— Vão achar que eu prendi você aqui. — Coventina, a grande Deusa das Águas, virou o rosto, incapaz de fitar Merlin.
— Não estou preso, meu amor. Estou simplesmente descansando das trevas deste mundo — contrapôs ele, tocando-lhe o rosto suave, de modo que ela teve de reencontrar seu olhar. — E desde quando nos importamos com o que os outros dizem, Viviane?
Usar o apelido com que ele a tratava em seus momentos mais íntimos não a fez nem mesmo sorrir.
— É uma maldição ter a capacidade de prever o futuro — murmurou ela.
— De muitas maneiras, meu amor.
— Sim. Mas sempre previu isso para você? Para mim? Para nós? Por que deixa que eu o ame sabendo o que sabe?
— Há um homem em um futuro distante, um curandeiro chamado Phil. Ele afirma que o amor é o que é. Não tem futuro ou passado, apenas o presente.
— Esse curandeiro não me impressiona em nada — declarou Viviane. — Nós temos um passado e também poderíamos ter um futuro. Prevê-lo. Acreditar nele.
— Não consigo prever o nosso futuro, meu amor. Dói muito quando não me é permitido alterar o que vejo. — Ele suspirou. — O futuro de Artur e Camelot me feriu tanto que mais sofrimento me parece insuportável.
#####
Ela fitou o rosto familiar à sua frente e viu a bondade, a força e a gentileza que tanto a tinham atraído. Mas também viu outra coisa: o semblante de Merlin aparentava estar marcado por um cansaço que o fazia parecer uma década mais velho do que alguns meses antes.
Se ainda houvesse uma maneira de ela aliviá-lo um pouco daquele fardo! Sabia que amar um mortal seria difícil, e que ela acabaria por perdê-lo eventualmente, porém Merlin era um poderoso druida, e ela nutria esperanças de que seus poderes mágicos, tão ligados à Terra, lhe dessem forças para viver como seu consorte por muito mais tempo do que um mortal comum.
Era irônico que a ruína de Merlin não tivesse sido o fardo de amar uma deusa. Em vez disso, o fato de ele ter se deixado envolver pela escuridão que parecia impregnar seu protegido humano, Artur Pendragon — um homem que era como um filho para ele —, é que havia feito o sacerdote querer se esconder do mundo a ponto de lançar um feitiço sobre si próprio e se transformar em um nada na prisão voluntária naquela caverna de cristal enganosamente bela.
Maldito Artur!... Por que ele não tinha escutado Merlin e escolhido outra mulher que não a jovem, linda e insípida Guinevere?
— Meu amor, por favor, não culpe Artur — falou Merlin, como se estivesse lendo seus pensamentos. — Não é culpa dele, ao menos não de todo. Muito menos de Guinevere. Nenhum de nós escolhe a quem ama. — Merlin se deitou nas acomodações que havia arrumado em um canto tranquilo da caverna de cristal. — Sei que estou sendo covarde, mas já previ o que vai acontecer com ele. Com todos eles. E também vi que nada posso fazer para mudar isso. É... — Ele fez uma pausa, parecendo à beira das lágrimas. — É como se Artur estivesse abraçando a própria destruição. Eu fiz tudo o que podia para ajudá -lo.
Já discuti com ele, dei-lhe conselhos, supliquei, tentei persuadi-lo... Nada dá certo. Em todas as imagens que vejo do futuro, a luz e a bondade de Artur são totalmente engolidas pelas trevas da inveja e da ganância, da luxúria e do ódio.
Viviane sentiu uma pontada de pânico quando Merlin fechou os olhos. Como poderia continuar para sempre com ele ali — nem vivo nem morto —, dormindo naquele túmulo belo e frio, onde ela não podia falar com ele, tocá-lo ou abraçá-lo?
— Mas, Merlin, deve haver uma maneira de interferir nesses acontecimentos. Deve haver um modo de salvar essa criatura! — “E, ao fazê-lo”, acrescentou para si mesma, “salvá-lo também”.
O mago balançou a cabeça.
— Está além do meu poder. E também do seu.
— Não pode estar além do meu poder! — choramingou a deusa, frustrada.
— Viviane, meu único amor... Sabe muito bem que nem mesmo os deuses estão a utorizados a interferir no equilíbrio entre a luz e a escuridão. Escolher entre essas duas forças é morte certa, e as trevas imperam em Camelot.
— É claro que sei disso! Mas sou imortal, detenho a verdadeira essência da vida... Devo ser capaz de salvar o seu filho para você.
— Temo que o destino dele esteja selado. Artur vai morrer com o coração partido. Traído por seu amor, caminhará de bom grado para a morte. Agora, por favor, minha deusa, meu amor... Deixe-me dormir.
Viviane caiu de joelhos ao lado do leito e pressionou o rosto contra a coxa de Merlin. Ele acariciou-lhe os cabelos dourados num gesto fraco.
— Estou tão cansado... — sussurrou.
Conforme seus olhos se fecharam novamente, talvez pela última vez, Viviane sentou-se, o coração batendo com um despontar de esperança.
— Espere! Merlin, você disse que não há nada neste tempo ou realidade capaz de fazer com que Artur mude de ideia. Mas será que algo, ou talvez alguém , de outro tempo ou realidade não poderia provocar uma mudança? Já vislumbrou essa possibilidade e viu algum fracasso?
Os olhos azuis de Merlin se abriram e encontraram os dela.
— Nunca considerei nenhum futuro regido por outro tempo ou existência. Sabe que não posso manipular o curso dos acontecimentos nem a realidade. — A voz de Merlin soou suave, quase inaudível.
— Você não pode, mas eu posso! — Viviane o sacudiu pelos ombros. — Precisa considerar, então, meu amor, e dar a esse futuro uma chance!
— Não posso fazer isso — murmurou ele. — A magia está feita. Além disso, não se pode apenas lançar uma rede nas águas do tempo ou nas ondas da realidade. Há que se ter um plano, uma razão, uma alma única...
— Mas eu posso tentar! Vou olhar o futuro e ver se...
— Eles nem mesmo nos conhecem no futuro! — Por um instante, em meio ao acesso de raiva, Merlin pareceu ele mesmo novamente. — No futuro você não é mais do que uma lenda, e eu não passo de um mentor ausente, muitas vezes culpado por todo o desastre.
Viviane ficou horrorizada. Como as pessoas podiam se esquecer dela? Ela era a deusa das águas do mundo antigo! Elas iriam esquecê-la? Não , pensou. Se ela armasse um plano... um plano bom — tão eficiente quanto ela própria —, não apenas salvar ia seu amado, como iria garantir que seu nome e legado vivessem para sempre.
E bom seria se salvasse aquele imbecil do Artur também.
Como o futuro podia culpar Merlin pelas más escolhas de um rei? Aquilo também precisava ser corrigido.
E, maldição , ela seria a deusa a fazê-lo!
— Vou encontrar uma maneira, meu amor. Vou, sim.
Merlin soltou uma risada fraca.
— Ah, Viviane, é isso o que eu amo em você... Essa sua paixão. Essa sua vontade de fazer a coisa certa. Essa sua devoção a mim. Como é possível que um simples mago tenha tido a sorte de ser amado por um ser tão maravilhoso?
Ela acariciou-lhe o braço.
— Não há nada de simples em você, meu querido. Disso eu sei. Há bondade, isso sim. A generosidade emana dessa sua alma como se o Sol a tivesse beijado e deixado nela seu brilho. Talvez seja justamente por essa generosidade que nos encontramos nesta situação... Mas vou encontrar uma saída. Prometo.
Merlin deu de ombros e deitou-se outra vez, exalando a energia que o tinha animado.
— Mesmo que encontre alguém para ajudá-la... Não pode apenas substituir uma vida. Sabe disso. Almas não podem ser arrancadas sem qualquer cuidado em prol de vidas perdidas e futuros despedaçados. O equilíbrio e a razão precisam prevalecer.
Viviane se inclinou para a frente e tomou Merlin nos braços.
— Mas se, por alguma maravilhosa guinada do destino, eu conseguir... Jura que vai voltar para mim?
Ele a fitou demoradamente nos olhos, e Viviane viu a compaixão e o amor duelarem com a dor e o cansaço. Por fim, Merlin ergueu a mão e começou a girá-la.
Atada a ti, Artur,
deixo uma parte de mim...
Meu futuro ao teu se une,
teu destino ao meu se entretece.
Sobrevive e dá-me, assim,
uma razão para viver, nesta prece.
A energia que brotou em torno da mão de Merlin foi visível — uma cintilação no ar. Com um gesto de resignação, mais do que de esperança, ele arremessou a força reluzente além das paredes de sua tumba de cristal, e ambos estremeceram ao absorver o feitiço.
— Pronto. Está feito. Salve Artur e estará me salvando. — Merlin curvou-se e beijou a deusa, partilhando seu último suspiro de vida com ela.
Chorando, Viviane se afastou de seu amado, que silenciara, envolvido pela magia do sono eterno. E esta o protegia completamente do sofrimento daquela vida, a ponto de ele conseguir escapar até mesmo do Submundo, onde as lembranças atormentariam sua alma.
Devagar, ela se levantou e o cobriu com uma peliça espessa. Beijou-o uma vez na testa fria e, em seguida, virou-se e marchou, resoluta, para fora da caverna de cristal. “Iriam se esquecer de mim? Culpar Merlin? Claro que não. Artur que se preparasse.”
Viviane se envolveu em bruma quando deixou a caverna que dava para seu lago místico. Em uma onda de magia, seu poder a carregou sobre a água até a ilha verde e luxuriante que a cortina de névoa revelou ao se dissipar. Caminhou, apressada, para a graciosa torre de pedra, única estrutura na ilha, que os moradores, havia muito, tinham batizado de Shalott. Cercada por sorveiras bravas, e envolta na própria magia, ela não precisaria da ocultação da névoa; contudo, a invocou inconscientemente. Não desejava nenhuma testemunha inconveniente para o que estava prestes a realizar.
Não entrou na torre de marfim como costumava fazer. Em vez disso, caminhou de um lado para o outro ao longo da ribanceira, arrastando a túnica branca de samito em meio às flores do campo que forravam aquela ilha tão especial. O poder girava em torno dela, fazendo com que as aves, recém-despertadas pelo amanhecer, grasnassem, alarmadas, e deixassem seus poleiros no bosque de sorveiras. Ela aspirou o perfume almiscarado de musgo e o odor pungente do tomilho selvagem que a cercavam, conforme violava sua suavidade com os pés.
Como podia ter permitido que aquilo acontecesse? Soubera que Merlin fora ferido pelo mundo no momento em que o conhecera. Ele era um druida poderoso, contudo possuía uma delicadeza incomum e um coração tão terno que até mesmo as criaturas selvagens da floresta vinham comer em sua mão.
Viviane sorriu em meio às lágrimas. Merlin a atraíra da mesma forma, arrancando-a de sua ilha solitária no meio do seu místico lago. Ela se tornara sua amante voluntariamente. E, como uma deusa, não podia conceber não ser capaz de curar o que o mundo partira dentro dele.
— Eu podia tê-lo curado se não fosse por esse maldito Artur! — gritou. As palavras carregadas de ressentimento fizeram as águas plácidas do lago se agitarem, e suas frias profundezas azuis escureceram, amea çadoras, ao mesmo tempo que a luz da manhã esvaecia. Ela franziu a testa, ergueu a mão e, controlando a raiva, moveu os dedos na direção do lago, ordenando: — Vá embora, escuridão! Não é bem-vinda ao meu reino nem mesmo quando provocam a minha ira!
As águas obedeceram de pronto. Acalmaram-se, e as trevas que tinham começado a manchá-las se dissiparam como o orvalho ao sol do meio-dia.
Viviane fitou o lago que lhe era tão familiar, mais perturbada do que gostaria de admitir diante da rapidez com que tais profundezas haviam reagido às suas emoções. A escuridão realmente tocara o lago, o que era alarmante.
— Equilíbrio entre luz e escuridão? Bah! — Ela lançou a palavra na névoa, porém, dessa vez, manteve a reação à sua explosão sob controle. O ar carregado de umidade em torno dela se agitou e cintilou, refletindo o poder da deusa. — Não existe equilíbrio quando um único mortal pode atrair tanta escuridão a ponto de meu reino ser afetado.
Eu deveria ser honesta comigo mesma , pensou, conforme se punha a andar de um lado para o outro ao longo da margem forrada de musgo. Não é tão simples como concentrar minha raiva no rei dos bretões. Guinevere também é responsável por essa tragédia. Assim como Lancelot, o cavaleiro ‘perfeitinho ’ , concluiu a deusa com uma careta.
Merlin não compartilhara muitos dos segredos de Camelot com ela. Havia dito que ela era uma fuga, um bálsamo para sua dor, e que, por esse motivo, preferia não lhe falar de coisas tristes.
Mas a Dama do Lago tinha olhos e ouvidos em todos os lugares onde existia água, e ela vira e ouvira o suficiente para saber que as previsões terríveis de Merlin iriam se tornar realidade.
— E essa realidade foi o que partiu seu coração, meu amor — sussurrou Viviane para a bruma.
Não. Não permitiria aquilo. Era uma deusa! Possuía poderes que os mortais não podiam sequer compreender. Nem mesmo um mortal tão espetacular quanto o seu Merlin.
Parou de andar e olhou para as águas familiares de seu lar. — Preciso de alguém que não seja deste tempo, nem deste lugar. Alguém que tenha uma maneira única de ver as pessoas e as situações, que abrace a luz em vez da escuridão. Que não fique muito impressionado com a beleza de Camelot, nem muito deslumbrado para pensar em...
Pensar em quê? O que essa pessoa precisava fazer para mudar o futuro, a ponto de salvar Artur de seu trágico destino e, ao mesmo tempo, libertar seu amado Merlin?
Seu amado... Viviane sentiu os ombros cederem e pressionou o rosto nas mãos, chorando com amargura. Já sentia falta dele e teve de lutar com as próprias emoções para não correr de volta para a caverna de cristal e sentar-se ao lado do corpo imóvel.
Sentiu a respiração ficar presa em um soluço. Ela era uma deusa, mas também era uma mulher. Uma mulher com um coração partido diante da perda de seu amado. Até mesmo seu reino, que lhe dera um profundo prazer por eras, parecia sem graça agora. Nada tinha sentido sem...
Viviane ergueu a cabeça.
— É isso! Artur pode perder tudo, mas, se ainda tiver seu amor, sua Guinevere, então não terá o coração partido, e seu destino vai mudar!
Entusiasmada, ela recomeçou a andar.
— É o que devo fazer. Preciso encontrar uma mulher... Uma mulher espetacular, de outro tempo, outro lugar, e trazê-la até aqui para seduzir Lancelot, de modo que Guinevere volte para Artur e seja um bálsamo para sua alma ferida!
Tudo ficaria bem. Merlin despertaria e — Viviane decidiu — iria fazer amor com ela como nunca fizera antes. Ah, como ela sentia falta daquilo! Merlin era um mago em mais maneiras do que qualquer um daqueles tolos de Camelot podia imaginar.
Resoluta, caminhou até a beira d’água, permitindo que os pés descalços fossem acariciados pelo beijo das marolas que vinham de encontro à margem. Levantou os braços, e a névoa tornou-se mais densa no mesmo instante, girando magicamente à sua volta, como se já aguardando pelo feitiço.
Das profundezas, meu poder eu invoco.
Ouçam-me todos, neste momento —
lago, chuva, neblina, orvalho e mar.
Uma estrangeira é do que necessito.
Uma alma única é meu desejo encontrar!
A deusa fez uma pausa, lembrando-se do aviso de Merlin de que uma vida não poderia ser desviada de seu destino. Pensou em ignorar as palavras do amante e lidar com as consequências mais tarde, mas não... O feitiço precisava ser perfeito. Ela teria apenas uma chance. As coisas já começavam a sair do controle em Camelot; logo seria tarde demais para intervir no futuro, se já não o fosse.
Não! Não pensaria dessa forma. Ela era uma deusa e, por meio da magia de seu reino aquático, iria mudar o destino de Artur e salvar seu amado.
Tornou a se concentrar, invocando o poder das profundezas do lago, que se espalhou tal qual vidro ondulado a seus pés.
Tragam até mim uma mortal
através desse divino portal.
Seja essa libertada de seu porvir.
Que se rompa o fio de seu destino,
para que a mim ela possa vir.
Viviane fechou os olhos, concentrando-se com tanta força que gotículas de suor lhe irromperam pela tez delicada.
Que seus olhos possam ver
seu maior desejo, o amor deve ser.
Que aberta e brilhante seja sua mente,
que um novo mundo se descortine à sua frente.
Que a vida e o amor sejam seu fascínio,
invadindo a escuridão que haverá de curar.
É essa alma que busco agora
e que com água e sabedoria irei vincular.
Lago, mar, chuva, neblina e orvalho —
busquem e encontrem a mortal
por meio da qual Artur irá se salvar!
Arremessando a esfera de luz que vinha crescendo entre suas mãos conforme ela elaborava o feitiço, Viviane abriu os braços, emanando seu desejo, seu poder, sua magia divina para dentro do lago.
Imediatamente, as águas mudaram de um azul-safira profundo para um prata tão ofuscante que se um mortal houvesse tido o azar de vislumbrar tal transformação, teria sido cegado para sempre.
Bela e iluminada ela deve ser;
as circunstâncias precisa de pronto compreender.
Proveitosas lhe são a felicidade e a sabedoria
e um pouco de malícia bom seria...
Ide agora! Atendei ao meu desejo!
Minha ordem tende que obedecer!
A superfície brilhante do lago girou em torno de Viviane e, em seguida, fachos cintilantes começaram a se levantar. Luzes serpentearam sobre a água, buscando, inquietas.
— Vão! — bradou a deusa, impaciente, e os fios iluminados foram se erguendo, se erguendo... até dispararem pelo céu da manhã e desaparecerem daquela dimensão em direção a tempos invisíveis e lugares desconhecidos.
Viviane ainda continuou a olhar o firmamento por muito tempo após sua magia ter se dispersado. Então, com um suspiro, avançou devagar, permitindo que a água a envolvesse e a reconfortasse enquanto flutuava até o palácio feito de pérola, que repousava nas profundezas. Agora devia esperar e torcer para que o feitiço atraísse a mortal ideal até a sua rede divina.
“Ah, se eu pudesse descobrir a mulher certa!”, refletiu a deusa enquanto adentrava seu palácio, afastando, impaciente, as servas náiades que a rodearam, ansiosas por atender a todas as suas necessidades. “Pois não era sempre assim? A mulher certa era a única coisa capaz de transformar qualquer maldito destino...”
Capítulo Um
Isabel concluiu que a manhã não poderia estar mais perfeita. Bem, talvez melhor se ela estivesse se recuperando de uma deliciosa noite de sexo...
Mas não era esse o caso. Não naquele dia, e decerto nem no seguinte. Na verdade, dificilmente tal coisa aconteceria naquela década.
Mesmo assim, o dia estava lindo.
Terminou de ajustar o tripé que sustentava a sua câmera favorita e então endireitou o corpo, aspirando o ar adocicado de Oklahoma. Não olhou através da lente da câmera, como faria a maior parte dos fotógrafos. Claro que iria fazer aquilo em algum momento, mas confiava mais no olho nu do que em qualquer lente, não importando a clareza, a amplitude ou a qualidade do telefoto.
Estudou a paisagem diante dela enquanto tomava um gole do café vienense torrado, e teve um vislumbre de si mesma na superfície prateada da garrafa térmica. Mesmo na imagem distorcida pôde ver que estava sorrindo. Seus lábios, sobre os quais todos os seus namorados costumavam comentar, pareciam agora enormes lábios de palhaço.
Os homens os adoravam, porém ela vivia tentando disfarçá-los. Não acreditava nem por um segundo que os de Angelina fossem de verdade, porém, infelizmente, sabia muito bem que os dela eram.
— “ Logo que a Aurora, de dedos de rosa , surgiu matutina ” — murmurou, surpreendendo-se com a citação de Homero. — Muito apropriado...
Isabel suspirou, satisfeita. A luz ali era perfeita! A pradaria Tallgrass de Oklahoma fora a escolha certa para começar seu novo ensaio que envolvia paisagens idílicas. Era início da primavera, contudo o rebordo diante dela já estava forrado de gramíneas que lhe batiam nos joelhos e que ondulavam tal qual um mar à brisa da manhã. O ar tinha um perfume de chuva iminente, mas tantos outros aromas a inundavam! A pradaria, o lago, o odor ocasional de um gambá. Natureza. Que máximo!
O céu era uma explosão de tons pastel contra um pano de fundo formado por nuvens densas que preenchiam a estratosfera lá no alto — testemunhas silenciosas da tempestade que desabaria ao meio-dia. Isabel mal deu atenção a tal previsão, contudo. Já terá ido embora antes que a primeira gota de chuva caia. Mas, mesmo que o mau tempo a espantasse dali, ela não se importava. A cumeeira à sua frente, sob aquele céu de algodão-doce, era a paisagem perfeita para a foto de capa de seu ensaio. E o cenário estava pontilhado com bisões. Os olhos de Isabel cintilaram quando ela os avistou. Começou a enquadrar as fotos, criando arte com o olhar da mente. Os enormes animais pareciam atemporais à luz inconstante do amanhecer, ainda mais porque estavam em pontos onde não havia postes de telefonia nem casas modernas. Tampouco se viam estradas ao redor deles. Eram apenas os bichos, a terra e aquele céu inacreditável.
Isabel tomou outro gole do café antes de pousar a caneca e se concentrar na câmera para focar as primeiras fotos. Conforme trabalhava, uma sensação de paz a invadia, e sua pele se arrepiou com prazer.
— E você pensando que tinha perdido o dom — falou em voz alta para si mesma, permitindo que o som preenchesse o espaço vazio ao redor. — Pois não perdeu — murmurou enquanto focava a teleobjetiva, centralizando um bisão enorme, com o céu em tons de rosa ao fundo. — Só perdeu o sossego que vinha com ele.
Que ironia a coletânea de fotos do USA Today batizada de Paz? tê-la feito perder a perspectiva sobre o assunto.
— O Afeganistão vai fazer isso. — Isabel bateu várias fotografias do bisão.
Pensando bem, devia ter imaginado que o trabalho seria difícil. Mas ela fora arrogante.
Droga. Era repórter fotográfica — uma repórter fotográfica bem-sucedida e premiada — havia vinte anos. Não era mais nenhuma mocinha ingênua, e sim uma mulher segura de 42 anos — o que era parte do problema. O excesso de confiança na própria capacidade a cegara para a realidade de enxergar as coisas como elas eram.
Não que ela não houvesse estado em zonas de guerra antes. A Bósnia, as Malvinas e a África do Sul já tinham desfilado diante de sua lente. Mas algo diferente acontecera no Afeganistão. “Não estava sendo eu mesma. De alguma forma, perdi a perspectiva e me deixei invadir por aquele caos e escuridão”, admitiu Isabel para si mesma enquanto mudava o ângulo do tripé e disparava vários quadros, capturando um bezerro que brincava em volta da mãe que pastava.
Tudo começara com o soldado Curtis Johnson, o rapaz de olhos castanhos e doces, cujo rosto jovem era mais bonitinho do que belo. Não podia ter mais do que vinte e cinco anos e flertara escandalosamente com ela enquanto a acompanhara até o jipe em que ela iria viajar: bem no meio do comboio de suprimentos que partiria da base aérea americana até um dos pequenos povoados nativos que ficavam a poucos quilômetros, na estrada esburacada.
Na verdade, Curtis era tão bonito e inteligente que ela cogitara até abrandar sua regra de não ter nenhum caso enquanto estivesse trabalhando. Havia calculado a diferença de idade entre eles e decidido que, diabos, se o jovem e sexy Curtis não dava a mínima para o fato de ela ser quase vinte anos mais velha, então por que ela deveria se importar?
Foi quando a bomba explodira na lateral da estrada. Ela havia posicionado a câmera no automático e, em meio à fumaça, ao fogo, à escuridão e ao horror, capturara algumas das imagens mais impactantes de sua carreira — imagens que incluíam Curtis Johnson, cuja perna direita e cujo musculoso braço direito tinham sido arrancados na explosão.
Ela jamais tivera a intenção de capturá-lo nas fotos. Não percebera nem mesmo que Curtis fizera parte da detonação... Quisera apenas seguir seu instinto de fotografar a realidade. A verdade, entretanto, explodira literalmente na sua cara, e ela quase sucumbira.
Os olhos de Curtis continuaram gentis, mesmo quando se nublaram com o choque. Antes de perder a consciência, ele ainda se preocupara com ela, gritando para que ela se abaixasse... para que se abrigasse... Depois tinha sangrado na areia seca do deserto e morrido em seus braços. O inferno parecia ter desabado ao seu redor, então, e tudo do que ela se lembrava era de gritar e proteger a câmera. Precisava manter as fotos de Curtis ainda vivo. Pela família dele... Por ela.
Isabel estremeceu. Percebeu que havia parado de fotografar e estava parada ao lado do tripé. Levantou a mão e tocou o rosto frio. Estava molhado.
— Preste atenção ao que está fazendo! — disse a si mesma. — Esta é a chance de recuperar seu equilíbrio, sua normalidade. — “E de superar a dor.”
Tratou de se recompor, como o pai sempre lhe ensinara; livrou-se das lágrimas, das lembranças, e se concentrou no trabalho.
Balançando a cabeça, voltou para o enquadramento da câmera com um sorriso sarcástico. Suas melhores amigas sem dúvida diriam que o “normal” de Isabel Cantelli não chegava nem perto do normal da maioria das pessoas. Ela quase podia ouvir as gozações da turma. Meredith daria de ombros e afirmaria que o normal dela sempre lhe fizera bem — com certeza lhe trouxera muito sucesso. Robin sacudiria a cabeça e diria que ela precisava mais era ter um homem em tempo integral, e não apenas uma sequência de amantes bonitos. Kim iria dissecar sua psique e, eventualmente, concordar com Robin, afirmando que um relacionamento mais consistente a ajudaria a se firmar. E Teresa iria declarar que ela precisava mais era correr atrás de qualquer coisa que a fizesse feliz.
Até um mês antes, e a viagem ao Afeganistão, ela teria rido, revirado os olhos, se servido de mais champanhe e dito que sua vida nômade, livre das amarras de qualquer homem, era o que a fazia feliz.
Então Curtis Johnson cruzara seu caminho, mudando sua visão de mundo. Daquela nova e nebulosa perspectiva, ela percebera que vinha enganando a si mesma havia um bom tempo. Ou talvez fosse mais preciso dizer que andava à procura de si mesma por um bom tempo. Em algum ponto, em meio àquela carreira de sucesso e ao grupo de amigas inteligentes e articuladas, em meio àquela vida ao mesmo tempo excitante e confortável, ela se perdera.
Por isso estava ali, na pradaria de Tallgrass, em Oklahoma, fazendo a única coisa que sabia para se equilibrar: vendo a vida através da câmera e buscando seu verdadeiro rumo mais uma vez, de modo a encontrar uma maneira de navegar através da paisagem acidentada de sua vida. Seu plano parecia estar dando certo até que deixara a mente vaguear e os olhos reverem o passado. O passado continha lembranças boas e ruins, momentos de alegria e de um medo ridículo. Se havia uma emoção que nunca experimentara, não sabia dizer ao certo o que era. Precisava de algo que lhe desse novamente um choque de prazer. Se ainda pudesse adivinhar o quê. O importante era que a beleza natural de Oklahoma parecia estar surtindo algum efeito no momento.
— Então, concentre-se! — lembrou a si própria, e ficou satisfeita ao retornar com facilidade à tarefa de enquadrar a linda paisagem à sua frente.
Na vez seguinte em que mudou o tripé, Isabel vislumbrou a luz da manhã emanando de uma superfície que ela percebeu ser água serpenteando por uma espécie de canal à sua direita. Intrigada, como sempre, pelas nuances na paisagem, seguiu naquela direção, adorando a surpreendente visão de um banco de areia e de um córrego claro e borbulhante, escondido em meio à chamada Cross Timbers , a floresta típica da região.
Ao chegar mais perto da água, notou que um único raio de sol penetrara as sombras verdes das árvores, de modo que uma pequena parte do riacho estava iluminada como se por um facho de prata. E esse facho a atraiu como um ímã.
Isabel guiou-se pelos próprios instintos. Desceu rápida e silenciosamente a margem, deixando o tripé para trás. Conforme estacou no solo arenoso, ajoelhou-se de maneira a permanecer pouco acima da água, focou a lente e começou a bater foto após foto, mudando o ângulo e a distância da água conforme trabalhava. Hipnotizada pela qualidade única da luz, permitiu que a magia da lente varresse a tristeza que pensar no Afeganistão e no soldado morto lhe causara. Havia mudado de posição e estava deitada de bruços — com os cotovelos plantados na areia — quando a moita no lado oposto da margem se agitou e, acompanhado por um forte estalar de galhos, um bisão se fez ver.
Mal ousando respirar, Isabel continuou clicando enquanto o enorme animal se aproximava da água. Ele bufou uma vez, decerto sentindo o cheiro de um intruso, mas então a ignorou por completo, baixou o focinho preto e bebeu ruidosamente.
Isabel se perguntou que cheiro devia ter para ele. O bicho virara a cabeça de um lado para o outro até avistá-la. Ela não chegara a sentir muito medo, portanto, não acreditava que isso lhe houvesse chamado a atenção. Teria ela apenas o cheiro de um humano? Não estava usando nenhum perfume e permanecia deitada, imóvel. Não era possível que o animal a tivesse ouvido. O que o fizera olhar na sua direção? E por que seu olhar parecia tão antigo e sábio? Quando o bisão se afastou do córrego, balançou a cabeça para cima e para baixo, lançou-lhe mais um olhar insondável e, em seguida, virou-se e galopou para longe com uma agilidade que ela jamais creditaria a um animal de porte tão surpreendente.
Isabel sentiu um tremor atravessá-la e mexeu na câmera para olhar as fotos que tinha tirado do bicho. O bisão havia ficado bem debaixo do facho de luz. Orvalho matutino revestia a pelagem do gigantesco touro, de modo que, por meio da lente, ele parecia envolto em diamantes e névoa. Ele acenara para ela! Como se estivesse aprovando a sessão de fotos. E, quando o bicho se virara e partira, seu único pensamento fora o de que qualquer macho humano daria tudo para ter o equipamento que aquela criatura carregava.
Isabel sentou-se e riu alto, satisfeita ao pensar que a beleza e a paz daquela terra antiga começavam a fazer exatamente o que ela esperava quando discutira a ideia do livro com seu agente: começara a aliviar sua alma e ajudá-la a moldar sua criatividade em torno de algo mais tolerável do que apenas morte e destruição.
Num impulso, chutou para longe as botas para caminhada e arrancou as meias. Enrolou as barras das calças e, ainda segurando a câmera, avançou cuidadosamente um passo para dentro da água cristalina. Prendeu a respiração e soltou o ar com força diante do frio inicial. Após mais alguns passos, porém, seus pés se acostumaram com a temperatura do córrego, e ela seguiu até o facho de luz solar que, poucos minutos antes, enquadrara o bisão. Ao chegar ao ponto iluminado, ergueu o rosto, banhando-se com o esplendor da manhã, enquanto a água fria lhe acariciava os pés e tornozelos.
Havia algo naquele lugar que mexia com ela. Talvez fosse o drástico contraste entre a liberdade serena da pradaria limpa, verde e exuberante e o Oriente Médio devastado pela guerra, onde tudo em que pousava os olhos estava queimado e esturricado, ou então mergulhado em um verdadeiro pesadelo de conflitos. Respirou fundo, inalando e exalando o ar; imaginando, a cada respiração, que se livrava de toda a negatividade que trazia dentro de si mesma, e permitindo que a água lavasse os vestígios de morte e de guerra que pareciam impregnados nela naquele último mês. Sem parar para se perguntar o motivo, ou concluir que fazia papel de boba, Isabel expôs seus pensamentos mais íntimos em voz alta, em meio ao riacho atento, emoldurada pelo facho de luz.
— É disso que eu preciso: uma nova perspectiva, uma nova visão... Para me purificar. Aquele bisão estava me dizendo alguma coisa. Estava me dizendo para ir atrás do que eu quero. Eu só gostaria de saber o quê. Diga-me, Dama do Lago — falou ela, sorrindo. — A sra. Tiger nos ensinou tudo sobre você no nono ano... Qual é o meu destino?
Isabel sabia que era apenas sua imaginação, mas foi como se a luz prateada se intensificasse em resposta às suas palavras, e ela poderia jurar que sentira um arrepio. Rindo com prazer, abriu os braços e chutou a água, fazendo as gotas que a luz do sol transformava em cristal chover em torno dela e batizá-la com seu brilho.
Viviane não conseguia ficar longe do oráculo. Sabia que era muito cedo para que os tentáculos de sua magia tivessem encontrado alguém, porém estava frustrada. Enquanto as náiades se agitavam ao seu redor, continuou sentada diante do oráculo — uma bacia de cristal repleta com centenas de pérolas —, cheia de preocupação.
Quando uma pérola começou a brilhar, a deusa se lançou sobre ela. Arrancou-a do meio das outras que havia dentro da pia escura e silenciosa, ergueu-a e mirou seu cerne leitoso. A imagem clareou, exibindo uma velha senhora sentada às margens do Grand Lake e cuspindo na água o que pareciam ser sementes de girassol.
— Mais moça! — ordenou Viviane com desgosto, cingindo o fio de modo a afastá-lo da anciã. Jogou a pérola de volta na bacia e começou a andar.
A pérola que se iluminou em seguida mostrava uma criança brincando à beira de um oceano.
Ela quase gritou de desespero.
— Não tão moça! — advertiu ao oráculo, exasperada.
As duas imagens seguintes eram totalmente inadequadas. As mulheres não pareciam nem muito moças nem muito velhas, contudo eram muito comuns.
Ao final de sua já escassa paciência, Viviane arrancou um dos longos fios prateados e sedosos que lhe caíam como um espesso véu em torno do corpo. Segurando-o sobre a bacia cheia de pérolas, girou-o em um lento círculo.
Não muito jovem, nem velha ou simples
com esses tipos, nenhum ganho existe.
A mulher perfeita é o que preciso.
Graça, beleza e espírito é o que exijo!
Soltou o comprido fio de cabelo e, conforme este flutuou para dentro da pia de pérolas, completou o feitiço:
Do meu próprio corpo empresto ao oráculo o poder.
Que a alma certa agora eu possa ver!
Um raio prateado cintilou, e o fio de cabelo da deusa explodiu, fazendo chover faíscas de luz que se dissolveram nas pérolas. Revigorados, outros fios de prata dispararam do reino da deusa e, seguindo lagos, rios e córregos, procuraram através do tempo e das dimensões.
De repente, um pequeno e brilhante apêndice infiltrou-se por um minúsculo canal, em um lugar distante chamado Oklahoma, no longínquo mundo moderno mortal onde, em um facho de luz da manhã, capturou o som do riso alegre de uma mulher conforme ela renovava sua fé nas infinitas possibilidades da vida.
Viviane escutou o som sedutor e tirou do oráculo a pérola brilhante. Prendendo a respiração, olhou através da profundeza leitosa que clareou, revelando uma loira voluptuosa, estranhamente vestida, dançando em meio a uma cascata de respingos em um córrego. Seus batimentos cardíacos aumentaram com a ansiedade que a invadiu.
— Mostre-me o rosto! — ordenou de pronto.
O oráculo se concentrou na face da estranha. Sem dúvida, ela era muito atraente. Viviane estreitou os olhos. A mulher não era nem muito jovem, nem muito madura... Ou ao menos não parecia ser. E o fato de esta ter alguma experiência seria muito interessante. A moça riu outra vez e, surpresa, Viviane sentiu os próprios lábios balbuciando em resposta. Era uma risada melodiosa e, de atraente, a estranha passou a lhe parecer também sedutora.
— Sim — murmurou, satisfeita. — Acredito que esta vá servir.
Levantou os braços, fazendo o poder girar em torno do corpo.
Esta linda mortal eu reivindico
quando a morte seu destino decretar.
A mim sua alma irá se unir
tão logo a vida nela findar.
Do meu amor, sigo o desejo adormecido
para que do desespero, que de forma tão cruel o escraviza,
este ainda venha a se livrar.
Nada tomo que já não esteja perdido.
Claro é o meu propósito, o custo pouco importa.
De Artur não deve ser amargo o destino
para que a mim o meu amor possa retornar!
Em seguida, a grande Deusa da Água, conhecida como Coventina — a Viviane de Merlin —, arremessou uma esfera flamejante de poder divino através do oráculo, e esta viajou para longe... para outro tempo, outro lugar... alterando para sempre o destino de Isabel Cantelli.
Capítulo Dois
“Tarde demais”, concluiu Isabel, mortificada. “Tarde demais.” Após dar uma guinada na direção para se desviar de um esquilo — e perder o controle do SUV —, foi essa a conclusão a que ela chegou.
Se não tivesse se abaixado para apanhar o celular enquanto cantarolava Camelot , toda feliz, ao mesmo tempo que dirigia a 100 km/h por uma estrada empoeirada. Se tivesse deixado o bichinho se defender por conta própria em vez de tentar bancar a heroína. Pensando bem, no jogo da vida aquilo não era um empate. Era uma lavada de cem a zero.
De qualquer modo, nenhum “se” iria ajudá-la agora. No momento, ela e seu Nissan voavam em direção ao Grand Lake a uma velocidade alarmante.
Isabel se preparou para o mergulho que estava prestes a dar e que duvidava que seria suave. O lago, que considerara mágico poucos minutos antes, iria acabar com ela.
Tanta coisa estava lhe passando pela cabeça. E nada do que ela imaginara que fosse passar quando se visse prestes a morrer. A vida que havia tido não estava desfilando em flashes diante de seus olhos. A que ela não vivera, sim.
Pavor, medo da dor da morte, isso tudo lhe passava pela mente. Mas a tristeza pelo que ela ainda não conseguira realizar era o que mais lhe ocupava os pensamentos.
O carro atingiu o lago tal qual uma explosão nuclear, e o air bag estourou à sua frente, colando-a ao assento. Quando este se esvaziou, por fim, ela tentou desatar o cinto de segurança, mas, por alguma razão, não conseguiu. Com a janela abaixada, o carro se encheu de água e começou a afundar.
A menos que um milagre acontecesse, não tinha como escapar dali viva. Estava a caminho da morte, e aquilo era aterrorizante. Seu coração batia, tresloucado, porém ela sabia que não por muito tempo. Pediu desculpas ao próprio coração pelo que iria acontecer. Pediu desculpas ao próprio fígado por não tê-lo maltratado tanto quanto podia ao longo dos anos. Que desperdício! Mesmo pensando nos amigos e na família, sua própria vida não chegou a lhe passar diante dos olhos, como muitos asseguram acontecer quando as pessoas morrem.
Seu foco, enquanto sentia o peito se comprimir dolorosamente, era, mesmo, em todas as coisas que ainda não realizara. Como podia ter se esquecido de tudo o que ainda queria da vida? A principal delas era que nunca havia encontrado o amor. Luxúria, sem dúvida. Atração, com certeza. Mas não aquela coisa indescritível, conhecida como “amor verdadeiro”. Olhar para um homem e saber, com segurança, que eles tinham sido feitos um para o outro.
Havia muitos outros itens em sua lista, mas, de fato, ela teria gostado de experimentar a sensação de estar apaixonada.
“Se... Se... Se...”
De repente, Isabel sentiu-se viva de novo. E soube, apenas soube, que, de alguma forma, de alguma maneira, ela teria outra chance.
Capítulo Três
— É melhor acordar, Isabel.
— Só mais uma hora — murmurou ela.
— Entendo essa sua necessidade de tirar um cochilo, afinal fez uma longa viagem — ponderou Viviane, sacudindo-a de leve. Você é a minha última esperança. — Receio que precise dar início a esta missão agora mesmo. Eu preciso do meu Merlin!
Quando “sua esperança” apenas gemeu, virou-se e resmungou “café”, Viviane sentiu a irritação espiralar dentro dela.
— Acorde, sua lamentável... pessoa! Levante-se agora mesmo! Se não fosse por mim, não estaria aqui se espreguiçando e fazendo exigências . Um cappuccino de chocolate com bastante creme, certo?
“Sua esperança” despertou instantaneamente, afastando os cabelos loiros e viçoso s do rosto.
— Ah, sim, por favor. Onde estou? Você me salvou? Obrigada! Fiquei tão atordoada! Se eu...
— Se... Se... Se... Eu sei. — Viviane estalou os dedos, e uma imensa caneca de prata contendo café surgiu em meio à bruma. — Beba primeiro. Depois vamos conversar.
A linda moça a fitou, em seguida tomou a caneca de sua mão e bebeu um gole.
— Não sei como lhe agradecer — falou e, em seguida, olhou para dentro do copo. — É o melhor café que já tomei! Como foi que...
— Aprendi depressa a preparar um bom café enquanto visitava o seu tempo.
— Meu tempo?
— Como eu disse, temos muito que conversar.
Isabel sabia que estava no Céu — pois o café parecia divino — ou estava no inferno, porque a mulher à sua frente era tão bela e etérea que tinha de ser o demônio disfarçado.
Ou, então, não estava nem no Céu, nem no inferno, ainda que continuasse reconhecendo uma boa caneca de café ao provar uma. E este a estava despertando, o que era um bom sinal: não era descafeinado.
Olhou em volta. Encontrava-se sentada junto a um lago, mas que não era o Grand Lake. A flora e a fauna pareciam completamente fora de sintonia. A névoa que pairava sobre a água era cintilante, diferente de tudo o que ela já tinha visto. Sem falar que não havia nenhum poste de eletricidade ou sinal de civilização à vista.
Foi quando reparou no próprio traje. Não era o mesmo com o qual ela quase morrera. Estava com um vestido verde-jade, de mangas compridas que se ajustavam nos ombros para depois se alargar até os punhos. O decote era quadrado e proporcionava uma visão do colo que ela não costumava exibir. Era um lindo vestido, sem dúvida. Na verdade, faria bonito em qualquer tapete vermelho. Mas não era seu.
— O que está acontecendo? Onde estou, como vim parar aqui e quem diabos é você?
A mulher sorriu, estalou os dedos outra vez e, enquanto Isabel olhava, a caneca de prata se encheu outra vez, exalando um delicioso cheiro de café.
— Posso assegurar que nós, ou melhor, você não está no inferno.
— Então onde estou? Onde estamos? E por que eu não a fotografei ainda? É a mulher mais linda que eu já vi. E olhe que eu já vi muitas. — Bebeu mais um gole da deliciosa bebida da caneca de prata. — Qual é o problema, afinal?
— Eu a escolhi, Isabel, para uma missão muito especial, muito importante.
— Eu ficaria lisonjeada se não estivesse tão assustada. Na verdade, teria saído correndo e gritando se você não tivesse feito surgir este café incrível.
— Não está com fome também? As parcas me disseram que adora bolinhos. Em especial uns tais beignets .
A mulher fez menção de estalar os dedos novamente, contudo Isabel a impediu.
— Por mais que eu ache isso interessante, antes que faça as coisas surgirem do nada de novo, posso fazer algumas perguntas?
— Merece ter todas as suas perguntas respondidas.
Isabel tomou a resposta como um “sim”.
— Foi você quem me salvou?
— Sim.
— Como? Assim que eu atingi a água e não consegui me soltar, soube que estava encrencada. — Ela levantou a mão e mexeu os dedos, depois moveu as unhas dos pés, agora envoltos em chinelos prateados. — Deu tudo certo, assim, do nada! E eu tinha me ferrado , sem sombra de dúvida! De repente, tive essa sensação de, não sei , uma segunda chance.
— Tinha “se ferrado”? Tinha morrido, quer dizer. E sim, esta é mais uma chance de realizar alguns dos seus desejos.
— Bem, ao menos isso esclarece um pouco as coisas. — Isabel olhou o verde exuberante e a densa floresta além da enseada rochosa. — Não estamos mais em Oklahoma, estamos, gostosona?
— Gostosona?
— Desculpe, eu não quis ser indelicada. Mas parece saber o meu nome e até os meus podres. Posso perguntar ao menos como se chama?
— Sou conhecida como Coventina. Mas pode me chamar de...
— Coventina, a Dama do Lago? A Deusa da Água na Mitologia?
A mulher abriu um sorriso triunfante.
— Então já ouviu falar de mim no seu tempo! Merlin me assegurou que eu não passava de uma lenda há muito esquecida.
Isabel continuou sentada, completamente atordoada. O brilho que cercava a estranha, aqueles cabelos longos e platinados, os olhos azuis que pareciam refletir a pureza do lago atrás delas...
— Está brincando, certo? É alguma pegadinha? — Olhou ao redor. — Onde estão as câmeras? Fez um trabalho e tanto ao escondê-las, porque posso farejar e detectar uma a quilômetros.
— Eu lhe asseguro, sou mesmo Coventina. E não há nenhuma dessas tais câmeras por aqui. Não que eu saiba.
— Quer saber? Eu adoraria comer um beignet agora. Será que pode regá-lo com um pouco de...
— Chocolate amargo? Claro.
Mais um estalar de dedos e Isabel se viu diante de um verdadeiro banquete. Havia beignets , do jeitinho que ela gostava, mas também presunto frito, ovos fritos com gema mole, batatas com cebola, pimentão e pedaços de bacon, exatamente como ela mesma costumava preparar. Aquilo era bom demais. Perfeito. E muito louco.
De qualquer modo, estava faminta demais para ser rude e recusar.
— Importa-se se eu for indo agora? — indagou Isabel após lamber os dedos ao fim da refeição e se pôr em pé.
Foi então que percebeu: com um só movimento de mão, a mulher fez seus chinelos se colarem à terra. Ela bem que tentou se libertar, mas eles pareciam grudados também à sua pele.
— Por favor, escute... — falou a mulher — se a lenda dizia a verdade, não precisaria pedir favores a ninguém.
Isabel se sentou.
— Desculpe se estou meio confusa.
— Eu compreendo.
— Você me salvou do Grand Lake.
— Sim.
— Por quê?
— Porque preciso de você. E porque tenho esperanças de que tudo isso aconteça de um modo que também um de seus... (como disse mesmo?) ...“ses” acabem se tornando realidade.
— Eu estou viva. Não estou apenas em outro mundo?
— Ah, receio que esteja, mesmo, em outro mundo. Mas neste mundo, Isabel. Não no seu.
— Onde estou?
— Se aprendeu algo sobre mim, também deve ter aprendido sobre Camelot.
Isabel tornou a fitá-la, incrédula.
— Só pode estar brincando.
Coventina riu, emitindo um som tão melodioso que até mesmo o lago pareceu reagir a ele. As águas borbulharam aqui e ali, como se algo lá embaixo não conseguisse evitar rir com ela.
— Gosto de uma boa brincadeira, assim como muitos dos homens e mulheres do castelo. Mas garanto que, além desta floresta, fica o castelo de Camelot.
— Quer dizer o do rei Artur, de Lancelot, Guinevere, Merl... Ah. É esse o seu Merlin.
— Era — corrigiu Coventina, e seus olhos imediatamente mudaram do impressionante azul para um cinza tempestuoso. — Ele abandonou este mundo, devastado pelo destino que vislumbra para Artur. — A deusa segurou a mão de Isabel. — Preciso trazê-lo de volta. Preciso. Receio que a eternidade vá ser um eterno sofrimento sem ele.
— Por que eu? — indagou Isabel, tentando disfarçar as lágrimas nos olhos. Não costumava ser chorona, a menos que se visse diante de uma situação como a de um homem doce e heroico morrendo no Afeganistão ou a do nascimento de um gatinho.
Coventina apertou a mão dela ainda mais, porém, estranhamente, o gesto não foi dolorido. Foi mais como se elas estivessem trocando energia.
— Porque era a pessoa que eu estava procurando. Pedi aos deuses uma que fosse bonita, inteligente e, sinto dizer, que estivesse prestes a morrer. Determinante para mim foi o fato de ser uma mulher — como você mesma disse — com vários “ses”; e alguém que lamentou, em seus últimos momentos, não ter encontrado o amor verdadeiro.
— E o que a faz pensar que vou encontrá-lo aqui, Cov...
— Pode me chamar de Viviane. Merlin foi o único a conseguir isso, mas eu gostaria muito que conseguisse também. Porque acredito que seja a única capaz de trazê-lo de volta para mim.
— Está bem, mas o que a faz pensar que vou encontrar o amor aqui, Viviane? E como posso trazer Merlin de volta?
— Não tenho certeza de nada, mas, se eu não tentar, não terei feito o bastante para reconquistar o homem que amo. E meu coração, assim como as minhas águas, não aceita tal coisa. Temo o que vá acontecer se a minha infelicidade tumultuar as águas que me alimentam.
Isabel olhou para o lago e viu marolas onde, momentos antes, tudo estivera calmo, claro e azul como os olhos da deusa. As águas pareciam inquietas, cinzentas e infelizes agora. Lembravam as do Grand Lake, que lhe parecera quase zangado pouco antes de ela e o carro darem um mergulho nada belo em suas agitadas profundezas.
Ela tornou a olhar a linda mulher à sua frente, perguntando-se quando iria acordar daquele sonho. Mas, até lá, ao menos tentaria ajudar.
— E quanto aos meus equipamentos de fotografia?
Viviane balançou a cabeça.
— Não há nada do tipo neste tempo ou lugar.
— Está bem — resignou-se Isabel, ainda que lamentando não poder capturar a beleza ao seu redor, a beleza daquela estranha... que sem dúvida a deixaria rica caso se deixasse fotografar para a revista People : “A surpreendente verdade de Camelot”... — Por quem, pelo amor de Deus, estou destinada a me apaixonar? Ou quem você espera que possa se apaixonar por mim? E se eu acidentalmente me encantar com, digamos, o bobo da corte?
Uma vez mais a risada melodiosa da deusa encheu o ar, e os pássaros nas árvores próximas pareceram se juntar a ela.
— Hester, o bobo da corte? Tomara que tenha um gosto mais apurado.
Isabel sorriu.
— Então quem, senhora?
— Lancelot, claro.
— Está brincando, não é? Se bem me lembro, Gwen quase foi queimada numa fogueira por se envolver com ele. Eu não quase morri afogada para no futuro ser jogada no fogo!
— Isso não vai acontecer. Agora será Lady Isabel, que veio a Camelot como condessa de Dumont para discutir a partilha de terras em benefício de todos os bretões.
— Então vou cair de paraquedas nessa história? Sem ser convidada?
Viviane hesitou por um momento, em seguida puxou um colar de uma espécie de bolso em seu vestido. Era uma peça impressionante que, a princípio, parecia feita de safiras. Conforme Isabel a tocou, contudo, percebeu que era um pingente em forma de coração, feito de algum tipo de vidro, e com um líquido azulado no interior. Era lindo e, na certa, custaria uma nota na Sotheby’s.
— Nossa, Vivi!... Posso chamá-la de Vivi?
A deusa bufou.
— Não, não pode.
Isabel deu de ombros.
— “Viviane” é meio complicado de pronunciar, mas, está bem. Isto é incrível! O que é?
A deusa colocou o pingente em volta de seu pescoço, e a peça se aninhou na altura do coração, bem em meio a seus mal confinados seios.
— É um colar mágico, Isabel. Ao vê-lo, aqueles que poderiam suspeitar de sua chegada e de seus motivos não o farão. Dentro dele estão as lágrimas que derramei quando não tive escolha a não ser permitir que Merlin me deixasse. O colar tem poderes, mas não deixarei que saiba quais são, pois há um preço a pagar por seu uso. Trate-o com sabedoria, e ele será seu aliado. Use os poderes com imprudência, e pagará caro.
— Tem isso por escrito? Algum folheto ou coisa do tipo, no qual eu possa me informar como fazê-lo produzir banheiros e encanamento de verdade?
Viviane riu, assim como pareceu fazer o lago.
— Poderia fazer tudo isso, claro. Mas depois não poderia utilizar nada.
— Verdade?
— Sim. Por favor, tente compreender. Há um preço para todas as vezes que invocar o poder das minhas lágrimas. Se precisar usá-las, lembre-se de que existe um custo. E mais uma coisa, Isabel. Nunca permita que tomem o colar de você. — Viviane pareceu perdida em pensamentos por um instante, depois recitou:
O coração e as lágrimas, Isabel não devem deixar
sem que um terrível feitiço o ladrão destes venha a sofrer.
Apenas Isabel poderá o colar retirar,
e com estas palavras me fazer saber:
“Para o bem de todos, ó Deusa do Lago,
Em nome do amor e da vida, isso tem que acontecer!”
Viviane ergueu os braços, e nuvens que vinham se formando no céu se desmancharam sobre todo o lago e sobre elas.
Isabel não gostava muito de se molhar, a menos que estivesse numa ducha, mas, por alguma razão, a chuva lhe pareceu morna e reconfortante em um momento em que se sentia um tanto assustada e completamente fora de seu elemento.
Aquilo era um sonho de morte? Era assim que acontecia? Ela estava cantando a música-tema de Camelot quando havia mergulhado com o carro. Pensara na Dama do Lago enquanto lutava para sair da água.
Pelo visto, tivera aulas de Mitologia em excesso na faculdade.
De qualquer modo, se era mesmo um sonho de morte, era muito, muito legal. Onde mais poderia querer aterrissar além de Camelot?
O ruim era a falta de encanamento.
Mas e daí? Ela já conseguira se virar. Pois então não tinha dado um jeitinho no Afeganistão? Podia muito bem encontrar uma maneira de viver sem a sua ducha Kohler de luxo.
O problema era...
— Por quanto tempo, Viviane?
— Até que nós duas alcancemos os nossos objetivos.
— Só para esclarecer: estarei morta ao final desta aventura? Não que eu esteja reclamando, imagine. Afinal me salvou e tudo o mais, mas posso morrer quando esta Missão Impossível chegar ao fim?
— Garanto que, assim que conseguir cumprir esta Missão Impossível, como você a chama — embora eu não pense assim —, seu destino estará em suas mãos.
— Então, se eu decidir que não quero mesmo morrer?
— Você mesma vai decidir o seu futuro.
— E se eu resolver voltar para a canalização e a eletricidade? E para a minha fotografia?
— Seu destino estará em suas mãos, Isabel.
— Está bem — concordou ela de pronto, tocando o colar e certificando-se de que ele continuava no lugar. — Tem algum post-it em que eu possa escrever as tais palavras que preciso falar?
— Vai se lembrar delas, se for necessário.
— Outra pergunta: se eu precisar de ajuda ou conselhos, posso procurá-la?
— Sempre.
— E como poderei encontrá-la ?
— Basta pedir em pensamento, Isabel, e eu lhe atenderei.
— Ótimo, assim posso ter certeza da minha missão: tentar seduzir Lance e fazê-lo se esquecer de Gwen, de modo que Artur e Gwen sejam felizes para sempre. Isso vai ajudar o rei a salvar Camelot?
Viviane riu, e as nuvens e a chuva desapareceram como por encanto.
Isabel invejou tal poder, imaginando como seria conseguir fazer aquilo com um ou dois namorados.
— Sim, é esse o plano, Isabel. Mas os planos às vezes dão errado.
— Ah, que bom.
— Você tem o colar. Use-o com sabedoria e irá... Como se diz mesmo, no seu tempo? “Tirar de letra”?
— Pode ser. Pelo visto, gosta de arriscar.
— Estou apostando em você, Isabel. E estou apostando que vai encontrar o amor que devia ter encontrado no seu tempo.
Àquela altura, Isabel até lamentava seus últimos pensamentos. Talvez devesse ter se concentrado no que não devia ter feito.
— Como vou encontrar o castelo de novo?
A deusa mergulhou a mão na água e jogou um punhado dela para o ar. Tal como gotas de mercúrio prateadas, estas descreveram um arco, depois foram caindo de volta, uma a uma, sobre o lago.
Viviane apontou atrás de Isabel.
— Sua montaria a aguarda.
Ela fez meia-volta e lá estava o cavalo árabe mais bonito que já vira, todo branco e bufando, impaciente.
Isabel inclinou a cabeça e o espiou na parte de baixo. Era uma fêmea, já que não tinha nada dependurado.
— Escute, Viviane, vamos esclarecer uma coisa — começou. — Em primeiro lugar, sou boa amazona. Na verdade, adoro montar em pelo. Mas reconheço uma sela lateral, e não há a menor chance de eu controlar essa égua numa sela dessas!
A deusa tornou a rir, em seguida mergulhou os dedos no lago e lhe jogou gotas na cara. Fez o mesmo com a égua, que recebeu o gesto muito melhor do que Isabel.
— Agora já sabe, Izzy, como montar de lado. Você e Samara serão amigas. Tratem de galopar até Camelot, pois estão precisando de ajuda lá. E eu estou ansiosa por voltar para o meu Merlin.
— Por que pode me chamar de “Izzy”, e eu não estou autorizada a chamá-la de “Vivi”?
A deusa se insurgiu.
— Quem é a divindade aqui, Izzy?
— Está bem. Ponto para você.
Capítulo Quatro
Izzy? Apenas seus melhores amigos e seu pai a chamavam Izzy, pensou Isabel. Mas imaginava que discutir com uma deusa que tinha acabado de lhe salvar a vida não era muito aconselhável. Conforme ela e Samara abriam caminho em meio à floresta que as levaria até Camelot, ponderou sobre como era profundo aquele sonho. Afinal, assim como Viviane havia previsto, ela e Samara logo se tornaram amigas; tanto que montava a égua de lado, como se tivesse feito aquilo a vida toda.
Como era possível? Ou aquele era mesmo outro mundo, que ninguém ainda vivo poderia imaginar? Era daquela forma que o Universo funcionava? Ele apenas a largava em outro tempo e lugar?
Isabel suspirou. Já fora obrigada a parar Samara duas vezes para dar conta de suas necessidades no meio da floresta, mesmo se perguntando se ficar com o traseiro de fora era ilegal em Camelot. Estranhamente, a cada vez que fora forçada a parar, encontrara algo semelhante a papel higiênico esperando por ela.
— Obrigada, Viviane — falou num sussurro.
E pôde jurar que as árvores sussurravam de volta: — De nada.
Samara era incrível. Na primeira vez em que ela precisara parar, havia amarrado as rédeas em torno de uma árvore, e a égua bufara, parecendo aborrecida. Quando tinha voltado, Samara quase a arremessara a vários metros de distância. Ela havia captado a mensagem, portanto, e, na segunda parada, deixara Sam solta. O melhor era não mexer com a confiança da égua ou com a sua liberdade, constatou, sendo recompensada pelo gesto quando Samara inclinou-se para ajudá-la a subir na sela com mais facilidade. Muito diferente da primeira vez, quando ela precisara procurar um tronco em que subir, e Sam não parara de se mover.
As torres do castelo pareciam cada vez mais próximas, e Isabel se viu apertando o colar tantas vezes que era como se ele já estivesse ficando impaciente com ela.
Viviane parecia estar a seu lado, porém não ficava à vista, o que a teria deixado bem mais feliz.
— Parece que somos apenas você e eu, Sam.
A despeito de seu primeiro entrevero, era inacreditável o vínculo que ela e a égua tinham formado quase instantaneamente, raciocinou Isabel. Ela não precisava chutar o flanco da égua, não precisava bater as rédeas. Bastava uma só palavra e Samara a compreendia.
— E então, o que acha, Sam? Vamos dar conta da nossa tarefa?
Samara bufou e balançou a cabeça. Depois parou e aguçou os ouvidos.
Um estalar nas folhas à sua esquerda fez o coração de Isabel disparar. Seria um leão, um tigre, um urso? Santo Deus!
Isabel se agarrou ao colar.
— Quem está aí? — gritou para a mata fechada. O que era no mínimo a coisa mais idiota a fazer, ainda mais se estava lidando com algum bicho comedor de gente. Mas a pergunta apenas saiu.
Um homem surgiu ao lado de um enorme carvalho. Curvou-se, educado, depois endireitou o corpo.
— Sossegue, minha cara condessa. Sou apenas eu, que vim para escoltá-la até o castelo.
Os batimentos de Isabel desceram para a região do púbis e ali continuaram a latejar. Que homem era aquele ?! Os cabelos eram negros, cortados bem curtos. Os lábios pediam por sexo. O sorriso gritava por sexo. Os olhos eram de um verde-musgo tão intenso quanto o da exuberante floresta ao seu redor. E ele usava um cavanhaque, que ela normalmente teria odiado, mas que nele caía mais do que bem.
O estranho usava uma cota de malha elástica quase até os joelhos, carregava um arco de caçador na mão esquerda e uma aljava cruzada no peito, com as flechas se insinuando por trás dos ombros largos. Sob a armadura, usava um par de leggings pretas bem justas.
O homem se aproximou. Seu olhar desceu para o colar, depois se ergueu de volta para o rosto dela.
— Não é nada adequado para uma mulher viajar por esta floresta sozinha. Onde estão seus acompanhantes? Onde estão seus baús de viagem?
Boa pergunta — para a qual ela não tinha uma boa resposta. Até tocar o colar.
— Ah, estão alguns quilômetros atrás de mim. Eu estava me sentindo meio inquieta com o ritmo lento da carruagem e decidi ter um pouco mais de privacidade. Mas eles já devem estar chegando. Não é mesmo? — perguntou na direção das árvores, e estas chacoalharam de leve, fazendo-a tomar o gesto por um “sim”. Afinal de contas, Viviane não a teria mandado para aquele lugar com nada além de um vestido, teria?
Sem dizer que era mesmo inimaginável uma mulher viajar completamente sozinha por ali.
— Fico honrado por se sentir segura nas florestas de Camelot, condessa, mas mesmo aqui existe perigo.
O único perigo que ela pressentia no momento era a atração que estava sentindo por aquele homem!
— Receio estar em desvantagem, senhor — falou, tratando de mudar de assunto. — Parece saber quem sou e ter sido avisado com antecedência da minha iminente chegada, mas nada sei sobre a sua pessoa. — Isabel sentiu um riso borbulhar no peito e teve a certeza de que este vinha de Viviane. De repente, ocorreu-lhe que estava falando e compreendendo o inglês arcaico mais do que bem.
Que sonho excepcional era aquele!
— Tendo sido alertado sobre sua iminente chegada, pedi para que meus homens cuidassem de sua comitiva, de modo que pudesse ser escoltada adequadamente até Camelot. Imagine a minha preocupação quando me foi dada a notícia de que parecia estar sozinha, e que nenhum de seus homens galopara à sua frente para anunciá-la. Temi que algum sério contratempo houvesse ocorrido.
“Então, imagine a minha!”, contrapôs Isabel em pensamento.
E se perguntou o quanto estivera só enquanto fora obrigada a parar a fim de esvaziar a bexiga.
Sentiu o rosto arder com a possibilidade.
— Meus sinceros agradecimentos por sua preocupação e cuidado.
— Minha mais sincera gratidão por ter aceitado nos visitar em Camelot.
— Suponho, então, que estejamos todos em segurança! Mais uma vez, senhor, ainda não sei a quem falo. Por um acaso é — vamos torcer — sir Lancelot?
Mesmo enquanto perguntava, Isabel tinha certeza de que não podia ter tido tanta sorte. Aquele estranho era pelo menos uns dez anos mais velho do que o jovem cavaleiro sobre o qual ela havia lido. Estava no ponto, com algumas linhas de sorriso ao redor dos olhos e outras em torno da boca, as quais evocavam muito mais experiência. Via sabedoria e até mesmo uma ponta de cansaço em seus olhos.
E sua risada era profunda e fatal.
— Todas as mulheres bonitas querem Lancelot. Peço desculpas por não ser ele.
— Não são necessárias desculpas. Mas, então, quem é você?
O homem curvou-se novamente.
— Meu nome é Artur.
— Está brincando.
— Não, não estou.
“Ele é mesmo o rei, Izzy!”
“E isso significa o quê?”
“Significa que precisa tirar o traseiro dessa égua e fazer uma reverência!”
“Pelo visto, ainda tem muito que aprender, moça!”
Isabel desmontou sem a menor graciosidade, em seguida tomou a mão de Artur e fez o máximo para se curvar em uma mesura. Uma vez que não se curvava desde uma peça do primeiro ano do Ensino Médio — Camelot , aliás —, viu o quanto estava enferrujada.
— Mil perdões por não tê-lo reconhecido antes, rei Artur. — Ela fez menção de levar a mão do soberano à boca, pois tinha certeza de que deveria beijar seu anel ou algo assim, mas começou a oscilar. Definitivamente, não estava acostumada a se curvar para homem nenhum sem desejar acertá-lo nas bolas depois.
Artur a segurou pela cintura e a endireitou, o sorriso tão cheio de prazer que ela desejou beijar cada parte dele, menos o anel.
— Condessa, a jornada foi, sem dúvida, muito longa e suas pernas estão fraquejando. E, cá entre nós, essa coisa de beijo no anel sempre me incomodou.
As mãos dele não deixaram sua cintura, seus olhos não pararam de sorrir para os dela. O homem só faltava começar a cantar.
— Richard Harris não é nada perto de você — deixou escapar Isabel.
Foi um erro. Ela soube disso tão logo o colar pareceu bater com força em seu peito.
Artur deu um passo para trás, os olhos se anuviando.
— Está comprometida com sir Richard?
Isabel sentiu falta das mãos quentes em sua cintura.
— Sir Richard? De Fremont? Claro que não. Eu estava me lembrando do meu próprio Richard, um dos meus homens. Richard de Fremont não passa de um suíno. — Ela franziu o cenho de leve. Não fazia ideia de onde tinha vindo aquela informação, mas ficou aliviada ao ver a suspeita deixar os olhos do rei. — Rei Artur — falou, curvando-se outra vez. — Eu ficaria imensamente honrada se me escoltasse até Camelot.
— É o que farei, condessa. E, ora, ora, veja quem a alcançou.
Isabel voltou-se, deparando-se com dois rapazes montados em baios, os quais cavalgavam a cada lado de uma carruagem dirigida por outro homem e puxada por outros dois cavalos malhados e idênticos, que, aliás, não pareciam nada contentes. O que não era de admirar, dada a pilha de baús que estavam carregando.
Isabel arregalou os olhos. Os três homens eram quase iguais a três de seus amigos de Oklahoma, tanto que precisou se esforçar para não correr para eles e abraçá-los.
Mas espere um pouco. “Você matou meus amigos, deusa?”, indagou, furiosa, ainda que mentalmente.
A resposta foi instantânea:
“A condessa de amigos necessita. Nem que apenas de visões que a ti o lago empreste. Sabes bem o que cada um representa e deles hás de precisar... Não os despreze!”
Isabel parou para pensar e balançou a cabeça. “Aquilo nem rimava direito!”
“Então me processe.”
Tornou a se concentrar no rei.
— Rei Artur, estes são os meus homens: Tom, Dick e Harry. Mas não o Tom, Dick e Harry de sempre. Eles são os meus Tom, Dick e Harry .
Isabel franziu a testa. Não lhe ocorrera o quanto aquilo soava engraçado até aquele momento. Voltou-se para os amigos antes que caísse na risada.
— Por favor, rapazes, este é o rei Artur. Prestem-lhe suas reverências.
Tom e Dick desceram de suas montarias e Harry tratou de brecar a carruagem, saltando desta com um largo sorriso no rosto. Os três se apoiaram em um joelho e inclinaram as cabeças.
— A seu serviço, senhor — disseram em uníssono.
— Por favor, levantem-se — pediu Artur. — Sem formalidades aqui.
— Ora essa — Isabel falou a Tom. — Eu não consegui fazê-lo se curvar assim nem quando lhe dei uma surra naquele jogo de quarters na faculdade.
— Porque havia me embebedado com Budwei... cerveja naquela noite, milady.
Era verdade. Ela o deixara de fogo de propósito! Afinal, estavam em pleno campeonato da associação.
— Desculpe, mas esse é o último recurso dos fracos — respondeu Isabel com pouco caso.
— Faculdade? Quarters ?
Isabel levou outra pancada do colar. Àquela altura já devia estar com um hematoma do tamanho de uma bola de beisebol no peito!
— Mil perdões, rei Artur. Falo de um jogo que costumávamos realizar em Dumont. Afinal, amigos felizes são amigos ativos.
O rei a presenteou com outro sorriso arrasador.
— Aparentemente temos muito em comum. Também gosto de praticar esportes com meus homens.
Isabel franziu a testa.
— E deixa as mulheres lavando roupa, cozinhando e limpando? Que lazer costuma proporcionar a suas criadas, senhor? Quando é que elas têm algum descanso?
Isabel se preparou para outro baque do colar, porém este não veio. Pelo visto, Viviane estava a seu lado naquele ponto. Uma deusa feminista. Quem diria?
Artur pareceu desconcertado com as palavras.
— Eu nunca havia pensado nisso. Talvez a rainha possa responder a essa pergunta. As mulheres não me parecem infelizes, porém vou me inteirar do assunto, condessa, e, caso haja algum problema, tentarei resolvê-lo o mais breve possível. Quem sabe com as suas sugestões? Instituindo esse tal campeonato de quarters , por exemplo.
— Calma lá, Artur. É preciso saber jogar quarters . Se me permitir, entretanto, talvez eu possa pensar em alguma coisa, eventualmente.
— Estarei aberto a todas as suas sugestões. Agora, podemos seguir para Camelot?
— Vamos nessa! — rebateu Isabel. Em seguida voltou-se para sua equipe e piscou.
Tom, Dick e Harry se adiantaram para ajudá-la a montar Samara, e o rei fez um sinal para que todos o seguissem.
— Será um prazer, condessa. Podemos conversar sobre essa tal faculdade durante a nossa jornada?
Quando os homens de Artur se materializaram, trazendo seu cavalo — um lindo corcel cinza malhado —, o rei lhes deu ordens para que ficassem à frente e atrás da comitiva de Isabel. Ela pôde, então, passar o restante do tempo a seu lado, conversando e rindo.
Havia gostado de Artur. Muito .
“Não é culpa minha, deusa!”.
“Conte outra, Isabel!”
Capítulo Cinco
Camelot era magnífico, concluiu Isabel. Ela daria qualquer coisa para ter seu equipamento de fotografia ali com ela. Era tão injusto não poder capturar a beleza de tudo aquilo!
Precisaram atravessar um fosso de verdade através de uma ponte de madeira. Em seguida, adentraram uma fortaleza tão agitada que ela quase ficou com medo. Havia tantos homens ali, andando de um lado para o outro, como se num jogo de futebol! Tantas mulheres correndo atrás de seus filhos!
O castelo em si era de tirar o fôlego. Tinha imaginado que fosse feito de pedra, mas, estranhamente, Camelot parecia ter sido todo construído com madeira. Ainda assim, dezenas de chaminés fumegavam ao redor, e ela desconfiava de que não existia um único alarme anti-incêndio no local.
O que a chocou, contudo, foi a maneira como todas as pessoas saudavam seu rei. Verdade que elas se curvaram quando ele adentrou a torre de menagem, mas também sorriram. Aquela gente gostava mesmo de seu líder. Nisso ela poderia apostar. Infelizmente.
O salão principal também estava a todo vapor, contudo parou quando o rei a escoltou para dentro dele e anunciou sua chegada em voz alta. Até mesmo os animais que corriam por ali — e devia haver pelo menos uns trinta cães de várias raças — pareceram estacar. Em seguida, teve início um verdadeiro mar de reverências e mesuras.
— Por favor, diga a eles para se erguerem, senhor — sussurrou ela para Artur. — Estão agindo como se eu fosse alguém da realeza!
Artur arregalou os olhos por um instante.
— Mas é da realeza, condessa.
Opa!
— Talvez, mas não sou tão nobre para tantas reverências. Não fico à vontade com isso. Prefiro a igualdade de direitos.
O rei tornou a sorrir, o que não era justo, pois o sorriso do homem era letal.
— Temos muito em comum, milady.
— Isabel.
— Isabel, então. E pode me chamar de Artur. Aliás, por favor, eu imploro para que esqueça essa coisa de rei.
— Fechado — concordou ela de pronto.
— Levantem-se todos! A condessa prefere que não...
— ... se rebaixem? — sugeriu Isabel.
— A condessa não vê necessidade em se curvarem com sua entrada — elaborou Artur.
Isabel decidiu fazer, ela mesma, uma reverência. Então se levantou.
— Muito bem, agora estamos quites. Já chega dessas mesuras, certo? Elas são maçantes para todos nós. A propósito... Olá! É bom estar aqui — falou, acenando para todos de um modo que, esperava, não fosse como o da rainha Elizabeth.
Todos — até mesmo os cães — a fitaram como se ela fosse um pouco — ou talvez muito — estranha.
Mas depois sorriram. E vários acenaram de volta.
Havia no chão o que ela imaginava se tratar de juncos, e o lugar tinha um cheiro esquisito: um misto de suor, urina, lenha e um pouco de algo que não conseguia descrever. No entanto, conforme ela e Artur avançavam pelo enorme salão, um odor mais agradável chegou até eles.
— Tomilho a esta hora? — indagou.
O rei a fitou, confuso.
— Meu palpite, Isabel, é que estejamos entre o meio-dia e a hora do jantar.
— Eu estava falando de... esqueça. Posso me retirar para os meus aposentos e me preparar para o jantar?
— Sem dúvida, condessa. Seus baús lhe serão entregues assim que um de seus Toms, Dicks ou Harrys conseguirem levá-los até lá.
O humor estava de volta aos olhos do rei e, mais uma vez, Isabel se viu atordoada.
Tratou de se recompor, então, para fazer mais uma pergunta.
— E quanto às acomodações dos meus homens, senhor? Eles são muito importantes para mim.
— Eles terão o melhor que Camelot tem a oferecer, Isabel.
Uma vez mais, ela se derreteu toda. A maneira como seu nome saía daqueles lábios realmente mexia com seus hormônios.
— Isso significa que eles vão ficar no térreo?
— Quer que eles permaneçam próximos?
— É possível? Não quero incomodar ninguém, mas gostaria de tê-los por perto.
— Não é muito comum, mas pode ser feito. — O rei lançou-lhe um longo olhar, depois se curvou. — Meu desejo é vê-la feliz.
Felicidade seria beijá-lo até desfalecer.
O colar tornou a cutucá-la. “Atenha-se ao plano, Izzy.”
“Então pare de colocar reis lindos e sensuais na minha frente, Viviane!”
O quarto de Isabel era a epítome das acomodações de luxo medievais. As paredes eram feitas com uma madeira rústica que cheirava a cedro, embora ela não tivesse certeza de que fosse. Os lençóis eram rosa e também num tom de verde típico da floresta. Ela contava inclusive com um aposento especial — se é que se podia chamá-lo assim — com uma espécie de urinol em cada canto. E, bem em frente à lareira, havia uma enorme banheira.
O fogo crepitava alegremente na lareira, banhando o quarto com um brilho rosado. No fim, em se tratando da época em que estava, aquilo podia ser considerado uma verdadeira suíte presidencial.
Os baús já haviam sido levados para o quarto, e Viviane pensara em tudo. Exceto no fio dental. E na escova de dentes. E no Listerine.
“Não estou gostando da ideia de ficar sem fio dental aqui, Viviane!”
“Paciência nunca foi uma virtude sua, não é mesmo, querida?”
“Não em se tratando dos meus dentes!”
“Vai obter ajuda em breve. Use o vestido vermelho-pálido que chamam de rosa no seu tempo... Parece que Lancelot adora essa cor.”
Rosa. A cor que ela menos gostava! Rosa não apenas apagava qualquer cor de seu rosto, como também a fazia se lembrar do tempo em que fora obrigada a bancar o algodão-doce em uma peça do quinto ano: “Um Dia na Quermesse”. Na verdade, queria ter sido o corn dog, uma daquelas salsichas envolvidas em massa crocante de milho .
Isabel deu um pulo ao ouvir uma batida na porta.
— Sim?
— É Mary, milady. Serei sua ama durante a sua visita.
— Entre, Mary, por favor.
— Estou com as mãos ocupadas, milady!
Isabel deu as costas para os baús e rumou para a porta.
— Ocupadas com o qu...?
Parou ao ver a bandeja carregada nas mãos da menina. Havia vários galhos aparentemente raspados de um lado, uma tigela pequena com o que parecia sal, um jarro de água e outra pequena tigela de verduras que cheiravam a hortelã.
“Tenho mesmo que usar isso nos meus dentes, Viviane?”
“Verá que é mais do que o suficiente para cuidar deles.”
— Não trouxe nenhum vinho? — perguntou Isabel, fazendo um sinal para que Mary entrasse.
A menina ensaiou uma reverência, o que fez tudo na bandeja oscilar.
— Já vou trazer, mil...
— Meu nome é Isabel, Mary. Se posso chamá-la de Mary, por favor, trate-me por Isabel.
— Oh, não, senhora! Eu não poderia.
— Poderia, sim, Mary. Na verdade, eu insisto.
— Por favor, condessa, não posso!
Isabel sorriu para a garota, que não podia ter mais de treze anos. Mary tinha também um cabelo vermelho e brilhante que teria feito Ronald McDonald morrer de inveja, além de sardas no nariz e nas faces. Foi difícil descobrir a cor de seus olhos, contudo, pois a garota não tirava os olhos do chão.
— Está bem. Não vou pedir por algo que a deixa constrangida. “Condessa” está bom para mim, se assim preferir.
— Sim, senhora. “Condessa”, senhora.
— Estamos combinadas, então. Por favor, traga as guloseimas.
Mary atravessou o quarto aos tropeços até a área de vestir, tirou tudo da bandeja, depois se virou com esta já vazia.
— Devo pedir a água para o seu banho, senhora?
— Isso seria uma bênção dos Céus!
Por fim, Mary levantou os olhos para encontrar os de Isabel, e esta pôde ver que eles eram da mesma cor de safira do colar com as lágrimas.
Isabel sorriu. Aquilo era um presságio.
— Creio que você e eu nos daremos muito bem, Mary.
— Também acredito nisso, milad... condessa.
— Eu adoraria um banho. Mas, antes disso, poderia me ajudar a encontrar o vestido rosa nesta bagunça?
— Rosa?
— Vermelho-pálido? — arriscou Isabel.
Mary mordeu o lábio, obviamente sem compreender.
— Sabe a cor que as suas bochechas ficam quando é cortejada por um rapaz? Ou quando está com vergonha por algo que acha que fez?
— Ah, sim! Embora no meu caso, senhora, esta seja vermelho-escuro. — Ela olhou para baixo e, em seguida, tornou a erguer a cabeça com um brilho no olhar. — Devo admitir que ela não combina com o meu cabelo.
— Duvido, Mary. Aposto que quando enrubesce faz muitos homens perder a cabeça.
Mary corou.
Caramba, Mary estava certa. Suas faces tinham ficado da cor de um caminhão de bombeiros!
— É muita gentileza sua, condessa. — Mary seguiu para o terceiro baú e tirou dele um lindo vestido.
— Ele é mais rosa-choque do que rosa, Mary.
— Não é este o seu rosa?
“Qual é a sua ideia de rosa, Viviane?”
“É quase isso. Pare de se preocupar com bobagens.”
— Acho que esta cor vai combinar muito bem com a sua pele, senhora. Se fosse um tom mais claro, não faria justiça à sua beleza.
Isabel sorriu, satisfeita. Uma camareira com excelente gosto, enfim.
— Você e eu vamos mesmo nos dar muito bem, Mary.
— Estou certa de que sim, milady.
Isabel não precisou nem mesmo perguntar quem, ou o que, dera a Mary essa certeza.
Tocou o colar mais uma vez.
— Traga o vinho e a água para o meu banho, por favor.
— Agora mesmo.
— Como é em se tratando de cabelos, Mary?
— Precisa de mim para ajudá-la com os seus, condessa?
— Muito.
— Então sou muito boa com cabelos, senhora!
Por mais primitivo que aquilo tudo fosse, Isabel sentia-se incrivelmente mimada. Os galões de água para o banho que haviam sido carregados até o quarto estavam muito quentes a princípio, porém Mary jogou lavanda e alecrim na banheira, o que foi muito relaxante. Em seguida, a menina cumpriu sua promessa, trançando-lhe o cabelo e enrolando-o em uma espécie de coque retorcido, com um longo e elaborado rabo de cavalo.
Para completar, Mary prendeu um broche de bronze no lado esquerdo de sua cintura. Quando Tom e Dick a escoltaram até o refeitório, Isabel sentia-se quase como uma soberana. E estava na hora de conhecer a verdadeira rainha, o que era o máximo.
No jantar daquela noite, Isabel acabou conhecendo tanto Lancelot quanto Guinevere. E Gwen, como o rei Artur a chamava, era tão incrível quanto podia ser. Era uma mulher linda e jovem, e “jovem” era o adjetivo mais perfeito para descrevê-la. Tinha os cabelos vermelhos, puxados para trás em um coque elaborado, e um colar de pequenas pedras preciosas enfeitando a testa absurdamente desprovida de marcas.
Isabel quis perguntar que creme aquela criatura usava no rosto, até que lhe ocorreu que Gwen não passava de uma criança. E ela, Isabel, não podia perguntar sua idade, muito menos traí-la, roubando-lhe o marido. Se Gwen não fosse tão doce, ela teria adorado odiá-la. A rainha emanava um perfume de pétalas de rosa, muito bem-vindo em comparação ao suor e ao odor de animais que invadia até mesmo aquele refeitório.
Claro que havia homens suados e cães perambulando por ali também, o que não era nenhuma grande surpresa. Isabel desejou ter prestado mais atenção aos ingredientes dos odorizantes de ambiente, de modo a tentar reproduzir algum ali.
O vestido de Gwen era de um prata cintilante, com um cinto de corrente elaborado envolvendo sua cintura minúscula. Aquele cinto não caberia no braço de metade dos homens musculosos que estavam em pé ao redor da gigantesca mesa retangular do refeitório.
— É uma honra tê-la enfeitando o nosso salão, condessa — falou Guinevere. — Estávamos ansiosos pela sua chegada. Meu marido me contou que sua visita tem como objetivo um tratado que irá beneficiar socialmente os nossos reinos.
Aquela era muito boa. Gwen não era nenhuma idiota. Também tinha as rédeas da política local. Haveria nada na moça de que ela pudesse não gostar? Algo além do fato de que Gwen contava com o luxo de dormir todas as noites ao lado de um homem que a estava tirando do sério?
Sentiu outro baque no peito.
“Será que pode parar de fazer isso?”
“Recomponha-se, querida. Curve-se à rainha e deixe o desejo para mais tarde!”
Isabel fez outra reverência profunda, que teria falhado se Tom e Dick não a tivessem segurado. Ela precisava praticar aquela coisa de se curvar.
— Fico honrada por ter sido convidada a vir até Camelot, Vossa Alteza. Agradeço muito por sua hospitalidade.
Gwen riu baixinho, o que também foi absolutamente perfeito.
— Por favor, Artur e eu não nos importamos com formalidades. A menos que queira que eu também me curve quando nos encontrarmos.
Horror dos horrores. Isabel teve um flashback do que era estar no Extremo Oriente, em meio àquela história de “você se curva, eu me curvo, você se curva”, até ver quem se curvava por último.
— Por mim está fechado — concordou de pronto, depois quase gemeu com os olhares confusos ao redor. — O que eu quero dizer, Alteza, é que devemos mesmo dar um descanso aos nossos joelhos.
Desta vez, Gwen realmente sorriu.
— Parece-me uma excelente sugestão. Quem sabe esse hábito de se curvar não seja o motivo de tantos males nas costas de nossos homens?
— Pode estar certa disso — concordou Isabel. — Talvez uma boa sessão de quiropra...
Tum!
Isabel precisou se esforçar para não reagir à batida em seu peito.
— O que eu quis dizer é que um dos meus homens, Dick, aqui, é uma maravilha com problemas nas costas. — O que não era mentira. Dick era seu massagista no mundo normal e fazia verdadeiros milagres, considerando o quanto ela precisava se contorcer para conseguir as imagens certas nas fotos. — Talvez ele possa operar alguma magia naqueles que estão com problemas.
Muitos dos homens em pé, ao lado da mesa, esfregaram as costas e abriram seus sorrisos sem dentes para Dick. Até mesmo algumas das criadas se arriscaram a fazer o mesmo.
Dick chutou Isabel na perna enquanto sorria abertamente. Em seguida curvou-se mais uma vez.
— Estou a seu dispor, Vossa Alteza. E, se me permite acrescentar, Tom, aqui, é especialista em dentes. Se tiver alguém no castelo que necessite de seus serviços, ele estará mais do que disposto a atender.
Tom empalideceu diante de todos os sorrisos desdentados que se voltaram em sua direção.
— Sempre ao seu serviço, Majestade — murmurou, esticando a perna para acertar Dick. Consternado, lançou a Isabel um olhar do tipo “Onde foi que você me meteu?”, e ela deu de ombros. Afinal, não fora ela quem havia mencionado aquele detalhe.
Nesse momento, Harry veio mancando do salão principal, o cabelo ainda molhado por ter tido que se mostrar apresentável, o andar demostrando que ele ainda sentia o coice que levara nas bolas. Sem dúvida, devia ter doído bastante.
— Este é Harry — anunciou Isabel. — Mais um dos meus homens. Ele é incrível com os bichos. Harry é meu veter... Ai! — Isabel deixou escapar com o novo baque no peito, e todos olharam para ela. — Digo, meu mestre em animais e amigo dedicado h á muitas luas. Assim como Tom e Dick. Em Dumont, somos todos amigos, trabalhando em conjunto.
Fez-se silêncio enquanto Harry tentava se curvar diante de Artur e Gwen, o que dava a impressão de ser doloroso para todos. Cada homem no salão pareceu se encolher.
Mas, em seguida, todos seguiram o exemplo do rei, erguendo as canecas.
— Imagino que tenha tomado um bom coice de Trapaceiro, mestre Harry — comentou Artur. — Ele sempre foi um tanto preciso com aquelas patas.
— Espere um minuto — interveio Isabel. — Tem um cavalo chamado Trapaceiro?
Foi Gwen quem falou primeiro:
— Receio que Trapaceiro seja meu. Aceite as minhas desculpas, senhor, pelos... excessos do meu cavalo. Sir Ronald, de Reagan, me presenteou com Trapaceiro em minhas núpcias. É um belíssimo garanhão, porém ele pode ser um tanto quanto temperamental, ainda que não tão caprichoso como a maioria.
Harry se curvou outra vez. Em seguida, voltou-se para Isabel.
— Ele não há de se exceder novamente tão cedo. O filho da puta quase arrancou as minhas bolas — completou num cochicho.
— Não me diga que...
— Nenhum Trapaceiro vai se meter mais comigo. Nunca mais. E foi ótimo.
Na mesa de jantar, Artur passou mais alguns minutos apresentando seus próprios homens.
James era o primeiro deles, qual fosse o significado disso. Era maior do que muitos lutadores profissionais, portanto, Isabel deduziu que se tratava de uma espécie de guarda-costas.
Tristan, o segundo homem — que era apenas um pouco menor do que James e que ela reconheceu do encontro na floresta —, inclinou a cabeça. Ela acenou para o rapaz, torcendo para que ele não tivesse visto seu traseiro nu enquanto ela havia parado para fazer xixi. Mas, infelizmente, Tristan sorriu para ela de um modo que lhe deu a certeza de que, sim, ele a vira!
E assim prosseguiram as apresentações de vários outros sujeitos importantes para Artur ou Gwen. Era uma confusão aquela mesa.
Por fim, ela foi apresentada a Lancelot, que se levantou e curvou-se mais do que todos os outros. Era aquele o alvo dela, contudo nenhum de seus hormônios pareceu ganhar vida.
Lancelot, corando, parecia tão tímido quanto um tímido poderia ser. Era um belo rapaz, sem dúvida, com cabelos castanho-claros entremeados com mechas finas, douradas pelo sol, que ela adoraria desafiar seu cabeleireiro, Pelo, a fazer. Quando Lancelot conseguiu encontrar seu olhar, Isabel percebeu que ele tinha olhos castanhos, os quais pareciam mais verdes do que marrons no momento por conta da túnica verde-floresta que trajava. O rapaz também se atrapalhou em sua saudação, o que ela achou adorável, mas nem um pouco sexy. Bem diferente da risada calorosa com que o rei Artur a havia recebido! Droga. Mil vezes droga! Nem uma única célula de seu corpo se acendera na presença de Lancelot!
O restante dos homens do rei se comportou com certo mau humor durante a ceia, e Isabel desconfiou de que aquilo se devia ao fato de ela ter solicitado a presença de seus próprios homens.
Sentiu-se inquieta. Sua atração por Lancelot se igualava a zero. Bem menos do que a que sentira pela enguia conservada em salmoura à sua frente, durante o jantar. E infinitamente menor do que pelas piadas de Hester, o bobo da corte, as quais eram mais do que sem graça.
Assim como ele próprio, de certa forma. Hester devia estar com seus 70 anos, e as vestes azuis e roxas imitando seda não faziam muito por sua pele opaca. O pobre se esforçava muito para entreter a multidão, e Isabel acabou concluindo que ele devia ser boa gente.
Artur piscou para ela, e Hester fez o mesmo antes de se curvar e de se despedir.
— Que divertido, não? — comentou Isabel. Ninguém concordou com ela. Exceto Artur, que não conseguia parar de sorrir.
Uma tonelada de alimentos foi trazida para a mesa. Carne em sua grande maioria. E, mesmo não sendo nenhuma vegetariana — não completamente, mas na maior parte do tempo —, Isabel se viu contrariada. Principalmente com a carne. Javali, coelho, esquilo e, Santo Deus! , mais enguias em conserva. Os melhores pratos, em sua opinião, eram o repolho e a beterraba... Que estavam longe de ser seus vegetais favoritos.
Nunca fora de beber, mas naquela noite estava bebendo feito um marinheiro, na esperança de que o álcool a ajudasse em sua missão. E também na tentativa de comer a enguia sem vomitar, assim como para tentar seduzir o jovem cavaleiro que lhe parecia tão intragável quanto o resto.
“Está brincando comigo, não é, deusa? É mesmo uma missão impossível!”
“Precisa tentar, Izzy. Pense em Merlin.”
Até o momento, não estava dando certo. Lancelot até era bonitinho, se você gostasse de garotos. O que ela adorava quando menina. Mas, por mais interessante que fosse, era jovem demais. Menino demais.
O pior era que não parecia nem um pouco interessado nela, também. Lancelot só tinha olhos para Gwen. O que era evidente para todos no salão, exceto para o rei Artur, tão concentrado, conversando sobre aquela importante reunião com outros cavaleiros do reino, que parecia alheio aos olhares trocados entre Gwen e o belo rapaz. Todos na mesa percebiam e torciam os lábios, porém nada podiam fazer, uma vez que o rei não se manifestava. Ou Artur os proibira até mesmo de pensar na possibilidade, ou cuidara para que ninguém fizesse qualquer comentário a respeito.
Isabel se viu mais do que constrangida com a situação, contudo possuía outras coisas a lamentar.
Como a enguia.
Como seu total desinteresse por Lancelot.
Como o total desinteresse de Lancelot por ela.
Ou como o total interesse de Guinevere por Lancelot.
Ela estava no meio de um verdadeiro caos divino.
Não podia controlar tudo, mas havia algumas coisas sobre as quais ainda possuía algum domínio. Educadamente, pediu que uma criada retirasse a enguia, o javali, o coelho e o esquilo; em seguida, pediu licença e foi vomitar.
Capítulo Seis
Verdade que ela estava um pouco tonta. Mas não tanto a ponto de não notar Gwen e Lancelot pedindo licença quase ao mesmo tempo. Eles nem mesmo tentaram disfarçar!
Isabel sentiu o coração se apertar por Artur. Ele precisava saber! No entanto, o rei não parecia nem desconfiar. Ou então não se importava.
— Gostaria de fazer um passeio pelo castelo, condessa? — indagou Artur, assim que a ceia teve fim.
Abençoada Mary. A criada havia ido a seu encontro no quarto, carregando uma tigela de hortelã. Caso contrário, seu hálito estaria derrubando árvores!
— Eu adoraria, senhor. — O que ela queria mesmo era um passeio por aquele corpo. Mas o castelo teria que servir, por ora.
— Os jardins... — comentou Artur. — Gwen gosta muito deles. Por alguma razão que desconheço, ela cuida dos jardins quase todos os dias, embora tenhamos um verdadeiro exército de jardineiros.
— Todos temos nossos passatempos favoritos.
— E qual seria o seu, condessa?
Fotografia foi o que veio à mente de Isabel, entretanto ela duvidou que pudesse explicá-la a ele. Sexo também estava no topo de sua lista. Ou tinha estado no começo do dia. Quem sabe estivesse, ainda, no final daquela noite. Ela adoraria fazer amor por ali, mas não com Lance, e sim com o rei.
— Gosto de me exercitar. De praticar esportes, por assim dizer.
A surpresa no rosto de Artur foi tão adorável que ela quis beijar aquelas sobrancelhas erguidas.
— Esportes? Como quando se faz os cavalos se exercitar?
— Bem, sim, mas muito mais do que isso. Por exemplo: eu adoro praticar jogging .
— Jogging? O que é isso?
— Corrida de longa distância.
Artur riu.
— E faz jogging trajando vestidos?
Ali estava a chance pela qual ela estava esperando.
— Na verdade, em Dumont, as mulheres que gostam de praticar tal exercício usam versões menores das leggings dos homens.
— Como assim?
— Acreditamos que as mulheres têm tanto direito a fazer o que gostam quanto os homens. Consegue imaginar as que gostam de correr fazendo isso com vestidos? Absurdo. Assim, em Dumont, quando as mulheres sentem a necessidade ou a vontade de se alongar e fortalecer os músculos, elas usam o que chamamos de “roupa esportiva”.
Artur coçou a barba, e Isabel teve a nítida impressão de que ele tentava disfarçar uma risada.
— E o que, por todos os deuses, você, digo, elas , usam na parte de cima?
Isabel imaginou que falar em “top” era, provavelmente, ir longe demais.
— Usamos uma veste chamada “camiseta”. É uma espécie de túnica larga e curta, feita com tecido macio para dar conforto.
Artur balançou a cabeça.
— Pelo visto meus homens falharam muito em seus relatórios acerca de Dumont.
— Deixando de lado o fato de ter enviado seus homens para me espionar, deixe-me perguntar uma coisa: que tipo de passatempo ou prazer proporciona às suas criadas?
— Passatempo? Prazer?
— Você permite que Gwen tenha seus passatempos?
— Claro. Ela é minha rainha e minha esposa.
— E suas empregadas não estão autorizadas a fazer coisas que as tornam felizes? Acha mesmo que, por conta de seu sexo, elas não podem realizar atividades que apreciam?
— Meu povo não é infeliz, é? Ouviu alguma queixa?
— Não, senhor. Nenhuma. Mas será que elas se queixariam na minha frente?
A expressão preocupada do rei a enterneceu.
— Elas lhe pareceram infelizes?
— Mais uma vez, não. Na verdade, elas me parecem muito leais ao seu rei. Mas considere a possibilidade de permitir que elas, por exemplo, usem uma pequena parte de seu dia para seguir seus próprios sonhos; para praticar seus hobbies favoritos. Pense no quanto elas ficariam mais felizes ao dar conta das tarefas do dia a dia sabendo que têm uma pequena parte do tempo para relaxar. É possível que descubra benefícios em seus hobbies que você e Camelot jamais imaginaram.
Artur sentou-se pesadamente, parecendo imerso em pensamentos.
— Está me dando muito que pensar.
Isabel segurou a mão dele.
— Então, pense. Uma equipe feliz significa um castelo mais feliz. Você, Gwen e seus principais homens é que vão colher os frutos do trabalho dos empregados. Que tal permitir que eles mesmos desfrutem dessas benesses? Por que você, Gwen e eu podemos seguir nossos corações, e aqueles que trabalham para nós, não?
Ele bufou tal qual um baiacu.
— Não impeço minha equipe de ir atrás dos seus próprios desejos! Não reparou na quantidade de crianças?
Isabel quis rir, mas se controlou.
— Amor e crianças serão sempre uma realidade; não importa o que aconteça. Estou me referindo a outros prazeres.
— E que outros prazeres existem?
— Ora, por favor. Fazer amor é, sem dúvida, um deles. Mas existem outros. Gwen gosta de jardinagem. Minha camareira adora arrumar cabelos. Eu gosto de correr e amo desenhar. As possibilidades são infinitas! Poderíamos fazer uma pesquisa e descobrir o que deixa as pessoas felizes. E, em seguida, permitir que corram atrás de seus sonhos.
— Uma pesquisa?
— É uma oportunidade para que elas falem sobre o que gostam. E, possivelmente, para que também revelem do que não gostam.
Artur parou de coçar a barba, pôs-se de pé e passou a esfregar as têmporas.
Aquilo era comum na vida de Isabel, e ela não ficou surpresa. Logo ele estaria pedindo uma bebida, pensou. Poderia quase apostar.
— Você é uma mulher um tanto quanto incomum, Isabel — falou Artur, por fim. Em seguida deu um passo para a esquerda e bateu um sino. Em segundos, Tim apareceu. — Vinho, Timóteo, por favor. E duas taças.
Ela suspirou. Precisava tanto de mais vinho como precisava de enguias. Mas que se danasse.
— Não é o primeiro a me dizer isso. Sobre eu ser incomum, quero dizer.
— É incomum, e de uma forma muito intrigante.
— Sei. De uma forma que leva os homens a beber.
— De uma forma que leva os homens a refletir enquanto aproveitam um bom trago.
Isabel tentou resistir à indireta por causa de Viviane.
— Não deveria compartilhar esse tipo de coisa com a rainha?
— Gwen gosta de aproveitar a noite para fazer essas... — ele fez um gesto vago com as mãos — ... coisas que as mulheres gostam de fazer.
“Aposto que sim.” Já ela preferia as manhãs para aquele tipo de atividade. Mas não mencionaria tal coisa.
— Ela é adorável — comentou, brincando com o colar. Você deve amá-la muito.
A hesitação de Artur foi palpável enquanto seus olhos se fixavam no colo dela.
— Como se espera que eu ame. Ela é minha esposa. — Sentou-se, depois se levantou de novo e começou a andar. De repente, parou e voltou-se para Isabel, os olhos verdes atentos. — Já amou, condessa?
— Por que me pergunta?
— Nunca se casou.
— Não? Quero dizer, claro que não. Mas, Artur, parece saber tanto a meu respeito! — Muito mais do que ela mesma sabia sobre a condessa, na verdade. Até o momento, não tinha a menor ideia se fora casada ou não.
Pelo visto, não.
“Meu Deus, Viviane, eu não sou nenhuma virgem! ”
“ É verdade, Isabel. Não considera isso uma vantagem? ”
“Mas Artur acha que eu sou!”
“Então se considere uma atrevida e pare de se preocupar com a idade!”
— Como obteve todas essas informações sobre mim?
Ele pareceu adoravelmente confuso.
— Não tenho muita certeza. Na certa foram detalhes que meus homens reuniram enquanto inspecionavam Dumont.
— Por que mandou seus homens me investigar?
Mesmo sem graça, Artur continuava lindo.
— Mil desculpas, condessa, mas seria errado eu não me informar ao máximo antes de sua chegada.
Eles foram interrompidos por Tim, que chegou trazendo uma bandeja contendo duas taças. O rapaz a ofereceu primeiro a ela, depois a Artur, curvou-se quando eles o agradeceram e se retirou, discreto, sem nenhum traço de desconfiança no rosto quanto ao que devia ser uma situação incomum. Isabel não era nenhuma entendida no assunto, porém tinha certeza de que o líquido em sua taça era brandy , conhaque ou alguma bebida medieval equivalente. Com certeza não parecia nem cheirava a vinho.
Artur rodou a bebida antes de tomar um gole.
— Como é possível que um homem não consiga assumir o controle de seu coração?
— Eu não disse que o meu coração nunca teve dono, senhor. — Na verdade, ele parecia completamente arrebatado no momento, e ela conhecia o homem havia menos de vinte e quatro horas. — Apenas não conheci ninguém que me fizesse fazer os votos — explicou, sorrindo. — Eu os levo a sério demais para dizê-los a esmo. — Assim que as palavras saíram, Isabel quis dar um tapa na testa. A dor na expressão de Artur quase cortou seu coração. — Mas — acrescentou depressa — tenho certeza de que vou conhecê-lo, e também a essa coisa indescritível chamada amor, assim que eu o vir.
Ele baixou os olhos.
— Faz sentido para mim. Você é... Como dizem, mesmo? Única.
— Talvez. Por que está me perguntando esse tipo de coisa, Artur?
Ele fitou o colar, depois tornou a erguer o olhar. E seus lindos olhos pareceram lhe invadir a alma.
— Porque sinto vontade de beijá-la desde o momento em que nos conhecemos, senhora. Sei que é errado. Os lábios de minha esposa deviam ser os únicos a tocar os meus. No entanto, sua boca me fascina. — Artur deu-lhe as costas. — Isso não foi nada correto. Por favor, esqueça que falei tal absurdo. Não sei por que não consigo controlar minha língua a seu lado.
Isabel tinha a sensação de que sabia por quê. Havia um preço a pagar pelo poder do colar e, aparentemente, ela não seria a única a fazê-lo.
“E agora, deusa? Eu também quero a mesma coisa!”
“Droga. As coisas não estão acontecendo como eu previ.”
“Vou fazer o que puder para resistir.”
Viviane ponderou por algum tempo, mas foi por menos de um segundo, porque Artur não se moveu — como se ela o tivesse congelado no tempo enquanto concatenava as ideias.
“Uma encruzilhada nesta estrada parece haver, onde um pesado fardo hás de carregar. De um jeito ou de outro, o que vai ser? A felicidade de Merlin é o que me vai importar.”
“Mas...”
“Espera, ainda não terminei: tua alegria e a de Artur importam também. Em meu egoísmo, não pensei nisso antes... Na encruzilhada de que há pouco falei, deves seguir o caminho mais importante. Acredito agora que fazes o necessário. A felicidade de Artur, do meu homem, é o norte... Escolhe teu caminho, pois, e faz a tua sorte.”
Bem, aquilo ajudava um pouco, concluiu Isabel.
Ou não. A deusa estaria deixando tudo por sua conta? E se ela estragasse as coisas e todos saíssem perdendo? Iria se sentir péssima!
Ou, então, se realmente pusesse tudo a perder, não sentiria nada, porque estaria morta no fundo do Grand Lake.
Ela respirou fundo. Nunca fugira de suas responsabilidades antes. Mas aquele era um fardo para o qual não tinha certeza de estar preparada.
Endireitou os ombros e se pôs atrás de Artur, tocando-lhe o ombro. Ele se moveu, por fim, e se virou para ela com os olhos claros cheios de arrependimento.
Isabel sorriu de leve.
— Por favor, não se desculpe, Artur. Eu estaria mentindo se dissesse que não achei sua confissão lisonjeira e emocionante. Senti o mesmo quando se materializou por trás daquela árvore.
— Está sendo gentil.
Ela riu.
— Esta aí uma palavra que não costuma aparecer em uma frase a meu respeito. Mas não, senhor, gentileza nada tem a ver com isso. Foi honesto comigo, e eu lhe devo no mínimo o mesmo.
— Então eu posso? Somente desta vez? — indagou ele.
— Mas e quanto à sua esposa, Artur? Isto não seria uma traição?
Ele bufou.
— Traição. Eis uma palavra que eu conheço bem.
— Como assim?
— Posso parecer um tolo, Isabel, mas eu lhe asseguro: não sou. Não sou cego para o que acontece à minha volta. Talvez esteja até consciente demais.
Uma vez que ela havia acabado de chegar, ponderou Isabel, não haveria como saber sobre Gwen e Lancelot, a menos que houvesse escutado algum mexerico das criadas. E não iria colocar Mary em apuros por algo que a pobre não tinha feito.
Fingiu ignorância.
— Não sei o que o aborrece, Artur, portanto, não tenho palavras para consolá-lo.
A risada do rei saiu cheia de amargura.
— Já revelei mais a você, que é quase uma estranha para mim, do que aos homens de minha maior confiança.
Isabel recuou um passo até o banco e sentou-se. Em seguida, bateu no lugar ao lado.
— Por favor, junte-se a mim. Posso ter uma teoria sobre esse assunto. — Tomou um bom gole da bebida e, para sua surpresa, ela lhe caiu muito bem.
— Então, por favor — pediu ele, sentando-se a seu lado. — Deixe-me ouvir sobre essa sua teoria.
Isabel brincou com o colar, certificando-se de que a atenção de Artur se voltasse para ele por alguns instantes e torcendo para que o poder das lágrimas surtisse algum efeito.
— Acredito, senhor, que às vezes é bem mais fácil desabafar nos ouvidos de quem não está tão intimamente envolvido na situação. Uma visão não partidária, digamos assim.
— Não partidária?
— Daquele que tem pouco ou nenhum interesse no assunto. De quem não pende para nenhum lado.
O que não deixava de ser uma mentira porque, se ela iria escolher qual caminho tomar naquela encruzilhada, tinha muita coisa em jogo. Sem dizer que, por mais agradável que Gwen fosse, ela, Isabel, estava sem sombra de dúvida do lado de Artur.
A prematura noite de verão veio quente e mesclada com a fragrância dos lilases e do óleo das duas lanternas altas, posicionadas em ambos os lados da trilha coberta de musgo que dava para os jardins. A Lua seguia linda no céu escuro, contudo não ajudava muito, estando apenas em seu quarto crescente. Grilos enchiam o ar com seus silvos e cricris, os quais soavam, de certa forma, reconfortantes.
Artur não pareceu se conscientizar da atmosfera ao seu redor conforme olhava do rosto dela para o colar, depois novamente para ela.
— Por acaso seria essa pessoa apartidária?
— Se quiser que eu seja...
Ah, que maravilha! Ela havia acabado de se candidatar a ouvinte do rei. A ser sua psicóloga. Freud devia estar se revirando no túmulo àquela altura! Por outro lado, o que ele estava prestes a revelar poderia deixá-la tão revoltada que talvez ela parasse de olhar para aquelas mãos grandes e morenas. Para aqueles lábios. Para aqueles olhos.
— Por onde posso começar? — perguntou-se Artur, parecendo perdido.
— Por onde quiser. Como quiser.
Ele se levantou e começou a andar outra vez.
Nossa. Que traseiro! Que coxas e ombros! Seus homens, sem dúvida, não eram os únicos a pegar no pesado enquanto Artur ficava no trono.
Ele parou e a fitou, por fim.
— Fui eu quem teve a ideia. Imaginei que ela fosse beneficiar a todos: os moradores de Camelot e também os das terras vizinhas. Que fosse unir os cavaleiros de todos os reinos para que pudéssemos nos encontrar e discutir uma maneira de criar tratados que beneficiassem a todos, e que nos permitissem conviver em paz, com alegria e prosperidade.
— Parece-me um bom plano. — Provavelmente impossível, mas um dia, talvez...
Artur abriu os braços.
— Para mim também! Eu esperava que... Talvez, na minha arrogância... Que isso pudesse definir o meu legado como rei.
— Não há nada de arrogante em querer deixar uma marca no mundo, senhor. Não é o que todos esperamos conseguir durante o nosso tempo na Terra? Deixá-la melhor por conta de nossas atitudes?
Ele levou as mãos aos quadris.
— Eu quero mesmo beijá-la, condessa!
“Ah, eu também! Vamos, diga alguma coisa que me dê algum desgosto!”
— Sua história está apenas no começo. Por favor, continue — falou, em vez disso. — Vamos discutir essa outra parte assim que me revelar por que traz essa tristeza nos olhos.
Ele voltou para o banco e sentou-se, tomando um longo gole do cálice antes de pousá-lo. Então segurou a mão dela e passou o seu polegar sobre a palma.
Ela devia ter objetado, pensou Isabel. Devia ter se afastado. Mas foi um gesto tão suave que ela teve a mesma força de vontade das mariposas para evitar as lanternas.
Artur meio que balançou a cabeça.
— A reação dos cavaleiros foi positiva. Devemos nos encontrar aqui na próxima semana. Pedi que viesse à frente deles porque nossas terras fazem fronteira, e eu desejava conversar sobre o cultivo antes que os demais chegassem. E também — acrescentou ele, fitando-a nos olhos — porque talvez os cavaleiros não...
— ... aceitem uma mulher na mesa de negociação?
Artur concordou com um gesto de cabeça.
— Eu sinto muito.
— Isso não é problema. Podemos lidar com esse tipo de coisa mais tarde. E então... O que há de tão preocupante nessa reação à sua proposta? Não compreendo.
— É aí onde entra Lancelot.
Capítulo Sete
Isabel terminou o conhaque e também pousou o copo.
— Lancelot? Ele se sentou à nossa mesa esta noite, certo? Ele me pareceu um rapaz bastante agradável.
— Ha! — exclamou Artur. — Sim, de fato, é um rapaz bastante agradável. E também um dos lutadores mais habilidosos que já conheci. Tudo o que Lancelot precisava era de orientação, ou ao menos eu acreditava nisso. Em nossa convivência, senti que ele era o filho que eu sempre quis, o filho que eu nunca... fui capaz de fazer. Tanto que pedi que Lance viesse para Camelot com o intuito de integrá-lo à nossa guarda de segurança.
— E ele aceitou, claro.
— Sim. — Artur fechou os olhos. Em seguida, tornou a abri-los, fitando-a aberta e profundamente. — Lancelot também conquistou a admiração da minha esposa. Ele jurou que nos ajudaria a defender e a proteger Camelot. Jurou sua lealdade. No entanto, tornou-se óbvio que suas prioridades mudaram.
— Foi então que ele o traiu? Lancelot é agora uma ameaça para Camelot? — Fingir ignorância estava ficando cada vez mais difícil para Isabel. — E, se é assim, por que ainda o convida para sua mesa?
— Ele não representa uma ameaça para Camelot. Não tenho nenhuma dúvida de que Lancelot seria o primeiro a lutar em uma batalha caso... que os Céus nos livre... chegássemos a tal coisa. E também estou certo de que ele nunca teve a intenção de me trair.
— Mas traiu.
Artur olhou para o chão, quase como se não pudesse encará-la.
— Sinto, no fundo da alma, que Lancelot deseja ser fiel a mim. Mas também tenho absoluta certeza de que ele se apaixonou por Gwen.
— Não me diga. E quanto a Gwen?
— Creio que ela esteja correspondendo a seu amor.
— Ela disse isso?
— Não, não... Claro que não.
— Já perguntou isso a ela?
— Ainda não fui capaz de confrontá-la. Se a verdade for descoberta, as consequências serão gravíssimas. A infidelidade da rainha a seu esposo e rei é considerada traição punível com morte.
— Nossa... E ela por acaso está ciente dessa lei?
Artur abriu a boca para responder, porém um ruído no jardim atrás deles o fez silenciar. Ele levou um dedo aos lábios. Em seguida, cochichou:
— Fique aqui. — Ergueu-se e, em silêncio, se deslocou pela trilha sinuosa do jardim.
Isabel o observou se afastar, o coração disparado conforme Artur desaparecia nas sombras. Se alguém os estivesse espionando e escutado aquela conversa, as consequências seriam desastrosas. A coisa era séria demais para que ela ficasse ali, parada. Tensa, Isabel segurou o colar de lágrimas, perguntando-se se aquele era um daqueles momentos em que deveria colocar os poderes que ele detinha em jogo.
Então se lembrou do alerta de Viviane. Haveria repercussões para seu uso, e ela não queria nem pensar em quais elas poderiam ser. Se ela banisse o intruso, o que ela, ou eles dois, teriam como punição?
“Não temas, Isabel, este é meu encargo. Contigo Artur tem de aliviar seu fardo.”
“Ah, obrigada, Viviane! Você é um amor!”
Escutou uma risada suave na cabeça. Foi nesse momento que lhe ocorreu um detalhe.
“Ei, espere um minuto. Esteve nos observando e ouvindo o tempo todo? Isto é, ainda não escolhi o meu caminho, mas será que um deles pode me levar... para um pouco ou muito perto de Artur e...”
“Isabel, uma deusa eu sou. E tudo posso ver e ouvir; prometo, no entanto, nada observar se as vestes começarem a cair.”
— Que alívio! — falou ela, desta vez em voz alta.
— O que é um alívio, milady? — inquiriu Artur.
— Ah! — Isabel deu um pulo. Ele havia voltado tão silenciosamente quanto tinha ido.
Artur sorriu para ela.
— Mil desculpas. Eu não pretendia assustá-la.
— Eu... Eu estava apenas preocupada com a sua segurança. Está desarmado.
— Era somente um coelho. Não precisa se preocupar mais.
Em pensamento, ela se perguntou o que teria acontecido antes que Viviane interferisse.
Artur sentou-se de novo, depois a fitou e a acariciou no rosto com os nós dos dedos. Isabel mal conteve um gemido de prazer.
— Lamento ter falado dos meus problemas com você, Isabel.
— Acredite, suas dores e preocupações estão seguras comigo. Sinto-me honrada por tê-las confiado a mim, embora eu precise admitir: aborrece-me saber que alguém tão nobre tenha de lidar com tudo isso.
— E que não esteja lidando muito bem, receio.
— Converse com Gwen, Artur. Diga a ela como se sente. Permita que ela ao menos lhe dê uma explicação. Talvez suas suspeitas sejam infundadas. Ou talvez isso leve Gwen a perceber a gravidade de suas atitudes, e ela prometa parar antes que alguma coisa terrível aconteça com algum de vocês.
Ele assentiu.
— É muito sábia, condessa Isabel. Agradeço por ter me ouvido, e também por seus conselhos.
— Não há por qu ê , Artur. Espero que as coisas deem certo para todos nós... Quero dizer, para você.
— Teve um dia longo e cansativo, e eu a mantive acordada até tarde da noite. Talvez queira ir para o seu quarto.
— Estou longe de estar cansada, Artur, mas, se quiser se jogar na palha , vou entender.
Ele balançou a cabeça, rindo.
— Às vezes parece que falamos idiomas diferentes. Eu lhe asseguro que as camas dos quartos superiores são feitas de penas e muito confortáveis. Ao menos eu espero que as considere confortáveis.
Imagens deles testando o conforto da cama juntos afloraram na mente de Isabel. E, pelo brilho nos olhos de Artur, estavam tendo a mesma fantasia.
Ela limpou a garganta.
— Está pronto para se recolher, majestade?
— Sinto que poderia conversar com você a noite inteira, Isabel. Por que será?
E aquela agora? Como ela iria responder a tal pergunta? Porque quisemos pular um sobre o outro no momento em que nossos olhos se encontraram? Isabel optou por uma resposta mais recatada.
— Creio, senhor, que temos muito em comum. Muitos invejariam nossas posições, mas a verdade é que, às vezes, a nobreza é um tanto quanto solitária. — Ah, Deus, ela havia acabado de dizer aquilo mesmo? — O que quero dizer é que entendemos um ao outro.
— É uma boa mulher, condessa.
— Além do mais — completou Isabel, tentando trazer de volta um pouco de leveza —, na cavalgada até Camelot você riu de todas as minhas piadas de pontinhos.
Ele abriu o mais apaixonante dos sorrisos.
— Eu nunca tinha ouvido esse tipo de coisa. Devo dizer que adoraria viajar para Dumont um dia. Deve ser um lugar feliz.
Como, diabos, ela poderia saber?
— Rir é o melhor remédio — afirmou. Então quase gemeu. Chavões vinham saindo de sua boca a um ritmo alarmante. Estava precisando de uma terapia. — Você e a rainha serão bem-vindos ao meu castelo, a qualquer hora.
Uma sombra toldou os olhos de Artur, fazendo-a se lembrar do que eles haviam acabado de conversar.
Isabel segurou a mão dele.
— Desculpe-me, Artur. Você e seus homens também serão bem-vindos a qualquer hora. Podíamos fazer alguma coisa no estilo do The Bachelorette , aquele progr...
— Bachel... o quê?
— Esqueça. O que eu quero dizer é que as minhas portas estarão sempre abertas para você.
E ela lá tinha portas para abrir?
Isabel engoliu outro gemido. Deveria mais era cair dura e seca antes que se engasgasse com as próprias bobagens!
— Agradeço por tão hospitaleiro convite — respondeu Artur. — Um dia eu o atenderei.
Entreolharam-se por vários segundos. E, nesse meio-tempo silencioso, Isabel soube exatamente que caminho deveria tomar na encruzilhada.
Que os Céus a ajudassem!
Soltou a mão de Artur, ainda que relutante.
— Agora, antes de nos recolhermos, ainda tem que responder à minha pergunta, Artur.
Capítulo Oito
— Mil perdões, Isabel, mas eu me esqueci qual é.
Ela também tinha se esquecido!
“Eu ajudo: ‘Nossa... E ela por acaso está ciente dessa lei?’”
“Obrigada, Viviane!”
— Creio que perguntei se Gwen está ciente das consequências de seus atos, se é mesmo culpada dessa indiscrição.
— O que mais me entristece é que a resposta é “sim”. E está disposta a arriscar. Assim como Lancelot.
— Isso não é amor verdadeiro para mim. Não se Lancelot se dispõe a colocar Gwen em risco.
— Acredito que eles não possam evitar como se sentem. Quanto mais fico em sua companhia, mais compreendo. Há uma frase que minha mãe costumava dizer para mim quando eu era criança: “O coração só faz o que quer”. Não posso controlar os desejos do coração de Gwen, assim como não posso explicar como consegui extrair Excalibur. E assim como não posso explicar este sentimento que tenho por você.
Isabel não ficou apenas lisonjeada. Sentiu o corpo inteiro pegar fogo. Ou, pelo menos, os próprios hormônios. Contudo, mesmo que já houvesse escolhido o caminho, precisava bancar a advogada do diabo, uma vez que adultério ia contra todos os seus princípios.
— Artur, é possível que isso seja alguma retaliação? Está praticando o “toma-lá-dá-cá”? Está querendo magoar Gwen, assim como ela o vem magoando?
— Não sei o que é “toma-lá-dá-cá”, mas compreendo o termo “retaliação”. Se fosse esse o caso, eu teria escolhido assumir um sem-número de mulheres há muito tempo. Mas não é da minha natureza fazer esse tipo de coisa.
Isabel tinha certeza disso. Não sabia como, mas tinha. Artur não saltaria para os lençóis — ou, naquele caso, para as peles — da cama com outra mulher apenas para se vingar da esposa que o traía. E podia ter ido até mais longe, fosse ele um idiota vingativo. Podia ter exposto Gwen a qualquer momento, tê-la julgado, considerado culpada e mandado matá-la. Em vez disso, continuara a protegê-la — não importando o quanto aquilo o ferisse — dia e noite.
— Você ainda a ama muito — concluiu Isabel baixinho.
— Amo. Mas não como antes. Não da mesma maneira. Não é fácil olhar para a sua esposa e bancar o marido dedicado e carinhoso quando se sabe que ela anseia por outro.
De repente, Isabel se deu conta de que estava sóbria, mesmo após o delicioso conhaque. O torpor se fora, e sua mente estava limpa, o que deveria fazer com que seu juízo retornasse e retratasse a realidade. Mesmo assim, ela ainda queria aquele beijo. Mesmo sem estar sofrendo nenhuma “paixonite-relâmpago” causada pela embriaguez.
Aquele desejo permanente era um sinal.
Estava se apaixonando, porém com total compreensão do que aquilo significava. Merda. Precisara regredir vários séculos para encontrar um amor? O destino não era necessariamente cruel, mas tinha um senso de humor um tanto quanto distorcido!
— Não existe divórcio em Camelot?
— Divórcio?
— A dissolução do casamento? Anulação? Um “tchau” oficial?
— Entre um rei e sua rainha?
— Claro! Quero dizer... Em Dumont permitimos que os maus casamentos sejam anulados, de modo que os cônjuges fiquem livres para se casar outra vez.
— Sem motivo? Um deles não tem que admitir ter cometido alguma ilegalidade?
Isabel não tinha certeza de como explicar, portanto, resolveu falar de uma vez:
— Chamamos isso de “diferenças irreconciliáveis”. Ninguém é culpado. Apenas aconteceu. O casamento não é mais palatável para nenhum dos dois.
Artur ponderou por um bom tempo.
— Nunca ouvi falar disso. Quando há queixas em uma união, é minha função atribuir culpas. O homem ofendido será...
— Espere um pouco. Não me diga que é sempre o homem quem se declara ultrajado?
— Se a mulher se deita com outro, então...
— E se foi o homem quem traiu?
A risada do rei quase ecoou pelas paredes do castelo.
— Isabel, eu não conheço as leis em Dumont, mas, em todas as outras terras da Bretanha, os homens são...
— Considerados de uma forma diferenciada. Claro.
Ele franziu a testa.
— Estou confuso com essa sua reação negativa.
— Sinto muito, Artur, mas acabei de perceber que existem dois pesos e duas medidas aqui. Eu não devia estar surpresa. Não devia estar descontando em você a minha irritação... As coisas são como são.
— No entanto, peço desculpas se a ofendi.
“Para com isso, Isabel, e dê-lhe um desconto. Apenas tu podes ensiná-lo a ver de outro ponto!”
— De modo algum — contrapôs ela depressa. — Tem sido muito gentil. É culpa minha reagir tão negativamente a respeito de algo que você não pode compreender.
Artur balançou a cabeça, rindo.
— Pois eu gostaria de voltar a esse assunto em outra ocasião. Você me intriga, Isabel. Estou ansioso para termos muitas outras conversas.
— Eu também.
Ela jamais saberia o que a levou a dizer aquilo, mas acrescentou:
— Artur, antes que faça algo de que possa se arrepender, é hora de ter uma conversa com Gwen. Revele seus sentimentos.
— Gwen não faz ideia de que sei de tudo.
— Então, conte a ela. — Isabel deu de ombros. — Peça-lhe que faça uma escolha. Afinal de contas, o coração é que manda.
— Neste exato momento, não sei qual resposta eu preferiria, Isabel.
Ela fez uma reverência, desta vez um pouco melhor do que antes.
— Estou ansiosa por nossas futuras conversas, Artur.
E, Deus, também estava ansiosa por um beijo. Por muito mais. Porém não naquela noite. Sua atração por Artur era inebriante, contudo ela não estava disposta a beijar um homem casado se ele se propunha a fazer o mesmo apenas para mostrar à esposa que também era capaz de trair dentro do casamento.
Artur se inclinou, depois endireitou o corpo e a fitou nos olhos.
— Eu a queria esta noite. Mas compreendo sua relutância. E aceito sua decisão.
— Agradeço muito, senhor. Quer um conselho? Do fundo do coração? Converse com Gwen.
— Confesso que temo ouvir as explicações dela.
— Seja homem, rei Artur.
Capítulo Nove
Artur entrou em seu dormitório, e Gwen já estava lá, esperando por ele.
Tinha o roupão aberto e os cabelos castanhos caindo sobre os ombros. Pouco tempo antes, a simples visão dela o deixaria excitado e pronto para pegá-la nos braços e levá-la direto para as peles da cama. A verdade era que, até depois do que ficara sabendo, decerto ainda faria tal coisa. Por isso mesmo, ficou surpreso que, pela primeira vez, a visão do corpo belo e jovem não deixou seu membro rijo como um pilar de dossel. Na verdade, seu membro não levantaria uma pulga de um cão no momento.
Quando deixara de desejar a esposa? Quando havia parado de amá-la? Não antes que suas suspeitas tivessem sido confirmadas.
Ele bem que tentara reconquistá-la com sexo e romantismo, contudo a reação de Gwen a seus gestos de amor ficaram óbvias. Ela já não o desejava como antes. O que mais o chocava, no entanto, era que, naquele momento, ele próprio já não a desejava. Os olhos azuis e os cabelos dourados de uma mulher de palavras e ideias inteligentes continuavam povoando sua mente. Não conseguia tirar Isabel da cabeça.
Gwen caminhou até ele. Cheirava a sexo, e ele teve ímpetos de recuar e pedir-lhe que se banhasse.
— Onde esteve, Artur? — perguntou com estranheza.
— Estive conversando com a condessa — respondeu ele, sem dizer nenhuma mentira. — Tínhamos muito a discutir sobre as nossas terras.
Aquilo também era verdade, de certa forma. E ele ficara tão intrigado com as opiniões de Isabel acerca das leis e dos reinados! Estava ansioso para viajar a Dumont na primeira oportunidade a fim de ver na prática as outras tantas maneiras que ela mencionara de governar um reino.
A inverdade, ali, era que havia desejado estar com a condessa de muitas outras formas... E de todas as que ele costumava adotar com a esposa após um longo dia. Não era uma espécie de mentira não expressar tal pensamento? Ali estava outra pergunta que se encontrava ansioso por fazer à condessa quando tivessem a chance de discutir assuntos tão intrigantes de novo. Mal podia esperar para mergulhar ainda mais em suas ideias. E, verdade fosse dita, para mergulhar nela de outras maneiras, também.
Artur começou a se despir, e Gwen se aproximou por trás dele.
— Vamos pedir água para um banho?
O toque dela costumava lhe provocar muito prazer, mas, no momento, ele teria apreciado arrancar aquelas mãos de seu corpo.
Pensou nas palavras de Isabel, e a decisão lhe veio num flash . Já era hora de acabar com aquela farsa.
— Eu sei de tudo, Gwen.
— Não compreendo... Sabe o quê?
Artur virou-se para encará-la.
— Sobre você e Lance.
Gwen deixou cair o queixo.
— O que está dizendo, Artur?
Ele olhou para a mulher que um dia tinha amado com todas as forças.
— Negar é triste e inútil. Está cheirando a sexo... E ainda me convida para tomar banho com você? Onde está sua fidelidade, Gwen? Aonde foi parar o seu amor? Por favor, se ainda lhe resta algum sentimento por mim, não minta, mulher!
Os olhos azul-acinzentados se encheram de lágrimas.
— Ah, Artur, eu sinto tanto!
— Por eu ter descoberto?
— Eu juro... Eu nunca quis que isso acontecesse.
No fundo da alma e do coração, ele acreditava nela. Gwen era uma das mulheres mais atenciosas e carinhosas que ele já conhecera. Ela jamais iria ferir uma pessoa, uma flor ou um animal de propósito. Ele ainda a amava.
Só não estava mais apaixonado por ela. A paixão havia lentamente arrefecido, primeiro com as suspeitas, depois quando a certeza criara raízes suficientes para sufocá-la. Era a parte mais triste daquele descalabro.
— Vou acabar com tudo. Eu prometo.
Ele balançou a cabeça.
— Não se pode controlar o coração. Não vai conseguir pôr fim nisso, assim como não conseguiria pisotear suas adoradas peônias.
— Eu te amo, Artur! — afirmou ela, torcendo a camisola.
— E eu também te amo, Gwen. Mas, por favor, não finja me querer quando deseja outro. Eu a protegerei com a minha vida; contudo, não vou fingir em nossa cama. E também não suportarei que continue fingindo. Não é justo comigo nem com Lance. — Ele suspirou. — Na verdade, só quero um banho agora... Sozinho. Antes de eu vir para cá, tomei algumas providências. Meu banho está sendo preparado no quarto ao lado, onde também irei dormir.
— Artur!
— Você, minha querida esposa, foi quem fez a cama onde vai se deitar agora. Meu único pedido, ou melhor, exigência, é absoluta discrição. Não poderei protegê-la se você mesma não se proteger.
— E... E quanto a Lancelot?
Até mesmo ouvir o nome de seu confiável cavaleiro saindo dos lábios de Gwen era uma punhalada em seu coração, concluiu Artur. Sua infidelidade fora insuportável, mas saber com quem ela dividia a cama quase o matara.
— Eu trouxe Lance para cá, Gwen. Eu o tive sob as minhas asas, fiz dele um dos meus soldados mais valiosos... Lance era como um filho para mim. Sua traição também é difícil de lidar.
— Vai bani-lo, então? — Não havia nem uma ponta de súplica nos olhos de Gwen. Apenas a triste consciência de que aquela seria a solução mais óbvia, a conclusão mais óbvia.
— Não.
Ela jogou a cabeça para trás, surpresa.
— Como? Ouvi bem?
— Ouviu. Preciso de Lancelot para a prosperidade e a segurança de Camelot. Ainda não consegui perdoá-lo, mas consigo compreendê-lo. Não se esqueça de que eu também já estive na mesma posição em que Lance está. Eu teria feito qualquer coisa por você.
— É muito doloroso ouvi-lo falar no passado, embora eu saiba que foi o meu próprio erro que provocou tudo isso.
— Exigirei discrição tanto dele quanto de você, Guinevere. Total discrição, para o bem de ambos. Porque, se forem pegos, eu não poderei proteger mais nenhum dos dois. Isso está claro?
Ela colocou a mão em seu peito.
— Prometo que o farei, Artur, do fundo do meu coração. Vamos parar com essa... coisa entre nós. Lancelot o ama tanto quanto eu. Nenhum de nós jamais iria querer lhe trazer vergonha ou desonra.
A gargalhada de Artur a assustou.
— Receio, minha doce Gwen, que o portão já esteja aberto, que os cavalos já tenham passado por ele e deixado o castelo há muito tempo.
— C-Como?
— É tarde demais.
Capítulo Dez
Isabel não conseguia dormir. A cama era mais do que confortável, embora ela desconfiasse de que a Sociedade Protetora dos Animais não fosse aprovar a pele que a cobria. Tinha virado de um lado para o outro, de costas e de barriga para cima, mas nenhuma posição permitia que sua mente parasse de funcionar e ela caísse no sono, fosse ele tranquilo ou não.
E dormir um pouco cairia tão bem no momento!
A porta se abriu em silêncio, e apenas a luz das lanternas do corredor que incidiu através do quarto foi um alerta. Isabel sentou-se, alarmada, mas em seguida reconheceu Mary, que trazia ambos os braços ocupados com duas toras de lenha para a lareira.
— Ah, você me assustou!
Mary congelou no lugar.
— Mil perdões, condessa — desculpou-se a moça com uma pequena reverência. — Imaginei que devia estar adormecida a uma hora destas.
— A pergunta é, por que você não está dormi ndo? — volveu Isabel. — É moça demais para trabalhar por tantas horas.
Mary colocou a lenha cuidadosamente sobre as brasas e abanou as mãos para atiçar o fogo.
— É um prazer servi-la, condessa — disse, depois se levantou e se virou com um sorriso travesso no rosto. — E verdade seja dita: quando não precisa de mim, dou um cochilo ou dois durante o dia. Durmo mais do que o suficiente.
— Fico feliz em ouvir isso, mas me responda uma coisa, Mary... O que faz por prazer?
— Como assim, milady? Não tenho certeza se compreendi a pergunta.
— Você e suas amigas... O que fazem para se divertir? Jogam? Praticam esportes?
— Não temos muito tempo para esse tipo de coisa.
— Porque têm muitas tarefas, não é?
— Mais ou menos, senhora.
— Vou cuidar disso — murmurou Isabel.
— Como?
— Nada... Nada, Mary. — Isabel jogou as cobertas para o lado e se pôs de pé. — Escute, eu não consigo dormir. Talvez uma pequena caminhada me fizesse bem. Existe alguma maneira de se chegar aos jardins, ao sul do castelo, sem passar lá por baixo, pelo salão nobre?
— Há, sim, condessa, mas a escadaria dos fundos é para uso dos criados, não para os gostos da realeza.
— Esta noite serei uma serva, então. Por favor, ajude-me a encontrar meu manto e mostre-me por onde ir.
Mary conduziu Isabel até os jardins que ela compartilhara com Artur algumas horas antes. Por sorte, não encontraram ninguém pelo caminho. O castelo parecia estar inteiro adormecido.
Isabel agradeceu a Mary profusamente e tentou presenteá-la com uma das centenas de moedas que descobrira em uma bolsa, dentro de um de seus baús. Mary a fitou, horrorizada, e recuou.
— Não, condessa, não posso! Se alguém vir esta moeda, posso ser acusada de roubo.
— Como, se posso afirmar a todos que foi um presente por seus excelentes serviços?
— Não estou autorizada a aceitar tais regalos.
Nossa. Bom seria se as equipes de empregados dos navios de cruzeiro ouvissem aquilo! Aquela gente não tinha escrúpulo nenhum em estender a mão a cada oportunidade.
Isabel prometeu a si mesma que encontraria uma maneira de recompensar Mary pela ajuda e gentileza, de um modo que não colocasse a garota em apuros.
— Pelo visto acabei de cometer outra gafe. Peço desculpas se a ofendi, Mary.
— Gafe?
— Esqueça. É apenas mais um termo aparentemente exclusivo da minha terra. Por favor, vá para a cama agora, e obrigada por me ajudar.
Mary fez nova mesura, o que já estava começando a dar nos nervos de Isabel.
Contudo, ela mordeu o lábio e desejou uma boa noite à criada.
— Posso voltar sozinha, Mary. E não vou precisar de ajuda até o banho da manhã.
— Muito grata, senhora. Espero que encontre aqui a paz que está procurando.
Isabel desejava a mesma coisa, no entanto desconfiava de que paz era algo que não iria encontrar tão cedo.
— Pelo visto, nenhum de nós está conseguindo sossego esta noite.
Ela praticamente saltou em direção às torres. Girou o corpo e se deparou com o motivo de seu tormento inclinado contra um damasqueiro.
— Artur! Pelos deuses, quase me matou de susto!
Ele se curvou.
— Minhas desculpas, Isabel. Não foi a intenção.
Ela estreitou os olhos.
— Está me seguindo?
Artur se afastou da árvore com o ombro, depois avançou um passo, o silêncio felino de seus movimentos quase assustador.
— Creio que você tenha me seguido, uma vez que já estou vagando pelos jardins há algum tempo.
— Eu não fazia ideia — afirmou Isabel, sentindo-se afrontada. — Não estava conseguindo dormir. — De repente, ela atinou com um detalhe. — Não é culpa de Mary! Eu exigi que ela me ajudasse a encontrar o caminho de volta para cá de uma forma que não nos fizesse atravessar o salão principal.
— Garanto que Mary será recompensada, e não punida, por seus atos. Na verdade, ela tem demonstrado mais lealdade a seu rei do que testemunho de muitos outros criados há um bom tempo.
Artur contornou o banco mágico em que tinham conversado e segurou a mão dela.
— Por favor, junte-se a mim e me diga por que não consegue dormir, condessa.
— Receio não saber o motivo.
— As acomodações não estão do seu gosto? Farei qualquer coisa para torná-las mais confortáveis.
Para isso, ele teria que compartilhar sua cama, concluiu Isabel. Seu calor, seu corpo rijo, seu cheiro... Que, pensando bem, parecia diferente agora. Artur obviamente tomara um banho e lavara o cabelo. Ela não conseguia identificar seu perfume, mas era delicioso.
Sentou-se no banco, ciente de que trajava apenas uma camisola e uma capa. Como queria ter encontrado jeans e camisetas naqueles baús!
Artur ficou diante dela, sem sentar-se a seu lado, apenas balançando a cabeça.
— Eu disse tudo a ela, Isabel.
Ela fitou os olhos verdes do homem dos seus sonhos com o coração dolorido.
— A Guinevere?
— Sim.
— E o que disse a ela? Sua pontuação no boliche? Quanto tem de crédito? Como fazer um interruptor movido a palmas funcionar?
Artur sorriu e sentou-se.
— Tem o dom de me fazer sorrir, condessa, mesmo num momento triste.
— Isso é ótimo, mas do que está falando?
— Eu disse a Gwen que sabia de tudo o que estava acontecendo entre ela e sir Lancelot.
— Ah, Senhor! Por quê?
— Por quê? Mas foi você quem me aconselhou a falar com ela!
Caramba.
— Eu quis dizer uma conversa para tentarem resgatar alguma coisa, sei lá! Ou pelo menos imaginei que tinha falado isso.
“Não falei, deusa?”
“Falaste mesmo, Isabel?”
“Agora, só o tempo dirá...”
“Mas não foi minha intenção com o casamento deles acabar! Vou me sentir muito mal se para isso vim para cá!”
“Eu te trouxe até aqui para Artur e Merlin agradar. Fazer a felicidade de alguém não é nada para se lamentar.”
Mais uma vez, Artur se pôs a andar à sua frente, algo que Isabel já havia notado ser um hábito quando ele estava pensativo ou, possivelmente, analisando o que lhe ia na alma.
— Desde o momento em que pus os olhos em Gwen, nunca mais senti desejo por outra. Nunca. Nem mesmo depois que eu soube da verdade. — Ele parou de andar e a fitou nos olhos. — Até o nosso encontro na floresta... Quando, de repente, me vi desejando uma mulher que não era a minha esposa.
— Sinto muito.
Artur riu mais uma vez.
— Está pedindo desculpas por ser bela? Por ser você?
— Não pretendo ser a razão do fracasso do casamento de ninguém.
— Mas será que ele já não tinha fracassado?
— Diga-me você, Artur.
Ele abriu aquele sorriso “pode-vir-quente-que-eu-estou-fervendo” mais uma vez. Isabel estava certa de que Artur não percebia o que estava transmitindo, mas era como se carregasse uma placa em que se lia: “Sou todo seu”.
— Você me abriu os olhos esta noite, condessa. É tão linda e direta! Essa sua boca verte objetividade e, no entanto, demonstra tanta compaixão!
Diabos, aquilo ficara tão claro como Física Q uântica.
— Obrigada... Acho. Como foi a sua conversa com Guinevere?
Ele fez um gesto vago.
— Ela não negou. Não implorou por misericórdia para si mesma, mas, sim, para Lancelot. Imaginava que o castigo dele fosse ser apenas o banimento.
— Sinto muito.
Uma vez mais, os olhos verdes de Artur se fixaram nela.
— E quanto aos seus pensamentos?
Terapia, Isabel decidiu, não era mesmo o seu forte. Principalmente quando queria tanto aquele homem. Estava louca para tomar um rumo que a levaria direto à realização de seus desejos mais egoístas.
— Por favor, diga-me que não vai pôr os dois para correr.
— Pôr para correr?
— É... Gwen e Lancelot. Não vai machucá-los nem puni-los, não é?
— Nunca. No entanto, nem tudo está em minhas mãos. Posso protegê-los até certo ponto.
— Então, vamos protegê-los.
— Como, Isabel?
— Ama os dois, não ama?
— Com toda a certeza. Não como antes, mas, ainda assim, eles significam muito para mim.
— Decidiu, no fundo da alma, que não quer castigá-los, certo?
— Sim.
— Precisamos elaborar um plano. Um plano de batalha, se for o caso.
Artur soltou uma risada gostosa e, mais uma vez, ele a fitou dos pés à cabeça.
— Você é mesmo uma constante surpresa, condessa.
— Que diabos... Podemos dar um jeito nessa história. Tem que haver uma maneira de conseguirmos o que queremos.
— O que eu quero agora é sentir os seus lábios.
— Mantenha o foco, Artur.
— Já disse isso antes, em nossa jornada até Camelot. No entanto, o foco, como você mesma diz, pode ter mudado.
— Quer manter Camelot e todo o seu povo em segurança, não quer? Isso nunca mudou.
— Não posso negar. No entanto, o que eu mais desejo na vida pode ter mudado.
— Um plano. Temos que elaborar um plano — ponderou Isabel, enquanto Artur traçava outro, bem diferente.
Embora os criados já houvessem apagado as lanternas do jardim para a noite, ele as tinha acendido outra vez ao vir até ali para pensar no futuro. Tudo o que sempre imaginara, esperara e desejara parecia confuso agora. Tudo parecia ter ido por água abaixo. Quando havia perdido o controle sobre as coisas? Por algum tempo, mantivera tudo em ordem, funcionando perfeitamente. E, de repente, os deuses pareciam zombar de seus sonhos e desejos.
Sentada no banco, Isabel o fitava com intensidade, os cabelos loiros cintilando à luz das lanternas, os olhos imensos e curiosos.
— Eu a amo. Eu sei que amo. Mas o que dizer do fato de eu não conseguir deter o que acontece e dessa atração que estou sentindo por outra mulher? Como é possível que eu a tenha desejado desde o primeiro momento em que a vi?
Nossa. A honestidade que aquele colar da deusa evocava era muito mais poderosa do que ela imaginara!
— Talvez — apenas talvez — porque tenha se apaixonado por uma bela mulher que é jovem demais para você?
Ele tornou a balançar a cabeça.
— O que me torna um velho idiota, decerto.
— Artur, não é velho nem idiota. Gwen é uma menina linda. E eu acredito que ela o ame também. Vejo isso quando ela olha para você. Ela o respeita e o admira, e sente orgulho em ser sua rainha.
— Vê amor ou desejo quando Gwen olha para mim?
— Não estou aqui há tempo suficiente para analisar esse tipo de coisa.
Aquela era a maior besteira que ela já havia soltado na vida. Quando a rainha lançava seus olhares furtivos para Lancelot, tudo o que ela via era luxúria e desejo.
— Balela — contrapôs Artur. — Desculpe-me a palavra e por usá-la na sua presença. Falei isso ao sentir que estava sendo enganado. Não está sendo sincera comigo.
Isabel o fitou por um instante, em seguida se pôs a rir.
— É mesmo sincero demais, senhor!
— E você, senhora, está se esquivando do problema que prometeu me ajudar a resolver.
Isabel desejou ter podido voltar trás e se formado em Psicologia. Contudo não tinha nada, a não ser a lógica, em que se fiar.
Além da deusa, que ela esperava lhe cutucar o peito se fizesse alguma coisa errada.
— Posso ser direta?
— Direta?
— Verdadeira a ponto de lhe causar dor.
— Pode, condessa.
— Creio que ama Gwen o suficiente para permitir a sua felicidade. Acho que a protege dos mexericos porque quer que ela tenha esses encontros e seja feliz. E aposto que não bane Lancelot daqui porque sabe que os dois são felizes juntos. Quer que eu continue para poder me expulsar depois?
— Eu lutaria contra meus próprios homens para mantê-la aqui, condessa.
— Pergunte a si mesmo, então: por que permite tal coisa?
— A felicidade é algo efêmero, não acha? Sou árbitro da felicidade? A Coroa não me concede o direito de determinar quem deve e quem não deve encontrá-la, seja onde for. — Artur inclinou a cabeça para o lado mais uma vez. — A verdade é que, honestamente, eu não sei. Por mais estranho que pareça, quero que Gwen seja feliz.
— É um homem de bom coração, Artur.
— Mas com muitos defeitos, ao que parece.
— Tais como?
— Falta-me bom-senso, talvez.
Isabel se levantou.
— Está dizendo que querer me beijar é uma falta de bom-senso?
— De maneira alguma, senhora! Essa seria, sem dúvida, uma das minhas decisões mais acertadas.
— Sem querer ofender, considera-se bom nisso?
Os olhos de Artur cintilaram, e ele deu de ombros.
— Está aí um mistério. Talvez eu esteja equivocado e sendo prepotente em se tratando dessa habilidade. Como posso saber?
— Sou bastante hábil em determinadas artes, senhor. Talvez eu possa determinar se esse é um defeito muito grave seu.
Isabel esperou pelo baque no peito, porém este não veio.
Artur ficou imóvel.
— Eu certamente aceitaria qualquer sugestão vinda da senhora.
Olharam um para o outro por muito tempo antes que ele abaixasse a cabeça, por fim. As bocas se encontraram tímidas a princípio, porém o fogo logo se alastrou. Antes que Isabel pudesse pensar, Artur mergulhou uma das mãos em seus cabelos enquanto a outra descia por suas costas, puxando-a para mais perto. Ele interrompeu o beijo, apenas por tempo suficiente para fitá-la nos olhos.
— Posso fazer melhor...
Se ele fizesse, pensou Isabel, iria derreter!
A boca de Artur desceu sobre a dela novamente, e fez tantas pequenas coisas com seus lábios que ela precisou se segurar nele. Artur tinha gosto de sexo, brincava com sua boca como se estivesse fazendo sexo, mordiscava seus lábios de leve como no mais erótico dos encontros.
No momento em que parou de beijá-la, ela estava em chamas.
Artur a segurou pelo rosto, o que a deixou prestes a desabar no chão. Seus joelhos não estavam em condições de sustentá-la. Ela começou a desabar, contudo ele a agarrou pela cintura e a puxou de volta.
— Foi tão ruim assim? — indagou, rouco.
Isabel sabia que tinha os olhos parados e o cérebro embotado. Suas cordas vocais também se recusavam a trabalhar, e ela limpou a garganta.
— De onde eu venho, sir — sussurrou, ofegante —, nós classificamos os nossos alunos de A a F, sendo o A para quem é admirável e o F para quem é um fracasso. O B, o C e o D ficam no meio-termo.
— E onde eu me encaixo, Isabel? — indagou Artur, ainda devorando-a com os olhos verde-musgo.
— Não só seria o orgulho do reitor, como provavelmente acabaria como o orador da turma.
Ele inclinou a cabeça.
— Como? Às vezes nossos idiomas parecem não corresponder...
— Minhas desculpas, senhor. O que estou dizendo é que ganhou um A+.
Ele sorriu.
— Isso é bom?
— Um orador de turma em potencial, Artur.
— O que é maior do que esse orador oficial? Eu gostaria muito de chegar lá...
— Eu adoraria se tentasse...
— Você é bonita demais, Isabel. Seus cabelos são tão suaves como a sua pele, e o seu perfume, doce e inebriante.
— Está falando demais. Prefiro que cale a boca e me beije.
Em vez de cobrir os lábios dela com os seus, Artur ergueu a cabeça e tapou-lhe a boca com a mão.
— Shh, condessa. Algo está errado.
Não era possível que fosse o tal coelho de novo...
Na verdade , ela pensou, melhor seria se fosse!
Antes que Isabel soubesse o que estava acontecendo, Artur a tinha empurrado para trás das costas enquanto encarava a escuridão dos arbustos ao longo do jardim.
— Quem vem lá?! — exigiu. — É amigo ou inimigo?
— Sou eu, meu rei... James! — respondeu uma voz além da luz das lanternas.
James, lembrou Isabel, era o sujeito grande e forte, primeiro homem do rei. Ela não sabia se corria, se se escondia ou fingia ser um poste, porém Artur não lhe deu nenhuma escolha: segurou-a com tanta força que ela não poderia ter se movido, se quisesse.
— Apresente-se, James. E diga-me por que veio até aqui me procurar.
James se aproximou, espalhafatoso, ainda que, estranhamente, caminhasse com tanta suavidade como uma bailarina. Pelo visto, aprendera a carregar com graça seu imenso volume. Quando ela espiou por trás de Artur, a expressão do homem passou de preocupada a gentil, fazendo-a se lembrar do Shrek .
— Senhora condessa! — saudou, inclinando-se.
