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Eu procurava um lugar sossegado para morrer. Um dia alguém me recomendou o Brooklyn, e já na manhã seguinte saí de Westchester e fui sondar o terreno. Fazia cinqüenta e seis anos que eu não punha os pés ali e não me lembrava de nada. Eu tinha três anos de idade quando meus pais se mudaram do Brooklyn, mas instintivamente me vi regressando ao ponto de partida, rastejando, como um cachorro ferido, de volta ao lugar onde eu nascera. Visitei uns seis ou sete imóveis junto com um corretor local, e no final da tarde já havia alugado um apartamento térreo de dois quartos e jardinzinho nos fundos na rua Um, a meio quarteirão de distância do parque Prospect, num prédio de arenito pardo. Eu não sabia quem eram os vizinhos e também não me interessava saber. Todos trabalhavam das nove às cinco, nenhum tinha filhos, portanto o prédio devia ser até certo ponto tranqüilo. Mais do que tudo, era isso que eu buscava. Um final silencioso para uma vida triste e absurda.
Já estávamos com o contrato de venda da casa de Bronxville assinado e, assim que a escritura fosse passada, no fim do mês, dinheiro não seria problema. Minha ex-mulher e eu planejávamos dividir o resultado da transação e, com quatrocentos mil dólares no banco, haveria mais do que o suficiente para me manter até eu parar de respirar.
De início, foi difícil saber o que fazer de mim mesmo. Depois de trinta e um anos indo de casa para o escritório da Mid-Atlantic Acidente e Vida, em Manhattan, e de lá para casa, me ver sem emprego deixou o dia com um número excessivo de horas. Cerca de uma semana após a mudança, minha filha Rachel, já casada, veio de Nova Jersey me fazer uma visita. Falou que eu precisava me envolver com algo, inventar um projeto e levá-lo adiante. Rachel não é burra. Tem doutorado em bioquímica pela Universidade de Chicago e trabalha como pesquisadora numa grande empresa farmacêutica nos arredores de Princeton, mas, a exemplo da mãe, são raras as vezes em que consegue se expressar sem lançar mão dos chavões — todas aquelas frases esgotadas e idéias de segunda mão que entopem os lixões da sabedoria contemporânea.
Expliquei-lhe que com toda certeza antes de o ano terminar eu já teria morrido e que estava cagando e andando para o tal projeto. Por alguns momentos, tive a impressão de que ela ia cair no choro, mas
Rachel engoliu as lágrimas com algumas piscadas e me chamou de cruel e egoísta. Não foi à toa que “mamãe” acabou pedindo o divórcio, ela acrescentou, não foi à toa que ela não conseguiu mais agüentar a
barra. Ser mulher de um homem como eu devia ter sido uma tortura sem fim, o inferno em vida. O inferno em vida. É uma pena, pobrezinha — mas ela não consegue evitar. Minha única filha habita este mundo
há vinte e nove anos e nem uma única vez conseguiu fazer um comentário original, em que houvesse algo de absoluta e irredutivelmente seu.
Sim, imagino que eu seja desagradável às vezes. Mas não sempre — e nunca por uma questão de princípio. Nos dias que eu chamaria de bons, sou tão doce e simpático quanto qualquer um que conheço. Ninguém
consegue vender seguro espantando os clientes, pelo menos não por três longas décadas, como foi meu caso. É preciso ser compreensivo. É preciso saber escutar. É preciso saber seduzir as pessoas. Eu possuo
todas essas e mais algumas outras qualidades. Não vou negar que tenho meus maus momentos, mas quem não conhece os muitos perigos que espreitam atrás das portas fechadas da vida em família? Perigos que
podem se transformar em veneno para todos os envolvidos, sobretudo se, para começo de conversa, a pessoa descobre que não foi talhada para a vida conjugal. Eu gostava muito de fazer sexo com Edith, mas,
depois de quatro ou cinco anos, a paixão deu uma arrefecida e dali em diante tornei-me um marido menos que perfeito. A se acreditar em Rachel, também não fui lá grande coisa no departamento paterno. Não
quero contrariar as lembranças de minha filha, mas a verdade é que eu me importava com as duas a minha maneira e, se de vez em quando me vi nos braços de outras mulheres, nunca levei nenhum dos casos a
sério. O divórcio não foi idéia minha. Apesar dos pesares, eu planejava ficar com Edith até o fim. Foi ela quem quis ir embora e, tendo em vista a extensão de meus pecados e transgressões no decorrer dos
anos, não posso culpá-la por isso. Trinta e três anos vivendo sob o mesmo teto e, quando nos separamos e fomos cada qual para um lado, toda a nossa história somava mais ou menos zero.
Eu tinha dito a Rachel que estava com os dias contados, mas no fundo isso não passou de uma resposta enfezada para um conselho intrometido — digamos que tenha sido uma explosão de pura hipérbole. Meu câncer
de pulmão fora controlado e, a crer nas palavras do oncologista após os últimos exames, havia motivos para um otimismo cauteloso. O que não significava, porém, que eu acreditasse nele. O choque do câncer
tinha sido tão grande que eu ainda não confiava na possibilidade de sobreviver a ele. Eu havia me considerado morto e, depois que o tumor foi retirado, depois que passei pelos tormentos desanimadores da
náusea, da tontura, da perda do cabelo, da vontade, do emprego e da mulher, passei a achar muito difícil vislumbrar como seguir adiante. Daí o Brooklyn. Daí minha volta inconsciente ao lugar onde minha
história começou. Eu estava com quase sessenta anos de idade e não sabia quanto tempo me restava. Talvez mais uns vinte anos; talvez só mais alguns meses. Quaisquer que fossem os prognósticos médicos para
meu estado, o crucial era não tomar nada como favas contadas. E, enquanto eu estivesse por aqui, era preciso descobrir uma forma de começar a viver de novo; e, mesmo que não fosse por muito tempo, era
preciso fazer mais do que apenas ficar sentado pelos cantos, à espera do fim. Como de hábito, minha filha cientista estava certa, ainda que eu fosse teimoso demais para admitir isso. Eu precisava me manter
ocupado. Precisava despregar a bunda da cadeira e fazer algo.
Mudei no começo da primavera e, durante as primeiras semanas, preenchi meu tempo explorando a vizinhança, dando longos passeios pelo parque e plantando flores no quintal — um pedacinho de chão negligenciado
durante anos e anos, cheio de entulho. Cortei meu recém-surgido cabelo na barbearia Park Slope, na avenida Sete, aluguei vídeos de uma loja chamada Movie Heaven e freqüentei bastante o Brightman’s Attic,
um sebo abarrotado de livros, muito mal organizado, de propriedade de um espalhafatoso homossexual chamado Harry Brightman (mais sobre ele daqui a pouco). Quase todos os dias eu preparava meu próprio café-da-manhã,
mas como não gosto de cozinhar, e também me falta um certo talento para a função, adquiri o hábito de almoçar e jantar em restaurantes — sempre sozinho, sempre com um livro aberto na frente, sempre mastigando
tão devagar quanto possível a fim de esticar ao máximo a refeição. Depois de experimentar as alternativas oferecidas nas redondezas, acabei optando pelo diner Cosmic na hora do almoço. Pode-se dizer que
a comida deles era no mínimo medíocre, mas trabalhava lá uma garçonete porto-riquenha sensacional, chamada Marina, por quem muito depressa caí de amores. Ela tinha metade da minha idade e um marido, o
que significava que todo e qualquer romance estava fora de cogitação, mas era tão esplêndida de se olhar, tão delicada para me tratar, tão pronta a rir de minhas piadas não muito engraçadas que eu literalmente
definhava nos seus dias de folga. De um prisma estritamente antropológico, descobri que os brooklynianos são menos relutantes na hora de falar com estranhos do que todas as outras tribos que conheço. Interferem
nos assuntos uns dos outros sem o menor pejo (mulheres mais velhas dão bronca nas jovens que não agasalham bem os filhos, todo mundo se sente no direito de reclamar se alguém puxa a guia do cachorro com
muita força); as discussões por causa de uma vaga de estacionamento na rua são tão acirradas quanto as de garotos de quatro anos de idade no auge da indignação; tiradas surpreendentes se sucedem como se
fossem questão de rotina. Um domingo pela manhã, fui a uma confeitaria lotada de gente, com o nome absurdo de La Bagel Delight. Eu pretendia pedir um bagel de canela com passas, um cinnamon-raisin bagel;
acontece que na hora a língua enrolou e acabou saindo cinnamon-reagan. Com uma presença de espírito espantosa, o jovem atrás do balcão apontou para um pão de centeio chamado pumpernickel e respondeu na
lata: “Vai desculpar, mas hoje não tem. Não quer levar um pumpernixon?”. Rápido. Tão rápido, o danado, que eu ri de quase urinar na calça.
Foi depois desse tropeço involuntário na fala que acabei tendo uma idéia que Rachel aprovaria. Podia não ser uma grande idéia, mas já era alguma coisa e, se eu conseguisse me manter fiel e aplicado, como
era minha intenção, então lá estava o meu projeto — o pequeno passatempo que iria me arrancar da indolência de uma rotina enfadonha. Por mais humilde que fosse, decidi lhe dar um título grandioso, até
um tanto pomposo — a fim de me convencer de que se tratava de um trabalho importante. Chamei-o de O livro dos desvarios humanos e nele eu planejava fazer, em linguagem a mais simples e clara possível,
um relato de todas as mancadas, todos os fracassos, todos os constrangimentos, todas as idiotices e fraquezas, todos os atos fúteis cometidos no decurso de minha longa e acidentada carreira como homem.
Quando não conseguisse pensar em casos para contar sobre mim mesmo, registraria coisas ocorridas com pessoas conhecidas minhas; e, quando essa fonte também secasse, encontraria assunto nos eventos históricos,
relatando o desvario de meus pares através dos tempos, desde as civilizações desaparecidas do mundo antigo até os primeiros meses do século XXI. Ao menos, achei que resultaria em algumas boas risadas.
Não era meu desejo desnudar a alma ou mergulhar em introspecções sombrias. O tom seria leve e cômico do princípio ao fim e meu único objetivo era me manter entretido, empregando nisso o máximo de horas
que me fosse possível.
Chamei esse meu projeto de livro, mas na verdade de livro ele não tinha nada. Escrevendo em blocos de papel-jornal, folhas soltas, no verso de envelopes e nos espaços em branco desses formulários que nos
chegam pelo correio incentivando a solicitação de cartões de crédito ou de empréstimos bancários, eu estava juntando o que no fundo era uma coleção de notas ao acaso, uma mistureba de anedotas desconexas
que eu ia jogando numa caixa de papelão. Havia muito pouco método em minha loucura. Algumas histórias não tinham mais que duas linhas de texto e várias delas, sobretudo os disparates, as batatadas e os
trocadilhos involuntários de que eu tanto gostava, limitavam-se a duas ou três palavras. Chilled greaseburger em vez de grilled cheeseburger, por exemplo, que me escapou em algum momento durante meu primeiro
ano no colegial, ou a declaração, de uma profundidade involuntária, quase mística, que fiz a minha mulher Edith num dia em que estávamos tendo um dos nossos azedos arranca-rabos conjugais: Só crendo pra
ver. Toda vez que eu me sentava para escrever, começava fechando os olhos e deixava que os pensamentos vagassem na direção que bem entendessem. Ao me forçar dessa forma a fazer um relaxamento, consegui
trazer à tona uma quantidade considerável de material enterrado no passado, coisas que até então eu presumia perdidas para sempre. Entre as quais um instante da sexta série (para citar apenas uma dessas
lembranças), em que um menino da nossa classe chamado Dudley Franklin soltou um peido comprido, agudo feito um trompete, durante uma pausa silenciosa no meio da aula de geografia. Todos nós demos risada,
claro (não existe nada mais engraçado para uma sala lotada de garotos de onze anos do que uma rajada de gases), mas o que elevou esse incidente ao status de clássico, o que o tirou da categoria dos constrangimentos
menores e o transformou numa obra-prima, apta a entrar para os anais da vergonha e da humilhação, foi o fato de Dudley ser inocente o bastante para cometer a asneira de se desculpar. Baixando os olhos
para a carteira e corando até que as bochechas ficaram muito semelhantes a um caminhão de bombeiros recém-pintado, Dudley disse: “Perdão”. Um peido não se admite em público. Essa é a lei tácita, a regra
mais rígida da etiqueta norte-americana. Os peidos surgem de pessoa nenhuma e de lugar nenhum; são emanações anônimas que pertencem ao grupo como um todo e, mesmo quando todo mundo na sala é capaz de apontar
o culpado, a única atitude sã a tomar é a negação. O tonto do Dudley Franklin, contudo, era honesto demais para isso, e nunca se livrou da pecha. Daquele dia em diante, passou a ser conhecido como Franklin
Perdão e esse nome o acompanhou até o fim do colegial.
As histórias pareciam se encaixar em subtítulos diversos e, depois de um mês de iniciado o projeto, troquei o sistema único da caixa de papelão por um de caixas variadas, o que me permitia guardar os textos
prontos de forma mais coerente. Uma caixa para as batatadas verbais, outra para os reveses físicos, uma terceira para idéias goradas, mais outra para as gafes sociais e assim por diante. Pouco a pouco,
fui ficando cada vez mais interessado em registrar os momentos de pastelão do dia-a-dia. Não só as inúmeras topadas e cacetadas a que fui submetido no decorrer dos anos, não apenas a freqüência com que
os meus óculos escorregaram do bolso da camisa quando me curvei para amarrar o cadarço com sapato (e a indignidade subseqüente de tropeçar e esmagá-los sob os pés), como também as invulgares cretinices
por mim cometidas em ocasiões diversas desde a mais tenra meninice. Como abrir a boca para bocejar durante um piquenique do Dia do Trabalho, em 1952, permitindo assim a entrada de uma abelha e, no pânico
e nojo repentino, engolir o inseto em vez de cuspi-lo fora. Ou, incidente ainda mais improvável, prestes a entrar no avião para uma viagem de negócios, há uns sete anos, nem isso, com o cartão de embarque
preso muito de leve entre o polegar e o dedo médio, levar um empurrãozinho do passageiro logo atrás, deixar escapar o cartão, observá-lo flutuar na direção da fenda entre o final da rampa de acesso do
terminal e a soleira da aeronave — a mais diminuta das fendas, não mais que um sexto de um centímetro, se tanto — e em seguida, para meu total espanto, vê-lo passar por aquele espaço impossível e aterrissar
no asfalto seis metros abaixo.
Esses são apenas alguns poucos exemplos. Escrevi dezenas de histórias como essas nos dois primeiros meses, mas, mesmo fazendo de tudo para manter o tom frívolo e leve, descobri que nem sempre era possível.
Todos estamos sujeitos a maus momentos, e confesso que houve ocasiões em que sucumbi a acessos de solidão e desalento. Eu havia passado o grosso da vida produtiva lidando com o negócio da morte, já escutara
um número mais que razoável de casos sombrios e às vezes era difícil não pensar nisso, se o moral estava baixo; não pensar em todas as pessoas que visitei, em todas as apólices que vendi, em todos os terrores
e desesperos que me foram transmitidos nas conversas com os clientes. No fim, acabei acrescentando mais uma caixa ao conjunto. Rotulei-a de “Destinos Cruéis” e a primeira história que pus lá dentro foi
a de um sujeito chamado Jonas Weinberg. Em 1976, vendi um seguro de vida no valor de um milhão de dólares para ele, uma fortuna na época. Lembro-me de que Weinberg havia acabado de completar sessenta anos,
era médico clínico, trabalhava no Hospital Presbiteriano e falava inglês com um leve sotaque alemão. Vender seguro de vida não é um negócio imune às paixões e um bom corretor precisa ser capaz de segurar
as pontas durante o que muitas vezes pode se transformar num papo difícil e tortuoso com os clientes. A perspectiva da morte inevitavelmente transfere nossos pensamentos para questões mais sérias e, ainda
que uma parte do trabalho gire em torno de dinheiro e mais nada, também existe uma preocupação com questões metafísicas mais graves. Qual o sentido da vida? Quanto tempo mais eu vou viver? De que forma
proteger as pessoas que amo depois que eu me for? Por causa de sua profissão, o dr. Weinberg tinha uma noção muito apurada da fragilidade da existência humana, de como não é preciso muito para que nosso
nome seja retirado do livro dos vivos. Encontramo-nos no apartamento dele, no lado oeste do Central Park, e, depois de receber minhas explicações sobre os prós e os contras das várias apólices disponíveis,
o médico se pôs a rememorar o passado. Nascera em Berlim, em 1916, e, após a morte do pai nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, fora criado pela mãe atriz; era o único filho de uma mulher dona de
um senso feroz de independência, muitas vezes turbulenta, que nunca mostrou a menor inclinação para se casar de novo. Talvez eu tenha enxergado coisas demais nos seus comentários, mas me pareceu que o
dr. Weinberg estava dando a entender que a mãe preferia mulheres; e, nos caóticos anos da República de Weimar, imagino que ela exibia essa sua preferência muito abertamente. Ao contrário da voluntariosa
Frau Weinberg, o jovem Jonas era um menino calado, sempre às voltas com os livros, e um aluno excelente, que sonhava se tornar cientista ou médico. Estava com dezessete anos quando Hitler subiu ao poder
e, poucos meses depois, sua mãe começou a tomar providências para tirá-lo da Alemanha. Havia parentes do pai morando em Nova York e eles concordaram em recebê-lo. Jonas Weinberg partiu na primavera de
1934, mas a mãe, que já havia provado estar bastante atenta aos perigos que rondavam os não-arianos do Terceiro Reich, rejeitou com toda a teimosia de que era capaz a possibilidade de sair de Berlim. Sua
família era alemã havia séculos, ela disse ao filho, e nem a pau permitiria que um tirano de meia-tigela a expulsasse para o exílio. Acontecesse o que acontecesse, estava decidida a continuar firme.
E, por algum milagre, conseguiu. O dr. Weinberg não forneceu muitos detalhes (é possível que nunca tivesse se inteirado da história completa), mas pelo visto um grupo de amigos góis ajudou a mãe dele em
diversos momentos críticos e, por volta de 1938 ou 1939, ela já estava munida de documentos falsos de identidade. Frau Weinberg mudou totalmente a aparência — o que não foi difícil para uma atriz especializada
em personagens excêntricas — e sob seu novo nome cristão obteve um emprego como guarda-livros de uma mercearia de secos e molhados numa pequena cidade nos arredores de Hamburgo, onde ficou trabalhando
disfarçada de loira quatro-olhos desmazelada. Ao terminar a guerra, na primavera de 1945, fazia onze anos que não via o filho. Assim que soube que a mãe sobrevivera à guerra, Jonas Weinberg, então com
vinte e tantos anos, já formado em medicina e em vias de terminar seu estágio como residente no hospital Bellevue, começou a fazer os preparativos para que ela o fosse visitar na América.
Tudo foi programado nos mínimos detalhes. O avião aterrissaria a tal hora, os passageiros desembarcariam no portão tal e Jonas Weinberg estaria no aeroporto para receber a mãe. Bem no momento em que estava
saindo para ir buscá-la, entretanto, recebeu um chamado do hospital requisitando sua presença para uma cirurgia de emergência. Que escolha tinha ele? Era um médico e, por mais ansioso que estivesse em
ver a mãe de novo, depois de tantos anos, seu dever primordial era para com os pacientes. Um novo plano foi posto em prática às pressas. Ele ligou para a empresa aérea e pediu que enviassem um representante
para receber a mãe no aeroporto; a pessoa explicaria o chamado de última hora e diria a ela para tomar um táxi até Manhattan. A chave do apartamento estaria com o porteiro do prédio, no térreo, e ela deveria
subir e esperar por ele lá. Frau Weinberg fez conforme lhe haviam dito e pegou um táxi. O motorista partiu e, dez minutos depois, a caminho da cidade, perdeu o controle da direção e bateu de frente em
outro veículo. Tanto o motorista quanto a passageira ficaram seriamente feridos.
A essa altura o dr. Weinberg estava no hospital, realizando sua cirurgia, que durou pouco mais de uma hora. Quando terminou seu trabalho, lavou as mãos, trocou de roupa e saiu apressado do vestiário, ansioso
pelo adiado reencontro com a mãe, em sua casa. Assim que pisou no saguão, viu uma nova paciente sendo levada para a sala de cirurgia.
Era sua mãe. Segundo o que me disse o médico, ela morreu sem recobrar a consciência.
Um encontro inesperado
Eu venho papagueando há umas dez, doze páginas já, mas até agora meu único propósito foi o de me apresentar ao leitor e montar o cenário para a história que estou prestes a contar. Não sou eu a personagem
principal dela. A honra de ostentar o título de herói deste livro cabe a meu sobrinho, Tom Wood, único filho homem de minha falecida irmã June. A pequena June-Bug, como nós a chamávamos, nasceu quando
eu tinha três anos e foi sua chegada que precipitou nossa mudança do apartamento do Brooklyn, que ficara muito acanhado, para uma casa em Garden City, Long Island. Sempre fomos muito próximos, minha irmã
e eu, e quando ela se casou, vinte e quatro anos depois (e seis meses após a morte de nosso pai), fui eu que entrei com ela na igreja e a entreguei ao marido, um repórter financeiro do New York Times chamado
Christopher Wood. June e Christopher tiveram dois filhos (meu sobrinho Tom e minha sobrinha Aurora), mas o casamento soçobrou depois de quinze anos. Uns dois anos mais tarde, ela se casou de novo com um
abastado corretor de valores de Nova Jersey, Philip Zorn, que trazia na bagagem duas ex-mulheres e uma filha quase adulta, chamada Pamela. De repente, aos quarenta e nove anos, numa idade revoltantemente
prematura, June sofreu uma hemorragia cerebral enquanto trabalhava no jardim, durante uma tarde de calor sufocante no meio de agosto, e morreu antes de o sol se levantar de novo no dia seguinte. Para seu
irmão mais velho, foi sem a menor sombra de dúvida o pior de todos os golpes sofridos, e nem mesmo o câncer, e a visão da morte próxima, vários anos depois, chegou perto de repetir a tristeza sentida na
época.
Perdi contato com a família após o enterro e, até me encontrar de novo com Tom na livraria de Harry Brightman, no dia 23 de maio de 2000, passaram-se quase sete anos. Tom sempre foi meu sobrinho predileto
e, mesmo quando ainda era um pingo de gente, me dava a impressão de alguém que sobressaía, de alguém destinado a realizar grandes feitos na vida, acima da média. Descontando o dia do enterro de June, nossa
última conversa havia sido na casa de sua mãe, em South Orange, Nova Jersey. Tom havia acabado de se formar com distinção na Cornell e estava indo para a Universidade de Michigan com uma bolsa de quatro
anos para estudar literatura americana. Tudo quanto eu havia previsto para ele estava se tornando realidade. Minha lembrança daquele jantar em família é de uma reunião calorosa, com todos nós erguendo
as taças para brindar ao sucesso de Tom. Quando eu tinha a mesma idade, alimentara algumas esperanças de seguir uma trilha semelhante à que meu sobrinho escolhera. Como ele, havia me formado em inglês,
na faculdade, e nutrira a ambição secreta de continuar estudando literatura ou, quem sabe, fazer carreira no jornalismo, só que me faltou coragem para levar adiante esse sonho. A vida atrapalhou — dois
anos no exército, trabalho, casamento, responsabilidades familiares, a necessidade de ganhar cada vez mais dinheiro e toda aquela porcariada que nos faz atolar no meio do caminho, quando falta peito para
não nos deixarmos intimidar —, mas nunca perdi o interesse por livros. Ler era minha fuga e meu conforto, meu consolo e meu melhor estímulo: ler pelo simples prazer de ler, pela calma gostosa que nos rodeia
quando ouvimos as palavras de um autor reverberando na cabeça. Tom sempre partilhou desse amor e, a partir dos seus cinco ou seis anos de idade, fiz questão de lhe mandar livros várias vezes ao ano — não
só por ocasião do aniversário ou do Natal, mas sempre que topava com algo que achava que pudesse agradá-lo. Apresentei-o a Poe quando ele tinha onze anos. Como o autor havia sido um dos escritores enfocados
em sua tese de formatura, nada mais natural do que meu sobrinho querer conversar comigo a respeito — e nada mais natural do que o tio querer ouvi-lo. O jantar já tinha acabado, àquela altura, e todos tinham
saído para o quintal, porém Tom e eu continuamos na sala de jantar, tomando o que havia restado do vinho.
“À sua saúde, tio Nat”, disse Tom, erguendo a taça.
“À sua, Tom”, respondi. “E a Edens imaginários: a vida da mente na América pré-Guerra Civil.”
“Título meio pretensioso, confesso. Mas não consegui pensar em nada melhor.”
“Um pouco de pretensão é sempre bom. Faz os professores prestarem atenção. Você obteve um A-mais, foi isso?”
Modesto como sempre, Tom fez um gesto com a mão, como que para eliminar a importância da nota. Mas eu continuei. “Em parte pelo Poe, segundo você me falou. E pelo que mais?”
“Thoreau.”
“Poe e Thoreau.”
“Edgar Allan Poe e Henry David Thoreau. Uma rima infeliz, você não acha não? Todos esses os enchendo a boca. Não consigo deixar de imaginar alguém em estado de choque perene, eternamente surpreso. Ó! Ó,
Poe! Ó, Thoreau!”
“Um pequeno inconveniente, de fato. Mas ai do homem que lê Poe e se esquece de Thoreau. Não é mesmo?”
Tom abriu um sorriso e ergueu de novo a taça. “À sua saúde, tio Nat.”
“E à sua, Dr. Thumb.”* Tomamos mais outro gole de bordeaux. Ao repor a taça na mesa, pedi-lhe que me fizesse um esboço geral do trabalho.
“Falo sobre mundos inexistentes”, disse-me ele. “Trata-se de um estudo sobre o refúgio interior, de um mapa do lugar para onde vai o homem quando a vida no mundo real se torna impossível.”
“A mente.”
“Exato. Primeiro vem Poe, com uma análise de três de seus trabalhos mais negligenciados: The Philosophy of Furniture, Landor’s Cottage e The Domains of Arnheim. Tomadas em separado, são apenas obras curiosas,
excêntricas. Juntas, o que se tem é um sistema muitíssimo bem elaborado do anseio humano.”
“Nunca li essas obras. Na verdade acho que nunca nem ouvi falar delas.”
“O que elas fazem é dar uma descrição do quarto ideal, da casa ideal e da paisagem ideal. Depois disso, eu passo para Thoreau e examino o quarto, a casa e a paisagem conforme nos são apresentados em Walden.”
“Ou seja, é o que nós chamamos de um estudo comparativo.”
“Ninguém jamais fala a respeito dos dois dentro de um mesmo contexto. Eles ocupam pólos opostos do pensamento americano. Mas é justamente aí que está a beleza da coisa. Um bêbado do Sul — reacionário em
sua visão política, aristocrático em suas maneiras, fantasmagórico em sua imaginação. E um abstêmio do Norte — radical em suas opiniões, puritano em seu comportamento, perceptivo em seu trabalho. Poe era
artifício, penumbra de aposentos à meia-noite. Thoreau era simplicidade, luminosidade da vida ao ar livre. Apesar das diferenças, apenas oito anos separam o nascimento de um e de outro, o que os torna
quase contemporâneos. E ambos morreram jovens — Poe aos quarenta e Thoreau aos quarenta e cinco. Juntos, mal conseguiram viver a vida de um único velho, e nenhum dos dois deixou filhos. Existe uma grande
probabilidade de que Thoreau tenha morrido virgem. Poe casou-se com a prima adolescente, mas se esse casamento se consumou antes que Virginia Clemm morresse ainda é motivo de especulações. Chame a isso
de paralelos, diga que são coincidências, o fato é que essas circunstâncias externas são menos importantes do que a verdade interior de suas vidas. Os dois, cada um a seu modo ultra-idiossincrático, tomaram
a si a tarefa de reinventar a América. Em suas resenhas e artigos críticos, Poe lutou em defesa de um novo tipo de literatura nativa, uma literatura norte-americana livre de influências inglesas e européias.
A obra de Thoreau representa um ataque interminável ao status quo, uma batalha para encontrar novas maneiras de se viver aqui. Ambos acreditavam na América e ambos acreditavam que o país tinha ido para
o beleléu, que estávamos sendo esmagados aos poucos por uma montanha cada vez maior de máquinas e dinheiro. Como era possível a um homem pensar em meio a tamanho alarido? Ambos queriam pular fora. Thoreau
refugiou-se nos arredores de Concord, bancando o exilado nos bosques — por nenhum outro motivo a não ser provar que isso poderia ser feito. Contanto que o homem tenha a coragem de rejeitar o que a sociedade
lhe diz para fazer, pode viver a vida segundo seus próprios termos. E para quê? Para ser livre. Mas livre para quê? Para ler livros, para escrever livros, para pensar. Ser livre para escrever livros como
Walden. Já Poe se retirou para o interior de um sonho de perfeição. Basta darmos uma olhada em The Philosophy of Furniture para descobrirmos que seu quarto imaginário foi projetado para o mesmíssimo fim.
Como lugar para ler, escrever e pensar. É uma câmara para a contemplação, um santuário silencioso onde a alma pode enfim encontrar uma certa dose de paz. Utopia impossível? Claro. Mas também uma alternativa
sensata às condições da época. Porque a verdade é que os Estados Unidos tinham de fato ido para o beleléu. O país estava partido ao meio e todos sabemos o que houve uma década depois. Quatro anos de morte
e destruição. Um banho de sangue nascido das mesmas máquinas que nos deveriam ter tornado a todos felizes e ricos.”
O garoto era tão inteligente, tão articulado e tão culto que eu me sentia honrado de pertencer à família. Os Wood haviam passado por uma fase bastante turbulenta, mas Tom enfrentara a calamidade da separação
dos pais — assim como as tempestades adolescentes da irmã caçula, que se rebelara contra o segundo casamento da mãe e fugira de casa aos dezessete anos — com uma atitude sóbria, concentrada e um tanto
espantada perante a vida; eu o admirava por ter conservado os dois pés tão firmemente plantados no chão. Tom tinha muito pouco contato com o pai, que logo depois do divórcio se mudara para a Califórnia,
onde trabalhava para o Los Angeles Times, e, a exemplo da irmã (ainda que de forma mais discreta), não demonstrava muito afeto nem grande respeito pelo segundo marido de June. Entretanto era muito ligado
à mãe e, a seu lado, partilhara o drama do desaparecimento de Aurora, passando ambos pelos mesmos desesperos e esperanças, as mesmas expectativas sombrias, as mesmas intermináveis ansiedades. Quando criança,
Rory era uma das meninas mais engraçadas e encantadoras que eu já conheci: era um vendaval de impertinência e ousadia, uma sabichona, um motor inesgotável de vivacidade e astúcia. Desde seus dois ou três
anos, Edith e eu sempre nos referíamos a ela como a Menina Risonha; de fato, Rory acabara virando a grande atração, a palhaça-mor da família Wood, cada dia mais marota e irrequieta. Tom era só dois anos
mais velho, mas sempre havia cuidado da caçula; e quando o pai saiu de cena, Tom, com sua simples presença, passou a servir de força estabilizadora na vida de Rory. Só que um dia ele foi fazer faculdade
e ela foi fazer das suas — primeiro fugiu para Nova York e depois, após uma breve reconciliação com a mãe, sumiu do mapa. À época daquele jantar em comemoração à formatura de Tom, ela já tinha dado à luz
uma menina chamada Lucy (como mãe solteira), já voltara para casa tempo suficiente para largar a criança no colo de minha irmã e já desaparecera de novo. June morreu catorze meses mais tarde e Tom me contou,
durante o enterro, que Aurora tinha voltado não fazia muito tempo para pegar a filha — e que se fora de novo, dois dias depois. Ela não apareceu no funeral da mãe. Talvez tivesse aparecido, Tom comentou
comigo, se alguém soubesse como ou onde encontrá-la.
Apesar dessas confusões familiares, e apesar de ele ter perdido a mãe quando estava com apenas vinte e três anos, nunca duvidei de que Tom fosse capaz de ir adiante na vida. Havia coisas demais a seu favor
para que fracassasse; o rapaz possuía uma personalidade muito sólida para perder o rumo com os ventos imprevisíveis da dor ou do azar. Durante o enterro, tinha ficado de um lado para outro num entorpecimento
pasmado, acabrunhado de dor. Provavelmente eu deveria ter conversado mais com ele, mas também estava abalado, aturdido demais para lhe ser de alguma valia. Uns poucos abraços, algumas lágrimas compartilhadas,
mas foi só. Tom voltou para Ann Arbor e perdemos contato. Acho que a culpa foi minha, mais do que dele, se bem que Tom já estava grandinho e, se quisesse, poderia ter tomado a iniciativa de me procurar.
Ou então de procurar a prima-irmã Rachel, que também estava no Meio-Oeste, na época, fazendo pós-graduação em Chicago. Os dois se conheciam desde pequenos e sempre haviam se dado bem, mas Tom também não
a procurou. Os anos foram passando e muito de vez em quando eu ainda sentia uma pontada de culpa, mas minha vida também não estava nada fácil (problemas conjugais, problemas de saúde, problemas de dinheiro);
e, assim, não pensei muito em meu sobrinho. Mas sempre que o fazia, imaginava-o avançando nos estudos, progredindo de forma sistemática na carreira, escalando um a um os degraus acadêmicos. Na primavera
de 2000 eu tinha certeza de que ele já estava empregado em alguma instituição de prestígio, como Berkeley ou Columbia — uma jovem estrela intelectual escrevendo seu segundo ou terceiro livro.
Imagine então minha surpresa ao entrar no Brightman’s Attic naquela terça-feira de maio e ver meu sobrinho sentado atrás do balcão, entregando o troco para uma cliente. Felizmente, eu o vi antes que ele
me visse. Sabe Deus que comentário lastimável não teria me escapado da boca se eu não tivesse tido aqueles dez ou doze segundos para absorver o choque. Não estou me referindo apenas ao fato inacreditável
de vê-lo atrás de um balcão, trabalhando de caixa num sebo; falo também de seu aspecto físico, radicalmente alterado. Tom sempre teve tendência para ser meio corpulento, saíra ao tipo camponês. Fora contemplado
com ossos grandes e um esqueleto apto a suportar o peso de carnes fartas — um presente genético do pai ausente e semi-alcoólatra —, mas, mesmo assim, da última vez em que havíamos nos encontrado, meu sobrinho
estava até que em boa forma. Encorpado sim, mas também forte e musculoso, com um andar elástico e atlético. Sete anos depois, porém, havia engordado bem uns treze ou quinze quilos e parecia baixo e balofo.
Adquirira papada e até mesmo as mãos tinham aquela adiposidade e tamanho que em geral associamos às mãos de um encanador de meia-idade. Não era uma visão agradável. Seu olhar perdera o brilho e tudo nele
sugeria derrota.
Depois que a cliente saiu com seu livro, fui até o local que vagara, pus as mãos sobre o balcão e me debrucei para a frente. Bem nesse momento, Tom olhava para baixo, procurando uma moeda que caíra no
chão. Pigarreei e disse: “Ei, Tom. Faz um bom tempo que a gente não se vê”.
Meu sobrinho ergueu a vista. De início, parecia totalmente confuso e tive receio de que não houvesse me reconhecido. Mas um instante depois começou a sorrir e, à medida que o sorriso foi se espalhando
pelo rosto, comoveu-me ver que se tratava do mesmo Tom de antes. Talvez com um toque a mais de melancolia, mas não o suficiente para tê-lo mudado tão profundamente quanto eu temia.
“Tio Nat!”, ele gritou. “O que é que você está fazendo aqui no Brooklyn?”
Antes que eu pudesse responder, ele já tinha saído de trás do balcão e estava me abraçando. Para minha enorme surpresa, meus olhos se encheram de lágrimas.
*Referência a Tom Thumb, o Pequeno Polegar. (N. T.)
Adeus à corte
Um pouco depois, naquele mesmo dia, levei-o para almoçar comigo no Cosmic. A gloriosa Marina nos serviu sanduíches duplos de peru e café gelado enquanto eu flertava com ela com mais agressividade, talvez
porque quisesse impressionar Tom ou, quem sabe, porque estivesse com excelente humor. Eu não havia percebido a falta que me fizera nos últimos anos o meu velho Dr. Thumb, mas, de repente, lá estávamos
nós, vizinhos — morando, por puro acaso, a dois quarteirões de distância um do outro, no antigo reino do Brooklyn, em Nova York.
Fazia cinco meses que Tom trabalhava na loja de Brightman, e eu só não havia topado com ele antes porque meu sobrinho passava o tempo todo no andar de cima, redigindo os catálogos mensais com os livros
e manuscritos raros que faziam parte dos negócios de Harry — parte aliás bem mais lucrativa do que a venda de livros usados no térreo. Tom não era o caixa do estabelecimento e nunca mexera com isso, mas
o funcionário encarregado tinha ido ao médico, aquela manhã, e Harry pedira para Tom substituí-lo até ele voltar.
O emprego não era nenhuma maravilha, continuou meu sobrinho, mas era melhor do que dirigir um táxi, justamente o que ele tinha feito desde que largara o curso de pós-graduação na faculdade e voltara para
Nova York.
“E quando foi isso?”, perguntei, fazendo o possível para disfarçar minha decepção.
“Faz dois anos e meio. Terminei todas as provas e passei nos exames orais, mas embatuquei na tese. Meu olho foi maior que a barriga, tio Nat.”
“Vamos deixar para lá essa história de tio Nat, Tom. Me chame apenas de Nathan, como tudo mundo. Agora que sua mãe morreu, não me sinto mais como tio.”
“Tudo bem, Nathan. Mas você continua sendo meu tio, gostando ou não. Já com a tia Edith é diferente. Ela provavelmente deixou de ser minha tia, mas mesmo que tenha sido relegada à categoria de ex-tia,
a Rachel continua sendo minha prima e você ainda é meu tio.”
“Mas me chame só de Nathan, Tom.”
“Pode deixar, tio Nat, prometo. Daqui pra frente, sempre vou me dirigir a você como Nathan. Em troca, quero que comece a me chamar de Tom. Chega dessa história de Dr. Thumb, combinado? Me deixa meio constrangido.”
“Mas eu sempre o chamei assim. Desde que você era pequenininho.”
“E eu sempre o chamei de tio Nat, é ou não é?”
“É justo. Eu me dou por vencido.”
“Entramos numa nova era, Nathan. A era pós-família, pós-estudos e pós-passado de Glass e de Wood.”
“Pós-passado?”
“O agora. E também o mais tarde. Basta de perder tempo com o antes.”
“Para mim, já são águas passadas, Tom.”
O ex-Dr. Thumb fechou os olhos, jogou a cabeça para trás e espetou o dedo indicador no ar, como se tentasse lembrar algo esquecido muito tempo antes. Então, com voz sombria e pseudoteatral, recitou os
versos de abertura do “Farewell to Court”, de Raleigh:
Como sonhos inverídicos, assim finaram-se minhas alegrias,
Passados são meus dias de mimos,
O amor iludido, a quimera recolhida:
De tudo que se foi, só a dor se quedou.
Purgatório
Ninguém cresce achando que seu destino na vida é ser motorista de táxi, mas no caso de Tom o emprego havia servido como forma especialmente tenebrosa de penitência, uma maneira de chorar a derrocada de
suas mais queridas ambições. Não que ele tivesse sonhado com grandes oportunidades na vida, mas o pouco que quis acabou por se mostrar além de seu alcance: terminar o doutorado, conseguir uma colocação
em algum departamento de inglês de uma universidade qualquer e depois passar os quarenta ou cinqüenta anos seguintes ensinando e escrevendo sobre livros. Isso foi tudo o que meu sobrinho almejou, talvez
com a adição de uma mulher e, quem sabe, um ou dois filhos para arredondar o conjunto. Jamais lhe passou pela cabeça que estivesse pedindo demais, porém, após três anos batalhando para escrever sua tese,
acabou entendendo que não tinha capacidade para terminá-la. Ou então que não conseguia mais se convencer do valor de escrevê-la. De modo que deixou Ann Arbor e voltou para Nova York, promessa gorada aos
vinte e oito anos de idade, sem a menor noção de para onde estava indo ou que guinada sua vida daria.
De início, o táxi não passara de uma solução temporária, de uma medida de emergência para pagar o aluguel enquanto tentava achar outra coisa. Tom procurou durante várias semanas, mas todas as vagas para
professor nas escolas particulares tinham acabado de ser preenchidas e, depois de se habituar à rotina dos turnos de doze horas, sentiu-se cada vez menos motivado a sair em busca de um trabalho diferente.
O que era temporário começou a parecer fixo e, ainda que uma parte dele soubesse que estava se largando e afundando, uma outra achava que talvez esse emprego fosse lhe trazer algum bem, que, se prestasse
atenção ao que fazia e por que o fazia, o táxi lhe ensinaria lições que não poderiam ser aprendidas de outra maneira.
Tom não tinha muita certeza de que lições seriam essas, mas enquanto rodava pelas avenidas em seu barulhento Dodge amarelo, das cinco da tarde às cinco da manhã, seis dias por semana, ele as aprendeu muito
bem, sem dúvida. As desvantagens do emprego eram tão óbvias, tão onipresentes, tão esmagadoras que, a menos que descobrisse um meio de ignorá-las, a pessoa estava fadada a uma vida de desgostos e queixas
intermináveis. Horas demais, dinheiro de menos, perigos físicos, falta de exercício — essas eram condições que não poderiam ser mudadas, da mesma forma como não se pode mudar o tempo. Quantas vezes ele
não ouvira a mãe repetir essa frase quando era menino? “Você não pode mudar o tempo, Tom”, June sempre falava para o filho, querendo dizer com isso que certas coisas simplesmente são o que são e não temos
saída a não ser aceitá-las. Tom compreendia o princípio, mas isso nunca o impediu de esbravejar contra as tempestades de neve e as ventanias geladas que fustigavam seu corpo de criança, trêmulo de frio.
Agora a neve caía de novo. Sua vida se transformara numa longa batalha contra os elementos e, se havia um momento ideal para começar a resmungar contra o tempo, o momento era aquele. Entretanto Tom não
resmungou. E tampouco sentiu pena de si mesmo. Encontrara um método de reparar a própria burrice e, se conseguisse sobreviver a essa experiência sem perder de vez o ânimo, então talvez ainda houvesse esperança
para ele. Manter-se firme no emprego de taxista não significava que estivesse tentando transformar em limonada os limões. Estava buscando uma forma de fazer as coisas acontecerem e, até que entendesse
que coisas eram essas, não teria o direito de se desvencilhar das amarras.
Tom vivia num conjugado na esquina da avenida Oito com a rua Três; era uma sublocação antiqüíssima que lhe fora passada pelo amigo de um amigo que se mudara de Nova York e fora trabalhar numa outra cidade
— Pittsburgh ou Plattsburgh, Tom nunca conseguia se lembrar qual. Era um lugarzinho lúgubre, com um armário embutido, um chuveiro de metal no banheiro, duas janelas que davam para um muro de tijolos e
uma cozinha do tamanho de um ovo, com uma geladeirinha e um fogão de duas bocas. Uma estante, uma cadeira, uma mesa e um colchão no chão. Era o menor apartamento de toda a sua vida, mas, com o aluguel
congelado a quatrocentos e vinte e sete dólares por mês, Tom se achava sortudo por tê-lo conseguido. Durante o primeiro ano depois de mudar para lá, não passava muito tempo em casa, de qualquer modo. Costumava
ficar pela rua, visitava antigos amigos do colegial e da faculdade que tinham ido parar em Nova York, conhecia gente nova através dos velhos amigos, gastava seu dinheiro nos bares, namorava quando a oportunidade
surgia e, de maneira geral, tentava organizar uma vida para si — ou algo que se assemelhasse a uma vida. Não era raro essas tentativas de convívio em sociedade terminarem em silêncios penosos. Os velhos
amigos, que se lembravam dele como aluno brilhante e papo afiadíssimo, ficavam atônitos de vê-lo daquele jeito. Tom escorregara do patamar dos ungidos e o tombo, pelo visto, abalava a fé que os amigos
tinham em si mesmos e abria as portas para novas dúvidas quanto às próprias perspectivas para o futuro. Também não ajudou lá grande coisa o fato de Tom ter engordado, de ter passado de rechonchudo para
quase constrangedoramente gordo. Mas o mais preocupante mesmo era o fato de não ter plano nenhum, de nunca tocar no assunto de possíveis providências a tomar para desfazer os danos que causara a si mesmo,
de nunca falar em dar a volta por cima. Sempre que mencionava o novo emprego, usava um palavreado estranho, quase religioso, especulando sobre questões como a força do espírito e a importância de encontrar
o próprio caminho através da paciência e da humildade, o que confundia os antigos companheiros e os levava a querer sair de perto o mais rápido possível. A inteligência de Tom não fora empanada pelo emprego
de taxista, mas não havia mais ninguém interessado em ouvir o que ele tinha a dizer, muito menos as mulheres com quem conversava e que, de um rapaz, esperavam uma cabeça cheia de idéias ousadas e planos
dinâmicos para conquistar o mundo. As dúvidas de Tom, seus exames de consciência, suas perquirições obscuras sobre a natureza da realidade, seus modos hesitantes, tudo representava um verdadeiro banho
de água fria para as moças. Já não era lá muito bom o fato de ele ser motorista de táxi, mas um taxista filósofo vestido com uniformes das forças armadas e carregando pneus em volta da cintura passava
um pouco da conta. Claro que todas o achavam agradável, não é que não gostassem dele, mas o fato é que não era um candidato legítimo — não a marido, nem mesmo a uma paixonite passageira.
Meu sobrinho começou a se afastar de todos. Mais um ano se passou e, a essa altura, o isolamento era tão grande que Tom acabou passando seu trigésimo aniversário sozinho. A bem da verdade, esqueceu-se
completamente da data e, como ninguém ligou para lhe dar os parabéns e cumprimentá-lo, só às duas horas da manhã do dia seguinte é que foi se lembrar. Estava em alguma parte do distrito de Queens, na hora,
logo depois de deixar um par de executivos bêbados na porta de uma boate de strip-tease chamada Jardim das Delícias Terrenas, e, para celebrar o início da quarta década de sua existência, seguiu até o
diner Metropolitan do Northern Boulevard, sentou-se ao balcão e pediu um milkshake de chocolate, dois hambúrgueres e uma porção de fritas.
Se não fosse por Harry Brightman, não há como supor quanto tempo Tom teria permanecido nesse purgatório. A livraria de Harry ficava na avenida Sete, a poucos quarteirões de onde Tom morava, e ele adquirira
o hábito de dar uma passada pelo sebo todos os dias. Era muito raro que comprasse algo, mas gostava de passar meia hora, uma hora, antes do trabalho, mexendo nos livros usados do térreo. Havia milhares
deles, enfurnados nas prateleiras — um pouco de tudo, desde dicionários fora de catálogo a grandes sucessos esquecidos e obras de Shakespeare encadernadas em couro —, e Tom se sentia em casa sempre que
se via no meio desse mausoléu de papel, xeretando entre as pilhas, respirando aqueles velhos cheiros poeirentos. Numa de suas primeiras visitas, fez uma pergunta a Harry a respeito de uma determinada biografia
de Kafka e os dois começaram a conversar. Foi o primeiro de inúmeros papos e, embora nem sempre Harry estivesse na loja quando Tom passava por lá (ficava a maior parte do tempo no andar de cima), conversaram
um número de vezes suficiente para que Harry se inteirasse do nome da cidade natal de Tom, conhecesse o tema de sua tese abortada (Clarel — a colossal e ilegível epopéia de Melville) e digerisse o fato
de Tom não nutrir o menor interesse em fazer amor com homens. Apesar dessa última frustração, Harry não levou muito tempo para perceber que Tom seria o assistente ideal para a seção de livros e manuscritos
raros que funcionava no andar de cima da loja. E olhe que ele não ofereceu o emprego a Tom uma única vez, ofereceu-o dezenas de vezes; ainda que Tom insistisse em recusar, Harry não abria mão da esperança
de que um dia meu sobrinho dissesse sim. Compreendia muito bem que Tom se achava em período de hibernação, numa luta cega contra o anjo sombrio do desespero, mas que as coisas acabariam melhorando para
o lado dele. Isso era mais do que certo, mesmo que o próprio Tom não soubesse ainda. Mas, assim que se desse conta, aquela bobagem de taxista iria para o cesto de lixo.
Tom gostava de conversar com Harry porque Harry era um sujeito gozadíssimo e direto, com uma língua tão contundente e contradições tão extravagantes que era impossível saber o que sairia de sua boca em
seguida. À primeira vista, qualquer um pensaria tratar-se de mais uma bicha de meia-idade, nada além disso. Todo o modelinho exterior fora calibrado para atingir esse único efeito — o cabelo e as sobrancelhas
tingidos, os plastrons de seda, os blazers de iatista, o jeito efeminado de falar —, mas, depois que a gente o conhecia um pouco mais, Harry mostrava ser um sujeito astuto e desafiador. Havia um quê de
provocação na forma de ele abordar um assunto, nas estocadas inteligentes, que deixavam no interlocutor a vontade de fornecer um bom revide toda vez que ele desfechava aquelas suas perguntas matreiras
e abertamente pessoais. Com Harry, não bastava responder. Era preciso haver um certo brilho na resposta, um pouco de efervescência, uma prova de que você era mais do que apenas outro papalvo se arrastando
pela estrada da vida. E uma vez que, em grande medida, era dessa maneira que Tom se via, na época, ele precisava dar um duro danado para se manter à altura, quando conversava com Harry. E esse esforço
era o que mais o atraía nas conversas entre os dois. Tom gostava de ter de pensar rápido e achava que, de vez em quando, lhe fazia bem ser obrigado a forçar a cabeça em direções inusitadas, a ficar em
guarda. Três ou quatro meses depois do primeiro encontro — quando mal podiam dizer que eram conhecidos, muito menos amigos ou parceiros de trabalho — Tom se deu conta de que, de todas as pessoas que conhecia
em Nova York, não havia um homem ou uma mulher com quem conversasse mais abertamente do que com Harry Brightman.
E mesmo assim meu sobrinho continuou a recusar a oferta de emprego. Durante mais de seis meses esquivou-se das propostas do livreiro, e nesse espaço de tempo inventou tantas desculpas diferentes, deu tantos
motivos para que Harry contratasse outra pessoa que essa sua relutância acabou virando piada entre os dois. No começo, Tom fazia de tudo para defender as virtudes de sua profissão do momento, improvisando
teorias elaboradas sobre o valor ontológico de vida de um taxista. “Ela lhe dá um caminho direto para o amorfismo do ser”, ele dizia, esforçando-se para não sorrir enquanto zombava do jargão de seu passado
acadêmico, “um local ímpar de entrada para as subestruturas caóticas do universo. Você roda pela cidade a noite inteira e nunca sabe onde vai estar dali a pouco. Alguém entra no banco de trás do táxi,
diz que quer ir para tal e tal lugar e é para lá que você vai. Riverdale, Fort Greene, Murray Hill, Far Rockaway, o lado oculto da Lua. Todo destino é arbitrário, toda decisão, governada pelo acaso. Você
corta, costura, ultrapassa e chega lá o mais rápido possível, mas não tem nenhum poder decisório na questão. Você é um joguete dos deuses e não tem vontade própria. O único motivo de estar ali é servir
aos caprichos de terceiros.”
“E que caprichos”, Harry respondia, injetando um brilho malicioso no olhar, “que caprichos mais marotos não devem ser esses. Aposto como você já flagrou um punhado deles naquele seu retrovisor.”
“Eu já vi de tudo, Harry, pode acreditar em mim. Masturbação, fornicação e intoxicação sob todas as formas. Vômito e sêmen, merda e mijo, sangue e lágrimas. Num momento ou noutro, todos os líquidos humanos
já espirraram no banco de trás do meu táxi.”
“E quem é que limpa?”
“Eu. Faz parte do serviço.”
“Bem, então veja se não esquece, meu rapaz”, e Harry pressionou o dorso da mão contra a testa, num pseudodesmaio de diva, “quando vier trabalhar aqui comigo, vai descobrir que os livros não sangram. E
também não defecam, isso eu lhe garanto.”
“Mas há bons momentos, também.” Tom sempre relutava em deixar que Harry ficasse com a última palavra. “Momentos indeléveis de graça, exaltações sutis, milagres inesperados. Deslizar pela Times Square às
três e meia da manhã, sem um pingo de trânsito nas ruas, e de repente ver-se como a única pessoa no mundo, com luzes de néon chovendo de todos os cantos do céu. Ou, a mais de cem quilômetros por hora no
complexo Parkway, logo antes do amanhecer, sentir o cheiro do mar que entra pela janela aberta do carro. Ou atravessar a ponte do Brooklyn bem no momento em que a lua cheia surge dentro do arco, e isso
é tudo que se consegue ver, a redondez amarelo-brilhante da lua, tão imensa que até assusta, e você esquece que vive cá embaixo na Terra e imagina que está voando, que o táxi tem asas e que você na verdade
está cruzando o espaço. Livro nenhum consegue reproduzir essas coisas. Estou falando aqui da verdadeira transcendência, Harry. De deixar o corpo para trás e entrar na plenitude e na densidade do mundo.”
“Mas você não precisa dirigir um táxi para fazer isso, meu jovem. Qualquer lata velha serve.”
“Não, há uma diferença. Num carro comum, você perde o elemento da canseira, e isso é fundamental para a experiência toda. A exaustão, a chatice, a mesmice bestificante do serviço. Mas de repente, saída
sabe-se lá de onde, vem uma pequena explosão de liberdade, um momento ou dois de bem-aventurança genuína, irrestrita. Mas é preciso pagar por isso. Sem canseira, não há alegria.”
Tom não fazia idéia de por que resistia tanto à proposta de Harry. Não acreditava num décimo do que lhe dizia, mas, sempre que vinha à baila o assunto do emprego, fincava pé e se punha a justificar a recusa
com aquelas suas argumentações ridículas. Sabia que seria muito melhor trabalhar para Harry, mas a perspectiva de se tornar um assistente de livreiro não o emocionava, não chegava perto do que tinha em
mente quando sonhava em dar um jeito na vida. Era um passo pequeno demais, de certa forma um cargo insignificante demais para aceitar depois de ter perdido tanto. De modo que o flerte continuou. E quanto
mais Tom desprezava a oferta, mais teimosamente defendia a própria inércia; e quanto mais inerte se tornava, mais desprezava a si mesmo. O tranco de completar trinta anos numa situação tão desoladora teve
seus efeitos, mas não foram suficientes para forçá-lo a agir; e ainda que a refeição feita no balcão do diner Metropolitan tivesse se encerrado com a decisão de arranjar outro emprego no prazo máximo de
trinta dias, um mês depois Tom continuava trabalhando para a empresa de táxis 3-D. Já havia se perguntado várias vezes o que seriam aqueles Ds e de repente achou que descobrira. Desolação, Desintegração
e Desaparecimento. Disse a Harry que iria pensar na oferta, mas não tomou nenhuma providência, como de hábito. Se não fosse o gago viciado em crack que lhe enfiou uma arma no pescoço na esquina da rua
Quatro com a avenida B, numa noite gelada de janeiro, sabe-se lá por quanto tempo mais teria durado aquela esgrima. Mas Tom entendeu o recado. Na manhã seguinte foi até a loja de Harry para lhe comunicar
que havia decidido aceitar o emprego; e assim, da noite para o dia, seus dias de taxista terminaram.
“Eu estou com trinta anos”, disse ele a seu patrão. “E com vinte quilos a mais. Faz mais de um ano que não durmo com uma mulher e nas últimas doze manhãs sonhei com engarrafamentos de trânsito em doze
locais diferentes da cidade. Pode ser que me engane, mas acho que estou pronto para uma mudança.”
Cai o muro
E assim foi que Tom começou a trabalhar para Harry Brightman. Mal sabia ele que Harry Brightman não existia. O nome não passava de um nome e a vida atrelada a ele nunca tinha sido vivida. O que não o impedia
de contar uma série de histórias sobre o passado; só que, como esse passado era inventado, quase tudo o que Tom acreditava saber sobre Harry era falso. Não havia infância vivida em San Francisco, muito
menos mãe socialite e pai médico. Não havia Exeter e Brown. Nunca fora deserdado e muito menos tinha escapulido para ir morar em Greenwich Village na década de 50. Não existiam os anos de vadiagem pela
Europa. Harry era de Buffalo, estado de Nova York, jamais fora um artista plástico em Roma, jamais dirigira um teatro em Londres e jamais trabalhara como consultor de uma casa de leilões em Paris. O único
dinheiro da família era o que o pai levava para casa toda semana como funcionário da triagem no correio central, e quando Harry saiu de Buffalo, aos dezoito anos de idade, não foi para fazer faculdade,
e sim para se alistar na Marinha. Depois da dispensa, quatro anos mais tarde, acabou de fato obtendo alguns créditos num curso superior — na Universidade De Paul, em Chicago —, mas àquela altura sentia-se
velho demais para estudar e largou o curso após três semestres. Chicago foi onde continuou morando, porém, e a história de como, nove anos antes, fora parar em Nova York (depois de perder todo o dinheiro
numa fraude na Bolsa de Londres) não passava de ficção. Contudo era verdade que estava em Nova York havia nove anos e que, ao chegar, não sabia coisa alguma sobre livros. Só que na época ele não se chamava
Harry Brightman; chamava-se Harry Dunkel. E não estava vindo de Londres. Vinha do aeroporto internacional de Chicago e, durante os dois anos e meio anteriores, tivera como endereço para correspondência
a penitenciária federal de Joliet, no Illinois.
O que explicava sua relutância em dizer a verdade. Não é brincadeira ter de recomeçar a vida aos cinqüenta e sete anos; e quando as únicas posses de um homem são os miolos que tem na cabeça e a língua
que guarda na boca, é preciso pensar com muito cuidado antes de se decidir a abrir a dita boca. Harry não se envergonhava do que tinha feito (ele fora apanhado, mais nada, e desde quando falta de sorte
era crime?), mas também não tinha a menor intenção de falar sobre o assunto. Havia suado um bocado e por um longo tempo para conseguir moldar o mundinho em que passara a viver, e não se sentia disposto
a deixar que alguém soubesse o quanto sofrera. Assim sendo, Tom não foi informado sobre a carreira de Harry em Chicago, que incluía uma ex-mulher, uma filha de trinta e um anos e uma galeria de arte na
avenida Michigan durante dezenove anos. Se Tom tivesse tido conhecimento do golpe e da prisão de Harry, será que teria aceitado o emprego oferecido? É bem possível que sim. Por outro lado, talvez não.
Harry não tinha certeza e, por esse motivo, fechou o bico e não disse um a.
Então, numa manhã chuvosa de princípios de abril, menos de um mês depois de eu ter me mudado para o Brooklyn, vale dizer uns três meses e meio após Tom ter começado a trabalhar no Brightman’s Attic, o
grande muro que guardava o segredo veio abaixo.
Tudo começou com uma visita inesperada da filha de Harry. Calhou de Tom estar no térreo quando ela entrou na livraria — ensopada, com água escorrendo das roupas e do cabelo, uma criatura estranha, desgrenhada,
de olhar fuzilante e exalando um cheiro desagradável de azedo, que Tom reconheceu como sendo o cheiro dos que não se lavam nunca, o cheiro da insanidade.
“Eu quero falar com meu pai”, disse ela, cruzando os braços e agarrando os cotovelos com dedos trêmulos, manchados de nicotina.
Como Tom não sabia de nada sobre a vida anterior de Harry, claro que não fazia idéia do que a mulher queria. “Você deve ter se enganado”, ele disse.
“Não me enganei, não”, ela revidou, de repente agitada, destilando raiva. “Eu sou a Flora.”
“Bem, Flora, eu acho que você veio ao lugar errado.”
“Sabe que eu posso até mandar prender você? Como é que você se chama?”
“Tom”, disse Tom.
“Mas é claro. Tom Wood.* Eu sei tudo sobre você. Na metade do caminho, me perdi na mata escura. Mas você é ignorante demais para saber disso. Você é um daqueles homenzinhos que não enxergam a floresta
por causa das árvores.”
“Olha só”, disse Tom, falando com ela numa voz suave, conciliatória. “Você até pode saber quem eu sou, mas não há nada que eu possa fazer para ajudá-la.”
“Cuidado como fala comigo, moço. Só porque você é feito de pau não significa que não seja mau. Capisci? Eu vim aqui ver meu pai e quero falar com ele agora mesmo!”
“É que eu acho que ele deu uma saída”, Tom respondeu, invertendo subitamente sua tática.
“Saída uma ova. O safado mora no apartamento aí de cima. Pensa que eu sou idiota?”
Flora passou os dedos pelos cabelos encharcados, despejando água sobre uma torre de livros recém-comprados que estavam em cima de uma mesa, perto do balcão da frente. Em seguida, depois de tossir feio,
tirou um maço de Marlboro do bolso do vestido rasgado e largo. Acendeu o cigarro e jogou o fósforo ainda aceso no chão. Tom não demonstrou seu espanto e com toda calma apagou-o com o pé. Não se deu ao
trabalho de dizer que era proibido fumar dentro da loja.
“De quem estamos falando?”, perguntou.
“De Harry Dunkel. Quem mais?”
“Dunkel?”
“Quer dizer sombrio, caso você não saiba. Meu pai é um homem sombrio e mora num bosque sombrio. Ele se finge de festivo, agora, mas não é mais do que um truque. Ele continua sombrio. Será sempre sombrio
— até o dia em que morrer.”
*Floresta, mata, bosque, lenha, madeira etc. (N. T.)
Revelações perturbadoras
Harry levou setenta e duas horas para convencer Flora a retomar os remédios — e uma semana para persuadi-la a voltar para a mãe, em Chicago. Um dia depois de ela ter ido embora, convidou Tom para jantar
num restaurante da avenida Cinco chamado Mike & Tony, e pela primeira vez desde que fora libertado da prisão, nove anos antes, se abriu a respeito do passado — e contou toda a história brutal e cretina
de uma vida desperdiçada, alternando risos e lágrimas enquanto desabafava diante de seu incrédulo funcionário.
Havia começado em Chicago como vendedor da seção de perfumes da Marshall Field. Depois de dois anos, avançara para a posição um tanto mais bem cotada de assistente de vitrinista e, sem dúvida, teria ficado
ali mesmo, não fosse sua improvável união com Bette (a pronúncia correta é bét) Dombrowski, a filha caçula do multimilionário Karl Dombrowski, mais conhecido como o Rei das Fraldas do Meio-Oeste. A galeria
de arte que Harry abriu no ano seguinte foi toda criada com o dinheiro de Bette. Mas, só porque a fortuna da mulher lhe deu confortos e um status social até então inimagináveis, seria errado presumir que
se casou com ela por causa do dinheiro ou que entrou na nova vida fingindo ser o que não era. Harry sempre deixou claríssimas suas inclinações sexuais, mas nem isso conseguiu impedir Bette de achá-lo o
mais desejável entre todos os homens que conhecera na vida. Na época já uma balzaquiana feiosa, inexperiente, muito perto de virar uma eterna solteirona, Bette sabia que, se não conseguisse fisgá-lo, estaria
fadada a viver o resto dos dias na casa do pai, como alvo da zombaria geral, a tia solteira e sem graça dos filhos de irmãos e irmãs, uma exilada no seio da própria família. Por sorte, estava menos interessada
em sexo do que em companhia e sonhava partilhar a vida com um homem que pudesse lhe ceder um pouco do brilho e da autoconfiança que ela não possuía. Se Harry desejasse cair numa farrinha ou outra, em alguma
fuzarca clandestina, ela não faria objeção. Desde que estivessem casados, ela disse, e desde que ele compreendesse que ela o amava muito.
Harry já tivera algumas mulheres na vida, antes de Bette. Desde o começo da adolescência, seu histórico sexual sempre fora um catálogo indiscriminado de desejos tanto para um lado da cerca como para o
outro. Achava ótimo ser daquele jeito, ótimo ser imune a preconceitos que o teriam forçado a passar a vida evitando os encantos de uma metade da humanidade, mas, até que Bette o pedisse em casamento, em
1967, jamais lhe ocorrera a possibilidade de um dia entrar num arranjo doméstico fixo, muito menos se transformar num marido. Ele já tinha amado várias vezes antes, mas raramente fora amado de volta, e
o ardor de Bette o deixou meio atordoado. Ela não só se oferecera a ele sem qualquer reserva como também, e ao mesmo tempo, lhe concedera total liberdade.
Havia, claro, algumas desvantagens a enfrentar, também. Para começar, a família de Bette e a interferência mandona do pai truculento, que de tempos em tempos ameaçava deserdar a filha se ela não se divorciasse
“daquele maricas intragável”. Depois, e talvez ainda mais preocupante, a própria Bette. Não a pessoa ou a alma de Bette, e sim o corpo, a manifestação exterior, com os olhinhos sempre franzidos e aqueles
pêlos negros desagradáveis a lhe enfeitar os braços carnudos. Harry tinha uma predileção instintiva e altamente desenvolvida pelo belo e nunca se apaixonara por alguém que não tivesse uma quantidade razoável
de atrativos. E, se existia algo que o tinha deixado hesitante diante do altar, esse algo era a aparência de Bette. Mas ela era uma criatura tão boa e sempre tão disposta a agradar que Harry resolveu encarar
o enlace, ciente de que seu primeiro trabalho como homem casado seria moldá-la num fac-símile de mulher capaz — sob uma luz apropriada e nas circunstâncias adequadas — de despertar nele uma centelha de
desejo. Algumas melhorias foram muito simples. Lentes de contato substituíram os óculos; o guarda-roupa sofreu uma reforma total; braços e pernas foram submetidos a dolorosos tratamentos depilatórios a
intervalos regulares. No entanto havia outros fatores que Harry não conseguia controlar e que dependiam exclusivamente do empenho dela. E Bette de fato empenhou-se. Com a disciplina e a abnegação de uma
freira, conseguiu se desvencilhar de quase um quinto de seu peso corporal, passando de deselegantes setenta quilos para delgados cinqüenta e sete. Harry comoveu-se com as batalhas de sua esforçada Galatéia
e, à medida que ela foi desabrochando sob os cuidados e a exigência do olhar vigilante do marido, a crescente admiração que um sentia pelo outro se transformou em sólida e duradoura amizade. O nascimento
de Flora, em 1969, não foi resultado de nenhuma transa esporádica pré-combinada. Harry e Bette dormiram juntos vezes suficientes, nos primeiros anos de casamento, para tornar uma gravidez quase que inevitável,
um fait accompli a priori. Quem, entre os amigos de Harry, teria previsto tamanha reviravolta? Ele se casara com Bette porque ela lhe prometera liberdade, mas, uma vez juntos, Harry descobriu que tinha
pouco ou nenhum interesse em exercê-la.
A galeria abriu as portas em fevereiro de 1968. E, para Harry, então com trinta e quatro anos de idade, foi a realização de um antigo sonho; ele fez tudo o que pôde para torná-la um sucesso. Chicago não
era o centro do mundo das artes, mas também não era nenhum cafundó-do-judas e havia muito dinheiro dando sopa por lá, o suficiente para um sujeito esperto convencer uma parte a entrar no próprio bolso.
Após um período de reflexão profunda, Harry decidiu chamar sua galeria de Dunkel Frères. Ele não tinha nenhum irmão, mas achou que o nome emprestava uma certa qualidade de Velho Mundo ao empreendimento,
sugerindo uma longa tradição familiar no negócio de comprar e vender arte. A seu ver, o casamento entre o nome próprio de origem alemã e o modificador em francês criaria uma confusão atraente e bastante
agradável na mente dos clientes. Alguns tomariam a mistura de línguas como indicação de origens alsacianas. Outros pensariam tratar-se de alguma família judia-alemã que emigrara para a França. E haveria
os que não fariam a menor idéia de coisa nenhuma. Ninguém jamais teria certeza das origens de Harry — e sempre que um homem consegue criar uma sensação de mistério sobre si mesmo, ele leva a melhor no
trato com o público.
Sua especialidade era o trabalho de jovens artistas — pinturas, em sua maioria, mas também esculturas e instalações, junto com uns poucos happenings, que continuavam na moda no final dos anos 60. A galeria
patrocinava tanto noites de poesia como soirées musicales e, visto que Harry se interessava por todas as formas do belo, a Dunkel Frères não se prendia a nenhuma posição estética rígida. Pop e op, minimalismo,
abstracionismo, pattern painting e fotografia, videoinstalação e o novo expressionismo — com o correr dos anos, Harry e seu irmão fantasma exibiram trabalhos representando todas as tendências e inclinações
da época. A maior parte das exposições foi um fracasso. Algo já previsível, aliás; na verdade o mais preocupante para o futuro da galeria era a deserção dos poucos artistas de verdade que Harry encontrava
ao longo do caminho. Ele dava ao principiante uma primeira chance, promovia seu trabalho com a verve e a autoconfiança costumeiras, criava um mercado para as obras dele ou dela, começava a auferir um lucro
razoável e então, depois de duas ou três exposições, o artista fechava contrato com alguma galeria de Nova York. Essa era uma das desvantagens de Chicago, e Harry sabia que os verdadeiramente talentosos
não poderiam deixar de dar esse passo.
