta e nunca mais voltaria.
Porque eu a quero.
Agora.
Aqui.
Em todo lugar.
Não quero nada entre nós.
Quero tirar suas roupas, acender as luzes e quero estudá-la de perto. Quero abrir o zíper do seu vestido e me demorar em cada centímetro do seu corpo. Não consigo deixar de querer olhar para ela; de conhecê-la e a seus traços: o declive do seu nariz, a curva dos seus lábios, a linha do seu rosto. Quero percorrer com meus dedos a pele macia do seu pescoço e deslizar até embaixo. Quero sentir o peso do corpo dela sobre o meu, me envolvendo.
Não consigo pensar numa razão para isso não ser certo nem real. Não consigo me concentrar em nada mais, a não ser nela sentada no meu colo, tocando meu peito, e me olhando nos olhos como se realmente me amasse.
Chego a imaginar que morri.
Mas bem quando eu me aproximo, ela se afasta, sorrindo antes de eu alcançá-la, nunca afastando seus olhos.
— Não se preocupe — ela sussurra. — Está quase acabado agora.
Suas palavras parecem tão estranhas, e ao mesmo tempo tão familiares.
— O que quer dizer com isso?
— Só um pouco mais e eu vou embora.
— Não. — Estou piscando rápido, tentando segurá-la. — Não, não vá. Onde você está indo...
— Você vai ficar bem — ela diz. — Prometo.
— Não...
Mas agora ela está segurando uma arma.
E a apontando para o meu coração.
Capítulo 23
Essas letras são tudo que me sobrou.
26 amigos para quem contar minha história.
26 letras são tudo que eu preciso para criar oceanos e ecossistemas. Posso combiná-las para formar planetas e sistemas solares. Posso usar letras para construir arranha-céus e metrópoles cheias de gente, lugares, coisas e ideias que são mais reais que essas quatro paredes.
Não preciso de nada além de palavras para viver. Sem elas eu não existiria.
Porque essas palavras que escrevo são a única prova de que ainda estou viva.
Está extraordinariamente frio esta manhã.
Sugiro que a gente faça um passeio descompromissado pelos complexos bem cedo só para ver se algum cidadão parece suspeito ou deslocado. Estou começando a imaginar se Kent e Kishimoto, e todos os outros, estão vivendo em segredo entre as pessoas. Eles devem, afinal de contas, receber alguma ajuda para encontrar comida e água — algo que os prenda à sociedade; duvido que possam plantar alguma coisa debaixo da terra. Mas é claro, são só suposições. Eles podem ter alguém que consegue plantar algo no ar.
Rapidamente dou instruções para meus homens; os oriento para se dispersarem e continuarem sem chamar a atenção. O trabalho deles é observar todo mundo hoje, e relatar o que descobriram para mim.
Assim que se foram, fico sozinho para olhar em volta e pensar. É um lugar perigoso para se esconder.
Meu Deus, ela parecia tão real nos meus sonhos.
Fecho os olhos, cobrindo o rosto com as mãos; meus dedos tocam meus lábios de leve. Posso sentir o toque dela. Na verdade, posso senti-la. Só de pensar nisso, meu coração acelera. Não sei o que vou fazer se continuar a ter sonhos tão intensos com ela. Não vou ser capaz de trabalhar direito.
Respiro fundo, controlando a respiração e me concentrando. Deixo meus olhos perambularem naturalmente, não posso evitar me distrair com as crianças correndo em volta. Parecem tão animadas e despreocupadas. Sei que parece estranho, mas fico triste ao ver que eles conseguiram encontrar felicidade nessa vida. Elas não têm nem ideia do que perderam; nem imaginam como o mundo costumava ser.
Alguma coisa se aproxima e bate nas minhas pernas.
Ouço um arquejo estranho e cansado; me viro.
É um cachorro.
Um cachorro cansado e faminto, tão magro e frágil que parece que pode ser levado pelo vento. Mas ele está me olhando. Sem medo. Com a boca aberta. A língua balançando.
Tenho vontade de dar risada.
Olho em volta rapidamente antes de pegar o cachorro nos braços. Não preciso dar ao meu pai outro motivo para me castrar, e não confio que meus soldados não irão contar uma coisa assim.
Que eu estava brincando com um cachorro.
Posso até escutar as coisas que meu pai iria me dizer.
Carrego a criatura chorosa até uma das casas que haviam sido desocupadas recentemente — vi apenas três famílias saindo para o trabalho — e me abaixo por trás de uma das cercas. O cachorro parece ser bem esperto para saber que agora não é hora de latir.
Tiro minhas luvas e ponho a mão no bolso para pegar um pãozinho doce que havia trazido como café da manhã; não tive tempo de comer nada antes de sairmos hoje cedo. E embora eu não faça ideia do que um cachorro coma, exatamente, eu lhe dou o pãozinho.
O cachorro praticamente o agarra da minha mão.
Ele engole o pãozinho em duas bocadas e começa a lamber os meus dedos, pulando no meu peito, todo empolgado, aproveitando o calor do meu casaco aberto. Não consigo segurar a risada que escapa dos meus lábios; nem quero. Há muito tempo não me sinto assim. E não posso evitar ficar espantado com o poder que animaizinhos tão pequenos exercem sobre nós; eles rompem nossas resistências com a maior facilidade.
Passo minhas mãos pelo seu pelo surrado, sentindo as pontas das costelas aparecendo em ângulos desconfortáveis. Mas o cachorro não parece se importar com seu estado de inanição, pelo menos não agora. Seu rabo está balançando furiosamente, e ele fica pulando no meu peito para me olhar. Começo a pensar que deveria ter enfiado mais alguns pãezinhos doces no meu bolso antes de sair.
Algo estala.
Ouço um suspiro.
Olho em volta.
Dou um pulo, alerta, procurando o barulho. Parecia bem perto. Alguém me viu. Alguém... Um civil. Ela já está escapando, seu corpo apertado de encontro a uma das paredes da casa.
— Ei! — grito. — Você aí...
Ela para. Olha para cima.
Eu quase desmaio.
Juliette.
Ela está me olhando. Ela realmente está aqui, olhando para mim, com os olhos arregalados e assustados. Minhas pernas parecem ser feitas de chumbo. Estou preso no chão, incapaz de dizer uma palavra sequer. Nem sei por onde começar. São tantas coisas que gostaria de dizer a ela, tantas coisas que eu nunca disse, e eu estou simplesmente tão feliz ao vê-la.
— Deus, estou tão aliviado...
Ela desapareceu.
Olho em volta, em pânico, imaginando se estou começando a perder meu senso de realidade. Meus olhos se voltam para o cachorrinho que ainda está parado ali, esperando por mim, e eu olho para ele estupefato, imaginando o que havia acontecido. Fico olhando para o lugar onde a vi, mas não vejo nada.
Nada.
Passo a mão pelos cabelos, tão confuso, tão horrorizado e irritado comigo mesmo, que fico tentado a arrancar minha cabeça.
O que está acontecendo comigo?
Capítulo 12
Um dos homens do meu pai está me esperando do lado de fora da minha porta.
Olho de relance em sua direção, mas não o suficiente para reconhecer suas feições.
— Diga qual o assunto, soldado.
— Senhor — ele diz —, recebi ordens para lhe informar que o comandante supremo solicita sua presença em seus alojamentos para o jantar às vinte horas.
— Considere sua mensagem recebida. — Dou um passo para abrir minha porta.
Ele dá um passo à frente, bloqueando minha passagem.
Viro o corpo para olhar para ele.
Ele está parado a alguns passos de distância de mim: um ato implícito de desrespeito; um nível de intimidade que nem mesmo Delalieu se permite. No entanto, ao contrário dos meus homens, os bajuladores que cercam meu pai se consideram especiais. Ser um membro da guarda de elite do comandante supremo é considerado um privilégio e uma honra. Eles se reportam diretamente a ele.
E nesse exato momento, esse soldado está tentando provar que é superior a mim.
Ele tem inveja de mim. Pensa que sou indigno de ser o filho do comandante supremo do Restabelecimento. Isso está praticamente escrito no rosto dele.
Tenho que segurar meu impulso de cair no riso quando encaro seus frios olhos cinza e o buraco negro que é sua alma. Ele tem as mangas enroladas na altura do cotovelo, suas tatuagens militares claramente definidas e à mostra. Os círculos concêntricos de tinta preta em volta dos seus braços são acentuados em vermelho, verde e azul, o único sinal para indicar que ele é um soldado de patente elevada. É um ritual doentio do qual sempre fiz questão de me recusar a participar.
O soldado ainda está me encarando.
Inclino minha cabeça em sua direção, ergo minhas sobrancelhas.
— Recebi ordens — ele declara — de esperar uma resposta oral aceitando esse convite.
Demoro um pouco, pensando nas minhas escolhas, mas não havia nenhuma.
Eu, como todos os fantoches desse mundo, sou completamente subserviente aos desejos do meu pai. É verdade que sou forçado a lutar todos os dias: que nunca serei capaz de enfrentar o homem que tem seus punhos cerrados em volta da minha espinha vertebral.
Isso me faz odiar a mim mesmo.
Encaro os olhos do soldado e imagino, por um breve momento, qual o nome dele, antes de perceber que não me importo com isso.
— Considere-o aceito.
— Sim, s...
— E da próxima vez, soldado, não se aproxime a menos de um metro e meio de distância de mim, sem pedir permissão.
Ele pisca os olhos, confuso.
— Senhor, eu...
— Você está confuso — o interrompo. — Acredita que trabalhar com o comandante supremo lhe dá imunidade das regras que governam a vida dos outros soldados. Veja, você está errado.
Seu rosto se enrijece.
— Nunca se esqueça — digo baixinho agora — que se eu quisesse o seu emprego, eu o teria. E não se esqueça de que o homem que você serve tão ansiosamente é o mesmo homem que me ensinou a atirar com uma arma de fogo quando eu tinha apenas nove anos de idade.
Suas narinas se dilatam. Ele olha direto para frente.
— Entregue sua mensagem, soldado. E então relembre isso e nunca mais fale comigo novamente.
Os olhos dele agora estão presos num ponto diretamente atrás de mim, seus ombros rígidos.
Espero.
Seu maxilar ainda está rígido. Lentamente ele levanta sua mão em saudação.
— Está dispensado — digo.
Tranco a porta do meu quarto e me encosto nela. Preciso de apenas um momento. Pego o vidrinho que está na mesinha de cabeceira e tiro duas pílulas quadradas; as jogo na boca, fechando meus olhos enquanto se dissolvem.
A escuridão atrás das minhas pálpebras é um alívio reconfortante.
Até que a lembrança do rosto dela se impõe à minha percepção.
Me sento na cama e deixo a cabeça cair na minha mão. Não deveria estar pensando nela agora. Tenho horas de papelada para separar e o estresse da presença do meu pai para aguentar. Jantar com ele vai ser um espetáculo. Um espetáculo de arrasar a alma.
Fecho meus olhos com força e faço um pequeno esforço para construir as paredes que com certeza limpariam minha mente. Mas dessa vez elas não funcionam. O rosto dela insiste em surgir subitamente, seu diário me provocando lá no fundo do meu bolso.
E começo a perceber que tem uma pequena parte de mim que não deseja afastar os pensamentos dela. Uma parte de mim gosta da tortura.
Essa garota está me destruindo.
Uma garota que passou o último ano internada num sanatório de loucos. Uma garota que tentou me matar porque eu a beijei. Uma garota que fugiu com outro homem só para se afastar de mim.
É claro que essa é a garota por quem eu iria me apaixonar.
Coloco a mão na boca.
Estou perdendo a cabeça.
Tiro minhas botas. Me enfio na cama e deixo a cabeça cair nos travesseiros.
Ela dormiu aqui, penso. Ela dormiu na minha cama. Ela acordou na minha cama. Ela estava aqui e deixei que ela escapasse.
Falhei.
Perdi.
Nem percebo que tirei o diário dela do bolso e o estou segurando em frente do rosto. Olhando para ele. Estudando sua capa desbotada numa tentativa de entender onde ela pode ter adquirido isso. Ela deve ter roubado de algum lugar, embora não consiga imaginar onde.
Há tantas coisas que eu gostaria de perguntar a ela. Tantas coisas que gostaria de lhe dizer.
Ao invés disso, abro seu diário e leio.
Às vezes fecho meus olhos e pinto essas paredescom cores diferentes.
Imagino que estou usando meias quentinhas e estou sentada perto do fogo. Imagino que alguém me deu um livro para ler, uma história para me levar para longe da tortura da minha própria mente. Quero ser alguém em algum outro lugar com alguma outra coisa a ocupar minha cabeça. Quero correr, quero sentir o vento batendo nos cabelos. Quero fingir que isso é simplesmente uma história dentro de outra história. Que essa cela é apenas um cenário, que essas mãos não me pertencem, que essa janela dá para um lugar lindo, se pelo menos eu conseguisse abri-la. Finjo que essa fronha é limpa, finjo que a cama é macia. Finjo e finjo e finjo até que o mundo fica maravilhoso por trás dos meus olhos e já não consigo mais contê-lo. Mas então meus olhos se abrem e sou agarrada pela garganta por um par de mãos que não param de me sufocar sufocar sufocar...
Meus pensamentos, acho, logo serão ouvidos.
Minha mente, espero, logo será descoberta.
O diário cai da minha mão e bate no meu peito. Passo a mão pelo rosto, pelo meu cabelo. Massageio o pescoço e me puxo com força para cima a ponto de bater a cabeça na cabeceira da cama, e na verdade fico grato a isso. Me demoro um pouco sentindo a dor.
E viro a página.
Imagino o que eles estão pensando. Meus pais. Imagino onde estão. Penso se eles estão bem agora, se estão felizes agora,se eles finalmente conseguiram o que queriam.Imagino se minha mãe vai querer ter outro filho. Imagino se alguém vai ter a bondade de me matar, e imagino se o inferno não é melhor do que aqui. Imagino como está meu rosto agora. Imagino se algum dia vou poder respirar o ar fresco novamente.
Imagino tantas outras coisas.
Às vezes fico acordada durante dias simplesmente contando tudo que encontro. Conto as paredes, as rachaduras na parede, meus dedos dos pés e das mãos. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, quantos passos para ir para frente e para trás no meu quarto. Conto meus dentes e cada fio de cabelo na minha cabeça e o número de segundos em que consigo prender minha respiração.
Mas às vezes fico tão cansada que esqueço que não tenho mais permissão para desejar mais nada, e me descubro desejando a única coisa que sempre quis. A única coisa com a qual sempre sonhei.
Sempre desejei ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso de volta. Ter alguém em quem confiar que não iria jogar as coisas em mim, nem colocar minhas mãos no fogo ou me bater por ter nascido. Alguém que iria saber que fui colocada para fora de casa e tentaria me achar, que nunca teria medo de mim.
Alguém que soubesse que eu nunca o machucaria.
Me vejo num canto desse quarto e enfio a cabeça nos meus joelhos e me balanço para frente e para trás para frente e para trás para frente e para trás e desejo e desejo e desejo coisas impossíveis até cair no sono de tanto chorar.
Imagino como seria ter um amigo.
E então imagino quem mais está preso neste hospício. Imagino de onde estão vindo os outros gritos.
Imagino se estão vindo de mim.
Tento me concentrar, dizendo a mim mesmo que são palavras vazias, mas estou mentindo. Porque, de algum modo, simplesmente ler essas palavras é demais; e pensar nela sofrendo está me deixando agoniado.
Saber que ela vivenciou isso.
Ela foi colocada nesse inferno pelos próprios pais, abandonada e maltratada a vida inteira. Empatia é uma emoção que eu não conhecia, mas agora toma conta de mim, me levando para um mundo que eu não sabia que podia penetrar. E embora sempre tenha acreditado que ela e eu tivéssemos muita coisa em comum, não sabia que podia sentir isso com tanta profundidade.
Isso está me matando.
Fico em pé. Começo a andar pelo quarto até acalmar meus nervos para continuar a leitura. Então respiro fundo.
E viro a página.
Tem alguma coisa fervilhando dentro de mim.
Algo que nunca ousei descobrir, algo que tenho medo de saber. Tem uma parte de mim lutando para se libertar da jaula onde estou presa, batendo nas portas do meu coração, suplicando para ser libertada.
Suplicando para ir embora.
Todos os dias sinto que revivo o mesmo pesadelo. Abro a boca para gritar, para lutar, para girar meus punhos, mas minhas cordas vocais estão cortadas, meus braços estão pesados e densos como se estivessem presos no cimento molhado e eu estou gritando mas ninguém me ouve, ninguém se aproxima e estou enjaulada. E isso está acabando comigo.
Sempre tive de bancar a submissa, subserviente, um pano de chão suplicante e passivo que fazia todo mundo se sentir seguro e confortável. Minha existência se tornou uma luta para provar que eu era inofensiva, não uma ameaça, que eu era capaz de viver entre outros seres humanos sem feri-los.
E estou tão cansada tão cansada tão cansada e às vezes chego a ficar com raiva.
Não sei o que está acontecendo comigo.
— Meu Deus, Juliette. — Suspiro.
E caio de joelhos.
— Chame o transporte imediatamente. — Preciso sair. Preciso sair daqui agora.
— Senhor? Isso é, sim, senhor, é claro... mas onde...
— Tenho que visitar os complexos — digo. — Tenho que fazer minhas rondas antes do meu compromisso dessa noite. — Isso é tanto verdade quanto mentira. Porém agora estou disposto a fazer qualquer coisa que me afaste desse diário.
— Ah, certamente, senhor. Gostaria que o acompanhasse?
— Isso não será necessário, tenente, mas obrigado pela oferta.
— Eu... se-senhor — ele gagueja. — É claro, é u-uma honra servi-lo, senhor, ajudá-lo...
Deus do céu, onde estou com a cabeça. Eu nunca digo obrigado a Delalieu. É muito provável que o pobre homem vá ter um infarto agora.
— Estarei pronto para sair em dez minutos — interrompo.
Ele começa a gaguejar, mas para. Então diz:
— Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Estou pressionando a boca com o punho quando a ligação é desconectada.
Capítulo 13
Tínhamos lares. Antes.
De todos os tipos diferentes.
Casas térreas. Sobrados. Casas de três andares.
Comprávamos enfeites para o jardim e luzinhas pisca-pisca, aprendíamos a andar de bicicleta sem rodinhas. Adquirimos vidas confinadas em 1,2 e 3 andares já construídos, andares contidos em estruturas que não podíamos mudar.
Vivemos nesses andares por algum tempo.
Seguimos a história que nos era contada, o texto preso em cada metro do espaço que havíamos conquistado. Ficamos contentes com a mudança no enredo que redirecionou nossa vida. Assinamos nas linhas pontilhadas por coisas pelas quais não nos importávamos realmente. Comíamos coisas que não deveríamos, gastávamos dinheiro quando não podíamos, esquecíamos a Terra que tínhamos de habitar e desperdiçávamos desperdiçávamos desperdiçávamos tudo. Comida. Água. Recursos.
Logo, os céus ficaram cinza com a poluição química, e as plantas e os animais ficaram doentes devido à modificação genética. E doenças se impregnaram no nosso ar, nas nossas refeições, nossos sangues e nossas casas. A comida desapareceu. As pessoas estavam morrendo. Nosso império estava caindo aos pedaços.
O Restabelecimento disse que nos ajudariam. Nos salvariam. Reconstruiriam nossa sociedade.
Ao invés disso, eles nos destroçaram.
Gosto de visitar os complexos.
É um lugar estranho para se buscar refúgio, mas sinto alguma coisa ao ver tantos civis num espaço tão vasto e aberto que me faz lembrar da minha missão. Fico tanto tempo preso nos limites dos muros do quartel-general do Setor 45, que frequentemente me esqueço dos rostos daqueles por quem lutamos e daqueles com quem estamos lutando.
Gosto de me lembrar.
Geralmente, visito cada aglomerado dos complexos; cumprimento os moradores e pergunto sobre suas condições de vida. Não consigo deixar de ficar curioso em saber como é a vida deles agora. Porque enquanto o mundo se transformou inteiramente para eles, meu mundo continuou o mesmo. Disciplinado. Isolado. Desolador.
Houve um tempo quando as coisas foram melhores, quando meu pai não era tão irritado. Eu tinha cerca de 4 anos. Ele costumava me fazer sentar em seu colo e brincar com seus bolsos. Eu podia pegar o que quisesse, desde que meu argumento fosse bem convincente. Era seu jeito de brincar.
Mas tudo isso foi antes.
Aperto meu casaco no corpo, sentindo o tecido se encostar nas minhas costas. Vacilo sem querer.
A vida que tenho agora é a única que importa. O sufoco, o luxo, as noites mal dormidas, e os corpos dos mortos. Sempre me ensinaram a me concentrar no poder e na dor, em ganhar e infligir.
Não lamento nada.
Aceito tudo.
É o único modo que encontrei de continuar vivendo nesse corpo maltratado. Esvazio minha mente das coisas que me infestam e sobrecarregam minha alma, e aceito o que puder dos pequenos prazeres que aparecem à minha frente. Não sei o que é ter uma vida normal; não sei como simpatizar com os cidadãos que perderam suas casas. Não faço ideia de como era a vida deles antes de o Restabelecimento tomar o poder.
Por isso gosto de passear pelos complexos.
Gosto de ver como as outras pessoas vivem; gosto de ter o poder de fazer com que respondam às minhas perguntas. Do contrário não teria como saber.
Mas o momento é errado.
Não prestei muita atenção ao relógio quando saí da base, e não percebi que o sol estava se pondo. A maioria dos civis está voltando para casa para descansar à noite, seus corpos curvados, encolhidos pelo frio enquanto se encaminhavam em direção aos aglomerados de metal que dividem com pelo menos outras três famílias.
As casas improvisadas são construídas com containers de navios de doze metros quadrados; eles são empilhados lado a lado e um em cima do outro, agrupados em grupos de cinco ou seis. Cada container foi isolado; equipado com duas janelas e uma porta. Escadas para o andar superior foram colocadas de cada lado de fora da estrutura. Os tetos são alinhados com painéis solares que fornecem eletricidade gratuita para cada grupo.
É algo do qual muito me orgulho.
Porque foi minha ideia.
Quando estávamos procurando por abrigos temporários para os civis, sugeri reformar os velhos containers de carga que ocupavam as docas de todos os portos do mundo. Não apenas eram baratos, facilmente reaproveitados, e altamente adaptáveis, mas podiam ser empilhados, eram portáteis e construídos independentemente do clima do lugar. Eles exigiam o mínimo de construção e, com a equipe certa, milhares de unidades habitacionais poderiam estar prontas em alguns dias.
Dei essa ideia para meu pai, pensando que essa seria a opção mais eficiente; uma solução temporária que seria menos desumana do que barracas; algo que ofereceria um abrigo real e confiável. Mas o resultado foi tão eficiente que o Restabelecimento não viu necessidade de renovação. Aqui, num terreno que costumava ser um lixão, assentamos milhares de containers; aglomerados de cubos retangulares e desbotados que são fáceis de monitorar e vigiar.
As pessoas ainda acreditam que essa é uma solução temporária. Que um dia voltarão para as lembranças de suas antigas vidas e as coisas serão lindas e brilhantes novamente. Mas tudo isso é mentira.
O Restabelecimento não tem planos de mudá-los de onde estão.
Os civis devem permanecer nessas áreas regulamentadas; esses containers se tornaram suas prisões. Tudo foi numerado. As pessoas, suas casas, seu grau de importância para o Restabelecimento.
Aqui, eles se tornaram parte de um enorme experimento. Um mundo no qual trabalham para manter as necessidades de um regime que faz promessas que nunca serão cumpridas.
Essa é a minha vida.
Esse triste mundo.
Na maior parte do tempo, me sinto como um civil; e é provavelmente por isso que vim até aqui. É como se estivesse indo de uma prisão para outra; numa existência onde não há escape, não há refúgio. Quando até mesmo minha mente me trai.