— Como vai, James? — tornou ela, por algum motivo já gostando dele enquanto pensava que Artur havia se cercado de gente muito confiável.
— Receio ser obrigado a ter uma conversa com o rei, condessa Isabel. Em particular.
— Pode falar qualquer coisa diante da condessa, James. Eu confio nela, assim como confio em você.
Ah, aquilo era mesmo muito fofo. Mas insensato. Ela mesma não tinha certeza se poderia confiar tanto em Artur após tão pouco tempo... e de tanta luxúria.
Desvencilhou-se de Artur, por fim, e se pôs a seu lado.
— Estou certa de que o que James tem a dizer não é da minha conta. Por favor, permita que eu os deixe à vontade.
Artur a agarrou pela mão com firmeza, mas não a ponto de machucá-la.
— Não, milady, sejam quais forem as notícias, sei que elas estarão a salvo com você.
James tinha enormes olhos castanhos e cabelos que pareciam nunca ter sido penteados desde que ele era criança. Para quem não o conhecesse bem — o que era o caso dela —, parecia um tanto quanto ameaçador.
Quando ele olhou de um para o outro, contudo, Isabel teve a certeza de que James não era má pessoa. Apenas muito atento, o que provavelmente fazia com que ele passasse aquela impressão.
— Vou embora — decidiu ela e, mais uma vez, tentou se desvencilhar.
— Não, por favor — pediu Artur, segurando sua mão com firmeza. — Que notícias me traz, James?
O homem hesitou, depois encolheu os ombros enormes.
— Mordred está aqui, senhor.
Artur não soube se comemorava ou se ficava preocupado.
— No meio da noite?
— É o que ele costuma fazer, como o senhor bem sabe.
— Mordred? — perguntou Isabel.
Artur apertou a mão dela ainda mais, torcendo para que não a estivesse machucando. A necessidade que sentia de tê-la a seu lado, entretanto, parecia mais forte do que nunca.
— Providenciou-lhe acomodações? — perguntou a James.
— Eu não sabia onde colocá-lo. Não tinha certeza se era bem-vindo.
— Sabe que eu não posso mandá-lo embora. Claro que devemos lhe dar as boas-vindas.
— Mordred está exigindo ajuda para o cavalo, que ele garante ter ficado coxo na viagem pela floresta.
— Acorde Harry — sugeriu Isabel. — Ele pode cuidar do animal... Mas, pelo amor de Deus, será que alguém pode me dizer quem é Mordred?
James silenciou e desviou o olhar.
Por alguma razão com a qual Artur não conseguiu atinar, ele não conseguiu mentir.
— Mordred é meu filho.
Isabel o fitou, depois olhou para James, que manteve a cabeça baixa, ainda que concordasse em silêncio.
— Eu devia ter prestado mais atenção às aulas de Mitologia.
— Como disse, milady? — indagou o homem.
— Como nenhum de vocês me pareceu feliz com a notícia, imagino que a chegada de Mordred não seja motivo de celebração. Diga a verdade, Artur.
— Mordred não me ama — afirmou ele. — Acha que cometi uma injustiça com ele.
— Você!?
— Ele não cometeu injustiça nenhuma! — inflamou-se James. — Milorde tem feito de tudo para aquele ingrato e...
— James!
— Perdão, senhor.
— Termine o que estava dizendo, James, por favor — pediu Isabel.
— Não — contrapôs Artur.
James apertou os lábios. Obviamente o rei estava acima da condessa. E, como ele era um dos homens de Artur, ela não poderia esperar dele outra reação.
“O que estou perdendo aqui, deusa?”
“Artur e Mordred o mesmo sangue carregam, mas os desígnios do rapaz a todos apavora... Fruto da luxúria e de um amor adolescente, a inocência do pai, Mordred ignora. Ainda que a mãe morta haja o rei poupado, o ódio do menino tem a Artur escravizado.”
Isabel sentiu gosto de sangue nos lábio s. “Esse bastardinho!”
“Bastardo, de fato, mas uma coisa te direi: Mordred não irá descansar até que um dia seja rei.”
Isabel digeriu as informações por um momento, incapaz até mesmo de fitar Artur nos olhos.
— Bem... — falou, por fim, a Artur e James. — Que tal eu ir acordar Harry para que ele possa cuidar do cavalo de Mordred?
— Não! — falaram eles em uníssono. Artur tentou detê-la, contudo ela já escapulira de volta para o castelo.
Ele devia tê-la segurado pela mão com mais força!
— E agora, senhor?
— Ela vai confrontar Mordred. Está na natureza da condessa, James. Ela é do tipo que quer saber de absolutamente tudo. Isabel é o que se pode chamar de... — A palavra não lhe vinha.
“Enxerida? Superprotetora?”
Artur não sabia de onde vinham aqueles pensamentos, porém todos eles pareciam precisos. Ainda que não fizesse ideia do significado da palavra “enxerida”.
“Artur, se não proteger Isabel, Merlin não poderá viver!”
“Merlin? O que sabe sobre Merlin? E quem é você, falando na minha cabeça?!”
“Tenta descobrir, se fores capaz. Agora vai e protege Isabel! Caso ainda não tenhas notado, ela pode pôr fim à tua paz...”
— E eu não sei disso? — resmungou o rei.
— Como disse? — desculpou-se James.
Artur balançou a cabeça. Ou estava ficando louco ou...
Não, não havia alternativa. Estava louco.
— Confrontar Mordred colocará a condessa em perigo — afirmou James.
— Com certeza. E temos que impedir isso. Isabel conhece a escada dos fundos, James — lembrou Artur. — Vou tentar alcançá-la lá enquanto segue para os estábulos.
James na verdade sorriu.
— Vamos alcançá-la, milorde. Mas devo confessar que gosto da ideia de a condessa enfrentar aquele menino.
— Eu não. Ela não sabe com quem está se metendo.
— Pois me parece que a condessa tem coragem de sobra para tanto.
— Talvez até mais do que devia. O desprezo de Mordred pelas mulheres é notório, você sabe.
— E ela o admira, milorde, o que é mais do que devo dizer.
— Nem termine tal pensamento, James! Por favor, apenas me ajude a encontrá-la.
— Sim, milorde.
— Vá para os estábulos. Vou tentar interceptar Isabel na parte de trás do castelo antes que ela consiga escapulir.
Artur correu, mesmo tendo testemunhado outro sorriso no rosto de seu soldado.
O que mais o intrigou, porém, foi sentir um sorriso se formando em seu próprio rosto, mesmo enquanto estava tentando evitar um desastre. Isabel contra Mordred. Ele não conseguia nem imaginar qual dos dois poderia ganhar tal batalha. Ou melhor, podia. Se se tratasse de uma batalha de palavras e sagacidade, colocaria todas as moedas na condessa. No entanto, Mordred não se fiava em nenhuma das duas coisas, preferindo usar armas bem mais desagradáveis.
Pensar que o filho poderia fazer algum mal a Isabel o fez apertar o passo. Se Mordred levantasse um dedo contra Isabel, ele mesmo daria uma lição no rapaz, fosse esta regada a sangue ou não!
James alcançou Isabel e Harry quando eles estavam a meio caminho para os estábulos. Estendeu os braços e se orgulhou de ser capaz de se posicionar lado a lado com eles para efetivamente lhes bloquear os passos.
Harry ajustou o capuz verde e branco na cabeça.
— Tenho um paciente que precisa de atendimento — rosnou.
— Compreendo — disse James. Em seguida, deteve a condessa pela cintura quando ela tentou escapulir, contornando-o pelo lado direito. Segurou-a na lateral do corpo, divertindo-se em se esquivar dos golpes que Isabel tentava desferir nele. Precisava admitir que compreendia a atração que seu mestre sentia pelo temperamento apaixonado da moça.
— Solte-a! — exigiu Harry conforme ela se contorcia nos braços de James. — Ela é uma condessa!
— Peço desculpas, condessa — murmurou ele, sabendo que poderia estar em apuros apenas por tê-la tocado. Mas, se tinha lealdade em relação a alguém ali, era ao seu rei. — Por favor, permita-me explicar algumas coisas antes que siga adiante com a cabeça quente.
A condessa parou de se debater. Mesmo assim, ele a manteve junto de si com delicadeza.
— Só prometo não correr à sua frente, James, se o que tem a dizer for importante e relevante!
James sentiu uma profunda vontade de rodá-la no ar uma vez antes de tornar a colocá-la de pé no chão, mas concluiu que o rei não veria a brincadeira com bons olhos.
Devolveu-a ao solo firme, em seguida fez uma reverência.
— Minhas desculpas. Mas há mesmo coisas das quais deve estar ciente antes de correr até lá, milady.
Isabel teve o desejo infantil de que James a houvesse girado no ar uma vez ou duas antes de colocá-la no chão. Podia ter sido como um brinquedo de Camelot do parque Six Flags . Mas ela precisava entender. Então ela superou aquilo.
— Conte-me, James.
Harry pigarreou a seu lado, e ela completou:
— Conte-nos , James.
— Essa... como diz mesmo? Essa coisa entre Mordred e o rei já vem acontecendo há muito tempo. Por razões que não posso citar, eles vivem numa eterna contenda, o que é fonte constante de dor para o mestre.
Isabel sentiu um calor subir pelo ventre. Muito em breve ele estaria brotando por suas ventas ou por seus lábios. Ou por ambos.
— E por que diabos está me impedindo de ir até lá chutar o traseiro desse merdi...
— O que a senhora quer dizer... — interveio Harry, tapando-lhe a boca com a mão — ... é que não compreendemos por que temos de poupar o rapaz.
O homenzarrão sacudiu a cabeça cheia de cabelos.
— Talvez porque o rei o ame, não importando o que este lhe traga de sofrimento; não importando o prazer que Mordred sinta em fazer meu rei pagar pelos pecados que cometeu na juventude.
Isabel arrancou a mão de Harry dos lábios e o encarou.
— Percebeu agora por que eu nunca quis ter filhos?
— Estou começando a compreender — respondeu o rapaz, num resmungo. — Mas ainda acho que teria dado uma mãe e tanto.
— Está me pedindo para agir com diligência? — perguntou ela a James.
— Sim, condessa. Por favor, permita que o rei lide com a situação. É melhor se recolher aos seus aposentos para a noite.
Isabel assentiu.
— Talvez fosse. Mas não farei isso nem a pau, como se diz em Dumont. Insisto para que o meu homem, Harry, e você, James, me acompanhem até os estábulos.
— Sinto que teremos problemas... — cochichou James para Harry.
— Não faz ideia ! — volveu o rapaz, antes de prender o braço de Isabel com força junto à barriga. — Mas vamos.
— Vamos.
Isabel, ainda se recuperando da notícia de que Artur possuía um filho — e que esse filho era um total idiota —, sentiu-se impaciente. Ergueu as saias, então, e gritou:
— Peguem-me, se puderem! — E saiu correndo.
Ambos os homens correram atrás dela; no entanto, nenhum deles foi tão rápido.
James e Harry não alcançaram a condessa até vê-la frente a frente com Mordred nos estábulos... E já soltando o verbo.
Isabel estendeu os braços para impedi-los de se aproximar.
— O que o traz aqui, senhor? — perguntou a Mordred. — Que negócios possui em Camelot?
— Quem é você para ousar questionar minhas intenções?
Isabel o estudou. Era, sem dúvida, o filho de Artur. Eles se pareciam em muitos aspectos, ainda mais nos profundos olhos verdes.
A diferença era que os olhos do rei emanavam bondade e alegria, enquanto os de Mordred pareciam impregnados de veneno.
— Sou Isabel, condessa de Dumont e amiga do rei, o que, aparentemente, você não é. Por esse motivo, pergunto outra vez: O que o traz aqui?
— Encantado. — Mordred elaborou uma reverência com cinismo. — No entanto, condessa, meus negócios aqui não são da sua conta. Será possível que meu pai decaiu tanto a ponto de precisar que uma simples mulher saia em sua defesa?
— Uma simples mulher? Escute aqui, seu merdinha...
— Não, condessa, escute você — volveu ele, ríspido. — Sou herdeiro deste reino, e tenho todo o direito de vir a Camelot para supervisionar meus futuros bens.
— O rei está bastante saudável, e eu acredito que ele vá permanecer assim por muitos anos ainda. Portanto, pode tirar o seu cavalinho da chuva!
Aff!, aquilo tinha sido um horror. Mas era o melhor que ela havia podido elaborar por impulso, nas circunstâncias.
Mordred estreitou os olhos por um momento, então soltou uma risada desagradável.
— Se ainda não foi informada, senhora , meu pai já possui uma esposa. E uma bem mais moça do que você. Percebo seu interesse. No entanto, nunca vai tomar o lugar dela como rainha. A menos que arme um complô para assassiná-la.
James e Harry agarraram cada um dos braços de Isabel, decerto esperando impedir que ela saltasse para a frente e arrancasse à unha os olhos do bastardo.
Mas não houve necessidade. Isabel não tinha a menor intenção de se lançar sobre o rapaz. Sabia que seu peito arfava com fúria, principalmente quando os olhos de Mordred desceram sobre seu colo e não fizeram menção de deixá-lo.
De repente, ela se deu conta de que o olhar dele se fixara no colar e respirou fundo, tentando se acalmar.
— Por favor, diga-me de novo por que veio a Camelot.
— Eu soube que em breve haverá um encontro muito importante entre os cavaleiros do reino e preciso estar sentado a essa mesa. — Mordred piscou várias vezes, sem saber por que motivo revelara aquilo.
— Foi convidado para esse encontro? — perguntou Isabel. — Foi nomeado cavaleiro?
— É claro que não — volveu o rapaz, desviando o olhar do colar. — Meu papai não me considera digno o suficiente do título. É um imbecil.
Desta vez, James e Harry precisaram segurá-la. Isabel queria mais era arranhar aquele rostinho bonito, por mais que isso fosse estragar suas unhas.
— Como se atreve?! Seu pai ama você! Por que sente tanto prazer em feri-lo?
Mordred chegou bem perto dela, batendo o chicote de leve na coxa.
— Não sabe de nada, milady. Nem mesmo como se vestir adequadamente. Será a amante dele esta noite? Vai tentar gerar seu próximo bastardo?
— O que vai fazer, Mordred? — exigiu Isabel. — Bater com o chicote em uma mulher desarmada?
James tentou se colocar entre eles.
— Ela é uma condessa, Mordred! Afaste-se agora mesmo!
Mordred riu com zombaria.
— É uma prostituta, assim como a mulher do meu pai.
— Para trás, James! — falou Isabel.
— Não posso, condessa... O rei ordenou que eu a protegesse.
— Para trás! Esta criatura desprezível acabou de manchar o nome da rainha!
— Mas, milady!
— Para trás! Eu exijo!
James recuou, embora Isabel imaginasse o quanto ele devia estar preocupado com seu futuro. Aquilo não seria problema, porém. Ela estava certa de que ele seria recompensado por seus atos.
Mordred sorriu e chegou ainda mais perto.
E ela deu graças aos deuses pelo seu tae kwon do . Em questão de segundos, tinha chutado o maldito chicote para longe da mão dele, feito meia-volta e saltado, atingindo-o na barriga e arremessando-o para o chão, onde lhe atou as mãos com as rédeas.
— Desculpe, filho, mas já é hora de atender ao seu pai — sussurrou ela em seu ouvido. — Artur nunca teria me deixado passar por cima dele. Você, por outro lado, é muito lento e estúpido.
— Vai pagar por isso! — gritou Mordred.
— Tenho certeza de que sim. Seu pai o ama tanto que vai ficar com muita raiva de mim. Mas que se dane... Foi bom demais, seu vermezinho.
— Puta! — disparou ele.
Isabel cravou o joelho nas costas do rapaz.
— Como disse? Acredito que tenha querido dizer: “Minhas desculpas, condessa”. Foi isso?
— Peça desculpas à condessa, Mordred!
Ela ergueu a cabeça e deparou-se com Artur, que parecia chocado e divertido ao mesmo tempo. Tentou se levantar com graça, mas não conseguiu.
Harry a segurou pela mão, então, e lhe deu auxílio.
— Sinto muito, Artur, mas ele me tirou do sério.
Artur se aproximou e a ajudou a tirar o feno da roupa.
— É a especialidade dele. — Ajudou o filho a se pôr de pé. — Bem-vindo ao lar, Mordred.
— Se você se importasse comigo, papai , levaria essa mulher perante a corte do rei!
Artur sentou-se em seu trono, a cabeça sustentada por um dedo.
— Por ela tê-lo imobilizado quando fez menção de chicoteá-la? Não creio.
— Discorda de que ela mereça uma surra?!
Artur olhou para o filho, perguntando-se como podia ter errado tanto como pai.
— Nenhuma mulher merece ser surrada, Mordred. Jamais. Mulheres são feitas para ser acarinhadas.
Mordred riu, amargo.
— Como acarinhou minha mãe?
— Sua mãe nunca me contou a seu respeito, filho. Não importa o que sua tia tenha lhe dito, eu nada sabia de sua existência até perguntar a respeito da saúde dela. Sei que demorou muito, Mordred, porém ela nunca me disse nada. Nunca me ocorreu uma coisa dessas, o que é minha culpa, admito. Mas, desde que eu soube da morte de sua mãe e do seu nascimento, tenho tentado me redimir, filho, de verdade.
— Isso é o que você diz. — Mordred levantou-se, caminhou, e Artur quase riu ao ver como o gesto se assemelhava ao seu.
A raiva do rapaz, contudo, ainda pairava sobre ele como esterco ao redor de um touro. E cheirava mal.
— Então vai escolher aquela cadela ao seu próprio filho?
Artur se levantou de um salto, tentando aplacar a revolta do rapaz.
— Em primeiro lugar, Mordred, não há nenhuma escolha. A condessa Isabel o derrotou nesta noite, e esse é um problema seu. No entanto, caso tente se vingar, partirei, sem dúvida nenhuma, em defesa dela, pois Isabel nunca lhe fez nada. Na verdade, um dos homens dela até cuidou do seu cavalo. E isso depois de você ter planejado atacar sua senhora. Se estiver cogitando se vingar, eu vou agir.
— Mais uma vez, está preferindo uma mulher ao seu filho.
— Prefiro o cuidado ao despeito. Espero que um dia possa compreender.
— Quando meu pai escolheu seu filho bastardo em vez do seu reino?
“Quando, meu filho, sua mãe optou por não me informar que estava grávida?”
Mais uma vez, Artur não teve ideia de onde o pensamento tinha vindo, mas precisava admitir que era bom:
— Sua mãe não quis me contar que estava carregando um filho. Não me foi dada nenhuma escolha.
— Está mentindo.
Artur abaixou a cabeça e esfregou as têmporas.
— Pelo visto, nunca vai acreditar em mim. Entretanto, a verdade é que, quando eu soube de você, quando fui informado de que sua mãe havia morrido durante o seu nascimento, tentei reivindicar sua paternidade e trazê-lo para Camelot. Sua tia não permitiu, pois me culpava pela morte da irmã.
Mordred parou de andar.
— Não acredito nisso.
— Como eu disse que não acreditaria.
Artur se levantou e também começou a andar enquanto Mordred continuava com as próprias passadas. Cruzaram-se várias vezes, judiando dos juncos sob seus pés.
— Estamos num impasse, meu pai — falou Mordred, finalmente.
— É o que parece, meu filho. Pode se juntar aos meus homens, ou ficar junto daqueles que desejam a minha derrocada. A escolha é sua.
— Estou falando a verdade quando digo que sou leal a Richard de Fremont.
As palavras aguilhoaram o coração de Artur, porém ele balançou a cabeça.
— Então, meu filho, é um convidado em minha casa. O problema é que deseja prejudicar Camelot, portanto, posso considerá-lo um inimigo. Já deixou bem claras as suas intenções, e não posso expressar o quanto elas me ferem.
— Mais do que me senti ferido quando me renegou?
— Eu nunca lhe reneguei! Foi sua tia quem...
— Basta!
— Muito bem. Acredite no que quiser. Mas saiba de uma coisa, filho: se ferir algum homem, criança, mulher ou animal enquanto eu o estiver abrigando em meu reino, não lhe reservarei nenhuma clemência. Terá o mesmo castigo que qualquer outro.
— Percebi que enviou uma mulher para dar conta do seu trabalho esta noite.
Artur sorriu sem vontade.
— Eu bem que tentei impedir Isabel. Mas ela estava com raiva, e eu não cheguei a tempo. De qualquer modo, filho, esse hematoma em seu olho me diz que a condessa venceu essa pequena batalha.
— Pela qual ela vai pagar.
Artur quis pegar o filho e sacudi-lo. Em vez disso, respirou fundo várias vezes.
— Toque nela, e certamente irá sofrer.
A risada de Mordred foi quase tristonha.
— E, mais uma vez, vai preferir outra pessoa ao seu próprio filho.
— Não, Mordred. Eu prefiro a fidelidade à traição. E a felicidade ao ódio. O caminho que você mesmo escolheu em ambos os casos é que é lamentável.
Artur virou-se para deixar o salão, sentindo um desgosto e uma tristeza que nunca havia experimentado antes.
— Você me deve, seu velho! — ouviu o filho gritar enquanto fechava a porta.
Nesse momento ainda sentiu tristeza; porém o desgosto a superou em muito... Além de certo receio.
A segurança de seu povo era fundamental. Alarmava-o que Mordred fosse capaz de atacá-los primeiro. E a primeira a sofrer, sem dúvida, seria a mulher que o tinha humilhado naquela noite.
Mesmo que ele, Artur, houvesse vislumbrado um sorriso em seu rosto, sabia que precisava reunir Tom, Dick e Harry, a fim de elaborarem um plano de segurança. Pois a segurança da condessa era prioridade agora.
O plano teria de ser secreto, no entanto, porque, se Isabel ficasse sabendo, ele próprio acabaria com mais de um olho roxo.
A verdade era que, se algum dia pretendesse fazer outro filho, com Isabel isso provavelmente seria impossível. Ela era, mesmo, meio esquisita.
Capítulo Onze
Na manhã seguinte, Isabel se deleitava em seu banho com lilases recém-colhidas e especiarias quando ouviu uma batida suave na porta.
— Eu já disse que não precisa bater, Mary! — falou em voz alta.
— Não é Mary, condessa. Sou eu, Guinevere .
Isabel espalhou água para todos os cantos ao agarrar uma toalha e o robe.
— Um momento, Alteza! — pediu, batendo todos os recordes de velocidade enquanto saltava da banheira, secava-se e vestia o manto. — Entre, por favor!
Gwen entrou, parecendo tão etérea e doce que ela sentiu-se como o próprio James em um dia não muito feliz em termos de beleza. Se é que James tivesse dias em que se sentisse belo, o que ela duvidava. A rainha usava um vestido azul-turquesa, de um modelo simples, mas que lhe caía como se houvesse sido feito sob medida.
Claro que tinha sido feito sob medida, concluiu Isabel. Bom seria se tivesse uma costureira daquela!
Entretanto, ou a cor não combinava com Gwen, ou a cor de Gwen não estava normal. Seu sorriso continuava amável, contudo ela parecia um pouco pálida, e seus impressionantes olhos já não brilhavam tanto como na noite anterior.
O-ou! Artur não revelara todos os detalhes da conversa que tivera com a esposa, porém ela desconfiava de que seu nome fizera parte da discussão. E aquilo não era nada bom.
Fez a coisa da reverência que, mais uma vez, lhe pareceu muito estranha.
— A que devo esta visita? — perguntou, o medo vertendo por todos os poros. Afinal, havia trocado beijos de derreter com o marido de Gwen, poucas horas antes. A rainha estaria ali para mandar executá-la como uma piranha? Aquilo era crime?
Os nervos de Isabel se agitaram mais do que num mambo. Estava simplesmente em pânico.
Gwen flutuou pelo quarto e sentou-se em uma das duas cadeiras.
— Peço desculpas por ter interrompido o seu banho, condessa.
— Não tem problema. A água já estava ficando fria — garantiu Isabel, secando os cabelos com a toalha e torcendo para não estar com o rosto todo arranhado por conta da barba de Artur. — O que aconteceu?
— Além dos vergões de barba por todo o seu rosto, condessa?
Céus! Então seu pânico tinha razão de ser. Não era nenhuma mentirosa, portanto, estava mesmo encrencada.
“Por favor, deusa, ajude!”
“Se te escolhi, Isabel, foi por tua honestidade. Mas, no momento, esta nem importa para mim... Tampouco importa qual amigo venhas a escolher: podes dizer que um dos três deixou teu rosto assim!”
Ela estaria tão assustadora assim? Poderia conviver com a ideia de estar com o rosto um pouco arranhado, mas as palavras a fizeram se sentir como uma personagem de Halloween. Por outro lado, tudo ali era surreal.
— Não vou mentir. Beijei alguém na noite passada... No entanto, quem eu beijei é problema meu. E só meu. Perdoe-me se não me sinto à vontade para compartilhar minhas intimidades.
— Assim deve ser.
— Desculpe-me por minha impertinência, rainha Guinevere, porém suas faces e queixo mostram os mesmos sinais.
Gwen levou as mãos ao rosto.
— Parece que estamos ambas nos declarando culpadas.
— Não direi nada a seu respeito se não disser nada sobre mim.
— É justo. Obrigada.
— De nada. — Isabel pousou a toalha. — Agora, a que devo a honra da sua visita matutina?
— A muitas coisas, condessa.
Passou de tudo pela mente de Isabel. Gwen ficara sabendo que ela beijara seu marido? Talvez tivesse sido informada de que ela dera uma surra em seu enteado? Mary teria colhido flores do jardim de Gwen para seu banho?
— Então me diga, por favor.
— Eu preciso dos seus conselhos — revelou a rainha.
Certo, aquilo não estava na sua lista. Mas soava bem menos doloroso do que tortura e morte.
— Dos meus conselhos?
— Sim. Meu marido me contou que está incomodada com o fato de as mulheres daqui não terem nenhuma folga de suas tarefas diárias. E que você acredita que elas devam ter, como ele mesmo disse, “um pouco de lazer”.
Isabel podia ter caído com um sopro, tal era seu estado de tensão.
— Eu provavelmente estava fora do meu juízo normal, Alteza. Eu não devia ter dito tal coisa. Estava apenas jogando conversa fora.
— Pois, verdade seja dita, fiquei bastante entusiasmada com a ideia.
Até o momento, nenhuma tortura seguida de morte à vista. Ao menos ela esperava que não. Tentou se conectar com a Dama do Lago, mas a deusa silenciara. Pelo visto, ela estava mesmo sozinha.
Que maravilha.
— Como posso ajudá-la, rainha Guinevere?
— Por favor, pode me chamar de Gwen — pediu a moça. — E permita-me chamá-la de Isabel. Odeio formalidades.
Isabel assentiu.
— Eu também. Mas, como eu dizia, receio ter me precipitado. Não tenho o direito de lhe dizer como lidar com sua equipe de criadas.
Para sua surpresa, Gwen pareceu desapontada.
— Está dizendo que não foi bem isso o que sugeriu?
Isabel arrastou uma cadeira para mais perto da rainha.
— Não. Foi exatamente o que eu quis dizer. Pense bem, rainha Guinev... — Ela balançou a cabeça. — ... Gwen. As mulheres que trabalham em Camelot só fazem uma coisa: trabalhar. Os homens também trabalham, sem dúvida, mas jogam e praticam esportes. Deveriam permitir que as mulheres usufruíssem igualmente de algum tempo para si mesmas.
Gwen acedeu, embora seu semblante denotasse alguma confusão.
— Compreendo o que está propondo, mas nunca ouvi nenhuma queixa.
— Ora, por favor, acha mesmo que as criadas de Camelot iriam se queixar com você?
Nesse exato momento, Mary entrou no quarto.
— Pronta para me deixar fazer seu cab...? — Ela estacou. — Mil desculpas! Voltarei mais tarde.
— Não, Mary — respondeu Isabel. — Eu gostaria muito se cuidasse dos meus cabelos agora.
— Mas a rainha...
— A rainha não vai se importar — garantiu ela. — Não é mesmo, Gwen?
— Claro que não. Entre e faça o seu trabalho, Mary.
— Sim, minha rainha.
— Ela vai exercer um dom, não apenas fazer um trabalho — ressaltou Isabel.
— Como disse?
— Arrumar cabelos não é apenas um trabalho para Mary, Gwen. Ela gosta do que faz. E é muito boa nisso.
— Obrigada, senhora — agradeceu Mary, os olhos ainda cravados no chão.
— Sei que estou sendo intrometida, Gwen, mas a verdade é que não estão aproveitando as verdadeiras habilidades de seus homens e mulheres. Mary, por exemplo, deveria estar trabalhando com cabelos. Ela é ótima nisso. Podia estar arrumando até mesmo os cabelos dos homens. Não percebeu como muitos estão precisando dar uma geral ?
— Como?
— Estão precisando cortar os cabelos.
— É mesmo?
— Não percebeu?
— Para ser sincera, não. Outra falha minha, pelo visto.
— Não é falha nenhuma. O problema é que você só tem olhos para... — Isabel se conteve a tempo — ... para as coisas que lhe são importantes. Aposto que sempre imaginou que os homens de Artur são problema apenas dele, e não seu.
— E o que acha que devo fazer?
— Eles precisam mudar um pouco. Por exemplo, o primeiro homem de Artur, James... Ele é até bonitão. No entanto, aquele cabelo dele é um desastre!
Mary deixou escapar uma exclamação, e Gwen estreitou o olhar em sua direção, enquanto balançava a cabeça.
— Ah... Você é aquela Mary. A que deixa James todo derretido quando fala de você.
Sem dúvida, Isabel havia perdido alguma coisa ali.
— Mil perdões, Mary. Eu não imaginava que fosse precisar assumir uma missão quase impossível com os cabelos de alguém. Honestamente, eu só queria vê-la feliz.
Gwen tentou esconder um sorriso, porém fez um péssimo trabalho.
— O que mais eu não estou sabendo? — indagou Isabel.
— Obrigada, senhora! — exclamou Mary, agitando as mãos. — Muito obrigada! Adoro mexer com cabelos, mas prometo que farei tudo o mais que meu rei e minha rainha me pedirem! E com prazer, é claro. Podemos começar com o seu, condessa?
Isabel olhou da rainha para a criada.
— Muito bem, o que está acontecendo aqui?
Gwen foi quem falou primeiro, os olhos ainda cheios de diversão.
— Perdoe-me, mas acredito que esta seja a Mary que conquistou o coração de James. Estou certa, Mary?
A pobre menina parecia prestes a desmaiar.
— Esperem um minuto — pediu Isabel, tentando dar a Mary um momento para se recompor. — Estão falando de James, o mais doce dos brutos? O primeiro homem de Artur?
— Eu sabia que ele estava apaixonado por uma Mary — contou Gwen. — Tenho ouvido Artur brincar a respeito disso. Mas confesso que não sabia de que Mary eles falavam.
— Quantas Marys há aqui? — quis saber Isabel.
— Sinceramente, não faço ideia. Temos tantas Marys e Liliths... E tantos outros nomes! Mas parece que só temos uma Prudence no castelo. Não sei o que a mãe dela estava pensando quando a pobre nasceu!
O rosto de Mary continuava em chamas, notou Isabel.
— Você é a Mary que conquistou o coração de James?
A menina mudou de posição, parecendo querer sumir dali.
— Sim, senhora.
Gwen deixou escapar uma risadinha.
— James apaixonado!
— O que há de tão engraçado nisso? — perguntou Isabel. — James seria um homem de sorte se tivesse Mary.
— Não, não é o casal em si que me diverte. É apenas a ideia de ver James apaixonado que...
— ... que a deixa feliz por eles?
— Sim, claro. Muito feliz por eles.
Mary ensaiou uma nova reverência.
— Obrigada, senhora.
— Isabel.
— Sim, senhora. Estou bem ciente do seu nome.
— Mesmo assim, ainda se recusa a pronunciá-lo.
— Sim, senhora.
— Não percebe que eu a trato pelo primeiro nome?
— Sim, senhora.
— Você só tem treze anos, criatura!
— Estamos esperando até que ela complete catorze anos, Isabel — explicou Gwen. — Esse é o tempo que decidimos esperar.
— Vocês decidiram por eles? Como se eles não tivessem o direito de opinar quanto ao assunto? Verdade que aos catorze eu ainda estava brincando no trepa-trepa dos parques infantis e achava que todos os meninos tinham piolhos.
Ambas as mulheres olharam para Isabel como se ela fosse maluca. E ela chegou a ouvir Viviane suspirando em sua cabeça.
Tudo bem, estava viajando outra vez. Mesmo que aquele tipo de coisa lhe soasse repugnante, ela compreendia que, na época em que estava, a questão da idade era tratada de um modo muito diferente.
Concentrou-se em outro problema.
— Por que não tentou dar um jeito nos cabelos de James, Mary?
A rainha continuou a rir, embora uma profunda tristeza lhe oprimisse o coração. Era óbvio por que Artur a pressionara a visitar a condessa e a ouvir suas opiniões. Ele estava encantado com Isabel.
E ela, Gwen, não podia culpá-lo. Isabel era uma mulher adorável, que expressava suas opiniões abertamente. E Artur apreciava escutar as opiniões das outras pessoas: era uma de suas maiores qualidades. E uma que ela sempre admirara.
Na verdade, ela amava Artur. Ela o amara desde o primeiro momento em que o tinha visto. Entretanto, Lancelot a fizera perceber que amor e admiração não eram o mesmo que amor e desejo.
O desejo e o amor que sentia por Lancelot eram fortes demais. Por mais que ela amasse e admirasse o marido, a necessidade que sentia de ter Lancelot superava tudo o mais, a ponto de lhe sabotar o bom-senso e também sua tremenda responsabilidade.
Sem mencionar os votos que ela havia feito. Votos sagrados.
— Gwen?
Ela piscou, obrigando-se a voltar à realidade.
— Ah... mil perdões. Creio que me distraí.
Os olhos de Isabel perscrutaram seu rosto.
— Parece estar com problemas. — Ela tocou o belo colar que tinha em volta do pescoço.
Gwen, imediatamente, se pôs a falar:
— Tem razão, condessa. Mas este nada tem a ver com o motivo de eu ter vindo em busca do seu conselho.
— Ainda assim, estou aqui para ouvi-la, caso queira me contar o que a está perturbando.
— Temos muito que discutir sobre os assuntos de Camelot — resistiu Gwen, os olhos ainda fixos no colar.
Mary fez menção de se retirar com uma mesura, contudo Isabel a impediu de sair.
— Por favor, escove os meus cabelos, Mary, e faça uma trança como a que fez antes. Eu gostaria que também opinasse sobre o que acontece por aqui.
Mary lançou um olhar nervoso na direção de Gwen, decerto temendo uma punição pela simples ideia de seus próprios pensamentos serem expressos ou requisitados. Na verdade, a própria Gwen ficou chocada com a proposta. Uma criada sendo consultada acerca de problemas do castelo? Que conceito mais estranho! No entanto, não conseguiu encontrar nenhuma razão para exigir o contrário, e assentiu.
Conforme Mary passou a usar a estranha escova de Isabel, Gwen tratou de se concentrar nas próprias crenças. O fato de a condessa permitir que uma serva permanecesse no quarto enquanto elas confabulavam sobre intimidades não era assim tão incomum. De qualquer modo, criados fiéis eram mais como uma mobília confortável. Podiam ser apreciados, mas deveriam permanecer em silêncio. E surdos.
— Não é de admirar que Artur esteja tão encantado com você — falou num impulso.
Tanto Isabel quanto Mary congelaram no lugar.
— Eu compreendo de verdade, Isabel.
— Pois eu não entendo o que você acha que compreende — retrucou Isabel, embora o sangue tingindo seu rosto tudo revelasse.
— Entendeu muito bem. Foi você quem convenceu Artur a... — Gwen lançou um olhar na direção de Mary, não mais a vendo como uma silenciosa peça de mobília, mas como uma menina que absorvia conhecimento conforme se transformava em mulher. — ... a discutir comigo assuntos que há muito ele vem evitando.
Isabel apertou o roupão com mais força ao redor do corpo.
— A verdade é sempre o melhor caminho.
— Mas a verdade dói, não concorda?
— Sempre — anuiu Isabel. — Segredos, no entanto, costumam ferir ainda mais.
Gwen sentiu-se corar, mesmo assim não ousou desviar os olhos do rosto de Isabel, cujo olhar parecia ainda simpatizar com ela de alguma forma.
— Compreendi isso, esta manhã. Na manhã de ontem, eu teria tido uma resposta muito diferente.
Isabel estendeu o braço e colocou a mão sobre a dela.
— Eu sinto muito se virei Camelot de cabeça para baixo. Não foi minha intenção. Minha única sugestão foi a de que Artur fosse tão honesto com você como ele gostaria que você fosse com ele.
Mary limpou a garganta.
— Perdoem-me a interrupção, mas seus cabelos estão prontos, senhora. A menos que necessite de mais ajuda, eu gostaria de me retirar.
Isabel endireitou o corpo com uma risada.
— É uma boa moça, Mary. Acredito que muitas das suas colegas de trabalho iriam querer ficar e ouvir o máximo possível.
As sardas de Mary tingiram-se de vermelho.
— Eu não saberia dizer, senhora.
Isabel se levantou.
— Bem, eu queria que me ajudasse a entrar em um daqueles vestidos complicados, mas acho que consigo encontrar um com o qual eu possa lidar sozinha.
O rosto de Mary se iluminou.
— Eu sei de um, senhora! É um dos meus favoritos. — Ela quase correu até o guarda-roupa e, após revirá-lo, trouxe um vestido azul-petróleo que estendeu sobre a cama.
Embora Isabel desconfiasse de que a palavra “petróleo” nem tivesse sido inventada ainda, assim como “rosa-choque”.
Mary sorria ainda mais quando se virou, triunfante.
— Não sei de onde vem essa cor, mas, com esses seus cabelos e pele claros, imagino que ele vá ficar lindo na senhora. E ele também é fácil de amarrar.
Gwen disfarçou um sorriso.
— Está ansiosa por deixar os aposentos de Isabel, não é mesmo, Mary?
— Ah, sim, minha rainha. Muito.
Isabel franziu a testa.
— Eu a aborreci, Mary?
— Não, condessa, de maneira alguma! — apressou-se em dizer a menina, torcendo as mãos. — Tem sido muito boa comigo. Quisera todos os hóspedes fossem como a senhora.
— Mas não quer ficar e nos ajudar a discutir como tornar o trabalho das mulheres mais prazeroso?
Mary apertou os lábios.
— Creio que a conversa já migrou para segredos dos quais eu não gostaria de tomar conhecimento. Não tenho esse direito.
Gwen levantou-se e fitou Isabel.
— Verdade, Mary. É melhor esse tipo de conversa ficar para outra oportunidade. No momento, tudo o que quero ouvir são as opiniões da condessa acerca do lazer para as mulheres de Camelot. E a condessa, ao que parece, gostaria muito de que você opinasse sobre o assunto.
— Condessa? — indagou Mary num sussurro.
— Eu gostaria muito que ficasse, Mary. Na verdade, temo que não possamos fazer nada sem a sua opinião e ajuda.
Mary olhou de uma para a outra, preocupada, depois sorriu.
— Fico muito honrada. Mas uma conversa séria exige um traje sério, condessa. Por favor, permita que eu a ajude com o vestido.
A ideia de se vestir, ou, pior, de se despir diante de uma rainha, era um pouco desconfortável. Isabel olhou ao redor do quarto, mas não havia um único espaço privado à vista.
Seu colar se aqueceu.
“Nestes dias, é comum a nudez na presença das outras mulheres. Não precisas te esconder, como fez!”
“Posso, então, a roupa tirar e diante das outras à vontade ficar?”
“Sim!”
“Sinto muito, minha deusa, mas não é do meu agrado. Não pretendo ficar nua diante de uma rainha cujo corpo é quase sagrado!”
“Veste-te, então, Isabel, e para de choramingar. Tens coisas bem mais importantes com que te preocupar.”
Isabel respirou fundo e tirou o manto, jogando-o sobre a cama. Pôs o vestido por cima da cabeça o mais rápido que pôde, cobrindo depressa as nádegas, os seios e o resto. Mas não tanto quanto gostaria. Era a situação mais embaraçosa pela qual ela já passara na vida.
Bem, naquela vida. Tivera momentos mais críticos em sua existência mais antiga. Ou mais nova. Aquele incidente em 1985, por exemplo. E na primeira vez em que permitira que Jimmy Zwersky a despisse parcialmente, no sexto ano, para que pudessem comparar seus corpos.
Gwen riu.
— É uma mulher muito tímida, Isabel.
Isabel voltou-se, ainda lutando para passar o vestido pela cabeça, de modo que sua voz soou abafada.
— Prefiro me vestir sozinha.
— Prefere que eu saia?
— Não, estou bem agora — afirmou ela enquanto ajeitava o maldito vestido no corpo.
Maldição, não estava com a mínima vontade de conversar com a perfeita Gwen sobre questões do corpo! Era óbvio que a rainha não tinha nada com que se preocupar.
— Será que podemos continuar a discutir outros assuntos? — inquiriu, enquanto Mary começava a lidar com a infernal amarração de costume.
— Com toda a certeza, condessa — respondeu Gwen. — Você não me parece muito à vontade nesses vestidos.
Isabel apertou os lábios.
— Na minha terra, as mulheres podem usar roupas bem mais confortáveis.
— Verdade? Por quê?
— Porque costumamos jogar e, portanto, é permitido às mulheres vestir calças, tal como os homens. Não somos obrigadas a usar vestidos o tempo todo.
— Usa calças de homem?!
— Sim e não. São calças feitas especialmente para as mulheres. Para o conforto e para a prática desportiva feminina. Elas não são muito justas e proporcionam a liberdade ideal para participarmos de eventos nos quais seria impossível fazer o mesmo trajando vestidos.
Gwen sorriu e bateu palmas.
— Que interessante! Preciso aprender mais sobre esses esportes para mulheres. E também sobre essas... “calças”? Foi o que disse?
— Mostre-me quais as mulheres daqui que costuram, e eu terei muito prazer em orientá-las na confecção de algumas peças. Sei que muitas não vão se sentir à vontade nem mesmo para experimentá-las, mas poderão ir se acostumando com a ideia, uma vez que terão a chance de prová-las.
— Sim, sim! E vai nos orientar nos desportos?
— É o que costumamos fazer, Gwen. Permitimos que todas as mulheres tenham ao menos uma hora para praticar qualquer esporte pelo qual optarem, em qualquer dia da semana. E elas usam calças ou bermudas nessas ocasiões. Todas têm um tempinho fora do trabalho árduo no qual passam o restante do dia engajadas. Se forem tímidas, como eu, vestem coletes, aventais ou o que quiserem sobre suas camisetas e leggings .
Os olhos de Gwen se iluminaram como estrelas.
— E os homens não fazem nenhuma objeção?
— Em primeiro lugar, Vossa Alteza, os homens não apenas não se opõem, como também são orientados a permanecer distantes desses playgrounds femininos, uma vez que tendem a ficar nos espiando. Em segundo, quando as mulheres estão mais felizes ao final do dia, os homens também ficam felizes... se é que me entende.
Gwen riu.
— Claro que sim. E reconheço a genialidade do plano. Precisamos instituí-lo em Camelot. Com urgência!
— Fico feliz em vê-la vislumbrar os benefícios que tal prática proporcionaria para sua equipe de criadas. Podemos prosseguir com esta conversa mais tarde? Preciso participar de uma reunião no café da manhã.
— Com Artur? — quis saber Gwen.
Isabel assentiu.
— E muitos outros homens. Não é nada íntimo, Gwen. É apenas uma reunião para planejamento estratégico.
— Houve um tempo em que eu era bem recebida em tais reuniões — comentou a rainha.
— Então vamos juntas, ora. Ninguém a proibiu de participar delas, proibiu?
Gwen hesitou.
— Mas eu não fui convidada para essa reunião.
— Pois eu acredito que suas reflexões acerca das questões que todos enfrentamos são muito relevantes. Eu mesma a estou convidando.
A rainha sorriu.
— Compreendo cada vez mais por que motivo Artur a aprecia tanto, condessa.
Mary terminou de fazer a amarração do vestido de Isabel. Em seguida, virou-se para elas.
— Minha rainha, condessa... Posso pedir que guardem um segredo?
— Claro! — responderam ambas em uníssono.
— Eu gostaria muito que a notícia a respeito de James e eu não se espalhasse pelo castelo. Não ainda.
— Seu segredo está seguro conosco, não é mesmo, Gwen?
— Sim, mas... Por quê , Mary? — inquiriu Gwen.
A moça corou novamente.
— Deve haver muitas outras meninas interessadas nele, e eu prefiro não aborrecê-las até que possamos dar a notícia a todos.
A ideia de que o equivalente humano do Pé Grande podia ser um conquistador deixou Isabel perplexa. Ela aquiesceu, contudo.
— É por isso que o mantém tão desarrumado, Mary?
A menina riu.
— Quando o virem com os cabelos cortados e bem-vestido, irão entender.
Nem em um milhão de anos. Bem, talvez, debaixo de todos aqueles pelos e cabelos ele fosse um gigante bonito. Sem dizer que James era um sujeito até delicado para alguém que fora treinado para lutar e matar.
— Quanto tempo falta para que faça catorze anos, Mary? — quis saber ela.
— Duas semanas, senhora. Pretendemos nos casar logo em seguida.
— Não têm que enviar convites, ou algo assim?
— Convites?
Isabel suspirou. Decerto elas se encontravam em um tempo bem anterior ao dos proclamas. Decididamente, o curso da história estava se misturando em sua cabeça.
A ideia de uma menina de apenas catorze anos se casar lhe dava arrepios! Compreendia, entretanto. Mais ou menos. Olhou para Gwen.
— Isso é motivo de comemoração, certo? Quero dizer, James é o homem mais confiável de Artur?
Gwen hesitou, mas depois pareceu alegre.
— Sim, de fato deve ser um dia de celebração. O que podemos fazer?
— Que tal colocarmos os outros criados para participar? Parte de seu lazer poderia ser ajudar a fazer os enfeites! Vai ser divertido.
— Não... Não posso lhes pedir uma coisa dessas — contrapôs Mary, aflita.
— E quem disse que precisaria pedir, Mary? — falou Isabel. — É o que as pessoas fazem para os amigos.
Mary, que vinha ajeitando o vestido e os cabelos de Isabel, endireitou o corpo, atingindo todo o seu metro e meio de altura, o que ainda a deixava cerca de quarenta e cinco centímetros mais baixa que seu futuro marido. Seus olhos azuis se encheram de lágrimas.
— Amigos? — perguntou, com voz trêmula.
— Sim, amigos — reafirmou Isabel, antes de erguer as sobrancelhas para Gwen.
— Sim, Mary. Amigos — concordou a rainha.
Isabel e Gwen desceram os degraus juntas, contudo Isabel deteve a rainha na metade do caminho.
— Precisamos fazer um chá de cozinha para Mary.
— Chá de cozinha? O que seria isso?
— Você sabe, quando se comemora a proximidade do casamento da noiva...
— Eu nunca ouvi falar disso!
— Confie em mim, vai ser divertido. É uma espécie de “festa do pijama” para que as meninas compartilhem sua alegria pelo casamento de uma amiga.
— Festa do pijama?
Aquela barreira entre os idiomas estava dando nos nervos de Isabel.
— Fique tranquila, vai ser muito bom.
Gwen apertou o braço de Isabel.
— Então vamos fazer. Precisamos de algum planejamento?
— Claro. Porém, temos que mantê-lo em segredo. Nem os homens, nem Mary podem saber de nada. Será uma surpresa, mas vamos precisar da ajuda de alguns dos criados.
— Sei exatamente a quem pedir ajuda para esse tipo de aventura! Estou ansiosa.
Isabel engoliu em seco, depois acrescentou:
— Importa-se se eu ficar responsável pelo cardápio, Gwen? Isto é, não quero fazer pouco dos seus cozinheiros, mas, se eu vir mais alguma enguia em conserva à minha frente, vou pôr os bofes para fora!
— Pôr os bof...?
— Vou precisar correr para esvaziar o conteúdo do meu estômago.
— Ah, compreendo. — Gwen riu. — Enguias não lhe caem bem.
— Sinceramente, acredito que enguias não caiam bem para ninguém!
— Para dizer a verdade, eu também não sou apaixonada por elas, mas é o prato favorito de muitos dos homens. Artur não é um deles. Ele prefere as verduras e os queijos de leite de cabra.
Era claro que preferia. Mais uma razão para ela se apaixonar por ele. Se fosse encontrar um motivo para rejeitá-lo, precisava ser algo que a fizesse ficar com nojo dele.
Assim como se fosse para deixar de gostar de Gwen, precisava encontrar uma imperfeição nela. Além do fato de considerá-la uma tonta por preferir Lancelot a Artur, não conseguia pensar em mais nada. Verdade que apenas isso já deveria ser um bom motivo.
O problema era que estava gostando muito de Gwen. A rainha se mostrava aberta às suas novas ideias; estava até mesmo entusiasmada com elas. Guinevere era mesmo uma mulher bem à frente de seu tempo e, sem dúvida, ficaria feliz vivendo sua vida.
O fato de ela ser uma adúltera era um ponto negativo. Ao passo que o fato de o rei Artur ter aceitado tudo aquilo, mais uma vez, era positivo.
Nada a ver com os planos da Senhora do Lago, contudo.
“Planos mudam como as águas de um rio. Siga os teus, minha cara Isabel, pois em ti eu confio.”
Isabel não soube como expressar a alegria diante da fé de Viviane, por mais equivocada que a deusa estivesse. Ela mesma tinha dificuldades em acreditar nos próprios planos.
Mas se Vivi confiava nela...
“Viviane, sua tola!”
Se Viviane confiava nela... Talvez ela desse, mesmo, conta do recado.
— Podemos conversar sobre algumas coisas? — perguntou ela a Gwen.
— Podemos conversar sobre qualquer coisa.
— Em primeiro lugar, o que acha de Mordred?
— Ele é desprezível. Só trouxe sofrimento a Artur. Eu tento não odiá-lo, mas meus sentimentos por Mordred chegam muito perto disso.
— Então estamos quites nesse ponto. Como é possível que um homem tão gentil como Artur tenha tido um filho como ele?
— Artur não soube nada sobre Mordred até que ficou tarde demais para que o ódio do rapaz fosse aplacado.
— Por que Artur simplesmente não o bane do reino?
Gwen a deteve e a fitou nos olhos.
— O rapaz é filho dele. Não conhece Artur há muito tempo, mas já devia saber a resposta.
— Compreendo. Mas esse menino precisa... Não sei... Precisa levar um pé na bunda!
Gwen riu.
— De fato. Aliás, ouvi dizer que fez um excelente trabalho ontem à noite.
— As notícias correm depressa por aqui — murmurou Isabel.
— Tenho minhas fontes, Isabel. Posso dar a minha opinião quanto a isso?
— Claro.
— Percebe que meu marido está apaixonado por você?
Isabel sentiu-se gelar.
— Percebo que seu marido a ama muito.
Gwen sorriu e assentiu:
— Verdade. Artur tem um coração enorme. Mas foi muito claro ao falar da nossa situação... Ele já não se importa comigo como antes.
— E quanto a você?
— Eu o amo muito.
— Resposta errada.
— Eu ainda tenho muito carinho por ele.
— Mas está apaixonada por outro.
Gwen decidiu olhar para o teto.
— Eu sinto carinho por outro.
— Resposta errada.
— Eu compartilho sentimentos profundos com outro!
— Agora, sim. Resposta certa. Verdade, Gwen. Faz muito mais sentido.
— Então me diga a verdade, Isabel. Quer meu marido?
A verdade às vezes era uma merda!
— Não à custa de acabar com o seu casamento.
— Não foi essa a minha pergunta.
— Está bem. Se Artur não fosse casado... sim. Eu tentaria conquistá-lo. Mas ele é casado.
— Com uma mulher que deseja outro.
— O que, para ser sincera, eu acho inacreditável. Mas também não a culpo por se sentir atraída por Lancelot. “Uma estupidez, mas quem era ela para julgar?”
Gwen a pegou pelo braço e a guiou escadaria abaixo.
— Como diz, mesmo, condessa? Acho que estamos...
— ... Fritas?
Gwen riu.
— Falamos o mesmo idioma, e nem parece. Mas, sim, acho que estamos fritas — repetiu Gwen, de cenho franzido.
— Por falar nisso, devo dizer que aprecio qualquer vegetal em conserva, mas, por favor, chega de...
— ... Enguias! — disseram ambas ao mesmo tempo.
— Vou ver o que posso conseguir com os criados da cozinha — decidiu Gwen.
— Eu tenho uma sugestão.
— Então, dê!
— Trevor deveria ser promovido a chef . Quando não consegui digerir o jantar, ontem à noite, ele me serviu iguarias que me impediram de morrer de fome.
— Se é assim, está com sorte, pois Trevor é o responsável pela refeição da manhã.
— Por favor, nada de omelete de enguia!
Gwen riu.
— Aprenda a dizer “não”, ora. E, a propósito, Trevor também não suporta enguias.
— Graças aos Céus!
Elas alcançaram o pé da escadaria e rumaram para o refeitório, onde a reunião iria acontecer. — Muito bem, Gwen, aqui vamos nós.
— Sim, Isabel, aqui vamos nós. Deveríamos tomar um gole de vinho antes.
— Não é meio cedo para isso? Tudo bem, vamos nessa! — decidiu Isabel, e ambas se desviaram do refeitório para a cozinha.
Capítulo Doze
Isabel soube, de pronto, que ter convidado Gwen para a reunião havia sido uma má ideia. A expressão de Artur já dizia tudo.
Contudo, ficou bastante intrigada porque tivera a impressão de que ele sempre mantivera sua rainha envolvida na política do reino. Guinevere parecia tão sintonizada com as complexidades de Camelot! Ela, Isabel, ficara bastante admirada na noite anterior, quando Gwen se mostrara tão atualizada.
Sem dúvida, Gwen também reparara que o marido não esperava que ela se juntasse àquele encontro. Após ter saudado a todos na mesa com graça, incluindo Lancelot, ela se despediu. Todos os homens tinham se levantado e se curvado, mas, caramba!
Ela estava se sentindo um peixe fora d’água. Era a única mulher no meio de uma dúzia de homens corpulentos e aparentemente mal-humorados. Teria adorado a companhia de Gwen, além de não se sentir tão deslocada. Tão só.
Como era estranho que houvesse se ligado tão depressa à mulher que fora convidada a trair de uma maneira, e que acabara traindo de outra! Que diabo havia de errado com ela? De repente, estava se sentindo uma merda , e só queria sair correndo dali.
Apenas os olhos de Artur, fixos nela, a impediram de bater em retirada.
“Lembra-te de que não estás sozinha, Isabel. Também estou aqui a te ajudar. Basta que mantenhas junto a ti o teu colar... Percebo bem o teu medo, tua agonia eu compreendo. Pela tua aflição, eu te peço perdão. Se ao nosso pacto desejas pôr um fim, eu o farei. Podes confiar em mim.”
Isabel tocou o colar e sorriu para os homens.
— Por favor, senhores, tomem seus lugares. Parece-me que temos muito a discutir. Não sei quanto a vocês, mas estou morrendo de fome! Portanto, vamos tomar nosso café e nos empanturrar com comida e novas ideias.
O colar se aqueceu confortavelmente contra o seu peito.
— Ela não fala como nós — comentou um dos gigantes.
— Porque vem de uma região muito diferente — explicou Artur, aproximando-se para ajudá-la a se sentar. — Por isso mesmo precisamos da condessa. Suas opiniões são um verdadeiro bálsamo. — Conforme ele a ajudou a se acomodar, sussurrou: — Podemos ter uma conversa em particular após esta reunião?
— Por que não? — respondeu ela, uma vez que nenhum dos homens parecia estar ouvindo.
A risada rouca de Artur vibrou através dela. Ele endireitou o corpo e voltou para o próprio assento, acenando com as mãos.
— Sentem-se, sentem-se... — orientou ele aos presentes, em seguida bateu palmas. — Trevor! Estamos famintos.
— Ah, graças aos deuses! — Isabel murmurou. Trevor jamais iria lhe trazer enguia em conserva. Quando ela e Gwen tinham ido visitar a cozinha, os três haviam feito um acordo: nada de enguias!
— Acha que a reunião foi produtiva? — perguntou Isabel a Artur conforme eles passeavam pelo pátio. Mesmo naquele momento, os guerreiros estavam mergulhados no trabalho, treinando, uns com os outros, suas habilidades com a espada. O tinir do aço se chocando contra aço ecoava pelo ar. Pelo menos ela imaginava que fosse esse o metal. Mas que diabos sabia sobre aquele tipo de coisa?
— Conquistou cada um dos meus homens com seus pensamentos e ideias únicos, condessa. Gostei da sua sugestão de eventualmente realizarmos uma feira em nossas fronteiras, para que possamos desfrutar a harmonia entre os nossos povos.
— Festa é sempre festa. Ainda mais na época da colheita.
— E gostaria de chamá-la de Ação de Graças?
— Podemos chamá-la do que quiser, Artur.
— Gosto do nome “Ação de Graças”.
— Diga-me, Artur... Por que Mordred não estava sentado à mesa esta manhã?
— Porque, enquanto ele não jurar total fidelidade ao reino de Camelot e renegar sua fidelidade a Richard de Fremont, não poderá estar presente às nossas reuniões.
Ela estacou.
— Ele está em conluio com aquele idiota?
— Segundo as minhas fontes, sim.
Isabel sentiu a indignação espiralar dentro dela.
— Como Mordred se atreve a vir aqui, então, agindo como se estivesse apenas aguardando que você lhe passasse o trono?!
— Mordred tem falado e feito muita coisa contra mim e contra Camelot que não fazem o menor sentido.
— E, ainda assim, continua permissivo, abriga-o no castelo.
— Ele é meu filho, Isabel. O que quer que eu faça?
— Dar-lhe umas boas palmadas estaria provavelmente no topo da minha lista.
— Palmadas?
— Isso mesmo. Umas dez, pelo menos.
— Quer dizer chicotadas?
— Não! Nada a ver com chicotes. Palmadas. Quando se coloca a pessoa sobre os joelhos e se bate em seu traseiro com a mão.
Artur soltou uma risada.
— Creio que Mordred esteja velho demais para que eu o ponha no colo e faça tal coisa. Mas a ideia não deixa de ser divertida.
— As atitudes dele me tiram do sério, sabia?
— Podemos falar de coisas mais agradáveis? Não quero gastar o tempo que temos juntos com os problemas que me cercam.
Isabel fez menção de lembrá -lo de que não fora ele quem levantara aquela questão desagradável, porém se conteve.
— Sim, claro. O dia está lindo demais para ser desperdiçado.
Artur a conduziu até os estábulos.
— Gostaria de cavalgar, Isabel?
— Ah, eu adoraria! — Ela apontou com o polegar por cima do ombro. — Eles vão nos fazer companhia?
Artur olhou para os homens logo atrás deles.
— Estão dispensados, senhores. Irei ao seu encontro em breve.
Quando eles adentraram o estábulo, ficou evidente, no mesmo momento, que Harry não estava muito feliz.
— Se veio para dar um passeio, receio que Samara não possa ser montada, Izzy. Ela está ferida.
— Ferida como? — perguntou Isabel.
— Está coxa de uma perna.
— Como é possível?!
— Confesso que isso está me parecendo sabotagem. Não imagino como ela pode ter se machucado sozinha.
— Aquele bastardinho de uma figa! — concluiu Isabel, virando-se para Artur.
— Esse seu filho adorado não passa de um sujeitinho sujo e desagradável!
Artur a segurou pelos ombros.
— Calma, Isabel. Ainda não sabemos se isso foi obra de Mordred.
Ela sentiu os olhos se encherem de lágrimas, contudo não fez nada para enxugá-las.
— Quem mais poderia querer machucar Samara? Você sabe a resposta, Artur. Só não quer enxergar a verdade.
— Como ele poderia saber qual era o seu cavalo, Isabel?
Harry limpou a garganta e trocou os pés de posição.
— Harry... — incitou Isabel, encarando-o.
— Bem, quando Mordred veio pedir auxílio para seu próprio cavalo, ouvi uma conversa entre ele e um dos cavalariços. Mordred comentou a respeito da beleza e da aparente linhagem especial de Samara, e perguntou ao menino se o rei estava considerando colocá-la para reproduzir. Foi quando o rapaz lhe contou que Samara pertencia à condessa, e não ao rei. Mordred disse, então, que talvez fosse discutir a possibilidade de um cruzamento entre o cavalo dele e sua égua, Isabel.
Antes que ela pudesse retrucar, Artur interveio:
— Vou pedir aos meus homens que investiguem o caso, Isabel, prometo. E não importa aonde essa investigação vai nos levar: o responsável será punido, seja ele algum cavalariço ou meu filho.
Ela se desvencilhou dos braços dele e correu para a baia de Samara.
— Ah, minha pobre criança! — exclamou, abrindo a porteira para abraçar o pescoço da égua. — Eu sinto muito!
Samara relinchou suavemente contra seu pescoço.
— Quem lhe fez isso, você sabe? — indagou Isabel, dando um passo para trás a fim de acariciar o focinho úmido.
A égua pareceu assentir, balançando a cabeça.
Isabel olhou a perna dianteira do animal, agora envolta no que parecia um pano de algodão; sem dúvida, a única atadura disponível naqueles tempos.
— Dick virá fazer uma massagem na perna de Samara — informou Harry, aproximando-se por trás dela.
Isabel fez meia-volta, vendo Harry e Artur em pé, do lado de fora da baia.
— Ela sabe quem a feriu — contou, seca. — Podemos trazer Mordred aqui e ver como Sam reage.
— Isabel, não está pensando com clareza — contrapôs Harry. — Samara é geniosa com a maioria dos cavalariços. Levei pelo menos quinze minutos para acalmá-la até que eu pudesse fazer um exame. E você bem sabe que os animais me adoram.
Ela se voltou para Samara, afagando-lhe o pescoço.
— Vamos descobrir quem fez isso com você, eu prometo!
A égua balançou a cabeça mais uma vez, então apertou o focinho contra o peito de Isabel, o que esta interpretou como um “Ai de mim!”.
— Isabel, se ainda quiser cavalgar, pode escolher qualquer um dos meus cavalos — ofereceu Artur, constrangido.
Ela suspirou. Não tinha certeza de que poderia montar qualquer outro cavalo de lado, como na sela de Samara. Odiaria passar vergonha, caso a magia da deusa não se estendesse além de seu próprio cavalo.
Balançou a cabeça, conforme deixava a baia e a fechava.
— Temo ter perdido a vontade de cavalgar.
— Um passeio, talvez?
Por mais que ela ansiasse ficar com Artur, sentia-se deprimida com o que havia acontecido com Samara.
— Sinto muito, mas não sei se eu seria boa companhia agora, Artur.
— Imagino que, mesmo quando não está no seu melhor dia, ainda seja a melhor companhia que eu poderia arranjar por aqui.
Ela sorriu.
— Está bem. Talvez um pequeno passeio.
— Ótimo. — Ele virou-se para Harry. — Eu gostaria que o senhor comunicasse aos rapazes do estábulo que Samara deve ser protegida em todos os momentos. Se for necessário, armem uma barraca diante da baia para que ela não seja perturbada outra vez.
— Mil perdões, senhor, mas não me sinto à vontade dando ordens a seus empregados. Não tenho nenhuma autoridade aqui.
— Detém autoridade em nome do rei, Harry. Eu a confiro a você.
Harry inclinou-se ligeiramente.
— Como desejar, majestade.
Artur estendeu o braço e Isabel o tomou, amando a sensação do musculoso bíceps sob os dedos.
— Eu não consigo entender como podem abusar de animais inocentes!
— Nem eu, condessa, nem eu. Como já deve ter notado, adoro cachorros.
— É mesmo? Não me diga!... — zombou ela, recuperando parte do humor. — Como eu posso não ter notado se vivo ocupada tentando não tropeçar neles?
Artur riu e lhe apertou a mão.
— Agora está bem melhor. Diga-me uma coisa: que história é essa de Izzy?
Os dois acabaram nos jardins do leste, que eram tão bonitos quanto os outros, mas de uma forma muito diferente. Havia um enorme lago ali, repleto de lindos peixes cintilantes. E, até onde Isabel podia perceber, aquele jardim era composto principalmente de ervas aromáticas, o que fazia sentido, uma vez que a cozinha ficava ali perto. Pouco além, ela avistou fileiras e mais fileiras de árvores e plantas, com as quais, desconfiava ela, seriam produzidas frutas e legumes muito em breve. Além delas, via-se um pomar em plena floração, com a promessa de maçãs, damascos e talvez cerejas e pêssegos.
Isabel respirou fundo. Não tinha muita certeza dos tipos de árvores frutíferas que existiam naquele tempo, mas todas as fragrâncias eram inebriantes.
— Camelot é adorável, Artur. De verdade.
— Obrigado, condessa. Ainda que eu não possa levar o crédito por tudo isso. É tudo trabalho do meu povo e também de... — Ele parou e engoliu em seco.
— E também de Guinevere, claro — terminou Isabel por ele. — Não devia se mostrar relutante em falar de sua esposa, Artur. Gwen e eu passamos algum tempo juntas, e eu gostei muito dela. Gwen é uma mulher linda, e compreendo muito bem por que se apaixonou por ela.
Ele a conduziu até um banco de concreto, e eles se sentaram.
— Então compreende por que não consigo condená-la de todo?
— Claro. Como já conversamos antes, o coração só faz o que quer... E, às vezes, é um tanto quanto volúvel.
— Parece que o meu é ainda mais caprichoso...
— Como o de qualquer ser humano. Gostaria de ouvir a história sobre o primeiro rapaz por quem fiquei loucamente apaixonada?
Os olhos tristes de Artur se iluminaram, cheios de humor.
— Claro que sim. Eu gostaria muito.
— Bem — começou Isabel, ajeitando as saias em torno do corpo. — O nome dele era Billy Thornton, e nós estávamos no terceiro ano.
— Terceiro ano?
— Nós frequentávamos a escola juntos.
— Pode-se fazer tal coisa em Dumont? Ensinar meninos e meninas no mesmo espaço?
— Claro! Como eu estava dizendo, Billy e eu sentávamos lado a lado, no fundo da sala de aula, porque nós dois éramos bons alunos.
— Vocês se sentam de acordo com o próprio rendimento no aprendizado?
— Sim. As crianças com mais problemas sentam-se mais à frente, de modo que os professores possam vigiá-las melhor.
— Dois costumes tão diferentes para duas terras tão próximas!
— Verdade. Mas, então... Era óbvio que Billy tinha uma queda por mim. Ele vivia puxando meu rabo de cavalo e...
— Isso era sinal de afeição?
— Sem dúvida. Nessa época, a única maneira de um garoto expressar o que sentia por uma menina era provocando e desdenhando. Se ele a ignorasse, era certeza de que não estava interessado. Mas, se a provocasse, podia apostar que ele gostava de você. Ou pelo menos queria chamar a sua atenção.
— Ha! É verdade. Isso, pelo menos, nós temos em comum.
— Continuando, no Dia dos Namorados... — Isabel ergueu a mão para impedir mais uma pergunta. — Trata-se de um feriado que celebramos uma vez por ano, no qual enamorados expressam seus sentimentos um para com o outro. — Ela concluiu que explicar o que era “um momento Hallmark” seria difícil demais, portanto, disse apenas: — É também quando escrevem bilhetinhos com todo o tipo de mimo, desenhos de corações e coisas assim.
Artur aquiesceu.
— Isso também acontece em Camelot. No entanto, ainda não temos um dia específico para esse tipo de coisa.
— Imagino. Na verdade, é bem possível que em Dumont se exagere nessas tradições...
Ele estava sorrindo de verdade agora, o que deixou Isabel toda feliz. Ela amava aquele sorriso, principalmente no momento em que era ela a responsável por colocá-lo naquele rosto moreno quando Artur parecia estar com o coração tão pesado.
— Pois, então... No Dia dos Namorados, Billy colocou um bilhete na minha mesa que dizia: “Quer ser minha namorada?”. Fiquei feliz da vida, porque eu também estava apaixonada.
— Tenho certeza de que era linda também quando menina. Eu gostaria de tê-la conhecido nessa época. Decerto eu teria disputado sua atenção com esse tal de Billy.
— Não sei se ele faria isso por mim.
— Por que diz tal coisa?
— Porque, na hora do recreio — quando fazíamos uma pausa para um lanche —, as meninas decidiram comparar os bilhetes que haviam recebido naquele dia. Imagine nossa surpresa quando vimos que Billy tinha dado o mesmo bilhete de Dia dos Namorados para seis de nós!
Artur riu.
— E ainda diz que ele era um dos meninos mais inteligentes da sala?
— Bem, talvez ele fosse meio imbecil em se tratando de romance. Pelo visto, estava apostando tudo na empreitada.
— E qual foi a sua reação?
— Fiquei com o coração partido. Ele foi a minha primeira paixão.
— E vocês, meninas, não se vingaram?
— Ah, claro que sim! Nós seis o cercamos na hora do almoço.
— E?
Mais uma vez, Isabel concluiu que não saberia explicar o que é “cuecão”, então improvisou:
— Nós nos revezamos derramando leite na cabeça do Billy e também dentro de suas calças.
Artur deu um tapa no joelho, rindo.
— Não se pode mesmo ignorar a ira de uma mulher desprezada!
A risada dele foi tão gostosa e contagiante que Isabel não pôde evitar rir junto.
— De fato. Podemos ser muito criativas em termos de vingança.
— Lembre-me de nunca provocar a sua ira, condessa.
Ela se inclinou e o cutucou no ombro.
— Se fizer isso, senhor, certamente a conhecerá.
— Ainda não respondeu à minha pergunta. Por que seus homens a chamam de Izzy?
Isabel balançou a cabeça.
— Em primeiro lugar, eles não são meus homens , são meus amigos. Somos iguais em todos os sentidos. Eles concordaram em me acompanhar nesta viagem porque queriam garantir a minha segurança.
— Está bem, eu sei que eles são seus amigos. Mas por que a chamam de Izzy?
— É um apelido que me deram desde que eu era menina. Poucos têm permissão para me chamar assim.
— Já percebi. É um privilégio a ser conquistado.
— Mais ou menos.
— Estou ansioso pelo dia em que terei esse privilégio, Isabel.
— Com a incerteza que se avizinha, Artur, quem sabe se esse dia vai chegar?
Ele segurou a mão dela.
— Espero estar vivo para ver esse dia.
Nossa, aquilo tinha soado sombrio demais! Ela não queria pensar naquele tipo de coisa, muito menos naquele momento.
Apertou a mão dele de volta.
— Que tal se você me contasse sobre o seu primeiro amor, agora?
Artur abriu a boca para falar, porém um ruído acima deles o interrompeu, e ambos ergueram os olhares. Gwen descia os degraus de pedra do castelo com uma cesta pendurada no braço. Ela estacou.
Isabel tirou a mão da de Artur, e todos permaneceram em silêncio por um momento antes que a outra reencontrasse a voz.
— Desculpem-me por interromper. Eu pretendia colher algumas ervas, mas posso voltar em outro momento.
Isabel se pôs de pé.
— Não, Gwen, por favor, não queremos incomodá-la. Eu só estava divertindo Artur com uma história da minha juventude. Eu preciso mesmo... fazer outra coisa.
Céus, ela poderia parecer mais patética?
— Vou acompanhá-la até... a sua outra coisa, condessa — decidiu Artur.
— Não, obrigada. Agora que me lembrei do que preciso fazer, sei que posso encontrar o caminho sozinha. Com sua licença. — Ela levantou a saia em um esforço consciente para bater em retirada o mais rápido que aqueles malditos chinelos lhe permitissem.
Artur e Gwen se entreolharam antes que esta se manifestasse em primeiro lugar, descendo os degraus.
— Peço desculpas pela interrupção, Artur.
— Não era nada de grande importância, Gwen. Apenas uma conversa agradável.
— Algo que parece não estar acontecendo entre nós dois nos últimos tempos.
— Sim. Parece que já não temos muito a compartilhar nestes últimos dias.
Ela avançou mais um passo com uma expressão sofrida.
— Estou tentando parar de...
Ele ergueu a mão.
— Por favor, não faça mais promessas que não consegue manter. Elas só empobrecem o que já foi bom e precioso um dia.
— O que quer de mim?
Artur a fitou. Gwen era ao mesmo tempo bela e frágil: o tipo de mulher que parecia implorar para que os braços fortes de um homem a protegessem. Aquilo já o seduzira uma vez, a ponto de ele desejar ser seu abrigo, seu protetor, seu marido e amante.
Seus pontos de vista, porém, haviam mudado muito depois que ele conhecera a condessa. Isabel daria o sangue por qualquer um que prejudicasse aqueles que ela amava. Não iria pedir ajuda. Simplesmente enfrentaria seus inimigos, insistindo que era capaz de lutar suas próprias batalhas.
Noite e dia, dia e noite. Não que fosse uma falha de Gwen, afinal, assim ela fora criada. O problema era que ele admirava muito mais a força de Isabel.
— O que eu quero, Gwen, é a sua felicidade. Estou sendo sincero quando afirmo tal coisa. Sua felicidade é muito importante para mim, mas não mais à custa da minha.
— Quer dizer que não existe nenhuma chance?
— Receio que não. Nem deveria existir. Tentar recuperar o passado quando tanta coisa aconteceu é como tentar impedir um floco de neve de derreter na boca. Eu não sou — e me recuso a ser — outro Billy Thornton.
— Billy Thornton? Não me lembro desse nome. Eu o conheço? Já o recebemos aqui?
— Não, mas ele me deu muito o que pensar.
Gwen franziu a testa, confusa, depois ignorou o comentário.
— Então, o que vamos fazer daqui em diante, Artur? Não suporto a ideia de desonrá-lo.
— Como eu disse, Gwen, sejamos discretos. Sempre discretos. Iremos manter as aparências tanto quanto nos for possível, pois é essencial para o bem do nosso reino. Depois vou estudar essa dissolução de casamentos que praticam em Dumont. Talvez possamos adotar a tal lei para diferenças irreconciliáveis em Camelot. Estou certo de que ela iria diminuir em muito as lesões causadas por panelas que vários dos meus homens sofrem a cada ano.
— Diferenças irrecon... o quê?
Ele fez um gesto vago com a mão.
— Uma lei que eles têm no reino de Isabel, por meio da qual nem o homem nem a mulher são responsáveis por... danos irreparáveis ao casamento. É uma maneira de impedir que tanto o marido quanto a esposa saiam prejudicados. Ambos concordam que não são mais compatíveis.
Gwen sorria ao se juntar a ele no banco.
— Por favor, sente-se aqui comigo um pouco. Também conversei a respeito de várias coisas com a condessa Isabel, as quais, acredito, são muito relevantes.
Artur assentiu em silêncio enquanto a tomava pelo cotovelo e a ajudava a se acomodar.
— Aí está um ponto no qual, sem dúvida, encontraremos coisas em comum.
“Preciso de ti, Viviane! E da tua orientação também... Gosto de Gwen e de Artur, e não posso culpar a ninguém!”
“Isabel, do que tens medo? De esses dois teres conhecido e deles teres gostado muito cedo?”
“Temo prejudicar uma união que ainda pode ser reparada. Meus sentimentos estão confusos. Sinto-me tão angustiada!”
“Muitos danos já tinham sido feitos bem antes da tua vinda. Agora, com clareza eu vejo... De Artur podes ser a salvação ainda!”
Isabel não estava tão certa disso, contudo sentiu-se reconfortada com a lembrança de que o casamento de Artur e Gwen já apresentava problemas antes de sua chegada Mesmo assim, não fazia ideia de como ela poderia ser a salvação de Artur.
“Viviane, só mais uma dúvida... E olhe que não vou nem rimar! Como anda o seu amado Merlin? E você mesma, como está?”
Por todos os deuses, ela não conseguia mais parar de fazer versinhos!
Ouviu o som suave e cadenciado do riso de Viviane.
“Ah, Isabel, verdade seja dita. Merlin sorri quando te vê junto de Artur. Vê-los unidos o faz ter esperança. E melhor fico eu, se Merlin acredita!”
Isabel não se sentia muito segura de que ela e Artur estivessem “juntos”. Era apenas uma atração o que eles sentiam um pelo outro.
“Foi o único sinal positivo que tive de Merlin nos últimos dias. Por favor, Isabel, ele precisa da sua ajuda!”
Nossa, nenhuma rima daquela vez. Nem parecia Viviane.
“Você não faz ideia.”
Houve uma batida na porta, e Mary entrou, agitada, carregando uma bandeja cheia de queijos e pães, além de uma caneca que provavelmente tinha hidromel.
— Olá, condessa! — A moça saudou, alegre. — Lindo dia, não?
Isabel sorriu.
— Verdade. E você também parece radiante. Qual o motivo dessa alegria toda?
Mary pousou a bandeja, depois bateu palmas e quase pulou.
— James concordou, senhora!
— Concordou? — repetiu Isabel, pegando um pedaço do queijo de cabra. — Eu pensei que já estivesse tudo acertado; que iriam se casar tão logo você atingisse a madura idade de catorze anos.
— Não, não. James concordou que eu cortasse o cabelo dele.
Isabel deixou cair o queijo e se levantou de um salto, agarrando Mary pelas mãos.
— Que maravilha , Mary! Incrível! Ah, ele vai estar lindo na cerimônia!
— E não é só isso. Parece que o rei sugeriu que todos os homens seguissem o exemplo de James, para que todos ficassem... Qual é mesmo a palavra? Receptáculos!
Isabel quase riu. Que diabos? Com aqueles cabelos, a maioria deles já se parecia com um “receptáculo”.
— Eu acho que quis dizer “respeitáveis”.
— Exatamente!
— Ah, Mary, que notícia boa! — Ela ergueu a caneca para um brinde, ainda que a outra moça não tivesse nada com que brindar. — A um lindo casamento! — Tomou um gole, porém pequeno. Não estava habituada com a bebida forte, e duvidava de que fosse se acostumar com ela tão cedo.
Sentiu-se aquecida por dentro. Ou por causa do hidromel ou do sentimento de orgulho que a invadiu por Artur tê-la ouvido e pedido que os homens se apresentassem melhor. Na certa por conta deste último.
Estendeu a caneca para Mary.
— Pode beber esta coi... este hidromel, Mary? Se puder, beba comigo.
Mary enrugou o nariz sardento.
— Posso sim, senhora, mas não aprecio muito essa bebida.
— Então não quer comer um pouco destes pães e queijos?
A menina balançou a cabeça.
— Obrigada outra vez, mas não. Não quero engordar antes do dia do meu casamento.
Isabel riu. Era o mesmo pesadelo para qualquer noiva! Ali estava algo que não havia mudado ao longo do tempo.
Vasculhou o cérebro, buscando uma forma de comemorar com Mary e, de repente, ela veio:
— Mary! Já tem o vestido que irá usar no seu grande dia?
— Não, senhora, mas espero contar com a ajuda das nossas costureiras nos próximos dois dias. A rainha exigiu que os homens me pagassem uma pequena quantia para que eu lhes cortasse o cabelo. Espero poder me dar o luxo de comprar um vestido muito especial para a ocasião com o que consegui amealhar.
Isabel caminhou até o guarda-roupa.
— Pode escolher — disse, apontando para os próprios vestidos. — Qualquer um deles. O que quiser é seu.
— Ah, eu não poderia!
— Poderia sim! Eu insisto. É o meu presente de casamento. E não pode recusar um presente de casamento, pode? Seria muito rude da sua parte.
Mary olhou para os vestidos, ansiosa, depois se voltou para ela novamente.
— Mas, senhora... É muito mais alta do que eu. E muito mais bem-dotada aqui — explicou ela, tocando os próprios seios.
— Que costureira não pode fazer um ajuste aqui, uma pence acolá, e transformar um destes em um vestido de noiva? Dessa forma, poderá economizar o que recebeu com os cortes de cabelo e ajudar a comprar uma casa para você e James aqui no reino. Que tal?
Os olhos de Mary se encheram de lágrimas, e ela piscou com força para afastá-las.
— Não sei, senhora, eu...
— Mas eu sei. Trate de escolher, e amanhã mesmo nós iremos procurar o ateliê de costura — ou seja lá como vocês o chamam — para fazer as alterações.
— E se eu escolher um de que gosta muito?
— Vou adorar vê-lo em você no melhor dia da sua vida.
Mary ficou muda por um instante, então se jogou nos braços de Isabel.
— Ah, senhora, essa é a coisa mais bonita que alguém já fez por mim!
Isabel a abraçou de volta, as lágrimas ameaçando transbordar de seus próprios olhos.
— Estou tão feliz apenas por fazer isso, Mary! Agora vamos escolher um vestido.
Quando ergueu a cabeça, ficou imóvel. Artur estava encostado no batente, de braços cruzados, olhando para ela. Ela se perguntou se estaria em apuros, se havia ultrapassado algum limite, até que os lábios benfeitos se curvaram num lento sorriso. Artur assentiu com um gesto de cabeça.
Ela abriu um sorriso trêmulo; em seguida, levou o dedo à boca, pedindo silêncio, de modo que Mary não se assustasse. Ele concordou e recuou, mas não sem antes mover a boca, dizendo: “Volto depois”.
Se para lhe dar uma bronca ou beijá-la, Isabel não fazia ideia.
Mas não importava. Tê-lo de volta em breve já era mais do que o suficiente para ela.
Capítulo Treze
Fiel à própria palavra, Artur voltou menos de uma hora depois.
— Posso entrar, condessa?
Ela terminou de escovar — ou melhor, de cutucar — os dentes, enfiou um punhado de hortelã na boca e se virou.
— Sim, claro que pode.
— Decidiram a respeito do vestido do grande dia?
— Após uma pequena discussão sobre a cor, sim.
— Discussão? — indagou ele enquanto entrava com um frasco de vinho e dois cálices nas mãos.
— Mary adorou o vermelho, mas eu a convenci a optar pelo verde. O vermelho entrava em conflito com o cabelo dela, ao passo que o verde realçava muito mais seu tom de pele.
Ele pousou as taças e serviu a bebida.
— Creio que tenha muito mais gosto para esse tipo de coisa do que a maioria — falou, entregando-lhe um dos cálices.
— Havia quanto tempo estava parado na porta? — quis saber Isabel, aceitando o vinho.
— O suficiente para reconhecer por que me sinto tão atraído por você, Izzy.
Ela abaixou a cabeça para esconder o sorriso.
— Sabe que eu só deixo quem é muito próximo a mim me chamar de Izzy.
— Sei.
— Então está supondo que eu o aceitei em meu círculo mais próximo de amigos?
— Tenho esperança de que sim, por isso mesmo estou me arriscando. Nunca precisei ser convidado para nada nesta vida, tenho essa tendência a me impor. Defeito terrível esse meu.
— Verdade. Você é, mesmo, muito atrevido.
— Algo me diz, bela senhora, que sabe lidar muito bem com um atrevido.
O olhar de Artur dizia claramente que suas intenções não eram das mais probas.
O que era sexy demais.
Isabel recuou, entretanto.
— Mary pode voltar a qualquer momento.
— Pode — confirmou ele enquanto recuava e empurrava a porta com o pé, para em seguida trancá-la por dentro. — Mas seria terrível para Mary se ela entrasse.
— Por acaso você colocou uma placa “Não perturbe” lá fora?
— Ninguém vai nos perturbar correndo o risco de ser decapitado.
Isabel engoliu em seco.
— Está brincando, não está?
— Diga-me você, Isabel. Estou brincando?
— Nunca faria um mal desses a ninguém. Então, só pode estar brincando.
Ele ergueu a taça.
— À mulher mais extraordinária que eu já conheci. E de coração mais generoso e apaixonado. Fico feliz por tê-la conhecido, Isabel.
Eles tilintaram os cálices e beberam.
— Ao homem mais afetuoso e amoroso que já conheci. Esta jornada foi longa e estranha, mas, se eu não a tivesse feito, não o teria conhecido, Artur. E teria sido uma perda e tanto. Encontrar você foi como descobrir um tesouro.
Beberam outra vez, os olhos verdes fixos nos azuis.
Depois ambos se sentaram em suas respectivas cadeiras, o que provavelmente foi uma ideia bem melhor do que jogarem as taças de lado e pularem na cama. Ainda que ela não estivesse muito certa, no momento, por que motivo aquela era uma ideia melhor.
— Você me encanta, sabia? — murmurou Artur. — Tudo em você me fascina. Não vou negar, nem me desculpar por isso. Esse sentimento está além do meu controle. Aconteceu de eu estar perto da porta no momento em que quis fazer algo especial por Mary. E foi muito especial... Assim como você.
Ela tomou outro gole do vinho.
— Mary havia acabado de me contar: você ordenou aos homens que se arrumem para o casamento dela e de James. Foi maravilhoso da sua parte.
— Em primeiro lugar, eu não ordenei nada a ninguém, Isabel. Apenas sugeri. Só dou ordens nas batalhas; em Camelot, eu sugiro.
Ela assentiu:
— Eu também soube que Gwen sugeriu aos homens que pagassem pelos serviços de Mary.
— Nós sempre incentivamos nossos súditos a pagar por serviços prestados. — Ele fez um gesto vago com a mão. — Se uma pessoa presta um serviço especial, por que não deve receber por ele? Parece justo. Deveria haver um nome para essa prática, mas não sei qual seria.
— No meu reino isso se chama “capitalismo”.
— Nunca ouvi falar, mas qualquer nomenclatura serve.
— Também acho. E agradeço a você e a Gwen por promoverem o capitalismo. Ele faz com que seus homens e suas mulheres trabalhem com mais afinco e sejam recompensados.
— Eu gostaria de ouvir suas sugestões de como inserir melhor esse capitalismo no funcionamento do castelo.
— Agora?
— Não, não agora. Neste momento, eu gostaria muito de ouvir outras histórias a seu respeito.
Isabel balançou a cabeça.
— Eu já tagarelei muito sobre mim. Chegou a sua vez de retribuir. Conte-me algo sobre você. — Ela sorriu. — Algo que não tenha contado a nenhuma outra pessoa.
Artur riu e, em seguida, tomou outro gole de vinho.
— Devo confessar que não compreendo o que quer dizer, às vezes. Você usa palavras que nunca escutei antes. No entanto, gosto de interpretá-las por meio das outras que as acompanham.
Isabel sentiu uma espécie de vibração correr pelo corpo, e soube que ela nada tinha a ver com o vinho.
— E eu tento falar como você, mas nem sempre consigo.
— Por favor, não tente. Estou verdadeiramente apaixonado por quem você é, pelo modo como fala, pelas suas ideias, sua beleza...
— Pare, Artur, por favor! Agradeço pelos elogios, mas eles me deixam sem graça.
— ... E também pela sua generosidade — completou Artur, sorrindo. — Eu poderia continuar, mas vou parar agora. — Ele tornou a encher os cálices, embora ela mal tivesse tocado no dela.
Isabel não protestou, contudo. Sentia-se feliz demais em apenas estar na companhia dele.
“Artur e Isabel, Merlin está contente! Saibam que ele sorri o tempo todo, ainda que dormindo profundamente.”
Artur franziu a testa.
— Ouviu isso?
Isabel não sabia se dizia “sim” ou “não”.
— O quê? — indagou, optando por ser evasiva.
— Sobre Merlin?
— Merlin?
Artur balançou a cabeça.
— Minha mente anda me pregando peças.
Ela tentou responder da melhor maneira. Não queria que Artur pensasse que estava perdendo o juízo.
— Creio que, quando os pensamentos surgem para nós, isso acontece por alguma razão. Para que nós reflitamos de verdade. Pelo menos, é assim que interpreto essas vozes na minha cabeça.
“Viviane, pare com isso!”
“Perdão!”
Artur acomodou-se melhor na cadeira.
— Diga-me, Izzy, o que gostaria de saber sobre mim? Sobre o meu primeiro amor?
O que ela adoraria saber era como ele era totalmente nu. E também se ele era tão bom amante quanto seus olhos e sorriso prometiam. Mas, apesar de ser um tanto quanto atrevida, não se sentia preparada para soltar aquelas perguntas. Não ainda.
— Eu adoraria saber sobre seu primeiro amor, mas não é o que eu gostaria de ouvir antes de tudo. O problema é que tenho medo de ir longe demais.
— Arrisque-se — incitou ele.
Ela hesitou.
— Eu gostaria de saber qual é a sua maior paixão. O que mais importa para você, Artur?
Ele levou alguns minutos para responder, esfregando a barba.
Nesse meio-tempo, Isabel tomou vários goles de vinho, torcendo para que Artur revelasse qualquer coisa, mas não algo em que ela não estivesse interessada. Como reconquistar Gwen, por exemplo. Também não queria que ele saísse correndo do quarto.
— Muitas coisas são importantes para mim — respondeu ele, por fim. — Posso escolher mais de uma?
— Claro — anuiu ela, engolindo o medo. Do quê , não tinha certeza. Mas algo a estava deixando apavorada. Uma pergunta menos comprometedora teria sido mais adequada.
— Quero garantir a segurança e a felicidade de todos em Camelot, mas receio que isso não seja possível.
— Por quê?
— Há muitos inimigos querendo nos derrubar. Por esse motivo estamos promovendo essas reuniões entre cavaleiros de outros reinos. Para que possamos nos unir contra essas forças malignas.
— Dumont não é uma delas, Artur. Eu juro.
O sorriso dele foi sombrio.
— Eu sei que não, Isabel. E agradeço muito pelo apoio que nos têm ofertado.
— Tenho homens a caminho, prontos para defendê-los.
Aquilo era uma mentira sem tamanho. Ela nem sabia se tinha um exército. Mas contava com a deusa para ajudá-la na questão.
— Seus homens já chegaram, Isabel. Na verdade, estão se acomodando neste exato momento.
— É mesmo?
— Não sabia?
“Segue com o plano, Isabel. Achas, mesmo, que eu não traria reforço?”
“Um aviso teria sido bem útil, Viviane!”
“Irás reconhecer os homens num piscar. São antigos conhecidos teus da universidade. De Oklahoma, eles vieram para ficar. São o time de futebol da cidade!”
“Caramba, não tirou o time de futebol inteiro da...?”
“Relaxa, Isabel, são apenas imagens, assim como Tom, Dick e Harry.”
Isabel não sabia se ria ou chorava. Só faltava parte deles ter sido trazida na carroça Sooner Schooner! *
“Claro que foram, por que não? Agora, por favor, concentre-se em Artur.”
Isabel engoliu em seco.
— Eles... eles acabaram chegando antes do que eu havia previsto. Peço desculpas se isso lhe trouxe algum incômodo.
Artur riu.
— Incômodo nenhum. Na verdade, foi um prazer, de acordo com James. Parece, inclusive, que trouxeram algo que chamam de mascotes.
— Santo Deus! Aposto que eles vão ensinar seus homens a dirigir colados na carroça da frente!
Isabel viu a confusão nos olhos de Artur e rapidamente sacudiu a cabeça.
— Vou ter que recebê-los e agradecê-los por terem vindo tão rápido. Mas não antes de ouvir o que mais você tem a dizer.
— A dizer?
— Não tem? Entendi que tinha mais de uma prioridade.
— Ah, sim. Minhas prioridades.
Uma vez mais, a forma como Artur sorriu a fez derreter e pegar fogo ao mesmo tempo. Algo que ela nunca sentira antes.
Tente descobrir por quê, dr. Phil!
— Minhas prioridades — repetiu ele, distraído. — Preciso me concentrar na conversa. Bem, também quero poder conviver em paz com Gwen.
Isabel sentiu o coração afundar dentro do peito.
— Compreendo, Artur. E acredito que deva, mesmo, fazer tal coisa. Salvar seu casamento precisa, mesmo, ser uma prioridade — afirmou, e sentiu o colar bater contra o peito.
— Você não entendeu, Isabel. Eu quero que Gwen seja feliz, mas não comigo. Ela é apaixonada por Lancelot. Não posso evitar tal coisa nem quero prejudicá-los. Na verdade, estou preocupado em não conseguir protegê-los como eu deveria, pois gosto demais dos dois.
— Mesmo que eles tenham...
Artur inclinou o corpo e pôs a mão nos lábios dela.
— Eles foram atrás de seus desejos. Eu deveria exigir outra coisa? Talvez. Mas está feito, e pronto. Tudo o que posso fazer agora é garantir a segurança de ambos. E, para dizer a verdade, creio que tudo acabará bem.
Isabel passou a mão pelos cabelos.
— Sinceramente, não compreendo.
— Se eles forem apanhados, terão que pagar caro. Assim, tentarei evitar isso ao máximo.
— É um bom homem, Artur. Tem um coração enorme, sabia? Na minha terra, temos um ditado: “O que acontece em Dumont fica em Dumont”. A menos que alguém seja imbecil o suficiente para falar sobre o caso com cada pessoa que vir pela frente, fora do reino.
— Gosto muito do modo de pensar das pessoas de Dumont.
— Eu também — afirmou ela, ainda que essa fosse a maior das mentiras, considerando que não conhecia um único cidadão daquela terra. Tomou um último gole de vinho e se levantou. — É melhor eu ir receber os meus homens.
Artur a segurou pela mão.
— Ainda não lhe contei qual é a minha terceira prioridade.
— Talvez mais tarde, Artur.
— Por favor. Eu serei breve.
Ela assentiu em silêncio e sentou-se quando, na verdade, estava pronta para se deitar. Decididamente, beber logo pela manhã não tinha sido muito bom para seu equilíbrio!
— E então? Qual é a sua terceira prioridade?
Artur continuou a segurar a mão dela, correndo o polegar pela palma macia. Por um momento, pareceu hesitar, depois a fitou direto nos olhos.
— Deitar-me sem nenhuma roupa com você. Fazer amor com você. Beijá-la com paixão até deixá-la tonta... Essa é mais uma prioridade minha e, das que eu mencionei antes, não necessariamente na ordem certa. Eu só a coloquei nessa ordem porque levei algum tempo para reunir coragem suficiente para expressá-la.
Graças aos Céus estava sentada, pensou Isabel, pois com certeza seus joelhos teriam cedido. Pela primeira vez na vida, ficou sem palavras.
Ficaram olhando um para o outro por tanto tempo que o Sol poderia ter se posto, e ela nem teria notado.
Por fim, Artur desviou o olhar e se levantou.
— Eu não devia ter dito uma coisa dessas. Não foi nada adequado. — Curvou-se, solene. — Minhas mais profundas desculpas.
Isabel o agarrou pelo braço e se pôs de pé, puxando-o para mais perto conforme o fazia, de modo que ficaram face a face, corpo a corpo.
— Aposto um dos nossos cavalos que não consegue tirar de mim essa geringonça que chamam de vestido mais rápido do que a Mary.
Artur sorriu e, em seguida, a segurou pelo rosto.
— Está me subestimando, condessa.
Capítulo Catorze
Ah, como Isabel o tinha subestimado! Em todos os sentidos.
Artur lhe tirou o vestido em tempo recorde, beijando-a em todos os lugares até deixá-la entorpecida.
— Você é bom nisso — sussurrou ela conforme o traje caía no chão.
— Espero que continue pensando da mesma forma por muito tempo, senhora...
Tão logo o vestido se amontoou em torno de seus tornozelos, Isabel percebeu-se nua. De repente, sentiu vergonha e cobriu os seios com os braços.
— Não, Isabel, por favor. Você é tão linda!
Ela não fazia ideia de como funcionavam as túnicas, calças e outras coisas dos homens daquele tempo. Tanto que o máximo que foi capaz de fazer foi livrar Artur da veste que ele usava por cima do restante antes de ficar perdida.
— Receio não saber mais o que fazer.
Artur, que continuava fissurado em seu corpo, ficou imóvel e estreitou o olhar.
— Está me dizendo que nunca foi tocada?
Isabel não soube como responder. Simplesmente não encontrou palavras.
“Viviane?”
Nada. De repente, ocorreu-lhe que a deusa havia lhe prometido privacidade em momentos como aquele. Que maravilha. Era só o que faltava.
— Isso importa? — indagou, tímida. — Não faço ideia de como lidar com essas roupas de homem.
— Importa muito para mim — afirmou Artur, parecendo e soando irritado.
Ele puxou o vestido dela por cima de seu corpo. A respiração ofegante dele já não soava cheia de luxúria e desejo, e sim como uma tentativa desesperada de retomar o próprio controle.
— O que aconteceu, Artur? — perguntou ela, segurando o vestido desamarrado ao redor do corpo. — O que foi que eu fiz?
Ele apanhou a túnica, a única peça da qual Isabel conseguira fazê-lo se despir.
— Não vou lhe tirar algo que é uma atribuição a seu futuro companheiro. — Ele se dirigiu para a porta, ajeitando o colete no corpo a cada passada.
— Espere um minuto, rapaz! Trate de voltar aqui e falar comigo!
Artur fez meia-volta quando já estava prestes a abrir a trava da porta.
— O que mais posso dizer? Não estou aborrecido com você, condessa, estou aborrecido comigo mesmo. Minhas profundas desculpas pelo que estive prestes a fazer.
— Se não notou, eu estava mais do que disposta a fazer a mesma coisa.
— O que me pareceu maravilhoso. Isso, para mim, foi o mais inebriante.
— Então por que está fugindo de mim? Por que agora sou “condessa” em vez de Isabel, ou mesmo de Izzy? Pode estar punindo a si mesmo, mas, acredite, está punindo mais a mim. Por quê?
Artur pareceu ceder apenas em parte, o que feriu o coração de Isabel. Afastando-se da porta, ele se aproximou dela.
— Deixe-me ajudá-la com a amarração do vestido.
— Ótimo. Mas, enquanto trabalha, por que não me ajuda a entender o que acabou de acontecer aqui?
— Não será muito bom de ouvir — assegurou ele, à medida que começava a atar os laços do traje com surpreendente habilidade.
— Como se todos não fô ssemos obrigados a esse tipo de coisa às vezes... Fale de uma vez, Artur, por favor!
— Houve um tempo em que eu era a arrogância em pessoa. Muito cheio de mim graças ao meu poder e fama. Era apenas um rapaz, mas queria desesperadamente ser um homem.
— Compreendo. Mas o que isso tem a ver conosco? Com isto? — exigiu Isabel. — Creio que a verdade seja o melhor caminho neste momento.
Ele suspirou.
— Sim, você merece a verdade.
E um bom orgasmo também. Por enquanto, contudo, ela iria se contentar com a verdade.
— Também acho — concordou, tentando desesperadamente não começar a chorar.
Artur assentiu.
— É a verdade o que vai ter. — Tirou as mãos do vestido, relutante, parecendo precisar de algo mais para fazer.
— Conte-me tudo, Artur.
— Por onde posso começar?
— Que tal do momento em que conseguiu soltar Excalibur em diante?
Ele anuiu mais uma vez.
— Logo depois de eu ter conseguido liberar a espada da pedra, conheci uma moça que gostava de mim. Ela se chamava Elizabeth e era muito linda e doce. Estava me sentindo ousado e poderoso... Sentia como se o mundo fosse meu.
— Imagino. Tinha feito algo que ninguém mais havia conseguido.
Artur terminou de atar os laços, por fim. Em seguida, virou-se e sentou-se em uma cadeira.
Isabel se acomodou na outra.
— Continue.
— Essa moça, Elizabeth... ela permitiu que eu fizesse amor com ela. Mas foi uma experiência dolorosa, uma vez que eu ainda não era muito experiente. Também foi a minha primeira vez.
— Quer dizer, então, que sabia como tirar uma espada, mas não como colocá-la? — Isabel viu a expressão surpresa de Artur e riu. — Perdão. Foi uma piada de péssimo gosto.
Ele inclinou a cabeça.
— Mas que, para meu azar, é verdadeira. Tive pesadelos terríveis sobre o que acontecera, porque saí sem nem pedir desculpas a ela. Afinal, tinha coisas mais importantes para fazer. Alguns anos se passaram, porém o que aconteceu naquele dia ainda pesava na minha mente. Tentei entrar em contato com Elizabeth, a fim de perguntar se ela estava bem. Mas me disseram que ela havia morrido em um parto.
— Merda! Foi quando Mordred nasceu.
— Eu já desconfiava de que o menino fosse meu. Juro. A irmã de Elizabeth tomou conta da criança e levou Mordred a acreditar que ela era sua verdadeira mãe. Sentia ódio de mim, embora eu tenha tentado fazer as pazes com ela. Estava quase certo de que Mordred era meu filho. Foi uma época terrível para todos nós. Mas eu tentei fazer tudo certo, Isabel. Juro que tentei.
— Acredito em você, Artur.
— Contei essa história para que entendesse por que tenho tanto medo de prejudicar outra mulher do mesmo modo. Principalmente você.
— Imagino que Gwen também era virgem quando se casou com ela.
— Verdade, mas fui muito cuidadoso por ter consciência disso. Tomei muito cuidado para não machucá-la.
— Então por que surtou comigo?
— Surtei?
— Por que parou?
Ele balançou a cabeça.
— Não compreende? Meu corpo estava fora de controle. Eu queria tomá-la... Queria violar você.
— E daí? Eu queria ser violada.
Artur a fitou, confuso.
— Eu poderia tê-la machucado. Já aconteceu com outra. Eu não poderia conviver com outro erro desses.
— Eu lhe pareci assustada?
— Não, Isabel, mas isso porque não conhece a dor que uma mulher pode sentir da primeira vez.
Claro que conhecia. Brian Gordon fora tão desajeitado e descuidado quanto Artur.
E, droga, tinha doído demais.
Mas ela havia superado o trauma. Na verdade, bem depressa.
— Poderia ter sido tão delicado comigo como foi com Gwen.
— Não.
— Por que não?
— Porque, com Gwen, eu estava em pleno controle. Aprendi a lição com Elizabeth, e Gwen sempre foi como uma boneca de porcelana. Foi fácil tratá-la como tal.
— Eu sei que não sou nenhuma bonequinha de porcelana, embora muita gente ainda não faça ideia do que eu seja. Mas o que há de tão diferente em mim?
— Eu já disse, Isabel, perdi todo o controle. A verdade é que nunca desejei uma mulher como a desejo. Mesmo quando eu era novo e só pensava nesse tipo de coisa, nunca foi como agora.
Isabel quis gritar. Artur não estava falando coisa com coisa e, ao mesmo tempo, fazia sentido demais. Era um cavalheiro e um homem gentil, claro, porém seu corpo estava sofrendo com tanto desejo reprimido.
Por outro lado, era muito bom ouvir que ele a desejava com tanta intensidade. Por que ela não contava de uma vez que não era mais virgem? Que já havia tido vários amantes? Deus do Céu, com aquela idade, sua vagina teria se fechado permanentemente caso nunca houvesse sido penetrada.
A hora certa tinha vindo e ido embora, no entanto, e sua hesitação a penalizara. Que maravilha. Revelar naquele momento que, na verdade, ela era muito experiente no que Artur chamaria de “prática sexual” pareceria falso. Decerto ele ficaria furioso por ela não ter dito a verdade logo de início.
Isabel se levantou, sentindo-se mais derrotada do que nunca.
— Obrigada por sua integridade, Artur. Eu só queria ter agido da mesma forma.
Ele também se pôs de pé.
— Como assim?
Ela não conseguiu fitá-lo nos olhos.
— Não importa agora.
Artur estendeu a mão e a segurou pelo queixo, obrigando-a a encontrar seu olhar.
— Pois, para mim, tem grande importância. No final, Isabel, a verdade é tudo o que temos.
Ah, Deus, como ela poderia se sentir pior? Sua vida inteira naquele reino era uma mentira!
— Podemos conversar sobre esse assunto outra hora? Estou exausta e, devo dizer, não pelo motivo que eu esperava. Além do mais, tenho muito a fazer antes do jantar.
Ele a observou pelo que pareceu uma eternidade, depois assentiu brevemente.
— Outra hora, então. Eu também tenho meus afazeres. Ainda não realizei meus treinos de arco, flecha e espada hoje, e tenho obrigação de fazê-lo para não me tornar um rei gordo e lento. Esta noite, talvez?
Isabel riu sem vontade. Artur precisaria de um ano ou mais, sem fazer nada, para ganhar meio quilo ou perder um grama de músculo. Seu corpo era tonificado dos ombros até a ponta dos pés. Ao menos parecia ser. Como ela queria poder constatar aquilo!
— Talvez. Vamos ver.
— Vou vê-la no jantar ?
— Sim. Se depender de mim, eu jamais irei perder uma refeição.
Artur riu. Depois, antes que ela se desse conta, segurou-a pelo rosto e a beijou com volúpia. Seus hormônios, que tinham voltado a ficar inativos, saltaram novamente à vida como se atingidos por uma descarga elétrica. Artur a beijava como nenhum outro homem. Seus lábios eram firmes, diretos, moldando os dela a seu bel-prazer. Sua língua tocava a dela apenas ocasionalmente, contudo, como se apenas para prová-la. Ele não tentou lhe invadir a boca como muitos faziam; não usou o beijo como uma violação oral. Apenas acariciou e brincou com seus lábios, levando-a quase à loucura.
Vários minutos depois, interrompeu o beijo e uniu a testa à dela.
— Ah, Isabel — falou, rouco. — Seu gosto, seu cheiro e sua pele são quase demais para suportar!
— Pois trate de voltar aqui.
— Esta noite?
— Sim.
Artur recuou, ainda que relutante em fazê-lo. Seus olhos a percorreram, então, desde o rosto até os pés.
— Confie em mim, Isabel. Não precisa sentir vergonha. É linda demais.
Ele tentou passar por ela, mas Isabel o segurou pelo braço, fazendo-o se voltar.
— Você também.
Artur sorriu.
— Como pode saber? Pode se arrepender do que está dizendo algum dia desses. Tenho muitas cicatrizes de batalha neste meu corpo.
Ainda que a simples ideia de imaginá-lo ferido a fizesse estremecer, Isabel compreendia: era dessa forma que funcionava aquele mundo. Pensou em Curtis e no Afeganistão, e se deu conta de que a violência em si não havia mudado; apenas sua natureza. Ainda assim, mal podia esperar para explorar cada uma das cicatrizes de Artur, se tivesse a chance.
Caminhou com ele até a porta, mas, antes que Artur a abrisse, ela o deteve novamente.
— Artur... Na próxima vez em que tivermos a oportunidade de conversar, prometo dizer a verdade. Você está certo. No final, é tudo o que temos.
Ele sorriu.
— Estou ansioso por esse momento. Tem uma vida fascinante, Isabel.
Se ele soubesse!
— Até a noite — despediu-se Artur com uma ligeira mesura.
— Sim. E tome cuidado lá fora. Luta de espadas não é para maricas.
Ele riu.
— Não sei o que significa “maricas”, mas posso imaginar.
Ambos sorriam quando Artur tirou a trava e abriu a porta.
Seus sorrisos, porém, cessaram.
— Mordred! — exclamou Artur.
O bastardo arrogante se desencostou da parede e cruzou a porta de Isabel.
— Meu pai... Condessa... Pensei que fossem ficar aí dentro o dia todo.
Artur sabia que a vontade de Isabel era pular em cima de seu filho e lhe arrancar os olhos. Assim, ele rapidamente lhe bloqueou o caminho, a fim de impedir um desastre.
— Tem algum assunto para discutir conosco, Mordred? — perguntou, seco. — Se tinha, bastava bater.
— Ah, muitos assuntos — ironizou o rapaz. — E agora tenho outro para adicionar à minha lista.
— Então vamos fazê-lo em outro...
— Seu animalzinho intrometido, abusado e ingrato! — sibilou Isabel, tentando romper a barreira de Artur sem sucesso, graças aos deuses.
— Por favor, Isabel — pediu o rei. — Permita-me lidar com esta situação.
— Como acha que ele iria saber onde você estava se não o houvesse seguido?
O sorriso de Mordred se alargou.
— A condessa é muito astuta. E adorável. Escolheu bem a sua amante, meu pai. Se não se importar em compartilhar os serviços dela com seu filho, não farei nenhuma objeção.
Artur sentiu a raiva espiralar dentro dele como nunca havia acontecido. Saltou para a frente e agarrou Mordred pela túnica com ambas as mãos, erguendo-o contra a parede.
— Vai pedir desculpas para a condessa, Mordred. Agora!
O sorriso de Mordred desapareceu, contudo a malícia em seus olhos ainda cintilava.
Foi uma visão triste para Artur, que sacudiu o filho, desgostoso.
— Peça desculpas antes que eu mande escoltá-lo para fora de Camelot e proíba a sua presença aqui pelo resto da vida!
— Se o que eu disse não é verdade...
— Claro que não é. Isabel e eu não somos amantes. Vou repetir, Mordred. Peça desculpas à condessa!
— Esqueça, Artur — interveio Isabel, aproximando-se deles. — Esse moleque é incapaz de se desculpar com sinceridade. — Em seguida, fez algo notável e chocante ao mesmo tempo: girou o corpo uma vez e, levantando uma perna, arremessou-a contra o joelho de Mordred.
O rapaz deu um grito de dor, e poderia ter caído se Artur não o estivesse segurando.
— Isso foi por Samara. Como se sente agora? — exigiu Isabel, ofegante. — Se eu o vir perto da minha égua de novo, vai levar uma pior! Entendeu, seu merdinha?
Artur testemunhou algo nos olhos do filho — dirigido a Isabel — que nunca tinha visto: uma fagulha de respeito.
Mordred fez uma careta enquanto tentava se recuperar.
— Minhas desculpas se falei o que não devia, condessa.
— Eu não dou a mínima para as suas palavras sem sentido, seu verme! — contrapôs ela. — Seus atos já dizem quem você é, Mordred, e mostram que a criação venceu a natureza nessa batalha genética.
Embora Artur tivesse Mordred pelo menos a uns doze centímetros acima do solo, o rapaz se debateu até conseguir tocar o chão.
— Vai permitir que essa mera prostituta repreenda seu único filho e herdeiro da Coroa?!
— Vai ver quem é a mera prostituta... — respondeu Isabel, preparando-se mais uma vez para atacar.
— Isabel, não! — pediu Artur. — Eu cuido disso. — E largou o filho de uma vez.
Mordred gritou ao desabar no solo.
Ver a dor do rapaz foi angustiante para Artur, porém as palavras contra Isabel o tinham ferido ainda mais.
— Daqui em diante, vai tratar a condessa com o respeito e a educação que ela merece. Ela nunca lhe fez mal. Foi você quem a ofendeu com palavras e ações. Comece a se comportar como deve, Mordred, ou vou derrubá-lo sobre essa perna mais vezes... Isso se eu não permitir que a condessa use seus próprios métodos.
— Eu vou.
— Vai o quê?
— Vou tentar acertar as coisas.
— Não é o bastante — retorquiu Isabel com ódio nos olhos suficiente para pulverizar o castelo inteiro.
Artur quase gemeu.
— Mordred pediu desculpas, Isabel.
— A mim, não a você. — Ela fulminou o rapaz com o olhar. — Seu pai o ama. Ele tem feito o que pode para compensar os anos em que nem mesmo sabia da sua existência. E você não tem retribuído com nada além de ódio, sentimento de vingança e atitudes vis e mesquinhas!
— Isabel... — recomeçou Artur, mas não conseguiu terminar, pois ela estava...
“Prestes a fazer uma loucura.”
Uma vez mais, ele não soube de onde vinha aquela voz em sua cabeça. A conclusão, entretanto, era apropriada, já que Isabel parecia capaz de arrancar membro por membro de Mordred quando avançou mais um passo, pondo-se frente a frente com o rapaz.
— Seu pai o ama , seu imbecil. Ele teria tido o maior prazer em trazê-lo para cá e cuidar de você se soubesse de tudo desde o princípio, mas não sabia ! Artur está pagando por algo que não foi culpa dele, e você continua a pressioná-lo e a puni-lo com um fardo que ele não merece carregar! Portanto, ou toma juízo e trata seu pai com o respeito que ele merece, ou pode ter certeza de que farei da sua vida um inferno, assim como está fazendo com a dele. O próprio Artur tem todos os recursos para fazer isso acontecer, mas você conta com o amor dele para mantê-lo em segurança e numa zona de conforto, não é mesmo? O problema é que eu também tenho os meus recursos, Mordred, e não dou a mínima para o que acontece com você. No meu mundo, não vai poder se esconder por trás do amor do seu pai; portanto, não me subestime. Capisce?
— Capisce? — repetiram Mordred e Artur ao mesmo tempo.
— Entendeu? — traduziu ela.
O menino acenou com a cabeça.
— Eu... capisce .
— Então peça desculpas ao seu pai.
— Mordred não precisa...
— Claro que precisa! — cortou Isabel, irritada.
O rapaz engoliu em seco e, pela primeira vez em muito tempo, Artur não viu nenhuma ameaça nos olhos do filho.
— Peço desculpas, meu pai.
— Por? — incitou Isabel.
— Por acreditar que você havia me abandonado, e que não se importava com o que tinha acontecido comigo.
— Isso nunca foi verdade, meu filho. Se eu soubesse...
Artur não conseguiu continuar, pois se viu sufocado por lágrimas não derramadas.
Isabel se afastou da parede.
— É melhor levar Mordred até um médico. Ele provavelmente vai precisar de uma atadura nesse joelho.
Artur puxou o filho pela cintura, depois o ergueu no colo.
— Pai! Não posso ser visto sendo carregado desta maneira.
— Acha mesmo que vai conseguir caminhar sozinho? Prometo que o coloco no chão se perceber alguém se aproximando. Para manter as aparências, é claro. Podemos fingir que estamos dando um passeio para conversar coisas que um pai e um filho conversam. — Artur virou-se com o filho junto ao peito, como ele sempre desejara fazer desde que Mordred era um bebê. — Isabel?
— Sim? — Ela se voltou quando já estava prestes a readentrar seus aposentos.
— Por acaso sabe o paradeiro de Dick? O meu médico não está no castelo. Está longe daqui, visitando as choupanas dos nossos lavradores.
— Pelo que ouvi, Dick continua estalando o pescoço e as costas dos seus homens. Acredito que ele esteja naquilo que chamam de “salas de cura”.
— Obrigado — murmurou ele, tentando agradecê-la por muito mais do que apenas tê-los encaminhado ao seu próprio médico. Tomara ela entendesse.
— De nada. E, sim, eu entendi, Artur. — Isabel observou Mordred nos braços do pai. — Desculpe-me pelo que eu fiz, ainda que tenha merecido. Espero que pare para pensar em quem está cuidando de você agora, seu bostinha. Artur o ama mais do que você imagina. E saiba que, se não pudesse contar com o amor do seu pai, haveria um monte de homens e mulheres leais ao rei dispostos a acabar com você , aqui em Camelot. Inclusive eu.
***
Conforme pai e filho desciam os degraus que os levariam até as salas de cura, Mordred olhou para Artur.
— Ela é mesmo uma guerreira, essa condessa Isabel.
Artur concordou, tentando não demonstrar tensão. Afinal, Mordred já não era mais nenhuma criança.
— Verdade. Principalmente quando ameaçam ou machucam aqueles que lhe são caros. Foi você quem feriu a égua dela, Mordred?
— Eu não quis causar nenhuma lesão permanente.
— Que coisa mais desagradável e terrível de se fazer.
— Sim. Eu compreendo agora. — Mordred recostou a cabeça no pescoço de Artur; algo que este jamais experimentara com o filho antes.
— Vai bani-la da corte por ela ter atacado seu filho?
Artur parou por um instante, depois retomou os passos.
— Sim. No mesmo dia em que eu fizer o mesmo com você por ter machucado a montaria dela.
— Então escolheria a égua da condessa a mim?
— Não, Mordred, eu sempre escolho o bem em vez do mal.
— Está dizendo que as minhas atitudes são perniciosas?
— Estou. Você atacou um animal inocente. Com que finalidade, Mordred? A troco de quê? — Artur ajeitou melhor o filho nos braços. — Ajude-me a entender o seu objetivo, meu filho!
— A condessa nos ameaçou.
— Como? Ela é gentil demais para isso.
— Está me levando para o médico, meu pai!
— Você provocou essa reação ao ferir o animal dela.
Mordred não disse nada por alguns momentos.
— Eu sinto que ela é uma ameaça para a nossa dinastia.
Artur nunca teve tanta vontade de arremessar alguém escada abaixo. E era seu próprio filho!
Manteve-se controlado e em movimento, contudo.
— Por que cismou com a condessa agora? Ela veio em paz. Veio para fazer acordos que beneficiarão a todos nós. Por que Isabel seria uma ameaça, Mordred?
— Porque está cego com os sentimentos que nutre por ela.
Artur parou novamente, desta vez considerando espancar o próprio filho.
— Como pode afirmar tal coisa?
— Pela maneira como reagiu quando eu a assediei.
— Mordred... — Ele riu sem vontade. — Se é assim que imagina estar assediando uma mulher, tenho muito a lhe ensinar.
— Ela significa mais para você do que Gwen.
Artur vacilou, mas não chegou a parar desta vez.
— Eu a conheço há pouco tempo, portanto ainda não sei o que sinto. É perigoso julgar as emoções tão precipitadamente, sem que uma boa avaliação seja feita. Na verdade, isso seria um erro fatal em qualquer batalha.
Mais uma vez se fez silêncio enquanto eles desciam. Artur sentiu os braços fraquejar com o esforço, mas se obrigou a manter o filho em segurança.
— O que ela disse é verdade? — quis saber Mordred, rompendo a quietude.
— Quem? A condessa Isabel?
— Sim. O que ela disse é mesmo verdade?
— É.
— Por que nunca me contou?
— Eu lhe disse a mesma coisa muitas vezes ao longo de todos esses anos, filho! No entanto, você se recusou a acreditar em mim. Por que ouvir o mesmo da condessa o afetou?
— Talvez porque ela tenha sido contundente, enquanto você sempre se expressou com calma em demasia.
— Ah, preciso ter isso em mente daqui em diante: é preciso gritar para atingi-lo.
O barulho de passos vindo da parte de baixo fez Artur colocar Mordred de pé, de modo que o rapaz não se envergonhasse da situação. Era a jovem Mary, correndo escada acima.
Ela estacou ao encontrá-los.
— Mil perdões, majestade e...
— Este é meu filho, Mordred.
— Senhor... — Ela fez uma reverência.
— Está indo para o quarto de Isabel, Mary?
— Sim, meu rei. Com ervas e flores para o banho da condessa. Algum problema?
— Nenhum — afirmou Artur. — Aliás, se tiver chance, por favor, escolha apenas flores das quais ela goste.
— Sim, majestade. Posso seguir adiante?
— Claro.
Mary sorriu e os contornou pelo lado direito.
Assim que ela chegou ao topo da escada e virou a esquina, Artur tomou o filho nos braços novamente.
— Já se transformou mesmo num homem, Mordred. Está bem mais pesado do que eu imaginava.
Eles já tinham descido vários outros degraus, quando Mordred murmurou:
— A condessa o estava protegendo. Deve gostar de você de verdade.
Artur não precisou perguntar de onde o filho havia tirado aquela ideia.
— Assim como eu gosto dela, Mordred. Isabel é uma mulher fascinante.
— Quando foi que você e a rainha deixaram de se gostar? Quando a condessa chegou?
Artur quase tropeçou.
— Como já afirmei, Isabel e eu não nos tornamos amantes. Acabamos de nos conhecer.
— Eu acredito. Mas não foi essa a minha pergunta.
— Mordred, você é meu filho, mas, acredite ou não — e neste momento deveria acreditar que meus braços podem não sobreviver a esta jornada —, há coisas na vida que são privadas, não importando se o indivíduo é um rei ou um servo. Esse é um problema meu, que eu gostaria de manter particular.
E, graças aos deuses, eles estavam quase chegando.
— Eu só lhe digo uma coisa, meu pai: essa condessa fala demais.
— Toque na égua dela outra vez, Mordred, e Isabel vai reagir a facadas, se não de modo pior — exagerou ele. — E não acredito, sinceramente, que vá querer enfrentar coisa pior .
Capítulo Quinze
Mary entrou no quarto de Isabel toda saltitante, menos de cinco minutos após Artur e Mordred terem seguido seu caminho. A única coisa que impedia a menina de fazer uma verdadeira acrobacia era a bandeja em suas mãos contendo vários mimos: ervas aromáticas, flores e aqueles malditos gravetos com os quais ela, Isabel, era obrigada a limpar os dentes.
— Olá, Mary — saudou ela, sorrindo diante da exuberância da moça.
— Boa tarde, condessa!
Mary olhou ao redor, procurando um lugar para pousar a bandeja, já que a mesa estava repleta de restos de outras salvas.
— Que tal deixar sobre a cama, Mary? — sugeriu Isabel.
A moça virou-se, porém parou.
— Ora essa, eu tinha certeza de que havia deixado a sua cama arrumada esta manhã.
Céus! Ela e Artur não tinham ido muito longe, mas o suficiente para bagunçar a colcha.
— A culpa foi minha, Mary. Eu me deitei e estava muito... inquieta.
— Não se preocupe, condessa, vou arrumá-la outra vez.
Isabel acomodou-se ao lado da bandeja e, em seguida, deu um tapinha na cama.
— Se puder se sentar um pouco, por favor, conte-me o que a deixou tão animada.
— Gilda disse que pode reformar o vestido para mim sem problemas! Não é maravilhoso?
— Que bom, Mary! Mas eu não tinha dúvida disso. — Ela segurou a mão da moça. — Será uma noiva linda.
— Graças à senhora, condessa.
— Ei, meu vestido não tem nada a ver com isso, e sim você mesma. É uma moça adorável, Mary. Iria brilhar até mesmo em um saco de juta!
Mary ficou confusa. Antes que Isabel pudesse se explicar, no entanto, a menina — graças aos Céus — ignorou o que não havia compreendido, aparentemente imaginando que ela lhe houvesse feito um elogio.
— Também tenho um recado para a senhora. Da rainha!
— Da rainha? Não me diga... E o que a rainha tem a dizer a mim?
— Ela deseja que a senhora vá encontrá-la no sótão, onde as costureiras trabalham.
— Para quê?
Mary riu.
— Ela está tentando ensiná-las a fazer calças de homem para as mulheres. O problema é que Sua Alteza não tem nenhuma habilidade com costura, senhora. Nenhuma mesmo.
— Não há diferença alguma entre os modelos, a não ser os tamanhos, Mary. De qualquer modo, ficarei feliz em ir ao encontro de Gwen, pois desconfio de que este será um dia ótimo para todas nós. Vamos. — Ela tomou a mão da moça e a levou até a porta. — Mostre-me o caminho.
Mary a conduziu através de um labirinto de escadas e corredores.
— Posso perguntar que tipo de jogo vamos praticar para termos de usar essas roupas, senhora?
— O que nos der na telha.
Mary riu enquanto subiam mais alguns degraus.
— Às vezes não compreendo o que quer dizer, condessa, mas não a questiono porque acho a senhora muito divertida.
Isabel parou.
— Você, Mary, é a irmã mais nova que eu sempre quis ter, sabia?
— Ah, senhora, não imagina o quanto isso significa para mim!
— Que bom. E agora? Vai finalmente me chamar de Isabel ou não?
— Não, senhora.
Isabel sorriu.
— Como eu ia dizendo, você é a irmã teimosa que eu sempre quis ter. — Ela ergueu a cabeça. — Aposto que chego lá em cima primeiro!
— Quando nevar no inferno de Hades! — desafiou Mary, e ambas dispararam escadaria acima.
Mary e Isabel estavam ambas sem fôlego quando chegaram ao imenso salão de costura.
E este era incrível. Havia pelo menos umas cinquenta mulheres ali, costurando a um ritmo que deixaria a Singer orgulhosa. Algumas pareciam trabalhar em túnicas novas para os homens. Outras costuravam calças. Parte delas confeccionava vestidos simples em musselina e outra, aventais básicos.
Mary segurou a mão de Isabel e a arrastou até uma mulher que era praticamente uma sósia da Betty White. Devia ser Gilda, a costureira que estava reformando o vestido de casamento.
Isabel sorriu e estendeu a mão.
— Você deve ser Gilda.
— Eu mesma, senhora — confirmou ela, seca, olhando para a mão estendida de Isabel como se esta fosse uma jiboia. Colocou tudo de lado, porém, e tentou ficar de pé.
— Não, não! Por favor, sente-se — pediu Isabel. — Eu não quero atrapalhar.
— Ela fala diferente de nós, Mary — comentou a mulher com estranheza.
A moça bufou de leve.
— Porque veio de outro reino, ora. É assim que eles falam lá. De qualquer modo, ela é uma condessa e merece respeito.
Gilda resmungou e voltou a se concentrar na costura.
Mary bateu o pé.
— Foi a condessa que me deu esse vestido, Gilda!
— Vamos cair fora daqui, Mary — sussurrou Isabel, tentando se afastar o mais rápido que podia.
Mary manteve-se firme, contudo, e a agarrou pelo braço.
— Será que James iria gostar de saber que agiu dessa forma com a mulher que presenteou a futura esposa de seu filho com algo tão bonito?
A mulher parou de costurar e ergueu o olhar lentamente.
— Foi muita gentileza sua, condessa. Agradeço-lhe em nome de James e Mary.
— E? — incitou Mary, ainda segurando o braço de Isabel com força.
— E a minha futura nora ficaria muito orgulhosa em tê-la como madrinha em sua cerimônia de casamento. Apesar de eu ter dito a ela que isso era uma ilusão.
— Pois eu ficaria muito orgulhosa em ser madrinha de Mary.
Gilda tornou a erguer a cabeça, os enormes olhos castanhos cheios de surpresa.
— Verdade?
— Claro! Mary é minha amiga. — Ela virou-se para a moça, que agora saltitava no lugar. — Mas não tem nenhuma amiga mais próxima que possa preferir, Mary?
Mary parou de pular.
— Tenho sim, senhora. Ou tinha... Mas escolho a senhora. Se não for nenhum incômodo.
— Agora que eu aceitei o seu convite, não vai me chamar de Isabel?
— Não, senhora.
Isabel riu.
— Eu sabia... Mas claro que serei sua madrinha. Será uma honra que nunca tive antes.
No momento em que as duas deixavam a estação de trabalho de Gilda, Isabel olhou para trás e vislumbrou um leve sorriso no rosto da velha costureira.
— Vai ter uma sogra e tanto — sussurrou tão logo se afastaram.
Mary sorriu para ela.
— Creio que Gilda é que vai ter uma nora e tanto!
— Pois eu aposto todas as minhas fichas em você.
— Aqui está a rainha Guinevere, senhora... o propósito da sua visita ao salão.
— Vossa Alteza — saudou Isabel. Em seguida, sussurrou para Mary: — Também aposto que faço uma reverência melhor do que a sua.
— Ha!
Ambas desceram quase até o chão na mesura. Mary ganhou mais uma vez, e Isabel acabou desabando sobre ela, o que fez as duas cair na risada.
— Quando essas nossas apostas terminarem, Mary, vai ser dona de tudo o que é meu!
— Pois eu adoraria ficar com esse seu colar, condessa!
— Imagino. O problema é que esta é a única coisa da qual eu nunca vou poder me desfazer. Tente outra.
— Querem fazer o favor de se levantar? — exigiu Gwen.
Isabel se pôs sentada, contudo não se levantou.
— Se usar um tom mais agradável, Gwen, posso considerar se concordarei ou não com uma ordem tão rude. Estávamos nos divertindo à beça até agora.
Mary, obviamente, já não estava se divertindo tanto. Tentou se levantar, porém Isabel a segurou no chão.
Gwen parecia chocada.
— Não foi uma ordem, condessa, e sim um pedido.
— Pois soou como uma ordem, Alteza. E não costumo me dar bem com acessos de arrogância.
O salão inteiro ficou completamente em silêncio, como se todos os sons tivessem sido sugados do ambiente.
— Eu não quis parecer arrogante — defendeu-se Gwen.
— Então peça o que deseja num tom mais delicado — sugeriu Isabel, encarando a mulher que havia conquistado o coração de Artur para depois parti-lo.
Gostava de Gwen e, ao mesmo tempo, não gostava. E não tinha certeza de quais peças daquele inexplicável quebra-cabeça se encaixavam nas respectivas categorias.
— Eu não preciso ser delicada — rebateu Gwen, os olhos se estreitando.
— Como assim? Isso não faz parte das suas atribuições? Só precisa ser agradável com os que ocupam a mesma classe que a sua, e malcriada e insolente com todo o resto?
Isabel ignorou as exclamações abafadas que se seguiram.
Pôs-se de pé, puxando Mary consigo, contudo manteve a criada atrás dela. — Enquanto não aprender a conviver bem com as pessoas que trabalham muito para tornar a sua vida de rainha confortável, nunca será realmente respeitada. Essa gente dá o próprio sangue para que a sua vida seja gloriosa. Trate essas pessoas como merda, e não terá o amor nem a admiração de ninguém, pois não fez por merecer.
Cortem-lhe a cabeça!, foi o que Isabel esperou ouvir saindo da boca de Gwen.
A rainha, entretanto, ficou sem palavras. O que garantia a segurança de seu pescoço.
— Você é uma dama, Gwen, que diabos! O que está acontecendo, afinal? Pensei que tivesse me chamado aqui para me mostrar uma novidade. O que era?
Gwen esfregou as têmporas.
— Sim, viemos aqui para... O que era mesmo, Jenny?
Uma menina, cerca de um ou dois anos mais velha do que Mary, avançou um passo.
— Viemos aqui para cuidar das leggings das mulheres, como a condessa pediu.
— Eu não pedi nada, apenas sugeri — corrigiu Isabel. — Mas acho maravilhoso que tenham tomado essa iniciativa.
— Está tentando assumir o controle de Camelot, não é mesmo, condessa? — explodiu a rainha.
— Como disse? — indagou Isabel, confusa. — Eu não estou tentando fazer nada disso. Tivemos uma boa conversa, e você mesma admitiu que essa era uma ideia interessante.
— Mentirosa! O casamento de James e Mary foi ideia minha. Isto — Gwen fez um gesto abrangente — foi ideia minha, e você a roubou de mim. Aliás, roubou tudo de mim.
— Se está dizendo... Tudo ideia sua. Sem problemas. Não vou brigar por nenhuma patente.
Isabel olhou ao redor, vendo as expressões chocadas que as cercavam. Mas a dela não devia estar diferente.
— Sabe se a rainha tomou vinho demais esta manhã, Mary? — indagou com casualidade.
Mary e a menina chamada Jenny se entreolharam, preocupadas, até que Jenny deu de ombros e balançou a cabeça negativamente.
— Herege! — gritou Gwen.
— Não estou com o meu dicionário à mão, Mary, mas isso não quer dizer “bruxa” ou algo assim? — indagou Isabel, tensa.
— Não tenho certeza se significa “bruxa” — sussurrou Mary. — Mas acredito que signifique que você é do Submundo. Que vem das trevas.
— Imagino, então, que não seja um elogio?
Mary pareceu assustada demais para responder.
— Que tal você e eu darmos um passeio e conversarmos a respeito, Gwen? — perguntou Isabel, imaginando levar a rainha até a primeira lagoa que visse pela frente e enfiar aquela linda cabeça na água até que Gwen caísse em si.
— Quer mais é me acompanhar até o inferno! — retorquiu a rainha. — Vejo tudo muito claramente agora: quer o meu marido, a minha coroa e o meu trono!
Isabel voltou-se para a costureira mais próxima.
— Vá buscar o rei, por favor. E também Tom, um dos meus homens, se possível. Mas o mais importante é que traga o rei Artur... Ele saberá quem mais precisa estar aqui neste momento.
A moça hesitou.
— O rei não vai atender ao meu pedido.
— Por favor... Diga a ele que foi Isabel quem pediu e que se trata de uma emergência. Artur vai lhe agradecer por isso. Agora corra o mais rápido que puder.
A jovem costureira olhou dela para Mary. E esta última deve ter lhe feito algum sinal, pois a moça logo concordou com um “sim, senhora” e disparou feito um raio.
Isabel suspirou, aliviada. A menina era rápida. Precisava lhe dar esse crédito.
Gwen, entretanto, percebeu o que se passava, e em tempo recorde.
— Foi tudo muito interessante, mas agora todas estão autorizadas a sair também. Ninguém aqui tem culpa de nada e nunca me fez nenhum mal... ao contrário de você.
— Então permita que elas saiam, realmente, de modo que possamos ter uma conversa em particular.
— Não! Elas têm trabalho a fazer — volveu a rainha num contrassenso.
— Creio que esse seja um assunto particular nosso, Gwen. Meu e seu. Não há razão para envolvermos mais ninguém.
— Você roubou James!
— James? Quer dizer o James de Mary? Eu mal conheço o homem! Sei apenas que ele é o futuro marido da minha amiga e o soldado mais confiável do seu marido.
— Iria roubá-lo de Mary, assim como roubou Artur de mim. — Gwen estremeceu, parecendo atordoada. Respirou fundo várias vezes, depois baixou o dedo com que a acusava. — Eu... sinto muito. Não sei o que está acontecendo comigo. — Balançou a cabeça. — Isabel, eu queria lhe mostrar o progresso que fizemos com as calças para as mulheres.
Muito bem. Aquilo não era loucura nem embriaguez. Mesmo assim, continuava longe do entendimento e da zona de conforto de Isabel.
— Eu andei olhando, Gwen, e fiquei muito impressionada. Obrigada por ter aceitado a minha sugestão e tomado essa iniciativa.
— Sua sugestão? — guinchou a rainha. — A ideia foi minha. Minha!
Isabel começou a rezar para que médicos medievais adentrassem o salão e levassem Gwen para um hospício. Mas não teve essa sorte.
— E de modo algum fará parte da cerimônia de James e Mary — prosseguiu a moça. — Foi tudo ideia minha, e as coisas vão acontecer do meu jeito. Caso contrário, eles não terão nada.
Isabel sentiu-se como se tivesse levado um tapa. Percebeu Mary tremendo e segurou a mão da menina.
— Se prejudicar Mary de alguma maneira por conta das minhas palavras ou ações, eu não hesitarei em levá-la com James para Dumont. Mary não fez nada, a não ser me servir como dama de companhia, ou seja lá como for que denominam sua função. E, espero, também como amiga. Não vou permitir que a castigue por ela estar se divertindo enquanto faz seu trabalho. E bem. Agora me diga, rainha Guinevere, como prefere conduzir as coisas.
Mais uma vez, Gwen ficou em silêncio por algum tempo.
Então teve o mais inesperado dos gestos: curvou-se com uma gargalhada, o que chocou Isabel, assim como todas as outras mulheres no salão.
Gwen controlou o riso, por fim, ainda que houvesse levado algum tempo para tanto. Tinha sido enviada para o inferno de Hades por uma mulher que acabara de entrar em seu castelo e que, em menos de duas noites, havia conquistado os corações de seus súditos, mais do que ela própria conseguira desde que fora coroada rainha.
A condessa rolara no chão com uma serva, ambas felizes da vida, enquanto ela própria jamais se permitira tal intimidade com uma criada.
Verdade fosse dita: aquilo jamais lhe passara pela cabeça. E, naquele exato momento, sua mente não parecia nada bem. Não estava conseguindo controlar as próprias emoções.
— Pode parar de proteger Mary, condessa. Não pretendo prejudicá-la de nenhuma forma, eu juro. Teremos uma linda cerimônia no salão principal para ela e James.
Isabel, que parecia uma sentinela em guarda, relaxou um pouco.
— Aceitamos a promessa, Vossa Alteza. — Virou-se para Mary. — Quer apostar como faço a melhor reverência, Mary?
— Não, senhora. — Os cachos vermelhos da menina sacudiram quando ela balançou a cabeça. — Creio que já testamos demais a paciência da rainha.
— Para ser sincera, não fizeram nada disso — afirmou Gwen. — Peço desculpas se pareci intolerante. Eu estava apenas ansiosa por lhe mostrar, condessa, o que nós... o que essas costureiras talentosas realizaram.
Isabel olhou em volta.
— A maioria parece estar fazendo grandes progressos.
Gwen sorriu.
— Sim, e para as mulheres. As calças devem ficar prontas no mais tardar até amanhã.
Foi muito gratificante para Gwen ver a expressão de Isabel.
Mas isso mudou em poucos segundos.
— Está tentando tomar Artur de mim.
— Está falando sério? — indagou Isabel, perplexa. — Eu estava tentando unir vocês dois!
— É verdade, minha rainha! James escutou a mesma coisa — afirmou Mary.
— Mentira!
Isabel e Mary se entreolharam.
— Está chamando Mary de mentirosa, chamou a mim de mentirosa... — começou Isabel.
Gwen a ignorou.
— Vamos começar com a minha ideia de lazer para todas as mulheres uma hora após o desjejum, amanhã. — Ela olhou ao redor no salão, e as costureiras que haviam parado de trabalhar imediatamente recomeçaram sua tarefa.
— Ah, obrigada, Gwen! — exclamou Isabel, avançando um passo para abraçá-la. — Sinto muito se fui rude com você.
Gwen viu-se pega de surpresa. Nunca fora alvo de tanta alegria vinda de outra mulher.
A verdade, entretanto, é que se sentiu bem até demais.
— E então? Qual será a nossa primeira brincadeira?
— Nossa, você me pegou de surpresa, Gwen. Nunca imaginei que fosse adotar esse tipo de coisa tão rápido. — Isabel olhou ao redor. Em seguida, bateu palmas. — Desculpem interrompê-las, senhoras, mas eu gostaria de fazer uma votação.
— Votação? — perguntou Mary às suas costas, sem dúvida ainda temendo vir para a frente e encarar a rainha.
Era uma pena que Gwen não houvesse tratado melhor suas criadas, concluiu Isabel. Elas teriam acatado todos os seus desejos e necessidades. Mas ela não sabia nem sequer o nome de muitas delas! Nem mesmo o da moça que saíra correndo do salão. Aquilo era triste e humilhante demais. Gwen era um fracasso como rainha. E de muitas maneiras.
— Quantas de vocês querem participar das brincadeiras amanhã? — perguntou Isabel. — Por favor, não levantem a mão se não quiserem participar. Só façam isso se estiverem realmente interessadas. E não haverá nenhum castigo para quem não quiser tomar parte, não é mesmo, rainha Guinevere? Nada será exigido de vocês.
— Elas são livres para escolher, Isabel.
— Vocês ouviram a rainha. Podem escolher participar ou não, sem nenhuma consequência. Se optarem por não participar, terão esse período livre para fazer o que quiserem, contanto que aproveitem para relaxar. Podem até tirar a roupa para os seus homens, que tal?
Muitas delas riram.
— Como vai ser essa brincadeira? — indagou uma senhora, que nem mesmo ergueu os olhos da costura.
Gwen voltou-se para Isabel, uma vez que nem imaginava o que poderiam fazer.
— Estou certa de que a condessa pode responder a essa pergunta.
Isabel olhou em volta.
— Vai depender de como estiver o tempo.
Nesse exato momento, nuvens se chocaram, e o estrondo de um trovão se fez ouvir.
— Se for para ficar dentro do castelo, então que assim seja. Alguma de vocês já ouviu falar em “Corre, Cotia” ou “Pato, Pato, Ganso”?
— O que é isso, um cardápio? — inquiriu uma das mulheres.
— Não... Uma brincadeira.
Isabel e Gwen desceram a escadaria.
— Pato, Pato, Ganso? — indagou Guinevere, sorrindo.
— Precisamos ir com calma com mulheres que nunca vivenciaram uma brincadeira ou um jogo de verdade.
Gwen deu alguns passos antes de se virar para ela.
— Minhas mais profundas desculpas pelo meu péssimo humor agora há pouco.
Isabel aquiesceu.
— O que foi aquilo, Gwen? Eu não a conheço há muito tempo, mas o suficiente para sentir que não parecia você.
— Vocês duas... Você e...
— Mary. O nome dela é Mary. E ela está prestes a se casar com o primeiro soldado de Artur.
Gwen corou.
— Sim, sim... Mary. Vocês duas estavam zombando da reverência à rainha.
Isabel tombou a cabeça para trás, de modo que teve uma excelente vista do teto.
— Ah, por favor, pare com isso. Só estávamos brincando! Não tivemos a intenção de desrespeitá-la. Estávamos apenas fazendo uma aposta.
— Pois pareceu um menosprezo à minha posição.
— Dê um tempo, Gwen! Desde quando dá importância a esse tipo de coisa? Até hoje eu a vi tratando todo mundo normalmente, e de repente decide mostrar as garras sem nenhuma razão?
Gwen abaixou a cabeça e, de súbito, seus joelhos pareceram ceder. Sentou-se nos degraus, e Isabel se acomodou a seu lado.
— O que está acontecendo, Gwen?
— Estou com ciúmes, Isabel.
— Do quê? Se está se referindo a esta manhã, nada aconteceu entre mim e Artur.
Não era exatamente a verdade, mas quase nada havia acontecido... Para sua decepção.
— Esta manhã?
Isabel quis dar um tapa na testa.
— O que eu quis dizer é que nós dois estávamos apenas conversamos. Como sempre fazemos.
Pronto. Aquilo, pelo menos, era verdade. Eles tinham conversado. Tinham se beijado. Artur a despira e eles quase haviam partido para um sexo quente e suado. Mas ninguém ali precisava daqueles detalhes.
— Não é o que existe entre você e Artur que me aborrece.
Ah, que bom! Aquilo era um sinal verde?
— Então, o que é?
— Eu vi as brincadeiras entre você e...
— Mary. O nome dela é Mary, Gwen!
— Sim, desculpe. Mary. Eu fui testemunha do quanto ela parecia feliz em sua companhia, e senti a inveja tomar conta de mim.
— Por quê?
— Porque nunca tive esse tipo de experiência amigável com nenhuma das minhas criadas.
— Ei, elas são muito leais a você!
— Não é a mesma coisa. Espera-se lealdade de qualquer servo do castelo.
— Pois acredito que a verdadeira lealdade deva ser conquistada, e não apenas esperada ou exigida.
— O que eu fiz de errado?
— Nada muito diferente do que a realeza fez a vida toda. A princesa Diana foi um excele... — O colar bateu em seu peito, e Isabel suspirou. — Você vê os criados como ferramentas, não como pessoas. Se aprendesse seus nomes e qualquer coisa sobre seus amores e vidas, poderia se tornar amiga deles assim! — Ela estalou os dedos.
— Está aqui há apenas duas noites e já conseguiu fazer isso.
Isabel tomou a mão de Gwen.
— Os homens e as mulheres que a servem são leais, Gwen. E, acredite, poderia ser muito pior. Você poderia ser Hitler, por exemplo.
Tum.
— ... Mas não é. Pelo que ouvi, todos os que trabalham no castelo têm muito respeito pela sua pessoa. Se não fosse por esse respeito, você e Lance teriam sido banidos há muito tempo.
Gwen voltou a cabeça, alarmada.
— C-como disse?
— Ah, por favor, Gwen, os únicos que não sabem disso neste castelo são os cães e as galinhas! Mesmo assim, não ponho a minha mão no fogo por metade dos cachorros.
— O que está dizendo é absurdo. Eu sempre levei o juramento que fiz a Camelot a sério.
— Mas não o que fez a Artur. Quebrou seu juramento quando traiu seu marido. E é muita benevolência da parte dele estar proibindo os que sabem — e que, acredite, são quase todos — a comentar sobre a sua traição.
Gwen se pôs de pé.
— Não é verdade.
Isabel a encarou.
— O que não é verdade? O fato de ter quebrado seu juramento ou o de todo mundo saber?
A moça a fulminou com o olhar.
— Extrapolou os limites e abusou da minha hospitalidade, condessa. Peço que você e sua comitiva se preparem para deixar Camelot agora mesmo.
Isabel estudou as unhas, que realmente precisavam de uma manicure, pensando se Mary seria boa nisso também. Ou se Mary tinha alguma amiga com tal habilidade.
— Está menstruada, Gwen? Ou perto de ficar? Porque tem agido como se estivesse na TPM: cheia de altos e baixos. Mal consegue manter as próprias emoções sob controle!
— Vá embora!
— Faça Artur me dizer isso, e atenderei ao seu desejo no mesmo momento. — Isabel se levantou, ficando pelo menos seis centímetros mais alta do que a etérea rainha, a qual, por sua vez, parecia prestes a se transformar em um dragão. Aquilo era TPM, sem dúvida. — Enquanto ele também não concordar que devo deixar o seu reino, não vou a lugar nenhum — completou, decidida. — Além do mais, Mary me pediu que eu fosse sua madrinha no casamento, e pretendo estar lá, ao lado dela. Se você e Artur fizerem alguma objeção, entretanto, eu lhe pedirei desculpas e não o farei.
Gwen tornou a desabar sobre os degraus, desta vez irrompendo em soluços.
— O que há de errado comigo?!
Isabel sentiu o coração se apertar. Sentou-se ao lado da moça e a abraçou.
— Não pode ser a época do mês?
— Que época do mês?
— Eu não sei como a chamam aqui. No meu tempo...
Tum.
— ... Quero dizer, no meu reino , isso significa que vai ficar menstruada. É aquela época do mês em que você sangra lá embaixo.
— Estou nessa época, mesmo.
— Viu? Os hormônios são uma merda.
— Quem são os hormônios? Pessoas que eu deveria conhecer?
— Nada de que precise realmente saber.
Gwen soluçou em seu peito.
— Como sabe de todas essas coisas?
— Acredite, Gwen, eu sei. Sou famosa por dar paneladas nas cabeças dos homens nessa época do mês.
Gwen riu.
— Verdade?
— Verdade. Agora vamos para o meu quarto pedir a Mary que nos traga um chá. Se possível com um pouco de salsa, sálvia, alecrim e tomilho.
Gwen a fitou, confusa.
— Está falando a sério?
Isabel deu de ombros.
— Deu certo para Simon e Garfunkel... Tem que dar para nós também.
— Depois, poderíamos pedir um pouco de vinho.
— Perfeito. Garanto que isso também funciona.
Isabel se viu praticamente arrastando Gwen para os próprios aposentos. No momento em que chegaram ao quarto, Mary já estava no local, polvilhando coisas na banheira. Assim que elas entraram, a moça endireitou o corpo, olhando, assustada, da rainha para Isabel.
— Perdão, senhora! Eu estava apenas preparando o seu banho. Voltarei quando estiver pronta.
— Precisamos de chá, Mary — pediu Isabel.
— Eu sinto muito por ter arruinado um dia que prometia ser divertido, Mary — desculpou-se Gwen. — E nós não queremos chá, queremos vinho.
Isabel imaginou que a última coisa de que Gwen precisava no momento era vinho, mas como discutir com uma mulher em plena TPM?
Concordou com a cabeça, articulando um “desculpe” com a boca na direção da menina.