No entanto, era um homem de sorte. Em 1976, um pintor de trinta e dois anos de idade chamado Alex Smith entrou em sua galeria com um pacote de slides. Harry estava fora esse dia, mas quando a recepcionista
lhe entregou o envelope, na tarde seguinte, ele tirou um slide, ergueu-o perto da janela, para uma espiada rápida — sem esperar nada, preparado para se sentir frustrado —, e percebeu que estava diante
de algo grandioso. O trabalho de Smith tinha tudo. Ousadia, cor, energia e luz. As figuras rodopiavam através de golpes ferozes e cortantes de tinta, vibrando com um rugido incandescente de emoções, um
brado humano tão profundo, tão verdadeiro, tão passional que parecia expressar ao mesmo tempo alegria e desespero numa mesma pincelada. As telas não se pareciam com nada que Harry tivesse visto antes,
e tão forte foi o efeito sobre ele que suas mãos começaram a tremer. Sentou-se, examinou todas as quarenta e sete telas numa mesa de luz portátil e, logo em seguida, apanhou o telefone e ligou para Smith,
oferecendo-lhe uma exposição.
Ao contrário dos outros jovens artistas que Harry apoiara, Smith não queria nem ouvir falar em Nova York. Já havia passado seis anos na cidade e, depois de ter sido recusado por todas as galerias de lá,
voltara para Chicago um homem amargo e irado, que desprezava o mundo das artes e todos os seus chupins prostituídos que só pensavam em dinheiro. Harry o chamava de “gênio rude”. Mas, apesar da natureza
grosseira e às vezes briguenta, o casca-grossa era no fundo um puro-sangue que entendia o significado de lealdade e, depois de ter encontrado abrigo no estábulo da Dunkel Frères, não tinha a menor intenção
de desembestar mundo afora. Quem o resgatara do esquecimento fora Harry e, portanto, Harry continuaria sendo seu marchand por toda a vida.
De sua parte, Harry havia encontrado seu primeiro e único grande artista e, durante os oito anos seguintes, a obra de Smith manteve a galeria no azul. Depois do sucesso da exposição de 1976 (todas as dezessete
telas e os trinta e um desenhos tinham sido vendidos até o final da segunda semana), Smith decidiu ir embora com a mulher e o filho pequeno para Oaxaca, no México, onde comprou uma casa. Daquela data em
diante, não quis mais sair de lá e nunca mais pôs os pés nos Estados Unidos — nem mesmo para assistir às exposições anuais de seu trabalho em Chicago, muito menos às retrospectivas organizadas em museus
de diversas cidades do país, que foram aumentando de freqüência conforme ele foi ficando mais famoso. Quando Harry queria vê-lo, tinha de voar até o México — algo que fazia em média duas vezes por ano
—, mas no geral mantinham contato por carta e, de vez em quando, por telefone. Isso, porém, não representava nenhum problema para o diretor da Dunkel Frères. A produção de Smith era prodigiosa, e de dois
em dois meses, mais ou menos, chegavam novos caixotes à galeria de Chicago, com telas e desenhos que eram vendidos por quantias cada vez mais saborosas e elevadas. Era um arranjo ideal e sem dúvida teria
continuado de pé por muitas outras décadas caso Smith não tivesse se enchido de tequila três noites antes de completar quarenta anos e pulado do telhado de casa. A mulher insistia que tinha sido uma brincadeira
que dera errado; a amante dizia que fora suicídio. De um jeito ou de outro, Alec Smith estava morto e o transatlântico Harry Dunkel, prestes a naufragar.
Altura em que entra em cena um jovem artista chamado Gordon Dryer. Harry fizera uma primeira exposição com seus trabalhos seis meses antes da catástrofe com Smith — não porque tivesse se impressionado
com o artista (abstrações sisudas e ultra-racionais que não renderam uma única venda, nem sequer uma resenha positiva), e sim porque Dryer era, em si mesmo, uma presença irresistível, um trintão que não
parecia ter mais que dezoito anos, com um rosto delicado e feminino, mãos delgadas e brancas feito mármore e uma boca que Harry desejou beijar assim que a viu. Depois de dezesseis anos de vida conjugal
com Bette, o futuro patrão de Tom tinha finalmente sucumbido. Mas não foi uma paixonite efêmera, coisa de uma única noite; foi uma bela intoxicação, uma absurda e desenfreada paixão. E o ambicioso Dryer,
desesperado para mostrar seu trabalho na Dunkel Frères, deixou-se seduzir por aquele baixinho cinqüentão. Ou talvez tenha sido o contrário, quem sabe foi Dryer que seduziu Harry. Seja como for, o feito
se consumou quando o dono da galeria foi ao estúdio do artista ver sua última pintura. O belo homem-garoto adivinhou muito rápido as intenções de Harry e, depois de vinte minutos de papo inconseqüente
a respeito das virtudes do minimalismo geométrico, pôs-se de joelhos com muita desenvoltura e abriu o zíper da calça do marchand.
Depois da reação morna do público às telas de Dryer, o zíper de Harry começou a baixar com mais freqüência e não demorou para que ele começasse a fazer várias visitas por semana ao ateliê do artista. Dryer
temia que Harry o eliminasse da lista e só tinha o corpo para oferecer como compensação. Harry estava apaixonado e não percebia que estava sendo usado, mas, mesmo que tivesse percebido, é pouco provável
que as coisas houvessem mudado. Tal é a loucura do coração humano. Ele não contou nada a Bette. Como a filha Flora, então com quinze anos, já tinha começado a manifestar os primeiros, incipientes sinais
de esquizofrenia, ele costumava passar com a família o máximo de tempo que seus horários lhe permitiam. As tardes eram para Gordon, mas à noite ele retomava seu papel de marido e pai extremado. E foi então
que a notícia da morte de Smith despencou-lhe feito um raio na cabeça. Harry entrou em pânico. Restavam ainda algumas obras para vender, mas depois de seis meses, um ano, o estoque acabaria. E aí, fazer
o quê? A Dunkel Frères conseguia a duras penas equilibrar suas contas e Bette já tinha posto dinheiro demais ali. Harry não tinha cara de recorrer à mulher e lhe pedir mais. Com a súbita morte de Smith,
a galeria afundaria, com certeza. Se não hoje, amanhã; se não amanhã, um dia depois. Porque a verdade é que Harry não conseguira aprender o fundamental sobre como gerir um negócio. Havia se fiado no trabalho
do rabugento Smith para financiar todas as extravagâncias e larguezas com que se deliciava (as festas opulentas, os jantares para duzentas pessoas, os jatinhos particulares e os carros com chofer, as apostas
idiotas em talentos de segunda e terceira categoria, os pagamentos mensais para artistas que não vendiam), só que a galinha resolvera dar uma voada no México e, conseqüentemente, não haveria mais ovos
de ouro.
Foi por volta dessa época que Dryer surgiu com o plano de tirar Harry do enrosco. Chupar e transar tinha lá seus limites, ele sabia disso, mas se pudesse se tornar de fato indispensável, sua carreira como
artista estaria salva. Apesar do intelectualismo frio de seu trabalho, Dryer tinha um enorme dom natural como desenhista e colorista. Havia reprimido esses dotes em nome de uma idéia, de uma noção da arte
que valorizava o rigor e a exatidão acima de todas as coisas. Ele detestava o romantismo esfuziante de Smith, sua gestualidade floreada, seus impulsos pseudo-heróicos, mas isso não significava que não
pudesse imitar o estilo, se assim o quisesse. Por que não continuar criando a obra de Smith depois da morte do artista? As telas e os desenhos finais de um jovem mestre cuja vida fora ceifada em seu auge.
Uma mostra pública seria arriscada demais, claro (a viúva de Smith ficaria sabendo e acabaria por desmascarar tudo), mas Harry sempre podia vender as peças em caráter particular para os colecionadores
mais ardentes de Smith, e desde que Valerie Smith nunca viesse a saber, a falcatrua renderia lucros líquidos de cem por cento.
De início Harry resistiu. Sabia que Gordon tivera uma idéia brilhante, mas essa idéia o assustava — não porque fosse contra ela e sim porque não achava que o rapaz possuía talento suficiente para levar
o plano adiante. E qualquer coisa que saísse menos do que perfeita, que fosse menos do que um clone primoroso do trabalho de Smith, sem dúvida o poria na cadeia. Dryer deu de ombros, fingindo não ter sido
mais do que uma idéia que lhe passara pela cabeça, e começou a falar de outra coisa. Cinco dias depois, quando Harry voltou ao ateliê para mais uma daquelas suas visitas vespertinas, Dryer descerrou a
primeira de “suas” telas originais de Alec Smith e o estupefato marchand foi obrigado a admitir que havia subestimado as habilidades de seu jovem protegido. Dryer havia reinventado a si mesmo como duplo
de Smith, desvencilhando-se do mais ínfimo fiapo de personalidade própria a fim de se esgueirar para dentro da mente e do coração de um morto. Foi um golpe teatral, uma bruxaria psicológica que infundiu
tanto terror quanto espanto no cérebro do pobre Harry. Dryer não só reproduzira o aspecto e os sentimentos expressos numa tela de Smith, copiando a densidade das pinceladas grosseiras, a coloração intensa,
e os pingos ao acaso, acidentais, como também tinha levado Smith um tantinho mais adiante do que Smith teria ido ele próprio. Aquela era a próxima pintura de Smith, foi o que Harry percebeu na hora, a
que ele teria começado na manhã do dia 12 de janeiro, caso não tivesse saltado do telhado de sua casa e morrido na noite do dia 11.
Durante os seis meses seguintes, Dryer produziu vinte e sete telas, vários desenhos e alguns esboços. Em seguida, com muito vagar e método, refreando o entusiasmo com uma invulgar mostra de concisão e
controle, Harry começou a impingir as falsas obras a diversos colecionadores espalhados pelo mundo. O jogo prosseguiu por mais de um ano e, nesse tempo, vinte das telas foram vendidas, arrecadando perto
de dois milhões de dólares. Como Harry estava à testa do negócio — e portanto era quem se arriscava a ter a reputação arruinada —, os dois concordaram em fazer a divisão na base dos setenta por cento para
ele e trinta por cento para Dryer. Quinze anos depois, ao se abrir com Tom num restaurante do Brooklyn, Harry qualificou esses meses como o período mais estimulante e tenebroso de toda sua vida. Ele circulava
num estado de pavor constante, mas, não obstante o terror, não obstante a certeza de que mais cedo ou mais tarde acabaria desmascarado, sentia-se feliz, mais feliz do que jamais o fora. Toda vez que conseguia
vender outro faux Smith para um alto executivo japonês ou incorporador argentino, seu coração sobrecarregado e cheio de ansiedade dava saltos de alegria.
Na primavera de 1986, Valerie Smith vendeu a casa de Oaxaca e voltou para os Estados Unidos com os três filhos. Apesar de um casamento tempestuoso e muitas vezes violento, ela sempre fora defensora ferrenha
do trabalho do marido mulherengo e conhecia cada uma das telas que Smith tinha feito, desde os vinte anos até sua morte em 1984. Logo depois da primeira exposição na Dunkel Frères, o casal fizera amizade
com um cirurgião plástico chamado Andrew Levitt, um próspero colecionador que comprara, na época, duas pinturas de Harry. Dez anos mais tarde, o médico possuía um total de catorze Smiths, quer dizer, até
o dia em que Valerie foi jantar em sua casa, em Highland Park. Como é que Harry podia saber que um dia Valerie voltaria para Chicago? Como é que podia saber que Levitt a convidaria para jantar — o mesmo
Levitt para quem ele havia vendido um esplêndido falso Smith, apenas três meses antes? Desnecessário dizer que uma das primeiras coisas que o abastado médico fez foi apontar orgulhosamente para sua nova
aquisição, pendurada na parede da sala de estar, e desnecessário dizer que a perspicaz viúva no mesmo instante entendeu tudo. Ela nunca tinha sido grande fã de Harry, mas, pelo bem de Alec, sempre lhe
concedera o benefício da dúvida, ciente de que o diretor da Dunkel Frères era o responsável pela boa estrela do marido. Mas seu marido estava morto, enquanto Harry fazia das suas. Valerie Denton Smith
enfureceu-se e resolveu destruir o marchand.
Harry negou tudo. No entanto, com sete trabalhos falsificados ainda trancados no depósito da galeria, não foi difícil à polícia juntar provas contra ele. O marchand continuou jurando inocência até Gordon
fugir da cidade; depois dessa traição, perdeu por completo a coragem. Num momento de desespero e autopiedade, desmoronou e contou tudo a Bette. Um outro erro, mais um ato equivocado numa longa série de
tropeços e avaliações errôneas. Pela primeira vez, durante todos aqueles anos de vida em comum, ela revidou com fúria — numa enfiada de impropérios que incluíram palavras como doente, ganancioso, nojento
e pervertido. Bette não demorou a pedir desculpas, mas o dano já tinha sido feito. Mesmo que logo em seguida ela tivesse contratado um dos melhores advogados da cidade para defendê-lo, Harry compreendeu
que sua vida desmoronara. As investigações se arrastaram durante dez meses em lugares tão diversos quanto Nova York e Seattle, Amsterdã e Tóquio, Londres e Buenos Aires, até que, reunidas todas as provas,
o promotor público da comarca de Cook indiciou Harry por trinta e nove acusações de fraude. A imprensa deu a notícia em manchetes de primeira página. Harry poderia esperar uma sentença de dez a quinze
anos de prisão. A conselho do advogado, optou por se declarar culpado e, para reduzir ainda mais a sentença, implicou Gordon Dryer na falcatrua, argumentando que a falsificação das obras fora idéia dele,
desde o início, e que ele (Harry) havia sido coagido a agir como cúmplice depois de Dryer ter jurado que levaria a público o caso que estavam tendo. A recompensa pela cooperação foi uma sentença de cinco
anos de prisão com garantia de redução substancial da pena por bom comportamento. Os detetives seguiram a pista de Dryer até Nova York e prenderam-no numa festa de Ano-Novo num bar da rua Christopher,
poucos minutos antes do início de 1988. Ele também resolveu se declarar culpado, mas, sem nomes a oferecer nem nada para negociar, o ex-amante de Harry foi condenado a sete anos de cadeia.
Mas o pior ainda estava por vir. Bem quando Harry se preparava para ir para a prisão, o velho Dombrowski finalmente conseguiu convencer Bette a pedir o divórcio. E empregou as mesmas táticas de intimidação
usadas no passado — ameaçando eliminar a filha do testamento, ameaçando suspender a mesada —, só que dessa vez era pra valer. Bette não estava mais apaixonada por Harry, mas nem por isso planejava abandoná-lo.
Apesar do escândalo e apesar de o marido ter-se desgraçado sozinho, nem por um momento passara pela cabeça de Bette dissolver aquele casamento. O problema era Flora. Às vésperas de completar dezenove anos,
já tinha sido internada duas vezes em hospitais para doenças mentais e as perspectivas de que houvesse uma recuperação, ainda que parcial, eram nulas. Flora iria precisar de cuidados constantes e, no estado
em que se encontrava, isso significava somas vultosas, da ordem de mais de cem mil dólares por internação; se Bette perdesse o cheque que o pai lhe enviava todos os meses, não teria alternativa senão mandar
a filha para uma instituição pública quando sofresse uma crise — e isso ela simplesmente se recusava a aceitar. Harry entendeu o dilema de sua mulher e, como não tinha nenhuma solução a oferecer, concordou
ainda que relutante com o divórcio, ao mesmo tempo que não parou de jurar que liquidaria com o pai de Bette assim que fosse solto.
Havia se transformado num miserável, num presidiário sem tostão, sem recursos e sem planos e, assim que cumprisse sua pena no presídio de Joliet, seria atirado aos quatro ventos feito um punhado de confete.
O mais curioso da história, porém, foi o tão desprezado sogro ter ido socorrê-lo — a um custo, claro, a um custo tão alto, tão exorbitante, que Harry nunca mais se recuperou da vergonha e da repulsa que
sentiu ao aceitar a proposta do velho. Mas aceitou. Era fraco demais para recusar, estava apavorado demais com o futuro para não aceitar, mas, assim que pôs sua assinatura no contrato, percebeu que abrira
mão da própria alma e que estaria danado para todo o sempre.
Já fazia quase dois anos que estava preso e as condições de Dombrowski não poderiam ter sido mais simples. Harry se mudaria para uma outra região do país e, em troca de uma quantia suficiente para abrir
um outro negócio, concordava em nunca mais voltar a Chicago e nunca mais entrar em contato nem com Bette nem com Flora. Dombrowski considerava o genro um degenerado moral, exemplo de alguma subespécie
degradada de organismo que não podia ser considerado inteiramente humano, e atribuía a ele a responsabilidade pela doença de Flora. A neta era louca porque Harry havia posto em Bette seu esperma doentio
e mutante e agora que se mostrara também uma fraude e um criminoso, só lhe restava uma vida de miséria e sofrimentos, após sair da prisão, a menos que renunciasse por completo a sua paternidade. Harry
renunciou. Cedeu às exigências de Dombrowski e, a partir dessa capitulação, abriu-se a perspectiva de uma nova vida para ele. Harry escolheu o Brooklyn porque era Nova York e, ao mesmo tempo, não era Nova
York, e as chances de topar com algum velho colega do mundo das artes eram tênues. Havia uma livraria à venda na avenida Sete, em Park Slope, e embora Harry não soubesse patavina sobre o negócio de livros,
a loja satisfazia sua inclinação para quinquilharias antigas. Dombrowski comprou o imóvel inteiro, os quatro andares, e em junho de 1991 nascia o Brightman’s Attic.
Segundo Tom me contou, a essa altura do relato Harry já estava chorando e, durante o resto do jantar, só falou de Flora, lembrando-se do último e tormentoso dia que passou com ela, antes de ir cumprir
sua pena. Ela estava no meio de mais uma crise, mergulhando aos poucos no estado que acabaria por colocá-la no hospital pela terceira vez, mas ainda lúcida o suficiente para reconhecer Harry como seu pai
e ter uma conversa racional com ele. Na época, Flora havia topado com algumas estatísticas que calculavam quantas pessoas no mundo nasciam e morriam a cada segundo do dia. Os números eram assombrosos,
mas Flora sempre fora muito boa em matemática e rapidamente extrapolou os totais para grupos de dez: dez nascimentos a cada quarenta e um segundos, dez mortos a cada cinqüenta e oito segundos (ou quaisquer
que fossem os números). Esta é a grande verdade sobre o mundo, ela tinha dito ao pai durante o café-da-manhã, e, para poder compartilhar de sua profundidade, decidira passar o dia sentada na cadeira de
balanço do quarto gritando alegrai-vos a cada quarenta e um segundos e chorai a cada cinqüenta e oito segundos para marcar o falecimento de dez almas e comemorar a chegada de dez recém-nascidos.
O coração de Harry já se havia partido inúmeras vezes, mas nessa última estava reduzido a um monte de cinzas tapando um buraco no peito. No seu último dia de liberdade, passou doze horas sentado na beira
da cama da filha, vendo-a balançar o corpo para a frente e para trás na cadeira e gritar, alternadamente, alegrai-vos e chorai, sempre muito atenta ao arco desenhado pelo ponteiro dos minutos no mostrador
do relógio de cabeceira. “Alegrai-vos!”, ela gritava. “Alegrai-vos pelos dez que estão nascendo, pelos dez que vão nascer e pelos dez que já nasceram a cada quarenta e um segundos. Alegrai-vos por eles
sem descanso. Alegrai-vos sem interrupção porque um fato é certo, um fato é verdadeiro, um fato está além de toda e qualquer dúvida: dez pessoas que não viviam antes agora vivem. Alegrai-vos!”
E em seguida, agarrando os braços da cadeira e acelerando o ritmo do balanço, ela olhava para os olhos do pai e gritava: “Chorai! Chorai pelos dez que desapareceram deste mundo. Chorai pelos dez cujas
vidas cessaram de ser, pelos dez que iniciaram sua jornada pelo vasto desconhecido. Chorai sem parar pelos mortos. Chorai pelos homens e mulheres que foram bons. Chorai pelos homens e mulheres que foram
maus. Chorai pelos velhos cujo corpo falhou. Chorai pelos jovens que morreram antes da hora. Chorai por um mundo que permite que a morte nos tire do mundo. Chorai!”.
De malandros
Até dar de cara com meu sobrinho Tom no Brightman’s Attic, não creio que eu tivesse falado com Harry mais que duas ou três vezes — e assim mesmo só muito de passagem, uma troca rapidíssima e superficial
de palavras. Mas, depois de ouvir o relato de Tom sobre o passado do patrão, fiquei curioso por saber mais coisas a respeito de tão singular caráter, queria me encontrar frente a frente com o malandro
e observá-lo em ação com os próprios olhos. Tom falou que nos apresentaria de bom grado e, sendo assim, logo que terminamos a refeição de duas horas no diner Cosmic, resolvi acompanhá-lo de volta à livraria
e satisfazer a curiosidade naquela tarde mesmo. Paguei a conta no caixa, voltei à mesa e deixei uma gorjeta de vinte dólares para Marina. Era uma quantia absurdamente excessiva — quase o dobro do custo
de nosso almoço —, mas isso não me incomodava. Meu ídolo abriu um sorriso esplendoroso de agradecimento e a visão de sua felicidade me deixou de tal maneira animado que na mesma hora tomei a decisão de
ligar para Rachel à noite para lhe dar a notícia de que o primo havia tanto tempo perdido fora reencontrado. Eu ainda estava na lista negra de minha filha, sobretudo depois daquela sua visita cacete no
começo de abril, em que brigáramos, mas agora que eu tinha reencontrado Tom, agora que a sorridente Marina Gonzalez tinha acabado de me soprar um beijo, na hora em que eu estava saindo do restaurante,
eu queria que tudo voltasse aos eixos no mundo. Já havia ligado uma vez para ela, pedindo desculpas por ter sido tão ríspido, mas minha filha desligara na minha cara trinta segundos depois. Agora eu já
podia ligar de novo, e dessa vez eu rastejaria até que a atmosfera entre nós estivesse limpinha.
A livraria ficava a cinco quarteirões e meio da lanchonete e, enquanto caminhávamos pela avenida Sete sob o sol suave de uma tarde de maio, continuamos a falar sobre Harry, o antigo Dunkel da Dunkel Frères,
que escapara da mata sombria de seu antigo eu para surgir como um sol resplandecente no firmamento da duplicidade.
“Eu sempre tive uma queda por malandros”, falei. “Talvez eles não sejam dos amigos mais confiáveis, mas pense como a vida seria chata sem eles.”
“Não tenho muita certeza se o Harry continua sendo um malandro”, Tom me respondeu. “Ele sente remorso demais, hoje em dia.”
“Uma vez malandro, sempre malandro. As pessoas não mudam nunca.”
“Questão de opinião. Eu digo que mudam.”
“É que você nunca trabalhou no ramo de seguros. A paixão pelo engodo é universal, meu rapaz, e depois que um homem toma gosto pela coisa, não pode mais ser curado. Dinheiro fácil — não existe tentação
maior do que essa. Pense em todos os espertinhos que inventam sinistros de carro, que forjam acidentes pessoais, que chegam até a simular a própria morte. Eu vi isso tudo acontecendo durante trinta anos
e nunca me cansei. O grande espetáculo da desonestidade humana. Por toda parte, o tempo todo. E, goste você ou não, é o show mais interessante em cartaz.”
Tom produziu um ruído rápido, uma emissão de ar que ficava a meio caminho entre uma bufada de zombaria e uma gargalhada. “Eu adoro quando você começa a falar asneiras, Nathan. Eu não tinha percebido ainda,
mas senti muita falta disso. Muita falta mesmo.”
“Você acha que estou brincando, mas nunca falei tão sério. São pérolas de sabedoria de minha parte. Algumas poucas dicas depois de uma vida toda labutando nas trincheiras da experiência. Vigaristas e trapaceiros
governam o mundo. O planeta é dos malandros. E sabe por quê?”
“Diga-me, Mestre. Sou todo ouvidos.”
“Porque eles têm mais fome que nós. Porque eles sabem o que querem. Porque eles acreditam mais na vida que nós.”
“Fale por si mesmo, Sócrates. Se eu não tivesse a fome que tenho o tempo todo, não estaria carregando esta pança aqui.”
“Você ama a vida, Tom, mas não acredita nela. E tampouco eu.”
“Estou começando a ficar confuso.”
“Pense em Esaú e Jacó. Lembra deles?”
“Ah, sei. Certo. Agora está começando a fazer sentido.”
“É uma história horrenda, você concorda?”
“Claro que sim. Tenebrosa. Tive problemas com ela, quando criança, que não acabavam mais. Eu era um sujeitinho tão moralista, tão certinho, na época. Eu não mentia nunca, não roubava nunca, não colava,
não dizia uma palavra para ofender ninguém. E lá estava Esaú, um baita de um palerma como eu. A se acreditar no que é certo, todas as bênçãos de Isaac deveriam ir para ele. Mas Jacó monta um embuste para
que assim não seja — e com a ajuda da mãe, ainda por cima.”
“Pior, meu caro, porque Deus parece aprovar esse arranjo. O desonesto, o trapaceiro Jacó vai ser o líder dos judeus e Esaú é largado para trás, um homem esquecido, um ninguém sem o menor valor.”
“Minha mãe sempre me ensinou a ser bom. ‘Deus quer que você seja bom’, ela me dizia, e já que eu era jovem o bastante para acreditar em Deus, também acreditava no que ela me dizia. Aí um dia topei com
essa história na Bíblia e não entendi nada. O mau vence e Deus não o pune. Não me pareceu certo. Continua não me parecendo certo.”
“Mas claro que é. Jacó tinha a centelha da vida dentro de si, ao passo que Esaú era um bocó. Um coração de ouro, verdade, mas um bocó. E, se você precisa escolher um deles para liderar seu povo, vai optar
por aquele que luta, por aquele que sabe lançar mão de estratagemas, pelo esperto, pelo que tem energia para superar os reveses e dar a volta por cima. Você sempre escolhe o forte e o inteligente, nunca
o fraco e o bondoso.”
“Isso é de uma brutalidade ímpar, Nathan. Leve seu argumento um pouco mais adiante e daqui a pouco estará me dizendo que Stalin deveria ser venerado como um grande homem.”
“Stalin foi um bandido, um assassino psicótico. Eu estou falando a respeito do instinto de sobrevivência, Tom, sobre a vontade de viver. Eu prefiro um malandro ardiloso a um caxias consciencioso a qualquer
hora do dia ou da noite. Talvez o malandro não jogue segundo as regras, mas ao menos tem espírito. E onde houver homens com espírito haverá esperança para o mundo.”
Em carne e osso
Quando estávamos a um quarteirão da loja, de repente me ocorreu que aquela visita de Flora ao Brooklyn significava que Harry continuava em contato com a ex-mulher e a filha — uma clara violação do contrato
que assinara com Dombrowski. Se fosse esse o caso, por que o velho não tinha aparecido correndo para retomar a escritura do prédio da avenida Sete? Segundo o que eu havia entendido da barganha entre os
dois, tal violação teria sido motivo suficiente para que o ex-sogro retomasse o controle do sebo e para que Harry ficasse a ver navios. Será que eu não entendera bem, perguntei a Tom, ou haveria mais alguma
guinada na história que ele esquecera de me contar?
Não, Tom não havia deixado nada de fora. O contrato não vigorava mais pelo simples motivo de Dombrowski estar morto.
“E ele morreu de causas naturais ou foi o Harry quem o matou?”, perguntei.
“Muito engraçado.”
“Foi você quem falou nisso, não eu. Não está lembrado? Você me disse que o Harry jurou que iria matar Dombrowski assim que saísse da prisão.”
“As pessoas afirmam um bocado de coisas que não têm a menor intenção de realizar. Dombrowski esticou as canelas três anos atrás. Estava com noventa e um anos de idade e morreu de derrame.”
“Segundo contou o Harry.”
Tom riu do comentário, mas, ao mesmo tempo, senti que estava ficando um pouco irritado com minhas brincadeiras e o tom sarcástico. “Vê se pára, Nathan. Mas você tem razão. Segundo contou o Harry. Tudo
é segundo o que Harry me contou. Você sabe disso tão bem quanto eu.”
“Não se sinta culpado, Tom. Eu não vou traí-lo.”
“Trair? Do que é que você está falando?”
“Você está começando a se arrepender de ter me contado os segredos dele. O Harry confiou em você e você violou essa confiança quando me contou a história toda. Mas não se preocupe, amigão. Eu às vezes
até posso me comportar como um asno, mas meus lábios estão selados. Compreendeu? Eu não sei coisa nenhuma a respeito de Harry Dunkel. A pessoa cuja mão eu vou apertar hoje é Harry Brightman.”
Fomos encontrá-lo em seu escritório no primeiro andar da loja, sentado atrás de uma ampla escrivaninha de mogno, falando com alguém ao telefone. Usava um paletó de veludo roxo, lembro-me bem, com um lenço
de seda multicolorido saindo do bolsinho esquerdo. O lenço se assemelhava a alguma rara flor tropical, uma brotação que atraía de imediato o olhar naquele ambiente cinza-amarronzado forrado de livros.
Eu não saberia dar mais pormenores a respeito dos trajes porque, mais do que as roupas, o que me interessava naquele momento era o rosto largo de maxilar forte, os olhos azuis muito redondos e um pouco
saltados, a configuração curiosa dos dentes da arcada superior — abertos em leque, com intervalos entre um e outro — que lembravam uma daquelas lanternas de Dia das Bruxas, feitas de abóbora. A mim, me
pareceu um homenzinho cabeçudo, esquisito, um janota sem um pêlo sequer nas mãos e nos dedos, cuja voz, um barítono suave e sonoro, era o único elemento a quebrar um pouco a afetação geral.
Enquanto eu escutava aquela voz falar ao telefone, Harry acenou para Tom, em sinal de cumprimento, depois ergueu o indicador para o ar, mostrando com esse seu gesto que nos daria atenção em um minuto.
Não consegui pegar o tema da conversa, já que Brightman falava bem menos do que o interlocutor invisível, mas deduzi que estava discutindo pormenores da venda de uma primeira edição do século XIX com um
cliente ou colega livreiro. O título da obra entretanto não foi mencionado e meus pensamentos logo começaram a vagar. Para me manter ocupado, percorri a sala examinando os livros nas prateleiras. Segundo
cálculos muito por alto, devia haver cerca de setecentos a oitocentos volumes naquele espaço muito bem organizado, com livros que iam dos bem antigos (Dickens e Thackeray) aos relativamente novos (Faulkner
e Gaddis). Os mais antigos eram quase todos encadernados com couro, ao passo que os contemporâneos tinham um invólucro transparente protegendo a capa de papel. Comparado à mixórdia confusa da loja lá embaixo,
o primeiro andar era um oásis tranqüilo onde imperava a ordem; o valor total daquela coleção devia andar pela casa dos seis gordos dígitos. Para um sujeito que não tinha nem um pinico onde mijar, dez anos
antes, o outrora sr. Dunkel havia se saído muitíssimo bem, muitíssimo bem mesmo.
A conversa telefônica terminou e, quando Tom explicou-lhe quem eu era, Harry Brightman levantou-se da cadeira e apertou minha mão. De um jeito bastante amistoso, mostrando-me aqueles seus dentes de lanterna
de abóbora com um sorriso simpático, o próprio modelo do decoro e das boas maneiras.
“Ah”, disse-me ele, “o famoso tio Nat a respeito de quem o nosso Tom tanto fala.”
“Eu agora sou apenas Nathan. Deixamos de lado essa história de tio algumas horas atrás.”
“Apenas Nathan”, Harry repetiu, franzindo o cenho numa falsa demonstração de consternação, “ou Nathan e ponto? Estou um tanto confuso.”
“Nathan. Nathan Glass.”
Harry levou um dedo até o queixo e fez pose de alguém perdido em reflexões. “Mas que interessante. Tom Wood e Nathan Glass. Um tem madeira e o outro vidro no sobrenome. Se eu mudasse o meu para aço, ficaria
Harry Steel, e aí nós poderíamos abrir uma firma de arquitetura chamada Wood, Glass & Steel. Ha-ha. Gostei dessa. Wood, Glass & Steel. Você quer, a gente faz. Com madeira, vidro e aço.”
Era irresistível demais e eu cedi. “Ou eu poderia mudar o meu nome para Dick”, falei. “Aí nós nos perderíamos no anonimato total e seríamos apenas Tom, Dick e Harry.”*
“Mas não se pode usar a palavra dick em sociedade, meu caro”, disse Harry, fingindo-se escandalizado com meu emprego do termo. “Costuma-se dizer órgão masculino. Num grande aperto, a palavra pênis torna-se
aceitável. Mas dick jamais, Nathan. É vulgar ao extremo.”
Virei-me para Tom e disse: “Deve ser divertido trabalhar para alguém assim”.
“Jamais um instante de tédio”, Tom me respondeu. “Meu patrão é um pândego nato.”
Harry abriu um largo sorriso e lançou um olhar afetuoso para Tom. “Pois é, pois é. O mercado de livros é tão divertido que a gente fica até com dor de barriga de tanto rir. E você, Nathan, qual é a sua
linha de negócios? Não, retiro a pergunta. O Tom já me contou. Você é corretor de seguros.”
“Ex-corretor de seguros. Me aposentei antes da hora.”
“Mais um ex”, disse Harry, soltando um suspiro melancólico. “Quando um homem chega a nossa idade, Nathan, ele é pouco mais que uma série de ex-isso e aquilo. N’est-ce pas? No meu caso, por exemplo, daria
para enfileirar bem uma dúzia de ex. Ex-marido. Ex-marchand. Ex-marujo. Ex-vitrinista. Ex-vendedor de perfume. Ex-milionário. Ex-buffalense. Ex-morador de Chicago. Ex-presidiário. Isso mesmo, você ouviu
certo. Ex-presidiário. Tive meus percalços ao longo do caminho, como a maioria dos homens. Não tenho medo de admitir isso. Tom sabe de tudo a respeito do meu passado e aquilo que o Tom sabe quero que você
saiba também. Ele é como se fosse da família e, como você é parente dele, também é da família. Você, o ex-tio Nat, agora conhecido como Nathan e ponto. Já saldei minha dívida para com a sociedade e tenho
a consciência limpa. O xis marca o lugar exato, meu caro. Para todo o sempre, o xis marca o lugar exato.”
Eu não estava preparado para ouvir uma admissão de culpa assim tão nua e crua. Tom me avisara que Harry era um homem cheio de contradições e surpresas, mas, tendo em vista o rumo pândego que a conversa
havia tomado até ali, espantou-me aquela decisão súbita e repentina de confiar num estranho total. Talvez tivesse algo a ver com a confissão anterior que ele fizera a Tom, pensei cá comigo. Harry tivera
a coragem de tirar a viola do saco, por assim dizer, e depois de se abrir uma vez talvez não fosse tão difícil fazê-lo uma segunda. Claro que eu não poderia afirmar isso com certeza absoluta, mas por enquanto
me parecia a única hipótese plausível. Eu teria preferido ponderar sobre a questão um pouco mais, só que as circunstâncias não permitiram. A conversa foi adiante, cheia dos mesmos comentários cretinos
de antes, as mesmas tiradas cômicas, as mesmas galhofas, os mesmos gestos pseudo-histriônicos e, tudo somado, é preciso admitir que acabei ficando com uma impressão favorável daquele velhaco de cabeça
grande. Talvez, depois de certo tempo, Harry se tornasse um pouco cansativo para qualquer pessoa, mas a verdade é que ele não decepcionou. Até sair da livraria, eu já havia convidado os dois para me fazerem
companhia no jantar de sábado à noite.
Passava pouco das quatro da tarde quando voltei ao meu apartamento. Eu continuava pensando em Rachel, mas era meio cedo para ligar (minha filha só chegava em casa por volta das seis da tarde). Mas, ao
me imaginar pegando o telefone e ligando para ela, percebi que talvez fosse melhor pensar duas vezes. Nosso relacionamento andava bem azedo, havia uma probabilidade enorme de ela desligar na minha cara
outra vez e eu sentia um receio enorme de ser rejeitado de novo. Em vez de telefonar, resolvi escrever uma carta. Era uma abordagem mais segura e, se eu não pusesse o remetente no envelope, existia uma
boa chance de ela abrir e ler, em vez de rasgar e jogar a carta no lixo.
Pensei que seria simples, mas precisei de umas seis ou sete tentativas até achar o tom certo. Pedir perdão a alguém é um negócio complicado, é um difícil ato de equilíbrio entre orgulho empertigado e remorso
choroso e, a menos que você consiga se abrir de verdade com a outra pessoa, todo e qualquer pedido de desculpas soa oco e falso. Enquanto eu redigia rascunho após rascunho (e ficava cada vez mais desanimado
no processo, culpando-me por tudo quanto saíra errado em minha vida, fustigando minha pobre alma corroída qual um penitente medieval), lembrei-me de um livro que Tom me havia enviado de presente de aniversário,
uns oito ou nove anos antes, na época dourada em que June ainda vivia e Tom ainda era o brilhante e promissor Dr. Thumb. Tratava-se de uma biografia de Ludwig Wittgenstein, filósofo que eu até então conhecia
só de nome, sem nunca ter lido nada dele — o que não é uma circunstância muito incomum, já que grande parte de minhas leituras se restringia a obras de ficção, com pouco mais que incursões mínimas em outros
terrenos. Descobri-me diante de um livro envolvente e muito bem escrito, mas uma história se destacou das demais e nunca me esqueci dela. Segundo conta Ray Monk, autor da biografia, depois que Wittgenstein
escreveu seu Tractatus, na qualidade de combatente da Primeira Guerra Mundial, ele achou que havia resolvido todos os problemas da filosofia e encerrado o assunto para sempre. Logo depois, assumiu o posto
de professor primário numa remota aldeia nas montanhas austríacas, mas se revelou incapaz de ensinar. Severo, mal-humorado, até mesmo brutal, vivia o tempo todo zangado com as crianças e batia nelas quando
não conseguiam aprender as lições. E não eram punições meramente rituais, eram pancadas na cabeça e no rosto, sovas iradas que acabaram causando ferimentos graves em diversos alunos. Não demorou para que
começassem a circular rumores sobre essa sua conduta vergonhosa e Wittgenstein foi obrigado a renunciar ao posto. Passaram-se vários anos, no mínimo vinte, se não me engano, e àquela altura o filósofo
morava em Cambridge, de novo às voltas com a filosofia, já então um homem famoso e respeitado. Por motivos que agora me escapam, ele passou por uma crise espiritual e sofreu um esgotamento nervoso. Quando
começou a se recuperar, decidiu que a única forma de recobrar a saúde era marchar de volta ao passado e, com toda a humildade, pedir perdão a cada uma das pessoas que ofendera ou com quem fora injusto.
Ele queria purgar a culpa que estava virando uma pústula infectada dentro dele, queria limpar a consciência e começar de novo. E essa estrada, é claro, o levou de volta à pequena aldeia nas montanhas da
Áustria. Todos os seus antigos alunos já eram adultos, homens e mulheres de vinte e tantos anos. Entretanto a lembrança do professor violento não se havia apagado com o correr dos anos. Wittgenstein bateu
na porta de seus antigos discípulos, um a um, e pediu-lhes que o perdoassem pela intolerável crueldade de duas décadas antes. Diante de alguns, ele literalmente se pôs de joelhos e implorou a absolvição
dos pecados que cometera. Seria de imaginar que qualquer pessoa, perante uma demonstração tão sincera de contrição, fosse sentir piedade do peregrino sofredor. Mas de todos os antigos alunos de Wittgenstein,
nenhum, homem ou mulher, se dispôs a perdoá-lo. A dor que ele havia causado calara muito fundo e o ódio que sentiam do professor transcendera toda e qualquer possibilidade de misericórdia.
Apesar de tudo, eu me sentia quase certo de que Rachel não me odiava. Podia estar chateada comigo, ressentida, frustrada, mas eu não acreditava que sua animosidade fosse forte a ponto de criar uma separação
definitiva entre nós. Mesmo assim, não poderia me arriscar em hipótese alguma e, até conseguir redigir a versão final da carta, já me encontrava num estado de completo e absoluto arrependimento. “Perdoe
este seu pai imbecil por ter aberto a boca”, comecei, “e dito coisas das quais agora se arrepende mortalmente. De todas as criaturas deste mundo, você é a que mais importa para mim. Você é um pedaço de
mim, sangue do meu sangue, e me atormenta pensar que meus comentários imbecis podem ter contaminado nosso relacionamento. Sem você, eu não sou nada. Sem você, não sou ninguém. Minha querida, minha adorada
Rachel, por favor, dê a este velho cretino uma chance de se redimir.”
Continuei nessa linha por mais alguns bons parágrafos e terminei a carta com uma boa notícia, dizendo-lhe que Tom, seu primo, como se por um passe de mágica, havia surgido em pleno Brooklyn, que ele andava
querendo vê-la o quanto antes e conhecer o Terrence (marido dela, inglês de nascença, que dava aula de biologia na Rutgers). Talvez nós pudéssemos jantar todos juntos uma noite qualquer. Em breve, era
o que eu esperava. Nos próximos dias ou semanas — quando ela estivesse livre.
Eu havia levado mais de três horas para terminar e me sentia exausto, tanto física quanto mentalmente. Mas nem pensar em deixar a carta ali no apartamento, largada, de modo que saí assim que acabei de
escrevê-la e enfiei-a numa das caixas de correio situadas em frente à agência da avenida Sete. A essa altura já era hora do jantar, mas eu não sentia um pingo de fome. Em vez de ir comer, caminhei mais
diversos quarteirões, fui até a Shea, a loja de bebidas da região, e comprei uma garrafinha de uísque escocês e duas garrafas de vinho tinto. Não costumo beber muito, mas há momentos na vida de um homem
em que o álcool alimenta mais que a comida. E aquele calhava de ser um deles. Restabelecer o contato com Tom dera uma boa levantada em meu moral, mas de repente, ao me ver sozinho de novo, percebi a pessoa
patética e solitária em que eu me transformara — um pedaço de carne sem objetivo ou conexão. Não é comum que eu me veja dominado por uma onda de autopiedade, mas durante os sessenta minutos seguintes chorei
a própria sorte com o abandono de um adolescente enfezado. Ao fim e ao cabo, depois de dois uísques e meia garrafa de vinho, o abatimento começou a sumir e sentei-me à escrivaninha para acrescentar mais
um capítulo a O livro dos desvarios humanos, um incidente dos bons, envolvendo um vaso sanitário e um barbeador. Ocorrido na época em que Rachel estava no colegial, ainda morando em casa, numa gelada quinta-feira
de Ação de Graças, por volta das três e meia da tarde, com uma dúzia de convidados prestes a chegar para o almoço marcado para as quatro. Em troca de uma pequena fortuna, Edith e eu tínhamos acabado de
reformar o banheiro de cima e tudo ali dentro era novo em folha: os ladrilhos, os armários, o armarinho em cima da pia, a pia, a banheira e o boxe do chuveiro, a privada, tudo. Eu estava no quarto, parado
em frente ao espelho, dando o nó na gravata; Edith, na cozinha, regando o peru e cuidando dos detalhes de última hora; e minha filha Rachel, com seus dezesseis ou dezessete anos, que havia passado a manhã
e o início da tarde redigindo um relatório de física laboratorial, dentro do banheiro, corria para se aprontar antes de os convidados chegarem. Ela tinha acabado de tomar uma chuveirada no novo boxe e,
diante da nova privada, com o pé direito apoiado na borda do vaso, raspava a perna com um barbeador Schick movido à pilha. Em algum momento, a máquina escorregou da mão dela e caiu na água. Rachel tentou
tirá-lo de dentro do vaso, mas ele entalara bem no buraco da descarga e não havia por onde pegá-lo. Foi nesse momento que ela abriu a porta e gritou: “Paizinho” (ela ainda me chamava de paizinho na época),
“vem me ajudar.”
O paizinho foi. O mais engraçado, para mim, naquela nossa situação, é que o barbeador continuava zumbindo e vibrando dentro da água. Era um barulho insistente e irritante, um perverso acompanhamento oral
a algo que por si só já era uma situação bizarra e quem sabe até sem precedentes. Com o acréscimo do zumbido, ela se tornou, além de bizarra, hilária. Ri ao ver o que tinha acontecido e, assim que compreendeu
que eu não estava rindo dela, minha filha riu junto comigo. Se eu tivesse de escolher um momento, uma lembrança para manter guardada no cérebro, entre todos os momentos que passei com minha filha nos últimos
vinte e nove anos, acredito que seria esse.
As mãos de Rachel eram muito menores que as minhas. Se ela não conseguia tirar o barbeador de lá, não havia a menor chance de que eu pudesse fazer melhor, mas assim mesmo arrisquei, mais pro forma do que
por qualquer outra razão. Tirei o paletó, arregacei a manga da camisa, joguei a gravata por cima do ombro esquerdo e estendi a mão. O instrumento zumbidor estava tão apertadinho lá dentro que nem se mexeu.
Um tatu de encanador talvez ajudasse, mas nós não tínhamos um tatu, de modo que desfiz um cabide de arame e enfiei-o dentro da privada. Mesmo sendo fininho, o arame ainda assim era grosso demais e não
serviu.
Nesse momento a campainha tocou, lembro-me bem, e o primeiro dos vários parentes de Edith chegou. Rachel continuava de roupão de banho, ajoelhada, acompanhando minhas vãs tentativas de fisgar o barbeador
com o arame, mas o tempo urgia e eu lhe disse que talvez o melhor fosse ela se vestir. “Eu vou soltar o vaso e virá-lo de cabeça para baixo”, falei. “Talvez consiga retirar o nosso amiguinho pelo outro
lado.” Rachel sorriu, empurrou meu ombro com jeito de quem me achava meio maluco e levantou do chão. Quando ela estava saindo do banheiro, eu falei: “Diga para sua mãe que eu desço em instantes. Se ela
perguntar o que eu estou fazendo, diga que não é da conta dela. Se ela perguntar de novo, diga que estou aqui em cima lutando pela paz mundial”.
Havia uma caixa de ferramentas no armário das toalhas, no hall de distribuição, e, depois de desligar o registro da privada, removi o vaso com a ajuda de um alicate. Não sei quantos quilos tinha. Consegui
erguê-lo do chão, mas era pesado demais e eu não sabia se conseguiria virá-lo de cabeça para baixo sem derrubá-lo, sobretudo em espaço tão apertado. Era preciso tirá-lo do banheiro, mas como fiquei com
receio de danificar a madeira do assoalho se levasse o vaso até o hall, decidi descer com ele até o quintal.
A cada passo que eu dava, o vaso parecia ficar bem um quilo mais pesado. Até chegar ao fim da escada, era como se eu estivesse levando um pequeno elefante branco nos braços. Felizmente, um dos irmãos de
Edith tinha acabado de entrar em casa e, quando viu o que eu estava fazendo, aproximou-se e me deu uma mãozinha.
“Qual é o problema, Nathan?”, ele perguntou.
“Estou carregando uma privada. A gente vai levá-la para fora e pôr no quintal.”
Àquela altura, todos os convidados já tinham chegado e todos olhavam boquiabertos o estranho espetáculo de dois homens de gravata e camisa branca carregando uma privada musical pelos aposentos de uma casa
de classe média num feriado de Ação de Graças. O aroma de peru assado a tudo permeava. Edith servia as bebidas. Uma música do Frank Sinatra tocava ao fundo (“My Way”, se não me engano) e a querida e ultraconstrangida
Rachel a tudo observava com uma expressão mortificada no rosto, consciente de ser a responsável por atrapalhar a festa tão cuidadosamente planejada pela mãe.
Nós levamos o elefante para fora e o viramos de cabeça para baixo na grama castanha de outono. Já não me lembro quantas ferramentas diferentes eu peguei na garagem, e nenhuma delas funcionou. Nem o cabo
do ancinho, nem a chave de fenda, tampouco a sovela e o martelo — nada. E o barbeador lá, zumbindo a todo vapor, entoando sua interminável ária de uma nota só. Vários convidados foram ter conosco no quintal,
mas aos poucos sentiram fome, frio e tédio e, um a um, voltaram todos para dentro de casa. Mas não eu, não o obstinado e perseverante Nathan Glass. Quando finalmente entendi que não havia mais esperança,
peguei uma marreta e reduzi o vaso sanitário a caquinhos. E só então o indômito barbeador se soltou. Desliguei o aparelho, enfiei-o no bolso e entreguei-o a minha enrubescida filha quando entrei em casa.
Pelo que sei, o maldito continua funcionando até hoje.
Depois de jogar a história na caixa com a etiqueta “Reveses”, terminei a outra metade da garrafa de vinho e fui para a cama. Verdade seja dita (e como escrever este livro sem contar a verdade?), só consegui
dormir depois de me masturbar. Esforçando-me ao máximo para imaginá-la sem roupa, tentei me convencer de que a qualquer instante Marina Gonzalez iria abrir a porta do quarto e entrar debaixo das cobertas,
louca para enroscar sua carne quente e macia na minha.
* Fulano, sicrano e beltrano. (N. T.)
A surpresa do banco de esperma
Masturbação acabou sendo um dos temas da conversa que Tom e eu tivemos durante o almoço no dia seguinte (dessa vez num restaurante japonês, já que era o dia de folga de Marina). Tudo começou quando lhe
perguntei se tinha conseguido restabelecer contato com a irmã. Pelo que eu sabia, Rory aparecera em New Jersey pela última vez pouco antes da morte de June, para pegar a filha Lucy de volta. Isso fora
em 1992, quase oito anos antes, portanto, e pelo simples fato de Tom não me ter dito nada sobre ela no dia anterior, eu presumia que minha sobrinha havia tomado chá de sumiço e desaparecido da face da
Terra.
Mas não era bem assim. Lá pelo final de 1993, menos de um ano depois de minha irmã ter sido enterrada, Tom e mais dois colegas de faculdade bolaram um plano para ganhar um dinheiro rápido e fácil. Havia
uma clínica de inseminação artificial nos arredores de Ann Arbor e os três então decidiram oferecer seus préstimos e se inscreveram como doadores para o banco de esperma. O plano foi levado na palhaçada,
segundo Tom, e nenhum dos três parou para pensar nas conseqüências do que estavam fazendo: enchendo tubos de ensaio de sêmen ejaculado a fim de impregnar mulheres que eles não veriam nem teriam entre os
braços e que, por sua vez, dariam à luz filhos — filhos deles — cujos nomes, vidas e destinos seriam para sempre desconhecidos.
Foram levados cada um para um pequeno quarto individual e, para que todos entrassem sem delongas no espírito do projeto, a clínica muito atenciosamente fornecia aos doadores uma pilha de revistas pornográficas
— fotos e mais fotos de jovens nuas em posições eróticas sedutoras. Dada a natureza do macho, tais imagens muito raramente deixam de provocar ereções rígidas e pulsantes. Levando a sério sua tarefa, como
sempre, Tom sentou-se muito aplicado na cama e começou a folhear as revistas. Um minuto ou dois depois, já com a calça e a cueca pelos calcanhares, a mão direita agarrada no pau enquanto a esquerda continuava
virando as páginas das revistas, seria uma mera questão de tempo até terminar o serviço. E foi então que, numa publicação que mais tarde identificou como sendo uma tal de Midnight Blue, Tom viu a irmã.
Não havia a menor dúvida de que se tratava de Aurora — bastou uma única espiada para Tom saber quem era. Não que ela tivesse ao menos se preocupado em disfarçar o nome. As mais de doze fotos que apareciam
na revista vinham sob o título “Rory, a Magnífica” e mostravam-na em fases diversas de nudez e provocação: trajando uma camisolinha transparente numa das fotos, uma cinta-liga e meias pretas na outra,
botas de verniz até os joelhos numa outra, mas lá pela página quatro era Rory em estado puro, dos pés à cabeça, acariciando os seios pequenos, tocando na genitália, empinando o traseiro, abrindo as pernas
de forma a não deixar o menor espaço para a imaginação, muito sorridente em todas as fotos, em algumas rindo mesmo, o olhar iluminado por uma onda de felicidade e candura, sem o menor traço de relutância
ou ansiedade, dando a impressão de estar se divertindo a valer.
“Aquilo quase me matou”, Tom disse. “Em dois segundos, meu pau virou uma maria-mole. Levantei a calça, afivelei o cinto e saí de lá o mais rápido que pude. Fiquei arrasado, Nathan. Minha irmãzinha se mostrando
numa revista de mulher pelada. E descobrir isso de maneira tão terrível — sem mais nem menos, sentado numa maldita clínica tentando gozar. Fiquei enojado, com ânsia de vômito. Não só porque odiei ver Rory
daquele jeito, mas também porque eu não tinha notícias dela havia quase dois anos e aquelas fotos pareciam confirmar meus piores pesadelos sobre seu destino. Na época ela tinha só vinte e dois anos, mas
já fora reduzida ao mais vil de todos os trabalhos degradantes: estava vendendo o corpo. Foi tudo tão triste que durante um mês eu só quis saber de chorar.”
Quando se vive tanto tempo quanto eu, a tendência é achar que já escutamos de tudo, que não há mais nada capaz de nos chocar. E, com esse nosso suposto conhecimento do mundo, ficamos um tanto complacentes;
e então, de vez em quando, aparece algo que nos joga para fora desse confortável casulo de superioridade, que torna a nos lembrar que não entendemos coisa alguma da vida. Minha pobre sobrinha. Rory tirara
a sorte grande, a loteria genética fora boníssima com ela. Ao contrário de Tom, que herdara a fôrma dos Wood, Aurora era uma Glass de ponta a ponta, e a família é toda de gente alta e magra. Saíra idêntica
à mãe — uma beldade de pernas compridas e cabelos escuros, tão flexível e graciosa quanto a própria June. A Natasha de Guerra e Paz em contraste com Pierre, o irmão destrambelhado. Claro que todo mundo
quer ser bonito, mas a beleza numa mulher pode às vezes ser maldição, sobretudo quando se é tão jovem quanto Aurora: curso colegial incompleto, ausência de um marido, uma filha de três anos para sustentar
e uma veia rebelde correndo no sangue criam disposição para dar uma banana ao mundo e assumir qualquer risco que surja. E quando a jovem está dura e tem como maior capital a própria aparência, por que
não se despir e se mostrar na frente de uma câmera? Desde que consiga lidar com a situação, ceder a uma oferta dessas pode significar a diferença entre comer e não comer, entre viver bem e mal conseguir
viver.
“Talvez ela só tenha feito isso uma única vez”, falei, fazendo o pouco que podia para consolar Tom. “Sabe como é, ela está com dificuldade para pagar as contas, aparece um fotógrafo e lhe propõe fazer
as fotos. Um dia de trabalho em troca de uma bela bolada.”
Tom sacudiu a cabeça e, pela expressão sombria no rosto de meu sobrinho, percebi que aquele meu comentário não passava de um exercício fútil, como se eu estivesse desejando a realização do impossível.
Ele não conhecia os detalhes todos, mas sabia com certeza que a história não começara e tampouco acabara com aquela sessão de fotos para a Midnight Blue. Aurora já tinha sido dançarina topless no distrito
de Queens (no Jardim das Delícias Terrenas, a mesma boate onde Tom deixara os executivos bêbados, na noite de seu trigésimo aniversário), já fizera mais de uma dúzia de filmes pornô e posara para revistas
de mulher pelada umas seis ou sete vezes. Sua carreira na indústria do sexo havia durado dezoito meses. Como era muito bem paga pelo trabalho, o mais provável é que teria se mantido no ramo bem mais tempo,
não fosse algo que aconteceu umas nove ou dez semanas depois de Tom ter visto a foto dela na Midnight Blue.
“Nada de ruim, espero”, falei para Tom.
“Pior do que ruim”, Tom retrucou, de repente à beira das lágrimas. “Ela foi estuprada várias vezes durante uma filmagem. Pelo diretor, pelo câmera e por metade da equipe.”
“Meu Deus do Céu.”
“Eles acabaram com ela, Nathan. Ela sangrava tanto, no fim, que teve de ser internada num hospital.”
“Como eu gostaria de matar os filhos-da-puta que fizeram isso com ela.”
“Eu também. Ou pelo menos botar todos eles na cadeia, mas ela não quis prestar queixa. Só pensava em se mandar, em dar o fora de Nova York. Foi aí que ela me deu notícias. Mandou uma carta para mim, aos
cuidados do Departamento de Inglês da faculdade, e quando percebi a situação em que tinha se metido, liguei e chamei as duas, ela e a filha, para morar comigo em Michigan. Rory é uma boa pessoa, Nathan.
Você sabe disso. Eu sei disso. Todo mundo que conhece minha irmã sabe disso. Ela não tem um pingo de maldade. É meio descontrolada, talvez um pouco teimosa, mas completamente inocente e confiante, a pessoa
menos cínica deste mundo. Sorte dela não sentir a menor vergonha de trabalhar com pornografia, suponho. Ela achava divertido. Divertido! Dá para imaginar? Não percebia que é um ramo cheio de crápulas e
canalhas da pior espécie.”
E assim foi que Aurora e a filha Lucy, então com três anos de idade, mudaram-se para o Meio-Oeste, instalando-se junto com Tom nos dois andares de cima de uma casa alugada. Em Nova York, Aurora ganhava
um salário decente, mas, entre aluguel, roupas e uma babá em tempo integral para Lucy, o dinheiro tinha ido quase todo embora, o que significava que não havia nada guardado. Tom se virava com uma bolsa,
mas vivia com o orçamento apertado de estudante, que complementava com um emprego de meio período na biblioteca da faculdade. Por isso eles chegaram a pensar em ligar para o pai, na Califórnia, e pedir
um empréstimo, mas acabaram mudando de idéia. Pensaram no padrasto, em Nova Jersey, Philip Zorn. Mas as extravagâncias beligerantes de Rory, na adolescência, haviam deixado a família em polvorosa durante
anos e anos e os dois irmãos acharam melhor não recorrer a um homem que, em decorrência dos conflitos daquela época, acabara sentindo desprezo pela enteada. Tom nunca tocou nesse assunto com a irmã, mas
sabia que no fundo Zorn a julgava culpada pela morte da mãe. Aurora mantivera June num cerco prolongado de apreensão e desespero e a única recompensa por todo aquele sofrimento tinha sido o presente inesperado
de poder criar a netinha. De repente, também isso lhe foi tirado e, na cabeça de Zorn, a angústia de ter de se separar da criança acabou com June. Era uma leitura sentimental da história, talvez, mas sabe-se
lá se ele não estava certo? Para ser absolutamente sincero, no dia do enterro pensei a mesma coisa.
Em vez de pedir auxílio, Rory arrumou trabalho como garçonete no restaurante francês mais chique e caro da cidade. Ela não tinha experiência alguma, mas encantou o dono com o sorriso, as pernas compridas
e o rostinho bonito, e, como era uma moça inteligente, aprendeu rápido e dominou a rotina do estabelecimento em poucos dias. Aquilo representava um enorme retrocesso em relação à vida de alta voltagem
que levava em Nova York; entretanto, a última coisa que Aurora andava procurando, na época, era emoção. Ferida e humilhada, ainda perseguida pelas lembranças daquela coisa maléfica que haviam feito com
ela, só queria uma trégua monótona e tranqüila, uma chance para recuperar as forças. Tom falou em pesadelos, em ataques repentinos de choro, em longos silêncios melancólicos. Apesar disso tudo, também
se lembrava dos meses passados com a irmã como tendo sido uma época feliz, um tempo de grande solidariedade e de afeto mútuo; sem contar o prazer indizível de poder assumir de novo o papel de irmão mais
velho. Ele era seu amigo e protetor, seu guia e seu apoio, sua rocha firme.
À medida que Aurora foi recuperando o antigo viço e o entusiasmo de antes, começou a falar em obter um equivalente ao diploma do colegial para poder entrar numa faculdade. Tom incentivou-a a levar o plano
adiante, prometendo ajudá-la com o trabalho se por acaso sentisse alguma dificuldade. Nunca é tarde demais, ele repetia para a irmã a todo momento, nunca é tarde demais para recomeçar; mas, de certa forma,
era tarde. As semanas foram passando e, como Rory continuava adiando a decisão, Tom percebeu que lhe faltava a vontade necessária. Nos dias de folga do restaurante, ela começou a freqüentar uma boate local
nas noites de “microfone livre”, quando tinha a chance de cantar blues com três músicos que havia conhecido no trabalho, servindo a mesa deles, e não demorou muito para que resolvessem se juntar e formar
um grupo. Deram à banda o nome de Admirável Mundo Novo; assim que Tom os viu atuar, entendeu que o ímpeto passageiro de Rory para retomar os estudos sofrera um revés fulminante. A irmã cantava bem. Sempre
tivera uma boa voz, mas agora que estava mais velha, agora que os pulmões haviam sido submetidos ao alcatrão e à fumaça de cinqüenta mil cigarros, essa voz adquirira uma nova e fascinante qualidade — ganhara
algo profundo, gutural, sensual, uma honestidade doída, aprendida na escola da vida — que obrigava quem estivesse escutando a endireitar o corpo na cadeira e prestar atenção. Tom sentia-se ao mesmo tempo
contente e apreensivo pela irmã. Um mês depois, Aurora estava de caso com o guitarrista e Tom sabia que logo mais eles partiriam junto com os dois outros músicos rumo a alguma cidade maior — Chicago ou
Nova York, Los Angeles ou San Francisco, qualquer lugar do país que não fosse Ann Arbor, Michigan. Iludida ou não, Aurora se via como uma estrela e só seria feliz e se sentiria realizada se os olhos do
mundo estivessem voltados para ela. Tom entendeu e não fez mais do que uma tentativa frágil e pro forma de retê-la. Antes filmes de sacanagem; agora o blues. Sabe Deus o que viria em seguida. Rezava para
que o guitarrista, cujo nome calhava de ser Tom também, não fosse tão cretino quanto parecia.
Quando o momento inevitável chegou, o Admirável Mundo Novo e sua pequena mascote entraram numa perua Plymouth com quase cento e trinta mil quilômetros rodados e tomaram o caminho de Berkeley, Califórnia.
Passaram-se sete meses até Tom ter notícias dela de novo: um telefonema no meio da noite e a voz da irmã na outra ponta cantando “Parabéns a você” para ele, doce e inocente como sempre.
Depois disso, mais nada. Aurora sumiu tão completa e misteriosamente quanto havia surgido em Michigan e, por mais que desse tratos à bola, Tom não entendia por quê. Por acaso não era amigo dela? Não era
alguém com quem ela poderia contar, fosse qual fosse o apuro em que estivesse metida? Tom sentiu-se magoado, depois teve raiva, em seguida ficou triste e, à medida que os longos meses de silêncio foram
se prolongando e se transformando em mais um ano, a tristeza virou um imenso desalento, uma certeza de que algo terrível lhe acontecera. No outono de 1997, Tom desistiu de vez de sua tese de doutorado.
Uma noite antes de deixar Ann Arbor, recolheu todas as suas anotações, todos os seus diagramas e listas, todos os incontáveis rascunhos da derrocada em treze capítulos e, uma a uma, queimou página por
página num velho tambor de óleo no quintal. Tão logo a grande fogueira melvilliana se apagou, um dos estudantes com quem dividia a casa levou-o de carro até o terminal rodoviário, e uma hora depois Tom
estava a caminho de Nova York. Três semanas após sua chegada, começou a trabalhar como motorista de táxi e então, passadas seis semanas, Aurora ligou. Não estava agitada nem perturbada, Tom contou, não
caíra em nenhuma sinuca nem queria dinheiro emprestado — queria só ver o irmão.
Encontraram-se para o almoço no dia seguinte e durante os primeiros vinte ou trinta minutos Tom não conseguiu parar de olhar para ela. Aurora estava com vinte e seis anos, então, e ainda era uma moça linda,
tão linda quanto qualquer mulher bonita deste mundo, mas o invólucro havia mudado. Ainda se parecia com a outra Aurora, só que era uma Aurora diferente que Tom via ali a sua frente, e estava difícil decidir
qual das duas preferia, se a antiga ou a nova. No passado, ela costumava usar os fartos cabelos bem longos; havia muita maquiagem, bijuterias grandes, anéis em todos os dedos e uma tendência para se vestir
com roupas criativas, pouco ortodoxas: botas verdes de couro e chinelinhas chinesas, jaquetas de motoqueiro e saias de seda, luvas rendadas e estolas audaciosas, um estilo semipunk, semi-sedutor que parecia
uma expressão tanto de sua juventude como de seu jeitão galhardo de fodam-se vocês. Agora, porém, ela parecia decididamente recatada. Usava o cabelo cortado curtinho; estava sem maquiagem, a não ser por
uma leve sugestão de batom. As roupas, mais convencionais, impossível: saia azul pregueada, malha branca de cashmere e sapatos marrons de salto médio. Também estava sem brincos, trazia apenas um anel no
quarto dedo da mão direita e não havia nada em volta do pescoço. Tom não quis perguntar, mas estava doido para saber se a enorme águia tatuada no ombro esquerdo da irmã continuava ali — ou se, num esforço
para se purificar, para expurgar-se de todos os vestígios de uma outra vida, ela passara pelo penoso processo de apagar o pássaro todo cheio de cores e enfeites que tinha gravado na pele.
Dava para perceber que Aurora estava felicíssima de ver o irmão, mas ao mesmo tempo ele sentia o quanto ela relutava em falar de qualquer coisa que não fosse o presente. Não se desculpou por ter desaparecido
tanto tempo e, quando surgiu a questão de por onde andara desde que saíra de Ann Arbor, resumiu todos os fatos em algumas poucas frases. O Admirável Mundo Novo se dissolvera depois de menos de um ano;
ela cantou com dois outros grupos no Norte da Califórnia; houve homens, e depois mais homens e ela começou a se drogar demais. No fim, deixou Lucy com duas amigas — um casal de lésbicas já quarentonas
que moravam em Oakland — e se internou numa clínica de desintoxicação, onde conseguiu se recuperar em seis meses. Toda a saga foi contada em menos de dois minutos, o que deixou Tom aturdido demais para
pedir mais detalhes. Em seguida Aurora começou a falar de alguém chamado David Minor, o líder do grupo ao qual ela pertencia na clínica, que já havia se aprumado até ela se desintoxicar e entrar para o
programa. Ele tinha sido a pessoa responsável, sozinha, por salvá-la e, sem ele, ela jamais teria conseguido. Mais do que isso, ele era o único homem que ela conhecia que não a achava burra, que não tinha
sexo na cabeça vinte e quatro horas por dia, que não estava atrás só do seu corpo. Descontando Tom, claro, mas irmãs não podem se casar com os irmãos, não é mesmo? Era contra a lei, de modo que ela ia
se casar com David. Já haviam se mudado para Filadélfia e estavam na casa da mãe dele, enquanto procuravam trabalho. Lucy freqüentava uma boa escola e David planejava adotá-la depois do casamento. E era
por isso que tinha ido até Nova York: pedir as bênçãos de Tom e perguntar se estaria disposto a entrar com ela na igreja. Claro, disse Tom, claro que estava, seria uma honra. Mas e papai, perguntou meu
sobrinho, não caberia a ele conduzi-la ao altar? Talvez, Aurora admitiu, mas ele não estava nem aí para os filhos, correto? Estava envolvido demais com a nova mulher e os novos filhos e, além disso, era
muito pão-duro para bancar a passagem aérea de Los Angeles a Filadélfia. Não, ela disse, tinha de ser Tom. Tom e mais ninguém.
Meu sobrinho pediu à irmã que falasse um pouco mais a respeito de David Minor, mas ela se limitou a discorrer sobre vagas generalidades, o que parecia indicar que não conhecia tanto do futuro marido quanto
deveria. David a amava, ele a respeitava, era bom com ela e por aí afora, mas não havia nada de muito sólido naquelas frases para que Tom pudesse formar uma imagem do homem. Depois, com a voz baixando
a pouco mais que um sussurro, Aurora acrescentou: “Ele é muito religioso”.
“Religioso? Que tipo de religião?”, perguntou Tom, tentando não parecer alarmado.
“Cristão. Você sabe, Jesus e essa coisarada toda.”
“E o que significa isso? Ele pertence a uma seita específica ou estamos falando aqui de um fundamentalista?”
“De um fundamentalista, imagino.”
“E você, Rory? Você acredita nessas coisas?”
“Eu tento, mas acho que não estou me saindo muito bem, não. David diz que eu preciso ter paciência, que um dia meus olhos vão se abrir e eu vou ver a luz.”
“Mas você é metade judia. Pela lei judaica, você é toda judia.”
“Eu sei. Por causa da mamãe.”
“E?”
“David diz que isso não importa. Jesus também era judeu e ele foi o filho de Deus.”
“Parece que esse seu David diz um monte de coisas. Foi ele que fez você cortar o cabelo e se vestir desse jeito?”
“Ele nunca me força a fazer nada. Fiz porque quis.”