Eu deveria ser mais forte do que isso.
Tenho treinado há mais de uma década. Tenho trabalhado todos os dias para aprimorar minhas forças física e mental. Tenho 1 metro e 79 de altura e 77 quilos de músculos. Fui preparado para sobreviver, para maximizar a resistência e a energia, e fico perfeitamente à vontade segurando uma arma. Posso desmontar, limpar, recarregar, desarmar e remontar mais de 150 tipos de armas de fogo. Posso atirar no centro de um alvo, de praticamente qualquer distância. Posso quebrar o pescoço de uma pessoa com a lateral da mão. Posso paralisar temporariamente um homem com apenas os nós dos meus dedos.
No campo de batalha, sou capaz de me desconectar dos movimentos que aprendi a memorizar. Criei a reputação de ser alguém frio, um monstro que não teme nada nem ninguém.
Mas tudo isso é ilusório.
Porque a verdade é que não passo de um covarde.
Capítulo 14
O sol está se pondo.
Logo vou ter que retornar à base, onde vou me sentar quieto e ouvir meu pai falar, em vez de mandar bala na sua boca aberta.
Então tento ganhar tempo.
Fico parado e ouço barulhos vindos de longe e observo as crianças correrem, enquanto seus pais as levam para casa. Penso se um dia eles vão crescer o bastante para sacar que os cartões do Registro do Restabelecimento na verdade estão rastreando todos seus movimentos. Que o dinheiro que seus pais recebem pelo trabalho em alguma das muitas fábricas existentes ali é monitorado de perto. Essas crianças crescerão e finalmente entenderão que tudo que elas fazem está gravado, cada conversa é dissecada para se descobrir murmúrios de rebeliões. Eles não sabem que estão sendo criados perfis para cada cidadão, e que cada arquivo é bem grosso com documentação das suas amizades, relacionamentos, e hábitos de trabalho; até mesmo como gostam de passar seu tempo livre.
Sabemos tudo sobre todo mundo.
Demais.
Tanto é verdade que raramente me lembro que estamos lidando com gente de verdade, seres vivos, até vê-los nos complexos. Sei de cor o nome de quase todos os cidadãos do Setor 45. Gosto de saber quem vive na minha jurisdição, não importa se são soldados ou civis.
Foi assim que tomei conhecimento, por exemplo, que o soldado Seamus Fletcher, 45B-76423, batia na esposa e nos filhos todas as noites.
Eu sabia que ele estava gastando todo seu dinheiro em bebidas; sabia que ele estava deixando sua família passar fome. Monitorei os dólares REST que ele gastava nas nossas centrais de abastecimento e observei atentamente a família dele no complexo. Sabia que seus três filhos tinham menos de 10 anos e não comiam há semanas; sabia que eles haviam estado inúmeras vezes no posto médico do complexo para tratar de ossos quebrados e levar pontos em machucados. Fiquei sabendo que ele deu um soco na boca de sua filha de 9 anos e cortou o lábio dela, fraturou o maxilar e quebrou dois de seus dentes da frente; e soube que sua esposa estava grávida. Também fiquei sabendo que certa noite ele bateu nela com tanta força que ela perdeu a criança na manhã seguinte.
Eu sei por que estava lá.
Eu estava parando em cada residência, visitando os civis, fazendo perguntas sobre sua saúde e como estavam suas vidas. Queria saber de suas condições de trabalho e se algum membro de suas famílias precisaria estar de quarentena.
Ela estava em casa naquele dia. A esposa de Fletcher. Seu nariz estava quebrado e seus olhos estavam tão inchados que ela nem conseguia abri-los direito. Seu corpo era tão magro e frágil, sua pele tão pálida, que achei que ela iria se quebrar em duas ao sentar-se. Quando lhe perguntei sobre os machucados, ela evitou meus olhos. Disse que tinha caído; que por causa da sua queda ela havia perdido a criança que carregava e conseguiu também quebrar o nariz no acidente.
Acenei com a cabeça. Agradeci por sua cooperação ao responder minhas perguntas.
E então convoquei uma reunião.
Estou ciente que a maioria dos meus soldados rouba dos armazéns dos nossos complexos. Analiso os relatórios cuidadosamente e sei que tem suprimentos desaparecendo o tempo todo. Mas permito essas pequenas infrações porque elas não perturbam o sistema. Alguns pães ou pedaços de sabão a mais deixam meus soldados mais animados; eles trabalham mais se estiverem saudáveis, e a maioria deles mantém esposa, filhos e parentes. Então essa é uma concessão que faço.
Mas algumas coisas não posso perdoar.
Não me considero um moralista. Não filosofo sobre a vida ou me importo com as leis e princípios que governam a vida das pessoas. Não pretendo saber a diferença entre o certo e o errado. Mas procuro viver sob certo código de vida. E às vezes, eu acho, tenho que aprender a atirar antes.
Seamus Fletcher estava matando sua família. E eu lhe dei um tiro na testa porque achei que assim seria menos doloroso do que destroçá-lo com minhas próprias mãos.
Mas meu pai completou o trabalho que Fletcher havia começado. Meu pai mandou matar os três filhos dele e sua mulher, tudo por causa de um bêbado cretino que deveria ter cuidado deles. Ele era o pai deles, o marido dela, e a razão de eles terem tido uma morte tão brutal e inesperada.
E alguns dias eu imagino por que insisto em continuar vivendo.
Capítulo 15
De volta à base, sigo direto em frente.
Ignoro os soldados e suas continências por onde passo, sem prestar atenção à mistura de curiosidade e desconfiança em seus olhos. Nem tinha percebido que havia tomado esse caminho ao chegar à base; mas meu corpo parece saber mais do que minha mente, do que precisa agora. Meus passos são pesados; regulares, o som das minhas botas ecoa ao longo do piso de pedras conforme chego aos andares de baixo.
Não venho aqui há quase duas semanas.
O quarto fora reformado desde a última vez em que estive aqui; o painel de vidro e a parede de concreto foram substituídos. E pelo que sei ela foi a última pessoa a usar esse quarto.
Eu mesma a havia trazido aqui.
Empurro as duas portas giratórias do vestiário que fica na sala adjacente ao deque de simulação. Minha mão procura no escuro pelo interruptor; as luzes piscam uma vez antes de se acenderem. Um zumbido monótono de eletricidade vibra nesses cômodos vastos. Tudo está quieto, abandonado.
Exatamente como eu gosto.
Tiro minhas roupas o mais rápido que consigo, devido aos ferimentos. Ainda tenho duas horas antes do esperado jantar com meu pai, então eu não deveria estar tão ansioso assim, mas meus nervos não estão ajudando. Tudo parece estar vindo para cima de mim de uma vez só. Meus fracassos. Minha covardia. Minha estupidez.
Às vezes fico tão cansado dessa vida.
Estou em pé, descalço no concreto, só usando a tipoia no meu braço, detestando como esse ferimento me deixa constantemente para baixo. Pego o shorts guardado no meu armário e o visto o mais rapidamente possível, me encostando à parede para me apoiar. Quando finalmente fico ereto, fecho a porta do armário e entro no cômodo ao lado.
Aperto mais um interruptor, e o sistema operacional principal começa a funcionar. Os computadores emitem um sinal sonoro e uns flashes se acendem enquanto o programa se prepara; passo os dedos pelo teclado.
Costumamos usar esses cômodos para simulações.
Manipulamos a tecnologia para criar lugares e experiências que existem apenas na mente humana.
Não apenas somos capazes de criar o cenário, mas também podemos controlar os mínimos detalhes. Sons, cheiros, falsa segurança, paranoia. O programa foi originalmente criado para ajudar soldados em missões específicas, e também para ajudá-los a superar medos que, do contrário, iria incapacitá-los no campo de batalha.
Eu o uso para meus próprios fins.
Costumava vir aqui todos os dias antes de ela chegar à base. Aqui era meu porto seguro; minha única fuga do mundo. Apenas gostaria que não precisasse de um uniforme. Esse short é engomado e desconfortável, o poliéster coça e irrita a pele. Mas é forrado com uma química especial que reage com a minha pele e alimenta o sensor com informações; me ajudam a me situar na experiência e me permitirá correr por quilômetros sem precisar correr de verdade, muros físicos no meu ambiente real. E para que o processo seja o mais eficiente possível, tenho que vestir quase nada. As câmeras são hipersensíveis ao calor do corpo, e funcionam melhor quando não entra em contato com materiais sintéticos.
Espero que esse detalhe fique anotado para a próxima geração do programa.
A central me solicita dados; rapidamente entro com o código de acesso que me garante permissão para levantar o histórico das últimas simulações. Olho para o alto por sobre meu ombro enquanto o computador processa os dados; olho de relance pelo recém-consertado espelho de duas faces que vê o cômodo principal. Ainda não acredito que ela quebrou uma parede inteira de vidro e concreto e continuou a caminhar sem um arranhão.
Inacreditável.
A máquina bipa duas vezes; me viro novamente. Os programas que solicitei estão carregados e prontos para serem executados.
O arquivo dela é o primeiro da lista.
Respiro fundo; tento afastar as lembranças. Não me arrependo de tê-la feito passar por uma experiência tão horrível. Não sei se ao final ela teria se permitido perder o controle — finalmente habitar seu próprio corpo — se eu não tivesse encontrado um modo eficiente de provocá-la. Ultimamente realmente acredito que isso a ajudou, exatamente como eu pretendia. Mas eu desejaria que ela não tivesse apontado uma arma na minha cara e saltado pela janela logo depois.
Suspiro devagar mais uma vez, acalmando minha respiração.
E seleciono a simulação que me motivou a vir até aqui.
Capítulo 16
Estou parado no cômodo principal.
Me encarando.
Essa é uma simulação bem simples. Não precisei trocar de roupa nem mexer no meu cabelo, nem alterar o piso carpetado. Não fiz nada a não ser criar uma duplicata de mim mesmo e lhe entregar uma arma.
Ele não para de me encarar.
Um.
Ele curva ligeiramente a cabeça.
— Você está pronto? — Uma pausa. — Está com medo?
Meu coração bate em disparada.
Ele ergue seu braço. Sorri um pouco.
— Não se preocupe — ele diz. — Está quase terminado agora.
Dois.
— Só um pouco mais e eu vou embora — ele diz, apontando a arma para a minha testa.
Minhas mãos estão suadas. Meu pulso está acelerado.
— Você vai ficar bem — ele mente. — Prometo.
Três.
Bummm.
Capítulo 17
— Tem certeza de que não está com fome? — meu pai pergunta, ainda mastigando. — Isso está realmente muito bom.
Me mexo na cadeira. Me concentro nos vincos bem passados das calças que estou usando.
— Hum? — ele indaga. Posso vê-lo sorrindo.
Estou intensamente ciente dos soldados alinhados nas paredes desta sala. Ele sempre os mantém perto de si, e sempre em constante competição uns com os outros. Sua primeira tarefa era determinar qual era o elo mais fraco dentre os onze. Aquele com o argumento mais convincente poderia dispor do seu alvo.
Meu pai acha essas práticas divertidas.
— Receio não estar com muita fome. Os remédios — minto — acabam com meu apetite.
— Ah — ele replica. Ouço o barulho de seus talheres quando ele os deposita na mesa. — É claro. Que inconveniência.
Não digo nada.
— Podem se retirar.
Duas palavras e seus homens se dispersam em questão de segundos. A porta se fecha atrás deles.
— Olhe para mim — ele ordena.
Levanto o olhar, meus olhos cuidadosamente desprovidos de emoção. Odeio seu rosto. Não suporto olhar muito tempo para ele; não gosto da experiência de observar como ele é desumano. Ele não se tortura pelo que faz ou pelo modo que vive. Na verdade ele gosta disso. Ele adora a adrenalina do poder; ele se vê como uma entidade invencível.
E, de certo modo, não está errado.
Passei a crer que o homem mais perigoso do mundo é aquele que não sente remorso. Aquele que nunca se desculpa e, portanto, não procura o perdão. Porque no final, são nossas emoções que nos torna fracos, não nossas ações.
Viro o rosto.
— O que encontrou? — ele pergunta sem preâmbulos.
Minha mente vai imediatamente para o diário que está guardado no meu bolso, mas não faço nenhum comentário. Nem pisco. As pessoas raramente percebem que, na maioria das vezes, mentem com os lábios e dizem a verdade com os olhos. Coloque um homem num cômodo com algo que ele tenha escondido, e então pergunte onde ele a escondeu; ele vai dizer que não sabe; vai dizer que você pegou a pessoa errada; mas quase sempre ele vai olhar na direção certa. E agora meu pai está me examinando, esperando ver para onde vou olhar, o que direi a seguir.
Mantenho meus ombros relaxados e respiro devagar, imperceptivelmente, para amansar meu coração. Não respondo. Finjo estar perdido em meus pensamentos.
— Filho?
Ergo o olhar. Finjo surpresa.
— Sim?
— O que achou? Quando revistou o quarto dela hoje?
Solto o ar. Sacudo a cabeça quando me recosto na cadeira.
— Vidros quebrados. Uma cama desarrumada. O armário dela, escancarado. Ela levou apenas alguns itens de higiene pessoal e algumas roupas extras e roupas de baixo. — Nada disso era sem sentido. Nada disso era mentira.
Ouço quando ele suspira. Ele afasta seu prato.
Sinto o contorno do caderninho dela queimando minha perna.
— E você diz que não sabe para onde ela pode ter ido?
— Apenas sei que ela, Kent e Kishimoto devem estar juntos — explico a ele. — Delalieu diz que roubaram um carro, mas as pistas desapareceram na entrada de um enorme terreno baldio. Fizemos as tropas vasculharem aquela área durante dias, mas não encontramos nada.
— E onde — ele pergunta — planeja procurar a seguir? Você acha que eles cruzaram para outro setor? — A voz dele está estranha. Divertida.
Olho seu rosto sorridente.
Ele só está me fazendo essas perguntas para me testar. Ele tem suas próprias respostas, sua solução já preparada. Ele quer me ver falhar ao responder incorretamente. Está tentando provar que, sem ele, eu tomaria as decisões erradas.
Ele está se divertindo às minhas custas.
— Não — digo a ele, com a voz sólida e firme. — Não acho que vão fazer algo tão idiota como atravessar para outro setor. Eles não têm acesso, meios ou capacidade para isso. Ambos os homens estão severamente feridos, perdendo sangue rapidamente, e estão distantes de qualquer ajuda de emergência. Provavelmente estão mortos agora. A garota talvez seja a única sobrevivente, e ela não pode ter ido muito longe, pois não conhece como andar por aquelas áreas. Ela ficou isolada muito tempo; tudo nesse lugar é completamente estranho para ela. Além do que, ela não sabe dirigir, e se por acaso ela conseguisse dirigir um veículo, teríamos sido informados da propriedade roubada. Se levarmos em consideração seu estado geral de saúde, sua propensão a se esgotar fisicamente muito rápido, e a falta de acesso à comida, água e atenção médica, ela deve estar desmaiada num raio de dez quilômetros desse suposto terreno baldio. Temos que encontrá-la antes que morra congelada.
Meu pai pigarreia.
— Sim — ele diz —, são teorias interessantes. E, talvez, sob outras circunstâncias, elas poderiam até ser verdadeiras. Mas você está se esquecendo de me falar do detalhe mais importante.
Olho nos olhos dele.
— Ela não é normal — ele conclui, recostado à sua cadeira. — E ela não é a única da sua espécie.
Meu coração acelera. Pisco rápido demais.
— Ah, vamos lá, você não suspeitou de nada? Não criou nenhuma hipótese? — Ele ri. — Parece impossível, estatisticamente, que ela seja a única desse tipo que foi produzida pelo nosso mundo. Você sabia disso, mas não quis acreditar. E eu vim aqui para lhe dizer que é verdade. — Ele curva a cabeça ligeiramente em minha direção. Dá um sorriso largo e vibrante. — Existem muitos deles. E eles a recrutaram.
— Não. — Solto o ar.
— Eles se infiltraram em suas tropas. Vivem no seu meio em segredo. E agora roubaram seu brinquedinho e fugiram com ele. Só Deus sabe como esperam manipulá-la em seu próprio benefício.
— Como pode ter tanta certeza? — indago. — Como sabe que eles conseguiram levá-la com eles? Kent estava meio morto quando o deixei...
— Preste atenção, filho. Estou lhe afirmando que eles não são normais. Eles não seguem suas regras; não há nenhuma lógica que os oriente. Você não tem ideia das esquisitices de que são capazes. — Uma pausa. — Além do mais, tenho conhecimento já há algum tempo, de um grupo deles que vive disfarçado nessa área. Mas durante todo esse tempo eles sempre se mantiveram afastados. Eles não interferem em meus métodos, e achei melhor deixá-los morrer sozinhos sem causar um pânico desnecessário na nossa população civil. Você entende, é claro — ele diz. — Afinal de contas, é muito difícil conter pelo menos um deles. Eles são a coisa mais bizarra de se ver.
— Você sabia? — Estou de pé agora. Tentando ficar calmo. — Você sabia da existência deles, durante todo esse tempo, e assim mesmo não fez nada? Não disse nada?
— Não julguei necessário.
— E agora? — exijo.
— Agora parece pertinente.
— Inacreditável! — Levanto as mãos para o alto. — Que você escondesse de mim tal informação! Quando sabia dos meus planos para ela... quando sabia o sacrifício que foi trazê-la aqui...
— Acalme-se — ele pede. Ele estica as pernas; apoia o tornozelo de uma perna no joelho da outra. — Vamos encontrá-los. Esse terreno abandonado que Delalieu mencionou — a área onde o carro deixou de ser rastreado? Esse é o nosso ponto de partida. Eles devem estar escondidos nos subterrâneos. Devemos encontrar a entrada e os destruir em silêncio, por dentro. Então os teremos punido, e evitamos que o resto se revolte e inspire a rebelião no nosso povo.
Ele se inclina para frente.
— Os civis escutam tudo. E, no momento, estão vibrando com um novo tipo de energia. Estão se sentindo motivados ao perceberem que um deles conseguiu escapar e que você saiu ferido no processo. Isso faz nossas defesas parecerem fracas e fáceis de serem penetradas. Precisamos destruir essa percepção reequilibrando a balança. O medo irá retornar tudo para seu devido lugar.
— Mas eles estão procurando — digo a ele. — Meus homens. Eles vasculham a área todos os dias e ainda não encontraram nada. Como pode ter certeza que iremos descobrir alguma coisa, afinal de contas?
— Porque — ele explica — você vai liderá-los. Todas as noites. Depois do toque de recolher, enquanto os civis dormem. Você não vai interromper as buscas durante o dia; não vai dar a eles motivo para terem o que falar. Aja em silêncio, meu filho. Não mostre suas jogadas. Vou permanecer na base e supervisionar suas responsabilidades com meus homens; vou dar ordens a Delalieu se for necessário. E nesse ínterim, você irá encontrá-los, para que eu possa destruí-los o mais rápido possível. Essa loucura já está durando tempo demais — ele diz — e eu não estou mais a fim de ser generoso.
Capítulo 18
Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito mesmo por favor me perdoe.
Foi um acidente.
Me perdoe
Por favor me perdoe
Há pouca coisa que eu permito que as pessoas descubram a meu respeito. Há ainda menos coisas que estou disposto a partilhar sobre mim mesmo. E entre as muitas coisas que nunca discuti com ninguém, é esta.
Gosto de tomar banhos demorados.
Sempre tive uma obsessão por limpeza desde que era pequeno. Sempre fui tão focado em morte e destruição que acho que compenso isso me mantendo o mais intacto possível. Tomo chuveiradas com frequência. Escovo e passo fio dental nos dentes pelo menos três vezes ao dia. Corto meu cabelo toda semana. Esfrego minhas mãos e unhas antes de me deitar e assim que acordo. Tenho uma preocupação doentia em usar apenas roupas que acabaram de ser lavadas. E todas as vezes que passo por alguma emoção mais forte, a única coisa que acalma meus nervos é um banho bem demorado.
Então é isso que vou fazer agora.
Os médicos me ensinaram como prender meu braço ferido no mesmo plástico que eles usaram antes, então posso mergulhar abaixo da superfície sem problemas. Afundo minha cabeça por um longo período, seguro a respiração e solto o ar pelo nariz. Sinto as borbulhas virem à tona.
A água morna me faz sentir leve. Ela carrega meu peso para mim, compreendendo que preciso de um momento para aliviar meus ombros desse peso. Para fechar meus olhos e relaxar.
Meu rosto rompe a superfície da água.
Não abro meus olhos; apenas meu nariz e minha boca respiram o oxigênio do outro lado. Faço respirações curtas e regulares para acalmar a mente. Já é tão tarde que nem sei mais que horas são; tudo que sei é que a temperatura caiu significativamente, e o ar frio está fazendo cócegas no meu nariz. É uma sensação estranha, ter 98 por cento do meu corpo boiando numa temperatura quente e agradável, enquanto meus lábios e meu nariz se contraem com o frio.
Mergulho meu rosto na água novamente.
Poderia viver aqui para sempre, eu acho. Viver onde a gravidade não sabe que eu existo. Aqui estou solto, sem restrições das amarras da vida. Sou um corpo diferente, uma concha diferente, e meu corpo é levado pelas mãos dos amigos. Tantas noites desejei poder cair no sono debaixo desse lençol.
Mergulho mais fundo.
Em uma semana, minha vida inteira mudou.
Minhas prioridades mudaram de foco. Minha concentração, destruída. Tudo com que me importo agora se resume a uma pessoa e, pela primeira vez na vida, não sou eu mesmo. Suas palavras estão marcadas na minha mente. Não consigo parar de imaginar como ela deve ter sido, não consigo deixar de imaginar o que ela deve ter vivenciado. Encontrar seu diário me deixou arrasado. Meus sentimentos por ela saíram do controle. Nunca estive tão desesperado para vê-la, para conversar com ela.
Quero que ela saiba que eu entendo agora. Que eu não entendia antes. Ela e eu somos iguais; em mais de uma maneira que eu possa ter imaginado.
Porém, agora, ela está fora do meu alcance. Ela foi para algum lugar com estranhos que não a conhecem e não se importam com ela do mesmo jeito que eu. Ela foi parar num ambiente estranho sem tempo para se adaptar e estou preocupado com ela. Uma pessoa na situação dela — com seu passado — não se recupera da noite para o dia. E agora, uma de duas coisas está prestes a acontecer: ou ela vai se fechar completamente, ou vai explodir.
Sento rápido demais, rompendo a barreira da água, ofegante.
Afasto o cabelo molhado do rosto. Me encosto na parede azulejada, deixando o ar frio me acalmar, clarear meus pensamentos.
Tenho que encontrá-la antes que ela se destrua.
Nunca antes quis cooperar com meu pai, nunca concordei com seus motivos ou seus métodos. Mas, nesse instante, estou disposto a fazer qualquer coisa para tê-la de volta.
E estou ansioso pela oportunidade de pular no pescoço de Kent.
O cretino traidor. O idiota que acha que conquistou uma garota bonita. Ele não tem ideia de quem ela seja. Não imagina no que ela pode se transformar.
E se ele pensa que é o par ideal para ela, está muito enganado, ele ainda é mais idiota do que eu imaginava.
Capítulo 19
— Onde está o café? — pergunto, meus olhos examinando a mesa.
Delalieu derruba o garfo. O talher de prata cai ruidosamente sobre os pratos de porcelana. Ele ergue os olhos, assustados.
— Senhor?
— Gostaria de experimentar — digo a ele, tentando passar manteiga na torrada com a mão esquerda. Olho em sua direção. — Você está sempre falando sobre o café, não é? Pensei em...
Delalieu dá um salto da mesa sem dizer uma palavra. Sai correndo pela porta.
