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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DESUMANO E DEGRADANTE - P.2 / Patricia Cornwell
DESUMANO E DEGRADANTE - P.2 / Patricia Cornwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Dawson.” Seus olhos se encheram de lágrimas. Ouvi os passos de Marino na escada. Ele logo entrou na cozinha e Dawson, angustiado, murmurou a frase de novo. Marino olhou-o desconcertado. “Acho que seu filho chegou.” O pai de Susan começou a chorar descontroladamente enquanto as portas de um automóvel batiam na escuridão do inverno e ouviram-se risadas na entrada da casa. O jantar de Natal foi para o lixo e passei a noite andando pela casa e falando ao telefone enquanto Lucy permanecia no escritório com a porta fechada. Providências tinham de ser tomadas. O homicídio de Susan provoEle baixou os olhos. “Criança é egoísmo. O egoísmo sente intensamente, chora, não consegue controlar as emoções. Às vezes é melhor mandar o egoísmo para o quarto, como eu fiz com a Hailey agora há pouco. Para ele sossegar. Um truque que aprendi. Aprendi quando era menino, tinha de aprender; meu pai não reagia bem quando eu chorava.” “Chorar não tem nada de mais, reverendo cara uma crise na repartição. O caso dela tinha de ser sigiloso, e os fotógrafos mantidos longe de quem a houvesse conhecido.


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A polícia tinha de examinar sua sala e seu armário. Queria interrogar membros da minha equipe. “Não posso ir até lá”, explicou-me ao telefone Fielding, meu subchefe. “Compreendo”, eu disse, com um nó na garganta. “Não espero nem quero que ninguém vá até lá.” “E você?” “Eu tenho de ir.” “Meu Deus. Não acredito que isso tenha acontecido. Não acredito.” O dr. Wright, meu subchefe em Norfolk, gentilmente concordou em vir a Richmond na manhã seguinte. Como era domingo, ninguém mais estava no edifício, salvo Vander, que viera ajudar com a Luma-Lite. Se eu estivesse emocionalmente capaz de fazer a autópsia de Susan, teria recusado. A pior coisa que eu podia lhe fazer era correr o risco de que a defesa contestasse a objetividade e a opinião de um perito que também fosse seu chefe. Assim, sentei-me a uma escrivaninha no necrotério enquanto Wright trabalhava. De vez em quando, enquanto olhava a parede de cimento, eu ouvia um comentário qualquer queincompleto. Poucos pontinhos e alguma pólvora, mas a maior parte deve ter se perdido no cabelo. Tem um pouco de pólvora no músculo temporal. Muito pouco em ossos ou cartilagens.” “E a trajetória?”, perguntei. “A bala entrou pela face posterior do lóbulo frontal direito, atravessou a anterior, passou pelos gânglios basais, atingiu o osso temporal esquerdo e ficou presa no músculo debaixo da pele. É uma bala simples de chumbo, humm, revestida de cobre mas não encapsulada.” “E se fragmentou?”, indaguei. “Não. Agora temos esse segundo ferimento na nuca. Preto, margem queimada, com a marca do cano. Uma pequena laceração com mais ou menos dois décimosmedular. Subiu até a articulação entre o frontal e o parietal.” “Que ângulo foi?”, perguntei. “Bem inclinado para cima. Eu diria que ela estava sentada no carro quando recebeu esse ferimento, devia estar caída para a frente ou  ele havia me dirigido, junto com o tilintar dos instrumentos de metal e da água que corria. Não toquei em nenhum documento nem etiquetei um tubo que fosse. Não me virei para olhar. Uma vez perguntei: “Você sentiu algum cheiro nela ou na roupa? De água-de-colônia?” Ele parou o que estava fazendo e ouvi que dava vários passos. “Sim. Exatamente em torno da gola do casaco e  de centímetro nas bordas. Muita pólvora nos músculos occipitais.” “Contato direto?” “É. Parece que ele apertou forte o cano no pescoço. A bala entrou na junção do orifício magno com o C-1 e pegou a junção cervical-no lenço.”
“Você acha que parece colônia de homem?” “Humm. Acho que sim. É, eu diria que é uma fragrância masculina. Quem sabe o marido usa água-de-colônia?” Wright estava quase em idade de se aposentar; era um homem barrigudinho e calvo e tinha sotaque da Virgínia Ocidental. Era um patologista legal muito competente e sabia exatamente o que estava vendo. “Boa pergunta”, eu disse. “Vou pedir ao Marino para verificar. Mas o marido ontem estava doente e foi para a cama depois do almoço. Isso não quer dizer que ele não tivesse posto a colônia. Não quer dizer que o pai ou o irmão não estivessem usando a água-de-colônia, que passou para a gola dela quando a beijaram.” “Parece calibre pequeno. Não há orifícios de saída.” Fechei os olhos e escutei. “O ferimento da fronte direita tem quatro décimos de centímetro com um centímetro de fumaça — um padrão estava com a cabeça abaixada.”
“Ela não foi encontrada assim. Estava encostada no banco.” “Então acho que ele a arrumou desse jeito”, comentou Wright. “Depois que atirou. E eu diria que esse tiro que atravessou a articulação foi o último. Para mim ela já estava sem reação, com certeza caída, quando levou o segundo tiro.” De vez em quando eu podia aguentar, como se não nos referíssemos a alguém que eu conhecera. Depois sentia um tremor e as lágrimas acabavam por arrebentar. Duas vezes tive de sair para o frio do estacionamento. Quando ele chegou ao feto de dez semanas, uma menina, fugi para minha sala. De acordo com a lei da Virgínia, o nascituro não era pessoa e assim não podia ser morto, porque é impossível matar o que não é pessoa. “Duas pelo preço de uma”, comentou amargamente Marino, mais tarde, ao telefone. “Eu sei”, respondi-lhe, tirando um vidro de aspirina do bolso. “No tribunal ninguém vai dizer à merda dos jurados que Susan estava grávida. Não entra no caso, não faz diferença ele ter matado uma mulher grávida.” “Eu sei”, repeti. “O Wright está quase terminando. No exame externo não apareceu nada importante. Não se pode falar em pista, nada que tenha chamado a atenção. E do seu lado, o que há?” “Está claro que a Susan estava com algum problema.” “Problemas com o marido?” “Segundo ele, o problema dela era com você. Disse que você estava sacaneando, telefonando muito para ela em casa, ameaçando-a. E que às vezes ela vinha do trabalho meio pirada, como se estivesse se borrando de medo de alguma coisa.” “Susan e eu não tínhamos problema nenhum.” Tomei três aspirinas com um gole de café frio. “Só estou falando para você o que o cara disse. Outra coisa — acho que você vai achar isso interessante: parece que estamos com outra pluma. Não estou dizendo que o caso da Deighton tenha alguma relação com este, doutora, ou que eu pense assim. Mas, porra. Pode ser que a gente esteja lidando com algum pinta-brava que use luvas acolchoadas com plumas, ou uma jaqueta. Não sei. Não é comum. A única outra vez que encontrei plumas foi quando o elemento entrou numa casa quebrando o vidro e cortou a jaqueta num caco.” Minha cabeça doeu tanto que senti náuseas. “A que achamos no carro da Susan é bem pequenininha — um pedacinho de pluma branca”, prosseguiu. “Estava presa na forração da porta do passageiro. Do lado de dentro, perto do chão, uns centímetros abaixo do descanso do braço.”
“Você pode me passar isso?” “Posso. O que você vai fazer?” “Chamar o Benton.” “Droga, já tentei. Parece que ele e a mulher viajaram.” “Preciso perguntar a ele se Minor Downey pode nos ajudar.” “Isso é gente ou amaciante de tecido?” “Minor Downey é um perito em pelos e fibras dos laboratórios do FBI. A especialidade dele é análise de penas.” “E o nome dele é mesmo Downey?” Marino estava incrédulo.* “É sim.”
 
 
 
 
* Em inglês, down significa “pluma”. (N. T.)


8
O telefone tocou por muito tempo na Seção de Ciências do Comportamento do FBI, instalada no subsolo da Academia, em Quantico. Eu podia imaginar seus corredores ios e confusos e suas salas consteladas de lembranças de guerreiros refinados como Benton Wesley, que, segundo tinham me dito, fora esquiar. “Na verdade no momento estou sozinho aqui”, disse o afável agente que atendeu o telefone. “Aqui fala a doutora Kay Scarpetta e tenho urgência em encontrá-lo.” Benton Wesley me telefonou quase imediatamente. “Benton, onde você está?”, perguntei erguendo a voz. Havia uma estática terrível. “No meu carro. Connie e eu passamos o Natal com a família dela em Charlottesville. Estamos um pouco mais a oeste, a caminho de Hot Springs. Soube do que aconteceu com Susan Story. Meu Deus, que horror. Ia telefonar para você à noite.” “Sua voz está sumindo. Quase não consigo te ouvir.” “Espere um pouco.” Esperei impacientemente durante um longo minuto. Aí ele voltou. “Agora está melhor. Estamos numa região baixa. Escute, o que você quer comigo?” “Preciso da ajuda do FBI na análise de umas penas.” “Não tem problema. Vou ligar para o Downey.” “Preciso falar com você”, eu disse com grande relutância, pois sabia que o estava envolvendo. “Acho que não dá para esperar.” “Aguenta um pouco.” Daquela vez a pausa não se devia à estática. Ele estava conversando com a mulher. “Você sabe esquiar?”, voltou a voz. “Mais ou menos.” “Connie e eu estamos indo passar uns dias no Homestead. A gente podia conversar lá. Você pode se afastar uns dias?” “Vou mover céus e terras. Lucy vai comigo.” “Ótimo. Ela e Connie podem dar umas voltas enquanto a gente conversa. Vou reservar um quarto para vocês quando a gente chegar. Você pode trazer algum material para eu dar uma olhada?” “Levo.”
“Inclusive tudo o que você tiver sobre o caso da Robyn Naismith. Vamos cobrir tudo o que for possível.” “Obrigada, Benton. E agradeça à Connie, por favor”, eu disse, agradecida. Decidi sair imediatamente da repartição, sem maiores explicações. “Vai ser bom para você”, disse Rose, anotando o número do Homestead. Ela não sabia que minha intenção não era descansar numa estação de férias cinco estrelas. Quando lhe pedi que informasse Marino onde eu estaria, para que ele pudesse entrar imediatamente em contato comigo se houvesse novidades no caso de Susan, seus olhos por um instante brilharam de lágrimas. “Por favor, não diga para mais ninguém onde eu estou”, acrescentei. “Nos últimos vinte minutos três repórteres ligaram. Inclusive o Washington Post.” “Agora não vou discutir o caso de Susan. Diga a eles o de sempre, que estamos esperando os resultados do laboratório. Diga só que estou fora da cidade e que não dá para falar comigo.” Dirigindo rumo ao leste pelas montanhas, eu era assaltada por imagens. Vi Susan com o uniforme folgado e os rostos da mãe e do pai quando Marino lhes contara que a filha havia morrido. “Você está se sentindo bem?”, perguntou Lucy. Desde que saíramos de casa ela me olhava a cada minuto. “Só estou preocupada”, respondi, concentrando-me na estrada. “Você vai adorar esquiar. Acho que vai ser boa nisso.” Ela olhava em silêncio pela janela. O céu estava com a cor de jeans desbotado e as montanhas se levantavam ao longe, salpicadas de neve. “Desculpe. Parece que toda vez que você vem me visitar acontece alguma coisa e não posso lhe dar muita atenção”, acrescentei. “Não preciso de muita atenção.” “Um dia você vai entender.” “Pode ser que eu também seja assim com meu trabalho. Aliás, pode ser que tenha aprendido com você. Com certeza também vou ser bem-sucedida como você.” Meu espírito estava pesado como chumbo. Ainda bem que eu estava usando óculos escuros. Não queria que Lucy visse meus olhos. “Sei que você gosta de mim. Isso é que é importante. Sei que minha mãe não gosta de mim”, disse minha sobrinha. “Dorothy gosta de você tanto quanto pode gostar de alguém.” “Absolutamente certo. Tanto quanto pode, o que não é muito, porque não sou homem. Ela só gosta de homem.” “Não, Lucy. Na verdade sua mãe não gosta de homem. Os homens são um sintoma de sua busca obsessiva de alguém que a faça feliz. Ela não entende que tem de se encontrar primeiro.” “A única coisa que ela sempre encontra são babacas.”
“É, a média dela não tem sido boa.” “Não vou viver assim. Não quero ser como ela.” “Você não é como ela.” “Li no folheto que aonde a gente vai tem tiro ao alvo.” “Tem de tudo lá.” “Você trouxe algum revólver?” “No tiro ao alvo você não atira com revólver, Lucy.” “Se você for de Miami, atira.” “Se você não parar de bocejar eu também começo.” “Por que você não trouxe uma arma?”, insistiu. O Ruger estava na mala, mas eu não pretendia lhe contar. “Por que você está tão preocupada com minha arma?”, perguntei. “Quero ser boa nisso. Até acertar no doze do relógio sempre que quiser”, disse ela, sonolenta. Quando ela enrolou a jaqueta para fazer um travesseiro, meu coração doeu. Deitou-se a meu lado, com a cabeça junto de minha coxa. Ela não sabia como era forte minha tentação de mandá-la imediatamente de volta para Miami. Mas pude sentir que ela havia percebido meu medo. O Homestead ficava no meio de quinze mil hectares de florestas e cursos de água nas montanhas Allegheny, e o prédio principal do hotel era de tijolos vermelho-escuros com uma colunata branca. A cúpula branca exibia em cada um dos quatro lados outros tantos relógios sempre sincronizados que podiam ser vistos a quilômetros de distância, e as quadras de tênis e campos de golfe estavam brancos de neve. “Você está com sorte. As condições para o esqui estão ótimas”, eu disse a Lucy enquanto homens airosos em seus uniformes cinzentos vinham em nossa direção. Benton Wesley cumprira com o prometido, e encontramos uma reserva à nossa espera quando chegamos ao balcão da recepção. Ele reservara um quarto duplo com portas de vidro que se abriam para uma sacada que, por sua vez, dava para o cassino, e havia flores dele e de Connie sobre uma mesa. “Encontrem-nos nas pistas. Marquei uma aula para Lucy às três e meia”, dizia o cartão. “Temos de correr”, eu disse a Lucy enquanto abríamos as malas. “Sua primeira aula de esqui vai ser em exatamente quarenta minutos. Experimente esta aqui.” Atirei-lhe um par de calças de esqui vermelhas, e em seguida o blusão, as meias, as mitenes e o suéter, que voaram pelo ar e aterrissaram na cama dela. “Não se esqueça da mochila. O resto a gente arranja depois.” “Não tenho óculos de esqui. Vou ficar ofuscada”, disse ela, enfiando pela cabeça um suéter azul-claro de gola alta. “Você pode usar meus óculos. De todo modo o sol já vai começar a cair.”
Depois de tomar o bondinho que levava às pistas, alugar o equipamento para Lucy e confiá-la ao instrutor, que ficava junto ao teleférico, eram três e vinte e nove. Os esquiadores pareciam pontos brilhantes de cor descendo morro abaixo, e só quando chegavam perto se transformavam em pessoas. Inclinei-me para a ente em minhas botas, os esquis firmados na pista, e, com os olhos protegidos pelas mãos, explorei os cabos e os lis. O sol se aproximava do topo das árvores e a neve faiscava debaixo de seus raios, mas as sombras iam se espalhando e a temperatura caía rapidamente. Só reparei naquele casal por causa da graça de suas evoluções paralelas, os bastões levantados como plumas e a neve adejando pela pista enquanto eles se elevavam e giravam como pássaros. Reconheci a cabeleira prateada de Benton Wesley e ergui a mão. Ele se virou para Connie, gritou algo que não pude ouvir, arrancou e deslizou morro abaixo como uma lâmina, com os esquis tão juntos que duvido que uma folha de papel pudesse passar entre eles. Quando ele se deteve em meio a um redemoinho de neve e puxou os óculos para trás, ocorreu-me subitamente que, ainda que não o conhecesse, eu teria ficado olhando para ele. A malha de esqui preta envolvia pernas musculosas que eu jamais desconfiara estivessem sob as calças de seus ternos conservadores, e a jaqueta que usava me lembrava o pôr do sol em Key West. O rosto e os olhos estavam brilhantes de io, tornando seus traços marcantes mais atraentes que temíveis. Connie parou ao lado dele. “Que bom você estar aqui”, disse Wesley. Eu não conseguia vê-lo ou ouvir sua voz sem me lembrar de Mark. Os dois tinham sido colegas e melhores amigos. Podiam ter passado por irmãos. “E a Lucy?”, indagou Connie. “Ali, dando duro”, apontei. “Espero que você não tenha se incomodado por eu marcar a aula para ela.” “Incomodado? Tenho é que agradecer a você por sua atenção. Ela está adorando.” “Acho que vou ficar aqui e observar um pouco. Depois vou querer beber algo quente e acho que Lucy também vai querer. Ben, parece que você ainda não está satisfeito”, disse Connie. Wesley sugeriu: “Quer dar uma esquiada?”. Enquanto estávamos na fila, trocamos ideias sobre assuntos ívolos, e nos calamos quando o li girou e pudemos sentar. Wesley baixou a barra e o cabo nos puxou lentamente para o cume da montanha. O ar estava alucinante e deliciosamente limpo, cheio de sons suaves de esquis deslizando e chocandose pesadamente com a neve compacta. A neve das máquinas de neve rolava feito fumaça através das árvores, entre as vertentes. “Falei com Downey. Assim que você chegar ao FBI, ele a receberá”, disse ele. “Até que enfim uma boa notícia. Que foi que lhe contaram, Benton?”
“Marino e eu tivemos várias conversas. Parece que vocês estão com vários casos ligados por uma coincidência cronológica curiosa, embora não existam provas de que eles têm alguma relação.” “Acho que é mais que coincidência. Você sabe, a impressão digital de Ronnie Waddell apareceu na casa de Jennifer Deighton.” Ele contemplou um canteiro de sempre-vivas iluminado pelo sol poente. “Sei. Como eu disse ao Marino, espero que haja uma explicação lógica para a impressão digital de Waddell ter aparecido lá.” “A explicação lógica pode muito bem ser que ele tenha estado na casa alguma vez.” “Nesse caso, Kay, estamos lidando com uma situação tão estranha que não consigo entender. Um condenado do corredor da morte solto nas ruas e matando de novo. Teríamos de admitir que outra pessoa tomou o lugar dele na cadeira elétrica na noite de 13 de dezembro. Duvido que houvesse muitos voluntários.” “É, seria improvável.” “O que você sabe da história criminal do Waddell?” “Muito pouco.” “Eu o interroguei há muitos anos, em Mecklemburg.” Olhei para ele com interesse. “Para começar, saiba que ele não ajudou muito, e não quis discutir o assassinato da Robyn Naismith. Alegou que, se a tinha matado, não se lembrava. Não que isso seja incomum. A maioria dos criminosos violentos que interroguei diz que não se lembra bem ou nega que cometeu o crime. Antes de você chegar pedi um fax do protocolo de avaliação do Waddell. Depois do jantar vamos vê-lo.” “Benton, já estou contente por ter vindo.” Nossos ombros mal se tocavam e ele tinha os olhos fixos na distância. Quanto mais subíamos, mais íngreme se tornava o declive a nossos pés. Aí ele disse: “Como você está, Kay?”. “Melhor. Mas ainda há momentos ruins.” “Eu sei. Vai haver sempre. Mas espero que cada vez menos. Vai chegar um dia em que você não vai se sentir assim.” “É. Tem dias em que não sinto nada.” “Já temos uma boa pista sobre o grupo responsável. Achamos que sabemos quem pôs a bomba.” Levantamos a ponta dos esquis e nos inclinamos para a ente enquanto o li nos largava como filhotes de pássaros empurrados do ninho. Minhas pernas estavam duras e frias por causa da subida, e no gelo as trilhas à sombra eram traiçoeiras. Os longos esquis brancos de Wesley desapareciam na neve e ao mesmo tempo refletiam a luz. Ele desceu o declive dançando em nuvens esplêndidas de pó de diamante, e parando de vez em quando para olhar para
trás. Eu acenava para ele levantando um pouco o bastão enquanto dava lânguidas voltas paralelas e flutuava sobre todos aqueles magnatas. No meio do caminho já estava mais ágil e quente, e meus pensamentos voavam em liberdade. Quando escureceu e voltei para o quarto, verifiquei que Marino havia deixado uma mensagem dizendo que estaria no departamento até cinco e meia e pedindo que eu telefonasse assim que pudesse. “O que houve?”, falei quando ele atendeu. “Nada que possa fazer você dormir melhor. Para começo de conversa, Jason Story anda metendo o pau em você para todo mundo — inclusive para os repórteres.” “Ele tem de soltar a raiva de algum modo”, comentei, e meu estado de espírito voltou a ficar sombrio. “Bom, o que ele está fazendo não é boa coisa, mas também não é nosso pior problema. Não estamos conseguindo encontrar as dez fichas com as digitais do Waddell.” “Em nenhum lugar?” “Pois é. Verificamos os arquivos do departamento de polícia, da polícia estadual e do FBI. Quer dizer, todas as jurisdições que deveriam tê-las. Não havia ficha nenhuma. Aí falei com o Donahue na penitenciária para ver se ele dava um jeito de encontrar objetos pessoais do Waddell, como livros, cartas, escova de cabelos, escova de dentes — tudo o que pudesse ser uma fonte de impressões digitais. E sabe o quê? Donahue disse que as únicas coisas que a mãe do Waddell quis foram o relógio e o anel. Todo o resto foi destruído pelo Departamento de Correção.” Sentei-me pesadamente na beira da cama. “E o melhor guardei para o fim, doutora. A Seção de Armas de Fogo deu uma dentro e você não vai acreditar. As balas encontradas no Eddie Heath e na Susan Story eram da mesma arma, um 22.” “Meu Deus.”
Embaixo, no clube Homestead, uma orquestra tocava jazz, mas a plateia era pequena e a música não era tão alta que impedisse a conversa. Connie levara Lucy ao cinema, deixando Wesley e eu sentados a uma mesa num canto deserto da pista de dança. Ambos bebíamos conhaque. Ele não parecia fisicamente tão cansado quanto eu, mas a tensão voltara a seu rosto. Virando-se para trás, apanhou outra vela de uma mesa vazia e juntou-a a duas outras que pedira ao garçom. A luz era irregular mas adequada, e, embora não estivéssemos chamando muita atenção, fomos objeto de alguns olhares. Achei que era um lugar estranho para trabalhar, mas o vestíbulo e o salão de jantar eram muito expostos e Wesley era muito circunspecto para propor que nos encontrássemos em seu quarto ou no meu.
“Temos vários elementos conflitantes. Mas o comportamento humano não é algo rígido. Waddell passou dez anos na prisão. Não sabemos em que ele pode ter mudado. O assassinato de Eddie Heath para mim é um homicídio, o de Susan Story parece ser uma execução, um atentado”, disse ele. “Como se fossem dois criminosos diferentes”, disse eu, brincando com o conhaque. Inclinou-se para a ente, folheando preguiçosamente a pasta com o caso de Robyn Naismith: “Interessante”, disse, sem levantar os olhos. “Você ouve tanta coisa sobre o modus operandi, a assinatura do criminoso. Ele sempre procura um certo tipo de vítima ou escolhe um certo tipo de lugar, ou prefere usar faca, e assim por diante. Mas na verdade nem sempre é assim. Nem o motivo do crime é sempre claro. Eu disse que o homicídio de Susan Story, à primeira vista, não parecia ter motivo sexual. Mas, quanto mais penso nele, mais penso que tem um componente sexual. Acho que esse assassino é perfuracionista.” “Robyn Naismith foi esfaqueada inúmeras vezes.” “Pois é. Eu diria que o que foi feito com ela é como um exemplo de manual. Não houve prova de estupro — o que não quer dizer que ele não tenha ocorrido. Mas não havia esperma. A introdução repetida da faca no abdome, nas nádegas e nos seios foi um substituto da penetração peniana. Caso óbvio de perfuracionismo. Morder já é menos óbvio, acho que não tem relação nenhuma com os componentes orais do ato sexual, mas é mais uma vez um substituto da penetração peniana. Os dentes entrando na carne, o canibalismo, como John Joubert fez com os meninos entregadores de jornal que assassinou em Nebraska. Finalmente temos as balas. Você não associaria balas e penetração, a menos que pensasse sobre isso um pouquinho. Aí a dinâmica, em alguns casos, fica clara. Uma coisa que penetra a carne. Era o caso do filho de Sam.” “Não há prova disso no caso da morte de Jennifer Deighton.” “É verdade. É o que eu estava dizendo. Nem sempre o padrão é claro. Aqui, por exemplo, não estamos falando de um padrão claro, mas há um elemento comum nos assassinatos de Eddie Heath, Jennifer Deighton e Susan Story. Eu diria que são crimes organizados.” “Com Jennifer Deighton, não tão organizado. Parece que o assassino quis fingir que se tratava de suicídio e não conseguiu. Ou talvez ele não tenha desejado matá-la e foi longe demais com a gravata”, assinalei. “A morte dela antes de ser posta no carro provavelmente não estava no programa”, concordou Wesley. “Mas a verdade é que parecia haver um plano. E a mangueira presa no cano de descarga foi cortada com um instrumento afiado que nunca foi encontrado. Ou o assassino trouxe seu próprio instrumento ou arma, ou apanhou e usou qualquer coisa que encontrou na casa. Esse é um comportamento organizado. Mas antes de desenvolvermos
demais nossas teorias, deixe-me dizer-lhe que não temos nenhuma bala calibre 22 ou outro indício que ligue o homicídio de Jennifer Deighton ao do jovem Heath e ao de Susan.” “Acho que temos, Benton. A impressão digital de Ronnie Waddell apareceu numa cadeira da sala de visitas de Jennifer Deighton.” “Não sabemos se foi Ronnie Waddell que espetou os outros dois.” “O corpo de Eddie Heath estava numa posição que lembrava o caso de Robyn Naismith. O menino foi agredido na noite em que Ronnie Waddell ia ser executado. Você não acha que existe uma ligação esquisita?” “Vamos dizer o seguinte: não quero admitir essa hipótese.” “Nem eu nem você queremos. Qual é o seu palpite, Benton?” Com as linhas nítidas do lado esquerdo de seu queixo e os ossos de sua face iluminados pelas velas, ele pediu mais conhaque a uma garçonete. “Meu palpite? Bom. Tenho um palpite muito desagradável sobre isso tudo. Acho que Ronnie Waddell é o denominador comum, mas não sei o que isso significa. Encontraram uma impressão digital dele no local de um crime, mas não conseguimos encontrar a ficha com suas dez impressões digitais ou nenhuma outra coisa que forneça uma identificação positiva. Tampouco tiraram suas impressões digitais no necrotério, e a pessoa que supostamente esqueceu de fazê-lo acabou sendo assassinada com a mesma arma usada contra Eddie Heath. Parece que o advogado de Waddell, Nick Grueman, conhecia Jennifer Deighton; parece mesmo que ela passou um fax para Grueman dias antes de ser assassinada. Finalmente é verdade que há uma semelhança sutil e peculiar entre as mortes de Eddie Heath e Robyn Naismith. Francamente, não posso deixar de especular se a agressão a Heath não teria tido, por alguma razão, uma intenção simbólica.” Ele esperou que as bebidas fossem servidas, depois abriu um envelope de papel pardo que estava anexado à pasta do caso de Robyn Naismith. Aquele pequeno gesto me deu uma ideia que até então não me ocorrera. “Eu devia ter pegado as fotografias dela no arquivo”, eu disse. Wesley virou-se para mim enquanto punha os óculos. “Em casos antigos como esse, os registros em papel foram reduzidos a microfilme e as cópias dos microfilmes estão na pasta que você recebeu. Os documentos originais foram destruídos, mas costumamos guardar as fotografias originais. Elas vão para o arquivo.” “O arquivo é o quê? Uma sala no seu edifício?” “Não, Benton. Um depósito perto da biblioteca estadual — o mesmo depósito onde o Instituto Médico-Legal guarda as provas dos casos antigos.” “Vander ainda não encontrou a fotografia da impressão digital marcada a sangue que Waddell deixou na casa de Robyn Naismith?” “Não”, eu disse, e nossos olhos se encontraram. Nós dois sabíamos que Vander jamais a encontraria.
“Meu Deus, quem conseguiu as fotografias da Robyn Naismith para você?”, disse ele. “Meu administrador, Ben Stevens. Ele foi ao arquivo uma ou duas semanas antes da execução do Waddell.” “Por quê?” “Nos estágios finais do processo de apelação há sempre muitas perguntas, e gosto de ter acesso rápido ao caso ou casos envolvidos. Então é de rotina essa visita ao arquivo. O que é um pouco diferente neste caso é que não tive de pedir ao Stevens para apanhar as fotografias no arquivo. Ele se ofereceu.” “E isso não é normal?” “Pensando bem, acho que não.” “Quer dizer que seu administrador pode ter se oferecido porque estava interessado na pasta do Waddell — ou melhor, na fotografia da digital marcada a sangue que devia estar lá dentro.” “Tudo o que posso dizer com certeza é que, se Stevens quisesse mexer em alguma pasta do arquivo, só poderia fazê-lo se tivesse algum motivo oficial para ir até lá. Se, por exemplo, eu ficasse sabendo que ele tinha estado no arquivo sem que nenhum perito tivesse pedido, a coisa ia parecer estranha.” Prossegui, contando a Wesley a quebra da segurança no computador de minha repartição, explicando-lhe que os dois terminais envolvidos tinham sido o meu e o do Stevens. Enquanto eu falava, Wesley tomava notas. Levantou os olhos para mim quando me calei. “Não parece que eles tenham encontrado o que estavam procurando.” “Acho que não.” “Isso nos leva à questão óbvia. O que eles estavam procurando?” Sorvi lentamente o conhaque. À luz das velas, era como âmbar líquido, e cada gole queimava deliciosamente ao descer. “Talvez alguma coisa relativa à morte de Eddie Heath. Eu estava pesquisando outros casos em que as vítimas pudessem ter marcas de dentes ou lesões canibalísticas, e tinha um arquivo em meu diretório. Fora isso, não posso imaginar o que alguém pudesse estar procurando.” “Você mantém memorandos intradepartamentais no diretório?” “Em termos de processador de textos, um subdiretório.” “E é a mesma senha que dá acesso a esses documentos?” “É.” “E no processador de textos você também guarda relatórios de autópsias e outros documentos relativos aos casos?” “Sim, guardo. Só que quando meu diretório foi invadido não havia nada importante arquivado, que eu me lembre.” “Mas quem entrou não sabia necessariamente disso.” “Claro que não.” “E o relatório da autópsia de Ronnie Waddell, Kay? Quando entraram em
seu diretório, o relatório estava no computador?” “Devia estar. A violação foi na tarde de quinta-feira, 16 de dezembro, quando eu estava autopsiando Eddie Heath e Susan estava em cima, em minha sala, supostamente descansando no divã depois de derramar o formol.” “Intrigante.” Ele anziu a testa. “Admitindo que tenha sido Susan quem entrou no diretório, por que ela estaria interessada no relatório da autópsia do Waddell — se realmente o caso é esse? Ela estava presente durante a autópsia. O que ela podia ler no relatório que já não soubesse?” “Não me ocorre nada.” “Bom, deixe-me dizer isso de outro modo. O que, na autópsia, ela não sabia mesmo tendo estado presente na noite em que o corpo dele foi levado para o necrotério? Ou quem sabe seria o caso dizer: na noite em que um corpo foi levado para o necrotério, já que não temos certeza de que o indivíduo fosse o Waddell”, acrescentou, muito sério. “Ela não teria acesso aos laudos de laboratório. Mas o trabalho de laboratório ainda não estava pronto quando entraram em meu diretório. As análises toxicológica e do HIV, por exemplo, demoram semanas.” “E Susan sabia disso?” “Claro.” “E seu administrador também?” “Também.” “Deve haver outra coisa.” Havia, mas quando me lembrei dela não percebi sua importância. “Waddell — ou fosse quem fosse aquele preso — tinha um envelope no bolso de trás da calça que queria que fosse enterrado com ele. Fielding só ia abrir aquele envelope quando subisse com a papelada depois da autópsia.” “Quer dizer que Susan não tinha como saber qual era o conteúdo do envelope enquanto estava no necrotério naquela noite?”, perguntou Wesley, atento. “É isso mesmo. Não tinha.” “E havia alguma coisa importante no envelope?” “Só vários recibos de restaurante e de pedágio.” Wesley franziu a testa: “Recibos”, repetiu. “Que diabo ele estava fazendo com recibos? Você está com eles aí?” “Estão na pasta.” Apanhei as fotocópias. “Todos têm a mesma data, 13 de novembro.” “O que deve corresponder mais ou menos à época em que Waddell foi transferido de Mecklemburg para Richmond.” “Isso mesmo. Ele foi transferido quinze dias antes da execução.” “Temos de examinar os códigos desses recibos, ver de onde são. Pode ser importante. Muito importante, à luz do que estamos imaginando.”
“Que Waddell está vivo?” “É. Que de alguma maneira foi feita uma troca e ele foi solto. Talvez o homem que morreu na cadeira elétrica quisesse estar com esses recibos no bolso porque estava tentando dizer alguma coisa.” “E onde ele teria arranjado esses recibos?” “Talvez durante o transporte de Mecklemburg para Richmond, que seria o momento ideal para algum truque. Pode ser que tenham transportado dois homens. Waddell e algum outro.” “Você está imaginando que eles pararam para comer?” “Os guardas não devem parar para nada quando estão transportando presos do corredor da morte. Mas, se havia alguma combinação, tudo pode ter acontecido. Quem sabe não pararam para comprar comida para a viagem e foi aí que soltaram o Waddell. O outro preso foi levado para Richmond e posto na cela do Waddell. Pense nisso. Como os guardas ou qualquer outra pessoa da rua Spring teriam algum jeito de saber que o preso que tinha vindo não era o Waddell?” “Ele podia dizer que não era, mas ninguém ia acreditar.” “É, acho que não iam acreditar.” “E a mãe de Waddell?”, perguntei. “Dizem que ela o visitou umas horas antes da execução. Com certeza ia saber se o preso era ou não o filho dela.” “Temos de verificar se a visita ocorreu mesmo. Mas, tenha ou não ocorrido, a senhora Waddell tinha interesse na troca. Não imagino que ela quisesse ver o filho morto.” “Então você está convencido de que executaram o homem errado”, eu disse com relutância, pois naquele momento havia poucas teorias que eu quisesse tanto invalidar. A resposta dele foi abrir o envelope com as fotografias de Robyn Naismith e retirar um maço grosso de fotos coloridas que continuariam me horrorizando por mais que eu olhasse para elas. Wesley percorreu lentamente a história ilustrada daquela morte terrível. Depois disse: “Quando consideramos estes três últimos homicídios, vemos que eles não correspondem ao perfil de Waddell”. “O que você está querendo dizer, Benton? Que depois de dez anos na prisão a personalidade dele mudou?” “Só o que eu posso lhe dizer é que já ouvi falar de criminosos organizados que se desorganizam, perdem a cabeça. Começam a cometer erros. Bundy, por exemplo. No fim ficou enético. Mas o contrário geralmente não se vê, um indivíduo desorganizado, uma pessoa psicótica passar a ser metódica, racional — tornar-se organizada.” Quando aludia aos Bundys e aos Filhos de Sam deste mundo, Wesley o fazia teoricamente, impessoalmente, como se suas análises e teorias se fundassem em fontes secundárias. Não se vangloriava. Não citava nomes nem assumia o
papel de quem tivesse conhecido pessoalmente aqueles criminosos. Sua conduta era, assim, deliberadamente enganadora. Na verdade, ele tinha passado longas horas na intimidade de tipos como Theodore Bundy, David Berkowitz, Sirhan Sirhan, Richard Speck e Charles Manson, bem como de outros buracos negros menos conhecidos que tinham sugado luz do planeta Terra. Lembrei-me de uma vez em que Marino me contara que às vezes, ao voltar de algumas dessas peregrinações às penitenciárias de segurança máxima, Wesley parecia pálido e exausto. Ficava quase fisicamente abalado por absorver o veneno daqueles homens e suportar o apego que eles inevitavelmente desenvolviam em relação a ele. Alguns dos piores sádicos da história recente lhe escreviam cartas, lhe enviavam cartões de Natal e lhe perguntavam pela família. Natural que Wesley desse a impressão de suportar uma pesada carga e ficasse tanto tempo em silêncio. Para obter informações, fazia o que nenhum de nós quer fazer. Deixava que o monstro se ligasse a ele. “Foi constatado que Waddell era psicopata?”, indaguei. “Foi constatado que ele estava em seu juízo perfeito quando assassinou Robyn Naismith.” Wesley puxou uma fotografia e deslizou-a sobre a mesa até mim. “Mas, francamente, não acho que estivesse.” Aquela era a fotografia que eu guardara mais nitidamente na memória e, enquanto a examinava, não conseguia imaginar uma alma desprevenida dando de cara com uma cena daquelas. A sala de visitas de Robyn Naismith não tinha muita mobília, só diversas cadeiras com almofadas verde-escuras e um sofá de couro cor de chocolate. No meio do assoalho de tacos havia um tapetinho Bakhara e o revestimento de madeira das paredes tinha veios imitando cerejeira ou mogno. Uma televisão grande ficava encostada à parede do fundo, bem em ente à porta de entrada, propiciando a quem entrasse ampla visão ontal da arte horrível de Ronnie Joe Waddell. O que a amiga de Robyn vira no instante em que destrancara e abrira a porta chamando por Robyn fora um corpo nu sentado no chão, com as costas apoiadas na televisão e tanto sangue seco escorrido e espalhado sobre a pele que a natureza exata das lesões só pôde ser determinada mais tarde, no necrotério. Na fotografia, o sangue coagulado em poças em torno das nádegas de Robyn parecia alcatrão pintado de vermelho, e havia várias toalhas ensanguentadas espalhadas por perto. A arma nunca foi encontrada, embora a polícia houvesse descoberto que num conjunto existente na cozinha faltava uma faca de carne, alemã, de aço inoxidável, e que as características da lâmina dessa faca se ajustavam aos ferimentos. Tendo aberto a pasta referente a Eddie Heath, Wesley tirou um diagrama desenhado no local pelo policial do condado de Henrico que descobrira o menino gravemente ferido atrás da mercearia vazia. Pôs o diagrama junto à
fotografia de Robyn Naismith e ficamos um instante em silêncio, olhando para as duas imagens, comparando-as. As semelhanças eram mais pronunciadas do que eu imaginara, as posições dos corpos eram praticamente idênticas, desde as mãos ao lado do corpo até a roupa mal empilhada entre os pés descalços. “Tenho de admitir que é impressionante”, observou Wesley. “Parece que a cena de Eddie Heath é uma cópia dessa.” Tocou a fotografia de Robyn Naismith. “Os corpos posicionados como bonecas de pano, apoiados contra objetos cúbicos. Uma TV grande. Um contêiner marrom.” Espalhou outras fotografias pela mesa, como cartas de baralho, e tirou uma do conjunto. Era um close do corpo no necrotério, com as marcas circulares desiguais de mordidas humanas no seio esquerdo e na parte interior da coxa esquerda. “Novamente uma semelhança notável”, disse ele. “As marcas de mordida nestes dois pontos correspondem exatamente às regiões em que faltava tecido no ombro e na coxa de Eddie Heath. Em outras palavras”, disse, tirando os óculos e olhando para mim, “Eddie Heath provavelmente foi mordido e a carne retirada para não deixar provas.” “Então o assassino pelo menos conhece um pouco de medicina legal.” “Quase todo criminoso que passou algum tempo na prisão conhece medicina legal. Se Waddell não sabia nada sobre identificação de mordidas quando assassinou Robyn Naismith, a esta altura já saberia.” “Você está falando de novo como se fosse ele o assassino. Agora há pouco você disse que o perfil não era o dele.” “Dez anos atrás, não seria. Isso é o que estou dizendo.” “Você está com o protocolo de avaliação dele. Podemos falar a respeito?” “Claro.” O protocolo era na verdade um questionário do FBI, de quarenta páginas, preenchido durante entrevistas feitas na prisão com criminosos violentos. “Dê uma olhada você mesma. Quero saber o que você acha sem ser influenciada por mim”, disse Wesley, pondo o protocolo de Waddell à minha frente. As entrevistas de Wesley com Ronnie Joe Waddell tinham sido realizadas seis anos antes, no corredor da morte do condado de Mecklemburg. O protocolo começava com os dados descritivos usuais. A atitude, o estado emocional, os maneirismos e o estilo de conversação de Waddell mostravamno agitado e confuso. Depois, quando Wesley lhe deu a oportunidade de formular perguntas, só fez uma: “Vi uns floquinhos brancos quando passei pela janela. Está nevando ou são cinzas do incinerador?”. Reparei que o protocolo era datado de agosto. As perguntas sobre como o assassinato poderia ter sido evitado a nada
haviam conduzido. Waddell teria matado sua vítima num local movimentado? Teria matado se houvesse testemunhas? Alguma coisa seria capaz de impedilo de matar? Na opinião dele a pena de morte era um dissuasor? Waddell disse que não conseguia se lembrar de ter matado “a mulher da televisão”. Não sabia o que teria sido capaz de impedi-lo de cometer um ato do qual não se recordava. Sua única lembrança era de estar “grudento”. Disse que era como ter acordado de um sonho erótico. A viscosidade experimentada por Ronnie Waddell não era a do esperma. Era a do sangue de Robyn Naismith. “Os problemas dele parecem simples. Dores de cabeça, timidez extrema, fantasias acentuadas e o fato de ter deixado a casa dos pais aos dezenove anos de idade. Não vejo nada aqui que pudéssemos considerar o sinal de alarme habitual. Não há crueldade contra animais, atividades incendiárias, agressões etc.”, pensei em voz alta. “Continue.” Explorei diversas outras páginas. “Drogas e álcool”, eu disse. “Se não tivesse sido preso, ia morrer como drogado ou levar um tiro na rua. E o que é interessante é que ele só começou a abusar dessas substâncias no início da idade adulta. Lembro que Waddell me disse que até sair de casa e completar vinte anos nunca tinha provado álcool.” “Ele se criou numa fazenda?” “Em Suffolk. Uma fazenda bem grande onde se plantavam amendoim, milho e soja. A família toda dele morava lá e trabalhava para os proprietários. Eram quatro filhos e Ronnie Joe era o mais moço. A mãe era muito religiosa e levava as crianças à igreja todos os domingos. Nada de álcool, nem de palavrão, nem de cigarros. Ele era muito protegido. Na verdade, Ronnie nunca tinha saído da fazenda até o pai morrer, aí ele teve de sair. Tomou o ônibus para Richmond e não teve dificuldade para encontrar trabalho, por causa de sua força física. Quebrar asfalto com britadeira, carregar carga pesada, essas coisas. Minha teoria é que, diante da tentação, não pôde resistir. Primeiro a cerveja e o vinho, depois a maconha. Passado um ano já estava na cocaína e na heroína, comprando, vendendo e roubando o que podia. Quando lhe perguntei quantos crimes tinha cometido sem ser preso, disse que perdera a conta. Disse que roubava, arrombava automóveis — em outras palavras, crimes contra o patrimônio. Aí arrombou a casa de Robyn Naismith e ela teve o azar de chegar em casa quando ele estava lá.” “Benton, ele não era descrito como violento.” “É. Nunca teve o perfil do criminoso violento típico. A defesa alegou insanidade temporária devida às drogas e ao álcool. Para falar a verdade, acho que o caso era esse mesmo. Pouco antes de matar Robyn Naismith ele tinha começado a tomar PCP. É bem possível que, ao encontrar Robyn, Waddell estivesse completamente louco e depois pouco ou nada recordasse do que tinha feito a ela.”
“Você se lembra do que ele roubou, se é que roubou alguma coisa? Não sei se havia prova clara de que quando arrombou a casa ele tinha a intenção de roubar.” “O lugar foi saqueado. Sabemos que faltavam joias. O armarinho de remédios e a carteira dela estavam vazios. É difícil saber o que mais foi roubado, porque ela morava sozinha.” “Não mantinha nenhum relacionamento significativo?” “Um ponto fascinante.” Wesley olhou para um casal de velhos que dançava ao som de um saxofone rouco numa espécie de torpor. “Foram encontradas marcas de esperma no lençol e na colcha. A marca do lençol tinha de ser recente, salvo se Robyn não trocasse a roupa de cama com equência, e sabemos que o Waddell não era a origem das marcas. Não combinavam com seu tipo de sangue.” “Ninguém que a conhecesse mencionou algum amante?” “Ninguém. Claro que havia interesse em saber quem era a pessoa e, como ele nunca entrou em contato com a polícia, houve a suspeita de que ela tivesse um caso com um homem casado, colega ou contato.” “Talvez tivesse. Mas não era ele o assassino.” “Não. O assassino foi Ronnie Joe Waddell. Vamos dar uma olhada.” Abri a pasta de Waddell e mostrei a Wesley as fotografias do prisioneiro executado que autopsiara na noite de 13 de dezembro. “Você pode dizer se esse é o homem que você entrevistou há seis anos?” Impassível, Wesley estudou as fotografias uma por uma. Olhou os closes da ente e de trás da cabeça e passou os olhos por fotos do tronco e das mãos. Desprendeu um retrato três por quatro do protocolo de avaliação de Waddell e, enquanto eu observava, começou a fazer comparações. “Há uma certa semelhança”, eu disse. “É o máximo que se pode dizer. A fotografia três por quatro tem dez anos. Waddell tinha barba e bigode e era musculoso, mas esbelto. O rosto era magro. Esse cara” — apontou para uma das fotografias do necrotério — “está barbeado e é muito mais gordo. O rosto é muito mais chato. Baseado nessas fotografias não posso afirmar que seja o mesmo homem.” Tampouco eu podia dizê-lo. Podia, porém, pensar em velhas fotografias minhas que ninguém teria reconhecido. “Você tem alguma sugestão sobre como resolver esse problema?”, perguntei a Wesley. “Vou tentar algumas coisas. Seu velho amigo Nick Grueman tem alguma coisa a ver com o caso, e estive pensando na melhor maneira de lidar com ele sem mostrar nosso jogo. Se eu ou Marino falarmos com ele, ele vai saber imediatamente que há alguma coisa”, disse, empilhando as fotografias e batendo-as contra a mesa, tentando endireitá-las. Percebi aonde íamos chegar e tentei interrompê-lo, mas Wesley não
deixou. “Marino me falou de suas dificuldades com Grueman, que ele telefona e fica encurralando você. E depois, é claro, tem também o passado, o tempo em que você estava na Universidade de Georgetown. Talvez você devesse falar com ele.” “Não quero falar com ele, Benton.” “Quem sabe ele tem fotografias de Waddell, cartas, outros documentos. Alguma coisa que tenha as impressões digitais. Ou talvez, ao longo da conversa, ele diga alguma coisa que possa ser interessante. O ponto é que, se você quiser, pode procurá-lo por conta de suas atividades normais, e nós não. E de todo jeito você vai ao distrito de Colúmbia ver Downey.” “Não.” “É só uma ideia.” Olhou para outro lado e pediu a conta à garçonete. “Quanto tempo Lucy vai ficar com você?” “Só tem de voltar para o colégio no dia 7 de janeiro.” “Estou lembrado de que ela é muito boa com computadores.” “Para lá de boa.” Wesley sorriu de leve. “É o que me disse o Marino. Disse que ela acha que pode ajudar com o Sida.” “Tenho certeza de que ela gostaria de tentar.” De repente me senti de novo protetora — e dilacerada. Queria mandá-la de volta para Miami e ao mesmo tempo não queria. “Talvez você não esteja lembrada, mas Michele trabalha no Departamento de Serviços de Justiça Criminal, que assiste a polícia estadual no uso do Sida”, disse Wesley. “Imagino que no momento isso deva lhe causar alguma preocupação.” Terminei minha bebida. “Não há um dia de minha vida em que eu não me preocupe”, disse ele.
Na manhã seguinte começou a cair uma neve ligeira enquanto Lucy e eu vestíamos uniformes de esqui que poderiam ser vistos a quilômetros de distância. “Pareço um daqueles cones de sinalização”, disse ela, fitando seu reflexo laranja flamejante no espelho. “É verdade. Se você se perder em alguma trilha não vai ser difícil encontrar.” Engoli as vitaminas e duas aspirinas com água mineral do minibar. Minha sobrinha considerou meu traje quase tão elétrico quanto o dela, e sacudiu a cabeça. “Para alguém tão conservadora, nos esportes você se veste como um pavão de néon.” “Procuro não ser careta o tempo todo. Está com fome?” “Morrendo.”
“Benton vai nos encontrar no refeitório às oito e meia. Podemos descer, se você não quiser esperar.” “Estou pronta. Connie não vai comer com a gente?” “A gente vai se encontrar com ela na pista. Benton primeiro quer falar a respeito de trabalho.” “Acho que ela vai ficar chateada de ser deixada de fora. Sempre que ele fala com alguém, parece que ela não é convidada.” Fechei a porta do quarto e fomos andando pelo corredor silencioso. “Acho que Connie não gosta de se envolver. Conhecer cada pormenor do trabalho do marido seria uma carga para ela”, eu disse em voz baixa. “E para compensar ele conversa com você.” “Sobre os casos, conversa.” “Sobre o trabalho. E o trabalho é o mais importante para vocês.” “O trabalho certamente domina nossas vidas.” “Você e o senhor Wesley estão querendo ter um caso?” “Já estamos quase tomando café da manhã juntos”, sorri. O bufê do Homestead era maravilhoso. Havia mesas compridas cobertas por toalhas, repletas de toucinho e presunto defumados da Virgínia, todas as receitas imagináveis de ovo, além de doces, pães e bolos. Lucy não parecia tentada, dirigindo-se diretamente para os cereais e utas escas. Obrigada a me comportar por causa do exemplo dela e de meu recente sermão a Marino sobre sua saúde, evitei tudo o que queria, inclusive o café. “As pessoas estão olhando pra você, tia Kay”, disse Lucy entre dentes. Imaginei que a atenção era resultado de nossa vestimenta vibrante, até que abri o Washington Post daquela manhã e tive a surpresa de me descobrir na primeira página. O título dizia: “ASSASSINATO NO NECROTÉRIO”, e a notícia era uma longa descrição do homicídio de Susan, acompanhada de uma fotografia colocada num lugar preeminente, na qual eu aparecia chegando ao local do crime, aparentemente muito nervosa. Ficava claro que a principal fonte do repórter fora o transtornado marido de Susan, Jason, cujo depoimento pintava um quadro em que, menos de uma semana antes de morrer violentamente, sua mulher tinha deixado o emprego em circunstâncias singulares, se não suspeitas. Afirmava-se, por exemplo, que havia pouco Susan tinha se indisposto comigo quando eu quisera arrolá-la como testemunha no caso de um jovenzinho assassinado, embora ela não tivesse estado presente à autópsia. Quando Susan adoecera e não fora trabalhar “devido a um derramamento de formol”, eu telefonara para sua casa com tanta equência que ela havia ficado com medo de atender o telefone. Depois eu “aparecera em sua porta na véspera do assassinato” com um vaso de flores e vagas ofertas de favores. O marido de Susan era citado: “Cheguei a minha casa depois das compras de Natal e encontrei a médica-legista chefe na minha sala de visitas. Ela [a
doutora Scarpetta] despediu-se imediatamente e assim que a porta se fechou Susan começou a chorar. Estava apavorada com algo, mas não me disse o que era”. Por mais que achasse desconcertante a aonta pública de Jason, pior era a revelação das transações financeiras recentes de Susan. Supunha-se que, duas semanas antes de morrer, ela havia saldado mais de três mil dólares de dívidas com cartões de crédito, depois de depositar três mil e quinhentos dólares em sua conta corrente. A bonança súbita não podia ser explicada. No outono seu marido perdera o emprego de vendedor e Susan ganhava menos de vinte mil dólares por ano. “O senhor Wesley está aqui”, disse Lucy, tirando o jornal de minha mão. Benton vestia calças pretas de esqui e suéter preto de gola alta e levava no braço uma jaqueta de um vermelho-vivo. Pela expressão de seu rosto e por seu queixo contraído, percebi que estava a par das notícias. “O Post tentou falar com você?” Puxou uma cadeira. “Não posso acreditar que tenham publicado esse negócio sem dar a você a oportunidade de fazer algum comentário.” “Ontem, quando eu estava saindo da repartição, um repórter do Post telefonou. Queria me perguntar sobre o homicídio de Susan e preferi não falar com ele. Com certeza aquela era a minha oportunidade.” “Quer dizer que você não sabia de nada, não foi avisada desse golpe?” “Estava por fora até pegar o jornal.” “Está em todos os noticiários, Kay.” Seus olhos encontraram os meus. “Ouvi na televisão, de manhã. Marino telefonou. A imprensa de Richmond está deitando e rolando. O que se diz é que o assassinato de Susan pode estar ligado ao escritório do médico-legista — que você pode estar envolvida e por isso saiu da cidade às pressas.” “Isso é uma maluquice.” “Quanto do artigo é verdade?”, perguntou ele. “Os fatos foram completamente distorcidos. Quando Susan não apareceu para trabalhar, telefonei para a casa dela. Queria certificar-me de que estava bem e precisava saber se ela se lembrava de ter tirado as impressões digitais do Waddell no necrotério. Fui vê-la na véspera de Natal para dar-lhe um presente e as flores. Quanto à minha promessa de favores, imagino que foi quando ela me disse que estava se demitindo e eu disse a ela que se precisasse de referências ou se houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer por ela, estaria às ordens.” “E esse negócio de ela não querer ser testemunha no caso de Eddie Heath?” “Isso foi na tarde em que ela quebrou vários vidros de formol e foi se refugiar em minha sala. É rotina arrolar os assistentes de autópsias como testemunha quando eles assistem as autópsias. Nesse caso, Susan só esteve presente no exame externo e foi taxativa em não querer seu nome no
relatório da autópsia de Eddie Heath. Achei o pedido e o comportamento dela esquisitíssimos, mas não houve nenhum confronto.” “Por esse artigo, parece que você a estava subornando. Era isso o que eu haveria de pensar, se lesse a matéria e não soubesse de nada”, disse Lucy. “Eu não estava subornando ninguém, mas parece que alguém estava.” “Agora tudo está fazendo um pouco mais de sentido. Se essa parte sobre a situação financeira dela é verdade, então Susan recebeu uma bolada de dinheiro, o que quer dizer que deve ter feito um serviço para alguém. Na mesma época, alguém invadiu seu computador e a personalidade de Susan mudou. Ficou nervosa e imprevisível. Evitou você o quanto pôde. Acho que ela não conseguia encarar você, Kay, porque sabia que estava te traindo”, disse Wesley. Concordei com a cabeça, lutando para manter a compostura. Susan havia se metido em alguma confusão e não soubera como sair, e me ocorreu que aquela podia ser a verdadeira razão pela qual ela fugira da autópsia de Eddie Heath e, depois, da de Jennifer Deighton. Suas explosões emocionais nada tinham a ver com bruxaria ou com a tontura que sentira depois de exposta às emanações de formol. Ela estava entrando em pânico. Não queria ser testemunha em nenhum dos dois casos. Quando expus minha teoria, Wesley disse: “Interessante. Se você perguntar que coisa de valor Susan tinha para vender, a resposta é que ela tinha informação. E com certeza a pessoa que ela ia encontrar no dia de Natal era a pessoa que estava comprando essa informação”. “Que informação podia ser tão importante a ponto de alguém pagar milhares de dólares por ela e depois matar uma mulher grávida?”, indagou Lucy em tom áspero. Não sabíamos, mas tínhamos um palpite. O denominador comum, mais uma vez, parecia ser Ronnie Joe Waddell. Não havia sido por esquecimento que Susan deixara de colher as impressões digitais de Waddell ou de fosse quem fosse o executado. Ela não as colhera deliberadamente. “É o que parece”, concordou Wesley. “Alguma outra pessoa pediu a ela para convenientemente esquecer de tirar as digitais. Ou para perder as fichas, caso você ou outro membro da equipe as tirasse.” Pensei em Ben Stevens. Filho da mãe. “E isso nos leva de volta ao que você e eu concluímos ontem à noite, Kay”, prosseguiu Wesley. “Temos de voltar à noite em que se supõe que Waddell foi executado e determinar quem estava amarrado na cadeira. E um lugar para começar é o Sida. O que queremos saber é se mexeram em algum registro e quem mexeu.” Depois, dirigindo-se a Lucy: “Já tenho tudo arrumado para você verificar as fitas diárias, se você concordar”.
“Concordo”, disse Lucy. “Quando você quer que eu comece?” “Pode começar quando quiser, porque o primeiro passo só envolve o telefone. Você precisa telefonar a Michele. Ela é analista de sistemas no Departamento de Serviços de Justiça Criminal e trabalha para as chefias da polícia estadual. Está envolvida com o Sida e vai dar a você os pormenores de como tudo funciona. E aí vai montar as fitas diárias, para que você tenha acesso a elas.” “Ela não se incomoda de eu fazer isso?”, perguntou Lucy, cautelosa. “Ao contrário. Adora. As fitas diárias são só elementos de auditoria, um registro das mudanças feitas no banco de dados do Sida. Em outras palavras, não podem ser lidas. Acho que Michele chamava isso de ‘depósito hex’; não sei se significa alguma coisa para você.” “Hexadecimal, ou base 16. Em outras palavras, criptogramas. Quer dizer que tenho de deciar os dados e procurar tudo o que se refira aos números de identificação dos registros em que vocês estão interessados.” “Você pode fazer isso?”, indagou Wesley. “Se tiver uma ideia do código e do sistema de registro. Por que a analista que você conhece não faz isso ela mesma?” “Queremos ser o mais discretos possível. Se Michele de repente largasse o trabalho dela e começasse a explorar as fitas diárias dez horas por dia ia chamar atenção. Você pode trabalhar sem ser vista, lá na casa de sua tia, discando para uma linha especial.” “Contanto que quando Lucy discar não seja possível descobrir que foi lá de casa”, eu disse. “Não será”, disse Wesley. “E ninguém poderá perceber que alguém de fora está discando para o computador da polícia estadual e tendo acesso às fitas?”, perguntei. “Michele diz que pode dar um jeito para não haver problema.” Wesley abriu o zíper de um bolso de sua jaqueta de esqui e tirou um cartão, que entregou a Lucy. “Aqui estão os números dos telefones dela, do trabalho e de casa.” “Como você sabe que posso confiar nela? Se o sistema foi invadido, como você sabe que ela não está envolvida?”, perguntou Lucy. “Michele nunca foi boa em mentira. Desde pequena olhava para os pés e ficava mais vermelha que um pimentão.” “Você conheceu ela quando era pequena?” Lucy parecia desconcertada. “Até antes. É minha filha mais velha.”
9
Depois de muita discussão, chegamos ao que parecia ser um plano razoável. Lucy ficaria em Homestead com os Wesley até quarta-feira, deixando-me um breve período para enentar meus problemas sem me preocupar com seu bem-estar. Depois do café parti sob uma neve mansa, que se transformara em chuva quando cheguei a Richmond. No fim da tarde estive na repartição e nos laboratórios. Conversei com Fielding e com diversos legistas e evitei Ben Stevens. Não retornei a ligação de nenhum repórter e ignorei o correio eletrônico, pois, se o secretário de Saúde tivesse me mandado uma mensagem, não queria saber o que ela dizia. Às quatro e meia estava enchendo o tanque com gasolina num posto Exxon da avenida Grove quando um Ford LTD branco parou atrás de mim. Vi Marino descer, ajeitar as calças e dirigir-se ao banheiro dos homens. Quando voltou, pouco tempo depois, olhou disfarçadamente em torno como se estivesse preocupado que alguém pudesse ter observado sua visita ao sanitário. Depois veio falar comigo. “Quando ia passando vi você”, disse, enfiando as mãos nos bolsos do blazer azul. “Cadê seu casaco?” Comecei a limpar o para-brisa da frente. Deu de ombros no ar io e cortante. “Está no carro. Me atrapalha. Se você não está pensando em acabar com esses boatos, é melhor começar a pensar.” Irritada, guardei o limpa-para-brisa na embalagem. “E o que você sugere, Marino? Que eu chame o Jason Story e diga a ele que sinto muito que a mulher e a filha dele tenham morrido, mas que agradeceria se ele despejasse a mágoa e a raiva em outro lugar?” “Doutora, ele está culpando você.” “Depois de ler no Post o que ele disse, acho que muita gente está me culpando. Ele conseguiu me pintar como uma maquiavélica filha da mãe.” “Você está com fome?” “Não.” “Mas parece.” Olhei-o como se ele tivesse enlouquecido. “E, quando acho que alguma coisa está parecendo isso ou aquilo, meu dever é investigar. Vou então lhe dar uma opção, doutora. Posso apanhar uns biscoitinhos e uns reigerantes ali nas máquinas e podemos ficar aqui congelando a bunda e respirando fumaça enquanto impedimos outros pobresdiabos de usar as bombas de autosserviço, ou podemos dar um pulo no Phil’s.
Para mim qualquer coisa está bom.” Dez minutos depois estávamos sentados num reservado de canto correndo os olhos por um cardápio com ilustrações espalhafatosas que oferecia de tudo, desde espaguete até peixe ito. Marino estava de ente para a porta escura e eu gozava de uma visão perfeita dos banheiros. Ele, como a maioria das pessoas em torno de nós, fumava, e eu me lembrava de como é duro parar. Na verdade, consideradas as circunstâncias, ele não poderia ter escolhido um restaurante melhor. O Philip’s Continental Lounge era um velho estabelecimento de bairro onde egueses que tinham se conhecido a vida inteira continuavam a se encontrar regularmente para uma refeição suculenta e uma garrafa de cerveja. O cliente típico era bem-humorado e gregário e não me reconheceria nem prestaria atenção em mim salvo se minha fotografia aparecesse regularmente na seção esportiva do jornal. “É o seguinte”, disse Marino, fechando o cardápio. “Jason Story acredita que Susan ainda estaria viva se tivesse outro emprego. E provavelmente está certo. Além do mais, ele é um acassado — um desses fodidos egocêntricos que acreditam que tudo é culpa dos outros. A verdade é que provavelmente o maior culpado pela morte de Susan é ele mesmo.” “Você está sugerindo que ele a matou?” A garçonete apareceu e fizemos o pedido. Frango grelhado e arroz para Marino e cachorro-quente kosher com pimenta para mim, mais dois refrigerantes diet. “Não estou sugerindo que Jason tenha matado a mulher, mas por causa dele ela se envolveu com o negócio que precipitou o homicídio. Pagar as contas era responsabilidade da Susan, e ela estava soendo uma grande pressão financeira”, disse Marino, sério. “Não é de se espantar. O marido tinha perdido o emprego.” “É uma pena que ele não tenha perdido o gosto por dinheiro. Estamos falando de camisas polo, calças da Britches de Georgetown e gravatas de seda. Umas duas semanas depois de ser despedido, o cara sai de casa, compra setecentos dólares de equipamento de esqui e se manda para passar o fim de semana em Wintergreen. Antes disso foi uma jaqueta de couro de duzentos dólares e uma bicicleta de quatrocentos dólares. Quer dizer, a Susan ficava no necrotério trabalhando como um camelo para chegar em casa e dar de cara com umas contas que engoliam o salário dela brincando.” “Eu não sabia”, disse, penalizada por uma visão súbita de Susan sentada à escrivaninha. Seu ritual diário era passar a hora do almoço em sua sala, e às vezes eu me reunia lá com ela para conversar. Lembrei-me de seus salgadinhos de milho e das etiquetas de oferta dos reigerantes. Não penso que ela jamais tenha comido ou bebido alguma coisa que não tivesse sido trazida de casa. “Os hábitos de consumo do Jason levam a essa merda que ele está fazendo
com você. Está te esculhambando porque você é uma médica-advogadacacique que dirige um Mercedes e tem uma casa enorme em Windsor Farms. Acho que o babaca acredita que, se de algum modo culpar você pelo que aconteceu com a mulher, pode arranjar uma indenização”, continuou Marino. “Pode tentar até se arrebentar.” “E vai tentar.” Nossos refrigerantes chegaram, e mudei de assunto. “Vou me encontrar com o Downey amanhã de manhã.” Os olhos de Marino se desviaram para o televisor no alto do bar. “Lucy está começando com o Sida. E também tenho de fazer alguma coisa quanto a Ben Stevens.” “O que você devia fazer era se livrar dele.” “Você faz alguma ideia de como é difícil demitir um servidor público?” “Dizem que é mais fácil demitir Jesus Cristo. Só se for um servidor comissionado, como você. Mas tem de haver um jeito de pôr um filho da puta para fora.” “Você falou com ele?” “Falei. Segundo ele, você é arrogante, ambiciosa e esquisita. Um pé no saco para se trabalhar.” “Ele disse isso mesmo?”, perguntei, incrédula. “O papo foi esse.” “Espero que alguém esteja verificando as contas dele. Gostaria de saber se fez algum depósito grande ultimamente. Susan não entrou nessa sozinha.” “Também acho. Acho que o Stevens sabe de muita coisa e está fazendo de tudo para esconder. Por falar nisso, verifiquei o banco da Susan. Um dos caixas se lembra de que ela depositou os três mil e quinhentos dólares em dinheiro. Notas de vinte, cinquenta e cem dólares, que levava na bolsa.” “O que o Stevens disse a respeito de Susan?” “Anda dizendo que na verdade não a conhecia, mas que tinha a impressão de que havia um problema entre ela e você. Em outras palavras, está reforçando o que saiu nos jornais.” Nossa comida chegou, e eu estava tão irritada que mal consegui engolir. “E o Fielding? Também acha horrível trabalhar comigo?” Marino desviou novamente o olhar. “Diz que você é muito elétrica e que ainda não entendeu bem você.” “Não o contratei para me entender e, comparada com ele, claro que sou elétrica. Há muito tempo Fielding está desencantado com a medicina legal. Gasta a maior parte de sua energia no ginásio.” Marino encontrou meus olhos. “Doutora, você é elétrica comparada com qualquer um, e a maioria das pessoas não te entende. Você não é uma pessoa que se mostra muito. Chega mesmo a parecer uma pessoa sem sentimentos. É tão fechada que, para quem não conhece, parece que não sente nada. Os
outros tiras, os advogados, esse pessoal todo me pergunta a seu respeito. Querem saber como você é na verdade, como pode fazer o que faz todo dia — qual é o babado. Veem você como uma pessoa que não se aproxima de ninguém.” “E o que você diz a eles quando perguntam?” “Não digo porra nenhuma.” “Terminou a psicanálise, Marino?” Acendeu um cigarro. “Olhe, vou lhe dizer uma coisa, e você não vai gostar. Você sempre foi essa mulher reservada, profissional — uma pessoa que não deixa ninguém chegar perto facilmente, mas quando a gente chega, chega. Você é amiga para toda a vida e faz tudo pelo cara. Mas este ano você está diferente. Levantou uns cem muros desde que mataram o Mark. Para a gente, que está do seu lado, é como estar numa sala a vinte graus e de repente a temperatura baixar para doze. Acho que você nem sabe disso. Então, agora ninguém está se sentindo muito ligado a você. Pode ser até que estejam um pouco ressentidos porque se sentem ignorados e esnobados. Pode ser que não tenham gostado nunca de você. Pode ser que sejam só indiferentes. O negócio com as pessoas é que, esteja você num trono ou na cadeira elétrica, vão dar um jeito de usar sua posição para tirar vantagem. E, quando não há uma ligação entre você e elas, isso torna ainda mais fácil para elas tentarem conseguir o que querem sem ligar a mínima para você. Sua posição é essa. Tem muita gente que há anos está esperando para ver você se dar mal.” “Não tenho a intenção de me dar mal.” Empurrei o prato. Ele soltou uma baforada. “Doutora, você já está se dando mal. E meu bom senso diz que se você está nadando no meio dos tubarões e começa a sangrar é melhor sair da água rapidamente.” “Será que a gente podia conversar sem usar clichês, pelo menos por um ou dois minutos?” “Bom. Posso falar em japonês ou chinês, você não vai me ouvir.” “Se você falar japonês ou chinês, prometo que ouço. Aliás, se um dia você decidir falar nossa língua, eu prometo que ouço.” “Comentários como esse não ajudam em nada. Não vão fazer com que você tenha mais fãs. É disso mesmo que estou falando.” “Eu estava só brincando.” “Já vi você abrir muitos cadáveres com um sorriso.” “Nunca. Eu sempre uso escalpelo.” “Às vezes não há diferença entre os dois. Já vi você tirar sangue dos advogados de defesa com um sorriso nos lábios.” “Se sou uma pessoa tão horrível assim, por que somos amigos?” “Porque eu tenho ainda mais muros que você. A verdade é que tem uma raposa atrás de cada árvore e que o mar está cheio de tubarões. Todos estão
em cima de nós.” “Marino, você está paranoico.” “Você tem toda a razão, e é por isso, doutora, que eu quero que você se faça de morta por um tempo. Sério.” “Não posso.” “Você quer saber de uma coisa? Vai começar a parecer que existem interesses envolvidos, se você tiver qualquer coisa a ver com esses casos. Você vai acabar se dando mal.” “Susan morreu. Eddie Heath morreu. Jennifer Deighton morreu. Há corrupção em minha repartição, e não temos certeza de quem foi para a cadeira elétrica na semana passada. E você acha que devo sumir até as coisas se consertarem sozinhas num passe de mágica?” Marino quis alcançar o sal, mas cheguei antes. “Não. Mas pode se servir de toda a pimenta que quiser”, eu disse, aproximando dele o vidro da pimenta. “Essa mania de saúde vai me matar. Porque qualquer dia desses vou ficar tão puto que vou fazer tudo junto. Cinco cigarros ao mesmo tempo, um bourbon numa mão e uma xícara de café na outra, bife, batata assada cheia de manteiga, creme, sal. Aí vou ter um curto-circuito geral”, avisou ele. “Não, não vai fazer nada disso. Você vai se tratar bem e viver pelo menos tanto tempo quanto eu.” Ficamos algum tempo em silêncio, comendo. “Doutora, não fique ofendida, mas o que você acha que vai descobrir sobre a porra das penas?” “A origem delas, se puder.” “Eu posso lhe poupar o trabalho. Vêm dos passarinhos.”
Deixei Marino quase às sete horas da noite e voltei para o centro. A temperatura subira até um pouco mais de quatro graus, a noite escura e a violência da chuva interrompiam o tráfego. As lâmpadas de vapor de sódio pareciam manchas amarelas de pólen atrás do necrotério, onde a porta principal estava fechada e todas as vagas do estacionamento estavam livres. Dentro do edifício meu pulso se acelerou quando enveredei pelo corredor brilhantemente iluminado que passava pela sala de autópsias, a caminho da salinha de Susan. Quando abri a porta não sabia o que esperava encontrar, mas fui atraída pelo arquivo e pelas gavetas da mesa, cada livro e cada recado telefônico antigo. Tudo parecia idêntico a antes da morte de Susan. Marino era mestre em vasculhar o espaço privado sem atrapalhar a desordem natural das coisas. O telefone ainda estava jogado no canto direito da mesa, com o fio enrolado como um saca-rolha. Junto ao mata-borrão havia tesouras, dois lápis de ponta quebrada, e o guarda-pó usado no laboratório estava pendurado nas costas da cadeira. Na tela do computador ainda estava preso um lembrete sobre uma
consulta médica, e tremi por dentro quando dei com as curvas tímidas e a inclinação graciosa de sua caligrafia caprichada. Em que ponto ela perdera o rumo? Teria sido ao casar-se com Jason Story? Ou sua destruição vinha de muito antes, de quando era a filha de um pastor escrupuloso, a gêmea que sobrara quando a irmã morrera? Sentei-me na cadeira, rolei-a para perto do arquivo e comecei a tirar as pastas uma por uma e a verificar seu conteúdo. A maior parte do que examinei era folhetos e outras informações impressas sobre equipamento cirúrgico e materiais diversos usados no necrotério. Nada me pareceu curioso, até descobrir que ela guardara praticamente todos os memorandos que recebera de Fielding, mas nenhum meu ou de Bob Stevens, quando eu sabia que ambos tínhamos lhe enviado muitos. Tendo prosseguido com a busca nas gavetas e nas estantes, não encontrei as pastas referentes a Stevens ou a mim e concluí que alguém as havia levado. Meu primeiro pensamento foi que Marino pudesse tê-las retirado. Depois, num sobressalto, outra ideia me ocorreu, e corri escada acima. Abri a porta de minha sala e fui diretamente até a gaveta do arquivo onde guardava a papelada administrativa de rotina, como notas de telefonemas, memorandos, impressos de comunicações eletrônicas recebidas, minutas de propostas orçamentárias e planos de longo prazo. Revirei eneticamente pastas e gavetas. Na pasta grossa que eu procurava estava marcado simplesmente “Memorandos”, e nela havia cópias de todos os memorandos expedidos por mim para meu pessoal e para os servidores de várias outras repartições nos últimos sete anos. Procurei na sala de Rose e examinei de novo minha sala. A pasta tinha desaparecido. “Filho da puta, filho da puta nojento”, dizia em voz baixa ao descer furiosa o corredor. A sala de Ben Stevens estava tão impecavelmente limpa e tão cuidadosamente arrumada que parecia um mostruário de loja de móveis. A mesa era cópia de uma Williamsburg folheada em mogno e com puxadores de cobre brilhante, e havia abajures de pé de cobre com cúpulas verde-escuras. O assoalho estava coberto por um tapete persa feito a máquina e as paredes decoradas com gravuras grandes de esquiadores alpinos, homens montados em cavalos trovejantes e balançando tacos de polo, e marinheiros cortando mares encapelados. Comecei puxando a pasta pessoal de Susan. Dentro estavam, como seria de esperar, a descrição das tarefas, o currículo e outros documentos. Estavam faltando diversos memorandos elogiosos que eu tinha escrito desde sua contratação e colocado pessoalmente na pasta. Comecei a abrir as gavetas da mesa e numa delas descobri um estojo de plástico marrom contendo uma escova de dentes, dentiício, um aparelho de barbear, creme de barbear e um vidrinho de água-de-colônia. Foi talvez a corrente de ar quase imperceptível que se formou quando a
porta foi silenciosamente aberta, ou talvez, como um animal, simplesmente senti a presença de alguém. Ergui os olhos e dei de cara com Ben Stevens de pé no vão da porta no momento em que, sentada à sua mesa, eu tentava atarraxar novamente a tampa de um vidro de água-de-colônia Red. Por um longo e gelado momento nos encaramos e nenhum de nós disse nada. Não senti medo. Não me importei nem um pouco com o que ele me pilhara fazendo. Senti raiva. “Está trabalhando até muito tarde, Ben.” Corri o fecho do estojo e devolvi-o à gaveta. Cruzei as mãos sobre o mata-borrão, me movendo e falando de modo propositadamente lento. “Sempre gostei de trabalhar depois da hora, pois não há mais ninguém por perto”, eu disse. “A gente não se distrai. Não há perigo de alguém entrar e interromper o que você está fazendo. Não há olhos nem ouvidos. Nenhum ruído, salvo nos raros momentos em que o vigia passa. E todos sabemos que isso não acontece com equência se não o chamamos, porque ele detesta vir ao necrotério. Nunca conheci vigia que não detestasse isso. Acontece o mesmo com o pessoal da limpeza. Lá embaixo eles nem vão, e aqui em cima fazem o mínimo que podem. Mas isso já não importa agora, não é? São nove horas e o pessoal da limpeza sempre vai embora às sete e meia. O que me intriga é o fato de eu nunca ter desconfiado. Não me passou pela cabeça. Pode ser que isso seja um triste reconhecimento de como eu tenho andado preocupada. Você disse à polícia que não conhecia bem a Susan, mas estava sempre dando carona a ela de casa para o trabalho e vice-versa, como naquela manhã cheia de neve em que autopsiei Jennifer Deighton. Lembro-me de que naquela ocasião Susan estava muito perturbada. Deixou o corpo no meio do corredor e estava discando um número no telefone, mas desligou depressa quando entrei na sala de autópsia. Duvido que se tratasse de um telefonema de negócios às sete e meia da manhã de um dia em que ninguém estava saindo de casa por causa do tempo. E não havia ninguém na repartição a quem telefonar — ninguém tinha chegado ainda, só você. Se ela estava discando seu número, por que ia esconder isso de mim? Só se você fosse mais que o chefe direto dela. Claro, sua relação comigo também me intriga. Parecemos nos dar bem e aí você de repente alega que sou a pior chefe da cristandade. Fico imaginando se Jason Story é a única pessoa que está falando com os repórteres. Essa persona a que fui de repente associada é interessante. Essa imagem. A tirana. A neurótica. A pessoa de algum modo responsável pela morte violenta da superintendente do necrotério. Susan e eu tínhamos uma relação de trabalho muito cordial, e até bem pouco tempo, Ben, nós dois também nos entendíamos perfeitamente. Mas é minha palavra contra a sua, principalmente agora, já que qualquer pedaço de papel que pudesse provar o que estou dizendo desapareceu muito oportunamente. E o que eu acho é que você já andou soprando para alguém que pastas e memorandos importantes
sumiram da repartição, sugerindo que fui eu que tirei. Quando desaparecem pastas e memorandos dá para dizer qualquer coisa sobre o que havia neles, não dá?” “Não sei do que você está falando”, disse Ben Stevens. Saiu do vão da porta mas não se aproximou da mesa nem pegou uma cadeira. Seu rosto estava congestionado, seus olhos tomados de ódio. “Não sei nada sobre o desaparecimento de pastas ou memorandos, mas, se é verdade, não posso esconder esse fato das autoridades, como também não posso esconder o fato de que passei pela repartição esta noite para apanhar um negócio que tinha deixado aqui e encontrei você mexendo na minha mesa.” “O que você deixou aqui, Ben?” “Não tenho de responder a suas perguntas.” “Tem sim. Sou sua chefe e, se você vem até aqui tarde da noite e eu fico sabendo, tenho o direito de lhe perguntar.” “Suspenda-me então. Tente me exonerar. Vai ficar muito bonito para você neste momento.” “Você é um canalha, Ben.” Seus olhos se arregalaram e ele umedeceu os lábios. “Seus esforços para me sabotar não passam de um monte de tinta que você está espalhando na água porque está ficando apavorado e quer desviar a atenção. Você matou Susan?” “Você está ficando louca.” A voz dele tremeu. “Ela saiu de casa no começo da tarde do dia de Natal, supostamente para encontrar uma amiga. Na verdade, a pessoa que ela ia encontrar era você, não era? Diga-me, você sabia que Susan, morta em seu próprio carro, estava com a gola do casaco e o lenço cheirando a colônia masculina, essa água-de-colônia Red que você guarda aqui na gaveta para se reescar antes de ir para os bares depois do trabalho?” “Não sei do que você está falando.” “Quem estava dando dinheiro a ela?” “Quem sabe você…” “Isso é ridículo. Você e Susan estavam envolvidos em algum esquema, e meu palpite é que foi você quem a envolveu, porque sabia das aquezas dela. Com certeza ela confiou em você. Você sabia como convencê-la a acompanhálo, e Deus sabe que você tinha onde gastar o dinheiro. Só suas contas de bar já devem estourar seu orçamento. Farra é uma coisa cara, e eu sei quanto você ganha”, afirmei calmamente. “Você não sabe nada.” Baixei a voz. “Ben, corte essa. Pare enquanto é tempo. Diga-me quem está por trás disso.” Ele não me olhava nos olhos. “Quando o pessoal começa a morrer, é porque as apostas estão muito altas.
