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DETERMINANTES PSICOLÓGICAS DO COMPORTAMENTO HUMANO
DETERMINANTES PSICOLÓGICAS DO COMPORTAMENTO HUMANO

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Publicado originalmente em inglês, sob o título de "Factors Determining  Human Behaviour", em: Harvard Tercentenary  Conference of Arts and  Sciences 1936 (1937).

 

FONTE: JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Tradução de Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha, OSB. Petrópolis: Vozes, 1984, capítulo V, volume VIII/2 das Obras Completas.

 

Nota: os números em colchetes indicam os números dos parágrafos originais do livro.

 

 

 

 

[232] A alma humana vive unida ao corpo, numa unidade indissolúvel, por isto só artificialmente é que se pode separar a psicologia dos pressupostos básicos da biologia e, como esses pressupostos biológicos são válidos não só para o homem, mas também para todo o mundo dos seres vivos, eles conferem aos fundamentos da Ciência uma segurança que supera os do julgamento psicológico que só tem valor na esfera da consciência. Por isso não deve causar surpresa que os psicólogos se sintam inclinados a retornar à segurança do ponto de vista biológico e utilizem a teoria dos instintos e da fisiologia. Também não é de espantar a existência de uma opinião largamente difundida que considera a psicologia meramente como um capítulo da fisiologia. Embora a psicologia reclame, e com razão, a autonomia de seu próprio campo de pesquisa, ela deve reconhecer uma extensa correspondência de seus fatos com os dados da biologia.

[233] Os fatores psíquicos que determinam o comportamento humano são, sobretudo, os instintos enquanto forças motivadoras do processo psíquico. Em vista das opiniões contraditórias a respeito da natureza dos instintos, eu gostaria de deixar bem claro o que entendo ser a relação entre os instintos e a alma, e porque eu chamo os instintos de fatores psíquicos. Se achamos que a psique é idêntica ao estado de ser vivo, também devemos admitir a existência de funções psíquicas em organismos unicelulares. Neste caso, os instintos seriam uma espécie de órgãos psíquicos e a atividade glandular produtora de hormônios teria uma causalidade psíquica.

[234] Se, ao contrário, admitirmos que a função psíquica é um fenômeno que acompanha um sistema nervoso centralizado de um modo ou de outro, como acreditar que os instintos sejam originariamente de natureza psíquica? Como, porém, a conexão com um cérebro é mais provável do que a natureza psíquica da vida em geral, eu considero a compulsividade característica do instinto como um fator extrapsíquico, o qual, no entanto, é psicologicamente importante, porque produz estruturas que podemos considerar como determinantes do comportamento humano. Ou mais precisamente: nestas circunstâncias, o fator determinante imediato não é o instinto extrapsíquico, mas a estrutura que resulta da interação do instinto com a situação do momento. O fator determinante seria, por conseguinte, um instinto modificado, e o que aí acontece talvez tenha o mesmo significado que a diferença entre a cor que nós vemos e o comprimento objetivo da onda que a ocasiona. O instinto como fator extrapsíquico desempenharia o papel de mero estímulo. O instinto como fenômeno psíquico seria, pelo contrário, uma assimilação do estímulo a uma estrutura psíquica complexa que eu chamo psiquificaçao. Assim, o que chamo simplesmente instinto seria um dado já psiquificado de origem extrapsíquica.

 

  1. FENOMENOLOGIA GERAL

 

[235] A concepção acima delineada nos torna possível compreender a variabilidade do fator instintivo dentro da fenomenologia geral. O instinto psiquificado perde sua inequivocidade até certo ponto, e ocasionalmente chega a ficar sem sua característica mais essencial, que é a compulsividade, porque já não é mais um fato extrapsíquico inequívoco, mas uma modificação ocasionada pelo encontro com o dado psíquico. Como fator determinante, o instinto é variável, e, por isso, passível de diferentes aplicações. Qualquer que seja a natureza da psique, ela é dotada de extraordinária capacidade de variação e transformação.

