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DEUSA DA LUZ - P. 4
DEUSA DA LUZ - P. 4

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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DEUSA DA LUZ  -  Parte IV

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Capítulo 26


Pamela ficou surpresa ao perceber que Apolo a estava evitando. E também se viu chocada ao se dar conta do quanto aquilo a incomodava.

Ela até o flagrara olhando para ela, mas, no momento em que havia tentado encontrar seu olhar, ele tinha se virado e fingido estar às voltas com o trabalhador mais próximo.

Apolo a evitara até mesmo durante a pausa para o almoço. Assim, ela se sentara com Eddie e Ártemis e os observara flertando desavergonhadamente enquanto engolia um dos excelentes sanduíches gourmet que o genial cozinheiro de Eddie fizera para todos. Apolo fizera uma pausa apenas suficiente para apanhar um sanduíche e lançar-lhe um sorriso breve, distraído, antes de voltar para junto do arquiteto, próximo do local onde os trabalhadores já haviam começado a demarcar o terreno para o balneário.

Não que ela não estivesse ocupada. Naquele dia eles tinham escolhido o piso, o que acabara por se tornar um grande acontecimento. A princípio Eddie queria uma reprodução horrível do revestimento de pedra brega e tão abundante no Fórum. Por sorte, de cima de seu pedestal — onde posava regiamente, segurando um arco em vez do vaso do dia anterior —, Ártemis balançara a cabeça e protestara mais do que depressa:

— Ah, não, Eddie. É horrível!

E pronto. A pedra falsa fora vetada.

Em seguida, ela, Pamela, pedira a três representantes de marmorarias que trouxessem amostras de suas melhores pedras.

E a confusão tinha começado. Eddie encantara-se com as diferentes cores e variedades, e ficara mudando de uma amostra horrorosa para outra, cada vez mais entusiasmado, insistindo para que colocassem um padrão diferente em cada cômodo. A verdade era que ela estava tendo uma tremenda dor de cabeça com o escritor, refletiu Pamela. Havia tentado explicar a ele que, com o piso plano aberto da casa, passar do mármore Santiago — com veios vermelhos, dourados, alaranjados e verdes — para o Verde Fire —, que era predominantemente verde-limão, amarelo e preto — e depois para o Golden Alexandra —, que era apenas dourado — seria um erro de design terrível.

Mais uma vez, Ártemis viera em seu socorro.

— Eu gosto daquele — a diva tinha decidido, apontando o dedo delicado para um quadrado de pedra esquecido, o qual se encontrava bem distante dos outros.

— Gosta mesmo, minha deusa? — Eddie indagara de imediato, todo atencioso.

Ela, Pamela, pulara até a amostra, que era de uma cor creme discreta, com leves veios manteiga, os quais passavam de uma sugestão de amarelo para um rosa dourado.

Tinha sorrido, então.

— É lindo, mas não é mármore. É um pedaço de pedra calcária. — Levara-a para Ártemis, que passara a mão pela superfície lisa.

— Mas é suave e perfeita! — ronronara a deusa, olhando para o autor. — Eddie, eu adoraria ter esta pedra contra a minha pele nua!...

Os olhos do homem haviam até escurecido.

— Permita-me atender ao seu desejo, minha deusa. Escolho este calcário para cobrir o chão da minha humilde morada.

Humilde morada! Essa fora muito boa , pensou Pamela.

Tinha piscado para Ártemis em um rápido agradecimento, depois se pusera a tratar de detalhes do pedido com o entusiasmado representante da tal pedra.

Em algum ponto da vultosa transação, contudo, vira-se dominada pela inspiração. Tinha pedido ao vendedor que esperasse um instante e, sorrindo, voltara para junto de Eddie, no banco próximo ao pedestal da deusa.

— Tive uma ideia que pode achar interessante.

— Fale, Pamela!

— O que acha de colocar o calcário em todos os ambientes da casa, exceto nas salas de banho? Assim poderia dar asas à imaginação e escolher um mármore diferente para cada uma delas. Em seguida, poderíamos personalizar o ambiente conforme as cores e o padrão do mármore. Seria uma aventura entrar em cada um dos banhos. No caso dos banheiros das suítes, como o da suíte máster e os das outras cinco, usaríamos a cor do mármore escolhido como base para a decoração do quarto.

— Que ideia maravilhosa! — Ártemis havia exclamado com o que parecia genuíno entusiasmo. — Vai ser tão divertido escolher todos eles!

A estrondosa gargalhada de Eddie fizera várias cabeças se voltar.

— Muito bem pensado, Pamela!

Ela sorrira para o homenzarrão.

— Sua casa vai ser realmente única, Eddie.

E, pela primeira vez, usara a palavra como um elogio.

Logo depois, tinha chamado os representantes das pedras para que lhe trouxessem as mais diferentes amostras de mármore.


Pamela estava bebendo uma garrafa de água mineral gelada e estudando uma das amostras de mármore — que lembrava um caleidoscópio — quando sentiu os olhos de Apolo mais uma vez.

Ergueu a cabeça. Ele devia estar fazendo uma pausa porque se encontrava parado do outro lado do pátio, olhando por sobre o ombro do artista que fazia o desenho de sua irmã. Tinha a cabeça ainda inclinada para baixo, em direção ao esboço, porém seus olhos estavam fixos nela.

Pamela sentiu o estômago se apertar no mesmo instante.

Por favor, faça que ele não desvie o olhar! , pensou. E sorriu para ele, tímida.

Apolo devolveu o sorriso, e então sua expressão mudou, como se ele houvesse se lembrado. Baixou os olhos de volta para o esboço, e Pamela suspirou.

— Por que está judiando de Febo? — A voz de Eddie soou estranhamente baixa a seu lado. Ela deu um pulo, perguntando-se como, diabos, o escritor havia chegado tão perto sem que ela houvesse escutado. Olhou para o homem enorme, pronta a insistir que não sabia do que ele estava falando... mas a genuína preocupação em seu rosto a fez conter a negligência nas palavras.

— Não estou judiando dele. Só não sei o que fazer com Febo.

— Mas sabe que ele a ama.

Pamela piscou, surpresa, e Eddie soltou uma versão baixa, mais moderada, de sua risada.

— Precisa se lembrar de que sou um autor, ou seja, não passo de um contador de histórias que observa o mundo e, em seguida, o reformula segundo sua própria visão para entreter e divertir. Além disso, Febo não tenta ocultar seus sentimentos por você. É você quem mascara o que o seu coração sente por ele. Não é verdade?

— Sim — ela concordou.

— Eu sei que é muito atrevimento da minha parte perguntar, mas por quê? Ele me parece um homem de excelente caráter.

Pamela hesitou, sem saber se poderia contar a Eddie parte da verdade.

— Pode se abrir comigo sem medo, Pamela. O que disser não afetará nossa relação profissional. Eu gostaria muito que pensasse em mim como um amigo. Sempre achei ridículo quando as pessoas dizem que nunca misturam negócios com prazer. Como suas vidas devem ser sem-graça se marcham sozinhas sob o peso de regras tão restritivas!... Então, me diga, o que a impede de aceitar Febo?

Ela estudou os olhos de Eddie. Eles não continham malícia e pareciam cheios de genuína preocupação.

— Se eu lhe disser a verdade, não preciso temer que ela vá aparecer em um de seus livros? — perguntou em tom de brincadeira.

Desta vez a risada de Eddie retumbou por todo o pátio.

— Isso é sempre um risco quando se tem um amigo escritor... — ele se inclinou e baixou a voz para um falso sussurro: — Mas eu prometo mudar o seu nome.

Tomando uma decisão apenas com base no que os instintos lhe diziam, Pamela deixou escapar:

— Estou com medo de sair ferida... Você não?

O olhar de Eddie se desviou dela para Ártemis. Por um momento, a tristeza sombreou seu semblante. Então ele respirou fundo, e esta se foi, substituída por um sorriso. Sem tirar o olhar da deusa, o autor comentou:

— Lembra-se de que, quando nos conhecemos, eu queria que a estátua central da minha fonte fosse feita segundo uma imagem do deus Baco?

— Sim — Pamela acenou com a cabeça, torcendo para não ter dito algo que o fizera reconsiderar aquela ideia medonha.

— Baco sempre foi um dos meus deuses favoritos, mas não é tipicamente olímpico. Diz a mitologia que ele foi o último deus a entrar no Olimpo. Homero não o reconhecia como tal. Baco era de uma natureza estranha para os outros deuses. Eles, que sempre haviam primado pela ordem e pela beleza, nem sempre apreciaram o caráter único de Baco ou de seus adoradores. E eu compreendo isso. Sei bem o que é ser denominado uma coisa e encarado como outra. — Eddie balançou a cabeça e a fitou com carinho. — Agora estou divagando... Não é a história de Baco que quero que ouça, mas a da mãe dele. — O escritor fez um sinal para que um dos trabalhadores lhes trouxessem cadeiras.

Pamela se sentou a seu lado, esperando, enquanto Eddie acomodava o corpanzil e pedia um copo gelado de hidromel. Quando ele perguntou se ela se juntaria a ele no drinque, Pamela deu de ombros e assentiu. Por que não? Trabalhando para Eddie, decerto poderia sair um pouco da linha.

Tão logo o hidromel chegou, o escritor tomou um longo gole antes de se lançar em sua história.

— Sêmele era uma linda princesa de Tebas. Nascida de pais mortais, tinha o rosto e a silhueta de uma deusa... Infelizmente, ela chamou a atenção de Zeus, o Governante Supremo do Olimpo. Zeus flertava com muitas donzelas mortais, assim como a maioria dos deuses e deusas.

Nesse ponto, Pamela bufou, desgostosa, e cruzou as pernas outra vez.

Eddie sorriu.

— Lembre-se, minha querida. Era um mundo diferente. Finja, apenas por um momento, que é uma linda jovem vivendo na Grécia antiga. Nascida em uma família de comerciantes, está insatisfeita com o papel que o destino lhe reservou. Você colocaria de lado suas aspirações mais secretas e se casaria, submissa, com quem a família escolhesse? E se, digamos, um belo homem atravessasse o seu caminho? O filho mais velho de um rico latifundiário, talvez?... Ele está longe do seu alcance, mas você encontra o amor em seus braços... De repente, entretanto, descobre que está grávida. Iria se deixar expulsar de casa, desonrada, quando seu romance fosse descoberto? Ou contaria como, um dia, enquanto estava colhendo flores em um prado distante da cidade, um deus surgira, a seduzira e lhe fizera um filho?... Um filho que nascera em meio a muito alvoroço, e cuja vida é rodeada de mistério e magia?

— Compreendo — Pamela murmurou.

— Posso continuar com o meu conto?

— Desculpe — ela murmurou, recostando-se na cadeira para beber o hidromel.

— Como eu estava dizendo, Sêmele se tornou uma das muitas amantes mortais de Zeus. Mas ela era diferente, e não apenas por conta de sua extraordinária beleza. Diz a mitologia que Zeus se encontrava completamente apaixonado por sua jovem amante, tanto que, quando ela lhe disse que teria um filho dele, o deus fez um juramento sobre o Rio Styx de que lhe daria qualquer coisa que ela lhe pedisse. — Eddie parou e sorveu o hidromel em lenta contemplação.

— E então, o que aconteceu?

— O maior desejo de Sêmele era ver Zeus em todo o seu esplendor como Senhor do Olimpo e Deus dos Trovões. Zeus implorou à amante que reconsiderasse seu pedido. Ele sabia que nenhuma mortal poderia contemplá-lo como tal e viver, porém ela não quis voltar atrás em sua maior vontade. O Senhor dos Deuses tinha feito um juramento sobre o Rio Styx, e nem mesmo ele poderia romper aquele vínculo. Assim, com as faces banhadas por lágrimas devido a sua previsão, foi até ela uma última vez e se revelou conforme ela desejara. E assim, diante da glória de sua luz ardente e terrível, Sêmele sucumbiu.

— Mas isso não pode estar certo! Se ela morreu, como foi que Baco nasceu?

— Por causa de seu amor por Sêmele, Zeus lhe arrancou o filho do ventre enquanto ela perecia e carregou a criança dentro de sua própria coxa até que chegou a hora de o Deus do Vinho nascer.

Antes do dia anterior Pamela teria reagido com ironia àquele antigo mito contado por Eddie. Agora sabia muito bem que a possibilidade de este ser muito mais do que ficção era grande e se condoeu pela tragédia de Sêmele, que havia morrido ao se recusar a deixar de lado seu desejo mais profundo.

— Eu não fazia ideia — falou baixinho.

— Acha que Sêmele se arrependeu de seu desejo? — perguntou Eddie.

— Bem... este a matou.

— Mas acha que ela se arrependeu? Acha que ela teria trocado aquele momento extraordinário de realização, de total satisfação — tão intenso que seu corpo mortal não pôde suportá-lo —, por uma vida segura, porém desprovida daquele instante ofuscante de esplendor?

— Não sei se posso responder a essa pergunta. O que acha, Eddie?

— Precisa tomar uma decisão por si mesma. — O olhar do escritor se desviou dela e encontrou Ártemis. Seu sorriso já não denotava tristeza. — Eu tomei a minha.

— E não sente medo? — Pamela descobriu que mal conseguia formular as palavras.

— Claro. Não há garantias no amor, Pamela. Apenas infinitas oportunidades... para a dor e para a felicidade. Mas posso dizer, sem qualquer dúvida, que prefiro tocar essa felicidade por um instante e me deixar ferir do que viver minha vida na escuridão, sem nenhuma luz.

Com as palavras, algo mudou dentro de Pamela. Algo que se encontrava adormecido dentro dela finalmente fez mais do que se agitar. Despertou por completo. Ela sabia o que era viver na escuridão, e também sabia o que era tocar a luz...

— Também não quero uma vida desprovida de luz — murmurou em meio ao nó na garganta.

Eddie olhou para ela e sorriu.

— Muito bem, Pamela. Muito bem.

De repente, ele se levantou, e sua voz grave ressoou por toda a vila.

— Febo! Venha até aqui!

Pamela tentou dizer algo, como: “Espere, Eddie! Eu não disse que estava pronta para tocar a bendita luz agora!...”, mas o autor ignorou seus murmúrios desesperados.

Quando Apolo se apressou em ir até eles, Pamela ficou mortificada ao perceber que seu rosto ardia. Estava corando como uma adolescente!

Que maravilha!...

— Aí está você, meu rapaz! Tenho um pedido para lhe fazer.

— O que posso fazer por você, Eddie?

— Acho que Pamela anda trabalhando demais, e possuo uma regra rigorosa: sempre misturar negócios com prazer! Mas parece que nossa amiga desconhece essa regra... — observou Eddie, como se ela não estivesse sentada a centímetros dele e com o rosto pegando fogo.

— Eu já reparei — concordou Apolo, tentando manter a expressão neutra.

— Que bom! Então sabe exatamente o que precisa fazer... — Diante da expressão vazia do gêmeo dourado, Eddie se ergueu e lhe deu um tapinha no ombro. — Vamos! Tire-a daqui, homem! Vá passear um pouco com Pamela no resort . Visitem as fontes e refresquem-se. Vou pedir a James que lhes providencie um belo almoço... e não esperaremos vê-los tão cedo!

Apolo pareceu tão surpreso quanto Pamela.

— James! — Eddie gritou, e seu assistente, como de costume, surgiu como num passe de mágica. — Peça a Robert que leve Pamela e Febo de volta para o resort , e faça o pessoal preparar um belo piquenique à moda antiga para os dois. Eles precisam de algum tempo para descansar e... — parou, piscando para Febo — ... aproveitar um pouco.

— Agora mesmo, Eddie — aquiesceu James antes de se afastar correndo.

— Podem ir — falou o escritor. — E não se preocupe, Pamela. Diana e eu terminamos de escolher o mármore para os banheiros.

— Tem certeza de que não precisa de mim para fechar o negócio com o representante da pedra calcário?

— Não, não... — Eddie afastou sua preocupação. — Ele já tem a planta. Agora fora daqui, vocês dois!

Sem ver alternativa, Pamela se levantou e começou a caminhar com Apolo pelo pátio. As portas estavam abertas, e o sol refletiu a lataria prateada da limusine que parou diante da villa.

Apolo estacou.

— Lembre-se, Febo, precisa matar o dragão antes de ganhar a donzela! — Eddie gritou atrás deles.

O Deus da Luz ergueu a mão e acenou de volta para Eddie com bom humor, mas Pamela ouviu seu suspiro dolorido e percebeu como seu rosto tinha empalidecido diante do veículo.

Apolo endireitou os ombros, então, e avançou novamente.

— Existem dragões no Mundo Antigo? — Pamela murmurou enquanto caminhava a seu lado.

— Sim, mas não carros. E juro que eu preferiria enfrentar os dragões.

— Vou me sentar no banco da frente com você.

— Não posso matar essa coisa?...

— Eu não acho que seria uma boa ideia. — Pamela tentou não rir, sem sucesso.


Capítulo 27


Fazer caminhadas e andar pelas trilhas do Pikes Peak sempre fora um dos passatempos favoritos de Pamela, assim como sua principal forma de exercício. Por que deveria malhar no sufocante confinamento de uma academia feita pelo homem quando contava com o esplendor das Montanhas Rochosas do Colorado ao seu redor? Não que ela fosse uma daquelas praticantes que vivia de mochilas nas costas, acampando e desprezando as conveniências da vida moderna. Escalar uma parede de rocha nunca a seduzira. Tampouco dormir no chão e fazer xixi no mato.

Mas pegar uma trilha que serpenteasse pela montanha — principalmente no início da manhã, quando tudo parecia ainda mais fresco, quieto e particular — era algo que incluía em sua rotina ao menos quatro vezes por semana desde que tinha deixado Duane. Caminhadas eram sinônimo de liberdade para ela. E não importava o quanto estivesse lenta ou estressada no início de cada uma delas. Uma hora mais tarde, quando voltava, sentia-se relaxada e rejuvenescida.

Ve chamava isso de “seu tempo de ajuste”.

Assim, o short, a camiseta e os tênis novos para caminhada, que haviam sido deixados em sua cama, lhe trouxeram um sorriso aos lábios.

Pamela mudou de roupa depressa e saiu do quarto a tempo de ver Apolo em uma versão masculina do vestuário, andando pelo corredor em sua direção.

— Não sei como Eddie consegue fazer essa mágica sem qualquer poder imortal! — ele falou, sorrindo com ironia.

— O poder de Eddie se chama “dinheiro”... Muito dinheiro. Isso, somado à sua imaginação, equivale à versão da magia no Mundo Moderno. James telefonou para o meu quarto... Pediu para que nós o encontremos na caverna.

— Então, vamos.

Apolo fez um gesto galante para que ela o precedesse pelo corredor, e Pamela percebeu que, assim como na curta viagem de carro, ele se esforçava para não tocá-la. Lembrou-se, contudo, de que o deus estava fazendo apenas o que ela mesma lhe pedira: dando a ela tempo e espaço; o que não ajudava nem um pouco a desfazer o nó que ela sentia na boca do estômago.

James já se encontrava esperando por eles com um sorriso, uma cesta de piquenique e um mapa.

— Marquei aqui uma trilha próxima. Imagino que vão gostar de explorá-la. Ela começa ao norte da casa da fazenda, segue até o First Creek Canyon e termina com uma linda lagoa alimentada por uma cachoeira. Ele apontou para o fim do traço destacado em amarelo. — O lugar perfeito para uma refeição agradável. Na cesta, vão encontrar muita água, bem como protetor solar. E, embora provavelmente não precisem dele, também incluí um telefone celular que já está programado para chamar o balcão de informações do spa . Basta clicar “estrela, sessenta e dois” caso se percam ou precisem de ajuda, o que é pouco provável.

— Você é muito eficiente, James — elogiou Pamela.

— Obrigado, senhora. Basta se lembrarem de que a noite cai depressa no deserto. Creio que o pôr do sol acontecerá hoje às 20h05. — Ele entregou a cesta a Apolo, curvou-se, educado, e deixou os dois sozinhos.

Eles ficaram em silêncio, meio sem jeito, mas Apolo foi o primeiro a falar.

— Acho melhor irmos andando.

Pamela limpou a garganta. Era ridículo ficar nervosa por estar sozinha com ele. Afinal, haviam feito até sexo!... E mais de uma vez. Não existia motivo para aquele aperto no estômago, nem para que suas mãos estivessem tão suadas. Motivo nenhum. Precisava ir com calma.

— Ok. — Ela apontou para o cesto. — Protetor solar em primeiro lugar.

Apolo levantou uma sobrancelha.

Pamela suspirou e soltou o fecho no topo da cesta de piquenique. Isso porque ela queria se comportar com naturalidade!...

Mas a situação, definitivamente, não era normal. O homem diante dela nem sabia o que era protetor solar porque era Apolo, o Deus da Luz.

Pamela suspirou. Seus nervos à flor da pele decerto eram a única coisa normal naquela situação.

Olhou para o cesto superorganizado. James tinha colocado o frasco de protetor solar fator 40 em cima de tudo o mais.

Com uma expressão curiosa, Apolo a observou espalhar a loção cremosa pelos braços e rosto.

— Tem cheiro de coco. O que é? — perguntou, interessado.

— Protetor solar. Ele bloqueia os raios de sol nocivos à nossa pele.

O deus ficou confuso.

— Os mortais podem se queimar sob muita luz. Lembra-se de Sêmele? — ela indagou.

Apolo piscou, surpreso.

— Eddie está me dando aulas de mitologia.

Desta vez, Apolo levantou ambas as sobrancelhas douradas.

— Cuidado com o que acredita das histórias contadas e recontadas em seu mundo. Posso afirmar, sem dúvida, que muitas delas são totalmente equivocadas.

— Sim, eu já percebi isso. Por aqui, dizem que Ártemis é virgem.

Ele soltou uma risada.

— O que prova a minha teoria. Agora, diga a verdade... Essa loção que cheira a coco tem mesmo poder para bloquear a luz de um imortal?

— Duvido, mas pelo menos o impede de pegar uma bela queimadura de sol.

— Queimadura de sol?

— É a mesma coisa que fazer a barba, para você. Deveria ser simples de entender, mas pode deixá-lo confuso, já que não está acostumado com as implicações... A luz solar é assim para os mortais.

Muito sério, Apolo apanhou o frasco das mãos dela, espremeu um pouco na dele, cheirou a loção e, em seguida, espalhou-a pelos braços e ombros.

Pamela o observou e, de repente, sentiu-se inexplicavelmente triste. Apolo, o Deus da Luz, não devia ter que se proteger do sol.

Uma imagem da última vez em que haviam feito amor passou por sua cabeça. Ele se transformara em uma chama, queimando com paixão imortal. Ele era o Sol. Apolo não pertencia àquele mundo. Ela até poderia ceder ao seu desejo mais profundo e se permitir amá-lo, mas não poderia iludir a si mesma pensando que sua história teria um final mais feliz do que o amor mítico de Sêmele por Zeus.

— Não se esqueça do rosto — murmurou.

— Obrigado. — Apolo sorriu e espalhou o líquido branco na pele. — Eu tinha me esquecido. Isto tudo é muito novo para mim.

Pamela sentiu o estômago se contrair outra vez, mas voltou a sorrir.

— Acho que já está bom. — Fechou o frasco e o colocou de volta no cesto.

Apolo o apanhou, e juntos eles saíram pela porta da frente da estalagem.

— Sabe qual lado é o Norte? — Apolo fez uma pausa para perguntar a ela.

Quando ela lhe lançou um olhar espantado, ele sorriu como um menino.

— Eu só estava brincando. Estou sem meus poderes, mas não sem o cérebro.

— Que alívio... — murmurou Pamela, sorrindo de volta para ele conforme percorriam o caminho de pedregulhos que rumava para a esquerda, contornando as construções dispersas e feitas de tijolos que compunham o restante do requintado spa : um restaurante e uma bem abastecida loja de presentes.

Era difícil de acreditar que, passando o resort, aquele oásis dava lugar à beleza crua do deserto. A trilha era ladeada por arbustos selvagens, com flores compridas na cor laranja, intercaladas com plantas roxas e perfumadas, as quais lembravam lavanda, bem como com as familiares folhas pontiagudas e firmes das iúcas. Parecia mais frio ali, no cânion, e muito mais verde; como se o deserto tivesse concentrado por lá toda a sua suavidade e doçura.

Conversaram pouco enquanto caminhavam pelo centro do resort . Apolo não segurou sua mão, tampouco a fez passar o braço pelo dele. Quando falava com ela era educado, até mesmo espirituoso, porém a energia da paixão que estivera presente como uma parte quase tangível de tudo o que ele dizia ou fazia, desde que tinham se conhecido na pequena mesa da Adega Perdida, se fora. Ou então se encontrava bem disfarçada, o que Pamela sentiu profundamente.

Pensou no que Eddie havia dito, e na forma como o rosto do escritor se transformava sempre que seu olhar repousava sobre Ártemis. O homem sabia do grande risco de se ferir que corria, mas acreditava que o que iria ganhar era mais valioso do que aquilo que ele poderia perder.

Não há garantias no amor, Pamela. Apenas infinitas oportunidades... para a dor e para a felicidade.

Era um conceito novo e assustador , pensou Pamela, porém ela nunca fora uma covarde. Raras eram as vezes em que tomava o caminho mais fácil.

Apolo encontrou a placa em forma de seta, em que se liam as palavras esculpidas: “First Creek Canyon”.

— Eu profetizo que First Creek Canyon é por aqui!... — bradou com a mão sobre a têmpora, dramático.

— Cuidado... — Pamela sorriu para ele. — Pode ser atingido por um raio ou algo assim.

— Por Zeus — Apolo grunhiu.

— Acha que está em apuros com ele?

— Estou com medo de que Ártemis e eu tenhamos muito a explicar. Ele é nosso pai e nos ama, mas, apesar disso, o Deus do Trovão não vai ficar nada contente por termos nos permitimos ficar presos no Reino de Las Vegas.

— Ahn... Vegas não é bem um reino. É apenas Las Vegas, uma cidade localizada no estado de Nevada. Assim como Roma é uma cidade da Itália.

Mais ou menos isso , pensou Pamela, não querendo dar início a nenhuma aula de Geografia dos Estados Unidos da América.

— Las Vegas não é um reino?

— Definitivamente, não.

Caminharam vários passos pela trilha de terra vermelha antes que Apolo falasse outra vez.

— Devo parecer um idiota para você, chamando Las Vegas de reino, ficando enjoado, cortando-me ao fazer a barba, não sabendo o que é protetor solar... — resmungou sem olhar para ela.

— Não tanto quanto eu se, de repente, me visse no meio do Olimpo.

Ele olhou para ela.

— Você foi para o Olimpo e não fez papel de tola.

— Não. — Ela suspirou. — Estava muito ocupada sendo enfeitiçada por sua irmã e, em seguida, me transformando em uma flor.

Apolo parou e a fitou. Ergueu a mão, como se quisesse tocá-la, mas não prosseguiu com o gesto. Ao contrário, cerrou o punho e deixou cair o braço ao lado do corpo.

— Sinto vergonha do que aconteceu lá. Eu devia ter sido capaz de protegê-la. Minha única defesa é que esta emoção, essa paixão, é nova para mim. Acho que... — ele fez uma pausa, o olhar encontrando e capturando o dela — ... acho que fico meio perdido.

Pamela respirou fundo.

— Eu sei exatamente o que quer dizer.

A expressão de Apolo se transformou, contudo ele não disse nada mais do que:

— Verdade?

— Verdade. — Ela começou a andar outra vez. Queria se abrir com ele, precisava se abrir com ele, mas não podia fazê-lo sem estar em movimento.

— Eu já lhe disse que fui casada, e que foi um casamento ruim.

— Sim.

— Quero que saiba por que foi tão ruim. Então, acho que vai compreender por que tem sido tão difícil para mim. Por que tenho resistido tanto em amar você.

— Estou ouvindo.

— Eu conheci Duane quando estava na faculdade. Ele é dez anos mais velho do que eu, e já era um profissional bem-sucedido. Eu o considerava bonito e inteligente, e ele parecia tão gentil... Parecia querer cuidar de mim. Compreendo agora que não me apaixonei por quem ele era; eu me apaixonei pelo sonho de vida que supostamente poderíamos ter juntos. Mas amor é amor... — ela encolheu um ombro, como se tentando se livrar da incômoda admissão — ... e nos casamos no mês em que me formei na faculdade. Do dia do nosso casamento em diante, as coisas mudaram. Compramos uma casa juntos. — Pamela riu, sem-graça. — Não. Apague isso... Duane comprou a casa. E insistiu que seria melhor se esta ficasse apenas no nome dele. Disse que seria mais rápido e fácil... assim como quando me deu um carro novo, um “presente” com que me surpreendeu. O carro também ficou no nome dele. Eu me lembro de um dia, mais ou menos uma semana depois do nosso casamento. Ele estava fora da cidade e me telefonou. Gostava de me telefonar várias vezes por dia... — Ela fez uma pausa. Apenas a lembrança da constante perseguição de Duane, de como ele vivia mandando parentes ou alguém de seu restrito grupo de amigos para “lhe fazer companhia” — de modo que sempre soubesse onde ela se encontrava e o que estava fazendo —, a deixou irritada e deprimida. Suas botas pisaram a trilha de pedregulhos com mais determinação enquanto ela aumentava o ritmo na tentativa de desafogar a antiga frustração. Aquilo tinha sido no passado, lembrou a si mesma. Ela sobrevivera e nunca mais permitiria que acontecesse de novo.

Apolo observou em silêncio enquanto Pamela lutava com as próprias emoções, revivendo o que o passado lhe causara. Queria ajudá-la, queria livrá-la da mágoa, mas sabia que o passado era um campo de batalha em que cada um precisava lutar sozinho. Se Pamela não conseguisse exorcizar seus demônios, para sempre estes assombrariam seu futuro. O futuro deles.

— Enfim... — ela continuou. — Naquele dia, Duane perguntou o que eu estava fazendo, como sempre fazia, e eu disse que pretendia pendurar um quadro novo. Eu nunca vou me esquecer de como a voz dele se alterou: “Não acha que eu gostaria de estar aí quando fizesse isso?”, exigiu de repente. Eu nem imaginava que pendurar um quadro sem ele era grande coisa... Mas era. Estávamos casados havia menos de um mês, e foi nesse dia que comecei a me sentir uma prisioneira. — Ela não conseguiu conter um arrepio.

E tinha ficado pior. Muito pior. Ela quase desistira e deixara Duane consumi-la, mas, em algum lugar dentro dela, encontrara forças para lutar. Lenta e silenciosamente, havia batalhado para crescer na carreira e, em segredo, arrumado dinheiro, de modo a poder prosseguir sem ele. As pessoas pensavam que deixar alguém que cometia abusos era uma questão de coragem. Pois ela sabia o quanto estavam enganadas. Para deixar alguém assim era preciso ter um plano, e depois ter os meios para prosseguir com ele. Seu plano incluíra um bom advogado e um negócio próprio.

Pamela endireitou a espinha e terminou sua história:

— Não quero entrar em detalhes. Basta dizer que Duane continuou me sufocando por quase sete anos antes que eu conseguisse me livrar dele. Depois se passaram mais quase dois anos antes que ele parasse de me telefonar, de aparecer nos lugares em que, sabia, eu frequentava. Estava sempre lá... sempre presente, esperando, como se eu fosse uma criança perdida que logo perceberia a bobagem que havia feito e fosse querer voltar para casa. — Ela olhou para Apolo. — Ele só me deixou em paz nestes últimos seis meses.

— Ele magoou você. — A voz de Apolo soou baixa e contida, enquanto ele imaginava o que gostaria de fazer com aquele tal Duane depois que seus poderes imortais retornassem.

— Sim, ele me magoou, mas não é isso o que ainda me afeta. A dor morreu com o amor. O que sobreviveu foi a insegurança, e eu nem a percebi. Namorei Duane por quase dois anos. Se alguém tivesse me dito, em qualquer momento antes de nos casarmos, que aquele homem tão maravilhoso, tão perfeito, era na verdade uma pessoa vingativa, que mal controlava a raiva, que tentaria me aprisionar numa gaiola, me humilhar e me transformar numa mulher assustada, numa sombra de mim mesma, eu teria rido. Jamais teria acreditado. Duane fingiu ser algo que não era para me aprisionar, e eu não me dei conta disso — Pamela terminou num sussurro.

— A farsa de que falou na noite em que assistimos à dança das fontes... Era seu casamento.

Ela assentiu com um gesto de cabeça.

— E, quando descobriu que eu era Apolo disfarçado de Febo, pensou que tinha cometido outro erro ao se entregar a mim.

— Não foi só isso. Você foi o único homem com quem estive desde Duane. Venho trabalhando, mantendo-me ocupada e... — Ela se interrompeu, sem ter certeza do que dizer.

— E tem evitado o amor — Apolo terminou por ela.

Pamela lançou-lhe um olhar rápido, de soslaio.

— Sim.

— O que tornou o meu subterfúgio ainda mais preocupante.

— Sim — ela assentiu novamente.

Apolo ponderou sobre o que Pamela havia dito enquanto percorriam a trilha sinuosa em silêncio. Estava claro agora por que ela se esquivara tanto dele, e por que não pudera admitir seu amor até estar sob a influência do poder inebriante de Ártemis. Como era surpreendente — e bom — perceber que sua reticência tinha mais a ver com o passado do que com ele!... Suspeitava até de que ser um deus fazia menos diferença para Pamela do que o fato de ele não ter sido honesto com ela.

Fizeram uma curva repentina na trilha e então subiram uma colina íngreme, indo parar no topo de um bloco de rocha cor de areia, desgastado pelo tempo, do centro do qual brotava uma cachoeira que derramava suas águas em uma lagoa grande e límpida.

— James estava certo. É o local perfeito para um piquenique! — entusiasmou-se Pamela, olhando ao redor enquanto enxugava o suor do rosto com a manga. O calor do deserto era menor no cânion, mas, ainda assim, a caminhada fizera uma camada de suor cobrir a ambos. Pamela respirou o ar refrescado pela água e ergueu o rosto para sentir a brisa que se erguia da lagoa.

— Tenho a sensação de que James está sempre certo — observou Apolo. Em seguida fez um gesto na direção de uma rocha plana, encarapitada ali perto. — Vamos nos sentar um pouco?

A subida tinha servido para ajudá-la a se livrar de grande parte da tensão que falar sobre o passado provocara nela, e Pamela sentou-se na pedra aquecida pelo sol, dobrando as pernas sob o corpo. Olhou para a lagoa cintilante, permitindo que o som e o cheiro da água lhe acalmassem os nervos. Apolo se acomodou a seu lado, perto o suficiente para que ela sentisse o calor de seu corpo, mas não chegou a tocá-la.

— Não vou lhe dizer que compreendo o que sente. Não. Como eu poderia? Não consigo entender por que um homem gostaria de aprisionar uma mulher. Eu tenho defeitos, mas querer dominar e controlar as mulheres não é um deles. — Ele apontou para a medalha dourada com a própria imagem, que ainda pendia entre os seios de Pamela. — Lembre-se de que, o que quer que aconteça entre nós dois, prometi protegê-la. Pode relaxar agora. Esse Duane não irá assediá-la de novo.

— Obrigada — ela murmurou —, mas prefiro arrumar a minha própria bagunça sozinha.

— Agora está parecendo minha irmã...

— Vou tomar isso como um elogio, ainda que assustador.

— Era para ser um elogio. — Apolo sorriu.

Pamela encontrou seu olhar, devolveu o sorriso, e ele pensou o quanto amava aquele rosto. Era tão sincero, e as emoções de Pamela, tão claras... Poderia olhar para aquele sorriso para sempre.

Surpreso, percebeu que ela havia se tornado seu Sol.

O Deus da Luz engoliu com dificuldade, então, sentindo a garganta seca. Ele a amava demais, e aquilo dava a Pamela um poder sobre ele que era assustador. Se ela lhe desse as costas...

Desviou o olhar do dela, recolhendo os pensamentos e dominando as emoções. Se Pamela lhe desse as costas, ele iria deixá-la partir. Não iria assombrá-la como fizera o tal Duane.

Apertou o maxilar. Ela não o havia abandonado ainda. E o amava. Ele sabia que sim.

Virou-se sobre a rocha, de modo a encará-la, e falou lenta e claramente:

— Não entendo esse Duane, nem o que foi para você viver sob seu controle e lutar por sua liberdade, mas, desde a primeira noite em que nos conhecemos, reconheci em seus olhos uma emoção que compreendi por completo. Sei bem o que é desejar mais e sentir-se incompleto... Mas e se o nosso destino for ficar juntos? E se tudo o que aconteceu em nossas vidas teve um propósito, o de nos preparar um para o outro? Eu sou um deus, um dos Doze Olímpicos. Quem pode saber o quão intrincados são os fios que tecem as Parcas?... — Os olhos de Pamela se voltaram para os dele, e Apolo escolheu as palavras com cuidado: — Eu já existo há muito tempo e vivi a maior parte da minha existência para as paixões e para a frivolidade. Mas também tenho muita coisa boa... Levei a cura, a música e a luz para o Mundo Antigo, ainda que só tenha me dado conta disso mais tarde. Eu sempre ansiei por mais. Tentei saciar essa fome como muitos homens fazem, sejam eles mortais ou imortais. Amei e lutei em excesso... Era como se eu estivesse tentando preencher um vazio sem fim dentro de mim.

— Apolo, eu... — Pamela começou, contudo ele balançou a cabeça.

— Não. São coisas que precisa saber. Eu não vou fingir para conquistá-la. Não quero falsidade entre nós. Você tem que me ver como eu sou, se pretende me aceitar. Eu disse que não conhecia o amor até encontrá-la, porém é mais do que isso. Eu não acreditava na existência do amor, afinal, vivi eras sem ele. Por outro lado, experimentei todos os tipos de prazer da carne. Para mim, o amor não passava de um embuste a que os mortais se apegavam, e o Deus da Luz não via utilidade em tal farsa. Eu não conseguia senti-lo. Eu não precisava disso. Não acreditava nisso. — Apolo fez uma pausa e, por fim, se permitiu tocá-la de leve enquanto afastava uma mecha escura de seu cabelo curto e bri lhante. — Então, algo aconteceu para mudar a forma como eu via a minha vida e o meu mundo. E aconteceu antes de eu conhecer você. O que sabe sobre o deus Hades?

Pamela respondeu à repentina pergunta, surpresa:

— Não é o Deus do Submundo ou algo assim?

Apolo sorriu, desejando que o amigo pudesse ouvir a resposta dela.

— Ele é o Senhor do Submundo. Mas o reino de Hades não é cheio de sofrimento e tortura, como a sua versão moderna do inferno. É um lugar incrivelmente bonito. Eu sei, porque já fui até lá muitas vezes.

— Você vai para o inferno?!

Apolo riu.

— Vou para o opulento palácio de Hades, que fica na extremidade dos Campos Elísios. Você iria gostar de Hades... Vocês dois têm muito em comum. Ele mesmo projetou e construiu seu palácio.

— É como o Caesars Palace? — Pamela indagou, irônica.

— Nem um pouco. Eu lhe dou minha palavra.

— É bom saber...

— Mas eu não mencionei Hades por conta de suas habilidades com design , e sim por conta da maneira como ele e eu nos tornamos amigos. Minha amizade com o Deus do Submundo surgiu por causa da esposa dele.

— Espere! Eu me lembro dessa história... Hades é casado com Perséfone. — Em seguida,

Pamela enrugou a testa. — Mas ele não a raptou e a fez se casar com ele por engano?

— Duvido que alguém pudesse sequestrar Lina.

— Lina? Então ele não é casado com Perséfone?

— Hades é casado com sua alma gêmea. E sua alma gêmea é nada mais, nada menos do que uma mortal vinda de um lugar de seu Mundo Moderno chamado Tulsa. O nome dela é Carolina Francesca Santoro.

— Tulsa? A de Oklahoma?! Como isso é possível? E quanto a Perséfone?

— É uma história longa e complicada. Perséfone e Lina trocaram seus corpos e identidades. O que começou com uma manipulação, por uma força externa — no caso, a mãe de Perséfone, Deméter —, terminou com Hades encontrando sua alma gêmea em Lina. Mas como eles descobriram um ao outro não é importante. O importante é o que eu vi acontecer com Hades depois que ele se permitiu amar.

— Hades não queria amar uma mortal? — Pamela indagou.

Os lábios de Apolo esboçaram um sorriso.

— Hades não queria ninguém, fosse mortal ou imortal. Ele tinha rejeitado o amor, eliminado a possibilidade de este acontecer em sua vida. Escolheu suas tarefas — o trabalho, como diz — em vez disso.

— Parece que nós dois temos, mesmo, muito em comum — Pamela concordou baixinho.

— Sim, só que ele teve mais tempo do que você para aperfeiçoar sua escolha. Precisava ver o que uma vida sem amor estava fazendo com ele, Pamela... Hades havia se tornado a sombra de um deus, vivendo uma existência vazia, sem qualquer emoção.

— Mas ele estava seguro — Pamela sussurrou. — Ele não se sentia magoado.

— Tem razão. Ele não se magoava. Não sentia nada. Eu disse que ele e eu ficamos amigos por causa de sua esposa... Isso porque o amor por Lina o transformou; despertou algo dentro dele. Hades passou de uma criatura fria, sem senso de humor, para um deus vibrante. E o amor daqueles dois também me fez mudar. Eu o vi acontecendo e, conforme fui testemunha disso, comecei a perceber o que tinha passado uma eternidade buscando. — Apolo fez uma pausa e tomou a mão de Pamela na dele. — Hades diz que Lina é sua alma gêmea e que, ao encontrá-la, ele encontrou seu lugar no mundo. Ironicamente, foi o Senhor dos Mortos que me mostrou como eu gostaria de viver. — Levou a mão dela aos lábios. — O que vi nos seus olhos foi essa mesma fome que eu sentia na alma antes de você entrar na minha vida. Nossas almas são como espelhos, Pamela, porque você é a minha alma gêmea. O que quer que tenha acontecido em nossas vidas antes disso acabou nos preparando um para o outro. Eu não sou mais o deus sem coração, incapaz de cuidar de qualquer coisa exceto do próprio prazer. E não é mais a jovem ingênua que preferia amar uma fantasia a um homem de verdade.

— Se eu ainda conseguisse aceitar isso!... — murmurou Pamela.

— Não isso , minha doce Pamela, a mim . Você só precisa me aceitar.

Ela fitou os olhos azuis e respirou fundo.

— Eu já te aceitei. Só não sei o que fazer agora.

Então Pamela sorriu para ele. Aquele sorriso aberto e honesto que ele tanto amava.

Apolo sentiu uma onda de alegria. Ela era sua alma gêmea! Mortal ou imortal, para ele, Pamela seria sempre sua parceira, seu amor, sua própria Deusa da Luz. O brilho de seu sorriso rivalizava com qualquer coisa que seu poder imortal pudesse produzir.

Segurou seu rosto entre as mãos.

— Agora apenas me beija. — Ele se inclinou e roçou os lábios nos dela. — Em seguida, damos conta da comida excelente que James mandou preparar para nós. — Beijou-a de novo, desta vez mordiscando-lhe o lábio inferior. — Depois, acho que vamos fazer amor nessa lagoa, aí embaixo... — Desta vez, o beijo durou tempo suficiente para fazer Pamela suspirar baixinho e se encostar nele. — E, esta noite, quando voltarmos para a estalagem, vamos ficar nos braços um do outro... — Apolo brincou com a boca macia novamente, pensando que esta era como um vinho doce, ainda que bem mais inebriante. — E amanhã...

— Sshh... — Pamela o interrompeu, deslizando para seus braços e colando o corpo ao dele. Não iria pensar na eternidade que os aguardava naquela noite. Iria pensar apenas nele. — Não acha que poderíamos pular a parte do piquenique e ir direto para a água, fazer amor?...

Apolo riu, feliz, depois se levantou e a ergueu nos braços. Beijou-a com paixão uma vez mais, depois tornou a colocá-la no chão e fez uma breve mesura.

— Já que insiste... — elaborou com um sorriso radiante.

Desta vez, foi Pamela quem pegou a mão dele e a levou aos lábios antes de puxá-lo pelo caminho que conduzia até o nível do pequeno lago.