“Com os incentivos dele.”
“O recato é bom para a mulher. O David diz que ajuda minha auto-estima.”
“O David diz.”
“Por favor, Tommy, tente ser um pouco mais compreensivo. Eu sei que você não aprova, mas finalmente encontrei uma chance de ter um pouco de felicidade e não vou deixar que ela escorregue por entre os meus
dedos. Se o David quer que eu me vista deste jeito, que diferença faz? Eu costumava andar por aí parecendo uma vadia. Assim é bem melhor para mim. Eu me sinto mais segura, mais senhora de mim. Depois de
todas as burradas que fiz, tenho sorte de ainda estar viva.”
Tom cedeu, mudou de assunto e eles se despediram aquela tarde com abraços apertados e beijos sinceros, jurando que nunca mais perderiam o contato. Tom estava certo de que Aurora falava sério, daquela vez,
mas a data do casamento foi chegando e nada de convite de casamento — tampouco houve uma carta, ou um recado por telefone, nem uma palavra, de nenhum tipo. Quando ele ligou para o número em Filadélfia
que ela havia rabiscado num guardanapo de papel, durante o almoço, uma voz mecânica declarou que o número estava fora de serviço. Em seguida Tom tentou localizá-la através do serviço de informações da
cidade, mas dos três David Minor com quem conversou, nenhum ouvira falar de uma mulher chamada Aurora Wood. Para não perder o costume, Tom se culpou. Seus comentários negativos a respeito da religião do
sujeito provavelmente tinham deixado Rory magoada e, se por acaso ela tivesse levado a coisa adiante, se tivesse contado ao noivo a respeito do irmão ateu de Nova York, é possível que ele a houvesse proibido
de convidá-lo para o casamento. Pelo pouco que Tom sabia, David Minor parecia ser esse tipo de homem: um daqueles fanáticos prepotentes que impunham suas leis aos outros, um chato metido a santarrão.
“E de lá para cá teve alguma notícia dela?”
“Nada”, disse Tom. “Está fazendo uns três anos desde que almoçamos juntos aquele dia e eu não faço a menor idéia de onde ela está.”
“E o tal do telefone que ela lhe deu? Você acha que era verdadeiro?”
“Rory pode ter lá seus defeitos, mas mentirosa ela não é.”
“Se na época eles se mudaram de lá, por que você não entrou em contato com a mãe dele?”
“Eu bem que tentei, mas não consegui.”
“Estranho.”
“Na verdade não. E se o sobrenome dela não for Minor? Os maridos morrem. As pessoas se divorciam. Talvez ela tenha se casado de novo e adotado o sobrenome do segundo marido.”
“Estou com dó de você, Tom. Que situação.”
“Não precisa. Não vale a pena. Se a Rory quisesse me ver, ela ligaria. Já me conformei. Sinto saudade dela, claro, mas não dá para fazer nada a respeito, certo?”
“E o seu pai? Quando foi a última vez que você o viu?”
“Uns dois anos atrás. Ele tinha que vir a Nova York por causa de um artigo no qual andava trabalhando e me convidou para jantar.”
“E?”
“Bem, você conhece o jeito dele. Não é a criatura mais fácil deste mundo para se levar um papo.”
“E os Zorn? Você ainda tem contato com eles?”
“De vez em quando. O Philip me convida para ir a Nova Jersey passar o Dia de Ação de Graças todo ano. Nunca gostei muito dele, quando era marido da minha mãe, mas aos poucos acabei mudando de opinião.
A morte dela o deixou arrasado e quando entendi o quanto Philip a amava, tive de pôr os ressentimentos de lado. De modo que agora mantemos uma espécie de amizade muito branda e respeitosa. A mesma coisa
com a Pamela. Ela sempre me deu a impressão de ser uma esnobe e uma fútil, daquele tipo que dá importância demais ao nome da faculdade que a pessoa cursou e quanto ela ganha por ano, mas pelo visto melhorou
um pouco com o correr dos anos. Está com uns trinta e cinco ou trinta e seis anos, agora, e mora em Vermont com o marido advogado e dois filhos. Se quiser ir a Nova Jersey comigo no feriado de Ação de
Graças, tenho certeza de que eles ficariam contentes de vê-lo.”
“Vou pensar a respeito, Tom. Por enquanto, porém, você e a Rachel são a única família que estou conseguindo engolir. Mais um ex-parente e é capaz de eu engasgar.”
“E como vai a velha prima Rachel? Eu ainda nem perguntei.”
“Ah, aí é que está o enrosco, meu rapaz. Em si mesma, acho que está ótima. Tem um bom emprego, um marido decente e um apartamento confortável. Mas nós tivemos uma pequena rusga, uns dois meses atrás, e
as coisas ainda não se resolveram. Resumindo, existe uma probabilidade razoável de ela nunca mais querer falar comigo.”
“Estou com dó de você, Nathan.”
“Não precisa. Não vale a pena. Prefiro que me deixe sentir dó de você.”
A rainha do Brooklyn
Quando Tom e eu nos encontramos de novo para o almoço, no dia seguinte, já havíamos compreendido que um pequeno ritual começara a ser criado. Não que tivéssemos articulado a idéia, nem nada, mas sempre
que não surgia nenhum outro plano ou obrigação, fazíamos questão de nos encontrar para o almoço. Pouco importa que eu tivesse duas vezes a idade dele e que antes fosse chamado de tio Nat. Como disse Oscar
Wilde certa feita, depois dos vinte e cinco, todos temos a mesma idade, e a verdade é que nossas circunstâncias de momento eram quase iguais. Vivíamos ambos sozinhos, nenhum dos dois estava envolvido com
mulher e não possuíamos muitos amigos (no meu caso, não havia nenhum). Existiria uma forma melhor de romper a monotonia da solidão do que dividir a bóia com um confrade, um semblable, com um saudoso Tomassino
levando um bom papo enquanto se engole o rango?
Marina estava de serviço, naquele dia, mais sensacional que nunca dentro de um jeans justinho e uma blusa laranja. Era uma combinação deliciosa, já que havia o que examinar e admirar tanto quando ela caminhava
para mim (a visão frontal de um amplo par de seios contundentes) como quando se afastava (a visão posterior de um redondo e até certo ponto farto traseiro). Depois daquela recente fantasia minha de um
encontro noturno com ela, sentia-me um pouco mais reticente que o normal, mas como a história daquela gorjeta absurda que eu havia deixado por ocasião da última visita à lanchonete continuava no ar, Marina
se desmanchou em sorrisos para nós, ao pegar os pedidos, sabendo (acho eu) que conquistara para sempre o meu coração. Não consigo me lembrar de uma única palavra trocada entre nós, mas devo ter encerrado
o diálogo com um sorriso meio apatetado na cara, porque, assim que ela se afastou rumo à cozinha, Tom comentou que eu estava estranho e perguntou se eu me sentia bem. Assegurei que me encontrava em excelente
forma e, ato contínuo, confessei minha louca paixão não correspondida. “Eu moveria céus e terras por essa garota”, falei, “mas não iria adiantar nada. Ela é casada e cem por cento católica. Mas pelo menos
me dá uma chance de sonhar.”
Preparei-me para ouvir uma sonora gargalhada da parte de Tom, mas ele me surpreendeu. Com uma expressão solene no rosto, estendeu o braço por cima da mesa e me deu um tapinha na mão. “Eu sei direitinho
como você se sente, Nathan. É uma coisa terrível.”
E então foi a vez de Tom confessar e dizer que também ele estava apaixonado por uma mulher inatingível.
Ele a chamava de B.M.P. Eram as iniciais de Bela Mãe Perfeita, e além de nunca lhe dirigir a palavra, nem sabia como se chamava. A moça morava numa casa com fachada de arenito pardo, a meio caminho entre
o apartamento dele e a livraria de Harry, e todas as manhãs, quando saía para tomar café, ele a via sentada nos degraus da frente, com os dois filhos pequenos, esperando a chegada do ônibus escolar que
levaria as crianças para a escola. Tom me disse que ela era linda, que tinha cabelos pretos compridos e uns olhos verdes luminosos, mas o que mais o comovia nela era a maneira como segurava e acariciava
os filhos. Tom nunca vira uma forma tão eloqüente, tão simples, tão terna e tão feliz de expressar o amor materno. Na maioria das vezes, a B.M.P. estava sentada no meio dos filhos, enlaçando pela cintura
as crianças, que se apoiavam nela, e distribuindo beijinhos e afagos de um lado a outro; às vezes, os filhos esperavam sentados nos joelhos da mãe, protegidos pelo abraço duplo e rodeados por um círculo
encantado de afagos, músicas e risadas. “Eu passo por ela o mais devagar que posso”, Tom continuou. “Um espetáculo desses precisa ser saboreado, e em geral finjo ter deixado cair algo no chão, ou paro
para acender um cigarro — qualquer coisa que prolongue o prazer, nem que seja por uns poucos segundos. Ela é tão linda, Nathan, e vê-la com aquelas crianças quase que dá vontade de começar a acreditar
na humanidade de novo. Eu sei que é ridículo, mas provavelmente penso nela umas vinte vezes por dia.”
Não gostei do que ouvi, mas guardei meus pensamentos cá comigo. Tom estava com trinta anos, ou seja, no auge de sua virilidade, e no entanto, em se tratando de mulher ou de busca do amor, meu sobrinho
praticamente perdera a fé em si mesmo. Sua última namorada firme fora uma colega de faculdade chamada Linda alguma coisa, mas eles haviam terminado seis meses antes de Tom deixar Ann Arbor e, desde então,
a sorte tinha sido tão pouca que ele acabara fora de circulação. Dois dias antes, Tom me contara que havia mais de um ano que não saía com ninguém, o que significava que sua vida amorosa se resumia àquela
adoração silenciosa da B.M.P. Achei patético. O rapaz precisava criar coragem e arriscar de novo. Ao menos precisava transar — e parar de desperdiçar as noites sonhando com uma beatífica mãe-terra. Claro
que eu me achava no mesmo barco, mas ao menos sabia o nome da garota dos meus sonhos e, toda vez que entrava no Cosmic e me sentava à mesma mesa de sempre, podia trocar algumas palavras com ela. O que
era mais do que suficiente para um velho como eu. Eu já tinha dançado minha valsa e tido meus momentos na vida e o que acontecesse dali em diante comigo era de pouca ou nenhuma importância. Se surgisse
a oportunidade de fazer mais uma cruzinha na coronha de minha arma, claro que eu não diria não, mas não se tratava de uma questão de vida ou morte. Para Tom, no entanto, tudo dependia de ter peito para
voltar a entrar de sola na parte mais renhida do jogo. Caso contrário, continuaria definhando na penumbra acanhada daquele seu inferno privado e, com o passar dos anos, se tornaria mais amargo e, aos poucos,
acabaria sendo alguém que nunca deveria ter sido.
“Eu gostaria de ver essa criatura com meus próprios olhos”, falei. “Do jeito como você conta, dá a impressão de que ela é uma aparição do outro mundo.”
“Quando você quiser, Nathan. É só passar no meu apartamento às quinze para as oito da manhã que nós descemos o quarteirão juntos. Você não vai se decepcionar, eu garanto.”
E assim foi que na manhã seguinte descemos juntos a rua favorita do meu sobrinho. Eu imaginava que fosse exagero dele aquela história do “poder hipnótico” da Bela Mãe Perfeita, mas no fim quem estava errado
era eu. A mulher era de fato perfeita, de fato uma encarnação sublime do angélico e do belo, e vê-la sentada nos degraus da frente de sua casa, com os braços em volta da cintura de seus dois filhos pequenos,
era suficiente para fazer trepidar o coração de um velho empedernido. Tom e eu estávamos parados do outro lado da rua, estrategicamente posicionados atrás do tronco de uma alta alfarrobeira, e o que mais
me comoveu na amada de meu sobrinho foi a liberdade absoluta dos gestos, um abandono desinibido que lhe permitia viver por inteiro o momento, num agora sempre presente e em constante expansão. Imaginei
que devia ter por volta de uns trinta anos, mas seu porte era o de uma jovem leve e despretensiosa, e para mim foi agradável ver uma mulher com um corpo assim tão bonito aparecer em público vestida com
um macacão branco e uma camisa xadrez de flanela. Era um sinal de confiança, eu percebi, uma indiferença às opiniões alheias que só as almas mais seguras e equilibradas possuem. Não que estivesse prestes
a abandonar minha paixonite por Marina Gonzalez, mas segundo todos os padrões objetivos de beleza feminina, eu sabia que a minha Marina não chegava nem aos pés da B.M.P.
“Aposto como ela é artista”, eu disse a Tom.
“O que o leva a dizer isso?”
“O macacão. Os pintores gostam de usar macacão. Pena que a galeria do Harry fechou as portas. Nós poderíamos organizar uma exposição com os trabalhos dela.”
“Mas também pode ser que ela esteja grávida de novo. Eu já a vi com o marido umas duas vezes. Um cara alto, loiro, de ombros largos e uma barbicha rala. E ela é tão afetuosa com ele como é com os filhos.”
“Vai ver são as duas coisas.”
“As duas coisas?”
“Ela está grávida e é artista. Uma artista grávida dentro do seu macacão multiuso. Por outro lado, repare na silhueta delgada dela. Estou com os olhos pregados na região da barriga, mas não vejo saliência
nenhuma.”
“Justamente o que a leva a usar o macacão. Essas roupas são largas, disfarçam bem os volumes.”
Enquanto Tom e eu continuávamos especulando sobre o significado do macacão, o ônibus escolar parou em frente à casa, do outro lado da rua, e a B.M.P. e seus dois rebentos ficaram alguns instantes fora
de nossas vistas. Percebi então que não havia um momento a perder. Em alguns segundos, o ônibus seguiria adiante pelo quarteirão, a B.M.P. viraria as costas e entraria em casa de novo. Eu não tinha a menor
intenção de voltar a espioná-la (há certas coisas que não se repetem e ponto) e, se aquela era minha única chance, então eu precisava agir logo. Em prol da saúde mental do meu retraído e enamorado sobrinho,
senti-me na obrigação de destruir o feitiço, de desmistificar o objeto de seus desejos e de transformar a moça naquilo que ela era de fato: uma dona de casa do Brooklyn bem casada, mãe de dois filhos e
talvez com um terceiro a caminho. Não alguma deusa santificada e inabordável, e sim uma mulher de carne e osso que comia, cagava e trepava — igualzinha a todas as demais.
Tendo em vista as circunstâncias, só havia uma escolha possível. Eu tinha de atravessar a rua e falar com ela. Não apenas algumas poucas palavras, mas uma conversa de verdade, que se prolongasse por tempo
suficiente para me dar a oportunidade de acenar para Tom e obrigá-lo a entrar no papo. Eu queria, ao menos, que ele apertasse a mão dela, que sentisse seu toque, porque assim, quem sabe, entraria naquela
cabeça dura dele que a B.M.P. era um ser tangível e não um espírito desencarnado que vivia nas nuvens de sua imaginação. De modo que lá fui eu — precipitadamente, impulsivamente, sem a menor idéia do que
iria dizer a ela. O ônibus havia começado a andar de novo quando cheguei ao outro lado da rua, e lá estava ela, parada na calçada, bem na minha frente, soprando um último beijo para seus dois tesouros,
que já haviam encontrado lugar no ônibus e faziam agora parte de um bando de no mínimo três dúzias de pequerruchos barulhentos. Munido de minha expressão mais agradável e tranqüilizadora de vendedor, avancei
na direção dela e disse: “Com licença, mas será que eu poderia lhe fazer uma pergunta?”.
“Uma pergunta?”, respondeu ela, um pouco assustada, acho eu, ou talvez apenas espantada de ver um homem onde pouco antes havia um ônibus.
“Acabei de mudar para cá”, prossegui, “e estou atrás de uma loja decente de materiais artísticos. Quando vi você parada aqui na calçada, de macacão, pensei cá comigo, ela deve ser artista também. E me
veio à cabeça a idéia de perguntar.”
A B.M.P. sorriu. Não dava para saber se ela não me acreditava ou se estava se divertindo com a imperícia da pergunta. Ao examinar aquele rosto mais de perto e ver rugas de expressão se formando em torno
dos olhos e da boca, percebi que era um tantinho mais velha do que eu imaginara a princípio. Talvez uns trinta e quatro ou trinta e cinco anos — não que isso fizesse a menor diferença ou empanasse de alguma
maneira seu brilho juvenil. Até então ela havia dito duas palavras — Uma pergunta? —, mas naquelas poucas sílabas eu já tinha percebido a sonoridade de uma brooklyniana da gema ressoando no sotaque inconfundível,
tão ridicularizado em outras partes, mas que, aos meus ouvidos, era o mais caloroso e mais humano do país. Baseadas naquela voz, as engrenagens começaram a girar dentro de minha cabeça e, até lhe dirigir
a palavra de novo, eu já tinha um esboço da história da vida dela. Nascida e criada no distrito, eu disse com meus botões, quem sabe naquela mesma casa diante da qual se achava parada. Filha de pais da
classe operária, já que a conversão do Brooklyn a região habitada pela classe média só teve início por volta dos anos 70, o que significava que, na época de seu nascimento (entre meados e fins dos anos
60), ainda era uma área pobre e escangalhada, habitada por imigrantes batalhadores e famílias operárias (o Brooklyn de minha própria infância), e o casarão de quatro andares que assomava atrás dela, e
que devia estar valendo no mínimo uns oitocentos ou novecentos mil dólares, havia sido comprado por uma ninharia. Ela freqüenta as escolas locais, faz faculdade ali mesmo, ama vários homens e despedaça
um bom punhado de corações, acaba se casando e, quando os pais morrem, herda a casa onde vivera quando menina. Se não foi exatamente assim, terá sido algo muito parecido. A B.M.P. estava à vontade demais
em seu ambiente para ser uma forasteira, bem acomodada demais dentro da própria pele para ter vindo de alguma outra parte. Aquele era o lugar dela e, no quarteirão, ela imperava como se ali tivesse sido
seu reinado desde o primeiro minuto de vida.
“Você sempre julga as pessoas pelo que elas vestem?”, ela perguntou.
“Não foi um julgamento, foi só um palpite. Talvez um palpite burro, mas, se você não for pintora, escultora ou algum outro tipo de artista, será a primeira vez na vida que me engano a respeito de alguém.
É a minha especialidade. Olho para as pessoas e adivinho o que elas são.”
Ela abriu um novo sorriso e depois riu. Quem é esse bobo, ela deve ter-se perguntado, e por que ele está falando comigo dessa maneira? Decidi que havia chegado o momento de me apresentar. “Eu me chamo
Nathan, por falar nisso. Nathan Glass.”
“Olá, Nathan. E eu me chamo Nancy Mazzucchelli. E não sou artista.”
“Não?”
“Eu faço jóias.”
“Mas então claro que você é artista.”
“A maioria das pessoas chamaria o que eu faço de artesanato.”
“Desconfio que tudo depende da qualidade do trabalho. Você vende o que faz?”
“Claro. Tenho meu próprio negócio.”
“E a sua loja fica nas redondezas?”
“Eu não tenho uma loja. Mas um punhado de butiques na avenida Sete vende minhas coisas. E eu também vendo em casa.”
“Ah, entendo. Mora aqui faz tempo?”
“A vida toda. Nascida e criada aqui mesmo.”
“Cem por cento brooklyniana.”
“Justamente. Até a medula.”
Lá estava: uma confissão completa. Sherlock Holmes atacara de novo e, enquanto me maravilhava com meus próprios e devastadores poderes de dedução, bem que desejei haver dois de mim, para poder me dar um
tapinha nas costas. Sei que pode parecer arrogância, mas quantas vezes uma pessoa atinge triunfo mental de tamanha magnitude? Depois de ouvi-la pronunciar duas palavras apenas, eu matara o segredo todo
numa tacada só. Se Watson estivesse ali do meu lado, haveria de começar a abanar a cabeça e resmungar baixinho.
Nesse meio-tempo, Tom continuava parado do outro lado da rua e achei então que já passava da hora de trazê-lo para a conversa. Ao me virar e acenar para que viesse ter conosco, informei a B.M.P. que era
meu sobrinho e que dirigia a seção de livros e manuscritos raros do Brightman’s Attic.
“Eu conheço o Harry”, Nancy falou. “Inclusive trabalhei para ele um verão, isso antes de me casar. Um sujeito e tanto.”
“Pois é, um sujeito e tanto. Não se fazem mais sujeitos como ele hoje em dia.”
Eu sabia que Tom estava bravo comigo por eu tê-lo arrastado para uma situação da qual não queria participar, mas assim mesmo ele veio falar conosco — rubro de vergonha, cabeça baixa, com ar de cachorro
que sabe que vai levar uma surra. De repente me arrependi do que estava fazendo com ele, mas já era tarde demais para parar, tarde demais para um pedido de desculpas, de modo que toquei em frente e apresentei-o
à Rainha do Brooklyn, enquanto jurava, ao mesmo tempo, pelo túmulo de minha irmã que nunca mais iria me intrometer na vida de ninguém.
“Tom”, disse eu, “esta é Nancy Mazzucchelli. Ela e eu estávamos falando sobre lojas de material artístico aqui na região, mas de repente resvalamos para o tema de jóias. E imagine você que ela mora nesta
mesma casa desde que nasceu.”
Sem ousar erguer os olhos do chão, Tom esticou o braço direito e apertou a mão de Nancy. “Muito prazer”, ele falou.
“Seu tio me contou que você trabalha para o Harry Brightman”, ela retrucou, ditosamente inconsciente da grandiosidade do que acabara de acontecer. Tom finalmente tinha tocado nela, finalmente tinha escutado
sua voz e, ainda que aquilo não fosse suficiente para romper o feitiço do encantamento, um contato fora estabelecido, o que significava que dali em diante Tom poderia confrontá-la em um novo terreno. Ela
deixara de ser a B.M.P. Ela era Nancy Mazzucchelli e, por mais bonita que fosse de se olhar, era apenas uma moça comum que fazia jóias para ganhar a vida.
“Trabalho. Faz seis meses que eu comecei. Eu gosto de lá.”
“A Nancy também já trabalhou na livraria do Harry”, eu falei. “Antes de se casar.”
Em vez de responder ao meu comentário, Tom olhou para o relógio e declarou que precisava ir andando. Ainda sem entender coisa alguma, o objeto da adoração de meu sobrinho acenou-lhe um adeus muito calmo.
“Prazer em conhecê-lo, Tom”, ela disse. “A gente se vê por aí, espero.”
“Eu também espero”, ele respondeu, e em seguida, para minha surpresa, virou-se para mim e apertou a minha mão. “O almoço continua de pé, certo?”
“Claro”, falei, aliviado de saber que ele não estava tão bravo quanto eu imaginara. “Mesmo lugar, mesma hora.”
E lá se foi ele pelo quarteirão, com aquele seu andar pesadão, encolhendo aos poucos com a distância.
Assim que ele se afastou mais, Nancy comentou: “Ele é muito tímido, não é não?”.
“É, muito tímido mesmo. Mas uma ótima pessoa, um caráter nobre. Uma das melhores pessoas que já conheci na vida.”
A B.M.P. sorriu. “Ainda quer o nome daquela loja?”
“Quero sim. Mas também gostaria muito de dar uma espiada nas suas jóias. O aniversário da minha filha está chegando e eu ainda não comprei nenhum presente para ela. Quem sabe você não me ajudaria a escolher
algo?”
“Quem sabe. Por que não entramos e você dá uma olhada?”
Da burrice dos homens
Acabei comprando um colar que me custou algo em torno de cento e sessenta dólares (trinta dólares menos que o preço marcado, porque paguei em dinheiro). Era uma peça bela e delicada, com pedrinhas de topázio,
granada e vidro lapidado penduradas numa corrente fina de ouro, e eu tinha certeza de que ficaria muito bonita em volta do delgado pescoço de Rachel. Eu havia mentido a respeito do aniversário de minha
filha — faltavam ainda três meses para ele —, mas achei que até poderia melhorar a situação se mandasse uma oferenda adicional de paz em seguida à carta escrita na terça-feira. Quando tudo o mais falha,
bombardeie os entes queridos com provas de amor.
O ateliê de Nancy ficava numa saleta no fundo da casa e as janelas davam para o jardim, que na verdade estava mais para um pequeno playground do que para jardim propriamente dito — havia um balanço num
canto, um escorregador de plástico no outro e uma infinidade de brinquedos e bolas de borracha no meio. Enquanto eu examinava a variedade de anéis, colares e brincos à venda, conversamos muito à vontade
a respeito de uma série de tópicos. Nancy era uma pessoa de diálogo fácil — aberta, muito generosa, bastante calorosa, simpática —, mas, infelizmente, pelo que pude depreender, não tão brilhante quanto
seria de se desejar. Não demorou muito para eu ficar sabendo que era uma seguidora fiel da astrologia, acreditava no poder dos cristais e em todas essas bobagens New Age. Bom, está certo. Parafraseando
Quanto mais quente melhor, ninguém é perfeito — nem mesmo a Bela Mãe Perfeita. Pior para o Tom, pensei cá comigo. Meu sobrinho ficaria desapontadíssimo se algum dia conseguisse conversar de fato com ela.
Por outro lado, talvez fosse melhor assim.
Eu deduzira uma parte dos fatos essenciais da vida de Nancy, mas continuava curioso para saber se minhas outras teorias sherlockianas também eram válidas. De maneira que continuei com o interrogatório
— sem fazer disso o ponto principal da conversa; optei por introduzir as perguntas sempre que surgia alguma chance, tentando ser o mais sutil possível. Os resultados foram um tanto insatisfatórios. Eu
estava certo em relação aos cursos (G.E. 321, Colégio Midwood e Faculdade do Brooklyn por dois anos, antes de largar tudo para tentar a sorte como atriz, o que por sinal acabara dando em nada), mas errado
quanto a ela ter herdado a casa dos pais falecidos. O pai já morrera, mas a mãe estava vivinha da silva. Ocupava o quarto mais amplo do último andar da casa, ia andar de bicicleta no parque Prospect todos
os domingos e, aos cinqüenta e oito anos, continuava trabalhando como secretária de um escritório de advocacia em Manhattan. Por ora basta do meu gênio infalível. Chega do olho certeiro de Glass.
Nancy estava casada havia sete anos e se referia ao marido ora como Jim, ora como Jimmy. Quando perguntei se o Mazzucchelli era dele ou se conservara o nome de solteira, Nancy riu e disse que o marido
era irlandês puro. Bem, respondi, ao menos Itália e Irlanda começam ambos com a letra i. Isso me rendeu mais uma risada e então, ainda rindo, ela me contou que o primeiro nome da mãe e o sobrenome do marido
eram o mesmo.
“Não me diga. E que nome é esse?”
“Joyce.”
“Joyce?” Fiquei alguns instantes preso numa espécie de espanto aturdido. “Está me dizendo que é casada com um homem cujo nome é James Joyce?”
“Hum-hum. Igualzinho ao escritor.”
“Inacreditável.”
“O mais engraçado é que os pais de Jim não têm a menor noção de literatura. Eles nunca nem ouviram falar de Joyce. Batizaram o filho com o nome do avô materno, James Murphy.”
“Bem, tomara que o seu Jim não seja um escritor. Não seria nada engraçado tentar publicar um livro carregando esse nome nas costas.”
“Não, não, o meu Jim não escreve. Ele é um Foley artist.”
“Um o quê?”
“Um Foley artist.”
“Não faço idéia do que venha a ser isso.”
“Ele faz efeito sonoro para cinema. Trabalha na pós-produção. Os microfones nem sempre captam tudo o que acontece no set. E quando o diretor resolve acrescentar o barulho que faz o cascalho sendo triturado
pelas passadas de alguém, como é que fica? Ou então o ruído de uma página de livro sendo virada, ou de um pacote de bolacha sendo aberto — é isso que o Jimmy faz. É um trabalho legal. Muito preciso, muito
interessante. Eles dão um duro danado para acertar.”
Quando Tom e eu nos encontramos para o almoço, à uma da tarde, transmiti-lhe conscienciosamente todas as informações obtidas durante minha conversa com Nancy. Meu sobrinho se achava de ótimo humor e mais
de uma vez me agradeceu por ter tomado a iniciativa aquela manhã e forçado o encontro cara a cara com a B.M.P.
“Eu não sabia como você iria reagir. Mas, até acabar de atravessar a rua, eu tinha certeza absoluta de que você estava com raiva de mim.”
“Você me pegou de surpresa, só isso. Mas foi muito bom, Nathan, foi um ato corajoso, excelente.”
“Espero que sim.”
“Foi a primeira vez que a vi assim tão de perto. Ela é um espetáculo mesmo, você não achou?”
“É, achei, ela é muito bonita. A moça mais bonita do Brooklyn.”
“E boa. Isso acima de tudo. Dá para sentir a bondade que irradia de todos os poros do corpo dela. Ela não é uma dessas belezas altivas, arrogantes. Ela gosta das pessoas.”
“Pé no chão, como se diz por aí.”
“Exato. Pé no chão. Não me sinto mais intimidado. Da próxima vez em que a vir, vou poder cumprimentá-la, conversar com ela. Pouco a pouco, talvez até dê para nos tornarmos amigos.”
“Detesto ter de desiludi-lo, mas, depois da conversa desta manhã, não creio que vocês dois tenham muita coisa em comum. De fato, ela é uma garota maravilhosa, mas sem muita sustância no compartimento superior,
Tom. Inteligência média na melhor das hipóteses. Largou a faculdade. Sem o menor interesse por política ou literatura. Se você lhe perguntar quem é o secretário de Estado do país, ela não vai saber responder.”
“E daí? É muito provável que eu tenha lido mais livros do que qualquer pessoa neste restaurante, e que vantagem isso me trouxe? Intelectual é um saco, Nathan. São as pessoas mais chatas do mundo.”
“Pode muito bem ser. Mas a primeira coisa que ela vai querer saber é de que signo você é. E depois você vai ter que falar sobre horóscopo por mais uns vinte minutos.”
“Tudo bem.”
“Pobre Tom. Você está realmente caído por ela, não é?”
“Não há como evitar.”
“E então qual será o próximo passo? Casamento ou o bom e antigo caso amoroso?”
“Se não me falha a memória, ela já está casada com alguém.”
“Mero detalhezinho bobo. Se você quer tirar o sujeito da jogada, basta me pedir. Eu tenho bons contatos, filho. Mas, como é para você, o mais provável é que eu me encarregue pessoalmente do serviço. Já
estou até vendo as manchetes. EX-CORRETOR DE SEGUROS DÁ CABO DE JAMES JOYCE.”
“Ha-ha.”
“Mas uma coisa é verdade a respeito dessa sua Nancy, Tom. Ela faz umas jóias muito bonitas.”
“Está com o colar aí?”
Enfiei a mão no bolso do paletó e tirei lá de dentro a caixa estreita e comprida que continha minha compra matinal. Bem na hora em que eu a estava abrindo, Marina chegou com os sanduíches. Para não excluí-la
daquele momento de revelação, empurrei a caixa na direção dela, para que pudesse ver também. O colar fora colocado de comprido sobre uma camada de algodão branco e, tão logo se curvou para examiná-lo,
Marina deu seu veredito. “Ah, qué rico”, disse ela, “que coisa mais linda.” Tom corroborou a opinião dela com um meneio silencioso de cabeça, sem dúvida emocionado demais para falar, já que pensava em
sua adorada Nancy, cujas mãos celestiais haviam forjado o pequeno objeto reluzente a sua frente.
Retirei o colar da caixinha e estendi-o para Marina. “Por que você não experimenta?”, sugeri. “Assim nós podemos ver como é que fica.”
Essa era a intenção original — apenas pedir que ela o exibisse para nós —, mas, assim que Marina pegou o colar nas mãos e colocou-o de encontro à pele castanha (no pouco de carne exposta logo acima do
último botão desabotoado da blusa turquesa), mudei de idéia. Eu queria lhe dar o colar. Nada me impediria de comprar um outro para Rachel e aquele caíra tão bem nela que já parecia lhe pertencer. Ao mesmo
tempo, se por acaso achasse que eu estava dando em cima (e eu estava, claro, mas sem a menor esperança), Marina poderia se ver numa situação embaraçosa e talvez não aceitasse.
“Não, não”, eu falei. “Assim não. Ponha o colar no pescoço, para nós vermos se ele assenta bem.” Enquanto ela batalhava com o fecho, eu procurava às pressas pensar em algo que pudesse vencer a possível
resistência. “Alguém me falou que era seu aniversário hoje”, eu disse. “É verdade isso, Marina, ou será que o sujeito estava só me gozando?”
“Hoje não. Na semana que vem.”
“Esta semana, a próxima, que diferença faz? Seu aniversário está chegando, o que significa que você já está sob os fluidos aniversariantes. São forças poderosas que fazem as pessoas cometerem tudo quanto
é tipo de atos estranhos. Eu não sabia, na hora, mas estava comprando esse colar para você.”
De início ela me pareceu contente e eu achei que não haveria problema. Pelo jeito como me olhou, com aqueles seus olhos castanhos brilhantes, não havia a menor sombra de dúvida de que queria ficar com
a jóia, que estava comovida e lisonjeada com meu gesto, mas depois, assim que a onda inicial de prazer passou, ela pensou um pouco e eu vi a dúvida e a incerteza entrarem naqueles mesmos olhos castanhos.
“O senhor é um sujeito fantástico e eu gostei demais do presente. Mas não posso aceitar. Não é certo. O senhor é um cliente da lanchonete.”
“Não se preocupe com isso. Se eu estou com vontade de dar um presentinho para minha garçonete predileta, quem vai me impedir? Eu sou um cara velho e os caras velhos são livres para fazer o que bem entendem.”
“O senhor não conhece o Roberto. Ele é um sujeito muito ciumento. E não vai gostar se eu aceitar coisas de outro homem.”
“Eu não sou outro homem. Sou apenas um amigo que quer fazê-la feliz.”
Altura em que Tom finalmente acrescentou seus dois tostões à conversa. “As intenções são boas, Marina, tenho certeza. Mas você sabe como é o Nathan. O sujeito é meio biruta — vive fazendo coisas malucas,
impulsivas.”
“Que ele é doido não resta dúvida. E também muito simpático. Mas é que eu não quero encrenca para o meu lado. Vocês sabem como é complicado isso. Uma coisa leva à outra e, de repente, pá.”
“Pá?”, perguntou Tom.
“É, pá”, Marina respondeu. “E não me peça para explicar o que significa.”
“Está bem”, disse eu, de repente compreendendo que o casamento dela era bem menos tranqüilo do que eu imaginava. “Acho que tenho uma solução. Marina fica com o colar, mas não o leva para casa. O colar
fica aqui na lanchonete o tempo todo. Ela vai usá-lo para trabalhar e quando for embora deixa guardado na caixa registradora. Tom e eu podemos vir almoçar aqui todos os dias, para admirar o colar, e o
Roberto nunca vai saber de nada.”
Era uma proposta tão absurda, tão sorrateira, uma tramóia tão tortuosa e descarada que tanto Tom como Marina caíram na risada.
“Puxa vida”, disse Marina. “Você é um velho danado de trapaceiro, Nathan.”
“Não tão velho assim”, eu falei.
“E o que acontece se eu esquecer que estou com o colar? O que acontece se eu for para casa uma noite ainda com o colar?”
“Você jamais faria uma coisa dessas”, falei. “Você é esperta demais para isso.”
E, assim, forcei a jovem e ingênua Marina Luisa Sanchez Gonzalez a aceitar meu presente de aniversário e, pelo meu esforço, ganhei um beijo no rosto, um longo e terno beijo que hei de lembrar até o fim
de meus dias. Tais são os bônus reservados aos homens burros. E eu não sou mais do que um homem burro, burro. Ganhei meu beijo e meu esplendoroso sorriso de agradecimento, mas também ganhei mais do que
estava previsto na brincadeira. Seu nome era Encrenca e, quando eu chegar ao ponto, nesta minha história, em que fui apresentado ao sr. Encrenca, prometo fazer um relato completo do que houve. Mas estamos
apenas na sexta-feira à tarde e existem outros assuntos mais urgentes a resolver. O fim de semana está prestes a começar. Menos de trinta horas depois que Tom e eu saímos do diner Cosmic, estávamos os
dois sentados num outro restaurante, junto com Harry Brightman, jantando, bebendo vinho e lutando com os mistérios do universo.
Uma noite de comes e bebes
Sábado à noite. 27 de maio de 2000. Um restaurante francês na rua Smith, no Brooklyn. Na parte de trás do salão, ao redor de uma mesa situada no canto esquerdo, reúnem-se três homens: Harry Brightman (ex-Dunkel),
Tom Wood e Nathan Glass. Eles acabaram de fazer os pedidos ao garçom (três entradas e três pratos principais diferentes mais duas garrafas de vinho — um tinto e outro branco) e voltam a se concentrar nos
drinques que foram servidos logo depois que sentaram. Tom toma um bourbon (Wild Turkey), Harry, vodca-martini e Nathan, enquanto ingere mais um trago de uísque escocês puro malte (um Macallan doze anos),
se pergunta se não seria o caso de mandar vir uma segunda dose antes de a comida ser servida. De cenário, já basta. Depois de iniciada a conversa, serão muito poucas as rubricas. É opinião do autor que,
para a narrativa, importam apenas as palavras ditas pelas personagens acima citadas. Por esse motivo, não haverá descrição da roupa que vestem, nenhum comentário a respeito da comida que comem, nenhuma
pausa quando um deles se levantar para ir ao toalete, nenhuma interrupção do garçom e sobretudo nem uma palavra a respeito da taça de vinho tinto que Nathan derrubou na calça.
HARRY: Por que assim tão tétrico, Tom? Além de ser a pessoa mais jovem desta mesa, daqui a pouco você vai comer uma das melhores comidas da sua vida e, até onde me foi dado saber, você nunca teve nenhuma
doença grave. Veja o Nathan, por exemplo. Teve câncer de pulmão e nunca pôs um cigarro na boca. E eu, que já tive dois ataques do coração? Por acaso estamos resmungando? Nós somos os homens mais felizes
do mundo.
TOM: São coisa nenhuma. Vocês são tão infelizes quanto eu.
NATHAN: O Harry tem razão, Tom. Não é tão ruim assim.
TOM: É ruim, sim. Eu diria até que é péssimo.
HARRY: Por gentileza, definam o sujeito da frase. Eu já nem sei mais do que estamos falando.
TOM: Do mundo. Deste grande buraco negro que nós chamamos de mundo.
HARRY: Ah, sim, do mundo. Mas é claro. Nem precisava dizer. O mundo é uma droga. Todo mundo sabe disso. Mas nós fazemos de tudo para evitá-lo, não é mesmo?
TOM: Não, não fazemos. Nós estamos bem no meio da balbúrdia toda, quer gostemos ou não. Estamos cercados e cada vez que levanto a cabeça e dou uma boa olhada, fico enojado. Triste e enojado. Seria de esperar
que a Segunda Guerra Mundial tivesse resolvido as coisas, pelo menos por uns duzentos anos. Mas nós continuamos nos estraçalhando, é ou não é? Nós continuamos nos odiando tanto quanto antes.
NATHAN: Quer dizer então que é disso que estamos falando. Política.
TOM: Entre outras coisas. E de economia. E de cobiça. E do lugar horrendo em que este país se transformou. Os maníacos da Direita Cristã. Os milionários ponto-com que nem saíram dos cueiros ainda. O Canal
do Golfo. O Canal da Foda. O Canal do Vômito. O capitalismo triunfante, sem mais nada capaz de lhe fazer oposição. Todos nós muito confortáveis, felizes da vida, enquanto metade da humanidade morre de
fome, e não erguemos um dedo para ajudar. Eu não agüento mais, senhores. Eu quero cair fora.
HARRY: Cair fora? E ir para onde? Júpiter? Plutão? Algum asteróide na próxima galáxia? Coitadinho do Tom-Tão-Sozinho, feito o Pequeno Príncipe vagando no seu pedaço de rocha no meio do espaço.
TOM: Então me diga você para onde é melhor eu ir, Harry. Estou aberto a sugestões.
NATHAN: Um lugar onde seja possível viver a vida segundo nossos próprios termos. É sobre isso que estamos falando, não é? “Édens Imaginários” revisitados. Mas para poder ir para lá é preciso se dispor
a rejeitar a sociedade. Foi você quem me disse isso, Tom. Já faz muito tempo, mas se não me engano você até usou a palavra coragem. Você tem essa coragem, Tom? Será que algum de nós tem coragem para tanto?
TOM: Você ainda se lembra desse meu paper, é?
NATHAN: Me impressionou bastante.
TOM: Naquele tempo eu era um mero formando, recém-saído da faculdade. Não sabia muita coisa, mas é bastante provável que fosse mais inteligente do que sou agora.
HARRY: Estamos nos referindo a quê?
NATHAN: Ao refúgio interior, Harry. Ao lugar para onde um homem vai quando a vida no mundo real não parece mais ser possível.
HARRY: Ah, eu tinha um desses quando era jovem. Pensei que todo mundo tivesse.
TOM: Não necessariamente. Para criá-lo é preciso uma imaginação que pouca gente possui.
HARRY (fechando os olhos e apertando as têmporas com a ponta dos dedos): Estou começando a me lembrar de tudo, agora. O Hotel Existência. Eu tinha apenas dez anos na época, mas me lembro do momento exato
em que a idéia me ocorreu, do momento exato em que atinei com o nome. Era uma tarde de domingo, durante a guerra. O rádio estava ligado e eu estava sentado na sala de casa, em Buffalo, olhando as fotos
dos soldados americanos na França numa revista Life. Eu nunca havia posto os pés num hotel, mas já tinha passado na frente de um número razoável deles, nas minhas idas ao centro da cidade com mamãe, e
sabia que eram lugares especiais, fortalezas que protegiam a gente das misérias e mesquinharias do dia-a-dia. Eu adorava os homens de uniforme azul que ficavam postados na frente do Remington Arms. Eu
adorava o brilho dourado das ferragens da porta giratória do Excelsior. Tinha paixão pelo imenso candelabro pendurado no saguão do Ritz. O único propósito de um hotel era fazer a pessoa se sentir feliz
e confortável e, depois que você assinava o livro de registro e subia para o quarto, bastava pedir qualquer coisa que ela seria sua. Um hotel representava a promessa de um mundo melhor, era um lugar que
vinha a ser mais que um lugar, era uma oportunidade, uma chance de viver os próprios sonhos.
NATHAN: Isso explica a parte do hotel. Mas onde foi que você achou a palavra existência?
HARRY: Tinha ouvido no rádio naquela tarde mesmo. Eu nem estava prestando muita atenção ao programa, mas havia alguém falando sobre a existência humana e aquilo me soou bem. As leis da existência, dizia
a voz no rádio, e os perigos que temos de enfrentar durante a nossa existência. A existência era bem maior que apenas a vida. Era a vida de todos juntos, e mesmo quem morava em Buffalo, Nova York, e nunca
tinha se afastado mais do que quinze quilômetros de casa fazia parte do quebra-cabeça. Não fazia mal que a sua vida fosse humilde. O que acontecia com você era tão importante quanto o que acontecia com
todos os demais.
TOM: Continuo sem entender. Você inventou um lugar chamado Hotel Existência, mas onde ficava? Para que servia?
HARRY: Para que servia? Para nada, no fundo. Era um retiro, um mundo que eu podia visitar na minha cabeça. Não é sobre isso que estamos falando? Fuga?
NATHAN: E para onde o jovem Harry escapava?
HARRY: Ah, essa é uma questão mais complicada. Houve dois hotéis Existência, percebem? O primeiro, o que eu inventei naquele domingo à tarde, durante a guerra, e um outro que só tomou forma quando eu estava
no colegial. O número um, lamento dizer, era pieguice pura, sentimentalismo infantil. Mas na época eu era um tico de gente e a guerra estava por toda parte, as pessoas falavam nela o tempo inteiro. Eu
não tinha idade para me alistar, mas, como todo garoto gordo e burro, sonhava em me tornar um soldado. Argh. Argh e de novo argh. Céus, que parvos somos, nós, os mortais. De modo que imaginei um lugar
chamado Hotel Existência e, na mesma hora, transformei-o num albergue para crianças perdidas. Estou falando de crianças européias, claro. Os pais haviam sido mortos em combate, as mães jaziam debaixo dos
escombros de igrejas e prédios desabados e lá estavam elas, vagando em meio às ruínas de cidades bombardeadas, em pleno inverno, tentando arranjar comida no mato, crianças sozinhas, crianças aos pares,
crianças em bandos, quatro, seis ou dez guris com trapos enrolados nos pés no lugar de sapatos, rostos esquálidos salpicados de barro. Elas viviam num mundo onde não havia adultos e eu, alma altruísta
e corajosa que era, ungi-me como o salvador de todas elas. Essa era minha missão, meu propósito na vida, e todos os dias, até o fim da guerra, eu descia de pára-quedas em algum rincão esboroado da Europa
para resgatar meninos e meninas perdidos e famintos. Eu abria caminho por encostas incendiadas, nadava por lagos onde pipocavam as bombas, entrava de metralhadora em punho em adegas úmidas e, toda vez
que encontrava mais outro órfão, eu o levava pela mão até o Hotel Existência. Não tinha a menor importância em que país eu me achava. Bélgica ou França, Polônia ou Itália, Holanda ou Dinamarca — o hotel
nunca estava muito longe e eu sempre dava um jeito de levar a criança para lá antes de escurecer. Tão logo tivessem terminado as formalidades de registro no balcão da recepção, eu virava as costas e ia
embora. Não era minha tarefa administrar o hotel — apenas encontrar as crianças e levá-las para lá. Além disso, os heróis não repousam jamais, não é verdade? Eles não podem dormir em camas macias com acolchoados
de penas e três travesseiros e não têm tempo de se sentar na cozinha do hotel para comer uma porção daquele guisado de carneiro fumegando no caldeirão, rodeado de suculentas batatas e cenouras. Os heróis
precisam voltar para a escuridão da noite e completar seu trabalho. E meu trabalho era salvar crianças. Até que a última bala fosse disparada, até que a última bomba fosse despejada, eu tinha de continuar
cuidando delas.
TOM: E o que aconteceu quando a guerra acabou?
HARRY: Desisti dos sonhos de coragem viril e auto-sacrifício nobre. O Hotel Existência fechou as portas e, quando abriu de novo, alguns anos depois, não ficava mais numa pradaria em algum lugar do interior
da Hungria, nem parecia um castelo barroco extraído dos bulevares de Baden-Baden. Para achar o novo Hotel Existência — bem menor e mais decrépito — era preciso ir para uma daquelas cidades grandes onde
a vida de verdade só começa depois que a noite cai. Nova York, quem sabe, ou Havana, ou alguma viela suja de Paris. Entrar no Hotel Existência, a partir daí, significava pensar em palavras como tintim,
chiaroscuro e destino. Significava homens e mulheres medindo você discretamente no saguão. Era perfume, seda e pele quente; e todo mundo sempre circulando de taça e cigarro em punho. Eu já tinha visto
tudo aquilo no cinema e sabia que jeito devia ter. Os freqüentadores regulares ficavam lá embaixo, no piano-bar, bebericando um dry martini. O cassino era no primeiro andar, com sua mesa de roleta, ruído
abafado de dados saltando no feltro verde, um banqueiro de bacará sussurrando com sotaque oleoso de estrangeiro. Embaixo, no subsolo, a pista de dança cercada de poltronas macias e uma cantora de voz enfumaçada
e vestido prateado cantando sob as luzes da ribalta. Esses eram os acessórios cênicos que ajudavam a pôr as engrenagens em funcionamento, mas ninguém ia lá só pelos drinques ou pelas apostas, assim como
também ninguém ia lá só pela música, ainda que a cantora da noite fosse Rita Hayworth, trazida diretamente de Buenos Aires para uma única apresentação por seu marido e empresário do momento, George Macready.
Você tinha de ir se insinuando bem devagarzinho no fluxo da coisa, tomar um drinque ou outro e só depois entrar no negócio. Não um negócio de fato, mas um jogo, o jogo infinitamente agradável de decidir
que pessoa iríamos levar para a cama no fim da noite. Os primeiros movimentos eram sempre dos olhos — nunca nada além dos olhos. Era preciso deixar que eles se demorassem aqui, em seguida ali, enquanto
você tomava calmamente seu drinque e fumava seu cigarrinho, era preciso testar as possibilidades, buscar aquele olhar que talvez já estivesse voltado na sua direção ou, quem sabe, com um ligeiro sorriso
ou um leve levantar de ombros, seduzir alguém a olhar para você. Tanto homens como mulheres, para mim isso não tinha a menor importância. Eu ainda era virgem naquele tempo, mas já conhecia o suficiente
a respeito de mim mesmo para saber que tanto fazia. Certa vez, o Cary Grant sentou do meu lado no piano-bar e começou a alisar minha perna. Outra vez, a falecida Jean Harlow voltou do reino dos mortos
e fez amor comigo, apaixonadamente, no quarto quatrocentos e vinte e sete. Porém havia também minha professora de francês, Mademoiselle Des Fôrets, uma quebequense esguia de pernas muito longas, batom
vermelho-escuro e olhos castanhos luminosos. Sem falar em Hank Miller, o zagueiro da equipe principal do colégio e o galã preferido das moças do último ano. Hank com certeza teria me matado a socos se
tivesse ficado sabendo o que eu estava fazendo com ele em sonhos, mas o fato é que nunca soube. Eu cursava o segundo colegial na época, e jamais teria tido coragem suficiente para dirigir a palavra a figura
tão augusta durante o dia, mas à noite eu podia me encontrar com Hank Miller no bar do Hotel Existência e, depois de alguns drinques e um papo amigável, levá-lo ao quarto trezentos e um para lhe ensinar
os segredos do mundo.
TOM: Material para punheta de adolescente.
HARRY: Pode-se dizer que sim. Mas prefiro pensar nisso como produto de uma rica vida interior.
TOM: Isto não está nos levando a parte alguma.
HARRY: E para onde você quer que a gente vá, meu caro Tom? Estamos aqui sentados, à espera do próximo prato, tomando uma magnífica garrafa de Sancerre e nos divertindo com histórias sem maiores significados.
Não há nada de errado nisso. Em grande parte do mundo seria considerado como o ápice do comportamento civilizado.
NATHAN: O garoto está na pior, Harry. Ele precisa falar.
HARRY: Estou sabendo disso. Afinal, eu tenho dois olhos na cara ou não tenho? Se o Tom não aprova o meu Hotel Existência, então talvez fosse melhor ele nos contar um pouco sobre o dele. Todo homem tem
um, sabiam? E assim como não existem dois homens iguais, o Hotel Existência de cada um é diferente de todos os demais.
TOM: Desculpem. Não era minha intenção bancar o chato. Esta era para ser uma noite divertida e eu estou estragando tudo para vocês dois.
NATHAN: Deixe isso para lá. Apenas responda à pergunta do Harry.
TOM (um longo silêncio e depois, em voz baixa, como se falando sozinho): Eu quero viver de um jeito novo, só isso. Se não dá para mudar o mundo, é preciso que eu tente ao menos mudar a mim mesmo. Só que
não quero fazer isso sozinho. Já me sinto suficientemente sozinho, não sei se por culpa minha ou não, mas o Nathan tem razão. Eu estou na pior. Desde que falamos sobre a Aurora, no outro dia, não parei
mais de pensar nela. Sinto saudade da minha irmã. Sinto saudade da minha mãe. Sinto saudade de todo mundo que eu perdi. Às vezes fico tão triste que é difícil entender como não acabo esmagado e morto debaixo
de tanto peso. Qual é o meu Hotel Existência, Harry? Eu não sei, mas talvez tenha algo a ver com viver com os outros, com sair deste antro urbano e dividir uma vida com pessoas que eu amo e respeito.
HARRY: Uma comuna.
TOM: Não, uma comuna não — uma comunidade. Há uma diferença.
HARRY: E onde estaria situada essa sua utopia?
TOM: Em algum lugar no interior, imagino. Um lugar com muita terra e um número suficiente de casas para acomodar todos os que quisessem morar ali.
NATHAN: De quantas pessoas estamos falando?
TOM: Eu não sei. Ainda não estruturei nada. Mas vocês dois seriam mais que bem-vindos.
HARRY: Sinto-me lisonjeado de ocupar lugar tão eminente em sua lista. Mas, se eu me mudar para o campo, o que acontece com o meu negócio?
TOM: Ele muda junto. Você já tira noventa por cento dos seus rendimentos com transações via correio. Que diferença faz a agência que vai usar? Sim, Harry, claro que eu quero que você faça parte. E quem
sabe a Flora também.
HARRY: Minha querida e ensandecida Flora. Mas, se convidasse a Flora, teria de convidar a Bette também. Você sabe que ela está muito doente, não sabe? Confinada a uma cadeira de rodas com mal de Parkinson,
a coitadinha. Eu não sei dizer como ela reagiria, mas no fim talvez até achasse a idéia boa. E tem também o Rufus.
NATHAN: Quem é o Rufus?
HARRY: O rapaz que trabalha no balcão da livraria. Aquele jamaicano alto, mulato claro, de boá cor-de-rosa. Alguns anos atrás, eu o encontrei desfeito em lágrimas na frente de um edifício de West Village
e o levei para casa. A esta altura já posso dizer que mais ou menos adotei o garoto. O emprego na livraria ajuda a pagar o aluguel, mas o Rufus também é a melhor drag queen da cidade. Nos fins de semana
trabalha com o nome de Tina Hott. Um artista de primeira, Nathan. Você devia ir assisti-lo um dia desses.
NATHAN: E por que ele haveria de querer sair da cidade?
HARRY: Para começar porque ele me ama. E também porque ele é soropositivo e sente um medo danado. Uma mudança de cenário poderia lhe fazer bem.
NATHAN: Ótimo. Mas onde é que nós iríamos arranjar dinheiro para comprar uma propriedade no interior? Eu poderia contribuir com um tanto, mas não seria nem de longe o bastante.
TOM: Se a Bette quiser participar, quem sabe ela não se dispõe a abrir os cofres?
HARRY: Nem pensar numa coisa dessas. Um homem tem seu orgulho, e mil vezes morrer do que pedir mais um centavo a ela.
TOM: Bem, se você vendesse seu imóvel no Brooklyn já seria um belo começo.
HARRY: Apenas uma gota no oceano. Se for para passar os meus anos de declínio no interior, quero que seja em grande estilo. Nada de roceiro campônio pra cima de mim, Tom. Ou eu me transformo num fidalgo
rural ou puxo o carro.
TOM: Um pouquinho aqui, outro pouquinho acolá. Vamos pensar em mais gente que esteja disposta a participar. Aí, se nós juntarmos todos os nossos recursos, talvez dê.
HARRY: Não se preocupem com esse lado do negócio, pessoal. O tio Harry aqui vai cuidar de tudo. Pelo menos a expectativa é essa. Se tudo correr de acordo com os planos, podemos esperar um grande influxo
de recursos num futuro bem próximo. O bastante para inverter os pratos da balança e tornar nosso sonho realidade. É disso que estamos falando, não é? De um sonho, de um sonho absurdo de largar os cuidados
e as dores deste mundo infame e criar um outro só nosso. Possibilidade meio remota, sem dúvida, mas sabe-se lá se ainda não dá certo?
TOM: E de onde virá esse “influxo de recursos”, pode-se saber?
HARRY: Digamos apenas que tenho em mira um belo negócio e depois vamos pôr o assunto de lado até segunda ordem. Se der certo, o novo Hotel Existência estará garantido. Se não der — bem, ao menos eu terei
afundado lutando por uma boa causa. Um homem não pode fazer mais do que isso, é ou não é? Estou com sessenta anos e depois de todos os altos e baixos de minha... dúbia carreira, esta é muito possivelmente
a última oportunidade que vou ter de sair com dinheiro grosso. E quando digo grosso, creiam-me que é bem grosso mesmo. Mais grosso do que qualquer um de vocês pode imaginar.
Pausa para um cigarro
Na hora, não levei a conversa a sério. Tom estava deprimido — mais nada — e Harry tentou alegrá-lo um pouco, dar-lhe uma injeção de ânimo, arrancá-lo daquele estado. Confesso que apreciei o gesto, o fato
de Harry ter topado fazer parte da fantasia inviável de Tom, mas pensar que algum dia ele pudesse deixar o Brooklyn para morar no fim do mundo me parecia puro absurdo. O sujeito tinha sido feito para a
cidade grande. Era uma criatura do comércio, das multidões, dos bons restaurantes e das roupas caras, e mesmo que fosse apenas meio gay, seu melhor amigo era um travesti negro que ia trabalhar com um pingente
de strass na orelha e um boá de plumas cor-de-rosa no pescoço. Colocar um sujeito como Harry Brightman nos cafundós do interior era querer que ele fosse expulso a picareta e facão pelos moradores locais.
Por outro lado, soava bastante razoável e verídico aquele belo negócio mencionado por Harry. O velho réprobo tramava alguma novidade, sem dúvida, e eu ardia de curiosidade de saber o que era. Mesmo que
não quisesse falar na frente de Tom, Harry poderia abrir uma exceção para mim. Minha chance veio logo depois que pedimos a sobremesa, quando Tom foi até a área do bar para fumar um cigarro (sua mais nova
tática na campanha em curso para perder alguns quilos).
“Dinheiro grosso”, eu comentei com Harry. “Parece interessante.”
“Uma oportunidade única na vida.”
“Algum motivo especial para você não querer falar sobre o assunto?”
“Tenho medo de decepcionar o Tom, só isso. Alguns pormenores ainda não foram resolvidos e, até que o negócio esteja fechado, não convém alimentar emoções demasiadas.”
“Eu tenho um dinheiro extra que está meio parado, sabia? Uma bela soma, na verdade. Se você precisar de mais um investidor para entrar junto, talvez eu esteja disposto a ajudar.”
“É muita generosidade de sua parte, Nathan. Felizmente, não estou em busca de um sócio. O que não significa que não esteja interessado nos seus conselhos. Tenho quase certeza que meus associados são de
confiança — mas não cem por cento de certeza. E a dúvida é um fardo pesado de carregar todos os dias, sobretudo quando há tanto em jogo.”
“O que você me diz de um outro jantar, então? Só nós dois. E aí você me expõe tudo e eu lhe digo o que acho.”
“A semana que vem, por exemplo?”
“Diga o dia que eu estarei lá.”
Da burrice dos homens (2)
No dia seguinte, às onze horas da manhã, parei numa das joalherias do bairro para comprar um outro colar para Rachel. Eu não queria incomodar a B.M.P. tocando a campainha da casa dela numa manhã de domingo,
mas fiz questão de pedir à vendedora que me mostrasse tudo o que havia no estoque saído do ateliê de Nancy Mazzucchelli. A mulher sorriu, disse que era amiga antiga de Nancy e prontamente abriu um gabinete
de vidro de onde tirou oito ou dez trabalhos que foi colocando, um a um, sobre o balcão. Quis a sorte que o último colar fosse quase idêntico ao que agora passava as noites na caixa registradora do diner
Cosmic.
Eu planejava voltar direto para casa. Havia me lembrado de mais outros dois casos, ao entrar na loja, e estava louco para sentar à escrivaninha e acrescentá-los ao meu cada vez mais gordo O livro dos desvarios
humanos. Ainda não me dera ao trabalho de contar quantos eu já havia escrito, mas devia ter perto de uns cem casos àquela altura e, pela maneira como continuavam vindo à tona a todas as horas do dia e
da noite (às vezes até em sonhos), eu desconfiava que havia material suficiente para mais uns bons anos. Nem vinte segundos depois de sair da loja, entretanto, quem me aparece pela frente senão Nancy Mazzucchelli,
a B.M.P. em pessoa? Eu morava nas redondezas havia dois meses, fizera longos passeios de manhã e à tarde, entrara em inúmeras lojas e restaurantes, sentara na calçada do Circle Café e vira centenas de
pessoas passarem pela avenida, mas até aquela manhã de domingo eu nunca a encontrara na rua. Não quero com isso dizer que Nancy houvesse me passado despercebida. Eu olho para todo mundo e, se já tivesse
visto aquela mulher (ninguém menos que a rainha soberana de Park Slope), eu me lembraria. Mas depois das apresentações improvisadas da sexta-feira, em frente à casa dela, tudo mudara de figura de uma hora
para outra. Como uma palavra que você acrescenta ao vocabulário já numa idade avançada — e que por sua vez começa a ouvir por toda parte —, Nancy Mazzucchelli de repente estava em todos os lugares para
onde eu me virava. Começou com aquele encontro de domingo e dali em diante foi difícil passar um dia sem dar de cara com ela no banco, na agência dos correios ou em alguma rua por perto. Ao fim e ao cabo
fui apresentado aos filhos (Devon e Sam), à mãe Joyce e ao Foley artist, o James Joyce que não era James Joyce. De estranha total, a B.M.P. passou muito depressa a ser um dos apêndices de minha vida. E
mesmo que eu só venha a mencioná-la umas poucas vezes, nas próximas páginas, ela estará sempre presente. Fique atento, porque Nancy se encontra nas entrelinhas.
Naquele primeiro domingo, nada de muito importante foi dito. Oi Nathan, Oi Nancy, como vai você, vou indo, como vai o Tom, o tempo está bonito, foi bom ver você e assim por diante. Conversinha de cidade
pequena no coração da metrópole. Se existe algum detalhe relevante a relatar é o fato de ela não estar de macacão. Fazia um dia inusitadamente quente e Nancy estava de jeans e camiseta branca de algodão.
Como a camiseta estivesse por dentro da calça, deu para ver que não havia nem sinal de barriga. O que não significava muita coisa, claro, mas, mesmo que estivesse no comecinho do primeiro trimestre, não
fora para esconder a gravidez que ela pusera o macacão na sexta-feira. Não podia me esquecer de contar isso a Tom, quando o visse.
Na segunda-feira de manhã, a primeira coisa que fiz foi mandar o colar para Rachel, junto com um bilhetinho (Pensando em você — Com amor, papai), mas lá pelas nove da noite comecei a ficar preocupado.
Eu enviara minha carta para ela na terça-feira à noite. Presumindo que tivesse saído do correio na quarta de manhã, deveria ter sido entregue a minha filha até sábado — ou na segunda, estourando. Rachel
nunca foi muito de escrever cartas (ela se correspondia quase que apenas por e-mail, que eu não tinha) e, por isso, eu esperava que entrasse em contato comigo por telefone. Sábado e domingo já se haviam
passado sem que ela tivesse dado notícia, o que significava que segunda-feira seria o dia de ela me telefonar, claro. A qualquer momento depois das seis da tarde, quando chegasse do trabalho e lesse minha
carta. Não obstante quanto eu a houvesse ofendido, achava inconcebível que Rachel não respondesse à minha carta. Fiquei plantado no apartamento, esperando o telefone tocar, mas já eram nove horas e nada
ainda. Mesmo que ela tivesse decidido ligar só depois do jantar, às nove da noite o jantar já teria terminado. Meio desesperado, meio com medo, e constrangidíssimo com esse meu medo e esse meu desespero,
por fim criei coragem para discar o número de minha filha. Não havia ninguém em casa. A secretária eletrônica atendeu após quatro toques, mas eu desliguei antes do sinal.
A mesma coisa na terça-feira.
A mesma coisa na quarta-feira.
Sem saber o que mais poderia ser feito, resolvi ligar para Edith e perguntar o que estava acontecendo. Ela e Rachel se comunicavam com freqüência e, mesmo um tanto nervoso por ter de falar com minha ex,
não havia por que supor que Edith iria me esconder o que quer que fosse. O xis marca o lugar exato, como tão bem dissera o Harry. Naquela altura, o único contato que eu tinha com minha antiga cara-metade
era a assinatura dela no verso dos meus cheques de pensão alimentícia. Ela pedira o divórcio em novembro de 1998 e um mês depois, muito antes de sair a sentença, fiquei sabendo que eu estava com câncer.
Mas justiça seja feita: Edith deixou que eu permanecesse na casa pelo tempo necessário, o que explica por que demoramos tanto para colocá-la à venda. Depois de fechado o negócio, usou a parte dela para
comprar um imóvel num condomínio em Bronxville — que Rachel, com seu dom habitual para expressões pitorescas, chamou de “bom”. Também começou a freqüentar um curso para adultos, na Columbia, fez pelo menos
uma viagem à Europa e, se os tricoteiros de plantão estivessem certos, andava namorando com um velho advogado amigo nosso, Jay Sussman. A mulher morrera dois anos antes e, como Jay sempre tivera uma queda
por Edith (os maridos são bons para detectar esse tipo de coisa), nada mais natural do que ele ter entrado em cena assim que eu saí do palco. O viúvo alegre e a feliz divorciada. Bem, sorte de ambos. Jay
estava beirando os setenta, lá isso é verdade, mas quem iria rejeitar um jantar dançante e uns afagos ao entardecer? Para ser absolutamente sincero, eu bem que gostaria de uma dose parecida.
“Oi, Edith”, falei quando ela atendeu. “Aqui é o fantasma do Natal passado.”
“Nathan?” Ela parecia surpresa de ouvir minha voz — além de um tanto contrariada.
“Desculpe o incômodo, mas preciso de uma informação e você é a única pessoa que pode me dar.”
“Isso não é uma daquelas suas piadinhas infames, é?”
“Quem me dera.”
Ela soltou um suspiro alto bem no bocal do fone. “No momento estou meio ocupada. Não demore, por favor.”
“Ocupada com visitas, imagino.”
“Imagine o que bem quiser. Por acaso eu preciso lhe dar satisfações?” E em seguida soltou uma risada estranha, estridente — um riso tão amargo, tão triunfante, tão cheio de impulsos reprimidos, contraditórios,
que foi difícil entender seu sentido. Talvez fosse o riso da mulher liberada. Ou de quem ri por último.
“Não, mas é claro que não. Você é livre para fazer o que bem entender. Só quero uma informação.”
“Sobre o quê?”
“Rachel. Estou tentando falar com ela desde segunda-feira, mas nunca tem ninguém em casa. Eu só quero ter certeza de que ela e o Terrence estão bem.”
“Mas como você é idiota, Nathan. Será que nunca sabe nada, é?”
“Pelo visto não.”
“Eles foram para a Inglaterra no dia vinte de maio e só voltam no dia quinze de junho. Terminou o semestre na Rutgers. A Rachel foi convidada para dar uma palestra em Londres e depois eles iam passar um
tempo com os pais do Terrence na Cornualha.”
“Ela não me contou nada.”
“E por que ela haveria de lhe contar alguma coisa?”
“Porque ela é minha filha, só por isso.”
“Se você agisse mais como pai, talvez ela começasse a lhe contar. Que coisa mais sacana que você fez com ela, Nathan. Ela ficou tão magoada... tão magoada. Onde já se viu explodir daquele jeito? Com que
direito?”
“Eu liguei para pedir desculpas, mas ela desligou na minha cara. Mandei uma carta comprida para ela. Estou tentando consertar o estrago, Edith. Eu amo de fato a Rachel, e você sabe disso.”
“Então ponha-se de joelhos e implore perdão. Mas não espere ajuda de minha parte. Meus dias de mediadora acabaram.”
“Não estou pedindo ajuda. Mas, se por acaso ela ligar da Inglaterra, você não quer me fazer o favor de mencionar que há uma carta esperando para quando ela voltar? E um colar também?”
“Nem pensar, criatura. Não vou abrir minha boca. Não vou dizer uma maldita palavra que seja. Entendeu?”
E ainda há quem insista no mito da tolerância e da boa vontade entre casais divorciados. Até nossa conversa terminar, metade de mim só pensava em pegar o trem seguinte com destino a Bronxville para estrangular
Edith bem devagarzinho. A outra metade tinha vontade de cuspir. Mas justiça seja feita. A ira de minha ex-mulher fora tão violenta, tão contundente na acusação e no desprezo que acabou me ajudando a tomar
uma decisão. Nunca mais eu ligaria para ela. Nunca mais, em circunstância nenhuma, pelo resto da vida. O divórcio havia nos desenroscado aos olhos da lei, dissolvendo um casamento que nos mantivera juntos
durante tantos anos. Mas, como possuíamos algo em comum, e para sempre, uma vez que continuaríamos sendo pais de Rachel enquanto vivêssemos, eu presumira que esse laço evitaria entre nós um estado de animosidade
perene. Mas não mais. Aquele telefonema foi o fim e, dali em diante, Edith não seria mais que um nome para mim — cinco letrinhas minúsculas significando uma pessoa que cessara de existir.
No dia seguinte, quinta-feira, almocei sozinho. Naquela tarde Tom havia combinado acompanhar Harry até Manhattan para negociar com a viúva de um romancista recém-falecido os livros da biblioteca do marido.