[236] Inequívoco como possa ser o estado físico de excitação chamado fome, as conseqüências psíquicas dele resultantes podem ser múltiplas e variadas. Não somente as reações à fome ordinária podem ser as mais variadas possíveis, como a própria fome pode ser "desnaturada" e mesmo parecer como algo metafórico. Podemos não somente usar a palavra "fome" nos seus mais diversos sentidos, mas a própria fome pode assumir os mais diversos  aspectos,  em  combinação   com   outros   fatores. A determinante, originariamente  simples  e  unívoca,  pode  se manifestar como cobiça pura e simples ou sob as mais variadas formas, tais como a de um desejo e uma insaciabilidade incontroláveis, como por exemplo, a cupidez do lucro ou a ambição sem freios.

[237] A fome como expressão característica do instinto de autoconservação é, sem, dúvida um dos fatores mais primitivos e mais poderosos que influenciam o comportamento humano. A vida do homem primitivo, por ex., é mais fortemente influenciada por ele do que pela sexualidade. A este nível, a fome é o A e o O da própria existência.

[238] Não é necessário acentuar a importância do instinto de conservação da espécie, a sexualidade. As restrições de natureza moral e social que se multiplicam à medida que a cultura se desenvolve fizeram com que a sexualidade se transformasse, pelo menos temporariamente, em supravalor, comparável à importância da água no deserto árido. O prêmio do intenso prazer sensual que a natureza faz acompanhar o negócio da reprodução se manifesta no homem — já não mais condicionado por uma época de acasalamento — quase como um instinto separado. Este instinto aparece associado a diversos sentimentos e afetos, a interesses espirituais e materiais, em tal proporção que, como sabemos, fizeram-se até mesmo tentativas de derivar toda a cultura destas combinações.

[239] Como a fome, também a sexualidade passa por um amplo processo de psiquificaçao que desvia a energia, originariamente apenas instintivamente, de sua aplicação biológica, dirigindo-a para outros fins que lhe são estranhos. O fato de que a energia pode sofrer essas diversificações é indício de que há ainda outros impulsos suficientemente poderosos para modificar o curso do instinto sexual, desviando-o, pelo menos em parte, de sua verdadeira finalidade. Não podemos atribuir isto exclusivamente a causas exteriores, porque, sem disponibilidade interior, as condições exteriores só acarretam danos.

[240] Eu gostaria, portanto, de distinguir, como terceiro grupo de instintos, o impulso à ação, impulso este que começa a funcionar, ou talvez mesmo surja pela primeira vez, quando os outros impulsos se encontram satisfeitos. Sob o conceito de ação incluiríamos o impulso a viajar, o amor à mudança, o dessossego e o instinto lúdico.

[241] Há um outro instinto, diferente do impulso a agir e, enquanto sabemos, especificamente humano, que poderíamos chamar de instinto da reflexão. Ordinariamente jamais pensamos que a reflexão tenha sido instintiva, mas a associamos a um estado consciente da mente. O termo latino reflexio significa um curvar-se, inclinar-se para trás, e usado psicologicamente indicaria o fato de o processo reflexivo que canaliza o estímulo para dentro da corrente instintiva ser interrompido pela psiquificação. Devido à interferência da reflexão, os processos psíquicos exercem uma atração sobre o impulso a agir, produzido pelo estímulo; por isso, o impulso é desviado para uma atividade endopsíquica, antes de descarregar-se no mundo exterior. A reflexio é um voltar-se para dentro, tendo como resultado que, em vez de uma reação instintiva, surja uma sucessão de conteúdos ou estados, que podemos chamar reflexão ou consideração. Assim, a compulsividade é substituída por uma certa liberdade, e a previsibilidade por uma relativa imprevisibilidade.