— Espere! — pediu, após apenas alguns metros. — Vou pegar a cesta de piquenique. Tenho a impressão de que vamos estar com um apetite gimenso depois. Até porque... — ela sorriu por cima do ombro enquanto corria de volta pela trilha até a borda da rocha e se inclinava para apanhar o cesto onde Apolo a tinha deixado. — Não podemos desprezar o trabalho que James teve para...

O barulho de chocalho cortou suas palavras, e Pamela ficou imóvel e fria como a pedra. De algum lugar de sua mente veio o pensamento que o ruído se parecia mais com o chiar de uma carne fritando do que com o do brinquedo de criança segundo o qual ele fora denominado.

Uma terrível sensação lhe comprimiu a boca do estômago, e ela precisou lutar contra uma onda de vertigem quando seus olhos seguiram o caminho do som e pousaram na cobra enrolada ao lado da cesta de piquenique, a apenas alguns centímetros de sua mão estendida.


Capítulo 28


Apolo soube que algo estava errado antes mesmo de ver a serpente. Pamela congelara no meio da frase e, em meio ao silêncio que se fizera entre eles, ele pudera ouvir o aviso mortal da víbora.

A reação do deus foi instantânea. Apolo avançou com a mão estendida, concentrando todos os seus poderes imortais para destruir o que ameaçava seu amor.

Mas nada aconteceu, e ele amaldiçoou a si mesmo por ser um deus fraco e impotente.

Não! Não era fraco... O problema era que, no momento, ele não passava de um homem comum. E era como homem que ele deveria proteger Pamela.

Tão rápida e silenciosamente quanto lhe foi possível, postou-se atrás dela. A cobra se encontrava enrolada em uma espessa e tensa corda. Sua cabeça triangular estava erguida, e os olhos em forma de fenda miravam a mão de Pamela, tão perto e vulnerável a seu bote.

— Quando eu der o aviso, pule para o lado — ele falou numa voz calma e controlada.

O chocalho da cobra aumentou, e Pamela abriu a boca para protestar, pedir que ele se afastasse, gritar, qualquer coisa... mas já era tarde. Apolo já se movia. Ele a empurrou de lado e, com uma rapidez sobre-humana, foi ao encontro do bote da serpente.

Pamela gritou ao ver a víbora afundar as presas na parte carnuda da mão dele. Em seguida, deixando escapar uma antiga maldição, o Deus da Luz agarrou o corpo grosso do animal com a outra mão e puxou a serpente, arrancando-a dele. Antes que o réptil pudesse atacar de novo, girou o corpo e arremessou a cobra, de modo a bater sua cabeça como um chicote mortal contra o rochedo, e esta explodiu em um banho de sangue.

Ainda assim, o Deus Sol não ficou satisfeito. Bateu o bicho seguidas vezes contra a pedra, depois atirou seu corpo sem vida por sobre a borda do penhasco, dentro da lagoa lá embaixo.

Apolo tomou fôlego e virou a cabeça em busca de Pamela. Ela se encontrava agachada, não muito longe dele, os olhos arregalados pelo choque.

— A cobra a feriu?

— Não... — Pamela balançou a cabeça, trêmula.

Uma onda de alívio o inundou pouco antes de uma dor lancinante fazê-lo cair de joelhos. Sua mão! Ele nem sequer sentira a picada da víbora!... Apenas uma fúria cega e a necessidade de proteger Pamela.

Virou a mão que ardia. A dor varria seu braço a partir de duas perfurações que sangravam perto de seu pulso, abaixo do polegar.

— Deixe-me ver isso... — Pamela se pôs de joelhos a seu lado, buscando a cesta de piquenique às cegas. Tinha o rosto pálido, e suas mãos tremiam, porém sua voz soou firme. Apolo estendeu a mão, e ela prendeu a respiração. — Ah, meu Deus... Eu sabia que ela o havia pegado! — Olhou para o rosto moreno, protegendo a mão cheia de sangue junto ao corpo enquanto tateava dentro do cesto. — O que está sentindo?

— Fogo — ele falou apenas, surpreso ao descobrir que lutava por ar. Tentou rir, porém o riso saiu como um gemido. — É como se este lado estivesse em chamas.

— Você vai ficar bem. Você vai ficar bem... Aqui... Sente-se e se recoste na pedra. — Ela o orientou, segurando seus ombros, até que os descansou na pedra lisa antes de quase cair para trás, de joelhos, dizendo a si mesma o tempo todo que precisava manter a calma. Não podia entrar em pânico. — Mantenha-se sentado. — Pamela o fez descansar a mão ferida, com a palma para cima, sobre a coxa, tentando desesperadamente se lembrar de tudo o que já tinha ouvido falar sobre acidentes com ofídios peçonhentos. Ve a forçara a ler um artigo, não muito tempo antes, sobre segurança no alpinismo. Pense!... — Deixe a mão abaixo do nível do coração — disse a Apolo, que assentiu com um fraco gesto de cabeça. Em seguida, ela voltou toda a atenção para a cesta. — Onde está o maldito celular?... — falou por entre os dentes que continuavam batendo. — Ah!... — Aliviada, digitou depressa: estrela, sessenta e dois. — Vamos... Vamos! ... — murmurou, aflita. Olhando dentro do cesto, tirou dele duas garrafas de água. Enquanto falava ao telefone, abriu uma delas e a entregou a Apolo, que bebeu metade desta em um só gole. — ... Sim, é Pamela Gray! Sou hóspede de E. D. Faust. Meu assistente e eu estamos na parte superior da lagoa, no First Creek Canyon, e ele acabou de ser picado por uma cascavel! — falou rápida e claramente, como se não estivesse à beira do pânico.

— Tem certeza de que era uma cascavel, senhora? — o atendente perguntou em uma voz calma e profissional.

— Sim, tenho certeza! Cabeça triangular, corpo marrom rajado, chocalho...

— Vou enviar uma equipe de primeiros socorros agora mesmo, srta. Gray.

Ela pôde ouvir os cliques e chiados do rádio do atendente ao fundo. Em seguida, ele disparou a fazer perguntas mais específicas:

— Onde a vítima foi picada?

— Na mão direita. Abaixo do polegar, perto do pulso.

— Certifique-se de que o rapaz permaneça sentado ou deitado, e que sua mão esteja abaixo do nível do coração.

— Já fiz isso.

— Ele está consciente?

Os olhos de Pamela encontraram os de Apolo.

— Sim! — ela afirmou.

— Está com muita dor?

— Sim, ele diz que parece fogo... — A voz dela falhou.

— Pamela, é muito importante que você o mantenha calmo. Não deixe que ele entre em pânico. Ele precisa ficar o mais quieto possível.

— Compreendo. — Controle-se! , ela ordenou a si mesma. Se ela desmoronasse, Apolo não teria mais ninguém com quem contar.

— Muito bem. Tem água aí?

— Sim.

— Lave o ferimento, mas tome cuidado para não mover demais a mão ou o braço dele.

— Vou fazer isso... espere. — Ela colocou o telefone no chão e apanhou a outra garrafa de água. — A ajuda está a caminho, Apolo, mas a ferida precisa ser lavada imediatamente. Espero que não doa... Precisa ficar o mais quieto possível, por isso, se doer, tente não mover o braço.

— Faça o que tem de fazer. Eu não vou me mexer.

Quando Pamela segurou a mão dele com cuidado, Apolo fechou os olhos. Ela despejou a água engarrafada sobre as marcas profundas das presas, e o único movimento do deus foi o de sua profunda respiração.

Pamela limpou a água tingida de sangue das mãos no short e pegou o telefone.

— Pronto! O que mais?

— Remova qualquer anel, pulseira ou relógio que ele estiver usando.

— Ele não está usando nada.

— Ótimo. Agora, tudo o que pode fazer é mantê-lo calmo e ajudá-lo a se recuperar do choque.

— Não preciso fazer um torniquete ou algo assim?

— Não, a picada está muito próxima da articulação do punho. Mantê-lo calmo e cuidar para que ele não perca o calor do corpo irá ajudá-lo mais. E não deixe que ele durma! Sua pulsação pode se acelerar ou ele pode ter dificuldade para respirar. Também pode ter convulsões ou até mesmo perder a consciência. O veneno da cascavel é muito doloroso... Esteja preparada para sua reação à dor.

— Quando os paramédicos vão chegar aqui? — Foi difícil para Pamela falar em meio ao medo que lhe comprimia o peito.

— Estarão aí em menos de vinte minutos. Fique calma, srta. Gray. Uma picada de cascavel é grave, mas não necessariamente fatal.

Ela sentiu uma pontada no coração ao ouvir a palavra “fatal”.

— Eu... Eu estou me sentindo... — Apolo começou, mas parou e se inclinou para o lado, os olhos revirando.

— Preciso desligar! — Pamela disse ao atendente antes de jogar o telefone de lado e pular na direção de Apolo. — Não! — gritou, endireitando-o de volta contra a pedra. — Não pode desmaiar! — Ela o tocou no rosto e sentiu a pele quente. — Não me deixe!

Os olhos de Apolo reviraram mais uma vez, depois ele os abriu por completo. Piscou, como se com dificuldades para focar o rosto dela.

— Pamela... — disse baixinho.

— Apolo, fique comigo! — ela ordenou. Revirando a cesta, apanhou um guardanapo de linho, molhou-o com um pouco da água que restara na garrafa e enxugou o suor do rosto dele com cuidado.

— Isso é bom — ele murmurou. — Frio... bom. — Fez uma careta quando outra onda de dor que parecia lava se arrastou por seu braço. — Então é isso o que se sente quando se é queimado... Não é irônico que tenha acontecido justo comigo? — indagou, ofegante.

— Vai dar tudo certo — afirmou Pamela, enxugando-lhe a testa. — Os paramédicos vão chegar a qualquer momento e trarão o antídoto. Você vai ficar bem. Tem que ficar bem.

Apolo piscou outra vez, tentando limpar a visão.

— Está chorando. — Ele tentou enxugar as lágrimas do rosto delicado com a mão boa, mas a deixou cair de volta ao lado do corpo. — Não chore, doce Pamela... Eu já disse que o Submundo Grego é um lugar de rara beleza. Assim como você é uma mulher de rara beleza, minha alma gêmea.

— Não me fale sobre Submundo! — Lágrimas rolaram em silêncio pelo rosto de Pamela. — Você não pode morrer. É Apolo, o Deus da Luz!

— Nesse momento, o Deus da Luz não passa de um mortal. — Ele fez uma pausa. Sua respiração ofegante tornava difícil falar, e o fogo em seu braço se espalhava rapidamente. Ele podia senti-lo se agarrando a seu ombro e derramando como óleo quente em seu peito. — Pamela, escute... Hades me contou que almas gêmeas sempre se encontram. Vida após a vida, elas voltam a ficar juntas. Lembre-se disso... — O ardor no peito dele pareceu explodir, e seu rosto convulsionou com a dor. Conforme se contraía inteiro, Apolo fechou os olhos contra a agonia e mergulhou na escuridão.

— Nãão! — gritou Pamela. E, com as mãos tremendo tanto que ela mal podia controlá-las, tocou-o no rosto. Segundos antes, este estivera quente; agora estava frio e úmido! Desesperada, ela procurou pela pulsação de Apolo e não encontrou nada.

Não... Aquilo não podia acontecer daquela maneira! Não podia permitir que acontecesse assim!

Pamela se levantou e pendeu a cabeça para trás, gritando sua fúria para os Céus.

— ZEUS! Seu filho está morrendo!... Onde você está? Salve-o! Abra o seu bendito portal e leve-o para casa!... Que tipo de pai é, afinal?

Acima dela, o ar tremeluziu de repente e, em seguida, como a dobra de uma cortina invisível sendo aberta, uma parte do céu se entreabriu. Um rapaz atravessou a abertura, pairando sobre ela. Vestia uma túnica curta, muito parecida com a que Apolo usava na noite em que eles tinham se conhecido, e sandálias douradas, com asas batendo nos calcanhares — iguais as que adornavam seu chapéu em forma de capacete e a varinha de cristal que ele segurava. Seu cabelo curto e encaracolado era de um loiro-platinado, e seu belo rosto parecia ligeiramente divertido.

— O quê? Ficou sem palavras agora que seu grito sacudiu o Olimpo?...

Pamela estreitou os olhos, reconhecendo o mesmo tom arrogante que tinha ouvido inúmeras vezes na voz de Ártemis.

— Em primeiro lugar, salve-o! — exigiu. — Então estará livre para me intimidar.

O deus ergueu as sobrancelhas, surpreso.

— Tem ideia de com quem está falando, mortal?

— Sim! — ela cuspiu a palavra, frustrada. — Com esses pés que voam só pode ser Hermes. Mas podemos discutir isso mais tarde... Salve Apolo agora!

O deus bufou, indignado.

— Impertinente! — Olhou para o corpo inerte de Apolo e balançou a cabeça, desgostoso. — Aposto que ele a tem mimado.

Pamela teve vontade de agarrar o deus pelo pescoço.

— Não precisa ficar tão preocupada... Zeus não deixaria que Apolo morresse. — Enquanto falava, Hermes acenou com a varinha de cristal na direção de seu semelhante, e a luz derramou sobre o corpo do outro deus como num show pirotécnico do dia da independência dos Estados Unidos.

No instante em que a primeira faísca tocou Apolo, seu peito se inflou numa longa tomada de ar, e seus olhos se abriram. Ele olhou em volta, confuso, mas, quando seu olhar encontrou Hermes, o deus franziu a testa.

— Eu sei, eu sei... — O deus que pairava falou. — Estava esperando por Hades, Caronte ou outra figura tão triste quanto.

— Eu já expliquei que Hades é meu amigo... Veja como fala dele! — A voz de Apolo soou áspera, como se ele estivesse com a garganta seca. — O que está fazendo aqui, Hermes?

— Sendo subestimado. — O jovem deus fez um gesto delicado na direção de Pamela. — Sua mortal gritou por Zeus... Parece que estava morrendo — completou com um entediado suspiro.

— E Zeus o enviou — concluiu Apolo.

— É claro que Zeus me enviou. Seu pai está com raiva de você e da deliciosa Ártemis, mas dificilmente permitiria que perecessem.

De repente, Pamela sentiu os joelhos fracos e se sentou ao lado de Apolo que, no mesmo momento, a puxou para junto dele. Ela teve vontade de soluçar de alívio com a força que sentiu no braço que ele passou ao seu redor.

Hermes observou o óbvio carinho de Apolo pela mortal e decidiu que o Deus da Luz tinha mais com que se preocupar do que apenas a raiva de seu pai. Quando um deus amava uma mortal, sempre havia um preço a ser pago.

— Deve saber que, embora Zeus não fosse tolerar a sua morte, decidiu que precisa aprender uma lição por tê-lo desobedecido. Sua ferida não vai matá-lo, tampouco irá danificar seu corpo. Contudo seu pai permitirá que sinta a dor do veneno... Toda a dor do veneno — ele completou, alegre.

— Hermes, faria bem em se lembrar de que estou apenas temporariamente sem os meus poderes imortais... — A voz rouca de Apolo tornou-se clara e ameaçadora.

— Pelo visto também está temporariamente sem senso de humor — Hermes bufou. — No entanto, ainda não terminei de lhe passar a mensagem do Deus dos Trovões... Zeus irá abrir o portal ao pôr do sol da sexta-feira do mundo dos mortais. Quer que você e sua irmã se apresentem perante a ele logo em seguida. Já mencionei que o nosso Governante Supremo não está nada satisfeito?...

— Foi obra de Baco termos ficado presos aqui. Portanto, leve a seguinte mensagem de volta ao meu pai: diga-lhe que Ártemis e eu teremos muito prazer em confrontar o Deus do Vinho e seus malfeitos no Salão Nobre.

Hermes revirou os olhos claros.

— Zeus sabe tudo sobre Baco e seu ridículo plano de causar estragos divinos no Mundo Moderno, na tentativa de manter para si mesmo o reino mortal. Por isso mesmo decidiu fechar o portal de Las Vegas. Permanentemente. E com o corpulento Baco banido do Mundo Moderno como parte de sua punição.

Apolo apertou os dentes contra a dor que se abateu sobre seu corpo.

— Zeus vai fechar o portal? Mas ele não pode fazer isso. Isso significa que...

— Isso significa — Hermes interrompeu, afetado — que tem até sexta-feira para decidir se quer que a sua pequena mortal lhe faça companhia no Olimpo. A menos ... — Hermes enfatizou a palavra, batendo no rosto com os dedos numa simulação de dúvida — ... que prefira ficar aqui, como mortal. — O jovem deus estalou a língua. — E não parece que a mortalidade combina com você. — Em seguida, ainda pairando, Hermes sorriu, malicioso, e limpou as mãos, como se tivesse acabado de se livrar de uma incômoda tarefa. — Bem, já dei o recado e fiz minha boa ação do dia. Ouvi dizer que Afrodite está promovendo uma festa com jogos, e estou pensando em perder feio para ela...

Com um movimento dos pulsos delicados, o deus voador desapareceu no portal aberto no céu.

Apolo segurou a mão ferida contra o corpo e se moveu a fim de olhar para o rosto de Pamela. Suas faces estavam banhadas em lágrimas.

— Não chore, doce Pamela... Está tudo bem.

— Hermes estava dizendo a verdade? Você vai ficar bem mesmo? — ela indagou, enxugando o rosto molhado.

— Hermes é o mensageiro de Zeus. Ele é meio cínico, mas suas palavras são verdadeiras.

Pamela relaxou de encontro a ele, aliviada. De repente se endireitou, tomou o rosto de Apolo entre as mãos e o beijou com paixão.

Ignorando a dor lancinante no corpo, ele a beijou de volta, apertando o braço ao seu redor de modo a sentir a curva de seu seio e o quadril suave pressionado ao dele.

— Nunca mais me assuste desse jeito! — ela murmurou contra a boca bem-feita.

Começou a beijá-lo outra vez, mas parou de súbito ao ouvir o barulho de botas subindo rapidamente pela trilha. Endireitou a blusa e passou a mão pelo cabelo curto. — Eu devia estar tentando acalmá-lo...

Apolo conseguiu dar um sorriso.

— Você ouviu Hermes. O veneno não vai me matar, portanto pode me beijar, fazer qualquer coisa... quantas vezes quiser.

— Posso até aceitar a sua sugestão, sr. Deus da Luz. Só que mais tarde. Primeiro o mais importante. — Pamela se levantou e gritou na direção da trilha. — Aqui! Estamos aqui!

— Sim, senhorita! Estamos chegando! — alguém respondeu.

Ela olhou de volta para Apolo. Sua mão ensanguentada estava vermelha e já inchada.

— Imagino que vá ser meio difícil explicar a eles que o veneno não irá matá-lo; que apenas dói como o inferno.

O belo rosto de Apolo se contraiu quando outra onda de dor pulsou através de seu braço.

— Não dói como o inferno... É uma maldição dos infernos !


Capítulo 29


Pamela concluiu que dinheiro podia comprar muito mais do que qualquer coisa. Comprava atenção e um nível de preocupação fora do comum, embora ela estivesse gostando de fingir que os paramédicos teriam sido tão maravilhosos com qualquer pessoa, independentemente da carteira de seu patrão. Eles aplicaram o soro antiofídico por via intravenosa antes mesmo de tentar mover Apolo.

Deu um passo atrás e permitiu que eles trabalhassem em paz. Agora que sabia que Apolo não corria nenhum risco de verdade, podia apreciar a eficiência dos paramédicos enquanto eles limpavam, enfaixavam e imobilizavam a mão ferida, sem chorar histericamente ou se agarrar à mão boa do deus...

Ouviu a intensa discussão sobre como os sinais vitais de Apolo se mantinham satisfatórios, ainda mais após uma picada tão próxima a uma artéria. Sentiu o estômago se contrair outra vez e tentou obliterar a lembrança do momento em que não fora capaz de sentir o pulso do deus antes de Hermes aparecer.

— A cobra não devia estar carregada — um dos paramédicos concluiu enquanto ajudava Apolo a cobrir a pé a curta distância pela trilha até o jipe que fora convertido em ambulância.

O Deus da Luz, claro, se recusara a ser carregado em uma maca. Quando tentaram argumentar, ele insistira que poderia caminhar por conta própria, levantara-se e começara a andar a passos largos, direto para o veículo.

— Carregada? — repetiu Apolo.

— Sim, cobras venenosas podem controlar a quantidade de veneno que soltam ao picar. Você deve ter apenas assustado essa, mas não chegou a irritá-la, por isso ela inoculou uma dose pequena. Uma cascavel grande e enraivecida poderia ter lhe matado, ainda mais picando tão próximo da artéria principal, como aconteceu.

Pamela sentiu vontade de vomitar.

Apolo pareceu intrigado com a informação do paramédico, e a viagem de volta ao resort foi repleta de histórias sobre picadas de serpentes, das quais ela podia ter passado a vida sem tomar conhecimento. Por exemplo, até então ela não fazia ideia de que mais de oito mil acidentes com ofídios venenosos aconteciam nos Estados Unidos a cada ano e que, em média, atribuíam-se dez mortes a picadas de cobras. Também descobriu que os cavalos eram regularmente picados por serpentes, e que eles não costumavam se dar tão bem como os seres humanos nesses casos porque a maioria era picada no focinho quando abaixava as cabeças para investigar a cobra. E esse era, de longe, o local mais perigoso para uma picada, já que o inchaço resultante muitas vezes fechava ambas as narinas e causava sufocamento.

Pamela segurou a mão de Apolo e tentou, em vão, se concentrar em toda a conversa. Dez mortes causadas por acidentes com ofídios não lhe saía da cabeça.

— Senhor, sua irmã e o sr. Faust vão nos encontrar na frente da estalagem. De lá, eles seguirão conosco para o hospital — avisou um dos paramédicos enquanto o jipe atravessava o atalho de pedregulhos até o resort .

— Hospital? — Apolo franziu a testa e balançou a cabeça. — Posso assegurar que não há necessidade disso.

— Mas, senhor, a dose total de soro antiofídico leva várias horas para ser administrada e monitorada. É melhor que vá para o hospital e passe a noite em observação. Às vezes os sintomas do envenenamento levam horas para aparecer.

Apolo olhou pela janela do jipe e avistou Ártemis e Eddie em pé, ao lado da limusine.

— Leve-me apenas até ali — disse, apontando.

O paramédico franziu a testa, demonstrando sua reprovação, contudo o jipe seguiu a trilha e parou ao lado do enorme veículo. Antes que os médicos pudessem tocar as portas traseiras do carro, Eddie as escancarou, e uma Ártemis pálida subiu na carroceria. Ao ver o irmão com um cateter, uma cânula de oxigênio no nariz e a mão imobilizada e enfaixada, revirou os olhos e perdeu os sentidos após soltar uma exclamação digna de uma deusa.

— Que maravilha... — Pamela murmurou enquanto todos os paramédicos saltavam da ambulância e se juntavam ao redor da diva desmaiada.

— Ela nunca desmaiou antes! — disse Apolo, observando com curiosidade quando Eddie empurrou para longe os homens, ergueu Ártemis nos braços e a carregou para a pousada.

Os paramédicos só puderam correr atrás dele.

— Se é assim, para seu primeiro desmaio, ela fez bonito...

Apolo começou a rir e, em seguida, fechou os olhos contra nova pontada de dor no braço.

Pamela odiava o modo como seu rosto empalidecia e se contraía a cada vez que ele se movia demais.

— O que posso fazer?

Com os olhos ainda fechados, ele sacudiu a cabeça com força.

— Está bem. — Pamela suspirou, sentindo-se mais impotente do que nunca. — Bem... Sua irmã é, definitivamente, uma atriz e tanto — comentou, tentando manter o tom leve.

Após algumas inspirações, Apolo abriu os olhos e esboçou um sorriso.

— É mesmo.

— Está doendo como uma maldição dos infernos ?... — ela indagou, condoída.

— Sim, mas posso afirmar que estou contente por os paramédicos terem ido atrás de Ártemis. Não quero ir para o hospital, Pamela. Posso tolerar a dor que meu pai decretou ser o meu castigo. Não suportaria ser mais picado e revirado por estranhos. — Ele apontou o queixo na direção do cateter que lhe saía do braço.

— Então vamos ver o que a influência de E. D. Faust pode fazer para que seu excêntrico convidado seja tratado por aqui — ela decidiu, tirando o cateter de oxigênio do nariz de Apolo e desenganchando o saco de soro do suporte. — Ainda bem que sou viciada em ER , aquela série da TV... — Ela o estudou, preocupada. Não tinha notado as linhas de tensão em seu rosto. — Está sofrendo muito, não é?

— Zeus foi fiel à sua promessa. Estou tendo todos os sintomas da picada de cobra. — Ele moveu o ombro direito e depois se encolheu, como se a dor tivesse lhe subido pelo braço.

— Venha, vamos lá para dentro e eu o acomodarei em seu quarto. Creio que eles não dariam analgésicos para uma vítima de picada de cobra, mas acho que tenho alguma coisa na minha caixinha de primeiros socorros que fará maravilhas. Depois de alguns comprimidos de Tylenol 3 e um copo de vinho, vai estar se sentindo mais relaxado e, com sorte, sem nenhuma dor.

— Tylenol 3? — ele indagou.

— Confie em mim — reafirmou Pamela.

Apolo resmungou e segurou a mão enfaixada junto ao corpo conforme eles desciam devagar da parte de trás do jipe, subiam pela calçada e entravam na estalagem — algo fácil de fazer, porque ninguém se preocupara em fechar a porta da frente.

Ártemis encontrava-se deitada languidamente em um dos sofás, a um canto, com Eddie ajoelhado a seu lado. Um paramédico media-lhe o pulso, outro movimentava um pequeno frasco diante de seu nariz.

— Ah! — ela protestou. — Leve essa coisa fedida para longe de mim!

— Calma, calma, minha deusa... — murmurou o escritor.

— Ei, está tudo sob controle — Pamela falou em voz alta, balançando a cabeça, desgostosa. — A vítima da picada de cobra está muito bem, obrigada...

Ártemis se levantou e seus olhos azuis se arregalaram; depois se inundaram de lágrimas conforme ela fitava Apolo por cima do sofá.

— Meu irmão! — exclamou. — Ah, meu pobre irmão!... — Oscilou, erguendo as mãos na direção dele.

Apolo foi até o sofá, e Eddie deslocou seu corpanzil de modo que o deus pudesse se sentar ao lado da deusa. As lágrimas escorreram dos olhos de Ártemis e, hesitante, ela estendeu a mão para tocar o curativo em torno da mão do deus.

— Disseram que uma serpente venenosa o havia atacado. Fiquei tão assustada! Pensei que fosse... — Ártemis se interrompeu, mordendo o lábio.

Apolo pôs o braço em torno da irmã e a deixou chorar em seu ombro.

— Está tudo bem. Já passou.

— Onde estou com a cabeça? — Eddie pareceu cair em si de repente. — Você devia estar a caminho do hospital! Urgente!

— Não! — retrucou Apolo. — Eddie, eu tenho um pedido a lhe fazer.

— Pode me pedir qualquer coisa que esteja dentro do meu alcance — prometeu o autor, solene.

— Faça que eu permaneça aqui até sexta-feira.

— Não! Precisa ser cuidado pelos melhores curandeiros que houver por aqui! — protestou Ártemis, parecendo prestes a desmaiar novamente a qualquer momento.

Enquanto todos se concentraram em, mais uma vez, acalmar a deusa, Pamela conseguiu capturar seu olhar e moveu a boca, esboçando uma única palavra: Hermes .

Ártemis piscou, surpresa, e fez cessar os próprios soluços.

Em meio ao intervalo na crise de histeria da deusa, a voz de Apolo soou calma e lógica:

— O veneno de cobra não me colocou em risco de morte. Até mesmo estes homens podem atestar que meus sinais vitais continuam firmes e fortes. Preciso apenas descansar, o que vou fazer melhor aqui do que em um lugar onde estarei cercado por estranhos.

Como uma criança confusa, Ártemis olhou para o irmão.

— Não vai ficar... defeituoso ? — ela usou a palavra como se esta lhe deixasse um gosto horrível na boca.

Pamela reparou que, mesmo com a mão ferida ainda apertada contra o corpo e sofrendo com dores terríveis, Apolo balançou a cabeça e sorriu para a irmã, tranquilizando-a.

— Não ficarei defeituoso coisa nenhuma.

Ártemis conseguiu controlar os soluços por tempo suficiente para segurar o braço de Eddie.

— Oh, por favor... Não o mande embora!

— Eu nem pensaria nisso — respondeu o homenzarrão, dando-lhe um tapinha na mão. — Transfiram o equipamento que for preciso para o quarto dele — ordenou aos paramédicos. — Vou chamar meu médico particular para atender Febo.

Admirada, Pamela viu os paramédicos se prontificarem a obedecê-lo, e Eddie puxou o sempre atento James de lado, a fim de lhe explicar quem deveria ser chamado, o que deveria acontecer, quando, como e por quê.

Como se estivessem no olho de uma tempestade, Pamela, Ártemis e Apolo tiveram sua privacidade assegurada por um momento.

— Hermes? — Ártemis perguntou a Pamela num sussurro.

Ela respondeu no mesmo tom baixo:

— Ele apareceu quando Apolo... — Pamela hesitou, olhou para o deus e o viu assentir de leve. — ... quando ele foi picado pela cobra — minimizou. — Hermes tirou o veneno do corpo dele, mas deixou a dor por ordem do pai de vocês.

— Precisamos comparecer perante Zeus logo após o anoitecer de sexta-feira. Ele decidiu fechar o portal em seguida. Permanentemente.

Pamela viu a surpresa no rosto da deusa. E, quando Eddie se apressou a se juntar a eles outra vez, quase teve a certeza de ter visto algo mais... Algo parecido com tristeza.

— Está tudo sendo arranjado, meu amigo — o autor falou a Apolo.

— Obrigado, Eddie. Vou me lembrar para sempre da sua bondade — declarou o deus, muito sério.

Eddie pôs a mão no ombro de Apolo.

— É um prazer seguir antigas regras. Na minha casa, o vínculo entre hóspede e anfitrião ainda é sagrado.

Apolo curvou a cabeça em reconhecimento.

— Se os deuses ainda escutam o Mundo Moderno, poderá ser abençoado por isso.

— Eu já fui abençoado — garantiu o homem, tomando a mão de Ártemis para levá-la aos lábios.


Capítulo 30


— Então a conclusão geral é que a cobra o mordeu com pouco ou nenhum veneno — comentou Pamela, sentada ao lado de Apolo na cama. — Meus parabéns... Enganou a todos.

Ele mudou de posição, impaciente, e moveu o ombro direito.

— Achei que eles nunca fossem embora.

— Ei, eu gostei do médico de Eddie...

— O dr. Kevin Glenn era jovem demais e inteligente demais. Ele sabia que eu estava escondendo alguma coisa; estava escrito em seus olhos. Mas não sabia dizer o quê.

— Isso porque não é tão bom ator quanto sua irmã.

Apolo fez uma careta.

— Ela também parecia não ir embora nunca.

— Ártemis está apenas preocupada com você.

Ele suspirou e tentou encontrar uma posição mais confortável para a mão enfaixada.

— Eu nunca gostei de serpentes. Sei que Deméter ficaria injuriada em ouvir isso, mas, desde que enfrentei Píton, fico inquieto na presença delas.

— Píton era venenosa? — Pamela aproveitou que eles se encontravam finalmente sozinhos para revirar a bolsa à procura de sua caixinha de remédios.

— Não, mas era grande o suficiente para engolir um homem.

Ela olhou para ele.

— Está de brincadeira, não está?

— Nem um pouco.

Pamela estremeceu.

— Que coisa nojenta! — Escolheu dois comprimidos brancos e grandes, e os entregou a Apolo. — Espere... Isto vai ajudar. — Foi até o minibar e apanhou uma garrafa cara de Pinot Grigio gelado. Hóspedes de E. D. Faust não eram tratados com aquelas garrafas de miniatura baratas, oferecidas nos aviões...

Abriu-a e serviu duas taças. Esperou até que Apolo jogasse os dois comprimidos na boca e, em seguida, ofereceu-lhe o vinho.

— Melhor trazer a garrafa — ele decidiu, após dar conta da bebida em três goles.

Pamela fez como o deus pedia, reabastecendo a taça. Com apenas ela no quarto, Apolo não sentiu necessidade de mascarar sua luta contra a dor e, a cada vez que fazia uma careta ou esfregava o ombro, ela queria gritar sua frustração para os Céus outra vez.

— Ele não devia deixá-lo com tanta dor — desabafou, incapaz de manter o pensamento para si mesma por mais tempo.

Apolo tomou um longo gole do vinho e bateu no colchão, a seu lado.

— Sente-se aqui, perto de mim... Vou lhe falar um pouco a respeito de meu pai. Zeus é o nosso Governante Supremo. Ele é generoso, compassivo, bondoso e protetor para com seus filhos. Mas nunca beneficia os mentirosos ou aqueles que quebram um juramento. Sua voz pode ser ouvida no farfalhar dos galhos dos antigos carvalhos. Zeus é bom e majestoso, mas também é o Senhor dos Céus, o Deus da Chuva e o Senhor das Nuvens, e empunha um raio poderoso. É um deus apaixonado, ciumento e, quando o provocam, sua ira é algo terrível de se ver.

— Ele soa como um paradoxo.

— É o que todos nós somos: não apenas uma coisa ou outra, mas uma mistura de todas elas.

— Isso não me parece um deus dos deuses, e sim um homem — confessou Pamela.

— Verdade — concordou Apolo. — No Mundo Antigo, os deuses não criaram o Universo. Foi justamente o contrário: o Universo criou os deuses. Pense no Universo: nos céus e na Terra, no sol e na lua. São todos uma coisa ou outra?... É como a serpente, esta tarde. Ela despertou minha raiva, eu acabei por matá-la, mas ela não fez por mal. Entretanto, seu veneno é como o fogo do inferno em que o seu Mundo Moderno acredita.

— O que está dizendo, então, é que Zeus não é mau; é apenas imperfeito.

Apolo sorriu e ergueu a taça para ela em resposta.

Pamela o observou esvaziar o segundo cálice de vinho. O dia havia judiado de seu corpo mortal. Mesmo que Apolo não corresse risco de morte, as manchas escuras sob seus olhos, a palidez de sua pele e as novas linhas de tensão em seu rosto eram preocupantes. Enquanto o médico de Eddie o examinara, ele colocara um par de pijamas com calças de cordão. Tinha deixado a parte superior desabotoada, de modo que a equipe médica que pairara a seu lado pudesse manter permanente controle sobre seus sinais vitais.

Felizmente todos eles tinham ido embora e levado consigo seus cateteres, monitores, caretas de reprovação e aquele cheiro de hospital que parecia ficar impregnado na pele. Agora Apolo aparentava ser apenas um homem normal, bonito, que acabara de passar por um dia muito longo e difícil.

E isso era tudo o que ela queria pensar dele. Claro que poderiam conversar sobre os deuses e o Mundo Antigo, mas aquilo tudo afigurava-se muito abstrato e surreal diante de sua pele quente e de seu sorriso carinhoso.

A verdade, contudo, era que, na sexta-feira, Apolo iria voltar para o Olimpo. O portal iria se fechar, e ele sairia de sua vida.

Sentiu o coração pesar no peito.

— O que foi? — o deus quis saber.

Seus olhos encontraram os dele. Apolo parecia tão cansado!... Ela não podia colaborar ainda mais para seu sofrimento. Não naquela noite.

Obrigou-se a sorrir.

— Percebi que ainda não lhe agradeci por ter salvado a minha vida.

Apolo inclinou-se e passou os dedos na medalha dourada que ela carregava no pescoço.

— Eu me comprometi a protegê-la. E nunca quebro um juramento.

Seu toque mudou da medalha para acariciar de leve a lateral de seu pescoço, e Pamela estremeceu.

— Está com frio, doce Pamela — ele murmurou.

— Como eu poderia estar com frio se me toca assim?...

O sorriso de Apolo foi radiante.

— Viu? Sou o mesmo — mortal ou imortal. Você ainda sente o meu calor. — Ele se inclinou para mais perto dela e capturou seus lábios nos dele. Quando ela tentou suavizar o beijo e resistir a seu apelo erótico, Apolo sussurrou contra sua boca: — Ajude-me a esquecer a dor. Deixe que eu me perca em você...

Como ela poderia resistir?, perguntou-se Pamela. Estava ardendo por ele!

E ela o amava.

Mesmo assim, pôs a mão em seu peito, e Apolo interrompeu o beijo, lançando-lhe um olhar surpreso.

— Esta noite eu quero fazer amor com você... Permita isso — Pamela pediu com voz rouca.

Quando empurrou os ombros largos para trás, de encontro aos travesseiros de penas, ele não se opôs. Ela se levantou, então, tirou a blusa por sobre a cabeça, depois se livrou do short e dos sapatos. Em vez de se juntar a Apolo na cama, contudo, deu alguns passos para trás, de modo que ele tivesse uma visão clara de todo o seu corpo.

Adorava a maneira como os olhos do deus a tragavam. Ele a fazia se sentir bonita, desejável, poderosa.

Deve ser assim que uma deusa se sente , pensou.

Aceitar o amor de Apolo a havia transformado. Decidir se entregar a ele a arrancara da escuridão da sombra de Duane e jogara luz em seu mundo. Apolo era um deus, e ela, uma mortal; mas, com o amor dele, ela se tornara a própria Deusa da Luz.

Devagar, alcançou o fecho do sutiã de renda branco e simples. Após tirá-lo, deixou as mãos deslizarem sobre os seios sem pressa, brincando com os mamilos rosados até senti-los rijos. Com cuidado, acariciou o próprio corpo, livrando os quadris redondos da calcinha.

Os olhos de Apolo a devoravam.

Nua, Pamela se aproximou da cama.

— Não — ordenou, sorrindo, quando ele tentou se sentar para ir ao seu encontro. — É a minha vez, lembra-se?

— Você é tão linda, Pamela... — Apolo murmurou. — Espero que... — ele se interrompeu, soltando uma risada seca.

O que ela estava pensando? , pensou Pamela, mortificada. Apolo sofrendo dores terríveis, e ela agindo como uma stripper quando, na verdade, ele precisava de uma enfermeira!

Descansou os dedos com cuidado sobre o braço enfaixado.

— Posso ficar aqui, a seu lado. Não precisamos fazer nada.

— Não é isso — ele falou, aflito. — Eu quero você, quero que faça amor comigo. Só espero não decepcioná-la. Eu já disse que não usei nenhum dos meus poderes imortais para seduzi-la, e é verdade. Mas quando eu a amei... — ele moveu os ombros, inquieto — ... não pude evitar tocá-la com a minha magia. Esta noite não haverá nenhuma magia, nenhum poder. Serei apenas um homem.

— Jamais será apenas um homem, Apolo. Será sempre o homem que eu amo .

— Minha doce Pam...

Seu nome mudou para um gemido de puro prazer quando ela deslizou as mãos pela blusa do pijama, abriu-a e esfregou a ponta dos seios contra o peito musculoso, ao mesmo tempo que mordia de leve o lábio inferior e a linha firme do maxilar quadrado. Em seguida, passou a mordiscá-lo corpo abaixo, deixando um rastro quente, até desatar com habilidade o laço que lhe prendia as calças. Pôde ouvi-lo soltar uma exclamação quando o segurou nas mãos, esfregando o eixo rijo na maciez de seus seios.

E então sua boca estava nele. Primeiro usou os lábios e a língua ao longo do membro espesso e sólido, amando o modo como o corpo de Apolo estremecia e enrijecia sob seu toque, e também o modo como ele gemia seu nome cada vez mais. Engoliu-o, sugando e provocando até ouvir um grito rouco:

— Não posso esperar mais!...

Com um movimento rápido, ela montou nele. Apoiando-se nos joelhos, posicionou a ponta rija em seu calor úmido e fixou os olhos no calor azul e intenso dos olhos de seu deus.

Deixe que eu o livre da dor, mesmo que apenas por um momento!, rezou em silêncio a qualquer deus ou deusa que pudesse estar ouvindo. Então empalou-se nele, lenta, deliciosamente, engolindo-o inteiro.

Com um movimento provocante, ergueu o corpo, sentindo o membro de Apolo pulsar contra ela, então deslizou para baixo outra vez. Bem devagar. Envolveu-o, até que uma deliciosa tensão aumentou além do que ela podia suportar. Apenas nesse momento guiou a mão dele para o quadril e deixou que Apolo aumentasse o ritmo.

Moveram-se juntos, com urgência, e o delírio da paixão mortal preencheu seus corpos com um calor que foi crescendo, irrefreável, até se tornar insuportável.

Quando percebeu o corpo de Apolo se retesar sob o dela, Pamela moveu o seu próprio, cavalgando-o com mais ímpeto, de modo que, quando ele derramou sua semente morna dentro dela, também explodiu em um poderoso orgasmo.

Ao desabar sobre Apolo pouco depois, Pamela sentiu os corpos suados escorregarem um contra o outro e o braço do deus se apertar em torno dela.

— Eu te amo! — ofegou o deus, beijando-a com delicadeza.

Pamela aninhou a cabeça junto ao ombro largo, tomando o cuidado de manter o próprio peso distante de seu braço direito.

Ao mudar de posição para puxar o lençol em torno deles, seu sorriso satisfeito se ampliou para um de felicidade. Com os olhos fechados, o rosto de Apolo finalmente parecia livre da dor, relaxado e tranquilo, e ele caíra em um sono profundo.

— Obrigada — sussurrou para o vazio.

 

— Eu não sei, Apolo. Não me sinto bem deixando você. — Pamela parou perto da cama, brincando com a pulseira de couro da pasta. Por insistência dele, ela se vestira e ficara pronta para voltar a trabalhar na villa .

Afinal, Apolo lembrou, não havia nada de errado com ele. E ela ainda tinha muito trabalho a fazer.

— Vai ficar tudo bem. Eu tenho isto... — ele pegou o controle remoto — ... e isto. — Tocou com o dedo o guia de canais. — E já me explicou tudo sobre televisão a cabo. Ficarei bem entretido.

Pamela franziu a testa.

— Não se esqueça do meu telefone. Meu número é...

— Sim, sim, o seu número está escrito no papel perto do aparelho. Pode ir agora. Eddie deve estar à sua espera.

— Está bem. — Ela se inclinou para beijá-lo. — Mas sinto que estou fazendo alguma coisa errada.

— Esta noite, quando voltar para a minha cama, prometo que a deixo me compensar por estar me abandonando.

— Eu não quero te abandonar!

Apolo riu, então fez uma careta, esfregando o braço ainda dolorido.

— Eu só estava provocando você, doce Pamela. Na verdade, eu a invejo. Vou sentir falta do trabalho hoje. Tem certeza de que não há nenhuma maneira de eu...

— Você já conversou sobre isso com Eddie, e ele se recusou a deixá-lo sair deste quarto, exceto para jantar na varanda, até sexta-feira.

A reação irritada de Apolo foi interrompida por uma batida na porta. Pamela a abriu e deparou com o corpanzil de Eddie preenchendo o vão da entrada.

— Acredito que tenho um trabalho pelo qual Febo ficará muito interessado... — O autor deu um passo para o lado, fazendo um gesto autoritário, e dois homens carregaram para dentro da suíte uma pequena mesa de desenho, seguidos pelo arquiteto com quem Apolo vinha trabalhando no projeto da casa de banhos. — Se Maomé não vai à montanha, a montanha vem a Maomé!

— Brad! Não devia estar na villa ? — indagou o deus.

— Devia. Você também, mas parece que uma cobra decidiu mudar os nossos planos. — O arquiteto deu-lhe um tapinha no ombro e, em seguida, desculpou-se ao vê-lo apertar os lábios contra a dor que causou o movimento brusco. — Sinto muito, Febo. Uma cascavel também picou o meu cunhado no ano passado. Ele disse que doeu à beça, tanto que ficou de cama por uma semana. — Olhou para Eddie. — Talvez devêssemos retomar de onde paramos amanhã.

— Não! Não sei o que vocês têm em mente, mas posso garantir que estou mais do que disposto — Apolo falou depressa.