Dou uma risada silenciosa para o meu prato.
Delalieu traz a bandeja do chá e café pessoalmente e a coloca perto da minha cadeira. Suas mãos tremem enquanto ele despeja o líquido escuro numa xícara de chá, a coloca sobre um pires, põe sobre a mesa e a empurra em minha direção.
Espero até ele se sentar para tomar um gole. É uma bebida estranha, terrivelmente amarga; nada como eu imaginava. Olho para ele surpreso por saber que um homem como Delalieu começa seu dia tomando um líquido de gosto tão forte e horrível. Descubro um novo respeito pelo homem.
— Não é tão ruim assim — digo a ele.
Seu rosto se abre num sorriso tão grande, tão sereno, que imagino se ele me entendeu mal. Ele está praticamente radiante quando responde:
— Tomo o meu com creme e açúcar. O gosto fica bem melhor do que...
— Açúcar. — Abaixo a xícara. Fechos os lábios e me controlo para não sorrir. — Você coloca açúcar nisso. Claro que sim. Isso faz mais sentido.
— Gostaria de um pouco, senhor?
Levanto minha mão. Sacudo a cabeça.
— Chame as tropas, tenente. Vamos suspender as missões durante o dia e, ao invés disso, faremos incursões noturnas depois do toque de recolher. Você vai permanecer na base — digo a ele — onde o supremo dará as ordens através de seus homens; cumpra as ordens que eles derem. Eu mesmo vou liderar o grupo. — Paro. Olho direto nos olhos dele. — Não se fala mais nada do que aconteceu. Não há nada para os civis verem ou falarem. Você entende?
— Sim, senhor — ele diz, esquecendo o café. — Vou dar as ordens imediatamente.
— Ótimo.
Ele se levanta.
Eu aceno com a cabeça.
Ele se retira.
Estou começando a sentir esperança pela primeira vez desde que ela foi embora. Vamos encontrá-la. Agora, com essa nova informação — com um exército inteiro contra um grupo de rebeldes despreparados — parece impossível não vencermos.
Respiro fundo. Tomo outro gole do café.
Estou surpreso ao perceber como gostei do seu gosto amargo.
Capítulo 20
Meu pai está à minha espera quando volto para meu quarto.
— As ordens foram dadas — digo a ele sem olhar em sua direção. — Vamos mobilizar as tropas hoje à noite. — Hesito. — Bem, se pode me desculpar, tenho outros assuntos para tratar.
— Qual a sensação? — ele indaga. — De estar tão incapacitado? — ele pergunta sorrindo. — Como você aguenta se ver no espelho, sabendo que foi atacado por um de seus próprios subordinados?
Faço uma pausa do lado de fora da porta que leva ao meu escritório.
— O que você quer?
— Qual — é seu interesse por essa garota? — ele indaga.
Minhas costas enrijecem.
— Ela é mais do que apenas uma experiência para você, não é?
Giro o corpo lentamente. Ele está parado no meio do meu quarto, com as mãos nos bolsos, e com um sorriso aparentando nojo.
— Do que você está falando?
— Dê uma olhada em si mesmo — ele diz. — Eu ainda nem disse o nome dela e parece que você vai desabar. — Ele sacode a cabeça, ainda me examinando de perto. — Seu rosto está pálido, sua mão que funciona está crispada. Está com a respiração ofegante e seu corpo está tenso. — Uma pausa. — Você se traiu, filho. Você se acha muito esperto — ele diz —, mas se esquece de quem lhe ensinou todos os truques.
Fico quente e gelado ao mesmo tempo. Tento relaxar as mãos, mas não consigo. Quero dizer a ele que não há nada errado, mas repentinamente estou me sentindo meio zonzo, desejando ter comido um pouco mais no café da manhã, e ao mesmo tempo desejando não ter comido nada.
— Tenho trabalho a fazer — consigo dizer.
— Me diga — ele pergunta — que você não se importa se ela morrer junto com os outros.
— O quê? — As palavras trêmulas e nervosas escapam rápido demais dos meus lábios.
Meu pai abaixa o olhar. Ele cerra e descerra os punhos.
— Você já me desapontou de tantas maneiras — ele diz com a voz aparentemente suave. — Por favor, não faça isso novamente.
Por um momento sinto como se estivesse fora do meu corpo, me olhando pela perspectiva dele. Vejo meu rosto, meu braço ferido, essas pernas que de repente parecem incapazes de carregar meu peso. Fendas começam a se criar ao longo do meu rosto, pelos meus braços, meu tronco e minhas pernas.
Imagino que seja assim que alguém desmorona.
Não percebo que ele disse meu nome, até ele repeti-lo uma segunda vez.
— O que você quer de mim? — pergunto, surpreso, ao perceber como pareço calmo. — Você entrou no meu quarto sem permissão; fica parado aí e me acusa de coisas que ainda nem consegui entender. Estou seguindo suas regras, suas ordens. Vamos partir hoje à noite; vamos encontrar o esconderijo deles. Você pode destruí-los do jeito que achar melhor.
— E sua garota? — ele diz inclinando a cabeça em minha direção. — Sua Juliette?
Me contraio ao ouvir o nome dela. Meu pulso bate tão forte que parece um sussurro.
— Se eu desse três tiros na cabeça dela, como se sentiria? — Ele me encara. Me observa. — Desapontado, porque você perdeu seu brinquedinho de estimação? Ou arrasado porque perdeu a garota que ama?
O tempo nesse momento parece estar mais lento, se derretendo à minha volta.
— Seria um desperdício — digo, ignorando o tremor que sinto por dentro, e que ameaça transbordar — perder algo no qual investi tanto tempo.
Ele sorri.
— É bom saber que você vê as coisas dessa forma — ele diz. — Mas projetos são facilmente substituíveis. E tenho certeza que poderemos encontrar um uso melhor e mais prático para seu tempo.
Pisco os olhos devagar. Parte do meu peito está destroçado.
— Claro. — Me ouço dizer.
— Sabia que entenderia. — Ele dá um tapinha no meu ombro machucado ao sair do quarto. Meus joelhos quase se dobram. — Valeu o esforço, filho. Mas ela nos custou muito tempo e dinheiro e se provou completamente inútil. Desse modo estaremos nos livrando de várias inconveniências ao mesmo tempo. Vamos considerar isso um efeito colateral. — Ele me dá um último sorriso antes de passar por mim e sair pela porta.
Caio de encontro à parede.
E me amontoo no chão.
Capítulo 21
É só engolir as lágrimas com bastante frequência que elas vão começar a parecer ácido escorrendo pela sua garganta. É aquele momento terrível quando você está sentada quieta tão quieta porque você não quer que a vejam chorar você não quer chorar, mas seus lábios não param de tremer e seus olhos estão cheios até a borda com súplica e eu imploro e por favor e me desculpe e tenha piedade e talvez dessa vez será diferente mas é sempre igual. Não tem onde se esconder. Ninguém ao seu lado.
Acenda uma vela para mim, eu costumava murmurar para o nada.
Alguém
Qualquer um
Se você está aí fora
Por favor me diga que pode sentir esse fogo.
É o dia cinco das nossas patrulhas, e nada ainda.
Lidero o grupo todas as noites, marchando em silêncio nessas paisagens frias de inverno. Procuramos por passagens escondidas, bueiros camuflados — qualquer indicação de que possa existir outro mundo sob nossos pés.
E toda noite retornamos para a base sem nada.
A futilidade desses últimos dias me atinge, amortecendo meus sentidos, me deixando numa espécie de torpor do qual não consigo me livrar. Todo dia acordo procurando uma solução para os problemas que eu mesmo provoquei, mas não tenho ideia de como consertar isso.
Se ela está lá fora, iremos encontrá-la. E ele a matará.
Só para me ensinar uma lição.
Minha única esperança é encontrá-la primeiro. Talvez possa escondê-la. Ou dizer a ela para fugir. Ou fingir que ela já está morta. Ou talvez convencê-lo que ela é diferente, melhor que os outros; que vale a pena deixá-la viver.
Pareço um idiota patético e desesperado.
Sou uma criança novamente, me escondendo nos cantos escuros e rezando para ele não me encontrar. Esperando que ele esteja de bom humor hoje. Que talvez tudo dê certo. Que talvez minha mãe não vá estar gritando dessa vez.
Incrível como eu rapidamente me reverto para outra versão de mim mesmo na presença dele.
Fico entorpecido.
Tenho realizado minhas tarefas mecanicamente; isso exige apenas um esforço mínimo. Andar é simples. Comer é algo ao qual me acostumei.
Não consigo parar de ler seu diário.
Meu coração sofre, de certo modo, mas não consigo deixar de virar as páginas. Sinto como se estivesse batendo num muro invisível, como se meu rosto estivesse envolto em plástico e eu não pudesse respirar, não pudesse ver, nem ouvir qualquer som a não ser as batidas do meu próprio coração pulsando nos meus ouvidos.
Quis poucas coisas nessa vida.
Não pedi nada a ninguém.
E, agora, tudo que estou pedindo é outra chance. Uma oportunidade de vê-la novamente. Mas a menos que descubra um jeito de impedi-lo, essas palavras são as únicas coisas que restarão dela.
Esses parágrafos e essas sentenças. Essas cartas.
Fiquei obcecado. Carrego esse caderninho comigo para todos os lugares por onde vou, passo todo meu tempo livre tentando decifrar as palavras que ela rabiscou nas margens, criando histórias para acompanhar os números que ela escreveu.
Também notei que a última página está faltando. Arrancada.
Não consigo imaginar por que. Procurei uma centena de vezes no livro todo, procurando nas outras seções onde essa página poderia estar, mas não achei nada. E de certa forma me sinto enganado, sabendo que tem um trecho que não vi. Não é nem mesmo o meu diário; não tenho nada a ver com isso, mas li as palavras dela tantas vezes que sinto que agora elas são minhas. Posso praticamente recitá-las de cor.
É estranho saber o que se passa na cabeça dela e não poder vê-la. Sinto que ela está aqui, bem na minha frente. Sinto que a conheço tão intimamente, tão secretamente. Fico seguro na companhia dos seus pensamentos; de certo modo me sinto acolhido. Compreendido. Tanto que às vezes eu esqueço que foi ela quem colocou esse buraco de bala no meu braço.
Quase esqueço que ela ainda me odeia, apesar de eu ter me apaixonado tão intensamente por ela.
E me apaixonei.
Perdidamente.
Fui até o fundo do poço. Até o fim. Nunca me senti assim na minha vida. Nada parecido. Senti vergonha e covardia, fraqueza e força. Conheci o terror e a indiferença, ódio de mim mesmo e repugnância geral. Vi coisas que não podem ser vistas.
E ainda assim nunca havia experimentado esse sentimento terrível, horrível e paralisante. Me sinto aleijado. Desesperado e fora de controle. E está ficando pior. Todos os dias me sinto doente. Vazio e ferido por dentro.
O amor é um cretino perverso e sem coração.
Estou ficando louco.
Caio de costas na cama, completamente vestido. Casaco, botas, luvas. Estou cansado demais para tirar a roupa. Essas rondas noturnas têm me deixado pouco tempo para dormir. Parece que estou em constante estado de exaustão.
Minha cabeça cai no travesseiro e pisco uma vez. Duas.
Desmaio.
Capítulo 22
— Não. — Me ouço dizer. — Você não deveria estar aqui.
Ela está sentada na minha cama. Está apoiada nos próprios cotovelos, com as pernas esticadas à sua frente, cruzadas nos tornozelos. E apesar de uma parte de mim saber que devo estar sonhando, tem um outro lado, uma parte esmagadoramente dominante que se recusa a aceitar isso. Parte de mim quer acreditar que ela está aqui, perto de mim, usando esse vestidinho preto justo que fica exibindo suas pernas. Mas tudo nela está diferente, estranhamente vibrante; as cores estão erradas. Seus lábios estão com um tom profundo de rosa, bem intenso; seus olhos estão maiores, mais escuros. Ela está usando sapatos que eu nunca a tinha visto usar. E o mais estranho de tudo: ela está sorrindo para mim.
— Oi — ela murmura.
É só uma palavra, mas meu coração dispara. Estou me afastando dela, quase batendo a cabeça na cabeceira da cama, quando percebo que meu braço não está mais ferido. Olho para baixo, para mim mesmo. Meus dois braços estão funcionando. Estou vestindo apenas uma camiseta e uma cueca.
Ela muda de posição num instante, ficando de joelhos antes de vir rastejando para cima de mim. Ela sobe no meu colo. Agora está montada sobre mim. De repente minha respiração se acelera.
Seus lábios encostam nos meus ouvidos. Suas palavras são meigas.
— Me beije — ela diz.
— Juliette...
— Vim até aqui. — Ela ainda está sorrindo para mim. É um sorriso raro, do tipo que ela nunca antes havia me presenteado. Mas por estranho que pareça, agora ela é minha. Ela é minha e é perfeita e me quer, e não vou lutar contra isso.
Não quero lutar.
Suas mãos estão puxando minha camiseta, tirando-a pela cabeça. Jogando-a no chão. Ela se inclina e beija meu pescoço, só uma vez, bem devagarzinho. Meus olhos se fecham.
Não há palavras no mundo para descrever o que estou sentindo.
Sinto suas mãos percorrerem meu peito, meu estômago; seus dedos deslizarem pela beirada da minha cueca. Seu cabelo despenca para frente, roçando minha pele, e tenho que fechar os punhos para evitar prendê-la na minha cama.
Cada terminação nervosa do meu corpo está pulsando. Nunca me senti tão vivo nem tão desesperado em toda a minha vida, e tenho certeza de que se ela pudesse saber o que estou pensando nesse momento, ela sairia por aquela porta e nunca mais voltaria.
Porque eu a quero.
Agora.
Aqui.
Em todo lugar.
Não quero nada entre nós.
Quero tirar suas roupas, acender as luzes e quero estudá-la de perto. Quero abrir o zíper do seu vestido e me demorar em cada centímetro do seu corpo. Não consigo deixar de querer olhar para ela; de conhecê-la e a seus traços: o declive do seu nariz, a curva dos seus lábios, a linha do seu rosto. Quero percorrer com meus dedos a pele macia do seu pescoço e deslizar até embaixo. Quero sentir o peso do corpo dela sobre o meu, me envolvendo.
Não consigo pensar numa razão para isso não ser certo nem real. Não consigo me concentrar em nada mais, a não ser nela sentada no meu colo, tocando meu peito, e me olhando nos olhos como se realmente me amasse.
Chego a imaginar que morri.
Mas bem quando eu me aproximo, ela se afasta, sorrindo antes de eu alcançá-la, nunca afastando seus olhos.
— Não se preocupe — ela sussurra. — Está quase acabado agora.
Suas palavras parecem tão estranhas, e ao mesmo tempo tão familiares.
— O que quer dizer com isso?
— Só um pouco mais e eu vou embora.
— Não. — Estou piscando rápido, tentando segurá-la. — Não, não vá. Onde você está indo...
— Você vai ficar bem — ela diz. — Prometo.
— Não...
Mas agora ela está segurando uma arma.
E a apontando para o meu coração.
Capítulo 23
Essas letras são tudo que me sobrou.
26 amigos para quem contar minha história.
26 letras são tudo que eu preciso para criar oceanos e ecossistemas. Posso combiná-las para formar planetas e sistemas solares. Posso usar letras para construir arranha-céus e metrópoles cheias de gente, lugares, coisas e ideias que são mais reais que essas quatro paredes.
Não preciso de nada além de palavras para viver. Sem elas eu não existiria.
Porque essas palavras que escrevo são a única prova de que ainda estou viva.
Está extraordinariamente frio esta manhã.
Sugiro que a gente faça um passeio descompromissado pelos complexos bem cedo só para ver se algum cidadão parece suspeito ou deslocado. Estou começando a imaginar se Kent e Kishimoto, e todos os outros, estão vivendo em segredo entre as pessoas. Eles devem, afinal de contas, receber alguma ajuda para encontrar comida e água — algo que os prenda à sociedade; duvido que possam plantar alguma coisa debaixo da terra. Mas é claro, são só suposições. Eles podem ter alguém que consegue plantar algo no ar.
Rapidamente dou instruções para meus homens; os oriento para se dispersarem e continuarem sem chamar a atenção. O trabalho deles é observar todo mundo hoje, e relatar o que descobriram para mim.
Assim que se foram, fico sozinho para olhar em volta e pensar. É um lugar perigoso para se esconder.
Meu Deus, ela parecia tão real nos meus sonhos.
Fecho os olhos, cobrindo o rosto com as mãos; meus dedos tocam meus lábios de leve. Posso sentir o toque dela. Na verdade, posso senti-la. Só de pensar nisso, meu coração acelera. Não sei o que vou fazer se continuar a ter sonhos tão intensos com ela. Não vou ser capaz de trabalhar direito.
Respiro fundo, controlando a respiração e me concentrando. Deixo meus olhos perambularem naturalmente, não posso evitar me distrair com as crianças correndo em volta. Parecem tão animadas e despreocupadas. Sei que parece estranho, mas fico triste ao ver que eles conseguiram encontrar felicidade nessa vida. Elas não têm nem ideia do que perderam; nem imaginam como o mundo costumava ser.
Alguma coisa se aproxima e bate nas minhas pernas.
Ouço um arquejo estranho e cansado; me viro.
É um cachorro.
Um cachorro cansado e faminto, tão magro e frágil que parece que pode ser levado pelo vento. Mas ele está me olhando. Sem medo. Com a boca aberta. A língua balançando.
Tenho vontade de dar risada.
Olho em volta rapidamente antes de pegar o cachorro nos braços. Não preciso dar ao meu pai outro motivo para me castrar, e não confio que meus soldados não irão contar uma coisa assim.
Que eu estava brincando com um cachorro.
Posso até escutar as coisas que meu pai iria me dizer.
Carrego a criatura chorosa até uma das casas que haviam sido desocupadas recentemente — vi apenas três famílias saindo para o trabalho — e me abaixo por trás de uma das cercas. O cachorro parece ser bem esperto para saber que agora não é hora de latir.
Tiro minhas luvas e ponho a mão no bolso para pegar um pãozinho doce que havia trazido como café da manhã; não tive tempo de comer nada antes de sairmos hoje cedo. E embora eu não faça ideia do que um cachorro coma, exatamente, eu lhe dou o pãozinho.
O cachorro praticamente o agarra da minha mão.
Ele engole o pãozinho em duas bocadas e começa a lamber os meus dedos, pulando no meu peito, todo empolgado, aproveitando o calor do meu casaco aberto. Não consigo segurar a risada que escapa dos meus lábios; nem quero. Há muito tempo não me sinto assim. E não posso evitar ficar espantado com o poder que animaizinhos tão pequenos exercem sobre nós; eles rompem nossas resistências com a maior facilidade.
Passo minhas mãos pelo seu pelo surrado, sentindo as pontas das costelas aparecendo em ângulos desconfortáveis. Mas o cachorro não parece se importar com seu estado de inanição, pelo menos não agora. Seu rabo está balançando furiosamente, e ele fica pulando no meu peito para me olhar. Começo a pensar que deveria ter enfiado mais alguns pãezinhos doces no meu bolso antes de sair.
Algo estala.
Ouço um suspiro.
Olho em volta.
Dou um pulo, alerta, procurando o barulho. Parecia bem perto. Alguém me viu. Alguém... Um civil. Ela já está escapando, seu corpo apertado de encontro a uma das paredes da casa.
— Ei! — grito. — Você aí...
Ela para. Olha para cima.
Eu quase desmaio.
Juliette.
Ela está me olhando. Ela realmente está aqui, olhando para mim, com os olhos arregalados e assustados. Minhas pernas parecem ser feitas de chumbo. Estou preso no chão, incapaz de dizer uma palavra sequer. Nem sei por onde começar. São tantas coisas que gostaria de dizer a ela, tantas coisas que eu nunca disse, e eu estou simplesmente tão feliz ao vê-la.
— Deus, estou tão aliviado...
Ela desapareceu.
Olho em volta, em pânico, imaginando se estou começando a perder meu senso de realidade. Meus olhos se voltam para o cachorrinho que ainda está parado ali, esperando por mim, e eu olho para ele estupefato, imaginando o que havia acontecido. Fico olhando para o lugar onde a vi, mas não vejo nada.
Nada.
Passo a mão pelos cabelos, tão confuso, tão horrorizado e irritado comigo mesmo, que fico tentado a arrancar minha cabeça.
O que está acontecendo comigo?
Capítulo 12
Um dos homens do meu pai está me esperando do lado de fora da minha porta.
Olho de relance em sua direção, mas não o suficiente para reconhecer suas feições.
— Diga qual o assunto, soldado.
— Senhor — ele diz —, recebi ordens para lhe informar que o comandante supremo solicita sua presença em seus alojamentos para o jantar às vinte horas.
— Considere sua mensagem recebida. — Dou um passo para abrir minha porta.
Ele dá um passo à frente, bloqueando minha passagem.
Viro o corpo para olhar para ele.
Ele está parado a alguns passos de distância de mim: um ato implícito de desrespeito; um nível de intimidade que nem mesmo Delalieu se permite. No entanto, ao contrário dos meus homens, os bajuladores que cercam meu pai se consideram especiais. Ser um membro da guarda de elite do comandante supremo é considerado um privilégio e uma honra. Eles se reportam diretamente a ele.
E nesse exato momento, esse soldado está tentando provar que é superior a mim.
Ele tem inveja de mim. Pensa que sou indigno de ser o filho do comandante supremo do Restabelecimento. Isso está praticamente escrito no rosto dele.
Tenho que segurar meu impulso de cair no riso quando encaro seus frios olhos cinza e o buraco negro que é sua alma. Ele tem as mangas enroladas na altura do cotovelo, suas tatuagens militares claramente definidas e à mostra. Os círculos concêntricos de tinta preta em volta dos seus braços são acentuados em vermelho, verde e azul, o único sinal para indicar que ele é um soldado de patente elevada. É um ritual doentio do qual sempre fiz questão de me recusar a participar.
O soldado ainda está me encarando.
Inclino minha cabeça em sua direção, ergo minhas sobrancelhas.
— Recebi ordens — ele declara — de esperar uma resposta oral aceitando esse convite.
Demoro um pouco, pensando nas minhas escolhas, mas não havia nenhuma.
Eu, como todos os fantoches desse mundo, sou completamente subserviente aos desejos do meu pai. É verdade que sou forçado a lutar todos os dias: que nunca serei capaz de enfrentar o homem que tem seus punhos cerrados em volta da minha espinha vertebral.
Isso me faz odiar a mim mesmo.
Encaro os olhos do soldado e imagino, por um breve momento, qual o nome dele, antes de perceber que não me importo com isso.
— Considere-o aceito.
— Sim, s...
— E da próxima vez, soldado, não se aproxime a menos de um metro e meio de distância de mim, sem pedir permissão.
Ele pisca os olhos, confuso.
— Senhor, eu...
— Você está confuso — o interrompo. — Acredita que trabalhar com o comandante supremo lhe dá imunidade das regras que governam a vida dos outros soldados. Veja, você está errado.
Seu rosto se enrijece.
— Nunca se esqueça — digo baixinho agora — que se eu quisesse o seu emprego, eu o teria. E não se esqueça de que o homem que você serve tão ansiosamente é o mesmo homem que me ensinou a atirar com uma arma de fogo quando eu tinha apenas nove anos de idade.
Suas narinas se dilatam. Ele olha direto para frente.
— Entregue sua mensagem, soldado. E então relembre isso e nunca mais fale comigo novamente.
Os olhos dele agora estão presos num ponto diretamente atrás de mim, seus ombros rígidos.
Espero.
Seu maxilar ainda está rígido. Lentamente ele levanta sua mão em saudação.
— Está dispensado — digo.