Você acha que se matou Susan vai conseguir se livrar?” Ele não respondeu. “Se foi outra pessoa que a matou, você acha que está seguro, que o mesmo não pode acontecer com você?” “Você está me ameaçando.” “Bobagem.” “Você não pode provar que a água-de-colônia cujo cheiro sentiu em Susan era a minha. Não há teste para um troço assim. Não se pode botar um cheiro num tubo; não se pode guardar um cheiro”, disse ele. “Ben, agora vou pedir para você sair.” Ele se virou e saiu da sala. Quando ouvi as portas do elevador se fecharem desci o corredor e espiei por uma janela que dava para o estacionamento dos fundos. Só depois que Stevens foi embora me arrisquei a sair para buscar meu carro.
O edifício do FBI é uma fortificação de concreto na esquina da rua 9 com a avenida Pensilvânia, no coração do distrito de Colúmbia, e quando cheguei lá na manhã seguinte ele estava sendo invadido por pelo menos cem crianças barulhentas. Lembravam Lucy na idade delas, em tropel pelas escadas, correndo para sentar nos bancos e circulando entre vasos com vastos arbustos e árvores. Lucy teria adorado percorrer os laboratórios, e de repente senti sua falta intensamente. O rumor daquelas vozes agudas esmoreceu, como que levado para longe pelo vento. Avancei com passos firmes e decididos, pois estivera lá muitas vezes e conhecia o caminho. Passei por um pátio, depois por uma área de estacionamento reservado e por um guarda, para finalmente atingir a porta de vidro de uma só folha. Dentro havia um vestíbulo com mobília marrom, espelhos e bandeiras. Numa parede sorria uma fotografia do presidente dos Estados Unidos e em outra havia um cartaz com os dez fugitivos mais procurados do país. Na mesinha da recepção apresentei minha carteira de motorista a um jovem agente cuja atitude era tão sombria quanto seu terno cinza. “Sou a doutora Kay Scarpetta, médica-legista chefe da Virgínia.” “A senhora quer falar com quem?” Informei-o. Ele me comparou à fotografia, certificou-se de que eu não estava armada, deu um telefonema e me entregou um crachá. Diferentemente da academia em Quantico, a sede tinha um ambiente que parecia engomar a alma e endurecer a espinha. Eu nunca tinha encontrado o agente especial Minor Downey, embora a ironia de seu nome tivesse suscitado em mim imagens depreciativas. Devia ser um homem afetado e ágil, com pelo louro-claro cobrindo-lhe cada
centímetro do corpo com exceção da cabeça. Os olhos deviam ser acos e a pele raramente tocada pelo sol, e era óbvio que devia deslizar pelos lugares e nunca chamar atenção para si. Naturalmente, estava errada. Quando um homem saudável e em mangas de camisa apareceu e me olhou com firmeza, levantei-me da cadeira. “O senhor deve ser o senhor Downey.” Ele apertou minha mão. “Doutora Scarpetta. Chame-me de Minor, por favor.” Teria no máximo quarenta anos e era atraente. Fazia o gênero acadêmico, de óculos sem aro, cabelo castanho cortado rente, e gravata de listras marrons e azul-marinho. Transpirava uma autoridade e uma intensidade intelectual que eram imediatamente reconhecidas por quem houvesse soido os anos árduos da pós-graduação, pois eu não conseguia me lembrar de nenhum professor de Georgetown ou de Johns Hopkins que não fosse adepto do raro e não achasse impossível ligar-se aos seres humanos comuns. “E por que seu interesse pelas penas?”, perguntei quando tomamos o elevador. “Tenho uma amiga que é ornitóloga no Museu de História Natural do Smithsonian. Quando ela começou a colaborar com os funcionários da aeronáutica no problema dos choques com aves, fiquei interessado. Você sabe, as aves entram nas turbinas dos aviões, e quando você examina os pedaços de fuselagem no chão, encontra restos de penas e quer saber qual foi a ave que causou o problema. Em outras palavras, o que foi chupado fica bem mastigado. Uma gaivota pode derrubar um bombardeiro B-1, e é possível perder um motor em decorrência do encontro de uma ave com um avião grande cheio de gente, o que é um problema. Ou então tem o caso do mergulhão que atravessou o vidro de um jato Lear e decapitou o piloto. Isso é parte do que eu faço. Trabalho com a ingestão de aves. Testamos turbinas e pás jogando galinhas lá dentro. Aí ficamos sabendo se o avião pode sobreviver a uma ou duas galinhas. Mas as aves estão em todos os lugares. Excrementos de pombo na sola do sapato de um suspeito — o suspeito esteve ou não na travessa onde o corpo foi encontrado? Ou o cara que durante um assalto furta uma arara-amarela, e encontramos agmentos de plumas na parte de trás do carro dele que identificamos como de uma arara-amarela. Ou a pluminha encontrada no corpo de uma mulher estuprada e assassinada. A mulher foi encontrada numa caixa de alto-falantes estéreo Panasonic num contêiner. A pluma me pareceu uma peninha branca de pato-bravo, o mesmo tipo de pena do edredom que havia na cama do suspeito. Esse caso foi resolvido com uma pena e dois fios de cabelo.” O terceiro andar era um verdadeiro quarteirão de laboratórios onde técnicos analisavam explosivos, restos de pintura, pólen, instrumentos, pneus e cacos usados em crimes ou recolhidos no local dos crimes. Colunas
cromatográficas especiais para gases, microespectrofotômetros e supercomputadores funcionavam dia e noite, e as coleções de referência enchiam salas e salas com tipos de pintura de automóvel, fitas adesivas e plásticos. Acompanhei Downey pelos corredores que passavam pelos laboratórios de análise de DNA até chegar à Seção de Pelos e Fibras, onde ele trabalhava. Sua sala também funcionava como laboratório, com a mobília de madeira escura e as estantes compartilhando o espaço com balcões e microscópios. As paredes e o carpete eram bege, e alguns desenhos feitos a lápis e presos a um quadro de avisos me mostraram que aquele perito em penas internacionalmente respeitado era pai. Abri um envelope de papel pardo e tirei três invólucros menores feitos de plástico transparente. Dois continham as penas colhidas junto aos corpos de Jennifer Deighton e Susan, enquanto o terceiro continha uma lâmina com os resíduos pegajosos dos pulsos de Eddie Heath. “Parece que esta é a melhor”, eu disse, apontando a pena que resgatara da camisola de Jennifer Deighton. Ele a tirou do saquinho e disse: “Esta é uma pena do papo ou das costas. Tem uma bela curva. Muito bem. Quanto mais penas você tiver, melhor”. Usando uma pinça, retirou dos dois lados da haste várias das projeções ou “barbas” que dela partiam, instalou-se ao microscópio estereoscópico e as colocou num filme fino de xileno que havia deitado numa lâmina. Isso servia para separar as minúsculas estruturas, ou fazê-las flutuar, e quando achou que cada fio estava perfeitamente separado, encostou no xileno um pedacinho de papel mata-borrão verde a fim de absorvê-lo. Acrescentou Flo-Texx, produto isolante, depois uma cobertura, e ajustou a lâmina ao microscópio comparativo, que estava ligado a uma câmera de televisão. “Vou começar dizendo que as penas de todos os pássaros têm basicamente a mesma estrutura. Você tem uma haste central, barbas — que por sua vez se dividem em bárbulas, que são como fios de cabelo — e uma base alargada, em cima da qual há um poro chamado umbílico superior. As barbas são os filamentos que dão à pena sua aparência penosa, e no microscópio a gente vê que na verdade elas são como minipenas saindo da haste.” Voltou-se para a tela. “Isso aí é uma barba.” “Parece uma samambaia.” “Sob muitos aspectos parece. Agora vamos aumentar um pouco para examinar bem as bárbulas, porque são as características das bárbulas que permitem a identificação. Estamos interessados principalmente nos nódulos.” “Deixe-me ver se entendi. Os nódulos são características das bárbulas, as bárbulas são características das barbas, as barbas são características das penas e as penas são características das aves.” “Certo. E cada família de aves tem sua própria estrutura de penas.” O que vi na tela do monitor parecia, naturalmente, o desenho de uma folha
ou da perna de um inseto. As linhas eram formadas por segmentos conectados por estruturas triangulares tridimensionais, que Downey disse serem os nódulos. “A chave é o tamanho, a forma, o número e a pigmentação dos nódulos, assim como sua posição em relação à bárbula”, explicou ele pacientemente. “Por exemplo, se os nódulos têm forma de estrela você está lidando com pombos, nódulos em anel são de penas de galinhas ou perus, orlas salientes com expansão prenodal são de cucos.” Apontou para a tela. “Estes são claramente triangulares; assim sei logo que a pena é de pato ou de ganso. Não que isso seja uma grande surpresa. A origem costumeira das penas recolhidas em assaltos, estupros e homicídios são travesseiros, edredons, abrigos, jaquetas, luvas. E geralmente o acolchoado desses itens é de penas e plumas de pato e ganso picadas e, em produtos mais baratos, de galinha. Mas aqui podemos dizer com certeza que não é galinha. E estou quase afirmando que sua pena também não veio de um ganso.” “Por quê?” “Bom, a distinção seria muito fácil se tivéssemos a pena inteira. Essas pluminhas são barra. Mas, tendo em vista o que estou vendo aqui, a média é de poucos nódulos. Além disso, eles não estão localizados ao longo da bárbula, mas em suas partes finais. E isso é uma característica dos patos.” Abriu um armário e puxou diversas gavetas de lâminas. “Vamos ver. Tenho mais ou menos setenta lâminas de patos. Para ter certeza, vou passar todas e vou eliminando.” Uma por uma, colocou as lâminas sob o microscópio comparativo, basicamente composto por dois microscópios combinados num binóculo. No monitor de televisão havia um campo de luz circular dividido no meio por uma linha fina; o exemplar da pena conhecida ficava de um lado e o da que esperávamos identificar, do outro. Exploramos rapidamente a adem-brava, o pato-almiscarado, o arlequim, a adem-negra, o pato-selvagem, o ganso-bravo americano e dúzias de outras aves. Downey não precisava olhar nenhuma delas muito tempo para saber que o pato que procurávamos não era aquele. “É imaginação minha, ou essa é mais delicada que as outras?”, eu disse da pena em questão. “Não é sua imaginação, não. É mais delicada, mais homogênea. Está vendo como as estruturas triangulares não aparecem tanto?” “Estou. Agora que você mostrou.” “E isso nos dá uma pista importante sobre a ave. Isso é que é fascinante. A natureza realmente tem uma razão para as coisas, e nesse caso desconfio que a razão é o isolamento. A função da pluma é prender o ar, e quanto mais finas as bárbulas, mais lisos e menores os nódulos, mais extrema a localização dos nódulos, e mais eficiente vai ser a pluma em sua função de prender o ar. Quando o ar está preso, é como estar em uma salinha isolada e sem
ventilação. Você vai se sentir quente.” Colocou outra lâmina na plataforma do microscópio e daquela vez pude ver que estávamos perto. As bárbulas eram delicadas, os nódulos miúdos e localizados nas extremidades. “Isso é o quê?” “Guardei os principais suspeitos para o fim.” Parecia contente. “Patos marinhos. E os primeiros da lista são os patos-do-norte. Vamos aumentar a ampliação para quatrocentos.” Trocou as lentes da objetiva, ajustou o foco, e lá fomos nós por diversas outras lâminas. “O pato-rei não é. E acho que não é o estrela por causa da pigmentação marrom na base do nódulo. A pena que você trouxe não tem isso, está vendo?” “É.” “Vamos tentar então o pato-do-norte comum. Pronto. A pigmentação bate”, disse ele, fitando a tela atentamente. “E, vejamos, uma média de dois nódulos localizados na extremidade das bárbulas. Mais o alinhamento para uma qualidade isolante superboa — e isso é importante se você está nadando no oceano Ártico. Acho que é esse, o Somateria mollissima, encontrado na Islândia, na Noruega, no Alasca e no litoral da Sibéria. Vou fazer outro exame com o MEE”, acrescentou, referindo-se ao microscópio eletrônico explorador. “Para procurar o quê?” “Cristais de sal.” “Claro. Porque os patos-do-norte são aves de água salgada”, eu disse, fascinada. “Exatamente. E bem interessantes, aliás, um exemplo notável de exploração econômica. Na Islândia e na Noruega suas colônias de reprodução são protegidas dos predadores e de outros acidentes, para as pessoas poderem recolher as plumas com as quais a fêmea forra o ninho e cobre os ovos. Depois as plumas são limpas e vendidas para as fábricas.” “Fábricas de quê?” “Principalmente de sacos de dormir e edredons.” Enquanto falava, ia montando várias barbas da pena encontrada dentro do carro de Susan. “Jennifer Deighton não tinha nada disso em casa. Absolutamente nada acolchoado com penas”, eu disse. “Então com certeza estamos lidando com uma transferência secundária ou terciária, em que a pena foi transferida ao assassino, que por sua vez transferiu-a para a vítima. Isso é muito interessante, compreende?” Agora o exemplar aparecia na tela. “Pato-do-norte de novo”, eu disse. “Acho que sim. Agora vamos ver a lâmina. É do menino?” “É. De um resíduo adesivo nos pulsos de Eddie Heath.” “Veja!”
Os restos microscópicos apareceram na tela como uma variedade fascinante de cores, formas, fibras, mais os conhecidos nódulos triangulares e bárbulas. “Bom, isso abre uma brecha na minha teoria. Se estamos falando de três homicídios que ocorreram em lugares diferentes e em momentos diferentes”, disse Downey. “É sobre isso que estamos falando.” “Se só uma dessas penas fosse de pato-do-norte eu ficaria tentado a considerar a possibilidade de um contágio. Compreende, você vê essas etiquetas que dizem cem por cento acrílico e quando vai ver é noventa por cento acrílico e dez por cento náilon. As etiquetas mentem. Se o lote imediatamente anterior ao seu suéter de acrílico, por exemplo, era de jaquetas de náilon, então os primeiros suéteres que saem vão ter um contágio de náilon. Se você examina mais suéteres, o contágio vai desaparecendo.” “Em outras palavras”, eu disse, “se alguém está usando uma jaqueta acolchoada com penas ou tem um edredom que tenha recebido um contágio de pato-do-norte quando estava sendo fabricado, é praticamente impossível que a jaqueta ou edredom só solte as penas do contágio.” “Claro. Então temos de admitir que esse item é acolchoado só com patodo-norte, o que é muito curioso. Geralmente o que vejo nos casos que vêm para cá são jaquetas, luvas e edredons de supermercado acolchoados com penas de galinha ou às vezes de ganso. Pato-do-norte é um produto especial. Um item de loja fina. Um colete, uma jaqueta, um edredom ou um saco de dormir acolchoado com pena de pato-do-norte dura muito, deve ter sido muito bem-feito — e é impressionantemente caro.” “Você já teve alguma vez um pato-do-norte apresentado como prova antes?” “É a primeira vez.” “Por que é tão caro?” “São as qualidades isolantes de que já falei. Mas também tem muito a ver com a atração estética. A pluma comum do pato-do-norte é branquinha. A maioria das plumas é suja.” “E se eu comprasse um produto acolchoado com pato-do-norte, eu ia saber que ele era acolchoado com essas plumas brancas ou a etiqueta ia dizer simplesmente: ‘pluma de pato’?” “Tenho certeza de que você ia saber. A etiqueta diria algo como ‘cem por cento pluma de pato-do-norte’. Tinha de haver alguma coisa para justificar o preço.” “Você pode fazer por computador um levantamento dos distribuidores de plumas?” “Claro. Mas, para dizer o óbvio, nenhum distribuidor vai ser capaz de dizer se a pluma que você recolheu é dele; só com a roupa ou o produto. Infelizmente, a pena não basta.”
“Não sei. Pode ser.”
Por volta do meio-dia eu tinha andado duas quadras até o lugar onde estacionara meu carro e já estava dentro dele, com o aquecimento à toda. Estava tão perto da avenida New Jersey que me senti como a maré atraída pela Lua. Apertei o cinto de segurança, mexi no rádio e por duas vezes agarrei o telefone e mudei de ideia. Só pensar em entrar em contato com Nicholas Grueman já era uma loucura. Agarrando o telefone e discando, pensei que de todo modo não o encontraria. “Grueman”, disse a voz. “É a doutora Scarpetta.” Elevei minha voz por causa do ruído do aparelho de aquecimento. “Ah, alô. Outro dia mesmo estava lendo a seu respeito. A senhora parece que está ligando de um telefone de automóvel.” “Estou sim. Estou em Washington.” “Fico muito honrado de saber que a senhora se lembra de mim quando passa por minha humilde cidade.” “Sua cidade não é nada humilde, doutor Grueman, e esta chamada não tem nada de social. Me ocorreu que o senhor e eu poderíamos discutir a respeito de Ronnie Joe Waddell.” “Sei. A senhora está muito longe do Centro Jurídico?” “Dez minutos.” “Ainda não almocei e acho que a senhora também não. Está bem se eu encomendar uns sanduíches?” “Para mim está ótimo.” O Centro Jurídico ficava a umas trinta e cinco quadras do prédio principal da universidade; lembrei-me de meu desapontamento quando, muitos anos antes, me dera conta de que meus estudos não incluiriam passeios pelas ruas sombreadas da colina nem aulas em belos edifícios setecentistas de tijolos aparentes. Em vez disso, teria de gastar três longos anos numa instalação novíssima e sem encanto, numa região barulhenta e agitada do distrito de Colúmbia. Meu desapontamento, porém, não durara muito. Além de ser prático estudar direito à sombra do Congresso dos Estados Unidos, a coisa era um tanto excitante. Mais significativo, contudo, era talvez o fato de que encontrara Mark pouco depois de começar a estudar. O que eu mais lembrava de meus primeiros encontros com Mark James durante o primeiro semestre de nosso primeiro ano era o efeito físico que ele causava em mim. No princípio eu ficava perturbada só de vê-lo, embora não soubesse por quê. Depois, quando nos conhecemos, sua presença derramava adrenalina em meu sangue. Meu coração galopava e de repente me dava conta de que prestava atenção em cada gesto dele, por mais simples que fosse. Por
semanas a fio nossas conversas, que entravam madrugada adentro, foram cheias de enlevo. Nossas palavras eram menos elementos da fala que notas de algum crescendo secreto e inevitável, que se consumou uma noite com a estonteante imprevisibilidade e a força de um acidente. O edifício do Centro Jurídico passara por ampliações e se transformara daquele tempo para cá. A Clínica de Justiça Criminal era no quarto andar. Quando saí do elevador não se via ninguém, e as salas pelas quais passei pareciam desocupadas. Afinal de contas ainda era época de férias e só os implacáveis e os desesperados estariam inclinados a trabalhar. A porta da sala 418 estava aberta, a mesa da secretária vazia e a porta interna do escritório de Grueman entreaberta. Não querendo surpreendê-lo, chamei seu nome ao aproximar-me da porta. Ele não respondeu. “Doutor Grueman? O senhor está aí?”, tentei outra vez enquanto empurrava a porta para abri-la mais. A mesa estava coberta de papéis em desordem que circundavam um computador, e ao longo das estantes apinhadas havia pilhas de pastas e documentos. À direita da escrivaninha havia uma mesa com uma impressora e um aparelho de fax atarefado em enviar algo a alguém. Enquanto olhava em torno silenciosamente, o telefone tocou três vezes e parou. Na janela atrás da mesa as persianas estavam baixadas, talvez para diminuir o reflexo na tela do computador, e uma pasta de couro marrom usada e arranhada descansava encostada no peitoril. Uma voz atrás de mim quase me fez desmaiar. “Desculpe. Saí um pouquinho e esperava poder voltar antes que a senhora chegasse.” Nicholas Grueman não estendeu a mão nem me saudou de maneira nenhuma. Sua preocupação parecia ser voltar à sua cadeira, o que fez muito vagarosamente e com o auxílio de uma bengala de castão de prata. Sentandose na cadeira de juiz, disse: “Quando Evelyn não está aqui não há café, senão eu lhe oferecia. Mas a confeitaria que vai entregar os sanduíches daqui a pouco vai trazer alguma coisa para a gente beber. Espero que a senhora possa esperar, e sente-se, por favor, doutora Scarpetta. Fico nervoso quando uma mulher olha para mim de cima para baixo”. Puxei uma cadeira para perto da mesa e fiquei assombrada ao dar-me conta de que pessoalmente Grueman não era o monstro de que eu me lembrava de meu tempo de estudante. Parecia, por exemplo, ter encolhido, embora eu desconfiasse que a explicação mais provável fosse que, em minha imaginação, eu tivesse inflado suas proporções até atingir as do monte Rushmore. Agora eu o via como um homem miúdo de cabelos brancos cujo rosto fora esculpido pelos anos numa caricatura cativante. Ainda usava gravata-borboleta e colete e fumava cachimbo, e, quando me olhou, seus olhos cinzentos foram tão capazes de dissecar quanto qualquer escalpelo. Não os achei, porém, ios.
Eram simplesmente discretos, tal como quase sempre eram os meus. “Por que o senhor está mancando?”, perguntei num impulso. “Gota. A doença dos déspotas. Aparece de vez em quando, e por favor me poupe de conselhos ou remédios. Vocês médicos me deixam louco dando, sem a gente pedir, opinião sobre tudo, desde as cadeiras elétricas que funcionam mal até o alimento e a bebida que devo excluir de minha miserável dieta”, disse sem um sorriso. “A cadeira elétrica não funcionou mal. Pelo menos no caso a que, tenho certeza, o senhor está aludindo.” “A senhora não pode de modo algum saber a que caso eu estou aludindo, e me parece que no breve tempo que passou aqui tive de adverti-la mais de uma vez sobre sua grande facilidade para concluir coisas. Sinto que não me tenha ouvido. Continua a concluir, embora neste caso sua conclusão tenha sido em verdade correta.” “Doutor Grueman, fico lisonjeada ao ver que o senhor se lembra de mim como aluna, mas não vim aqui para recordar as horas infelizes que passei em sua sala de aula. Nem estou aqui para participar mais uma vez das artes marciais mentais em que o senhor parece deliciar-se. Para seu governo, vou lhe dizer que o senhor tem a honra de ser o professor mais arrogante e misógino que encontrei durante mais ou menos trinta anos de estudos. E tenho de lhe agradecer por ter me treinado tão bem na arte de lidar com sacanas, pois o mundo está cheio deles e tenho de lidar com eles todos os dias.” “Não tenho dúvida de que a senhora lida com eles todos os dias e ainda não decidi se é ou não boa nisso.” “Não estou interessada em saber sua opinião sobre o assunto. Gostaria que o senhor me contasse mais sobre Ronnie Joe Waddell.” “O que mais a senhora gostaria de saber além do fato óbvio de que a conclusão do caso foi incorreta? A senhora acha que a política deveria determinar se as pessoas devem ser mortas, doutora Scarpetta? Olhe só o que está acontecendo com a senhora neste momento. As notícias maldosas sobre a senhora não serão, pelo menos em parte, politicamente motivadas? Cada parte envolvida tem seus próprios objetivos, tem alguma coisa a ganhar em desonrá-la publicamente. Não tem nada a ver com justiça ou verdade. Imagine então o que ocorreria se essas mesmas pessoas tivessem o poder de privá-la de sua liberdade ou mesmo de sua vida! Ronnie foi triturado por um sistema irracional e injusto. Não importa quais os precedentes aplicados, ou se consideraram ou não as razões de apelação ou recurso. Os pontos que levantei não foram levados em consideração porque atualmente no seu querido estado o habeas corpus não serve como instrumento para garantir que juízes e desembargadores procurem conscienciosamente dirigir os processos em coerência com os princípios constitucionais estabelecidos. Deus
nos livre da possibilidade de que haja qualquer interesse em violações constitucionais no fomento da evolução de nosso pensamento em certos ramos do direito. Nos três anos em que lutei pelo Ronnie, foi como se estivesse dançando uma giga.” “A que violações constitucionais o senhor está se referindo?” “A senhora tem tempo? Mas vamos começar pelo uso óbvio, pela acusação, de objeções peremptórias, de modo racialmente discriminatório. Os direitos de Ronnie, à luz da cláusula de proteção igual, foram violados de todos os jeitos possíveis, e a conduta inaceitável da promotoria iningiu espalhafatosamente o direito, que a emenda constitucional número 6 lhe dava, a um júri que representasse com justiça a estrutura da sociedade. Imagino que você não tenha visto o julgamento do Ronnie e nem mesmo saiba muito a respeito, já que isso foi há mais de nove anos e a senhora não estava na Virgínia. Houve muita publicidade em cima disso, e assim mesmo não houve desaforamento. O júri foi composto de oito mulheres e quatro homens. Seis das mulheres e dois dos homens eram brancos. Os quatro jurados negros eram um vendedor de automóveis, um caixa de banco, uma enfermeira e uma professora de faculdade. A profissão dos jurados brancos ia de um guarda-linha aposentado que ainda chamava os negros de ‘crioulos’ até uma dona de casa rica que só tinha contato com os negros quando olhava as notícias e via que mais um deles tinha atirado em alguém nos conjuntos residenciais. A demografia do júri tornou impossível que o Ronnie recebesse uma sentença justa.” “E o senhor está dizendo que, no caso de Waddell, essas ou quaisquer outras impropriedades constitucionais tinham uma razão política? Que razão política podia haver para executar Ronnie Waddell?” Grueman olhou de repente para a porta. “Ou meus ouvidos me enganam, ou o almoço chegou.” Ouvi passos rápidos e um barulho de papel, depois uma voz chamou: “Oi, Nick. Você está aí?”. “Entre, Joe”, disse Grueman sem levantar-se da cadeira. Um rapaz negro de jeans e tênis apareceu e colocou dois sacos na ente de Grueman. “Este é o das bebidas, e aqui tem dois sanduíches, salada de batatas e picles. São quinze e quarenta.” “Pode ficar com o troco. E olhe, Joe, muito obrigado. Eles nunca dão férias a você, não?” “O pessoal não para de comer, cara. Tenho de ir embora.” Grueman repartiu o alimento e os guardanapos enquanto eu tentava desesperadamente imaginar o que fazer. Estava me sentindo cada vez mais abalada por suas palavras e atitude, pois não havia nele subterfúgio algum, nada que me desse a impressão de arrogância ou dissimulação.
“Que razão política?”, perguntei-lhe de novo enquanto desembrulhava o sanduíche. Ele abriu um reigerante e tirou a tampa da embalagem da salada de batatas. “Várias semanas atrás, pensei que podia obter uma resposta para essa pergunta. Mas a pessoa que podia ter me ajudado foi subitamente encontrada morta dentro de seu carro. E tenho certeza de que a senhora sabe de quem estou falando, doutora Scarpetta. Jennifer Deighton é um de seus casos e, embora ainda não tenha sido declarado publicamente que a morte dela foi suicídio, é nisso que o público foi induzido a crer. Acho que a morte dela aconteceu num momento singular, para não dizer aterrorizante.” “Quer dizer que o senhor conhecia Jennifer Deighton?”, indaguei do modo mais suave que pude. “Sim e não. Nunca a encontrei, e nossas poucas conversas por telefone foram rápidas. Só entrei em contato com ela depois da morte de Ronnie, entende?” “Então ela também conhecia Waddell.” Grueman deu uma dentada no sanduíche e pegou o reigerante. “Claro que ela e Ronnie se conheciam. Como a senhora deve saber, a senhorita Deighton tinha um serviço de horóscopos, mexia com para- psicologia e coisas assim. Bom, oito anos atrás, quando estava no corredor da morte em Mecklemburg, Ronnie viu um anúncio dela numa revista. Escreveu para ela, primeiro com a esperança de que ela pudesse olhar na bola de cristal, por assim dizer, e contar-lhe seu futuro. Acho que queria saber principalmente se ia morrer na cadeira elétrica, e isso não é um fenômeno incomum — presos que escrevem para adivinhos, para cartomantes, e perguntam sobre seu futuro, ou entram em contato com sacerdotes e pedem orações. O que houve de excepcional no caso do Ronnie foi que aparentemente ele e a senhorita Deighton deram início a uma correspondência íntima que durou até uns meses antes da morte dele. Aí as cartas para ele pararam de repente.” “O senhor acha que as cartas dela para ele podem ter sido interceptadas?” “Não há dúvida nenhuma. Quando falei com Jennifer Deighton pelo telefone ela alegou que tinha continuado a escrever para Waddell. Disse também que nos últimos meses não tinha mais recebido cartas dele e estou muito desconfiado de que as cartas dele também eram interceptadas.” “Por que o senhor esperou para entrar em contato com ela só depois da execução?”, estranhei. “Antes não sabia da existência dela. Ronnie não tinha me dito nada sobre ela até nossa última conversa, que com certeza foi a conversa mais estranha que já tive com qualquer dos presos que defendi.” Grueman brincou com o sanduíche, depois afastou-o de si. Pegou o cachimbo. “Não sei se a senhora sabe disso, doutora Scarpetta, mas o Ronnie me deixou.” “Não tenho ideia do que o senhor quer dizer.”
“A última vez que falei com o Ronnie foi uma semana antes de ele ser transportado de Mecklemburg para Richmond. Naquela ocasião ele declarou que sabia que ia ser executado e que nada que eu pudesse fazer ia mudar aquilo. Disse que o que ia acontecer com ele já havia sido decidido desde o começo e que aceitava a inevitabilidade da morte. Disse que estava querendo morrer e preferia que eu parasse de tentar o habeas corpus na Justiça Federal. E também pediu que eu não lhe telefonasse mais nem fosse vê-lo.” “Mas ele não dispensou o senhor.” Grueman pôs fogo dentro do fornilho do cachimbo e sugou pela boquilha. “Não, não dispensou. Simplesmente se recusou a ver-me ou a falar comigo no telefone.” “Mas isso bastaria para justificar uma suspensão da execução, enquanto se procedia a uma determinação a respeito da defesa.” “Tentei isso. Tentei citar tudo, desde o acórdão no caso Hays versus Murphy até o ‘padre-nosso’. O tribunal decidiu brilhantemente que Ronnie não tinha pedido para ser executado. Simplesmente havia declarado que queria morrer, e a petição foi denegada.” “Se o senhor não teve contato com Waddell por várias semanas antes da execução, como soube de Jennifer Deighton?” “Durante minha última conversa com Ronnie, ele me fez três últimos pedidos. O primeiro foi que eu providenciasse para que uma meditação que ele tinha escrito fosse publicada no jornal uns dias antes de sua morte. Deume o texto e consegui com o Richmond Times-Dispatch.” “Eu li.” “O segundo pedido, e são palavras dele, foi: ‘Não deixe que aconteça nada a minha amiga’. Eu perguntei a ele a que amiga estava se referindo, e ele disse, e são de novo palavras dele: ‘Se o senhor é um homem bom, olhe por ela. Ela nunca fez mal a ninguém’. Deu-me o nome dela e pediu para eu não entrar em contato com ela antes da morte dele. Aí eu deveria telefonar para ela e dizer-lhe o quanto ela havia significado para ele. Bom, claro que não atendi a esse pedido ao pé da letra. Tentei entrar imediatamente em contato com ela porque senti que estava perdendo Ronnie e que estava acontecendo alguma coisa terrivelmente errada. Eu tinha esperança de que aquela amiga pudesse ajudar. Se, por exemplo, eles tivessem se correspondido, talvez ela pudesse me esclarecer.” “E o senhor conseguiu falar com ela?”, perguntei, lembrando-me de que Marino me dissera que Jennifer Deighton tinha estado na Flórida por duas semanas por volta do dia de Ação de Graças. “Ninguém jamais atendeu o telefone. Tentei de vez em quando por várias semanas e aí, para ser anco, por causa do momento e de problemas de saúde, tudo relacionado com o ritmo dos processos, com os feriados e com a medonha armadilha da gota, minha atenção foi desviada. Só pensei de novo
em telefonar para Jennifer Deighton depois da morte de Ronnie, quando eu precisava entrar em contato com ela e comunicar, a pedido do Ronnie, que ela havia representado muito para ele etc.” “Quando tentou falar com ela antes, o senhor deixou recado na secretária eletrônica?” “A secretária não estava ligada. O que, pensando bem, faz sentido. Ela não queria voltar das férias e encontrar quinhentas mensagens de pessoas que só podem tomar uma decisão depois de saber o horóscopo. E, se tivesse deixado na secretária eletrônica uma mensagem dizendo que ia ficar fora duas semanas, isso seria um convite perfeito para os ladrões.” “E o que aconteceu quando o senhor conseguiu afinal falar com ela?” “Foi aí que ela me contou que eles tinham se correspondido durante oito anos e que se amavam. Disse que a verdade nunca ia ser conhecida. Perguntei o que ela estava querendo dizer, mas ela não quis me contar e desligou. Acabei escrevendo uma carta implorando para ela falar comigo.” “Quando o senhor escreveu essa carta?” “Deixe ver. Foi no dia seguinte à execução. Acho que foi no dia 14 de dezembro.” “E ela respondeu?” “Interessante; respondeu por fax. Não sabia que ela tinha um aparelho de fax, mas o número do meu fax estava em meu papel de carta. Se a senhora quiser ver, tenho uma cópia do fax dela.” Remexeu pastas de arquivo lotadas e outros papéis que havia na mesa. Depois de encontrar a pasta que buscava, procurou dentro dela e tirou o fax, que logo reconheci. “Está bem, vou cooperar”, estava escrito, “mas agora é tarde demais, tarde demais, tarde demais. É melhor você vir até aqui. Tudo isso está muito errado!”. Perguntei-me como reagiria Grueman se soubesse que o fax que ela lhe havia mandado tinha sido recriado mediante o aprimoramento de imagens no laboratório de Neils Vander. “O senhor sabe o que ela queria dizer? O que era tarde demais e o que estava tão errado?” “Evidentemente, era tarde demais para fazer qualquer coisa que impedisse a execução de Ronnie, porque isso já havia acontecido quatro dias antes. Não sei o que ela pensava que estava tão errado, doutora Scarpetta. Eu tinha intuído havia já algum tempo que existia alguma coisa maliciosa no caso de Ronnie, compreende? Ele e eu nunca desenvolvemos um relacionamento e só isso já é esquisito. Geralmente a gente fica muito próximo. Sou o único a defender o cara num sistema que quer matá-lo — o único que trabalha para o sujeito num sistema que não trabalha para o sujeito. Mas Ronnie foi tão arrogante com o primeiro advogado dele que o indivíduo decidiu que ele era um caso perdido e abandonou a causa. Mais tarde, quando aceitei o caso, Ronnie continuou distante. Era extraordinariamente ustrante. Quando eu
pensava que ele estava começando a confiar em mim, ele erguia uma barreira. De repente ele se calava novamente e começava literalmente a transpirar.” “Parecia que estava aterrorizado?” “Aterrorizado, deprimido, às vezes zangado.” “O senhor está sugerindo que nesse caso havia alguma coisa planejada, e que ele podia ter contado à amiga a respeito disso, quem sabe em alguma das primeiras cartas?” “Não sei o que Jennifer Deighton sabia, mas suspeito que alguma coisa ela sabia.” “Waddell a chamava de ‘Jenny’?” Grueman apanhou novamente o isqueiro. “Chamava.” “Ele alguma vez falou com o senhor de um romance chamado Paris Trout?” Ele pareceu admirado. “Interessante. Faz tempo que eu não pensava nisso, mas, durante uma de minhas sessões com Ronnie, vários anos atrás, falamos de livros e da poesia dele. Ele gostava de ler e me sugeriu que lesse Paris Trout. Eu disse a ele que já tinha lido o romance, mas que estava curioso para saber por que ele recomendava que eu o lesse. E ele, muito tranquilamente, me disse: ‘Porque é assim que funciona, doutor Grueman. E o senhor não vai mudar a coisa de jeito nenhum’. Na época interpretei aquilo como querendo dizer que ele era um negro sulista conontado com o sistema do homem branco, e que nenhum habeas corpus federal nem nenhuma outra mágica que eu pudesse invocar durante o processo de recurso alteraria o destino dele.” “Sua interpretação ainda é essa?” Ele olhou fixamente através de uma nuvem de fumaça perfumada. “Acho que sim. Por que a senhora está interessada na lista dos livros recomendados pelo Ronnie?” Seus olhos encontraram os meus. “Jennifer Deighton tinha um exemplar de Paris Trout ao lado da cama. Dentro havia um poema, e tenho a impressão de que o Waddell o escreveu para ela. Não é importante. Só curiosidade.” “Se não fosse importante a senhora não teria perguntado. O que a senhora está imaginando é que talvez o Ronnie tivesse recomendado o romance a ela pela mesma razão pela qual o recomendou a mim. Na cabeça dele, a história de alguma maneira era sua história. E isso nos leva de volta à questão do que ele teria contado à senhorita Deighton. Em outras palavras, que segredo dele ela levou para o túmulo?” “O que o senhor acha que era, doutor Grueman?” “Acho que alguma transgressão muito sórdida foi acobertada, e que por alguma razão Ronnie tinha conhecimento dela. Talvez tenha alguma coisa a ver com o que acontece atrás das grades, isto é, corrupção dentro do sistema penitenciário. Não sei, mas queria saber.”
“Mas por que esconder alguma coisa quando o cara já está diante da morte? Por que não ir em frente, arriscar e contar?” “Isso seria a coisa racional, não seria? E agora que já respondi tão paciente e generosamente a suas perguntas de algibeira, doutora Scarpetta, quem sabe a senhora entende melhor por que eu fiquei tão preocupado com qualquer violência que Ronnie pudesse ter soido antes da execução. Quem sabe a senhora entende melhor minha oposição apaixonada à pena de morte, que é desumana e degradante. Não é preciso que a pessoa tenha lesões ou escoriações ou sangue pelo nariz para que ela seja isso.” “Não havia provas de violência física. Tampouco encontraram drogas. O senhor recebeu meu relatório.” “A senhora está se esquivando do assunto. A senhora está hoje aqui porque quer alguma coisa de mim. Já lhe dei muito através de um diálogo que não tinha obrigação de manter. Mas acedi, porque estou sempre buscando a justiça e a verdade, a despeito do que possa lhe parecer. E há outra razão. Uma ex-aluna minha está numa enrascada”, disse Grueman, batendo o cachimbo para fazer cair o fumo. “Se o senhor está se referindo a mim, deixe eu lhe lembrar sua própria frase. Não tire conclusões.” “Acho que não estou tirando.” “Então devo dizer que estou muito curiosa com essa caridade súbita que o senhor supostamente está mostrando com relação a uma ex-aluna. Em verdade, doutor Grueman, no meu espírito a palavra caridade nunca esteve ligada ao senhor.” “Vai ver então que a senhora não conhece o verdadeiro significado da palavra. Um ato ou sentimento de boa vontade, dar esmolas aos necessitados. Caridade é dar a uma pessoa aquilo de que ela precisa, em oposição ao que você quer dar. Sempre lhe dei aquilo de que a senhora precisava. Enquanto a senhora foi minha aluna e também hoje, embora os atos se apresentem de maneira muito diferente porque as necessidades são muito diferentes. Agora sou um velho, doutora Scarpetta, e com certeza a senhora acha que não me lembro muito bem do seu tempo em Georgetown. Mas ficaria admirada se soubesse que me lembro muito bem da senhora, porque foi uma das alunas mais promissoras que já tive. Não precisava de tapinhas nas costas nem de aplausos. O perigo com a senhora não era que perdesse a confiança em si própria e no seu cérebro excelente, mas que a senhora mesma se perdesse. A senhora acha que eu não sabia a razão, quando parecia exausta e distraída na minha aula? Pensa que eu não sabia de sua total preocupação com Mark James, que aliás era medíocre pelos seus padrões? E, se eu parecia zangado e duro demais com a senhora, era porque queria atrair sua atenção. Queria que a senhora se enfurecesse. Queria que a senhora se sentisse viva no direito, e não só no amor. Tinha medo de que a senhora jogasse fora uma oportunidade
magnífica só porque seus hormônios e suas emoções estavam acelerados. Um dia a gente acorda e lamenta essas decisões, compreende? A gente acorda numa cama vazia com um dia vazio diante da gente e nada a esperar a não ser semanas, meses e anos vazios. Decidi que a senhora não ia desperdiçar seus dons nem jogar fora seu poder.” Eu o fitava assombrada enquanto meu rosto começava a queimar. “Nunca fui sincero em meus insultos e na minha falta de cavalheirismo com a senhora”, prosseguiu ele com a intensidade tranquila que o fazia temível no foro. “Foram táticas. Nós, advogados, somos famosos pelas táticas. São as fintas e os giros que fazemos com a bola, os ângulos e a velocidade que usamos para conseguir determinado efeito. Na base de tudo o que sou está um desejo sincero e apaixonado de fazer com que meus alunos sejam firmes e, se Deus quiser, façam alguma diferença neste mundo estropiado em que vivemos. E com a senhora não sinto nenhum desapontamento. A senhora é talvez uma de minhas estrelas mais brilhantes.” “Por que o senhor está me dizendo tudo isso?” “Porque nessa altura da sua vida a senhora precisa saber disso. A senhora está numa enrascada, como eu já disse. O que acontece é que é orgulhosa demais para admitir isso.” Fiquei em silêncio, enquanto meus pensamentos travavam uma batalha feroz. “Se a senhora deixar, eu a ajudo.” Se ele estava me dizendo a verdade, era capital que eu respondesse à altura. Espiei a porta aberta e calculei como seria fácil alguém entrar. Calculei como seria fácil alguém investir contra ele enquanto ele ia mancando até o carro. “Se, por exemplo, essas reportagens acusadoras continuarem a ser publicadas no jornal, será bom que a senhora desenvolva algumas estratégias.” Interrompi-o. “Doutor Grueman, quando o senhor viu Ronnie Joe Waddell pela última vez?” Ele parou e fitou o forro. “A última vez em que estive na presença física dele terá sido há pelo menos um ano. A maioria de nossas conversas costumavam ser por telefone. Se ele tivesse permitido, eu teria estado com ele no fim, como já lhe disse.” “Quer dizer que o senhor não o viu nem falou com ele quando supostamente ele estava na rua Spring esperando a execução?” “Supostamente? Essa é uma curiosa escolha de palavra, doutora Scarpetta.” “Não podemos provar que foi Waddell o executado na noite de 13 de dezembro.” “A senhora não está falando sério.” Ele parecia pasmo. Expliquei tudo o que se sabia, inclusive que Jennifer Deighton fora assassinada e que uma impressão digital de Waddell aparecera numa cadeira da sala de visitas da casa dela. Falei-lhe de Eddie Heath, de Susan e dos
indícios de que alguém interferira no Sida. Quando terminei, Grueman estava sentado imóvel, de olhos grudados em mim. “Meu Deus”, murmurou. “Sua carta para Jennifer Deighton nunca apareceu. Quando deu a busca na casa dela, a polícia não a encontrou, nem o original do fax para o senhor. Pode ser que alguém tenha levado. Pode ser que o assassino tenha queimado na lareira, na noite da morte dela. Ou pode ser que ela mesma tenha dado sumiço neles porque estava com medo. Tenho certeza de que ela foi assassinada por causa de alguma coisa que sabia.” “E seria por isso também que Susan Story foi morta? Porque sabia alguma coisa?” “Claro que isso é possível. O que estou dizendo é que até agora duas pessoas ligadas a Ronnie Waddell foram assassinadas. Em termos de gente que sabe demais sobre o Waddell, pode-se considerar que o senhor ocupa uma boa posição na lista.” “Então a senhora acha que talvez eu seja o próximo! Talvez minha maior queixa ao Todo-Poderoso seja o fato de a diferença entre a vida e a morte, tantas vezes, não ser mais que uma questão de oportunidade, entende? Considero-me avisado, doutora Scarpetta, mas não tenho a ingenuidade de pensar que, se alguém quiser atirar em mim, eu seja capaz de evitar”, disse ele com um sorriso amarelo. “O senhor podia pelo menos tentar. O senhor podia pelo menos tomar precauções.” “Vou tomar.” “Quem sabe o senhor e sua mulher possam tirar umas férias, ir para fora um tempo.” “Faz três anos que Beverly morreu.” “Sinto muito, doutor Grueman.” “Já havia muitos anos que ela não estava bem — na verdade, a maior parte dos anos em que estivemos juntos. Agora que ninguém depende de mim, entreguei-me a minhas inclinações. Tenho o vício incurável de trabalhar e querer mudar o mundo.” “Calculo que, se há alguém capaz de chegar perto dessa mudança, esse alguém é o senhor.” “Essa opinião não tem base alguma nos fatos, mas assim mesmo agradeço. E também quero expressar à senhora minha grande tristeza pela morte de Mark. Não o conheci bem quando ele estava aqui, mas parecia boa pessoa.” “Obrigada.” Levantei-me e vesti o casaco. Custou-me um pouco encontrar as chaves do carro. Ele também se levantou. “Qual é a próxima coisa que vamos fazer, doutora Scarpetta?”
“Não sei se o senhor tem alguma carta ou outro item de Ronnie Waddell que valesse a pena examinar para tentar encontrar impressões digitais.” “Cartas, não tenho, e qualquer documento que ele tenha assinado há de ter sido manipulado por muita gente. A senhora pode tentar.” Tínhamos nos detido à porta. Grueman apoiava-se na bengala. “Se não houver alternativa, falo com o senhor. Mas tem uma última coisa que estou querendo perguntar. O senhor disse que em sua última conversa com Waddell ele lhe fizera três últimos pedidos. Um era publicar a meditação, outro telefonar para Jennifer Deighton. Qual era o terceiro?” “Ele queria que eu convidasse o Norring para a execução.” “E o senhor convidou?” “Claro. E seu querido governador não teve nem a educação de dizer se aceitava o convite.”
10
Quando telefonei para Rose, a tarde estava no fim e, da janela, via-se apenas a linha formada no céu pelos edifícios de Richmond. “Doutora Scarpetta, onde a senhora está? Está no carro?” Minha secretária parecia frenética. “Estou. A uns cinco minutos do centro.” “Continue rodando. Não venha para cá agora não.” “O quê?” “O tenente Marino quer falar com a senhora. Me disse que, se eu falasse com a senhora, dissesse para a senhora telefonar para ele antes de fazer qualquer coisa. Disse que é muito, muito urgente.” “Rose, que negócio é esse?” “A senhora ouviu a notícia? Leu o jornal da tarde?” “Estive o dia inteiro no distrito de Colúmbia. Que notícia?” “Encontraram Frank Donahue morto esta tarde.” “O diretor da prisão? Aquele Frank Donahue?” “É.” Minhas mãos apertaram o volante enquanto eu fitava a estrada. “O que aconteceu?” “Deram um tiro nele. Foi encontrado num carro umas horas atrás. Como Susan.” “Já estou indo para aí”, eu disse, passando para a faixa da esquerda e acelerando. “Se eu fosse a senhora, não vinha. O Fielding já começou com ele. Telefone para o Marino, por favor. A senhora precisa ler o jornal da noite. Eles sabem o negócio das balas.” “Eles quem?” “Os repórteres. Sabem que as balas ligam o caso de Eddie Heath ao de Susan.” Liguei para o pager de Marino e disse que estava indo para casa. Depois de entrar na garagem, fui diretamente para a caixa que havia em ente dela e peguei o jornal da noite. Na parte superior da primeira página sorria uma fotografia de Frank Donahue. A manchete dizia: “DIRETOR DA PENITENCIÁRIA ESTADUAL FOI ASSASSINADO ”. Embaixo havia outra reportagem, ilustrada com a fotografia de outro servidor estadual — eu mesma. O ponto de partida era que as balas achadas nos corpos do jovem Heath e Susan tinham sido disparadas pela mesma arma e que
várias conexões estranhas pareciam ligar os dois homicídios a mim. Havia informações muito sinistras, além das insinuações que o Post havia publicado. Fiquei perplexa ao ler que minhas impressões digitais tinham sido encontradas num envelope com dinheiro que a polícia havia encontrado na casa de Susan. Eu demonstrara um “interesse incomum” pelo caso de Eddie Heath, pois aparecera no Hospital das Clínicas de Henrico antes da morte dele para examinar suas lesões. Mais tarde realizei a autópsia e foi então que Susan se recusou a depor no caso e supostamente fugiu do necrotério. Quando, menos de duas semanas depois, foi assassinada, fui mandada ao local, logo em seguida apareci sem aviso na casa dos pais dela para interrogá-los e fiz questão de estar presente durante a autópsia. Não atribuíam nenhuma razão para minha suposta animosidade, mas o que se insinuava no caso de Susan era tão irritante quanto admirável. Eu poderia estar cometendo erros graves no trabalho. Não tivera o cuidado de colher as digitais de Ronnie Joe Waddell quando seu corpo viera para o necrotério depois da execução. Recentemente deixara o corpo da vítima de um homicídio no meio de um corredor, praticamente em ente a um elevador usado por numerosas pessoas que trabalhavam no edifício, ou seja, comprometendo seriamente a confiabilidade das provas. Era descrita como distante e imprevisível, com colegas observando que minha personalidade mudara depois da morte de meu amante, Mark James. Era possível que Susan, que trabalhara cotidianamente a meu lado, dispusesse de informações que pudessem me arruinar profissionalmente. Era possível que eu estivesse pagando a ela por seu silêncio. “Minhas impressões digitais. Que porra é esse negócio de impressões que são minhas?”, disse a Marino assim que ele apareceu na porta. “Calma, doutora.” “Desta vez vou abrir um processo. Isso já foi longe demais.” “Acho que você não vai querer abrir processo nenhum justo agora.” Puxou os cigarros enquanto me seguia em direção à cozinha, onde o jornal da noite estava aberto sobre a mesa. “Ben Stevens está por trás disso.” “Doutora, acho que o que você deve fazer é ouvir o que tenho a dizer.” “A fonte do vazamento a respeito das balas tem de ser ele…” “Doutora. Porra, cale a boca.” Sentei-me. “Também estou com o meu na reta. Estou trabalhando nos casos com você e agora de repente você vira suspeita. Encontramos um envelope na casa de Susan, sim. Estava na gaveta de uma cômoda, debaixo de umas roupas. Dentro tinha três notas de cem dólares. O Vander examinou o envelope e achou uma porção de impressões. Duas eram suas. Suas digitais, assim como as minhas e as de um monte de outros investigadores, estão no Sida para serem excluídas,
caso a gente alguma vez faça a cagada de deixar nossas impressões no local de algum crime.” “Eu não deixei impressão digital em local de crime nenhum. Isso tem explicação lógica. Tem de ter. Com certeza o envelope foi algo que toquei alguma vez em minha sala ou no necrotério e que Susan levou para casa.” “Decididamente não é um envelope da repartição. A largura é o dobro do tamanho ofício e é feito de um papel preto duro e brilhante. Não tem nada escrito nele.” Olhei-o incrédula, enquanto começava a entender. “O lenço que dei a ela.” “Que lenço?” “Meu presente de Natal para Susan foi um lenço de seda vermelho que comprei em São Francisco. O que você está descrevendo é o pacote em que ele estava, uma embalagem preta lustrosa feita de papelão ou cartolina. Fechava-se com um selinho dourado. Eu mesma embalei o presente. Claro que minhas impressões tinham que estar lá.” “E os trezentos dólares?”, disse ele, evitando meus olhos. “Não sei nada de dinheiro nenhum.” “Quero dizer, por que eles estavam no pacote que você deu a ela?” “Com certeza porque ela queria esconder o dinheiro ou qualquer coisa assim. O pacote servia. Talvez não quisesse jogá-lo fora. Não sei. Como eu ia controlar o que ela faria com uma coisa que dei a ela?” “Alguém viu você dar o lenço?” “Não. O marido não estava em casa quando ela abriu o presente.” “É, bom, ele diz que não sabe nada de presente seu, que só sabe de umas flores cor-de-rosa. Diz que Susan não disse nada sobre você dar um lenço a ela.” “Pelo amor de Deus, ela estava usando o lenço quando levou os tiros, Marino.” “Isso não nos diz de onde ele saiu.” “Você agora vai passar para o estágio da acusação”, reclamei. “Não estou acusando você de nada. Não entende? O caso é esse, porra. Você quer que eu ponha você no colo e segure sua mão até que outro tira apareça aqui e a cubra de perguntas como essas?” Desistiu e começou a caminhar pela cozinha, fitando o piso, de mãos nos bolsos. “Me conte do Donahue”, eu disse, tentando me acalmar. “Levou um tiro no trajeto entre a casa e o trabalho, provavelmente de manhã cedo. Segundo a mulher, ele saiu de casa por volta das seis e quinze. O Thunderbird dele foi achado por volta de uma e meia da tarde estacionado no terminal Deep Water, com ele dentro.” “Isso eu li no jornal.”
“Olhe. Quanto menos a gente falar no assunto, melhor.” “Por quê? Os repórteres vão achar que também o matei?” “Doutora, onde você estava às seis e meia hoje de manhã?” “Estava saindo de casa para ir a Washington.” “Você tem alguma testemunha que possa provar que você não estava atravessando o terminal Deep Water? Ele não fica muito longe do escritório do médico-legista, você sabe. Dois minutos, mais ou menos.” “Isso é um absurdo.” “Se acostume com ele. Isso é só o começo. Espere até o Patterson meter o dente em você.” Antes de ser candidato ao cargo de procurador-geral da Justiça do Estado, Roy Patterson tinha sido um dos advogados criminalistas mais combativos e egocêntricos da cidade. Naquele tempo jamais gostava do que eu tinha a dizer, pois na maioria dos casos o depoimento do médico-legista não induz os jurados a pensar bem do réu. “Eu já lhe disse o quanto Patterson não vai com sua cara? Você o deixava mal quando ele era advogado de defesa. Ficava ali sentada, distante como um gato, com suas roupinhas bem passadas, e o fazia parecer um idiota.” “Ele é que fazia papel de idiota sozinho. Eu só respondia às perguntas dele.” “Isso para não falar que seu antigo namorado Bill Boltz era um dos maiores chapas dele, e nem preciso explicar mais.” “É bom parar mesmo.” “Só sei que o Patterson vai atrás de você. Puta merda, aposto que ele agora está felicíssimo.” “Marino, você está vermelho como um pimentão. Por favor, não vá ter um derrame aqui na minha frente.” “Vamos voltar para o lenço que você disse que deu para Susan.” “Eu disse que dei para Susan?” “Qual era o nome da loja de São Francisco onde você comprou o lenço?” “Não foi numa loja.” Ele olhou firme para mim, sem parar de andar. “Foi num mercado de rua. Tem um monte de barracas e bancas vendendo arte, artesanato. Como em Covent Garden”, expliquei. “Você tem o recibo?” “Não tinha nenhuma razão para guardar.” “Quer dizer que não sabe o nome da barraca nem nada mais. Quer dizer que não há como provar que você comprou o lenço de algum cara tipo artista que usa essas embalagens pretas lustrosas.” “Não posso.” Andou um pouco mais e olhou para fora da janela. As nuvens passavam na ente de uma lua oval, e as formas escuras das árvores moviam-se ao vento.
Levantei-me para fechar as persianas. Marino estacou. “Doutora, vou ter de examinar seus registros financeiros.” Eu fiquei calada. “Tenho de verificar se não fez nenhuma retirada grande de dinheiro nestes últimos meses.” Continuei calada. “Doutora, você não fez, não foi?” Levantei-me da mesa, com o pulso latejando. “Você pode falar com meu advogado.”
Depois da saída de Marino subi e, no armário de cedro onde guardava meus papéis particulares, comecei a juntar extratos bancários, declarações de imposto de renda e diversos registros de contas. Pensava em todos os advogados de defesa de Richmond que ficariam provavelmente encantados se eu fosse trancafiada ou exilada pelo resto de meus dias. Estava sentada na cozinha fazendo anotações num bloco quando a campainha da porta tocou. Benton Wesley e Lucy entraram, e imediatamente vi pelo silêncio deles que não era necessário contar-lhes o que estava acontecendo. “Onde está Connie?”, indaguei, exausta. “Vai passar o Ano-Novo com a família em Charlottesville.” “Vou voltar para o seu escritório, tia Kay”, disse Lucy sem beijar-me ou sorrir, e saiu com a mala. “Marino quer examinar meus registros financeiros”, disse eu a Wesley enquanto ele me acompanhava em direção à sala de visitas. Ben Stevens está preparando armadilhas para mim. Na repartição estão faltando pastas de pessoal e cópias de memorandos, e ele espera que pareça que fui eu que tirei. E, segundo Marino, Roy Patterson anda feliz ultimamente. Essas são as últimas notícias.” “Onde você guarda o uísque?” “O bom está aqui neste baú. Os copos estão no bar.” “Não quero beber do bom.” “Ah, eu quero.” Comecei a acender o fogo. “No caminho para cá, dei um telefonema para seu subchefe. A Divisão de Armas de Fogo já deu uma olhada nas balas que estavam na cabeça do Donahue. Winchester chumbo 1.50, não encapsulado, calibre 22. Duas. Uma entrou pelo lado esquerdo do rosto e foi até o crânio, a outra foi direto até a nuca.” “Disparadas da mesma arma que matou os outros dois?” “É. Quer gelo?” “Por favor.”
Pus a grade diante da lareira e o atiçador de volta em seu suporte. “Imagino que não encontraram penas no local, nem no corpo de Donahue.” “Não que eu saiba. Dá para ver que o agressor estava em pé fora do carro e que atirou pela janela aberta do motorista. Isso não quer dizer que o sujeito não estivesse com ele dentro do carro antes, mas acho que não. Meu palpite é que Donahue ia encontrar alguém no estacionamento do terminal Deep Water. Quando a pessoa chegou, Donahue abaixou o vidro e aí deu-se o fato. E com o Downey, como foi?” Entregou minha bebida e sentou-se no sofá. “Parece que a origem das penas e das partículas de pena encontradas nos três outros casos é um pato-do-norte comum.” Wesley anziu a testa. “Um pato marítimo? A pluma é usada em quê, jaquetas de esqui, luvas?” “Raramente. A pluma do pato-do-norte é muito cara. Pessoas comuns não têm coisa nenhuma recheada com esse tipo de pluma.” Passei a informar Wesley dos acontecimentos do dia, não poupando pormenores quando confessei ter passado várias horas com Nicholas Grueman e não acreditar que ele estivesse minimamente envolvido com algo sinistro. “Fico contente por você ter ido vê-lo. Estava esperando que você fosse.” “O resultado é uma surpresa para você?” “Não, faz sentido. A situação do Grueman é parecida com a sua. Recebe um fax de Jennifer Deighton e isso parece suspeito, assim como parece suspeito que suas impressões digitais tenham sido encontradas num envelope na gaveta da cômoda de Susan. Quando a violência chega perto da gente, a gente acaba se molhando. Se suja.” “Estou mais que molhada. Estou me sentindo como se estivesse me afogando.” “Por enquanto é o que parece. Talvez você deva falar com o Grueman a respeito disso?” Não respondi. “Eu gostaria de tê-lo do nosso lado.” “Eu não sabia que você o conhecia.” Os cubos de gelo se chocaram baixinho enquanto Wesley sorvia sua bebida. O cobre da lareira brilhava à luz do fogo. A lenha estalava, expelindo fagulhas. “Sei quem é o Grueman. Sei que ele se formou em primeiro lugar na faculdade de direito de Harvard, que foi diretor da Revista Jurídica e que recebeu um convite para ensinar em Harward mas recusou. Isso partiu o coração dele. Mas a mulher dele, Beverly, não queria se mudar do distrito de Colúmbia. Parece que tinha muitos problemas, dentre eles uma filha de um primeiro casamento internada no Santa Elizabeth quando Grueman e Beverly se conheceram. Ele se mudou para o distrito de Colúmbia. A filha morreu
muitos anos depois.” “Você o investigou?” “Mais ou menos.” “Quando?” “Desde que eu soube que ele tinha recebido um fax de Jennifer Deighton. Tudo indica que está limpo, mas assim mesmo alguém tinha de conversar com ele.” “Essa não é a única razão pela qual você sugeriu que eu conversasse, é?” “É uma razão importante mas não a única. Achei que você devia voltar lá.” Respirei fundo. “Obrigada, Benton. Você é um bom sujeito, com a melhor das intenções.” Aproximou o copo dos lábios e fitou o fogo. “Faça o favor de não se meter”, acrescentei. “Não é o meu gênero.” “Claro que é. Aliás, você é especialista no assunto. Quando quer forçar, empurrar ou soltar alguém sem dar na vista nem aparecer, sabe como fazê-lo. Sabe levantar tantos obstáculos e dinamitar tantas pontes que alguém como eu precisaria de sorte para encontrar o caminho de casa.” “Marino e eu estávamos muito metidos nisso tudo, Kay. O departamento de polícia de Richmond está metido. O FBI está metido. Ou bem temos solto por aí um psicopata que devia ter sido executado, ou temos outra pessoa que parece decidida a fazer-nos pensar que tem alguém solto por aí que devia ter sido executado.” “O Marino não quer que eu me meta de jeito nenhum.” “Ele está numa situação impossível. É o principal investigador de homicídios da cidade e membro da equipe do Procacriv do FBI, mas é também seu colega e amigo. Espera-se que ele descubra tudo o que puder sobre você e sobre o que está acontecendo em sua repartição. Mas a tendência dele é proteger você. Tente se colocar na posição dele.” “Eu me coloco. Mas ele tem de se colocar na minha.” “Muito justo.” “Do jeito que ele fala, Benton, parece que metade do mundo quer se vingar de mim e adoraria me ver na fogueira.” “Metade do mundo talvez não, mas além de Ben Stevens há outras pessoas já preparadas com caixas de fósforos e gasolina.” “Quem mais?” “Não posso dizer nomes porque não sei. E não vou alegar que destruir você profissionalmente seja a missão principal dos que estão por trás disso. Mas desconfio que faz parte de um plano, já que os processos vão ficar bem prejudicados se parecer que todas as provas obtidas em sua repartição estão corrompidas. Isso para não dizer que sem você o Estado perde uma de suas mais poderosas testemunhas periciais.” Seus olhos encontraram os meus.
“Você tem de pensar no que seu depoimento valeria agora. Se você tivesse de depor agora, ia ajudar ou prejudicar Eddie Heath?” A observação me feriu fundo. “Neste exato minuto eu não estaria ajudando muito. Mas, se eu não comparecer, quanto isso vai ajudá-lo ou a qualquer outra pessoa?” “Boa pergunta. Marino não quer que você se machuque mais, Kay.” “Então talvez você possa convencê-lo de que a única reação razoável numa situação tão pouco razoável é que eu o deixe fazer o serviço dele e que ele me deixe fazer o meu.” “Posso reescar isso aqui?” Levantou-se e voltou com a garrafa. Não nos preocupamos com o gelo. “Benton, vamos falar do assassino. À luz do que aconteceu com Donahue, o que você pensa agora?” Pousou a garrafa e atiçou o fogo. Por um momento ficou parado diante da lareira, de costas para mim e com as mãos nos bolsos. Depois sentou-se à beira da lareira, com os cotovelos nos joelhos. Havia muito tempo eu não via Wesley tão agitado. “Se você quer saber a verdade, Kay, esse animal me deixa apavorado.” “Qual a diferença entre ele e os outros assassinos que você tem perseguido?” “Acho que ele começou com algumas regras e depois decidiu mudar.” “Regras dele ou de outra pessoa?” “Acho que no começo as regras não eram dele. Primeiro quem estava por trás do plano para libertar Waddell era quem tomava as decisões. Mas esse cara agora tem suas próprias regras. Ou talvez seja melhor dizer que agora não há regra nenhuma. É um cara astuto e cuidadoso. Até agora, ele é quem manda.” “E o motivo?” “Esse é difícil. Talvez seja melhor para mim falar em termos de missão ou tarefa. Acho que na loucura dele há algum método, mas é a loucura que o faz agir. Goza, brincando com a mente das pessoas. Waddell ficou em cana por dez anos e de repente reaparece o pesadelo de seu crime. Na noite de sua execução, um menino é assassinado de modo sexualmente sádico, lembrando o caso Robyn Naismith. Começam a morrer outras pessoas, todas de algum modo ligadas a Waddell. Jennifer Deighton era amiga dele. Parece que Susan estava metida, pelo menos de certo modo, no que quer que fosse esse plano. Frank Donahue era diretor da prisão e teria supervisionado a execução realizada na noite de 13 de dezembro. E qual o resultado disso para o resto, para os outros jogadores?” “Calculo que qualquer pessoa que tivesse tido qualquer ligação, legítima ou não, com Ronnie Joe Waddell, ia se sentir muito ameaçada”, respondi. “Claro. Se um assassino de tiras está solto e você é um tira, sabe que pode
ser o próximo. Eu podia sair da sua casa hoje de noite e esse cara estar esperando no escuro para atirar em mim. Pode estar no carro dele por aí, procurando o Marino ou tentando descobrir onde eu moro. Pode estar alimentando a fantasia de agarrar o Grueman.” “Ou eu.” Wesley levantou-se e começou de novo a ajeitar as toras de lenha. “Você acha que seria aconselhável eu mandar a Lucy de volta para Miami?” “Meu Deus, Kay, não sei o que dizer. Ela não quer ir para casa. Isso a gente pode ver perfeitamente. Talvez você se sentisse melhor se ela voltasse para Miami esta noite. Aliás, eu me sentiria melhor se você fosse com ela. Na verdade, todo mundo — você, Marino, Grueman, Vander, Connie, Michele, eu — com certeza nos sentiríamos melhor se todos deixássemos a cidade. Mas quem ficaria?” “Ele. Seja quem for”, eu disse. Wesley espiou o relógio e pousou o copo na mesinha. “Nenhum de nós deve se meter com o outro. Não estamos em condições.” “Benton, tenho de limpar meu nome.” “É exatamente o que eu faria. Quer começar por onde?” “Pelo negócio da pena.” “Explique-se, por favor.” “Pode ser que esse assassino tenha saído e comprado algum produto especial acolchoado com pluma de pato-do-norte, mas eu diria que há uma boa chance de ele ter roubado a coisa.” “É uma teoria plausível.” “Só podemos encontrar o item se tivermos a etiqueta ou outra peça que conduza ao fabricante, mas talvez haja outro caminho. Talvez alguma coisa possa aparecer no jornal.” “Não acho que a gente queira que o assassino saiba que anda deixando penas por aí. Vai logo se livrar do tal item.” “Concordo. Mas isso não impede que alguma das suas fontes jornalísticas publique uma reportagenzinha sobre o pato-do-norte e suas apreciadas plumas, e sobre como os produtos acolchoados com elas são tão caros que se transformaram em objeto de predileção dos ladrões. Talvez isso pudesse ser relacionado à temporada de esqui ou coisa assim.” “O quê? Na esperança de que alguém telefone e diga que teve o carro arrombado e a jaqueta acolchoada de plumas roubada?” “É. Se o repórter mencionar algum detetive que supostamente tenha sido designado para ocupar-se dos roubos, os leitores terão a quem telefonar. Compreende, o pessoal lê a história e diz: ‘Isso aconteceu comigo’. O impulso deles é ajudar. Querem se sentir importantes. Aí passam a mão no telefone.” “Vou ter de pensar um pouco sobre isso.” “As chances não são muito grandes, admito.”
Começamos a caminhar para a porta. “Falei rapidamente com a Michele antes de sair de Homestead. Ela e Lucy já estiveram conversando. Michele diz que sua sobrinha mete um pouco de medo.” “Ela tem sido um terror desde que nasceu.” Ele sorriu. “Michele não quis dizer isso. O que ela disse foi que a inteligência da Lucy mete medo.” “Às vezes penso que é mar demais para um navio tão frágil.” “Não sei se ela é ágil assim. Olhe, passei uns dias com ela e fiquei muito impressionado com Lucy em muitos aspectos.” “Nem tente contratá-la para o FBI.” “Vou esperar até ela acabar a faculdade. Quanto tempo falta? Um ano?” Só depois de Wesley partir, quando eu carregava os copos para a cozinha, foi que Lucy emergiu do escritório. “Divertiu-se?”, perguntei. “Claro.” “Disseram que você se dá maravilhosamente bem com os Wesley.” Fechei a torneira e sentei-me à mesa onde deixara o bloco. “São boas pessoas.” “Dizem por aí que eles também gostam de você.” Abriu a geladeira e fitou o interior preguiçosamente. “Por que o Pete esteve aqui antes?” Parecia estranho ver Marino mencionado pelo primeiro nome. Achei que, quando a tinha levado para atirar, ele e Lucy haviam passado de um estado de guerra fria para um de distensão. “Por que você acha que ele esteve aqui?” “Senti o cheiro de cigarro quando entrei em casa. Calculo que ele tenha estado aqui, a não ser que você tenha voltado a fumar.” Fechou a porta da geladeira e se aproximou da mesa. “Não voltei a fumar e Marino deu uma passada aqui.” “O que ele queria?” “Queria me fazer uma porção de perguntas.” “Sobre o quê?” “Por que você precisa saber dos pormenores?” Seus olhos foram de meu rosto para a pilha de documentos e para o bloco coberto por minha caligrafia indecifrável. “Não interessa por quê, já que é evidente que você não quer me contar.” “É complicado, Lucy.” “Quando você quer me manter fora dos assuntos, fala sempre que alguma coisa é complicada”, disse ela enquanto se virava e saía. Senti como se meu mundo estivesse caindo, as pessoas que o povoavam espalhando-se como sementes secas ao vento. Quando observava pais junto
com seus filhos, maravilhava-me com a graça daquela relação e temia secretamente carecer de um instinto que não podia ser aprendido. Fui achar minha sobrinha no escritório, sentada diante do computador. Na tela havia colunas de números combinados com letras do alfabeto, e aqui e ali viam-se agmentos do que imaginei serem dados. Ela fazia cálculos a lápis num papel quadriculado e não levantou os olhos quando cheguei perto. “Lucy, sua mãe teve muitos homens entrando e saindo de casa e eu sei bem como isso fez você se sentir. Mas aqui não é sua casa e eu não sou sua mãe. Não é preciso você se sentir ameaçada por meus colegas e amigos homens. Não é preciso você ficar sempre procurando uma prova de que algum homem esteve aqui, e não há por que você suspeitar das minhas relações com Marino, Wesley ou qualquer outro.” Ela não respondeu. Pus a mão em seu ombro. “Pode ser que eu não seja a presença constante em sua vida que eu gostaria de ser, mas você é muito importante para mim.” Apagando um número e sacudindo do papel os restos de borracha, ela disse: “Você vai ser acusada de algum crime?”. “Claro que não. Não cometi crime nenhum.” Aproximei-me do monitor. “O que você está vendo é um depósito hex”, disse ela. “Você tinha razão. São criptogramas.” Pondo os dedos no teclado, Lucy começou a mover o cursor enquanto explicava. “O que eu estou fazendo aqui é tentar obter a posição exata do número de IDE. É o número de identificação estadual. Cada pessoa no sistema tem um número de IDE, inclusive você, porque suas digitais também estão no Sida. Numa linguagem de quarta geração, como o SQL, eu poderia procurar por um nome em uma coluna. Mas no hexadecimal a linguagem é técnica e matemática. Não há nomes em colunas, só posições na organização dos registros. Em outras palavras, se eu quisesse ir a Miami, no SQL diria simplesmente ao computador que queria ir para Miami. Mas no hexadecimal ia ter de dizer que queria ir para uma posição tantos graus ao norte do equador e tantos graus a leste do meridiano de Greenwich. Então, para continuar com a analogia geográfica, estou buscando a longitude e a latitude do número de IDE e também o número que indica o tipo de registro. Aí posso escrever um programa para procurar todo número de IDE onde o registro é tipo 2, que significa supressão, ou tipo 3, que é substituição. Vou rodar o programa com todas as fitas diárias.” “Você acha que, se houve algum registro alterado, a alteração foi no IDE?” “Vamos dizer que seria muito mais fácil mexer no número de IDE que nas próprias imagens das digitais, no registro de disco óptico. E na verdade você no Sida só tem isso — o número de IDE e as digitais correspondentes. O nome da pessoa, o prontuário e outras informações pessoais estão no PCC, ou Prontuário Criminal Computadorizado, que fica na CRC, ou Central de
Registros Criminais.” “Se bem entendo, os números de IDE é que casam os registros que estão no CRC com as digitais que estão no Sida.” “Isso mesmo.” Quando fui me deitar, Lucy ainda estava trabalhando. Dormi logo, mas às duas da manhã acordei. Só peguei no sono depois das cinco, e o despertador tocou menos de uma hora mais tarde. Dirigi até o centro no escuro e ouvi quando um dos locutores da rádio local deu as últimas notícias. Informou que a polícia tinha me interrogado e que eu me recusara a fornecer dados relativos a meus registros financeiros. Prosseguiu recordando a todos que, poucas semanas antes de ser assassinada, Susan Story tinha depositado três mil e quinhentos dólares na própria conta corrente. Cheguei à repartição e, mal tirei o casaco, Marino telefonou. “O merda do major não pode ficar com a boca calada”, disse de saída. “É claro.” “Porra, desculpe.” “Não é culpa sua. Eu sei que você tem de fazer um relatório para ele.” Marino hesitou. “Tenho de lhe perguntar sobre suas armas. Você não tem um 22, tem?” “Você sabe tudo a respeito de minhas armas. Tenho um Ruger e um Smith e Wesson. E, se você disser isso ao major Cunningham, estou certa de que dentro de uma hora vai ouvir no rádio.” “Doutora, ele quer submetê-las ao laboratório de armas de fogo.” Por um momento pensei que Marino estivesse brincando. “Ele acha que você deve estar querendo apresentá-las para exame. Acha que é uma boa ideia mostrar logo que as balas retiradas de Susan, do garoto Heath e de Donahue não podiam ter sido disparadas por suas armas.” “Você disse ao major que os revólveres que eu tenho são 38?”, indaguei enraivecida. “Disse.” “E ele sabe que as balas retiradas dos corpos eram 22?” “É. Eu falei isso várias vezes para ele.” “Está bom, pergunte a ele se ele conhece algum adaptador que torne possível usar cartuchos 22 num revólver 38. Se conhece, diga a ele que ele devia apresentar uma comunicação na próxima reunião da Academia Americana de Medicina Legal.” “Eu acho que você não quer que eu diga isso a ele.” “Isso é só política, golpe publicitário. Não é nem racional.” Marino não comentou. “Olhe, não desrespeitei lei nenhuma. Não vou apresentar meus registros financeiros, minhas armas de fogo nem coisa nenhuma antes de ser corretamente aconselhada. Entendo que você tem de fazer seu trabalho e
quero que você o faça. O que eu quero é que me deixem em paz para eu também fazer o meu. Tenho três casos aqui embaixo e o Fielding foi ao foro.” Não me deixariam, porém, em paz, e isso ficou claro quando Marino e eu terminamos a conversa e Rose apareceu na sala. Seu rosto estava pálido e seus olhos aterrorizados. “O governador quer ver a senhora.” “Quando?”, perguntei com o coração aos saltos. “Às nove horas.” Já eram oito e meia. “O que ele quer, Rose?” “A pessoa que ligou não disse.” Peguei o casaco e o guarda-chuva e saí para a chuva de inverno que começava a congelar. Enquanto me apressava pela rua Catorze, tentava lembrar a última vez que falara com o governador Joe Norring e concluí que fora um ano antes numa recepção de gala do Museu da Virgínia. Ele era republicano, anglicano, e formado em direito pela Universidade da Virgínia. Eu era italiana, católica, nascida em Miami e formada no Norte. Meu coração era democrata. O Palácio do Governo fica no morro Shockhoe e é cercado por uma grade de ferro trabalhada, erguida no começo do século XIX para evitar a passagem do gado. O edifício branco desenhado por Jefferson é típico de sua arquitetura, uma simetria pura de cornijas e colunas lisas com capitéis jônicos inspirada por um templo romano. Os degraus de granito que atravessam o terreno são flanqueados por bancos, e enquanto a chuva caía sem parar pensei em minha resolução primaveril de todo ano de tirar uma hora de almoço longe da escrivaninha e sentar-me ali ao sol. Ainda não tinha feito aquilo. Perdera inúmeros dias de minha vida para a luz artificial e os locais confinados e sem janelas que desafiavam qualquer classificação arquitetônica. Dentro do palácio encontrei um banheiro feminino e tentei reforçar minha confiança com alguns reparos em minha maquiagem. Apesar de meus esforços com o batom e a escova, o espelho nada dizia que me fizesse recobrar o ânimo. Desarrumada e insegura, tomei o elevador para o topo da rotunda, onde, três andares acima da estátua de mármore de George Washington pintada por Hudson, os retratos a óleo dos governadores anteriores exibiam uma expressão embasbacada e severa. No meio do caminho, ao longo da parede sul, perambulavam jornalistas com bloquinhos, câmeras e microfones. Não pensei que estivesse na mira deles até que, ao aproximar-me, as câmeras de televisão saltaram para os ombros, os microfones foram sacados como espadas e as objetivas começaram a tinir com a rapidez de armas automáticas. “Por que a senhora não mostra suas contas?”