— Tinto ou branco? — quis saber a moça.
— Ambos — decidiu Isabel. — E, por favor, traga queijo, carnes e bastante pão para molharmos nas sobras.
Mary fez uma reverência, Isabel fez outra. Em seguida, a moça saiu correndo do quarto antes que ambas partissem para nova aposta e caíssem na risada.
— Não estou com vontade de me deitar, Isabel.
— Que tal nos sentarmos no chão, Gwen? Podemos bater papo como duas adolescentes numa festa do pijama.
Gwen sentou-se no solo sem discussão.
— O que está acontecendo comigo?
— Acredite, vai se sentir muito melhor amanhã cedo. — Ou talvez em dois dias, já que não havia nenhum farmacêutico por perto para ajudar, corrigiu-se Isabel. — Em breve, Gwen. Em breve.
Mary estava tão concentrada, carregando a bandeja cheia nas mãos, que quase trombou com o rei Artur. Parou tão rápido quanto foi capaz, o que fez a bandeja oscilar perigosamente.
Balbuciou um pedido de desculpas, então, tentando fazer uma reverência.
O rei a ajudou a firmar a bandeja com aquele sorriso que poderia derrubar um touro. Em seguida, tomou-a de suas mãos.
— Está tudo bem, Mary. Minhas mais profundas desculpas por tê-la assustado.
Mary levou alguns momentos para normalizar a respiração.
— A rainha não está mais no salão de costura, rei Artur, se era para onde estava indo.
— Eu não estava indo para lá. Deveria estar?
Pelo visto, Lily não o encontrara!
— Não mais. Senhor, digo, Vossa Alteza, perdoe-me a minha falta de jeito.
Ele riu baixinho.
— Não foi a sua falta de jeito, Mary. Foi a minha. — Ele olhou a bandeja com duas taças, dois frascos de vinho e uma variedade de carnes, queijos e pães. — Está indo para os aposentos da condessa Isabel?
— Sim, senhor.
— Ela está com alguém?
— Sim, senhor.
Mary não costumava interagir muito com o rei, porém já reconhecia um homem magoado quando via um. Sua Alteza apertou a mandíbula e baixou o olhar, do mesmo modo como James havia reagido nas vezes em que ela recusara suas propostas.
Analisou a situação e chegou à conclusão de que não estava traindo a condessa Isabel.
— Ela está com a rainha, senhor.
Artur ergueu a cabeça, e a luz que tinha se extinguido em seus olhos, momentos antes, retornou.
— Ela está com Gwen?
— Sim, senhor. — Mary teve vontade de pular de alegria. Era a segunda vez naquele dia que deixava alguém da realeza feliz!
O dia estava perfeito, na verdade. Mal podia esperar para ter uma folga e contar aquilo a James.
— Então, por favor, permita-me levar esta bandeja.
— Mas, senhor!
— Shh! Precisamos tomar cuidado. Vou embora antes de você entrar. Elas não podem saber que eu estava por perto.
— Mas não posso permitir que carregue esta bandeja, meu rei. É o meu trabalho!
— Vamos fazer disso um segredo de Estado — resolveu ele com outro sorriso arrasador. — Até porque James jamais iria me perdoar por eu não ter tratado sua mulher como a dama que ela é.
— Eu não sou nenhuma dama, senhor. Estou a seu serviço.
Enquanto eles subiam a escada e cruzavam os corredores, Artur prosseguiu:
— Todos os que trabalham em Camelot são seres humanos.
Mary sorriu.
— Você e a minha condessa Isabel iriam se dar muito bem. Ela disse o mesmo uma hora atrás, no salão de costura: que todos no castelo merecem ser tratados com respeito.
— Verdade?
— A condessa é incrível, senhor. Sempre me tratou com bondade e generosidade, e, para ser sincera, ela me faz rir muito.
Artur acenou com a cabeça.
— Eu sei. Por isso ela é perfeita. Encontre uma só falha em Isabel, Mary.
A moça hesitou, e o rei sorriu.
— Vá em frente... Uma só.
— Bem, ela não gostou muito das coisas que eu lhe levei para limpar os dentes e o hálito. Vive resmungando sobre a falta que faz um tal Listerine. E também uma coisa que chama de fio dental. Ah, já falei demais! — Mary parou a poucos passos da porta da patroa. — Quero muito que a condessa confie em mim.
O rei concordou com um gesto de cabeça.
— Se o problema com os dentes é a única coisa que tem a comentar sobre a condessa, não percebe o quanto é fiel a ela?
— Não há mais nada a relatar, senhor. Embora eu deva admitir que, se houvesse, acredito que não o faria. Eu não devia pedir desculpas, mas peço mesmo assim. Acontece que não há nenhuma outra coisa. Se houvesse...
Artur sorriu.
— Compreendo, Mary.
— Ela vai ser a madrinha no meu casamento, senhor.
— E eu, o padrinho de James.
Mary sentiu o coração dar um pulo.
— Verdade?!
— James me convidou, e eu aceitei. Vê algum problema nisso?
— Não, senhor! De maneira alguma! Apesar de que, talvez, tenhamos de realizar a cerimônia em Dumont, agora que a rainha exigiu que a condessa Isabel vá embora. James não sabe de nada, ainda, mas acredito que seu amor por mim seja suficiente para que possamos trocar nossos votos em qualquer lugar da nossa escolha.
O rei pousou a bandeja.
— Quando a rainha pediu a Isabel que ela deixasse Camelot?
Mary sentiu o rosto pegar fogo em questão de segundos. Não devia ter escutado a conversa entre a rainha e sua condessa na escadaria. Ela só as havia seguido para se certificar de que Isabel — ah, Céus, agora estava pensando nela como Isabel! — não estava precisando de nada.
Agora não conseguia encarar o rei.
— Não posso dizer, senhor.
Artur a segurou pelos ombros.
— Quando foi isso, Mary?
A moça só conseguia olhar para os próprios chinelos.
— Eu não quis ouvir a conversa delas, mas...
— Por favor.
— A condessa e eu fizemos uma brincadeira no salão de costura. Não sei o que aborreceu a rainha, mas ela ficou muito zangada. Só sei que começou a rir, depois a chorar, e a condessa quis ajudá-la. Eu não pretendia ouvir a conversa das duas, só queria saber se a condessa precisava de algo. Mas a rainha... Bem, ela não parecia normal. A condessa não estava precisando de mim, mas Sua Alteza estava precisando muito dela! As duas ficaram sentadas nos degraus, conversando. Logo depois, Isabel, quero dizer, a condessa , a abraçou e a levou para o quarto. A rainha não me parecia nada bem, senhor. A minha condessa só estava tentando ajudar e...
Artur assentiu, impaciente.
— Prossiga, Mary!
— A condessa Isabel pediu chá, mas a rainha exigiu vinho. Então Isabel pediu também queijos, carnes e pães para poder molhar nas sobras, como ela mesma disse. Eu não sei o que está acontecendo lá, majestade, mas, quando as deixei, elas pareciam bastante felizes juntas. Não temo pela vida da condessa, ou eu seria a primeira a intervir e...
— Já temeu pela vida da condessa?
— Sim, senhor.
— Por causa de Gwen? De sua rainha?
— Não posso responder a essa pergunta. Até mesmo a condessa Isabel pediria que eu não respondesse.
Artur assentiu.
— Sua falta de resposta fala mais alto do que qualquer coisa. Mas também demonstra a sua lealdade, Mary, o que é muito importante. James é um homem de sorte. — Ele apanhou a bandeja e a entregou à moça, segurando-a até que esta a tivesse firme nas mãos. O que demorou um pouco, uma vez que era o rei quem a ajudava. — Mary... — prosseguiu Artur, fitando-a profundamente nos olhos. — Não quero que espione nada, apenas que me informe o mais rápido possível caso sinta que há qualquer coisa errada.
— Por exemplo...? — indagou ela, sentindo os joelhos fracos mais uma vez.
— Uma ameaça partindo de uma pessoa para a outra.
— A condessa jamais iria ameaç... — parou Mary. — Não consigo imaginar uma ameaçando a outra.
— Vou ficar aqui no corredor. Depois quero um relatório do que vir e sentir lá dentro. Não preciso de detalhes, pois não imagino que esteja acontecendo qualquer coisa séria por lá, mas preciso saber antes que eu mesmo me encarregue do assunto.
— O senhor o faria?
— Se Gwen está planejando prejudicar Isabel... Sim, eu o faria.
Conforme Mary rumou para a porta, ocorreu-lhe que o rei não se preocupara se a condessa Isabel poderia prejudicar a rainha. E isso também nunca lhe ocorrera. E era estranho que ambos estivessem muito mais preocupados com o bem-estar da condessa do que com o da rainha.
Capítulo Dezesseis
Artur sabia que esperar do lado de fora do quarto da condessa era mais do que ridículo. E que seu medo de Gwen fazer mal a Isabel também não tinha cabimento.
No entanto, sua necessidade de protegê-la foi mais forte. E o mais desconcertante naquilo tudo era que não era a esposa que ele sentia necessidade de proteger.
Mary finalmente deixou o aposento, parecendo quase sem fôlego. Correu até ele e fez uma reverência.
— Meu rei...
— Diga-me, Mary.
— A condessa me pediu que eu lhe entregasse este bilhete. A rainha não está bem.
— Meus agradecimentos — murmurou ele, tentando não arrancar a nota das mãos da moça. Abriu-a tão devagar quanto sua preocupação permitia.
Artur, Gwen precisa de atenção médica! Por favor, leve-a para seus aposentos e mande chamar Tom.
Artur amassou o bilhete e o jogou de lado.
— Obrigado, Mary. Por favor, vá procurar Tom, um dos homens de Isabel — pediu, antes de entrar no quarto sem nem mesmo bater.
E o que viu foi realmente incrível. A condessa bombeava o peito de Gwen; em seguida, parava para soprá-la na boca.
E ele se preocupando com Isabel!
— O que está fazendo?!
— Acho que Gwen entrou em choque, ou algo assim! — explicou ela, para depois aspirar mais ar e recomeçar todo o processo, segurando as narinas de Gwen enquanto soprava em sua boca. Aquilo era chocante!
— Pare!
Isabel parou de soprar, porém recomeçou a forçar o peito de Gwen.
— Quer Gwen viva ou não? — indagou, ofegante.
— Claro, mas...
— Então, afaste-se! Eu devia ter notado os sinais. Os delírios, as oscilações de humor de Gwen... Pelo amor de Deus, eu pensei que fosse TPM!
— Quero ajudar!
— Pegue um pouco de água.
Artur continuou a assistir à cena, horrorizado, enquanto apanhava a água. De repente, Gwen tossiu e sacudiu a cabeça.
Isabel sentou-se sobre os calcanhares e enxugou a testa. Em seguida levantou a rainha para a posição sentada e aceitou o cálice de água fresca de Artur.
— Bem-vinda de volta, Gwen. Você me deu um susto e tanto... Agora, por favor, beba.
A moça segurou a base da taça e tentou virá-la de uma vez, porém Isabel a impediu.
— Não! Só um gole ou dois. Precisamos hidratá-la, mas não de uma vez.
Artur nunca se sentira tão indefeso antes. Não sabia o que havia acontecido com sua esposa, não compreendia o que Isabel acabara de fazer. Sabia apenas que fora inútil, exceto por ter trazido aquele copo de água.
Deixou-se sentar pesadamente numa cadeira. Tudo indicava que sua rainha passara muito mal, e que a mulher que agora desejava tinha acabado de salvar a vida de Gwen bem diante de seus olhos, sem que ele nada pudesse fazer para ajudar.
— Artur?
Ele escutou o chamado, porém o latejar em seus ouvidos o impediu de ouvir.
— Artur!
Ele abriu os olhos. Isabel estava sentada agora, olhando para ele.
— Artur, eu sei que estou sendo repetitiva, mas, por favor, leve a sua esposa para os aposentos dela. Gwen parece bem agora, mas é bom que Tom a avalie melhor.
— Mas Tom é apenas um médico de dentes.
— Para ser qualquer tipo de médico na minha terra, é necessário que a pessoa entenda de todos os tipos de medicamento. Tom está mais bem preparado do que eu para fazer um diagnóstico.
— Diag...?
— Para descobrir o que aconteceu. Precisamos levar Gwen para a cama dela. Coragem, garotão. Carregue sua esposa até o outro quarto.
Até então, muitas pessoas haviam entrado no quarto, e Isabel assumiu o controle de todas elas.
— Mary, por favor, traga tanta água fresca quanto for possível para os aposentos do rei e da rainha.
— Sim, senhora.
— Jenny, por favor, traga para Tom todos os tipos de flores ou ervas que a rainha usou em seu chá ou em qualquer outra refeição hoje.
A moça chamada Jenny fez uma reverência e desapareceu.
— Mordred... Que bom vê-lo por aqui. — Isabel olhou a perna do rapaz. — Ao que parece, porém, Dick atou sua perna como a de um ganso, ou algo parecido.
— Mesmo assim, eu gostaria de ajudar. De que forma for, condessa.
Ela assentiu.
— Que tal abrir caminho para que ninguém atrapalhe a volta de Gwen para sua própria cama?
— Será um prazer — murmurou o rapaz.
Artur quase sorriu ao ver o filho se iluminar com orgulho por ter uma missão a cumprir. Ele devia ter dado uma lição naquele garoto havia muito tempo! Bastara um chute bem dado, e Isabel tinha feito tudo o que ele deixara de fazer a vida toda.
— Artur?
Ele piscou, tentando se livrar de todos os pesares.
— Sim, condessa. Diga-me o que devo fazer. — Isabel o fitou, e Artur sentiu o vínculo entre eles mais uma vez. Não teve tempo de avaliá-lo, contudo. — Ela já pode ser removida? — indagou, ansioso.
— Sim. Mordred abrirá caminho para vocês.
Artur se inclinou sobre Gwen, que ainda parecia mal.
— Consegue passar os braços pelo meu pescoço, Gwen?
— Lancelot? — balbuciou ela, confusa.
Ele quase a jogou de volta ao lugar, mas Isabel o segurou pelo braço.
— Ninguém ouviu isso, a não ser você e eu, Artur. Pegue-a e leve-a para a sua cama.
— Para a cama dela . Não é mais minha — corrigiu ele, erguendo a esposa nos braços, mesmo assim. — Mordred, meu filho, parece que vai nos escoltar.
— Sim, senhor. Embora mais devagar do que eu gostaria.
Artur voltou-se antes de deixarem o quarto.
— Minha gratidão por ter salvado a rainha.
Isabel sorriu para ele.
— Tenho vivido grandes emoções em Camelot.
Ele fez uma careta quando Gwen o apertou no pescoço.
— Se as posições estivessem invertidas, você sabe... Gwen talvez não houvesse se esforçado tanto para salvar sua vida, como fez com ela.
— Prefiro pensar que sim.
Artur balançou a cabeça, porém sorriu.
— Quando isto tudo acabar, precisamos conversar em um lugar que gosto de chamar de “terra do la-la-la”.
Conforme ele carregava Gwen para fora do quarto, a risada melodiosa de Isabel lhe encheu os ouvidos.
— Ah, se tivesse sido a senhora! — exclamou Mary, irrompendo quarto adentro e se atirando nos braços de Isabel, a ponto de quase derrubá-la.
— Mas não fui eu, Mary. O que eu gostaria de saber é quem ou o que causou isso.
Mary endireitou o corpo, esfregando os olhos no avental.
— Eu não sei. Mas tal coisa não pode acontecer com você! — Ela rumou para a banheira e começou a recolher todas as ervas e flores.
— Mary...
— Não vou permitir que ninguém a envenene, Isabel. Não vou!
Isabel sorriu. Ela apostaria um bom dinheiro que Mary havia se esquecido de que proibira a si mesma de chamá-la de qualquer coisa a não ser “condessa”, “senhora”, ou o que fosse.
— Mary...
— E se tivesse sido com você? E se eu tivesse servido algo que lhe houvesse feito mal? Como eu poderia fazer o que fez para salvar a rainha? — Ela se voltou para a condessa, o avental carregado com todas as ervas e flores que tinha polvilhado, pouco tempo antes, no banho de Isabel, na intenção de torná-lo maravilhoso.
Isabel, por sua vez, continuava sob o choque de tudo o que acontecera com Gwen.
— Despeje tudo de volta na banheira, Mary.
— Não, não vou fazer isso! — exclamou a moça, as sardas quase saltando do rosto bonito. — Elas podem ser perigosas!
— Por favor, Mary. Não estou exigindo, apenas pedindo.
— E se eu me recusar? — indagou a menina com o queixo erguido.
— Vou lhe pedir que busque mais, assim aproveito o meu banho sossegada!
Mary deixou cair os ombros, depois se virou e despejou o conteúdo do avental na banheira.
— Mas como vou protegê-la dos venenos?
Isabel sorriu.
— Quer entrar na banheira antes de mim?
Mary riu.
— Se desejar, condessa...
— Que tal beber a água do banho?
Mary riu ainda mais, e não conseguiu parar até que desabou no chão.
— Só se ela me transformasse em uma mulher tão bonita como você... Isabel.
Isabel parou, sem saber o que a havia deixado mais atordoada: o fato de Mary ter finalmente se atrevido a chamá-la pelo primeiro nome, ou por ter dito algo tão doce. Mas a troca verbal durou apenas um momento, e ela riu e caiu no chão com Mary, abraçando-a com força.
Continuaram a rir por algum tempo, até que ela fez a menina endireitar os ombros e lhe ajeitou os cabelos para trás.
— Mary, é uma mulher tão bonita... Eu gostaria de ter sido tão linda como você quando tinha a sua idade. Caramba, sabe do que os meninos me chamavam quando eu tinha treze anos?
— Não. — Mary balançou a cabeça. — Do quê?
Santo Deus, agora nem ela conseguia se lembrar! Sabia ser algo que sempre acabava com um nariz sangrando ou dois, mas se esquecera do apelido.
“Pau de virar tripa.”
“Ah, obrigada por intervir, Viviane!”
“De nada. Foi apenas um lembrete.”
— Eles me chamavam de “pau de virar tripa”. Era terrível.
— Não sei o que quer dizer — respondeu Mary.
— Eu era alta demais para a minha idade e muito magra. Então, os meninos me provocavam sem dó. No fundo, as pessoas desagradáveis dizem coisas desagradáveis apenas para se sentirem melhor. Eu, por exemplo, já superei essa história de “pau de virar tripa” faz tempo. Se alguém já lhe disse coisas ruins, garanto que foi gente idiota. Quaisquer que tenham sido os comentários, estes não significam nada e são infundados. É uma mulher linda e está se casando com um dos melhores partidos do reino de Camelot. Garanto que James não pediu a sua mão porque ele a acha feia. Não fica feliz por isso?
Mary assentiu.
— Às vezes eu queria que James não fosse tão importante no reino.
— Por quê?
— Porque talvez as minhas amigas não houvessem se afastado de mim tão depressa.
— Elas se afastaram de você?
Mary concordou, e uma lágrima caiu em seu joelho.
— Mais tarde eu fui designada para ser sua criada, e elas se afastaram ainda mais.
Isabel viu a mágoa nos olhos de Mary e se perguntou em que tipo de mundo vivia aquela garota para ter de escolher entre as amigos e seu homem. Ou entre o sucesso de qualquer forma e permanecer estagnada. Suspirou. Teoricamente, em seu próprio tempo aquele tipo de coisa também devia acontecer. Como pais imbecis, estúpidos e preconceituosos que preferiam ver a filha morta a casada com pessoas de outra raça ou religião. Mas aquilo com Mary... Aquilo estava muito errado.
— Mary, você ama James?
— Ah, sim! Eu o amo muito.
— Muito bem. Pois trate de se importar apenas com as amigas que estão felizes por você se casar. E, uma vez que estiver casada e numa posição social superior, traga-as para o seu lado. Esqueça as que deixaram a inveja e o ciúme corromper o próprio julgamento. Ou melhor, faça como quiser. Pode perdoá-las ou ignorá-las. Mas nunca, jamais, esqueça as amigas que ficaram felizes por você, está bem?
— Eu nunca vou me esquecer, condessa Isabel!
— Melhor não esquecer mesmo!
Era uma coisa boba, Isabel sabia, mas já se sentia tão próxima de Mary que era quase como se elas tivessem se conhecido a vida inteira. Apenas dois dias tinham se passado?
Levantou o dedo mindinho.
— Vamos ser amigas a vida toda, mas, para isso, precisa concordar.
Mary a observou, confusa. Então pareceu compreender, finalmente.
Ergueu o dedo mindinho também, e ambas os entrelaçaram.
— Amigas para sempre, Mary. O vínculo mais importante.
— Amigas para sempre — confirmou a menina.
Isabel conteve as lágrimas. Levantou-se, por fim, puxando Mary com ela.
— E agora, senhorita, por favor, vá pedir que me tragam baldes e baldes de água bem quente.
Mary olhou para a banheira.
— Mas, Isabel, e se...
— A rainha bebeu água com ervas, Mary, ela não se banhou nela.
— Tem certeza?
— De acordo com Jenny, que veio me dar notícias, Tom confirmou tudo. Ele fez Gwen vomitar o chá que tinha ingerido.
— Que coisa desagradável!
— Nem me fale.
— Vou pedir que lhe tragam a água quente agora mesmo.
— Obrigada.
Ambas sorriram, coroando sua amizade, depois Mary fez meia-volta para sair. A menina surpreendeu Isabel, contudo, ao se voltar para encará-la.
— Fiquei muito orgulhosa de você hoje.
Isabel sorriu ainda mais, sentindo-se tão leve que poderia dormir por uma semana.
— Obrigada, Mary. Foi apenas algo que aprendi quando era mais moça.
E que ela queria desesperadamente ter aplicado em Curtis, no Afeganistão. Mas havia sangue demais.
— Isabel... — chamou Mary mais uma vez.
— Sim, Mary?
— O rei estava muito preocupado com você.
— Comigo?
— Não que ele não estivesse preocupado com a rainha... Mas notei como ele ficou do lado de fora do quarto, todo nervoso. E ele estava preocupado com você .
— Obrigada por me avisar. Vou tranquilizá-lo na hora do jantar.
Após um banho longo e luxuriante, Isabel saiu, sentindo-se melhor, ainda que meio cansada. Um dia que prometia tanto acabara sendo mais do que conturbado.
Mary, que tinha a incrível capacidade de saber exatamente quando ela iria precisar de alguma coisa, veio ajudá-la a se vestir e a arrumar o cabelo. Fez uma trança simples, mas que lhe contornava a lateral do pescoço, descansando em seu peito.
— Colhi algumas flores esta manhã, com a intenção de colocá-las em seu cabelo esta tarde ou à noite, mas, depois do que aconteceu hoje... — explicou, estremecendo.
— Mary, não sabemos se foi alguma flor que fez a rainha passar mal. E, como já conversamos, ela deve ter ingerido a planta em comida ou bebida para ficar doente.
— Não custa sermos cautelosas.
“Supersticiosas” seria a palavra mais adequada, porém Isabel nada disse.
— Tenho um recado de Tom, seu médico, condessa — lembrou-se Mary, enquanto se erguia e admirava o próprio trabalho. — Ele pede que vá encontrá-lo no quarto de dormir da rainha.
— Verdade? — Isabel se levantou. — Então me mostre o caminho agora mesmo!
Capítulo Dezessete
No fim, o quarto real não era tão distante do dela, constatou Isabel. E Mary informou que tal proximidade era considerada uma honra. Quanto mais importante era o convidado, mais próximo ficavam seus aposentos dos do rei e da rainha.
O dormitório real era exatamente isso: real. Tapeçarias cobriam a maior parte das paredes, e o brasão de armas de Camelot — suspeitava ela — era o que estava dependurado acima da cabeceira da cama.
A cama era em estilo dossel, com sedas verde-escuras drapeadas nas laterais. No momento o cortinado de seda estava afastado e atado com cordames dourados, de modo que Gwen estava visível em meio à enorme cama, parecendo muito pálida e frágil.
Tom cochilava, sentado em uma cadeira próxima à lareira acesa que, por sua vez, emprestava um brilho rosado e quente ao cômodo. Não vendo ninguém no quarto que lhe desse licença para entrar, Isabel cruzou o espaço em silêncio e sacudiu o amigo de leve.
Ele despertou com um ronco, depois se sentou e piscou.
— Ah!... Isabel. Que bom que veio. — Tom se levantou e ajeitou as leggings com uma careta. — Meu reino por um belo par de calças cáqui e uma camisa polo — resmungou.
Isabel o abraçou, rindo baixinho.
— Está meio ridículo, mesmo — confessou, antes de recuar e fitar o rosto do amigo, atenta. — Eles estão lhe tratando bem? Raramente o tenho visto, exceto às refeições.
— Se este fosse um Hilton medieval, eu lhe daria cinco estrelas. Sim, eles têm sido muito atenciosos com nós três. Mas, graças a Deus, a deusa foi gentil o suficiente para permitir que trouxéssemos alguns luxos de casa.
— Verdade? Quais?
— Harry encontrou um baralho no baú dele. Depois que dispensamos os criados à noite, costumamos nos reunir para algumas rodadas de pôquer.
— Ei, vejam se me convidam da próxima vez!
Ele sorriu.
— Temos justamente evitado fazer isso, já que tem o hábito de nos limpar na faculdade.
— Bela merda!
Eles riram em conjunto. Ela e Tom tinham namorado algumas vezes na faculdade, até decidirem que davam mais certo como melhores amigos. Depois disso, tomaram como missão encontrar as almas gêmeas um do outro, obrigando-se a se arrumar o máximo de pretendentes possível. Isabel vencera a aposta ao arranjar para Tom um encontro com Brenda Newesome, uma menina adorável que ela conhecera quando ambas trabalhavam como garçonete para ajudar a pagar os estudos. Fora amor à primeira vista. Tom e Brenda continuavam juntos desde então e tinham três filhos: dois meninos gêmeos e uma linda menininha.
— Ah, Tom, eu sinto muito por Brenda e as crianças. Espero que eles não estejam loucos de preocupação.
— Ei, sou apenas um sósia, lembra-se? A deusa nos garantiu que a vida continua acontecendo normalmente por lá. Você é a única de verdade aqui.
Isabel se perguntou se alguém estava sentindo falta dela em Oklahoma. As pessoas estariam procurando por ela? Teriam encontrado seu corpo?
“Tua propensão a sumir é bem conhecida. Mas, não, Isabel, ainda não foste encontrada. Se as coisas em Camelot terminarem a contento, tua história em casa há de ser contada.”
“Obrigada, Viviane.”
“Sou eu quem agradeço, e me orgulho por ter te escolhido. Melhor mulher para Artur ninguém podia ter sido!”
No fundo, Isabel queria mais era não receber tantos elogios. Estava feliz por ter ajudado outro ser humano em perigo, mas era como se fosse precisar fazer isso o resto da vida.
Conhecia o próprio temperamento, as próprias falhas. E perfeição nunca fizera parte de seu dicionário. Por outro lado, numa categoria do Guinness “Quantas vezes você pode ferrar com a sua própria vida?”, seu nome poderia aparecer em letras garrafais!
Isabel afastou o pensamento.
— Como está a sua paciente? — quis saber, preocupada.
— Ah, sim...
Ambos se aproximaram da cabeceira. Alguém colocara roupas de dormir em Gwen, e Isabel se viu torcendo para que Tom tivesse despido e ajeitado a rainha com a ajuda de alguma ama ou outra criada do gênero, e não de Artur.
Era um pensamento ridículo, já que o rei obviamente vira sua mulher nua inúmeras vezes.
— Eu tive o privilégio de tentar descobrir qual o conteúdo do estômago da rainha, uma vez que ela o expeliu. O que ficou óbvio é que ela havia ingerido algum tipo de cogumelo selvagem. Eu soube, por meio do cozinheiro que preparou seu desjejum, que Gwen os descobriu recentemente e solicitou que estes lhe fossem servidos com ovos no café da manhã.
— Eram cogumelos venenosos?
— Meu palpite é de que sim.
— Então seriam eles os responsáveis pelas alucinações de Gwen? Por seu comportamento irracional e por seu aparente ataque cardíaco?
— Até onde posso afirmar, considerando a terrível falta de equipamentos por aqui, não foi bem um ataque cardíaco, e sim puro envenenamento. Você salvou a vida dela ao aplicar a reanimação cardiopulmonar e ao mantê-la viva por tempo suficiente até que eu pudesse ajudar, Izzy.
Isabel sorriu.
— A RCP que me ensinou há muito tempo.
— Quem poderia imaginar que era uma aluna tão boa? Imaginei que estivesse apenas se divertindo quando concordou em ser minha boneca.
— Como fez Gwen vomitar?
Tom fez uma careta.
— À moda antiga.
— Enfiando dois dedos na garganta dela?
— Isso mesmo. Gwen não ficou muito feliz. Quase mordeu meus dedos. Mas, se não fosse por você, Izzy, ela não estaria aqui.
Artur mal acreditou no ciúme que revirou seu estômago quando, da porta, testemunhou a familiaridade de Isabel com o médico de dentes. Ele deveria estar preocupado com sua esposa! Devia estar considerando a ideia de um possível assassino querer o mal de Gwen ou de alguém em Camelot. Mas sua mente só conseguia processar Isabel tocando outro homem. Entrou no aposento, tentando controlar a vontade de livrar o médico de todos os seus próprios dentes.
— E eu testemunhei tudo isso — completou ele o diálogo que travavam.
Ambos se voltaram.
— Artur! — falou Isabel.
— Majestade... — disse Tom cheio de dentes, dirigindo-lhe uma mesura desajeitada. Não devia haver muitas formalidades em Dumont, considerando a falta de prática de seus habitantes.
— Na verdade, testemunhei muitas coisas hoje — acrescentou Artur. — E não conheço nenhuma recompensa boa o bastante para expressar minha gratidão.
Tom e Isabel se entreolharam, em seguida riram e disseram ao mesmo tempo:
— Não tem de quê!
Os dois caíram na risada enquanto Artur franzia a testa, confuso.
Isabel sorriu. Em seguida, tomou o braço de Tom no dela e o empurrou de brincadeira.
— Nós somos amigos há muitos anos, Artur. Desde que estávamos na escola lá em Okl...
— ... em Dumont — interrompeu-a Tom.
— Sim, em Dumont.
Artur observou seus braços dados, e Isabel se desvencilhou do amigo rapidamente, dando um passo para o lado.
O rei olhou para Gwen.
— Será que ela vai se recuperar?
— Totalmente. Precisa apenas de repouso e muita água em pequenas quantidades. Se a rainha sentir uma necessidade insaciável de continuar a beber, precisa ser controlada. Na verdade, necessita de pequenas quantidades em tudo. Sua alimentação precisa ser reintroduzida aos poucos. Galinha ou caldo de carne a princípio, depois um pudim de arroz ou pão. Nada muito gorduroso ou pesado por algum tempo e, em alguns dias, estará nova em folha.
— Tenho que passar todas essas informações à criada dela, Jenny.
— Isso já foi feito — afirmou Tom. — Eu mesmo orientei a moça, depois a mandei descansar, pois ela estava muito abalada. Mesmo assim, Jenny virá para cá em breve para que eu mesmo possa descansar um pouco.
— Então, os cogumelos eram mesmo a substância venenosa, como suspeitava? — indagou Artur.
— Tenho quase certeza de que sim. Nada mais mudou na rotina da rainha, de acordo com Jenny.
— E foi a própria Gwen quem levou esses cogumelos ao cozinheiro?
— Foi. Não houve nada nefasto aqui, rei Artur. Apenas um terrível acidente.
— Eu gostaria de saber onde ela arrumou esses cogumelos. Eu nunca vi nada do gênero na propriedade ou nos jardins. Pelo visto, não tenho monitorado esses detalhes como devia.
— A rainha os encontrou na cabana mais distante, ao extremo sudeste da propriedade — revelou Tom. — Ao menos foi o que ela me disse enquanto expelia alguns deles.
Primeiro Artur arregalou os olhos, depois os estreitou.
— Eu conheço a cabana de que está falando.
— Então sugiro que mande seus jardineiros para lá e faça-os dar fim a esses cogumelos o mais rápido possível. Antes que alguém mais os tome como iguarias em potencial, e não como os venenos mortais que podem ser.
Artur balançou a cabeça. Em seguida, olhou novamente para a esposa. Devia ter vontade de acariciar seu rosto pálido, de puxar uma cadeira e sentar-se, vigilante, a seu lado.
— Se quiser ficar com ela, Artur, podemos sair para lhes dar privacidade — ofereceu Isabel.
— Não há necessidade — contrapôs ele enquanto observava a rainha. — Gwen parece estar mais bem cuidada do que eu seria capaz de fazer. — Ele tomou a mão de Tom e a sacudiu. — Minha eterna gratidão.
Isabel ficou um pouco chocada. Não testemunhava um aperto de mão de verdade desde que havia chegado ali. Tinha imaginado até que tal prática não havia sido inventada ainda; apenas aquela história de beijar anéis, rebaixar-se, e aqueles resmungos de aprovação entre os homens.
— Nem sei como começar a retribuir a vocês dois. O fato de a terem salvado, quero dizer.
Tom sorriu.
— Não há...
— ... de quê, eu sei — concluiu Artur com um leve sorriso curvando os lábios. — Mas sou muito grato por estarem aqui.
— É um prazer.
— Posso acompanhá-la, condessa? — quis saber Artur.
— Claro! — respondeu Tom por ela antes que Isabel pudesse fazê-lo e a olhou de soslaio. — Não se esqueça de que ainda temos aquela aposta, Izzy.
— Eu sei que não é um pedido muito adequado — começou Artur conforme Isabel e ele desciam pelos intermináveis degraus até o salão principal. — Mas concordaria em caminhar comigo até a casa onde, acredito, Gwen encontrou os cogumelos?
— Até a cena do crime? — indagou Isabel, brincando. Em seguida, vendo a confusão de Artur, ela suspirou. — Claro que sim. Ficarei feliz em ajudá-lo a encontrar esse veneno.
Caminharam por trilhas sinuosas, cobertas com matéria vegetal em decomposição, e a vegetação foi se tornando cada vez mais densa conforme andavam. A rápida tempestade havia passado, e o sol brilhava mais uma vez.
Ambos ficaram em silêncio por algum tempo antes que Artur finalmente se manifestasse.
— Imagino que deva estar me considerando um insensível por não ter ficado ao lado de Gwen.
— Não é meu direito julgar, Artur.
— Tem opiniões sobre todas as coisas, Isabel. Também deve ter uma a esse respeito.
Ela parou e o encarou.
— Quer mesmo a minha opinião? Não importa qual seja?
Ele sorriu.
— Sim, condessa, quero.
— Ótimo. Se é assim, pode se preparar, machão... Aqui vai o que eu sinto. Direto da minha cabeça.
— Estou preparado.
— Acredito que estamos indo para a casa de campo onde Lance e Gwen se encontram. Creio que, depois de seu último encontro, ela tenha se deparado com os cogumelos. Acho também que, se não está sentado ao lado dela agora, é porque se recusa a ser hipócrita. Então se certificou de que Gwen não corria mais risco de morte e pôs um monte de gente ao redor dela para garantir que ela será bem cuidada.
— Até agora, está absolutamente certa.
— Não me interrompa, estou inspirada!
Artur continuou a sorrir e, caramba, ela amava aquele sorriso!
Ele se manteve em silêncio, contudo.
— Você me pediu que eu viesse aqui não apenas para ajudá-lo, mas porque queria ficar sozinho em um lugar bonito e isolado. Queria me dizer coisas que não pode dizer no castelo. Em resumo, Artur, queria ficar sozinho comigo .
— Posso falar agora? — perguntou ele, os olhos ainda brilhando com humor.
— Pode.
— Está certa, mas se esqueceu de um detalhe importante.
— Qual?
— Também acredito que este seja o ponto de encontro de Gwen e Lance, e também não queria vir até aqui sozinho. Temia fazer algo precipitado e necessitava da voz da razão a meu lado para me impedir de agir por impulso.
— Entendo. — Isabel parou. — Artur, você é pelo menos uns quinze centímetros mais alto do que eu e, provavelmente, tem o dobro do meu peso. O que o faz acreditar que eu poderia impedi-lo de fazer qualquer coisa?
— Primeiro porque fui testemunha de como lidou com Mordred.
— Mas você o estava segurando! Não seria a mesma coisa se ele estivesse solto.
— Em segundo, porque as suas palavras são mais poderosas do que qualquer arma, Isabel. Eu posso enfrentar uma espada, mas tenho muito pouca defesa contra as suas palavras e seus pensamentos.
A confissão deixou Isabel atordoada. Não era possível que ela tivesse tanto poder sobre um ser humano.
— Está me superestimando, Artur.
— Vamos comprovar isso se o meu desejo de pôr fogo a essa cabana for mais forte que eu.
— Bem, eu tenho um bom argumento contra essa medida drástica. Se não puder se controlar, estará correndo o risco de destruir muito mais do que apenas a estrutura da casa.
— Viu? É esse tipo de raciocínio que precisa sobrepujar essa minha visão simplista e míope.
— Descarregar sua raiva em uma inocente cabana não vai mudar o que aconteceu lá dentro, Artur. A casa não provocou o andamento das coisas.
Ele a segurou pelo cotovelo, e eles continuaram caminhando.
— Acredita no destino, Isabel?
— Sim, acredito. Embora eu admita que, às vezes, o destino dê algumas guinadas engraçadas.
— Como assim?
— Por exemplo, eu acreditava que o meu propósito de vir a Camelot era um; mas creio que o destino conspirou para fazer algo muito diferente.
— Ainda vejo essa troca entre nossos reinos como um benefício, tanto para Camelot como para Dumont.
Ela ainda não havia pensado naquilo, mas não ousou corrigi-lo.
— Concordo. E creio que isso seja viável.
— Quer dizer que agora acredita que o destino tinha algo mais em mente?
— Acredito.
— E o que seria?
— Vai soar muito pretensioso.
— Estou escutando.
— Acredito que eu esteja aqui a fim de, não sei, fazer o que estiver ao meu alcance para ajudá-lo a salvar Camelot daqueles que desejam derrubá-lo.
— Isso não é nada pretensioso. Na verdade, fico muito tocado. Minha teoria, contudo, é um pouco diferente.
— Muito bem... Vamos ouvi-la.
— Acredito que tenha sido mandada aqui para me salvar.
Caramba, ele tinha acertado na mosca! Bem, não exatamente. A finalidade principal, no que dizia respeito à deusa, era salvar Merlin. Mas aquilo significava salvar Artur, em primeiro lugar.
— Você? — perguntou ela com cuidado, embora sentisse o coração disparar.
— Sim, não percebe? Mesmo quando pus em prática esse sonho de reunir cavaleiros em minha távola, meu casamento já estava com problemas. Mas eu estava muito entusiasmado com o futuro de Camelot, e de todos os bretões, para enxergar isso. E, então, quando o mau cheiro dessa terrível traição começou a ficar insuportável, você apareceu. O destino interveio e me deu você.
Ou Viviane , pensou Isabel, rindo.
— Não sou nenhum presente, Artur.
— Para mim, você é.
Ela não teve resposta para aquela afirmação.
— Quanto falta para chegarmos à cabana? — perguntou, nervosa.
— Ora, ora, condessa Isabel... Parece que consegui o que até o momento eu acreditava ser impossível: eu a deixei sem palavras.
Isabel procurou desesperadamente algo para dizer. Algo espirituoso, sábio, idiota. N ão importava. Mas Artur estava certo. Ela ficara sem palavras.
Um presente? Ninguém nunca a havia considerado um presente antes. Uma maldição, talvez.
Artur riu.
— Venha, Isabel. A cabana fica logo depois daquela curva.
Estavam se aproximando da curva, quando ele levantou o braço como uma barreira. Em seguida, levou um dedo aos lábios. Por um momento, Isabel ficou confusa e atordoada com a doce admissão de Artur.
Mas depois ouviu também: um ruído pouco à frente. Em um movimento rápido, Artur puxou uma flecha da aljava às suas costas. Em seguida, ergueu o arco e o armou.
— Fique aqui — pediu baixinho.
Como uma perigosa pantera, ele começou a avançar silenciosamente em direção a qualquer presa que pudesse encontrar.
O coração de Isabel parecia querer saltar para fora do peito. O medo de que acontecesse algo com Artur quase a fez desfalecer.
Tensa, ela apertou o colar de lágrimas na mão, perguntando-se se aquele seria o momento de invocar seus poderes.
“Não, Isabel, a hora não é essa. Poupe teu poder para quando o perigo for mais que uma promessa.”
Nossa , Vivi estava caprichando cada vez mais nas rimas!
“Artur é um guerreiro que não pode ser igualado. Permite que ele te proteja e fique sempre ao teu lado.”
O rei se escondeu atrás de um carvalho-dos-pântanos, então espiou por cima deste devagar, o arco ainda erguido na direção do barulho. Tinha o corpo retesado, tenso, e Isabel teve uma pequena amostra do que seria vê-lo em ação em uma batalha, pronto para atacar qualquer inimigo que houvesse pela frente.
De repente, porém, seus ombros relaxaram, e ele baixou o arco, removendo a seta e empurrando-a de volta para a aljava.
— Lance! — chamou. — Sou eu, Artur.
— Senhor! — respondeu Lancelot. — Não percebi sua aproximação.
Artur olhou para trás e acenou para que Isabel se juntasse a ele.
— Na verdade, somos a condessa Isabel e eu. Viemos procurar... — A voz dele sumiu.
Isabel se juntou a Artur e entendeu por quê. Numa clareira, diante de uma encantadora cabana de madeira, Lancelot estava de joelhos, colhendo cogumelos do chão freneticamente e colocando-os em uma pilha enorme a seu lado.
A própria casa dava sinais do toque de Gwen. Havia vasos de flores pendurados em locais estratégicos ao longo das paredes externas, repletos de cravos coloridos e amores-perfeitos, bocas-de-leão em miniatura e petúnias. Flores do campo brotavam em ambos os lados da construção. Um perfume floral inundou-lhe as narinas, mas foi logo suprimido pelo cheiro úmido da vegetação da floresta, além do de terra remexida. No momento, entretanto, a clareira parecia mais um campo minado.
Ao avistar Isabel, Lance se pôs de pé e se curvou, mas não antes que ela tivesse um vislumbre de seu rosto banhado pelas lágrimas.
— Condessa — murmurou ele, em seguida tentou enxugar as faces.
Artur tornou a segurar Isabel pelo cotovelo, e eles adentraram a clareira.
— Imagino, Lance, que já esteja ciente do perigo que esses cogumelos representam.
— Eles quase a mataram — admitiu Lance com voz embargada.
— Mas não o fizeram, graças ao raciocínio rápido de...
— ... de meu médico, Tom — interrompeu Isabel depressa.
Lance olhou para o cogumelo que ainda tinha na mão e o esmagou com raiva antes de jogá-lo na pilha.
— Seu médico, condessa, me contou uma história um pouco diferente. Mal posso expressar minha... Quero dizer... Em nome do rei , devo-lhe minha gratidão.
— De modo algum.
— Viemos justamente atrás da causa desse desastre, Lance. Eu havia planejado mandar um dos meus jardineiros até aqui para destruí-los, mas parece que você nos poupou desse trabalho.
— É um prazer fazê-lo, senhor. Temi que outra pessoa os encontrasse e cometesse o mesmo erro de Gw... da rainha. Que os Céus nos livrem. Poderia ser uma ou mais das nossas crianças.
— Que os Céus nos livrem, de fato. Que planos tem para essa pilha, depois que terminar de colher tudo o que puder?
— Pretendo queimá-la, senhor.
— Boa ideia. Só não se esqueça de manter o fogo sob controle. Ninguém quer que ele se espalhe e queime esta linda cabana.
Isabel ocultou um sorriso. Era quase o mesmo aviso que ela dera a Artur no caminho até ali.
— Eu gostaria, com a sua permissão, Lance, de levar um desses cogumelos para o castelo comigo. Seria útil mostrá-lo aos cozinheiros como alerta. De preferência um que ainda esteja relativamente intacto, uma vez que aqueles que você já colheu viraram uma massa vegetal cinzenta...
Lance se curvou e puxou outro cogumelo da terra quase com raiva. Depois avançou um passo e, com uma rápida mesura, indagou:
— Será que este atende aos seus propósitos, meu rei?
— Sim — concordou Artur, apanhando o cogumelo e colocando-o na pequena bolsa que trazia junto ao quadril. — Muito bem... pode continuar. Agradeço por sua preocupação com a segurança do povo de Camelot.
— Sempre a seu serviço, senhor.
Isso quando ele não estivesse a serviço de Gwen , completou Isabel mentalmente, condenando a si própria pela natureza desagradável do pensamento. Uma vez que ela mesma estava cobi çando um homem casado, não estava com muita moral para julgar outra pessoa.
Além do mais, a declaração apaixonada de Lancelot, de que ele estaria sempre a serviço de Artur, tinha um quê de verdade. Lance não era apenas um bom soldado. Era óbvio para ela que, por trás de sua sinceridade quase infantil, havia um poço de culpa.
Isabel ficou morrendo de vontade de explorar o interior da casa, mas sabia que seria cruel demais com Artur, então suprimiu tal desejo.
— Vamos voltar para o castelo? — sugeriu. — Preciso dar uma olhada em Samara antes da ceia.
— Claro. — Eles se viraram para ir embora, porém Artur fez meia-volta. — Lance?
— Sim, senhor?
— Por favor, não permita que a raiva e a tristeza lhe toldem o bom-senso. Se eu consegui me aproximar sem que se apercebesse disso, outro pode fazer o mesmo.
— Sim, meu senhor.
— Tem o sentido mais aguçado que já testemunhei. Faça bom uso dele. Eu não gostaria de perder um dos meus melhores soldados.
— Sim, senhor.
— E tome cuidado com esse fogo.
— Sim, meu senhor.
Artur se voltou para Isabel e estendeu o braço.
— Vamos?
— Vamos — concordou ela, colocando a mão no bíceps firme com prazer.
Eles já haviam caminhado por vários minutos quando Isabel sussurrou:
— Você é um homem incrível, Artur.
Ele a fitou com surpresa.
— Fico muito feliz por pensar assim. Mas o que provocou essa observação?
— Qualquer outro iria querer estrangular aquele moleque sem-noção.
— Além de uma mínima satisfação e de dor nas juntas, o que mais isso me traria?
— Ah, não sei. Talvez pudesse fazê-lo enxergar o tamanho do erro que cometeu.
— Essa fronteira já foi cruzada, Isabel. Não há volta. E isso não iria mudar os sentimentos que ele nutre por Gwen. Não posso arrancar de dentro de Lancelot o amor que ele sente por minha esposa.
— É verdade.
— Cheguei a acreditar, em determinado momento, logo que comecei a ter suspeitas, que essa coisa entre os dois fosse se desfazer eventualmente, como fogo sob água. Mas não acredito mais, tampouco alimento esperanças de qualquer gênero. Verdade seja dita: se eu fosse capaz de revelar meus sentimentos para Lance, creio que eu apenas lhe desejaria boa sorte e pediria que ele sempre tratasse Gwen como ela merece.
— Tem uma incrível capacidade de perdoar, Artur.
Ele ponderou a respeito.
— Talvez não tanto como essa recém-descoberta compreensão de como eles estão se sentindo. Deve ser um fardo amar profundamente e não poder revelar tal coisa a todo o mundo.
— Por que não pode contar a Lance, em particular, sobre como se sente? Talvez isso aliviasse parte desse fardo.
— No momento em que eu revelar tudo a ele, Isabel, por mais gentil e cordata que seja a nossa conversa... No instante em que eu fizer tal coisa, estarei acusando Lancelot de traição.
— Mas já revelou tudo a Gwen. Não a acusou do mesmo modo?
— Apenas a deixei ciente de que sei de sua infidelidade. Gwen conhece as implicações para seu ato. Também compreende que, a qualquer momento, eu poderia denunciá-la para todos que quisessem ouvir, e ela teria de pagar o mais elevado dos preços: deveria pagar com a própria vida.
— Nossa, não deve ser fácil ter um fardo desses para carregar.
— Por outro lado, Gwen também sabe que eu nunca faria uma coisa dessas com ela.
— Ela acredita que você a ama muito.
— Sim, creio que sim. E não está superestimando minha preocupação com seu bem-estar. O que talvez ela não saiba é que amor e carinho não são necessariamente a mesma coisa. Não mais.
— Posso fazer outra pergunta?
Artur riu.
— Desde quando pede permissão para isso?
— Desde agora. Porque sua sinceridade é importante para mim.
O castelo se fez avistar conforme eles terminaram uma curva, e o cheiro dos animais e do suor de trabalhadores quase a sufocou. Isabel quase desejou correr de volta para o meio da floresta, mesmo que esta também exalasse odores que ela preferia evitar.
— Não acredito já ter sido desonesto com você, Isabel — afirmou Artur, parecendo um pouco ofendido por ela ter qualificado a pergunta. — Mas tem a minha palavra de que a minha resposta será sincera.
— Por que confia tanto em mim? Quem lhe garante que eu não poderia virar o jogo e revelar tudo para alguém que iria usar a informação contra você, Gwen ou Lancelot?
— Creio que já superamos essa fase.
— Superamos?
— Sim, mas talvez eu tenha sido muito conciso. Permita-me dizer, com toda a sinceridade de que disponho... — Artur parou e a virou pelo rosto, de modo que ela pudesse ver a verdade em seus olhos. — Desde o instante em que pousei o olhar em você, fiquei encantado. Naquela nossa jornada até o castelo, foi a companhia mais agradável que já tive a oportunidade de desfrutar. Eu sabia antes mesmo de termos alcançado a muralha que você... que você havia mexido com alguma coisa dentro de mim. Eu nunca tinha sentido isso, nem mesmo enquanto cortejava Gwen.
— Está bem, nós já falamos sobre esse assunto — murmurou Isabel, corando um pouco, e seus olhos azuis se desviaram dos dele. Tentou se libertar dos dedos firmes. — Não se preocupe.
Artur a soltou e ergueu as mãos.
— Não vou tocá-la contra a sua vontade, mas, por favor, permita-me terminar.
Isabel o encarou.
— Não tem que se preocupar. Nesse ponto eu confio em você plenamente.
— Devo me preocupar, sim. — Ele deu de ombros. — Eu desejei você. Mas imaginei que, se acreditasse que eu era algum infame sem moral, que não tinha escrúpulos em trair os meus votos, acabaria perdendo todo o respeito por mim e iria me rejeitar. Eu não podia permitir que acreditasse em tal coisa. Pode chamar isso de egoísmo, mas eu não apenas a desejei, como quis que confiasse em mim. Talvez para que, em qualquer relacionamento que tivéssemos, fô ssemos verdadeiros um com o outro. Para tanto, eu precisava ser honesto sobre o que estava acontecendo ao meu redor. Do contrário iria me considerar um sujeito vil e adúltero. Eu não queria que acreditasse que apenas a luxúria guiava a minha atração.
— Assumiu um risco enorme, Artur.
— Talvez. Mas você... Não consigo explicar. Você foi importante para mim a esse ponto. E eu vi em seus belos olhos azuis que sentia pelo menos um pouco daquilo que eu estava sentindo. Pode ter sido um risco, realmente, mas eu precisava me dar essa chance. Eu podia jamais tê-la outra vez. Além do mais, acredito em olhar para trás no final dos meus dias sem qualquer arrependimento. Não permitir que meus sentimentos por você se manifestassem seria um compunção que eu levaria pelo resto da vida.
Isabel sentiu os olhos úmidos, contudo engoliu as lágrimas.
— Obrigada — falou num sussurro. — Fico feliz por sua honestidade. E posso dizer que tais esperanças e desejos não são apenas seus, Artur. Está certo. Se eu não houvesse tomado conhecimento dos seus problemas, talvez nunca tivesse permitido que meus sentimentos por você crescessem, ou que você me beijasse. Muito menos que quase fizéssemos amor.
— Verdade. Nós ainda não fizemos amor.
— Não por falta de vontade minha.
Artur sorriu, mas então se obrigou a parar.
— Não posso, em sã consciência, tomar algo que deve estar guardando para o homem que vai conquistar seu coração algum dia.
— Artur, seu imbecil... Não percebe que já conquistou meu coração?
Ele não pôde evitar. Segurou-a pelo rosto e a beijou. Foi quase selvagem a princípio, contudo procurou aplacar o próprio desejo.
Suavizando o beijo, persuadiu-a a entreabrir a boca, e ficou maravilhado em perceber como seus lábios se ajustavam. Eles haviam sido feitos para se unir.
A língua de Isabel tinha gosto de menta, e Artur sentiu os joelhos fraquejar quando esta lhe traçou o desenho da boca antes de tornar a se enrolar na dele. Era um tormento pensar que aquilo era o mais próximo do ato de fazer amor a que eles poderiam chegar. E, depois da incrível visão dela nua, era quase insuportável.
Isabel interrompeu o beijo antes que Artur estivesse preparado, porém ele aceitou o gesto como o mais correto. Os lábios inchados e úmidos, e os olhos enevoados de Isabel, só fizeram seu corpo traí-lo ainda mais com o tamanho de seu desejo. Ele deu um passo atrás e apoiou as mãos nas coxas, tentando manter o controle. O ar entrava e saía de seus pulmões com dificuldade. Por fim, fechou os olhos por um momento, então se endireitou.
— Preciso me acalmar antes de deixarmos a floresta.
— Artur...
— Sim?
— Creio que eu tenha algo a dizer que pode arrefecer o seu ardor.
— Nem mesmo um mergulho nu no lago Camelot, no meio do inverno, conseguiria arrefecer o meu ardor, condessa.
— Pois essa confissão poderá fazê-lo.
— Como é possível?
— Eu não fui completamente honesta com você.
Deu certo. Ele já fora submetido a mentiras e traições nos últimos meses suficientes para afetá-lo pelo resto da vida.
Cruzou os braços, sentindo o peito se apertar, arder, doer.
— Estou ouvindo.
Isabel viu algo em seu rosto que a preocupou, e começou a morder o lábio inferior.
— Não foi uma mentira qualquer; não foi desonestidade. Foi mais porque me pegou de surpresa com a sua reação a algo, e fiquei surpresa, sem graça e...
— Por favor, vá direto ao ponto, Isabel. Estou pronto para o que quer que seja.
Era mentira. Ele não estava pronto coisa nenhuma.
Mas ter conhecimento do que estava enfrentando era uma estratégia melhor do que não saber nada sobre o que ou quem o estava traindo.
— Por favor, não fique com raiva...
— Não posso prever as minhas emoções ou reações até saber o que estou enfrentando.
— Quando nós... Quando você e eu...
— Por favor, Isabel, não me torture por mais tempo!
Ela respirou fundo.
— Quando eu não consegui descobrir como tirar suas roupas... Você se lembra?
— Essa lembrança vai ficar gravada para sempre em minha memória. Não penso em outra coisa desde esta manhã. O que tem ela?
— Era verdade que eu não sabia nem mesmo por onde começar a despi-lo.
— Eu me lembro.
— Mas não foi porque eu não conhecia nada em termos de roupas de homem.
— Isso ficou bastante claro para mim.
— Sim, sim — assentiu Isabel, nervosa. — Eu fiquei confusa pela forma como as suas roupas se sobrepunham ou, melhor dizendo, como deviam ser tiradas... Mas não porque eu nunca tivesse estado com um homem.
— Como?
— Eu não sou virgem, Artur. Você fez essa suposição, então fiquei confusa, envergonhada e...
Artur deixou cair o queixo.
— Está dizendo que podíamos ter feito amor lá — ele apontou o polegar por cima do ombro, em direção ao castelo — e aqui, nesta floresta, mas não fizemos apenas porque não sabia como me despir?
— Algo assim.
A surpresa e o alívio dele foram tão grandes que a decepção pelas oportunidades perdidas logo caiu no esquecimento. Artur começou a rir.
— Era esse o seu terrível segredo?
— Está rindo de mim? — perguntou ela, erguendo o queixo com arrogância.
— Não, Isabel, estou rindo de mim mesmo. Quantas vezes não fantasiei, hoje, tentando encontrar uma desculpa para seduzi-la sem me preocupar com o seu futuro! Quantas vezes pensei em como apresentá-la ao amor sem machucá-la, e esquecer a culpa que poderia me acompanhar depois do prazer!
— N ão está zangado?
Artur não conseguia parar de rir.
— Estou furioso!
Isabel o olhou com ceticismo.
— Tem um jeito engraçado de demonstrar suas emoções.
— Não tem ideia de quantos tipos de traição passaram pela minha cabeça! Eu estava, como já ouvi você dizendo, apavorado com o que poderia me dizer. Mas isso , Isabel, não fazia parte da minha lista.
— E quanto a essa história de estar furioso? É por minha causa?
— Não, é por minha causa. Por eu não ter lhe dado uma chance para explicar. Há uma regra que ensino a todos os meus soldados: ouvir. E eu não estava ouvindo.
— E eu não estava falando. Eu praticamente menti por omissão.
Artur coçou o queixo, sentindo o corpo até fraco, tal era o seu alívio.
— É essa a extensão da sua perfídia, condessa?
— Sim... — Isabel levou algum tempo olhando os próprios dedos. — Acho que sim.
— E está arrependida? — perguntou ele, incapaz de ocultar um sorriso.
— Nem posso dizer o quanto. Não foi o único que não pensou em outra coisa.
— Então este rei decidiu absolvê-la. Não vai acontecer de novo, vai?
Ela fez uma mesura.
— Meu mais profundo desejo, senhor, é que comece a acontecer.
— Vai permitir que eu a ensine a me despir?
— Eu sempre fui uma grande defensora do ensino superior.
Artur sorriu, pegou-a pela cintura e a girou no ar.
— Estou tão apaixonado por você! — Ele a colocou no chão, chocado por ter deixado escapar tais palavras.
A perplexidade no rosto de Isabel já lhe dizia que estas tinham sido prematuras.
— Perdão... Não sei de onde tirei tal coisa . Talvez de um excesso de entusiasmo.
— Ou do coração? — sussurrou ela.
— Pelo visto, não eram palavras que estava preparada para ouvir.
— Isso não as torna menos especiais. Na verdade é o contrário, já que elas não foram planejadas. Expressou o que estava sentindo.
Artur balançou a cabeça.
— Eu não tinha o direito. Sei que esse é um sentimento que talvez não esteja pronta a retribuir.
— Talvez seja — murmurou Isabel, correndo um dedo pelo rosto moreno até o queixo firme.
— Se for, será que posso ouvir as palavras desses seus lábios adoráveis?
— Também estou apaixonada por você, Artur. Parece uma situação impossível, mas o coração é que manda, não é?
— Isso mesmo.
Ela abriu um sorriso travesso.
— O último não virgem que chegar ao castelo vai ter de se servir de toda a enguia em conserva!
Artur ainda a observou por um momento enquanto Isabel erguia a saia e, em seguida, saía correndo.
Quase explodindo de felicidade e gratidão aos deuses — ou ao destino —, ele riu e disparou atrás dela. Não muito rápido, no entanto. Estava bem consciente da aversão de Isabel a enguias.
Capítulo Dezoito
O jantar começou numa atmosfera sombria. Pelo visto, todos estavam preocupados com a saúde da rainha. Artur, no entanto, se manteve firme e anunciou que Gwen estava a caminho da recuperação, o que ajudou a elevar os espíritos. Lancelot também estava presente, o que deixou Isabel aturdida. Na certa o pobre rapaz estava tentando se esgueirar até os aposentos fortemente vigiados de Gwen, ou então armava um plano de vingança contra todos os cogumelos do mundo.
Quando um prato foi colocado à sua frente, ela percebeu que fora servida com uma porção de legumes e carne de pato, sem nenhum grama de enguia. Olhou para Artur e constatou que, ao contrário, o dele estava repleto daquela gororoba horrorosa.
Ele sorriu e piscou para ela. Em seguida, cochichou algo ao criado. No mesmo momento, as enguias foram substituídas por uma tigela do que parecia uma espécie de ensopado.
Isabel abaixou a cabeça e sorriu, concentrando-se nos próprios legumes. Quisesse ou não, tinha se apaixonado perdidamente. Estava tão encantada por Artur que chegava a doer.
Artur falou ao ouvido de James, que falou ao ouvido de Tom, que falou ao ouvido dela.
— O rei disse que a aposta não incluía ter de comer a enguia... Faz sentido para você?
Ela quase expeliu vinho pelo nariz e pela boca, mas se recuperou e tentou engoli-lo de uma vez. Em seguida, sussurrou ao ouvido de Tom:
— Diga ao rei Artur que chamamos isso de “brecha”. E que é sorte dele eu lhe dar uma.
Tom retransmitiu a mensagem para James, que falou em voz alta:
— Flecha?
— Brecha — repetiu Tom. — Você sabe, quando uma pessoa tenta fugir de algo usando subterfúgios. Deus... E a condessa decidiu dar uma para o rei.
Os olhares de Isabel e Artur se encontraram de novo, mas, desta vez, nenhum dos dois foi capaz de se conter. Ambos caíram na gargalhada. Isabel cobriu o rosto com o guardanapo, torcendo para que, quando ela o abaixasse, todos houvessem desaparecido como mágica. Não teve sorte.
Em vez disso, Artur se levantou.
— Senhores, a condessa Isabel e eu precisamos discutir possíveis brechas em nossos tratados. Por favor, fiquem e apreciem as sobremesas. — Ele contornou a cadeira dela. — Minhas desculpas, condessa. Não perguntei se gostaria de permanecer aqui para degustar os doces...
— Imagine, rei Artur — respondeu ela, pondo-se de pé. — Estou bastante ansiosa por explorar as possíveis repercussões dessas brechas.
Todo o decoro que eles tentaram manter foi por terra no momento em que adentraram o solário, a duas salas de distância. Artur segurou a mão dela, então, e a conduziu de volta aos jardins, onde finalmente se permitiram soltar o riso.
Isabel teve de segurar a barriga.
— Artur, somos terríveis!
Ele sorriu, e a luz das lanternas fez seus olhos brilhar.
— Sim, mas foi muito bom.
— Precisamos voltar para a mesa depois de entrarmos em um acordo sobre essas brechas no nosso tratado.
Ele riu outra vez.
— Podemos anunciar o nosso acordo amanhã, no desjejum.
— Somos a favor ou contra a coisa? — quis saber ela.
— Suponho que antes precisemos definir qual é a coisa.
Isabel quase perdeu o fio da meada.
— Também acho!
Artur parou de sorrir e a puxou para si.
— Fico tão feliz quando estou com você, Isabel. É como se eu pudesse sair voando... Desde o momento em que nos separamos, esta tarde, senti sua falta.
Ela respirou fundo, pois não poderia ter dito melhor. Tinha sido uma tarde movimentada, porém vazia. Sem Artur a seu lado, as coisas nunca eram as mesmas.
— Sim, Artur — aquiesceu ela. — Eu também sinto a sua falta quando não está comigo.
— É como se me completasse, não consigo explicar... Ainda não sei o que podemos fazer para que todos nós acabemos felizes, mas de uma coisa eu sei: não creio que a felicidade esteja a meu dispor sem você na minha vida.
— Vamos arrumar uma saída, Artur. De alguma forma, de alguma maneira, acredito que Gwen e Lance, e você e eu, vamos ter um final feliz. Confiemos no destino mais uma vez.
Uma batida na porta do solário os fez se separar rapidamente e revelou James de cabeça baixa, movendo os gigantescos pé s, constrangido.
Artur apanhou um pedregulho do jardim e o atirou contra a porta. O rapaz ergueu a cabeça, assustado, e Artur o incitou a falar com um gesto.
— O que foi, James?
— Tenho uma mensagem para a condessa — respondeu ele com uma pequena mesura.
— Qual? — inquiriu Isabel.
— Mary, quero dizer, a srta. Mary... Aquela que...
— Eu sei quem ela é, James. — sorriu Isabel. — Ela é minha ama.
— Muito bem. Ela me pediu que eu lhe dissesse que está com um pouco de dor de cabeça e que não estará disponível pelo restante da noite. Mary envia suas sinceras desculpas e espera que a senhora... — tossiu James, constrangido — ... que a senhora possa arrumar a sua própria cama esta noite. Ela realmente sente muito, condessa.
Isabel podia apostar: Mary nunca se permitira ficar um só dia ou noite doente na vida. Ficou tão comovida com a preocupação da menina que quase chorou.
— Por favor, James, diga a Mary que estimo suas melhoras. Espero que ela já esteja bem amanhã.
Ele ergueu o olhar e concordou com um gesto de cabeça.
— Ah, sim, ela estará... Quero dizer, ela espera estar melhor pela manhã.
— Há algo que eu possa fazer? Devo ir vê-la?
— Não, não. Acredito que Mary já tenha até se recolhido.
— De qualquer modo, James, se ela ainda estiver acordada, sugiro que tome um pouco de chá com um bocado de mel e, talvez, uma gota ou duas de hidromel.
— Vou prepará-lo para ela. — James ficou quase tão vermelho quanto o cabelo de sua noiva. — Quero dizer, vou pedir que uma colega o leve para Mary, caso ela queira.
— Obrigada. Por favor, diga que estou mandando um abraço.
— Pode deixar.
— E, James...
— Sim, senhora?
— Diga “obrigada” a ela.
— Direi. Creio até que ela já sabia que a senhora faria tal coisa, condessa.
— É claro que sabia. Ela e eu seremos amigas para sempre. De dar o dedinho e tudo.
A risada de James o seguiu castelo adentro.
— Amigas de dar o dedinho... — repetiu ele. — Essa é muito boa.
Artur a fitou, o rosto marcado pela confusão.
— Quer uma interpretação consecutiva? — quis saber Isabel.
— Se isso significa que vai explicar o que acabou de ocorrer, definitivamente, preciso de uma interpretação consecutiva.
— Versão rápida ou detalhada?
— Uma que eu compreenda.
— Muito bem, então aqui vai a minha opinião. James deixou a mesa do jantar e foi ver Mary. Mary avaliou a situação e criou uma desculpa para que eu soubesse que ela não entraria no meu quarto esta noite para me ajudar a arrumar a cama.
— Por quê?
— Para me dar total privacidade.
— Para quê? Ela espera que um homem vá visitá-la, Isabel? Está esperando alguém? Quem é ele?
“Viviane, estou sem palavras! Os homens daqui são todos tão parvos?”
“Ora essa, minha cara Isabel... Artur está é vulnerável, perdidamente apaixonado. Não é surpresa que sua história recente o tenha deixado tão abalado.”
“Mas tanta ingenuidade me irrita!”
“Isabel... Não faça fita quando Artur está sendo tão delicado!”
Viviane tinha razão, concluiu Isabel. As feridas emocionais de Artur não podiam ter cicatrizado da noite para o dia. Talvez ajudar a curá-las fosse parte da missão dela.
Olhou para ele e ergueu as mãos numa tentativa de aplacar sua angústia. Artur tinha a mandíbula apertada, os olhos implorando por uma resposta.
— Artur...
— Diga-me a verdade, Isabel.
— Escute: Mary se tornou minha amiga de confiança e já me conhece como ninguém aqui.
— E?
— Para quem acha que ela estava abrindo caminho? Com quem imagina que ela sabe que eu gostaria de passar mais tempo?
— Qualquer homem aqui gostaria de ficar com você. Impossível até mesmo começar a contar e...
— Artur. Com quem acha que Mary está convencida de que eu gostaria de ficar sozinha?
Isabel percebeu quando uma luz brilhou na mente daquela criatura maravilhosa e ingênua. Foi uma visão hilariante, contudo ela sabia que cair na risada àquela altura não seria uma boa ideia.
— Comigo? — balbuciou ele, inseguro.
— Descobriu a Amér... esqueça.
— Mary está tentando nos deixar sozinhos?
Ela concordou com a cabeça.
— Assim como James, seu bobo. Eles conspiraram para que pudéssemos passar algum tempo juntos, sem sermos interrompidos.
— Não há nenhum outro? — indagou Artur.
Isabel sentiu o coração se apertar e colocou a mão sobre a dele.
— Eu sei que foi muito ferido, Artur. Mas não vamos chegar a lugar nenhum se mantiver a suspeita de que eu serei a próxima a te magoar.
Ele segurou a mão dela e beijou seus dedos; então a pôs sobre o coração.
— Desculpe-me, Isabel. Na verdade, nem sei a maneira correta de lhe pedir perdão.
Pois ela conseguia imaginar várias! Mas, primeiro, as coisas mais importantes.
— Disse que se abriu comigo porque sentia que podia confiar em mim — prosseguiu com cuidado.
— Verdade.
— E, no entanto, agora há pouco, essa confiança parece ter desaparecido.
Artur franziu a testa com intensidade.
— Não é verdade. É diferente, Isabel. Desabafei com você a respeito de assuntos particulares.
— E eu quebrei a sua confiança?
— Não, claro que não. Ainda assim, não se trata da mesma coisa.
— Diga-me, o que é tão diferente?
— Tem muitos amigos homens. E os meus homens vivem querendo agradá-la. Fez até o meu filho compreender o que significa lealdade, algo que eu nunca fui capaz de fazer.
— E?
Artur abaixou a cabeça, depois tornou a erguê-la.
— São tantos homens admirando você, Isabel. Isso está acabando comigo.
“Viviane, sabe do que estou com vontade? De chutá-lo no traseiro!”
“Concordo, Isabel, de fato. Mas outro plano seria mais sensato...”
Ela se sentou.
— O que aconteceu hoje, na floresta, Artur?
— Eu admiti meus sentimentos por você.
— E?
— E também revelou o que sentia por mim.
— Eu estava mentindo?
— Iria doer demais se fosse mentira.
— Mesmo assim, ainda alimenta dúvidas. — Ela se levantou. — Mary estava tentando nos dar algum tempo para que ficássemos sozinhos, e teria sido perfeito. Você podia ter me ensinado a despi-lo, pod íamos ter feito amor. Mas tem tanta certeza de que eu sou traiçoeira, como muitas mulheres, que essa confiança que diz sentir não é de todo verdadeira, é?
— Por favor, não vamos terminar a noite assim, Isabel. Eu cometi muitos erros, e sinto muito por eles. Mas você disse que me amava, hoje, e estou permitindo que se arrependa disso porque sou um idiota. Sou um idiota, realmente! Mas isso não significa que eu não a ame. Eu assumo os meus erros, Isabel, mas meus sentimentos por você... esses eu me recuso a dizer que estão errados. Diga-me: se retribui meus sentimentos, como afirmou hoje, como pode me dar as costas agora?
Isabel concluiu que jamais encontraria outro homem para amar como Artur. Por mais imbecil que pudesse ser, virou-se para encará-lo.
— Não há nenhum outro homem, Artur. Tom, Dick e Harry são meus amigos. Quanto aos outros, aqui do castelo, creio que esteja se preocupando à toa. Nenhum de seus homens me fez ou disse qualquer coisa inadequada. Bem, talvez Mordred... Mas já cuidamos disso. Quanto aos outros em seu reino? Não foram nada além de cavalheiros.
— Mas eu percebo a maneira como eles a olham. Ouço o que eles dizem durante os treinamentos. Eu quase abati Edward com a espada ontem! Muitos deles sonham em se aproximar de você, e eu mal posso controlar minha raiva só em pensar que algum deles possa tentar fazer tal coisa.
— E eu vejo as criadas do castelo quase desmaiando a cada vez que entra em algum lugar. Também as ouço dar risadinhas e comentar que servem ao rei mais bonito do mundo. Por acaso eu o estou acusando de ter se comportado mal com alguma delas?
— Eu jamais faria isso!
— Pois, então, eu também jamais faria isso! — emendou Isabel.
Os dois se viram num impasse, praticamente fulminando um ao outro com o olhar. Para Isabel, foi como estar em um O.K. Corral ** medieval.
Ela respirou fundo, tentando se acalmar.
— Não existe outro, Artur. Nem aqui, nem em Okl... em Dumont. Se quiser, pode perguntar a Tom, Dick ou Harry, e eles lhe dirão a mesma coisa. Na verdade, creio que eles vão rir da ideia.
Ele inclinou a cabeça.
— Por quê? Você é tão bonita, inteligente e engraçada. Deve ter filas de pretendentes aguardando uma chance de cortejá-la e pedir sua mão.
Isabel riu.
— Está muito enganado. Vivo tão cheia de compromissos que não tenho tempo para esse tipo de coisa.
— Compromissos?
Ela fez um gesto vago.
— Você sabe... “condessando”.
Os lábios de Artur se curvaram em um sorriso.
— “Condessando”?
— Sim. “Ei, você! Trate de fazer isto. E, você... Faça aquilo.”
— Ah, sim. Condessando .
— Isso mesmo. Assim como vive ocupado, fazendo coisas de rei.
— Certo. Quando eu digo: “Ei, você. Faça isto”. E: “Ei, você... Faça aquilo”.
— Exatamente.
O sorriso contido de Artur se transformou naquele que fazia o coração dela derreter.
— Compreendo.
Claro que ele compreendia. Mesmo que ela própria não entendesse aquela história que tinha acabado de inventar.
Artur baixou o olhar.
— Então por que eu? Por que agora?
Homens. Pelo visto, o hábito de se lustrar o ego não havia começado na geração dela. Era uma antiga tradição.
Ela tocou o braço dele.
— O “por que você” é fácil. Porque senti o mesmo que sentiu no momento em que trocamos nosso primeiro olhar. Muito antes de eu desconfiar de quem era.
— Eu estava lá, Isabel. Vi seu rosto... Ficou com medo de mim.
— Porque me assustou, oras. Tem um modo de se esgueirar impressionante. Mas, no momento em que sorriu para mim, Artur, fiquei vidrada.
— Vidrada?
— Impressionada. Encantada com você. Atraída por você.
— Gostei da palavra... Também fiquei vidrado .
Ela assentiu, escondendo um sorriso.
— Quanto ao “por que agora”, quem pode saber, Artur? Como você mesmo disse, talvez seja o destino. Eu teria escolhido me apaixonar por um rei casado? Creio que não. Muito menos um que ainda andava meio deprimido por conta de uma série de coisas. Não escolhi o tempo, nem o lugar, nem o homem. Na verdade, a última coisa que eu tinha em mente era me apaixonar pelo rei Artur. — Deus, aquilo sem dúvida era verdade. — O problema é que não posso evitar nem decidir o que acontece, ou por quê.
— Exceto quando está às voltas com o “Ei, você faz isto...”, ou seja, “condessando”.
Isabel o golpeou no braço.
— Agora está zombando de mim.
Artur esfregou o braço como se tivesse levado um golpe muito violento.
— Só a estou provocando, moça bonita. É uma das poucas pessoas que conheci que aceitam esse tipo de coisa e devolvem na mesma moeda. É uma qualidade sua que admiro muito e que me dá muito prazer.
A última palavra pairou no ar entre eles.
Por fim, Isabel fingiu uma tosse e falou:
— Já dissipei seus temores, rei Artur? Respondi às suas perguntas satisfatoriamente?
— Respondeu. Na verdade, estou até aborrecido por ter expressado minhas dúvidas.
— Reis poderosos e malvados não têm dúvidas. Só ficam por aí, fazendo coisas de rei.
— Ah, sim, como posso ter me esquecido? Ei, você, condessa... Faça isto...
Artur a beijou, puxando-a contra o corpo rijo. Realmente rijo. Seus lábios se moveram sobre o rosto dela, beijando-lhe a testa, depois lhe sugaram o lóbulo da orelha.
— Seu cheiro é tão bom! — sussurrou ele. — Está sempre perfumada.
Se não fosse pelos braços fortes que a amparavam com firmeza, ela teria desabado no chão feito uma boneca de pano.
Não demorou muito, e as preliminares perderam seu apelo, sobrepujadas por um poderoso desejo.
Ela endireitou o corpo, então, e se afastou.
— Há um tipo de brincadeira da qual eu gosto muito.
— Qual?
— Chama-se: “O último que chegar ao meu quarto tem que ficar nu primeiro”.
Sem dizer mais nada, Isabel ergueu as saias, correu para o castelo e subiu a escadaria dos fundos.
***
Artur alcançou Isabel pouco antes de ela bater a porta do quarto. Como ele a tinha seguido, rindo por todo o caminho, ficou na dúvida sobre o que queria mais. Pareceu-lhe, contudo, que aquilo era um empate, assim decidiu que o melhor era chegarem a um acordo.
Ele a agarrou, abafando seus gritos de protesto com a boca. Carregou-a para o quarto, depois estacou. Havia velas acesas por todos os cantos, e uma bandeja contendo um barril de vinho e dois cálices.
— Mary — concluiu Isabel.
— Lembre-me de recompensá-la — murmurou Artur, depois a colocou na cama. Percorreu-a com o olhar. A beleza de Isabel sob a luz das velas era de tirar o fôlego. — Quero você. Sente o mesmo que eu?
— Quem chegou aqui primeiro?
Dizer a ela que ele poderia tê-la ultrapassado a qualquer momento decerto não era uma ideia muito boa, resolveu Artur, respirando fundo.
— Estou à sua mercê. Mas, por favor, ajude-me a me acalmar.
Isabel riu.
— Não, senhor. Preciso de uma lição de como despir um rei.
— Não está ajudando muito, condessa.
Ela o fitou nos olhos, e Artur se viu perdido. Tanto que temia perder toda a capacidade de satisfazê-la antes mesmo que qualquer um deles se despisse.
Isabel saiu da cama e se pôs de pé à sua frente.
— Essa túnica não parece complicada de tirar, senhor, já que posso simplesmente puxá-la por cima da sua cabeça — falou, tranquila. — No entanto, precisa permitir que eu a remova...
Artur estendeu os braços acima da cabeça, e ela puxou a veste, jogando-a de lado.
— Agora, isto me parece uma cacharrel... Mas acho que têm outro nome para esse tipo de blusa.
— Decerto. Neste exato momento, porém, eu não poderia lembrá-lo nem que você colocasse um punhal no meu pescoço.
— Não existe a menor chance disso.
Isabel o livrou da peça, deixando-o nu da cintura para cima.
— Ah, Artur... — suspirou, traçando as cicatrizes em todo o corpo moreno com a ponta dos dedos.
— Sinto muito.
— Não! Não precisa pedir desculpas. A beleza disso tudo é que lutou e venceu.
— Ou apenas sobrevivi — contrapôs ele com um suspiro.
Os lábios de Isabel se moveram pelo seu corpo, e Artur não soube como detê-la. Não queria detê-la.
No entanto, estava louco para retribuir as carícias.
— Está me matando, mulher!
— Estou matando um rei? Deve haver um castigo terrível para esse tipo de coisa.
— Não direi o quanto isso é grave se não permitir que eu a toque — conseguiu dizer.
— Nossa... Estou tremendo de medo — respondeu Isabel, rindo. — Agora, por favor, me diga como deixá-lo nu da cintura para baixo!
— Se eu revelar esse segredo, poderei tocá-la?
— Sim.
— Existe uma coisa chamada “cinto”. Uma espécie de espartilho masculino.
Isabel riu.
— Encontrado o cinto, rei Artur.
— Foi rápida, condessa.
Artur sentiu o cinto ceder e, em seguida, as leggings descerem em torno dos quadris. Isabel se abaixou junto, liberando o tecido de suas pernas, fazendo-o erguer uma delas a fim de livrá-lo da peça. Em seguida, quase o levou à loucura conforme o beijou desde o tornozelo, passando pela perna, até a coxa. Sua mão macia seguiu todo o percurso, contudo ela parou antes de chegar às suas partes mais íntimas. Infelizmente.
— Tire a outra metade, Artur, por favor.
— Estou tirando tudo, mas ainda não me deixou ajudá-la a fazer o mesmo.
— Já aprendi os truques da sua roupa, mas aposto que vai demorar a descobrir como funciona a minha.
Artur chutou de lado as calças e não teve o menor problema para deixar Isabel nua em segundos. Ela, contudo, não pareceu nem um pouco irritada por perder a aposta, enquanto ele, mais uma vez, a erguia nos braços e a colocava na cama.
— Eu precisei disto, precisei de você, desde o primeiro instante em que a vi, Isabel. Se eu pudesse, teria tentado seduzi-la lá mesmo, no bosque.
— Por favor, deixe-me tocá-lo!
Artur riu, e a puxou para cima do corpo.
— Quanto tempo mais de exploração deseja?
— Anos.
— Isso me parece maravilhoso; no entanto, é a minha vez — decidiu ele, correndo os dedos para cima e para baixo devagar, indo da lateral dos seios para os quadris, depois para cima outra vez. — Você é tão macia! Eu queria que as minhas mãos não fossem tão ásperas.
— Eu adoro as suas mãos.
De repente, ele se inclinou e tomou um seio na boca, sugando e lambendo o mamilo sensível. Isabel deixou escapar uma exclamação e arqueou o peito, sentindo uma espécie de choque irradiar por todo o corpo até quase explodir entre suas pernas.
A língua de Artur percorreu seu seio lentamente mais uma vez, depois ele voltou a lhe capturar a boca com a dele, ao mesmo tempo que corria a mão por seu ventre abaixo. Dedos ásperos a exploraram, então, entreabrindo seus lábios inferiores para acariciá-la.
— Santo Deus! — exclamou Isabel conforme um forte orgasmo a sacudia, fazendo-a tremer dos pés à cabeça.
Artur a abraçou com mais força e continuou a afagá-la até conseguir arrancar dela o último resquício de êxtase. Levantou a cabeça e sorriu para ela, os olhos verdes cintilantes e enevoados pelo prazer.
— Ah, minha condessa! Os deuses a criaram para ser amada! Você é tão macia, úmida e linda quando...
— ... vou ao Céu? — completou Isabel por ele, antes de agarrá-lo pelo braço e fazê-lo se deitar de costas. — Eu também quero muito fazê-lo chegar lá.
— Eu já estou no Cé... Pelos deuses, Isabel! — exclamou Artur quando ela escorregou por seu peito e o levou à boca. — Por favor, não quero estar em outro lugar a não ser dentro de você quando eu chegar... Quando eu chegar lá! Por favor!
Isabel levantou a cabeça, mas continuou acariciando o pênis rijo.
— Vou lhe dar prazer do jeito que quiser.
Ele deixou escapar uma risada.
— Então me faça um favor — pediu, antes de deitá-la novamente.
— O quê, meu amo e senhor?
— Abra-se para mim... Deixe-me entrar em você!
— Meu rei é quem manda.
Artur se ajoelhou entre as pernas dela, acariciando-a até quase levá-la à loucura outra vez.
— Não vou machucá-la? — indagou, inseguro.
— Apenas se parar.
Ele se deitou por cima dela e a beijou. Depois, bem devagar, penetrou-a.
Isabel tomou seu rosto nas mãos.
— Artur, isso é tão bom! Por favor, não está me machucando. Não precisa ter medo!
Ele fechou os olhos com força, depois começou a se mover dentro dela devagar, ainda que de modo constante. Em meio a uma bruma de prazer, Isabel percebeu que Artur tentava prolongar aquela doce agonia.
Ela iria gozar de novo, e logo...
Agarrou-o pelos quadris, investindo contra o corpo sólido, precisando sentir tudo de novo, embora de uma forma totalmente diferente.
— Por favor, Artur! Eu preciso... preciso...
As comportas se abriram, e ele a penetrou mais rápido e com mais força. Isabel sentiu o corpo tenso sob os dedos antes que Artur a fitasse com olhos estreitados.
— Estou tão apaixonado por você, Isabel! — E seu orgasmo a atingiu por dentro tal qual uma bomba.
Bastou sentir o sêmen de Artur invadi-la, e ela também se viu no paraíso.
Capítulo Dezenove
Já estava quase amanhecendo quando, relutante, Artur deixou Isabel. E ele o fez apenas após ela lembrá-lo de que ele precisava fazer coisas de rei, como: “Você, faça isto... Você, faça aquilo...”.
Artur ainda sorria quando adentrou os aposentos reais onde vinha dormindo havia dias. Estacou, entretanto, ao ver Gwen deitada em suas peles.
— Acordado até esta hora, Artur?
— Parece-me que está se sentindo muito melhor, Gwen. Fico feliz.
— Onde esteve?
— Por que isso importaria?
— É meu marido. Tenho o direito de saber por onde anda.
Artur avançou mais um passo para dentro do quarto, irritado por Gwen estar estragando a alegria que ele tivera durante a noite. Sua intenção fora deitar na cama e reviver ao máximo os momentos que passara com Isabel até ser vencido pelo sono.
— Creio que tenha perdido o direito de até mesmo fazer esse tipo de pergunta, Gwen. Mas, já que perguntou, dormi, mesmo, em outro lugar.
Era verdade. Em meio ao amor que haviam feito, ele e Isabel também cochilaram; apenas para acordar um ao outro com beijos e carícias, até fazerem amor novamente.
— Estava com outra — concluiu Gwen.
— Gwen, sua hipocrisia me deixa pasmo.
— Ainda sou sua esposa, Artur! E ainda a rainha.
— Apenas porque continuo permitindo isso!
Ela se levantou, e Artur a fitou, tentando se lembrar da última vez em que a havia desejado. Era triste pensar que não conseguia. Gwen era uma bela mulher, sem dúvida: de pequena estatura e compleição delicada. Tinha um sorriso travesso, que ele já considerara encantador. Agora, no entanto, ela lhe parecia pálida demais, e seus olhos, tão acusadores que chegavam a parecer maldosos.
— Foi com a sua preciosa condessa, não foi?
— Em primeiro lugar, ela não é minha, infelizmente. Mas preciosa... sem dúvida. Em segundo lugar, você perdeu todo o direito de me interrogar há muito tempo, portanto, trate de voltar para a sua cama, Gwen. Esta é minha, e estou precisando de algumas horas de sono para começar bem o dia.
Ela se aproximou.
— Perdão, Artur. Sei que cometi um erro gravíssimo, mas estou disposta a tentar recuperar o que tínhamos.
— Vai dispensar Lance assim, sem mais nem menos?
— Você, meu marido, é a minha prioridade.
Artur mal podia acreditar na náusea que o invadiu.
— Será que não percebe o quanto Lancelot a ama? Nós o encontramos diante daquela sua cabana secreta, chorando enquanto destruía os cogumelos que quase a mataram. Lance estava arrasado. Por acaso ele foi apenas um brinquedo para você? Não se importa em nada com o que o pobre sente?
Gwen pareceu deprimida.
— Claro que me importo, Artur.
— Então, por que essa conversa agora? Eu já prometi que não vou revelar seu amor por ele. Ainda gosto de vocês o bastante para querer protegê-los.
Ela balançou a cabeça.
— Pensei que fosse continuar comigo, apesar de tudo. Eu estava certa da sua fidelidade.
Artur quase deixou cair o queixo.
— Está escutando o que diz? Consegue ouvir a si mesma? Estou ocultando a sua infidelidade, até mesmo permitindo que você e Lance sejam felizes, e, ainda assim, me acusa de estar agindo errado por considerar ser feliz com outra pessoa?
— Você é meu marido!
Artur deixou escapar uma exclamação. Mal podia acreditar naquela conversa. Gostaria de poder conversar a respeito com Isabel. Ela teria um parecer sábio para aquilo, sem dúvida. Ou talvez, como ele já aprendera, uma resposta à altura. Mas não importava. Ele só queria os conselhos de Isabel, sua risada e, que os Céus o ajudassem, fazer mais amor com ela. Isabel podia tê-lo esgotado, porém ele já se sentia pronto novamente.
— Gwen, não está falando coisa com coisa. É melhor ir para a sua cama.
— Venha comigo.
A simples ideia causou repulsa em Artur.
— Ficaria comigo logo depois de ter ficado com Lancelot?
— Só quero que me abrace, Artur.
— Parece que estamos tendo um ruído em nossa comunicação, minha querida esposa. — Artur parou, perguntando-se onde tinha ouvido falar aquilo. Balançou a cabeça. — Se está carente, posso pedir que um dos homens vá buscar Lance para que ele fique com você em sua cama, uma vez que não tenho a menor vontade de fazer isso. Mesmo assim, fico feliz por estar se sentindo e parecendo muito melhor.
— Sua condessa me machucou! — gritou Gwen enquanto ele se dirigia para a porta.
A afirmação o deteve.
— Eu já disse que ela não é minha condessa. Mas, como, pelos deuses, ela pode ter lhe machucado?
— Meu peito e minha barriga estão doendo. Contaram que Isabel me bateu. Ela deveria ser punida por ter me agredido.
Artur a fitou, perplexo, perguntando-se que diabo de mulher era aquela.
— Graças aos deuses Isabel “bateu” em você, Gwen. Ela salvou a sua vida. Se ela não a tivesse agredido, como diz, estaríamos no meio do seu funeral a uma hora dessas.
— Eu sou sua esposa! — repetiu Gwen enquanto deixava o quarto.
— Isso é o que diz sem parar — respondeu ele, frio. — Mas que não significa mais nada.
***
Isabel estava tendo o mais glorioso dos sonhos. Um sonho em que Artur deslizava para a cama a seu lado e se aninhava junto a ela.
De repente, sentiu que alguém a tocava num seio e sentou-se de um salto.
— Tire essa mão de mim antes que eu o cape, seu...
— Sou eu, Isabel — falou uma voz grave e profunda. — E pode acreditar que eu iria resistir a essa coisa de capar.
Ela afastou os cabelos dos olhos.
— Artur?
— Sim, condessa.
A luz fraca das brasas ardentes da lareira o iluminava muito pouco. Parecia Artur, mas, para ter certeza, ela perguntou:
— Que tipo de coisa de rei pretende fazer agora?
— Algo como: “Ei, você, deite-se comigo...”. Mas nada de castração!
Isabel tentou se livrar dos últimos resquícios de sono.
— Por que está reinando a esta hora, Artur?
— Eu precisava vê-la antes que começasse a condessar .
Ela riu, então deslizou de volta para os travesseiros.
— Estou falando sério agora. O que está fazendo aqui?
Ele a envolveu pela cintura.
— Estava louco para ficarmos juntos outra vez.
— Artur, não consigo nem imaginar fazer amor de novo! Terei sorte se conseguir andar amanhã.
— Não estou falando em fazer amor. Juro. Eu também terei sorte se conseguir empunhar uma espada. Queria apenas ficar com você. Eu precisava senti-la novamente.
Isabel captou a emoção em sua voz e se ajeitou de modo a encará-lo.
— O que aconteceu?
Ele afastou os cabelos de seu rosto, depois a beijou na testa.
— Quem disse que aconteceu alguma coisa? Um homem não pode apenas querer a companhia da mulher que ele ama?
Ela franziu a testa, mas duvidava de que Artur a estivesse enxergando.
— Lembra-se daquela conversa que tivemos sobre honestidade e verdade?
Sentiu o peito largo subir e descer mais fundo.
— Sim, eu me lembro. Talvez seja, mesmo, uma boa hora para nos lembrarmos dela.
— Eu exijo a verdade em todos os momentos, rei Artur.
— Será que posso pedir não falar sobre isso no momento?
— Isso não seria muito régio da sua parte.
O peito de Artur ressoou com uma risada.
— Como assim, condessa?
— Reis enfrentam os problemas. Eles não costumam evitá-los, deitando-se na cama com condessas que estão ocupadas, mas não condessando .
— Com o que estava ocupada?
— Estava sonhando com certas coisas que os reis fazem...
— E eram bons sonhos?
— Está evitando a minha pergunta, o que não é nada régio.
— E você não está nua o suficiente, o que não me parece nada adequado, condessa.
— Artur... — Isabel se desvencilhou do abraço e sentou-se. — O que aconteceu?
Ele também se sentou e passou as mãos pelos cabelos. Ou ao menos assim ela imaginou, uma vez que a iluminação era escassa.
— Quando voltei para o meu quarto, Gwen estava esperando por mim.
— Ah, que bom! Então ela está se sentindo melhor.
— Depende da sua perspectiva.
— O-ou. Isso não me soou muito bem — resmungou Isabel antes de estender o braço e apanhar um punhado de hortelã ao lado da cama.
— Ela acredita que estou tendo um caso.
— Artur — suspirou Isabel. — Você está na minha cama.
— Gwen quer retomar o nosso relacionamento.
Isabel nunca soube o que era ter um coração partido até aquele exato momento.
— Compreendo. — Ela tentou recompor as emoções que pareciam ter-se espalhado aos quatro ventos. — Bem, se é assim... Felicidades para os dois. Agora dê o fora da minha cama.
Artur se inclinou, arranhou algo sobre alguma coisa e, de repente, a vela ao lado da cama ganhou vida. Estava longe de ser a iluminação do estádio da Universidade de Oklahoma, mas ao menos agora eles podiam enxergar um ao outro.
— Por favor, volte para a sua esposa.
— Acha mesmo que eu estaria aqui se tivesse feito essa escolha?
— Imagino que tenha vindo apenas me dar as boas-novas.
— E vim para a sua cama apenas para dizer adeus?
— Bem, isso me parece meio estranho, mas creio que sim. Tem um coração bom demais, Artur.
— É isso mesmo o que pensa de mim, Isabel?
— Artur, eu já nem sei o que pensar de qualquer coisa. É apaixonado por Gwen há tanto tempo!
Ele se levantou, zangado.
— Eu vim aqui para lhe dizer, ou melhor, para lhe mostrar como me sinto, e nem sequer me dá a chance de terminar! Escreveu o final desta história antes mesmo de eu me explicar.
— Artur...
Ele balançou a cabeça conforme se movia em direção à porta.
— Não, Isabel. Vim até aqui para pedir sua ajuda, orientação e conforto, mas já proferiu a sua sentença. Estou tão cansado desse tipo de coisa! — Ele se virou para encará-la. — Eu vim até aqui porque você era a minha escolha, e eu não tinha nenhuma dúvida quanto a isso. Minutos atrás, eu teria dado a minha vida por você, mas sou mesmo um tolo. E nada régio, não é mesmo?
— Artur...
— Durma bem, condessa.
Capítulo Vinte
— Temos que fazer alguma coisa! — sussurrou Mary para James. — Há alguma coisa muito errada com a minha senhora. Ela está nos ensinando essa coisa de RCP e exigindo que tenhamos o que chama de recesso diário, mas não parece mais ela mesma.
— E o mestre anda trabalhando mais do que nunca, sempre com os nervos à flor da pele — emendou James. — Estamos até com medo de abrir a boca. E antes ele vivia nos pedindo para que falássemos tudo o que nos vinha à cabeça! Nunca o vi se irritar com qualquer coisa, como está acontecendo agora.
— Precisamos armar um plano — resolveu Mary.
— Sim, mas não consigo imaginar qual.
— Deixe comigo, James. De qualquer modo, vou precisar da sua ajuda para colocá-lo em prática.
James sorriu para sua noiva.
— Eu te amo tanto, Mary! Mal posso esperar para fazê-la minha mulher.
Ela sorriu de volta.
— E eu mal posso esperar para chamá-lo de marido. Mas, se queremos que o nosso casamento saia perfeito, precisamos consertar essa rusga entre o rei e a condessa, afinal, eles serão nossos padrinhos.
— Sim.
Mary se levantou de repente, e James a observou.
— O que foi?
— O nosso casamento, claro! O rei é um homem honrado, e a condessa, uma mulher tão especial. O nosso casamento!
— Sinto muito, mas não estou conseguindo acompanhar seu raciocínio.
— Nem precisa. Vai saber o que precisa ser feito assim que eu tiver tudo ajeitado.
— Confio em você. — James a abraçou, mas não com muita força. Uma vez ele a apertara tanto que Mary havia gritado. Nunca mais aquilo voltaria a acontecer. — Vamos ser muito felizes juntos. Prometo.
Ela deitou a cabeça no peito largo.
— Temos a vida toda pela frente para que prove isso.
— Estou ansioso por fazê-lo...
Com o passar dos dias, houve progresso, embora, aparentemente, não com Gwen. Ela continuava de cama e se queixando.
Suas costureiras, entretanto, tinham terminado de confeccionar muitas calças, e Isabel persuadira as mulheres a tomar posse delas e usá-las. Ao menos na hora em que se viam autorizadas a relaxar.
Naquela manhã, ela decidira ensiná-los a jogar uma forma primitiva de minigolfe. As mulheres batiam suas bolinhas, felizes, quando Mary veio correndo até ela com lágrimas escorrendo pelo rosto.
— O que aconteceu, Mary?!
— Acho que meu casamento com James não vai mais acontecer!
— O quê!? Por quê?
Mary olhou em volta.
— Podemos ir para outro lugar e ter alguma privacidade?
Jenny, a camareira de Gwen, se aproximou.
— Posso ajudar?
— Sim, por favor — respondeu Isabel, tão diplomaticamente quanto podia. — Poderia supervisionar o restante do recreio para mim?
Mary fungou, inconsolável.
— Eu preciso conversar com a condessa Isabel!
— Claro — assentiu Jenny. — Será um prazer ajudar as meninas, condessa.
— Ensine-as a acertar as bolinhas nos buracos. Esse é o objetivo do jogo: bolinhas nos buracos!
— Sim, condessa.
Isabel tornou a se concentrar em Mary.
— Agora me conte, por favor, o que aconteceu.
Mary enxugou as lágrimas.
— Podemos conversar no seu quarto?
— Claro.
Isabel tentou questionar Mary enquanto elas subiam a escada, porém esta apenas balançava a cabeça. Era óbvio que a moça queria completa privacidade, o que ela compreendia , uma vez que Mary vinha sendo evitada por muitas de suas colegas.
A menina a puxou para o quarto, praticamente empurrando-a para dentro, então trancou a porta.
— O que aconteceu, Mary? Deixe-me ajudá-la. Talvez você e James ainda possam conversar a respeito. Você o ama. Você mesma afirmou isso. E ele a trata como uma joia preciosa. O que deu errado?
As lágrimas de Mary secaram como se ela estivesse de frente para o sol do deserto de Mojave.
— Se James e eu vamos nos casar em breve, Isabel, precisamos de padrinhos felizes ao nosso lado.
— Desculpe, mas não estou entendendo.
Mary colocou dois dedos na boca e soltou um estridente assobio. Depois sorriu para Isabel.
— Tom me ensinou a assobiar enquanto fazia a limpeza nos meus dentes.
Isabel ainda estava tentando adivinhar o que acontecia com sua amiga quando a porta se abriu de repente e James entrou, arrastando Artur de olhos vendados.
— James... Isto não tem graça. Costumo ser afeito a brincadeiras, mas isto está indo um pouco longe demais!
Isabel olhou para Mary.
— Traidora! — cochichou.
Mary encolheu os ombros enquanto James puxava a venda dos olhos de Artur. Este piscou e olhou em volta. Assim que avistou Isabel e Mary, fulminou James com o olhar.
— Traidor.
James também deu de ombros, em seguida se juntou a Mary. Ambos pareciam imensamente satisfeitos.
— Vocês dois serão nossos padrinhos em nosso casamento daqui a apenas alguns dias — começou o rapaz. — E queremos — não, exigimos — que estejam felizes na cerimônia.
— James... — começou Artur.
O rapaz levantou a manzorra.
— Sabe que sou leal ao senhor, rei Artur. Lutarei qualquer batalha a seu lado e o protegerei até o meu último suspiro.
— E a senhora, condessa Isabel, se tornou uma amiga como eu jamais poderei ter de novo — afirmou Mary. — Eu ficaria a seu lado em qualquer situação em que lhe pudessem fazer mal.
— Mas estamos cansados dessa sua amargura — completou James, retomando a aparente narrativa. — Como têm se evitado nos últimos dias, só podemos supor que estão...
— ... com problemas — concluiu Mary pelo noivo. — E estes precisam ser expostos e discutidos. Portanto — ela apontou para ambos — tentem resolvê-los antes do nosso casamento.
— Seja o que for que tenha acontecido entre vocês — emendou James.
— Tratem de se entender! — falaram eles em uníssono. Em seguida, ambos rumaram para a saída, batendo a porta atrás deles com um estrondo.
Isabel e Artur se entreolharam por vários momentos, então caíram na risada.
— Parece até que levamos uma bronca dos nossos pais — comentou Isabel rindo.
— Não estou me sentindo nem um pouco régio no momento — confessou Artur. — Quando foi que perdi o controle das coisas por aqui?
— Não é nada disso — contrapôs ela, ainda rindo. — Isso apenas prova que grande rei você é.
— Só pode estar brincando. Meu primeiro homem acabou de me repreender!
Isabel até pensou em replicar: “Para cima de moi ?”. Mas estava certa de que ele não iria entender a expressão.
— Não percebe como isso é bom? — perguntou, em vez disso.
— Talvez eu não compreenda, mesmo, qual o sentido de dois servos aplicando uma descompostura em seu rei.
— O sentido, Vossa Alteza, é que eles o amam além da conta e confiam em você o suficiente para tomarem medidas extremas. Eles sabem que não irá puni-los porque têm certeza de que se importa com eles.
— Talvez seja essa a diferença entre o meu povo e você... James e Mary ao menos acreditam que eu me importo com eles.
Isabel o fitou enquanto tentava tirar mentalmente o punhal que Artur cravara em seu peito.
— Eu nunca percebi que tinha um lado cruel, Artur. Mas é bom saber. Vai me ajudar a esquecê-lo mais depressa.
Ele caminhou até ela.
— Isabel, eu não quis dizer...
— Se encostar em mim, eu lhe quebro os dois joelhos!
— Então quebre — decidiu ele, agarrando-a pelos ombros. — Vamos! Faça isso. Mas saiba que vou continuar a segurá-la até que me escute. Nem que seja preciso derrubá-la comigo quando as minhas pernas se tornarem inúteis.
Era angustiante perceber que seu próprio corpo reagia ao toque das mãos dele como se estas o estivessem percorrendo por inteiro, e não apenas segurando-a.
— Creio já ter ouvido o suficiente.
— Não, ouviu apenas o suficiente para tirar conclusões precipitadas e incorretas. Para uma mulher inteligente e compreensiva, Isabel, não consigo entender como pode ouvir apenas parte da minha história e já acreditar no pior. Pelos deuses, mulher, passamos uma noite juntos, da forma mais íntima. E, no entanto, menos de uma hora depois, você me rejeitou, fechando os ouvidos e a mente. Por acaso se arrependeu do que compartilhamos?
— Não, mas disse que Gwen queria...
— Eu sei o que eu disse, Isabel. E também sei que se recusou a me deixar terminar. Está disposta a me dar essa oportunidade agora?
— Estou ouvindo. Ainda não descartei o golpe nos joelhos, mas estou ouvindo.
— Já é um começo — decidiu ele, soltando-a, por fim. Virou-se e avançou dois passos, depois fez meia-volta e tornou a se aproximar dela. — O que não me deixou dizer naquela noite foi que eu rejeitei Gwen. Eu não a desejo mais. Não a quero já há algum tempo. Quando ela me perguntou se poderíamos retomar o nosso relacionamento, eu disse “não”, Isabel. Disse que, dessa forma, ela não estava traindo apenas a mim, mas agora também Lancelot. Eu me recuperei da paixão que sentia por Gwen, e me apaixonei por outra pessoa... você. O problema é que isso não aconteceu com Lance. Você o viu no chalé. Ele estava desesperado, consumido pela tristeza, pela raiva e pela preocupação. Se fui procurá-la, Isabel, foi porque era com você que eu queria estar. Queria conversar com você a respeito do que tinha acontecido. Acha mesmo que eu iria voltar para as peles da sua cama para lhe dizer que nós havíamos nos divertido, mas que, infelizmente, eu decidira recomeçar com Gwen? Acha mesmo que eu seria tão cruel?
Isabel levantou-se, atordoada.
— Ah, meu Deus... Você tentou, eu sei. E eu não permiti. Estava com tanto medo de que fosse um gesto de despedida que...
— Shh — pediu ele, colocando um dedo em seus lábios. — Compreendo que tenha ficado aborrecida e confusa. Por favor, lembre-se de como fiquei louco apenas de imaginá-la na companhia de outros homens. Some-se a isso o fato de eu ainda ser casado com Gwen, e torna-se compreensível que tenha chegado à conclusão que chegou. Se a situação estivesse invertida, receio que eu tivesse reagido da mesma forma.
— Está me fornecendo uma desculpa, quando não existe nenhuma. Não, Artur, você não teria reagido da mesma forma. Teria me escutado. Mas eu tive tanto medo de que nós...
— Eu sei, amor, eu sei — murmurou ele, conforme a puxava para os braços.
— Por que é tão indulgente quando eu simplesmente não mereço?
Ele riu contra os cabelos dela.
— Talvez porque seja a coisa mais régia a fazer?
— Não, a coisa mais régia a fazer é dizer às pessoas para que façam isto ou aquilo.
— Então talvez seja algo que um homem faz quando ama uma mulher.
— Escolho essa valendo mil, Alex *** .
Artur sorriu, afastando os cabelos de seu rosto enquanto a beijava na têmpora, na testa, no nariz.
— Não entendi muito bem, mas não importa. O que importa para mim agora é acabar com esse mal-entendido entre nós.
— Ah, Artur!... — suspirou Isabel, passando os braços ao redor do pescoço forte e se pondo na ponta dos pés para enchê-lo de beijos no pescoço. — Eu sinto muito!
— Eu também. Estou certo de que eu podia ter contado as coisas de uma maneira bem melhor. — Ele sorriu para ela. — Mas menti um pouquinho... Estou curioso para saber o que você vai negociar por mil. E quem é esse Alex.
— É só um jogo que fazemos lá em casa. Trata-se de uma brincadeira de inversão. Dá-se uma resposta para o jogador — no caso você — e então se é obrigado a dizer qual seria a pergunta.
— Perdão?
— Exatamente. Embora, no jogo, devesse falar “O que é perdão?”.
Artur balançou a cabeça.
— Estou meio confuso, amor.
— Por exemplo, alguém poderia dizer: “O lugar pelo qual o rei Artur tem verdadeira paixão”. E você responderia: “O que é Camelot?”.
— Jogam isso em Dumont?
— Sim.
— Está bem. Acho que entendi as regras.
Ela riu.
— Muito bem... A resposta é: “A mulher que é louca pelo rei Artur”. Qual é a pergunta?
— Imagino que seja: “Quem é a condessa Isabel?”.
— Certinho!
— Tenho uma para você.
— Pode mandar, garotão.
— A coisa de rei que Artur está prestes a falar à sua mulher — como é de seu direito, aliás —, já que coisas régias envolvem dizer : “Faça isto... E você, faça aquilo”.
— O que é: “Tire a roupa régia do rei?”.
— Não é bem o que eu pretendia, mas serve. De qualquer modo, vou lhe dar a pergunta correta para essa resposta...
— Às vezes há mais de uma resposta certa, mesmo. — Isabel se dispôs a obedecer ao comando real.
— Ótimo, pois a pergunta que imaginei foi: “O que é permitir ao rei ajudar a condessa a tirar a roupa?”.
— Viu? Mais do que uma resposta certa...
Mary e James desceram para o salão de mãos dadas e sorrindo.
— Talvez estejamos com problemas — comentou Mary.
— Ouviu alguma coisa sendo quebrada?
— Eu não!
— Então acredito que estejamos em segurança — concluiu James.
— Isabel jamais iria me machucar. Tenho certeza. Não importa se o resultado for bom ou ruim, ela vai me perdoar. Mas e quanto ao rei Artur?
— Não iria machucá-la nunca, Mary. Nem a mim.
Ela fitou seu gigante futuro marido.
— Como pode saber?
— Artur é o homem mais gentil que já conheci. É duro nos treinamentos para batalha, sem dúvida. Mas sempre, sempre muito justo com todos. Não importa o que aconteça, ele vai, com toda a certeza, nos perdoar, pois irá perceber que tínhamos boas intenções.
— Se é assim, fizemos bem.
— Fizemos melhor do que bem. Da última vez que escutei alguma coisa, eles estavam rindo.
Mary deteve James.
— Há um ritual nas terras de Isabel em que se comemora o sucesso, sabia?
— E qual é?
— Eles o chamam de high five . — Ela levantou a palma da mão e esperou que o noivo fizesse o mesmo.
James a fitou, confuso.
— Levante a mão! — ordenou Mary.
James obedeceu, e ela deu-lhe um tapa, sorrindo.
— High five!
— O que isso significa?
— É um sinal de sucesso, oras. Imagino que os dois estejam fazendo as pazes enquanto conversamos.
James sorriu para o seu amor e levantou de novo a mão. Mary o observou, curiosa, mas bateu a palma na dele.
— High five — repetiu. — Pelo que foi esse?
— Porque tenho muita sorte. A mulher que eu amo retribui os meus sentimentos e, em breve, serei o mais feliz dos maridos.
Capítulo Vinte e Um
Ao som de uma batida na porta, Gwen — que continuava na cama — ergueu o olhar e se deparou com a condessa parada na entrada do quarto, muito bonita em um vestido cor de vinho. Em comparação, ela própria sabia que estava pálida e desgrenhada, e que a camisola que vestia não era nem um pouco atraente.
— Entre, por favor — pediu, correndo os dedos pelos cabelos.
Isabel obedeceu. Foi quando Gwen se deu conta de que a condessa segurava uma roupa preta nas mão s.
— Como está se sentindo esta manhã, Gwen?
— Um pouco melhor, creio eu — respondeu, ainda que não fosse de todo verdade . Exceto pelo peito ainda um pouco dolorido, sentia-se muito bem. No entanto, enquanto estivesse na cama, Artur continu aria a visitá-la e, talvez, ela ainda conseguisse fazê-lo mudar de ideia. Não que já não amasse mais Lancelot. Ainda o amava desesperadamente. Mas temia perder o marido.
Estava sendo egoísta, sabia disso. Bem no fundo, sentia muita vergonha. O problema é que era jovem demais quando Artur a cortejara e depois se casara com ela. Ela não conhecia outra vida, e o medo do desconhecido era avassalador.
— O que é isso? — perguntou, apontando para as mãos de Isabel.
— Já vou falar a respeito. Conversei com Tom esta manhã, no café, Gwen. E ele me disse que não vê razão para que não esteja de pé.
— E o que você tem a ver com isso?
— Provavelmente nada. Mas a rotina de Camelot é sua responsabilidade, e seus criados estão se sentindo perdidos sem a sua presença. Estão preocupados e confusos. Eles precisam de você, Gwen.
— Como sabe disso?
— Tenho escutado os comentários durante os recessos diários.
Gwen se sentou, ajeitando-se melhor na cama.
— Continuou com os recessos sem o meu consentimento?
— Não estava em condições de dar consentimento algum.
— E Artur sabe disso?
— Sabe. E não fez objeções. O problema é que o seu povo está sentindo a sua falta, Gwen. Seria muito bom se as pessoas a vissem de pé.
— Por que Artur não me disse nada?
— Porque ele também está preocupado com a sua saúde. Não é médico. Não faz ideia que, por algum motivo, você continua na cama sem necessidade.
— Mas você sabe.
— Foi Tom quem me contou.
— Meu peito ainda está muito dolorido, porém ouvi dizer que tenho de lhe agradecer por eu estar viva...
— Não tem por quê.
— Eu não quis ser agradável.
— Eu sei. Reconheço bem o sarcasmo.
Gwen sabia que estava sendo vil. Tinha consciência de que, se não fosse pela ajuda de Isabel, ela podia não ter sobrevivido.
Baixou os olhos.
— Eu sinto muito. Foi muito rude da minha parte.
— Não precisa se desculpar. Compreendo que certos males tendem a tirar as pessoas do prumo. É uma mulher muito bonita, Gwen, e tem um grande coração. Eu... nós ... quero dizer, Tom e eu, não entende mos por que n ão está ansiosa por sair dessa cama e voltar às suas atribuições de rainha.
— Por que se importa tanto?
— Porque odeio ver seus criados tão preocupados. Eles se sentem à deriva sem a mão firme de sua rainha para guiá-los.
— Vou pensar no que está dizendo. No entanto, eu gostaria de ouvir o mesmo dos lábios de Artur.
— Artur não vai exigir que se levante. E também está ocupado, preparando a reunião dos cavaleiros, ainda que, sem dúvida, a sua ajuda também pudesse ser útil nesse assunto.
— Compreendo — assentiu Gwen.
— Também há a questão do casamento de James e Mary. Muitos preparativos a serem feitos, um cardápio a elaborar... Diga-me se existe algo mais divertido do que ajudar uma noiva a se preparar para o dia mais importante de sua vida.
— É mesmo muito divertido — concordou Gwen.
— Claro que é. Vai querer perder os preparativos?
— Conte-me, condessa... — Gwen inclinou a cabeça. — Por que nunca se casou?
— Porque sou muito exigente.
— Quer dizer que não pretende se casar?
Isabel hesitou.
— N ão descarto n enhuma possibilidade. Talvez. Algum dia.
— Está esperando o homem certo?
— Digamos que sim.
— Está certo. Já deu a sua opinião, condessa, e tenho muito que pensar. Agora, por favor, me diga o que tem nas mãos.
Isabel levantou a roupa preta.
— As suas calças.
Gwen soltou uma exclamação.
— Calças?!
— Sim. Não se lembra de que, antes de ficar doente, pediu às costureiras que elas confeccionassem calças para as mulheres?
A jovem rainha franziu a testa.
— Sim, sim... Tenho uma vaga lembrança.
— Pois, então, estas foram feitas para você, caso decidisse se juntar a nós na hora do nosso recreio.
— Por favor, ajude-me a me lembrar por que decidimos que fazer calças para as mulheres era uma boa ideia — pediu Gwen, esfregando as têmporas.
— Para que elas tivessem mais liberdade durante o recesso da manhã. Dessa forma, não têm que se preocupar em exibir demais as pernas ou outra parte do corpo enquanto jogam.
— Também usa essas calças?
Isabel sorriu e levantou a saia, exibindo uma das esquisitas peças. Em seguida, colocou a que trazia nas mãos ao pé da cama.
— Vamos nos reunir no pátio daqui a pouco, caso decida se juntar a nós — falou, fazendo uma leve reverência com a cabeça e se preparando para sair.
— Isabel...
Ela olhou por cima do ombro.
— Sim?
— Posso lhe pedir outro favor?
— Claro.
— Poderia chamar Jenny e dizer a ela que vou precisar de ajuda?
Isabel sorriu.
— Com muito prazer. Bem-vinda de volta, Gwen.
— Obrigada.
— E então? — perguntou Mary enquanto as mulheres se reuniam.
Isabel deu de ombros.
— Vamos ver.
— De qualquer modo — começou Madeline, uma das cozinheiras —, agradecemos pela tentativa.
— Agradeçam-me se der certo.
— O que vamos fazer hoje, condessa?
— Vamos jogar um jogo chamado beisebol. Isto é, uma versão para Camelot — emendou Isabel, distribuindo quatro pequenos juncos ao redor do pátio enquanto explicava: — Vamos nos dividir em duas equipes. Os times se revezam, tentando marcar pontos ou tentando impedir que a outra equipe marque pontos. O time que está tentando marcar pontos vai mandar uma jogadora de cada vez para cá... — apontou ela, deixando cair um dos juncos no chão. — Isto é chamado de base. A jogadora irá arremessar uma pedra o mais distante que puder, e de modo que esta siga para bem longe das jogadoras da outra equipe, que estarão espalhadas pelas outras bases, tentando defender...
— Condessa! — gritou Mary, depois acenou com a cabeça em direção ao outro extremo do pátio. — A rainha!... Ela vem vindo!
Gwen vinha correndo, realmente, e segurava as saias de um modo que Isabel teve um vislumbre da peça preta por baixo delas.
Todas no pátio pareceram congelar conforme viram sua rainha se juntar ao time de mulheres. Depois se curvaram e permaneceram nessa posição, de cabeça baixa.
— Levantem-se, por favor! — pediu Gwen. — Temos um jogo pela frente... E, então, o que foi que eu perdi?
James entrou correndo, e sem bater, na sala de trabalho do rei. Artur fez menção de repreendê-lo pela interrupção, contudo a expressão do rapaz o deteve.
— O que foi?
— Senhor, tem que vir ver uma coisa.
— O quê?
— Não posso explicar. Eu poderia tentar, mas, acredite, vai preferir ver por si mesmo.
Artur levantou-se rapidamente e seguiu James porta afora, cruzando o salão principal e saindo para o pátio.
Parou ao avistar uma menina correndo em volta de um círculo, enquanto outras a seu redor arremessavam uma pedra de uma para a outra e tentavam perseguir a moça. Todas soltavam gritinhos de prazer, aplaudiam e torciam. Devia ser algum tipo de jogo, pensou ele, porém nunca o tinha visto antes.
Buscou Isabel com o olhar porque, tão certo como ele estava respirando , aquilo era coisa dela. Avistou-a batendo palmas, depois levando as mãos em torno da boca.
— Tente a terceira, Sarah! Você consegue!
A menina que corria, e que também ria de alegria, tocou com o pé uma espécie de esteira, depois continuou correndo enquanto a pedra continuava a ser arremessada de um lado para o outro.
— Que diabo elas estão fazendo, James?
— É um jogo que a condessa chamou de “Beisebol de Camelot”.
— Beisebol de Camelot? — repetiu Artur.
Nos últimos dias, Isabel vinha ensinando jogos cada vez mais estranhos às servas. Aquele, sem dúvida, era o mais esquisito.
Mesmo assim, as mulheres pareciam estar se divertindo muito.
— Tem razão, James, não ia conseguir me descrever isso. E seria uma pena eu não ter vindo ver do que se tratava. — Sem tirar os olhos da cena bizarra diante dele, Artur perguntou: — É verdade que os nossos homens também estão felizes com esse recesso das mulheres?
— Ah, sim, senhor. Dizem que suas esposas e namoradas parecem mais satisfeitas e bem-humoradas, e que o recreio lhes deu um ânimo extra.
— Notou tal comportamento em Mary?
— Minha Mary sempre teve ânimo de sobra , mas, sim, percebo sua alegria e emoção quando ela me conta a respeito de seu dia. Ela também me falou que a produtividade na cozinha, nas lavanderias e nas salas de costura aumentou, pois as mulheres voltam a trabalhar com mais vigor. Eu diria que esse recreio é um enorme sucesso, senhor.
— Graças a Isabel — afirmou Artur, sorrindo brevemente. — Ela parece espalhar entusiasmo por onde passa.
Depois quase riu alto do eufemismo. Por mais que ele despertasse animado para começar um novo dia e trabalhar todas as manhãs, mal podia esperar para que a noite caísse e ele pudesse se juntar a sua amada em seus aposentos.
E não era apenas o amor que faziam que ele adorava, mas também os momentos em que ficavam nos braços um do outro, conversando baixinho sobre o dia de cada um. Cada vez mais, ele buscava os conselhos de Isabel em assuntos importantes. Ela era uma ouvinte atenta que possuía raciocínio rápido e que captava conceitos com os quais, ele tinha certeza, ela nunca tivera de lidar ou considerar no pacífico reino de Dumont. Suas ideias eram tão inspiradas quanto... Como era mesmo a palavra que Isabel usava?... Ah, sim. Atípicas . Era comum ela iniciar uma frase com: “Isto pode parecer atípico, mas escute...”.
Com muita frequência, as ideias de Isabel o faziam rir. Mas bastava ele ponderar um pouco sobre elas para enxergar seu mérito. Nem que fosse com algumas pequenas variações.
Mas sempre — sempre — elas faziam pensar.
Amava aquilo em Isabel. Também amava sua paixão na cama. Um toque dele no lugar certo, e ela se transformava na melhor das amantes. Ele ansiava pelos momentos em que podia despi-la, exceto por aquele colar azul, do qual, até onde ele sabia, Isabel jamais se separava.
E sua pele era tão suave e macia!
Artur percebeu, de repente, que James havia dito alguma coisa, e ele nem sequer escutara.
— Perdão, o que disse?
— Perguntei se está vendo alguém familiar entre as mulheres, senhor.
Artur examinou as moças mais de perto. A maioria lhe era familiar, claro. Possuía criadas aos montes, porém se esforçava para saber o nome de cada uma delas, tanto quanto lhe era possível. Tinha para si que elas mereciam no mínimo tal coisa de seu rei, a quem serviam com tanta dedicação e sem nunca se queixar.
— Vejo muitos rostos familiares, James. Há alguém em especial que gostaria que eu notasse?
— Olhe a do vestido amarelo-claro. A que está correndo atrás de Mary no momento.
Artur estreitou os olhos.
E congelou. Aquele cabelo ruivo e comprido, a compleição delicada...
— Gwen?!
— Isso mesmo, meu rei. A rainha resolveu deixar seu leito.
— Ah, graças aos deuses! — exclamou Artur em voz baixa.
No entanto, a evidente e milagrosa boa saúde de Gwen era um pouco suspeita. Como fazia todas as manhãs, antes de seguir para os treinamentos, naquela ele também havia passado no quarto da esposa para perguntar como ela estava. E, como nas manhãs anteriores, Gwen lhe parecera pálida, frágil, e agira como se estivesse fraca demais para se levantar, se vestir e ir cuidar de seus deveres de rainha. Ainda que, como em quase todos os dias, ela houvesse tentado atraí-lo para a cama.
Artur apertou os lábios. Estava ficando cada vez mais difícil para ele disfarçar a própria repulsa. Quando toda a atração que sentia pela esposa fora reduzida a pó? Não fazia ideia. E não podia atribuir tal coisa a Isabel, pois ele já começara a perder o interesse por Gwen antes mesmo da chegada da condessa.
A dor permanecia, entretanto o desejo que sentia por Gwen diminuíra muito antes. Tão certo como ele sabia o próprio nome, estava ciente de que, se ainda fosse apaixonado por Gwen, não teria nem sequer olhado na direção de Isabel. Era homem de uma mulher só. Sempre tinha sido. Uma vez que seu coração era conquistado, não voltava o olhar para nenhuma mulher, exceto para aquela que detinha nas mãos seu amor e desejo.
Artur balançou a cabeça. Por um lado, sentia-se aliviado por Gwen ter recuperado a saúde. Por outro, saber que ela estava acamada havia lhe dado a liberdade de ele fazer o que bem entendesse. Agora que a esposa estava de pé outra vez, ele sabia que seus movimentos seriam tolhidos, e que isso se tornaria um problema. Precisava conversar com Isabel mais tarde.
— É bom ver que Gwen está melhor — comentou com um suspiro. Em seguida, estreitou o olhar. — Pelos deuses! Ela também está usando aquelas coisas pretas que as outras vestem para praticar os esportes.
— Mary me contou, esta manhã, que a condessa estava determinada a fazer a rainha sair da cama. Isabel achou que as tais leggings iriam animar Gwen a se levantar e se juntar à equipe para a hora do recreio.
— Sei. Mesmo assim, fico me perguntando por quê — murmurou ele.
Não percebeu que expressara o pensamento em voz alta, até que James respondeu:
— Parece que as criadas se reuniram e discutiram os problemas que tinham com a rainha. Uma vez que Isabel era sua única alternativa para que tentassem resolver as questões que surgiam no castelo, decidiram que a condessa seria a escolha lógica para aproximá-las de Gwen.
— Isabel andou assumindo as atribuições da rainha? — perguntou Artur.
— Não percebeu?
— Eu devo estar cego — resmungou ele, querendo chutar o próprio traseiro. — Não, não percebi... E Isabel não se queixou uma única vez por ter tido que assumir tarefas que não são sua obrigação. Por Thor, ela é hóspede neste castelo!
— Também não vi a condessa se queixar nenhuma vez — concordou James. — Exceto, talvez, depois do que aconteceu entre vocês, duas noites atrás.
Artur revirou os olhos.
— Sabe qual é o meu maior defeito, James?
— Não, rei Artur. Não faço ideia.
— Permitir que meus homens de maior confiança digam o que pensam.
James caiu na gargalhada.
— Mil perdões por eu ter falado o que não devia.
Artur o encarou.
— Não me parece nem um pouco arrependido.
— Vou praticar mais a minha expressão de arrependimento, então.
Artur deu um tapa nas costas do amigo.
— É bom começar logo, pois decerto vai levar anos fazendo isso.
Com um último olhar na direção das mulheres, em particular na de longos cabelos loiros que agora era perseguida por várias das criadas, Artur deu meia-volta e retornou à sua sala com a risada de James ainda ressoando nos ouvidos.
De fato, ele e Isabel tinham muito a discutir naquela noite. Isso se conseguissem ficar a sós.
E apenas a perspectiva de que ele poderia falhar nessa tarefa provou-se deprimente.
Houve um tempo em que Gwen jamais teria pensado em anunciar a si própria antes de adentrar a sala de Artur, porém estava consciente de que muita coisa havia mudado entre eles. Assim, embora a porta estivesse aberta, preferiu bater.
Artur ergueu os olhos do pergaminho que estudava com atenção, e que parecia um detalhado mapa. Enrolou-o, colocou-o de lado e se levantou.
— Gwen — saudou, gesticulando para que ela entrasse. — É bom vê-la de pé. Espero que esteja se sentindo melhor.
— Bem melhor, Artur. Obrigada.
Ele fez um sinal para que Gwen se sentasse, esperando que ela se acomodasse antes de voltar para o próprio assento.
— O que acha que ajudou a... curá-la de sua doença?
— Estou certa de que a condessa já o informou a respeito da nossa conversa.
— Na verdade, não. Não falei com Isabel depois do desjejum.
— Ah...
— Por quê? O que ela tem a ver com a sua recuperação?
A verdade era a única opção de Gwen, pois Artur sempre podia afirmar quando ela escondia algo dele. Tanto que ele não demorara a descobrir tudo acerca de Lancelot. Não que ela e Lance houvessem se envolvido intimamente de imediato. Mas Artur soubera que havia algo errado mesmo assim.
— Isabel veio me ver no nosso... no meu quarto, esta manhã, e tivemos uma conversa.
— E essa conversa a curou? Precisamos engarrafá-la, então, e vendê-la para o nosso médico.
— Por favor, Artur, não torne as coisas mais difíceis do que elas já são!
Ele concordou com um gesto de cabeça.
— Minhas desculpas. Isso não era necessário. Quer me contar o que aconteceu?
— Isabel me deixou muito consciente de que eu estava aborrecendo você. Eu estava abandonando Camelot e o povo ao me esquivar das minhas obrigações.
— Acha que ela ultrapassou os limites?
— Sim. Quero dizer, não . — Gwen balançou a cabeça. — Isabel foi apenas corajosa o bastante para me dizer algumas verdades que eu precisava ouvir.
Artur a observou.
— Eu poderia jurar que, nessa afirmação, há uma crítica velada à minha pessoa , mas, como acabou de se recuperar de uma desagradável intoxicação, vou relevá-la.
— Não, não... Eu não tive a intenção de criticá-lo em nada. É muito crédulo, Artur. Se eu dissesse que ainda não estava me sentindo bem, iria aceitar sem contestações.
— Por que a farsa, Gwen? O que imaginou que fosse ganhar?
Ela olhou para as próprias mãos.
— Talvez eu quisesse ganhar a sua atenção.
— Então não precisava se fingir enferma, Gwen. Bastava pedir a minha atenção.
— Estou pedindo agora.
— E, neste momento — respondeu ele, levantando-se e indo até a porta para fechá-la —, você a tem por completo. — Artur voltou à escrivaninha e sentou-se. — O que tem em mente?
— Tem sido um marido maravilhoso, Artur. Foi amoroso, atencioso e paciente enquanto eu aprendia minhas atribuições de rainha, e continua sendo bom demais para mim.
— Fico feliz por pensar dessa forma.
— E eu retribuí com uma traição pela qual lamento profundamente. Se eu pudesse voltar no tempo...
— Não mudaria nada. Foi o destino que fez você e Lancelot se apaixonarem. Eu não podia evitar que isso acontecesse mais do que poderia evitar que chovesse ou nevasse.
— Nós podíamos ...
— Não, não podíamos — interrompeu-a. — Ainda é apaixonada por Lance, assim como ele é por você. Na verdade, são apaixonados um pelo outro. Se negar o que digo, perderei o pouco do respeito que ainda me resta por sua pessoa. Sem dizer que eu jamais a perdoaria caso partisse o coração de Lance. Eu não o culpo. Tampouco culpo a você. Aconteceu, Gwen. — Ele ergueu as mãos e encolheu os ombros. — Mas aquele rapaz significa muito para mim, e eu não verei com bons olhos alguém que o prejudique de alguma forma.
— Então se importa mais com Lancelot do que com sua própria esposa?
— Gwen, se eu não me importasse com você, estaria respondendo a uma acusação de traição. Como eu já lhe disse centenas de vezes, não me importa o que você e Lance fazem. Eu me preocupo apenas que sejam apanhados por alguém que não pense duas vezes antes de acusá-los de um crime contra o rei. No momento, não existe solução legal em Camelot para a situação em que nos encontramos, embora eu esteja estudando seriamente um sistema que eles têm em Dumont, no qual se pode pedir a dissolução do casamento e o homem ou a mulher não precisam admitir culpa. A condessa Isabel o chama de “divórcio sem culpa”.
— Discutiu nossa vida íntima com a condessa?
— Admito que sim.
— Como teve coragem?!
— Tive, Guinevere, porque confio nela. Confio em seus pensamentos e opiniões.
Gwen cobriu as faces que pegavam fogo.
— Estou tão mortificada que tenha compartilhado algo tão pessoal com uma estranha!
— Isabel não é mais nenhuma estranha. Enquanto você estava na cama, se fazendo de doente, ela se tornou uma grande amiga e companheira.
Gwen o fitou, e a verdade a cingiu.
— Está apaixonado por ela.
Artur hesitou apenas um momento antes de aquiescer.
— Sim, é verdade.
— E a condessa sabe disso?
— Tenho a firme impressão de que Isabel tem ciência de tudo.
— E ela retribui os seus sentimentos?
— Espero, do fundo do meu coração, que sim.
— Como se atreve a me envergonhar dessa maneira?! Como ela ousa vir até aqui como convidada apenas para...
Artur deu um murro na mesa, e a raiva em seus olhos fez Gwen se encolher no assento.
— Termine a frase, Gwen. Eu a desafio a terminar com lógica esse seu pensamento!
Ela permaneceu em silêncio enquanto ele se inclinava para a frente, fulminando-a com o olhar.
— Eu não planejava, tampouco esperava o que se passou entre mim e Isabel. Mas isso estava destinado a acontecer, assim como aconteceu com você e Lance. Acha que eu mudaria as coisas, como parece desejar? Nem que eu tivesse de ir para o inferno de Hades! Exceto pelo incômodo fato de eu não ser livre para poder pedir Isabel em casamento, eu não mudaria uma única coisa.
No passado, lágrimas sempre haviam derretido o coração de Artur, porém Gwen sabia que estas já não teriam o poder de abalá-lo. Ao menos não as dela.
N ão vou chorar. .. Não vou chorar!
— Se não fosse pelo que aconteceu com Lance...
— Mas foi!
— E se não tivesse sido?
— Isabel seria apenas mais uma convidada do rei. Era isso o que queria ouvir? Que eu jamais teria traído os meus votos? Se assim fosse, estaria certa. Eu provavelmente teria olhado para ela como para qualquer outra pessoa inteligente a ser adicionada ao grupo a se reunir aqui a fim de ser conhecido e trocar ideias. Mas eu já sabia, Gwen... Você já tinha partido o meu coração. Quando vi Isabel, contudo, percebi que havia começado a superar o meu desgosto. E me senti livre para desejar outra mulher.
— Estou vendo.
— Não tenho nenhuma intenção de feri-la, Gwen. Isto não é nenhum tipo de vingança. Se não tivesse perguntado, eu não teria dito uma só palavra, pois esse assunto não é da conta de ninguém, a não ser da minha e de Isabel. Mas você me perguntou, e, como sabe, eu prezo muito a verdade. Sem dizer que minha esposa merece tê-la.
Ela respirou fundo e endireitou os ombros.
— Minha próxima pergunta vai soar egoísta e interesseira, Artur, porém vou fazê-la mesmo assim. Se conseguirmos instituir esse “divórcio sem culpa”, o que vai acontecer comigo? O que vai acontecer com Lance?
— Vocês dois estarão livres para se casar.
— Mas onde? Como?
— Já pensei nisso. Se Lancelot preferir permanecer na Grã-
-Bretanha em vez de voltar à sua terra natal, posso lhes arrendar terras, as quais administrarão como líderes, seja lá com que nome for. Poderão começar uma nova vida juntos.
Gwen engoliu em seco.
— Mas...
— Imagino qual seja a sua próxima pergunta, e não vou permitir que se humilhe, obrigando-a a fazê-la. Cuidarei do seu bem-estar pelo restante dos seus dias, Gwen. Não vou deixá -la desamparada. Será sempre mantida com todo o conforto. Essa parte dos meus votos eu manterei. Não pretendo vê-la passando por dificuldades.
— Lance não vai querer esmolas suas, Artur.
— Se ele continuar como soldado em Camelot, será recompensado à altura. Afinal, Lancelot é um dos meus homens mais competentes e leais... — O sorriso de Artur continha um misto de tristeza e cinismo. — ... no campo de batalha.
— Ele o ama como a um pai, Artur. Isso tudo está acabando com Lance por dentro.
— Pode não tomar minha afirmação como verdade, Gwen, mas acredito em suas palavras do fundo do meu coração. Se eu não acreditasse, Lancelot não estaria nem mesmo respirando agora.
Gwen se levantou e sentiu as pernas trêmulas.
— Acredite, Artur, eu também amo você.
— Eu acredito.
— Se não acreditasse, eu também não estaria respirando a essa altura?
— Eu jamais iria machucá-la, Gwen. Mas não poderia dizer o mesmo quanto àqueles que buscassem se vingar por seu rei.
Ela estremeceu.
— Está certo, Artur. Então, o que vai ser agora? Como agimos a partir deste momento?
— Ainda é a rainha. E, como tal, deve continuar a cumprir com seus deveres. Para todos os efeitos, nada mudou.
— Sim.
— Sempre foi uma rainha excelente, Gwen. Não vai precisar fingir nada.
— Compreendo.
— Discrição, Gwen. Discrição.
— Certo.
— E, por favor, nada mais de experiências com novos alimentos. Não quero outra ocorrência envolvendo cogumelos. O mais importante: nem pense em fazê-las com os alimentos que são servidos a todos.
— Claro que não.
Artur se levantou.
— Mais uma coisa, Gwen, da qual não quero que se esqueça nunca...
— Sim?
— Isabel salvou a sua vida. Se não fosse pelo tratamento rápido que ela ministrou, não estar íamos tendo esta conversa.
— Estou ciente disso.
— Acredite ou não, a condessa gosta muito de você. E compreende todas as emoções desencontradas que estão nos afetando. Se algo desagradável acontecer a ela, se eu notar um só arranhão em sua pessoa, conhecerá a minha ira como nunca aconteceu antes.
As lágrimas que Gwen vinha tentando tão desesperadamente conter vieram à tona.
— Ela salvou a minha vida uma vez, dias atrás, Artur. E veio me ver esta manhã para tentar salvá-la de novo. Jamais vou me esquecer disso.
— Espero que não. Por mais estranho que pare ça , Isabel poderia ser para você uma excelente amiga e aliada.
— E, por mais estranho que pare ça , Artur, eu gostaria muito de tê-la de ambos os modos.
Ele acenou com a cabeça e caminhou até a porta.
— Não vai se arrepender.
— E eu não vou contar que sei sobre o amor de vocês.
— Não é necessário. Farei isso esta noite. Assim como você deve contar a Lance.
Gwen aquiesceu, então segurou a mão dele com firmeza.
— Desta vez não irei decepcioná-lo. — Começou a sair, mas, em seguida, fez meia-volta. — Algum servo tem conhecimento disso?
— Por que está perguntando?
— Para que eu saiba na frente de quem poderei falar abertamente sobre o assunto.
— James e Mary. Ambos sabem de tudo. Ao menos, presumo que sim. — Os lábios de Artur se inclinaram em um sorriso leve. — Eles intervieram de um modo bastante divertido quando Isabel e eu tivemos um pequeno desentendimento.
Gwen assentiu, embora mal pudesse acreditar que tudo aquilo havia acontecido enquanto ela estava acamada.
— Imagino que, no futuro, isso tudo daria uma bela história.
— De fato.
Gwen fez um gesto em direção à escrivaninha.
— Vou deixá-lo fazer o seu trabalho. E lhe agradeço, Artur, por sua integridade e por sua compaixão.
— Também agradeço pela retidão que demonstrou hoje. Só quero a sua felicidade, Gwen. De coração.
— Eu sei. Também desejo o mesmo para você.
Artur fechou a porta atrás de Gwen, pois ansiava por privacidade enquanto ponderava sobre tudo o que fora dito.
— “O homem mais feliz em Camelot” — sussurrou para si mesmo. — “Quem é o rei Artur?” — respondeu ele próprio. — “Certo!” — Balançou a cabeça, sorrindo, conforme desenrolava o pergaminho. — Isabel, meu amor, você está me deixando maluco.
Capítulo Vinte e Dois
Mais uma vez, Gwen se viu do lado de fora de uma porta, pronta a bater. Mal acreditava no senso de humildade que tinha adquirido desde aquela manhã. O dia já fora desafiador, divertido, esclarecedor, de partir o coração... e não chegara nem sequer na metade.
Ouviu uma risada atrás da porta e hesitou.
— Ele não fez isso! — escutou uma voz jovem dizendo. — Está brincando!
— Não estou brincando, não! E ainda tentou me dar um beijo.
Esta última ela facilmente reconheceu como sendo a de Isabel.
— Depois de jogar um sapo dentro do seu corpete?
Gwen duvidou de que as duas mulheres estivessem falando sobre Artur. Embora este adorasse uma boa brincadeira, jogar um sapo no colo de uma mulher não fazia seu gênero.
— Foi a maneira que ele encontrou de demostrar afeição, creio eu — explicou Isabel. — Afinal, tínhamos no máximo oito anos.
— Parece-me, senhora, que a tentativa do pobre menino de cortejá-la foi um desastre.
— Não me diga... E eu achando até bonitinho!
As duas tornaram a cair na gargalhada.
Gwen detestou acabar com a atmosfera bem-humorada, porém teve esperanças de que pudesse ser incluída nela e bateu à porta.
Como temia, as risadas cessaram no mesmo momento.
— Entre! — falou Isabel.
Gwen abriu a porta e entrou, vendo as duas moças sentadas no chão. Isabel pintava as unhas dos pés de Mary. Metade delas já estava colorida com uma espécie de tinta cor-de-rosa.
— Lamento interromper — murmurou, intrigada.
— Vossa Alteza! — Mary se pôs de pé e fez uma reverência.
— Por favor, sente-se, Mary — pediu Gwen. — Não deixe m que eu interrompa, seja lá o que estejam fazendo.
Isabel sorriu para ela.
— Estamos testando várias maneiras de deixar Mary ainda mais bonita para a noite da cerimônia de casamento.
— Posso me juntar a vocês? Por favor, Mary, retome o que estava fazendo. Estou bastante curiosa quanto a essa brincadeira.
— Claro que pode. — Isabel tornou a sorrir. — Quanto mais gente, melhor, não é, Mary?
Mary olhou, nervosa, de uma para a outra, e Gwen tentou tranquilizá-la.
— Sente-se, Mary. Na verdade, eu já esperava que fosse estar aqui. Temos um casamento para planejar, e fiquei muito interessada em assistir e aprender essa prática.
— Eu sentarei quando fizer o mesmo, Alteza — decidiu a menina.
— Quer apostar qual de nós consegue sentar o traseiro primeiro? — indagou a rainha, surpreendendo a todas.
Mary riu, assim como Isabel, o que fez o coração de Gwen se alegrar. Ela havia tido muito tempo para refletir sobre tudo o que acontecera naquele dia, tudo o que precisaria enfrentar sobre si mesma, tudo o que era necessário para que fizesse as coisas direito.
Acomodou-se no chão, por fim, e acenou para a jovem criada.
— Vamos, sente-se!
— Quer que eu lhe traga alguma coisa, Vossa Alteza?
Gwen olhou para Isabel.
— É impressão minha ou essa coisa de “Vossa Alteza”, “Condessa” ou “Vossa Sei Lá o Quê” está ficando ultrapassada?
Isabel a fitou, e o sorriso que iluminou seu rosto fez Gwen se encher de orgulho.
— Isso tudo é de fato muito aborrecido — concordou de pronto.
— Pode me chamar apenas de Gwen, está bem, Mary? Pelo menos quando estivermos sozinhas. Compreendo sua relutância quando há outras pessoas ao redor, mas, aqui, agora, será apenas Gwen.
Mary pareceu horrorizada.
— Eu jamais poderia fazer isso!
Isabel revirou os olhos para Gwen.
— Levei dias e precisei fazer um monte de ameaças para fazê-la mudar de ideia, mas Mary vai ceder eventualmente.
Gwen sorriu. Não estava zangada com Isabel. Como poderia estar?
Artur tinha razão. A raiva que ela sentira por sua infidelidade era pura hipocrisia, e em sua forma mais grave. Sem dizer que ela amava o marido o suficiente para que — após superar a mágoa e a raiva — percebesse o quanto ele era bom e o quanto merecia uma mulher digna dele.
Sua principal pergunta para si mesma era se conseguiria esquecer tudo o que acontecera, voltar atrás em tudo o que havia feito, a fim de preservar a vida que levava.
E a resposta fora “não”. Não podia se arrepender de seu amor e da atração que sentia por Lance, assim como não podia estender a mão e trazer a Lua para perto.
— Eu adoraria tomar um pouco de vinho, Mary — decidiu por fim.
— Temos um bem aqui e...
— Pode deixar! — Gwen interrompeu a menina, erguendo-se outra vez. — Eu mesma vou servi-lo a vocês duas. E, para mim, claro.
Enquanto se levantava, Gwen testemunhou os olhares espantados trocados pelas duas outras mulheres, e sorriu para si mesma. Estava gostando daquilo. Imensamente.
— Agora, por favor, contem como se faz esta coisa de pintar as unhas dos pés.
— É muito simples e divertido — falou Isabel. — E deixa os pé s das mulheres muito mais bonitos.
— E de onde veio essa tinta? Você a trouxe de Dumont?
— Na verdade, não. Tivemos que fazer experiências até conseguirmos uma fórmula que desse certo. Misturamos flores com um pouco de água, depois adicionamos amido de milho para torná-la pegajosa o suficiente, assim ela pode aderir à unha.
— Aderir?
— Colar — explicou Mary. — Desse modo, a água seca e a coloração permanece sobre as unhas.
Gwen entregou um cálice à condessa, depois estendeu outro a Mary, que lançou um olhar inseguro na direção de Isabel. Esta, por sua vez, assentiu.
— Só uma vez e apenas um pouquinho. E isso porque parece que estamos tendo uma reunião entre amigas esta tarde.
Mary sorriu e aceitou a taça.
— Muito grata, Vossa...
— Gwen. Lembre-se: como sou sua rainha, precisa escutar o que eu digo. Quero que me chame pelo meu primeiro nome, assim como faz com a condessa Isabel.
Isabel olhou para Gwen, e esta lhe sorriu de volta.
Santo Deus. Ela não sabia como Gwen ficara sabendo, mas, bem lá no fundo, tinha certeza de ela sabia de tudo agora!
— Você sabe — sussurrou.
Gwen sentou-se, segurando a própria taça.
— Sei.
— Mas como?!
Os olhos de Mary saltaram de uma para a outra, cheios de preocupação.
— Eu não sei do que estão falando, mas eu juro, Isabel: nunca repeti uma só palavra das nossas conversas para ninguém, exceto para... Oh, não! James?
— Sossegue, Mary. Foi o próprio Artur quem me contou tudo — revelou a rainha. — Como sempre, ele foi mais do que honesto.
Isabel quase desfaleceu. Artur admitira... ela não sabia o quê! Que eles eram amantes? Que ele...
— Ele é apaixonado por você, Isabel.
Por algum tempo, Mary se limitou a observar, emudecida. De repente, se levantou.
— Acho melhor eu ir fazer alguma coisa.
— Sente-se! — falaram Isabel e Gwen em uníssono.
Gwen riu.
— Às vezes, honestidade em excesso parece não trazer nenhum benefício, não é mesmo ? Mas não foi assim, hoje. Era o que eu precisava ouvir. Artur compreendeu, assim como sempre foi capaz de fazer.
— Eu sinto muito, Gwen. Muito mesmo — conseguiu balbuciar Isabel. — Eu nunca quis... nunca pretendi...
— Sente muito? Por seguir o seu coração? Por fazer um homem maravilhoso feliz novamente depois de muito tempo? Acha que eu a culpo por isso, Isabel? Acha que eu estaria aqui, compartilhando esse momento com vocês, caso tivesse más intenções ou pensamentos?
De repente, ocorreu a Isabel que Gwen insistira em lhes servir o vinho. Olhou para o cálice, alarmada.
Gwen a observou com um sorriso no rosto, depois estendeu a mão e trocou as taças, tomando um bom gole da bebida antes de trocar os cálices de novo.
— Não, Isabel, não tenho a intenção de envenená-la. Artur deixou claro que, se você sofresse um só arranhão, ele faria a pessoa pagar caro. E, por “pessoa”, decerto se referia a mim. Quanto ao pagamento, na certa seria com a minha vida. Como não tenho a menor pretensão de incorrer na ira do rei, por favor, confie que eu jamais irei lhe fazer nenhum mal.
— Claro que não — concordou Mary, com veemência. — Até porque eu não permitiria tal coisa.
Era uma atitude ousada para uma criada de Camelot. Preocupante, na verdade, refletiu Isabel.
— Acalme-se, Mary. Gwen está aqui para conversarmos a respeito do seu casamento, não é mesmo, Gwen?
— Verdade. No entanto, eu adoraria aprender essa coisa de pintar as unhas dos pés antes de decidirmos o cardápio. Tenho um encontro esta noite e gostaria muito de surpreender a pessoa...
Mary e Isabel trocaram olhares.
— Então, sugiro que tire os chinelos, Vossa Alteza. — falou Mary por fim.
— Se vai pintar as minhas unhas, Mary, insisto que me chame de Gwen!
— Como eu também disse a Isabel, senhora, somente quando estivermos sozinhas. Nunca, jamais, diante dos outros. Por favor, não insista nisso quando não estivermos apenas as três!
Gwen lançou um olhar interrogativo na direção de Isabel.
— As amigas dela — se é que se pode chamá-las assim — andaram evitando Mary por ciúmes.
— Ciúmes?
— Acham que ela vai se casar com alguém muito acima de sua posição social, já que James é um dos soldados mais importantes do exército de Artur. Embora Mary nunca tenha se gabado disso, as outras estão morrendo de inveja.
Mary tomou um gole de vinho.
— Algumas também se ressentem do fato de eu ter sido designada para cuidar da condessa.