Tranco a porta do meu quarto e me encosto nela. Preciso de apenas um momento. Pego o vidrinho que está na mesinha de cabeceira e tiro duas pílulas quadradas; as jogo na boca, fechando meus olhos enquanto se dissolvem.
A escuridão atrás das minhas pálpebras é um alívio reconfortante.
Até que a lembrança do rosto dela se impõe à minha percepção.
Me sento na cama e deixo a cabeça cair na minha mão. Não deveria estar pensando nela agora. Tenho horas de papelada para separar e o estresse da presença do meu pai para aguentar. Jantar com ele vai ser um espetáculo. Um espetáculo de arrasar a alma.
Fecho meus olhos com força e faço um pequeno esforço para construir as paredes que com certeza limpariam minha mente. Mas dessa vez elas não funcionam. O rosto dela insiste em surgir subitamente, seu diário me provocando lá no fundo do meu bolso.
E começo a perceber que tem uma pequena parte de mim que não deseja afastar os pensamentos dela. Uma parte de mim gosta da tortura.
Essa garota está me destruindo.
Uma garota que passou o último ano internada num sanatório de loucos. Uma garota que tentou me matar porque eu a beijei. Uma garota que fugiu com outro homem só para se afastar de mim.
É claro que essa é a garota por quem eu iria me apaixonar.
Coloco a mão na boca.
Estou perdendo a cabeça.
Tiro minhas botas. Me enfio na cama e deixo a cabeça cair nos travesseiros.
Ela dormiu aqui, penso. Ela dormiu na minha cama. Ela acordou na minha cama. Ela estava aqui e deixei que ela escapasse.
Falhei.
Perdi.
Nem percebo que tirei o diário dela do bolso e o estou segurando em frente do rosto. Olhando para ele. Estudando sua capa desbotada numa tentativa de entender onde ela pode ter adquirido isso. Ela deve ter roubado de algum lugar, embora não consiga imaginar onde.
Há tantas coisas que eu gostaria de perguntar a ela. Tantas coisas que gostaria de lhe dizer.
Ao invés disso, abro seu diário e leio.
Às vezes fecho meus olhos e pinto essas paredescom cores diferentes.
Imagino que estou usando meias quentinhas e estou sentada perto do fogo. Imagino que alguém me deu um livro para ler, uma história para me levar para longe da tortura da minha própria mente. Quero ser alguém em algum outro lugar com alguma outra coisa a ocupar minha cabeça. Quero correr, quero sentir o vento batendo nos cabelos. Quero fingir que isso é simplesmente uma história dentro de outra história. Que essa cela é apenas um cenário, que essas mãos não me pertencem, que essa janela dá para um lugar lindo, se pelo menos eu conseguisse abri-la. Finjo que essa fronha é limpa, finjo que a cama é macia. Finjo e finjo e finjo até que o mundo fica maravilhoso por trás dos meus olhos e já não consigo mais contê-lo. Mas então meus olhos se abrem e sou agarrada pela garganta por um par de mãos que não param de me sufocar sufocar sufocar...
Meus pensamentos, acho, logo serão ouvidos.
Minha mente, espero, logo será descoberta.
O diário cai da minha mão e bate no meu peito. Passo a mão pelo rosto, pelo meu cabelo. Massageio o pescoço e me puxo com força para cima a ponto de bater a cabeça na cabeceira da cama, e na verdade fico grato a isso. Me demoro um pouco sentindo a dor.
E viro a página.
Imagino o que eles estão pensando. Meus pais. Imagino onde estão. Penso se eles estão bem agora, se estão felizes agora,se eles finalmente conseguiram o que queriam.Imagino se minha mãe vai querer ter outro filho. Imagino se alguém vai ter a bondade de me matar, e imagino se o inferno não é melhor do que aqui. Imagino como está meu rosto agora. Imagino se algum dia vou poder respirar o ar fresco novamente.
Imagino tantas outras coisas.
Às vezes fico acordada durante dias simplesmente contando tudo que encontro. Conto as paredes, as rachaduras na parede, meus dedos dos pés e das mãos. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, quantos passos para ir para frente e para trás no meu quarto. Conto meus dentes e cada fio de cabelo na minha cabeça e o número de segundos em que consigo prender minha respiração.
Mas às vezes fico tão cansada que esqueço que não tenho mais permissão para desejar mais nada, e me descubro desejando a única coisa que sempre quis. A única coisa com a qual sempre sonhei.
Sempre desejei ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso de volta. Ter alguém em quem confiar que não iria jogar as coisas em mim, nem colocar minhas mãos no fogo ou me bater por ter nascido. Alguém que iria saber que fui colocada para fora de casa e tentaria me achar, que nunca teria medo de mim.
Alguém que soubesse que eu nunca o machucaria.
Me vejo num canto desse quarto e enfio a cabeça nos meus joelhos e me balanço para frente e para trás para frente e para trás para frente e para trás e desejo e desejo e desejo coisas impossíveis até cair no sono de tanto chorar.
Imagino como seria ter um amigo.
E então imagino quem mais está preso neste hospício. Imagino de onde estão vindo os outros gritos.
Imagino se estão vindo de mim.
Tento me concentrar, dizendo a mim mesmo que são palavras vazias, mas estou mentindo. Porque, de algum modo, simplesmente ler essas palavras é demais; e pensar nela sofrendo está me deixando agoniado.
Saber que ela vivenciou isso.
Ela foi colocada nesse inferno pelos próprios pais, abandonada e maltratada a vida inteira. Empatia é uma emoção que eu não conhecia, mas agora toma conta de mim, me levando para um mundo que eu não sabia que podia penetrar. E embora sempre tenha acreditado que ela e eu tivéssemos muita coisa em comum, não sabia que podia sentir isso com tanta profundidade.
Isso está me matando.
Fico em pé. Começo a andar pelo quarto até acalmar meus nervos para continuar a leitura. Então respiro fundo.
E viro a página.
Tem alguma coisa fervilhando dentro de mim.
Algo que nunca ousei descobrir, algo que tenho medo de saber. Tem uma parte de mim lutando para se libertar da jaula onde estou presa, batendo nas portas do meu coração, suplicando para ser libertada.
Suplicando para ir embora.
Todos os dias sinto que revivo o mesmo pesadelo. Abro a boca para gritar, para lutar, para girar meus punhos, mas minhas cordas vocais estão cortadas, meus braços estão pesados e densos como se estivessem presos no cimento molhado e eu estou gritando mas ninguém me ouve, ninguém se aproxima e estou enjaulada. E isso está acabando comigo.
Sempre tive de bancar a submissa, subserviente, um pano de chão suplicante e passivo que fazia todo mundo se sentir seguro e confortável. Minha existência se tornou uma luta para provar que eu era inofensiva, não uma ameaça, que eu era capaz de viver entre outros seres humanos sem feri-los.
E estou tão cansada tão cansada tão cansada e às vezes chego a ficar com raiva.
Não sei o que está acontecendo comigo.
— Meu Deus, Juliette. — Suspiro.
E caio de joelhos.
— Chame o transporte imediatamente. — Preciso sair. Preciso sair daqui agora.
— Senhor? Isso é, sim, senhor, é claro... mas onde...
— Tenho que visitar os complexos — digo. — Tenho que fazer minhas rondas antes do meu compromisso dessa noite. — Isso é tanto verdade quanto mentira. Porém agora estou disposto a fazer qualquer coisa que me afaste desse diário.
— Ah, certamente, senhor. Gostaria que o acompanhasse?
— Isso não será necessário, tenente, mas obrigado pela oferta.
— Eu... se-senhor — ele gagueja. — É claro, é u-uma honra servi-lo, senhor, ajudá-lo...
Deus do céu, onde estou com a cabeça. Eu nunca digo obrigado a Delalieu. É muito provável que o pobre homem vá ter um infarto agora.
— Estarei pronto para sair em dez minutos — interrompo.
Ele começa a gaguejar, mas para. Então diz:
— Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Estou pressionando a boca com o punho quando a ligação é desconectada.
Capítulo 13
Tínhamos lares. Antes.
De todos os tipos diferentes.
Casas térreas. Sobrados. Casas de três andares.
Comprávamos enfeites para o jardim e luzinhas pisca-pisca, aprendíamos a andar de bicicleta sem rodinhas. Adquirimos vidas confinadas em 1,2 e 3 andares já construídos, andares contidos em estruturas que não podíamos mudar.
Vivemos nesses andares por algum tempo.
Seguimos a história que nos era contada, o texto preso em cada metro do espaço que havíamos conquistado. Ficamos contentes com a mudança no enredo que redirecionou nossa vida. Assinamos nas linhas pontilhadas por coisas pelas quais não nos importávamos realmente. Comíamos coisas que não deveríamos, gastávamos dinheiro quando não podíamos, esquecíamos a Terra que tínhamos de habitar e desperdiçávamos desperdiçávamos desperdiçávamos tudo. Comida. Água. Recursos.
Logo, os céus ficaram cinza com a poluição química, e as plantas e os animais ficaram doentes devido à modificação genética. E doenças se impregnaram no nosso ar, nas nossas refeições, nossos sangues e nossas casas. A comida desapareceu. As pessoas estavam morrendo. Nosso império estava caindo aos pedaços.
O Restabelecimento disse que nos ajudariam. Nos salvariam. Reconstruiriam nossa sociedade.
Ao invés disso, eles nos destroçaram.
Gosto de visitar os complexos.
É um lugar estranho para se buscar refúgio, mas sinto alguma coisa ao ver tantos civis num espaço tão vasto e aberto que me faz lembrar da minha missão. Fico tanto tempo preso nos limites dos muros do quartel-general do Setor 45, que frequentemente me esqueço dos rostos daqueles por quem lutamos e daqueles com quem estamos lutando.
Gosto de me lembrar.
Geralmente, visito cada aglomerado dos complexos; cumprimento os moradores e pergunto sobre suas condições de vida. Não consigo deixar de ficar curioso em saber como é a vida deles agora. Porque enquanto o mundo se transformou inteiramente para eles, meu mundo continuou o mesmo. Disciplinado. Isolado. Desolador.
Houve um tempo quando as coisas foram melhores, quando meu pai não era tão irritado. Eu tinha cerca de 4 anos. Ele costumava me fazer sentar em seu colo e brincar com seus bolsos. Eu podia pegar o que quisesse, desde que meu argumento fosse bem convincente. Era seu jeito de brincar.
Mas tudo isso foi antes.
Aperto meu casaco no corpo, sentindo o tecido se encostar nas minhas costas. Vacilo sem querer.
A vida que tenho agora é a única que importa. O sufoco, o luxo, as noites mal dormidas, e os corpos dos mortos. Sempre me ensinaram a me concentrar no poder e na dor, em ganhar e infligir.
Não lamento nada.
Aceito tudo.
É o único modo que encontrei de continuar vivendo nesse corpo maltratado. Esvazio minha mente das coisas que me infestam e sobrecarregam minha alma, e aceito o que puder dos pequenos prazeres que aparecem à minha frente. Não sei o que é ter uma vida normal; não sei como simpatizar com os cidadãos que perderam suas casas. Não faço ideia de como era a vida deles antes de o Restabelecimento tomar o poder.
Por isso gosto de passear pelos complexos.
Gosto de ver como as outras pessoas vivem; gosto de ter o poder de fazer com que respondam às minhas perguntas. Do contrário não teria como saber.
Mas o momento é errado.
Não prestei muita atenção ao relógio quando saí da base, e não percebi que o sol estava se pondo. A maioria dos civis está voltando para casa para descansar à noite, seus corpos curvados, encolhidos pelo frio enquanto se encaminhavam em direção aos aglomerados de metal que dividem com pelo menos outras três famílias.
As casas improvisadas são construídas com containers de navios de doze metros quadrados; eles são empilhados lado a lado e um em cima do outro, agrupados em grupos de cinco ou seis. Cada container foi isolado; equipado com duas janelas e uma porta. Escadas para o andar superior foram colocadas de cada lado de fora da estrutura. Os tetos são alinhados com painéis solares que fornecem eletricidade gratuita para cada grupo.
É algo do qual muito me orgulho.
Porque foi minha ideia.
Quando estávamos procurando por abrigos temporários para os civis, sugeri reformar os velhos containers de carga que ocupavam as docas de todos os portos do mundo. Não apenas eram baratos, facilmente reaproveitados, e altamente adaptáveis, mas podiam ser empilhados, eram portáteis e construídos independentemente do clima do lugar. Eles exigiam o mínimo de construção e, com a equipe certa, milhares de unidades habitacionais poderiam estar prontas em alguns dias.
Dei essa ideia para meu pai, pensando que essa seria a opção mais eficiente; uma solução temporária que seria menos desumana do que barracas; algo que ofereceria um abrigo real e confiável. Mas o resultado foi tão eficiente que o Restabelecimento não viu necessidade de renovação. Aqui, num terreno que costumava ser um lixão, assentamos milhares de containers; aglomerados de cubos retangulares e desbotados que são fáceis de monitorar e vigiar.
As pessoas ainda acreditam que essa é uma solução temporária. Que um dia voltarão para as lembranças de suas antigas vidas e as coisas serão lindas e brilhantes novamente. Mas tudo isso é mentira.
O Restabelecimento não tem planos de mudá-los de onde estão.
Os civis devem permanecer nessas áreas regulamentadas; esses containers se tornaram suas prisões. Tudo foi numerado. As pessoas, suas casas, seu grau de importância para o Restabelecimento.
Aqui, eles se tornaram parte de um enorme experimento. Um mundo no qual trabalham para manter as necessidades de um regime que faz promessas que nunca serão cumpridas.
Essa é a minha vida.
Esse triste mundo.
Na maior parte do tempo, me sinto como um civil; e é provavelmente por isso que vim até aqui. É como se estivesse indo de uma prisão para outra; numa existência onde não há escape, não há refúgio. Quando até mesmo minha mente me trai.
Eu deveria ser mais forte do que isso.
Tenho treinado há mais de uma década. Tenho trabalhado todos os dias para aprimorar minhas forças física e mental. Tenho 1 metro e 79 de altura e 77 quilos de músculos. Fui preparado para sobreviver, para maximizar a resistência e a energia, e fico perfeitamente à vontade segurando uma arma. Posso desmontar, limpar, recarregar, desarmar e remontar mais de 150 tipos de armas de fogo. Posso atirar no centro de um alvo, de praticamente qualquer distância. Posso quebrar o pescoço de uma pessoa com a lateral da mão. Posso paralisar temporariamente um homem com apenas os nós dos meus dedos.
No campo de batalha, sou capaz de me desconectar dos movimentos que aprendi a memorizar. Criei a reputação de ser alguém frio, um monstro que não teme nada nem ninguém.
Mas tudo isso é ilusório.
Porque a verdade é que não passo de um covarde.
Capítulo 14
O sol está se pondo.
Logo vou ter que retornar à base, onde vou me sentar quieto e ouvir meu pai falar, em vez de mandar bala na sua boca aberta.
Então tento ganhar tempo.
Fico parado e ouço barulhos vindos de longe e observo as crianças correrem, enquanto seus pais as levam para casa. Penso se um dia eles vão crescer o bastante para sacar que os cartões do Registro do Restabelecimento na verdade estão rastreando todos seus movimentos. Que o dinheiro que seus pais recebem pelo trabalho em alguma das muitas fábricas existentes ali é monitorado de perto. Essas crianças crescerão e finalmente entenderão que tudo que elas fazem está gravado, cada conversa é dissecada para se descobrir murmúrios de rebeliões. Eles não sabem que estão sendo criados perfis para cada cidadão, e que cada arquivo é bem grosso com documentação das suas amizades, relacionamentos, e hábitos de trabalho; até mesmo como gostam de passar seu tempo livre.
Sabemos tudo sobre todo mundo.
Demais.
Tanto é verdade que raramente me lembro que estamos lidando com gente de verdade, seres vivos, até vê-los nos complexos. Sei de cor o nome de quase todos os cidadãos do Setor 45. Gosto de saber quem vive na minha jurisdição, não importa se são soldados ou civis.
Foi assim que tomei conhecimento, por exemplo, que o soldado Seamus Fletcher, 45B-76423, batia na esposa e nos filhos todas as noites.
Eu sabia que ele estava gastando todo seu dinheiro em bebidas; sabia que ele estava deixando sua família passar fome. Monitorei os dólares REST que ele gastava nas nossas centrais de abastecimento e observei atentamente a família dele no complexo. Sabia que seus três filhos tinham menos de 10 anos e não comiam há semanas; sabia que eles haviam estado inúmeras vezes no posto médico do complexo para tratar de ossos quebrados e levar pontos em machucados. Fiquei sabendo que ele deu um soco na boca de sua filha de 9 anos e cortou o lábio dela, fraturou o maxilar e quebrou dois de seus dentes da frente; e soube que sua esposa estava grávida. Também fiquei sabendo que certa noite ele bateu nela com tanta força que ela perdeu a criança na manhã seguinte.
Eu sei por que estava lá.
Eu estava parando em cada residência, visitando os civis, fazendo perguntas sobre sua saúde e como estavam suas vidas. Queria saber de suas condições de trabalho e se algum membro de suas famílias precisaria estar de quarentena.
Ela estava em casa naquele dia. A esposa de Fletcher. Seu nariz estava quebrado e seus olhos estavam tão inchados que ela nem conseguia abri-los direito. Seu corpo era tão magro e frágil, sua pele tão pálida, que achei que ela iria se quebrar em duas ao sentar-se. Quando lhe perguntei sobre os machucados, ela evitou meus olhos. Disse que tinha caído; que por causa da sua queda ela havia perdido a criança que carregava e conseguiu também quebrar o nariz no acidente.
Acenei com a cabeça. Agradeci por sua cooperação ao responder minhas perguntas.
E então convoquei uma reunião.
Estou ciente que a maioria dos meus soldados rouba dos armazéns dos nossos complexos. Analiso os relatórios cuidadosamente e sei que tem suprimentos desaparecendo o tempo todo. Mas permito essas pequenas infrações porque elas não perturbam o sistema. Alguns pães ou pedaços de sabão a mais deixam meus soldados mais animados; eles trabalham mais se estiverem saudáveis, e a maioria deles mantém esposa, filhos e parentes. Então essa é uma concessão que faço.
Mas algumas coisas não posso perdoar.
Não me considero um moralista. Não filosofo sobre a vida ou me importo com as leis e princípios que governam a vida das pessoas. Não pretendo saber a diferença entre o certo e o errado. Mas procuro viver sob certo código de vida. E às vezes, eu acho, tenho que aprender a atirar antes.
Seamus Fletcher estava matando sua família. E eu lhe dei um tiro na testa porque achei que assim seria menos doloroso do que destroçá-lo com minhas próprias mãos.
Mas meu pai completou o trabalho que Fletcher havia começado. Meu pai mandou matar os três filhos dele e sua mulher, tudo por causa de um bêbado cretino que deveria ter cuidado deles. Ele era o pai deles, o marido dela, e a razão de eles terem tido uma morte tão brutal e inesperada.
E alguns dias eu imagino por que insisto em continuar vivendo.
Capítulo 15
De volta à base, sigo direto em frente.
Ignoro os soldados e suas continências por onde passo, sem prestar atenção à mistura de curiosidade e desconfiança em seus olhos. Nem tinha percebido que havia tomado esse caminho ao chegar à base; mas meu corpo parece saber mais do que minha mente, do que precisa agora. Meus passos são pesados; regulares, o som das minhas botas ecoa ao longo do piso de pedras conforme chego aos andares de baixo.
Não venho aqui há quase duas semanas.
O quarto fora reformado desde a última vez em que estive aqui; o painel de vidro e a parede de concreto foram substituídos. E pelo que sei ela foi a última pessoa a usar esse quarto.
Eu mesma a havia trazido aqui.
Empurro as duas portas giratórias do vestiário que fica na sala adjacente ao deque de simulação. Minha mão procura no escuro pelo interruptor; as luzes piscam uma vez antes de se acenderem. Um zumbido monótono de eletricidade vibra nesses cômodos vastos. Tudo está quieto, abandonado.
Exatamente como eu gosto.
Tiro minhas roupas o mais rápido que consigo, devido aos ferimentos. Ainda tenho duas horas antes do esperado jantar com meu pai, então eu não deveria estar tão ansioso assim, mas meus nervos não estão ajudando. Tudo parece estar vindo para cima de mim de uma vez só. Meus fracassos. Minha covardia. Minha estupidez.
Às vezes fico tão cansado dessa vida.
Estou em pé, descalço no concreto, só usando a tipoia no meu braço, detestando como esse ferimento me deixa constantemente para baixo. Pego o shorts guardado no meu armário e o visto o mais rapidamente possível, me encostando à parede para me apoiar. Quando finalmente fico ereto, fecho a porta do armário e entro no cômodo ao lado.
Aperto mais um interruptor, e o sistema operacional principal começa a funcionar. Os computadores emitem um sinal sonoro e uns flashes se acendem enquanto o programa se prepara; passo os dedos pelo teclado.
Costumamos usar esses cômodos para simulações.
Manipulamos a tecnologia para criar lugares e experiências que existem apenas na mente humana.
Não apenas somos capazes de criar o cenário, mas também podemos controlar os mínimos detalhes. Sons, cheiros, falsa segurança, paranoia. O programa foi originalmente criado para ajudar soldados em missões específicas, e também para ajudá-los a superar medos que, do contrário, iria incapacitá-los no campo de batalha.
Eu o uso para meus próprios fins.
Costumava vir aqui todos os dias antes de ela chegar à base. Aqui era meu porto seguro; minha única fuga do mundo. Apenas gostaria que não precisasse de um uniforme. Esse short é engomado e desconfortável, o poliéster coça e irrita a pele. Mas é forrado com uma química especial que reage com a minha pele e alimenta o sensor com informações; me ajudam a me situar na experiência e me permitirá correr por quilômetros sem precisar correr de verdade, muros físicos no meu ambiente real. E para que o processo seja o mais eficiente possível, tenho que vestir quase nada. As câmeras são hipersensíveis ao calor do corpo, e funcionam melhor quando não entra em contato com materiais sintéticos.
Espero que esse detalhe fique anotado para a próxima geração do programa.
A central me solicita dados; rapidamente entro com o código de acesso que me garante permissão para levantar o histórico das últimas simulações. Olho para o alto por sobre meu ombro enquanto o computador processa os dados; olho de relance pelo recém-consertado espelho de duas faces que vê o cômodo principal. Ainda não acredito que ela quebrou uma parede inteira de vidro e concreto e continuou a caminhar sem um arranhão.
Inacreditável.
A máquina bipa duas vezes; me viro novamente. Os programas que solicitei estão carregados e prontos para serem executados.
O arquivo dela é o primeiro da lista.
Respiro fundo; tento afastar as lembranças. Não me arrependo de tê-la feito passar por uma experiência tão horrível. Não sei se ao final ela teria se permitido perder o controle — finalmente habitar seu próprio corpo — se eu não tivesse encontrado um modo eficiente de provocá-la. Ultimamente realmente acredito que isso a ajudou, exatamente como eu pretendia. Mas eu desejaria que ela não tivesse apontado uma arma na minha cara e saltado pela janela logo depois.
Suspiro devagar mais uma vez, acalmando minha respiração.
E seleciono a simulação que me motivou a vir até aqui.
Capítulo 16
Estou parado no cômodo principal.
Me encarando.
Essa é uma simulação bem simples. Não precisei trocar de roupa nem mexer no meu cabelo, nem alterar o piso carpetado. Não fiz nada a não ser criar uma duplicata de mim mesmo e lhe entregar uma arma.
Ele não para de me encarar.
Um.
Ele curva ligeiramente a cabeça.
— Você está pronto? — Uma pausa. — Está com medo?
Meu coração bate em disparada.
Ele ergue seu braço. Sorri um pouco.
— Não se preocupe — ele diz. — Está quase terminado agora.
Dois.
— Só um pouco mais e eu vou embora — ele diz, apontando a arma para a minha testa.