[242] O instinto de reflexão talvez constitua a nota característica e a riqueza da psique humana. A reflexão retrata o processo de excitação e conduz o seu impulso para uma série de imagens que, se o estímulo for bastante forte, é reproduzida a nível externo. Esta reprodução concerne seja a todo o processo, seja a resultado do que se passa interiormente, e tem lugar sob diferentes formas: ora diretamente, como expressão verbal, ora como expressão do pensamento abstraio, como representação dramática ou como comportamento ético, ou ainda como feito científico ou como obra de arte.

[243] Graças ao instinto de reflexão, o processo de excitação se transforma mais ou menos completamente em conteúdos psíquicos, isto é, torna-se uma experiência; um processo natural transformado em um conteúdo consciente. A reflexão é o instinto cultural par excellence, e sua força se revela na maneira como a cultura se afirma em  face  da  natureza.

[244] Os instintos em si não são criativos. Com efeito, por constituírem uma organização estável, tornaram-se automáticos. Nem mesmo o instinto de reflexão foge a esta regra, porque o fato de produzir a consciência em si ainda não é um ato criativo, mas, em certas circunstâncias, pode tornar-se um processo automático. A compulsividade tão temida pelo homem civilizado produz também aquele medo característico de se tornar consciente, mais observado — embora  não  exclusivamente — nas pessoas neuróticas.

[245] Ainda que, de maneira geral, o instinto seja um sistema estavelmente organizado e, conseqüentemente, inclinado a repetir-se indefinidamente, contudo, o homem é distintivamente dotado de capacidade de criar coisas novas no verdadeiro sentido da palavra, justamente da mesma forma como a natureza, no decurso de longos períodos de tempo, consegue produzir novas formas. Não sei se "instinto" seria a palavra correta para este fenômeno. Usamos a expressão instinto criativo, porque este fator se comporta dinamicamente, pelo menos à semelhança de um instinto. É compulsivo, como o instinto, mas não é universalmente difundido nem é uma organização fixa e herdada invariavelmente. Prefiro designar a força criativa como sendo um fator psíquico de natureza semelhante à do instinto. Na realidade, há íntima e profunda relação com os outros instintos, mas não é idêntico a nenhum deles. Suas relações com a sexualidade são um problema muito discutido, e sem muita coisa em comum com o impulso a agir e com o instinto de reflexão. Mas pode também reprimir todos estes instintos e colocá-los a seu serviço até à autodestruição do indivíduo. A criação é ao mesmo tempo destruição e construção.

[246] Recapitulando, gostaria de frisar que, do ponto de vista psicológico, é possível distinguir cinco grupos principais de fatores instintivos, a saber: a fome, a sexualidade, a atividade, a reflexão e a criatividade. Em última análise, os instintos são certamente determinantes extrapsíquicas.

[247] A vontade ocupa uma posição controvertida. Não há dúvida de que se trata de um fator dinâmico, como os instintos. O problema da vontade está ligado a considerações filosóficas as quais, por sua vez, resultam da visão que se tem do mundo. Se a vontade é tida como livre, então não depende de nenhuma causa e, neste caso, nada mais há a dizer sobre ela. Mas se, pelo contrário, é considerada como predeterminada e ligada causalmente aos instintos, não passa de um epifenômeno de importância secundária. Justamente por este motivo posso apenas mencionar os afetos.

[248] Diferentes dos fatores dinâmicos são as modalidades de funções psíquicas que influenciam o comportamento humano em outros sentidos. Menciono antes de tudo o sexo, as disposições hereditárias e a idade. Estes três fatores são considerados primariamente como dados fisiológicos, mas são também fatores psicológicos, na medida em que estão sujeitos à psiquificação, como os instintos. A masculinidade anatômica, por exemplo, está longe de provar a masculinidade psíquica do indivíduo. Da mesma forma, a idade psicológica nem sempre corresponde à idade fisiológica. E no que se refere às disposições hereditárias, o fator determinante da raça ou família pode ter sido reprimido por uma superestrutura psicológica. Muita coisa que é interpretada como hereditariedade em sentido estrito é antes uma espécie de contágio psíquico que consiste em uma adaptação da psique infantil ao inconsciente dos pais.