— Que trabalho ingrato, não, Mary? — indagou Isabel, brincando.
— Isso é terrível! — exclamou Gwen. — Ah, Mary, há algo que eu possa fazer?
— Acredito que possamos empurrar essa inveja goela abaixo, proporcionando a Mary e James a mais bela e inesquecível das cerimônias de casamento — opinou Isabel.
— É o que vamos fazer! Elas que engasguem com sua inveja.
Isabel levantou as sobrancelhas para Gwen.
— Ei... — falou a rainha, erguendo o cálice com um sorriso. — Ainda não envenenei você?
— Excelente observação — concordou Isabel, brindando e tomando outro gole do vinho.
Até o momento em que as três conseguissem terminar de fazer as unhas dos pés, elas foram interrompidas por Jenny, James, Tom e até Hester, o bobo da corte. E, por qual motivo Hester havia ido procurá-las, Isabel não fazia ideia.
Estavam todas rindo, deitadas de costas e abanando as pernas no ar, na tentativa de secar a mistura caseira, quando ouviram outra batida na porta.
Isabel perdeu a paciência.
— O que foi desta vez? — gritou, exasperada. — Pelos deuses, isto aqui está parecendo a Grand Central Station!
— Isabel, preciso vê-la. Tenho que falar com você! Por favor, permita que eu entre.
As três se entreolharam, obviamente reconhecendo a voz. Então se sentaram, ajeitando as saias.
— Entre, Artur. A porta está destrancada.
Ele abriu a porta e estacou, perplexo, ao vê -las todas no chão.
— Perdão, eu não queria interromper... seja lá o que for . Na verdade, prefiro nem saber.
— Coisas de mulher — explicou Isabel. — Estamos planejando o casamento de Mary.
Ele pareceu tão pouco à vontade como um frango gordo e saudável no interior de uma loja KFC.
Gwen se levantou, meio sem equilíbrio.
— Mary e eu estávamos pensando, mesmo, em dar uma volta para terminarmos de secar as unhas dos pés, não é mesmo, Mary? — Ela estendeu o braço, e a menina o aceitou de bom grado.
— Verdade, Vossa Alteza. Meu rei... — Mary fez uma rápida reverência ao passar por Artur.
— Ah, por favor, pare com isso, Mary! — ordenou ele. — Somos amigos. Pare de se rastejar.
Ela assentiu com um gesto de cabeça.
— Perdão, rei Artur.
Artur quase rosnou, contudo, manteve a porta aberta quando Mary e Gwen passaram por baixo de seu braço e, pelo ruído que fizeram, saíram em disparada pelo corredor.
Só então ele praticamente a bateu.
— O que está acontecendo, Isabel?
— Mary e eu estávamos vivendo um momento entre amigas, e Gwen quis participar. Por que está tão nervoso? Não aconteceu n ada de errado aqui. Estávamos apenas nos divertindo.
— Gwen sabe a respeito de nós.
— Eu sei. Ela me contou.
— Contou mesmo?
— Sim. Na verdade, foi muito receptiva à situação. Por que está tão tenso?
— Eu temi que... Bem, fiquei preocupado.
— Ei, eu ainda estou aqui, Artur. Gwen não é do tipo assassino. Deve saber disso. Não teria se casado com uma mulher tão cruel. Jamais faria isso.
— Espero que não. De qualquer modo, não posso me arriscar em se tratando de você.
— Eu te amo, Artur!
— E eu amo você, Isabel.
— Dá uma mãozinha aqui? — pediu ela, estendendo o braço.
— O quê?
— É apenas um modo de dizer “ajude-me a me levantar”.
Ele a puxou e, conforme a trouxe para junto dele, passou um braço por sua cintura e a ergueu do solo. Ainda a centímetros do chão, Isabel o enlaçou pelo pescoço e o beijou.
— Até o meu último suspiro, nunca vou parar de desejar o seu toque e os seus beijos, Isabel! — murmurou Artur momentos depois. Abaixou-a devagar, propositadamente, de modo que ela deslizasse pela frente de seu corpo da forma mais sensual.
— Por qu ê , Artur?
— Por que o quê?
— Por que contou a Gwen?
Ele afastou os cabelos de seu rosto.
— Ela merecia saber a verdade.
— Podia ter ficado calado.
— Era uma opção. Mas o que tal atitude diria a meu respeito, Isabel? Gostaria que eu escondesse o amor que sinto por você?
Ela pousou a cabeça no peito largo.
— Se essa história se espalhar, toda a verdade virá à tona, e ela e Lance ficarão em apuros. N ão acha que James iria despejar a verdade por conta da lealdade que tem a você, acha? Porque de maneira alguma ele permitiria que levasse a culpa.
— Ele o faria se eu lhe ordenasse.
— E vai fazer isso? Por acaso, por falta de uma expressão melhor, “sairia na espada”?
— Não. Nesse caso, não.
— Como pode afirmar?
— Essa é fácil...
— Não entendi.
— “Aquela que Artur, o rei de Camelot, passou a amar tanto que ele faria qualquer coisa para protegê-la.”
Isabel sentiu-se derreter. Por que o amor era tão difícil de encontrar?
— Muito simples — provocou, quando reaprendeu a arte de respirar. — “Quem é Pix, a beagle amada e meio pateta de Artur, que o segue a todos os lugares?”
— Errado, condessa, embora eu admita que Pix seja uma resposta bem próxima da correta. Vou lhe dar outra chance.
— Pix seria a resposta mais próxima, é?
— Isabel, você mesma pularia na frente de uma flecha para salvar Burny!
— Ah, mas Burny é um cachorro como nenhum outro. Falando sério... Aquele cãozinho é inexplicável! Que cachorro é aquele, meu Deus?
Artur riu e a abraçou ainda mais.
— Ninguém sabe. Nós não questionamos; apenas acolhemos qualquer filhote que apareça por aqui.
— Ele é tão fofo!
— E ele a segue por toda parte, como se você fosse a mãe dele.
— Eu não sabia que tinha notado.
— Eu imaginava saber cada detalhe do que acontece à sua volta, Isabel, mas não me dei conta do que aconteceu hoje. Simplesmente falhei.
— O quê? Como assim?
— Ignorei o óbvio, ao passo que você percebeu o que se passava e entrou em ação.
— Quer dizer com Gwen?
— Sim.
— Fez o que qualquer bom marido faria. Eu apenas conversei com Tom, e depois com Gwen.
— O que devia ter sido minha responsabilidade.
— Não falhou em nada, Artur. Quantos fardos acha que pode carregar? Não que Gwen seja um fardo. Por sinal, gostamos muito da tarde que passamos junto dela. Gwen foi maravilhosa. N ão sei o que vocês conversaram, mas, pelo que observei, ela não guardou nenhum rancor. Na verdade, desde que a conheci, Gwen nunca me pareceu tão em paz.
— Ela é realmente uma boa pessoa — confirmou Artur. — Apenas jovem demais. N ão sei o nde eu estava com a cabeça quando... — Ele a beijou outra vez. — N ão importa. Eu queria apenas vê-la e ter certeza de que estava tudo bem.
— Está aliviado ou triste após sua conversa com Gwen?
— Mais como a primeira opção e menos como a última.
— É compreensível.
— Logo depois, tive esse desejo incontrolável de vir ver se estava bem. Não que eu acredite... Ou melhor, essa é uma desculpa muito fraca. Eu só queria ver você.
— Ah, Artur! — suspirou Isabel, afastando um fio escuro do rosto moreno. — Nossa, o cabelo dele havia crescido tanto nos últimos dias! — Tem muitos problemas com que lidar no momento. Eu deveria ser a menor das suas preocupações.
— A preocupação era só fingimento. Ver você era questão de pura necessidade.
— Nós nos veremos mais tarde. Precisa voltar ao que mais preza.
Ele a fitou, perplexo.
— Isabel, se eu não deixei bem claro, você é o que eu mais prezo nesta vida agora.
— E quanto a Camelot?
— Não passa de um lugar, ora. Sim, eu amo Camelot. Mas, por acaso, eu posso abraçar Camelot à noite? Posso me deitar com Camelot e partilhar o que aconteceu durante o dia? Sem nem mesmo um momento de reflexão eu abriria mão deste reino pelo restante dos meus dias se, a cada momento desses dias, eu ficasse a seu lado.
— Ah, Artur, eu jamais iria lhe pedir isso!
— Claro que não. Esse é outro motivo pelo qual eu te amo, Isabel. Portanto, nunca duvide das minhas prioridades. — Artur a beijou, em seguida a soltou. — Aliás, n ão questionou a minha resposta corretamente.
Isabel estava tão atordoada e confusa, e com o coração tão cheio de emoções, que não sabia com o que lidar primeiro.
— Eu me esqueci da resposta — confessou, por fim.
— Vou repeti-la: “Aquela que Artur, o rei de Camelot, passou a amar tanto que ele faria qualquer coisa para protegê-la”. — Ele sorriu. — A sua primeira resposta foi um pouco insultante, já que se tratava de uma cadela babona. Mas vou perdoá-la, desta vez, e permitir que faça outra escolha.
— “Quem é a condessa Isabel?” — sussurrou ela.
— Agora, sim...
— Tenho uma para você.
Artur abriu novo sorriso.
— Como você mesma disse tantas vezes... Pode mandar!
— “A mulher que se recusa a permitir que desista do seu reino, dos seus sonhos e do seu amor por ela. A mulher que está pronta a enfrentar qualquer batalha, a fim de manter o sonho de Camelot vivo.”
Artur a segurou pelo rosto.
— A questão deveria ser: “Aquela que o rei Artur preferiria manter cativa a deixar correr perigo em seu nome”. Isso nunca vai acontecer, Isabel. Não consigo conceber uma coisa dessas.
— Alguma vez lhe ocorreu que as mulheres podem ser úteis por detrás das linhas de batalha? Permita-nos tomar parte nesse tipo de coisa também.
— Não. Não quero nenhuma mulher ferida. Quanto a você... Eu não sobreviveria se fosse atingida. Eu simplesmente não conseguiria mais viver.
— E, no entanto, espera que eu — ou qualquer uma de nós — permaneça por perto, vendo-o ser ferido ou coisa pior?
— Sim. É o que devo fazer. Por favor, Isabel, não faça com que eu me preocupe com você, caso uma batalha venha a acontecer. Eu nem conseguiria fazer o meu trabalho.
— E existe esse risco?
Artur hesitou, depois concordou, enfim.
— Há uma possibilidade. Os que não foram convidados para se reunir em torno da távola se uniram, de acordo com os relatórios que recebi. Temos de nos preparar.
— Então, nós o faremos.
— Isabel, não.
— Não permitir ei que ninguém lhe faça mal sem lutar. Não faria o mesmo por mim?
— Não é a mesma coisa.
— É exatamente a mesma coisa! Se acha que as mulheres são incapazes de fazer o que devem a fim de proteger seu rei, seu castelo, sua vida, está subestimando a todas nós.
— Eu não as subestimo. Sinto necessidade de protegê-las. Você, mais do que todas as outras.
— De quanto tempo dispomos? — quis saber Isabel.
— Isabel...
— Quanto tempo, Artur?
— Minha melhor estimativa, segundo as informações de meus homens, é de três semanas. Acreditamos que eles planejam atacar quando todos os cavaleiros convidados para a távola estiverem reunidos aqui.
— Pois esse plano me parece uma grande estupidez.
— Não deve haver traidores sentados entre nós.
— Sabe quem eles podem ser?
— Tenho uma vaga ideia.
Isabel soltou uma espécie de rosnado.
— As mulheres não apenas irão ajudar como chutarão os traseiros desses canalhas!
— Isabel...
— Sim, Artur?
— Você me excita e ao mesmo tempo me põe medo, sabia?
— Espero que só faça uso da excitação esta noite. Quanto ao medo, permita-me cuidar dele.
— Mas sou eu quem deve protegê-la.
Ela o socou de leve no braço.
— Ao menos uma vez, Artur, acostume-se com a ideia de que as mulheres podem ser muito úteis ao cuidar de seus homens. Ao menos uma vez.
— Não permitirei que entre na batalha caso ela venha a ocorrer. Isabel, por favor... N ão consigo nem mesmo conceber essa possibilidade! Eu amo você. Será que não percebe?
— Claro que percebo. E se eu prometer que nenhuma de nós, mulheres, vai ingressar em qualquer tipo de luta?
Ele a fitou com olhos estreitos.
— Tem algum plano escondido na manga?
Ela fez a mais inocente das expressões.
— Eu juro, por tudo quanto é sagrado, que não iremos pisar no campo de batalha.
— Você tem um plano.
— Eu juro, por tudo quanto é sagrado, que não vamos entrar no campo de batalha!
— N ão sei se ri o ou fico morto de preocupação.
— Prefiro a primeira opção.
— Isabel, eu não suportaria se alguma coisa lhe acontecesse. O amor que sinto por você é tão... N ão posso nem mesmo descrever meus sentimentos! Só sei que , se eu a perdesse agora que a encontrei, eu... Não consigo imaginar uma coisa dessas acontecendo!
Ela riu enquanto observava a expressão tensa, calorosa e preocupada no rosto moreno.
— Não sou a única se preparando para a batalha, Artur. Como acha que me sinto, sabendo que está fazendo isso?
— É o meu trabalho.
— Ah, sim, o seu trabalho. E eu devo sorrir, preparar um almoço para você, acompanhá-lo até a porta e dizer: “Espero vê-lo vivo na hora do jantar, querido. Seria uma pena desperdiçar o seu prato preferido, apesar de Pix poder apreciá-lo!”.
Ele a fulminou com o olhar por um momento, então riu e a puxou para mais perto.
— Essa foi a conversa mais estranha que eu já tive na vida, mas eu te amo mesmo assim.
— Não faz mais do que a sua obrigação — rebateu Isabel, sentindo-se repentinamente tensa e mal-humorada. Ela n ão fazia ideia do perigo que podia estar à espreita . Artur havia conseguido manter essa informação bem guardada no bolso do colete. Ou da túnica. Ou da malha... que fosse. — N ós, mulheres, não vamos ficar de braços cruzados, Artur. Temos nossos métodos.
— Está decidido. Caso aconteça alguma coisa, não vou permitir que vocês, mulheres, interfiram. Muito menos a mulher que eu amo!
— As mulheres não costumam tomar parte nessas guerras idiotas que vocês, homens, lutam.
— O que quer dizer?
— Temos muito mais recursos do que imaginam.
— Às vezes a senhora me preocupa deveras, condessa.
— Pois eu deveria me preocupar com você o tempo todo.
— É justamente isso o que me aflige.
— Bem feito.
— Posso vê-la esta noite? — perguntou Artur com um suspiro.
— “A mulher que deseja ficar com Artur esta noite mais do que qualquer outro na Terra.”
Ele sorriu para ela.
— Tenho que pensar um pouco...
— Vamos, preciso ouvir dos seus lábios!
— “Quem é a mulher que Artur ama e deseja mais do que qualquer outra?”
— Perfeito. Bônus duplo para você.
— Esta noite, então?
— Sim. Por favor.
Conforme Artur deixava o quarto, Isabel o ouviu dizer:
— Espero que as unhas dos seus pés já tenham secado, Mary. E as dos seus também, Gwen.
— Temos que adiantar a data do seu casamento, Mary — decidiu Isabel, ainda se recuperando de um enorme constrangimento. Pelos deuses, Mary e Gwen ficaram escutando tudo do lado de fora da porta!
Ambas, no entanto, entraram como se não houvessem escutado coisa alguma. As três se entreolharam e, mais uma vez, não puderam se conter. Caíram na gargalhada.
Logo ficaram sérias, contudo, quando Isabel anunciou:
— Todas as mulheres de Camelot, inclusive as convidadas como eu... — confirmou ela com um gesto de cabeça para Gwen — ... precisam se preparar para proteger os homens. Eu tenho um plano. Ou parte dele. De qualquer modo, temos que nos organizar e precisamos envolver todas as criadas. — Estendeu a mão. — Posso contar com vocês?
— Pode! — declarou Mary, segurando a mão dela.
— Comigo também — jurou Gwen, apertando as mãos de ambas.
— Ótimo , Gwen, porque, para conseguirmos nosso objetivo, preciso que use a sua coroa com vontade.
— Considere feito.
— Muito bem. Mary, que tal se casar com James depois de amanhã?
Os olhos da menina se arregalaram.
— Está brincando?
— Não. Seu vestido está pronto, não está?
— Sim.
— Eu posso cuidar da festa — resolveu Isabel. — Gwen, você tem um talento especial para lidar com flores... Poderia se encarregar da decoração do salão.
— Claro!
— Excelente. Amanhã, temo que o nosso recreio precise ser usado para nos livrarmos daqueles juncos e esfregarmos o salão principal. Quando Mary e James trocarem seus votos, aquele lugar precisa estar cheirando a primavera, e não como um chiqueiro!
Ambas as mulheres concordaram.
— Mary, receio que vá ter de trabalhar amanhã. James precisa de um corte de cabelo, assim como Artur.
— E Lance — completou Gwen.
— E Lance... Embora eu ache que ele fica lindo com aquele cabelo meio desgrenhado — provocou Isabel.
Gwen sorriu enquanto admirava as unhas dos pés.
— Fica, sim. Mas um bom corte de cabelo não tira pedaço de ninguém.
Capítulo Vinte e Três
— Milady?! — chamou um homem enquanto ele passava por Isabel, no salão principal, onde ela estava de joelhos, esfregando o chão.
Ela olhou para cima, para baixo, depois para cima novamente.
— James?!
Ele parou, o rosto — agora livre de pelos — um pouco vermelho.
— Sim, condessa.
Isabel se levantou, puxando o corpanzil pelos braços, de modo que o rapaz a encarasse.
— James! Pelos deuses, olhe só para você!
— Não posso fazer isso, condessa, porque estou olhando para a senhora.
Ela riu e enxugou a testa.
— Por que diabos andou escondendo esse rosto bonito por detrás de tanto pelo?
— Eu... Condessa, por acaso está brincando? Sinto-me quase nu!
— Caramba, James! — exclamou Isabel, chocada. Sem todos aqueles pelos e cabelos ele parecia um George Clooney mais moço, ainda que bem mais forte e cerca de trinta centímetros mais alto. Tanto melhor! — Por que andou escondendo todo esse visual? Diga a verdade. — Isabel o estudou. Estava sem palavras.
— Eu não sabia que estava fazendo isso. Mas, obrigado, condessa, apesar de eu estar me sentindo como um bebê recém-nascido — resmungou James, esfregando o queixo.
— Mary foi implacável...
— Ah, foi. De fato. E, no momento, seu prisioneiro é o rei.
Ela sorriu.
— Agora consigo enxergar o que Mary sempre viu. Sorte dela ter um noivo tão bonito!
— Eu é que sou o sortudo, condessa. — Ele olhou ao redor. — Aliás, os pés dela ficaram muito bonitos — sussurrou ele.
— Assim como ela própria!
James assumiu uma expressão sonhadora.
— Verdade. Não sei como lhe agradecer pela bondade com que a tem tratado. Mary está muito entusiasmada com o vestido que ganhou de presente.
— Ela é a melhor das amigas, James. E aposto que Mary também será muito amiga sua, assim como uma ótima companheira de vida.
Ele esfregou os olhos, comovido.
— Não sei, mesmo, como lhe agradecer pela sua generosidade.
— Tudo o que eu quero é que vocês dois sejam felizes. Eu gostaria de lhe plantar um beijo na bochecha, se eu tivesse uma escada que me levasse até aí...
James inspecionou o salão mais uma vez.
— Um beijo de uma condessa seria uma honra — falou, abaixando-se, de modo que ela pudesse lhe beijar a face.
— Tudo de bom para vocês, James!
— Tudo de bom para a senhora e o meu rei também, condessa. Tenho o pressentimento, e sei que ele está certo, de que nasceram um para o outro. Assim como Mary e eu.
James se afastou antes que Isabel pudesse dizer mais alguma coisa.
Ela balançou a cabeça e voltou a esfregar o chão. Gwen estava lá fora com várias criadas, todas ocupadas em dar cabo dos juncos. Pobre delas... De qualquer modo, Gwen havia jurado ter uma fórmula que as livraria de ficar fedendo.
— Isabel!
Ela quase caiu com o susto. Ergueu a cabeça e se deparou com Artur com o cabelo e a barba feitos. Estava maravilhoso.
— Nossa ! — exclamou, levantando-se. — É o rei mais bonito que já conheci na vida!
— Quantos reis já conheceu, exatamente? — indagou ele.
Na verdade nenhum. A não ser ele, claro .
— Se quer dizer nu... Apenas um.
Artur tentou não sorrir e falhou.
— Isabel, por que está de quatro no chão?
— Estou limpando, oras. Acredite, este salão estava precisando de uma faxina.
— Mas há criadas para fazer tal coisa.
— Certo. E iguaizinhas a mim. Eu posso fazer essas coisas, Artur. A propósito, está muito gostoso hoje...
— Não tente me distrair com palavras que eu não compreendo — ralhou ele. — Não quero você esfregando o chão.
— Isso é péssimo, pois posso ajudar a limpar como qualquer pessoa.
— Mas temos empregados que...
— Artur! Se eu não me dispuser a ajudar, o que vão pensar de mim? Não tente, e estou falando sério, me impedir de ajudar a limpar o salão!
— Há pessoas que...
— Nem pense em chamá-las! Por acaso fica de braços cruzados enquanto seus homens trabalham?
— Não, mas...
— Fica parado enquanto seus homens lutam nas batalhas por você?
— Não, só que...
— Então, por favor, não fique aborrecido quando eu faço o que precisa ser feito. Não sou melhor do que ninguém porque tive a sorte de nascer na realeza. — Isabel não fazia ideia se aquilo era verdade naquela existência, porém continuaria a afirmá-lo. — Por acaso é mel hor do que os outros porque conseguiu arrancar uma espada de uma pedra?
— Não.
— Temos todos o mesmo sangue vermelho, Artur. Somos iguais.
— Sim, mas...
Isabel esperou, contudo Artur continuava inconformado.
— “Sim, mas” o quê?
— Esqueceu de limpar esta parte — apontou ele com um suspiro e se afastou em direção à sua sala.
Pelos deuses, ela amava aquele homem. Sem dúvida iria repreendê-lo se fosse necessário... mas da forma mais carinhosa.
Com um suspiro, ela mudou de posição e começou a esfregar o local que Artur havia mostrado.
***
A cerimônia de casamento entre James e Mary quase fez Isabel chorar. Eles pareciam tão verdadeiro s e sinceros! E Mary dera uma linda noiva.
Gwen havia se superado. O salão ficara espetacular com velas e flores por todos os lados. Nos tempos modernos, pensou ela, Gwen seria a cerimonialista de maior sucesso em todo o estado de Oklahoma. O resultado fora de tirar o fôlego.
Obviamente, ela, Isabel, nunca presenciara um ritual daquele. Não tinha sido uma cerimônia religiosa e, no entanto, fora muito... espiritual.
— Eu prometo — começou James.
Como padrinho, Artur se colocou diante deles.
— Irá honrar sua esposa.
— Sim.
— Irá protegê-la e mantê-la, custe o que custar.
— Sim.
— Isabel? — chamou Artur.
Ela se posicionou diante dos noivos e os fez entrelaçar as mãos, como ditava o costume.
— Vai honrar seu marido?
— Sim.
— Irá protegê-lo e mantê-lo custe o que custar?
Aquilo estava fora do script . Uma esposa deveria apenas honrar os desejos e obedecer às exigências do marido. Porém ela não teria conseguido enunciar tais palavras.
— Sim — interveio James na proclamação antes que os protestos tivessem início.
— Sim, eu vou — reafirmou Mary.
— Excelente — concluiu Isabel. — Dessa forma, serão muito felizes juntos. — Ela se inclinou e beijou a bochecha de Mary. — James é um homem de sorte, milady — completou baixinho.
Mary olhou para ela e sorriu.
— É, sim.
Artur encerrou a cerimônia, em seguida chamou todos para a celebração.
***
— Pelo inferno de Hades, o que foi aquilo? — perguntou Artur a Isabel, quando finalmente conseguiu encurralá-la.
— O quê?
— Cerimônias de casamento não são assim. Você...
— Saí do script , sim, eu sei. Mas foi um ritual muito mais verdadeiro.
— Verdadeiro?
— Artur, se você e eu estivéssemos nos casando...
— Está querendo dizer: “Quando nós nos casarmos...”.
— Está certo, vamos continuar a sonhar. Quando nos casarmos , não pense, nem de brincadeira, que vou lhe obedecer em tudo. Eu não tinha como pedir a Mary que fizesse uma coisa dessas e, por esse motivo, improvisei.
Ele a fitou por um momento, depois caiu na risada.
— Ah, Isabel, você é mesmo uma charada! E um prazer constante, devo acrescentar.
— Vou tomar isso como um elogio. Acho.
— Pode tomar como um elogio. Acho.
— Estamos conversados. Agora vamos comemorar.
A festa durou até a noite, com a comida, o vinho e o hidromel desaparecendo com a mesma velocidade com que eram providenciados. Para o mérito dos que tinham ajudado a preparar a recepção, todos pareciam realmente felizes por Mary e James. Ou então estavam disfarçando muito bem.
Isabel sabia a quem deveria agradecer por tudo aquilo. Caminhou até Gwen, que parecia concentrada numa conversa com Jenny. A moça torcia as mãos e balançava a cabeça.
— Sua voz é linda, Jenny! Vai dar tudo certo — ouviu a rainha dizendo. — Basta cantar como fez esta manhã.
Jenny assentiu por fim e, em seguida, saiu correndo.
— Devo dizer, lady Guinevere, que fez uma festa de arrasar — elogiou Isabel, sincera.
Gwen sorriu para ela.
— Nós fizemos uma festa “de arrasar”. Eu não teria conseguido sem você.
— Ou sem um zilhão de pessoas ajudando!
— Verdade. — riu Gwen.
Ambas se voltaram quando Jenny começou a cantar. E foi tão bonito! Isabel não conhecia a canção, contudo sabia reconhecer uma boa voz.
Todos bateram palmas ao final, como já era de se esperar.
Céus! A palavra “impressionante” nem sequer começava a descrever o que acontecera ali.
— Jenny é muito boa!
— E eu não sei? Ela canta para mim durante o meu banho.
— Caramba! Que sorte a sua!
— Verdade.
— Por falar nisso, o que disse à equipe de criadas? — quis saber Isabel.
— N ão sei o que está querendo dizer — respondeu Gwen, girando o vinho no cálice, tensa.
— Tenho certeza de que sabe.
Gwen sorriu. Em seguida, tomou um gole da bebida.
— Eu apenas mencionei como estava entusiasmada com Mary e James. Disse que não seria nenhuma vergonha compartilhar com eles sua alegria esta noite.
Isabel assentiu.
— Muito apropriado. E eficiente. Foi muita generosidade sua, Gwen.
— Era o mínimo que eu podia fazer.
— Escute, esta não é uma conversa de bêbada — garantiu Isabel. — Sou eu mesma dizendo: eu realmente a aprecio e admiro! Quando se dedica a alguma coisa, você se supera, Gwen.
Os olhos da moça se encheram de lágrimas, e ela olhou ao redor.
— Esta também não é uma conversa de bêbada — replicou Gwen baixinho. — Posso compreender por que Artur é tão apaixonado por você.
Foi a vez de Isabel combater as lágrimas.
— Não importa o que o futuro nos reserve. Espero que sejamos sempre amigas.
— É o que eu espero também. Quem sabe, algum dia, não nos tornemos até “amigas de dedinho”?
Isabel riu e quase engasgou com o vinho. Quando conseguiu engolir, perguntou:
— E então? O que achou do cabelo de Lance?
Os olhos da moça seguiram direto para seu amante.
— Ele ficou lindo, não ficou?
Quando se preferia os rapazes com cara de bebê, pensou Isabel, perguntando-se como os gostos podiam diferir tão drasticamente. Em sua opinião, Artur, com aquela aparência robusta — Ah, como ele era lindo! — era muito mais sexy.
No momento, porém, estava feliz pelo fato de sua ideia de “atraente” ser bem diferente da de Gwen.
— Ficou, sim — respondeu, chegando à conclusão de que a diplomacia seria a melhor forma de ela não se dar mal. — E o que me diz de James?
— Quem diria! — exclamou Gwen.
— Mary diria, oras! Ela enxergou muito além das aparências. Ela o enxergou com o coração. No fim, James é um lindo gigante.
Gwen riu outra vez.
— Até mesmo Mordred ficou mais bonito.
— Ele precisa de mais alguns anos para ganhar pontos na aparência, mas realmente teve sorte em se tratando de genética. Quando olho para ele, vejo Artur com a mesma idade.
— O que fez, Isabel?
— Em relação a quê?
— Alguma coisa aconteceu. Até pouco tempo atrás, Mordred parecia viver para torturar o pai e, de repente, eles estão rindo e se abraçando! Eu os vi até mesmo treinando com a espada juntos, esta manhã. Tenho a firme impressão de que você tem algo a ver com essa transformação. — Gwen fez uma pausa e bebeu outro gole de vinho. — E talvez algo a ver com essa lesão no joelho dele.
— Talvez — respondeu Isabel.
Elas se entreolharam e ambas caíram na risada.
Isabel levantou o dedinho e Gwen o olhou por um momento. Então fez o mesmo, e elas os entrelaçaram, sorrindo.
— Isto significa muito para mim, Isabel.
— Para mim também. — Ela riu. — Esta não é a amizade mais estranha do mundo?
— Com certeza! — concordou Gwen. — Mas é divertida, não acha?
— Ninguém iria acreditar.
— Por isso mesmo é divertida.
Um barulho forte quase fez as duas caírem dos chinelos. Elas se voltaram, e avistaram Artur em pé sobre uma das enormes mesas, chamando a atenção de todos enquanto batia com um talher em um cálice .
— Por favor, pode o casal feliz dar um passo à frente? — pediu ele com sua voz grave.
Isabel o observou, sentindo o coração quase explodir. Artur tinha uma presença tão marcante! Era tão grande, forte e, pelos deuses , tão lindo!
E ele a amava. Ele a desejava! Queria tê-la e protegê-la.
Talvez, com o tempo, ela conseguisse fazer com que ele fosse menos machista, mas, no momento, estava impressionada com tudo o que ele era, tudo o que representava. Artur era um rei, mas não era nenhum ditador. Tratava a todos igualmente e valorizava todas as pessoas em Camelot, considerando-as como se fossem da família. E todos ali, ao menos até onde ela pudera notar, o adoravam e admiravam.
E o mais maravilhoso de tudo: Artur a amava. Ela não fazia ideia por que, porém, mais uma vez, não pretendia questioná-lo.
Céus, mal podia respirar apenas de olhar para ele!
— Por favor, que todos os criados se juntem a nós — proclamou Artur. — Eles trabalharam muito para fazer desta noite um sucesso.
Houve um momento de silêncio enquanto Mary e James se aproximavam da mesa. Servos fizeram o mesmo, vindo de todas as partes do castelo.
Artur olhou ao redor, atento.
— Bem, eu sei que todos estão aqui, mas, no momento, não posso identificá-los. De qualquer modo, James e Mary, talvez tenham estado muito entusiasmados e ocupados para tomar nota, contudo a rainha e a condessa trabalharam duro como os demais para tornar esta noite tão memorável para vocês quanto fosse possível.
Os gritos e assovios quase romperam o tímpano de Isabel. Ela segurou a mão de Gwen e a apertou. Que estranha aliança aquela!
James também se pôs em cima da mesa, e Isabel pensou ouvir uma exclamação coletiva. Era como se todos estivessem se perguntando se haveria uma mesa na Terra forte o bastante para sustentá-lo.
Graças ao carpinteiro, aquela pareceu dar conta do serviço.
— Eu também gostaria de agradecer a todos — declarou o noivo. — Em especial à rainha e à condessa por todo o trabalho que tiveram para que a minha nova vida com minha linda esposa, Mary, começasse com tanta alegria. Nosso rei pode achar que não me dei conta de tudo o que fizeram, mas, na verdade, fui testemunha de todo o seu esforço. Mary e eu não sabemos como demostrar o nosso reconhecimento... — O enorme e gigantesco James teve que enxugar os olhos. — Nossa eterna gratidão! — Virou-se para o povo: — Camelot não é o maior reino de todos!?
Mais uma vez, os gritos e aplausos fizeram tremer os esteios.
Mas castelos tinham esteios? O que eram esteios, afinal?
— Existe melhor rei do que sir Artur!?
De novo, gritos e aplausos ensurdecedores.
Artur parecia prestes a bater com o cálice na cabeça de James.
— James, você é meu melhor amigo — falou ele, tenso. — Mas temo que, se não descer desta mesa agora, ambos desabaremos em um mar de madeira lascada!
— Ao rei Artur! — bradou James, antes de começar a descer sem muita elegância.
— Ao nosso rei! — respondeu o salão inteiro , aplaudindo.
— Diabos, James, esta é uma festa para recém-casados ! — ralhou Artur. — Precisamos manter o foco!
— O quê? — indagou Gwen.
Isabel mordeu o lábio. Artur estava repetindo frases que, vez ou outra, ela deixava escapar!
— Mary e James — continuou ele. — Aqui estão as chaves do seu chalé. Tenham uma noite muito, muito feliz!
— Ah, senhor, que presente maravilhoso!
— Onde está a rainha? — perguntou Artur. — Rainha Guinevere, por favor... Apresente-se para dizer o restante a eles.
Gwen apertou a mão de Isabel.
— Você é quem deve fazer isso.
— Não! — Isabel balançou a cabeça. — Você é a rainha, Gwen. Vá!
Gwen avançou, hesitante, e Artur desceu da mesa para recebê-la.
Eles formavam um casal tão bonito, Isabel estava pronta para atirar nos dois.
Gwen sorriu conforme se tornava o centro das atenções, a coroa brilhando sobre a cabeça.
— Não, eu não posso levar o crédito pelo presente que vem a seguir, pois este foi uma insistência de Isabel, a condessa de Dumont. Por favor, condessa... Venha até aqui para fazer o comunicado a Mary e James.
Isabel quis desaparecer.
— Não ! — protestou, balançando a cabeça.
Gwen apontou em sua direção.
— Vá buscá-la, James.
Ver-se literalmente carregada para o centro das atenções, e a quase meio metro do solo, não era a entrada triunfal que Isabel tinha em mente. Mas foi isso o que James fez, com Mary batendo palmas e rindo o tempo todo.
— Perdão, condessa, mas foi convocada pela rainha — desculpou-se ele enquanto a colocava no chão.
— Vou me vingar por isso. Não sei quando nem como, mas vou me vingar — prometeu ela ao marido de Mary. — Portanto, trate de tomar cuidado daqui para a frente!
— Tomarei, condessa. Estou até tremendo.
Ela quis fulminá-lo com o olhar, mas como poderia?
— Curve-se — ordenou.
James o fez, e ela plantou um beijo em sua bochecha.
— Seja feliz, James. E trate de fazer Mary feliz também, ou terá de se ver comigo.
— Agora estou mais assustado ainda!
— É bom mesmo. I sto é ridículo — falou Isabel à multidão. — O rei e a rainha é que são os responsáveis, não eu.
— Não é verdade — contrapôs Artur. — Enquanto a rainha Gwen e eu ponderávamos sobre que presente oferecer a Mary e James, foi a condessa quem o sugeriu. Portanto, condessa, por favor, conte a todos.
Isabel se voltou para o casal, e não conseguiu se conter: ofereceu o dedo mindinho a Mary. Mary riu e as duas os entrelaçaram mais uma vez.
Em seguida, ela olhou para Gwen.
— Vossa Alteza?
— Sabe que não gosto quando me chama assim — protestou Gwen; no entanto, sorriu e também esticou o mindinho para juntá-lo aos delas.
— Amigas! — exclamaram as três, mantendo os dedos entrelaçados no ar. Depois se separaram, rindo.
Quando finalmente Isabel ergueu o olhar, deparou-se com quase todos no salão a fitá-las com estranheza. Inclusive Artur.
Ela o ignorou e limpou a garganta.
— O rei e a rainha são modestos demais para admitir que seu presente para Mary e James não foi apenas uma cabana para que eles passassem a noite. O presente é a própria cabana, de modo que os dois possam viver nela pelo tempo que desejarem.
Mary deixou escapar uma exclamação, e James cambaleou. Suas expressões atordoadas eram impagáveis.
Pelos deuses, como queria estar com uma câmera ali!
Mary estendeu os braços para ela e Isabel a amparou, esperando que os soluços da menina fossem aplacados.
— Mary, o presente não é meu ... É do rei e da rainha. Devia estar agradecendo a eles! — Ela puxou o lenço que trazia no punho e enxugou os olhos da amiga. — Mary... O rei e a rainha... O presente é deles !
Mary se recompôs, então se voltou para Artur e Gwen. Tentou fazer uma reverência, contudo suas pernas se encontravam, obviamente, um tanto instáveis.
Artur a segurou pelo braço.
— Já basta disso.
— Nós não temos... — soluçou Mary — ... como lhe agradecer o suficiente!
— Vocês podem tentar — respondeu Artur, sorrindo. — Não vou ficar ofendido.
Isabel lançou-lhe um olhar de desgosto, porém Artur deu sua tacada final: piscou para ela.
Mais uma vez, ela se deu conta de que estava perdida.
A palavra “morta” nem sequer começava a descrever como Isabel estava se sentindo. E, sem Mary ali para ajudá-la a se livrar daquele vestido horroroso, ela estava realmente em apuros.
Já estava pensando em se jogar na cama de vestido e tudo quando escutou uma batida na porta.
— Obrigada, Jenny, estou precisando, mesmo, de alguém para me ajudar a me livrar destas roupas! Entre!
Foi Artur quem entrou.
— Não sou a Jenny, porém terei imenso prazer em ajudá-la a se despir.
Isabel abriu um sorriso fraco.
— Estou exausta, Artur, mas também terei imenso prazer em aceitar a sua ajuda para que eu me livre desta coisa .
— O prazer é todo meu, senhora.
Ela deu as costas, de maneira que ele pudesse trabalhar nas amarrações do vestido.
— Podemos ficar em apuros. É possível que Jenny apareça aqui a qualquer momento.
— Eu dei o restante da noite de folga para Jenny.
— Mas Jenny é a ama de Gwen!
— Eu sei. Acontece que Gwen também deu folga a ela uma hora atrás. Pouco antes de desaparecer com Lance.
— Ah, eu sinto muito.
— Por que razão?
— Por Gwen e Lance. Por você... Ah, droga, eu sinto muito, e pronto.
Artur a fez se virar para ele.
— Por que está tão incomodada, Isabel? Diga.
— Porque acho que essa história ainda deve fazê-lo sofrer de alguma forma.
— Pois, sabe o que mais me magoou esta noite? O fato de eu não poder apresentá-la como o meu amor e minha esposa. O fato de essa vontade estar acabando comigo... E o de você ainda não ser a minha rainha.
— Eu não dou a mínima para ser rainha, Artur.
— Mas “dá a mínima” para ser minha esposa?
Ela entreabriu os lábios, inconformada.
— Quer uma notícia? Já é casado!
— Vamos fingir apenas por um momento. Se eu já não fosse casado e pedisse a sua mão, diria “sim” ou “não”?
— Está me pedindo para fingir uma resposta?
— Mais ou menos — confirmou Artur, embora sua expressão contivesse uma pontada de hesitação. — Se eu a pedisse em casamento, iria aceitar, Isabel?
— Depende.
— Do quê?
— Se iria querer se casar com uma mulher que não é mais virgem.
Artur pareceu ponderar.
— Depende.
— Do quê?...
— Do quanto eu desejasse essa mulher.
— Desejo e amor são duas coisas muito diferentes.
— Não necessariamente — contrapôs ele, erguendo um dedo. — Se o desejo nasce do amor, então eles estão interligados.
Isabel suspirou. Odiava quando um homem fazia sentido. Eles deveriam ser todos uns tolos.
— Está certo — admitiu a contragosto. — Há lógica no que está dizendo.
Artur pareceu muito satisfeito consigo. Beijou-a com paixão, o que também não era nenhum ponto a seu favor, refletiu Isabel. Ser beijada daquele modo não era uma coisa muito boa quando seu cérebro parecia se recusar a trabalhar.
— Esse ponto é discutível, Vossa Alteza — insistiu ela, recuperando o fôlego.
— Não é , não . Na verdade, a questão é bastante simples: quer se casar comigo ou não?
Isabel arregalou os olhos.
— Está falando sério? Ou ainda estamos fingindo?
— Estou falando sério.
— Como você já é cas...
— Não! Neste momento, agora , estamos livres para nos casarmos. — Ele parou. — Está bem... Talvez haja um pouco de fingimento, uma vez que as coisas não são exatamente assim, mas elas poderão ser em breve. Será que concordaria em se tornar minha esposa? Quer se casar comigo, Isabel?
— Sim — sussurrou ela. — Eu o faria num piscar de olhos.
Artur sorriu, segurou-a pela cintura e a girou até ela quase desmaiar.
— Viu como não foi difícil?
Isabel ainda estava vendo estrelas.
— Em parte... não.
Ele a colocou de volta ao chão, e ela precisou se segurar nos braços fortes para manter o equilíbrio. Artur a beijou novamente; em seguida, a segurou pelo rosto.
— Está sendo sincera, Isabel? Mesmo?
— Artur... — Ela afastou as mãos dele. — Por favor, diga-me o que significa isso tudo. N ão está livre para se casar comigo. Nem mesmo para me pedir em casamento.
— Mas poderei estar. — Ele sorriu. — Muito em breve.
— Como assim?
— Andei estudando alguns documentos referentes a esse assunto. Não posso me divorciar de Gwen sem justa causa. E, sendo essa causa a infidelidade, como você sabe, haveria graves consequências.
— Sim, creio que a morte possa ser considerada bastante grave.
— Mas — ressaltou Artur — Gwen pode se divorciar de mim.
— Por que razão?
— Por negligência, abuso físico, infidelidade e outros crimes terríveis, dos quais não me recordo no momento.
— Mas não é culpado de nada disso! — protestou Isabel. — Está bem, talvez só de infidelidade, mas foi Gwen quem começou!
— O que importa? Podemos concordar com qualquer coisa que ela alegar. — Artur parou. — Exceto com infidelidade, porque não vou permitir que seja envolvida nessa história.
— Artur, ouviu o que acabou de dizer? Vai permitir que Gwen o acuse de faltas que não cometeu?
Ele assentiu com um gesto de cabeça.
— N ão dou a mínima para a acusação que ela escolher. Aqueles que me conhecem vão saber que não é verdade. O mais importante é que Gwen tem toda a liberdade de dissolver o casamento sem que ela ou Lance saiam prejudicados, e eu serei livre para fazer de você a minha esposa, Isabel, que é o que eu mais desejo no momento. — Artur sorriu. — Quero proclamar ao mundo que é minha, que nós somos um. N ão quero mais passar pelo fingimento que tivemos de suportar esta noite.
— Prefere ser rotulado como um espancador de mulheres, por exemplo?
— Eu não me importo! As pessoas podem me chamar do que quiserem. O que importa é que estarei livre para me casar com você.
Isabel não sabia se ria ou chorava, então apenas o enlaçou pelo pescoço.
— Artur, eu te amo tanto!
Ele a fitou, e seu sorriso desapareceu.
— Espero não ouvir um “mas” após essa frase.
Caramba, era exatamente a palavra que estava prestes a sair dos lábios dela!
Isabel reelaborou a sentença:
— N ão quero que leve a culpa por algo que não fez.
— Se isso me der liberdade para que eu me case com você, não importa.
— É importante para mim.
Artur passou a mão pelo cabelo.
— Maldição, Isabel, o que vamos fazer? N ão quero mais esconder meus sentimentos! N ão quero mais fingir que sou feliz em um casamento que é uma farsa!
— Altere a lei — respondeu ela, calma. — Você é o rei. Não deve ser tão difícil.
Ele esfregou o pescoço.
— É m ais difícil do que imagina. Não posso sacar a espada e brandi-la ao redor, dizendo: “Mudei as leis do reino porque quero que elas se adaptem aos meus propósitos e desejos!”.
— Que droga! — suspirou Isabel. — Decididamente, ser rei não é tudo o que dizem por aí.
Ele deu de ombros.
— Eu até poderia fazer isso, mas não seria justo com o restante do povo de Camelot. Que espécie de soberano eu seria, Isabel, se mudasse as leis conforme as minhas necessidades?
— Seria um ditador.
— Um o quê?
— Um dirigente vil, que muda as regras a seu bel-prazer.
— Eu jamais me tornaria um desses.
— Artur, se fosse um ditador, eu jamais teria me apaixonado por você. Se eu o amo, é justamente pelo homem maravilhoso que é. Mas nós vamos dar um jeito nisso. Vamos, sim.
“Se desejas ficar com teu bem-querer mais que sua amante, então, tens de ser.”
“Mas como, minha deusa, posso tal coisa realizar? Fazendo esse pedido, devo romper o colar?”
“Não, Isabel, o pingente não é para isso . As lágrimas dentro dele não vão te trazer compromisso.”
“Viv, isso não faz sentido! Perdão se te chamo assim, porém, decidi que já tenho o direito... Agora, apenas me diga como lidar com esse feito.”
“Segue o teu coração, mulher, assim como o meu eu segui, e tudo o mais ao teu redor irá se resolver por aqui.”
Aquilo, sim, fazia sentido!
Isabel sacudiu a cabeça de leve, a fim de voltar à realidade.
Àquela realidade, pelo menos.
— Diga-me, Artur, o que fez surgir esta conversa?
Ele sentou-se na cama.
— Sinceramente, acho que fiquei com inveja quando testemunhei os votos que James e Mary trocaram. Eu queria que estivéssemos na mesma situação. Não me entenda mal, pois estou muito, muito feliz pelos dois, mas não pude evitar: queria que fô ssemos nós dois ali.
Isabel se acomodou ao lado de Artur e entrelaçou os dedos com os dele.
— Eu me senti assim também.
— Na verdade, foi ainda pior — confessou ele com o polegar acariciando a palma da mão dela, como sempre fazia. Um gesto que ela amava, aliás. — Quando quis chamar minha rainha e esposa, quase falei o seu nome em vez do de Gwen.
— Artur!
— Pareceu-me tudo tão errado, Isabel! Como se estivesse de cabeça para baixo. Era você quem devia estar a meu lado. Foi você quem limpou o chão, orientou o pessoal da cozinha e...
— Calma, lá. Gwen também trabalhou à beça para que déssemos conta de tudo a tempo. Por favor, não subestime a participação dela.
— De maneira alguma. Eu sei que Gwen trabalhou muito. Mas é que obteve tão pouco reconhecimento por tudo o que fez! Eu fui obrigado a chamar Gwen, mas, por mais que eu também admire a contribuição dela, era você quem eu queria que estivesse ali. Ou melhor, era você a mulher com quem eu gostaria de trocar aqueles votos, Isabel. Eu sei que é terrível eu dizer isso e fico até envergonhado. Mas foi assim que me senti, e é assim que me sinto agora. O mais engraçado é que você é a única pessoa com quem me sinto seguro para confessar uma coisa dessas, mesmo sabendo que é o seu amor que eu tenho em vista. Que maneira estúpida de tentar conquistar o coração de alguém, não é mesmo?
— É a maneira mais perfeita.
Artur inclinou a cabeça.
— Quem é o maluco aqui? Eu ou você?
Isabel deslizou a mão pelo braço forte.
— Provavelmente nós dois. — Ela se acomodou mais para trás, na cama. — Acredito que o que nos atraiu foi a nossa honest... — Alto lá!, disse Isabel a si mesma. Toda a sua vida ali era uma mentira. — ... Era que podíamos ser honesto s quanto aos nossos sentimentos.
Artur continuou olhando para baixo, porém sorriu.
— Não doeu nada pensar que era a mulher mais linda em que eu já coloquei os olhos.
— Está precisando fazer um exame de vista, rei Artur.
Ele riu.
— Minha visão é perfeita, condessa. Na verdade, creio que ficou até melhor depois que você chegou.
— Bajulador.
Ele balançou a cabeça, ainda rindo baixinho.
— Ah, Isabel, não faz ideia da quantidade de homens que James e eu tivemos de afastar de você!...
— James?
— James me conhece como ninguém. Conhece os meus sentimentos e adivinha o que eu sinto. Assim como ele não permitiria que ninguém olhasse para sua Mary, não permitiria que nenhum outro em Camelot tentasse cortejá-la, Isabel.
— Mas...
— Ele acha que devemos ficar juntos. Está errado?
— Não.
Eles ficaram sentados em silêncio por vários minutos.
Por fim, Artur se levantou.
— Sei como está exausta, e não vou mais incomodá-la, linda dama.
— Espere!
— Sim, amor?
— Ainda preciso de ajuda com este maldito vestido. E... Bem, é verdade que estou cansada demais para até mesmo pensar em fazer amor, mas isso não significa que eu não queira um abraço. Por favor, fique.
O sorriso de Artur também foi de cansaço, contudo ele a puxou da cama e a fez se virar.
— “As três palavras que eu queria ouvir dos lábios de Isabel.”
— O que é “Por favor, fique?”.
— Certíssimo.
Em pouco tempo, ela se viu nua e na cama. Artur demorou um pouco mais para se livrar das roupas, uma vez que trajava uma espécie de “smoking medieval”, todo enfeitado para a cerimônia daquela noite.
E, Deus, ele havia ficado tão bonito naquilo!
Artur subiu na cama e a abraçou, envolvendo-a com o calor de seu corpo e um delicioso cheiro de homem.
— Seria muito fácil eu me acostumar com isto — murmurou ela. — Na verdade, eu poderia ficar viciada nisto.
— Isabel...
— Sim?
— Eu digo agora e direi até o meu último suspiro... Serei teu para sempre.
Os olhos sonolentos de Isabel se abriram.
“Viviane! Por favor, me ajude! Diga que não vai tomar Artur de mim!”
Nenhuma resposta. Nada.
Muito obrigada... , pensou ela, magoada.
— Eu também sou tua para sempre — falou baixinho.
A respiração profunda de Artur, entretanto, mostrou que ele já tinha adormecido.
Quando Isabel acordou na manhã seguinte, Artur já havia ido embora. Era uma sensação muito ruim e incômoda virar-se e ver o outro lado da cama vazio, contudo ela não devia estar surpresa. O homem costumava se levantar antes do amanhecer, trabalhava até a hora do desjejum, depois seguia direto para o treino com os soldados. Aquilo a aborrecia um bocado, no entanto, a batida que ouviu na porta a fez se lembrar de que também ela possuía uma longa lista de tarefas a cumprir.
— Por favor, entre.
Jenny pôs a cabeça no vão da porta.
— Sou eu, senhora.
— Graças a Deus... Trouxe chá, Jenny?
A moça sorriu e entrou, trazendo uma bandeja cheia de cheirosas guloseimas além do chá.
— O que é isso? Café na cama?
— O mestre disse que teve uma noite tão cansativa que decerto iria preferir descansar mais um pouco.
— Ah, o mestre é mesmo maravilhoso...
— Verdade, senhora — concordou a criada.
— Sinto muito por ter de trabalhar em dobro, Jenny.
— Ah, eu não me importo. Mary assumiu meus deveres em muitos momentos em que estive... doente.
— Doente. Sei.
Isabel bebeu o chá celestial e quase gemeu ao degustar os deliciosos ovos mexidos e os doces. — Isto está divino! — elogiou após um longo gole da bebida quente.
— Fico feliz por ter gostado, condessa.
— Meu nome é Isabel.
— Ah, eu não poderia!
Déjà-vu.
— Gostaria de um banho matutino, condessa?
— Na verdade, vou preferir tomar meu banho à tarde, srta. Jenny. Mas obrigada por perguntar.
Jenny deu uma risadinha. Era alta e magra, e tinha longos cabelos castanho-escuros. Poderia até ser modelo de passarela em Paris com um pouco de maquiagem e um guarda-roupa mais moderno.
— Se me permite dizer, senhora, Mary tem feito elogios rasgados à sua pessoa.
— Obrigada, Jenny. É muito gentil da parte dela . Eu adoro aquela garota.
— Mary me contou que conhece uma maneira de deixar as unhas dos pés muito bonitas...
— É um segredinho de mulher , mas, se quiser que eu pinte as unhas dos seus pés, eu o farei de bom grado.
— Verdade?!
— Verdade. Principalmente se me chamar de Isabel.
— Ah, eu não consigo!
Meu Deus, aquilo já estava perdendo a graça!
Isabel se perguntou se Artur poderia aprovar uma lei em que todos os criados fossem obrigados a chamar as pessoas por seu malditos nomes de batismo.
Sorriu para a top model à sua frente .
— Por favor, vá lavar os pés, Jenny. Esfregue-os e seque-os bem. Depois volte para que eu possa pintar as suas unhas.
Os olhos cinzentos da moça brilharam.
— Muito obrigada! Vou agora mesmo! Ah, eu me esqueci... A rainha Guinevere gostaria de trocar uma palavrinha com a senhora.
— Ela é bem-vinda a qualquer hora.
No mesmo momento, ouviu-se uma batida na porta.
— Entre, Gwen! — falou Isabel.
Mas era Mary, que flutuou para dentro do quarto com os olhos brilhando.
Isabel quase pulou da cama, porém percebeu que estava nua. Agarrou a pele de cima da cama e se enrolou nela.
— Mary, está maravilhosa! Imagino que...
— Isabel? — chamou Gwen. — Posso entrar?
— Timing perfeito! — exclamou ela.
— Ah! Vou perder a melhor parte! — lamentou Jenny.
— Depressa, então — decidiu Isabel. — Podemos jogar conversa fora até que retorne. Na verdade, preciso colocar uma roupa antes de você voltar!
Jenny saiu correndo do quarto.
— Acomodem-se no chão, senhoras, enquanto visto uma camisola. Prometi a Jenny que faria as unhas dos pés dela, e ela quer muito participar da nossa conversa. Espero que não vejam nenhum problema nisso.
Mary e Gwen negaram com um gesto de cabeça.
— Jenny é uma das poucas que nunca, nunca se voltaram contra mim — afirmou Mary. — Eu confio nela quase tanto quanto confio em você.
— Pois eu confio nela sem pestanejar — afirmou Gwen.
Isabel não p ôde evitar. Fitou os cintilantes olhos cor de safira de Mary e caiu de lado, rindo.
— Foi tão bom assim, Mary?!
— Ah, Isabel, eu não fazia ideia! Foi... Vocês sabiam que eles têm uma coisa grande, parecida com um pepino?
Gwen e Isabel olharam uma para a outra e caíram — literalmente — na risada.
Jenny voltou correndo para o quarto.
— Ah, não! O que foi que eu perdi?
— Estávamos conversando sobre pepinos! — falou Gwen, quase sufocando.
— E o que há de tão engraçado nisso?
— Eu não disse que era um pepino! — exclamou Mary. — Disse que é parecido com um pepino. É uma coisa que se projeta, assim, meio enrugada e...
— Pare! — pediu Isabel. — Eu vou partir o meu baço ao meio desse jeito!
Levou algum tempo, porém Gwen e Isabel pararam de rir, embora tivessem de evitar olhar uma para a outra a fim de conseguir tal proeza.
Quando Isabel conseguiu se recompor, olhou para Mary.
— E então?
— Então que eu descobri que gosto de pepinos... Principalmente dos grandes.
Todas caíram na gargalhada outra vez, inclusive Mary e Jenny. Ficaram rindo no chão até que Isabel conseguiu abraçar Mary.
— Estou tão feliz por você! Mesmo que eu nunca mais consiga tirar essa imagem da cabeça!
Mary a fitou.
— Imagino. Até porque vou ter que me deparar com ela todas as noites!
Isabel teve que segurar a barriga de tanto rir.
— Condessa?
Ela não ouviu. Continuava muito ocupada, rindo.
— Condessa!
Jenny sacudiu seu ombro.
— Acho que o rei a está chamando, senhora!
Isabel se sentou.
— Vossa Alteza? — indagou, e todas as risadas tiveram fim diante da expressão no rosto do rei. — O que acont...
— Posso lhe falar um instante?
— Fique à vontade.
— Em particular.
Isabel não estava nem mesmo totalmente vestida ainda, porém se pôs de pé e o seguiu até o corredor.
Artur a puxou, sem a menor delicadeza, para longe da porta.
— O que foi, Artur? O que significa isto?
— Quero que faça as malas e vá embora.
— O quê? O que foi que eu fiz!?
— Camelot está prestes a ser sitiada, e eu a quero em segurança, Isabel. Quero você a salvo em Dumont.
Ela o encarou.
— Não. Vou ficar e lutar com você.
— Não vai fazer nada disso. Vai se esgueirar pelo Oeste e depois para o Norte. Eu já mapeei a rota mais segura com Dick.
— É mesmo?
— Sim.
— Que pena. Porque eu não vou sair daqui.
— Isabel, escute... — recomeçou ele, segurando-a pelos ombros. — Uma batalha está prestes a estourar. Se a perdermos, as mulheres estarão completamente indefesas.
— Seu tonto! Acha mesmo que as mulheres não podem se defender por conta própria? Também somos uma força a ser enfrentada, isto é, se não forem estúpidos o bastante a ponto de nos ignorar.
— Pelos deuses, Isabel! — exclamou Artur, olhando para o céu. — Não tenho tempo para esta discussão. Será que não entende? Quero você em segurança! Por favor!
— Quanto tempo nos resta antes que Camelot seja invadida?
— Cinco horas, talvez seis.
— Perfeito. — Ela tentou se desvencilhar dele. — Não queira bancar o machista comigo, Artur!
— Não vou permitir que seja ferida. Será que não enxerga?
— Eu me recuso a me deitar sobre o seu corpo moribundo enquanto me diz: “Serei teu para sempre.” Quando me disser essas palavras, estaremos felizes e vivos!
— Eu quero você viva!
— Assim como eu o quero vivo. E, adivinhe, Merlin também o quer vivo!
— Merlin? O que sabe sobre Merlin?
— Importa-se se eu lhe explicar mais tarde? No momento, estou deveras ocupada... — afirmou Isabel e, desvencilhando-se de Artur, se pôs a correr.
Parou, contudo, e se voltou por um instante.
— A propósito, eu amo você, portanto, trate de não morrer, ou eu não vou lhe perdoar nunca!
Capítulo Vinte e Quatro
Isabel deu meia-volta e correu para o quarto. Todas as risadas tinham cessado, e as mulheres continuavam sentadas, em silêncio.
— Precisamos nos mover, senhoras — declarou ela. — Camelot está sob cerco, e temos que ajudar a impedir que aqueles filhos da mãe nos dominem.
— O que podemos fazer? — indagaram elas, pondo-se em pé.
— Gwen, Lance chegou a pôr fogo nos cogumelos venenosos?
— Não, porque Artur o alertou sobre o perigo de atear fogo tão perto da cabana. Eles continuam lá.
— Maravilha! Por favor, leve Jenny com você, já que sabe o caminho, e traga a maior quantidade possível, principalmente dos que já foram esmagados. Mas, cuidado, tente não tocá-los. Se colocar um na boca, então, acho que a mato antes mesmo do cogumelo! — Isabel se virou. — Mary, preciso que faça perucas.
— Perucas?
— Apliques falsos... Tranças! Vai dar certo. Precisa começar com quem tem cabelo comprido. Diabos, comece por mim!
— Ah, Isabel! Para quê?
— Vamos ludibriar aqueles idiotas... Corte o meu cabelo.
Ela se encolheu ao sentir a tesoura cingindo suas longas madeixas na altura dos ombros.
— Muito bem. Agora faça o mesmo com todas que estiverem dispostas a doar os cabelos para a causa.
Isabel não se preocupou em se vestir, de modo que os olhares chocados na cozinha, quando ela a adentrou ainda de camisola, não foram nenhuma surpresa. Determinada, explicou a situação o mais rápido que pôde: cada cozinheiro deveria se empenhar em fazer pães e doces, depois esperar a chegada do ingrediente final antes de colocá-los para assar.
— E hidromel! Muito hidromel batizado com o mesmo cogumelo dos pães. Mas, lembrem-se: ninguém daqui pode beber ou comer nada disso! Não depois de adicionarem a mistura de cogumelos!
Terminadas as instruções, Isabel correu para a sala de Artur, contudo, ele não estava lá. Deu meia-volta, então, percorreu o salão principal e saiu porta afora em direção ao pátio. Havia dezenas de homens ali, já armados e prontos para a batalha. Ela perscrutou o grupo e não teria reconhecido Artur se não fosse pelo gigante a seu lado. Ambos estavam debruçados sobre vários mapas.
Correu até eles.
— Artur, James... nós temos um plano! Aliás, James, parabéns por ter feito Mary tão feliz. Muito bem, preciso de cerca de dez rapazes, apenas para deixar cair algumas migalhas pelo caminho até Camelot.
Artur arrancou o elmo da cabeça, em seguida ergueu Isabel nos braços e a carregou — fazendo retinir a armadura — de volta para o castelo. Não parecia nem um pouco feliz.
— Ei, nem mesmo escutou o plano! — protestou ela.
— Também não me escutou. Eu já disse que quero que vá embora, Isabel!
— Mas eu posso ajudar!
— Creio que fui gentil demais. Eu devia ter sido mais contundente... Cansei de você, condessa, e a quero longe de Camelot. Já não me interessa mais, portanto, vá!
— N ão acredito nisso nem por um instante. N ão está sendo sincero.
— Acredite no que quiser. Só não a quero mais aqui. Reúna Tom, Dick e Harry, e vão embora! Quero vocês distantes das minhas terras.
— Quer saber, seu machão? Vá à merda!
— Por favor, Isabel!
— Não vou a lugar nenhum, seu imbecil. Vou ficar e lutar por Camelot e por você até o fim! Ganhando ou perdendo!
— Se eu morrer, Izzy, não poderei mais protegê-la. Se for embora, estará fora de perigo!
— E se não nos deixar tentar, não pode remos nem mesmo ajudar a protegê-lo! Temos planos, Artur. Há outras estratégias além do derramamento de sangue. Na guerra, qualquer logro é aceitável.
— Qual é o seu plano, condessa? — falou alguém atrás deles.
Artur deu meia-volta, ainda com Isabel nos braços.
— Mordred, se estiver por trás disto, não haverá amor que me impeça de puni-lo!
— Eu juro que não sei de nada a respeito, meu pai!
Ele assentiu.
— Então, a ordem para você é escoltar a condessa e seus homens de volta a Dumont.
— Eu não vou sair daqui! — contrapôs Isabel.
— Qual é o seu plano, condessa? — perguntou Mordred, curioso. — Ao contrário do meu pai, aprendi a escutá-la.
— Vamos deixar alimentos e bebidas envenenados com cogumelos pelas trilhas que vêm para Camelot. Podemos derrubar aqueles idiotas aos poucos! Talvez não consigamos dar cabo de todos eles, mas com certeza pegaremos alguns. E isso irá atrasá-los, sem dúvida.
Artur finalmente a colocou no chão.
— É um plano brilhante.
— Sem dúvida — concordou Mordred. — Se vai precisar de homens para deixar a comida e a bebida pelas trilhas, quero me voluntariar para liderar o grupo.
— Podemos confiar nele, Artur? — indagou Isabel.
— É melhor juíza de caráter do que eu. Além do mais, sou suspeito, afinal, Mordred é meu filho. O que acha?
Ela fitou os olhos verdes de Mordred, tão iguais aos de seu pai.
— Acredito que seu filho o ama. E que ficaria orgulhoso em tomar parte na ofensiva contra aqueles que querem prejudicá-lo. Estou errada, Mordred?
— Não, condessa. Eu gostaria de proteger meu pai e suas terras contra qualquer invasor. Sei que eu já disse o contrário antes, mas foi apenas porque...
— ... porque pretendia feri-lo, uma vez que passou a vida acreditando que ele queria fazer o mesmo.
— Sim.
— E agora percebe que isso nunca foi verdade.
— Sim. Eu sinto muito, meu pai.
— Por favor, acredite em mim, filho!
— Eu acredito.
— Também acredito nele — afirmou Isabel. — Muito bem, Mordred... Selecione cerca de dez homens, de preferência os que conhecem bem as trilhas. Depois vá até a cozinha buscar a comida e a bebida envenenadas, e me encontre no salão principal. Há uma parte do plano que os homens provavelmente não vão gostar muito. Mas que, com certeza, lhes trará mais proteção caso se deparem com algum desses saqueadores.
— Agora mesmo. — O rapaz rumou na direção dos portões.
— E, Mordred...
Ele se virou.
— Sim?
— Você é filho do seu pai. Não é à toa que ele o ama tanto quanto demonstra.
Mordred piscou.
— Esse foi o maior elogio que já ouvi. Depois de tudo o que eu disse e fiz...
— Vai compensá-lo por seus erros ao realizar este ato de grande importância.
— Obrigado, condessa. Pai.
— E, Mordred... De maneira alguma permita que qualquer um dos homens ceda à tentação de comer ou beber das nossas armas . Elas são veneno puro e simples.
— Sim. — Ele se virou e começou a correr.
Artur olhou para Isabel por um momento.
— Eu queria poder fazer amor com você neste exato momento.
— Teremos muito tempo para isso depois.
— Espero, do fundo do coração, que seja verdade... Não existe nenhuma chance de eu fazê-la mudar de ideia sobre deixar o castelo, existe?
— Nem no inferno.
— O que aconteceu com o seu cabelo, Isabel?
— Eu o sacrifiquei de bom grado pela causa.
Artur encostou a testa na dela.
— Nunca imaginei que fosse possível amar alguém desta forma!
— Se não voltar para lá e continuar seu plano, não vai imaginar mais nada.
— Tem razão — concordou ele com um suspiro. Então a beijou com volúpia, bem ali, no salão principal, para qualquer um ver.
E ela continuava descalça e de camisola.
— Isabel?
— Sim, Artur?
— Com tudo o que sou e tudo o que tenho, serei teu para sempre.
— Prematuro, mas maravilhoso de se ouvir. Agora vá. Tenho muito trabalho a fazer.
Ele riu, balançando a cabeça.
— Você me ama.
— Claro que sim.
— É disso que preciso para me fortificar e lutar a batalha da minha vida.
— Chega de cicatrizes, Artur! N ão o quero com mais nenh um arranhão.
— Farei o meu melhor para honrar esse desejo.
— Não é um desejo. É uma ordem.
— Sim, condessa — acatou ele, sorrindo. — Mal posso esperar para ficar para sempre sob o seu jugo.
Ela riu.
— Vá logo, espertinho.
— Outra ordem que irei obedecer.
Artur a beijou uma vez mais; em seguida, virou-se e marchou porta afora.
Ah, como ela queria que ele já não estivesse vestindo a armadura para poder cobiçar aquele traseiro incrível mais uma vez!
— Eu te amo! — falou ele ainda por cima do ombro.
Um dos homens que acabaram de entrar parou, chocado.
— Não você, Ashton... Ela — explicou Artur, apontando na direção de Isabel.
O rapaz a fitou, confuso.
— Vamos, Ashton!
Isabel riu, depois segurou a camisola e galgou a escadaria da frente de dois em dois degraus.
***
Para sua surpresa, no momento em que Isabel voltou para o quarto, Mary, Gwen e Jenny já esperavam por ela.
— E agora, Isabel? — perguntou Gwen.
Incrível que Gwen houvesse entregado a liderança tão rapidamente a ela. Por outro lado, a rainha era jovem demais e, decerto, nunca tinha passado por uma guerra na vida. Ao contrário dela própria, refletiu Isabel.
— Gwen, preciso que você e Jenny reúnam as mulheres e as oriente a vestir suas calças. Saias não serão de nenhuma ajuda. Depois, diga a elas que se armem. Não importa com o quê. Pode ser qualquer coisa dura que possa ser arremessada ou...
— Como no beisebol de Camelot?
— Exatamente. Mas vão precisar de pedras maiores do que aquelas que utilizamos. Galhos de árvore, espadas, caso elas tenham acesso a alguma... Qualquer coisa que possa ser usada como uma arma. As que forem mais fortes ficarão em lugares estratégicos, onde possam derrubar um homem de seu cavalo. As que estiverem armadas com espadas ou galhos de árvore deverão escolher locais de onde possam abater qualquer um que ameaçá-las.
— Mas mulheres não se engajam nas lutas, Isabel! — exclamou Gwen.
Ela levou as mãos aos quadris.
— Fazem o quê, então? Esperam que seus homens morram na batalha, depois permitem que o inimigo faça com elas o que bem entenderem? Na minha terra, as mulheres lutam. Pode ser que façamos isso de um modo diferente dos homens, mas não ficamos paradas, de braços cruzados. Quer ajudar a combater o inimigo, Gwen, ou quer se esconder no seu quarto e apenas torcer para que tudo dê certo?
— Nós vamos lutar! — decidiu Jenny, com uma ferocidade cativante.
— Muito bem. Reúnam as mulheres e digam a elas que se vistam e se armem apropriadamente. Vamos nos encontrar na sala da távola redonda e armar nossa estratégia, digamos, em meia hora. — Ela olhou para Gwen. — Coragem, rainha Guinevere. Camelot também é seu reino. Vai lutar por ele ou não?
Gwen assentiu.
— Vamos fazer o que pede a condessa, Jenny.
Jenny saiu correndo. Gwen, nem tanto.
— A rainha é meio... Qual é mesmo a palavra, Isabel? — perguntou Mary, enquanto suas mãos trançavam cabelos, febris.
— Acho que a palavra que está procurando é “covarde”.
— É isso. Ela é meio covarde.
— Temos que lhe dar algum tempo. Essa situação não é normal, e é muito assustadora.
Mary desviou o olhar de sua tarefa.
— Também não deve ser normal para você, imagino, mas, mesmo assim, tomou uma iniciativa.
Isabel deu de ombros, enquanto tirava a camisola e começava a se vestir.
— Não consigo ficar parada, sem fazer nada.
— O rei queria que fosse embora. Por que não foi?
— Como sabe disso?
— Ah, tenho um ouvido excelente. As pessoas podem sussurrar até a dois ou mais quartos de distância, e eu escuto cada palavra. — É um dom , mas também uma maldição em alguns casos.
— Você é mesmo um espanto , Mary. O que não me espanta é por que James a ama tanto. E você a ele.
— O rei também a ama muito — volveu a menina.
— Escutou alguma coisa?
— Ah, por favor, Isabel. James e eu percebemos isso desde o momento em que chegou. Eu nem precisei ouvir nada para ter certeza. Era evidente pela forma como os seus corpos interagiam.
Isabel riu enquanto puxava as calças.
— Na minha terra, Mary, chamamos isso de linguagem corporal. Mas eu não sabia que era tão aparente.
— Ficou muito claro para nós. Mas não dissemos uma só palavra a ninguém. Eu juro.
— Se há alguma coisa em que acredito, Mary, é nisso. Sou uma boa juíza de caráter e sabia, desde o instante em que nos conhecemos, que você era uma boa pessoa.
— Então eu também sou uma boa juíza de caráter — concluiu Mary. — Use o vestido verde-escuro, Isabel. É o menos pesado que tem e lhe dará mais liberdade de movimento. Com ele, será mais fácil se misturar à folhagem. E essa cor não irá chamar a atenção como as outras, que são mais vivas. N ão queremos que seja alvo de ninguém.
Isabel riu.
— Você é mesmo um tesouro, Mary!
— Fico feliz por pensar assim. — Mary tornou a erguer a cabeça. — Adoro você, condessa Isabel.
— Eu também te adoro, Mary — falou Isabel, sentindo a voz embargar com a emoção. — Aliás, isso não é modo de uma mulher passar seu dia de núpcias com seu verdadeiro amor.
— Se James precisa lutar, essa é a única maneira de eu pass á -lo. Mas eu bem que gostaria de ter mais algumas noites com aquele bob ão.
Isabel riu de novo, ao mesmo tempo que conseguia amarrar o vestido por conta própria. E, claro, Mary tinha razão. Era o traje menos complicado que ela possuía, e o menos apertado.
— N ão posso criticar a sua lógica nem um pouco. Espero que a sua noite tenha sido tudo o que você sempre sonhou.
— Ah, foi mais. Muito mais! E era um pepino e tanto, Isabel.
Isabel quase entrou em colapso de tanto rir.
— Mary, precisa parar de me fazer rir tanto! — Ela congelou. — Ele não a machucou, não é?
— Ah, não! James foi muito delicado. O rei até deu a ele algumas dicas para ter certeza de que tal coisa não aconteceria.
— James contou isso!?
Mary apenas balançou a cabeça e, em seguida, lhe cobriu o ouvido com a mão para continuar:
— Parece que James estava mais nervoso do que eu, ontem à noite, e o rei tentou acalmá-lo.
Ah, Artur! Era possível amar ainda mais aquele homem?
— Sua cerimônia de casamento estava linda. Assim como você. Não era à toa que James estava tão nervoso.
— De qualquer forma, parece que o conselho do rei Artur funcionou. Muito bem, por sinal! Não sei o que o mestre falou, mas agradeço... seja lá o que for. — Mary se levantou. — Pronto. Tenho trinta e duas tranças. Será que é o suficiente?
— É m ais do que o suficiente. Onde conseguiu todos esses cabelos?
— Posso ser muito convincente quando necessário. E agora, o que vamos fazer com elas?
— Vou precisar fazer mais uso dessa sua habilidade com cabelos, Mary. E faço votos que seja, mesmo, uma pessoa convincente porque, acredito, vamos nos deparar com protestos como você nunca viu antes!
Mary recolheu os cabelos trançados.
— Vamos nessa , condessa!
Capítulo Vinte e Cinco
Artur mal podia acreditar nos próprios olhos ao avistar as mulheres sentadas em torno da távola redonda. Em pé, Isabel rabiscava linhas em um pedaço de pergaminho, depois apontava para uma e para outra companheira, distribuindo o que pareciam ser coordenadas de um plano de batalha.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou ele, por fim.
Isabel apenas ergueu o olhar enquanto a maioria das mulheres, com exceção de Gwen, se pôs de pé.
— Ora, sentem-se — ordenou Artur, aborrecido. — Isabel, o que é isso?
Ela endireitou o corpo.
— A távola redonda — respondeu, calma. — E uma reunião de planejamento estratégico. Não foi para esse tipo de coisa que esta mesa foi feita?
— Planej... — Pelos deuses, era uma perda de tempo discutir com aquela criatura! — Planejamento estratégico para quê? Primeiro fez Mary prender tranças nas cabeças dos homens, e agora quer envolver as mulheres na batalha? O que está pretendendo, Isabel?
— Impedir que qualquer inimigo consiga invadir Camelot. Posso estar enganada, mas acredito que essa é a meta do dia.
— E acha certo envolver as mulheres?
Isabel olhou a távola lotada.
— Se alguma de vocês não estiver disposta a se juntar a nós, por favor, levante a mão. Se estiver nesta távola contra a sua vontade, fale agora. Ninguém aqui vai ser punida, portanto, são livres para sair no momento em que quiserem.
Ninguém ergueu a mão. Nem mesmo Gwen.
— Eu não vou permitir que...
— Não tem escolha , Artur. Guinevere que, até onde sei, é a rainha de Camelot, decretou que podemos ajudar nesta empreitada.
A indignação de Artur quase sobrepujou sua admiração.
— Isto é uma guerra. É um a batalha para homens!
— É uma batalha para preservar Camelot — corrigiu Isabel. — Cabe a cada um de nós aderir a ela ou não.
— Mas você é de Dumont, não de Camelot. Não tem autoridade para...
Artur parou quando, uma a uma, as mulheres foram se erguendo em torno da távola, inclusive Gwen. E por suas expressões beligerantes, certamente não era por respeito à sua posição de rei. Na verdade, foi como se toda a sua autoridade tivesse sido transferida para a condessa de Dumont.
— Eu concedo a Isabel a autoridade, Artur — declarou Gwen, ainda que um pouco hesitante. — Estamos aderindo a esta batalha com nossos próprios métodos. Cada uma de nós, nesta mesa, tem um homem que agora segue em direção ao perigo. Estamos fazendo a nossa parte, quer você concorde ou não. Isabel tem planos, porém não faremos nada que possa interferir na estratégia dos homens; iremos intervir apenas onde formos capazes. Agora volte para os seus próprios, e nos deixe continuar com os nossos.
Em seguida, para a total surpresa de Artur, todas as mulheres ergueram as mãos e começaram a batê-las umas nas outras, dizendo o que ele acreditava ser “high five”.
Era coisa demais para assimilar! E a mais impressionante era o fato de Gwen ter, pela primeira vez, se insurgido contra uma ordem dele, revogando-a sem pensar duas vezes. Pelo visto, enquanto ele não estivera prestando atenção, Gwen havia adquirido maturidade. Ainda que, ao declarar que todas as mulheres ali teriam alguém correndo perigo na luta, ela estivesse pensando em Lance, e não nele.
Não dava a mínima para isso, entretanto. O que importava era que ele fosse o homem pelo qual Isabel estivesse disposta a lutar. E, em segundo lugar, que as criadas o estivessem desafiando abertamente. Pior: Isabel não apenas aderira àquela luta para ajudar a salvar seu reino, como também conseguira formar um verdadeiro exército de mulheres dispostas a se engajar na batalha.
E ele sabia quando tinha perdido uma delas.
— Muito bem — falou com um suspiro. — Façam o que acharem que devem. Mas, Isabel, se seus planos envolvem levar qualquer mulher para o campo de batalha...
— Não — afirmou ela. — Prometo que faremos isso de uma maneira que as mulheres conhecem bem. Somos mais argutas e sorrateiras do que os homens. Nem uma única mulher irá se ferir nesta luta, eu juro. E, se formos bem-sucedidas, nenhum homem será ferido também. Não é esse o objetivo?
— Sim, mas, Isabel... condessa Isabel... Podemos trocar uma palavra? — pediu, chamando-a com um dedo.
— Imagino que eu vá ouvir mais do que apenas uma palavra. E que a maioria delas não será muito lisonjeira.
As mulheres ao redor da távola caíram na risada.
— Está certo. Mas você as ouvirá mesmo assim. Agora, por favor.
— Devo acompanhá-la, condessa? — indagou Mary.
Ah, que maravilha! Agora Isabel contava com gente pronta para atacá-lo, caso ele fizesse algum movimento ou dissesse uma só palavra ameaçadora contra ela! E gente do seu próprio povo!
Definitivamente, ele havia perdido o controle do castelo inteiro.
— Não há necessidade, Mary — descartou Isabel. — Nem mesmo a Excalibur ao lado dele me preocupa... No entanto, se a minha cabeça rolar para longe do corpo, aqui, podem apostar que eu superestimei a minha confiança no seu rei.
— Muito engraçado — emendou Artur, enquanto a arrastava para a própria sala.
— Mordred e seus homens ainda não retornaram?
— Sim.
— E sua missão foi bem-sucedida?
— Assim Mordred diz, embora eles mal pudessem esperar para arrancar aquelas tranças da cabeça. Também não estavam nem um pouco felizes com os vestidos.
— Os vestidos foram apenas uma proteção adicional. Caso algum inimigo se deparasse com eles.
— Desse modo, à primeira vista, eles acreditariam estar lidando com mulheres indefesas... Sim, eu entendi. Mas percebe, claro, a ironia desse ardil.
— O que quer dizer?
— Vocês estão usando a crença dos homens em mulheres indefesas contra eles próprios.
— Podemos usar o que quisermos se eles forem idiotas o suficiente.
— Mordred e seus homens prenderam dez dos inimigos, Isabel, graças ao seu estratagema.
— Que ótimo! Agora vamos torcer para que muitos outros parem para experimentar as guloseimas e o hidromel.
— Mas são homens galopando para uma batalha.
— Homens rumando para uma luta também ficam com fome e com sede, oras!
— Mordred está muito orgulhoso, Isabel. Ele tem certeza, imagino eu, que realizou uma incrível façanha.
— E realizou mesmo. Bom para ele. Agora, estou pensando em outra coisa...
Artur a fitou.
— Por que isso me preocupa?
— Porque vocês, homens, estão tão acostumados a ver sangue e tripas nas guerras que não se importam em lançar mão de outros artifícios.
— Que truque tem em mente, agora?
— Bem, não é bem um truque. É mais uma forma de defesa.
— E qual seria?
— Acender uma fogueira. Uma bem grande.
— Não vou incendiar Camelot, Isabel!
— Não, eu não quis dizer aqui. Bem longe, na floresta, de modo a desfazer todas as trilhas que conduzem a Camelot. Os imbecis que não pararem para tirar proveito das nossas guloseimas e bebidas serão impedidos por uma parede de fogo! Você mesmo me deu a ideia quando disse a Lance para não acender uma fogueira que ele não pudesse conter... Se provocarmos um incêndio — um incêndio controlado — bloqueando os caminhos para o castelo, podemos neutralizar os inimigos antes mesmo que eles consigam invadir o reino.
Artur olhou para a mulher incrível à sua frente.
— E quanto aos seus planos?
— Não vão dar certo se eles vazarem.
— O quê?
— Não importa. É apenas modo de dizer . Confie em mim, Artur, nenhuma mulher será ferida durante essa batalha.
— Às vezes você é tão estranha, Isabel!
— Mas você me ama mesmo assim.
— Estou completamente apaixonado por esse seu lado.
— Pelo menos eu não sou aborrecida!
— Essa, condessa Isabel, é a maior das verdades.
Ele a beijou uma vez mais, e com tanta volúpia como tinha feito apenas algumas horas antes. Depois segurou a mão dela, puxando-a para fora da sala.
— Aonde está indo? — perguntou Isabel.
— Provocar um incêndio. E você vai voltar para a sua reunião de planejamento estratégico. Aquela sala, aquela távola, foram criadas para algo completamente diferente. Mas agora percebo que elas têm muito mais valor. A propósito, caso precise ser lembrada, você me ama.
— Amo, e não... não preciso ser lembrada.
Isabel começou a caminhar de volta para a sala da távola redonda.
— Eu te amo! — ainda ouviu Artur dizer em voz alta. E, em seguida: — Ah, pelos deuses, Frederick! Eu quis dizer ela , não você!
Capítulo Vinte e Seis
A batalha, graças aos deuses, nunca aconteceu. Nem uma única espada teve de ser usada; nem uma única flecha se tingiu de vermelho.
No dia seguinte ao ataque que falhara, os homens de Artur perscrutaram as trilhas e descobriram os corpos de muitos inimigos. Um deles era Richard de Freemont, um suíno gordo e nojento que jamais teria ignorado uma guloseima ou um gole de hidromel.
Isabel, Mary, Jenny e Gwen se reuniram uma vez mais no quarto de Isabel, enquanto Mary tentava consertar os cabelos que ela fora obrigada a tosar às pressas. Jenny e Gwen também haviam apoiado a causa, assim como a própria Mary, que cortara as suas próprias madeixas para a confecção das tranças.
— Não ouviu isso de mim, condessa — começou Jenny —, mas estão dizendo pelo castelo que as mulheres ficaram desapontadas por não terem tido a oportunidade de derrubar um inimigo.
— Mas só podemos ficar felizes com isso! De qualquer modo, eu é que vou derrubá-la se continuar se recusando a me chamar de Isabel.
— Ceda de uma vez, Jenny! — incitou Mary enquanto trabalhava no cabelo de Gwen. — Não vai ganhar essa aposta. Isabel vai dobrá-la logo, logo.
— E eu quero que todas vocês, por favor, me chamem de Gwen.
Jenny congelou.
— O que foi? — inquiriu a rainha, olhando de uma para a outra. — Eu já pedi a vocês duas, agora estou pedindo a Jenny, oras. Qual é o problema?
— Mas você é a rainha! — sussurrou Jenny.
— Que também está sentada no chão, divertindo-se com mulheres que ela considera amigas... Eu gostaria que me visse do mesmo modo.
— Mary! — ralhou Isabel — Tire essa navalha do caminho.
A moça obedeceu, sentando-se com a navalha escondida às costas.
Isabel se inclinou para a frente e puxou Gwen para um abraço.
— É uma amiga e tanto, Gwen. — Tornou a recuar e apontou. — Agora, você e você... Admitam que consideram Gwen uma grande amiga. Afinal de contas, temos até compartilhado histórias picantes. Apenas amigas fazem tal coisa.
— Céus , James iria ter um ataque se soubesse disso! — comentou Mary e, em seguida, abraçou Gwen. — Eu também a considero uma amiga, minha rainha!
— Mary... — rosnou Isabel.
— Gwen — corrigiu-se Mary, embora aquilo fosse obviamente uma provação. — Vai levar algum tempo para eu me acostumar com isso.
— Relaxe. Será apenas entre as “irmãs-pepino” — elaborou Isabel.
Todas caíram na gargalhada. E levou algum tempo até que conseguissem se endireitar, uma vez que todas seguravam a barriga de tanto rir.
— Sua vez, Jenny — anunciou Isabel, apontando para o próprio peito. — Diga: Isabel . — Apontou para Gwen. — Gwen . Agora vá em frente, desembuche! Ou nós três seremos obrigadas a descrever as duas nozes que se pode encontrar debaixo desses pepinos...
Jenny arregalou os olhos, depois se juntou às risadas.
— Eu gostaria de uma explicação antes de ceder.
— Ah, não , Jenny! — protestou Gwen. — Esse tipo de tesouro você tem que descobrir por conta própria.
— É uma espécie de caça ao tesouro, então? Eu amo caça ao tesouro! Sou muito boa nisso.
— Precisamos casar logo essa menina! — concluiu Isabel. — Assim ela poderá “caçar” à vontade.
— Ashton queria se casar com Jenny, mas ela se recusou. — contou Mary. — Ele pediu sua mão pelo menos umas três vezes, não foi, Jenny?
A moça corou.
— Sim, é verdade.
— E por que rejeitou Ashton? — quis saber Isabel. — Não gosta dele? Eu o conheci ontem, pela manhã, e devo dizer que ele é um jovem guerreiro muito bonito.
— Fiquei com medo de...
— Do quê?
Jenny olhou para Gwen.
— De perder a minha posição de ama da rainha.
— O quê? — indagaram Gwen e Isabel ao mesmo tempo. — Por que acredita nisso, Jenny? — completou Gwen.
— Porque você falou, Alteza!
— Quando eu lhe disse uma coisa dessas?
— Disse que temia o dia em que eu fosse me casar porque teria de encontrar outra ama.
Isabel soltou uma exclamação.
— Disse isso a ela?
— Não! Bem... é possível. Mas se eu disse tal coisa, o que estava pensando era que, uma vez que Jenny se casasse, ela se tornaria uma esposa, e não iria querer ou precisar ficar ao meu dispor. J enny, eu nunca imaginei que você fosse acreditar que o seu casamento fosse significar o fim dos seus serviços. Na verdade, eu só estava com medo de perder você como criada e... como amiga.
— Ah, Alteza! Eu adoro ser sua criada e amiga. Sempre adorei.
— Vai demorar para ela aderir a essa coisa de usar o primeiro nome, Mary — sussurrou Isabel, enquanto Jenny e Gwen se abraçavam.
— Como eu disse, ela é um osso duro de roer — cochichou Mary de volta.
— Com um pouco de carne? – volveu Isabel, brincando, e ambas tornaram a desabar de tanto rir.
— Condessa — falou Mary, ainda rindo. — Se isto continuar, meu estômago vai doer para sempre!
— Considere como um bom exercício. Assim como serão os momentos com James...
— Quer, mesmo, interromper? — perguntou James a Artur, apontando um dedo para a porta de Isabel.
— Se eu ouvi bem, James, está sendo bastante elogiado por suas habilidades debaixo das peles.
O rapaz olhou para o outro lado, tentando ocultar um sorriso satisfeito.
De repente, Artur começou a bater as botas no chão.
— Estou dizendo, James... — falou em voz alta. — As mulheres estão aí dentro, decerto às voltas com aquela coisa de pintar as unhas dos pés novamente...
James assentiu.
— Mas devemos incomodá-las, senhor? — respondeu tão alto que a Bretanha inteira poderia ouvi-lo.
Artur balançou a cabeça, recostando-se na parede. Quando James entrava em uma brincadeira, ele o fazia com gosto!
— Precisamos da ajuda delas — continuou em voz alta. — De que outra forma seremos capazes de preparar a celebração desta noite?
Artur marchou um pouco mais antes de fazer um sinal para que James batesse na porta de Isabel, e este obedeceu de pronto.
— Entre, Artur! James...
— Como sabia que éramos nós? — perguntou Artur, fingindo inocência.
— Palpite.
Ele observou as quatro mulheres sentadas sobre os juncos como se tivessem acabado de ter uma conversa solene sobre as vantagens da enguia em conserva.
— Minhas desculpas pela interrupção, senhoras. Espero que James e eu não tenhamos atrapalhado nenhum plano de batalha.
— Claro que não. Estávamos apenas discutindo a respeito de...
— Enguias em conserva?
— Não exatamente, mas chegou perto. Tem mais a ver com pepinos e nozes.
Artur franziu a testa enquanto as outras três mulheres se dobravam de tanto rir.
Isabel fez um gesto vago.
— Elas estão radiantes com o fato de termos ganhado a batalha. Certo, senhoras?
— Certo, condessa — conseguiram responder.
— Céus, estou perdida! — deixou escapar Mary.
— Claro que não, Mary. Ela está, James?
— Deveria estar? — inquiriu o rapaz.
— Dependendo de há quanto tempo vocês dois estavam ouvindo atrás da porta, eu diria que quem pode estar em apuros é você . Mas, como conheço Mary, sei que ela é boa demais para querer se vingar. — Isabel virou-se para Artur, que era o que ele temia. — E quanto a você, Artur? Achou mesmo que ia enganar alguém, fingindo que estava andando?
— ... Eu tive esperanças de que sim — admitiu ele.
— Artur, eu já o vi em ação. Poderia se aproximar do mais arisco dos felinos sem fazer nem um som sequer. E, mesmo assim, fingiu estar se aproximando?
— Está bem. Provavelmente foi uma bobagem da minha parte.
— “Provavelmente”? Por favor, diga o que veio dizer de uma vez.
— Queremos fazer uma festa, esta noite, para comemorar o sucesso da operação de ontem.
— Precisamos da sua ajuda para fazer uma enorme celebração, pois estamos meio perdidos — explicou James. — Já demos as ordens na cozinha, mas e quanto aos outros detalhes?
— Uma festa? Caramba, por que não falaram logo? — Isabel olhou em volta. — Senhoras, acho que temos mais trabalho a fazer. — Tornou a encarar os homens. — Por favor, digam que não teremos mais que suportar as piadinhas de Hester, o bobo da corte!
— Ele vai ficar magoado, Isabel.
— Está bem, Hester está dentro... Mas enguias em conserva nem pensar!
— Ah, o rei já cuidou disso, senhora. Ele as baniu do cardápio da ceia. Eu não sabia por que motivo até esta... Uff! — James esfregou o estômago depois da cotovelada. — Ele prefere não oferecer mais a iguaria, é isso.
Isabel olhou para Artur, e o coração dele disparou. Pelos deuses, ele a queria tanto! Talvez naquela noite. E, porque a batalha tinha sido evitada, talvez por todas as noites de sua vida.
Ela sorriu para ele, e Artur soube que ela havia lido seus pensamentos.
— Eu tenho um pedido muito especial, rei Artur.
Ah... Ela poderia pedir qualquer estrela do céu, e ele encontraria um modo de ir buscá-la!
— Diga, condessa.
Isabel voltou-se para as mulheres.
— Gwen, acho que vai ter que decorar o salão mais uma vez.
A rainha se levantou e puxou Jenny com ela.
— Jenny e eu vamos colher flores agora mesmo.
Antes que elas saíssem, Artur segurou Gwen pelo braço.
— Estou orgulhoso de você, Guinevere. E de Lance também. Ele é um homem de sorte. Antes de começar a decorar o salão, talvez devesse ir visitá-lo... Ele está na cabana, fazendo uma limpeza depois de ter ajudado a apagar o incêndio que provocamos.
Gwen o fitou e sorriu.
— Eu estou crescendo, Artur. E, com sorte, ficando mais sábia. Agradeça à mulher que você ama por minha transformação.
— Eu sou grato a ela por muitas coisas. Mas a sabedoria vem de dentro. Você mesma a conquistou, Gwen, portanto, aceite o crédito. Agora vá ver Lance... Tenho certeza de que Jenny pode começar a colher as flores sem a sua presença.
Ela seria a única pessoa sã naquele quarto?
Como não tinha certeza, decidiu perguntar:
— Será que sou a única pessoa normal aqui?
— Acredite, amor, é provavelmente a pessoa menos normal das redondezas! — contrapôs Artur antes de olhar para James e Mary. — Quem considera Isabel a pessoa mais insana deste castelo, por favor, levante a mão.
Ambos o fizeram.
— Mary!
— Adoro você, condessa, mas é verdade que não regula muito bem.
— Por acaso fiz alguma besteira?
— Nem no inferno de Hades! — apressou-se Mary em dizer. — Foi de coração que se empenhou para salvar o rei e Camelot. E foi incrível. Quisera eu ter essa determinação!
— Mas foi coisa de louco?
— Só porque o rei disse que foi.
Isabel encarou Artur.
— Está marcando as cartas, sir .
Ele sorriu.
— N ão faço ideia do que essas palavras significam, mas imagino que só você diria uma coisa dessas.
Isabel cruzou os braços.
— James?
— Mil perdões, condessa, mas, entre a senhora e o mestre, devo permanecer ao lado do meu rei. E da minha esposa. De qualquer forma, você e o mestre estão tão apaixonados que apoiar um deve ser o mesmo que apoiar o outro. Estou certo, mulher?
— Certo, marido.
— Pelos deuses, isso só pode ser o “efeito pepino”! — murmurou Isabel.
— Eu ouvi, Isabel! — ralhou Mary. — E, não, não é nada disso. É que nos importamos muito com as pessoas de quem gostamos. James e eu acreditamos piamente que vocês dois foram feitos um para o outro, então parem de ser teimosos e confiem nos seus sentimentos. Venha, James. Creio que ainda tenha nos sobrado algum tempo antes de termos de voltar ao trabalho. Eu estarei de volta em... uma hora? — indagou ela, olhando para James. — Está bem, umas duas, talvez.
Isabel e Artur se entreolharam antes de caírem na risada. Camelot era, no mínimo, um lugar divertido, concluiu ela.
— Que favor é esse do qual estava falando com as outras, Izzy? Eu estava com esperanças de que quisesse aprimorar a técnica de me despir. ..
— Ah, mas essa prática eu já domin ei. O favor é ajudar Ashton a pedir a mão de Jenny, esta noite.
— Diante de todos?
— Sim. Não seria romântico?
— Seria se fosse eu a pedir a sua mão. Até porque prometeu que iria aceitar, não é mesmo?
— Claro que sim.
— Mais um motivo para que fosse eu a fazer o pedido esta noite.
— Um dia desses, Artur. Um dia desses.
Artur balançou a cabeça, rindo.
— Decididamente, perdi todo o controle sobre este reino, Isabel. O pior é que não estou dando a mínima.
— Claro que não perdeu! Como pode pensar numa coisa dessas?
— Ora, criados me repreendem, as mulheres tomam iniciativas... Pelos deuses, mulher, foi uma ideia sua que neutralizou nossos inimigos.
— Por favor, tudo o que eu quis foi elaborar uma estratégia que evitasse derramamento de sangue. Principalmente o seu! Só isso... Afinal, seria um horror ter de limpar a sujeira depois.
— Ah, entendi. O que pretendia era ter menos trabalho.
— Claro. Sou meio preguiçosa.
Ele empurrou a porta com o pé.
— Mary e James disseram duas horas?
— Parece que esse é o tempo deles — falou Isabel, recuando com um sorriso.
— Não é tempo suficiente, mas estou disposto a aceitar o que estiver disponível.
— E quem disse que vai obter alguma coisa? — indagou ela, travessa.
— Seus lindos olhos azuis, Isabel. Eles estão dizendo que me deseja tanto quanto eu a desejo.
— Malditos olhos que não conseguem mentir!
— Não diga tal coisa. Tem mais é que bendizer esses olhos lindos, esse olhar sincero... Agora confesse com esses lábios.
— Eu o desejo muito, Artur! — cedeu Isabel.
— Viu como concordamos em muitas coisas? — provocou ele, abrindo os braços. — Quer dizer que já se tornou especialista em me despir? Pois, então, quero uma prova.
Ah, eles estavam tão suados e exaustos! Isabel não fazia ideia de quanto tempo eles haviam passado fazendo amor, mas estava certa de que as duas horas estavam para terminar.
— É melhor nos vestirmos — alertou, preocupada.
— Concordo. Mas isso não se iguala em nada à minha vontade de deixar a sua cama.
— É bom com Matemática, não?
— Matemática?
— Em trabalhar com números, fazer equivalências...
— Ah, sim. Chamam esse tipo de coisa de Matemática?
— Como vocês chamam?
— Apenas de números.
Isabel rolou de costas, rindo.
— Eu te amo tanto!
Artur virou-se de lado.
— Eu tenho um exemplo relacionado a isso.
— Mal posso esperar para ouvir. — Ela também se pôs na mesma posição.
— O que diria de mais de cem homens tentando lidar com uma mulher muito mais inteligente do que eles?
Isabel ficou imóvel.
— Não sei. O quê?
— Que eles estão em desvantagem.
Ela riu.
— Artur, seus homens iriam tirar uma situação dessas de letra.
— Lá vamos nós com essa história de “tirar de letra” outra vez... Sim, eu até concordo que podíamos ter vencido os invasores. No entanto, verdade seja dita, Isabel, se não fosse pelo seu raciocínio rápido, haveria sangue manchando o solo de Camelot agora. Graças à sua estratégia maluca, o nosso povo continua vivo e seguro.
— Estratégia maluca?
— Eu disse “maluca”? Eu quis dizer “espirituosa”.
— Você quis dizer “maluca”.
Artur fez uma careta.
— Sim, mas eu quis dizer “maluca” no sentido de “engenhosa”.
Isabel sorriu e traçou os contornos do rosto moreno até que este voltasse a relaxar.
— Foi apenas uma maneira excêntrica de enfrentar o inimigo.
— A batalha não era sua.
— Mas envolvia você, e eu te amo. Assim como todas as pessoas de Camelot. Pode não fazer sentido para você, Artur, porém aprendi a amar as pessoas daqui neste curto espaço de tempo. Elas são boas, generosas, e o mais importante: elas amam o seu rei. Se não se deu conta disso ontem, quando as mulheres se mostraram dispostas a se insurgir contra o inimigo e lutar por seu rei, está, lamentavelmente, subestimando o amor e a lealdade de seu povo. Eles o amam, Artur. Estão dispostos a fazer qualquer coisa para proteger e honrar seu reino.
— Sou eu quem deve protegê-los, Isabel. Pois então não é esse o meu principal dever de rei?
— Pode até pensar dessa forma, mas cuidar deles é um dever secundário. O principal é se certificar de que eles queiram protegê-lo como seu soberano. E, pelo que vi até agora, está tudo dando muito certo.
— Às vezes eu duvido disso. E reconheço o quanto pareço fraco até mesmo ao admitir uma coisa dessas.
— Um líder fraco é aquele que se recusa a admitir as próprias dúvidas sobre como conduzir as coisas. Um líder forte é o que se questiona constantemente sobre como cumprir sua missão para o benefício de todos. Você é o senhor de terras mais forte, mais honesto e amoroso que já conheci. Não ludibria o povo de Camelot e não abusa dele. Se eu fosse uma pessoa afeita a números, adicionaria esse item à coluna das vantagens.
Artur a fez deitar-se de costas e a fitou no fundo dos olhos.
— É a melhor coisa que já me aconteceu, Isabel. Não imagina quanto.
Ela sorriu.
— Espero que sempre pense assim.
— Não creio que isso vá mudar.
Houve uma batida na porta.
— O tempo se esgotou, condessa! — falou Mary lá de fora . — Quer um banho ou não?
Isabel deixou os braços de Artur.
— Ah, sim, Mary. Mas, por favor, espere só mais alguns minutos antes de pedir aos homens que tragam a água.
— Céus, vocês dois. — exclamou a moça. — James e eu estamos casados há dois dias e não demoramos tanto!
— Vou ficar feliz em dar mais algumas dicas a James, se ele precisar — provocou Artur enquanto vestia as leggings .
Mary riu.
— Vou manter isso em mente caso eu venha a necessitar, rei Artur!
— Por essas e outras é um grande rei — comentou Isabel, puxando a coberta.
— Por causa das dicas de como fazer amor?
— Não. Pelo fato de que Mary não terá nenhum problema em lhe pedir conselhos se precisar.
Artur vestiu a túnica pela cabeça, em seguida olhou em volta para ter certeza de que não havia deixado nada para trás. Caminhou até Isabel, então.
— Eu amo você. Queria não te r que sair da sua cama.
— Eu também te amo. E queria a mesma coisa.
— Salvou muitas vidas de Camelot ontem, Isabel. Esta noite vamos comemorar a sua vitória.
— Não! A festa desta noite é para todos. O sucesso foi nosso.
— Pode-se até pensar que sim. Ainda mais alguém que se pergunta como tornar a vida melhor para todos, em vez de alguém que presume já saber de tudo.
— Artur!
— Diga a Isabel para parar com isso, Mary — ordenou ele enquanto deixava o quarto.
— Xii... Que os deuses me ajudem — resmungou a menina ao entrar.
— Mary!
— Pare já com isso! É uma ordem do rei!
Capítulo Vinte e Sete
O salão principal, mais uma vez, estava maravilhoso. O fogo na imensa lareira ardia, ofuscante, as flores se espalhavam, lindas e abundantes, e o ar estava deliciosamente perfumado, sem um único vestígio de porco ou frango.
— Ashton está pronto? — indagou Isabel a Gwen num sussurro.
— Pronto como qualquer outro homem, ou seja, apavorado! — respondeu a jovem rainha.
— E quanto a Jenny?
— Ela não sabe de nada, porém tivemos uma longa conversa hoje, e agora Jenny se convenceu de que nenhuma circunstância irá fazê-la perder sua posição.
— Será que ela ama Ashton?
— E você? Ama Artur?
Isabel a fulminou com o olhar.
— Está bem, isso não foi justo... — aquiesceu Gwen. — Vou fazer uma pergunta mais fácil: acha que eu amo Lance?
— Espero, do fundo do coração, que sim. Porque, Gwen, ele é tão apaixonado por você!
— Claro que eu o amo. Não passo nem um único momento do dia sem pensar nele. Acho que penso em Lance até dormindo!
— Que bom. Ele é um homem maravilhoso. Vocês dois foram feitos um para o outro.
— Muito bem... E quanto a você e Artur?
— Está parecendo Hester, o bobo da corte!
Gwen riu, depois tomou um gole de vinho.
— Essa história de “pode ficar com a minha esposa, por favor”, já e stá ficando cansativa, não acha?
— Não faz ideia! Não faz ideia, mesmo...
— E quanto a você e Artur?
— Que tal se esquecer de mim e de Artur? — sugeriu ela, irritada.
— Isabel, você me pediu honestidade. Estou apenas lhe pedindo a mesma coisa. Eu gosto muito dele... Sei que magoei Artur e, por isso mesmo, espero que nenhuma outra mulher o fira da mesma forma.
Isabel fechou os olhos por um momento, depois tornou a abri-los.
— A resposta mais honesta que posso lhe dar é que não posso prever o futuro, Gwen.
— Mas Artur a ama! Profundamente! Ele já me confessou.
— Ótimo! — exclamou ela em voz alta, virando-se para encarar Gwen. — Porque eu também o amo muito. Amo mais do que jamais pensei que fosse possível! Eu atravessaria uma cortina de fogo por ele, sabia? Estou sendo honesta o bastante, agora?
Parecia uma cena de filme de quinta categoria. A música parou, a conversa ao redor parou. Tudo no maldito salão parecia ter congelado, exceto, claro, seu exaltado discurso.
Isabel olhou em volta, e o rosto que mais se destacou foi o de Artur. E ele estava sorrindo.
— É apenas uma fala da última peça que foi encenada em Du mont... — elaborou ela, de modo que todo o salão escutasse.
Ninguém se moveu.
— Está bem, a peça tinha um final patético, mas não fui eu quem a escreveu, então, me deem um tempo! Músicos , por favor... Pelos deuses, aonde foi parar Hester?!
— Obrigada por ter interferido lá no salão — murmurou Isabel quando Artur lhe trouxe uma taça de vinho fresco.
— Foi uma surpresa. Eu não sabia que encenavam peças em Dumont...
— Pois encenamos.
— E não me pareceu um final patético, como disse. Soou mais como uma história de amor.
— Pode ser.
— Em que uma mulher professava seu amor por um homem.
— Talvez.
— Uma mulher que atravessaria uma cortina de fogo por seu homem.
— Entendeu o ponto principal. Concorda com ele?
— Ei, eu também atravessaria uma cortina de fogo pela minha amada.
— E quem seria ela?
— Dê um palpite, oras. Eu lhe dou duas chances: mas é melhor que a primeira não seja Pix.
A irritação de Isabel desapareceu num piscar de olhos.
— Eu sinto muito, Artur — falou ela, encarando-o, por fim. — Eu não queria que ninguém ouvisse, além de Gwen.
— Eu sei. Mas faz ideia do quanto fiquei orgulhoso e feliz por o salão inteiro ter escutado?
— Como é possível? Eu podia ter colocado você e Gwen em perigo.
Ele balançou a cabeça.
— Não. Estamos prestes a ser livres.
— Está variando ?
— Não sei o que é isso. De qualquer modo, queria te beijar muito agora, mas lhe fiz uma promessa e pretendo cumpri-la.
E Artur a cumpriu. Subiu na mesa enorme de um salto, sem usar um único banco ou cadeira.
— Senhoras e senhores de Camelot, por favor, ouçam.
O salão inteiro mergulhou no silêncio.
— Temos muitas razões para comemorar esta noite, e começaremos com um passo importante. Ashton? Onde está você?
— Estou aqui, meu rei! — veio uma voz do meio da multidão.
— Então, traga o seu maldito traseiro até aqui, oras. — Artur olhou ao redor. — Jenny, onde está?
Aconteceu de Jenny estar muito próxima de Isabel, e esta se aproximou mais da moça.
— Vá logo, Jenny!
— Posso tomar um gole do seu vinho, condessa?
— Você quis dizer “Isabel”. Meu nome é Isabel!
— Posso, Isabel, tomar um go...
Isabel empurrou o cálice para a mão dela.
— Engula quanto quiser. Basta se lembrar de que a palavra certa é “sim”!
Jenny engoliu a bebida com gosto. Na verdade, drenou o cálice inteiro. Depois endireitou o corpo e lançou um olhar por cima do ombro.
— A palavra certa é...
— “Sim”! — repetiu Isabel, rindo.
— E qual vai ser a pergunta?
— É surpresa — afirmou ela, enquanto empurrava a moça em direção à mesa. — Basta responder “sim”!
Jenny levantou o polegar.
— Entendi, Isabel.
— Quer se casar comigo, Jenny? — indagou Ashton, pondo-se sobre um joelho. — Será que concorda em ser minha esposa?
Jenny olhou de volta para o canto do salão, onde tanto a condessa quanto a rainha balançavam a cabeça fervorosamente.
— Sim! — respondeu. — Quero muito ser sua esposa.
Ashton se levantou e a puxou para ele.
— Pelos deuses, mulher! Por que demorou tanto tempo para aceitar?
— Eu queria ter certeza de que estava sendo sincero — murmurou ela.
Artur abaixou a cabeça e riu. Em seguida, olhou para Isabel e Gwen. Elas sorriram de volta.
Pelos deuses, elas eram as mulheres de sua vida! Ele não sabia se se considerava abençoado ou temeroso. Na certa deveria sentir um pouco de cada coisa.
Após acertarem a data da festa para Ashton e Jenny, Artur se pôs sobre a mesa mais uma vez.
— Temos mais a agradecer nesta noite. Afinal, continuamos em paz, sem que nenhum sangue tenha sido derramado em Camelot. — O rugido da multidão quase fez Artur tapar os ouvidos, e ele tentou acalmar os ânimos, movendo os braços para cima e para baixo. — Por favor, eu me preocupo com a audição de vocês e com a minha! Podíamos comemorar sem tanto estardalhaço. Vamos praticar?
A reação foi exatamente a que ele pediu.
— Excelente. Agora temos muito a agradecer à condessa Isabel. Afinal, seu raciocínio rápido nos ajudou.
— Também aos nossos amigos da cozinha! — gritou ela de onde estava. — E à rainha, a Jenny e Mary. E a todos vocês, que se dispuseram a lutar por Camelot, por tudo o que este reino significa!
— Eu já ia chegar nesse ponto Isabel — protestou Artur. — Podia me deixar assumir as coisas ao menos de vez em quando.
— Perdão.
Ele balançou a cabeça.
— O sucesso de ontem se deve a todos vocês, que se esforçaram para manter Camelot a salvo. Estou tão orgulhoso de todos, e me sentindo tão abençoado , que considero a cada um meu amigo. Estou orgulhoso do meu filho, Mordred, que enfrentou um grande desafio e foi bem-sucedido. Muito além do que eu imaginava.
Isabel olhou ao redor e finalmente avistou Mordred parado, olhando para o pai feito uma estátua. Sorriu. O relacionamento deles iria dar certo. Mais do que certo.
— Quando chegar o dia em que eu tiver de me aposentar do meu cargo de rei, tenho certeza de que Mordred irá envergar esta coroa com dignidade e prosseguir com o legado que é Camelot. A Mordred! E aos homens que, por vontade própria, o seguiram a fim de realizar uma missão nada agradável! — brindou Artur.
— A Mordred e seus homens! — respondeu o povo.
— Mais brindes como esse, e daqui a pouco o salão inteiro vai estar no chão de tão embriagado! — sussurrou Isabel para Gwen.
Gwen riu, embora seus olhos percorressem o espaço, ansiosos.
Isabel não precisou parar para pensar de quem a moça estava à procura .
— Ele está ali, Gwen, na entrada do refeitório.
A jovem rainha olhou e assentiu.
— Eu gostaria de poder me juntar a ele, Isabel. Assim como estou certa de que gostaria de estar ao lado de Artur.
— Eu sei. É verdade . Que par nós formamos, não?
— Ou que sorte nós temos! Depende do ponto de vista. Afinal, nós duas temos homens que nos amam. Há muitas que não podem afirmar o mesmo.
Isabel parou, pensativa.
— Nossa, Gwen... Havia muito tempo eu não ouvia palavras tão sábias! Elas realmente colocam as coisas sob uma nova perspectiva.
Gwen a fitou.
— Eu não nasci sábia, Isabel. Apenas prestei atenção à sua sabedoria ao longo destes últimos dias e tentei aprender.
— Caramba, eu não tenho certeza se sou tão sábia, Vossa Alteza, mas posso afirmar que é um a aluna e tanto.
— Se lhe interessa saber, condessa, é o melhor exemplo de sabedoria que já encontrei na vida.
Isabel riu, então a abraçou.
— Vamos dar um jeito nesta situação, cê vai ver.
— Posso fazer apenas mais um comentário? — indagou Gwen.
— Claro!
— Você fala engraçado.
Isabel quase dobrou de tanto rir.
— Eu sei! E agradeço por tentar entender o que estou dizendo.
— Estou me referindo a esse seu modo de pronunciar as palavras. Você as encurta de uma maneira tão estranha!
— Ah, Gwen, você seria uma ótima representante de classe.
— Vou tomar isso como um elogio, embora eu não faça ideia do que significa.
— Confie em mim: é um elogio.
— E é a minha vez, Isabel, de retribuir essa bondade em seu coração. É o momento certo, como eu já ouvi dizer, para uma “cadeia de favores”. — Gwen colocou o cálice de vinho nas mãos dela. — Aqui. Beba isto... Pode precisar.
Isabel permaneceu no lugar, atônita, vendo a rainha Guinevere se desencostar da parede e correr na direção de Artur. Ela sussurrou algo em seu ouvido, e ele negou veementemente com um gesto de cabeça.
Mas, pelo visto, Gwen tinha uma missão e não pretendia se eximir dela. Arrastou Artur até a mesa e subiu com sua ajuda. Depois fez um gesto para que ele se juntasse a ela.
Artur olhou para Isabel com uma expressão de “Que diabos?”, para a qual ela não t eve resposta. Deu de ombros, admitindo sua própria confusão, em seguida fez o que Gwen havia sugerido: tomou um enorme gole de vinho.
— Atenção, por favor! — chamou Gwen, esperando que todos no salão parassem de conversar para ouvi-la. — Eu tenho uma confissão a fazer... Vocês merecem a verdade.
— Não faça isso, Gwen! — gritou Isabel, temendo o que a moça poderia revelar.
— Devia ter dito: “Sem essa, Gwen!” — provocou alguém.
Artur começou a rir.
— Então, também notaram?
— Todos já percebemos que a condessa fala diferente — concordou outra pessoa, em meio à multidão. — Mas ela fala com sabedoria.
— Tem razão, Christopher — concordou Gwen. — Providenciem mais um cálice de hidromel para Christopher, por favor.
— Por Hades, Gwen, o que está fazendo? — exigiu Artur.
— Corrigindo um erro.
— Mas este não é o momento, nem o lugar.
— É a hora e o lugar perfeitos, pois todos aqui merecem a verdade.
— Gwen, não faça uma bobagem dessas. Pense nas consequências!
— Eu posso sobreviver a elas... ou morrer. Mas não posso mais conviver com a mentira.
— Bons deuses... — murmurou Artur.
— Eis a verdade, minha gente. — anunciou Gwen. — Tenho sido infiel ao homem mais gentil que já conheci: o nosso rei.
Pelo amor de Deus! Gwen decidira abrir o coração justamente ali e agora?!
Esvaziou o cálice da rainha; em seguida, pediu outro cheio. Se havia um momento para se embriagar, era aquele!
— Aceito as consequências dos meus atos — continuou a jovem rainha. — Caso decidam me punir, fiquem à vontade. Porém eu jamais irei lamentar ou desistir do amor que sinto por... por...
Artur cobriu a boca de Gwen antes que ela ajudasse seus executores a escolher as cordas em que iriam enforcá-la.
— Quem é ele? — indagaram vários aos gritos. — Vamos caçá-lo e dar o que ele merece!
— Isso não foi traição! — interveio Artur. — Não quando eu fui conivente com o amor dos dois. Eu soube de tudo e lhes dei permissão para que seguissem seus corações. Não é traição quando o rei diz “sim”. Eu quis, do fundo do coração, que ambos dessem vazão a seus sentimentos, e qualquer pessoa que fizer mal a algum deles vai se ver comigo! A forma como resolveremos essa questão não diz respeito a vocês, portanto, nenhum dos dois deve ser ameaçado, tampouco punido. É uma ordem! Ficou claro?
— Sim, meu rei — responderam muitos.
— E já que decidimos confessar nossas faltas... — recomeçou ele.
Não, Artur, por favor! , pensou Isabel, embora soubesse que ele e Gwen estavam em pleno processo de expiação dos pecados e não iriam parar tão cedo.
Artur olhou em sua direção.
— Melhor calar a boca!
— “O que o rei não faria nem no meio do inferno, condessa”? — gritou ele de volta.
— Ah, Céus! — sussurrou ela.
Mary correu até ela e a agarrou pela mão.
— Vai ser melhor assim.
— Melhor para quem? — quis saber Isabel.
— Para todos aqui. A rainha precisava desabafar. E, para dizer a verdade, você fala engraçado mesmo.
— Ótimo. A gora está se voltando contra mim também?
— Não está escutando , Isabel? Ninguém está se voltando contra você, pelo contrário. Todos a apoiam!
— Sinto muito, Mary — falou ela com um suspiro. — Eu não queria que o rei e a rainha de Camelot fossem desprezados por seu povo.
— O problema, senhoras e senhores... — recomeçou Artur, decidido a não permitir que Gwen fosse crucificada sozinha. Ele não sabia o que provocara aquela confissão tresloucada; porém, se ela havia sentido a necessidade de desabafar, ele faria o mesmo. — ... é que e u também me apaixonei profundamente por outra pessoa. N ão era para acontecer, eu não esperava por isso... Contudo o destino decretou que fosse assim. Acreditam que fiquei louco por esta mulher que fala engraçado? — contou, apontando para Isabel. — Pois é verdade. Estou apaixonado pela condessa Isabel. A rainha Guinevere se apaixonou por outro homem, e estamos todos felizes. Dessa forma, se alguém ousar prejudicar a rainha ou a condessa enquanto estivermos nos esforçando para ficar com as pessoas certas, usarei os meus poderes de monarca. Todos temos o direito de cometer erros, assim como o dever de corrigi-los para a felicidade geral. Portanto, antes de julgarem nossas mulheres, olhem para seus próprios corações.
— Felicidade para todos! — gritou James, erguendo o cálice. — Esse é o objetivo dos que vivem em Camelot!
— Felicidade para todos! — repetiu a grande maioria dos convidados, também levantando suas canecas num brinde.
No entanto, Artur percebeu a forma como muitas pessoas olhavam agora para Isabel: como se ela tivesse vindo do meio do inferno de Hades.
— De maneira alguma atribuam culpa a Gwen ou Isabel! — alertou, sério. — Se o fizerem, será por sua própria conta e risco. Mas sei que aqueles que nos conhecem bem permanecerão ao nosso lado. Agora, por favor desfrutem do restante da noite — aconselhou, por fim. — E lembrem-se de dizer àqueles que lhe são caros o quanto v ocês os amam. Sempre.
Artur desceu da mesa e foi direto até sua amada. Provavelmente devia ter se preparado para o soco que levou no peito logo ao chegar, mas, não.
— Ai!
— O que estava pensando, Artur?
— Que eu estava sendo honesto acerca dos meus sentimentos por você, talvez?
— Não lhe ocorreu o que poderia acontecer com Gwen?!
— Não notou que foi Gwen quem primeiro tomou a decisão de revelar seus sentimentos?
— Verdade. Que diabo foi aquilo?
— Não era eu quem estava aqui, conversando com ela. Era você. Que tal me contar?
— Ela queria ser honesta com o povo de Camelot, imagino — intrometeu-se Mary. — Não culpe Isabel, pois eu mesma vi sua tentativa de impedir a rainha... Ou terá que se ver comigo, Vossa Alteza! — acrescentou a menina com uma ligeira reverência. — Devo ficar, Isabel?
— Acho que posso lidar com o rei — respondeu ela, sorrindo. — Mas obrigada, Mary.
A moça olhou de um para o outro.
— Está bem, condessa. Então, estarei bem ali, na companhia daquele homem muito grande, muito forte e muito leal, caso precise... — comunicou, marchando para longe.
— Por que, de repente, estou me sentindo como se eu o fosse o vilão por aqui? — indagou Artur.
Isabel balançou a cabeça, rindo.
— Não é nenhum vilão , mas, pelos deuses, por que fez aquilo? Podia ter dito apenas: “Estou do lado de Gwen, e fim da história”.
— Porque, uma vez que ela decidiu revelar o que estava fazendo, minha única opção foi anunciar que eu também estava apaixonado por outra pessoa. Desse modo, o povo não vai concluir que ela foi a única a quebrar seus votos.
— Quer dizer que fez aquilo para proteger Gwen?
— Não apenas por isso, mas também por isso. É como se... Não sei ... “A verdade vos libertará.”
— Ah, Deus, odeio dizer, mas tenho a sensação de que, em longo prazo, não vai levar nenhuma vantagem nessa história, o que é uma pena.
— Como assim?
— Não importa. De qualquer forma, sente-se liberto agora? Porque estou sentindo uma centena de pares de olhos me fulminando!
— Quem pensar em prejudicá-la vai ter que me enfrentar primeiro. Eu amo você, Isabel. E, sim, sinto-me livre agora. Esconder meus sentimentos não estava sendo nada bom. Eu queria mais era que o mundo soubesse dos meus verdadeiros sentimentos pelo meu verdadeiro amor.
— Bem, tenho certeza de que o mundo de Camelot agora está bem consciente deles.
Artur deu de ombros.
— Acabou o problema. Não precisamos mais nos esconder por trás de portas fechadas e viver uma mentira em público. Não se sente melhor agora?
— Eu podia ter convivido com essa situação por mais algum tempo.
— Por quê?
— Porque tenho medo por você, seu bobalhão. Esse tipo de coisa pode denegrir sua imagem de rei.
— Eu ficaria feliz em passar a coroa a Mordred se eu fosse me tornar livre para viver o restante dos meus dias a seu lado.
— Ah, Artur, será que não percebe? É exatamente o tipo de coisa pela qual eu não quero ser responsável. Camelot precisa de você. E você, acredite ou não, precisa de Camelot.
— Não como preciso de você , Isabel. Camelot é apenas um reino. Você... você é o meu amor. Você é meu tudo.
Isabel riu, e a musicalidade de seu riso, a beleza dela — do interior ao exterior — fez o coração de Artur disparar.
— Quer saber, gracinha? — recomeçou ela. — Se essa coisa de rei não for adiante, tem um grande futuro como compositor.
Ele sorriu.
— Não faço a menor ideia do que isso significa, mas vou presumir que seja uma coisa boa, e que possamos seguir adiante.
— Fechado.
— Não gostaria de ir lá para cima?
— Com uma multidão observando cada movimento que fazemos? Creio que não.
— Mais tarde?
— Claro. Sem dúvida. — Ela se aproximou e sussurrou ao ouvido dele: — Na verdade, Vossa Alteza, se não aparecer haverá consequências terríveis.
— Ah, agora estou assustado. Eu...
— Artur! Artur! Por favor, ajude!
Ele se virou e avistou Gwen, desesperada como ele nunca a vira antes.
— O que houve, Gwen? — perguntou Isabel.
— Eles pegaram Lance e o estão ameaçando!
— Onde?!
— No pátio!
Artur correu.
— James! Mordred! — gritou no caminho. — Preciso de vocês! — Olhou para trás. — Não saia daqui, Isabel! — exigiu ao ver que ela e Gwen corriam atrás dele.
— Tente nos impedir, Vossa Alteza!
Pelos deuses , e ele mal podia esperar para passar o resto da vida ao lado daquela mulher!
James e Mordred o alcançaram conforme ele deixava o castelo e se dirigia ao pátio.
Dois homens seguravam Lance, enquanto este lutava para se libertar.
— Soltem-no, Michael e David! Agora!
— Mas, senhor, Lancelot o traiu! — protestou Michael. — Ele tem que ser punido! Assim diz a lei!
— Por acaso é surdo?! — gritou Isabel. — O rei ordenou para que o solte agora!
Artur quase gemeu.
— Isabel...
— Mas você ordenou! Eu ouvi! Não ouviu, Mordred?
— Ouvi, condessa.
— James?
— Eu também ouvi. Michael, David, se desafiarem uma ordem do rei, estarão em apuros. Muito mais do que podem imaginar.
— Quem trai o nosso rei trai o povo de Camelot! — contestou Michael.
— Assim como é traição desafiar uma ordem de Sua Majestade! — lembrou James. — Se não soltarem já esse homem, também serão acusados de perfídia.
As palavras detiveram os homens. Por fim, ambos largaram os braços de Lance.
— Obrigado — agradeceu Artur. — Agora me ouçam, meus amigos. Aprecio sua lealdade, porém, neste caso, ela está equivocada. Sir Lancelot é um soldado valoroso e leal, comprometido com Camelot. Ontem mesmo ele esteve disposto a lutar para salvar nosso reino. Se qualquer um de vocês tivesse precisado de ajuda, ele os teria...
— ... defendido, sem sombra de dúvida! — completou Isabel.
Desta vez, Artur soltou uma espécie de rosnado.
— Obrigado, condessa. Será que posso continuar agora?
— Eles são todos seus.
Artur ouviu o soluço baixo da rainha.
— Está tudo bem agora, Gwen, fique fria ... — consolou-a Isabel. — Artur vai dar conta do recado.
Ele quase riu. Até porque não sabia muito bem o que Isabel queria dizer com aquilo.
E, pelos olhares perplexos que tanto James quanto Mordred lhe lançaram, ele não era o único. Ainda bem.
— Lancelot não me traiu, nem traiu Camelot — continuou, sério. — Ele simplesmente seguiu seu coração, e com a minha total anuência. Não podem castigá-lo por algo que eu mesmo não considero uma ofensa à minha pessoa ou a Camelot. Entenderam agora?
— Sim, senhor — murmurou Michael.
— Sim, rei Artur — aquiesceu David. — Só queríamos demonstrar lealdade ao nosso rei.
— Agradeço, mas não é necessário. Por favor, compreendam que eu me importo muito com a integridade e o bem-estar de sir Lancelot, e que tomarei medidas drásticas caso alguém tente prejudicá-lo de alguma forma. Ficou claro para todos aqui?
No momento, “todos” já eram muitos.
— Sim!
— As leis de Camelot estão prestes a sofrer uma alteração. Não vou anunciar neste momento quais serão as consequências; contudo, garanto que nem Lancelot, nem Gwen, nem Isabel e nem mesmo eu seremos culpados de qualquer crime contra a Coroa. Nós apenas... — Artur balançou a cabeça, sem saber ao certo que palavras utilizar. Ironicamente, Isabel escolheu aquele exato momento para permanecer em silêncio. — ... apenas vamos tomar caminhos diferentes em busca da felicidade. Afinal, creio que todo ser humano mereça escolher seu próprio caminho, não acham?
— Caramba, claro que sim! — exclamou Isabel.
— Agora ela decidiu se manifestar... — queixou-se Artur ao filho.
Mordred sorriu.
— Tem que admitir, meu pai, Isabel escolhe muito bem a hora de falar.
Ele puxou o filho para si e lhe deu um forte abraço. Não por ele ter elogiado Isabel, mas porque qualquer rixa entre eles ainda poderia ser um preocupante obstáculo.
— Temo nunca poder domar essa mulher — confessou em voz baixa.
— Pois eu espero que não faça isso — volveu Mordred. — A vida seria maçante demais por aqui.
Artur soltou Mordred, sentindo o coração cheio de alegria. Não apenas pelo recém-descoberto bom relacionamento com o filho, mas também pela promessa de muitos amanhãs ao lado de Isabel.
Ergueu as mãos.
— Chegamos a um acordo, então? Lembrem-se: nenhum mal recairá sobre Lancelot.
— Sim, meu rei! — responderam muitos.
— Muito bem. Acabou-se o drama. Agora, por favor, vamos voltar para a festa. Ouvi dizer que ainda há muita enguia em conserva a ser servida... — Virou-se, sorrindo, e sabendo que iria pagar caro pela brincadeira. No fundo, mal podia esperar.
Mas Isabel continuava amparando Gwen, que ainda soluçava em seu braços.
— Gwen, fique com Lance — aconselhou. — Tenho a impressão de que ele apreciaria muito os seus cuidados neste momento.
Ao sentir alguém lhe tocar o ombro, virou-se. Lancelot o fitava com olhos ainda perturbados.
— Sinto muito, rei Artur.
— Não foi sua culpa, Lance. Nada disso foi sua culpa. Lamento apenas que tenha sofrido essa humilhação. Agora, por favor, você e Gwen... Saiam daqui. Vão para a cabana ou para onde acharem melhor. Apenas vão e comemorem o fato de Gwen amá-lo a ponto de arriscar a própria vida, declarando seus verdadeiros sentimentos.
— Eu nunca quis...
— Eu sei. Acredite em mim, eu sei. E acredite também que não estou infeliz. Não guardo nem um pouco de rancor. J uro pela minha Coroa.
Lance baixou a cabeça.
— Parece realmente satisfeito, senhor.
— E estou, Lance.
— Sabe que eu prometo...
— Sim, sim, eu sei. E lhe sou grato. Agora leve Gwen antes que ela ensope Isabel dos pés à cabeça com essas lágrimas.
Isabel não poderia amar um homem mais do que amava Artur. Nem um pingo a mais. Não sabia o que o futuro lhe reservava; sabia apenas que nunca tinha sido tão feliz n a vida.
— Estou tão zangada com você! — decidiu dizer a Artur, tão logo a multidão se dispersou.
— Por que não estou chocado com essas palavras, condessa?
— Não gostaria de saber por quê?
— Tenho alguma escolha? Se assim for, prefiro não saber.
— Que pena! — volveu ela, porém não pôde deixar de sorrir.
— Eu já esperava por isso. O que eu fiz agora?
— Tornou impossível eu não te amar.
— Será que nunca, nem por um momento, lhe ocorreu que não faz nenhum sentido às vezes?
— Ah, eu convivi com essa crítica a vida toda.
— Então, esse amor que sentimos um pelo outro é uma coisa ruim?
— Não, pelo contrário. É a melhor coisa que já me aconteceu.
— Definitivamente, precisa ser condenada.
— Não sabe o que está falando. Condenada pelo quê? Por crimes contra a humanidade?
— Por crimes contra a sanidade. Por que está com tanta raiva de mim, afinal?
— Porque é tão maravilhoso, senhor, que deixa meu coração em festa. Tenho mais taquicardias observando você do que costumo ter no meu aparelho de musculação.
— Mais uma vez, não está fazendo sentido nenhum para mim.
— Eu te amo tanto!
— Ah, isso eu entendi. E retribuo o sentimento multiplicado por dez. Mas posso perguntar o que nos levou a esta conversa estranha?
— Admiro tudo em você. Amo tudo em você. A maneira como lidera e protege seu povo, a sua preocupação em tornar o mundo um lugar melhor, a maneira como acredita na honestidade, tudo!
Ele a impediu de continuar.
— Está chorando, Isabel?
— Posso mentir? — indagou ela, tentando desesperadamente controlar as lágrimas .
— Poderia. Mas já estaria mentindo.
— Ah, criatura, essa sua lógica me tira do prumo!
— O que quer dizer, amor? Por favor, ajude-me! Confesso que estou perdido.
— Ora, pai, ela está apaixonada por você! Qualquer idiota seria capaz de entender — interveio Mordred.
— É o que ele diz — concordou Isabel.
— Muito obrigado pela explicação, meu filho. Agora compreendi...
Artur a puxou para perto, e Isabel pensou que o calor e o perfume dele ficariam impregnados em sua memória para sempre.
— Seu calor e seu cheiro já são parte de mim — afirmou ele, como se houvesse lido seus pensamentos.
Ela sabia. Desconhecia como, mas sabia: de alguma forma, aquilo tudo estava chegando ao fim.
“Viviane, não me enganes... Diz que Artur não perderei !”
“Merlin está exultante, confia! Sente-se tão forte e grato a ti que mal pode se conter de tanta alegria.”
“Mas o que está por vir, agora? Minha missão foi terminada e querem que eu vá embora?”
“Acredita, cara Isabel. Espera no teu desejo e lembra-te do meu colar. Quando fizeres um pedido, confia... assim será.”
Que maravilha! Incrível, refletiu Isabel, tensa. Ela havia acabado de encontrar o amor e, de alguma forma, estava prestes a ser obrigada a tomar uma decisão que não sabia qual era. Sabia apenas que teria de fazê-lo em breve.
E tinha cumprido a sua parte do trato. Bem, talvez não completamente, já que fora convidada a fazer uma coisa e conseguira fazer outra...
Mas, inferno , o que fizera de t ão grave que o Universo zombava dela, permitindo que se apaixonasse, para depois talvez privá-la desse amor?
Ao menos ela sabia o que iria acontecer. E imaginava que esse fosse um prêmio mais valioso do que qualquer outro.
Precisava agradecer a Viviane por aquilo.
“Está bem, minha deusa, obrigada.”
“Como te agradecer, Isabel, Merlin ignora... Tampouco o sei eu, querida, ao menos por ora.”
Ela olhou para Artur e o acariciou no rosto, comovida.
— Saiba que eu te amo... Muito.
— Não estou entendendo — falou ele com estranheza. — Acredito nisso com todo o meu coração. Por que está falando como se estivéssemos à beira de um desastre?
— Rei Artur! — chamou uma voz de homem, vinda de algum lugar do salão semivazio.
Ele olhou ao redor e a empurrou para trás das costas.
— Quem está falando?... Mostre-se, por favor!
— Vossa Majestade matou o meu rei, Richard, e agora vai pagar por esse crime!
— Não! — gritou Isabel, atordoada. — Fui eu quem o matou! Se quer vingança, é a mim que deve atingir!
— Cale-se, Isabel! — ralhou Artur. — Fique quieta, ao menos desta vez!
Ela ouviu o zunido da seta voando em direção a Artur no momento em que esta deixou o arco do inimigo invisível.
— Nã ã o! — escutou Mordred gritar enquanto voava para a frente do pai e levava a flechada no ombro.
— James! — gritou Isabel. — Vá atrás desse maldito agora! E, por favor, faça picadinho dele!
Ela e Artur se ajoelharam sobre Mordred, que tinha a seta atravessada no ombro.
— Não, Artur, não puxe ainda! Isso pode matá-lo!
— O que faço, então?! Não posso deixar que meu filho morra!
— Eu... te amo, pai — balbuciou Mordred.
— Eu também te amo, meu filho! Por favor, não faça nenhuma bobagem como morrer antes de mim!
Isabel soube, nesse momento, o que deveria fazer.
— Ele não vai morrer — afirmou. Em seguida, entoou as palavras que acionavam o poder do colar: — Para o bem de todos, ó, Deusa do Lago... Em nome do amor e da vida... isto tem que acontecer! — Arrancou o colar do pescoço e bateu nele até que o pingente se quebrou. Ela o segurou sobre o ombro de Mordred, então, permitindo que as lágrimas de Viviane caíssem sobre a ferida. — Não vai morrer, Mordred... — sussurrou à medida que sentia a vida se esvair de seu próprio corpo. — Seu pai precisa de você... — Ergueu o olhar para Artur, sabendo que era a última vez que o fazia. — Ele vai se curar... Eu amo você!
— Isabel!
Foi a última coisa que ela ouviu antes de deixar Camelot para sempre.
Epílogo
Afogamento era uma forma maldita de morrer. Isabel, entretanto, estava começando a se resignar a ela conforme deslizava para a euforia provocada pela falta de oxigênio.
Pelos deuses , ela havia tido o sonho mais incrível durante o seu processo de morte! Queria ter vivido por tempo suficiente para explicá-lo!
“Por favor, minha deusa, permita que eu me lembre!”
E as lembranças voltaram como em filmes. Artur rindo, Artur sorrindo, Artur franzindo a testa e, a melhor de todas, Artur piscando para ela...
Não, espere... Artur amando-a como ela jamais fora amada antes! A maneira como ele a tocava... Como se a estivesse adorando. O modo como ficava ofegante e febril com a intensidade de seu desejo... E aqueles olhos verdes, fitando-a enquanto ele se movia dentro dela ao fazerem amor.
“Obrigada, senhora!”
“Gostarias de te lembrar de mais alguma coisa?”
“Ah, deusa, quero me lembrar de tudo agora!”
Os pensamentos mais incríveis desfilaram por seu cérebro prestes a sucumbir. O modo como Artur declarara seu amor por ela tantas e tantas vezes... algumas, da forma mais excêntrica.
Ela devia ter conhecido mais pessoas em Camelot, decidiu. Apostava que todos lá eram tão bons e gentis como James e Mary.
Ninguém devia ser como Artur, no entanto. Ah, o modo como ele ria de suas piadas! Era tão bonitinho, mesmo que ele provavelmente não tenha entendido metade delas. O modo como ele aceitava sua teimosia quando qualquer outro homem teria desistido dela...
Ah, Deus, ela o havia amado até o fim! Como queria que ele soubesse disso!
“Artur soube, minha cara Isabel. Sempre soube que teu amor era real. Deste tua vida para salvar a de Mordred e, assim, livraste Camelot de todo o mal.”
Ah, que bom, pensou ela, resignada.
Não sabia o que i ria acontecer a seguir. Esperava apenas, do fundo do coração, que pudesse manter aquelas lembranças, não importando aonde pudesse ir.
Foi então que algo estranho aconteceu. Foi quase como se ela própria tivesse se chocado contra a caminhonete que dirigia. Em seguida, teve a impressão de que mãos a agarravam, e que depois um braço a enlaçava pela cintura... Uma sensação incrivelmente familiar.
O braço a foi puxando cada vez mais para cima, até que ela percebeu estar fora d’água.
A coisa seguinte de que se deu conta foi que estava tossindo, sufocando e cuspindo água.
— Moça! Moça?
Ela abriu os olhos.
— Estamos aqui para ajudar. Bem-vinda de volta... Vai ficar bem.
De repente, Isabel se viu frente a frente com profundos olhos verdes. Olhos com que ela já se deparara em uma floresta havia muito tempo, bem longe dali. Ele tinha os cabelos pingando, as roupas molhadas.
Ela ergueu a mão para tocar o rosto moreno.
— Artur? — balbuciou.
O homem sentou-se a seu lado, ofegante.
— Sim. Como sabe o meu nome?
— O resgate foi perfeito, pai! Ela me parece ótima!
Isabel virou a cabeça.
— E ele é Mordred, certo?
Mordred riu.
— Sinto dizer que sim. Como ela sabe disso, pai?!
— Não faço ideia, meu filho.
— Nunca faz ideia de nada, seu bobalhão...
Artur apenas a fitou. Então afastou os cabelos molhados de suas faces.
— Caramba, pai. Ela é a mulher com quem você vive sonhando! A descrição que fez dela bate certinho!
— Por acaso seu nome é Isabel? — indagou ele com relutância.
— Por acaso, é.
— Pelos deuses! Bem-vinda de volta ao reino dos vivos.
— Fico feliz por estar aqui — afirmou ela. — Por falar nisso, que lugar é este?
— Grand Lake, Oklahoma, oras.
— Isabel... Meu nome é Isabel!
Artur checou a pulsação dela no pescoço, depois a ergueu nos braços.
— É um prazer conhecê-la, Isabel. Agora vamos para o hospital.
— O que aconteceu com o braço de Mordred? — perguntou ela ao notar que ele usava uma tipoia.
— Ele foi tolo o suficiente para se meter entre mim e a flecha de um caçador quando estávamos fazendo trilha no último fim de semana.
— Claro... E conseguiram pegar o idiota que estava com o arco e flecha?
— O nosso amigo James conseguiu — contou Mordred. — Só faltou fazer picadinho do homem, afinal, não é nem mesmo temporada de caça!
— Compreendo.
— Isto tudo é realmente estranho. Meu pai até sonhou uma vez que estava fazendo RCP em você!
— Mordred! — ralhou Artur. — Já chega.
— Eu agradeço, mas não quero ir para o hospital — pediu Isabel. — Graças a vocês, sinto-me bem melhor agora.
— Tenho certeza de que Mary não vai permitir que vá embora agora. Nem James. Eles são os paramédicos que estão esperando uma ambulância para levá-la até o County General.
— Claro. E onde estão Gwen e Lance?
Artur parou.
— Como é possível que saiba todos esses nomes, Isabel?
Boa pergunta!
— Eu tive um sonho... Um sonho bastante comprido, aliás.
— Conheço a sensação. Bem, Gwen provavelmente está na loja dela.
— Deixe-me adivinhar: uma loja de flores.
— Meu Deus, isto já está ficando assustador!
— E quanto a Lance?
— Deve estar operando algum paciente... Ele é cirurgião ortopédico.
Isabel riu.
— Claro que é. Ele sempre foi ótimo com objetos pontiagudos.
— Ande logo, rei Artur! — chamou Mary a distância. — A moça precisa de pronto atendimento!
— “Rei Artur”?
Artur revirou os olhos.
— Um apelido estúpido que eles me deram há um ano, quando fui nomeado chefe do Corpo de Bombeiros. Eles acham o máximo, mas eu não vejo graça nenhuma. Agora, quem consegue impedi-los? Não sei quando foi que perdi o controle sobre esse povo!
Isabel sorriu.
— Eu sempre achei que um líder só é mesmo bom quando as pessoas que trabalham para ele se sentem confortáveis para provocá-lo.
Artur balançou a cabeça.
— Que coisa estranha! Você me dizia algo parecido no meu sonho.
— Estranha, mas muito legal , não acha, pai? É como se fosse obra do destino.
— Isso vai soar surreal, Isabel, porém vou falar mesmo assim...
— Diga.
— Por acaso já nos conhecemos? — indagou ele com os olhos brilhando.
Ela sorriu.
— Parece que sim.
— Então eu gostaria de vê-la novamente para que possamos descobrir como foi que isso aconteceu. Quem sabe um jantar, assim que estiver melhor? — Artur sacudiu a cabeça. — N ão creio que eu esteja fazendo esse tipo de pergunta numa hora dessas, mas, acredite, não tenho o hábito de convidar as mulheres que resgato para saírem comigo.
— Sorte minha. Mas, antes, também preciso saber uma coisa.
— Claro.
— O que acha de enguia em conserva?
Ele franziu a testa.
— Nunca ouvi falar, mas me parece nojento.
— Excelente resposta. Jantar liberado.
— Ela é a mulher dos seus sonhos, pai? — insistiu Mordred.
Artur a fitou.
— Poderia muito bem ser, meu filho. Embora eu não me lembre de tê-la visto tão encharcada nos meus sonhos. Um pouco, uma vez, mas não assim. Agora me diga, Isabel... Também acredita em destino?
— Sem sombra de dúvida — respondeu ela num sussurro. E, percebendo que o mergulho no lago lhe roubara mais forças do que ela havia imaginado, deitou a cabeça no peito largo.
Sim, ela acreditava em destino. Não sem uma ajudinha, claro...
“Não sei como lhe agradecer, Viviane!”
“Eu te disse para ter fé. Confia e tudo será.”
“E Merlin, como está?”
“Está bem, assim como eu. Agora, segue em frente, pois dar ás uma esposa excelente. Por tudo o que fizeste, eu te agradeço. Creio que este dia assinala, de toda a tua felicidade, o começo. Caminhos diferentes seguiremos, amiga... Mas te deixo sabendo que serás feliz pelo restante da tua vida.”
“Vou sentir sua falta, Viviane! Obrigada pela aventura!”
Infelizmente, ela não obteve mais resposta.
Artur a deitou na maca da ambulância. Em p é , de cada lado dele, estavam Mary e James.
Isabel quase chorou de felicidade.
— Caramba , estou feliz em ver vocês!
— Está aí algo que não se ouve todos os dias, não é mesmo, James? — comentou Mary enquanto cobria sua paciente com um cobertor.
— Verdade.
— Qual é o seu nome, moça? — indagou ela, fitando-a com atenção.
— O nome dela é Isabel — interveio Artur.
Mary e James ficaram imóveis.
— Isabel? Igual ao da mulher com quem vive sonhando? — perguntou Mary enquanto a estudava ainda mais atentamente.
Tornou-se claro que Artur vinha sendo incomodado por aqueles sonhos o suficiente para que o tivesse descrito em detalhes a seus amigos mais próximos.
— Estamos tentando esclarecer as coisas. Por isso mesmo vou acompanhá-la.
— Ei, eu não preciso ir para o hospital! Verdade!
— Tá bom — ironizou James.
Eles ergueram a maca a fim de colocá-la na ambulância, em seguida Mary subiu e a prendeu no lugar.
— Gosta de mexer com cabelos, Mary? — indagou Isabel.
Mary a fitou, depois se pôs a rir.
— Como sabe disso?
— Foi apenas um palpite.
— Bem, eu costumo cortar o cabelo de todos esses manés . Por quê? Gostaria que eu cortasse o seu um dia desses?
— Eu adoraria.
Mary concordou.
— Eu também... Por que não? — Ela checou todos os sinais vitais de sua paciente, então lhe auscultou os pulmões. — Como se sente?
— Cansada, mas, estranhamente, muito, muito feliz.
— Ver a morte de perto costuma fazer as pessoas terem essa reação. Teve muita sorte por Artur estar passando bem na hora em que mergulhou no lago.
— Tive, sim.
— Ou, talvez... apenas talvez... tenha sido outra coisa — especulou Mary, intrigada. — Artur tem tido premonições há meses. Ele diz que são sonhos, mas, vai saber !
— Como está a nossa paciente? — perguntou Artur, entrando e sentando-se no banco.
— Pulmões limpos, frequência cardíaca um pouco elevada... Mas, até aí, você costuma provocar esses sintomas nas donzelas em perigo. — Mary abriu um armário acima da cabeça e puxou um cobertor, arremessando-o para ele. — Ela precisa, mesmo, ser examinada no hospital, porém aposto que vai ser liberada em uma hora. — Desceu da parte de trás da ambulância. — Não é esse o protocolo, mas não vejo nenhuma razão para eu não ir na parte da frente com James. Acredito que a moça esteja em boas mãos...
— Obrigado, Mary — agradeceu Artur.
Mary piscou para ele, depois bateu as portas traseiras do veículo.
Artur esperou um segundo, depois sorriu para Isabel. O mesmo sorriso enlouquecedor pelo qual ela se apaixonara havia tanto tempo. Segurou a mão dela.
— Agora é sério. Como se sente?
— Surpreendentemente bem.
— Parece, mesmo, bem demais.
— Ainda que, na certa, eu esteja linda como um rato afogado. — Ela desviou o olhar, tímida, depois voltou a fitá-lo. — Obrigada, Artur, por ter salvado a minha vida.
— Obrigado a você por ter sobrevivido. — Ele balançou a cabeça, pensativo, contudo seu olhar jamais abandonou o dela. — Alguma vez já olhou para alguém e soube... De alguma forma, apenas soube?
Ela nem precisou perguntar “O quê?”. Apenas assentiu.
— Sim. Uma vez, há muito tempo. E também hoje, quando abri os olhos às margens do Grand Lake.
— Eu sei que parece loucura, Isabel, mas meu filho não estava exagerando. Tive tantos sonhos com você que vivia lhe procurando no meio da multidão, nos restaurantes, em todos os lugares a que ia. Mal pude acreditar quando a tirei do lago e pus os olhos em seu rosto... Logo depois fui dominado por um medo que nunca senti em toda a minha carreira: fiquei com medo de perder você quando tinha acabado de encontrá-la.
— Pois adivinhe, Artur... Estou aqui, e não vou a lugar nenhum. Não desta vez.
Ele fechou os olhos por um momento, depois os abriu novamente.
— Estou determinado a lhe cobrar isso, Isabel. Na verdade, estou sentindo uma necessidade absurda de fazer com que me prometa isso.
— Eu prometo.
— Imagino que seja cedo demais para lhe pedir que se case comigo?
— Não. Contanto que me prometa que eu nunca terei de comer enguia em conserva.
— Eu prometo!
— Então serei tua para sempre.
Em poucas semanas, Isabel e Artur se casaram. Mary e James foram os padrinhos.
— Vão achar que eu prendi você aqui. — Coventina, a grande Deusa das Águas, virou o rosto, incapaz de fitar Merlin.