Minhas mãos estão suadas. Meu pulso está acelerado.
— Você vai ficar bem — ele mente. — Prometo.
Três.
Bummm.
Capítulo 17
— Tem certeza de que não está com fome? — meu pai pergunta, ainda mastigando. — Isso está realmente muito bom.
Me mexo na cadeira. Me concentro nos vincos bem passados das calças que estou usando.
— Hum? — ele indaga. Posso vê-lo sorrindo.
Estou intensamente ciente dos soldados alinhados nas paredes desta sala. Ele sempre os mantém perto de si, e sempre em constante competição uns com os outros. Sua primeira tarefa era determinar qual era o elo mais fraco dentre os onze. Aquele com o argumento mais convincente poderia dispor do seu alvo.
Meu pai acha essas práticas divertidas.
— Receio não estar com muita fome. Os remédios — minto — acabam com meu apetite.
— Ah — ele replica. Ouço o barulho de seus talheres quando ele os deposita na mesa. — É claro. Que inconveniência.
Não digo nada.
— Podem se retirar.
Duas palavras e seus homens se dispersam em questão de segundos. A porta se fecha atrás deles.
— Olhe para mim — ele ordena.
Levanto o olhar, meus olhos cuidadosamente desprovidos de emoção. Odeio seu rosto. Não suporto olhar muito tempo para ele; não gosto da experiência de observar como ele é desumano. Ele não se tortura pelo que faz ou pelo modo que vive. Na verdade ele gosta disso. Ele adora a adrenalina do poder; ele se vê como uma entidade invencível.
E, de certo modo, não está errado.
Passei a crer que o homem mais perigoso do mundo é aquele que não sente remorso. Aquele que nunca se desculpa e, portanto, não procura o perdão. Porque no final, são nossas emoções que nos torna fracos, não nossas ações.
Viro o rosto.
— O que encontrou? — ele pergunta sem preâmbulos.
Minha mente vai imediatamente para o diário que está guardado no meu bolso, mas não faço nenhum comentário. Nem pisco. As pessoas raramente percebem que, na maioria das vezes, mentem com os lábios e dizem a verdade com os olhos. Coloque um homem num cômodo com algo que ele tenha escondido, e então pergunte onde ele a escondeu; ele vai dizer que não sabe; vai dizer que você pegou a pessoa errada; mas quase sempre ele vai olhar na direção certa. E agora meu pai está me examinando, esperando ver para onde vou olhar, o que direi a seguir.
Mantenho meus ombros relaxados e respiro devagar, imperceptivelmente, para amansar meu coração. Não respondo. Finjo estar perdido em meus pensamentos.
— Filho?
Ergo o olhar. Finjo surpresa.
— Sim?
— O que achou? Quando revistou o quarto dela hoje?
Solto o ar. Sacudo a cabeça quando me recosto na cadeira.
— Vidros quebrados. Uma cama desarrumada. O armário dela, escancarado. Ela levou apenas alguns itens de higiene pessoal e algumas roupas extras e roupas de baixo. — Nada disso era sem sentido. Nada disso era mentira.
Ouço quando ele suspira. Ele afasta seu prato.
Sinto o contorno do caderninho dela queimando minha perna.
— E você diz que não sabe para onde ela pode ter ido?
— Apenas sei que ela, Kent e Kishimoto devem estar juntos — explico a ele. — Delalieu diz que roubaram um carro, mas as pistas desapareceram na entrada de um enorme terreno baldio. Fizemos as tropas vasculharem aquela área durante dias, mas não encontramos nada.
— E onde — ele pergunta — planeja procurar a seguir? Você acha que eles cruzaram para outro setor? — A voz dele está estranha. Divertida.
Olho seu rosto sorridente.
Ele só está me fazendo essas perguntas para me testar. Ele tem suas próprias respostas, sua solução já preparada. Ele quer me ver falhar ao responder incorretamente. Está tentando provar que, sem ele, eu tomaria as decisões erradas.
Ele está se divertindo às minhas custas.
— Não — digo a ele, com a voz sólida e firme. — Não acho que vão fazer algo tão idiota como atravessar para outro setor. Eles não têm acesso, meios ou capacidade para isso. Ambos os homens estão severamente feridos, perdendo sangue rapidamente, e estão distantes de qualquer ajuda de emergência. Provavelmente estão mortos agora. A garota talvez seja a única sobrevivente, e ela não pode ter ido muito longe, pois não conhece como andar por aquelas áreas. Ela ficou isolada muito tempo; tudo nesse lugar é completamente estranho para ela. Além do que, ela não sabe dirigir, e se por acaso ela conseguisse dirigir um veículo, teríamos sido informados da propriedade roubada. Se levarmos em consideração seu estado geral de saúde, sua propensão a se esgotar fisicamente muito rápido, e a falta de acesso à comida, água e atenção médica, ela deve estar desmaiada num raio de dez quilômetros desse suposto terreno baldio. Temos que encontrá-la antes que morra congelada.
Meu pai pigarreia.
— Sim — ele diz —, são teorias interessantes. E, talvez, sob outras circunstâncias, elas poderiam até ser verdadeiras. Mas você está se esquecendo de me falar do detalhe mais importante.
Olho nos olhos dele.
— Ela não é normal — ele conclui, recostado à sua cadeira. — E ela não é a única da sua espécie.
Meu coração acelera. Pisco rápido demais.
— Ah, vamos lá, você não suspeitou de nada? Não criou nenhuma hipótese? — Ele ri. — Parece impossível, estatisticamente, que ela seja a única desse tipo que foi produzida pelo nosso mundo. Você sabia disso, mas não quis acreditar. E eu vim aqui para lhe dizer que é verdade. — Ele curva a cabeça ligeiramente em minha direção. Dá um sorriso largo e vibrante. — Existem muitos deles. E eles a recrutaram.
— Não. — Solto o ar.
— Eles se infiltraram em suas tropas. Vivem no seu meio em segredo. E agora roubaram seu brinquedinho e fugiram com ele. Só Deus sabe como esperam manipulá-la em seu próprio benefício.
— Como pode ter tanta certeza? — indago. — Como sabe que eles conseguiram levá-la com eles? Kent estava meio morto quando o deixei...
— Preste atenção, filho. Estou lhe afirmando que eles não são normais. Eles não seguem suas regras; não há nenhuma lógica que os oriente. Você não tem ideia das esquisitices de que são capazes. — Uma pausa. — Além do mais, tenho conhecimento já há algum tempo, de um grupo deles que vive disfarçado nessa área. Mas durante todo esse tempo eles sempre se mantiveram afastados. Eles não interferem em meus métodos, e achei melhor deixá-los morrer sozinhos sem causar um pânico desnecessário na nossa população civil. Você entende, é claro — ele diz. — Afinal de contas, é muito difícil conter pelo menos um deles. Eles são a coisa mais bizarra de se ver.
— Você sabia? — Estou de pé agora. Tentando ficar calmo. — Você sabia da existência deles, durante todo esse tempo, e assim mesmo não fez nada? Não disse nada?
— Não julguei necessário.
— E agora? — exijo.
— Agora parece pertinente.
— Inacreditável! — Levanto as mãos para o alto. — Que você escondesse de mim tal informação! Quando sabia dos meus planos para ela... quando sabia o sacrifício que foi trazê-la aqui...
— Acalme-se — ele pede. Ele estica as pernas; apoia o tornozelo de uma perna no joelho da outra. — Vamos encontrá-los. Esse terreno abandonado que Delalieu mencionou — a área onde o carro deixou de ser rastreado? Esse é o nosso ponto de partida. Eles devem estar escondidos nos subterrâneos. Devemos encontrar a entrada e os destruir em silêncio, por dentro. Então os teremos punido, e evitamos que o resto se revolte e inspire a rebelião no nosso povo.
Ele se inclina para frente.
— Os civis escutam tudo. E, no momento, estão vibrando com um novo tipo de energia. Estão se sentindo motivados ao perceberem que um deles conseguiu escapar e que você saiu ferido no processo. Isso faz nossas defesas parecerem fracas e fáceis de serem penetradas. Precisamos destruir essa percepção reequilibrando a balança. O medo irá retornar tudo para seu devido lugar.
— Mas eles estão procurando — digo a ele. — Meus homens. Eles vasculham a área todos os dias e ainda não encontraram nada. Como pode ter certeza que iremos descobrir alguma coisa, afinal de contas?
— Porque — ele explica — você vai liderá-los. Todas as noites. Depois do toque de recolher, enquanto os civis dormem. Você não vai interromper as buscas durante o dia; não vai dar a eles motivo para terem o que falar. Aja em silêncio, meu filho. Não mostre suas jogadas. Vou permanecer na base e supervisionar suas responsabilidades com meus homens; vou dar ordens a Delalieu se for necessário. E nesse ínterim, você irá encontrá-los, para que eu possa destruí-los o mais rápido possível. Essa loucura já está durando tempo demais — ele diz — e eu não estou mais a fim de ser generoso.
Capítulo 18
Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito mesmo por favor me perdoe.
Foi um acidente.
Me perdoe
Por favor me perdoe
Há pouca coisa que eu permito que as pessoas descubram a meu respeito. Há ainda menos coisas que estou disposto a partilhar sobre mim mesmo. E entre as muitas coisas que nunca discuti com ninguém, é esta.
Gosto de tomar banhos demorados.
Sempre tive uma obsessão por limpeza desde que era pequeno. Sempre fui tão focado em morte e destruição que acho que compenso isso me mantendo o mais intacto possível. Tomo chuveiradas com frequência. Escovo e passo fio dental nos dentes pelo menos três vezes ao dia. Corto meu cabelo toda semana. Esfrego minhas mãos e unhas antes de me deitar e assim que acordo. Tenho uma preocupação doentia em usar apenas roupas que acabaram de ser lavadas. E todas as vezes que passo por alguma emoção mais forte, a única coisa que acalma meus nervos é um banho bem demorado.
Então é isso que vou fazer agora.
Os médicos me ensinaram como prender meu braço ferido no mesmo plástico que eles usaram antes, então posso mergulhar abaixo da superfície sem problemas. Afundo minha cabeça por um longo período, seguro a respiração e solto o ar pelo nariz. Sinto as borbulhas virem à tona.
A água morna me faz sentir leve. Ela carrega meu peso para mim, compreendendo que preciso de um momento para aliviar meus ombros desse peso. Para fechar meus olhos e relaxar.
Meu rosto rompe a superfície da água.
Não abro meus olhos; apenas meu nariz e minha boca respiram o oxigênio do outro lado. Faço respirações curtas e regulares para acalmar a mente. Já é tão tarde que nem sei mais que horas são; tudo que sei é que a temperatura caiu significativamente, e o ar frio está fazendo cócegas no meu nariz. É uma sensação estranha, ter 98 por cento do meu corpo boiando numa temperatura quente e agradável, enquanto meus lábios e meu nariz se contraem com o frio.
Mergulho meu rosto na água novamente.
Poderia viver aqui para sempre, eu acho. Viver onde a gravidade não sabe que eu existo. Aqui estou solto, sem restrições das amarras da vida. Sou um corpo diferente, uma concha diferente, e meu corpo é levado pelas mãos dos amigos. Tantas noites desejei poder cair no sono debaixo desse lençol.
Mergulho mais fundo.
Em uma semana, minha vida inteira mudou.
Minhas prioridades mudaram de foco. Minha concentração, destruída. Tudo com que me importo agora se resume a uma pessoa e, pela primeira vez na vida, não sou eu mesmo. Suas palavras estão marcadas na minha mente. Não consigo parar de imaginar como ela deve ter sido, não consigo deixar de imaginar o que ela deve ter vivenciado. Encontrar seu diário me deixou arrasado. Meus sentimentos por ela saíram do controle. Nunca estive tão desesperado para vê-la, para conversar com ela.
Quero que ela saiba que eu entendo agora. Que eu não entendia antes. Ela e eu somos iguais; em mais de uma maneira que eu possa ter imaginado.
Porém, agora, ela está fora do meu alcance. Ela foi para algum lugar com estranhos que não a conhecem e não se importam com ela do mesmo jeito que eu. Ela foi parar num ambiente estranho sem tempo para se adaptar e estou preocupado com ela. Uma pessoa na situação dela — com seu passado — não se recupera da noite para o dia. E agora, uma de duas coisas está prestes a acontecer: ou ela vai se fechar completamente, ou vai explodir.
Sento rápido demais, rompendo a barreira da água, ofegante.
Afasto o cabelo molhado do rosto. Me encosto na parede azulejada, deixando o ar frio me acalmar, clarear meus pensamentos.
Tenho que encontrá-la antes que ela se destrua.
Nunca antes quis cooperar com meu pai, nunca concordei com seus motivos ou seus métodos. Mas, nesse instante, estou disposto a fazer qualquer coisa para tê-la de volta.
E estou ansioso pela oportunidade de pular no pescoço de Kent.
O cretino traidor. O idiota que acha que conquistou uma garota bonita. Ele não tem ideia de quem ela seja. Não imagina no que ela pode se transformar.
E se ele pensa que é o par ideal para ela, está muito enganado, ele ainda é mais idiota do que eu imaginava.
Capítulo 19
— Onde está o café? — pergunto, meus olhos examinando a mesa.
Delalieu derruba o garfo. O talher de prata cai ruidosamente sobre os pratos de porcelana. Ele ergue os olhos, assustados.
— Senhor?
— Gostaria de experimentar — digo a ele, tentando passar manteiga na torrada com a mão esquerda. Olho em sua direção. — Você está sempre falando sobre o café, não é? Pensei em...
Delalieu dá um salto da mesa sem dizer uma palavra. Sai correndo pela porta.
Dou uma risada silenciosa para o meu prato.
Delalieu traz a bandeja do chá e café pessoalmente e a coloca perto da minha cadeira. Suas mãos tremem enquanto ele despeja o líquido escuro numa xícara de chá, a coloca sobre um pires, põe sobre a mesa e a empurra em minha direção.
Espero até ele se sentar para tomar um gole. É uma bebida estranha, terrivelmente amarga; nada como eu imaginava. Olho para ele surpreso por saber que um homem como Delalieu começa seu dia tomando um líquido de gosto tão forte e horrível. Descubro um novo respeito pelo homem.
— Não é tão ruim assim — digo a ele.
Seu rosto se abre num sorriso tão grande, tão sereno, que imagino se ele me entendeu mal. Ele está praticamente radiante quando responde:
— Tomo o meu com creme e açúcar. O gosto fica bem melhor do que...
— Açúcar. — Abaixo a xícara. Fechos os lábios e me controlo para não sorrir. — Você coloca açúcar nisso. Claro que sim. Isso faz mais sentido.
— Gostaria de um pouco, senhor?
Levanto minha mão. Sacudo a cabeça.
— Chame as tropas, tenente. Vamos suspender as missões durante o dia e, ao invés disso, faremos incursões noturnas depois do toque de recolher. Você vai permanecer na base — digo a ele — onde o supremo dará as ordens através de seus homens; cumpra as ordens que eles derem. Eu mesmo vou liderar o grupo. — Paro. Olho direto nos olhos dele. — Não se fala mais nada do que aconteceu. Não há nada para os civis verem ou falarem. Você entende?
— Sim, senhor — ele diz, esquecendo o café. — Vou dar as ordens imediatamente.
— Ótimo.
Ele se levanta.
Eu aceno com a cabeça.
Ele se retira.
Estou começando a sentir esperança pela primeira vez desde que ela foi embora. Vamos encontrá-la. Agora, com essa nova informação — com um exército inteiro contra um grupo de rebeldes despreparados — parece impossível não vencermos.
Respiro fundo. Tomo outro gole do café.
Estou surpreso ao perceber como gostei do seu gosto amargo.
Capítulo 20
Meu pai está à minha espera quando volto para meu quarto.
— As ordens foram dadas — digo a ele sem olhar em sua direção. — Vamos mobilizar as tropas hoje à noite. — Hesito. — Bem, se pode me desculpar, tenho outros assuntos para tratar.
— Qual a sensação? — ele indaga. — De estar tão incapacitado? — ele pergunta sorrindo. — Como você aguenta se ver no espelho, sabendo que foi atacado por um de seus próprios subordinados?
Faço uma pausa do lado de fora da porta que leva ao meu escritório.
— O que você quer?
— Qual — é seu interesse por essa garota? — ele indaga.
Minhas costas enrijecem.
— Ela é mais do que apenas uma experiência para você, não é?
Giro o corpo lentamente. Ele está parado no meio do meu quarto, com as mãos nos bolsos, e com um sorriso aparentando nojo.
— Do que você está falando?
— Dê uma olhada em si mesmo — ele diz. — Eu ainda nem disse o nome dela e parece que você vai desabar. — Ele sacode a cabeça, ainda me examinando de perto. — Seu rosto está pálido, sua mão que funciona está crispada. Está com a respiração ofegante e seu corpo está tenso. — Uma pausa. — Você se traiu, filho. Você se acha muito esperto — ele diz —, mas se esquece de quem lhe ensinou todos os truques.
Fico quente e gelado ao mesmo tempo. Tento relaxar as mãos, mas não consigo. Quero dizer a ele que não há nada errado, mas repentinamente estou me sentindo meio zonzo, desejando ter comido um pouco mais no café da manhã, e ao mesmo tempo desejando não ter comido nada.
— Tenho trabalho a fazer — consigo dizer.
— Me diga — ele pergunta — que você não se importa se ela morrer junto com os outros.
— O quê? — As palavras trêmulas e nervosas escapam rápido demais dos meus lábios.
Meu pai abaixa o olhar. Ele cerra e descerra os punhos.
— Você já me desapontou de tantas maneiras — ele diz com a voz aparentemente suave. — Por favor, não faça isso novamente.
Por um momento sinto como se estivesse fora do meu corpo, me olhando pela perspectiva dele. Vejo meu rosto, meu braço ferido, essas pernas que de repente parecem incapazes de carregar meu peso. Fendas começam a se criar ao longo do meu rosto, pelos meus braços, meu tronco e minhas pernas.
Imagino que seja assim que alguém desmorona.
Não percebo que ele disse meu nome, até ele repeti-lo uma segunda vez.
— O que você quer de mim? — pergunto, surpreso, ao perceber como pareço calmo. — Você entrou no meu quarto sem permissão; fica parado aí e me acusa de coisas que ainda nem consegui entender. Estou seguindo suas regras, suas ordens. Vamos partir hoje à noite; vamos encontrar o esconderijo deles. Você pode destruí-los do jeito que achar melhor.
— E sua garota? — ele diz inclinando a cabeça em minha direção. — Sua Juliette?
Me contraio ao ouvir o nome dela. Meu pulso bate tão forte que parece um sussurro.
— Se eu desse três tiros na cabeça dela, como se sentiria? — Ele me encara. Me observa. — Desapontado, porque você perdeu seu brinquedinho de estimação? Ou arrasado porque perdeu a garota que ama?
O tempo nesse momento parece estar mais lento, se derretendo à minha volta.
— Seria um desperdício — digo, ignorando o tremor que sinto por dentro, e que ameaça transbordar — perder algo no qual investi tanto tempo.
Ele sorri.
— É bom saber que você vê as coisas dessa forma — ele diz. — Mas projetos são facilmente substituíveis. E tenho certeza que poderemos encontrar um uso melhor e mais prático para seu tempo.
Pisco os olhos devagar. Parte do meu peito está destroçado.
— Claro. — Me ouço dizer.
— Sabia que entenderia. — Ele dá um tapinha no meu ombro machucado ao sair do quarto. Meus joelhos quase se dobram. — Valeu o esforço, filho. Mas ela nos custou muito tempo e dinheiro e se provou completamente inútil. Desse modo estaremos nos livrando de várias inconveniências ao mesmo tempo. Vamos considerar isso um efeito colateral. — Ele me dá um último sorriso antes de passar por mim e sair pela porta.
Caio de encontro à parede.
E me amontoo no chão.
Capítulo 21
É só engolir as lágrimas com bastante frequência que elas vão começar a parecer ácido escorrendo pela sua garganta. É aquele momento terrível quando você está sentada quieta tão quieta porque você não quer que a vejam chorar você não quer chorar, mas seus lábios não param de tremer e seus olhos estão cheios até a borda com súplica e eu imploro e por favor e me desculpe e tenha piedade e talvez dessa vez será diferente mas é sempre igual. Não tem onde se esconder. Ninguém ao seu lado.
Acenda uma vela para mim, eu costumava murmurar para o nada.
Alguém
Qualquer um
Se você está aí fora
Por favor me diga que pode sentir esse fogo.
É o dia cinco das nossas patrulhas, e nada ainda.
Lidero o grupo todas as noites, marchando em silêncio nessas paisagens frias de inverno. Procuramos por passagens escondidas, bueiros camuflados — qualquer indicação de que possa existir outro mundo sob nossos pés.
E toda noite retornamos para a base sem nada.
A futilidade desses últimos dias me atinge, amortecendo meus sentidos, me deixando numa espécie de torpor do qual não consigo me livrar. Todo dia acordo procurando uma solução para os problemas que eu mesmo provoquei, mas não tenho ideia de como consertar isso.
Se ela está lá fora, iremos encontrá-la. E ele a matará.
Só para me ensinar uma lição.
Minha única esperança é encontrá-la primeiro. Talvez possa escondê-la. Ou dizer a ela para fugir. Ou fingir que ela já está morta. Ou talvez convencê-lo que ela é diferente, melhor que os outros; que vale a pena deixá-la viver.
Pareço um idiota patético e desesperado.
Sou uma criança novamente, me escondendo nos cantos escuros e rezando para ele não me encontrar. Esperando que ele esteja de bom humor hoje. Que talvez tudo dê certo. Que talvez minha mãe não vá estar gritando dessa vez.
Incrível como eu rapidamente me reverto para outra versão de mim mesmo na presença dele.
Fico entorpecido.
Tenho realizado minhas tarefas mecanicamente; isso exige apenas um esforço mínimo. Andar é simples. Comer é algo ao qual me acostumei.
Não consigo parar de ler seu diário.
Meu coração sofre, de certo modo, mas não consigo deixar de virar as páginas. Sinto como se estivesse batendo num muro invisível, como se meu rosto estivesse envolto em plástico e eu não pudesse respirar, não pudesse ver, nem ouvir qualquer som a não ser as batidas do meu próprio coração pulsando nos meus ouvidos.
Quis poucas coisas nessa vida.
Não pedi nada a ninguém.
E, agora, tudo que estou pedindo é outra chance. Uma oportunidade de vê-la novamente. Mas a menos que descubra um jeito de impedi-lo, essas palavras são as únicas coisas que restarão dela.
Esses parágrafos e essas sentenças. Essas cartas.
Fiquei obcecado. Carrego esse caderninho comigo para todos os lugares por onde vou, passo todo meu tempo livre tentando decifrar as palavras que ela rabiscou nas margens, criando histórias para acompanhar os números que ela escreveu.
Também notei que a última página está faltando. Arrancada.
Não consigo imaginar por que. Procurei uma centena de vezes no livro todo, procurando nas outras seções onde essa página poderia estar, mas não achei nada. E de certa forma me sinto enganado, sabendo que tem um trecho que não vi. Não é nem mesmo o meu diário; não tenho nada a ver com isso, mas li as palavras dela tantas vezes que sinto que agora elas são minhas. Posso praticamente recitá-las de cor.
É estranho saber o que se passa na cabeça dela e não poder vê-la. Sinto que ela está aqui, bem na minha frente. Sinto que a conheço tão intimamente, tão secretamente. Fico seguro na companhia dos seus pensamentos; de certo modo me sinto acolhido. Compreendido. Tanto que às vezes eu esqueço que foi ela quem colocou esse buraco de bala no meu braço.
Quase esqueço que ela ainda me odeia, apesar de eu ter me apaixonado tão intensamente por ela.
E me apaixonei.
Perdidamente.