[249] A estas três modalidades semifisiológicas eu gostaria de acrescentar três outras que são psicológicas. Como primeira modalidade destaco a consciência e o inconsciente. Constitui grande diferença para o comportamento do indivíduo saber se sua psique está funcionando de maneira predominantemente consciente ou inconsciente. Trata-se, naturalmente, apenas de um maior ou menor grau de consciência, pois a consciência total é empiricamente impossível. Um estado extremo de inconsciência da psique é caracterizado pela predominância de processos instintivos e compulsivos, cujo resultado é uma inibição incontrolada ou completa ausência de inibição dos fatos. O que se passa na psique é, então, contraditório e se processa em termos de antíteses alógicas que se alternam. A consciência nesses casos se acha essencialmente em um estágio onírico. A situação extrema de consciência, pelo contrário, é caracterizada por um pronunciado estado de sensibilidade, por uma predominância da vontade, por um desenvolvimento orientado e racional do agir e por uma ausência quase total de determinantes instintivas. O inconsciente se acha então num estágio acentuadamente animal. No primeiro estado falta qualquer desempenho intelectual e ético, e no segundo falta a naturalidade.

[250] A segunda modalidade é a extroversão e a introversão. Esta modalidade imprime a direção ao processo psíquico, isto é, decide sobre a questão se os conteúdos conscientes se referem a objetos externos ou ao sujeito. Decide, portanto, sobre a questão se o acento recai no que se passa fora ou dentro do indivíduo. Este fator atua com tal persistência, que dá origem a atitudes ou tipos habituais facilmente reconhecíveis exteriormente.

[251] A terceira modalidade aponta, porém, — se nos é lícito empregar uma metáfora — para cima e para baixo: trata-se, com efeito, da modalidade relativa ao elemento espiritual e material. É verdade que a matéria em geral constitui o objeto da Física, mas é também uma categoria psíquica, como a história das religiões e a filosofia mostram-no suficientemente.  E da mesma maneira como a matéria só pode ser concebida, em última análise, como uma hipótese de trabalho da Física, assim também o espírito, o objeto da religião e da Filosofia, é uma categoria hipotética que precisa, todas às vezes, de nova interpretação. A chamada realidade da matéria nos é atestada, antes de mais nadam por nossa percepção sensorial, enquanto a existência é sustentada pela experiência psíquica. Psicologicamente não podemos constatar a respeito das duas referidas correntes, senão que existem certos conteúdos conscientes dos quais alguns são considerados como tendo uma origem material, e outros uma origem espiritual. É verdade que na consciência do homem civilizado parece existir uma nítida divisão entre estas duas entidades, mas no estágio primitivo as fronteiras se tornam tão vagas, que a matéria parece dotada de alma e o espírito parece material. Mas da existência destas categorias resultam sistemas de valor éticos, estéticos, intelectuais, sociais e religiosos que determinam às vezes de maneira decisiva a aplicação final que deverão ter os fatores dinâmicos da psique.

 

  1. FENOMENOLOGIA ESPECIAL

 

[252] Voltemo-nos agora para a fenomenologia especial. Na primeira parte deste capítulo distinguimos cinco grupos principais de instintos e seis modalidades. Os conceitos descritos, entretanto, têm apenas valor acadêmico como categorias gerais de organização. Na realidade a psique é uma combinação complicada desses e de muitos outros fatores, apresentando, de um lado, um número infinito de variações individuais, e, do outro, uma tendência a mudar e a diversificar-se, tão grande quanto a primeira. A variabilidade é proveniente do fato de a psique não ser uma estrutura homogênea, mas consistir, segundo parece, em unidades hereditárias frouxamente ligadas entre si que, por isto mesmo, revelam acentuada tendência a se desagregar. A primeira delas é devida a influências que se exercem ao mesmo tempo a partir de dentro e a partir de fora. Funcionalmente essas duas tendências são intimamente interligadas.