“Doutora Scarpetta…” “A senhora deu dinheiro a Susan Story?” “De que tipo é a arma que a senhora tem?” “Doutora…” “É verdade que desapareceram de sua repartição uns registros de pessoal?” Eram as mesmas acusações e perguntas de sempre. Eu fixava a atenção num ponto à minha ente, os pensamentos paralisados. Meu queixo era atingido por microfones, corpos chocavam-se comigo e em meus olhos acendiam-se lâmpadas. Atingir a pesada porta de mogno e escapar para o sossego elegante que ela ocultava pareceu demorar uma eternidade. “Bom dia”, disse a recepcionista em sua fortaleza de madeira nobre sob o retrato de John Tyler. Do outro lado da sala, numa mesa diante de uma janela, um policial à paisana da Unidade de Proteção ao Executivo espiou-me com rosto inescrutável. “Como a imprensa soube disso?”, perguntei à recepcionista. “Perdão?” Era uma mulher idosa vestida com roupas de lã. “Como souberam que eu ia me encontrar com o governador esta manhã?” “Sinto muito. Não sei.” Sentei-me num pequeno sofá azul pálido. O papel de parede era do mesmo tom de azul, a mobília antiga, o escudo do estado no assento de tapeçaria das cadeiras. Passaram-se lentamente dez minutos. Abriu-se uma porta e um jovem que reconheci como o secretário de imprensa de Norring entrou e sorriu para mim. “Doutora Scarpetta, o governador vai receber a senhora agora.” Era de compleição delgada, louro, e vestia um terno azul-marinho com suspensórios amarelos. “Peço-lhe desculpas por tê-la feito esperar. Que tempo inacreditável a gente está tendo. E ouvi dizer que vai cair para menos de oito esta noite. De manhã as ruas vão estar um gelo puro.” Conduziu-me por uma série de gabinetes bem decorados, onde as secretárias estavam concentradas diante das telas dos computadores e os ajudantes moviam-se com determinação silenciosa. Bateu levemente em uma porta imponente, girou a maçaneta de latão e afastou-se, tocando cavalheirescamente minhas costas enquanto eu o precedia no espaço privado do homem mais poderoso da Virgínia. O governador Norring não se levantou da cadeira estofada de couro por trás de uma mesa limpa de nogueira nodosa. Deonte dele havia duas cadeiras e uma me foi oferecida enquanto ele continuava a examinar um documento. “A senhora quer beber alguma coisa?”, perguntou-me o secretário de imprensa. “Não, obrigada.”
Ele então partiu, fechando a porta com delicadeza. O governador depositou o documento na mesa e recostou-se na cadeira. Era um homem de aparência distinta, cujos traços exibiam o mínimo de irregularidade necessário para que fosse levado a sério, e era impossível deixar de reparar nele quando se entrava numa sala. Como George Washington, que media um metro e noventa numa época de homens baixos, Norring tinha uma estatura bem acima da média e seus cabelos eram abundantes e escuros, numa idade em que os homens começam a ficar calvos ou grisalhos. “Doutora, estive pensando se haveria um meio de extinguir o fogo dessa controvérsia antes que ele fique incontrolável.” Falava com a cadência branda da conversação virginiana. “Espero que sim, governador Norring.” “Então, por favor, me ajude a compreender por que a senhora não está colaborando com a polícia.” “Quero ouvir um advogado, e ainda não tive oportunidade de fazer isso. Não acho que isso seja falta de colaboração.” “A senhora certamente tem o direito de não se incriminar. Mas ao sugerir que vai lançar mão da emenda constitucional número 5, a senhora torna mais escura a nuvem de suspeita que paira à sua volta. Estou seguro de que a senhora se dá conta disso”, disse lentamente. “Dou-me conta de que serei criticada faça o que fizer. Proteger-me é a única coisa razoável e prudente que posso fazer.” “A senhora estava fazendo pagamentos à superintendente do necrotério, Susan Story?” “Não, senhor, não estava. Não fiz nada de errado.” Inclinou-se para a ente na cadeira e cruzou os dedos em cima da mesa. “Doutora Scarpetta, me disseram que a senhora não quer colaborar entregando os registros que podem provar essas alegações.” “Não fui informada de que seja suspeita de crime algum, nem recebi as advertências do acórdão Miranda. Não renunciei a meus direitos. Não tive oportunidade de procurar um advogado. Neste momento minha intenção não é abrir os arquivos de minha vida profissional e pessoal para a polícia ou para qualquer outra pessoa.” “Então, em resumo, a senhora se recusa a mostrar tudo.” Quando um servidor público é acusado de agir em interesse próprio ou de qualquer outro tipo de conduta imoral, só há duas defesas: ou ele mostra tudo ou pede exoneração. Essa última possibilidade mostrava para mim todos os seus dentes. Estava claro que a intenção do governador era fazer com que eu passasse a fronteira e fosse obrigada a pedir exoneração. “A senhora é uma perita de renome nacional e médica-legista chefe deste estado. Tem tido uma carreira distintíssima e uma reputação impecável na
comunidade jurídica. Mas, na matéria de que estamos tratando, não está mostrando bom senso. Não está sendo cuidadosa em evitar toda aparência de conduta censurável.” “Fui cuidadosa, governador, e nada fiz de errado”, repeti. “Os fatos demonstrarão isso, mas não vou discutir mais a matéria antes de falar com meu advogado. E só abrirei minhas contas por meio dele e na ente de um juiz, em segredo, diante da Justiça.” “Em segredo?” Seus olhos se apertaram. “Certos pormenores de minha vida atingem outras pessoas.” “Quem? Marido, filhos, amante? Até onde eu sei, a senhora não tem nada disso, vive sozinha e — para usar o clichê — é casada com o trabalho. Quem a senhora pode estar protegendo?” “Governador Norring, o senhor está me atacando.” “Não, senhora. Estou simplesmente procurando alguma coisa para corroborar suas alegações. A senhora diz que está preocupada em proteger outras pessoas, e eu estou perguntando quem podem ser esses outros. Com certeza não são pacientes. Seus pacientes estão todos mortos.” “Não acho que o senhor esteja sendo justo ou imparcial. Desde o começo nada foi justo neste encontro. Dão-me vinte minutos para estar aqui e não me dizem qual é o assunto…”, eu disse, sabendo que meu tom era gélido. Ele interrompeu. “Ora, doutora, pensei que a senhora pudesse imaginar qual era o assunto.” “Como eu devia ter imaginado também que o nosso encontro era público.” “Parece que veio toda a imprensa.” Sua expressão não se alterou. “Gostaria de saber como isso ocorreu”, eu disse veementemente. “Se a senhora está perguntando se este gabinete notificou a imprensa de nossa reunião, digo-lhe que não.” Não respondi. “Doutora, não sei se a senhora entende que, como servidores públicos, temos de atuar segundo um conjunto diferente de regras. Em certo sentido, não temos direito a vida privada. Ou talvez fosse melhor dizer que, se se levantam dúvidas sobre nossa ética ou nossos juízos, o público tem o direito de examinar, em certos casos, os aspectos mais privados de nossas existências. Sempre que estou para encetar uma determinada ação ou mesmo assinar um cheque, tenho de me perguntar se o que estou fazendo resistirá ao mais rigoroso dos escrutínios.” Notei que, quando falava, ele quase não usava as mãos, e que o tecido e o modelo do terno e da gravata eram uma lição de extravagância subentendida. Enquanto continuava a admoestação, minha atenção vagava por todo lado, e me dei conta de que nada que pudesse fazer ou dizer me salvaria afinal. Embora tivesse sido nomeada pelo secretário de Saúde, não teria sido convidada para o cargo nem poderia permanecer muito tempo nele sem o
apoio do governador. O modo mais rápido de perdê-lo era causando embaraço ou criando algum conflito, o que já havia conseguido. Ele tinha o poder de forçar-me a pedir exoneração. Eu tinha o poder de comprar um pouco de tempo ameaçando embaraçá-lo ainda mais. “Doutora, quem sabe a senhora gostaria de me dizer o que faria em meu lugar.” Além da janela misturavam-se a neve e o granizo, e os edifícios da zona bancária pareciam desmaiados sobre um triste céu de estanho. Fitei Norring em silêncio e falei tranquilamente: “Governador Norring, provavelmente eu não convocaria a médica-legista chefe a minha presença para insultá-la gratuitamente, tanto profissional como pessoalmente, e depois pedir-lhe que renunciasse aos direitos que a Constituição garante a todas as pessoas. Também é provável que eu aceitasse a inocência dessa pessoa até que fosse provada sua culpa, e não comprometesse sua ética e o juramento hipocrático que ela prometera guardar pedindo-lhe que expusesse ao escrutínio público arquivos confidenciais, quando fazê-lo poderia prejudicá-la, e a terceiros. E é provável, governador Norring, que não reduziria uma pessoa que serviu o estado lealmente à única opção de pedir exoneração por justa causa”. Enquanto considerava minhas palavras, o governador segurou distraidamente uma caneta-tinteiro de prata. Pedir exoneração por justa causa depois de encontrar-me com ele implicaria, para todos os repórteres que esperavam atrás da porta do gabinete, que eu teria renunciado porque Norring teria pedido que eu fizesse algo que considerava imoral. “No momento não me interessa que a senhora peça exoneração”, disse iamente. “Aliás, não aceitaria o pedido. Sou um homem justo, doutora Scarpetta, e, espero, um homem de bom senso. E o bom senso me diz que não posso ter, como responsável pelas autópsias oficiais das vítimas de homicídios, um funcionário implicado num homicídio ou cúmplice nele. Penso, então, que o melhor seja dar à senhora uma licença com vencimentos até que essa questão seja resolvida.” Estendeu o braço até o telefone. “John, você poderia fazer o favor de acompanhar a médica-legista chefe?” O sorridente secretário de imprensa apareceu quase imediatamente. Ao sair do gabinete do governador fui assediada por todo lado. Flashes estouravam diante dos meus olhos e parecia que todo mundo gritava. O gancho das notícias no resto do dia e na manhã seguinte foi que o governador me concedera licença com vencimentos até que eu pudesse limpar meu nome. Um editorial conjecturava que Norring mostrara ser um cavalheiro, e que se eu fosse uma dama pediria exoneração.
11
Na sexta-feira fiquei em casa diante do fogo, dando continuidade à tarefa tediosa e ustrante de tomar notas à medida que tentava documentar para mim mesma cada movimento que fizera nas últimas semanas. Infelizmente, no momento em que a polícia acreditava que Eddie Heath fora sequestrado na mercearia eu estava em meu carro, indo para casa. Quando Susan fora assassinada eu estava sozinha em casa, pois Marino levara Lucy para aprender a atirar. Também estava só na manhã em que Frank Donahue fora alvejado. Não tinha testemunhas que pudessem comprovar minhas atividades durante os três assassinatos. Seria bem mais difícil vender os motivos e o modus operandi. É muito incomum uma mulher atirar em alguém à queima-roupa, e eu não teria motivo algum para matar Eddie Heath, a não ser que fosse uma sádica sexual. Estava mergulhada em meus pensamentos quando Lucy me chamou. “Encontrei uma coisa.” Estava sentada diante do computador, girara a cadeira para um lado e acomodara os pés sobre uma otomana. No colo tinha várias folhas de papel, e meu Smith e Wesson 38 estava à direita do teclado. “Por que você está com meu revólver aqui?”, perguntei, perturbada. “Pete me disse para treinar disparos sem balas sempre que tivesse oportunidade. Então, fiquei treinando enquanto rodava meu programa com as fitas diárias.” Apanhei o revólver, empurrei a trava e examinei o tambor, só para ter certeza. “Embora eu ainda tenha de rodar umas fitas, acho que já encontrei uma pista do que estamos procurando.” Senti uma onda de otimismo e puxei uma cadeira. “A fita diária de 9 de dezembro mostra três Sids interessantes.” “Sids?” “Substituições de Impressões Digitais”, explicou Lucy. “São três registros diferentes. Um foi completamente eliminado ou suprimido. O número de IDE de um outro foi alterado. E temos um terceiro registro que é uma nova entrada, feita mais ou menos na mesma hora em que os outros dois registros foram suprimidos ou modificados. Entrei no CRC e chamei os números de IDE tanto do registro alterado como do registro novo. O registro alterado é o de Ronnie Joe Waddell.” “E o novo?”
“Aí é um negócio estranhíssimo. Não há prontuário criminal. Introduzi o número de IDE cinco vezes e apareceu sempre ‘registro não localizado’. Você entende o que isso pode significar?” “Sem prontuário no CRC é impossível saber quem é a pessoa.” Lucy concordou. “É. Você tem as digitais e o número de IDE de alguém no Sida, mas não há nome nem outros dados pessoais para casar com eles. E para mim isso indica que alguém tirou o registro dessa pessoa do CRC. Em outras palavras, também mexeram no CRC.” “Vamos voltar para o Ronnie Waddell. Você pode reconstituir o que foi feito com o registro dele?” “Tenho uma teoria. Primeiro, é preciso saber que o número de IDE é um identificador exclusivo com um índice exclusivo, ou seja, o sistema não deixa você introduzir outro valor. Se eu, por exemplo, quisesse trocar de número de IDE com você, tinha primeiro de suprimir seu registro. Aí, depois de mudar meu número de IDE para o seu, voltava a introduzir o seu registro, dando a você o meu antigo número de IDE.” “É isso o que você pensa que aconteceu?” “Esse processo explicaria os Sids que encontrei na fita diária de 9 de dezembro.” Quatro dias antes da execução de Waddell, pensei. “Tem mais. Em 16 de dezembro o registro de Waddell foi suprimido do Sida.” “Como é que pode?”, perguntei, desconcertada. “Uma impressão digital encontrada na casa de Jennifer Deighton foi identificada como sendo de Waddell quando Vander a examinou no Sida há pouco mais de uma semana.” “O Sida saiu fora do ar no dia 16 de dezembro às dez e cinquenta e cinco da manhã, exatamente noventa e oito minutos depois que o registro do Waddell tinha sido suprimido. O banco de dados foi restaurado com as fitas diárias, mas você tem de se lembrar que o backup só é feito uma vez por dia, no fim da tarde. Assim, as mudanças feitas no banco de dados na manhã de 16 de dezembro não tinham passado pelo backup quando o sistema caiu. Quando o banco de dados foi restaurado, o registro do Waddell também foi.” “Quer dizer que alguém mexeu no número de IDE do Waddell quatro dias antes da execução? E aí, três dias depois da execução, alguém suprimiu o registro dele do Sida?” “É o que parece. O que eu não consigo entender é por que a pessoa não suprimiu o registro de uma vez. Para que todo o trabalho de mudar o número de IDE para depois suprimir o registro todo?” Quando telefonei momentos mais tarde, Neils Vander deu uma resposta simples para aquilo: “Não é incomum que depois da morte de um preso suas digitais sejam suprimidas do Sida. Na verdade, a única razão pela qual não
suprimimos os registros de um preso que já morreu é que é possível que as impressões dele apareçam em algum caso que ainda não tenha sido solucionado. Mas o Waddell já estava preso havia nove, dez anos — já estava fora de circulação havia tanto tempo que não valia a pena manter as digitais dele no computador”. “Então a supressão do registro dele no dia 16 de dezembro foi de rotina?” “Claro. Mas não seria um procedimento de rotina suprimir o registro em 9 de dezembro, quando Lucy acha que o número de IDE foi alterado, porque aí o Waddell ainda estava vivo.” “Neils, o que você acha que isso tudo significa?” “Quando você muda o número de IDE de alguém, Kay, você na verdade mudou a identidade dele. Posso ter as impressões digitais dele, mas quando introduzir o número de IDE no CRC, não é o prontuário dele que vou obter. Ou não obtenho prontuário nenhum, ou recebo o de outra pessoa.” “Tínhamos uma impressão deixada na casa de Jennifer Deighton. Introduzimos o número de IDE no CRC e chegamos a Ronnie Waddell. Mas agora temos razões para crer que o número de IDE de Ronnie Waddell foi alterado. Ou seja, não sabemos quem deixou a impressão naquela cadeira, sabemos?” “Não. E está ficando claro que alguém teve um trabalho danado para nos impedir de verificar quem podia ser essa pessoa. Não posso provar que não tivesse sido o Waddell. Também não posso provar que foi.” Enquanto ele falava, diversas imagens passavam rapidamente em meu pensamento. “Para provar que Waddell não deixou impressões digitais na cadeira de Jennifer Deighton, preciso de uma impressão antiga dele, na qual possa confiar, uma que eu saiba que não foi mexida. Mas não sei onde procurar.” Tive a visão de um revestimento escuro, de assoalhos de madeira e sangue seco cor de granada. “A casa dela”, murmurei. “Casa de quem?” Vander não entendeu. “De Robyn Naismith.”
Dez anos antes, quando a casa de Robyn Naismith fora periciada pela polícia, o laser e a Luma-Lite não haviam sido usados. Naquela época não existia DNA de impressões digitais. Não havia na Virgínia sistema automático de digitais, nem meios computadorizados de melhorar impressões parciais marcadas com sangue em uma parede ou em outro lugar qualquer. Embora em geral a nova tecnologia seja irrelevante para casos encerrados há muito tempo, há exceções. Eu acreditava que o assassinato de Robyn Naismith era uma delas. Se pudéssemos borrifar a casa dela com produtos químicos, era possível
literalmente ressuscitar o local. O sangue coagula, goteja, pinga, salpica, mancha e grita num vermelho vibrante. Mete-se pelas estas e fendas e insinua-se sob as almofadas e os assoalhos. Embora possa desaparecer com uma lavagem ou desbotar com os anos, nunca some completamente. Como o texto que não aparecia na folha de papel deixada sobre a cama de Jennifer Deighton, havia sangue invisível a olho nu na sala onde Robyn Naismith fora abordada e morta. Sem a ajuda da tecnologia, a polícia encontrara uma impressão marcada com sangue durante a investigação original do crime. Waddell podia ter deixado outras. Talvez ainda estivessem lá. Neils Vander, Benton Wesley e eu nos dirigimos para o oeste em direção à Universidade de Richmond, um conjunto esplêndido de edifícios em estilo georgiano que circundavam um lago entre as estradas Three Chopt e River. Fora nela que, vários anos antes, Robyn Naismith se graduara com distinção, e seu amor pela região fora tal que mais tarde comprara sua primeira casa a dois quarteirões da universidade. Sua antiga casinha de tijolos aparentes com mansarda ficava num lote de dois mil metros quadrados. Não me surpreendeu que o local fosse ideal para um ladrão. O quintal tinha muitas árvores e os fundos da casa sumiam sob três magnólias gigantescas que bloqueavam completamente o sol. Duvidei que os vizinhos de qualquer dos lados pudessem ter visto ou ouvido algo na casa de Robyn Naismith. Os vizinhos estavam trabalhando na manhã em que Robyn fora assassinada. Devido às circunstâncias que haviam posto a casa no mercado dez anos antes, o preço fora baixo para o bairro. Descobríramos que a universidade decidira comprá-la para servir como residência de professores e conservara muito do que havia dentro. Robyn era solteira e filha única, e seus pais, do norte da Virgínia, não quiseram seus objetos. Calculo que não poderiam suportar viver com eles ou mesmo olhá-los. O professor Sam Potter, um homem solteiro que ensinava alemão, alugava a casa de sua empregadora desde a compra. Estávamos retirando o equipamento fotográfico, ascos de produtos químicos e outros itens da mala quando a porta dos fundos se abriu. Um homem de aparência mofina nos saudou com um bom-dia chocho. “Querem uma ajuda?” Sam Potter desceu os degraus, afastando dos olhos o cabelo preto comprido e fumando um cigarro. Era baixo e roliço, com quadris femininos. “Se o senhor quiser levar esta caixa aqui”, disse Vander. Potter soltou o cigarro no chão e não se preocupou em apagá-lo. Fomos atrás dele degraus acima e entramos numa cozinha pequena com eletrodomésticos antigos verde-abacate e dúzias de pratos sujos. Em seguida ele nos conduziu, passando pela sala de jantar com roupa empilhada na mesa, até a sala de visitas, na ente da casa. Pus no chão o que carregava e tentei
disfarçar meu choque ao reconhecer a televisão ligada a uma tomada na parede, as cortinas, o sofá de couro marrom e o assoalho de tacos, agora arranhado e opaco como lama. Havia livros e papéis espalhados por toda parte; Potter começou a falar enquanto os recolhia descuidadamente. “Como os senhores podem ver, não tenho muito jeito para os trabalhos domésticos”, disse com nítido sotaque alemão. “Por ora vou pôr estas coisas na mesa da sala de jantar.” Quando voltou, disse: “Querem que eu tire mais alguma coisa?”. Puxou um maço de Camel do bolso da camisa branca e extraiu uma caixinha de fósforos das calças de brim desbotadas. Usava um relógio de bolso preso a uma das alças do cinto por uma tira de couro, e reparei várias coisas quando ele o puxou para ver as horas e acendeu o cigarro. Suas mãos tremiam, os dedos estavam inchados, e as maçãs do rosto e o nariz estavam cobertos de vasos sanguíneos partidos. Não se dera o trabalho de limpar os cinzeiros, mas recolhera garrafas e copos vazios e tivera o cuidado de jogá-los no lixo. “Está bem assim. Não precisa arrumar mais nada. Se precisarmos mexer em alguma coisa, colocaremos de volta”, disse Wesley. “O senhor disse que esse produto que estão usando não vai estragar nada e não é tóxico para seres humanos?” “Não, não tem perigo nenhum. Vai deixar um resíduo granulado — como de água salgada quando seca. Vamos fazer o possível para limpar”, eu disse. “Prefiro não ficar aqui enquanto fazem isso. Podem me dizer aproximadamente quanto tempo vai demorar?”, disse Potter, dando uma tragada nervosa. “Esperamos não demorar mais de duas horas.” Wesley estava olhando em torno, e embora seu rosto nada expressasse, eu bem podia imaginar o que lhe ia pelo pensamento. Enquanto Vander abria uma caixa de filme, tirei o casaco e fiquei sem saber onde colocá-lo. “Se terminarem antes de eu voltar, por favor fechem a porta e verifiquem se está bem trancada. Não tenho alarme para não me incomodar.” Potter saiu pela cozinha e, quando deu a partida no carro, o som foi o de um ônibus a diesel. “É uma pena. Podia ser uma bela casa. Mas por dentro não é muito melhor do que os cortiços que tenho visto. Você reparou nos ovos mexidos na igideira no fogão? O que mais você quer separar daqui?”, disse Vander tirando de uma caixa duas garrafas de um produto químico. Agachou-se. “Só quero misturar o líquido quando estivermos prontos.” “Acho melhor tirarmos deste lugar o máximo que for possível. Você está com as fotografias, Kay?”, disse Wesley. Peguei as fotografias do local do assassinato de Robyn Naismith. “Vocês repararam que nosso amigo professor está usando a mobília dela?”, perguntei.
“Bom, então vamos deixá-la aqui”, disse Vander, como se fosse comum a mobília do local de um crime continuar no mesmo lugar dez anos mais tarde. “Mas temos de tirar o tapete. Dá para perceber que este não veio com a casa.” “Por quê?” Wesley fitou o tapete trançado azul e vermelho sob seus pés. Estava sujo e enrolando nas bordas. “Se você levantar a beira, vai ver que por baixo o chão está tão embaçado e riscado quanto em todos os outros lugares. Este tapete não está aqui há muito tempo. Além do mais, não parece de muito boa qualidade. Duvido que tivesse durado esse tempo todo.” Espalhei diversas fotografias no chão e virei-as em várias direções até as perspectivas ficarem corretas e podermos saber o que tinha de ser movido. O que havia de mobília original fora rearrumado. Na medida em que era possível fazê-lo, começamos a recriar a cena da morte de Robyn. “Bom, o fícus vai ali”, eu dizia, como uma diretora de arte. “Está bem, mas empurre o sofá para trás uns sessenta centímetros, Neils. E só um pouquinho mais para lá. A planta devia estar a uns dez centímetros do braço esquerdo. Um pouquinho mais perto. Está bem.” “Não, não está. Os galhos estão em cima do sofá.” “É que a planta agora está um pouco maior.” “Nem acredito que ainda esteja viva. Estou espantado que alguma coisa possa viver perto do professor Potter, exceto talvez bactérias e fungos.” “Vamos tirar o tapete?” Wesley despiu o paletó. “Vamos. Havia um pequeno capacho na porta de entrada e um outro tapetinho oriental debaixo da mesa de centro. O assoalho estava quase todo descoberto.” De quatro, começou a enrolar o tapete. Fui até a televisão e examinei o vídeo que estava em cima e as ligações dos cabos que iam dar na parede. “Isto tem de ir para a parede deonte do sofá e da porta de entrada. Algum dos cavalheiros entende de videocassete e ligação de cabos?” “Não”, responderam ao mesmo tempo. “Então tenho de me virar sozinha. Vamos lá.” Desliguei o cabo do vídeo, desconectei a televisão e empurrei-a cuidadosamente pelo assoalho nu e empoeirado. Consultando outra vez as fotografias, movi-a alguns centímetros mais até que ficasse bem na ente da porta de entrada. Em seguida examinei as paredes. Parecia que Potter colecionava quadros e gostava de um artista cujo nome não pude deciar, aparentemente ancês. Os esboços eram estudos a carvão da forma feminina, com muitas curvas, manchas rosadas e triângulos. Um a um, foram retirados e encostados nas paredes da sala de jantar. Àquela altura a sala já estava quase vazia e a poeira me dava comichão. Wesley limpou a testa com o dorso do braço. “Estamos mais ou menos
prontos?” Olhou para mim. “Acho que sim. Bom, faltam algumas coisas. Havia três cadeiras ali daquele lado”, apontei. “Estão nos quartos. Duas num quarto e uma no outro. Quer que eu traga para cá?”, disse Vander. “Pode ser.” Ele e Wesley trouxeram as cadeiras. “Tinha uma pintura naquela parede ali e outra à direita da porta que dá para a sala de jantar”, mostrei. “Uma natureza-morta e uma paisagem inglesa.” Quer dizer que Potter não podia viver com os quadros dela, mas parece que não teve problema com todo o resto. “Precisamos percorrer a casa e fechar todas as persianas e cortinas”, disse Vander. “Se alguma luz ainda estiver entrando, rasgue um pedaço deste papel”, continuou, apontando para um rolo de papel pardo grosso que estava no chão, “e cubra a janela.” Nos quinze minutos seguintes a casa se encheu do som de passos, de persianas baixando e tesouras cortando papel. De vez em quando alguém praguejava, quando o pedaço de papel cortado ficava pequeno ou a fita crepe grudava em si mesma. Fiquei na sala de visitas e cobri o vidro da porta da ente e das duas janelas que davam para a rua. Quando tornamos a nos reunir e apagamos a luz, a casa ficou um breu. Não dava para ver minha mão diante de meu rosto. “Perfeito”, disse Vander quando acendemos a luz do teto. Calçou as luvas e arrumou na mesinha as garrafas de água destilada, os produtos químicos e duas bombas de plástico. “Vamos trabalhar assim. Doutora Scarpetta, você pode ir borrifando enquanto eu filmo em vídeo, e, se alguma área reagir, continue borrifando até eu dizer para seguir adiante.” “O que você quer que eu faça?”, perguntou Wesley. “Que não atrapalhe.” “O que há neste troço?”, perguntou, enquanto Vander desatarraxava as tampas das garrafas dos produtos químicos secos. “Não me diga que você quer saber”, respondi. “Já sou um rapaz crescido. Pode me contar.” “O reagente é uma mistura de perborato de sódio, que o Niels está misturando com água destilada, e triaminoalidrazido e carbonato de sódio”, eu disse, tirando um par de luvas da pasta. “E você acha que vai funcionar com sangue tão antigo?”, perguntou Wesley. “Na verdade, o sangue velho e decomposto reage melhor ao luminol do que as manchas recentes, porque quanto mais o sangue está oxidado, melhor. Quando vai envelhecendo, o sangue vai ficando mais oxidado.” “Acho que nenhuma madeira aqui foi tratada com sal, vocês não acham?” Vander olhou em torno.
“Acho que não.” Expliquei a Wesley: “O principal problema com o luminol é o falso positivo. Muitas coisas reagem a ele, como o cobre e o níquel, bem como os sais de cobre na madeira tratada com sal”. “Também reage com ferrugem, alvejante, iodo e formol. Mais os peróxidos encontrados em bananas, melancias, utas cítricas e em muitos vegetais. Em rabanete também”, acrescentou Vander. Wesley olhou para mim sorrindo. Vander abriu um envelope e tirou dois quadrados de papel de filtro manchados de sangue seco diluído. Juntou então as misturas A e B e pediu a Wesley que apagasse as luzes. Com duas borrifadas rápidas, um brilho semelhante a néon, branco azulado, apareceu na mesinha e logo desapareceu. “Aqui”, disse Vander. Senti-o tocar meu braço com o borrifador e agarrei-o. Quando Vander apertou o botão que ligava a câmera de vídeo, uma luzinha vermelha se acendeu; depois a lâmpada de visão noturna branqueou e, como um olho luminoso, foi fixando tudo o que ele olhava. A voz de Vander soou à minha esquerda: “Onde você está?” “Estou no centro da sala. Estou sentindo a quina da mesinha em minha perna”, eu disse, como se fôssemos crianças brincando no escuro. “Porra, onde vocês estão?” A voz de Wesley veio da direção da sala de jantar. A luz branca junto a Vander moveu-se vagarosamente em minha direção. Estendi a mão e toquei seu ombro. “Pronto?” “Estou gravando. Comece e vá borrifando até eu dizer para você parar.” Comecei a borrifar o chão à nossa volta com o dedo firme na válvula. Uma neblina flutuou ao meu redor e em torno de meus pés materializaram-se figuras geométricas e outras formas. Por um momento parecia que eu voava na escuridão sobre o traçado luminoso de uma cidade lá embaixo. O sangue antigo depositado nas estas do assoalho emitia um brilho branco azulado que esmaecia e voltava a aparecer quase tão depressa quanto a capacidade da visão de percebê-lo. Borrifei sem ter noção real de onde me achava com relação a todo o resto, e vi pegadas pela sala inteira. Esbarrei no fícus e no vaso que o continha apareceram débeis listras brancas. À minha direita fulguravam impressões digitais que besuntavam a parede. “Luz”, disse Vander. Wesley acendeu a luz do teto e Vander montou uma câmera de trinta e cinco milímetros num tripé a fim de mantê-la fixa. A única luz seria a fluorescência do luminol, e o filme precisaria de um tempo de exposição maior para captá-la. Peguei outra garrafa cheia de luminol e, quando as luzes se apagaram novamente, tornei a borrifar as impressões besuntadas na parede enquanto a câmera capturava aquelas imagens fantásticas. Depois passamos
adiante. No revestimento e no assoalho apareceram faixas largas e onduladas, e as costuras do sofá de couro formaram uma rede de néon que desenhava de modo incompleto as formas quadradas das almofadas. “Você poderia retirar as almofadas?”, indagou Vander. Uma a uma, empurrei as almofadas para o chão e borrifei a superfície do sofá. Os espaços entre as almofadas brilharam. No encosto apareceram outros borrões e listras, e no teto uma constelação de estrelinhas brilhantes. Foi na velha televisão que demos com a primeira exibição pirofórica de falsos positivos, quando o metal em torno dos botões e da tela se acendeu e as conexões dos fios adquiriram um branco azulado de leite ralo. Salvo umas poucas manchas que podiam ser de sangue, nada havia de notável em volta da TV, mas o chão à sua ente, onde o corpo de Robyn fora encontrado, enlouqueceu. O sangue era tanto que dava para ver o desenho dos tacos e a direção das fibras da madeira. Uma marca de arrastamento brilhava por mais de um metro de assoalho com uma altíssima concentração de luminescência, e perto havia uma forma curiosa de curvaturas tangenciais feitas por um objeto com uma circunferência ligeiramente menor que a de uma bola de voleibol. A busca não se limitou à sala de visitas. Começamos a seguir pegadas. Às vezes éramos obrigados a acender as luzes, misturar mais luminol e afastar obstáculos do caminho, principalmente no aterro linguístico que um dia fora o quarto de Robyn e hoje era o lugar onde o professor Potter vivia. No assoalho havia vários centímetros de papelada: trabalhos de pesquisa, artigos de revistas, provas e dezenas de livros em alemão, ancês e italiano. As roupas estavam espalhadas ou penduradas de modo tão desordenado que era como se um redemoinho tivesse passado pelo armário e criado um vórtice no meio do quarto. Catamos tudo o melhor que pudemos e fizemos montes e pilhas na cama de casal desfeita. Depois seguimos a trilha sangrenta de Waddell. A trilha me levou ao banheiro, com Vander logo atrás. Espalhadas pelo chão havia marcas de sapatos e manchas de sujeira, e ao lado da banheira cintilavam as mesmas formas circulares que havíamos encontrado na sala de visitas. Quando comecei a borrifar as paredes, apareceram de repente duas enormes impressões digitais um pouco acima e de ambos os lados da privada. A luz da câmera de vídeo flutuou para mais perto. Ouvi a voz de Vander exclamar animada: “Acenda a luz!”. O toalete de Potter estava no mínimo tão vergonhosamente arrumado quanto o resto de seus domínios. Ao examinar a área onde as impressões digitais tinham aparecido, Vander quase enfiou o nariz na parede. “Dá para ver?” “Humm. Talvez um pouquinho.” Inclinando a cabeça primeiro para um lado e depois para o outro, ele apertou os olhos. “É fantástico. Você vê, o papel de
parede tem um desenho azul-escuro, de modo que a olho nu não se consegue ver muito. E é plastificado ou de vinil — em outras palavras, boa superfície para impressões digitais.” “Meu Deus do céu, pelo jeito desde que ele se mudou não limpa o raio da privada. Nossa, nem puxou a válvula”, disse Wesley, parado à porta do banheiro. “Mesmo que uma vez ou outra ele tenha passado um esegão ou um pano nas paredes, é muito difícil dar sumiço em todos os resíduos de sangue. Num piso de linóleo como este, por exemplo, eles se agarram à superfície porosa e o luminol os descobre”, eu disse a Vander. Wesley estava assombrado. “Quer dizer que, se daqui a dez anos a gente borrifar de novo este lugar, o sangue vai continuar aqui?” “A única maneira de eliminar a maior parte do sangue seria pintar tudo de novo, empapelar as paredes, dar novo acabamento ao assoalho e envernizar os móveis. Se você quiser ficar absolutamente livre de todos os resíduos, vai ter de demolir a casa e começar de novo.” Wesley olhou o relógio. “Já estamos aqui há três horas e meia.” “Sugiro fazer o seguinte”, falei. “Benton, você e eu podemos começar a fazer com que os quartos voltem ao seu caos habitual e deixamos você, Neils, fazendo o que é preciso fazer.” “Ótimo. Vou armar a Luma-Lite aqui e vamos bater na madeira para que ela consiga melhorar os pormenores das linhas das impressões digitais.” Voltamos à sala de visitas. Enquanto Vander transportava a Luma-Lite portátil e o equipamento fotográfico até o banheiro, Wesley e eu olhamos para o sofá, a velha TV e o assoalho empoeirado e arranhado, ambos um pouco ofuscados. Com as luzes acesas não havia o menor sinal do horror que víramos no escuro. Naquela ensolarada tarde de inverno tínhamos recuado no tempo e testemunhado o que Ronnie Joe Waddell havia feito. Wesley ficou imóvel junto à janela coberta de papel. “Tenho medo de sentar seja onde for, e de me encostar em toda e qualquer coisa. Meu Deus. Tem sangue em todo o diabo da casa.” Olhando em torno, visualizei as fulgurações brancas que vira no escuro, e meus olhos moveram-se lentamente do sofá, passando pelo assoalho, até a TV. As almofadas do sofá ainda estavam no chão, onde eu as deixara, e me agachei para ver melhor. Agora o sangue que embebera as costuras marrons já não era visível, nem as listras e borrões do encosto de couro. Um exame cuidadoso, porém, revelou algo que era importante mas não necessariamente surpreendente. Na lateral de uma das almofadas do assento que haviam sido empurradas para junto do encosto, encontrei um corte reto de no máximo dois centímetros de comprimento. “Benton, por acaso o Waddell era canhoto?” “Acho que era.”
“Acharam que ele a tinha esfaqueado e espancado no chão, perto da TV, por causa da quantidade de sangue que havia em volta do corpo, mas não. Ele a matou no sofá. Acho que preciso sair um pouco. Se este lugar não fosse uma cloaca, bem que eu ia ficar tentada a filar um cigarro do professor”, eu disse. “Faz muito tempo que você está se comportando bem. Um Camel sem filtro ia deixar você arrebentada. Vá tomar um pouco de ar esco. Eu começo a limpar aqui.” Saí da casa ao som do papel sendo arrancado das janelas.
Aquela noite deu início à mais estranha véspera de Ano-Novo de que eu, Benton Wesley e Lucy podemos nos lembrar. Eu não chegaria a dizer que o feriado foi igualmente esquisito para Neils Vander. Eu tinha falado com ele às sete da noite e ele ainda estava no laboratório, mas isso era bastante normal para um homem cuja razão de ser desapareceria caso se descobrisse que as impressões digitais de dois indivíduos eram idênticas. Vander editara as fitas de vídeo do local do crime num aparelho de videocassete e no fim da tarde me entregara as cópias. Wesley e eu tínhamos ficado postados diante de meu televisor durante todo o início da noite, tomando notas e fazendo diagramas enquanto analisávamos a fita minuciosamente. Lucy, enquanto isso, preparava o jantar e só de quando em quando vinha à sala de visitas dar uma espiada. As imagens cintilantes na tela escura não pareciam perturbá-la. Assim de relance um leigo não teria como saber o que significavam. Por volta das oito e meia, Wesley e eu tínhamos visto as fitas e completado nossas notas. Acreditávamos ter reconstituído o percurso do assassino de Robyn Naismith desde o momento em que ela entrou em casa até a saída de Waddell pela porta da cozinha. Era a primeira vez em minha carreira que eu trabalhava retrospectivamente no local de um homicídio resolvido havia anos. A história que emergiu, contudo, era importante por uma excelente razão. Demonstrava, pelo menos para nós, que o que Wesley me contara em Homestead estava correto. Ronnie Joe Waddell não tinha o perfil do monstro que andávamos perseguindo. As manchas, nódoas, respingos e gotas adormecidos que havíamos seguido eram a coisa mais próxima de um replay instantâneo que eu já vira na reconstituição de um crime. Embora os tribunais pudessem considerar simples opinião o que havíamos descoberto, não estávamos preocupados. O que importava era a personalidade de Waddell, e estávamos convencidos de havê-la captado. Como o sangue que havíamos encontrado em outras áreas da casa tinha claramente sido levado por Waddell em seus movimentos, era lícito dizer que sua agressão a Robyn Naismith ficara confinada à sala de visitas, onde ela morrera. As portas da ente e da cozinha eram equipadas com fechaduras de
segurança que só podiam ser abertas com chave. Como Waddell entrara na casa por uma janela e saíra pela porta da cozinha, supunha-se que, ao voltar da mercearia, Robyn entrara pela cozinha. Talvez ela não tivesse tido o cuidado de trancar a porta, porém o mais provável era que não tivesse tido tempo. Antes imaginara-se que Waddell estava saqueando a casa quando ouviu Robyn chegar e estacionar o carro. Nesse momento ele teria ido até a cozinha e pegado uma faca de carne do conjunto de aço inoxidável pendurado na parede. Quando ela abriu a porta, ele estava esperando. O mais provável é que ele tivesse simplesmente agarrado seu pulso, forçando-a a passar pelo arco que levava à sala de visitas. Talvez ele tenha falado com ela durante algum tempo. Talvez tenha pedido dinheiro. Pode ter passado apenas alguns momentos com ela antes que o confronto se tornasse físico. Quando Waddell dera o primeiro golpe com a faca, Robyn estava vestida e sentada ou caída na extremidade do sofá, perto do fícus. Os respingos de sangue que tinham aparecido no encosto do sofá, no vaso e no lambri escuro em torno condiziam com um esguicho arterial, causado quando uma artéria é cortada. As flutuações da pressão arterial fazem com que o padrão dos respingos resultantes lembre o traçado de um eletrocardiograma, e só os vivos têm pressão sanguínea. Sabíamos, assim, que Robyn estava viva e no sofá quando fora agredida pela primeira vez. Era, todavia, improvável que ainda respirasse quando Waddell tirou sua roupa. Exames posteriores revelaram apenas um corte de dois centímetros na ente da blusa manchada de sangue, no ponto onde a faca fora mergulhada no peito e movida para a ente e para trás, cortando completamente a aorta. Como ela foi esfaqueada muitas outras vezes, e mordida, era possível concluir que a maior parte do enético e perfurante ataque de Waddell contra ela ocorrera post mortem. Então, em certo sentido, aquele homem, que mais tarde alegaria não se lembrar de haver matado a “mulher da televisão”, acordou de repente. Largou o corpo dela e pensou melhor sobre o que fizera. A ausência de marcas de arrastamento perto do sofá sugeria que Waddell carregara o corpo do sofá para deitá-lo no chão do outro lado da sala e que em seguida o arrastara para sentá-lo e apoiá-lo na televisão. Depois teria começado a limpar a sala. As marcas circulares que brilhavam no assoalho, pensei, haviam sido deixadas por um balde que ele carregara pelo corredor para trás e para a ente, entre o corpo e a banheira. Toda vez que ele voltava à sala de visitas para enxugar o sangue com toalhas ou eventualmente examinar a vítima enquanto continuava a roubar seus bens e beber suas bebidas, voltava a sujar de sangue a sola dos sapatos. Isso explicava a profusão de pegadas errando peripateticamente pela casa. Seu comportamento revelava uma outra coisa. A conduta de Waddell depois do crime era incompatível com a de alguém que não sentisse remorso.
“Ali está ele, um menino da roça na cidade grande. Rouba para manter o vício da droga que está destruindo seu cérebro. Primeiro maconha, depois heroína, cocaína e finalmente PCP. E uma manhã ele cai em si de repente e se vê brutalizando o cadáver de uma estranha”, explicou Wesley. As toras de lenha se moviam entre as labaredas; Wesley e eu contemplávamos as grandes digitais brilhando, brancas como giz, na tela escura do televisor. “A polícia nunca encontrou vômito na privada nem ao redor dela”, eu disse. “Ele provavelmente limpou. Graças a Deus que não passou o pano na parede em cima do vaso. Você só se encosta assim numa parede se está vomitando abraçado à privada.” “As impressões estão bem acima da privada”, observei. “Acho que ele vomitou e quando se levantou ficou tonto, caiu para a ente e levantou as mãos bem a tempo de evitar que sua cabeça batesse na parede. O que você acha? Remorso, ou só estava detonado de tanta droga?” Wesley olhou para mim. “Vamos estudar o que ele fez com o corpo. Sentou-o com as costas apoiadas, tentou limpá-lo com as toalhas e deixou as roupas numa pilha mais ou menos arrumada no chão entre os tornozelos. Bem, podemos ver a coisa de duas maneiras. Ou ele estava exibindo o corpo com maldade e, assim, mostrando desprezo, ou estava agindo de um modo que indica desvelo. Pessoalmente, acho que é a última.” “E o modo como o corpo de Eddie Heath foi arrumado?” “Aí já é diferente. A posição do garoto lembra a posição de Robyn, parece refleti-la, mas falta uma coisa.” Assim que ele falou, entendi de repente o que era. “Uma imagem refletida”, falei, assombrada. “Um espelho reflete as coisas de trás para a frente ou invertidas.” O olhar dele estava estranho. “Você está lembrado de quando comparamos as fotografias de Robyn Naismith com o diagrama da posição do corpo de Eddie Heath?” “Lembro-me muito bem.” “Você disse que o que fora feito com o menino — desde as marcas de dentadas e o modo como o corpo estava apoiado contra um objeto cúbico até a pilha de roupas arrumada perto dele — era uma imagem refletida do que fora feito com Robyn. Mas as marcas de dentadas na parte interna da coxa e acima do seio de Robyn eram do lado esquerdo do corpo, enquanto as lesões de Eddie — o que acreditamos serem marcas extirpadas de mordidas — foram do lado direito. No ombro direito e no interior da coxa direita.” “É.” Wesley continuava com aquele olhar perplexo. “A fotografia com a qual a cena do Eddie mais se parece é a do corpo nu de Robyn apoiado contra o móvel grande da tv.” “É verdade.”
“Para mim, talvez o assassino do Eddie tenha visto a mesma fotografia da Robyn que nós vimos. Mas a perspectiva dele é baseada na esquerda e na direita de seu próprio corpo. E a direita dele seria a esquerda de Robyn, e a esquerda dele seria a direita dela, porque na fotografia ela está virada para quem olha.” “Esta não é uma hipótese agradável”, disse Wesley quando o telefone começou a tocar. “Tia Kay? É o senhor Vander”, gritou Lucy da cozinha. “Está confirmado”, disse Vander pelo telefone. “Foi Waddell quem deixou a impressão na casa de Jennifer Deighton?”, perguntei. “Não, é justamente isso. Está provado que não foi ele.”
12
Nos dias que se seguiram, contratei Nicholas Grueman, confiando-lhe meus registros financeiros e outras informações por ele solicitadas. O secretário de Saúde convocou-me a comparecer em seu gabinete para sugerir que eu pedisse exoneração e a imprensa não me deu trégua. Eu, porém, soube de muitas coisas que não sabia até uma semana antes. Quem morrera na cadeira elétrica em 13 de dezembro fora mesmo Ronnie Joe Waddell. Sua identidade, contudo, continuava viva e assolando a cidade. Até onde foi possível descobrir, antes da morte de Waddell seu número de IDE no Sida fora trocado pelo de outra pessoa. O número de IDE da outra pessoa fora então completamente eliminado da Central de Registros Criminais, ou CRC. Isso significava que havia à solta um criminoso violento que não precisava de luvas quando cometia seus crimes. Submetidas ao Sida, suas impressões digitais seriam dadas como pertencentes a um morto. Sabíamos que o nefando indivíduo deixara um rastro de penas e restos de tinta, mas não conseguimos imaginar quase nada sobre ele até o dia 3 de janeiro do novo ano. Naquela manhã o Richmond Times-Dispatch publicou um artigo plantado por nós a respeito das dispendiosas plumas de pato-do-norte e da atração que exerciam sobre os ladrões. À uma e catorze da tarde o policial Tom Lucero, chefe da investigação fictícia, recebeu o terceiro telefonema do dia. “Alô. Meu nome é Hilton Sullivan”, disse uma voz forte. “Em que posso servi-lo?”, indagou a voz profunda de Lucero. “É sobre esses casos que vocês estão investigando. As roupas e os troços de pluma de pato-do-norte que parece que fazem sucesso com os ladrões. Tinha um artigo sobre isso no jornal hoje de manhã. Dizia que você é o detetive encarregado.” “É verdade.” A voz subiu de tom. “Bom, fico puto com a polícia por ser tão burra. Dizia no jornal que desde o dia de Ação de Graças tinham roubado várias coisas de lojas, carros e casas na área metropolitana da Grande Richmond. Edredons, um saco de dormir, três jaquetas de esqui, blá-blá-blá, compreende? E o repórter citou uma porção de gente.” “E daí, senhor Sullivan?” “Bom, é claro que foi dos tiras que o repórter recebeu os nomes das vítimas. Em outras palavras, de você.” “A informação é pública.”
“Estou cagando para isso. Só quero saber como foi que você não mencionou esta vítima, eu? Você nem se lembra de meu nome, lembra?” “Desculpe, cavalheiro, mas não posso dizer que me lembre.” “Já sabia. Um filho da puta entra em meu apartamento e faz uma limpeza e os tiras não fazem nada a não ser espalhar um pó preto por todo lado — e isso num dia em que eu estava vestido de cashmere branca. Sou um de seus casos.” “Quando assaltaram seu apartamento?” “Você não se lembra? Fui eu que dei aquele esporro sobre um colete. Se não fosse por mim vocês nunca teriam ouvido falar de plumas de pato-do-norte! Quando contei ao tira que entre outras coisas meu colete tinha sido roubado e que tinha me custado quinhentos paus numa liquidação, sabe o que ele disse?” “Não faço ideia, cavalheiro.” “Disse: ‘Era acolchoado com quê, com cocaína?’. Aí eu disse: ‘Não, Sherlock, pluma de pato-do-norte’. Aí ele olhou em volta nervoso pra caralho e botou a mão no três-oitão. O babaca pensou que lá em casa tinha algum outro cara chamado pato-do-norte e que eu tinha chamado o tal cara, que ia puxar uma arma ou um troço assim. Aí eu saí e…”
Wesley desligou o gravador. Estávamos sentados na cozinha. Lucy estava de novo fazendo ginástica no clube. “O assalto de que esse Hilton Sullivan está falando foi realmente comunicado por ele no sábado, 11 de dezembro. Parece que ele tinha estado fora e, quando voltou para o apartamento na tarde daquele sábado, descobriu que tinha sido assaltado”, explicou Wesley. “Onde fica esse edifício?” “No centro, na Franklin oeste, um edifício velho de tijolos aparentes com apartamentos de cem mil para cima. Sullivan mora no térreo. O delinquente entrou por uma janela solta.” “Não tem sistema de alarme?” “Não.” “Roubaram o quê?” “Joias, dinheiro e um revólver 22. Claro que isso não quer dizer necessariamente que o revólver do Sullivan seja o que foi usado para matar Eddie Heath, Susan e Donahue. Mas acho que vamos descobrir que é, porque não há dúvida de que foi nosso homem quem fez o assalto.” “Conseguiram impressões digitais?” “Várias. Estava com o pessoal da polícia municipal, e você sabe o monte de trabalho que eles têm. No caso, as impressões foram processadas mas ficaram paradas. Pete foi buscar assim que Lucero recebeu o telefonema. Vander já as
passou pelo sistema. Obteve a identificação em exatamente três segundos.” “O Waddell de novo.” Wesley fez que sim com a cabeça. “Qual a distância do apartamento do Sullivan até a rua Spring?” “Dá para ir andando. Acho que já sabemos de onde o cara fugiu.” “Você está verificando os últimos caras que foram libertados?” “Claro. Mas não vamos encontrá-lo numa pilha de papéis na mesa de alguém. O diretor era cuidadoso demais com isso. Infelizmente também morreu. Acho que ele soltou esse preso na rua e a primeira coisa que o cara fez foi assaltar o apartamento e provavelmente arranjar um carro.” “E por que o Donahue ia soltar um preso?” “Minha teoria é que o diretor precisava de alguém para fazer algum trabalho sujo. Aí escolheu um preso e soltou a fera. Só que o Donahue cometeu um errinho tático. Escolheu o cara errado, porque a pessoa que praticou esses crimes não vai ser controlada por ninguém. Minha suspeita, Kay, é de que o Donahue jamais imaginou que alguém fosse morrer e se apavorou quando Jennifer Deighton apareceu morta.” “Vai ver que foi ele que telefonou para minha repartição e se identificou como John Deighton.” “Pode ser. A questão é que a intenção do Donahue era que a casa de Jennifer Deighton fosse saqueada porque alguém estava procurando alguma coisa — quem sabe a correspondência de Waddell. Mas roubar só não tem graça. Os bichinhos de estimação do diretor gostam de machucar.” Pensei nas marcas que havia visto no carpete da sala de visitas de Jennifer Deighton, nas lesões em seu pescoço e na impressão digital encontrada na cadeira de sua sala de jantar. “Ele pode tê-la sentado no meio da sala de visitas e ter ficado atrás com a arma no pescoço dela enquanto a interrogava.” “Pode ter feito isso para obrigá-la a dizer onde estavam as coisas. Mas estava sendo sádico. Forçá-la a abrir os presentes de Natal com certeza também foi sadismo”, disse Wesley. “Será que um cara assim ia ter o trabalho de fingir que a morte dela era suicídio, colocando o corpo no carro?”, perguntei. “Pode ser. O cara já esteve preso. Não quer ser agarrado e com certeza acha excitante ver quem consegue enganar. Extirpou as marcas de mordida do corpo de Eddie Heath. Se saqueou a casa de Jennifer Deighton, não deixou provas. A única prova que deixou no caso de Susan foram duas balas 22 e uma pena. Isso sem dizer que o cara alterou suas impressões digitais.” “Você acha que foi ideia dele?” “Provavelmente foi um negócio que o diretor arranjou, e trocar os registros com os do Waddell decerto foi só uma questão de conveniência. Waddell ia ser executado logo. Se eu quisesse trocar as impressões digitais de um preso
com alguém, ia escolher o Waddell. Ou as impressões digitais do preso aparecem como sendo as de um morto ou — e isso é mais provável — os registros do morto acabam sendo eliminados dos computadores da polícia estadual, de modo que se o nosso quebra-galho do diretor for relaxando e deixar impressões digitais em algum lugar não vai ser possível identificá-lo.” Fitei-o, aturdida. “E daí?” A surpresa lampejou em seus olhos. “Benton, você se dá conta do que está dizendo? Você está aqui sentado falando de registros de computador alterados antes da morte de Waddell. Estamos falando de um assalto e do assassinato de um jovem cometidos antes da morte de Waddell. Em outras palavras, o cupincha do diretor foi solto antes de o Waddell ser executado.” “Quanto a isso, acho que não pode haver dúvida.” “Então a ideia era que o Waddell ia morrer”, assinalei. Wesley baqueou. “Meu Deus. Como podia haver certeza? O governador poderia literalmente intervir no último minuto.” “Com certeza alguém sabia que o governador não ia intervir.” Ele concluiu o pensamento para mim: “E só quem podia saber disso com certeza era o governador”. Levantei-me e fiquei de pé diante da janela da cozinha. Um cardeal bicou sementes de girassol na caixinha e voou numa explosão vermelho-sangue. “Por quê? Por que o governador ia ter um interesse especial no Waddell?”, perguntei sem me voltar. “Não sei.” “Se isso é verdade, ele não deve querer que o assassino seja preso. Quando as pessoas são presas, falam.” Wesley estava em silêncio. “Nenhum dos envolvidos vai querer que essa pessoa seja presa. E nenhum envolvido vai querer me ver por perto. Será muito melhor eu pedir exoneração ou ser exonerada — se consideramos que já fizemos tudo o que é possível fazer para esclarecer esse mistério ‘oficialmente’. O Patterson é ligadíssimo ao Norring.” “Tem duas coisas que ainda não sabemos, Kay. Uma é o motivo. A outra é a agenda do assassino. Esse cara está fazendo o que gosta. Eddie Heath foi só o começo.” Virei-me e olhei para ele. “Acho que tudo começou com Robyn Naismith. Acredito que esse monstro estudou as fotografias do local do crime e, consciente ou inconscientemente, recriou uma delas quando agrediu Eddie Heath e apoiou o corpo dele contra um contêiner.” “Pode muito bem ser. Mas como um preso ia ter acesso às fotografias de Robyn Naismith? Na jaqueta de prisioneiro do Waddell é que elas não estariam”, disse Wesley, olhando para outro lado.
“Essa é outra coisa na qual Ben Stevens pode ter ajudado. Você está lembrado de que eu lhe disse que era ele quem apanhava as fotografias no arquivo? Ele pode ter mandado fazer cópias. A questão é: por que as fotografias eram importantes? Por que Donahue ou qualquer outra pessoa haveria de pedi-las?” “Porque o preso as queria. Quem sabe pediu. Quem sabe fossem um prêmio por serviços especiais.” “Que coisa asquerosa”, eu disse, tentando conter a raiva. Os olhos de Wesley encontraram os meus. “Exatamente. Isso nos leva novamente à agenda do assassino, a suas necessidades e seus desejos. Pode ser que ele tenha ouvido muito sobre o caso da Robyn Naismith. Talvez ele tivesse tido muito contato com o Waddell e ficasse excitado ao pensar no que o Waddell fizera com sua vítima. Nesse caso, as fotografias funcionariam como um excitante para uma pessoa com fantasias muito ativas e agressivas, voltadas para um pensamento violento, sexualizado. Não é absurdo supor que essa pessoa tivesse incorporado as fotografias — uma ou mais — a suas fantasias. E quando, de repente, ela é libertada e vê um garoto andando no escuro para um mercado, a fantasia torna-se real e ela age.” “Recriando a cena da morte de Robyn Naismith?” “É.” “Na sua opinião, qual é a fantasia dele agora?” “Ser caçado.” “Por nós?” “Por gente como nós. Desconfio que ele está convencido de que é mais esperto do que todo mundo e de que ninguém poderá pará-lo. Tem fantasiado sobre as brincadeiras que vai inventar e os assassinatos que pode cometer para reforçar essa imagem que cultiva. E para ele a fantasia não é um substituto da ação, mas uma preparação.” “Donahue não poderia ter maquinado a libertação de um monstro como esse alterando os registros e tudo o mais sem ajuda”, eu disse. “É verdade. Tenho certeza de que ele obteve a colaboração de pessoaschave, por exemplo na sede da polícia estadual, talvez um funcionário dos registros da cidade e mesmo alguém do FBI. As pessoas podem ser compradas quando você sabe alguma coisa delas. E podem ser compradas com dinheiro.” “Como a Susan.” “Não acho que Susan tenha sido uma pessoa-chave. Estou mais inclinado a achar que Ben Stevens sim, esse era. Está sempre pelos bares. Bebidas, festas. Você sabia que, quando pode, ele dá umas cheiradas socialmente?” “Nada mais me espanta.” “Um pessoal nosso anda fazendo umas perguntas. Seu administrador tem um estilo de vida que não tem meios para manter. E quem se mete com drogas acaba se metendo com gente da pesada. Os vícios de Stevens teriam
feito dele um alvo fácil para um filho da puta como Donahue. Provavelmente Donahue mandou um de seus capangas encontrar-se casualmente com Stevens num bar e, conversa vai, conversa vem, o cara oferece ao Stevens uma oportunidade para ganhar uma boa grana.” “Como, exatamente?” “O que eu imagino é que ele deveria tomar providências para que as impressões digitais do Waddell não fossem tiradas no necrotério e para que a fotografia da impressão digital de sangue desaparecesse do arquivo. Isso com certeza foi só o começo.” “E aí ele recrutou a Susan.” “Que não queria, mas tinha problemas financeiros graves.” “E quem você acha que estava pagando por tudo isso?” “Provavelmente os pagamentos passavam pela pessoa que tinha feito o contato original com o Stevens e que o puxou para isso. Um dos caras do Donahue, talvez um dos guardas dele.” Lembrei-me do guarda de nome Roberts, que havia guiado Marino e eu. Lembrei-me de como eram frios os seus olhos. “Admitindo que o contato fosse um guarda, com quem esse guarda estaria se encontrando? Susan ou Stevens?” “Meu palpite é que era com o Stevens. Stevens não ia confiar uma dinheirama a Susan. Ele ia querer tirar primeiro o dele, porque gente desonesta pensa que todo mundo é desonesto.” “Então ele encontra o cara e recebe o dinheiro, encontra a Susan e dá a parte dela?” “Por isso, provavelmente, é que o negócio foi programado para o dia de Natal, quando ela ia sair da casa dos pais afirmando que ia visitar uma amiga. Ia encontrar o Stevens, mas o assassino chegou primeiro.” Pensei na colônia cujo aroma sentira na gola e no lenço de Susan e lembrei-me da atitude de Stevens quando o enentei em sua sala na noite em que estava examinando sua mesa. “Não, não foi assim.” Wesley limitou-se a olhar para mim. “Stevens tem muitas características que explicariam o que aconteceu com a Susan. Só pensa em si mesmo. E é covarde. Quando as coisas esquentam ele se encolhe. Seu primeiro impulso é deixar que outra pessoa se dê mal no lugar dele.” “Como anda fazendo no seu caso, injuriando você e furtando documentos.” “Bom exemplo”, eu disse. “Susan depositou os três mil e quinhentos dólares no começo de dezembro, umas semanas antes da morte de Jennifer Deighton.” “Certo.” “Muito bem, Kay. Vamos voltar um pouco mais. Susan ou Stevens ou os
dois tentaram entrar em seu computador dias antes da execução do Waddell. Ocorreu-nos que estavam procurando alguma coisa no relatório de autópsia que Susan não pôde observar diretamente durante o procedimento.” “O envelope que ele queria que fosse enterrado com ele.” “Ainda estou intrigado com isso. Os códigos dos recibos não confirmam o que tínhamos imaginado antes — que os restaurantes e pedágios estavam localizados entre Richmond e Mecklemburg e que os recibos eram do transporte que trouxe Waddell de Mecklemburg para Richmond quinze dias antes da execução. Embora os recibos sejam dessa época, os lugares não combinam. Os códigos são do trecho I-95, entre aqui e Petersburg.” “Sabe de uma coisa, Benton? Pode ser que a explicação para os recibos seja tão simples que a gente nem tenha pensado.” “Sou todo ouvidos.” “Toda vez que você faz uma viagem de serviço para o FBI, calculo que siga a mesma rotina que eu quando viajo para o governo do estado. Documenta todas as despesas e guarda todos os recibos. Se viaja muito, tem a tendência de juntar diversas viagens num pedido de reembolso, só para diminuir a papelada. Enquanto isso, guarda os recibos em algum lugar.” “Tudo isso faz sentido para explicar os recibos. Alguém do pessoal da prisão, por exemplo, teve de ir a Petersburg. Mas como os recibos foram parar no bolso de trás de Waddell?” Pensei no envelope com seu pedido incisivo para que acompanhasse Waddell no túmulo. Aí me lembrei de um pormenor tão pungente quanto trivial. A mãe de Waddell fora autorizada a visitá-lo por duas horas na tarde da execução. “Benton, você conversou com a mãe de Ronnie Waddell?” “Pete foi vê-la em Suffolk há vários dias. Ela não tem muita simpatia por gente como nós e não quer colaborar muito. Aos olhos dela nós somos os caras que mandaram o filho dela para a cadeira elétrica.” “Quer dizer que ela não revelou nada importante sobre a atitude do Waddell quando ela o visitou, na tarde da execução?” “Pelo pouco que disse, ele estava muito silencioso e amedrontado. Há, porém, um ponto interessante. Pete perguntou a ela o que acontecera com os objetos pessoais do Waddell. Ela disse que o Departamento de Correção tinha entregado o relógio e o anel, e explicado que ele havia dado os livros, as poesias e as outras coisas à Associação Nacional pelo Progresso das Pessoas de Cor.” “Ela acreditou?” “Acreditou. Parece que achava que fazia sentido o Waddell fazer aquilo.” “Por quê?” “Ela não sabe ler nem escrever. O importante é que mentiram para ela, como mentiram para nós quando Vander tentou encontrar objetos pessoais
na esperança de achar impressões latentes. E o Donahue com certeza está por trás dessas mentiras.” “Waddell sabia de alguma coisa. Para o Donahue andar atrás de todo e qualquer pedacinho de papel que o Waddell tivesse escrito e todas as cartas mandadas para ele, deve haver alguma coisa que o Waddell sabia e que certas pessoas queriam que ninguém mais soubesse.” Wesley estava calado. Depois disse: “Como você disse que era o nome da água-de-colônia que o Stevens usa?”. “Red.” “E você tem certeza de que foi essa colônia que você sentiu na gola e no lenço de Susan?” “Eu não afirmaria em juízo, mas é uma fragrância marcante.” “Acho que está na hora de Pete e eu termos uma reuniãozinha de orações com seu administrador.” “Ótimo. E acho que eu posso deixá-lo no estado de espírito apropriado se vocês me derem tempo até amanhã ao meio-dia.” “O que você vai fazer?” “Provavelmente vou deixá-lo bem nervoso.” No começo daquela noite eu estava trabalhando na mesa da cozinha quando ouvi Lucy entrar na garagem e me levantei para recebê-la. Estava vestida com um agasalho azul-marinho e uma das minhas jaquetas e carregava uma mochila esportiva. “Estou suja”, disse, afastando-se do meu beijo, mas não antes que eu sentisse o cheiro de pólvora em seu cabelo. Examinando-lhe as mãos, encontrei na direita resíduos de disparos suficientes para deixar encantado um perito. “Espere aí, onde está ela?”, eu disse quando Lucy começou a se afastar. “Onde está o quê?” “A arma.” Com relutância, ela tirou do bolso meu Smith e Wesson. “Não sabia que você tinha licença de porte de arma”, eu disse, tomando-lhe o revólver e certificando-me de que não estava carregado. “Não preciso, se estou com a arma em casa. Antes disso ela estava no carro e bem à vista.” “Está certo, mas eu preciso lhe fazer uma pergunta. Venha cá”, disse eu calmamente. Sem uma palavra, ela me seguiu até a mesa da cozinha e nos sentamos. “Você disse que ia fazer exercício em Westwood.” “Sei que disse isso.” “Onde você esteve, Lucy?” “Na linha de tiro da estrada Midlothian. É um lugar fechado.” “Eu sei o que é. Quantas vezes você já fez isso?”
“Quatro vezes.” Olhava-me nos olhos. “Deus do céu, Lucy.” “E o que devo fazer? Pete não vai mais me ensinar.” “O tenente Marino está muito, muito ocupado agora”, disse, e a observação pareceu tão condescendente que fiquei sem graça. “Você está a par dos problemas”, acrescentei. “Claro que estou. Agora ele tem de ficar afastado de você. E, se fica afastado de você, fica afastado de mim. Ele está correndo as ruas porque tem algum maníaco à solta que anda matando gente como a superintendente do necrotério e o diretor da prisão. Pelo menos o Pete sabe cuidar de si. E eu? Tive uma aula de tiro, uma única. Puxa, muito obrigada. É como me dar uma aula de tênis e me inscrever em Wimbledon.” “Você está exagerando.” “Não. O problema é que você está minimizando.” “Lucy…” “Como você ia se sentir se eu lhe dissesse que toda vez que venho visitar você não paro de pensar naquela noite?” Eu sabia perfeitamente a que noite ela estava se referindo, embora com o passar dos anos houvéssemos conseguido seguir em ente como se nada tivesse acontecido. “Eu não me sentiria bem se soubesse que uma coisa relacionada comigo perturba você”, eu disse. “Uma coisa? O que aconteceu foi só uma coisa?” “Claro que não foi uma coisa qualquer.” “Às vezes acordo de noite porque imagino que uma arma acabou de disparar. Aí ouço o silêncio medonho e me lembro de ter ficado ali deitada, olhando para o escuro, tão apavorada que não conseguia me mexer, e acabei fazendo xixi na cama. Depois vieram as sirenes, as luzes vermelhas piscando, e os vizinhos aparecendo nas portas e olhando pelas janelas. E você não me deixou ver quando o levaram, nem me deixou ir lá em cima. Gostaria de ter ido, porque imaginar foi pior.” “Aquele homem morreu, Lucy. Já não pode fazer mal a ninguém.” “Há outros iguais, talvez piores do que ele.” “Não vou dizer que não há.” “E o que você está fazendo a esse respeito?” “Emprego todo o meu tempo catando os pedaços das vidas destruídas por pessoas ruins. O que mais você queria que eu fizesse?” “Se você deixar que alguma coisa lhe aconteça, vou ficar com ódio de você.” “Se alguma coisa me acontecer, acho que já não vai ter importância que alguém me odeie. Mas eu não gostaria que você odiasse ninguém, pelo mal que isso lhe faria.” “Pois vou odiar você. Juro.” “Quero que você me prometa, Lucy, que não vai mais mentir para mim.”
Ela não disse uma única palavra. “Não quero que você imagine que precisa esconder alguma coisa de mim.” “Se eu dissesse que queria ir à linha de tiro, você ia deixar?” “Só com o tenente Marino ou comigo.” “Tia Kay, e se o Pete não conseguir agarrá-lo?” “O tenente Marino não é a única pessoa trabalhando no caso”, eu disse sem responder à pergunta, porque não sabia a resposta. “Está aí, tenho pena do Pete.” “Por quê?” “Ele tem de pegar essa pessoa e não pode nem falar com você.” “Acho que ele está recebendo as coisas bem. Ele é um profissional, Lucy.” “Não é bem isso o que diz Michele.” Olhei-a de relance. “Estive conversando com ela esta manhã. Ela disse que o Pete foi à casa dela no outro dia de noite para falar com o pai dela. Disse que o Pete está que mete medo, com a cara vermelha como um carro de bombeiros e um mau humor horrível. O senhor Wesley tentou fazer com que ele fosse ao médico ou tirasse uns dias de licença, mas não conseguiu.” Fiquei arrasada. Queria telefonar imediatamente para Marino, mas sabia que não seria sensato. Mudei de assunto. “Sobre o que mais você e Michele conversaram? Alguma novidade com os computadores da polícia estadual?” “Nada de bom. Fizemos tudo o que conseguimos inventar para descobrir com quem o número de IDE do Waddell foi trocado. Mas todos os registros referentes à supressão já foram eliminados há muito tempo do disco rígido. E o responsável pela alteração foi rápido o bastante para fazer um backup completo do sistema depois da mudança dos registros, de modo que a gente não pode rodar os números de IDE por uma versão anterior da CRC e ver o que aparece. Geralmente você tem um backup de pelo menos três ou seis meses atrás. Mas nesse caso não.” “Parece coisa de gente de dentro.” Pensei em como era natural estar em casa com Lucy. Ela já não era uma visita ou uma garotinha irascível. “Precisamos telefonar para sua mãe e vovó.” “Tem de ser hoje?” “Não. Mas temos de combinar sua volta para Miami.” “As aulas só começam no dia 7, e se eu perder os primeiros dias não vai fazer diferença.” “O colégio é muito importante.” “Também é fácil demais.” “Então você tem que fazer alguma coisa por iniciativa própria para torná-lo mais difícil.” “Se eu faltar vai ficar mais difícil.”
Na manhã seguinte, telefonei para Rose às oito e meia, e fui informada de que, do outro lado do corredor, estava havendo uma reunião do pessoal, o que significava que Ben Stevens estava ocupado e não saberia que eu estava na linha. “Como vão as coisas?”, perguntei a minha secretária. “Terríveis. O doutor Wyatt não conseguiu vir do escritório de Roanoke porque estão com neve nas montanhas e as estradas estão ruins. Com isso o Fielding ontem teve quatro casos, sem ninguém para ajudá-lo. Ainda por cima tinha de ir ao foro e aí foi chamado para uma perícia. Você falou com ele?” “A gente entra em contato quando o coitado tiver um tempinho para telefonar. Esta é uma boa ocasião para procurarmos alguns de nossos antigos estagiários e ver se um deles poderia vir até aqui dar uma mão por uns tempos. Jansen está clinicando em Charlottesville. Você quer tentar e ver se ele pode me telefonar?” “Claro. Boa ideia.” “E me conte do Stevens.” “Ele não tem estado muito aqui. Anota as saídas de um jeito tão abreviado e vago que ninguém sabe direito aonde vai. Estou com o palpite de que está procurando outro emprego.” “Lembre a ele para não me pedir uma carta de recomendação.” “Eu preferiria que você desse uma bem boa para ver se ele nos dava um tempo.” “Preciso que você telefone para o laboratório de DNA e peça a Donna para me fazer um favor. Ela deve ter um pedido do laboratório solicitando a análise do tecido fetal no caso da Susan.” Rose ficou calada. Percebi que estava ficando aborrecida. “Lamento tocar no assunto”, eu disse gentilmente. Ela respirou fundo. “Quando você pediu a análise?” “Na verdade a requisição foi feita pelo doutor Wright, pois foi ele quem fez a autópsia. Ele deve ter a cópia do laudo no escritório de Norfolk, junto com o processo.” “Você não quer que eu telefone para Norfolk e peça para eles fazerem uma cópia para nós?” “Não. Não temos muito tempo e não quero que ninguém fique sabendo que pedi a cópia. Quero que pareça que nossa repartição recebeu a cópia sem querer. Por isso é que quero que você trate diretamente com a Donna. Peça a ela para apanhar o laudo imediatamente, e quero que você mesma vá lá buscá-lo.” “E depois?” “Depois você põe na caixa de entrada, onde todas as outras cópias de requisições e laudos de laboratório são deixados para distribuição.”
“Você tem certeza?” “Absoluta.” Desliguei e peguei um catálogo telefônico, que estava consultando quando Lucy entrou na cozinha. Vinha descalça e ainda vestia a malha com que dormira. Dirigiu-me um bom-dia trôpego e começou a vasculhar a geladeira enquanto eu corria o dedo por uma coluna de nomes. Havia talvez uns quarenta Grimes, mas nenhuma Helen. Claro que quando se referira à guarda como Helen, a Huna, Marino estava sendo irônico. Talvez Helen nem fosse o verdadeiro nome dela. Reparei que havia três assinantes com o nome H., duas vezes como primeiro nome e uma como nome do meio. “O que você está fazendo?”, perguntou Lucy, pondo um copo de suco de laranja na mesa e puxando uma cadeira. “Estou tentando localizar uma pessoa”, eu disse, apanhando o telefone. Não tive sorte com os Grimes a quem telefonei. “Quem sabe ela é casada?”, sugeriu Lucy. “Acho que não.” Liguei para o serviço de auxílio à lista e obtive o número da nova penitenciária, em Greensville. “Por que você acha que não?” “Intuição.” Disquei. “Estou tentando falar com Helen Grimes”, disse à mulher que atendeu. “É uma presa?” “Não. É uma das guardas.” “Um momento, por favor.” Transferiram a ligação. “Watkins”, resmungou uma voz masculina. “Helen Grimes, por favor.” “Quem?” “A policial Helen Grimes.” “Ah, ela não trabalha mais aqui.” “O senhor podia me dizer onde eu posso encontrá-la, senhor Watkins? É muito importante.” “Espere um momento.” O telefone bateu na madeira. Ouvia-se Randy Travis cantando ao fundo. O homem voltou minutos depois. “Não podemos dar esse tipo de informação, minha senhora.” “Está bem, senhor Watkins. Se o senhor me der seu primeiro nome eu mando tudo isto aqui para o senhor e o senhor manda para ela.” Pausa. “Tudo o quê?” “Esta encomenda dela. Eu estou telefonando para saber se ela queria que fosse por via aérea ou por terra.” “Que encomenda?” Ele não parecia muito satisfeito.
“A coleção de enciclopédias que ela comprou. São seis caixas de oito quilos cada.” “Não, a senhora não pode enviar nenhuma enciclopédia para cá.” “Então o que o senhor sugere, senhor Watkins? Ela já pagou a entrada e o endereço comercial que ela deu é o daí.” “Hummm. Espere um pouco.” Ouvi um barulho de papel, depois o de teclas. “Olhe. O máximo que eu posso fazer é dar à senhora uma caixa postal. A senhora manda o negócio para lá. Não mande nada para mim”, disse o homem depressa. Deu-me o endereço e bateu o telefone. A caixa postal onde Helen Grimes recebia sua correspondência era no condado de Goochland. Telefonei imediatamente para um oficial de Justiça que conhecia em Goochland. Em uma hora ele encontrou nos registros do condado o endereço residencial de Helen Grimes, mas o número do telefone não constava do catálogo. Às onze da manhã apanhei a pasta e o casaco e fui falar com Lucy no escritório. “Vou ter de sair por algumas horas.” “Você mentiu para a pessoa com quem estava falando ao telefone. Você não tem nenhuma enciclopédia para entregar para ninguém.” Ela fitou a tela do computador. “É isso mesmo. Menti sim.” “Então às vezes é certo mentir, às vezes não é.” “Nunca é realmente certo, Lucy.” Deixei-a em minha cadeira, com as luzes do modem piscando e vários manuais de informática abertos e espalhados sobre a mesa e pelo chão. Na tela, o cursor pulsava rapidamente. Esperei até estar fora de sua vista para enfiar o Ruger na pasta. Embora autorizada a portar uma arma raramente o fazia. Liguei o alarme, saí de casa pela garagem e tomei a direção oeste até que, da rua Cary, desemboquei na estrada do Rio. O céu marmóreo exibia tons de cinza. Nicholas Grueman telefonaria a qualquer momento. Nos registros que eu lhe dera, havia uma bomba fazendo tique-taque silenciosamente, e eu não estava ansiosa para ouvir o que ele teria a dizer. Helen Grimes morava numa rua lamacenta a oeste do restaurante Polo Norte, do lado de uma chácara. Sua casa parecia um pequeno celeiro, com poucas árvores no terreninho e jardineiras com talos mortos que imaginei tivessem algum dia sido gerânios. Na ente não havia placa que informasse quem vivia lá, mas o velho Chrysler estacionado perto da entrada anunciava que alguém morava ali. Quando Helen Grimes abriu a porta, percebi por sua expressão perplexa que para ela eu era tão estranha quanto meu automóvel alemão. Vestindo jeans e uma camisa de brim para fora das calças, ela plantou as mãos nos quadris alentados e não se moveu da porta. Não parecia se incomodar com o
io e permaneceu inalterada sem saber quem eu era, e só quando mencionei minha visita à penitenciária o reconhecimento iluminou seus olhinhos inquisitivos. O rosto estava congestionado, e tive medo de que me batesse. “Quem lhe disse onde eu morava?” “Seu endereço está nos registros do condado de Goochland.” “A senhora não devia tê-lo procurado. A senhora ia gostar se eu saísse atrás do endereço de sua casa?” “Se precisasse de minha ajuda tanto quanto eu preciso da sua, eu não ia me importar, Helen.” Ela se limitou a olhar para mim. Notei que o cabelo estava molhado e uma orelha estava manchada de tintura preta. “O homem para quem você trabalhava foi assassinado. Uma pessoa que trabalhava para mim foi assassinada. E há outros. Tenho certeza de que você está mais ou menos a par do que vem acontecendo. Há razões para suspeitar que a pessoa que está fazendo isso é um antigo interno da rua Spring — alguém que foi libertado, talvez na época em que Ronnie Joe Waddell foi executado.” “Não sei nada sobre ninguém sendo libertado.” Seus olhos deram um salto para a rua às minhas costas. “Você saberia alguma coisa sobre o desaparecimento de um preso? Alguém, talvez, que não tenha sido libertado legalmente? Parece que, com o cargo que você tinha, saberia quem entrava na penitenciária e quem saía.” “Ninguém desapareceu que eu soubesse.” “Por que você não trabalha mais lá?” “Razões de saúde.” Ouvi o que parecia a porta de um armário fechando-se em algum ponto do espaço que ela protegia. Continuei tentando. “Você se lembra de quando a mãe do Ronnie Waddell foi à penitenciária para visitá-lo na tarde da execução?” “Eu estava lá quando ela foi.” “Você deve tê-la revistado, bem como qualquer objeto que ela levasse consigo. Estou certa?” “Sim.” “O que estou tentando saber é se a senhora Waddell levou alguma coisa para dar ao filho. Sei que as regras de visita proíbem as pessoas de levarem coisas para os internos.” “Pode haver uma autorização. Ela recebeu.” “A senhora Waddell teve autorização para dar alguma coisa ao filho?” “Helen, você está deixando todo o calor sair”, disse uma voz suave atrás dela. De repente, no espaço entre o carnudo ombro de Helen Grimes e a moldura da porta, olhos azuis intensos fixaram-me como uma mira de arma.