Segundo Tom, ele devia ter conhecido todos os escritores importantes dos últimos cinqüenta anos, porque suas estantes estavam forradas de livros com dedicatórias assinadas por amigos ilustres. No ramo,
esses livros levavam o nome de “association copies” e, por serem muito procurados pelos colecionadores, disse-me Tom, invariavelmente alcançavam um preço excelente. Outra coisa que ele também me disse
é que essas saídas eram a parte que mais apreciava no trabalho. Não só lhe permitiam deixar o confinamento em que vivia na livraria do Brooklyn, como também lhe davam a oportunidade de ver o patrão em
ação. “Ele dá um show e tanto”, contou Tom. “Não pára um segundo de falar. Negocia o tempo todo. Adula, denigre, engambela — regateia sem descanso. Não acredito em reencarnação, mas, se acreditasse, juraria
que em outras vidas Harry foi um mercador de tapetes marroquino.”
Como quarta-feira tinha sido o dia de folga de Marina, e eu estava privado da companhia de Tom, me sentia especialmente ansioso para rever minha amada. Só que quando entrei no Cosmic, à uma da tarde, ela
não estava. Conversei com Dimitrios, o dono da lanchonete, e ele me explicou que Marina telefonara pela manhã alegando doença e dizendo que era provável que não pudesse ir trabalhar por mais alguns dias.
Senti-me profunda e absurdamente desolado. Depois do sabão de minha ex-mulher, na noite anterior, queria reafirmar minha fé no sexo feminino. Quem melhor para me ajudar nisso do que a gentil Marina Gonzalez?
Antes mesmo de entrar no restaurante eu já a imaginava com o colar no pescoço (como acontecera na segunda e na terça), ciente de que aquela simples visão me faria um bem danado. Com o coração pesado, portanto,
enfiei-me num cubículo vazio e fiz meu pedido para Dimitrios, que substituía meu amor ausente. Como de hábito, levava um livro no bolso do paletó (A consciência de Zeno, comprado por recomendação de Tom);
já que não havia ninguém com quem conversar, abri o romance de Svevo e comecei a ler.
Dois parágrafos adiante, o sujeito conhecido como sr. Encrenca bateu à minha porta. Esse foi o encontro ao qual aludi umas quinze ou vinte páginas atrás, e agora que chegou o momento de falar do assunto,
arrepio-me só de lembrar o que houve entre nós. Essa pessoa, essa coisa que eu prefiro chamar de Encrenca, esse pesadelo que surgiu das profundezas de lugar nenhum, disfarçado de entregador da U.P.S.,
era um trintão de corpo musculoso, forte, com uma expressão raivosa nos olhos. Não, raiva não faz jus ao que eu vi naquele rosto. Fúria estaria mais próximo da verdade, acho eu, ou quem sabe ira ou até
mesmo loucura homicida. Fosse lá o que fosse, quando ele irrompeu na lanchonete e perguntou a Dimitrios em voz alta e beligerante se Nathan estava lá, Nathan Glass, eu saquei que o sr. Encrenca respondia
pelo codinome de Roberto Gonzalez. Assim como também saquei que o colar não estava mais na caixa registradora. A pobre Marina havia esquecido de tirá-lo ao voltar para casa na terça-feira. Um pequeno desacerto,
sem dúvida, só que, juntando a maneira como ela tinha usado a palavra pá no dia em que tentara recusar meu presente à informação fornecida por Dimitrios de que ela ficaria ausente “por mais alguns dias”,
impossível não recear o tamanho da surra que aquele filho-da-puta tinha dado nela.
O marido de Marina aboletou-se no banco em frente e debruçou-se na mesa. “Você que é o Nathan?”, ele perguntou. “O porra do Nathan Glass?”
“Eu mesmo. Mas meu primeiro nome não é Porra. É Joseph.”
“Certo, engraçadinho. Agora me diga por quê?”
“Por que o quê?”
Ele enfiou a mão no bolso e jogou o colar sobre a mesa. “Isto.”
“Foi um presente de aniversário.”
“Para a minha mulher.”
“Isso. Para a sua mulher. Qual é o problema? Marina me serve o almoço todos os dias. Ela é uma moça sensacional e eu quis mostrar minha gratidão. Eu não deixo uma gorjeta para ela, quando pago a conta?
Pois então, considere o colar uma gorjeta mais polpuda.”
“Não é certo, cara. Mulher casada não é para ninguém ficar de sacanagem.”
“Eu não estou de sacanagem com ninguém. Apenas lhe dei um presente, mais nada. Tenho idade para ser pai dela.”
“Você tem um pau, não tem? Ainda tem colhões, não tem?”
“Da última vez que olhei, estava tudo lá.”
“Estou avisando, cavalheiro. Deixa a Marina em paz. Ela pode ser uma vaca, mas eu te mato se você chegar perto dela de novo.”
“Não a chame de vaca. Ela é uma mulher. E você tem uma sorte danada de ter se casado com ela.”
“Eu chamo minha mulher do que eu quiser, seu babaca. E isto aqui”, disse ele, enquanto pegava o colar e o sacudia diante de meus olhos, “este pedaço de merda, você pode comer amanhã de manhã, no café.”
Em seguida, agarrou a jóia com as duas mãos e, com um movimento rápido dos pulsos, arrebentou a corrente de ouro. Algumas pedras escorregaram e saltaram sobre a mesa de fórmica; outras aterrissaram na
palma da mão dele e, quando ele se levantou para sair, jogou-as na minha cara. Se não fossem os óculos, alguma podia ter entrado no meu olho. “Da próxima vez, eu te mato!”, ele berrou, sacudindo o dedo
para mim feito um fantoche ensandecido. “Larga mão da minha mulher, seu desgraçado, senão vai morrer!”
Àquela altura, todo mundo na lanchonete estava olhando para nós. Não era sempre que a gente se sentava para almoçar e ganhava de brinde um espetáculo tão fascinante! Porém, depois da bronca do sr. Encrenca,
o ato parecia ter chegado ao fim. Ou pelo menos foi o que pensei. Gonzalez já me dera as costas e ia em direção à porta, mas a passagem entre as mesas era estreita e, antes que conseguisse completar sua
saída, a imponente barriga de Dimitrios obstruiu-lhe o caminho. E assim teve início o Segundo Ato. Acuado, com os miolos ainda em fogo, o agitado Gonzalez se pôs a berrar a plenos pulmões. “E você veja
se mantém aquele vagabundo longe daqui!”, disse ele (referindo-se a mim). “Ou você mantém ele longe daqui, ou a Marina não vem mais trabalhar! Ela pede demissão!”
“Pois ela que peça”, disse o dono do diner Cosmic. “A lanchonete é minha e ninguém vai me dizer o que fazer na minha lanchonete. Sem meus clientes, eu não tenho nada. Se manda daqui e pode dizer para a
Marina que não precisa voltar. Eu não quero vê-la nunca mais. E você — se puser os pés de novo aqui, eu chamo a polícia.”
Houve um certo empurra-empurra depois disso, mas, por mais forte e musculoso que fosse Gonzalez, Dimitrios era grande demais para ele e, no fim, após mais uma onda de ameaças e contra-ameaças, o marido
de Marina desapareceu do estabelecimento. O idiota tinha feito a mulher perder o emprego. Mas, pior que isso — muito pior que isso —, dei-me conta de que muito provavelmente eu não voltaria a vê-la nunca
mais.
Uma vez restaurada a calma no diner, Dimitrios veio até minha mesa e sentou-se. Pediu desculpas pelo incômodo e disse que o almoço era por conta da casa, mas quando tentei dissuadi-lo de mandar Marina
embora, ele não cedeu. Participara de bom grado em nossa trama do colar-na-caixa-registradora, mas negócios eram negócios, disse-me ele, e ainda que gostasse “um bocado” de Marina, não queria correr mais
riscos com aquele marido despirocado dela. Depois falou algo que me marcou como ferro em brasa. “Não se preocupe com isso. Não foi culpa sua.”
Mas a culpa tinha sido minha. Eu era o culpado por todo o imbróglio e senti vergonha pelo mal que causara à inocente Marina. O primeiro impulso da moça tinha sido o de recusar o colar. Ela sabia que tipo
de homem era o marido, mas, em vez de escutar o que ela me dizia, eu a forçara a aceitá-lo. E aquela burrice, aquela enorme e tremenda burrice não causara nada além de encrenca. Que Deus me amaldiçoe,
disse com meus botões. Que meu corpo seja jogado no inferno e ali queime por mil anos.
Essa foi a última vez que almocei no Cosmic. Continuo passando por ele todos os dias, nas minhas caminhadas pela avenida Sete, mas por enquanto ainda não tinha coragem de voltar a entrar.
Tretas
Aquela noite (a de quinta-feira), fui jantar com Harry no restaurante Mike & Tony, na esquina da avenida Cinco com a rua Carroll. Era o mesmo restaurante onde ele havia feito todas aquelas revelações perturbadoras
a meu sobrinho, uns dois meses antes, e creio que o motivo da escolha foi porque lá ele se sentia à vontade. A metade da frente funcionava como bar da vizinhança; nessa parte do estabelecimento, onde os
eventos esportivos podiam ser acompanhados numa televisão de bom tamanho suspensa na parede, perto da entrada, fumar cigarros e charutos era atividade vigorosamente incentivada. Entretanto, passado esse
lado e ultrapassadas as portas duplas de vidro grosso, nos fundos do bar, você se via num ambiente bem diferente. O restaurante era um pequeno salão acarpetado, com estantes de livros forrando uma das
paredes, um punhado de fotos em preto-e-branco expostas na outra e não mais que oito ou dez mesas ao todo. Em outras palavras, era um bistrozinho tranqüilo de atmosfera íntima, abençoado com uma acústica
tolerante, que permitia ouvir o que o interlocutor dizia mesmo quando este falava em voz baixa. Na cabeça de Harry, aquele lugar devia parecer tão confortável e privado quanto um confessionário. E o fato
é que, pelo visto, ele gostava de fazer suas confissões ali — primeiro para Tom, agora para mim.
Harry achava que, de sua vida pré-Brooklyn, eu só conhecia os fatos básicos: nascido em Buffalo, ex-marido de Bette, pai de Flora, com pena cumprida em presídio. O que ele não sabia é que meu sobrinho
Tom já me havia fornecido um bom punhado de detalhes que eu, é claro, guardava comigo. Por isso banquei o parvo enquanto era conduzido pelos meandros da tramóia já minha conhecida envolvendo Alec Smith
e Gordon Dryer. De início não compreendi por que se dar ao trabalho de me relatar tudo aquilo. Que relação tinha aquele trambique com o negócio atual que Harry estava para fechar? Fiz essa pergunta aos
meus botões e depois, ainda mais confuso, repeti-a diretamente para ele. “Só mais um pouquinho de paciência”, ele me falou. “No devido tempo, tudo se esclarecerá.”
Eu não falei muito durante o começo do jantar. O tumulto no diner, aquela tarde, me deixara bastante abalado e, enquanto Harry me expunha sua história, várias vezes meus pensamentos vagaram em direção
a Marina, ao cretino do marido e a todo o encadeamento de circunstâncias que me levara a comprar aquele maldito colar da B.M.P. Porém o patrão de Tom estava em excelente forma aquela noite, e, com a ajuda
de um uísque antes do jantar e do vinho que tomei para acompanhar meu prato de Ostras Blue Point, fui aos poucos deixando o mau humor de lado e me concentrando no assunto em pauta. O relato de Harry sobre
seus crimes em Chicago coincidiu direitinho com o que Tom me fizera, só que veio acompanhado por notável e divertida diferença. No de Tom, Harry havia se desmilingüido e chorado. Roído de remorsos, censurara
a si próprio por ter destruído seu casamento, seu ganha-pão e seu nome. Comigo, contudo, ele parecia não estar sentindo um pingo de arrependimento e chegou mesmo a se vangloriar do golpe de mestre que
conseguira aplicar durante dois anos inteiros e recordou essa incursão pela falsificação artística como tendo sido um dos períodos mais gloriosos de sua vida. Como explicar esse tom tão radicalmente diverso?
Será que havia encenado todo aquele arrependimento para ganhar a simpatia e a compreensão de meu sobrinho? Ou então, tendo acontecido na esteira da desastrada visita de Flora ao Brooklyn, talvez aquela
primeira confissão tivesse sido um verdadeiro brado da alma. Quem sabe. Todos os homens contêm vários outros homens dentro de si e a maioria de nós salta de um para outro sem mesmo saber quem é. Nas nuvens
hoje, no fundo do poço amanhã; apático e calado pela manhã, risonho e cheio de piadas à noite. O moral de Harry devia estar baixo no dia em que se abriu com Tom, mas agora, com aquele empreendimento comercial
em andamento, o cara estava flutuando.
Nossas bistecas chegaram, mudamos para uma garrafa de tinto e então, enfim, apareceu a peça que faltava no quebra-cabeça. Harry já havia me prevenido para o impacto da surpresa por vir, mas, mesmo que
eu tivesse tido cem chances de adivinhar o que seria, jamais poderia prever a notícia espantosa que com tamanha calma lhe escorreu dos lábios.
“O Gordon voltou”, ele disse.
“O Gordon”, repeti, aturdido demais para acrescentar qualquer outra coisa. “Você quer dizer o Gordon Dryer?”
“Gordon Dryer. Meu velho companheiro de pecados e folias.”
“E como foi que ele descobriu seu paradeiro?”
“Você fala como se fosse algo ruim, Nathan. E não é. Eu estou muito, muito feliz.”
“Depois do que você fez para ele, eu achava que a vontade dele seria matá-lo.”
“Foi o que eu pensei também, no começo, mas isso tudo acabou. O rancor, o ressentimento. O pobrezinho atirou-se em meus braços e me pediu perdão. Dá para imaginar uma coisa dessas? Ele queria que eu o
perdoasse.”
“Mas se foi você que o botou na cadeia!”
“Pois é, eu sei, mas a idéia inicial foi dele. Se o Gordon não tivesse posto a mão na massa, nenhum de nós dois teria cumprido pena. E é por isso que ele se culpa. Ele fez muito exame de consciência, nesses
anos todos, e me disse que chegou a um ponto em que não conseguia mais viver em paz, achando que eu ainda estava com raiva dele. O Gordon não é mais nenhuma criança. Está com quarenta e sete anos agora,
e cresceu um bocado, desde os velhos tempos em Chicago.”
“Quanto tempo ele passou preso?”
“Três anos e meio. Depois foi para San Francisco e começou a pintar de novo. Sem grande sucesso, infelizmente. Sobreviveu dando aulas de desenho, fazendo um servicinho aqui, outro ali, até que se apaixonou
por um sujeito que mora em Nova York. E foi por isso que ele veio para cá. Saiu de San Francisco no começo do mês passado e veio morar com ele aqui.”
“Alguém com muito dinheiro, imagino.”
“Não sei dos detalhes todos. Mas acho que ele ganha o suficiente para sustentar a ambos.”
“Sorte do Gordon.”
“Nem tanta. Afinal ele já penou um bocado, pensando bem. Além disso, é de mim que ele gosta. É muito ligado ao amigo, mas é a mim que ele ama. E eu também o amo.”
“Sem querer me intrometer na sua vida, onde é que entra o Rufus nessa história?”
“Eu adoro o Rufus, mas nosso relacionamento é totalmente platônico. Em todos esses anos que nos conhecemos, nunca passamos uma única noite juntos.”
“Mas com o Gordon é diferente.”
“Bem diferente. Ele não é mais tão jovem, mas continua lindo. E você nem imagina como é gentil comigo. Não nos vemos com muita freqüência, claro, você sabe como são esses casos secretos de amor. Tantas
mentiras que têm que ser ditas, tantos arranjos a serem previstos! Mas, sempre que conseguimos nos encontrar, percebemos que a velha chama continua bem acesa. Eu achava que havia encerrado essa parte da
vida, que tinha superado isso, mas o Gordon me rejuvenesceu. Pele nua, Nathan. É a única coisa pela qual vale a pena viver.”
“Uma das coisas, pelo menos, com isso eu concordo.”
“Se conseguir pensar numa melhor, me avise, por favor.”
“Pensei que tivéssemos vindo aqui para falar de negócios.”
“E é exatamente o que estamos fazendo. O Gordon faz parte do esquema. Nós estamos nisso juntos.”
“De novo?”
“É um plano fantástico. Tão brilhante que me arrepio todo sempre que penso nele.”
“Por que será que estou tendo a impressão descabida de que você vai me dizer que se envolveu numa outra fraude? Esse negócio de que estamos falando é legal ou ilegal?”
“Ilegal, claro. Qual é a graça, se não houver risco?”
“Você é incorrigível, Harry. Depois de tudo o que lhe aconteceu, era de esperar que tivesse se emendado para o resto da vida.”
“Tentei. Durante nove longos anos, eu tentei, mas não adiantou. Tem um diabrete dentro de mim e se eu não deixá-lo sair de vez em quando, para aprontar alguma traquinagem, o mundo simplesmente fica chato
demais. Eu detesto me sentir entediado e ranzinza. Sou um entusiasta e, quanto mais perigosa se torna minha vida, mais feliz eu fico. Tem gente que aposta nas cartas. Outros escalam montanhas ou saltam
de avião. Eu gosto de passar a perna nas pessoas. Gosto de ver até que ponto consigo me safar impunemente. Quando garoto, um dos meus sonhos era publicar uma enciclopédia na qual todas as informações fossem
falsas. Datas erradas para todos os acontecimentos históricos, localização errada para todos os rios, biografias de gente que nunca existiu. Que tipo de pessoa imagina fazer uma coisa assim? Uma pessoa
louca, suponho, mas, Deus do céu, como essa idéia me fazia rir. Quando servi na Marinha, quase fui submetido à corte marcial por ter rotulado de forma errada um conjunto de mapas náuticos. Fiz de propósito.
Não sei por quê, mas a necessidade me veio e eu não consegui me controlar. Convenci o comandante de que tinha sido um erro involuntário, mas não foi. Eu sou assim mesmo, Nathan. Sou generoso, sou bom,
sou leal, mas também sou um piadista nato. Uns dois meses atrás, Tom mencionou uma teoria proposta por alguém a respeito dos clássicos da literatura. Que teria sido tudo um embuste, segundo me disse o
Tom. Ésquilo, Homero, Sófocles, Platão, o bando todo. Inventados por alguns poetas italianos muito espertos durante o Renascimento. Não é a coisa mais maravilhosa que você já ouviu na vida? Os grandes
pilares da civilização ocidental, e cada um deles um enorme de um embuste. Ah, como eu teria adorado fazer parte dessa piadinha.”
“E dessa vez o que teremos? Mais quadros falsificados?”
“Não, desta vez é um manuscrito falso. Eu agora estou no ramo livreiro, esqueceu?”
“Outra idéia do Gordon, sem dúvida.”
“Bem, foi. Ele é tremendamente inteligente, como você sabe, e compreende minhas fraquezas.”
“Tem certeza de que quer me contar a respeito? Como é que você sabe que pode confiar em mim?”
“Porque você é um homem honrado e discreto.”
“Como é que você sabe disso?”
“Porque você é tio do Tom. E o Tom também é um homem honrado e discreto.”
“Então por que não conta para ele?”
“Porque o Tom é puro demais. É bom demais e não tem cabeça para os negócios. Você já viu muita coisa na vida, Nathan, e confio na sua experiência para me dar alguns conselhos inteligentes.”
“Meu conselho seria: esqueça a coisa toda.”
“Não posso fazer isso. O negócio já está muito avançado para eu recuar agora. E, além do mais, eu não quero.”
“Certo. Mas, quando a bomba estourar na sua mão, não se esqueça de que eu o avisei.”
“A letra escarlate. Você decerto já terá ouvido falar nesse livro, não?”
“Não só ouvi como li. No curso de inglês, no primeiro ano do colegial. Professora O’Flaherty, quarto trimestre.”
“É verdade, todos nós tivemos de ler esse livro no colégio. Um clássico americano. Um dos romances mais famosos de todos os tempos.”
“Está tentando me dizer que você e o Gordon vão forjar um manuscrito de A letra escarlate? E o original de Hawthorne, cadê?”
“Essa é que é a beleza. O manuscrito de Hawthorne desapareceu. Exceto pela página de rosto — devidamente trancafiada num cofre da Biblioteca Morgan, neste momento. Mas ninguém sabe o que houve com o resto
do livro. Tem gente que acha que foi queimado, ou pelo próprio Hawthorne ou num incêndio no armazém onde estava depositado. Há quem diga que os tipógrafos simplesmente jogaram as folhas no lixo — ou que
usaram o papel para acender os cachimbos. Essa é a minha versão predileta. Um punhado de gráficos miseráveis de Boston acendendo seus pitos de sabugo de milho com A letra escarlate. Mas, seja qual for
a verdade, as controvérsias justificam supor que o manuscrito não tenha desaparecido do mapa. Que tenha apenas sido perdido, digamos. E se por acaso o editor do livro de Hawthorne, James T. Fields, resolveu
levar o manuscrito para casa e guardá-lo numa caixa, junto com uma pilha de outros papéis? E se, com o tempo, essa caixa foi parar no sótão? Anos depois, um dos filhos de Fields herda a tal caixa, ou talvez
ela tenha simplesmente continuado onde estava, no sótão, quando a casa foi vendida, tornando-se assim propriedade dos novos donos. Percebe o que estou querendo dizer? Existem dúvidas e mistérios suficientes
para sustentar uma descoberta milagrosa. Aconteceu com uma pilha de cartas e manuscritos de Melville não faz muitos anos, numa casa no interior do estado de Nova York. Se os papéis de Melville puderam
ser encontrados, por que não os de Hawthorne?”
“E quem é que vai forjar o manuscrito? O Gordon não tem qualificação para fazer algo do gênero, tem?”
“Não. Ele vai ser o descobridor do manuscrito, mas o trabalho propriamente dito está sendo feito por um tal de Ian Metropolis. Gordon soube dele por alguém que conheceu no presídio, e pelo visto o sujeito
é o melhor do mercado, um gênio consumado. Já falsificou Lincoln, Poe, Washington Irving, Henry James, Gertrude Stein e sabe Deus quem mais, e em todos esses anos de trabalho nunca foi apanhado. Nem uma
única vez. Não há antecedentes e tampouco suspeitas. Ian Metropolis é um espectro trabalhando na penumbra. Essa é uma tarefa muito complexa, Nathan, exige um bocado. Em primeiro lugar, é preciso achar
o papel certo — papel de meados do século XIX que suporte exames de raios X e ultravioletas. Depois, é preciso estudar todos os manuscritos existentes do autor para poder imitar a letra dele — que por
sinal era bem esculachada, às vezes quase ilegível. Porém dominar a técnica física é apenas uma pequena parte do trabalho. Porque não é dizer que a pessoa senta com um exemplar de A letra escarlate do
lado e copia tintim por tintim o que está impresso. É preciso conhecer cada um dos pequenos sestros de Hawthorne, os erros que ele cometia, o uso idiossincrático dos hifens, a incapacidade de grafar certas
palavras de forma correta. Ao escrever teto, por exemplo, em vez de ceiling ele punha cieling; em vez de subtle ele escrevia subtile. Toda vez que Hawthorne escrevia Oh, os tipógrafos mudavam para O. E
assim por diante. A coisa requer muita preparação e trabalho árduo. Mas que vale a pena, vale, amigo. Um manuscrito completo alcança quem sabe de três a quatro milhões de dólares. O Gordon me ofereceu
vinte e cinco por cento pelos meus serviços, o que significa que estamos falando aqui de algo perto de um milhão. Dá para o gasto, você não acha?”
“E o que você terá de fazer para ganhar esses seus vinte e cinco por cento?”
“Vender o manuscrito. Eu sou um humilde mas respeitado negociante de livros raros, autógrafos e outras curiosidades literárias. Empresto legitimidade ao projeto.”
“E já arranjou algum comprador em potencial para ele?”
“Essa é a parte que estava me preocupando. Eu sugeri que vendêssemos direto para uma das bibliotecas da cidade — para a Berg Collection, ou para a Morgan, quem sabe para a Universidade de Columbia — ou
então que levássemos a leilão na Sotheby’s. Entretanto o Gordon encasquetou que quer um colecionador particular. Diz que é mais seguro manter o negócio entre quatro paredes, e acho que até entendo o ponto
de vista dele. Mas isso me leva a perguntar se ele tem mesmo confiança no trabalho desse Metropolis.”
“E o que diz o Metropolis?”
“Eu não sei. Nunca falei com ele.”
“Você está envolvido numa tramóia de quatro milhões de dólares com um homem que nunca viu?”
“Ele não permite que ninguém o veja. Nem mesmo o Gordon. Todos os contatos entre os dois são feitos por telefone.”
“Essa história está me parecendo cada vez mais suspeita, Harry.”
“É, eu sei. Um pouco capa-e-espada demais, até para mim. Mas agora parece que as coisas estão avançando rapidamente. Nós encontramos um comprador e, duas semanas atrás, eu lhe mandei uma página de amostra.
Acredite se quiser, o sujeito levou a página para diversos especialistas e todos confirmaram a autenticidade. Acabei de receber um cheque dele no valor de dez mil dólares. A título de reserva, para que
o manuscrito não seja oferecido a mais ninguém. O plano é concluir a venda depois que ele voltar da Europa na sexta-feira que vem.”
“Quem é ele?”
“Figurinha carimbada do mercado financeiro. Chama-se Myron Trumbell. Eu me informei sobre ele. Um sangue-azul de Park Avenue que nada em dinheiro.”
“E onde foi que o Gordon encontrou esse sujeito?”
“Ele é amigo do amigo do Gordon, do homem com quem ele mora agora.”
“A quem você também não conhece.”
“Não. E nem quero. Gordon e eu somos amantes secretos. Por que eu haveria de querer conhecer meu rival?”
“Eu acho que você está entrando numa fria, meu velho. Eles estão armando uma para você.”
“Armando uma para mim? Do que você está falando?”
“Quantas páginas desse manuscrito você já viu?”
“Só uma. A que eu entreguei para o Trumbell duas semanas atrás.”
“E se houver apenas essa única página, Harry? E se por acaso não houver Ian Metropolis nenhum? E se porventura esse novo amigo do Gordon for ninguém mais ninguém menos que Myron Trumbell em pessoa?”
“Impossível. Por que alguém iria se dar ao trabalho de...”
“Vingança. Uma desfeita pede outra. Olho por olho. Todas essas maravilhosas qualidades pelas quais nós os humanos somos tão famosos. Eu receio que esse seu Gordon não seja quem você pensa que ele é.”
“Isso é sinistro demais, Nathan. Recuso-me a acreditar numa coisa dessas.”
“Você já depositou o cheque do Trumbell?”
“Três dias atrás. Na verdade, já gastei metade do dinheiro num monte de roupas novas.”
“Devolva o dinheiro.”
“Eu não quero.”
“Se não tiver o suficiente na sua conta, eu empresto o que faltar para cobrir a diferença.”
“Obrigado, Nathan, mas não preciso da sua caridade.”
“Eles puseram você numa bela de uma enrascada, Harry, e você nem desconfia disso.”
“Pense o que quiser, mas eu não vou recuar. Vou continuar em frente, aconteça o que acontecer, chova ou faça sol. Se você estiver certo a respeito do Gordon, então minha vida acabou de qualquer forma.
Portanto, que diferença faz? E se estiver errado — e eu sei que está —, eu o convido para outro jantar, quando então poderemos brindar ao meu sucesso.”
Uma batida na porta
Sábados e domingos, Tom dormia até tarde. A loja de Harry ficava aberta no fim de semana, mas Tom não precisava ir e, como não havia mais faculdade, levantar cedo era inútil. Ele não encontraria a B.M.P.
no alpendre de casa esperando o ônibus chegar para apanhar os filhos e, sem aquele chamariz para tirá-lo de sob as cobertas quentinhas, Tom nem se dava ao trabalho de acertar o despertador. Persianas baixadas,
o corpo envolvido no escuro uterino de seu minúsculo lar, ele dormia até que os olhos se abrissem por vontade própria — ou, como acontecia com freqüência, um ruído qualquer no prédio o despertasse de repente.
No domingo, dia 4 de junho (três dias depois do meu desastroso encontro com Roberto Gonzalez e também de minha desconcertante conversa com Harry Brightman), foi um barulho que arrancou meu sobrinho das
profundezas do sono — no caso, o barulho de uma pequena mão batendo com delicadeza e hesitação na porta. Passavam alguns minutos das nove e, depois de Tom registrar o ruído, depois de saltar da cama e
a passos trôpegos atravessar a sala para abrir a porta, sua vida sofreu uma súbita e espantosa reviravolta. Para ir direto ao ponto, tudo mudou para ele. E é só agora, depois de muitos preparativos laboriosos,
depois de muito revirar e afofar o solo, que minha crônica das aventuras de Tom vai de fato decolar.
Era Lucy. Uma silenciosa Lucy, com nove anos de idade, cabelos castanhos curtinhos, os mesmos olhos redondos cor de avelã da mãe — uma pré-adolescente comprida, vestida com jeans vermelhos rasgados, um
par de quedes brancos surrados e uma camiseta do Kansas City Royals. Não trazia uma sacola, um blusão ou uma malha pendurados no braço, não havia nada a não ser as roupas do corpo. Fazia seis anos que
Tom não via a sobrinha, mas reconheceu-a na hora. Completamente mudada e, de certa forma, exatamente como antes — apesar da nova dentição de adulto, apesar do semblante mais espichado e mais magro, apesar
dos muitos centímetros crescidos. Lá estava ela parada na porta, sorrindo para seu descabelado e estremunhado tio, examinando-o com aquele olhar fixo e embevecido do qual Tom se lembrava tão bem dos velhos
tempos em Michigan. Onde estava a mãe dela? Onde estava o marido da mãe? Por que ela estava sozinha? Como tinha chegado até ali? Tom deu uma pausa depois de cada pergunta, mas da boca de Lucy não saiu
uma única palavra. Por alguns momentos ele chegou a pensar que talvez ela tivesse ficado surda, mas depois perguntou se ela se lembrava dele e Lucy fez que sim com a cabeça. Tom abriu os braços e ela foi
direto para o abraço do tio, comprimindo a testa no peito dele e apertando-o de volta o máximo que conseguiu. “Você deve estar faminta”, falou Tom por fim, escancarando a porta para que ela entrasse naquele
caixão sinistro que ele chamava de apartamento.
Tom preparou uma tigela de cereais para ela, serviu um copo de suco de laranja e, até terminar de fazer um bule de café para si, o copo e a tigela estavam vazios. Perguntou se ela queria alguma outra coisa
e, quando ela balançou a cabeça para dizer que sim e sorriu, ele fez duas torradas sobre as quais Lucy despejou um balde de melado de bordo e engoliu em um minuto e meio. De início, Tom atribuiu seu silêncio
à exaustão, à ansiedade, à fome, a qualquer uma de várias causas possíveis, mas a verdade é que Lucy não parecia cansada, dava a impressão de se sentir perfeitamente à vontade no ambiente e, agora que
tinha dado cabo da comida, a fome precisava ser riscada da lista. Entretanto continuava não respondendo às perguntas. Algumas balançadas de cabeça para indicar sim ou não, mas nenhuma palavra, nenhum som,
nenhuma tentativa de usar a língua.
“Será que você esqueceu como é que se fala, Lucy?”, perguntou Tom.
Uma abanada de cabeça para dizer não.
“E essa sua camiseta do time de beisebol de Kansas City? Significa que você veio de lá?”
Nenhuma reação.
“O que você quer que eu faça com você? Não posso mandá-la de volta para sua mãe, se eu não souber onde ela mora.”
Nenhuma reação.
“Quer que eu lhe dê um bloco de papel e um lápis? Talvez você prefira escrever as respostas para mim, em vez de falar.”
Uma abanada de cabeça.
“Você parou de falar para sempre?”
Outra abanada de cabeça.
“Ótimo. Fico satisfeito em saber. E quando é que você tem permissão de voltar a falar de novo?”
Lucy pensou por alguns momentos, depois levantou dois dedos para Tom.
“Dois. Mas dois o quê? Duas horas? Dois dias? Dois meses? Me diga, Lucy.”
Nenhuma reação.
“A sua mãe está bem?”
Uma inclinada afirmativa.
“Ela ainda está casada com o David Minor?”
Outra inclinada de cabeça.
“Então por que você fugiu? Eles não tratavam você bem?”
Nenhuma reação.
“Como é que você veio para Nova York? De ônibus?”
Mais uma inclinada afirmativa.
“Ainda está com a passagem?”
Nenhuma reação.
“Vamos ver o que você tem nos bolsos. Talvez encontremos algumas respostas por aqui.”
Lucy não se fez de rogada. Enfiou a mão nos quatro bolsos da calça e arrancou lá de dentro tudo o que havia, mas nada de significativo foi encontrado. Cento e cinqüenta e sete dólares em notas, três tabletes
de goma de mascar, seis moedas de vinte e cinco centavos, duas de cinco e quatro de um, mais um papelzinho com o nome, o endereço e o número de telefone de Tom — porém nenhum bilhete de ônibus, nenhuma
pista que indicasse ao meu sobrinho onde a viagem de Lucy começara.
“Muito bem, Lucy”, disse Tom. “Agora que você está aqui, o que planeja fazer? Onde é que você vai morar?”
Lucy apontou o dedo para o tio.
Tom deixou escapar uma risada curta e incrédula. “Dê uma boa espiada no lugar onde você está”, ele disse. “Mal tem espaço para uma pessoa, aqui. Onde você acha que vai dormir, garotinha?”
Um dar de ombros, seguido por um enorme e ainda mais lindo sorriso — como se a dizer Nós damos um jeito.
Mas não havia como dar jeito naquilo, ao menos na cabeça de Tom. Ele não sabia nada sobre crianças e, mesmo que estivesse morando numa mansão com doze aposentos e uma equipe completa de criados, ainda
assim não teria o mínimo interesse em se tornar pai substituto da menina. Uma criança normal já seria um desafio e tanto, mas uma que teimava em não falar e que se recusava a dar qualquer informação a
respeito de si era pura e simplesmente uma impossibilidade. Mas, fazer o quê? Por enquanto, não havia saída a não ser ficar com ela e, a menos que conseguisse obrigá-la a contar onde estava a mãe, não
haveria como se livrar da situação. Não que não gostasse de Lucy ou que não lhe importasse o bem-estar da sobrinha, mas sabia que era a pessoa errada para aquela missão. Entre todos com quem Lucy tinha
alguma ligação, ainda que remota, não havia ninguém menos indicado para dar conta do recado.
Tampouco eu tinha qualquer interesse em tomar conta dela, mas pelo menos havia espaço de sobra em meu apartamento. E quando Tom ligou um pouco mais tarde, naquela manhã de domingo, e me contou o que estava
acontecendo (com um pânico na voz que reverberou esganiçado ao telefone), falei que estava disposto a abrigá-la até encontrarmos uma solução para o problema. Eles chegaram a minha casa na rua Um pouco
depois das onze. Lucy sorriu quando Tom apresentou-a a seu tio-avô e me pareceu feliz de receber o beijo de boas-vindas que depositei no alto de sua cabeça, mas logo descobri que estava tão pouco disposta
a falar comigo como com Tom. Minha expectativa era a de conseguir espremer algumas palavras usando uns estratagemas, mas tudo o que obtive foram as mesmas chacoalhadas de cabeça a que Tom fora submetido
mais cedo, indicando sim e não. Pessoinha estranha e perturbadora, ela. Eu não era nenhum especialista em psicologia infantil, mas me parecia óbvio que não havia nada de física ou mentalmente errado com
a menina. Nenhum retardamento mental, nenhum sinal de autismo, nada orgânico que impedisse sua interação com os outros. Lucy olhava a gente direto nos olhos, entendia tudo o que a gente dizia e sorria
tanto quanto qualquer outra criança, com o mesmo afeto. Então o que seria aquilo? Teria por acaso sofrido algum trauma terrível que prejudicara para sempre sua capacidade de falar? Ou, por motivos ainda
impenetráveis, teria ela decidido fazer um voto de silêncio, forçando-se a um mutismo voluntário a fim de testar sua vontade e sua coragem — uma brincadeira de criança da qual acabaria por se cansar? O
rosto e os braços não apresentavam nenhum hematoma, mas eu estava decidido a, em algum momento durante o dia, atraí-la para a banheira para dar uma boa olhada no resto do corpo. Apenas para ter certeza
de que ninguém a havia espancado ou maltratado.
Eu a deixei na frente da televisão, na sala, vendo um canal só de desenhos animados. Os olhos dela se iluminaram de prazer ao ver as figurinhas saracoteando na tela — um prazer tão grande que me passou
pela cabeça a possibilidade de que não estivesse acostumada a ver televisão, o que por sua vez me fez começar a pensar em David Minor e na rigidez de suas crenças religiosas. Teria o marido de Aurora proibido
televisão na casa dele? Seriam suas convicções assim tão fortes que o levaram a querer proteger a filha adotiva do frenético carnaval da cultura pop norte-americana — daquela enxurrada ímpia de luxo e
lixo que jorrava sem descanso de todos os tubos de raios catódicos do país? Talvez. Não saberíamos coisa alguma a respeito de Minor até que Lucy nos contasse onde morava, mas por enquanto ela não estava
abrindo a boca. Tom imaginava que fosse Kansas City por causa da camiseta, mas ela se recusava a confirmar ou negar, ou seja, não queria que soubéssemos — pela simples razão de que tinha medo de ser mandada
de volta. Ela fugira de casa, afinal de contas, e crianças felizes não fogem de casa. Até aí, dúvida nenhuma, com ou sem aparelho de televisão.
Com Lucy aboletada no chão da sala, comendo pistache e assistindo a um episódio de Inspetor Bugiganga, Tom e eu fomos para a cozinha, onde ela não escutaria nossa conversa. Falamos durante uns bons trinta
ou quarenta minutos sem chegar a parte alguma, a não ser a uma confusão e a uma preocupação crescentes. Havia tantos mistérios e fatores imponderáveis com os quais lidar, eram tão poucas as evidências
com as quais montar um caso plausível! Onde Lucy arranjara o dinheiro para a viagem? Como sabia o endereço de Tom? Será que a mãe ajudara ou ela fugira sozinha? Se Aurora estava envolvida, por que não
avisar o irmão, antes de despachar a filha, ou ao menos mandar um bilhete junto? Conjecturamos que talvez houvesse um bilhete, que Lucy perdera. De uma forma ou de outra, o que a partida da menina nos
dizia sobre o casamento de Aurora? Seria o desastre que ambos temíamos ou teria a irmã de Tom finalmente enxergado a luz e abraçado a visão de mundo do marido? Contudo, se reinava a harmonia na casa, o
que fazia a filha deles no Brooklyn? E assim ficamos, girando em círculos, falando, falando, falando, porém incapazes de responder a uma única pergunta.
“O tempo dirá”, disse eu por fim, sem vontade de prolongar a agonia. “Mas vamos começar pelo principal. Temos de encontrar um lugar para ela morar. Não dá para você ficar com ela. Nem eu. Então o que a
gente faz?”
“Se você está pensando que eu vou chamar o Serviço Social para cuidar da Lucy, pode ir tirando o cavalinho da chuva”, disse Tom.
“Não, claro que não. Mas tem de haver alguém que nós conhecemos disposto a recebê-la. Quer dizer, temporariamente. Até conseguirmos descobrir o paradeiro da mãe.”
“Isso é pedir um bocado, Nathan. Pode levar meses. Talvez a gente nunca consiga encontrar a Rory.”
“Tem a filha do seu padrasto.”
“A Pamela?”
“Você falou que ela está muito bem de vida. Que mora numa mansão em Vermont, que tem dois filhos e um marido advogado. Se você lhe disser que é só por este verão, quem sabe ela topa.”
“Ela detesta a Rory. Todos os Zorn detestam minha irmã. Por que motivo a Pamela haveria de querer ter toda essa trabalheira para cuidar da filha dela?”
“Por compaixão. Por generosidade. Você falou que ela melhorou muito com o tempo, não foi? Então? Se eu me comprometer a bancar as despesas da Lucy, talvez ela enxergue a situação como um empreendimento
familiar conjunto. Todos nós nos unindo pelo bem comum.”
“Você é um coroa bem convincente, sabia?”
“Só estou tentando nos livrar desse aperto, Tom. Nada mais do que isso.”
“Certo, eu vou dar uma ligada para a Pamela. Ela vai recusar, mas vale a pena tentar.”
“Assim é que se fala, filho. O negócio é saber passar a lábia. Com muito mel e melado.”
Porém Tom não queria ligar da minha casa. Não só porque Lucy estava lá, segundo ele me disse, mas também porque se sentiria constrangido sabendo-me por perto. Meu delicado e melindroso sobrinho, a mais
sensível das almas. Sem problema, respondi. Mas ele não precisava voltar para casa. Lucy e eu iríamos sair e ele teria toda a liberdade para conversar, com a vantagem adicional de poder debitar o interurbano
na minha conta. “Você viu o que a garota está vestindo”, falei. “Aquela calça em frangalhos e um tênis mais do que malhado. Assim ela não pode continuar, correto? Então é isso, você liga para Vermont que
eu vou levá-la para comprar umas roupinhas novas.”
Aquilo resolveu o impasse. Depois de um almoço preparado às pressas, composto de sopa de tomate, ovos mexidos e sanduíches de salame, Lucy e eu saímos para gastar dinheiro. Mesmo muda, ela parecia estar
curtindo a expedição tanto quanto qualquer outra menina de sua idade em circunstâncias parecidas: liberdade total para escolher o que quisesse. De início ela se contentou com o básico (meias, roupa de
baixo, calças compridas, shorts, pijamas, um moletom com capuz, uma jaqueta de náilon, cortador de unha, escova de dente, escova de cabelo e por aí afora), mas depois vieram os tênis de cento e cinqüenta
dólares, uma cópia do boné de beisebol do Brooklyn Dodgers de lã pura e, o que me espantou um pouco, confesso, um par de reluzentes sapatinhos de verniz do autêntico tipo boneca, com fivela no peito do
pé, e também um vestidinho vermelho e branco de algodão — o modelo clássico de gola redonda e laço atrás. Até terminarmos as compras e voltarmos carregados de sacolas, passava das três da tarde e Tom não
estava mais. Havia um bilhete sobre a mesa da cozinha.
Caro Nathan:
A Pamela disse sim. Não me pergunte como consegui, gastei mais de meia hora, mas no fim ela cedeu. Foi uma das conversas mais extenuantes e massacrantes que já tive na vida. Por enquanto é apenas “a título
experimental”, mas a boa notícia é que ela quer que a gente leve a Lucy para lá amanhã. Algo relacionado com os compromissos de Ted e algum arrasta-pé no country club. Presumo que a gente possa usar seu
carro, certo? Eu dirijo, se você não estiver a fim. Vou dar um pulo na livraria agora, para avisar ao Harry que preciso de uma folga. Espero por você lá. Presto.
Tom
Não havia me ocorrido que tudo pudesse acontecer tão depressa. Sentia-me aliviado, claro, contente que o problema tivesse sido resolvido de forma tão rápida e eficiente, mas uma parte de mim também se
sentia desapontada, talvez até um pouquinho lograda. Eu tinha começado a gostar de Lucy e durante todo o nosso passeio pelas lojas do bairro fui me acostumando com a possibilidade de tê-la comigo por uns
tempos — dias, imaginava eu, quem sabe até semanas. Não que eu tivesse mudado de idéia a respeito da situação (ela não poderia continuar morando lá em casa para sempre), mas durante um curto período teria
sido até que bem agradável para mim. Eu tinha perdido tantas oportunidades com Rachel, quando ela era menina, e agora, de repente, lá estava uma menininha precisando ser cuidada, precisando de alguém para
lhe comprar roupas e lhe dar de comer, precisando de um adulto com tempo de sobra para prestar atenção nela e tentar tirá-la daquele desnorteante silêncio. Eu teria aceitado assumir esse papel de bom grado,
mas o espetáculo pelo visto estava saindo do Brooklyn para se apresentar na Nova Inglaterra e eu havia sido substituído por outro artista. Tentei me consolar com a idéia de que Lucy ficaria bem melhor
no interior, com Pamela e os filhos dela, mas que sabia eu a respeito dessa moça? Fazia anos que eu não a via e os poucos encontros ocorridos no passado tinham me deixado indiferente.
Lucy quis usar o vestido novo e os sapatinhos-boneca para ir à livraria, e eu concordei desde que ela primeiro tomasse um banho. Eu era macaco velho na arte de banhar crianças, falei, e, para provar o
que dizia, tirei um álbum de retratos da estante e mostrei a ela algumas fotos de Rachel — uma das quais, milagrosamente, mostrando minha filha sentada numa banheira cheia de espuma, com seis ou sete anos
de idade. “Esta é a sua prima”, falei. “Você sabia que ela e a sua mãe nasceram com três meses de diferença uma da outra? Elas eram muito amigas.” Lucy abanou a cabeça e me lançou um de seus maiores sorrisos
do dia. Estava começando a confiar no tio Nat, me parecia, e instantes depois estávamos atravessando o corredor que ia para o banheiro. Enchi a banheira, Lucy tirou a roupa e entrou na água. Exceto por
um machucado pequeno, pouco mais que uma casquinha seca no joelho esquerdo, não havia um único arranhão nela. As costas estavam limpas, lisinhas; as pernas também; e nenhum sinal de escoriações ou inchaço
na área dos órgãos genitais. Foi apenas um exame rápido com o olho, mais nada, porém, qualquer que fosse a razão do silêncio dela, não vi nada que sugerisse que Lucy fora maltratada ou molestada. Para
comemorar essa minha descoberta, cantei para ela a versão completa de “Polly Wolly Doodle”, enquanto lavava e enxaguava seu cabelo.
Quinze minutos depois, assim que a tirei da banheira, o telefone tocou. Era Tom, ligando da livraria, preocupado conosco. Já tinha conversado com Harry (que lhe concedera alguns dias de folga) e estava
louco para ir embora.
“Desculpe”, falei. “As compras demoraram mais do que eu imaginava e depois achei que a Lucy estava precisando de um bom banho. Aliás, pode dizer adeus àquela moleca esfarrapada, Tom. Nossa menina parece
que está de saída para uma festa de aniversário no castelo de Windsor.”
Seguiu-se então uma pequena discussão sobre o que fazer no jantar. Como Tom queria sair logo cedo, achou que seria melhor planejarmos algo lá para as seis da tarde. Além do mais, acrescentou meu sobrinho,
o apetite de Lucy era tamanho que, de todo modo, ela já estaria faminta a essa hora.
Virei-me para Lucy e perguntei-lhe o que achava de uma pizza. Como ela respondeu lambendo os lábios e dando um tapinha na barriga, eu disse a Tom para nos encontrar na Trattoria do Rocco — que servia a
melhor pizza das redondezas. “Às seis horas”, falei. “Até lá, a Lucy e eu vamos dar um pulo na videolocadora para alugar um filme que todos nós possamos assistir depois do jantar.”
O filme que retiramos foi Tempos modernos, o que depois me pareceu uma escolha curiosamente inspirada. Além de Lucy nunca ter visto nada com Carlitos, nem sequer ouvido falar dele (mais uma prova da deterioração
do ensino no país), é nesse filme que o famoso vagabundo fala pela primeira vez. As palavras podem ser todas uma saraivada de tolices, mas o fato é que os sons saem jorrando de sua boca. E eu fiquei me
perguntando se aquela cena não iria mexer com alguma coisa dentro de Lucy, quem sabe até fazê-la refletir sobre o significado de seu renitente silêncio. Talvez, no melhor dos mundos possíveis, pudesse
arrancá-la de lá para sempre.
Até o jantar no Rocco, ela havia se comportado às mil maravilhas. Tudo quanto lhe pedi para fazer ela fez de boa vontade, sem contestar, e em nenhum momento observei a menor ruga de descontentamento lhe
franzindo a testa. Tom, porém, num raríssimo ataque de insensibilidade, minutos depois de termos sentado à mesa, mencionou nossa iminente ida a Vermont — sem a menor preparação, publicidade nenhuma exaltando
as virtudes de Burlington, nenhum argumento para explicar por que ela ficaria muito melhor com Pamela do que ao lado de seus dois tios no Brooklyn. Foi aí que eu a vi franzir o cenho pela primeira vez,
depois chorar pela primeira vez, depois emburrar durante boa parte do jantar. Por mais faminta que estivesse, não tocou na pizza que foi posta a sua frente e apenas meu falatório incessante nos poupou
de algo que poderia ter escalado a níveis de uma guerra aberta de nervos. Comecei pelos alicerces que Tom não se dera ao trabalho de assentar: os hinos e louvores, a badalação, o extenso elogio à lendária
bondade de Pamela. Como esses primeiros discursos não surtiram o efeito desejado, mudei de tática e prometi que Tom e eu ficaríamos por lá até ela se sentir confortavelmente instalada. Depois, avançando
além da conta, assumi o risco supremo de lhe garantir que a decisão estava inteirinha em suas mãos. Se não gostasse de lá, nós juntaríamos seus pertences e voltaríamos para Nova York. Entretanto ela teria
de dar uma boa chance para que sua estada funcionasse, falei, não menos que três ou quatro dias. Combinado? Ela inclinou a cabeça, em sinal afirmativo. E só então, pela primeira vez em meia hora, sorriu.
Chamei o garçom e perguntei se poderia fazer o grande favor de aquecer a pizza de novo. Dez minutos depois, ele a levou de volta à mesa e Lucy devorou tudo.
A experiência com Chaplin teve resultados dúbios. Lucy riu, emitindo os primeiros sons do dia (mesmo as lágrimas do jantar tinham rolado em absoluto silêncio), mas vários minutos antes de chegarmos à cena
do restaurante, altura em que Carlitos se põe a cantar aquela sua inesquecível canção absurda, os olhos de Lucy já estavam fechados e ela dormia a sono solto. Quem poderia culpá-la? Tinha chegado a Nova
York pela manhã, depois de viajar sabe Deus quantas centenas de quilômetros, o que significava que devia ter passado boa parte da noite, senão a noite inteira, sentada num ônibus. Levei-a até o quarto
e Tom, abrindo o sofá-cama já arrumado, puxou as cobertas. Ninguém dorme tão profundamente quanto os jovens, sobretudo os jovens exaustos. Mesmo quando pus o corpo de Lucy sobre o colchão e arrumei o lençol
e o cobertor em volta, ela não se mexeu nem abriu os olhos uma única vez.
O dia seguinte teve início com um acontecimento curioso e preocupante. Às sete horas, entrei no quarto da adormecida Lucy com um copo de suco de laranja, um prato de ovos mexidos e duas torradas com manteiga.
Coloquei a comida no chão e em seguida estendi a mão para sacudir muito de leve seu braço. “Acorde, Lucy”, falei. “Hora do café.” Depois de uns três ou quatro segundos, ela abriu os olhos e, logo após
um breve período de espanto total (Onde estou? Quem é esse homem estranho me olhando?), lembrou-se de mim e sorriu. “Dormiu bem?”, perguntei.
“Superbem, tio Nat”, ela me respondeu, pronunciando as palavras com o que me parecia ser um sotaque do Sul. “Feito uma pedra grande no fundo do poço.”
Pronto. Ali estava. Lucy tinha falado. Sem que ninguém precisasse cutucar ou incentivar, sem parar para pensar no que estava fazendo, muito calmamente ela abrira a boca e falara. Seria então aquele o fim
oficial do reinado do silêncio, eu me perguntava, ou fora apenas um esquecimento momentâneo por estar ainda meio estonteada de sono?
“Que bom”, falei com toda a naturalidade, sem querer pôr tudo a perder fazendo menção ao que acabara de acontecer.
“Nós ainda temos que ir para aquela porcaria de Vermont hoje?”, ela perguntou.
Cada nova palavra, cada nova frase vinha alimentar minha cautelosa esperança.
“Daqui a uma hora, mais ou menos”, falei. “Olha só, Lucy, suco, torrada e ovo mexido.”
Enquanto eu me curvava e erguia a comida do chão, ela abriu mais um daqueles seus enormes sorrisos. “Café-da-manhã na cama”, anunciou em voz alta. “Igualzinho à rainha Nefertite.”
Pensei que já estivéssemos fora de perigo, àquela altura, mas mal sabia eu — na verdade eu não sabia coisa alguma. Eu estava lhe estendendo o suco com a mão direita e ela esticando o braço para pegá-lo
quando o céu desabou-lhe sobre a cabeça. Poucas vezes testemunhei uma mudança tão rápida na fisionomia de alguém quanto na de minha sobrinha naquele instante. Numa fração de segundo, o sorriso animado
transformou-se num olhar de horror desmesurado, devastador. Ela tapou a boca com a mão e os olhos se encheram de lágrimas.
“Não se preocupe, meu bem”, falei. “Você não fez nada errado.”
Mas ela tinha feito. Segundo suas diretrizes, tinha feito sim, e pela expressão daquele seu rostinho, era um pecado imperdoável. Numa onda repentina de ira contra si mesma, começou a estapear o lado da
cabeça com a palma da mão esquerda numa pantomima desenfreada para, pelo visto, mostrar como se achava burra. Fez isso três, quatro, cinco vezes e, quando eu me preparava para agarrá-la e impedi-la de
continuar, ergueu a mão esquerda com um dedo muito enfático estendido na minha cara. Lucy estava fora de si. Com um olhar incendiado de repugnância e aversão por si mesma, começou então a bater na mão
esquerda com a direita, como se censurasse a primeira por ter tido a ousadia de mostrar aquele único dedo. Depois que os tapas acabaram, ergueu a mão esquerda de novo. Dessa vez, eram dois dedos. Como
antes, espetou o ar com um amargo exagero. Primeiro um dedo, depois dois. O que estaria tentando me dizer? Não podia ter certeza, mas desconfiava que tinha algo a ver com tempo, com o número de dias que
faltavam para que tivesse permissão de falar outra vez. Na hora em que acordara, faltava um dia apenas, mas depois de deixar algumas poucas palavras escaparem da boca, tinha de se punir de novo acrescentando
mais um dia ao silêncio. Um, portanto, tinha virado dois.
“Então é isso?”, perguntei. “Você está me dizendo que vai começar a falar de novo daqui a dois dias?”
Nenhuma reação. Tornei a perguntar, mas Lucy não parecia inclinada a revelar seu segredo. Não houve um inclinar de cabeça, não houve um abanar de cabeça, nada. Sentei-me a seu lado na cama e comecei a
afagar seus cabelos.
“Olhe aqui, Lucy”, falei, entregando a ela o copo de suco de laranja. “Agora tome seu café-da-manhã.”
Viajando para o Norte
O carro era uma relíquia de minha vida anterior. Não havia a menor necessidade de conservá-lo, morando em Nova York, mas minha preguiça fora maior, de modo que ficava guardado num estacionamento na rua
Union, entre as avenidas Seis e Sete, sem nunca ter sido usado, tampouco olhado, desde minha mudança para o Brooklyn. Era um Oldsmobile Cutlass 1994 verde-limão, vale dizer, um verdadeiro pavor. Porém
tinha um desempenho satisfatório e, depois de dois longos meses de inatividade, o motor pegou na primeira girada da chave.
Tom pilotava; eu ia ao lado; Lucy viajava no banco de trás. Apesar das promessas que eu lhe fizera na noite anterior, continuava pouco inclinada a gostar de Pamela ou de Vermont, e sentia-se magoada de
a estarmos levando para lá contra a vontade. Baseada na lógica, tinha uma certa razão. Se a decisão final estava em suas mãos, para que rodarmos quase quinhentos quilômetros quando o único resultado possível
seria termos de rodar outros quinhentos quilômetros para trazê-la de volta? Eu havia dito que ela teria de dar à experiência com Pamela uma chance legítima. Ela havia fingido concordar, mas eu sabia que
Lucy já tomara uma decisão e não iria mudá-la. E assim foi que continuou sentada no banco de trás, com ar amuado e distante, uma vítima inocente e birrenta de nossas maquinações cruéis. Pegou no sono quando
estávamos passando pelos arredores de Bridgeport, na I-95, mas até então não fizera outra coisa senão olhar pela janela, sem sombra de dúvida alimentando pensamentos malignos a respeito de seus dois tios
malvados. Como provariam os acontecimentos posteriores, eu estava errado a esse respeito. Lucy era muito mais esperta do que eu havia imaginado e, em vez de ficar ali sentada simplesmente fervendo de raiva,
ela estava era pensando, usando sua considerável inteligência para arquitetar um plano que iria virar tudo de pernas para o ar e fazê-la senhora do próprio destino. Era um plano brilhante, ainda que seja
eu quem o diga, plano de uma verdadeira tratante, e a mim só me resta tirar o chapéu a uma engenhosidade elevada a tamanha potência. Direi mais a respeito disso futuramente.
Enquanto Lucy matutava e cochilava, Tom e eu conversávamos no banco da frente. Ele não dirigia desde o dia em que largara o emprego de taxista, em janeiro, e o simples fato de estar com um volante nas
mãos outra vez parecia funcionar como um tônico para seu organismo. Eu o havia visto quase todos os dias das duas semanas anteriores, mas em nenhuma ocasião estava tão leve e feliz como naquela manhã de
começo de junho. Depois de vencer o trânsito urbano, pegamos a primeira de diversas estradas que nos levariam para o norte, e foi ali, nas vias desimpedidas, que ele começou a relaxar, a descartar o fardo
de suas misérias, deixando temporariamente de odiar o mundo. Mais tranqüilo, Tom também ficava mais falante. Pelo menos foi essa a regra que vigorou naquele dia, e mais ou menos das oito e meia da manhã
até bem depois do meio-dia fui inundado por uma torrente de palavras — uma verdadeira enchente de casos, piadas e digressões, tanto pertinentes quanto herméticas, sobre questões gerais.
Tudo começou com um comentário a respeito de O livro dos desvarios humanos, aquele meu insignificante trabalho de quinta categoria ainda por terminar. Tom quis saber em que pé estava e, quando lhe contei
que continuava avançando sem um final em vista, que cada história que eu anotava parecia dar à luz outra e mais outra e mais outra, ele me deu um tapinha no ombro com a mão direita e pronunciou esta surpreendente
sentença: “Você é um escritor, Nathan. Está virando um verdadeiro escritor”.
“Que nada”, falei. “Sou apenas um corretor de seguros aposentado que não tem coisa melhor para fazer da vida. O trabalho me ajuda a passar o tempo, mais nada.”
“Você está enganado, Nathan. Depois de anos vagando pelo deserto, você achou enfim sua verdadeira vocação. Agora que não precisa mais ganhar dinheiro, está fazendo o trabalho que era para ter feito a vida
inteira.”
“Coisa mais ridícula, Tom. Ninguém vira escritor aos sessenta.”
O ex-pós-graduando e literato pigarreou e pediu desculpas por ter de discordar. Quando o assunto é literatura, disse-me ele, não existem regras. Bastava olhar um pouco mais de perto a vida de poetas e
romancistas para topar com o mais puro e genuíno caos, com uma mixórdia infinita de exceções. E isso porque escrever era uma doença, Tom prosseguiu — poderíamos chamar até de infecção ou gripe do espírito
—, capaz de atingir qualquer pessoa a qualquer momento. Jovens e velhos, fortes e fracos, bêbados e sóbrios, loucos e sãos. Bastava examinar o rol de gigantes e semi-gigantes para descobrir escritores
que abraçavam todas as vertentes sexuais, todas as inclinações políticas e todos os atributos humanos — do idealismo mais altaneiro à corrupção mais insidiosa. Havia criminosos e advogados, espiões e médicos,
soldados e solteirões, andarilhos e sedentários. Se não se podia excluir ninguém da lista, o que impedia um ex-corretor de seguros de quase sessenta anos de idade de ingressar nas fileiras? Que lei estabelecia
que Nathan Glass não fora contaminado pela doença?
Dei de ombros.
“Joyce escreveu três romances”, disse Tom. “Balzac escreveu noventa. Por acaso isso faz alguma diferença para nós, agora?”
“Para mim, não.”
“Kafka escreveu sua primeira história em uma noite. Stendhal escreveu A cartuxa de Parma em quarenta e nove dias. Melville escreveu Moby Dick em dezesseis meses. Flaubert gastou cinco anos com Madame Bovary.
Musil trabalhou dezoito anos em O homem sem qualidades e morreu antes de conseguir terminá-lo. Por acaso isso hoje tem alguma importância para nós?”
A pergunta não parecia pedir uma resposta.
“Milton era cego. Cervantes tinha um braço só. Christopher Marlowe foi morto a facadas numa briga de bar antes de completar trinta anos. Consta que a faca entrou direto no olho dele. E o que devemos pensar
disso tudo?”
“Eu sei lá, Tom. Me diga.”
“Nada. Neca de pitibiriba.”
“Acho que concordo.”
“Thomas Wentworth Higginson ‘corrigiu’ as poesias de Emily Dickinson. Um papalvo cheio de vento que chamou Folhas de relva de livro imoral ousou pôr a mão no trabalho da divina Emily. E o pobre Poe, que
morreu louco e embriagado nas sarjetas de Baltimore, teve o azar de escolher Rufus Griswold como seu testamenteiro literário. Sem ter a menor idéia de que Griswold o detestava, que esse suposto amigo e
admirador passaria anos tentando destruir-lhe a reputação.”
“Pobre Poe.”
“Ele não teve muita sorte. Não enquanto viveu e nem mesmo depois que morreu. Eles o enterraram num cemitério de Baltimore em 1849, mas passaram-se vinte e seis anos até que pusessem uma lápide sobre seu
túmulo. Um parente havia encomendado uma, logo após a morte dele, mas o serviço acabou numa daquelas trapalhadas de humor negro que fazem a pessoa se perguntar quem é o encarregado de dirigir o mundo.
Bota desvario humano nisso, Nathan. A marmoraria ficava bem embaixo de um viaduto ferroviário. Justamente quando terminaram a inscrição na pedra, houve um descarrilamento. O trem caiu em cima da marmoraria
e esmagou a pedra; como o parente não tinha dinheiro para mandar fazer outra, Poe passou o quarto de século seguinte dentro de uma sepultura anônima.”
“Como é que você sabe disso tudo, Tom?”
“Todo mundo sabe.”
“Não eu.”
“Você nunca fez pós-graduação. Enquanto você estava por aí na vida, tentando fazer o mundo mais seguro para a democracia, eu estava sentado numa biblioteca, enchendo a cabeça de informações inúteis.”
“E no fim quem foi que pagou pela lápide?”
“Um punhado de professores de Baltimore, que formaram um comitê para angariar fundos. Levaram dez anos, acredite se quiser. Quando o monumento terminou, os restos de Poe foram exumados, transportados para
o outro lado de Baltimore e re-enterrados num cemitério de igreja. Na manhã em que o monumento foi desvelado, houve uma cerimônia especial num lugar chamado ‘escola feminina ocidental de segundo grau’.
Um nome fantástico, você não acha? Western Female High School. Todos os poetas importantes do país foram convidados, mas Whittier, Longfellow e Oliver Wendell Holmes deram desculpas e não compareceram.
Apenas Walt Whitman se deu ao trabalho de fazer a viagem. Mas, como sua obra vale bem mais do que a dos outros três juntos, eu vejo a coisa como um ato de sublime justiça poética. O mais interessante é
que Stéphane Mallarmé também estava lá, naquela manhã. Não em carne e osso — mas seu famoso soneto, ‘Le tombeau d’Edgar Poe’, foi escrito para a ocasião e, mesmo que não tenha conseguido terminá-lo a tempo
para ser lido durante a cerimônia, ainda assim estava lá em espírito. Eu adoro isso, Nathan. Whitman e Mallarmé, os pais da poesia moderna, ali lado a lado, na Western Female High School, prestando homenagem
ao antepassado de ambos, o desonrado e desacreditado Edgar Allan Poe, o primeiro escritor de verdade que a América deu ao mundo.”
Sim, Tom estava em plena forma, aquele dia. Um tanto exaltado, suponho, mas não resta dúvida de que aquelas suas divagações eruditas ajudaram a reduzir o tédio da viagem. Ele enveredava por um caminho,
seguia nele algum tempo, chegava a uma encruzilhada e, de repente, dava uma guinada brusca e tomava outra direção, sem nunca parar para decidir se a da esquerda era melhor que a da direita ou vice-versa.
Todos os caminhos levavam a Roma, por assim dizer, e uma vez que Roma era nada menos que o mundo literário (sobre o qual ele parecia saber tudo), não importava que decisão tomasse. De Poe, deu um salto
brusco para Kafka. O elo foi a idade dos dois à época da morte; Poe aos quarenta anos e nove meses, Kafka aos quarenta e um e onze meses. Era o tipo de fato obscuro do qual apenas Tom se lembraria — quem
se importava com isso? —, mas tendo eu mesmo passado metade da vida estudando tabelas atuariais e pensando nos índices de mortalidade em diversas profissões, estava achando tudo bastante interessante.
“Jovens demais”, falei. “Se estivessem vivos nos dias de hoje, haveria uma boa chance de que as drogas e os antibióticos salvassem a ambos. Veja o meu caso. Se tivesse tido meu câncer há trinta, quarenta
anos, é muito provável que não estivesse sentado aqui neste carro, agora.”
“Pois é”, disse Tom. “Quarenta anos é muito jovem. Mas pense em quantos escritores não chegaram nem a isso.”
“Christopher Marlowe.”
“Morto aos vinte e nove. Keats, aos vinte e cinco. Georg Buchner, aos vinte e três. Imagine só uma coisa dessas. O maior dramaturgo alemão do século XIX, morto aos vinte e três anos. Lord Byron morreu
aos trinta e seis. Emily Brontë, aos trinta. Charlotte Brontë, aos trinta e nove. Shelley, um mês antes de completar trinta anos. Sir Philip Sidney, aos trinta e um. Nathanael West, aos trinta e sete.
Wilfred Owen, aos vinte e cinco. Georg Trakl, aos vinte e sete. Leopardi, Garcia Lorca e Apollinaire morreram aos trinta e oito. Pascal morreu aos trinta e nove. Flannery O’Connor, aos trinta e nove. Rimbaud,
aos trinta e sete. Os dois Cranes, Stephen e Hart, morreram aos vinte e oito e trinta e dois. E Heinrich von Kleist — o escritor predileto de Kafka — morreu aos trinta e quatro anos num suicídio duplo
com sua amante.”
“E o seu escritor predileto é Kafka.”
“Acho que sim. Pelo menos do século XX ele é.”
“Então por que não fez a sua tese sobre ele?”
“Porque fui um idiota. E porque eu supostamente era um americanista.”
“Ele escreveu Amerika, não foi?”
“É mesmo! Bem lembrado. Por que não pensei nisso antes?”
“Eu não esqueço da descrição que ele faz da Estátua da Liberdade. Em vez da tocha, nossa amiga está com uma espada erguida na mão. Uma imagem incrível. É para dar risada, mas ao mesmo tempo dá um medão
danado só de pensar. É como algo que tivesse saído de um pesadelo.”
“Quer dizer então que você leu Kafka?”
“Um pouco. Os romances e quem sabe uns dez, doze contos. Mas isso já faz muito tempo, foi quando eu tinha a sua idade. O negócio com Kafka é que ele não larga nunca mais da gente. Depois de ler a obra
dele, ninguém esquece.”
“Já deu uma espiada nos diários e nas cartas? Já leu alguma biografia?”
“Você me conhece, Tom. Não sou um cara muito sério.”
“É uma pena. Quanto mais você lê sobre a vida dele, mais interessante se torna a obra. Kafka não foi apenas um grande escritor, foi também um homem notável. Já ouviu falar da história da boneca?”
“Não que eu me lembre.”
“Ah. Então eu vou contar. Será minha primeira contribuição para o corpo de provas que vai apoiar minha teoria.”
“Acho que não entendi muito bem, Tom.”
“É muito simples. Meu objetivo é provar que Kafka foi de fato uma pessoa extraordinária. Mas por que começar por esta história e não por uma outra qualquer? Não sei. O fato é que desde que Lucy apareceu,
ontem de manhã, não consegui tirá-la da cabeça. Tem de haver uma ligação qualquer. Ainda não consegui descobrir qual, exatamente, mas acho que há um recado para nós, nela, uma espécie de aviso sobre como
deveríamos agir.”
“Menos preâmbulos, Tom. Vamos lá, me conte a história e pronto.”
“Estou com a corda solta de novo, não é mesmo? A culpa é de todo esse sol, de todos esses carros e eu no meio, rodando a noventa, cem por hora. Meu cérebro está explodindo, Nathan. Eu me sinto cheio de
ânimo, pronto para o que der e vier.”
“Ótimo. Agora me conte a história.”
“Está bem. A história. A história da boneca... É o último ano da vida de Kafka e ele está apaixonado por Dora Diamant, uma jovem de dezenove ou vinte anos que escapuliu da família hassídica e da Polônia
para ir morar em Berlim. Dora tinha metade da idade dele, mas lhe deu coragem para sair de Praga — algo que Kafka tinha vontade de fazer havia anos e anos — e ir morar com ela, sua primeira e única mulher.
Ele chegou a Berlim no outono de 1923 e morreu na primavera do ano seguinte; no entanto, esses últimos meses muito provavelmente foram os mais felizes de toda sua vida. Apesar da saúde cada vez mais precária.
Apesar das condições sociais de Berlim: falta de comida, distúrbios políticos e a pior inflação da história alemã. Apesar da certeza absoluta de que não ficaria muito mais tempo neste mundo.