[253] Voltemo-nos primeiramente para o problema colocado pela tendência da psique a cindir-se. Embora seja na psicopatologia que mais claramente se observa esta peculiaridade, contudo, fundamentalmente trata-se de um fenômeno normal que se pode reconhecer com a maior facilidade nas projeções da psique primitiva. A tendência a dissociar-se significa que certas partes da psique se desligam a tal ponto da consciência, que parecem não somente estranhas entre si, mas conduzem também a uma vida própria e autônoma. Não é preciso que se trate de personalidades múltiplas históricas ou de alterações esquizofrênicas da personalidade, mas de simples complexos inteiramente dentro do espectro normal. Os complexos são fragmentos psíquicos cuja divisão se deve a influências traumáticas ou a tendências incompatíveis. Como no-lo mostra a experiência das associações, eles interferem na intenção da vontade e perturbam o desempenho da consciência; produzem perturbações na memória e bloqueios no processo das associações; aparecem e desaparecem, de acordo com as próprias leis; obsediam temporariamente a consciência ou influenciam a fala e ação de maneira inconsciente. Em resumo, comportam-se como organismos independentes, fato particularmente manifesto em estados anormais. Nas vozes dos doentes mentais assumem inclusive um caráter pessoal de ego, parecido com o dos espíritos que se revelam através da escrita automática e de técnicas semelhantes. Uma intensificação do fenômeno dos complexos conduz a estados mórbidos que nada mais são do que dissociações mais ou menos amplas, ou de múltiplas espécies, dotadas de vida.

[254] Os novos conteúdos ainda não assimilados à consciência e que se constelaram na inconsciência comportam-se como complexos. Pode tratar-se de conteúdos baseados em percepções subliminares de conteúdos de natureza criativa. Como os complexos, eles conduzem também a uma existência própria, enquanto não se tornam conscientes e não se incorporam à vida da personalidade. Na esfera dos fenômenos artísticos e religiosos estes conteúdos aparecem ocasionalmente também sob forma personalizada, notadamente como figuras ditas arquetípicas. A pesquisa mitológica denomina-os de "motivos"; para Lévy-Bruhl trata-se de representations collectives, e Hubert e Mauss chamam-nos catégories de Ia phantaisie. Coloquei todos os arquétipos sob o conceito de inconsciente coletivo. São fatores hereditários universais cuja presença pode ser constatada onde quer que se encontrem monumentos literários correspondentes. Como fatores que influenciam o comportamento humano, os arquétipos desempenham um papel em nada desprezível. É principalmente mediante o processo de identificação que os arquétipos atuam alternadamente na personalidade total. Esta atuação se explica pelo fato de que os arquétipos provavelmente representam situações tipificadas da vida. As provas deste fato se encontram abundantemente no material recolhido pela experiência. A psicologia do Zaratustra de Nietzsche constitui um bom exemplo neste sentido. A diferença entre estes fatores e os produtos da dissociação provocada pela esquizofrenia está em que os primeiros são entidades dotadas de características pessoais e carregadas de sentido, ao passo que os últimos nada mais são do que meros fragmentos com alguns vestígios de sentido, verdadeiros produtos de desagregação, mas uns e outros possuem em alto grau a capacidade de influenciar, controlar e mesmo reprimir a personalidade do eu, a tal ponto que surge uma transformação temporária ou duradoura da personalidade.