— Mas só se prometer que não vai sair daí! — Eddie entrou no quarto. — Bradley trouxe as plantas do balneário para que você o ajude a terminá-las. Isso se ficar na cama e continuar descansando.

— Tem o meu juramento — prometeu Apolo já sentado, a atenção voltada para os papéis compridos e lisos que Bradley foi desenrolando e prendendo à mesa de desenho.

— Venha, Pamela — chamou o autor. — Vamos deixar o balneário para os especialistas. A deusa nos aguarda no carro.

Enquanto eles deixavam a suíte, o resmungo de Apolo chegou até eles:

— Está aí uma coisa da qual eu não sentirei falta hoje...

— Obrigada, Eddie — agradeceu Pamela, apertando o braço do homenzarrão.

Ele sorriu para ela.

— De nada, minha querida. Febo não me parece um homem que se sente bem com a inatividade.

— Tem razão. Na verdade, tem razão em mais do que isso.

A expressão sorridente de Eddie tornou-se contemplativa.

— Parece feliz esta manhã, Pamela...

— Sim, eu estou feliz. Concluí que Sêmele não se arrependeu de sua escolha — ela confessou.


Capítulo 31


Pamela olhou para o relógio e soltou uma exclamação.

— Eddie! São quatro horas! Você não disse que as reservas para o nosso jantar eram para as seis?

— Tem razão, Pamela! — Eddie falou do outro lado do caótico pátio. Levantou-se do banco de um salto e se moveu pesadamente, ficando atrás de Matthew, que tratou de dar os últimos retoques no esboço da fonte.

Ártemis desceu com graça de seu pedestal e se juntou ao autor. Em seguida, Pamela pôde ouvi-los parabenizar Mateus por seu bom trabalho.

Um trabalho muito bem-feito...

Era tarde de sexta-feira, e o serviço estava longe de ser terminado. Como dois dias e meio haviam ido embora tão depressa?

Correu a mão pelos cabelos. Estava exausta e estressada além da conta. Tinha passado os últimos dias concentrada em dar forma à villa de sonho de Eddie: fazendo malabarismos com os pintores e pedreiros, resolvendo problemas de instalação e contratempos com os tecidos.

As noites, ela havia passado nos braços de Apolo, às voltas com o amor do Deus Sol. Dormira muito pouco, vinha trabalhando feito uma condenada... e eles ainda estavam atrasados.

Mas não trocaria um único instante do que tinha vivido.

— Pamela, que tal isto para as paredes de mentirinha do home theater ?... — O finalizador de mentirinha apontou sua caneta de penas com afetação para uma placa que fora pintada com um bordô escuro e delicados veios pretos e dourados.

— Absolutamente perfeito desta vez, Steve — ela falou com alívio. — Exatamente o acabamento que eu queria para o cômodo.

— Maravilha. Vai ficar um arraso , querida! — Ele acenou com a pena, exultante. — Vou começar na segunda-feira pela manhã — declarou Steve, entusiasmado.

— Estarei aqui — prometeu Pamela.

Steve acenou com a cabeça e saltitou, feliz, de volta para a casa, a fim de juntar suas coisas e ir embora para o fim de semana.

Bem mais séria, Pamela se pôs a arrumar com cuidado as anotações do dia na pasta. Também estaria de volta na segunda-feira. Bem ali, em Las Vegas. No mundo moderno mortal.

E Apolo e Ártemis estariam no Olimpo.

Não haveria mais jantares na varanda para eles na companhia do fantástico e divertido Eddie. Nenhuma conversa com Apolo sobre o mármore novo que acabara de chegar para o banheiro da suíte máster e que estava na cor errada. Nenhum projeto criado em conjunto, que logo se transformaria em mosaico nos pisos do balneário novo de Eddie...

Ainda assim, seus lábios se inclinaram em um sorriso secreto quando pensou nos últimos dois dias. Além de trabalhar pessoalmente com o arquiteto e, mais tarde, por meio de um telefone e de um maravilhoso notebook que Eddie fornecera — e que o deus dominara com admirável facilidade —, Apolo estava se tornando um verdadeiro cinéfilo. Antigo deus ou não, havia certas coisas nele, agora, que eram típicas de um homem moderno. Como o fato de adorar aprender sobre eletrônica; e como aderira ao controle remoto para ficar zapeando . Na noite anterior, quando ela chegara do trabalho na villa , encontrara-o absorvido no segundo filme de O Senhor dos Anéis.

— Aragorn me lembra Heitor. E o pequeno hobbit. .. o pequeno hobbit tem o coração do fiel Pátroclo, de Aquiles.

— Frodo se parece com esse tal de Pátroclo? — tinha indagado.

— Não. Eu não estava pensando em Frodo. Estava pensando em Samwise. Espero que, no final, ele se saia melhor do que Heitor e Pátroclo — Apolo declarara, muito sério.

Ela não se lembrava tão bem de mitologia para saber do que ele estivera falando, contudo lhe assegurara que Aragorn e Sam haviam tido finais felizes.

Apolo resmungara, então, e erguera a mão boa num protesto.

— Não me conte o final ou vai perder a graça.

E ela quase tinha contado. Era um filme comprido, e o tempo estava se esgotando para Apolo. Ele poderia nunca mais ver O Retorno do Rei .

Tomaram uma decisão bem tarde naquela noite.

Não , Pamela se corrigiu. Ela tomara a decisão. E se lembrava bem da tensão que irradiara do corpo de Apolo quando ele percebera que ela não iria, não poderia retornar com ele ao Olimpo.

— Eu seria inútil lá, Apolo.

— Inútil? Como pode até mesmo pensar em uma coisa dessas? — Ele fizera um gesto cheio de frustração com a mão ainda enfaixada e, em seguida, soltado uma exclamação pela dor aguda que causara a si próprio. — Pelos deuses, não vejo a hora de me ver livre desta dor! — completara, nervoso.

Ela mudara de posição e, em vez de ficar esticada a seu lado, deitara-se sobre ele. Delicadamente, tinha massageado seu ombro direito, sentindo-o relaxar sob os dedos.

— Melhor?...

Apolo balançara a cabeça e a beijara na palma da mão.

— Seu toque me acalma. É a única coisa que consegue aliviar essa dor sem fim... Não vê o quanto eu preciso de você comigo?

Ela havia sorrido para ele, tristonha.

— Apolo, nenhuma cobra vai feri-lo no Olimpo.

— Não, mas a sua ausência vai.

— Eu sei. — Ela mordera o lábio. — Também vai doer em mim ficar sem você.

— Então venha comigo! É a minha alma gêmea, e quero que seja também minha esposa.

Pamela tentou digerir a amargura de um futuro sem Apolo. Como se fosse fácil.

— O que eu faria no Monte Olimpo, em meio a vocês, deuses? — Tinha balançado a cabeça e, quando ele abrira a boca para protestar, mal tomara fôlego. — Por mais que deseje isso, eu não sou nenhuma artista. Não quero nenhum estúdio divino onde eu possa fingir que sou talentosa e que estou interessada em criar peças sabe-se lá do que para sabe-se lá quem... — Tinha balançado a cabeça de novo e suspirado. — Apolo, por acaso há algum mortal vivendo lá? Qualquer mortal?

— Muitas das ninfas e servas são semideidades — ele afirmara depressa. — E é comum se permitir que alguma sacerdotisa ou sacerdote visite seu protetor imortal.

— Semideidades não são mortais. Sacerdotisas e sacerdotes podem até visitar o Olimpo, mas depois voltam a viver sua vida mortal — ela observara, tristonha.

— Vai ser a minha esposa. Vou pedir a Zeus que a torne imortal.

Ela havia puxado a mão da dele.

— Vamos supor que eu me casasse com você e me transformasse em uma imortal. O que faria pelo restante da eternidade? Eu não teria um reino como sua irmã. Não teria trabalho, Apolo. Eu não teria nada além do que estaria autorizada a ter por seu intermédio.

Nesse momento, notara o brilho de compreensão nos olhos do deus.

— Seria outra jaula — ele falara devagar. — Não sou Duane, mas isso pouco importa. Para você seria como outra gaiola: maior, mais importante e mais dourada, talvez, mas...

— Ainda uma gaiola — ela completara.

Apolo tinha tornado a lhe segurar a mão.

— Então eu fico aqui.

Ela arregalara os olhos e sacudira a cabeça com força.

— Não! Você não pode! É Apolo, o Deus da Luz. Não pode abandonar o seu mundo. Não definitivamente. Sabe que não pode. O que aconteceria com as pessoas, lá? Não as estaria condenando à escuridão?

— O sol pode cruzar o céu antigo sem mim. Minhas éguas conhecem o caminho que minha carruagem dourada deve tomar, pois o percorrem, muitas vezes, sem que eu as esteja conduzindo.

— Apolo, não seria certo. Não pode deixar o Olimpo. Não pode ser um mortal.

— Fui mortal esta semana e posso sê-lo por uma vida.

— E quanto tempo esta duraria? Pense no que aconteceu em seu primeiro dia como mortal... Você morreu! — As palavras brotaram de seus lábios. — Não importa o que diga à sua irmã, a Eddie ou a si mesmo, eu estava lá. Eu vi acontecer. Você salvou a minha vida, e em seguida perdeu a sua. Se Hermes não tivesse aparecido, estaria morto agora. — Ela havia respirado fundo, sentindo que tremia enquanto segurava a mão dele. — Eu não poderia suportar isso, Apolo. Eu não poderia vê-lo morrer outra vez.

— Sshh... — ele murmurara, puxando-a para os braços. — Deve haver uma saída. Vamos encontrá-la.

— Como? — tinha indagado de encontro ao calor de seu peito.

— Levarei essa questão ao meu pai. Pedirei a ele que me permita acessar o seu mundo.

— E se ele disser “não”?

— Eu não sei, mas Deméter e Perséfone fizeram um acordo. Podemos fazer, também. — Apolo colocara um dedo sob seu queixo e lhe erguera o rosto. — Não vou ficar separado da minha alma gêmea. Tem o meu juramento, Pamela.

Sua boca descera sobre a dela com tanto ímpeto e proteção que ela ainda podia sentir seu calor ali no pátio...

Pamela estremeceu e tratou de prestar atenção aos papéis soltos em suas mãos. Era sexta-feira. O sol iria se pôr em apenas algumas horas, Apolo e Ártemis passariam pelo portal, retornariam ao Olimpo... e ela poderia nunca mais vê-lo outra vez.

Foi como se ela também houvesse sido envenenada, tal foi a onda de dor que o pensamento provocou.

— Pamela?

Ela olhou por cima da tampa aberta da valise direto para os olhos de Ártemis. A deusa parecia ter dormido muito pouco na noite anterior e, a despeito da luminosidade em seu rosto — resultado da magia da maquiagem moderna —, ainda era possível ver as manchas escuras sob seus olhos.

— Parece cansada — comentou Pamela.

— Meus pensamentos não me deixam descansar.

— Pensamentos?

— Estou preocupada com você. E com Eddie. — Os olhos da deusa se desviaram para o local onde, com sua habitual animação, o autor conversava com um dos representantes de tecidos. — Percebi, com a aproximação do crepúsculo, que não estou tão ansiosa como imaginava por deixar o seu mundo.

Pamela sorriu. Ártemis não estava menos vaidosa, mimada ou mandona, mas seu relacionamento com Eddie tinha, definitivamente, suavizado seus modos. Parecia mais calorosa, e não fria como a perfeição do mármore. Havia se tornado uma mulher em toda a concepção da palavra.

— Vou sentir sua falta, Ártemis.

— Então venha conosco! — pediu a deusa. — Caso se canse do Olimpo, poderá visitar o meu reino. Minhas florestas sempre acolherão a esposa de meu irmão.

— Não posso — Pamela murmurou, tocada pelas palavras da deusa. — Eu não pertenço àquele lugar.

— Você pertence a Apolo — Ártemis afirmou com segurança.

— Se eu for com ele, vou me perder. E depois não haverá nada mais em mim que ele possa amar.

Ártemis inclinou a cabeça e estudou Pamela.

— É dona de grande sabedoria, minha amiga. Daria uma excelente deusa.

— Senhoras! — Como um dos Titãs, Eddie se avultou sobre elas.

— Precisamos nos apressar. Febo nos espera, assim como o nosso jantar. Prometi deixá-las na entrada do Caesars Palace às oito da noite em ponto, para que o seu próprio motorista possa levá-los de lá para o aeroporto... — Eddie franziu a testa, demonstrando seu descontentamento pela história que elas tinham elaborado.

Para que o escritor não as seguisse até o Caesars Palace, Ártemis dissera a Eddie que sua rica família grega iria enviar seu próprio automóvel para buscar o irmão e a ela pontualmente às oito no hotel (no pôr do sol, de acordo com a pesquisa que Pamela fizera na internet), e que ela não suportava despedidas em aeroportos.

Apolo tinha ficado pálido como cera quando Pamela lhe explicara que um avião era algo enorme, parecido com um grande carro voador.

Eddie continuava insatisfeito com o arranjo, porém, como de costume, não contrariou as exigências de sua deusa. Deu apenas um longo suspiro.

Pamela reparou em como ele parecia repentinamente envelhecido.

— Concordei com a sua vontade, minha querida, mas, para isso, precisa ser pontual. Planejei um jantar de despedida espetacular para nós.

— Eddie!... — Ártemis fez um lindo beicinho, deslizando o braço pelo dele e distraindo-o, a fim de evitar mais discussões acerca de limusines e jornadas até o aeroporto. — Espero que tenha reservado um restaurante com uma boa vista. Sempre adorei nossos jantares naquela varanda maravilhosa, e não gosto nem mesmo de pensar no quanto vou sentir falta deles.

— A paisagem estará sempre esperando por você quando estiver cansada de suas viagens. Mas, esta noite, minha deusa, me pareceu sábio tentar algo novo. — O autor tocou a face de Ártemis, e ela a usou para lhe acariciar a mão.

O sorriso de Eddie quase escondeu a triste resignação que assombrou seu semblante.

Pamela os seguiu através do pátio, pensando que o escritor poderia muito bem ser um ator ainda mais competente do que a deusa.


— Sinceramente, eu detesto essas criaturas de metal — Apolo resmungou por entre os dentes após sair, desajeitado, do banco da frente da limusine.

— Senhor? — O porteiro do Bellagio pareceu confuso.

— Ele fica enjoado — explicou Pamela.

O homem, de forte sotaque inglês, examinou o rosto esverdeado do deus e sua mão enfaixada. Bufou de leve e, em seguida, abriu caminho.

Pamela segurou o braço bom de Apolo e o conduziu para a calçada. Ele passou a mão pela testa e tentou controlar o próprio estômago enquanto eles aguardavam pelo longo processo que era tirar Eddie e Ártemis do que ele, Apolo, considerava o estômago da limusine...

— Prometa que, quando chegar a hora de voltarmos ao Caesars Palace, iremos a pé até lá — ele sussurrou ao pé do ouvido de Pamela.

As palavras a fizeram se lembrar do pouco tempo que tinham juntos.

Como se ela precisasse de um lembrete!... Ironicamente, era como se o sol zombasse deles, correndo em direção ao horizonte.

Pamela tentou, sem sucesso, sorrir para Apolo.

— Prometo.

Ele encontrou seus olhos.

— Não vou viver sem você. Vai dar tudo certo. Lembre-se de que tem o meu juramento.

Ela assentiu com um rápido gesto de cabeça.

Ele é Apolo, o Deus da Luz... Pode fazer isso acontecer. Pode encontrar um modo de ficarmos juntos! , disse a si mesma com determinação enquanto piscava para combater uma súbita onda de lágrimas.

Precisava se concentrar nos arredores e se controlar. Não importava o que iria acontecer. Não queria que a última lembrança de Apolo fosse de lágrimas e um coração partido. Queria que ele soubesse que ela acreditava nele: em seu poder e em seu amor.

A entrada do Bellagio consistia de um passeio circular ornamentado, que ficava de frente para uma galeria. Esta, por sua vez, se debruçava sobre um lago artificial calmo e escuro que, ela sabia, só estava esperando uma nota musical para ganhar vida e luz.

— As fontes — comentou Apolo, seguindo seu olhar. Passou o braço em torno dela, então, e a apertou intimamente contra o corpo. — Nossas fontes.

Pamela o fitou e, dessa vez, sorriu. Ele era tão forte e seguro de si!... Tão real.

Não podia duvidar de Apolo. Fora contemplada com um juramento do Deus da Luz, e ele não iria decepcioná-la.

Mais importante do que isso: ele não decepcionaria nenhum deles dois.

— Sim, são as nossas fontes — concordou enfim.

— Não vamos nos demorar! Tenho uma surpresa para a minha deusa para a qual precisamos chegar na hora.

Eddie e Ártemis passaram por eles e entraram no Bellagio.

Pamela e Apolo seguiram mais devagar. Uma vez na entrada do hotel, ela estacou e olhou para o teto, chocada.

— Dale Chichuly! — falou, maravilhada, olhando para a espantosa obra de arte que enfeitava o saguão do Bellagio. — Eu tinha me esquecido de que foi ele quem projetou isto.

Curioso, Apolo estudou o teto.

— É uma iluminação um tanto incomum.

— É incrível! Repare na complexidade do vidro soprado e no brilho das cores. É como uma floresta de águas-vivas. Pena que Eddie não escolheu esta decoração em vez daquela coisa cafona do Caesars Palace — comentou em voz baixa, com uma risadinha.

— Eu não sei. — Apolo a abraçou e a beijou no topo da cabeça. — Acabei me afeiçoando ao gosto excêntrico de Eddie. Afinal, foi graças a ele que nos conhecemos.

— Está brincando... Está de brincadeira! — falou Ártemis, segurando o irmão pela manga e puxando-o até onde Eddie esperava, impaciente, diante de um restaurante onde se lia “Olives” em letras douradas.

— E. D. Faust e companhia. Tenho uma reserva especial — o autor anunciou ao maître.

— Claro, sr. Faust. Por aqui, por favor...

Eles seguiram o maître através do opulento restaurante — que se encontrava lotado na agitada noite de sexta-feira — até uma parede de janelas chanfradas, no meio da qual havia uma porta de vidro do chão ao teto. Um garçom a abriu para eles, revelando uma imensa varanda de mármore, a qual, por sua vez, dava direto nas famosas fontes do Bellagio. O maître os conduziu até a única mesa posta com toalha de linho, porcelanas e cristais, então se curvou primeiro para Ártemis, em seguida para Pamela, acomodando-as nas cadeiras de veludo bem estofadas.

— Conforme suas instruções, sr. Faust, a varanda foi reservada exclusivamente para os senhores.

— Perfeito. Agora pode servir o Dom Perignon .

— Oh, Eddie! Como sabia que eu estava louca para tomar esse delicioso champanhe outra vez? — encantou-se Ártemis.

— Li isso em seus belos olhos, minha deusa — declarou o escritor.

Pamela revirou os olhos e compartilhou um olhar divertido com Apolo.

O garçom desarrolhou a garrafa e, conforme servia o champanhe, as primeiras notas da música-tema de Chorus Line deu vida às fontes.


One! Singular sensation...


À medida que a música tocava e as águas dançavam, Eddie ergueu a tulipa de cristal para Ártemis.

— À você, minha deusa. Uma sensação indescritível...

— Oh, Eddie! — ela murmurou, tocando o copo no dele e piscando para combater as lágrimas que lhe inundaram os olhos. — Você me encanta!

— É um prazer muito grande para mim — ele garantiu, os olhos também brilhando de modo suspeito. Em seguida, limpou a garganta e fez um sinal para que o garçom trouxesse os cardápios.

O jantar contra o pano de fundo dos chafarizes dançantes e o céu do deserto — que, devagar, passava do azul para púrpura — foi espetacular. Com eles sozinhos ali, na varanda, a noite parecia cheia de magia e mistério. Embora estivessem no coração de Las Vegas, em uma noite movimentada de sexta-feira, tinham privacidade e uma infinidade de mordomias.

Para Pamela, foi como se eles tivessem ganhado um camarote especial dos deuses da cidade.

E quem poderia duvidar? Talvez fosse isso mesmo. Afinal, coisas mais estranhas já haviam acontecido...

Quando a última das muitas canções tocadas nas fontes cessou, Eddie olhou para o relógio. Muito sério, ergueu o corpanzil da cadeira e ficou de frente para a mesa.

— Já são quase oito horas. Compartilhamos o vinho e a comida, nossa amizade e boa música. — Seus olhos gentis se desviaram de Pamela para Apolo antes de pousar em Ártemis. — Agora, infelizmente, devo me despedir. Mas eu lhes disse antes que tinha uma surpresa... — Seu olhar permaneceu sobre o belo rosto de Ártemis. — Principalmente para você, minha deusa. — Fez um gesto, abrangendo os arredores. — Parte da surpresa foi este ambiente e o jantar. A outra parte é que eu gostaria de anunciar que me decidi sobre o assunto da minha próxima trilogia épica. Esta manhã, o meu editor concordou com a minha proposta para três livros. Eles vão contar a história de um guerreiro que é enviado por seu povo, o qual está morrendo, em uma missão quase impossível, para conquistar o coração de uma deusa que, por sua vez, promete retornar com ele, viver a seu lado e salvar seu mundo. A capa dura de cada livro irá retratar uma imagem que será sagrada durante toda a jornada do herói: a imagem de uma deusa. Essa imagem será nada menos do que aquela que o nosso Mateus fez de você. — Eddie terminou o discurso com um floreio, curvando-se para a mulher que ele proclamara sua diva.

Ártemis nada disse. Em vez disso, levantou-se e caminhou até Eddie.

— Obrigada, meu guerreiro. — Com graça, ela se curvou em uma reverência. Quando ergueu o corpo delgado e passou o braço pelo dele, Pamela pôde ver que a deusa tinha o rosto molhado.

O escritor apanhou um lenço de seda no bolso e lhe enxugou as faces. Em seguida, num gesto familiar, deu um tapinha na mão que repousava em seu braço.

— Venham. Vamos dar fim a esta nossa jornada.

Em silêncio, os quatro refizeram o caminho através do restaurante, saindo para o saguão do Bellagio. Desta vez, a obra prima de Chichuly não atraiu o olhar de Pamela. Seu coração estava pesado demais, e ela nem mesmo olhou para cima. A única coisa em que conseguia pensar era em continuar segurando a mão de Apolo e em seguir acreditando que aquela não seria a última vez em que iria tocá-lo.

E foi por meio desse toque que Pamela sentiu a tensão do deus quando a limusine estacionou em frente ao passeio circular, o que a fez se lembrar de sua promessa.

— Eddie, importa-se se Febo e eu formos caminhando? Você sabe como ele fica quando anda de carro... — acrescentou, notando, admirada, como sua voz soava normal. Perguntou-se por que seu coração não parecia estar partindo ao meio e por que motivo sua vida não estava se dissolvendo com o pôr do sol.

— Claro! Podemos encontrá-los na frente do Caesars Palace. Assim poderemos todos nos despedir em particular. — O autor conseguiu esboçar um breve sorriso antes de se abaixar para entrar na limusine.


Em seu palácio, no Monte Olimpo, Baco encontrava-se sentado no trono. Fechou os olhos e se concentrou no próprio desejo. Gotas de suor lhe banharam a testa larga, e suas faces se contraíram pelo esforço. Entre os lábios flácidos, formou-se uma linha de espuma branca que entrava e saía com sua respiração.

Onde está?!

Aumentou a concentração. Não entraria em pânico. Não ficaria desesperado. Ele iria encontrar!

Onde?! Onde ela está?

Sentira-a naqueles últimos dias. O fechamento do portal enfraquecera a sensação, porém ele sabia que ela ainda estava lá. Tudo o que tinha a fazer era encontrá-la... e ela seria sua outra vez.

Baco levantou as mãos grossas, segurando-as com as palmas voltadas para cima, como se tentando sentir o ar diante de seu pedestal.

Então algo fez cócegas em sua pele.

Com toda a sua força imortal, ele fechou as mãos, e sua mente apreendeu o tênue fio do vínculo.

Tinha encontrado!... Ele a havia encontrado!

Como um pescador puxando uma presa rara, Baco agarrou o fio da alma da mortal, arrastando-o e reforçando sua conexão até poder enxergá-la com clareza. Ela estava trabalhando. Parecia pouco mais do que uma escrava, na verdade, condenada a uma vida de trabalho pesado, carregando bebidas para homens de mãos inquietas e ousadas e, às vezes, enfiando-se em cantos escuros para levar um copo aos próprios lábios.

Baco reforçou mais o vínculo, e a mortal drenou o copo de bebida forte.

Sim... Beba-me!... Sorva-me!... Deixe-me aliviar sua dor... sussurrou através do fio, e sentiu que ela oscilava como se também tivesse sentido a conexão.

Fora assim que ela viera até ele; e fora assim que ele criara o elo entre eles: por meio de sua necessidade de beber. Aquilo a obcecava, a consumia... Ele não fizera nada de errado. Simplesmente concedera à mortal seu desejo mais sincero.

A deliciosa ironia daquilo tudo o fez querer gritar de prazer. Usaria a mortal vinculada a ele por conta de sua própria vontade para destruir o elo que o ligava à dourada Ártemis. Ao fazê-lo, os gêmeos teriam uma amostra da dor que a perda de seu reino lhe causara.

A agonia de tal perda ainda se alastrava dentro dele. Eles pensavam que o tinham derrotado...

Culpa de Apolo! Dele e de sua irmã dourada.

Mas Zeus iria puni-los?... Claro que não. Eles eram seus queridinhos, seus favoritos.

Aquilo era insuportável!

O abuso de que fora vítima tinha de ser corrigido. E, desta vez, não haveria demora. Não cometeria nenhum erro.

Baco canalizou sua energia para a mortal. Sorveu sua alma, rindo diante da facilidade com que ela a entregava a ele.

Por intermédio da moça, seu espírito readentrou o mundo mortal, espalhando-se como uma névoa funesta e invisível pelo Caesars Palace. Procurou, olhou...

Pouco depois, com um grito de triunfo, ele encontrou o que procurava. Perfeito. Eles estavam tão distraídos, tão concentrados em seus próprios problemas que nem mesmo pressentiram sua presença.

Satisfeito, Baco tornou a concentrar os poderes sobre a vulnerável mortal. Estava dentro dela, correndo por suas veias e preenchendo sua mente com seus obscuros anseios.

Sim, está indo bem! , persuadiu a moça conforme ela deixava seu posto de trabalho, levando apenas um molho de chaves. Mais depressa! O tempo urge! Deixe-me dizer o que vai fazer...


Capítulo 32


Sem falar, Apolo e Pamela caminharam devagar, de mãos dadas, ao longo do passeio que emoldurava as fontes do Bellagio. No momento, as águas se assentavam quietas e escuras, porém o calçadão estava repleto de alegres mortais conversando, e a rua adjacente, cheia de carros em movimento.

As buzinas e as freadas eram muito mais perturbadoras do que a cintilante acrópole do outro lado da rua, concluiu Apolo.

Ignorou a insistente dor que lhe irradiava da mão e subia pelo braço. Não tinha a menor gravidade, pois era algo que teria fim em breve.

E também era de pouca importância se comparada ao peso em seu coração.

Já era quase hora de o sol se pôr. Aquele não era o seu mundo, contudo ele iria se sentir para sempre ligado à luz daquele céu. Podia senti-la ao despertar pela manhã, e sempre sabia quando esta desaparecia no horizonte.

Seu tempo era curto. Ele deveria ficar. Podia ficar. Seria algo simples de fazer. Com a reabertura do portal, seus poderes lhe seriam restituídos. Poderia iludir Pamela e, em seguida, inserir em sua concentração a sugestão de que ela lhe pedira para ficar...

Como um duende do mal, sua própria mente insinuou outras possibilidades. Ele poderia levá-la com ele. Deuses vinham sequestrando suas amantes mortais por eras. O Monte Olimpo era cheio de maravilhas e indescritível beleza. Com certeza Pamela poderia ser feliz lá. E, com certeza, ela o amava o suficiente para perdoá-lo.

Mas estaria agindo de modo diferente de seu ex-marido?... Se tinha aprendido alguma coisa com Pamela, era que o amor não podia ser ditado, exigido nem aprisionado. Não poderia acorrentá-la a ele. Poderia apenas amá-la.

Havia se passado apenas uma semana do dia em que ele acreditara ter conquistado um amor?

Como fora ingênuo!... Mortal ou imortal — o amor não fazia distinção entre postos ou privilégios. O amor era uma questão de alma. Era imaterial e não estava sujeito aos caprichos do homem ou de um deus.

Apolo diminuiu o passo e conduziu Pamela até um banco próximo quando o grupo barulhento, atrás do qual eles vinham andando, parou de repente. Como numa boiada, as pessoas se misturavam, impacientes, chamando umas às outras em voz alta.

— É por causa da rua; eles estão esperando o farol abrir — explicou Pamela, sentando-se a seu lado e olhando para a água escura. Estava normal... ou quase. Lembrava uma lâmpada enfraquecida. Aquela luz habitual tinha desaparecido de seu rosto, o que a deixou mais pálida e frágil. — O grupo é muito grande. Provavelmente serão necessárias duas mudanças do sinal para que todos atravessem. — Seus olhos se voltaram para ele, tristonhos. — Depois de ter passado a semana inteira no deserto, toda essa gente me faz sentir claustrofóbica. Será que não podemos ficar sentados aqui por um minuto e deixar que sigam adiante?

— Sim — Apolo concordou, envolvendo-a com um braço. Pamela descansou a cabeça em seu ombro e se aninhou junto a ele. — Não temos que estar lá no exato instante em que o portal ressurgir. Temos tempo.

— Quanto tempo?

— Não muito. Não quero desafiar Zeus, desdenhando de sua ordem para comparecer diante dele.

— O que vai dizer a seu pai?

— A verdade. — Apolo beijou-lhe a testa. — Que encontrei minha alma gêmea no Mundo Moderno e que meu maior desejo é não me afastar mais dela.

— Espero que o seu desejo mais sincero lhe seja concedido tão depressa como foi o meu... — Pamela ergueu o rosto para o dele e, conforme Apolo a beijou, ela aspirou seu perfume. Sua proximidade a acalmava. Quando ele a tocava, conseguia acreditar que o que o deus dizia tantas vezes era a verdade: que tudo acabaria bem.

Relutante, Apolo terminou o beijo, e Pamela sentiu o estômago se apertar.

— Parece que a multidão foi embora — ele comentou.

Pamela olhou para a calçada repentinamente vazia.

— Parece que eles estavam com pressa de chegar a algum lugar. Estranho. — Sentiu um arrepio levantar os pelos dos braços e da nuca. Sua intuição lhe dizia para permanecer ali, sentada no banco ao lado de Apolo, mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele já se pusera em pé.

Com um forte sentimento de resignação, Pamela concluiu que aquilo não tinha nada a ver com uma suposta intuição, mas com o fato de ela não querer que ele fosse embora.

Distraído, o deus nem sequer se deu conta da estranheza provocada pelo passeio deserto.

— Precisamos ir também — declarou, e a fez ficar de pé a seu lado, passando o braço com firmeza ao seu redor.

Caminharam devagar e, sozinhos no meio-fio, ficaram aguardando que a luz do farol mudasse do vermelho para o verde. Ainda não chegara a hora da despedida, Apolo disse a si mesmo. Ele manteria Pamela próxima por todo o caminho até o Caesars Palace, e não a soltaria até que se encontrassem diante do portal.

De qualquer modo, sua separação seria apenas temporária.

— Meu pai vai ceder — murmurou seus pensamentos seguintes ao ouvido de Pamela. — Ele já foi vítima do amor vezes demais para não conceder o nosso pedido...

— Vítima do amor ou vítima da luxúria? — indagou Pamela.

Apolo sorriu para ela.

— Para meu pai, amor e luxúria fazem parte do mesmo banquete... e Zeus adora uma festa.

Ela bufou com sarcasmo, e de um modo não muito feminino.

Apolo riu, puxando-a mais para junto dele. Não podia perdê-la.

Pamela ofereceu os lábios e, quando ele se inclinou para beijá-la de novo, a fonte ganhou vida.

Pararam, olhando um para o outro, e então o rosto de Pamela se iluminou, cheio de felicidade.

— Perfeito! — ela murmurou em meio a uma risada. — Não poderia ser mais perfeito...

Mais uma vez, Faith Hill pareceu cantar só para eles.

— É o melhor dos presságios. Tudo vai ficar bem — Apolo afirmou, alegre, e virou-se para assistir à dança das águas.

Como se atraído pela música, o deus caminhou até o parapeito. Havia algo no ar... algo em que ele sentia um toque imortal. Tinha que ser um presságio enviado por Zeus.

Olhando por cima do ombro, sorriu, feliz, e fez um sinal para que Pamela se juntasse a ele. Ela sorriu de volta e acenou com a cabeça, mas ficou onde estava, apenas por mais um instante. Apolo olhava as águas cintilantes conforme estas esguichavam para o ar ao ritmo da canção mágica. Era tão maravilhoso que aquele deus magnífico, de alguma forma, fosse a outra metade de sua alma!...

De repente, Pamela acreditou piamente que ele faria tudo dar certo. O Deus da Luz era sua alma gêmea, e ele encontraria uma maneira de voltar para ela.


...It’s...ahhh...impossible! This kiss! This kiss!

Unstoppable! This kiss! This kiss!


Pamela levantou o pé para dar um passo adiante e captou um flash de movimento pelo canto do olho. Franzindo a testa, virou a cabeça a tempo de ver o carro... mas não a tempo de sair de seu caminho quando este invadiu o meio-fio e se chocou contra seu corpo.

Cheio de esperança, Apolo sorria para as águas quando escutou a horrível freada. Encantado que estava pela fonte e pela música, o som lhe pareceu distante.

Confuso, ele se virou para ver o que estava atrasando Pamela e, num horror indizível, assistiu quando a besta de metal atingiu o corpo frágil.

— PAMELA! — gritou.

O impacto a arremessou em direção à rua movimentada, direto para o tráfego em sentido contrário. Freios rangeram, motoristas desviaram, batendo em outros carros, enquanto tentavam, sem sucesso, não atropelá-la.

Apolo avançou. Desviando-se de carros e pessoas, seguiu a trilha sangrenta até onde ela finalmente havia parado, em um monte disforme, a meia pista.

Soltando um grito de puro desespero, ele caiu de joelhos a seu lado e puxou o corpo quebrado para os braços. Cintilando com as lágrimas, seus olhos se voltaram para a bola de fogo que ainda pairava baixo no céu.

— Deixe o firmamento! — ordenou ao sol minguante. — Devolva-me os meus poderes!

Pamela não sentiu nada; apenas que algo estava errado. Como se tivesse despertado em um quarto escuro, em uma cama estranha, os quais ela não conseguia ver e, por isso, não conseguia se orientar.

Então ouviu um grito que pareceu rasgar sua alma.

Sabia que era Apolo. Tentou abrir a boca e chamá-lo, contudo seu corpo não se encontrava mais sob seu controle.

Lutou contra a sensação, porém seus olhos se fecharam um instante antes do pôr do sol.

Apolo soube o exato momento em que Pamela morreu. Foi um momento antes de a dor em sua mão desaparecer e de o poder imortal preencher seu corpo. Em pânico, ele a deitou no pavimento e colocou as mãos em seu peito ensanguentado.

— Viva! — ordenou o Deus da Luz, embora soubesse que era tarde demais. Mesmo com seus poderes imortais, não poderia redefinir o tempo. Não podia desfazer o que já estava feito. — Não... — Suas lágrimas se mesclaram ao sangue de Pamela. — Não! — gritou.

— Alguém chame o 911!

— Oh, meu deus! Chamem uma ambulância!

— Há algum médico aqui?!

Apolo ouviu os gritos dos mortais ao seu redor. Eles viriam tomá-la dele.

— NÃO! — gritou sua ira. Pondo-se em pé, estendeu os braços. — SILÊNCIO! — Sua ordem disparou como uma flecha na direção da crescente multidão, formando uma parede de energia que ensurdeceu e emudeceu os mortais, transformando-os em boquiabertas estátuas.

O Deus da Luz olhou para o seu amor caído, então.

— Não... — Desta vez ele sussurrou a palavra. — Não vai ser assim... — decidiu, em seguida.

Precisava fazer aquilo. Se hesitasse, seria tarde demais. Independentemente das consequências, aquele era o único caminho.

Estendeu as mãos sobre o corpo de Pamela.

— Venha para mim... Eu ordeno que não se afaste deste reino.

Sob as mãos estendidas de Apolo, o corpo de Pamela começou a brilhar, em seguida uma esfera de pura luz surgiu e pairou entre as palmas do deus.

— Apolo!

Ele ouviu o grito atrás dele e, mantendo o globo de luz entre as mãos, virou-se. Como uma fada, Ártemis passou pelo carros trombados e pelos mortais congelados e silenciosos, até que chegou perto o suficiente para ver sobre quem o irmão se avultava e o que pairava entre seus dedos. Soltou uma exclamação e levou as mãos à boca.

Movendo-se com uma velocidade surpreendente, Eddie correu para se postar a seu lado. Enquanto sua mente tentava dar sentido à cena diante dele, toda a cor drenou do rosto do escritor.

— Não devia tê-lo poupado do meu encanto! — Apolo rosnou.

— Eu não sabia... Não pensei que... Oh, meu irmão! O que você fez? — Ártemis olhou do corpo de Pamela para a luz pulsante que ele segurava com possessividade.

— Cheguei tarde demais — Apolo falou, alquebrado. — O sol chegou tarde demais. Eles a mataram.

Ártemis se aproximou do deus devagar, como se ele fosse uma das criaturas selvagens de seus bosques.

— Mas... o que está fazendo? Está segurando a alma imortal de Pamela.

Apolo embalou a luz junto ao corpo.

— Eu não vou perdê-la!

— Apolo... — começou Ártemis.

— Não! Eu não vou perdê-la! — O grito do deus fez um relâmpago cortar o céu. — As leis do Universo que se danem! Sempre ouvi dizer que o amor é a força mais poderosa do Universo. — Seu olhar transtornado se voltou para o atordoado autor. — Você é um bardo neste mundo... Não é isso o que proclama?

Incapaz de encontrar palavras para articular, E. D. Faust só fez concordar com um gesto de cabeça.

— Por isso eu digo que meu amor por ela se sobrepõe às Leis do Universo!

— Apolo, não pode mantê-la assim. Sua alma imortal não descansará neste reino. Você sabe disso! — ponderou Ártemis.

— Eu não vou mantê-la neste reino.

Os olhos da deusa se arregalaram quando ela compreendeu por fim.

— Hades!

— Ele saberá o que fazer. Ele tem que saber o que fazer! — afirmou Apolo.

— Sim. — A voz da diva falhou. — Vá até seu amigo, meu irmão. Tomara ele tenha uma saída... Para vocês dois.

Com uma expressão atordoada, como se só então tivesse se dado conta da extensão do que seus poderes haviam causado, Apolo olhou para os carros amassados e para as pessoas paralisadas.

— Vou arrumar isto tudo — prometeu Ártemis. — Vá. Pamela precisa de você.

— E quanto a Zeus?

— Vou comparecer diante de nosso pai. Foi por minha causa que veio para este reino. Fui eu quem deu início a isto tudo... portanto devo terminar o que comecei.

Apolo sacudiu a cabeça.

— Não foi você, Ártemis. Foi culpa das Parcas. Pamela e eu estávamos destinados a cumprir nosso destino.

— Se é assim, deve levá-la para o Submundo e pedir a Hades que o ajude.

— Obrigado, minha irmã... — A voz dele perdeu força.

Ainda segurando a alma brilhante, o deus se deslocou por entre os carros com uma velocidade impossível de ser acompanhada por olhos mortais, direto para o Caesars Palace, onde o portal os aguardava.

Com passos pesados, Ártemis se aproximou do corpo de Pamela.

— Como algo tão forte podia ser guardado em uma concha tal frágil? — A deusa olhou para a amiga com lágrimas banhando as faces.

— Meu coração estava certo o tempo todo... — murmurou Eddie com reverência. Aproximou-se da deusa e, uma vez a seu lado, caiu sobre um joelho. — É mesmo a deusa Ártemis.

— Sim — ela confirmou, pousando a mão no ombro do escritor delicadamente. — Mas não me sinto como uma deusa. Sinto-me como uma mulher que acaba de perder uma grande amiga. — Ártemis respirou fundo e deixou escapar um soluço. — Olhe para ela, Eddie... Está toda quebrada.

Por um momento, ele hesitou. Então estendeu a mão e deu um tapinha reconfortante na mão da deusa.

— Pamela não está aqui, Ártemis. Está com Apolo.

— Tem razão. Eu sei. É exatamente isso... Só que eu não tive a chance de lhe dizer nem mesmo adeus, que eu sentia muito... ou mesmo “obrigada”.

— Às vezes não se consegue dizer essas coisas — Eddie falou com serenidade. — Isso é ser mortal. Podemos apenas tentar viver nossas vidas com alegria e paixão o bastante para que, quando chegar nossa hora, deixemos para trás boas lembranças, e não arrependimentos.

— Eu não compreendia isso antes, mas agora compreendo. Creio que, a partir deste instante, por toda a eternidade, haverá uma parte de mim que sempre irá sentir-se um pouco mortal. — Ela sorriu, tristonha, para o corpo de Pamela. — E acho que será a minha melhor parte. — Num impulso, Ártemis se curvou e segurou a medalha gravada com a imagem de seu irmão, a qual continuava pendurada no pescoço de Pamela. Com um só movimento dos dedos, a corrente se soltou e se agrupou em sua palma. — Apolo deve querer que eu guarde isto para ela. — Fechou a mão, e a medalha desapareceu. Em seguida, a deusa se ajoelhou ao lado do corpo da amiga.

— O que vai fazer? — Eddie perguntou.

— O que eu puder — decidiu Ártemis. Então levantou as mãos e começou a brilhar como a luz branca e fria de uma lua cheia. — Adeus, minha amiga... — murmurou enquanto passava as mãos luminosas por baixo do corpo de Pamela, movendo, arrumando, fazendo o que podia para endireitá-lo.

Quando a luz se apagou, o corpo fraturado da mortal fora substituído pelo de uma bela corça.

Cansada, Ártemis se pôs de pé.

— Caminhe comigo, Eddie. Devo voltar e enfrentar meu pai.

— Claro, minha deusa.

Passando o braço delicado pelo dele, o escritor a conduziu cuidadosamente para longe do corpo tombado da corça.

Tinham quase chegado à calçada quando Ártemis parou de repente. Farejando o ar como uma criatura da floresta, virou a cabeça e estreitou os olhos. O carro estava destruído. Sua frente se curvava para dentro e havia claras marcas de sangue onde este atingira o corpo de Pamela.

A deusa se aproximou e olhou dentro do automóvel. A mulher congelada pelo encanto de Apolo tinha ambas as mãos ao volante. Presa ao assento pelo cinto, ela não se ferira, entretanto seus olhos estavam arregalados e cheios de um indizível terror. Ártemis respirou fundo. O corpo da mortal cheirava a bebida, mas não a qualquer uma. Seus sentidos aguçados reconheceram o cheiro doce da ambrosia, mesclado ao da luxúria, do desespero e do vício.

A marca do Deus do Vinho estava lá. Não tão evidente quanto a de seu vínculo com Pamela, e sim mais disfarçada... porém não menos contundente.

Ártemis fechou os olhos contra a intensidade da ira que a assaltou. Baco iria pagar por aquilo!, prometeu a si mesma. Ela mesma o obrigaria a isso.

Quando abriu os olhos, viu Eddie observando-a com atenção.

— Sabe quem causou tudo isso?

— Sei — admitiu com voz contida.

O rosto de Eddie endureceu com a raiva.

— Então faça-o pagar por isso, deusa.

— Eu farei, meu guerreiro. Eu farei.

Decidida, Ártemis se virou para a carnificina que a inveja e a malevolência tinham causado e ergueu as mãos. Com a voz ampliada por seu poder imortal, a bela deusa fez suas palavras ecoar por toda Las Vegas enquanto acalmava, curava, e depois eliminava os últimos vestígios de feitiço malévolo de Baco.

— Que seus espíritos pairem livres esta noite. Nenhum outro morrerá. A corsa será o milagre que eles virão, embora não saibam como nem por quê. Sobre suas almas imortais minhas bênçãos haverão de descer, lavando suas memórias, aliviando sua dor.