“Todas as tardes, Kafka saía para dar uma volta no parque. Na maior parte das vezes, Dora o acompanhava. Um belo dia os dois dão de cara com uma menininha soluçando desesperada. Kafka lhe pergunta o que
houve e ela conta que perdeu a boneca. Na mesma hora ele se põe a inventar uma história para explicar o que tinha acontecido. ‘Sua boneca foi dar uma viajada’, ele diz. ‘Como é que você sabe?’, pergunta
a menina. ‘Porque ela me mandou uma carta.’ Mas a menina não acredita muito na história. ‘Está com ela aí?’, pergunta. ‘Não, sinto muito, deixei em casa por engano, mas amanhã eu trago sem falta.’ Kafka
é tão convincente que a menina não sabe mais o que pensar. Será possível que esse homem misterioso esteja dizendo a verdade?
“Kafka volta direto para casa para redigir a carta. Senta-se à escrivaninha e, ao vê-lo trabalhar, Dora constata que o escritor está imbuído da mesma seriedade e tensão que dedica à própria obra. Kafka
está resolvido a não enganar a pequena. Este é um verdadeiro lavor literário e ele quer sobretudo que saia direito. Se conseguir inventar uma linda e convincente mentira, ela haverá de suplantar a perda
sofrida pela menina com uma realidade diferente — falsa, talvez, mas verdadeira e crível segundo as leis da ficção.
“No dia seguinte, volta ao parque munido da carta. A pequena está a sua espera e, como ainda não aprendeu a ler, Kafka a lê em voz alta para ela. A boneca sente muito, mas cansou-se de viver com as mesmas
pessoas o tempo inteiro. Teve de sair para ver o mundo, fazer novos amigos. Não é que não ame a menina, mas ansiava por uma mudança de ares e, assim sendo, era preciso se separarem por uns tempos. No fim,
a boneca promete escrever à menina todos os dias e mantê-la a par de suas atividades.
“É nesse ponto que a história começa a me despedaçar o coração. Já é bastante espantoso que Kafka tenha se dado ao trabalho de escrever aquela primeira carta, mas, não contente, ele assume a tarefa de
escrever uma nova carta todos os dias — sem nenhum outro motivo que não seja o de consolar uma menina totalmente estranha, uma criança com quem havia cruzado por acaso uma tarde no parque. Que tipo de
homem faz algo assim? E ele levou o projeto adiante durante três semanas, Nathan. Três semanas. Um dos escritores mais brilhantes de todos os tempos sacrificando seu tempo — seu tempo cada vez mais precioso
e curto — para redigir cartas imaginárias de uma boneca perdida. Dora conta que ele escrevia cada sentença com uma atenção desmedida aos detalhes, que a prosa era precisa, divertida e empolgante. Em outras
palavras, era a prosa de Kafka, e todos os dias, durante três semanas, ele foi ao parque e leu em voz alta uma nova carta para a menina. Nesse ínterim a boneca cresce, vai para a escola, conhece pessoas
novas. Sempre declarando seu amor pela menina, dá a entender que complicações surgidas em sua vida a impedem de voltar para casa. Pouco a pouco, Kafka vai preparando a criança para o momento em que a boneca
desaparecerá de sua vida para sempre. Faz o possível para inventar um final satisfatório, pois teme que, se não conseguir, o encanto será rompido. Depois de testar diversas possibilidades, acaba se decidindo
por casar a boneca. Descreve o jovem por quem ela se apaixona, a festa de noivado, o casamento no interior, até mesmo a casa onde a boneca e o marido vão viver. E, por fim, na última frase, a boneca se
despede de sua antiga e amada amiga.
“A essa altura, claro, a menina não sente mais falta da boneca. Kafka lhe deu algo em troca e ao final dessas três semanas as cartas já a curaram da infelicidade. Ela possui a história, e quando a pessoa
tem sorte suficiente de viver dentro de uma história, de viver dentro de um mundo imaginário, as dores deste mundo somem. Pelo tempo que durar a história, a realidade deixa de existir.”
Nossa garota ou Coca-Cola é isso aí!
Existem duas maneiras de ir da cidade de Nova York a Burlington, Vermont: a rápida e a lenta. Nos primeiros dois terços da viagem optamos pelo trajeto rápido, o que incluiu algumas vias urbanas, tais como
a avenida Flatbush, a BQE, a Grand Central Parkway e a Rota 678. Depois de atravessar a ponte Whitestone em direção ao Bronx, continuamos no rumo norte por vários quilômetros até alcançarmos a Interestadual
95, a I-95, que nos levou para fora da cidade através da zona leste da comarca de Westchester e do sul de Connecticut. Em New Haven, pegamos a I-91, onde passamos o grosso da viagem atravessando o que
restava de Connecticut e mais todo o estado de Massachusetts até chegarmos à divisa sul de Vermont. O jeito mais rápido de chegar a Burlington teria sido continuar na I-91 até White River Junction e dali
seguir no sentido oeste pela I-89, mas, assim que chegamos aos arredores de Brattleboro, Tom declarou que estava farto de auto-estradas e que preferia pegar as vicinais, menores e mais tranqüilas. E assim
foi que abandonamos a via rápida em favor da via lenta. Teríamos de viajar uma ou duas horas a mais, disse ele, mas pelo menos haveria a chance de ver algo além de uma procissão de carros passando em alta
velocidade. Bosques, por exemplo, e flores silvestres às margens da estrada, sem falar em vacas, cavalos, fazendas, pradarias, cidadezinhas e, de vez em quando, uma face humana. Eu não tinha a menor objeção
à mudança de planos. A mim, que importava chegarmos às três ou às cinco da tarde na casa de Pamela? Depois que Lucy abriu os olhos de novo e se pôs a olhar a paisagem pela janela de trás, comecei a me
sentir culpado pelo que estávamos prestes a fazer com ela e minha vontade foi a de adiar o máximo possível a nossa chegada. Abri o guia Rand McNally e estudei as estradas que cortavam Vermont. “Pegue a
Saída 3”, disse eu a Tom. “Precisamos chegar na Rota 30, que segue em diagonal no sentido noroeste. Depois de uns sessenta e cinco quilômetros, a gente vai começar a subir e dar voltas até chegar a Rutland,
depois é só pegar a Rota 7 e seguir em linha reta até Burlington.”
Por que me demoro em detalhes tão triviais? Porque a verdade da história está nos detalhes e não tenho escolha a não ser lhe contar exatamente como aconteceu. Se não tivéssemos decidido sair da auto-estrada
em Brattleboro e achar pelo faro a Rota 30, muitos dos acontecimentos deste livro não teriam ocorrido. Penso sobretudo em Tom quando digo isso. Tanto Lucy como eu lucramos com os novos rumos, mas, para
o sofrido herói deste Desvarios no Brooklyn, foi quem sabe a guinada mais importante da vida. Na época, ele não fazia a menor idéia das conseqüências, não tinha a menor noção do redemoinho que pusera em
ação. Assim como a boneca de Kafka, achava que estava apenas em busca de uma mudança de ares, mas, ao abandonar um caminho e pegar outro, a Fortuna de repente estendeu os braços e arrebatou nosso rapaz
para outro mundo.
O tanque estava quase vazio, nossos estômagos também; já as bexigas estouravam de cheias. Coisa de quinze ou vinte quilômetros adiante de Brattleboro, paramos para almoçar num restaurante de beira de estrada
vagabundo chamado Dot. “Comida e gasolina”, dizia a placa na entrada, e essa foi a ordem em que optamos por atender nossas necessidades. Comida e gasolina no Dot e, depois, mais gasolina no posto Chevron
do outro lado da estrada. Também naquele momento nossa decisão casual de fazer as coisas de um jeito e não de outro acabou tendo um efeito significativo no desenrolar da história. Se tivéssemos enchido
o tanque antes, Lucy jamais teria conseguido executar sua eletrizante façanha e, sem dúvida, teríamos continuado o caminho até Burlington conforme o planejado. Mas, como o tanque continuava vazio na hora
em que nos sentamos para almoçar, a oportunidade surgiu de repente e a pequena não hesitou. Na ocasião tudo aquilo nos pareceu uma tremenda catástrofe, mas, se nossa garota não tivesse feito o que fez,
nosso rapaz jamais teria caído nos braços afetuosos de Dame Fortuna, e sair ou não da auto-estrada teria dado na mesma.
Ainda hoje não consigo entender direito como ela conseguiu fazer o que fez. Algumas casualidades trabalharam a seu favor, mas mesmo levando em conta aqueles fiapos soltos de sorte, houve algo quase demoníaco
na ousadia e na eficiência da sabotagem. Verdade que o restaurante ficava afastado bem uns trinta metros da estrada, o que a protegeu dos olhares de motoristas que porventura estivessem passando na hora.
Verdade que todas as vagas bem na frente do restaurante estavam ocupadas, o que nos levou a deixar o carro numa lateral, fora do alcance dos dois janelões que enfeitavam a fachada térrea daquela baiúca
capenga. Sem contar o bônus duplo de Tom e eu estarmos sentados de costas para os ditos janelões. Mas como foi que ela conseguiu raciocinar tão rápido e transformar a presença de uma máquina de Coca-Cola
no exterior do prédio (e por acaso colocada a três metros de nosso carro) numa arma em sua luta contra a Solução Burlington? Nós três entramos juntos no restaurante e a primeira coisa que fizemos foi ir
direto para os toaletes. Depois nos sentamos à mesa e pedimos nossos hambúrgueres, saladas de atum e sanduíches de queijo quente. Assim que a garçonete terminou de anotar, Lucy comunicou, com gestos que
apontavam para o colo, que tinha mais assuntos a tratar no banheiro. Sem problema, disse eu, e lá se foi ela, idêntica a qualquer outra menina americana, dentro do short florido e dos tênis azuis de cento
e cinqüenta dólares. Durante sua ausência, Tom e eu comentamos como era agradável sair da cidade, mesmo sentados numa biboca escura e suspeita como o Dot, rodeados de caminhoneiros e agricultores de boné
de beisebol rubro-amarelo estampado com o logotipo de fabricantes de implementos agrícolas e tratores. Tom continuava a pleno vapor verbal e eu estava tão entretido com o que ele contava que perdi Lucy
de vista. Mal sabíamos nós que, nessa hora (os fatos só ficaram conhecidos mais tarde), nossa menina saíra do restaurante pela porta dos fundos e se pusera a alimentar furiosamente a máquina de Coca-Cola
com moedas e notas de um dólar. Ela comprou pelo menos vinte e cinco latas dessa mistura grudenta e açucarada e, uma a uma, despejou todas elas dentro do tanque de gasolina de meu outrora saudável Oldsmobile
Cutlass. Como é que ela adivinhou que açúcar é um veneno mortal para motores de combustão interna? Como é que aquela pirralha poderia saber uma coisa dessas? Ela não só conseguiu pôr um fim abrupto e definitivo
em nossa viagem como realizou esse feito em tempo recorde. Eu diria que precisou de cinco minutos, sete no máximo. O fato é que, qualquer que tenha sido o tempo gasto, Tom e eu continuávamos esperando
pela comida quando ela voltou para a mesa. E, de repente, Lucy estava toda sorridente outra vez, mas como é que eu iria adivinhar o motivo de tanta felicidade? Se eu tivesse me dado ao trabalho de pensar
no assunto, teria presumido que era por ela ter dado uma boa cagada.
Terminamos de almoçar e voltamos para o carro. Ao ligá-lo, o motor deixou escapar um dos ruídos mais peculiares da história automotiva. Estive os últimos vinte minutos aqui sentado, pensando naquele barulho,
mas ainda não consegui encontrar as palavras corretas para descrevê-lo nem atinar com a frase única, inesquecível, que lhe faria justiça. Casquinada estridente? Pizicato soluçante? Pandemônio de gargalhadas?
É possível que eu não esteja à altura da tarefa — ou talvez a linguagem seja instrumento frágil demais para captar o que escutei, algo semelhante ao que poderia ter saído da boca de um ganso engasgado
ou de um chimpanzé alcoolizado. Ao fim e ao cabo, as gargalhadas foram se modulando numa única nota comprida, numa eructação estrondosa, com som de tuba, mas que poderia até passar por gases liberados
por algum ser humano. Não exatamente o arroto de um bebedor de cerveja satisfeito, e sim um ruído que lembrava o lento e agônico ronco da indigestão, uma descarga grave de ar escoando da garganta de um
homem afligido por azia mortal. Tom desligou o motor e tentou de novo, mas a segunda girada de chave não produziu mais que um esmaecido grunhido. Na terceira, silêncio total. A sinfonia chegara ao fim
e meu envenenado Oldsmobile estava tendo uma parada cardíaca.
“Acho que acabou a gasolina”, falou Tom.
Era a única conclusão sensata a tirar, mas quando me inclinei para a esquerda para olhar o nível do combustível, vi que ainda restava um oitavo de tanque. Apontei para o ponteiro. “Não de acordo com isto
aqui”, falei.
Tom deu de ombros. “Só pode estar com defeito. Sorte nossa que tem um posto de gasolina do outro lado da estrada.”
Enquanto Tom apresentava seu diagnóstico equivocado do estado do veículo, virei-me para olhar o tal posto pela janela de trás — duas bombas caquéticas num estabelecimento que provavelmente não via uma
demão de tinta desde 1954. Ao fazê-lo, meus olhos cruzaram com os de Lucy. Ela estava sentada bem atrás de Tom e, como eu não fazia a menor idéia de que era ela a responsável pela sinuca de bico em que
estávamos metidos, fiquei um tanto espantado com a satisfação serena, quase sobrenatural, que vi naquele rostinho. O motor tinha acabado de executar sua cacofonia selvagem e, em circunstâncias normais,
nada mais natural que aqueles sons absurdos provocassem alguma reação nela: alarme, riso, agitação, alguma coisa. Mas Lucy havia mergulhado lá no fundo de si mesma — e flutuava imponderável numa nuvem
de indiferença, espírito em estado puro, separado do próprio corpo. Agora compreendo que ela estava se regozijando com o sucesso da missão, agradecendo em silêncio ao Todo-Poderoso por tê-la ajudado a
realizar o milagre. Entretanto, naquele momento só senti perplexidade.
“Você ainda está por aqui conosco, Lucy?”
Ela me lançou um olhar longo, impassível, depois meneou a cabeça.
“Não se assuste”, acrescentei. “Vamos consertar o carro rapidinho.”
Desnecessário dizer que eu estava enganado. Sinto-me até tentado a dar uma descrição passo a passo da comédia que se seguiu, mas não quero esgotar a paciência do leitor discutindo questões que não são,
estritamente falando, relevantes para a história. No caso do carro, o desfecho é o que conta. Assim sendo, vou eliminar a lata cheia de gasolina que Tom teve de ir buscar no posto do outro lado da estrada
(uma vez que não adiantou nada pôr mais combustível) e omitir toda e qualquer referência ao guincho que acabou puxando o Cutlass até o mesmo dito posto (e por acaso tínhamos escolha?). O único fato que
vale a pena mencionar é que nenhum dos dois sujeitos do posto-oficina (uma dupla composta por pai e filho, conhecidos como Al Sênior e Al Júnior) conseguiu diagnosticar o que havia de errado com o carro.
Júnior e Sênior tinham mais ou menos a mesma idade que eu e Tom, mas, ao passo que o magro era eu e Tom o reforçado, com o jovem e o velho Al as coisas se davam ao contrário: o filho era magro e o pai
era gordo.
Depois de inspecionar o motor durante vários minutos, sem encontrar nada, Al Júnior baixou o capô com uma batida seca. “Vou ter de desmontar o amiguinho aqui”, falou.
“É sério assim, é?”, perguntei.
“Não estou dizendo que é sério. Mas também não é nada bom. Não senhor, nem um pouco bom.”
“E quanto tempo vai levar para consertar?”
“Depende. Quem sabe um dia, quem sabe uma semana. Antes de mais nada, preciso localizar o problema. Se for coisa simples, é rápido. Se não for, pode ser que a gente tenha que mandar vir alguma peça nova
e isso pode demorar um pouquinho.”
Parecia ser uma avaliação justa e honesta e, considerando que eu não sabia coisa alguma a respeito de carros, não havia mais nada a ser feito a não ser deixar o conserto nas mãos dele — não obstante o
quanto demorasse. Tom, que tampouco tinha pendores mecânicos, apoiou minha decisão. Tudo muito bom, talvez, mas o que iríamos fazer de nossas vidas, encalacrados numa estrada rural no meio do interior
de Vermont enquanto Al um e dois labutavam para ressuscitar nossa máquina moribunda? Uma opção era alugar um carro e continuar seguindo para Burlington, passar o resto da semana com Pamela e pegar o Oldsmobile
na volta para Nova York. Ou, ainda mais simples, alugar quartos na pensão local e fingir que estávamos de férias até o carro ficar pronto.
“Eu já dirigi o que basta por hoje”, falou Tom. “Eu voto por ficarmos por aqui. Pelo menos até amanhã.”
Eu estava inclinado a concordar com ele. Quanto a Lucy — a silenciosa e sempre atenta Lucy —, é fácil imaginar quão pouco ela protestou contra nossa decisão.
Al Sênior recomendou dois lugares em Newfane, uma aldeia por onde havíamos passado quinze quilômetros antes. Fui até o escritório da oficina e liguei para os dois números, mas nenhum deles tinha quartos
disponíveis. Quando relatei o fato, o homenzarrão me pareceu um tanto zangado. “Bando de turistas nojentos”, ele disse. “Estamos na primeira semana de junho, ainda, e o verão parece que já está a todo
vapor.”
Durante o meio minuto seguinte, continuamos todos em volta, de mão no bolso, vendo pai e filho pensarem. Por fim, Al Júnior rompeu o silêncio. “E o que me diz do Stanley, pai?”
“Hum”, respondeu o pai. “Não sei não. O que o leva a pensar que ele voltou para o ramo?”
“Ouvi dizer que ele tinha planos de reabrir este ano”, o rapaz respondeu. “Foi o que a Mary Ellen me disse. Ela cruzou com o Stanley no correio, a semana passada.”
“Quem é esse Stanley?”, perguntei.
“Stanley Chowder”,* disse Al Sênior, erguendo o braço e apontando na direção oeste. “Ele tinha um hotel a uns cinco quilômetros daqui, no alto do morro.”
“Stanley Chowder”, repeti. “Taí um nome bem gozado.”
“Pois é”, concordou o Al pai. “Mas ele não liga. Acho que até gosta.”
“Mas que é engraçado, é”, falei, percebendo de repente que estava gostando de conversar com Al um e dois.
Al Sênior abriu um sorriso. “Melhor nem pensar. Melhor nem pensar. Mas pelo menos as pessoas se lembram do nome. Eu tenho sido Al Wilson desde o dia em que nasci e entre Al Wilson e nada a distância é
muito curta. Não há nada de muita sustância num nome como o meu. Deve ter bem uns mil Al Wilson só aqui em Vermont.”
“Acho que vou tentar falar com o Stanley”, Al Júnior falou. “Nunca se sabe. Se não estiver aparando aquele gramado lá dele, pode ser que...”
Enquanto o filho esguio foi para o escritório, fazer o telefonema, o pai rechonchudo apoiou as costas em meu carro, tirou um cigarro (que ele pôs na boca mas não acendeu) do maço dentro do bolso da camisa
e, em seguida, nos contou a triste história do Chowder Inn.
“É isso que o Stanley faz agora. Ele corta a grama. Da hora que amanhece até que escurece, ele fica naquele John Deere vermelho dele, cortando grama. Começa assim que a neve derrete, em abril, e só pára
quando a neve volta a cair, em novembro. Todo santo dia, chova ou faça sol, ele zanza pela propriedade toda, cortando a grama por horas e horas. Quando chega o inverno, se enfurna em casa e fica vendo
televisão. E, quando não agüenta mais ver televisão, pega o carro e vai até Atlantic City. Entra num hotel-cassino e joga vinte-e-um dez dias seguidos. Às vezes ganha, às vezes perde, mas isso não tem
a menor importância. O Stanley tem com o que viver. E daí, se desperdiça alguns dólares de vez em quando?
“Eu o conheço faz muito tempo — há mais de trinta anos, acho. Ele era perito-contador em Springfield, Massachusetts. Lá por volta de 68 ou 69, ele e a mulher Peg compraram aquele casarão branco lá em cima
do morro e depois disso começaram a vir para cá passar os fins de semana, as férias de verão e os feriados de Natal sempre que possível. O grande sonho deles era transformar o lugar num hotel, onde viveriam
em tempo integral depois que o Stanley se aposentasse. De modo que quatro anos atrás ele largou o cargo de perito-contador, o casal vendeu a casa de Springfield e se mudou para cá, para abrir o Chowder
Inn. Nunca me esqueço do duro danado que eles deram naquela primeira primavera, correndo para estar com tudo pronto até o feriado de maio. Tudo correu segundo o planejado. Eles capricharam e deixaram tudo
reluzindo feito uma jóia. Contrataram um chef e duas camareiras e, quando estavam prestes a começar a fazer as primeiras reservas da temporada, Peg teve um derrame e morreu. Bem ali na cozinha, no meio
do dia. Num minuto ela estava viva, conversando com o Stanley e o chef, no minuto seguinte estava largada no chão, dando o último suspiro. Foi tão rápido que ela morreu antes mesmo que a ambulância saísse
do hospital.
“É por isso que o Stanley apara a grama. Tem gente que acha que ele ficou meio louco, mas sempre que conversamos ele me parece o mesmo velho Stanley que eu conheci trinta anos atrás, o mesmo cara de sempre.
Só está chorando a perda da sua Peg, mais nada. Tem homem que começa a beber. Tem uns que procuram uma nova mulher. O Stanley apara a grama. Não tem mal nenhum nisso, tem?
“Já faz um tempinho que eu não o vejo, mas se a Mary Ellen não se enganou — e que eu saiba nunca aconteceu de ela se enganar — a notícia é muito boa. Significa que o Stanley está se aprumando, que ele
quer começar a viver de novo. E já tem uns minutos que o Al Júnior entrou para telefonar. Posso estar errado, mas aposto como o Stanley atendeu o telefone e que eles estão vendo como é que vão levar vocês
três lá para cima. Vai ser bem bacana, se der certo. Se o Stanley reabrir o hotel, vocês vão ser os primeiros hóspedes pagantes do Chowder Inn. Ora, vejam só. Vai ser bem bacana mesmo.”
* Uma espécie de caldeirada de frutos do mar. (N. T.)
Dias de sonho no Hotel Existência
Quero falar sobre felicidade e bem-estar, sobre aqueles raros e inesperados momentos em que a voz que há dentro de nossa cabeça se cala e sentimo-nos integrados no mundo.
Quero falar do clima de começo de junho, de harmonia e de repouso ditoso, de tordos, tentilhões amarelos e azulões passando velozes pelas folhas verdes das árvores.
Quero falar sobre os benefícios do sono, sobre os prazeres da comida e do álcool, sobre o que acontece com a mente quando tomamos o sol das duas da tarde e sentimos o abraço morno do ar em volta do corpo.
Quero falar sobre Tom e Lucy, sobre Stanley Chowder e os quatro dias que passamos no Chowder Inn, sobre o que pensamos e sobre o que sonhamos no alto daquele morro no Sul de Vermont.
Quero lembrar dos poentes cerúleos, das manhãs lânguidas e róseas, dos ursos rosnando nos bosques, à noite.
Quero lembrar-me de tudo. Se tudo for muito, então ao menos de uma parte. Não, mais do que só de uma parte. De quase tudo. De quase tudo, com espaços em branco para os trechos que faltam.
• • • •
O taciturno e no entanto agradável Stanley Chowder, experiente aparador de grama, é também astuto jogador de pôquer, mestre do pingue-pongue, amante do velho cinema americano, veterano da guerra na Coréia
e pai de uma mulher de trinta e dois anos — portadora do inverossímil nome de Honey —, professora primária e residente em Brattleboro. Ele está com sessenta e sete anos, mas parece em forma para a idade,
dono de uma cabeleira intacta e límpidos olhos azuis. Corpulento, tem mais ou menos um metro e setenta e cinco de altura e um pulso firme ao apertar a mão da gente.
Stanley desce o morro para nos apanhar na oficina. Depois de cumprimentar Al Júnior e Al Sênior, apresenta-se para nós e põe mãos à obra, ajudando-nos a transferir a bagagem do porta-malas do meu carro
para a traseira de sua perua Volvo. Reparo que se mexe rápido, quase com pressa, indo de um veículo a outro. Há uma competência lépida, nervosa, em seus gestos. Stanley não é de vadiar um segundo. A ociosidade
gera pensamentos e os pensamentos podem ser perigosos, como qualquer pessoa que more sozinha há de entender prontamente. Depois de ouvir o relato de Al Sênior sobre a morte de Peg, vejo Stanley como uma
alma perdida e atormentada. Atenciosa, ultragenerosa, mas desconfortável dentro da própria pele, um homem estraçalhado lutando para juntar os cacos.
Dizemos adeus aos Wilson e agradecemos pela ajuda. Al Júnior promete me manter a par do estado do carro com relatórios diários.
Uma estradinha de terra íngreme, flanqueada por bosques dos dois lados; terreno acidentado; de vez em quando um galho mais baixo bate no vidro do pára-brisa enquanto subimos o morro. Stanley se desculpa
de antemão por quaisquer problemas que possamos encontrar no hotel. Trabalhou sozinho durante as duas últimas semanas, tentando pôr as coisas em ordem, mas ainda há muito por fazer. Planejava abrir só
para o Quatro de Julho, mas depois que Al Júnior ligou e lhe contou o que havia acontecido conosco, “não se sentiria bem” se não nos hospedasse por alguns poucos dias. Ainda não contratou ninguém para
ajudá-lo, mas fará as camas e providenciará para que todos se sintam tão confortáveis quanto as circunstâncias permitirem. Já falou com a filha em Brattleboro e ela concordou em ir até o hotel todos os
dias para nos fazer o jantar. Ele nos garante que Honey cozinha bem. Tom e eu agradecemos a gentileza. Preocupado com os múltiplos detalhes, Stanley não repara que Lucy ainda não disse um a.
Um casarão de três andares com dezesseis quartos e uma varanda à volta toda. A placa na entrada para carros diz Chowder Inn, mas uma parte de mim já compreendeu que estamos prestes a pisar no Hotel Existência.
Por enquanto, resolvo não dividir esse pensamento com Tom.
Antes de subirmos para os quartos, Tom liga para Pamela do telefone no saguão para explicar o atraso. Stanley está lá em cima fazendo as camas. Lucy vai até o sofá e instantes depois ajoelha no chão para
brincar com o cachorro de Stanley, um labrador preto já velhinho, chamado Spot. Sem querer, penso em Harry e nas palavras vazias de sentido que estão grudadas na minha cabeça faz duas semanas: o xis marca
o lugar exato. O lugar acaba de se transformar num animal de quatro patas. Enquanto espio o cachorro lamber o rosto de Lucy, aproximo-me de Tom, porque há uma chance remota de que eu seja convocado a trocar
algumas palavras com Pamela. Não sou. Ao escutar o fim da conversa, surpreendo-me com a reação irritada da irmã postiça de meu sobrinho diante da notícia de que nossa chegada a Burlington terá de ser adiada.
Como se o problema com o carro tivesse sido culpa nossa. Como se acontecimentos imprevisíveis não ocorressem o tempo inteiro. Pamela, porém, depois de ter passado hora e meia no supermercado, no momento
se encontra na cozinha “dando um duro danado” para aprontar tudo a tempo. Como sinal de boas-vindas e hospitalidade, planejara um jantar sofisticado e variado, com pratos que iam de gazpacho a torta de
nozes pecã feita em casa, e fica zangada, ou melhor, enfurecida ao saber que todos os seus esforços foram em vão. Tom pede uma dúzia de desculpas, mas Pamela continua a ralhar com ele. Seria essa a nova
e melhorada Pamela sobre quem eu tanto ouvira falar? Se ela não podia aceitar com serenidade uma pequena decepção, que tipo de mãe substituta seria para Lucy? A última coisa que a menina precisava era
de uma burguesa neurótica cheia de exigências impacientes e impossíveis.
Antes mesmo de Tom desligar o telefone já estou decidido a eliminar a Solução Burlington. Risco o nome de Pamela da lista e me nomeio guardião temporário de Lucy. Será que estou mais bem qualificado para
cuidar de Lucy do que Pamela? Sob quase todos os aspectos, provavelmente não, mas minhas entranhas me dizem que sou responsável por ela — goste ou não da situação.
Tom desliga e sacode a cabeça. “Ela ficou tiririca.”
“Esqueça a Pamela”, digo eu.
“Como assim?”
“Nós não vamos mais para Burlington.”
“Ah, não? E desde quando?”
“Desde agora. Vamos ficar aqui até consertar o carro e depois voltamos todos juntos para o Brooklyn.”
“E o que planeja fazer com a Lucy?”
“Ela vai morar comigo no apartamento.”
“Quando nós conversamos a respeito, ontem, você disse que não estava interessado.”
“Mudei de idéia.”
“Quer dizer que viemos até aqui para nada.”
“Para nada, não. Olhe em volta, Tom. Nós aterrissamos no paraíso. Uns dois dias de descanso e voltamos para casa com a cabeça nova em folha.”
Lucy não está a mais de três metros de nós quando trocamos essas palavras, e escuta cada sílaba dita. Quando me viro para ela, está me mandando beijos com as duas mãos — os braços se estendem à frente
depois de cada estalo dos lábios, qual uma atriz triunfante ao final da noite de estréia. Fico feliz de vê-la tão feliz, mas também sinto medo. Será que tenho mesmo noção de onde estou me metendo?
De repente, lembro-me de uma frase dita num filme a que assisti no final dos anos 70. O título agora me escapa, tanto a história quanto as personagens caíram no esquecimento, mas as palavras continuam
ressoando em meus ouvidos como se as tivesse escutado um dia antes. “As crianças servem de consolo para tudo — menos para o fato de tê-las.”
Enquanto nos mostra os quartos no último andar, Stanley explica que Peg, a falecida sra. Chowder (“morta há quatro anos, agora”), foi a responsável pela escolha da mobília, das roupas de cama, do papel
de parede, das venezianas, dos tapetes, das luminárias, das cortinas e de cada um dos inúmeros objetos colocados sobre as muitas mesas, criados-mudos e escrivaninhas: toalhinhas de renda, cinzeiros, candelabros,
livros. “Uma mulher de gosto impecável”, ele diz. A meu ver, a decoração é um tanto rebuscada, uma tentativa nostálgica de recriar a atmosfera de uma Nova Inglaterra que deixou de existir faz tempo e que
na verdade foi muito mais lúgubre e espartana do que aqueles aposentos macios de menina-moça que vejo em volta. Mas que seja. É tudo muito limpo e confortável e há um elemento redentor que solapa a atmosfera
kitsch e rococó dos quartos: os quadros nas paredes. Ao contrário do que seria de esperar, não há amostras de bordados, tampouco aquarelas mal executadas das neves de Vermont, assim como também não há
reproduções de Currier e Ives. As paredes são cobertas por fotografias em preto-e-branco dos grandes comediantes da antiga Hollywood. Essa foi a única contribuição de Stanley à decoração dos quartos, mas
faz toda a diferença do mundo, injetando uma dose de humor e leveza na sobriedade dos ambientes. Dos três quartos que preparou para nós, um é dedicado aos Irmãos Marx, outro a Buster Keaton e o último
a Laurel e Hardy. Tom e eu damos a primazia de escolha a Lucy e ela opta pelo Gordo e o Magro. Tom fica com Buster e eu, no meio dos dois, acabo com Groucho, Harpo, Chico, Zeppo e Margaret Dumont.
Primeira investigação do terreno. Logo depois de desfazer as malas, saímos para visitar o famoso gramado de Stanley. Durante vários minutos, sou dominado por um fluxo de sensações transitórias. A sensação
da relva macia e bem cuidada debaixo dos pés. O zumbido de um moscão que passa perto de minha orelha. O cheiro da grama. O perfume de madressilvas e lilases. As tulipas de um vermelho-vivo plantadas em
volta da casa. O ar se põe a vibrar e, momentos depois, uma brisa ligeira me bate no rosto.
Caminho ao lado de meus três companheiros e do cão, matutando coisas absurdas. Stanley nos informa que a propriedade tem mais de quarenta hectares e fico a imaginar quão simples não seria levantar mais
casas se porventura a população do Hotel Existência viesse a superar a capacidade da casa principal. Sonho o sonho de Tom e me delicio com as possibilidades. Vinte e cinco hectares de mata. Um lago. Um
pomar de maçãs às traças, um conjunto de colméias abandonadas, uma cabana para destilar seiva de bordo. E o gramado de Stanley — a adorável e interminável relva que se estende à volta toda e muito além.
Isso não acontecerá jamais, digo a mim mesmo. É fatal que o esquema de Harry dê com os burros n’água e, mesmo que não dê, o que me levava a presumir que Stanley estaria disposto a vender a casa? Por outro
lado, Stanley poderia permanecer conosco e participar da empreitada, não? Seria ele o tipo de homem capaz de entender o que Tom esperava conseguir com seu sonho? Resolvo então que é preciso conhecê-lo
um pouco melhor, que devo passar o máximo de tempo possível a seu lado.
Voltamos depois de uns vinte minutos. Stanley corre até a garagem para pegar espreguiçadeiras e, depois de nos instalarmos, pede licença e some dentro da casa. Tem trabalho a fazer, mas os primeiros hóspedes
pagantes na história do Chowder Inn são livres para lagartear ao sol pelo tempo que desejarem.
Durante alguns minutos, observo Lucy correr pelo gramado, jogando um pauzinho para o cachorro pegar. À minha esquerda, Tom lê uma peça de Don DeLillo. Eu olho para o céu e estudo as nuvens que passam.
Um gavião entra no meu campo de visão, em seguida desaparece. Quando ele volta a entrar, fecho os olhos. Em segundos, estou ferrado no sono.
• • • •
Às cinco da tarde, Honey Chowder faz sua primeira aparição em público: estaciona na frente da casa, trazendo montes de víveres e dois caixotes de vinho. A essa altura, Tom e eu já saímos das espreguiçadeiras
e estamos sentados na varanda, conversando sobre política. Interrompemos nossas denúncias contra Bush II e o Partido Republicano, descemos até o Honda branco e nos apresentamos à filha de Stanley.
Ela é uma mulher grande, de rosto sardento, com braços carnudos e um aperto de mão de esmagar os ossos. Exala confiança, bom humor e boa vontade. Um tanto avassaladora, quem sabe, mas esperar o que de
uma professora de quarto ano primário? A voz é alta e meio rouca, mas gosto do fato de ela parecer tão pronta a dar risada, de não ter receio do tamanho de sua personalidade. Concluo que se trata de uma
moça competente, muito positiva e sem dúvida divertida na cama. Não chega a ser bonita, mas tampouco é feia. Olhos azuis radiantes, lábios cheios e uma vasta cabeleira loiro-avermelhada. Enquanto nós a
ajudamos a descarregar as sacolas de compra do porta-malas do carro, vejo que ela observa Tom com algo mais que uma simples curiosidade desinteressada. O cabeça-de-bagre não nota nada, mas começo a me
perguntar se aquela jovem mandona e inteligente não seria a resposta que eu vinha pedindo a Deus. Chega de etéreas B.M.P.s, é hora de moças solteiras, loucas para fisgar marido. De rolos compressores.
De tornados. De donzelas famintas e conversadeiras, capazes de reduzir nosso rapaz à submissão.
Pela segunda vez naquela tarde, resolvo guardar meus pensamentos só para mim e não comentar nada com Tom.
Como Stanley prometera, ela nos prepara um jantar excelente. Sopa de agrião, lombo de porco assado, vagens refogadas com amêndoas, pudim de leite com calda de açúcar queimado de sobremesa e taças e mais
taças de vinho. Sinto uma pontada de dó pelo gorado festim que Pamela estava preparando para nós, mas duvido que o jantar em Burlington conseguisse superar o que temos à mesa no Chowder Inn.
A vitoriosa Lucy, já então liberada da iminente servidão, aparece para jantar com o vestido xadrez vermelho e branco, sapatos de verniz preto e meias soquetes com rendinha na borda. Não sei se Stanley
é impérvio ao comportamento de terceiros ou se é apenas ultradiscreto, mas o fato é que ainda não comentou nada sobre o silêncio de Lucy. Dez minutos depois de começado o jantar, entretanto, sua despachada
e atenta filha começa a fazer perguntas.
“O que ela tem?”, diz. “Ela não sabe falar?”
“Claro que sabe”, respondo. “Mas não quer.”
“Não quer? E o que significa não querer?”
“É um teste”, explico, saindo-me com a primeira mentira que me vem à cabeça. “Lucy e eu estávamos falando outro dia sobre coisas difíceis e decidimos que não falar é talvez a coisa mais dura que alguém
consegue fazer. De modo que fizemos um pacto. Lucy concordou em não dizer uma palavra durante três dias. Se conseguir manter esse seu compromisso até o fim, vai ganhar cinqüenta dólares de mim. Não é isso,
Lucy?”
Lucy meneia a cabeça.
“E quantos dias faltam?”
Lucy mostra dois dedos.
Ah, digo com meus botões, aí temos, finalmente. A mocinha resolveu se abrir. Dentro de mais dois dias a tortura terá fim.
Honey franze os olhos, ao mesmo tempo incrédula e alarmada. De criança ela entende, afinal de contas, e pressente que alguma coisa não vai bem ali. Mas sou um estranho e, em vez de me apertar para saber
mais a respeito da brincadeira estranha e malsã que venho fazendo com aquela menininha, ela aborda o problema de um outro ângulo.
“Por que essa criança não está na escola?”, pergunta. “Hoje é uma segunda-feira, 5 de junho. As férias de verão só começam daqui a três semanas.”
“Porque”, digo, esforçando-me para inventar outra lorota, “a Lucy freqüenta escola particular... e o ano escolar é mais curto que nas escolas públicas. A última aula dela foi na sexta-feira.”
De novo, estou certo de que Honey não me acredita. Mas, a menos que estivesse disposta a ultrapassar os limites e ser de uma grossura inaceitável, não pode continuar me interrogando sobre questões que
a intrigam. Gosto dessa Chowder reforçada, direta, e também gosto do pai dela, sentado a minha frente na mesa, mastigando em silêncio e tomando seu vinho, mas não tenho a menor intenção de colocá-los a
par dos segredos da família. Não que eu tenha vergonha de sermos quem somos — mas, por Deus, digo a mim mesmo, que família! Que bando de almas mais confusas, mais atrapalhadas. Que exemplos magníficos
de imperfeição humana. Um pai cuja filha não quer mais nem ouvir falar nele. Um irmão que não vê a irmã nem tem notícias dela há três anos. E uma menina pequena que fugiu de casa e se recusa a falar. Não,
não tenho a menor vontade de expor diante dos Chowder a verdade a respeito de nosso fraturado e inútil clã. Pelo menos não esta noite. Não esta noite e sem dúvida nunca.
Tom deve estar pensando coisas parecidas, porque entra apressado na conversa e tenta levá-la para outros rumos. Começa perguntando a Honey sobre seu trabalho como professora. Há quanto tempo leciona, o
que a levou a querer ser professora, o que ela acha do sistema educacional de Brattleboro e assim por diante. As perguntas, além de muito sem graça, são de uma banalidade atroz e, ao examinar-lhe a fisionomia
enquanto conversa com Honey, percebo que meu sobrinho não está nem um pouco interessado nela — nem como mulher nem como pessoa. Entretanto, Honey é segura demais para permitir que a indiferença de Tom
a impeça de dar respostas brilhantes e encantadoras e em dois tempos é ela quem conduz a conversa, bombardeando nosso rapaz com dezenas de perguntas. A sem-cerimônia de Honey tira meu sobrinho do prumo
por alguns momentos, mas quando ele compreende que sua interlocutora é tão plenamente inteligente quanto ele, responde à altura e se põe a rebater na mesma moeda. Stanley e eu mal temos chance de abrir
a boca, mas estamos ambos nos divertindo com a luta livre verbal que está sendo travada bem na nossa frente. Como é inevitável, a conversa passa a girar em torno de política e das iminentes eleições de
novembro. Tom vitupera contra o avanço da direita no país. Cita a quase-destruição de Clinton, o movimento antiaborto, o lobby das armas, a propaganda fascista de certos programas de rádio, a covardia
da imprensa, a proibição do ensino da teoria evolucionista em certos estados. “Estamos andando para trás”, ele diz. “Todos os dias, perdemos mais um pedaço do nosso país. Se o Bush for eleito, não vai
restar mais nada.” Para minha surpresa, Honey concorda em gênero, número e grau com meu sobrinho. A paz reina por aproximadamente trinta segundos, e em seguida ela declara que está pensando em votar em
Nader.
“Não faça isso”, Tom diz. “Um voto para Nader é um voto para Bush.”
“Não é não. É um voto para Nader. Além do mais, o Gore vai ganhar em Vermont. Se eu não tivesse certeza disso, votaria nele. Mas desse jeito vou poder fazer meu pequeno protesto e ainda assim manter Bush
fora da Casa Branca.”
“Vermont eu não sei”, Tom continua, “o que sei é que vai ser uma eleição apertada. E, se um número suficiente de pessoas pensar como você nos estados que ainda oscilam, o Bush vai ganhar.”
Honey faz força para reprimir um sorriso. Tom é tão intenso que ela sente uma tremenda vontade de derrubá-lo de seu corcel branco com algum comentário bizarro, amalucado. Já até vejo a piada vindo e faço
figa para que seja boa.
“Sabe o que aconteceu na última vez em que um povo deu ouvidos a um bush?*”
Ninguém diz nada.
“O pessoal vagou pelo deserto durante quarenta anos.”
Mesmo não querendo, Tom cai na risada.
O torneio chega a um fim repentino e decisivo, tendo Honey como clara vencedora.
Não quero me deixar levar pelo entusiasmo, mas desconfio que Tom encontrou seu par. Se vai sair algo disso ou não, já é uma outra história a ser contada pelo tempo e pelas misteriosas inclinações da carne.
Digo a mim mesmo para continuar sintonizado em possíveis desdobramentos futuros.
Logo cedo, na manhã seguinte, ligo para Al Júnior no posto de gasolina, mas ele ainda não atinou com o problema do carro. “Estou trabalhando nele agora”, diz. “Assim que tiver uma resposta, eu ligo.”
Surpreendo-me com o pouco que a notícia me abala. No fundo, estou até feliz de me ver preso em nosso morro por mais um dia, feliz de não ter de pensar ainda na volta para Nova York.
Tenho uma tarefa a cumprir esta manhã, mas está difícil fazer com que Stanley fique sentado tempo suficiente para termos uma conversa séria. Ele prepara e serve nosso café-da-manhã, mas assim que coloca
os pratos na nossa frente sai correndo da cozinha e vai lá para cima arrumar as camas. Depois disso, ocupa-se com diversos projetos que envolvem a casa: coloca lâmpadas, bate tapetes, conserta caixilhos
de janela. Não há nada a fazer a não ser procurar uma outra oportunidade mais tarde.
O dia amanhece fresco, com neblina no ar. Estamos todos de malha de lã, ao sairmos para examinar o gramado molhado, encharcado de orvalho. Com o passar das horas, as nuvens se dissiparão e nós teremos
mais uma tarde esplendorosa, mas por enquanto as moitas e as árvores mal são visíveis.
Lucy achou um livro em seu quarto e o leva para a varanda. É um livrinho de bolso e, como a mão dela está bem em cima do título, peço que me mostre o que é. Riders of the Purple Sage, de Zane Grey. Pergunto
a ela se é bom e Lucy me responde com um meneio vigoroso de aprovação. É mais do que bom, ela parece estar me dizendo, é a maior obra-prima de todos os tempos. Acho uma escolha meio engraçada para uma
menina de nove anos, mas quem sou eu para levantar objeções? A menina gosta de ler, digo com meus botões, e considero isso um fato positivo, uma prova de que nossa pequena fugitiva não é nenhuma preguiçosa
mental.
Tom se aboleta numa cadeira junto à minha e Lucy se espicha na poltrona de balanço com seu faroeste na mão. Meu sobrinho acende o primeiro cigarro do dia e diz: “Você acha que o Al Júnior vai conseguir
consertar o carro?”.
“É bem provável”, respondo. “Mas não estou com a menor pressa de ir embora daqui. Você está?”
“Na verdade, não. Estou começando a gostar do lugar.”
“Lembra-se do nosso jantar com o Harry, na semana passada?”
“Quando você derramou vinho na calça? Como é que eu poderia esquecer?”
“Andei pensando sobre algumas coisas que você falou aquela noite.”
“Que eu me lembre, falei um monte de coisas. A maioria, cretinices. Cretinices monumentais.”
“Você estava meio pra baixo. Mas não falou nenhuma cretinice.”
“Você devia estar bêbado demais para reparar.”
“Bêbado ou não, tem uma coisa que preciso saber. Quando você falou que tem vontade de sair da cidade, aquilo foi pra valer ou foi só conversa fiada?”
“Foi pra valer, mas também foi só conversa fiada.”
“Os dois juntos não pode ser. Ou é uma coisa ou é outra.”
“Eu falei pra valer, mas também sei que nunca vai acontecer. Portanto, foi só conversa fiada.”
“E aquele negócio que o Harry estava para fechar?”
“Conversa fiada e mais nada. A esta altura você já deveria saber como ele é. Se há alguém que é só conversa fiada, esse alguém é o nosso bom e velho Harry Brightman.”
“Não vou discordar de você. Mas vamos supor, apenas supor, que ele esteja falando a verdade. Imagine que ele está para pôr a mão numa belíssima bolada e que também está disposto a investi-la numa casa
de campo. O que você diria, nesse caso?”
“Eu diria: ‘Mãos à obra, pessoal’.”
“Ótimo. Agora pense com muito cuidado: se você pudesse escolher um lugar neste mundo, que lugar seria?”
“Ainda não fui tão longe. Mas teria de ser um lugar bem isolado. Um lugar onde as pessoas não precisassem ficar amontoadas.”
“Algo parecido com o Chowder Inn?”
“Justamente. Agora que você mencionou, este lugar funcionaria muitíssimo bem.”
“Por que não perguntamos ao Stanley se ele está disposto a vender?”
“Para quê? Nós não temos dinheiro suficiente para comprar.”
“Está se esquecendo do Harry.”
“Não estou não. O Harry tem seu lado bom, mas é a última pessoa com quem eu contaria para algo do gênero.”
“Admito que é uma possibilidade bastante remota, mas só para o caso de a cavalaria aparecer tocando a corneta, por que não falar já com o Stanley? Só de farra. Se ele disser que está interessado, ao menos
saberemos qual é a cara do Hotel Existência.”
“Mesmo que a gente nunca venha a morar aqui.”
“Exato. Mesmo que a gente nunca mais torne a pôr os pés aqui.”
• • • •
Stanley nos conta que vem pensando em vender a propriedade faz anos. Somente a inércia e a apatia o impediram de “pegar o touro a unha”, ele diz, mas se o preço for bom ele vende tudo na hora. Stanley
não agüenta mais viver com o fantasma de Peg. Não agüenta mais os invernos brutais. Não agüenta mais o isolamento. Vermont já deu o que tinha que dar e ele só tem um sonho na vida, que é se mudar para
os trópicos, para alguma ilha do Caribe, onde o clima é quente todos os dias do ano.
Então por que trabalhar tanto para botar o Chowder Inn em ordem?, pergunto. Por nenhum motivo em especial. Stanley não tem nada melhor para fazer e isso ajuda a afastar o tédio.
É hora do almoço. Estamos os quatro sentados em volta da mesa comendo carnes frias, frutas e queijo. Agora que a neblina se dispersou, o sol invade a sala pelas janelas abertas e cada objeto ali parece
mais definido, mais vívido, mais saturado de cor. Nosso anfitrião está desfiando suas mazelas para nós, mas sinto-me extraordinariamente feliz só de estar onde estou, dentro de meu próprio corpo, olhando
as coisas sobre a mesa, inspirando e expirando ar dos pulmões, gozando o simples fato de estar vivo. Que grande pena que a vida acabe, digo a mim mesmo, que grande pena que não possamos continuar vivendo
para sempre!
Tom explica que não temos dinheiro para fazer uma oferta de imediato, mas que talvez tenhamos condições de fazê-lo nas semanas seguintes. Stanley diz que não faz idéia de quanto vale a propriedade, mas
que pode falar com um corretor local e descobrir. Quanto mais falamos no assunto, mais entusiasmado ele fica. Não sei se acredita numa única palavra nossa, mas, só de poder imaginar uma nova vida para
si, parece outro homem.
Por que eu estou incentivando tamanho absurdo? Tudo depende da venda de um manuscrito falso de A letra escarlate, e eu não só me sinto moralmente contrário ao plano criminoso de Harry como também, e em
primeiro lugar, não ponho a menor fé no projeto. Para ser mais exato ainda: não tenho o menor interesse em me mudar para Vermont, mesmo que acreditasse que os planos de Harry pudessem dar certo. Faz pouquíssimo
tempo que dei início a uma nova vida e estou satisfeitíssimo com a decisão de ter ido morar no Brooklyn. Depois de ter passado anos e anos afastado dos centros urbanos, descobri que as metrópoles combinam
comigo e já me afeiçoei ao distrito, com sua mistura sempre mutante de brancos, pardos e negros, seu coro multifacetado de sotaques estrangeiros, suas crianças e árvores, suas famílias batalhadoras de
classe média, seus casais de lésbicas, suas vendinhas coreanas, seu santo indiano barbudo sempre de túnica branca a fazer mesuras ao cruzar comigo na rua. Seus anões e aleijados, seus velhos aposentados
andando com passinhos miúdos pela calçada, seus sinos e seus dez mil cães, sua população de solitários sem-teto puxando carrinhos pelas avenidas e fuçando o lixo à cata de garrafas.
Se eu não quero largar isso tudo, por que empurrar meu sobrinho para essa conversa sem sentido sobre propriedades imobiliárias com Stanley Chowder? Para agradar a Tom, imagino. Para lhe mostrar que pode
contar com meu apoio para seu projeto, ainda que nós dois estejamos cientes de que o novo Hotel Existência se ergue sobre um alicerce de “conversa fiada” apenas. Coopero com Tom para mostrar que estou
do lado dele e, porque Tom dá valor a meu gesto, ele coopera comigo. É um exercício mútuo de auto-ilusão consciente. Não vai dar em nada, o que significa que podemos continuar sonhando juntos sem nos preocuparmos
com as conseqüências. Agora que incluímos Stanley na brincadeira, a coisa quase começa a parecer real. Mas não é. Continua sendo uma grande bobagem, uma fantasia sem futuro, uma idéia tão fajuta quanto
o manuscrito de Hawthorne — que muito provavelmente nem sequer existe. Mas isso não significa que a brincadeira não seja divertida. Seria preciso estar morto para não curtir falar de coisas estapafúrdias,
e que lugar melhor para isso do que no alto de um morro no meio do nada em plena quietude da Nova Inglaterra?
Depois do almoço, o rejuvenescido Stanley me desafia para uma partida de pingue-pongue no celeiro. Digo a ele que estou enferrujado, que não jogo há anos, mas ele não aceita minhas desculpas. O exercício
me fará bem, ele diz, “vai ajudar a manter o bom humor”; e assim é que, com muita relutância, concordo em jogar uma partida ou duas. Lucy vai conosco até o celeiro para testemunhar a movimentação, mas
Tom fica onde está e se acomoda numa poltrona na varanda para fumar e ler.
Percebo muito depressa que Stanley não joga o tipo de pingue-pongue a que estou acostumado. As raquetes e bolas são as mesmas, mas nas mãos dele o jogo deixa de ser uma atividade polida de salão para se
transformar num esporte maduro, extenuante, uma forma miniaturizada e demoníaca de tênis. Ele investe na bolinha com um efeito devastador, impossível de rebater, fica a três metros da mesa e devolve cada
jogada que eu faço como se eu não tivesse mais habilidade que uma criança de quatro anos. Ele me vence três vezes — 21-0, 21-0, 21-0 — e, quando termina o massacre, não me resta nada a fazer senão me curvar
com toda humildade perante o vitorioso e arrastar meu corpo moído para fora do celeiro.
Coberto de suor, volto à casa para uma rápida chuveirada e uma troca de roupas. Enquanto subo os degraus da varanda com Lucy, Tom me diz que ligou para a livraria quinze minutos antes. Harry não estava,
mas Tom deixou recado com Rufus para ele ligar de volta. “Para ver se ainda está interessado”, Tom me diz. “Não faz sentido nós ficarmos alimentando as esperanças do Stanley se o Harry mudou de idéia.”
Estive jogando pingue-pongue no celeiro por menos de meia hora, mas pressinto que nesse breve intervalo Tom andou pensando um bocado. Algo no olhar dele me diz que a conversa com Stanley na hora do almoço
mudou sua posição em relação ao novo Hotel Existência. Ele está começando a acreditar que talvez dê certo. Está começando a ter esperança.
E o telefone toca bem na hora em que entro no hall. Pego o aparelho e lá está Brightman em pessoa, todo alegrinho, do outro lado da linha. Falo do problema que tivemos no carro, do Chowder Inn e da disposição
de Stanley de negociar conosco. “Este aqui é o lugar ideal”, continuo. “A idéia do Tom pode até ter soado meio estranha dentro de um restaurante de cidade, mas, depois que você se pega aqui no alto do
morro, a coisa toda parece perfeitamente razoável. Foi por isso que ele ligou. Para ver se você continua a fim.”
“A fim?”, Harry troveja, parecendo um daqueles atores meio loucos do século XIX. “Claro que estou a fim. Nós fizemos um pacto, não fizemos?”
“Não que eu me lembre.”
“Bem, talvez não tenha sido um pacto formal. Mas todos nós concordamos. Disso eu me lembro muito bem.”
“Um pacto mental.”
“Isso mesmo. Um pacto mental. Um verdadeiro encontro de mentes.”
“Todo ele condicionado aos resultados daquela sua pequena transação, claro.”
“Claro. Isso é óbvio.”
“Quer dizer que você continua firme naquilo?”
“Sei que você está meio cético, mas todas as peças de repente se encaixaram.”
“Não me diga.”
“Pois é. E é com imenso prazer que eu lhe digo que as notícias são ótimas. Não pense que não levei seu conselho a sério, Nathan. Eu disse ao Gordon que tinha pensado melhor sobre o assunto e que, se ele
não conseguisse marcar um encontro com o escorregadio senhor Metropolis, eu ia cair fora.”
“E?”
“Eu o conheci. Gordon o trouxe até a loja e eu o conheci. Um sujeito muito interessante. Mal abriu a boca, mas eu vi logo que estava diante de um verdadeiro profissional.”
“Ele levou alguma amostra do trabalho que faz?”
“Uma carta de amor de Charles Dickens para a amante. Um lindo exemplo.”
“Eu lhe desejo boa sorte, Harry. Se não por você, exatamente, ao menos por Tom.”
“Você ainda vai se orgulhar de mim, Nathan. Depois daquela nossa conversa, resolvi que precisava tomar algumas precauções. Para o caso de as coisas darem errado. Não que isso vá acontecer — mas, quando
se tem a bagagem que eu tenho, seria burrice não levar em conta todas as possibilidades.”
“Acho que não estou entendendo direito.”
“E nem precisa. Não já, de qualquer forma. Se e quando chegar a hora, vai entender tudinho. É bem provável que tenha sido o passo mais inteligente que já dei em toda a minha vida. Um gesto magnífico, Nathan.
O esbanjamento do século. Um mergulho estrondoso na grandiosidade eterna.”
Não faço a menor idéia do que ele está falando. Harry é dado a vôos bombásticos, a pronunciamentos enigmáticos pelo puro prazer de ouvir o som da própria voz, e não vejo por que prolongar a conversa. Tom
já está do meu lado a essa altura. Sem me preocupar em dizer mais nada, passo o telefone para ele e subo para tomar meu banho.
• • • •
Na manhã seguinte, Lucy finalmente abre a boca e fala.
Eu estava na expectativa de respostas, de revelações, do desnudamento de vários mistérios, aguardando um grande facho de luz que iluminasse a escuridão em volta. Não sei o que me fez pensar que a linguagem
seria uma forma mais eficaz de comunicação do que meneios e sacudidas de cabeça. Durante três dias inteiros, Lucy resistiu a todas as nossas tentativas de lhe arrancar alguma coisa e, quando se permite
falar, as palavras que diz ajudam quase tanto quanto seu silêncio.
Começo perguntando onde ela mora.
“Na Carolina”, ela diz, arrastando as sílabas com aquele mesmo sotaque caipira do Sul que eu havia detectado na segunda-feira de manhã.
“Na Carolina do Norte ou do Sul?”
“Carolina Carolina.”
“Não existe lugar com esse nome, Lucy. E você sabe muito bem disso. Você já está grandinha. Ou é Carolina do Norte ou é Carolina do Sul.”
“Não fique bravo, tio Nat. A mamãe disse para eu não contar.”
“Foi sua mãe que mandou você procurar o tio Tom no Brooklyn?”
“A mamãe disse vai e eu fui.”
“Você ficou triste quando se separou dela?”
“Muito triste. Eu gosto dela, mas ela sabe o que é certo.”
“E o seu pai? Ele também sabe o que é certo?”
“Ô se sabe! Ele deve ser o homem que mais sabe o que é certo deste mundo.”
“E por que você ficou sem falar esses dias todos, Lucy? O que a fez fazer isso?”
“Fiz isso para a mamãe. Para ela saber que estou pensando nela. É assim que a gente faz as coisas lá em casa. Papai diz que o silêncio purifica o espírito, que ele nos prepara para receber a palavra de
Deus.”
“Você gosta tanto do seu pai quanto gosta da sua mãe?”
“Ele não é meu pai de verdade. Eu sou adotada. Mas eu saí da barriga da mamãe. Ela me carregou dentro dela durante nove meses, por isso é a ela que eu pertenço.”
“E ela lhe disse por que queria que você viesse para o Norte?”
“Ela disse vai e eu fui.”
“Você não acha que seu tio Tom e eu deveríamos conversar um pouco com a sua mãe? Afinal, ela e o tio Tom são irmãos. E eu sou tio dela. A mãe da sua mãe era minha irmã.”
“Eu sei. A vó June. Eu cheguei a morar com ela, mas ela morreu.”
“Se você me der o número do telefone, simplifica bastante as coisas para todo mundo. Eu não vou mandar você de volta, se não quiser ir. Eu só queria falar com a sua mãe.”
“A gente não tem telefone.”
“Como é que é?”
“Papai não gosta de telefone. Nós tínhamos um, mas aí ele devolveu para a loja.”
“Está bom, então. E seu endereço? Isso você tem de saber.”
“É, eu sei sim. Mas a mamãe disse para não contar e, quando a mamãe me diz uma coisa, eu obedeço.”
Esta conversa exasperante e revolucionária acontece às sete da manhã. Lucy me acordou com uma batida na porta e está sentada na beirada da cama enquanto eu esfrego os olhos e inicio meu interrogatório
frustrado. No aposento ao lado, Tom ainda dorme no quarto Buster Keaton, e quando desce para tomar o café-da-manhã, uma hora mais tarde, tem tanto sucesso quanto eu na obtenção de informações. Juntos,
continuamos a questioná-la durante boa parte da manhã, mas a garota é feita de aço e não cede um milímetro. Não nos diz sequer o que o pai dela faz (“Ele tem um emprego”) ou se a mãe conservou a tatuagem
no ombro esquerdo (“Eu nunca a vejo pelada”). O único fato que se dispõe a partilhar conosco é irrelevante para nossos objetivos: sua melhor amiga é uma menina chamada Audrey Fitzsimmons. Somos informados
de que Audrey usa óculos, mas que é a melhor da quarta série na queda-de-braço. Ela não apenas vence todas as meninas da classe, ela é mais forte que os meninos também.
Por fim, desistimos de pura frustração, mas não antes que Lucy venha me lembrar que eu lhe prometi cinqüenta dólares assim que voltasse a falar.
“Eu não prometi nada disso”, digo para ela.
“Prometeu sim”, ela responde. “Na outra noite, no jantar. Quando a Honey perguntou para você por que eu não falava.”
“Eu estava tentando protegê-la. Não falei sério.”
“Então você mentiu. O papai diz que os mentirosos são os piores vermes do universo. É isso que você é, tio Nat? Um reles verme imprestável?”
Tom, que poucos minutos antes estava a ponto de torcer o pescoço dela, de repente cai na risada. “Acho melhor ir pagando”, diz. “Você não quer que ela perca o respeito que tem por você, quer, Nathan?”
“Isso mesmo”, Lucy intervém. “Você quer que eu goste de você, não quer, tio Nat?”
Com muita relutância, tiro a carteira do bolso e entrego cinqüenta dólares a ela.
“Você é de morte, Lucy”, resmungo.
“Eu sei que sou”, diz ela, enfiando as notas no bolso e me concedendo um de seus sorrisos gigantescos. “A mamãe me disse para sempre defender meus direitos. Um trato é um trato, correto? Se eu deixasse
você me passar a perna, você não gostaria mais de mim. Iria pensar que eu sou café-com-leite.”
“E o que a leva a pensar que eu gosto de você?”, pergunto.
“Porque eu sou uma gracinha. E também porque você mudou de idéia sobre a Pamela.”
É tudo muito engraçado, talvez, mas, assim que ela sai correndo para brincar com o cachorro, viro-me para Tom e pergunto: “Como é que nós vamos conseguir fazer essa menina falar?”.
“Ela está falando”, ele me diz. “Só não está falando as palavras certas.”
“Talvez eu devesse ameaçá-la.”
“Esse não é seu estilo, Nathan.”
“Não sei não. E se eu disser para ela que mudei de idéia de novo? Que se ela não responder nós vamos levá-la para a casa da Pamela e deixá-la por lá? Que eu cansei dessa história?”
“Que esperança, Nathan.”
“Estou preocupado com a Rory, Tom. Se a menina não se abrir conosco, nós nunca vamos saber o que está havendo.”
“Eu também estou preocupado. Durante os últimos três anos, a única coisa que eu fiz foi me preocupar. Mas assustar a Lucy não vai ajudar ninguém. Ela já deve ter sofrido o bastante.”
Às onze horas daquela mesma manhã, Al Júnior me liga da oficina ao pé do morro para me dizer que o problema foi solucionado. Açúcar no tanque e na tubulação do combustível, ele diz. Essa declaração é tão
misteriosa para mim que mal sei do que ele está falando.
“Açúcar”, ele repete. “Parece que alguém andou despejando umas cinqüenta latas de Coca no seu tanque de gasolina. Se quiser arrebentar com o carro de alguém, não tem nada mais rápido nem mais simples do
que Coca-Cola.”
“Santo Deus”, digo eu. “Está me dizendo que alguém fez isso de propósito?”
“É justamente o que estou lhe dizendo. E latas de Coca-Cola não têm pernas, certo? Muito menos mãos e dedos para abrir a tampinha. A única explicação possível é que alguém resolveu aprontar uma com seu
carro.”
“Mas isso só pode ter acontecido enquanto nós almoçávamos. O carro estava funcionando perfeitamente até pararmos na frente do restaurante. E por que alguém haveria de querer fazer uma coisa dessas conosco?”
“Por uma centena de motivos. Pode ter sido obra de vândalos, quem sabe. Ou de um bando de adolescentes entediados querendo agitar. Por aqui tem muito esse tipo de coisa. Ou então foi alguém que não gosta
do pessoal de Nova York. O sujeito viu a placa do carro e resolveu dar uma lição em vocês.”
“Isso é ridículo.”
“Nem tanto. Tem muito ressentimento contra gente de fora nesta parte do estado. Sobretudo contra o pessoal de Nova York e de Boston, mas também já vi um idiota provocando briga com um cara de New Hampshire.
Faz poucos dias, isso. Foi no bar do Rick, na Rota 30. O sujeito era de Keen, em New Hampshire, que fica a meio centímetro da divisa com Vermont. De repente aparece um bêbado — não vou dar nome aos bois
— e quebra uma cadeira na cabeça do sujeito aos berros de ‘Deixe Vermont para quem nasceu em Vermont!’ e ‘Caia fora daqui, seu babaca!’. No fim foi um quebra-quebra danado e, pelo que me contaram, a confusão
no bar teria durado a noite toda se a polícia não tivesse chegado.”
“Do jeito como você fala, parece que estamos na Iugoslávia.”
“É, eu sei do que está falando. Cada idiota tem de defender seu pedaço de terra e ai do coitado que não pertence à mesma tribo.”
Al Júnior tagarela mais um minuto ou dois, lamentando com voz ressentida e incrédula o estado em que o mundo se encontra, e eu o imagino sacudindo a cabeça enquanto as palavras lhe saem da boca. Por fim,
retomamos a questão da sabotagem contra meu sedã verde e sou informado de que ele vai começar a lavar o motor e a tubulação do combustível. Vou ter de pagar pela troca de velas, uma tampa nova para o distribuidor
e diversas outras peças de reposição, mas o que me interessa é botar o velho calhambeque em funcionamento outra vez. Al Júnior calcula que poderá dar um atestado de saúde para o carro até o final da tarde.
Se der tempo, ele e o pai subirão o morro em dois carros e me deixarão o Cutlass no fim do dia. Caso contrário, entregam na manhã seguinte. Não me ocorre perguntar quanto vai custar o conserto. Naquele
momento minha cabeça está na Iugoslávia. Penso nos horrores de Sarajevo e Kosovo e nos milhares de vítimas inocentes que morreram apenas porque eram, supostamente, diferentes das pessoas que as assassinaram.
• • • •
Pensamentos lúgubres me perseguem até a hora do almoço e passeio pela propriedade sozinho. Tom e Lucy que se divirtam como puderem. Esse é o único trecho sombrio de minha estada no Chowder Inn, mas é que
pela manhã nada saiu direito e de repente sinto o mundo me pressionando de todos os lados. As evasivas ágeis e lacônicas de Lucy; a ansiedade cada vez maior por causa da mãe dela; a violência contra o
carro; a inevitável lembrança dos massacres que ocorrem em lugares remotos — todas essas coisas me vêm à cabeça e me dizem que não há como escapar das misérias que rondam o planeta. Nem mesmo na mais remota
montanha de Vermont. Nem mesmo atrás das portas trancadas e aferrolhadas do fictício santuário conhecido pelo nome de Hotel Existência.
Reviro o cérebro à cata de um contra-argumento, de uma idéia que reequilibre os pratos da balança e, por fim, começo a pensar em Tom e Honey. Não há nada certo, nessa altura, mas durante o jantar, na noite
anterior, eu havia pressentido um considerável abrandamento na atitude dele para com ela. Honey vinha implorando há anos para o pai se mudar. Quando Stanley lhe contou que tínhamos um interesse em potencial
pela casa, ela ergueu a taça e nos fez um brinde de agradecimento. Depois virou-se para Tom e perguntou por que cargas d’água ele iria querer trocar sua vida na cidade grande por uma estradinha de terra
em Vermont? Em vez de zombar dela com uma resposta jocosa, Tom lhe forneceu uma explicação completa e comedida, reiterando muitos dos pontos já levantados durante nosso jantar com Harry na rua Smith, no
Brooklyn, só que de forma mais eloqüente — com mais premência e convicção ao discorrer a respeito de seu desespero em relação ao futuro da América. Aquele era Tom no que ele tinha de melhor e, ao olhar
para Honey, que o fitava do outro lado da mesa, vi algumas lágrimas se juntando nos cantos dos olhos da moça e então percebi, percebi sem a menor sombra de dúvida, que a viçosa e generosa filha de Stanley
estava caidinha pelo meu sobrinho.
Mas e quanto a Tom? Dava para ver que ele tinha começado a reparar nela, a conversar com ela de um jeito menos agressivo, que havia baixado a guarda, mas o que significaria isso? Podia tanto ser um sinal
de interesse crescente quanto mera questão de boas maneiras.
Apresento um pequeno episódio ocorrido lá para o final da noite. Se responde ou não à pergunta, não sei, mas a mim me parece prova conclusiva do caso.
Até terminarmos de comer a sobremesa, Lucy já havia ido para a cama e os quatro adultos restantes achavam-se um tanto embriagados. Stanley propôs um pôquer amistoso e, enquanto embaralhava as cartas e
falava sobre sua nova vida nos trópicos (sentado debaixo de uma palmeira com um ponche de rum numa das mãos e um Montecristo na outra, vendo as ondas baterem na praia de areias brancas ao entardecer),
foi nos arrancando o couro e vencendo três de cada quatro rodadas. Depois da surra que ele me dera no pingue-pongue, na tarde anterior, era fatal que isso ocorresse. Pelo visto não havia nada em que não
fosse um assombro, e tanto Tom como Honey riam muito da própria inépcia, fazendo apostas cada vez mais extravagantes enquanto Stanley continuava a ganhar. Era uma risada meio que de cumplicidade, a meu
ver, e de minha parte o esforço para não participar foi consciente. Limitei-me a observar os dois jovens por trás do escudo de cartas. E então, quando já íamos dar a noite por encerrada, Tom disse algo
que me pegou de surpresa. “Não volte para Brattleboro hoje”, ele disse para Honey. “Já é mais de meia-noite e você bebeu demais.”