[255] A tendência à divisão inerente à psique significa, de um lado, a dissociação em um sem-número de unidades estruturais, mas, do outro, também a possibilidade — propícia à diferenciação — de separar certas partes estruturais, de modo a fomentá-las por meio da concentração da vontade e conduzi-las ao máximo de desenvolvimento. Deste modo, favorecem-se unilateralmente, e de modo consciente, certas capacidades, especialmente aquelas das quais se esperam que sejam socialmente úteis, e se negligenciam outras. Isto ocasiona um estado não-equilibrado, semelhante ao produzido por um complexo predominante. Não nos referimos aqui à possessão por parte do complexo, mas à unilateralidade, embora o estado real seja aproximadamente o mesmo, com a única diferença de que a unilateralidade corresponde à intenção do indivíduo e é fomentada por todos os meios disponíveis, ao passo que o complexo é visto como prejudicial e perturbador. Ignora-se freqüentemente que a unilateralidade conscientemente desejada é uma das causas mais importantes dos complexos tão indesejáveis ou, ao inverso, que determinados complexos provocam diferenciações unilaterais de utilidade duvidosa. É inevitável que haja uma certa unilateralidade no desenvolvimento do processo, da mesma maneira que são inevitáveis os complexos. Vistos sob esta luz, os complexos correspondem a certos instintos modificados que mais sofreram a unilateralidade do processo de psiquificação. Esta é uma das principais causas das neuroses.

[256] É sabido que muitas faculdades do homem podem ser diferenciadas. Não quero me perder nos detalhes de histórias de casos colhidos em minha experiência e por isso limito-me às faculdades normais que sempre estiveram presentes na consciência. A consciência é, em primeiro lugar, um órgão de orientação em um mundo de fatos exteriores e interiores. Antes e acima de tudo ela constata que algo existe. A esta faculdade dou o nome de sensação. Não se trata de uma atividade específica de qualquer um dos sentidos, mas da percepção em geral. Uma outra faculdade interpreta o que foi percebido. Denomino-a de pensamento. Graças a esta função o objeto da percepção é assimilado e transformado muitíssimo mais em conteúdos psíquicos do que através da mera sensação. Uma terceira faculdade constata o valor do objeto. A esta função do valor dou o nome de sentimento. A reação de prazer e desprazer do sentimento corresponde ao máximo grau de subjetivação do objeto. O sentimento coloca o sujeito e o objeto em tão estreita relação, que o sujeito deve escolher entre a aceitação e a recusa.

[257] Estas três funções seriam inteiramente suficientes para a orientação em qualquer circunstância, se se tratasse de um objeto isolado no tempo e no espaço. Ora, no espaço qualquer objeto está em conexão ilimitada com uma multiplicidade de outros objetos e, no tempo, o objeto representa apenas uma transição daquilo que ele era antes para aquilo que será posteriormente. A maioria das relações espacial e das mudanças temporais é, inevitavelmente, inconsciente no momento da orientação, embora as relações de tempo e espaço sejam absolutamente necessárias para determinar o sentido de um objeto. A quarta faculdade da consciência, ou seja, aquela que torna possível, pelo menos aproximativamente, a determinação espacial e temporal, é a intuição. Esta é uma função da percepção que compreende o subliminar, isto é, a relação possível com objetos que não aparecem no campo da visão, e as mudanças possíveis, tanto no passado como no futuro, a respeito das quais o objeto nada tem a nos dizer. A intuição é uma percepção imediata de certas relações que não podem ser constatadas pelas outras três funções no momento da orientação.