Fui até o fundo do poço. Até o fim. Nunca me senti assim na minha vida. Nada parecido. Senti vergonha e covardia, fraqueza e força. Conheci o terror e a indiferença, ódio de mim mesmo e repugnância geral. Vi coisas que não podem ser vistas.
E ainda assim nunca havia experimentado esse sentimento terrível, horrível e paralisante. Me sinto aleijado. Desesperado e fora de controle. E está ficando pior. Todos os dias me sinto doente. Vazio e ferido por dentro.
O amor é um cretino perverso e sem coração.
Estou ficando louco.
Caio de costas na cama, completamente vestido. Casaco, botas, luvas. Estou cansado demais para tirar a roupa. Essas rondas noturnas têm me deixado pouco tempo para dormir. Parece que estou em constante estado de exaustão.
Minha cabeça cai no travesseiro e pisco uma vez. Duas.
Desmaio.
Capítulo 22
— Não. — Me ouço dizer. — Você não deveria estar aqui.
Ela está sentada na minha cama. Está apoiada nos próprios cotovelos, com as pernas esticadas à sua frente, cruzadas nos tornozelos. E apesar de uma parte de mim saber que devo estar sonhando, tem um outro lado, uma parte esmagadoramente dominante que se recusa a aceitar isso. Parte de mim quer acreditar que ela está aqui, perto de mim, usando esse vestidinho preto justo que fica exibindo suas pernas. Mas tudo nela está diferente, estranhamente vibrante; as cores estão erradas. Seus lábios estão com um tom profundo de rosa, bem intenso; seus olhos estão maiores, mais escuros. Ela está usando sapatos que eu nunca a tinha visto usar. E o mais estranho de tudo: ela está sorrindo para mim.
— Oi — ela murmura.
É só uma palavra, mas meu coração dispara. Estou me afastando dela, quase batendo a cabeça na cabeceira da cama, quando percebo que meu braço não está mais ferido. Olho para baixo, para mim mesmo. Meus dois braços estão funcionando. Estou vestindo apenas uma camiseta e uma cueca.
Ela muda de posição num instante, ficando de joelhos antes de vir rastejando para cima de mim. Ela sobe no meu colo. Agora está montada sobre mim. De repente minha respiração se acelera.
Seus lábios encostam nos meus ouvidos. Suas palavras são meigas.
— Me beije — ela diz.
— Juliette...
— Vim até aqui. — Ela ainda está sorrindo para mim. É um sorriso raro, do tipo que ela nunca antes havia me presenteado. Mas por estranho que pareça, agora ela é minha. Ela é minha e é perfeita e me quer, e não vou lutar contra isso.
Não quero lutar.
Suas mãos estão puxando minha camiseta, tirando-a pela cabeça. Jogando-a no chão. Ela se inclina e beija meu pescoço, só uma vez, bem devagarzinho. Meus olhos se fecham.
Não há palavras no mundo para descrever o que estou sentindo.
Sinto suas mãos percorrerem meu peito, meu estômago; seus dedos deslizarem pela beirada da minha cueca. Seu cabelo despenca para frente, roçando minha pele, e tenho que fechar os punhos para evitar prendê-la na minha cama.
Cada terminação nervosa do meu corpo está pulsando. Nunca me senti tão vivo nem tão desesperado em toda a minha vida, e tenho certeza de que se ela pudesse saber o que estou pensando nesse momento, ela sairia por aquela porta e nunca mais voltaria.
Porque eu a quero.
Agora.
Aqui.
Em todo lugar.
Não quero nada entre nós.
Quero tirar suas roupas, acender as luzes e quero estudá-la de perto. Quero abrir o zíper do seu vestido e me demorar em cada centímetro do seu corpo. Não consigo deixar de querer olhar para ela; de conhecê-la e a seus traços: o declive do seu nariz, a curva dos seus lábios, a linha do seu rosto. Quero percorrer com meus dedos a pele macia do seu pescoço e deslizar até embaixo. Quero sentir o peso do corpo dela sobre o meu, me envolvendo.
Não consigo pensar numa razão para isso não ser certo nem real. Não consigo me concentrar em nada mais, a não ser nela sentada no meu colo, tocando meu peito, e me olhando nos olhos como se realmente me amasse.
Chego a imaginar que morri.
Mas bem quando eu me aproximo, ela se afasta, sorrindo antes de eu alcançá-la, nunca afastando seus olhos.
— Não se preocupe — ela sussurra. — Está quase acabado agora.
Suas palavras parecem tão estranhas, e ao mesmo tempo tão familiares.
— O que quer dizer com isso?
— Só um pouco mais e eu vou embora.
— Não. — Estou piscando rápido, tentando segurá-la. — Não, não vá. Onde você está indo...
— Você vai ficar bem — ela diz. — Prometo.
— Não...
Mas agora ela está segurando uma arma.
E a apontando para o meu coração.
Capítulo 23
Essas letras são tudo que me sobrou.
26 amigos para quem contar minha história.
26 letras são tudo que eu preciso para criar oceanos e ecossistemas. Posso combiná-las para formar planetas e sistemas solares. Posso usar letras para construir arranha-céus e metrópoles cheias de gente, lugares, coisas e ideias que são mais reais que essas quatro paredes.
Não preciso de nada além de palavras para viver. Sem elas eu não existiria.
Porque essas palavras que escrevo são a única prova de que ainda estou viva.
Está extraordinariamente frio esta manhã.
Sugiro que a gente faça um passeio descompromissado pelos complexos bem cedo só para ver se algum cidadão parece suspeito ou deslocado. Estou começando a imaginar se Kent e Kishimoto, e todos os outros, estão vivendo em segredo entre as pessoas. Eles devem, afinal de contas, receber alguma ajuda para encontrar comida e água — algo que os prenda à sociedade; duvido que possam plantar alguma coisa debaixo da terra. Mas é claro, são só suposições. Eles podem ter alguém que consegue plantar algo no ar.
Rapidamente dou instruções para meus homens; os oriento para se dispersarem e continuarem sem chamar a atenção. O trabalho deles é observar todo mundo hoje, e relatar o que descobriram para mim.
Assim que se foram, fico sozinho para olhar em volta e pensar. É um lugar perigoso para se esconder.
Meu Deus, ela parecia tão real nos meus sonhos.
Fecho os olhos, cobrindo o rosto com as mãos; meus dedos tocam meus lábios de leve. Posso sentir o toque dela. Na verdade, posso senti-la. Só de pensar nisso, meu coração acelera. Não sei o que vou fazer se continuar a ter sonhos tão intensos com ela. Não vou ser capaz de trabalhar direito.
Respiro fundo, controlando a respiração e me concentrando. Deixo meus olhos perambularem naturalmente, não posso evitar me distrair com as crianças correndo em volta. Parecem tão animadas e despreocupadas. Sei que parece estranho, mas fico triste ao ver que eles conseguiram encontrar felicidade nessa vida. Elas não têm nem ideia do que perderam; nem imaginam como o mundo costumava ser.
Alguma coisa se aproxima e bate nas minhas pernas.
Ouço um arquejo estranho e cansado; me viro.
É um cachorro.
Um cachorro cansado e faminto, tão magro e frágil que parece que pode ser levado pelo vento. Mas ele está me olhando. Sem medo. Com a boca aberta. A língua balançando.
Tenho vontade de dar risada.
Olho em volta rapidamente antes de pegar o cachorro nos braços. Não preciso dar ao meu pai outro motivo para me castrar, e não confio que meus soldados não irão contar uma coisa assim.
Que eu estava brincando com um cachorro.
Posso até escutar as coisas que meu pai iria me dizer.
Carrego a criatura chorosa até uma das casas que haviam sido desocupadas recentemente — vi apenas três famílias saindo para o trabalho — e me abaixo por trás de uma das cercas. O cachorro parece ser bem esperto para saber que agora não é hora de latir.
Tiro minhas luvas e ponho a mão no bolso para pegar um pãozinho doce que havia trazido como café da manhã; não tive tempo de comer nada antes de sairmos hoje cedo. E embora eu não faça ideia do que um cachorro coma, exatamente, eu lhe dou o pãozinho.
O cachorro praticamente o agarra da minha mão.
Ele engole o pãozinho em duas bocadas e começa a lamber os meus dedos, pulando no meu peito, todo empolgado, aproveitando o calor do meu casaco aberto. Não consigo segurar a risada que escapa dos meus lábios; nem quero. Há muito tempo não me sinto assim. E não posso evitar ficar espantado com o poder que animaizinhos tão pequenos exercem sobre nós; eles rompem nossas resistências com a maior facilidade.
Passo minhas mãos pelo seu pelo surrado, sentindo as pontas das costelas aparecendo em ângulos desconfortáveis. Mas o cachorro não parece se importar com seu estado de inanição, pelo menos não agora. Seu rabo está balançando furiosamente, e ele fica pulando no meu peito para me olhar. Começo a pensar que deveria ter enfiado mais alguns pãezinhos doces no meu bolso antes de sair.
Algo estala.
Ouço um suspiro.
Olho em volta.
Dou um pulo, alerta, procurando o barulho. Parecia bem perto. Alguém me viu. Alguém... Um civil. Ela já está escapando, seu corpo apertado de encontro a uma das paredes da casa.
— Ei! — grito. — Você aí...
Ela para. Olha para cima.
Eu quase desmaio.
Juliette.
Ela está me olhando. Ela realmente está aqui, olhando para mim, com os olhos arregalados e assustados. Minhas pernas parecem ser feitas de chumbo. Estou preso no chão, incapaz de dizer uma palavra sequer. Nem sei por onde começar. São tantas coisas que gostaria de dizer a ela, tantas coisas que eu nunca disse, e eu estou simplesmente tão feliz ao vê-la.
— Deus, estou tão aliviado...
Ela desapareceu.
Olho em volta, em pânico, imaginando se estou começando a perder meu senso de realidade. Meus olhos se voltam para o cachorrinho que ainda está parado ali, esperando por mim, e eu olho para ele estupefato, imaginando o que havia acontecido. Fico olhando para o lugar onde a vi, mas não vejo nada.
Nada.
Passo a mão pelos cabelos, tão confuso, tão horrorizado e irritado comigo mesmo, que fico tentado a arrancar minha cabeça.
O que está acontecendo comigo?
Capítulo 12
Um dos homens do meu pai está me esperando do lado de fora da minha porta.
Olho de relance em sua direção, mas não o suficiente para reconhecer suas feições.
— Diga qual o assunto, soldado.
— Senhor — ele diz —, recebi ordens para lhe informar que o comandante supremo solicita sua presença em seus alojamentos para o jantar às vinte horas.
— Considere sua mensagem recebida. — Dou um passo para abrir minha porta.
Ele dá um passo à frente, bloqueando minha passagem.
Viro o corpo para olhar para ele.
Ele está parado a alguns passos de distância de mim: um ato implícito de desrespeito; um nível de intimidade que nem mesmo Delalieu se permite. No entanto, ao contrário dos meus homens, os bajuladores que cercam meu pai se consideram especiais. Ser um membro da guarda de elite do comandante supremo é considerado um privilégio e uma honra. Eles se reportam diretamente a ele.
E nesse exato momento, esse soldado está tentando provar que é superior a mim.
Ele tem inveja de mim. Pensa que sou indigno de ser o filho do comandante supremo do Restabelecimento. Isso está praticamente escrito no rosto dele.
Tenho que segurar meu impulso de cair no riso quando encaro seus frios olhos cinza e o buraco negro que é sua alma. Ele tem as mangas enroladas na altura do cotovelo, suas tatuagens militares claramente definidas e à mostra. Os círculos concêntricos de tinta preta em volta dos seus braços são acentuados em vermelho, verde e azul, o único sinal para indicar que ele é um soldado de patente elevada. É um ritual doentio do qual sempre fiz questão de me recusar a participar.
O soldado ainda está me encarando.
Inclino minha cabeça em sua direção, ergo minhas sobrancelhas.
— Recebi ordens — ele declara — de esperar uma resposta oral aceitando esse convite.
Demoro um pouco, pensando nas minhas escolhas, mas não havia nenhuma.
Eu, como todos os fantoches desse mundo, sou completamente subserviente aos desejos do meu pai. É verdade que sou forçado a lutar todos os dias: que nunca serei capaz de enfrentar o homem que tem seus punhos cerrados em volta da minha espinha vertebral.
Isso me faz odiar a mim mesmo.
Encaro os olhos do soldado e imagino, por um breve momento, qual o nome dele, antes de perceber que não me importo com isso.
— Considere-o aceito.
— Sim, s...
— E da próxima vez, soldado, não se aproxime a menos de um metro e meio de distância de mim, sem pedir permissão.
Ele pisca os olhos, confuso.
— Senhor, eu...
— Você está confuso — o interrompo. — Acredita que trabalhar com o comandante supremo lhe dá imunidade das regras que governam a vida dos outros soldados. Veja, você está errado.
Seu rosto se enrijece.
— Nunca se esqueça — digo baixinho agora — que se eu quisesse o seu emprego, eu o teria. E não se esqueça de que o homem que você serve tão ansiosamente é o mesmo homem que me ensinou a atirar com uma arma de fogo quando eu tinha apenas nove anos de idade.
Suas narinas se dilatam. Ele olha direto para frente.
— Entregue sua mensagem, soldado. E então relembre isso e nunca mais fale comigo novamente.
Os olhos dele agora estão presos num ponto diretamente atrás de mim, seus ombros rígidos.
Espero.
Seu maxilar ainda está rígido. Lentamente ele levanta sua mão em saudação.
— Está dispensado — digo.
Tranco a porta do meu quarto e me encosto nela. Preciso de apenas um momento. Pego o vidrinho que está na mesinha de cabeceira e tiro duas pílulas quadradas; as jogo na boca, fechando meus olhos enquanto se dissolvem.
A escuridão atrás das minhas pálpebras é um alívio reconfortante.
Até que a lembrança do rosto dela se impõe à minha percepção.
Me sento na cama e deixo a cabeça cair na minha mão. Não deveria estar pensando nela agora. Tenho horas de papelada para separar e o estresse da presença do meu pai para aguentar. Jantar com ele vai ser um espetáculo. Um espetáculo de arrasar a alma.
Fecho meus olhos com força e faço um pequeno esforço para construir as paredes que com certeza limpariam minha mente. Mas dessa vez elas não funcionam. O rosto dela insiste em surgir subitamente, seu diário me provocando lá no fundo do meu bolso.
E começo a perceber que tem uma pequena parte de mim que não deseja afastar os pensamentos dela. Uma parte de mim gosta da tortura.
Essa garota está me destruindo.
Uma garota que passou o último ano internada num sanatório de loucos. Uma garota que tentou me matar porque eu a beijei. Uma garota que fugiu com outro homem só para se afastar de mim.
É claro que essa é a garota por quem eu iria me apaixonar.
Coloco a mão na boca.
Estou perdendo a cabeça.
Tiro minhas botas. Me enfio na cama e deixo a cabeça cair nos travesseiros.
Ela dormiu aqui, penso. Ela dormiu na minha cama. Ela acordou na minha cama. Ela estava aqui e deixei que ela escapasse.
Falhei.
Perdi.
Nem percebo que tirei o diário dela do bolso e o estou segurando em frente do rosto. Olhando para ele. Estudando sua capa desbotada numa tentativa de entender onde ela pode ter adquirido isso. Ela deve ter roubado de algum lugar, embora não consiga imaginar onde.
Há tantas coisas que eu gostaria de perguntar a ela. Tantas coisas que gostaria de lhe dizer.
Ao invés disso, abro seu diário e leio.
Às vezes fecho meus olhos e pinto essas paredescom cores diferentes.
Imagino que estou usando meias quentinhas e estou sentada perto do fogo. Imagino que alguém me deu um livro para ler, uma história para me levar para longe da tortura da minha própria mente. Quero ser alguém em algum outro lugar com alguma outra coisa a ocupar minha cabeça. Quero correr, quero sentir o vento batendo nos cabelos. Quero fingir que isso é simplesmente uma história dentro de outra história. Que essa cela é apenas um cenário, que essas mãos não me pertencem, que essa janela dá para um lugar lindo, se pelo menos eu conseguisse abri-la. Finjo que essa fronha é limpa, finjo que a cama é macia. Finjo e finjo e finjo até que o mundo fica maravilhoso por trás dos meus olhos e já não consigo mais contê-lo. Mas então meus olhos se abrem e sou agarrada pela garganta por um par de mãos que não param de me sufocar sufocar sufocar...
Meus pensamentos, acho, logo serão ouvidos.
Minha mente, espero, logo será descoberta.
O diário cai da minha mão e bate no meu peito. Passo a mão pelo rosto, pelo meu cabelo. Massageio o pescoço e me puxo com força para cima a ponto de bater a cabeça na cabeceira da cama, e na verdade fico grato a isso. Me demoro um pouco sentindo a dor.
E viro a página.
Imagino o que eles estão pensando. Meus pais. Imagino onde estão. Penso se eles estão bem agora, se estão felizes agora,se eles finalmente conseguiram o que queriam.Imagino se minha mãe vai querer ter outro filho. Imagino se alguém vai ter a bondade de me matar, e imagino se o inferno não é melhor do que aqui. Imagino como está meu rosto agora. Imagino se algum dia vou poder respirar o ar fresco novamente.
Imagino tantas outras coisas.
Às vezes fico acordada durante dias simplesmente contando tudo que encontro. Conto as paredes, as rachaduras na parede, meus dedos dos pés e das mãos. Conto as molas da cama, os fios do cobertor, quantos passos para ir para frente e para trás no meu quarto. Conto meus dentes e cada fio de cabelo na minha cabeça e o número de segundos em que consigo prender minha respiração.
Mas às vezes fico tão cansada que esqueço que não tenho mais permissão para desejar mais nada, e me descubro desejando a única coisa que sempre quis. A única coisa com a qual sempre sonhei.
Sempre desejei ter um amigo.
Sonho com isso. Imagino como seria. Sorrir e receber um sorriso de volta. Ter alguém em quem confiar que não iria jogar as coisas em mim, nem colocar minhas mãos no fogo ou me bater por ter nascido. Alguém que iria saber que fui colocada para fora de casa e tentaria me achar, que nunca teria medo de mim.
Alguém que soubesse que eu nunca o machucaria.
Me vejo num canto desse quarto e enfio a cabeça nos meus joelhos e me balanço para frente e para trás para frente e para trás para frente e para trás e desejo e desejo e desejo coisas impossíveis até cair no sono de tanto chorar.
Imagino como seria ter um amigo.
E então imagino quem mais está preso neste hospício. Imagino de onde estão vindo os outros gritos.
Imagino se estão vindo de mim.
Tento me concentrar, dizendo a mim mesmo que são palavras vazias, mas estou mentindo. Porque, de algum modo, simplesmente ler essas palavras é demais; e pensar nela sofrendo está me deixando agoniado.
Saber que ela vivenciou isso.
Ela foi colocada nesse inferno pelos próprios pais, abandonada e maltratada a vida inteira. Empatia é uma emoção que eu não conhecia, mas agora toma conta de mim, me levando para um mundo que eu não sabia que podia penetrar. E embora sempre tenha acreditado que ela e eu tivéssemos muita coisa em comum, não sabia que podia sentir isso com tanta profundidade.
Isso está me matando.
Fico em pé. Começo a andar pelo quarto até acalmar meus nervos para continuar a leitura. Então respiro fundo.
E viro a página.
Tem alguma coisa fervilhando dentro de mim.
Algo que nunca ousei descobrir, algo que tenho medo de saber. Tem uma parte de mim lutando para se libertar da jaula onde estou presa, batendo nas portas do meu coração, suplicando para ser libertada.
Suplicando para ir embora.
Todos os dias sinto que revivo o mesmo pesadelo. Abro a boca para gritar, para lutar, para girar meus punhos, mas minhas cordas vocais estão cortadas, meus braços estão pesados e densos como se estivessem presos no cimento molhado e eu estou gritando mas ninguém me ouve, ninguém se aproxima e estou enjaulada. E isso está acabando comigo.
Sempre tive de bancar a submissa, subserviente, um pano de chão suplicante e passivo que fazia todo mundo se sentir seguro e confortável. Minha existência se tornou uma luta para provar que eu era inofensiva, não uma ameaça, que eu era capaz de viver entre outros seres humanos sem feri-los.
E estou tão cansada tão cansada tão cansada e às vezes chego a ficar com raiva.
Não sei o que está acontecendo comigo.
— Meu Deus, Juliette. — Suspiro.
E caio de joelhos.
— Chame o transporte imediatamente. — Preciso sair. Preciso sair daqui agora.
— Senhor? Isso é, sim, senhor, é claro... mas onde...
— Tenho que visitar os complexos — digo. — Tenho que fazer minhas rondas antes do meu compromisso dessa noite. — Isso é tanto verdade quanto mentira. Porém agora estou disposto a fazer qualquer coisa que me afaste desse diário.
— Ah, certamente, senhor. Gostaria que o acompanhasse?
— Isso não será necessário, tenente, mas obrigado pela oferta.
— Eu... se-senhor — ele gagueja. — É claro, é u-uma honra servi-lo, senhor, ajudá-lo...
Deus do céu, onde estou com a cabeça. Eu nunca digo obrigado a Delalieu. É muito provável que o pobre homem vá ter um infarto agora.
— Estarei pronto para sair em dez minutos — interrompo.
Ele começa a gaguejar, mas para. Então diz:
— Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Estou pressionando a boca com o punho quando a ligação é desconectada.
Capítulo 13
Tínhamos lares. Antes.
De todos os tipos diferentes.
Casas térreas. Sobrados. Casas de três andares.
Comprávamos enfeites para o jardim e luzinhas pisca-pisca, aprendíamos a andar de bicicleta sem rodinhas. Adquirimos vidas confinadas em 1,2 e 3 andares já construídos, andares contidos em estruturas que não podíamos mudar.
Vivemos nesses andares por algum tempo.
Seguimos a história que nos era contada, o texto preso em cada metro do espaço que havíamos conquistado. Ficamos contentes com a mudança no enredo que redirecionou nossa vida. Assinamos nas linhas pontilhadas por coisas pelas quais não nos importávamos realmente. Comíamos coisas que não deveríamos, gastávamos dinheiro quando não podíamos, esquecíamos a Terra que tínhamos de habitar e desperdiçávamos desperdiçávamos desperdiçávamos tudo. Comida. Água. Recursos.
Logo, os céus ficaram cinza com a poluição química, e as plantas e os animais ficaram doentes devido à modificação genética. E doenças se impregnaram no nosso ar, nas nossas refeições, nossos sangues e nossas casas. A comida desapareceu. As pessoas estavam morrendo. Nosso império estava caindo aos pedaços.
O Restabelecimento disse que nos ajudariam. Nos salvariam. Reconstruiriam nossa sociedade.
Ao invés disso, eles nos destroçaram.
Gosto de visitar os complexos.
É um lugar estranho para se buscar refúgio, mas sinto alguma coisa ao ver tantos civis num espaço tão vasto e aberto que me faz lembrar da minha missão. Fico tanto tempo preso nos limites dos muros do quartel-general do Setor 45, que frequentemente me esqueço dos rostos daqueles por quem lutamos e daqueles com quem estamos lutando.
Gosto de me lembrar.
Geralmente, visito cada aglomerado dos complexos; cumprimento os moradores e pergunto sobre suas condições de vida. Não consigo deixar de ficar curioso em saber como é a vida deles agora. Porque enquanto o mundo se transformou inteiramente para eles, meu mundo continuou o mesmo. Disciplinado. Isolado. Desolador.
Houve um tempo quando as coisas foram melhores, quando meu pai não era tão irritado. Eu tinha cerca de 4 anos. Ele costumava me fazer sentar em seu colo e brincar com seus bolsos. Eu podia pegar o que quisesse, desde que meu argumento fosse bem convincente. Era seu jeito de brincar.