Ártemis baixou as mãos, e um pandemônio se fez em torno deles.

— Dá pra acreditar?!

— É um cervo!...

Gritos preencheram a noite conforme as pessoas corriam para a rua, e o som de uma sirene de ambulância se aproximava a distância, num lamento.

Em meio ao caos, Ártemis se apoiou no braço de Eddie, e os dois se afastaram, sem ser vistos, em uma bolha poderosa de serenidade imortal.

— Fez uma boa ação, minha deusa. — Eddie afagou-lhe a mão enquanto seguiam seu caminho até a calçada que levava à entrada principal do Caesars Palace.

Ártemis sorriu para ele.

— Obrigada. — Então inclinou a cabeça, pensativa.

— Deusa? — indagou o autor.

— Eddie, talvez eu não possa mais voltar para cá. O Olimpo vai considerar estes eventos por demais preocupantes.

— Compreendo. — Ele hesitou, permitindo que a fachada de autor excêntrico cedesse, e exibiu nos olhos sua desolação. — Desde o início eu sabia que não ficaria comigo. Independentemente disso, eu me permiti amá-la... e não me arrependo um só instante dessa escolha. Vou levá-la na lembrança, e junto ao meu coração, enquanto estiver respirando.

— Talvez haja uma maneira de levar mais do que apenas a minha lembrança junto ao coração... — articulou a deusa devagar.

Os olhos do autor se arregalaram, surpresos.

— Já ouviu falar de um reino chamado Tulsa, em Oklahoma, Eddie?...


Capítulo 33


— Hades! — A voz de Apolo sacudiu as paredes do Salão Nobre do Senhor do Submundo.

O Deus da Escuridão se precipitou para a sala do trono, seguido de perto pela esposa.

— Apolo? — Hades quase não reconheceu o amigo, que nada tinha a ver com as roupas estranhas e respingadas de sangue, ou com a brilhante esfera de luz que agarrava junto ao peito. O olhar ensandecido também era estranho ao que ele conhecia do Deus da Luz.

— O que aconteceu?!

— Eles a mataram... Os monstros de metal... Eu não pude detê-los!... Não cheguei até ela a tempo. — Respirando pesadamente, Apolo falava em curtas rajadas.

A esposa de Hades saiu de trás do marido. Dentro do corpo imortal de Perséfone, Carolina sentiu a alma estremecer conforme compreendeu de imediato.

— Esta é Pamela — falou, os olhos fixos na esfera brilhante de luz.

— É a alma de uma mortal moderna?... Trouxe a alma de uma mortal moderna aqui?! — exclamou Hades.

— Claro que ele trouxe! — cochichou Lina. — O que mais ele poderia fazer?

— Precisa me ajudar a fazer isso direito! Tem que trazer Pamela de volta!

Os olhos perspicazes de Lina se ativeram ao Deus da Luz.

— Já chega dessa conversa. Ela ainda é Pamela, e provavelmente a está assustando. — Ela olhou de volta para onde o marido se encontrava. — Precisa recebê-la, meu amor.

O Senhor do Submundo moveu-se com relutância. Estendeu a mão, mas, antes de tocar a luz, seu olhar capturou o de Apolo.

— Não é aconselhável mexer com as Leis do Universo, meu amigo.

— Ela é minha alma gêmea — afirmou Apolo.

O Deus da Escuridão assentiu com um gesto de cabeça, tristonho.

— Então, vamos torcer para que as Parcas sejam compreensivas. — Tocou a esfera brilhante com a palma da mão. — É bem-vinda ao meu reino, Pamela.

A luz tremeluziu e se alongou. Com um som muito parecido com um suspiro, tomou forma, assumiu características, até que Pamela se viu em pé nos braços de Apolo. Seu corpo ainda carregava uma ligeira luminescência, porém ela agora tinha uma aparência surreal, meio transparente, como se fosse uma aquarela inacabada de si mesma.

Com um soluço, Apolo a abraçou com força. Pamela estava fria, parecia muito frágil, e ele temeu que ela pudesse flutuar caso ele afrouxasse o abraço.

Pamela não se moveu, tampouco falou.

— Pamela! — Apolo falou chorando. — Sou eu... Estou com você agora. Vai ficar tudo bem.

Um arrepio sacudiu o corpo quase etéreo.

— Apolo?

— Sim, meu doce! — Ele pressionou o rosto no cabelo macio.

Pamela se afastou dele e olhou ao redor, confusa. Viu que estava em uma enorme sala de mármore na companhia de Apolo, de uma linda mulher e de um homem alto e moreno.

Em seguida, seu olhar baixou para o próprio corpo e seu rosto perdeu a cor com o choque.

— Diga-me que isto é um sonho, Apolo. Diga-me que muito em breve eu vou acordar! — falou com voz trêmula.

— Não posso — ele respondeu, combalido.

— Pamela... — A voz de Lina soou suave como uma lagoa quente e tranquila. Cuidadosa, ela tocou o espírito recém-desencarnado no braço. — Sou Carolina, mas pode me chamar de Lina se quiser. E este é meu marido, Hades.

Os olhos de Pamela pareceram ainda mais enormes e redondos no rosto pálido.

— Hades? — ela sussurrou. Apática, levantou a mão translúcida e olhou para ele. — Estou morta e vim para o... — Seus olhos voaram para o Deus da Escuridão, e ela entreabriu a boca como se fosse gritar.

— Está em Elysia — explicou Lina com um sorriso gentil. Então pegou a mão que Pamela ainda segurava diante do rosto e a envolveu com seu calor, desejando que os poderes imortais que descansavam dentro do corpo de Perséfone a consolassem. — Mais especificamente, está em nosso palácio, às margens dos Campos Elíseos. O Submundo é um lugar muito bonito, querida. Não há nada aqui de que precise ter medo.

— Submundo? — Balançando a cabeça, Pamela olhou para Apolo.

— Por que estou no Submundo Grego?!

— Eu não sabia mais o que fazer. — Os olhos de Apolo imploraram para que ela o compreendesse.

— Não... — sussurrou Pamela. — Não, não pode ser!

— Você morreu antes do pôr do sol, e eu não podia fazer nada para salvá-la. Por favor, perdoe-me! Eu não podia deixá-la partir. Jamais!

Pamela continuou balançando a cabeça e olhando para ele.

Logo depois se lembrou. Viu o carro vindo em sua direção, e foi como se sentisse mais uma vez o impacto mortal.

Com um movimento espasmódico, saiu dos braços de Apolo e o fitou com olhos enormes.

— Não sei o que podemos fazer agora — ele murmurou, perdido.

— Bem — Lina falou com naturalidade —, o próximo passo é você ir com Hades e tirar essas roupas sujas de... — ela fez uma pausa e reformulou a frase: — ... roupas que não estejam tão sujas. Enquanto fizerem isso, vou mostrar os arredores a Pamela. Vão andando... — Ela capturou os olhos do marido e ergueu as sobrancelhas. — Nós ficaremos bem.

— Eu não vou me demorar. — Apolo tranquilizou Pamela.

Ela o fitou, como se em transe, enquanto observava-o deixar o salão na companhia de Hades.

Lina continuou segurando a mão fria de Pamela. Gentil, levou-a na direção de uma enorme porta incrustrada com prata, do outro lado do salão. O espírito recém-desencarnado a seguiu com resignação.

Após atravessarem o portal, elas adentraram um corredor largo, repleto de lustres de cristais. Lina virou para a direita e, em seguida, para a esquerda. Grandes portas de vidro se abriram sem que elas as tocassem, e as duas mulheres saíram para um pátio incrivelmente bonito, cheio de estátuas de mármore, com uma fonte enorme e flores em diversas nuances de branco.

Apesar do pânico que lhe embotava o raciocínio, a designer dentro de Pamela percebeu a beleza que a rodeava.

— É fantástico, não é? — comentou Lina. — Adorei este lugar desde o primeiro momento em que pus os olhos nele.

Pamela olhou para a moça e piscou como uma sonâmbula lutando para despertar.

— Você não é um deles, é?

— Não — Lina negou com um gesto de cabeça, fazendo os cabelos castanhos dançar em torno da cintura delgada. Então sorriu e apontou para o próprio corpo.

— Isto é de um deles, mas isto... — colocou a mão sobre o coração — ... é muito mortal. Sou como você: um espírito que foi deslocado do que eles chamam “o Mundo Moderno mortal”. Venha... vamos nos sentar naquele banco. — Lina esperou até que Pamela houvesse se acomodado para continuar. — Na verdade, sou uma padeira de Tulsa. É uma longa história, mas o resultado final é que Perséfone e eu fizemos um acordo. Quando é primavera e verão em Tulsa, o espírito dela fica lá, no meu corpo, e eu fico aqui, no Submundo, com Hades. Quando é outono e inverno em Oklahoma, eu vou para lá, e ela se diverte pelo Olimpo, ou onde quer que seja, em seu corpo de deusa. — Lina sorriu. — Foi um bom negócio. Os invernos em Oklahoma são agradáveis, e o tempo em Elysia... — ela fez um gesto, abrangendo tudo ao redor — ... é sempre perfeito. Sem dizer que também há Hades, claro. — Seus olhos suavizaram-se ainda mais.

— Eu não consigo... Não sei se posso aceitar tudo isso. — Pamela passou a mão sobre a testa e deu um pulo ao ver seu tom pálido e fantasmagórico. — Não me sinto como eu mesma; nem pareço comigo!

— Eu sei, querida, eu sei. É sempre difícil quando se morre antes de se estar preparado. E com você será ainda mais difícil porque não é aqui que vai ficar... Mas prometo que será sempre bem-vinda em Elysia. Vai encontrar paz aqui. Não precisa ter medo. Basta escutar seu espírito. Ele sabe mais do que você imagina.

— Paz... — repetiu Pamela. Já não estava mais ofegante, nem sentia tanto medo.

Em meio ao choque e ao pânico, percebeu algo que lembrava um pouco a voz de Lina. Algo delicado, quente e reconfortante, como uma chuva no final da primavera ou uma sesta à tarde.

E estava no ar, ao seu redor.

Uma leve brisa soprou seu corpo espiritual, acalmando-a. Parecia sussurrar o nome dela, como uma mãe acolhendo uma criança perdida nos braços.

— Entende o que quero dizer? — Lina perguntou, estudando seu rosto.

Pamela respirou fundo e olhou para o próprio corpo outra vez. Desta vez, sua pele luminosa não a assustou. Sim, ainda era ela: seus braços, pernas e o restante do corpo.

Ergueu a mão outra vez, estudou-a... e reconheceu a alma dentro daquele invólucro transformado.

A brisa quente tornou a soprar, acariciando-a com uma aceitação e um amor quase palpáveis.

— Acho que estou começando a compreender. — Pensativa, ela passou os dedos pelo cabelo curto, percebendo apenas vagamente que era como passar a mão através de uma névoa fria. Virou-se no banco, de modo a ficar de frente para Lina. — Eu acredito que possa encontrar a paz aqui, mas e quanto ao amor?

— Você já sabe a resposta, Pamela. Ainda ama Apolo?

— Claro — ela respondeu sem hesitação.

Lina sorriu.

— Porque o amor é uma das poucas coisas que podemos levar conosco.

— Mas e quanto a... — Pamela tornou a levantar a mão semitransparente. — Não sou mais como era antes.

— Não, não é mais a mesma, contudo seu espírito tem forma e sentimentos. O resto é com você e Apolo...

— Não seria como fazer amor com um fantasma para ele? — Pamela indagou, combalida.

Lina segurou-lhe a mão mais uma vez.

— Prefiro pensar que isso, sim, é amar a pessoa em sua essência.

— Então estou morta. — Desta vez, quando disse isso, Pamela não sentiu o coração fraquejar. Não se sentiu como se precisasse acordar de um pesadelo.

Os pensamentos se alternavam em sua mente. Preocupou-se com o irmão, com os pais e com Vernelle, porém sua preocupação assumiu um caráter distante, literalmente de outro mundo; como se ela estivesse se recordando de um sonho doce e recorrente. Não que ela os tivesse esquecido ou deixado de amá-los. Apenas se sentia à parte da vida que tinha conhecido.

Perguntou-se se aquilo era algum tipo de mecanismo de defesa inato da alma para impedir que o espírito ficasse se consumindo por toda a eternidade por aqueles que havia deixado para trás.

Eternidade... Ainda era incompreensível.

— Estou morta, mas ainda sou eu.

— Sim, querida, e você vai ficar bem — afirmou Lina. Depois ergueu o olhar e sorriu. — Aí vêm os nossos deuses.

Hades e Apolo caminhavam em sua direção através do pátio florido. O Deus da Escuridão estava com a mão no ombro do amigo e falava com ele, enérgico, enquanto andava. Apolo acenou com a cabeça em resposta, mas, quando viu Pamela, sua atenção se voltou completamente para ela, e ele correu até onde as mulheres se encontravam sentadas.

Parou ao lado do banco.

— Parece tão mal quanto estava logo após a cobra tê-lo picado — comentou Pamela. — Sua mão não está doendo mais, está?

— Não — ele afirmou e quase riu. — Não há mais nenhuma lesão em meu corpo. — Passou os dedos de leve pelo rosto delicado. — É você de novo, doce Pamela?

— Sim, acho que sim. Sinto-me diferente, mas ainda sou eu. Talvez mais do que sempre fui... — ela completou com uma voz marcada pela perplexidade.

— E me perdoa por ter roubado sua alma e tê-la trazido para cá?

Pamela estudou o rosto bonito à sua frente. Lina tinha razão. Ela havia trazido o amor consigo. E também outras coisas, como fé, esperança e perdão.

— Está tudo bem, Apolo. Eu o perdoo.

Emudecido, o Deus da Luz caiu de joelhos, afundou a cabeça em seu colo e, enquanto ela lhe acariciava o cabelo, chorou.


No Monte Olimpo, Zeus ouviu Ártemis terminar sua história. A Deusa da Caça fora implacável em sua ira, mas também fora apaixonada na defesa dos mortais modernos.

Intrigado, Zeus viu a filha enxugar as lágrimas de seu belo rosto enquanto descrevia a morte da mulher que ela afirmava ser a amada de seu irmão. Mal podia acreditar na mudança que se operara em Ártemis. A deusa nunca se importara muito com os mortais.

Verdade que ela não costumava ser cruel com eles; apenas indiferente, fria, intocável... Os mortais faziam sacrifícios pela Deusa da Caça, solicitavam sua ajuda, e Ártemis eventualmente até atendia a seus pedidos, se lhe desse na telha... Mas nunca, em todas as suas eras de existência, ele a vira chorar por uma mortal.

A diva também tinha falado do bardo que abrigara a ela e a seu irmão gêmeo com tanta dedicação, como se ela também se importasse com o tal mortal.

Fascinante.

— ... Aquela mulher pobre e fraca, que não passou de um instrumento para a morte de Pamela, estava sob a influência de Baco. Senti o mau cheiro daquele infeliz. Era como se ela tivesse passado a noite se banhando nele... O Deus do Vinho é o culpado, e não apenas pela morte de uma inocente. Ele manipulou todos os eventos que culminaram nesta triste noite. E por quê? — A Deusa da Caça se voltou para Baco, que também se postara diante do grande Zeus, onde este se encontrava sentado em seu elevado trono. — Por nenhuma outra razão a não ser inveja e despeito!

— Por retribuição! — gritou o Deus do Vinho.

— Retribuição?! — devolveu Ártemis. — Por que Pamela merecia um castigo? Ela era gentil e leal! Tudo o que fez foi amar o meu irmão e nos socorrer quando nos vimos presos em seu mundo, sem os nossos poderes!

— A punição não era para ela. Era para você e para aquele seu irmão arrogante. — Baco voltou os olhos estreitos e malévolos para Zeus. — Não percebe? Eles pensaram que podiam dominar o meu reino e nunca ser punidos por sua transgressão. Não agiram como meros visitantes, mas sim como usurpadores!

— SILÊNCIO! — ordenou Zeus, fazendo um trovão rugir no céu. — Sou eu quem deve julgar. Aproxime-se, Baco.

O deus caminhou, hesitante, até a beira do pedestal de Zeus.

— Você é meu filho, Baco, e eu o amo. Mas também é filho de sua mãe, e ela desejava o que não podia ter... Sêmele não conseguia agir com bom-senso, e isso acabou lhe custando a vida. Agora você também deseja o que não é seu. Assim como à sua mãe, eu também lhe dei uma chance de usar a razão. Em vez disso, reagiu com mentiras e com ódio. Diga-me, Baco, Deus do Vinho, o que faz quando uma de suas videiras deixa de produzir bons frutos?

Confuso, Baco piscou os olhos pequenos e olhou para Zeus de soslaio.

— Ela é podada ao final da estação, para que na próxima temporada reviva e dê bons frutos.

Zeus assentiu, solene.

— Será esse o seu castigo, meu filho. A partir de hoje, a cada final de estação, o seu corpo será enviado aos Titãs para ser desmembrado — podado — por suas poderosas águias. A cada vez que renascer, lembre-se da lição da videira morta. Pense em seus erros, aprenda com eles e dê bons frutos novamente.

Enquanto Baco gritava, aterrorizado, Zeus ergueu a mão poderosa, e o Deus do Vinho desapareceu.

Zeus se voltou para Ártemis.

— Aproxime-se de mim, minha filha.

Sem demonstrar nenhum medo, a deusa caminhou até o pedestal.

— Conte-me o que aprendeu no Reino de Las Vegas — ele ordenou.

Ártemis encontrou os olhos cinzentos e tempestuosos do pai.

— Aprendi o que é ser mortal.

— Diga-me o que isso significa, Ártemis.

— Significa que eles não são frágeis, inconsequentes; seres que vivem e morrem em um piscar dos nossos olhos. Não são nem um pouco fracos. Apenas os seus corpos mortais sucumbem. Dentro de muitos deles existem centelhas de honra e lealdade, de amizade e amor. E eles brilham tanto que, se pudéssemos vê-los como realmente são, sua luz cegaria até mesmo os deuses.

— E foi uma lição valiosa?

— Eu a levarei comigo para sempre.

— Então a aprendeu de modo mais profundo do que qualquer castigo que eu lhe poderia infligir... Você a aprendeu no fundo da alma. Não vou acrescentar nada a isso, portanto. A verdade que agora carrega em seu coração é lição suficiente. Você é livre para fazer o que quiser.

Ártemis inclinou a cabeça, mas, antes que pudesse sair da sala do trono, a voz do pai a deteve.

— Uma última coisa, minha filha. Seu irmão precisa de você. Eu lhe concedo o poder de que vai precisar para ajudá-lo... Se assim quiser.

Confusa, Ártemis inclinou a cabeça outra vez.

Mas claro que iria ajudar Apolo.

— Obrigada, meu pai.

— Não me agradeça ainda, filha. O amor é muitas vezes tão doloroso quanto é doce... Pode ir até Apolo agora.

A tristeza na voz poderosa de Zeus não lhe passou despercebida.

Assim que se viu livre da presença do pai, Ártemis fechou os olhos e se transportou para o Submundo.


Capítulo 34


— Ártemis, estou pedindo para que tente me entender e pense em uma maneira de me ajudar — implorou Apolo.

— Eu não posso! Não vou fazer isso! Não entendo por que não pode simplesmente deixar as coisas como estão... Pamela parece feliz. Por que ela iria querer que mude isso? — Ártemis puxou, irritada, uma das rosas cor de creme e perfeitas que cobriam parte dos jardins ornamentados, os quais se estendiam em camadas por trás do palácio de Hades e terminavam à beira dos Campos Elíseos. Mal havia tido tempo de conversar com Pamela, pois, assim que se materializara no Submundo, Apolo dissera que precisava falar com ela e a puxara na direção do jardim.

Agora mal podia acreditar no que ele queria dizer a ela.

Apolo suspirou.

— Ainda não conversei com Pamela a respeito. Eu queria lhe dizer o que estava pensando, primeiro, para que pudesse me ajudar a decidir o que fazer com... — A voz do deus sumiu enquanto ele andava, inquieto, de um lado para o outro do caminho à sua frente.

— ... com o insignificante fato de o Deus da Luz estar pensando em deixar o Olimpo. E para sempre!

Apolo franziu a testa.

— Não para sempre. Apenas por uma vida.

— O que decerto vai parecer uma eternidade para um Mundo Antigo que se verá desprovido de seu Apolo!

— Talvez pudéssemos falar com nosso pai. Você disse que ele não está mais aborrecido conosco. Talvez eu pudesse convencê-lo a...

— A quê? A verificar se a sua carruagem continua a fazer o sol se erguer no firmamento?... Acorde, criatura! Espera isso dele, mesmo? — Ártemis jogou o cabelo dourado para trás, tentando ignorar as palavras que a assombravam: Seu irmão precisa de você. Eu lhe concedo o poder de que vai precisar para ajudá-lo... Se assim quiser.

Agora entendia o que Zeus havia dito. Compreendia, e estava odiando aquilo tudo.

Apolo balançou a cabeça, angustiado, e passou a mão pela testa.

— Não, eu... Não sei o que fazer, irmã. Eu só quero uma chance, e esse me parece o único caminho.

Ártemis sentiu o peito se apertar.

— Pamela não faz ideia do que está pensando em fazer?

— Não, ainda não — ele admitiu.

— E quanto a Hades e Lina? Já falou com eles a respeito?

Apolo assentiu.

— E o que eles acharam desse seu plano?

— Hades disse que eu estava ficando louco. Lina compreendeu.

— Pois bem, estou mais de acordo com Hades do que com Lina!

— Eu já imaginava — ele murmurou, desanimado.

— O que esperava?!

Os olhos de Apolo encontraram os dela.

— Pensei que, talvez, minha irmã pudesse me ajudar a encontrar uma saída...

Ártemis sentiu uma pontada de dor ao tomar sua decisão. Não tinha escolha. Amava Apolo demais.

— Vou guiar a sua carruagem, meu irmão.

— Você? Mas como...

A deusa ergueu a mão delicada e perfeita, e lançou mão da arrogância para domar as lágrimas que lhe ardiam nos olhos.

— Duvida dos meus poderes?

— Não! Eu...

— Então está resolvido. — Ártemis estudou as unhas bem-cuidadas. — Eu sempre achei que aquela sua carruagem precisava ser modernizada, mesmo. É muito antiquada, muito... — estremeceu dramaticamente — ... espartana.

Apolo apenas a fitou, boquiaberto, e ela lançou-lhe um olhar severo.

— Não vai agradecer à sua irmã?

Com um grito, ele a ergueu nos braços e a fez girar no ar.

O corpo etéreo de Pamela emergiu de um dos passeios perpendiculares nesse momento.

— Maldição dos infernos ! O que está... — Ela soltou uma exclamação e cobriu a boca. Em seguida começou a rir. — Eu disse “inferno” e me assustei!... — Balançou a cabeça, os cabelos curtos se movendo como espuma do mar ao redor do rosto delicado.

Apolo sorriu e estendeu a mão para ela. Ainda rindo um pouco, Pamela segurou a mão sólida e quente em seus dedos frios.

— Como eu ia dizendo... o que está acontecendo aqui, com vocês dois? Ouvi você gritar lá da outra camada do jardim!

Apolo olhou para Ártemis, que olhou para Apolo.

— E então? — insistiu Pamela. — Ninguém vai dizer nada?

— O plano é seu. Você conta — Ártemis decidiu.

— Que plano?...

Apolo respirou fundo.

— Eu tive uma ideia. Falei com Hades e Lina a respeito, mas só agora contei a Ártemis. E os três o consideraram viável.

— Maluco, mas possível — resmungou a deusa.

Apolo sorriu com carinho para a irmã antes de se voltar para sua amada.

— Você já está aqui há tempo suficiente para saber que existem sete rios no Submundo.

— Sim. — Ela assentiu com um gesto de cabeça.

— Minha ideia tem a ver com o primeiro deles: o Rio Lete.

Pamela encolheu os ombros pálidos.

— Sei, e qual é a ideia?

— Primeiro precisa entender o Rio Lete — interveio Lina, aproximando-se pelo passeio de braços dados com o marido.

— Ele é chamado de “o Rio do Esquecimento” — explicou Hades.

Apolo balançou a cabeça, fingindo-se desgostoso.

— Não existe privacidade aqui no Submundo?... — indagou, porém foi solenemente ignorado.

— O Rio do Esquecimento. O que isso significa? — Pamela quis saber.

— Ele tem a finalidade de lavar uma alma de todas as recordações, de modo que esta possa renascer e viver outra vida — Lina explanou.

Pamela encontrou os brilhantes olhos azuis de Apolo.

— E?...

— Se bebêssemos das águas do Rio Lete, você e eu poderíamos renascer e ter uma vida juntos. Poderíamos nos casar, ter filhos e envelhecer juntos.

— Mas você não é mortal — retrucou Pamela com voz fraca, pois era como se as palavras do deus tivessem feito seu espírito alçar voo.

Viver de novo?... Amar e ter filhos... com Apolo?

— O Lete terá o mesmo efeito sobre o espírito dele — afirmou Lina. — Tudo o que Apolo precisa fazer é deixar seu corpo imortal, assim como Perséfone faz a cada seis meses.

— Mas como ele pode fazer isso? Como pode deixar de ser Apolo?

— É aí que entra Ártemis. Ela concordou em cuidar para que o Mundo Antigo não fique desprovido de luz enquanto eu estiver ausente.

— Concordou? — repetiu Pamela, olhando para a deusa.

Ártemis deu de ombros com indiferença. Em seguida, fingindo cheirar uma rosa branca como leite, curvou-se para a flor perfumada e virou a cabeça, enxugando a face úmida.

Apolo segurou Pamela pelos ombros.

— Poderíamos ambos viver uma vida mortal. E nossos filhos prosseguiriam depois de nós. Pense nisso, Pamela!

Ela sentiu-se tonta, e ficou feliz por Apolo a estar segurando com firmeza.

— Espere... — Olhou para Lina. — Não disse que o Lete apaga todas as lembranças? Se não lembrarmos um do outro, como poderei encontrá-lo? Ou Apolo a mim?

Lina sorriu e se inclinou para Hades, que passou o braço em torno dela.

— Almas gêmeas sempre encontram uma a outra.

— Quanto a isso, têm a minha promessa sagrada — concordou Hades.

O olhar de Pamela se desviou para a silenciosa Ártemis.

— Não quer que ele faça isso, não é?...

— Não quero perder meu irmão — ela admitiu.

Apolo tirou a mão do ombro de Pamela e a pousou no braço da irmã.

— Não creio que iria me perder. Acho que tomaria conta de mim. Assim como de meus filhos... e netos.

Ártemis baixou a cabeça e colocou a mão sobre a dele.

— Claro que sim, meu irmão. Quanto a isso tem meu juramento.

Apolo voltou-se para Pamela.

— Então, tudo o que resta é você concordar, minha doce Pamela.

Ela sentiu como se sua alma fosse explodir de felicidade.

— Sim! Vamos fazer isso!

Apolo virou-se para Hades e ergueu uma sobrancelha para o amigo.

— Agora?...

Hades deu de ombros, e Lina deu-lhe uma cotovelada.

— Seria perfeito ! — decretou a Rainha do Submundo.

Apolo se afastou um passo de Pamela, que ainda franzia a testa, confusa. Ergueu o queixo regiamente, e ela pensou que o deus era exatamente como no perfil estampado na antiga medalha que ele lhe dera já havia algum tempo.

Ia dizer isso a ele, quando o corpo de Apolo de repente tremeu e, em seguida, se transformou em mármore sólido, ao mesmo tempo que seu brilhante espírito o deixava.

A forma reluzente do Deus da Luz se voltou para Hades.

— Cuide bem do meu corpo... Vou precisar dele algum dia.

— Pode deixar, meu amigo.

Lina estendeu os braços, segurou-o pelo rosto com ambas as mãos e o beijou de leve nos lábios. Depois voltou para o lado do marido.

— Eu lhes desejo uma vida repleta de felicidade e alegria... Sabe o caminho, não sabe, Apolo?

O deus brilhante acenou com a cabeça.

— Não vão conosco? — indagou Pamela.

Lina sorriu para ela.

— Para isso, não vai precisar da presença dos deuses. É o tipo de coisa que as almas fazem melhor sem a nossa interferência.

— Também vou me despedir de vocês aqui — decidiu Ártemis.

Em primeiro lugar, a deusa foi até Pamela e a abraçou com força.

— Cuide bem dele por mim — sussurrou para a alma mortal que o irmão tanto amava. Então se voltou para Apolo e mergulhou nos braços brilhantes. Sem se importar com as lágrimas que agora lhe corriam soltas pela face, pressionou o rosto contra o dele. — Onde quer que esteja... Seja quem for... Saiba que o meu amor e minha bênção sempre estará com você, assim como com seus filhos e os filhos de seus filhos.

— Obrigado pela compreensão, minha irmã. E obrigado por ser a minha luz enquanto eu não puder sê-la. — Apolo beijou-lhe cada uma das faces úmidas.

— Eu te amo — declarou a Deusa da Caça conforme seu corpo se esvaecia até desaparecer por completo.


Apolo e Pamela caminharam em silêncio através dos pinheiros altos que começavam onde os jardins de Hades terminavam. Iam de mãos dadas, e seus ombros e quadris roçavam com intimidade.

Não demorou para que, em meio às árvores, começassem a capturar o reflexo cristalino da água em movimento. O rio os chamava com seu canto sussurrante e sedutor.

Inconscientemente, eles andaram mais rápido.

As árvores chegaram ao fim, e eles se viram em pé sobre um afloramento de rochas que dava para a água, a qual brilhava como joia líquida.

— Está com medo? — perguntou Apolo.

— Não — garantiu Pamela. — Você vai me encontrar. Eu sei que vai.

— Sempre — ele prometeu.

Juntos, eles se ajoelharam na beira da água. Apolo juntou as mãos em concha, mergulhou-as na água fria e as ergueu, de modo que Pamela pudesse bebê-la. Então, enquanto ela observava, afundou-as outra vez e fez o mesmo.

Em pé, tomou-a nos braços e a beijou. Conforme seus corpos espirituais se uniram, começaram a brilhar. Seus cabelos e roupas puseram-se a açoitá-los violentamente, como se eles estivessem bem no meio de uma violenta tempestade.

Apolo pendeu a cabeça para trás e riu, extasiado, e o riso de Pamela se juntou ao dele à medida que suas almas se inundavam com uma onda de amor e alegria.

Mais uma vez, o deus puxou sua alma gêmea para os braços, e Pamela enroscou o corpo luminoso no dele. Enquanto se abraçavam, seus corpos continuaram a se transformar, perdendo suas características, de modo que foi como se houvessem se fundido e se tornado um só.

De repente, a esfera incandescente explodiu, fazendo chover faíscas na água.

Do centro do gêiser chamejante, surgiram duas pequenas bolas com luzes idênticas. Elas pairaram acima do rio por um momento, aclimatando-se a seus novos sentidos. Em seguida, como se seguindo uma trilha de doces lembranças, começaram a flutuar corrente abaixo, em direção ao seu novo começo.


Epílogo


Kristin estava tão entediada que pensou que iria morrer. Desejou morrer. Poderia muito bem morrer... Que outra coisa havia para fazer?

Era típico de seus pais forçá-la a tirar aquelas férias idiotas em família. Eles não podiam tê-la deixado em casa com suas amigas Janice, Rebecca e Ruth?

Claro que não, mesmo ela tendo acabado de fazer treze anos! Não era idade suficiente para que ela ficasse em casa sozinha por duas semaninhas ...

Aquilo não fazia o menor sentido.

Por isso ali estava ela, sentada em uma praia, sozinha, enquanto o sol nascia. E por quê? Porque ninguém mais na família saía da cama antes da hora do almoço. Estava condenada a conviver com pessoas que dormiam na melhor parte do dia!

E aquele era apenas o segundo dia daquelas duas semanas de tortura que seus pais chamavam de férias.

Considerou se lançar ao mar.

Não. Ela nadava muito bem. Levaria uma eternidade para se afogar.

Kristin afundou os pés na areia branca e deixou as marolas baterem nos dedos. Talvez devesse ler um livro. Outro livro.

Passou a mão pelo cabelo curto, irritada. Ela o havia cortado poucos antes de eles partirem, e ainda não se acostumara com o novo corte. Principalmente com o modo como os fios espetavam na frente.

Suspirou. Não devia tê-los cortado. Nunca mais iria conseguir um namorado. Nunca mais!... Iria morrer solteirona.

Uma sombra bloqueou parte do sol da manhã, e ela suspirou mais uma vez. Na certa era seu irmão caçula. Perfeito.

Apanhou um punhado de areia molhada e estava prestes a jogá-lo nele quando a sombra falou.

— Oi — soou a voz estranha.

Kristin se virou e segurou a mão cheia de areia diante dos olhos, protegendo-os do brilho ofuscante do sol que nascia.

Quase desmaiou. Era um menino! Um menino lindo, alto e loiro... Devia ter uns dezesseis anos e estava sorrindo para ela.

— Oi — respondeu, tímida.

— Acordou agora ou está indo para a cama? — ele perguntou sem pestanejar.

— Acordei agora — ela respondeu, não querendo olhar para os olhos dele como se fosse uma idiota. Eles eram tão azuis quanto o oceano!

— Eu também. — Ele sentou-se a seu lado. — Prefiro as manhãs.

— Eu também! — Kristin concordou depressa.

— Minha família inteira ainda está dormindo.

— A minha também! Eles dormem demais.

— Verdade.

Kristin mal podia acreditar em como ele era... quente. Não estava sentado muito próximo, mas ela podia jurar que sentia ondas de calor vindo de seu corpo.

Quis dizer algo, mas não queria gaguejar, muito menos parecer estúpida.

— Ei, o que é isso? — ele indagou, apontando para algo que brilhava na beira da água, meio encoberto pela areia em que seus dedos dos pés estavam enterrados. Inclinou-se, quase tocando nela, e agarrou o objeto, levantando-o da areia. — Uau!! — exclamou, entusiasmado.

— Incrível! — concordou Kristin. Mal podia desviar o olhar da ofuscante medalha que pendia da corrente dourada. Ela brilhava à luz crescente e tinha o perfil de um homem estampado em sua face. Um homem lindo, com cabelos encaracolados.

— É sua — ele declarou, solene.

— Minha?... Nã-nã.

— Hã-hã! Claro que é. Estava aos seus pés, na sua praia, durante a sua manhã. É sua. — Ele abriu o pequeno fecho e colocou a corrente em torno do pescoço dela.

A medalha ficou no lugar como um pedaço de sol. Kristin a tocou e a sentiu quente.

— Viu?... Combinou direitinho — ele comentou sorrindo.

Ela pensou que fosse desmaiar. Ele era tão, tão absurdamente lindo!

— Meu nome é Kristin.

— O meu é Jordan.

— Oi, Jordan.

— Oi, Kristin.

Sorriram um para o outro, e o sol explodiu do oceano em direção ao céu da manhã.

— Ei... — Jordan comentou. — Gostei do seu cabelo.

— Obrigada — ela agradeceu, pensando que, talvez, aquelas férias de verão não fossem ser uma tortura, afinal.

Nenhum dos adolescentes notou a mulher alta e loira que os observava das sombras. Então é verdade que almas gêmeas sempre se encontram , refletiu Ártemis. Eu nunca devia ter duvidado de você, meu irmão.

A deusa enxugou os olhos e sorriu, tristonha, enquanto desaparecia, em silêncio, por detrás das palmeiras.

Capítulo 26


Pamela ficou surpresa ao perceber que Apolo a estava evitando. E também se viu chocada ao se dar conta do quanto aquilo a incomodava.

Ela até o flagrara olhando para ela, mas, no momento em que havia tentado encontrar seu olhar, ele tinha se virado e fingido estar às voltas com o trabalhador mais próximo.

Apolo a evitara até mesmo durante a pausa para o almoço. Assim, ela se sentara com Eddie e Ártemis e os observara flertando desavergonhadamente enquanto engolia um dos excelentes sanduíches gourmet que o genial cozinheiro de Eddie fizera para todos. Apolo fizera uma pausa apenas suficiente para apanhar um sanduíche e lançar-lhe um sorriso breve, distraído, antes de voltar para junto do arquiteto, próximo do local onde os trabalhadores já haviam começado a demarcar o terreno para o balneário.

Não que ela não estivesse ocupada. Naquele dia eles tinham escolhido o piso, o que acabara por se tornar um grande acontecimento. A princípio Eddie queria uma reprodução horrível do revestimento de pedra brega e tão abundante no Fórum. Por sorte, de cima de seu pedestal — onde posava regiamente, segurando um arco em vez do vaso do dia anterior —, Ártemis balançara a cabeça e protestara mais do que depressa:

— Ah, não, Eddie. É horrível!

E pronto. A pedra falsa fora vetada.

Em seguida, ela, Pamela, pedira a três representantes de marmorarias que trouxessem amostras de suas melhores pedras.

E a confusão tinha começado. Eddie encantara-se com as diferentes cores e variedades, e ficara mudando de uma amostra horrorosa para outra, cada vez mais entusiasmado, insistindo para que colocassem um padrão diferente em cada cômodo. A verdade era que ela estava tendo uma tremenda dor de cabeça com o escritor, refletiu Pamela. Havia tentado explicar a ele que, com o piso plano aberto da casa, passar do mármore Santiago — com veios vermelhos, dourados, alaranjados e verdes — para o Verde Fire —, que era predominantemente verde-limão, amarelo e preto — e depois para o Golden Alexandra —, que era apenas dourado — seria um erro de design terrível.

Mais uma vez, Ártemis viera em seu socorro.

— Eu gosto daquele — a diva tinha decidido, apontando o dedo delicado para um quadrado de pedra esquecido, o qual se encontrava bem distante dos outros.

— Gosta mesmo, minha deusa? — Eddie indagara de imediato, todo atencioso.

Ela, Pamela, pulara até a amostra, que era de uma cor creme discreta, com leves veios manteiga, os quais passavam de uma sugestão de amarelo para um rosa dourado.

Tinha sorrido, então.

— É lindo, mas não é mármore. É um pedaço de pedra calcária. — Levara-a para Ártemis, que passara a mão pela superfície lisa.

— Mas é suave e perfeita! — ronronara a deusa, olhando para o autor. — Eddie, eu adoraria ter esta pedra contra a minha pele nua!...

Os olhos do homem haviam até escurecido.

— Permita-me atender ao seu desejo, minha deusa. Escolho este calcário para cobrir o chão da minha humilde morada.

Humilde morada! Essa fora muito boa , pensou Pamela.

Tinha piscado para Ártemis em um rápido agradecimento, depois se pusera a tratar de detalhes do pedido com o entusiasmado representante da tal pedra.

Em algum ponto da vultosa transação, contudo, vira-se dominada pela inspiração. Tinha pedido ao vendedor que esperasse um instante e, sorrindo, voltara para junto de Eddie, no banco próximo ao pedestal da deusa.

— Tive uma ideia que pode achar interessante.

— Fale, Pamela!

— O que acha de colocar o calcário em todos os ambientes da casa, exceto nas salas de banho? Assim poderia dar asas à imaginação e escolher um mármore diferente para cada uma delas. Em seguida, poderíamos personalizar o ambiente conforme as cores e o padrão do mármore. Seria uma aventura entrar em cada um dos banhos. No caso dos banheiros das suítes, como o da suíte máster e os das outras cinco, usaríamos a cor do mármore escolhido como base para a decoração do quarto.

— Que ideia maravilhosa! — Ártemis havia exclamado com o que parecia genuíno entusiasmo. — Vai ser tão divertido escolher todos eles!

A estrondosa gargalhada de Eddie fizera várias cabeças se voltar.

— Muito bem pensado, Pamela!

Ela sorrira para o homenzarrão.

— Sua casa vai ser realmente única, Eddie.

E, pela primeira vez, usara a palavra como um elogio.

Logo depois, tinha chamado os representantes das pedras para que lhe trouxessem as mais diferentes amostras de mármore.


Pamela estava bebendo uma garrafa de água mineral gelada e estudando uma das amostras de mármore — que lembrava um caleidoscópio — quando sentiu os olhos de Apolo mais uma vez.

Ergueu a cabeça. Ele devia estar fazendo uma pausa porque se encontrava parado do outro lado do pátio, olhando por sobre o ombro do artista que fazia o desenho de sua irmã. Tinha a cabeça ainda inclinada para baixo, em direção ao esboço, porém seus olhos estavam fixos nela.

Pamela sentiu o estômago se apertar no mesmo instante.

Por favor, faça que ele não desvie o olhar! , pensou. E sorriu para ele, tímida.

Apolo devolveu o sorriso, e então sua expressão mudou, como se ele houvesse se lembrado. Baixou os olhos de volta para o esboço, e Pamela suspirou.

— Por que está judiando de Febo? — A voz de Eddie soou estranhamente baixa a seu lado. Ela deu um pulo, perguntando-se como, diabos, o escritor havia chegado tão perto sem que ela houvesse escutado. Olhou para o homem enorme, pronta a insistir que não sabia do que ele estava falando... mas a genuína preocupação em seu rosto a fez conter a negligência nas palavras.

— Não estou judiando dele. Só não sei o que fazer com Febo.

— Mas sabe que ele a ama.

Pamela piscou, surpresa, e Eddie soltou uma versão baixa, mais moderada, de sua risada.

— Precisa se lembrar de que sou um autor, ou seja, não passo de um contador de histórias que observa o mundo e, em seguida, o reformula segundo sua própria visão para entreter e divertir. Além disso, Febo não tenta ocultar seus sentimentos por você. É você quem mascara o que o seu coração sente por ele. Não é verdade?

— Sim — ela concordou.

— Eu sei que é muito atrevimento da minha parte perguntar, mas por quê? Ele me parece um homem de excelente caráter.

Pamela hesitou, sem saber se poderia contar a Eddie parte da verdade.

— Pode se abrir comigo sem medo, Pamela. O que disser não afetará nossa relação profissional. Eu gostaria muito que pensasse em mim como um amigo. Sempre achei ridículo quando as pessoas dizem que nunca misturam negócios com prazer. Como suas vidas devem ser sem-graça se marcham sozinhas sob o peso de regras tão restritivas!... Então, me diga, o que a impede de aceitar Febo?

Ela estudou os olhos de Eddie. Eles não continham malícia e pareciam cheios de genuína preocupação.

— Se eu lhe disser a verdade, não preciso temer que ela vá aparecer em um de seus livros? — perguntou em tom de brincadeira.

Desta vez a risada de Eddie retumbou por todo o pátio.

— Isso é sempre um risco quando se tem um amigo escritor... — ele se inclinou e baixou a voz para um falso sussurro: — Mas eu prometo mudar o seu nome.

Tomando uma decisão apenas com base no que os instintos lhe diziam, Pamela deixou escapar:

— Estou com medo de sair ferida... Você não?

O olhar de Eddie se desviou dela para Ártemis. Por um momento, a tristeza sombreou seu semblante. Então ele respirou fundo, e esta se foi, substituída por um sorriso. Sem tirar o olhar da deusa, o autor comentou:

— Lembra-se de que, quando nos conhecemos, eu queria que a estátua central da minha fonte fosse feita segundo uma imagem do deus Baco?

— Sim — Pamela acenou com a cabeça, torcendo para não ter dito algo que o fizera reconsiderar aquela ideia medonha.

— Baco sempre foi um dos meus deuses favoritos, mas não é tipicamente olímpico. Diz a mitologia que ele foi o último deus a entrar no Olimpo. Homero não o reconhecia como tal. Baco era de uma natureza estranha para os outros deuses. Eles, que sempre haviam primado pela ordem e pela beleza, nem sempre apreciaram o caráter único de Baco ou de seus adoradores. E eu compreendo isso. Sei bem o que é ser denominado uma coisa e encarado como outra. — Eddie balançou a cabeça e a fitou com carinho. — Agora estou divagando... Não é a história de Baco que quero que ouça, mas a da mãe dele. — O escritor fez um sinal para que um dos trabalhadores lhes trouxessem cadeiras.