— Não estou preso, meu amor. Estou simplesmente descansando das trevas deste mundo — contrapôs ele, tocando-lhe o rosto suave, de modo que ela teve de reencontrar seu olhar. — E desde quando nos importamos com o que os outros dizem, Viviane?
Usar o apelido com que ele a tratava em seus momentos mais íntimos não a fez nem mesmo sorrir.
— É uma maldição ter a capacidade de prever o futuro — murmurou ela.
— De muitas maneiras, meu amor.
— Sim. Mas sempre previu isso para você? Para mim? Para nós? Por que deixa que eu o ame sabendo o que sabe?
— Há um homem em um futuro distante, um curandeiro chamado Phil. Ele afirma que o amor é o que é. Não tem futuro ou passado, apenas o presente.
— Esse curandeiro não me impressiona em nada — declarou Viviane. — Nós temos um passado e também poderíamos ter um futuro. Prevê-lo. Acreditar nele.
— Não consigo prever o nosso futuro, meu amor. Dói muito quando não me é permitido alterar o que vejo. — Ele suspirou. — O futuro de Artur e Camelot me feriu tanto que mais sofrimento me parece insuportável.
#
#
#
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/7_A_DEUSA_DA_LENDA_.jpg
#
#
#
Ela fitou o rosto familiar à sua frente e viu a bondade, a força e a gentileza que tanto a tinham atraído. Mas também viu outra coisa: o semblante de Merlin aparentava estar marcado por um cansaço que o fazia parecer uma década mais velho do que alguns meses antes.
Se ainda houvesse uma maneira de ela aliviá-lo um pouco daquele fardo! Sabia que amar um mortal seria difícil, e que ela acabaria por perdê-lo eventualmente, porém Merlin era um poderoso druida, e ela nutria esperanças de que seus poderes mágicos, tão ligados à Terra, lhe dessem forças para viver como seu consorte por muito mais tempo do que um mortal comum.
Era irônico que a ruína de Merlin não tivesse sido o fardo de amar uma deusa. Em vez disso, o fato de ele ter se deixado envolver pela escuridão que parecia impregnar seu protegido humano, Artur Pendragon — um homem que era como um filho para ele —, é que havia feito o sacerdote querer se esconder do mundo a ponto de lançar um feitiço sobre si próprio e se transformar em um nada na prisão voluntária naquela caverna de cristal enganosamente bela.
Maldito Artur!... Por que ele não tinha escutado Merlin e escolhido outra mulher que não a jovem, linda e insípida Guinevere?
— Meu amor, por favor, não culpe Artur — falou Merlin, como se estivesse lendo seus pensamentos. — Não é culpa dele, ao menos não de todo. Muito menos de Guinevere. Nenhum de nós escolhe a quem ama. — Merlin se deitou nas acomodações que havia arrumado em um canto tranquilo da caverna de cristal. — Sei que estou sendo covarde, mas já previ o que vai acontecer com ele. Com todos eles. E também vi que nada posso fazer para mudar isso. É... — Ele fez uma pausa, parecendo à beira das lágrimas. — É como se Artur estivesse abraçando a própria destruição. Eu fiz tudo o que podia para ajudá -lo.
Já discuti com ele, dei-lhe conselhos, supliquei, tentei persuadi-lo... Nada dá certo. Em todas as imagens que vejo do futuro, a luz e a bondade de Artur são totalmente engolidas pelas trevas da inveja e da ganância, da luxúria e do ódio.
Viviane sentiu uma pontada de pânico quando Merlin fechou os olhos. Como poderia continuar para sempre com ele ali — nem vivo nem morto —, dormindo naquele túmulo belo e frio, onde ela não podia falar com ele, tocá-lo ou abraçá-lo?
— Mas, Merlin, deve haver uma maneira de interferir nesses acontecimentos. Deve haver um modo de salvar essa criatura! — “E, ao fazê-lo”, acrescentou para si mesma, “salvá-lo também”.
O mago balançou a cabeça.
— Está além do meu poder. E também do seu.
— Não pode estar além do meu poder! — choramingou a deusa, frustrada.
— Viviane, meu único amor... Sabe muito bem que nem mesmo os deuses estão a utorizados a interferir no equilíbrio entre a luz e a escuridão. Escolher entre essas duas forças é morte certa, e as trevas imperam em Camelot.
— É claro que sei disso! Mas sou imortal, detenho a verdadeira essência da vida... Devo ser capaz de salvar o seu filho para você.
— Temo que o destino dele esteja selado. Artur vai morrer com o coração partido. Traído por seu amor, caminhará de bom grado para a morte. Agora, por favor, minha deusa, meu amor... Deixe-me dormir.
Viviane caiu de joelhos ao lado do leito e pressionou o rosto contra a coxa de Merlin. Ele acariciou-lhe os cabelos dourados num gesto fraco.
— Estou tão cansado... — sussurrou.
Conforme seus olhos se fecharam novamente, talvez pela última vez, Viviane sentou-se, o coração batendo com um despontar de esperança.
— Espere! Merlin, você disse que não há nada neste tempo ou realidade capaz de fazer com que Artur mude de ideia. Mas será que algo, ou talvez alguém , de outro tempo ou realidade não poderia provocar uma mudança? Já vislumbrou essa possibilidade e viu algum fracasso?
Os olhos azuis de Merlin se abriram e encontraram os dela.
— Nunca considerei nenhum futuro regido por outro tempo ou existência. Sabe que não posso manipular o curso dos acontecimentos nem a realidade. — A voz de Merlin soou suave, quase inaudível.
— Você não pode, mas eu posso! — Viviane o sacudiu pelos ombros. — Precisa considerar, então, meu amor, e dar a esse futuro uma chance!
— Não posso fazer isso — murmurou ele. — A magia está feita. Além disso, não se pode apenas lançar uma rede nas águas do tempo ou nas ondas da realidade. Há que se ter um plano, uma razão, uma alma única...
— Mas eu posso tentar! Vou olhar o futuro e ver se...
— Eles nem mesmo nos conhecem no futuro! — Por um instante, em meio ao acesso de raiva, Merlin pareceu ele mesmo novamente. — No futuro você não é mais do que uma lenda, e eu não passo de um mentor ausente, muitas vezes culpado por todo o desastre.
Viviane ficou horrorizada. Como as pessoas podiam se esquecer dela? Ela era a deusa das águas do mundo antigo! Elas iriam esquecê-la? Não , pensou. Se ela armasse um plano... um plano bom — tão eficiente quanto ela própria —, não apenas salvar ia seu amado, como iria garantir que seu nome e legado vivessem para sempre.
E bom seria se salvasse aquele imbecil do Artur também.
Como o futuro podia culpar Merlin pelas más escolhas de um rei? Aquilo também precisava ser corrigido.
E, maldição , ela seria a deusa a fazê-lo!
— Vou encontrar uma maneira, meu amor. Vou, sim.
Merlin soltou uma risada fraca.
— Ah, Viviane, é isso o que eu amo em você... Essa sua paixão. Essa sua vontade de fazer a coisa certa. Essa sua devoção a mim. Como é possível que um simples mago tenha tido a sorte de ser amado por um ser tão maravilhoso?
Ela acariciou-lhe o braço.
— Não há nada de simples em você, meu querido. Disso eu sei. Há bondade, isso sim. A generosidade emana dessa sua alma como se o Sol a tivesse beijado e deixado nela seu brilho. Talvez seja justamente por essa generosidade que nos encontramos nesta situação... Mas vou encontrar uma saída. Prometo.
Merlin deu de ombros e deitou-se outra vez, exalando a energia que o tinha animado.
— Mesmo que encontre alguém para ajudá-la... Não pode apenas substituir uma vida. Sabe disso. Almas não podem ser arrancadas sem qualquer cuidado em prol de vidas perdidas e futuros despedaçados. O equilíbrio e a razão precisam prevalecer.
Viviane se inclinou para a frente e tomou Merlin nos braços.
— Mas se, por alguma maravilhosa guinada do destino, eu conseguir... Jura que vai voltar para mim?
Ele a fitou demoradamente nos olhos, e Viviane viu a compaixão e o amor duelarem com a dor e o cansaço. Por fim, Merlin ergueu a mão e começou a girá-la.
Atada a ti, Artur,
deixo uma parte de mim...
Meu futuro ao teu se une,
teu destino ao meu se entretece.
Sobrevive e dá-me, assim,
uma razão para viver, nesta prece.
A energia que brotou em torno da mão de Merlin foi visível — uma cintilação no ar. Com um gesto de resignação, mais do que de esperança, ele arremessou a força reluzente além das paredes de sua tumba de cristal, e ambos estremeceram ao absorver o feitiço.
— Pronto. Está feito. Salve Artur e estará me salvando. — Merlin curvou-se e beijou a deusa, partilhando seu último suspiro de vida com ela.
Chorando, Viviane se afastou de seu amado, que silenciara, envolvido pela magia do sono eterno. E esta o protegia completamente do sofrimento daquela vida, a ponto de ele conseguir escapar até mesmo do Submundo, onde as lembranças atormentariam sua alma.
Devagar, ela se levantou e o cobriu com uma peliça espessa. Beijou-o uma vez na testa fria e, em seguida, virou-se e marchou, resoluta, para fora da caverna de cristal. “Iriam se esquecer de mim? Culpar Merlin? Claro que não. Artur que se preparasse.”
Viviane se envolveu em bruma quando deixou a caverna que dava para seu lago místico. Em uma onda de magia, seu poder a carregou sobre a água até a ilha verde e luxuriante que a cortina de névoa revelou ao se dissipar. Caminhou, apressada, para a graciosa torre de pedra, única estrutura na ilha, que os moradores, havia muito, tinham batizado de Shalott. Cercada por sorveiras bravas, e envolta na própria magia, ela não precisaria da ocultação da névoa; contudo, a invocou inconscientemente. Não desejava nenhuma testemunha inconveniente para o que estava prestes a realizar.
Não entrou na torre de marfim como costumava fazer. Em vez disso, caminhou de um lado para o outro ao longo da ribanceira, arrastando a túnica branca de samito em meio às flores do campo que forravam aquela ilha tão especial. O poder girava em torno dela, fazendo com que as aves, recém-despertadas pelo amanhecer, grasnassem, alarmadas, e deixassem seus poleiros no bosque de sorveiras. Ela aspirou o perfume almiscarado de musgo e o odor pungente do tomilho selvagem que a cercavam, conforme violava sua suavidade com os pés.
Como podia ter permitido que aquilo acontecesse? Soubera que Merlin fora ferido pelo mundo no momento em que o conhecera. Ele era um druida poderoso, contudo possuía uma delicadeza incomum e um coração tão terno que até mesmo as criaturas selvagens da floresta vinham comer em sua mão.
Viviane sorriu em meio às lágrimas. Merlin a atraíra da mesma forma, arrancando-a de sua ilha solitária no meio do seu místico lago. Ela se tornara sua amante voluntariamente. E, como uma deusa, não podia conceber não ser capaz de curar o que o mundo partira dentro dele.
— Eu podia tê-lo curado se não fosse por esse maldito Artur! — gritou. As palavras carregadas de ressentimento fizeram as águas plácidas do lago se agitarem, e suas frias profundezas azuis escureceram, amea çadoras, ao mesmo tempo que a luz da manhã esvaecia. Ela franziu a testa, ergueu a mão e, controlando a raiva, moveu os dedos na direção do lago, ordenando: — Vá embora, escuridão! Não é bem-vinda ao meu reino nem mesmo quando provocam a minha ira!
As águas obedeceram de pronto. Acalmaram-se, e as trevas que tinham começado a manchá-las se dissiparam como o orvalho ao sol do meio-dia.
Viviane fitou o lago que lhe era tão familiar, mais perturbada do que gostaria de admitir diante da rapidez com que tais profundezas haviam reagido às suas emoções. A escuridão realmente tocara o lago, o que era alarmante.
— Equilíbrio entre luz e escuridão? Bah! — Ela lançou a palavra na névoa, porém, dessa vez, manteve a reação à sua explosão sob controle. O ar carregado de umidade em torno dela se agitou e cintilou, refletindo o poder da deusa. — Não existe equilíbrio quando um único mortal pode atrair tanta escuridão a ponto de meu reino ser afetado.
Eu deveria ser honesta comigo mesma , pensou, conforme se punha a andar de um lado para o outro ao longo da margem forrada de musgo. Não é tão simples como concentrar minha raiva no rei dos bretões. Guinevere também é responsável por essa tragédia. Assim como Lancelot, o cavaleiro ‘perfeitinho ’ , concluiu a deusa com uma careta.
Merlin não compartilhara muitos dos segredos de Camelot com ela. Havia dito que ela era uma fuga, um bálsamo para sua dor, e que, por esse motivo, preferia não lhe falar de coisas tristes.
Mas a Dama do Lago tinha olhos e ouvidos em todos os lugares onde existia água, e ela vira e ouvira o suficiente para saber que as previsões terríveis de Merlin iriam se tornar realidade.
— E essa realidade foi o que partiu seu coração, meu amor — sussurrou Viviane para a bruma.
Não. Não permitiria aquilo. Era uma deusa! Possuía poderes que os mortais não podiam sequer compreender. Nem mesmo um mortal tão espetacular quanto o seu Merlin.
Parou de andar e olhou para as águas familiares de seu lar. — Preciso de alguém que não seja deste tempo, nem deste lugar. Alguém que tenha uma maneira única de ver as pessoas e as situações, que abrace a luz em vez da escuridão. Que não fique muito impressionado com a beleza de Camelot, nem muito deslumbrado para pensar em...
Pensar em quê? O que essa pessoa precisava fazer para mudar o futuro, a ponto de salvar Artur de seu trágico destino e, ao mesmo tempo, libertar seu amado Merlin?
Seu amado... Viviane sentiu os ombros cederem e pressionou o rosto nas mãos, chorando com amargura. Já sentia falta dele e teve de lutar com as próprias emoções para não correr de volta para a caverna de cristal e sentar-se ao lado do corpo imóvel.
Sentiu a respiração ficar presa em um soluço. Ela era uma deusa, mas também era uma mulher. Uma mulher com um coração partido diante da perda de seu amado. Até mesmo seu reino, que lhe dera um profundo prazer por eras, parecia sem graça agora. Nada tinha sentido sem...
Viviane ergueu a cabeça.
— É isso! Artur pode perder tudo, mas, se ainda tiver seu amor, sua Guinevere, então não terá o coração partido, e seu destino vai mudar!
Entusiasmada, ela recomeçou a andar.
— É o que devo fazer. Preciso encontrar uma mulher... Uma mulher espetacular, de outro tempo, outro lugar, e trazê-la até aqui para seduzir Lancelot, de modo que Guinevere volte para Artur e seja um bálsamo para sua alma ferida!
Tudo ficaria bem. Merlin despertaria e — Viviane decidiu — iria fazer amor com ela como nunca fizera antes. Ah, como ela sentia falta daquilo! Merlin era um mago em mais maneiras do que qualquer um daqueles tolos de Camelot podia imaginar.
Resoluta, caminhou até a beira d’água, permitindo que os pés descalços fossem acariciados pelo beijo das marolas que vinham de encontro à margem. Levantou os braços, e a névoa tornou-se mais densa no mesmo instante, girando magicamente à sua volta, como se já aguardando pelo feitiço.
Das profundezas, meu poder eu invoco.
Ouçam-me todos, neste momento —
lago, chuva, neblina, orvalho e mar.
Uma estrangeira é do que necessito.
Uma alma única é meu desejo encontrar!
A deusa fez uma pausa, lembrando-se do aviso de Merlin de que uma vida não poderia ser desviada de seu destino. Pensou em ignorar as palavras do amante e lidar com as consequências mais tarde, mas não... O feitiço precisava ser perfeito. Ela teria apenas uma chance. As coisas já começavam a sair do controle em Camelot; logo seria tarde demais para intervir no futuro, se já não o fosse.
Não! Não pensaria dessa forma. Ela era uma deusa e, por meio da magia de seu reino aquático, iria mudar o destino de Artur e salvar seu amado.
Tornou a se concentrar, invocando o poder das profundezas do lago, que se espalhou tal qual vidro ondulado a seus pés.
Tragam até mim uma mortal
através desse divino portal.
Seja essa libertada de seu porvir.
Que se rompa o fio de seu destino,
para que a mim ela possa vir.
Viviane fechou os olhos, concentrando-se com tanta força que gotículas de suor lhe irromperam pela tez delicada.
Que seus olhos possam ver
seu maior desejo, o amor deve ser.
Que aberta e brilhante seja sua mente,
que um novo mundo se descortine à sua frente.
Que a vida e o amor sejam seu fascínio,
invadindo a escuridão que haverá de curar.
É essa alma que busco agora
e que com água e sabedoria irei vincular.
Lago, mar, chuva, neblina e orvalho —
busquem e encontrem a mortal
por meio da qual Artur irá se salvar!
Arremessando a esfera de luz que vinha crescendo entre suas mãos conforme ela elaborava o feitiço, Viviane abriu os braços, emanando seu desejo, seu poder, sua magia divina para dentro do lago.
Imediatamente, as águas mudaram de um azul-safira profundo para um prata tão ofuscante que se um mortal houvesse tido o azar de vislumbrar tal transformação, teria sido cegado para sempre.
Bela e iluminada ela deve ser;
as circunstâncias precisa de pronto compreender.
Proveitosas lhe são a felicidade e a sabedoria
e um pouco de malícia bom seria...
Ide agora! Atendei ao meu desejo!
Minha ordem tende que obedecer!
A superfície brilhante do lago girou em torno de Viviane e, em seguida, fachos cintilantes começaram a se levantar. Luzes serpentearam sobre a água, buscando, inquietas.
— Vão! — bradou a deusa, impaciente, e os fios iluminados foram se erguendo, se erguendo... até dispararem pelo céu da manhã e desaparecerem daquela dimensão em direção a tempos invisíveis e lugares desconhecidos.
Viviane ainda continuou a olhar o firmamento por muito tempo após sua magia ter se dispersado. Então, com um suspiro, avançou devagar, permitindo que a água a envolvesse e a reconfortasse enquanto flutuava até o palácio feito de pérola, que repousava nas profundezas. Agora devia esperar e torcer para que o feitiço atraísse a mortal ideal até a sua rede divina.
“Ah, se eu pudesse descobrir a mulher certa!”, refletiu a deusa enquanto adentrava seu palácio, afastando, impaciente, as servas náiades que a rodearam, ansiosas por atender a todas as suas necessidades. “Pois não era sempre assim? A mulher certa era a única coisa capaz de transformar qualquer maldito destino...”
Capítulo Um
Isabel concluiu que a manhã não poderia estar mais perfeita. Bem, talvez melhor se ela estivesse se recuperando de uma deliciosa noite de sexo...
Mas não era esse o caso. Não naquele dia, e decerto nem no seguinte. Na verdade, dificilmente tal coisa aconteceria naquela década.
Mesmo assim, o dia estava lindo.
Terminou de ajustar o tripé que sustentava a sua câmera favorita e então endireitou o corpo, aspirando o ar adocicado de Oklahoma. Não olhou através da lente da câmera, como faria a maior parte dos fotógrafos. Claro que iria fazer aquilo em algum momento, mas confiava mais no olho nu do que em qualquer lente, não importando a clareza, a amplitude ou a qualidade do telefoto.
Estudou a paisagem diante dela enquanto tomava um gole do café vienense torrado, e teve um vislumbre de si mesma na superfície prateada da garrafa térmica. Mesmo na imagem distorcida pôde ver que estava sorrindo. Seus lábios, sobre os quais todos os seus namorados costumavam comentar, pareciam agora enormes lábios de palhaço.
Os homens os adoravam, porém ela vivia tentando disfarçá-los. Não acreditava nem por um segundo que os de Angelina fossem de verdade, porém, infelizmente, sabia muito bem que os dela eram.
— “ Logo que a Aurora, de dedos de rosa , surgiu matutina ” — murmurou, surpreendendo-se com a citação de Homero. — Muito apropriado...
Isabel suspirou, satisfeita. A luz ali era perfeita! A pradaria Tallgrass de Oklahoma fora a escolha certa para começar seu novo ensaio que envolvia paisagens idílicas. Era início da primavera, contudo o rebordo diante dela já estava forrado de gramíneas que lhe batiam nos joelhos e que ondulavam tal qual um mar à brisa da manhã. O ar tinha um perfume de chuva iminente, mas tantos outros aromas a inundavam! A pradaria, o lago, o odor ocasional de um gambá. Natureza. Que máximo!
O céu era uma explosão de tons pastel contra um pano de fundo formado por nuvens densas que preenchiam a estratosfera lá no alto — testemunhas silenciosas da tempestade que desabaria ao meio-dia. Isabel mal deu atenção a tal previsão, contudo. Já terá ido embora antes que a primeira gota de chuva caia. Mas, mesmo que o mau tempo a espantasse dali, ela não se importava. A cumeeira à sua frente, sob aquele céu de algodão-doce, era a paisagem perfeita para a foto de capa de seu ensaio. E o cenário estava pontilhado com bisões. Os olhos de Isabel cintilaram quando ela os avistou. Começou a enquadrar as fotos, criando arte com o olhar da mente. Os enormes animais pareciam atemporais à luz inconstante do amanhecer, ainda mais porque estavam em pontos onde não havia postes de telefonia nem casas modernas. Tampouco se viam estradas ao redor deles. Eram apenas os bichos, a terra e aquele céu inacreditável.
Isabel tomou outro gole do café antes de pousar a caneca e se concentrar na câmera para focar as primeiras fotos. Conforme trabalhava, uma sensação de paz a invadia, e sua pele se arrepiou com prazer.
— E você pensando que tinha perdido o dom — falou em voz alta para si mesma, permitindo que o som preenchesse o espaço vazio ao redor. — Pois não perdeu — murmurou enquanto focava a teleobjetiva, centralizando um bisão enorme, com o céu em tons de rosa ao fundo. — Só perdeu o sossego que vinha com ele.
Que ironia a coletânea de fotos do USA Today batizada de Paz? tê-la feito perder a perspectiva sobre o assunto.
— O Afeganistão vai fazer isso. — Isabel bateu várias fotografias do bisão.
Pensando bem, devia ter imaginado que o trabalho seria difícil. Mas ela fora arrogante.
Droga. Era repórter fotográfica — uma repórter fotográfica bem-sucedida e premiada — havia vinte anos. Não era mais nenhuma mocinha ingênua, e sim uma mulher segura de 42 anos — o que era parte do problema. O excesso de confiança na própria capacidade a cegara para a realidade de enxergar as coisas como elas eram.
Não que ela não houvesse estado em zonas de guerra antes. A Bósnia, as Malvinas e a África do Sul já tinham desfilado diante de sua lente. Mas algo diferente acontecera no Afeganistão. “Não estava sendo eu mesma. De alguma forma, perdi a perspectiva e me deixei invadir por aquele caos e escuridão”, admitiu Isabel para si mesma enquanto mudava o ângulo do tripé e disparava vários quadros, capturando um bezerro que brincava em volta da mãe que pastava.
Tudo começara com o soldado Curtis Johnson, o rapaz de olhos castanhos e doces, cujo rosto jovem era mais bonitinho do que belo. Não podia ter mais do que vinte e cinco anos e flertara escandalosamente com ela enquanto a acompanhara até o jipe em que ela iria viajar: bem no meio do comboio de suprimentos que partiria da base aérea americana até um dos pequenos povoados nativos que ficavam a poucos quilômetros, na estrada esburacada.
Na verdade, Curtis era tão bonito e inteligente que ela cogitara até abrandar sua regra de não ter nenhum caso enquanto estivesse trabalhando. Havia calculado a diferença de idade entre eles e decidido que, diabos, se o jovem e sexy Curtis não dava a mínima para o fato de ela ser quase vinte anos mais velha, então por que ela deveria se importar?
Foi quando a bomba explodira na lateral da estrada. Ela havia posicionado a câmera no automático e, em meio à fumaça, ao fogo, à escuridão e ao horror, capturara algumas das imagens mais impactantes de sua carreira — imagens que incluíam Curtis Johnson, cuja perna direita e cujo musculoso braço direito tinham sido arrancados na explosão.
Ela jamais tivera a intenção de capturá-lo nas fotos. Não percebera nem mesmo que Curtis fizera parte da detonação... Quisera apenas seguir seu instinto de fotografar a realidade. A verdade, entretanto, explodira literalmente na sua cara, e ela quase sucumbira.
Os olhos de Curtis continuaram gentis, mesmo quando se nublaram com o choque. Antes de perder a consciência, ele ainda se preocupara com ela, gritando para que ela se abaixasse... para que se abrigasse... Depois tinha sangrado na areia seca do deserto e morrido em seus braços. O inferno parecia ter desabado ao seu redor, então, e tudo do que ela se lembrava era de gritar e proteger a câmera. Precisava manter as fotos de Curtis ainda vivo. Pela família dele... Por ela.
Isabel estremeceu. Percebeu que havia parado de fotografar e estava parada ao lado do tripé. Levantou a mão e tocou o rosto frio. Estava molhado.
— Preste atenção ao que está fazendo! — disse a si mesma. — Esta é a chance de recuperar seu equilíbrio, sua normalidade. — “E de superar a dor.”
Tratou de se recompor, como o pai sempre lhe ensinara; livrou-se das lágrimas, das lembranças, e se concentrou no trabalho.
Balançando a cabeça, voltou para o enquadramento da câmera com um sorriso sarcástico. Suas melhores amigas sem dúvida diriam que o “normal” de Isabel Cantelli não chegava nem perto do normal da maioria das pessoas. Ela quase podia ouvir as gozações da turma. Meredith daria de ombros e afirmaria que o normal dela sempre lhe fizera bem — com certeza lhe trouxera muito sucesso. Robin sacudiria a cabeça e diria que ela precisava mais era ter um homem em tempo integral, e não apenas uma sequência de amantes bonitos. Kim iria dissecar sua psique e, eventualmente, concordar com Robin, afirmando que um relacionamento mais consistente a ajudaria a se firmar. E Teresa iria declarar que ela precisava mais era correr atrás de qualquer coisa que a fizesse feliz.
Até um mês antes, e a viagem ao Afeganistão, ela teria rido, revirado os olhos, se servido de mais champanhe e dito que sua vida nômade, livre das amarras de qualquer homem, era o que a fazia feliz.
Então Curtis Johnson cruzara seu caminho, mudando sua visão de mundo. Daquela nova e nebulosa perspectiva, ela percebera que vinha enganando a si mesma havia um bom tempo. Ou talvez fosse mais preciso dizer que andava à procura de si mesma por um bom tempo. Em algum ponto, em meio àquela carreira de sucesso e ao grupo de amigas inteligentes e articuladas, em meio àquela vida ao mesmo tempo excitante e confortável, ela se perdera.
Por isso estava ali, na pradaria de Tallgrass, em Oklahoma, fazendo a única coisa que sabia para se equilibrar: vendo a vida através da câmera e buscando seu verdadeiro rumo mais uma vez, de modo a encontrar uma maneira de navegar através da paisagem acidentada de sua vida. Seu plano parecia estar dando certo até que deixara a mente vaguear e os olhos reverem o passado. O passado continha lembranças boas e ruins, momentos de alegria e de um medo ridículo. Se havia uma emoção que nunca experimentara, não sabia dizer ao certo o que era. Precisava de algo que lhe desse novamente um choque de prazer. Se ainda pudesse adivinhar o quê. O importante era que a beleza natural de Oklahoma parecia estar surtindo algum efeito no momento.
— Então, concentre-se! — lembrou a si própria, e ficou satisfeita ao retornar com facilidade à tarefa de enquadrar a linda paisagem à sua frente.
Na vez seguinte em que mudou o tripé, Isabel vislumbrou a luz da manhã emanando de uma superfície que ela percebeu ser água serpenteando por uma espécie de canal à sua direita. Intrigada, como sempre, pelas nuances na paisagem, seguiu naquela direção, adorando a surpreendente visão de um banco de areia e de um córrego claro e borbulhante, escondido em meio à chamada Cross Timbers , a floresta típica da região.
Ao chegar mais perto da água, notou que um único raio de sol penetrara as sombras verdes das árvores, de modo que uma pequena parte do riacho estava iluminada como se por um facho de prata. E esse facho a atraiu como um ímã.
Isabel guiou-se pelos próprios instintos. Desceu rápida e silenciosamente a margem, deixando o tripé para trás. Conforme estacou no solo arenoso, ajoelhou-se de maneira a permanecer pouco acima da água, focou a lente e começou a bater foto após foto, mudando o ângulo e a distância da água conforme trabalhava. Hipnotizada pela qualidade única da luz, permitiu que a magia da lente varresse a tristeza que pensar no Afeganistão e no soldado morto lhe causara. Havia mudado de posição e estava deitada de bruços — com os cotovelos plantados na areia — quando a moita no lado oposto da margem se agitou e, acompanhado por um forte estalar de galhos, um bisão se fez ver.
Mal ousando respirar, Isabel continuou clicando enquanto o enorme animal se aproximava da água. Ele bufou uma vez, decerto sentindo o cheiro de um intruso, mas então a ignorou por completo, baixou o focinho preto e bebeu ruidosamente.
Isabel se perguntou que cheiro devia ter para ele. O bicho virara a cabeça de um lado para o outro até avistá-la. Ela não chegara a sentir muito medo, portanto, não acreditava que isso lhe houvesse chamado a atenção. Teria ela apenas o cheiro de um humano? Não estava usando nenhum perfume e permanecia deitada, imóvel. Não era possível que o animal a tivesse ouvido. O que o fizera olhar na sua direção? E por que seu olhar parecia tão antigo e sábio? Quando o bisão se afastou do córrego, balançou a cabeça para cima e para baixo, lançou-lhe mais um olhar insondável e, em seguida, virou-se e galopou para longe com uma agilidade que ela jamais creditaria a um animal de porte tão surpreendente.
Isabel sentiu um tremor atravessá-la e mexeu na câmera para olhar as fotos que tinha tirado do bicho. O bisão havia ficado bem debaixo do facho de luz. Orvalho matutino revestia a pelagem do gigantesco touro, de modo que, por meio da lente, ele parecia envolto em diamantes e névoa. Ele acenara para ela! Como se estivesse aprovando a sessão de fotos. E, quando o bicho se virara e partira, seu único pensamento fora o de que qualquer macho humano daria tudo para ter o equipamento que aquela criatura carregava.
Isabel sentou-se e riu alto, satisfeita ao pensar que a beleza e a paz daquela terra antiga começavam a fazer exatamente o que ela esperava quando discutira a ideia do livro com seu agente: começara a aliviar sua alma e ajudá-la a moldar sua criatividade em torno de algo mais tolerável do que apenas morte e destruição.
Num impulso, chutou para longe as botas para caminhada e arrancou as meias. Enrolou as barras das calças e, ainda segurando a câmera, avançou cuidadosamente um passo para dentro da água cristalina. Prendeu a respiração e soltou o ar com força diante do frio inicial. Após mais alguns passos, porém, seus pés se acostumaram com a temperatura do córrego, e ela seguiu até o facho de luz solar que, poucos minutos antes, enquadrara o bisão. Ao chegar ao ponto iluminado, ergueu o rosto, banhando-se com o esplendor da manhã, enquanto a água fria lhe acariciava os pés e tornozelos.
Havia algo naquele lugar que mexia com ela. Talvez fosse o drástico contraste entre a liberdade serena da pradaria limpa, verde e exuberante e o Oriente Médio devastado pela guerra, onde tudo em que pousava os olhos estava queimado e esturricado, ou então mergulhado em um verdadeiro pesadelo de conflitos. Respirou fundo, inalando e exalando o ar; imaginando, a cada respiração, que se livrava de toda a negatividade que trazia dentro de si mesma, e permitindo que a água lavasse os vestígios de morte e de guerra que pareciam impregnados nela naquele último mês. Sem parar para se perguntar o motivo, ou concluir que fazia papel de boba, Isabel expôs seus pensamentos mais íntimos em voz alta, em meio ao riacho atento, emoldurada pelo facho de luz.
— É disso que eu preciso: uma nova perspectiva, uma nova visão... Para me purificar. Aquele bisão estava me dizendo alguma coisa. Estava me dizendo para ir atrás do que eu quero. Eu só gostaria de saber o quê. Diga-me, Dama do Lago — falou ela, sorrindo. — A sra. Tiger nos ensinou tudo sobre você no nono ano... Qual é o meu destino?
Isabel sabia que era apenas sua imaginação, mas foi como se a luz prateada se intensificasse em resposta às suas palavras, e ela poderia jurar que sentira um arrepio. Rindo com prazer, abriu os braços e chutou a água, fazendo as gotas que a luz do sol transformava em cristal chover em torno dela e batizá-la com seu brilho.
Viviane não conseguia ficar longe do oráculo. Sabia que era muito cedo para que os tentáculos de sua magia tivessem encontrado alguém, porém estava frustrada. Enquanto as náiades se agitavam ao seu redor, continuou sentada diante do oráculo — uma bacia de cristal repleta com centenas de pérolas —, cheia de preocupação.
Quando uma pérola começou a brilhar, a deusa se lançou sobre ela. Arrancou-a do meio das outras que havia dentro da pia escura e silenciosa, ergueu-a e mirou seu cerne leitoso. A imagem clareou, exibindo uma velha senhora sentada às margens do Grand Lake e cuspindo na água o que pareciam ser sementes de girassol.
— Mais moça! — ordenou Viviane com desgosto, cingindo o fio de modo a afastá-lo da anciã. Jogou a pérola de volta na bacia e começou a andar.
A pérola que se iluminou em seguida mostrava uma criança brincando à beira de um oceano.
Ela quase gritou de desespero.
— Não tão moça! — advertiu ao oráculo, exasperada.
As duas imagens seguintes eram totalmente inadequadas. As mulheres não pareciam nem muito moças nem muito velhas, contudo eram muito comuns.
Ao final de sua já escassa paciência, Viviane arrancou um dos longos fios prateados e sedosos que lhe caíam como um espesso véu em torno do corpo. Segurando-o sobre a bacia cheia de pérolas, girou-o em um lento círculo.
Não muito jovem, nem velha ou simples
com esses tipos, nenhum ganho existe.
A mulher perfeita é o que preciso.
Graça, beleza e espírito é o que exijo!
Soltou o comprido fio de cabelo e, conforme este flutuou para dentro da pia de pérolas, completou o feitiço:
Do meu próprio corpo empresto ao oráculo o poder.
Que a alma certa agora eu possa ver!
Um raio prateado cintilou, e o fio de cabelo da deusa explodiu, fazendo chover faíscas de luz que se dissolveram nas pérolas. Revigorados, outros fios de prata dispararam do reino da deusa e, seguindo lagos, rios e córregos, procuraram através do tempo e das dimensões.
De repente, um pequeno e brilhante apêndice infiltrou-se por um minúsculo canal, em um lugar distante chamado Oklahoma, no longínquo mundo moderno mortal onde, em um facho de luz da manhã, capturou o som do riso alegre de uma mulher conforme ela renovava sua fé nas infinitas possibilidades da vida.
Viviane escutou o som sedutor e tirou do oráculo a pérola brilhante. Prendendo a respiração, olhou através da profundeza leitosa que clareou, revelando uma loira voluptuosa, estranhamente vestida, dançando em meio a uma cascata de respingos em um córrego. Seus batimentos cardíacos aumentaram com a ansiedade que a invadiu.
— Mostre-me o rosto! — ordenou de pronto.
O oráculo se concentrou na face da estranha. Sem dúvida, ela era muito atraente. Viviane estreitou os olhos. A mulher não era nem muito jovem, nem muito madura... Ou ao menos não parecia ser. E o fato de esta ter alguma experiência seria muito interessante. A moça riu outra vez e, surpresa, Viviane sentiu os próprios lábios balbuciando em resposta. Era uma risada melodiosa e, de atraente, a estranha passou a lhe parecer também sedutora.
— Sim — murmurou, satisfeita. — Acredito que esta vá servir.
Levantou os braços, fazendo o poder girar em torno do corpo.
Esta linda mortal eu reivindico
quando a morte seu destino decretar.
A mim sua alma irá se unir
tão logo a vida nela findar.
Do meu amor, sigo o desejo adormecido
para que do desespero, que de forma tão cruel o escraviza,
este ainda venha a se livrar.
Nada tomo que já não esteja perdido.
Claro é o meu propósito, o custo pouco importa.
De Artur não deve ser amargo o destino
para que a mim o meu amor possa retornar!
Em seguida, a grande Deusa da Água, conhecida como Coventina — a Viviane de Merlin —, arremessou uma esfera flamejante de poder divino através do oráculo, e esta viajou para longe... para outro tempo, outro lugar... alterando para sempre o destino de Isabel Cantelli.
Capítulo Dois
“Tarde demais”, concluiu Isabel, mortificada. “Tarde demais.” Após dar uma guinada na direção para se desviar de um esquilo — e perder o controle do SUV —, foi essa a conclusão a que ela chegou.
Se não tivesse se abaixado para apanhar o celular enquanto cantarolava Camelot , toda feliz, ao mesmo tempo que dirigia a 100 km/h por uma estrada empoeirada. Se tivesse deixado o bichinho se defender por conta própria em vez de tentar bancar a heroína. Pensando bem, no jogo da vida aquilo não era um empate. Era uma lavada de cem a zero.
De qualquer modo, nenhum “se” iria ajudá-la agora. No momento, ela e seu Nissan voavam em direção ao Grand Lake a uma velocidade alarmante.
Isabel se preparou para o mergulho que estava prestes a dar e que duvidava que seria suave. O lago, que considerara mágico poucos minutos antes, iria acabar com ela.
Tanta coisa estava lhe passando pela cabeça. E nada do que ela imaginara que fosse passar quando se visse prestes a morrer. A vida que havia tido não estava desfilando em flashes diante de seus olhos. A que ela não vivera, sim.
Pavor, medo da dor da morte, isso tudo lhe passava pela mente. Mas a tristeza pelo que ela ainda não conseguira realizar era o que mais lhe ocupava os pensamentos.
O carro atingiu o lago tal qual uma explosão nuclear, e o air bag estourou à sua frente, colando-a ao assento. Quando este se esvaziou, por fim, ela tentou desatar o cinto de segurança, mas, por alguma razão, não conseguiu. Com a janela abaixada, o carro se encheu de água e começou a afundar.
A menos que um milagre acontecesse, não tinha como escapar dali viva. Estava a caminho da morte, e aquilo era aterrorizante. Seu coração batia, tresloucado, porém ela sabia que não por muito tempo. Pediu desculpas ao próprio coração pelo que iria acontecer. Pediu desculpas ao próprio fígado por não tê-lo maltratado tanto quanto podia ao longo dos anos. Que desperdício! Mesmo pensando nos amigos e na família, sua própria vida não chegou a lhe passar diante dos olhos, como muitos asseguram acontecer quando as pessoas morrem.
Seu foco, enquanto sentia o peito se comprimir dolorosamente, era, mesmo, em todas as coisas que ainda não realizara. Como podia ter se esquecido de tudo o que ainda queria da vida? A principal delas era que nunca havia encontrado o amor. Luxúria, sem dúvida. Atração, com certeza. Mas não aquela coisa indescritível, conhecida como “amor verdadeiro”. Olhar para um homem e saber, com segurança, que eles tinham sido feitos um para o outro.
Havia muitos outros itens em sua lista, mas, de fato, ela teria gostado de experimentar a sensação de estar apaixonada.
“Se... Se... Se...”
De repente, Isabel sentiu-se viva de novo. E soube, apenas soube, que, de alguma forma, de alguma maneira, ela teria outra chance.
Capítulo Três
— É melhor acordar, Isabel.
— Só mais uma hora — murmurou ela.
— Entendo essa sua necessidade de tirar um cochilo, afinal fez uma longa viagem — ponderou Viviane, sacudindo-a de leve. Você é a minha última esperança. — Receio que precise dar início a esta missão agora mesmo. Eu preciso do meu Merlin!
Quando “sua esperança” apenas gemeu, virou-se e resmungou “café”, Viviane sentiu a irritação espiralar dentro dela.
— Acorde, sua lamentável... pessoa! Levante-se agora mesmo! Se não fosse por mim, não estaria aqui se espreguiçando e fazendo exigências . Um cappuccino de chocolate com bastante creme, certo?
“Sua esperança” despertou instantaneamente, afastando os cabelos loiros e viçoso s do rosto.
— Ah, sim, por favor. Onde estou? Você me salvou? Obrigada! Fiquei tão atordoada! Se eu...
— Se... Se... Se... Eu sei. — Viviane estalou os dedos, e uma imensa caneca de prata contendo café surgiu em meio à bruma. — Beba primeiro. Depois vamos conversar.
A linda moça a fitou, em seguida tomou a caneca de sua mão e bebeu um gole.
— Não sei como lhe agradecer — falou e, em seguida, olhou para dentro do copo. — É o melhor café que já tomei! Como foi que...
— Aprendi depressa a preparar um bom café enquanto visitava o seu tempo.
— Meu tempo?
— Como eu disse, temos muito que conversar.
Isabel sabia que estava no Céu — pois o café parecia divino — ou estava no inferno, porque a mulher à sua frente era tão bela e etérea que tinha de ser o demônio disfarçado.
Ou, então, não estava nem no Céu, nem no inferno, ainda que continuasse reconhecendo uma boa caneca de café ao provar uma. E este a estava despertando, o que era um bom sinal: não era descafeinado.
Olhou em volta. Encontrava-se sentada junto a um lago, mas que não era o Grand Lake. A flora e a fauna pareciam completamente fora de sintonia. A névoa que pairava sobre a água era cintilante, diferente de tudo o que ela já tinha visto. Sem falar que não havia nenhum poste de eletricidade ou sinal de civilização à vista.
Foi quando reparou no próprio traje. Não era o mesmo com o qual ela quase morrera. Estava com um vestido verde-jade, de mangas compridas que se ajustavam nos ombros para depois se alargar até os punhos. O decote era quadrado e proporcionava uma visão do colo que ela não costumava exibir. Era um lindo vestido, sem dúvida. Na verdade, faria bonito em qualquer tapete vermelho. Mas não era seu.
— O que está acontecendo? Onde estou, como vim parar aqui e quem diabos é você?
A mulher sorriu, estalou os dedos outra vez e, enquanto Isabel olhava, a caneca de prata se encheu outra vez, exalando um delicioso cheiro de café.
— Posso assegurar que nós, ou melhor, você não está no inferno.
— Então onde estou? Onde estamos? E por que eu não a fotografei ainda? É a mulher mais linda que eu já vi. E olhe que eu já vi muitas. — Bebeu mais um gole da deliciosa bebida da caneca de prata. — Qual é o problema, afinal?
— Eu a escolhi, Isabel, para uma missão muito especial, muito importante.
— Eu ficaria lisonjeada se não estivesse tão assustada. Na verdade, teria saído correndo e gritando se você não tivesse feito surgir este café incrível.
— Não está com fome também? As parcas me disseram que adora bolinhos. Em especial uns tais beignets .
A mulher fez menção de estalar os dedos novamente, contudo Isabel a impediu.
— Por mais que eu ache isso interessante, antes que faça as coisas surgirem do nada de novo, posso fazer algumas perguntas?
— Merece ter todas as suas perguntas respondidas.
Isabel tomou a resposta como um “sim”.
— Foi você quem me salvou?
— Sim.
— Como? Assim que eu atingi a água e não consegui me soltar, soube que estava encrencada. — Ela levantou a mão e mexeu os dedos, depois moveu as unhas dos pés, agora envoltos em chinelos prateados. — Deu tudo certo, assim, do nada! E eu tinha me ferrado , sem sombra de dúvida! De repente, tive essa sensação de, não sei , uma segunda chance.
— Tinha “se ferrado”? Tinha morrido, quer dizer. E sim, esta é mais uma chance de realizar alguns dos seus desejos.
— Bem, ao menos isso esclarece um pouco as coisas. — Isabel olhou o verde exuberante e a densa floresta além da enseada rochosa. — Não estamos mais em Oklahoma, estamos, gostosona?
— Gostosona?
— Desculpe, eu não quis ser indelicada. Mas parece saber o meu nome e até os meus podres. Posso perguntar ao menos como se chama?
— Sou conhecida como Coventina. Mas pode me chamar de...
— Coventina, a Dama do Lago? A Deusa da Água na Mitologia?
A mulher abriu um sorriso triunfante.
— Então já ouviu falar de mim no seu tempo! Merlin me assegurou que eu não passava de uma lenda há muito esquecida.
Isabel continuou sentada, completamente atordoada. O brilho que cercava a estranha, aqueles cabelos longos e platinados, os olhos azuis que pareciam refletir a pureza do lago atrás delas...
— Está brincando, certo? É alguma pegadinha? — Olhou ao redor. — Onde estão as câmeras? Fez um trabalho e tanto ao escondê-las, porque posso farejar e detectar uma a quilômetros.
— Eu lhe asseguro, sou mesmo Coventina. E não há nenhuma dessas tais câmeras por aqui. Não que eu saiba.
— Quer saber? Eu adoraria comer um beignet agora. Será que pode regá-lo com um pouco de...
— Chocolate amargo? Claro.
Mais um estalar de dedos e Isabel se viu diante de um verdadeiro banquete. Havia beignets , do jeitinho que ela gostava, mas também presunto frito, ovos fritos com gema mole, batatas com cebola, pimentão e pedaços de bacon, exatamente como ela mesma costumava preparar. Aquilo era bom demais. Perfeito. E muito louco.
De qualquer modo, estava faminta demais para ser rude e recusar.
— Importa-se se eu for indo agora? — indagou Isabel após lamber os dedos ao fim da refeição e se pôr em pé.
Foi então que percebeu: com um só movimento de mão, a mulher fez seus chinelos se colarem à terra. Ela bem que tentou se libertar, mas eles pareciam grudados também à sua pele.
— Por favor, escute... — falou a mulher — se a lenda dizia a verdade, não precisaria pedir favores a ninguém.
Isabel se sentou.
— Desculpe se estou meio confusa.
— Eu compreendo.
— Você me salvou do Grand Lake.
— Sim.
— Por quê?
— Porque preciso de você. E porque tenho esperanças de que tudo isso aconteça de um modo que também um de seus... (como disse mesmo?) ...“ses” acabem se tornando realidade.
— Eu estou viva. Não estou apenas em outro mundo?
— Ah, receio que esteja, mesmo, em outro mundo. Mas neste mundo, Isabel. Não no seu.
— Onde estou?
— Se aprendeu algo sobre mim, também deve ter aprendido sobre Camelot.
Isabel tornou a fitá-la, incrédula.
— Só pode estar brincando.
Coventina riu, emitindo um som tão melodioso que até mesmo o lago pareceu reagir a ele. As águas borbulharam aqui e ali, como se algo lá embaixo não conseguisse evitar rir com ela.
— Gosto de uma boa brincadeira, assim como muitos dos homens e mulheres do castelo. Mas garanto que, além desta floresta, fica o castelo de Camelot.
— Quer dizer o do rei Artur, de Lancelot, Guinevere, Merl... Ah. É esse o seu Merlin.
— Era — corrigiu Coventina, e seus olhos imediatamente mudaram do impressionante azul para um cinza tempestuoso. — Ele abandonou este mundo, devastado pelo destino que vislumbra para Artur. — A deusa segurou a mão de Isabel. — Preciso trazê-lo de volta. Preciso. Receio que a eternidade vá ser um eterno sofrimento sem ele.
— Por que eu? — indagou Isabel, tentando disfarçar as lágrimas nos olhos. Não costumava ser chorona, a menos que se visse diante de uma situação como a de um homem doce e heroico morrendo no Afeganistão ou a do nascimento de um gatinho.
Coventina apertou a mão dela ainda mais, porém, estranhamente, o gesto não foi dolorido. Foi mais como se elas estivessem trocando energia.
— Porque era a pessoa que eu estava procurando. Pedi aos deuses uma que fosse bonita, inteligente e, sinto dizer, que estivesse prestes a morrer. Determinante para mim foi o fato de ser uma mulher — como você mesma disse — com vários “ses”; e alguém que lamentou, em seus últimos momentos, não ter encontrado o amor verdadeiro.
— E o que a faz pensar que vou encontrá-lo aqui, Cov...
— Pode me chamar de Viviane. Merlin foi o único a conseguir isso, mas eu gostaria muito que conseguisse também. Porque acredito que seja a única capaz de trazê-lo de volta para mim.
— Está bem, mas o que a faz pensar que vou encontrar o amor aqui, Viviane? E como posso trazer Merlin de volta?
— Não tenho certeza de nada, mas, se eu não tentar, não terei feito o bastante para reconquistar o homem que amo. E meu coração, assim como as minhas águas, não aceita tal coisa. Temo o que vá acontecer se a minha infelicidade tumultuar as águas que me alimentam.
Isabel olhou para o lago e viu marolas onde, momentos antes, tudo estivera calmo, claro e azul como os olhos da deusa. As águas pareciam inquietas, cinzentas e infelizes agora. Lembravam as do Grand Lake, que lhe parecera quase zangado pouco antes de ela e o carro darem um mergulho nada belo em suas agitadas profundezas.
Ela tornou a olhar a linda mulher à sua frente, perguntando-se quando iria acordar daquele sonho. Mas, até lá, ao menos tentaria ajudar.
— E quanto aos meus equipamentos de fotografia?
Viviane balançou a cabeça.
— Não há nada do tipo neste tempo ou lugar.
— Está bem — resignou-se Isabel, ainda que lamentando não poder capturar a beleza ao seu redor, a beleza daquela estranha... que sem dúvida a deixaria rica caso se deixasse fotografar para a revista People : “A surpreendente verdade de Camelot”... — Por quem, pelo amor de Deus, estou destinada a me apaixonar? Ou quem você espera que possa se apaixonar por mim? E se eu acidentalmente me encantar com, digamos, o bobo da corte?
Uma vez mais a risada melodiosa da deusa encheu o ar, e os pássaros nas árvores próximas pareceram se juntar a ela.
— Hester, o bobo da corte? Tomara que tenha um gosto mais apurado.
Isabel sorriu.
— Então quem, senhora?
— Lancelot, claro.
— Está brincando, não é? Se bem me lembro, Gwen quase foi queimada numa fogueira por se envolver com ele. Eu não quase morri afogada para no futuro ser jogada no fogo!
— Isso não vai acontecer. Agora será Lady Isabel, que veio a Camelot como condessa de Dumont para discutir a partilha de terras em benefício de todos os bretões.
— Então vou cair de paraquedas nessa história? Sem ser convidada?
Viviane hesitou por um momento, em seguida puxou um colar de uma espécie de bolso em seu vestido. Era uma peça impressionante que, a princípio, parecia feita de safiras. Conforme Isabel a tocou, contudo, percebeu que era um pingente em forma de coração, feito de algum tipo de vidro, e com um líquido azulado no interior. Era lindo e, na certa, custaria uma nota na Sotheby’s.
— Nossa, Vivi!... Posso chamá-la de Vivi?
A deusa bufou.
— Não, não pode.
Isabel deu de ombros.
— “Viviane” é meio complicado de pronunciar, mas, está bem. Isto é incrível! O que é?
A deusa colocou o pingente em volta de seu pescoço, e a peça se aninhou na altura do coração, bem em meio a seus mal confinados seios.
— É um colar mágico, Isabel. Ao vê-lo, aqueles que poderiam suspeitar de sua chegada e de seus motivos não o farão. Dentro dele estão as lágrimas que derramei quando não tive escolha a não ser permitir que Merlin me deixasse. O colar tem poderes, mas não deixarei que saiba quais são, pois há um preço a pagar por seu uso. Trate-o com sabedoria, e ele será seu aliado. Use os poderes com imprudência, e pagará caro.
— Tem isso por escrito? Algum folheto ou coisa do tipo, no qual eu possa me informar como fazê-lo produzir banheiros e encanamento de verdade?
Viviane riu, assim como pareceu fazer o lago.
— Poderia fazer tudo isso, claro. Mas depois não poderia utilizar nada.
— Verdade?
— Sim. Por favor, tente compreender. Há um preço para todas as vezes que invocar o poder das minhas lágrimas. Se precisar usá-las, lembre-se de que existe um custo. E mais uma coisa, Isabel. Nunca permita que tomem o colar de você. — Viviane pareceu perdida em pensamentos por um instante, depois recitou:
O coração e as lágrimas, Isabel não devem deixar
sem que um terrível feitiço o ladrão destes venha a sofrer.
Apenas Isabel poderá o colar retirar,
e com estas palavras me fazer saber:
“Para o bem de todos, ó Deusa do Lago,
Em nome do amor e da vida, isso tem que acontecer!”
Viviane ergueu os braços, e nuvens que vinham se formando no céu se desmancharam sobre todo o lago e sobre elas.
Isabel não gostava muito de se molhar, a menos que estivesse numa ducha, mas, por alguma razão, a chuva lhe pareceu morna e reconfortante em um momento em que se sentia um tanto assustada e completamente fora de seu elemento.
Aquilo era um sonho de morte? Era assim que acontecia? Ela estava cantando a música-tema de Camelot quando havia mergulhado com o carro. Pensara na Dama do Lago enquanto lutava para sair da água.
Pelo visto, tivera aulas de Mitologia em excesso na faculdade.
De qualquer modo, se era mesmo um sonho de morte, era muito, muito legal. Onde mais poderia querer aterrissar além de Camelot?
O ruim era a falta de encanamento.
Mas e daí? Ela já conseguira se virar. Pois então não tinha dado um jeitinho no Afeganistão? Podia muito bem encontrar uma maneira de viver sem a sua ducha Kohler de luxo.
O problema era...
— Por quanto tempo, Viviane?
— Até que nós duas alcancemos os nossos objetivos.
— Só para esclarecer: estarei morta ao final desta aventura? Não que eu esteja reclamando, imagine. Afinal me salvou e tudo o mais, mas posso morrer quando esta Missão Impossível chegar ao fim?
— Garanto que, assim que conseguir cumprir esta Missão Impossível, como você a chama — embora eu não pense assim —, seu destino estará em suas mãos.
— Então, se eu decidir que não quero mesmo morrer?
— Você mesma vai decidir o seu futuro.
— E se eu resolver voltar para a canalização e a eletricidade? E para a minha fotografia?
— Seu destino estará em suas mãos, Isabel.
— Está bem — concordou ela de pronto, tocando o colar e certificando-se de que ele continuava no lugar. — Tem algum post-it em que eu possa escrever as tais palavras que preciso falar?
— Vai se lembrar delas, se for necessário.
— Outra pergunta: se eu precisar de ajuda ou conselhos, posso procurá-la?
— Sempre.
— E como poderei encontrá-la ?
— Basta pedir em pensamento, Isabel, e eu lhe atenderei.
— Ótimo, assim posso ter certeza da minha missão: tentar seduzir Lance e fazê-lo se esquecer de Gwen, de modo que Artur e Gwen sejam felizes para sempre. Isso vai ajudar o rei a salvar Camelot?
Viviane riu, e as nuvens e a chuva desapareceram como por encanto.
Isabel invejou tal poder, imaginando como seria conseguir fazer aquilo com um ou dois namorados.
— Sim, é esse o plano, Isabel. Mas os planos às vezes dão errado.
— Ah, que bom.
— Você tem o colar. Use-o com sabedoria e irá... Como se diz mesmo, no seu tempo? “Tirar de letra”?
— Pode ser. Pelo visto, gosta de arriscar.
— Estou apostando em você, Isabel. E estou apostando que vai encontrar o amor que devia ter encontrado no seu tempo.
Àquela altura, Isabel até lamentava seus últimos pensamentos. Talvez devesse ter se concentrado no que não devia ter feito.
— Como vou encontrar o castelo de novo?
A deusa mergulhou a mão na água e jogou um punhado dela para o ar. Tal como gotas de mercúrio prateadas, estas descreveram um arco, depois foram caindo de volta, uma a uma, sobre o lago.
Viviane apontou atrás de Isabel.
— Sua montaria a aguarda.
Ela fez meia-volta e lá estava o cavalo árabe mais bonito que já vira, todo branco e bufando, impaciente.
Isabel inclinou a cabeça e o espiou na parte de baixo. Era uma fêmea, já que não tinha nada dependurado.
— Escute, Viviane, vamos esclarecer uma coisa — começou. — Em primeiro lugar, sou boa amazona. Na verdade, adoro montar em pelo. Mas reconheço uma sela lateral, e não há a menor chance de eu controlar essa égua numa sela dessas!
A deusa tornou a rir, em seguida mergulhou os dedos no lago e lhe jogou gotas na cara. Fez o mesmo com a égua, que recebeu o gesto muito melhor do que Isabel.
— Agora já sabe, Izzy, como montar de lado. Você e Samara serão amigas. Tratem de galopar até Camelot, pois estão precisando de ajuda lá. E eu estou ansiosa por voltar para o meu Merlin.
— Por que pode me chamar de “Izzy”, e eu não estou autorizada a chamá-la de “Vivi”?
A deusa se insurgiu.
— Quem é a divindade aqui, Izzy?
— Está bem. Ponto para você.
Capítulo Quatro
Izzy? Apenas seus melhores amigos e seu pai a chamavam Izzy, pensou Isabel. Mas imaginava que discutir com uma deusa que tinha acabado de lhe salvar a vida não era muito aconselhável. Conforme ela e Samara abriam caminho em meio à floresta que as levaria até Camelot, ponderou sobre como era profundo aquele sonho. Afinal, assim como Viviane havia previsto, ela e Samara logo se tornaram amigas; tanto que montava a égua de lado, como se tivesse feito aquilo a vida toda.
Como era possível? Ou aquele era mesmo outro mundo, que ninguém ainda vivo poderia imaginar? Era daquela forma que o Universo funcionava? Ele apenas a largava em outro tempo e lugar?
Isabel suspirou. Já fora obrigada a parar Samara duas vezes para dar conta de suas necessidades no meio da floresta, mesmo se perguntando se ficar com o traseiro de fora era ilegal em Camelot. Estranhamente, a cada vez que fora forçada a parar, encontrara algo semelhante a papel higiênico esperando por ela.
— Obrigada, Viviane — falou num sussurro.
E pôde jurar que as árvores sussurravam de volta: — De nada.
Samara era incrível. Na primeira vez em que ela precisara parar, havia amarrado as rédeas em torno de uma árvore, e a égua bufara, parecendo aborrecida. Quando tinha voltado, Samara quase a arremessara a vários metros de distância. Ela havia captado a mensagem, portanto, e, na segunda parada, deixara Sam solta. O melhor era não mexer com a confiança da égua ou com a sua liberdade, constatou, sendo recompensada pelo gesto quando Samara inclinou-se para ajudá-la a subir na sela com mais facilidade. Muito diferente da primeira vez, quando ela precisara procurar um tronco em que subir, e Sam não parara de se mover.
As torres do castelo pareciam cada vez mais próximas, e Isabel se viu apertando o colar tantas vezes que era como se ele já estivesse ficando impaciente com ela.
Viviane parecia estar a seu lado, porém não ficava à vista, o que a teria deixado bem mais feliz.
— Parece que somos apenas você e eu, Sam.
A despeito de seu primeiro entrevero, era inacreditável o vínculo que ela e a égua tinham formado quase instantaneamente, raciocinou Isabel. Ela não precisava chutar o flanco da égua, não precisava bater as rédeas. Bastava uma só palavra e Samara a compreendia.
— E então, o que acha, Sam? Vamos dar conta da nossa tarefa?
Samara bufou e balançou a cabeça. Depois parou e aguçou os ouvidos.
Um estalar nas folhas à sua esquerda fez o coração de Isabel disparar. Seria um leão, um tigre, um urso? Santo Deus!
Isabel se agarrou ao colar.
— Quem está aí? — gritou para a mata fechada. O que era no mínimo a coisa mais idiota a fazer, ainda mais se estava lidando com algum bicho comedor de gente. Mas a pergunta apenas saiu.
Um homem surgiu ao lado de um enorme carvalho. Curvou-se, educado, depois endireitou o corpo.
— Sossegue, minha cara condessa. Sou apenas eu, que vim para escoltá-la até o castelo.
Os batimentos de Isabel desceram para a região do púbis e ali continuaram a latejar. Que homem era aquele ?! Os cabelos eram negros, cortados bem curtos. Os lábios pediam por sexo. O sorriso gritava por sexo. Os olhos eram de um verde-musgo tão intenso quanto o da exuberante floresta ao seu redor. E ele usava um cavanhaque, que ela normalmente teria odiado, mas que nele caía mais do que bem.
O estranho usava uma cota de malha elástica quase até os joelhos, carregava um arco de caçador na mão esquerda e uma aljava cruzada no peito, com as flechas se insinuando por trás dos ombros largos. Sob a armadura, usava um par de leggings pretas bem justas.
O homem se aproximou. Seu olhar desceu para o colar, depois se ergueu de volta para o rosto dela.
— Não é nada adequado para uma mulher viajar por esta floresta sozinha. Onde estão seus acompanhantes? Onde estão seus baús de viagem?
Boa pergunta — para a qual ela não tinha uma boa resposta. Até tocar o colar.
— Ah, estão alguns quilômetros atrás de mim. Eu estava me sentindo meio inquieta com o ritmo lento da carruagem e decidi ter um pouco mais de privacidade. Mas eles já devem estar chegando. Não é mesmo? — perguntou na direção das árvores, e estas chacoalharam de leve, fazendo-a tomar o gesto por um “sim”. Afinal de contas, Viviane não a teria mandado para aquele lugar com nada além de um vestido, teria?
Sem dizer que era mesmo inimaginável uma mulher viajar completamente sozinha por ali.
— Fico honrado por se sentir segura nas florestas de Camelot, condessa, mas mesmo aqui existe perigo.
O único perigo que ela pressentia no momento era a atração que estava sentindo por aquele homem!
— Receio estar em desvantagem, senhor — falou, tratando de mudar de assunto. — Parece saber quem sou e ter sido avisado com antecedência da minha iminente chegada, mas nada sei sobre a sua pessoa. — Isabel sentiu um riso borbulhar no peito e teve a certeza de que este vinha de Viviane. De repente, ocorreu-lhe que estava falando e compreendendo o inglês arcaico mais do que bem.
Que sonho excepcional era aquele!
— Tendo sido alertado sobre sua iminente chegada, pedi para que meus homens cuidassem de sua comitiva, de modo que pudesse ser escoltada adequadamente até Camelot. Imagine a minha preocupação quando me foi dada a notícia de que parecia estar sozinha, e que nenhum de seus homens galopara à sua frente para anunciá-la. Temi que algum sério contratempo houvesse ocorrido.
“Então, imagine a minha!”, contrapôs Isabel em pensamento.
E se perguntou o quanto estivera só enquanto fora obrigada a parar a fim de esvaziar a bexiga.
Sentiu o rosto arder com a possibilidade.
— Meus sinceros agradecimentos por sua preocupação e cuidado.
— Minha mais sincera gratidão por ter aceitado nos visitar em Camelot.
— Suponho, então, que estejamos todos em segurança! Mais uma vez, senhor, ainda não sei a quem falo. Por um acaso é — vamos torcer — sir Lancelot?
Mesmo enquanto perguntava, Isabel tinha certeza de que não podia ter tido tanta sorte. Aquele estranho era pelo menos uns dez anos mais velho do que o jovem cavaleiro sobre o qual ela havia lido. Estava no ponto, com algumas linhas de sorriso ao redor dos olhos e outras em torno da boca, as quais evocavam muito mais experiência. Via sabedoria e até mesmo uma ponta de cansaço em seus olhos.
E sua risada era profunda e fatal.
— Todas as mulheres bonitas querem Lancelot. Peço desculpas por não ser ele.
— Não são necessárias desculpas. Mas, então, quem é você?
O homem curvou-se novamente.
— Meu nome é Artur.
— Está brincando.
— Não, não estou.
“Ele é mesmo o rei, Izzy!”
“E isso significa o quê?”
“Significa que precisa tirar o traseiro dessa égua e fazer uma reverência!”
“Pelo visto, ainda tem muito que aprender, moça!”
Isabel desmontou sem a menor graciosidade, em seguida tomou a mão de Artur e fez o máximo para se curvar em uma mesura. Uma vez que não se curvava desde uma peça do primeiro ano do Ensino Médio — Camelot , aliás —, viu o quanto estava enferrujada.
— Mil perdões por não tê-lo reconhecido antes, rei Artur. — Ela fez menção de levar a mão do soberano à boca, pois tinha certeza de que deveria beijar seu anel ou algo assim, mas começou a oscilar. Definitivamente, não estava acostumada a se curvar para homem nenhum sem desejar acertá-lo nas bolas depois.
Artur a segurou pela cintura e a endireitou, o sorriso tão cheio de prazer que ela desejou beijar cada parte dele, menos o anel.
— Condessa, a jornada foi, sem dúvida, muito longa e suas pernas estão fraquejando. E, cá entre nós, essa coisa de beijo no anel sempre me incomodou.
As mãos dele não deixaram sua cintura, seus olhos não pararam de sorrir para os dela. O homem só faltava começar a cantar.
— Richard Harris não é nada perto de você — deixou escapar Isabel.
Foi um erro. Ela soube disso tão logo o colar pareceu bater com força em seu peito.
Artur deu um passo para trás, os olhos se anuviando.
— Está comprometida com sir Richard?
Isabel sentiu falta das mãos quentes em sua cintura.
— Sir Richard? De Fremont? Claro que não. Eu estava me lembrando do meu próprio Richard, um dos meus homens. Richard de Fremont não passa de um suíno. — Ela franziu o cenho de leve. Não fazia ideia de onde tinha vindo aquela informação, mas ficou aliviada ao ver a suspeita deixar os olhos do rei. — Rei Artur — falou, curvando-se outra vez. — Eu ficaria imensamente honrada se me escoltasse até Camelot.
— É o que farei, condessa. E, ora, ora, veja quem a alcançou.
Isabel voltou-se, deparando-se com dois rapazes montados em baios, os quais cavalgavam a cada lado de uma carruagem dirigida por outro homem e puxada por outros dois cavalos malhados e idênticos, que, aliás, não pareciam nada contentes. O que não era de admirar, dada a pilha de baús que estavam carregando.
Isabel arregalou os olhos. Os três homens eram quase iguais a três de seus amigos de Oklahoma, tanto que precisou se esforçar para não correr para eles e abraçá-los.
Mas espere um pouco. “Você matou meus amigos, deusa?”, indagou, furiosa, ainda que mentalmente.
A resposta foi instantânea:
“A condessa de amigos necessita. Nem que apenas de visões que a ti o lago empreste. Sabes bem o que cada um representa e deles hás de precisar... Não os despreze!”
Isabel parou para pensar e balançou a cabeça. “Aquilo nem rimava direito!”
“Então me processe.”
Tornou a se concentrar no rei.
— Rei Artur, estes são os meus homens: Tom, Dick e Harry. Mas não o Tom, Dick e Harry de sempre. Eles são os meus Tom, Dick e Harry .
Isabel franziu a testa. Não lhe ocorrera o quanto aquilo soava engraçado até aquele momento. Voltou-se para os amigos antes que caísse na risada.
— Por favor, rapazes, este é o rei Artur. Prestem-lhe suas reverências.
Tom e Dick desceram de suas montarias e Harry tratou de brecar a carruagem, saltando desta com um largo sorriso no rosto. Os três se apoiaram em um joelho e inclinaram as cabeças.
— A seu serviço, senhor — disseram em uníssono.
— Por favor, levantem-se — pediu Artur. — Sem formalidades aqui.
— Ora essa — Isabel falou a Tom. — Eu não consegui fazê-lo se curvar assim nem quando lhe dei uma surra naquele jogo de quarters na faculdade.
— Porque havia me embebedado com Budwei... cerveja naquela noite, milady.
Era verdade. Ela o deixara de fogo de propósito! Afinal, estavam em pleno campeonato da associação.
— Desculpe, mas esse é o último recurso dos fracos — respondeu Isabel com pouco caso.
— Faculdade? Quarters ?
Isabel levou outra pancada do colar. Àquela altura já devia estar com um hematoma do tamanho de uma bola de beisebol no peito!
— Mil perdões, rei Artur. Falo de um jogo que costumávamos realizar em Dumont. Afinal, amigos felizes são amigos ativos.
O rei a presenteou com outro sorriso arrasador.
— Aparentemente temos muito em comum. Também gosto de praticar esportes com meus homens.
Isabel franziu a testa.
— E deixa as mulheres lavando roupa, cozinhando e limpando? Que lazer costuma proporcionar a suas criadas, senhor? Quando é que elas têm algum descanso?
Isabel se preparou para outro baque do colar, porém este não veio. Pelo visto, Viviane estava a seu lado naquele ponto. Uma deusa feminista. Quem diria?
Artur pareceu desconcertado com as palavras.
— Eu nunca havia pensado nisso. Talvez a rainha possa responder a essa pergunta. As mulheres não me parecem infelizes, porém vou me inteirar do assunto, condessa, e, caso haja algum problema, tentarei resolvê-lo o mais breve possível. Quem sabe com as suas sugestões? Instituindo esse tal campeonato de quarters , por exemplo.
— Calma lá, Artur. É preciso saber jogar quarters . Se me permitir, entretanto, talvez eu possa pensar em alguma coisa, eventualmente.
— Estarei aberto a todas as suas sugestões. Agora, podemos seguir para Camelot?
— Vamos nessa! — rebateu Isabel. Em seguida voltou-se para sua equipe e piscou.
Tom, Dick e Harry se adiantaram para ajudá-la a montar Samara, e o rei fez um sinal para que todos o seguissem.
— Será um prazer, condessa. Podemos conversar sobre essa tal faculdade durante a nossa jornada?
Quando os homens de Artur se materializaram, trazendo seu cavalo — um lindo corcel cinza malhado —, o rei lhes deu ordens para que ficassem à frente e atrás da comitiva de Isabel. Ela pôde, então, passar o restante do tempo a seu lado, conversando e rindo.
Havia gostado de Artur. Muito .
“Não é culpa minha, deusa!”.
“Conte outra, Isabel!”
Capítulo Cinco
Camelot era magnífico, concluiu Isabel. Ela daria qualquer coisa para ter seu equipamento de fotografia ali com ela. Era tão injusto não poder capturar a beleza de tudo aquilo!
Precisaram atravessar um fosso de verdade através de uma ponte de madeira. Em seguida, adentraram uma fortaleza tão agitada que ela quase ficou com medo. Havia tantos homens ali, andando de um lado para o outro, como se num jogo de futebol! Tantas mulheres correndo atrás de seus filhos!
O castelo em si era de tirar o fôlego. Tinha imaginado que fosse feito de pedra, mas, estranhamente, Camelot parecia ter sido todo construído com madeira. Ainda assim, dezenas de chaminés fumegavam ao redor, e ela desconfiava de que não existia um único alarme anti-incêndio no local.
O que a chocou, contudo, foi a maneira como todas as pessoas saudavam seu rei. Verdade que elas se curvaram quando ele adentrou a torre de menagem, mas também sorriram. Aquela gente gostava mesmo de seu líder. Nisso ela poderia apostar. Infelizmente.
O salão principal também estava a todo vapor, contudo parou quando o rei a escoltou para dentro dele e anunciou sua chegada em voz alta. Até mesmo os animais que corriam por ali — e devia haver pelo menos uns trinta cães de várias raças — pareceram estacar. Em seguida, teve início um verdadeiro mar de reverências e mesuras.
— Por favor, diga a eles para se erguerem, senhor — sussurrou ela para Artur. — Estão agindo como se eu fosse alguém da realeza!
Artur arregalou os olhos por um instante.
— Mas é da realeza, condessa.
Opa!
— Talvez, mas não sou tão nobre para tantas reverências. Não fico à vontade com isso. Prefiro a igualdade de direitos.
O rei tornou a sorrir, o que não era justo, pois o sorriso do homem era letal.
— Temos muito em comum, milady.
— Isabel.
— Isabel, então. E pode me chamar de Artur. Aliás, por favor, eu imploro para que esqueça essa coisa de rei.
— Fechado — concordou ela de pronto.
— Levantem-se todos! A condessa prefere que não...
— ... se rebaixem? — sugeriu Isabel.
— A condessa não vê necessidade em se curvarem com sua entrada — elaborou Artur.
Isabel decidiu fazer, ela mesma, uma reverência. Então se levantou.
— Muito bem, agora estamos quites. Já chega dessas mesuras, certo? Elas são maçantes para todos nós. A propósito... Olá! É bom estar aqui — falou, acenando para todos de um modo que, esperava, não fosse como o da rainha Elizabeth.
Todos — até mesmo os cães — a fitaram como se ela fosse um pouco — ou talvez muito — estranha.
Mas depois sorriram. E vários acenaram de volta.
Havia no chão o que ela imaginava se tratar de juncos, e o lugar tinha um cheiro esquisito: um misto de suor, urina, lenha e um pouco de algo que não conseguia descrever. No entanto, conforme ela e Artur avançavam pelo enorme salão, um odor mais agradável chegou até eles.
— Tomilho a esta hora? — indagou.
O rei a fitou, confuso.
— Meu palpite, Isabel, é que estejamos entre o meio-dia e a hora do jantar.
— Eu estava falando de... esqueça. Posso me retirar para os meus aposentos e me preparar para o jantar?
— Sem dúvida, condessa. Seus baús lhe serão entregues assim que um de seus Toms, Dicks ou Harrys conseguirem levá-los até lá.
O humor estava de volta aos olhos do rei e, mais uma vez, Isabel se viu atordoada.
Tratou de se recompor, então, para fazer mais uma pergunta.
— E quanto às acomodações dos meus homens, senhor? Eles são muito importantes para mim.
— Eles terão o melhor que Camelot tem a oferecer, Isabel.
Uma vez mais, ela se derreteu toda. A maneira como seu nome saía daqueles lábios realmente mexia com seus hormônios.
— Isso significa que eles vão ficar no térreo?
— Quer que eles permaneçam próximos?
— É possível? Não quero incomodar ninguém, mas gostaria de tê-los por perto.
— Não é muito comum, mas pode ser feito. — O rei lançou-lhe um longo olhar, depois se curvou. — Meu desejo é vê-la feliz.
Felicidade seria beijá-lo até desfalecer.
O colar tornou a cutucá-la. “Atenha-se ao plano, Izzy.”
“Então pare de colocar reis lindos e sensuais na minha frente, Viviane!”
O quarto de Isabel era a epítome das acomodações de luxo medievais. As paredes eram feitas com uma madeira rústica que cheirava a cedro, embora ela não tivesse certeza de que fosse. Os lençóis eram rosa e também num tom de verde típico da floresta. Ela contava inclusive com um aposento especial — se é que se podia chamá-lo assim — com uma espécie de urinol em cada canto. E, bem em frente à lareira, havia uma enorme banheira.
O fogo crepitava alegremente na lareira, banhando o quarto com um brilho rosado. No fim, em se tratando da época em que estava, aquilo podia ser considerado uma verdadeira suíte presidencial.
Os baús já haviam sido levados para o quarto, e Viviane pensara em tudo. Exceto no fio dental. E na escova de dentes. E no Listerine.
“Não estou gostando da ideia de ficar sem fio dental aqui, Viviane!”
“Paciência nunca foi uma virtude sua, não é mesmo, querida?”
“Não em se tratando dos meus dentes!”
“Vai obter ajuda em breve. Use o vestido vermelho-pálido que chamam de rosa no seu tempo... Parece que Lancelot adora essa cor.”
Rosa. A cor que ela menos gostava! Rosa não apenas apagava qualquer cor de seu rosto, como também a fazia se lembrar do tempo em que fora obrigada a bancar o algodão-doce em uma peça do quinto ano: “Um Dia na Quermesse”. Na verdade, queria ter sido o corn dog, uma daquelas salsichas envolvidas em massa crocante de milho .
Isabel deu um pulo ao ouvir uma batida na porta.
— Sim?
— É Mary, milady. Serei sua ama durante a sua visita.
— Entre, Mary, por favor.
— Estou com as mãos ocupadas, milady!
Isabel deu as costas para os baús e rumou para a porta.
— Ocupadas com o qu...?
Parou ao ver a bandeja carregada nas mãos da menina. Havia vários galhos aparentemente raspados de um lado, uma tigela pequena com o que parecia sal, um jarro de água e outra pequena tigela de verduras que cheiravam a hortelã.
“Tenho mesmo que usar isso nos meus dentes, Viviane?”
“Verá que é mais do que o suficiente para cuidar deles.”
— Não trouxe nenhum vinho? — perguntou Isabel, fazendo um sinal para que Mary entrasse.
A menina ensaiou uma reverência, o que fez tudo na bandeja oscilar.
— Já vou trazer, mil...
— Meu nome é Isabel, Mary. Se posso chamá-la de Mary, por favor, trate-me por Isabel.
— Oh, não, senhora! Eu não poderia.
— Poderia, sim, Mary. Na verdade, eu insisto.
— Por favor, condessa, não posso!
Isabel sorriu para a garota, que não podia ter mais de treze anos. Mary tinha também um cabelo vermelho e brilhante que teria feito Ronald McDonald morrer de inveja, além de sardas no nariz e nas faces. Foi difícil descobrir a cor de seus olhos, contudo, pois a garota não tirava os olhos do chão.
— Está bem. Não vou pedir por algo que a deixa constrangida. “Condessa” está bom para mim, se assim preferir.
— Sim, senhora. “Condessa”, senhora.
— Estamos combinadas, então. Por favor, traga as guloseimas.
Mary atravessou o quarto aos tropeços até a área de vestir, tirou tudo da bandeja, depois se virou com esta já vazia.
— Devo pedir a água para o seu banho, senhora?
— Isso seria uma bênção dos Céus!
Por fim, Mary levantou os olhos para encontrar os de Isabel, e esta pôde ver que eles eram da mesma cor de safira do colar com as lágrimas.
Isabel sorriu. Aquilo era um presságio.
— Creio que você e eu nos daremos muito bem, Mary.
— Também acredito nisso, milad... condessa.
— Eu adoraria um banho. Mas, antes disso, poderia me ajudar a encontrar o vestido rosa nesta bagunça?
— Rosa?
— Vermelho-pálido? — arriscou Isabel.
Mary mordeu o lábio, obviamente sem compreender.
— Sabe a cor que as suas bochechas ficam quando é cortejada por um rapaz? Ou quando está com vergonha por algo que acha que fez?
— Ah, sim! Embora no meu caso, senhora, esta seja vermelho-escuro. — Ela olhou para baixo e, em seguida, tornou a erguer a cabeça com um brilho no olhar. — Devo admitir que ela não combina com o meu cabelo.
— Duvido, Mary. Aposto que quando enrubesce faz muitos homens perder a cabeça.
Mary corou.
Caramba, Mary estava certa. Suas faces tinham ficado da cor de um caminhão de bombeiros!
— É muita gentileza sua, condessa. — Mary seguiu para o terceiro baú e tirou dele um lindo vestido.
— Ele é mais rosa-choque do que rosa, Mary.
— Não é este o seu rosa?
“Qual é a sua ideia de rosa, Viviane?”
“É quase isso. Pare de se preocupar com bobagens.”
— Acho que esta cor vai combinar muito bem com a sua pele, senhora. Se fosse um tom mais claro, não faria justiça à sua beleza.
Isabel sorriu, satisfeita. Uma camareira com excelente gosto, enfim.
— Você e eu vamos mesmo nos dar muito bem, Mary.
— Estou certa de que sim, milady.
Isabel não precisou nem mesmo perguntar quem, ou o que, dera a Mary essa certeza.
Tocou o colar mais uma vez.
— Traga o vinho e a água para o meu banho, por favor.
— Agora mesmo.
— Como é em se tratando de cabelos, Mary?
— Precisa de mim para ajudá-la com os seus, condessa?
— Muito.
— Então sou muito boa com cabelos, senhora!
Por mais primitivo que aquilo tudo fosse, Isabel sentia-se incrivelmente mimada. Os galões de água para o banho que haviam sido carregados até o quarto estavam muito quentes a princípio, porém Mary jogou lavanda e alecrim na banheira, o que foi muito relaxante. Em seguida, a menina cumpriu sua promessa, trançando-lhe o cabelo e enrolando-o em uma espécie de coque retorcido, com um longo e elaborado rabo de cavalo.
Para completar, Mary prendeu um broche de bronze no lado esquerdo de sua cintura. Quando Tom e Dick a escoltaram até o refeitório, Isabel sentia-se quase como uma soberana. E estava na hora de conhecer a verdadeira rainha, o que era o máximo.
No jantar daquela noite, Isabel acabou conhecendo tanto Lancelot quanto Guinevere. E Gwen, como o rei Artur a chamava, era tão incrível quanto podia ser. Era uma mulher linda e jovem, e “jovem” era o adjetivo mais perfeito para descrevê-la. Tinha os cabelos vermelhos, puxados para trás em um coque elaborado, e um colar de pequenas pedras preciosas enfeitando a testa absurdamente desprovida de marcas.
Isabel quis perguntar que creme aquela criatura usava no rosto, até que lhe ocorreu que Gwen não passava de uma criança. E ela, Isabel, não podia perguntar sua idade, muito menos traí-la, roubando-lhe o marido. Se Gwen não fosse tão doce, ela teria adorado odiá-la. A rainha emanava um perfume de pétalas de rosa, muito bem-vindo em comparação ao suor e ao odor de animais que invadia até mesmo aquele refeitório.
Claro que havia homens suados e cães perambulando por ali também, o que não era nenhuma grande surpresa. Isabel desejou ter prestado mais atenção aos ingredientes dos odorizantes de ambiente, de modo a tentar reproduzir algum ali.
O vestido de Gwen era de um prata cintilante, com um cinto de corrente elaborado envolvendo sua cintura minúscula. Aquele cinto não caberia no braço de metade dos homens musculosos que estavam em pé ao redor da gigantesca mesa retangular do refeitório.
— É uma honra tê-la enfeitando o nosso salão, condessa — falou Guinevere. — Estávamos ansiosos pela sua chegada. Meu marido me contou que sua visita tem como objetivo um tratado que irá beneficiar socialmente os nossos reinos.
Aquela era muito boa. Gwen não era nenhuma idiota. Também tinha as rédeas da política local. Haveria nada na moça de que ela pudesse não gostar? Algo além do fato de que Gwen contava com o luxo de dormir todas as noites ao lado de um homem que a estava tirando do sério?
Sentiu outro baque no peito.
“Será que pode parar de fazer isso?”
“Recomponha-se, querida. Curve-se à rainha e deixe o desejo para mais tarde!”
Isabel fez outra reverência profunda, que teria falhado se Tom e Dick não a tivessem segurado. Ela precisava praticar aquela coisa de se curvar.
— Fico honrada por ter sido convidada a vir até Camelot, Vossa Alteza. Agradeço muito por sua hospitalidade.
Gwen riu baixinho, o que também foi absolutamente perfeito.
— Por favor, Artur e eu não nos importamos com formalidades. A menos que queira que eu também me curve quando nos encontrarmos.
Horror dos horrores. Isabel teve um flashback do que era estar no Extremo Oriente, em meio àquela história de “você se curva, eu me curvo, você se curva”, até ver quem se curvava por último.
— Por mim está fechado — concordou de pronto, depois quase gemeu com os olhares confusos ao redor. — O que eu quero dizer, Alteza, é que devemos mesmo dar um descanso aos nossos joelhos.
Desta vez, Gwen realmente sorriu.
— Parece-me uma excelente sugestão. Quem sabe esse hábito de se curvar não seja o motivo de tantos males nas costas de nossos homens?
— Pode estar certa disso — concordou Isabel. — Talvez uma boa sessão de quiropra...
Tum!
Isabel precisou se esforçar para não reagir à batida em seu peito.
— O que eu quis dizer é que um dos meus homens, Dick, aqui, é uma maravilha com problemas nas costas. — O que não era mentira. Dick era seu massagista no mundo normal e fazia verdadeiros milagres, considerando o quanto ela precisava se contorcer para conseguir as imagens certas nas fotos. — Talvez ele possa operar alguma magia naqueles que estão com problemas.
Muitos dos homens em pé, ao lado da mesa, esfregaram as costas e abriram seus sorrisos sem dentes para Dick. Até mesmo algumas das criadas se arriscaram a fazer o mesmo.
Dick chutou Isabel na perna enquanto sorria abertamente. Em seguida curvou-se mais uma vez.
— Estou a seu dispor, Vossa Alteza. E, se me permite acrescentar, Tom, aqui, é especialista em dentes. Se tiver alguém no castelo que necessite de seus serviços, ele estará mais do que disposto a atender.
Tom empalideceu diante de todos os sorrisos desdentados que se voltaram em sua direção.
— Sempre ao seu serviço, Majestade — murmurou, esticando a perna para acertar Dick. Consternado, lançou a Isabel um olhar do tipo “Onde foi que você me meteu?”, e ela deu de ombros. Afinal, não fora ela quem havia mencionado aquele detalhe.
Nesse momento, Harry veio mancando do salão principal, o cabelo ainda molhado por ter tido que se mostrar apresentável, o andar demostrando que ele ainda sentia o coice que levara nas bolas. Sem dúvida, devia ter doído bastante.
— Este é Harry — anunciou Isabel. — Mais um dos meus homens. Ele é incrível com os bichos. Harry é meu veter... Ai! — Isabel deixou escapar com o novo baque no peito, e todos olharam para ela. — Digo, meu mestre em animais e amigo dedicado h á muitas luas. Assim como Tom e Dick. Em Dumont, somos todos amigos, trabalhando em conjunto.
Fez-se silêncio enquanto Harry tentava se curvar diante de Artur e Gwen, o que dava a impressão de ser doloroso para todos. Cada homem no salão pareceu se encolher.
Mas, em seguida, todos seguiram o exemplo do rei, erguendo as canecas.
— Imagino que tenha tomado um bom coice de Trapaceiro, mestre Harry — comentou Artur. — Ele sempre foi um tanto preciso com aquelas patas.
— Espere um minuto — interveio Isabel. — Tem um cavalo chamado Trapaceiro?
Foi Gwen quem falou primeiro:
— Receio que Trapaceiro seja meu. Aceite as minhas desculpas, senhor, pelos... excessos do meu cavalo. Sir Ronald, de Reagan, me presenteou com Trapaceiro em minhas núpcias. É um belíssimo garanhão, porém ele pode ser um tanto quanto temperamental, ainda que não tão caprichoso como a maioria.
Harry se curvou outra vez. Em seguida, voltou-se para Isabel.
— Ele não há de se exceder novamente tão cedo. O filho da puta quase arrancou as minhas bolas — completou num cochicho.
— Não me diga que...
— Nenhum Trapaceiro vai se meter mais comigo. Nunca mais. E foi ótimo.
Na mesa de jantar, Artur passou mais alguns minutos apresentando seus próprios homens.
James era o primeiro deles, qual fosse o significado disso. Era maior do que muitos lutadores profissionais, portanto, Isabel deduziu que se tratava de uma espécie de guarda-costas.
Tristan, o segundo homem — que era apenas um pouco menor do que James e que ela reconheceu do encontro na floresta —, inclinou a cabeça. Ela acenou para o rapaz, torcendo para que ele não tivesse visto seu traseiro nu enquanto ela havia parado para fazer xixi. Mas, infelizmente, Tristan sorriu para ela de um modo que lhe deu a certeza de que, sim, ele a vira!
E assim prosseguiram as apresentações de vários outros sujeitos importantes para Artur ou Gwen. Era uma confusão aquela mesa.
Por fim, ela foi apresentada a Lancelot, que se levantou e curvou-se mais do que todos os outros. Era aquele o alvo dela, contudo nenhum de seus hormônios pareceu ganhar vida.
Lancelot, corando, parecia tão tímido quanto um tímido poderia ser. Era um belo rapaz, sem dúvida, com cabelos castanho-claros entremeados com mechas finas, douradas pelo sol, que ela adoraria desafiar seu cabeleireiro, Pelo, a fazer. Quando Lancelot conseguiu encontrar seu olhar, Isabel percebeu que ele tinha olhos castanhos, os quais pareciam mais verdes do que marrons no momento por conta da túnica verde-floresta que trajava. O rapaz também se atrapalhou em sua saudação, o que ela achou adorável, mas nem um pouco sexy. Bem diferente da risada calorosa com que o rei Artur a havia recebido! Droga. Mil vezes droga! Nem uma única célula de seu corpo se acendera na presença de Lancelot!
O restante dos homens do rei se comportou com certo mau humor durante a ceia, e Isabel desconfiou de que aquilo se devia ao fato de ela ter solicitado a presença de seus próprios homens.
Sentiu-se inquieta. Sua atração por Lancelot se igualava a zero. Bem menos do que a que sentira pela enguia conservada em salmoura à sua frente, durante o jantar. E infinitamente menor do que pelas piadas de Hester, o bobo da corte, as quais eram mais do que sem graça.
Assim como ele próprio, de certa forma. Hester devia estar com seus 70 anos, e as vestes azuis e roxas imitando seda não faziam muito por sua pele opaca. O pobre se esforçava muito para entreter a multidão, e Isabel acabou concluindo que ele devia ser boa gente.
Artur piscou para ela, e Hester fez o mesmo antes de se curvar e de se despedir.
— Que divertido, não? — comentou Isabel. Ninguém concordou com ela. Exceto Artur, que não conseguia parar de sorrir.
Uma tonelada de alimentos foi trazida para a mesa. Carne em sua grande maioria. E, mesmo não sendo nenhuma vegetariana — não completamente, mas na maior parte do tempo —, Isabel se viu contrariada. Principalmente com a carne. Javali, coelho, esquilo e, Santo Deus! , mais enguias em conserva. Os melhores pratos, em sua opinião, eram o repolho e a beterraba... Que estavam longe de ser seus vegetais favoritos.
Nunca fora de beber, mas naquela noite estava bebendo feito um marinheiro, na esperança de que o álcool a ajudasse em sua missão. E também na tentativa de comer a enguia sem vomitar, assim como para tentar seduzir o jovem cavaleiro que lhe parecia tão intragável quanto o resto.
“Está brincando comigo, não é, deusa? É mesmo uma missão impossível!”
“Precisa tentar, Izzy. Pense em Merlin.”
Até o momento, não estava dando certo. Lancelot até era bonitinho, se você gostasse de garotos. O que ela adorava quando menina. Mas, por mais interessante que fosse, era jovem demais. Menino demais.
O pior era que não parecia nem um pouco interessado nela, também. Lancelot só tinha olhos para Gwen. O que era evidente para todos no salão, exceto para o rei Artur, tão concentrado, conversando sobre aquela importante reunião com outros cavaleiros do reino, que parecia alheio aos olhares trocados entre Gwen e o belo rapaz. Todos na mesa percebiam e torciam os lábios, porém nada podiam fazer, uma vez que o rei não se manifestava. Ou Artur os proibira até mesmo de pensar na possibilidade, ou cuidara para que ninguém fizesse qualquer comentário a respeito.
Isabel se viu mais do que constrangida com a situação, contudo possuía outras coisas a lamentar.
Como a enguia.
Como seu total desinteresse por Lancelot.
Como o total desinteresse de Lancelot por ela.
Ou como o total interesse de Guinevere por Lancelot.
Ela estava no meio de um verdadeiro caos divino.
Não podia controlar tudo, mas havia algumas coisas sobre as quais ainda possuía algum domínio. Educadamente, pediu que uma criada retirasse a enguia, o javali, o coelho e o esquilo; em seguida, pediu licença e foi vomitar.
Capítulo Seis
Verdade que ela estava um pouco tonta. Mas não tanto a ponto de não notar Gwen e Lancelot pedindo licença quase ao mesmo tempo. Eles nem mesmo tentaram disfarçar!
Isabel sentiu o coração se apertar por Artur. Ele precisava saber! No entanto, o rei não parecia nem desconfiar. Ou então não se importava.
— Gostaria de fazer um passeio pelo castelo, condessa? — indagou Artur, assim que a ceia teve fim.
Abençoada Mary. A criada havia ido a seu encontro no quarto, carregando uma tigela de hortelã. Caso contrário, seu hálito estaria derrubando árvores!
— Eu adoraria, senhor. — O que ela queria mesmo era um passeio por aquele corpo. Mas o castelo teria que servir, por ora.
— Os jardins... — comentou Artur. — Gwen gosta muito deles. Por alguma razão que desconheço, ela cuida dos jardins quase todos os dias, embora tenhamos um verdadeiro exército de jardineiros.
— Todos temos nossos passatempos favoritos.
— E qual seria o seu, condessa?
Fotografia foi o que veio à mente de Isabel, entretanto ela duvidou que pudesse explicá-la a ele. Sexo também estava no topo de sua lista. Ou tinha estado no começo do dia. Quem sabe estivesse, ainda, no final daquela noite. Ela adoraria fazer amor por ali, mas não com Lance, e sim com o rei.
— Gosto de me exercitar. De praticar esportes, por assim dizer.
A surpresa no rosto de Artur foi tão adorável que ela quis beijar aquelas sobrancelhas erguidas.
— Esportes? Como quando se faz os cavalos se exercitar?
— Bem, sim, mas muito mais do que isso. Por exemplo: eu adoro praticar jogging .
— Jogging? O que é isso?
— Corrida de longa distância.
Artur riu.
— E faz jogging trajando vestidos?
Ali estava a chance pela qual ela estava esperando.
— Na verdade, em Dumont, as mulheres que gostam de praticar tal exercício usam versões menores das leggings dos homens.
— Como assim?
— Acreditamos que as mulheres têm tanto direito a fazer o que gostam quanto os homens. Consegue imaginar as que gostam de correr fazendo isso com vestidos? Absurdo. Assim, em Dumont, quando as mulheres sentem a necessidade ou a vontade de se alongar e fortalecer os músculos, elas usam o que chamamos de “roupa esportiva”.
Artur coçou a barba, e Isabel teve a nítida impressão de que ele tentava disfarçar uma risada.
— E o que, por todos os deuses, você, digo, elas , usam na parte de cima?
Isabel imaginou que falar em “top” era, provavelmente, ir longe demais.
— Usamos uma veste chamada “camiseta”. É uma espécie de túnica larga e curta, feita com tecido macio para dar conforto.
Artur balançou a cabeça.
— Pelo visto meus homens falharam muito em seus relatórios acerca de Dumont.
— Deixando de lado o fato de ter enviado seus homens para me espionar, deixe-me perguntar uma coisa: que tipo de passatempo ou prazer proporciona às suas criadas?
— Passatempo? Prazer?
— Você permite que Gwen tenha seus passatempos?
— Claro. Ela é minha rainha e minha esposa.
— E suas empregadas não estão autorizadas a fazer coisas que as tornam felizes? Acha mesmo que, por conta de seu sexo, elas não podem realizar atividades que apreciam?
— Meu povo não é infeliz, é? Ouviu alguma queixa?
— Não, senhor. Nenhuma. Mas será que elas se queixariam na minha frente?
A expressão preocupada do rei a enterneceu.
— Elas lhe pareceram infelizes?
— Mais uma vez, não. Na verdade, elas me parecem muito leais ao seu rei. Mas considere a possibilidade de permitir que elas, por exemplo, usem uma pequena parte de seu dia para seguir seus próprios sonhos; para praticar seus hobbies favoritos. Pense no quanto elas ficariam mais felizes ao dar conta das tarefas do dia a dia sabendo que têm uma pequena parte do tempo para relaxar. É possível que descubra benefícios em seus hobbies que você e Camelot jamais imaginaram.
Artur sentou-se pesadamente, parecendo imerso em pensamentos.
— Está me dando muito que pensar.
Isabel segurou a mão dele.
— Então, pense. Uma equipe feliz significa um castelo mais feliz. Você, Gwen e seus principais homens é que vão colher os frutos do trabalho dos empregados. Que tal permitir que eles mesmos desfrutem dessas benesses? Por que você, Gwen e eu podemos seguir nossos corações, e aqueles que trabalham para nós, não?
Ele bufou tal qual um baiacu.
— Não impeço minha equipe de ir atrás dos seus próprios desejos! Não reparou na quantidade de crianças?
Isabel quis rir, mas se controlou.
— Amor e crianças serão sempre uma realidade; não importa o que aconteça. Estou me referindo a outros prazeres.
— E que outros prazeres existem?
— Ora, por favor. Fazer amor é, sem dúvida, um deles. Mas existem outros. Gwen gosta de jardinagem. Minha camareira adora arrumar cabelos. Eu gosto de correr e amo desenhar. As possibilidades são infinitas! Poderíamos fazer uma pesquisa e descobrir o que deixa as pessoas felizes. E, em seguida, permitir que corram atrás de seus sonhos.
— Uma pesquisa?
— É uma oportunidade para que elas falem sobre o que gostam. E, possivelmente, para que também revelem do que não gostam.
Artur parou de coçar a barba, pôs-se de pé e passou a esfregar as têmporas.
Aquilo era comum na vida de Isabel, e ela não ficou surpresa. Logo ele estaria pedindo uma bebida, pensou. Poderia quase apostar.
— Você é uma mulher um tanto quanto incomum, Isabel — falou Artur, por fim. Em seguida deu um passo para a esquerda e bateu um sino. Em segundos, Tim apareceu. — Vinho, Timóteo, por favor. E duas taças.
Ela suspirou. Precisava tanto de mais vinho como precisava de enguias. Mas que se danasse.
— Não é o primeiro a me dizer isso. Sobre eu ser incomum, quero dizer.
— É incomum, e de uma forma muito intrigante.
— Sei. De uma forma que leva os homens a beber.
— De uma forma que leva os homens a refletir enquanto aproveitam um bom trago.
Isabel tentou resistir à indireta por causa de Viviane.
— Não deveria compartilhar esse tipo de coisa com a rainha?
— Gwen gosta de aproveitar a noite para fazer essas... — ele fez um gesto vago com as mãos — ... coisas que as mulheres gostam de fazer.
“Aposto que sim.” Já ela preferia as manhãs para aquele tipo de atividade. Mas não mencionaria tal coisa.
— Ela é adorável — comentou, brincando com o colar. Você deve amá-la muito.
A hesitação de Artur foi palpável enquanto seus olhos se fixavam no colo dela.
— Como se espera que eu ame. Ela é minha esposa. — Sentou-se, depois se levantou de novo e começou a andar. De repente, parou e voltou-se para Isabel, os olhos verdes atentos. — Já amou, condessa?
— Por que me pergunta?
— Nunca se casou.
— Não? Quero dizer, claro que não. Mas, Artur, parece saber tanto a meu respeito! — Muito mais do que ela mesma sabia sobre a condessa, na verdade. Até o momento, não tinha a menor ideia se fora casada ou não.
Pelo visto, não.
“Meu Deus, Viviane, eu não sou nenhuma virgem! ”
“ É verdade, Isabel. Não considera isso uma vantagem? ”
“Mas Artur acha que eu sou!”
“Então se considere uma atrevida e pare de se preocupar com a idade!”
— Como obteve todas essas informações sobre mim?
Ele pareceu adoravelmente confuso.
— Não tenho muita certeza. Na certa foram detalhes que meus homens reuniram enquanto inspecionavam Dumont.
— Por que mandou seus homens me investigar?
Mesmo sem graça, Artur continuava lindo.
— Mil desculpas, condessa, mas seria errado eu não me informar ao máximo antes de sua chegada.
Eles foram interrompidos por Tim, que chegou trazendo uma bandeja contendo duas taças. O rapaz a ofereceu primeiro a ela, depois a Artur, curvou-se quando eles o agradeceram e se retirou, discreto, sem nenhum traço de desconfiança no rosto quanto ao que devia ser uma situação incomum. Isabel não era nenhuma entendida no assunto, porém tinha certeza de que o líquido em sua taça era brandy , conhaque ou alguma bebida medieval equivalente. Com certeza não parecia nem cheirava a vinho.
Artur rodou a bebida antes de tomar um gole.
— Como é possível que um homem não consiga assumir o controle de seu coração?
— Eu não disse que o meu coração nunca teve dono, senhor. — Na verdade, ele parecia completamente arrebatado no momento, e ela conhecia o homem havia menos de vinte e quatro horas. — Apenas não conheci ninguém que me fizesse fazer os votos — explicou, sorrindo. — Eu os levo a sério demais para dizê-los a esmo. — Assim que as palavras saíram, Isabel quis dar um tapa na testa. A dor na expressão de Artur quase cortou seu coração. — Mas — acrescentou depressa — tenho certeza de que vou conhecê-lo, e também a essa coisa indescritível chamada amor, assim que eu o vir.
Ele baixou os olhos.
— Faz sentido para mim. Você é... Como dizem, mesmo? Única.
— Talvez. Por que está me perguntando esse tipo de coisa, Artur?
Ele fitou o colar, depois tornou a erguer o olhar. E seus lindos olhos pareceram lhe invadir a alma.
— Porque sinto vontade de beijá-la desde o momento em que nos conhecemos, senhora. Sei que é errado. Os lábios de minha esposa deviam ser os únicos a tocar os meus. No entanto, sua boca me fascina. — Artur deu-lhe as costas. — Isso não foi nada correto. Por favor, esqueça que falei tal absurdo. Não sei por que não consigo controlar minha língua a seu lado.
Isabel tinha a sensação de que sabia por quê. Havia um preço a pagar pelo poder do colar e, aparentemente, ela não seria a única a fazê-lo.
“E agora, deusa? Eu também quero a mesma coisa!”
“Droga. As coisas não estão acontecendo como eu previ.”
“Vou fazer o que puder para resistir.”
Viviane ponderou por algum tempo, mas foi por menos de um segundo, porque Artur não se moveu — como se ela o tivesse congelado no tempo enquanto concatenava as ideias.
“Uma encruzilhada nesta estrada parece haver, onde um pesado fardo hás de carregar. De um jeito ou de outro, o que vai ser? A felicidade de Merlin é o que me vai importar.”
“Mas...”
“Espera, ainda não terminei: tua alegria e a de Artur importam também. Em meu egoísmo, não pensei nisso antes... Na encruzilhada de que há pouco falei, deves seguir o caminho mais importante. Acredito agora que fazes o necessário. A felicidade de Artur, do meu homem, é o norte... Escolhe teu caminho, pois, e faz a tua sorte.”
Bem, aquilo ajudava um pouco, concluiu Isabel.
Ou não. A deusa estaria deixando tudo por sua conta? E se ela estragasse as coisas e todos saíssem perdendo? Iria se sentir péssima!
Ou, então, se realmente pusesse tudo a perder, não sentiria nada, porque estaria morta no fundo do Grand Lake.
Ela respirou fundo. Nunca fugira de suas responsabilidades antes. Mas aquele era um fardo para o qual não tinha certeza de estar preparada.
Endireitou os ombros e se pôs atrás de Artur, tocando-lhe o ombro. Ele se moveu, por fim, e se virou para ela com os olhos claros cheios de arrependimento.
Isabel sorriu de leve.
— Por favor, não se desculpe, Artur. Eu estaria mentindo se dissesse que não achei sua confissão lisonjeira e emocionante. Senti o mesmo quando se materializou por trás daquela árvore.
— Está sendo gentil.
Ela riu.
— Esta aí uma palavra que não costuma aparecer em uma frase a meu respeito. Mas não, senhor, gentileza nada tem a ver com isso. Foi honesto comigo, e eu lhe devo no mínimo o mesmo.
— Então eu posso? Somente desta vez? — indagou ele.
— Mas e quanto à sua esposa, Artur? Isto não seria uma traição?
Ele bufou.
— Traição. Eis uma palavra que eu conheço bem.
— Como assim?
— Posso parecer um tolo, Isabel, mas eu lhe asseguro: não sou. Não sou cego para o que acontece à minha volta. Talvez esteja até consciente demais.
Uma vez que ela havia acabado de chegar, ponderou Isabel, não haveria como saber sobre Gwen e Lancelot, a menos que houvesse escutado algum mexerico das criadas. E não iria colocar Mary em apuros por algo que a pobre não tinha feito.
Fingiu ignorância.
— Não sei o que o aborrece, Artur, portanto, não tenho palavras para consolá-lo.
A risada do rei saiu cheia de amargura.
— Já revelei mais a você, que é quase uma estranha para mim, do que aos homens de minha maior confiança.
Isabel recuou um passo até o banco e sentou-se. Em seguida, bateu no lugar ao lado.
— Por favor, junte-se a mim. Posso ter uma teoria sobre esse assunto. — Tomou um bom gole da bebida e, para sua surpresa, ela lhe caiu muito bem.
— Então, por favor — pediu ele, sentando-se a seu lado. — Deixe-me ouvir sobre essa sua teoria.
Isabel brincou com o colar, certificando-se de que a atenção de Artur se voltasse para ele por alguns instantes e torcendo para que o poder das lágrimas surtisse algum efeito.
— Acredito, senhor, que às vezes é bem mais fácil desabafar nos ouvidos de quem não está tão intimamente envolvido na situação. Uma visão não partidária, digamos assim.
— Não partidária?
— Daquele que tem pouco ou nenhum interesse no assunto. De quem não pende para nenhum lado.
O que não deixava de ser uma mentira porque, se ela iria escolher qual caminho tomar naquela encruzilhada, tinha muita coisa em jogo. Sem dizer que, por mais agradável que Gwen fosse, ela, Isabel, estava sem sombra de dúvida do lado de Artur.
A prematura noite de verão veio quente e mesclada com a fragrância dos lilases e do óleo das duas lanternas altas, posicionadas em ambos os lados da trilha coberta de musgo que dava para os jardins. A Lua seguia linda no céu escuro, contudo não ajudava muito, estando apenas em seu quarto crescente. Grilos enchiam o ar com seus silvos e cricris, os quais soavam, de certa forma, reconfortantes.
Artur não pareceu se conscientizar da atmosfera ao seu redor conforme olhava do rosto dela para o colar, depois novamente para ela.
— Por acaso seria essa pessoa apartidária?
— Se quiser que eu seja...
Ah, que maravilha! Ela havia acabado de se candidatar a ouvinte do rei. A ser sua psicóloga. Freud devia estar se revirando no túmulo àquela altura! Por outro lado, o que ele estava prestes a revelar poderia deixá-la tão revoltada que talvez ela parasse de olhar para aquelas mãos grandes e morenas. Para aqueles lábios. Para aqueles olhos.
— Por onde posso começar? — perguntou-se Artur, parecendo perdido.
— Por onde quiser. Como quiser.
Ele se levantou e começou a andar outra vez.
Nossa. Que traseiro! Que coxas e ombros! Seus homens, sem dúvida, não eram os únicos a pegar no pesado enquanto Artur ficava no trono.
Ele parou e a fitou, por fim.
— Fui eu quem teve a ideia. Imaginei que ela fosse beneficiar a todos: os moradores de Camelot e também os das terras vizinhas. Que fosse unir os cavaleiros de todos os reinos para que pudéssemos nos encontrar e discutir uma maneira de criar tratados que beneficiassem a todos, e que nos permitissem conviver em paz, com alegria e prosperidade.
— Parece-me um bom plano. — Provavelmente impossível, mas um dia, talvez...
Artur abriu os braços.
— Para mim também! Eu esperava que... Talvez, na minha arrogância... Que isso pudesse definir o meu legado como rei.
— Não há nada de arrogante em querer deixar uma marca no mundo, senhor. Não é o que todos esperamos conseguir durante o nosso tempo na Terra? Deixá-la melhor por conta de nossas atitudes?
Ele levou as mãos aos quadris.
— Eu quero mesmo beijá-la, condessa!
“Ah, eu também! Vamos, diga alguma coisa que me dê algum desgosto!”
— Sua história está apenas no começo. Por favor, continue — falou, em vez disso. — Vamos discutir essa outra parte assim que me revelar por que traz essa tristeza nos olhos.
Ele voltou para o banco e sentou-se, tomando um longo gole do cálice antes de pousá-lo. Então segurou a mão dela e passou o seu polegar sobre a palma.
Ela devia ter objetado, pensou Isabel. Devia ter se afastado. Mas foi um gesto tão suave que ela teve a mesma força de vontade das mariposas para evitar as lanternas.
Artur meio que balançou a cabeça.
— A reação dos cavaleiros foi positiva. Devemos nos encontrar aqui na próxima semana. Pedi que viesse à frente deles porque nossas terras fazem fronteira, e eu desejava conversar sobre o cultivo antes que os demais chegassem. E também — acrescentou ele, fitando-a nos olhos — porque talvez os cavaleiros não...
— ... aceitem uma mulher na mesa de negociação?
Artur concordou com um gesto de cabeça.
— Eu sinto muito.
— Isso não é problema. Podemos lidar com esse tipo de coisa mais tarde. E então... O que há de tão preocupante nessa reação à sua proposta? Não compreendo.
— É aí onde entra Lancelot.
Capítulo Sete
Isabel terminou o conhaque e também pousou o copo.
— Lancelot? Ele se sentou à nossa mesa esta noite, certo? Ele me pareceu um rapaz bastante agradável.
— Ha! — exclamou Artur. — Sim, de fato, é um rapaz bastante agradável. E também um dos lutadores mais habilidosos que já conheci. Tudo o que Lancelot precisava era de orientação, ou ao menos eu acreditava nisso. Em nossa convivência, senti que ele era o filho que eu sempre quis, o filho que eu nunca... fui capaz de fazer. Tanto que pedi que Lance viesse para Camelot com o intuito de integrá-lo à nossa guarda de segurança.
— E ele aceitou, claro.
— Sim. — Artur fechou os olhos. Em seguida, tornou a abri-los, fitando-a aberta e profundamente. — Lancelot também conquistou a admiração da minha esposa. Ele jurou que nos ajudaria a defender e a proteger Camelot. Jurou sua lealdade. No entanto, tornou-se óbvio que suas prioridades mudaram.
— Foi então que ele o traiu? Lancelot é agora uma ameaça para Camelot? — Fingir ignorância estava ficando cada vez mais difícil para Isabel. — E, se é assim, por que ainda o convida para sua mesa?
— Ele não representa uma ameaça para Camelot. Não tenho nenhuma dúvida de que Lancelot seria o primeiro a lutar em uma batalha caso... que os Céus nos livre... chegássemos a tal coisa. E também estou certo de que ele nunca teve a intenção de me trair.
— Mas traiu.
Artur olhou para o chão, quase como se não pudesse encará-la.
— Sinto, no fundo da alma, que Lancelot deseja ser fiel a mim. Mas também tenho absoluta certeza de que ele se apaixonou por Gwen.
— Não me diga. E quanto a Gwen?
— Creio que ela esteja correspondendo a seu amor.
— Ela disse isso?
— Não, não... Claro que não.
— Já perguntou isso a ela?
— Ainda não fui capaz de confrontá-la. Se a verdade for descoberta, as consequências serão gravíssimas. A infidelidade da rainha a seu esposo e rei é considerada traição punível com morte.
— Nossa... E ela por acaso está ciente dessa lei?
Artur abriu a boca para responder, porém um ruído no jardim atrás deles o fez silenciar. Ele levou um dedo aos lábios. Em seguida, cochichou:
— Fique aqui. — Ergueu-se e, em silêncio, se deslocou pela trilha sinuosa do jardim.
Isabel o observou se afastar, o coração disparado conforme Artur desaparecia nas sombras. Se alguém os estivesse espionando e escutado aquela conversa, as consequências seriam desastrosas. A coisa era séria demais para que ela ficasse ali, parada. Tensa, Isabel segurou o colar de lágrimas, perguntando-se se aquele era um daqueles momentos em que deveria colocar os poderes que ele detinha em jogo.
Então se lembrou do alerta de Viviane. Haveria repercussões para seu uso, e ela não queria nem pensar em quais elas poderiam ser. Se ela banisse o intruso, o que ela, ou eles dois, teriam como punição?
“Não temas, Isabel, este é meu encargo. Contigo Artur tem de aliviar seu fardo.”
“Ah, obrigada, Viviane! Você é um amor!”
Escutou uma risada suave na cabeça. Foi nesse momento que lhe ocorreu um detalhe.
“Ei, espere um minuto. Esteve nos observando e ouvindo o tempo todo? Isto é, ainda não escolhi o meu caminho, mas será que um deles pode me levar... para um pouco ou muito perto de Artur e...”
“Isabel, uma deusa eu sou. E tudo posso ver e ouvir; prometo, no entanto, nada observar se as vestes começarem a cair.”
— Que alívio! — falou ela, desta vez em voz alta.
— O que é um alívio, milady? — inquiriu Artur.
— Ah! — Isabel deu um pulo. Ele havia voltado tão silenciosamente quanto tinha ido.
Artur sorriu para ela.
— Mil desculpas. Eu não pretendia assustá-la.
— Eu... Eu estava apenas preocupada com a sua segurança. Está desarmado.
— Era somente um coelho. Não precisa se preocupar mais.
Em pensamento, ela se perguntou o que teria acontecido antes que Viviane interferisse.
Artur sentou-se de novo, depois a fitou e a acariciou no rosto com os nós dos dedos. Isabel mal conteve um gemido de prazer.
— Lamento ter falado dos meus problemas com você, Isabel.
— Acredite, suas dores e preocupações estão seguras comigo. Sinto-me honrada por tê-las confiado a mim, embora eu precise admitir: aborrece-me saber que alguém tão nobre tenha de lidar com tudo isso.
— E que não esteja lidando muito bem, receio.
— Converse com Gwen, Artur. Diga a ela como se sente. Permita que ela ao menos lhe dê uma explicação. Talvez suas suspeitas sejam infundadas. Ou talvez isso leve Gwen a perceber a gravidade de suas atitudes, e ela prometa parar antes que alguma coisa terrível aconteça com algum de vocês.
Ele assentiu.
— É muito sábia, condessa Isabel. Agradeço por ter me ouvido, e também por seus conselhos.
— Não há por qu ê , Artur. Espero que as coisas deem certo para todos nós... Quero dizer, para você.
— Teve um dia longo e cansativo, e eu a mantive acordada até tarde da noite. Talvez queira ir para o seu quarto.
— Estou longe de estar cansada, Artur, mas, se quiser se jogar na palha , vou entender.
Ele balançou a cabeça, rindo.
— Às vezes parece que falamos idiomas diferentes. Eu lhe asseguro que as camas dos quartos superiores são feitas de penas e muito confortáveis. Ao menos eu espero que as considere confortáveis.
Imagens deles testando o conforto da cama juntos afloraram na mente de Isabel. E, pelo brilho nos olhos de Artur, estavam tendo a mesma fantasia.
Ela limpou a garganta.
— Está pronto para se recolher, majestade?
— Sinto que poderia conversar com você a noite inteira, Isabel. Por que será?
E aquela agora? Como ela iria responder a tal pergunta? Porque quisemos pular um sobre o outro no momento em que nossos olhos se encontraram? Isabel optou por uma resposta mais recatada.
— Creio, senhor, que temos muito em comum. Muitos invejariam nossas posições, mas a verdade é que, às vezes, a nobreza é um tanto quanto solitária. — Ah, Deus, ela havia acabado de dizer aquilo mesmo? — O que quero dizer é que entendemos um ao outro.
— É uma boa mulher, condessa.
— Além do mais — completou Isabel, tentando trazer de volta um pouco de leveza —, na cavalgada até Camelot você riu de todas as minhas piadas de pontinhos.
Ele abriu o mais apaixonante dos sorrisos.
— Eu nunca tinha ouvido esse tipo de coisa. Devo dizer que adoraria viajar para Dumont um dia. Deve ser um lugar feliz.
Como, diabos, ela poderia saber?
— Rir é o melhor remédio — afirmou. Então quase gemeu. Chavões vinham saindo de sua boca a um ritmo alarmante. Estava precisando de uma terapia. — Você e a rainha serão bem-vindos ao meu castelo, a qualquer hora.
Uma sombra toldou os olhos de Artur, fazendo-a se lembrar do que eles haviam acabado de conversar.
Isabel segurou a mão dele.
— Desculpe-me, Artur. Você e seus homens também serão bem-vindos a qualquer hora. Podíamos fazer alguma coisa no estilo do The Bachelorette , aquele progr...
— Bachel... o quê?
— Esqueça. O que eu quero dizer é que as minhas portas estarão sempre abertas para você.
E ela lá tinha portas para abrir?
Isabel engoliu outro gemido. Deveria mais era cair dura e seca antes que se engasgasse com as próprias bobagens!
— Agradeço por tão hospitaleiro convite — respondeu Artur. — Um dia eu o atenderei.
Entreolharam-se por vários segundos. E, nesse meio-tempo silencioso, Isabel soube exatamente que caminho deveria tomar na encruzilhada.
Que os Céus a ajudassem!
Soltou a mão de Artur, ainda que relutante.
— Agora, antes de nos recolhermos, ainda tem que responder à minha pergunta, Artur.
Capítulo Oito
— Mil perdões, Isabel, mas eu me esqueci qual é.
Ela também tinha se esquecido!
“Eu ajudo: ‘Nossa... E ela por acaso está ciente dessa lei?’”
“Obrigada, Viviane!”
— Creio que perguntei se Gwen está ciente das consequências de seus atos, se é mesmo culpada dessa indiscrição.
— O que mais me entristece é que a resposta é “sim”. E está disposta a arriscar. Assim como Lancelot.
— Isso não é amor verdadeiro para mim. Não se Lancelot se dispõe a colocar Gwen em risco.
— Acredito que eles não possam evitar como se sentem. Quanto mais fico em sua companhia, mais compreendo. Há uma frase que minha mãe costumava dizer para mim quando eu era criança: “O coração só faz o que quer”. Não posso controlar os desejos do coração de Gwen, assim como não posso explicar como consegui extrair Excalibur. E assim como não posso explicar este sentimento que tenho por você.
Isabel não ficou apenas lisonjeada. Sentiu o corpo inteiro pegar fogo. Ou, pelo menos, os próprios hormônios. Contudo, mesmo que já houvesse escolhido o caminho, precisava bancar a advogada do diabo, uma vez que adultério ia contra todos os seus princípios.
— Artur, é possível que isso seja alguma retaliação? Está praticando o “toma-lá-dá-cá”? Está querendo magoar Gwen, assim como ela o vem magoando?
— Não sei o que é “toma-lá-dá-cá”, mas compreendo o termo “retaliação”. Se fosse esse o caso, eu teria escolhido assumir um sem-número de mulheres há muito tempo. Mas não é da minha natureza fazer esse tipo de coisa.
Isabel tinha certeza disso. Não sabia como, mas tinha. Artur não saltaria para os lençóis — ou, naquele caso, para as peles — da cama com outra mulher apenas para se vingar da esposa que o traía. E podia ter ido até mais longe, fosse ele um idiota vingativo. Podia ter exposto Gwen a qualquer momento, tê-la julgado, considerado culpada e mandado matá-la. Em vez disso, continuara a protegê-la — não importando o quanto aquilo o ferisse — dia e noite.
— Você ainda a ama muito — concluiu Isabel baixinho.
— Amo. Mas não como antes. Não da mesma maneira. Não é fácil olhar para a sua esposa e bancar o marido dedicado e carinhoso quando se sabe que ela anseia por outro.
De repente, Isabel se deu conta de que estava sóbria, mesmo após o delicioso conhaque. O torpor se fora, e sua mente estava limpa, o que deveria fazer com que seu juízo retornasse e retratasse a realidade. Mesmo assim, ela ainda queria aquele beijo. Mesmo sem estar sofrendo nenhuma “paixonite-relâmpago” causada pela embriaguez.
Aquele desejo permanente era um sinal.
Estava se apaixonando, porém com total compreensão do que aquilo significava. Merda. Precisara regredir vários séculos para encontrar um amor? O destino não era necessariamente cruel, mas tinha um senso de humor um tanto quanto distorcido!
— Não existe divórcio em Camelot?
— Divórcio?
— A dissolução do casamento? Anulação? Um “tchau” oficial?
— Entre um rei e sua rainha?
— Claro! Quero dizer... Em Dumont permitimos que os maus casamentos sejam anulados, de modo que os cônjuges fiquem livres para se casar outra vez.
— Sem motivo? Um deles não tem que admitir ter cometido alguma ilegalidade?
Isabel não tinha certeza de como explicar, portanto, resolveu falar de uma vez:
— Chamamos isso de “diferenças irreconciliáveis”. Ninguém é culpado. Apenas aconteceu. O casamento não é mais palatável para nenhum dos dois.
Artur ponderou por um bom tempo.
— Nunca ouvi falar disso. Quando há queixas em uma união, é minha função atribuir culpas. O homem ofendido será...
— Espere um pouco. Não me diga que é sempre o homem quem se declara ultrajado?
— Se a mulher se deita com outro, então...
— E se foi o homem quem traiu?
A risada do rei quase ecoou pelas paredes do castelo.
— Isabel, eu não conheço as leis em Dumont, mas, em todas as outras terras da Bretanha, os homens são...
— Considerados de uma forma diferenciada. Claro.
Ele franziu a testa.
— Estou confuso com essa sua reação negativa.
— Sinto muito, Artur, mas acabei de perceber que existem dois pesos e duas medidas aqui. Eu não devia estar surpresa. Não devia estar descontando em você a minha irritação... As coisas são como são.
— No entanto, peço desculpas se a ofendi.
“Para com isso, Isabel, e dê-lhe um desconto. Apenas tu podes ensiná-lo a ver de outro ponto!”
— De modo algum — contrapôs ela depressa. — Tem sido muito gentil. É culpa minha reagir tão negativamente a respeito de algo que você não pode compreender.
Artur balançou a cabeça, rindo.
— Pois eu gostaria de voltar a esse assunto em outra ocasião. Você me intriga, Isabel. Estou ansioso para termos muitas outras conversas.
— Eu também.
Ela jamais saberia o que a levou a dizer aquilo, mas acrescentou:
— Artur, antes que faça algo de que possa se arrepender, é hora de ter uma conversa com Gwen. Revele seus sentimentos.
— Gwen não faz ideia de que sei de tudo.
— Então, conte a ela. — Isabel deu de ombros. — Peça-lhe que faça uma escolha. Afinal de contas, o coração é que manda.
— Neste exato momento, não sei qual resposta eu preferiria, Isabel.
Ela fez uma reverência, desta vez um pouco melhor do que antes.
— Estou ansiosa por nossas futuras conversas, Artur.
E, Deus, também estava ansiosa por um beijo. Por muito mais. Porém não naquela noite. Sua atração por Artur era inebriante, contudo ela não estava disposta a beijar um homem casado se ele se propunha a fazer o mesmo apenas para mostrar à esposa que também era capaz de trair dentro do casamento.
Artur se inclinou, depois endireitou o corpo e a fitou nos olhos.
— Eu a queria esta noite. Mas compreendo sua relutância. E aceito sua decisão.
— Agradeço muito, senhor. Quer um conselho? Do fundo do coração? Converse com Gwen.
— Confesso que temo ouvir as explicações dela.
— Seja homem, rei Artur.
Capítulo Nove
Artur entrou em seu dormitório, e Gwen já estava lá, esperando por ele.
Tinha o roupão aberto e os cabelos castanhos caindo sobre os ombros. Pouco tempo antes, a simples visão dela o deixaria excitado e pronto para pegá-la nos braços e levá-la direto para as peles da cama. A verdade era que, até depois do que ficara sabendo, decerto ainda faria tal coisa. Por isso mesmo, ficou surpreso que, pela primeira vez, a visão do corpo belo e jovem não deixou seu membro rijo como um pilar de dossel. Na verdade, seu membro não levantaria uma pulga de um cão no momento.
Quando deixara de desejar a esposa? Quando havia parado de amá-la? Não antes que suas suspeitas tivessem sido confirmadas.
Ele bem que tentara reconquistá-la com sexo e romantismo, contudo a reação de Gwen a seus gestos de amor ficaram óbvias. Ela já não o desejava como antes. O que mais o chocava, no entanto, era que, naquele momento, ele próprio já não a desejava. Os olhos azuis e os cabelos dourados de uma mulher de palavras e ideias inteligentes continuavam povoando sua mente. Não conseguia tirar Isabel da cabeça.
Gwen caminhou até ele. Cheirava a sexo, e ele teve ímpetos de recuar e pedir-lhe que se banhasse.
— Onde esteve, Artur? — perguntou com estranheza.
— Estive conversando com a condessa — respondeu ele, sem dizer nenhuma mentira. — Tínhamos muito a discutir sobre as nossas terras.
Aquilo também era verdade, de certa forma. E ele ficara tão intrigado com as opiniões de Isabel acerca das leis e dos reinados! Estava ansioso para viajar a Dumont na primeira oportunidade a fim de ver na prática as outras tantas maneiras que ela mencionara de governar um reino.
A inverdade, ali, era que havia desejado estar com a condessa de muitas outras formas... E de todas as que ele costumava adotar com a esposa após um longo dia. Não era uma espécie de mentira não expressar tal pensamento? Ali estava outra pergunta que se encontrava ansioso por fazer à condessa quando tivessem a chance de discutir assuntos tão intrigantes de novo. Mal podia esperar para mergulhar ainda mais em suas ideias. E, verdade fosse dita, para mergulhar nela de outras maneiras, também.
Artur começou a se despir, e Gwen se aproximou por trás dele.
— Vamos pedir água para um banho?
O toque dela costumava lhe provocar muito prazer, mas, no momento, ele teria apreciado arrancar aquelas mãos de seu corpo.
Pensou nas palavras de Isabel, e a decisão lhe veio num flash . Já era hora de acabar com aquela farsa.
— Eu sei de tudo, Gwen.
— Não compreendo... Sabe o quê?
Artur virou-se para encará-la.
— Sobre você e Lance.
Gwen deixou cair o queixo.
— O que está dizendo, Artur?
Ele olhou para a mulher que um dia tinha amado com todas as forças.
— Negar é triste e inútil. Está cheirando a sexo... E ainda me convida para tomar banho com você? Onde está sua fidelidade, Gwen? Aonde foi parar o seu amor? Por favor, se ainda lhe resta algum sentimento por mim, não minta, mulher!
Os olhos azul-acinzentados se encheram de lágrimas.
— Ah, Artur, eu sinto tanto!
— Por eu ter descoberto?
— Eu juro... Eu nunca quis que isso acontecesse.
No fundo da alma e do coração, ele acreditava nela. Gwen era uma das mulheres mais atenciosas e carinhosas que ele já conhecera. Ela jamais iria ferir uma pessoa, uma flor ou um animal de propósito. Ele ainda a amava.
Só não estava mais apaixonado por ela. A paixão havia lentamente arrefecido, primeiro com as suspeitas, depois quando a certeza criara raízes suficientes para sufocá-la. Era a parte mais triste daquele descalabro.
— Vou acabar com tudo. Eu prometo.
Ele balançou a cabeça.
— Não se pode controlar o coração. Não vai conseguir pôr fim nisso, assim como não conseguiria pisotear suas adoradas peônias.
— Eu te amo, Artur! — afirmou ela, torcendo a camisola.
— E eu também te amo, Gwen. Mas, por favor, não finja me querer quando deseja outro. Eu a protegerei com a minha vida; contudo, não vou fingir em nossa cama. E também não suportarei que continue fingindo. Não é justo comigo nem com Lance. — Ele suspirou. — Na verdade, só quero um banho agora... Sozinho. Antes de eu vir para cá, tomei algumas providências. Meu banho está sendo preparado no quarto ao lado, onde também irei dormir.
— Artur!
— Você, minha querida esposa, foi quem fez a cama onde vai se deitar agora. Meu único pedido, ou melhor, exigência, é absoluta discrição. Não poderei protegê-la se você mesma não se proteger.
— E... E quanto a Lancelot?
Até mesmo ouvir o nome de seu confiável cavaleiro saindo dos lábios de Gwen era uma punhalada em seu coração, concluiu Artur. Sua infidelidade fora insuportável, mas saber com quem ela dividia a cama quase o matara.
— Eu trouxe Lance para cá, Gwen. Eu o tive sob as minhas asas, fiz dele um dos meus soldados mais valiosos... Lance era como um filho para mim. Sua traição também é difícil de lidar.
— Vai bani-lo, então? — Não havia nem uma ponta de súplica nos olhos de Gwen. Apenas a triste consciência de que aquela seria a solução mais óbvia, a conclusão mais óbvia.
— Não.
Ela jogou a cabeça para trás, surpresa.
— Como? Ouvi bem?
— Ouviu. Preciso de Lancelot para a prosperidade e a segurança de Camelot. Ainda não consegui perdoá-lo, mas consigo compreendê-lo. Não se esqueça de que eu também já estive na mesma posição em que Lance está. Eu teria feito qualquer coisa por você.
— É muito doloroso ouvi-lo falar no passado, embora eu saiba que foi o meu próprio erro que provocou tudo isso.
— Exigirei discrição tanto dele quanto de você, Guinevere. Total discrição, para o bem de ambos. Porque, se forem pegos, eu não poderei proteger mais nenhum dos dois. Isso está claro?
Ela colocou a mão em seu peito.
— Prometo que o farei, Artur, do fundo do meu coração. Vamos parar com essa... coisa entre nós. Lancelot o ama tanto quanto eu. Nenhum de nós jamais iria querer lhe trazer vergonha ou desonra.
A gargalhada de Artur a assustou.
— Receio, minha doce Gwen, que o portão já esteja aberto, que os cavalos já tenham passado por ele e deixado o castelo há muito tempo.
— C-Como?
— É tarde demais.
Capítulo Dez
Isabel não conseguia dormir. A cama era mais do que confortável, embora ela desconfiasse de que a Sociedade Protetora dos Animais não fosse aprovar a pele que a cobria. Tinha virado de um lado para o outro, de costas e de barriga para cima, mas nenhuma posição permitia que sua mente parasse de funcionar e ela caísse no sono, fosse ele tranquilo ou não.
E dormir um pouco cairia tão bem no momento!
A porta se abriu em silêncio, e apenas a luz das lanternas do corredor que incidiu através do quarto foi um alerta. Isabel sentou-se, alarmada, mas em seguida reconheceu Mary, que trazia ambos os braços ocupados com duas toras de lenha para a lareira.
— Ah, você me assustou!
Mary congelou no lugar.
— Mil perdões, condessa — desculpou-se a moça com uma pequena reverência. — Imaginei que devia estar adormecida a uma hora destas.
— A pergunta é, por que você não está dormi ndo? — volveu Isabel. — É moça demais para trabalhar por tantas horas.
Mary colocou a lenha cuidadosamente sobre as brasas e abanou as mãos para atiçar o fogo.
— É um prazer servi-la, condessa — disse, depois se levantou e se virou com um sorriso travesso no rosto. — E verdade seja dita: quando não precisa de mim, dou um cochilo ou dois durante o dia. Durmo mais do que o suficiente.
— Fico feliz em ouvir isso, mas me responda uma coisa, Mary... O que faz por prazer?
— Como assim, milady? Não tenho certeza se compreendi a pergunta.
— Você e suas amigas... O que fazem para se divertir? Jogam? Praticam esportes?
— Não temos muito tempo para esse tipo de coisa.
— Porque têm muitas tarefas, não é?
— Mais ou menos, senhora.
— Vou cuidar disso — murmurou Isabel.
— Como?
— Nada... Nada, Mary. — Isabel jogou as cobertas para o lado e se pôs de pé. — Escute, eu não consigo dormir. Talvez uma pequena caminhada me fizesse bem. Existe alguma maneira de se chegar aos jardins, ao sul do castelo, sem passar lá por baixo, pelo salão nobre?
— Há, sim, condessa, mas a escadaria dos fundos é para uso dos criados, não para os gostos da realeza.
— Esta noite serei uma serva, então. Por favor, ajude-me a encontrar meu manto e mostre-me por onde ir.
Mary conduziu Isabel até os jardins que ela compartilhara com Artur algumas horas antes. Por sorte, não encontraram ninguém pelo caminho. O castelo parecia estar inteiro adormecido.
Isabel agradeceu a Mary profusamente e tentou presenteá-la com uma das centenas de moedas que descobrira em uma bolsa, dentro de um de seus baús. Mary a fitou, horrorizada, e recuou.
— Não, condessa, não posso! Se alguém vir esta moeda, posso ser acusada de roubo.
— Como, se posso afirmar a todos que foi um presente por seus excelentes serviços?
— Não estou autorizada a aceitar tais regalos.
Nossa. Bom seria se as equipes de empregados dos navios de cruzeiro ouvissem aquilo! Aquela gente não tinha escrúpulo nenhum em estender a mão a cada oportunidade.
Isabel prometeu a si mesma que encontraria uma maneira de recompensar Mary pela ajuda e gentileza, de um modo que não colocasse a garota em apuros.
— Pelo visto acabei de cometer outra gafe. Peço desculpas se a ofendi, Mary.
— Gafe?
— Esqueça. É apenas mais um termo aparentemente exclusivo da minha terra. Por favor, vá para a cama agora, e obrigada por me ajudar.
Mary fez nova mesura, o que já estava começando a dar nos nervos de Isabel.
Contudo, ela mordeu o lábio e desejou uma boa noite à criada.
— Posso voltar sozinha, Mary. E não vou precisar de ajuda até o banho da manhã.
— Muito grata, senhora. Espero que encontre aqui a paz que está procurando.
Isabel desejava a mesma coisa, no entanto desconfiava de que paz era algo que não iria encontrar tão cedo.
— Pelo visto, nenhum de nós está conseguindo sossego esta noite.
Ela praticamente saltou em direção às torres. Girou o corpo e se deparou com o motivo de seu tormento inclinado contra um damasqueiro.
— Artur! Pelos deuses, quase me matou de susto!
Ele se curvou.
— Minhas desculpas, Isabel. Não foi a intenção.
Ela estreitou os olhos.
— Está me seguindo?
Artur se afastou da árvore com o ombro, depois avançou um passo, o silêncio felino de seus movimentos quase assustador.
— Creio que você tenha me seguido, uma vez que já estou vagando pelos jardins há algum tempo.
— Eu não fazia ideia — afirmou Isabel, sentindo-se afrontada. — Não estava conseguindo dormir. — De repente, ela atinou com um detalhe. — Não é culpa de Mary! Eu exigi que ela me ajudasse a encontrar o caminho de volta para cá de uma forma que não nos fizesse atravessar o salão principal.
— Garanto que Mary será recompensada, e não punida, por seus atos. Na verdade, ela tem demonstrado mais lealdade a seu rei do que testemunho de muitos outros criados há um bom tempo.
Artur contornou o banco mágico em que tinham conversado e segurou a mão dela.
— Por favor, junte-se a mim e me diga por que não consegue dormir, condessa.
— Receio não saber o motivo.
— As acomodações não estão do seu gosto? Farei qualquer coisa para torná-las mais confortáveis.
Para isso, ele teria que compartilhar sua cama, concluiu Isabel. Seu calor, seu corpo rijo, seu cheiro... Que, pensando bem, parecia diferente agora. Artur obviamente tomara um banho e lavara o cabelo. Ela não conseguia identificar seu perfume, mas era delicioso.
Sentou-se no banco, ciente de que trajava apenas uma camisola e uma capa. Como queria ter encontrado jeans e camisetas naqueles baús!
Artur ficou diante dela, sem sentar-se a seu lado, apenas balançando a cabeça.
— Eu disse tudo a ela, Isabel.
Ela fitou os olhos verdes do homem dos seus sonhos com o coração dolorido.
— A Guinevere?
— Sim.
— E o que disse a ela? Sua pontuação no boliche? Quanto tem de crédito? Como fazer um interruptor movido a palmas funcionar?
Artur sorriu e sentou-se.
— Tem o dom de me fazer sorrir, condessa, mesmo num momento triste.
— Isso é ótimo, mas do que está falando?
— Eu disse a Gwen que sabia de tudo o que estava acontecendo entre ela e sir Lancelot.
— Ah, Senhor! Por quê?
— Por quê? Mas foi você quem me aconselhou a falar com ela!
Caramba.
— Eu quis dizer uma conversa para tentarem resgatar alguma coisa, sei lá! Ou pelo menos imaginei que tinha falado isso.
“Não falei, deusa?”
“Falaste mesmo, Isabel?”
“Agora, só o tempo dirá...”
“Mas não foi minha intenção com o casamento deles acabar! Vou me sentir muito mal se para isso vim para cá!”
“Eu te trouxe até aqui para Artur e Merlin agradar. Fazer a felicidade de alguém não é nada para se lamentar.”
Mais uma vez, Artur se pôs a andar à sua frente, algo que Isabel já havia notado ser um hábito quando ele estava pensativo ou, possivelmente, analisando o que lhe ia na alma.
— Desde o momento em que pus os olhos em Gwen, nunca mais senti desejo por outra. Nunca. Nem mesmo depois que eu soube da verdade. — Ele parou de andar e a fitou nos olhos. — Até o nosso encontro na floresta... Quando, de repente, me vi desejando uma mulher que não era a minha esposa.
— Sinto muito.
Artur riu mais uma vez.
— Está pedindo desculpas por ser bela? Por ser você?
— Não pretendo ser a razão do fracasso do casamento de ninguém.
— Mas será que ele já não tinha fracassado?
— Diga-me você, Artur.
Ele abriu aquele sorriso “pode-vir-quente-que-eu-estou-fervendo” mais uma vez. Isabel estava certa de que Artur não percebia o que estava transmitindo, mas era como se carregasse uma placa em que se lia: “Sou todo seu”.
— Você me abriu os olhos esta noite, condessa. É tão linda e direta! Essa sua boca verte objetividade e, no entanto, demonstra tanta compaixão!
Diabos, aquilo ficara tão claro como Física Q uântica.
— Obrigada... Acho. Como foi a sua conversa com Guinevere?
Ele fez um gesto vago.
— Ela não negou. Não implorou por misericórdia para si mesma, mas, sim, para Lancelot. Imaginava que o castigo dele fosse ser apenas o banimento.
— Sinto muito.
Uma vez mais, os olhos verdes de Artur se fixaram nela.
— E quanto aos seus pensamentos?
Terapia, Isabel decidiu, não era mesmo o seu forte. Principalmente quando queria tanto aquele homem. Estava louca para tomar um rumo que a levaria direto à realização de seus desejos mais egoístas.
— Por favor, diga-me que não vai pôr os dois para correr.
— Pôr para correr?
— É... Gwen e Lancelot. Não vai machucá-los nem puni-los, não é?
— Nunca. No entanto, nem tudo está em minhas mãos. Posso protegê-los até certo ponto.
— Então, vamos protegê-los.
— Como, Isabel?
— Ama os dois, não ama?
— Com toda a certeza. Não como antes, mas, ainda assim, eles significam muito para mim.
— Decidiu, no fundo da alma, que não quer castigá-los, certo?
— Sim.
— Precisamos elaborar um plano. Um plano de batalha, se for o caso.
Artur soltou uma risada gostosa e, mais uma vez, ele a fitou dos pés à cabeça.
— Você é mesmo uma constante surpresa, condessa.
— Que diabos... Podemos dar um jeito nessa história. Tem que haver uma maneira de conseguirmos o que queremos.
— O que eu quero agora é sentir os seus lábios.
— Mantenha o foco, Artur.
— Já disse isso antes, em nossa jornada até Camelot. No entanto, o foco, como você mesma diz, pode ter mudado.
— Quer manter Camelot e todo o seu povo em segurança, não quer? Isso nunca mudou.
— Não posso negar. No entanto, o que eu mais desejo na vida pode ter mudado.
— Um plano. Temos que elaborar um plano — ponderou Isabel, enquanto Artur traçava outro, bem diferente.
Embora os criados já houvessem apagado as lanternas do jardim para a noite, ele as tinha acendido outra vez ao vir até ali para pensar no futuro. Tudo o que sempre imaginara, esperara e desejara parecia confuso agora. Tudo parecia ter ido por água abaixo. Quando havia perdido o controle sobre as coisas? Por algum tempo, mantivera tudo em ordem, funcionando perfeitamente. E, de repente, os deuses pareciam zombar de seus sonhos e desejos.
Sentada no banco, Isabel o fitava com intensidade, os cabelos loiros cintilando à luz das lanternas, os olhos imensos e curiosos.
— Eu a amo. Eu sei que amo. Mas o que dizer do fato de eu não conseguir deter o que acontece e dessa atração que estou sentindo por outra mulher? Como é possível que eu a tenha desejado desde o primeiro momento em que a vi?
Nossa. A honestidade que aquele colar da deusa evocava era muito mais poderosa do que ela imaginara!
— Talvez — apenas talvez — porque tenha se apaixonado por uma bela mulher que é jovem demais para você?
Ele tornou a balançar a cabeça.
— O que me torna um velho idiota, decerto.
— Artur, não é velho nem idiota. Gwen é uma menina linda. E eu acredito que ela o ame também. Vejo isso quando ela olha para você. Ela o respeita e o admira, e sente orgulho em ser sua rainha.
— Vê amor ou desejo quando Gwen olha para mim?
— Não estou aqui há tempo suficiente para analisar esse tipo de coisa.
Aquela era a maior besteira que ela já havia soltado na vida. Quando a rainha lançava seus olhares furtivos para Lancelot, tudo o que ela via era luxúria e desejo.
— Balela — contrapôs Artur. — Desculpe-me a palavra e por usá-la na sua presença. Falei isso ao sentir que estava sendo enganado. Não está sendo sincera comigo.
Isabel o fitou por um instante, em seguida se pôs a rir.
— É mesmo sincero demais, senhor!
— E você, senhora, está se esquivando do problema que prometeu me ajudar a resolver.
Isabel desejou ter podido voltar trás e se formado em Psicologia. Contudo não tinha nada, a não ser a lógica, em que se fiar.
Além da deusa, que ela esperava lhe cutucar o peito se fizesse alguma coisa errada.
— Posso ser direta?
— Direta?
— Verdadeira a ponto de lhe causar dor.
— Pode, condessa.
— Creio que ama Gwen o suficiente para permitir a sua felicidade. Acho que a protege dos mexericos porque quer que ela tenha esses encontros e seja feliz. E aposto que não bane Lancelot daqui porque sabe que os dois são felizes juntos. Quer que eu continue para poder me expulsar depois?
— Eu lutaria contra meus próprios homens para mantê-la aqui, condessa.
— Pergunte a si mesmo, então: por que permite tal coisa?
— A felicidade é algo efêmero, não acha? Sou árbitro da felicidade? A Coroa não me concede o direito de determinar quem deve e quem não deve encontrá-la, seja onde for. — Artur inclinou a cabeça para o lado mais uma vez. — A verdade é que, honestamente, eu não sei. Por mais estranho que pareça, quero que Gwen seja feliz.
— É um homem de bom coração, Artur.
— Mas com muitos defeitos, ao que parece.
— Tais como?
— Falta-me bom-senso, talvez.
Isabel se levantou.
— Está dizendo que querer me beijar é uma falta de bom-senso?
— De maneira alguma, senhora! Essa seria, sem dúvida, uma das minhas decisões mais acertadas.
— Sem querer ofender, considera-se bom nisso?
Os olhos de Artur cintilaram, e ele deu de ombros.
— Está aí um mistério. Talvez eu esteja equivocado e sendo prepotente em se tratando dessa habilidade. Como posso saber?
— Sou bastante hábil em determinadas artes, senhor. Talvez eu possa determinar se esse é um defeito muito grave seu.
Isabel esperou pelo baque no peito, porém este não veio.
Artur ficou imóvel.
— Eu certamente aceitaria qualquer sugestão vinda da senhora.
Olharam um para o outro por muito tempo antes que ele abaixasse a cabeça, por fim. As bocas se encontraram tímidas a princípio, porém o fogo logo se alastrou. Antes que Isabel pudesse pensar, Artur mergulhou uma das mãos em seus cabelos enquanto a outra descia por suas costas, puxando-a para mais perto. Ele interrompeu o beijo, apenas por tempo suficiente para fitá-la nos olhos.
— Posso fazer melhor...
Se ele fizesse, pensou Isabel, iria derreter!
A boca de Artur desceu sobre a dela novamente, e fez tantas pequenas coisas com seus lábios que ela precisou se segurar nele. Artur tinha gosto de sexo, brincava com sua boca como se estivesse fazendo sexo, mordiscava seus lábios de leve como no mais erótico dos encontros.
No momento em que parou de beijá-la, ela estava em chamas.
Artur a segurou pelo rosto, o que a deixou prestes a desabar no chão. Seus joelhos não estavam em condições de sustentá-la. Ela começou a desabar, contudo ele a agarrou pela cintura e a puxou de volta.
— Foi tão ruim assim? — indagou, rouco.
Isabel sabia que tinha os olhos parados e o cérebro embotado. Suas cordas vocais também se recusavam a trabalhar, e ela limpou a garganta.
— De onde eu venho, sir — sussurrou, ofegante —, nós classificamos os nossos alunos de A a F, sendo o A para quem é admirável e o F para quem é um fracasso. O B, o C e o D ficam no meio-termo.
— E onde eu me encaixo, Isabel? — indagou Artur, ainda devorando-a com os olhos verde-musgo.
— Não só seria o orgulho do reitor, como provavelmente acabaria como o orador da turma.
Ele inclinou a cabeça.
— Como? Às vezes nossos idiomas parecem não corresponder...
— Minhas desculpas, senhor. O que estou dizendo é que ganhou um A+.
Ele sorriu.
— Isso é bom?
— Um orador de turma em potencial, Artur.
— O que é maior do que esse orador oficial? Eu gostaria muito de chegar lá...
— Eu adoraria se tentasse...
— Você é bonita demais, Isabel. Seus cabelos são tão suaves como a sua pele, e o seu perfume, doce e inebriante.
— Está falando demais. Prefiro que cale a boca e me beije.
Em vez de cobrir os lábios dela com os seus, Artur ergueu a cabeça e tapou-lhe a boca com a mão.
— Shh, condessa. Algo está errado.
Não era possível que fosse o tal coelho de novo...
Na verdade , ela pensou, melhor seria se fosse!
Antes que Isabel soubesse o que estava acontecendo, Artur a tinha empurrado para trás das costas enquanto encarava a escuridão dos arbustos ao longo do jardim.
— Quem vem lá?! — exigiu. — É amigo ou inimigo?
— Sou eu, meu rei... James! — respondeu uma voz além da luz das lanternas.
James, lembrou Isabel, era o sujeito grande e forte, primeiro homem do rei. Ela não sabia se corria, se se escondia ou fingia ser um poste, porém Artur não lhe deu nenhuma escolha: segurou-a com tanta força que ela não poderia ter se movido, se quisesse.
— Apresente-se, James. E diga-me por que veio até aqui me procurar.
James se aproximou, espalhafatoso, ainda que, estranhamente, caminhasse com tanta suavidade como uma bailarina. Pelo visto, aprendera a carregar com graça seu imenso volume. Quando ela espiou por trás de Artur, a expressão do homem passou de preocupada a gentil, fazendo-a se lembrar do Shrek .
— Senhora condessa! — saudou, inclinando-se.