Apreendi de relance uma face pálida e um nariz aquilino, antes que a esta tornasse a ficar vazia. A fechadura gemeu e a porta se fechou mansamente atrás das costas da antiga guarda penitenciária. Ela se encostou ali, fitandome. Repeti minha pergunta. “Ela levou uma coisa para o Ronnie, uma coisinha de nada. Liguei para o diretor pedindo autorização.” “Você telefonou para o Frank Donahue?” Ela balançou a cabeça. “E ele deu a autorização?” “Como eu disse, não era grande coisa o que ela levou para ele.” “O que era, Helen?” “Uma figura de Jesus mais ou menos do tamanho de um cartão-postal, com uma coisa escrita atrás. Não me lembro exatamente. Uma coisa como ‘Estarei com você no paraíso’, só que a ortografia estava errada. ‘Paraíso’ estava escrito como ‘para isso’, separado e tudo”, disse Helen Grimes sem a sombra de um sorriso. “Só? Era isso o que ela queria dar ao filho antes que ele morresse?” Com as primeiras gotas de chuva escorrendo lentamente do céu e deixando na mureta de cimento marcas do tamanho de um níquel, ela pôs a mão na maçaneta. “Já disse que era. Agora tenho de entrar e não quero que a senhora volte aqui.”
Quando, mais tarde, Wesley chegou à minha casa, exibia uma jaqueta de piloto de couro preto, um boné azul-escuro e um meio sorriso. “O que está acontecendo?”, perguntei, enquanto nos retirávamos para a cozinha, que àquela altura havia se tornado um lugar tão usual para as nossas conversas que ele sempre se sentava na mesma cadeira. “Não dobramos o Stevens, mas acho que abrimos nele uma brecha bem grande. O que funcionou foi você ter mandado deixar a requisição para o laboratório num lugar onde ele iria encontrá-la. Ele tem boas razões para temer os resultados de um exame de DNA feito no tecido fetal no caso de Susan Story.” “Ele e Susan estavam tendo um caso”, eu disse, e era estranho eu não fazer reparos à moralidade de Susan. O que me desapontava era o gosto dela. “Stevens admitiu o caso e negou todo o resto.” “Como por exemplo ter alguma ideia sobre como Susan teria obtido três mil e quinhentos dólares?” “Ele nega saber o que quer que seja sobre o assunto. Mas ainda não terminamos com ele. Um informante do Marino disse que viu um jipe preto com uma placa diferente na região onde Susan foi alvejada e mais ou menos na hora em que achamos que a coisa aconteceu. Ben Stevens anda com um jipe preto com a placa ‘I 4 me’.”
“Não foi Stevens quem a matou, Benton.” “Não, ele não matou. Acho que o que aconteceu foi que o Stevens ficou apavorado quando a pessoa com quem ele estava fazendo negócio quis informações sobre o caso de Jennifer Deighton.” “A conclusão seria clara, Stevens sabia que Jennifer Deighton fora assassinada”, concordei. “E covarde como ele é, decide que quando chegasse a hora de receber o pagamento seguinte Susan ia tratar do assunto. Ele se encontraria com ela depois para pegar a parte dele.” “E àquela altura ela já tinha sido morta.” Wesley fez que sim com a cabeça. “Acho que a pessoa enviada para encontrá-la deu um tiro nela e ficou com o dinheiro. Mais tarde — alguns minutos mais tarde, talvez — Stevens apareceu no lugar combinado, a travessa que sai da rua Strawberry.” “O que você está descrevendo condiz com a posição dela no carro. Para dar um tiro em sua nuca, o agressor deve tê-la empurrado para a ente. Mas, quando ela foi encontrada, estava recostada no assento.” “Stevens mexeu nela.” “Quando chegou perto do carro, não viu logo o que havia de errado com ela. Se estava caída sobre o volante, ele não podia ver o rosto dela. Então ele a recostou no assento.” “Saiu correndo feito um louco.” “E, se tivesse posto água-de-colônia antes de ir encontrá-la, teria colônia nas mãos. Ao recostá-la no assento, as mãos dele entraram em contato com o casaco dela — provavelmente na região do ombro. Foi esse cheiro que senti no local.” “Vamos acabar por dobrá-lo.” “Há coisas mais importantes para fazer, Benton”, eu disse, e contei-lhe sobre minha visita a Helen Grimes e o que ela dissera sobre a última visita da sra. Waddell ao filho. “Minha teoria é que Ronnie Waddell queria que a figura de Jesus fosse enterrada com ele e que talvez fosse esse seu último pedido. Ele guarda a estampa num envelope e escreve nele: ‘Urgente, muito confidencial’, e assim por diante”, continuei. “Não podia ter feito isso sem autorização de Donahue. De acordo com o regulamento, o último pedido do preso tem de ser comunicado ao diretor.” “Isso mesmo. Não sabemos o que haviam dito ao Donahue, mas ele certamente estaria paranoico demais para deixar o corpo de Waddell sair de lá com um envelope fechado no bolso. E o que ele faz? Defere o pedido de Waddell e acha uma maneira de ver o que há dentro do envelope. Decide fazer uma troca de envelopes depois da morte de Waddell e instrui um de seus capangas para cuidar disso. E é aí que os recibos entram em cena.”
“Eu estava esperando você chegar a esse ponto”, disse Wesley. “Acho que a pessoa cometeu um errinho. Digamos que essa pessoa tivesse na mesa um envelope branco com recibos de uma viagem recente a Petersburg. Digamos que ela pegasse outro envelope branco, pusesse um negócio qualquer dentro e em cima escrevesse o que Waddell tinha escrito no envelope que queria que fosse enterrado com ele.” “Só que o guarda escreve no envelope errado.” “É. Escreve no que tem os recibos.” “E só vai descobrir mais tarde, quando foi procurar os recibos e encontrou dentro do envelope o tal negócio que não queria dizer nada.” “Exatamente. E é aí que entra a Susan. Se eu fosse o guarda que cometeu esse erro, ficaria muito preocupado. Para mim a pergunta crucial seria se algum dos peritos tinha aberto o envelope no necrotério, ou se o envelope havia sido deixado fechado. Se eu, quer dizer, o guarda, por acaso fosse também o contato do Ben Stevens, a pessoa que transportava a grana para garantir que no necrotério não tirassem as impressões digitais do Waddell, então eu ia saber exatamente com quem falar.” “Você entraria em contato com Stevens e diria a ele para ver se o envelope tinha sido aberto. E, em caso positivo, indagaria se o conteúdo deixara alguém desconfiado ou com a intenção de sair por aí fazendo perguntas. Isso se chama tropeçar na paranoia e acabar com muito mais problemas do que você teria tido se não se apavorasse. Mas você vai e imagina que o Stevens podia facilmente responder à pergunta.” “Nem tanto”, eu disse. “Ele podia perguntar à Susan, mas ela não testemunhara a abertura do envelope. Fielding abriu-o lá em cima, tirou uma fotocópia do conteúdo e mandou o original embora, com os outros objetos pessoais do Waddell.” “Stevens não poderia ter pegado o processo e olhado a fotocópia?” “Só se ele quebrasse a fechadura de minha credência”, eu disse. “Então na cabeça dele a única alternativa era o computador.” “Ou perguntar ao Fielding ou a mim. Só que ele não ia se arriscar. Nenhum de nós ia divulgar um pormenor confidencial como esse a ele, a Susan ou a qualquer outra pessoa.” “Ele entende o bastante de computadores para entrar em seu diretório?” “Que eu saiba não, mas Susan tinha feito muitos cursos e tinha livros de Unix na sala dela.” O telefone tocou, e deixei que Lucy atendesse. Quando ela entrou na cozinha, seus olhos estavam inquietos. “É seu advogado, tia Kay.” Aproximou de mim o telefone da cozinha, que peguei sem me mexer da cadeira. Nicholas Grueman não perdeu tempo com cumprimentos, indo direto ao assunto.
“Doutora Scarpetta, no dia 12 de novembro a senhora preencheu um cheque de conta remunerada no valor de dez mil dólares ao portador. E nos seus extratos bancários não encontro nenhum registro de que esse cheque tenha sido depositado em nenhuma de suas várias contas.” “Não depositei o dinheiro.” “A senhora saiu do banco com dez mil dólares em dinheiro?” “Não, não saí. Preenchi o cheque no Banco Signet, no centro, e com ele comprei um cheque em libras esterlinas.” “E esse cheque foi a favor de quem?”, perguntou meu antigo professor enquanto Benton Wesley me fitava com ansiedade. “Doutor Grueman, a transação era de natureza privada e nada tem a ver com minha profissão.” “Espere aí, doutora Scarpetta. A senhora sabe que isso não basta.” Respirei fundo. “A senhora certamente sabe que vão nos perguntar sobre isso. Com certeza a senhora se dá conta de que não vai pegar bem que, poucas semanas depois de sua assistente no necrotério depositar uma quantia considerável, a senhora tenha emitido um cheque de uma quantia considerável.” Fechei os olhos e passei os dedos pelo cabelo enquanto Wesley se levantava da mesa e dava a volta por trás de mim. “Kay”, senti as mãos de Wesley em meus ombros, “pelo amor de Deus, você tem de contar a ele.”
13
Se Grueman jamais tivesse sido um advogado militante, eu não lhe teria confiado meus interesses. Antes de ensinar, porém, ele havia sido um advogado de renome no foro, trabalhara na área dos direitos civis e processara, representando o Ministério da Justiça, no tempo de Robert Kennedy, o crime organizado. Agora representava clientes sem dinheiro condenados à morte. Eu reconhecia a seriedade de Grueman e precisava de seu cinismo. Ele não estava interessado em tentar negociar ou em proclamar minha inocência. Recusava-se a apresentar a prova mais ínfima a Marino ou a qualquer outro. Não falou a ninguém do cheque de dez mil dólares que, dizia, era a pior prova que havia contra mim. Lembrei-me do que ensinara a seus alunos no primeiro dia de direito penal: Diga não. Diga não. Diga não. Meu antigo professor seguia essas regras ao pé da letra e ustrava todos os esforços de Roy Patterson. Depois, na quinta-feira, 6 de janeiro, Patterson telefonou para minha casa e me pediu que fosse falar com ele em seu escritório, no centro. “Estou certo de que podemos esclarecer isso tudo. Só preciso lhe perguntar umas coisas”, disse amistosamente. A inferência era que, se eu colaborasse, ele poderia evitar o pior. O que me impressionava era que, mesmo por um momento, Patterson imaginasse que aquela manobra cediça pudesse funcionar comigo. Quando o procurador-geral da Justiça do Estado quer conversar, é porque na realidade quer descobrir coisas, e não tem a menor intenção de fazer vista grossa para nada do que descobrir. A polícia também. Usando o sistema Grueman, eu disse a Patterson que não iria e na manhã seguinte fui intimada a comparecer diante do grande júri especial em 30 de janeiro. Isso foi seguido por uma intimação para que meu sigilo bancário fosse quebrado. Primeiro Grueman invocou a 5a emenda, depois requereu a renovação da intimação. Uma semana mais tarde não tivemos remédio senão obedecer, caso eu não quisesse ser processada por desacato. Mais ou menos na mesma época, o governador Norring designou Fielding médico-legista chefe interino da Virgínia. “Olhe outro furgão da TV.Vi passar agora mesmo”, disse Lucy da sala de jantar, onde estava olhando pela janela. Da cozinha, chamei-a: “Venha almoçar. Sua sopa está esiando”. Silêncio. E em seguida: “Tia Kay?”. Ela parecia agitada. “Que é?”
“Você não imagina quem está estacionando.” Da janela sobre a pia avistei o Ford LTD branco estacionando na entrada. A porta do motorista se abriu e Marino desceu. Puxou as calças e arrumou a gravata, com os olhos registrando tudo à sua volta. Vendo-o subir a calçada em direção a minha porta fiquei tão profundamente tocada que me assustei. “Não sei se devo ou não ficar alegre pelo fato de ver você”, eu disse quando abri a porta. “Não se preocupe, doutora. Não estou aqui para prendê-la.” “Entre, por favor.” “Oi, Pete”, disse Lucy alegremente. “Você não devia estar na escola ou coisa assim?” “Não.” “Por quê? Lá na América do Sul as férias são em janeiro?” “São. Por causa do mau tempo. Quando a temperatura cai abaixo de vinte graus, tudo fecha.” Marino sorriu. Seu aspecto estava péssimo. Momentos mais tarde eu acendi o fogo na sala de visitas e Lucy saiu para fazer compras. “Como você tem andado?”, perguntei. “Você vai me obrigar a fumar lá fora?” Empurrei um cinzeiro para perto dele. “Marino, você está com bolsas debaixo dos olhos, seu rosto está vermelho e aqui não está tão quente para você transpirar desse jeito.” “Estou vendo que você sentiu minha falta.” Do bolso de trás tirou um lenço amassado e enxugou a testa. Depois acendeu um cigarro e olhou o fogo. “O Patterson está sendo um sacana, doutora. Quer esfolar você.” “Deixe-o tentar.” “Ele vai tentar, e é melhor você ficar preparada.” “Ele não tem do que me acusar, Marino.” “Tem uma impressão digital encontrada em um envelope na casa da Susan.” “Isso eu posso explicar.” “Mas não pode provar, e ele ainda tem um trunfo. Juro que não devia lhe contar isso, mas vou contar.” “Que trunfo?” “Você está lembrada do Tom Lucero?” “Sei quem é. Conhecer, não conheço.” “Bem, ele pode ser muito encantador e é um puta policial, para ser honesto. Acontece que ele andou dando umas batidas para o lado do Banco Signet e levou uma das caixas na conversa até ela desovar a informação sobre você. Agora, ele não devia perguntar e ela não devia responder. Mas ela contou a ele que se lembrava de você ter feito um cheque grande pouco antes do dia de Ação de Graças. Segundo ela, de dez mil.”
Olhei impassível para ele. “Quer dizer, na verdade não se pode culpar o Lucero. Ele está fazendo o trabalho dele. Mas Patterson sabe o que está procurando quando vai bisbilhotar seus registros financeiros. Ele vai pegar você feio quando você comparecer ao grande júri especial.” Eu não disse nada. “Doutora.” Marino se inclinou e seus olhos encontraram os meus. “Você não acha que deveria falar sobre isso?” “Não.” Levantando-se, ele se encaminhou para a lareira e abriu o para-fogo o suficiente para atirar o cigarro para dentro. “Porra, doutora. Não quero que você seja denunciada.” “Eu não devia tomar café e sei que você também não devia, mas estou com vontade de tomar alguma coisa. Você gosta de chocolate quente?” “Tomo um café.” Fui preparar o café. Meus pensamentos zumbiam pesadamente como uma mosca em queda. Minha raiva não tinha para onde se expandir. Fiz um bule de descafeinado, na esperança de que Marino não percebesse a diferença. “Como está sua pressão?” “Quer saber a verdade? Tem dias que, se eu fosse uma chaleira, apitava.” “Não sei o que vou fazer com você.” Foi se sentar na beirada da lareira. O fogo fazia um ruído parecido com o vento, e as chamas refletidas dançavam no cobre. “Para começo de conversa, você provavelmente nem devia estar aqui. Não quero que tenha problemas”, prossegui. “Eu quero é que o promotor, a cidade, o governador e todos eles se fodam”, disse ele com raiva repentina. “Marino, não podemos ceder. Alguém sabe quem é esse assassino. Você falou com o policial que nos recebeu na penitenciária? O guarda Roberts?” “Falei. A conversa não chegou a lugar nenhum.” “Bom, eu também não fui muito melhor com sua amiga Helen Grimes.” “Deve ter sido uma festa.” “Você sabia que ela não trabalha mais na penitenciária?” “Que eu saiba ela nunca trabalhou. Helen, a Huna, era preguiçosa pra cacete, salvo quando estava fazendo uma revista física em alguma interna. Aí ficava diligente. Donahue gostava dela, não me pergunte por quê. Depois que apagaram ele, ela foi designada para prestar serviços na torre de guarda de Greensville, mas de repente arranjou um problema no joelho ou coisa assim.” “Tenho a impressão de que ela sabe muito mais do que demonstra. Principalmente se ela e Donahue eram amigos.” Marino serviu o café e olhou para fora da porta corrediça de vidro. O terreno estava branco por causa da geada e os flocos de neve pareciam estar
caindo mais rápido. Pensei na noite cheia de neve em que fora convocada para ir à casa de Jennifer Deighton, e por minha mente começaram a passar imagens de uma mulher gorda de bobs sentada em sua sala de visitas. Se o assassino a interrogara, deve ter tido alguma razão para isso. Alguém o enviara. Para encontrar o quê? “Você acha que, quando foi à casa de Jennifer Deighton, o assassino estava atrás de cartas?” “Acho que estava atrás de alguma coisa relacionada ao Waddell. Cartas, poemas. Coisas que Waddell podia ter mandado para ela ao longo dos anos.” “Você acha que essa pessoa encontrou o que estava procurando?” “Bom, ele pode ter procurado, mas foi tão cuidadoso que não dá pra saber se achou.” “Acho que ele não achou.” Acendendo outro cigarro, Marino olhou para mim com ceticismo. “Baseada em quê?” “Baseada no cenário do crime. Ela estava de camisola e bobs. A impressão que dava era que ela estava lendo na cama. Isso não combina com quem está esperando visita.” “Até aí, estou de acordo.” “Depois aparece alguém na porta e ela deve ter deixado entrar, porque não havia sinal de entrada forçada nem de luta. Acho que o que aconteceu depois é que esse indivíduo pediu a ela que lhe entregasse o que ele queria, e ela não entregou. Ele fica danado, pega uma cadeira da sala de jantar e põe no meio da sala de visitas. Faz com que ela se sente ali e, essencialmente, a tortura. Faz perguntas e, quando ela não responde, aperta a gravata. A cena prossegue até ele ir longe demais. Ele a carrega para fora e senta-a no carro.” “Se o cara entrou e saiu pela cozinha, isso explica por que aquela porta estava aberta quando nós chegamos”, ponderou Marino. “Pode ser. Em suma, não penso que ele quisesse que ela morresse naquele momento e, provavelmente, depois de tentar disfarçar o modo como ela morrera, tratou logo de dar o fora dali. Pode ser que ele tenha ficado com medo ou que simplesmente tivesse perdido o interesse por sua missão. Acho que nem revistou a casa, e também duvido que encontrasse alguma coisa se tivesse revistado.” “Nós não encontramos de jeito nenhum.” “Jennifer Deighton era paranoica. No fax que mandou para o Grueman dizia que havia alguma coisa errada no que estava sendo feito com o Waddell. Aparentemente me vira no noticiário e tentara até entrar em contato comigo, mas sempre desligava quando dava com a secretária eletrônica.” “Você acha que ela podia ter papéis ou alguma coisa que nos revelasse que raio é isso tudo?” “Se tinha, estava tão apavorada que com certeza tirou tudo de casa.”
“E guardou onde?” “Não sei, mas pode ser que o ex-marido soubesse. Ela não foi visitá-lo duas vezes no fim de novembro?” Marino pareceu interessado. “Foi. É mesmo.”
Quando finalmente localizei Willie Travers no balneário Concha Rosa, na praia de Fort Myers, na Flórida, ouvi ao telefone uma voz enérgica e agradável. Quando, contudo, comecei a fazer-lhe perguntas, ficou reticente e não se comprometeu. “Senhor Travers, o que posso fazer para o senhor confiar em mim?”, indaguei afinal, desesperada. “Venha até aqui.” “Neste momento vai ser muito difícil.” “Eu teria que ver a senhora.” “Como?” “É assim que eu sou. Se puder ver a senhora, posso ler a senhora e saber se é uma pessoa de confiança. Jenny também era assim.” “Então se eu for à praia de Fort Myers e o senhor me ler, o senhor me ajuda.” “Depende do que eu captar.” Fiz reservas de avião para as seis e cinquenta da manhã seguinte. Lucy e eu voaríamos até Miami. Ela ficaria com Dorothy e eu iria de carro até a praia de Fort Myers, onde havia uma possibilidade muito boa de que passasse a noite pensando se havia perdido o juízo. Havia uma probabilidade avassaladora de que o ex-marido de Jennifer Deighton, aquele fanático por saúde holística, acabasse se revelando uma enorme perda de tempo. A neve tinha parado de cair quando, no sábado, levantei-me às quatro da manhã e fui até o quarto de Lucy para acordá-la. Por um momento escutei sua respiração, depois toquei-lhe de leve o ombro e, no escuro, murmurei seu nome. Ela se espreguiçou e sentou na cama. No avião, dormiu até Charlotte, depois se fechou em um de seus insuportáveis emburramentos até Miami. “Prefiro pegar um táxi”, disse, olhando pela janela. “Você não pode pegar um táxi, Lucy. Sua mãe e o amigo dela vão ficar procurando você.” “Tudo bem. Por mim eles podem passar o dia inteiro dando voltas pelo aeroporto. Por que não posso ir com você?” “Você precisa ir para casa e eu preciso pegar o carro e ir diretamente para a praia de Fort Myers, de onde volto para Richmond de avião. Acredite. Não vai ser nem um pouco divertido.” “Ficar com mamãe e o último idiota dela também não é diversão nenhuma.”
“Você não sabe se ele é idiota. Você nunca o viu. Por que é que você não dá uma oportunidade a ele?” “Eu queria que a mamãe pegasse Aids.” “Lucy, não diga uma coisa dessas.” “Ela merece. Não entendo como ela pode dormir com qualquer retardado que a leve para jantar e ao cinema. Não entendo como ela pode ser sua irmã.” “Fale mais baixo”, sussurrei. “Se ela sentisse tanta falta de mim, ia querer me buscar sozinha. Não ia querer ninguém se metendo.” “Isso não é necessariamente verdade. Um dia, quando você se apaixonar, vai entender melhor.” “Por que você acha que eu nunca me apaixonei?” Olhou para mim furiosa. “Porque nesse caso você saberia que uma pessoa apaixonada mostra tudo o que tem de pior e de melhor. Um dia somos extraordinariamente generosos e sensíveis, no outro só matando. Nossas vidas viram lições de exagero.” “Eu queria que mamãe andasse de uma vez e chegasse logo à menopausa.” No meio da tarde, entrando e saindo da sombra à medida que avançava pela trilha Tamiami, remendei os buracos que a culpa me abrira na consciência. Sempre que eu lidava com minha família, ficava irritada e aborrecida. Sempre que me recusava a lidar com ela, ficava como quando era criança, quando aprendi a arte de fugir sem sair de casa. Em certo sentido eu me transformara em meu pai, depois da morte dele. Eu era a pessoa racional que tirava dez e sabia cozinhar e lidar com dinheiro. Era aquela que raramente chorava e cuja reação à volatilidade de meu lar que se desintegrava era esiar e dispersar-me como vapor. Em consequência, minha mãe e minha irmã me acusavam de indiferença, e cresci alimentando a vergonha secreta de que o que diziam era verdade. Cheguei à praia de Fort Myers com o ar-condicionado ligado e a viseira abaixada para me proteger do sol. A água se encontrava com o céu numa continuidade de azul vibrante, e as palmeiras eram penachos verdes resplandecentes no alto dos troncos fortes como pernas de avestruz. O balneário Concha Rosa era da cor do nome. Ia até a baía Estero e abria amplamente suas varandas para o golfo do México. Willie Travers morava num dos bangalôs, mas eu só iria encontrá-lo às oito da noite. Registrei-me em um hotel, num apartamento de um quarto, e literalmente deixei um rastro de roupas pelo chão enquanto arrancava meu traje de inverno e tirava da mala um short e uma camiseta. Em sete minutos saí porta afora e fui para a praia. Não sei quantos quilômetros andei, pois perdi a conta do tempo e todos os trechos de praia e água pareciam magnificamente iguais. Contemplei pelicanos se balançando e jogando a cabeça para trás enquanto engoliam peixes como goles de bourbon, e desviei-me com destreza das águas-vivas
pousadas na praia como flácidos balões azuis. A maioria das pessoas por quem passei era idosa. De vez em quando a voz aguda de uma criança se erguia sobre o rugido das ondas como um pedaço de papel de cor viva carregado pelo vento. Catei ouriços-do-mar polidos pela maré e conchas desgastadas que lembravam pastilhas de hortelã muito chupadas. Pensei em Lucy e tornei a sentir sua falta. Voltei para meu quarto quando a sombra já cobria quase toda a praia. Tomei um banho de chuveiro, mudei de roupa, entrei no carro e segui pelo bulevar Estero até que a fome, como uma varinha mágica, guiou-me para o estacionamento do Fogão do Barqueiro. O horizonte desbotava num azul fosco; pedi peixe, que comi acompanhado de vinho branco. Em pouco tempo as luzes dos botes balançavam na escuridão e eu não conseguia mais ver a água. Quando localizei o bangalô 182, perto da loja de iscas e do cais de pesca, estava relaxada como havia tempo não acontecia. Quando Willie Travers abriu a porta, parecia que tínhamos sido amigos desde sempre. “A primeira providência é servir alguma coisa. A senhora com certeza não comeu.” Lamentei dizer-lhe que já havia jantado. “Então vai ter de comer de novo.” “Não posso.” “Dentro de uma hora vou lhe provar que está enganada. Garoupa grelhada na manteiga e no suco de lima e salpicada com uma porção generosa de pimenta recém-moída. Temos ainda pão de sete grãos inteiramente feito por mim, e que a senhora não vai esquecer pelo resto da vida. Vamos ver. Ah. Salada de repolho marinado e cerveja mexicana.” Dizia tudo aquilo enquanto destampava duas garrafas de Dos Esquis. O exmarido de Jennifer Deighton devia ter quase oitenta anos, e seu rosto arruinado pelo sol parecia lama dura, mas os olhos azuis eram vitais como os de um jovem. Sorria muito enquanto falava e era seco como um bacalhau. Seu cabelo era como a superfície de uma bola de tênis branca. “Como o senhor veio morar aqui?”, perguntei, vendo os peixes empalhados que decoravam as paredes e a mobília rústica. “Faz uns dois anos, decidi me aposentar e pescar, de modo que fiz uma proposta ao Concha Rosa: eu tomaria conta da loja de iscas se eles me cedessem um bangalô por um aluguel razoável.” “Qual era sua profissão antes de se aposentar?” “A mesma de agora.” Sorriu. “Pratico medicina holística, e na verdade você nunca se aposenta disso, como não se aposenta da Igreja. A diferença é que agora trabalho com gente com quem quero trabalhar, e não tenho mais consultório no centro.” “E qual é sua definição de medicina holística?”
“Simplesmente trato a pessoa inteira. A questão é equilibrar as pessoas.” Olhou-me com jeito de quem estava me avaliando, pousou a cerveja e encaminhou-se para a cadeira de capitão onde eu estava sentada. “A senhora se incomoda de levantar?” Meu estado de espírito estava amistoso. “Agora estenda um braço. Qualquer um, mas mantenha-o reto, paralelo ao chão. Ótimo. Agora vou lhe fazer uma pergunta e, enquanto a senhora responde, vou tentar puxar seu braço para baixo e a senhora vai resistir. A senhora se considera a heroína da família?” “Não.” Meu braço cedeu imediatamente à pressão e baixou como uma ponte levadiça. “A senhora se considera a heroína da família, sim. Acaba de revelar-me que é muito rigorosa consigo mesma e que sempre foi assim. Está bem. Agora vamos pôr seu braço para cima de novo e vou lhe fazer outra pergunta. A senhora é boa no que faz?” “Sou.” “Estou puxando para baixo com toda a força e seu braço está como ferro. Então a senhora é boa no que faz.” Voltou para o divã e eu tornei a me sentar. “Tenho que confessar que meus estudos de medicina holística fizeram de mim uma pessoa um tanto cética”, eu disse com um sorriso. “Pois não deveriam, pois os princípios não são diferentes daqueles com que a senhora lida todo dia. A base? O corpo não mente. Não importa o que a senhora diga; seu nível de energia responde ao que de fato é verdade. Se sua cabeça diz que não é a heroína da família ou que você se ama quando não é assim que a senhora se percebe, sua energia fica fraca. Está fazendo sentido?” “Está.” “Uma das razões pelas quais Jenny vinha aqui uma ou duas vezes por ano era para eu poder equilibrá-la. E, quando esteve aqui pela última vez, por volta do Dia de Ação de Graças, estava tão fora de prumo que eu tive de trabalhar com ela várias horas por dia.” “Ela disse ao senhor o que estava errado?” “Muitas coisas estavam erradas. Ela havia se mudado e não gostava dos vizinhos, principalmente dos do outro lado da rua.” “Os Clary.” “Acho que o nome era esse. A mulher era bisbilhoteira e o marido era metido a conquistador, até ter um derrame. Depois, ela não aguentava mais de tanto horóscopo e estava ficando cansada.” “Qual era sua opinião sobre aquele negócio dela?” “Jenny tinha dons, mas estava se dispersando muito.” “O senhor diria que ela era médium?” “Não. Eu não classificaria Jenny — não ia nem tentar. Ela se metia em
muita coisa.” De repente, me lembrei da folha de papel em branco presa na cama pelo cristal e perguntei a Travers se ele sabia o que aquilo significava, se significava algo. “Queria dizer que ela estava se concentrando.” “Concentrando? Em quê?” “Quando queria meditar, Jenny apanhava uma folha de papel em branco e punha um cristal em cima. Aí se sentava muito quieta e lentamente girava o cristal várias vezes, olhando mover-se no papel a luz que passava através das faces. Isso para ela era como, para mim, olhar a água.” “Alguma outra coisa a preocupava quando ela veio visitar o senhor, senhor Travers?” “Vamos deixar de lado toda essa formalidade: me chame de Willie. Sim, e você já sabe o que vou lhe dizer. Estava transtornada por causa daquele condenado que ia ser executado, o Ronnie Waddell. Jenny e Ronnie tinham se correspondido durante muitos anos, e ela não conseguia aceitar a ideia de que ele ia ser executado.” “Você sabe se alguma vez Waddell revelou a ela alguma coisa que pudesse tê-la posto em perigo?” “Bom, ele deu a ela uma coisa perigosa.” Sem tirar os olhos dele, peguei minha cerveja. “Quando veio até aqui no Dia de Ação de Graças, ela trouxe todas as cartas que ele lhe escrevera e tudo o mais que ele lhe mandara durante todos aqueles anos. Queria que eu guardasse tudo aqui.” “Por quê?” “Porque aqui estaria seguro.” “Ela estava com medo de que alguém tentasse tirar essas coisas dela?” “Só sei que estava vendo fantasmas. Disse-me que na última semana de novembro Waddell tinha telefonado para ela a cobrar dizendo que já estava pronto para morrer e que não queria mais lutar. Parecia convencido de que nada poderia salvá-lo e pediu-lhe que fosse a uma granja em Suffolk e apanhasse os pertences dele com a mãe. Disse que queria que Jenny ficasse com as coisas, e que não se preocupasse, que a mãe dele ia entender.” “Que pertences eram esses?” Ele se levantou. “Era uma coisa só. Não estou muito seguro quanto ao significado — e nem sei se quero estar seguro. De modo que vou entregá-lo para você, doutora Scarpetta. Leve de volta para a Virgínia. Mostre à polícia. Faça o que bem entender.” “Por que de repente você está cooperando? Por que não fez isso semanas atrás?” “Ninguém se deu ao trabalho de vir me ver. Eu lhe disse, quando você telefonou, que não trato com pessoas pelo telefone”, disse ele em voz alta, de
um outro cômodo. Quando voltou, depositou a meus pés uma pasta Hartmann preta. O fecho de cobre fora aberto e o couro estava riscado. “O fato é que a senhora vai estar me fazendo um grande favor ao tirar isso de minha vida. Só de pensar nisso minha energia fica ruim”, disse Willie Travers, e não havia dúvida de que era sincero.
As dezenas de cartas que Ronnie Waddell escrevera a Jennifer Deighton enquanto estivera no corredor da morte estavam cuidadosamente enfeixadas por elásticos e arrumadas cronologicamente. Naquela noite, li em meu quarto apenas algumas delas, porque sua importância desaparecia diante da de outros itens que encontrei. Na pasta havia blocos cheios de notas manuscritas que faziam pouco sentido, pois se referiam a casos em que o Estado estava envolvido havia mais de dez anos. Também encontrei penas e lápis, um mapa da Virgínia, uma lata de pastilhas Sucrets para a garganta, um vidro de Vick e um bastão de ChapStick. Havia, ainda em sua caixa amarela, uma EpiPen, seringa de três miligramas de epineina autoinjetável, coisa rotineiramente mantida por pessoas letalmente alérgicas a picadas de abelhas ou a certos alimentos. Na etiqueta estavam datilografados o nome do paciente, a data e a informação de que a EpiPen fazia parte de uma série de cinco doses. Dava para perceber que Waddell roubara a pasta da casa de Robyn Naismith na manhã fatal em que a assassinara. Talvez ele não soubesse a quem ela pertencia até levá-la embora e arrombar o cadeado. Waddell descobrira que havia brutalizado uma celebridade local cujo amante, Joe Norring, era o secretário da Justiça da Virgínia.
“Waddell não tinha saída”, eu disse. “Não que necessariamente merecesse o indulto, considerando-se a gravidade do crime. Mas, desde o momento que ele fora preso, Norring se transformara num homem atormentado. Sabia que havia deixado a pasta na casa de Robyn e sabia que a polícia não a encontrara.” Não estava claro por que ele deixara a pasta na casa de Robyn. Talvez ele a tivesse simplesmente esquecido uma noite que nenhum dos dois sabia que seria a última noite dela. “Não posso nem começar a imaginar a reação do Norring quando souber”, eu disse. Wesley me espiou por cima dos óculos enquanto continuava examinando os papéis. “Acho que não podemos imaginar. Já era chato ele ter de se preocupar com o fato de todo mundo saber que ele tinha uma amante, mas sua ligação com Robyn iria transformá-lo imediatamente no principal suspeito do assassinato.”
“De certo modo ele teve uma puta sorte de Waddell levar a pasta”, disse Marino. “Tenho certeza de que, na cabeça dele, ele estava azarado de qualquer jeito”, eu disse. “Se a pasta tivesse aparecido no local, estava encrencado. Se fosse roubada, como foi, tinha de se preocupar com o possível aparecimento dela em algum lugar.” Marino pegou a cafeteira e tornou a encher as xícaras de todos. “Alguém deve ter feito alguma coisa para garantir o silêncio de Waddell.” Wesley serviu-se de leite. “Pode ser. Mas também pode ser que Waddell não tenha aberto a boca nunca. Meu palpite é que desde o começo ele teve medo de que o negócio com que tinha topado só ia tornar as coisas piores para ele. A pasta podia ser usada como uma arma, mas ia destruir quem? Norring ou Waddell? Waddell ia ter confiança no sistema a ponto de difamar o secretário da Justiça? Anos mais tarde, ia ter confiança no sistema a ponto de difamar o governador — o único homem que podia poupar a vida dele?” “Então Waddell ficou calado, sabendo que a mãe ia guardar o que ele escondera na granja até ele lhe dizer para entregar a alguém”, eu disse. “Norring teve dez anos para encontrar a pasta. Por que demorou tanto para começar a procurar?”, disse Marino. “Acho que Norring mandou espionar Waddell desde o princípio, e que essa vigilância aumentou consideravelmente nos últimos meses. Quanto mais perto Waddell chegava da execução, menos tinha a perder e mais provavelmente ia começar a falar. É possível que alguém tivesse grampeado o telefone dele quando ele telefonou para Jennifer Deighton em novembro. E é possível que, quando soube, Norring tenha entrado em pânico.” “E tinha razões para isso. Eu pessoalmente revistei todos os objetos de Waddell quando estávamos trabalhando no caso. O cara não tinha quase nada, e, se alguma coisa estava na granja, nunca encontramos”, disse Marino. “E Norring devia saber disso”, eu disse. “Porra, claro. E mais tarde ele fica desconfiado de que tem alguma coisa estranha na entrega desses pertences da granja a essa amiga de Waddell. Norring começa de novo a ter pesadelos com a merda da pasta e, para piorar as coisas, não pode fazer ninguém dar uma batida na casa da Jennifer Deighton enquanto o Waddell ainda estiver vivo. Se acontecesse alguma coisa com ela, sabe-se lá o que Waddell poderia fazer. E a pior possibilidade era ele começar a alcaguetar para o Grueman”, disse Marino. “Benton, você saberia por acaso por que Norring andava com epineina? Ele é alérgico a quê?”, disse eu. “Acho que a mariscos. Parece que ele tem EpiPens por todo lado.” Enquanto eles continuavam a conversar, verifiquei a lasanha no forno e abri uma garrafa de Kendall-Jackson. O processo contra Norring ia tomar muitíssimo tempo, caso se conseguisse provar alguma coisa, e pareci
entender, em certa medida, como Waddell devia ter se sentido. Já eram onze horas da noite quando telefonei para Nicholas Grueman em sua casa. “Não tenho chance na Virgínia. Enquanto estiver no cargo, Norring vai tomar providências para que eu não tenha cargo nenhum. Tiraram minha vida, droga, mas a alma eu não entrego. Vou invocar a 5a emenda todas as vezes”, eu disse. “Aí a senhora sem dúvida vai ser denunciada.” “Tendo em vista os canalhas com quem já estou lidando, acho que isso vai acontecer de todo jeito.” “O que é isso, doutora Scarpetta? A senhora se esqueceu do canalha que a representa? Não sei onde a senhora passou o fim de semana, mas eu passei em Londres.” Senti o sangue fugir-me do rosto. “Não posso garantir que consigamos fazer Patterson engolir essa, mas vou mover céus e terra para fazer Charlie Hale depor”, disse o homem que eu costumava pensar que odiava.
14
O dia 20 de janeiro foi ventoso como um dia de março, porém mais io, e o sol me ofuscava enquanto eu avançava para leste pela rua Larga, rumo ao foro John Marshall. “Agora vou lhe falar uma coisa que você já sabe”, disse Nicholas Grueman. “A imprensa vai estar revolvendo a água como um bando de piranhas enéticas. Quem voar baixo demais perde as pernas. Vamos entrar um ao lado do outro, de olhos baixos, e não se vire nem olhe para ninguém, digam o que disserem.” “Não vamos encontrar vaga para estacionar. Eu sabia que isso ia acontecer”, falei, virando à esquerda na rua Nove. “Vá devagar. Aquela boa mulher ali do lado está fazendo alguma coisa. Maravilhoso. Se conseguir virar as rodas, vai sair.” Uma buzina soou atrás de mim. Olhei o relógio e me voltei para Grueman como um atleta que espera instruções de última hora do treinador. Ele estava com um casacão azulmarinho de cashmere e luvas de couro pretas, a bengala de castão de prata encostada no assento e, no colo, a pasta cansada de guerra. “Lembre-se do seguinte. Seu amigo, doutor Patterson, decide quem entra e quem não entra, de modo que dependemos da intervenção dos jurados, e isso é com você. Você precisa se comunicar com eles, Kay. No momento em que entrar na sala, tem de ficar amiga de dez ou doze estranhos. Não se esconda atrás de nenhuma muralha, seja o que for que eles queiram conversar com você. Seja acessível.” “Está bem.” “Vamos botar para quebrar. Combinado?” “Combinado.” “Boa sorte, doutora.” Sorriu e bateu-me no braço. Dentro do foro, fomos detidos por um policial com um detector. Ele verificou minha agenda e a pasta, como fizera cem vezes anteriormente, sempre que eu prestara depoimento como perita. Daquela vez, contudo, não disse nada e evitou meus olhos. A bengala de Grueman fez disparar o aparelho, e ele foi um exemplo de paciência e cortesia quando explicou que o castão e a biqueira de prata não saíam, e que na verdade não havia nada escondido na haste de madeira escura. “O que ele pensa que tenho aqui, uma arma de ar comprimido?”, observou, enquanto entrávamos no elevador.
Assim que as portas se abriram no terceiro andar, os repórteres avançaram com o vigor predatório esperado. Para um homem com gota, meu advogado moveu-se rapidamente, pontuando os próprios passos com batidas da bengala. Senti-me inesperadamente distante e fora de foco até entrarmos na sala de audiências deserta, onde Benton Wesley estava sentado a um canto com um rapaz anzino que eu sabia ser Charlie Hale. O lado direito de seu rosto era um mapa rodoviário de marcas rosadas. Quando ele se levantou e enfiou compenetrado a mão direita no bolso do paletó, vi que lhe faltavam vários dedos. Usando um terno escuro que lhe caía mal e uma gravata também escura, ele olhou em torno enquanto eu me ocupava com os aspectos mecânicos das providências de sentar-me e explorar minha pasta. Eu não podia falar com ele e os três homens tiveram a presença de espírito de fingir não reparar em minha perturbação. “Vamos falar um minuto sobre o que eles têm. Acho que podemos estar preparados para os depoimentos do Jason Story e do policial Lucero. E, claro, do Marino. Não sei quem mais o Patterson vai incluir nesse processo da Santa Inquisição”, disse Grueman. “Para seu governo, falei com o Patterson. Disse a ele que não há indícios suficientes para que ocorra um julgamento e que vou depor nesse sentido”, disse Wesley, olhando para mim. “Estamos supondo que não vai haver processo”, disse Grueman, “e quando chegar sua vez de entrar quero que deixe claro para os jurados que falou com Patterson, que disse a ele que não havia indícios suficientes para um julgamento, mas que ele insistiu em ir em ente. Toda vez que ele fizer uma pergunta e que você responder, relativa a alguma questão que já tenha discutido com ele em particular, quero que diga: ‘Como eu lhe disse em seu escritório’, ou ‘Como afirmei claramente quando conversamos em tal ocasião assim, assim’ etc. etc. É importante que os jurados saibam que você não é apenas um agente especial do FBI, como também chefe da Seção de Ciências do Comportamento, cuja competência é analisar os crimes violentos e levantar perfis psicológicos dos delinquentes. Você pode ter vontade de declarar que a doutora Scarpetta não corresponde de forma nenhuma ao perfil do autor do crime em questão, e que você, na verdade, acha a ideia absurda. É importante também que você enfie na cabeça dos jurados que você era o conselheiro e o melhor amigo do Mark James. Tome a iniciativa em tudo o que puder, porque pode ter certeza de que o Patterson não vai perguntar. Deixe claro para os jurados que Charlie Hale está aqui.” “E se eles não me intimarem?”, perguntou Charlie Hale. “Aí estamos de mãos atadas. Como já expliquei quando conversamos em Londres, este é o espetáculo da acusação. A doutora Scarpetta não tem direito de apresentar nenhuma prova, de modo que temos de esperar que pelo menos um dos jurados nos convide a entrar pela porta dos fundos.”
“Essa é braba”, disse Hale. “Você trouxe a cópia da guia de depósito e dos pagamentos que fez?” “Sim, senhor.” “Muito bem. Não espere ser interrogado. Quando estiver falando, ponha tudo em cima da mesa. E a situação de sua mulher continua a mesma desde que falamos?” “Continua. Como lhe contei, ela fez duas fertilizações in vitro. Até agora tudo bem.” “Lembre-se de falar nisso se puder.” Vários minutos mais tarde fui chamada à sala do júri. Grueman levantou-se comigo. “Claro. Ele quer você primeiro. Depois chama os seus detratores para deixar um gosto ruim na boca dos jurados.” Foi até a porta comigo. “Quando você precisar, estou aqui.” Cumprimentando com a cabeça, entrei e sentei-me na cadeira vazia à cabeceira da mesa. Patterson estava fora da sala, e eu sabia que esse era um de seus truques. Queria que eu soesse o exame silencioso daqueles dez estranhos que tinham minha felicidade em suas mãos. Olhei direto para todos e até mesmo troquei sorrisos com alguns. Uma moça séria de batom vermelho brilhante decidiu não esperar pelo promotor público. “O que levou a senhora a tratar com os mortos e não com os vivos? Parece uma escolha estranha para um médico.” “Foi minha preocupação intensa com os vivos que me fez estudar os mortos. O que aprendemos com os mortos beneficia os vivos, e a justiça é para os que ficam.” “Isso não lhe faz mal?”, inquiriu um velho de mãos grandes e ásperas. A expressão de seu rosto era tão sincera que ele parecia estar sentindo dor. “Claro que sim.” “Quantos anos a senhora teve de ir à faculdade depois de se formar no colégio?”, perguntou uma negra grandona. “Dezessete anos, se a senhora incluir o tempo que passei como interna e o ano em que fui assistente.” “Nossa.” “Onde a senhora foi?” “Onde estudei?”, perguntei ao rapaz magro de óculos. “Sim, senhora.” “São Miguel, Academia de Nossa Senhora de Lourdes, Cornell, Johns Hopkins, Georgetown.” “Seu pai era médico?” “Meu pai tinha uma pequena mercearia em Miami.” “Puxa, eu ia detestar ter de pagar esses estudos todos.” Vários jurados riram baixinho. “Tive a sorte de ganhar bolsas de estudo. Desde o secundário.”
“Tenho um tio que trabalha na Funerária Crepúsculo, em Norfolk”, disse outra pessoa. “Ô, Barry. Não tem nenhuma funerária com esse nome.” “Não estou brincando, não.” “Isso não é nada. Tem uma em Fayetteville que é da família Durão. Adivinha o nome.” “Não sei.” “A senhora não é daqui?” “Nasci em Miami.” “Então o nome Scarpetta é espanhol?” “Na verdade é italiano.” “Interessante. Pensei que todos os italianos fossem morenos.” “Meus antepassados eram de Verona, no norte da Itália, onde grande parte da população tem sangue saboiano, austríaco e suíço. Muitos de nós somos louros de olhos azuis”, expliquei pacientemente. “A senhora deve ser boa cozinheira.” “É um dos meus passatempos favoritos.” “Doutora Scarpetta, sua posição não está clara para mim. A senhora é a médica-legista chefe de Richmond?”, disse um homem bem-vestido e que parecia ter aproximadamente minha idade. “Do Estado. Temos quatro escritórios distritais. O Escritório Central, aqui em Richmond, o do litoral, em Norfolk, o do Oeste, em Roanoke, e o do Norte, em Alexandria.” “Quer dizer que o chefe por acaso fica aqui em Richmond?” “Sim. Parece fazer mais sentido, porque o sistema de medicina legal é parte do governo do estado e Richmond é onde a Assembleia se reúne”, respondi, vendo a porta abrir-se e Roy Patterson entrar. Era um belo negro de ombros largos com o cabelo cortado rente, e que ia se tornando grisalho. Usava um blazer azul, e suas iniciais estavam bordadas nos punhos da camisa amarelo-clara. Era conhecido pelas gravatas, e aquela parecia pintada à mão. Cumprimentou os jurados e foi morno em relação a mim. Descobri que a mulher de batom brilhante era a presidente. Ela pigarreou e me informou que eu não tinha de depor e que tudo o que dissesse poderia ser usado contra mim. “Entendo”, disse, e prestei o juramento. Patterson andava em torno de minha cadeira, deu um mínimo de informações sobre quem eu era e falou muito a respeito do poder de meu cargo e da facilidade com que era possível abusar daquele poder. “E quem estaria lá para testemunhar? Em muitas ocasiões não havia ninguém para observar a doutora Scarpetta no trabalho, exceto a pessoa que estava ao lado dela praticamente todos os dias, Susan Story. Senhores e
senhoras, não será possível ouvirmos o depoimento dela porque ela e a filha que estava esperando estão mortas. Mas os senhores vão ouvir outras testemunhas hoje. E elas vão pintar o retrato de uma mulher ia e ambiciosa, de uma carreirista que estava cometendo erros graves em serviço. Primeiro, pagou pelo silêncio de Susan Story. Depois a matou. “E, quando os senhores ouvem histórias de crime perfeito, haveria alguém mais capacitado para cometê-los do que uma perita na solução de crimes? Uma perita saberia que, se você quer atirar em alguém dentro de um veículo, convém que escolha uma arma de pequeno calibre para que as balas não ricocheteiem. Uma perita não deixaria elementos de prova no local do crime, nem mesmo cápsulas usadas. Uma perita não usaria seu próprio revólver — arma ou armas que os amigos e colegas sabem que ela possui. Usaria algo que não pudesse ser ligado a ela. “Aliás, poderia até tomar emprestado um revólver do laboratório, porque, senhoras e senhores, todo ano a Justiça confisca rotineiramente centenas de armas usadas na prática de crimes, e muitas delas são doadas ao laboratório estadual de armas de fogo. Pelo que sabemos, o revólver calibre 22 que foi encostado atrás do crânio de Susan está, neste momento, pendurado num quadro no laboratório de armas de fogo, ou no térreo, onde os peritos fazem suas experiências e onde a doutora Scarpetta pratica tiro rotineiramente. E por sinal ela é boa o bastante para ser aceita por qualquer departamento de polícia dos Estados Unidos. E já matou, embora, para falar a verdade, sua ação tenha sido considerada legítima defesa no caso a que estou me referindo.” Eu fitava minhas mãos cruzadas sobre a mesa enquanto a escrevente utilizava suas teclas silenciosamente e Patterson prosseguia. Sua retórica era sempre eloquente, embora em geral ele não soubesse quando parar. Quando ele me pediu que explicasse as impressões digitais colhidas no envelope deixado sobre a cômoda de Susan, fez um carnaval tão grande para dizer que minha explicação era inacreditável que suspeito que a reação de alguns terá sido perguntar-se por que o que eu dissera não podia ser verdade. Então chegou ao dinheiro. “Não é verdade, doutora Scarpetta, que em 12 de novembro a senhora apareceu na agência central do Banco Signet e fez um cheque no valor de dez mil dólares?” “É verdade.” Patterson hesitou por um instante, visivelmente surpreendido. Esperava que eu invocasse a 5a emenda. “E é verdade que naquela ocasião a senhora não depositou o dinheiro em nenhuma de suas diversas contas?” “Também é verdade.” “Quer dizer que, várias semanas antes de a superintendente de seu necrotério inexplicavelmente depositar três mil e quinhentos dólares na
conta corrente dela, a senhora saiu do Banco Signet carregando dez mil dólares em moeda?” “Não, senhor. Nos meus registros financeiros o senhor deve ter encontrado a cópia de um cheque no valor de sete mil, trezentas e dezoito libras esterlinas. Tenho a cópia aqui.” Tirei a cópia da pasta. Patterson mal a olhou e pediu à escrevente que a juntasse aos autos como prova. “Bom, isso é muito interessante. A senhora comprou um cheque emitido em favor de alguém chamado Charles Hale. Isso era algum esquema criativo seu para disfarçar pagamentos que a senhora estava fazendo à superintendente de seu necrotério ou talvez a outras pessoas? Esse indivíduo chamado Charles Hale não fazia o contrário, convertendo as libras outra vez em dólares e mandando o dinheiro para outro lugar — quem sabe para Susan Story?” “Não. E nunca entreguei o cheque a Charles Hale.” “Não entregou?” Ele parecia confuso. “Então o que a senhora fez com ele?” “Dei-o a Benton Wesley e ele tomou as providências para que o cheque fosse entregue a Charles Hale. Benton Wesley…” Ele me interrompeu. “A história está ficando cada vez mais inverossímil.” “Doutor Patterson…” “Quem é Charles Hale?” “Queria terminar a minha declaração anterior”, eu disse. “Quem é Charles Hale?” “Gostaria de ouvir o que ela está tentando dizer”, disse um homem com um blazer escocês. “À vontade”, disse Patterson com um sorriso frio. “Dei o cheque a Benton Wesley. Ele é um agente especial do FBI, responsável pela análise de suspeitos na Seção de Ciências do Comportamento em Quantico.” Uma mulher levantou timidamente a mão. “Foi dele que os jornais falaram? O que chamam quando há esses crimes medonhos como os de Gainesville?” “Isso mesmo. É um colega meu. Era também o melhor amigo de um amigo meu, Mark James, que também era agente especial do FBI.” “Doutora Scarpetta, vamos esclarecer esse ponto. Mark James era mais que um, abre aspas, amigo seu”, disse Patterson com impaciência. “O senhor está me fazendo uma pergunta, doutor Patterson?” “Exceto pelo óbvio conflito de interesses que existe quando uma médicalegista chefe vai para a cama com um agente do FBI, o assunto é irrelevante. Eu não vou perguntar…” Interrompi-o. “Meu relacionamento com Mark James principiou na faculdade de direito. Não havia conflito de interesses, e quero deixar
registrado que impugno a referência do procurador de Justiça do estado à pessoa com quem eu supostamente ia para a cama.” A escrevente anotou. Minhas mãos estavam cruzadas com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos. Patterson tornou a perguntar: “Quem é Charles Hale e por que a senhora lhe daria o equivalente a dez mil dólares?”. Cicatrizes rosadas cortaram-me o pensamento, e vi dois dedos ligados a um cotoco reluzente de tecido cicatrizado. “Ele era um vendedor de bilhetes na estação Victoria, em Londres.” “Era?” “Era até segunda-feira, 18 de fevereiro, quando a bomba explodiu.”
Ninguém me contara. Eu passara o dia ouvindo informações sobre a bomba nos noticiários, mas fiquei sabendo quando o telefone tocou, no dia 19 de fevereiro às duas e quarenta e um da manhã. Eram seis e quarenta e um em Londres e Mark estava morto havia quase um dia. Enquanto Benton Wesley tentava explicar, eu estava tão atordoada que nada daquilo fazia sentido. “Isso foi ontem, li sobre isso ontem. Jogaram outra bomba?” “A explosão foi ontem de manhã na hora do rush. Mas só agora fiquei sabendo do Mark. O adido jurídico dos Estados Unidos em Londres notificoume agora.” “Você tem certeza? Certeza absoluta?” “Meu Deus, lamento, Kay.” “Identificaram o Mark? Eles têm certeza?” “Identificaram. Têm certeza.” “Você não tem nenhuma dúvida. Quer dizer…” “Kay. Estou em casa. Em uma hora posso estar aí.” “Não, não.” Tremia inteira mas não conseguia chorar. Perambulei pela casa, gemendo baixo e torcendo as mãos.
“Mas, doutora Scarpetta, a senhora não conhecia esse Charles Hale antes de ele ser ferido pela bomba. Por que iria lhe dar dez mil dólares?” Patterson dava pancadinhas na testa com um lenço. “Ele e a mulher queriam ter filhos e não podiam.” “E como a senhora soube de pormenores tão íntimos acerca de dois estranhos?” “Benton Wesley me contou, e quando soube recomendei Bourne Hall, a principal instituição de pesquisa para fertilização in vitro. A FIV não é coberta pelo seguro de saúde estatal.” “Mas a senhora disse que a explosão foi em fevereiro. A remessa bancária
foi feita só em novembro.” “Eu só fiquei sabendo do problema dos Hale no último outono, quando o FBI mandou umas fotografias para que o senhor Hale reconhecesse e então ficou de algum modo a par das dificuldades dele. Havia muito tempo eu dissera a Benton que me informasse se houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer pelo senhor Hale.” “A senhora assumiu o financiamento da fertilização in vitro de estranhos?” Pelo tom de Patterson, parecia que eu havia dito que acreditava em gnomos. “Foi.” “A senhora é uma santa, doutora Scarpetta?” “Não.” “Então por favor explique seus motivos.” “Charles Hale tentou ajudar Mark.” Patterson patinava no mesmo lugar. “Tentou ajudá-lo? Tentou ajudá-lo a comprar um bilhete ou a pegar um trem ou a encontrar o banheiro dos homens? O que a senhora quer dizer exatamente?” “Mark ficou algum tempo inconsciente, e Charles Hale estava gravemente ferido no chão, ao lado dele. Tentou tirar os escombros de cima dele. Falou com ele, tirou o paletó e o enrolou em torno… Tentou deter a hemorragia. Fez tudo o que pôde. Nada o teria salvado, mas ele não ficou sozinho. Sou tão grata por isso. Agora vai haver uma nova vida no mundo, e estou feliz por ter conseguido fazer alguma coisa em troca. É um conforto. Isso, pelo menos, tem algum sentido. Não. Não sou santa. A necessidade era minha também. Quando ajudei os Hale estava me ajudando.” A sala estava tão silenciosa que parecia vazia. A mulher de batom vermelho vivo inclinou-se um pouco à ente para atrair a atenção de Patterson. “Imagino que Charlie Hale esteja lá na Inglaterra. Mas será que poderíamos chamar Benton Wesley?” “Não é preciso chamar nenhum deles. Os dois estão aqui”, respondi.
Eu não estava lá para ver quando a presidente informou Patterson de que o grande júri especial decidira não oferecer denúncia. Também não estava quando comunicaram isso a Grueman. Assim que acabei de depor, eu saí freneticamente à procura de Marino. “Vi quando ele saiu do banheiro uma meia hora atrás”, disse um policial uniformizado que encontrei fumando um cigarro perto de um bebedouro. “Será que você pode tentar encontrá-lo pelo rádio?” Dando de ombros, ele soltou o rádio do cinto e pediu à operadora para chamar Marino. Marino não respondia. Desci as escadas e saí, andando depressa. Quando cheguei ao carro, tranquei as portas e liguei o motor. Peguei o telefone e tentei falar com a chefia da polícia, que ficava em ente ao foro. Enquanto um detetive de plantão me
informava que Marino não estava, percorri o estacionamento dos fundos procurando o Ford LTD branco de Marino. Não estava lá. Estacionei numa vaga reservada que estava vazia e telefonei para Neils Vander. “Você está lembrado do assalto na Franklin — das impressões digitais que você examinou outro dia e que correspondiam às do Waddell?”, perguntei. “O assalto em que o colete de pato-do-norte foi roubado?” “Esse mesmo.” “Sei.” “O cartão com as digitais da vítima foi entregue para verificação nos arquivos?” “Não, esse eu não recebi. Só as impressões latentes recolhidas no local.” “Obrigada, Neils.” Em seguida liguei para a operadora. “Você pode me dizer se o tenente Marino já está na rede?” “Já está na rede”, respondeu ela depois de algum tempo. “Escute, veja se consegue entrar em contato com ele e saber onde ele está. Diga a ele que é a doutora Scarpetta e que é urgente.” Um minuto mais tarde, talvez, a voz da operadora voltou à linha: “Está nas bombas do município”. As bombas de gasolina usadas pela polícia da cidade ficavam num árido quadrilátero de asfalto rodeado por uma cerca de arame. O próprio motorista devia se servir. Não havia entista, banheiro ou máquinas de moedas, e o único jeito de limpar o para-brisa era com limpa-vidros e toalhas de papel trazidos de casa. Quando parei ao lado de Marino, ele estava enfiando o cartão de gasolina na bolsa lateral, onde sempre o guardava. Ao me ver, saiu do carro e deu a volta até minha janela. Ele não conseguia esconder um sorriso. “Ouvi agora a notícia pelo rádio. Cadê o Grueman? Quero apertar a mão dele.” “Deixei-o no foro com o Wesley. O que aconteceu?” De repente, eu estava me sentindo leve. “Você não está sabendo?”, perguntou ele, incrédulo. “Porra, doutora. Largaram você, só isso. Que eu me lembre, só uma ou duas vezes em minha carreira um grande júri especial decidiu não denunciar.” Respirei fundo e balancei a cabeça. “Acho que devia estar dançando a giga. Mas não estou com vontade.” “Acho que eu também não dançaria.” “Marino, como era o nome daquele homem que reclamou que seu colete de pato-do-norte tinha sido roubado?” “Sullivan. Hilton Sullivan. Por quê?” “Durante meu depoimento, o Patterson fez a aontosa acusação de que eu poderia ter usado um revólver do laboratório de armas de fogo para atirar na Susan. Em outras palavras, há sempre um risco envolvido no uso de uma
arma própria, pois, se houver verificação e ficar provado que foi ela que disparou, vai ser preciso explicar muita coisa.” “O que isso tem a ver com o Sullivan?” “Quando ele se mudou para aquele apartamento?” “Não sei.” “Se eu fosse matar alguém com meu Ruger, seria bem esperta se comunicasse seu roubo à polícia antes de cometer qualquer crime. Aí, se, por alguma razão, a arma for recolhida pela polícia — se, por exemplo, a situação esquentar e eu resolver jogá-la fora —, os tiras podem me descobrir pelo número de série, mas com a queixa do roubo já registrada posso provar que a arma não estava em meu poder no momento do crime.” “Você está sugerindo que Sullivan falsificou a queixa? Que encenou o assalto?” “Estou sugerindo que você pense nisso. É muito estranho ele não ter alarme contra roubo e deixar a janela destrancada. É muito estranho ele ter sido desagradável com os tiras. Tenho certeza de que todos adoraram vê-lo ir embora, que ninguém ia pensar na chateação de colher suas digitais para verificação nos arquivos. Ainda mais por que ele estava de branco e reclamando sem parar, dizendo que havia pó por toda parte. O que eu pergunto é: como você sabe que as impressões digitais deixadas no apartamento do Sullivan não eram as do próprio Sullivan? Ele mora lá. As impressões dele devem estar por todo lado.” “No Sida elas bateram com as do Waddell.” “Claro.” “Se o caso é esse, então por que Sullivan chamaria a polícia quando leu aquela reportagem sobre o pato-do-norte que plantamos no jornal?” “Como diz o Benton, esse cara adora jogar. Gosta de enganar as pessoas. Patina de lado pela sensação.” “Merda. Me empresta seu telefone.” Deu a volta para o lado do passageiro e entrou. Discou o auxílio à lista e obteve o número do edifício onde Sullivan morava. Quando o zelador atendeu, Marino perguntou quanto tempo fazia que Sullivan comprara o apartamento. “Mas então quem é?”, perguntou Marino, e escreveu algo num bloquinho. “Qual é o número? Dá para que rua? Está bem. Ele tem carro? Tá, se o senhor tem.” Quando desligou, Marino olhou para mim. “Meu Deus, o gracinha não é dono do apartamento coisa nenhuma. O apartamento é de um empresário, que o aluga. O Sullivan começou a morar lá na porra da primeira semana de dezembro. Pagou o depósito no dia 6, para ser exato.” Abriu a porta do carro, acrescentando: “E dirige um furgão Chevrolet azul-escuro. Um velho, sem janelas”. Marino foi dirigindo atrás de mim até a chefia de polícia. Deixamos meu
carro em sua vaga. Arrancamos pela rua Larga, a caminho da Franklin. Marino ergueu a voz sobre o barulho do motor: “Espero que o zelador não tenha dito nada a ele”. Diminuiu a velocidade e estacionou em ente a um edifício de oito andares. “O apartamento dele é nos fundos, ele não pode nos ver”, explicou, olhando em torno. Meteu a mão embaixo do assento e apanhou o 9 milímetros que ficaria como reserva para o 357 do coldre que tinha debaixo do braço. Enfiou a pistola atrás das calças, pôs um pente extra no bolso e abriu a porta. “Se começar a guerra, eu jogo para você meu 357 e uns carregadores rápidos. Vai ser bom se você for boa de tiro como o Patterson anda dizendo. Fique atrás de mim o tempo todo.” No alto dos degraus, tocou a campainha da porta da rua do edifício. “Com certeza ele não vai estar em casa.” Num momento a fechadura rangeu e a porta se abriu. Um velho de vastas sobrancelhas grisalhas se identificou como o zelador do edifício com quem Marino falara antes ao telefone. “O senhor sabe se ele está em casa?”, perguntou Marino. “Não faço ideia.” “Vamos subir e verificar.” O zelador apontou para a esquerda. “Não precisa subir porque é neste andar. Siga esse corredor e vire no primeiro à esquerda. É um apartamento de canto, no fim. Número 17.” O edifício tinha um certo luxo, tranquilo mas cansado, que lembrava velhos hotéis onde ninguém mais quer ficar porque os quartos são muito pequenos e a decoração escura demais e meio gasta. Vi pontas de cigarro no espesso carpete vermelho, e os lambris estavam quase pretos. O apartamento de Hilton Sullivan era identificado por um pequeno 17 de latão. Não havia olho mágico, e, quando Marino bateu, ouvimos passos. “Quem é?”, perguntou uma voz. “Manutenção. Para mudar o filtro do aquecimento”, disse Marino. A porta se abriu, e, no momento em que vi os penetrantes olhos azuis na esta e em que eles me viram, perdi o fôlego. Hilton Sullivan tentou bater a porta, mas o pé de Marino não deixou. “Saia para o lado!”, gritou Marino para mim, enquanto sacava o revólver e se inclinava o máximo possível para não ficar na frente do vão da porta. Saí correndo pelo corredor enquanto ele abria a porta com um pontapé e ela batia na parede interna. Com o revólver engatilhado, Marino entrou. Esperei amedrontada por uma luta ou um tiroteio. Passaram-se vários minutos. Depois ouvi Marino dizendo algo no rádio portátil. Reapareceu suando, com o rosto vermelho de raiva. “Não acredito. Ele pulou pela janela como um coelho e não deixou rastro. Filho da puta. O furgão está parado bem ali no estacionamento. Fugiu a pé
para algum lugar. Dei um alerta para as unidades desta área.” Enxugou o rosto na manga, lutando para recuperar o fôlego. “Achei que ele fosse uma mulher”, murmurei. “Hein?” Marino fitou-me. “Quando fui visitar a Helen Grimes, ele estava na casa dela. Olhou pela porta uma vez quando estávamos conversando na entrada. Pensei que fosse uma mulher.” “O Sullivan estava na casa da Helen, a Huna?”, exclamou Marino. “Tenho certeza de que estava.” “Meu Deus do céu. Isso não faz nenhum sentido.” Mas fez sentido quando começamos a examinar o apartamento de Sullivan. Estava mobiliado elegantemente, com antiguidades e tapetes finos, que Marino disse pertencerem, segundo o zelador, ao proprietário, não a Sullivan. Sons de jazz saíam do quarto, onde encontramos o colete azul acolchoado de Sullivan sobre a cama, ao lado de uma camisa creme de veludo riscado e um par de jeans desbotados e cuidadosamente dobrados. Na cômoda de mogno, estavam um boné verde e um par de óculos escuros, assim como uma camisa azul de uniforme meio dobrada que ainda exibia acima do bolso do peito a plaquinha com o nome de Helen Grimes. Embaixo da camisa havia um envelope grande com fotografias, que Marino examinou enquanto eu olhava em silêncio. “Puta merda”, murmurava Marino a cada minuto. Em mais de uma dúzia delas, Hilton Sullivan estava nu e atado, e Helen Grimes era a guarda sádica. Uma imagem favorita parecia ser a de Sullivan sentado numa cadeira enquanto ela representava o papel de interrogadora, subjugando-o por trás ou aplicando-lhe outros castigos. Ele era um rapaz louro extraordinariamente bonito, com um corpo magro que me pareceu ser surpreendentemente forte. Ágil certamente ele era. Achamos uma fotografia do corpo ensanguentado de Robyn Naismith apoiado contra a televisão na sala de visitas e outra com ela numa mesa de aço do necrotério. Mas o que me impressionou mais que tudo isso foi o rosto de Sullivan. Era absolutamente despido de expressão, com olhos ios como eu imaginava que seriam quando ele estava matando. “Talvez dê para entender por que Donahue gostava tanto dele. Alguém estava tirando essas fotografias. A mulher de Donahue me contou que o passatempo dele era a fotografia”, disse Marino, guardando as fotografias no envelope. “Helen Grimes tem de saber quem é realmente Hilton Sullivan”, disse eu ouvindo as sirenes. Marino olhou pela janela. “Bom. Lucero chegou.” Examinei o colete acolchoado que estava sobre a cama e vi uma suave pena branca saindo por uma falha mínima na costura.
Ouvimos mais carros chegando. Portas de automóvel batiam. “Estamos saindo. Não se esqueçam de apreender o furgão azul”, disse Marino quando Lucero chegou. Voltou-se então para mim. “Doutora, você se lembra do caminho para a toca da Helen Grimes?” “Lembro.” “Vamos falar com ela.”
Helen Grimes não tinha muito o que dizer. Quando chegamos à sua casa, aproximadamente quarenta e cinco minutos depois, encontramos a porta destrancada e entramos. A calefação estava ligada no máximo e em qualquer lugar do mundo eu reconheceria aquele cheiro. “Santo Deus”, disse Marino quando entrou no quarto. O corpo sem cabeça estava de uniforme e sentado numa cadeira encostada à parede. Só três dias mais tarde o granjeiro do outro lado da estrada encontrou o resto. Não sabia por que alguém deixaria uma bolsa de boliche num de seus pastos. Teria preferido, porém, nunca tê-la aberto.
Epílogo
O jardim dos fundos da casa de minha mãe estava metade na sombra e metade no sol brando, e o hibisco vermelho crescia despoticamente num dos dois lados da porta de tela. O pé de lima próximo à cerca estava coberto de utas, quando os de praticamente toda a vizinhança estavam nus ou mortos. Era um fato que eu não conseguia entender, pois não sabia que era possível manter a saúde das plantas através de observações críticas. Pensava que era necessário falar-lhes delicadamente. “Katie?”, chamou minha mãe da janela da cozinha. Ouvi a água que tamborilava na pia. Era inútil responder. Lucy comeu minha rainha com uma torre. “Detesto jogar xadrez com você, entende?”, eu disse. “Então por que você vive me convidando?” “Eu convidando você? Você me obriga, e um jogo só nunca é suficiente.” “Isso é porque fico dando deixas para você. Mas você perde sempre.” Estávamos sentadas uma em ente à outra na mesa do pátio. O gelo de nossas limonadas se derretera e minha pele já ardia um pouco. “Katie? Você e Lucy querem sair daqui a pouco e pegar o vinho?”, disse minha mãe da janela. Podia ver-lhe a forma da cabeça e o desenho redondo de seu rosto. Portas de armários foram abertas e fechadas; em seguida ouvimos a campainha aguda do telefone. Era para mim, e minha mãe simplesmente pôs o aparelho sem fio do lado de fora da porta. “É o Benton. Estou vendo nos jornais que o tempo aí está ótimo. Aqui está chovendo, e estamos com deliciosos sete graus”, disse aquela voz conhecida. “Não me faça sentir saudade.” “Kay, acho que identificamos. Aliás, alguém teve um trabalho danado. Identidades falsas — boas. Pôde ir a uma casa de armas e alugar um apartamento sem ninguém perguntar nada.” “Onde ele arranjava dinheiro?” “Da família. Com certeza tinha algum guardado. Enfim, depois de olhar todos os registros das prisões e de falar com um monte de gente, me parece que Hilton Sullivan é o nome falso de um homem de trinta e um anos chamado Temple Brooks Gault, de Albany, na Geórgia. O pai tem uma fazenda de nozes e eles têm dinheiro à beça. O Gault de certo modo é típico — interessado em armas de fogo, artes marciais, pornografia violenta. É antissocial etc.” “Em que coisas é atípico?”
“A conduta dele mostra que é completamente imprevisível. Na verdade, Kay, não se ajusta a perfil nenhum. O cara não está no mapa. Se alguma coisa lhe dá na telha, ele faz. É um narcisista e um vaidoso rematado — o cabelo, por exemplo. Ele mesmo clareia. Achamos o descolorante, as tinturas e tudo o mais no apartamento. Tem umas incongruências, bom, estranhíssimas.” “Como por exemplo?” “Usava aquele furgão velho todo arrebentado que tinha sido de um pintor de paredes. Parece que Gault nunca se preocupou em lavá-lo ou limpá-lo, nem mesmo depois de assassinar Eddie Heath lá dentro. Por sinal, encontramos pistas ótimas, e restos de sangue que correspondem ao tipo do de Eddie. Nisso ele é desorganizado. Só que esse mesmo Gault extirpou as marcas de dentada e trocou as digitais. Ou seja, ele também é organizado pra burro.” “Qual é o prontuário dele, Benton?” “Uma condenação por homicídio. Dois anos e meio atrás brigou com um homem num bar e chutou a cabeça dele. Isso foi em Abingdon, na Virgínia. Gault, aliás, é faixa preta de caratê.” Eu olhava Lucy preparar o tabuleiro de xadrez. “Alguma novidade na busca?” “Não. Mas vou repetir o que já falei a todos os envolvidos neste caso. O cara não tem medo nenhum. É guiado por impulsos e, por isso, é complicado de prever.” “Entendo.” “Trata-se de tomar cuidado o tempo todo.” Pensei que não havia como tomar cuidado com alguém assim. “Precisamos todos ficar de olhos bem abertos.” “Entendo”, repeti. “Donahue não sabia onde estava se metendo. Ou melhor, Norring não sabia. Embora eu não ache que nosso bom governador tenha escolhido esse tarado. Ele só queria a porra da pasta e com certeza deu ao Donahue o dinheiro necessário e o encarregou de cuidar do assunto. Não vamos conseguir nenhuma pena pesada para o Norring. Ele foi cuidadoso demais, e muita gente já não está aqui para falar.” Fez uma pausa, e acrescentou: “Claro, tem seu advogado e eu”. “O que você quer dizer?” “Fui bem claro — de um modo sutil, evidentemente — que seria uma puta pena se alguma coisa vazasse sobre a pasta roubada da casa de Robyn Naismith. Grueman também teve uma conversinha com ele e disse que o Norring ficou meio inquieto quando foi mencionado que devia ter sido uma experiência desagradável ir à emergência na noite anterior à morte da Robyn.” Verificando velhos recortes de jornais e falando com contatos em várias
salas de emergência da cidade, eu descobrira que, na noite anterior à morte de Robyn, Norring fora tratado na emergência do Hospital das Clínicas de Henrico depois de injetar epineina na própria coxa esquerda. Aparentemente soera uma reação alérgica violenta por causa de uma comida chinesa, cujas embalagens, pelo que me recordava das reportagens dos jornais, tinham sido encontradas no lixo de Robyn Naismith. Minha teoria era que, sem querer, haviam misturado camarão ou algum marisco nos rolinhos-primavera ou em outra coisa que ele e Robyn tinham comido no jantar. Ele tinha começado a ter um choque anafilático, usara uma das EpiPens — talvez alguma que guardasse na casa de Robyn — e depois tinha ido sozinho em seu carro até o hospital. Na aflição, saíra sem a pasta. “Só quero que Norring fique o mais longe possível de mim”, eu disse. “Bom, parece que ultimamente ele tem tido problemas de saúde e decidiu que era melhor demitir-se e procurar uma coisa menos cansativa no setor privado. Talvez na costa Oeste. Tenho certeza de que ele não vai incomodar você. Ben Stevens também não vai incomodar você. Para começo de conversa, ele — como o Norring — anda ocupadíssimo fugindo do Gault. Vamos ver. Da última vez que ouvi falar no Stevens, ele estava em Detroit. Você sabia?” “Você o ameaçou também?” “Kay, eu nunca ameaço ninguém.” “Benton, você é um dos homens mais ameaçadores que já encontrei na vida.” “Isso quer dizer que você não vai trabalhar comigo?” Lucy estava tamborilando com os dedos na mesa e descansava o queixo na mão. “Trabalhar com você?” “Na verdade é por isso que estou ligando, e sei que você vai precisar pensar sobre o assunto. Mas gostaria que você se juntasse aos bons como consultora da Seção de Ciências do Comportamento. Coisa de uns dois dias por mês — em princípio. Claro, vai haver ocasiões em que as coisas vão ficar muito loucas. Você podia rever os dados médicos e jurídicos dos casos para nos assessorar no levantamento dos perfis. Suas interpretações seriam muito úteis. E, além disso, você com certeza sabe que o doutor Elsevier, nosso médico-legista consultor há cinco anos, vai se aposentar em 1o de junho.” Lucy derramou a limonada na grama, levantou-se e começou a se alongar. “Tenho de pensar, Benton. Em primeiro lugar, minha repartição ainda está um caos. Dê-me um tempo para contratar um novo superintendente para o necrotério e um novo administrador e pôr as coisas nos trilhos novamente. Quando você precisa de uma resposta?” “Março?” “Está bem. Lucy está mandando um abraço.” Quando desliguei, Lucy olhava para mim de modo desafiador. “Por que você
diz um troço desses quando não é verdade? Não mandei abraço nenhum para ele.” Levantei-me. “Mas você estava louca para mandar. Vi logo.” Minha mãe estava de novo à janela. “Katie? Você tem de entrar. Ficou fora a tarde toda. Lembrou-se de passar o creme?” Lucy gritou: “Estamos na sombra, vovó. Lembra aquele fícus enorme que tem aqui?”. “A que horas sua mãe disse que ia voltar?”, perguntou minha mãe à neta. “Assim que ela e o Zé Mané terminarem de transar, eles vêm para cá.” O rosto de minha mãe desapareceu da janela e a água tornou a tamborilar na pia. “Lucy”, sussurrei. Ela bocejou e foi para a beira do jardim para receber um raio de sol fugitivo. Voltando o rosto para ele, fechou os olhos. “Você vai aceitar, não é, tia Kay?”, perguntou. “Aceitar o quê?” “Essa coisa que o Wesley estava lhe pedindo para fazer.” Comecei a pôr as peças de xadrez de volta na caixa. “Seu silêncio é uma resposta estrondosa. Conheço você. Você vai aceitar”, disse minha sobrinha. “Vamos lá. Vamos pegar o vinho”, eu disse. “Só se eu puder beber um pouco.” “Só se você não for dirigir hoje à noite.” Ela passou o braço pela minha cintura e entramos em casa.Dawson.” Seus olhos se encheram de lágrimas. Ouvi os passos de Marino na escada. Ele logo entrou na cozinha e Dawson, angustiado, murmurou a frase de novo. Marino olhou-o desconcertado. “Acho que seu filho chegou.” O pai de Susan começou a chorar descontroladamente enquanto as portas de um automóvel batiam na escuridão do inverno e ouviram-se risadas na entrada da casa. O jantar de Natal foi para o lixo e passei a noite andando pela casa e falando ao telefone enquanto Lucy permanecia no escritório com a porta fechada. Providências tinham de ser tomadas. O homicídio de Susan provoEle baixou os olhos. “Criança é egoísmo. O egoísmo sente intensamente, chora, não consegue controlar as emoções. Às vezes é melhor mandar o egoísmo para o quarto, como eu fiz com a Hailey agora há pouco. Para ele sossegar. Um truque que aprendi. Aprendi quando era menino, tinha de aprender; meu pai não reagia bem quando eu chorava.” “Chorar não tem nada de mais, reverendo cara uma crise na repartição. O caso dela tinha de ser sigiloso, e os fotógrafos mantidos longe de quem a houvesse conhecido.