Pamela se sentou a seu lado, esperando, enquanto Eddie acomodava o corpanzil e pedia um copo gelado de hidromel. Quando ele perguntou se ela se juntaria a ele no drinque, Pamela deu de ombros e assentiu. Por que não? Trabalhando para Eddie, decerto poderia sair um pouco da linha.

Tão logo o hidromel chegou, o escritor tomou um longo gole antes de se lançar em sua história.

— Sêmele era uma linda princesa de Tebas. Nascida de pais mortais, tinha o rosto e a silhueta de uma deusa... Infelizmente, ela chamou a atenção de Zeus, o Governante Supremo do Olimpo. Zeus flertava com muitas donzelas mortais, assim como a maioria dos deuses e deusas.

Nesse ponto, Pamela bufou, desgostosa, e cruzou as pernas outra vez.

Eddie sorriu.

— Lembre-se, minha querida. Era um mundo diferente. Finja, apenas por um momento, que é uma linda jovem vivendo na Grécia antiga. Nascida em uma família de comerciantes, está insatisfeita com o papel que o destino lhe reservou. Você colocaria de lado suas aspirações mais secretas e se casaria, submissa, com quem a família escolhesse? E se, digamos, um belo homem atravessasse o seu caminho? O filho mais velho de um rico latifundiário, talvez?... Ele está longe do seu alcance, mas você encontra o amor em seus braços... De repente, entretanto, descobre que está grávida. Iria se deixar expulsar de casa, desonrada, quando seu romance fosse descoberto? Ou contaria como, um dia, enquanto estava colhendo flores em um prado distante da cidade, um deus surgira, a seduzira e lhe fizera um filho?... Um filho que nascera em meio a muito alvoroço, e cuja vida é rodeada de mistério e magia?

— Compreendo — Pamela murmurou.

— Posso continuar com o meu conto?

— Desculpe — ela murmurou, recostando-se na cadeira para beber o hidromel.

— Como eu estava dizendo, Sêmele se tornou uma das muitas amantes mortais de Zeus. Mas ela era diferente, e não apenas por conta de sua extraordinária beleza. Diz a mitologia que Zeus se encontrava completamente apaixonado por sua jovem amante, tanto que, quando ela lhe disse que teria um filho dele, o deus fez um juramento sobre o Rio Styx de que lhe daria qualquer coisa que ela lhe pedisse. — Eddie parou e sorveu o hidromel em lenta contemplação.

— E então, o que aconteceu?

— O maior desejo de Sêmele era ver Zeus em todo o seu esplendor como Senhor do Olimpo e Deus dos Trovões. Zeus implorou à amante que reconsiderasse seu pedido. Ele sabia que nenhuma mortal poderia contemplá-lo como tal e viver, porém ela não quis voltar atrás em sua maior vontade. O Senhor dos Deuses tinha feito um juramento sobre o Rio Styx, e nem mesmo ele poderia romper aquele vínculo. Assim, com as faces banhadas por lágrimas devido a sua previsão, foi até ela uma última vez e se revelou conforme ela desejara. E assim, diante da glória de sua luz ardente e terrível, Sêmele sucumbiu.

— Mas isso não pode estar certo! Se ela morreu, como foi que Baco nasceu?

— Por causa de seu amor por Sêmele, Zeus lhe arrancou o filho do ventre enquanto ela perecia e carregou a criança dentro de sua própria coxa até que chegou a hora de o Deus do Vinho nascer.

Antes do dia anterior Pamela teria reagido com ironia àquele antigo mito contado por Eddie. Agora sabia muito bem que a possibilidade de este ser muito mais do que ficção era grande e se condoeu pela tragédia de Sêmele, que havia morrido ao se recusar a deixar de lado seu desejo mais profundo.

— Eu não fazia ideia — falou baixinho.

— Acha que Sêmele se arrependeu de seu desejo? — perguntou Eddie.

— Bem... este a matou.

— Mas acha que ela se arrependeu? Acha que ela teria trocado aquele momento extraordinário de realização, de total satisfação — tão intenso que seu corpo mortal não pôde suportá-lo —, por uma vida segura, porém desprovida daquele instante ofuscante de esplendor?

— Não sei se posso responder a essa pergunta. O que acha, Eddie?

— Precisa tomar uma decisão por si mesma. — O olhar do escritor se desviou dela e encontrou Ártemis. Seu sorriso já não denotava tristeza. — Eu tomei a minha.

— E não sente medo? — Pamela descobriu que mal conseguia formular as palavras.

— Claro. Não há garantias no amor, Pamela. Apenas infinitas oportunidades... para a dor e para a felicidade. Mas posso dizer, sem qualquer dúvida, que prefiro tocar essa felicidade por um instante e me deixar ferir do que viver minha vida na escuridão, sem nenhuma luz.

Com as palavras, algo mudou dentro de Pamela. Algo que se encontrava adormecido dentro dela finalmente fez mais do que se agitar. Despertou por completo. Ela sabia o que era viver na escuridão, e também sabia o que era tocar a luz...

— Também não quero uma vida desprovida de luz — murmurou em meio ao nó na garganta.

Eddie olhou para ela e sorriu.

— Muito bem, Pamela. Muito bem.

De repente, ele se levantou, e sua voz grave ressoou por toda a vila.

— Febo! Venha até aqui!

Pamela tentou dizer algo, como: “Espere, Eddie! Eu não disse que estava pronta para tocar a bendita luz agora!...”, mas o autor ignorou seus murmúrios desesperados.

Quando Apolo se apressou em ir até eles, Pamela ficou mortificada ao perceber que seu rosto ardia. Estava corando como uma adolescente!

Que maravilha!...

— Aí está você, meu rapaz! Tenho um pedido para lhe fazer.

— O que posso fazer por você, Eddie?

— Acho que Pamela anda trabalhando demais, e possuo uma regra rigorosa: sempre misturar negócios com prazer! Mas parece que nossa amiga desconhece essa regra... — observou Eddie, como se ela não estivesse sentada a centímetros dele e com o rosto pegando fogo.

— Eu já reparei — concordou Apolo, tentando manter a expressão neutra.

— Que bom! Então sabe exatamente o que precisa fazer... — Diante da expressão vazia do gêmeo dourado, Eddie se ergueu e lhe deu um tapinha no ombro. — Vamos! Tire-a daqui, homem! Vá passear um pouco com Pamela no resort . Visitem as fontes e refresquem-se. Vou pedir a James que lhes providencie um belo almoço... e não esperaremos vê-los tão cedo!

Apolo pareceu tão surpreso quanto Pamela.

— James! — Eddie gritou, e seu assistente, como de costume, surgiu como num passe de mágica. — Peça a Robert que leve Pamela e Febo de volta para o resort , e faça o pessoal preparar um belo piquenique à moda antiga para os dois. Eles precisam de algum tempo para descansar e... — parou, piscando para Febo — ... aproveitar um pouco.

— Agora mesmo, Eddie — aquiesceu James antes de se afastar correndo.

— Podem ir — falou o escritor. — E não se preocupe, Pamela. Diana e eu terminamos de escolher o mármore para os banheiros.

— Tem certeza de que não precisa de mim para fechar o negócio com o representante da pedra calcário?

— Não, não... — Eddie afastou sua preocupação. — Ele já tem a planta. Agora fora daqui, vocês dois!

Sem ver alternativa, Pamela se levantou e começou a caminhar com Apolo pelo pátio. As portas estavam abertas, e o sol refletiu a lataria prateada da limusine que parou diante da villa.

Apolo estacou.

— Lembre-se, Febo, precisa matar o dragão antes de ganhar a donzela! — Eddie gritou atrás deles.

O Deus da Luz ergueu a mão e acenou de volta para Eddie com bom humor, mas Pamela ouviu seu suspiro dolorido e percebeu como seu rosto tinha empalidecido diante do veículo.

Apolo endireitou os ombros, então, e avançou novamente.

— Existem dragões no Mundo Antigo? — Pamela murmurou enquanto caminhava a seu lado.

— Sim, mas não carros. E juro que eu preferiria enfrentar os dragões.

— Vou me sentar no banco da frente com você.

— Não posso matar essa coisa?...

— Eu não acho que seria uma boa ideia. — Pamela tentou não rir, sem sucesso.


Capítulo 27


Fazer caminhadas e andar pelas trilhas do Pikes Peak sempre fora um dos passatempos favoritos de Pamela, assim como sua principal forma de exercício. Por que deveria malhar no sufocante confinamento de uma academia feita pelo homem quando contava com o esplendor das Montanhas Rochosas do Colorado ao seu redor? Não que ela fosse uma daquelas praticantes que vivia de mochilas nas costas, acampando e desprezando as conveniências da vida moderna. Escalar uma parede de rocha nunca a seduzira. Tampouco dormir no chão e fazer xixi no mato.

Mas pegar uma trilha que serpenteasse pela montanha — principalmente no início da manhã, quando tudo parecia ainda mais fresco, quieto e particular — era algo que incluía em sua rotina ao menos quatro vezes por semana desde que tinha deixado Duane. Caminhadas eram sinônimo de liberdade para ela. E não importava o quanto estivesse lenta ou estressada no início de cada uma delas. Uma hora mais tarde, quando voltava, sentia-se relaxada e rejuvenescida.

Ve chamava isso de “seu tempo de ajuste”.

Assim, o short, a camiseta e os tênis novos para caminhada, que haviam sido deixados em sua cama, lhe trouxeram um sorriso aos lábios.

Pamela mudou de roupa depressa e saiu do quarto a tempo de ver Apolo em uma versão masculina do vestuário, andando pelo corredor em sua direção.

— Não sei como Eddie consegue fazer essa mágica sem qualquer poder imortal! — ele falou, sorrindo com ironia.

— O poder de Eddie se chama “dinheiro”... Muito dinheiro. Isso, somado à sua imaginação, equivale à versão da magia no Mundo Moderno. James telefonou para o meu quarto... Pediu para que nós o encontremos na caverna.

— Então, vamos.

Apolo fez um gesto galante para que ela o precedesse pelo corredor, e Pamela percebeu que, assim como na curta viagem de carro, ele se esforçava para não tocá-la. Lembrou-se, contudo, de que o deus estava fazendo apenas o que ela mesma lhe pedira: dando a ela tempo e espaço; o que não ajudava nem um pouco a desfazer o nó que ela sentia na boca do estômago.

James já se encontrava esperando por eles com um sorriso, uma cesta de piquenique e um mapa.

— Marquei aqui uma trilha próxima. Imagino que vão gostar de explorá-la. Ela começa ao norte da casa da fazenda, segue até o First Creek Canyon e termina com uma linda lagoa alimentada por uma cachoeira. Ele apontou para o fim do traço destacado em amarelo. — O lugar perfeito para uma refeição agradável. Na cesta, vão encontrar muita água, bem como protetor solar. E, embora provavelmente não precisem dele, também incluí um telefone celular que já está programado para chamar o balcão de informações do spa . Basta clicar “estrela, sessenta e dois” caso se percam ou precisem de ajuda, o que é pouco provável.

— Você é muito eficiente, James — elogiou Pamela.

— Obrigado, senhora. Basta se lembrarem de que a noite cai depressa no deserto. Creio que o pôr do sol acontecerá hoje às 20h05. — Ele entregou a cesta a Apolo, curvou-se, educado, e deixou os dois sozinhos.

Eles ficaram em silêncio, meio sem jeito, mas Apolo foi o primeiro a falar.

— Acho melhor irmos andando.

Pamela limpou a garganta. Era ridículo ficar nervosa por estar sozinha com ele. Afinal, haviam feito até sexo!... E mais de uma vez. Não existia motivo para aquele aperto no estômago, nem para que suas mãos estivessem tão suadas. Motivo nenhum. Precisava ir com calma.

— Ok. — Ela apontou para o cesto. — Protetor solar em primeiro lugar.

Apolo levantou uma sobrancelha.

Pamela suspirou e soltou o fecho no topo da cesta de piquenique. Isso porque ela queria se comportar com naturalidade!...

Mas a situação, definitivamente, não era normal. O homem diante dela nem sabia o que era protetor solar porque era Apolo, o Deus da Luz.

Pamela suspirou. Seus nervos à flor da pele decerto eram a única coisa normal naquela situação.

Olhou para o cesto superorganizado. James tinha colocado o frasco de protetor solar fator 40 em cima de tudo o mais.

Com uma expressão curiosa, Apolo a observou espalhar a loção cremosa pelos braços e rosto.

— Tem cheiro de coco. O que é? — perguntou, interessado.

— Protetor solar. Ele bloqueia os raios de sol nocivos à nossa pele.

O deus ficou confuso.

— Os mortais podem se queimar sob muita luz. Lembra-se de Sêmele? — ela indagou.

Apolo piscou, surpreso.

— Eddie está me dando aulas de mitologia.

Desta vez, Apolo levantou ambas as sobrancelhas douradas.

— Cuidado com o que acredita das histórias contadas e recontadas em seu mundo. Posso afirmar, sem dúvida, que muitas delas são totalmente equivocadas.

— Sim, eu já percebi isso. Por aqui, dizem que Ártemis é virgem.

Ele soltou uma risada.

— O que prova a minha teoria. Agora, diga a verdade... Essa loção que cheira a coco tem mesmo poder para bloquear a luz de um imortal?

— Duvido, mas pelo menos o impede de pegar uma bela queimadura de sol.

— Queimadura de sol?

— É a mesma coisa que fazer a barba, para você. Deveria ser simples de entender, mas pode deixá-lo confuso, já que não está acostumado com as implicações... A luz solar é assim para os mortais.

Muito sério, Apolo apanhou o frasco das mãos dela, espremeu um pouco na dele, cheirou a loção e, em seguida, espalhou-a pelos braços e ombros.

Pamela o observou e, de repente, sentiu-se inexplicavelmente triste. Apolo, o Deus da Luz, não devia ter que se proteger do sol.

Uma imagem da última vez em que haviam feito amor passou por sua cabeça. Ele se transformara em uma chama, queimando com paixão imortal. Ele era o Sol. Apolo não pertencia àquele mundo. Ela até poderia ceder ao seu desejo mais profundo e se permitir amá-lo, mas não poderia iludir a si mesma pensando que sua história teria um final mais feliz do que o amor mítico de Sêmele por Zeus.

— Não se esqueça do rosto — murmurou.

— Obrigado. — Apolo sorriu e espalhou o líquido branco na pele. — Eu tinha me esquecido. Isto tudo é muito novo para mim.

Pamela sentiu o estômago se contrair outra vez, mas voltou a sorrir.

— Acho que já está bom. — Fechou o frasco e o colocou de volta no cesto.

Apolo o apanhou, e juntos eles saíram pela porta da frente da estalagem.

— Sabe qual lado é o Norte? — Apolo fez uma pausa para perguntar a ela.

Quando ela lhe lançou um olhar espantado, ele sorriu como um menino.

— Eu só estava brincando. Estou sem meus poderes, mas não sem o cérebro.

— Que alívio... — murmurou Pamela, sorrindo de volta para ele conforme percorriam o caminho de pedregulhos que rumava para a esquerda, contornando as construções dispersas e feitas de tijolos que compunham o restante do requintado spa : um restaurante e uma bem abastecida loja de presentes.

Era difícil de acreditar que, passando o resort, aquele oásis dava lugar à beleza crua do deserto. A trilha era ladeada por arbustos selvagens, com flores compridas na cor laranja, intercaladas com plantas roxas e perfumadas, as quais lembravam lavanda, bem como com as familiares folhas pontiagudas e firmes das iúcas. Parecia mais frio ali, no cânion, e muito mais verde; como se o deserto tivesse concentrado por lá toda a sua suavidade e doçura.

Conversaram pouco enquanto caminhavam pelo centro do resort . Apolo não segurou sua mão, tampouco a fez passar o braço pelo dele. Quando falava com ela era educado, até mesmo espirituoso, porém a energia da paixão que estivera presente como uma parte quase tangível de tudo o que ele dizia ou fazia, desde que tinham se conhecido na pequena mesa da Adega Perdida, se fora. Ou então se encontrava bem disfarçada, o que Pamela sentiu profundamente.

Pensou no que Eddie havia dito, e na forma como o rosto do escritor se transformava sempre que seu olhar repousava sobre Ártemis. O homem sabia do grande risco de se ferir que corria, mas acreditava que o que iria ganhar era mais valioso do que aquilo que ele poderia perder.

Não há garantias no amor, Pamela. Apenas infinitas oportunidades... para a dor e para a felicidade.

Era um conceito novo e assustador , pensou Pamela, porém ela nunca fora uma covarde. Raras eram as vezes em que tomava o caminho mais fácil.

Apolo encontrou a placa em forma de seta, em que se liam as palavras esculpidas: “First Creek Canyon”.

— Eu profetizo que First Creek Canyon é por aqui!... — bradou com a mão sobre a têmpora, dramático.

— Cuidado... — Pamela sorriu para ele. — Pode ser atingido por um raio ou algo assim.

— Por Zeus — Apolo grunhiu.

— Acha que está em apuros com ele?

— Estou com medo de que Ártemis e eu tenhamos muito a explicar. Ele é nosso pai e nos ama, mas, apesar disso, o Deus do Trovão não vai ficar nada contente por termos nos permitimos ficar presos no Reino de Las Vegas.

— Ahn... Vegas não é bem um reino. É apenas Las Vegas, uma cidade localizada no estado de Nevada. Assim como Roma é uma cidade da Itália.

Mais ou menos isso , pensou Pamela, não querendo dar início a nenhuma aula de Geografia dos Estados Unidos da América.

— Las Vegas não é um reino?

— Definitivamente, não.

Caminharam vários passos pela trilha de terra vermelha antes que Apolo falasse outra vez.

— Devo parecer um idiota para você, chamando Las Vegas de reino, ficando enjoado, cortando-me ao fazer a barba, não sabendo o que é protetor solar... — resmungou sem olhar para ela.

— Não tanto quanto eu se, de repente, me visse no meio do Olimpo.

Ele olhou para ela.

— Você foi para o Olimpo e não fez papel de tola.

— Não. — Ela suspirou. — Estava muito ocupada sendo enfeitiçada por sua irmã e, em seguida, me transformando em uma flor.

Apolo parou e a fitou. Ergueu a mão, como se quisesse tocá-la, mas não prosseguiu com o gesto. Ao contrário, cerrou o punho e deixou cair o braço ao lado do corpo.

— Sinto vergonha do que aconteceu lá. Eu devia ter sido capaz de protegê-la. Minha única defesa é que esta emoção, essa paixão, é nova para mim. Acho que... — ele fez uma pausa, o olhar encontrando e capturando o dela — ... acho que fico meio perdido.

Pamela respirou fundo.

— Eu sei exatamente o que quer dizer.

A expressão de Apolo se transformou, contudo ele não disse nada mais do que:

— Verdade?

— Verdade. — Ela começou a andar outra vez. Queria se abrir com ele, precisava se abrir com ele, mas não podia fazê-lo sem estar em movimento.

— Eu já lhe disse que fui casada, e que foi um casamento ruim.

— Sim.

— Quero que saiba por que foi tão ruim. Então, acho que vai compreender por que tem sido tão difícil para mim. Por que tenho resistido tanto em amar você.

— Estou ouvindo.

— Eu conheci Duane quando estava na faculdade. Ele é dez anos mais velho do que eu, e já era um profissional bem-sucedido. Eu o considerava bonito e inteligente, e ele parecia tão gentil... Parecia querer cuidar de mim. Compreendo agora que não me apaixonei por quem ele era; eu me apaixonei pelo sonho de vida que supostamente poderíamos ter juntos. Mas amor é amor... — ela encolheu um ombro, como se tentando se livrar da incômoda admissão — ... e nos casamos no mês em que me formei na faculdade. Do dia do nosso casamento em diante, as coisas mudaram. Compramos uma casa juntos. — Pamela riu, sem-graça. — Não. Apague isso... Duane comprou a casa. E insistiu que seria melhor se esta ficasse apenas no nome dele. Disse que seria mais rápido e fácil... assim como quando me deu um carro novo, um “presente” com que me surpreendeu. O carro também ficou no nome dele. Eu me lembro de um dia, mais ou menos uma semana depois do nosso casamento. Ele estava fora da cidade e me telefonou. Gostava de me telefonar várias vezes por dia... — Ela fez uma pausa. Apenas a lembrança da constante perseguição de Duane, de como ele vivia mandando parentes ou alguém de seu restrito grupo de amigos para “lhe fazer companhia” — de modo que sempre soubesse onde ela se encontrava e o que estava fazendo —, a deixou irritada e deprimida. Suas botas pisaram a trilha de pedregulhos com mais determinação enquanto ela aumentava o ritmo na tentativa de desafogar a antiga frustração. Aquilo tinha sido no passado, lembrou a si mesma. Ela sobrevivera e nunca mais permitiria que acontecesse de novo.

Apolo observou em silêncio enquanto Pamela lutava com as próprias emoções, revivendo o que o passado lhe causara. Queria ajudá-la, queria livrá-la da mágoa, mas sabia que o passado era um campo de batalha em que cada um precisava lutar sozinho. Se Pamela não conseguisse exorcizar seus demônios, para sempre estes assombrariam seu futuro. O futuro deles.

— Enfim... — ela continuou. — Naquele dia, Duane perguntou o que eu estava fazendo, como sempre fazia, e eu disse que pretendia pendurar um quadro novo. Eu nunca vou me esquecer de como a voz dele se alterou: “Não acha que eu gostaria de estar aí quando fizesse isso?”, exigiu de repente. Eu nem imaginava que pendurar um quadro sem ele era grande coisa... Mas era. Estávamos casados havia menos de um mês, e foi nesse dia que comecei a me sentir uma prisioneira. — Ela não conseguiu conter um arrepio.

E tinha ficado pior. Muito pior. Ela quase desistira e deixara Duane consumi-la, mas, em algum lugar dentro dela, encontrara forças para lutar. Lenta e silenciosamente, havia batalhado para crescer na carreira e, em segredo, arrumado dinheiro, de modo a poder prosseguir sem ele. As pessoas pensavam que deixar alguém que cometia abusos era uma questão de coragem. Pois ela sabia o quanto estavam enganadas. Para deixar alguém assim era preciso ter um plano, e depois ter os meios para prosseguir com ele. Seu plano incluíra um bom advogado e um negócio próprio.

Pamela endireitou a espinha e terminou sua história:

— Não quero entrar em detalhes. Basta dizer que Duane continuou me sufocando por quase sete anos antes que eu conseguisse me livrar dele. Depois se passaram mais quase dois anos antes que ele parasse de me telefonar, de aparecer nos lugares em que, sabia, eu frequentava. Estava sempre lá... sempre presente, esperando, como se eu fosse uma criança perdida que logo perceberia a bobagem que havia feito e fosse querer voltar para casa. — Ela olhou para Apolo. — Ele só me deixou em paz nestes últimos seis meses.

— Ele magoou você. — A voz de Apolo soou baixa e contida, enquanto ele imaginava o que gostaria de fazer com aquele tal Duane depois que seus poderes imortais retornassem.

— Sim, ele me magoou, mas não é isso o que ainda me afeta. A dor morreu com o amor. O que sobreviveu foi a insegurança, e eu nem a percebi. Namorei Duane por quase dois anos. Se alguém tivesse me dito, em qualquer momento antes de nos casarmos, que aquele homem tão maravilhoso, tão perfeito, era na verdade uma pessoa vingativa, que mal controlava a raiva, que tentaria me aprisionar numa gaiola, me humilhar e me transformar numa mulher assustada, numa sombra de mim mesma, eu teria rido. Jamais teria acreditado. Duane fingiu ser algo que não era para me aprisionar, e eu não me dei conta disso — Pamela terminou num sussurro.

— A farsa de que falou na noite em que assistimos à dança das fontes... Era seu casamento.

Ela assentiu com um gesto de cabeça.

— E, quando descobriu que eu era Apolo disfarçado de Febo, pensou que tinha cometido outro erro ao se entregar a mim.

— Não foi só isso. Você foi o único homem com quem estive desde Duane. Venho trabalhando, mantendo-me ocupada e... — Ela se interrompeu, sem ter certeza do que dizer.

— E tem evitado o amor — Apolo terminou por ela.

Pamela lançou-lhe um olhar rápido, de soslaio.

— Sim.

— O que tornou o meu subterfúgio ainda mais preocupante.

— Sim — ela assentiu novamente.

Apolo ponderou sobre o que Pamela havia dito enquanto percorriam a trilha sinuosa em silêncio. Estava claro agora por que ela se esquivara tanto dele, e por que não pudera admitir seu amor até estar sob a influência do poder inebriante de Ártemis. Como era surpreendente — e bom — perceber que sua reticência tinha mais a ver com o passado do que com ele!... Suspeitava até de que ser um deus fazia menos diferença para Pamela do que o fato de ele não ter sido honesto com ela.

Fizeram uma curva repentina na trilha e então subiram uma colina íngreme, indo parar no topo de um bloco de rocha cor de areia, desgastado pelo tempo, do centro do qual brotava uma cachoeira que derramava suas águas em uma lagoa grande e límpida.

— James estava certo. É o local perfeito para um piquenique! — entusiasmou-se Pamela, olhando ao redor enquanto enxugava o suor do rosto com a manga. O calor do deserto era menor no cânion, mas, ainda assim, a caminhada fizera uma camada de suor cobrir a ambos. Pamela respirou o ar refrescado pela água e ergueu o rosto para sentir a brisa que se erguia da lagoa.

— Tenho a sensação de que James está sempre certo — observou Apolo. Em seguida fez um gesto na direção de uma rocha plana, encarapitada ali perto. — Vamos nos sentar um pouco?

A subida tinha servido para ajudá-la a se livrar de grande parte da tensão que falar sobre o passado provocara nela, e Pamela sentou-se na pedra aquecida pelo sol, dobrando as pernas sob o corpo. Olhou para a lagoa cintilante, permitindo que o som e o cheiro da água lhe acalmassem os nervos. Apolo se acomodou a seu lado, perto o suficiente para que ela sentisse o calor de seu corpo, mas não chegou a tocá-la.

— Não vou lhe dizer que compreendo o que sente. Não. Como eu poderia? Não consigo entender por que um homem gostaria de aprisionar uma mulher. Eu tenho defeitos, mas querer dominar e controlar as mulheres não é um deles. — Ele apontou para a medalha dourada com a própria imagem, que ainda pendia entre os seios de Pamela. — Lembre-se de que, o que quer que aconteça entre nós dois, prometi protegê-la. Pode relaxar agora. Esse Duane não irá assediá-la de novo.

— Obrigada — ela murmurou —, mas prefiro arrumar a minha própria bagunça sozinha.

— Agora está parecendo minha irmã...

— Vou tomar isso como um elogio, ainda que assustador.

— Era para ser um elogio. — Apolo sorriu.

Pamela encontrou seu olhar, devolveu o sorriso, e ele pensou o quanto amava aquele rosto. Era tão sincero, e as emoções de Pamela, tão claras... Poderia olhar para aquele sorriso para sempre.

Surpreso, percebeu que ela havia se tornado seu Sol.

O Deus da Luz engoliu com dificuldade, então, sentindo a garganta seca. Ele a amava demais, e aquilo dava a Pamela um poder sobre ele que era assustador. Se ela lhe desse as costas...

Desviou o olhar do dela, recolhendo os pensamentos e dominando as emoções. Se Pamela lhe desse as costas, ele iria deixá-la partir. Não iria assombrá-la como fizera o tal Duane.

Apertou o maxilar. Ela não o havia abandonado ainda. E o amava. Ele sabia que sim.

Virou-se sobre a rocha, de modo a encará-la, e falou lenta e claramente:

— Não entendo esse Duane, nem o que foi para você viver sob seu controle e lutar por sua liberdade, mas, desde a primeira noite em que nos conhecemos, reconheci em seus olhos uma emoção que compreendi por completo. Sei bem o que é desejar mais e sentir-se incompleto... Mas e se o nosso destino for ficar juntos? E se tudo o que aconteceu em nossas vidas teve um propósito, o de nos preparar um para o outro? Eu sou um deus, um dos Doze Olímpicos. Quem pode saber o quão intrincados são os fios que tecem as Parcas?... — Os olhos de Pamela se voltaram para os dele, e Apolo escolheu as palavras com cuidado: — Eu já existo há muito tempo e vivi a maior parte da minha existência para as paixões e para a frivolidade. Mas também tenho muita coisa boa... Levei a cura, a música e a luz para o Mundo Antigo, ainda que só tenha me dado conta disso mais tarde. Eu sempre ansiei por mais. Tentei saciar essa fome como muitos homens fazem, sejam eles mortais ou imortais. Amei e lutei em excesso... Era como se eu estivesse tentando preencher um vazio sem fim dentro de mim.

— Apolo, eu... — Pamela começou, contudo ele balançou a cabeça.

— Não. São coisas que precisa saber. Eu não vou fingir para conquistá-la. Não quero falsidade entre nós. Você tem que me ver como eu sou, se pretende me aceitar. Eu disse que não conhecia o amor até encontrá-la, porém é mais do que isso. Eu não acreditava na existência do amor, afinal, vivi eras sem ele. Por outro lado, experimentei todos os tipos de prazer da carne. Para mim, o amor não passava de um embuste a que os mortais se apegavam, e o Deus da Luz não via utilidade em tal farsa. Eu não conseguia senti-lo. Eu não precisava disso. Não acreditava nisso. — Apolo fez uma pausa e, por fim, se permitiu tocá-la de leve enquanto afastava uma mecha escura de seu cabelo curto e bri lhante. — Então, algo aconteceu para mudar a forma como eu via a minha vida e o meu mundo. E aconteceu antes de eu conhecer você. O que sabe sobre o deus Hades?

Pamela respondeu à repentina pergunta, surpresa:

— Não é o Deus do Submundo ou algo assim?

Apolo sorriu, desejando que o amigo pudesse ouvir a resposta dela.

— Ele é o Senhor do Submundo. Mas o reino de Hades não é cheio de sofrimento e tortura, como a sua versão moderna do inferno. É um lugar incrivelmente bonito. Eu sei, porque já fui até lá muitas vezes.

— Você vai para o inferno?!

Apolo riu.

— Vou para o opulento palácio de Hades, que fica na extremidade dos Campos Elísios. Você iria gostar de Hades... Vocês dois têm muito em comum. Ele mesmo projetou e construiu seu palácio.

— É como o Caesars Palace? — Pamela indagou, irônica.

— Nem um pouco. Eu lhe dou minha palavra.

— É bom saber...

— Mas eu não mencionei Hades por conta de suas habilidades com design , e sim por conta da maneira como ele e eu nos tornamos amigos. Minha amizade com o Deus do Submundo surgiu por causa da esposa dele.

— Espere! Eu me lembro dessa história... Hades é casado com Perséfone. — Em seguida,

Pamela enrugou a testa. — Mas ele não a raptou e a fez se casar com ele por engano?

— Duvido que alguém pudesse sequestrar Lina.

— Lina? Então ele não é casado com Perséfone?

— Hades é casado com sua alma gêmea. E sua alma gêmea é nada mais, nada menos do que uma mortal vinda de um lugar de seu Mundo Moderno chamado Tulsa. O nome dela é Carolina Francesca Santoro.

— Tulsa? A de Oklahoma?! Como isso é possível? E quanto a Perséfone?

— É uma história longa e complicada. Perséfone e Lina trocaram seus corpos e identidades. O que começou com uma manipulação, por uma força externa — no caso, a mãe de Perséfone, Deméter —, terminou com Hades encontrando sua alma gêmea em Lina. Mas como eles descobriram um ao outro não é importante. O importante é o que eu vi acontecer com Hades depois que ele se permitiu amar.

— Hades não queria amar uma mortal? — Pamela indagou.

Os lábios de Apolo esboçaram um sorriso.

— Hades não queria ninguém, fosse mortal ou imortal. Ele tinha rejeitado o amor, eliminado a possibilidade de este acontecer em sua vida. Escolheu suas tarefas — o trabalho, como diz — em vez disso.

— Parece que nós dois temos, mesmo, muito em comum — Pamela concordou baixinho.

— Sim, só que ele teve mais tempo do que você para aperfeiçoar sua escolha. Precisava ver o que uma vida sem amor estava fazendo com ele, Pamela... Hades havia se tornado a sombra de um deus, vivendo uma existência vazia, sem qualquer emoção.

— Mas ele estava seguro — Pamela sussurrou. — Ele não se sentia magoado.

— Tem razão. Ele não se magoava. Não sentia nada. Eu disse que ele e eu ficamos amigos por causa de sua esposa... Isso porque o amor por Lina o transformou; despertou algo dentro dele. Hades passou de uma criatura fria, sem senso de humor, para um deus vibrante. E o amor daqueles dois também me fez mudar. Eu o vi acontecendo e, conforme fui testemunha disso, comecei a perceber o que tinha passado uma eternidade buscando. — Apolo fez uma pausa e tomou a mão de Pamela na dele. — Hades diz que Lina é sua alma gêmea e que, ao encontrá-la, ele encontrou seu lugar no mundo. Ironicamente, foi o Senhor dos Mortos que me mostrou como eu gostaria de viver. — Levou a mão dela aos lábios. — O que vi nos seus olhos foi essa mesma fome que eu sentia na alma antes de você entrar na minha vida. Nossas almas são como espelhos, Pamela, porque você é a minha alma gêmea. O que quer que tenha acontecido em nossas vidas antes disso acabou nos preparando um para o outro. Eu não sou mais o deus sem coração, incapaz de cuidar de qualquer coisa exceto do próprio prazer. E não é mais a jovem ingênua que preferia amar uma fantasia a um homem de verdade.

— Se eu ainda conseguisse aceitar isso!... — murmurou Pamela.

— Não isso , minha doce Pamela, a mim . Você só precisa me aceitar.

Ela fitou os olhos azuis e respirou fundo.

— Eu já te aceitei. Só não sei o que fazer agora.

Então Pamela sorriu para ele. Aquele sorriso aberto e honesto que ele tanto amava.

Apolo sentiu uma onda de alegria. Ela era sua alma gêmea! Mortal ou imortal, para ele, Pamela seria sempre sua parceira, seu amor, sua própria Deusa da Luz. O brilho de seu sorriso rivalizava com qualquer coisa que seu poder imortal pudesse produzir.

Segurou seu rosto entre as mãos.

— Agora apenas me beija. — Ele se inclinou e roçou os lábios nos dela. — Em seguida, damos conta da comida excelente que James mandou preparar para nós. — Beijou-a de novo, desta vez mordiscando-lhe o lábio inferior. — Depois, acho que vamos fazer amor nessa lagoa, aí embaixo... — Desta vez, o beijo durou tempo suficiente para fazer Pamela suspirar baixinho e se encostar nele. — E, esta noite, quando voltarmos para a estalagem, vamos ficar nos braços um do outro... — Apolo brincou com a boca macia novamente, pensando que esta era como um vinho doce, ainda que bem mais inebriante. — E amanhã...

— Sshh... — Pamela o interrompeu, deslizando para seus braços e colando o corpo ao dele. Não iria pensar na eternidade que os aguardava naquela noite. Iria pensar apenas nele. — Não acha que poderíamos pular a parte do piquenique e ir direto para a água, fazer amor?...

Apolo riu, feliz, depois se levantou e a ergueu nos braços. Beijou-a com paixão uma vez mais, depois tornou a colocá-la no chão e fez uma breve mesura.

— Já que insiste... — elaborou com um sorriso radiante.

Desta vez, foi Pamela quem pegou a mão dele e a levou aos lábios antes de puxá-lo pelo caminho que conduzia até o nível do pequeno lago.

— Espere! — pediu, após apenas alguns metros. — Vou pegar a cesta de piquenique. Tenho a impressão de que vamos estar com um apetite gimenso depois. Até porque... — ela sorriu por cima do ombro enquanto corria de volta pela trilha até a borda da rocha e se inclinava para apanhar o cesto onde Apolo a tinha deixado. — Não podemos desprezar o trabalho que James teve para...

O barulho de chocalho cortou suas palavras, e Pamela ficou imóvel e fria como a pedra. De algum lugar de sua mente veio o pensamento que o ruído se parecia mais com o chiar de uma carne fritando do que com o do brinquedo de criança segundo o qual ele fora denominado.

Uma terrível sensação lhe comprimiu a boca do estômago, e ela precisou lutar contra uma onda de vertigem quando seus olhos seguiram o caminho do som e pousaram na cobra enrolada ao lado da cesta de piquenique, a apenas alguns centímetros de sua mão estendida.


Capítulo 28


Apolo soube que algo estava errado antes mesmo de ver a serpente. Pamela congelara no meio da frase e, em meio ao silêncio que se fizera entre eles, ele pudera ouvir o aviso mortal da víbora.

A reação do deus foi instantânea. Apolo avançou com a mão estendida, concentrando todos os seus poderes imortais para destruir o que ameaçava seu amor.

Mas nada aconteceu, e ele amaldiçoou a si mesmo por ser um deus fraco e impotente.

Não! Não era fraco... O problema era que, no momento, ele não passava de um homem comum. E era como homem que ele deveria proteger Pamela.

Tão rápida e silenciosamente quanto lhe foi possível, postou-se atrás dela. A cobra se encontrava enrolada em uma espessa e tensa corda. Sua cabeça triangular estava erguida, e os olhos em forma de fenda miravam a mão de Pamela, tão perto e vulnerável a seu bote.

— Quando eu der o aviso, pule para o lado — ele falou numa voz calma e controlada.

O chocalho da cobra aumentou, e Pamela abriu a boca para protestar, pedir que ele se afastasse, gritar, qualquer coisa... mas já era tarde. Apolo já se movia. Ele a empurrou de lado e, com uma rapidez sobre-humana, foi ao encontro do bote da serpente.

Pamela gritou ao ver a víbora afundar as presas na parte carnuda da mão dele. Em seguida, deixando escapar uma antiga maldição, o Deus da Luz agarrou o corpo grosso do animal com a outra mão e puxou a serpente, arrancando-a dele. Antes que o réptil pudesse atacar de novo, girou o corpo e arremessou a cobra, de modo a bater sua cabeça como um chicote mortal contra o rochedo, e esta explodiu em um banho de sangue.

Ainda assim, o Deus Sol não ficou satisfeito. Bateu o bicho seguidas vezes contra a pedra, depois atirou seu corpo sem vida por sobre a borda do penhasco, dentro da lagoa lá embaixo.

Apolo tomou fôlego e virou a cabeça em busca de Pamela. Ela se encontrava agachada, não muito longe dele, os olhos arregalados pelo choque.

— A cobra a feriu?

— Não... — Pamela balançou a cabeça, trêmula.

Uma onda de alívio o inundou pouco antes de uma dor lancinante fazê-lo cair de joelhos. Sua mão! Ele nem sequer sentira a picada da víbora!... Apenas uma fúria cega e a necessidade de proteger Pamela.

Virou a mão que ardia. A dor varria seu braço a partir de duas perfurações que sangravam perto de seu pulso, abaixo do polegar.

— Deixe-me ver isso... — Pamela se pôs de joelhos a seu lado, buscando a cesta de piquenique às cegas. Tinha o rosto pálido, e suas mãos tremiam, porém sua voz soou firme. Apolo estendeu a mão, e ela prendeu a respiração. — Ah, meu Deus... Eu sabia que ela o havia pegado! — Olhou para o rosto moreno, protegendo a mão cheia de sangue junto ao corpo enquanto tateava dentro do cesto. — O que está sentindo?

— Fogo — ele falou apenas, surpreso ao descobrir que lutava por ar. Tentou rir, porém o riso saiu como um gemido. — É como se este lado estivesse em chamas.

— Você vai ficar bem. Você vai ficar bem... Aqui... Sente-se e se recoste na pedra. — Ela o orientou, segurando seus ombros, até que os descansou na pedra lisa antes de quase cair para trás, de joelhos, dizendo a si mesma o tempo todo que precisava manter a calma. Não podia entrar em pânico. — Mantenha-se sentado. — Pamela o fez descansar a mão ferida, com a palma para cima, sobre a coxa, tentando desesperadamente se lembrar de tudo o que já tinha ouvido falar sobre acidentes com ofídios peçonhentos. Ve a forçara a ler um artigo, não muito tempo antes, sobre segurança no alpinismo. Pense!... — Deixe a mão abaixo do nível do coração — disse a Apolo, que assentiu com um fraco gesto de cabeça. Em seguida, ela voltou toda a atenção para a cesta. — Onde está o maldito celular?... — falou por entre os dentes que continuavam batendo. — Ah!... — Aliviada, digitou depressa: estrela, sessenta e dois. — Vamos... Vamos! ... — murmurou, aflita. Olhando dentro do cesto, tirou dele duas garrafas de água. Enquanto falava ao telefone, abriu uma delas e a entregou a Apolo, que bebeu metade desta em um só gole. — ... Sim, é Pamela Gray! Sou hóspede de E. D. Faust. Meu assistente e eu estamos na parte superior da lagoa, no First Creek Canyon, e ele acabou de ser picado por uma cascavel! — falou rápida e claramente, como se não estivesse à beira do pânico.

— Tem certeza de que era uma cascavel, senhora? — o atendente perguntou em uma voz calma e profissional.

— Sim, tenho certeza! Cabeça triangular, corpo marrom rajado, chocalho...

— Vou enviar uma equipe de primeiros socorros agora mesmo, srta. Gray.

Ela pôde ouvir os cliques e chiados do rádio do atendente ao fundo. Em seguida, ele disparou a fazer perguntas mais específicas:

— Onde a vítima foi picada?

— Na mão direita. Abaixo do polegar, perto do pulso.

— Certifique-se de que o rapaz permaneça sentado ou deitado, e que sua mão esteja abaixo do nível do coração.

— Já fiz isso.

— Ele está consciente?

Os olhos de Pamela encontraram os de Apolo.

— Sim! — ela afirmou.

— Está com muita dor?

— Sim, ele diz que parece fogo... — A voz dela falhou.

— Pamela, é muito importante que você o mantenha calmo. Não deixe que ele entre em pânico. Ele precisa ficar o mais quieto possível.

— Compreendo. — Controle-se! , ela ordenou a si mesma. Se ela desmoronasse, Apolo não teria mais ninguém com quem contar.

— Muito bem. Tem água aí?

— Sim.

— Lave o ferimento, mas tome cuidado para não mover demais a mão ou o braço dele.

— Vou fazer isso... espere. — Ela colocou o telefone no chão e apanhou a outra garrafa de água. — A ajuda está a caminho, Apolo, mas a ferida precisa ser lavada imediatamente. Espero que não doa... Precisa ficar o mais quieto possível, por isso, se doer, tente não mover o braço.

— Faça o que tem de fazer. Eu não vou me mexer.

Quando Pamela segurou a mão dele com cuidado, Apolo fechou os olhos. Ela despejou a água engarrafada sobre as marcas profundas das presas, e o único movimento do deus foi o de sua profunda respiração.

Pamela limpou a água tingida de sangue das mãos no short e pegou o telefone.

— Pronto! O que mais?

— Remova qualquer anel, pulseira ou relógio que ele estiver usando.

— Ele não está usando nada.

— Ótimo. Agora, tudo o que pode fazer é mantê-lo calmo e ajudá-lo a se recuperar do choque.

— Não preciso fazer um torniquete ou algo assim?

— Não, a picada está muito próxima da articulação do punho. Mantê-lo calmo e cuidar para que ele não perca o calor do corpo irá ajudá-lo mais. E não deixe que ele durma! Sua pulsação pode se acelerar ou ele pode ter dificuldade para respirar. Também pode ter convulsões ou até mesmo perder a consciência. O veneno da cascavel é muito doloroso... Esteja preparada para sua reação à dor.

— Quando os paramédicos vão chegar aqui? — Foi difícil para Pamela falar em meio ao medo que lhe comprimia o peito.

— Estarão aí em menos de vinte minutos. Fique calma, srta. Gray. Uma picada de cascavel é grave, mas não necessariamente fatal.

Ela sentiu uma pontada no coração ao ouvir a palavra “fatal”.

— Eu... Eu estou me sentindo... — Apolo começou, mas parou e se inclinou para o lado, os olhos revirando.

— Preciso desligar! — Pamela disse ao atendente antes de jogar o telefone de lado e pular na direção de Apolo. — Não! — gritou, endireitando-o de volta contra a pedra. — Não pode desmaiar! — Ela o tocou no rosto e sentiu a pele quente. — Não me deixe!