Mas tudo isso foi antes.
Aperto meu casaco no corpo, sentindo o tecido se encostar nas minhas costas. Vacilo sem querer.
A vida que tenho agora é a única que importa. O sufoco, o luxo, as noites mal dormidas, e os corpos dos mortos. Sempre me ensinaram a me concentrar no poder e na dor, em ganhar e infligir.
Não lamento nada.
Aceito tudo.
É o único modo que encontrei de continuar vivendo nesse corpo maltratado. Esvazio minha mente das coisas que me infestam e sobrecarregam minha alma, e aceito o que puder dos pequenos prazeres que aparecem à minha frente. Não sei o que é ter uma vida normal; não sei como simpatizar com os cidadãos que perderam suas casas. Não faço ideia de como era a vida deles antes de o Restabelecimento tomar o poder.
Por isso gosto de passear pelos complexos.
Gosto de ver como as outras pessoas vivem; gosto de ter o poder de fazer com que respondam às minhas perguntas. Do contrário não teria como saber.
Mas o momento é errado.
Não prestei muita atenção ao relógio quando saí da base, e não percebi que o sol estava se pondo. A maioria dos civis está voltando para casa para descansar à noite, seus corpos curvados, encolhidos pelo frio enquanto se encaminhavam em direção aos aglomerados de metal que dividem com pelo menos outras três famílias.
As casas improvisadas são construídas com containers de navios de doze metros quadrados; eles são empilhados lado a lado e um em cima do outro, agrupados em grupos de cinco ou seis. Cada container foi isolado; equipado com duas janelas e uma porta. Escadas para o andar superior foram colocadas de cada lado de fora da estrutura. Os tetos são alinhados com painéis solares que fornecem eletricidade gratuita para cada grupo.
É algo do qual muito me orgulho.
Porque foi minha ideia.
Quando estávamos procurando por abrigos temporários para os civis, sugeri reformar os velhos containers de carga que ocupavam as docas de todos os portos do mundo. Não apenas eram baratos, facilmente reaproveitados, e altamente adaptáveis, mas podiam ser empilhados, eram portáteis e construídos independentemente do clima do lugar. Eles exigiam o mínimo de construção e, com a equipe certa, milhares de unidades habitacionais poderiam estar prontas em alguns dias.
Dei essa ideia para meu pai, pensando que essa seria a opção mais eficiente; uma solução temporária que seria menos desumana do que barracas; algo que ofereceria um abrigo real e confiável. Mas o resultado foi tão eficiente que o Restabelecimento não viu necessidade de renovação. Aqui, num terreno que costumava ser um lixão, assentamos milhares de containers; aglomerados de cubos retangulares e desbotados que são fáceis de monitorar e vigiar.
As pessoas ainda acreditam que essa é uma solução temporária. Que um dia voltarão para as lembranças de suas antigas vidas e as coisas serão lindas e brilhantes novamente. Mas tudo isso é mentira.
O Restabelecimento não tem planos de mudá-los de onde estão.
Os civis devem permanecer nessas áreas regulamentadas; esses containers se tornaram suas prisões. Tudo foi numerado. As pessoas, suas casas, seu grau de importância para o Restabelecimento.
Aqui, eles se tornaram parte de um enorme experimento. Um mundo no qual trabalham para manter as necessidades de um regime que faz promessas que nunca serão cumpridas.
Essa é a minha vida.
Esse triste mundo.
Na maior parte do tempo, me sinto como um civil; e é provavelmente por isso que vim até aqui. É como se estivesse indo de uma prisão para outra; numa existência onde não há escape, não há refúgio. Quando até mesmo minha mente me trai.
Eu deveria ser mais forte do que isso.
Tenho treinado há mais de uma década. Tenho trabalhado todos os dias para aprimorar minhas forças física e mental. Tenho 1 metro e 79 de altura e 77 quilos de músculos. Fui preparado para sobreviver, para maximizar a resistência e a energia, e fico perfeitamente à vontade segurando uma arma. Posso desmontar, limpar, recarregar, desarmar e remontar mais de 150 tipos de armas de fogo. Posso atirar no centro de um alvo, de praticamente qualquer distância. Posso quebrar o pescoço de uma pessoa com a lateral da mão. Posso paralisar temporariamente um homem com apenas os nós dos meus dedos.
No campo de batalha, sou capaz de me desconectar dos movimentos que aprendi a memorizar. Criei a reputação de ser alguém frio, um monstro que não teme nada nem ninguém.
Mas tudo isso é ilusório.
Porque a verdade é que não passo de um covarde.
Capítulo 14
O sol está se pondo.
Logo vou ter que retornar à base, onde vou me sentar quieto e ouvir meu pai falar, em vez de mandar bala na sua boca aberta.
Então tento ganhar tempo.
Fico parado e ouço barulhos vindos de longe e observo as crianças correrem, enquanto seus pais as levam para casa. Penso se um dia eles vão crescer o bastante para sacar que os cartões do Registro do Restabelecimento na verdade estão rastreando todos seus movimentos. Que o dinheiro que seus pais recebem pelo trabalho em alguma das muitas fábricas existentes ali é monitorado de perto. Essas crianças crescerão e finalmente entenderão que tudo que elas fazem está gravado, cada conversa é dissecada para se descobrir murmúrios de rebeliões. Eles não sabem que estão sendo criados perfis para cada cidadão, e que cada arquivo é bem grosso com documentação das suas amizades, relacionamentos, e hábitos de trabalho; até mesmo como gostam de passar seu tempo livre.
Sabemos tudo sobre todo mundo.
Demais.
Tanto é verdade que raramente me lembro que estamos lidando com gente de verdade, seres vivos, até vê-los nos complexos. Sei de cor o nome de quase todos os cidadãos do Setor 45. Gosto de saber quem vive na minha jurisdição, não importa se são soldados ou civis.
Foi assim que tomei conhecimento, por exemplo, que o soldado Seamus Fletcher, 45B-76423, batia na esposa e nos filhos todas as noites.
Eu sabia que ele estava gastando todo seu dinheiro em bebidas; sabia que ele estava deixando sua família passar fome. Monitorei os dólares REST que ele gastava nas nossas centrais de abastecimento e observei atentamente a família dele no complexo. Sabia que seus três filhos tinham menos de 10 anos e não comiam há semanas; sabia que eles haviam estado inúmeras vezes no posto médico do complexo para tratar de ossos quebrados e levar pontos em machucados. Fiquei sabendo que ele deu um soco na boca de sua filha de 9 anos e cortou o lábio dela, fraturou o maxilar e quebrou dois de seus dentes da frente; e soube que sua esposa estava grávida. Também fiquei sabendo que certa noite ele bateu nela com tanta força que ela perdeu a criança na manhã seguinte.
Eu sei por que estava lá.
Eu estava parando em cada residência, visitando os civis, fazendo perguntas sobre sua saúde e como estavam suas vidas. Queria saber de suas condições de trabalho e se algum membro de suas famílias precisaria estar de quarentena.
Ela estava em casa naquele dia. A esposa de Fletcher. Seu nariz estava quebrado e seus olhos estavam tão inchados que ela nem conseguia abri-los direito. Seu corpo era tão magro e frágil, sua pele tão pálida, que achei que ela iria se quebrar em duas ao sentar-se. Quando lhe perguntei sobre os machucados, ela evitou meus olhos. Disse que tinha caído; que por causa da sua queda ela havia perdido a criança que carregava e conseguiu também quebrar o nariz no acidente.
Acenei com a cabeça. Agradeci por sua cooperação ao responder minhas perguntas.
E então convoquei uma reunião.
Estou ciente que a maioria dos meus soldados rouba dos armazéns dos nossos complexos. Analiso os relatórios cuidadosamente e sei que tem suprimentos desaparecendo o tempo todo. Mas permito essas pequenas infrações porque elas não perturbam o sistema. Alguns pães ou pedaços de sabão a mais deixam meus soldados mais animados; eles trabalham mais se estiverem saudáveis, e a maioria deles mantém esposa, filhos e parentes. Então essa é uma concessão que faço.
Mas algumas coisas não posso perdoar.
Não me considero um moralista. Não filosofo sobre a vida ou me importo com as leis e princípios que governam a vida das pessoas. Não pretendo saber a diferença entre o certo e o errado. Mas procuro viver sob certo código de vida. E às vezes, eu acho, tenho que aprender a atirar antes.
Seamus Fletcher estava matando sua família. E eu lhe dei um tiro na testa porque achei que assim seria menos doloroso do que destroçá-lo com minhas próprias mãos.
Mas meu pai completou o trabalho que Fletcher havia começado. Meu pai mandou matar os três filhos dele e sua mulher, tudo por causa de um bêbado cretino que deveria ter cuidado deles. Ele era o pai deles, o marido dela, e a razão de eles terem tido uma morte tão brutal e inesperada.
E alguns dias eu imagino por que insisto em continuar vivendo.
Capítulo 15
De volta à base, sigo direto em frente.
Ignoro os soldados e suas continências por onde passo, sem prestar atenção à mistura de curiosidade e desconfiança em seus olhos. Nem tinha percebido que havia tomado esse caminho ao chegar à base; mas meu corpo parece saber mais do que minha mente, do que precisa agora. Meus passos são pesados; regulares, o som das minhas botas ecoa ao longo do piso de pedras conforme chego aos andares de baixo.
Não venho aqui há quase duas semanas.
O quarto fora reformado desde a última vez em que estive aqui; o painel de vidro e a parede de concreto foram substituídos. E pelo que sei ela foi a última pessoa a usar esse quarto.
Eu mesma a havia trazido aqui.
Empurro as duas portas giratórias do vestiário que fica na sala adjacente ao deque de simulação. Minha mão procura no escuro pelo interruptor; as luzes piscam uma vez antes de se acenderem. Um zumbido monótono de eletricidade vibra nesses cômodos vastos. Tudo está quieto, abandonado.
Exatamente como eu gosto.
Tiro minhas roupas o mais rápido que consigo, devido aos ferimentos. Ainda tenho duas horas antes do esperado jantar com meu pai, então eu não deveria estar tão ansioso assim, mas meus nervos não estão ajudando. Tudo parece estar vindo para cima de mim de uma vez só. Meus fracassos. Minha covardia. Minha estupidez.
Às vezes fico tão cansado dessa vida.
Estou em pé, descalço no concreto, só usando a tipoia no meu braço, detestando como esse ferimento me deixa constantemente para baixo. Pego o shorts guardado no meu armário e o visto o mais rapidamente possível, me encostando à parede para me apoiar. Quando finalmente fico ereto, fecho a porta do armário e entro no cômodo ao lado.
Aperto mais um interruptor, e o sistema operacional principal começa a funcionar. Os computadores emitem um sinal sonoro e uns flashes se acendem enquanto o programa se prepara; passo os dedos pelo teclado.
Costumamos usar esses cômodos para simulações.
Manipulamos a tecnologia para criar lugares e experiências que existem apenas na mente humana.
Não apenas somos capazes de criar o cenário, mas também podemos controlar os mínimos detalhes. Sons, cheiros, falsa segurança, paranoia. O programa foi originalmente criado para ajudar soldados em missões específicas, e também para ajudá-los a superar medos que, do contrário, iria incapacitá-los no campo de batalha.
Eu o uso para meus próprios fins.
Costumava vir aqui todos os dias antes de ela chegar à base. Aqui era meu porto seguro; minha única fuga do mundo. Apenas gostaria que não precisasse de um uniforme. Esse short é engomado e desconfortável, o poliéster coça e irrita a pele. Mas é forrado com uma química especial que reage com a minha pele e alimenta o sensor com informações; me ajudam a me situar na experiência e me permitirá correr por quilômetros sem precisar correr de verdade, muros físicos no meu ambiente real. E para que o processo seja o mais eficiente possível, tenho que vestir quase nada. As câmeras são hipersensíveis ao calor do corpo, e funcionam melhor quando não entra em contato com materiais sintéticos.
Espero que esse detalhe fique anotado para a próxima geração do programa.
A central me solicita dados; rapidamente entro com o código de acesso que me garante permissão para levantar o histórico das últimas simulações. Olho para o alto por sobre meu ombro enquanto o computador processa os dados; olho de relance pelo recém-consertado espelho de duas faces que vê o cômodo principal. Ainda não acredito que ela quebrou uma parede inteira de vidro e concreto e continuou a caminhar sem um arranhão.
Inacreditável.
A máquina bipa duas vezes; me viro novamente. Os programas que solicitei estão carregados e prontos para serem executados.
O arquivo dela é o primeiro da lista.
Respiro fundo; tento afastar as lembranças. Não me arrependo de tê-la feito passar por uma experiência tão horrível. Não sei se ao final ela teria se permitido perder o controle — finalmente habitar seu próprio corpo — se eu não tivesse encontrado um modo eficiente de provocá-la. Ultimamente realmente acredito que isso a ajudou, exatamente como eu pretendia. Mas eu desejaria que ela não tivesse apontado uma arma na minha cara e saltado pela janela logo depois.
Suspiro devagar mais uma vez, acalmando minha respiração.
E seleciono a simulação que me motivou a vir até aqui.
Capítulo 16
Estou parado no cômodo principal.
Me encarando.
Essa é uma simulação bem simples. Não precisei trocar de roupa nem mexer no meu cabelo, nem alterar o piso carpetado. Não fiz nada a não ser criar uma duplicata de mim mesmo e lhe entregar uma arma.
Ele não para de me encarar.
Um.
Ele curva ligeiramente a cabeça.
— Você está pronto? — Uma pausa. — Está com medo?
Meu coração bate em disparada.
Ele ergue seu braço. Sorri um pouco.
— Não se preocupe — ele diz. — Está quase terminado agora.
Dois.
— Só um pouco mais e eu vou embora — ele diz, apontando a arma para a minha testa.
Minhas mãos estão suadas. Meu pulso está acelerado.
— Você vai ficar bem — ele mente. — Prometo.
Três.
Bummm.
Capítulo 17
— Tem certeza de que não está com fome? — meu pai pergunta, ainda mastigando. — Isso está realmente muito bom.
Me mexo na cadeira. Me concentro nos vincos bem passados das calças que estou usando.
— Hum? — ele indaga. Posso vê-lo sorrindo.
Estou intensamente ciente dos soldados alinhados nas paredes desta sala. Ele sempre os mantém perto de si, e sempre em constante competição uns com os outros. Sua primeira tarefa era determinar qual era o elo mais fraco dentre os onze. Aquele com o argumento mais convincente poderia dispor do seu alvo.
Meu pai acha essas práticas divertidas.
— Receio não estar com muita fome. Os remédios — minto — acabam com meu apetite.
— Ah — ele replica. Ouço o barulho de seus talheres quando ele os deposita na mesa. — É claro. Que inconveniência.
Não digo nada.
— Podem se retirar.
Duas palavras e seus homens se dispersam em questão de segundos. A porta se fecha atrás deles.
— Olhe para mim — ele ordena.
Levanto o olhar, meus olhos cuidadosamente desprovidos de emoção. Odeio seu rosto. Não suporto olhar muito tempo para ele; não gosto da experiência de observar como ele é desumano. Ele não se tortura pelo que faz ou pelo modo que vive. Na verdade ele gosta disso. Ele adora a adrenalina do poder; ele se vê como uma entidade invencível.
E, de certo modo, não está errado.
Passei a crer que o homem mais perigoso do mundo é aquele que não sente remorso. Aquele que nunca se desculpa e, portanto, não procura o perdão. Porque no final, são nossas emoções que nos torna fracos, não nossas ações.
Viro o rosto.
— O que encontrou? — ele pergunta sem preâmbulos.
Minha mente vai imediatamente para o diário que está guardado no meu bolso, mas não faço nenhum comentário. Nem pisco. As pessoas raramente percebem que, na maioria das vezes, mentem com os lábios e dizem a verdade com os olhos. Coloque um homem num cômodo com algo que ele tenha escondido, e então pergunte onde ele a escondeu; ele vai dizer que não sabe; vai dizer que você pegou a pessoa errada; mas quase sempre ele vai olhar na direção certa. E agora meu pai está me examinando, esperando ver para onde vou olhar, o que direi a seguir.
Mantenho meus ombros relaxados e respiro devagar, imperceptivelmente, para amansar meu coração. Não respondo. Finjo estar perdido em meus pensamentos.
— Filho?
Ergo o olhar. Finjo surpresa.
— Sim?
— O que achou? Quando revistou o quarto dela hoje?
Solto o ar. Sacudo a cabeça quando me recosto na cadeira.
— Vidros quebrados. Uma cama desarrumada. O armário dela, escancarado. Ela levou apenas alguns itens de higiene pessoal e algumas roupas extras e roupas de baixo. — Nada disso era sem sentido. Nada disso era mentira.
Ouço quando ele suspira. Ele afasta seu prato.
Sinto o contorno do caderninho dela queimando minha perna.
— E você diz que não sabe para onde ela pode ter ido?
— Apenas sei que ela, Kent e Kishimoto devem estar juntos — explico a ele. — Delalieu diz que roubaram um carro, mas as pistas desapareceram na entrada de um enorme terreno baldio. Fizemos as tropas vasculharem aquela área durante dias, mas não encontramos nada.
— E onde — ele pergunta — planeja procurar a seguir? Você acha que eles cruzaram para outro setor? — A voz dele está estranha. Divertida.
Olho seu rosto sorridente.
Ele só está me fazendo essas perguntas para me testar. Ele tem suas próprias respostas, sua solução já preparada. Ele quer me ver falhar ao responder incorretamente. Está tentando provar que, sem ele, eu tomaria as decisões erradas.
Ele está se divertindo às minhas custas.
— Não — digo a ele, com a voz sólida e firme. — Não acho que vão fazer algo tão idiota como atravessar para outro setor. Eles não têm acesso, meios ou capacidade para isso. Ambos os homens estão severamente feridos, perdendo sangue rapidamente, e estão distantes de qualquer ajuda de emergência. Provavelmente estão mortos agora. A garota talvez seja a única sobrevivente, e ela não pode ter ido muito longe, pois não conhece como andar por aquelas áreas. Ela ficou isolada muito tempo; tudo nesse lugar é completamente estranho para ela. Além do que, ela não sabe dirigir, e se por acaso ela conseguisse dirigir um veículo, teríamos sido informados da propriedade roubada. Se levarmos em consideração seu estado geral de saúde, sua propensão a se esgotar fisicamente muito rápido, e a falta de acesso à comida, água e atenção médica, ela deve estar desmaiada num raio de dez quilômetros desse suposto terreno baldio. Temos que encontrá-la antes que morra congelada.
Meu pai pigarreia.
— Sim — ele diz —, são teorias interessantes. E, talvez, sob outras circunstâncias, elas poderiam até ser verdadeiras. Mas você está se esquecendo de me falar do detalhe mais importante.
Olho nos olhos dele.
— Ela não é normal — ele conclui, recostado à sua cadeira. — E ela não é a única da sua espécie.
Meu coração acelera. Pisco rápido demais.
— Ah, vamos lá, você não suspeitou de nada? Não criou nenhuma hipótese? — Ele ri. — Parece impossível, estatisticamente, que ela seja a única desse tipo que foi produzida pelo nosso mundo. Você sabia disso, mas não quis acreditar. E eu vim aqui para lhe dizer que é verdade. — Ele curva a cabeça ligeiramente em minha direção. Dá um sorriso largo e vibrante. — Existem muitos deles. E eles a recrutaram.
— Não. — Solto o ar.
— Eles se infiltraram em suas tropas. Vivem no seu meio em segredo. E agora roubaram seu brinquedinho e fugiram com ele. Só Deus sabe como esperam manipulá-la em seu próprio benefício.
— Como pode ter tanta certeza? — indago. — Como sabe que eles conseguiram levá-la com eles? Kent estava meio morto quando o deixei...
— Preste atenção, filho. Estou lhe afirmando que eles não são normais. Eles não seguem suas regras; não há nenhuma lógica que os oriente. Você não tem ideia das esquisitices de que são capazes. — Uma pausa. — Além do mais, tenho conhecimento já há algum tempo, de um grupo deles que vive disfarçado nessa área. Mas durante todo esse tempo eles sempre se mantiveram afastados. Eles não interferem em meus métodos, e achei melhor deixá-los morrer sozinhos sem causar um pânico desnecessário na nossa população civil. Você entende, é claro — ele diz. — Afinal de contas, é muito difícil conter pelo menos um deles. Eles são a coisa mais bizarra de se ver.
— Você sabia? — Estou de pé agora. Tentando ficar calmo. — Você sabia da existência deles, durante todo esse tempo, e assim mesmo não fez nada? Não disse nada?
— Não julguei necessário.
— E agora? — exijo.
— Agora parece pertinente.
— Inacreditável! — Levanto as mãos para o alto. — Que você escondesse de mim tal informação! Quando sabia dos meus planos para ela... quando sabia o sacrifício que foi trazê-la aqui...
— Acalme-se — ele pede. Ele estica as pernas; apoia o tornozelo de uma perna no joelho da outra. — Vamos encontrá-los. Esse terreno abandonado que Delalieu mencionou — a área onde o carro deixou de ser rastreado? Esse é o nosso ponto de partida. Eles devem estar escondidos nos subterrâneos. Devemos encontrar a entrada e os destruir em silêncio, por dentro. Então os teremos punido, e evitamos que o resto se revolte e inspire a rebelião no nosso povo.
Ele se inclina para frente.
— Os civis escutam tudo. E, no momento, estão vibrando com um novo tipo de energia. Estão se sentindo motivados ao perceberem que um deles conseguiu escapar e que você saiu ferido no processo. Isso faz nossas defesas parecerem fracas e fáceis de serem penetradas. Precisamos destruir essa percepção reequilibrando a balança. O medo irá retornar tudo para seu devido lugar.
— Mas eles estão procurando — digo a ele. — Meus homens. Eles vasculham a área todos os dias e ainda não encontraram nada. Como pode ter certeza que iremos descobrir alguma coisa, afinal de contas?
— Porque — ele explica — você vai liderá-los. Todas as noites. Depois do toque de recolher, enquanto os civis dormem. Você não vai interromper as buscas durante o dia; não vai dar a eles motivo para terem o que falar. Aja em silêncio, meu filho. Não mostre suas jogadas. Vou permanecer na base e supervisionar suas responsabilidades com meus homens; vou dar ordens a Delalieu se for necessário. E nesse ínterim, você irá encontrá-los, para que eu possa destruí-los o mais rápido possível. Essa loucura já está durando tempo demais — ele diz — e eu não estou mais a fim de ser generoso.
Capítulo 18
Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito mesmo por favor me perdoe.
Foi um acidente.
Me perdoe
Por favor me perdoe
Há pouca coisa que eu permito que as pessoas descubram a meu respeito. Há ainda menos coisas que estou disposto a partilhar sobre mim mesmo. E entre as muitas coisas que nunca discuti com ninguém, é esta.
Gosto de tomar banhos demorados.
Sempre tive uma obsessão por limpeza desde que era pequeno. Sempre fui tão focado em morte e destruição que acho que compenso isso me mantendo o mais intacto possível. Tomo chuveiradas com frequência. Escovo e passo fio dental nos dentes pelo menos três vezes ao dia. Corto meu cabelo toda semana. Esfrego minhas mãos e unhas antes de me deitar e assim que acordo. Tenho uma preocupação doentia em usar apenas roupas que acabaram de ser lavadas. E todas as vezes que passo por alguma emoção mais forte, a única coisa que acalma meus nervos é um banho bem demorado.
Então é isso que vou fazer agora.
Os médicos me ensinaram como prender meu braço ferido no mesmo plástico que eles usaram antes, então posso mergulhar abaixo da superfície sem problemas. Afundo minha cabeça por um longo período, seguro a respiração e solto o ar pelo nariz. Sinto as borbulhas virem à tona.