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A polícia tinha de examinar sua sala e seu armário. Queria interrogar membros da minha equipe. “Não posso ir até lá”, explicou-me ao telefone Fielding, meu subchefe. “Compreendo”, eu disse, com um nó na garganta. “Não espero nem quero que ninguém vá até lá.” “E você?” “Eu tenho de ir.” “Meu Deus. Não acredito que isso tenha acontecido. Não acredito.” O dr. Wright, meu subchefe em Norfolk, gentilmente concordou em vir a Richmond na manhã seguinte. Como era domingo, ninguém mais estava no edifício, salvo Vander, que viera ajudar com a Luma-Lite. Se eu estivesse emocionalmente capaz de fazer a autópsia de Susan, teria recusado. A pior coisa que eu podia lhe fazer era correr o risco de que a defesa contestasse a objetividade e a opinião de um perito que também fosse seu chefe. Assim, sentei-me a uma escrivaninha no necrotério enquanto Wright trabalhava. De vez em quando, enquanto olhava a parede de cimento, eu ouvia um comentário qualquer queincompleto. Poucos pontinhos e alguma pólvora, mas a maior parte deve ter se perdido no cabelo. Tem um pouco de pólvora no músculo temporal. Muito pouco em ossos ou cartilagens.” “E a trajetória?”, perguntei. “A bala entrou pela face posterior do lóbulo frontal direito, atravessou a anterior, passou pelos gânglios basais, atingiu o osso temporal esquerdo e ficou presa no músculo debaixo da pele. É uma bala simples de chumbo, humm, revestida de cobre mas não encapsulada.” “E se fragmentou?”, indaguei. “Não. Agora temos esse segundo ferimento na nuca. Preto, margem queimada, com a marca do cano. Uma pequena laceração com mais ou menos dois décimosmedular. Subiu até a articulação entre o frontal e o parietal.” “Que ângulo foi?”, perguntei. “Bem inclinado para cima. Eu diria que ela estava sentada no carro quando recebeu esse ferimento, devia estar caída para a frente ou  ele havia me dirigido, junto com o tilintar dos instrumentos de metal e da água que corria. Não toquei em nenhum documento nem etiquetei um tubo que fosse. Não me virei para olhar. Uma vez perguntei: “Você sentiu algum cheiro nela ou na roupa? De água-de-colônia?” Ele parou o que estava fazendo e ouvi que dava vários passos. “Sim. Exatamente em torno da gola do casaco e  de centímetro nas bordas. Muita pólvora nos músculos occipitais.” “Contato direto?” “É. Parece que ele apertou forte o cano no pescoço. A bala entrou na junção do orifício magno com o C-1 e pegou a junção cervical-no lenço.”
“Você acha que parece colônia de homem?” “Humm. Acho que sim. É, eu diria que é uma fragrância masculina. Quem sabe o marido usa água-de-colônia?” Wright estava quase em idade de se aposentar; era um homem barrigudinho e calvo e tinha sotaque da Virgínia Ocidental. Era um patologista legal muito competente e sabia exatamente o que estava vendo. “Boa pergunta”, eu disse. “Vou pedir ao Marino para verificar. Mas o marido ontem estava doente e foi para a cama depois do almoço. Isso não quer dizer que ele não tivesse posto a colônia. Não quer dizer que o pai ou o irmão não estivessem usando a água-de-colônia, que passou para a gola dela quando a beijaram.” “Parece calibre pequeno. Não há orifícios de saída.” Fechei os olhos e escutei. “O ferimento da fronte direita tem quatro décimos de centímetro com um centímetro de fumaça — um padrão estava com a cabeça abaixada.”
“Ela não foi encontrada assim. Estava encostada no banco.” “Então acho que ele a arrumou desse jeito”, comentou Wright. “Depois que atirou. E eu diria que esse tiro que atravessou a articulação foi o último. Para mim ela já estava sem reação, com certeza caída, quando levou o segundo tiro.” De vez em quando eu podia aguentar, como se não nos referíssemos a alguém que eu conhecera. Depois sentia um tremor e as lágrimas acabavam por arrebentar. Duas vezes tive de sair para o frio do estacionamento. Quando ele chegou ao feto de dez semanas, uma menina, fugi para minha sala. De acordo com a lei da Virgínia, o nascituro não era pessoa e assim não podia ser morto, porque é impossível matar o que não é pessoa. “Duas pelo preço de uma”, comentou amargamente Marino, mais tarde, ao telefone. “Eu sei”, respondi-lhe, tirando um vidro de aspirina do bolso. “No tribunal ninguém vai dizer à merda dos jurados que Susan estava grávida. Não entra no caso, não faz diferença ele ter matado uma mulher grávida.” “Eu sei”, repeti. “O Wright está quase terminando. No exame externo não apareceu nada importante. Não se pode falar em pista, nada que tenha chamado a atenção. E do seu lado, o que há?” “Está claro que a Susan estava com algum problema.” “Problemas com o marido?” “Segundo ele, o problema dela era com você. Disse que você estava sacaneando, telefonando muito para ela em casa, ameaçando-a. E que às vezes ela vinha do trabalho meio pirada, como se estivesse se borrando de medo de alguma coisa.” “Susan e eu não tínhamos problema nenhum.” Tomei três aspirinas com um gole de café frio. “Só estou falando para você o que o cara disse. Outra coisa — acho que você vai achar isso interessante: parece que estamos com outra pluma. Não estou dizendo que o caso da Deighton tenha alguma relação com este, doutora, ou que eu pense assim. Mas, porra. Pode ser que a gente esteja lidando com algum pinta-brava que use luvas acolchoadas com plumas, ou uma jaqueta. Não sei. Não é comum. A única outra vez que encontrei plumas foi quando o elemento entrou numa casa quebrando o vidro e cortou a jaqueta num caco.” Minha cabeça doeu tanto que senti náuseas. “A que achamos no carro da Susan é bem pequenininha — um pedacinho de pluma branca”, prosseguiu. “Estava presa na forração da porta do passageiro. Do lado de dentro, perto do chão, uns centímetros abaixo do descanso do braço.”
“Você pode me passar isso?” “Posso. O que você vai fazer?” “Chamar o Benton.” “Droga, já tentei. Parece que ele e a mulher viajaram.” “Preciso perguntar a ele se Minor Downey pode nos ajudar.” “Isso é gente ou amaciante de tecido?” “Minor Downey é um perito em pelos e fibras dos laboratórios do FBI. A especialidade dele é análise de penas.” “E o nome dele é mesmo Downey?” Marino estava incrédulo.* “É sim.”
 
 
 
 
* Em inglês, down significa “pluma”. (N. T.)
8
O telefone tocou por muito tempo na Seção de Ciências do Comportamento do FBI, instalada no subsolo da Academia, em Quantico. Eu podia imaginar seus corredores ios e confusos e suas salas consteladas de lembranças de guerreiros refinados como Benton Wesley, que, segundo tinham me dito, fora esquiar. “Na verdade no momento estou sozinho aqui”, disse o afável agente que atendeu o telefone. “Aqui fala a doutora Kay Scarpetta e tenho urgência em encontrá-lo.” Benton Wesley me telefonou quase imediatamente. “Benton, onde você está?”, perguntei erguendo a voz. Havia uma estática terrível. “No meu carro. Connie e eu passamos o Natal com a família dela em Charlottesville. Estamos um pouco mais a oeste, a caminho de Hot Springs. Soube do que aconteceu com Susan Story. Meu Deus, que horror. Ia telefonar para você à noite.” “Sua voz está sumindo. Quase não consigo te ouvir.” “Espere um pouco.” Esperei impacientemente durante um longo minuto. Aí ele voltou. “Agora está melhor. Estamos numa região baixa. Escute, o que você quer comigo?” “Preciso da ajuda do FBI na análise de umas penas.” “Não tem problema. Vou ligar para o Downey.” “Preciso falar com você”, eu disse com grande relutância, pois sabia que o estava envolvendo. “Acho que não dá para esperar.” “Aguenta um pouco.” Daquela vez a pausa não se devia à estática. Ele estava conversando com a mulher. “Você sabe esquiar?”, voltou a voz. “Mais ou menos.” “Connie e eu estamos indo passar uns dias no Homestead. A gente podia conversar lá. Você pode se afastar uns dias?” “Vou mover céus e terras. Lucy vai comigo.” “Ótimo. Ela e Connie podem dar umas voltas enquanto a gente conversa. Vou reservar um quarto para vocês quando a gente chegar. Você pode trazer algum material para eu dar uma olhada?” “Levo.”
“Inclusive tudo o que você tiver sobre o caso da Robyn Naismith. Vamos cobrir tudo o que for possível.” “Obrigada, Benton. E agradeça à Connie, por favor”, eu disse, agradecida. Decidi sair imediatamente da repartição, sem maiores explicações. “Vai ser bom para você”, disse Rose, anotando o número do Homestead. Ela não sabia que minha intenção não era descansar numa estação de férias cinco estrelas. Quando lhe pedi que informasse Marino onde eu estaria, para que ele pudesse entrar imediatamente em contato comigo se houvesse novidades no caso de Susan, seus olhos por um instante brilharam de lágrimas. “Por favor, não diga para mais ninguém onde eu estou”, acrescentei. “Nos últimos vinte minutos três repórteres ligaram. Inclusive o Washington Post.” “Agora não vou discutir o caso de Susan. Diga a eles o de sempre, que estamos esperando os resultados do laboratório. Diga só que estou fora da cidade e que não dá para falar comigo.” Dirigindo rumo ao leste pelas montanhas, eu era assaltada por imagens. Vi Susan com o uniforme folgado e os rostos da mãe e do pai quando Marino lhes contara que a filha havia morrido. “Você está se sentindo bem?”, perguntou Lucy. Desde que saíramos de casa ela me olhava a cada minuto. “Só estou preocupada”, respondi, concentrando-me na estrada. “Você vai adorar esquiar. Acho que vai ser boa nisso.” Ela olhava em silêncio pela janela. O céu estava com a cor de jeans desbotado e as montanhas se levantavam ao longe, salpicadas de neve. “Desculpe. Parece que toda vez que você vem me visitar acontece alguma coisa e não posso lhe dar muita atenção”, acrescentei. “Não preciso de muita atenção.” “Um dia você vai entender.” “Pode ser que eu também seja assim com meu trabalho. Aliás, pode ser que tenha aprendido com você. Com certeza também vou ser bem-sucedida como você.” Meu espírito estava pesado como chumbo. Ainda bem que eu estava usando óculos escuros. Não queria que Lucy visse meus olhos. “Sei que você gosta de mim. Isso é que é importante. Sei que minha mãe não gosta de mim”, disse minha sobrinha. “Dorothy gosta de você tanto quanto pode gostar de alguém.” “Absolutamente certo. Tanto quanto pode, o que não é muito, porque não sou homem. Ela só gosta de homem.” “Não, Lucy. Na verdade sua mãe não gosta de homem. Os homens são um sintoma de sua busca obsessiva de alguém que a faça feliz. Ela não entende que tem de se encontrar primeiro.” “A única coisa que ela sempre encontra são babacas.”
“É, a média dela não tem sido boa.” “Não vou viver assim. Não quero ser como ela.” “Você não é como ela.” “Li no folheto que aonde a gente vai tem tiro ao alvo.” “Tem de tudo lá.” “Você trouxe algum revólver?” “No tiro ao alvo você não atira com revólver, Lucy.” “Se você for de Miami, atira.” “Se você não parar de bocejar eu também começo.” “Por que você não trouxe uma arma?”, insistiu. O Ruger estava na mala, mas eu não pretendia lhe contar. “Por que você está tão preocupada com minha arma?”, perguntei. “Quero ser boa nisso. Até acertar no doze do relógio sempre que quiser”, disse ela, sonolenta. Quando ela enrolou a jaqueta para fazer um travesseiro, meu coração doeu. Deitou-se a meu lado, com a cabeça junto de minha coxa. Ela não sabia como era forte minha tentação de mandá-la imediatamente de volta para Miami. Mas pude sentir que ela havia percebido meu medo. O Homestead ficava no meio de quinze mil hectares de florestas e cursos de água nas montanhas Allegheny, e o prédio principal do hotel era de tijolos vermelho-escuros com uma colunata branca. A cúpula branca exibia em cada um dos quatro lados outros tantos relógios sempre sincronizados que podiam ser vistos a quilômetros de distância, e as quadras de tênis e campos de golfe estavam brancos de neve. “Você está com sorte. As condições para o esqui estão ótimas”, eu disse a Lucy enquanto homens airosos em seus uniformes cinzentos vinham em nossa direção. Benton Wesley cumprira com o prometido, e encontramos uma reserva à nossa espera quando chegamos ao balcão da recepção. Ele reservara um quarto duplo com portas de vidro que se abriam para uma sacada que, por sua vez, dava para o cassino, e havia flores dele e de Connie sobre uma mesa. “Encontrem-nos nas pistas. Marquei uma aula para Lucy às três e meia”, dizia o cartão. “Temos de correr”, eu disse a Lucy enquanto abríamos as malas. “Sua primeira aula de esqui vai ser em exatamente quarenta minutos. Experimente esta aqui.” Atirei-lhe um par de calças de esqui vermelhas, e em seguida o blusão, as meias, as mitenes e o suéter, que voaram pelo ar e aterrissaram na cama dela. “Não se esqueça da mochila. O resto a gente arranja depois.” “Não tenho óculos de esqui. Vou ficar ofuscada”, disse ela, enfiando pela cabeça um suéter azul-claro de gola alta. “Você pode usar meus óculos. De todo modo o sol já vai começar a cair.”
Depois de tomar o bondinho que levava às pistas, alugar o equipamento para Lucy e confiá-la ao instrutor, que ficava junto ao teleférico, eram três e vinte e nove. Os esquiadores pareciam pontos brilhantes de cor descendo morro abaixo, e só quando chegavam perto se transformavam em pessoas. Inclinei-me para a ente em minhas botas, os esquis firmados na pista, e, com os olhos protegidos pelas mãos, explorei os cabos e os lis. O sol se aproximava do topo das árvores e a neve faiscava debaixo de seus raios, mas as sombras iam se espalhando e a temperatura caía rapidamente. Só reparei naquele casal por causa da graça de suas evoluções paralelas, os bastões levantados como plumas e a neve adejando pela pista enquanto eles se elevavam e giravam como pássaros. Reconheci a cabeleira prateada de Benton Wesley e ergui a mão. Ele se virou para Connie, gritou algo que não pude ouvir, arrancou e deslizou morro abaixo como uma lâmina, com os esquis tão juntos que duvido que uma folha de papel pudesse passar entre eles. Quando ele se deteve em meio a um redemoinho de neve e puxou os óculos para trás, ocorreu-me subitamente que, ainda que não o conhecesse, eu teria ficado olhando para ele. A malha de esqui preta envolvia pernas musculosas que eu jamais desconfiara estivessem sob as calças de seus ternos conservadores, e a jaqueta que usava me lembrava o pôr do sol em Key West. O rosto e os olhos estavam brilhantes de io, tornando seus traços marcantes mais atraentes que temíveis. Connie parou ao lado dele. “Que bom você estar aqui”, disse Wesley. Eu não conseguia vê-lo ou ouvir sua voz sem me lembrar de Mark. Os dois tinham sido colegas e melhores amigos. Podiam ter passado por irmãos. “E a Lucy?”, indagou Connie. “Ali, dando duro”, apontei. “Espero que você não tenha se incomodado por eu marcar a aula para ela.” “Incomodado? Tenho é que agradecer a você por sua atenção. Ela está adorando.” “Acho que vou ficar aqui e observar um pouco. Depois vou querer beber algo quente e acho que Lucy também vai querer. Ben, parece que você ainda não está satisfeito”, disse Connie. Wesley sugeriu: “Quer dar uma esquiada?”. Enquanto estávamos na fila, trocamos ideias sobre assuntos ívolos, e nos calamos quando o li girou e pudemos sentar. Wesley baixou a barra e o cabo nos puxou lentamente para o cume da montanha. O ar estava alucinante e deliciosamente limpo, cheio de sons suaves de esquis deslizando e chocandose pesadamente com a neve compacta. A neve das máquinas de neve rolava feito fumaça através das árvores, entre as vertentes. “Falei com Downey. Assim que você chegar ao FBI, ele a receberá”, disse ele. “Até que enfim uma boa notícia. Que foi que lhe contaram, Benton?”
“Marino e eu tivemos várias conversas. Parece que vocês estão com vários casos ligados por uma coincidência cronológica curiosa, embora não existam provas de que eles têm alguma relação.” “Acho que é mais que coincidência. Você sabe, a impressão digital de Ronnie Waddell apareceu na casa de Jennifer Deighton.” Ele contemplou um canteiro de sempre-vivas iluminado pelo sol poente. “Sei. Como eu disse ao Marino, espero que haja uma explicação lógica para a impressão digital de Waddell ter aparecido lá.” “A explicação lógica pode muito bem ser que ele tenha estado na casa alguma vez.” “Nesse caso, Kay, estamos lidando com uma situação tão estranha que não consigo entender. Um condenado do corredor da morte solto nas ruas e matando de novo. Teríamos de admitir que outra pessoa tomou o lugar dele na cadeira elétrica na noite de 13 de dezembro. Duvido que houvesse muitos voluntários.” “É, seria improvável.” “O que você sabe da história criminal do Waddell?” “Muito pouco.” “Eu o interroguei há muitos anos, em Mecklemburg.” Olhei para ele com interesse. “Para começar, saiba que ele não ajudou muito, e não quis discutir o assassinato da Robyn Naismith. Alegou que, se a tinha matado, não se lembrava. Não que isso seja incomum. A maioria dos criminosos violentos que interroguei diz que não se lembra bem ou nega que cometeu o crime. Antes de você chegar pedi um fax do protocolo de avaliação do Waddell. Depois do jantar vamos vê-lo.” “Benton, já estou contente por ter vindo.” Nossos ombros mal se tocavam e ele tinha os olhos fixos na distância. Quanto mais subíamos, mais íngreme se tornava o declive a nossos pés. Aí ele disse: “Como você está, Kay?”. “Melhor. Mas ainda há momentos ruins.” “Eu sei. Vai haver sempre. Mas espero que cada vez menos. Vai chegar um dia em que você não vai se sentir assim.” “É. Tem dias em que não sinto nada.” “Já temos uma boa pista sobre o grupo responsável. Achamos que sabemos quem pôs a bomba.” Levantamos a ponta dos esquis e nos inclinamos para a ente enquanto o li nos largava como filhotes de pássaros empurrados do ninho. Minhas pernas estavam duras e frias por causa da subida, e no gelo as trilhas à sombra eram traiçoeiras. Os longos esquis brancos de Wesley desapareciam na neve e ao mesmo tempo refletiam a luz. Ele desceu o declive dançando em nuvens esplêndidas de pó de diamante, e parando de vez em quando para olhar para
trás. Eu acenava para ele levantando um pouco o bastão enquanto dava lânguidas voltas paralelas e flutuava sobre todos aqueles magnatas. No meio do caminho já estava mais ágil e quente, e meus pensamentos voavam em liberdade. Quando escureceu e voltei para o quarto, verifiquei que Marino havia deixado uma mensagem dizendo que estaria no departamento até cinco e meia e pedindo que eu telefonasse assim que pudesse. “O que houve?”, falei quando ele atendeu. “Nada que possa fazer você dormir melhor. Para começo de conversa, Jason Story anda metendo o pau em você para todo mundo — inclusive para os repórteres.” “Ele tem de soltar a raiva de algum modo”, comentei, e meu estado de espírito voltou a ficar sombrio. “Bom, o que ele está fazendo não é boa coisa, mas também não é nosso pior problema. Não estamos conseguindo encontrar as dez fichas com as digitais do Waddell.” “Em nenhum lugar?” “Pois é. Verificamos os arquivos do departamento de polícia, da polícia estadual e do FBI. Quer dizer, todas as jurisdições que deveriam tê-las. Não havia ficha nenhuma. Aí falei com o Donahue na penitenciária para ver se ele dava um jeito de encontrar objetos pessoais do Waddell, como livros, cartas, escova de cabelos, escova de dentes — tudo o que pudesse ser uma fonte de impressões digitais. E sabe o quê? Donahue disse que as únicas coisas que a mãe do Waddell quis foram o relógio e o anel. Todo o resto foi destruído pelo Departamento de Correção.” Sentei-me pesadamente na beira da cama. “E o melhor guardei para o fim, doutora. A Seção de Armas de Fogo deu uma dentro e você não vai acreditar. As balas encontradas no Eddie Heath e na Susan Story eram da mesma arma, um 22.” “Meu Deus.”
Embaixo, no clube Homestead, uma orquestra tocava jazz, mas a plateia era pequena e a música não era tão alta que impedisse a conversa. Connie levara Lucy ao cinema, deixando Wesley e eu sentados a uma mesa num canto deserto da pista de dança. Ambos bebíamos conhaque. Ele não parecia fisicamente tão cansado quanto eu, mas a tensão voltara a seu rosto. Virando-se para trás, apanhou outra vela de uma mesa vazia e juntou-a a duas outras que pedira ao garçom. A luz era irregular mas adequada, e, embora não estivéssemos chamando muita atenção, fomos objeto de alguns olhares. Achei que era um lugar estranho para trabalhar, mas o vestíbulo e o salão de jantar eram muito expostos e Wesley era muito circunspecto para propor que nos encontrássemos em seu quarto ou no meu.
“Temos vários elementos conflitantes. Mas o comportamento humano não é algo rígido. Waddell passou dez anos na prisão. Não sabemos em que ele pode ter mudado. O assassinato de Eddie Heath para mim é um homicídio, o de Susan Story parece ser uma execução, um atentado”, disse ele. “Como se fossem dois criminosos diferentes”, disse eu, brincando com o conhaque. Inclinou-se para a ente, folheando preguiçosamente a pasta com o caso de Robyn Naismith: “Interessante”, disse, sem levantar os olhos. “Você ouve tanta coisa sobre o modus operandi, a assinatura do criminoso. Ele sempre procura um certo tipo de vítima ou escolhe um certo tipo de lugar, ou prefere usar faca, e assim por diante. Mas na verdade nem sempre é assim. Nem o motivo do crime é sempre claro. Eu disse que o homicídio de Susan Story, à primeira vista, não parecia ter motivo sexual. Mas, quanto mais penso nele, mais penso que tem um componente sexual. Acho que esse assassino é perfuracionista.” “Robyn Naismith foi esfaqueada inúmeras vezes.” “Pois é. Eu diria que o que foi feito com ela é como um exemplo de manual. Não houve prova de estupro — o que não quer dizer que ele não tenha ocorrido. Mas não havia esperma. A introdução repetida da faca no abdome, nas nádegas e nos seios foi um substituto da penetração peniana. Caso óbvio de perfuracionismo. Morder já é menos óbvio, acho que não tem relação nenhuma com os componentes orais do ato sexual, mas é mais uma vez um substituto da penetração peniana. Os dentes entrando na carne, o canibalismo, como John Joubert fez com os meninos entregadores de jornal que assassinou em Nebraska. Finalmente temos as balas. Você não associaria balas e penetração, a menos que pensasse sobre isso um pouquinho. Aí a dinâmica, em alguns casos, fica clara. Uma coisa que penetra a carne. Era o caso do filho de Sam.” “Não há prova disso no caso da morte de Jennifer Deighton.” “É verdade. É o que eu estava dizendo. Nem sempre o padrão é claro. Aqui, por exemplo, não estamos falando de um padrão claro, mas há um elemento comum nos assassinatos de Eddie Heath, Jennifer Deighton e Susan Story. Eu diria que são crimes organizados.” “Com Jennifer Deighton, não tão organizado. Parece que o assassino quis fingir que se tratava de suicídio e não conseguiu. Ou talvez ele não tenha desejado matá-la e foi longe demais com a gravata”, assinalei. “A morte dela antes de ser posta no carro provavelmente não estava no programa”, concordou Wesley. “Mas a verdade é que parecia haver um plano. E a mangueira presa no cano de descarga foi cortada com um instrumento afiado que nunca foi encontrado. Ou o assassino trouxe seu próprio instrumento ou arma, ou apanhou e usou qualquer coisa que encontrou na casa. Esse é um comportamento organizado. Mas antes de desenvolvermos
demais nossas teorias, deixe-me dizer-lhe que não temos nenhuma bala calibre 22 ou outro indício que ligue o homicídio de Jennifer Deighton ao do jovem Heath e ao de Susan.” “Acho que temos, Benton. A impressão digital de Ronnie Waddell apareceu numa cadeira da sala de visitas de Jennifer Deighton.” “Não sabemos se foi Ronnie Waddell que espetou os outros dois.” “O corpo de Eddie Heath estava numa posição que lembrava o caso de Robyn Naismith. O menino foi agredido na noite em que Ronnie Waddell ia ser executado. Você não acha que existe uma ligação esquisita?” “Vamos dizer o seguinte: não quero admitir essa hipótese.” “Nem eu nem você queremos. Qual é o seu palpite, Benton?” Com as linhas nítidas do lado esquerdo de seu queixo e os ossos de sua face iluminados pelas velas, ele pediu mais conhaque a uma garçonete. “Meu palpite? Bom. Tenho um palpite muito desagradável sobre isso tudo. Acho que Ronnie Waddell é o denominador comum, mas não sei o que isso significa. Encontraram uma impressão digital dele no local de um crime, mas não conseguimos encontrar a ficha com suas dez impressões digitais ou nenhuma outra coisa que forneça uma identificação positiva. Tampouco tiraram suas impressões digitais no necrotério, e a pessoa que supostamente esqueceu de fazê-lo acabou sendo assassinada com a mesma arma usada contra Eddie Heath. Parece que o advogado de Waddell, Nick Grueman, conhecia Jennifer Deighton; parece mesmo que ela passou um fax para Grueman dias antes de ser assassinada. Finalmente é verdade que há uma semelhança sutil e peculiar entre as mortes de Eddie Heath e Robyn Naismith. Francamente, não posso deixar de especular se a agressão a Heath não teria tido, por alguma razão, uma intenção simbólica.” Ele esperou que as bebidas fossem servidas, depois abriu um envelope de papel pardo que estava anexado à pasta do caso de Robyn Naismith. Aquele pequeno gesto me deu uma ideia que até então não me ocorrera. “Eu devia ter pegado as fotografias dela no arquivo”, eu disse. Wesley virou-se para mim enquanto punha os óculos. “Em casos antigos como esse, os registros em papel foram reduzidos a microfilme e as cópias dos microfilmes estão na pasta que você recebeu. Os documentos originais foram destruídos, mas costumamos guardar as fotografias originais. Elas vão para o arquivo.” “O arquivo é o quê? Uma sala no seu edifício?” “Não, Benton. Um depósito perto da biblioteca estadual — o mesmo depósito onde o Instituto Médico-Legal guarda as provas dos casos antigos.” “Vander ainda não encontrou a fotografia da impressão digital marcada a sangue que Waddell deixou na casa de Robyn Naismith?” “Não”, eu disse, e nossos olhos se encontraram. Nós dois sabíamos que Vander jamais a encontraria.
“Meu Deus, quem conseguiu as fotografias da Robyn Naismith para você?”, disse ele. “Meu administrador, Ben Stevens. Ele foi ao arquivo uma ou duas semanas antes da execução do Waddell.” “Por quê?” “Nos estágios finais do processo de apelação há sempre muitas perguntas, e gosto de ter acesso rápido ao caso ou casos envolvidos. Então é de rotina essa visita ao arquivo. O que é um pouco diferente neste caso é que não tive de pedir ao Stevens para apanhar as fotografias no arquivo. Ele se ofereceu.” “E isso não é normal?” “Pensando bem, acho que não.” “Quer dizer que seu administrador pode ter se oferecido porque estava interessado na pasta do Waddell — ou melhor, na fotografia da digital marcada a sangue que devia estar lá dentro.” “Tudo o que posso dizer com certeza é que, se Stevens quisesse mexer em alguma pasta do arquivo, só poderia fazê-lo se tivesse algum motivo oficial para ir até lá. Se, por exemplo, eu ficasse sabendo que ele tinha estado no arquivo sem que nenhum perito tivesse pedido, a coisa ia parecer estranha.” Prossegui, contando a Wesley a quebra da segurança no computador de minha repartição, explicando-lhe que os dois terminais envolvidos tinham sido o meu e o do Stevens. Enquanto eu falava, Wesley tomava notas. Levantou os olhos para mim quando me calei. “Não parece que eles tenham encontrado o que estavam procurando.” “Acho que não.” “Isso nos leva à questão óbvia. O que eles estavam procurando?” Sorvi lentamente o conhaque. À luz das velas, era como âmbar líquido, e cada gole queimava deliciosamente ao descer. “Talvez alguma coisa relativa à morte de Eddie Heath. Eu estava pesquisando outros casos em que as vítimas pudessem ter marcas de dentes ou lesões canibalísticas, e tinha um arquivo em meu diretório. Fora isso, não posso imaginar o que alguém pudesse estar procurando.” “Você mantém memorandos intradepartamentais no diretório?” “Em termos de processador de textos, um subdiretório.” “E é a mesma senha que dá acesso a esses documentos?” “É.” “E no processador de textos você também guarda relatórios de autópsias e outros documentos relativos aos casos?” “Sim, guardo. Só que quando meu diretório foi invadido não havia nada importante arquivado, que eu me lembre.” “Mas quem entrou não sabia necessariamente disso.” “Claro que não.” “E o relatório da autópsia de Ronnie Waddell, Kay? Quando entraram em
seu diretório, o relatório estava no computador?” “Devia estar. A violação foi na tarde de quinta-feira, 16 de dezembro, quando eu estava autopsiando Eddie Heath e Susan estava em cima, em minha sala, supostamente descansando no divã depois de derramar o formol.” “Intrigante.” Ele anziu a testa. “Admitindo que tenha sido Susan quem entrou no diretório, por que ela estaria interessada no relatório da autópsia do Waddell — se realmente o caso é esse? Ela estava presente durante a autópsia. O que ela podia ler no relatório que já não soubesse?” “Não me ocorre nada.” “Bom, deixe-me dizer isso de outro modo. O que, na autópsia, ela não sabia mesmo tendo estado presente na noite em que o corpo dele foi levado para o necrotério? Ou quem sabe seria o caso dizer: na noite em que um corpo foi levado para o necrotério, já que não temos certeza de que o indivíduo fosse o Waddell”, acrescentou, muito sério. “Ela não teria acesso aos laudos de laboratório. Mas o trabalho de laboratório ainda não estava pronto quando entraram em meu diretório. As análises toxicológica e do HIV, por exemplo, demoram semanas.” “E Susan sabia disso?” “Claro.” “E seu administrador também?” “Também.” “Deve haver outra coisa.” Havia, mas quando me lembrei dela não percebi sua importância. “Waddell — ou fosse quem fosse aquele preso — tinha um envelope no bolso de trás da calça que queria que fosse enterrado com ele. Fielding só ia abrir aquele envelope quando subisse com a papelada depois da autópsia.” “Quer dizer que Susan não tinha como saber qual era o conteúdo do envelope enquanto estava no necrotério naquela noite?”, perguntou Wesley, atento. “É isso mesmo. Não tinha.” “E havia alguma coisa importante no envelope?” “Só vários recibos de restaurante e de pedágio.” Wesley franziu a testa: “Recibos”, repetiu. “Que diabo ele estava fazendo com recibos? Você está com eles aí?” “Estão na pasta.” Apanhei as fotocópias. “Todos têm a mesma data, 13 de novembro.” “O que deve corresponder mais ou menos à época em que Waddell foi transferido de Mecklemburg para Richmond.” “Isso mesmo. Ele foi transferido quinze dias antes da execução.” “Temos de examinar os códigos desses recibos, ver de onde são. Pode ser importante. Muito importante, à luz do que estamos imaginando.”
“Que Waddell está vivo?” “É. Que de alguma maneira foi feita uma troca e ele foi solto. Talvez o homem que morreu na cadeira elétrica quisesse estar com esses recibos no bolso porque estava tentando dizer alguma coisa.” “E onde ele teria arranjado esses recibos?” “Talvez durante o transporte de Mecklemburg para Richmond, que seria o momento ideal para algum truque. Pode ser que tenham transportado dois homens. Waddell e algum outro.” “Você está imaginando que eles pararam para comer?” “Os guardas não devem parar para nada quando estão transportando presos do corredor da morte. Mas, se havia alguma combinação, tudo pode ter acontecido. Quem sabe não pararam para comprar comida para a viagem e foi aí que soltaram o Waddell. O outro preso foi levado para Richmond e posto na cela do Waddell. Pense nisso. Como os guardas ou qualquer outra pessoa da rua Spring teriam algum jeito de saber que o preso que tinha vindo não era o Waddell?” “Ele podia dizer que não era, mas ninguém ia acreditar.” “É, acho que não iam acreditar.” “E a mãe de Waddell?”, perguntei. “Dizem que ela o visitou umas horas antes da execução. Com certeza ia saber se o preso era ou não o filho dela.” “Temos de verificar se a visita ocorreu mesmo. Mas, tenha ou não ocorrido, a senhora Waddell tinha interesse na troca. Não imagino que ela quisesse ver o filho morto.” “Então você está convencido de que executaram o homem errado”, eu disse com relutância, pois naquele momento havia poucas teorias que eu quisesse tanto invalidar. A resposta dele foi abrir o envelope com as fotografias de Robyn Naismith e retirar um maço grosso de fotos coloridas que continuariam me horrorizando por mais que eu olhasse para elas. Wesley percorreu lentamente a história ilustrada daquela morte terrível. Depois disse: “Quando consideramos estes três últimos homicídios, vemos que eles não correspondem ao perfil de Waddell”. “O que você está querendo dizer, Benton? Que depois de dez anos na prisão a personalidade dele mudou?” “Só o que eu posso lhe dizer é que já ouvi falar de criminosos organizados que se desorganizam, perdem a cabeça. Começam a cometer erros. Bundy, por exemplo. No fim ficou enético. Mas o contrário geralmente não se vê, um indivíduo desorganizado, uma pessoa psicótica passar a ser metódica, racional — tornar-se organizada.” Quando aludia aos Bundys e aos Filhos de Sam deste mundo, Wesley o fazia teoricamente, impessoalmente, como se suas análises e teorias se fundassem em fontes secundárias. Não se vangloriava. Não citava nomes nem assumia o
papel de quem tivesse conhecido pessoalmente aqueles criminosos. Sua conduta era, assim, deliberadamente enganadora. Na verdade, ele tinha passado longas horas na intimidade de tipos como Theodore Bundy, David Berkowitz, Sirhan Sirhan, Richard Speck e Charles Manson, bem como de outros buracos negros menos conhecidos que tinham sugado luz do planeta Terra. Lembrei-me de uma vez em que Marino me contara que às vezes, ao voltar de algumas dessas peregrinações às penitenciárias de segurança máxima, Wesley parecia pálido e exausto. Ficava quase fisicamente abalado por absorver o veneno daqueles homens e suportar o apego que eles inevitavelmente desenvolviam em relação a ele. Alguns dos piores sádicos da história recente lhe escreviam cartas, lhe enviavam cartões de Natal e lhe perguntavam pela família. Natural que Wesley desse a impressão de suportar uma pesada carga e ficasse tanto tempo em silêncio. Para obter informações, fazia o que nenhum de nós quer fazer. Deixava que o monstro se ligasse a ele. “Foi constatado que Waddell era psicopata?”, indaguei. “Foi constatado que ele estava em seu juízo perfeito quando assassinou Robyn Naismith.” Wesley puxou uma fotografia e deslizou-a sobre a mesa até mim. “Mas, francamente, não acho que estivesse.” Aquela era a fotografia que eu guardara mais nitidamente na memória e, enquanto a examinava, não conseguia imaginar uma alma desprevenida dando de cara com uma cena daquelas. A sala de visitas de Robyn Naismith não tinha muita mobília, só diversas cadeiras com almofadas verde-escuras e um sofá de couro cor de chocolate. No meio do assoalho de tacos havia um tapetinho Bakhara e o revestimento de madeira das paredes tinha veios imitando cerejeira ou mogno. Uma televisão grande ficava encostada à parede do fundo, bem em ente à porta de entrada, propiciando a quem entrasse ampla visão ontal da arte horrível de Ronnie Joe Waddell. O que a amiga de Robyn vira no instante em que destrancara e abrira a porta chamando por Robyn fora um corpo nu sentado no chão, com as costas apoiadas na televisão e tanto sangue seco escorrido e espalhado sobre a pele que a natureza exata das lesões só pôde ser determinada mais tarde, no necrotério. Na fotografia, o sangue coagulado em poças em torno das nádegas de Robyn parecia alcatrão pintado de vermelho, e havia várias toalhas ensanguentadas espalhadas por perto. A arma nunca foi encontrada, embora a polícia houvesse descoberto que num conjunto existente na cozinha faltava uma faca de carne, alemã, de aço inoxidável, e que as características da lâmina dessa faca se ajustavam aos ferimentos. Tendo aberto a pasta referente a Eddie Heath, Wesley tirou um diagrama desenhado no local pelo policial do condado de Henrico que descobrira o menino gravemente ferido atrás da mercearia vazia. Pôs o diagrama junto à
fotografia de Robyn Naismith e ficamos um instante em silêncio, olhando para as duas imagens, comparando-as. As semelhanças eram mais pronunciadas do que eu imaginara, as posições dos corpos eram praticamente idênticas, desde as mãos ao lado do corpo até a roupa mal empilhada entre os pés descalços. “Tenho de admitir que é impressionante”, observou Wesley. “Parece que a cena de Eddie Heath é uma cópia dessa.” Tocou a fotografia de Robyn Naismith. “Os corpos posicionados como bonecas de pano, apoiados contra objetos cúbicos. Uma TV grande. Um contêiner marrom.” Espalhou outras fotografias pela mesa, como cartas de baralho, e tirou uma do conjunto. Era um close do corpo no necrotério, com as marcas circulares desiguais de mordidas humanas no seio esquerdo e na parte interior da coxa esquerda. “Novamente uma semelhança notável”, disse ele. “As marcas de mordida nestes dois pontos correspondem exatamente às regiões em que faltava tecido no ombro e na coxa de Eddie Heath. Em outras palavras”, disse, tirando os óculos e olhando para mim, “Eddie Heath provavelmente foi mordido e a carne retirada para não deixar provas.” “Então o assassino pelo menos conhece um pouco de medicina legal.” “Quase todo criminoso que passou algum tempo na prisão conhece medicina legal. Se Waddell não sabia nada sobre identificação de mordidas quando assassinou Robyn Naismith, a esta altura já saberia.” “Você está falando de novo como se fosse ele o assassino. Agora há pouco você disse que o perfil não era o dele.” “Dez anos atrás, não seria. Isso é o que estou dizendo.” “Você está com o protocolo de avaliação dele. Podemos falar a respeito?” “Claro.” O protocolo era na verdade um questionário do FBI, de quarenta páginas, preenchido durante entrevistas feitas na prisão com criminosos violentos. “Dê uma olhada você mesma. Quero saber o que você acha sem ser influenciada por mim”, disse Wesley, pondo o protocolo de Waddell à minha frente. As entrevistas de Wesley com Ronnie Joe Waddell tinham sido realizadas seis anos antes, no corredor da morte do condado de Mecklemburg. O protocolo começava com os dados descritivos usuais. A atitude, o estado emocional, os maneirismos e o estilo de conversação de Waddell mostravamno agitado e confuso. Depois, quando Wesley lhe deu a oportunidade de formular perguntas, só fez uma: “Vi uns floquinhos brancos quando passei pela janela. Está nevando ou são cinzas do incinerador?”. Reparei que o protocolo era datado de agosto. As perguntas sobre como o assassinato poderia ter sido evitado a nada
haviam conduzido. Waddell teria matado sua vítima num local movimentado? Teria matado se houvesse testemunhas? Alguma coisa seria capaz de impedilo de matar? Na opinião dele a pena de morte era um dissuasor? Waddell disse que não conseguia se lembrar de ter matado “a mulher da televisão”. Não sabia o que teria sido capaz de impedi-lo de cometer um ato do qual não se recordava. Sua única lembrança era de estar “grudento”. Disse que era como ter acordado de um sonho erótico. A viscosidade experimentada por Ronnie Waddell não era a do esperma. Era a do sangue de Robyn Naismith. “Os problemas dele parecem simples. Dores de cabeça, timidez extrema, fantasias acentuadas e o fato de ter deixado a casa dos pais aos dezenove anos de idade. Não vejo nada aqui que pudéssemos considerar o sinal de alarme habitual. Não há crueldade contra animais, atividades incendiárias, agressões etc.”, pensei em voz alta. “Continue.” Explorei diversas outras páginas. “Drogas e álcool”, eu disse. “Se não tivesse sido preso, ia morrer como drogado ou levar um tiro na rua. E o que é interessante é que ele só começou a abusar dessas substâncias no início da idade adulta. Lembro que Waddell me disse que até sair de casa e completar vinte anos nunca tinha provado álcool.” “Ele se criou numa fazenda?” “Em Suffolk. Uma fazenda bem grande onde se plantavam amendoim, milho e soja. A família toda dele morava lá e trabalhava para os proprietários. Eram quatro filhos e Ronnie Joe era o mais moço. A mãe era muito religiosa e levava as crianças à igreja todos os domingos. Nada de álcool, nem de palavrão, nem de cigarros. Ele era muito protegido. Na verdade, Ronnie nunca tinha saído da fazenda até o pai morrer, aí ele teve de sair. Tomou o ônibus para Richmond e não teve dificuldade para encontrar trabalho, por causa de sua força física. Quebrar asfalto com britadeira, carregar carga pesada, essas coisas. Minha teoria é que, diante da tentação, não pôde resistir. Primeiro a cerveja e o vinho, depois a maconha. Passado um ano já estava na cocaína e na heroína, comprando, vendendo e roubando o que podia. Quando lhe perguntei quantos crimes tinha cometido sem ser preso, disse que perdera a conta. Disse que roubava, arrombava automóveis — em outras palavras, crimes contra o patrimônio. Aí arrombou a casa de Robyn Naismith e ela teve o azar de chegar em casa quando ele estava lá.” “Benton, ele não era descrito como violento.” “É. Nunca teve o perfil do criminoso violento típico. A defesa alegou insanidade temporária devida às drogas e ao álcool. Para falar a verdade, acho que o caso era esse mesmo. Pouco antes de matar Robyn Naismith ele tinha começado a tomar PCP. É bem possível que, ao encontrar Robyn, Waddell estivesse completamente louco e depois pouco ou nada recordasse do que tinha feito a ela.”
“Você se lembra do que ele roubou, se é que roubou alguma coisa? Não sei se havia prova clara de que quando arrombou a casa ele tinha a intenção de roubar.” “O lugar foi saqueado. Sabemos que faltavam joias. O armarinho de remédios e a carteira dela estavam vazios. É difícil saber o que mais foi roubado, porque ela morava sozinha.” “Não mantinha nenhum relacionamento significativo?” “Um ponto fascinante.” Wesley olhou para um casal de velhos que dançava ao som de um saxofone rouco numa espécie de torpor. “Foram encontradas marcas de esperma no lençol e na colcha. A marca do lençol tinha de ser recente, salvo se Robyn não trocasse a roupa de cama com equência, e sabemos que o Waddell não era a origem das marcas. Não combinavam com seu tipo de sangue.” “Ninguém que a conhecesse mencionou algum amante?” “Ninguém. Claro que havia interesse em saber quem era a pessoa e, como ele nunca entrou em contato com a polícia, houve a suspeita de que ela tivesse um caso com um homem casado, colega ou contato.” “Talvez tivesse. Mas não era ele o assassino.” “Não. O assassino foi Ronnie Joe Waddell. Vamos dar uma olhada.” Abri a pasta de Waddell e mostrei a Wesley as fotografias do prisioneiro executado que autopsiara na noite de 13 de dezembro. “Você pode dizer se esse é o homem que você entrevistou há seis anos?” Impassível, Wesley estudou as fotografias uma por uma. Olhou os closes da ente e de trás da cabeça e passou os olhos por fotos do tronco e das mãos. Desprendeu um retrato três por quatro do protocolo de avaliação de Waddell e, enquanto eu observava, começou a fazer comparações. “Há uma certa semelhança”, eu disse. “É o máximo que se pode dizer. A fotografia três por quatro tem dez anos. Waddell tinha barba e bigode e era musculoso, mas esbelto. O rosto era magro. Esse cara” — apontou para uma das fotografias do necrotério — “está barbeado e é muito mais gordo. O rosto é muito mais chato. Baseado nessas fotografias não posso afirmar que seja o mesmo homem.” Tampouco eu podia dizê-lo. Podia, porém, pensar em velhas fotografias minhas que ninguém teria reconhecido. “Você tem alguma sugestão sobre como resolver esse problema?”, perguntei a Wesley. “Vou tentar algumas coisas. Seu velho amigo Nick Grueman tem alguma coisa a ver com o caso, e estive pensando na melhor maneira de lidar com ele sem mostrar nosso jogo. Se eu ou Marino falarmos com ele, ele vai saber imediatamente que há alguma coisa”, disse, empilhando as fotografias e batendo-as contra a mesa, tentando endireitá-las. Percebi aonde íamos chegar e tentei interrompê-lo, mas Wesley não
deixou. “Marino me falou de suas dificuldades com Grueman, que ele telefona e fica encurralando você. E depois, é claro, tem também o passado, o tempo em que você estava na Universidade de Georgetown. Talvez você devesse falar com ele.” “Não quero falar com ele, Benton.” “Quem sabe ele tem fotografias de Waddell, cartas, outros documentos. Alguma coisa que tenha as impressões digitais. Ou talvez, ao longo da conversa, ele diga alguma coisa que possa ser interessante. O ponto é que, se você quiser, pode procurá-lo por conta de suas atividades normais, e nós não. E de todo jeito você vai ao distrito de Colúmbia ver Downey.” “Não.” “É só uma ideia.” Olhou para outro lado e pediu a conta à garçonete. “Quanto tempo Lucy vai ficar com você?” “Só tem de voltar para o colégio no dia 7 de janeiro.” “Estou lembrado de que ela é muito boa com computadores.” “Para lá de boa.” Wesley sorriu de leve. “É o que me disse o Marino. Disse que ela acha que pode ajudar com o Sida.” “Tenho certeza de que ela gostaria de tentar.” De repente me senti de novo protetora — e dilacerada. Queria mandá-la de volta para Miami e ao mesmo tempo não queria. “Talvez você não esteja lembrada, mas Michele trabalha no Departamento de Serviços de Justiça Criminal, que assiste a polícia estadual no uso do Sida”, disse Wesley. “Imagino que no momento isso deva lhe causar alguma preocupação.” Terminei minha bebida. “Não há um dia de minha vida em que eu não me preocupe”, disse ele.
Na manhã seguinte começou a cair uma neve ligeira enquanto Lucy e eu vestíamos uniformes de esqui que poderiam ser vistos a quilômetros de distância. “Pareço um daqueles cones de sinalização”, disse ela, fitando seu reflexo laranja flamejante no espelho. “É verdade. Se você se perder em alguma trilha não vai ser difícil encontrar.” Engoli as vitaminas e duas aspirinas com água mineral do minibar. Minha sobrinha considerou meu traje quase tão elétrico quanto o dela, e sacudiu a cabeça. “Para alguém tão conservadora, nos esportes você se veste como um pavão de néon.” “Procuro não ser careta o tempo todo. Está com fome?” “Morrendo.”
“Benton vai nos encontrar no refeitório às oito e meia. Podemos descer, se você não quiser esperar.” “Estou pronta. Connie não vai comer com a gente?” “A gente vai se encontrar com ela na pista. Benton primeiro quer falar a respeito de trabalho.” “Acho que ela vai ficar chateada de ser deixada de fora. Sempre que ele fala com alguém, parece que ela não é convidada.” Fechei a porta do quarto e fomos andando pelo corredor silencioso. “Acho que Connie não gosta de se envolver. Conhecer cada pormenor do trabalho do marido seria uma carga para ela”, eu disse em voz baixa. “E para compensar ele conversa com você.” “Sobre os casos, conversa.” “Sobre o trabalho. E o trabalho é o mais importante para vocês.” “O trabalho certamente domina nossas vidas.” “Você e o senhor Wesley estão querendo ter um caso?” “Já estamos quase tomando café da manhã juntos”, sorri. O bufê do Homestead era maravilhoso. Havia mesas compridas cobertas por toalhas, repletas de toucinho e presunto defumados da Virgínia, todas as receitas imagináveis de ovo, além de doces, pães e bolos. Lucy não parecia tentada, dirigindo-se diretamente para os cereais e utas escas. Obrigada a me comportar por causa do exemplo dela e de meu recente sermão a Marino sobre sua saúde, evitei tudo o que queria, inclusive o café. “As pessoas estão olhando pra você, tia Kay”, disse Lucy entre dentes. Imaginei que a atenção era resultado de nossa vestimenta vibrante, até que abri o Washington Post daquela manhã e tive a surpresa de me descobrir na primeira página. O título dizia: “ASSASSINATO NO NECROTÉRIO”, e a notícia era uma longa descrição do homicídio de Susan, acompanhada de uma fotografia colocada num lugar preeminente, na qual eu aparecia chegando ao local do crime, aparentemente muito nervosa. Ficava claro que a principal fonte do repórter fora o transtornado marido de Susan, Jason, cujo depoimento pintava um quadro em que, menos de uma semana antes de morrer violentamente, sua mulher tinha deixado o emprego em circunstâncias singulares, se não suspeitas. Afirmava-se, por exemplo, que havia pouco Susan tinha se indisposto comigo quando eu quisera arrolá-la como testemunha no caso de um jovenzinho assassinado, embora ela não tivesse estado presente à autópsia. Quando Susan adoecera e não fora trabalhar “devido a um derramamento de formol”, eu telefonara para sua casa com tanta equência que ela havia ficado com medo de atender o telefone. Depois eu “aparecera em sua porta na véspera do assassinato” com um vaso de flores e vagas ofertas de favores. O marido de Susan era citado: “Cheguei a minha casa depois das compras de Natal e encontrei a médica-legista chefe na minha sala de visitas. Ela [a
doutora Scarpetta] despediu-se imediatamente e assim que a porta se fechou Susan começou a chorar. Estava apavorada com algo, mas não me disse o que era”. Por mais que achasse desconcertante a aonta pública de Jason, pior era a revelação das transações financeiras recentes de Susan. Supunha-se que, duas semanas antes de morrer, ela havia saldado mais de três mil dólares de dívidas com cartões de crédito, depois de depositar três mil e quinhentos dólares em sua conta corrente. A bonança súbita não podia ser explicada. No outono seu marido perdera o emprego de vendedor e Susan ganhava menos de vinte mil dólares por ano. “O senhor Wesley está aqui”, disse Lucy, tirando o jornal de minha mão. Benton vestia calças pretas de esqui e suéter preto de gola alta e levava no braço uma jaqueta de um vermelho-vivo. Pela expressão de seu rosto e por seu queixo contraído, percebi que estava a par das notícias. “O Post tentou falar com você?” Puxou uma cadeira. “Não posso acreditar que tenham publicado esse negócio sem dar a você a oportunidade de fazer algum comentário.” “Ontem, quando eu estava saindo da repartição, um repórter do Post telefonou. Queria me perguntar sobre o homicídio de Susan e preferi não falar com ele. Com certeza aquela era a minha oportunidade.” “Quer dizer que você não sabia de nada, não foi avisada desse golpe?” “Estava por fora até pegar o jornal.” “Está em todos os noticiários, Kay.” Seus olhos encontraram os meus. “Ouvi na televisão, de manhã. Marino telefonou. A imprensa de Richmond está deitando e rolando. O que se diz é que o assassinato de Susan pode estar ligado ao escritório do médico-legista — que você pode estar envolvida e por isso saiu da cidade às pressas.” “Isso é uma maluquice.” “Quanto do artigo é verdade?”, perguntou ele. “Os fatos foram completamente distorcidos. Quando Susan não apareceu para trabalhar, telefonei para a casa dela. Queria certificar-me de que estava bem e precisava saber se ela se lembrava de ter tirado as impressões digitais do Waddell no necrotério. Fui vê-la na véspera de Natal para dar-lhe um presente e as flores. Quanto à minha promessa de favores, imagino que foi quando ela me disse que estava se demitindo e eu disse a ela que se precisasse de referências ou se houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer por ela, estaria às ordens.” “E esse negócio de ela não querer ser testemunha no caso de Eddie Heath?” “Isso foi na tarde em que ela quebrou vários vidros de formol e foi se refugiar em minha sala. É rotina arrolar os assistentes de autópsias como testemunha quando eles assistem as autópsias. Nesse caso, Susan só esteve presente no exame externo e foi taxativa em não querer seu nome no
relatório da autópsia de Eddie Heath. Achei o pedido e o comportamento dela esquisitíssimos, mas não houve nenhum confronto.” “Por esse artigo, parece que você a estava subornando. Era isso o que eu haveria de pensar, se lesse a matéria e não soubesse de nada”, disse Lucy. “Eu não estava subornando ninguém, mas parece que alguém estava.” “Agora tudo está fazendo um pouco mais de sentido. Se essa parte sobre a situação financeira dela é verdade, então Susan recebeu uma bolada de dinheiro, o que quer dizer que deve ter feito um serviço para alguém. Na mesma época, alguém invadiu seu computador e a personalidade de Susan mudou. Ficou nervosa e imprevisível. Evitou você o quanto pôde. Acho que ela não conseguia encarar você, Kay, porque sabia que estava te traindo”, disse Wesley. Concordei com a cabeça, lutando para manter a compostura. Susan havia se metido em alguma confusão e não soubera como sair, e me ocorreu que aquela podia ser a verdadeira razão pela qual ela fugira da autópsia de Eddie Heath e, depois, da de Jennifer Deighton. Suas explosões emocionais nada tinham a ver com bruxaria ou com a tontura que sentira depois de exposta às emanações de formol. Ela estava entrando em pânico. Não queria ser testemunha em nenhum dos dois casos. Quando expus minha teoria, Wesley disse: “Interessante. Se você perguntar que coisa de valor Susan tinha para vender, a resposta é que ela tinha informação. E com certeza a pessoa que ela ia encontrar no dia de Natal era a pessoa que estava comprando essa informação”. “Que informação podia ser tão importante a ponto de alguém pagar milhares de dólares por ela e depois matar uma mulher grávida?”, indagou Lucy em tom áspero. Não sabíamos, mas tínhamos um palpite. O denominador comum, mais uma vez, parecia ser Ronnie Joe Waddell. Não havia sido por esquecimento que Susan deixara de colher as impressões digitais de Waddell ou de fosse quem fosse o executado. Ela não as colhera deliberadamente. “É o que parece”, concordou Wesley. “Alguma outra pessoa pediu a ela para convenientemente esquecer de tirar as digitais. Ou para perder as fichas, caso você ou outro membro da equipe as tirasse.” Pensei em Ben Stevens. Filho da mãe. “E isso nos leva de volta ao que você e eu concluímos ontem à noite, Kay”, prosseguiu Wesley. “Temos de voltar à noite em que se supõe que Waddell foi executado e determinar quem estava amarrado na cadeira. E um lugar para começar é o Sida. O que queremos saber é se mexeram em algum registro e quem mexeu.” Depois, dirigindo-se a Lucy: “Já tenho tudo arrumado para você verificar as fitas diárias, se você concordar”.
“Concordo”, disse Lucy. “Quando você quer que eu comece?” “Pode começar quando quiser, porque o primeiro passo só envolve o telefone. Você precisa telefonar a Michele. Ela é analista de sistemas no Departamento de Serviços de Justiça Criminal e trabalha para as chefias da polícia estadual. Está envolvida com o Sida e vai dar a você os pormenores de como tudo funciona. E aí vai montar as fitas diárias, para que você tenha acesso a elas.” “Ela não se incomoda de eu fazer isso?”, perguntou Lucy, cautelosa. “Ao contrário. Adora. As fitas diárias são só elementos de auditoria, um registro das mudanças feitas no banco de dados do Sida. Em outras palavras, não podem ser lidas. Acho que Michele chamava isso de ‘depósito hex’; não sei se significa alguma coisa para você.” “Hexadecimal, ou base 16. Em outras palavras, criptogramas. Quer dizer que tenho de deciar os dados e procurar tudo o que se refira aos números de identificação dos registros em que vocês estão interessados.” “Você pode fazer isso?”, indagou Wesley. “Se tiver uma ideia do código e do sistema de registro. Por que a analista que você conhece não faz isso ela mesma?” “Queremos ser o mais discretos possível. Se Michele de repente largasse o trabalho dela e começasse a explorar as fitas diárias dez horas por dia ia chamar atenção. Você pode trabalhar sem ser vista, lá na casa de sua tia, discando para uma linha especial.” “Contanto que quando Lucy discar não seja possível descobrir que foi lá de casa”, eu disse. “Não será”, disse Wesley. “E ninguém poderá perceber que alguém de fora está discando para o computador da polícia estadual e tendo acesso às fitas?”, perguntei. “Michele diz que pode dar um jeito para não haver problema.” Wesley abriu o zíper de um bolso de sua jaqueta de esqui e tirou um cartão, que entregou a Lucy. “Aqui estão os números dos telefones dela, do trabalho e de casa.” “Como você sabe que posso confiar nela? Se o sistema foi invadido, como você sabe que ela não está envolvida?”, perguntou Lucy. “Michele nunca foi boa em mentira. Desde pequena olhava para os pés e ficava mais vermelha que um pimentão.” “Você conheceu ela quando era pequena?” Lucy parecia desconcertada. “Até antes. É minha filha mais velha.”
9
Depois de muita discussão, chegamos ao que parecia ser um plano razoável. Lucy ficaria em Homestead com os Wesley até quarta-feira, deixando-me um breve período para enentar meus problemas sem me preocupar com seu bem-estar. Depois do café parti sob uma neve mansa, que se transformara em chuva quando cheguei a Richmond. No fim da tarde estive na repartição e nos laboratórios. Conversei com Fielding e com diversos legistas e evitei Ben Stevens. Não retornei a ligação de nenhum repórter e ignorei o correio eletrônico, pois, se o secretário de Saúde tivesse me mandado uma mensagem, não queria saber o que ela dizia. Às quatro e meia estava enchendo o tanque com gasolina num posto Exxon da avenida Grove quando um Ford LTD branco parou atrás de mim. Vi Marino descer, ajeitar as calças e dirigir-se ao banheiro dos homens. Quando voltou, pouco tempo depois, olhou disfarçadamente em torno como se estivesse preocupado que alguém pudesse ter observado sua visita ao sanitário. Depois veio falar comigo. “Quando ia passando vi você”, disse, enfiando as mãos nos bolsos do blazer azul. “Cadê seu casaco?” Comecei a limpar o para-brisa da frente. Deu de ombros no ar io e cortante. “Está no carro. Me atrapalha. Se você não está pensando em acabar com esses boatos, é melhor começar a pensar.” Irritada, guardei o limpa-para-brisa na embalagem. “E o que você sugere, Marino? Que eu chame o Jason Story e diga a ele que sinto muito que a mulher e a filha dele tenham morrido, mas que agradeceria se ele despejasse a mágoa e a raiva em outro lugar?” “Doutora, ele está culpando você.” “Depois de ler no Post o que ele disse, acho que muita gente está me culpando. Ele conseguiu me pintar como uma maquiavélica filha da mãe.” “Você está com fome?” “Não.” “Mas parece.” Olhei-o como se ele tivesse enlouquecido. “E, quando acho que alguma coisa está parecendo isso ou aquilo, meu dever é investigar. Vou então lhe dar uma opção, doutora. Posso apanhar uns biscoitinhos e uns reigerantes ali nas máquinas e podemos ficar aqui congelando a bunda e respirando fumaça enquanto impedimos outros pobresdiabos de usar as bombas de autosserviço, ou podemos dar um pulo no Phil’s.
Para mim qualquer coisa está bom.” Dez minutos depois estávamos sentados num reservado de canto correndo os olhos por um cardápio com ilustrações espalhafatosas que oferecia de tudo, desde espaguete até peixe ito. Marino estava de ente para a porta escura e eu gozava de uma visão perfeita dos banheiros. Ele, como a maioria das pessoas em torno de nós, fumava, e eu me lembrava de como é duro parar. Na verdade, consideradas as circunstâncias, ele não poderia ter escolhido um restaurante melhor. O Philip’s Continental Lounge era um velho estabelecimento de bairro onde egueses que tinham se conhecido a vida inteira continuavam a se encontrar regularmente para uma refeição suculenta e uma garrafa de cerveja. O cliente típico era bem-humorado e gregário e não me reconheceria nem prestaria atenção em mim salvo se minha fotografia aparecesse regularmente na seção esportiva do jornal. “É o seguinte”, disse Marino, fechando o cardápio. “Jason Story acredita que Susan ainda estaria viva se tivesse outro emprego. E provavelmente está certo. Além do mais, ele é um acassado — um desses fodidos egocêntricos que acreditam que tudo é culpa dos outros. A verdade é que provavelmente o maior culpado pela morte de Susan é ele mesmo.” “Você está sugerindo que ele a matou?” A garçonete apareceu e fizemos o pedido. Frango grelhado e arroz para Marino e cachorro-quente kosher com pimenta para mim, mais dois refrigerantes diet. “Não estou sugerindo que Jason tenha matado a mulher, mas por causa dele ela se envolveu com o negócio que precipitou o homicídio. Pagar as contas era responsabilidade da Susan, e ela estava soendo uma grande pressão financeira”, disse Marino, sério. “Não é de se espantar. O marido tinha perdido o emprego.” “É uma pena que ele não tenha perdido o gosto por dinheiro. Estamos falando de camisas polo, calças da Britches de Georgetown e gravatas de seda. Umas duas semanas depois de ser despedido, o cara sai de casa, compra setecentos dólares de equipamento de esqui e se manda para passar o fim de semana em Wintergreen. Antes disso foi uma jaqueta de couro de duzentos dólares e uma bicicleta de quatrocentos dólares. Quer dizer, a Susan ficava no necrotério trabalhando como um camelo para chegar em casa e dar de cara com umas contas que engoliam o salário dela brincando.” “Eu não sabia”, disse, penalizada por uma visão súbita de Susan sentada à escrivaninha. Seu ritual diário era passar a hora do almoço em sua sala, e às vezes eu me reunia lá com ela para conversar. Lembrei-me de seus salgadinhos de milho e das etiquetas de oferta dos reigerantes. Não penso que ela jamais tenha comido ou bebido alguma coisa que não tivesse sido trazida de casa. “Os hábitos de consumo do Jason levam a essa merda que ele está fazendo
com você. Está te esculhambando porque você é uma médica-advogadacacique que dirige um Mercedes e tem uma casa enorme em Windsor Farms. Acho que o babaca acredita que, se de algum modo culpar você pelo que aconteceu com a mulher, pode arranjar uma indenização”, continuou Marino. “Pode tentar até se arrebentar.” “E vai tentar.” Nossos refrigerantes chegaram, e mudei de assunto. “Vou me encontrar com o Downey amanhã de manhã.” Os olhos de Marino se desviaram para o televisor no alto do bar. “Lucy está começando com o Sida. E também tenho de fazer alguma coisa quanto a Ben Stevens.” “O que você devia fazer era se livrar dele.” “Você faz alguma ideia de como é difícil demitir um servidor público?” “Dizem que é mais fácil demitir Jesus Cristo. Só se for um servidor comissionado, como você. Mas tem de haver um jeito de pôr um filho da puta para fora.” “Você falou com ele?” “Falei. Segundo ele, você é arrogante, ambiciosa e esquisita. Um pé no saco para se trabalhar.” “Ele disse isso mesmo?”, perguntei, incrédula. “O papo foi esse.” “Espero que alguém esteja verificando as contas dele. Gostaria de saber se fez algum depósito grande ultimamente. Susan não entrou nessa sozinha.” “Também acho. Acho que o Stevens sabe de muita coisa e está fazendo de tudo para esconder. Por falar nisso, verifiquei o banco da Susan. Um dos caixas se lembra de que ela depositou os três mil e quinhentos dólares em dinheiro. Notas de vinte, cinquenta e cem dólares, que levava na bolsa.” “O que o Stevens disse a respeito de Susan?” “Anda dizendo que na verdade não a conhecia, mas que tinha a impressão de que havia um problema entre ela e você. Em outras palavras, está reforçando o que saiu nos jornais.” Nossa comida chegou, e eu estava tão irritada que mal consegui engolir. “E o Fielding? Também acha horrível trabalhar comigo?” Marino desviou novamente o olhar. “Diz que você é muito elétrica e que ainda não entendeu bem você.” “Não o contratei para me entender e, comparada com ele, claro que sou elétrica. Há muito tempo Fielding está desencantado com a medicina legal. Gasta a maior parte de sua energia no ginásio.” Marino encontrou meus olhos. “Doutora, você é elétrica comparada com qualquer um, e a maioria das pessoas não te entende. Você não é uma pessoa que se mostra muito. Chega mesmo a parecer uma pessoa sem sentimentos. É tão fechada que, para quem não conhece, parece que não sente nada. Os
outros tiras, os advogados, esse pessoal todo me pergunta a seu respeito. Querem saber como você é na verdade, como pode fazer o que faz todo dia — qual é o babado. Veem você como uma pessoa que não se aproxima de ninguém.” “E o que você diz a eles quando perguntam?” “Não digo porra nenhuma.” “Terminou a psicanálise, Marino?” Acendeu um cigarro. “Olhe, vou lhe dizer uma coisa, e você não vai gostar. Você sempre foi essa mulher reservada, profissional — uma pessoa que não deixa ninguém chegar perto facilmente, mas quando a gente chega, chega. Você é amiga para toda a vida e faz tudo pelo cara. Mas este ano você está diferente. Levantou uns cem muros desde que mataram o Mark. Para a gente, que está do seu lado, é como estar numa sala a vinte graus e de repente a temperatura baixar para doze. Acho que você nem sabe disso. Então, agora ninguém está se sentindo muito ligado a você. Pode ser até que estejam um pouco ressentidos porque se sentem ignorados e esnobados. Pode ser que não tenham gostado nunca de você. Pode ser que sejam só indiferentes. O negócio com as pessoas é que, esteja você num trono ou na cadeira elétrica, vão dar um jeito de usar sua posição para tirar vantagem. E, quando não há uma ligação entre você e elas, isso torna ainda mais fácil para elas tentarem conseguir o que querem sem ligar a mínima para você. Sua posição é essa. Tem muita gente que há anos está esperando para ver você se dar mal.” “Não tenho a intenção de me dar mal.” Empurrei o prato. Ele soltou uma baforada. “Doutora, você já está se dando mal. E meu bom senso diz que se você está nadando no meio dos tubarões e começa a sangrar é melhor sair da água rapidamente.” “Será que a gente podia conversar sem usar clichês, pelo menos por um ou dois minutos?” “Bom. Posso falar em japonês ou chinês, você não vai me ouvir.” “Se você falar japonês ou chinês, prometo que ouço. Aliás, se um dia você decidir falar nossa língua, eu prometo que ouço.” “Comentários como esse não ajudam em nada. Não vão fazer com que você tenha mais fãs. É disso mesmo que estou falando.” “Eu estava só brincando.” “Já vi você abrir muitos cadáveres com um sorriso.” “Nunca. Eu sempre uso escalpelo.” “Às vezes não há diferença entre os dois. Já vi você tirar sangue dos advogados de defesa com um sorriso nos lábios.” “Se sou uma pessoa tão horrível assim, por que somos amigos?” “Porque eu tenho ainda mais muros que você. A verdade é que tem uma raposa atrás de cada árvore e que o mar está cheio de tubarões. Todos estão
em cima de nós.” “Marino, você está paranoico.” “Você tem toda a razão, e é por isso, doutora, que eu quero que você se faça de morta por um tempo. Sério.” “Não posso.” “Você quer saber de uma coisa? Vai começar a parecer que existem interesses envolvidos, se você tiver qualquer coisa a ver com esses casos. Você vai acabar se dando mal.” “Susan morreu. Eddie Heath morreu. Jennifer Deighton morreu. Há corrupção em minha repartição, e não temos certeza de quem foi para a cadeira elétrica na semana passada. E você acha que devo sumir até as coisas se consertarem sozinhas num passe de mágica?” Marino quis alcançar o sal, mas cheguei antes. “Não. Mas pode se servir de toda a pimenta que quiser”, eu disse, aproximando dele o vidro da pimenta. “Essa mania de saúde vai me matar. Porque qualquer dia desses vou ficar tão puto que vou fazer tudo junto. Cinco cigarros ao mesmo tempo, um bourbon numa mão e uma xícara de café na outra, bife, batata assada cheia de manteiga, creme, sal. Aí vou ter um curto-circuito geral”, avisou ele. “Não, não vai fazer nada disso. Você vai se tratar bem e viver pelo menos tanto tempo quanto eu.” Ficamos algum tempo em silêncio, comendo. “Doutora, não fique ofendida, mas o que você acha que vai descobrir sobre a porra das penas?” “A origem delas, se puder.” “Eu posso lhe poupar o trabalho. Vêm dos passarinhos.”
Deixei Marino quase às sete horas da noite e voltei para o centro. A temperatura subira até um pouco mais de quatro graus, a noite escura e a violência da chuva interrompiam o tráfego. As lâmpadas de vapor de sódio pareciam manchas amarelas de pólen atrás do necrotério, onde a porta principal estava fechada e todas as vagas do estacionamento estavam livres. Dentro do edifício meu pulso se acelerou quando enveredei pelo corredor brilhantemente iluminado que passava pela sala de autópsias, a caminho da salinha de Susan. Quando abri a porta não sabia o que esperava encontrar, mas fui atraída pelo arquivo e pelas gavetas da mesa, cada livro e cada recado telefônico antigo. Tudo parecia idêntico a antes da morte de Susan. Marino era mestre em vasculhar o espaço privado sem atrapalhar a desordem natural das coisas. O telefone ainda estava jogado no canto direito da mesa, com o fio enrolado como um saca-rolha. Junto ao mata-borrão havia tesouras, dois lápis de ponta quebrada, e o guarda-pó usado no laboratório estava pendurado nas costas da cadeira. Na tela do computador ainda estava preso um lembrete sobre uma
consulta médica, e tremi por dentro quando dei com as curvas tímidas e a inclinação graciosa de sua caligrafia caprichada. Em que ponto ela perdera o rumo? Teria sido ao casar-se com Jason Story? Ou sua destruição vinha de muito antes, de quando era a filha de um pastor escrupuloso, a gêmea que sobrara quando a irmã morrera? Sentei-me na cadeira, rolei-a para perto do arquivo e comecei a tirar as pastas uma por uma e a verificar seu conteúdo. A maior parte do que examinei era folhetos e outras informações impressas sobre equipamento cirúrgico e materiais diversos usados no necrotério. Nada me pareceu curioso, até descobrir que ela guardara praticamente todos os memorandos que recebera de Fielding, mas nenhum meu ou de Bob Stevens, quando eu sabia que ambos tínhamos lhe enviado muitos. Tendo prosseguido com a busca nas gavetas e nas estantes, não encontrei as pastas referentes a Stevens ou a mim e concluí que alguém as havia levado. Meu primeiro pensamento foi que Marino pudesse tê-las retirado. Depois, num sobressalto, outra ideia me ocorreu, e corri escada acima. Abri a porta de minha sala e fui diretamente até a gaveta do arquivo onde guardava a papelada administrativa de rotina, como notas de telefonemas, memorandos, impressos de comunicações eletrônicas recebidas, minutas de propostas orçamentárias e planos de longo prazo. Revirei eneticamente pastas e gavetas. Na pasta grossa que eu procurava estava marcado simplesmente “Memorandos”, e nela havia cópias de todos os memorandos expedidos por mim para meu pessoal e para os servidores de várias outras repartições nos últimos sete anos. Procurei na sala de Rose e examinei de novo minha sala. A pasta tinha desaparecido. “Filho da puta, filho da puta nojento”, dizia em voz baixa ao descer furiosa o corredor. A sala de Ben Stevens estava tão impecavelmente limpa e tão cuidadosamente arrumada que parecia um mostruário de loja de móveis. A mesa era cópia de uma Williamsburg folheada em mogno e com puxadores de cobre brilhante, e havia abajures de pé de cobre com cúpulas verde-escuras. O assoalho estava coberto por um tapete persa feito a máquina e as paredes decoradas com gravuras grandes de esquiadores alpinos, homens montados em cavalos trovejantes e balançando tacos de polo, e marinheiros cortando mares encapelados. Comecei puxando a pasta pessoal de Susan. Dentro estavam, como seria de esperar, a descrição das tarefas, o currículo e outros documentos. Estavam faltando diversos memorandos elogiosos que eu tinha escrito desde sua contratação e colocado pessoalmente na pasta. Comecei a abrir as gavetas da mesa e numa delas descobri um estojo de plástico marrom contendo uma escova de dentes, dentiício, um aparelho de barbear, creme de barbear e um vidrinho de água-de-colônia. Foi talvez a corrente de ar quase imperceptível que se formou quando a
porta foi silenciosamente aberta, ou talvez, como um animal, simplesmente senti a presença de alguém. Ergui os olhos e dei de cara com Ben Stevens de pé no vão da porta no momento em que, sentada à sua mesa, eu tentava atarraxar novamente a tampa de um vidro de água-de-colônia Red. Por um longo e gelado momento nos encaramos e nenhum de nós disse nada. Não senti medo. Não me importei nem um pouco com o que ele me pilhara fazendo. Senti raiva. “Está trabalhando até muito tarde, Ben.” Corri o fecho do estojo e devolvi-o à gaveta. Cruzei as mãos sobre o mata-borrão, me movendo e falando de modo propositadamente lento. “Sempre gostei de trabalhar depois da hora, pois não há mais ninguém por perto”, eu disse. “A gente não se distrai. Não há perigo de alguém entrar e interromper o que você está fazendo. Não há olhos nem ouvidos. Nenhum ruído, salvo nos raros momentos em que o vigia passa. E todos sabemos que isso não acontece com equência se não o chamamos, porque ele detesta vir ao necrotério. Nunca conheci vigia que não detestasse isso. Acontece o mesmo com o pessoal da limpeza. Lá embaixo eles nem vão, e aqui em cima fazem o mínimo que podem. Mas isso já não importa agora, não é? São nove horas e o pessoal da limpeza sempre vai embora às sete e meia. O que me intriga é o fato de eu nunca ter desconfiado. Não me passou pela cabeça. Pode ser que isso seja um triste reconhecimento de como eu tenho andado preocupada. Você disse à polícia que não conhecia bem a Susan, mas estava sempre dando carona a ela de casa para o trabalho e vice-versa, como naquela manhã cheia de neve em que autopsiei Jennifer Deighton. Lembro-me de que naquela ocasião Susan estava muito perturbada. Deixou o corpo no meio do corredor e estava discando um número no telefone, mas desligou depressa quando entrei na sala de autópsia. Duvido que se tratasse de um telefonema de negócios às sete e meia da manhã de um dia em que ninguém estava saindo de casa por causa do tempo. E não havia ninguém na repartição a quem telefonar — ninguém tinha chegado ainda, só você. Se ela estava discando seu número, por que ia esconder isso de mim? Só se você fosse mais que o chefe direto dela. Claro, sua relação comigo também me intriga. Parecemos nos dar bem e aí você de repente alega que sou a pior chefe da cristandade. Fico imaginando se Jason Story é a única pessoa que está falando com os repórteres. Essa persona a que fui de repente associada é interessante. Essa imagem. A tirana. A neurótica. A pessoa de algum modo responsável pela morte violenta da superintendente do necrotério. Susan e eu tínhamos uma relação de trabalho muito cordial, e até bem pouco tempo, Ben, nós dois também nos entendíamos perfeitamente. Mas é minha palavra contra a sua, principalmente agora, já que qualquer pedaço de papel que pudesse provar o que estou dizendo desapareceu muito oportunamente. E o que eu acho é que você já andou soprando para alguém que pastas e memorandos importantes
sumiram da repartição, sugerindo que fui eu que tirei. Quando desaparecem pastas e memorandos dá para dizer qualquer coisa sobre o que havia neles, não dá?” “Não sei do que você está falando”, disse Ben Stevens. Saiu do vão da porta mas não se aproximou da mesa nem pegou uma cadeira. Seu rosto estava congestionado, seus olhos tomados de ódio. “Não sei nada sobre o desaparecimento de pastas ou memorandos, mas, se é verdade, não posso esconder esse fato das autoridades, como também não posso esconder o fato de que passei pela repartição esta noite para apanhar um negócio que tinha deixado aqui e encontrei você mexendo na minha mesa.” “O que você deixou aqui, Ben?” “Não tenho de responder a suas perguntas.” “Tem sim. Sou sua chefe e, se você vem até aqui tarde da noite e eu fico sabendo, tenho o direito de lhe perguntar.” “Suspenda-me então. Tente me exonerar. Vai ficar muito bonito para você neste momento.” “Você é um canalha, Ben.” Seus olhos se arregalaram e ele umedeceu os lábios. “Seus esforços para me sabotar não passam de um monte de tinta que você está espalhando na água porque está ficando apavorado e quer desviar a atenção. Você matou Susan?” “Você está ficando louca.” A voz dele tremeu. “Ela saiu de casa no começo da tarde do dia de Natal, supostamente para encontrar uma amiga. Na verdade, a pessoa que ela ia encontrar era você, não era? Diga-me, você sabia que Susan, morta em seu próprio carro, estava com a gola do casaco e o lenço cheirando a colônia masculina, essa água-de-colônia Red que você guarda aqui na gaveta para se reescar antes de ir para os bares depois do trabalho?” “Não sei do que você está falando.” “Quem estava dando dinheiro a ela?” “Quem sabe você…” “Isso é ridículo. Você e Susan estavam envolvidos em algum esquema, e meu palpite é que foi você quem a envolveu, porque sabia das aquezas dela. Com certeza ela confiou em você. Você sabia como convencê-la a acompanhálo, e Deus sabe que você tinha onde gastar o dinheiro. Só suas contas de bar já devem estourar seu orçamento. Farra é uma coisa cara, e eu sei quanto você ganha”, afirmei calmamente. “Você não sabe nada.” Baixei a voz. “Ben, corte essa. Pare enquanto é tempo. Diga-me quem está por trás disso.” Ele não me olhava nos olhos. “Quando o pessoal começa a morrer, é porque as apostas estão muito altas.