Pura questão de boas maneiras — ou um estratagema diabólico para levá-la para a cama?
“Eu dirijo por essas estradas até de olhos fechados”, respondeu Honey. “Não se preocupe comigo, amigo.”
Depois explicou que tinha que levantar especialmente cedo no dia seguinte (algo a ver com uma reunião de pais e mestres), mas deu para perceber que a solicitude de Tom a comovera, ou ao menos foi o que
imaginei. Em seguida ela se despediu de todos com um beijo. Primeiro o pai, depois um beijinho de leve para mim, no queixo, e em último lugar Tom. E ele não só ganhou um beijo na boca como também foi agraciado
com um abraço — um grande abraço que me pareceu levar vários segundos a mais do que a situação exigia.
“Boa noite, pessoal”, disse Honey, acenando para nós ao se dirigir para a porta da frente. “Vejo vocês amanhã.”
• • • •
No dia seguinte ela surge às quatro da tarde trazendo cinco lagostas, três garrafas de champanhe e duas sobremesas diferentes. Com seus dotes extraordinários nossa chef prepara mais um festim para nós
e, agora que Lucy se dispôs a participar da conversa, a professora primária e a aluna do primário conversam sobre assuntos de interesse mútuo durante boa parte do jantar, atirando de um lado a outro os
títulos de seus livros prediletos. Al Júnior e Al Sênior ainda não apareceram com meu carro, mas eu anuncio que o Oldsmobile foi consertado e que estará em nossas mãos no dia seguinte. Diante da animação
da conversa que impera na mesa, prefiro não mencionar o motivo da pane, uma vez que não desejo estragar o bom humor vigente com assunto tão desagradável. Tom já sabe de tudo, a essa altura, mas também
ele evita divulgar a peça maldosa que nos pregaram. Honey e Lucy entoam musiquetas absurdas enquanto abrem suas lagostas; por que interromper a diversão delas com um relato desanimador sobre ressentimentos
de classe e animosidades provincianas?
Depois que levo Lucy para a cama, mais tarde, percebo que estou cansado demais para ficar acordado até tarde uma segunda noite consecutiva, ingerindo taças e mais taças de vinho com os demais. Os Chowder
são bons de copo e Tom, com seu corpo avantajado e seu apetite prodigioso, consegue lhes fazer frente, dose por dose, mas eu sou um ex-paciente de câncer magricela, com uma capacidade pequena, e receio
acordar de ressaca na manhã seguinte.
Sento-me na beirada da cama de Lucy e leio para ela o romance de Zane Grey até que ela fecha os olhos e pega no sono. Ao ir para meu próprio quarto, pegado ao de Lucy, escuto risadas vindo da sala de jantar
lá embaixo. Ouço Stanley dizer alguma coisa sobre estar “um bagaço”, depois Honey acrescentar algo a respeito “do quarto Chaplin” e “talvez não seja uma idéia assim tão má”. É difícil dizer sobre o que
estão conversando, mas uma possibilidade é a seguinte: Stanley está indo dormir, Honey bebeu demais para dirigir até sua casa e planeja passar a noite no hotel. Se não estou enganado, o quarto Charlie
Chaplin fica pegado ao de Tom.
Enfio-me na cama e começo a ler o livro de Italo Svevo As a Man Grows Older. É meu segundo romance de Svevo em menos de duas semanas, mas A consciência de Zeno me deixou tão impressionado que decidi ler
tudo o que encontrasse do autor. O título original em italiano é Senilità e me parece o livro perfeito para um coroa idiota feito eu. Um homem mais velho e sua jovem amante. As dores do amor. Esperanças
destroçadas. Depois de uns dois parágrafos, paro um pouco, lembro de Marina Gonzalez e me dói pensar que nunca mais hei de vê-la outra vez. Fico tentado a me masturbar, mas resisto à vontade porque as
molas enferrujadas da cama com toda certeza me denunciariam. Ainda assim, enfio a mão debaixo das cobertas de vez em quando e toco em meu pinto. Só para me certificar de que continua ali, só para constatar
que meu velhíssimo amigo ainda está comigo.
Meia hora depois, escuto passos subindo a escada. Dois pares de pernas, duas vozes cochichando: Tom e Honey. Eles seguem pelo corredor quase até minha porta e depois param. Apuro os ouvidos para entender
o que dizem, mas estão falando baixo demais e não consigo pegar tudo. Por fim, escuto Tom dizer “boa noite” e, momentos depois, a porta do quarto Carlitos se abre e fecha. Três segundos depois, a mesma
coisa com a porta do quarto Buster Keaton.
A parede que me separa de Tom é fina — a mais tênue das divisórias de gesso — e escuto cada som produzido ao lado com muita nitidez. Escuto quando meu sobrinho tira os sapatos e desafivela o cinto, escuto
quando escova os dentes na pia, escuto quando suspira, quando começa a cantarolar bem baixinho e quando entra debaixo das cobertas da cama que range. Estou para fechar o livro e apagar a luz, mas assim
que estendo o braço para a luminária ouço uma batida muito suave na porta de Tom. A voz de Honey diz: “Você está dormindo?”. Tom diz que não e, quando Honey pergunta se pode entrar, nosso rapaz diz que
sim e, ao dizer que sim, o propósito oculto de termos saído da auto-estrada interestadual para pegar a Rota 30 está prestes a ser realizado.
Os ruídos são tão claros que não tenho a menor dificuldade em seguir cada detalhe da ação que se desenrola do outro lado da parede.
“Não vá ficar com a impressão errada de mim”, diz Honey. “Eu não faço isso todos os dias.”
“Eu sei”, Tom responde.
“É que já faz um tempão.”
“Para mim também. Um tempo enorme.”
Ouço quando ela entra na cama com ele e ouço tudo o que acontece depois. Sexo é um negócio tão estranho e bagunçado, para que me dar ao trabalho de recontar os roncos e grunhidos que se seguiram? Tom e
Honey merecem ter um pouco de privacidade e, por esse motivo, termino por aqui meu relato das atividades da noite. Se algum leitor tiver objeções, peço-lhe que feche os olhos e use a imaginação.
Na manhã seguinte Honey parte bem antes que o resto da casa pule da cama. É outro dia esplendoroso, talvez o mais lindo de toda a primavera, mas é também um dia cheio de surpresas e os sobressaltos vão
acabar ofuscando a perfeição da paisagem e do tempo e empurrá-la para o fundo da mente. Se por acaso ficou-me alguma lembrança desse dia, foi tão-somente sob a forma de um quebra-cabeça por montar, uma
massa de impressões isoladas. Aqui um trecho de céu azul; ali uma bétula prateada a refletir a luz do sol em seu tronco. Nuvens que lembram rostos humanos, mapas, monstros cheios de patas. A rápida visão
de uma cobrinha inofensiva se arrastando pela relva. O lamento em quatro notas de um pássaro-de-cem-vozes. As mil folhas de um álamo adejando qual mariposas feridas quando o vento se esgueira por entre
os galhos. Um por um, todos os elementos estão presentes, mas falta alguma coisa ao conjunto, as partes são desarmônicas e não posso fazer mais do que buscar o que resta de um dia que não existiu por inteiro.
Ele tem início com a chegada de Al Júnior e Al Sênior às nove da manhã. Tom ainda está lá em cima, no quarto Buster Keaton, em estado comatoso depois da grande noitada. Lucy e eu estamos de pé desde as
oito e saindo de casa para fazer uma caminhada quando os Wilson aparecem em seu comboio de dois carros: um Mustang vermelho conversível e meu Cutlass verde-limão. Solto a mão de Lucy para apertar a daqueles
bravos cavalheiros. Eles me dizem que meu carro ficou novo em folha, Al Sênior me apresenta a conta pelos serviços prestados e eu lhe faço um cheque ali mesmo. E então, bem quando penso que a transação
terminou, Al Júnior joga a primeira bomba do dia.
“O gozado”, diz-me ele, dando um tapinha no teto do Cutlass, “é que no fim foi muito bom que aquela Coca tenha mexido com a gasolina do carro.”
“Como assim?”, pergunto, sem saber como interpretar declaração tão curiosa.
“Depois que nós conversamos, ontem de manhã, pensei que estaria com o serviço terminado dentro de mais umas duas horas. Foi por isso que eu disse que poderíamos até entregar o carro ontem à noite mesmo.
Está lembrado?”
“Claro que sim. Mas você também disse que talvez só desse para vir hoje.”
“Pois é, eu disse mesmo, mas o motivo que eu dei não foi o mesmo que não me deixou trazer o carro ontem mesmo.”
“Ah, não? O que houve nesse meio-tempo?”
“Levei seu Oldsmobile para dar uma volta. Só para me certificar que estava tudo normal. E não estava.”
“Não?”
“Forcei o carro a dar cem, cento e dez, depois tentei reduzir a velocidade. Só que fica meio difícil brecar quando os freios estão estourados. Por sorte não acabei me matando.”
“Os freios...”
“Exato, os freios. Levei o carro de volta para a oficina e dei uma espiada. A lona estava gasta, faltava pouco para arrebentar.”
“Mas então quer dizer que...”
“Quer dizer que, se o senhor não tivesse tido aquele probleminha com o tanque de gasolina, não ficaria sabendo nada do problema com o freio. Se tivesse continuado a viajar por muito mais tempo, poderia
ter se metido em apuros sérios. Acidente, morte, tudo quanto é tipo de apuro.”
“Quer dizer então que o filho-da-puta que despejou Coca-Cola no tanque de gasolina acabou salvando as nossas vidas?”
“É o que parece. Bem esquisito, não acha?”
Depois que os Wilson se vão em seu conversível vermelho, Lucy começa a me puxar pela manga.
“Não foi nenhum FDP que fez isso, tio Nat”, ela me diz.
“FDP?”, respondo. “Do que você está falando, Lucy?”
“Você disse uma palavra feia. E eu não posso repetir o que você falou.”
“Ah, entendi. FDP. Iniciais de você sabe o quê.”
“Isso. Um palavrão.”
“Você tem razão, Lucy. Eu não deveria usar expressões como essa com você por perto.”
“Você não deveria usar e ponto. Eu estando ou não por perto.”
“É bem provável que você tenha razão. Mas eu estava bravo e quando a pessoa está brava não consegue controlar o que diz. Um homem muito ruim tentou estragar nosso carro. Sem motivo nenhum. Só por crueldade,
para nos prejudicar. Desculpe se usei aquela palavra, mas você não pode me culpar por ter ficado bravo.”
“Não foi um homem ruim. Foi uma menina ruim.”
“Uma menina? Como é que você sabe? Você viu alguma coisa?”
Durante alguns poucos instantes, ela volta ao antigo silêncio, meneando afirmativamente a cabeça em resposta à minha pergunta, com as lágrimas já começando a se acumular em seus olhos.
“E por que você não me disse?”, pergunto. “Se você viu quem fez, devia ter me dito, Lucy. Nós poderíamos ter apanhado a menina e levado para a cadeia. E, se o pessoal da oficina soubesse qual era o problema,
poderiam ter consertado o carro na hora.”
“Eu tive medo”, ela diz, curvando a cabeça, receosa de me olhar nos olhos. As lágrimas começam a jorrar aos borbotões e eu as vejo cair na terra seca — sal efêmero, gotículas brilhantes que por alguns
momentos fazem uma mancha escura e depois desaparecem no pó.
“Medo? E por que você haveria de ter medo?”
Em vez de responder, ela me agarra com o braço direito e enterra o rosto nas minhas costelas. Começo a afagar seu cabelo e, ao sentir o tremor que toma conta do corpo de Lucy, compreendo de repente o que
ela está tentando me dizer. Passo por uns segundos de choque genuíno, depois uma onda de raiva me invade mas, assim que isso passa, recupero a calma. A raiva cede lugar à pena e me dou conta de que, se
eu me puser a ralhar, talvez perca a confiança dela para sempre.
“Por que você fez uma coisa dessas?”, pergunto.
“Me desculpe”, ela diz, me apertando ainda mais e fungando na minha camisa. “Me desculpe mesmo, mesmo. É que eu fiquei meio doida, tio Nat, e, antes que soubesse o que estava fazendo, já tinha feito. A
mamãe me contou sobre a Pamela. Ela é mesquinha e eu não queria ir para lá.”
“Eu não sei se ela é mesquinha ou não, mas no fim tudo acabou dando certo. Você fez uma coisa muito errada, Lucy. Muito errada mesmo, e eu não quero nunca mais que você faça algo parecido. Mas desta vez
— e só desta vez — a coisa errada acabou também sendo a coisa certa.”
“E como é que uma coisa errada pode virar uma coisa certa? Seria a mesma coisa que dizer que um cachorro é um gato ou que um rato é um elefante.”
“Esqueceu o que o Al Júnior falou sobre os freios?”
“Não, não esqueci não. Eu salvei sua vida, não foi?”
“Isso sem falar na sua própria vida, Lucy. E na do Tom também.”
Por fim, ela se solta da minha camisa, enxuga as lágrimas dos olhos e me lança um olhar pensativo e intenso. “Não conte para o tio Tom que fui eu, certo?”
“Por que não?”
“Se ele souber, não vai mais gostar de mim.”
“Claro que vai.”
“Não vai não. E eu quero que ele goste de mim.”
“Mas e eu não continuo gostando de você do mesmo jeito?”
“Você é diferente.”
“Diferente como?”
“Não sei. Mas você leva as coisas mais numa boa. Você não é tão sério quanto o tio Tom.”
“Isso é porque eu sou mais velho.”
“Mas eu prefiro que você não conte nada para ele, certo? Jura que não vai dizer nada.”
“Tudo bem, Lucy. Eu juro.”
Ela então sorri e, pela primeira vez desde o domingo em que apareceu no Brooklyn, percebo nela um quê da mãe quando criança. Aurora. A ausente Aurora, perdida em algum canto da mítica terra da Carolina
Carolina, uma mulher-sombra além do alcance dos vivos. Uma mulher que só existe no rosto da filha, na lealdade da filha, na promessa cumprida da filha de não revelar seu paradeiro.
• • • •
Tom enfim se levanta. Tenho uma certa dificuldade em decifrar seu estado de espírito, que parece oscilar entre um contentamento grave e um desconforto irrequieto. Durante o almoço ele não diz uma palavra
sobre os acontecimentos da noite anterior e eu me abstenho de fazer perguntas, por mais curioso que esteja para ouvir o lado dele da história. Será que se apaixonou pela esfuziante srta. C? Ou será que
pretende descartá-la como uma transa passageira? Terá sido apenas sexo e nada mais que sexo ou haveria sentimentos envolvidos na equação? Depois que terminamos de almoçar, Lucy sai para andar de trator
com Stanley e ajudá-lo a aparar a grama. Tom se refugia na varanda para seu cigarrinho pós-refeição e eu me instalo na cadeira ao lado.
“Dormiu bem ontem à noite, Nathan?”, pergunta ele.
“Muito bem. Tendo em vista a espessura das paredes, poderia ter sido muito pior.”
“Era o que eu temia.”
“A culpa não é sua. Não foi você quem construiu a casa.”
“Eu disse várias vezes para ela não fazer tanto barulho, mas você sabe como é. A gente se empolga e aí não tem mais remédio.”
“Sem problemas. Para ser sincero, fiquei contente. Contente por você.”
“Eu também. Por uma noite, senti-me contente.”
“Haverá outras noites, meu caro. Isso foi só o começo.”
“Quem é que sabe? Ela saiu cedo hoje de manhã e não dá para dizer que a gente tenha conversado muita coisa, enquanto ela esteve aqui. Não faço idéia do que ela quer.”
“Mas e você quer o quê?”
“Ainda é cedo para saber. Tudo aconteceu tão depressa, ainda não tive tempo de pensar sobre o assunto.”
“Não que você tenha me perguntado, mas, a meu ver, vocês dois formam um belo casal.”
“É, pois é. Dois gordos colidindo noite adentro. O que me espantou foi a cama ter agüentado.”
“A Honey não é gorda. Ela é o que se chama de ‘carnuda’.”
“Ela não é meu tipo, Nathan. Durona demais. Confiante demais. Cheia de opiniões demais. Nunca me senti atraído por mulheres assim.”
“É por isso justamente que ela seria ótima para você. Manteria você na linha.”
Tom sacode a cabeça e suspira. “Não daria certo nunca. Ela me deixaria esgotado em menos de um mês.”
“Quer dizer que está disposto a desistir depois de uma única noite?”
“E por que não? Uma boa noite e pronto, assunto encerrado.”
“E o que vai acontecer se ela for para a sua cama de novo? Vai chutá-la para fora?”
Tom encosta um fósforo num segundo cigarro, depois pára por um longo momento. “Não sei”, acaba dizendo. “Vamos ver.”
• • • •
Infelizmente, nem Tom nem ninguém mais tem chance de ver nada.
Uma última surpresa nos aguarda e esta se mostra tão vasta, tão contundente, tão colossal em suas ramificações que não temos escolha senão pegar a estrada naquela mesma tarde. Nossas férias no Chowder
Inn chegam a um súbito e atordoante fim.
Adeus, topo do morro. Adeus, gramado. Adeus, Honey.
Adeus, sonho do Hotel Existência.
Tom diz “Vamos ver” por volta da uma da tarde. Depois do passeio de Lucy no trator, eu a levo até o lago para nadar. Quando voltamos, quarenta minutos mais tarde, Tom dá a notícia. Harry está morto. Rufus
acabou de ligar do Brooklyn, chorando ao telefone, mal conseguindo falar, para dizer que Harry morreu, que Harry se foi. Segundo Tom, Rufus estava engasgado demais e não conseguiu explicar melhor. Não
entendemos nada. Além do fato de que temos de sair de Vermont imediatamente, não entendemos nada.
Pago a Stanley o que devemos. Enquanto assino um cheque com mão trêmula, conto a ele que nosso sócio morreu e que não estamos mais em condições de comprar a casa. Stanley dá de ombros. “Eu sabia que não
era nada muito sério”, ele diz. “Mas isso não quer dizer que eu não tenha gostado de conversar sobre a possibilidade.”
Tom entrega a ele um papel com seu endereço e telefone. “Por favor, dê isto para a Honey”, ele diz. “E conte para ela o que houve.”
Fazemos as malas. Entramos no carro. E partimos.
* Moita, arbusto, touceira, matagal e também a sarça ardente mencionada na Bíblia. (N. T.)
Traição
A meu ver, a morte de Harry foi assassinato. Tudo bem que ninguém tocou num fio de cabelo seu, que ele não foi baleado nem esfaqueado, pouco importa que não tenha morrido debaixo das rodas de um carro.
Os criminosos podem ter chegado armados só com palavras, mas usaram-nas com tamanha violência que elas surtiram o mesmo efeito de uma martelada na cabeça. Harry não era nenhum jovem. Sofrera dois infartos
nos três anos anteriores, tinha pressão alta e as artérias estavam entupidas. Quanta tortura um organismo nessas condições é capaz de suportar? Não muita, na minha opinião. Não muita.
Houve uma única testemunha da atrocidade, mas, embora tenha escutado tudo o que foi dito, Rufus não entendeu nem a metade da conversa. E isso porque Harry não havia se dado ao trabalho de colocá-lo a par
da tramóia que arquitetara junto com Gordon Dryer, e quando Gordon entrou na loja acompanhado por Myron Trumbell, Rufus pensou tratar-se de uma dupla de negociantes do ramo. Acompanhou os dois até o escritório,
no andar de cima, mas notou uma certa tensão, um entusiasmo excessivo por parte de Harry; no fundo, o patrão parecia meio alterado, sacudia a mão das visitas para cima e para baixo feito um boneco de corda.
Ficou preocupado e, em vez de descer e retomar seu posto na caixa registradora, resolveu continuar onde estava, grudar a orelha na porta e escutar a conversa.
Os dois recém-chegados ainda disseram algumas gracinhas antes de fazer o cerco com as adagas, amaciando a vítima para o golpe derradeiro. Distribuíram cumprimentos amistosos, comentários casuais sobre
o tempo, elogios untuosos ao gosto de Harry na escolha dos móveis do escritório, referências entusiasmadas à bela coleção de primeiras edições enfileiradas nas prateleiras. Em que pesem as palhaçadas afáveis,
Harry deve ter ficado confuso. Metropolis ainda não havia terminado o manuscrito e, sem uma falsificação completa para entregar a Trumbell, Harry não estava entendendo por que Gordon resolvera aparecer.
“É sempre um prazer enorme recebê-los”, disse ele, “mas não gostaria de desapontar o senhor Trumbell. O manuscrito está guardado num cofre da agência do Citibank em Manhattan, na rua 53. Se tivessem me
avisado que viriam, eu o teria aqui comigo hoje. Mas, a menos que eu tenha me confundido, nós havíamos combinado de nos encontrar na próxima segunda-feira à tarde.”
“Num cofre de banco?”, perguntou Gordon. “Quer dizer então que foi lá que você trancafiou minha descoberta? Eu não sabia disso.”
“Pensei que tivesse lhe contado”, continuou Harry, improvisando à medida que falava, ainda sem conseguir entender o que Gordon estava fazendo ali, junto com Trumbell, quatro dias antes do combinado.
“Andei pensando melhor”, disse Trumbell.
“Pois é”, Gordon acrescentou, intrometendo-se antes que Harry tivesse a oportunidade de responder. “Como o senhor há de compreender, senhor Brightman, uma venda como essa tem de ser levada muito a sério.
Com tanto dinheiro envolvido, é uma necessidade básica.”
“Estou ciente disso”, Harry respondeu. “Foi por essa razão que mandamos a primeira página para ser examinada por especialistas. E olhem que não foi um só, foram dois.”
“Dois não”, falou Trumbell. “Três.”
“Três?”
“Três”, Gordon repetiu. “Cuidado nunca é demais, certo? O Myron levou a amostra para um curador da Biblioteca Morgan também. Um dos maiores especialistas do gênero. Ele deu seu parecer hoje de manhã; está
convencido de que o manuscrito é falso.”
“Bem”, Harry gaguejou, “dois entre três até que não está mau. Por que confiar na opinião desse homem e não na dos outros dois?”
“Ele foi muito convincente”, Trumbell disse. “Para que eu compre esse manuscrito, não pode haver nenhuma dúvida. Nem um resquício de dúvida.”
“Entendo”, Harry disse, lutando para escapar da arapuca que os dois haviam armado para ele, mas já perdendo um pouco do ânimo, já irremediavelmente desmoralizado. “Eu só queria que o senhor soubesse que
agi de boa-fé, senhor Trumbell. O Gordon encontrou o manuscrito no sótão da avó e trouxe para eu ver. Nós mandamos examinar e nos disseram que era genuíno. O senhor se interessou em comprá-lo. Se mudou
de idéia, só posso dizer que sinto muito. Podemos cancelar a negociação agora mesmo.”
“Está se esquecendo dos dez mil dólares que já recebeu de Myron”, falou Gordon.
“Não, não estou”, Harry respondeu. “Eu vou devolver o dinheiro para ele e assim ficamos quites.”
“Não creio que vá ser assim tão simples, senhor Brightman”, disse Trumbell. “Ou não seria mais conveniente chamá-lo de senhor Dunkel? O Gordon me falou um bocado a seu respeito, Harry. Chicago. Alec Smith.
Vinte e tantas telas falsificadas. Prisão. Uma identidade nova. Você é um campeão de mentiras, Harry, e com uma ficha como a sua até prefiro que fique com os dez mil. Dessa forma, posso prestar queixa.
Você estava planejando me passar a perna, não estava? E eu não gosto quando as pessoas tentam me enganar. Me deixa irritado.”
“Quem é este homem, Gordon?”, perguntou Harry, com a voz de repente trêmula, fora de controle.
“Myron Trumbell”, Gordon respondeu. “Meu benfeitor. Meu amigo. O homem que eu amo.”
“Quer dizer então que é ele. Nunca houve aquele outro.”
“Só este. Sempre só este, Harry.”
“O Nathan tinha razão”, gemeu Harry. “O Nathan tinha razão o tempo todo. Caramba, por que não escutei os conselhos dele?”
“Quem é esse Nathan?”, perguntou Gordon.
“Um sujeito que eu conheço. Não importa. Alguém que eu conheço. Um cartomante.”
“Você nunca soube aceitar um bom conselho, não é verdade, Harry?”, Gordon disse. “Sempre aquela puta cobiça. Aquela puta empáfia, não é mesmo, Harry?”
Foi então que Harry começou a desmoronar. A crueldade na voz de Gordon foi tanta que ele não conseguiu mais fingir que estava tratando de negócios e discutindo os meandros de um acordo que não dera certo.
Porque aquilo era amor que não dera certo, era decepção numa escala até então nunca vista. A dor foi tamanha que destruiu qualquer capacidade que porventura lhe restasse para resistir ao massacre.
“Por quê, Gordon? Por que está fazendo isso comigo?”
“Porque eu odeio você”, disse o ex-amante. “Será que ainda não deu para perceber?”
“Não, Gordon. Você me ama. Você sempre me amou.”
“Tudo em você me enoja, Harry. Seu mau hálito. Suas varizes. Seu cabelo tingido. Suas piadas execráveis. Seu barrigão gordo. Seus joelhos ossudos. Seu pau minúsculo. Tudo. Tudo em você me dá ânsia de vômito.”
“Então por que voltar depois de tantos anos? Não poderia ter me deixado viver em paz, sozinho?”
“Depois do que você me fez? Ficou louco? Você destruiu minha vida, Harry. Agora é a minha vez de destruir a sua.”
“Você me largou na mão, Gordon. Você me traiu.”
“Pense um pouco, Harry. Quem foi que me entregou para a polícia? Quem fez um acordo com a justiça apontando o dedo para mim?”
“E por isso você agora resolveu me entregar para a polícia também. Duas coisas erradas não fazem uma certa, Gordon. E pelo menos você está vivo. Pelo menos é jovem o suficiente para ter o que esperar da
vida. Se você me puser de volta na cadeia, eu estou acabado. Sou um homem morto.”
“Nós não queremos que você morra, Harry”, disse Trumbell, entrando de repente na conversa. “Nós queremos fazer um trato com você.”
“Um trato? Que tipo de trato?”
“Nós não queremos o sangue de ninguém. Só queremos justiça. O Gordon sofreu muito por sua causa e nós então chegamos à conclusão de que ele merece ser indenizado. A César o que é de César, afinal de contas.
Se você cooperar, não diremos uma palavra na justiça.”
“Mas você é rico. O Gordon já tem todo dinheiro de que precisa.”
“Alguns membros da minha família de fato são ricos. Infelizmente, não sou um deles.”
“Eu não tenho nenhum dinheiro vivo. Posso raspar o tacho e juntar os dez mil que lhe devo, mas não mais que isso.”
“Você talvez até esteja meio curto de grana viva, mas tem outros bens para acertar as contas.”
“Outros bens? Do que está falando?”
“Olhe em volta. O que está vendo?”
“Não. Você não pode fazer uma coisa dessas. Só pode ser brincadeira.”
“Eu vejo livros, Harry. E você, vê o quê? Eu vejo centenas de livros. E não são quaisquer livros, não, são primeiras edições, primeiras edições assinadas. Sem falar no que temos lá embaixo em gavetas e
armários. Manuscritos. Cartas. Autógrafos. Entregue para nós o conteúdo desta sala e nós daremos as contas por acertadas.”
“Mas assim eu fico arruinado. Fico sem nada.”
“Pense nas alternativas, senhor Dunkel-Brightman. O que prefere, prisão sob a acusação de fraude ou uma vidinha pacata como dono de um sebo? Pense nisso com muito carinho. O Gordon e eu voltaremos amanhã
com uma caminhonete e uma equipe de mudança. Não vai levar mais que umas duas horas, no máximo, e depois você estará livre de nós para sempre. Se tentar nos impedir, eu simplesmente pego o telefone e chamo
a polícia. Você decide, Harry. Vida ou morte. Uma sala vazia — ou uma segunda estada no presídio. Se não entregar os livros amanhã, vai perdê-los de todo modo. Você entendeu bem isso, não entendeu? Seja
esperto, Harry. Não se oponha. Se você ceder sem fazer escarcéu, estará prestando um serviço a todos — sobretudo a você mesmo. Devemos chegar entre as onze horas e o meio-dia. Gostaria de ser mais exato,
mas é tão difícil prever o trânsito, hoje em dia. À demain, Harry. Tchauzinho.”
Depois disso a porta se abriu e, enquanto Dryer e Trumbell passavam por ele, Rufus olhou para dentro do escritório e viu Harry sentado à escrivaninha com a cabeça entre as mãos, soluçando feito um menino
pequeno. Se ao menos Harry tivesse ficado ali mais alguns minutos, refletindo sobre o que acontecera, haveria de entender que aqueles dois não poderiam provar nada contra ele, que as ameaças de entregá-lo
à polícia não passavam de um blefe canhestro, sem a menor sutileza. Não havia como afirmar que Harry tentara, conscientemente, vender-lhes um manuscrito falso sem reconhecer o próprio envolvimento na falcatrua.
Ao admitir que sabiam tratar-se de uma falsificação, seriam obrigados a entregar o falsificador à polícia, mas quais as chances de que Ian Metropolis estivesse disposto a admitir sua culpa? Presumindo
que houvesse uma pessoa chamada Ian Metropolis, claro, o que aliás me parecia bastante improvável. Idem no que dizia respeito aos três supostos especialistas que examinaram o trabalho. Meu palpite era
que Dryer e Trumbell tinham fabricado eles mesmos aquela primeira página de Hawthorne. Harry era um sujeito bastante crédulo e não seria nada difícil convencê-lo de que estava diante do trabalho de um
grande mestre da falsificação. Ele havia me contado por telefone, naquela ligação para Vermont, que conhecera o tal Metropolis, mas como ter certeza de que o sujeito era quem dizia ser? A carta de Dickens
não tinha a menor importância. Genuína ou falsa, não fazia parte da história. Do começo ao fim, o complô para arruiná-lo fora obra de dois homens, com a rápida passagem de um terceiro indivíduo que se
fizera passar por alguém que não era. Dois vigaristas não muito espertos e um capanga anônimo. Filhos-da-mãe todos três.
Harry, porém, não estava raciocinando com a devida clareza. Como pensar se a mente era uma ferida aberta, uma mixórdia de massa cinzenta purulenta, neurônios detonados e impulsos elétricos em curto-circuito?
Razão, onde encontrá-la, quando você acabou de ouvir da boca do ser adorado uma enfiada de denúncias e insultos monstruosos, de ter seu desditoso ego rasgado ao meio pelas machadadas impiedosas do desprezo?
Equilíbrio mental, onde encontrá-lo, quando esse mesmo bem-amado e seu novo companheiro acabaram de declarar que pretendem roubá-lo de tudo e você se sente impotente para impedi-los? Poderia alguém criticar
Harry por não ter tido a presença de espírito de ver mais ao longe? Poderia alguém censurá-lo por se encontrar num estado de puro pânico animal?
Quando Rufus entrou no escritório, Harry ergueu-se da cadeira e começou a urrar. As palavras já não lhe serviam para nada, achava-se incapaz de formular uma única sentença coerente e os sons que lhe saíram
da garganta foram tão pavorosos, Rufus contou, tão agônicos, tão atormentados, que ele começou a tremer de medo. Dryer e Trumbell ainda estavam descendo a escada em direção ao térreo e, sem se dar ao trabalho
de registrar a presença de Rufus, Harry avançou e foi atrás dos dois. Rufus seguiu-o — mas devagar, com cautela, quase paralisado de medo. Até chegar ao pé da escada, Dryer e Trumbell já tinham saído da
loja e Harry puxava a maçaneta da porta — ainda urrando, ainda atrás deles. Havia um táxi amarelo parado na frente da livraria, com o taxímetro ligado, e os dois entraram nele antes que Harry pudesse alcançá-los.
Ele sacudiu o punho para o carro que partia, parou um instante para gritar duas vezes — Assassinos! Assassinos! — e depois, totalmente fora de si, começou a descer a avenida Sete, tão rápido quanto lhe
permitiam as pernas, colidindo com pedestres, cambaleando, caindo, levantando, tudo isso sem parar até chegar à esquina seguinte, onde o táxi sumiu de vista. Rufus viu tudo de longe, seguindo a silhueta
indistinta de Harry enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo rosto.
Assim que Harry parou, Nancy Mazzucchelli virou a mesma esquina e aproximou-se do antigo patrão, espantada de vê-lo naquele estado lastimável. Rasgara a manga do paletó na altura do cotovelo, ofegava,
as bochechas estavam da cor de uma beterraba e o cabelo, sempre muito bem penteado, caía para tudo quanto é lado do crânio.
“Harry”, ela disse. “O que foi que houve?”
“Eles me mataram, Nancy”, Harry respondeu, agarrando o peito e ainda arfando em busca de um pouco de ar. “Eles enterraram uma faca em meu peito e me mataram.”
Nancy passou o braço em volta dele e, com doçura, lhe deu um tapinha nas costas. “Não se preocupe. Vai acabar dando tudo certo.”
Mas não deu, não deu nem um pouco certo. Logo depois que Nancy disse essas palavras, Harry soltou um gemido comprido, abafado, e foi amolecendo o corpo. Ela ainda tentou segurá-lo, mas Harry era pesado
demais e, aos pouquinhos, foram ambos parar no chão. E assim foi que Harry Brightman, outrora conhecido como Harry Dunkel, pai de Flora e ex-marido de Bette, morreu numa calçada do Brooklyn numa tarde
abafada do ano 2000, aninhado nos braços da B.M.P.
Contra-ataque
Tom pisou fundo e em menos de cinco horas estávamos em Park Slope, estacionando em frente à livraria bem quando o sol começava a baixar. Rufus e Nancy esperavam por nós no apartamento que Harry tinha em
cima da livraria, os dois abraçados no quarto às escuras. Pareceu-me correto que ela estivesse presente, só que, até Rufus me contar o que havia acontecido antes, eu não sabia bem por quê. Mas, com questões
muito mais urgentes a tratar, não me ocorreu perguntar.
Nenhum dos dois conhecia Lucy, de modo que as apresentações foram a primeira providência a tomar. Depois Tom levou nossa garota para a sala e instalou-a na frente da televisão. Em circunstâncias normais,
essa seria uma tarefa minha, mas acredito que foi tamanho o aturdimento de Tom ao encontrar a B.M.P. num cenário tão improvável que teve de se retirar por alguns instantes para recobrar o fôlego. Sua rainha
havia reaparecido de maneira milagrosa e, sem dúvida, o jovem coração estava batendo louca e desenfreadamente dentro do peito apaixonado.
Rufus já estava mais calmo. O choque começava a se dissipar e, ao contrário do que acontecera durante a ligação telefônica, ele conseguiu relatar a história inteira sem muitas interrupções. Nancy e ele
estavam sentados na cama e, sempre que Rufus não agüentava e recomeçava a chorar, ela punha o braço em volta dele e o abraçava com firmeza até as lágrimas secarem. Nancy também estava um pouco chorosa,
mas bondade era sua especialidade e ela sabia que, de todas as pessoas ali presentes naquela noite, Rufus era o mais desesperado, o mais necessitado de consolo. Enquanto ele nos contava tudo, com aquela
sua voz melodiosa de jamaicano, fiquei imaginando o corpo de Harry guardado no necrotério do Hospital Metodista, a poucos quarteirões de onde estávamos.
Não cheguei a conhecer Harry direito, mas gostava dele de um jeito estranho (mistura de fascínio, admiração e ceticismo) e, se tivesse morrido em outra circunstância qualquer, duvido que tivesse me abalado
tanto. Mais do que choque, mais do que tristeza, o que eu sentia era muita raiva por causa da peça grotesca que aqueles dois haviam pregado nele. E o pior é que eu havia previsto a traição de Dryer, meu
instinto me avisara que aquele golpe do manuscrito era uma armadilha, que aquilo não passava de um rebuscado engodo decorrente de um outro engodo e que desde o início a vingança fora seu único motor. Mas,
de que serve o conhecimento se você não o utiliza para evitar que os amigos sejam destruídos? Eu havia tentado avisar Harry, mas não consegui enfatizar esse aviso o bastante — não investi tempo e esforço
suficientes para fazê-lo entender por que deveria recuar e desfazer o trato. E agora ele estava morto — assassinado a sangue frio, e assassinado de tal forma que os assassinos jamais seriam julgados pelo
crime.
Depois que Rufus terminou de contar tudo, meu impulso imediato foi o de também planejar uma vingança. Tom tinha apenas uma idéia muito tênue dos motivos da briga entre os três (sabia, claro, que estavam
ligados ao negócio que Harry planejava realizar, mas isso era tudo), ao passo que Rufus e Nancy estavam totalmente por fora. Ao contrário de Tom, nunca tinham ouvido falar de Gordon Dryer e tampouco conheciam
o passado no mínimo duvidoso de Harry. Não me dei ao trabalho de fornecer os detalhes aos dois. Não havia motivo. A única coisa a fazer naquele momento era telefonar o mais rápido possível — e providenciar
para que não houvesse caminhonete nenhuma parando na porta da livraria na manhã seguinte. Dryer e seu namorado podiam ter matado Harry, mas eu não iria deixar que o roubassem também.
Pedi a Tom que me desse a chave do escritório de baixo e, como seu raciocínio devia estar meio obnubilado (afinal, chorava a morte inesperada de seu patrão, tremia de alegria e pavor com a súbita proximidade
da B.M.P. e fazia o possível para consolar o totalmente inconsolável Rufus), ele muito distraidamente enfiou a mão no bolso e atendeu a meu pedido. Só quando eu já estava na porta é que recuperou presença
de espírito suficiente para me perguntar o que eu ia fazer. “Nada”, respondi de forma muito vaga. “Só quero dar uma conferida numa coisa. Volto já.”
Instalei-me na escrivaninha de Harry e abri a primeira gaveta do meio, achando que ali seria um lugar lógico para ele ter posto o número de telefone de Dryer. Eu já estava preparado para ligar para o serviço
de informação e descobrir o número de Trumbell, se fosse necessário, mas tinha esperança de economizar um tempinho procurando antes na gaveta. Uma vez na vida, tive sorte. Logo em cima, sobre um envelope
tamanho comercial, havia um papelzinho grudado com três palavras escritas à mão, celular do Gordon, seguidas de um número de dez dígitos que começava com o código de área 917. Quando tirei o papelzinho
e grudei-o sobre a escrivaninha, ao lado do telefone, vi que o envelope também estava sobrescritado: Para Ser Aberto Se Eu Morrer.
Dentro, havia doze páginas datilografadas e dobradas: um testamento privado, preparado pelo escritório de advocacia Flynn, Bernstein e Vallero da rua Court, devidamente assinado, testemunhado e validado
a 5 de junho de 2000, ou seja, um dia antes de nossa conversa telefônica no Chowder Inn. Dei uma rápida passada de olhos no documento e três minutos depois compreendi o que ele quis dizer com aquele seu
gesto magnífico, aquele seu esbanjamento do século, seu mergulho estrondoso na grandiosidade eterna. Harry estava se referindo ao testamento que eu agora tinha em mãos e que de fato possuía algo de grande,
algo totalmente surpreendente e grande, que provava que havia escutado meus avisos com muito mais atenção do que eu imaginava. Mesmo se recusando a seguir meus conselhos, Harry acendera uma vela a Deus
e outra ao diabo ao aceitar a possibilidade de que Gordon se preparava para traí-lo. E, se essa traição viesse a se concretizar, sua vida estaria acabada — quando não literalmente, então ao menos no sentido
de que a destruição interior seria insuportável. Ele já tinha até me dito isso, durante nosso jantar de 1o de junho: Se você estiver certo a respeito do Gordon, então minha vida acabou de qualquer forma.
Pensar em Gordon como um vingador de duas caras era também pensar na própria morte. A primeira idéia levou de forma natural à segunda e, no fim, as duas acabaram virando uma só. Daí o testamento. Era um
passo de extrema dramaticidade, talvez, uma reação quase histérica às perturbações que o roíam por dentro, mas quem haveria de condená-lo por tomar (em suas próprias palavras) algumas precauções? À luz
do que acontecera naquele dia, acabou sendo um ato de suprema sabedoria.
Os dois beneficiários nomeados no testamento eram Tom Wood e Rufus Sprague. Eles herdariam o prédio da avenida Sete junto com o negócio conhecido pelo nome de Brightman’s Attic, inclusive todos os bens
e dinheiro pertencentes ao dito negócio. Outros legados menores também estavam enumerados — diversos livros, telas e jóias que deveriam ser entregues a pessoas cujos nomes eu desconhecia —, porém o grosso
ficaria com Tom e com Rufus, sendo que a renda total do Brightman’s Attic deveria ser dividida igualmente entre os dois. Tendo em vista que o prédio estava quitado e somando-se a isso o valor dos livros
e manuscritos existentes naquela sala onde eu me encontrava sentado, os dois herdariam uma pequena fortuna, muito mais dinheiro do que tanto um como outro jamais teriam ousado imaginar. No derradeiro momento,
Harry executara seu gesto magnífico, seu esbanjamento do século. Ele cuidara de seus garotos.
Percebi então quanto eu o havia subestimado. Harry até podia ter virado um malandro salafrário depois de grande, mas em parte continuara sendo o menino de dez anos de idade que resgatava órfãos em cidades
bombardeadas da Europa. Em que pese toda a sua irreverência jocosa, todos os seus pecadilhos e falsidades, jamais deixara de acreditar nos princípios do Hotel Existência. Meu bom amigo Harry Brightman.
Meu bem-humorado amigo Harry Brightman. Se houvesse uma garrafa de bebida sobre a escrivaninha, eu teria me servido uma dose e brindado à memória dele. Em vez disso, passei a mão no telefone e disquei
o número de Gordon. No final das contas, talvez desse no mesmo.
Ele não atendeu, porém depois do quarto toque havia um recado e escutei sua voz pela primeira vez — uma voz circunspecta, de uma calma inusitada, a meu ver, sem nenhuma afetação ou inflexão. Por sorte,
ele fornecia um segundo número onde poderia ser encontrado (presumi que fosse o de Trumbell), o que me poupou a chatice de ter de procurar por mim mesmo. Disquei certo de que não iria encontrar ninguém
em casa, certo de que Dryer e Trumbell estavam fora se divertindo, comemorando na tarde do Brooklyn o belo triunfo obtido. Quando já estava começando a me perguntar se deveria ou não deixar um recado na
secretária, o telefone parou de tocar e escutei a voz de Dryer pela segunda vez em trinta segundos. Para não dar nenhum passo em falso, perguntei se poderia falar com Gordon Dryer, mesmo tendo certeza
de que era ele do outro lado da linha.
“É ele mesmo. Quem fala?”
“Nathan”, respondi. “Nós nunca nos vimos, mas acredito que já tenha ouvido falar em mim. O amigo de Harry Brightman. O cartomante.”
“Não sei do que o senhor está falando.”
“Claro que sabe. Quando o senhor e o seu amigo visitaram o Harry, hoje, havia alguém atrás da porta, ouvindo a conversa de vocês. A certa altura, o Harry mencionou meu nome. ‘Eu devia ter escutado o Nathan’,
ele falou, e o senhor perguntou ‘Quem é esse Nathan?’. Foi aí que o Harry lhe disse que eu era cartomante. Está lembrado agora? Não estamos falando sobre um passado distante, senhor Dryer. Faz poucas horas
que ouviu essas palavras.”
“Quem é o senhor?”
“Sou o mensageiro das más novas. Sou aquele que faz ameaças e dá avisos, o que diz às pessoas o que fazer.”
“É? E o que acha que eu devo fazer?”
“Gosto do seu sarcasmo, Gordon. Escuto a frieza de sua voz e ela me confirma sua identidade. Obrigado. Obrigado por simplificar meu trabalho.”
“Tudo que eu preciso fazer é desligar o telefone e encerrar esta conversa.”
“Mas não vai desligar, não é verdade? Porque está se borrando de medo e fará qualquer coisa para descobrir o que eu sei. Estou certo ou não?”
“Você não sabe porra nenhuma.”
“Pense bem, Gordon. Deixe-me enumerar alguns nomes e então você vai ver o que eu sei e o que eu não sei.”
“Nomes?”
“Dunkel Frères. Alec Smith. Nathaniel Hawthorne. Ian Metropolis. Myron Trumbell. Que tal? Quer que eu continue?”
“Está certo. Você sabe quem eu sou. E daí?”
“E daí que, sabendo quem você é, posso obter o que quiser de você.”
“Ah. Então é isso. Você quer dinheiro. Quer entrar na jogada.”
“Errou de novo, Gordon. Não tenho o menor interesse pelo dinheiro. Mas há uma única coisinha que vai ter de fazer por mim. Coisa muito fácil. Não vai tomar mais que um minuto do seu tempo.”
“Que coisa?”
“Ligue para a empresa de mudança que contratou para amanhã e cancele. Diga a eles que mudou de idéia e que não vai mais precisar da caminhonete.”
“E por que eu faria isso?”
“Porque a tramóia gorou, porque o tiro saiu pela culatra, Gordon. O esquema todo foi pelos ares uns cinco minutos depois que vocês saíram da livraria do Harry.”
“Como assim?”
“O Harry morreu.”
“O quê?”
“O Harry morreu. Saiu correndo atrás do táxi de vocês. Mas o esforço foi demais para ele. O coração não agüentou e ele morreu ali mesmo, em plena avenida Sete.”
“Não acredito nisso.”
“Pode acreditar, malandro. O Harry está morto e foi você quem o matou. O pobre do idiota do Harry. Tudo o que ele fez na vida foi amá-lo e você retribuiu armando um esquema vagabundo de extorsão. Belo
trabalho, garoto. Deve estar orgulhosíssimo de si mesmo.”
“Não é verdade. O Harry está vivo.”
“Então ligue para o necrotério do Hospital Metodista do Brooklyn. Não precisa aceitar a minha palavra. Pergunte aos caras de jaleco branco.”
“E vou ligar mesmo. É exatamente o que vou fazer.”
“Ótimo. E nesse meio-tempo, por favor, não se esqueça de ligar para a empresa de mudança. Os livros do Harry ficam na livraria do Harry. Se você der as caras no Brightman’s Attic, amanhã, eu quebro o seu
pescoço. E depois chamo a polícia. Entendeu bem, Gordon? Estou deixando você sair dessa ileso. Eu sei tudo sobre a página falsificada do manuscrito, o cheque de dez mil dólares, tudo. Mas é que eu não
quero ver o nome do Harry arrastado nesse lamaçal todo. Ele morreu e nem a pau eu faria alguma coisa para prejudicar a reputação dele. Mas isso só se você agir como um bom menino. Ou faz o que eu mandei
ou então eu passo para o Plano B e parto para cima de você com tudo. Está me entendendo? Eu vou te botar na cadeia. Eu vou te foder de tal forma que você não vai mais nem querer viver.”
Adieu
Rufus recusou sua parte do prédio e da loja. Recusou o Brooklyn, recusou Nova York, recusou os Estados Unidos. A única América em que ele acreditava era a América que continha Harry Brightman e, agora
que Harry deixara o país, Rufus achava que estava na hora de voltar para casa.
“Vou morar com a minha avó em Kingston”, ele disse. “Ela é minha amiga, a única amiga que eu tenho neste mundo.”
E essa foi sua espantosa reação à notícia do testamento de Harry. Quanto a Tom, ele simplesmente continuou calado, sem saber o que pensar.
Voltei ao apartamento do andar de cima um pouco depois das dez. Nancy já tinha ido embora para casa, para ficar com os filhos; Lucy pegara no sono na frente da televisão e já fora transferida para a cama
de Harry, onde dormia por cima das cobertas, toda vestida e de boca aberta, gorgolejando suavemente na noite quente de Nova York; Tom e Rufus estavam na sala, sentados, fumando. Tom parecia pensativo,
tragando seu Camel com filtro. Rufus, que fumava o que me pareceu um baseado, dava a impressão de estar meio maluco.
Pirado ou não, falou com imensa clareza depois que li o testamento de Harry para eles. Já tinha tomado sua decisão e, apesar dos argumentos todos de Tom, não mudou de idéia. A única coisa que ele queria
naquele momento era falar de Harry, o que se pôs a fazer com grande fartura de pormenores, dando uma descrição prolixa e emocionada do primeiro encontro dos dois — Rufus banhado em lágrimas, tendo acabado
de ser expulso do apartamento que dividia com o amigo Tyrone, e Harry surgindo da escuridão, colocando o braço em seu ombro e perguntando se poderia fazer alguma coisa para ajudar — e, a partir dali, dos
mil e um atos de altruísmo que Harry lhe dispensara nos três anos anteriores, sobretudo a oferta de um emprego e a compra das roupas e jóias que ele usava em seus shows como Tina Hott, sem falar na incansável
generosidade de Harry diante das contas dos médicos e em sua disposição de arcar com os remédios caríssimos que mantinham Rufus vivo. Alguma vez houve alguém tão bom quanto Harry Brightman?, ele perguntou.
Não que ele conhecesse, falou, respondendo à própria pergunta, e depois, pela milionésima vez naquela noite, caiu no choro.
“Você não tem escolha”, disse Tom, saindo finalmente daquele seu silêncio estuporado. “Fique você aqui ou não, o dinheiro é de nós dois. Somos sócios e eu jamais vou roubá-lo de sua parte. Meio a meio,
Rufus. Nós vamos dividir tudinho pela metade.”
“Eu só quero que você me mande dinheiro para os remédios”, Rufus sussurrou. “Não quero mais nada.”
“Vamos vender o prédio e a livraria”, Tom falou. “Vamos nos livrar de tudo e dividir os lucros.”
“Não, Tommy”, disse Rufus. “Você devia ficar com a livraria. Você é tão inteligente, cara, que vai acabar rico, se continuar firme. Este lugar aqui não é para mim. Eu não sei nada de livros. Eu sou apenas
um desajustado, cara, um pequeno desajustado de cor cujo lugar não é aqui. Uma moça presa no corpo de um rapaz. Um rapaz moribundo que quer voltar para casa.”
“Você não vai morrer”, Tom falou. “Você está bem de saúde.”
“Todos nós morremos, querido”, disse Rufus, acendendo mais um baseado. “Não fique assim tão impressionado. Eu levo numa boa. Minha avó vai tomar conta de mim. Só não esqueça de me ligar de vez em quando,
certo? Me prometa isso, Tommy. Se você esquecer do meu aniversário, acho que nunca vou conseguir perdoá-lo.”
Enquanto ouvia a conversa daqueles dois jovens, comecei a me sentir também um pouco engasgado. Não era do meu feitio sucumbir a fortes demonstrações de emoção, mas eu ainda estava abalado com a conversa
travada com Dryer, que tinha exigido bem mais de mim do que eu havia imaginado. Eu assumira o papel de durão para enfrentá-lo e caíra em cima dele com uma gana que me transformara num bandido de fala grossa
de filme B. Não que Dryer não merecesse o tratamento completo, mas até as palavras saírem de minha boca eu não me julgava capaz de tanta grossura, de tanta brutalidade. Dez minutos depois de encerrada
minha conversa com ele, de volta ao apartamento no andar de cima, eu escutava Rufus Sprague recusar justamente aquilo que Dryer tentara roubar de Harry. O contraste era violento demais, espantoso demais
para que eu não me comovesse com as diferenças entre ambos. E no entanto Harry tinha amado tanto um como outro e defendera os dois com o mesmo ardor vão, a mesma devoção cega. Como era possível tal coisa?,
me perguntei. Como era possível a uma pessoa errar tão redondamente em relação a um homem e ao mesmo tempo compreender com tamanha precisão a verdadeira personalidade de um outro? Rufus tinha apenas vinte
e seis ou vinte e sete anos. Fisicamente, parecia uma criatura exótica vinda de outro planeta e, com sua cabeça pequena, redondinha, seu rosto cor de mel e membros compridos e esguios, era o fracote em
pessoa, o veadinho, o frouxo. Entretanto havia algo de feroz nele, um tipo inusitado de idealismo que rejeitava as vaidades e os desejos que tornam todos nós tão vulneráveis às tentações do mundo. Pelo
bem dele, eu esperava que mudasse de idéia a respeito da herança. Esperava que começasse a pensar como o resto de nós e aceitasse os bens que lhe foram deixados, mas, escutando meu sobrinho discutir com
ele por duas horas, percebi que isso jamais aconteceria.
O dia seguinte foi dedicado às providências de ordem prática. Telefonemas para os amigos de Harry (a cargo de Rufus), para Bette, em Chicago, e colegas livreiros de Nova York (a cargo de Tom) e para diversas
funerárias na região do Brooklyn (a meu cargo). No testamento, Harry deixara instruções para que o corpo fosse cremado, mas não havia estipulado como nem onde dispor as cinzas. Após uma discussão demorada,
ficou decidido que seriam espalhadas numa área arborizada do parque Prospect. Pela legislação da cidade de Nova York, não é permitido despejar cinzas de pessoas mortas em lugares públicos, mas achamos
que, se nos mantivéssemos em algum canto remoto e pouco freqüentado do parque, ninguém iria reparar em nós. A conta para queimar o corpo de Harry e colocar os restos numa caixinha de metal chegou a pouco
mais de mil e quinhentos dólares. Como não havia ninguém mais em condições de contribuir, cobri os custos eu mesmo.
Na tarde da cerimônia — domingo, 11 de junho — deixei Lucy com uma babá e fomos a pé para o parque, Tom e eu. Foi Tom quem levou a caixinha com as cinzas de Harry dentro de uma sacola verde de plástico
com o logotipo do Brightman’s Attic. Desde sábado que o tempo andava uma calamidade, um massacre abafado, opressivo e úmido sob um calor de trinta e oito graus centígrados e uma luz insuportável, mas no
domingo ficou ainda pior, foi um daqueles dias em que mal se consegue respirar e Nova York se transforma em entreposto de selva equatorial, no lugar mais quente e nojento do planeta. Bastava dar alguns
passos para que o corpo ficasse encharcado de suor.
E foi o tempo, com certeza, o responsável pelo baixo comparecimento. Os amigos de Harry de Manhattan preferiram ficar em casa, nos seus apartamentos com ar-condicionado, e nosso contingente viu-se dessa
forma reduzido a um punhado de vizinhos leais. Entre os quais achavam-se três ou quatro lojistas da avenida Sete, o dono do lugar onde Harry almoçava regularmente e a mulher que cortava e tingia seu cabelo.
Nancy Mazzucchelli estava lá, claro, e o marido dela, o James Joyce substituto, mais conhecido como Jim, ou Jimmy. Até então eu não o conhecia e a contragosto informo que não fiquei bem impressionado.
O sujeito era tão alto e bem-apanhado quanto Tom havia alardeado, mas não parou um só instante de resmungar do calor e dos mosquitos que enxameavam o parque, e a meu ver essas queixas eram sinal de infantilidade
e de uma auto-estima descabida, sobretudo porque ele estava ali para prestar sua última homenagem a um homem que não teria mais o prazer de se queixar de nada.
Mas que seja. Só uma única coisa importou naquele dia, e não estava relacionada nem ao marido de Nancy nem à temperatura. O que contou mesmo foi Rufus, que apareceu vinte minutos depois de já estarmos
todos reunidos no parque, caminhando pelo bosque empestado de mosquitos bem na hora em que íamos começar a cerimônia. Àquela altura, a opinião dominante era que Rufus tinha perdido a coragem, que não suportaria
ver Harry reduzido a uma pequena urna cheia de cinzas e que não se sentia capaz de passar pela tortura. Mesmo assim, nós lhe demos o benefício da dúvida e ficamos lá no meio da atmosfera túrgida e sufocante
durante todos aqueles minutos, enxugando a cara e espiando as horas no relógio, torcendo para estarmos errados. Quando ele resolveu aparecer, levou um certo tempo até alguém reconhecê-lo. Não foi Rufus
Sprague quem compareceu à cerimônia, e sim Tina Hott, e a transformação foi tão radical, tão fascinante, que cheguei a ouvir um suspiro ofegante atrás de mim.
Rufus era uma das mulheres mais lindas que já vi em toda a minha vida. Trajando luto, de vestido preto justinho no corpo, saltos altíssimos e um chapeuzinho negro com um véu delicado na frente, preto também,
ele havia se transformado na encarnação do feminino absoluto, numa idéia de feminino que ultrapassa qualquer coisa existente no reino natural das mulheres. A peruca acaju parecia cabelo de verdade; os
seios pareciam seios de verdade; a maquiagem fora feita com perícia e precisão; e as pernas de Tina eram tão longas e tão lindas de se olhar que ficava impossível acreditar que pertenciam a um homem.
Mas havia mais no efeito criado por ela do que meros acessórios superficiais, mais que apenas roupas, perucas e maquiagem. A luz interior do feminino estava ali também, e a atitude digna e sofredora de
Tina era uma representação perfeita da viuvez enlutada, uma atuação talentosíssima. Durante toda a cerimônia, ela não disse uma palavra; permaneceu num silêncio absoluto, ouvindo os discursos curtinhos
que as pessoas faziam para homenagear Harry, até Tom abrir a caixinha e espalhar as cinzas no chão. Tudo indicava que tínhamos concluído a cerimônia, mas, antes que nos virássemos para ir embora, das margens
do pequeno bosque surgiu um garoto negro gorducho trazendo um toca-CD portátil nos braços estendidos, mais ou menos como se estivesse portando uma coroa numa almofada de veludo. O menino, mais tarde identificado
como primo de Rufus, colocou o aparelho aos pés de Tina e apertou um botão. De repente, Tina abriu a boca e, acompanhando os primeiros acordes emitidos pelo alto-falante, começou a dublar a letra da música
que tocava. Alguns segundos depois reconheci a voz de Lena Horne cantando a velha canção de O barco das ilusões “Can’t help lovin’ that man”. Era assim que Tina Hott atuava em seus shows de sábado à noite:
não como cantora, e sim como falsa cantora, dublando canções de musicais e clássicos do jazz interpretados por vozes lendárias. Era magnífico e absurdo. Era engraçado e triste. Era comovente e cômico.
Era tudo o que era e tudo o que não era. E Tina lá, gesticulando e fingindo pronunciar as palavras da música. Seu rosto era só ternura e amor. Os olhos estavam úmidos e todos nós assistíamos fascinados,
sem saber se devíamos chorar com ela ou dar risada. No que me diz respeito, foi um dos momentos mais estranhos e transcendentes de minha vida.
Fish gotta swim, and birds gotta fly
I gotta love one man ‘til I die…
Os peixes têm de nadar e os pássaros têm de voar
Até morrer, um único homem eu tenho de amar.
Naquela tarde mesmo, Rufus tomou um avião e foi para a Jamaica. Até onde eu sei, nunca mais voltou.
Novos desdobramentos
Tom ficou confuso. Tanta coisa acontecera num período tão curto de tempo que ele se sentiu despreparado para lidar com o leque de possibilidades que se abrira a sua frente. Será que queria assumir os negócios
de Harry e passar o resto da vida negociando com livros raros e usados, dentro de uma loja em Park Slope? Ou, como havia proposto na noite em que Harry morrera, não seria melhor simplesmente vender tudo
e dividir os lucros com Rufus? O fato de Rufus não querer o dinheiro era de somenos importância. O imóvel valia um bom dinheiro e, se Rufus insistisse em recusar a sua metade, Tom providenciaria para que
a avó aceitasse por ele. Vender o prédio iria gerar um belo volume de dinheiro vivo, nada menos que várias centenas de milhares de dólares para cada um e, com sua parte, Tom poderia se reinventar inteiro,
tomar a direção que lhe desse na telha. Mas o que meu sobrinho queria? Essa era a pergunta fundamental e, por uns tempos, foi a pergunta que ficou sem resposta. Por acaso ainda estaria interessado em levar
adiante a idéia do Hotel Existência? Ou será que preferia voltar ao plano original pós-Michigan e procurar emprego de professor de inglês em algum colégio? E, se fosse esse o caso, onde? Queria continuar
em Nova York ou estaria pronto para fazer as malas e mudar-se para o interior? Discutimos essas questões umas cem vezes nos dias que se seguiram, mas ele não chegou a conclusão nenhuma. Fora entregar seu
apartamento minúsculo e se instalar temporariamente na casa de Harry, em cima da loja, Tom continuou a resmungar, a matutar e a se amofinar. Por sorte, não havia pressão imediata para tomar uma decisão.
O testamento de Harry tinha acabado de começar sua trabalhosa jornada rumo à legalização e levaria meses até que a escritura do prédio fosse entregue aos herdeiros. Os demais bens de Harry — a exígua conta
bancária, umas poucas ações e títulos — também ficaram indisponíveis. Tom estava sentado numa montanha de ouro, mas, até que os advogados do escritório Flynn, Bernstein e Vallaro terminassem o inventário,
meu sobrinho ficaria na verdade em situação ainda pior que antes. Tom havia perdido seu salário semanal e, a menos que mantivesse o Brightman’s Attic funcionando a pleno vapor, não teria de onde tirar
seu sustento. Ofereci-lhe um dinheiro emprestado, mas ele não quis nem ouvir falar no assunto. Tampouco se empolgou com a minha sugestão para que fechasse a livraria durante o verão e tirasse umas longas
férias com Lucy e comigo. Considerava um dever seu para com Harry manter o sebo funcionando, ele me disse. Era uma dívida moral que ele contraíra e tinha portanto a obrigação de agüentar até o fim. Muito
bem, falei eu. Mas como é que vai dirigir a loja sozinho? O Rufus foi embora, o que significa que você está sem vendedor. E tampouco tem como contratar um novo, correto? De onde viria seu salário?
Pela primeira vez na vida, Tom perdeu a esportiva. “Puta que o pariu, Nathan. Eu sei lá! Não sei, mas pode deixar que eu dou um jeito. Cuide da sua vida que eu cuido da minha.”
Entretanto a vida de Tom era também minha e me magoava vê-lo em situação tão delicada. Foi assim que ofereci meus serviços em prol da causa — pelo salário simbólico de um dólar por mês. Eu ficaria no lugar
de Rufus, falei, e durante o tempo que fosse necessário interromperia minha aposentadoria para assumir as pesadas responsabilidades de vendedor de livros usados. Se Tom quisesse, para mim seria um imenso
prazer chamá-lo de Patrão.
E foi assim que teve início uma nova era em nossas vidas. Matriculei Lucy numa oficina de artes organizada pela escola Berkeley Carroll, em Lincoln Place, e todas as manhãs, depois de caminhar com ela
os sete quarteirões e meio entre o apartamento e a oficina, voltava devagar pela avenida e assumia meu lugar atrás do balcão do sebo. Meu trabalho em O livro dos desvarios humanos sofreu com a alteração
da rotina, mas não o abandonei por completo, escrevendo um pouco altas horas da noite, depois de Lucy ter ido se deitar, e roubando quinze minutos aqui ou vinte ali sempre que o movimento na loja diminuía.
Para minha imensa tristeza, os almoços com Tom foram interrompidos. Simplesmente não havia mais tempo suficiente para refeições demoradas, de modo que entramos para a turma do saco de papel pardo e comíamos
nossos sanduíches e tomávamos nosso refresco de café no ambiente abafado do Sótão, devorando a comida em questão de minutos. Às quatro da tarde, Tom me substituía no balcão para que eu pudesse ir buscar
Lucy na oficina de arte. Eu voltava com ela para a loja e, até fecharmos, às seis, ela se divertia lendo um dos quatro mil e duzentos livros que abarrotavam as estantes do térreo.
Lucy por enquanto continuava um mistério para mim. Sob vários aspectos, era uma criança modelo e quanto mais nós nos conhecíamos, mais eu me afeiçoava a ela, mais eu gostava de tê-la por perto. Deixando
de lado, por uns tempos, a questão da mãe, havia mil e uma coisas positivas para se dizer de nossa garota. Sem nunca ter tido contato com a vida na cidade grande, adaptou-se com rapidez extraordinária
ao novo ambiente e desde o primeiro momento sentiu-se em casa. Onde quer que fosse a tal Carolina Carolina, lá a única língua usada sem dúvida era o inglês. No Brooklyn, porém, durante nossos passeios
pela avenida Sete, passando em frente à tinturaria, ao armazém, à padaria, ao salão de beleza, à banca de jornal, à lanchonete, Lucy se via cercada por uma miríade de línguas diferentes. Ela escutava espanhol
e coreano, russo e chinês, árabe e grego, japonês, alemão e francês, mas, em vez de se sentir intimidada ou perplexa, se deliciava com a variedade dos sons humanos. “Eu quero falar daquele jeito”, ela
me disse um dia de manhã, quando passávamos em frente a um estabelecimento comercial onde uma senhora baixinha gritava com um velho. “Mira! Mira! Mira!”, disse Lucy, imitando a voz da mulher com uma exatidão
impressionante. “Hombre! Gato! Sucio!” Minutos depois, ela já fazia uma interpretação semelhante de alguém chamando outro alguém em árabe — usando palavras que eu não teria conseguido pronunciar nem que
minha vida dependesse disso. A garota tinha ouvidos, e olhos que enxergavam, tinha uma cabeça que pensava e um coração que sentia. Fez amiguinhas com a maior facilidade na oficina de arte e, até a semana
terminar, já havia recebido convites de três meninas para os chamados “encontros pra brincar”. Ela não recuava de meus beijos e abraços de boa-noite; não era enjoada para comer; raras vezes fazia birra
por alguma coisa. Apesar da gramática muitas vezes atroz (que eu resolvi não corrigir) e do fascínio pelos desenhos animados na televisão (fiz pé firme e limitei as sessões a uma hora por dia), nunca,
nem uma única vez, arrependi-me de ter resolvido ficar com ela.
Mesmo assim, havia o fato perturbador de ela se recusar a falar sobre a mãe. Aurora era a presença invisível que dominava nosso pequeno núcleo familiar e, não obstante as muitas perguntas que eu fazia,
não obstante o número de vezes em que tentei induzi-la a revelar ao menos alguns fiapos de informação, continuei sem saber de nada. Imagino que houvesse algo de admirável em tamanha força de vontade num
ser tão jovem, mas para mim era irritante e, quanto mais se arrastava a situação, mais frustrado eu ficava.
“Você sente falta da sua mãe, não sente, Lucy?”, perguntei-lhe uma noite.
“Eu sinto uma falta danada dela. Sinto tanta falta que meu coração até dói.”
“Você quer vê-la de novo, não quer?”
“Mais do que tudo na vida. Todas as noites eu rezo a Deus para que ela volte para mim.”
“E ela vai voltar. Você só precisa me dizer onde posso encontrá-la.”
“Mas isso eu não posso fazer, tio Nat. Toda hora eu digo a mesma coisa, mas parece que você não escuta o que eu falo.”
“Escuto sim. Mas é que eu não quero que você continue se sentindo triste.”
“Eu não posso falar a respeito disso. Fiz uma promessa e se eu quebrar a promessa vou arder no fogo dos infernos. O inferno é para sempre e eu ainda sou pequena. Ainda não estou pronta para queimar para
sempre.”
“Não existe inferno nenhum, Lucy. E você não vai queimar nem por um minuto sequer. Todo mundo ama sua mãe e tudo o que nós queremos é ajudá-la.”
“Nada disso. Não é desse jeito que são as coisas. Por favor, tio Nat. Não me faça mais perguntas sobre a mamãe. Ela está bem e um dia vai voltar para mim. É tudo o que eu sei e é tudo o que eu posso contar.
Se você insistir, eu volto a ser do jeito como era quando cheguei. Eu tranco a boca e não digo mais uma palavra. E aí, como é que nós ficamos? A gente se diverte tanto quando conversa. Quando você não
fica me fazendo perguntas sobre a mamãe, é uma das melhores diversões que eu tenho. Conversar com você. Você é um coroa tão alegre, tio Nat. E nós não vamos querer estragar uma coisa tão boa, não é mesmo?”
Por fora, Lucy parecia a mais feliz e contente das crianças, mas me incomodava pensar nos tormentos por que devia estar passando para poder guardar seu segredo. Era coisa demais para se pedir de uma pessoinha
de nove anos e meio — que circulasse pela vida carregando tamanha responsabilidade. Algum dano aquilo devia estar causando e eu não conseguia encontrar uma forma de interromper o processo. Falei com Tom
sobre a possibilidade de mandá-la para um psiquiatra, mas ele achou que seria desperdício de tempo e dinheiro, mais nada. Se Lucy não queria conversar conosco, então com certeza não o faria com um estranho.
“Temos de ter paciência”, ele disse. “Mais cedo ou mais tarde ela vai perceber que não agüenta mais o peso desse silêncio. Mas não dirá uma palavra até se sentir pronta para isso.” Acatei o conselho de
Tom e por uns tempos engavetei a idéia de um médico, o que não significa que tenha achado a opinião dele lá essas coisas. A garota jamais iria se sentir pronta. Lucy era tão durona, tão teimosa, tão rija,
a danada, que eu estava convencido de que guardaria seu segredo para sempre.