— Como vai, James? — tornou ela, por algum motivo já gostando dele enquanto pensava que Artur havia se cercado de gente muito confiável.
— Receio ser obrigado a ter uma conversa com o rei, condessa Isabel. Em particular.
— Pode falar qualquer coisa diante da condessa, James. Eu confio nela, assim como confio em você.
Ah, aquilo era mesmo muito fofo. Mas insensato. Ela mesma não tinha certeza se poderia confiar tanto em Artur após tão pouco tempo... e de tanta luxúria.
Desvencilhou-se de Artur, por fim, e se pôs a seu lado.
— Estou certa de que o que James tem a dizer não é da minha conta. Por favor, permita que eu os deixe à vontade.
Artur a agarrou pela mão com firmeza, mas não a ponto de machucá-la.
— Não, milady, sejam quais forem as notícias, sei que elas estarão a salvo com você.
James tinha enormes olhos castanhos e cabelos que pareciam nunca ter sido penteados desde que ele era criança. Para quem não o conhecesse bem — o que era o caso dela —, parecia um tanto quanto ameaçador.
Quando ele olhou de um para o outro, contudo, Isabel teve a certeza de que James não era má pessoa. Apenas muito atento, o que provavelmente fazia com que ele passasse aquela impressão.
— Vou embora — decidiu ela e, mais uma vez, tentou se desvencilhar.
— Não, por favor — pediu Artur, segurando sua mão com firmeza. — Que notícias me traz, James?
O homem hesitou, depois encolheu os ombros enormes.
— Mordred está aqui, senhor.
Artur não soube se comemorava ou se ficava preocupado.
— No meio da noite?
— É o que ele costuma fazer, como o senhor bem sabe.
— Mordred? — perguntou Isabel.
Artur apertou a mão dela ainda mais, torcendo para que não a estivesse machucando. A necessidade que sentia de tê-la a seu lado, entretanto, parecia mais forte do que nunca.
— Providenciou-lhe acomodações? — perguntou a James.
— Eu não sabia onde colocá-lo. Não tinha certeza se era bem-vindo.
— Sabe que eu não posso mandá-lo embora. Claro que devemos lhe dar as boas-vindas.
— Mordred está exigindo ajuda para o cavalo, que ele garante ter ficado coxo na viagem pela floresta.
— Acorde Harry — sugeriu Isabel. — Ele pode cuidar do animal... Mas, pelo amor de Deus, será que alguém pode me dizer quem é Mordred?
James silenciou e desviou o olhar.
Por alguma razão com a qual Artur não conseguiu atinar, ele não conseguiu mentir.
— Mordred é meu filho.
Isabel o fitou, depois olhou para James, que manteve a cabeça baixa, ainda que concordasse em silêncio.
— Eu devia ter prestado mais atenção às aulas de Mitologia.
— Como disse, milady? — indagou o homem.
— Como nenhum de vocês me pareceu feliz com a notícia, imagino que a chegada de Mordred não seja motivo de celebração. Diga a verdade, Artur.
— Mordred não me ama — afirmou ele. — Acha que cometi uma injustiça com ele.
— Você!?
— Ele não cometeu injustiça nenhuma! — inflamou-se James. — Milorde tem feito de tudo para aquele ingrato e...
— James!
— Perdão, senhor.
— Termine o que estava dizendo, James, por favor — pediu Isabel.
— Não — contrapôs Artur.
James apertou os lábios. Obviamente o rei estava acima da condessa. E, como ele era um dos homens de Artur, ela não poderia esperar dele outra reação.
“O que estou perdendo aqui, deusa?”
“Artur e Mordred o mesmo sangue carregam, mas os desígnios do rapaz a todos apavora... Fruto da luxúria e de um amor adolescente, a inocência do pai, Mordred ignora. Ainda que a mãe morta haja o rei poupado, o ódio do menino tem a Artur escravizado.”
Isabel sentiu gosto de sangue nos lábio s. “Esse bastardinho!”
“Bastardo, de fato, mas uma coisa te direi: Mordred não irá descansar até que um dia seja rei.”
Isabel digeriu as informações por um momento, incapaz até mesmo de fitar Artur nos olhos.
— Bem... — falou, por fim, a Artur e James. — Que tal eu ir acordar Harry para que ele possa cuidar do cavalo de Mordred?
— Não! — falaram eles em uníssono. Artur tentou detê-la, contudo ela já escapulira de volta para o castelo.
Ele devia tê-la segurado pela mão com mais força!
— E agora, senhor?
— Ela vai confrontar Mordred. Está na natureza da condessa, James. Ela é do tipo que quer saber de absolutamente tudo. Isabel é o que se pode chamar de... — A palavra não lhe vinha.
“Enxerida? Superprotetora?”
Artur não sabia de onde vinham aqueles pensamentos, porém todos eles pareciam precisos. Ainda que não fizesse ideia do significado da palavra “enxerida”.
“Artur, se não proteger Isabel, Merlin não poderá viver!”
“Merlin? O que sabe sobre Merlin? E quem é você, falando na minha cabeça?!”
“Tenta descobrir, se fores capaz. Agora vai e protege Isabel! Caso ainda não tenhas notado, ela pode pôr fim à tua paz...”
— E eu não sei disso? — resmungou o rei.
— Como disse? — desculpou-se James.
Artur balançou a cabeça. Ou estava ficando louco ou...
Não, não havia alternativa. Estava louco.
— Confrontar Mordred colocará a condessa em perigo — afirmou James.
— Com certeza. E temos que impedir isso. Isabel conhece a escada dos fundos, James — lembrou Artur. — Vou tentar alcançá-la lá enquanto segue para os estábulos.
James na verdade sorriu.
— Vamos alcançá-la, milorde. Mas devo confessar que gosto da ideia de a condessa enfrentar aquele menino.
— Eu não. Ela não sabe com quem está se metendo.
— Pois me parece que a condessa tem coragem de sobra para tanto.
— Talvez até mais do que devia. O desprezo de Mordred pelas mulheres é notório, você sabe.
— E ela o admira, milorde, o que é mais do que devo dizer.
— Nem termine tal pensamento, James! Por favor, apenas me ajude a encontrá-la.
— Sim, milorde.
— Vá para os estábulos. Vou tentar interceptar Isabel na parte de trás do castelo antes que ela consiga escapulir.
Artur correu, mesmo tendo testemunhado outro sorriso no rosto de seu soldado.
O que mais o intrigou, porém, foi sentir um sorriso se formando em seu próprio rosto, mesmo enquanto estava tentando evitar um desastre. Isabel contra Mordred. Ele não conseguia nem imaginar qual dos dois poderia ganhar tal batalha. Ou melhor, podia. Se se tratasse de uma batalha de palavras e sagacidade, colocaria todas as moedas na condessa. No entanto, Mordred não se fiava em nenhuma das duas coisas, preferindo usar armas bem mais desagradáveis.
Pensar que o filho poderia fazer algum mal a Isabel o fez apertar o passo. Se Mordred levantasse um dedo contra Isabel, ele mesmo daria uma lição no rapaz, fosse esta regada a sangue ou não!
James alcançou Isabel e Harry quando eles estavam a meio caminho para os estábulos. Estendeu os braços e se orgulhou de ser capaz de se posicionar lado a lado com eles para efetivamente lhes bloquear os passos.
Harry ajustou o capuz verde e branco na cabeça.
— Tenho um paciente que precisa de atendimento — rosnou.
— Compreendo — disse James. Em seguida, deteve a condessa pela cintura quando ela tentou escapulir, contornando-o pelo lado direito. Segurou-a na lateral do corpo, divertindo-se em se esquivar dos golpes que Isabel tentava desferir nele. Precisava admitir que compreendia a atração que seu mestre sentia pelo temperamento apaixonado da moça.
— Solte-a! — exigiu Harry conforme ela se contorcia nos braços de James. — Ela é uma condessa!
— Peço desculpas, condessa — murmurou ele, sabendo que poderia estar em apuros apenas por tê-la tocado. Mas, se tinha lealdade em relação a alguém ali, era ao seu rei. — Por favor, permita-me explicar algumas coisas antes que siga adiante com a cabeça quente.
A condessa parou de se debater. Mesmo assim, ele a manteve junto de si com delicadeza.
— Só prometo não correr à sua frente, James, se o que tem a dizer for importante e relevante!
James sentiu uma profunda vontade de rodá-la no ar uma vez antes de tornar a colocá-la de pé no chão, mas concluiu que o rei não veria a brincadeira com bons olhos.
Devolveu-a ao solo firme, em seguida fez uma reverência.
— Minhas desculpas. Mas há mesmo coisas das quais deve estar ciente antes de correr até lá, milady.
Isabel teve o desejo infantil de que James a houvesse girado no ar uma vez ou duas antes de colocá-la no chão. Podia ter sido como um brinquedo de Camelot do parque Six Flags . Mas ela precisava entender. Então ela superou aquilo.
— Conte-me, James.
Harry pigarreou a seu lado, e ela completou:
— Conte-nos , James.
— Essa... como diz mesmo? Essa coisa entre Mordred e o rei já vem acontecendo há muito tempo. Por razões que não posso citar, eles vivem numa eterna contenda, o que é fonte constante de dor para o mestre.
Isabel sentiu um calor subir pelo ventre. Muito em breve ele estaria brotando por suas ventas ou por seus lábios. Ou por ambos.
— E por que diabos está me impedindo de ir até lá chutar o traseiro desse merdi...
— O que a senhora quer dizer... — interveio Harry, tapando-lhe a boca com a mão — ... é que não compreendemos por que temos de poupar o rapaz.
O homenzarrão sacudiu a cabeça cheia de cabelos.
— Talvez porque o rei o ame, não importando o que este lhe traga de sofrimento; não importando o prazer que Mordred sinta em fazer meu rei pagar pelos pecados que cometeu na juventude.
Isabel arrancou a mão de Harry dos lábios e o encarou.
— Percebeu agora por que eu nunca quis ter filhos?
— Estou começando a compreender — respondeu o rapaz, num resmungo. — Mas ainda acho que teria dado uma mãe e tanto.
— Está me pedindo para agir com diligência? — perguntou ela a James.
— Sim, condessa. Por favor, permita que o rei lide com a situação. É melhor se recolher aos seus aposentos para a noite.
Isabel assentiu.
— Talvez fosse. Mas não farei isso nem a pau, como se diz em Dumont. Insisto para que o meu homem, Harry, e você, James, me acompanhem até os estábulos.
— Sinto que teremos problemas... — cochichou James para Harry.
— Não faz ideia ! — volveu o rapaz, antes de prender o braço de Isabel com força junto à barriga. — Mas vamos.
— Vamos.
Isabel, ainda se recuperando da notícia de que Artur possuía um filho — e que esse filho era um total idiota —, sentiu-se impaciente. Ergueu as saias, então, e gritou:
— Peguem-me, se puderem! — E saiu correndo.
Ambos os homens correram atrás dela; no entanto, nenhum deles foi tão rápido.
James e Harry não alcançaram a condessa até vê-la frente a frente com Mordred nos estábulos... E já soltando o verbo.
Isabel estendeu os braços para impedi-los de se aproximar.
— O que o traz aqui, senhor? — perguntou a Mordred. — Que negócios possui em Camelot?
— Quem é você para ousar questionar minhas intenções?
Isabel o estudou. Era, sem dúvida, o filho de Artur. Eles se pareciam em muitos aspectos, ainda mais nos profundos olhos verdes.
A diferença era que os olhos do rei emanavam bondade e alegria, enquanto os de Mordred pareciam impregnados de veneno.
— Sou Isabel, condessa de Dumont e amiga do rei, o que, aparentemente, você não é. Por esse motivo, pergunto outra vez: O que o traz aqui?
— Encantado. — Mordred elaborou uma reverência com cinismo. — No entanto, condessa, meus negócios aqui não são da sua conta. Será possível que meu pai decaiu tanto a ponto de precisar que uma simples mulher saia em sua defesa?
— Uma simples mulher? Escute aqui, seu merdinha...
— Não, condessa, escute você — volveu ele, ríspido. — Sou herdeiro deste reino, e tenho todo o direito de vir a Camelot para supervisionar meus futuros bens.
— O rei está bastante saudável, e eu acredito que ele vá permanecer assim por muitos anos ainda. Portanto, pode tirar o seu cavalinho da chuva!
Aff!, aquilo tinha sido um horror. Mas era o melhor que ela havia podido elaborar por impulso, nas circunstâncias.
Mordred estreitou os olhos por um momento, então soltou uma risada desagradável.
— Se ainda não foi informada, senhora , meu pai já possui uma esposa. E uma bem mais moça do que você. Percebo seu interesse. No entanto, nunca vai tomar o lugar dela como rainha. A menos que arme um complô para assassiná-la.
James e Harry agarraram cada um dos braços de Isabel, decerto esperando impedir que ela saltasse para a frente e arrancasse à unha os olhos do bastardo.
Mas não houve necessidade. Isabel não tinha a menor intenção de se lançar sobre o rapaz. Sabia que seu peito arfava com fúria, principalmente quando os olhos de Mordred desceram sobre seu colo e não fizeram menção de deixá-lo.
De repente, ela se deu conta de que o olhar dele se fixara no colar e respirou fundo, tentando se acalmar.
— Por favor, diga-me de novo por que veio a Camelot.
— Eu soube que em breve haverá um encontro muito importante entre os cavaleiros do reino e preciso estar sentado a essa mesa. — Mordred piscou várias vezes, sem saber por que motivo revelara aquilo.
— Foi convidado para esse encontro? — perguntou Isabel. — Foi nomeado cavaleiro?
— É claro que não — volveu o rapaz, desviando o olhar do colar. — Meu papai não me considera digno o suficiente do título. É um imbecil.
Desta vez, James e Harry precisaram segurá-la. Isabel queria mais era arranhar aquele rostinho bonito, por mais que isso fosse estragar suas unhas.
— Como se atreve?! Seu pai ama você! Por que sente tanto prazer em feri-lo?
Mordred chegou bem perto dela, batendo o chicote de leve na coxa.
— Não sabe de nada, milady. Nem mesmo como se vestir adequadamente. Será a amante dele esta noite? Vai tentar gerar seu próximo bastardo?
— O que vai fazer, Mordred? — exigiu Isabel. — Bater com o chicote em uma mulher desarmada?
James tentou se colocar entre eles.
— Ela é uma condessa, Mordred! Afaste-se agora mesmo!
Mordred riu com zombaria.
— É uma prostituta, assim como a mulher do meu pai.
— Para trás, James! — falou Isabel.
— Não posso, condessa... O rei ordenou que eu a protegesse.
— Para trás! Esta criatura desprezível acabou de manchar o nome da rainha!
— Mas, milady!
— Para trás! Eu exijo!
James recuou, embora Isabel imaginasse o quanto ele devia estar preocupado com seu futuro. Aquilo não seria problema, porém. Ela estava certa de que ele seria recompensado por seus atos.
Mordred sorriu e chegou ainda mais perto.
E ela deu graças aos deuses pelo seu tae kwon do . Em questão de segundos, tinha chutado o maldito chicote para longe da mão dele, feito meia-volta e saltado, atingindo-o na barriga e arremessando-o para o chão, onde lhe atou as mãos com as rédeas.
— Desculpe, filho, mas já é hora de atender ao seu pai — sussurrou ela em seu ouvido. — Artur nunca teria me deixado passar por cima dele. Você, por outro lado, é muito lento e estúpido.
— Vai pagar por isso! — gritou Mordred.
— Tenho certeza de que sim. Seu pai o ama tanto que vai ficar com muita raiva de mim. Mas que se dane... Foi bom demais, seu vermezinho.
— Puta! — disparou ele.
Isabel cravou o joelho nas costas do rapaz.
— Como disse? Acredito que tenha querido dizer: “Minhas desculpas, condessa”. Foi isso?
— Peça desculpas à condessa, Mordred!
Ela ergueu a cabeça e deparou-se com Artur, que parecia chocado e divertido ao mesmo tempo. Tentou se levantar com graça, mas não conseguiu.
Harry a segurou pela mão, então, e lhe deu auxílio.
— Sinto muito, Artur, mas ele me tirou do sério.
Artur se aproximou e a ajudou a tirar o feno da roupa.
— É a especialidade dele. — Ajudou o filho a se pôr de pé. — Bem-vindo ao lar, Mordred.
— Se você se importasse comigo, papai , levaria essa mulher perante a corte do rei!
Artur sentou-se em seu trono, a cabeça sustentada por um dedo.
— Por ela tê-lo imobilizado quando fez menção de chicoteá-la? Não creio.
— Discorda de que ela mereça uma surra?!
Artur olhou para o filho, perguntando-se como podia ter errado tanto como pai.
— Nenhuma mulher merece ser surrada, Mordred. Jamais. Mulheres são feitas para ser acarinhadas.
Mordred riu, amargo.
— Como acarinhou minha mãe?
— Sua mãe nunca me contou a seu respeito, filho. Não importa o que sua tia tenha lhe dito, eu nada sabia de sua existência até perguntar a respeito da saúde dela. Sei que demorou muito, Mordred, porém ela nunca me disse nada. Nunca me ocorreu uma coisa dessas, o que é minha culpa, admito. Mas, desde que eu soube da morte de sua mãe e do seu nascimento, tenho tentado me redimir, filho, de verdade.
— Isso é o que você diz. — Mordred levantou-se, caminhou, e Artur quase riu ao ver como o gesto se assemelhava ao seu.
A raiva do rapaz, contudo, ainda pairava sobre ele como esterco ao redor de um touro. E cheirava mal.
— Então vai escolher aquela cadela ao seu próprio filho?
Artur se levantou de um salto, tentando aplacar a revolta do rapaz.
— Em primeiro lugar, Mordred, não há nenhuma escolha. A condessa Isabel o derrotou nesta noite, e esse é um problema seu. No entanto, caso tente se vingar, partirei, sem dúvida nenhuma, em defesa dela, pois Isabel nunca lhe fez nada. Na verdade, um dos homens dela até cuidou do seu cavalo. E isso depois de você ter planejado atacar sua senhora. Se estiver cogitando se vingar, eu vou agir.
— Mais uma vez, está preferindo uma mulher ao seu filho.
— Prefiro o cuidado ao despeito. Espero que um dia possa compreender.
— Quando meu pai escolheu seu filho bastardo em vez do seu reino?
“Quando, meu filho, sua mãe optou por não me informar que estava grávida?”
Mais uma vez, Artur não teve ideia de onde o pensamento tinha vindo, mas precisava admitir que era bom:
— Sua mãe não quis me contar que estava carregando um filho. Não me foi dada nenhuma escolha.
— Está mentindo.
Artur abaixou a cabeça e esfregou as têmporas.
— Pelo visto, nunca vai acreditar em mim. Entretanto, a verdade é que, quando eu soube de você, quando fui informado de que sua mãe havia morrido durante o seu nascimento, tentei reivindicar sua paternidade e trazê-lo para Camelot. Sua tia não permitiu, pois me culpava pela morte da irmã.
Mordred parou de andar.
— Não acredito nisso.
— Como eu disse que não acreditaria.
Artur se levantou e também começou a andar enquanto Mordred continuava com as próprias passadas. Cruzaram-se várias vezes, judiando dos juncos sob seus pés.
— Estamos num impasse, meu pai — falou Mordred, finalmente.
— É o que parece, meu filho. Pode se juntar aos meus homens, ou ficar junto daqueles que desejam a minha derrocada. A escolha é sua.
— Estou falando a verdade quando digo que sou leal a Richard de Fremont.
As palavras aguilhoaram o coração de Artur, porém ele balançou a cabeça.
— Então, meu filho, é um convidado em minha casa. O problema é que deseja prejudicar Camelot, portanto, posso considerá-lo um inimigo. Já deixou bem claras as suas intenções, e não posso expressar o quanto elas me ferem.
— Mais do que me senti ferido quando me renegou?
— Eu nunca lhe reneguei! Foi sua tia quem...
— Basta!
— Muito bem. Acredite no que quiser. Mas saiba de uma coisa, filho: se ferir algum homem, criança, mulher ou animal enquanto eu o estiver abrigando em meu reino, não lhe reservarei nenhuma clemência. Terá o mesmo castigo que qualquer outro.
— Percebi que enviou uma mulher para dar conta do seu trabalho esta noite.
Artur sorriu sem vontade.
— Eu bem que tentei impedir Isabel. Mas ela estava com raiva, e eu não cheguei a tempo. De qualquer modo, filho, esse hematoma em seu olho me diz que a condessa venceu essa pequena batalha.
— Pela qual ela vai pagar.
Artur quis pegar o filho e sacudi-lo. Em vez disso, respirou fundo várias vezes.
— Toque nela, e certamente irá sofrer.
A risada de Mordred foi quase tristonha.
— E, mais uma vez, vai preferir outra pessoa ao seu próprio filho.
— Não, Mordred. Eu prefiro a fidelidade à traição. E a felicidade ao ódio. O caminho que você mesmo escolheu em ambos os casos é que é lamentável.
Artur virou-se para deixar o salão, sentindo um desgosto e uma tristeza que nunca havia experimentado antes.
— Você me deve, seu velho! — ouviu o filho gritar enquanto fechava a porta.
Nesse momento ainda sentiu tristeza; porém o desgosto a superou em muito... Além de certo receio.
A segurança de seu povo era fundamental. Alarmava-o que Mordred fosse capaz de atacá-los primeiro. E a primeira a sofrer, sem dúvida, seria a mulher que o tinha humilhado naquela noite.
Mesmo que ele, Artur, houvesse vislumbrado um sorriso em seu rosto, sabia que precisava reunir Tom, Dick e Harry, a fim de elaborarem um plano de segurança. Pois a segurança da condessa era prioridade agora.
O plano teria de ser secreto, no entanto, porque, se Isabel ficasse sabendo, ele próprio acabaria com mais de um olho roxo.
A verdade era que, se algum dia pretendesse fazer outro filho, com Isabel isso provavelmente seria impossível. Ela era, mesmo, meio esquisita.
Capítulo Onze
Na manhã seguinte, Isabel se deleitava em seu banho com lilases recém-colhidas e especiarias quando ouviu uma batida suave na porta.
— Eu já disse que não precisa bater, Mary! — falou em voz alta.
— Não é Mary, condessa. Sou eu, Guinevere .
Isabel espalhou água para todos os cantos ao agarrar uma toalha e o robe.
— Um momento, Alteza! — pediu, batendo todos os recordes de velocidade enquanto saltava da banheira, secava-se e vestia o manto. — Entre, por favor!
Gwen entrou, parecendo tão etérea e doce que ela sentiu-se como o próprio James em um dia não muito feliz em termos de beleza. Se é que James tivesse dias em que se sentisse belo, o que ela duvidava. A rainha usava um vestido azul-turquesa, de um modelo simples, mas que lhe caía como se houvesse sido feito sob medida.
Claro que tinha sido feito sob medida, concluiu Isabel. Bom seria se tivesse uma costureira daquela!
Entretanto, ou a cor não combinava com Gwen, ou a cor de Gwen não estava normal. Seu sorriso continuava amável, contudo ela parecia um pouco pálida, e seus impressionantes olhos já não brilhavam tanto como na noite anterior.
O-ou! Artur não revelara todos os detalhes da conversa que tivera com a esposa, porém ela desconfiava de que seu nome fizera parte da discussão. E aquilo não era nada bom.
Fez a coisa da reverência que, mais uma vez, lhe pareceu muito estranha.
— A que devo esta visita? — perguntou, o medo vertendo por todos os poros. Afinal, havia trocado beijos de derreter com o marido de Gwen, poucas horas antes. A rainha estaria ali para mandar executá-la como uma piranha? Aquilo era crime?
Os nervos de Isabel se agitaram mais do que num mambo. Estava simplesmente em pânico.
Gwen flutuou pelo quarto e sentou-se em uma das duas cadeiras.
— Peço desculpas por ter interrompido o seu banho, condessa.
— Não tem problema. A água já estava ficando fria — garantiu Isabel, secando os cabelos com a toalha e torcendo para não estar com o rosto todo arranhado por conta da barba de Artur. — O que aconteceu?
— Além dos vergões de barba por todo o seu rosto, condessa?
Céus! Então seu pânico tinha razão de ser. Não era nenhuma mentirosa, portanto, estava mesmo encrencada.
“Por favor, deusa, ajude!”
“Se te escolhi, Isabel, foi por tua honestidade. Mas, no momento, esta nem importa para mim... Tampouco importa qual amigo venhas a escolher: podes dizer que um dos três deixou teu rosto assim!”
Ela estaria tão assustadora assim? Poderia conviver com a ideia de estar com o rosto um pouco arranhado, mas as palavras a fizeram se sentir como uma personagem de Halloween. Por outro lado, tudo ali era surreal.
— Não vou mentir. Beijei alguém na noite passada... No entanto, quem eu beijei é problema meu. E só meu. Perdoe-me se não me sinto à vontade para compartilhar minhas intimidades.
— Assim deve ser.
— Desculpe-me por minha impertinência, rainha Guinevere, porém suas faces e queixo mostram os mesmos sinais.
Gwen levou as mãos ao rosto.
— Parece que estamos ambas nos declarando culpadas.
— Não direi nada a seu respeito se não disser nada sobre mim.
— É justo. Obrigada.
— De nada. — Isabel pousou a toalha. — Agora, a que devo a honra da sua visita matutina?
— A muitas coisas, condessa.
Passou de tudo pela mente de Isabel. Gwen ficara sabendo que ela beijara seu marido? Talvez tivesse sido informada de que ela dera uma surra em seu enteado? Mary teria colhido flores do jardim de Gwen para seu banho?
— Então me diga, por favor.
— Eu preciso dos seus conselhos — revelou a rainha.
Certo, aquilo não estava na sua lista. Mas soava bem menos doloroso do que tortura e morte.
— Dos meus conselhos?
— Sim. Meu marido me contou que está incomodada com o fato de as mulheres daqui não terem nenhuma folga de suas tarefas diárias. E que você acredita que elas devam ter, como ele mesmo disse, “um pouco de lazer”.
Isabel podia ter caído com um sopro, tal era seu estado de tensão.
— Eu provavelmente estava fora do meu juízo normal, Alteza. Eu não devia ter dito tal coisa. Estava apenas jogando conversa fora.
— Pois, verdade seja dita, fiquei bastante entusiasmada com a ideia.
Até o momento, nenhuma tortura seguida de morte à vista. Ao menos ela esperava que não. Tentou se conectar com a Dama do Lago, mas a deusa silenciara. Pelo visto, ela estava mesmo sozinha.
Que maravilha.
— Como posso ajudá-la, rainha Guinevere?
— Por favor, pode me chamar de Gwen — pediu a moça. — E permita-me chamá-la de Isabel. Odeio formalidades.
Isabel assentiu.
— Eu também. Mas, como eu dizia, receio ter me precipitado. Não tenho o direito de lhe dizer como lidar com sua equipe de criadas.
Para sua surpresa, Gwen pareceu desapontada.
— Está dizendo que não foi bem isso o que sugeriu?
Isabel arrastou uma cadeira para mais perto da rainha.
— Não. Foi exatamente o que eu quis dizer. Pense bem, rainha Guinev... — Ela balançou a cabeça. — ... Gwen. As mulheres que trabalham em Camelot só fazem uma coisa: trabalhar. Os homens também trabalham, sem dúvida, mas jogam e praticam esportes. Deveriam permitir que as mulheres usufruíssem igualmente de algum tempo para si mesmas.
Gwen acedeu, embora seu semblante denotasse alguma confusão.
— Compreendo o que está propondo, mas nunca ouvi nenhuma queixa.
— Ora, por favor, acha mesmo que as criadas de Camelot iriam se queixar com você?
Nesse exato momento, Mary entrou no quarto.
— Pronta para me deixar fazer seu cab...? — Ela estacou. — Mil desculpas! Voltarei mais tarde.
— Não, Mary — respondeu Isabel. — Eu gostaria muito se cuidasse dos meus cabelos agora.
— Mas a rainha...
— A rainha não vai se importar — garantiu ela. — Não é mesmo, Gwen?
— Claro que não. Entre e faça o seu trabalho, Mary.
— Sim, minha rainha.
— Ela vai exercer um dom, não apenas fazer um trabalho — ressaltou Isabel.
— Como disse?
— Arrumar cabelos não é apenas um trabalho para Mary, Gwen. Ela gosta do que faz. E é muito boa nisso.
— Obrigada, senhora — agradeceu Mary, os olhos ainda cravados no chão.
— Sei que estou sendo intrometida, Gwen, mas a verdade é que não estão aproveitando as verdadeiras habilidades de seus homens e mulheres. Mary, por exemplo, deveria estar trabalhando com cabelos. Ela é ótima nisso. Podia estar arrumando até mesmo os cabelos dos homens. Não percebeu como muitos estão precisando dar uma geral ?
— Como?
— Estão precisando cortar os cabelos.
— É mesmo?
— Não percebeu?
— Para ser sincera, não. Outra falha minha, pelo visto.
— Não é falha nenhuma. O problema é que você só tem olhos para... — Isabel se conteve a tempo — ... para as coisas que lhe são importantes. Aposto que sempre imaginou que os homens de Artur são problema apenas dele, e não seu.
— E o que acha que devo fazer?
— Eles precisam mudar um pouco. Por exemplo, o primeiro homem de Artur, James... Ele é até bonitão. No entanto, aquele cabelo dele é um desastre!
Mary deixou escapar uma exclamação, e Gwen estreitou o olhar em sua direção, enquanto balançava a cabeça.
— Ah... Você é aquela Mary. A que deixa James todo derretido quando fala de você.
Sem dúvida, Isabel havia perdido alguma coisa ali.
— Mil perdões, Mary. Eu não imaginava que fosse precisar assumir uma missão quase impossível com os cabelos de alguém. Honestamente, eu só queria vê-la feliz.
Gwen tentou esconder um sorriso, porém fez um péssimo trabalho.
— O que mais eu não estou sabendo? — indagou Isabel.
— Obrigada, senhora! — exclamou Mary, agitando as mãos. — Muito obrigada! Adoro mexer com cabelos, mas prometo que farei tudo o mais que meu rei e minha rainha me pedirem! E com prazer, é claro. Podemos começar com o seu, condessa?
Isabel olhou da rainha para a criada.
— Muito bem, o que está acontecendo aqui?
Gwen foi quem falou primeiro, os olhos ainda cheios de diversão.
— Perdoe-me, mas acredito que esta seja a Mary que conquistou o coração de James. Estou certa, Mary?
A pobre menina parecia prestes a desmaiar.
— Esperem um minuto — pediu Isabel, tentando dar a Mary um momento para se recompor. — Estão falando de James, o mais doce dos brutos? O primeiro homem de Artur?
— Eu sabia que ele estava apaixonado por uma Mary — contou Gwen. — Tenho ouvido Artur brincar a respeito disso. Mas confesso que não sabia de que Mary eles falavam.
— Quantas Marys há aqui? — quis saber Isabel.
— Sinceramente, não faço ideia. Temos tantas Marys e Liliths... E tantos outros nomes! Mas parece que só temos uma Prudence no castelo. Não sei o que a mãe dela estava pensando quando a pobre nasceu!
O rosto de Mary continuava em chamas, notou Isabel.
— Você é a Mary que conquistou o coração de James?
A menina mudou de posição, parecendo querer sumir dali.
— Sim, senhora.
Gwen deixou escapar uma risadinha.
— James apaixonado!
— O que há de tão engraçado nisso? — perguntou Isabel. — James seria um homem de sorte se tivesse Mary.
— Não, não é o casal em si que me diverte. É apenas a ideia de ver James apaixonado que...
— ... que a deixa feliz por eles?
— Sim, claro. Muito feliz por eles.
Mary ensaiou uma nova reverência.
— Obrigada, senhora.
— Isabel.
— Sim, senhora. Estou bem ciente do seu nome.
— Mesmo assim, ainda se recusa a pronunciá-lo.
— Sim, senhora.
— Não percebe que eu a trato pelo primeiro nome?
— Sim, senhora.
— Você só tem treze anos, criatura!
— Estamos esperando até que ela complete catorze anos, Isabel — explicou Gwen. — Esse é o tempo que decidimos esperar.
— Vocês decidiram por eles? Como se eles não tivessem o direito de opinar quanto ao assunto? Verdade que aos catorze eu ainda estava brincando no trepa-trepa dos parques infantis e achava que todos os meninos tinham piolhos.
Ambas as mulheres olharam para Isabel como se ela fosse maluca. E ela chegou a ouvir Viviane suspirando em sua cabeça.
Tudo bem, estava viajando outra vez. Mesmo que aquele tipo de coisa lhe soasse repugnante, ela compreendia que, na época em que estava, a questão da idade era tratada de um modo muito diferente.
Concentrou-se em outro problema.
— Por que não tentou dar um jeito nos cabelos de James, Mary?
A rainha continuou a rir, embora uma profunda tristeza lhe oprimisse o coração. Era óbvio por que Artur a pressionara a visitar a condessa e a ouvir suas opiniões. Ele estava encantado com Isabel.
E ela, Gwen, não podia culpá-lo. Isabel era uma mulher adorável, que expressava suas opiniões abertamente. E Artur apreciava escutar as opiniões das outras pessoas: era uma de suas maiores qualidades. E uma que ela sempre admirara.
Na verdade, ela amava Artur. Ela o amara desde o primeiro momento em que o tinha visto. Entretanto, Lancelot a fizera perceber que amor e admiração não eram o mesmo que amor e desejo.
O desejo e o amor que sentia por Lancelot eram fortes demais. Por mais que ela amasse e admirasse o marido, a necessidade que sentia de ter Lancelot superava tudo o mais, a ponto de lhe sabotar o bom-senso e também sua tremenda responsabilidade.
Sem mencionar os votos que ela havia feito. Votos sagrados.
— Gwen?
Ela piscou, obrigando-se a voltar à realidade.
— Ah... mil perdões. Creio que me distraí.
Os olhos de Isabel perscrutaram seu rosto.
— Parece estar com problemas. — Ela tocou o belo colar que tinha em volta do pescoço.
Gwen, imediatamente, se pôs a falar:
— Tem razão, condessa. Mas este nada tem a ver com o motivo de eu ter vindo em busca do seu conselho.
— Ainda assim, estou aqui para ouvi-la, caso queira me contar o que a está perturbando.
— Temos muito que discutir sobre os assuntos de Camelot — resistiu Gwen, os olhos ainda fixos no colar.
Mary fez menção de se retirar com uma mesura, contudo Isabel a impediu de sair.
— Por favor, escove os meus cabelos, Mary, e faça uma trança como a que fez antes. Eu gostaria que também opinasse sobre o que acontece por aqui.
Mary lançou um olhar nervoso na direção de Gwen, decerto temendo uma punição pela simples ideia de seus próprios pensamentos serem expressos ou requisitados. Na verdade, a própria Gwen ficou chocada com a proposta. Uma criada sendo consultada acerca de problemas do castelo? Que conceito mais estranho! No entanto, não conseguiu encontrar nenhuma razão para exigir o contrário, e assentiu.
Conforme Mary passou a usar a estranha escova de Isabel, Gwen tratou de se concentrar nas próprias crenças. O fato de a condessa permitir que uma serva permanecesse no quarto enquanto elas confabulavam sobre intimidades não era assim tão incomum. De qualquer modo, criados fiéis eram mais como uma mobília confortável. Podiam ser apreciados, mas deveriam permanecer em silêncio. E surdos.
— Não é de admirar que Artur esteja tão encantado com você — falou num impulso.
Tanto Isabel quanto Mary congelaram no lugar.
— Eu compreendo de verdade, Isabel.
— Pois eu não entendo o que você acha que compreende — retrucou Isabel, embora o sangue tingindo seu rosto tudo revelasse.
— Entendeu muito bem. Foi você quem convenceu Artur a... — Gwen lançou um olhar na direção de Mary, não mais a vendo como uma silenciosa peça de mobília, mas como uma menina que absorvia conhecimento conforme se transformava em mulher. — ... a discutir comigo assuntos que há muito ele vem evitando.
Isabel apertou o roupão com mais força ao redor do corpo.
— A verdade é sempre o melhor caminho.
— Mas a verdade dói, não concorda?
— Sempre — anuiu Isabel. — Segredos, no entanto, costumam ferir ainda mais.
Gwen sentiu-se corar, mesmo assim não ousou desviar os olhos do rosto de Isabel, cujo olhar parecia ainda simpatizar com ela de alguma forma.
— Compreendi isso, esta manhã. Na manhã de ontem, eu teria tido uma resposta muito diferente.
Isabel estendeu o braço e colocou a mão sobre a dela.
— Eu sinto muito se virei Camelot de cabeça para baixo. Não foi minha intenção. Minha única sugestão foi a de que Artur fosse tão honesto com você como ele gostaria que você fosse com ele.
Mary limpou a garganta.
— Perdoem-me a interrupção, mas seus cabelos estão prontos, senhora. A menos que necessite de mais ajuda, eu gostaria de me retirar.
Isabel endireitou o corpo com uma risada.
— É uma boa moça, Mary. Acredito que muitas das suas colegas de trabalho iriam querer ficar e ouvir o máximo possível.
As sardas de Mary tingiram-se de vermelho.
— Eu não saberia dizer, senhora.
Isabel se levantou.
— Bem, eu queria que me ajudasse a entrar em um daqueles vestidos complicados, mas acho que consigo encontrar um com o qual eu possa lidar sozinha.
O rosto de Mary se iluminou.
— Eu sei de um, senhora! É um dos meus favoritos. — Ela quase correu até o guarda-roupa e, após revirá-lo, trouxe um vestido azul-petróleo que estendeu sobre a cama.
Embora Isabel desconfiasse de que a palavra “petróleo” nem tivesse sido inventada ainda, assim como “rosa-choque”.
Mary sorria ainda mais quando se virou, triunfante.
— Não sei de onde vem essa cor, mas, com esses seus cabelos e pele claros, imagino que ele vá ficar lindo na senhora. E ele também é fácil de amarrar.
Gwen disfarçou um sorriso.
— Está ansiosa por deixar os aposentos de Isabel, não é mesmo, Mary?
— Ah, sim, minha rainha. Muito.
Isabel franziu a testa.
— Eu a aborreci, Mary?
— Não, condessa, de maneira alguma! — apressou-se em dizer a menina, torcendo as mãos. — Tem sido muito boa comigo. Quisera todos os hóspedes fossem como a senhora.
— Mas não quer ficar e nos ajudar a discutir como tornar o trabalho das mulheres mais prazeroso?
Mary apertou os lábios.
— Creio que a conversa já migrou para segredos dos quais eu não gostaria de tomar conhecimento. Não tenho esse direito.
Gwen levantou-se e fitou Isabel.
— Verdade, Mary. É melhor esse tipo de conversa ficar para outra oportunidade. No momento, tudo o que quero ouvir são as opiniões da condessa acerca do lazer para as mulheres de Camelot. E a condessa, ao que parece, gostaria muito de que você opinasse sobre o assunto.
— Condessa? — indagou Mary num sussurro.
— Eu gostaria muito que ficasse, Mary. Na verdade, temo que não possamos fazer nada sem a sua opinião e ajuda.
Mary olhou de uma para a outra, preocupada, depois sorriu.
— Fico muito honrada. Mas uma conversa séria exige um traje sério, condessa. Por favor, permita que eu a ajude com o vestido.
A ideia de se vestir, ou, pior, de se despir diante de uma rainha, era um pouco desconfortável. Isabel olhou ao redor do quarto, mas não havia um único espaço privado à vista.
Seu colar se aqueceu.
“Nestes dias, é comum a nudez na presença das outras mulheres. Não precisas te esconder, como fez!”
“Posso, então, a roupa tirar e diante das outras à vontade ficar?”
“Sim!”
“Sinto muito, minha deusa, mas não é do meu agrado. Não pretendo ficar nua diante de uma rainha cujo corpo é quase sagrado!”
“Veste-te, então, Isabel, e para de choramingar. Tens coisas bem mais importantes com que te preocupar.”
Isabel respirou fundo e tirou o manto, jogando-o sobre a cama. Pôs o vestido por cima da cabeça o mais rápido que pôde, cobrindo depressa as nádegas, os seios e o resto. Mas não tanto quanto gostaria. Era a situação mais embaraçosa pela qual ela já passara na vida.
Bem, naquela vida. Tivera momentos mais críticos em sua existência mais antiga. Ou mais nova. Aquele incidente em 1985, por exemplo. E na primeira vez em que permitira que Jimmy Zwersky a despisse parcialmente, no sexto ano, para que pudessem comparar seus corpos.
Gwen riu.
— É uma mulher muito tímida, Isabel.
Isabel voltou-se, ainda lutando para passar o vestido pela cabeça, de modo que sua voz soou abafada.
— Prefiro me vestir sozinha.
— Prefere que eu saia?
— Não, estou bem agora — afirmou ela enquanto ajeitava o maldito vestido no corpo.
Maldição, não estava com a mínima vontade de conversar com a perfeita Gwen sobre questões do corpo! Era óbvio que a rainha não tinha nada com que se preocupar.
— Será que podemos continuar a discutir outros assuntos? — inquiriu, enquanto Mary começava a lidar com a infernal amarração de costume.
— Com toda a certeza, condessa — respondeu Gwen. — Você não me parece muito à vontade nesses vestidos.
Isabel apertou os lábios.
— Na minha terra, as mulheres podem usar roupas bem mais confortáveis.
— Verdade? Por quê?
— Porque costumamos jogar e, portanto, é permitido às mulheres vestir calças, tal como os homens. Não somos obrigadas a usar vestidos o tempo todo.
— Usa calças de homem?!
— Sim e não. São calças feitas especialmente para as mulheres. Para o conforto e para a prática desportiva feminina. Elas não são muito justas e proporcionam a liberdade ideal para participarmos de eventos nos quais seria impossível fazer o mesmo trajando vestidos.
Gwen sorriu e bateu palmas.
— Que interessante! Preciso aprender mais sobre esses esportes para mulheres. E também sobre essas... “calças”? Foi o que disse?
— Mostre-me quais as mulheres daqui que costuram, e eu terei muito prazer em orientá-las na confecção de algumas peças. Sei que muitas não vão se sentir à vontade nem mesmo para experimentá-las, mas poderão ir se acostumando com a ideia, uma vez que terão a chance de prová-las.
— Sim, sim! E vai nos orientar nos desportos?
— É o que costumamos fazer, Gwen. Permitimos que todas as mulheres tenham ao menos uma hora para praticar qualquer esporte pelo qual optarem, em qualquer dia da semana. E elas usam calças ou bermudas nessas ocasiões. Todas têm um tempinho fora do trabalho árduo no qual passam o restante do dia engajadas. Se forem tímidas, como eu, vestem coletes, aventais ou o que quiserem sobre suas camisetas e leggings .
Os olhos de Gwen se iluminaram como estrelas.
— E os homens não fazem nenhuma objeção?
— Em primeiro lugar, Vossa Alteza, os homens não apenas não se opõem, como também são orientados a permanecer distantes desses playgrounds femininos, uma vez que tendem a ficar nos espiando. Em segundo, quando as mulheres estão mais felizes ao final do dia, os homens também ficam felizes... se é que me entende.
Gwen riu.
— Claro que sim. E reconheço a genialidade do plano. Precisamos instituí-lo em Camelot. Com urgência!
— Fico feliz em vê-la vislumbrar os benefícios que tal prática proporcionaria para sua equipe de criadas. Podemos prosseguir com esta conversa mais tarde? Preciso participar de uma reunião no café da manhã.
— Com Artur? — quis saber Gwen.
Isabel assentiu.
— E muitos outros homens. Não é nada íntimo, Gwen. É apenas uma reunião para planejamento estratégico.
— Houve um tempo em que eu era bem recebida em tais reuniões — comentou a rainha.
— Então vamos juntas, ora. Ninguém a proibiu de participar delas, proibiu?
Gwen hesitou.
— Mas eu não fui convidada para essa reunião.
— Pois eu acredito que suas reflexões acerca das questões que todos enfrentamos são muito relevantes. Eu mesma a estou convidando.
A rainha sorriu.
— Compreendo cada vez mais por que motivo Artur a aprecia tanto, condessa.
Mary terminou de fazer a amarração do vestido de Isabel. Em seguida, virou-se para elas.
— Minha rainha, condessa... Posso pedir que guardem um segredo?
— Claro! — responderam ambas em uníssono.
— Eu gostaria muito que a notícia a respeito de James e eu não se espalhasse pelo castelo. Não ainda.
— Seu segredo está seguro conosco, não é mesmo, Gwen?
— Sim, mas... Por quê , Mary? — inquiriu Gwen.
A moça corou novamente.
— Deve haver muitas outras meninas interessadas nele, e eu prefiro não aborrecê-las até que possamos dar a notícia a todos.
A ideia de que o equivalente humano do Pé Grande podia ser um conquistador deixou Isabel perplexa. Ela aquiesceu, contudo.
— É por isso que o mantém tão desarrumado, Mary?
A menina riu.
— Quando o virem com os cabelos cortados e bem-vestido, irão entender.
Nem em um milhão de anos. Bem, talvez, debaixo de todos aqueles pelos e cabelos ele fosse um gigante bonito. Sem dizer que James era um sujeito até delicado para alguém que fora treinado para lutar e matar.
— Quanto tempo falta para que faça catorze anos, Mary? — quis saber ela.
— Duas semanas, senhora. Pretendemos nos casar logo em seguida.
— Não têm que enviar convites, ou algo assim?
— Convites?
Isabel suspirou. Decerto elas se encontravam em um tempo bem anterior ao dos proclamas. Decididamente, o curso da história estava se misturando em sua cabeça.
A ideia de uma menina de apenas catorze anos se casar lhe dava arrepios! Compreendia, entretanto. Mais ou menos. Olhou para Gwen.
— Isso é motivo de comemoração, certo? Quero dizer, James é o homem mais confiável de Artur?
Gwen hesitou, mas depois pareceu alegre.
— Sim, de fato deve ser um dia de celebração. O que podemos fazer?
— Que tal colocarmos os outros criados para participar? Parte de seu lazer poderia ser ajudar a fazer os enfeites! Vai ser divertido.
— Não... Não posso lhes pedir uma coisa dessas — contrapôs Mary, aflita.
— E quem disse que precisaria pedir, Mary? — falou Isabel. — É o que as pessoas fazem para os amigos.
Mary, que vinha ajeitando o vestido e os cabelos de Isabel, endireitou o corpo, atingindo todo o seu metro e meio de altura, o que ainda a deixava cerca de quarenta e cinco centímetros mais baixa que seu futuro marido. Seus olhos azuis se encheram de lágrimas.
— Amigos? — perguntou, com voz trêmula.
— Sim, amigos — reafirmou Isabel, antes de erguer as sobrancelhas para Gwen.
— Sim, Mary. Amigos — concordou a rainha.
Isabel e Gwen desceram os degraus juntas, contudo Isabel deteve a rainha na metade do caminho.
— Precisamos fazer um chá de cozinha para Mary.
— Chá de cozinha? O que seria isso?
— Você sabe, quando se comemora a proximidade do casamento da noiva...
— Eu nunca ouvi falar disso!
— Confie em mim, vai ser divertido. É uma espécie de “festa do pijama” para que as meninas compartilhem sua alegria pelo casamento de uma amiga.
— Festa do pijama?
Aquela barreira entre os idiomas estava dando nos nervos de Isabel.
— Fique tranquila, vai ser muito bom.
Gwen apertou o braço de Isabel.
— Então vamos fazer. Precisamos de algum planejamento?
— Claro. Porém, temos que mantê-lo em segredo. Nem os homens, nem Mary podem saber de nada. Será uma surpresa, mas vamos precisar da ajuda de alguns dos criados.
— Sei exatamente a quem pedir ajuda para esse tipo de aventura! Estou ansiosa.
Isabel engoliu em seco, depois acrescentou:
— Importa-se se eu ficar responsável pelo cardápio, Gwen? Isto é, não quero fazer pouco dos seus cozinheiros, mas, se eu vir mais alguma enguia em conserva à minha frente, vou pôr os bofes para fora!
— Pôr os bof...?
— Vou precisar correr para esvaziar o conteúdo do meu estômago.
— Ah, compreendo. — Gwen riu. — Enguias não lhe caem bem.
— Sinceramente, acredito que enguias não caiam bem para ninguém!
— Para dizer a verdade, eu também não sou apaixonada por elas, mas é o prato favorito de muitos dos homens. Artur não é um deles. Ele prefere as verduras e os queijos de leite de cabra.
Era claro que preferia. Mais uma razão para ela se apaixonar por ele. Se fosse encontrar um motivo para rejeitá-lo, precisava ser algo que a fizesse ficar com nojo dele.
Assim como se fosse para deixar de gostar de Gwen, precisava encontrar uma imperfeição nela. Além do fato de considerá-la uma tonta por preferir Lancelot a Artur, não conseguia pensar em mais nada. Verdade que apenas isso já deveria ser um bom motivo.
O problema era que estava gostando muito de Gwen. A rainha se mostrava aberta às suas novas ideias; estava até mesmo entusiasmada com elas. Guinevere era mesmo uma mulher bem à frente de seu tempo e, sem dúvida, ficaria feliz vivendo sua vida.
O fato de ela ser uma adúltera era um ponto negativo. Ao passo que o fato de o rei Artur ter aceitado tudo aquilo, mais uma vez, era positivo.
Nada a ver com os planos da Senhora do Lago, contudo.
“Planos mudam como as águas de um rio. Siga os teus, minha cara Isabel, pois em ti eu confio.”
Isabel não soube como expressar a alegria diante da fé de Viviane, por mais equivocada que a deusa estivesse. Ela mesma tinha dificuldades em acreditar nos próprios planos.
Mas se Vivi confiava nela...
“Viviane, sua tola!”
Se Viviane confiava nela... Talvez ela desse, mesmo, conta do recado.
— Podemos conversar sobre algumas coisas? — perguntou ela a Gwen.
— Podemos conversar sobre qualquer coisa.
— Em primeiro lugar, o que acha de Mordred?
— Ele é desprezível. Só trouxe sofrimento a Artur. Eu tento não odiá-lo, mas meus sentimentos por Mordred chegam muito perto disso.
— Então estamos quites nesse ponto. Como é possível que um homem tão gentil como Artur tenha tido um filho como ele?
— Artur não soube nada sobre Mordred até que ficou tarde demais para que o ódio do rapaz fosse aplacado.
— Por que Artur simplesmente não o bane do reino?
Gwen a deteve e a fitou nos olhos.
— O rapaz é filho dele. Não conhece Artur há muito tempo, mas já devia saber a resposta.
— Compreendo. Mas esse menino precisa... Não sei... Precisa levar um pé na bunda!
Gwen riu.
— De fato. Aliás, ouvi dizer que fez um excelente trabalho ontem à noite.
— As notícias correm depressa por aqui — murmurou Isabel.
— Tenho minhas fontes, Isabel. Posso dar a minha opinião quanto a isso?
— Claro.
— Percebe que meu marido está apaixonado por você?
Isabel sentiu-se gelar.
— Percebo que seu marido a ama muito.
Gwen sorriu e assentiu:
— Verdade. Artur tem um coração enorme. Mas foi muito claro ao falar da nossa situação... Ele já não se importa comigo como antes.
— E quanto a você?
— Eu o amo muito.
— Resposta errada.
— Eu ainda tenho muito carinho por ele.
— Mas está apaixonada por outro.
Gwen decidiu olhar para o teto.
— Eu sinto carinho por outro.
— Resposta errada.
— Eu compartilho sentimentos profundos com outro!
— Agora, sim. Resposta certa. Verdade, Gwen. Faz muito mais sentido.
— Então me diga a verdade, Isabel. Quer meu marido?
A verdade às vezes era uma merda!
— Não à custa de acabar com o seu casamento.
— Não foi essa a minha pergunta.
— Está bem. Se Artur não fosse casado... sim. Eu tentaria conquistá-lo. Mas ele é casado.
— Com uma mulher que deseja outro.
— O que, para ser sincera, eu acho inacreditável. Mas também não a culpo por se sentir atraída por Lancelot. “Uma estupidez, mas quem era ela para julgar?”
Gwen a pegou pelo braço e a guiou escadaria abaixo.
— Como diz, mesmo, condessa? Acho que estamos...
— ... Fritas?
Gwen riu.
— Falamos o mesmo idioma, e nem parece. Mas, sim, acho que estamos fritas — repetiu Gwen, de cenho franzido.
— Por falar nisso, devo dizer que aprecio qualquer vegetal em conserva, mas, por favor, chega de...
— ... Enguias! — disseram ambas ao mesmo tempo.
— Vou ver o que posso conseguir com os criados da cozinha — decidiu Gwen.
— Eu tenho uma sugestão.
— Então, dê!
— Trevor deveria ser promovido a chef . Quando não consegui digerir o jantar, ontem à noite, ele me serviu iguarias que me impediram de morrer de fome.
— Se é assim, está com sorte, pois Trevor é o responsável pela refeição da manhã.
— Por favor, nada de omelete de enguia!
Gwen riu.
— Aprenda a dizer “não”, ora. E, a propósito, Trevor também não suporta enguias.
— Graças aos Céus!
Elas alcançaram o pé da escadaria e rumaram para o refeitório, onde a reunião iria acontecer. — Muito bem, Gwen, aqui vamos nós.
— Sim, Isabel, aqui vamos nós. Deveríamos tomar um gole de vinho antes.
— Não é meio cedo para isso? Tudo bem, vamos nessa! — decidiu Isabel, e ambas se desviaram do refeitório para a cozinha.
Capítulo Doze
Isabel soube, de pronto, que ter convidado Gwen para a reunião havia sido uma má ideia. A expressão de Artur já dizia tudo.
Contudo, ficou bastante intrigada porque tivera a impressão de que ele sempre mantivera sua rainha envolvida na política do reino. Guinevere parecia tão sintonizada com as complexidades de Camelot! Ela, Isabel, ficara bastante admirada na noite anterior, quando Gwen se mostrara tão atualizada.
Sem dúvida, Gwen também reparara que o marido não esperava que ela se juntasse àquele encontro. Após ter saudado a todos na mesa com graça, incluindo Lancelot, ela se despediu. Todos os homens tinham se levantado e se curvado, mas, caramba!
Ela estava se sentindo um peixe fora d’água. Era a única mulher no meio de uma dúzia de homens corpulentos e aparentemente mal-humorados. Teria adorado a companhia de Gwen, além de não se sentir tão deslocada. Tão só.
Como era estranho que houvesse se ligado tão depressa à mulher que fora convidada a trair de uma maneira, e que acabara traindo de outra! Que diabo havia de errado com ela? De repente, estava se sentindo uma merda , e só queria sair correndo dali.
Apenas os olhos de Artur, fixos nela, a impediram de bater em retirada.
“Lembra-te de que não estás sozinha, Isabel. Também estou aqui a te ajudar. Basta que mantenhas junto a ti o teu colar... Percebo bem o teu medo, tua agonia eu compreendo. Pela tua aflição, eu te peço perdão. Se ao nosso pacto desejas pôr um fim, eu o farei. Podes confiar em mim.”
Isabel tocou o colar e sorriu para os homens.
— Por favor, senhores, tomem seus lugares. Parece-me que temos muito a discutir. Não sei quanto a vocês, mas estou morrendo de fome! Portanto, vamos tomar nosso café e nos empanturrar com comida e novas ideias.
O colar se aqueceu confortavelmente contra o seu peito.
— Ela não fala como nós — comentou um dos gigantes.
— Porque vem de uma região muito diferente — explicou Artur, aproximando-se para ajudá-la a se sentar. — Por isso mesmo precisamos da condessa. Suas opiniões são um verdadeiro bálsamo. — Conforme ele a ajudou a se acomodar, sussurrou: — Podemos ter uma conversa em particular após esta reunião?
— Por que não? — respondeu ela, uma vez que nenhum dos homens parecia estar ouvindo.
A risada rouca de Artur vibrou através dela. Ele endireitou o corpo e voltou para o próprio assento, acenando com as mãos.
— Sentem-se, sentem-se... — orientou ele aos presentes, em seguida bateu palmas. — Trevor! Estamos famintos.
— Ah, graças aos deuses! — Isabel murmurou. Trevor jamais iria lhe trazer enguia em conserva. Quando ela e Gwen tinham ido visitar a cozinha, os três haviam feito um acordo: nada de enguias!
— Acha que a reunião foi produtiva? — perguntou Isabel a Artur conforme eles passeavam pelo pátio. Mesmo naquele momento, os guerreiros estavam mergulhados no trabalho, treinando, uns com os outros, suas habilidades com a espada. O tinir do aço se chocando contra aço ecoava pelo ar. Pelo menos ela imaginava que fosse esse o metal. Mas que diabos sabia sobre aquele tipo de coisa?
— Conquistou cada um dos meus homens com seus pensamentos e ideias únicos, condessa. Gostei da sua sugestão de eventualmente realizarmos uma feira em nossas fronteiras, para que possamos desfrutar a harmonia entre os nossos povos.
— Festa é sempre festa. Ainda mais na época da colheita.
— E gostaria de chamá-la de Ação de Graças?
— Podemos chamá-la do que quiser, Artur.
— Gosto do nome “Ação de Graças”.
— Diga-me, Artur... Por que Mordred não estava sentado à mesa esta manhã?
— Porque, enquanto ele não jurar total fidelidade ao reino de Camelot e renegar sua fidelidade a Richard de Fremont, não poderá estar presente às nossas reuniões.
Ela estacou.
— Ele está em conluio com aquele idiota?
— Segundo as minhas fontes, sim.
Isabel sentiu a indignação espiralar dentro dela.
— Como Mordred se atreve a vir aqui, então, agindo como se estivesse apenas aguardando que você lhe passasse o trono?!
— Mordred tem falado e feito muita coisa contra mim e contra Camelot que não fazem o menor sentido.
— E, ainda assim, continua permissivo, abriga-o no castelo.
— Ele é meu filho, Isabel. O que quer que eu faça?
— Dar-lhe umas boas palmadas estaria provavelmente no topo da minha lista.
— Palmadas?
— Isso mesmo. Umas dez, pelo menos.
— Quer dizer chicotadas?
— Não! Nada a ver com chicotes. Palmadas. Quando se coloca a pessoa sobre os joelhos e se bate em seu traseiro com a mão.
Artur soltou uma risada.
— Creio que Mordred esteja velho demais para que eu o ponha no colo e faça tal coisa. Mas a ideia não deixa de ser divertida.
— As atitudes dele me tiram do sério, sabia?
— Podemos falar de coisas mais agradáveis? Não quero gastar o tempo que temos juntos com os problemas que me cercam.
Isabel fez menção de lembrá -lo de que não fora ele quem levantara aquela questão desagradável, porém se conteve.
— Sim, claro. O dia está lindo demais para ser desperdiçado.
Artur a conduziu até os estábulos.
— Gostaria de cavalgar, Isabel?
— Ah, eu adoraria! — Ela apontou com o polegar por cima do ombro. — Eles vão nos fazer companhia?
Artur olhou para os homens logo atrás deles.
— Estão dispensados, senhores. Irei ao seu encontro em breve.
Quando eles adentraram o estábulo, ficou evidente, no mesmo momento, que Harry não estava muito feliz.
— Se veio para dar um passeio, receio que Samara não possa ser montada, Izzy. Ela está ferida.
— Ferida como? — perguntou Isabel.
— Está coxa de uma perna.
— Como é possível?!
— Confesso que isso está me parecendo sabotagem. Não imagino como ela pode ter se machucado sozinha.
— Aquele bastardinho de uma figa! — concluiu Isabel, virando-se para Artur.
— Esse seu filho adorado não passa de um sujeitinho sujo e desagradável!
Artur a segurou pelos ombros.
— Calma, Isabel. Ainda não sabemos se isso foi obra de Mordred.
Ela sentiu os olhos se encherem de lágrimas, contudo não fez nada para enxugá-las.
— Quem mais poderia querer machucar Samara? Você sabe a resposta, Artur. Só não quer enxergar a verdade.
— Como ele poderia saber qual era o seu cavalo, Isabel?
Harry limpou a garganta e trocou os pés de posição.
— Harry... — incitou Isabel, encarando-o.
— Bem, quando Mordred veio pedir auxílio para seu próprio cavalo, ouvi uma conversa entre ele e um dos cavalariços. Mordred comentou a respeito da beleza e da aparente linhagem especial de Samara, e perguntou ao menino se o rei estava considerando colocá-la para reproduzir. Foi quando o rapaz lhe contou que Samara pertencia à condessa, e não ao rei. Mordred disse, então, que talvez fosse discutir a possibilidade de um cruzamento entre o cavalo dele e sua égua, Isabel.
Antes que ela pudesse retrucar, Artur interveio:
— Vou pedir aos meus homens que investiguem o caso, Isabel, prometo. E não importa aonde essa investigação vai nos levar: o responsável será punido, seja ele algum cavalariço ou meu filho.
Ela se desvencilhou dos braços dele e correu para a baia de Samara.
— Ah, minha pobre criança! — exclamou, abrindo a porteira para abraçar o pescoço da égua. — Eu sinto muito!
Samara relinchou suavemente contra seu pescoço.
— Quem lhe fez isso, você sabe? — indagou Isabel, dando um passo para trás a fim de acariciar o focinho úmido.
A égua pareceu assentir, balançando a cabeça.
Isabel olhou a perna dianteira do animal, agora envolta no que parecia um pano de algodão; sem dúvida, a única atadura disponível naqueles tempos.
— Dick virá fazer uma massagem na perna de Samara — informou Harry, aproximando-se por trás dela.
Isabel fez meia-volta, vendo Harry e Artur em pé, do lado de fora da baia.
— Ela sabe quem a feriu — contou, seca. — Podemos trazer Mordred aqui e ver como Sam reage.
— Isabel, não está pensando com clareza — contrapôs Harry. — Samara é geniosa com a maioria dos cavalariços. Levei pelo menos quinze minutos para acalmá-la até que eu pudesse fazer um exame. E você bem sabe que os animais me adoram.
Ela se voltou para Samara, afagando-lhe o pescoço.
— Vamos descobrir quem fez isso com você, eu prometo!
A égua balançou a cabeça mais uma vez, então apertou o focinho contra o peito de Isabel, o que esta interpretou como um “Ai de mim!”.
— Isabel, se ainda quiser cavalgar, pode escolher qualquer um dos meus cavalos — ofereceu Artur, constrangido.
Ela suspirou. Não tinha certeza de que poderia montar qualquer outro cavalo de lado, como na sela de Samara. Odiaria passar vergonha, caso a magia da deusa não se estendesse além de seu próprio cavalo.
Balançou a cabeça, conforme deixava a baia e a fechava.
— Temo ter perdido a vontade de cavalgar.
— Um passeio, talvez?
Por mais que ela ansiasse ficar com Artur, sentia-se deprimida com o que havia acontecido com Samara.
— Sinto muito, mas não sei se eu seria boa companhia agora, Artur.
— Imagino que, mesmo quando não está no seu melhor dia, ainda seja a melhor companhia que eu poderia arranjar por aqui.
Ela sorriu.
— Está bem. Talvez um pequeno passeio.
— Ótimo. — Ele virou-se para Harry. — Eu gostaria que o senhor comunicasse aos rapazes do estábulo que Samara deve ser protegida em todos os momentos. Se for necessário, armem uma barraca diante da baia para que ela não seja perturbada outra vez.
— Mil perdões, senhor, mas não me sinto à vontade dando ordens a seus empregados. Não tenho nenhuma autoridade aqui.
— Detém autoridade em nome do rei, Harry. Eu a confiro a você.
Harry inclinou-se ligeiramente.
— Como desejar, majestade.
Artur estendeu o braço e Isabel o tomou, amando a sensação do musculoso bíceps sob os dedos.
— Eu não consigo entender como podem abusar de animais inocentes!
— Nem eu, condessa, nem eu. Como já deve ter notado, adoro cachorros.
— É mesmo? Não me diga!... — zombou ela, recuperando parte do humor. — Como eu posso não ter notado se vivo ocupada tentando não tropeçar neles?
Artur riu e lhe apertou a mão.
— Agora está bem melhor. Diga-me uma coisa: que história é essa de Izzy?
Os dois acabaram nos jardins do leste, que eram tão bonitos quanto os outros, mas de uma forma muito diferente. Havia um enorme lago ali, repleto de lindos peixes cintilantes. E, até onde Isabel podia perceber, aquele jardim era composto principalmente de ervas aromáticas, o que fazia sentido, uma vez que a cozinha ficava ali perto. Pouco além, ela avistou fileiras e mais fileiras de árvores e plantas, com as quais, desconfiava ela, seriam produzidas frutas e legumes muito em breve. Além delas, via-se um pomar em plena floração, com a promessa de maçãs, damascos e talvez cerejas e pêssegos.
Isabel respirou fundo. Não tinha muita certeza dos tipos de árvores frutíferas que existiam naquele tempo, mas todas as fragrâncias eram inebriantes.
— Camelot é adorável, Artur. De verdade.
— Obrigado, condessa. Ainda que eu não possa levar o crédito por tudo isso. É tudo trabalho do meu povo e também de... — Ele parou e engoliu em seco.
— E também de Guinevere, claro — terminou Isabel por ele. — Não devia se mostrar relutante em falar de sua esposa, Artur. Gwen e eu passamos algum tempo juntas, e eu gostei muito dela. Gwen é uma mulher linda, e compreendo muito bem por que se apaixonou por ela.
Ele a conduziu até um banco de concreto, e eles se sentaram.
— Então compreende por que não consigo condená-la de todo?
— Claro. Como já conversamos antes, o coração só faz o que quer... E, às vezes, é um tanto quanto volúvel.
— Parece que o meu é ainda mais caprichoso...
— Como o de qualquer ser humano. Gostaria de ouvir a história sobre o primeiro rapaz por quem fiquei loucamente apaixonada?
Os olhos tristes de Artur se iluminaram, cheios de humor.
— Claro que sim. Eu gostaria muito.
— Bem — começou Isabel, ajeitando as saias em torno do corpo. — O nome dele era Billy Thornton, e nós estávamos no terceiro ano.
— Terceiro ano?
— Nós frequentávamos a escola juntos.
— Pode-se fazer tal coisa em Dumont? Ensinar meninos e meninas no mesmo espaço?
— Claro! Como eu estava dizendo, Billy e eu sentávamos lado a lado, no fundo da sala de aula, porque nós dois éramos bons alunos.
— Vocês se sentam de acordo com o próprio rendimento no aprendizado?
— Sim. As crianças com mais problemas sentam-se mais à frente, de modo que os professores possam vigiá-las melhor.
— Dois costumes tão diferentes para duas terras tão próximas!
— Verdade. Mas, então... Era óbvio que Billy tinha uma queda por mim. Ele vivia puxando meu rabo de cavalo e...
— Isso era sinal de afeição?
— Sem dúvida. Nessa época, a única maneira de um garoto expressar o que sentia por uma menina era provocando e desdenhando. Se ele a ignorasse, era certeza de que não estava interessado. Mas, se a provocasse, podia apostar que ele gostava de você. Ou pelo menos queria chamar a sua atenção.
— Ha! É verdade. Isso, pelo menos, nós temos em comum.
— Continuando, no Dia dos Namorados... — Isabel ergueu a mão para impedir mais uma pergunta. — Trata-se de um feriado que celebramos uma vez por ano, no qual enamorados expressam seus sentimentos um para com o outro. — Ela concluiu que explicar o que era “um momento Hallmark” seria difícil demais, portanto, disse apenas: — É também quando escrevem bilhetinhos com todo o tipo de mimo, desenhos de corações e coisas assim.
Artur aquiesceu.
— Isso também acontece em Camelot. No entanto, ainda não temos um dia específico para esse tipo de coisa.
— Imagino. Na verdade, é bem possível que em Dumont se exagere nessas tradições...
Ele estava sorrindo de verdade agora, o que deixou Isabel toda feliz. Ela amava aquele sorriso, principalmente no momento em que era ela a responsável por colocá-lo naquele rosto moreno quando Artur parecia estar com o coração tão pesado.
— Pois, então... No Dia dos Namorados, Billy colocou um bilhete na minha mesa que dizia: “Quer ser minha namorada?”. Fiquei feliz da vida, porque eu também estava apaixonada.
— Tenho certeza de que era linda também quando menina. Eu gostaria de tê-la conhecido nessa época. Decerto eu teria disputado sua atenção com esse tal de Billy.
— Não sei se ele faria isso por mim.
— Por que diz tal coisa?
— Porque, na hora do recreio — quando fazíamos uma pausa para um lanche —, as meninas decidiram comparar os bilhetes que haviam recebido naquele dia. Imagine nossa surpresa quando vimos que Billy tinha dado o mesmo bilhete de Dia dos Namorados para seis de nós!
Artur riu.
— E ainda diz que ele era um dos meninos mais inteligentes da sala?
— Bem, talvez ele fosse meio imbecil em se tratando de romance. Pelo visto, estava apostando tudo na empreitada.
— E qual foi a sua reação?
— Fiquei com o coração partido. Ele foi a minha primeira paixão.
— E vocês, meninas, não se vingaram?
— Ah, claro que sim! Nós seis o cercamos na hora do almoço.
— E?
Mais uma vez, Isabel concluiu que não saberia explicar o que é “cuecão”, então improvisou:
— Nós nos revezamos derramando leite na cabeça do Billy e também dentro de suas calças.
Artur deu um tapa no joelho, rindo.
— Não se pode mesmo ignorar a ira de uma mulher desprezada!
A risada dele foi tão gostosa e contagiante que Isabel não pôde evitar rir junto.
— De fato. Podemos ser muito criativas em termos de vingança.
— Lembre-me de nunca provocar a sua ira, condessa.
Ela se inclinou e o cutucou no ombro.
— Se fizer isso, senhor, certamente a conhecerá.
— Ainda não respondeu à minha pergunta. Por que seus homens a chamam de Izzy?
Isabel balançou a cabeça.
— Em primeiro lugar, eles não são meus homens , são meus amigos. Somos iguais em todos os sentidos. Eles concordaram em me acompanhar nesta viagem porque queriam garantir a minha segurança.
— Está bem, eu sei que eles são seus amigos. Mas por que a chamam de Izzy?
— É um apelido que me deram desde que eu era menina. Poucos têm permissão para me chamar assim.
— Já percebi. É um privilégio a ser conquistado.
— Mais ou menos.
— Estou ansioso pelo dia em que terei esse privilégio, Isabel.
— Com a incerteza que se avizinha, Artur, quem sabe se esse dia vai chegar?
Ele segurou a mão dela.
— Espero estar vivo para ver esse dia.
Nossa, aquilo tinha soado sombrio demais! Ela não queria pensar naquele tipo de coisa, muito menos naquele momento.
Apertou a mão dele de volta.
— Que tal se você me contasse sobre o seu primeiro amor, agora?
Artur abriu a boca para falar, porém um ruído acima deles o interrompeu, e ambos ergueram os olhares. Gwen descia os degraus de pedra do castelo com uma cesta pendurada no braço. Ela estacou.
Isabel tirou a mão da de Artur, e todos permaneceram em silêncio por um momento antes que a outra reencontrasse a voz.
— Desculpem-me por interromper. Eu pretendia colher algumas ervas, mas posso voltar em outro momento.
Isabel se pôs de pé.
— Não, Gwen, por favor, não queremos incomodá-la. Eu só estava divertindo Artur com uma história da minha juventude. Eu preciso mesmo... fazer outra coisa.
Céus, ela poderia parecer mais patética?
— Vou acompanhá-la até... a sua outra coisa, condessa — decidiu Artur.
— Não, obrigada. Agora que me lembrei do que preciso fazer, sei que posso encontrar o caminho sozinha. Com sua licença. — Ela levantou a saia em um esforço consciente para bater em retirada o mais rápido que aqueles malditos chinelos lhe permitissem.
Artur e Gwen se entreolharam antes que esta se manifestasse em primeiro lugar, descendo os degraus.
— Peço desculpas pela interrupção, Artur.
— Não era nada de grande importância, Gwen. Apenas uma conversa agradável.
— Algo que parece não estar acontecendo entre nós dois nos últimos tempos.
— Sim. Parece que já não temos muito a compartilhar nestes últimos dias.
Ela avançou mais um passo com uma expressão sofrida.
— Estou tentando parar de...
Ele ergueu a mão.
— Por favor, não faça mais promessas que não consegue manter. Elas só empobrecem o que já foi bom e precioso um dia.
— O que quer de mim?
Artur a fitou. Gwen era ao mesmo tempo bela e frágil: o tipo de mulher que parecia implorar para que os braços fortes de um homem a protegessem. Aquilo já o seduzira uma vez, a ponto de ele desejar ser seu abrigo, seu protetor, seu marido e amante.
Seus pontos de vista, porém, haviam mudado muito depois que ele conhecera a condessa. Isabel daria o sangue por qualquer um que prejudicasse aqueles que ela amava. Não iria pedir ajuda. Simplesmente enfrentaria seus inimigos, insistindo que era capaz de lutar suas próprias batalhas.
Noite e dia, dia e noite. Não que fosse uma falha de Gwen, afinal, assim ela fora criada. O problema era que ele admirava muito mais a força de Isabel.
— O que eu quero, Gwen, é a sua felicidade. Estou sendo sincero quando afirmo tal coisa. Sua felicidade é muito importante para mim, mas não mais à custa da minha.
— Quer dizer que não existe nenhuma chance?
— Receio que não. Nem deveria existir. Tentar recuperar o passado quando tanta coisa aconteceu é como tentar impedir um floco de neve de derreter na boca. Eu não sou — e me recuso a ser — outro Billy Thornton.
— Billy Thornton? Não me lembro desse nome. Eu o conheço? Já o recebemos aqui?
— Não, mas ele me deu muito o que pensar.
Gwen franziu a testa, confusa, depois ignorou o comentário.
— Então, o que vamos fazer daqui em diante, Artur? Não suporto a ideia de desonrá-lo.
— Como eu disse, Gwen, sejamos discretos. Sempre discretos. Iremos manter as aparências tanto quanto nos for possível, pois é essencial para o bem do nosso reino. Depois vou estudar essa dissolução de casamentos que praticam em Dumont. Talvez possamos adotar a tal lei para diferenças irreconciliáveis em Camelot. Estou certo de que ela iria diminuir em muito as lesões causadas por panelas que vários dos meus homens sofrem a cada ano.
— Diferenças irrecon... o quê?
Ele fez um gesto vago com a mão.
— Uma lei que eles têm no reino de Isabel, por meio da qual nem o homem nem a mulher são responsáveis por... danos irreparáveis ao casamento. É uma maneira de impedir que tanto o marido quanto a esposa saiam prejudicados. Ambos concordam que não são mais compatíveis.
Gwen sorria ao se juntar a ele no banco.
— Por favor, sente-se aqui comigo um pouco. Também conversei a respeito de várias coisas com a condessa Isabel, as quais, acredito, são muito relevantes.
Artur assentiu em silêncio enquanto a tomava pelo cotovelo e a ajudava a se acomodar.
— Aí está um ponto no qual, sem dúvida, encontraremos coisas em comum.
“Preciso de ti, Viviane! E da tua orientação também... Gosto de Gwen e de Artur, e não posso culpar a ninguém!”
“Isabel, do que tens medo? De esses dois teres conhecido e deles teres gostado muito cedo?”
“Temo prejudicar uma união que ainda pode ser reparada. Meus sentimentos estão confusos. Sinto-me tão angustiada!”
“Muitos danos já tinham sido feitos bem antes da tua vinda. Agora, com clareza eu vejo... De Artur podes ser a salvação ainda!”
Isabel não estava tão certa disso, contudo sentiu-se reconfortada com a lembrança de que o casamento de Artur e Gwen já apresentava problemas antes de sua chegada Mesmo assim, não fazia ideia de como ela poderia ser a salvação de Artur.
“Viviane, só mais uma dúvida... E olhe que não vou nem rimar! Como anda o seu amado Merlin? E você mesma, como está?”
Por todos os deuses, ela não conseguia mais parar de fazer versinhos!
Ouviu o som suave e cadenciado do riso de Viviane.
“Ah, Isabel, verdade seja dita. Merlin sorri quando te vê junto de Artur. Vê-los unidos o faz ter esperança. E melhor fico eu, se Merlin acredita!”
Isabel não se sentia muito segura de que ela e Artur estivessem “juntos”. Era apenas uma atração o que eles sentiam um pelo outro.
“Foi o único sinal positivo que tive de Merlin nos últimos dias. Por favor, Isabel, ele precisa da sua ajuda!”
Nossa, nenhuma rima daquela vez. Nem parecia Viviane.
“Você não faz ideia.”
Houve uma batida na porta, e Mary entrou, agitada, carregando uma bandeja cheia de queijos e pães, além de uma caneca que provavelmente tinha hidromel.
— Olá, condessa! — A moça saudou, alegre. — Lindo dia, não?
Isabel sorriu.
— Verdade. E você também parece radiante. Qual o motivo dessa alegria toda?
Mary pousou a bandeja, depois bateu palmas e quase pulou.
— James concordou, senhora!
— Concordou? — repetiu Isabel, pegando um pedaço do queijo de cabra. — Eu pensei que já estivesse tudo acertado; que iriam se casar tão logo você atingisse a madura idade de catorze anos.
— Não, não. James concordou que eu cortasse o cabelo dele.
Isabel deixou cair o queijo e se levantou de um salto, agarrando Mary pelas mãos.
— Que maravilha , Mary! Incrível! Ah, ele vai estar lindo na cerimônia!
— E não é só isso. Parece que o rei sugeriu que todos os homens seguissem o exemplo de James, para que todos ficassem... Qual é mesmo a palavra? Receptáculos!
Isabel quase riu. Que diabos? Com aqueles cabelos, a maioria deles já se parecia com um “receptáculo”.
— Eu acho que quis dizer “respeitáveis”.
— Exatamente!
— Ah, Mary, que notícia boa! — Ela ergueu a caneca para um brinde, ainda que a outra moça não tivesse nada com que brindar. — A um lindo casamento! — Tomou um gole, porém pequeno. Não estava habituada com a bebida forte, e duvidava de que fosse se acostumar com ela tão cedo.
Sentiu-se aquecida por dentro. Ou por causa do hidromel ou do sentimento de orgulho que a invadiu por Artur tê-la ouvido e pedido que os homens se apresentassem melhor. Na certa por conta deste último.
Estendeu a caneca para Mary.
— Pode beber esta coi... este hidromel, Mary? Se puder, beba comigo.
Mary enrugou o nariz sardento.
— Posso sim, senhora, mas não aprecio muito essa bebida.
— Então não quer comer um pouco destes pães e queijos?
A menina balançou a cabeça.
— Obrigada outra vez, mas não. Não quero engordar antes do dia do meu casamento.
Isabel riu. Era o mesmo pesadelo para qualquer noiva! Ali estava algo que não havia mudado ao longo do tempo.
Vasculhou o cérebro, buscando uma forma de comemorar com Mary e, de repente, ela veio:
— Mary! Já tem o vestido que irá usar no seu grande dia?
— Não, senhora, mas espero contar com a ajuda das nossas costureiras nos próximos dois dias. A rainha exigiu que os homens me pagassem uma pequena quantia para que eu lhes cortasse o cabelo. Espero poder me dar o luxo de comprar um vestido muito especial para a ocasião com o que consegui amealhar.
Isabel caminhou até o guarda-roupa.
— Pode escolher — disse, apontando para os próprios vestidos. — Qualquer um deles. O que quiser é seu.
— Ah, eu não poderia!
— Poderia sim! Eu insisto. É o meu presente de casamento. E não pode recusar um presente de casamento, pode? Seria muito rude da sua parte.
Mary olhou para os vestidos, ansiosa, depois se voltou para ela novamente.
— Mas, senhora... É muito mais alta do que eu. E muito mais bem-dotada aqui — explicou ela, tocando os próprios seios.
— Que costureira não pode fazer um ajuste aqui, uma pence acolá, e transformar um destes em um vestido de noiva? Dessa forma, poderá economizar o que recebeu com os cortes de cabelo e ajudar a comprar uma casa para você e James aqui no reino. Que tal?
Os olhos de Mary se encheram de lágrimas, e ela piscou com força para afastá-las.
— Não sei, senhora, eu...
— Mas eu sei. Trate de escolher, e amanhã mesmo nós iremos procurar o ateliê de costura — ou seja lá como vocês o chamam — para fazer as alterações.
— E se eu escolher um de que gosta muito?
— Vou adorar vê-lo em você no melhor dia da sua vida.
Mary ficou muda por um instante, então se jogou nos braços de Isabel.
— Ah, senhora, essa é a coisa mais bonita que alguém já fez por mim!
Isabel a abraçou de volta, as lágrimas ameaçando transbordar de seus próprios olhos.
— Estou tão feliz apenas por fazer isso, Mary! Agora vamos escolher um vestido.
Quando ergueu a cabeça, ficou imóvel. Artur estava encostado no batente, de braços cruzados, olhando para ela. Ela se perguntou se estaria em apuros, se havia ultrapassado algum limite, até que os lábios benfeitos se curvaram num lento sorriso. Artur assentiu com um gesto de cabeça.
Ela abriu um sorriso trêmulo; em seguida, levou o dedo à boca, pedindo silêncio, de modo que Mary não se assustasse. Ele concordou e recuou, mas não sem antes mover a boca, dizendo: “Volto depois”.
Se para lhe dar uma bronca ou beijá-la, Isabel não fazia ideia.
Mas não importava. Tê-lo de volta em breve já era mais do que o suficiente para ela.
Capítulo Treze
Fiel à própria palavra, Artur voltou menos de uma hora depois.
— Posso entrar, condessa?
Ela terminou de escovar — ou melhor, de cutucar — os dentes, enfiou um punhado de hortelã na boca e se virou.
— Sim, claro que pode.
— Decidiram a respeito do vestido do grande dia?
— Após uma pequena discussão sobre a cor, sim.
— Discussão? — indagou ele enquanto entrava com um frasco de vinho e dois cálices nas mãos.
— Mary adorou o vermelho, mas eu a convenci a optar pelo verde. O vermelho entrava em conflito com o cabelo dela, ao passo que o verde realçava muito mais seu tom de pele.
Ele pousou as taças e serviu a bebida.
— Creio que tenha muito mais gosto para esse tipo de coisa do que a maioria — falou, entregando-lhe um dos cálices.
— Havia quanto tempo estava parado na porta? — quis saber Isabel, aceitando o vinho.
— O suficiente para reconhecer por que me sinto tão atraído por você, Izzy.
Ela abaixou a cabeça para esconder o sorriso.
— Sabe que eu só deixo quem é muito próximo a mim me chamar de Izzy.
— Sei.
— Então está supondo que eu o aceitei em meu círculo mais próximo de amigos?
— Tenho esperança de que sim, por isso mesmo estou me arriscando. Nunca precisei ser convidado para nada nesta vida, tenho essa tendência a me impor. Defeito terrível esse meu.
— Verdade. Você é, mesmo, muito atrevido.
— Algo me diz, bela senhora, que sabe lidar muito bem com um atrevido.
O olhar de Artur dizia claramente que suas intenções não eram das mais probas.
O que era sexy demais.
Isabel recuou, entretanto.
— Mary pode voltar a qualquer momento.
— Pode — confirmou ele enquanto recuava e empurrava a porta com o pé, para em seguida trancá-la por dentro. — Mas seria terrível para Mary se ela entrasse.
— Por acaso você colocou uma placa “Não perturbe” lá fora?
— Ninguém vai nos perturbar correndo o risco de ser decapitado.
Isabel engoliu em seco.
— Está brincando, não está?
— Diga-me você, Isabel. Estou brincando?
— Nunca faria um mal desses a ninguém. Então, só pode estar brincando.
Ele ergueu a taça.
— À mulher mais extraordinária que eu já conheci. E de coração mais generoso e apaixonado. Fico feliz por tê-la conhecido, Isabel.
Eles tilintaram os cálices e beberam.
— Ao homem mais afetuoso e amoroso que já conheci. Esta jornada foi longa e estranha, mas, se eu não a tivesse feito, não o teria conhecido, Artur. E teria sido uma perda e tanto. Encontrar você foi como descobrir um tesouro.
Beberam outra vez, os olhos verdes fixos nos azuis.
Depois ambos se sentaram em suas respectivas cadeiras, o que provavelmente foi uma ideia bem melhor do que jogarem as taças de lado e pularem na cama. Ainda que ela não estivesse muito certa, no momento, por que motivo aquela era uma ideia melhor.
— Você me encanta, sabia? — murmurou Artur. — Tudo em você me fascina. Não vou negar, nem me desculpar por isso. Esse sentimento está além do meu controle. Aconteceu de eu estar perto da porta no momento em que quis fazer algo especial por Mary. E foi muito especial... Assim como você.
Ela tomou outro gole do vinho.
— Mary havia acabado de me contar: você ordenou aos homens que se arrumem para o casamento dela e de James. Foi maravilhoso da sua parte.
— Em primeiro lugar, eu não ordenei nada a ninguém, Isabel. Apenas sugeri. Só dou ordens nas batalhas; em Camelot, eu sugiro.
Ela assentiu:
— Eu também soube que Gwen sugeriu aos homens que pagassem pelos serviços de Mary.
— Nós sempre incentivamos nossos súditos a pagar por serviços prestados. — Ele fez um gesto vago com a mão. — Se uma pessoa presta um serviço especial, por que não deve receber por ele? Parece justo. Deveria haver um nome para essa prática, mas não sei qual seria.
— No meu reino isso se chama “capitalismo”.
— Nunca ouvi falar, mas qualquer nomenclatura serve.
— Também acho. E agradeço a você e a Gwen por promoverem o capitalismo. Ele faz com que seus homens e suas mulheres trabalhem com mais afinco e sejam recompensados.
— Eu gostaria de ouvir suas sugestões de como inserir melhor esse capitalismo no funcionamento do castelo.
— Agora?
— Não, não agora. Neste momento, eu gostaria muito de ouvir outras histórias a seu respeito.
Isabel balançou a cabeça.
— Eu já tagarelei muito sobre mim. Chegou a sua vez de retribuir. Conte-me algo sobre você. — Ela sorriu. — Algo que não tenha contado a nenhuma outra pessoa.
Artur riu e, em seguida, tomou outro gole de vinho.
— Devo confessar que não compreendo o que quer dizer, às vezes. Você usa palavras que nunca escutei antes. No entanto, gosto de interpretá-las por meio das outras que as acompanham.
Isabel sentiu uma espécie de vibração correr pelo corpo, e soube que ela nada tinha a ver com o vinho.
— E eu tento falar como você, mas nem sempre consigo.
— Por favor, não tente. Estou verdadeiramente apaixonado por quem você é, pelo modo como fala, pelas suas ideias, sua beleza...
— Pare, Artur, por favor! Agradeço pelos elogios, mas eles me deixam sem graça.
— ... E também pela sua generosidade — completou Artur, sorrindo. — Eu poderia continuar, mas vou parar agora. — Ele tornou a encher os cálices, embora ela mal tivesse tocado no dela.
Isabel não protestou, contudo. Sentia-se feliz demais em apenas estar na companhia dele.
“Artur e Isabel, Merlin está contente! Saibam que ele sorri o tempo todo, ainda que dormindo profundamente.”
Artur franziu a testa.
— Ouviu isso?
Isabel não sabia se dizia “sim” ou “não”.
— O quê? — indagou, optando por ser evasiva.
— Sobre Merlin?
— Merlin?
Artur balançou a cabeça.
— Minha mente anda me pregando peças.
Ela tentou responder da melhor maneira. Não queria que Artur pensasse que estava perdendo o juízo.
— Creio que, quando os pensamentos surgem para nós, isso acontece por alguma razão. Para que nós reflitamos de verdade. Pelo menos, é assim que interpreto essas vozes na minha cabeça.
“Viviane, pare com isso!”
“Perdão!”
Artur acomodou-se melhor na cadeira.
— Diga-me, Izzy, o que gostaria de saber sobre mim? Sobre o meu primeiro amor?
O que ela adoraria saber era como ele era totalmente nu. E também se ele era tão bom amante quanto seus olhos e sorriso prometiam. Mas, apesar de ser um tanto quanto atrevida, não se sentia preparada para soltar aquelas perguntas. Não ainda.
— Eu adoraria saber sobre seu primeiro amor, mas não é o que eu gostaria de ouvir antes de tudo. O problema é que tenho medo de ir longe demais.
— Arrisque-se — incitou ele.
Ela hesitou.
— Eu gostaria de saber qual é a sua maior paixão. O que mais importa para você, Artur?
Ele levou alguns minutos para responder, esfregando a barba.
Nesse meio-tempo, Isabel tomou vários goles de vinho, torcendo para que Artur revelasse qualquer coisa, mas não algo em que ela não estivesse interessada. Como reconquistar Gwen, por exemplo. Também não queria que ele saísse correndo do quarto.
— Muitas coisas são importantes para mim — respondeu ele, por fim. — Posso escolher mais de uma?
— Claro — anuiu ela, engolindo o medo. Do quê , não tinha certeza. Mas algo a estava deixando apavorada. Uma pergunta menos comprometedora teria sido mais adequada.
— Quero garantir a segurança e a felicidade de todos em Camelot, mas receio que isso não seja possível.
— Por quê?
— Há muitos inimigos querendo nos derrubar. Por esse motivo estamos promovendo essas reuniões entre cavaleiros de outros reinos. Para que possamos nos unir contra essas forças malignas.
— Dumont não é uma delas, Artur. Eu juro.
O sorriso dele foi sombrio.
— Eu sei que não, Isabel. E agradeço muito pelo apoio que nos têm ofertado.
— Tenho homens a caminho, prontos para defendê-los.
Aquilo era uma mentira sem tamanho. Ela nem sabia se tinha um exército. Mas contava com a deusa para ajudá-la na questão.
— Seus homens já chegaram, Isabel. Na verdade, estão se acomodando neste exato momento.
— É mesmo?
— Não sabia?
“Segue com o plano, Isabel. Achas, mesmo, que eu não traria reforço?”
“Um aviso teria sido bem útil, Viviane!”
“Irás reconhecer os homens num piscar. São antigos conhecidos teus da universidade. De Oklahoma, eles vieram para ficar. São o time de futebol da cidade!”
“Caramba, não tirou o time de futebol inteiro da...?”
“Relaxa, Isabel, são apenas imagens, assim como Tom, Dick e Harry.”
Isabel não sabia se ria ou chorava. Só faltava parte deles ter sido trazida na carroça Sooner Schooner! *
“Claro que foram, por que não? Agora, por favor, concentre-se em Artur.”
Isabel engoliu em seco.
— Eles... eles acabaram chegando antes do que eu havia previsto. Peço desculpas se isso lhe trouxe algum incômodo.
Artur riu.
— Incômodo nenhum. Na verdade, foi um prazer, de acordo com James. Parece, inclusive, que trouxeram algo que chamam de mascotes.
— Santo Deus! Aposto que eles vão ensinar seus homens a dirigir colados na carroça da frente!
Isabel viu a confusão nos olhos de Artur e rapidamente sacudiu a cabeça.
— Vou ter que recebê-los e agradecê-los por terem vindo tão rápido. Mas não antes de ouvir o que mais você tem a dizer.
— A dizer?
— Não tem? Entendi que tinha mais de uma prioridade.
— Ah, sim. Minhas prioridades.
Uma vez mais, a forma como Artur sorriu a fez derreter e pegar fogo ao mesmo tempo. Algo que ela nunca sentira antes.
Tente descobrir por quê, dr. Phil!
— Minhas prioridades — repetiu ele, distraído. — Preciso me concentrar na conversa. Bem, também quero poder conviver em paz com Gwen.
Isabel sentiu o coração afundar dentro do peito.
— Compreendo, Artur. E acredito que deva, mesmo, fazer tal coisa. Salvar seu casamento precisa, mesmo, ser uma prioridade — afirmou, e sentiu o colar bater contra o peito.
— Você não entendeu, Isabel. Eu quero que Gwen seja feliz, mas não comigo. Ela é apaixonada por Lancelot. Não posso evitar tal coisa nem quero prejudicá-los. Na verdade, estou preocupado em não conseguir protegê-los como eu deveria, pois gosto demais dos dois.
— Mesmo que eles tenham...
Artur inclinou o corpo e pôs a mão nos lábios dela.
— Eles foram atrás de seus desejos. Eu deveria exigir outra coisa? Talvez. Mas está feito, e pronto. Tudo o que posso fazer agora é garantir a segurança de ambos. E, para dizer a verdade, creio que tudo acabará bem.
Isabel passou a mão pelos cabelos.
— Sinceramente, não compreendo.
— Se eles forem apanhados, terão que pagar caro. Assim, tentarei evitar isso ao máximo.
— É um bom homem, Artur. Tem um coração enorme, sabia? Na minha terra, temos um ditado: “O que acontece em Dumont fica em Dumont”. A menos que alguém seja imbecil o suficiente para falar sobre o caso com cada pessoa que vir pela frente, fora do reino.
— Gosto muito do modo de pensar das pessoas de Dumont.
— Eu também — afirmou ela, ainda que essa fosse a maior das mentiras, considerando que não conhecia um único cidadão daquela terra. Tomou um último gole de vinho e se levantou. — É melhor eu ir receber os meus homens.
Artur a segurou pela mão.
— Ainda não lhe contei qual é a minha terceira prioridade.
— Talvez mais tarde, Artur.
— Por favor. Eu serei breve.
Ela assentiu em silêncio e sentou-se quando, na verdade, estava pronta para se deitar. Decididamente, beber logo pela manhã não tinha sido muito bom para seu equilíbrio!
— E então? Qual é a sua terceira prioridade?
Artur continuou a segurar a mão dela, correndo o polegar pela palma macia. Por um momento, pareceu hesitar, depois a fitou direto nos olhos.
— Deitar-me sem nenhuma roupa com você. Fazer amor com você. Beijá-la com paixão até deixá-la tonta... Essa é mais uma prioridade minha e, das que eu mencionei antes, não necessariamente na ordem certa. Eu só a coloquei nessa ordem porque levei algum tempo para reunir coragem suficiente para expressá-la.
Graças aos Céus estava sentada, pensou Isabel, pois com certeza seus joelhos teriam cedido. Pela primeira vez na vida, ficou sem palavras.
Ficaram olhando um para o outro por tanto tempo que o Sol poderia ter se posto, e ela nem teria notado.
Por fim, Artur desviou o olhar e se levantou.
— Eu não devia ter dito uma coisa dessas. Não foi nada adequado. — Curvou-se, solene. — Minhas mais profundas desculpas.
Isabel o agarrou pelo braço e se pôs de pé, puxando-o para mais perto conforme o fazia, de modo que ficaram face a face, corpo a corpo.
— Aposto um dos nossos cavalos que não consegue tirar de mim essa geringonça que chamam de vestido mais rápido do que a Mary.
Artur sorriu e, em seguida, a segurou pelo rosto.
— Está me subestimando, condessa.
Capítulo Catorze
Ah, como Isabel o tinha subestimado! Em todos os sentidos.
Artur lhe tirou o vestido em tempo recorde, beijando-a em todos os lugares até deixá-la entorpecida.
— Você é bom nisso — sussurrou ela conforme o traje caía no chão.
— Espero que continue pensando da mesma forma por muito tempo, senhora...
Tão logo o vestido se amontoou em torno de seus tornozelos, Isabel percebeu-se nua. De repente, sentiu vergonha e cobriu os seios com os braços.
— Não, Isabel, por favor. Você é tão linda!
Ela não fazia ideia de como funcionavam as túnicas, calças e outras coisas dos homens daquele tempo. Tanto que o máximo que foi capaz de fazer foi livrar Artur da veste que ele usava por cima do restante antes de ficar perdida.
— Receio não saber mais o que fazer.
Artur, que continuava fissurado em seu corpo, ficou imóvel e estreitou o olhar.
— Está me dizendo que nunca foi tocada?
Isabel não soube como responder. Simplesmente não encontrou palavras.
“Viviane?”
Nada. De repente, ocorreu-lhe que a deusa havia lhe prometido privacidade em momentos como aquele. Que maravilha. Era só o que faltava.
— Isso importa? — indagou, tímida. — Não faço ideia de como lidar com essas roupas de homem.
— Importa muito para mim — afirmou Artur, parecendo e soando irritado.
Ele puxou o vestido dela por cima de seu corpo. A respiração ofegante dele já não soava cheia de luxúria e desejo, e sim como uma tentativa desesperada de retomar o próprio controle.
— O que aconteceu, Artur? — perguntou ela, segurando o vestido desamarrado ao redor do corpo. — O que foi que eu fiz?
Ele apanhou a túnica, a única peça da qual Isabel conseguira fazê-lo se despir.
— Não vou lhe tirar algo que é uma atribuição a seu futuro companheiro. — Ele se dirigiu para a porta, ajeitando o colete no corpo a cada passada.
— Espere um minuto, rapaz! Trate de voltar aqui e falar comigo!
Artur fez meia-volta quando já estava prestes a abrir a trava da porta.
— O que mais posso dizer? Não estou aborrecido com você, condessa, estou aborrecido comigo mesmo. Minhas profundas desculpas pelo que estive prestes a fazer.
— Se não notou, eu estava mais do que disposta a fazer a mesma coisa.
— O que me pareceu maravilhoso. Isso, para mim, foi o mais inebriante.
— Então por que está fugindo de mim? Por que agora sou “condessa” em vez de Isabel, ou mesmo de Izzy? Pode estar punindo a si mesmo, mas, acredite, está punindo mais a mim. Por quê?
Artur pareceu ceder apenas em parte, o que feriu o coração de Isabel. Afastando-se da porta, ele se aproximou dela.
— Deixe-me ajudá-la com a amarração do vestido.
— Ótimo. Mas, enquanto trabalha, por que não me ajuda a entender o que acabou de acontecer aqui?
— Não será muito bom de ouvir — assegurou ele, à medida que começava a atar os laços do traje com surpreendente habilidade.
— Como se todos não fô ssemos obrigados a esse tipo de coisa às vezes... Fale de uma vez, Artur, por favor!
— Houve um tempo em que eu era a arrogância em pessoa. Muito cheio de mim graças ao meu poder e fama. Era apenas um rapaz, mas queria desesperadamente ser um homem.
— Compreendo. Mas o que isso tem a ver conosco? Com isto? — exigiu Isabel. — Creio que a verdade seja o melhor caminho neste momento.
Ele suspirou.
— Sim, você merece a verdade.
E um bom orgasmo também. Por enquanto, contudo, ela iria se contentar com a verdade.
— Também acho — concordou, tentando desesperadamente não começar a chorar.
Artur assentiu.
— É a verdade o que vai ter. — Tirou as mãos do vestido, relutante, parecendo precisar de algo mais para fazer.
— Conte-me tudo, Artur.
— Por onde posso começar?
— Que tal do momento em que conseguiu soltar Excalibur em diante?
Ele anuiu mais uma vez.
— Logo depois de eu ter conseguido liberar a espada da pedra, conheci uma moça que gostava de mim. Ela se chamava Elizabeth e era muito linda e doce. Estava me sentindo ousado e poderoso... Sentia como se o mundo fosse meu.
— Imagino. Tinha feito algo que ninguém mais havia conseguido.
Artur terminou de atar os laços, por fim. Em seguida, virou-se e sentou-se em uma cadeira.
Isabel se acomodou na outra.
— Continue.
— Essa moça, Elizabeth... ela permitiu que eu fizesse amor com ela. Mas foi uma experiência dolorosa, uma vez que eu ainda não era muito experiente. Também foi a minha primeira vez.
— Quer dizer, então, que sabia como tirar uma espada, mas não como colocá-la? — Isabel viu a expressão surpresa de Artur e riu. — Perdão. Foi uma piada de péssimo gosto.
Ele inclinou a cabeça.
— Mas que, para meu azar, é verdadeira. Tive pesadelos terríveis sobre o que acontecera, porque saí sem nem pedir desculpas a ela. Afinal, tinha coisas mais importantes para fazer. Alguns anos se passaram, porém o que aconteceu naquele dia ainda pesava na minha mente. Tentei entrar em contato com Elizabeth, a fim de perguntar se ela estava bem. Mas me disseram que ela havia morrido em um parto.
— Merda! Foi quando Mordred nasceu.
— Eu já desconfiava de que o menino fosse meu. Juro. A irmã de Elizabeth tomou conta da criança e levou Mordred a acreditar que ela era sua verdadeira mãe. Sentia ódio de mim, embora eu tenha tentado fazer as pazes com ela. Estava quase certo de que Mordred era meu filho. Foi uma época terrível para todos nós. Mas eu tentei fazer tudo certo, Isabel. Juro que tentei.
— Acredito em você, Artur.
— Contei essa história para que entendesse por que tenho tanto medo de prejudicar outra mulher do mesmo modo. Principalmente você.
— Imagino que Gwen também era virgem quando se casou com ela.
— Verdade, mas fui muito cuidadoso por ter consciência disso. Tomei muito cuidado para não machucá-la.
— Então por que surtou comigo?
— Surtei?
— Por que parou?
Ele balançou a cabeça.
— Não compreende? Meu corpo estava fora de controle. Eu queria tomá-la... Queria violar você.
— E daí? Eu queria ser violada.
Artur a fitou, confuso.
— Eu poderia tê-la machucado. Já aconteceu com outra. Eu não poderia conviver com outro erro desses.
— Eu lhe pareci assustada?
— Não, Isabel, mas isso porque não conhece a dor que uma mulher pode sentir da primeira vez.
Claro que conhecia. Brian Gordon fora tão desajeitado e descuidado quanto Artur.
E, droga, tinha doído demais.
Mas ela havia superado o trauma. Na verdade, bem depressa.
— Poderia ter sido tão delicado comigo como foi com Gwen.
— Não.
— Por que não?
— Porque, com Gwen, eu estava em pleno controle. Aprendi a lição com Elizabeth, e Gwen sempre foi como uma boneca de porcelana. Foi fácil tratá-la como tal.
— Eu sei que não sou nenhuma bonequinha de porcelana, embora muita gente ainda não faça ideia do que eu seja. Mas o que há de tão diferente em mim?
— Eu já disse, Isabel, perdi todo o controle. A verdade é que nunca desejei uma mulher como a desejo. Mesmo quando eu era novo e só pensava nesse tipo de coisa, nunca foi como agora.
Isabel quis gritar. Artur não estava falando coisa com coisa e, ao mesmo tempo, fazia sentido demais. Era um cavalheiro e um homem gentil, claro, porém seu corpo estava sofrendo com tanto desejo reprimido.
Por outro lado, era muito bom ouvir que ele a desejava com tanta intensidade. Por que ela não contava de uma vez que não era mais virgem? Que já havia tido vários amantes? Deus do Céu, com aquela idade, sua vagina teria se fechado permanentemente caso nunca houvesse sido penetrada.
A hora certa tinha vindo e ido embora, no entanto, e sua hesitação a penalizara. Que maravilha. Revelar naquele momento que, na verdade, ela era muito experiente no que Artur chamaria de “prática sexual” pareceria falso. Decerto ele ficaria furioso por ela não ter dito a verdade logo de início.
Isabel se levantou, sentindo-se mais derrotada do que nunca.
— Obrigada por sua integridade, Artur. Eu só queria ter agido da mesma forma.
Ele também se pôs de pé.
— Como assim?
Ela não conseguiu fitá-lo nos olhos.
— Não importa agora.
Artur estendeu a mão e a segurou pelo queixo, obrigando-a a encontrar seu olhar.
— Pois, para mim, tem grande importância. No final, Isabel, a verdade é tudo o que temos.
Ah, Deus, como ela poderia se sentir pior? Sua vida inteira naquele reino era uma mentira!
— Podemos conversar sobre esse assunto outra hora? Estou exausta e, devo dizer, não pelo motivo que eu esperava. Além do mais, tenho muito a fazer antes do jantar.
Ele a observou pelo que pareceu uma eternidade, depois assentiu brevemente.
— Outra hora, então. Eu também tenho meus afazeres. Ainda não realizei meus treinos de arco, flecha e espada hoje, e tenho obrigação de fazê-lo para não me tornar um rei gordo e lento. Esta noite, talvez?
Isabel riu sem vontade. Artur precisaria de um ano ou mais, sem fazer nada, para ganhar meio quilo ou perder um grama de músculo. Seu corpo era tonificado dos ombros até a ponta dos pés. Ao menos parecia ser. Como ela queria poder constatar aquilo!
— Talvez. Vamos ver.
— Vou vê-la no jantar ?
— Sim. Se depender de mim, eu jamais irei perder uma refeição.
Artur riu. Depois, antes que ela se desse conta, segurou-a pelo rosto e a beijou com volúpia. Seus hormônios, que tinham voltado a ficar inativos, saltaram novamente à vida como se atingidos por uma descarga elétrica. Artur a beijava como nenhum outro homem. Seus lábios eram firmes, diretos, moldando os dela a seu bel-prazer. Sua língua tocava a dela apenas ocasionalmente, contudo, como se apenas para prová-la. Ele não tentou lhe invadir a boca como muitos faziam; não usou o beijo como uma violação oral. Apenas acariciou e brincou com seus lábios, levando-a quase à loucura.
Vários minutos depois, interrompeu o beijo e uniu a testa à dela.
— Ah, Isabel — falou, rouco. — Seu gosto, seu cheiro e sua pele são quase demais para suportar!
— Pois trate de voltar aqui.
— Esta noite?
— Sim.
Artur recuou, ainda que relutante em fazê-lo. Seus olhos a percorreram, então, desde o rosto até os pés.
— Confie em mim, Isabel. Não precisa sentir vergonha. É linda demais.
Ele tentou passar por ela, mas Isabel o segurou pelo braço, fazendo-o se voltar.
— Você também.
Artur sorriu.
— Como pode saber? Pode se arrepender do que está dizendo algum dia desses. Tenho muitas cicatrizes de batalha neste meu corpo.
Ainda que a simples ideia de imaginá-lo ferido a fizesse estremecer, Isabel compreendia: era dessa forma que funcionava aquele mundo. Pensou em Curtis e no Afeganistão, e se deu conta de que a violência em si não havia mudado; apenas sua natureza. Ainda assim, mal podia esperar para explorar cada uma das cicatrizes de Artur, se tivesse a chance.
Caminhou com ele até a porta, mas, antes que Artur a abrisse, ela o deteve novamente.
— Artur... Na próxima vez em que tivermos a oportunidade de conversar, prometo dizer a verdade. Você está certo. No final, é tudo o que temos.
Ele sorriu.
— Estou ansioso por esse momento. Tem uma vida fascinante, Isabel.
Se ele soubesse!
— Até a noite — despediu-se Artur com uma ligeira mesura.
— Sim. E tome cuidado lá fora. Luta de espadas não é para maricas.
Ele riu.
— Não sei o que significa “maricas”, mas posso imaginar.
Ambos sorriam quando Artur tirou a trava e abriu a porta.
Seus sorrisos, porém, cessaram.
— Mordred! — exclamou Artur.
O bastardo arrogante se desencostou da parede e cruzou a porta de Isabel.
— Meu pai... Condessa... Pensei que fossem ficar aí dentro o dia todo.
Artur sabia que a vontade de Isabel era pular em cima de seu filho e lhe arrancar os olhos. Assim, ele rapidamente lhe bloqueou o caminho, a fim de impedir um desastre.
— Tem algum assunto para discutir conosco, Mordred? — perguntou, seco. — Se tinha, bastava bater.
— Ah, muitos assuntos — ironizou o rapaz. — E agora tenho outro para adicionar à minha lista.
— Então vamos fazê-lo em outro...
— Seu animalzinho intrometido, abusado e ingrato! — sibilou Isabel, tentando romper a barreira de Artur sem sucesso, graças aos deuses.
— Por favor, Isabel — pediu o rei. — Permita-me lidar com esta situação.
— Como acha que ele iria saber onde você estava se não o houvesse seguido?
O sorriso de Mordred se alargou.
— A condessa é muito astuta. E adorável. Escolheu bem a sua amante, meu pai. Se não se importar em compartilhar os serviços dela com seu filho, não farei nenhuma objeção.
Artur sentiu a raiva espiralar dentro dele como nunca havia acontecido. Saltou para a frente e agarrou Mordred pela túnica com ambas as mãos, erguendo-o contra a parede.
— Vai pedir desculpas para a condessa, Mordred. Agora!
O sorriso de Mordred desapareceu, contudo a malícia em seus olhos ainda cintilava.
Foi uma visão triste para Artur, que sacudiu o filho, desgostoso.
— Peça desculpas antes que eu mande escoltá-lo para fora de Camelot e proíba a sua presença aqui pelo resto da vida!
— Se o que eu disse não é verdade...
— Claro que não é. Isabel e eu não somos amantes. Vou repetir, Mordred. Peça desculpas à condessa!
— Esqueça, Artur — interveio Isabel, aproximando-se deles. — Esse moleque é incapaz de se desculpar com sinceridade. — Em seguida, fez algo notável e chocante ao mesmo tempo: girou o corpo uma vez e, levantando uma perna, arremessou-a contra o joelho de Mordred.
O rapaz deu um grito de dor, e poderia ter caído se Artur não o estivesse segurando.
— Isso foi por Samara. Como se sente agora? — exigiu Isabel, ofegante. — Se eu o vir perto da minha égua de novo, vai levar uma pior! Entendeu, seu merdinha?
Artur testemunhou algo nos olhos do filho — dirigido a Isabel — que nunca tinha visto: uma fagulha de respeito.
Mordred fez uma careta enquanto tentava se recuperar.
— Minhas desculpas se falei o que não devia, condessa.
— Eu não dou a mínima para as suas palavras sem sentido, seu verme! — contrapôs ela. — Seus atos já dizem quem você é, Mordred, e mostram que a criação venceu a natureza nessa batalha genética.
Embora Artur tivesse Mordred pelo menos a uns doze centímetros acima do solo, o rapaz se debateu até conseguir tocar o chão.
— Vai permitir que essa mera prostituta repreenda seu único filho e herdeiro da Coroa?!
— Vai ver quem é a mera prostituta... — respondeu Isabel, preparando-se mais uma vez para atacar.
— Isabel, não! — pediu Artur. — Eu cuido disso. — E largou o filho de uma vez.
Mordred gritou ao desabar no solo.
Ver a dor do rapaz foi angustiante para Artur, porém as palavras contra Isabel o tinham ferido ainda mais.
— Daqui em diante, vai tratar a condessa com o respeito e a educação que ela merece. Ela nunca lhe fez mal. Foi você quem a ofendeu com palavras e ações. Comece a se comportar como deve, Mordred, ou vou derrubá-lo sobre essa perna mais vezes... Isso se eu não permitir que a condessa use seus próprios métodos.
— Eu vou.
— Vai o quê?
— Vou tentar acertar as coisas.
— Não é o bastante — retorquiu Isabel com ódio nos olhos suficiente para pulverizar o castelo inteiro.
Artur quase gemeu.
— Mordred pediu desculpas, Isabel.
— A mim, não a você. — Ela fulminou o rapaz com o olhar. — Seu pai o ama. Ele tem feito o que pode para compensar os anos em que nem mesmo sabia da sua existência. E você não tem retribuído com nada além de ódio, sentimento de vingança e atitudes vis e mesquinhas!
— Isabel... — recomeçou Artur, mas não conseguiu terminar, pois ela estava...
“Prestes a fazer uma loucura.”
Uma vez mais, ele não soube de onde vinha aquela voz em sua cabeça. A conclusão, entretanto, era apropriada, já que Isabel parecia capaz de arrancar membro por membro de Mordred quando avançou mais um passo, pondo-se frente a frente com o rapaz.
— Seu pai o ama , seu imbecil. Ele teria tido o maior prazer em trazê-lo para cá e cuidar de você se soubesse de tudo desde o princípio, mas não sabia ! Artur está pagando por algo que não foi culpa dele, e você continua a pressioná-lo e a puni-lo com um fardo que ele não merece carregar! Portanto, ou toma juízo e trata seu pai com o respeito que ele merece, ou pode ter certeza de que farei da sua vida um inferno, assim como está fazendo com a dele. O próprio Artur tem todos os recursos para fazer isso acontecer, mas você conta com o amor dele para mantê-lo em segurança e numa zona de conforto, não é mesmo? O problema é que eu também tenho os meus recursos, Mordred, e não dou a mínima para o que acontece com você. No meu mundo, não vai poder se esconder por trás do amor do seu pai; portanto, não me subestime. Capisce?
— Capisce? — repetiram Mordred e Artur ao mesmo tempo.
— Entendeu? — traduziu ela.
O menino acenou com a cabeça.
— Eu... capisce .
— Então peça desculpas ao seu pai.
— Mordred não precisa...
— Claro que precisa! — cortou Isabel, irritada.
O rapaz engoliu em seco e, pela primeira vez em muito tempo, Artur não viu nenhuma ameaça nos olhos do filho.
— Peço desculpas, meu pai.
— Por? — incitou Isabel.
— Por acreditar que você havia me abandonado, e que não se importava com o que tinha acontecido comigo.
— Isso nunca foi verdade, meu filho. Se eu soubesse...
Artur não conseguiu continuar, pois se viu sufocado por lágrimas não derramadas.
Isabel se afastou da parede.
— É melhor levar Mordred até um médico. Ele provavelmente vai precisar de uma atadura nesse joelho.
Artur puxou o filho pela cintura, depois o ergueu no colo.
— Pai! Não posso ser visto sendo carregado desta maneira.
— Acha mesmo que vai conseguir caminhar sozinho? Prometo que o coloco no chão se perceber alguém se aproximando. Para manter as aparências, é claro. Podemos fingir que estamos dando um passeio para conversar coisas que um pai e um filho conversam. — Artur virou-se com o filho junto ao peito, como ele sempre desejara fazer desde que Mordred era um bebê. — Isabel?
— Sim? — Ela se voltou quando já estava prestes a readentrar seus aposentos.
— Por acaso sabe o paradeiro de Dick? O meu médico não está no castelo. Está longe daqui, visitando as choupanas dos nossos lavradores.
— Pelo que ouvi, Dick continua estalando o pescoço e as costas dos seus homens. Acredito que ele esteja naquilo que chamam de “salas de cura”.
— Obrigado — murmurou ele, tentando agradecê-la por muito mais do que apenas tê-los encaminhado ao seu próprio médico. Tomara ela entendesse.
— De nada. E, sim, eu entendi, Artur. — Isabel observou Mordred nos braços do pai. — Desculpe-me pelo que eu fiz, ainda que tenha merecido. Espero que pare para pensar em quem está cuidando de você agora, seu bostinha. Artur o ama mais do que você imagina. E saiba que, se não pudesse contar com o amor do seu pai, haveria um monte de homens e mulheres leais ao rei dispostos a acabar com você , aqui em Camelot. Inclusive eu.
***
Conforme pai e filho desciam os degraus que os levariam até as salas de cura, Mordred olhou para Artur.
— Ela é mesmo uma guerreira, essa condessa Isabel.
Artur concordou, tentando não demonstrar tensão. Afinal, Mordred já não era mais nenhuma criança.
— Verdade. Principalmente quando ameaçam ou machucam aqueles que lhe são caros. Foi você quem feriu a égua dela, Mordred?
— Eu não quis causar nenhuma lesão permanente.
— Que coisa mais desagradável e terrível de se fazer.
— Sim. Eu compreendo agora. — Mordred recostou a cabeça no pescoço de Artur; algo que este jamais experimentara com o filho antes.
— Vai bani-la da corte por ela ter atacado seu filho?
Artur parou por um instante, depois retomou os passos.
— Sim. No mesmo dia em que eu fizer o mesmo com você por ter machucado a montaria dela.
— Então escolheria a égua da condessa a mim?
— Não, Mordred, eu sempre escolho o bem em vez do mal.
— Está dizendo que as minhas atitudes são perniciosas?
— Estou. Você atacou um animal inocente. Com que finalidade, Mordred? A troco de quê? — Artur ajeitou melhor o filho nos braços. — Ajude-me a entender o seu objetivo, meu filho!
— A condessa nos ameaçou.
— Como? Ela é gentil demais para isso.
— Está me levando para o médico, meu pai!
— Você provocou essa reação ao ferir o animal dela.
Mordred não disse nada por alguns momentos.
— Eu sinto que ela é uma ameaça para a nossa dinastia.
Artur nunca teve tanta vontade de arremessar alguém escada abaixo. E era seu próprio filho!
Manteve-se controlado e em movimento, contudo.
— Por que cismou com a condessa agora? Ela veio em paz. Veio para fazer acordos que beneficiarão a todos nós. Por que Isabel seria uma ameaça, Mordred?
— Porque está cego com os sentimentos que nutre por ela.
Artur parou novamente, desta vez considerando espancar o próprio filho.
— Como pode afirmar tal coisa?
— Pela maneira como reagiu quando eu a assediei.
— Mordred... — Ele riu sem vontade. — Se é assim que imagina estar assediando uma mulher, tenho muito a lhe ensinar.
— Ela significa mais para você do que Gwen.
Artur vacilou, mas não chegou a parar desta vez.
— Eu a conheço há pouco tempo, portanto ainda não sei o que sinto. É perigoso julgar as emoções tão precipitadamente, sem que uma boa avaliação seja feita. Na verdade, isso seria um erro fatal em qualquer batalha.
Mais uma vez se fez silêncio enquanto eles desciam. Artur sentiu os braços fraquejar com o esforço, mas se obrigou a manter o filho em segurança.
— O que ela disse é verdade? — quis saber Mordred, rompendo a quietude.
— Quem? A condessa Isabel?
— Sim. O que ela disse é mesmo verdade?
— É.
— Por que nunca me contou?
— Eu lhe disse a mesma coisa muitas vezes ao longo de todos esses anos, filho! No entanto, você se recusou a acreditar em mim. Por que ouvir o mesmo da condessa o afetou?
— Talvez porque ela tenha sido contundente, enquanto você sempre se expressou com calma em demasia.
— Ah, preciso ter isso em mente daqui em diante: é preciso gritar para atingi-lo.
O barulho de passos vindo da parte de baixo fez Artur colocar Mordred de pé, de modo que o rapaz não se envergonhasse da situação. Era a jovem Mary, correndo escada acima.
Ela estacou ao encontrá-los.
— Mil perdões, majestade e...
— Este é meu filho, Mordred.
— Senhor... — Ela fez uma reverência.
— Está indo para o quarto de Isabel, Mary?
— Sim, meu rei. Com ervas e flores para o banho da condessa. Algum problema?
— Nenhum — afirmou Artur. — Aliás, se tiver chance, por favor, escolha apenas flores das quais ela goste.
— Sim, majestade. Posso seguir adiante?
— Claro.
Mary sorriu e os contornou pelo lado direito.
Assim que ela chegou ao topo da escada e virou a esquina, Artur tomou o filho nos braços novamente.
— Já se transformou mesmo num homem, Mordred. Está bem mais pesado do que eu imaginava.
Eles já tinham descido vários outros degraus, quando Mordred murmurou:
— A condessa o estava protegendo. Deve gostar de você de verdade.
Artur não precisou perguntar de onde o filho havia tirado aquela ideia.
— Assim como eu gosto dela, Mordred. Isabel é uma mulher fascinante.
— Quando foi que você e a rainha deixaram de se gostar? Quando a condessa chegou?
Artur quase tropeçou.
— Como já afirmei, Isabel e eu não nos tornamos amantes. Acabamos de nos conhecer.
— Eu acredito. Mas não foi essa a minha pergunta.
— Mordred, você é meu filho, mas, acredite ou não — e neste momento deveria acreditar que meus braços podem não sobreviver a esta jornada —, há coisas na vida que são privadas, não importando se o indivíduo é um rei ou um servo. Esse é um problema meu, que eu gostaria de manter particular.
E, graças aos deuses, eles estavam quase chegando.
— Eu só lhe digo uma coisa, meu pai: essa condessa fala demais.
— Toque na égua dela outra vez, Mordred, e Isabel vai reagir a facadas, se não de modo pior — exagerou ele. — E não acredito, sinceramente, que vá querer enfrentar coisa pior .
Capítulo Quinze
Mary entrou no quarto de Isabel toda saltitante, menos de cinco minutos após Artur e Mordred terem seguido seu caminho. A única coisa que impedia a menina de fazer uma verdadeira acrobacia era a bandeja em suas mãos contendo vários mimos: ervas aromáticas, flores e aqueles malditos gravetos com os quais ela, Isabel, era obrigada a limpar os dentes.
— Olá, Mary — saudou ela, sorrindo diante da exuberância da moça.
— Boa tarde, condessa!
Mary olhou ao redor, procurando um lugar para pousar a bandeja, já que a mesa estava repleta de restos de outras salvas.
— Que tal deixar sobre a cama, Mary? — sugeriu Isabel.
A moça virou-se, porém parou.
— Ora essa, eu tinha certeza de que havia deixado a sua cama arrumada esta manhã.
Céus! Ela e Artur não tinham ido muito longe, mas o suficiente para bagunçar a colcha.
— A culpa foi minha, Mary. Eu me deitei e estava muito... inquieta.
— Não se preocupe, condessa, vou arrumá-la outra vez.
Isabel acomodou-se ao lado da bandeja e, em seguida, deu um tapinha na cama.
— Se puder se sentar um pouco, por favor, conte-me o que a deixou tão animada.
— Gilda disse que pode reformar o vestido para mim sem problemas! Não é maravilhoso?
— Que bom, Mary! Mas eu não tinha dúvida disso. — Ela segurou a mão da moça. — Será uma noiva linda.
— Graças à senhora, condessa.
— Ei, meu vestido não tem nada a ver com isso, e sim você mesma. É uma moça adorável, Mary. Iria brilhar até mesmo em um saco de juta!
Mary ficou confusa. Antes que Isabel pudesse se explicar, no entanto, a menina — graças aos Céus — ignorou o que não havia compreendido, aparentemente imaginando que ela lhe houvesse feito um elogio.
— Também tenho um recado para a senhora. Da rainha!
— Da rainha? Não me diga... E o que a rainha tem a dizer a mim?
— Ela deseja que a senhora vá encontrá-la no sótão, onde as costureiras trabalham.
— Para quê?
Mary riu.
— Ela está tentando ensiná-las a fazer calças de homem para as mulheres. O problema é que Sua Alteza não tem nenhuma habilidade com costura, senhora. Nenhuma mesmo.
— Não há diferença alguma entre os modelos, a não ser os tamanhos, Mary. De qualquer modo, ficarei feliz em ir ao encontro de Gwen, pois desconfio de que este será um dia ótimo para todas nós. Vamos. — Ela tomou a mão da moça e a levou até a porta. — Mostre-me o caminho.
Mary a conduziu através de um labirinto de escadas e corredores.
— Posso perguntar que tipo de jogo vamos praticar para termos de usar essas roupas, senhora?
— O que nos der na telha.
Mary riu enquanto subiam mais alguns degraus.
— Às vezes não compreendo o que quer dizer, condessa, mas não a questiono porque acho a senhora muito divertida.
Isabel parou.
— Você, Mary, é a irmã mais nova que eu sempre quis ter, sabia?
— Ah, senhora, não imagina o quanto isso significa para mim!
— Que bom. E agora? Vai finalmente me chamar de Isabel ou não?
— Não, senhora.
Isabel sorriu.
— Como eu ia dizendo, você é a irmã teimosa que eu sempre quis ter. — Ela ergueu a cabeça. — Aposto que chego lá em cima primeiro!
— Quando nevar no inferno de Hades! — desafiou Mary, e ambas dispararam escadaria acima.
Mary e Isabel estavam ambas sem fôlego quando chegaram ao imenso salão de costura.
E este era incrível. Havia pelo menos umas cinquenta mulheres ali, costurando a um ritmo que deixaria a Singer orgulhosa. Algumas pareciam trabalhar em túnicas novas para os homens. Outras costuravam calças. Parte delas confeccionava vestidos simples em musselina e outra, aventais básicos.
Mary segurou a mão de Isabel e a arrastou até uma mulher que era praticamente uma sósia da Betty White. Devia ser Gilda, a costureira que estava reformando o vestido de casamento.
Isabel sorriu e estendeu a mão.
— Você deve ser Gilda.
— Eu mesma, senhora — confirmou ela, seca, olhando para a mão estendida de Isabel como se esta fosse uma jiboia. Colocou tudo de lado, porém, e tentou ficar de pé.
— Não, não! Por favor, sente-se — pediu Isabel. — Eu não quero atrapalhar.
— Ela fala diferente de nós, Mary — comentou a mulher com estranheza.
A moça bufou de leve.
— Porque veio de outro reino, ora. É assim que eles falam lá. De qualquer modo, ela é uma condessa e merece respeito.
Gilda resmungou e voltou a se concentrar na costura.
Mary bateu o pé.
— Foi a condessa que me deu esse vestido, Gilda!
— Vamos cair fora daqui, Mary — sussurrou Isabel, tentando se afastar o mais rápido que podia.
Mary manteve-se firme, contudo, e a agarrou pelo braço.
— Será que James iria gostar de saber que agiu dessa forma com a mulher que presenteou a futura esposa de seu filho com algo tão bonito?
A mulher parou de costurar e ergueu o olhar lentamente.
— Foi muita gentileza sua, condessa. Agradeço-lhe em nome de James e Mary.
— E? — incitou Mary, ainda segurando o braço de Isabel com força.
— E a minha futura nora ficaria muito orgulhosa em tê-la como madrinha em sua cerimônia de casamento. Apesar de eu ter dito a ela que isso era uma ilusão.
— Pois eu ficaria muito orgulhosa em ser madrinha de Mary.
Gilda tornou a erguer a cabeça, os enormes olhos castanhos cheios de surpresa.
— Verdade?
— Claro! Mary é minha amiga. — Ela virou-se para a moça, que agora saltitava no lugar. — Mas não tem nenhuma amiga mais próxima que possa preferir, Mary?
Mary parou de pular.
— Tenho sim, senhora. Ou tinha... Mas escolho a senhora. Se não for nenhum incômodo.
— Agora que eu aceitei o seu convite, não vai me chamar de Isabel?
— Não, senhora.
Isabel riu.
— Eu sabia... Mas claro que serei sua madrinha. Será uma honra que nunca tive antes.
No momento em que as duas deixavam a estação de trabalho de Gilda, Isabel olhou para trás e vislumbrou um leve sorriso no rosto da velha costureira.
— Vai ter uma sogra e tanto — sussurrou tão logo se afastaram.
Mary sorriu para ela.
— Creio que Gilda é que vai ter uma nora e tanto!
— Pois eu aposto todas as minhas fichas em você.
— Aqui está a rainha Guinevere, senhora... o propósito da sua visita ao salão.
— Vossa Alteza — saudou Isabel. Em seguida, sussurrou para Mary: — Também aposto que faço uma reverência melhor do que a sua.
— Ha!
Ambas desceram quase até o chão na mesura. Mary ganhou mais uma vez, e Isabel acabou desabando sobre ela, o que fez as duas cair na risada.
— Quando essas nossas apostas terminarem, Mary, vai ser dona de tudo o que é meu!
— Pois eu adoraria ficar com esse seu colar, condessa!
— Imagino. O problema é que esta é a única coisa da qual eu nunca vou poder me desfazer. Tente outra.
— Querem fazer o favor de se levantar? — exigiu Gwen.
Isabel se pôs sentada, contudo não se levantou.
— Se usar um tom mais agradável, Gwen, posso considerar se concordarei ou não com uma ordem tão rude. Estávamos nos divertindo à beça até agora.
Mary, obviamente, já não estava se divertindo tanto. Tentou se levantar, porém Isabel a segurou no chão.
Gwen parecia chocada.
— Não foi uma ordem, condessa, e sim um pedido.
— Pois soou como uma ordem, Alteza. E não costumo me dar bem com acessos de arrogância.
O salão inteiro ficou completamente em silêncio, como se todos os sons tivessem sido sugados do ambiente.
— Eu não quis parecer arrogante — defendeu-se Gwen.
— Então peça o que deseja num tom mais delicado — sugeriu Isabel, encarando a mulher que havia conquistado o coração de Artur para depois parti-lo.
Gostava de Gwen e, ao mesmo tempo, não gostava. E não tinha certeza de quais peças daquele inexplicável quebra-cabeça se encaixavam nas respectivas categorias.
— Eu não preciso ser delicada — rebateu Gwen, os olhos se estreitando.
— Como assim? Isso não faz parte das suas atribuições? Só precisa ser agradável com os que ocupam a mesma classe que a sua, e malcriada e insolente com todo o resto?
Isabel ignorou as exclamações abafadas que se seguiram.
Pôs-se de pé, puxando Mary consigo, contudo manteve a criada atrás dela. — Enquanto não aprender a conviver bem com as pessoas que trabalham muito para tornar a sua vida de rainha confortável, nunca será realmente respeitada. Essa gente dá o próprio sangue para que a sua vida seja gloriosa. Trate essas pessoas como merda, e não terá o amor nem a admiração de ninguém, pois não fez por merecer.
Cortem-lhe a cabeça!, foi o que Isabel esperou ouvir saindo da boca de Gwen.
A rainha, entretanto, ficou sem palavras. O que garantia a segurança de seu pescoço.
— Você é uma dama, Gwen, que diabos! O que está acontecendo, afinal? Pensei que tivesse me chamado aqui para me mostrar uma novidade. O que era?
Gwen esfregou as têmporas.
— Sim, viemos aqui para... O que era mesmo, Jenny?
Uma menina, cerca de um ou dois anos mais velha do que Mary, avançou um passo.
— Viemos aqui para cuidar das leggings das mulheres, como a condessa pediu.
— Eu não pedi nada, apenas sugeri — corrigiu Isabel. — Mas acho maravilhoso que tenham tomado essa iniciativa.
— Está tentando assumir o controle de Camelot, não é mesmo, condessa? — explodiu a rainha.
— Como disse? — indagou Isabel, confusa. — Eu não estou tentando fazer nada disso. Tivemos uma boa conversa, e você mesma admitiu que essa era uma ideia interessante.
— Mentirosa! O casamento de James e Mary foi ideia minha. Isto — Gwen fez um gesto abrangente — foi ideia minha, e você a roubou de mim. Aliás, roubou tudo de mim.
— Se está dizendo... Tudo ideia sua. Sem problemas. Não vou brigar por nenhuma patente.
Isabel olhou ao redor, vendo as expressões chocadas que as cercavam. Mas a dela não devia estar diferente.
— Sabe se a rainha tomou vinho demais esta manhã, Mary? — indagou com casualidade.
Mary e a menina chamada Jenny se entreolharam, preocupadas, até que Jenny deu de ombros e balançou a cabeça negativamente.
— Herege! — gritou Gwen.
— Não estou com o meu dicionário à mão, Mary, mas isso não quer dizer “bruxa” ou algo assim? — indagou Isabel, tensa.
— Não tenho certeza se significa “bruxa” — sussurrou Mary. — Mas acredito que signifique que você é do Submundo. Que vem das trevas.
— Imagino, então, que não seja um elogio?
Mary pareceu assustada demais para responder.
— Que tal você e eu darmos um passeio e conversarmos a respeito, Gwen? — perguntou Isabel, imaginando levar a rainha até a primeira lagoa que visse pela frente e enfiar aquela linda cabeça na água até que Gwen caísse em si.
— Quer mais é me acompanhar até o inferno! — retorquiu a rainha. — Vejo tudo muito claramente agora: quer o meu marido, a minha coroa e o meu trono!
Isabel voltou-se para a costureira mais próxima.
— Vá buscar o rei, por favor. E também Tom, um dos meus homens, se possível. Mas o mais importante é que traga o rei Artur... Ele saberá quem mais precisa estar aqui neste momento.
A moça hesitou.
— O rei não vai atender ao meu pedido.
— Por favor... Diga a ele que foi Isabel quem pediu e que se trata de uma emergência. Artur vai lhe agradecer por isso. Agora corra o mais rápido que puder.
A jovem costureira olhou dela para Mary. E esta última deve ter lhe feito algum sinal, pois a moça logo concordou com um “sim, senhora” e disparou feito um raio.
Isabel suspirou, aliviada. A menina era rápida. Precisava lhe dar esse crédito.
Gwen, entretanto, percebeu o que se passava, e em tempo recorde.
— Foi tudo muito interessante, mas agora todas estão autorizadas a sair também. Ninguém aqui tem culpa de nada e nunca me fez nenhum mal... ao contrário de você.
— Então permita que elas saiam, realmente, de modo que possamos ter uma conversa em particular.
— Não! Elas têm trabalho a fazer — volveu a rainha num contrassenso.
— Creio que esse seja um assunto particular nosso, Gwen. Meu e seu. Não há razão para envolvermos mais ninguém.
— Você roubou James!
— James? Quer dizer o James de Mary? Eu mal conheço o homem! Sei apenas que ele é o futuro marido da minha amiga e o soldado mais confiável do seu marido.
— Iria roubá-lo de Mary, assim como roubou Artur de mim. — Gwen estremeceu, parecendo atordoada. Respirou fundo várias vezes, depois baixou o dedo com que a acusava. — Eu... sinto muito. Não sei o que está acontecendo comigo. — Balançou a cabeça. — Isabel, eu queria lhe mostrar o progresso que fizemos com as calças para as mulheres.
Muito bem. Aquilo não era loucura nem embriaguez. Mesmo assim, continuava longe do entendimento e da zona de conforto de Isabel.
— Eu andei olhando, Gwen, e fiquei muito impressionada. Obrigada por ter aceitado a minha sugestão e tomado essa iniciativa.
— Sua sugestão? — guinchou a rainha. — A ideia foi minha. Minha!
Isabel começou a rezar para que médicos medievais adentrassem o salão e levassem Gwen para um hospício. Mas não teve essa sorte.
— E de modo algum fará parte da cerimônia de James e Mary — prosseguiu a moça. — Foi tudo ideia minha, e as coisas vão acontecer do meu jeito. Caso contrário, eles não terão nada.
Isabel sentiu-se como se tivesse levado um tapa. Percebeu Mary tremendo e segurou a mão da menina.
— Se prejudicar Mary de alguma maneira por conta das minhas palavras ou ações, eu não hesitarei em levá-la com James para Dumont. Mary não fez nada, a não ser me servir como dama de companhia, ou seja lá como for que denominam sua função. E, espero, também como amiga. Não vou permitir que a castigue por ela estar se divertindo enquanto faz seu trabalho. E bem. Agora me diga, rainha Guinevere, como prefere conduzir as coisas.
Mais uma vez, Gwen ficou em silêncio por algum tempo.
Então teve o mais inesperado dos gestos: curvou-se com uma gargalhada, o que chocou Isabel, assim como todas as outras mulheres no salão.
Gwen controlou o riso, por fim, ainda que houvesse levado algum tempo para tanto. Tinha sido enviada para o inferno de Hades por uma mulher que acabara de entrar em seu castelo e que, em menos de duas noites, havia conquistado os corações de seus súditos, mais do que ela própria conseguira desde que fora coroada rainha.
A condessa rolara no chão com uma serva, ambas felizes da vida, enquanto ela própria jamais se permitira tal intimidade com uma criada.
Verdade fosse dita: aquilo jamais lhe passara pela cabeça. E, naquele exato momento, sua mente não parecia nada bem. Não estava conseguindo controlar as próprias emoções.
— Pode parar de proteger Mary, condessa. Não pretendo prejudicá-la de nenhuma forma, eu juro. Teremos uma linda cerimônia no salão principal para ela e James.
Isabel, que parecia uma sentinela em guarda, relaxou um pouco.
— Aceitamos a promessa, Vossa Alteza. — Virou-se para Mary. — Quer apostar como faço a melhor reverência, Mary?
— Não, senhora. — Os cachos vermelhos da menina sacudiram quando ela balançou a cabeça. — Creio que já testamos demais a paciência da rainha.
— Para ser sincera, não fizeram nada disso — afirmou Gwen. — Peço desculpas se pareci intolerante. Eu estava apenas ansiosa por lhe mostrar, condessa, o que nós... o que essas costureiras talentosas realizaram.
Isabel olhou em volta.
— A maioria parece estar fazendo grandes progressos.
Gwen sorriu.
— Sim, e para as mulheres. As calças devem ficar prontas no mais tardar até amanhã.
Foi muito gratificante para Gwen ver a expressão de Isabel.
Mas isso mudou em poucos segundos.
— Está tentando tomar Artur de mim.
— Está falando sério? — indagou Isabel, perplexa. — Eu estava tentando unir vocês dois!
— É verdade, minha rainha! James escutou a mesma coisa — afirmou Mary.
— Mentira!
Isabel e Mary se entreolharam.
— Está chamando Mary de mentirosa, chamou a mim de mentirosa... — começou Isabel.
Gwen a ignorou.
— Vamos começar com a minha ideia de lazer para todas as mulheres uma hora após o desjejum, amanhã. — Ela olhou ao redor no salão, e as costureiras que haviam parado de trabalhar imediatamente recomeçaram sua tarefa.
— Ah, obrigada, Gwen! — exclamou Isabel, avançando um passo para abraçá-la. — Sinto muito se fui rude com você.
Gwen viu-se pega de surpresa. Nunca fora alvo de tanta alegria vinda de outra mulher.
A verdade, entretanto, é que se sentiu bem até demais.
— E então? Qual será a nossa primeira brincadeira?
— Nossa, você me pegou de surpresa, Gwen. Nunca imaginei que fosse adotar esse tipo de coisa tão rápido. — Isabel olhou ao redor. Em seguida, bateu palmas. — Desculpem interrompê-las, senhoras, mas eu gostaria de fazer uma votação.
— Votação? — perguntou Mary às suas costas, sem dúvida ainda temendo vir para a frente e encarar a rainha.
Era uma pena que Gwen não houvesse tratado melhor suas criadas, concluiu Isabel. Elas teriam acatado todos os seus desejos e necessidades. Mas ela não sabia nem sequer o nome de muitas delas! Nem mesmo o da moça que saíra correndo do salão. Aquilo era triste e humilhante demais. Gwen era um fracasso como rainha. E de muitas maneiras.
— Quantas de vocês querem participar das brincadeiras amanhã? — perguntou Isabel. — Por favor, não levantem a mão se não quiserem participar. Só façam isso se estiverem realmente interessadas. E não haverá nenhum castigo para quem não quiser tomar parte, não é mesmo, rainha Guinevere? Nada será exigido de vocês.
— Elas são livres para escolher, Isabel.
— Vocês ouviram a rainha. Podem escolher participar ou não, sem nenhuma consequência. Se optarem por não participar, terão esse período livre para fazer o que quiserem, contanto que aproveitem para relaxar. Podem até tirar a roupa para os seus homens, que tal?
Muitas delas riram.
— Como vai ser essa brincadeira? — indagou uma senhora, que nem mesmo ergueu os olhos da costura.
Gwen voltou-se para Isabel, uma vez que nem imaginava o que poderiam fazer.
— Estou certa de que a condessa pode responder a essa pergunta.
Isabel olhou em volta.
— Vai depender de como estiver o tempo.
Nesse exato momento, nuvens se chocaram, e o estrondo de um trovão se fez ouvir.
— Se for para ficar dentro do castelo, então que assim seja. Alguma de vocês já ouviu falar em “Corre, Cotia” ou “Pato, Pato, Ganso”?
— O que é isso, um cardápio? — inquiriu uma das mulheres.
— Não... Uma brincadeira.
Isabel e Gwen desceram a escadaria.
— Pato, Pato, Ganso? — indagou Guinevere, sorrindo.
— Precisamos ir com calma com mulheres que nunca vivenciaram uma brincadeira ou um jogo de verdade.
Gwen deu alguns passos antes de se virar para ela.
— Minhas mais profundas desculpas pelo meu péssimo humor agora há pouco.
Isabel aquiesceu.
— O que foi aquilo, Gwen? Eu não a conheço há muito tempo, mas o suficiente para sentir que não parecia você.
— Vocês duas... Você e...
— Mary. O nome dela é Mary. E ela está prestes a se casar com o primeiro soldado de Artur.
Gwen corou.
— Sim, sim... Mary. Vocês duas estavam zombando da reverência à rainha.
Isabel tombou a cabeça para trás, de modo que teve uma excelente vista do teto.
— Ah, por favor, pare com isso. Só estávamos brincando! Não tivemos a intenção de desrespeitá-la. Estávamos apenas fazendo uma aposta.
— Pois pareceu um menosprezo à minha posição.
— Dê um tempo, Gwen! Desde quando dá importância a esse tipo de coisa? Até hoje eu a vi tratando todo mundo normalmente, e de repente decide mostrar as garras sem nenhuma razão?
Gwen abaixou a cabeça e, de súbito, seus joelhos pareceram ceder. Sentou-se nos degraus, e Isabel se acomodou a seu lado.
— O que está acontecendo, Gwen?
— Estou com ciúmes, Isabel.
— Do quê? Se está se referindo a esta manhã, nada aconteceu entre mim e Artur.
Não era exatamente a verdade, mas quase nada havia acontecido... Para sua decepção.
— Esta manhã?
Isabel quis dar um tapa na testa.
— O que eu quis dizer é que nós dois estávamos apenas conversamos. Como sempre fazemos.
Pronto. Aquilo, pelo menos, era verdade. Eles tinham conversado. Tinham se beijado. Artur a despira e eles quase haviam partido para um sexo quente e suado. Mas ninguém ali precisava daqueles detalhes.
— Não é o que existe entre você e Artur que me aborrece.
Ah, que bom! Aquilo era um sinal verde?
— Então, o que é?
— Eu vi as brincadeiras entre você e...
— Mary. O nome dela é Mary, Gwen!
— Sim, desculpe. Mary. Eu fui testemunha do quanto ela parecia feliz em sua companhia, e senti a inveja tomar conta de mim.
— Por quê?
— Porque nunca tive esse tipo de experiência amigável com nenhuma das minhas criadas.
— Ei, elas são muito leais a você!
— Não é a mesma coisa. Espera-se lealdade de qualquer servo do castelo.
— Pois acredito que a verdadeira lealdade deva ser conquistada, e não apenas esperada ou exigida.
— O que eu fiz de errado?
— Nada muito diferente do que a realeza fez a vida toda. A princesa Diana foi um excele... — O colar bateu em seu peito, e Isabel suspirou. — Você vê os criados como ferramentas, não como pessoas. Se aprendesse seus nomes e qualquer coisa sobre seus amores e vidas, poderia se tornar amiga deles assim! — Ela estalou os dedos.
— Está aqui há apenas duas noites e já conseguiu fazer isso.
Isabel tomou a mão de Gwen.
— Os homens e as mulheres que a servem são leais, Gwen. E, acredite, poderia ser muito pior. Você poderia ser Hitler, por exemplo.
Tum.
— ... Mas não é. Pelo que ouvi, todos os que trabalham no castelo têm muito respeito pela sua pessoa. Se não fosse por esse respeito, você e Lance teriam sido banidos há muito tempo.
Gwen voltou a cabeça, alarmada.
— C-como disse?
— Ah, por favor, Gwen, os únicos que não sabem disso neste castelo são os cães e as galinhas! Mesmo assim, não ponho a minha mão no fogo por metade dos cachorros.
— O que está dizendo é absurdo. Eu sempre levei o juramento que fiz a Camelot a sério.
— Mas não o que fez a Artur. Quebrou seu juramento quando traiu seu marido. E é muita benevolência da parte dele estar proibindo os que sabem — e que, acredite, são quase todos — a comentar sobre a sua traição.
Gwen se pôs de pé.
— Não é verdade.
Isabel a encarou.
— O que não é verdade? O fato de ter quebrado seu juramento ou o de todo mundo saber?
A moça a fulminou com o olhar.
— Extrapolou os limites e abusou da minha hospitalidade, condessa. Peço que você e sua comitiva se preparem para deixar Camelot agora mesmo.
Isabel estudou as unhas, que realmente precisavam de uma manicure, pensando se Mary seria boa nisso também. Ou se Mary tinha alguma amiga com tal habilidade.
— Está menstruada, Gwen? Ou perto de ficar? Porque tem agido como se estivesse na TPM: cheia de altos e baixos. Mal consegue manter as próprias emoções sob controle!
— Vá embora!
— Faça Artur me dizer isso, e atenderei ao seu desejo no mesmo momento. — Isabel se levantou, ficando pelo menos seis centímetros mais alta do que a etérea rainha, a qual, por sua vez, parecia prestes a se transformar em um dragão. Aquilo era TPM, sem dúvida. — Enquanto ele também não concordar que devo deixar o seu reino, não vou a lugar nenhum — completou, decidida. — Além do mais, Mary me pediu que eu fosse sua madrinha no casamento, e pretendo estar lá, ao lado dela. Se você e Artur fizerem alguma objeção, entretanto, eu lhe pedirei desculpas e não o farei.
Gwen tornou a desabar sobre os degraus, desta vez irrompendo em soluços.
— O que há de errado comigo?!
Isabel sentiu o coração se apertar. Sentou-se ao lado da moça e a abraçou.
— Não pode ser a época do mês?
— Que época do mês?
— Eu não sei como a chamam aqui. No meu tempo...
Tum.
— ... Quero dizer, no meu reino , isso significa que vai ficar menstruada. É aquela época do mês em que você sangra lá embaixo.
— Estou nessa época, mesmo.
— Viu? Os hormônios são uma merda.
— Quem são os hormônios? Pessoas que eu deveria conhecer?
— Nada de que precise realmente saber.
Gwen soluçou em seu peito.
— Como sabe de todas essas coisas?
— Acredite, Gwen, eu sei. Sou famosa por dar paneladas nas cabeças dos homens nessa época do mês.
Gwen riu.
— Verdade?
— Verdade. Agora vamos para o meu quarto pedir a Mary que nos traga um chá. Se possível com um pouco de salsa, sálvia, alecrim e tomilho.
Gwen a fitou, confusa.
— Está falando a sério?
Isabel deu de ombros.
— Deu certo para Simon e Garfunkel... Tem que dar para nós também.
— Depois, poderíamos pedir um pouco de vinho.
— Perfeito. Garanto que isso também funciona.
Isabel se viu praticamente arrastando Gwen para os próprios aposentos. No momento em que chegaram ao quarto, Mary já estava no local, polvilhando coisas na banheira. Assim que elas entraram, a moça endireitou o corpo, olhando, assustada, da rainha para Isabel.
— Perdão, senhora! Eu estava apenas preparando o seu banho. Voltarei quando estiver pronta.
— Precisamos de chá, Mary — pediu Isabel.
— Eu sinto muito por ter arruinado um dia que prometia ser divertido, Mary — desculpou-se Gwen. — E nós não queremos chá, queremos vinho.
Isabel imaginou que a última coisa de que Gwen precisava no momento era vinho, mas como discutir com uma mulher em plena TPM?
Concordou com a cabeça, articulando um “desculpe” com a boca na direção da menina.