Você acha que se matou Susan vai conseguir se livrar?” Ele não respondeu. “Se foi outra pessoa que a matou, você acha que está seguro, que o mesmo não pode acontecer com você?” “Você está me ameaçando.” “Bobagem.” “Você não pode provar que a água-de-colônia cujo cheiro sentiu em Susan era a minha. Não há teste para um troço assim. Não se pode botar um cheiro num tubo; não se pode guardar um cheiro”, disse ele. “Ben, agora vou pedir para você sair.” Ele se virou e saiu da sala. Quando ouvi as portas do elevador se fecharem desci o corredor e espiei por uma janela que dava para o estacionamento dos fundos. Só depois que Stevens foi embora me arrisquei a sair para buscar meu carro.
O edifício do FBI é uma fortificação de concreto na esquina da rua 9 com a avenida Pensilvânia, no coração do distrito de Colúmbia, e quando cheguei lá na manhã seguinte ele estava sendo invadido por pelo menos cem crianças barulhentas. Lembravam Lucy na idade delas, em tropel pelas escadas, correndo para sentar nos bancos e circulando entre vasos com vastos arbustos e árvores. Lucy teria adorado percorrer os laboratórios, e de repente senti sua falta intensamente. O rumor daquelas vozes agudas esmoreceu, como que levado para longe pelo vento. Avancei com passos firmes e decididos, pois estivera lá muitas vezes e conhecia o caminho. Passei por um pátio, depois por uma área de estacionamento reservado e por um guarda, para finalmente atingir a porta de vidro de uma só folha. Dentro havia um vestíbulo com mobília marrom, espelhos e bandeiras. Numa parede sorria uma fotografia do presidente dos Estados Unidos e em outra havia um cartaz com os dez fugitivos mais procurados do país. Na mesinha da recepção apresentei minha carteira de motorista a um jovem agente cuja atitude era tão sombria quanto seu terno cinza. “Sou a doutora Kay Scarpetta, médica-legista chefe da Virgínia.” “A senhora quer falar com quem?” Informei-o. Ele me comparou à fotografia, certificou-se de que eu não estava armada, deu um telefonema e me entregou um crachá. Diferentemente da academia em Quantico, a sede tinha um ambiente que parecia engomar a alma e endurecer a espinha. Eu nunca tinha encontrado o agente especial Minor Downey, embora a ironia de seu nome tivesse suscitado em mim imagens depreciativas. Devia ser um homem afetado e ágil, com pelo louro-claro cobrindo-lhe cada
centímetro do corpo com exceção da cabeça. Os olhos deviam ser acos e a pele raramente tocada pelo sol, e era óbvio que devia deslizar pelos lugares e nunca chamar atenção para si. Naturalmente, estava errada. Quando um homem saudável e em mangas de camisa apareceu e me olhou com firmeza, levantei-me da cadeira. “O senhor deve ser o senhor Downey.” Ele apertou minha mão. “Doutora Scarpetta. Chame-me de Minor, por favor.” Teria no máximo quarenta anos e era atraente. Fazia o gênero acadêmico, de óculos sem aro, cabelo castanho cortado rente, e gravata de listras marrons e azul-marinho. Transpirava uma autoridade e uma intensidade intelectual que eram imediatamente reconhecidas por quem houvesse soido os anos árduos da pós-graduação, pois eu não conseguia me lembrar de nenhum professor de Georgetown ou de Johns Hopkins que não fosse adepto do raro e não achasse impossível ligar-se aos seres humanos comuns. “E por que seu interesse pelas penas?”, perguntei quando tomamos o elevador. “Tenho uma amiga que é ornitóloga no Museu de História Natural do Smithsonian. Quando ela começou a colaborar com os funcionários da aeronáutica no problema dos choques com aves, fiquei interessado. Você sabe, as aves entram nas turbinas dos aviões, e quando você examina os pedaços de fuselagem no chão, encontra restos de penas e quer saber qual foi a ave que causou o problema. Em outras palavras, o que foi chupado fica bem mastigado. Uma gaivota pode derrubar um bombardeiro B-1, e é possível perder um motor em decorrência do encontro de uma ave com um avião grande cheio de gente, o que é um problema. Ou então tem o caso do mergulhão que atravessou o vidro de um jato Lear e decapitou o piloto. Isso é parte do que eu faço. Trabalho com a ingestão de aves. Testamos turbinas e pás jogando galinhas lá dentro. Aí ficamos sabendo se o avião pode sobreviver a uma ou duas galinhas. Mas as aves estão em todos os lugares. Excrementos de pombo na sola do sapato de um suspeito — o suspeito esteve ou não na travessa onde o corpo foi encontrado? Ou o cara que durante um assalto furta uma arara-amarela, e encontramos agmentos de plumas na parte de trás do carro dele que identificamos como de uma arara-amarela. Ou a pluminha encontrada no corpo de uma mulher estuprada e assassinada. A mulher foi encontrada numa caixa de alto-falantes estéreo Panasonic num contêiner. A pluma me pareceu uma peninha branca de pato-bravo, o mesmo tipo de pena do edredom que havia na cama do suspeito. Esse caso foi resolvido com uma pena e dois fios de cabelo.” O terceiro andar era um verdadeiro quarteirão de laboratórios onde técnicos analisavam explosivos, restos de pintura, pólen, instrumentos, pneus e cacos usados em crimes ou recolhidos no local dos crimes. Colunas
cromatográficas especiais para gases, microespectrofotômetros e supercomputadores funcionavam dia e noite, e as coleções de referência enchiam salas e salas com tipos de pintura de automóvel, fitas adesivas e plásticos. Acompanhei Downey pelos corredores que passavam pelos laboratórios de análise de DNA até chegar à Seção de Pelos e Fibras, onde ele trabalhava. Sua sala também funcionava como laboratório, com a mobília de madeira escura e as estantes compartilhando o espaço com balcões e microscópios. As paredes e o carpete eram bege, e alguns desenhos feitos a lápis e presos a um quadro de avisos me mostraram que aquele perito em penas internacionalmente respeitado era pai. Abri um envelope de papel pardo e tirei três invólucros menores feitos de plástico transparente. Dois continham as penas colhidas junto aos corpos de Jennifer Deighton e Susan, enquanto o terceiro continha uma lâmina com os resíduos pegajosos dos pulsos de Eddie Heath. “Parece que esta é a melhor”, eu disse, apontando a pena que resgatara da camisola de Jennifer Deighton. Ele a tirou do saquinho e disse: “Esta é uma pena do papo ou das costas. Tem uma bela curva. Muito bem. Quanto mais penas você tiver, melhor”. Usando uma pinça, retirou dos dois lados da haste várias das projeções ou “barbas” que dela partiam, instalou-se ao microscópio estereoscópico e as colocou num filme fino de xileno que havia deitado numa lâmina. Isso servia para separar as minúsculas estruturas, ou fazê-las flutuar, e quando achou que cada fio estava perfeitamente separado, encostou no xileno um pedacinho de papel mata-borrão verde a fim de absorvê-lo. Acrescentou Flo-Texx, produto isolante, depois uma cobertura, e ajustou a lâmina ao microscópio comparativo, que estava ligado a uma câmera de televisão. “Vou começar dizendo que as penas de todos os pássaros têm basicamente a mesma estrutura. Você tem uma haste central, barbas — que por sua vez se dividem em bárbulas, que são como fios de cabelo — e uma base alargada, em cima da qual há um poro chamado umbílico superior. As barbas são os filamentos que dão à pena sua aparência penosa, e no microscópio a gente vê que na verdade elas são como minipenas saindo da haste.” Voltou-se para a tela. “Isso aí é uma barba.” “Parece uma samambaia.” “Sob muitos aspectos parece. Agora vamos aumentar um pouco para examinar bem as bárbulas, porque são as características das bárbulas que permitem a identificação. Estamos interessados principalmente nos nódulos.” “Deixe-me ver se entendi. Os nódulos são características das bárbulas, as bárbulas são características das barbas, as barbas são características das penas e as penas são características das aves.” “Certo. E cada família de aves tem sua própria estrutura de penas.” O que vi na tela do monitor parecia, naturalmente, o desenho de uma folha
ou da perna de um inseto. As linhas eram formadas por segmentos conectados por estruturas triangulares tridimensionais, que Downey disse serem os nódulos. “A chave é o tamanho, a forma, o número e a pigmentação dos nódulos, assim como sua posição em relação à bárbula”, explicou ele pacientemente. “Por exemplo, se os nódulos têm forma de estrela você está lidando com pombos, nódulos em anel são de penas de galinhas ou perus, orlas salientes com expansão prenodal são de cucos.” Apontou para a tela. “Estes são claramente triangulares; assim sei logo que a pena é de pato ou de ganso. Não que isso seja uma grande surpresa. A origem costumeira das penas recolhidas em assaltos, estupros e homicídios são travesseiros, edredons, abrigos, jaquetas, luvas. E geralmente o acolchoado desses itens é de penas e plumas de pato e ganso picadas e, em produtos mais baratos, de galinha. Mas aqui podemos dizer com certeza que não é galinha. E estou quase afirmando que sua pena também não veio de um ganso.” “Por quê?” “Bom, a distinção seria muito fácil se tivéssemos a pena inteira. Essas pluminhas são barra. Mas, tendo em vista o que estou vendo aqui, a média é de poucos nódulos. Além disso, eles não estão localizados ao longo da bárbula, mas em suas partes finais. E isso é uma característica dos patos.” Abriu um armário e puxou diversas gavetas de lâminas. “Vamos ver. Tenho mais ou menos setenta lâminas de patos. Para ter certeza, vou passar todas e vou eliminando.” Uma por uma, colocou as lâminas sob o microscópio comparativo, basicamente composto por dois microscópios combinados num binóculo. No monitor de televisão havia um campo de luz circular dividido no meio por uma linha fina; o exemplar da pena conhecida ficava de um lado e o da que esperávamos identificar, do outro. Exploramos rapidamente a adem-brava, o pato-almiscarado, o arlequim, a adem-negra, o pato-selvagem, o ganso-bravo americano e dúzias de outras aves. Downey não precisava olhar nenhuma delas muito tempo para saber que o pato que procurávamos não era aquele. “É imaginação minha, ou essa é mais delicada que as outras?”, eu disse da pena em questão. “Não é sua imaginação, não. É mais delicada, mais homogênea. Está vendo como as estruturas triangulares não aparecem tanto?” “Estou. Agora que você mostrou.” “E isso nos dá uma pista importante sobre a ave. Isso é que é fascinante. A natureza realmente tem uma razão para as coisas, e nesse caso desconfio que a razão é o isolamento. A função da pluma é prender o ar, e quanto mais finas as bárbulas, mais lisos e menores os nódulos, mais extrema a localização dos nódulos, e mais eficiente vai ser a pluma em sua função de prender o ar. Quando o ar está preso, é como estar em uma salinha isolada e sem
ventilação. Você vai se sentir quente.” Colocou outra lâmina na plataforma do microscópio e daquela vez pude ver que estávamos perto. As bárbulas eram delicadas, os nódulos miúdos e localizados nas extremidades. “Isso é o quê?” “Guardei os principais suspeitos para o fim.” Parecia contente. “Patos marinhos. E os primeiros da lista são os patos-do-norte. Vamos aumentar a ampliação para quatrocentos.” Trocou as lentes da objetiva, ajustou o foco, e lá fomos nós por diversas outras lâminas. “O pato-rei não é. E acho que não é o estrela por causa da pigmentação marrom na base do nódulo. A pena que você trouxe não tem isso, está vendo?” “É.” “Vamos tentar então o pato-do-norte comum. Pronto. A pigmentação bate”, disse ele, fitando a tela atentamente. “E, vejamos, uma média de dois nódulos localizados na extremidade das bárbulas. Mais o alinhamento para uma qualidade isolante superboa — e isso é importante se você está nadando no oceano Ártico. Acho que é esse, o Somateria mollissima, encontrado na Islândia, na Noruega, no Alasca e no litoral da Sibéria. Vou fazer outro exame com o MEE”, acrescentou, referindo-se ao microscópio eletrônico explorador. “Para procurar o quê?” “Cristais de sal.” “Claro. Porque os patos-do-norte são aves de água salgada”, eu disse, fascinada. “Exatamente. E bem interessantes, aliás, um exemplo notável de exploração econômica. Na Islândia e na Noruega suas colônias de reprodução são protegidas dos predadores e de outros acidentes, para as pessoas poderem recolher as plumas com as quais a fêmea forra o ninho e cobre os ovos. Depois as plumas são limpas e vendidas para as fábricas.” “Fábricas de quê?” “Principalmente de sacos de dormir e edredons.” Enquanto falava, ia montando várias barbas da pena encontrada dentro do carro de Susan. “Jennifer Deighton não tinha nada disso em casa. Absolutamente nada acolchoado com penas”, eu disse. “Então com certeza estamos lidando com uma transferência secundária ou terciária, em que a pena foi transferida ao assassino, que por sua vez transferiu-a para a vítima. Isso é muito interessante, compreende?” Agora o exemplar aparecia na tela. “Pato-do-norte de novo”, eu disse. “Acho que sim. Agora vamos ver a lâmina. É do menino?” “É. De um resíduo adesivo nos pulsos de Eddie Heath.” “Veja!”
Os restos microscópicos apareceram na tela como uma variedade fascinante de cores, formas, fibras, mais os conhecidos nódulos triangulares e bárbulas. “Bom, isso abre uma brecha na minha teoria. Se estamos falando de três homicídios que ocorreram em lugares diferentes e em momentos diferentes”, disse Downey. “É sobre isso que estamos falando.” “Se só uma dessas penas fosse de pato-do-norte eu ficaria tentado a considerar a possibilidade de um contágio. Compreende, você vê essas etiquetas que dizem cem por cento acrílico e quando vai ver é noventa por cento acrílico e dez por cento náilon. As etiquetas mentem. Se o lote imediatamente anterior ao seu suéter de acrílico, por exemplo, era de jaquetas de náilon, então os primeiros suéteres que saem vão ter um contágio de náilon. Se você examina mais suéteres, o contágio vai desaparecendo.” “Em outras palavras”, eu disse, “se alguém está usando uma jaqueta acolchoada com penas ou tem um edredom que tenha recebido um contágio de pato-do-norte quando estava sendo fabricado, é praticamente impossível que a jaqueta ou edredom só solte as penas do contágio.” “Claro. Então temos de admitir que esse item é acolchoado só com patodo-norte, o que é muito curioso. Geralmente o que vejo nos casos que vêm para cá são jaquetas, luvas e edredons de supermercado acolchoados com penas de galinha ou às vezes de ganso. Pato-do-norte é um produto especial. Um item de loja fina. Um colete, uma jaqueta, um edredom ou um saco de dormir acolchoado com pena de pato-do-norte dura muito, deve ter sido muito bem-feito — e é impressionantemente caro.” “Você já teve alguma vez um pato-do-norte apresentado como prova antes?” “É a primeira vez.” “Por que é tão caro?” “São as qualidades isolantes de que já falei. Mas também tem muito a ver com a atração estética. A pluma comum do pato-do-norte é branquinha. A maioria das plumas é suja.” “E se eu comprasse um produto acolchoado com pato-do-norte, eu ia saber que ele era acolchoado com essas plumas brancas ou a etiqueta ia dizer simplesmente: ‘pluma de pato’?” “Tenho certeza de que você ia saber. A etiqueta diria algo como ‘cem por cento pluma de pato-do-norte’. Tinha de haver alguma coisa para justificar o preço.” “Você pode fazer por computador um levantamento dos distribuidores de plumas?” “Claro. Mas, para dizer o óbvio, nenhum distribuidor vai ser capaz de dizer se a pluma que você recolheu é dele; só com a roupa ou o produto. Infelizmente, a pena não basta.”
“Não sei. Pode ser.”
Por volta do meio-dia eu tinha andado duas quadras até o lugar onde estacionara meu carro e já estava dentro dele, com o aquecimento à toda. Estava tão perto da avenida New Jersey que me senti como a maré atraída pela Lua. Apertei o cinto de segurança, mexi no rádio e por duas vezes agarrei o telefone e mudei de ideia. Só pensar em entrar em contato com Nicholas Grueman já era uma loucura. Agarrando o telefone e discando, pensei que de todo modo não o encontraria. “Grueman”, disse a voz. “É a doutora Scarpetta.” Elevei minha voz por causa do ruído do aparelho de aquecimento. “Ah, alô. Outro dia mesmo estava lendo a seu respeito. A senhora parece que está ligando de um telefone de automóvel.” “Estou sim. Estou em Washington.” “Fico muito honrado de saber que a senhora se lembra de mim quando passa por minha humilde cidade.” “Sua cidade não é nada humilde, doutor Grueman, e esta chamada não tem nada de social. Me ocorreu que o senhor e eu poderíamos discutir a respeito de Ronnie Joe Waddell.” “Sei. A senhora está muito longe do Centro Jurídico?” “Dez minutos.” “Ainda não almocei e acho que a senhora também não. Está bem se eu encomendar uns sanduíches?” “Para mim está ótimo.” O Centro Jurídico ficava a umas trinta e cinco quadras do prédio principal da universidade; lembrei-me de meu desapontamento quando, muitos anos antes, me dera conta de que meus estudos não incluiriam passeios pelas ruas sombreadas da colina nem aulas em belos edifícios setecentistas de tijolos aparentes. Em vez disso, teria de gastar três longos anos numa instalação novíssima e sem encanto, numa região barulhenta e agitada do distrito de Colúmbia. Meu desapontamento, porém, não durara muito. Além de ser prático estudar direito à sombra do Congresso dos Estados Unidos, a coisa era um tanto excitante. Mais significativo, contudo, era talvez o fato de que encontrara Mark pouco depois de começar a estudar. O que eu mais lembrava de meus primeiros encontros com Mark James durante o primeiro semestre de nosso primeiro ano era o efeito físico que ele causava em mim. No princípio eu ficava perturbada só de vê-lo, embora não soubesse por quê. Depois, quando nos conhecemos, sua presença derramava adrenalina em meu sangue. Meu coração galopava e de repente me dava conta de que prestava atenção em cada gesto dele, por mais simples que fosse. Por
semanas a fio nossas conversas, que entravam madrugada adentro, foram cheias de enlevo. Nossas palavras eram menos elementos da fala que notas de algum crescendo secreto e inevitável, que se consumou uma noite com a estonteante imprevisibilidade e a força de um acidente. O edifício do Centro Jurídico passara por ampliações e se transformara daquele tempo para cá. A Clínica de Justiça Criminal era no quarto andar. Quando saí do elevador não se via ninguém, e as salas pelas quais passei pareciam desocupadas. Afinal de contas ainda era época de férias e só os implacáveis e os desesperados estariam inclinados a trabalhar. A porta da sala 418 estava aberta, a mesa da secretária vazia e a porta interna do escritório de Grueman entreaberta. Não querendo surpreendê-lo, chamei seu nome ao aproximar-me da porta. Ele não respondeu. “Doutor Grueman? O senhor está aí?”, tentei outra vez enquanto empurrava a porta para abri-la mais. A mesa estava coberta de papéis em desordem que circundavam um computador, e ao longo das estantes apinhadas havia pilhas de pastas e documentos. À direita da escrivaninha havia uma mesa com uma impressora e um aparelho de fax atarefado em enviar algo a alguém. Enquanto olhava em torno silenciosamente, o telefone tocou três vezes e parou. Na janela atrás da mesa as persianas estavam baixadas, talvez para diminuir o reflexo na tela do computador, e uma pasta de couro marrom usada e arranhada descansava encostada no peitoril. Uma voz atrás de mim quase me fez desmaiar. “Desculpe. Saí um pouquinho e esperava poder voltar antes que a senhora chegasse.” Nicholas Grueman não estendeu a mão nem me saudou de maneira nenhuma. Sua preocupação parecia ser voltar à sua cadeira, o que fez muito vagarosamente e com o auxílio de uma bengala de castão de prata. Sentandose na cadeira de juiz, disse: “Quando Evelyn não está aqui não há café, senão eu lhe oferecia. Mas a confeitaria que vai entregar os sanduíches daqui a pouco vai trazer alguma coisa para a gente beber. Espero que a senhora possa esperar, e sente-se, por favor, doutora Scarpetta. Fico nervoso quando uma mulher olha para mim de cima para baixo”. Puxei uma cadeira para perto da mesa e fiquei assombrada ao dar-me conta de que pessoalmente Grueman não era o monstro de que eu me lembrava de meu tempo de estudante. Parecia, por exemplo, ter encolhido, embora eu desconfiasse que a explicação mais provável fosse que, em minha imaginação, eu tivesse inflado suas proporções até atingir as do monte Rushmore. Agora eu o via como um homem miúdo de cabelos brancos cujo rosto fora esculpido pelos anos numa caricatura cativante. Ainda usava gravata-borboleta e colete e fumava cachimbo, e, quando me olhou, seus olhos cinzentos foram tão capazes de dissecar quanto qualquer escalpelo. Não os achei, porém, ios.
Eram simplesmente discretos, tal como quase sempre eram os meus. “Por que o senhor está mancando?”, perguntei num impulso. “Gota. A doença dos déspotas. Aparece de vez em quando, e por favor me poupe de conselhos ou remédios. Vocês médicos me deixam louco dando, sem a gente pedir, opinião sobre tudo, desde as cadeiras elétricas que funcionam mal até o alimento e a bebida que devo excluir de minha miserável dieta”, disse sem um sorriso. “A cadeira elétrica não funcionou mal. Pelo menos no caso a que, tenho certeza, o senhor está aludindo.” “A senhora não pode de modo algum saber a que caso eu estou aludindo, e me parece que no breve tempo que passou aqui tive de adverti-la mais de uma vez sobre sua grande facilidade para concluir coisas. Sinto que não me tenha ouvido. Continua a concluir, embora neste caso sua conclusão tenha sido em verdade correta.” “Doutor Grueman, fico lisonjeada ao ver que o senhor se lembra de mim como aluna, mas não vim aqui para recordar as horas infelizes que passei em sua sala de aula. Nem estou aqui para participar mais uma vez das artes marciais mentais em que o senhor parece deliciar-se. Para seu governo, vou lhe dizer que o senhor tem a honra de ser o professor mais arrogante e misógino que encontrei durante mais ou menos trinta anos de estudos. E tenho de lhe agradecer por ter me treinado tão bem na arte de lidar com sacanas, pois o mundo está cheio deles e tenho de lidar com eles todos os dias.” “Não tenho dúvida de que a senhora lida com eles todos os dias e ainda não decidi se é ou não boa nisso.” “Não estou interessada em saber sua opinião sobre o assunto. Gostaria que o senhor me contasse mais sobre Ronnie Joe Waddell.” “O que mais a senhora gostaria de saber além do fato óbvio de que a conclusão do caso foi incorreta? A senhora acha que a política deveria determinar se as pessoas devem ser mortas, doutora Scarpetta? Olhe só o que está acontecendo com a senhora neste momento. As notícias maldosas sobre a senhora não serão, pelo menos em parte, politicamente motivadas? Cada parte envolvida tem seus próprios objetivos, tem alguma coisa a ganhar em desonrá-la publicamente. Não tem nada a ver com justiça ou verdade. Imagine então o que ocorreria se essas mesmas pessoas tivessem o poder de privá-la de sua liberdade ou mesmo de sua vida! Ronnie foi triturado por um sistema irracional e injusto. Não importa quais os precedentes aplicados, ou se consideraram ou não as razões de apelação ou recurso. Os pontos que levantei não foram levados em consideração porque atualmente no seu querido estado o habeas corpus não serve como instrumento para garantir que juízes e desembargadores procurem conscienciosamente dirigir os processos em coerência com os princípios constitucionais estabelecidos. Deus
nos livre da possibilidade de que haja qualquer interesse em violações constitucionais no fomento da evolução de nosso pensamento em certos ramos do direito. Nos três anos em que lutei pelo Ronnie, foi como se estivesse dançando uma giga.” “A que violações constitucionais o senhor está se referindo?” “A senhora tem tempo? Mas vamos começar pelo uso óbvio, pela acusação, de objeções peremptórias, de modo racialmente discriminatório. Os direitos de Ronnie, à luz da cláusula de proteção igual, foram violados de todos os jeitos possíveis, e a conduta inaceitável da promotoria iningiu espalhafatosamente o direito, que a emenda constitucional número 6 lhe dava, a um júri que representasse com justiça a estrutura da sociedade. Imagino que você não tenha visto o julgamento do Ronnie e nem mesmo saiba muito a respeito, já que isso foi há mais de nove anos e a senhora não estava na Virgínia. Houve muita publicidade em cima disso, e assim mesmo não houve desaforamento. O júri foi composto de oito mulheres e quatro homens. Seis das mulheres e dois dos homens eram brancos. Os quatro jurados negros eram um vendedor de automóveis, um caixa de banco, uma enfermeira e uma professora de faculdade. A profissão dos jurados brancos ia de um guarda-linha aposentado que ainda chamava os negros de ‘crioulos’ até uma dona de casa rica que só tinha contato com os negros quando olhava as notícias e via que mais um deles tinha atirado em alguém nos conjuntos residenciais. A demografia do júri tornou impossível que o Ronnie recebesse uma sentença justa.” “E o senhor está dizendo que, no caso de Waddell, essas ou quaisquer outras impropriedades constitucionais tinham uma razão política? Que razão política podia haver para executar Ronnie Waddell?” Grueman olhou de repente para a porta. “Ou meus ouvidos me enganam, ou o almoço chegou.” Ouvi passos rápidos e um barulho de papel, depois uma voz chamou: “Oi, Nick. Você está aí?”. “Entre, Joe”, disse Grueman sem levantar-se da cadeira. Um rapaz negro de jeans e tênis apareceu e colocou dois sacos na ente de Grueman. “Este é o das bebidas, e aqui tem dois sanduíches, salada de batatas e picles. São quinze e quarenta.” “Pode ficar com o troco. E olhe, Joe, muito obrigado. Eles nunca dão férias a você, não?” “O pessoal não para de comer, cara. Tenho de ir embora.” Grueman repartiu o alimento e os guardanapos enquanto eu tentava desesperadamente imaginar o que fazer. Estava me sentindo cada vez mais abalada por suas palavras e atitude, pois não havia nele subterfúgio algum, nada que me desse a impressão de arrogância ou dissimulação.
“Que razão política?”, perguntei-lhe de novo enquanto desembrulhava o sanduíche. Ele abriu um reigerante e tirou a tampa da embalagem da salada de batatas. “Várias semanas atrás, pensei que podia obter uma resposta para essa pergunta. Mas a pessoa que podia ter me ajudado foi subitamente encontrada morta dentro de seu carro. E tenho certeza de que a senhora sabe de quem estou falando, doutora Scarpetta. Jennifer Deighton é um de seus casos e, embora ainda não tenha sido declarado publicamente que a morte dela foi suicídio, é nisso que o público foi induzido a crer. Acho que a morte dela aconteceu num momento singular, para não dizer aterrorizante.” “Quer dizer que o senhor conhecia Jennifer Deighton?”, indaguei do modo mais suave que pude. “Sim e não. Nunca a encontrei, e nossas poucas conversas por telefone foram rápidas. Só entrei em contato com ela depois da morte de Ronnie, entende?” “Então ela também conhecia Waddell.” Grueman deu uma dentada no sanduíche e pegou o reigerante. “Claro que ela e Ronnie se conheciam. Como a senhora deve saber, a senhorita Deighton tinha um serviço de horóscopos, mexia com para- psicologia e coisas assim. Bom, oito anos atrás, quando estava no corredor da morte em Mecklemburg, Ronnie viu um anúncio dela numa revista. Escreveu para ela, primeiro com a esperança de que ela pudesse olhar na bola de cristal, por assim dizer, e contar-lhe seu futuro. Acho que queria saber principalmente se ia morrer na cadeira elétrica, e isso não é um fenômeno incomum — presos que escrevem para adivinhos, para cartomantes, e perguntam sobre seu futuro, ou entram em contato com sacerdotes e pedem orações. O que houve de excepcional no caso do Ronnie foi que aparentemente ele e a senhorita Deighton deram início a uma correspondência íntima que durou até uns meses antes da morte dele. Aí as cartas para ele pararam de repente.” “O senhor acha que as cartas dela para ele podem ter sido interceptadas?” “Não há dúvida nenhuma. Quando falei com Jennifer Deighton pelo telefone ela alegou que tinha continuado a escrever para Waddell. Disse também que nos últimos meses não tinha mais recebido cartas dele e estou muito desconfiado de que as cartas dele também eram interceptadas.” “Por que o senhor esperou para entrar em contato com ela só depois da execução?”, estranhei. “Antes não sabia da existência dela. Ronnie não tinha me dito nada sobre ela até nossa última conversa, que com certeza foi a conversa mais estranha que já tive com qualquer dos presos que defendi.” Grueman brincou com o sanduíche, depois afastou-o de si. Pegou o cachimbo. “Não sei se a senhora sabe disso, doutora Scarpetta, mas o Ronnie me deixou.” “Não tenho ideia do que o senhor quer dizer.”
“A última vez que falei com o Ronnie foi uma semana antes de ele ser transportado de Mecklemburg para Richmond. Naquela ocasião ele declarou que sabia que ia ser executado e que nada que eu pudesse fazer ia mudar aquilo. Disse que o que ia acontecer com ele já havia sido decidido desde o começo e que aceitava a inevitabilidade da morte. Disse que estava querendo morrer e preferia que eu parasse de tentar o habeas corpus na Justiça Federal. E também pediu que eu não lhe telefonasse mais nem fosse vê-lo.” “Mas ele não dispensou o senhor.” Grueman pôs fogo dentro do fornilho do cachimbo e sugou pela boquilha. “Não, não dispensou. Simplesmente se recusou a ver-me ou a falar comigo no telefone.” “Mas isso bastaria para justificar uma suspensão da execução, enquanto se procedia a uma determinação a respeito da defesa.” “Tentei isso. Tentei citar tudo, desde o acórdão no caso Hays versus Murphy até o ‘padre-nosso’. O tribunal decidiu brilhantemente que Ronnie não tinha pedido para ser executado. Simplesmente havia declarado que queria morrer, e a petição foi denegada.” “Se o senhor não teve contato com Waddell por várias semanas antes da execução, como soube de Jennifer Deighton?” “Durante minha última conversa com Ronnie, ele me fez três últimos pedidos. O primeiro foi que eu providenciasse para que uma meditação que ele tinha escrito fosse publicada no jornal uns dias antes de sua morte. Deume o texto e consegui com o Richmond Times-Dispatch.” “Eu li.” “O segundo pedido, e são palavras dele, foi: ‘Não deixe que aconteça nada a minha amiga’. Eu perguntei a ele a que amiga estava se referindo, e ele disse, e são de novo palavras dele: ‘Se o senhor é um homem bom, olhe por ela. Ela nunca fez mal a ninguém’. Deu-me o nome dela e pediu para eu não entrar em contato com ela antes da morte dele. Aí eu deveria telefonar para ela e dizer-lhe o quanto ela havia significado para ele. Bom, claro que não atendi a esse pedido ao pé da letra. Tentei entrar imediatamente em contato com ela porque senti que estava perdendo Ronnie e que estava acontecendo alguma coisa terrivelmente errada. Eu tinha esperança de que aquela amiga pudesse ajudar. Se, por exemplo, eles tivessem se correspondido, talvez ela pudesse me esclarecer.” “E o senhor conseguiu falar com ela?”, perguntei, lembrando-me de que Marino me dissera que Jennifer Deighton tinha estado na Flórida por duas semanas por volta do dia de Ação de Graças. “Ninguém jamais atendeu o telefone. Tentei de vez em quando por várias semanas e aí, para ser anco, por causa do momento e de problemas de saúde, tudo relacionado com o ritmo dos processos, com os feriados e com a medonha armadilha da gota, minha atenção foi desviada. Só pensei de novo
em telefonar para Jennifer Deighton depois da morte de Ronnie, quando eu precisava entrar em contato com ela e comunicar, a pedido do Ronnie, que ela havia representado muito para ele etc.” “Quando tentou falar com ela antes, o senhor deixou recado na secretária eletrônica?” “A secretária não estava ligada. O que, pensando bem, faz sentido. Ela não queria voltar das férias e encontrar quinhentas mensagens de pessoas que só podem tomar uma decisão depois de saber o horóscopo. E, se tivesse deixado na secretária eletrônica uma mensagem dizendo que ia ficar fora duas semanas, isso seria um convite perfeito para os ladrões.” “E o que aconteceu quando o senhor conseguiu afinal falar com ela?” “Foi aí que ela me contou que eles tinham se correspondido durante oito anos e que se amavam. Disse que a verdade nunca ia ser conhecida. Perguntei o que ela estava querendo dizer, mas ela não quis me contar e desligou. Acabei escrevendo uma carta implorando para ela falar comigo.” “Quando o senhor escreveu essa carta?” “Deixe ver. Foi no dia seguinte à execução. Acho que foi no dia 14 de dezembro.” “E ela respondeu?” “Interessante; respondeu por fax. Não sabia que ela tinha um aparelho de fax, mas o número do meu fax estava em meu papel de carta. Se a senhora quiser ver, tenho uma cópia do fax dela.” Remexeu pastas de arquivo lotadas e outros papéis que havia na mesa. Depois de encontrar a pasta que buscava, procurou dentro dela e tirou o fax, que logo reconheci. “Está bem, vou cooperar”, estava escrito, “mas agora é tarde demais, tarde demais, tarde demais. É melhor você vir até aqui. Tudo isso está muito errado!”. Perguntei-me como reagiria Grueman se soubesse que o fax que ela lhe havia mandado tinha sido recriado mediante o aprimoramento de imagens no laboratório de Neils Vander. “O senhor sabe o que ela queria dizer? O que era tarde demais e o que estava tão errado?” “Evidentemente, era tarde demais para fazer qualquer coisa que impedisse a execução de Ronnie, porque isso já havia acontecido quatro dias antes. Não sei o que ela pensava que estava tão errado, doutora Scarpetta. Eu tinha intuído havia já algum tempo que existia alguma coisa maliciosa no caso de Ronnie, compreende? Ele e eu nunca desenvolvemos um relacionamento e só isso já é esquisito. Geralmente a gente fica muito próximo. Sou o único a defender o cara num sistema que quer matá-lo — o único que trabalha para o sujeito num sistema que não trabalha para o sujeito. Mas Ronnie foi tão arrogante com o primeiro advogado dele que o indivíduo decidiu que ele era um caso perdido e abandonou a causa. Mais tarde, quando aceitei o caso, Ronnie continuou distante. Era extraordinariamente ustrante. Quando eu
pensava que ele estava começando a confiar em mim, ele erguia uma barreira. De repente ele se calava novamente e começava literalmente a transpirar.” “Parecia que estava aterrorizado?” “Aterrorizado, deprimido, às vezes zangado.” “O senhor está sugerindo que nesse caso havia alguma coisa planejada, e que ele podia ter contado à amiga a respeito disso, quem sabe em alguma das primeiras cartas?” “Não sei o que Jennifer Deighton sabia, mas suspeito que alguma coisa ela sabia.” “Waddell a chamava de ‘Jenny’?” Grueman apanhou novamente o isqueiro. “Chamava.” “Ele alguma vez falou com o senhor de um romance chamado Paris Trout?” Ele pareceu admirado. “Interessante. Faz tempo que eu não pensava nisso, mas, durante uma de minhas sessões com Ronnie, vários anos atrás, falamos de livros e da poesia dele. Ele gostava de ler e me sugeriu que lesse Paris Trout. Eu disse a ele que já tinha lido o romance, mas que estava curioso para saber por que ele recomendava que eu o lesse. E ele, muito tranquilamente, me disse: ‘Porque é assim que funciona, doutor Grueman. E o senhor não vai mudar a coisa de jeito nenhum’. Na época interpretei aquilo como querendo dizer que ele era um negro sulista conontado com o sistema do homem branco, e que nenhum habeas corpus federal nem nenhuma outra mágica que eu pudesse invocar durante o processo de recurso alteraria o destino dele.” “Sua interpretação ainda é essa?” Ele olhou fixamente através de uma nuvem de fumaça perfumada. “Acho que sim. Por que a senhora está interessada na lista dos livros recomendados pelo Ronnie?” Seus olhos encontraram os meus. “Jennifer Deighton tinha um exemplar de Paris Trout ao lado da cama. Dentro havia um poema, e tenho a impressão de que o Waddell o escreveu para ela. Não é importante. Só curiosidade.” “Se não fosse importante a senhora não teria perguntado. O que a senhora está imaginando é que talvez o Ronnie tivesse recomendado o romance a ela pela mesma razão pela qual o recomendou a mim. Na cabeça dele, a história de alguma maneira era sua história. E isso nos leva de volta à questão do que ele teria contado à senhorita Deighton. Em outras palavras, que segredo dele ela levou para o túmulo?” “O que o senhor acha que era, doutor Grueman?” “Acho que alguma transgressão muito sórdida foi acobertada, e que por alguma razão Ronnie tinha conhecimento dela. Talvez tenha alguma coisa a ver com o que acontece atrás das grades, isto é, corrupção dentro do sistema penitenciário. Não sei, mas queria saber.”
“Mas por que esconder alguma coisa quando o cara já está diante da morte? Por que não ir em frente, arriscar e contar?” “Isso seria a coisa racional, não seria? E agora que já respondi tão paciente e generosamente a suas perguntas de algibeira, doutora Scarpetta, quem sabe a senhora entende melhor por que eu fiquei tão preocupado com qualquer violência que Ronnie pudesse ter soido antes da execução. Quem sabe a senhora entende melhor minha oposição apaixonada à pena de morte, que é desumana e degradante. Não é preciso que a pessoa tenha lesões ou escoriações ou sangue pelo nariz para que ela seja isso.” “Não havia provas de violência física. Tampouco encontraram drogas. O senhor recebeu meu relatório.” “A senhora está se esquivando do assunto. A senhora está hoje aqui porque quer alguma coisa de mim. Já lhe dei muito através de um diálogo que não tinha obrigação de manter. Mas acedi, porque estou sempre buscando a justiça e a verdade, a despeito do que possa lhe parecer. E há outra razão. Uma ex-aluna minha está numa enrascada”, disse Grueman, batendo o cachimbo para fazer cair o fumo. “Se o senhor está se referindo a mim, deixe eu lhe lembrar sua própria frase. Não tire conclusões.” “Acho que não estou tirando.” “Então devo dizer que estou muito curiosa com essa caridade súbita que o senhor supostamente está mostrando com relação a uma ex-aluna. Em verdade, doutor Grueman, no meu espírito a palavra caridade nunca esteve ligada ao senhor.” “Vai ver então que a senhora não conhece o verdadeiro significado da palavra. Um ato ou sentimento de boa vontade, dar esmolas aos necessitados. Caridade é dar a uma pessoa aquilo de que ela precisa, em oposição ao que você quer dar. Sempre lhe dei aquilo de que a senhora precisava. Enquanto a senhora foi minha aluna e também hoje, embora os atos se apresentem de maneira muito diferente porque as necessidades são muito diferentes. Agora sou um velho, doutora Scarpetta, e com certeza a senhora acha que não me lembro muito bem do seu tempo em Georgetown. Mas ficaria admirada se soubesse que me lembro muito bem da senhora, porque foi uma das alunas mais promissoras que já tive. Não precisava de tapinhas nas costas nem de aplausos. O perigo com a senhora não era que perdesse a confiança em si própria e no seu cérebro excelente, mas que a senhora mesma se perdesse. A senhora acha que eu não sabia a razão, quando parecia exausta e distraída na minha aula? Pensa que eu não sabia de sua total preocupação com Mark James, que aliás era medíocre pelos seus padrões? E, se eu parecia zangado e duro demais com a senhora, era porque queria atrair sua atenção. Queria que a senhora se enfurecesse. Queria que a senhora se sentisse viva no direito, e não só no amor. Tinha medo de que a senhora jogasse fora uma oportunidade
magnífica só porque seus hormônios e suas emoções estavam acelerados. Um dia a gente acorda e lamenta essas decisões, compreende? A gente acorda numa cama vazia com um dia vazio diante da gente e nada a esperar a não ser semanas, meses e anos vazios. Decidi que a senhora não ia desperdiçar seus dons nem jogar fora seu poder.” Eu o fitava assombrada enquanto meu rosto começava a queimar. “Nunca fui sincero em meus insultos e na minha falta de cavalheirismo com a senhora”, prosseguiu ele com a intensidade tranquila que o fazia temível no foro. “Foram táticas. Nós, advogados, somos famosos pelas táticas. São as fintas e os giros que fazemos com a bola, os ângulos e a velocidade que usamos para conseguir determinado efeito. Na base de tudo o que sou está um desejo sincero e apaixonado de fazer com que meus alunos sejam firmes e, se Deus quiser, façam alguma diferença neste mundo estropiado em que vivemos. E com a senhora não sinto nenhum desapontamento. A senhora é talvez uma de minhas estrelas mais brilhantes.” “Por que o senhor está me dizendo tudo isso?” “Porque nessa altura da sua vida a senhora precisa saber disso. A senhora está numa enrascada, como eu já disse. O que acontece é que é orgulhosa demais para admitir isso.” Fiquei em silêncio, enquanto meus pensamentos travavam uma batalha feroz. “Se a senhora deixar, eu a ajudo.” Se ele estava me dizendo a verdade, era capital que eu respondesse à altura. Espiei a porta aberta e calculei como seria fácil alguém entrar. Calculei como seria fácil alguém investir contra ele enquanto ele ia mancando até o carro. “Se, por exemplo, essas reportagens acusadoras continuarem a ser publicadas no jornal, será bom que a senhora desenvolva algumas estratégias.” Interrompi-o. “Doutor Grueman, quando o senhor viu Ronnie Joe Waddell pela última vez?” Ele parou e fitou o forro. “A última vez em que estive na presença física dele terá sido há pelo menos um ano. A maioria de nossas conversas costumavam ser por telefone. Se ele tivesse permitido, eu teria estado com ele no fim, como já lhe disse.” “Quer dizer que o senhor não o viu nem falou com ele quando supostamente ele estava na rua Spring esperando a execução?” “Supostamente? Essa é uma curiosa escolha de palavra, doutora Scarpetta.” “Não podemos provar que foi Waddell o executado na noite de 13 de dezembro.” “A senhora não está falando sério.” Ele parecia pasmo. Expliquei tudo o que se sabia, inclusive que Jennifer Deighton fora assassinada e que uma impressão digital de Waddell aparecera numa cadeira da sala de visitas da casa dela. Falei-lhe de Eddie Heath, de Susan e dos
indícios de que alguém interferira no Sida. Quando terminei, Grueman estava sentado imóvel, de olhos grudados em mim. “Meu Deus”, murmurou. “Sua carta para Jennifer Deighton nunca apareceu. Quando deu a busca na casa dela, a polícia não a encontrou, nem o original do fax para o senhor. Pode ser que alguém tenha levado. Pode ser que o assassino tenha queimado na lareira, na noite da morte dela. Ou pode ser que ela mesma tenha dado sumiço neles porque estava com medo. Tenho certeza de que ela foi assassinada por causa de alguma coisa que sabia.” “E seria por isso também que Susan Story foi morta? Porque sabia alguma coisa?” “Claro que isso é possível. O que estou dizendo é que até agora duas pessoas ligadas a Ronnie Waddell foram assassinadas. Em termos de gente que sabe demais sobre o Waddell, pode-se considerar que o senhor ocupa uma boa posição na lista.” “Então a senhora acha que talvez eu seja o próximo! Talvez minha maior queixa ao Todo-Poderoso seja o fato de a diferença entre a vida e a morte, tantas vezes, não ser mais que uma questão de oportunidade, entende? Considero-me avisado, doutora Scarpetta, mas não tenho a ingenuidade de pensar que, se alguém quiser atirar em mim, eu seja capaz de evitar”, disse ele com um sorriso amarelo. “O senhor podia pelo menos tentar. O senhor podia pelo menos tomar precauções.” “Vou tomar.” “Quem sabe o senhor e sua mulher possam tirar umas férias, ir para fora um tempo.” “Faz três anos que Beverly morreu.” “Sinto muito, doutor Grueman.” “Já havia muitos anos que ela não estava bem — na verdade, a maior parte dos anos em que estivemos juntos. Agora que ninguém depende de mim, entreguei-me a minhas inclinações. Tenho o vício incurável de trabalhar e querer mudar o mundo.” “Calculo que, se há alguém capaz de chegar perto dessa mudança, esse alguém é o senhor.” “Essa opinião não tem base alguma nos fatos, mas assim mesmo agradeço. E também quero expressar à senhora minha grande tristeza pela morte de Mark. Não o conheci bem quando ele estava aqui, mas parecia boa pessoa.” “Obrigada.” Levantei-me e vesti o casaco. Custou-me um pouco encontrar as chaves do carro. Ele também se levantou. “Qual é a próxima coisa que vamos fazer, doutora Scarpetta?”
“Não sei se o senhor tem alguma carta ou outro item de Ronnie Waddell que valesse a pena examinar para tentar encontrar impressões digitais.” “Cartas, não tenho, e qualquer documento que ele tenha assinado há de ter sido manipulado por muita gente. A senhora pode tentar.” Tínhamos nos detido à porta. Grueman apoiava-se na bengala. “Se não houver alternativa, falo com o senhor. Mas tem uma última coisa que estou querendo perguntar. O senhor disse que em sua última conversa com Waddell ele lhe fizera três últimos pedidos. Um era publicar a meditação, outro telefonar para Jennifer Deighton. Qual era o terceiro?” “Ele queria que eu convidasse o Norring para a execução.” “E o senhor convidou?” “Claro. E seu querido governador não teve nem a educação de dizer se aceitava o convite.”
10
Quando telefonei para Rose, a tarde estava no fim e, da janela, via-se apenas a linha formada no céu pelos edifícios de Richmond. “Doutora Scarpetta, onde a senhora está? Está no carro?” Minha secretária parecia frenética. “Estou. A uns cinco minutos do centro.” “Continue rodando. Não venha para cá agora não.” “O quê?” “O tenente Marino quer falar com a senhora. Me disse que, se eu falasse com a senhora, dissesse para a senhora telefonar para ele antes de fazer qualquer coisa. Disse que é muito, muito urgente.” “Rose, que negócio é esse?” “A senhora ouviu a notícia? Leu o jornal da tarde?” “Estive o dia inteiro no distrito de Colúmbia. Que notícia?” “Encontraram Frank Donahue morto esta tarde.” “O diretor da prisão? Aquele Frank Donahue?” “É.” Minhas mãos apertaram o volante enquanto eu fitava a estrada. “O que aconteceu?” “Deram um tiro nele. Foi encontrado num carro umas horas atrás. Como Susan.” “Já estou indo para aí”, eu disse, passando para a faixa da esquerda e acelerando. “Se eu fosse a senhora, não vinha. O Fielding já começou com ele. Telefone para o Marino, por favor. A senhora precisa ler o jornal da noite. Eles sabem o negócio das balas.” “Eles quem?” “Os repórteres. Sabem que as balas ligam o caso de Eddie Heath ao de Susan.” Liguei para o pager de Marino e disse que estava indo para casa. Depois de entrar na garagem, fui diretamente para a caixa que havia em ente dela e peguei o jornal da noite. Na parte superior da primeira página sorria uma fotografia de Frank Donahue. A manchete dizia: “DIRETOR DA PENITENCIÁRIA ESTADUAL FOI ASSASSINADO ”. Embaixo havia outra reportagem, ilustrada com a fotografia de outro servidor estadual — eu mesma. O ponto de partida era que as balas achadas nos corpos do jovem Heath e Susan tinham sido disparadas pela mesma arma e que
várias conexões estranhas pareciam ligar os dois homicídios a mim. Havia informações muito sinistras, além das insinuações que o Post havia publicado. Fiquei perplexa ao ler que minhas impressões digitais tinham sido encontradas num envelope com dinheiro que a polícia havia encontrado na casa de Susan. Eu demonstrara um “interesse incomum” pelo caso de Eddie Heath, pois aparecera no Hospital das Clínicas de Henrico antes da morte dele para examinar suas lesões. Mais tarde realizei a autópsia e foi então que Susan se recusou a depor no caso e supostamente fugiu do necrotério. Quando, menos de duas semanas depois, foi assassinada, fui mandada ao local, logo em seguida apareci sem aviso na casa dos pais dela para interrogá-los e fiz questão de estar presente durante a autópsia. Não atribuíam nenhuma razão para minha suposta animosidade, mas o que se insinuava no caso de Susan era tão irritante quanto admirável. Eu poderia estar cometendo erros graves no trabalho. Não tivera o cuidado de colher as digitais de Ronnie Joe Waddell quando seu corpo viera para o necrotério depois da execução. Recentemente deixara o corpo da vítima de um homicídio no meio de um corredor, praticamente em ente a um elevador usado por numerosas pessoas que trabalhavam no edifício, ou seja, comprometendo seriamente a confiabilidade das provas. Era descrita como distante e imprevisível, com colegas observando que minha personalidade mudara depois da morte de meu amante, Mark James. Era possível que Susan, que trabalhara cotidianamente a meu lado, dispusesse de informações que pudessem me arruinar profissionalmente. Era possível que eu estivesse pagando a ela por seu silêncio. “Minhas impressões digitais. Que porra é esse negócio de impressões que são minhas?”, disse a Marino assim que ele apareceu na porta. “Calma, doutora.” “Desta vez vou abrir um processo. Isso já foi longe demais.” “Acho que você não vai querer abrir processo nenhum justo agora.” Puxou os cigarros enquanto me seguia em direção à cozinha, onde o jornal da noite estava aberto sobre a mesa. “Ben Stevens está por trás disso.” “Doutora, acho que o que você deve fazer é ouvir o que tenho a dizer.” “A fonte do vazamento a respeito das balas tem de ser ele…” “Doutora. Porra, cale a boca.” Sentei-me. “Também estou com o meu na reta. Estou trabalhando nos casos com você e agora de repente você vira suspeita. Encontramos um envelope na casa de Susan, sim. Estava na gaveta de uma cômoda, debaixo de umas roupas. Dentro tinha três notas de cem dólares. O Vander examinou o envelope e achou uma porção de impressões. Duas eram suas. Suas digitais, assim como as minhas e as de um monte de outros investigadores, estão no Sida para serem excluídas,
caso a gente alguma vez faça a cagada de deixar nossas impressões no local de algum crime.” “Eu não deixei impressão digital em local de crime nenhum. Isso tem explicação lógica. Tem de ter. Com certeza o envelope foi algo que toquei alguma vez em minha sala ou no necrotério e que Susan levou para casa.” “Decididamente não é um envelope da repartição. A largura é o dobro do tamanho ofício e é feito de um papel preto duro e brilhante. Não tem nada escrito nele.” Olhei-o incrédula, enquanto começava a entender. “O lenço que dei a ela.” “Que lenço?” “Meu presente de Natal para Susan foi um lenço de seda vermelho que comprei em São Francisco. O que você está descrevendo é o pacote em que ele estava, uma embalagem preta lustrosa feita de papelão ou cartolina. Fechava-se com um selinho dourado. Eu mesma embalei o presente. Claro que minhas impressões tinham que estar lá.” “E os trezentos dólares?”, disse ele, evitando meus olhos. “Não sei nada de dinheiro nenhum.” “Quero dizer, por que eles estavam no pacote que você deu a ela?” “Com certeza porque ela queria esconder o dinheiro ou qualquer coisa assim. O pacote servia. Talvez não quisesse jogá-lo fora. Não sei. Como eu ia controlar o que ela faria com uma coisa que dei a ela?” “Alguém viu você dar o lenço?” “Não. O marido não estava em casa quando ela abriu o presente.” “É, bom, ele diz que não sabe nada de presente seu, que só sabe de umas flores cor-de-rosa. Diz que Susan não disse nada sobre você dar um lenço a ela.” “Pelo amor de Deus, ela estava usando o lenço quando levou os tiros, Marino.” “Isso não nos diz de onde ele saiu.” “Você agora vai passar para o estágio da acusação”, reclamei. “Não estou acusando você de nada. Não entende? O caso é esse, porra. Você quer que eu ponha você no colo e segure sua mão até que outro tira apareça aqui e a cubra de perguntas como essas?” Desistiu e começou a caminhar pela cozinha, fitando o piso, de mãos nos bolsos. “Me conte do Donahue”, eu disse, tentando me acalmar. “Levou um tiro no trajeto entre a casa e o trabalho, provavelmente de manhã cedo. Segundo a mulher, ele saiu de casa por volta das seis e quinze. O Thunderbird dele foi achado por volta de uma e meia da tarde estacionado no terminal Deep Water, com ele dentro.” “Isso eu li no jornal.”
“Olhe. Quanto menos a gente falar no assunto, melhor.” “Por quê? Os repórteres vão achar que também o matei?” “Doutora, onde você estava às seis e meia hoje de manhã?” “Estava saindo de casa para ir a Washington.” “Você tem alguma testemunha que possa provar que você não estava atravessando o terminal Deep Water? Ele não fica muito longe do escritório do médico-legista, você sabe. Dois minutos, mais ou menos.” “Isso é um absurdo.” “Se acostume com ele. Isso é só o começo. Espere até o Patterson meter o dente em você.” Antes de ser candidato ao cargo de procurador-geral da Justiça do Estado, Roy Patterson tinha sido um dos advogados criminalistas mais combativos e egocêntricos da cidade. Naquele tempo jamais gostava do que eu tinha a dizer, pois na maioria dos casos o depoimento do médico-legista não induz os jurados a pensar bem do réu. “Eu já lhe disse o quanto Patterson não vai com sua cara? Você o deixava mal quando ele era advogado de defesa. Ficava ali sentada, distante como um gato, com suas roupinhas bem passadas, e o fazia parecer um idiota.” “Ele é que fazia papel de idiota sozinho. Eu só respondia às perguntas dele.” “Isso para não falar que seu antigo namorado Bill Boltz era um dos maiores chapas dele, e nem preciso explicar mais.” “É bom parar mesmo.” “Só sei que o Patterson vai atrás de você. Puta merda, aposto que ele agora está felicíssimo.” “Marino, você está vermelho como um pimentão. Por favor, não vá ter um derrame aqui na minha frente.” “Vamos voltar para o lenço que você disse que deu para Susan.” “Eu disse que dei para Susan?” “Qual era o nome da loja de São Francisco onde você comprou o lenço?” “Não foi numa loja.” Ele olhou firme para mim, sem parar de andar. “Foi num mercado de rua. Tem um monte de barracas e bancas vendendo arte, artesanato. Como em Covent Garden”, expliquei. “Você tem o recibo?” “Não tinha nenhuma razão para guardar.” “Quer dizer que não sabe o nome da barraca nem nada mais. Quer dizer que não há como provar que você comprou o lenço de algum cara tipo artista que usa essas embalagens pretas lustrosas.” “Não posso.” Andou um pouco mais e olhou para fora da janela. As nuvens passavam na ente de uma lua oval, e as formas escuras das árvores moviam-se ao vento.
Levantei-me para fechar as persianas. Marino estacou. “Doutora, vou ter de examinar seus registros financeiros.” Eu fiquei calada. “Tenho de verificar se não fez nenhuma retirada grande de dinheiro nestes últimos meses.” Continuei calada. “Doutora, você não fez, não foi?” Levantei-me da mesa, com o pulso latejando. “Você pode falar com meu advogado.”
Depois da saída de Marino subi e, no armário de cedro onde guardava meus papéis particulares, comecei a juntar extratos bancários, declarações de imposto de renda e diversos registros de contas. Pensava em todos os advogados de defesa de Richmond que ficariam provavelmente encantados se eu fosse trancafiada ou exilada pelo resto de meus dias. Estava sentada na cozinha fazendo anotações num bloco quando a campainha da porta tocou. Benton Wesley e Lucy entraram, e imediatamente vi pelo silêncio deles que não era necessário contar-lhes o que estava acontecendo. “Onde está Connie?”, indaguei, exausta. “Vai passar o Ano-Novo com a família em Charlottesville.” “Vou voltar para o seu escritório, tia Kay”, disse Lucy sem beijar-me ou sorrir, e saiu com a mala. “Marino quer examinar meus registros financeiros”, disse eu a Wesley enquanto ele me acompanhava em direção à sala de visitas. Ben Stevens está preparando armadilhas para mim. Na repartição estão faltando pastas de pessoal e cópias de memorandos, e ele espera que pareça que fui eu que tirei. E, segundo Marino, Roy Patterson anda feliz ultimamente. Essas são as últimas notícias.” “Onde você guarda o uísque?” “O bom está aqui neste baú. Os copos estão no bar.” “Não quero beber do bom.” “Ah, eu quero.” Comecei a acender o fogo. “No caminho para cá, dei um telefonema para seu subchefe. A Divisão de Armas de Fogo já deu uma olhada nas balas que estavam na cabeça do Donahue. Winchester chumbo 1.50, não encapsulado, calibre 22. Duas. Uma entrou pelo lado esquerdo do rosto e foi até o crânio, a outra foi direto até a nuca.” “Disparadas da mesma arma que matou os outros dois?” “É. Quer gelo?” “Por favor.”
Pus a grade diante da lareira e o atiçador de volta em seu suporte. “Imagino que não encontraram penas no local, nem no corpo de Donahue.” “Não que eu saiba. Dá para ver que o agressor estava em pé fora do carro e que atirou pela janela aberta do motorista. Isso não quer dizer que o sujeito não estivesse com ele dentro do carro antes, mas acho que não. Meu palpite é que Donahue ia encontrar alguém no estacionamento do terminal Deep Water. Quando a pessoa chegou, Donahue abaixou o vidro e aí deu-se o fato. E com o Downey, como foi?” Entregou minha bebida e sentou-se no sofá. “Parece que a origem das penas e das partículas de pena encontradas nos três outros casos é um pato-do-norte comum.” Wesley anziu a testa. “Um pato marítimo? A pluma é usada em quê, jaquetas de esqui, luvas?” “Raramente. A pluma do pato-do-norte é muito cara. Pessoas comuns não têm coisa nenhuma recheada com esse tipo de pluma.” Passei a informar Wesley dos acontecimentos do dia, não poupando pormenores quando confessei ter passado várias horas com Nicholas Grueman e não acreditar que ele estivesse minimamente envolvido com algo sinistro. “Fico contente por você ter ido vê-lo. Estava esperando que você fosse.” “O resultado é uma surpresa para você?” “Não, faz sentido. A situação do Grueman é parecida com a sua. Recebe um fax de Jennifer Deighton e isso parece suspeito, assim como parece suspeito que suas impressões digitais tenham sido encontradas num envelope na gaveta da cômoda de Susan. Quando a violência chega perto da gente, a gente acaba se molhando. Se suja.” “Estou mais que molhada. Estou me sentindo como se estivesse me afogando.” “Por enquanto é o que parece. Talvez você deva falar com o Grueman a respeito disso?” Não respondi. “Eu gostaria de tê-lo do nosso lado.” “Eu não sabia que você o conhecia.” Os cubos de gelo se chocaram baixinho enquanto Wesley sorvia sua bebida. O cobre da lareira brilhava à luz do fogo. A lenha estalava, expelindo fagulhas. “Sei quem é o Grueman. Sei que ele se formou em primeiro lugar na faculdade de direito de Harvard, que foi diretor da Revista Jurídica e que recebeu um convite para ensinar em Harward mas recusou. Isso partiu o coração dele. Mas a mulher dele, Beverly, não queria se mudar do distrito de Colúmbia. Parece que tinha muitos problemas, dentre eles uma filha de um primeiro casamento internada no Santa Elizabeth quando Grueman e Beverly se conheceram. Ele se mudou para o distrito de Colúmbia. A filha morreu
muitos anos depois.” “Você o investigou?” “Mais ou menos.” “Quando?” “Desde que eu soube que ele tinha recebido um fax de Jennifer Deighton. Tudo indica que está limpo, mas assim mesmo alguém tinha de conversar com ele.” “Essa não é a única razão pela qual você sugeriu que eu conversasse, é?” “É uma razão importante mas não a única. Achei que você devia voltar lá.” Respirei fundo. “Obrigada, Benton. Você é um bom sujeito, com a melhor das intenções.” Aproximou o copo dos lábios e fitou o fogo. “Faça o favor de não se meter”, acrescentei. “Não é o meu gênero.” “Claro que é. Aliás, você é especialista no assunto. Quando quer forçar, empurrar ou soltar alguém sem dar na vista nem aparecer, sabe como fazê-lo. Sabe levantar tantos obstáculos e dinamitar tantas pontes que alguém como eu precisaria de sorte para encontrar o caminho de casa.” “Marino e eu estávamos muito metidos nisso tudo, Kay. O departamento de polícia de Richmond está metido. O FBI está metido. Ou bem temos solto por aí um psicopata que devia ter sido executado, ou temos outra pessoa que parece decidida a fazer-nos pensar que tem alguém solto por aí que devia ter sido executado.” “O Marino não quer que eu me meta de jeito nenhum.” “Ele está numa situação impossível. É o principal investigador de homicídios da cidade e membro da equipe do Procacriv do FBI, mas é também seu colega e amigo. Espera-se que ele descubra tudo o que puder sobre você e sobre o que está acontecendo em sua repartição. Mas a tendência dele é proteger você. Tente se colocar na posição dele.” “Eu me coloco. Mas ele tem de se colocar na minha.” “Muito justo.” “Do jeito que ele fala, Benton, parece que metade do mundo quer se vingar de mim e adoraria me ver na fogueira.” “Metade do mundo talvez não, mas além de Ben Stevens há outras pessoas já preparadas com caixas de fósforos e gasolina.” “Quem mais?” “Não posso dizer nomes porque não sei. E não vou alegar que destruir você profissionalmente seja a missão principal dos que estão por trás disso. Mas desconfio que faz parte de um plano, já que os processos vão ficar bem prejudicados se parecer que todas as provas obtidas em sua repartição estão corrompidas. Isso para não dizer que sem você o Estado perde uma de suas mais poderosas testemunhas periciais.” Seus olhos encontraram os meus.
“Você tem de pensar no que seu depoimento valeria agora. Se você tivesse de depor agora, ia ajudar ou prejudicar Eddie Heath?” A observação me feriu fundo. “Neste exato minuto eu não estaria ajudando muito. Mas, se eu não comparecer, quanto isso vai ajudá-lo ou a qualquer outra pessoa?” “Boa pergunta. Marino não quer que você se machuque mais, Kay.” “Então talvez você possa convencê-lo de que a única reação razoável numa situação tão pouco razoável é que eu o deixe fazer o serviço dele e que ele me deixe fazer o meu.” “Posso reescar isso aqui?” Levantou-se e voltou com a garrafa. Não nos preocupamos com o gelo. “Benton, vamos falar do assassino. À luz do que aconteceu com Donahue, o que você pensa agora?” Pousou a garrafa e atiçou o fogo. Por um momento ficou parado diante da lareira, de costas para mim e com as mãos nos bolsos. Depois sentou-se à beira da lareira, com os cotovelos nos joelhos. Havia muito tempo eu não via Wesley tão agitado. “Se você quer saber a verdade, Kay, esse animal me deixa apavorado.” “Qual a diferença entre ele e os outros assassinos que você tem perseguido?” “Acho que ele começou com algumas regras e depois decidiu mudar.” “Regras dele ou de outra pessoa?” “Acho que no começo as regras não eram dele. Primeiro quem estava por trás do plano para libertar Waddell era quem tomava as decisões. Mas esse cara agora tem suas próprias regras. Ou talvez seja melhor dizer que agora não há regra nenhuma. É um cara astuto e cuidadoso. Até agora, ele é quem manda.” “E o motivo?” “Esse é difícil. Talvez seja melhor para mim falar em termos de missão ou tarefa. Acho que na loucura dele há algum método, mas é a loucura que o faz agir. Goza, brincando com a mente das pessoas. Waddell ficou em cana por dez anos e de repente reaparece o pesadelo de seu crime. Na noite de sua execução, um menino é assassinado de modo sexualmente sádico, lembrando o caso Robyn Naismith. Começam a morrer outras pessoas, todas de algum modo ligadas a Waddell. Jennifer Deighton era amiga dele. Parece que Susan estava metida, pelo menos de certo modo, no que quer que fosse esse plano. Frank Donahue era diretor da prisão e teria supervisionado a execução realizada na noite de 13 de dezembro. E qual o resultado disso para o resto, para os outros jogadores?” “Calculo que qualquer pessoa que tivesse tido qualquer ligação, legítima ou não, com Ronnie Joe Waddell, ia se sentir muito ameaçada”, respondi. “Claro. Se um assassino de tiras está solto e você é um tira, sabe que pode
ser o próximo. Eu podia sair da sua casa hoje de noite e esse cara estar esperando no escuro para atirar em mim. Pode estar no carro dele por aí, procurando o Marino ou tentando descobrir onde eu moro. Pode estar alimentando a fantasia de agarrar o Grueman.” “Ou eu.” Wesley levantou-se e começou de novo a ajeitar as toras de lenha. “Você acha que seria aconselhável eu mandar a Lucy de volta para Miami?” “Meu Deus, Kay, não sei o que dizer. Ela não quer ir para casa. Isso a gente pode ver perfeitamente. Talvez você se sentisse melhor se ela voltasse para Miami esta noite. Aliás, eu me sentiria melhor se você fosse com ela. Na verdade, todo mundo — você, Marino, Grueman, Vander, Connie, Michele, eu — com certeza nos sentiríamos melhor se todos deixássemos a cidade. Mas quem ficaria?” “Ele. Seja quem for”, eu disse. Wesley espiou o relógio e pousou o copo na mesinha. “Nenhum de nós deve se meter com o outro. Não estamos em condições.” “Benton, tenho de limpar meu nome.” “É exatamente o que eu faria. Quer começar por onde?” “Pelo negócio da pena.” “Explique-se, por favor.” “Pode ser que esse assassino tenha saído e comprado algum produto especial acolchoado com pluma de pato-do-norte, mas eu diria que há uma boa chance de ele ter roubado a coisa.” “É uma teoria plausível.” “Só podemos encontrar o item se tivermos a etiqueta ou outra peça que conduza ao fabricante, mas talvez haja outro caminho. Talvez alguma coisa possa aparecer no jornal.” “Não acho que a gente queira que o assassino saiba que anda deixando penas por aí. Vai logo se livrar do tal item.” “Concordo. Mas isso não impede que alguma das suas fontes jornalísticas publique uma reportagenzinha sobre o pato-do-norte e suas apreciadas plumas, e sobre como os produtos acolchoados com elas são tão caros que se transformaram em objeto de predileção dos ladrões. Talvez isso pudesse ser relacionado à temporada de esqui ou coisa assim.” “O quê? Na esperança de que alguém telefone e diga que teve o carro arrombado e a jaqueta acolchoada de plumas roubada?” “É. Se o repórter mencionar algum detetive que supostamente tenha sido designado para ocupar-se dos roubos, os leitores terão a quem telefonar. Compreende, o pessoal lê a história e diz: ‘Isso aconteceu comigo’. O impulso deles é ajudar. Querem se sentir importantes. Aí passam a mão no telefone.” “Vou ter de pensar um pouco sobre isso.” “As chances não são muito grandes, admito.”
Começamos a caminhar para a porta. “Falei rapidamente com a Michele antes de sair de Homestead. Ela e Lucy já estiveram conversando. Michele diz que sua sobrinha mete um pouco de medo.” “Ela tem sido um terror desde que nasceu.” Ele sorriu. “Michele não quis dizer isso. O que ela disse foi que a inteligência da Lucy mete medo.” “Às vezes penso que é mar demais para um navio tão frágil.” “Não sei se ela é ágil assim. Olhe, passei uns dias com ela e fiquei muito impressionado com Lucy em muitos aspectos.” “Nem tente contratá-la para o FBI.” “Vou esperar até ela acabar a faculdade. Quanto tempo falta? Um ano?” Só depois de Wesley partir, quando eu carregava os copos para a cozinha, foi que Lucy emergiu do escritório. “Divertiu-se?”, perguntei. “Claro.” “Disseram que você se dá maravilhosamente bem com os Wesley.” Fechei a torneira e sentei-me à mesa onde deixara o bloco. “São boas pessoas.” “Dizem por aí que eles também gostam de você.” Abriu a geladeira e fitou o interior preguiçosamente. “Por que o Pete esteve aqui antes?” Parecia estranho ver Marino mencionado pelo primeiro nome. Achei que, quando a tinha levado para atirar, ele e Lucy haviam passado de um estado de guerra fria para um de distensão. “Por que você acha que ele esteve aqui?” “Senti o cheiro de cigarro quando entrei em casa. Calculo que ele tenha estado aqui, a não ser que você tenha voltado a fumar.” Fechou a porta da geladeira e se aproximou da mesa. “Não voltei a fumar e Marino deu uma passada aqui.” “O que ele queria?” “Queria me fazer uma porção de perguntas.” “Sobre o quê?” “Por que você precisa saber dos pormenores?” Seus olhos foram de meu rosto para a pilha de documentos e para o bloco coberto por minha caligrafia indecifrável. “Não interessa por quê, já que é evidente que você não quer me contar.” “É complicado, Lucy.” “Quando você quer me manter fora dos assuntos, fala sempre que alguma coisa é complicada”, disse ela enquanto se virava e saía. Senti como se meu mundo estivesse caindo, as pessoas que o povoavam espalhando-se como sementes secas ao vento. Quando observava pais junto
com seus filhos, maravilhava-me com a graça daquela relação e temia secretamente carecer de um instinto que não podia ser aprendido. Fui achar minha sobrinha no escritório, sentada diante do computador. Na tela havia colunas de números combinados com letras do alfabeto, e aqui e ali viam-se agmentos do que imaginei serem dados. Ela fazia cálculos a lápis num papel quadriculado e não levantou os olhos quando cheguei perto. “Lucy, sua mãe teve muitos homens entrando e saindo de casa e eu sei bem como isso fez você se sentir. Mas aqui não é sua casa e eu não sou sua mãe. Não é preciso você se sentir ameaçada por meus colegas e amigos homens. Não é preciso você ficar sempre procurando uma prova de que algum homem esteve aqui, e não há por que você suspeitar das minhas relações com Marino, Wesley ou qualquer outro.” Ela não respondeu. Pus a mão em seu ombro. “Pode ser que eu não seja a presença constante em sua vida que eu gostaria de ser, mas você é muito importante para mim.” Apagando um número e sacudindo do papel os restos de borracha, ela disse: “Você vai ser acusada de algum crime?”. “Claro que não. Não cometi crime nenhum.” Aproximei-me do monitor. “O que você está vendo é um depósito hex”, disse ela. “Você tinha razão. São criptogramas.” Pondo os dedos no teclado, Lucy começou a mover o cursor enquanto explicava. “O que eu estou fazendo aqui é tentar obter a posição exata do número de IDE. É o número de identificação estadual. Cada pessoa no sistema tem um número de IDE, inclusive você, porque suas digitais também estão no Sida. Numa linguagem de quarta geração, como o SQL, eu poderia procurar por um nome em uma coluna. Mas no hexadecimal a linguagem é técnica e matemática. Não há nomes em colunas, só posições na organização dos registros. Em outras palavras, se eu quisesse ir a Miami, no SQL diria simplesmente ao computador que queria ir para Miami. Mas no hexadecimal ia ter de dizer que queria ir para uma posição tantos graus ao norte do equador e tantos graus a leste do meridiano de Greenwich. Então, para continuar com a analogia geográfica, estou buscando a longitude e a latitude do número de IDE e também o número que indica o tipo de registro. Aí posso escrever um programa para procurar todo número de IDE onde o registro é tipo 2, que significa supressão, ou tipo 3, que é substituição. Vou rodar o programa com todas as fitas diárias.” “Você acha que, se houve algum registro alterado, a alteração foi no IDE?” “Vamos dizer que seria muito mais fácil mexer no número de IDE que nas próprias imagens das digitais, no registro de disco óptico. E na verdade você no Sida só tem isso — o número de IDE e as digitais correspondentes. O nome da pessoa, o prontuário e outras informações pessoais estão no PCC, ou Prontuário Criminal Computadorizado, que fica na CRC, ou Central de
Registros Criminais.” “Se bem entendo, os números de IDE é que casam os registros que estão no CRC com as digitais que estão no Sida.” “Isso mesmo.” Quando fui me deitar, Lucy ainda estava trabalhando. Dormi logo, mas às duas da manhã acordei. Só peguei no sono depois das cinco, e o despertador tocou menos de uma hora mais tarde. Dirigi até o centro no escuro e ouvi quando um dos locutores da rádio local deu as últimas notícias. Informou que a polícia tinha me interrogado e que eu me recusara a fornecer dados relativos a meus registros financeiros. Prosseguiu recordando a todos que, poucas semanas antes de ser assassinada, Susan Story tinha depositado três mil e quinhentos dólares na própria conta corrente. Cheguei à repartição e, mal tirei o casaco, Marino telefonou. “O merda do major não pode ficar com a boca calada”, disse de saída. “É claro.” “Porra, desculpe.” “Não é culpa sua. Eu sei que você tem de fazer um relatório para ele.” Marino hesitou. “Tenho de lhe perguntar sobre suas armas. Você não tem um 22, tem?” “Você sabe tudo a respeito de minhas armas. Tenho um Ruger e um Smith e Wesson. E, se você disser isso ao major Cunningham, estou certa de que dentro de uma hora vai ouvir no rádio.” “Doutora, ele quer submetê-las ao laboratório de armas de fogo.” Por um momento pensei que Marino estivesse brincando. “Ele acha que você deve estar querendo apresentá-las para exame. Acha que é uma boa ideia mostrar logo que as balas retiradas de Susan, do garoto Heath e de Donahue não podiam ter sido disparadas por suas armas.” “Você disse ao major que os revólveres que eu tenho são 38?”, indaguei enraivecida. “Disse.” “E ele sabe que as balas retiradas dos corpos eram 22?” “É. Eu falei isso várias vezes para ele.” “Está bom, pergunte a ele se ele conhece algum adaptador que torne possível usar cartuchos 22 num revólver 38. Se conhece, diga a ele que ele devia apresentar uma comunicação na próxima reunião da Academia Americana de Medicina Legal.” “Eu acho que você não quer que eu diga isso a ele.” “Isso é só política, golpe publicitário. Não é nem racional.” Marino não comentou. “Olhe, não desrespeitei lei nenhuma. Não vou apresentar meus registros financeiros, minhas armas de fogo nem coisa nenhuma antes de ser corretamente aconselhada. Entendo que você tem de fazer seu trabalho e
quero que você o faça. O que eu quero é que me deixem em paz para eu também fazer o meu. Tenho três casos aqui embaixo e o Fielding foi ao foro.” Não me deixariam, porém, em paz, e isso ficou claro quando Marino e eu terminamos a conversa e Rose apareceu na sala. Seu rosto estava pálido e seus olhos aterrorizados. “O governador quer ver a senhora.” “Quando?”, perguntei com o coração aos saltos. “Às nove horas.” Já eram oito e meia. “O que ele quer, Rose?” “A pessoa que ligou não disse.” Peguei o casaco e o guarda-chuva e saí para a chuva de inverno que começava a congelar. Enquanto me apressava pela rua Catorze, tentava lembrar a última vez que falara com o governador Joe Norring e concluí que fora um ano antes numa recepção de gala do Museu da Virgínia. Ele era republicano, anglicano, e formado em direito pela Universidade da Virgínia. Eu era italiana, católica, nascida em Miami e formada no Norte. Meu coração era democrata. O Palácio do Governo fica no morro Shockhoe e é cercado por uma grade de ferro trabalhada, erguida no começo do século XIX para evitar a passagem do gado. O edifício branco desenhado por Jefferson é típico de sua arquitetura, uma simetria pura de cornijas e colunas lisas com capitéis jônicos inspirada por um templo romano. Os degraus de granito que atravessam o terreno são flanqueados por bancos, e enquanto a chuva caía sem parar pensei em minha resolução primaveril de todo ano de tirar uma hora de almoço longe da escrivaninha e sentar-me ali ao sol. Ainda não tinha feito aquilo. Perdera inúmeros dias de minha vida para a luz artificial e os locais confinados e sem janelas que desafiavam qualquer classificação arquitetônica. Dentro do palácio encontrei um banheiro feminino e tentei reforçar minha confiança com alguns reparos em minha maquiagem. Apesar de meus esforços com o batom e a escova, o espelho nada dizia que me fizesse recobrar o ânimo. Desarrumada e insegura, tomei o elevador para o topo da rotunda, onde, três andares acima da estátua de mármore de George Washington pintada por Hudson, os retratos a óleo dos governadores anteriores exibiam uma expressão embasbacada e severa. No meio do caminho, ao longo da parede sul, perambulavam jornalistas com bloquinhos, câmeras e microfones. Não pensei que estivesse na mira deles até que, ao aproximar-me, as câmeras de televisão saltaram para os ombros, os microfones foram sacados como espadas e as objetivas começaram a tinir com a rapidez de armas automáticas. “Por que a senhora não mostra suas contas?”