Comecei a trabalhar para Tom no dia 14 de junho, três dias após as cinzas de Harry terem sido espalhadas no parque Prospect e de Rufus ter voltado para casa e a avó jamaicana. Um dia depois disso, minha
filha chegou da Inglaterra. Eu vinha pensando no dia 15 de junho desde a desastrosa conversa com a inominável, com aquela que dera à luz minha filha, mas, por causa da roda-viva em que entrei depois de
nossa súbita partida do Chowder Inn, acabei perdendo a data de vista. Era, de fato, dia 15 de junho, mas eu estava distraído demais para saber disso. Depois de fecharmos a livraria, às seis, Tom, Lucy
e eu jantamos num bar da rua Dois e, logo em seguida, Lucy e eu voltamos para casa, onde planejávamos passar o resto da noite jogando uma partida de Monopólio. E foi então que escutei o recado de Rachel
na secretária eletrônica. O avião dela havia pousado à uma; Rachel entrara em casa às três; lera minha carta às cinco. Pelo seu tom de voz na hora em que pronunciou a palavra carta, percebi que estava
perdoado. “Obrigada, papai”, ela disse. “Você não faz idéia de como isso foi importante para mim. Tem sido um período tão ruim nesses últimos tempos que era bem do que eu precisava no momento. Se eu puder
contar com você agora, acho que conseguirei ultrapassar qualquer obstáculo.”
Na noite seguinte, Tom ficou cuidando de Lucy e eu fui jantar com Rachel num restaurante no centro de Manhattan, não muito longe de meu antigo escritório na Mid-Atlantic Acidente e Vida. Com que rapidez
o mundo muda a nossa volta; com que rapidez um problema substitui outro, mal dando tempo para nos regozijarmos das vitórias obtidas. Eu havia passado quase um mês atormentado, pensando no bilhete enviado
a minha distante e zangada filha, rezando para que minhas humildes palavras conseguissem perfurar anos de ressentimento e me dessem uma segunda oportunidade com ela. Por obra de um milagre, a carta conseguira
tudo aquilo que eu esperava. Estávamos de novo em solo firme e, com os azedumes todos do passado postos de lado, o jantar daquela noite deveria ter sido uma reunião cheia de júbilo, uma oportunidade para
brincadeiras, risadas e lembranças engraçadas. Mas, tão logo recuperei a condição de pai de Rachel, fui convocado a ajudá-la a atravessar o pior apuro de sua vida adulta. Minha menina estava passando por
um “período ruim”. Ela estava em crise, e a quem mais poderia recorrer além do velho aqui — por mais incompetente e idiota que fosse?
Reservei mesa para nós no La Grenouille, o mesmo restaurante francês de preços exorbitantes e decoração rebuscada, bem no estilo da Nova York de antanho, onde (nome apagado) e eu tínhamos levado nossa
filha para comemorar o aniversário de dezoito anos. Ela apareceu usando o colar que eu lhe mandara de presente, o gêmeo daquele que acabou causando tantas mágoas no Cosmic. Por mais contente que eu tivesse
me sentido ao ver como caía bem em minha filha, como ficava bonito junto ao castanho dos olhos e dos cabelos, não pude deixar de me lembrar do outro colar e senti pontadas de remorso ao reviver o desastre
que eu causara na vida de Marina Gonzalez. Tantas mulheres de vinte e tantos, trinta anos, disse comigo mesmo, tantas almas jovens a minha volta! Marina. Honey Chowder. Nancy Mazzucchelli. Aurora. Rachel.
E, de todas as mulheres nesse grupo, minha filha me dava a impressão de ser a mais equilibrada e bem-sucedida, a mais sólida, a menos sujeita a se ver atolada em dificuldades, e no entanto lá estava ela,
sentada a minha frente com lágrimas nos olhos me contando que seu casamento desmoronava.
“Mas não estou entendendo”, falei. “Da última vez em que nos vimos, você disse que estava indo tudo bem. Que o Terrence estava ótimo. Que você estava ótima. Vocês tinham acabado de completar dois anos
de casados e você me falou que haviam sido os dois anos mais felizes da sua vida. Quando foi isso? No final de março? Começo de abril? Os casamentos não desabam assim tão rápido. Não quando as pessoas
se amam.”
“Eu continuo apaixonada”, Rachel respondeu. “É com o Terrence que eu estou preocupada.”
“Rachel, será que você esqueceu que o cara rodou meio planeta atrás de você, tentando convencê-la a se casar com ele? Ele é que estava interessado em você. No começo, você nem sequer tinha certeza se ia
com a cara dele.”
“Isso foi há muito tempo. O agora é que são elas.”
“Da última vez em que falamos sobre o agora, você disse que estava pensando em ter filhos. Você me falou que o Terrence estava doido para ser pai. Não pai no sentido abstrato — mas pai do seu filho. E
isso é o que os homens dizem quando estão apaixonados pela mulher com quem eles vivem.”
“Eu sei. Era o que eu achava, também. Mas aí nós fomos para a Inglaterra.”
“América, Inglaterra. Que diferença faz? Nós continuamos as mesmas pessoas, onde quer que estejamos.”
“Pode ser. Só que a Georgina não está na América. Ela está na Inglaterra.”
“Ah. Então é esse o rumo da conversa. Por que não falou logo, então?”
“Porque é difícil. Só de mencionar o nome dela já me embrulha o estômago.”
“Se lhe serve de consolo, acho um nome ridículo. Georgina. Me faz pensar numa mocinha vitoriana toda risonha de cachos dourados e gordas bochechas rosadas.”
“Só que essa é uma morena magricela de cabelo oleoso e pele ruim.”
“Pelo visto, então, a competição não é grande.”
“Ela e o Terrence fizeram faculdade juntos. Foi o primeiro grande amor dele. Aí ela se apaixonou por outro e terminou o namoro. Foi nessa época que ele veio para cá. Ficou tão deprimido, papai. Me contou
que pensou até em se suicidar.”
“E agora esse outro saiu de cena.”
“Eu não sei direito. Tudo o que eu sei é que, quando estávamos em Londres, nós três jantamos juntos e o Terrence não conseguiu desgrudar os olhos dela. Foi como se eu nem estivesse junto. Aí ele começou
a falar nela o tempo todo. Que a Georgina era brilhante. Que a Georgina era engraçada. Que a Georgina era excelente pessoa. Dali a dois dias, os dois saíram e foram almoçar sozinhos. Logo em seguida nós
fomos para a Cornualha visitar os pais dele, mas depois de três ou quatro dias ele pegou o trem de volta para Londres dizendo que precisava conversar com o editor do livro dele. Mas eu acho que o Terrence
queria era ficar com aquela idiota da Georgina Watson, o grande amor da vida dele. Foi tudo tão horrível. Ele simplesmente me deixou lá plantada naquele fim de mundo, na casa dos pais dele, um casal de
direita e anti-semita, e eu lá, tendo que fingir que estava adorando cada segundo. Ele dormiu com ela. Eu sei que dormiu. Ele dormiu com ela e agora não me ama mais.”
“Você perguntou para ele?”
“Claro que perguntei. Assim que ele voltou para a casa dos pais. Tivemos uma briga daquelas. A pior que já tivemos desde que nos conhecemos.”
“E o que foi que ele disse?”
“Negou. Disse que eu estava com ciúme e inventando histórias.”
“Isso é bom sinal, Rachel.”
“Bom? Como assim, bom sinal? Ele mentiu para mim e agora nunca mais vou ser capaz de confiar nele.”
“Vamos supor o pior. Vamos supor que ele tenha dormido com ela e depois mentido para você. Ainda assim é um bom sinal.”
“Por que você insiste nisso?”
“Porque é sinal que ele não quer perdê-la, Rachel. Ele não quer que o casamento acabe.”
“Que espécie de casamento é esse? Quando você não pode confiar no homem com quem se casou, é como se não houvesse casamento nenhum.”
“Escute, meu doce-de-coco, longe de mim ficar dando conselhos. Quando o assunto é casamento, eu sou a pessoa menos qualificada deste mundo para dizer a alguém o que fazer. Você viveu na mesma casa que
eu durante seus primeiros dezoito anos de vida e não preciso lembrá-la do fiasco que foi minha vida com a sua mãe. Houve momentos em que fiquei tão cheio dela que cheguei a desejar que ela morresse. Eu
imaginava acidentes de carro, descarrilamentos de trem, quedas de escadarias colossais. Não é fácil confessar uma coisa tão terrível como essa e não quero que pense que me orgulho — mas é importante que
entenda o que vem a ser um mau casamento. Sua mãe e eu tivemos um mau casamento. Nós nos amamos por um tempo e de repente tudo desandou. Ainda assim, continuamos agüentando e, por pior que fôssemos lado
a lado, conseguimos fazer você. Você é o final feliz de toda essa trágica história e, porque você é quem é, não sinto o menor remorso de nada. Está me entendendo, Rachel? Eu não conheço o Terrence muito
bem para poder dar uma opinião sobre ele. Mas sei que o casamento de vocês não é um mau casamento. As pessoas pisam na bola, às vezes. Fazem suas besteiras. Mas essa tal de Georgina está agora do outro
lado do oceano e, a menos que você tenha se casado com um mulherengo incorrigível, desconfio que esse pequeno episódio está encerrado. Agüente mais um tempinho e veja o que acontece. Não faça nada sem
pensar. Ele disse a você que era inocente, e quem somos nós para desmenti-lo? É muito difícil esquecer por completo um amor antigo. Pode ser que o Terrence tenha ficado desnorteado por alguns momentos,
mas agora que voltou para cá com você, e se você o ama tanto quanto diz amar, há uma boa chance de que acabe dando tudo certo entre vocês. Contanto que ele não se transforme naquele tipo de marido de bosta
que seu pai foi, há esperança. Muita esperança. Esperança de um futuro feliz lado a lado. Esperança de filhos. De gatos e cachorros. De árvores e flores. Esperança para a América. Esperança para a Inglaterra.
Esperança para o mundo.”
Eu não fazia a menor idéia do que estava dizendo. As palavras jorravam da minha boca numa torrente arrebatada, era um dilúvio irrefreável de absurdos e de emoções reprimidas e, quando cheguei ao fim daquele
meu ridículo discurso, vi que Rachel sorria, sorria pela primeira vez desde que entrara no restaurante. Talvez aquilo fosse o máximo que eu poderia esperar fazer: mostrar-lhe que eu estava a seu lado,
que acreditava nela e que a situação muito provavelmente não era tão sombria quanto ela imaginava. Ao menos, o sorriso me dizia que estava começando a se acalmar. E, sem parar de falar, fui aos poucos
desviando as atenções de minha filha do assunto em pauta, ciente de que o melhor remédio seria conseguir que ela esquecesse de Terrence por alguns momentos, que parasse de remoer o problema que a obcecava
havia semanas. Capítulo por capítulo, coloquei Rachel a par de tudo o que me acontecera desde a última vez em que havíamos nos encontrado. Em suma, dei-lhe uma versão resumida de tudo quanto está registrado
neste livro até o momento. Bem, tudo não — assim como cortei a história envolvendo Marina e o outro colar (triste demais, humilhante demais), não fiz menção à desagradável conversa telefônica com a imencionável
e poupei-a dos penosos detalhes da tramóia de A letra escarlate. Mas quase todos os outros elementos entraram no relato: O livro dos desvarios humanos, o primo Tom, Harry Brightman, a pequena Lucy, a viagem
a Vermont, o caso de Tom e Honey Chowder, o teor do testamento de Harry, Tina Hott dublando “Can’t help lovin’ that man”. Rachel escutou atentamente, fazendo o possível para absorver tantas e tão espantosas
informações enquanto comia e tomava vinho. Quanto a mim, quanto mais eu falava, mais me divertia. Eu havia entrado no papel do velho marinheiro e poderia ter continuado a desfiar minhas histórias até o
sol raiar. Rachel estava ansiosa sobretudo por conhecer Lucy, de modo que combinamos de ela ir me visitar em casa no domingo seguinte — com ou sem o marido, conforme achasse melhor. Também queria muito
ver Tom de novo, disse-me ela, e foi então que me fez a pergunta de cem mil dólares: “E essa Honey? Você acha que vai dar em alguma coisa?”.
“Duvido”, falei. “Tom deixou o número do telefone com o pai dela e pediu que lhe entregasse, mas por enquanto ela não ligou. E, até onde estou informado, Tom também não ligou para ela. Se eu fosse do tipo
apostador, diria que nunca mais haveremos de ver a Honey de novo. É uma pena, mas o caso parece encerrado.”
Como de hábito, eu estava errado. Exatamente duas semanas depois do jantar com Rachel, ou seja, na última sexta-feira do mês, Honey Chowder cruzou a porta da livraria usando um vestido branco de verão
e um enorme chapéu de palha de aba caída. Eram cinco horas da tarde. Tom estava sentado atrás do balcão da frente, lendo um velho exemplar de capa mole de The federalist papers. Eu já tinha ido buscar
Lucy na oficina de artes e estávamos os dois nos fundos da loja, pondo em ordem os livros da seção de História. Fazia duas horas que não entrava um único freguês na livraria e o único ruído perceptível
era o zumbido abafado de um ventilador elétrico.
O rosto de Lucy iluminou-se quando viu Honey entrando. Ela já ia correr para recebê-la, mas eu a peguei a tempo e cochichei: “Ainda não, Lucy. Dê uma chance aos dois, primeiro”. Honey, cujos olhos estavam
fixos em Tom, nem reparara em nós. Como dois agentes secretos, nossa garota e este seu criado nos escondemos atrás de uma estante e escutamos o seguinte diálogo:
“E então, Tom”, disse Honey, depositando a bolsa em cima do balcão. Depois tirou o chapéu e sacudiu a farta cabeleira. “Como anda a vida?”
Tom ergueu os olhos do livro e disse: “Santo Deus, Honey. O que você está fazendo aqui?”.
“Já, já a gente fala disso. Primeiro quero saber como você está.”
“Até que bem. Ocupado, meio estressado, mas até que bem. Muita coisa aconteceu desde a última vez que nos vimos. Meu patrão morreu e pelo visto eu herdei esta loja. Ainda estou tentando decidir o que fazer
com ela.”
“Não estou falando de negócios. Estou falando de você. Dos mecanismos internos desse seu coração.”
“Meu coração? Continua batendo. Setenta e duas vezes por minuto.”
“O que significa que você continua sozinho, correto? Se tivesse se apaixonado por alguém, ele estaria batendo muito mais depressa que isso.”
“Me apaixonado? Do que você está falando, Honey?”
“Você conheceu alguém neste último mês, por acaso?”
“Não, claro que não. Estive ocupado demais.”
“Lembra-se de Vermont?”
“Como eu poderia ter esquecido?”
“E da última noite que passou lá, você se lembra?”
“Lembro. Lembro daquela noite, sim.”
“E?”
“E o quê?”
“O que você vê quando olha para mim, Tom?”
“Eu não sei, Honey. Vejo você. Honey Chowder. Uma mulher com um nome inacreditável. Uma mulher incrível com um nome inacreditável.”
“Sabe o que eu vejo quando olho para você, Tom?”
“Não tenho bem certeza de que gostaria de saber.”
“Vejo um grande homem, é isso que eu vejo. Vejo a melhor pessoa que já conheci até hoje.”
“Sério?”
“É, sério. E foi por isso, porque quando eu olho para você é isso que eu vejo, que larguei tudo e vim aqui para o Brooklyn fazer parte da sua vida.”
“Largou tudo?”
“Correto. O ano letivo acabou faz dois dias e eu pedi demissão. Estou livre feito um pássaro.”
“Mas, Honey, eu não estou apaixonado por você. Eu mal a conheço.”
“Mas vai ficar.”
“Vai ficar o quê?”
“Primeiro, vai me conhecer. E depois vai começar a me amar.”
“Assim, sem mais nem menos.”
“Exato. Assim, sem mais nem menos.” Honey se calou por uns instantes, depois sorriu. “Como anda a Lucy, falando nisso?”
“A Lucy está ótima. Ela mora com o Nathan na rua Um.”
“Coitado do Nathan. Ele não consegue dar conta sozinho. A menina precisa de mãe. De agora em diante, ela vai morar conosco.”
“Você não acha que está sendo autoconfiante demais, Honey?”
“É que eu tenho de ser, Tom. Se eu não tivesse confiança em mim, não estaria aqui. Não estaria com todas as malas esperando no carro. Não saberia que você é o homem da minha vida.”
Nessa altura, concluí que eles já tinham dito o suficiente um ao outro e deixei que Lucy saísse do esconderijo. Ela atravessou a sala correndo e foi direto para os braços de Honey.
“Aí está você, meu tesourinho”, falou a ex-professora primária, envolvendo a menina nos braços e tirando-a do chão. Depois de um abraço apertado, perguntou: “Você ouviu o que o Tom e eu dissemos?”.
Lucy fez que sim com a cabeça.
“E o que você achou?”
“Acho que é um ótimo plano. Se eu for morar com você e o tio Tom, não vou mais precisar comer comida de restaurante o tempo todo. Você vai me encher de coisas gostosas. O tio Nat pode vir comer conosco
sempre que quiser. E, quando você e o tio Tom saírem para passear, ele pode ficar de babá.”
Honey sorriu. “E você vai ser uma menina bem boazinha, não vai? A melhor menina do mundo.”
“Não vou não senhora”, Lucy respondeu, encarando Honey de volta com a mais deslavada cara-de-pau. “Eu vou ser má. Vou ser a menina mais malcriada, mais malvada e mais teimosa de todas as que existem no
reino de Deus.”
Rua Hawthorn ou rua Hawthorne?
Passaram-se meses. Em meados de outubro o inventário havia terminado; Tom e Rufus tornaram-se os legítimos donos do Brightman’s Attic e do imóvel onde funcionava o negócio. Tom e Honey já estavam casados
e Lucy, sempre fechada quando o assunto era o paradeiro da mãe, fora matriculada na quinta série da escola pública local. Rachel continuava com Terrence. Uma semana depois do enlace Wood-Chowder, ela me
ligou para dizer que estava grávida de dois meses.
Continuei trabalhando na livraria, mas depois da entrada triunfal de Honey na história, no fim de junho, passamos a dividir o cargo, o que significou um corte de cinqüenta por cento em meu horário de trabalho.
Nos dias de folga dava andamento a O livro dos desvarios humanos e, como Lucy havia sugerido, fazia as vezes de babá quando Tom e Honey saíam à noite. E nos primeiros meses as saídas foram uma ocorrência
constante. Morando no interior, Honey vivia na maior escassez de cultura e depois de aterrissar em Nova York quis tirar partido do que a cidade tinha a oferecer: peças, filmes, concertos, balés, leituras
de poesia, passeios ao luar na balsa de State Island. A mim, fez um bem danado ver meu indolente e lerdo sobrinho desabrochar sob a enérgica influência de sua recém-descoberta mulher. Poucos dias depois
da chegada de Honey, Tom parou de remoer a questão da herança e do que fazer dela e pôs o imóvel à venda. Com a sua parte, teria mais do que o suficiente para comprar um apartamento de dois ou três quartos
por ali mesmo e ainda sobraria com o que viver um tempo, até ambos encontrarem emprego fixo — muito provavelmente como professores numa escola particular, assim que começasse o novo ano letivo. Os meses
foram passando e até metade de outubro Tom já perdera bem uns dez quilos, o que o levou a quase ser de novo o jovem Dr. Thumb de antanho. Comida caseira obviamente lhe fazia bem e, ao contrário de suas
previsões, Honey não o aniquilou, nem o sufocou e tampouco esmagou-lhe o espírito. Dia a dia, pouco a pouco, ela o foi transformando no homem que Tom estava destinado a ser desde o início.
Com tantos desdobramentos positivos no terreno amoroso, o leitor pode até ser induzido a pensar que reinou a felicidade universal nesse pequeno trecho do Brooklyn. Infelizmente, nem todos os casamentos
têm como destino a sobrevivência. Isso é de conhecimento geral, mas quem de nós haveria de imaginar que a pessoa menos feliz da vizinhança, durante aqueles meses todos, fosse a antiga paixão de Tom, a
Bela Mãe Perfeita? Verdade que o marido dela me causara uma péssima impressão lá no bosque do parque Prospect, mas nem em mil anos eu imaginaria que o sujeito era um idiota completo, burro a ponto de não
ligar para uma mulher como a que ele tinha. As Nancy Mazzucchelli deste mundo são muito poucas e, se um homem tem a sorte de conquistar o coração de uma, sua função dali em diante é fazer tudo ao seu alcance
para mantê-lo intacto. Mas os homens (como eu demonstrei com fartura de detalhes nos capítulos anteriores deste livro) são criaturas imbecis e o bonitinho do James Joyce provou ser ainda mais imbecil que
a maioria. Como a mãe de Nancy e eu tivéssemos feito amizade durante o verão (direi mais sobre isso depois), eu era um convidado freqüente nos jantares da família, e foi no recinto da casa deles, na rua
Carroll, que tomei conhecimento das transgressões passadas de Jimmy e vi o casamento de Nancy ruir por terra. Ele começara a pular a cerca antes mesmo de existir a B.M.P. — bem uns seis anos antes, quando
ela engravidou pela primeira vez e teve a filha Devon. Ao saber do caso que o marido estava tendo com uma garçonete de Tribeca, Nancy o pôs para fora de casa, mas depois que a criança nasceu não teve forças
para resistir às promessas lacrimosas de que ele nunca mais voltaria a traí-la. Em questões como essa, porém, as palavras não valem grande coisa e sabe-se lá quantos casos secretos não vieram depois disso.
Pelos cálculos de Joyce, houve no mínimo sete ou oito, contando transas fugazes e trepadas rápidas na escadaria dos fundos do estúdio. Nancy, sempre generosa e pronta a perdoar, em geral não dava ouvidos
aos rumores. Mas um belo dia Jim se enrabichou pela colega Martha Ives, sonoplasta também, e foi a gota d’água. Falou que estava apaixonado e no dia 11 de agosto de 2000, dois meses depois de eu tê-lo
visto pela primeira vez na cerimônia fúnebre de Harry, fez as malas e se foi.
Doze dias mais tarde, meu oncologista declarou que meus pulmões continuavam limpos.
Meros quatro dias após a boa nova, Rachel, mancomunada com Tom e Honey, bolou um esquema maroto e me convenceu de que eu estava indo assistir a um jogo no estádio Shea — quando na verdade tratava-se de
uma festa surpresa pelo meu sexagésimo aniversário. O combinado era que eu fosse apanhar Tom no apartamento deles, mas, assim que cruzei a soleira da porta, uma dúzia de pessoas me cercou com abraços,
beijos e tapinhas nas costas, sem contar a explosão de gritos e coros de parabéns. Meu despreparo para tamanho ataque de boa vontade foi tal que quase vomitei de choque. A festança entrou noite adentro,
e a certa altura fui convocado a me levantar e fazer um discurso. O champanhe já me subira à cabeça havia um tempinho e desconfio que me alonguei um bocado nas tolices e piadas incoerentes que despejei
sobre uma platéia chumbada, que lutou para entender o que eu dizia. A única coisa que guardei de toda a minha falação foi um breve aparte sobre a argúcia lingüística de Casey Stengel. Se não me falha a
memória, até terminei a palestra com uma citação do próprio mestre. “Não foi sem motivo que acabou apelidado de Velho Professor”, eu disse. “Além de ter sido o primeiro empresário do nosso amado Mets,
ele foi autor, e isso é ainda mais fundamental para o bem geral da humanidade, de uma série de frases que reformularam nossa compreensão da língua. Antes de me sentar, permitam-me deixá-los com esta verdadeira
pérola, com este dito inesquecível que de fato resume minha própria experiência com mais exatidão do que qualquer declaração com que eu possa ter topado nos sessenta anos em que venho habitando este corpo:
‘Chega uma certa hora na vida de todo homem, e eu tive várias’.”
Os jogos da Subway Series de basquete vieram e se foram; o tempo esfriou; Gore enfrentaria Bush na corrida presidencial. A meu ver, o resultado estava garantido. Mesmo com Nader atrapalhando o meio-de-campo,
eu achava impossível que os democratas perdessem e essa parecia ser a opinião de quase todo mundo com quem conversei ali no Brooklyn. Apenas Tom, o mais pessimista dos homens em questões de política interna,
parecia preocupado. Ele acreditava que seria uma eleição apertada e se Bush por acaso acabasse ganhando, ele dizia, nós podíamos começar a esquecer aquela papagaiada de “conservadorismo compassivo”. Bush
não era um conservador. Era um ideólogo da extrema direita e, assim que tomasse posse, a Casa Branca passaria a ser controlada por lunáticos.
Uma semana antes das eleições, Aurora finalmente apareceu — para sumir trinta segundos depois. O contato foi feito através de um telefonema para Tom, mas não havia ninguém em casa, aquela manhã, e portanto
só nos restou uma mensagem truncada na secretária eletrônica. Não sei quantas vezes escutei o recado ao lado de Tom e de Honey, só sei que acabei decorando cada palavra. E, a cada vez que ouvia a voz dela,
Aurora me parecia um pouco mais desesperada, um pouco mais à beira do abismo, um pouco mais apavorada. O recado foi dado em voz bem baixa, pouca coisa mais que um cochicho do começo ao fim, mas com tamanha
intensidade que teve o impacto de um grito.
Tom. Sou eu, a Rory. Estou ligando de um telefone público e não tenho muito tempo. Sei que você deve estar pelas tampas comigo, mas tenho sentido muita falta da Lucy, eu só queria saber como ela está.
Não pense que foi fácil, Tommy. Pensei muito antes, mas você era a única pessoa com quem eu podia contar. Não dava mais para ela ficar aqui. Está tudo indo por água abaixo. A situação não está nada boa.
Ando tentando cair fora também, mas é difícil demais, nunca estou sozinha... Me escreva uma carta, certo? Eu não tenho telefone, mas você pode me achar na rua Hawthorn, número oitenta e sete, em... Merda.
Preciso desligar. Desculpe. Preciso desligar.
Depois vinha o barulho de um fone batendo no gancho e o tão esperado telefonema chegava a um súbito e inconclusivo fim. Nossas mais sombrias preocupações haviam se tornado reais, mas continuávamos sem
ter a menor idéia de onde estava Aurora. Tom já passara por momentos semelhantes com a irmã e, ainda que se preocupasse com ela tanto quanto eu, seu sentimento vinha temperado por exaustão, irritação e
anos de decepção e dó. “Ela é a pessoa mais irresponsável que eu já conheci na vida”, ele disse. “Agora que a Lucy está começando a se sentir à vontade conosco, vem ela, depois de sei lá quantos malditos
meses, e diz que está sentindo falta da filha. Que tipo de mãe ela é, afinal? Quer que eu escreva para ela e nem sequer diz em que cidade mora. Não é justo, Nathan. A Honey e eu estamos fazendo o possível
para ajudar e a última coisa que queremos agora é mais confusão, mais drama. Já tivemos o bastante.”
“Talvez não seja justo”, falei, “mas a Rory está com algum problema e nós temos que encontrá-la. Não há escolha. Poupe-me de seus julgamentos por enquanto, certo?”
Depois disso, o mundo inteiro mudou para mim. O desastre das eleições de 2000 tinha poucos dias de vida, mas, mesmo durante as cinco semanas seguintes em que Tom e Honey viram, horrorizados, o Partido
Republicano convocar seus capangas para desafiar os resultados da Flórida e, depois, manipular a Suprema Corte para aplicar um golpe legal em favor deles, mesmo enquanto esses crimes eram cometidos contra
o povo norte-americano e meu sobrinho e sua mulher participavam de passeatas, mandavam cartas para seus deputados e assinavam uma infinidade de protestos e petições, eu só tinha uma única preocupação:
descobrir o paradeiro de Rory e levá-la de volta a Nova York.
Rua Hawthorn, 87. Mas será que era hawthorn* ou seria Hawthorne — rua Hawthorne —, quem sabe até uma homenagem a Nathaniel Hawthorne, o romancista morto havia tanto tempo que sem querer provocara a morte
de nosso triste e azarado amigo? Uma conjunção amarga, significando pouco ou mesmo nada, mas ainda assim sinistra, como se o fato de a mesma palavra aparecer em dois contextos diversos pudesse estabelecer
um elo subterrâneo entre Harry e Aurora: o primeiro se fora para sempre, a outra estava fora de nosso alcance, ambos cidadãos do invisível. Exceto aquela única pista, tudo o mais era palpite cego, mas
como Lucy falava com sotaque sulino, e como ela situara a mãe na inexistente terra da Carolina Carolina, resolvi começar minhas buscas nas duas Carolinas de verdade, a do Norte e a do Sul. Pena Aurora
e o marido não terem um telefone. Se o nome deles constasse da lista, teria sido possível ligar para o serviço de informações de todas as cidades dos dois estados e encontrá-los solicitando o número de
David Minor da rua Hawthorn(e), 87. Tarefa trabalhosa, mas que fatalmente daria bons resultados. Uma vez que essa opção não estava disponível, não tive escolha senão proceder ao contrário. Um belo domingo,
tomei o trem até Princeton Junction e passei doze horas sentado diante de uma tela de computador, ao lado de minha filha grávida e de seu dócil e emendado marido. Terrence podia não ser dos mais charmosos,
mas era um super-herói tecnológico e, ao voltar para casa, na manhã seguinte, eu levava comigo uma relação impressa de todas as ruas Hawthorn e Hawthorne existentes nas duas Carolinas. Para minha imensa
surpresa, havia centenas delas. Um número excessivo delas. Para conseguir visitar todos os números oitenta e sete da lista, eu teria de rodar pelo menos seis meses.
Foi quando recorri a Henry Peoples, um velho colega da Mid-Atlantic Acidente e Vida. Henry fora um dos melhores investigadores da companhia e, no decorrer dos anos, havíamos trabalhado juntos em diversos
casos, o mais espetacular de todos o famoso Caso Dubinsky, que transformara meu amigo Henry numa espécie de lenda do ramo. Arthur Dubinsky simulara a própria morte aos cinqüenta e um anos de idade matando
um sem-teto de Nova York e colocando o corpo do infeliz num carro em chamas que despencou das Rochosas. Maureen, sua terceira mulher, de vinte e oito anos, recebeu o prêmio de um milhão e seiscentos mil
dólares e, um mês depois, vendeu o apartamento de Manhattan e sumiu. Henry, que suspeitou de Dubinsky desde o começo, continuou vigiando Maureen e quando ela de repente vendeu tudo e deixou Nova York,
ele fez um relatório para a chefia, que, ato contínuo, lhe deu autorização para ir atrás da moça. Foram nove meses de investigação meticulosa até encontrar a sra. Dubinsky — vivendo com seu intacto marido
na ilha de Santa Lúcia. Nós conseguimos recuperar oitenta e cinco por cento do valor da apólice; Arthur Dubinsky acabou preso e condenado por assassinato; Henry e eu fomos recompensados com gordos bônus.
Trabalhei com Henry Peoples durante mais de vinte anos, mas não vou fingir que gostava dele. Henry era um sujeito esquisito, desagradável, adepto de uma rígida dieta vegetariana, que demonstrava tanto
carinho e personalidade quanto um poste de luz apagado. Ternos amarfanhados de poliéster (em geral marrons), óculos de aros grossos de osso, sempre caspento e irritantemente avesso a conversinhas ligeiras
de todos os tipos. Você podia aparecer para trabalhar com o braço na tipóia ou um tapa-olho na cara que Henry não abria a boca para comentar. Ele olhava você bem fixo por alguns instantes, absorvia os
detalhes do machucado e depois, sem perguntar como você se ferira ou se por acaso estava doendo, largava o relatório sobre sua mesa e ia embora.
Mesmo assim, tinha um dom especial para fuçar esconderijos e fazer aparecer os desaparecidos e, agora que se aposentara, talvez aceitasse fazer esse trabalho para mim. Por sorte, continuava morando no
mesmo lugar de sempre, um apartamento em Queens que dividia com a irmã viúva e quatro gatos. Quando liguei, ele atendeu no segundo toque.
“É só falar o preço”, falei. “Eu pago o que você pedir.”
“Eu não quero o seu dinheiro, Nathan. Basta que você cubra as minhas despesas e o negócio está fechado.”
“Mas pode levar meses. Eu tenho medo que você perca um tempão sem obter nada em troca.”
“Tudo bem, não se preocupe. Eu não tenho mesmo nada melhor para fazer. Vai ser bom poder montar na sela de novo e reviver dias gloriosos.”
“Dias gloriosos?”
“Mas é claro. Os bons tempos que nós vivemos juntos, Nathan. Dubinsky. Williamson. O’Hara. Lupino. Você lembra desses casos, não?”
“Claro que lembro. É que eu não sabia que você era assim tão sentimental, Henry.”
“E não sou. Ou pelo menos achava que não. Mas pode contar comigo. Em nome dos velhos tempos.”
“Estou presumindo que seja na Carolina do Norte ou na Carolina do Sul. Mas posso estar enganado.”
“Não se preocupe. Contanto que Minor já tenha tido um telefone na vida, eu descubro onde ele está. É moleza.”
Seis semanas depois, Henry me ligou no meio da noite e resmungou quatro sílabas no meu ouvido: “Winston-Salem”.
Na manhã seguinte, eu estava num avião, voando para o sul, para o coração da terra do fumo.
* Pilriteiro. (N. T.)
Menina risonha
O número 87 da rua Hawthorne era um sobradinho modesto situado numa região entre rural e suburbana a cerca de cinco quilômetros do centro. Perdi-me diversas vezes antes de encontrá-lo e, quando estacionei
meu Ford Escort alugado na entrada para carros, de terra batida, reparei que todas as persianas das janelas da frente tinham sido fechadas. Era um domingo sombrio e cinzento em meados de dezembro. A presunção
lógica é que não havia ninguém em casa — ou então que Rory e o marido moravam naquela casa como se ela fosse uma caverna; como se eles fossem os únicos integrantes de uma sociedade de dois, protegendo-se
do brilho da luz natural e combatendo as imposições do mundo exterior. Não havia campainha, de modo que tive que bater na porta. Não apareceu ninguém para abrir e bati outra vez. Vínhamos aguardando uma
nova ligação de Rory desde aquele recado na secretária de Tom. Só que não tivemos mais notícias e, parado na frente do que parecia ser uma casa vazia, comecei a achar que ela não morava mais ali. Tudo
quanto é tipo de pensamento medonho me veio à cabeça quando bati pela terceira vez. E se por acaso ela tivesse tentado fugir, perguntei cá com meus botões, e Minor a tivesse alcançado? E se ele a tivesse
levado para uma outra cidade, um outro estado e nós nunca mais conseguíssemos saber de seu paradeiro? E se ele a tivesse matado sem querer, durante uma briga? E se o fim já tivesse acontecido, e se eu
tivesse chegado tarde demais para ajudá-la, tarde demais para levá-la de volta ao mundo ao qual pertencia?
A porta se abriu e lá estava Minor em carne e osso, um homem alto, bonito, de uns quarenta anos, com cabelos castanhos bem penteados e olhos azuis muito suaves. Eu o havia transformado em tamanho monstro,
nos últimos meses, que fiquei chocado ao me ver diante de alguém tão inofensivo, de alguém que parecia normal. A única coisa estranha nele, se é que se poderia chamar de estranha, era o fato de estar usando
camisa branca de manga comprida e gravata azul. Que espécie de homem anda dentro da própria casa de camisa branca e gravata azul?, perguntei. E não levei mais que um instante para encontrar a resposta.
Um homem que acabara de chegar da igreja. Um homem que observava o sabá e levava sua religião a sério.
“Sim?”, ele perguntou. “Em que posso servi-lo?”
“Sou o tio da Rory”, falei. “Nathan Glass. Estava passando pela região e pensei em dar um pulo até aqui para visitá-la.”
“Ah, sim? E ela sabia que o senhor viria?”
“Não que eu tenha conhecimento. Pelo que entendi, vocês não têm telefone.”
“Exato. Não acreditamos em telefones. Eles são um incentivo para as pessoas ficarem de conversa fiada, perdendo tempo. Nós preferimos economizar nossas palavras para coisas mais essenciais.”
“Muito interessante... Senhor... Senhor...”
“Minor, David Minor. Sou marido de Aurora.”
“Foi o que eu pensei. Mas não quis me adiantar.”
“Entre, senhor Glass. Infelizmente, Aurora não está se sentindo muito bem hoje. Ela está lá em cima, tirando uma soneca, mas o senhor é muito bem-vindo em nossa casa. Nós temos a mente muito aberta neste
nosso rincão. Mesmo quando os outros não seguem a mesma fé que nós, fazemos o possível para tratá-los com dignidade e respeito. Este é um dos sagrados mandamentos de Deus.”
Sorri, mas não disse nada. Embora seus modos fossem afáveis, Minor já começara a falar como um fanático e a última coisa que eu queria naquele momento era me envolver em questões teológicas. Que ele faça
bom proveito de seu Deus e de sua igreja, disse comigo mesmo. Eu só tinha ido até lá para ver se Rory estava ou não em perigo — esse era meu único objetivo — e, se estivesse, para tirá-la daquela casa
o mais rápido possível.
Tendo por base o aspecto externo (pintura descascada, venezianas em péssimo estado, mato brotando dos degraus de concreto), eu havia me preparado para encontrar uma casa mobiliada com uma miscelânea esquálida
de peças desconjuntadas, mas o local acabou me parecendo até que bem apresentável. Rory herdara o talento de June para fazer muito com muito pouco e transformara a sala num ambiente austero porém atraente,
decorado com vasos de plantas, cortinas de riscado feitas em casa e um grande pôster anunciando uma exposição de Giacometti numa das paredes. Minor indicou o sofá com um gesto e eu me sentei. Ele se acomodou
numa poltrona do outro lado da mesinha de centro, com tampo de vidro, e durante alguns instantes nenhum de nós disse nada. Eu me sentia tentado a entrar de sola — queria subir e falar com Aurora, queria
crivá-lo de perguntas sobre Lucy, queria forçá-lo a explicar por que Aurora tinha tanto medo de ligar para o próprio irmão —, mas percebi que uma abordagem dessas acabaria sendo prejudicial, de modo que
fui entrando pé ante pé, com o máximo de cuidado possível, na conversa.
“Carolina do Norte”, comecei. “Segundo as últimas notícias que tivemos, vocês moravam com a sua mãe em Filadélfia. O que os trouxe para cá?”
“Diversas coisas”, respondeu Minor. “Minha irmã e meu cunhado moram na região e me arrumaram um bom emprego. E esse primeiro emprego me levou a um emprego ainda melhor e agora sou assistente de gerente
numa loja de ferragens no shopping Camelback. Para o senhor pode não parecer grande coisa, mas é trabalho honesto e eu ganho um salário decente. Quando lembro como eu era sete, oito anos atrás, vejo que
foi um milagre ter chegado aonde cheguei. Eu era um pecador, senhor Glass. Era viciado em drogas, fornicador, mentiroso e bandido. Traí todos os que me amavam. Depois encontrei a paz no Salvador e minha
vida foi salva. Sei que é difícil para um judeu como o senhor entender isso, mas nós não somos apenas mais uma dessas seitas a brandir a Bíblia alardeando chuvas de fogo e enxofre. Não acreditamos no apocalipse
nem no Dia do Juízo Final; não acreditamos em xtase ou no Final dos Tempos. Nós nos preparamos para a vida no céu sendo bons na Terra.”
“Quando o senhor diz nós, de quem está falando, exatamente?”
“De nossa igreja. O Templo do Santo Verbo. Somos um grupo pequeno. Nossa congregação tem apenas sessenta membros, mas o reverendo Bob é um líder inspirado e nos ensina muita coisa. ‘No princípio era o
Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus’.”
“Evangelho segundo São João. Capítulo um, versículo um.”
“Quer dizer que o senhor conhece a Bíblia.”
“Um pouco. Para um judeu que não acredita em Deus, mais do que a maioria.”
“Então quer dizer que o senhor é ateu?”
“Todos os judeus são ateus. Exceto os que não são, claro. Mas eu não tenho muito contato com eles.”
“O senhor não está zombando de mim por acaso, está, senhor Glass?”
“Não, senhor Minor. Não estou zombando do senhor. Nem sonharia com uma coisa dessas.”
“Porque, se estiver zombando de mim, serei obrigado a lhe pedir que saia.”
“Estou interessado no reverendo Bob. Gostaria de saber o que torna a igreja dele diferente das demais.”
“Ele compreende o que significa o sacrifício. Se o Verbo é Deus, então o que os homens dizem não significa nada. Tem tanto valor quanto o grunhido dos animais ou o berro das aves. Para soprar Deus em nossa
alma e absorver o Verbo d’Ele, o reverendo nos ensina a evitar a vaidade do discurso humano. Esse é o sacrifício. Um dia em cada sete, todos os membros da nossa congregação devem manter silêncio absoluto
e ininterrupto durante vinte e quatro horas.”
“Isso deve ser bem difícil de conseguir.”
“De início é. Mas depois a gente começa a se ajustar e os dias de silêncio se tornam os mais lindos e satisfatórios da semana. Na verdade conseguimos até sentir a presença de Deus dentro de nós.”
“E o que acontece quando alguém viola esse silêncio?”
“Tem de começar tudo de novo no dia seguinte.”
“E se o seu filho estiver doente e o senhor tiver que chamar o médico no seu dia de silêncio, aí como é que faz?”
“Os casais nunca observam o silêncio no mesmo dia. Pedimos para que o outro faça o telefonema.”
“Mas fazer um telefonema como, se não há telefone nas casas?”
“Vamos até o telefone público mais próximo.”
“E quanto às crianças? Elas também têm um dia de silêncio?”
“Não, as crianças são isentas. Elas só começam a participar depois dos catorze anos.”
“O seu reverendo Bob organizou tudo direitinho, não é mesmo?”
“Ele é um homem brilhante e seus ensinamentos tornaram a vida melhor e mais simples para todos nós. Somos um rebanho feliz, senhor Glass. Todo dia eu me ajoelho e agradeço a Jesus por ter nos mandado para
a Carolina do Norte. Se não tivéssemos vindo para cá, jamais teríamos conhecido as alegrias de pertencer ao Templo do Santo Verbo.”
Enquanto Minor falava, tive a impressão de que ele teria se sentido plenamente satisfeito de alongar por mais umas seis ou dez horas seus louvores às virtudes do reverendo Bob, mas achei curioso ver com
que cuidado evitava mencionar os nomes da mulher e da filha adotiva. Eu não tinha viajado de Nova York até lá para ficar trocando figurinhas sobre lojas de ferragens e templos divinos de tendências excêntricas.
Depois de um certo tempo frente a frente, quando me pareceu que David Minor começava a se sentir mais à vontade, achei que havia chegado o momento de mudar de assunto.
“Estou surpreso que não tenha perguntado nada sobre a Lucy”, falei.
“Lucy?”, ele disse, parecendo-me genuinamente espantado. “O senhor a conhece?”
“Mas é claro que conheço. Ela está vivendo com o irmão de Aurora e a mulher dele. Eu a vejo quase todos os dias.”
“Pensei que o senhor não mantivesse mais contato com a família. A Aurora me disse que o senhor morava fora de Nova York e que ninguém o via fazia muitos anos.”
“Isso tudo mudou há uns seis meses. Voltei a manter contato. Estou em contato o tempo inteiro.”
Minor me deu um sorriso rápido, tristonho. “Como anda a pequena?”
“O senhor se importaria com isso?”
“Claro que me importo.”
“Então por que a mandou embora?”
“A decisão não foi minha. Aurora não a queria mais por perto e não havia nada que eu pudesse fazer para mudar as coisas.”
“Não acredito.”
“O senhor não conhece a minha mulher, senhor Glass. Ela não anda muito boa da cabeça. Faço tudo o que posso para ajudá-la, para lhe dar apoio, mas ela não demonstra um mínimo de gratidão. Eu a tirei das
profundezas do inferno e salvei-lhe a vida, mas assim mesmo ela não se convence. Ela continua não acreditando.”
“Existe alguma lei que diz que ela tem de acreditar no que o senhor acredita?”
“Ela é minha mulher. A mulher tem de seguir o marido. É dever dela seguir o marido em todas as coisas.”
Tinha ficado difícil saber em que direção caminhávamos. A conversa se embrenhara por várias veredas simultâneas e meus instintos não estavam respondendo direito. A pergunta sobre Lucy, com voz calma e
branda, parecia demonstrar uma preocupação sincera pelo bem-estar da menina e, a menos que David Minor fosse um consumado mentiroso da pior espécie, alguém que não hesitava um instante em distorcer a verdade
sempre que isso servisse a seus propósitos, vi-me na incômoda posição de ter de me compadecer. Pelo menos foi o que senti num primeiro momento — uma súbita e inesperada onda de compaixão acabou me pegando
com a guarda baixa e transformou o que deveria ter sido um confronto aberto de vontades em algo bem mais complexo, bem mais humano. Mas logo depois ele desandou a falar mal de Rory, a culpá-la por abandonar
a própria filha, a acusá-la de desequilíbrio mental e, para completar e piorar ainda mais as coisas, fez aquela declaração imbecil e reacionária sobre o casamento. De todo modo, alguns fatos eram sem dúvida
inegáveis. Ele salvara minha sobrinha das drogas e se apaixonara por ela e, tendo por base a história pregressa de Rory, como afirmar com certeza que ela não era sujeita a surtos de comportamento irracional,
que ela não era uma pessoa de convívio difícil, que ela não estava parcialmente louca? Por outro lado, talvez o conflito todo pudesse ser resumido numa única e insolúvel questão: Minor acreditava nos ensinamentos
do reverendo Bob e Rory não. E, como ela se recusava a acreditar, ele aos poucos fora criando ódio da mulher.
De onde eu me achava sentado no sofá, tinha uma visão boa da escada que levava ao andar de cima. Enquanto ponderava o que dizer a seguir, olhei por cima do ombro esquerdo de Minor, na direção da escada,
atraído por algo que eu havia visto muito rapidamente com o canto do olho — um objeto pequeno, escuro, que aparecera por menos de um segundo e sumira antes que eu pudesse identificar o que era. Minor começou
a falar de novo, reiterando suas idéias sobre o que vinha a ser um bom e satisfatório casamento, mas já não contava mais com cem por cento de minha atenção. Eu estava olhando para a escada e, com atraso,
percebi que o objeto vislumbrado era com quase toda a certeza a ponta de um sapato — sem dúvida o sapato de Aurora — e, se fosse esse o caso, eu torcia para que ela tivesse escutado nossa conversa desde
o começo. Minor estava tão entretido no que dizia que ainda não havia reparado que eu não olhava direto para ele. Foda-se, disse eu comigo mesmo. Chega dessa brincadeira de gato e rato. Chega de rodear
o assunto. Está na hora de subir a cortina para o segundo ato.
“Venha até a sala, Rory”, eu falei. “Eu sou seu tio Nat e não vou sair desta casa enquanto não falar com você.”
Levantei-me de um salto do sofá, contornei a poltrona de Minor e fui até o pé da escada, movendo-me com agilidade, para o caso de ele tentar me impedir de ir até ela.
“Ela está dormindo”, ouvi-o dizer atrás de mim, bem quando avistei pela primeira vez um pedaço das pernas de Aurora no topo da escada. “Ela está lutando contra um resfriado desde quinta-feira, está com
febre. Volte no meio da semana. Aí então poderá falar com ela.”
“Não, David”, minha sobrinha respondeu já descendo a escada. “Eu estou bem.”
Usava um jeans preto e um velho moletom cinza, e de fato parecia abatida, adoentada mesmo. Pálida e magra, com grandes olheiras, teve de se agarrar ao corrimão para descer até onde eu estava, bem devagarzinho,
mas, apesar dos efeitos da gripe e da febre, Aurora sorria, sorria o grande e luminoso sorriso da pequena Menina Risonha que já fora muitos anos antes.
“Tio Nat”, ela disse, abrindo os braços para mim. “Meu bravo cavaleiro de armadura reluzente.” Atirando-se contra mim, me deu um abraço apertado, com toda a sua força. “Como é que vai minha filhota?”,
ela sussurrou. “A minha menina está bem?”
“Está ótima”, falei. “Mal se agüenta de saudades de você, mas está ótima.”
Minor àquela altura já se encontrava do nosso lado, com cara de quem não estava gostando nem um pouco de tamanha demonstração de afeto familiar. “Meu bem”, disse ele. “Acho que você devia voltar lá para
cima e se deitar. Você estava com mais de trinta e oito de febre não faz nem uma hora e não é bom ficar andando por aí nesse estado.”
“Este é o meu tio Nat”, Rory disse, ainda agarrada a mim como um náufrago a sua bóia. “O único irmão da minha mãe. Faz muito, muito tempo que eu não o vejo.”
“Eu sei disso”, falou Minor. “Mas ele pode voltar daqui a alguns dias — assim que você tiver se recuperado.”
“E você sempre sabe o que é melhor, não é mesmo, David? Você sempre sabe o que é melhor. Que bobagem a minha ter descido sem suas bênçãos.”
“Não suba se não quer subir”, eu disse a ela. “Você não vai morrer se ficar mais alguns minutos aqui embaixo.”
“Ah, vou, vou sim”, ela disse, sem fazer o menor esforço para ocultar o sarcasmo. “O David tem certeza de que, se eu não fizer o que ele diz, eu morro. Não é verdade, David?”
“Calma, Aurora. Não na frente do seu tio.”
“Por que não? Me diga por que não, caralho.”
“Cuidado com o que diz. Nós não usamos palavras como essa nesta casa.”
“Ah, não usamos, é? Então talvez esteja mais do que na hora de eu ir embora desta bosta. Talvez esteja na hora de a gentalha ir embora e deixar você aqui sozinho com seus pensamentos puros, com sua língua
pura e com aquele porra daquele seu Deus silencioso. É isso aí, Santo David. É agora que a porca torce o rabo. Meu dia de sorte chegou finalmente e o tio Nat vai me tirar daqui. Não é isso mesmo, tio Nat?
Nós vamos entrar no seu carro e, antes que o sol se levante de novo, eu já vou estar com a minha Lucy outra vez.”
“É só você pedir”, respondi, “é só pedir que eu levo você para onde você quiser.”
“Eu estou pedindo, tio Nat. Estou pedindo agora.”
De tão aturdido, Minor ficou sem saber como reagir. Eu esperava que avançasse para cima de Rory, que fizesse todo o possível para nos impedir de sair, mas o confronto irrompera de modo tão rápido, tão
feroz, que ele não disse uma palavra. Escorei minha sobrinha com o braço e, antes que ele soubesse que bicho o mordera, já estávamos em meu carro; dei uma ré e deixamos a rua Hawthorne para sempre.
Rumo ao Norte
Aurora não estava em condições de viajar, mas, quando sugeri pararmos em algum hotel e esperar a febre ceder, ela sacudiu a cabeça e insistiu para pegarmos o primeiro vôo com destino a Nova York.
“O David é esperto”, ela disse. “Se ficarmos por aqui mais um tempo, nem que sejam umas poucas horas, ele nos acha. Pode ter certeza. Me dê uns comprimidos de Advil ou coisa parecida que eu agüento.”
Comprei então o Advil para ela, embrulhei-a no meu casacão, aumentei o aquecimento do carro e fui direto para o aeroporto. Eu havia chegado por Greensboro, de manhã, mas, como era muito provável que Minor
fosse nos procurar nesse aeroporto, Rory achou melhor partirmos de Raleigh-Durham. Isso significou viajar mais cento e sessenta quilômetros e ela dormiu durante as duas horas inteiras que ficamos na estrada.
Depois de quatro comprimidos e uma longa soneca, acordou se sentindo melhor. Ainda bem abatida e um tanto pálida, mas a febre pelo visto havia cedido. Após mais uma dose de Advil e dois copos de suco de
laranja no aeroporto, sentiu-se forte o bastante para falar — e foi justamente o que fizemos durante as muitas horas seguintes: do instante em que nos sentamos na sala de embarque até o momento em que
saltamos de um táxi amarelo em frente a minha casa no Brooklyn, aquela noite.
“Foi tudo culpa minha”, ela disse. “Estava na cara que ia dar no que deu, já fazia um bom tempo, mas eu me sentia fraca demais para reagir, nervosa demais para me defender. É isso que acontece quando a
gente acha que a outra pessoa é melhor — pára de pensar com a própria cabeça e daí a pouco não manda mais nem na própria vida. A pessoa não percebe, tio Nat, mas quando vê está fodida. Está absolutamente
fodida.
“Meu primeiro grande erro foi ter virado as costas para o meu irmão. Depois que saí da clínica de reabilitação, David e eu deixamos a Califórnia e viemos para o Leste com a Lucy. Moramos com a mãe dele
em Filadélfia durante seis meses e foi tudo uma maravilha, uma época fantástica. Eu era louca por ele. Nunca ninguém tinha sido tão bom para mim e a sensação era que com ele eu estava protegida; por mais
incrível que fosse, aquele homem inteligente e decente sabia de fato quem eu era. Éramos ambos sobreviventes. Já havíamos passado por um bocado de coisas, e lá estávamos, depois de tantos altos e baixos,
ainda capazes de cuidar da própria vida, prestes a nos casar...
“Um belo dia, resolvi ir a Nova York ver o Tom, e tenho de confessar que foi meio deprimente. Ele tinha engordado vários quilos, largara a faculdade, estava trabalhando de motorista de táxi e para completar
foi meio rabugento comigo, pelo menos no começo. Na verdade, não era para menos. Eu tinha passado tanto tempo sem me comunicar. Claro que ele devia estar magoado. Não havia desculpa. Eu lá na Califórnia,
zanzando aquele tempo todo, me ferrando aos poucos, e sem coragem de pegar o telefone e ligar. Tentei explicar, mas não adiantou grande coisa. Bom, mas o fato é que Tom continuava sendo meu irmão mais
velho. Eu ia me casar e queria que ele entrasse comigo na igreja — do mesmo jeito como você fez com a mamãe, quando ela se casou. Ele disse que teria muito prazer em me levar e, de repente, era como se
os velhos tempos estivessem de volta. Comecei a me sentir feliz de fato. Havia recuperado meu irmão. Ia me casar com David. E Lucy, a minha maravilhosa Lucy, estava morando de novo com a mãe dela — com
a cretina da mãe dela que, pelo visto, começava a crescer e amadurecer. Que mais eu poderia pedir? Eu tinha tudo o que queria, tio Nat. Tudo...
“Aí tomei um ônibus de volta a Filadélfia e quando contei a David sobre o convite feito a Tom, para o casamento, ele disse que era impossível, que estava fora de cogitação. Tinha pensado muito a respeito
e decidido que meu irmão era má influência. Se eu quisesse levar adiante o casamento, teria de cortar todos os laços com meu passado. Não só com os amigos, com toda a família também. Mas que história é
essa?, perguntei. Eu amo meu irmão. Ele é uma criatura excelente. David entretanto não quis nem saber. Estávamos começando uma vida nova juntos, ele disse, e a menos que eu rompesse com tudo o que havia
me corrompido no passado eu acabaria voltando aos velhos hábitos. Eu tinha de escolher. Era tudo ou nada, ele me disse. Um ato de fé ou um ato de rebeldia. A vida com Deus ou a vida sem Deus. Casamento
ou não. Marido ou irmão. David ou Tom. Um futuro cheio de esperança ou uma volta infeliz ao passado...
“Eu devia ter feito pé firme. Eu devia ter dito a ele que não ia engolir aquela baboseira e que, se ele achava que podia se casar comigo sem convidar meu irmão, então não haveria casamento nenhum — e ponto
final. Mas não fiz isso. Não revidei e, ao ceder terreno daquela forma, teve início o começo do fim. Ninguém pode abrir mão do poder que tem sobre si mesmo, nem quando acha que o outro sabe o que é melhor.
Foi isso que acabou comigo. Era mais que apenas medo de perder David. Muito pior era achar que provavelmente ele tinha razão. Eu gostava de Tommy, mas o que eu havia lhe dado até ali, a não ser um monte
de problemas e aflições? Talvez fosse melhor romper todos os laços e deixá-lo sossegado. Talvez ele ficasse bem melhor se nunca mais me visse...
“Não, David nunca me bateu. Ele nunca bateu em Lucy e nunca me bateu. Ele não é uma pessoa violenta. O negócio dele é falar. Falar, falar e falar. E depois falar um pouco mais. Ele esgota qualquer um com
os argumentos que dá. Ele tem uma voz muito bondosa, muito razoável, sabe se expressar muito bem, e meio que suga você para dentro do cérebro dele — é quase uma hipnose. Foi o que me salvou na clínica
de reabilitação de Berkeley. A maneira como ele falava o tempo inteiro comigo, me olhando nos olhos com aquela expressão de quem está preocupado de fato, falando com aquela sua voz suave e ao mesmo tempo
firme. É difícil resistir, tio Nat. Ele entra dentro da cabeça da gente e, depois de um tempo, a gente começa a achar que ele não pode estar enganado a respeito de nada...
“Sei que Tom ficou preocupado. Teve medo que eu me tornasse uma daquelas patrulheiras fundamentalistas, mas não sou talhada para esse tipo de coisa. David nunca parou de me doutrinar, mas eu só fingi aceitar.
Se ele queria acreditar nessa porcariada — bem, ótimo, eu não me incomodava. Isso o deixava feliz e eu nunca vou ser contra algo que deixa uma pessoa feliz. Ouvi a conversa de vocês e o que ele disse é
verdade. David não é muito chegado nos desvarios verborrágicos do fundamentalismo. Ele acredita em Jesus e na vida após a morte, mas, comparado com certas coisas em que outras pessoas acreditam, não é
linha-dura. O problema é que acha que pode ser um santo. Ele quer ser perfeito...
“E assim foi. É, eu ia à igreja com ele todo bendito domingo. Não tinha muita escolha, certo? Mas não era tão ruim assim, ao menos não enquanto moramos em Filadélfia. Eu cantava no coro e você sabe que
eu adoro cantar. Aqueles hinos são a coisa mais xarope deste mundo, mas ao menos eu tinha a chance de exercitar meus pulmões uma vez por semana e, desde que David não me empurrasse goela abaixo aquela
história de Jesus com muito empenho, não chegava a ser, digamos, um martírio. Às vezes acho que, se tivéssemos ficado em Filadélfia, teria dado tudo certo. Mas estava difícil encontrar um emprego decente.
Eu tinha conseguido uma colocação de meio período para servir mesas numa lanchonete vagabunda e o melhor que o David arrumou foi um emprego de vigia noturno num prédio de escritórios na rua Market. Íamos
às nossas reuniões do Narcóticos Anônimos; não bebíamos mais; Lucy gostava da escola onde estava; a mãe de David era meio biruta mas legal, no fundo — só que nós não estávamos conseguindo ganhar o suficiente
naquela cidade. Foi quando apareceu uma oportunidade na Carolina do Norte e David aceitou correndo. A loja de ferragens. As coisas melhoraram bastante, depois, mas cerca de um ano e meio atrás ele conheceu
o reverendo Bob e, de repente, tudo ficou bem pior do que estava...
“David tinha só seis anos quando o pai morreu. Não estou dizendo que a culpa é dele por ter morrido, mas acho que dali para a frente o David tentou desesperadamente arranjar um substituto. Uma figura paterna
que representasse autoridade. Alguém forte o bastante para acolhê-lo debaixo das asas e guiá-lo pela vida afora. Deve ter sido por isso que ele entrou para o corpo de fuzileiros navais logo depois do colegial,
em vez de ir fazer faculdade. Você conhece a história, o cara obedece ao Pai País e o Pai País cuida do cara. E nosso Pai País cuidou direitinho de David. Mandou ele direto para a Guerra do Golfo, fez
o serviço completo. Fodeu com a cabeça dele. Depois foi só uma questão de se largar e rolar ladeira abaixo durante alguns anos, até acabar na heroína. Mas isso você já sabe. Escutei quando ele contou hoje
cedo, mas o mais interessante, para mim, foi como ele deixou o vício. Em vez de seguir a linha do A.A., aquela coisa de confiar num poder mais alto, ele vai direto para a religião mesmo, de fato. Ele sobe
até lá bem no alto e consegue o maior pai de todos. Consegue o Senhor Deus. O desgraçado do Senhor Deus, o dirigente do universo. Mas isso só não basta, porque você pode conversar com o seu Deus e torcer
para que ele ouça o que você diz, mas, a menos que o cérebro esteja sintonizado na Rede Esquizofrênica vinte e quatro horas por dia, Deus não vai responder. Por mais que você reze, não vai escutar um pio
da boca do Pai. Por mais que você estude as palavras dele na Bíblia; além do mais a Bíblia é só um livro e os livros não falam, correto? Porém o reverendo Bob fala e, depois que você começa a escutá-lo,
percebe que ele é o tal. Ele é o pai que você procurava, um pai em carne e osso e, toda vez que ele abre a boca, você se convence de estar recebendo instruções direto da boca do chefão. Deus fala através
dele e toda vez que ele diz alguma coisa, é melhor obedecer, porque senão...
“Ele deve ter uns cinqüenta e poucos anos, imagino. Alto, bem magro, com um nariz comprido, casado com uma vaca gorda chamada Darlene. Não sei quando foi que ele começou com o Templo do Santo Verbo, só
sei que não é uma igreja normal, como aquela que nós freqüentávamos em Filadélfia. O reverendo se diz cristão, mas não explica de que tipo e eu não tenho certeza nem se ele dá mesmo bola para assuntos
religiosos. Tudo gira em torno de controlar os outros, de levá-los a fazer coisas estranhas, autodestrutivas, sempre acreditando que estão a serviço da vontade de Deus. Para mim ele é uma grande fraude,
um grandessíssimo de um vigarista, mas tem um bando de seguidores na palma da mão e eles o adoram, todos eles o adoram; David mais do que ninguém. O que anima a congregação são as novidades que ele inventa,
as freqüentes transformações da mensagem. Num domingo ele discorre sobre os males do materialismo, dizendo que devemos evitar as posses mundanas e viver em sagrada pobreza, como o filho de nosso amado
Senhor. No domingo seguinte a coisa muda para o trabalho árduo e ele nos diz que devemos ganhar o máximo de dinheiro que pudermos. Um dia eu disse a David que o achava um doido varrido e que não queria
mais expor Lucy àquelas bobagens. Só que David já fora convertido e não me deu ouvidos. Dois ou três meses depois, o reverendo Bob de repente resolve que não podemos mais cantar nos cultos de domingo.
Cantar é uma ofensa aos ouvidos de Deus, ele diz, e dali em diante teríamos de adorá-lo em silêncio. Para mim, essa foi a gota d’água. Foi quando eu disse a David que Lucy e eu iríamos sair da igreja.
Ele que continuasse freqüentando o templo quanto quisesse, mas nós nunca mais pisaríamos lá. Foi a primeira vez que finquei pé numa questão desde o dia em que nos casamos — e não me serviu para nada. Ele
fingiu entender, mas as regras mandavam que todos os membros das famílias da congregação assistissem aos cultos de domingo. Se eu saísse, ele seria excomungado. Bem, disse eu, então invente que Lucy e
eu estamos doentes, que temos uma doença fatal e não podemos levantar da cama. David me deu um daqueles seus sorrisos tristes de superioridade. Mentir é pecado, ele falou. Se não dissermos a verdade o
tempo inteiro, nossas almas serão barradas nas portas do céu e jogadas às entranhas dos infernos...
“E assim foi que continuamos indo ao culto e dali a cerca de um mês o reverendo Bob surgiu com mais uma grande idéia. A cultura secular estava destruindo o país, ele disse, e a única forma de desfazermos
os danos era rejeitar tudo o que ela tinha a oferecer. Foi quando começaram os chamados Éditos Dominicais. Primeiro, todo mundo teve de se desfazer dos aparelhos de televisão. Depois foram os rádios. Em
seguida os livros — todos os livros existentes na casa, à exceção da Bíblia. Depois foi a vez dos telefones. Em seguida dos computadores. Depois de CDs, fitas e discos. Dá para imaginar uma coisa dessas?
Não havia mais música, tio Nat, não havia mais romances, não havia mais poesia. Tivemos de cancelar até as assinaturas de revistas. E jornais. Depois fomos proibidos de ir ao cinema. O imbecil estava ensandecido
mas, quanto mais sacrifícios ele exigia da congregação, mais o pessoal parecia gostar. Até onde eu sei, nem uma única família largou a seita...
“Depois que nós nos livramos de tudo, que não sobrou mais nada, o reverendo parou com os ataques dele contra a cultura e a mídia e passou a martelar o que ele chamava de “questões cruciais”. Toda vez que
conversávamos, nós abafávamos a voz de Deus. Toda vez que escutávamos as palavras dos homens, negligenciávamos as palavras de Deus. Dali em diante, ele disse, todos os integrantes da igreja com mais de
catorze anos passariam um dia por semana em silêncio absoluto. Dessa forma, conseguiríamos restabelecer nossa ligação com Deus, poderíamos ouvi-lo falando dentro de nossa alma. Depois de tudo o que ele
já havia atrofiado em nossas vidas, essa última exigência parecia até que bem branda...
“O David trabalha de segunda a sexta, de modo que escolheu o sábado para ser seu dia de silêncio. O meu era na quinta, mas, como eu ficava sozinha em casa até Lucy chegar da escola, podia fazer o que me
desse na telha. Eu cantava, falava sozinha e rogava pragas em altos brados contra o todo-poderoso reverendo Bob. Mas, assim que Lucy e David cruzavam a soleira da porta, eu tinha de fazer meu teatro. Eu
servia o jantar em silêncio, punha Lucy para dormir em silêncio, dava um beijo silencioso de boa-noite em David. Até aí, tudo bem. E então, cerca de um mês depois de iniciada essa rotina, Lucy cismou de
seguir meu exemplo. Ela tinha só nove anos. Nem mesmo o reverendo Bob estava pedindo para que as crianças guardassem silêncio, mas a minha filhinha me amava tanto que queria fazer tudo o que eu fazia.
Durante três sábados consecutivos, ela não disse uma palavra. Não adiantou nada eu implorar para ela parar com aquilo. Ela é superinteligente, tio Nat, mas às vezes também é superteimosa, e você sabe disso.
Já passou pela experiência, por isso sabe que, quando ela resolve uma coisa, fazê-la retroceder é mais ou menos como tentar mudar um edifício de lugar. Por incrível que pareça, David tomou meu partido,
mas acho que uma parte dele sentiu tamanho orgulho por ela estar agindo feito adulta que acabou não sendo nem muito enérgico nem muito convincente. De toda forma, era assunto meu. Aquilo era comigo. E
então eu disse a David que precisava falar com o reverendo Bob. Se ele me liberasse dos silêncios da quinta-feira, isso aliviaria a consciência de Lucy e ela voltaria a ser a mesma criança de sempre...
“O David quis ir à reunião junto comigo, mas eu disse que não, que precisava ver o reverendo sozinha. Para ter certeza de que meu marido não iria se intrometer na questão, marquei o encontro para o sábado,
dia em que David não podia falar. Só me leve até a casa do reverendo, eu pedi, e espere no carro. Não vai demorar muito...
“O reverendo Bob estava à escrivaninha, dando os toques finais no sermão que iria fazer na manhã seguinte. Sente-se, minha filha, ele me disse, e me conte qual é o problema. Eu expliquei a ele o que estava
acontecendo com Lucy e por que achava que ele nos prestaria um enorme favor se me liberasse dos silêncios das quintas-feiras. Hum, ele fez. Hum. Vou ter de pensar no assunto. Dou minha decisão até o fim
da semana que vem. Ele me olhava bem nos olhos e, toda vez que falava, as sobrancelhas espessas tremelicavam de um jeito gozado. Obrigada, eu disse. Sei que o senhor é um homem sábio e que terá coragem
de quebrar as regras para ajudar uma criança. Eu não ia dizer a verdade para ele, claro. Querendo ou não, eu fazia parte daquela merda e tinha que fingir que acreditava na baboseira. Para mim, a conversa
havia terminado, mas quando me levantei para partir ele esticou o braço direito e me fez sinal para voltar a sentar. Estive observando você, mulher, ele falou, e quero que saiba que obteve altas notas
em todas as frentes. Você e o Irmão Minor são pilares desta comunidade e estou seguro de que posso contar com ambos para me seguir em todas as questões, tanto sagradas como profanas. Profanas?, eu repeti.
O que quer dizer com profanas? Como você certamente já sabe, disse-me o reverendo, minha mulher Darlene não pode ter filhos. Agora que atingi uma certa idade, comecei a pensar sobre meu legado e acho que
será uma tragédia deixar esta terra sem ter produzido um herdeiro. Sempre existe a possibilidade de adotar, eu falei. Não, respondeu ele, adoção não serve. Preciso fazer um filho de minha própria carne,
um descendente do meu próprio sangue que continue o trabalho que eu iniciei aqui. Estive observando você, mulher, e de todas as almas do meu rebanho, você é a única digna de carregar minha semente. Do
que está falando?, perguntei. Eu sou casada. Amo meu marido. Sim, eu sei disso, ele insistiu, mas pelo bem do Templo do Santo Verbo, estou lhe pedindo para divorciar-se dele e casar comigo. Mas o senhor
é casado, eu falei. Ninguém pode ter duas mulheres, reverendo Bob, nem mesmo o senhor. Não, claro que não, ele disse. Nem é preciso dizer que eu também pedirei o divórcio. Preciso pensar a respeito, falei.