— Tinto ou branco? — quis saber a moça.
— Ambos — decidiu Isabel. — E, por favor, traga queijo, carnes e bastante pão para molharmos nas sobras.
Mary fez uma reverência, Isabel fez outra. Em seguida, a moça saiu correndo do quarto antes que ambas partissem para nova aposta e caíssem na risada.
— Não estou com vontade de me deitar, Isabel.
— Que tal nos sentarmos no chão, Gwen? Podemos bater papo como duas adolescentes numa festa do pijama.
Gwen sentou-se no solo sem discussão.
— O que está acontecendo comigo?
— Acredite, vai se sentir muito melhor amanhã cedo. — Ou talvez em dois dias, já que não havia nenhum farmacêutico por perto para ajudar, corrigiu-se Isabel. — Em breve, Gwen. Em breve.
Mary estava tão concentrada, carregando a bandeja cheia nas mãos, que quase trombou com o rei Artur. Parou tão rápido quanto foi capaz, o que fez a bandeja oscilar perigosamente.
Balbuciou um pedido de desculpas, então, tentando fazer uma reverência.
O rei a ajudou a firmar a bandeja com aquele sorriso que poderia derrubar um touro. Em seguida, tomou-a de suas mãos.
— Está tudo bem, Mary. Minhas mais profundas desculpas por tê-la assustado.
Mary levou alguns momentos para normalizar a respiração.
— A rainha não está mais no salão de costura, rei Artur, se era para onde estava indo.
— Eu não estava indo para lá. Deveria estar?
Pelo visto, Lily não o encontrara!
— Não mais. Senhor, digo, Vossa Alteza, perdoe-me a minha falta de jeito.
Ele riu baixinho.
— Não foi a sua falta de jeito, Mary. Foi a minha. — Ele olhou a bandeja com duas taças, dois frascos de vinho e uma variedade de carnes, queijos e pães. — Está indo para os aposentos da condessa Isabel?
— Sim, senhor.
— Ela está com alguém?
— Sim, senhor.
Mary não costumava interagir muito com o rei, porém já reconhecia um homem magoado quando via um. Sua Alteza apertou a mandíbula e baixou o olhar, do mesmo modo como James havia reagido nas vezes em que ela recusara suas propostas.
Analisou a situação e chegou à conclusão de que não estava traindo a condessa Isabel.
— Ela está com a rainha, senhor.
Artur ergueu a cabeça, e a luz que tinha se extinguido em seus olhos, momentos antes, retornou.
— Ela está com Gwen?
— Sim, senhor. — Mary teve vontade de pular de alegria. Era a segunda vez naquele dia que deixava alguém da realeza feliz!
O dia estava perfeito, na verdade. Mal podia esperar para ter uma folga e contar aquilo a James.
— Então, por favor, permita-me levar esta bandeja.
— Mas, senhor!
— Shh! Precisamos tomar cuidado. Vou embora antes de você entrar. Elas não podem saber que eu estava por perto.
— Mas não posso permitir que carregue esta bandeja, meu rei. É o meu trabalho!
— Vamos fazer disso um segredo de Estado — resolveu ele com outro sorriso arrasador. — Até porque James jamais iria me perdoar por eu não ter tratado sua mulher como a dama que ela é.
— Eu não sou nenhuma dama, senhor. Estou a seu serviço.
Enquanto eles subiam a escada e cruzavam os corredores, Artur prosseguiu:
— Todos os que trabalham em Camelot são seres humanos.
Mary sorriu.
— Você e a minha condessa Isabel iriam se dar muito bem. Ela disse o mesmo uma hora atrás, no salão de costura: que todos no castelo merecem ser tratados com respeito.
— Verdade?
— A condessa é incrível, senhor. Sempre me tratou com bondade e generosidade, e, para ser sincera, ela me faz rir muito.
Artur acenou com a cabeça.
— Eu sei. Por isso ela é perfeita. Encontre uma só falha em Isabel, Mary.
A moça hesitou, e o rei sorriu.
— Vá em frente... Uma só.
— Bem, ela não gostou muito das coisas que eu lhe levei para limpar os dentes e o hálito. Vive resmungando sobre a falta que faz um tal Listerine. E também uma coisa que chama de fio dental. Ah, já falei demais! — Mary parou a poucos passos da porta da patroa. — Quero muito que a condessa confie em mim.
O rei concordou com um gesto de cabeça.
— Se o problema com os dentes é a única coisa que tem a comentar sobre a condessa, não percebe o quanto é fiel a ela?
— Não há mais nada a relatar, senhor. Embora eu deva admitir que, se houvesse, acredito que não o faria. Eu não devia pedir desculpas, mas peço mesmo assim. Acontece que não há nenhuma outra coisa. Se houvesse...
Artur sorriu.
— Compreendo, Mary.
— Ela vai ser a madrinha no meu casamento, senhor.
— E eu, o padrinho de James.
Mary sentiu o coração dar um pulo.
— Verdade?!
— James me convidou, e eu aceitei. Vê algum problema nisso?
— Não, senhor! De maneira alguma! Apesar de que, talvez, tenhamos de realizar a cerimônia em Dumont, agora que a rainha exigiu que a condessa Isabel vá embora. James não sabe de nada, ainda, mas acredito que seu amor por mim seja suficiente para que possamos trocar nossos votos em qualquer lugar da nossa escolha.
O rei pousou a bandeja.
— Quando a rainha pediu a Isabel que ela deixasse Camelot?
Mary sentiu o rosto pegar fogo em questão de segundos. Não devia ter escutado a conversa entre a rainha e sua condessa na escadaria. Ela só as havia seguido para se certificar de que Isabel — ah, Céus, agora estava pensando nela como Isabel! — não estava precisando de nada.
Agora não conseguia encarar o rei.
— Não posso dizer, senhor.
Artur a segurou pelos ombros.
— Quando foi isso, Mary?
A moça só conseguia olhar para os próprios chinelos.
— Eu não quis ouvir a conversa delas, mas...
— Por favor.
— A condessa e eu fizemos uma brincadeira no salão de costura. Não sei o que aborreceu a rainha, mas ela ficou muito zangada. Só sei que começou a rir, depois a chorar, e a condessa quis ajudá-la. Eu não pretendia ouvir a conversa das duas, só queria saber se a condessa precisava de algo. Mas a rainha... Bem, ela não parecia normal. A condessa não estava precisando de mim, mas Sua Alteza estava precisando muito dela! As duas ficaram sentadas nos degraus, conversando. Logo depois, Isabel, quero dizer, a condessa , a abraçou e a levou para o quarto. A rainha não me parecia nada bem, senhor. A minha condessa só estava tentando ajudar e...
Artur assentiu, impaciente.
— Prossiga, Mary!
— A condessa Isabel pediu chá, mas a rainha exigiu vinho. Então Isabel pediu também queijos, carnes e pães para poder molhar nas sobras, como ela mesma disse. Eu não sei o que está acontecendo lá, majestade, mas, quando as deixei, elas pareciam bastante felizes juntas. Não temo pela vida da condessa, ou eu seria a primeira a intervir e...
— Já temeu pela vida da condessa?
— Sim, senhor.
— Por causa de Gwen? De sua rainha?
— Não posso responder a essa pergunta. Até mesmo a condessa Isabel pediria que eu não respondesse.
Artur assentiu.
— Sua falta de resposta fala mais alto do que qualquer coisa. Mas também demonstra a sua lealdade, Mary, o que é muito importante. James é um homem de sorte. — Ele apanhou a bandeja e a entregou à moça, segurando-a até que esta a tivesse firme nas mãos. O que demorou um pouco, uma vez que era o rei quem a ajudava. — Mary... — prosseguiu Artur, fitando-a profundamente nos olhos. — Não quero que espione nada, apenas que me informe o mais rápido possível caso sinta que há qualquer coisa errada.
— Por exemplo...? — indagou ela, sentindo os joelhos fracos mais uma vez.
— Uma ameaça partindo de uma pessoa para a outra.
— A condessa jamais iria ameaç... — parou Mary. — Não consigo imaginar uma ameaçando a outra.
— Vou ficar aqui no corredor. Depois quero um relatório do que vir e sentir lá dentro. Não preciso de detalhes, pois não imagino que esteja acontecendo qualquer coisa séria por lá, mas preciso saber antes que eu mesmo me encarregue do assunto.
— O senhor o faria?
— Se Gwen está planejando prejudicar Isabel... Sim, eu o faria.
Conforme Mary rumou para a porta, ocorreu-lhe que o rei não se preocupara se a condessa Isabel poderia prejudicar a rainha. E isso também nunca lhe ocorrera. E era estranho que ambos estivessem muito mais preocupados com o bem-estar da condessa do que com o da rainha.
Capítulo Dezesseis
Artur sabia que esperar do lado de fora do quarto da condessa era mais do que ridículo. E que seu medo de Gwen fazer mal a Isabel também não tinha cabimento.
No entanto, sua necessidade de protegê-la foi mais forte. E o mais desconcertante naquilo tudo era que não era a esposa que ele sentia necessidade de proteger.
Mary finalmente deixou o aposento, parecendo quase sem fôlego. Correu até ele e fez uma reverência.
— Meu rei...
— Diga-me, Mary.
— A condessa me pediu que eu lhe entregasse este bilhete. A rainha não está bem.
— Meus agradecimentos — murmurou ele, tentando não arrancar a nota das mãos da moça. Abriu-a tão devagar quanto sua preocupação permitia.
Artur, Gwen precisa de atenção médica! Por favor, leve-a para seus aposentos e mande chamar Tom.
Artur amassou o bilhete e o jogou de lado.
— Obrigado, Mary. Por favor, vá procurar Tom, um dos homens de Isabel — pediu, antes de entrar no quarto sem nem mesmo bater.
E o que viu foi realmente incrível. A condessa bombeava o peito de Gwen; em seguida, parava para soprá-la na boca.
E ele se preocupando com Isabel!
— O que está fazendo?!
— Acho que Gwen entrou em choque, ou algo assim! — explicou ela, para depois aspirar mais ar e recomeçar todo o processo, segurando as narinas de Gwen enquanto soprava em sua boca. Aquilo era chocante!
— Pare!
Isabel parou de soprar, porém recomeçou a forçar o peito de Gwen.
— Quer Gwen viva ou não? — indagou, ofegante.
— Claro, mas...
— Então, afaste-se! Eu devia ter notado os sinais. Os delírios, as oscilações de humor de Gwen... Pelo amor de Deus, eu pensei que fosse TPM!
— Quero ajudar!
— Pegue um pouco de água.
Artur continuou a assistir à cena, horrorizado, enquanto apanhava a água. De repente, Gwen tossiu e sacudiu a cabeça.
Isabel sentou-se sobre os calcanhares e enxugou a testa. Em seguida levantou a rainha para a posição sentada e aceitou o cálice de água fresca de Artur.
— Bem-vinda de volta, Gwen. Você me deu um susto e tanto... Agora, por favor, beba.
A moça segurou a base da taça e tentou virá-la de uma vez, porém Isabel a impediu.
— Não! Só um gole ou dois. Precisamos hidratá-la, mas não de uma vez.
Artur nunca se sentira tão indefeso antes. Não sabia o que havia acontecido com sua esposa, não compreendia o que Isabel acabara de fazer. Sabia apenas que fora inútil, exceto por ter trazido aquele copo de água.
Deixou-se sentar pesadamente numa cadeira. Tudo indicava que sua rainha passara muito mal, e que a mulher que agora desejava tinha acabado de salvar a vida de Gwen bem diante de seus olhos, sem que ele nada pudesse fazer para ajudar.
— Artur?
Ele escutou o chamado, porém o latejar em seus ouvidos o impediu de ouvir.
— Artur!
Ele abriu os olhos. Isabel estava sentada agora, olhando para ele.
— Artur, eu sei que estou sendo repetitiva, mas, por favor, leve a sua esposa para os aposentos dela. Gwen parece bem agora, mas é bom que Tom a avalie melhor.
— Mas Tom é apenas um médico de dentes.
— Para ser qualquer tipo de médico na minha terra, é necessário que a pessoa entenda de todos os tipos de medicamento. Tom está mais bem preparado do que eu para fazer um diagnóstico.
— Diag...?
— Para descobrir o que aconteceu. Precisamos levar Gwen para a cama dela. Coragem, garotão. Carregue sua esposa até o outro quarto.
Até então, muitas pessoas haviam entrado no quarto, e Isabel assumiu o controle de todas elas.
— Mary, por favor, traga tanta água fresca quanto for possível para os aposentos do rei e da rainha.
— Sim, senhora.
— Jenny, por favor, traga para Tom todos os tipos de flores ou ervas que a rainha usou em seu chá ou em qualquer outra refeição hoje.
A moça chamada Jenny fez uma reverência e desapareceu.
— Mordred... Que bom vê-lo por aqui. — Isabel olhou a perna do rapaz. — Ao que parece, porém, Dick atou sua perna como a de um ganso, ou algo parecido.
— Mesmo assim, eu gostaria de ajudar. De que forma for, condessa.
Ela assentiu.
— Que tal abrir caminho para que ninguém atrapalhe a volta de Gwen para sua própria cama?
— Será um prazer — murmurou o rapaz.
Artur quase sorriu ao ver o filho se iluminar com orgulho por ter uma missão a cumprir. Ele devia ter dado uma lição naquele garoto havia muito tempo! Bastara um chute bem dado, e Isabel tinha feito tudo o que ele deixara de fazer a vida toda.
— Artur?
Ele piscou, tentando se livrar de todos os pesares.
— Sim, condessa. Diga-me o que devo fazer. — Isabel o fitou, e Artur sentiu o vínculo entre eles mais uma vez. Não teve tempo de avaliá-lo, contudo. — Ela já pode ser removida? — indagou, ansioso.
— Sim. Mordred abrirá caminho para vocês.
Artur se inclinou sobre Gwen, que ainda parecia mal.
— Consegue passar os braços pelo meu pescoço, Gwen?
— Lancelot? — balbuciou ela, confusa.
Ele quase a jogou de volta ao lugar, mas Isabel o segurou pelo braço.
— Ninguém ouviu isso, a não ser você e eu, Artur. Pegue-a e leve-a para a sua cama.
— Para a cama dela . Não é mais minha — corrigiu ele, erguendo a esposa nos braços, mesmo assim. — Mordred, meu filho, parece que vai nos escoltar.
— Sim, senhor. Embora mais devagar do que eu gostaria.
Artur voltou-se antes de deixarem o quarto.
— Minha gratidão por ter salvado a rainha.
Isabel sorriu para ele.
— Tenho vivido grandes emoções em Camelot.
Ele fez uma careta quando Gwen o apertou no pescoço.
— Se as posições estivessem invertidas, você sabe... Gwen talvez não houvesse se esforçado tanto para salvar sua vida, como fez com ela.
— Prefiro pensar que sim.
Artur balançou a cabeça, porém sorriu.
— Quando isto tudo acabar, precisamos conversar em um lugar que gosto de chamar de “terra do la-la-la”.
Conforme ele carregava Gwen para fora do quarto, a risada melodiosa de Isabel lhe encheu os ouvidos.
— Ah, se tivesse sido a senhora! — exclamou Mary, irrompendo quarto adentro e se atirando nos braços de Isabel, a ponto de quase derrubá-la.
— Mas não fui eu, Mary. O que eu gostaria de saber é quem ou o que causou isso.
Mary endireitou o corpo, esfregando os olhos no avental.
— Eu não sei. Mas tal coisa não pode acontecer com você! — Ela rumou para a banheira e começou a recolher todas as ervas e flores.
— Mary...
— Não vou permitir que ninguém a envenene, Isabel. Não vou!
Isabel sorriu. Ela apostaria um bom dinheiro que Mary havia se esquecido de que proibira a si mesma de chamá-la de qualquer coisa a não ser “condessa”, “senhora”, ou o que fosse.
— Mary...
— E se tivesse sido com você? E se eu tivesse servido algo que lhe houvesse feito mal? Como eu poderia fazer o que fez para salvar a rainha? — Ela se voltou para a condessa, o avental carregado com todas as ervas e flores que tinha polvilhado, pouco tempo antes, no banho de Isabel, na intenção de torná-lo maravilhoso.
Isabel, por sua vez, continuava sob o choque de tudo o que acontecera com Gwen.
— Despeje tudo de volta na banheira, Mary.
— Não, não vou fazer isso! — exclamou a moça, as sardas quase saltando do rosto bonito. — Elas podem ser perigosas!
— Por favor, Mary. Não estou exigindo, apenas pedindo.
— E se eu me recusar? — indagou a menina com o queixo erguido.
— Vou lhe pedir que busque mais, assim aproveito o meu banho sossegada!
Mary deixou cair os ombros, depois se virou e despejou o conteúdo do avental na banheira.
— Mas como vou protegê-la dos venenos?
Isabel sorriu.
— Quer entrar na banheira antes de mim?
Mary riu.
— Se desejar, condessa...
— Que tal beber a água do banho?
Mary riu ainda mais, e não conseguiu parar até que desabou no chão.
— Só se ela me transformasse em uma mulher tão bonita como você... Isabel.
Isabel parou, sem saber o que a havia deixado mais atordoada: o fato de Mary ter finalmente se atrevido a chamá-la pelo primeiro nome, ou por ter dito algo tão doce. Mas a troca verbal durou apenas um momento, e ela riu e caiu no chão com Mary, abraçando-a com força.
Continuaram a rir por algum tempo, até que ela fez a menina endireitar os ombros e lhe ajeitou os cabelos para trás.
— Mary, é uma mulher tão bonita... Eu gostaria de ter sido tão linda como você quando tinha a sua idade. Caramba, sabe do que os meninos me chamavam quando eu tinha treze anos?
— Não. — Mary balançou a cabeça. — Do quê?
Santo Deus, agora nem ela conseguia se lembrar! Sabia ser algo que sempre acabava com um nariz sangrando ou dois, mas se esquecera do apelido.
“Pau de virar tripa.”
“Ah, obrigada por intervir, Viviane!”
“De nada. Foi apenas um lembrete.”
— Eles me chamavam de “pau de virar tripa”. Era terrível.
— Não sei o que quer dizer — respondeu Mary.
— Eu era alta demais para a minha idade e muito magra. Então, os meninos me provocavam sem dó. No fundo, as pessoas desagradáveis dizem coisas desagradáveis apenas para se sentirem melhor. Eu, por exemplo, já superei essa história de “pau de virar tripa” faz tempo. Se alguém já lhe disse coisas ruins, garanto que foi gente idiota. Quaisquer que tenham sido os comentários, estes não significam nada e são infundados. É uma mulher linda e está se casando com um dos melhores partidos do reino de Camelot. Garanto que James não pediu a sua mão porque ele a acha feia. Não fica feliz por isso?
Mary assentiu.
— Às vezes eu queria que James não fosse tão importante no reino.
— Por quê?
— Porque talvez as minhas amigas não houvessem se afastado de mim tão depressa.
— Elas se afastaram de você?
Mary concordou, e uma lágrima caiu em seu joelho.
— Mais tarde eu fui designada para ser sua criada, e elas se afastaram ainda mais.
Isabel viu a mágoa nos olhos de Mary e se perguntou em que tipo de mundo vivia aquela garota para ter de escolher entre as amigos e seu homem. Ou entre o sucesso de qualquer forma e permanecer estagnada. Suspirou. Teoricamente, em seu próprio tempo aquele tipo de coisa também devia acontecer. Como pais imbecis, estúpidos e preconceituosos que preferiam ver a filha morta a casada com pessoas de outra raça ou religião. Mas aquilo com Mary... Aquilo estava muito errado.
— Mary, você ama James?
— Ah, sim! Eu o amo muito.
— Muito bem. Pois trate de se importar apenas com as amigas que estão felizes por você se casar. E, uma vez que estiver casada e numa posição social superior, traga-as para o seu lado. Esqueça as que deixaram a inveja e o ciúme corromper o próprio julgamento. Ou melhor, faça como quiser. Pode perdoá-las ou ignorá-las. Mas nunca, jamais, esqueça as amigas que ficaram felizes por você, está bem?
— Eu nunca vou me esquecer, condessa Isabel!
— Melhor não esquecer mesmo!
Era uma coisa boba, Isabel sabia, mas já se sentia tão próxima de Mary que era quase como se elas tivessem se conhecido a vida inteira. Apenas dois dias tinham se passado?
Levantou o dedo mindinho.
— Vamos ser amigas a vida toda, mas, para isso, precisa concordar.
Mary a observou, confusa. Então pareceu compreender, finalmente.
Ergueu o dedo mindinho também, e ambas os entrelaçaram.
— Amigas para sempre, Mary. O vínculo mais importante.
— Amigas para sempre — confirmou a menina.
Isabel conteve as lágrimas. Levantou-se, por fim, puxando Mary com ela.
— E agora, senhorita, por favor, vá pedir que me tragam baldes e baldes de água bem quente.
Mary olhou para a banheira.
— Mas, Isabel, e se...
— A rainha bebeu água com ervas, Mary, ela não se banhou nela.
— Tem certeza?
— De acordo com Jenny, que veio me dar notícias, Tom confirmou tudo. Ele fez Gwen vomitar o chá que tinha ingerido.
— Que coisa desagradável!
— Nem me fale.
— Vou pedir que lhe tragam a água quente agora mesmo.
— Obrigada.
Ambas sorriram, coroando sua amizade, depois Mary fez meia-volta para sair. A menina surpreendeu Isabel, contudo, ao se voltar para encará-la.
— Fiquei muito orgulhosa de você hoje.
Isabel sorriu ainda mais, sentindo-se tão leve que poderia dormir por uma semana.
— Obrigada, Mary. Foi apenas algo que aprendi quando era mais moça.
E que ela queria desesperadamente ter aplicado em Curtis, no Afeganistão. Mas havia sangue demais.
— Isabel... — chamou Mary mais uma vez.
— Sim, Mary?
— O rei estava muito preocupado com você.
— Comigo?
— Não que ele não estivesse preocupado com a rainha... Mas notei como ele ficou do lado de fora do quarto, todo nervoso. E ele estava preocupado com você .
— Obrigada por me avisar. Vou tranquilizá-lo na hora do jantar.
Após um banho longo e luxuriante, Isabel saiu, sentindo-se melhor, ainda que meio cansada. Um dia que prometia tanto acabara sendo mais do que conturbado.
Mary, que tinha a incrível capacidade de saber exatamente quando ela iria precisar de alguma coisa, veio ajudá-la a se vestir e a arrumar o cabelo. Fez uma trança simples, mas que lhe contornava a lateral do pescoço, descansando em seu peito.
— Colhi algumas flores esta manhã, com a intenção de colocá-las em seu cabelo esta tarde ou à noite, mas, depois do que aconteceu hoje... — explicou, estremecendo.
— Mary, não sabemos se foi alguma flor que fez a rainha passar mal. E, como já conversamos, ela deve ter ingerido a planta em comida ou bebida para ficar doente.
— Não custa sermos cautelosas.
“Supersticiosas” seria a palavra mais adequada, porém Isabel nada disse.
— Tenho um recado de Tom, seu médico, condessa — lembrou-se Mary, enquanto se erguia e admirava o próprio trabalho. — Ele pede que vá encontrá-lo no quarto de dormir da rainha.
— Verdade? — Isabel se levantou. — Então me mostre o caminho agora mesmo!
Capítulo Dezessete
No fim, o quarto real não era tão distante do dela, constatou Isabel. E Mary informou que tal proximidade era considerada uma honra. Quanto mais importante era o convidado, mais próximo ficavam seus aposentos dos do rei e da rainha.
O dormitório real era exatamente isso: real. Tapeçarias cobriam a maior parte das paredes, e o brasão de armas de Camelot — suspeitava ela — era o que estava dependurado acima da cabeceira da cama.
A cama era em estilo dossel, com sedas verde-escuras drapeadas nas laterais. No momento o cortinado de seda estava afastado e atado com cordames dourados, de modo que Gwen estava visível em meio à enorme cama, parecendo muito pálida e frágil.
Tom cochilava, sentado em uma cadeira próxima à lareira acesa que, por sua vez, emprestava um brilho rosado e quente ao cômodo. Não vendo ninguém no quarto que lhe desse licença para entrar, Isabel cruzou o espaço em silêncio e sacudiu o amigo de leve.
Ele despertou com um ronco, depois se sentou e piscou.
— Ah!... Isabel. Que bom que veio. — Tom se levantou e ajeitou as leggings com uma careta. — Meu reino por um belo par de calças cáqui e uma camisa polo — resmungou.
Isabel o abraçou, rindo baixinho.
— Está meio ridículo, mesmo — confessou, antes de recuar e fitar o rosto do amigo, atenta. — Eles estão lhe tratando bem? Raramente o tenho visto, exceto às refeições.
— Se este fosse um Hilton medieval, eu lhe daria cinco estrelas. Sim, eles têm sido muito atenciosos com nós três. Mas, graças a Deus, a deusa foi gentil o suficiente para permitir que trouxéssemos alguns luxos de casa.
— Verdade? Quais?
— Harry encontrou um baralho no baú dele. Depois que dispensamos os criados à noite, costumamos nos reunir para algumas rodadas de pôquer.
— Ei, vejam se me convidam da próxima vez!
Ele sorriu.
— Temos justamente evitado fazer isso, já que tem o hábito de nos limpar na faculdade.
— Bela merda!
Eles riram em conjunto. Ela e Tom tinham namorado algumas vezes na faculdade, até decidirem que davam mais certo como melhores amigos. Depois disso, tomaram como missão encontrar as almas gêmeas um do outro, obrigando-se a se arrumar o máximo de pretendentes possível. Isabel vencera a aposta ao arranjar para Tom um encontro com Brenda Newesome, uma menina adorável que ela conhecera quando ambas trabalhavam como garçonete para ajudar a pagar os estudos. Fora amor à primeira vista. Tom e Brenda continuavam juntos desde então e tinham três filhos: dois meninos gêmeos e uma linda menininha.
— Ah, Tom, eu sinto muito por Brenda e as crianças. Espero que eles não estejam loucos de preocupação.
— Ei, sou apenas um sósia, lembra-se? A deusa nos garantiu que a vida continua acontecendo normalmente por lá. Você é a única de verdade aqui.
Isabel se perguntou se alguém estava sentindo falta dela em Oklahoma. As pessoas estariam procurando por ela? Teriam encontrado seu corpo?
“Tua propensão a sumir é bem conhecida. Mas, não, Isabel, ainda não foste encontrada. Se as coisas em Camelot terminarem a contento, tua história em casa há de ser contada.”
“Obrigada, Viviane.”
“Sou eu quem agradeço, e me orgulho por ter te escolhido. Melhor mulher para Artur ninguém podia ter sido!”
No fundo, Isabel queria mais era não receber tantos elogios. Estava feliz por ter ajudado outro ser humano em perigo, mas era como se fosse precisar fazer isso o resto da vida.
Conhecia o próprio temperamento, as próprias falhas. E perfeição nunca fizera parte de seu dicionário. Por outro lado, numa categoria do Guinness “Quantas vezes você pode ferrar com a sua própria vida?”, seu nome poderia aparecer em letras garrafais!
Isabel afastou o pensamento.
— Como está a sua paciente? — quis saber, preocupada.
— Ah, sim...
Ambos se aproximaram da cabeceira. Alguém colocara roupas de dormir em Gwen, e Isabel se viu torcendo para que Tom tivesse despido e ajeitado a rainha com a ajuda de alguma ama ou outra criada do gênero, e não de Artur.
Era um pensamento ridículo, já que o rei obviamente vira sua mulher nua inúmeras vezes.
— Eu tive o privilégio de tentar descobrir qual o conteúdo do estômago da rainha, uma vez que ela o expeliu. O que ficou óbvio é que ela havia ingerido algum tipo de cogumelo selvagem. Eu soube, por meio do cozinheiro que preparou seu desjejum, que Gwen os descobriu recentemente e solicitou que estes lhe fossem servidos com ovos no café da manhã.
— Eram cogumelos venenosos?
— Meu palpite é de que sim.
— Então seriam eles os responsáveis pelas alucinações de Gwen? Por seu comportamento irracional e por seu aparente ataque cardíaco?
— Até onde posso afirmar, considerando a terrível falta de equipamentos por aqui, não foi bem um ataque cardíaco, e sim puro envenenamento. Você salvou a vida dela ao aplicar a reanimação cardiopulmonar e ao mantê-la viva por tempo suficiente até que eu pudesse ajudar, Izzy.
Isabel sorriu.
— A RCP que me ensinou há muito tempo.
— Quem poderia imaginar que era uma aluna tão boa? Imaginei que estivesse apenas se divertindo quando concordou em ser minha boneca.
— Como fez Gwen vomitar?
Tom fez uma careta.
— À moda antiga.
— Enfiando dois dedos na garganta dela?
— Isso mesmo. Gwen não ficou muito feliz. Quase mordeu meus dedos. Mas, se não fosse por você, Izzy, ela não estaria aqui.
Artur mal acreditou no ciúme que revirou seu estômago quando, da porta, testemunhou a familiaridade de Isabel com o médico de dentes. Ele deveria estar preocupado com sua esposa! Devia estar considerando a ideia de um possível assassino querer o mal de Gwen ou de alguém em Camelot. Mas sua mente só conseguia processar Isabel tocando outro homem. Entrou no aposento, tentando controlar a vontade de livrar o médico de todos os seus próprios dentes.
— E eu testemunhei tudo isso — completou ele o diálogo que travavam.
Ambos se voltaram.
— Artur! — falou Isabel.
— Majestade... — disse Tom cheio de dentes, dirigindo-lhe uma mesura desajeitada. Não devia haver muitas formalidades em Dumont, considerando a falta de prática de seus habitantes.
— Na verdade, testemunhei muitas coisas hoje — acrescentou Artur. — E não conheço nenhuma recompensa boa o bastante para expressar minha gratidão.
Tom e Isabel se entreolharam, em seguida riram e disseram ao mesmo tempo:
— Não tem de quê!
Os dois caíram na risada enquanto Artur franzia a testa, confuso.
Isabel sorriu. Em seguida, tomou o braço de Tom no dela e o empurrou de brincadeira.
— Nós somos amigos há muitos anos, Artur. Desde que estávamos na escola lá em Okl...
— ... em Dumont — interrompeu-a Tom.
— Sim, em Dumont.
Artur observou seus braços dados, e Isabel se desvencilhou do amigo rapidamente, dando um passo para o lado.
O rei olhou para Gwen.
— Será que ela vai se recuperar?
— Totalmente. Precisa apenas de repouso e muita água em pequenas quantidades. Se a rainha sentir uma necessidade insaciável de continuar a beber, precisa ser controlada. Na verdade, necessita de pequenas quantidades em tudo. Sua alimentação precisa ser reintroduzida aos poucos. Galinha ou caldo de carne a princípio, depois um pudim de arroz ou pão. Nada muito gorduroso ou pesado por algum tempo e, em alguns dias, estará nova em folha.
— Tenho que passar todas essas informações à criada dela, Jenny.
— Isso já foi feito — afirmou Tom. — Eu mesmo orientei a moça, depois a mandei descansar, pois ela estava muito abalada. Mesmo assim, Jenny virá para cá em breve para que eu mesmo possa descansar um pouco.
— Então, os cogumelos eram mesmo a substância venenosa, como suspeitava? — indagou Artur.
— Tenho quase certeza de que sim. Nada mais mudou na rotina da rainha, de acordo com Jenny.
— E foi a própria Gwen quem levou esses cogumelos ao cozinheiro?
— Foi. Não houve nada nefasto aqui, rei Artur. Apenas um terrível acidente.
— Eu gostaria de saber onde ela arrumou esses cogumelos. Eu nunca vi nada do gênero na propriedade ou nos jardins. Pelo visto, não tenho monitorado esses detalhes como devia.
— A rainha os encontrou na cabana mais distante, ao extremo sudeste da propriedade — revelou Tom. — Ao menos foi o que ela me disse enquanto expelia alguns deles.
Primeiro Artur arregalou os olhos, depois os estreitou.
— Eu conheço a cabana de que está falando.
— Então sugiro que mande seus jardineiros para lá e faça-os dar fim a esses cogumelos o mais rápido possível. Antes que alguém mais os tome como iguarias em potencial, e não como os venenos mortais que podem ser.
Artur balançou a cabeça. Em seguida, olhou novamente para a esposa. Devia ter vontade de acariciar seu rosto pálido, de puxar uma cadeira e sentar-se, vigilante, a seu lado.
— Se quiser ficar com ela, Artur, podemos sair para lhes dar privacidade — ofereceu Isabel.
— Não há necessidade — contrapôs ele enquanto observava a rainha. — Gwen parece estar mais bem cuidada do que eu seria capaz de fazer. — Ele tomou a mão de Tom e a sacudiu. — Minha eterna gratidão.
Isabel ficou um pouco chocada. Não testemunhava um aperto de mão de verdade desde que havia chegado ali. Tinha imaginado até que tal prática não havia sido inventada ainda; apenas aquela história de beijar anéis, rebaixar-se, e aqueles resmungos de aprovação entre os homens.
— Nem sei como começar a retribuir a vocês dois. O fato de a terem salvado, quero dizer.
Tom sorriu.
— Não há...
— ... de quê, eu sei — concluiu Artur com um leve sorriso curvando os lábios. — Mas sou muito grato por estarem aqui.
— É um prazer.
— Posso acompanhá-la, condessa? — quis saber Artur.
— Claro! — respondeu Tom por ela antes que Isabel pudesse fazê-lo e a olhou de soslaio. — Não se esqueça de que ainda temos aquela aposta, Izzy.
— Eu sei que não é um pedido muito adequado — começou Artur conforme Isabel e ele desciam pelos intermináveis degraus até o salão principal. — Mas concordaria em caminhar comigo até a casa onde, acredito, Gwen encontrou os cogumelos?
— Até a cena do crime? — indagou Isabel, brincando. Em seguida, vendo a confusão de Artur, ela suspirou. — Claro que sim. Ficarei feliz em ajudá-lo a encontrar esse veneno.
Caminharam por trilhas sinuosas, cobertas com matéria vegetal em decomposição, e a vegetação foi se tornando cada vez mais densa conforme andavam. A rápida tempestade havia passado, e o sol brilhava mais uma vez.
Ambos ficaram em silêncio por algum tempo antes que Artur finalmente se manifestasse.
— Imagino que deva estar me considerando um insensível por não ter ficado ao lado de Gwen.
— Não é meu direito julgar, Artur.
— Tem opiniões sobre todas as coisas, Isabel. Também deve ter uma a esse respeito.
Ela parou e o encarou.
— Quer mesmo a minha opinião? Não importa qual seja?
Ele sorriu.
— Sim, condessa, quero.
— Ótimo. Se é assim, pode se preparar, machão... Aqui vai o que eu sinto. Direto da minha cabeça.
— Estou preparado.
— Acredito que estamos indo para a casa de campo onde Lance e Gwen se encontram. Creio que, depois de seu último encontro, ela tenha se deparado com os cogumelos. Acho também que, se não está sentado ao lado dela agora, é porque se recusa a ser hipócrita. Então se certificou de que Gwen não corria mais risco de morte e pôs um monte de gente ao redor dela para garantir que ela será bem cuidada.
— Até agora, está absolutamente certa.
— Não me interrompa, estou inspirada!
Artur continuou a sorrir e, caramba, ela amava aquele sorriso!
Ele se manteve em silêncio, contudo.
— Você me pediu que eu viesse aqui não apenas para ajudá-lo, mas porque queria ficar sozinho em um lugar bonito e isolado. Queria me dizer coisas que não pode dizer no castelo. Em resumo, Artur, queria ficar sozinho comigo .
— Posso falar agora? — perguntou ele, os olhos ainda brilhando com humor.
— Pode.
— Está certa, mas se esqueceu de um detalhe importante.
— Qual?
— Também acredito que este seja o ponto de encontro de Gwen e Lance, e também não queria vir até aqui sozinho. Temia fazer algo precipitado e necessitava da voz da razão a meu lado para me impedir de agir por impulso.
— Entendo. — Isabel parou. — Artur, você é pelo menos uns quinze centímetros mais alto do que eu e, provavelmente, tem o dobro do meu peso. O que o faz acreditar que eu poderia impedi-lo de fazer qualquer coisa?
— Primeiro porque fui testemunha de como lidou com Mordred.
— Mas você o estava segurando! Não seria a mesma coisa se ele estivesse solto.
— Em segundo, porque as suas palavras são mais poderosas do que qualquer arma, Isabel. Eu posso enfrentar uma espada, mas tenho muito pouca defesa contra as suas palavras e seus pensamentos.
A confissão deixou Isabel atordoada. Não era possível que ela tivesse tanto poder sobre um ser humano.
— Está me superestimando, Artur.
— Vamos comprovar isso se o meu desejo de pôr fogo a essa cabana for mais forte que eu.
— Bem, eu tenho um bom argumento contra essa medida drástica. Se não puder se controlar, estará correndo o risco de destruir muito mais do que apenas a estrutura da casa.
— Viu? É esse tipo de raciocínio que precisa sobrepujar essa minha visão simplista e míope.
— Descarregar sua raiva em uma inocente cabana não vai mudar o que aconteceu lá dentro, Artur. A casa não provocou o andamento das coisas.
Ele a segurou pelo cotovelo, e eles continuaram caminhando.
— Acredita no destino, Isabel?
— Sim, acredito. Embora eu admita que, às vezes, o destino dê algumas guinadas engraçadas.
— Como assim?
— Por exemplo, eu acreditava que o meu propósito de vir a Camelot era um; mas creio que o destino conspirou para fazer algo muito diferente.
— Ainda vejo essa troca entre nossos reinos como um benefício, tanto para Camelot como para Dumont.
Ela ainda não havia pensado naquilo, mas não ousou corrigi-lo.
— Concordo. E creio que isso seja viável.
— Quer dizer que agora acredita que o destino tinha algo mais em mente?
— Acredito.
— E o que seria?
— Vai soar muito pretensioso.
— Estou escutando.
— Acredito que eu esteja aqui a fim de, não sei, fazer o que estiver ao meu alcance para ajudá-lo a salvar Camelot daqueles que desejam derrubá-lo.
— Isso não é nada pretensioso. Na verdade, fico muito tocado. Minha teoria, contudo, é um pouco diferente.
— Muito bem... Vamos ouvi-la.
— Acredito que tenha sido mandada aqui para me salvar.
Caramba, ele tinha acertado na mosca! Bem, não exatamente. A finalidade principal, no que dizia respeito à deusa, era salvar Merlin. Mas aquilo significava salvar Artur, em primeiro lugar.
— Você? — perguntou ela com cuidado, embora sentisse o coração disparar.
— Sim, não percebe? Mesmo quando pus em prática esse sonho de reunir cavaleiros em minha távola, meu casamento já estava com problemas. Mas eu estava muito entusiasmado com o futuro de Camelot, e de todos os bretões, para enxergar isso. E, então, quando o mau cheiro dessa terrível traição começou a ficar insuportável, você apareceu. O destino interveio e me deu você.
Ou Viviane , pensou Isabel, rindo.
— Não sou nenhum presente, Artur.
— Para mim, você é.
Ela não teve resposta para aquela afirmação.
— Quanto falta para chegarmos à cabana? — perguntou, nervosa.
— Ora, ora, condessa Isabel... Parece que consegui o que até o momento eu acreditava ser impossível: eu a deixei sem palavras.
Isabel procurou desesperadamente algo para dizer. Algo espirituoso, sábio, idiota. N ão importava. Mas Artur estava certo. Ela ficara sem palavras.
Um presente? Ninguém nunca a havia considerado um presente antes. Uma maldição, talvez.
Artur riu.
— Venha, Isabel. A cabana fica logo depois daquela curva.
Estavam se aproximando da curva, quando ele levantou o braço como uma barreira. Em seguida, levou um dedo aos lábios. Por um momento, Isabel ficou confusa e atordoada com a doce admissão de Artur.
Mas depois ouviu também: um ruído pouco à frente. Em um movimento rápido, Artur puxou uma flecha da aljava às suas costas. Em seguida, ergueu o arco e o armou.
— Fique aqui — pediu baixinho.
Como uma perigosa pantera, ele começou a avançar silenciosamente em direção a qualquer presa que pudesse encontrar.
O coração de Isabel parecia querer saltar para fora do peito. O medo de que acontecesse algo com Artur quase a fez desfalecer.
Tensa, ela apertou o colar de lágrimas na mão, perguntando-se se aquele seria o momento de invocar seus poderes.
“Não, Isabel, a hora não é essa. Poupe teu poder para quando o perigo for mais que uma promessa.”
Nossa , Vivi estava caprichando cada vez mais nas rimas!
“Artur é um guerreiro que não pode ser igualado. Permite que ele te proteja e fique sempre ao teu lado.”
O rei se escondeu atrás de um carvalho-dos-pântanos, então espiou por cima deste devagar, o arco ainda erguido na direção do barulho. Tinha o corpo retesado, tenso, e Isabel teve uma pequena amostra do que seria vê-lo em ação em uma batalha, pronto para atacar qualquer inimigo que houvesse pela frente.
De repente, porém, seus ombros relaxaram, e ele baixou o arco, removendo a seta e empurrando-a de volta para a aljava.
— Lance! — chamou. — Sou eu, Artur.
— Senhor! — respondeu Lancelot. — Não percebi sua aproximação.
Artur olhou para trás e acenou para que Isabel se juntasse a ele.
— Na verdade, somos a condessa Isabel e eu. Viemos procurar... — A voz dele sumiu.
Isabel se juntou a Artur e entendeu por quê. Numa clareira, diante de uma encantadora cabana de madeira, Lancelot estava de joelhos, colhendo cogumelos do chão freneticamente e colocando-os em uma pilha enorme a seu lado.
A própria casa dava sinais do toque de Gwen. Havia vasos de flores pendurados em locais estratégicos ao longo das paredes externas, repletos de cravos coloridos e amores-perfeitos, bocas-de-leão em miniatura e petúnias. Flores do campo brotavam em ambos os lados da construção. Um perfume floral inundou-lhe as narinas, mas foi logo suprimido pelo cheiro úmido da vegetação da floresta, além do de terra remexida. No momento, entretanto, a clareira parecia mais um campo minado.
Ao avistar Isabel, Lance se pôs de pé e se curvou, mas não antes que ela tivesse um vislumbre de seu rosto banhado pelas lágrimas.
— Condessa — murmurou ele, em seguida tentou enxugar as faces.
Artur tornou a segurar Isabel pelo cotovelo, e eles adentraram a clareira.
— Imagino, Lance, que já esteja ciente do perigo que esses cogumelos representam.
— Eles quase a mataram — admitiu Lance com voz embargada.
— Mas não o fizeram, graças ao raciocínio rápido de...
— ... de meu médico, Tom — interrompeu Isabel depressa.
Lance olhou para o cogumelo que ainda tinha na mão e o esmagou com raiva antes de jogá-lo na pilha.
— Seu médico, condessa, me contou uma história um pouco diferente. Mal posso expressar minha... Quero dizer... Em nome do rei , devo-lhe minha gratidão.
— De modo algum.
— Viemos justamente atrás da causa desse desastre, Lance. Eu havia planejado mandar um dos meus jardineiros até aqui para destruí-los, mas parece que você nos poupou desse trabalho.
— É um prazer fazê-lo, senhor. Temi que outra pessoa os encontrasse e cometesse o mesmo erro de Gw... da rainha. Que os Céus nos livrem. Poderia ser uma ou mais das nossas crianças.
— Que os Céus nos livrem, de fato. Que planos tem para essa pilha, depois que terminar de colher tudo o que puder?
— Pretendo queimá-la, senhor.
— Boa ideia. Só não se esqueça de manter o fogo sob controle. Ninguém quer que ele se espalhe e queime esta linda cabana.
Isabel ocultou um sorriso. Era quase o mesmo aviso que ela dera a Artur no caminho até ali.
— Eu gostaria, com a sua permissão, Lance, de levar um desses cogumelos para o castelo comigo. Seria útil mostrá-lo aos cozinheiros como alerta. De preferência um que ainda esteja relativamente intacto, uma vez que aqueles que você já colheu viraram uma massa vegetal cinzenta...
Lance se curvou e puxou outro cogumelo da terra quase com raiva. Depois avançou um passo e, com uma rápida mesura, indagou:
— Será que este atende aos seus propósitos, meu rei?
— Sim — concordou Artur, apanhando o cogumelo e colocando-o na pequena bolsa que trazia junto ao quadril. — Muito bem... pode continuar. Agradeço por sua preocupação com a segurança do povo de Camelot.
— Sempre a seu serviço, senhor.
Isso quando ele não estivesse a serviço de Gwen , completou Isabel mentalmente, condenando a si própria pela natureza desagradável do pensamento. Uma vez que ela mesma estava cobi çando um homem casado, não estava com muita moral para julgar outra pessoa.
Além do mais, a declaração apaixonada de Lancelot, de que ele estaria sempre a serviço de Artur, tinha um quê de verdade. Lance não era apenas um bom soldado. Era óbvio para ela que, por trás de sua sinceridade quase infantil, havia um poço de culpa.
Isabel ficou morrendo de vontade de explorar o interior da casa, mas sabia que seria cruel demais com Artur, então suprimiu tal desejo.
— Vamos voltar para o castelo? — sugeriu. — Preciso dar uma olhada em Samara antes da ceia.
— Claro. — Eles se viraram para ir embora, porém Artur fez meia-volta. — Lance?
— Sim, senhor?
— Por favor, não permita que a raiva e a tristeza lhe toldem o bom-senso. Se eu consegui me aproximar sem que se apercebesse disso, outro pode fazer o mesmo.
— Sim, meu senhor.
— Tem o sentido mais aguçado que já testemunhei. Faça bom uso dele. Eu não gostaria de perder um dos meus melhores soldados.
— Sim, senhor.
— E tome cuidado com esse fogo.
— Sim, meu senhor.
Artur se voltou para Isabel e estendeu o braço.
— Vamos?
— Vamos — concordou ela, colocando a mão no bíceps firme com prazer.
Eles já haviam caminhado por vários minutos quando Isabel sussurrou:
— Você é um homem incrível, Artur.
Ele a fitou com surpresa.
— Fico muito feliz por pensar assim. Mas o que provocou essa observação?
— Qualquer outro iria querer estrangular aquele moleque sem-noção.
— Além de uma mínima satisfação e de dor nas juntas, o que mais isso me traria?
— Ah, não sei. Talvez pudesse fazê-lo enxergar o tamanho do erro que cometeu.
— Essa fronteira já foi cruzada, Isabel. Não há volta. E isso não iria mudar os sentimentos que ele nutre por Gwen. Não posso arrancar de dentro de Lancelot o amor que ele sente por minha esposa.
— É verdade.
— Cheguei a acreditar, em determinado momento, logo que comecei a ter suspeitas, que essa coisa entre os dois fosse se desfazer eventualmente, como fogo sob água. Mas não acredito mais, tampouco alimento esperanças de qualquer gênero. Verdade seja dita: se eu fosse capaz de revelar meus sentimentos para Lance, creio que eu apenas lhe desejaria boa sorte e pediria que ele sempre tratasse Gwen como ela merece.
— Tem uma incrível capacidade de perdoar, Artur.
Ele ponderou a respeito.
— Talvez não tanto como essa recém-descoberta compreensão de como eles estão se sentindo. Deve ser um fardo amar profundamente e não poder revelar tal coisa a todo o mundo.
— Por que não pode contar a Lance, em particular, sobre como se sente? Talvez isso aliviasse parte desse fardo.
— No momento em que eu revelar tudo a ele, Isabel, por mais gentil e cordata que seja a nossa conversa... No instante em que eu fizer tal coisa, estarei acusando Lancelot de traição.
— Mas já revelou tudo a Gwen. Não a acusou do mesmo modo?
— Apenas a deixei ciente de que sei de sua infidelidade. Gwen conhece as implicações para seu ato. Também compreende que, a qualquer momento, eu poderia denunciá-la para todos que quisessem ouvir, e ela teria de pagar o mais elevado dos preços: deveria pagar com a própria vida.
— Nossa, não deve ser fácil ter um fardo desses para carregar.
— Por outro lado, Gwen também sabe que eu nunca faria uma coisa dessas com ela.
— Ela acredita que você a ama muito.
— Sim, creio que sim. E não está superestimando minha preocupação com seu bem-estar. O que talvez ela não saiba é que amor e carinho não são necessariamente a mesma coisa. Não mais.
— Posso fazer outra pergunta?
Artur riu.
— Desde quando pede permissão para isso?
— Desde agora. Porque sua sinceridade é importante para mim.
O castelo se fez avistar conforme eles terminaram uma curva, e o cheiro dos animais e do suor de trabalhadores quase a sufocou. Isabel quase desejou correr de volta para o meio da floresta, mesmo que esta também exalasse odores que ela preferia evitar.
— Não acredito já ter sido desonesto com você, Isabel — afirmou Artur, parecendo um pouco ofendido por ela ter qualificado a pergunta. — Mas tem a minha palavra de que a minha resposta será sincera.
— Por que confia tanto em mim? Quem lhe garante que eu não poderia virar o jogo e revelar tudo para alguém que iria usar a informação contra você, Gwen ou Lancelot?
— Creio que já superamos essa fase.
— Superamos?
— Sim, mas talvez eu tenha sido muito conciso. Permita-me dizer, com toda a sinceridade de que disponho... — Artur parou e a virou pelo rosto, de modo que ela pudesse ver a verdade em seus olhos. — Desde o instante em que pousei o olhar em você, fiquei encantado. Naquela nossa jornada até o castelo, foi a companhia mais agradável que já tive a oportunidade de desfrutar. Eu sabia antes mesmo de termos alcançado a muralha que você... que você havia mexido com alguma coisa dentro de mim. Eu nunca tinha sentido isso, nem mesmo enquanto cortejava Gwen.
— Está bem, nós já falamos sobre esse assunto — murmurou Isabel, corando um pouco, e seus olhos azuis se desviaram dos dele. Tentou se libertar dos dedos firmes. — Não se preocupe.
Artur a soltou e ergueu as mãos.
— Não vou tocá-la contra a sua vontade, mas, por favor, permita-me terminar.
Isabel o encarou.
— Não tem que se preocupar. Nesse ponto eu confio em você plenamente.
— Devo me preocupar, sim. — Ele deu de ombros. — Eu desejei você. Mas imaginei que, se acreditasse que eu era algum infame sem moral, que não tinha escrúpulos em trair os meus votos, acabaria perdendo todo o respeito por mim e iria me rejeitar. Eu não podia permitir que acreditasse em tal coisa. Pode chamar isso de egoísmo, mas eu não apenas a desejei, como quis que confiasse em mim. Talvez para que, em qualquer relacionamento que tivéssemos, fô ssemos verdadeiros um com o outro. Para tanto, eu precisava ser honesto sobre o que estava acontecendo ao meu redor. Do contrário iria me considerar um sujeito vil e adúltero. Eu não queria que acreditasse que apenas a luxúria guiava a minha atração.
— Assumiu um risco enorme, Artur.
— Talvez. Mas você... Não consigo explicar. Você foi importante para mim a esse ponto. E eu vi em seus belos olhos azuis que sentia pelo menos um pouco daquilo que eu estava sentindo. Pode ter sido um risco, realmente, mas eu precisava me dar essa chance. Eu podia jamais tê-la outra vez. Além do mais, acredito em olhar para trás no final dos meus dias sem qualquer arrependimento. Não permitir que meus sentimentos por você se manifestassem seria um compunção que eu levaria pelo resto da vida.
Isabel sentiu os olhos úmidos, contudo engoliu as lágrimas.
— Obrigada — falou num sussurro. — Fico feliz por sua honestidade. E posso dizer que tais esperanças e desejos não são apenas seus, Artur. Está certo. Se eu não houvesse tomado conhecimento dos seus problemas, talvez nunca tivesse permitido que meus sentimentos por você crescessem, ou que você me beijasse. Muito menos que quase fizéssemos amor.
— Verdade. Nós ainda não fizemos amor.
— Não por falta de vontade minha.
Artur sorriu, mas então se obrigou a parar.
— Não posso, em sã consciência, tomar algo que deve estar guardando para o homem que vai conquistar seu coração algum dia.
— Artur, seu imbecil... Não percebe que já conquistou meu coração?
Ele não pôde evitar. Segurou-a pelo rosto e a beijou. Foi quase selvagem a princípio, contudo procurou aplacar o próprio desejo.
Suavizando o beijo, persuadiu-a a entreabrir a boca, e ficou maravilhado em perceber como seus lábios se ajustavam. Eles haviam sido feitos para se unir.
A língua de Isabel tinha gosto de menta, e Artur sentiu os joelhos fraquejar quando esta lhe traçou o desenho da boca antes de tornar a se enrolar na dele. Era um tormento pensar que aquilo era o mais próximo do ato de fazer amor a que eles poderiam chegar. E, depois da incrível visão dela nua, era quase insuportável.
Isabel interrompeu o beijo antes que Artur estivesse preparado, porém ele aceitou o gesto como o mais correto. Os lábios inchados e úmidos, e os olhos enevoados de Isabel, só fizeram seu corpo traí-lo ainda mais com o tamanho de seu desejo. Ele deu um passo atrás e apoiou as mãos nas coxas, tentando manter o controle. O ar entrava e saía de seus pulmões com dificuldade. Por fim, fechou os olhos por um momento, então se endireitou.
— Preciso me acalmar antes de deixarmos a floresta.
— Artur...
— Sim?
— Creio que eu tenha algo a dizer que pode arrefecer o seu ardor.
— Nem mesmo um mergulho nu no lago Camelot, no meio do inverno, conseguiria arrefecer o meu ardor, condessa.
— Pois essa confissão poderá fazê-lo.
— Como é possível?
— Eu não fui completamente honesta com você.
Deu certo. Ele já fora submetido a mentiras e traições nos últimos meses suficientes para afetá-lo pelo resto da vida.
Cruzou os braços, sentindo o peito se apertar, arder, doer.
— Estou ouvindo.
Isabel viu algo em seu rosto que a preocupou, e começou a morder o lábio inferior.
— Não foi uma mentira qualquer; não foi desonestidade. Foi mais porque me pegou de surpresa com a sua reação a algo, e fiquei surpresa, sem graça e...
— Por favor, vá direto ao ponto, Isabel. Estou pronto para o que quer que seja.
Era mentira. Ele não estava pronto coisa nenhuma.
Mas ter conhecimento do que estava enfrentando era uma estratégia melhor do que não saber nada sobre o que ou quem o estava traindo.
— Por favor, não fique com raiva...
— Não posso prever as minhas emoções ou reações até saber o que estou enfrentando.
— Quando nós... Quando você e eu...
— Por favor, Isabel, não me torture por mais tempo!
Ela respirou fundo.
— Quando eu não consegui descobrir como tirar suas roupas... Você se lembra?
— Essa lembrança vai ficar gravada para sempre em minha memória. Não penso em outra coisa desde esta manhã. O que tem ela?
— Era verdade que eu não sabia nem mesmo por onde começar a despi-lo.
— Eu me lembro.
— Mas não foi porque eu não conhecia nada em termos de roupas de homem.
— Isso ficou bastante claro para mim.
— Sim, sim — assentiu Isabel, nervosa. — Eu fiquei confusa pela forma como as suas roupas se sobrepunham ou, melhor dizendo, como deviam ser tiradas... Mas não porque eu nunca tivesse estado com um homem.
— Como?
— Eu não sou virgem, Artur. Você fez essa suposição, então fiquei confusa, envergonhada e...
Artur deixou cair o queixo.
— Está dizendo que podíamos ter feito amor lá — ele apontou o polegar por cima do ombro, em direção ao castelo — e aqui, nesta floresta, mas não fizemos apenas porque não sabia como me despir?
— Algo assim.
A surpresa e o alívio dele foram tão grandes que a decepção pelas oportunidades perdidas logo caiu no esquecimento. Artur começou a rir.
— Era esse o seu terrível segredo?
— Está rindo de mim? — perguntou ela, erguendo o queixo com arrogância.
— Não, Isabel, estou rindo de mim mesmo. Quantas vezes não fantasiei, hoje, tentando encontrar uma desculpa para seduzi-la sem me preocupar com o seu futuro! Quantas vezes pensei em como apresentá-la ao amor sem machucá-la, e esquecer a culpa que poderia me acompanhar depois do prazer!
— N ão está zangado?
Artur não conseguia parar de rir.
— Estou furioso!
Isabel o olhou com ceticismo.
— Tem um jeito engraçado de demonstrar suas emoções.
— Não tem ideia de quantos tipos de traição passaram pela minha cabeça! Eu estava, como já ouvi você dizendo, apavorado com o que poderia me dizer. Mas isso , Isabel, não fazia parte da minha lista.
— E quanto a essa história de estar furioso? É por minha causa?
— Não, é por minha causa. Por eu não ter lhe dado uma chance para explicar. Há uma regra que ensino a todos os meus soldados: ouvir. E eu não estava ouvindo.
— E eu não estava falando. Eu praticamente menti por omissão.
Artur coçou o queixo, sentindo o corpo até fraco, tal era o seu alívio.
— É essa a extensão da sua perfídia, condessa?
— Sim... — Isabel levou algum tempo olhando os próprios dedos. — Acho que sim.
— E está arrependida? — perguntou ele, incapaz de ocultar um sorriso.
— Nem posso dizer o quanto. Não foi o único que não pensou em outra coisa.
— Então este rei decidiu absolvê-la. Não vai acontecer de novo, vai?
Ela fez uma mesura.
— Meu mais profundo desejo, senhor, é que comece a acontecer.
— Vai permitir que eu a ensine a me despir?
— Eu sempre fui uma grande defensora do ensino superior.
Artur sorriu, pegou-a pela cintura e a girou no ar.
— Estou tão apaixonado por você! — Ele a colocou no chão, chocado por ter deixado escapar tais palavras.
A perplexidade no rosto de Isabel já lhe dizia que estas tinham sido prematuras.
— Perdão... Não sei de onde tirei tal coisa . Talvez de um excesso de entusiasmo.
— Ou do coração? — sussurrou ela.
— Pelo visto, não eram palavras que estava preparada para ouvir.
— Isso não as torna menos especiais. Na verdade é o contrário, já que elas não foram planejadas. Expressou o que estava sentindo.
Artur balançou a cabeça.
— Eu não tinha o direito. Sei que esse é um sentimento que talvez não esteja pronta a retribuir.
— Talvez seja — murmurou Isabel, correndo um dedo pelo rosto moreno até o queixo firme.
— Se for, será que posso ouvir as palavras desses seus lábios adoráveis?
— Também estou apaixonada por você, Artur. Parece uma situação impossível, mas o coração é que manda, não é?
— Isso mesmo.
Ela abriu um sorriso travesso.
— O último não virgem que chegar ao castelo vai ter de se servir de toda a enguia em conserva!
Artur ainda a observou por um momento enquanto Isabel erguia a saia e, em seguida, saía correndo.
Quase explodindo de felicidade e gratidão aos deuses — ou ao destino —, ele riu e disparou atrás dela. Não muito rápido, no entanto. Estava bem consciente da aversão de Isabel a enguias.
Capítulo Dezoito
O jantar começou numa atmosfera sombria. Pelo visto, todos estavam preocupados com a saúde da rainha. Artur, no entanto, se manteve firme e anunciou que Gwen estava a caminho da recuperação, o que ajudou a elevar os espíritos. Lancelot também estava presente, o que deixou Isabel aturdida. Na certa o pobre rapaz estava tentando se esgueirar até os aposentos fortemente vigiados de Gwen, ou então armava um plano de vingança contra todos os cogumelos do mundo.
Quando um prato foi colocado à sua frente, ela percebeu que fora servida com uma porção de legumes e carne de pato, sem nenhum grama de enguia. Olhou para Artur e constatou que, ao contrário, o dele estava repleto daquela gororoba horrorosa.
Ele sorriu e piscou para ela. Em seguida, cochichou algo ao criado. No mesmo momento, as enguias foram substituídas por uma tigela do que parecia uma espécie de ensopado.
Isabel abaixou a cabeça e sorriu, concentrando-se nos próprios legumes. Quisesse ou não, tinha se apaixonado perdidamente. Estava tão encantada por Artur que chegava a doer.
Artur falou ao ouvido de James, que falou ao ouvido de Tom, que falou ao ouvido dela.
— O rei disse que a aposta não incluía ter de comer a enguia... Faz sentido para você?
Ela quase expeliu vinho pelo nariz e pela boca, mas se recuperou e tentou engoli-lo de uma vez. Em seguida, sussurrou ao ouvido de Tom:
— Diga ao rei Artur que chamamos isso de “brecha”. E que é sorte dele eu lhe dar uma.
Tom retransmitiu a mensagem para James, que falou em voz alta:
— Flecha?
— Brecha — repetiu Tom. — Você sabe, quando uma pessoa tenta fugir de algo usando subterfúgios. Deus... E a condessa decidiu dar uma para o rei.
Os olhares de Isabel e Artur se encontraram de novo, mas, desta vez, nenhum dos dois foi capaz de se conter. Ambos caíram na gargalhada. Isabel cobriu o rosto com o guardanapo, torcendo para que, quando ela o abaixasse, todos houvessem desaparecido como mágica. Não teve sorte.
Em vez disso, Artur se levantou.
— Senhores, a condessa Isabel e eu precisamos discutir possíveis brechas em nossos tratados. Por favor, fiquem e apreciem as sobremesas. — Ele contornou a cadeira dela. — Minhas desculpas, condessa. Não perguntei se gostaria de permanecer aqui para degustar os doces...
— Imagine, rei Artur — respondeu ela, pondo-se de pé. — Estou bastante ansiosa por explorar as possíveis repercussões dessas brechas.
Todo o decoro que eles tentaram manter foi por terra no momento em que adentraram o solário, a duas salas de distância. Artur segurou a mão dela, então, e a conduziu de volta aos jardins, onde finalmente se permitiram soltar o riso.
Isabel teve de segurar a barriga.
— Artur, somos terríveis!
Ele sorriu, e a luz das lanternas fez seus olhos brilhar.
— Sim, mas foi muito bom.
— Precisamos voltar para a mesa depois de entrarmos em um acordo sobre essas brechas no nosso tratado.
Ele riu outra vez.
— Podemos anunciar o nosso acordo amanhã, no desjejum.
— Somos a favor ou contra a coisa? — quis saber ela.
— Suponho que antes precisemos definir qual é a coisa.
Isabel quase perdeu o fio da meada.
— Também acho!
Artur parou de sorrir e a puxou para si.
— Fico tão feliz quando estou com você, Isabel. É como se eu pudesse sair voando... Desde o momento em que nos separamos, esta tarde, senti sua falta.
Ela respirou fundo, pois não poderia ter dito melhor. Tinha sido uma tarde movimentada, porém vazia. Sem Artur a seu lado, as coisas nunca eram as mesmas.
— Sim, Artur — aquiesceu ela. — Eu também sinto a sua falta quando não está comigo.
— É como se me completasse, não consigo explicar... Ainda não sei o que podemos fazer para que todos nós acabemos felizes, mas de uma coisa eu sei: não creio que a felicidade esteja a meu dispor sem você na minha vida.
— Vamos arrumar uma saída, Artur. De alguma forma, de alguma maneira, acredito que Gwen e Lance, e você e eu, vamos ter um final feliz. Confiemos no destino mais uma vez.
Uma batida na porta do solário os fez se separar rapidamente e revelou James de cabeça baixa, movendo os gigantescos pé s, constrangido.
Artur apanhou um pedregulho do jardim e o atirou contra a porta. O rapaz ergueu a cabeça, assustado, e Artur o incitou a falar com um gesto.
— O que foi, James?
— Tenho uma mensagem para a condessa — respondeu ele com uma pequena mesura.
— Qual? — inquiriu Isabel.
— Mary, quero dizer, a srta. Mary... Aquela que...
— Eu sei quem ela é, James. — sorriu Isabel. — Ela é minha ama.
— Muito bem. Ela me pediu que eu lhe dissesse que está com um pouco de dor de cabeça e que não estará disponível pelo restante da noite. Mary envia suas sinceras desculpas e espera que a senhora... — tossiu James, constrangido — ... que a senhora possa arrumar a sua própria cama esta noite. Ela realmente sente muito, condessa.
Isabel podia apostar: Mary nunca se permitira ficar um só dia ou noite doente na vida. Ficou tão comovida com a preocupação da menina que quase chorou.
— Por favor, James, diga a Mary que estimo suas melhoras. Espero que ela já esteja bem amanhã.
Ele ergueu o olhar e concordou com um gesto de cabeça.
— Ah, sim, ela estará... Quero dizer, ela espera estar melhor pela manhã.
— Há algo que eu possa fazer? Devo ir vê-la?
— Não, não. Acredito que Mary já tenha até se recolhido.
— De qualquer modo, James, se ela ainda estiver acordada, sugiro que tome um pouco de chá com um bocado de mel e, talvez, uma gota ou duas de hidromel.
— Vou prepará-lo para ela. — James ficou quase tão vermelho quanto o cabelo de sua noiva. — Quero dizer, vou pedir que uma colega o leve para Mary, caso ela queira.
— Obrigada. Por favor, diga que estou mandando um abraço.
— Pode deixar.
— E, James...
— Sim, senhora?
— Diga “obrigada” a ela.
— Direi. Creio até que ela já sabia que a senhora faria tal coisa, condessa.
— É claro que sabia. Ela e eu seremos amigas para sempre. De dar o dedinho e tudo.
A risada de James o seguiu castelo adentro.
— Amigas de dar o dedinho... — repetiu ele. — Essa é muito boa.
Artur a fitou, o rosto marcado pela confusão.
— Quer uma interpretação consecutiva? — quis saber Isabel.
— Se isso significa que vai explicar o que acabou de ocorrer, definitivamente, preciso de uma interpretação consecutiva.
— Versão rápida ou detalhada?
— Uma que eu compreenda.
— Muito bem, então aqui vai a minha opinião. James deixou a mesa do jantar e foi ver Mary. Mary avaliou a situação e criou uma desculpa para que eu soubesse que ela não entraria no meu quarto esta noite para me ajudar a arrumar a cama.
— Por quê?
— Para me dar total privacidade.
— Para quê? Ela espera que um homem vá visitá-la, Isabel? Está esperando alguém? Quem é ele?
“Viviane, estou sem palavras! Os homens daqui são todos tão parvos?”
“Ora essa, minha cara Isabel... Artur está é vulnerável, perdidamente apaixonado. Não é surpresa que sua história recente o tenha deixado tão abalado.”
“Mas tanta ingenuidade me irrita!”
“Isabel... Não faça fita quando Artur está sendo tão delicado!”
Viviane tinha razão, concluiu Isabel. As feridas emocionais de Artur não podiam ter cicatrizado da noite para o dia. Talvez ajudar a curá-las fosse parte da missão dela.
Olhou para ele e ergueu as mãos numa tentativa de aplacar sua angústia. Artur tinha a mandíbula apertada, os olhos implorando por uma resposta.
— Artur...
— Diga-me a verdade, Isabel.
— Escute: Mary se tornou minha amiga de confiança e já me conhece como ninguém aqui.
— E?
— Para quem acha que ela estava abrindo caminho? Com quem imagina que ela sabe que eu gostaria de passar mais tempo?
— Qualquer homem aqui gostaria de ficar com você. Impossível até mesmo começar a contar e...
— Artur. Com quem acha que Mary está convencida de que eu gostaria de ficar sozinha?
Isabel percebeu quando uma luz brilhou na mente daquela criatura maravilhosa e ingênua. Foi uma visão hilariante, contudo ela sabia que cair na risada àquela altura não seria uma boa ideia.
— Comigo? — balbuciou ele, inseguro.
— Descobriu a Amér... esqueça.
— Mary está tentando nos deixar sozinhos?
Ela concordou com a cabeça.
— Assim como James, seu bobo. Eles conspiraram para que pudéssemos passar algum tempo juntos, sem sermos interrompidos.
— Não há nenhum outro? — indagou Artur.
Isabel sentiu o coração se apertar e colocou a mão sobre a dele.
— Eu sei que foi muito ferido, Artur. Mas não vamos chegar a lugar nenhum se mantiver a suspeita de que eu serei a próxima a te magoar.
Ele segurou a mão dela e beijou seus dedos; então a pôs sobre o coração.
— Desculpe-me, Isabel. Na verdade, nem sei a maneira correta de lhe pedir perdão.
Pois ela conseguia imaginar várias! Mas, primeiro, as coisas mais importantes.
— Disse que se abriu comigo porque sentia que podia confiar em mim — prosseguiu com cuidado.
— Verdade.
— E, no entanto, agora há pouco, essa confiança parece ter desaparecido.
Artur franziu a testa com intensidade.
— Não é verdade. É diferente, Isabel. Desabafei com você a respeito de assuntos particulares.
— E eu quebrei a sua confiança?
— Não, claro que não. Ainda assim, não se trata da mesma coisa.
— Diga-me, o que é tão diferente?
— Tem muitos amigos homens. E os meus homens vivem querendo agradá-la. Fez até o meu filho compreender o que significa lealdade, algo que eu nunca fui capaz de fazer.
— E?
Artur abaixou a cabeça, depois tornou a erguê-la.
— São tantos homens admirando você, Isabel. Isso está acabando comigo.
“Viviane, sabe do que estou com vontade? De chutá-lo no traseiro!”
“Concordo, Isabel, de fato. Mas outro plano seria mais sensato...”
Ela se sentou.
— O que aconteceu hoje, na floresta, Artur?
— Eu admiti meus sentimentos por você.
— E?
— E também revelou o que sentia por mim.
— Eu estava mentindo?
— Iria doer demais se fosse mentira.
— Mesmo assim, ainda alimenta dúvidas. — Ela se levantou. — Mary estava tentando nos dar algum tempo para que ficássemos sozinhos, e teria sido perfeito. Você podia ter me ensinado a despi-lo, pod íamos ter feito amor. Mas tem tanta certeza de que eu sou traiçoeira, como muitas mulheres, que essa confiança que diz sentir não é de todo verdadeira, é?
— Por favor, não vamos terminar a noite assim, Isabel. Eu cometi muitos erros, e sinto muito por eles. Mas você disse que me amava, hoje, e estou permitindo que se arrependa disso porque sou um idiota. Sou um idiota, realmente! Mas isso não significa que eu não a ame. Eu assumo os meus erros, Isabel, mas meus sentimentos por você... esses eu me recuso a dizer que estão errados. Diga-me: se retribui meus sentimentos, como afirmou hoje, como pode me dar as costas agora?
Isabel concluiu que jamais encontraria outro homem para amar como Artur. Por mais imbecil que pudesse ser, virou-se para encará-lo.
— Não há nenhum outro homem, Artur. Tom, Dick e Harry são meus amigos. Quanto aos outros, aqui do castelo, creio que esteja se preocupando à toa. Nenhum de seus homens me fez ou disse qualquer coisa inadequada. Bem, talvez Mordred... Mas já cuidamos disso. Quanto aos outros em seu reino? Não foram nada além de cavalheiros.
— Mas eu percebo a maneira como eles a olham. Ouço o que eles dizem durante os treinamentos. Eu quase abati Edward com a espada ontem! Muitos deles sonham em se aproximar de você, e eu mal posso controlar minha raiva só em pensar que algum deles possa tentar fazer tal coisa.
— E eu vejo as criadas do castelo quase desmaiando a cada vez que entra em algum lugar. Também as ouço dar risadinhas e comentar que servem ao rei mais bonito do mundo. Por acaso eu o estou acusando de ter se comportado mal com alguma delas?
— Eu jamais faria isso!
— Pois, então, eu também jamais faria isso! — emendou Isabel.
Os dois se viram num impasse, praticamente fulminando um ao outro com o olhar. Para Isabel, foi como estar em um O.K. Corral ** medieval.
Ela respirou fundo, tentando se acalmar.
— Não existe outro, Artur. Nem aqui, nem em Okl... em Dumont. Se quiser, pode perguntar a Tom, Dick ou Harry, e eles lhe dirão a mesma coisa. Na verdade, creio que eles vão rir da ideia.
Ele inclinou a cabeça.
— Por quê? Você é tão bonita, inteligente e engraçada. Deve ter filas de pretendentes aguardando uma chance de cortejá-la e pedir sua mão.
Isabel riu.
— Está muito enganado. Vivo tão cheia de compromissos que não tenho tempo para esse tipo de coisa.
— Compromissos?
Ela fez um gesto vago.
— Você sabe... “condessando”.
Os lábios de Artur se curvaram em um sorriso.
— “Condessando”?
— Sim. “Ei, você! Trate de fazer isto. E, você... Faça aquilo.”
— Ah, sim. Condessando .
— Isso mesmo. Assim como vive ocupado, fazendo coisas de rei.
— Certo. Quando eu digo: “Ei, você. Faça isto”. E: “Ei, você... Faça aquilo”.
— Exatamente.
O sorriso contido de Artur se transformou naquele que fazia o coração dela derreter.
— Compreendo.
Claro que ele compreendia. Mesmo que ela própria não entendesse aquela história que tinha acabado de inventar.
Artur baixou o olhar.
— Então por que eu? Por que agora?
Homens. Pelo visto, o hábito de se lustrar o ego não havia começado na geração dela. Era uma antiga tradição.
Ela tocou o braço dele.
— O “por que você” é fácil. Porque senti o mesmo que sentiu no momento em que trocamos nosso primeiro olhar. Muito antes de eu desconfiar de quem era.
— Eu estava lá, Isabel. Vi seu rosto... Ficou com medo de mim.
— Porque me assustou, oras. Tem um modo de se esgueirar impressionante. Mas, no momento em que sorriu para mim, Artur, fiquei vidrada.
— Vidrada?
— Impressionada. Encantada com você. Atraída por você.
— Gostei da palavra... Também fiquei vidrado .
Ela assentiu, escondendo um sorriso.
— Quanto ao “por que agora”, quem pode saber, Artur? Como você mesmo disse, talvez seja o destino. Eu teria escolhido me apaixonar por um rei casado? Creio que não. Muito menos um que ainda andava meio deprimido por conta de uma série de coisas. Não escolhi o tempo, nem o lugar, nem o homem. Na verdade, a última coisa que eu tinha em mente era me apaixonar pelo rei Artur. — Deus, aquilo sem dúvida era verdade. — O problema é que não posso evitar nem decidir o que acontece, ou por quê.
— Exceto quando está às voltas com o “Ei, você faz isto...”, ou seja, “condessando”.
Isabel o golpeou no braço.
— Agora está zombando de mim.
Artur esfregou o braço como se tivesse levado um golpe muito violento.
— Só a estou provocando, moça bonita. É uma das poucas pessoas que conheci que aceitam esse tipo de coisa e devolvem na mesma moeda. É uma qualidade sua que admiro muito e que me dá muito prazer.
A última palavra pairou no ar entre eles.
Por fim, Isabel fingiu uma tosse e falou:
— Já dissipei seus temores, rei Artur? Respondi às suas perguntas satisfatoriamente?
— Respondeu. Na verdade, estou até aborrecido por ter expressado minhas dúvidas.
— Reis poderosos e malvados não têm dúvidas. Só ficam por aí, fazendo coisas de rei.
— Ah, sim, como posso ter me esquecido? Ei, você, condessa... Faça isto...
Artur a beijou, puxando-a contra o corpo rijo. Realmente rijo. Seus lábios se moveram sobre o rosto dela, beijando-lhe a testa, depois lhe sugaram o lóbulo da orelha.
— Seu cheiro é tão bom! — sussurrou ele. — Está sempre perfumada.
Se não fosse pelos braços fortes que a amparavam com firmeza, ela teria desabado no chão feito uma boneca de pano.
Não demorou muito, e as preliminares perderam seu apelo, sobrepujadas por um poderoso desejo.
Ela endireitou o corpo, então, e se afastou.
— Há um tipo de brincadeira da qual eu gosto muito.
— Qual?
— Chama-se: “O último que chegar ao meu quarto tem que ficar nu primeiro”.
Sem dizer mais nada, Isabel ergueu as saias, correu para o castelo e subiu a escadaria dos fundos.
***
Artur alcançou Isabel pouco antes de ela bater a porta do quarto. Como ele a tinha seguido, rindo por todo o caminho, ficou na dúvida sobre o que queria mais. Pareceu-lhe, contudo, que aquilo era um empate, assim decidiu que o melhor era chegarem a um acordo.
Ele a agarrou, abafando seus gritos de protesto com a boca. Carregou-a para o quarto, depois estacou. Havia velas acesas por todos os cantos, e uma bandeja contendo um barril de vinho e dois cálices.
— Mary — concluiu Isabel.
— Lembre-me de recompensá-la — murmurou Artur, depois a colocou na cama. Percorreu-a com o olhar. A beleza de Isabel sob a luz das velas era de tirar o fôlego. — Quero você. Sente o mesmo que eu?
— Quem chegou aqui primeiro?
Dizer a ela que ele poderia tê-la ultrapassado a qualquer momento decerto não era uma ideia muito boa, resolveu Artur, respirando fundo.
— Estou à sua mercê. Mas, por favor, ajude-me a me acalmar.
Isabel riu.
— Não, senhor. Preciso de uma lição de como despir um rei.
— Não está ajudando muito, condessa.
Ela o fitou nos olhos, e Artur se viu perdido. Tanto que temia perder toda a capacidade de satisfazê-la antes mesmo que qualquer um deles se despisse.
Isabel saiu da cama e se pôs de pé à sua frente.
— Essa túnica não parece complicada de tirar, senhor, já que posso simplesmente puxá-la por cima da sua cabeça — falou, tranquila. — No entanto, precisa permitir que eu a remova...
Artur estendeu os braços acima da cabeça, e ela puxou a veste, jogando-a de lado.
— Agora, isto me parece uma cacharrel... Mas acho que têm outro nome para esse tipo de blusa.
— Decerto. Neste exato momento, porém, eu não poderia lembrá-lo nem que você colocasse um punhal no meu pescoço.
— Não existe a menor chance disso.
Isabel o livrou da peça, deixando-o nu da cintura para cima.
— Ah, Artur... — suspirou, traçando as cicatrizes em todo o corpo moreno com a ponta dos dedos.
— Sinto muito.
— Não! Não precisa pedir desculpas. A beleza disso tudo é que lutou e venceu.
— Ou apenas sobrevivi — contrapôs ele com um suspiro.
Os lábios de Isabel se moveram pelo seu corpo, e Artur não soube como detê-la. Não queria detê-la.
No entanto, estava louco para retribuir as carícias.
— Está me matando, mulher!
— Estou matando um rei? Deve haver um castigo terrível para esse tipo de coisa.
— Não direi o quanto isso é grave se não permitir que eu a toque — conseguiu dizer.
— Nossa... Estou tremendo de medo — respondeu Isabel, rindo. — Agora, por favor, me diga como deixá-lo nu da cintura para baixo!
— Se eu revelar esse segredo, poderei tocá-la?
— Sim.
— Existe uma coisa chamada “cinto”. Uma espécie de espartilho masculino.
Isabel riu.
— Encontrado o cinto, rei Artur.
— Foi rápida, condessa.
Artur sentiu o cinto ceder e, em seguida, as leggings descerem em torno dos quadris. Isabel se abaixou junto, liberando o tecido de suas pernas, fazendo-o erguer uma delas a fim de livrá-lo da peça. Em seguida, quase o levou à loucura conforme o beijou desde o tornozelo, passando pela perna, até a coxa. Sua mão macia seguiu todo o percurso, contudo ela parou antes de chegar às suas partes mais íntimas. Infelizmente.
— Tire a outra metade, Artur, por favor.
— Estou tirando tudo, mas ainda não me deixou ajudá-la a fazer o mesmo.
— Já aprendi os truques da sua roupa, mas aposto que vai demorar a descobrir como funciona a minha.
Artur chutou de lado as calças e não teve o menor problema para deixar Isabel nua em segundos. Ela, contudo, não pareceu nem um pouco irritada por perder a aposta, enquanto ele, mais uma vez, a erguia nos braços e a colocava na cama.
— Eu precisei disto, precisei de você, desde o primeiro instante em que a vi, Isabel. Se eu pudesse, teria tentado seduzi-la lá mesmo, no bosque.
— Por favor, deixe-me tocá-lo!
Artur riu, e a puxou para cima do corpo.
— Quanto tempo mais de exploração deseja?
— Anos.
— Isso me parece maravilhoso; no entanto, é a minha vez — decidiu ele, correndo os dedos para cima e para baixo devagar, indo da lateral dos seios para os quadris, depois para cima outra vez. — Você é tão macia! Eu queria que as minhas mãos não fossem tão ásperas.
— Eu adoro as suas mãos.
De repente, ele se inclinou e tomou um seio na boca, sugando e lambendo o mamilo sensível. Isabel deixou escapar uma exclamação e arqueou o peito, sentindo uma espécie de choque irradiar por todo o corpo até quase explodir entre suas pernas.
A língua de Artur percorreu seu seio lentamente mais uma vez, depois ele voltou a lhe capturar a boca com a dele, ao mesmo tempo que corria a mão por seu ventre abaixo. Dedos ásperos a exploraram, então, entreabrindo seus lábios inferiores para acariciá-la.
— Santo Deus! — exclamou Isabel conforme um forte orgasmo a sacudia, fazendo-a tremer dos pés à cabeça.
Artur a abraçou com mais força e continuou a afagá-la até conseguir arrancar dela o último resquício de êxtase. Levantou a cabeça e sorriu para ela, os olhos verdes cintilantes e enevoados pelo prazer.
— Ah, minha condessa! Os deuses a criaram para ser amada! Você é tão macia, úmida e linda quando...
— ... vou ao Céu? — completou Isabel por ele, antes de agarrá-lo pelo braço e fazê-lo se deitar de costas. — Eu também quero muito fazê-lo chegar lá.
— Eu já estou no Cé... Pelos deuses, Isabel! — exclamou Artur quando ela escorregou por seu peito e o levou à boca. — Por favor, não quero estar em outro lugar a não ser dentro de você quando eu chegar... Quando eu chegar lá! Por favor!
Isabel levantou a cabeça, mas continuou acariciando o pênis rijo.
— Vou lhe dar prazer do jeito que quiser.
Ele deixou escapar uma risada.
— Então me faça um favor — pediu, antes de deitá-la novamente.
— O quê, meu amo e senhor?
— Abra-se para mim... Deixe-me entrar em você!
— Meu rei é quem manda.
Artur se ajoelhou entre as pernas dela, acariciando-a até quase levá-la à loucura outra vez.
— Não vou machucá-la? — indagou, inseguro.
— Apenas se parar.
Ele se deitou por cima dela e a beijou. Depois, bem devagar, penetrou-a.
Isabel tomou seu rosto nas mãos.
— Artur, isso é tão bom! Por favor, não está me machucando. Não precisa ter medo!
Ele fechou os olhos com força, depois começou a se mover dentro dela devagar, ainda que de modo constante. Em meio a uma bruma de prazer, Isabel percebeu que Artur tentava prolongar aquela doce agonia.
Ela iria gozar de novo, e logo...
Agarrou-o pelos quadris, investindo contra o corpo sólido, precisando sentir tudo de novo, embora de uma forma totalmente diferente.
— Por favor, Artur! Eu preciso... preciso...
As comportas se abriram, e ele a penetrou mais rápido e com mais força. Isabel sentiu o corpo tenso sob os dedos antes que Artur a fitasse com olhos estreitados.
— Estou tão apaixonado por você, Isabel! — E seu orgasmo a atingiu por dentro tal qual uma bomba.
Bastou sentir o sêmen de Artur invadi-la, e ela também se viu no paraíso.
Capítulo Dezenove
Já estava quase amanhecendo quando, relutante, Artur deixou Isabel. E ele o fez apenas após ela lembrá-lo de que ele precisava fazer coisas de rei, como: “Você, faça isto... Você, faça aquilo...”.
Artur ainda sorria quando adentrou os aposentos reais onde vinha dormindo havia dias. Estacou, entretanto, ao ver Gwen deitada em suas peles.
— Acordado até esta hora, Artur?
— Parece-me que está se sentindo muito melhor, Gwen. Fico feliz.
— Onde esteve?
— Por que isso importaria?
— É meu marido. Tenho o direito de saber por onde anda.
Artur avançou mais um passo para dentro do quarto, irritado por Gwen estar estragando a alegria que ele tivera durante a noite. Sua intenção fora deitar na cama e reviver ao máximo os momentos que passara com Isabel até ser vencido pelo sono.
— Creio que tenha perdido o direito de até mesmo fazer esse tipo de pergunta, Gwen. Mas, já que perguntou, dormi, mesmo, em outro lugar.
Era verdade. Em meio ao amor que haviam feito, ele e Isabel também cochilaram; apenas para acordar um ao outro com beijos e carícias, até fazerem amor novamente.
— Estava com outra — concluiu Gwen.
— Gwen, sua hipocrisia me deixa pasmo.
— Ainda sou sua esposa, Artur! E ainda a rainha.
— Apenas porque continuo permitindo isso!
Ela se levantou, e Artur a fitou, tentando se lembrar da última vez em que a havia desejado. Era triste pensar que não conseguia. Gwen era uma bela mulher, sem dúvida: de pequena estatura e compleição delicada. Tinha um sorriso travesso, que ele já considerara encantador. Agora, no entanto, ela lhe parecia pálida demais, e seus olhos, tão acusadores que chegavam a parecer maldosos.
— Foi com a sua preciosa condessa, não foi?
— Em primeiro lugar, ela não é minha, infelizmente. Mas preciosa... sem dúvida. Em segundo lugar, você perdeu todo o direito de me interrogar há muito tempo, portanto, trate de voltar para a sua cama, Gwen. Esta é minha, e estou precisando de algumas horas de sono para começar bem o dia.
Ela se aproximou.
— Perdão, Artur. Sei que cometi um erro gravíssimo, mas estou disposta a tentar recuperar o que tínhamos.
— Vai dispensar Lance assim, sem mais nem menos?
— Você, meu marido, é a minha prioridade.
Artur mal podia acreditar na náusea que o invadiu.
— Será que não percebe o quanto Lancelot a ama? Nós o encontramos diante daquela sua cabana secreta, chorando enquanto destruía os cogumelos que quase a mataram. Lance estava arrasado. Por acaso ele foi apenas um brinquedo para você? Não se importa em nada com o que o pobre sente?
Gwen pareceu deprimida.
— Claro que me importo, Artur.
— Então, por que essa conversa agora? Eu já prometi que não vou revelar seu amor por ele. Ainda gosto de vocês o bastante para querer protegê-los.
Ela balançou a cabeça.
— Pensei que fosse continuar comigo, apesar de tudo. Eu estava certa da sua fidelidade.
Artur quase deixou cair o queixo.
— Está escutando o que diz? Consegue ouvir a si mesma? Estou ocultando a sua infidelidade, até mesmo permitindo que você e Lance sejam felizes, e, ainda assim, me acusa de estar agindo errado por considerar ser feliz com outra pessoa?
— Você é meu marido!
Artur deixou escapar uma exclamação. Mal podia acreditar naquela conversa. Gostaria de poder conversar a respeito com Isabel. Ela teria um parecer sábio para aquilo, sem dúvida. Ou talvez, como ele já aprendera, uma resposta à altura. Mas não importava. Ele só queria os conselhos de Isabel, sua risada e, que os Céus o ajudassem, fazer mais amor com ela. Isabel podia tê-lo esgotado, porém ele já se sentia pronto novamente.
— Gwen, não está falando coisa com coisa. É melhor ir para a sua cama.
— Venha comigo.
A simples ideia causou repulsa em Artur.
— Ficaria comigo logo depois de ter ficado com Lancelot?
— Só quero que me abrace, Artur.
— Parece que estamos tendo um ruído em nossa comunicação, minha querida esposa. — Artur parou, perguntando-se onde tinha ouvido falar aquilo. Balançou a cabeça. — Se está carente, posso pedir que um dos homens vá buscar Lance para que ele fique com você em sua cama, uma vez que não tenho a menor vontade de fazer isso. Mesmo assim, fico feliz por estar se sentindo e parecendo muito melhor.
— Sua condessa me machucou! — gritou Gwen enquanto ele se dirigia para a porta.
A afirmação o deteve.
— Eu já disse que ela não é minha condessa. Mas, como, pelos deuses, ela pode ter lhe machucado?
— Meu peito e minha barriga estão doendo. Contaram que Isabel me bateu. Ela deveria ser punida por ter me agredido.
Artur a fitou, perplexo, perguntando-se que diabo de mulher era aquela.
— Graças aos deuses Isabel “bateu” em você, Gwen. Ela salvou a sua vida. Se ela não a tivesse agredido, como diz, estaríamos no meio do seu funeral a uma hora dessas.
— Eu sou sua esposa! — repetiu Gwen enquanto deixava o quarto.
— Isso é o que diz sem parar — respondeu ele, frio. — Mas que não significa mais nada.
***
Isabel estava tendo o mais glorioso dos sonhos. Um sonho em que Artur deslizava para a cama a seu lado e se aninhava junto a ela.
De repente, sentiu que alguém a tocava num seio e sentou-se de um salto.
— Tire essa mão de mim antes que eu o cape, seu...
— Sou eu, Isabel — falou uma voz grave e profunda. — E pode acreditar que eu iria resistir a essa coisa de capar.
Ela afastou os cabelos dos olhos.
— Artur?
— Sim, condessa.
A luz fraca das brasas ardentes da lareira o iluminava muito pouco. Parecia Artur, mas, para ter certeza, ela perguntou:
— Que tipo de coisa de rei pretende fazer agora?
— Algo como: “Ei, você, deite-se comigo...”. Mas nada de castração!
Isabel tentou se livrar dos últimos resquícios de sono.
— Por que está reinando a esta hora, Artur?
— Eu precisava vê-la antes que começasse a condessar .
Ela riu, então deslizou de volta para os travesseiros.
— Estou falando sério agora. O que está fazendo aqui?
Ele a envolveu pela cintura.
— Estava louco para ficarmos juntos outra vez.
— Artur, não consigo nem imaginar fazer amor de novo! Terei sorte se conseguir andar amanhã.
— Não estou falando em fazer amor. Juro. Eu também terei sorte se conseguir empunhar uma espada. Queria apenas ficar com você. Eu precisava senti-la novamente.
Isabel captou a emoção em sua voz e se ajeitou de modo a encará-lo.
— O que aconteceu?
Ele afastou os cabelos de seu rosto, depois a beijou na testa.
— Quem disse que aconteceu alguma coisa? Um homem não pode apenas querer a companhia da mulher que ele ama?
Ela franziu a testa, mas duvidava de que Artur a estivesse enxergando.
— Lembra-se daquela conversa que tivemos sobre honestidade e verdade?
Sentiu o peito largo subir e descer mais fundo.
— Sim, eu me lembro. Talvez seja, mesmo, uma boa hora para nos lembrarmos dela.
— Eu exijo a verdade em todos os momentos, rei Artur.
— Será que posso pedir não falar sobre isso no momento?
— Isso não seria muito régio da sua parte.
O peito de Artur ressoou com uma risada.
— Como assim, condessa?
— Reis enfrentam os problemas. Eles não costumam evitá-los, deitando-se na cama com condessas que estão ocupadas, mas não condessando .
— Com o que estava ocupada?
— Estava sonhando com certas coisas que os reis fazem...
— E eram bons sonhos?
— Está evitando a minha pergunta, o que não é nada régio.
— E você não está nua o suficiente, o que não me parece nada adequado, condessa.
— Artur... — Isabel se desvencilhou do abraço e sentou-se. — O que aconteceu?
Ele também se sentou e passou as mãos pelos cabelos. Ou ao menos assim ela imaginou, uma vez que a iluminação era escassa.
— Quando voltei para o meu quarto, Gwen estava esperando por mim.
— Ah, que bom! Então ela está se sentindo melhor.
— Depende da sua perspectiva.
— O-ou. Isso não me soou muito bem — resmungou Isabel antes de estender o braço e apanhar um punhado de hortelã ao lado da cama.
— Ela acredita que estou tendo um caso.
— Artur — suspirou Isabel. — Você está na minha cama.
— Gwen quer retomar o nosso relacionamento.
Isabel nunca soube o que era ter um coração partido até aquele exato momento.
— Compreendo. — Ela tentou recompor as emoções que pareciam ter-se espalhado aos quatro ventos. — Bem, se é assim... Felicidades para os dois. Agora dê o fora da minha cama.
Artur se inclinou, arranhou algo sobre alguma coisa e, de repente, a vela ao lado da cama ganhou vida. Estava longe de ser a iluminação do estádio da Universidade de Oklahoma, mas ao menos agora eles podiam enxergar um ao outro.
— Por favor, volte para a sua esposa.
— Acha mesmo que eu estaria aqui se tivesse feito essa escolha?
— Imagino que tenha vindo apenas me dar as boas-novas.
— E vim para a sua cama apenas para dizer adeus?
— Bem, isso me parece meio estranho, mas creio que sim. Tem um coração bom demais, Artur.
— É isso mesmo o que pensa de mim, Isabel?
— Artur, eu já nem sei o que pensar de qualquer coisa. É apaixonado por Gwen há tanto tempo!
Ele se levantou, zangado.
— Eu vim aqui para lhe dizer, ou melhor, para lhe mostrar como me sinto, e nem sequer me dá a chance de terminar! Escreveu o final desta história antes mesmo de eu me explicar.
— Artur...
Ele balançou a cabeça conforme se movia em direção à porta.
— Não, Isabel. Vim até aqui para pedir sua ajuda, orientação e conforto, mas já proferiu a sua sentença. Estou tão cansado desse tipo de coisa! — Ele se virou para encará-la. — Eu vim até aqui porque você era a minha escolha, e eu não tinha nenhuma dúvida quanto a isso. Minutos atrás, eu teria dado a minha vida por você, mas sou mesmo um tolo. E nada régio, não é mesmo?
— Artur...
— Durma bem, condessa.
Capítulo Vinte
— Temos que fazer alguma coisa! — sussurrou Mary para James. — Há alguma coisa muito errada com a minha senhora. Ela está nos ensinando essa coisa de RCP e exigindo que tenhamos o que chama de recesso diário, mas não parece mais ela mesma.
— E o mestre anda trabalhando mais do que nunca, sempre com os nervos à flor da pele — emendou James. — Estamos até com medo de abrir a boca. E antes ele vivia nos pedindo para que falássemos tudo o que nos vinha à cabeça! Nunca o vi se irritar com qualquer coisa, como está acontecendo agora.
— Precisamos armar um plano — resolveu Mary.
— Sim, mas não consigo imaginar qual.
— Deixe comigo, James. De qualquer modo, vou precisar da sua ajuda para colocá-lo em prática.
James sorriu para sua noiva.
— Eu te amo tanto, Mary! Mal posso esperar para fazê-la minha mulher.
Ela sorriu de volta.
— E eu mal posso esperar para chamá-lo de marido. Mas, se queremos que o nosso casamento saia perfeito, precisamos consertar essa rusga entre o rei e a condessa, afinal, eles serão nossos padrinhos.
— Sim.
Mary se levantou de repente, e James a observou.
— O que foi?
— O nosso casamento, claro! O rei é um homem honrado, e a condessa, uma mulher tão especial. O nosso casamento!
— Sinto muito, mas não estou conseguindo acompanhar seu raciocínio.
— Nem precisa. Vai saber o que precisa ser feito assim que eu tiver tudo ajeitado.
— Confio em você. — James a abraçou, mas não com muita força. Uma vez ele a apertara tanto que Mary havia gritado. Nunca mais aquilo voltaria a acontecer. — Vamos ser muito felizes juntos. Prometo.
Ela deitou a cabeça no peito largo.
— Temos a vida toda pela frente para que prove isso.
— Estou ansioso por fazê-lo...
Com o passar dos dias, houve progresso, embora, aparentemente, não com Gwen. Ela continuava de cama e se queixando.
Suas costureiras, entretanto, tinham terminado de confeccionar muitas calças, e Isabel persuadira as mulheres a tomar posse delas e usá-las. Ao menos na hora em que se viam autorizadas a relaxar.
Naquela manhã, ela decidira ensiná-los a jogar uma forma primitiva de minigolfe. As mulheres batiam suas bolinhas, felizes, quando Mary veio correndo até ela com lágrimas escorrendo pelo rosto.
— O que aconteceu, Mary?!
— Acho que meu casamento com James não vai mais acontecer!
— O quê!? Por quê?
Mary olhou em volta.
— Podemos ir para outro lugar e ter alguma privacidade?
Jenny, a camareira de Gwen, se aproximou.
— Posso ajudar?
— Sim, por favor — respondeu Isabel, tão diplomaticamente quanto podia. — Poderia supervisionar o restante do recreio para mim?
Mary fungou, inconsolável.
— Eu preciso conversar com a condessa Isabel!
— Claro — assentiu Jenny. — Será um prazer ajudar as meninas, condessa.
— Ensine-as a acertar as bolinhas nos buracos. Esse é o objetivo do jogo: bolinhas nos buracos!
— Sim, condessa.
Isabel tornou a se concentrar em Mary.
— Agora me conte, por favor, o que aconteceu.
Mary enxugou as lágrimas.
— Podemos conversar no seu quarto?
— Claro.
Isabel tentou questionar Mary enquanto elas subiam a escada, porém esta apenas balançava a cabeça. Era óbvio que a moça queria completa privacidade, o que ela compreendia , uma vez que Mary vinha sendo evitada por muitas de suas colegas.
A menina a puxou para o quarto, praticamente empurrando-a para dentro, então trancou a porta.
— O que aconteceu, Mary? Deixe-me ajudá-la. Talvez você e James ainda possam conversar a respeito. Você o ama. Você mesma afirmou isso. E ele a trata como uma joia preciosa. O que deu errado?
As lágrimas de Mary secaram como se ela estivesse de frente para o sol do deserto de Mojave.
— Se James e eu vamos nos casar em breve, Isabel, precisamos de padrinhos felizes ao nosso lado.
— Desculpe, mas não estou entendendo.
Mary colocou dois dedos na boca e soltou um estridente assobio. Depois sorriu para Isabel.
— Tom me ensinou a assobiar enquanto fazia a limpeza nos meus dentes.
Isabel ainda estava tentando adivinhar o que acontecia com sua amiga quando a porta se abriu de repente e James entrou, arrastando Artur de olhos vendados.
— James... Isto não tem graça. Costumo ser afeito a brincadeiras, mas isto está indo um pouco longe demais!
Isabel olhou para Mary.
— Traidora! — cochichou.
Mary encolheu os ombros enquanto James puxava a venda dos olhos de Artur. Este piscou e olhou em volta. Assim que avistou Isabel e Mary, fulminou James com o olhar.
— Traidor.
James também deu de ombros, em seguida se juntou a Mary. Ambos pareciam imensamente satisfeitos.
— Vocês dois serão nossos padrinhos em nosso casamento daqui a apenas alguns dias — começou o rapaz. — E queremos — não, exigimos — que estejam felizes na cerimônia.
— James... — começou Artur.
O rapaz levantou a manzorra.
— Sabe que sou leal ao senhor, rei Artur. Lutarei qualquer batalha a seu lado e o protegerei até o meu último suspiro.
— E a senhora, condessa Isabel, se tornou uma amiga como eu jamais poderei ter de novo — afirmou Mary. — Eu ficaria a seu lado em qualquer situação em que lhe pudessem fazer mal.
— Mas estamos cansados dessa sua amargura — completou James, retomando a aparente narrativa. — Como têm se evitado nos últimos dias, só podemos supor que estão...
— ... com problemas — concluiu Mary pelo noivo. — E estes precisam ser expostos e discutidos. Portanto — ela apontou para ambos — tentem resolvê-los antes do nosso casamento.
— Seja o que for que tenha acontecido entre vocês — emendou James.
— Tratem de se entender! — falaram eles em uníssono. Em seguida, ambos rumaram para a saída, batendo a porta atrás deles com um estrondo.
Isabel e Artur se entreolharam por vários momentos, então caíram na risada.
— Parece até que levamos uma bronca dos nossos pais — comentou Isabel rindo.
— Não estou me sentindo nem um pouco régio no momento — confessou Artur. — Quando foi que perdi o controle das coisas por aqui?
— Não é nada disso — contrapôs ela, ainda rindo. — Isso apenas prova que grande rei você é.
— Só pode estar brincando. Meu primeiro homem acabou de me repreender!
Isabel até pensou em replicar: “Para cima de moi ?”. Mas estava certa de que ele não iria entender a expressão.
— Não percebe como isso é bom? — perguntou, em vez disso.
— Talvez eu não compreenda, mesmo, qual o sentido de dois servos aplicando uma descompostura em seu rei.
— O sentido, Vossa Alteza, é que eles o amam além da conta e confiam em você o suficiente para tomarem medidas extremas. Eles sabem que não irá puni-los porque têm certeza de que se importa com eles.
— Talvez seja essa a diferença entre o meu povo e você... James e Mary ao menos acreditam que eu me importo com eles.
Isabel o fitou enquanto tentava tirar mentalmente o punhal que Artur cravara em seu peito.
— Eu nunca percebi que tinha um lado cruel, Artur. Mas é bom saber. Vai me ajudar a esquecê-lo mais depressa.
Ele caminhou até ela.
— Isabel, eu não quis dizer...
— Se encostar em mim, eu lhe quebro os dois joelhos!
— Então quebre — decidiu ele, agarrando-a pelos ombros. — Vamos! Faça isso. Mas saiba que vou continuar a segurá-la até que me escute. Nem que seja preciso derrubá-la comigo quando as minhas pernas se tornarem inúteis.
Era angustiante perceber que seu próprio corpo reagia ao toque das mãos dele como se estas o estivessem percorrendo por inteiro, e não apenas segurando-a.
— Creio já ter ouvido o suficiente.
— Não, ouviu apenas o suficiente para tirar conclusões precipitadas e incorretas. Para uma mulher inteligente e compreensiva, Isabel, não consigo entender como pode ouvir apenas parte da minha história e já acreditar no pior. Pelos deuses, mulher, passamos uma noite juntos, da forma mais íntima. E, no entanto, menos de uma hora depois, você me rejeitou, fechando os ouvidos e a mente. Por acaso se arrependeu do que compartilhamos?
— Não, mas disse que Gwen queria...
— Eu sei o que eu disse, Isabel. E também sei que se recusou a me deixar terminar. Está disposta a me dar essa oportunidade agora?
— Estou ouvindo. Ainda não descartei o golpe nos joelhos, mas estou ouvindo.
— Já é um começo — decidiu ele, soltando-a, por fim. Virou-se e avançou dois passos, depois fez meia-volta e tornou a se aproximar dela. — O que não me deixou dizer naquela noite foi que eu rejeitei Gwen. Eu não a desejo mais. Não a quero já há algum tempo. Quando ela me perguntou se poderíamos retomar o nosso relacionamento, eu disse “não”, Isabel. Disse que, dessa forma, ela não estava traindo apenas a mim, mas agora também Lancelot. Eu me recuperei da paixão que sentia por Gwen, e me apaixonei por outra pessoa... você. O problema é que isso não aconteceu com Lance. Você o viu no chalé. Ele estava desesperado, consumido pela tristeza, pela raiva e pela preocupação. Se fui procurá-la, Isabel, foi porque era com você que eu queria estar. Queria conversar com você a respeito do que tinha acontecido. Acha mesmo que eu iria voltar para as peles da sua cama para lhe dizer que nós havíamos nos divertido, mas que, infelizmente, eu decidira recomeçar com Gwen? Acha mesmo que eu seria tão cruel?
Isabel levantou-se, atordoada.
— Ah, meu Deus... Você tentou, eu sei. E eu não permiti. Estava com tanto medo de que fosse um gesto de despedida que...
— Shh — pediu ele, colocando um dedo em seus lábios. — Compreendo que tenha ficado aborrecida e confusa. Por favor, lembre-se de como fiquei louco apenas de imaginá-la na companhia de outros homens. Some-se a isso o fato de eu ainda ser casado com Gwen, e torna-se compreensível que tenha chegado à conclusão que chegou. Se a situação estivesse invertida, receio que eu tivesse reagido da mesma forma.
— Está me fornecendo uma desculpa, quando não existe nenhuma. Não, Artur, você não teria reagido da mesma forma. Teria me escutado. Mas eu tive tanto medo de que nós...
— Eu sei, amor, eu sei — murmurou ele, conforme a puxava para os braços.
— Por que é tão indulgente quando eu simplesmente não mereço?
Ele riu contra os cabelos dela.
— Talvez porque seja a coisa mais régia a fazer?
— Não, a coisa mais régia a fazer é dizer às pessoas para que façam isto ou aquilo.
— Então talvez seja algo que um homem faz quando ama uma mulher.
— Escolho essa valendo mil, Alex *** .
Artur sorriu, afastando os cabelos de seu rosto enquanto a beijava na têmpora, na testa, no nariz.
— Não entendi muito bem, mas não importa. O que importa para mim agora é acabar com esse mal-entendido entre nós.
— Ah, Artur!... — suspirou Isabel, passando os braços ao redor do pescoço forte e se pondo na ponta dos pés para enchê-lo de beijos no pescoço. — Eu sinto muito!
— Eu também. Estou certo de que eu podia ter contado as coisas de uma maneira bem melhor. — Ele sorriu para ela. — Mas menti um pouquinho... Estou curioso para saber o que você vai negociar por mil. E quem é esse Alex.
— É só um jogo que fazemos lá em casa. Trata-se de uma brincadeira de inversão. Dá-se uma resposta para o jogador — no caso você — e então se é obrigado a dizer qual seria a pergunta.
— Perdão?
— Exatamente. Embora, no jogo, devesse falar “O que é perdão?”.
Artur balançou a cabeça.
— Estou meio confuso, amor.
— Por exemplo, alguém poderia dizer: “O lugar pelo qual o rei Artur tem verdadeira paixão”. E você responderia: “O que é Camelot?”.
— Jogam isso em Dumont?
— Sim.
— Está bem. Acho que entendi as regras.
Ela riu.
— Muito bem... A resposta é: “A mulher que é louca pelo rei Artur”. Qual é a pergunta?
— Imagino que seja: “Quem é a condessa Isabel?”.
— Certinho!
— Tenho uma para você.
— Pode mandar, garotão.
— A coisa de rei que Artur está prestes a falar à sua mulher — como é de seu direito, aliás —, já que coisas régias envolvem dizer : “Faça isto... E você, faça aquilo”.
— O que é: “Tire a roupa régia do rei?”.
— Não é bem o que eu pretendia, mas serve. De qualquer modo, vou lhe dar a pergunta correta para essa resposta...
— Às vezes há mais de uma resposta certa, mesmo. — Isabel se dispôs a obedecer ao comando real.
— Ótimo, pois a pergunta que imaginei foi: “O que é permitir ao rei ajudar a condessa a tirar a roupa?”.
— Viu? Mais do que uma resposta certa...
Mary e James desceram para o salão de mãos dadas e sorrindo.
— Talvez estejamos com problemas — comentou Mary.
— Ouviu alguma coisa sendo quebrada?
— Eu não!
— Então acredito que estejamos em segurança — concluiu James.
— Isabel jamais iria me machucar. Tenho certeza. Não importa se o resultado for bom ou ruim, ela vai me perdoar. Mas e quanto ao rei Artur?
— Não iria machucá-la nunca, Mary. Nem a mim.
Ela fitou seu gigante futuro marido.
— Como pode saber?
— Artur é o homem mais gentil que já conheci. É duro nos treinamentos para batalha, sem dúvida. Mas sempre, sempre muito justo com todos. Não importa o que aconteça, ele vai, com toda a certeza, nos perdoar, pois irá perceber que tínhamos boas intenções.
— Se é assim, fizemos bem.
— Fizemos melhor do que bem. Da última vez que escutei alguma coisa, eles estavam rindo.
Mary deteve James.
— Há um ritual nas terras de Isabel em que se comemora o sucesso, sabia?
— E qual é?
— Eles o chamam de high five . — Ela levantou a palma da mão e esperou que o noivo fizesse o mesmo.
James a fitou, confuso.
— Levante a mão! — ordenou Mary.
James obedeceu, e ela deu-lhe um tapa, sorrindo.
— High five!
— O que isso significa?
— É um sinal de sucesso, oras. Imagino que os dois estejam fazendo as pazes enquanto conversamos.
James sorriu para o seu amor e levantou de novo a mão. Mary o observou, curiosa, mas bateu a palma na dele.
— High five — repetiu. — Pelo que foi esse?
— Porque tenho muita sorte. A mulher que eu amo retribui os meus sentimentos e, em breve, serei o mais feliz dos maridos.
Capítulo Vinte e Um
Ao som de uma batida na porta, Gwen — que continuava na cama — ergueu o olhar e se deparou com a condessa parada na entrada do quarto, muito bonita em um vestido cor de vinho. Em comparação, ela própria sabia que estava pálida e desgrenhada, e que a camisola que vestia não era nem um pouco atraente.
— Entre, por favor — pediu, correndo os dedos pelos cabelos.
Isabel obedeceu. Foi quando Gwen se deu conta de que a condessa segurava uma roupa preta nas mão s.
— Como está se sentindo esta manhã, Gwen?
— Um pouco melhor, creio eu — respondeu, ainda que não fosse de todo verdade . Exceto pelo peito ainda um pouco dolorido, sentia-se muito bem. No entanto, enquanto estivesse na cama, Artur continu aria a visitá-la e, talvez, ela ainda conseguisse fazê-lo mudar de ideia. Não que já não amasse mais Lancelot. Ainda o amava desesperadamente. Mas temia perder o marido.
Estava sendo egoísta, sabia disso. Bem no fundo, sentia muita vergonha. O problema é que era jovem demais quando Artur a cortejara e depois se casara com ela. Ela não conhecia outra vida, e o medo do desconhecido era avassalador.
— O que é isso? — perguntou, apontando para as mãos de Isabel.
— Já vou falar a respeito. Conversei com Tom esta manhã, no café, Gwen. E ele me disse que não vê razão para que não esteja de pé.
— E o que você tem a ver com isso?
— Provavelmente nada. Mas a rotina de Camelot é sua responsabilidade, e seus criados estão se sentindo perdidos sem a sua presença. Estão preocupados e confusos. Eles precisam de você, Gwen.
— Como sabe disso?
— Tenho escutado os comentários durante os recessos diários.
Gwen se sentou, ajeitando-se melhor na cama.
— Continuou com os recessos sem o meu consentimento?
— Não estava em condições de dar consentimento algum.
— E Artur sabe disso?
— Sabe. E não fez objeções. O problema é que o seu povo está sentindo a sua falta, Gwen. Seria muito bom se as pessoas a vissem de pé.
— Por que Artur não me disse nada?
— Porque ele também está preocupado com a sua saúde. Não é médico. Não faz ideia que, por algum motivo, você continua na cama sem necessidade.
— Mas você sabe.
— Foi Tom quem me contou.
— Meu peito ainda está muito dolorido, porém ouvi dizer que tenho de lhe agradecer por eu estar viva...
— Não tem por quê.
— Eu não quis ser agradável.
— Eu sei. Reconheço bem o sarcasmo.
Gwen sabia que estava sendo vil. Tinha consciência de que, se não fosse pela ajuda de Isabel, ela podia não ter sobrevivido.
Baixou os olhos.
— Eu sinto muito. Foi muito rude da minha parte.
— Não precisa se desculpar. Compreendo que certos males tendem a tirar as pessoas do prumo. É uma mulher muito bonita, Gwen, e tem um grande coração. Eu... nós ... quero dizer, Tom e eu, não entende mos por que n ão está ansiosa por sair dessa cama e voltar às suas atribuições de rainha.
— Por que se importa tanto?
— Porque odeio ver seus criados tão preocupados. Eles se sentem à deriva sem a mão firme de sua rainha para guiá-los.
— Vou pensar no que está dizendo. No entanto, eu gostaria de ouvir o mesmo dos lábios de Artur.
— Artur não vai exigir que se levante. E também está ocupado, preparando a reunião dos cavaleiros, ainda que, sem dúvida, a sua ajuda também pudesse ser útil nesse assunto.
— Compreendo — assentiu Gwen.
— Também há a questão do casamento de James e Mary. Muitos preparativos a serem feitos, um cardápio a elaborar... Diga-me se existe algo mais divertido do que ajudar uma noiva a se preparar para o dia mais importante de sua vida.
— É mesmo muito divertido — concordou Gwen.
— Claro que é. Vai querer perder os preparativos?
— Conte-me, condessa... — Gwen inclinou a cabeça. — Por que nunca se casou?
— Porque sou muito exigente.
— Quer dizer que não pretende se casar?
Isabel hesitou.
— N ão descarto n enhuma possibilidade. Talvez. Algum dia.
— Está esperando o homem certo?
— Digamos que sim.
— Está certo. Já deu a sua opinião, condessa, e tenho muito que pensar. Agora, por favor, me diga o que tem nas mãos.
Isabel levantou a roupa preta.
— As suas calças.
Gwen soltou uma exclamação.
— Calças?!
— Sim. Não se lembra de que, antes de ficar doente, pediu às costureiras que elas confeccionassem calças para as mulheres?
A jovem rainha franziu a testa.
— Sim, sim... Tenho uma vaga lembrança.
— Pois, então, estas foram feitas para você, caso decidisse se juntar a nós na hora do nosso recreio.
— Por favor, ajude-me a me lembrar por que decidimos que fazer calças para as mulheres era uma boa ideia — pediu Gwen, esfregando as têmporas.
— Para que elas tivessem mais liberdade durante o recesso da manhã. Dessa forma, não têm que se preocupar em exibir demais as pernas ou outra parte do corpo enquanto jogam.
— Também usa essas calças?
Isabel sorriu e levantou a saia, exibindo uma das esquisitas peças. Em seguida, colocou a que trazia nas mãos ao pé da cama.
— Vamos nos reunir no pátio daqui a pouco, caso decida se juntar a nós — falou, fazendo uma leve reverência com a cabeça e se preparando para sair.
— Isabel...
Ela olhou por cima do ombro.
— Sim?
— Posso lhe pedir outro favor?
— Claro.
— Poderia chamar Jenny e dizer a ela que vou precisar de ajuda?
Isabel sorriu.
— Com muito prazer. Bem-vinda de volta, Gwen.
— Obrigada.
— E então? — perguntou Mary enquanto as mulheres se reuniam.
Isabel deu de ombros.
— Vamos ver.
— De qualquer modo — começou Madeline, uma das cozinheiras —, agradecemos pela tentativa.
— Agradeçam-me se der certo.
— O que vamos fazer hoje, condessa?
— Vamos jogar um jogo chamado beisebol. Isto é, uma versão para Camelot — emendou Isabel, distribuindo quatro pequenos juncos ao redor do pátio enquanto explicava: — Vamos nos dividir em duas equipes. Os times se revezam, tentando marcar pontos ou tentando impedir que a outra equipe marque pontos. O time que está tentando marcar pontos vai mandar uma jogadora de cada vez para cá... — apontou ela, deixando cair um dos juncos no chão. — Isto é chamado de base. A jogadora irá arremessar uma pedra o mais distante que puder, e de modo que esta siga para bem longe das jogadoras da outra equipe, que estarão espalhadas pelas outras bases, tentando defender...
— Condessa! — gritou Mary, depois acenou com a cabeça em direção ao outro extremo do pátio. — A rainha!... Ela vem vindo!
Gwen vinha correndo, realmente, e segurava as saias de um modo que Isabel teve um vislumbre da peça preta por baixo delas.
Todas no pátio pareceram congelar conforme viram sua rainha se juntar ao time de mulheres. Depois se curvaram e permaneceram nessa posição, de cabeça baixa.
— Levantem-se, por favor! — pediu Gwen. — Temos um jogo pela frente... E, então, o que foi que eu perdi?
James entrou correndo, e sem bater, na sala de trabalho do rei. Artur fez menção de repreendê-lo pela interrupção, contudo a expressão do rapaz o deteve.
— O que foi?
— Senhor, tem que vir ver uma coisa.
— O quê?
— Não posso explicar. Eu poderia tentar, mas, acredite, vai preferir ver por si mesmo.
Artur levantou-se rapidamente e seguiu James porta afora, cruzando o salão principal e saindo para o pátio.
Parou ao avistar uma menina correndo em volta de um círculo, enquanto outras a seu redor arremessavam uma pedra de uma para a outra e tentavam perseguir a moça. Todas soltavam gritinhos de prazer, aplaudiam e torciam. Devia ser algum tipo de jogo, pensou ele, porém nunca o tinha visto antes.
Buscou Isabel com o olhar porque, tão certo como ele estava respirando , aquilo era coisa dela. Avistou-a batendo palmas, depois levando as mãos em torno da boca.
— Tente a terceira, Sarah! Você consegue!
A menina que corria, e que também ria de alegria, tocou com o pé uma espécie de esteira, depois continuou correndo enquanto a pedra continuava a ser arremessada de um lado para o outro.
— Que diabo elas estão fazendo, James?
— É um jogo que a condessa chamou de “Beisebol de Camelot”.
— Beisebol de Camelot? — repetiu Artur.
Nos últimos dias, Isabel vinha ensinando jogos cada vez mais estranhos às servas. Aquele, sem dúvida, era o mais esquisito.
Mesmo assim, as mulheres pareciam estar se divertindo muito.
— Tem razão, James, não ia conseguir me descrever isso. E seria uma pena eu não ter vindo ver do que se tratava. — Sem tirar os olhos da cena bizarra diante dele, Artur perguntou: — É verdade que os nossos homens também estão felizes com esse recesso das mulheres?
— Ah, sim, senhor. Dizem que suas esposas e namoradas parecem mais satisfeitas e bem-humoradas, e que o recreio lhes deu um ânimo extra.
— Notou tal comportamento em Mary?
— Minha Mary sempre teve ânimo de sobra , mas, sim, percebo sua alegria e emoção quando ela me conta a respeito de seu dia. Ela também me falou que a produtividade na cozinha, nas lavanderias e nas salas de costura aumentou, pois as mulheres voltam a trabalhar com mais vigor. Eu diria que esse recreio é um enorme sucesso, senhor.
— Graças a Isabel — afirmou Artur, sorrindo brevemente. — Ela parece espalhar entusiasmo por onde passa.
Depois quase riu alto do eufemismo. Por mais que ele despertasse animado para começar um novo dia e trabalhar todas as manhãs, mal podia esperar para que a noite caísse e ele pudesse se juntar a sua amada em seus aposentos.
E não era apenas o amor que faziam que ele adorava, mas também os momentos em que ficavam nos braços um do outro, conversando baixinho sobre o dia de cada um. Cada vez mais, ele buscava os conselhos de Isabel em assuntos importantes. Ela era uma ouvinte atenta que possuía raciocínio rápido e que captava conceitos com os quais, ele tinha certeza, ela nunca tivera de lidar ou considerar no pacífico reino de Dumont. Suas ideias eram tão inspiradas quanto... Como era mesmo a palavra que Isabel usava?... Ah, sim. Atípicas . Era comum ela iniciar uma frase com: “Isto pode parecer atípico, mas escute...”.
Com muita frequência, as ideias de Isabel o faziam rir. Mas bastava ele ponderar um pouco sobre elas para enxergar seu mérito. Nem que fosse com algumas pequenas variações.
Mas sempre — sempre — elas faziam pensar.
Amava aquilo em Isabel. Também amava sua paixão na cama. Um toque dele no lugar certo, e ela se transformava na melhor das amantes. Ele ansiava pelos momentos em que podia despi-la, exceto por aquele colar azul, do qual, até onde ele sabia, Isabel jamais se separava.
E sua pele era tão suave e macia!
Artur percebeu, de repente, que James havia dito alguma coisa, e ele nem sequer escutara.
— Perdão, o que disse?
— Perguntei se está vendo alguém familiar entre as mulheres, senhor.
Artur examinou as moças mais de perto. A maioria lhe era familiar, claro. Possuía criadas aos montes, porém se esforçava para saber o nome de cada uma delas, tanto quanto lhe era possível. Tinha para si que elas mereciam no mínimo tal coisa de seu rei, a quem serviam com tanta dedicação e sem nunca se queixar.
— Vejo muitos rostos familiares, James. Há alguém em especial que gostaria que eu notasse?
— Olhe a do vestido amarelo-claro. A que está correndo atrás de Mary no momento.
Artur estreitou os olhos.
E congelou. Aquele cabelo ruivo e comprido, a compleição delicada...
— Gwen?!
— Isso mesmo, meu rei. A rainha resolveu deixar seu leito.
— Ah, graças aos deuses! — exclamou Artur em voz baixa.
No entanto, a evidente e milagrosa boa saúde de Gwen era um pouco suspeita. Como fazia todas as manhãs, antes de seguir para os treinamentos, naquela ele também havia passado no quarto da esposa para perguntar como ela estava. E, como nas manhãs anteriores, Gwen lhe parecera pálida, frágil, e agira como se estivesse fraca demais para se levantar, se vestir e ir cuidar de seus deveres de rainha. Ainda que, como em quase todos os dias, ela houvesse tentado atraí-lo para a cama.
Artur apertou os lábios. Estava ficando cada vez mais difícil para ele disfarçar a própria repulsa. Quando toda a atração que sentia pela esposa fora reduzida a pó? Não fazia ideia. E não podia atribuir tal coisa a Isabel, pois ele já começara a perder o interesse por Gwen antes mesmo da chegada da condessa.
A dor permanecia, entretanto o desejo que sentia por Gwen diminuíra muito antes. Tão certo como ele sabia o próprio nome, estava ciente de que, se ainda fosse apaixonado por Gwen, não teria nem sequer olhado na direção de Isabel. Era homem de uma mulher só. Sempre tinha sido. Uma vez que seu coração era conquistado, não voltava o olhar para nenhuma mulher, exceto para aquela que detinha nas mãos seu amor e desejo.
Artur balançou a cabeça. Por um lado, sentia-se aliviado por Gwen ter recuperado a saúde. Por outro, saber que ela estava acamada havia lhe dado a liberdade de ele fazer o que bem entendesse. Agora que a esposa estava de pé outra vez, ele sabia que seus movimentos seriam tolhidos, e que isso se tornaria um problema. Precisava conversar com Isabel mais tarde.
— É bom ver que Gwen está melhor — comentou com um suspiro. Em seguida, estreitou o olhar. — Pelos deuses! Ela também está usando aquelas coisas pretas que as outras vestem para praticar os esportes.
— Mary me contou, esta manhã, que a condessa estava determinada a fazer a rainha sair da cama. Isabel achou que as tais leggings iriam animar Gwen a se levantar e se juntar à equipe para a hora do recreio.
— Sei. Mesmo assim, fico me perguntando por quê — murmurou ele.
Não percebeu que expressara o pensamento em voz alta, até que James respondeu:
— Parece que as criadas se reuniram e discutiram os problemas que tinham com a rainha. Uma vez que Isabel era sua única alternativa para que tentassem resolver as questões que surgiam no castelo, decidiram que a condessa seria a escolha lógica para aproximá-las de Gwen.
— Isabel andou assumindo as atribuições da rainha? — perguntou Artur.
— Não percebeu?
— Eu devo estar cego — resmungou ele, querendo chutar o próprio traseiro. — Não, não percebi... E Isabel não se queixou uma única vez por ter tido que assumir tarefas que não são sua obrigação. Por Thor, ela é hóspede neste castelo!
— Também não vi a condessa se queixar nenhuma vez — concordou James. — Exceto, talvez, depois do que aconteceu entre vocês, duas noites atrás.
Artur revirou os olhos.
— Sabe qual é o meu maior defeito, James?
— Não, rei Artur. Não faço ideia.
— Permitir que meus homens de maior confiança digam o que pensam.
James caiu na gargalhada.
— Mil perdões por eu ter falado o que não devia.
Artur o encarou.
— Não me parece nem um pouco arrependido.
— Vou praticar mais a minha expressão de arrependimento, então.
Artur deu um tapa nas costas do amigo.
— É bom começar logo, pois decerto vai levar anos fazendo isso.
Com um último olhar na direção das mulheres, em particular na de longos cabelos loiros que agora era perseguida por várias das criadas, Artur deu meia-volta e retornou à sua sala com a risada de James ainda ressoando nos ouvidos.
De fato, ele e Isabel tinham muito a discutir naquela noite. Isso se conseguissem ficar a sós.
E apenas a perspectiva de que ele poderia falhar nessa tarefa provou-se deprimente.
Houve um tempo em que Gwen jamais teria pensado em anunciar a si própria antes de adentrar a sala de Artur, porém estava consciente de que muita coisa havia mudado entre eles. Assim, embora a porta estivesse aberta, preferiu bater.
Artur ergueu os olhos do pergaminho que estudava com atenção, e que parecia um detalhado mapa. Enrolou-o, colocou-o de lado e se levantou.
— Gwen — saudou, gesticulando para que ela entrasse. — É bom vê-la de pé. Espero que esteja se sentindo melhor.
— Bem melhor, Artur. Obrigada.
Ele fez um sinal para que Gwen se sentasse, esperando que ela se acomodasse antes de voltar para o próprio assento.
— O que acha que ajudou a... curá-la de sua doença?
— Estou certa de que a condessa já o informou a respeito da nossa conversa.
— Na verdade, não. Não falei com Isabel depois do desjejum.
— Ah...
— Por quê? O que ela tem a ver com a sua recuperação?
A verdade era a única opção de Gwen, pois Artur sempre podia afirmar quando ela escondia algo dele. Tanto que ele não demorara a descobrir tudo acerca de Lancelot. Não que ela e Lance houvessem se envolvido intimamente de imediato. Mas Artur soubera que havia algo errado mesmo assim.
— Isabel veio me ver no nosso... no meu quarto, esta manhã, e tivemos uma conversa.
— E essa conversa a curou? Precisamos engarrafá-la, então, e vendê-la para o nosso médico.
— Por favor, Artur, não torne as coisas mais difíceis do que elas já são!
Ele concordou com um gesto de cabeça.
— Minhas desculpas. Isso não era necessário. Quer me contar o que aconteceu?
— Isabel me deixou muito consciente de que eu estava aborrecendo você. Eu estava abandonando Camelot e o povo ao me esquivar das minhas obrigações.
— Acha que ela ultrapassou os limites?
— Sim. Quero dizer, não . — Gwen balançou a cabeça. — Isabel foi apenas corajosa o bastante para me dizer algumas verdades que eu precisava ouvir.
Artur a observou.
— Eu poderia jurar que, nessa afirmação, há uma crítica velada à minha pessoa , mas, como acabou de se recuperar de uma desagradável intoxicação, vou relevá-la.
— Não, não... Eu não tive a intenção de criticá-lo em nada. É muito crédulo, Artur. Se eu dissesse que ainda não estava me sentindo bem, iria aceitar sem contestações.
— Por que a farsa, Gwen? O que imaginou que fosse ganhar?
Ela olhou para as próprias mãos.
— Talvez eu quisesse ganhar a sua atenção.
— Então não precisava se fingir enferma, Gwen. Bastava pedir a minha atenção.
— Estou pedindo agora.
— E, neste momento — respondeu ele, levantando-se e indo até a porta para fechá-la —, você a tem por completo. — Artur voltou à escrivaninha e sentou-se. — O que tem em mente?
— Tem sido um marido maravilhoso, Artur. Foi amoroso, atencioso e paciente enquanto eu aprendia minhas atribuições de rainha, e continua sendo bom demais para mim.
— Fico feliz por pensar dessa forma.
— E eu retribuí com uma traição pela qual lamento profundamente. Se eu pudesse voltar no tempo...
— Não mudaria nada. Foi o destino que fez você e Lancelot se apaixonarem. Eu não podia evitar que isso acontecesse mais do que poderia evitar que chovesse ou nevasse.
— Nós podíamos ...
— Não, não podíamos — interrompeu-a. — Ainda é apaixonada por Lance, assim como ele é por você. Na verdade, são apaixonados um pelo outro. Se negar o que digo, perderei o pouco do respeito que ainda me resta por sua pessoa. Sem dizer que eu jamais a perdoaria caso partisse o coração de Lance. Eu não o culpo. Tampouco culpo a você. Aconteceu, Gwen. — Ele ergueu as mãos e encolheu os ombros. — Mas aquele rapaz significa muito para mim, e eu não verei com bons olhos alguém que o prejudique de alguma forma.
— Então se importa mais com Lancelot do que com sua própria esposa?
— Gwen, se eu não me importasse com você, estaria respondendo a uma acusação de traição. Como eu já lhe disse centenas de vezes, não me importa o que você e Lance fazem. Eu me preocupo apenas que sejam apanhados por alguém que não pense duas vezes antes de acusá-los de um crime contra o rei. No momento, não existe solução legal em Camelot para a situação em que nos encontramos, embora eu esteja estudando seriamente um sistema que eles têm em Dumont, no qual se pode pedir a dissolução do casamento e o homem ou a mulher não precisam admitir culpa. A condessa Isabel o chama de “divórcio sem culpa”.
— Discutiu nossa vida íntima com a condessa?
— Admito que sim.
— Como teve coragem?!
— Tive, Guinevere, porque confio nela. Confio em seus pensamentos e opiniões.
Gwen cobriu as faces que pegavam fogo.
— Estou tão mortificada que tenha compartilhado algo tão pessoal com uma estranha!
— Isabel não é mais nenhuma estranha. Enquanto você estava na cama, se fazendo de doente, ela se tornou uma grande amiga e companheira.
Gwen o fitou, e a verdade a cingiu.
— Está apaixonado por ela.
Artur hesitou apenas um momento antes de aquiescer.
— Sim, é verdade.
— E a condessa sabe disso?
— Tenho a firme impressão de que Isabel tem ciência de tudo.
— E ela retribui os seus sentimentos?
— Espero, do fundo do meu coração, que sim.
— Como se atreve a me envergonhar dessa maneira?! Como ela ousa vir até aqui como convidada apenas para...
Artur deu um murro na mesa, e a raiva em seus olhos fez Gwen se encolher no assento.
— Termine a frase, Gwen. Eu a desafio a terminar com lógica esse seu pensamento!
Ela permaneceu em silêncio enquanto ele se inclinava para a frente, fulminando-a com o olhar.
— Eu não planejava, tampouco esperava o que se passou entre mim e Isabel. Mas isso estava destinado a acontecer, assim como aconteceu com você e Lance. Acha que eu mudaria as coisas, como parece desejar? Nem que eu tivesse de ir para o inferno de Hades! Exceto pelo incômodo fato de eu não ser livre para poder pedir Isabel em casamento, eu não mudaria uma única coisa.
No passado, lágrimas sempre haviam derretido o coração de Artur, porém Gwen sabia que estas já não teriam o poder de abalá-lo. Ao menos não as dela.
N ão vou chorar. .. Não vou chorar!
— Se não fosse pelo que aconteceu com Lance...
— Mas foi!
— E se não tivesse sido?
— Isabel seria apenas mais uma convidada do rei. Era isso o que queria ouvir? Que eu jamais teria traído os meus votos? Se assim fosse, estaria certa. Eu provavelmente teria olhado para ela como para qualquer outra pessoa inteligente a ser adicionada ao grupo a se reunir aqui a fim de ser conhecido e trocar ideias. Mas eu já sabia, Gwen... Você já tinha partido o meu coração. Quando vi Isabel, contudo, percebi que havia começado a superar o meu desgosto. E me senti livre para desejar outra mulher.
— Estou vendo.
— Não tenho nenhuma intenção de feri-la, Gwen. Isto não é nenhum tipo de vingança. Se não tivesse perguntado, eu não teria dito uma só palavra, pois esse assunto não é da conta de ninguém, a não ser da minha e de Isabel. Mas você me perguntou, e, como sabe, eu prezo muito a verdade. Sem dizer que minha esposa merece tê-la.
Ela respirou fundo e endireitou os ombros.
— Minha próxima pergunta vai soar egoísta e interesseira, Artur, porém vou fazê-la mesmo assim. Se conseguirmos instituir esse “divórcio sem culpa”, o que vai acontecer comigo? O que vai acontecer com Lance?
— Vocês dois estarão livres para se casar.
— Mas onde? Como?
— Já pensei nisso. Se Lancelot preferir permanecer na Grã-
-Bretanha em vez de voltar à sua terra natal, posso lhes arrendar terras, as quais administrarão como líderes, seja lá com que nome for. Poderão começar uma nova vida juntos.
Gwen engoliu em seco.
— Mas...
— Imagino qual seja a sua próxima pergunta, e não vou permitir que se humilhe, obrigando-a a fazê-la. Cuidarei do seu bem-estar pelo restante dos seus dias, Gwen. Não vou deixá -la desamparada. Será sempre mantida com todo o conforto. Essa parte dos meus votos eu manterei. Não pretendo vê-la passando por dificuldades.
— Lance não vai querer esmolas suas, Artur.
— Se ele continuar como soldado em Camelot, será recompensado à altura. Afinal, Lancelot é um dos meus homens mais competentes e leais... — O sorriso de Artur continha um misto de tristeza e cinismo. — ... no campo de batalha.
— Ele o ama como a um pai, Artur. Isso tudo está acabando com Lance por dentro.
— Pode não tomar minha afirmação como verdade, Gwen, mas acredito em suas palavras do fundo do meu coração. Se eu não acreditasse, Lancelot não estaria nem mesmo respirando agora.
Gwen se levantou e sentiu as pernas trêmulas.
— Acredite, Artur, eu também amo você.
— Eu acredito.
— Se não acreditasse, eu também não estaria respirando a essa altura?
— Eu jamais iria machucá-la, Gwen. Mas não poderia dizer o mesmo quanto àqueles que buscassem se vingar por seu rei.
Ela estremeceu.
— Está certo, Artur. Então, o que vai ser agora? Como agimos a partir deste momento?
— Ainda é a rainha. E, como tal, deve continuar a cumprir com seus deveres. Para todos os efeitos, nada mudou.
— Sim.
— Sempre foi uma rainha excelente, Gwen. Não vai precisar fingir nada.
— Compreendo.
— Discrição, Gwen. Discrição.
— Certo.
— E, por favor, nada mais de experiências com novos alimentos. Não quero outra ocorrência envolvendo cogumelos. O mais importante: nem pense em fazê-las com os alimentos que são servidos a todos.
— Claro que não.
Artur se levantou.
— Mais uma coisa, Gwen, da qual não quero que se esqueça nunca...
— Sim?
— Isabel salvou a sua vida. Se não fosse pelo tratamento rápido que ela ministrou, não estar íamos tendo esta conversa.
— Estou ciente disso.
— Acredite ou não, a condessa gosta muito de você. E compreende todas as emoções desencontradas que estão nos afetando. Se algo desagradável acontecer a ela, se eu notar um só arranhão em sua pessoa, conhecerá a minha ira como nunca aconteceu antes.
As lágrimas que Gwen vinha tentando tão desesperadamente conter vieram à tona.
— Ela salvou a minha vida uma vez, dias atrás, Artur. E veio me ver esta manhã para tentar salvá-la de novo. Jamais vou me esquecer disso.
— Espero que não. Por mais estranho que pare ça , Isabel poderia ser para você uma excelente amiga e aliada.
— E, por mais estranho que pare ça , Artur, eu gostaria muito de tê-la de ambos os modos.
Ele acenou com a cabeça e caminhou até a porta.
— Não vai se arrepender.
— E eu não vou contar que sei sobre o amor de vocês.
— Não é necessário. Farei isso esta noite. Assim como você deve contar a Lance.
Gwen aquiesceu, então segurou a mão dele com firmeza.
— Desta vez não irei decepcioná-lo. — Começou a sair, mas, em seguida, fez meia-volta. — Algum servo tem conhecimento disso?
— Por que está perguntando?
— Para que eu saiba na frente de quem poderei falar abertamente sobre o assunto.
— James e Mary. Ambos sabem de tudo. Ao menos, presumo que sim. — Os lábios de Artur se inclinaram em um sorriso leve. — Eles intervieram de um modo bastante divertido quando Isabel e eu tivemos um pequeno desentendimento.
Gwen assentiu, embora mal pudesse acreditar que tudo aquilo havia acontecido enquanto ela estava acamada.
— Imagino que, no futuro, isso tudo daria uma bela história.
— De fato.
Gwen fez um gesto em direção à escrivaninha.
— Vou deixá-lo fazer o seu trabalho. E lhe agradeço, Artur, por sua integridade e por sua compaixão.
— Também agradeço pela retidão que demonstrou hoje. Só quero a sua felicidade, Gwen. De coração.
— Eu sei. Também desejo o mesmo para você.
Artur fechou a porta atrás de Gwen, pois ansiava por privacidade enquanto ponderava sobre tudo o que fora dito.
— “O homem mais feliz em Camelot” — sussurrou para si mesmo. — “Quem é o rei Artur?” — respondeu ele próprio. — “Certo!” — Balançou a cabeça, sorrindo, conforme desenrolava o pergaminho. — Isabel, meu amor, você está me deixando maluco.
Capítulo Vinte e Dois
Mais uma vez, Gwen se viu do lado de fora de uma porta, pronta a bater. Mal acreditava no senso de humildade que tinha adquirido desde aquela manhã. O dia já fora desafiador, divertido, esclarecedor, de partir o coração... e não chegara nem sequer na metade.
Ouviu uma risada atrás da porta e hesitou.
— Ele não fez isso! — escutou uma voz jovem dizendo. — Está brincando!
— Não estou brincando, não! E ainda tentou me dar um beijo.
Esta última ela facilmente reconheceu como sendo a de Isabel.
— Depois de jogar um sapo dentro do seu corpete?
Gwen duvidou de que as duas mulheres estivessem falando sobre Artur. Embora este adorasse uma boa brincadeira, jogar um sapo no colo de uma mulher não fazia seu gênero.
— Foi a maneira que ele encontrou de demostrar afeição, creio eu — explicou Isabel. — Afinal, tínhamos no máximo oito anos.
— Parece-me, senhora, que a tentativa do pobre menino de cortejá-la foi um desastre.
— Não me diga... E eu achando até bonitinho!
As duas tornaram a cair na gargalhada.
Gwen detestou acabar com a atmosfera bem-humorada, porém teve esperanças de que pudesse ser incluída nela e bateu à porta.
Como temia, as risadas cessaram no mesmo momento.
— Entre! — falou Isabel.
Gwen abriu a porta e entrou, vendo as duas moças sentadas no chão. Isabel pintava as unhas dos pés de Mary. Metade delas já estava colorida com uma espécie de tinta cor-de-rosa.
— Lamento interromper — murmurou, intrigada.
— Vossa Alteza! — Mary se pôs de pé e fez uma reverência.
— Por favor, sente-se, Mary — pediu Gwen. — Não deixe m que eu interrompa, seja lá o que estejam fazendo.
Isabel sorriu para ela.
— Estamos testando várias maneiras de deixar Mary ainda mais bonita para a noite da cerimônia de casamento.
— Posso me juntar a vocês? Por favor, Mary, retome o que estava fazendo. Estou bastante curiosa quanto a essa brincadeira.
— Claro que pode. — Isabel tornou a sorrir. — Quanto mais gente, melhor, não é, Mary?
Mary olhou, nervosa, de uma para a outra, e Gwen tentou tranquilizá-la.
— Sente-se, Mary. Na verdade, eu já esperava que fosse estar aqui. Temos um casamento para planejar, e fiquei muito interessada em assistir e aprender essa prática.
— Eu sentarei quando fizer o mesmo, Alteza — decidiu a menina.
— Quer apostar qual de nós consegue sentar o traseiro primeiro? — indagou a rainha, surpreendendo a todas.
Mary riu, assim como Isabel, o que fez o coração de Gwen se alegrar. Ela havia tido muito tempo para refletir sobre tudo o que acontecera naquele dia, tudo o que precisaria enfrentar sobre si mesma, tudo o que era necessário para que fizesse as coisas direito.
Acomodou-se no chão, por fim, e acenou para a jovem criada.
— Vamos, sente-se!
— Quer que eu lhe traga alguma coisa, Vossa Alteza?
Gwen olhou para Isabel.
— É impressão minha ou essa coisa de “Vossa Alteza”, “Condessa” ou “Vossa Sei Lá o Quê” está ficando ultrapassada?
Isabel a fitou, e o sorriso que iluminou seu rosto fez Gwen se encher de orgulho.
— Isso tudo é de fato muito aborrecido — concordou de pronto.
— Pode me chamar apenas de Gwen, está bem, Mary? Pelo menos quando estivermos sozinhas. Compreendo sua relutância quando há outras pessoas ao redor, mas, aqui, agora, será apenas Gwen.
Mary pareceu horrorizada.
— Eu jamais poderia fazer isso!
Isabel revirou os olhos para Gwen.
— Levei dias e precisei fazer um monte de ameaças para fazê-la mudar de ideia, mas Mary vai ceder eventualmente.
Gwen sorriu. Não estava zangada com Isabel. Como poderia estar?
Artur tinha razão. A raiva que ela sentira por sua infidelidade era pura hipocrisia, e em sua forma mais grave. Sem dizer que ela amava o marido o suficiente para que — após superar a mágoa e a raiva — percebesse o quanto ele era bom e o quanto merecia uma mulher digna dele.
Sua principal pergunta para si mesma era se conseguiria esquecer tudo o que acontecera, voltar atrás em tudo o que havia feito, a fim de preservar a vida que levava.
E a resposta fora “não”. Não podia se arrepender de seu amor e da atração que sentia por Lance, assim como não podia estender a mão e trazer a Lua para perto.
— Eu adoraria tomar um pouco de vinho, Mary — decidiu por fim.
— Temos um bem aqui e...
— Pode deixar! — Gwen interrompeu a menina, erguendo-se outra vez. — Eu mesma vou servi-lo a vocês duas. E, para mim, claro.
Enquanto se levantava, Gwen testemunhou os olhares espantados trocados pelas duas outras mulheres, e sorriu para si mesma. Estava gostando daquilo. Imensamente.
— Agora, por favor, contem como se faz esta coisa de pintar as unhas dos pés.
— É muito simples e divertido — falou Isabel. — E deixa os pé s das mulheres muito mais bonitos.
— E de onde veio essa tinta? Você a trouxe de Dumont?
— Na verdade, não. Tivemos que fazer experiências até conseguirmos uma fórmula que desse certo. Misturamos flores com um pouco de água, depois adicionamos amido de milho para torná-la pegajosa o suficiente, assim ela pode aderir à unha.
— Aderir?
— Colar — explicou Mary. — Desse modo, a água seca e a coloração permanece sobre as unhas.
Gwen entregou um cálice à condessa, depois estendeu outro a Mary, que lançou um olhar inseguro na direção de Isabel. Esta, por sua vez, assentiu.
— Só uma vez e apenas um pouquinho. E isso porque parece que estamos tendo uma reunião entre amigas esta tarde.
Mary sorriu e aceitou a taça.
— Muito grata, Vossa...
— Gwen. Lembre-se: como sou sua rainha, precisa escutar o que eu digo. Quero que me chame pelo meu primeiro nome, assim como faz com a condessa Isabel.
Isabel olhou para Gwen, e esta lhe sorriu de volta.
Santo Deus. Ela não sabia como Gwen ficara sabendo, mas, bem lá no fundo, tinha certeza de ela sabia de tudo agora!
— Você sabe — sussurrou.
Gwen sentou-se, segurando a própria taça.
— Sei.
— Mas como?!
Os olhos de Mary saltaram de uma para a outra, cheios de preocupação.
— Eu não sei do que estão falando, mas eu juro, Isabel: nunca repeti uma só palavra das nossas conversas para ninguém, exceto para... Oh, não! James?
— Sossegue, Mary. Foi o próprio Artur quem me contou tudo — revelou a rainha. — Como sempre, ele foi mais do que honesto.
Isabel quase desfaleceu. Artur admitira... ela não sabia o quê! Que eles eram amantes? Que ele...
— Ele é apaixonado por você, Isabel.
Por algum tempo, Mary se limitou a observar, emudecida. De repente, se levantou.
— Acho melhor eu ir fazer alguma coisa.
— Sente-se! — falaram Isabel e Gwen em uníssono.
Gwen riu.
— Às vezes, honestidade em excesso parece não trazer nenhum benefício, não é mesmo ? Mas não foi assim, hoje. Era o que eu precisava ouvir. Artur compreendeu, assim como sempre foi capaz de fazer.
— Eu sinto muito, Gwen. Muito mesmo — conseguiu balbuciar Isabel. — Eu nunca quis... nunca pretendi...
— Sente muito? Por seguir o seu coração? Por fazer um homem maravilhoso feliz novamente depois de muito tempo? Acha que eu a culpo por isso, Isabel? Acha que eu estaria aqui, compartilhando esse momento com vocês, caso tivesse más intenções ou pensamentos?
De repente, ocorreu a Isabel que Gwen insistira em lhes servir o vinho. Olhou para o cálice, alarmada.
Gwen a observou com um sorriso no rosto, depois estendeu a mão e trocou as taças, tomando um bom gole da bebida antes de trocar os cálices de novo.
— Não, Isabel, não tenho a intenção de envenená-la. Artur deixou claro que, se você sofresse um só arranhão, ele faria a pessoa pagar caro. E, por “pessoa”, decerto se referia a mim. Quanto ao pagamento, na certa seria com a minha vida. Como não tenho a menor pretensão de incorrer na ira do rei, por favor, confie que eu jamais irei lhe fazer nenhum mal.
— Claro que não — concordou Mary, com veemência. — Até porque eu não permitiria tal coisa.
Era uma atitude ousada para uma criada de Camelot. Preocupante, na verdade, refletiu Isabel.
— Acalme-se, Mary. Gwen está aqui para conversarmos a respeito do seu casamento, não é mesmo, Gwen?
— Verdade. No entanto, eu adoraria aprender essa coisa de pintar as unhas dos pés antes de decidirmos o cardápio. Tenho um encontro esta noite e gostaria muito de surpreender a pessoa...
Mary e Isabel trocaram olhares.
— Então, sugiro que tire os chinelos, Vossa Alteza. — falou Mary por fim.
— Se vai pintar as minhas unhas, Mary, insisto que me chame de Gwen!
— Como eu também disse a Isabel, senhora, somente quando estivermos sozinhas. Nunca, jamais, diante dos outros. Por favor, não insista nisso quando não estivermos apenas as três!
Gwen lançou um olhar interrogativo na direção de Isabel.
— As amigas dela — se é que se pode chamá-las assim — andaram evitando Mary por ciúmes.
— Ciúmes?
— Acham que ela vai se casar com alguém muito acima de sua posição social, já que James é um dos soldados mais importantes do exército de Artur. Embora Mary nunca tenha se gabado disso, as outras estão morrendo de inveja.
Mary tomou um gole de vinho.
— Algumas também se ressentem do fato de eu ter sido designada para cuidar da condessa.