A água morna me faz sentir leve. Ela carrega meu peso para mim, compreendendo que preciso de um momento para aliviar meus ombros desse peso. Para fechar meus olhos e relaxar.
Meu rosto rompe a superfície da água.
Não abro meus olhos; apenas meu nariz e minha boca respiram o oxigênio do outro lado. Faço respirações curtas e regulares para acalmar a mente. Já é tão tarde que nem sei mais que horas são; tudo que sei é que a temperatura caiu significativamente, e o ar frio está fazendo cócegas no meu nariz. É uma sensação estranha, ter 98 por cento do meu corpo boiando numa temperatura quente e agradável, enquanto meus lábios e meu nariz se contraem com o frio.
Mergulho meu rosto na água novamente.
Poderia viver aqui para sempre, eu acho. Viver onde a gravidade não sabe que eu existo. Aqui estou solto, sem restrições das amarras da vida. Sou um corpo diferente, uma concha diferente, e meu corpo é levado pelas mãos dos amigos. Tantas noites desejei poder cair no sono debaixo desse lençol.
Mergulho mais fundo.
Em uma semana, minha vida inteira mudou.
Minhas prioridades mudaram de foco. Minha concentração, destruída. Tudo com que me importo agora se resume a uma pessoa e, pela primeira vez na vida, não sou eu mesmo. Suas palavras estão marcadas na minha mente. Não consigo parar de imaginar como ela deve ter sido, não consigo deixar de imaginar o que ela deve ter vivenciado. Encontrar seu diário me deixou arrasado. Meus sentimentos por ela saíram do controle. Nunca estive tão desesperado para vê-la, para conversar com ela.
Quero que ela saiba que eu entendo agora. Que eu não entendia antes. Ela e eu somos iguais; em mais de uma maneira que eu possa ter imaginado.
Porém, agora, ela está fora do meu alcance. Ela foi para algum lugar com estranhos que não a conhecem e não se importam com ela do mesmo jeito que eu. Ela foi parar num ambiente estranho sem tempo para se adaptar e estou preocupado com ela. Uma pessoa na situação dela — com seu passado — não se recupera da noite para o dia. E agora, uma de duas coisas está prestes a acontecer: ou ela vai se fechar completamente, ou vai explodir.
Sento rápido demais, rompendo a barreira da água, ofegante.
Afasto o cabelo molhado do rosto. Me encosto na parede azulejada, deixando o ar frio me acalmar, clarear meus pensamentos.
Tenho que encontrá-la antes que ela se destrua.
Nunca antes quis cooperar com meu pai, nunca concordei com seus motivos ou seus métodos. Mas, nesse instante, estou disposto a fazer qualquer coisa para tê-la de volta.
E estou ansioso pela oportunidade de pular no pescoço de Kent.
O cretino traidor. O idiota que acha que conquistou uma garota bonita. Ele não tem ideia de quem ela seja. Não imagina no que ela pode se transformar.
E se ele pensa que é o par ideal para ela, está muito enganado, ele ainda é mais idiota do que eu imaginava.
Capítulo 19
— Onde está o café? — pergunto, meus olhos examinando a mesa.
Delalieu derruba o garfo. O talher de prata cai ruidosamente sobre os pratos de porcelana. Ele ergue os olhos, assustados.
— Senhor?
— Gostaria de experimentar — digo a ele, tentando passar manteiga na torrada com a mão esquerda. Olho em sua direção. — Você está sempre falando sobre o café, não é? Pensei em...
Delalieu dá um salto da mesa sem dizer uma palavra. Sai correndo pela porta.
Dou uma risada silenciosa para o meu prato.
Delalieu traz a bandeja do chá e café pessoalmente e a coloca perto da minha cadeira. Suas mãos tremem enquanto ele despeja o líquido escuro numa xícara de chá, a coloca sobre um pires, põe sobre a mesa e a empurra em minha direção.
Espero até ele se sentar para tomar um gole. É uma bebida estranha, terrivelmente amarga; nada como eu imaginava. Olho para ele surpreso por saber que um homem como Delalieu começa seu dia tomando um líquido de gosto tão forte e horrível. Descubro um novo respeito pelo homem.
— Não é tão ruim assim — digo a ele.
Seu rosto se abre num sorriso tão grande, tão sereno, que imagino se ele me entendeu mal. Ele está praticamente radiante quando responde:
— Tomo o meu com creme e açúcar. O gosto fica bem melhor do que...
— Açúcar. — Abaixo a xícara. Fechos os lábios e me controlo para não sorrir. — Você coloca açúcar nisso. Claro que sim. Isso faz mais sentido.
— Gostaria de um pouco, senhor?
Levanto minha mão. Sacudo a cabeça.
— Chame as tropas, tenente. Vamos suspender as missões durante o dia e, ao invés disso, faremos incursões noturnas depois do toque de recolher. Você vai permanecer na base — digo a ele — onde o supremo dará as ordens através de seus homens; cumpra as ordens que eles derem. Eu mesmo vou liderar o grupo. — Paro. Olho direto nos olhos dele. — Não se fala mais nada do que aconteceu. Não há nada para os civis verem ou falarem. Você entende?
— Sim, senhor — ele diz, esquecendo o café. — Vou dar as ordens imediatamente.
— Ótimo.
Ele se levanta.
Eu aceno com a cabeça.
Ele se retira.
Estou começando a sentir esperança pela primeira vez desde que ela foi embora. Vamos encontrá-la. Agora, com essa nova informação — com um exército inteiro contra um grupo de rebeldes despreparados — parece impossível não vencermos.
Respiro fundo. Tomo outro gole do café.
Estou surpreso ao perceber como gostei do seu gosto amargo.
Capítulo 20
Meu pai está à minha espera quando volto para meu quarto.
— As ordens foram dadas — digo a ele sem olhar em sua direção. — Vamos mobilizar as tropas hoje à noite. — Hesito. — Bem, se pode me desculpar, tenho outros assuntos para tratar.
— Qual a sensação? — ele indaga. — De estar tão incapacitado? — ele pergunta sorrindo. — Como você aguenta se ver no espelho, sabendo que foi atacado por um de seus próprios subordinados?
Faço uma pausa do lado de fora da porta que leva ao meu escritório.
— O que você quer?
— Qual — é seu interesse por essa garota? — ele indaga.
Minhas costas enrijecem.
— Ela é mais do que apenas uma experiência para você, não é?
Giro o corpo lentamente. Ele está parado no meio do meu quarto, com as mãos nos bolsos, e com um sorriso aparentando nojo.
— Do que você está falando?
— Dê uma olhada em si mesmo — ele diz. — Eu ainda nem disse o nome dela e parece que você vai desabar. — Ele sacode a cabeça, ainda me examinando de perto. — Seu rosto está pálido, sua mão que funciona está crispada. Está com a respiração ofegante e seu corpo está tenso. — Uma pausa. — Você se traiu, filho. Você se acha muito esperto — ele diz —, mas se esquece de quem lhe ensinou todos os truques.
Fico quente e gelado ao mesmo tempo. Tento relaxar as mãos, mas não consigo. Quero dizer a ele que não há nada errado, mas repentinamente estou me sentindo meio zonzo, desejando ter comido um pouco mais no café da manhã, e ao mesmo tempo desejando não ter comido nada.
— Tenho trabalho a fazer — consigo dizer.
— Me diga — ele pergunta — que você não se importa se ela morrer junto com os outros.
— O quê? — As palavras trêmulas e nervosas escapam rápido demais dos meus lábios.
Meu pai abaixa o olhar. Ele cerra e descerra os punhos.
— Você já me desapontou de tantas maneiras — ele diz com a voz aparentemente suave. — Por favor, não faça isso novamente.
Por um momento sinto como se estivesse fora do meu corpo, me olhando pela perspectiva dele. Vejo meu rosto, meu braço ferido, essas pernas que de repente parecem incapazes de carregar meu peso. Fendas começam a se criar ao longo do meu rosto, pelos meus braços, meu tronco e minhas pernas.
Imagino que seja assim que alguém desmorona.
Não percebo que ele disse meu nome, até ele repeti-lo uma segunda vez.
— O que você quer de mim? — pergunto, surpreso, ao perceber como pareço calmo. — Você entrou no meu quarto sem permissão; fica parado aí e me acusa de coisas que ainda nem consegui entender. Estou seguindo suas regras, suas ordens. Vamos partir hoje à noite; vamos encontrar o esconderijo deles. Você pode destruí-los do jeito que achar melhor.
— E sua garota? — ele diz inclinando a cabeça em minha direção. — Sua Juliette?
Me contraio ao ouvir o nome dela. Meu pulso bate tão forte que parece um sussurro.
— Se eu desse três tiros na cabeça dela, como se sentiria? — Ele me encara. Me observa. — Desapontado, porque você perdeu seu brinquedinho de estimação? Ou arrasado porque perdeu a garota que ama?
O tempo nesse momento parece estar mais lento, se derretendo à minha volta.
— Seria um desperdício — digo, ignorando o tremor que sinto por dentro, e que ameaça transbordar — perder algo no qual investi tanto tempo.
Ele sorri.
— É bom saber que você vê as coisas dessa forma — ele diz. — Mas projetos são facilmente substituíveis. E tenho certeza que poderemos encontrar um uso melhor e mais prático para seu tempo.
Pisco os olhos devagar. Parte do meu peito está destroçado.
— Claro. — Me ouço dizer.
— Sabia que entenderia. — Ele dá um tapinha no meu ombro machucado ao sair do quarto. Meus joelhos quase se dobram. — Valeu o esforço, filho. Mas ela nos custou muito tempo e dinheiro e se provou completamente inútil. Desse modo estaremos nos livrando de várias inconveniências ao mesmo tempo. Vamos considerar isso um efeito colateral. — Ele me dá um último sorriso antes de passar por mim e sair pela porta.
Caio de encontro à parede.
E me amontoo no chão.
Capítulo 21
É só engolir as lágrimas com bastante frequência que elas vão começar a parecer ácido escorrendo pela sua garganta. É aquele momento terrível quando você está sentada quieta tão quieta porque você não quer que a vejam chorar você não quer chorar, mas seus lábios não param de tremer e seus olhos estão cheios até a borda com súplica e eu imploro e por favor e me desculpe e tenha piedade e talvez dessa vez será diferente mas é sempre igual. Não tem onde se esconder. Ninguém ao seu lado.
Acenda uma vela para mim, eu costumava murmurar para o nada.
Alguém
Qualquer um
Se você está aí fora
Por favor me diga que pode sentir esse fogo.
É o dia cinco das nossas patrulhas, e nada ainda.
Lidero o grupo todas as noites, marchando em silêncio nessas paisagens frias de inverno. Procuramos por passagens escondidas, bueiros camuflados — qualquer indicação de que possa existir outro mundo sob nossos pés.
E toda noite retornamos para a base sem nada.
A futilidade desses últimos dias me atinge, amortecendo meus sentidos, me deixando numa espécie de torpor do qual não consigo me livrar. Todo dia acordo procurando uma solução para os problemas que eu mesmo provoquei, mas não tenho ideia de como consertar isso.
Se ela está lá fora, iremos encontrá-la. E ele a matará.
Só para me ensinar uma lição.
Minha única esperança é encontrá-la primeiro. Talvez possa escondê-la. Ou dizer a ela para fugir. Ou fingir que ela já está morta. Ou talvez convencê-lo que ela é diferente, melhor que os outros; que vale a pena deixá-la viver.
Pareço um idiota patético e desesperado.
Sou uma criança novamente, me escondendo nos cantos escuros e rezando para ele não me encontrar. Esperando que ele esteja de bom humor hoje. Que talvez tudo dê certo. Que talvez minha mãe não vá estar gritando dessa vez.
Incrível como eu rapidamente me reverto para outra versão de mim mesmo na presença dele.
Fico entorpecido.
Tenho realizado minhas tarefas mecanicamente; isso exige apenas um esforço mínimo. Andar é simples. Comer é algo ao qual me acostumei.
Não consigo parar de ler seu diário.
Meu coração sofre, de certo modo, mas não consigo deixar de virar as páginas. Sinto como se estivesse batendo num muro invisível, como se meu rosto estivesse envolto em plástico e eu não pudesse respirar, não pudesse ver, nem ouvir qualquer som a não ser as batidas do meu próprio coração pulsando nos meus ouvidos.
Quis poucas coisas nessa vida.
Não pedi nada a ninguém.
E, agora, tudo que estou pedindo é outra chance. Uma oportunidade de vê-la novamente. Mas a menos que descubra um jeito de impedi-lo, essas palavras são as únicas coisas que restarão dela.
Esses parágrafos e essas sentenças. Essas cartas.
Fiquei obcecado. Carrego esse caderninho comigo para todos os lugares por onde vou, passo todo meu tempo livre tentando decifrar as palavras que ela rabiscou nas margens, criando histórias para acompanhar os números que ela escreveu.
Também notei que a última página está faltando. Arrancada.
Não consigo imaginar por que. Procurei uma centena de vezes no livro todo, procurando nas outras seções onde essa página poderia estar, mas não achei nada. E de certa forma me sinto enganado, sabendo que tem um trecho que não vi. Não é nem mesmo o meu diário; não tenho nada a ver com isso, mas li as palavras dela tantas vezes que sinto que agora elas são minhas. Posso praticamente recitá-las de cor.
É estranho saber o que se passa na cabeça dela e não poder vê-la. Sinto que ela está aqui, bem na minha frente. Sinto que a conheço tão intimamente, tão secretamente. Fico seguro na companhia dos seus pensamentos; de certo modo me sinto acolhido. Compreendido. Tanto que às vezes eu esqueço que foi ela quem colocou esse buraco de bala no meu braço.
Quase esqueço que ela ainda me odeia, apesar de eu ter me apaixonado tão intensamente por ela.
E me apaixonei.
Perdidamente.
Fui até o fundo do poço. Até o fim. Nunca me senti assim na minha vida. Nada parecido. Senti vergonha e covardia, fraqueza e força. Conheci o terror e a indiferença, ódio de mim mesmo e repugnância geral. Vi coisas que não podem ser vistas.
E ainda assim nunca havia experimentado esse sentimento terrível, horrível e paralisante. Me sinto aleijado. Desesperado e fora de controle. E está ficando pior. Todos os dias me sinto doente. Vazio e ferido por dentro.
O amor é um cretino perverso e sem coração.
Estou ficando louco.
Caio de costas na cama, completamente vestido. Casaco, botas, luvas. Estou cansado demais para tirar a roupa. Essas rondas noturnas têm me deixado pouco tempo para dormir. Parece que estou em constante estado de exaustão.
Minha cabeça cai no travesseiro e pisco uma vez. Duas.
Desmaio.
Capítulo 22
— Não. — Me ouço dizer. — Você não deveria estar aqui.
Ela está sentada na minha cama. Está apoiada nos próprios cotovelos, com as pernas esticadas à sua frente, cruzadas nos tornozelos. E apesar de uma parte de mim saber que devo estar sonhando, tem um outro lado, uma parte esmagadoramente dominante que se recusa a aceitar isso. Parte de mim quer acreditar que ela está aqui, perto de mim, usando esse vestidinho preto justo que fica exibindo suas pernas. Mas tudo nela está diferente, estranhamente vibrante; as cores estão erradas. Seus lábios estão com um tom profundo de rosa, bem intenso; seus olhos estão maiores, mais escuros. Ela está usando sapatos que eu nunca a tinha visto usar. E o mais estranho de tudo: ela está sorrindo para mim.
— Oi — ela murmura.
É só uma palavra, mas meu coração dispara. Estou me afastando dela, quase batendo a cabeça na cabeceira da cama, quando percebo que meu braço não está mais ferido. Olho para baixo, para mim mesmo. Meus dois braços estão funcionando. Estou vestindo apenas uma camiseta e uma cueca.
Ela muda de posição num instante, ficando de joelhos antes de vir rastejando para cima de mim. Ela sobe no meu colo. Agora está montada sobre mim. De repente minha respiração se acelera.
Seus lábios encostam nos meus ouvidos. Suas palavras são meigas.
— Me beije — ela diz.
— Juliette...
— Vim até aqui. — Ela ainda está sorrindo para mim. É um sorriso raro, do tipo que ela nunca antes havia me presenteado. Mas por estranho que pareça, agora ela é minha. Ela é minha e é perfeita e me quer, e não vou lutar contra isso.
Não quero lutar.
Suas mãos estão puxando minha camiseta, tirando-a pela cabeça. Jogando-a no chão. Ela se inclina e beija meu pescoço, só uma vez, bem devagarzinho. Meus olhos se fecham.
Não há palavras no mundo para descrever o que estou sentindo.
Sinto suas mãos percorrerem meu peito, meu estômago; seus dedos deslizarem pela beirada da minha cueca. Seu cabelo despenca para frente, roçando minha pele, e tenho que fechar os punhos para evitar prendê-la na minha cama.
Cada terminação nervosa do meu corpo está pulsando. Nunca me senti tão vivo nem tão desesperado em toda a minha vida, e tenho certeza de que se ela pudesse saber o que estou pensando nesse momento, ela sairia por aquela porta e nunca mais voltaria.
Porque eu a quero.
Agora.
Aqui.
Em todo lugar.
Não quero nada entre nós.
Quero tirar suas roupas, acender as luzes e quero estudá-la de perto. Quero abrir o zíper do seu vestido e me demorar em cada centímetro do seu corpo. Não consigo deixar de querer olhar para ela; de conhecê-la e a seus traços: o declive do seu nariz, a curva dos seus lábios, a linha do seu rosto. Quero percorrer com meus dedos a pele macia do seu pescoço e deslizar até embaixo. Quero sentir o peso do corpo dela sobre o meu, me envolvendo.
Não consigo pensar numa razão para isso não ser certo nem real. Não consigo me concentrar em nada mais, a não ser nela sentada no meu colo, tocando meu peito, e me olhando nos olhos como se realmente me amasse.
Chego a imaginar que morri.
Mas bem quando eu me aproximo, ela se afasta, sorrindo antes de eu alcançá-la, nunca afastando seus olhos.
— Não se preocupe — ela sussurra. — Está quase acabado agora.
Suas palavras parecem tão estranhas, e ao mesmo tempo tão familiares.
— O que quer dizer com isso?
— Só um pouco mais e eu vou embora.
— Não. — Estou piscando rápido, tentando segurá-la. — Não, não vá. Onde você está indo...
— Você vai ficar bem — ela diz. — Prometo.
— Não...
Mas agora ela está segurando uma arma.
E a apontando para o meu coração.
Capítulo 23
Essas letras são tudo que me sobrou.
26 amigos para quem contar minha história.
26 letras são tudo que eu preciso para criar oceanos e ecossistemas. Posso combiná-las para formar planetas e sistemas solares. Posso usar letras para construir arranha-céus e metrópoles cheias de gente, lugares, coisas e ideias que são mais reais que essas quatro paredes.
Não preciso de nada além de palavras para viver. Sem elas eu não existiria.
Porque essas palavras que escrevo são a única prova de que ainda estou viva.
Está extraordinariamente frio esta manhã.
Sugiro que a gente faça um passeio descompromissado pelos complexos bem cedo só para ver se algum cidadão parece suspeito ou deslocado. Estou começando a imaginar se Kent e Kishimoto, e todos os outros, estão vivendo em segredo entre as pessoas. Eles devem, afinal de contas, receber alguma ajuda para encontrar comida e água — algo que os prenda à sociedade; duvido que possam plantar alguma coisa debaixo da terra. Mas é claro, são só suposições. Eles podem ter alguém que consegue plantar algo no ar.
Rapidamente dou instruções para meus homens; os oriento para se dispersarem e continuarem sem chamar a atenção. O trabalho deles é observar todo mundo hoje, e relatar o que descobriram para mim.
Assim que se foram, fico sozinho para olhar em volta e pensar. É um lugar perigoso para se esconder.
Meu Deus, ela parecia tão real nos meus sonhos.
Fecho os olhos, cobrindo o rosto com as mãos; meus dedos tocam meus lábios de leve. Posso sentir o toque dela. Na verdade, posso senti-la. Só de pensar nisso, meu coração acelera. Não sei o que vou fazer se continuar a ter sonhos tão intensos com ela. Não vou ser capaz de trabalhar direito.
Respiro fundo, controlando a respiração e me concentrando. Deixo meus olhos perambularem naturalmente, não posso evitar me distrair com as crianças correndo em volta. Parecem tão animadas e despreocupadas. Sei que parece estranho, mas fico triste ao ver que eles conseguiram encontrar felicidade nessa vida. Elas não têm nem ideia do que perderam; nem imaginam como o mundo costumava ser.
Alguma coisa se aproxima e bate nas minhas pernas.
Ouço um arquejo estranho e cansado; me viro.
É um cachorro.
Um cachorro cansado e faminto, tão magro e frágil que parece que pode ser levado pelo vento. Mas ele está me olhando. Sem medo. Com a boca aberta. A língua balançando.
Tenho vontade de dar risada.
Olho em volta rapidamente antes de pegar o cachorro nos braços. Não preciso dar ao meu pai outro motivo para me castrar, e não confio que meus soldados não irão contar uma coisa assim.
Que eu estava brincando com um cachorro.
Posso até escutar as coisas que meu pai iria me dizer.
Carrego a criatura chorosa até uma das casas que haviam sido desocupadas recentemente — vi apenas três famílias saindo para o trabalho — e me abaixo por trás de uma das cercas. O cachorro parece ser bem esperto para saber que agora não é hora de latir.
Tiro minhas luvas e ponho a mão no bolso para pegar um pãozinho doce que havia trazido como café da manhã; não tive tempo de comer nada antes de sairmos hoje cedo. E embora eu não faça ideia do que um cachorro coma, exatamente, eu lhe dou o pãozinho.
O cachorro praticamente o agarra da minha mão.
Ele engole o pãozinho em duas bocadas e começa a lamber os meus dedos, pulando no meu peito, todo empolgado, aproveitando o calor do meu casaco aberto. Não consigo segurar a risada que escapa dos meus lábios; nem quero. Há muito tempo não me sinto assim. E não posso evitar ficar espantado com o poder que animaizinhos tão pequenos exercem sobre nós; eles rompem nossas resistências com a maior facilidade.
Passo minhas mãos pelo seu pelo surrado, sentindo as pontas das costelas aparecendo em ângulos desconfortáveis. Mas o cachorro não parece se importar com seu estado de inanição, pelo menos não agora. Seu rabo está balançando furiosamente, e ele fica pulando no meu peito para me olhar. Começo a pensar que deveria ter enfiado mais alguns pãezinhos doces no meu bolso antes de sair.
Algo estala.
Ouço um suspiro.
Olho em volta.
Dou um pulo, alerta, procurando o barulho. Parecia bem perto. Alguém me viu. Alguém... Um civil. Ela já está escapando, seu corpo apertado de encontro a uma das paredes da casa.
— Ei! — grito. — Você aí...
Ela para. Olha para cima.
Eu quase desmaio.
Juliette.
Ela está me olhando. Ela realmente está aqui, olhando para mim, com os olhos arregalados e assustados. Minhas pernas parecem ser feitas de chumbo. Estou preso no chão, incapaz de dizer uma palavra sequer. Nem sei por onde começar. São tantas coisas que gostaria de dizer a ela, tantas coisas que eu nunca disse, e eu estou simplesmente tão feliz ao vê-la.
— Deus, estou tão aliviado...
Ela desapareceu.
Olho em volta, em pânico, imaginando se estou começando a perder meu senso de realidade. Meus olhos se voltam para o cachorrinho que ainda está parado ali, esperando por mim, e eu olho para ele estupefato, imaginando o que havia acontecido. Fico olhando para o lugar onde a vi, mas não vejo nada.
Nada.
Passo a mão pelos cabelos, tão confuso, tão horrorizado e irritado comigo mesmo, que fico tentado a arrancar minha cabeça.
O que está acontecendo comigo?
Tahereh Mafi
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