Os olhos de Apolo reviraram mais uma vez, depois ele os abriu por completo. Piscou, como se com dificuldades para focar o rosto dela.

— Pamela... — disse baixinho.

— Apolo, fique comigo! — ela ordenou. Revirando a cesta, apanhou um guardanapo de linho, molhou-o com um pouco da água que restara na garrafa e enxugou o suor do rosto dele com cuidado.

— Isso é bom — ele murmurou. — Frio... bom. — Fez uma careta quando outra onda de dor que parecia lava se arrastou por seu braço. — Então é isso o que se sente quando se é queimado... Não é irônico que tenha acontecido justo comigo? — indagou, ofegante.

— Vai dar tudo certo — afirmou Pamela, enxugando-lhe a testa. — Os paramédicos vão chegar a qualquer momento e trarão o antídoto. Você vai ficar bem. Tem que ficar bem.

Apolo piscou outra vez, tentando limpar a visão.

— Está chorando. — Ele tentou enxugar as lágrimas do rosto delicado com a mão boa, mas a deixou cair de volta ao lado do corpo. — Não chore, doce Pamela... Eu já disse que o Submundo Grego é um lugar de rara beleza. Assim como você é uma mulher de rara beleza, minha alma gêmea.

— Não me fale sobre Submundo! — Lágrimas rolaram em silêncio pelo rosto de Pamela. — Você não pode morrer. É Apolo, o Deus da Luz!

— Nesse momento, o Deus da Luz não passa de um mortal. — Ele fez uma pausa. Sua respiração ofegante tornava difícil falar, e o fogo em seu braço se espalhava rapidamente. Ele podia senti-lo se agarrando a seu ombro e derramando como óleo quente em seu peito. — Pamela, escute... Hades me contou que almas gêmeas sempre se encontram. Vida após a vida, elas voltam a ficar juntas. Lembre-se disso... — O ardor no peito dele pareceu explodir, e seu rosto convulsionou com a dor. Conforme se contraía inteiro, Apolo fechou os olhos contra a agonia e mergulhou na escuridão.

— Nãão! — gritou Pamela. E, com as mãos tremendo tanto que ela mal podia controlá-las, tocou-o no rosto. Segundos antes, este estivera quente; agora estava frio e úmido! Desesperada, ela procurou pela pulsação de Apolo e não encontrou nada.

Não... Aquilo não podia acontecer daquela maneira! Não podia permitir que acontecesse assim!

Pamela se levantou e pendeu a cabeça para trás, gritando sua fúria para os Céus.

— ZEUS! Seu filho está morrendo!... Onde você está? Salve-o! Abra o seu bendito portal e leve-o para casa!... Que tipo de pai é, afinal?

Acima dela, o ar tremeluziu de repente e, em seguida, como a dobra de uma cortina invisível sendo aberta, uma parte do céu se entreabriu. Um rapaz atravessou a abertura, pairando sobre ela. Vestia uma túnica curta, muito parecida com a que Apolo usava na noite em que eles tinham se conhecido, e sandálias douradas, com asas batendo nos calcanhares — iguais as que adornavam seu chapéu em forma de capacete e a varinha de cristal que ele segurava. Seu cabelo curto e encaracolado era de um loiro-platinado, e seu belo rosto parecia ligeiramente divertido.

— O quê? Ficou sem palavras agora que seu grito sacudiu o Olimpo?...

Pamela estreitou os olhos, reconhecendo o mesmo tom arrogante que tinha ouvido inúmeras vezes na voz de Ártemis.

— Em primeiro lugar, salve-o! — exigiu. — Então estará livre para me intimidar.

O deus ergueu as sobrancelhas, surpreso.

— Tem ideia de com quem está falando, mortal?

— Sim! — ela cuspiu a palavra, frustrada. — Com esses pés que voam só pode ser Hermes. Mas podemos discutir isso mais tarde... Salve Apolo agora!

O deus bufou, indignado.

— Impertinente! — Olhou para o corpo inerte de Apolo e balançou a cabeça, desgostoso. — Aposto que ele a tem mimado.

Pamela teve vontade de agarrar o deus pelo pescoço.

— Não precisa ficar tão preocupada... Zeus não deixaria que Apolo morresse. — Enquanto falava, Hermes acenou com a varinha de cristal na direção de seu semelhante, e a luz derramou sobre o corpo do outro deus como num show pirotécnico do dia da independência dos Estados Unidos.

No instante em que a primeira faísca tocou Apolo, seu peito se inflou numa longa tomada de ar, e seus olhos se abriram. Ele olhou em volta, confuso, mas, quando seu olhar encontrou Hermes, o deus franziu a testa.

— Eu sei, eu sei... — O deus que pairava falou. — Estava esperando por Hades, Caronte ou outra figura tão triste quanto.

— Eu já expliquei que Hades é meu amigo... Veja como fala dele! — A voz de Apolo soou áspera, como se ele estivesse com a garganta seca. — O que está fazendo aqui, Hermes?

— Sendo subestimado. — O jovem deus fez um gesto delicado na direção de Pamela. — Sua mortal gritou por Zeus... Parece que estava morrendo — completou com um entediado suspiro.

— E Zeus o enviou — concluiu Apolo.

— É claro que Zeus me enviou. Seu pai está com raiva de você e da deliciosa Ártemis, mas dificilmente permitiria que perecessem.

De repente, Pamela sentiu os joelhos fracos e se sentou ao lado de Apolo que, no mesmo momento, a puxou para junto dele. Ela teve vontade de soluçar de alívio com a força que sentiu no braço que ele passou ao seu redor.

Hermes observou o óbvio carinho de Apolo pela mortal e decidiu que o Deus da Luz tinha mais com que se preocupar do que apenas a raiva de seu pai. Quando um deus amava uma mortal, sempre havia um preço a ser pago.

— Deve saber que, embora Zeus não fosse tolerar a sua morte, decidiu que precisa aprender uma lição por tê-lo desobedecido. Sua ferida não vai matá-lo, tampouco irá danificar seu corpo. Contudo seu pai permitirá que sinta a dor do veneno... Toda a dor do veneno — ele completou, alegre.

— Hermes, faria bem em se lembrar de que estou apenas temporariamente sem os meus poderes imortais... — A voz rouca de Apolo tornou-se clara e ameaçadora.

— Pelo visto também está temporariamente sem senso de humor — Hermes bufou. — No entanto, ainda não terminei de lhe passar a mensagem do Deus dos Trovões... Zeus irá abrir o portal ao pôr do sol da sexta-feira do mundo dos mortais. Quer que você e sua irmã se apresentem perante a ele logo em seguida. Já mencionei que o nosso Governante Supremo não está nada satisfeito?...

— Foi obra de Baco termos ficado presos aqui. Portanto, leve a seguinte mensagem de volta ao meu pai: diga-lhe que Ártemis e eu teremos muito prazer em confrontar o Deus do Vinho e seus malfeitos no Salão Nobre.

Hermes revirou os olhos claros.

— Zeus sabe tudo sobre Baco e seu ridículo plano de causar estragos divinos no Mundo Moderno, na tentativa de manter para si mesmo o reino mortal. Por isso mesmo decidiu fechar o portal de Las Vegas. Permanentemente. E com o corpulento Baco banido do Mundo Moderno como parte de sua punição.

Apolo apertou os dentes contra a dor que se abateu sobre seu corpo.

— Zeus vai fechar o portal? Mas ele não pode fazer isso. Isso significa que...

— Isso significa — Hermes interrompeu, afetado — que tem até sexta-feira para decidir se quer que a sua pequena mortal lhe faça companhia no Olimpo. A menos ... — Hermes enfatizou a palavra, batendo no rosto com os dedos numa simulação de dúvida — ... que prefira ficar aqui, como mortal. — O jovem deus estalou a língua. — E não parece que a mortalidade combina com você. — Em seguida, ainda pairando, Hermes sorriu, malicioso, e limpou as mãos, como se tivesse acabado de se livrar de uma incômoda tarefa. — Bem, já dei o recado e fiz minha boa ação do dia. Ouvi dizer que Afrodite está promovendo uma festa com jogos, e estou pensando em perder feio para ela...

Com um movimento dos pulsos delicados, o deus voador desapareceu no portal aberto no céu.

Apolo segurou a mão ferida contra o corpo e se moveu a fim de olhar para o rosto de Pamela. Suas faces estavam banhadas em lágrimas.

— Não chore, doce Pamela... Está tudo bem.

— Hermes estava dizendo a verdade? Você vai ficar bem mesmo? — ela indagou, enxugando o rosto molhado.

— Hermes é o mensageiro de Zeus. Ele é meio cínico, mas suas palavras são verdadeiras.

Pamela relaxou de encontro a ele, aliviada. De repente se endireitou, tomou o rosto de Apolo entre as mãos e o beijou com paixão.

Ignorando a dor lancinante no corpo, ele a beijou de volta, apertando o braço ao seu redor de modo a sentir a curva de seu seio e o quadril suave pressionado ao dele.

— Nunca mais me assuste desse jeito! — ela murmurou contra a boca bem-feita.

Começou a beijá-lo outra vez, mas parou de súbito ao ouvir o barulho de botas subindo rapidamente pela trilha. Endireitou a blusa e passou a mão pelo cabelo curto. — Eu devia estar tentando acalmá-lo...

Apolo conseguiu dar um sorriso.

— Você ouviu Hermes. O veneno não vai me matar, portanto pode me beijar, fazer qualquer coisa... quantas vezes quiser.

— Posso até aceitar a sua sugestão, sr. Deus da Luz. Só que mais tarde. Primeiro o mais importante. — Pamela se levantou e gritou na direção da trilha. — Aqui! Estamos aqui!

— Sim, senhorita! Estamos chegando! — alguém respondeu.

Ela olhou de volta para Apolo. Sua mão ensanguentada estava vermelha e já inchada.

— Imagino que vá ser meio difícil explicar a eles que o veneno não irá matá-lo; que apenas dói como o inferno.

O belo rosto de Apolo se contraiu quando outra onda de dor pulsou através de seu braço.

— Não dói como o inferno... É uma maldição dos infernos !


Capítulo 29


Pamela concluiu que dinheiro podia comprar muito mais do que qualquer coisa. Comprava atenção e um nível de preocupação fora do comum, embora ela estivesse gostando de fingir que os paramédicos teriam sido tão maravilhosos com qualquer pessoa, independentemente da carteira de seu patrão. Eles aplicaram o soro antiofídico por via intravenosa antes mesmo de tentar mover Apolo.

Deu um passo atrás e permitiu que eles trabalhassem em paz. Agora que sabia que Apolo não corria nenhum risco de verdade, podia apreciar a eficiência dos paramédicos enquanto eles limpavam, enfaixavam e imobilizavam a mão ferida, sem chorar histericamente ou se agarrar à mão boa do deus...

Ouviu a intensa discussão sobre como os sinais vitais de Apolo se mantinham satisfatórios, ainda mais após uma picada tão próxima a uma artéria. Sentiu o estômago se contrair outra vez e tentou obliterar a lembrança do momento em que não fora capaz de sentir o pulso do deus antes de Hermes aparecer.

— A cobra não devia estar carregada — um dos paramédicos concluiu enquanto ajudava Apolo a cobrir a pé a curta distância pela trilha até o jipe que fora convertido em ambulância.

O Deus da Luz, claro, se recusara a ser carregado em uma maca. Quando tentaram argumentar, ele insistira que poderia caminhar por conta própria, levantara-se e começara a andar a passos largos, direto para o veículo.

— Carregada? — repetiu Apolo.

— Sim, cobras venenosas podem controlar a quantidade de veneno que soltam ao picar. Você deve ter apenas assustado essa, mas não chegou a irritá-la, por isso ela inoculou uma dose pequena. Uma cascavel grande e enraivecida poderia ter lhe matado, ainda mais picando tão próximo da artéria principal, como aconteceu.

Pamela sentiu vontade de vomitar.

Apolo pareceu intrigado com a informação do paramédico, e a viagem de volta ao resort foi repleta de histórias sobre picadas de serpentes, das quais ela podia ter passado a vida sem tomar conhecimento. Por exemplo, até então ela não fazia ideia de que mais de oito mil acidentes com ofídios venenosos aconteciam nos Estados Unidos a cada ano e que, em média, atribuíam-se dez mortes a picadas de cobras. Também descobriu que os cavalos eram regularmente picados por serpentes, e que eles não costumavam se dar tão bem como os seres humanos nesses casos porque a maioria era picada no focinho quando abaixava as cabeças para investigar a cobra. E esse era, de longe, o local mais perigoso para uma picada, já que o inchaço resultante muitas vezes fechava ambas as narinas e causava sufocamento.

Pamela segurou a mão de Apolo e tentou, em vão, se concentrar em toda a conversa. Dez mortes causadas por acidentes com ofídios não lhe saía da cabeça.

— Senhor, sua irmã e o sr. Faust vão nos encontrar na frente da estalagem. De lá, eles seguirão conosco para o hospital — avisou um dos paramédicos enquanto o jipe atravessava o atalho de pedregulhos até o resort .

— Hospital? — Apolo franziu a testa e balançou a cabeça. — Posso assegurar que não há necessidade disso.

— Mas, senhor, a dose total de soro antiofídico leva várias horas para ser administrada e monitorada. É melhor que vá para o hospital e passe a noite em observação. Às vezes os sintomas do envenenamento levam horas para aparecer.

Apolo olhou pela janela do jipe e avistou Ártemis e Eddie em pé, ao lado da limusine.

— Leve-me apenas até ali — disse, apontando.

O paramédico franziu a testa, demonstrando sua reprovação, contudo o jipe seguiu a trilha e parou ao lado do enorme veículo. Antes que os médicos pudessem tocar as portas traseiras do carro, Eddie as escancarou, e uma Ártemis pálida subiu na carroceria. Ao ver o irmão com um cateter, uma cânula de oxigênio no nariz e a mão imobilizada e enfaixada, revirou os olhos e perdeu os sentidos após soltar uma exclamação digna de uma deusa.

— Que maravilha... — Pamela murmurou enquanto todos os paramédicos saltavam da ambulância e se juntavam ao redor da diva desmaiada.

— Ela nunca desmaiou antes! — disse Apolo, observando com curiosidade quando Eddie empurrou para longe os homens, ergueu Ártemis nos braços e a carregou para a pousada.

Os paramédicos só puderam correr atrás dele.

— Se é assim, para seu primeiro desmaio, ela fez bonito...

Apolo começou a rir e, em seguida, fechou os olhos contra nova pontada de dor no braço.

Pamela odiava o modo como seu rosto empalidecia e se contraía a cada vez que ele se movia demais.

— O que posso fazer?

Com os olhos ainda fechados, ele sacudiu a cabeça com força.

— Está bem. — Pamela suspirou, sentindo-se mais impotente do que nunca. — Bem... Sua irmã é, definitivamente, uma atriz e tanto — comentou, tentando manter o tom leve.

Após algumas inspirações, Apolo abriu os olhos e esboçou um sorriso.

— É mesmo.

— Está doendo como uma maldição dos infernos ?... — ela indagou, condoída.

— Sim, mas posso afirmar que estou contente por os paramédicos terem ido atrás de Ártemis. Não quero ir para o hospital, Pamela. Posso tolerar a dor que meu pai decretou ser o meu castigo. Não suportaria ser mais picado e revirado por estranhos. — Ele apontou o queixo na direção do cateter que lhe saía do braço.

— Então vamos ver o que a influência de E. D. Faust pode fazer para que seu excêntrico convidado seja tratado por aqui — ela decidiu, tirando o cateter de oxigênio do nariz de Apolo e desenganchando o saco de soro do suporte. — Ainda bem que sou viciada em ER , aquela série da TV... — Ela o estudou, preocupada. Não tinha notado as linhas de tensão em seu rosto. — Está sofrendo muito, não é?

— Zeus foi fiel à sua promessa. Estou tendo todos os sintomas da picada de cobra. — Ele moveu o ombro direito e depois se encolheu, como se a dor tivesse lhe subido pelo braço.

— Venha, vamos lá para dentro e eu o acomodarei em seu quarto. Creio que eles não dariam analgésicos para uma vítima de picada de cobra, mas acho que tenho alguma coisa na minha caixinha de primeiros socorros que fará maravilhas. Depois de alguns comprimidos de Tylenol 3 e um copo de vinho, vai estar se sentindo mais relaxado e, com sorte, sem nenhuma dor.

— Tylenol 3? — ele indagou.

— Confie em mim — reafirmou Pamela.

Apolo resmungou e segurou a mão enfaixada junto ao corpo conforme eles desciam devagar da parte de trás do jipe, subiam pela calçada e entravam na estalagem — algo fácil de fazer, porque ninguém se preocupara em fechar a porta da frente.

Ártemis encontrava-se deitada languidamente em um dos sofás, a um canto, com Eddie ajoelhado a seu lado. Um paramédico media-lhe o pulso, outro movimentava um pequeno frasco diante de seu nariz.

— Ah! — ela protestou. — Leve essa coisa fedida para longe de mim!

— Calma, calma, minha deusa... — murmurou o escritor.

— Ei, está tudo sob controle — Pamela falou em voz alta, balançando a cabeça, desgostosa. — A vítima da picada de cobra está muito bem, obrigada...

Ártemis se levantou e seus olhos azuis se arregalaram; depois se inundaram de lágrimas conforme ela fitava Apolo por cima do sofá.

— Meu irmão! — exclamou. — Ah, meu pobre irmão!... — Oscilou, erguendo as mãos na direção dele.

Apolo foi até o sofá, e Eddie deslocou seu corpanzil de modo que o deus pudesse se sentar ao lado da deusa. As lágrimas escorreram dos olhos de Ártemis e, hesitante, ela estendeu a mão para tocar o curativo em torno da mão do deus.

— Disseram que uma serpente venenosa o havia atacado. Fiquei tão assustada! Pensei que fosse... — Ártemis se interrompeu, mordendo o lábio.

Apolo pôs o braço em torno da irmã e a deixou chorar em seu ombro.

— Está tudo bem. Já passou.

— Onde estou com a cabeça? — Eddie pareceu cair em si de repente. — Você devia estar a caminho do hospital! Urgente!

— Não! — retrucou Apolo. — Eddie, eu tenho um pedido a lhe fazer.

— Pode me pedir qualquer coisa que esteja dentro do meu alcance — prometeu o autor, solene.

— Faça que eu permaneça aqui até sexta-feira.

— Não! Precisa ser cuidado pelos melhores curandeiros que houver por aqui! — protestou Ártemis, parecendo prestes a desmaiar novamente a qualquer momento.

Enquanto todos se concentraram em, mais uma vez, acalmar a deusa, Pamela conseguiu capturar seu olhar e moveu a boca, esboçando uma única palavra: Hermes .

Ártemis piscou, surpresa, e fez cessar os próprios soluços.

Em meio ao intervalo na crise de histeria da deusa, a voz de Apolo soou calma e lógica:

— O veneno de cobra não me colocou em risco de morte. Até mesmo estes homens podem atestar que meus sinais vitais continuam firmes e fortes. Preciso apenas descansar, o que vou fazer melhor aqui do que em um lugar onde estarei cercado por estranhos.

Como uma criança confusa, Ártemis olhou para o irmão.

— Não vai ficar... defeituoso ? — ela usou a palavra como se esta lhe deixasse um gosto horrível na boca.

Pamela reparou que, mesmo com a mão ferida ainda apertada contra o corpo e sofrendo com dores terríveis, Apolo balançou a cabeça e sorriu para a irmã, tranquilizando-a.

— Não ficarei defeituoso coisa nenhuma.

Ártemis conseguiu controlar os soluços por tempo suficiente para segurar o braço de Eddie.

— Oh, por favor... Não o mande embora!

— Eu nem pensaria nisso — respondeu o homenzarrão, dando-lhe um tapinha na mão. — Transfiram o equipamento que for preciso para o quarto dele — ordenou aos paramédicos. — Vou chamar meu médico particular para atender Febo.

Admirada, Pamela viu os paramédicos se prontificarem a obedecê-lo, e Eddie puxou o sempre atento James de lado, a fim de lhe explicar quem deveria ser chamado, o que deveria acontecer, quando, como e por quê.

Como se estivessem no olho de uma tempestade, Pamela, Ártemis e Apolo tiveram sua privacidade assegurada por um momento.

— Hermes? — Ártemis perguntou a Pamela num sussurro.

Ela respondeu no mesmo tom baixo:

— Ele apareceu quando Apolo... — Pamela hesitou, olhou para o deus e o viu assentir de leve. — ... quando ele foi picado pela cobra — minimizou. — Hermes tirou o veneno do corpo dele, mas deixou a dor por ordem do pai de vocês.

— Precisamos comparecer perante Zeus logo após o anoitecer de sexta-feira. Ele decidiu fechar o portal em seguida. Permanentemente.

Pamela viu a surpresa no rosto da deusa. E, quando Eddie se apressou a se juntar a eles outra vez, quase teve a certeza de ter visto algo mais... Algo parecido com tristeza.

— Está tudo sendo arranjado, meu amigo — o autor falou a Apolo.

— Obrigado, Eddie. Vou me lembrar para sempre da sua bondade — declarou o deus, muito sério.

Eddie pôs a mão no ombro de Apolo.

— É um prazer seguir antigas regras. Na minha casa, o vínculo entre hóspede e anfitrião ainda é sagrado.

Apolo curvou a cabeça em reconhecimento.

— Se os deuses ainda escutam o Mundo Moderno, poderá ser abençoado por isso.

— Eu já fui abençoado — garantiu o homem, tomando a mão de Ártemis para levá-la aos lábios.


Capítulo 30


— Então a conclusão geral é que a cobra o mordeu com pouco ou nenhum veneno — comentou Pamela, sentada ao lado de Apolo na cama. — Meus parabéns... Enganou a todos.

Ele mudou de posição, impaciente, e moveu o ombro direito.

— Achei que eles nunca fossem embora.

— Ei, eu gostei do médico de Eddie...

— O dr. Kevin Glenn era jovem demais e inteligente demais. Ele sabia que eu estava escondendo alguma coisa; estava escrito em seus olhos. Mas não sabia dizer o quê.

— Isso porque não é tão bom ator quanto sua irmã.

Apolo fez uma careta.

— Ela também parecia não ir embora nunca.

— Ártemis está apenas preocupada com você.

Ele suspirou e tentou encontrar uma posição mais confortável para a mão enfaixada.

— Eu nunca gostei de serpentes. Sei que Deméter ficaria injuriada em ouvir isso, mas, desde que enfrentei Píton, fico inquieto na presença delas.

— Píton era venenosa? — Pamela aproveitou que eles se encontravam finalmente sozinhos para revirar a bolsa à procura de sua caixinha de remédios.

— Não, mas era grande o suficiente para engolir um homem.

Ela olhou para ele.

— Está de brincadeira, não está?

— Nem um pouco.

Pamela estremeceu.

— Que coisa nojenta! — Escolheu dois comprimidos brancos e grandes, e os entregou a Apolo. — Espere... Isto vai ajudar. — Foi até o minibar e apanhou uma garrafa cara de Pinot Grigio gelado. Hóspedes de E. D. Faust não eram tratados com aquelas garrafas de miniatura baratas, oferecidas nos aviões...

Abriu-a e serviu duas taças. Esperou até que Apolo jogasse os dois comprimidos na boca e, em seguida, ofereceu-lhe o vinho.

— Melhor trazer a garrafa — ele decidiu, após dar conta da bebida em três goles.

Pamela fez como o deus pedia, reabastecendo a taça. Com apenas ela no quarto, Apolo não sentiu necessidade de mascarar sua luta contra a dor e, a cada vez que fazia uma careta ou esfregava o ombro, ela queria gritar sua frustração para os Céus outra vez.

— Ele não devia deixá-lo com tanta dor — desabafou, incapaz de manter o pensamento para si mesma por mais tempo.

Apolo tomou um longo gole do vinho e bateu no colchão, a seu lado.

— Sente-se aqui, perto de mim... Vou lhe falar um pouco a respeito de meu pai. Zeus é o nosso Governante Supremo. Ele é generoso, compassivo, bondoso e protetor para com seus filhos. Mas nunca beneficia os mentirosos ou aqueles que quebram um juramento. Sua voz pode ser ouvida no farfalhar dos galhos dos antigos carvalhos. Zeus é bom e majestoso, mas também é o Senhor dos Céus, o Deus da Chuva e o Senhor das Nuvens, e empunha um raio poderoso. É um deus apaixonado, ciumento e, quando o provocam, sua ira é algo terrível de se ver.

— Ele soa como um paradoxo.

— É o que todos nós somos: não apenas uma coisa ou outra, mas uma mistura de todas elas.

— Isso não me parece um deus dos deuses, e sim um homem — confessou Pamela.

— Verdade — concordou Apolo. — No Mundo Antigo, os deuses não criaram o Universo. Foi justamente o contrário: o Universo criou os deuses. Pense no Universo: nos céus e na Terra, no sol e na lua. São todos uma coisa ou outra?... É como a serpente, esta tarde. Ela despertou minha raiva, eu acabei por matá-la, mas ela não fez por mal. Entretanto, seu veneno é como o fogo do inferno em que o seu Mundo Moderno acredita.

— O que está dizendo, então, é que Zeus não é mau; é apenas imperfeito.

Apolo sorriu e ergueu a taça para ela em resposta.

Pamela o observou esvaziar o segundo cálice de vinho. O dia havia judiado de seu corpo mortal. Mesmo que Apolo não corresse risco de morte, as manchas escuras sob seus olhos, a palidez de sua pele e as novas linhas de tensão em seu rosto eram preocupantes. Enquanto o médico de Eddie o examinara, ele colocara um par de pijamas com calças de cordão. Tinha deixado a parte superior desabotoada, de modo que a equipe médica que pairara a seu lado pudesse manter permanente controle sobre seus sinais vitais.

Felizmente todos eles tinham ido embora e levado consigo seus cateteres, monitores, caretas de reprovação e aquele cheiro de hospital que parecia ficar impregnado na pele. Agora Apolo aparentava ser apenas um homem normal, bonito, que acabara de passar por um dia muito longo e difícil.

E isso era tudo o que ela queria pensar dele. Claro que poderiam conversar sobre os deuses e o Mundo Antigo, mas aquilo tudo afigurava-se muito abstrato e surreal diante de sua pele quente e de seu sorriso carinhoso.

A verdade, contudo, era que, na sexta-feira, Apolo iria voltar para o Olimpo. O portal iria se fechar, e ele sairia de sua vida.

Sentiu o coração pesar no peito.

— O que foi? — o deus quis saber.

Seus olhos encontraram os dele. Apolo parecia tão cansado!... Ela não podia colaborar ainda mais para seu sofrimento. Não naquela noite.

Obrigou-se a sorrir.

— Percebi que ainda não lhe agradeci por ter salvado a minha vida.

Apolo inclinou-se e passou os dedos na medalha dourada que ela carregava no pescoço.

— Eu me comprometi a protegê-la. E nunca quebro um juramento.

Seu toque mudou da medalha para acariciar de leve a lateral de seu pescoço, e Pamela estremeceu.

— Está com frio, doce Pamela — ele murmurou.

— Como eu poderia estar com frio se me toca assim?...

O sorriso de Apolo foi radiante.

— Viu? Sou o mesmo — mortal ou imortal. Você ainda sente o meu calor. — Ele se inclinou para mais perto dela e capturou seus lábios nos dele. Quando ela tentou suavizar o beijo e resistir a seu apelo erótico, Apolo sussurrou contra sua boca: — Ajude-me a esquecer a dor. Deixe que eu me perca em você...

Como ela poderia resistir?, perguntou-se Pamela. Estava ardendo por ele!

E ela o amava.

Mesmo assim, pôs a mão em seu peito, e Apolo interrompeu o beijo, lançando-lhe um olhar surpreso.

— Esta noite eu quero fazer amor com você... Permita isso — Pamela pediu com voz rouca.

Quando empurrou os ombros largos para trás, de encontro aos travesseiros de penas, ele não se opôs. Ela se levantou, então, tirou a blusa por sobre a cabeça, depois se livrou do short e dos sapatos. Em vez de se juntar a Apolo na cama, contudo, deu alguns passos para trás, de modo que ele tivesse uma visão clara de todo o seu corpo.

Adorava a maneira como os olhos do deus a tragavam. Ele a fazia se sentir bonita, desejável, poderosa.

Deve ser assim que uma deusa se sente , pensou.

Aceitar o amor de Apolo a havia transformado. Decidir se entregar a ele a arrancara da escuridão da sombra de Duane e jogara luz em seu mundo. Apolo era um deus, e ela, uma mortal; mas, com o amor dele, ela se tornara a própria Deusa da Luz.

Devagar, alcançou o fecho do sutiã de renda branco e simples. Após tirá-lo, deixou as mãos deslizarem sobre os seios sem pressa, brincando com os mamilos rosados até senti-los rijos. Com cuidado, acariciou o próprio corpo, livrando os quadris redondos da calcinha.

Os olhos de Apolo a devoravam.

Nua, Pamela se aproximou da cama.

— Não — ordenou, sorrindo, quando ele tentou se sentar para ir ao seu encontro. — É a minha vez, lembra-se?

— Você é tão linda, Pamela... — Apolo murmurou. — Espero que... — ele se interrompeu, soltando uma risada seca.

O que ela estava pensando? , pensou Pamela, mortificada. Apolo sofrendo dores terríveis, e ela agindo como uma stripper quando, na verdade, ele precisava de uma enfermeira!

Descansou os dedos com cuidado sobre o braço enfaixado.

— Posso ficar aqui, a seu lado. Não precisamos fazer nada.

— Não é isso — ele falou, aflito. — Eu quero você, quero que faça amor comigo. Só espero não decepcioná-la. Eu já disse que não usei nenhum dos meus poderes imortais para seduzi-la, e é verdade. Mas quando eu a amei... — ele moveu os ombros, inquieto — ... não pude evitar tocá-la com a minha magia. Esta noite não haverá nenhuma magia, nenhum poder. Serei apenas um homem.

— Jamais será apenas um homem, Apolo. Será sempre o homem que eu amo .

— Minha doce Pam...

Seu nome mudou para um gemido de puro prazer quando ela deslizou as mãos pela blusa do pijama, abriu-a e esfregou a ponta dos seios contra o peito musculoso, ao mesmo tempo que mordia de leve o lábio inferior e a linha firme do maxilar quadrado. Em seguida, passou a mordiscá-lo corpo abaixo, deixando um rastro quente, até desatar com habilidade o laço que lhe prendia as calças. Pôde ouvi-lo soltar uma exclamação quando o segurou nas mãos, esfregando o eixo rijo na maciez de seus seios.

E então sua boca estava nele. Primeiro usou os lábios e a língua ao longo do membro espesso e sólido, amando o modo como o corpo de Apolo estremecia e enrijecia sob seu toque, e também o modo como ele gemia seu nome cada vez mais. Engoliu-o, sugando e provocando até ouvir um grito rouco:

— Não posso esperar mais!...

Com um movimento rápido, ela montou nele. Apoiando-se nos joelhos, posicionou a ponta rija em seu calor úmido e fixou os olhos no calor azul e intenso dos olhos de seu deus.

Deixe que eu o livre da dor, mesmo que apenas por um momento!, rezou em silêncio a qualquer deus ou deusa que pudesse estar ouvindo. Então empalou-se nele, lenta, deliciosamente, engolindo-o inteiro.

Com um movimento provocante, ergueu o corpo, sentindo o membro de Apolo pulsar contra ela, então deslizou para baixo outra vez. Bem devagar. Envolveu-o, até que uma deliciosa tensão aumentou além do que ela podia suportar. Apenas nesse momento guiou a mão dele para o quadril e deixou que Apolo aumentasse o ritmo.

Moveram-se juntos, com urgência, e o delírio da paixão mortal preencheu seus corpos com um calor que foi crescendo, irrefreável, até se tornar insuportável.

Quando percebeu o corpo de Apolo se retesar sob o dela, Pamela moveu o seu próprio, cavalgando-o com mais ímpeto, de modo que, quando ele derramou sua semente morna dentro dela, também explodiu em um poderoso orgasmo.

Ao desabar sobre Apolo pouco depois, Pamela sentiu os corpos suados escorregarem um contra o outro e o braço do deus se apertar em torno dela.

— Eu te amo! — ofegou o deus, beijando-a com delicadeza.

Pamela aninhou a cabeça junto ao ombro largo, tomando o cuidado de manter o próprio peso distante de seu braço direito.

Ao mudar de posição para puxar o lençol em torno deles, seu sorriso satisfeito se ampliou para um de felicidade. Com os olhos fechados, o rosto de Apolo finalmente parecia livre da dor, relaxado e tranquilo, e ele caíra em um sono profundo.

— Obrigada — sussurrou para o vazio.

 

— Eu não sei, Apolo. Não me sinto bem deixando você. — Pamela parou perto da cama, brincando com a pulseira de couro da pasta. Por insistência dele, ela se vestira e ficara pronta para voltar a trabalhar na villa .

Afinal, Apolo lembrou, não havia nada de errado com ele. E ela ainda tinha muito trabalho a fazer.

— Vai ficar tudo bem. Eu tenho isto... — ele pegou o controle remoto — ... e isto. — Tocou com o dedo o guia de canais. — E já me explicou tudo sobre televisão a cabo. Ficarei bem entretido.

Pamela franziu a testa.

— Não se esqueça do meu telefone. Meu número é...

— Sim, sim, o seu número está escrito no papel perto do aparelho. Pode ir agora. Eddie deve estar à sua espera.

— Está bem. — Ela se inclinou para beijá-lo. — Mas sinto que estou fazendo alguma coisa errada.

— Esta noite, quando voltar para a minha cama, prometo que a deixo me compensar por estar me abandonando.

— Eu não quero te abandonar!

Apolo riu, então fez uma careta, esfregando o braço ainda dolorido.

— Eu só estava provocando você, doce Pamela. Na verdade, eu a invejo. Vou sentir falta do trabalho hoje. Tem certeza de que não há nenhuma maneira de eu...

— Você já conversou sobre isso com Eddie, e ele se recusou a deixá-lo sair deste quarto, exceto para jantar na varanda, até sexta-feira.

A reação irritada de Apolo foi interrompida por uma batida na porta. Pamela a abriu e deparou com o corpanzil de Eddie preenchendo o vão da entrada.

— Acredito que tenho um trabalho pelo qual Febo ficará muito interessado... — O autor deu um passo para o lado, fazendo um gesto autoritário, e dois homens carregaram para dentro da suíte uma pequena mesa de desenho, seguidos pelo arquiteto com quem Apolo vinha trabalhando no projeto da casa de banhos. — Se Maomé não vai à montanha, a montanha vem a Maomé!

— Brad! Não devia estar na villa ? — indagou o deus.

— Devia. Você também, mas parece que uma cobra decidiu mudar os nossos planos. — O arquiteto deu-lhe um tapinha no ombro e, em seguida, desculpou-se ao vê-lo apertar os lábios contra a dor que causou o movimento brusco. — Sinto muito, Febo. Uma cascavel também picou o meu cunhado no ano passado. Ele disse que doeu à beça, tanto que ficou de cama por uma semana. — Olhou para Eddie. — Talvez devêssemos retomar de onde paramos amanhã.

— Não! Não sei o que vocês têm em mente, mas posso garantir que estou mais do que disposto — Apolo falou depressa.

— Mas só se prometer que não vai sair daí! — Eddie entrou no quarto. — Bradley trouxe as plantas do balneário para que você o ajude a terminá-las. Isso se ficar na cama e continuar descansando.

— Tem o meu juramento — prometeu Apolo já sentado, a atenção voltada para os papéis compridos e lisos que Bradley foi desenrolando e prendendo à mesa de desenho.

— Venha, Pamela — chamou o autor. — Vamos deixar o balneário para os especialistas. A deusa nos aguarda no carro.

Enquanto eles deixavam a suíte, o resmungo de Apolo chegou até eles:

— Está aí uma coisa da qual eu não sentirei falta hoje...

— Obrigada, Eddie — agradeceu Pamela, apertando o braço do homenzarrão.

Ele sorriu para ela.

— De nada, minha querida. Febo não me parece um homem que se sente bem com a inatividade.

— Tem razão. Na verdade, tem razão em mais do que isso.

A expressão sorridente de Eddie tornou-se contemplativa.

— Parece feliz esta manhã, Pamela...

— Sim, eu estou feliz. Concluí que Sêmele não se arrependeu de sua escolha — ela confessou.


Capítulo 31


Pamela olhou para o relógio e soltou uma exclamação.

— Eddie! São quatro horas! Você não disse que as reservas para o nosso jantar eram para as seis?

— Tem razão, Pamela! — Eddie falou do outro lado do caótico pátio. Levantou-se do banco de um salto e se moveu pesadamente, ficando atrás de Matthew, que tratou de dar os últimos retoques no esboço da fonte.

Ártemis desceu com graça de seu pedestal e se juntou ao autor. Em seguida, Pamela pôde ouvi-los parabenizar Mateus por seu bom trabalho.

Um trabalho muito bem-feito...

Era tarde de sexta-feira, e o serviço estava longe de ser terminado. Como dois dias e meio haviam ido embora tão depressa?

Correu a mão pelos cabelos. Estava exausta e estressada além da conta. Tinha passado os últimos dias concentrada em dar forma à villa de sonho de Eddie: fazendo malabarismos com os pintores e pedreiros, resolvendo problemas de instalação e contratempos com os tecidos.

As noites, ela havia passado nos braços de Apolo, às voltas com o amor do Deus Sol. Dormira muito pouco, vinha trabalhando feito uma condenada... e eles ainda estavam atrasados.

Mas não trocaria um único instante do que tinha vivido.

— Pamela, que tal isto para as paredes de mentirinha do home theater ?... — O finalizador de mentirinha apontou sua caneta de penas com afetação para uma placa que fora pintada com um bordô escuro e delicados veios pretos e dourados.

— Absolutamente perfeito desta vez, Steve — ela falou com alívio. — Exatamente o acabamento que eu queria para o cômodo.

— Maravilha. Vai ficar um arraso , querida! — Ele acenou com a pena, exultante. — Vou começar na segunda-feira pela manhã — declarou Steve, entusiasmado.

— Estarei aqui — prometeu Pamela.

Steve acenou com a cabeça e saltitou, feliz, de volta para a casa, a fim de juntar suas coisas e ir embora para o fim de semana.

Bem mais séria, Pamela se pôs a arrumar com cuidado as anotações do dia na pasta. Também estaria de volta na segunda-feira. Bem ali, em Las Vegas. No mundo moderno mortal.

E Apolo e Ártemis estariam no Olimpo.

Não haveria mais jantares na varanda para eles na companhia do fantástico e divertido Eddie. Nenhuma conversa com Apolo sobre o mármore novo que acabara de chegar para o banheiro da suíte máster e que estava na cor errada. Nenhum projeto criado em conjunto, que logo se transformaria em mosaico nos pisos do balneário novo de Eddie...

Ainda assim, seus lábios se inclinaram em um sorriso secreto quando pensou nos últimos dois dias. Além de trabalhar pessoalmente com o arquiteto e, mais tarde, por meio de um telefone e de um maravilhoso notebook que Eddie fornecera — e que o deus dominara com admirável facilidade —, Apolo estava se tornando um verdadeiro cinéfilo. Antigo deus ou não, havia certas coisas nele, agora, que eram típicas de um homem moderno. Como o fato de adorar aprender sobre eletrônica; e como aderira ao controle remoto para ficar zapeando . Na noite anterior, quando ela chegara do trabalho na villa , encontrara-o absorvido no segundo filme de O Senhor dos Anéis.

— Aragorn me lembra Heitor. E o pequeno hobbit. .. o pequeno hobbit tem o coração do fiel Pátroclo, de Aquiles.

— Frodo se parece com esse tal de Pátroclo? — tinha indagado.

— Não. Eu não estava pensando em Frodo. Estava pensando em Samwise. Espero que, no final, ele se saia melhor do que Heitor e Pátroclo — Apolo declarara, muito sério.

Ela não se lembrava tão bem de mitologia para saber do que ele estivera falando, contudo lhe assegurara que Aragorn e Sam haviam tido finais felizes.

Apolo resmungara, então, e erguera a mão boa num protesto.

— Não me conte o final ou vai perder a graça.

E ela quase tinha contado. Era um filme comprido, e o tempo estava se esgotando para Apolo. Ele poderia nunca mais ver O Retorno do Rei .

Tomaram uma decisão bem tarde naquela noite.

Não , Pamela se corrigiu. Ela tomara a decisão. E se lembrava bem da tensão que irradiara do corpo de Apolo quando ele percebera que ela não iria, não poderia retornar com ele ao Olimpo.

— Eu seria inútil lá, Apolo.

— Inútil? Como pode até mesmo pensar em uma coisa dessas? — Ele fizera um gesto cheio de frustração com a mão ainda enfaixada e, em seguida, soltado uma exclamação pela dor aguda que causara a si próprio. — Pelos deuses, não vejo a hora de me ver livre desta dor! — completara, nervoso.

Ela mudara de posição e, em vez de ficar esticada a seu lado, deitara-se sobre ele. Delicadamente, tinha massageado seu ombro direito, sentindo-o relaxar sob os dedos.

— Melhor?...

Apolo balançara a cabeça e a beijara na palma da mão.

— Seu toque me acalma. É a única coisa que consegue aliviar essa dor sem fim... Não vê o quanto eu preciso de você comigo?

Ela havia sorrido para ele, tristonha.

— Apolo, nenhuma cobra vai feri-lo no Olimpo.

— Não, mas a sua ausência vai.

— Eu sei. — Ela mordera o lábio. — Também vai doer em mim ficar sem você.

— Então venha comigo! É a minha alma gêmea, e quero que seja também minha esposa.

Pamela tentou digerir a amargura de um futuro sem Apolo. Como se fosse fácil.

— O que eu faria no Monte Olimpo, em meio a vocês, deuses? — Tinha balançado a cabeça e, quando ele abrira a boca para protestar, mal tomara fôlego. — Por mais que deseje isso, eu não sou nenhuma artista. Não quero nenhum estúdio divino onde eu possa fingir que sou talentosa e que estou interessada em criar peças sabe-se lá do que para sabe-se lá quem... — Tinha balançado a cabeça de novo e suspirado. — Apolo, por acaso há algum mortal vivendo lá? Qualquer mortal?

— Muitas das ninfas e servas são semideidades — ele afirmara depressa. — E é comum se permitir que alguma sacerdotisa ou sacerdote visite seu protetor imortal.

— Semideidades não são mortais. Sacerdotisas e sacerdotes podem até visitar o Olimpo, mas depois voltam a viver sua vida mortal — ela observara, tristonha.

— Vai ser a minha esposa. Vou pedir a Zeus que a torne imortal.

Ela havia puxado a mão da dele.

— Vamos supor que eu me casasse com você e me transformasse em uma imortal. O que faria pelo restante da eternidade? Eu não teria um reino como sua irmã. Não teria trabalho, Apolo. Eu não teria nada além do que estaria autorizada a ter por seu intermédio.

Nesse momento, notara o brilho de compreensão nos olhos do deus.

— Seria outra jaula — ele falara devagar. — Não sou Duane, mas isso pouco importa. Para você seria como outra gaiola: maior, mais importante e mais dourada, talvez, mas...

— Ainda uma gaiola — ela completara.

Apolo tinha tornado a lhe segurar a mão.

— Então eu fico aqui.

Ela arregalara os olhos e sacudira a cabeça com força.

— Não! Você não pode! É Apolo, o Deus da Luz. Não pode abandonar o seu mundo. Não definitivamente. Sabe que não pode. O que aconteceria com as pessoas, lá? Não as estaria condenando à escuridão?

— O sol pode cruzar o céu antigo sem mim. Minhas éguas conhecem o caminho que minha carruagem dourada deve tomar, pois o percorrem, muitas vezes, sem que eu as esteja conduzindo.

— Apolo, não seria certo. Não pode deixar o Olimpo. Não pode ser um mortal.

— Fui mortal esta semana e posso sê-lo por uma vida.