Está tudo acontecendo depressa demais, não sei o que dizer. Minha cabeça gira, minhas mãos tremem e me sinto totalmente confusa. Não se preocupe, minha filha, me disse o reverendo. Leve o tempo que precisar.
Mas só para que você compreenda os prazeres que a esperam, tenho algo que gostaria que visse. O reverendo então se pôs de pé, deu a volta até ficar diante da escrivaninha e baixou o zíper da calça. Ele
estava parado bem na minha frente e aquela braguilha aberta não estava nem a sessenta centímetros do meu rosto. Olhe só para isto, ele disse, e então tirou o pau para fora e me mostrou. Para ser sincera,
era um pau colossal — muito maior do que se poderia imaginar, pendurado lá no meio das pernas de um sujeito magricela feito ele. Eu já vi muito homem pelado na vida e, pelo comprimento e pelo diâmetro,
tenho de colocar a unidade do reverendo junto dos dez por cento do topo. Era um pau de tamanho pornográfico, se é que você me entende, mas, na minha opinião, sem o menor atrativo. Era um treco duro, vermelho-arroxeado,
todo cheio de veias por causa da ereção e, ainda por cima, meio virado para a esquerda. Um pau grande e nojento que pertencia a um homem que me enojava ainda mais. Acho que até poderia ter saído correndo
dali, mas no fundo, em algum lugar da mente, sabia que o cretino me oferecia uma oportunidade de ouro e que, em troca de alguns poucos momentos repelentes, eu poderia nos libertar de todos os idiotas daquela
igreja...
“Este é o osso sagrado, me falou o reverendo, balançando o pau duro na minha cara. Deus me deu este dom glorioso e a semente que dele jorra é capaz de engendrar a vida de anjos. Pegue-o em suas mãos, Irmã
Aurora, e sinta o fogo que corre em suas veias. Ponha-o na boca e experimente a carne com que o bom Senhor me agraciou...
“Fiz o que ele queria, tio Nat. Fechei os olhos, enfiei na boca aquela vara enorme cheia de veias dilatadas e chupei. Foi horrível. Com o coitado do meu nariz grudado naquela virilha malcheirosa, o pobre
do estômago revirado, mas eu sabia o que estava fazendo, me sentia até contente. Quando ele ia gozar, tirei o pau dele da boca e terminei o serviço com a mão, tomando todo o cuidado para que as preciosas
sementes dele fossem direto para a minha blusa. Essa seria a minha prova, era tudo de que eu precisava para derrubar o filho-da-puta. Lembra do caso Monica e Bill? Lembra do vestido? Pois bem, agora eu
tinha minha blusa e ela era tão boa quanto uma arma, tão boa quanto um revólver carregado...
“Quando entrei no carro, estava chorando. Não sei bem se eram lágrimas de verdade ou não, mas eu chorava. Falei para o David dar a partida. Ele parecia nervoso mas, como precisava guardar silêncio até
a manhã do dia seguinte, não tinha como me fazer perguntas. E foi nessa hora que eu percebi que a coisa tanto podia ir numa direção como noutra. Eu estava prestes a lhe dizer que o reverendo Bob havia
me estuprado. Se ele falasse, significava que se importava mais comigo do que com o maldito Templo do Santo Verbo. Nós poderíamos entregar a blusa para a polícia, fazer um teste de DNA e o reverendo seria
cozido num tacho de óleo fervente. Mas e se David não quisesse falar? Significava que eu não era nada para ele, que meu marido preferia ficar com seu Pai substituto. E eu não tinha muito tempo para agir.
Se David me deixasse na mão, seria necessário parar de pensar em mim. Lucy precisava ser salva e a única forma de fazer isso era tirá-la da Carolina do Norte. Não no dia seguinte nem na semana seguinte,
e sim naquele instante, naquele minuto, no primeiro ônibus que partisse para Nova York...
“Depois de termos rodado uns cem metros eu contei tudo. O filho-da-mãe me estuprou, falei. Olhe para minha blusa, David. Isto aqui é o sêmen do reverendo Bob. Ele me agarrou e não quis me soltar. Ele me
forçou e eu não tive força suficiente para afastá-lo. David levou o carro até o meio-fio e parou. Por alguns momentos, pensei que ele estivesse do meu lado e me senti mal por ter duvidado dele, envergonhada
de não ter confiado. Ele estendeu a mão e tocou em meu rosto, com aquele seu olhar doce e pesaroso, o mesmo olhar bonito e terno pelo qual eu tinha me apaixonado na Califórnia. Este é o homem com quem
eu me casei, falei comigo mesma, e ele ainda me ama. Mas eu estava errada. Ele pode até ter sentido pena de mim, mas nada o faria interromper seu silêncio e desobedecer às ordens sagradas do reverendo
Bob. Fale comigo, eu disse. Por favor, David, abra a boca e fale comigo. Ele abanou a cabeça e eu comecei a chorar de novo, e dessa vez foi de verdade...
“Continuamos em frente e depois de um minuto ou dois consegui me controlar o suficiente para lhe dizer que iríamos mandar Lucy para o Norte, para morar com meu irmão Tom no Brooklyn. Se ele não fizesse
exatamente o que eu mandava, a blusa iria parar na polícia, eu prestaria queixa contra o reverendo Bob e nosso casamento estaria terminado. Você quer continuar casado comigo, não quer?, perguntei. David
fez que sim com a cabeça. Então, disse eu, o trato é o seguinte. Primeiro, nós vamos apanhar Lucy em casa. Depois vamos ao caixa automático mais próximo e tiramos duzentos dólares. Em seguida vamos ao
terminal de ônibus e compramos um bilhete só de ida para ela até Nova York com seu cartão MasterCard. Depois nós a colocamos no ônibus, entregamos o dinheiro a ela e lhe damos um beijo de adeus. Isso é
o que você fará por mim. E o que eu vou fazer por você é o seguinte: assim que o ônibus deixar o terminal, eu lhe dou esta blusa com as manchas de porra do seu grande herói e você então poderá destruir
a prova para salvar a pele daquele imbecil. Também prometo continuar com você, mas com uma condição: que eu nunca mais tenha que chegar nem perto daquela igreja de novo. Se você tentar me arrastar junto,
nem que seja uma só vez, eu sumo da sua vida, sumo para sempre...
“Eu não quero falar sobre o que foi dar adeus a Lucy. Dói demais lembrar disso. Eu já tinha dito adeus a ela, quando fui para a clínica de reabilitação, mas foi diferente. Da segunda vez a impressão é
que era o fim do mundo e não consegui fazer mais do que abraçá-la, enquanto tentava não desmoronar, e lembrá-la de dizer a todos que eu estava bem. É pena que ela tenha perdido a carta que escrevi para
Tom. Naquela carta eu explicava muita coisa e deve ter sido bem esquisito vê-la aparecer sem nada, de mãos vazias. Também tentei ligar para Tom do terminal rodoviário, mas foi tudo tão às pressas, eu não
tinha moedas suficientes comigo e acabei fazendo uma ligação a cobrar. Ele não estava em casa, mas ao menos tive a confirmação de que continuava no mesmo endereço. Talvez eu tenha agido como uma louca,
naquele dia, mas jamais mandaria Lucy para Nova York sem saber exatamente onde Tom morava...
“Só não entendi essa história de Carolina Carolina. Eu nunca disse para ela não contar onde eu estava. Por que eu faria isso? Eu estava mandando minha filha para morar com o meu irmão — nunca me passou
pela cabeça que ela não iria dizer nada sobre Winston-Salem. Pobre criança. O que eu disse a ela foi: Só lhe diga que eu estou bem, que está tudo certo comigo. Eu devia ter imaginado. Lucy leva tudo muito
ao pé da letra, é bem provável que tenha achado que quando eu disse só estava querendo dizer que essa era a única coisa que ela devia contar. Lucy sempre foi assim. Quando estava com três anos, começou
a freqüentar uma escola maternal durante algumas horas, pela manhã. Depois de umas duas, três semanas, a professora me ligou dizendo que estava preocupada com a Lucy. Quando chegava a hora de tomar o leite,
ela ficava sempre por último e só pegava sua caixinha depois que todas as outras crianças já tinham pegado a delas. A professora não entendia. Vá pegar seu leite, ela dizia a Lucy, mas todas as vezes Lucy
ficava rodeando até sobrar uma única caixinha. Eu levei um tempo para entender. É que Lucy não sabia qual caixinha era a do seu leite. Ela achava que as outras crianças todas sabiam qual caixinha de leite
era a delas e, se aguardasse até sobrar uma só, então a última caixinha seria a dela. Entende do que eu estou falando, tio Nat? Ela é meio esquisita — mas de uma esquisitice inteligente. Diferente dos
outros. Se eu não tivesse dito a palavra só, vocês saberiam onde eu estava o tempo todo...
“Por que eu não liguei de novo? Porque não podia. Não, não porque nós não tínhamos um telefone em casa — e sim porque eu estava presa. Eu tinha prometido que não largaria dele, mas o David não confiava
mais em mim. Assim que entramos em casa, voltando do terminal de ônibus, ele me levou lá para cima, para o quarto de Lucy, e me trancou. Exatamente, tio Nat, ele me trancou e me manteve lá dentro o resto
do dia e a noite toda. Quando voltou a falar, na manhã seguinte, disse que eu precisava ser castigada por ter mentido a respeito do reverendo Bob. Mentido?, eu falei. De que diabo ele estava falando? Não
tinha havido estupro nenhum, ele respondeu. Eu só tinha insistido em ir sozinha falar com o reverendo porque pretendia seduzi-lo — e o pobre homem não fora capaz de resistir aos meus encantos. Obrigada,
David, eu disse. Obrigada por acreditar em mim e entender que boa esposa eu tenho sido para você...
“Naquele mesmo domingo, um pouco mais tarde, ele fechou as janelas do quarto com tapumes de madeira. Quer dizer, de que serve uma prisão se o preso pode se esgueirar por uma janela, certo? Depois, muito
bondosamente, meu querido marido levou lá para cima tudo quanto havíamos guardado no porão, depois dos Éditos Dominicais do reverendo Bob. A televisão, o rádio, o toca-CD, os livros. Mas isso não é contra
o regulamento?, perguntei. É, me disse ele, mas eu conversei com o reverendo depois do culto, hoje de manhã, e ele me deu uma dispensa especial. Quero tornar tudo o mais confortável possível para você,
Aurora. Gente do céu, eu falei, e por que tanta bondade? Porque eu amo você, David falou. Você cometeu um ato muito feio, ontem, mas isso não quer dizer que eu não ame mais você. E, para me mostrar a pureza
desse amor, ele voltou minutos depois com um enorme caldeirão para que eu não precisasse mijar e cagar no chão. Por falar nisso, ele acrescentou, você vai ficar feliz de saber que foi excomungada do Templo.
Você caiu fora, mas eu continuo membro. Estou arrasado. Acho que este está sendo o dia mais triste de toda a minha vida...
“Não sei qual era o problema comigo, mas a situação toda me parecia uma piada; eu não conseguia levar aquilo a sério. Na minha cabeça, iria durar mais alguns dias e depois eu iria me separar. Com ou sem
promessa, eu não iria ficar ali nem um segundo a mais do que o necessário...
“Porém os dias viraram semanas e as semanas viraram meses. David percebia meu raciocínio e jamais aceitaria que eu me fosse. Só me deixava sair do quarto quando chegava em casa do trabalho, mas que chances
eu tinha de escapar naquelas horas? Ele me vigiava o tempo inteiro. Se eu tentasse correr para a porta, até onde conseguiria chegar? Dois passos adiante, no máximo. Ele é maior e mais forte que eu e bastaria
correr atrás de mim e me arrastar de volta. As chaves do carro ficavam guardadas no bolso dele, o dinheiro também, e eu só tinha um punhado de moedas encontradas numa das gavetas de Lucy. Continuei esperando,
torcendo por uma chance, mas só consegui escapulir de casa uma vez. Foi quando tentei ligar para Tom. Quando deixei aquele recado, lembra? Por algum milagre, David cochilou na sala, depois do jantar. Tem
um telefone público mais ou menos a dois quilômetros de casa e eu corri até lá o mais rápido que pude. Se ao menos eu tivesse tido peito de meter a mão no bolso de David para roubar as chaves do carro.
Mas eu não podia correr o risco de acordá-lo, de modo que desci a avenida a pé. David deve ter aberto os olhos uns dez minutos depois que eu saí e, nem é preciso dizer, ele desceu a avenida de carro. Que
fiasco. Não tive tempo nem de terminar de dar o maldito recado...
“Agora você já sabe por que eu pareço tão pálida, tão abatida. Fiquei trancada naquele quarto durante seis meses, tio Nat. Trancada feito um animal em minha própria casa durante seis meses. Eu assisti
televisão, li livros, ouvi música, mas o que mais fiz foi pensar em me matar. Se não levei o plano adiante foi porque eu tinha prometido a Lucy que um dia voltaria para buscá-la, que um dia nós moraríamos
juntas de novo. Mas, Deus do céu, não foi fácil, não foi nem um pouco fácil. Se você não tivesse aparecido esta tarde, não sei quanto tempo mais eu teria agüentado. É bem provável que eu tivesse acabado
morrendo dentro daquela casa. É assim simples, tio Nat. Eu teria morrido naquela casa e depois meu marido e o bom reverendo Bob teriam me tirado de lá no meio da noite e jogado meu corpo em alguma cova
sem nome.”
Vida nova
Por causa de minha amizade com Joyce Mazzucchelli, proprietária da casa da rua Carroll, que ela dividia com a filha, a B.M.P., e dois netos, fui capaz de encontrar nova morada para Aurora e Lucy. Havia
um quarto vazio no terceiro andar. Em outros tempos, servira de estúdio e oficina para Jimmy Joyce, mas como o sonoplasta e ex-marido de Nancy se fora, por que as duas não poderiam morar ali?, perguntei.
Rory não tinha emprego nem dinheiro, mas eu me dispunha a pagar pelo aluguel até ela se aprumar de novo, e como Lucy já tinha idade para dar uma mãozinha de vez em quando com as crianças, talvez tudo acabasse
funcionando a contento.
“Esqueça essa história de aluguel, Nathan”, me disse Joyce. “A Nancy precisa de uma assistente para ajudá-la na venda das jóias e, se a Aurora não se importar em auxiliar na limpeza e na cozinha, ela pode
ficar no quarto de graça.”
Bondade de Joyce. Nós já estávamos de caso havia mais de seis meses, e mesmo morando em casas diferentes, era muito rara a semana em que não passávamos ao menos duas ou três noites na mesma cama — a dela
ou a minha, dependendo do que o humor e as circunstâncias ditassem. Joyce era uns dois anos mais nova que eu, ou seja, uma coroa, já, mas aos cinqüenta e oito, cinqüenta e nove anos ainda tinha cartas
suficientes na manga para tornar as coisas interessantes.
Sexo entre pessoas de idade pode ter seus constrangimentos e suas cômicas longueurs, mas tem também uma ternura que muitas vezes escapa aos jovens. Os seios podem estar caídos, o pinto pode amolecer, mas
a pele continua sendo a sua pele e quando alguém de quem você gosta estende a mão para tocá-lo, ou o segura nos braços, ou lhe dá um beijo na boca, você ainda derrete inteiro do mesmo jeito como derretia
quando achava que iria viver para sempre. Joyce e eu não havíamos chegado ao dezembro da vida, mas não restava a menor dúvida de que maio já se fora havia tempo. O que tínhamos era uma tarde em meados
ou fins de outubro, um daqueles dias claros de outono, com um céu muito azul lá no alto, um ventinho cortante soprando meio gelado e um milhão de folhas ainda coladas aos galhos — quase todas secas, mas
com dourados, vermelhos e amarelos suficientes para deixar você com vontade de continuar ao ar livre por mais um tempinho.
Não, ela não era uma beldade como a filha e, com base em fotografias antigas que me mostrou, nunca tinha sido. Joyce atribuía a aparência física de Nancy ao falecido marido, Tony, um empreiteiro da construção
civil que morrera de ataque cardíaco em 1993. “Ele era o homem mais bonito que eu já vi em toda a minha vida”, ela me disse uma vez. “Cópia escarrada do Victor Mature.” Com seu forte sotaque do Brooklyn,
o nome do ator saiu da boca de Joyce soando mais ou menos como Victa Matchuá, como se o r tivesse se atrofiado até ser eliminado do alfabeto inglês. Eu adorava aquela voz vulgar, proletária, que me transmitia
a sensação de estar pisando em terreno seguro e, assim como tantas outras qualidades suas, me dizia que ali estava uma mulher sem pretensões, uma mulher que acreditava em quem era e no que era. E ela era
a mãe da Bela Mãe Perfeita, afinal de contas; como poderia ter criado uma moça como Nancy se não soubesse quem era e o que era?
À primeira vista, não tínhamos quase nada em comum. Havíamos sido criados de maneiras totalmente diferentes (ela católica, morando na zona urbana, eu judeu, morando nos arredores da cidade) e nossos interesses
divergiam a respeito de quase tudo. Joyce não tinha a menor paciência com livros, não lia nada, ao passo que eu evitava todo e qualquer exercício físico, almejando a imobilidade como o supra-sumo da boa
vida. Para Joyce, o exercício significava mais do que apenas um dever, significava prazer, e sua atividade preferida de fim de semana era levantar às seis da matina no domingo e ir passear de bicicleta
no parque Prospect. Ela continuava trabalhando e eu me aposentara. Ela era otimista, eu, um cínico. Ela tinha tido um bom casamento e o meu — mas chega desse assunto. Ela prestava pouca ou nenhuma atenção
ao noticiário e eu lia os jornais com o maior cuidado todos os dias. Na época em que fomos crianças, ela torcia pelo Dodgers e eu era fã do Giants. Ela gostava de massa e peixe, eu, de carne e batata.
E no entanto — e o que pode ser mais misterioso a respeito da vida humana do que esse no entanto? — nos dávamos a mil por hora. Eu senti uma atração imediata na manhã em que fomos apresentados (na avenida
Sete, por Nancy), mas só depois que tivemos nossa primeira longa conversa, após a cerimônia fúnebre de Harry, foi que compreendi que talvez houvesse uma faísca entre nós. Num acesso de timidez, adiei ligar
para ela, mas na semana seguinte ela me convidou para jantar em sua casa e o flerte começou.
E por acaso eu a amava? Sim, muito provavelmente sim. Na medida em que tinha capacidade de amar alguém, Joyce era a mulher certa para mim, a única candidata de minha lista. E, mesmo que não fosse aquela
paixão cem por cento gloriosa que supostamente define a palavra amor, era algo que ficava um tantinho só aquém — mas tão perto da marca que tornava a distinção sem sentido. Ela me fazia rir um bocado,
algo que os médicos dizem ser ótimo para a saúde tanto mental como física das pessoas. Ela tolerava minhas fraquezas e incoerências, agüentava meus ataques de rabugice, permanecia calma durante meus discursos
bombásticos contra o Partido Republicano, a CIA e Rudolph Giuliani. Ela me provocava com sua devoção cega ao time do Mets. Espantava-me com seu conhecimento enciclopédico sobre velhos filmes de Hollywood
e seu talento para identificar todo e qualquer ator já esquecido de segundo time que pintava na tela. (Olha lá, Nathan, olha o Franklin Pangborn... olha a Una Merkel... veja o Aubrey Smith.) Eu a admirava
pela coragem de me deixar ler trechos de O livro dos desvarios humanos em voz alta para ela e, depois, por tratar minhas histórias tão triviais como literatura de primeira linha, naquela sua ignorância
bem-intencionada. Sim, eu a amava na medida em que me permitiam as leis (as leis de minha natureza), mas estaria preparado para passar o resto da vida a seu lado? Será que eu queria vê-la todos os dias
da semana? Estaria apaixonado o bastante para dar o grande passo? Eu não tinha certeza. Depois do longo desastre com Nome Apagado era compreensível minha hesitação perante a possibilidade de tentar de
novo. Porém Joyce era mulher e, uma vez que a vasta maioria das mulheres prefere a condição de casada à de solteira, achei que devia demonstrar a seriedade de minhas intenções. Num dos momentos mais sombrios
daquele outono — dois dias depois de Rachel ter abortado naturalmente, quatro dias depois de Bush ter vencido ilegalmente a eleição e doze dias antes de Henry Peoples localizar a desaparecida Aurora —
cedi e pedi Joyce em casamento. Para minha grande surpresa, a proposta foi saudada com vaias e gargalhadas. “Ora, Nathan”, disse-me Joyce, “não seja assim tão bobão. Nós estamos muito bem assim. Por que
entornar o caldo e criar problemas que não existem? Casamento é para gente jovem, para garotos que querem ter filhos. Nós já fizemos essa parte. Estamos livres. Podemos trepar por aí feito um casal de
adolescentes e nunca vamos engravidar. É só assobiar, amigo, que meu bundão italiano é todo seu, combinado? Você fica com a minha bunda e eu fico com o seu belo você-sabe-o-quê de ídiche. Você é meu primeiro
judeu, Nathan, e agora que estacionou na minha porta, não vou deixá-lo escapar. Sou toda sua, amoreco. Mas esqueça essa história de casamento. Eu não quero mais fazer papel de esposa e você, você é muito
engraçado e muito doce, mas daria um péssimo marido...”
Apesar dessas palavras duras, Joyce começou a chorar momentos depois — de repente toda nervosa, perdendo o controle de suas emoções pela primeira vez desde que eu a conhecera. Supus que estivesse pensando
no marido morto, em seu Tony, lembrando do homem a quem havia dito sim quando era pouco mais que uma menina, do marido que se fora aos cinqüenta e nove anos, apenas, do amor de sua vida. Talvez fosse esse
o caso, mas o que ela me disse foi bem diferente. “Não pense que eu não gostei do seu gesto, Nathan. Você foi a melhor coisa que me aconteceu nos últimos tempos e agora você me vem com esta. Eu não vou
esquecer nunca, meu anjo. Uma velha feito eu pedida em casamento. Não quero ficar me desmanchando toda, mas, menino, saber que você se importa tanto assim me pegou bem aqui dentro.”
Senti alívio de saber que a comovera a ponto de produzir aquelas lágrimas. Significava que havia algo de sólido entre nós, uma ligação que não se romperia dali a pouco. Mas também preciso admitir que senti
alívio quando Joyce recusou meu pedido. Eu havia encenado meu grande gesto mas, para ser totalmente sincero, não tinha muita certeza se queria mesmo me casar; e ela me conhecia bem o bastante para entender
que eu daria, de fato, um péssimo marido. Em suma, nenhum de nós tinha que se meter nessa história de casamento. E assim, parafraseando as palavras do imortal professor Pangloss, saíra tudo às mil maravilhas
— e pela primeira vez pude assobiar chupando cana.
• • • •
Joyce enxugou as lágrimas e duas semanas depois Aurora e Lucy estavam morando na casa dela. Foi um arranjo sensato para todas as partes envolvidas, mas mesmo a lógica exigindo que mãe e filha voltassem
a viver juntas, é preciso não esquecer como foi difícil para Tom e Honey abrir mão da pequena. Foram meses cuidando de Lucy; os três já haviam formado uma pequena e sólida família. Eu sentira a mesma pontada
de dor na hora de entregá-la para Tom e Honey, no verão, e Lucy só tinha morado comigo umas poucas semanas. Quando pensei nos cinco meses e meio que eles haviam passado juntos, não me restou alternativa
senão sentir pena — por mais felizes que estivéssemos por Aurora ter chegado sã e salva ao Brooklyn. “Ela precisa viver com a mãe”, eu disse para Tom, tentando ser filosófico a respeito do assunto. “Mas
uma parte de Lucy continua sendo nossa, de cada um de nós. Ela é nossa também e nada jamais poderá mudar isso.”
No entanto, por mais difícil que tenha sido perdê-la, aquela breve incursão pelo terreno filial convenceu Tom e Honey de que deviam gerar seus próprios filhos. Naquela altura estavam preocupados com uma
série de assuntos práticos — negociavam a venda do imóvel de Harry, buscavam um apartamento para comprar e procuravam por toda a cidade uma colocação no magistério — mas, assim que essas tarefas foram
cumpridas, Honey jogou fora o diafragma e ambos se aplicaram com afinco ao dever noturno de tentar começar uma família. Em março de 2001, eles se mudaram para a rua Três, entre as avenidas Seis e Sete:
um apartamento arejado e cheio de luz no quarto andar, com uma sala de tamanho razoável na frente, cozinha de dimensões modestas e sala de jantar no meio, mais três quartos pequenos nos fundos (um dos
quais Tom converteu em escritório) distribuídos em torno de um hall estreito. Até se instalarem ali, o Brightman’s Attic já deixara de existir. Uma das condições impostas pelo comprador para fechar o negócio
fora a remoção completa dos livros, o que havia obrigado Tom, no início do ano, a liquidar todo o estoque antigo de Harry — um período estressante em sua vida. As brochuras foram vendidas por cinco ou
no máximo dez centavos de dólar, três volumes de capa dura custavam um dólar e o que ainda não havia sido vendido até 1o de fevereiro foi encaixotado e mandado para hospitais, órgãos beneficentes e bibliotecas
da marinha mercante. Eu ajudei nesses deveres lúgubres e, ainda que as raridades e as primeiras edições do andar de cima tenham levantado uma bela quantia em dinheiro (mesmo aos preços de liquidação que
Tom se dispôs a aceitar para transferir a coleção inteira a um único negociante de Great Barrington, Massachusetts), não foi nem um pouco divertido participar da demolição do império de Harry — sobretudo
quando eu soube o que o novo dono planejava fazer com o imóvel depois de vazio. Os livros dariam lugar a bolsas e sapatos femininos e os três andares de cima seriam reformados e convertidos em apartamentos
de luxo. A especulação imobiliária é a religião oficial de Nova York e seu deus veste um terno cinza de risca-de-giz e atende pelo nome de Dinheiro, Sr. Mais-e-Mais-Dinheiro. Se por acaso houve algum consolo
para mim nisso tudo foi saber que Tom e Rufus nunca mais passariam por dificuldades financeiras. Pela milésima vez desde que Harry morrera, meus pensamentos voltaram-se para ele — e para seu mergulho estrondoso
na grandiosidade eterna.
Numa quinta-feira à tarde, no começo de junho, Honey anunciou que estava grávida. Tom abraçou-a, depois debruçou-se sobre a mesa de jantar e perguntou se eu gostaria de ser o padrinho. “Você é nossa única
escolha”, ele disse. “Por serviços prestados, Nathan, acima e além do que exigia o dever. Pela coragem admirável no calor da batalha. Por ter arriscado a própria vida para resgatar debaixo de fogo cerrado
o companheiro ferido. Por insistir junto a esse mesmo companheiro ferido para que se reerguesse e entrasse nesta união conjugal. Em reconhecimento por atos tão heróicos, e pelo bem de nossa futura prole,
você merece um título mais adequado que o de tio-avô. Sendo assim, eu vos nomeio o padrinho — se vos dispuserdes a aceitar nossa humilde súplica para que aceiteis o manto dessa responsabilidade. Dizei
qual será vossa resposta, meu bom senhor. Aguardamos com o coração sobressaltado.” A resposta foi sim. Um sim seguido por uma longa tirada de resmungos que eu não seria capaz de reproduzir nem a pau. Depois
ergui minha taça à saúde deles e, não sei por que cargas d’água, meus olhos se encheram de lágrimas.
Três dias depois, Rachel e Terrence vieram de Nova Jersey para um brunch dominical em minha casa. Joyce me ajudou a preparar os acepipes e, quando estávamos os quatro sentados no quintal, devorando nossos
bagels com salmão defumado, reparei que fazia um bom tempo que eu não via minha filha tão bonita e feliz. O aborto do outono anterior fora uma decepção brutal e Rachel ficara muito abalada — encobria a
tristeza trabalhando demais no laboratório, preparando refeições sofisticadas em casa para provar ao marido que ainda valia como esposa apesar de não ter conseguido lhe dar um filho e, de modo geral, exaurindo
suas forças por tudo e por nada. Mas aquele dia, no quintal, o antigo brilho estava de volta em seus olhos e, ainda que normalmente muito reservada na presença de mais gente, manteve-se afiada na conversa
a quatro, falando tanto e tantas vezes quanto os demais. A certa altura, Terrence pediu licença para ir ao banheiro e momentos depois Joyce deu um pulo até a cozinha para pegar mais café. Rachel e eu ficamos
sozinhos. Beijei-a no rosto e lhe disse que estava muito bonita e ela respondeu ao elogio me dando um beijo de volta e recostando a cabeça em meu ombro. “Estou grávida de novo”, ela disse. “Fiz o teste
hoje de manhã e deu positivo. Tem um bebê crescendo dentro de mim, pai, e desta vez ele vai viver, prometo. Vou fazer de você um avô nem que tenha que passar os próximos sete meses deitada.”
Pela segunda vez em menos de setenta e duas horas, meus olhos de repente se encheram de lágrimas.
• • • •
As grávidas brotavam a minha volta e eu estava me transformando numa espécie de mulher também: numa criatura que chorava à simples menção de bebês, um cabeça-de-bagre lacrimoso que precisava sair com uma
caixa de lenços de papel para eventuais emergências e sobretudo para não constranger a mim mesmo em público. Talvez a casa da rua Carroll fosse em parte responsável pelos lapsos em meu decoro masculino.
Eu passava um bocado de tempo por lá e, depois que o marido de Nancy fora substituído por Aurora e Lucy, aquilo havia virado um universo totalmente feminino. Seu único representante masculino era Sam,
o filho de Nancy, mas como ele tinha três anos de idade e ainda mal falava, exercia uma influência bastante limitada nas operações domésticas. De resto, eram todas mulheres, três gerações de mulheres,
com Joyce no topo, Nancy e Aurora no meio, Lucy de dez anos e Devon de cinco na base. O interior daquela casa era um museu vivo de artefatos femininos, com galerias dedicadas a sutiãs e calcinhas, secadores
de cabelo e tampões, potes de maquiagem, tubos de batom, bonecas, cordas de pular, camisolas, bobes e grampos, ferros de frisar, cremes para o rosto e infindáveis, intermináveis, incalculáveis pares de
sapatos. Era como estar num país estrangeiro, mas, como eu adorava todos que moravam lá, aquela casa era meu lugar predileto nesta Terra.
Nos meses que se seguiram à fuga de Aurora da Carolina do Norte, uma série de coisas curiosas aconteceram chez Joyce. E, como a porta sempre estava aberta para mim, pude observar os tais dramas bem de
perto; e acompanhá-los com espanto e surpresa. Com Lucy, por exemplo, todas as apostas tiveram de ser canceladas. Durante sua estada na casa de Tom e Honey, eu havia ficado apreensivo, esperava encrencas
a qualquer instante. Além de ela haver prometido que seria “a menina mais malcriada, mais malvada e mais teimosa de todas as que existem no reino de Deus”, parecia inevitável que a ausência constante da
mãe acabasse por derrubá-la, transformando Lucy numa garota sorumbática, raivosa e desajustada. Mas não. Ela havia desabrochado naquele apartamento em cima da velha livraria de Harry e sua adaptação ao
novo ambiente continuara num ritmo notável. Até eu chegar de volta com Rory, o sotaque sulista se fora, Lucy crescera pelo menos uns dez, doze centímetros e se tornara uma das melhores alunas da classe.
É verdade que houve muitas noites de choro porque sentia saudade da mãe e, com a volta de Aurora, era de se presumir que nossa garota considerasse suas preces atendidas. Mais um erro meu. Houve uma onda
inicial de felicidade, logo depois do encontro, mas aos poucos os ressentimentos e hostilidades começaram a vir à tona e, até o fim do primeiro mês de vida em comum, nossa menina inteligente, esperta,
enérgica e engraçada havia se transformado num tremendo pé no saco. Portas batiam com estrondo; pedidos educados recebiam em troca escárnio e impertinência; gritos beligerantes sacudiam o terceiro andar;
irritações viravam amuos, amuos desembocavam em comoções, comoções, em lágrimas; as palavras não, idiota, cala a boca e não se meta na minha vida tornaram-se parte integrante do discurso diário. Com os
demais, a atitude de Lucy permaneceu inalterada. Apenas a mãe era o alvo das agressões, que, com o tempo, foram ficando cada vez mais implacáveis.
Ainda que para a frágil Aurora esse comportamento da filha fosse desanimador, comecei a perceber que se tratava de uma purgação necessária, de um sinal de que Lucy lutava ativamente por sua própria vida.
O que estava em jogo não era seu amor de filha. Lucy amava a mãe, mas essa mesma mãe adorada, numa tarde de confusões e loucuras, metera a própria filha dentro de um ônibus com destino a Nova York e nos
seis meses seguintes não dera notícias. Como é que uma criança poderia absorver acontecimentos tão invulgares sem achar que a culpa ao menos em parte é dela? Por que a mãe haveria de querer se livrar da
filha a menos que a filha fosse má, uma criatura indigna do amor materno? Sem ter a menor intenção, a mãe abrira uma ferida na alma da filha e como é que a ferida podia sarar se a filha não berrasse a
plenos pulmões e anunciasse para o mundo: está doendo; eu não agüento mais; socorro? A casa teria sido um lugar bem mais tranqüilo se Lucy tivesse calado o bico, mas prender aquele grito lhe acarretaria
um sem-número de problemas a longo prazo. Ela tinha de soltá-lo. Não havia outra forma de estancar o sangramento.
Fiz um esforço para ver minha sobrinha o máximo possível, sobretudo naqueles primeiros meses tão difíceis, quando ela ainda se debatia para encontrar seu espaço. Os horrores da Carolina do Norte haviam
deixado cicatrizes profundas e sabíamos que ela jamais se recuperaria por completo, sabíamos que, mesmo se saindo muitíssimo bem no futuro, o passado estaria sempre presente. Ofereci-me para lhe pagar
sessões regulares com um terapeuta, caso ela achasse que isso iria ajudar, mas ela disse que não, que preferia apenas conversar comigo. Comigo. O amargo solitário que se arrastara de volta ao Brooklyn
havia menos de um ano, o velho alquebrado que achava que não havia mais razão para viver — esta grande besta, Nathan, o Tolo, que não conseguia pensar em nada melhor para fazer do que esperar tranqüilo
a hora de bater as botas, transformado de repente em confidente e conselheiro, em amante de viúvas assanhadas, em cavaleiro errante a salvar donzelas em perigo. Aurora optou por conversar comigo porque
fui o único a ir até a Carolina do Norte para salvá-la e porque, mesmo tendo perdido contato havia muitos e muitos anos, eu continuava sendo tio dela, único irmão de sua mãe, e ela sabia que podia confiar
em mim. De modo que almoçávamos juntos várias vezes por semana e conversávamos, só nós dois, sentados numa mesa de fundos do diner New Purity da rua Sete, e pouco a pouco tornamo-nos amigos, da mesma forma
como o irmão dela e eu havíamos ficado amigos; com os dois filhos de June recuperados, foi como se minha irmã caçula tivesse voltado à vida e, como ela continuava presente em tudo, seus filhos se tornaram
meus filhos também.
A única coisa que Aurora nunca tinha contado à mãe, ao irmão, nem a mais ninguém da família era o nome do pai de Lucy. Ela havia guardado esse segredo durante tantos anos que me parecia irrelevante voltar
ao assunto, mas durante um de nossos almoços, no início de abril, sem eu ter cutucado nem nada, a resposta escapou por acaso.
Tudo começou quando lhe perguntei se ainda tinha a tatuagem. Rory largou o garfo, abriu um grande sorriso e disse: “Como é que você sabe sobre isso?”.
“Tom me contou. Uma grande águia no ombro direito, não é isso? Nós ficamos nos perguntando se você teria tirado a tatuagem, mas a Lucy não quis contar.”
“Continua no mesmo lugar. Tão grande e bonita quanto sempre foi.”
“E o David não achava ruim?”
“No fundo, não. Para ele, a tatuagem era um símbolo do meu passado fodido. Claro que ele quis que eu apagasse. Eu até topei fazer a vontade dele, mas, quando fui me informar, era caro demais. Quando ele
percebeu que não tínhamos condições de pagar a remoção, a guinada foi de cento e oitenta graus. O que aliás dá uma boa idéia de como ele pensa e também explica por que eu nunca consegui ganhar uma discussão.
Talvez seja uma boa coisa, ele me falou. Vamos deixar a tatuagem onde está e, toda vez que olharmos para ela, haveremos de nos lembrar da imensa distância que separa você dos dias malditos da juventude.
Esse é o David no que ele tem de mais típico, por sinal: os dias malditos da juventude. Ele falou que seria um talismã que eu usaria na própria pele e me protegeria de novos sofrimentos e malefícios. Um
talismã. Eu não fazia idéia do que viesse a ser isso, tive de olhar no dicionário. Um objeto para afastar os maus espíritos. Tudo bem, isso eu até engulo. Não me ajudou lá grande coisa quando eu estava
com o David, mas talvez ajude agora.”
“Fico contente que ainda tenha a tatuagem. Não sei por quê, mas fico.”
“Eu também. Acabei me apegando a essa bobagem. Eu fiz lá no East Village, faz onze anos. Para celebrar minha gravidez. Assim que a enfermeira da clínica me disse que o teste tinha dado positivo, saí correndo
e fui fazer a tatuagem.”
“Uma forma estranha de comemorar, você não acha?”
“Eu sou uma moça estranha, tio Nat. E essa foi talvez a época mais estranha da minha vida. Eu alugava um ovo de apartamento numa travessa da avenida C junto com dois caras, o Billy e o Greg. O Billy tocava
guitarra, Greg, violino e eu cantava. Nós até que não éramos muito ruins, não, considerando a nossa idade. A maior parte do tempo, nós nos apresentávamos na Washington Square. Ou então na estação do metrô
de Times Square. Eu adorava o eco que as minhas músicas faziam naqueles corredores subterrâneos, e as pessoas jogando moedas e notas de um dólar na caixa do violino do Greg. Às vezes eu cantava pirada
e Billy me chamava de gata borracha gaiata. Às vezes eu cantava sóbria e Greg me chamava de Rainha do Planeta X. Deus do céu. Bons tempos aqueles, tio Nat. Quando não ganhávamos o suficiente com a nossa
música, eu ia nas lojas e roubava. Eles me chamavam de Dick Tracy dos Pobres. Zanzando pelos corredores dos supermercados e entulhando os bolsos do casaco com bifes e pedaços de frango. Nada era sério,
naquele tempo. Numa semana eu estava apaixonada pelo Greg. Na outra eu estava apaixonada pelo Billy. Eu dormia com os dois e um dia engravidei. Nunca soube qual deles era o pai e, como nenhum deles queria
ser o pai, eu botei os dois para fora de casa.”
“Então é por isso que você nunca disse nada para a June. Você não sabia.”
“Merda. Não acredito. Mas que burrice a minha. Merda, merda, merda. Eu jurei para mim mesma que nunca diria nada a ninguém e agora vou e faço uma besteira dessa.”
“Não tem importância, Rory. Greg e Billy são apenas dois nomes para mim. Não diga mais nada, se não quiser.”
“O Greg morreu de overdose uns dois anos depois que a Lucy nasceu. E o Billy meio que sumiu do mapa. Não sei o que houve com ele. Alguém uma vez me disse que ele voltou para casa, terminou a faculdade
e agora ensina música para alunos do colegial em algum lugar do meio-oeste. Mas vai saber se é o mesmo Billy Finch. Pode muito bem ser outro qualquer.”
Mesmo depois de ter se instalado no Brooklyn, não havia a menor certeza de que Aurora não fosse ver David Minor de novo. Meu nome e endereço constavam da lista telefônica e não seria difícil para ele descobrir
o paradeiro dela usando os meus dados. Eu me arrepiava inteiro só de pensar num outro confronto com aquele bostinha metido a santarrão, mas guardei meus receios comigo e não falei nada a Rory. Minor era
um assunto tão penoso para ela que minha sobrinha mal conseguia abordá-lo, e eu não queria provocar ainda mais ansiedade numa pessoa que já tinha problemas de sobra para tratar. Com o passar dos meses,
comecei a me sentir mais relaxado, mas foi só no final de junho que pude finalmente parar de me preocupar e tirar o assunto da cabeça. Um grosso envelope branco apareceu em minha caixa do correio, uma
manhã, e eu, muito distraído, sem reparar que não fora endereçado a Nathan Glass, e sim a Aurora Wood aos cuidados de Nathan Glass, abri antes de me dar conta do engano. Um sucinto bilhete dizia o seguinte:
Querida,
É melhor assim.
Boa sorte — e que Deus tenha
piedade de você.
David
O bilhete vinha junto com um documento de sete páginas que, depois de exame mais detalhado, mostrou ser uma sentença de divórcio da Comarca de Saint Clair do estado do Alabama, dissolvendo o casamento
entre David Wilcox Minor e Aurora Wood Minor por motivo de abandono.
Aquele dia, ao almoço, pedi desculpas a Rory por ter aberto correspondência endereçada a ela e depois lhe entreguei a carta.
“O que é?”, ela perguntou.
“Um bilhete do seu ex. Junto com um maço de documentos oficiais.”
“Meu ex? Como assim?”
“Abra e descubra você mesma.”
Enquanto ela lia o bilhete e passava os olhos pelo documento, o que me impressionou, ao observá-la, foi o pouco que a fisionomia mudou. Pensei que fosse sorrir, quem sabe até deixar escapar uma risada
ou duas, mas o semblante de Aurora não demonstrou quase nada. Uma pequena centelha de algum sentimento enigmático e oculto, mas impossível saber que sentimento era esse.
“Bem”, ela falou por fim. “Então é isso e pronto.”
“Você está livre, Rory. Se você quiser, pode se casar com outra pessoa amanhã mesmo.”
“Nunca mais vou permitir que um homem toque em mim. Pelo resto da vida.”
“Isso é o que você diz agora. Um dia aparece alguém no seu caminho e você volta a pensar em casamento.”
“Não, eu falo sério, Nathan. Essa parte da minha vida está encerrada. Quando o David me trancou naquele quarto, eu disse a mim mesma: Agora acabou, chega de me apaixonar por homens. Nunca me rendeu nada
de bom. E nunca vai render.”
“Você está se esquecendo da Lucy.”
“Certo, uma única coisa. Mas eu já tenho minha filha e não preciso de outra.”
“Está tudo bem com você, Aurora? Você está me parecendo tão deprimida, hoje.”
“Estou ótima. Nunca estive melhor.”
“Você já está aqui faz seis meses. Você mora na casa da Joyce, trabalha para a Nancy, cuida da sua filha, mas talvez esteja na hora de pensar no próximo passo. Você sabe o que estou querendo dizer, não
sabe? Traçar uns planos, essas coisas.”
“Que tipo de planos?”
“Isso não cabe a mim dizer. O que você quiser.”
“Mas eu gosto das coisas do jeito como estão.”
“E a música? Você não se sente tentada a voltar a cantar?”
“Às vezes. Mas não quero mais fazer carreira. Não me importaria em cantar nos fins de semana, por aqui mesmo pela cidade, mas chega de viajar, chega de ambições descomunais. Não vale a pena.”
“E você se sente feliz fazendo jóias? Isso basta para satisfazê-la?”
“E como basta! Eu passos os dias ao lado da Nancy e o que pode ser melhor que isso? Não existe ninguém como ela no mundo inteiro. Eu amo a Nancy de paixão.”
“Todos nós amamos a Nancy.”
“Não, você não está entendendo. O que eu quero dizer é que eu a amo de verdade. E ela me ama também.”
“Claro que ama. A Nancy é uma das pessoas mais afetuosas que eu já conheci.”
“Você ainda não entendeu. O que eu estou tentando lhe dizer é que nós estamos apaixonadas. A Nancy e eu somos amantes.”
“...”
“Você devia ver a sua cara, tio Nat. Parece até que engoliu uma máquina de escrever.”
“Desculpe. É que eu não tinha imaginado. Claro que eu percebi que vocês estavam se dando muito bem. Claro que eu percebi que vocês se gostavam, mas... mas eu não tinha sacado que a coisa já tinha ido assim
tão longe. Faz quanto tempo isso?”
“Desde março. Começou uns três meses depois que eu me mudei para lá.”
“Por que não me contou antes?”
“Eu tinha medo que você contasse para a Joyce. E a Nancy não quer que a mãe saiba. Ela acha que a mãe vai ficar uma fúria.”
“Então por que me contou?”
“Porque resolvi que você sabe guardar segredo. Você não vai me dedar, vai?”
“Não, eu não vou dedar ninguém. Se vocês não querem que a Joyce saiba, então eu não digo nada para ela.”
“E está muito decepcionado comigo?”
“Claro que não. Se vocês duas estão felizes, então que façam bom proveito.”
“Nós temos tanta coisa em comum, sabia? É como se fôssemos irmãs, funcionamos no mesmo comprimento de onda. Uma sempre sabe o que a outra está pensando e sentindo. Os homens com quem eu me relacionei,
era tudo baseado em palavras — tinha de conversar, explicar, discutir, berrar o tempo todo. Conosco, basta eu olhar para ela e ela já está dentro da minha pele. Nunca vivi isso com ninguém. A Nancy chama
de elo mágico — mas eu chamo apenas de amor, pura e simplesmente. O troço verdadeiro.”
“Igualzinho ao Tony”
Cumpri a promessa, não abri minha boca e mantive o segredo, tanto em benefício próprio quanto no das meninas. Eu não fazia a menor idéia de como Joyce reagiria quando descobrisse a verdade, se descobrisse.
Mas desconfiava que não seria das reações mais calmas, e nesse caso uma das possíveis ramificações de sua raiva seria buscar um culpado. E quem mais adequado para o papel de bode expiatório que o tio de
Aurora, o bicão desastrado que introduzira a desequilibrada e corruptora sobrinha no seio da família Mazzucchelli só para que a dita sobrinha transformasse a pura Nancy numa lésbica fogosa e impulsiva?
Na minha cabeça, Joyce expulsaria Rory e Lucy de casa e, na balbúrdia familiar subseqüente, eu me veria na obrigação de ter de defender a filha de minha irmã, o que me afastaria de tal forma de Joyce que
também eu acabaria sendo posto para fora. Nós estávamos juntos havia um ano, àquela altura, e Deus é testemunha de que essa era a última coisa que eu desejava que acontecesse.
Num domingo calmo e quente, logo depois das férias de verão, Joyce foi para meu apartamento para uma noitada de filmes e comida tailandesa. Depois de fazermos nossos pedidos por telefone, ela se virou
para mim e disse: “Você não vai acreditar no que elas estão aprontando”.
“De quem você está falando?”, perguntei.
“Da Nancy e da Aurora.”
“Eu não sei. Fazendo e vendendo jóias. Cuidando dos filhos. A mesma rotina da sempre.”
“Elas estão dormindo juntas, Nathan. Estão tendo um caso.”
“Como é que você sabe?”
“Eu peguei as duas no flagra. Eu dormi aqui na quinta-feira, está lembrado? Na sexta acordei cedo e, em vez de ir direto para o trabalho, voltei para casa para mudar de roupa. O encanador tinha ficado
de aparecer à tarde e eu subi para lembrar Nancy do compromisso. Abri a porta do quarto dela e lá estavam as duas, ambas peladas em cima das cobertas, dormindo a sono solto nos braços uma da outra.”
“E elas acordaram?”
“Não. Fechei a porta bem de mansinho e desci pé ante pé. O que eu faço agora, Nathan? Estou arrasada, tenho vontade de cortar os pulsos. Coitado do Tony. Pela primeira vez desde que ele me deixou, fico
feliz de que esteja morto. Fico feliz de ele não estar por aqui para presenciar uma coisa dessas... uma coisa horrível dessas. Teria partido o coração dele. A própria filha dormindo com outra mulher. Me
dá vontade de vomitar toda vez que penso no assunto.”
“Não há muito que você possa fazer a respeito, Joyce. A Nancy já é mulher-feita e pode dormir com quem quiser. O mesmo vale para a Aurora. Ambas passaram por maus bocados. Nos dois casos o casamento não
deu certo e é bem provável que estejam de saco cheio dos homens. O que não significa que sejam gays e também não quer dizer que vai durar para sempre. E se estão conseguindo encontrar consolo uma na outra,
por enquanto, que mal há nisso?”
“O mal é que se trata de uma coisa nojenta, que não é natural. Não entendo como você pode ficar tão tranqüilo com essa história, Nathan. Não entendo mesmo. É como se você nem ligasse.”
“As pessoas são o que são. E quem sou eu para dizer a elas que estão erradas?”
“Do jeito como você fala, até parece um ativista dos direitos gays. Daqui a pouco é bem capaz de me dizer que já transou com homens.”
“Prefiro cortar meu braço direito a ir para a cama com um homem.”
“Então por que está defendendo as duas?”
“Porque elas não são eu, para começo de conversa. E também porque são mulheres.”
“E o que você quer dizer com isso?”
“Não tenho bem certeza. Mas eu acho mulher tão bonita que até entendo, suponho, por que uma mulher haveria de se sentir atraída por outra.”
“Você é um porcalhão, Nathan. Ficou excitado, é?”
“Eu não disse isso.”
“Quer dizer que é isso que você faz quando fica aqui sozinho? Fica assistindo a filmes pornográficos com lésbicas, é?”
“Hum. Nunca tinha pensado nisso. Talvez seja mais divertido do que ficar trabalhando naquele meu livro idiota.”
“Não é hora de fazer piada. Eu aqui à beira de um colapso nervoso e você fazendo graça.”
“Porque não é assunto nosso, só por isso.”
“A Nancy é minha filha...”
“E a Rory é minha sobrinha. E daí? Elas não nos pertencem. Nós só as temos por empréstimo.”
“O que eu faço agora, Nathan?”
“Você pode fingir que não sabe de nada e deixar as duas em paz. Ou então pode lhes dar suas bênçãos. Você não precisa gostar da história, mas essas são as únicas duas opções que tem.”
“Eu poderia botar as duas para fora de casa, não poderia?”
“É, suponho que sim. E acabaria lamentando essa decisão todos os dias pelo resto da vida. Não pegue esse caminho, Joyce. Tente ir com a corrente. Siga de cabeça erguida. Vá pela sombra. Vote para os democratas
em toda eleição que houver. Ande de bicicleta no parque. Sonhe com meu corpo dourado perfeito. Tome suas vitaminas. Beba oito copos de água por dia. Torça pelo Mets. Veja um monte de filmes. Não trabalhe
demais no serviço. Venha comigo para Paris. Vá ao hospital quando Rachel tiver dado à luz e segure meu neto em seus braços. Escove os dentes após todas as refeições. Não atravesse a rua com o sinal vermelho.
Defenda os pobres e oprimidos. Lute pelo que acha certo. Lembre-se de como você é linda. Lembre-se de quanto eu amo você. Tome um uísque com gelo todos os dias. Respire fundo. Mantenha os olhos bem abertos.
Fique longe de comidas gordurosas. Durma o sono dos justos. Lembre-se de quanto eu amo você.”
A reação de Joyce à notícia foi mais ou menos como eu havia previsto, mas pelo menos ela não me acusou de ser o responsável pelos atos de Rory, que era tudo o que eu temia, naquele momento. Para mim, fora
uma pena ela ter aberto aquela porta, uma pena que as coisas houvessem se revelado de forma tão chocante e indelével, mas com o tempo Joyce teria de se conformar com a situação, gostando ou não. A comida
chegou e, por algum tempo, paramos de falar sobre Nancy e Aurora e nos concentramos no jantar. Lembro-me de estar sentindo uma fome descomunal, aquela noite, e de ter devorado as entradas e os camarões
apimentados com manjericão em poucos minutos. Depois ligamos a televisão e começamos a ver um filme chamado Sangue de bravo, um faroeste de 1950 com Joel McCrea. A certa altura os vaqueiros estão sentados
em torno da fogueira, batendo papo, e o velhão do bando (interpretado por James Whitmore, se não me engano) diz uma fala que me arrancou uma gargalhada. “Eu até que gosto de estar envelhecendo”, ele diz,
“porque as chateações da vida somem.” Dei um beijo no rosto de Joyce e cochichei: “Esse tonto não sabe o que diz”, e pela primeira vez naquela noite a minha ainda um tanto abalada e infeliz amada deu risada.
Dez minutos depois de Joyce ter dado aquela risada, minha vida começou a chegar ao fim. Estávamos sentados no sofá, vendo o filme, e de repente senti um desconforto no peito. No começo pensei que fosse
azia, indigestão provocada pela comida recém-ingerida, mas a dor foi aumentando e se espalhando pelo tronco, como se eu estivesse pegando fogo por dentro, como se tivesse engolido um galão de chumbo derretido
e, dali a pouco, meu braço esquerdo perdeu a sensibilidade e o maxilar começou a formigar como se tivesse sido atacado por mil agulhas invisíveis. Eu já havia lido o suficiente sobre ataques cardíacos
para saber que esses eram os sintomas clássicos; como a dor continuou aumentando, continuou passando a estágios cada vez mais insuportáveis de intensidade, achei que a hora tinha chegado. Tentei me levantar,
mas depois de dois passos caí e comecei a me contorcer no chão. Agarrado ao peito com as duas mãos, eu lutava para respirar, enquanto Joyce, me segurando nos braços, olhava para mim e dizia para eu agüentar
firme. Em algum lugar, escutei a voz dela dizendo: “Ai, meu Deus. Ai, meu Deus, igualzinho ao Tony”, e depois Joyce não estava mais do meu lado e ouvi quando ela gritou para alguém enviar uma ambulância
à rua Um. O mais extraordinário é que não senti medo. O ataque me levara a uma outra zona, a um lugar onde questões de vida e morte não importam mais. Você apenas aceita. Você simplesmente pega o que lhe
é ofertado; se aquela noite a morte tivesse sido meu quinhão, eu estaria preparado para aceitá-la. Quando os paramédicos me puseram na ambulância, reparei que Joyce estava do meu lado de novo, com lágrimas
escorrendo pelo rosto. Se não me falha a memória, acho que até dei um jeito de sorrir para ela. “Não me largue aqui sozinha, querido”, ela me disse. “Por favor, Nathan, não me largue aqui sozinha.” Depois
as portas se fecharam e instantes depois eu me fora.
Inspiração
Não morri. No fim das contas, não tive nem mesmo um ataque do coração. Um esôfago inflamado foi a causa de minha agonia, mas ninguém sabia disso, na hora, e pelo resto da noite e boa parte do dia seguinte
eu estava certo de que minha vida terminara.
A ambulância me levou para o Hospital Metodista na rua Seis com a avenida Sete e, como todos os leitos dos andares de cima estivessem ocupados, eles me puseram num daqueles pequenos cubículos reservados
para pacientes cardíacos no pronto-socorro do térreo. Uma cortina verde fininha me separava do balcão principal (isso quando as enfermeiras se lembravam de fechá-la) e, exceto por uma visita à unidade
de raio X no fim do corredor, não fiz mais nada além de ficar deitado naquela caminha estreita o tempo todo que passei ali. Meu corpo estava ligado a um monitor de batimentos cardíacos e, com uma agulha
intravenosa plantada no braço e tubos plásticos para oxigênio enfiados nas narinas, eu não tinha muita escolha a não ser permanecer deitado de costas. Eles vinham me tirar sangue de quatro em quatro horas.
Se tivesse ocorrido um infarto, pedacinhos minúsculos de tecido danificado teriam se desprendido do coração e entrado na corrente sangüínea, e com o tempo esses pedacinhos começariam a aparecer nos exames.
Uma enfermeira explicou que levaria vinte e quatro horas para eles saberem ao certo. Nesse meio-tempo, eu tinha de continuar ali deitado, esperando, a sós com meu medo e minha imaginação mórbida, enquanto
meu sangue aos poucos ia contando a história do que tinha ou não tinha acontecido comigo.
Os paramédicos continuaram aparecendo com novos pacientes e, um por um, eles desfilaram diante de mim com seus ataques de epilepsia, suas obstruções intestinais, suas facadas, suas overdoses de heroína,
seus braços fraturados e cabeças ensangüentadas. Vozes bradavam alto, telefones tocavam, carrinhos de comida chacoalhavam pelo piso. Essas coisas ocorriam a um metro e meio de distância da ponta de meus
pés e, no entanto, pelo efeito que tinham sobre mim, poderiam estar ocorrendo num outro mundo. Não creio que pudesse ter estado mais insensível a meu ambiente do que estive aquela noite, mais trancafiado
em mim mesmo, mais ausente. Nada parecia real, a não ser meu próprio corpo; e, ao mesmo tempo que me via ali chapinhando nas próprias ruínas, cismei de visualizar os circuitos de veias e artérias que se
entrecruzavam abaixo do peito, aquela densa rede interna de visgo e sangue. Eu estava só comigo mesmo, esquadrinhando tudo com uma espécie de desespero desordenado, mas estava também muito longe, flutuando
acima da cama, acima do teto, acima do telhado do hospital. Sei que não faz o menor sentido, mas ficar lá naquele cubículo isolado com máquinas apitando e fios grudados na pele foi o mais perto que já
cheguei de não estar em parte alguma, de estar dentro e fora de mim ao mesmo tempo.
E é isso que acontece quando você vai parar num hospital. Eles tiram sua roupa, colocam em você uma daquelas camisolas humilhantes e, de repente, você não é mais você. Você se torna a pessoa que habita
seu corpo e passa a ser a soma total das falhas desse corpo. Ver-se diminuído de tal forma é perder todo o direito à privacidade. Quando médicos e enfermeiras aparecem e lhe fazem perguntas, você tem de
responder. O que eles querem é mantê-lo vivo e só mesmo alguém que não deseje viver lhes dará respostas falsas. E, quando acontece de você estar num daqueles cubículos estreitos e a sessenta centímetros
à direita há uma outra pessoa sendo interrogada por médicos ou enfermeiras, não tem como não ouvir o que está sendo dito. Não que você queira de fato saber, mas se pega numa situação em que é impossível
não saber. Dessa forma é que fui apresentado a Omar Hassim-Ali, um egípcio de cinqüenta e três anos de idade, motorista, casado, quatro filhos e seis netos. Ele entrou no cubículo um pouco depois da uma
da manhã, após sentir dores no peito enquanto conduzia um passageiro para o outro lado da ponte do Brooklyn. Em questão de minutos, fiquei sabendo que ele tomava remédio para pressão alta, que ainda fumava
dois maços por dia mas que estava tentando reduzir, que sofria de hemorróidas, que de vez em quando tinha ondas de tontura e que vivia no país desde 1980. Depois que o médico saiu, Omar Hassim-Ali e eu
conversamos por cerca de uma hora. Não tinha a menor importância sermos estranhos. Quando um homem acha que está prestes a morrer, conversa com quem se dispuser a escutar.
Dormi pouquíssimo aquela noite — dois ou três cochilos de dez ou quinze minutos cada um —, mas mais ou menos uma hora depois de amanhecer peguei no sono de verdade. Às oito horas, uma enfermeira entrou
para medir minha temperatura e, quando olhei para a direita, vi que a cama de meu companheiro estava vazia. Perguntei o que tinha acontecido com o sr. Hassim-Ali, mas ela não soube me dar uma resposta.
Acabara de entrar, disse-me ela, e não sabia de nada.
A cada quatro horas, os exames de sangue voltavam com resultados negativos. De manhã, recebi visitas de Joyce, Tom, Honey, Aurora e Nancy — mas ninguém teve permissão de ficar mais que uns poucos minutos.
No começo da tarde, Rachel também apareceu. Todo mundo começava fazendo a mesma pergunta — Como eu estava me sentindo? — e eu dava a todos a mesma resposta: Bem, bem, muito bem, não se preocupe comigo.
A dor já tinha ido embora e eu começava a me sentir mais confiante quanto às chances de sair de lá inteiro. Uma hora eu disse: Não sobrevivi a um câncer para morrer de um infarto idiota do miocárdio. Era
uma afirmação absurda, mas, à medida que o dia foi passando e os exames de sangue continuaram dando negativo, eu me agarrei a ela como a prova lógica de que os deuses haviam resolvido me poupar, de que
o ataque da noite anterior não fora mais que uma demonstração do poder que eles possuíam de controlar meu destino. Sim, eu podia morrer a qualquer momento — e sim, na hora em que me vi deitado nos braços
de Joyce, estatelado no chão da sala, eu de fato achei que estava prestes a morrer. Porém, se havia algo a ser aprendido com esse encontro de raspão com a mortalidade era que minha vida, no sentido mais
restrito do termo, não me pertencia mais. Bastava lembrar da dor sentida durante aquele tenebroso cerco de fogo para compreender que cada hausto que me enchia os pulmões era um presente daqueles deuses
caprichosos, que doravante cada batida de meu coração me seria concedida por um ato arbitrário de graça.
Lá pelas dez e meia, a cama vazia foi ocupada por Rodney Grant, um telhador que havia desmaiado subindo uma escada aquela manhã. Os colegas de trabalho chamaram uma ambulância e lá estava ele, num exíguo
camisolão de hospital, um negro enorme, musculoso, com rosto de menino e um semblante decididamente apavorado. Depois da conversa com o médico, ele se virou para mim e disse que estava morrendo de vontade
de fumar. E será que ia ter algum problema para o lado dele se fosse até o banheiro dos homens e acendesse um cigarro? Você não vai saber enquanto não tentar, falei, e lá se foi ele, desligando-se do monitor
de batimentos cardíacos e carregando o soro corredor afora. Quando voltou, minutos depois, sorriu para mim e disse: “Missão cumprida”. Às duas da tarde, uma enfermeira abriu a cortina e informou-o de que
estava sendo transferido para a Unidade Cardíaca no andar de cima. Sem nunca ter desmaiado na vida, sem nunca ter tido nada mais preocupante do que catapora e um acesso leve de alergia das vias respiratórias,
a notícia deixou o rapaz confuso. “A coisa parece bem séria, senhor Grant”, falou a enfermeira. “Sei que está se sentindo melhor agora, mas os médicos precisam fazer mais exames.”
Desejei-lhe boa sorte quando se foi e de repente voltei a ficar sozinho no cubículo. Pensei em Omar Hassim-Ali e tentei me lembrar dos nomes de seus inúmeros filhos, sem saber ao certo se ele havia sido
transferido também para a unidade lá de cima. Era uma suposição razoável, mas, ao espiar a cama vazia a minha direita, não pude deixar de imaginar que estivesse morto. Não havia um único indício para confirmar
essa minha hipótese, mas, depois de Rodney Grant ter partido para seu incerto futuro, a cama vazia parecia assombrada por alguma misteriosa força capaz de apagar e sumir com todo aquele que sobre ela se
deitasse, levando-o para o reino das trevas e do esquecimento. A cama vazia significava morte, e pouco importava que essa morte fosse real ou imaginada, e enquanto meditava sobre as implicações dessa idéia,
uma outra foi aos poucos tomando conta de mim até acabar sobrepujando todos os outros pensamentos. Até enxergar perfeitamente por onde eu havia enveredado, já havia compreendido que topara com a idéia
mais importante de minha vida, com uma idéia grande o suficiente para me manter ocupado durante cada hora de cada dia do resto de minha existência.
Eu não era ninguém. Rodney Grant não era ninguém. Omar Hassim-Ali não era ninguém. Javier Rodriguez — o carpinteiro aposentado de setenta e oito anos que ocupou o leito às quatro da tarde — não era ninguém.
Ao fim e ao cabo, morreríamos todos e, quando nosso corpo fosse levado embora para ser enterrado, só os amigos e a família saberiam que tínhamos partido. Nossa morte não seria noticiada em rádios e televisões.
Não haveria obituário no New York Times. Nem livros falando a nosso respeito. Essa é uma honra reservada aos poderosos e famosos, aos donos de talentos excepcionais; mas quem vai se preocupar em publicar
a biografia das pessoas comuns e obscuras do dia-a-dia por quem passamos na rua sem nem reparar direito?
Grande parte das vidas desaparece. A pessoa morre e, pouco a pouco, todos os vestígios daquela vida somem também. Um inventor sobrevive na sua invenção, um arquiteto, em suas obras, mas a grande maioria
não deixa nenhum monumento, tampouco façanhas duradouras: alguns álbuns de fotografia numa prateleira, um boletim do quinto ano primário, um troféu de boliche, um cinzeiro surrupiado de um quarto de hotel
na Flórida na última manhã de algumas férias vagamente lembradas. Uns poucos objetos, uns poucos documentos e fragmentos de impressões deixadas entre amigos e parentes, que invariavelmente contam casos
sobre o morto ou a morta, mas que, no mais das vezes, se enganam a respeito das datas e misturam os fatos, até que a verdade acaba toda distorcida. Quando por sua vez essas pessoas morrem, a maioria dessas
histórias morre com elas.
Minha idéia era a seguinte: fundar uma empresa para publicar livros sobre os esquecidos, resgatando histórias, fatos e documentos antes que desaparecessem — e dar a isso tudo a forma de uma narrativa contínua,
a narrativa de uma vida.
As biografias seriam encomendadas por amigos e parentes do falecido, e os livros sairiam em pequenas edições particulares — qualquer coisa entre cinqüenta e trezentos, quatrocentos exemplares. Imaginei
escrever eu mesmo os livros, mas, se a demanda crescesse muito, sempre daria para contratar outras pessoas: poetas e romancistas em dificuldades, ex-jornalistas, acadêmicos desempregados, talvez até mesmo
Tom. O custo para redigir e publicar as biografias seria bem alto, mas minha intenção não era servir apenas aos ricos. Para famílias menos abastadas, eu imaginei um novo tipo de apólice de seguro prevendo
uma contribuição insignificante todo mês, ou todo trimestre, para custear as despesas do livro. Não se tratava de um seguro doméstico nem de um seguro de vida — e sim do seguro-biografia.
Seria loucura minha sonhar em levar adiante projeto tão estapafúrdio? Eu achava que não. Que moça não gostaria de ler a biografia definitiva do pai — ainda que esse pai tivesse sido apenas um operário
de fábrica ou o gerente-assistente de um banco de interior? Que mãe não gostaria de ler a história do filho policial, baleado no cumprimento do dever aos trinta e quatro anos de idade? Em todos os casos,
teria de ser uma questão de amor. Uma mulher ou um marido, um filho ou uma filha, um pai, um irmão, uma irmã — somente os laços mais fortes. Essas pessoas viriam me procurar uns seis meses, ou quem sabe
um ano, depois de o parente ter falecido. Altura em que já teriam assimilado a morte, sem porém tê-la superado; e, com a volta ao ritmo normal da vida, entenderiam que jamais conseguiriam superá-la. Por
isso a vontade de trazer o ente amado de volta à vida; de minha parte, eu faria tudo o que fosse humanamente possível para satisfazer-lhes a vontade. Eu ressuscitaria a pessoa em palavras e, depois de
impressas as páginas e de a história estar encerrada entre duas capas, essas pessoas teriam algo a que se apegar pelo resto da vida. Não apenas isso, como também teriam algo que sobreviveria a elas, que
sobreviveria a todos nós.
Nunca subestime o poder dos livros.
O xis marca o lugar exato
Os resultados do exame de sangue chegaram pouco depois da meia-noite. Era tarde demais para me darem alta, por isso fiquei até a manhã seguinte, planejando febrilmente a estrutura de minha nova empresa
enquanto observava o exausto Javier Rodriguez cochilar no leito ao lado. Pensei em diversos nomes para capturar o espírito da empreitada que teria pela frente e no fim encontrei um bastante neutro mas
ao mesmo tempo descritivo: Bios Unlimited. Cerca de uma hora depois, resolvi que a primeira providência seria procurar Bette Dombrowski em Chicago e perguntar-lhe se estaria interessada em me contratar
para escrever a biografia do ex-marido. Parecia bastante apropriado que o primeiro livro da coleção fosse sobre Harry.
E então eles me deram alta. Fazia uma manhã muito fresca e me senti tão feliz de estar vivo que a vontade era de gritar. Lá no alto, o céu estava azul, azul. Azul de brigadeiro. Se eu andasse rápido, ainda
conseguiria pegar Joyce em casa, na rua Carroll. Nós nos sentaríamos na cozinha e tomaríamos uma xícara de café, vendo as crianças correrem em volta feito esquilos, enquanto as mães as aprontavam para
a escola. Depois eu acompanharia Joyce até o metrô, poria meus braços em volta dela e lhe daria um beijo de até-logo.
Eram oito horas quando saí, oito horas da manhã do dia 11 de setembro de 2001 — faltavam apenas quarenta e seis minutos para o primeiro avião entrar na Torre Norte do World Trade Center. Duas horas depois,
não mais que isso, a fumaça de três mil corpos incinerados alcançaria o Brooklyn e se despejaria sobre nós numa nuvem branca de cinzas e morte.
Mas por enquanto eram apenas oito horas e, caminhando por aquela avenida, debaixo daquele céu imaculadamente azul, eu me sentia feliz, meu amigo, tão feliz quanto qualquer mortal que já tenha vivido.
Paul Auster
O melhor da literatura para todos os gostos e idades