“Doutora Scarpetta…” “A senhora deu dinheiro a Susan Story?” “De que tipo é a arma que a senhora tem?” “Doutora…” “É verdade que desapareceram de sua repartição uns registros de pessoal?” Eram as mesmas acusações e perguntas de sempre. Eu fixava a atenção num ponto à minha ente, os pensamentos paralisados. Meu queixo era atingido por microfones, corpos chocavam-se comigo e em meus olhos acendiam-se lâmpadas. Atingir a pesada porta de mogno e escapar para o sossego elegante que ela ocultava pareceu demorar uma eternidade. “Bom dia”, disse a recepcionista em sua fortaleza de madeira nobre sob o retrato de John Tyler. Do outro lado da sala, numa mesa diante de uma janela, um policial à paisana da Unidade de Proteção ao Executivo espiou-me com rosto inescrutável. “Como a imprensa soube disso?”, perguntei à recepcionista. “Perdão?” Era uma mulher idosa vestida com roupas de lã. “Como souberam que eu ia me encontrar com o governador esta manhã?” “Sinto muito. Não sei.” Sentei-me num pequeno sofá azul pálido. O papel de parede era do mesmo tom de azul, a mobília antiga, o escudo do estado no assento de tapeçaria das cadeiras. Passaram-se lentamente dez minutos. Abriu-se uma porta e um jovem que reconheci como o secretário de imprensa de Norring entrou e sorriu para mim. “Doutora Scarpetta, o governador vai receber a senhora agora.” Era de compleição delgada, louro, e vestia um terno azul-marinho com suspensórios amarelos. “Peço-lhe desculpas por tê-la feito esperar. Que tempo inacreditável a gente está tendo. E ouvi dizer que vai cair para menos de oito esta noite. De manhã as ruas vão estar um gelo puro.” Conduziu-me por uma série de gabinetes bem decorados, onde as secretárias estavam concentradas diante das telas dos computadores e os ajudantes moviam-se com determinação silenciosa. Bateu levemente em uma porta imponente, girou a maçaneta de latão e afastou-se, tocando cavalheirescamente minhas costas enquanto eu o precedia no espaço privado do homem mais poderoso da Virgínia. O governador Norring não se levantou da cadeira estofada de couro por trás de uma mesa limpa de nogueira nodosa. Deonte dele havia duas cadeiras e uma me foi oferecida enquanto ele continuava a examinar um documento. “A senhora quer beber alguma coisa?”, perguntou-me o secretário de imprensa. “Não, obrigada.”
Ele então partiu, fechando a porta com delicadeza. O governador depositou o documento na mesa e recostou-se na cadeira. Era um homem de aparência distinta, cujos traços exibiam o mínimo de irregularidade necessário para que fosse levado a sério, e era impossível deixar de reparar nele quando se entrava numa sala. Como George Washington, que media um metro e noventa numa época de homens baixos, Norring tinha uma estatura bem acima da média e seus cabelos eram abundantes e escuros, numa idade em que os homens começam a ficar calvos ou grisalhos. “Doutora, estive pensando se haveria um meio de extinguir o fogo dessa controvérsia antes que ele fique incontrolável.” Falava com a cadência branda da conversação virginiana. “Espero que sim, governador Norring.” “Então, por favor, me ajude a compreender por que a senhora não está colaborando com a polícia.” “Quero ouvir um advogado, e ainda não tive oportunidade de fazer isso. Não acho que isso seja falta de colaboração.” “A senhora certamente tem o direito de não se incriminar. Mas ao sugerir que vai lançar mão da emenda constitucional número 5, a senhora torna mais escura a nuvem de suspeita que paira à sua volta. Estou seguro de que a senhora se dá conta disso”, disse lentamente. “Dou-me conta de que serei criticada faça o que fizer. Proteger-me é a única coisa razoável e prudente que posso fazer.” “A senhora estava fazendo pagamentos à superintendente do necrotério, Susan Story?” “Não, senhor, não estava. Não fiz nada de errado.” Inclinou-se para a ente na cadeira e cruzou os dedos em cima da mesa. “Doutora Scarpetta, me disseram que a senhora não quer colaborar entregando os registros que podem provar essas alegações.” “Não fui informada de que seja suspeita de crime algum, nem recebi as advertências do acórdão Miranda. Não renunciei a meus direitos. Não tive oportunidade de procurar um advogado. Neste momento minha intenção não é abrir os arquivos de minha vida profissional e pessoal para a polícia ou para qualquer outra pessoa.” “Então, em resumo, a senhora se recusa a mostrar tudo.” Quando um servidor público é acusado de agir em interesse próprio ou de qualquer outro tipo de conduta imoral, só há duas defesas: ou ele mostra tudo ou pede exoneração. Essa última possibilidade mostrava para mim todos os seus dentes. Estava claro que a intenção do governador era fazer com que eu passasse a fronteira e fosse obrigada a pedir exoneração. “A senhora é uma perita de renome nacional e médica-legista chefe deste estado. Tem tido uma carreira distintíssima e uma reputação impecável na
comunidade jurídica. Mas, na matéria de que estamos tratando, não está mostrando bom senso. Não está sendo cuidadosa em evitar toda aparência de conduta censurável.” “Fui cuidadosa, governador, e nada fiz de errado”, repeti. “Os fatos demonstrarão isso, mas não vou discutir mais a matéria antes de falar com meu advogado. E só abrirei minhas contas por meio dele e na ente de um juiz, em segredo, diante da Justiça.” “Em segredo?” Seus olhos se apertaram. “Certos pormenores de minha vida atingem outras pessoas.” “Quem? Marido, filhos, amante? Até onde eu sei, a senhora não tem nada disso, vive sozinha e — para usar o clichê — é casada com o trabalho. Quem a senhora pode estar protegendo?” “Governador Norring, o senhor está me atacando.” “Não, senhora. Estou simplesmente procurando alguma coisa para corroborar suas alegações. A senhora diz que está preocupada em proteger outras pessoas, e eu estou perguntando quem podem ser esses outros. Com certeza não são pacientes. Seus pacientes estão todos mortos.” “Não acho que o senhor esteja sendo justo ou imparcial. Desde o começo nada foi justo neste encontro. Dão-me vinte minutos para estar aqui e não me dizem qual é o assunto…”, eu disse, sabendo que meu tom era gélido. Ele interrompeu. “Ora, doutora, pensei que a senhora pudesse imaginar qual era o assunto.” “Como eu devia ter imaginado também que o nosso encontro era público.” “Parece que veio toda a imprensa.” Sua expressão não se alterou. “Gostaria de saber como isso ocorreu”, eu disse veementemente. “Se a senhora está perguntando se este gabinete notificou a imprensa de nossa reunião, digo-lhe que não.” Não respondi. “Doutora, não sei se a senhora entende que, como servidores públicos, temos de atuar segundo um conjunto diferente de regras. Em certo sentido, não temos direito a vida privada. Ou talvez fosse melhor dizer que, se se levantam dúvidas sobre nossa ética ou nossos juízos, o público tem o direito de examinar, em certos casos, os aspectos mais privados de nossas existências. Sempre que estou para encetar uma determinada ação ou mesmo assinar um cheque, tenho de me perguntar se o que estou fazendo resistirá ao mais rigoroso dos escrutínios.” Notei que, quando falava, ele quase não usava as mãos, e que o tecido e o modelo do terno e da gravata eram uma lição de extravagância subentendida. Enquanto continuava a admoestação, minha atenção vagava por todo lado, e me dei conta de que nada que pudesse fazer ou dizer me salvaria afinal. Embora tivesse sido nomeada pelo secretário de Saúde, não teria sido convidada para o cargo nem poderia permanecer muito tempo nele sem o
apoio do governador. O modo mais rápido de perdê-lo era causando embaraço ou criando algum conflito, o que já havia conseguido. Ele tinha o poder de forçar-me a pedir exoneração. Eu tinha o poder de comprar um pouco de tempo ameaçando embaraçá-lo ainda mais. “Doutora, quem sabe a senhora gostaria de me dizer o que faria em meu lugar.” Além da janela misturavam-se a neve e o granizo, e os edifícios da zona bancária pareciam desmaiados sobre um triste céu de estanho. Fitei Norring em silêncio e falei tranquilamente: “Governador Norring, provavelmente eu não convocaria a médica-legista chefe a minha presença para insultá-la gratuitamente, tanto profissional como pessoalmente, e depois pedir-lhe que renunciasse aos direitos que a Constituição garante a todas as pessoas. Também é provável que eu aceitasse a inocência dessa pessoa até que fosse provada sua culpa, e não comprometesse sua ética e o juramento hipocrático que ela prometera guardar pedindo-lhe que expusesse ao escrutínio público arquivos confidenciais, quando fazê-lo poderia prejudicá-la, e a terceiros. E é provável, governador Norring, que não reduziria uma pessoa que serviu o estado lealmente à única opção de pedir exoneração por justa causa”. Enquanto considerava minhas palavras, o governador segurou distraidamente uma caneta-tinteiro de prata. Pedir exoneração por justa causa depois de encontrar-me com ele implicaria, para todos os repórteres que esperavam atrás da porta do gabinete, que eu teria renunciado porque Norring teria pedido que eu fizesse algo que considerava imoral. “No momento não me interessa que a senhora peça exoneração”, disse iamente. “Aliás, não aceitaria o pedido. Sou um homem justo, doutora Scarpetta, e, espero, um homem de bom senso. E o bom senso me diz que não posso ter, como responsável pelas autópsias oficiais das vítimas de homicídios, um funcionário implicado num homicídio ou cúmplice nele. Penso, então, que o melhor seja dar à senhora uma licença com vencimentos até que essa questão seja resolvida.” Estendeu o braço até o telefone. “John, você poderia fazer o favor de acompanhar a médica-legista chefe?” O sorridente secretário de imprensa apareceu quase imediatamente. Ao sair do gabinete do governador fui assediada por todo lado. Flashes estouravam diante dos meus olhos e parecia que todo mundo gritava. O gancho das notícias no resto do dia e na manhã seguinte foi que o governador me concedera licença com vencimentos até que eu pudesse limpar meu nome. Um editorial conjecturava que Norring mostrara ser um cavalheiro, e que se eu fosse uma dama pediria exoneração.
11
Na sexta-feira fiquei em casa diante do fogo, dando continuidade à tarefa tediosa e ustrante de tomar notas à medida que tentava documentar para mim mesma cada movimento que fizera nas últimas semanas. Infelizmente, no momento em que a polícia acreditava que Eddie Heath fora sequestrado na mercearia eu estava em meu carro, indo para casa. Quando Susan fora assassinada eu estava sozinha em casa, pois Marino levara Lucy para aprender a atirar. Também estava só na manhã em que Frank Donahue fora alvejado. Não tinha testemunhas que pudessem comprovar minhas atividades durante os três assassinatos. Seria bem mais difícil vender os motivos e o modus operandi. É muito incomum uma mulher atirar em alguém à queima-roupa, e eu não teria motivo algum para matar Eddie Heath, a não ser que fosse uma sádica sexual. Estava mergulhada em meus pensamentos quando Lucy me chamou. “Encontrei uma coisa.” Estava sentada diante do computador, girara a cadeira para um lado e acomodara os pés sobre uma otomana. No colo tinha várias folhas de papel, e meu Smith e Wesson 38 estava à direita do teclado. “Por que você está com meu revólver aqui?”, perguntei, perturbada. “Pete me disse para treinar disparos sem balas sempre que tivesse oportunidade. Então, fiquei treinando enquanto rodava meu programa com as fitas diárias.” Apanhei o revólver, empurrei a trava e examinei o tambor, só para ter certeza. “Embora eu ainda tenha de rodar umas fitas, acho que já encontrei uma pista do que estamos procurando.” Senti uma onda de otimismo e puxei uma cadeira. “A fita diária de 9 de dezembro mostra três Sids interessantes.” “Sids?” “Substituições de Impressões Digitais”, explicou Lucy. “São três registros diferentes. Um foi completamente eliminado ou suprimido. O número de IDE de um outro foi alterado. E temos um terceiro registro que é uma nova entrada, feita mais ou menos na mesma hora em que os outros dois registros foram suprimidos ou modificados. Entrei no CRC e chamei os números de IDE tanto do registro alterado como do registro novo. O registro alterado é o de Ronnie Joe Waddell.” “E o novo?”
“Aí é um negócio estranhíssimo. Não há prontuário criminal. Introduzi o número de IDE cinco vezes e apareceu sempre ‘registro não localizado’. Você entende o que isso pode significar?” “Sem prontuário no CRC é impossível saber quem é a pessoa.” Lucy concordou. “É. Você tem as digitais e o número de IDE de alguém no Sida, mas não há nome nem outros dados pessoais para casar com eles. E para mim isso indica que alguém tirou o registro dessa pessoa do CRC. Em outras palavras, também mexeram no CRC.” “Vamos voltar para o Ronnie Waddell. Você pode reconstituir o que foi feito com o registro dele?” “Tenho uma teoria. Primeiro, é preciso saber que o número de IDE é um identificador exclusivo com um índice exclusivo, ou seja, o sistema não deixa você introduzir outro valor. Se eu, por exemplo, quisesse trocar de número de IDE com você, tinha primeiro de suprimir seu registro. Aí, depois de mudar meu número de IDE para o seu, voltava a introduzir o seu registro, dando a você o meu antigo número de IDE.” “É isso o que você pensa que aconteceu?” “Esse processo explicaria os Sids que encontrei na fita diária de 9 de dezembro.” Quatro dias antes da execução de Waddell, pensei. “Tem mais. Em 16 de dezembro o registro de Waddell foi suprimido do Sida.” “Como é que pode?”, perguntei, desconcertada. “Uma impressão digital encontrada na casa de Jennifer Deighton foi identificada como sendo de Waddell quando Vander a examinou no Sida há pouco mais de uma semana.” “O Sida saiu fora do ar no dia 16 de dezembro às dez e cinquenta e cinco da manhã, exatamente noventa e oito minutos depois que o registro do Waddell tinha sido suprimido. O banco de dados foi restaurado com as fitas diárias, mas você tem de se lembrar que o backup só é feito uma vez por dia, no fim da tarde. Assim, as mudanças feitas no banco de dados na manhã de 16 de dezembro não tinham passado pelo backup quando o sistema caiu. Quando o banco de dados foi restaurado, o registro do Waddell também foi.” “Quer dizer que alguém mexeu no número de IDE do Waddell quatro dias antes da execução? E aí, três dias depois da execução, alguém suprimiu o registro dele do Sida?” “É o que parece. O que eu não consigo entender é por que a pessoa não suprimiu o registro de uma vez. Para que todo o trabalho de mudar o número de IDE para depois suprimir o registro todo?” Quando telefonei momentos mais tarde, Neils Vander deu uma resposta simples para aquilo: “Não é incomum que depois da morte de um preso suas digitais sejam suprimidas do Sida. Na verdade, a única razão pela qual não
suprimimos os registros de um preso que já morreu é que é possível que as impressões dele apareçam em algum caso que ainda não tenha sido solucionado. Mas o Waddell já estava preso havia nove, dez anos — já estava fora de circulação havia tanto tempo que não valia a pena manter as digitais dele no computador”. “Então a supressão do registro dele no dia 16 de dezembro foi de rotina?” “Claro. Mas não seria um procedimento de rotina suprimir o registro em 9 de dezembro, quando Lucy acha que o número de IDE foi alterado, porque aí o Waddell ainda estava vivo.” “Neils, o que você acha que isso tudo significa?” “Quando você muda o número de IDE de alguém, Kay, você na verdade mudou a identidade dele. Posso ter as impressões digitais dele, mas quando introduzir o número de IDE no CRC, não é o prontuário dele que vou obter. Ou não obtenho prontuário nenhum, ou recebo o de outra pessoa.” “Tínhamos uma impressão deixada na casa de Jennifer Deighton. Introduzimos o número de IDE no CRC e chegamos a Ronnie Waddell. Mas agora temos razões para crer que o número de IDE de Ronnie Waddell foi alterado. Ou seja, não sabemos quem deixou a impressão naquela cadeira, sabemos?” “Não. E está ficando claro que alguém teve um trabalho danado para nos impedir de verificar quem podia ser essa pessoa. Não posso provar que não tivesse sido o Waddell. Também não posso provar que foi.” Enquanto ele falava, diversas imagens passavam rapidamente em meu pensamento. “Para provar que Waddell não deixou impressões digitais na cadeira de Jennifer Deighton, preciso de uma impressão antiga dele, na qual possa confiar, uma que eu saiba que não foi mexida. Mas não sei onde procurar.” Tive a visão de um revestimento escuro, de assoalhos de madeira e sangue seco cor de granada. “A casa dela”, murmurei. “Casa de quem?” Vander não entendeu. “De Robyn Naismith.”
Dez anos antes, quando a casa de Robyn Naismith fora periciada pela polícia, o laser e a Luma-Lite não haviam sido usados. Naquela época não existia DNA de impressões digitais. Não havia na Virgínia sistema automático de digitais, nem meios computadorizados de melhorar impressões parciais marcadas com sangue em uma parede ou em outro lugar qualquer. Embora em geral a nova tecnologia seja irrelevante para casos encerrados há muito tempo, há exceções. Eu acreditava que o assassinato de Robyn Naismith era uma delas. Se pudéssemos borrifar a casa dela com produtos químicos, era possível
literalmente ressuscitar o local. O sangue coagula, goteja, pinga, salpica, mancha e grita num vermelho vibrante. Mete-se pelas estas e fendas e insinua-se sob as almofadas e os assoalhos. Embora possa desaparecer com uma lavagem ou desbotar com os anos, nunca some completamente. Como o texto que não aparecia na folha de papel deixada sobre a cama de Jennifer Deighton, havia sangue invisível a olho nu na sala onde Robyn Naismith fora abordada e morta. Sem a ajuda da tecnologia, a polícia encontrara uma impressão marcada com sangue durante a investigação original do crime. Waddell podia ter deixado outras. Talvez ainda estivessem lá. Neils Vander, Benton Wesley e eu nos dirigimos para o oeste em direção à Universidade de Richmond, um conjunto esplêndido de edifícios em estilo georgiano que circundavam um lago entre as estradas Three Chopt e River. Fora nela que, vários anos antes, Robyn Naismith se graduara com distinção, e seu amor pela região fora tal que mais tarde comprara sua primeira casa a dois quarteirões da universidade. Sua antiga casinha de tijolos aparentes com mansarda ficava num lote de dois mil metros quadrados. Não me surpreendeu que o local fosse ideal para um ladrão. O quintal tinha muitas árvores e os fundos da casa sumiam sob três magnólias gigantescas que bloqueavam completamente o sol. Duvidei que os vizinhos de qualquer dos lados pudessem ter visto ou ouvido algo na casa de Robyn Naismith. Os vizinhos estavam trabalhando na manhã em que Robyn fora assassinada. Devido às circunstâncias que haviam posto a casa no mercado dez anos antes, o preço fora baixo para o bairro. Descobríramos que a universidade decidira comprá-la para servir como residência de professores e conservara muito do que havia dentro. Robyn era solteira e filha única, e seus pais, do norte da Virgínia, não quiseram seus objetos. Calculo que não poderiam suportar viver com eles ou mesmo olhá-los. O professor Sam Potter, um homem solteiro que ensinava alemão, alugava a casa de sua empregadora desde a compra. Estávamos retirando o equipamento fotográfico, ascos de produtos químicos e outros itens da mala quando a porta dos fundos se abriu. Um homem de aparência mofina nos saudou com um bom-dia chocho. “Querem uma ajuda?” Sam Potter desceu os degraus, afastando dos olhos o cabelo preto comprido e fumando um cigarro. Era baixo e roliço, com quadris femininos. “Se o senhor quiser levar esta caixa aqui”, disse Vander. Potter soltou o cigarro no chão e não se preocupou em apagá-lo. Fomos atrás dele degraus acima e entramos numa cozinha pequena com eletrodomésticos antigos verde-abacate e dúzias de pratos sujos. Em seguida ele nos conduziu, passando pela sala de jantar com roupa empilhada na mesa, até a sala de visitas, na ente da casa. Pus no chão o que carregava e tentei
disfarçar meu choque ao reconhecer a televisão ligada a uma tomada na parede, as cortinas, o sofá de couro marrom e o assoalho de tacos, agora arranhado e opaco como lama. Havia livros e papéis espalhados por toda parte; Potter começou a falar enquanto os recolhia descuidadamente. “Como os senhores podem ver, não tenho muito jeito para os trabalhos domésticos”, disse com nítido sotaque alemão. “Por ora vou pôr estas coisas na mesa da sala de jantar.” Quando voltou, disse: “Querem que eu tire mais alguma coisa?”. Puxou um maço de Camel do bolso da camisa branca e extraiu uma caixinha de fósforos das calças de brim desbotadas. Usava um relógio de bolso preso a uma das alças do cinto por uma tira de couro, e reparei várias coisas quando ele o puxou para ver as horas e acendeu o cigarro. Suas mãos tremiam, os dedos estavam inchados, e as maçãs do rosto e o nariz estavam cobertos de vasos sanguíneos partidos. Não se dera o trabalho de limpar os cinzeiros, mas recolhera garrafas e copos vazios e tivera o cuidado de jogá-los no lixo. “Está bem assim. Não precisa arrumar mais nada. Se precisarmos mexer em alguma coisa, colocaremos de volta”, disse Wesley. “O senhor disse que esse produto que estão usando não vai estragar nada e não é tóxico para seres humanos?” “Não, não tem perigo nenhum. Vai deixar um resíduo granulado — como de água salgada quando seca. Vamos fazer o possível para limpar”, eu disse. “Prefiro não ficar aqui enquanto fazem isso. Podem me dizer aproximadamente quanto tempo vai demorar?”, disse Potter, dando uma tragada nervosa. “Esperamos não demorar mais de duas horas.” Wesley estava olhando em torno, e embora seu rosto nada expressasse, eu bem podia imaginar o que lhe ia pelo pensamento. Enquanto Vander abria uma caixa de filme, tirei o casaco e fiquei sem saber onde colocá-lo. “Se terminarem antes de eu voltar, por favor fechem a porta e verifiquem se está bem trancada. Não tenho alarme para não me incomodar.” Potter saiu pela cozinha e, quando deu a partida no carro, o som foi o de um ônibus a diesel. “É uma pena. Podia ser uma bela casa. Mas por dentro não é muito melhor do que os cortiços que tenho visto. Você reparou nos ovos mexidos na igideira no fogão? O que mais você quer separar daqui?”, disse Vander tirando de uma caixa duas garrafas de um produto químico. Agachou-se. “Só quero misturar o líquido quando estivermos prontos.” “Acho melhor tirarmos deste lugar o máximo que for possível. Você está com as fotografias, Kay?”, disse Wesley. Peguei as fotografias do local do assassinato de Robyn Naismith. “Vocês repararam que nosso amigo professor está usando a mobília dela?”, perguntei.
“Bom, então vamos deixá-la aqui”, disse Vander, como se fosse comum a mobília do local de um crime continuar no mesmo lugar dez anos mais tarde. “Mas temos de tirar o tapete. Dá para perceber que este não veio com a casa.” “Por quê?” Wesley fitou o tapete trançado azul e vermelho sob seus pés. Estava sujo e enrolando nas bordas. “Se você levantar a beira, vai ver que por baixo o chão está tão embaçado e riscado quanto em todos os outros lugares. Este tapete não está aqui há muito tempo. Além do mais, não parece de muito boa qualidade. Duvido que tivesse durado esse tempo todo.” Espalhei diversas fotografias no chão e virei-as em várias direções até as perspectivas ficarem corretas e podermos saber o que tinha de ser movido. O que havia de mobília original fora rearrumado. Na medida em que era possível fazê-lo, começamos a recriar a cena da morte de Robyn. “Bom, o fícus vai ali”, eu dizia, como uma diretora de arte. “Está bem, mas empurre o sofá para trás uns sessenta centímetros, Neils. E só um pouquinho mais para lá. A planta devia estar a uns dez centímetros do braço esquerdo. Um pouquinho mais perto. Está bem.” “Não, não está. Os galhos estão em cima do sofá.” “É que a planta agora está um pouco maior.” “Nem acredito que ainda esteja viva. Estou espantado que alguma coisa possa viver perto do professor Potter, exceto talvez bactérias e fungos.” “Vamos tirar o tapete?” Wesley despiu o paletó. “Vamos. Havia um pequeno capacho na porta de entrada e um outro tapetinho oriental debaixo da mesa de centro. O assoalho estava quase todo descoberto.” De quatro, começou a enrolar o tapete. Fui até a televisão e examinei o vídeo que estava em cima e as ligações dos cabos que iam dar na parede. “Isto tem de ir para a parede deonte do sofá e da porta de entrada. Algum dos cavalheiros entende de videocassete e ligação de cabos?” “Não”, responderam ao mesmo tempo. “Então tenho de me virar sozinha. Vamos lá.” Desliguei o cabo do vídeo, desconectei a televisão e empurrei-a cuidadosamente pelo assoalho nu e empoeirado. Consultando outra vez as fotografias, movi-a alguns centímetros mais até que ficasse bem na ente da porta de entrada. Em seguida examinei as paredes. Parecia que Potter colecionava quadros e gostava de um artista cujo nome não pude deciar, aparentemente ancês. Os esboços eram estudos a carvão da forma feminina, com muitas curvas, manchas rosadas e triângulos. Um a um, foram retirados e encostados nas paredes da sala de jantar. Àquela altura a sala já estava quase vazia e a poeira me dava comichão. Wesley limpou a testa com o dorso do braço. “Estamos mais ou menos
prontos?” Olhou para mim. “Acho que sim. Bom, faltam algumas coisas. Havia três cadeiras ali daquele lado”, apontei. “Estão nos quartos. Duas num quarto e uma no outro. Quer que eu traga para cá?”, disse Vander. “Pode ser.” Ele e Wesley trouxeram as cadeiras. “Tinha uma pintura naquela parede ali e outra à direita da porta que dá para a sala de jantar”, mostrei. “Uma natureza-morta e uma paisagem inglesa.” Quer dizer que Potter não podia viver com os quadros dela, mas parece que não teve problema com todo o resto. “Precisamos percorrer a casa e fechar todas as persianas e cortinas”, disse Vander. “Se alguma luz ainda estiver entrando, rasgue um pedaço deste papel”, continuou, apontando para um rolo de papel pardo grosso que estava no chão, “e cubra a janela.” Nos quinze minutos seguintes a casa se encheu do som de passos, de persianas baixando e tesouras cortando papel. De vez em quando alguém praguejava, quando o pedaço de papel cortado ficava pequeno ou a fita crepe grudava em si mesma. Fiquei na sala de visitas e cobri o vidro da porta da ente e das duas janelas que davam para a rua. Quando tornamos a nos reunir e apagamos a luz, a casa ficou um breu. Não dava para ver minha mão diante de meu rosto. “Perfeito”, disse Vander quando acendemos a luz do teto. Calçou as luvas e arrumou na mesinha as garrafas de água destilada, os produtos químicos e duas bombas de plástico. “Vamos trabalhar assim. Doutora Scarpetta, você pode ir borrifando enquanto eu filmo em vídeo, e, se alguma área reagir, continue borrifando até eu dizer para seguir adiante.” “O que você quer que eu faça?”, perguntou Wesley. “Que não atrapalhe.” “O que há neste troço?”, perguntou, enquanto Vander desatarraxava as tampas das garrafas dos produtos químicos secos. “Não me diga que você quer saber”, respondi. “Já sou um rapaz crescido. Pode me contar.” “O reagente é uma mistura de perborato de sódio, que o Niels está misturando com água destilada, e triaminoalidrazido e carbonato de sódio”, eu disse, tirando um par de luvas da pasta. “E você acha que vai funcionar com sangue tão antigo?”, perguntou Wesley. “Na verdade, o sangue velho e decomposto reage melhor ao luminol do que as manchas recentes, porque quanto mais o sangue está oxidado, melhor. Quando vai envelhecendo, o sangue vai ficando mais oxidado.” “Acho que nenhuma madeira aqui foi tratada com sal, vocês não acham?” Vander olhou em torno.
“Acho que não.” Expliquei a Wesley: “O principal problema com o luminol é o falso positivo. Muitas coisas reagem a ele, como o cobre e o níquel, bem como os sais de cobre na madeira tratada com sal”. “Também reage com ferrugem, alvejante, iodo e formol. Mais os peróxidos encontrados em bananas, melancias, utas cítricas e em muitos vegetais. Em rabanete também”, acrescentou Vander. Wesley olhou para mim sorrindo. Vander abriu um envelope e tirou dois quadrados de papel de filtro manchados de sangue seco diluído. Juntou então as misturas A e B e pediu a Wesley que apagasse as luzes. Com duas borrifadas rápidas, um brilho semelhante a néon, branco azulado, apareceu na mesinha e logo desapareceu. “Aqui”, disse Vander. Senti-o tocar meu braço com o borrifador e agarrei-o. Quando Vander apertou o botão que ligava a câmera de vídeo, uma luzinha vermelha se acendeu; depois a lâmpada de visão noturna branqueou e, como um olho luminoso, foi fixando tudo o que ele olhava. A voz de Vander soou à minha esquerda: “Onde você está?” “Estou no centro da sala. Estou sentindo a quina da mesinha em minha perna”, eu disse, como se fôssemos crianças brincando no escuro. “Porra, onde vocês estão?” A voz de Wesley veio da direção da sala de jantar. A luz branca junto a Vander moveu-se vagarosamente em minha direção. Estendi a mão e toquei seu ombro. “Pronto?” “Estou gravando. Comece e vá borrifando até eu dizer para você parar.” Comecei a borrifar o chão à nossa volta com o dedo firme na válvula. Uma neblina flutuou ao meu redor e em torno de meus pés materializaram-se figuras geométricas e outras formas. Por um momento parecia que eu voava na escuridão sobre o traçado luminoso de uma cidade lá embaixo. O sangue antigo depositado nas estas do assoalho emitia um brilho branco azulado que esmaecia e voltava a aparecer quase tão depressa quanto a capacidade da visão de percebê-lo. Borrifei sem ter noção real de onde me achava com relação a todo o resto, e vi pegadas pela sala inteira. Esbarrei no fícus e no vaso que o continha apareceram débeis listras brancas. À minha direita fulguravam impressões digitais que besuntavam a parede. “Luz”, disse Vander. Wesley acendeu a luz do teto e Vander montou uma câmera de trinta e cinco milímetros num tripé a fim de mantê-la fixa. A única luz seria a fluorescência do luminol, e o filme precisaria de um tempo de exposição maior para captá-la. Peguei outra garrafa cheia de luminol e, quando as luzes se apagaram novamente, tornei a borrifar as impressões besuntadas na parede enquanto a câmera capturava aquelas imagens fantásticas. Depois passamos
adiante. No revestimento e no assoalho apareceram faixas largas e onduladas, e as costuras do sofá de couro formaram uma rede de néon que desenhava de modo incompleto as formas quadradas das almofadas. “Você poderia retirar as almofadas?”, indagou Vander. Uma a uma, empurrei as almofadas para o chão e borrifei a superfície do sofá. Os espaços entre as almofadas brilharam. No encosto apareceram outros borrões e listras, e no teto uma constelação de estrelinhas brilhantes. Foi na velha televisão que demos com a primeira exibição pirofórica de falsos positivos, quando o metal em torno dos botões e da tela se acendeu e as conexões dos fios adquiriram um branco azulado de leite ralo. Salvo umas poucas manchas que podiam ser de sangue, nada havia de notável em volta da TV, mas o chão à sua ente, onde o corpo de Robyn fora encontrado, enlouqueceu. O sangue era tanto que dava para ver o desenho dos tacos e a direção das fibras da madeira. Uma marca de arrastamento brilhava por mais de um metro de assoalho com uma altíssima concentração de luminescência, e perto havia uma forma curiosa de curvaturas tangenciais feitas por um objeto com uma circunferência ligeiramente menor que a de uma bola de voleibol. A busca não se limitou à sala de visitas. Começamos a seguir pegadas. Às vezes éramos obrigados a acender as luzes, misturar mais luminol e afastar obstáculos do caminho, principalmente no aterro linguístico que um dia fora o quarto de Robyn e hoje era o lugar onde o professor Potter vivia. No assoalho havia vários centímetros de papelada: trabalhos de pesquisa, artigos de revistas, provas e dezenas de livros em alemão, ancês e italiano. As roupas estavam espalhadas ou penduradas de modo tão desordenado que era como se um redemoinho tivesse passado pelo armário e criado um vórtice no meio do quarto. Catamos tudo o melhor que pudemos e fizemos montes e pilhas na cama de casal desfeita. Depois seguimos a trilha sangrenta de Waddell. A trilha me levou ao banheiro, com Vander logo atrás. Espalhadas pelo chão havia marcas de sapatos e manchas de sujeira, e ao lado da banheira cintilavam as mesmas formas circulares que havíamos encontrado na sala de visitas. Quando comecei a borrifar as paredes, apareceram de repente duas enormes impressões digitais um pouco acima e de ambos os lados da privada. A luz da câmera de vídeo flutuou para mais perto. Ouvi a voz de Vander exclamar animada: “Acenda a luz!”. O toalete de Potter estava no mínimo tão vergonhosamente arrumado quanto o resto de seus domínios. Ao examinar a área onde as impressões digitais tinham aparecido, Vander quase enfiou o nariz na parede. “Dá para ver?” “Humm. Talvez um pouquinho.” Inclinando a cabeça primeiro para um lado e depois para o outro, ele apertou os olhos. “É fantástico. Você vê, o papel de
parede tem um desenho azul-escuro, de modo que a olho nu não se consegue ver muito. E é plastificado ou de vinil — em outras palavras, boa superfície para impressões digitais.” “Meu Deus do céu, pelo jeito desde que ele se mudou não limpa o raio da privada. Nossa, nem puxou a válvula”, disse Wesley, parado à porta do banheiro. “Mesmo que uma vez ou outra ele tenha passado um esegão ou um pano nas paredes, é muito difícil dar sumiço em todos os resíduos de sangue. Num piso de linóleo como este, por exemplo, eles se agarram à superfície porosa e o luminol os descobre”, eu disse a Vander. Wesley estava assombrado. “Quer dizer que, se daqui a dez anos a gente borrifar de novo este lugar, o sangue vai continuar aqui?” “A única maneira de eliminar a maior parte do sangue seria pintar tudo de novo, empapelar as paredes, dar novo acabamento ao assoalho e envernizar os móveis. Se você quiser ficar absolutamente livre de todos os resíduos, vai ter de demolir a casa e começar de novo.” Wesley olhou o relógio. “Já estamos aqui há três horas e meia.” “Sugiro fazer o seguinte”, falei. “Benton, você e eu podemos começar a fazer com que os quartos voltem ao seu caos habitual e deixamos você, Neils, fazendo o que é preciso fazer.” “Ótimo. Vou armar a Luma-Lite aqui e vamos bater na madeira para que ela consiga melhorar os pormenores das linhas das impressões digitais.” Voltamos à sala de visitas. Enquanto Vander transportava a Luma-Lite portátil e o equipamento fotográfico até o banheiro, Wesley e eu olhamos para o sofá, a velha TV e o assoalho empoeirado e arranhado, ambos um pouco ofuscados. Com as luzes acesas não havia o menor sinal do horror que víramos no escuro. Naquela ensolarada tarde de inverno tínhamos recuado no tempo e testemunhado o que Ronnie Joe Waddell havia feito. Wesley ficou imóvel junto à janela coberta de papel. “Tenho medo de sentar seja onde for, e de me encostar em toda e qualquer coisa. Meu Deus. Tem sangue em todo o diabo da casa.” Olhando em torno, visualizei as fulgurações brancas que vira no escuro, e meus olhos moveram-se lentamente do sofá, passando pelo assoalho, até a TV. As almofadas do sofá ainda estavam no chão, onde eu as deixara, e me agachei para ver melhor. Agora o sangue que embebera as costuras marrons já não era visível, nem as listras e borrões do encosto de couro. Um exame cuidadoso, porém, revelou algo que era importante mas não necessariamente surpreendente. Na lateral de uma das almofadas do assento que haviam sido empurradas para junto do encosto, encontrei um corte reto de no máximo dois centímetros de comprimento. “Benton, por acaso o Waddell era canhoto?” “Acho que era.”
“Acharam que ele a tinha esfaqueado e espancado no chão, perto da TV, por causa da quantidade de sangue que havia em volta do corpo, mas não. Ele a matou no sofá. Acho que preciso sair um pouco. Se este lugar não fosse uma cloaca, bem que eu ia ficar tentada a filar um cigarro do professor”, eu disse. “Faz muito tempo que você está se comportando bem. Um Camel sem filtro ia deixar você arrebentada. Vá tomar um pouco de ar esco. Eu começo a limpar aqui.” Saí da casa ao som do papel sendo arrancado das janelas.
Aquela noite deu início à mais estranha véspera de Ano-Novo de que eu, Benton Wesley e Lucy podemos nos lembrar. Eu não chegaria a dizer que o feriado foi igualmente esquisito para Neils Vander. Eu tinha falado com ele às sete da noite e ele ainda estava no laboratório, mas isso era bastante normal para um homem cuja razão de ser desapareceria caso se descobrisse que as impressões digitais de dois indivíduos eram idênticas. Vander editara as fitas de vídeo do local do crime num aparelho de videocassete e no fim da tarde me entregara as cópias. Wesley e eu tínhamos ficado postados diante de meu televisor durante todo o início da noite, tomando notas e fazendo diagramas enquanto analisávamos a fita minuciosamente. Lucy, enquanto isso, preparava o jantar e só de quando em quando vinha à sala de visitas dar uma espiada. As imagens cintilantes na tela escura não pareciam perturbá-la. Assim de relance um leigo não teria como saber o que significavam. Por volta das oito e meia, Wesley e eu tínhamos visto as fitas e completado nossas notas. Acreditávamos ter reconstituído o percurso do assassino de Robyn Naismith desde o momento em que ela entrou em casa até a saída de Waddell pela porta da cozinha. Era a primeira vez em minha carreira que eu trabalhava retrospectivamente no local de um homicídio resolvido havia anos. A história que emergiu, contudo, era importante por uma excelente razão. Demonstrava, pelo menos para nós, que o que Wesley me contara em Homestead estava correto. Ronnie Joe Waddell não tinha o perfil do monstro que andávamos perseguindo. As manchas, nódoas, respingos e gotas adormecidos que havíamos seguido eram a coisa mais próxima de um replay instantâneo que eu já vira na reconstituição de um crime. Embora os tribunais pudessem considerar simples opinião o que havíamos descoberto, não estávamos preocupados. O que importava era a personalidade de Waddell, e estávamos convencidos de havê-la captado. Como o sangue que havíamos encontrado em outras áreas da casa tinha claramente sido levado por Waddell em seus movimentos, era lícito dizer que sua agressão a Robyn Naismith ficara confinada à sala de visitas, onde ela morrera. As portas da ente e da cozinha eram equipadas com fechaduras de
segurança que só podiam ser abertas com chave. Como Waddell entrara na casa por uma janela e saíra pela porta da cozinha, supunha-se que, ao voltar da mercearia, Robyn entrara pela cozinha. Talvez ela não tivesse tido o cuidado de trancar a porta, porém o mais provável era que não tivesse tido tempo. Antes imaginara-se que Waddell estava saqueando a casa quando ouviu Robyn chegar e estacionar o carro. Nesse momento ele teria ido até a cozinha e pegado uma faca de carne do conjunto de aço inoxidável pendurado na parede. Quando ela abriu a porta, ele estava esperando. O mais provável é que ele tivesse simplesmente agarrado seu pulso, forçando-a a passar pelo arco que levava à sala de visitas. Talvez ele tenha falado com ela durante algum tempo. Talvez tenha pedido dinheiro. Pode ter passado apenas alguns momentos com ela antes que o confronto se tornasse físico. Quando Waddell dera o primeiro golpe com a faca, Robyn estava vestida e sentada ou caída na extremidade do sofá, perto do fícus. Os respingos de sangue que tinham aparecido no encosto do sofá, no vaso e no lambri escuro em torno condiziam com um esguicho arterial, causado quando uma artéria é cortada. As flutuações da pressão arterial fazem com que o padrão dos respingos resultantes lembre o traçado de um eletrocardiograma, e só os vivos têm pressão sanguínea. Sabíamos, assim, que Robyn estava viva e no sofá quando fora agredida pela primeira vez. Era, todavia, improvável que ainda respirasse quando Waddell tirou sua roupa. Exames posteriores revelaram apenas um corte de dois centímetros na ente da blusa manchada de sangue, no ponto onde a faca fora mergulhada no peito e movida para a ente e para trás, cortando completamente a aorta. Como ela foi esfaqueada muitas outras vezes, e mordida, era possível concluir que a maior parte do enético e perfurante ataque de Waddell contra ela ocorrera post mortem. Então, em certo sentido, aquele homem, que mais tarde alegaria não se lembrar de haver matado a “mulher da televisão”, acordou de repente. Largou o corpo dela e pensou melhor sobre o que fizera. A ausência de marcas de arrastamento perto do sofá sugeria que Waddell carregara o corpo do sofá para deitá-lo no chão do outro lado da sala e que em seguida o arrastara para sentá-lo e apoiá-lo na televisão. Depois teria começado a limpar a sala. As marcas circulares que brilhavam no assoalho, pensei, haviam sido deixadas por um balde que ele carregara pelo corredor para trás e para a ente, entre o corpo e a banheira. Toda vez que ele voltava à sala de visitas para enxugar o sangue com toalhas ou eventualmente examinar a vítima enquanto continuava a roubar seus bens e beber suas bebidas, voltava a sujar de sangue a sola dos sapatos. Isso explicava a profusão de pegadas errando peripateticamente pela casa. Seu comportamento revelava uma outra coisa. A conduta de Waddell depois do crime era incompatível com a de alguém que não sentisse remorso.
“Ali está ele, um menino da roça na cidade grande. Rouba para manter o vício da droga que está destruindo seu cérebro. Primeiro maconha, depois heroína, cocaína e finalmente PCP. E uma manhã ele cai em si de repente e se vê brutalizando o cadáver de uma estranha”, explicou Wesley. As toras de lenha se moviam entre as labaredas; Wesley e eu contemplávamos as grandes digitais brilhando, brancas como giz, na tela escura do televisor. “A polícia nunca encontrou vômito na privada nem ao redor dela”, eu disse. “Ele provavelmente limpou. Graças a Deus que não passou o pano na parede em cima do vaso. Você só se encosta assim numa parede se está vomitando abraçado à privada.” “As impressões estão bem acima da privada”, observei. “Acho que ele vomitou e quando se levantou ficou tonto, caiu para a ente e levantou as mãos bem a tempo de evitar que sua cabeça batesse na parede. O que você acha? Remorso, ou só estava detonado de tanta droga?” Wesley olhou para mim. “Vamos estudar o que ele fez com o corpo. Sentou-o com as costas apoiadas, tentou limpá-lo com as toalhas e deixou as roupas numa pilha mais ou menos arrumada no chão entre os tornozelos. Bem, podemos ver a coisa de duas maneiras. Ou ele estava exibindo o corpo com maldade e, assim, mostrando desprezo, ou estava agindo de um modo que indica desvelo. Pessoalmente, acho que é a última.” “E o modo como o corpo de Eddie Heath foi arrumado?” “Aí já é diferente. A posição do garoto lembra a posição de Robyn, parece refleti-la, mas falta uma coisa.” Assim que ele falou, entendi de repente o que era. “Uma imagem refletida”, falei, assombrada. “Um espelho reflete as coisas de trás para a frente ou invertidas.” O olhar dele estava estranho. “Você está lembrado de quando comparamos as fotografias de Robyn Naismith com o diagrama da posição do corpo de Eddie Heath?” “Lembro-me muito bem.” “Você disse que o que fora feito com o menino — desde as marcas de dentadas e o modo como o corpo estava apoiado contra um objeto cúbico até a pilha de roupas arrumada perto dele — era uma imagem refletida do que fora feito com Robyn. Mas as marcas de dentadas na parte interna da coxa e acima do seio de Robyn eram do lado esquerdo do corpo, enquanto as lesões de Eddie — o que acreditamos serem marcas extirpadas de mordidas — foram do lado direito. No ombro direito e no interior da coxa direita.” “É.” Wesley continuava com aquele olhar perplexo. “A fotografia com a qual a cena do Eddie mais se parece é a do corpo nu de Robyn apoiado contra o móvel grande da tv.” “É verdade.”
“Para mim, talvez o assassino do Eddie tenha visto a mesma fotografia da Robyn que nós vimos. Mas a perspectiva dele é baseada na esquerda e na direita de seu próprio corpo. E a direita dele seria a esquerda de Robyn, e a esquerda dele seria a direita dela, porque na fotografia ela está virada para quem olha.” “Esta não é uma hipótese agradável”, disse Wesley quando o telefone começou a tocar. “Tia Kay? É o senhor Vander”, gritou Lucy da cozinha. “Está confirmado”, disse Vander pelo telefone. “Foi Waddell quem deixou a impressão na casa de Jennifer Deighton?”, perguntei. “Não, é justamente isso. Está provado que não foi ele.”
12
Nos dias que se seguiram, contratei Nicholas Grueman, confiando-lhe meus registros financeiros e outras informações por ele solicitadas. O secretário de Saúde convocou-me a comparecer em seu gabinete para sugerir que eu pedisse exoneração e a imprensa não me deu trégua. Eu, porém, soube de muitas coisas que não sabia até uma semana antes. Quem morrera na cadeira elétrica em 13 de dezembro fora mesmo Ronnie Joe Waddell. Sua identidade, contudo, continuava viva e assolando a cidade. Até onde foi possível descobrir, antes da morte de Waddell seu número de IDE no Sida fora trocado pelo de outra pessoa. O número de IDE da outra pessoa fora então completamente eliminado da Central de Registros Criminais, ou CRC. Isso significava que havia à solta um criminoso violento que não precisava de luvas quando cometia seus crimes. Submetidas ao Sida, suas impressões digitais seriam dadas como pertencentes a um morto. Sabíamos que o nefando indivíduo deixara um rastro de penas e restos de tinta, mas não conseguimos imaginar quase nada sobre ele até o dia 3 de janeiro do novo ano. Naquela manhã o Richmond Times-Dispatch publicou um artigo plantado por nós a respeito das dispendiosas plumas de pato-do-norte e da atração que exerciam sobre os ladrões. À uma e catorze da tarde o policial Tom Lucero, chefe da investigação fictícia, recebeu o terceiro telefonema do dia. “Alô. Meu nome é Hilton Sullivan”, disse uma voz forte. “Em que posso servi-lo?”, indagou a voz profunda de Lucero. “É sobre esses casos que vocês estão investigando. As roupas e os troços de pluma de pato-do-norte que parece que fazem sucesso com os ladrões. Tinha um artigo sobre isso no jornal hoje de manhã. Dizia que você é o detetive encarregado.” “É verdade.” A voz subiu de tom. “Bom, fico puto com a polícia por ser tão burra. Dizia no jornal que desde o dia de Ação de Graças tinham roubado várias coisas de lojas, carros e casas na área metropolitana da Grande Richmond. Edredons, um saco de dormir, três jaquetas de esqui, blá-blá-blá, compreende? E o repórter citou uma porção de gente.” “E daí, senhor Sullivan?” “Bom, é claro que foi dos tiras que o repórter recebeu os nomes das vítimas. Em outras palavras, de você.” “A informação é pública.”
“Estou cagando para isso. Só quero saber como foi que você não mencionou esta vítima, eu? Você nem se lembra de meu nome, lembra?” “Desculpe, cavalheiro, mas não posso dizer que me lembre.” “Já sabia. Um filho da puta entra em meu apartamento e faz uma limpeza e os tiras não fazem nada a não ser espalhar um pó preto por todo lado — e isso num dia em que eu estava vestido de cashmere branca. Sou um de seus casos.” “Quando assaltaram seu apartamento?” “Você não se lembra? Fui eu que dei aquele esporro sobre um colete. Se não fosse por mim vocês nunca teriam ouvido falar de plumas de pato-do-norte! Quando contei ao tira que entre outras coisas meu colete tinha sido roubado e que tinha me custado quinhentos paus numa liquidação, sabe o que ele disse?” “Não faço ideia, cavalheiro.” “Disse: ‘Era acolchoado com quê, com cocaína?’. Aí eu disse: ‘Não, Sherlock, pluma de pato-do-norte’. Aí ele olhou em volta nervoso pra caralho e botou a mão no três-oitão. O babaca pensou que lá em casa tinha algum outro cara chamado pato-do-norte e que eu tinha chamado o tal cara, que ia puxar uma arma ou um troço assim. Aí eu saí e…”
Wesley desligou o gravador. Estávamos sentados na cozinha. Lucy estava de novo fazendo ginástica no clube. “O assalto de que esse Hilton Sullivan está falando foi realmente comunicado por ele no sábado, 11 de dezembro. Parece que ele tinha estado fora e, quando voltou para o apartamento na tarde daquele sábado, descobriu que tinha sido assaltado”, explicou Wesley. “Onde fica esse edifício?” “No centro, na Franklin oeste, um edifício velho de tijolos aparentes com apartamentos de cem mil para cima. Sullivan mora no térreo. O delinquente entrou por uma janela solta.” “Não tem sistema de alarme?” “Não.” “Roubaram o quê?” “Joias, dinheiro e um revólver 22. Claro que isso não quer dizer necessariamente que o revólver do Sullivan seja o que foi usado para matar Eddie Heath, Susan e Donahue. Mas acho que vamos descobrir que é, porque não há dúvida de que foi nosso homem quem fez o assalto.” “Conseguiram impressões digitais?” “Várias. Estava com o pessoal da polícia municipal, e você sabe o monte de trabalho que eles têm. No caso, as impressões foram processadas mas ficaram paradas. Pete foi buscar assim que Lucero recebeu o telefonema. Vander já as
passou pelo sistema. Obteve a identificação em exatamente três segundos.” “O Waddell de novo.” Wesley fez que sim com a cabeça. “Qual a distância do apartamento do Sullivan até a rua Spring?” “Dá para ir andando. Acho que já sabemos de onde o cara fugiu.” “Você está verificando os últimos caras que foram libertados?” “Claro. Mas não vamos encontrá-lo numa pilha de papéis na mesa de alguém. O diretor era cuidadoso demais com isso. Infelizmente também morreu. Acho que ele soltou esse preso na rua e a primeira coisa que o cara fez foi assaltar o apartamento e provavelmente arranjar um carro.” “E por que o Donahue ia soltar um preso?” “Minha teoria é que o diretor precisava de alguém para fazer algum trabalho sujo. Aí escolheu um preso e soltou a fera. Só que o Donahue cometeu um errinho tático. Escolheu o cara errado, porque a pessoa que praticou esses crimes não vai ser controlada por ninguém. Minha suspeita, Kay, é de que o Donahue jamais imaginou que alguém fosse morrer e se apavorou quando Jennifer Deighton apareceu morta.” “Vai ver que foi ele que telefonou para minha repartição e se identificou como John Deighton.” “Pode ser. A questão é que a intenção do Donahue era que a casa de Jennifer Deighton fosse saqueada porque alguém estava procurando alguma coisa — quem sabe a correspondência de Waddell. Mas roubar só não tem graça. Os bichinhos de estimação do diretor gostam de machucar.” Pensei nas marcas que havia visto no carpete da sala de visitas de Jennifer Deighton, nas lesões em seu pescoço e na impressão digital encontrada na cadeira de sua sala de jantar. “Ele pode tê-la sentado no meio da sala de visitas e ter ficado atrás com a arma no pescoço dela enquanto a interrogava.” “Pode ter feito isso para obrigá-la a dizer onde estavam as coisas. Mas estava sendo sádico. Forçá-la a abrir os presentes de Natal com certeza também foi sadismo”, disse Wesley. “Será que um cara assim ia ter o trabalho de fingir que a morte dela era suicídio, colocando o corpo no carro?”, perguntei. “Pode ser. O cara já esteve preso. Não quer ser agarrado e com certeza acha excitante ver quem consegue enganar. Extirpou as marcas de mordida do corpo de Eddie Heath. Se saqueou a casa de Jennifer Deighton, não deixou provas. A única prova que deixou no caso de Susan foram duas balas 22 e uma pena. Isso sem dizer que o cara alterou suas impressões digitais.” “Você acha que foi ideia dele?” “Provavelmente foi um negócio que o diretor arranjou, e trocar os registros com os do Waddell decerto foi só uma questão de conveniência. Waddell ia ser executado logo. Se eu quisesse trocar as impressões digitais de um preso
com alguém, ia escolher o Waddell. Ou as impressões digitais do preso aparecem como sendo as de um morto ou — e isso é mais provável — os registros do morto acabam sendo eliminados dos computadores da polícia estadual, de modo que se o nosso quebra-galho do diretor for relaxando e deixar impressões digitais em algum lugar não vai ser possível identificá-lo.” Fitei-o, aturdida. “E daí?” A surpresa lampejou em seus olhos. “Benton, você se dá conta do que está dizendo? Você está aqui sentado falando de registros de computador alterados antes da morte de Waddell. Estamos falando de um assalto e do assassinato de um jovem cometidos antes da morte de Waddell. Em outras palavras, o cupincha do diretor foi solto antes de o Waddell ser executado.” “Quanto a isso, acho que não pode haver dúvida.” “Então a ideia era que o Waddell ia morrer”, assinalei. Wesley baqueou. “Meu Deus. Como podia haver certeza? O governador poderia literalmente intervir no último minuto.” “Com certeza alguém sabia que o governador não ia intervir.” Ele concluiu o pensamento para mim: “E só quem podia saber disso com certeza era o governador”. Levantei-me e fiquei de pé diante da janela da cozinha. Um cardeal bicou sementes de girassol na caixinha e voou numa explosão vermelho-sangue. “Por quê? Por que o governador ia ter um interesse especial no Waddell?”, perguntei sem me voltar. “Não sei.” “Se isso é verdade, ele não deve querer que o assassino seja preso. Quando as pessoas são presas, falam.” Wesley estava em silêncio. “Nenhum dos envolvidos vai querer que essa pessoa seja presa. E nenhum envolvido vai querer me ver por perto. Será muito melhor eu pedir exoneração ou ser exonerada — se consideramos que já fizemos tudo o que é possível fazer para esclarecer esse mistério ‘oficialmente’. O Patterson é ligadíssimo ao Norring.” “Tem duas coisas que ainda não sabemos, Kay. Uma é o motivo. A outra é a agenda do assassino. Esse cara está fazendo o que gosta. Eddie Heath foi só o começo.” Virei-me e olhei para ele. “Acho que tudo começou com Robyn Naismith. Acredito que esse monstro estudou as fotografias do local do crime e, consciente ou inconscientemente, recriou uma delas quando agrediu Eddie Heath e apoiou o corpo dele contra um contêiner.” “Pode muito bem ser. Mas como um preso ia ter acesso às fotografias de Robyn Naismith? Na jaqueta de prisioneiro do Waddell é que elas não estariam”, disse Wesley, olhando para outro lado.
“Essa é outra coisa na qual Ben Stevens pode ter ajudado. Você está lembrado de que eu lhe disse que era ele quem apanhava as fotografias no arquivo? Ele pode ter mandado fazer cópias. A questão é: por que as fotografias eram importantes? Por que Donahue ou qualquer outra pessoa haveria de pedi-las?” “Porque o preso as queria. Quem sabe pediu. Quem sabe fossem um prêmio por serviços especiais.” “Que coisa asquerosa”, eu disse, tentando conter a raiva. Os olhos de Wesley encontraram os meus. “Exatamente. Isso nos leva novamente à agenda do assassino, a suas necessidades e seus desejos. Pode ser que ele tenha ouvido muito sobre o caso da Robyn Naismith. Talvez ele tivesse tido muito contato com o Waddell e ficasse excitado ao pensar no que o Waddell fizera com sua vítima. Nesse caso, as fotografias funcionariam como um excitante para uma pessoa com fantasias muito ativas e agressivas, voltadas para um pensamento violento, sexualizado. Não é absurdo supor que essa pessoa tivesse incorporado as fotografias — uma ou mais — a suas fantasias. E quando, de repente, ela é libertada e vê um garoto andando no escuro para um mercado, a fantasia torna-se real e ela age.” “Recriando a cena da morte de Robyn Naismith?” “É.” “Na sua opinião, qual é a fantasia dele agora?” “Ser caçado.” “Por nós?” “Por gente como nós. Desconfio que ele está convencido de que é mais esperto do que todo mundo e de que ninguém poderá pará-lo. Tem fantasiado sobre as brincadeiras que vai inventar e os assassinatos que pode cometer para reforçar essa imagem que cultiva. E para ele a fantasia não é um substituto da ação, mas uma preparação.” “Donahue não poderia ter maquinado a libertação de um monstro como esse alterando os registros e tudo o mais sem ajuda”, eu disse. “É verdade. Tenho certeza de que ele obteve a colaboração de pessoaschave, por exemplo na sede da polícia estadual, talvez um funcionário dos registros da cidade e mesmo alguém do FBI. As pessoas podem ser compradas quando você sabe alguma coisa delas. E podem ser compradas com dinheiro.” “Como a Susan.” “Não acho que Susan tenha sido uma pessoa-chave. Estou mais inclinado a achar que Ben Stevens sim, esse era. Está sempre pelos bares. Bebidas, festas. Você sabia que, quando pode, ele dá umas cheiradas socialmente?” “Nada mais me espanta.” “Um pessoal nosso anda fazendo umas perguntas. Seu administrador tem um estilo de vida que não tem meios para manter. E quem se mete com drogas acaba se metendo com gente da pesada. Os vícios de Stevens teriam
feito dele um alvo fácil para um filho da puta como Donahue. Provavelmente Donahue mandou um de seus capangas encontrar-se casualmente com Stevens num bar e, conversa vai, conversa vem, o cara oferece ao Stevens uma oportunidade para ganhar uma boa grana.” “Como, exatamente?” “O que eu imagino é que ele deveria tomar providências para que as impressões digitais do Waddell não fossem tiradas no necrotério e para que a fotografia da impressão digital de sangue desaparecesse do arquivo. Isso com certeza foi só o começo.” “E aí ele recrutou a Susan.” “Que não queria, mas tinha problemas financeiros graves.” “E quem você acha que estava pagando por tudo isso?” “Provavelmente os pagamentos passavam pela pessoa que tinha feito o contato original com o Stevens e que o puxou para isso. Um dos caras do Donahue, talvez um dos guardas dele.” Lembrei-me do guarda de nome Roberts, que havia guiado Marino e eu. Lembrei-me de como eram frios os seus olhos. “Admitindo que o contato fosse um guarda, com quem esse guarda estaria se encontrando? Susan ou Stevens?” “Meu palpite é que era com o Stevens. Stevens não ia confiar uma dinheirama a Susan. Ele ia querer tirar primeiro o dele, porque gente desonesta pensa que todo mundo é desonesto.” “Então ele encontra o cara e recebe o dinheiro, encontra a Susan e dá a parte dela?” “Por isso, provavelmente, é que o negócio foi programado para o dia de Natal, quando ela ia sair da casa dos pais afirmando que ia visitar uma amiga. Ia encontrar o Stevens, mas o assassino chegou primeiro.” Pensei na colônia cujo aroma sentira na gola e no lenço de Susan e lembrei-me da atitude de Stevens quando o enentei em sua sala na noite em que estava examinando sua mesa. “Não, não foi assim.” Wesley limitou-se a olhar para mim. “Stevens tem muitas características que explicariam o que aconteceu com a Susan. Só pensa em si mesmo. E é covarde. Quando as coisas esquentam ele se encolhe. Seu primeiro impulso é deixar que outra pessoa se dê mal no lugar dele.” “Como anda fazendo no seu caso, injuriando você e furtando documentos.” “Bom exemplo”, eu disse. “Susan depositou os três mil e quinhentos dólares no começo de dezembro, umas semanas antes da morte de Jennifer Deighton.” “Certo.” “Muito bem, Kay. Vamos voltar um pouco mais. Susan ou Stevens ou os
dois tentaram entrar em seu computador dias antes da execução do Waddell. Ocorreu-nos que estavam procurando alguma coisa no relatório de autópsia que Susan não pôde observar diretamente durante o procedimento.” “O envelope que ele queria que fosse enterrado com ele.” “Ainda estou intrigado com isso. Os códigos dos recibos não confirmam o que tínhamos imaginado antes — que os restaurantes e pedágios estavam localizados entre Richmond e Mecklemburg e que os recibos eram do transporte que trouxe Waddell de Mecklemburg para Richmond quinze dias antes da execução. Embora os recibos sejam dessa época, os lugares não combinam. Os códigos são do trecho I-95, entre aqui e Petersburg.” “Sabe de uma coisa, Benton? Pode ser que a explicação para os recibos seja tão simples que a gente nem tenha pensado.” “Sou todo ouvidos.” “Toda vez que você faz uma viagem de serviço para o FBI, calculo que siga a mesma rotina que eu quando viajo para o governo do estado. Documenta todas as despesas e guarda todos os recibos. Se viaja muito, tem a tendência de juntar diversas viagens num pedido de reembolso, só para diminuir a papelada. Enquanto isso, guarda os recibos em algum lugar.” “Tudo isso faz sentido para explicar os recibos. Alguém do pessoal da prisão, por exemplo, teve de ir a Petersburg. Mas como os recibos foram parar no bolso de trás de Waddell?” Pensei no envelope com seu pedido incisivo para que acompanhasse Waddell no túmulo. Aí me lembrei de um pormenor tão pungente quanto trivial. A mãe de Waddell fora autorizada a visitá-lo por duas horas na tarde da execução. “Benton, você conversou com a mãe de Ronnie Waddell?” “Pete foi vê-la em Suffolk há vários dias. Ela não tem muita simpatia por gente como nós e não quer colaborar muito. Aos olhos dela nós somos os caras que mandaram o filho dela para a cadeira elétrica.” “Quer dizer que ela não revelou nada importante sobre a atitude do Waddell quando ela o visitou, na tarde da execução?” “Pelo pouco que disse, ele estava muito silencioso e amedrontado. Há, porém, um ponto interessante. Pete perguntou a ela o que acontecera com os objetos pessoais do Waddell. Ela disse que o Departamento de Correção tinha entregado o relógio e o anel, e explicado que ele havia dado os livros, as poesias e as outras coisas à Associação Nacional pelo Progresso das Pessoas de Cor.” “Ela acreditou?” “Acreditou. Parece que achava que fazia sentido o Waddell fazer aquilo.” “Por quê?” “Ela não sabe ler nem escrever. O importante é que mentiram para ela, como mentiram para nós quando Vander tentou encontrar objetos pessoais
na esperança de achar impressões latentes. E o Donahue com certeza está por trás dessas mentiras.” “Waddell sabia de alguma coisa. Para o Donahue andar atrás de todo e qualquer pedacinho de papel que o Waddell tivesse escrito e todas as cartas mandadas para ele, deve haver alguma coisa que o Waddell sabia e que certas pessoas queriam que ninguém mais soubesse.” Wesley estava calado. Depois disse: “Como você disse que era o nome da água-de-colônia que o Stevens usa?”. “Red.” “E você tem certeza de que foi essa colônia que você sentiu na gola e no lenço de Susan?” “Eu não afirmaria em juízo, mas é uma fragrância marcante.” “Acho que está na hora de Pete e eu termos uma reuniãozinha de orações com seu administrador.” “Ótimo. E acho que eu posso deixá-lo no estado de espírito apropriado se vocês me derem tempo até amanhã ao meio-dia.” “O que você vai fazer?” “Provavelmente vou deixá-lo bem nervoso.” No começo daquela noite eu estava trabalhando na mesa da cozinha quando ouvi Lucy entrar na garagem e me levantei para recebê-la. Estava vestida com um agasalho azul-marinho e uma das minhas jaquetas e carregava uma mochila esportiva. “Estou suja”, disse, afastando-se do meu beijo, mas não antes que eu sentisse o cheiro de pólvora em seu cabelo. Examinando-lhe as mãos, encontrei na direita resíduos de disparos suficientes para deixar encantado um perito. “Espere aí, onde está ela?”, eu disse quando Lucy começou a se afastar. “Onde está o quê?” “A arma.” Com relutância, ela tirou do bolso meu Smith e Wesson. “Não sabia que você tinha licença de porte de arma”, eu disse, tomando-lhe o revólver e certificando-me de que não estava carregado. “Não preciso, se estou com a arma em casa. Antes disso ela estava no carro e bem à vista.” “Está certo, mas eu preciso lhe fazer uma pergunta. Venha cá”, disse eu calmamente. Sem uma palavra, ela me seguiu até a mesa da cozinha e nos sentamos. “Você disse que ia fazer exercício em Westwood.” “Sei que disse isso.” “Onde você esteve, Lucy?” “Na linha de tiro da estrada Midlothian. É um lugar fechado.” “Eu sei o que é. Quantas vezes você já fez isso?”
“Quatro vezes.” Olhava-me nos olhos. “Deus do céu, Lucy.” “E o que devo fazer? Pete não vai mais me ensinar.” “O tenente Marino está muito, muito ocupado agora”, disse, e a observação pareceu tão condescendente que fiquei sem graça. “Você está a par dos problemas”, acrescentei. “Claro que estou. Agora ele tem de ficar afastado de você. E, se fica afastado de você, fica afastado de mim. Ele está correndo as ruas porque tem algum maníaco à solta que anda matando gente como a superintendente do necrotério e o diretor da prisão. Pelo menos o Pete sabe cuidar de si. E eu? Tive uma aula de tiro, uma única. Puxa, muito obrigada. É como me dar uma aula de tênis e me inscrever em Wimbledon.” “Você está exagerando.” “Não. O problema é que você está minimizando.” “Lucy…” “Como você ia se sentir se eu lhe dissesse que toda vez que venho visitar você não paro de pensar naquela noite?” Eu sabia perfeitamente a que noite ela estava se referindo, embora com o passar dos anos houvéssemos conseguido seguir em ente como se nada tivesse acontecido. “Eu não me sentiria bem se soubesse que uma coisa relacionada comigo perturba você”, eu disse. “Uma coisa? O que aconteceu foi só uma coisa?” “Claro que não foi uma coisa qualquer.” “Às vezes acordo de noite porque imagino que uma arma acabou de disparar. Aí ouço o silêncio medonho e me lembro de ter ficado ali deitada, olhando para o escuro, tão apavorada que não conseguia me mexer, e acabei fazendo xixi na cama. Depois vieram as sirenes, as luzes vermelhas piscando, e os vizinhos aparecendo nas portas e olhando pelas janelas. E você não me deixou ver quando o levaram, nem me deixou ir lá em cima. Gostaria de ter ido, porque imaginar foi pior.” “Aquele homem morreu, Lucy. Já não pode fazer mal a ninguém.” “Há outros iguais, talvez piores do que ele.” “Não vou dizer que não há.” “E o que você está fazendo a esse respeito?” “Emprego todo o meu tempo catando os pedaços das vidas destruídas por pessoas ruins. O que mais você queria que eu fizesse?” “Se você deixar que alguma coisa lhe aconteça, vou ficar com ódio de você.” “Se alguma coisa me acontecer, acho que já não vai ter importância que alguém me odeie. Mas eu não gostaria que você odiasse ninguém, pelo mal que isso lhe faria.” “Pois vou odiar você. Juro.” “Quero que você me prometa, Lucy, que não vai mais mentir para mim.”
Ela não disse uma única palavra. “Não quero que você imagine que precisa esconder alguma coisa de mim.” “Se eu dissesse que queria ir à linha de tiro, você ia deixar?” “Só com o tenente Marino ou comigo.” “Tia Kay, e se o Pete não conseguir agarrá-lo?” “O tenente Marino não é a única pessoa trabalhando no caso”, eu disse sem responder à pergunta, porque não sabia a resposta. “Está aí, tenho pena do Pete.” “Por quê?” “Ele tem de pegar essa pessoa e não pode nem falar com você.” “Acho que ele está recebendo as coisas bem. Ele é um profissional, Lucy.” “Não é bem isso o que diz Michele.” Olhei-a de relance. “Estive conversando com ela esta manhã. Ela disse que o Pete foi à casa dela no outro dia de noite para falar com o pai dela. Disse que o Pete está que mete medo, com a cara vermelha como um carro de bombeiros e um mau humor horrível. O senhor Wesley tentou fazer com que ele fosse ao médico ou tirasse uns dias de licença, mas não conseguiu.” Fiquei arrasada. Queria telefonar imediatamente para Marino, mas sabia que não seria sensato. Mudei de assunto. “Sobre o que mais você e Michele conversaram? Alguma novidade com os computadores da polícia estadual?” “Nada de bom. Fizemos tudo o que conseguimos inventar para descobrir com quem o número de IDE do Waddell foi trocado. Mas todos os registros referentes à supressão já foram eliminados há muito tempo do disco rígido. E o responsável pela alteração foi rápido o bastante para fazer um backup completo do sistema depois da mudança dos registros, de modo que a gente não pode rodar os números de IDE por uma versão anterior da CRC e ver o que aparece. Geralmente você tem um backup de pelo menos três ou seis meses atrás. Mas nesse caso não.” “Parece coisa de gente de dentro.” Pensei em como era natural estar em casa com Lucy. Ela já não era uma visita ou uma garotinha irascível. “Precisamos telefonar para sua mãe e vovó.” “Tem de ser hoje?” “Não. Mas temos de combinar sua volta para Miami.” “As aulas só começam no dia 7, e se eu perder os primeiros dias não vai fazer diferença.” “O colégio é muito importante.” “Também é fácil demais.” “Então você tem que fazer alguma coisa por iniciativa própria para torná-lo mais difícil.” “Se eu faltar vai ficar mais difícil.”
Na manhã seguinte, telefonei para Rose às oito e meia, e fui informada de que, do outro lado do corredor, estava havendo uma reunião do pessoal, o que significava que Ben Stevens estava ocupado e não saberia que eu estava na linha. “Como vão as coisas?”, perguntei a minha secretária. “Terríveis. O doutor Wyatt não conseguiu vir do escritório de Roanoke porque estão com neve nas montanhas e as estradas estão ruins. Com isso o Fielding ontem teve quatro casos, sem ninguém para ajudá-lo. Ainda por cima tinha de ir ao foro e aí foi chamado para uma perícia. Você falou com ele?” “A gente entra em contato quando o coitado tiver um tempinho para telefonar. Esta é uma boa ocasião para procurarmos alguns de nossos antigos estagiários e ver se um deles poderia vir até aqui dar uma mão por uns tempos. Jansen está clinicando em Charlottesville. Você quer tentar e ver se ele pode me telefonar?” “Claro. Boa ideia.” “E me conte do Stevens.” “Ele não tem estado muito aqui. Anota as saídas de um jeito tão abreviado e vago que ninguém sabe direito aonde vai. Estou com o palpite de que está procurando outro emprego.” “Lembre a ele para não me pedir uma carta de recomendação.” “Eu preferiria que você desse uma bem boa para ver se ele nos dava um tempo.” “Preciso que você telefone para o laboratório de DNA e peça a Donna para me fazer um favor. Ela deve ter um pedido do laboratório solicitando a análise do tecido fetal no caso da Susan.” Rose ficou calada. Percebi que estava ficando aborrecida. “Lamento tocar no assunto”, eu disse gentilmente. Ela respirou fundo. “Quando você pediu a análise?” “Na verdade a requisição foi feita pelo doutor Wright, pois foi ele quem fez a autópsia. Ele deve ter a cópia do laudo no escritório de Norfolk, junto com o processo.” “Você não quer que eu telefone para Norfolk e peça para eles fazerem uma cópia para nós?” “Não. Não temos muito tempo e não quero que ninguém fique sabendo que pedi a cópia. Quero que pareça que nossa repartição recebeu a cópia sem querer. Por isso é que quero que você trate diretamente com a Donna. Peça a ela para apanhar o laudo imediatamente, e quero que você mesma vá lá buscá-lo.” “E depois?” “Depois você põe na caixa de entrada, onde todas as outras cópias de requisições e laudos de laboratório são deixados para distribuição.”
“Você tem certeza?” “Absoluta.” Desliguei e peguei um catálogo telefônico, que estava consultando quando Lucy entrou na cozinha. Vinha descalça e ainda vestia a malha com que dormira. Dirigiu-me um bom-dia trôpego e começou a vasculhar a geladeira enquanto eu corria o dedo por uma coluna de nomes. Havia talvez uns quarenta Grimes, mas nenhuma Helen. Claro que quando se referira à guarda como Helen, a Huna, Marino estava sendo irônico. Talvez Helen nem fosse o verdadeiro nome dela. Reparei que havia três assinantes com o nome H., duas vezes como primeiro nome e uma como nome do meio. “O que você está fazendo?”, perguntou Lucy, pondo um copo de suco de laranja na mesa e puxando uma cadeira. “Estou tentando localizar uma pessoa”, eu disse, apanhando o telefone. Não tive sorte com os Grimes a quem telefonei. “Quem sabe ela é casada?”, sugeriu Lucy. “Acho que não.” Liguei para o serviço de auxílio à lista e obtive o número da nova penitenciária, em Greensville. “Por que você acha que não?” “Intuição.” Disquei. “Estou tentando falar com Helen Grimes”, disse à mulher que atendeu. “É uma presa?” “Não. É uma das guardas.” “Um momento, por favor.” Transferiram a ligação. “Watkins”, resmungou uma voz masculina. “Helen Grimes, por favor.” “Quem?” “A policial Helen Grimes.” “Ah, ela não trabalha mais aqui.” “O senhor podia me dizer onde eu posso encontrá-la, senhor Watkins? É muito importante.” “Espere um momento.” O telefone bateu na madeira. Ouvia-se Randy Travis cantando ao fundo. O homem voltou minutos depois. “Não podemos dar esse tipo de informação, minha senhora.” “Está bem, senhor Watkins. Se o senhor me der seu primeiro nome eu mando tudo isto aqui para o senhor e o senhor manda para ela.” Pausa. “Tudo o quê?” “Esta encomenda dela. Eu estou telefonando para saber se ela queria que fosse por via aérea ou por terra.” “Que encomenda?” Ele não parecia muito satisfeito.
“A coleção de enciclopédias que ela comprou. São seis caixas de oito quilos cada.” “Não, a senhora não pode enviar nenhuma enciclopédia para cá.” “Então o que o senhor sugere, senhor Watkins? Ela já pagou a entrada e o endereço comercial que ela deu é o daí.” “Hummm. Espere um pouco.” Ouvi um barulho de papel, depois o de teclas. “Olhe. O máximo que eu posso fazer é dar à senhora uma caixa postal. A senhora manda o negócio para lá. Não mande nada para mim”, disse o homem depressa. Deu-me o endereço e bateu o telefone. A caixa postal onde Helen Grimes recebia sua correspondência era no condado de Goochland. Telefonei imediatamente para um oficial de Justiça que conhecia em Goochland. Em uma hora ele encontrou nos registros do condado o endereço residencial de Helen Grimes, mas o número do telefone não constava do catálogo. Às onze da manhã apanhei a pasta e o casaco e fui falar com Lucy no escritório. “Vou ter de sair por algumas horas.” “Você mentiu para a pessoa com quem estava falando ao telefone. Você não tem nenhuma enciclopédia para entregar para ninguém.” Ela fitou a tela do computador. “É isso mesmo. Menti sim.” “Então às vezes é certo mentir, às vezes não é.” “Nunca é realmente certo, Lucy.” Deixei-a em minha cadeira, com as luzes do modem piscando e vários manuais de informática abertos e espalhados sobre a mesa e pelo chão. Na tela, o cursor pulsava rapidamente. Esperei até estar fora de sua vista para enfiar o Ruger na pasta. Embora autorizada a portar uma arma raramente o fazia. Liguei o alarme, saí de casa pela garagem e tomei a direção oeste até que, da rua Cary, desemboquei na estrada do Rio. O céu marmóreo exibia tons de cinza. Nicholas Grueman telefonaria a qualquer momento. Nos registros que eu lhe dera, havia uma bomba fazendo tique-taque silenciosamente, e eu não estava ansiosa para ouvir o que ele teria a dizer. Helen Grimes morava numa rua lamacenta a oeste do restaurante Polo Norte, do lado de uma chácara. Sua casa parecia um pequeno celeiro, com poucas árvores no terreninho e jardineiras com talos mortos que imaginei tivessem algum dia sido gerânios. Na ente não havia placa que informasse quem vivia lá, mas o velho Chrysler estacionado perto da entrada anunciava que alguém morava ali. Quando Helen Grimes abriu a porta, percebi por sua expressão perplexa que para ela eu era tão estranha quanto meu automóvel alemão. Vestindo jeans e uma camisa de brim para fora das calças, ela plantou as mãos nos quadris alentados e não se moveu da porta. Não parecia se incomodar com o
io e permaneceu inalterada sem saber quem eu era, e só quando mencionei minha visita à penitenciária o reconhecimento iluminou seus olhinhos inquisitivos. O rosto estava congestionado, e tive medo de que me batesse. “Quem lhe disse onde eu morava?” “Seu endereço está nos registros do condado de Goochland.” “A senhora não devia tê-lo procurado. A senhora ia gostar se eu saísse atrás do endereço de sua casa?” “Se precisasse de minha ajuda tanto quanto eu preciso da sua, eu não ia me importar, Helen.” Ela se limitou a olhar para mim. Notei que o cabelo estava molhado e uma orelha estava manchada de tintura preta. “O homem para quem você trabalhava foi assassinado. Uma pessoa que trabalhava para mim foi assassinada. E há outros. Tenho certeza de que você está mais ou menos a par do que vem acontecendo. Há razões para suspeitar que a pessoa que está fazendo isso é um antigo interno da rua Spring — alguém que foi libertado, talvez na época em que Ronnie Joe Waddell foi executado.” “Não sei nada sobre ninguém sendo libertado.” Seus olhos deram um salto para a rua às minhas costas. “Você saberia alguma coisa sobre o desaparecimento de um preso? Alguém, talvez, que não tenha sido libertado legalmente? Parece que, com o cargo que você tinha, saberia quem entrava na penitenciária e quem saía.” “Ninguém desapareceu que eu soubesse.” “Por que você não trabalha mais lá?” “Razões de saúde.” Ouvi o que parecia a porta de um armário fechando-se em algum ponto do espaço que ela protegia. Continuei tentando. “Você se lembra de quando a mãe do Ronnie Waddell foi à penitenciária para visitá-lo na tarde da execução?” “Eu estava lá quando ela foi.” “Você deve tê-la revistado, bem como qualquer objeto que ela levasse consigo. Estou certa?” “Sim.” “O que estou tentando saber é se a senhora Waddell levou alguma coisa para dar ao filho. Sei que as regras de visita proíbem as pessoas de levarem coisas para os internos.” “Pode haver uma autorização. Ela recebeu.” “A senhora Waddell teve autorização para dar alguma coisa ao filho?” “Helen, você está deixando todo o calor sair”, disse uma voz suave atrás dela. De repente, no espaço entre o carnudo ombro de Helen Grimes e a moldura da porta, olhos azuis intensos fixaram-me como uma mira de arma.