— E quanto tempo esta duraria? Pense no que aconteceu em seu primeiro dia como mortal... Você morreu! — As palavras brotaram de seus lábios. — Não importa o que diga à sua irmã, a Eddie ou a si mesmo, eu estava lá. Eu vi acontecer. Você salvou a minha vida, e em seguida perdeu a sua. Se Hermes não tivesse aparecido, estaria morto agora. — Ela havia respirado fundo, sentindo que tremia enquanto segurava a mão dele. — Eu não poderia suportar isso, Apolo. Eu não poderia vê-lo morrer outra vez.

— Sshh... — ele murmurara, puxando-a para os braços. — Deve haver uma saída. Vamos encontrá-la.

— Como? — tinha indagado de encontro ao calor de seu peito.

— Levarei essa questão ao meu pai. Pedirei a ele que me permita acessar o seu mundo.

— E se ele disser “não”?

— Eu não sei, mas Deméter e Perséfone fizeram um acordo. Podemos fazer, também. — Apolo colocara um dedo sob seu queixo e lhe erguera o rosto. — Não vou ficar separado da minha alma gêmea. Tem o meu juramento, Pamela.

Sua boca descera sobre a dela com tanto ímpeto e proteção que ela ainda podia sentir seu calor ali no pátio...

Pamela estremeceu e tratou de prestar atenção aos papéis soltos em suas mãos. Era sexta-feira. O sol iria se pôr em apenas algumas horas, Apolo e Ártemis passariam pelo portal, retornariam ao Olimpo... e ela poderia nunca mais vê-lo outra vez.

Foi como se ela também houvesse sido envenenada, tal foi a onda de dor que o pensamento provocou.

— Pamela?

Ela olhou por cima da tampa aberta da valise direto para os olhos de Ártemis. A deusa parecia ter dormido muito pouco na noite anterior e, a despeito da luminosidade em seu rosto — resultado da magia da maquiagem moderna —, ainda era possível ver as manchas escuras sob seus olhos.

— Parece cansada — comentou Pamela.

— Meus pensamentos não me deixam descansar.

— Pensamentos?

— Estou preocupada com você. E com Eddie. — Os olhos da deusa se desviaram para o local onde, com sua habitual animação, o autor conversava com um dos representantes de tecidos. — Percebi, com a aproximação do crepúsculo, que não estou tão ansiosa como imaginava por deixar o seu mundo.

Pamela sorriu. Ártemis não estava menos vaidosa, mimada ou mandona, mas seu relacionamento com Eddie tinha, definitivamente, suavizado seus modos. Parecia mais calorosa, e não fria como a perfeição do mármore. Havia se tornado uma mulher em toda a concepção da palavra.

— Vou sentir sua falta, Ártemis.

— Então venha conosco! — pediu a deusa. — Caso se canse do Olimpo, poderá visitar o meu reino. Minhas florestas sempre acolherão a esposa de meu irmão.

— Não posso — Pamela murmurou, tocada pelas palavras da deusa. — Eu não pertenço àquele lugar.

— Você pertence a Apolo — Ártemis afirmou com segurança.

— Se eu for com ele, vou me perder. E depois não haverá nada mais em mim que ele possa amar.

Ártemis inclinou a cabeça e estudou Pamela.

— É dona de grande sabedoria, minha amiga. Daria uma excelente deusa.

— Senhoras! — Como um dos Titãs, Eddie se avultou sobre elas.

— Precisamos nos apressar. Febo nos espera, assim como o nosso jantar. Prometi deixá-las na entrada do Caesars Palace às oito da noite em ponto, para que o seu próprio motorista possa levá-los de lá para o aeroporto... — Eddie franziu a testa, demonstrando seu descontentamento pela história que elas tinham elaborado.

Para que o escritor não as seguisse até o Caesars Palace, Ártemis dissera a Eddie que sua rica família grega iria enviar seu próprio automóvel para buscar o irmão e a ela pontualmente às oito no hotel (no pôr do sol, de acordo com a pesquisa que Pamela fizera na internet), e que ela não suportava despedidas em aeroportos.

Apolo tinha ficado pálido como cera quando Pamela lhe explicara que um avião era algo enorme, parecido com um grande carro voador.

Eddie continuava insatisfeito com o arranjo, porém, como de costume, não contrariou as exigências de sua deusa. Deu apenas um longo suspiro.

Pamela reparou em como ele parecia repentinamente envelhecido.

— Concordei com a sua vontade, minha querida, mas, para isso, precisa ser pontual. Planejei um jantar de despedida espetacular para nós.

— Eddie!... — Ártemis fez um lindo beicinho, deslizando o braço pelo dele e distraindo-o, a fim de evitar mais discussões acerca de limusines e jornadas até o aeroporto. — Espero que tenha reservado um restaurante com uma boa vista. Sempre adorei nossos jantares naquela varanda maravilhosa, e não gosto nem mesmo de pensar no quanto vou sentir falta deles.

— A paisagem estará sempre esperando por você quando estiver cansada de suas viagens. Mas, esta noite, minha deusa, me pareceu sábio tentar algo novo. — O autor tocou a face de Ártemis, e ela a usou para lhe acariciar a mão.

O sorriso de Eddie quase escondeu a triste resignação que assombrou seu semblante.

Pamela os seguiu através do pátio, pensando que o escritor poderia muito bem ser um ator ainda mais competente do que a deusa.


— Sinceramente, eu detesto essas criaturas de metal — Apolo resmungou por entre os dentes após sair, desajeitado, do banco da frente da limusine.

— Senhor? — O porteiro do Bellagio pareceu confuso.

— Ele fica enjoado — explicou Pamela.

O homem, de forte sotaque inglês, examinou o rosto esverdeado do deus e sua mão enfaixada. Bufou de leve e, em seguida, abriu caminho.

Pamela segurou o braço bom de Apolo e o conduziu para a calçada. Ele passou a mão pela testa e tentou controlar o próprio estômago enquanto eles aguardavam pelo longo processo que era tirar Eddie e Ártemis do que ele, Apolo, considerava o estômago da limusine...

— Prometa que, quando chegar a hora de voltarmos ao Caesars Palace, iremos a pé até lá — ele sussurrou ao pé do ouvido de Pamela.

As palavras a fizeram se lembrar do pouco tempo que tinham juntos.

Como se ela precisasse de um lembrete!... Ironicamente, era como se o sol zombasse deles, correndo em direção ao horizonte.

Pamela tentou, sem sucesso, sorrir para Apolo.

— Prometo.

Ele encontrou seus olhos.

— Não vou viver sem você. Vai dar tudo certo. Lembre-se de que tem o meu juramento.

Ela assentiu com um rápido gesto de cabeça.

Ele é Apolo, o Deus da Luz... Pode fazer isso acontecer. Pode encontrar um modo de ficarmos juntos! , disse a si mesma com determinação enquanto piscava para combater uma súbita onda de lágrimas.

Precisava se concentrar nos arredores e se controlar. Não importava o que iria acontecer. Não queria que a última lembrança de Apolo fosse de lágrimas e um coração partido. Queria que ele soubesse que ela acreditava nele: em seu poder e em seu amor.

A entrada do Bellagio consistia de um passeio circular ornamentado, que ficava de frente para uma galeria. Esta, por sua vez, se debruçava sobre um lago artificial calmo e escuro que, ela sabia, só estava esperando uma nota musical para ganhar vida e luz.

— As fontes — comentou Apolo, seguindo seu olhar. Passou o braço em torno dela, então, e a apertou intimamente contra o corpo. — Nossas fontes.

Pamela o fitou e, dessa vez, sorriu. Ele era tão forte e seguro de si!... Tão real.

Não podia duvidar de Apolo. Fora contemplada com um juramento do Deus da Luz, e ele não iria decepcioná-la.

Mais importante do que isso: ele não decepcionaria nenhum deles dois.

— Sim, são as nossas fontes — concordou enfim.

— Não vamos nos demorar! Tenho uma surpresa para a minha deusa para a qual precisamos chegar na hora.

Eddie e Ártemis passaram por eles e entraram no Bellagio.

Pamela e Apolo seguiram mais devagar. Uma vez na entrada do hotel, ela estacou e olhou para o teto, chocada.

— Dale Chichuly! — falou, maravilhada, olhando para a espantosa obra de arte que enfeitava o saguão do Bellagio. — Eu tinha me esquecido de que foi ele quem projetou isto.

Curioso, Apolo estudou o teto.

— É uma iluminação um tanto incomum.

— É incrível! Repare na complexidade do vidro soprado e no brilho das cores. É como uma floresta de águas-vivas. Pena que Eddie não escolheu esta decoração em vez daquela coisa cafona do Caesars Palace — comentou em voz baixa, com uma risadinha.

— Eu não sei. — Apolo a abraçou e a beijou no topo da cabeça. — Acabei me afeiçoando ao gosto excêntrico de Eddie. Afinal, foi graças a ele que nos conhecemos.

— Está brincando... Está de brincadeira! — falou Ártemis, segurando o irmão pela manga e puxando-o até onde Eddie esperava, impaciente, diante de um restaurante onde se lia “Olives” em letras douradas.

— E. D. Faust e companhia. Tenho uma reserva especial — o autor anunciou ao maître.

— Claro, sr. Faust. Por aqui, por favor...

Eles seguiram o maître através do opulento restaurante — que se encontrava lotado na agitada noite de sexta-feira — até uma parede de janelas chanfradas, no meio da qual havia uma porta de vidro do chão ao teto. Um garçom a abriu para eles, revelando uma imensa varanda de mármore, a qual, por sua vez, dava direto nas famosas fontes do Bellagio. O maître os conduziu até a única mesa posta com toalha de linho, porcelanas e cristais, então se curvou primeiro para Ártemis, em seguida para Pamela, acomodando-as nas cadeiras de veludo bem estofadas.

— Conforme suas instruções, sr. Faust, a varanda foi reservada exclusivamente para os senhores.

— Perfeito. Agora pode servir o Dom Perignon .

— Oh, Eddie! Como sabia que eu estava louca para tomar esse delicioso champanhe outra vez? — encantou-se Ártemis.

— Li isso em seus belos olhos, minha deusa — declarou o escritor.

Pamela revirou os olhos e compartilhou um olhar divertido com Apolo.

O garçom desarrolhou a garrafa e, conforme servia o champanhe, as primeiras notas da música-tema de Chorus Line deu vida às fontes.


One! Singular sensation...


À medida que a música tocava e as águas dançavam, Eddie ergueu a tulipa de cristal para Ártemis.

— À você, minha deusa. Uma sensação indescritível...

— Oh, Eddie! — ela murmurou, tocando o copo no dele e piscando para combater as lágrimas que lhe inundaram os olhos. — Você me encanta!

— É um prazer muito grande para mim — ele garantiu, os olhos também brilhando de modo suspeito. Em seguida, limpou a garganta e fez um sinal para que o garçom trouxesse os cardápios.

O jantar contra o pano de fundo dos chafarizes dançantes e o céu do deserto — que, devagar, passava do azul para púrpura — foi espetacular. Com eles sozinhos ali, na varanda, a noite parecia cheia de magia e mistério. Embora estivessem no coração de Las Vegas, em uma noite movimentada de sexta-feira, tinham privacidade e uma infinidade de mordomias.

Para Pamela, foi como se eles tivessem ganhado um camarote especial dos deuses da cidade.

E quem poderia duvidar? Talvez fosse isso mesmo. Afinal, coisas mais estranhas já haviam acontecido...

Quando a última das muitas canções tocadas nas fontes cessou, Eddie olhou para o relógio. Muito sério, ergueu o corpanzil da cadeira e ficou de frente para a mesa.

— Já são quase oito horas. Compartilhamos o vinho e a comida, nossa amizade e boa música. — Seus olhos gentis se desviaram de Pamela para Apolo antes de pousar em Ártemis. — Agora, infelizmente, devo me despedir. Mas eu lhes disse antes que tinha uma surpresa... — Seu olhar permaneceu sobre o belo rosto de Ártemis. — Principalmente para você, minha deusa. — Fez um gesto, abrangendo os arredores. — Parte da surpresa foi este ambiente e o jantar. A outra parte é que eu gostaria de anunciar que me decidi sobre o assunto da minha próxima trilogia épica. Esta manhã, o meu editor concordou com a minha proposta para três livros. Eles vão contar a história de um guerreiro que é enviado por seu povo, o qual está morrendo, em uma missão quase impossível, para conquistar o coração de uma deusa que, por sua vez, promete retornar com ele, viver a seu lado e salvar seu mundo. A capa dura de cada livro irá retratar uma imagem que será sagrada durante toda a jornada do herói: a imagem de uma deusa. Essa imagem será nada menos do que aquela que o nosso Mateus fez de você. — Eddie terminou o discurso com um floreio, curvando-se para a mulher que ele proclamara sua diva.

Ártemis nada disse. Em vez disso, levantou-se e caminhou até Eddie.

— Obrigada, meu guerreiro. — Com graça, ela se curvou em uma reverência. Quando ergueu o corpo delgado e passou o braço pelo dele, Pamela pôde ver que a deusa tinha o rosto molhado.

O escritor apanhou um lenço de seda no bolso e lhe enxugou as faces. Em seguida, num gesto familiar, deu um tapinha na mão que repousava em seu braço.

— Venham. Vamos dar fim a esta nossa jornada.

Em silêncio, os quatro refizeram o caminho através do restaurante, saindo para o saguão do Bellagio. Desta vez, a obra prima de Chichuly não atraiu o olhar de Pamela. Seu coração estava pesado demais, e ela nem mesmo olhou para cima. A única coisa em que conseguia pensar era em continuar segurando a mão de Apolo e em seguir acreditando que aquela não seria a última vez em que iria tocá-lo.

E foi por meio desse toque que Pamela sentiu a tensão do deus quando a limusine estacionou em frente ao passeio circular, o que a fez se lembrar de sua promessa.

— Eddie, importa-se se Febo e eu formos caminhando? Você sabe como ele fica quando anda de carro... — acrescentou, notando, admirada, como sua voz soava normal. Perguntou-se por que seu coração não parecia estar partindo ao meio e por que motivo sua vida não estava se dissolvendo com o pôr do sol.

— Claro! Podemos encontrá-los na frente do Caesars Palace. Assim poderemos todos nos despedir em particular. — O autor conseguiu esboçar um breve sorriso antes de se abaixar para entrar na limusine.


Em seu palácio, no Monte Olimpo, Baco encontrava-se sentado no trono. Fechou os olhos e se concentrou no próprio desejo. Gotas de suor lhe banharam a testa larga, e suas faces se contraíram pelo esforço. Entre os lábios flácidos, formou-se uma linha de espuma branca que entrava e saía com sua respiração.

Onde está?!

Aumentou a concentração. Não entraria em pânico. Não ficaria desesperado. Ele iria encontrar!

Onde?! Onde ela está?

Sentira-a naqueles últimos dias. O fechamento do portal enfraquecera a sensação, porém ele sabia que ela ainda estava lá. Tudo o que tinha a fazer era encontrá-la... e ela seria sua outra vez.

Baco levantou as mãos grossas, segurando-as com as palmas voltadas para cima, como se tentando sentir o ar diante de seu pedestal.

Então algo fez cócegas em sua pele.

Com toda a sua força imortal, ele fechou as mãos, e sua mente apreendeu o tênue fio do vínculo.

Tinha encontrado!... Ele a havia encontrado!

Como um pescador puxando uma presa rara, Baco agarrou o fio da alma da mortal, arrastando-o e reforçando sua conexão até poder enxergá-la com clareza. Ela estava trabalhando. Parecia pouco mais do que uma escrava, na verdade, condenada a uma vida de trabalho pesado, carregando bebidas para homens de mãos inquietas e ousadas e, às vezes, enfiando-se em cantos escuros para levar um copo aos próprios lábios.

Baco reforçou mais o vínculo, e a mortal drenou o copo de bebida forte.

Sim... Beba-me!... Sorva-me!... Deixe-me aliviar sua dor... sussurrou através do fio, e sentiu que ela oscilava como se também tivesse sentido a conexão.

Fora assim que ela viera até ele; e fora assim que ele criara o elo entre eles: por meio de sua necessidade de beber. Aquilo a obcecava, a consumia... Ele não fizera nada de errado. Simplesmente concedera à mortal seu desejo mais sincero.

A deliciosa ironia daquilo tudo o fez querer gritar de prazer. Usaria a mortal vinculada a ele por conta de sua própria vontade para destruir o elo que o ligava à dourada Ártemis. Ao fazê-lo, os gêmeos teriam uma amostra da dor que a perda de seu reino lhe causara.

A agonia de tal perda ainda se alastrava dentro dele. Eles pensavam que o tinham derrotado...

Culpa de Apolo! Dele e de sua irmã dourada.

Mas Zeus iria puni-los?... Claro que não. Eles eram seus queridinhos, seus favoritos.

Aquilo era insuportável!

O abuso de que fora vítima tinha de ser corrigido. E, desta vez, não haveria demora. Não cometeria nenhum erro.

Baco canalizou sua energia para a mortal. Sorveu sua alma, rindo diante da facilidade com que ela a entregava a ele.

Por intermédio da moça, seu espírito readentrou o mundo mortal, espalhando-se como uma névoa funesta e invisível pelo Caesars Palace. Procurou, olhou...

Pouco depois, com um grito de triunfo, ele encontrou o que procurava. Perfeito. Eles estavam tão distraídos, tão concentrados em seus próprios problemas que nem mesmo pressentiram sua presença.

Satisfeito, Baco tornou a concentrar os poderes sobre a vulnerável mortal. Estava dentro dela, correndo por suas veias e preenchendo sua mente com seus obscuros anseios.

Sim, está indo bem! , persuadiu a moça conforme ela deixava seu posto de trabalho, levando apenas um molho de chaves. Mais depressa! O tempo urge! Deixe-me dizer o que vai fazer...


Capítulo 32


Sem falar, Apolo e Pamela caminharam devagar, de mãos dadas, ao longo do passeio que emoldurava as fontes do Bellagio. No momento, as águas se assentavam quietas e escuras, porém o calçadão estava repleto de alegres mortais conversando, e a rua adjacente, cheia de carros em movimento.

As buzinas e as freadas eram muito mais perturbadoras do que a cintilante acrópole do outro lado da rua, concluiu Apolo.

Ignorou a insistente dor que lhe irradiava da mão e subia pelo braço. Não tinha a menor gravidade, pois era algo que teria fim em breve.

E também era de pouca importância se comparada ao peso em seu coração.

Já era quase hora de o sol se pôr. Aquele não era o seu mundo, contudo ele iria se sentir para sempre ligado à luz daquele céu. Podia senti-la ao despertar pela manhã, e sempre sabia quando esta desaparecia no horizonte.

Seu tempo era curto. Ele deveria ficar. Podia ficar. Seria algo simples de fazer. Com a reabertura do portal, seus poderes lhe seriam restituídos. Poderia iludir Pamela e, em seguida, inserir em sua concentração a sugestão de que ela lhe pedira para ficar...

Como um duende do mal, sua própria mente insinuou outras possibilidades. Ele poderia levá-la com ele. Deuses vinham sequestrando suas amantes mortais por eras. O Monte Olimpo era cheio de maravilhas e indescritível beleza. Com certeza Pamela poderia ser feliz lá. E, com certeza, ela o amava o suficiente para perdoá-lo.

Mas estaria agindo de modo diferente de seu ex-marido?... Se tinha aprendido alguma coisa com Pamela, era que o amor não podia ser ditado, exigido nem aprisionado. Não poderia acorrentá-la a ele. Poderia apenas amá-la.

Havia se passado apenas uma semana do dia em que ele acreditara ter conquistado um amor?

Como fora ingênuo!... Mortal ou imortal — o amor não fazia distinção entre postos ou privilégios. O amor era uma questão de alma. Era imaterial e não estava sujeito aos caprichos do homem ou de um deus.

Apolo diminuiu o passo e conduziu Pamela até um banco próximo quando o grupo barulhento, atrás do qual eles vinham andando, parou de repente. Como numa boiada, as pessoas se misturavam, impacientes, chamando umas às outras em voz alta.

— É por causa da rua; eles estão esperando o farol abrir — explicou Pamela, sentando-se a seu lado e olhando para a água escura. Estava normal... ou quase. Lembrava uma lâmpada enfraquecida. Aquela luz habitual tinha desaparecido de seu rosto, o que a deixou mais pálida e frágil. — O grupo é muito grande. Provavelmente serão necessárias duas mudanças do sinal para que todos atravessem. — Seus olhos se voltaram para ele, tristonhos. — Depois de ter passado a semana inteira no deserto, toda essa gente me faz sentir claustrofóbica. Será que não podemos ficar sentados aqui por um minuto e deixar que sigam adiante?

— Sim — Apolo concordou, envolvendo-a com um braço. Pamela descansou a cabeça em seu ombro e se aninhou junto a ele. — Não temos que estar lá no exato instante em que o portal ressurgir. Temos tempo.

— Quanto tempo?

— Não muito. Não quero desafiar Zeus, desdenhando de sua ordem para comparecer diante dele.

— O que vai dizer a seu pai?

— A verdade. — Apolo beijou-lhe a testa. — Que encontrei minha alma gêmea no Mundo Moderno e que meu maior desejo é não me afastar mais dela.

— Espero que o seu desejo mais sincero lhe seja concedido tão depressa como foi o meu... — Pamela ergueu o rosto para o dele e, conforme Apolo a beijou, ela aspirou seu perfume. Sua proximidade a acalmava. Quando ele a tocava, conseguia acreditar que o que o deus dizia tantas vezes era a verdade: que tudo acabaria bem.

Relutante, Apolo terminou o beijo, e Pamela sentiu o estômago se apertar.

— Parece que a multidão foi embora — ele comentou.

Pamela olhou para a calçada repentinamente vazia.

— Parece que eles estavam com pressa de chegar a algum lugar. Estranho. — Sentiu um arrepio levantar os pelos dos braços e da nuca. Sua intuição lhe dizia para permanecer ali, sentada no banco ao lado de Apolo, mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele já se pusera em pé.

Com um forte sentimento de resignação, Pamela concluiu que aquilo não tinha nada a ver com uma suposta intuição, mas com o fato de ela não querer que ele fosse embora.

Distraído, o deus nem sequer se deu conta da estranheza provocada pelo passeio deserto.

— Precisamos ir também — declarou, e a fez ficar de pé a seu lado, passando o braço com firmeza ao seu redor.

Caminharam devagar e, sozinhos no meio-fio, ficaram aguardando que a luz do farol mudasse do vermelho para o verde. Ainda não chegara a hora da despedida, Apolo disse a si mesmo. Ele manteria Pamela próxima por todo o caminho até o Caesars Palace, e não a soltaria até que se encontrassem diante do portal.

De qualquer modo, sua separação seria apenas temporária.

— Meu pai vai ceder — murmurou seus pensamentos seguintes ao ouvido de Pamela. — Ele já foi vítima do amor vezes demais para não conceder o nosso pedido...

— Vítima do amor ou vítima da luxúria? — indagou Pamela.

Apolo sorriu para ela.

— Para meu pai, amor e luxúria fazem parte do mesmo banquete... e Zeus adora uma festa.

Ela bufou com sarcasmo, e de um modo não muito feminino.

Apolo riu, puxando-a mais para junto dele. Não podia perdê-la.

Pamela ofereceu os lábios e, quando ele se inclinou para beijá-la de novo, a fonte ganhou vida.

Pararam, olhando um para o outro, e então o rosto de Pamela se iluminou, cheio de felicidade.

— Perfeito! — ela murmurou em meio a uma risada. — Não poderia ser mais perfeito...

Mais uma vez, Faith Hill pareceu cantar só para eles.

— É o melhor dos presságios. Tudo vai ficar bem — Apolo afirmou, alegre, e virou-se para assistir à dança das águas.

Como se atraído pela música, o deus caminhou até o parapeito. Havia algo no ar... algo em que ele sentia um toque imortal. Tinha que ser um presságio enviado por Zeus.

Olhando por cima do ombro, sorriu, feliz, e fez um sinal para que Pamela se juntasse a ele. Ela sorriu de volta e acenou com a cabeça, mas ficou onde estava, apenas por mais um instante. Apolo olhava as águas cintilantes conforme estas esguichavam para o ar ao ritmo da canção mágica. Era tão maravilhoso que aquele deus magnífico, de alguma forma, fosse a outra metade de sua alma!...

De repente, Pamela acreditou piamente que ele faria tudo dar certo. O Deus da Luz era sua alma gêmea, e ele encontraria uma maneira de voltar para ela.


...It’s...ahhh...impossible! This kiss! This kiss!

Unstoppable! This kiss! This kiss!


Pamela levantou o pé para dar um passo adiante e captou um flash de movimento pelo canto do olho. Franzindo a testa, virou a cabeça a tempo de ver o carro... mas não a tempo de sair de seu caminho quando este invadiu o meio-fio e se chocou contra seu corpo.

Cheio de esperança, Apolo sorria para as águas quando escutou a horrível freada. Encantado que estava pela fonte e pela música, o som lhe pareceu distante.

Confuso, ele se virou para ver o que estava atrasando Pamela e, num horror indizível, assistiu quando a besta de metal atingiu o corpo frágil.

— PAMELA! — gritou.

O impacto a arremessou em direção à rua movimentada, direto para o tráfego em sentido contrário. Freios rangeram, motoristas desviaram, batendo em outros carros, enquanto tentavam, sem sucesso, não atropelá-la.

Apolo avançou. Desviando-se de carros e pessoas, seguiu a trilha sangrenta até onde ela finalmente havia parado, em um monte disforme, a meia pista.

Soltando um grito de puro desespero, ele caiu de joelhos a seu lado e puxou o corpo quebrado para os braços. Cintilando com as lágrimas, seus olhos se voltaram para a bola de fogo que ainda pairava baixo no céu.

— Deixe o firmamento! — ordenou ao sol minguante. — Devolva-me os meus poderes!

Pamela não sentiu nada; apenas que algo estava errado. Como se tivesse despertado em um quarto escuro, em uma cama estranha, os quais ela não conseguia ver e, por isso, não conseguia se orientar.

Então ouviu um grito que pareceu rasgar sua alma.

Sabia que era Apolo. Tentou abrir a boca e chamá-lo, contudo seu corpo não se encontrava mais sob seu controle.

Lutou contra a sensação, porém seus olhos se fecharam um instante antes do pôr do sol.

Apolo soube o exato momento em que Pamela morreu. Foi um momento antes de a dor em sua mão desaparecer e de o poder imortal preencher seu corpo. Em pânico, ele a deitou no pavimento e colocou as mãos em seu peito ensanguentado.

— Viva! — ordenou o Deus da Luz, embora soubesse que era tarde demais. Mesmo com seus poderes imortais, não poderia redefinir o tempo. Não podia desfazer o que já estava feito. — Não... — Suas lágrimas se mesclaram ao sangue de Pamela. — Não! — gritou.

— Alguém chame o 911!

— Oh, meu deus! Chamem uma ambulância!

— Há algum médico aqui?!

Apolo ouviu os gritos dos mortais ao seu redor. Eles viriam tomá-la dele.

— NÃO! — gritou sua ira. Pondo-se em pé, estendeu os braços. — SILÊNCIO! — Sua ordem disparou como uma flecha na direção da crescente multidão, formando uma parede de energia que ensurdeceu e emudeceu os mortais, transformando-os em boquiabertas estátuas.

O Deus da Luz olhou para o seu amor caído, então.

— Não... — Desta vez ele sussurrou a palavra. — Não vai ser assim... — decidiu, em seguida.

Precisava fazer aquilo. Se hesitasse, seria tarde demais. Independentemente das consequências, aquele era o único caminho.

Estendeu as mãos sobre o corpo de Pamela.

— Venha para mim... Eu ordeno que não se afaste deste reino.

Sob as mãos estendidas de Apolo, o corpo de Pamela começou a brilhar, em seguida uma esfera de pura luz surgiu e pairou entre as palmas do deus.

— Apolo!

Ele ouviu o grito atrás dele e, mantendo o globo de luz entre as mãos, virou-se. Como uma fada, Ártemis passou pelo carros trombados e pelos mortais congelados e silenciosos, até que chegou perto o suficiente para ver sobre quem o irmão se avultava e o que pairava entre seus dedos. Soltou uma exclamação e levou as mãos à boca.

Movendo-se com uma velocidade surpreendente, Eddie correu para se postar a seu lado. Enquanto sua mente tentava dar sentido à cena diante dele, toda a cor drenou do rosto do escritor.

— Não devia tê-lo poupado do meu encanto! — Apolo rosnou.

— Eu não sabia... Não pensei que... Oh, meu irmão! O que você fez? — Ártemis olhou do corpo de Pamela para a luz pulsante que ele segurava com possessividade.

— Cheguei tarde demais — Apolo falou, alquebrado. — O sol chegou tarde demais. Eles a mataram.

Ártemis se aproximou do deus devagar, como se ele fosse uma das criaturas selvagens de seus bosques.

— Mas... o que está fazendo? Está segurando a alma imortal de Pamela.

Apolo embalou a luz junto ao corpo.

— Eu não vou perdê-la!

— Apolo... — começou Ártemis.

— Não! Eu não vou perdê-la! — O grito do deus fez um relâmpago cortar o céu. — As leis do Universo que se danem! Sempre ouvi dizer que o amor é a força mais poderosa do Universo. — Seu olhar transtornado se voltou para o atordoado autor. — Você é um bardo neste mundo... Não é isso o que proclama?

Incapaz de encontrar palavras para articular, E. D. Faust só fez concordar com um gesto de cabeça.

— Por isso eu digo que meu amor por ela se sobrepõe às Leis do Universo!

— Apolo, não pode mantê-la assim. Sua alma imortal não descansará neste reino. Você sabe disso! — ponderou Ártemis.

— Eu não vou mantê-la neste reino.

Os olhos da deusa se arregalaram quando ela compreendeu por fim.

— Hades!

— Ele saberá o que fazer. Ele tem que saber o que fazer! — afirmou Apolo.

— Sim. — A voz da diva falhou. — Vá até seu amigo, meu irmão. Tomara ele tenha uma saída... Para vocês dois.

Com uma expressão atordoada, como se só então tivesse se dado conta da extensão do que seus poderes haviam causado, Apolo olhou para os carros amassados e para as pessoas paralisadas.

— Vou arrumar isto tudo — prometeu Ártemis. — Vá. Pamela precisa de você.

— E quanto a Zeus?

— Vou comparecer diante de nosso pai. Foi por minha causa que veio para este reino. Fui eu quem deu início a isto tudo... portanto devo terminar o que comecei.

Apolo sacudiu a cabeça.

— Não foi você, Ártemis. Foi culpa das Parcas. Pamela e eu estávamos destinados a cumprir nosso destino.

— Se é assim, deve levá-la para o Submundo e pedir a Hades que o ajude.

— Obrigado, minha irmã... — A voz dele perdeu força.

Ainda segurando a alma brilhante, o deus se deslocou por entre os carros com uma velocidade impossível de ser acompanhada por olhos mortais, direto para o Caesars Palace, onde o portal os aguardava.

Com passos pesados, Ártemis se aproximou do corpo de Pamela.

— Como algo tão forte podia ser guardado em uma concha tal frágil? — A deusa olhou para a amiga com lágrimas banhando as faces.

— Meu coração estava certo o tempo todo... — murmurou Eddie com reverência. Aproximou-se da deusa e, uma vez a seu lado, caiu sobre um joelho. — É mesmo a deusa Ártemis.

— Sim — ela confirmou, pousando a mão no ombro do escritor delicadamente. — Mas não me sinto como uma deusa. Sinto-me como uma mulher que acaba de perder uma grande amiga. — Ártemis respirou fundo e deixou escapar um soluço. — Olhe para ela, Eddie... Está toda quebrada.

Por um momento, ele hesitou. Então estendeu a mão e deu um tapinha reconfortante na mão da deusa.

— Pamela não está aqui, Ártemis. Está com Apolo.

— Tem razão. Eu sei. É exatamente isso... Só que eu não tive a chance de lhe dizer nem mesmo adeus, que eu sentia muito... ou mesmo “obrigada”.

— Às vezes não se consegue dizer essas coisas — Eddie falou com serenidade. — Isso é ser mortal. Podemos apenas tentar viver nossas vidas com alegria e paixão o bastante para que, quando chegar nossa hora, deixemos para trás boas lembranças, e não arrependimentos.

— Eu não compreendia isso antes, mas agora compreendo. Creio que, a partir deste instante, por toda a eternidade, haverá uma parte de mim que sempre irá sentir-se um pouco mortal. — Ela sorriu, tristonha, para o corpo de Pamela. — E acho que será a minha melhor parte. — Num impulso, Ártemis se curvou e segurou a medalha gravada com a imagem de seu irmão, a qual continuava pendurada no pescoço de Pamela. Com um só movimento dos dedos, a corrente se soltou e se agrupou em sua palma. — Apolo deve querer que eu guarde isto para ela. — Fechou a mão, e a medalha desapareceu. Em seguida, a deusa se ajoelhou ao lado do corpo da amiga.

— O que vai fazer? — Eddie perguntou.

— O que eu puder — decidiu Ártemis. Então levantou as mãos e começou a brilhar como a luz branca e fria de uma lua cheia. — Adeus, minha amiga... — murmurou enquanto passava as mãos luminosas por baixo do corpo de Pamela, movendo, arrumando, fazendo o que podia para endireitá-lo.

Quando a luz se apagou, o corpo fraturado da mortal fora substituído pelo de uma bela corça.

Cansada, Ártemis se pôs de pé.

— Caminhe comigo, Eddie. Devo voltar e enfrentar meu pai.

— Claro, minha deusa.

Passando o braço delicado pelo dele, o escritor a conduziu cuidadosamente para longe do corpo tombado da corça.

Tinham quase chegado à calçada quando Ártemis parou de repente. Farejando o ar como uma criatura da floresta, virou a cabeça e estreitou os olhos. O carro estava destruído. Sua frente se curvava para dentro e havia claras marcas de sangue onde este atingira o corpo de Pamela.

A deusa se aproximou e olhou dentro do automóvel. A mulher congelada pelo encanto de Apolo tinha ambas as mãos ao volante. Presa ao assento pelo cinto, ela não se ferira, entretanto seus olhos estavam arregalados e cheios de um indizível terror. Ártemis respirou fundo. O corpo da mortal cheirava a bebida, mas não a qualquer uma. Seus sentidos aguçados reconheceram o cheiro doce da ambrosia, mesclado ao da luxúria, do desespero e do vício.

A marca do Deus do Vinho estava lá. Não tão evidente quanto a de seu vínculo com Pamela, e sim mais disfarçada... porém não menos contundente.

Ártemis fechou os olhos contra a intensidade da ira que a assaltou. Baco iria pagar por aquilo!, prometeu a si mesma. Ela mesma o obrigaria a isso.

Quando abriu os olhos, viu Eddie observando-a com atenção.

— Sabe quem causou tudo isso?

— Sei — admitiu com voz contida.

O rosto de Eddie endureceu com a raiva.

— Então faça-o pagar por isso, deusa.

— Eu farei, meu guerreiro. Eu farei.

Decidida, Ártemis se virou para a carnificina que a inveja e a malevolência tinham causado e ergueu as mãos. Com a voz ampliada por seu poder imortal, a bela deusa fez suas palavras ecoar por toda Las Vegas enquanto acalmava, curava, e depois eliminava os últimos vestígios de feitiço malévolo de Baco.

— Que seus espíritos pairem livres esta noite. Nenhum outro morrerá. A corsa será o milagre que eles virão, embora não saibam como nem por quê. Sobre suas almas imortais minhas bênçãos haverão de descer, lavando suas memórias, aliviando sua dor.

Ártemis baixou as mãos, e um pandemônio se fez em torno deles.

— Dá pra acreditar?!

— É um cervo!...

Gritos preencheram a noite conforme as pessoas corriam para a rua, e o som de uma sirene de ambulância se aproximava a distância, num lamento.

Em meio ao caos, Ártemis se apoiou no braço de Eddie, e os dois se afastaram, sem ser vistos, em uma bolha poderosa de serenidade imortal.

— Fez uma boa ação, minha deusa. — Eddie afagou-lhe a mão enquanto seguiam seu caminho até a calçada que levava à entrada principal do Caesars Palace.

Ártemis sorriu para ele.

— Obrigada. — Então inclinou a cabeça, pensativa.

— Deusa? — indagou o autor.

— Eddie, talvez eu não possa mais voltar para cá. O Olimpo vai considerar estes eventos por demais preocupantes.

— Compreendo. — Ele hesitou, permitindo que a fachada de autor excêntrico cedesse, e exibiu nos olhos sua desolação. — Desde o início eu sabia que não ficaria comigo. Independentemente disso, eu me permiti amá-la... e não me arrependo um só instante dessa escolha. Vou levá-la na lembrança, e junto ao meu coração, enquanto estiver respirando.

— Talvez haja uma maneira de levar mais do que apenas a minha lembrança junto ao coração... — articulou a deusa devagar.

Os olhos do autor se arregalaram, surpresos.

— Já ouviu falar de um reino chamado Tulsa, em Oklahoma, Eddie?...


Capítulo 33


— Hades! — A voz de Apolo sacudiu as paredes do Salão Nobre do Senhor do Submundo.

O Deus da Escuridão se precipitou para a sala do trono, seguido de perto pela esposa.

— Apolo? — Hades quase não reconheceu o amigo, que nada tinha a ver com as roupas estranhas e respingadas de sangue, ou com a brilhante esfera de luz que agarrava junto ao peito. O olhar ensandecido também era estranho ao que ele conhecia do Deus da Luz.

— O que aconteceu?!

— Eles a mataram... Os monstros de metal... Eu não pude detê-los!... Não cheguei até ela a tempo. — Respirando pesadamente, Apolo falava em curtas rajadas.

A esposa de Hades saiu de trás do marido. Dentro do corpo imortal de Perséfone, Carolina sentiu a alma estremecer conforme compreendeu de imediato.

— Esta é Pamela — falou, os olhos fixos na esfera brilhante de luz.

— É a alma de uma mortal moderna?... Trouxe a alma de uma mortal moderna aqui?! — exclamou Hades.

— Claro que ele trouxe! — cochichou Lina. — O que mais ele poderia fazer?

— Precisa me ajudar a fazer isso direito! Tem que trazer Pamela de volta!

Os olhos perspicazes de Lina se ativeram ao Deus da Luz.

— Já chega dessa conversa. Ela ainda é Pamela, e provavelmente a está assustando. — Ela olhou de volta para onde o marido se encontrava. — Precisa recebê-la, meu amor.

O Senhor do Submundo moveu-se com relutância. Estendeu a mão, mas, antes de tocar a luz, seu olhar capturou o de Apolo.

— Não é aconselhável mexer com as Leis do Universo, meu amigo.

— Ela é minha alma gêmea — afirmou Apolo.

O Deus da Escuridão assentiu com um gesto de cabeça, tristonho.

— Então, vamos torcer para que as Parcas sejam compreensivas. — Tocou a esfera brilhante com a palma da mão. — É bem-vinda ao meu reino, Pamela.

A luz tremeluziu e se alongou. Com um som muito parecido com um suspiro, tomou forma, assumiu características, até que Pamela se viu em pé nos braços de Apolo. Seu corpo ainda carregava uma ligeira luminescência, porém ela agora tinha uma aparência surreal, meio transparente, como se fosse uma aquarela inacabada de si mesma.

Com um soluço, Apolo a abraçou com força. Pamela estava fria, parecia muito frágil, e ele temeu que ela pudesse flutuar caso ele afrouxasse o abraço.

Pamela não se moveu, tampouco falou.

— Pamela! — Apolo falou chorando. — Sou eu... Estou com você agora. Vai ficar tudo bem.

Um arrepio sacudiu o corpo quase etéreo.

— Apolo?

— Sim, meu doce! — Ele pressionou o rosto no cabelo macio.

Pamela se afastou dele e olhou ao redor, confusa. Viu que estava em uma enorme sala de mármore na companhia de Apolo, de uma linda mulher e de um homem alto e moreno.

Em seguida, seu olhar baixou para o próprio corpo e seu rosto perdeu a cor com o choque.

— Diga-me que isto é um sonho, Apolo. Diga-me que muito em breve eu vou acordar! — falou com voz trêmula.

— Não posso — ele respondeu, combalido.

— Pamela... — A voz de Lina soou suave como uma lagoa quente e tranquila. Cuidadosa, ela tocou o espírito recém-desencarnado no braço. — Sou Carolina, mas pode me chamar de Lina se quiser. E este é meu marido, Hades.

Os olhos de Pamela pareceram ainda mais enormes e redondos no rosto pálido.

— Hades? — ela sussurrou. Apática, levantou a mão translúcida e olhou para ele. — Estou morta e vim para o... — Seus olhos voaram para o Deus da Escuridão, e ela entreabriu a boca como se fosse gritar.

— Está em Elysia — explicou Lina com um sorriso gentil. Então pegou a mão que Pamela ainda segurava diante do rosto e a envolveu com seu calor, desejando que os poderes imortais que descansavam dentro do corpo de Perséfone a consolassem. — Mais especificamente, está em nosso palácio, às margens dos Campos Elíseos. O Submundo é um lugar muito bonito, querida. Não há nada aqui de que precise ter medo.

— Submundo? — Balançando a cabeça, Pamela olhou para Apolo.

— Por que estou no Submundo Grego?!

— Eu não sabia mais o que fazer. — Os olhos de Apolo imploraram para que ela o compreendesse.

— Não... — sussurrou Pamela. — Não, não pode ser!

— Você morreu antes do pôr do sol, e eu não podia fazer nada para salvá-la. Por favor, perdoe-me! Eu não podia deixá-la partir. Jamais!

Pamela continuou balançando a cabeça e olhando para ele.

Logo depois se lembrou. Viu o carro vindo em sua direção, e foi como se sentisse mais uma vez o impacto mortal.

Com um movimento espasmódico, saiu dos braços de Apolo e o fitou com olhos enormes.

— Não sei o que podemos fazer agora — ele murmurou, perdido.

— Bem — Lina falou com naturalidade —, o próximo passo é você ir com Hades e tirar essas roupas sujas de... — ela fez uma pausa e reformulou a frase: — ... roupas que não estejam tão sujas. Enquanto fizerem isso, vou mostrar os arredores a Pamela. Vão andando... — Ela capturou os olhos do marido e ergueu as sobrancelhas. — Nós ficaremos bem.

— Eu não vou me demorar. — Apolo tranquilizou Pamela.

Ela o fitou, como se em transe, enquanto observava-o deixar o salão na companhia de Hades.

Lina continuou segurando a mão fria de Pamela. Gentil, levou-a na direção de uma enorme porta incrustrada com prata, do outro lado do salão. O espírito recém-desencarnado a seguiu com resignação.

Após atravessarem o portal, elas adentraram um corredor largo, repleto de lustres de cristais. Lina virou para a direita e, em seguida, para a esquerda. Grandes portas de vidro se abriram sem que elas as tocassem, e as duas mulheres saíram para um pátio incrivelmente bonito, cheio de estátuas de mármore, com uma fonte enorme e flores em diversas nuances de branco.

Apesar do pânico que lhe embotava o raciocínio, a designer dentro de Pamela percebeu a beleza que a rodeava.

— É fantástico, não é? — comentou Lina. — Adorei este lugar desde o primeiro momento em que pus os olhos nele.

Pamela olhou para a moça e piscou como uma sonâmbula lutando para despertar.

— Você não é um deles, é?

— Não — Lina negou com um gesto de cabeça, fazendo os cabelos castanhos dançar em torno da cintura delgada. Então sorriu e apontou para o próprio corpo.

— Isto é de um deles, mas isto... — colocou a mão sobre o coração — ... é muito mortal. Sou como você: um espírito que foi deslocado do que eles chamam “o Mundo Moderno mortal”. Venha... vamos nos sentar naquele banco. — Lina esperou até que Pamela houvesse se acomodado para continuar. — Na verdade, sou uma padeira de Tulsa. É uma longa história, mas o resultado final é que Perséfone e eu fizemos um acordo. Quando é primavera e verão em Tulsa, o espírito dela fica lá, no meu corpo, e eu fico aqui, no Submundo, com Hades. Quando é outono e inverno em Oklahoma, eu vou para lá, e ela se diverte pelo Olimpo, ou onde quer que seja, em seu corpo de deusa. — Lina sorriu. — Foi um bom negócio. Os invernos em Oklahoma são agradáveis, e o tempo em Elysia... — ela fez um gesto, abrangendo tudo ao redor — ... é sempre perfeito. Sem dizer que também há Hades, claro. — Seus olhos suavizaram-se ainda mais.