[258] Menciono as funções de orientação da consciência porque é possível isolá-las na observação prática e diferenciá-las singularmente. A própria natureza estabeleceu diferenças marcantes em sua importância junto aos diversos indivíduos. Via de regra, uma das quatro funções acha-se particularmente desenvolvida, o que imprime na mentalidade em seu conjunto um cunho todo peculiar. A predominância de uma função sobre as outras dá origem a disposições típicas que podemos chamar de tipos pensativos, tipos sentimentais, etc. Um tipo desta espécie é um preconceito semelhante a uma profissão com a qual se identifica aquele que a exerce. Tudo o que é transformado em princípio ou virtude, seja por inclinação ou por causa de sua utilidade, resulta sempre em unilateralidade ou em compulsão à unilateralidade que exclui outras possibilidades, como se verifica tanto em relação às pessoas de vontade e ação, como em relação àquelas cujo objetivo na vida é o exercício constante da memória. Tudo o que é permanentemente excluído do exercício e da adaptação, necessariamente em um estado não exercitado, não desenvolvido, infantil ou arcaico, que vai da inconsciência parcial até à inconsciência total. Daí é que, ao lado dos motivos da consciência e da razão, encontram-se sempre normalmente influências inconscientes em grande quantidade, perturbando as intenções da consciência. Efetivamente, de modo nenhum se pode admitir que todas aquelas formas de atividades latentes na psique e que são supressas ou negligenciadas no indivíduo sejam, por isso mesmo, privadas de sua energia específica. Pelo contrário, é como no caso do indivíduo que confiasse exclusivamente nos dados fornecidos pelo sentido da visão. Nem por isto ele cessaria de ouvir. Se pudesse ser transportado para um mundo sem som, em breve satisfaria sua necessidade de ouvir, provavelmente sob a forma de alucinações auditivas.

[259] A circunstância de que as funções naturais não podem ser privadas de sua energia específica dá origem àquelas antíteses características que podemos muito bem observar no âmbito das funções de orientação da consciência acima descritas. As duas principais oposições se dão, de um lado, entre o pensamento e o sentimento, e do outro, entre a sensação e a intuição. A primeira dessas oposições é conhecidíssíma e não precisa de comentários. A segunda, pelo contrário, torna-se mais clara quando é expressa como a oposição entre um fato objetivo e uma aparente possibilidade. É evidente que o indivíduo que espera novas possibilidades não se detém na situação concreta do momento, mas a deixa para trás o mais rapidamente possível. Estes contrastes têm a peculiaridade de serem irritantes, precisamente sob a forma de conflito, seja no seio da psique individual seja entre indivíduos de constituições opostas.

[260] Tendo para mim que dos problemas dos opostos aqui apenas tocados de leve constituem a base de uma psicologia crítica, necessária sob muitos aspectos. Uma crítica desta espécie seria de imenso valor não só para o círculo mais estreito da psicologia, como também para o círculo mais vasto das ciências em geral.

[261] No exposto acima acabo de reunir todos aqueles fatores que, do ponto de vista de uma psicologia puramente empírica, desempenham papel determinante no comportamento humano. A multiplicidade e a variedade de aspectos, por certo, da natureza da psique se refletem em inumeráveis facetas, mas, por outro lado, dão bem uma ideia das dificuldades que elas representam para a compreensão empírica. Só começaremos a perceber a tremenda complexidade da fenomenologia psíquica, quando virmos que todas as tentativas para elaborar uma teoria abrangente estão condenadas ao fracasso, porque partem de pressupostos demasiado simples. A alma é o ponto de partida de todas as experiências humanas, e todos os conhecimentos que adquirimos acabam por levar a ela. A alma é o começo e o fim de qualquer conhecimento. Realmente, não é só o objeto de sua própria ciência, mas também o seu sujeito. Esta posição singular que a psicologia ocupa entre todas as ciências implica uma dúvida constante quanto às suas virtualidades mas, por outro lado, nos oferece o privilégio e a possibilidade de colocar problemas cuja solução constitui uma das tarefas mais difíceis de uma futura filosofia.

[262] Neste meu breve — quiçá demasiado breve — esboço, deixei de mencionar muitos nomes ilustres, mas há um nome venerável que não quero omitir: é o de William James, a cuja visão psicológica e a cuja filosofia pragmática devo os mais decisivos estímulos e sugestões em minhas pesquisas. Foi seu espírito largo e abrangente que me descerrou até o incomensurável os horizontes da  psicologia  humana.

 

 

                                                                  C.G.Jung

 

 

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