Apreendi de relance uma face pálida e um nariz aquilino, antes que a esta tornasse a ficar vazia. A fechadura gemeu e a porta se fechou mansamente atrás das costas da antiga guarda penitenciária. Ela se encostou ali, fitandome. Repeti minha pergunta. “Ela levou uma coisa para o Ronnie, uma coisinha de nada. Liguei para o diretor pedindo autorização.” “Você telefonou para o Frank Donahue?” Ela balançou a cabeça. “E ele deu a autorização?” “Como eu disse, não era grande coisa o que ela levou para ele.” “O que era, Helen?” “Uma figura de Jesus mais ou menos do tamanho de um cartão-postal, com uma coisa escrita atrás. Não me lembro exatamente. Uma coisa como ‘Estarei com você no paraíso’, só que a ortografia estava errada. ‘Paraíso’ estava escrito como ‘para isso’, separado e tudo”, disse Helen Grimes sem a sombra de um sorriso. “Só? Era isso o que ela queria dar ao filho antes que ele morresse?” Com as primeiras gotas de chuva escorrendo lentamente do céu e deixando na mureta de cimento marcas do tamanho de um níquel, ela pôs a mão na maçaneta. “Já disse que era. Agora tenho de entrar e não quero que a senhora volte aqui.”
Quando, mais tarde, Wesley chegou à minha casa, exibia uma jaqueta de piloto de couro preto, um boné azul-escuro e um meio sorriso. “O que está acontecendo?”, perguntei, enquanto nos retirávamos para a cozinha, que àquela altura havia se tornado um lugar tão usual para as nossas conversas que ele sempre se sentava na mesma cadeira. “Não dobramos o Stevens, mas acho que abrimos nele uma brecha bem grande. O que funcionou foi você ter mandado deixar a requisição para o laboratório num lugar onde ele iria encontrá-la. Ele tem boas razões para temer os resultados de um exame de DNA feito no tecido fetal no caso de Susan Story.” “Ele e Susan estavam tendo um caso”, eu disse, e era estranho eu não fazer reparos à moralidade de Susan. O que me desapontava era o gosto dela. “Stevens admitiu o caso e negou todo o resto.” “Como por exemplo ter alguma ideia sobre como Susan teria obtido três mil e quinhentos dólares?” “Ele nega saber o que quer que seja sobre o assunto. Mas ainda não terminamos com ele. Um informante do Marino disse que viu um jipe preto com uma placa diferente na região onde Susan foi alvejada e mais ou menos na hora em que achamos que a coisa aconteceu. Ben Stevens anda com um jipe preto com a placa ‘I 4 me’.”
“Não foi Stevens quem a matou, Benton.” “Não, ele não matou. Acho que o que aconteceu foi que o Stevens ficou apavorado quando a pessoa com quem ele estava fazendo negócio quis informações sobre o caso de Jennifer Deighton.” “A conclusão seria clara, Stevens sabia que Jennifer Deighton fora assassinada”, concordei. “E covarde como ele é, decide que quando chegasse a hora de receber o pagamento seguinte Susan ia tratar do assunto. Ele se encontraria com ela depois para pegar a parte dele.” “E àquela altura ela já tinha sido morta.” Wesley fez que sim com a cabeça. “Acho que a pessoa enviada para encontrá-la deu um tiro nela e ficou com o dinheiro. Mais tarde — alguns minutos mais tarde, talvez — Stevens apareceu no lugar combinado, a travessa que sai da rua Strawberry.” “O que você está descrevendo condiz com a posição dela no carro. Para dar um tiro em sua nuca, o agressor deve tê-la empurrado para a ente. Mas, quando ela foi encontrada, estava recostada no assento.” “Stevens mexeu nela.” “Quando chegou perto do carro, não viu logo o que havia de errado com ela. Se estava caída sobre o volante, ele não podia ver o rosto dela. Então ele a recostou no assento.” “Saiu correndo feito um louco.” “E, se tivesse posto água-de-colônia antes de ir encontrá-la, teria colônia nas mãos. Ao recostá-la no assento, as mãos dele entraram em contato com o casaco dela — provavelmente na região do ombro. Foi esse cheiro que senti no local.” “Vamos acabar por dobrá-lo.” “Há coisas mais importantes para fazer, Benton”, eu disse, e contei-lhe sobre minha visita a Helen Grimes e o que ela dissera sobre a última visita da sra. Waddell ao filho. “Minha teoria é que Ronnie Waddell queria que a figura de Jesus fosse enterrada com ele e que talvez fosse esse seu último pedido. Ele guarda a estampa num envelope e escreve nele: ‘Urgente, muito confidencial’, e assim por diante”, continuei. “Não podia ter feito isso sem autorização de Donahue. De acordo com o regulamento, o último pedido do preso tem de ser comunicado ao diretor.” “Isso mesmo. Não sabemos o que haviam dito ao Donahue, mas ele certamente estaria paranoico demais para deixar o corpo de Waddell sair de lá com um envelope fechado no bolso. E o que ele faz? Defere o pedido de Waddell e acha uma maneira de ver o que há dentro do envelope. Decide fazer uma troca de envelopes depois da morte de Waddell e instrui um de seus capangas para cuidar disso. E é aí que os recibos entram em cena.”
“Eu estava esperando você chegar a esse ponto”, disse Wesley. “Acho que a pessoa cometeu um errinho. Digamos que essa pessoa tivesse na mesa um envelope branco com recibos de uma viagem recente a Petersburg. Digamos que ela pegasse outro envelope branco, pusesse um negócio qualquer dentro e em cima escrevesse o que Waddell tinha escrito no envelope que queria que fosse enterrado com ele.” “Só que o guarda escreve no envelope errado.” “É. Escreve no que tem os recibos.” “E só vai descobrir mais tarde, quando foi procurar os recibos e encontrou dentro do envelope o tal negócio que não queria dizer nada.” “Exatamente. E é aí que entra a Susan. Se eu fosse o guarda que cometeu esse erro, ficaria muito preocupado. Para mim a pergunta crucial seria se algum dos peritos tinha aberto o envelope no necrotério, ou se o envelope havia sido deixado fechado. Se eu, quer dizer, o guarda, por acaso fosse também o contato do Ben Stevens, a pessoa que transportava a grana para garantir que no necrotério não tirassem as impressões digitais do Waddell, então eu ia saber exatamente com quem falar.” “Você entraria em contato com Stevens e diria a ele para ver se o envelope tinha sido aberto. E, em caso positivo, indagaria se o conteúdo deixara alguém desconfiado ou com a intenção de sair por aí fazendo perguntas. Isso se chama tropeçar na paranoia e acabar com muito mais problemas do que você teria tido se não se apavorasse. Mas você vai e imagina que o Stevens podia facilmente responder à pergunta.” “Nem tanto”, eu disse. “Ele podia perguntar à Susan, mas ela não testemunhara a abertura do envelope. Fielding abriu-o lá em cima, tirou uma fotocópia do conteúdo e mandou o original embora, com os outros objetos pessoais do Waddell.” “Stevens não poderia ter pegado o processo e olhado a fotocópia?” “Só se ele quebrasse a fechadura de minha credência”, eu disse. “Então na cabeça dele a única alternativa era o computador.” “Ou perguntar ao Fielding ou a mim. Só que ele não ia se arriscar. Nenhum de nós ia divulgar um pormenor confidencial como esse a ele, a Susan ou a qualquer outra pessoa.” “Ele entende o bastante de computadores para entrar em seu diretório?” “Que eu saiba não, mas Susan tinha feito muitos cursos e tinha livros de Unix na sala dela.” O telefone tocou, e deixei que Lucy atendesse. Quando ela entrou na cozinha, seus olhos estavam inquietos. “É seu advogado, tia Kay.” Aproximou de mim o telefone da cozinha, que peguei sem me mexer da cadeira. Nicholas Grueman não perdeu tempo com cumprimentos, indo direto ao assunto.
“Doutora Scarpetta, no dia 12 de novembro a senhora preencheu um cheque de conta remunerada no valor de dez mil dólares ao portador. E nos seus extratos bancários não encontro nenhum registro de que esse cheque tenha sido depositado em nenhuma de suas várias contas.” “Não depositei o dinheiro.” “A senhora saiu do banco com dez mil dólares em dinheiro?” “Não, não saí. Preenchi o cheque no Banco Signet, no centro, e com ele comprei um cheque em libras esterlinas.” “E esse cheque foi a favor de quem?”, perguntou meu antigo professor enquanto Benton Wesley me fitava com ansiedade. “Doutor Grueman, a transação era de natureza privada e nada tem a ver com minha profissão.” “Espere aí, doutora Scarpetta. A senhora sabe que isso não basta.” Respirei fundo. “A senhora certamente sabe que vão nos perguntar sobre isso. Com certeza a senhora se dá conta de que não vai pegar bem que, poucas semanas depois de sua assistente no necrotério depositar uma quantia considerável, a senhora tenha emitido um cheque de uma quantia considerável.” Fechei os olhos e passei os dedos pelo cabelo enquanto Wesley se levantava da mesa e dava a volta por trás de mim. “Kay”, senti as mãos de Wesley em meus ombros, “pelo amor de Deus, você tem de contar a ele.”
13
Se Grueman jamais tivesse sido um advogado militante, eu não lhe teria confiado meus interesses. Antes de ensinar, porém, ele havia sido um advogado de renome no foro, trabalhara na área dos direitos civis e processara, representando o Ministério da Justiça, no tempo de Robert Kennedy, o crime organizado. Agora representava clientes sem dinheiro condenados à morte. Eu reconhecia a seriedade de Grueman e precisava de seu cinismo. Ele não estava interessado em tentar negociar ou em proclamar minha inocência. Recusava-se a apresentar a prova mais ínfima a Marino ou a qualquer outro. Não falou a ninguém do cheque de dez mil dólares que, dizia, era a pior prova que havia contra mim. Lembrei-me do que ensinara a seus alunos no primeiro dia de direito penal: Diga não. Diga não. Diga não. Meu antigo professor seguia essas regras ao pé da letra e ustrava todos os esforços de Roy Patterson. Depois, na quinta-feira, 6 de janeiro, Patterson telefonou para minha casa e me pediu que fosse falar com ele em seu escritório, no centro. “Estou certo de que podemos esclarecer isso tudo. Só preciso lhe perguntar umas coisas”, disse amistosamente. A inferência era que, se eu colaborasse, ele poderia evitar o pior. O que me impressionava era que, mesmo por um momento, Patterson imaginasse que aquela manobra cediça pudesse funcionar comigo. Quando o procurador-geral da Justiça do Estado quer conversar, é porque na realidade quer descobrir coisas, e não tem a menor intenção de fazer vista grossa para nada do que descobrir. A polícia também. Usando o sistema Grueman, eu disse a Patterson que não iria e na manhã seguinte fui intimada a comparecer diante do grande júri especial em 30 de janeiro. Isso foi seguido por uma intimação para que meu sigilo bancário fosse quebrado. Primeiro Grueman invocou a 5a emenda, depois requereu a renovação da intimação. Uma semana mais tarde não tivemos remédio senão obedecer, caso eu não quisesse ser processada por desacato. Mais ou menos na mesma época, o governador Norring designou Fielding médico-legista chefe interino da Virgínia. “Olhe outro furgão da TV.Vi passar agora mesmo”, disse Lucy da sala de jantar, onde estava olhando pela janela. Da cozinha, chamei-a: “Venha almoçar. Sua sopa está esiando”. Silêncio. E em seguida: “Tia Kay?”. Ela parecia agitada. “Que é?”
“Você não imagina quem está estacionando.” Da janela sobre a pia avistei o Ford LTD branco estacionando na entrada. A porta do motorista se abriu e Marino desceu. Puxou as calças e arrumou a gravata, com os olhos registrando tudo à sua volta. Vendo-o subir a calçada em direção a minha porta fiquei tão profundamente tocada que me assustei. “Não sei se devo ou não ficar alegre pelo fato de ver você”, eu disse quando abri a porta. “Não se preocupe, doutora. Não estou aqui para prendê-la.” “Entre, por favor.” “Oi, Pete”, disse Lucy alegremente. “Você não devia estar na escola ou coisa assim?” “Não.” “Por quê? Lá na América do Sul as férias são em janeiro?” “São. Por causa do mau tempo. Quando a temperatura cai abaixo de vinte graus, tudo fecha.” Marino sorriu. Seu aspecto estava péssimo. Momentos mais tarde eu acendi o fogo na sala de visitas e Lucy saiu para fazer compras. “Como você tem andado?”, perguntei. “Você vai me obrigar a fumar lá fora?” Empurrei um cinzeiro para perto dele. “Marino, você está com bolsas debaixo dos olhos, seu rosto está vermelho e aqui não está tão quente para você transpirar desse jeito.” “Estou vendo que você sentiu minha falta.” Do bolso de trás tirou um lenço amassado e enxugou a testa. Depois acendeu um cigarro e olhou o fogo. “O Patterson está sendo um sacana, doutora. Quer esfolar você.” “Deixe-o tentar.” “Ele vai tentar, e é melhor você ficar preparada.” “Ele não tem do que me acusar, Marino.” “Tem uma impressão digital encontrada em um envelope na casa da Susan.” “Isso eu posso explicar.” “Mas não pode provar, e ele ainda tem um trunfo. Juro que não devia lhe contar isso, mas vou contar.” “Que trunfo?” “Você está lembrada do Tom Lucero?” “Sei quem é. Conhecer, não conheço.” “Bem, ele pode ser muito encantador e é um puta policial, para ser honesto. Acontece que ele andou dando umas batidas para o lado do Banco Signet e levou uma das caixas na conversa até ela desovar a informação sobre você. Agora, ele não devia perguntar e ela não devia responder. Mas ela contou a ele que se lembrava de você ter feito um cheque grande pouco antes do dia de Ação de Graças. Segundo ela, de dez mil.”
Olhei impassível para ele. “Quer dizer, na verdade não se pode culpar o Lucero. Ele está fazendo o trabalho dele. Mas Patterson sabe o que está procurando quando vai bisbilhotar seus registros financeiros. Ele vai pegar você feio quando você comparecer ao grande júri especial.” Eu não disse nada. “Doutora.” Marino se inclinou e seus olhos encontraram os meus. “Você não acha que deveria falar sobre isso?” “Não.” Levantando-se, ele se encaminhou para a lareira e abriu o para-fogo o suficiente para atirar o cigarro para dentro. “Porra, doutora. Não quero que você seja denunciada.” “Eu não devia tomar café e sei que você também não devia, mas estou com vontade de tomar alguma coisa. Você gosta de chocolate quente?” “Tomo um café.” Fui preparar o café. Meus pensamentos zumbiam pesadamente como uma mosca em queda. Minha raiva não tinha para onde se expandir. Fiz um bule de descafeinado, na esperança de que Marino não percebesse a diferença. “Como está sua pressão?” “Quer saber a verdade? Tem dias que, se eu fosse uma chaleira, apitava.” “Não sei o que vou fazer com você.” Foi se sentar na beirada da lareira. O fogo fazia um ruído parecido com o vento, e as chamas refletidas dançavam no cobre. “Para começo de conversa, você provavelmente nem devia estar aqui. Não quero que tenha problemas”, prossegui. “Eu quero é que o promotor, a cidade, o governador e todos eles se fodam”, disse ele com raiva repentina. “Marino, não podemos ceder. Alguém sabe quem é esse assassino. Você falou com o policial que nos recebeu na penitenciária? O guarda Roberts?” “Falei. A conversa não chegou a lugar nenhum.” “Bom, eu também não fui muito melhor com sua amiga Helen Grimes.” “Deve ter sido uma festa.” “Você sabia que ela não trabalha mais na penitenciária?” “Que eu saiba ela nunca trabalhou. Helen, a Huna, era preguiçosa pra cacete, salvo quando estava fazendo uma revista física em alguma interna. Aí ficava diligente. Donahue gostava dela, não me pergunte por quê. Depois que apagaram ele, ela foi designada para prestar serviços na torre de guarda de Greensville, mas de repente arranjou um problema no joelho ou coisa assim.” “Tenho a impressão de que ela sabe muito mais do que demonstra. Principalmente se ela e Donahue eram amigos.” Marino serviu o café e olhou para fora da porta corrediça de vidro. O terreno estava branco por causa da geada e os flocos de neve pareciam estar
caindo mais rápido. Pensei na noite cheia de neve em que fora convocada para ir à casa de Jennifer Deighton, e por minha mente começaram a passar imagens de uma mulher gorda de bobs sentada em sua sala de visitas. Se o assassino a interrogara, deve ter tido alguma razão para isso. Alguém o enviara. Para encontrar o quê? “Você acha que, quando foi à casa de Jennifer Deighton, o assassino estava atrás de cartas?” “Acho que estava atrás de alguma coisa relacionada ao Waddell. Cartas, poemas. Coisas que Waddell podia ter mandado para ela ao longo dos anos.” “Você acha que essa pessoa encontrou o que estava procurando?” “Bom, ele pode ter procurado, mas foi tão cuidadoso que não dá pra saber se achou.” “Acho que ele não achou.” Acendendo outro cigarro, Marino olhou para mim com ceticismo. “Baseada em quê?” “Baseada no cenário do crime. Ela estava de camisola e bobs. A impressão que dava era que ela estava lendo na cama. Isso não combina com quem está esperando visita.” “Até aí, estou de acordo.” “Depois aparece alguém na porta e ela deve ter deixado entrar, porque não havia sinal de entrada forçada nem de luta. Acho que o que aconteceu depois é que esse indivíduo pediu a ela que lhe entregasse o que ele queria, e ela não entregou. Ele fica danado, pega uma cadeira da sala de jantar e põe no meio da sala de visitas. Faz com que ela se sente ali e, essencialmente, a tortura. Faz perguntas e, quando ela não responde, aperta a gravata. A cena prossegue até ele ir longe demais. Ele a carrega para fora e senta-a no carro.” “Se o cara entrou e saiu pela cozinha, isso explica por que aquela porta estava aberta quando nós chegamos”, ponderou Marino. “Pode ser. Em suma, não penso que ele quisesse que ela morresse naquele momento e, provavelmente, depois de tentar disfarçar o modo como ela morrera, tratou logo de dar o fora dali. Pode ser que ele tenha ficado com medo ou que simplesmente tivesse perdido o interesse por sua missão. Acho que nem revistou a casa, e também duvido que encontrasse alguma coisa se tivesse revistado.” “Nós não encontramos de jeito nenhum.” “Jennifer Deighton era paranoica. No fax que mandou para o Grueman dizia que havia alguma coisa errada no que estava sendo feito com o Waddell. Aparentemente me vira no noticiário e tentara até entrar em contato comigo, mas sempre desligava quando dava com a secretária eletrônica.” “Você acha que ela podia ter papéis ou alguma coisa que nos revelasse que raio é isso tudo?” “Se tinha, estava tão apavorada que com certeza tirou tudo de casa.”
“E guardou onde?” “Não sei, mas pode ser que o ex-marido soubesse. Ela não foi visitá-lo duas vezes no fim de novembro?” Marino pareceu interessado. “Foi. É mesmo.”
Quando finalmente localizei Willie Travers no balneário Concha Rosa, na praia de Fort Myers, na Flórida, ouvi ao telefone uma voz enérgica e agradável. Quando, contudo, comecei a fazer-lhe perguntas, ficou reticente e não se comprometeu. “Senhor Travers, o que posso fazer para o senhor confiar em mim?”, indaguei afinal, desesperada. “Venha até aqui.” “Neste momento vai ser muito difícil.” “Eu teria que ver a senhora.” “Como?” “É assim que eu sou. Se puder ver a senhora, posso ler a senhora e saber se é uma pessoa de confiança. Jenny também era assim.” “Então se eu for à praia de Fort Myers e o senhor me ler, o senhor me ajuda.” “Depende do que eu captar.” Fiz reservas de avião para as seis e cinquenta da manhã seguinte. Lucy e eu voaríamos até Miami. Ela ficaria com Dorothy e eu iria de carro até a praia de Fort Myers, onde havia uma possibilidade muito boa de que passasse a noite pensando se havia perdido o juízo. Havia uma probabilidade avassaladora de que o ex-marido de Jennifer Deighton, aquele fanático por saúde holística, acabasse se revelando uma enorme perda de tempo. A neve tinha parado de cair quando, no sábado, levantei-me às quatro da manhã e fui até o quarto de Lucy para acordá-la. Por um momento escutei sua respiração, depois toquei-lhe de leve o ombro e, no escuro, murmurei seu nome. Ela se espreguiçou e sentou na cama. No avião, dormiu até Charlotte, depois se fechou em um de seus insuportáveis emburramentos até Miami. “Prefiro pegar um táxi”, disse, olhando pela janela. “Você não pode pegar um táxi, Lucy. Sua mãe e o amigo dela vão ficar procurando você.” “Tudo bem. Por mim eles podem passar o dia inteiro dando voltas pelo aeroporto. Por que não posso ir com você?” “Você precisa ir para casa e eu preciso pegar o carro e ir diretamente para a praia de Fort Myers, de onde volto para Richmond de avião. Acredite. Não vai ser nem um pouco divertido.” “Ficar com mamãe e o último idiota dela também não é diversão nenhuma.”
“Você não sabe se ele é idiota. Você nunca o viu. Por que é que você não dá uma oportunidade a ele?” “Eu queria que a mamãe pegasse Aids.” “Lucy, não diga uma coisa dessas.” “Ela merece. Não entendo como ela pode dormir com qualquer retardado que a leve para jantar e ao cinema. Não entendo como ela pode ser sua irmã.” “Fale mais baixo”, sussurrei. “Se ela sentisse tanta falta de mim, ia querer me buscar sozinha. Não ia querer ninguém se metendo.” “Isso não é necessariamente verdade. Um dia, quando você se apaixonar, vai entender melhor.” “Por que você acha que eu nunca me apaixonei?” Olhou para mim furiosa. “Porque nesse caso você saberia que uma pessoa apaixonada mostra tudo o que tem de pior e de melhor. Um dia somos extraordinariamente generosos e sensíveis, no outro só matando. Nossas vidas viram lições de exagero.” “Eu queria que mamãe andasse de uma vez e chegasse logo à menopausa.” No meio da tarde, entrando e saindo da sombra à medida que avançava pela trilha Tamiami, remendei os buracos que a culpa me abrira na consciência. Sempre que eu lidava com minha família, ficava irritada e aborrecida. Sempre que me recusava a lidar com ela, ficava como quando era criança, quando aprendi a arte de fugir sem sair de casa. Em certo sentido eu me transformara em meu pai, depois da morte dele. Eu era a pessoa racional que tirava dez e sabia cozinhar e lidar com dinheiro. Era aquela que raramente chorava e cuja reação à volatilidade de meu lar que se desintegrava era esiar e dispersar-me como vapor. Em consequência, minha mãe e minha irmã me acusavam de indiferença, e cresci alimentando a vergonha secreta de que o que diziam era verdade. Cheguei à praia de Fort Myers com o ar-condicionado ligado e a viseira abaixada para me proteger do sol. A água se encontrava com o céu numa continuidade de azul vibrante, e as palmeiras eram penachos verdes resplandecentes no alto dos troncos fortes como pernas de avestruz. O balneário Concha Rosa era da cor do nome. Ia até a baía Estero e abria amplamente suas varandas para o golfo do México. Willie Travers morava num dos bangalôs, mas eu só iria encontrá-lo às oito da noite. Registrei-me em um hotel, num apartamento de um quarto, e literalmente deixei um rastro de roupas pelo chão enquanto arrancava meu traje de inverno e tirava da mala um short e uma camiseta. Em sete minutos saí porta afora e fui para a praia. Não sei quantos quilômetros andei, pois perdi a conta do tempo e todos os trechos de praia e água pareciam magnificamente iguais. Contemplei pelicanos se balançando e jogando a cabeça para trás enquanto engoliam peixes como goles de bourbon, e desviei-me com destreza das águas-vivas
pousadas na praia como flácidos balões azuis. A maioria das pessoas por quem passei era idosa. De vez em quando a voz aguda de uma criança se erguia sobre o rugido das ondas como um pedaço de papel de cor viva carregado pelo vento. Catei ouriços-do-mar polidos pela maré e conchas desgastadas que lembravam pastilhas de hortelã muito chupadas. Pensei em Lucy e tornei a sentir sua falta. Voltei para meu quarto quando a sombra já cobria quase toda a praia. Tomei um banho de chuveiro, mudei de roupa, entrei no carro e segui pelo bulevar Estero até que a fome, como uma varinha mágica, guiou-me para o estacionamento do Fogão do Barqueiro. O horizonte desbotava num azul fosco; pedi peixe, que comi acompanhado de vinho branco. Em pouco tempo as luzes dos botes balançavam na escuridão e eu não conseguia mais ver a água. Quando localizei o bangalô 182, perto da loja de iscas e do cais de pesca, estava relaxada como havia tempo não acontecia. Quando Willie Travers abriu a porta, parecia que tínhamos sido amigos desde sempre. “A primeira providência é servir alguma coisa. A senhora com certeza não comeu.” Lamentei dizer-lhe que já havia jantado. “Então vai ter de comer de novo.” “Não posso.” “Dentro de uma hora vou lhe provar que está enganada. Garoupa grelhada na manteiga e no suco de lima e salpicada com uma porção generosa de pimenta recém-moída. Temos ainda pão de sete grãos inteiramente feito por mim, e que a senhora não vai esquecer pelo resto da vida. Vamos ver. Ah. Salada de repolho marinado e cerveja mexicana.” Dizia tudo aquilo enquanto destampava duas garrafas de Dos Esquis. O exmarido de Jennifer Deighton devia ter quase oitenta anos, e seu rosto arruinado pelo sol parecia lama dura, mas os olhos azuis eram vitais como os de um jovem. Sorria muito enquanto falava e era seco como um bacalhau. Seu cabelo era como a superfície de uma bola de tênis branca. “Como o senhor veio morar aqui?”, perguntei, vendo os peixes empalhados que decoravam as paredes e a mobília rústica. “Faz uns dois anos, decidi me aposentar e pescar, de modo que fiz uma proposta ao Concha Rosa: eu tomaria conta da loja de iscas se eles me cedessem um bangalô por um aluguel razoável.” “Qual era sua profissão antes de se aposentar?” “A mesma de agora.” Sorriu. “Pratico medicina holística, e na verdade você nunca se aposenta disso, como não se aposenta da Igreja. A diferença é que agora trabalho com gente com quem quero trabalhar, e não tenho mais consultório no centro.” “E qual é sua definição de medicina holística?”
“Simplesmente trato a pessoa inteira. A questão é equilibrar as pessoas.” Olhou-me com jeito de quem estava me avaliando, pousou a cerveja e encaminhou-se para a cadeira de capitão onde eu estava sentada. “A senhora se incomoda de levantar?” Meu estado de espírito estava amistoso. “Agora estenda um braço. Qualquer um, mas mantenha-o reto, paralelo ao chão. Ótimo. Agora vou lhe fazer uma pergunta e, enquanto a senhora responde, vou tentar puxar seu braço para baixo e a senhora vai resistir. A senhora se considera a heroína da família?” “Não.” Meu braço cedeu imediatamente à pressão e baixou como uma ponte levadiça. “A senhora se considera a heroína da família, sim. Acaba de revelar-me que é muito rigorosa consigo mesma e que sempre foi assim. Está bem. Agora vamos pôr seu braço para cima de novo e vou lhe fazer outra pergunta. A senhora é boa no que faz?” “Sou.” “Estou puxando para baixo com toda a força e seu braço está como ferro. Então a senhora é boa no que faz.” Voltou para o divã e eu tornei a me sentar. “Tenho que confessar que meus estudos de medicina holística fizeram de mim uma pessoa um tanto cética”, eu disse com um sorriso. “Pois não deveriam, pois os princípios não são diferentes daqueles com que a senhora lida todo dia. A base? O corpo não mente. Não importa o que a senhora diga; seu nível de energia responde ao que de fato é verdade. Se sua cabeça diz que não é a heroína da família ou que você se ama quando não é assim que a senhora se percebe, sua energia fica fraca. Está fazendo sentido?” “Está.” “Uma das razões pelas quais Jenny vinha aqui uma ou duas vezes por ano era para eu poder equilibrá-la. E, quando esteve aqui pela última vez, por volta do Dia de Ação de Graças, estava tão fora de prumo que eu tive de trabalhar com ela várias horas por dia.” “Ela disse ao senhor o que estava errado?” “Muitas coisas estavam erradas. Ela havia se mudado e não gostava dos vizinhos, principalmente dos do outro lado da rua.” “Os Clary.” “Acho que o nome era esse. A mulher era bisbilhoteira e o marido era metido a conquistador, até ter um derrame. Depois, ela não aguentava mais de tanto horóscopo e estava ficando cansada.” “Qual era sua opinião sobre aquele negócio dela?” “Jenny tinha dons, mas estava se dispersando muito.” “O senhor diria que ela era médium?” “Não. Eu não classificaria Jenny — não ia nem tentar. Ela se metia em
muita coisa.” De repente, me lembrei da folha de papel em branco presa na cama pelo cristal e perguntei a Travers se ele sabia o que aquilo significava, se significava algo. “Queria dizer que ela estava se concentrando.” “Concentrando? Em quê?” “Quando queria meditar, Jenny apanhava uma folha de papel em branco e punha um cristal em cima. Aí se sentava muito quieta e lentamente girava o cristal várias vezes, olhando mover-se no papel a luz que passava através das faces. Isso para ela era como, para mim, olhar a água.” “Alguma outra coisa a preocupava quando ela veio visitar o senhor, senhor Travers?” “Vamos deixar de lado toda essa formalidade: me chame de Willie. Sim, e você já sabe o que vou lhe dizer. Estava transtornada por causa daquele condenado que ia ser executado, o Ronnie Waddell. Jenny e Ronnie tinham se correspondido durante muitos anos, e ela não conseguia aceitar a ideia de que ele ia ser executado.” “Você sabe se alguma vez Waddell revelou a ela alguma coisa que pudesse tê-la posto em perigo?” “Bom, ele deu a ela uma coisa perigosa.” Sem tirar os olhos dele, peguei minha cerveja. “Quando veio até aqui no Dia de Ação de Graças, ela trouxe todas as cartas que ele lhe escrevera e tudo o mais que ele lhe mandara durante todos aqueles anos. Queria que eu guardasse tudo aqui.” “Por quê?” “Porque aqui estaria seguro.” “Ela estava com medo de que alguém tentasse tirar essas coisas dela?” “Só sei que estava vendo fantasmas. Disse-me que na última semana de novembro Waddell tinha telefonado para ela a cobrar dizendo que já estava pronto para morrer e que não queria mais lutar. Parecia convencido de que nada poderia salvá-lo e pediu-lhe que fosse a uma granja em Suffolk e apanhasse os pertences dele com a mãe. Disse que queria que Jenny ficasse com as coisas, e que não se preocupasse, que a mãe dele ia entender.” “Que pertences eram esses?” Ele se levantou. “Era uma coisa só. Não estou muito seguro quanto ao significado — e nem sei se quero estar seguro. De modo que vou entregá-lo para você, doutora Scarpetta. Leve de volta para a Virgínia. Mostre à polícia. Faça o que bem entender.” “Por que de repente você está cooperando? Por que não fez isso semanas atrás?” “Ninguém se deu ao trabalho de vir me ver. Eu lhe disse, quando você telefonou, que não trato com pessoas pelo telefone”, disse ele em voz alta, de
um outro cômodo. Quando voltou, depositou a meus pés uma pasta Hartmann preta. O fecho de cobre fora aberto e o couro estava riscado. “O fato é que a senhora vai estar me fazendo um grande favor ao tirar isso de minha vida. Só de pensar nisso minha energia fica ruim”, disse Willie Travers, e não havia dúvida de que era sincero.
As dezenas de cartas que Ronnie Waddell escrevera a Jennifer Deighton enquanto estivera no corredor da morte estavam cuidadosamente enfeixadas por elásticos e arrumadas cronologicamente. Naquela noite, li em meu quarto apenas algumas delas, porque sua importância desaparecia diante da de outros itens que encontrei. Na pasta havia blocos cheios de notas manuscritas que faziam pouco sentido, pois se referiam a casos em que o Estado estava envolvido havia mais de dez anos. Também encontrei penas e lápis, um mapa da Virgínia, uma lata de pastilhas Sucrets para a garganta, um vidro de Vick e um bastão de ChapStick. Havia, ainda em sua caixa amarela, uma EpiPen, seringa de três miligramas de epineina autoinjetável, coisa rotineiramente mantida por pessoas letalmente alérgicas a picadas de abelhas ou a certos alimentos. Na etiqueta estavam datilografados o nome do paciente, a data e a informação de que a EpiPen fazia parte de uma série de cinco doses. Dava para perceber que Waddell roubara a pasta da casa de Robyn Naismith na manhã fatal em que a assassinara. Talvez ele não soubesse a quem ela pertencia até levá-la embora e arrombar o cadeado. Waddell descobrira que havia brutalizado uma celebridade local cujo amante, Joe Norring, era o secretário da Justiça da Virgínia.
“Waddell não tinha saída”, eu disse. “Não que necessariamente merecesse o indulto, considerando-se a gravidade do crime. Mas, desde o momento que ele fora preso, Norring se transformara num homem atormentado. Sabia que havia deixado a pasta na casa de Robyn e sabia que a polícia não a encontrara.” Não estava claro por que ele deixara a pasta na casa de Robyn. Talvez ele a tivesse simplesmente esquecido uma noite que nenhum dos dois sabia que seria a última noite dela. “Não posso nem começar a imaginar a reação do Norring quando souber”, eu disse. Wesley me espiou por cima dos óculos enquanto continuava examinando os papéis. “Acho que não podemos imaginar. Já era chato ele ter de se preocupar com o fato de todo mundo saber que ele tinha uma amante, mas sua ligação com Robyn iria transformá-lo imediatamente no principal suspeito do assassinato.”
“De certo modo ele teve uma puta sorte de Waddell levar a pasta”, disse Marino. “Tenho certeza de que, na cabeça dele, ele estava azarado de qualquer jeito”, eu disse. “Se a pasta tivesse aparecido no local, estava encrencado. Se fosse roubada, como foi, tinha de se preocupar com o possível aparecimento dela em algum lugar.” Marino pegou a cafeteira e tornou a encher as xícaras de todos. “Alguém deve ter feito alguma coisa para garantir o silêncio de Waddell.” Wesley serviu-se de leite. “Pode ser. Mas também pode ser que Waddell não tenha aberto a boca nunca. Meu palpite é que desde o começo ele teve medo de que o negócio com que tinha topado só ia tornar as coisas piores para ele. A pasta podia ser usada como uma arma, mas ia destruir quem? Norring ou Waddell? Waddell ia ter confiança no sistema a ponto de difamar o secretário da Justiça? Anos mais tarde, ia ter confiança no sistema a ponto de difamar o governador — o único homem que podia poupar a vida dele?” “Então Waddell ficou calado, sabendo que a mãe ia guardar o que ele escondera na granja até ele lhe dizer para entregar a alguém”, eu disse. “Norring teve dez anos para encontrar a pasta. Por que demorou tanto para começar a procurar?”, disse Marino. “Acho que Norring mandou espionar Waddell desde o princípio, e que essa vigilância aumentou consideravelmente nos últimos meses. Quanto mais perto Waddell chegava da execução, menos tinha a perder e mais provavelmente ia começar a falar. É possível que alguém tivesse grampeado o telefone dele quando ele telefonou para Jennifer Deighton em novembro. E é possível que, quando soube, Norring tenha entrado em pânico.” “E tinha razões para isso. Eu pessoalmente revistei todos os objetos de Waddell quando estávamos trabalhando no caso. O cara não tinha quase nada, e, se alguma coisa estava na granja, nunca encontramos”, disse Marino. “E Norring devia saber disso”, eu disse. “Porra, claro. E mais tarde ele fica desconfiado de que tem alguma coisa estranha na entrega desses pertences da granja a essa amiga de Waddell. Norring começa de novo a ter pesadelos com a merda da pasta e, para piorar as coisas, não pode fazer ninguém dar uma batida na casa da Jennifer Deighton enquanto o Waddell ainda estiver vivo. Se acontecesse alguma coisa com ela, sabe-se lá o que Waddell poderia fazer. E a pior possibilidade era ele começar a alcaguetar para o Grueman”, disse Marino. “Benton, você saberia por acaso por que Norring andava com epineina? Ele é alérgico a quê?”, disse eu. “Acho que a mariscos. Parece que ele tem EpiPens por todo lado.” Enquanto eles continuavam a conversar, verifiquei a lasanha no forno e abri uma garrafa de Kendall-Jackson. O processo contra Norring ia tomar muitíssimo tempo, caso se conseguisse provar alguma coisa, e pareci
entender, em certa medida, como Waddell devia ter se sentido. Já eram onze horas da noite quando telefonei para Nicholas Grueman em sua casa. “Não tenho chance na Virgínia. Enquanto estiver no cargo, Norring vai tomar providências para que eu não tenha cargo nenhum. Tiraram minha vida, droga, mas a alma eu não entrego. Vou invocar a 5a emenda todas as vezes”, eu disse. “Aí a senhora sem dúvida vai ser denunciada.” “Tendo em vista os canalhas com quem já estou lidando, acho que isso vai acontecer de todo jeito.” “O que é isso, doutora Scarpetta? A senhora se esqueceu do canalha que a representa? Não sei onde a senhora passou o fim de semana, mas eu passei em Londres.” Senti o sangue fugir-me do rosto. “Não posso garantir que consigamos fazer Patterson engolir essa, mas vou mover céus e terra para fazer Charlie Hale depor”, disse o homem que eu costumava pensar que odiava.
14
O dia 20 de janeiro foi ventoso como um dia de março, porém mais io, e o sol me ofuscava enquanto eu avançava para leste pela rua Larga, rumo ao foro John Marshall. “Agora vou lhe falar uma coisa que você já sabe”, disse Nicholas Grueman. “A imprensa vai estar revolvendo a água como um bando de piranhas enéticas. Quem voar baixo demais perde as pernas. Vamos entrar um ao lado do outro, de olhos baixos, e não se vire nem olhe para ninguém, digam o que disserem.” “Não vamos encontrar vaga para estacionar. Eu sabia que isso ia acontecer”, falei, virando à esquerda na rua Nove. “Vá devagar. Aquela boa mulher ali do lado está fazendo alguma coisa. Maravilhoso. Se conseguir virar as rodas, vai sair.” Uma buzina soou atrás de mim. Olhei o relógio e me voltei para Grueman como um atleta que espera instruções de última hora do treinador. Ele estava com um casacão azulmarinho de cashmere e luvas de couro pretas, a bengala de castão de prata encostada no assento e, no colo, a pasta cansada de guerra. “Lembre-se do seguinte. Seu amigo, doutor Patterson, decide quem entra e quem não entra, de modo que dependemos da intervenção dos jurados, e isso é com você. Você precisa se comunicar com eles, Kay. No momento em que entrar na sala, tem de ficar amiga de dez ou doze estranhos. Não se esconda atrás de nenhuma muralha, seja o que for que eles queiram conversar com você. Seja acessível.” “Está bem.” “Vamos botar para quebrar. Combinado?” “Combinado.” “Boa sorte, doutora.” Sorriu e bateu-me no braço. Dentro do foro, fomos detidos por um policial com um detector. Ele verificou minha agenda e a pasta, como fizera cem vezes anteriormente, sempre que eu prestara depoimento como perita. Daquela vez, contudo, não disse nada e evitou meus olhos. A bengala de Grueman fez disparar o aparelho, e ele foi um exemplo de paciência e cortesia quando explicou que o castão e a biqueira de prata não saíam, e que na verdade não havia nada escondido na haste de madeira escura. “O que ele pensa que tenho aqui, uma arma de ar comprimido?”, observou, enquanto entrávamos no elevador.
Assim que as portas se abriram no terceiro andar, os repórteres avançaram com o vigor predatório esperado. Para um homem com gota, meu advogado moveu-se rapidamente, pontuando os próprios passos com batidas da bengala. Senti-me inesperadamente distante e fora de foco até entrarmos na sala de audiências deserta, onde Benton Wesley estava sentado a um canto com um rapaz anzino que eu sabia ser Charlie Hale. O lado direito de seu rosto era um mapa rodoviário de marcas rosadas. Quando ele se levantou e enfiou compenetrado a mão direita no bolso do paletó, vi que lhe faltavam vários dedos. Usando um terno escuro que lhe caía mal e uma gravata também escura, ele olhou em torno enquanto eu me ocupava com os aspectos mecânicos das providências de sentar-me e explorar minha pasta. Eu não podia falar com ele e os três homens tiveram a presença de espírito de fingir não reparar em minha perturbação. “Vamos falar um minuto sobre o que eles têm. Acho que podemos estar preparados para os depoimentos do Jason Story e do policial Lucero. E, claro, do Marino. Não sei quem mais o Patterson vai incluir nesse processo da Santa Inquisição”, disse Grueman. “Para seu governo, falei com o Patterson. Disse a ele que não há indícios suficientes para que ocorra um julgamento e que vou depor nesse sentido”, disse Wesley, olhando para mim. “Estamos supondo que não vai haver processo”, disse Grueman, “e quando chegar sua vez de entrar quero que deixe claro para os jurados que falou com Patterson, que disse a ele que não havia indícios suficientes para um julgamento, mas que ele insistiu em ir em ente. Toda vez que ele fizer uma pergunta e que você responder, relativa a alguma questão que já tenha discutido com ele em particular, quero que diga: ‘Como eu lhe disse em seu escritório’, ou ‘Como afirmei claramente quando conversamos em tal ocasião assim, assim’ etc. etc. É importante que os jurados saibam que você não é apenas um agente especial do FBI, como também chefe da Seção de Ciências do Comportamento, cuja competência é analisar os crimes violentos e levantar perfis psicológicos dos delinquentes. Você pode ter vontade de declarar que a doutora Scarpetta não corresponde de forma nenhuma ao perfil do autor do crime em questão, e que você, na verdade, acha a ideia absurda. É importante também que você enfie na cabeça dos jurados que você era o conselheiro e o melhor amigo do Mark James. Tome a iniciativa em tudo o que puder, porque pode ter certeza de que o Patterson não vai perguntar. Deixe claro para os jurados que Charlie Hale está aqui.” “E se eles não me intimarem?”, perguntou Charlie Hale. “Aí estamos de mãos atadas. Como já expliquei quando conversamos em Londres, este é o espetáculo da acusação. A doutora Scarpetta não tem direito de apresentar nenhuma prova, de modo que temos de esperar que pelo menos um dos jurados nos convide a entrar pela porta dos fundos.”
“Essa é braba”, disse Hale. “Você trouxe a cópia da guia de depósito e dos pagamentos que fez?” “Sim, senhor.” “Muito bem. Não espere ser interrogado. Quando estiver falando, ponha tudo em cima da mesa. E a situação de sua mulher continua a mesma desde que falamos?” “Continua. Como lhe contei, ela fez duas fertilizações in vitro. Até agora tudo bem.” “Lembre-se de falar nisso se puder.” Vários minutos mais tarde fui chamada à sala do júri. Grueman levantou-se comigo. “Claro. Ele quer você primeiro. Depois chama os seus detratores para deixar um gosto ruim na boca dos jurados.” Foi até a porta comigo. “Quando você precisar, estou aqui.” Cumprimentando com a cabeça, entrei e sentei-me na cadeira vazia à cabeceira da mesa. Patterson estava fora da sala, e eu sabia que esse era um de seus truques. Queria que eu soesse o exame silencioso daqueles dez estranhos que tinham minha felicidade em suas mãos. Olhei direto para todos e até mesmo troquei sorrisos com alguns. Uma moça séria de batom vermelho brilhante decidiu não esperar pelo promotor público. “O que levou a senhora a tratar com os mortos e não com os vivos? Parece uma escolha estranha para um médico.” “Foi minha preocupação intensa com os vivos que me fez estudar os mortos. O que aprendemos com os mortos beneficia os vivos, e a justiça é para os que ficam.” “Isso não lhe faz mal?”, inquiriu um velho de mãos grandes e ásperas. A expressão de seu rosto era tão sincera que ele parecia estar sentindo dor. “Claro que sim.” “Quantos anos a senhora teve de ir à faculdade depois de se formar no colégio?”, perguntou uma negra grandona. “Dezessete anos, se a senhora incluir o tempo que passei como interna e o ano em que fui assistente.” “Nossa.” “Onde a senhora foi?” “Onde estudei?”, perguntei ao rapaz magro de óculos. “Sim, senhora.” “São Miguel, Academia de Nossa Senhora de Lourdes, Cornell, Johns Hopkins, Georgetown.” “Seu pai era médico?” “Meu pai tinha uma pequena mercearia em Miami.” “Puxa, eu ia detestar ter de pagar esses estudos todos.” Vários jurados riram baixinho. “Tive a sorte de ganhar bolsas de estudo. Desde o secundário.”
“Tenho um tio que trabalha na Funerária Crepúsculo, em Norfolk”, disse outra pessoa. “Ô, Barry. Não tem nenhuma funerária com esse nome.” “Não estou brincando, não.” “Isso não é nada. Tem uma em Fayetteville que é da família Durão. Adivinha o nome.” “Não sei.” “A senhora não é daqui?” “Nasci em Miami.” “Então o nome Scarpetta é espanhol?” “Na verdade é italiano.” “Interessante. Pensei que todos os italianos fossem morenos.” “Meus antepassados eram de Verona, no norte da Itália, onde grande parte da população tem sangue saboiano, austríaco e suíço. Muitos de nós somos louros de olhos azuis”, expliquei pacientemente. “A senhora deve ser boa cozinheira.” “É um dos meus passatempos favoritos.” “Doutora Scarpetta, sua posição não está clara para mim. A senhora é a médica-legista chefe de Richmond?”, disse um homem bem-vestido e que parecia ter aproximadamente minha idade. “Do Estado. Temos quatro escritórios distritais. O Escritório Central, aqui em Richmond, o do litoral, em Norfolk, o do Oeste, em Roanoke, e o do Norte, em Alexandria.” “Quer dizer que o chefe por acaso fica aqui em Richmond?” “Sim. Parece fazer mais sentido, porque o sistema de medicina legal é parte do governo do estado e Richmond é onde a Assembleia se reúne”, respondi, vendo a porta abrir-se e Roy Patterson entrar. Era um belo negro de ombros largos com o cabelo cortado rente, e que ia se tornando grisalho. Usava um blazer azul, e suas iniciais estavam bordadas nos punhos da camisa amarelo-clara. Era conhecido pelas gravatas, e aquela parecia pintada à mão. Cumprimentou os jurados e foi morno em relação a mim. Descobri que a mulher de batom brilhante era a presidente. Ela pigarreou e me informou que eu não tinha de depor e que tudo o que dissesse poderia ser usado contra mim. “Entendo”, disse, e prestei o juramento. Patterson andava em torno de minha cadeira, deu um mínimo de informações sobre quem eu era e falou muito a respeito do poder de meu cargo e da facilidade com que era possível abusar daquele poder. “E quem estaria lá para testemunhar? Em muitas ocasiões não havia ninguém para observar a doutora Scarpetta no trabalho, exceto a pessoa que estava ao lado dela praticamente todos os dias, Susan Story. Senhores e
senhoras, não será possível ouvirmos o depoimento dela porque ela e a filha que estava esperando estão mortas. Mas os senhores vão ouvir outras testemunhas hoje. E elas vão pintar o retrato de uma mulher ia e ambiciosa, de uma carreirista que estava cometendo erros graves em serviço. Primeiro, pagou pelo silêncio de Susan Story. Depois a matou. “E, quando os senhores ouvem histórias de crime perfeito, haveria alguém mais capacitado para cometê-los do que uma perita na solução de crimes? Uma perita saberia que, se você quer atirar em alguém dentro de um veículo, convém que escolha uma arma de pequeno calibre para que as balas não ricocheteiem. Uma perita não deixaria elementos de prova no local do crime, nem mesmo cápsulas usadas. Uma perita não usaria seu próprio revólver — arma ou armas que os amigos e colegas sabem que ela possui. Usaria algo que não pudesse ser ligado a ela. “Aliás, poderia até tomar emprestado um revólver do laboratório, porque, senhoras e senhores, todo ano a Justiça confisca rotineiramente centenas de armas usadas na prática de crimes, e muitas delas são doadas ao laboratório estadual de armas de fogo. Pelo que sabemos, o revólver calibre 22 que foi encostado atrás do crânio de Susan está, neste momento, pendurado num quadro no laboratório de armas de fogo, ou no térreo, onde os peritos fazem suas experiências e onde a doutora Scarpetta pratica tiro rotineiramente. E por sinal ela é boa o bastante para ser aceita por qualquer departamento de polícia dos Estados Unidos. E já matou, embora, para falar a verdade, sua ação tenha sido considerada legítima defesa no caso a que estou me referindo.” Eu fitava minhas mãos cruzadas sobre a mesa enquanto a escrevente utilizava suas teclas silenciosamente e Patterson prosseguia. Sua retórica era sempre eloquente, embora em geral ele não soubesse quando parar. Quando ele me pediu que explicasse as impressões digitais colhidas no envelope deixado sobre a cômoda de Susan, fez um carnaval tão grande para dizer que minha explicação era inacreditável que suspeito que a reação de alguns terá sido perguntar-se por que o que eu dissera não podia ser verdade. Então chegou ao dinheiro. “Não é verdade, doutora Scarpetta, que em 12 de novembro a senhora apareceu na agência central do Banco Signet e fez um cheque no valor de dez mil dólares?” “É verdade.” Patterson hesitou por um instante, visivelmente surpreendido. Esperava que eu invocasse a 5a emenda. “E é verdade que naquela ocasião a senhora não depositou o dinheiro em nenhuma de suas diversas contas?” “Também é verdade.” “Quer dizer que, várias semanas antes de a superintendente de seu necrotério inexplicavelmente depositar três mil e quinhentos dólares na
conta corrente dela, a senhora saiu do Banco Signet carregando dez mil dólares em moeda?” “Não, senhor. Nos meus registros financeiros o senhor deve ter encontrado a cópia de um cheque no valor de sete mil, trezentas e dezoito libras esterlinas. Tenho a cópia aqui.” Tirei a cópia da pasta. Patterson mal a olhou e pediu à escrevente que a juntasse aos autos como prova. “Bom, isso é muito interessante. A senhora comprou um cheque emitido em favor de alguém chamado Charles Hale. Isso era algum esquema criativo seu para disfarçar pagamentos que a senhora estava fazendo à superintendente de seu necrotério ou talvez a outras pessoas? Esse indivíduo chamado Charles Hale não fazia o contrário, convertendo as libras outra vez em dólares e mandando o dinheiro para outro lugar — quem sabe para Susan Story?” “Não. E nunca entreguei o cheque a Charles Hale.” “Não entregou?” Ele parecia confuso. “Então o que a senhora fez com ele?” “Dei-o a Benton Wesley e ele tomou as providências para que o cheque fosse entregue a Charles Hale. Benton Wesley…” Ele me interrompeu. “A história está ficando cada vez mais inverossímil.” “Doutor Patterson…” “Quem é Charles Hale?” “Queria terminar a minha declaração anterior”, eu disse. “Quem é Charles Hale?” “Gostaria de ouvir o que ela está tentando dizer”, disse um homem com um blazer escocês. “À vontade”, disse Patterson com um sorriso frio. “Dei o cheque a Benton Wesley. Ele é um agente especial do FBI, responsável pela análise de suspeitos na Seção de Ciências do Comportamento em Quantico.” Uma mulher levantou timidamente a mão. “Foi dele que os jornais falaram? O que chamam quando há esses crimes medonhos como os de Gainesville?” “Isso mesmo. É um colega meu. Era também o melhor amigo de um amigo meu, Mark James, que também era agente especial do FBI.” “Doutora Scarpetta, vamos esclarecer esse ponto. Mark James era mais que um, abre aspas, amigo seu”, disse Patterson com impaciência. “O senhor está me fazendo uma pergunta, doutor Patterson?” “Exceto pelo óbvio conflito de interesses que existe quando uma médicalegista chefe vai para a cama com um agente do FBI, o assunto é irrelevante. Eu não vou perguntar…” Interrompi-o. “Meu relacionamento com Mark James principiou na faculdade de direito. Não havia conflito de interesses, e quero deixar
registrado que impugno a referência do procurador de Justiça do estado à pessoa com quem eu supostamente ia para a cama.” A escrevente anotou. Minhas mãos estavam cruzadas com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos. Patterson tornou a perguntar: “Quem é Charles Hale e por que a senhora lhe daria o equivalente a dez mil dólares?”. Cicatrizes rosadas cortaram-me o pensamento, e vi dois dedos ligados a um cotoco reluzente de tecido cicatrizado. “Ele era um vendedor de bilhetes na estação Victoria, em Londres.” “Era?” “Era até segunda-feira, 18 de fevereiro, quando a bomba explodiu.”
Ninguém me contara. Eu passara o dia ouvindo informações sobre a bomba nos noticiários, mas fiquei sabendo quando o telefone tocou, no dia 19 de fevereiro às duas e quarenta e um da manhã. Eram seis e quarenta e um em Londres e Mark estava morto havia quase um dia. Enquanto Benton Wesley tentava explicar, eu estava tão atordoada que nada daquilo fazia sentido. “Isso foi ontem, li sobre isso ontem. Jogaram outra bomba?” “A explosão foi ontem de manhã na hora do rush. Mas só agora fiquei sabendo do Mark. O adido jurídico dos Estados Unidos em Londres notificoume agora.” “Você tem certeza? Certeza absoluta?” “Meu Deus, lamento, Kay.” “Identificaram o Mark? Eles têm certeza?” “Identificaram. Têm certeza.” “Você não tem nenhuma dúvida. Quer dizer…” “Kay. Estou em casa. Em uma hora posso estar aí.” “Não, não.” Tremia inteira mas não conseguia chorar. Perambulei pela casa, gemendo baixo e torcendo as mãos.
“Mas, doutora Scarpetta, a senhora não conhecia esse Charles Hale antes de ele ser ferido pela bomba. Por que iria lhe dar dez mil dólares?” Patterson dava pancadinhas na testa com um lenço. “Ele e a mulher queriam ter filhos e não podiam.” “E como a senhora soube de pormenores tão íntimos acerca de dois estranhos?” “Benton Wesley me contou, e quando soube recomendei Bourne Hall, a principal instituição de pesquisa para fertilização in vitro. A FIV não é coberta pelo seguro de saúde estatal.” “Mas a senhora disse que a explosão foi em fevereiro. A remessa bancária
foi feita só em novembro.” “Eu só fiquei sabendo do problema dos Hale no último outono, quando o FBI mandou umas fotografias para que o senhor Hale reconhecesse e então ficou de algum modo a par das dificuldades dele. Havia muito tempo eu dissera a Benton que me informasse se houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer pelo senhor Hale.” “A senhora assumiu o financiamento da fertilização in vitro de estranhos?” Pelo tom de Patterson, parecia que eu havia dito que acreditava em gnomos. “Foi.” “A senhora é uma santa, doutora Scarpetta?” “Não.” “Então por favor explique seus motivos.” “Charles Hale tentou ajudar Mark.” Patterson patinava no mesmo lugar. “Tentou ajudá-lo? Tentou ajudá-lo a comprar um bilhete ou a pegar um trem ou a encontrar o banheiro dos homens? O que a senhora quer dizer exatamente?” “Mark ficou algum tempo inconsciente, e Charles Hale estava gravemente ferido no chão, ao lado dele. Tentou tirar os escombros de cima dele. Falou com ele, tirou o paletó e o enrolou em torno… Tentou deter a hemorragia. Fez tudo o que pôde. Nada o teria salvado, mas ele não ficou sozinho. Sou tão grata por isso. Agora vai haver uma nova vida no mundo, e estou feliz por ter conseguido fazer alguma coisa em troca. É um conforto. Isso, pelo menos, tem algum sentido. Não. Não sou santa. A necessidade era minha também. Quando ajudei os Hale estava me ajudando.” A sala estava tão silenciosa que parecia vazia. A mulher de batom vermelho vivo inclinou-se um pouco à ente para atrair a atenção de Patterson. “Imagino que Charlie Hale esteja lá na Inglaterra. Mas será que poderíamos chamar Benton Wesley?” “Não é preciso chamar nenhum deles. Os dois estão aqui”, respondi.
Eu não estava lá para ver quando a presidente informou Patterson de que o grande júri especial decidira não oferecer denúncia. Também não estava quando comunicaram isso a Grueman. Assim que acabei de depor, eu saí freneticamente à procura de Marino. “Vi quando ele saiu do banheiro uma meia hora atrás”, disse um policial uniformizado que encontrei fumando um cigarro perto de um bebedouro. “Será que você pode tentar encontrá-lo pelo rádio?” Dando de ombros, ele soltou o rádio do cinto e pediu à operadora para chamar Marino. Marino não respondia. Desci as escadas e saí, andando depressa. Quando cheguei ao carro, tranquei as portas e liguei o motor. Peguei o telefone e tentei falar com a chefia da polícia, que ficava em ente ao foro. Enquanto um detetive de plantão me
informava que Marino não estava, percorri o estacionamento dos fundos procurando o Ford LTD branco de Marino. Não estava lá. Estacionei numa vaga reservada que estava vazia e telefonei para Neils Vander. “Você está lembrado do assalto na Franklin — das impressões digitais que você examinou outro dia e que correspondiam às do Waddell?”, perguntei. “O assalto em que o colete de pato-do-norte foi roubado?” “Esse mesmo.” “Sei.” “O cartão com as digitais da vítima foi entregue para verificação nos arquivos?” “Não, esse eu não recebi. Só as impressões latentes recolhidas no local.” “Obrigada, Neils.” Em seguida liguei para a operadora. “Você pode me dizer se o tenente Marino já está na rede?” “Já está na rede”, respondeu ela depois de algum tempo. “Escute, veja se consegue entrar em contato com ele e saber onde ele está. Diga a ele que é a doutora Scarpetta e que é urgente.” Um minuto mais tarde, talvez, a voz da operadora voltou à linha: “Está nas bombas do município”. As bombas de gasolina usadas pela polícia da cidade ficavam num árido quadrilátero de asfalto rodeado por uma cerca de arame. O próprio motorista devia se servir. Não havia entista, banheiro ou máquinas de moedas, e o único jeito de limpar o para-brisa era com limpa-vidros e toalhas de papel trazidos de casa. Quando parei ao lado de Marino, ele estava enfiando o cartão de gasolina na bolsa lateral, onde sempre o guardava. Ao me ver, saiu do carro e deu a volta até minha janela. Ele não conseguia esconder um sorriso. “Ouvi agora a notícia pelo rádio. Cadê o Grueman? Quero apertar a mão dele.” “Deixei-o no foro com o Wesley. O que aconteceu?” De repente, eu estava me sentindo leve. “Você não está sabendo?”, perguntou ele, incrédulo. “Porra, doutora. Largaram você, só isso. Que eu me lembre, só uma ou duas vezes em minha carreira um grande júri especial decidiu não denunciar.” Respirei fundo e balancei a cabeça. “Acho que devia estar dançando a giga. Mas não estou com vontade.” “Acho que eu também não dançaria.” “Marino, como era o nome daquele homem que reclamou que seu colete de pato-do-norte tinha sido roubado?” “Sullivan. Hilton Sullivan. Por quê?” “Durante meu depoimento, o Patterson fez a aontosa acusação de que eu poderia ter usado um revólver do laboratório de armas de fogo para atirar na Susan. Em outras palavras, há sempre um risco envolvido no uso de uma
arma própria, pois, se houver verificação e ficar provado que foi ela que disparou, vai ser preciso explicar muita coisa.” “O que isso tem a ver com o Sullivan?” “Quando ele se mudou para aquele apartamento?” “Não sei.” “Se eu fosse matar alguém com meu Ruger, seria bem esperta se comunicasse seu roubo à polícia antes de cometer qualquer crime. Aí, se, por alguma razão, a arma for recolhida pela polícia — se, por exemplo, a situação esquentar e eu resolver jogá-la fora —, os tiras podem me descobrir pelo número de série, mas com a queixa do roubo já registrada posso provar que a arma não estava em meu poder no momento do crime.” “Você está sugerindo que Sullivan falsificou a queixa? Que encenou o assalto?” “Estou sugerindo que você pense nisso. É muito estranho ele não ter alarme contra roubo e deixar a janela destrancada. É muito estranho ele ter sido desagradável com os tiras. Tenho certeza de que todos adoraram vê-lo ir embora, que ninguém ia pensar na chateação de colher suas digitais para verificação nos arquivos. Ainda mais por que ele estava de branco e reclamando sem parar, dizendo que havia pó por toda parte. O que eu pergunto é: como você sabe que as impressões digitais deixadas no apartamento do Sullivan não eram as do próprio Sullivan? Ele mora lá. As impressões dele devem estar por todo lado.” “No Sida elas bateram com as do Waddell.” “Claro.” “Se o caso é esse, então por que Sullivan chamaria a polícia quando leu aquela reportagem sobre o pato-do-norte que plantamos no jornal?” “Como diz o Benton, esse cara adora jogar. Gosta de enganar as pessoas. Patina de lado pela sensação.” “Merda. Me empresta seu telefone.” Deu a volta para o lado do passageiro e entrou. Discou o auxílio à lista e obteve o número do edifício onde Sullivan morava. Quando o zelador atendeu, Marino perguntou quanto tempo fazia que Sullivan comprara o apartamento. “Mas então quem é?”, perguntou Marino, e escreveu algo num bloquinho. “Qual é o número? Dá para que rua? Está bem. Ele tem carro? Tá, se o senhor tem.” Quando desligou, Marino olhou para mim. “Meu Deus, o gracinha não é dono do apartamento coisa nenhuma. O apartamento é de um empresário, que o aluga. O Sullivan começou a morar lá na porra da primeira semana de dezembro. Pagou o depósito no dia 6, para ser exato.” Abriu a porta do carro, acrescentando: “E dirige um furgão Chevrolet azul-escuro. Um velho, sem janelas”. Marino foi dirigindo atrás de mim até a chefia de polícia. Deixamos meu
carro em sua vaga. Arrancamos pela rua Larga, a caminho da Franklin. Marino ergueu a voz sobre o barulho do motor: “Espero que o zelador não tenha dito nada a ele”. Diminuiu a velocidade e estacionou em ente a um edifício de oito andares. “O apartamento dele é nos fundos, ele não pode nos ver”, explicou, olhando em torno. Meteu a mão embaixo do assento e apanhou o 9 milímetros que ficaria como reserva para o 357 do coldre que tinha debaixo do braço. Enfiou a pistola atrás das calças, pôs um pente extra no bolso e abriu a porta. “Se começar a guerra, eu jogo para você meu 357 e uns carregadores rápidos. Vai ser bom se você for boa de tiro como o Patterson anda dizendo. Fique atrás de mim o tempo todo.” No alto dos degraus, tocou a campainha da porta da rua do edifício. “Com certeza ele não vai estar em casa.” Num momento a fechadura rangeu e a porta se abriu. Um velho de vastas sobrancelhas grisalhas se identificou como o zelador do edifício com quem Marino falara antes ao telefone. “O senhor sabe se ele está em casa?”, perguntou Marino. “Não faço ideia.” “Vamos subir e verificar.” O zelador apontou para a esquerda. “Não precisa subir porque é neste andar. Siga esse corredor e vire no primeiro à esquerda. É um apartamento de canto, no fim. Número 17.” O edifício tinha um certo luxo, tranquilo mas cansado, que lembrava velhos hotéis onde ninguém mais quer ficar porque os quartos são muito pequenos e a decoração escura demais e meio gasta. Vi pontas de cigarro no espesso carpete vermelho, e os lambris estavam quase pretos. O apartamento de Hilton Sullivan era identificado por um pequeno 17 de latão. Não havia olho mágico, e, quando Marino bateu, ouvimos passos. “Quem é?”, perguntou uma voz. “Manutenção. Para mudar o filtro do aquecimento”, disse Marino. A porta se abriu, e, no momento em que vi os penetrantes olhos azuis na esta e em que eles me viram, perdi o fôlego. Hilton Sullivan tentou bater a porta, mas o pé de Marino não deixou. “Saia para o lado!”, gritou Marino para mim, enquanto sacava o revólver e se inclinava o máximo possível para não ficar na frente do vão da porta. Saí correndo pelo corredor enquanto ele abria a porta com um pontapé e ela batia na parede interna. Com o revólver engatilhado, Marino entrou. Esperei amedrontada por uma luta ou um tiroteio. Passaram-se vários minutos. Depois ouvi Marino dizendo algo no rádio portátil. Reapareceu suando, com o rosto vermelho de raiva. “Não acredito. Ele pulou pela janela como um coelho e não deixou rastro. Filho da puta. O furgão está parado bem ali no estacionamento. Fugiu a pé
para algum lugar. Dei um alerta para as unidades desta área.” Enxugou o rosto na manga, lutando para recuperar o fôlego. “Achei que ele fosse uma mulher”, murmurei. “Hein?” Marino fitou-me. “Quando fui visitar a Helen Grimes, ele estava na casa dela. Olhou pela porta uma vez quando estávamos conversando na entrada. Pensei que fosse uma mulher.” “O Sullivan estava na casa da Helen, a Huna?”, exclamou Marino. “Tenho certeza de que estava.” “Meu Deus do céu. Isso não faz nenhum sentido.” Mas fez sentido quando começamos a examinar o apartamento de Sullivan. Estava mobiliado elegantemente, com antiguidades e tapetes finos, que Marino disse pertencerem, segundo o zelador, ao proprietário, não a Sullivan. Sons de jazz saíam do quarto, onde encontramos o colete azul acolchoado de Sullivan sobre a cama, ao lado de uma camisa creme de veludo riscado e um par de jeans desbotados e cuidadosamente dobrados. Na cômoda de mogno, estavam um boné verde e um par de óculos escuros, assim como uma camisa azul de uniforme meio dobrada que ainda exibia acima do bolso do peito a plaquinha com o nome de Helen Grimes. Embaixo da camisa havia um envelope grande com fotografias, que Marino examinou enquanto eu olhava em silêncio. “Puta merda”, murmurava Marino a cada minuto. Em mais de uma dúzia delas, Hilton Sullivan estava nu e atado, e Helen Grimes era a guarda sádica. Uma imagem favorita parecia ser a de Sullivan sentado numa cadeira enquanto ela representava o papel de interrogadora, subjugando-o por trás ou aplicando-lhe outros castigos. Ele era um rapaz louro extraordinariamente bonito, com um corpo magro que me pareceu ser surpreendentemente forte. Ágil certamente ele era. Achamos uma fotografia do corpo ensanguentado de Robyn Naismith apoiado contra a televisão na sala de visitas e outra com ela numa mesa de aço do necrotério. Mas o que me impressionou mais que tudo isso foi o rosto de Sullivan. Era absolutamente despido de expressão, com olhos ios como eu imaginava que seriam quando ele estava matando. “Talvez dê para entender por que Donahue gostava tanto dele. Alguém estava tirando essas fotografias. A mulher de Donahue me contou que o passatempo dele era a fotografia”, disse Marino, guardando as fotografias no envelope. “Helen Grimes tem de saber quem é realmente Hilton Sullivan”, disse eu ouvindo as sirenes. Marino olhou pela janela. “Bom. Lucero chegou.” Examinei o colete acolchoado que estava sobre a cama e vi uma suave pena branca saindo por uma falha mínima na costura.
Ouvimos mais carros chegando. Portas de automóvel batiam. “Estamos saindo. Não se esqueçam de apreender o furgão azul”, disse Marino quando Lucero chegou. Voltou-se então para mim. “Doutora, você se lembra do caminho para a toca da Helen Grimes?” “Lembro.” “Vamos falar com ela.”
Helen Grimes não tinha muito o que dizer. Quando chegamos à sua casa, aproximadamente quarenta e cinco minutos depois, encontramos a porta destrancada e entramos. A calefação estava ligada no máximo e em qualquer lugar do mundo eu reconheceria aquele cheiro. “Santo Deus”, disse Marino quando entrou no quarto. O corpo sem cabeça estava de uniforme e sentado numa cadeira encostada à parede. Só três dias mais tarde o granjeiro do outro lado da estrada encontrou o resto. Não sabia por que alguém deixaria uma bolsa de boliche num de seus pastos. Teria preferido, porém, nunca tê-la aberto.
Epílogo
O jardim dos fundos da casa de minha mãe estava metade na sombra e metade no sol brando, e o hibisco vermelho crescia despoticamente num dos dois lados da porta de tela. O pé de lima próximo à cerca estava coberto de utas, quando os de praticamente toda a vizinhança estavam nus ou mortos. Era um fato que eu não conseguia entender, pois não sabia que era possível manter a saúde das plantas através de observações críticas. Pensava que era necessário falar-lhes delicadamente. “Katie?”, chamou minha mãe da janela da cozinha. Ouvi a água que tamborilava na pia. Era inútil responder. Lucy comeu minha rainha com uma torre. “Detesto jogar xadrez com você, entende?”, eu disse. “Então por que você vive me convidando?” “Eu convidando você? Você me obriga, e um jogo só nunca é suficiente.” “Isso é porque fico dando deixas para você. Mas você perde sempre.” Estávamos sentadas uma em ente à outra na mesa do pátio. O gelo de nossas limonadas se derretera e minha pele já ardia um pouco. “Katie? Você e Lucy querem sair daqui a pouco e pegar o vinho?”, disse minha mãe da janela. Podia ver-lhe a forma da cabeça e o desenho redondo de seu rosto. Portas de armários foram abertas e fechadas; em seguida ouvimos a campainha aguda do telefone. Era para mim, e minha mãe simplesmente pôs o aparelho sem fio do lado de fora da porta. “É o Benton. Estou vendo nos jornais que o tempo aí está ótimo. Aqui está chovendo, e estamos com deliciosos sete graus”, disse aquela voz conhecida. “Não me faça sentir saudade.” “Kay, acho que identificamos. Aliás, alguém teve um trabalho danado. Identidades falsas — boas. Pôde ir a uma casa de armas e alugar um apartamento sem ninguém perguntar nada.” “Onde ele arranjava dinheiro?” “Da família. Com certeza tinha algum guardado. Enfim, depois de olhar todos os registros das prisões e de falar com um monte de gente, me parece que Hilton Sullivan é o nome falso de um homem de trinta e um anos chamado Temple Brooks Gault, de Albany, na Geórgia. O pai tem uma fazenda de nozes e eles têm dinheiro à beça. O Gault de certo modo é típico — interessado em armas de fogo, artes marciais, pornografia violenta. É antissocial etc.” “Em que coisas é atípico?”
“A conduta dele mostra que é completamente imprevisível. Na verdade, Kay, não se ajusta a perfil nenhum. O cara não está no mapa. Se alguma coisa lhe dá na telha, ele faz. É um narcisista e um vaidoso rematado — o cabelo, por exemplo. Ele mesmo clareia. Achamos o descolorante, as tinturas e tudo o mais no apartamento. Tem umas incongruências, bom, estranhíssimas.” “Como por exemplo?” “Usava aquele furgão velho todo arrebentado que tinha sido de um pintor de paredes. Parece que Gault nunca se preocupou em lavá-lo ou limpá-lo, nem mesmo depois de assassinar Eddie Heath lá dentro. Por sinal, encontramos pistas ótimas, e restos de sangue que correspondem ao tipo do de Eddie. Nisso ele é desorganizado. Só que esse mesmo Gault extirpou as marcas de dentada e trocou as digitais. Ou seja, ele também é organizado pra burro.” “Qual é o prontuário dele, Benton?” “Uma condenação por homicídio. Dois anos e meio atrás brigou com um homem num bar e chutou a cabeça dele. Isso foi em Abingdon, na Virgínia. Gault, aliás, é faixa preta de caratê.” Eu olhava Lucy preparar o tabuleiro de xadrez. “Alguma novidade na busca?” “Não. Mas vou repetir o que já falei a todos os envolvidos neste caso. O cara não tem medo nenhum. É guiado por impulsos e, por isso, é complicado de prever.” “Entendo.” “Trata-se de tomar cuidado o tempo todo.” Pensei que não havia como tomar cuidado com alguém assim. “Precisamos todos ficar de olhos bem abertos.” “Entendo”, repeti. “Donahue não sabia onde estava se metendo. Ou melhor, Norring não sabia. Embora eu não ache que nosso bom governador tenha escolhido esse tarado. Ele só queria a porra da pasta e com certeza deu ao Donahue o dinheiro necessário e o encarregou de cuidar do assunto. Não vamos conseguir nenhuma pena pesada para o Norring. Ele foi cuidadoso demais, e muita gente já não está aqui para falar.” Fez uma pausa, e acrescentou: “Claro, tem seu advogado e eu”. “O que você quer dizer?” “Fui bem claro — de um modo sutil, evidentemente — que seria uma puta pena se alguma coisa vazasse sobre a pasta roubada da casa de Robyn Naismith. Grueman também teve uma conversinha com ele e disse que o Norring ficou meio inquieto quando foi mencionado que devia ter sido uma experiência desagradável ir à emergência na noite anterior à morte da Robyn.” Verificando velhos recortes de jornais e falando com contatos em várias
salas de emergência da cidade, eu descobrira que, na noite anterior à morte de Robyn, Norring fora tratado na emergência do Hospital das Clínicas de Henrico depois de injetar epineina na própria coxa esquerda. Aparentemente soera uma reação alérgica violenta por causa de uma comida chinesa, cujas embalagens, pelo que me recordava das reportagens dos jornais, tinham sido encontradas no lixo de Robyn Naismith. Minha teoria era que, sem querer, haviam misturado camarão ou algum marisco nos rolinhos-primavera ou em outra coisa que ele e Robyn tinham comido no jantar. Ele tinha começado a ter um choque anafilático, usara uma das EpiPens — talvez alguma que guardasse na casa de Robyn — e depois tinha ido sozinho em seu carro até o hospital. Na aflição, saíra sem a pasta. “Só quero que Norring fique o mais longe possível de mim”, eu disse. “Bom, parece que ultimamente ele tem tido problemas de saúde e decidiu que era melhor demitir-se e procurar uma coisa menos cansativa no setor privado. Talvez na costa Oeste. Tenho certeza de que ele não vai incomodar você. Ben Stevens também não vai incomodar você. Para começo de conversa, ele — como o Norring — anda ocupadíssimo fugindo do Gault. Vamos ver. Da última vez que ouvi falar no Stevens, ele estava em Detroit. Você sabia?” “Você o ameaçou também?” “Kay, eu nunca ameaço ninguém.” “Benton, você é um dos homens mais ameaçadores que já encontrei na vida.” “Isso quer dizer que você não vai trabalhar comigo?” Lucy estava tamborilando com os dedos na mesa e descansava o queixo na mão. “Trabalhar com você?” “Na verdade é por isso que estou ligando, e sei que você vai precisar pensar sobre o assunto. Mas gostaria que você se juntasse aos bons como consultora da Seção de Ciências do Comportamento. Coisa de uns dois dias por mês — em princípio. Claro, vai haver ocasiões em que as coisas vão ficar muito loucas. Você podia rever os dados médicos e jurídicos dos casos para nos assessorar no levantamento dos perfis. Suas interpretações seriam muito úteis. E, além disso, você com certeza sabe que o doutor Elsevier, nosso médico-legista consultor há cinco anos, vai se aposentar em 1o de junho.” Lucy derramou a limonada na grama, levantou-se e começou a se alongar. “Tenho de pensar, Benton. Em primeiro lugar, minha repartição ainda está um caos. Dê-me um tempo para contratar um novo superintendente para o necrotério e um novo administrador e pôr as coisas nos trilhos novamente. Quando você precisa de uma resposta?” “Março?” “Está bem. Lucy está mandando um abraço.” Quando desliguei, Lucy olhava para mim de modo desafiador. “Por que você
diz um troço desses quando não é verdade? Não mandei abraço nenhum para ele.” Levantei-me. “Mas você estava louca para mandar. Vi logo.” Minha mãe estava de novo à janela. “Katie? Você tem de entrar. Ficou fora a tarde toda. Lembrou-se de passar o creme?” Lucy gritou: “Estamos na sombra, vovó. Lembra aquele fícus enorme que tem aqui?”. “A que horas sua mãe disse que ia voltar?”, perguntou minha mãe à neta. “Assim que ela e o Zé Mané terminarem de transar, eles vêm para cá.” O rosto de minha mãe desapareceu da janela e a água tornou a tamborilar na pia. “Lucy”, sussurrei. Ela bocejou e foi para a beira do jardim para receber um raio de sol fugitivo. Voltando o rosto para ele, fechou os olhos. “Você vai aceitar, não é, tia Kay?”, perguntou. “Aceitar o quê?” “Essa coisa que o Wesley estava lhe pedindo para fazer.” Comecei a pôr as peças de xadrez de volta na caixa. “Seu silêncio é uma resposta estrondosa. Conheço você. Você vai aceitar”, disse minha sobrinha. “Vamos lá. Vamos pegar o vinho”, eu disse. “Só se eu puder beber um pouco.” “Só se você não for dirigir hoje à noite.” Ela passou o braço pela minha cintura e entramos em casa.

 

 

                                                                  Patricia Cornwell

 

 

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