— Que trabalho ingrato, não, Mary? — indagou Isabel, brincando.
— Isso é terrível! — exclamou Gwen. — Ah, Mary, há algo que eu possa fazer?
— Acredito que possamos empurrar essa inveja goela abaixo, proporcionando a Mary e James a mais bela e inesquecível das cerimônias de casamento — opinou Isabel.
— É o que vamos fazer! Elas que engasguem com sua inveja.
Isabel levantou as sobrancelhas para Gwen.
— Ei... — falou a rainha, erguendo o cálice com um sorriso. — Ainda não envenenei você?
— Excelente observação — concordou Isabel, brindando e tomando outro gole do vinho.
Até o momento em que as três conseguissem terminar de fazer as unhas dos pés, elas foram interrompidas por Jenny, James, Tom e até Hester, o bobo da corte. E, por qual motivo Hester havia ido procurá-las, Isabel não fazia ideia.
Estavam todas rindo, deitadas de costas e abanando as pernas no ar, na tentativa de secar a mistura caseira, quando ouviram outra batida na porta.
Isabel perdeu a paciência.
— O que foi desta vez? — gritou, exasperada. — Pelos deuses, isto aqui está parecendo a Grand Central Station!
— Isabel, preciso vê-la. Tenho que falar com você! Por favor, permita que eu entre.
As três se entreolharam, obviamente reconhecendo a voz. Então se sentaram, ajeitando as saias.
— Entre, Artur. A porta está destrancada.
Ele abriu a porta e estacou, perplexo, ao vê -las todas no chão.
— Perdão, eu não queria interromper... seja lá o que for . Na verdade, prefiro nem saber.
— Coisas de mulher — explicou Isabel. — Estamos planejando o casamento de Mary.
Ele pareceu tão pouco à vontade como um frango gordo e saudável no interior de uma loja KFC.
Gwen se levantou, meio sem equilíbrio.
— Mary e eu estávamos pensando, mesmo, em dar uma volta para terminarmos de secar as unhas dos pés, não é mesmo, Mary? — Ela estendeu o braço, e a menina o aceitou de bom grado.
— Verdade, Vossa Alteza. Meu rei... — Mary fez uma rápida reverência ao passar por Artur.
— Ah, por favor, pare com isso, Mary! — ordenou ele. — Somos amigos. Pare de se rastejar.
Ela assentiu com um gesto de cabeça.
— Perdão, rei Artur.
Artur quase rosnou, contudo, manteve a porta aberta quando Mary e Gwen passaram por baixo de seu braço e, pelo ruído que fizeram, saíram em disparada pelo corredor.
Só então ele praticamente a bateu.
— O que está acontecendo, Isabel?
— Mary e eu estávamos vivendo um momento entre amigas, e Gwen quis participar. Por que está tão nervoso? Não aconteceu n ada de errado aqui. Estávamos apenas nos divertindo.
— Gwen sabe a respeito de nós.
— Eu sei. Ela me contou.
— Contou mesmo?
— Sim. Na verdade, foi muito receptiva à situação. Por que está tão tenso?
— Eu temi que... Bem, fiquei preocupado.
— Ei, eu ainda estou aqui, Artur. Gwen não é do tipo assassino. Deve saber disso. Não teria se casado com uma mulher tão cruel. Jamais faria isso.
— Espero que não. De qualquer modo, não posso me arriscar em se tratando de você.
— Eu te amo, Artur!
— E eu amo você, Isabel.
— Dá uma mãozinha aqui? — pediu ela, estendendo o braço.
— O quê?
— É apenas um modo de dizer “ajude-me a me levantar”.
Ele a puxou e, conforme a trouxe para junto dele, passou um braço por sua cintura e a ergueu do solo. Ainda a centímetros do chão, Isabel o enlaçou pelo pescoço e o beijou.
— Até o meu último suspiro, nunca vou parar de desejar o seu toque e os seus beijos, Isabel! — murmurou Artur momentos depois. Abaixou-a devagar, propositadamente, de modo que ela deslizasse pela frente de seu corpo da forma mais sensual.
— Por qu ê , Artur?
— Por que o quê?
— Por que contou a Gwen?
Ele afastou os cabelos de seu rosto.
— Ela merecia saber a verdade.
— Podia ter ficado calado.
— Era uma opção. Mas o que tal atitude diria a meu respeito, Isabel? Gostaria que eu escondesse o amor que sinto por você?
Ela pousou a cabeça no peito largo.
— Se essa história se espalhar, toda a verdade virá à tona, e ela e Lance ficarão em apuros. N ão acha que James iria despejar a verdade por conta da lealdade que tem a você, acha? Porque de maneira alguma ele permitiria que levasse a culpa.
— Ele o faria se eu lhe ordenasse.
— E vai fazer isso? Por acaso, por falta de uma expressão melhor, “sairia na espada”?
— Não. Nesse caso, não.
— Como pode afirmar?
— Essa é fácil...
— Não entendi.
— “Aquela que Artur, o rei de Camelot, passou a amar tanto que ele faria qualquer coisa para protegê-la.”
Isabel sentiu-se derreter. Por que o amor era tão difícil de encontrar?
— Muito simples — provocou, quando reaprendeu a arte de respirar. — “Quem é Pix, a beagle amada e meio pateta de Artur, que o segue a todos os lugares?”
— Errado, condessa, embora eu admita que Pix seja uma resposta bem próxima da correta. Vou lhe dar outra chance.
— Pix seria a resposta mais próxima, é?
— Isabel, você mesma pularia na frente de uma flecha para salvar Burny!
— Ah, mas Burny é um cachorro como nenhum outro. Falando sério... Aquele cãozinho é inexplicável! Que cachorro é aquele, meu Deus?
Artur riu e a abraçou ainda mais.
— Ninguém sabe. Nós não questionamos; apenas acolhemos qualquer filhote que apareça por aqui.
— Ele é tão fofo!
— E ele a segue por toda parte, como se você fosse a mãe dele.
— Eu não sabia que tinha notado.
— Eu imaginava saber cada detalhe do que acontece à sua volta, Isabel, mas não me dei conta do que aconteceu hoje. Simplesmente falhei.
— O quê? Como assim?
— Ignorei o óbvio, ao passo que você percebeu o que se passava e entrou em ação.
— Quer dizer com Gwen?
— Sim.
— Fez o que qualquer bom marido faria. Eu apenas conversei com Tom, e depois com Gwen.
— O que devia ter sido minha responsabilidade.
— Não falhou em nada, Artur. Quantos fardos acha que pode carregar? Não que Gwen seja um fardo. Por sinal, gostamos muito da tarde que passamos junto dela. Gwen foi maravilhosa. N ão sei o que vocês conversaram, mas, pelo que observei, ela não guardou nenhum rancor. Na verdade, desde que a conheci, Gwen nunca me pareceu tão em paz.
— Ela é realmente uma boa pessoa — confirmou Artur. — Apenas jovem demais. N ão sei o nde eu estava com a cabeça quando... — Ele a beijou outra vez. — N ão importa. Eu queria apenas vê-la e ter certeza de que estava tudo bem.
— Está aliviado ou triste após sua conversa com Gwen?
— Mais como a primeira opção e menos como a última.
— É compreensível.
— Logo depois, tive esse desejo incontrolável de vir ver se estava bem. Não que eu acredite... Ou melhor, essa é uma desculpa muito fraca. Eu só queria ver você.
— Ah, Artur! — suspirou Isabel, afastando um fio escuro do rosto moreno. — Nossa, o cabelo dele havia crescido tanto nos últimos dias! — Tem muitos problemas com que lidar no momento. Eu deveria ser a menor das suas preocupações.
— A preocupação era só fingimento. Ver você era questão de pura necessidade.
— Nós nos veremos mais tarde. Precisa voltar ao que mais preza.
Ele a fitou, perplexo.
— Isabel, se eu não deixei bem claro, você é o que eu mais prezo nesta vida agora.
— E quanto a Camelot?
— Não passa de um lugar, ora. Sim, eu amo Camelot. Mas, por acaso, eu posso abraçar Camelot à noite? Posso me deitar com Camelot e partilhar o que aconteceu durante o dia? Sem nem mesmo um momento de reflexão eu abriria mão deste reino pelo restante dos meus dias se, a cada momento desses dias, eu ficasse a seu lado.
— Ah, Artur, eu jamais iria lhe pedir isso!
— Claro que não. Esse é outro motivo pelo qual eu te amo, Isabel. Portanto, nunca duvide das minhas prioridades. — Artur a beijou, em seguida a soltou. — Aliás, n ão questionou a minha resposta corretamente.
Isabel estava tão atordoada e confusa, e com o coração tão cheio de emoções, que não sabia com o que lidar primeiro.
— Eu me esqueci da resposta — confessou, por fim.
— Vou repeti-la: “Aquela que Artur, o rei de Camelot, passou a amar tanto que ele faria qualquer coisa para protegê-la”. — Ele sorriu. — A sua primeira resposta foi um pouco insultante, já que se tratava de uma cadela babona. Mas vou perdoá-la, desta vez, e permitir que faça outra escolha.
— “Quem é a condessa Isabel?” — sussurrou ela.
— Agora, sim...
— Tenho uma para você.
Artur abriu novo sorriso.
— Como você mesma disse tantas vezes... Pode mandar!
— “A mulher que se recusa a permitir que desista do seu reino, dos seus sonhos e do seu amor por ela. A mulher que está pronta a enfrentar qualquer batalha, a fim de manter o sonho de Camelot vivo.”
Artur a segurou pelo rosto.
— A questão deveria ser: “Aquela que o rei Artur preferiria manter cativa a deixar correr perigo em seu nome”. Isso nunca vai acontecer, Isabel. Não consigo conceber uma coisa dessas.
— Alguma vez lhe ocorreu que as mulheres podem ser úteis por detrás das linhas de batalha? Permita-nos tomar parte nesse tipo de coisa também.
— Não. Não quero nenhuma mulher ferida. Quanto a você... Eu não sobreviveria se fosse atingida. Eu simplesmente não conseguiria mais viver.
— E, no entanto, espera que eu — ou qualquer uma de nós — permaneça por perto, vendo-o ser ferido ou coisa pior?
— Sim. É o que devo fazer. Por favor, Isabel, não faça com que eu me preocupe com você, caso uma batalha venha a acontecer. Eu nem conseguiria fazer o meu trabalho.
— E existe esse risco?
Artur hesitou, depois concordou, enfim.
— Há uma possibilidade. Os que não foram convidados para se reunir em torno da távola se uniram, de acordo com os relatórios que recebi. Temos de nos preparar.
— Então, nós o faremos.
— Isabel, não.
— Não permitir ei que ninguém lhe faça mal sem lutar. Não faria o mesmo por mim?
— Não é a mesma coisa.
— É exatamente a mesma coisa! Se acha que as mulheres são incapazes de fazer o que devem a fim de proteger seu rei, seu castelo, sua vida, está subestimando a todas nós.
— Eu não as subestimo. Sinto necessidade de protegê-las. Você, mais do que todas as outras.
— De quanto tempo dispomos? — quis saber Isabel.
— Isabel...
— Quanto tempo, Artur?
— Minha melhor estimativa, segundo as informações de meus homens, é de três semanas. Acreditamos que eles planejam atacar quando todos os cavaleiros convidados para a távola estiverem reunidos aqui.
— Pois esse plano me parece uma grande estupidez.
— Não deve haver traidores sentados entre nós.
— Sabe quem eles podem ser?
— Tenho uma vaga ideia.
Isabel soltou uma espécie de rosnado.
— As mulheres não apenas irão ajudar como chutarão os traseiros desses canalhas!
— Isabel...
— Sim, Artur?
— Você me excita e ao mesmo tempo me põe medo, sabia?
— Espero que só faça uso da excitação esta noite. Quanto ao medo, permita-me cuidar dele.
— Mas sou eu quem deve protegê-la.
Ela o socou de leve no braço.
— Ao menos uma vez, Artur, acostume-se com a ideia de que as mulheres podem ser muito úteis ao cuidar de seus homens. Ao menos uma vez.
— Não permitirei que entre na batalha caso ela venha a ocorrer. Isabel, por favor... N ão consigo nem mesmo conceber essa possibilidade! Eu amo você. Será que não percebe?
— Claro que percebo. E se eu prometer que nenhuma de nós, mulheres, vai ingressar em qualquer tipo de luta?
Ele a fitou com olhos estreitos.
— Tem algum plano escondido na manga?
Ela fez a mais inocente das expressões.
— Eu juro, por tudo quanto é sagrado, que não iremos pisar no campo de batalha.
— Você tem um plano.
— Eu juro, por tudo quanto é sagrado, que não vamos entrar no campo de batalha!
— N ão sei se ri o ou fico morto de preocupação.
— Prefiro a primeira opção.
— Isabel, eu não suportaria se alguma coisa lhe acontecesse. O amor que sinto por você é tão... N ão posso nem mesmo descrever meus sentimentos! Só sei que , se eu a perdesse agora que a encontrei, eu... Não consigo imaginar uma coisa dessas acontecendo!
Ela riu enquanto observava a expressão tensa, calorosa e preocupada no rosto moreno.
— Não sou a única se preparando para a batalha, Artur. Como acha que me sinto, sabendo que está fazendo isso?
— É o meu trabalho.
— Ah, sim, o seu trabalho. E eu devo sorrir, preparar um almoço para você, acompanhá-lo até a porta e dizer: “Espero vê-lo vivo na hora do jantar, querido. Seria uma pena desperdiçar o seu prato preferido, apesar de Pix poder apreciá-lo!”.
Ele a fulminou com o olhar por um momento, então riu e a puxou para mais perto.
— Essa foi a conversa mais estranha que eu já tive na vida, mas eu te amo mesmo assim.
— Não faz mais do que a sua obrigação — rebateu Isabel, sentindo-se repentinamente tensa e mal-humorada. Ela n ão fazia ideia do perigo que podia estar à espreita . Artur havia conseguido manter essa informação bem guardada no bolso do colete. Ou da túnica. Ou da malha... que fosse. — N ós, mulheres, não vamos ficar de braços cruzados, Artur. Temos nossos métodos.
— Está decidido. Caso aconteça alguma coisa, não vou permitir que vocês, mulheres, interfiram. Muito menos a mulher que eu amo!
— As mulheres não costumam tomar parte nessas guerras idiotas que vocês, homens, lutam.
— O que quer dizer?
— Temos muito mais recursos do que imaginam.
— Às vezes a senhora me preocupa deveras, condessa.
— Pois eu deveria me preocupar com você o tempo todo.
— É justamente isso o que me aflige.
— Bem feito.
— Posso vê-la esta noite? — perguntou Artur com um suspiro.
— “A mulher que deseja ficar com Artur esta noite mais do que qualquer outro na Terra.”
Ele sorriu para ela.
— Tenho que pensar um pouco...
— Vamos, preciso ouvir dos seus lábios!
— “Quem é a mulher que Artur ama e deseja mais do que qualquer outra?”
— Perfeito. Bônus duplo para você.
— Esta noite, então?
— Sim. Por favor.
Conforme Artur deixava o quarto, Isabel o ouviu dizer:
— Espero que as unhas dos seus pés já tenham secado, Mary. E as dos seus também, Gwen.
— Temos que adiantar a data do seu casamento, Mary — decidiu Isabel, ainda se recuperando de um enorme constrangimento. Pelos deuses, Mary e Gwen ficaram escutando tudo do lado de fora da porta!
Ambas, no entanto, entraram como se não houvessem escutado coisa alguma. As três se entreolharam e, mais uma vez, não puderam se conter. Caíram na gargalhada.
Logo ficaram sérias, contudo, quando Isabel anunciou:
— Todas as mulheres de Camelot, inclusive as convidadas como eu... — confirmou ela com um gesto de cabeça para Gwen — ... precisam se preparar para proteger os homens. Eu tenho um plano. Ou parte dele. De qualquer modo, temos que nos organizar e precisamos envolver todas as criadas. — Estendeu a mão. — Posso contar com vocês?
— Pode! — declarou Mary, segurando a mão dela.
— Comigo também — jurou Gwen, apertando as mãos de ambas.
— Ótimo , Gwen, porque, para conseguirmos nosso objetivo, preciso que use a sua coroa com vontade.
— Considere feito.
— Muito bem. Mary, que tal se casar com James depois de amanhã?
Os olhos da menina se arregalaram.
— Está brincando?
— Não. Seu vestido está pronto, não está?
— Sim.
— Eu posso cuidar da festa — resolveu Isabel. — Gwen, você tem um talento especial para lidar com flores... Poderia se encarregar da decoração do salão.
— Claro!
— Excelente. Amanhã, temo que o nosso recreio precise ser usado para nos livrarmos daqueles juncos e esfregarmos o salão principal. Quando Mary e James trocarem seus votos, aquele lugar precisa estar cheirando a primavera, e não como um chiqueiro!
Ambas as mulheres concordaram.
— Mary, receio que vá ter de trabalhar amanhã. James precisa de um corte de cabelo, assim como Artur.
— E Lance — completou Gwen.
— E Lance... Embora eu ache que ele fica lindo com aquele cabelo meio desgrenhado — provocou Isabel.
Gwen sorriu enquanto admirava as unhas dos pés.
— Fica, sim. Mas um bom corte de cabelo não tira pedaço de ninguém.
Capítulo Vinte e Três
— Milady?! — chamou um homem enquanto ele passava por Isabel, no salão principal, onde ela estava de joelhos, esfregando o chão.
Ela olhou para cima, para baixo, depois para cima novamente.
— James?!
Ele parou, o rosto — agora livre de pelos — um pouco vermelho.
— Sim, condessa.
Isabel se levantou, puxando o corpanzil pelos braços, de modo que o rapaz a encarasse.
— James! Pelos deuses, olhe só para você!
— Não posso fazer isso, condessa, porque estou olhando para a senhora.
Ela riu e enxugou a testa.
— Por que diabos andou escondendo esse rosto bonito por detrás de tanto pelo?
— Eu... Condessa, por acaso está brincando? Sinto-me quase nu!
— Caramba, James! — exclamou Isabel, chocada. Sem todos aqueles pelos e cabelos ele parecia um George Clooney mais moço, ainda que bem mais forte e cerca de trinta centímetros mais alto. Tanto melhor! — Por que andou escondendo todo esse visual? Diga a verdade. — Isabel o estudou. Estava sem palavras.
— Eu não sabia que estava fazendo isso. Mas, obrigado, condessa, apesar de eu estar me sentindo como um bebê recém-nascido — resmungou James, esfregando o queixo.
— Mary foi implacável...
— Ah, foi. De fato. E, no momento, seu prisioneiro é o rei.
Ela sorriu.
— Agora consigo enxergar o que Mary sempre viu. Sorte dela ter um noivo tão bonito!
— Eu é que sou o sortudo, condessa. — Ele olhou ao redor. — Aliás, os pés dela ficaram muito bonitos — sussurrou ele.
— Assim como ela própria!
James assumiu uma expressão sonhadora.
— Verdade. Não sei como lhe agradecer pela bondade com que a tem tratado. Mary está muito entusiasmada com o vestido que ganhou de presente.
— Ela é a melhor das amigas, James. E aposto que Mary também será muito amiga sua, assim como uma ótima companheira de vida.
Ele esfregou os olhos, comovido.
— Não sei, mesmo, como lhe agradecer pela sua generosidade.
— Tudo o que eu quero é que vocês dois sejam felizes. Eu gostaria de lhe plantar um beijo na bochecha, se eu tivesse uma escada que me levasse até aí...
James inspecionou o salão mais uma vez.
— Um beijo de uma condessa seria uma honra — falou, abaixando-se, de modo que ela pudesse lhe beijar a face.
— Tudo de bom para vocês, James!
— Tudo de bom para a senhora e o meu rei também, condessa. Tenho o pressentimento, e sei que ele está certo, de que nasceram um para o outro. Assim como Mary e eu.
James se afastou antes que Isabel pudesse dizer mais alguma coisa.
Ela balançou a cabeça e voltou a esfregar o chão. Gwen estava lá fora com várias criadas, todas ocupadas em dar cabo dos juncos. Pobre delas... De qualquer modo, Gwen havia jurado ter uma fórmula que as livraria de ficar fedendo.
— Isabel!
Ela quase caiu com o susto. Ergueu a cabeça e se deparou com Artur com o cabelo e a barba feitos. Estava maravilhoso.
— Nossa ! — exclamou, levantando-se. — É o rei mais bonito que já conheci na vida!
— Quantos reis já conheceu, exatamente? — indagou ele.
Na verdade nenhum. A não ser ele, claro .
— Se quer dizer nu... Apenas um.
Artur tentou não sorrir e falhou.
— Isabel, por que está de quatro no chão?
— Estou limpando, oras. Acredite, este salão estava precisando de uma faxina.
— Mas há criadas para fazer tal coisa.
— Certo. E iguaizinhas a mim. Eu posso fazer essas coisas, Artur. A propósito, está muito gostoso hoje...
— Não tente me distrair com palavras que eu não compreendo — ralhou ele. — Não quero você esfregando o chão.
— Isso é péssimo, pois posso ajudar a limpar como qualquer pessoa.
— Mas temos empregados que...
— Artur! Se eu não me dispuser a ajudar, o que vão pensar de mim? Não tente, e estou falando sério, me impedir de ajudar a limpar o salão!
— Há pessoas que...
— Nem pense em chamá-las! Por acaso fica de braços cruzados enquanto seus homens trabalham?
— Não, mas...
— Fica parado enquanto seus homens lutam nas batalhas por você?
— Não, só que...
— Então, por favor, não fique aborrecido quando eu faço o que precisa ser feito. Não sou melhor do que ninguém porque tive a sorte de nascer na realeza. — Isabel não fazia ideia se aquilo era verdade naquela existência, porém continuaria a afirmá-lo. — Por acaso é mel hor do que os outros porque conseguiu arrancar uma espada de uma pedra?
— Não.
— Temos todos o mesmo sangue vermelho, Artur. Somos iguais.
— Sim, mas...
Isabel esperou, contudo Artur continuava inconformado.
— “Sim, mas” o quê?
— Esqueceu de limpar esta parte — apontou ele com um suspiro e se afastou em direção à sua sala.
Pelos deuses, ela amava aquele homem. Sem dúvida iria repreendê-lo se fosse necessário... mas da forma mais carinhosa.
Com um suspiro, ela mudou de posição e começou a esfregar o local que Artur havia mostrado.
***
A cerimônia de casamento entre James e Mary quase fez Isabel chorar. Eles pareciam tão verdadeiro s e sinceros! E Mary dera uma linda noiva.
Gwen havia se superado. O salão ficara espetacular com velas e flores por todos os lados. Nos tempos modernos, pensou ela, Gwen seria a cerimonialista de maior sucesso em todo o estado de Oklahoma. O resultado fora de tirar o fôlego.
Obviamente, ela, Isabel, nunca presenciara um ritual daquele. Não tinha sido uma cerimônia religiosa e, no entanto, fora muito... espiritual.
— Eu prometo — começou James.
Como padrinho, Artur se colocou diante deles.
— Irá honrar sua esposa.
— Sim.
— Irá protegê-la e mantê-la, custe o que custar.
— Sim.
— Isabel? — chamou Artur.
Ela se posicionou diante dos noivos e os fez entrelaçar as mãos, como ditava o costume.
— Vai honrar seu marido?
— Sim.
— Irá protegê-lo e mantê-lo custe o que custar?
Aquilo estava fora do script . Uma esposa deveria apenas honrar os desejos e obedecer às exigências do marido. Porém ela não teria conseguido enunciar tais palavras.
— Sim — interveio James na proclamação antes que os protestos tivessem início.
— Sim, eu vou — reafirmou Mary.
— Excelente — concluiu Isabel. — Dessa forma, serão muito felizes juntos. — Ela se inclinou e beijou a bochecha de Mary. — James é um homem de sorte, milady — completou baixinho.
Mary olhou para ela e sorriu.
— É, sim.
Artur encerrou a cerimônia, em seguida chamou todos para a celebração.
***
— Pelo inferno de Hades, o que foi aquilo? — perguntou Artur a Isabel, quando finalmente conseguiu encurralá-la.
— O quê?
— Cerimônias de casamento não são assim. Você...
— Saí do script , sim, eu sei. Mas foi um ritual muito mais verdadeiro.
— Verdadeiro?
— Artur, se você e eu estivéssemos nos casando...
— Está querendo dizer: “Quando nós nos casarmos...”.
— Está certo, vamos continuar a sonhar. Quando nos casarmos , não pense, nem de brincadeira, que vou lhe obedecer em tudo. Eu não tinha como pedir a Mary que fizesse uma coisa dessas e, por esse motivo, improvisei.
Ele a fitou por um momento, depois caiu na risada.
— Ah, Isabel, você é mesmo uma charada! E um prazer constante, devo acrescentar.
— Vou tomar isso como um elogio. Acho.
— Pode tomar como um elogio. Acho.
— Estamos conversados. Agora vamos comemorar.
A festa durou até a noite, com a comida, o vinho e o hidromel desaparecendo com a mesma velocidade com que eram providenciados. Para o mérito dos que tinham ajudado a preparar a recepção, todos pareciam realmente felizes por Mary e James. Ou então estavam disfarçando muito bem.
Isabel sabia a quem deveria agradecer por tudo aquilo. Caminhou até Gwen, que parecia concentrada numa conversa com Jenny. A moça torcia as mãos e balançava a cabeça.
— Sua voz é linda, Jenny! Vai dar tudo certo — ouviu a rainha dizendo. — Basta cantar como fez esta manhã.
Jenny assentiu por fim e, em seguida, saiu correndo.
— Devo dizer, lady Guinevere, que fez uma festa de arrasar — elogiou Isabel, sincera.
Gwen sorriu para ela.
— Nós fizemos uma festa “de arrasar”. Eu não teria conseguido sem você.
— Ou sem um zilhão de pessoas ajudando!
— Verdade. — riu Gwen.
Ambas se voltaram quando Jenny começou a cantar. E foi tão bonito! Isabel não conhecia a canção, contudo sabia reconhecer uma boa voz.
Todos bateram palmas ao final, como já era de se esperar.
Céus! A palavra “impressionante” nem sequer começava a descrever o que acontecera ali.
— Jenny é muito boa!
— E eu não sei? Ela canta para mim durante o meu banho.
— Caramba! Que sorte a sua!
— Verdade.
— Por falar nisso, o que disse à equipe de criadas? — quis saber Isabel.
— N ão sei o que está querendo dizer — respondeu Gwen, girando o vinho no cálice, tensa.
— Tenho certeza de que sabe.
Gwen sorriu. Em seguida, tomou um gole da bebida.
— Eu apenas mencionei como estava entusiasmada com Mary e James. Disse que não seria nenhuma vergonha compartilhar com eles sua alegria esta noite.
Isabel assentiu.
— Muito apropriado. E eficiente. Foi muita generosidade sua, Gwen.
— Era o mínimo que eu podia fazer.
— Escute, esta não é uma conversa de bêbada — garantiu Isabel. — Sou eu mesma dizendo: eu realmente a aprecio e admiro! Quando se dedica a alguma coisa, você se supera, Gwen.
Os olhos da moça se encheram de lágrimas, e ela olhou ao redor.
— Esta também não é uma conversa de bêbada — replicou Gwen baixinho. — Posso compreender por que Artur é tão apaixonado por você.
Foi a vez de Isabel combater as lágrimas.
— Não importa o que o futuro nos reserve. Espero que sejamos sempre amigas.
— É o que eu espero também. Quem sabe, algum dia, não nos tornemos até “amigas de dedinho”?
Isabel riu e quase engasgou com o vinho. Quando conseguiu engolir, perguntou:
— E então? O que achou do cabelo de Lance?
Os olhos da moça seguiram direto para seu amante.
— Ele ficou lindo, não ficou?
Quando se preferia os rapazes com cara de bebê, pensou Isabel, perguntando-se como os gostos podiam diferir tão drasticamente. Em sua opinião, Artur, com aquela aparência robusta — Ah, como ele era lindo! — era muito mais sexy.
No momento, porém, estava feliz pelo fato de sua ideia de “atraente” ser bem diferente da de Gwen.
— Ficou, sim — respondeu, chegando à conclusão de que a diplomacia seria a melhor forma de ela não se dar mal. — E o que me diz de James?
— Quem diria! — exclamou Gwen.
— Mary diria, oras! Ela enxergou muito além das aparências. Ela o enxergou com o coração. No fim, James é um lindo gigante.
Gwen riu outra vez.
— Até mesmo Mordred ficou mais bonito.
— Ele precisa de mais alguns anos para ganhar pontos na aparência, mas realmente teve sorte em se tratando de genética. Quando olho para ele, vejo Artur com a mesma idade.
— O que fez, Isabel?
— Em relação a quê?
— Alguma coisa aconteceu. Até pouco tempo atrás, Mordred parecia viver para torturar o pai e, de repente, eles estão rindo e se abraçando! Eu os vi até mesmo treinando com a espada juntos, esta manhã. Tenho a firme impressão de que você tem algo a ver com essa transformação. — Gwen fez uma pausa e bebeu outro gole de vinho. — E talvez algo a ver com essa lesão no joelho dele.
— Talvez — respondeu Isabel.
Elas se entreolharam e ambas caíram na risada.
Isabel levantou o dedinho e Gwen o olhou por um momento. Então fez o mesmo, e elas os entrelaçaram, sorrindo.
— Isto significa muito para mim, Isabel.
— Para mim também. — Ela riu. — Esta não é a amizade mais estranha do mundo?
— Com certeza! — concordou Gwen. — Mas é divertida, não acha?
— Ninguém iria acreditar.
— Por isso mesmo é divertida.
Um barulho forte quase fez as duas caírem dos chinelos. Elas se voltaram, e avistaram Artur em pé sobre uma das enormes mesas, chamando a atenção de todos enquanto batia com um talher em um cálice .
— Por favor, pode o casal feliz dar um passo à frente? — pediu ele com sua voz grave.
Isabel o observou, sentindo o coração quase explodir. Artur tinha uma presença tão marcante! Era tão grande, forte e, pelos deuses , tão lindo!
E ele a amava. Ele a desejava! Queria tê-la e protegê-la.
Talvez, com o tempo, ela conseguisse fazer com que ele fosse menos machista, mas, no momento, estava impressionada com tudo o que ele era, tudo o que representava. Artur era um rei, mas não era nenhum ditador. Tratava a todos igualmente e valorizava todas as pessoas em Camelot, considerando-as como se fossem da família. E todos ali, ao menos até onde ela pudera notar, o adoravam e admiravam.
E o mais maravilhoso de tudo: Artur a amava. Ela não fazia ideia por que, porém, mais uma vez, não pretendia questioná-lo.
Céus, mal podia respirar apenas de olhar para ele!
— Por favor, que todos os criados se juntem a nós — proclamou Artur. — Eles trabalharam muito para fazer desta noite um sucesso.
Houve um momento de silêncio enquanto Mary e James se aproximavam da mesa. Servos fizeram o mesmo, vindo de todas as partes do castelo.
Artur olhou ao redor, atento.
— Bem, eu sei que todos estão aqui, mas, no momento, não posso identificá-los. De qualquer modo, James e Mary, talvez tenham estado muito entusiasmados e ocupados para tomar nota, contudo a rainha e a condessa trabalharam duro como os demais para tornar esta noite tão memorável para vocês quanto fosse possível.
Os gritos e assovios quase romperam o tímpano de Isabel. Ela segurou a mão de Gwen e a apertou. Que estranha aliança aquela!
James também se pôs em cima da mesa, e Isabel pensou ouvir uma exclamação coletiva. Era como se todos estivessem se perguntando se haveria uma mesa na Terra forte o bastante para sustentá-lo.
Graças ao carpinteiro, aquela pareceu dar conta do serviço.
— Eu também gostaria de agradecer a todos — declarou o noivo. — Em especial à rainha e à condessa por todo o trabalho que tiveram para que a minha nova vida com minha linda esposa, Mary, começasse com tanta alegria. Nosso rei pode achar que não me dei conta de tudo o que fizeram, mas, na verdade, fui testemunha de todo o seu esforço. Mary e eu não sabemos como demostrar o nosso reconhecimento... — O enorme e gigantesco James teve que enxugar os olhos. — Nossa eterna gratidão! — Virou-se para o povo: — Camelot não é o maior reino de todos!?
Mais uma vez, os gritos e aplausos fizeram tremer os esteios.
Mas castelos tinham esteios? O que eram esteios, afinal?
— Existe melhor rei do que sir Artur!?
De novo, gritos e aplausos ensurdecedores.
Artur parecia prestes a bater com o cálice na cabeça de James.
— James, você é meu melhor amigo — falou ele, tenso. — Mas temo que, se não descer desta mesa agora, ambos desabaremos em um mar de madeira lascada!
— Ao rei Artur! — bradou James, antes de começar a descer sem muita elegância.
— Ao nosso rei! — respondeu o salão inteiro , aplaudindo.
— Diabos, James, esta é uma festa para recém-casados ! — ralhou Artur. — Precisamos manter o foco!
— O quê? — indagou Gwen.
Isabel mordeu o lábio. Artur estava repetindo frases que, vez ou outra, ela deixava escapar!
— Mary e James — continuou ele. — Aqui estão as chaves do seu chalé. Tenham uma noite muito, muito feliz!
— Ah, senhor, que presente maravilhoso!
— Onde está a rainha? — perguntou Artur. — Rainha Guinevere, por favor... Apresente-se para dizer o restante a eles.
Gwen apertou a mão de Isabel.
— Você é quem deve fazer isso.
— Não! — Isabel balançou a cabeça. — Você é a rainha, Gwen. Vá!
Gwen avançou, hesitante, e Artur desceu da mesa para recebê-la.
Eles formavam um casal tão bonito, Isabel estava pronta para atirar nos dois.
Gwen sorriu conforme se tornava o centro das atenções, a coroa brilhando sobre a cabeça.
— Não, eu não posso levar o crédito pelo presente que vem a seguir, pois este foi uma insistência de Isabel, a condessa de Dumont. Por favor, condessa... Venha até aqui para fazer o comunicado a Mary e James.
Isabel quis desaparecer.
— Não ! — protestou, balançando a cabeça.
Gwen apontou em sua direção.
— Vá buscá-la, James.
Ver-se literalmente carregada para o centro das atenções, e a quase meio metro do solo, não era a entrada triunfal que Isabel tinha em mente. Mas foi isso o que James fez, com Mary batendo palmas e rindo o tempo todo.
— Perdão, condessa, mas foi convocada pela rainha — desculpou-se ele enquanto a colocava no chão.
— Vou me vingar por isso. Não sei quando nem como, mas vou me vingar — prometeu ela ao marido de Mary. — Portanto, trate de tomar cuidado daqui para a frente!
— Tomarei, condessa. Estou até tremendo.
Ela quis fulminá-lo com o olhar, mas como poderia?
— Curve-se — ordenou.
James o fez, e ela plantou um beijo em sua bochecha.
— Seja feliz, James. E trate de fazer Mary feliz também, ou terá de se ver comigo.
— Agora estou mais assustado ainda!
— É bom mesmo. I sto é ridículo — falou Isabel à multidão. — O rei e a rainha é que são os responsáveis, não eu.
— Não é verdade — contrapôs Artur. — Enquanto a rainha Gwen e eu ponderávamos sobre que presente oferecer a Mary e James, foi a condessa quem o sugeriu. Portanto, condessa, por favor, conte a todos.
Isabel se voltou para o casal, e não conseguiu se conter: ofereceu o dedo mindinho a Mary. Mary riu e as duas os entrelaçaram mais uma vez.
Em seguida, ela olhou para Gwen.
— Vossa Alteza?
— Sabe que não gosto quando me chama assim — protestou Gwen; no entanto, sorriu e também esticou o mindinho para juntá-lo aos delas.
— Amigas! — exclamaram as três, mantendo os dedos entrelaçados no ar. Depois se separaram, rindo.
Quando finalmente Isabel ergueu o olhar, deparou-se com quase todos no salão a fitá-las com estranheza. Inclusive Artur.
Ela o ignorou e limpou a garganta.
— O rei e a rainha são modestos demais para admitir que seu presente para Mary e James não foi apenas uma cabana para que eles passassem a noite. O presente é a própria cabana, de modo que os dois possam viver nela pelo tempo que desejarem.
Mary deixou escapar uma exclamação, e James cambaleou. Suas expressões atordoadas eram impagáveis.
Pelos deuses, como queria estar com uma câmera ali!
Mary estendeu os braços para ela e Isabel a amparou, esperando que os soluços da menina fossem aplacados.
— Mary, o presente não é meu ... É do rei e da rainha. Devia estar agradecendo a eles! — Ela puxou o lenço que trazia no punho e enxugou os olhos da amiga. — Mary... O rei e a rainha... O presente é deles !
Mary se recompôs, então se voltou para Artur e Gwen. Tentou fazer uma reverência, contudo suas pernas se encontravam, obviamente, um tanto instáveis.
Artur a segurou pelo braço.
— Já basta disso.
— Nós não temos... — soluçou Mary — ... como lhe agradecer o suficiente!
— Vocês podem tentar — respondeu Artur, sorrindo. — Não vou ficar ofendido.
Isabel lançou-lhe um olhar de desgosto, porém Artur deu sua tacada final: piscou para ela.
Mais uma vez, ela se deu conta de que estava perdida.
A palavra “morta” nem sequer começava a descrever como Isabel estava se sentindo. E, sem Mary ali para ajudá-la a se livrar daquele vestido horroroso, ela estava realmente em apuros.
Já estava pensando em se jogar na cama de vestido e tudo quando escutou uma batida na porta.
— Obrigada, Jenny, estou precisando, mesmo, de alguém para me ajudar a me livrar destas roupas! Entre!
Foi Artur quem entrou.
— Não sou a Jenny, porém terei imenso prazer em ajudá-la a se despir.
Isabel abriu um sorriso fraco.
— Estou exausta, Artur, mas também terei imenso prazer em aceitar a sua ajuda para que eu me livre desta coisa .
— O prazer é todo meu, senhora.
Ela deu as costas, de maneira que ele pudesse trabalhar nas amarrações do vestido.
— Podemos ficar em apuros. É possível que Jenny apareça aqui a qualquer momento.
— Eu dei o restante da noite de folga para Jenny.
— Mas Jenny é a ama de Gwen!
— Eu sei. Acontece que Gwen também deu folga a ela uma hora atrás. Pouco antes de desaparecer com Lance.
— Ah, eu sinto muito.
— Por que razão?
— Por Gwen e Lance. Por você... Ah, droga, eu sinto muito, e pronto.
Artur a fez se virar para ele.
— Por que está tão incomodada, Isabel? Diga.
— Porque acho que essa história ainda deve fazê-lo sofrer de alguma forma.
— Pois, sabe o que mais me magoou esta noite? O fato de eu não poder apresentá-la como o meu amor e minha esposa. O fato de essa vontade estar acabando comigo... E o de você ainda não ser a minha rainha.
— Eu não dou a mínima para ser rainha, Artur.
— Mas “dá a mínima” para ser minha esposa?
Ela entreabriu os lábios, inconformada.
— Quer uma notícia? Já é casado!
— Vamos fingir apenas por um momento. Se eu já não fosse casado e pedisse a sua mão, diria “sim” ou “não”?
— Está me pedindo para fingir uma resposta?
— Mais ou menos — confirmou Artur, embora sua expressão contivesse uma pontada de hesitação. — Se eu a pedisse em casamento, iria aceitar, Isabel?
— Depende.
— Do quê?
— Se iria querer se casar com uma mulher que não é mais virgem.
Artur pareceu ponderar.
— Depende.
— Do quê?...
— Do quanto eu desejasse essa mulher.
— Desejo e amor são duas coisas muito diferentes.
— Não necessariamente — contrapôs ele, erguendo um dedo. — Se o desejo nasce do amor, então eles estão interligados.
Isabel suspirou. Odiava quando um homem fazia sentido. Eles deveriam ser todos uns tolos.
— Está certo — admitiu a contragosto. — Há lógica no que está dizendo.
Artur pareceu muito satisfeito consigo. Beijou-a com paixão, o que também não era nenhum ponto a seu favor, refletiu Isabel. Ser beijada daquele modo não era uma coisa muito boa quando seu cérebro parecia se recusar a trabalhar.
— Esse ponto é discutível, Vossa Alteza — insistiu ela, recuperando o fôlego.
— Não é , não . Na verdade, a questão é bastante simples: quer se casar comigo ou não?
Isabel arregalou os olhos.
— Está falando sério? Ou ainda estamos fingindo?
— Estou falando sério.
— Como você já é cas...
— Não! Neste momento, agora , estamos livres para nos casarmos. — Ele parou. — Está bem... Talvez haja um pouco de fingimento, uma vez que as coisas não são exatamente assim, mas elas poderão ser em breve. Será que concordaria em se tornar minha esposa? Quer se casar comigo, Isabel?
— Sim — sussurrou ela. — Eu o faria num piscar de olhos.
Artur sorriu, segurou-a pela cintura e a girou até ela quase desmaiar.
— Viu como não foi difícil?
Isabel ainda estava vendo estrelas.
— Em parte... não.
Ele a colocou de volta ao chão, e ela precisou se segurar nos braços fortes para manter o equilíbrio. Artur a beijou novamente; em seguida, a segurou pelo rosto.
— Está sendo sincera, Isabel? Mesmo?
— Artur... — Ela afastou as mãos dele. — Por favor, diga-me o que significa isso tudo. N ão está livre para se casar comigo. Nem mesmo para me pedir em casamento.
— Mas poderei estar. — Ele sorriu. — Muito em breve.
— Como assim?
— Andei estudando alguns documentos referentes a esse assunto. Não posso me divorciar de Gwen sem justa causa. E, sendo essa causa a infidelidade, como você sabe, haveria graves consequências.
— Sim, creio que a morte possa ser considerada bastante grave.
— Mas — ressaltou Artur — Gwen pode se divorciar de mim.
— Por que razão?
— Por negligência, abuso físico, infidelidade e outros crimes terríveis, dos quais não me recordo no momento.
— Mas não é culpado de nada disso! — protestou Isabel. — Está bem, talvez só de infidelidade, mas foi Gwen quem começou!
— O que importa? Podemos concordar com qualquer coisa que ela alegar. — Artur parou. — Exceto com infidelidade, porque não vou permitir que seja envolvida nessa história.
— Artur, ouviu o que acabou de dizer? Vai permitir que Gwen o acuse de faltas que não cometeu?
Ele assentiu com um gesto de cabeça.
— N ão dou a mínima para a acusação que ela escolher. Aqueles que me conhecem vão saber que não é verdade. O mais importante é que Gwen tem toda a liberdade de dissolver o casamento sem que ela ou Lance saiam prejudicados, e eu serei livre para fazer de você a minha esposa, Isabel, que é o que eu mais desejo no momento. — Artur sorriu. — Quero proclamar ao mundo que é minha, que nós somos um. N ão quero mais passar pelo fingimento que tivemos de suportar esta noite.
— Prefere ser rotulado como um espancador de mulheres, por exemplo?
— Eu não me importo! As pessoas podem me chamar do que quiserem. O que importa é que estarei livre para me casar com você.
Isabel não sabia se ria ou chorava, então apenas o enlaçou pelo pescoço.
— Artur, eu te amo tanto!
Ele a fitou, e seu sorriso desapareceu.
— Espero não ouvir um “mas” após essa frase.
Caramba, era exatamente a palavra que estava prestes a sair dos lábios dela!
Isabel reelaborou a sentença:
— N ão quero que leve a culpa por algo que não fez.
— Se isso me der liberdade para que eu me case com você, não importa.
— É importante para mim.
Artur passou a mão pelo cabelo.
— Maldição, Isabel, o que vamos fazer? N ão quero mais esconder meus sentimentos! N ão quero mais fingir que sou feliz em um casamento que é uma farsa!
— Altere a lei — respondeu ela, calma. — Você é o rei. Não deve ser tão difícil.
Ele esfregou o pescoço.
— É m ais difícil do que imagina. Não posso sacar a espada e brandi-la ao redor, dizendo: “Mudei as leis do reino porque quero que elas se adaptem aos meus propósitos e desejos!”.
— Que droga! — suspirou Isabel. — Decididamente, ser rei não é tudo o que dizem por aí.
Ele deu de ombros.
— Eu até poderia fazer isso, mas não seria justo com o restante do povo de Camelot. Que espécie de soberano eu seria, Isabel, se mudasse as leis conforme as minhas necessidades?
— Seria um ditador.
— Um o quê?
— Um dirigente vil, que muda as regras a seu bel-prazer.
— Eu jamais me tornaria um desses.
— Artur, se fosse um ditador, eu jamais teria me apaixonado por você. Se eu o amo, é justamente pelo homem maravilhoso que é. Mas nós vamos dar um jeito nisso. Vamos, sim.
“Se desejas ficar com teu bem-querer mais que sua amante, então, tens de ser.”
“Mas como, minha deusa, posso tal coisa realizar? Fazendo esse pedido, devo romper o colar?”
“Não, Isabel, o pingente não é para isso . As lágrimas dentro dele não vão te trazer compromisso.”
“Viv, isso não faz sentido! Perdão se te chamo assim, porém, decidi que já tenho o direito... Agora, apenas me diga como lidar com esse feito.”
“Segue o teu coração, mulher, assim como o meu eu segui, e tudo o mais ao teu redor irá se resolver por aqui.”
Aquilo, sim, fazia sentido!
Isabel sacudiu a cabeça de leve, a fim de voltar à realidade.
Àquela realidade, pelo menos.
— Diga-me, Artur, o que fez surgir esta conversa?
Ele sentou-se na cama.
— Sinceramente, acho que fiquei com inveja quando testemunhei os votos que James e Mary trocaram. Eu queria que estivéssemos na mesma situação. Não me entenda mal, pois estou muito, muito feliz pelos dois, mas não pude evitar: queria que fô ssemos nós dois ali.
Isabel se acomodou ao lado de Artur e entrelaçou os dedos com os dele.
— Eu me senti assim também.
— Na verdade, foi ainda pior — confessou ele com o polegar acariciando a palma da mão dela, como sempre fazia. Um gesto que ela amava, aliás. — Quando quis chamar minha rainha e esposa, quase falei o seu nome em vez do de Gwen.
— Artur!
— Pareceu-me tudo tão errado, Isabel! Como se estivesse de cabeça para baixo. Era você quem devia estar a meu lado. Foi você quem limpou o chão, orientou o pessoal da cozinha e...
— Calma, lá. Gwen também trabalhou à beça para que déssemos conta de tudo a tempo. Por favor, não subestime a participação dela.
— De maneira alguma. Eu sei que Gwen trabalhou muito. Mas é que obteve tão pouco reconhecimento por tudo o que fez! Eu fui obrigado a chamar Gwen, mas, por mais que eu também admire a contribuição dela, era você quem eu queria que estivesse ali. Ou melhor, era você a mulher com quem eu gostaria de trocar aqueles votos, Isabel. Eu sei que é terrível eu dizer isso e fico até envergonhado. Mas foi assim que me senti, e é assim que me sinto agora. O mais engraçado é que você é a única pessoa com quem me sinto seguro para confessar uma coisa dessas, mesmo sabendo que é o seu amor que eu tenho em vista. Que maneira estúpida de tentar conquistar o coração de alguém, não é mesmo?
— É a maneira mais perfeita.
Artur inclinou a cabeça.
— Quem é o maluco aqui? Eu ou você?
Isabel deslizou a mão pelo braço forte.
— Provavelmente nós dois. — Ela se acomodou mais para trás, na cama. — Acredito que o que nos atraiu foi a nossa honest... — Alto lá!, disse Isabel a si mesma. Toda a sua vida ali era uma mentira. — ... Era que podíamos ser honesto s quanto aos nossos sentimentos.
Artur continuou olhando para baixo, porém sorriu.
— Não doeu nada pensar que era a mulher mais linda em que eu já coloquei os olhos.
— Está precisando fazer um exame de vista, rei Artur.
Ele riu.
— Minha visão é perfeita, condessa. Na verdade, creio que ficou até melhor depois que você chegou.
— Bajulador.
Ele balançou a cabeça, ainda rindo baixinho.
— Ah, Isabel, não faz ideia da quantidade de homens que James e eu tivemos de afastar de você!...
— James?
— James me conhece como ninguém. Conhece os meus sentimentos e adivinha o que eu sinto. Assim como ele não permitiria que ninguém olhasse para sua Mary, não permitiria que nenhum outro em Camelot tentasse cortejá-la, Isabel.
— Mas...
— Ele acha que devemos ficar juntos. Está errado?
— Não.
Eles ficaram sentados em silêncio por vários minutos.
Por fim, Artur se levantou.
— Sei como está exausta, e não vou mais incomodá-la, linda dama.
— Espere!
— Sim, amor?
— Ainda preciso de ajuda com este maldito vestido. E... Bem, é verdade que estou cansada demais para até mesmo pensar em fazer amor, mas isso não significa que eu não queira um abraço. Por favor, fique.
O sorriso de Artur também foi de cansaço, contudo ele a puxou da cama e a fez se virar.
— “As três palavras que eu queria ouvir dos lábios de Isabel.”
— O que é “Por favor, fique?”.
— Certíssimo.
Em pouco tempo, ela se viu nua e na cama. Artur demorou um pouco mais para se livrar das roupas, uma vez que trajava uma espécie de “smoking medieval”, todo enfeitado para a cerimônia daquela noite.
E, Deus, ele havia ficado tão bonito naquilo!
Artur subiu na cama e a abraçou, envolvendo-a com o calor de seu corpo e um delicioso cheiro de homem.
— Seria muito fácil eu me acostumar com isto — murmurou ela. — Na verdade, eu poderia ficar viciada nisto.
— Isabel...
— Sim?
— Eu digo agora e direi até o meu último suspiro... Serei teu para sempre.
Os olhos sonolentos de Isabel se abriram.
“Viviane! Por favor, me ajude! Diga que não vai tomar Artur de mim!”
Nenhuma resposta. Nada.
Muito obrigada... , pensou ela, magoada.
— Eu também sou tua para sempre — falou baixinho.
A respiração profunda de Artur, entretanto, mostrou que ele já tinha adormecido.
Quando Isabel acordou na manhã seguinte, Artur já havia ido embora. Era uma sensação muito ruim e incômoda virar-se e ver o outro lado da cama vazio, contudo ela não devia estar surpresa. O homem costumava se levantar antes do amanhecer, trabalhava até a hora do desjejum, depois seguia direto para o treino com os soldados. Aquilo a aborrecia um bocado, no entanto, a batida que ouviu na porta a fez se lembrar de que também ela possuía uma longa lista de tarefas a cumprir.
— Por favor, entre.
Jenny pôs a cabeça no vão da porta.
— Sou eu, senhora.
— Graças a Deus... Trouxe chá, Jenny?
A moça sorriu e entrou, trazendo uma bandeja cheia de cheirosas guloseimas além do chá.
— O que é isso? Café na cama?
— O mestre disse que teve uma noite tão cansativa que decerto iria preferir descansar mais um pouco.
— Ah, o mestre é mesmo maravilhoso...
— Verdade, senhora — concordou a criada.
— Sinto muito por ter de trabalhar em dobro, Jenny.
— Ah, eu não me importo. Mary assumiu meus deveres em muitos momentos em que estive... doente.
— Doente. Sei.
Isabel bebeu o chá celestial e quase gemeu ao degustar os deliciosos ovos mexidos e os doces. — Isto está divino! — elogiou após um longo gole da bebida quente.
— Fico feliz por ter gostado, condessa.
— Meu nome é Isabel.
— Ah, eu não poderia!
Déjà-vu.
— Gostaria de um banho matutino, condessa?
— Na verdade, vou preferir tomar meu banho à tarde, srta. Jenny. Mas obrigada por perguntar.
Jenny deu uma risadinha. Era alta e magra, e tinha longos cabelos castanho-escuros. Poderia até ser modelo de passarela em Paris com um pouco de maquiagem e um guarda-roupa mais moderno.
— Se me permite dizer, senhora, Mary tem feito elogios rasgados à sua pessoa.
— Obrigada, Jenny. É muito gentil da parte dela . Eu adoro aquela garota.
— Mary me contou que conhece uma maneira de deixar as unhas dos pés muito bonitas...
— É um segredinho de mulher , mas, se quiser que eu pinte as unhas dos seus pés, eu o farei de bom grado.
— Verdade?!
— Verdade. Principalmente se me chamar de Isabel.
— Ah, eu não consigo!
Meu Deus, aquilo já estava perdendo a graça!
Isabel se perguntou se Artur poderia aprovar uma lei em que todos os criados fossem obrigados a chamar as pessoas por seu malditos nomes de batismo.
Sorriu para a top model à sua frente .
— Por favor, vá lavar os pés, Jenny. Esfregue-os e seque-os bem. Depois volte para que eu possa pintar as suas unhas.
Os olhos cinzentos da moça brilharam.
— Muito obrigada! Vou agora mesmo! Ah, eu me esqueci... A rainha Guinevere gostaria de trocar uma palavrinha com a senhora.
— Ela é bem-vinda a qualquer hora.
No mesmo momento, ouviu-se uma batida na porta.
— Entre, Gwen! — falou Isabel.
Mas era Mary, que flutuou para dentro do quarto com os olhos brilhando.
Isabel quase pulou da cama, porém percebeu que estava nua. Agarrou a pele de cima da cama e se enrolou nela.
— Mary, está maravilhosa! Imagino que...
— Isabel? — chamou Gwen. — Posso entrar?
— Timing perfeito! — exclamou ela.
— Ah! Vou perder a melhor parte! — lamentou Jenny.
— Depressa, então — decidiu Isabel. — Podemos jogar conversa fora até que retorne. Na verdade, preciso colocar uma roupa antes de você voltar!
Jenny saiu correndo do quarto.
— Acomodem-se no chão, senhoras, enquanto visto uma camisola. Prometi a Jenny que faria as unhas dos pés dela, e ela quer muito participar da nossa conversa. Espero que não vejam nenhum problema nisso.
Mary e Gwen negaram com um gesto de cabeça.
— Jenny é uma das poucas que nunca, nunca se voltaram contra mim — afirmou Mary. — Eu confio nela quase tanto quanto confio em você.
— Pois eu confio nela sem pestanejar — afirmou Gwen.
Isabel não p ôde evitar. Fitou os cintilantes olhos cor de safira de Mary e caiu de lado, rindo.
— Foi tão bom assim, Mary?!
— Ah, Isabel, eu não fazia ideia! Foi... Vocês sabiam que eles têm uma coisa grande, parecida com um pepino?
Gwen e Isabel olharam uma para a outra e caíram — literalmente — na risada.
Jenny voltou correndo para o quarto.
— Ah, não! O que foi que eu perdi?
— Estávamos conversando sobre pepinos! — falou Gwen, quase sufocando.
— E o que há de tão engraçado nisso?
— Eu não disse que era um pepino! — exclamou Mary. — Disse que é parecido com um pepino. É uma coisa que se projeta, assim, meio enrugada e...
— Pare! — pediu Isabel. — Eu vou partir o meu baço ao meio desse jeito!
Levou algum tempo, porém Gwen e Isabel pararam de rir, embora tivessem de evitar olhar uma para a outra a fim de conseguir tal proeza.
Quando Isabel conseguiu se recompor, olhou para Mary.
— E então?
— Então que eu descobri que gosto de pepinos... Principalmente dos grandes.
Todas caíram na gargalhada outra vez, inclusive Mary e Jenny. Ficaram rindo no chão até que Isabel conseguiu abraçar Mary.
— Estou tão feliz por você! Mesmo que eu nunca mais consiga tirar essa imagem da cabeça!
Mary a fitou.
— Imagino. Até porque vou ter que me deparar com ela todas as noites!
Isabel teve que segurar a barriga de tanto rir.
— Condessa?
Ela não ouviu. Continuava muito ocupada, rindo.
— Condessa!
Jenny sacudiu seu ombro.
— Acho que o rei a está chamando, senhora!
Isabel se sentou.
— Vossa Alteza? — indagou, e todas as risadas tiveram fim diante da expressão no rosto do rei. — O que acont...
— Posso lhe falar um instante?
— Fique à vontade.
— Em particular.
Isabel não estava nem mesmo totalmente vestida ainda, porém se pôs de pé e o seguiu até o corredor.
Artur a puxou, sem a menor delicadeza, para longe da porta.
— O que foi, Artur? O que significa isto?
— Quero que faça as malas e vá embora.
— O quê? O que foi que eu fiz!?
— Camelot está prestes a ser sitiada, e eu a quero em segurança, Isabel. Quero você a salvo em Dumont.
Ela o encarou.
— Não. Vou ficar e lutar com você.
— Não vai fazer nada disso. Vai se esgueirar pelo Oeste e depois para o Norte. Eu já mapeei a rota mais segura com Dick.
— É mesmo?
— Sim.
— Que pena. Porque eu não vou sair daqui.
— Isabel, escute... — recomeçou ele, segurando-a pelos ombros. — Uma batalha está prestes a estourar. Se a perdermos, as mulheres estarão completamente indefesas.
— Seu tonto! Acha mesmo que as mulheres não podem se defender por conta própria? Também somos uma força a ser enfrentada, isto é, se não forem estúpidos o bastante a ponto de nos ignorar.
— Pelos deuses, Isabel! — exclamou Artur, olhando para o céu. — Não tenho tempo para esta discussão. Será que não entende? Quero você em segurança! Por favor!
— Quanto tempo nos resta antes que Camelot seja invadida?
— Cinco horas, talvez seis.
— Perfeito. — Ela tentou se desvencilhar dele. — Não queira bancar o machista comigo, Artur!
— Não vou permitir que seja ferida. Será que não enxerga?
— Eu me recuso a me deitar sobre o seu corpo moribundo enquanto me diz: “Serei teu para sempre.” Quando me disser essas palavras, estaremos felizes e vivos!
— Eu quero você viva!
— Assim como eu o quero vivo. E, adivinhe, Merlin também o quer vivo!
— Merlin? O que sabe sobre Merlin?
— Importa-se se eu lhe explicar mais tarde? No momento, estou deveras ocupada... — afirmou Isabel e, desvencilhando-se de Artur, se pôs a correr.
Parou, contudo, e se voltou por um instante.
— A propósito, eu amo você, portanto, trate de não morrer, ou eu não vou lhe perdoar nunca!
Capítulo Vinte e Quatro
Isabel deu meia-volta e correu para o quarto. Todas as risadas tinham cessado, e as mulheres continuavam sentadas, em silêncio.
— Precisamos nos mover, senhoras — declarou ela. — Camelot está sob cerco, e temos que ajudar a impedir que aqueles filhos da mãe nos dominem.
— O que podemos fazer? — indagaram elas, pondo-se em pé.
— Gwen, Lance chegou a pôr fogo nos cogumelos venenosos?
— Não, porque Artur o alertou sobre o perigo de atear fogo tão perto da cabana. Eles continuam lá.
— Maravilha! Por favor, leve Jenny com você, já que sabe o caminho, e traga a maior quantidade possível, principalmente dos que já foram esmagados. Mas, cuidado, tente não tocá-los. Se colocar um na boca, então, acho que a mato antes mesmo do cogumelo! — Isabel se virou. — Mary, preciso que faça perucas.
— Perucas?
— Apliques falsos... Tranças! Vai dar certo. Precisa começar com quem tem cabelo comprido. Diabos, comece por mim!
— Ah, Isabel! Para quê?
— Vamos ludibriar aqueles idiotas... Corte o meu cabelo.
Ela se encolheu ao sentir a tesoura cingindo suas longas madeixas na altura dos ombros.
— Muito bem. Agora faça o mesmo com todas que estiverem dispostas a doar os cabelos para a causa.
Isabel não se preocupou em se vestir, de modo que os olhares chocados na cozinha, quando ela a adentrou ainda de camisola, não foram nenhuma surpresa. Determinada, explicou a situação o mais rápido que pôde: cada cozinheiro deveria se empenhar em fazer pães e doces, depois esperar a chegada do ingrediente final antes de colocá-los para assar.
— E hidromel! Muito hidromel batizado com o mesmo cogumelo dos pães. Mas, lembrem-se: ninguém daqui pode beber ou comer nada disso! Não depois de adicionarem a mistura de cogumelos!
Terminadas as instruções, Isabel correu para a sala de Artur, contudo, ele não estava lá. Deu meia-volta, então, percorreu o salão principal e saiu porta afora em direção ao pátio. Havia dezenas de homens ali, já armados e prontos para a batalha. Ela perscrutou o grupo e não teria reconhecido Artur se não fosse pelo gigante a seu lado. Ambos estavam debruçados sobre vários mapas.
Correu até eles.
— Artur, James... nós temos um plano! Aliás, James, parabéns por ter feito Mary tão feliz. Muito bem, preciso de cerca de dez rapazes, apenas para deixar cair algumas migalhas pelo caminho até Camelot.
Artur arrancou o elmo da cabeça, em seguida ergueu Isabel nos braços e a carregou — fazendo retinir a armadura — de volta para o castelo. Não parecia nem um pouco feliz.
— Ei, nem mesmo escutou o plano! — protestou ela.
— Também não me escutou. Eu já disse que quero que vá embora, Isabel!
— Mas eu posso ajudar!
— Creio que fui gentil demais. Eu devia ter sido mais contundente... Cansei de você, condessa, e a quero longe de Camelot. Já não me interessa mais, portanto, vá!
— N ão acredito nisso nem por um instante. N ão está sendo sincero.
— Acredite no que quiser. Só não a quero mais aqui. Reúna Tom, Dick e Harry, e vão embora! Quero vocês distantes das minhas terras.
— Quer saber, seu machão? Vá à merda!
— Por favor, Isabel!
— Não vou a lugar nenhum, seu imbecil. Vou ficar e lutar por Camelot e por você até o fim! Ganhando ou perdendo!
— Se eu morrer, Izzy, não poderei mais protegê-la. Se for embora, estará fora de perigo!
— E se não nos deixar tentar, não pode remos nem mesmo ajudar a protegê-lo! Temos planos, Artur. Há outras estratégias além do derramamento de sangue. Na guerra, qualquer logro é aceitável.
— Qual é o seu plano, condessa? — falou alguém atrás deles.
Artur deu meia-volta, ainda com Isabel nos braços.
— Mordred, se estiver por trás disto, não haverá amor que me impeça de puni-lo!
— Eu juro que não sei de nada a respeito, meu pai!
Ele assentiu.
— Então, a ordem para você é escoltar a condessa e seus homens de volta a Dumont.
— Eu não vou sair daqui! — contrapôs Isabel.
— Qual é o seu plano, condessa? — perguntou Mordred, curioso. — Ao contrário do meu pai, aprendi a escutá-la.
— Vamos deixar alimentos e bebidas envenenados com cogumelos pelas trilhas que vêm para Camelot. Podemos derrubar aqueles idiotas aos poucos! Talvez não consigamos dar cabo de todos eles, mas com certeza pegaremos alguns. E isso irá atrasá-los, sem dúvida.
Artur finalmente a colocou no chão.
— É um plano brilhante.
— Sem dúvida — concordou Mordred. — Se vai precisar de homens para deixar a comida e a bebida pelas trilhas, quero me voluntariar para liderar o grupo.
— Podemos confiar nele, Artur? — indagou Isabel.
— É melhor juíza de caráter do que eu. Além do mais, sou suspeito, afinal, Mordred é meu filho. O que acha?
Ela fitou os olhos verdes de Mordred, tão iguais aos de seu pai.
— Acredito que seu filho o ama. E que ficaria orgulhoso em tomar parte na ofensiva contra aqueles que querem prejudicá-lo. Estou errada, Mordred?
— Não, condessa. Eu gostaria de proteger meu pai e suas terras contra qualquer invasor. Sei que eu já disse o contrário antes, mas foi apenas porque...
— ... porque pretendia feri-lo, uma vez que passou a vida acreditando que ele queria fazer o mesmo.
— Sim.
— E agora percebe que isso nunca foi verdade.
— Sim. Eu sinto muito, meu pai.
— Por favor, acredite em mim, filho!
— Eu acredito.
— Também acredito nele — afirmou Isabel. — Muito bem, Mordred... Selecione cerca de dez homens, de preferência os que conhecem bem as trilhas. Depois vá até a cozinha buscar a comida e a bebida envenenadas, e me encontre no salão principal. Há uma parte do plano que os homens provavelmente não vão gostar muito. Mas que, com certeza, lhes trará mais proteção caso se deparem com algum desses saqueadores.
— Agora mesmo. — O rapaz rumou na direção dos portões.
— E, Mordred...
Ele se virou.
— Sim?
— Você é filho do seu pai. Não é à toa que ele o ama tanto quanto demonstra.
Mordred piscou.
— Esse foi o maior elogio que já ouvi. Depois de tudo o que eu disse e fiz...
— Vai compensá-lo por seus erros ao realizar este ato de grande importância.
— Obrigado, condessa. Pai.
— E, Mordred... De maneira alguma permita que qualquer um dos homens ceda à tentação de comer ou beber das nossas armas . Elas são veneno puro e simples.
— Sim. — Ele se virou e começou a correr.
Artur olhou para Isabel por um momento.
— Eu queria poder fazer amor com você neste exato momento.
— Teremos muito tempo para isso depois.
— Espero, do fundo do coração, que seja verdade... Não existe nenhuma chance de eu fazê-la mudar de ideia sobre deixar o castelo, existe?
— Nem no inferno.
— O que aconteceu com o seu cabelo, Isabel?
— Eu o sacrifiquei de bom grado pela causa.
Artur encostou a testa na dela.
— Nunca imaginei que fosse possível amar alguém desta forma!
— Se não voltar para lá e continuar seu plano, não vai imaginar mais nada.
— Tem razão — concordou ele com um suspiro. Então a beijou com volúpia, bem ali, no salão principal, para qualquer um ver.
E ela continuava descalça e de camisola.
— Isabel?
— Sim, Artur?
— Com tudo o que sou e tudo o que tenho, serei teu para sempre.
— Prematuro, mas maravilhoso de se ouvir. Agora vá. Tenho muito trabalho a fazer.
Ele riu, balançando a cabeça.
— Você me ama.
— Claro que sim.
— É disso que preciso para me fortificar e lutar a batalha da minha vida.
— Chega de cicatrizes, Artur! N ão o quero com mais nenh um arranhão.
— Farei o meu melhor para honrar esse desejo.
— Não é um desejo. É uma ordem.
— Sim, condessa — acatou ele, sorrindo. — Mal posso esperar para ficar para sempre sob o seu jugo.
Ela riu.
— Vá logo, espertinho.
— Outra ordem que irei obedecer.
Artur a beijou uma vez mais; em seguida, virou-se e marchou porta afora.
Ah, como ela queria que ele já não estivesse vestindo a armadura para poder cobiçar aquele traseiro incrível mais uma vez!
— Eu te amo! — falou ele ainda por cima do ombro.
Um dos homens que acabaram de entrar parou, chocado.
— Não você, Ashton... Ela — explicou Artur, apontando na direção de Isabel.
O rapaz a fitou, confuso.
— Vamos, Ashton!
Isabel riu, depois segurou a camisola e galgou a escadaria da frente de dois em dois degraus.
***
Para sua surpresa, no momento em que Isabel voltou para o quarto, Mary, Gwen e Jenny já esperavam por ela.
— E agora, Isabel? — perguntou Gwen.
Incrível que Gwen houvesse entregado a liderança tão rapidamente a ela. Por outro lado, a rainha era jovem demais e, decerto, nunca tinha passado por uma guerra na vida. Ao contrário dela própria, refletiu Isabel.
— Gwen, preciso que você e Jenny reúnam as mulheres e as oriente a vestir suas calças. Saias não serão de nenhuma ajuda. Depois, diga a elas que se armem. Não importa com o quê. Pode ser qualquer coisa dura que possa ser arremessada ou...
— Como no beisebol de Camelot?
— Exatamente. Mas vão precisar de pedras maiores do que aquelas que utilizamos. Galhos de árvore, espadas, caso elas tenham acesso a alguma... Qualquer coisa que possa ser usada como uma arma. As que forem mais fortes ficarão em lugares estratégicos, onde possam derrubar um homem de seu cavalo. As que estiverem armadas com espadas ou galhos de árvore deverão escolher locais de onde possam abater qualquer um que ameaçá-las.
— Mas mulheres não se engajam nas lutas, Isabel! — exclamou Gwen.
Ela levou as mãos aos quadris.
— Fazem o quê, então? Esperam que seus homens morram na batalha, depois permitem que o inimigo faça com elas o que bem entenderem? Na minha terra, as mulheres lutam. Pode ser que façamos isso de um modo diferente dos homens, mas não ficamos paradas, de braços cruzados. Quer ajudar a combater o inimigo, Gwen, ou quer se esconder no seu quarto e apenas torcer para que tudo dê certo?
— Nós vamos lutar! — decidiu Jenny, com uma ferocidade cativante.
— Muito bem. Reúnam as mulheres e digam a elas que se vistam e se armem apropriadamente. Vamos nos encontrar na sala da távola redonda e armar nossa estratégia, digamos, em meia hora. — Ela olhou para Gwen. — Coragem, rainha Guinevere. Camelot também é seu reino. Vai lutar por ele ou não?
Gwen assentiu.
— Vamos fazer o que pede a condessa, Jenny.
Jenny saiu correndo. Gwen, nem tanto.
— A rainha é meio... Qual é mesmo a palavra, Isabel? — perguntou Mary, enquanto suas mãos trançavam cabelos, febris.
— Acho que a palavra que está procurando é “covarde”.
— É isso. Ela é meio covarde.
— Temos que lhe dar algum tempo. Essa situação não é normal, e é muito assustadora.
Mary desviou o olhar de sua tarefa.
— Também não deve ser normal para você, imagino, mas, mesmo assim, tomou uma iniciativa.
Isabel deu de ombros, enquanto tirava a camisola e começava a se vestir.
— Não consigo ficar parada, sem fazer nada.
— O rei queria que fosse embora. Por que não foi?
— Como sabe disso?
— Ah, tenho um ouvido excelente. As pessoas podem sussurrar até a dois ou mais quartos de distância, e eu escuto cada palavra. — É um dom , mas também uma maldição em alguns casos.
— Você é mesmo um espanto , Mary. O que não me espanta é por que James a ama tanto. E você a ele.
— O rei também a ama muito — volveu a menina.
— Escutou alguma coisa?
— Ah, por favor, Isabel. James e eu percebemos isso desde o momento em que chegou. Eu nem precisei ouvir nada para ter certeza. Era evidente pela forma como os seus corpos interagiam.
Isabel riu enquanto puxava as calças.
— Na minha terra, Mary, chamamos isso de linguagem corporal. Mas eu não sabia que era tão aparente.
— Ficou muito claro para nós. Mas não dissemos uma só palavra a ninguém. Eu juro.
— Se há alguma coisa em que acredito, Mary, é nisso. Sou uma boa juíza de caráter e sabia, desde o instante em que nos conhecemos, que você era uma boa pessoa.
— Então eu também sou uma boa juíza de caráter — concluiu Mary. — Use o vestido verde-escuro, Isabel. É o menos pesado que tem e lhe dará mais liberdade de movimento. Com ele, será mais fácil se misturar à folhagem. E essa cor não irá chamar a atenção como as outras, que são mais vivas. N ão queremos que seja alvo de ninguém.
Isabel riu.
— Você é mesmo um tesouro, Mary!
— Fico feliz por pensar assim. — Mary tornou a erguer a cabeça. — Adoro você, condessa Isabel.
— Eu também te adoro, Mary — falou Isabel, sentindo a voz embargar com a emoção. — Aliás, isso não é modo de uma mulher passar seu dia de núpcias com seu verdadeiro amor.
— Se James precisa lutar, essa é a única maneira de eu pass á -lo. Mas eu bem que gostaria de ter mais algumas noites com aquele bob ão.
Isabel riu de novo, ao mesmo tempo que conseguia amarrar o vestido por conta própria. E, claro, Mary tinha razão. Era o traje menos complicado que ela possuía, e o menos apertado.
— N ão posso criticar a sua lógica nem um pouco. Espero que a sua noite tenha sido tudo o que você sempre sonhou.
— Ah, foi mais. Muito mais! E era um pepino e tanto, Isabel.
Isabel quase entrou em colapso de tanto rir.
— Mary, precisa parar de me fazer rir tanto! — Ela congelou. — Ele não a machucou, não é?
— Ah, não! James foi muito delicado. O rei até deu a ele algumas dicas para ter certeza de que tal coisa não aconteceria.
— James contou isso!?
Mary apenas balançou a cabeça e, em seguida, lhe cobriu o ouvido com a mão para continuar:
— Parece que James estava mais nervoso do que eu, ontem à noite, e o rei tentou acalmá-lo.
Ah, Artur! Era possível amar ainda mais aquele homem?
— Sua cerimônia de casamento estava linda. Assim como você. Não era à toa que James estava tão nervoso.
— De qualquer forma, parece que o conselho do rei Artur funcionou. Muito bem, por sinal! Não sei o que o mestre falou, mas agradeço... seja lá o que for. — Mary se levantou. — Pronto. Tenho trinta e duas tranças. Será que é o suficiente?
— É m ais do que o suficiente. Onde conseguiu todos esses cabelos?
— Posso ser muito convincente quando necessário. E agora, o que vamos fazer com elas?
— Vou precisar fazer mais uso dessa sua habilidade com cabelos, Mary. E faço votos que seja, mesmo, uma pessoa convincente porque, acredito, vamos nos deparar com protestos como você nunca viu antes!
Mary recolheu os cabelos trançados.
— Vamos nessa , condessa!
Capítulo Vinte e Cinco
Artur mal podia acreditar nos próprios olhos ao avistar as mulheres sentadas em torno da távola redonda. Em pé, Isabel rabiscava linhas em um pedaço de pergaminho, depois apontava para uma e para outra companheira, distribuindo o que pareciam ser coordenadas de um plano de batalha.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou ele, por fim.
Isabel apenas ergueu o olhar enquanto a maioria das mulheres, com exceção de Gwen, se pôs de pé.
— Ora, sentem-se — ordenou Artur, aborrecido. — Isabel, o que é isso?
Ela endireitou o corpo.
— A távola redonda — respondeu, calma. — E uma reunião de planejamento estratégico. Não foi para esse tipo de coisa que esta mesa foi feita?
— Planej... — Pelos deuses, era uma perda de tempo discutir com aquela criatura! — Planejamento estratégico para quê? Primeiro fez Mary prender tranças nas cabeças dos homens, e agora quer envolver as mulheres na batalha? O que está pretendendo, Isabel?
— Impedir que qualquer inimigo consiga invadir Camelot. Posso estar enganada, mas acredito que essa é a meta do dia.
— E acha certo envolver as mulheres?
Isabel olhou a távola lotada.
— Se alguma de vocês não estiver disposta a se juntar a nós, por favor, levante a mão. Se estiver nesta távola contra a sua vontade, fale agora. Ninguém aqui vai ser punida, portanto, são livres para sair no momento em que quiserem.
Ninguém ergueu a mão. Nem mesmo Gwen.
— Eu não vou permitir que...
— Não tem escolha , Artur. Guinevere que, até onde sei, é a rainha de Camelot, decretou que podemos ajudar nesta empreitada.
A indignação de Artur quase sobrepujou sua admiração.
— Isto é uma guerra. É um a batalha para homens!
— É uma batalha para preservar Camelot — corrigiu Isabel. — Cabe a cada um de nós aderir a ela ou não.
— Mas você é de Dumont, não de Camelot. Não tem autoridade para...
Artur parou quando, uma a uma, as mulheres foram se erguendo em torno da távola, inclusive Gwen. E por suas expressões beligerantes, certamente não era por respeito à sua posição de rei. Na verdade, foi como se toda a sua autoridade tivesse sido transferida para a condessa de Dumont.
— Eu concedo a Isabel a autoridade, Artur — declarou Gwen, ainda que um pouco hesitante. — Estamos aderindo a esta batalha com nossos próprios métodos. Cada uma de nós, nesta mesa, tem um homem que agora segue em direção ao perigo. Estamos fazendo a nossa parte, quer você concorde ou não. Isabel tem planos, porém não faremos nada que possa interferir na estratégia dos homens; iremos intervir apenas onde formos capazes. Agora volte para os seus próprios, e nos deixe continuar com os nossos.
Em seguida, para a total surpresa de Artur, todas as mulheres ergueram as mãos e começaram a batê-las umas nas outras, dizendo o que ele acreditava ser “high five”.
Era coisa demais para assimilar! E a mais impressionante era o fato de Gwen ter, pela primeira vez, se insurgido contra uma ordem dele, revogando-a sem pensar duas vezes. Pelo visto, enquanto ele não estivera prestando atenção, Gwen havia adquirido maturidade. Ainda que, ao declarar que todas as mulheres ali teriam alguém correndo perigo na luta, ela estivesse pensando em Lance, e não nele.
Não dava a mínima para isso, entretanto. O que importava era que ele fosse o homem pelo qual Isabel estivesse disposta a lutar. E, em segundo lugar, que as criadas o estivessem desafiando abertamente. Pior: Isabel não apenas aderira àquela luta para ajudar a salvar seu reino, como também conseguira formar um verdadeiro exército de mulheres dispostas a se engajar na batalha.
E ele sabia quando tinha perdido uma delas.
— Muito bem — falou com um suspiro. — Façam o que acharem que devem. Mas, Isabel, se seus planos envolvem levar qualquer mulher para o campo de batalha...
— Não — afirmou ela. — Prometo que faremos isso de uma maneira que as mulheres conhecem bem. Somos mais argutas e sorrateiras do que os homens. Nem uma única mulher irá se ferir nesta luta, eu juro. E, se formos bem-sucedidas, nenhum homem será ferido também. Não é esse o objetivo?
— Sim, mas, Isabel... condessa Isabel... Podemos trocar uma palavra? — pediu, chamando-a com um dedo.
— Imagino que eu vá ouvir mais do que apenas uma palavra. E que a maioria delas não será muito lisonjeira.
As mulheres ao redor da távola caíram na risada.
— Está certo. Mas você as ouvirá mesmo assim. Agora, por favor.
— Devo acompanhá-la, condessa? — indagou Mary.
Ah, que maravilha! Agora Isabel contava com gente pronta para atacá-lo, caso ele fizesse algum movimento ou dissesse uma só palavra ameaçadora contra ela! E gente do seu próprio povo!
Definitivamente, ele havia perdido o controle do castelo inteiro.
— Não há necessidade, Mary — descartou Isabel. — Nem mesmo a Excalibur ao lado dele me preocupa... No entanto, se a minha cabeça rolar para longe do corpo, aqui, podem apostar que eu superestimei a minha confiança no seu rei.
— Muito engraçado — emendou Artur, enquanto a arrastava para a própria sala.
— Mordred e seus homens ainda não retornaram?
— Sim.
— E sua missão foi bem-sucedida?
— Assim Mordred diz, embora eles mal pudessem esperar para arrancar aquelas tranças da cabeça. Também não estavam nem um pouco felizes com os vestidos.
— Os vestidos foram apenas uma proteção adicional. Caso algum inimigo se deparasse com eles.
— Desse modo, à primeira vista, eles acreditariam estar lidando com mulheres indefesas... Sim, eu entendi. Mas percebe, claro, a ironia desse ardil.
— O que quer dizer?
— Vocês estão usando a crença dos homens em mulheres indefesas contra eles próprios.
— Podemos usar o que quisermos se eles forem idiotas o suficiente.
— Mordred e seus homens prenderam dez dos inimigos, Isabel, graças ao seu estratagema.
— Que ótimo! Agora vamos torcer para que muitos outros parem para experimentar as guloseimas e o hidromel.
— Mas são homens galopando para uma batalha.
— Homens rumando para uma luta também ficam com fome e com sede, oras!
— Mordred está muito orgulhoso, Isabel. Ele tem certeza, imagino eu, que realizou uma incrível façanha.
— E realizou mesmo. Bom para ele. Agora, estou pensando em outra coisa...
Artur a fitou.
— Por que isso me preocupa?
— Porque vocês, homens, estão tão acostumados a ver sangue e tripas nas guerras que não se importam em lançar mão de outros artifícios.
— Que truque tem em mente, agora?
— Bem, não é bem um truque. É mais uma forma de defesa.
— E qual seria?
— Acender uma fogueira. Uma bem grande.
— Não vou incendiar Camelot, Isabel!
— Não, eu não quis dizer aqui. Bem longe, na floresta, de modo a desfazer todas as trilhas que conduzem a Camelot. Os imbecis que não pararem para tirar proveito das nossas guloseimas e bebidas serão impedidos por uma parede de fogo! Você mesmo me deu a ideia quando disse a Lance para não acender uma fogueira que ele não pudesse conter... Se provocarmos um incêndio — um incêndio controlado — bloqueando os caminhos para o castelo, podemos neutralizar os inimigos antes mesmo que eles consigam invadir o reino.
Artur olhou para a mulher incrível à sua frente.
— E quanto aos seus planos?
— Não vão dar certo se eles vazarem.
— O quê?
— Não importa. É apenas modo de dizer . Confie em mim, Artur, nenhuma mulher será ferida durante essa batalha.
— Às vezes você é tão estranha, Isabel!
— Mas você me ama mesmo assim.
— Estou completamente apaixonado por esse seu lado.
— Pelo menos eu não sou aborrecida!
— Essa, condessa Isabel, é a maior das verdades.
Ele a beijou uma vez mais, e com tanta volúpia como tinha feito apenas algumas horas antes. Depois segurou a mão dela, puxando-a para fora da sala.
— Aonde está indo? — perguntou Isabel.
— Provocar um incêndio. E você vai voltar para a sua reunião de planejamento estratégico. Aquela sala, aquela távola, foram criadas para algo completamente diferente. Mas agora percebo que elas têm muito mais valor. A propósito, caso precise ser lembrada, você me ama.
— Amo, e não... não preciso ser lembrada.
Isabel começou a caminhar de volta para a sala da távola redonda.
— Eu te amo! — ainda ouviu Artur dizer em voz alta. E, em seguida: — Ah, pelos deuses, Frederick! Eu quis dizer ela , não você!
Capítulo Vinte e Seis
A batalha, graças aos deuses, nunca aconteceu. Nem uma única espada teve de ser usada; nem uma única flecha se tingiu de vermelho.
No dia seguinte ao ataque que falhara, os homens de Artur perscrutaram as trilhas e descobriram os corpos de muitos inimigos. Um deles era Richard de Freemont, um suíno gordo e nojento que jamais teria ignorado uma guloseima ou um gole de hidromel.
Isabel, Mary, Jenny e Gwen se reuniram uma vez mais no quarto de Isabel, enquanto Mary tentava consertar os cabelos que ela fora obrigada a tosar às pressas. Jenny e Gwen também haviam apoiado a causa, assim como a própria Mary, que cortara as suas próprias madeixas para a confecção das tranças.
— Não ouviu isso de mim, condessa — começou Jenny —, mas estão dizendo pelo castelo que as mulheres ficaram desapontadas por não terem tido a oportunidade de derrubar um inimigo.
— Mas só podemos ficar felizes com isso! De qualquer modo, eu é que vou derrubá-la se continuar se recusando a me chamar de Isabel.
— Ceda de uma vez, Jenny! — incitou Mary enquanto trabalhava no cabelo de Gwen. — Não vai ganhar essa aposta. Isabel vai dobrá-la logo, logo.
— E eu quero que todas vocês, por favor, me chamem de Gwen.
Jenny congelou.
— O que foi? — inquiriu a rainha, olhando de uma para a outra. — Eu já pedi a vocês duas, agora estou pedindo a Jenny, oras. Qual é o problema?
— Mas você é a rainha! — sussurrou Jenny.
— Que também está sentada no chão, divertindo-se com mulheres que ela considera amigas... Eu gostaria que me visse do mesmo modo.
— Mary! — ralhou Isabel — Tire essa navalha do caminho.
A moça obedeceu, sentando-se com a navalha escondida às costas.
Isabel se inclinou para a frente e puxou Gwen para um abraço.
— É uma amiga e tanto, Gwen. — Tornou a recuar e apontou. — Agora, você e você... Admitam que consideram Gwen uma grande amiga. Afinal de contas, temos até compartilhado histórias picantes. Apenas amigas fazem tal coisa.
— Céus , James iria ter um ataque se soubesse disso! — comentou Mary e, em seguida, abraçou Gwen. — Eu também a considero uma amiga, minha rainha!
— Mary... — rosnou Isabel.
— Gwen — corrigiu-se Mary, embora aquilo fosse obviamente uma provação. — Vai levar algum tempo para eu me acostumar com isso.
— Relaxe. Será apenas entre as “irmãs-pepino” — elaborou Isabel.
Todas caíram na gargalhada. E levou algum tempo até que conseguissem se endireitar, uma vez que todas seguravam a barriga de tanto rir.
— Sua vez, Jenny — anunciou Isabel, apontando para o próprio peito. — Diga: Isabel . — Apontou para Gwen. — Gwen . Agora vá em frente, desembuche! Ou nós três seremos obrigadas a descrever as duas nozes que se pode encontrar debaixo desses pepinos...
Jenny arregalou os olhos, depois se juntou às risadas.
— Eu gostaria de uma explicação antes de ceder.
— Ah, não , Jenny! — protestou Gwen. — Esse tipo de tesouro você tem que descobrir por conta própria.
— É uma espécie de caça ao tesouro, então? Eu amo caça ao tesouro! Sou muito boa nisso.
— Precisamos casar logo essa menina! — concluiu Isabel. — Assim ela poderá “caçar” à vontade.
— Ashton queria se casar com Jenny, mas ela se recusou. — contou Mary. — Ele pediu sua mão pelo menos umas três vezes, não foi, Jenny?
A moça corou.
— Sim, é verdade.
— E por que rejeitou Ashton? — quis saber Isabel. — Não gosta dele? Eu o conheci ontem, pela manhã, e devo dizer que ele é um jovem guerreiro muito bonito.
— Fiquei com medo de...
— Do quê?
Jenny olhou para Gwen.
— De perder a minha posição de ama da rainha.
— O quê? — indagaram Gwen e Isabel ao mesmo tempo. — Por que acredita nisso, Jenny? — completou Gwen.
— Porque você falou, Alteza!
— Quando eu lhe disse uma coisa dessas?
— Disse que temia o dia em que eu fosse me casar porque teria de encontrar outra ama.
Isabel soltou uma exclamação.
— Disse isso a ela?
— Não! Bem... é possível. Mas se eu disse tal coisa, o que estava pensando era que, uma vez que Jenny se casasse, ela se tornaria uma esposa, e não iria querer ou precisar ficar ao meu dispor. J enny, eu nunca imaginei que você fosse acreditar que o seu casamento fosse significar o fim dos seus serviços. Na verdade, eu só estava com medo de perder você como criada e... como amiga.
— Ah, Alteza! Eu adoro ser sua criada e amiga. Sempre adorei.
— Vai demorar para ela aderir a essa coisa de usar o primeiro nome, Mary — sussurrou Isabel, enquanto Jenny e Gwen se abraçavam.
— Como eu disse, ela é um osso duro de roer — cochichou Mary de volta.
— Com um pouco de carne? – volveu Isabel, brincando, e ambas tornaram a desabar de tanto rir.
— Condessa — falou Mary, ainda rindo. — Se isto continuar, meu estômago vai doer para sempre!
— Considere como um bom exercício. Assim como serão os momentos com James...
— Quer, mesmo, interromper? — perguntou James a Artur, apontando um dedo para a porta de Isabel.
— Se eu ouvi bem, James, está sendo bastante elogiado por suas habilidades debaixo das peles.
O rapaz olhou para o outro lado, tentando ocultar um sorriso satisfeito.
De repente, Artur começou a bater as botas no chão.
— Estou dizendo, James... — falou em voz alta. — As mulheres estão aí dentro, decerto às voltas com aquela coisa de pintar as unhas dos pés novamente...
James assentiu.
— Mas devemos incomodá-las, senhor? — respondeu tão alto que a Bretanha inteira poderia ouvi-lo.
Artur balançou a cabeça, recostando-se na parede. Quando James entrava em uma brincadeira, ele o fazia com gosto!
— Precisamos da ajuda delas — continuou em voz alta. — De que outra forma seremos capazes de preparar a celebração desta noite?
Artur marchou um pouco mais antes de fazer um sinal para que James batesse na porta de Isabel, e este obedeceu de pronto.
— Entre, Artur! James...
— Como sabia que éramos nós? — perguntou Artur, fingindo inocência.
— Palpite.
Ele observou as quatro mulheres sentadas sobre os juncos como se tivessem acabado de ter uma conversa solene sobre as vantagens da enguia em conserva.
— Minhas desculpas pela interrupção, senhoras. Espero que James e eu não tenhamos atrapalhado nenhum plano de batalha.
— Claro que não. Estávamos apenas discutindo a respeito de...
— Enguias em conserva?
— Não exatamente, mas chegou perto. Tem mais a ver com pepinos e nozes.
Artur franziu a testa enquanto as outras três mulheres se dobravam de tanto rir.
Isabel fez um gesto vago.
— Elas estão radiantes com o fato de termos ganhado a batalha. Certo, senhoras?
— Certo, condessa — conseguiram responder.
— Céus, estou perdida! — deixou escapar Mary.
— Claro que não, Mary. Ela está, James?
— Deveria estar? — inquiriu o rapaz.
— Dependendo de há quanto tempo vocês dois estavam ouvindo atrás da porta, eu diria que quem pode estar em apuros é você . Mas, como conheço Mary, sei que ela é boa demais para querer se vingar. — Isabel virou-se para Artur, que era o que ele temia. — E quanto a você, Artur? Achou mesmo que ia enganar alguém, fingindo que estava andando?
— ... Eu tive esperanças de que sim — admitiu ele.
— Artur, eu já o vi em ação. Poderia se aproximar do mais arisco dos felinos sem fazer nem um som sequer. E, mesmo assim, fingiu estar se aproximando?
— Está bem. Provavelmente foi uma bobagem da minha parte.
— “Provavelmente”? Por favor, diga o que veio dizer de uma vez.
— Queremos fazer uma festa, esta noite, para comemorar o sucesso da operação de ontem.
— Precisamos da sua ajuda para fazer uma enorme celebração, pois estamos meio perdidos — explicou James. — Já demos as ordens na cozinha, mas e quanto aos outros detalhes?
— Uma festa? Caramba, por que não falaram logo? — Isabel olhou em volta. — Senhoras, acho que temos mais trabalho a fazer. — Tornou a encarar os homens. — Por favor, digam que não teremos mais que suportar as piadinhas de Hester, o bobo da corte!
— Ele vai ficar magoado, Isabel.
— Está bem, Hester está dentro... Mas enguias em conserva nem pensar!
— Ah, o rei já cuidou disso, senhora. Ele as baniu do cardápio da ceia. Eu não sabia por que motivo até esta... Uff! — James esfregou o estômago depois da cotovelada. — Ele prefere não oferecer mais a iguaria, é isso.
Isabel olhou para Artur, e o coração dele disparou. Pelos deuses, ele a queria tanto! Talvez naquela noite. E, porque a batalha tinha sido evitada, talvez por todas as noites de sua vida.
Ela sorriu para ele, e Artur soube que ela havia lido seus pensamentos.
— Eu tenho um pedido muito especial, rei Artur.
Ah... Ela poderia pedir qualquer estrela do céu, e ele encontraria um modo de ir buscá-la!
— Diga, condessa.
Isabel voltou-se para as mulheres.
— Gwen, acho que vai ter que decorar o salão mais uma vez.
A rainha se levantou e puxou Jenny com ela.
— Jenny e eu vamos colher flores agora mesmo.
Antes que elas saíssem, Artur segurou Gwen pelo braço.
— Estou orgulhoso de você, Guinevere. E de Lance também. Ele é um homem de sorte. Antes de começar a decorar o salão, talvez devesse ir visitá-lo... Ele está na cabana, fazendo uma limpeza depois de ter ajudado a apagar o incêndio que provocamos.
Gwen o fitou e sorriu.
— Eu estou crescendo, Artur. E, com sorte, ficando mais sábia. Agradeça à mulher que você ama por minha transformação.
— Eu sou grato a ela por muitas coisas. Mas a sabedoria vem de dentro. Você mesma a conquistou, Gwen, portanto, aceite o crédito. Agora vá ver Lance... Tenho certeza de que Jenny pode começar a colher as flores sem a sua presença.
Ela seria a única pessoa sã naquele quarto?
Como não tinha certeza, decidiu perguntar:
— Será que sou a única pessoa normal aqui?
— Acredite, amor, é provavelmente a pessoa menos normal das redondezas! — contrapôs Artur antes de olhar para James e Mary. — Quem considera Isabel a pessoa mais insana deste castelo, por favor, levante a mão.
Ambos o fizeram.
— Mary!
— Adoro você, condessa, mas é verdade que não regula muito bem.
— Por acaso fiz alguma besteira?
— Nem no inferno de Hades! — apressou-se Mary em dizer. — Foi de coração que se empenhou para salvar o rei e Camelot. E foi incrível. Quisera eu ter essa determinação!
— Mas foi coisa de louco?
— Só porque o rei disse que foi.
Isabel encarou Artur.
— Está marcando as cartas, sir .
Ele sorriu.
— N ão faço ideia do que essas palavras significam, mas imagino que só você diria uma coisa dessas.
Isabel cruzou os braços.
— James?
— Mil perdões, condessa, mas, entre a senhora e o mestre, devo permanecer ao lado do meu rei. E da minha esposa. De qualquer forma, você e o mestre estão tão apaixonados que apoiar um deve ser o mesmo que apoiar o outro. Estou certo, mulher?
— Certo, marido.
— Pelos deuses, isso só pode ser o “efeito pepino”! — murmurou Isabel.
— Eu ouvi, Isabel! — ralhou Mary. — E, não, não é nada disso. É que nos importamos muito com as pessoas de quem gostamos. James e eu acreditamos piamente que vocês dois foram feitos um para o outro, então parem de ser teimosos e confiem nos seus sentimentos. Venha, James. Creio que ainda tenha nos sobrado algum tempo antes de termos de voltar ao trabalho. Eu estarei de volta em... uma hora? — indagou ela, olhando para James. — Está bem, umas duas, talvez.
Isabel e Artur se entreolharam antes de caírem na risada. Camelot era, no mínimo, um lugar divertido, concluiu ela.
— Que favor é esse do qual estava falando com as outras, Izzy? Eu estava com esperanças de que quisesse aprimorar a técnica de me despir. ..
— Ah, mas essa prática eu já domin ei. O favor é ajudar Ashton a pedir a mão de Jenny, esta noite.
— Diante de todos?
— Sim. Não seria romântico?
— Seria se fosse eu a pedir a sua mão. Até porque prometeu que iria aceitar, não é mesmo?
— Claro que sim.
— Mais um motivo para que fosse eu a fazer o pedido esta noite.
— Um dia desses, Artur. Um dia desses.
Artur balançou a cabeça, rindo.
— Decididamente, perdi todo o controle sobre este reino, Isabel. O pior é que não estou dando a mínima.
— Claro que não perdeu! Como pode pensar numa coisa dessas?
— Ora, criados me repreendem, as mulheres tomam iniciativas... Pelos deuses, mulher, foi uma ideia sua que neutralizou nossos inimigos.
— Por favor, tudo o que eu quis foi elaborar uma estratégia que evitasse derramamento de sangue. Principalmente o seu! Só isso... Afinal, seria um horror ter de limpar a sujeira depois.
— Ah, entendi. O que pretendia era ter menos trabalho.
— Claro. Sou meio preguiçosa.
Ele empurrou a porta com o pé.
— Mary e James disseram duas horas?
— Parece que esse é o tempo deles — falou Isabel, recuando com um sorriso.
— Não é tempo suficiente, mas estou disposto a aceitar o que estiver disponível.
— E quem disse que vai obter alguma coisa? — indagou ela, travessa.
— Seus lindos olhos azuis, Isabel. Eles estão dizendo que me deseja tanto quanto eu a desejo.
— Malditos olhos que não conseguem mentir!
— Não diga tal coisa. Tem mais é que bendizer esses olhos lindos, esse olhar sincero... Agora confesse com esses lábios.
— Eu o desejo muito, Artur! — cedeu Isabel.
— Viu como concordamos em muitas coisas? — provocou ele, abrindo os braços. — Quer dizer que já se tornou especialista em me despir? Pois, então, quero uma prova.
Ah, eles estavam tão suados e exaustos! Isabel não fazia ideia de quanto tempo eles haviam passado fazendo amor, mas estava certa de que as duas horas estavam para terminar.
— É melhor nos vestirmos — alertou, preocupada.
— Concordo. Mas isso não se iguala em nada à minha vontade de deixar a sua cama.
— É bom com Matemática, não?
— Matemática?
— Em trabalhar com números, fazer equivalências...
— Ah, sim. Chamam esse tipo de coisa de Matemática?
— Como vocês chamam?
— Apenas de números.
Isabel rolou de costas, rindo.
— Eu te amo tanto!
Artur virou-se de lado.
— Eu tenho um exemplo relacionado a isso.
— Mal posso esperar para ouvir. — Ela também se pôs na mesma posição.
— O que diria de mais de cem homens tentando lidar com uma mulher muito mais inteligente do que eles?
Isabel ficou imóvel.
— Não sei. O quê?
— Que eles estão em desvantagem.
Ela riu.
— Artur, seus homens iriam tirar uma situação dessas de letra.
— Lá vamos nós com essa história de “tirar de letra” outra vez... Sim, eu até concordo que podíamos ter vencido os invasores. No entanto, verdade seja dita, Isabel, se não fosse pelo seu raciocínio rápido, haveria sangue manchando o solo de Camelot agora. Graças à sua estratégia maluca, o nosso povo continua vivo e seguro.
— Estratégia maluca?
— Eu disse “maluca”? Eu quis dizer “espirituosa”.
— Você quis dizer “maluca”.
Artur fez uma careta.
— Sim, mas eu quis dizer “maluca” no sentido de “engenhosa”.
Isabel sorriu e traçou os contornos do rosto moreno até que este voltasse a relaxar.
— Foi apenas uma maneira excêntrica de enfrentar o inimigo.
— A batalha não era sua.
— Mas envolvia você, e eu te amo. Assim como todas as pessoas de Camelot. Pode não fazer sentido para você, Artur, porém aprendi a amar as pessoas daqui neste curto espaço de tempo. Elas são boas, generosas, e o mais importante: elas amam o seu rei. Se não se deu conta disso ontem, quando as mulheres se mostraram dispostas a se insurgir contra o inimigo e lutar por seu rei, está, lamentavelmente, subestimando o amor e a lealdade de seu povo. Eles o amam, Artur. Estão dispostos a fazer qualquer coisa para proteger e honrar seu reino.
— Sou eu quem deve protegê-los, Isabel. Pois então não é esse o meu principal dever de rei?
— Pode até pensar dessa forma, mas cuidar deles é um dever secundário. O principal é se certificar de que eles queiram protegê-lo como seu soberano. E, pelo que vi até agora, está tudo dando muito certo.
— Às vezes eu duvido disso. E reconheço o quanto pareço fraco até mesmo ao admitir uma coisa dessas.
— Um líder fraco é aquele que se recusa a admitir as próprias dúvidas sobre como conduzir as coisas. Um líder forte é o que se questiona constantemente sobre como cumprir sua missão para o benefício de todos. Você é o senhor de terras mais forte, mais honesto e amoroso que já conheci. Não ludibria o povo de Camelot e não abusa dele. Se eu fosse uma pessoa afeita a números, adicionaria esse item à coluna das vantagens.
Artur a fez deitar-se de costas e a fitou no fundo dos olhos.
— É a melhor coisa que já me aconteceu, Isabel. Não imagina quanto.
Ela sorriu.
— Espero que sempre pense assim.
— Não creio que isso vá mudar.
Houve uma batida na porta.
— O tempo se esgotou, condessa! — falou Mary lá de fora . — Quer um banho ou não?
Isabel deixou os braços de Artur.
— Ah, sim, Mary. Mas, por favor, espere só mais alguns minutos antes de pedir aos homens que tragam a água.
— Céus, vocês dois. — exclamou a moça. — James e eu estamos casados há dois dias e não demoramos tanto!
— Vou ficar feliz em dar mais algumas dicas a James, se ele precisar — provocou Artur enquanto vestia as leggings .
Mary riu.
— Vou manter isso em mente caso eu venha a necessitar, rei Artur!
— Por essas e outras é um grande rei — comentou Isabel, puxando a coberta.
— Por causa das dicas de como fazer amor?
— Não. Pelo fato de que Mary não terá nenhum problema em lhe pedir conselhos se precisar.
Artur vestiu a túnica pela cabeça, em seguida olhou em volta para ter certeza de que não havia deixado nada para trás. Caminhou até Isabel, então.
— Eu amo você. Queria não te r que sair da sua cama.
— Eu também te amo. E queria a mesma coisa.
— Salvou muitas vidas de Camelot ontem, Isabel. Esta noite vamos comemorar a sua vitória.
— Não! A festa desta noite é para todos. O sucesso foi nosso.
— Pode-se até pensar que sim. Ainda mais alguém que se pergunta como tornar a vida melhor para todos, em vez de alguém que presume já saber de tudo.
— Artur!
— Diga a Isabel para parar com isso, Mary — ordenou ele enquanto deixava o quarto.
— Xii... Que os deuses me ajudem — resmungou a menina ao entrar.
— Mary!
— Pare já com isso! É uma ordem do rei!
Capítulo Vinte e Sete
O salão principal, mais uma vez, estava maravilhoso. O fogo na imensa lareira ardia, ofuscante, as flores se espalhavam, lindas e abundantes, e o ar estava deliciosamente perfumado, sem um único vestígio de porco ou frango.
— Ashton está pronto? — indagou Isabel a Gwen num sussurro.
— Pronto como qualquer outro homem, ou seja, apavorado! — respondeu a jovem rainha.
— E quanto a Jenny?
— Ela não sabe de nada, porém tivemos uma longa conversa hoje, e agora Jenny se convenceu de que nenhuma circunstância irá fazê-la perder sua posição.
— Será que ela ama Ashton?
— E você? Ama Artur?
Isabel a fulminou com o olhar.
— Está bem, isso não foi justo... — aquiesceu Gwen. — Vou fazer uma pergunta mais fácil: acha que eu amo Lance?
— Espero, do fundo do coração, que sim. Porque, Gwen, ele é tão apaixonado por você!
— Claro que eu o amo. Não passo nem um único momento do dia sem pensar nele. Acho que penso em Lance até dormindo!
— Que bom. Ele é um homem maravilhoso. Vocês dois foram feitos um para o outro.
— Muito bem... E quanto a você e Artur?
— Está parecendo Hester, o bobo da corte!
Gwen riu, depois tomou um gole de vinho.
— Essa história de “pode ficar com a minha esposa, por favor”, já e stá ficando cansativa, não acha?
— Não faz ideia! Não faz ideia, mesmo...
— E quanto a você e Artur?
— Que tal se esquecer de mim e de Artur? — sugeriu ela, irritada.
— Isabel, você me pediu honestidade. Estou apenas lhe pedindo a mesma coisa. Eu gosto muito dele... Sei que magoei Artur e, por isso mesmo, espero que nenhuma outra mulher o fira da mesma forma.
Isabel fechou os olhos por um momento, depois tornou a abri-los.
— A resposta mais honesta que posso lhe dar é que não posso prever o futuro, Gwen.
— Mas Artur a ama! Profundamente! Ele já me confessou.
— Ótimo! — exclamou ela em voz alta, virando-se para encarar Gwen. — Porque eu também o amo muito. Amo mais do que jamais pensei que fosse possível! Eu atravessaria uma cortina de fogo por ele, sabia? Estou sendo honesta o bastante, agora?
Parecia uma cena de filme de quinta categoria. A música parou, a conversa ao redor parou. Tudo no maldito salão parecia ter congelado, exceto, claro, seu exaltado discurso.
Isabel olhou em volta, e o rosto que mais se destacou foi o de Artur. E ele estava sorrindo.
— É apenas uma fala da última peça que foi encenada em Du mont... — elaborou ela, de modo que todo o salão escutasse.
Ninguém se moveu.
— Está bem, a peça tinha um final patético, mas não fui eu quem a escreveu, então, me deem um tempo! Músicos , por favor... Pelos deuses, aonde foi parar Hester?!
— Obrigada por ter interferido lá no salão — murmurou Isabel quando Artur lhe trouxe uma taça de vinho fresco.
— Foi uma surpresa. Eu não sabia que encenavam peças em Dumont...
— Pois encenamos.
— E não me pareceu um final patético, como disse. Soou mais como uma história de amor.
— Pode ser.
— Em que uma mulher professava seu amor por um homem.
— Talvez.
— Uma mulher que atravessaria uma cortina de fogo por seu homem.
— Entendeu o ponto principal. Concorda com ele?
— Ei, eu também atravessaria uma cortina de fogo pela minha amada.
— E quem seria ela?
— Dê um palpite, oras. Eu lhe dou duas chances: mas é melhor que a primeira não seja Pix.
A irritação de Isabel desapareceu num piscar de olhos.
— Eu sinto muito, Artur — falou ela, encarando-o, por fim. — Eu não queria que ninguém ouvisse, além de Gwen.
— Eu sei. Mas faz ideia do quanto fiquei orgulhoso e feliz por o salão inteiro ter escutado?
— Como é possível? Eu podia ter colocado você e Gwen em perigo.
Ele balançou a cabeça.
— Não. Estamos prestes a ser livres.
— Está variando ?
— Não sei o que é isso. De qualquer modo, queria te beijar muito agora, mas lhe fiz uma promessa e pretendo cumpri-la.
E Artur a cumpriu. Subiu na mesa enorme de um salto, sem usar um único banco ou cadeira.
— Senhoras e senhores de Camelot, por favor, ouçam.
O salão inteiro mergulhou no silêncio.
— Temos muitas razões para comemorar esta noite, e começaremos com um passo importante. Ashton? Onde está você?
— Estou aqui, meu rei! — veio uma voz do meio da multidão.
— Então, traga o seu maldito traseiro até aqui, oras. — Artur olhou ao redor. — Jenny, onde está?
Aconteceu de Jenny estar muito próxima de Isabel, e esta se aproximou mais da moça.
— Vá logo, Jenny!
— Posso tomar um gole do seu vinho, condessa?
— Você quis dizer “Isabel”. Meu nome é Isabel!
— Posso, Isabel, tomar um go...
Isabel empurrou o cálice para a mão dela.
— Engula quanto quiser. Basta se lembrar de que a palavra certa é “sim”!
Jenny engoliu a bebida com gosto. Na verdade, drenou o cálice inteiro. Depois endireitou o corpo e lançou um olhar por cima do ombro.
— A palavra certa é...
— “Sim”! — repetiu Isabel, rindo.
— E qual vai ser a pergunta?
— É surpresa — afirmou ela, enquanto empurrava a moça em direção à mesa. — Basta responder “sim”!
Jenny levantou o polegar.
— Entendi, Isabel.
— Quer se casar comigo, Jenny? — indagou Ashton, pondo-se sobre um joelho. — Será que concorda em ser minha esposa?
Jenny olhou de volta para o canto do salão, onde tanto a condessa quanto a rainha balançavam a cabeça fervorosamente.
— Sim! — respondeu. — Quero muito ser sua esposa.
Ashton se levantou e a puxou para ele.
— Pelos deuses, mulher! Por que demorou tanto tempo para aceitar?
— Eu queria ter certeza de que estava sendo sincero — murmurou ela.
Artur abaixou a cabeça e riu. Em seguida, olhou para Isabel e Gwen. Elas sorriram de volta.
Pelos deuses, elas eram as mulheres de sua vida! Ele não sabia se se considerava abençoado ou temeroso. Na certa deveria sentir um pouco de cada coisa.
Após acertarem a data da festa para Ashton e Jenny, Artur se pôs sobre a mesa mais uma vez.
— Temos mais a agradecer nesta noite. Afinal, continuamos em paz, sem que nenhum sangue tenha sido derramado em Camelot. — O rugido da multidão quase fez Artur tapar os ouvidos, e ele tentou acalmar os ânimos, movendo os braços para cima e para baixo. — Por favor, eu me preocupo com a audição de vocês e com a minha! Podíamos comemorar sem tanto estardalhaço. Vamos praticar?
A reação foi exatamente a que ele pediu.
— Excelente. Agora temos muito a agradecer à condessa Isabel. Afinal, seu raciocínio rápido nos ajudou.
— Também aos nossos amigos da cozinha! — gritou ela de onde estava. — E à rainha, a Jenny e Mary. E a todos vocês, que se dispuseram a lutar por Camelot, por tudo o que este reino significa!
— Eu já ia chegar nesse ponto Isabel — protestou Artur. — Podia me deixar assumir as coisas ao menos de vez em quando.
— Perdão.
Ele balançou a cabeça.
— O sucesso de ontem se deve a todos vocês, que se esforçaram para manter Camelot a salvo. Estou tão orgulhoso de todos, e me sentindo tão abençoado , que considero a cada um meu amigo. Estou orgulhoso do meu filho, Mordred, que enfrentou um grande desafio e foi bem-sucedido. Muito além do que eu imaginava.
Isabel olhou ao redor e finalmente avistou Mordred parado, olhando para o pai feito uma estátua. Sorriu. O relacionamento deles iria dar certo. Mais do que certo.
— Quando chegar o dia em que eu tiver de me aposentar do meu cargo de rei, tenho certeza de que Mordred irá envergar esta coroa com dignidade e prosseguir com o legado que é Camelot. A Mordred! E aos homens que, por vontade própria, o seguiram a fim de realizar uma missão nada agradável! — brindou Artur.
— A Mordred e seus homens! — respondeu o povo.
— Mais brindes como esse, e daqui a pouco o salão inteiro vai estar no chão de tão embriagado! — sussurrou Isabel para Gwen.
Gwen riu, embora seus olhos percorressem o espaço, ansiosos.
Isabel não precisou parar para pensar de quem a moça estava à procura .
— Ele está ali, Gwen, na entrada do refeitório.
A jovem rainha olhou e assentiu.
— Eu gostaria de poder me juntar a ele, Isabel. Assim como estou certa de que gostaria de estar ao lado de Artur.
— Eu sei. É verdade . Que par nós formamos, não?
— Ou que sorte nós temos! Depende do ponto de vista. Afinal, nós duas temos homens que nos amam. Há muitas que não podem afirmar o mesmo.
Isabel parou, pensativa.
— Nossa, Gwen... Havia muito tempo eu não ouvia palavras tão sábias! Elas realmente colocam as coisas sob uma nova perspectiva.
Gwen a fitou.
— Eu não nasci sábia, Isabel. Apenas prestei atenção à sua sabedoria ao longo destes últimos dias e tentei aprender.
— Caramba, eu não tenho certeza se sou tão sábia, Vossa Alteza, mas posso afirmar que é um a aluna e tanto.
— Se lhe interessa saber, condessa, é o melhor exemplo de sabedoria que já encontrei na vida.
Isabel riu, então a abraçou.
— Vamos dar um jeito nesta situação, cê vai ver.
— Posso fazer apenas mais um comentário? — indagou Gwen.
— Claro!
— Você fala engraçado.
Isabel quase dobrou de tanto rir.
— Eu sei! E agradeço por tentar entender o que estou dizendo.
— Estou me referindo a esse seu modo de pronunciar as palavras. Você as encurta de uma maneira tão estranha!
— Ah, Gwen, você seria uma ótima representante de classe.
— Vou tomar isso como um elogio, embora eu não faça ideia do que significa.
— Confie em mim: é um elogio.
— E é a minha vez, Isabel, de retribuir essa bondade em seu coração. É o momento certo, como eu já ouvi dizer, para uma “cadeia de favores”. — Gwen colocou o cálice de vinho nas mãos dela. — Aqui. Beba isto... Pode precisar.
Isabel permaneceu no lugar, atônita, vendo a rainha Guinevere se desencostar da parede e correr na direção de Artur. Ela sussurrou algo em seu ouvido, e ele negou veementemente com um gesto de cabeça.
Mas, pelo visto, Gwen tinha uma missão e não pretendia se eximir dela. Arrastou Artur até a mesa e subiu com sua ajuda. Depois fez um gesto para que ele se juntasse a ela.
Artur olhou para Isabel com uma expressão de “Que diabos?”, para a qual ela não t eve resposta. Deu de ombros, admitindo sua própria confusão, em seguida fez o que Gwen havia sugerido: tomou um enorme gole de vinho.
— Atenção, por favor! — chamou Gwen, esperando que todos no salão parassem de conversar para ouvi-la. — Eu tenho uma confissão a fazer... Vocês merecem a verdade.
— Não faça isso, Gwen! — gritou Isabel, temendo o que a moça poderia revelar.
— Devia ter dito: “Sem essa, Gwen!” — provocou alguém.
Artur começou a rir.
— Então, também notaram?
— Todos já percebemos que a condessa fala diferente — concordou outra pessoa, em meio à multidão. — Mas ela fala com sabedoria.
— Tem razão, Christopher — concordou Gwen. — Providenciem mais um cálice de hidromel para Christopher, por favor.
— Por Hades, Gwen, o que está fazendo? — exigiu Artur.
— Corrigindo um erro.
— Mas este não é o momento, nem o lugar.
— É a hora e o lugar perfeitos, pois todos aqui merecem a verdade.
— Gwen, não faça uma bobagem dessas. Pense nas consequências!
— Eu posso sobreviver a elas... ou morrer. Mas não posso mais conviver com a mentira.
— Bons deuses... — murmurou Artur.
— Eis a verdade, minha gente. — anunciou Gwen. — Tenho sido infiel ao homem mais gentil que já conheci: o nosso rei.
Pelo amor de Deus! Gwen decidira abrir o coração justamente ali e agora?!
Esvaziou o cálice da rainha; em seguida, pediu outro cheio. Se havia um momento para se embriagar, era aquele!
— Aceito as consequências dos meus atos — continuou a jovem rainha. — Caso decidam me punir, fiquem à vontade. Porém eu jamais irei lamentar ou desistir do amor que sinto por... por...
Artur cobriu a boca de Gwen antes que ela ajudasse seus executores a escolher as cordas em que iriam enforcá-la.
— Quem é ele? — indagaram vários aos gritos. — Vamos caçá-lo e dar o que ele merece!
— Isso não foi traição! — interveio Artur. — Não quando eu fui conivente com o amor dos dois. Eu soube de tudo e lhes dei permissão para que seguissem seus corações. Não é traição quando o rei diz “sim”. Eu quis, do fundo do coração, que ambos dessem vazão a seus sentimentos, e qualquer pessoa que fizer mal a algum deles vai se ver comigo! A forma como resolveremos essa questão não diz respeito a vocês, portanto, nenhum dos dois deve ser ameaçado, tampouco punido. É uma ordem! Ficou claro?
— Sim, meu rei — responderam muitos.
— E já que decidimos confessar nossas faltas... — recomeçou ele.
Não, Artur, por favor! , pensou Isabel, embora soubesse que ele e Gwen estavam em pleno processo de expiação dos pecados e não iriam parar tão cedo.
Artur olhou em sua direção.
— Melhor calar a boca!
— “O que o rei não faria nem no meio do inferno, condessa”? — gritou ele de volta.
— Ah, Céus! — sussurrou ela.
Mary correu até ela e a agarrou pela mão.
— Vai ser melhor assim.
— Melhor para quem? — quis saber Isabel.
— Para todos aqui. A rainha precisava desabafar. E, para dizer a verdade, você fala engraçado mesmo.
— Ótimo. A gora está se voltando contra mim também?
— Não está escutando , Isabel? Ninguém está se voltando contra você, pelo contrário. Todos a apoiam!
— Sinto muito, Mary — falou ela com um suspiro. — Eu não queria que o rei e a rainha de Camelot fossem desprezados por seu povo.
— O problema, senhoras e senhores... — recomeçou Artur, decidido a não permitir que Gwen fosse crucificada sozinha. Ele não sabia o que provocara aquela confissão tresloucada; porém, se ela havia sentido a necessidade de desabafar, ele faria o mesmo. — ... é que e u também me apaixonei profundamente por outra pessoa. N ão era para acontecer, eu não esperava por isso... Contudo o destino decretou que fosse assim. Acreditam que fiquei louco por esta mulher que fala engraçado? — contou, apontando para Isabel. — Pois é verdade. Estou apaixonado pela condessa Isabel. A rainha Guinevere se apaixonou por outro homem, e estamos todos felizes. Dessa forma, se alguém ousar prejudicar a rainha ou a condessa enquanto estivermos nos esforçando para ficar com as pessoas certas, usarei os meus poderes de monarca. Todos temos o direito de cometer erros, assim como o dever de corrigi-los para a felicidade geral. Portanto, antes de julgarem nossas mulheres, olhem para seus próprios corações.
— Felicidade para todos! — gritou James, erguendo o cálice. — Esse é o objetivo dos que vivem em Camelot!
— Felicidade para todos! — repetiu a grande maioria dos convidados, também levantando suas canecas num brinde.
No entanto, Artur percebeu a forma como muitas pessoas olhavam agora para Isabel: como se ela tivesse vindo do meio do inferno de Hades.
— De maneira alguma atribuam culpa a Gwen ou Isabel! — alertou, sério. — Se o fizerem, será por sua própria conta e risco. Mas sei que aqueles que nos conhecem bem permanecerão ao nosso lado. Agora, por favor desfrutem do restante da noite — aconselhou, por fim. — E lembrem-se de dizer àqueles que lhe são caros o quanto v ocês os amam. Sempre.
Artur desceu da mesa e foi direto até sua amada. Provavelmente devia ter se preparado para o soco que levou no peito logo ao chegar, mas, não.
— Ai!
— O que estava pensando, Artur?
— Que eu estava sendo honesto acerca dos meus sentimentos por você, talvez?
— Não lhe ocorreu o que poderia acontecer com Gwen?!
— Não notou que foi Gwen quem primeiro tomou a decisão de revelar seus sentimentos?
— Verdade. Que diabo foi aquilo?
— Não era eu quem estava aqui, conversando com ela. Era você. Que tal me contar?
— Ela queria ser honesta com o povo de Camelot, imagino — intrometeu-se Mary. — Não culpe Isabel, pois eu mesma vi sua tentativa de impedir a rainha... Ou terá que se ver comigo, Vossa Alteza! — acrescentou a menina com uma ligeira reverência. — Devo ficar, Isabel?
— Acho que posso lidar com o rei — respondeu ela, sorrindo. — Mas obrigada, Mary.
A moça olhou de um para o outro.
— Está bem, condessa. Então, estarei bem ali, na companhia daquele homem muito grande, muito forte e muito leal, caso precise... — comunicou, marchando para longe.
— Por que, de repente, estou me sentindo como se eu o fosse o vilão por aqui? — indagou Artur.
Isabel balançou a cabeça, rindo.
— Não é nenhum vilão , mas, pelos deuses, por que fez aquilo? Podia ter dito apenas: “Estou do lado de Gwen, e fim da história”.
— Porque, uma vez que ela decidiu revelar o que estava fazendo, minha única opção foi anunciar que eu também estava apaixonado por outra pessoa. Desse modo, o povo não vai concluir que ela foi a única a quebrar seus votos.
— Quer dizer que fez aquilo para proteger Gwen?
— Não apenas por isso, mas também por isso. É como se... Não sei ... “A verdade vos libertará.”
— Ah, Deus, odeio dizer, mas tenho a sensação de que, em longo prazo, não vai levar nenhuma vantagem nessa história, o que é uma pena.
— Como assim?
— Não importa. De qualquer forma, sente-se liberto agora? Porque estou sentindo uma centena de pares de olhos me fulminando!
— Quem pensar em prejudicá-la vai ter que me enfrentar primeiro. Eu amo você, Isabel. E, sim, sinto-me livre agora. Esconder meus sentimentos não estava sendo nada bom. Eu queria mais era que o mundo soubesse dos meus verdadeiros sentimentos pelo meu verdadeiro amor.
— Bem, tenho certeza de que o mundo de Camelot agora está bem consciente deles.
Artur deu de ombros.
— Acabou o problema. Não precisamos mais nos esconder por trás de portas fechadas e viver uma mentira em público. Não se sente melhor agora?
— Eu podia ter convivido com essa situação por mais algum tempo.
— Por quê?
— Porque tenho medo por você, seu bobalhão. Esse tipo de coisa pode denegrir sua imagem de rei.
— Eu ficaria feliz em passar a coroa a Mordred se eu fosse me tornar livre para viver o restante dos meus dias a seu lado.
— Ah, Artur, será que não percebe? É exatamente o tipo de coisa pela qual eu não quero ser responsável. Camelot precisa de você. E você, acredite ou não, precisa de Camelot.
— Não como preciso de você , Isabel. Camelot é apenas um reino. Você... você é o meu amor. Você é meu tudo.
Isabel riu, e a musicalidade de seu riso, a beleza dela — do interior ao exterior — fez o coração de Artur disparar.
— Quer saber, gracinha? — recomeçou ela. — Se essa coisa de rei não for adiante, tem um grande futuro como compositor.
Ele sorriu.
— Não faço a menor ideia do que isso significa, mas vou presumir que seja uma coisa boa, e que possamos seguir adiante.
— Fechado.
— Não gostaria de ir lá para cima?
— Com uma multidão observando cada movimento que fazemos? Creio que não.
— Mais tarde?
— Claro. Sem dúvida. — Ela se aproximou e sussurrou ao ouvido dele: — Na verdade, Vossa Alteza, se não aparecer haverá consequências terríveis.
— Ah, agora estou assustado. Eu...
— Artur! Artur! Por favor, ajude!
Ele se virou e avistou Gwen, desesperada como ele nunca a vira antes.
— O que houve, Gwen? — perguntou Isabel.
— Eles pegaram Lance e o estão ameaçando!
— Onde?!
— No pátio!
Artur correu.
— James! Mordred! — gritou no caminho. — Preciso de vocês! — Olhou para trás. — Não saia daqui, Isabel! — exigiu ao ver que ela e Gwen corriam atrás dele.
— Tente nos impedir, Vossa Alteza!
Pelos deuses , e ele mal podia esperar para passar o resto da vida ao lado daquela mulher!
James e Mordred o alcançaram conforme ele deixava o castelo e se dirigia ao pátio.
Dois homens seguravam Lance, enquanto este lutava para se libertar.
— Soltem-no, Michael e David! Agora!
— Mas, senhor, Lancelot o traiu! — protestou Michael. — Ele tem que ser punido! Assim diz a lei!
— Por acaso é surdo?! — gritou Isabel. — O rei ordenou para que o solte agora!
Artur quase gemeu.
— Isabel...
— Mas você ordenou! Eu ouvi! Não ouviu, Mordred?
— Ouvi, condessa.
— James?
— Eu também ouvi. Michael, David, se desafiarem uma ordem do rei, estarão em apuros. Muito mais do que podem imaginar.
— Quem trai o nosso rei trai o povo de Camelot! — contestou Michael.
— Assim como é traição desafiar uma ordem de Sua Majestade! — lembrou James. — Se não soltarem já esse homem, também serão acusados de perfídia.
As palavras detiveram os homens. Por fim, ambos largaram os braços de Lance.
— Obrigado — agradeceu Artur. — Agora me ouçam, meus amigos. Aprecio sua lealdade, porém, neste caso, ela está equivocada. Sir Lancelot é um soldado valoroso e leal, comprometido com Camelot. Ontem mesmo ele esteve disposto a lutar para salvar nosso reino. Se qualquer um de vocês tivesse precisado de ajuda, ele os teria...
— ... defendido, sem sombra de dúvida! — completou Isabel.
Desta vez, Artur soltou uma espécie de rosnado.
— Obrigado, condessa. Será que posso continuar agora?
— Eles são todos seus.
Artur ouviu o soluço baixo da rainha.
— Está tudo bem agora, Gwen, fique fria ... — consolou-a Isabel. — Artur vai dar conta do recado.
Ele quase riu. Até porque não sabia muito bem o que Isabel queria dizer com aquilo.
E, pelos olhares perplexos que tanto James quanto Mordred lhe lançaram, ele não era o único. Ainda bem.
— Lancelot não me traiu, nem traiu Camelot — continuou, sério. — Ele simplesmente seguiu seu coração, e com a minha total anuência. Não podem castigá-lo por algo que eu mesmo não considero uma ofensa à minha pessoa ou a Camelot. Entenderam agora?
— Sim, senhor — murmurou Michael.
— Sim, rei Artur — aquiesceu David. — Só queríamos demonstrar lealdade ao nosso rei.
— Agradeço, mas não é necessário. Por favor, compreendam que eu me importo muito com a integridade e o bem-estar de sir Lancelot, e que tomarei medidas drásticas caso alguém tente prejudicá-lo de alguma forma. Ficou claro para todos aqui?
No momento, “todos” já eram muitos.
— Sim!
— As leis de Camelot estão prestes a sofrer uma alteração. Não vou anunciar neste momento quais serão as consequências; contudo, garanto que nem Lancelot, nem Gwen, nem Isabel e nem mesmo eu seremos culpados de qualquer crime contra a Coroa. Nós apenas... — Artur balançou a cabeça, sem saber ao certo que palavras utilizar. Ironicamente, Isabel escolheu aquele exato momento para permanecer em silêncio. — ... apenas vamos tomar caminhos diferentes em busca da felicidade. Afinal, creio que todo ser humano mereça escolher seu próprio caminho, não acham?
— Caramba, claro que sim! — exclamou Isabel.
— Agora ela decidiu se manifestar... — queixou-se Artur ao filho.
Mordred sorriu.
— Tem que admitir, meu pai, Isabel escolhe muito bem a hora de falar.
Ele puxou o filho para si e lhe deu um forte abraço. Não por ele ter elogiado Isabel, mas porque qualquer rixa entre eles ainda poderia ser um preocupante obstáculo.
— Temo nunca poder domar essa mulher — confessou em voz baixa.
— Pois eu espero que não faça isso — volveu Mordred. — A vida seria maçante demais por aqui.
Artur soltou Mordred, sentindo o coração cheio de alegria. Não apenas pelo recém-descoberto bom relacionamento com o filho, mas também pela promessa de muitos amanhãs ao lado de Isabel.
Ergueu as mãos.
— Chegamos a um acordo, então? Lembrem-se: nenhum mal recairá sobre Lancelot.
— Sim, meu rei! — responderam muitos.
— Muito bem. Acabou-se o drama. Agora, por favor, vamos voltar para a festa. Ouvi dizer que ainda há muita enguia em conserva a ser servida... — Virou-se, sorrindo, e sabendo que iria pagar caro pela brincadeira. No fundo, mal podia esperar.
Mas Isabel continuava amparando Gwen, que ainda soluçava em seu braços.
— Gwen, fique com Lance — aconselhou. — Tenho a impressão de que ele apreciaria muito os seus cuidados neste momento.
Ao sentir alguém lhe tocar o ombro, virou-se. Lancelot o fitava com olhos ainda perturbados.
— Sinto muito, rei Artur.
— Não foi sua culpa, Lance. Nada disso foi sua culpa. Lamento apenas que tenha sofrido essa humilhação. Agora, por favor, você e Gwen... Saiam daqui. Vão para a cabana ou para onde acharem melhor. Apenas vão e comemorem o fato de Gwen amá-lo a ponto de arriscar a própria vida, declarando seus verdadeiros sentimentos.
— Eu nunca quis...
— Eu sei. Acredite em mim, eu sei. E acredite também que não estou infeliz. Não guardo nem um pouco de rancor. J uro pela minha Coroa.
Lance baixou a cabeça.
— Parece realmente satisfeito, senhor.
— E estou, Lance.
— Sabe que eu prometo...
— Sim, sim, eu sei. E lhe sou grato. Agora leve Gwen antes que ela ensope Isabel dos pés à cabeça com essas lágrimas.
Isabel não poderia amar um homem mais do que amava Artur. Nem um pingo a mais. Não sabia o que o futuro lhe reservava; sabia apenas que nunca tinha sido tão feliz n a vida.
— Estou tão zangada com você! — decidiu dizer a Artur, tão logo a multidão se dispersou.
— Por que não estou chocado com essas palavras, condessa?
— Não gostaria de saber por quê?
— Tenho alguma escolha? Se assim for, prefiro não saber.
— Que pena! — volveu ela, porém não pôde deixar de sorrir.
— Eu já esperava por isso. O que eu fiz agora?
— Tornou impossível eu não te amar.
— Será que nunca, nem por um momento, lhe ocorreu que não faz nenhum sentido às vezes?
— Ah, eu convivi com essa crítica a vida toda.
— Então, esse amor que sentimos um pelo outro é uma coisa ruim?
— Não, pelo contrário. É a melhor coisa que já me aconteceu.
— Definitivamente, precisa ser condenada.
— Não sabe o que está falando. Condenada pelo quê? Por crimes contra a humanidade?
— Por crimes contra a sanidade. Por que está com tanta raiva de mim, afinal?
— Porque é tão maravilhoso, senhor, que deixa meu coração em festa. Tenho mais taquicardias observando você do que costumo ter no meu aparelho de musculação.
— Mais uma vez, não está fazendo sentido nenhum para mim.
— Eu te amo tanto!
— Ah, isso eu entendi. E retribuo o sentimento multiplicado por dez. Mas posso perguntar o que nos levou a esta conversa estranha?
— Admiro tudo em você. Amo tudo em você. A maneira como lidera e protege seu povo, a sua preocupação em tornar o mundo um lugar melhor, a maneira como acredita na honestidade, tudo!
Ele a impediu de continuar.
— Está chorando, Isabel?
— Posso mentir? — indagou ela, tentando desesperadamente controlar as lágrimas .
— Poderia. Mas já estaria mentindo.
— Ah, criatura, essa sua lógica me tira do prumo!
— O que quer dizer, amor? Por favor, ajude-me! Confesso que estou perdido.
— Ora, pai, ela está apaixonada por você! Qualquer idiota seria capaz de entender — interveio Mordred.
— É o que ele diz — concordou Isabel.
— Muito obrigado pela explicação, meu filho. Agora compreendi...
Artur a puxou para perto, e Isabel pensou que o calor e o perfume dele ficariam impregnados em sua memória para sempre.
— Seu calor e seu cheiro já são parte de mim — afirmou ele, como se houvesse lido seus pensamentos.
Ela sabia. Desconhecia como, mas sabia: de alguma forma, aquilo tudo estava chegando ao fim.
“Viviane, não me enganes... Diz que Artur não perderei !”
“Merlin está exultante, confia! Sente-se tão forte e grato a ti que mal pode se conter de tanta alegria.”
“Mas o que está por vir, agora? Minha missão foi terminada e querem que eu vá embora?”
“Acredita, cara Isabel. Espera no teu desejo e lembra-te do meu colar. Quando fizeres um pedido, confia... assim será.”
Que maravilha! Incrível, refletiu Isabel, tensa. Ela havia acabado de encontrar o amor e, de alguma forma, estava prestes a ser obrigada a tomar uma decisão que não sabia qual era. Sabia apenas que teria de fazê-lo em breve.
E tinha cumprido a sua parte do trato. Bem, talvez não completamente, já que fora convidada a fazer uma coisa e conseguira fazer outra...
Mas, inferno , o que fizera de t ão grave que o Universo zombava dela, permitindo que se apaixonasse, para depois talvez privá-la desse amor?
Ao menos ela sabia o que iria acontecer. E imaginava que esse fosse um prêmio mais valioso do que qualquer outro.
Precisava agradecer a Viviane por aquilo.
“Está bem, minha deusa, obrigada.”
“Como te agradecer, Isabel, Merlin ignora... Tampouco o sei eu, querida, ao menos por ora.”
Ela olhou para Artur e o acariciou no rosto, comovida.
— Saiba que eu te amo... Muito.
— Não estou entendendo — falou ele com estranheza. — Acredito nisso com todo o meu coração. Por que está falando como se estivéssemos à beira de um desastre?
— Rei Artur! — chamou uma voz de homem, vinda de algum lugar do salão semivazio.
Ele olhou ao redor e a empurrou para trás das costas.
— Quem está falando?... Mostre-se, por favor!
— Vossa Majestade matou o meu rei, Richard, e agora vai pagar por esse crime!
— Não! — gritou Isabel, atordoada. — Fui eu quem o matou! Se quer vingança, é a mim que deve atingir!
— Cale-se, Isabel! — ralhou Artur. — Fique quieta, ao menos desta vez!
Ela ouviu o zunido da seta voando em direção a Artur no momento em que esta deixou o arco do inimigo invisível.
— Nã ã o! — escutou Mordred gritar enquanto voava para a frente do pai e levava a flechada no ombro.
— James! — gritou Isabel. — Vá atrás desse maldito agora! E, por favor, faça picadinho dele!
Ela e Artur se ajoelharam sobre Mordred, que tinha a seta atravessada no ombro.
— Não, Artur, não puxe ainda! Isso pode matá-lo!
— O que faço, então?! Não posso deixar que meu filho morra!
— Eu... te amo, pai — balbuciou Mordred.
— Eu também te amo, meu filho! Por favor, não faça nenhuma bobagem como morrer antes de mim!
Isabel soube, nesse momento, o que deveria fazer.
— Ele não vai morrer — afirmou. Em seguida, entoou as palavras que acionavam o poder do colar: — Para o bem de todos, ó, Deusa do Lago... Em nome do amor e da vida... isto tem que acontecer! — Arrancou o colar do pescoço e bateu nele até que o pingente se quebrou. Ela o segurou sobre o ombro de Mordred, então, permitindo que as lágrimas de Viviane caíssem sobre a ferida. — Não vai morrer, Mordred... — sussurrou à medida que sentia a vida se esvair de seu próprio corpo. — Seu pai precisa de você... — Ergueu o olhar para Artur, sabendo que era a última vez que o fazia. — Ele vai se curar... Eu amo você!
— Isabel!
Foi a última coisa que ela ouviu antes de deixar Camelot para sempre.
Epílogo
Afogamento era uma forma maldita de morrer. Isabel, entretanto, estava começando a se resignar a ela conforme deslizava para a euforia provocada pela falta de oxigênio.
Pelos deuses , ela havia tido o sonho mais incrível durante o seu processo de morte! Queria ter vivido por tempo suficiente para explicá-lo!
“Por favor, minha deusa, permita que eu me lembre!”
E as lembranças voltaram como em filmes. Artur rindo, Artur sorrindo, Artur franzindo a testa e, a melhor de todas, Artur piscando para ela...
Não, espere... Artur amando-a como ela jamais fora amada antes! A maneira como ele a tocava... Como se a estivesse adorando. O modo como ficava ofegante e febril com a intensidade de seu desejo... E aqueles olhos verdes, fitando-a enquanto ele se movia dentro dela ao fazerem amor.
“Obrigada, senhora!”
“Gostarias de te lembrar de mais alguma coisa?”
“Ah, deusa, quero me lembrar de tudo agora!”
Os pensamentos mais incríveis desfilaram por seu cérebro prestes a sucumbir. O modo como Artur declarara seu amor por ela tantas e tantas vezes... algumas, da forma mais excêntrica.
Ela devia ter conhecido mais pessoas em Camelot, decidiu. Apostava que todos lá eram tão bons e gentis como James e Mary.
Ninguém devia ser como Artur, no entanto. Ah, o modo como ele ria de suas piadas! Era tão bonitinho, mesmo que ele provavelmente não tenha entendido metade delas. O modo como ele aceitava sua teimosia quando qualquer outro homem teria desistido dela...
Ah, Deus, ela o havia amado até o fim! Como queria que ele soubesse disso!
“Artur soube, minha cara Isabel. Sempre soube que teu amor era real. Deste tua vida para salvar a de Mordred e, assim, livraste Camelot de todo o mal.”
Ah, que bom, pensou ela, resignada.
Não sabia o que i ria acontecer a seguir. Esperava apenas, do fundo do coração, que pudesse manter aquelas lembranças, não importando aonde pudesse ir.
Foi então que algo estranho aconteceu. Foi quase como se ela própria tivesse se chocado contra a caminhonete que dirigia. Em seguida, teve a impressão de que mãos a agarravam, e que depois um braço a enlaçava pela cintura... Uma sensação incrivelmente familiar.
O braço a foi puxando cada vez mais para cima, até que ela percebeu estar fora d’água.
A coisa seguinte de que se deu conta foi que estava tossindo, sufocando e cuspindo água.
— Moça! Moça?
Ela abriu os olhos.
— Estamos aqui para ajudar. Bem-vinda de volta... Vai ficar bem.
De repente, Isabel se viu frente a frente com profundos olhos verdes. Olhos com que ela já se deparara em uma floresta havia muito tempo, bem longe dali. Ele tinha os cabelos pingando, as roupas molhadas.
Ela ergueu a mão para tocar o rosto moreno.
— Artur? — balbuciou.
O homem sentou-se a seu lado, ofegante.
— Sim. Como sabe o meu nome?
— O resgate foi perfeito, pai! Ela me parece ótima!
Isabel virou a cabeça.
— E ele é Mordred, certo?
Mordred riu.
— Sinto dizer que sim. Como ela sabe disso, pai?!
— Não faço ideia, meu filho.
— Nunca faz ideia de nada, seu bobalhão...
Artur apenas a fitou. Então afastou os cabelos molhados de suas faces.
— Caramba, pai. Ela é a mulher com quem você vive sonhando! A descrição que fez dela bate certinho!
— Por acaso seu nome é Isabel? — indagou ele com relutância.
— Por acaso, é.
— Pelos deuses! Bem-vinda de volta ao reino dos vivos.
— Fico feliz por estar aqui — afirmou ela. — Por falar nisso, que lugar é este?
— Grand Lake, Oklahoma, oras.
— Isabel... Meu nome é Isabel!
Artur checou a pulsação dela no pescoço, depois a ergueu nos braços.
— É um prazer conhecê-la, Isabel. Agora vamos para o hospital.
— O que aconteceu com o braço de Mordred? — perguntou ela ao notar que ele usava uma tipoia.
— Ele foi tolo o suficiente para se meter entre mim e a flecha de um caçador quando estávamos fazendo trilha no último fim de semana.
— Claro... E conseguiram pegar o idiota que estava com o arco e flecha?
— O nosso amigo James conseguiu — contou Mordred. — Só faltou fazer picadinho do homem, afinal, não é nem mesmo temporada de caça!
— Compreendo.
— Isto tudo é realmente estranho. Meu pai até sonhou uma vez que estava fazendo RCP em você!
— Mordred! — ralhou Artur. — Já chega.
— Eu agradeço, mas não quero ir para o hospital — pediu Isabel. — Graças a vocês, sinto-me bem melhor agora.
— Tenho certeza de que Mary não vai permitir que vá embora agora. Nem James. Eles são os paramédicos que estão esperando uma ambulância para levá-la até o County General.
— Claro. E onde estão Gwen e Lance?
Artur parou.
— Como é possível que saiba todos esses nomes, Isabel?
Boa pergunta!
— Eu tive um sonho... Um sonho bastante comprido, aliás.
— Conheço a sensação. Bem, Gwen provavelmente está na loja dela.
— Deixe-me adivinhar: uma loja de flores.
— Meu Deus, isto já está ficando assustador!
— E quanto a Lance?
— Deve estar operando algum paciente... Ele é cirurgião ortopédico.
Isabel riu.
— Claro que é. Ele sempre foi ótimo com objetos pontiagudos.
— Ande logo, rei Artur! — chamou Mary a distância. — A moça precisa de pronto atendimento!
— “Rei Artur”?
Artur revirou os olhos.
— Um apelido estúpido que eles me deram há um ano, quando fui nomeado chefe do Corpo de Bombeiros. Eles acham o máximo, mas eu não vejo graça nenhuma. Agora, quem consegue impedi-los? Não sei quando foi que perdi o controle sobre esse povo!
Isabel sorriu.
— Eu sempre achei que um líder só é mesmo bom quando as pessoas que trabalham para ele se sentem confortáveis para provocá-lo.
Artur balançou a cabeça.
— Que coisa estranha! Você me dizia algo parecido no meu sonho.
— Estranha, mas muito legal , não acha, pai? É como se fosse obra do destino.
— Isso vai soar surreal, Isabel, porém vou falar mesmo assim...
— Diga.
— Por acaso já nos conhecemos? — indagou ele com os olhos brilhando.
Ela sorriu.
— Parece que sim.
— Então eu gostaria de vê-la novamente para que possamos descobrir como foi que isso aconteceu. Quem sabe um jantar, assim que estiver melhor? — Artur sacudiu a cabeça. — N ão creio que eu esteja fazendo esse tipo de pergunta numa hora dessas, mas, acredite, não tenho o hábito de convidar as mulheres que resgato para saírem comigo.
— Sorte minha. Mas, antes, também preciso saber uma coisa.
— Claro.
— O que acha de enguia em conserva?
Ele franziu a testa.
— Nunca ouvi falar, mas me parece nojento.
— Excelente resposta. Jantar liberado.
— Ela é a mulher dos seus sonhos, pai? — insistiu Mordred.
Artur a fitou.
— Poderia muito bem ser, meu filho. Embora eu não me lembre de tê-la visto tão encharcada nos meus sonhos. Um pouco, uma vez, mas não assim. Agora me diga, Isabel... Também acredita em destino?
— Sem sombra de dúvida — respondeu ela num sussurro. E, percebendo que o mergulho no lago lhe roubara mais forças do que ela havia imaginado, deitou a cabeça no peito largo.
Sim, ela acreditava em destino. Não sem uma ajudinha, claro...
“Não sei como lhe agradecer, Viviane!”
“Eu te disse para ter fé. Confia e tudo será.”
“E Merlin, como está?”
“Está bem, assim como eu. Agora, segue em frente, pois dar ás uma esposa excelente. Por tudo o que fizeste, eu te agradeço. Creio que este dia assinala, de toda a tua felicidade, o começo. Caminhos diferentes seguiremos, amiga... Mas te deixo sabendo que serás feliz pelo restante da tua vida.”
“Vou sentir sua falta, Viviane! Obrigada pela aventura!”
Infelizmente, ela não obteve mais resposta.
Artur a deitou na maca da ambulância. Em p é , de cada lado dele, estavam Mary e James.
Isabel quase chorou de felicidade.
— Caramba , estou feliz em ver vocês!
— Está aí algo que não se ouve todos os dias, não é mesmo, James? — comentou Mary enquanto cobria sua paciente com um cobertor.
— Verdade.
— Qual é o seu nome, moça? — indagou ela, fitando-a com atenção.
— O nome dela é Isabel — interveio Artur.
Mary e James ficaram imóveis.
— Isabel? Igual ao da mulher com quem vive sonhando? — perguntou Mary enquanto a estudava ainda mais atentamente.
Tornou-se claro que Artur vinha sendo incomodado por aqueles sonhos o suficiente para que o tivesse descrito em detalhes a seus amigos mais próximos.
— Estamos tentando esclarecer as coisas. Por isso mesmo vou acompanhá-la.
— Ei, eu não preciso ir para o hospital! Verdade!
— Tá bom — ironizou James.
Eles ergueram a maca a fim de colocá-la na ambulância, em seguida Mary subiu e a prendeu no lugar.
— Gosta de mexer com cabelos, Mary? — indagou Isabel.
Mary a fitou, depois se pôs a rir.
— Como sabe disso?
— Foi apenas um palpite.
— Bem, eu costumo cortar o cabelo de todos esses manés . Por quê? Gostaria que eu cortasse o seu um dia desses?
— Eu adoraria.
Mary concordou.
— Eu também... Por que não? — Ela checou todos os sinais vitais de sua paciente, então lhe auscultou os pulmões. — Como se sente?
— Cansada, mas, estranhamente, muito, muito feliz.
— Ver a morte de perto costuma fazer as pessoas terem essa reação. Teve muita sorte por Artur estar passando bem na hora em que mergulhou no lago.
— Tive, sim.
— Ou, talvez... apenas talvez... tenha sido outra coisa — especulou Mary, intrigada. — Artur tem tido premonições há meses. Ele diz que são sonhos, mas, vai saber !
— Como está a nossa paciente? — perguntou Artur, entrando e sentando-se no banco.
— Pulmões limpos, frequência cardíaca um pouco elevada... Mas, até aí, você costuma provocar esses sintomas nas donzelas em perigo. — Mary abriu um armário acima da cabeça e puxou um cobertor, arremessando-o para ele. — Ela precisa, mesmo, ser examinada no hospital, porém aposto que vai ser liberada em uma hora. — Desceu da parte de trás da ambulância. — Não é esse o protocolo, mas não vejo nenhuma razão para eu não ir na parte da frente com James. Acredito que a moça esteja em boas mãos...
— Obrigado, Mary — agradeceu Artur.
Mary piscou para ele, depois bateu as portas traseiras do veículo.
Artur esperou um segundo, depois sorriu para Isabel. O mesmo sorriso enlouquecedor pelo qual ela se apaixonara havia tanto tempo. Segurou a mão dela.
— Agora é sério. Como se sente?
— Surpreendentemente bem.
— Parece, mesmo, bem demais.
— Ainda que, na certa, eu esteja linda como um rato afogado. — Ela desviou o olhar, tímida, depois voltou a fitá-lo. — Obrigada, Artur, por ter salvado a minha vida.
— Obrigado a você por ter sobrevivido. — Ele balançou a cabeça, pensativo, contudo seu olhar jamais abandonou o dela. — Alguma vez já olhou para alguém e soube... De alguma forma, apenas soube?
Ela nem precisou perguntar “O quê?”. Apenas assentiu.
— Sim. Uma vez, há muito tempo. E também hoje, quando abri os olhos às margens do Grand Lake.
— Eu sei que parece loucura, Isabel, mas meu filho não estava exagerando. Tive tantos sonhos com você que vivia lhe procurando no meio da multidão, nos restaurantes, em todos os lugares a que ia. Mal pude acreditar quando a tirei do lago e pus os olhos em seu rosto... Logo depois fui dominado por um medo que nunca senti em toda a minha carreira: fiquei com medo de perder você quando tinha acabado de encontrá-la.
— Pois adivinhe, Artur... Estou aqui, e não vou a lugar nenhum. Não desta vez.
Ele fechou os olhos por um momento, depois os abriu novamente.
— Estou determinado a lhe cobrar isso, Isabel. Na verdade, estou sentindo uma necessidade absurda de fazer com que me prometa isso.
— Eu prometo.
— Imagino que seja cedo demais para lhe pedir que se case comigo?
— Não. Contanto que me prometa que eu nunca terei de comer enguia em conserva.
— Eu prometo!
— Então serei tua para sempre.
Em poucas semanas, Isabel e Artur se casaram. Mary e James foram os padrinhos.
P. C. Cast
Voltar a Série
O melhor da literatura para todos os gostos e idades