— Eu não consigo... Não sei se posso aceitar tudo isso. — Pamela passou a mão sobre a testa e deu um pulo ao ver seu tom pálido e fantasmagórico. — Não me sinto como eu mesma; nem pareço comigo!

— Eu sei, querida, eu sei. É sempre difícil quando se morre antes de se estar preparado. E com você será ainda mais difícil porque não é aqui que vai ficar... Mas prometo que será sempre bem-vinda em Elysia. Vai encontrar paz aqui. Não precisa ter medo. Basta escutar seu espírito. Ele sabe mais do que você imagina.

— Paz... — repetiu Pamela. Já não estava mais ofegante, nem sentia tanto medo.

Em meio ao choque e ao pânico, percebeu algo que lembrava um pouco a voz de Lina. Algo delicado, quente e reconfortante, como uma chuva no final da primavera ou uma sesta à tarde.

E estava no ar, ao seu redor.

Uma leve brisa soprou seu corpo espiritual, acalmando-a. Parecia sussurrar o nome dela, como uma mãe acolhendo uma criança perdida nos braços.

— Entende o que quero dizer? — Lina perguntou, estudando seu rosto.

Pamela respirou fundo e olhou para o próprio corpo outra vez. Desta vez, sua pele luminosa não a assustou. Sim, ainda era ela: seus braços, pernas e o restante do corpo.

Ergueu a mão outra vez, estudou-a... e reconheceu a alma dentro daquele invólucro transformado.

A brisa quente tornou a soprar, acariciando-a com uma aceitação e um amor quase palpáveis.

— Acho que estou começando a compreender. — Pensativa, ela passou os dedos pelo cabelo curto, percebendo apenas vagamente que era como passar a mão através de uma névoa fria. Virou-se no banco, de modo a ficar de frente para Lina. — Eu acredito que possa encontrar a paz aqui, mas e quanto ao amor?

— Você já sabe a resposta, Pamela. Ainda ama Apolo?

— Claro — ela respondeu sem hesitação.

Lina sorriu.

— Porque o amor é uma das poucas coisas que podemos levar conosco.

— Mas e quanto a... — Pamela tornou a levantar a mão semitransparente. — Não sou mais como era antes.

— Não, não é mais a mesma, contudo seu espírito tem forma e sentimentos. O resto é com você e Apolo...

— Não seria como fazer amor com um fantasma para ele? — Pamela indagou, combalida.

Lina segurou-lhe a mão mais uma vez.

— Prefiro pensar que isso, sim, é amar a pessoa em sua essência.

— Então estou morta. — Desta vez, quando disse isso, Pamela não sentiu o coração fraquejar. Não se sentiu como se precisasse acordar de um pesadelo.

Os pensamentos se alternavam em sua mente. Preocupou-se com o irmão, com os pais e com Vernelle, porém sua preocupação assumiu um caráter distante, literalmente de outro mundo; como se ela estivesse se recordando de um sonho doce e recorrente. Não que ela os tivesse esquecido ou deixado de amá-los. Apenas se sentia à parte da vida que tinha conhecido.

Perguntou-se se aquilo era algum tipo de mecanismo de defesa inato da alma para impedir que o espírito ficasse se consumindo por toda a eternidade por aqueles que havia deixado para trás.

Eternidade... Ainda era incompreensível.

— Estou morta, mas ainda sou eu.

— Sim, querida, e você vai ficar bem — afirmou Lina. Depois ergueu o olhar e sorriu. — Aí vêm os nossos deuses.

Hades e Apolo caminhavam em sua direção através do pátio florido. O Deus da Escuridão estava com a mão no ombro do amigo e falava com ele, enérgico, enquanto andava. Apolo acenou com a cabeça em resposta, mas, quando viu Pamela, sua atenção se voltou completamente para ela, e ele correu até onde as mulheres se encontravam sentadas.

Parou ao lado do banco.

— Parece tão mal quanto estava logo após a cobra tê-lo picado — comentou Pamela. — Sua mão não está doendo mais, está?

— Não — ele afirmou e quase riu. — Não há mais nenhuma lesão em meu corpo. — Passou os dedos de leve pelo rosto delicado. — É você de novo, doce Pamela?

— Sim, acho que sim. Sinto-me diferente, mas ainda sou eu. Talvez mais do que sempre fui... — ela completou com uma voz marcada pela perplexidade.

— E me perdoa por ter roubado sua alma e tê-la trazido para cá?

Pamela estudou o rosto bonito à sua frente. Lina tinha razão. Ela havia trazido o amor consigo. E também outras coisas, como fé, esperança e perdão.

— Está tudo bem, Apolo. Eu o perdoo.

Emudecido, o Deus da Luz caiu de joelhos, afundou a cabeça em seu colo e, enquanto ela lhe acariciava o cabelo, chorou.


No Monte Olimpo, Zeus ouviu Ártemis terminar sua história. A Deusa da Caça fora implacável em sua ira, mas também fora apaixonada na defesa dos mortais modernos.

Intrigado, Zeus viu a filha enxugar as lágrimas de seu belo rosto enquanto descrevia a morte da mulher que ela afirmava ser a amada de seu irmão. Mal podia acreditar na mudança que se operara em Ártemis. A deusa nunca se importara muito com os mortais.

Verdade que ela não costumava ser cruel com eles; apenas indiferente, fria, intocável... Os mortais faziam sacrifícios pela Deusa da Caça, solicitavam sua ajuda, e Ártemis eventualmente até atendia a seus pedidos, se lhe desse na telha... Mas nunca, em todas as suas eras de existência, ele a vira chorar por uma mortal.

A diva também tinha falado do bardo que abrigara a ela e a seu irmão gêmeo com tanta dedicação, como se ela também se importasse com o tal mortal.

Fascinante.

— ... Aquela mulher pobre e fraca, que não passou de um instrumento para a morte de Pamela, estava sob a influência de Baco. Senti o mau cheiro daquele infeliz. Era como se ela tivesse passado a noite se banhando nele... O Deus do Vinho é o culpado, e não apenas pela morte de uma inocente. Ele manipulou todos os eventos que culminaram nesta triste noite. E por quê? — A Deusa da Caça se voltou para Baco, que também se postara diante do grande Zeus, onde este se encontrava sentado em seu elevado trono. — Por nenhuma outra razão a não ser inveja e despeito!

— Por retribuição! — gritou o Deus do Vinho.

— Retribuição?! — devolveu Ártemis. — Por que Pamela merecia um castigo? Ela era gentil e leal! Tudo o que fez foi amar o meu irmão e nos socorrer quando nos vimos presos em seu mundo, sem os nossos poderes!

— A punição não era para ela. Era para você e para aquele seu irmão arrogante. — Baco voltou os olhos estreitos e malévolos para Zeus. — Não percebe? Eles pensaram que podiam dominar o meu reino e nunca ser punidos por sua transgressão. Não agiram como meros visitantes, mas sim como usurpadores!

— SILÊNCIO! — ordenou Zeus, fazendo um trovão rugir no céu. — Sou eu quem deve julgar. Aproxime-se, Baco.

O deus caminhou, hesitante, até a beira do pedestal de Zeus.

— Você é meu filho, Baco, e eu o amo. Mas também é filho de sua mãe, e ela desejava o que não podia ter... Sêmele não conseguia agir com bom-senso, e isso acabou lhe custando a vida. Agora você também deseja o que não é seu. Assim como à sua mãe, eu também lhe dei uma chance de usar a razão. Em vez disso, reagiu com mentiras e com ódio. Diga-me, Baco, Deus do Vinho, o que faz quando uma de suas videiras deixa de produzir bons frutos?

Confuso, Baco piscou os olhos pequenos e olhou para Zeus de soslaio.

— Ela é podada ao final da estação, para que na próxima temporada reviva e dê bons frutos.

Zeus assentiu, solene.

— Será esse o seu castigo, meu filho. A partir de hoje, a cada final de estação, o seu corpo será enviado aos Titãs para ser desmembrado — podado — por suas poderosas águias. A cada vez que renascer, lembre-se da lição da videira morta. Pense em seus erros, aprenda com eles e dê bons frutos novamente.

Enquanto Baco gritava, aterrorizado, Zeus ergueu a mão poderosa, e o Deus do Vinho desapareceu.

Zeus se voltou para Ártemis.

— Aproxime-se de mim, minha filha.

Sem demonstrar nenhum medo, a deusa caminhou até o pedestal.

— Conte-me o que aprendeu no Reino de Las Vegas — ele ordenou.

Ártemis encontrou os olhos cinzentos e tempestuosos do pai.

— Aprendi o que é ser mortal.

— Diga-me o que isso significa, Ártemis.

— Significa que eles não são frágeis, inconsequentes; seres que vivem e morrem em um piscar dos nossos olhos. Não são nem um pouco fracos. Apenas os seus corpos mortais sucumbem. Dentro de muitos deles existem centelhas de honra e lealdade, de amizade e amor. E eles brilham tanto que, se pudéssemos vê-los como realmente são, sua luz cegaria até mesmo os deuses.

— E foi uma lição valiosa?

— Eu a levarei comigo para sempre.

— Então a aprendeu de modo mais profundo do que qualquer castigo que eu lhe poderia infligir... Você a aprendeu no fundo da alma. Não vou acrescentar nada a isso, portanto. A verdade que agora carrega em seu coração é lição suficiente. Você é livre para fazer o que quiser.

Ártemis inclinou a cabeça, mas, antes que pudesse sair da sala do trono, a voz do pai a deteve.

— Uma última coisa, minha filha. Seu irmão precisa de você. Eu lhe concedo o poder de que vai precisar para ajudá-lo... Se assim quiser.

Confusa, Ártemis inclinou a cabeça outra vez.

Mas claro que iria ajudar Apolo.

— Obrigada, meu pai.

— Não me agradeça ainda, filha. O amor é muitas vezes tão doloroso quanto é doce... Pode ir até Apolo agora.

A tristeza na voz poderosa de Zeus não lhe passou despercebida.

Assim que se viu livre da presença do pai, Ártemis fechou os olhos e se transportou para o Submundo.


Capítulo 34


— Ártemis, estou pedindo para que tente me entender e pense em uma maneira de me ajudar — implorou Apolo.

— Eu não posso! Não vou fazer isso! Não entendo por que não pode simplesmente deixar as coisas como estão... Pamela parece feliz. Por que ela iria querer que mude isso? — Ártemis puxou, irritada, uma das rosas cor de creme e perfeitas que cobriam parte dos jardins ornamentados, os quais se estendiam em camadas por trás do palácio de Hades e terminavam à beira dos Campos Elíseos. Mal havia tido tempo de conversar com Pamela, pois, assim que se materializara no Submundo, Apolo dissera que precisava falar com ela e a puxara na direção do jardim.

Agora mal podia acreditar no que ele queria dizer a ela.

Apolo suspirou.

— Ainda não conversei com Pamela a respeito. Eu queria lhe dizer o que estava pensando, primeiro, para que pudesse me ajudar a decidir o que fazer com... — A voz do deus sumiu enquanto ele andava, inquieto, de um lado para o outro do caminho à sua frente.

— ... com o insignificante fato de o Deus da Luz estar pensando em deixar o Olimpo. E para sempre!

Apolo franziu a testa.

— Não para sempre. Apenas por uma vida.

— O que decerto vai parecer uma eternidade para um Mundo Antigo que se verá desprovido de seu Apolo!

— Talvez pudéssemos falar com nosso pai. Você disse que ele não está mais aborrecido conosco. Talvez eu pudesse convencê-lo a...

— A quê? A verificar se a sua carruagem continua a fazer o sol se erguer no firmamento?... Acorde, criatura! Espera isso dele, mesmo? — Ártemis jogou o cabelo dourado para trás, tentando ignorar as palavras que a assombravam: Seu irmão precisa de você. Eu lhe concedo o poder de que vai precisar para ajudá-lo... Se assim quiser.

Agora entendia o que Zeus havia dito. Compreendia, e estava odiando aquilo tudo.

Apolo balançou a cabeça, angustiado, e passou a mão pela testa.

— Não, eu... Não sei o que fazer, irmã. Eu só quero uma chance, e esse me parece o único caminho.

Ártemis sentiu o peito se apertar.

— Pamela não faz ideia do que está pensando em fazer?

— Não, ainda não — ele admitiu.

— E quanto a Hades e Lina? Já falou com eles a respeito?

Apolo assentiu.

— E o que eles acharam desse seu plano?

— Hades disse que eu estava ficando louco. Lina compreendeu.

— Pois bem, estou mais de acordo com Hades do que com Lina!

— Eu já imaginava — ele murmurou, desanimado.

— O que esperava?!

Os olhos de Apolo encontraram os dela.

— Pensei que, talvez, minha irmã pudesse me ajudar a encontrar uma saída...

Ártemis sentiu uma pontada de dor ao tomar sua decisão. Não tinha escolha. Amava Apolo demais.

— Vou guiar a sua carruagem, meu irmão.

— Você? Mas como...

A deusa ergueu a mão delicada e perfeita, e lançou mão da arrogância para domar as lágrimas que lhe ardiam nos olhos.

— Duvida dos meus poderes?

— Não! Eu...

— Então está resolvido. — Ártemis estudou as unhas bem-cuidadas. — Eu sempre achei que aquela sua carruagem precisava ser modernizada, mesmo. É muito antiquada, muito... — estremeceu dramaticamente — ... espartana.

Apolo apenas a fitou, boquiaberto, e ela lançou-lhe um olhar severo.

— Não vai agradecer à sua irmã?

Com um grito, ele a ergueu nos braços e a fez girar no ar.

O corpo etéreo de Pamela emergiu de um dos passeios perpendiculares nesse momento.

— Maldição dos infernos ! O que está... — Ela soltou uma exclamação e cobriu a boca. Em seguida começou a rir. — Eu disse “inferno” e me assustei!... — Balançou a cabeça, os cabelos curtos se movendo como espuma do mar ao redor do rosto delicado.

Apolo sorriu e estendeu a mão para ela. Ainda rindo um pouco, Pamela segurou a mão sólida e quente em seus dedos frios.

— Como eu ia dizendo... o que está acontecendo aqui, com vocês dois? Ouvi você gritar lá da outra camada do jardim!

Apolo olhou para Ártemis, que olhou para Apolo.

— E então? — insistiu Pamela. — Ninguém vai dizer nada?

— O plano é seu. Você conta — Ártemis decidiu.

— Que plano?...

Apolo respirou fundo.

— Eu tive uma ideia. Falei com Hades e Lina a respeito, mas só agora contei a Ártemis. E os três o consideraram viável.

— Maluco, mas possível — resmungou a deusa.

Apolo sorriu com carinho para a irmã antes de se voltar para sua amada.

— Você já está aqui há tempo suficiente para saber que existem sete rios no Submundo.

— Sim. — Ela assentiu com um gesto de cabeça.

— Minha ideia tem a ver com o primeiro deles: o Rio Lete.

Pamela encolheu os ombros pálidos.

— Sei, e qual é a ideia?

— Primeiro precisa entender o Rio Lete — interveio Lina, aproximando-se pelo passeio de braços dados com o marido.

— Ele é chamado de “o Rio do Esquecimento” — explicou Hades.

Apolo balançou a cabeça, fingindo-se desgostoso.

— Não existe privacidade aqui no Submundo?... — indagou, porém foi solenemente ignorado.

— O Rio do Esquecimento. O que isso significa? — Pamela quis saber.

— Ele tem a finalidade de lavar uma alma de todas as recordações, de modo que esta possa renascer e viver outra vida — Lina explanou.

Pamela encontrou os brilhantes olhos azuis de Apolo.

— E?...

— Se bebêssemos das águas do Rio Lete, você e eu poderíamos renascer e ter uma vida juntos. Poderíamos nos casar, ter filhos e envelhecer juntos.

— Mas você não é mortal — retrucou Pamela com voz fraca, pois era como se as palavras do deus tivessem feito seu espírito alçar voo.

Viver de novo?... Amar e ter filhos... com Apolo?

— O Lete terá o mesmo efeito sobre o espírito dele — afirmou Lina. — Tudo o que Apolo precisa fazer é deixar seu corpo imortal, assim como Perséfone faz a cada seis meses.

— Mas como ele pode fazer isso? Como pode deixar de ser Apolo?

— É aí que entra Ártemis. Ela concordou em cuidar para que o Mundo Antigo não fique desprovido de luz enquanto eu estiver ausente.

— Concordou? — repetiu Pamela, olhando para a deusa.

Ártemis deu de ombros com indiferença. Em seguida, fingindo cheirar uma rosa branca como leite, curvou-se para a flor perfumada e virou a cabeça, enxugando a face úmida.

Apolo segurou Pamela pelos ombros.

— Poderíamos ambos viver uma vida mortal. E nossos filhos prosseguiriam depois de nós. Pense nisso, Pamela!

Ela sentiu-se tonta, e ficou feliz por Apolo a estar segurando com firmeza.

— Espere... — Olhou para Lina. — Não disse que o Lete apaga todas as lembranças? Se não lembrarmos um do outro, como poderei encontrá-lo? Ou Apolo a mim?

Lina sorriu e se inclinou para Hades, que passou o braço em torno dela.

— Almas gêmeas sempre encontram uma a outra.

— Quanto a isso, têm a minha promessa sagrada — concordou Hades.

O olhar de Pamela se desviou para a silenciosa Ártemis.

— Não quer que ele faça isso, não é?...

— Não quero perder meu irmão — ela admitiu.

Apolo tirou a mão do ombro de Pamela e a pousou no braço da irmã.

— Não creio que iria me perder. Acho que tomaria conta de mim. Assim como de meus filhos... e netos.

Ártemis baixou a cabeça e colocou a mão sobre a dele.

— Claro que sim, meu irmão. Quanto a isso tem meu juramento.

Apolo voltou-se para Pamela.

— Então, tudo o que resta é você concordar, minha doce Pamela.

Ela sentiu como se sua alma fosse explodir de felicidade.

— Sim! Vamos fazer isso!

Apolo virou-se para Hades e ergueu uma sobrancelha para o amigo.

— Agora?...

Hades deu de ombros, e Lina deu-lhe uma cotovelada.

— Seria perfeito ! — decretou a Rainha do Submundo.

Apolo se afastou um passo de Pamela, que ainda franzia a testa, confusa. Ergueu o queixo regiamente, e ela pensou que o deus era exatamente como no perfil estampado na antiga medalha que ele lhe dera já havia algum tempo.

Ia dizer isso a ele, quando o corpo de Apolo de repente tremeu e, em seguida, se transformou em mármore sólido, ao mesmo tempo que seu brilhante espírito o deixava.

A forma reluzente do Deus da Luz se voltou para Hades.

— Cuide bem do meu corpo... Vou precisar dele algum dia.

— Pode deixar, meu amigo.

Lina estendeu os braços, segurou-o pelo rosto com ambas as mãos e o beijou de leve nos lábios. Depois voltou para o lado do marido.

— Eu lhes desejo uma vida repleta de felicidade e alegria... Sabe o caminho, não sabe, Apolo?

O deus brilhante acenou com a cabeça.

— Não vão conosco? — indagou Pamela.

Lina sorriu para ela.

— Para isso, não vai precisar da presença dos deuses. É o tipo de coisa que as almas fazem melhor sem a nossa interferência.

— Também vou me despedir de vocês aqui — decidiu Ártemis.

Em primeiro lugar, a deusa foi até Pamela e a abraçou com força.

— Cuide bem dele por mim — sussurrou para a alma mortal que o irmão tanto amava. Então se voltou para Apolo e mergulhou nos braços brilhantes. Sem se importar com as lágrimas que agora lhe corriam soltas pela face, pressionou o rosto contra o dele. — Onde quer que esteja... Seja quem for... Saiba que o meu amor e minha bênção sempre estará com você, assim como com seus filhos e os filhos de seus filhos.

— Obrigado pela compreensão, minha irmã. E obrigado por ser a minha luz enquanto eu não puder sê-la. — Apolo beijou-lhe cada uma das faces úmidas.

— Eu te amo — declarou a Deusa da Caça conforme seu corpo se esvaecia até desaparecer por completo.


Apolo e Pamela caminharam em silêncio através dos pinheiros altos que começavam onde os jardins de Hades terminavam. Iam de mãos dadas, e seus ombros e quadris roçavam com intimidade.

Não demorou para que, em meio às árvores, começassem a capturar o reflexo cristalino da água em movimento. O rio os chamava com seu canto sussurrante e sedutor.

Inconscientemente, eles andaram mais rápido.

As árvores chegaram ao fim, e eles se viram em pé sobre um afloramento de rochas que dava para a água, a qual brilhava como joia líquida.

— Está com medo? — perguntou Apolo.

— Não — garantiu Pamela. — Você vai me encontrar. Eu sei que vai.

— Sempre — ele prometeu.

Juntos, eles se ajoelharam na beira da água. Apolo juntou as mãos em concha, mergulhou-as na água fria e as ergueu, de modo que Pamela pudesse bebê-la. Então, enquanto ela observava, afundou-as outra vez e fez o mesmo.

Em pé, tomou-a nos braços e a beijou. Conforme seus corpos espirituais se uniram, começaram a brilhar. Seus cabelos e roupas puseram-se a açoitá-los violentamente, como se eles estivessem bem no meio de uma violenta tempestade.

Apolo pendeu a cabeça para trás e riu, extasiado, e o riso de Pamela se juntou ao dele à medida que suas almas se inundavam com uma onda de amor e alegria.

Mais uma vez, o deus puxou sua alma gêmea para os braços, e Pamela enroscou o corpo luminoso no dele. Enquanto se abraçavam, seus corpos continuaram a se transformar, perdendo suas características, de modo que foi como se houvessem se fundido e se tornado um só.

De repente, a esfera incandescente explodiu, fazendo chover faíscas na água.

Do centro do gêiser chamejante, surgiram duas pequenas bolas com luzes idênticas. Elas pairaram acima do rio por um momento, aclimatando-se a seus novos sentidos. Em seguida, como se seguindo uma trilha de doces lembranças, começaram a flutuar corrente abaixo, em direção ao seu novo começo.


Epílogo


Kristin estava tão entediada que pensou que iria morrer. Desejou morrer. Poderia muito bem morrer... Que outra coisa havia para fazer?

Era típico de seus pais forçá-la a tirar aquelas férias idiotas em família. Eles não podiam tê-la deixado em casa com suas amigas Janice, Rebecca e Ruth?

Claro que não, mesmo ela tendo acabado de fazer treze anos! Não era idade suficiente para que ela ficasse em casa sozinha por duas semaninhas ...

Aquilo não fazia o menor sentido.

Por isso ali estava ela, sentada em uma praia, sozinha, enquanto o sol nascia. E por quê? Porque ninguém mais na família saía da cama antes da hora do almoço. Estava condenada a conviver com pessoas que dormiam na melhor parte do dia!

E aquele era apenas o segundo dia daquelas duas semanas de tortura que seus pais chamavam de férias.

Considerou se lançar ao mar.

Não. Ela nadava muito bem. Levaria uma eternidade para se afogar.

Kristin afundou os pés na areia branca e deixou as marolas baterem nos dedos. Talvez devesse ler um livro. Outro livro.

Passou a mão pelo cabelo curto, irritada. Ela o havia cortado poucos antes de eles partirem, e ainda não se acostumara com o novo corte. Principalmente com o modo como os fios espetavam na frente.

Suspirou. Não devia tê-los cortado. Nunca mais iria conseguir um namorado. Nunca mais!... Iria morrer solteirona.

Uma sombra bloqueou parte do sol da manhã, e ela suspirou mais uma vez. Na certa era seu irmão caçula. Perfeito.

Apanhou um punhado de areia molhada e estava prestes a jogá-lo nele quando a sombra falou.

— Oi — soou a voz estranha.

Kristin se virou e segurou a mão cheia de areia diante dos olhos, protegendo-os do brilho ofuscante do sol que nascia.

Quase desmaiou. Era um menino! Um menino lindo, alto e loiro... Devia ter uns dezesseis anos e estava sorrindo para ela.

— Oi — respondeu, tímida.

— Acordou agora ou está indo para a cama? — ele perguntou sem pestanejar.

— Acordei agora — ela respondeu, não querendo olhar para os olhos dele como se fosse uma idiota. Eles eram tão azuis quanto o oceano!

— Eu também. — Ele sentou-se a seu lado. — Prefiro as manhãs.

— Eu também! — Kristin concordou depressa.

— Minha família inteira ainda está dormindo.

— A minha também! Eles dormem demais.

— Verdade.

Kristin mal podia acreditar em como ele era... quente. Não estava sentado muito próximo, mas ela podia jurar que sentia ondas de calor vindo de seu corpo.

Quis dizer algo, mas não queria gaguejar, muito menos parecer estúpida.

— Ei, o que é isso? — ele indagou, apontando para algo que brilhava na beira da água, meio encoberto pela areia em que seus dedos dos pés estavam enterrados. Inclinou-se, quase tocando nela, e agarrou o objeto, levantando-o da areia. — Uau!! — exclamou, entusiasmado.

— Incrível! — concordou Kristin. Mal podia desviar o olhar da ofuscante medalha que pendia da corrente dourada. Ela brilhava à luz crescente e tinha o perfil de um homem estampado em sua face. Um homem lindo, com cabelos encaracolados.

— É sua — ele declarou, solene.

— Minha?... Nã-nã.

— Hã-hã! Claro que é. Estava aos seus pés, na sua praia, durante a sua manhã. É sua. — Ele abriu o pequeno fecho e colocou a corrente em torno do pescoço dela.

A medalha ficou no lugar como um pedaço de sol. Kristin a tocou e a sentiu quente.

— Viu?... Combinou direitinho — ele comentou sorrindo.

Ela pensou que fosse desmaiar. Ele era tão, tão absurdamente lindo!

— Meu nome é Kristin.

— O meu é Jordan.

— Oi, Jordan.

— Oi, Kristin.

Sorriram um para o outro, e o sol explodiu do oceano em direção ao céu da manhã.

— Ei... — Jordan comentou. — Gostei do seu cabelo.

— Obrigada — ela agradeceu, pensando que, talvez, aquelas férias de verão não fossem ser uma tortura, afinal.

Nenhum dos adolescentes notou a mulher alta e loira que os observava das sombras. Então é verdade que almas gêmeas sempre se encontram , refletiu Ártemis. Eu nunca devia ter duvidado de você, meu irmão.

A deusa enxugou os olhos e sorriu, tristonha, enquanto desaparecia, em silêncio, por detrás das palmeiras.

Capítulo 26


Pamela ficou surpresa ao perceber que Apolo a estava evitando. E também se viu chocada ao se dar conta do quanto aquilo a incomodava.

Ela até o flagrara olhando para ela, mas, no momento em que havia tentado encontrar seu olhar, ele tinha se virado e fingido estar às voltas com o trabalhador mais próximo.

Apolo a evitara até mesmo durante a pausa para o almoço. Assim, ela se sentara com Eddie e Ártemis e os observara flertando desavergonhadamente enquanto engolia um dos excelentes sanduíches gourmet que o genial cozinheiro de Eddie fizera para todos. Apolo fizera uma pausa apenas suficiente para apanhar um sanduíche e lançar-lhe um sorriso breve, distraído, antes de voltar para junto do arquiteto, próximo do local onde os trabalhadores já haviam começado a demarcar o terreno para o balneário.

Não que ela não estivesse ocupada. Naquele dia eles tinham escolhido o piso, o que acabara por se tornar um grande acontecimento. A princípio Eddie queria uma reprodução horrível do revestimento de pedra brega e tão abundante no Fórum. Por sorte, de cima de seu pedestal — onde posava regiamente, segurando um arco em vez do vaso do dia anterior —, Ártemis balançara a cabeça e protestara mais do que depressa:

— Ah, não, Eddie. É horrível!

E pronto. A pedra falsa fora vetada.

Em seguida, ela, Pamela, pedira a três representantes de marmorarias que trouxessem amostras de suas melhores pedras.

E a confusão tinha começado. Eddie encantara-se com as diferentes cores e variedades, e ficara mudando de uma amostra horrorosa para outra, cada vez mais entusiasmado, insistindo para que colocassem um padrão diferente em cada cômodo. A verdade era que ela estava tendo uma tremenda dor de cabeça com o escritor, refletiu Pamela. Havia tentado explicar a ele que, com o piso plano aberto da casa, passar do mármore Santiago — com veios vermelhos, dourados, alaranjados e verdes — para o Verde Fire —, que era predominantemente verde-limão, amarelo e preto — e depois para o Golden Alexandra —, que era apenas dourado — seria um erro de design terrível.

Mais uma vez, Ártemis viera em seu socorro.

— Eu gosto daquele — a diva tinha decidido, apontando o dedo delicado para um quadrado de pedra esquecido, o qual se encontrava bem distante dos outros.

— Gosta mesmo, minha deusa? — Eddie indagara de imediato, todo atencioso.

Ela, Pamela, pulara até a amostra, que era de uma cor creme discreta, com leves veios manteiga, os quais passavam de uma sugestão de amarelo para um rosa dourado.

Tinha sorrido, então.

— É lindo, mas não é mármore. É um pedaço de pedra calcária. — Levara-a para Ártemis, que passara a mão pela superfície lisa.

— Mas é suave e perfeita! — ronronara a deusa, olhando para o autor. — Eddie, eu adoraria ter esta pedra contra a minha pele nua!...

Os olhos do homem haviam até escurecido.

— Permita-me atender ao seu desejo, minha deusa. Escolho este calcário para cobrir o chão da minha humilde morada.

Humilde morada! Essa fora muito boa , pensou Pamela.

Tinha piscado para Ártemis em um rápido agradecimento, depois se pusera a tratar de detalhes do pedido com o entusiasmado representante da tal pedra.

Em algum ponto da vultosa transação, contudo, vira-se dominada pela inspiração. Tinha pedido ao vendedor que esperasse um instante e, sorrindo, voltara para junto de Eddie, no banco próximo ao pedestal da deusa.

— Tive uma ideia que pode achar interessante.

— Fale, Pamela!

— O que acha de colocar o calcário em todos os ambientes da casa, exceto nas salas de banho? Assim poderia dar asas à imaginação e escolher um mármore diferente para cada uma delas. Em seguida, poderíamos personalizar o ambiente conforme as cores e o padrão do mármore. Seria uma aventura entrar em cada um dos banhos. No caso dos banheiros das suítes, como o da suíte máster e os das outras cinco, usaríamos a cor do mármore escolhido como base para a decoração do quarto.

— Que ideia maravilhosa! — Ártemis havia exclamado com o que parecia genuíno entusiasmo. — Vai ser tão divertido escolher todos eles!

A estrondosa gargalhada de Eddie fizera várias cabeças se voltar.

— Muito bem pensado, Pamela!

Ela sorrira para o homenzarrão.

— Sua casa vai ser realmente única, Eddie.

E, pela primeira vez, usara a palavra como um elogio.

Logo depois, tinha chamado os representantes das pedras para que lhe trouxessem as mais diferentes amostras de mármore.


Pamela estava bebendo uma garrafa de água mineral gelada e estudando uma das amostras de mármore — que lembrava um caleidoscópio — quando sentiu os olhos de Apolo mais uma vez.

Ergueu a cabeça. Ele devia estar fazendo uma pausa porque se encontrava parado do outro lado do pátio, olhando por sobre o ombro do artista que fazia o desenho de sua irmã. Tinha a cabeça ainda inclinada para baixo, em direção ao esboço, porém seus olhos estavam fixos nela.

Pamela sentiu o estômago se apertar no mesmo instante.

Por favor, faça que ele não desvie o olhar! , pensou. E sorriu para ele, tímida.

Apolo devolveu o sorriso, e então sua expressão mudou, como se ele houvesse se lembrado. Baixou os olhos de volta para o esboço, e Pamela suspirou.

— Por que está judiando de Febo? — A voz de Eddie soou estranhamente baixa a seu lado. Ela deu um pulo, perguntando-se como, diabos, o escritor havia chegado tão perto sem que ela houvesse escutado. Olhou para o homem enorme, pronta a insistir que não sabia do que ele estava falando... mas a genuína preocupação em seu rosto a fez conter a negligência nas palavras.

— Não estou judiando dele. Só não sei o que fazer com Febo.

— Mas sabe que ele a ama.

Pamela piscou, surpresa, e Eddie soltou uma versão baixa, mais moderada, de sua risada.

— Precisa se lembrar de que sou um autor, ou seja, não passo de um contador de histórias que observa o mundo e, em seguida, o reformula segundo sua própria visão para entreter e divertir. Além disso, Febo não tenta ocultar seus sentimentos por você. É você quem mascara o que o seu coração sente por ele. Não é verdade?

— Sim — ela concordou.

— Eu sei que é muito atrevimento da minha parte perguntar, mas por quê? Ele me parece um homem de excelente caráter.

Pamela hesitou, sem saber se poderia contar a Eddie parte da verdade.

— Pode se abrir comigo sem medo, Pamela. O que disser não afetará nossa relação profissional. Eu gostaria muito que pensasse em mim como um amigo. Sempre achei ridículo quando as pessoas dizem que nunca misturam negócios com prazer. Como suas vidas devem ser sem-graça se marcham sozinhas sob o peso de regras tão restritivas!... Então, me diga, o que a impede de aceitar Febo?

Ela estudou os olhos de Eddie. Eles não continham malícia e pareciam cheios de genuína preocupação.

— Se eu lhe disser a verdade, não preciso temer que ela vá aparecer em um de seus livros? — perguntou em tom de brincadeira.

Desta vez a risada de Eddie retumbou por todo o pátio.

— Isso é sempre um risco quando se tem um amigo escritor... — ele se inclinou e baixou a voz para um falso sussurro: — Mas eu prometo mudar o seu nome.

Tomando uma decisão apenas com base no que os instintos lhe diziam, Pamela deixou escapar:

— Estou com medo de sair ferida... Você não?

O olhar de Eddie se desviou dela para Ártemis. Por um momento, a tristeza sombreou seu semblante. Então ele respirou fundo, e esta se foi, substituída por um sorriso. Sem tirar o olhar da deusa, o autor comentou:

— Lembra-se de que, quando nos conhecemos, eu queria que a estátua central da minha fonte fosse feita segundo uma imagem do deus Baco?

— Sim — Pamela acenou com a cabeça, torcendo para não ter dito algo que o fizera reconsiderar aquela ideia medonha.

— Baco sempre foi um dos meus deuses favoritos, mas não é tipicamente olímpico. Diz a mitologia que ele foi o último deus a entrar no Olimpo. Homero não o reconhecia como tal. Baco era de uma natureza estranha para os outros deuses. Eles, que sempre haviam primado pela ordem e pela beleza, nem sempre apreciaram o caráter único de Baco ou de seus adoradores. E eu compreendo isso. Sei bem o que é ser denominado uma coisa e encarado como outra. — Eddie balançou a cabeça e a fitou com carinho. — Agora estou divagando... Não é a história de Baco que quero que ouça, mas a da mãe dele. — O escritor fez um sinal para que um dos trabalhadores lhes trouxessem cadeiras.

Pamela se sentou a seu lado, esperando, enquanto Eddie acomodava o corpanzil e pedia um copo gelado de hidromel. Quando ele perguntou se ela se juntaria a ele no drinque, Pamela deu de ombros e assentiu. Por que não? Trabalhando para Eddie, decerto poderia sair um pouco da linha.

Tão logo o hidromel chegou, o escritor tomou um longo gole antes de se lançar em sua história.

— Sêmele era uma linda princesa de Tebas. Nascida de pais mortais, tinha o rosto e a silhueta de uma deusa... Infelizmente, ela chamou a atenção de Zeus, o Governante Supremo do Olimpo. Zeus flertava com muitas donzelas mortais, assim como a maioria dos deuses e deusas.

Nesse ponto, Pamela bufou, desgostosa, e cruzou as pernas outra vez.

Eddie sorriu.

— Lembre-se, minha querida. Era um mundo diferente. Finja, apenas por um momento, que é uma linda jovem vivendo na Grécia antiga. Nascida em uma família de comerciantes, está insatisfeita com o papel que o destino lhe reservou. Você colocaria de lado suas aspirações mais secretas e se casaria, submissa, com quem a família escolhesse? E se, digamos, um belo homem atravessasse o seu caminho? O filho mais velho de um rico latifundiário, talvez?... Ele está longe do seu alcance, mas você encontra o amor em seus braços... De repente, entretanto, descobre que está grávida. Iria se deixar expulsar de casa, desonrada, quando seu romance fosse descoberto? Ou contaria como, um dia, enquanto estava colhendo flores em um prado distante da cidade, um deus surgira, a seduzira e lhe fizera um filho?... Um filho que nascera em meio a muito alvoroço, e cuja vida é rodeada de mistério e magia?

— Compreendo — Pamela murmurou.

— Posso continuar com o meu conto?

— Desculpe — ela murmurou, recostando-se na cadeira para beber o hidromel.

— Como eu estava dizendo, Sêmele se tornou uma das muitas amantes mortais de Zeus. Mas ela era diferente, e não apenas por conta de sua extraordinária beleza. Diz a mitologia que Zeus se encontrava completamente apaixonado por sua jovem amante, tanto que, quando ela lhe disse que teria um filho dele, o deus fez um juramento sobre o Rio Styx de que lhe daria qualquer coisa que ela lhe pedisse. — Eddie parou e sorveu o hidromel em lenta contemplação.

— E então, o que aconteceu?

— O maior desejo de Sêmele era ver Zeus em todo o seu esplendor como Senhor do Olimpo e Deus dos Trovões. Zeus implorou à amante que reconsiderasse seu pedido. Ele sabia que nenhuma mortal poderia contemplá-lo como tal e viver, porém ela não quis voltar atrás em sua maior vontade. O Senhor dos Deuses tinha feito um juramento sobre o Rio Styx, e nem mesmo ele poderia romper aquele vínculo. Assim, com as faces banhadas por lágrimas devido a sua previsão, foi até ela uma última vez e se revelou conforme ela desejara. E assim, diante da glória de sua luz ardente e terrível, Sêmele sucumbiu.

— Mas isso não pode estar certo! Se ela morreu, como foi que Baco nasceu?

— Por causa de seu amor por Sêmele, Zeus lhe arrancou o filho do ventre enquanto ela perecia e carregou a criança dentro de sua própria coxa até que chegou a hora de o Deus do Vinho nascer.

Antes do dia anterior Pamela teria reagido com ironia àquele antigo mito contado por Eddie. Agora sabia muito bem que a possibilidade de este ser muito mais do que ficção era grande e se condoeu pela tragédia de Sêmele, que havia morrido ao se recusar a deixar de lado seu desejo mais profundo.

— Eu não fazia ideia — falou baixinho.

— Acha que Sêmele se arrependeu de seu desejo? — perguntou Eddie.

— Bem... este a matou.

— Mas acha que ela se arrependeu? Acha que ela teria trocado aquele momento extraordinário de realização, de total satisfação — tão intenso que seu corpo mortal não pôde suportá-lo —, por uma vida segura, porém desprovida daquele instante ofuscante de esplendor?

— Não sei se posso responder a essa pergunta. O que acha, Eddie?

— Precisa tomar uma decisão por si mesma. — O olhar do escritor se desviou dela e encontrou Ártemis. Seu sorriso já não denotava tristeza. — Eu tomei a minha.

— E não sente medo? — Pamela descobriu que mal conseguia formular as palavras.

— Claro. Não há garantias no amor, Pamela. Apenas infinitas oportunidades... para a dor e para a felicidade. Mas posso dizer, sem qualquer dúvida, que prefiro tocar essa felicidade por um instante e me deixar ferir do que viver minha vida na escuridão, sem nenhuma luz.

Com as palavras, algo mudou dentro de Pamela. Algo que se encontrava adormecido dentro dela finalmente fez mais do que se agitar. Despertou por completo. Ela sabia o que era viver na escuridão, e também sabia o que era tocar a luz...

— Também não quero uma vida desprovida de luz — murmurou em meio ao nó na garganta.

Eddie olhou para ela e sorriu.

— Muito bem, Pamela. Muito bem.

De repente, ele se levantou, e sua voz grave ressoou por toda a vila.

— Febo! Venha até aqui!

Pamela tentou dizer algo, como: “Espere, Eddie! Eu não disse que estava pronta para tocar a bendita luz agora!...”, mas o autor ignorou seus murmúrios desesperados.

Quando Apolo se apressou em ir até eles, Pamela ficou mortificada ao perceber que seu rosto ardia. Estava corando como uma adolescente!

Que maravilha!...

— Aí está você, meu rapaz! Tenho um pedido para lhe fazer.

— O que posso fazer por você, Eddie?

— Acho que Pamela anda trabalhando demais, e possuo uma regra rigorosa: sempre misturar negócios com prazer! Mas parece que nossa amiga desconhece essa regra... — observou Eddie, como se ela não estivesse sentada a centímetros dele e com o rosto pegando fogo.

— Eu já reparei — concordou Apolo, tentando manter a expressão neutra.

— Que bom! Então sabe exatamente o que precisa fazer... — Diante da expressão vazia do gêmeo dourado, Eddie se ergueu e lhe deu um tapinha no ombro. — Vamos! Tire-a daqui, homem! Vá passear um pouco com Pamela no resort . Visitem as fontes e refresquem-se. Vou pedir a James que lhes providencie um belo almoço... e não esperaremos vê-los tão cedo!

Apolo pareceu tão surpreso quanto Pamela.

— James! — Eddie gritou, e seu assistente, como de costume, surgiu como num passe de mágica. — Peça a Robert que leve Pamela e Febo de volta para o resort , e faça o pessoal preparar um belo piquenique à moda antiga para os dois. Eles precisam de algum tempo para descansar e... — parou, piscando para Febo — ... aproveitar um pouco.

— Agora mesmo, Eddie — aquiesceu James antes de se afastar correndo.

— Podem ir — falou o escritor. — E não se preocupe, Pamela. Diana e eu terminamos de escolher o mármore para os banheiros.

— Tem certeza de que não precisa de mim para fechar o negócio com o representante da pedra calcário?

— Não, não... — Eddie afastou sua preocupação. — Ele já tem a planta. Agora fora daqui, vocês dois!

Sem ver alternativa, Pamela se levantou e começou a caminhar com Apolo pelo pátio. As portas estavam abertas, e o sol refletiu a lataria prateada da limusine que parou diante da villa.

Apolo estacou.

— Lembre-se, Febo, precisa matar o dragão antes de ganhar a donzela! — Eddie gritou atrás deles.

O Deus da Luz ergueu a mão e acenou de volta para Eddie com bom humor, mas Pamela ouviu seu suspiro dolorido e percebeu como seu rosto tinha empalidecido diante do veículo.

Apolo endireitou os ombros, então, e avançou novamente.

— Existem dragões no Mundo Antigo? — Pamela murmurou enquanto caminhava a seu lado.

— Sim, mas não carros. E juro que eu preferiria enfrentar os dragões.

— Vou me sentar no banco da frente com você.

— Não posso matar essa coisa?...

— Eu não acho que seria uma boa ideia. — Pamela tentou não rir, sem sucesso.


Capítulo 27


Fazer caminhadas e andar pelas trilhas do Pikes Peak sempre fora um dos passatempos favoritos de Pamela, assim como sua principal forma de exercício. Por que deveria malhar no sufocante confinamento de uma academia feita pelo homem quando contava com o esplendor das Montanhas Rochosas do Colorado ao seu redor? Não que ela fosse uma daquelas praticantes que vivia de mochilas nas costas, acampando e desprezando as conveniências da vida moderna. Escalar uma parede de rocha nunca a seduzira. Tampouco dormir no chão e fazer xixi no mato.

Mas pegar uma trilha que serpenteasse pela montanha — principalmente no início da manhã, quando tudo parecia ainda mais fresco, quieto e particular — era algo que incluía em sua rotina ao menos quatro vezes por semana desde que tinha deixado Duane. Caminhadas eram sinônimo de liberdade para ela. E não importava o quanto estivesse lenta ou estressada no início de cada uma delas. Uma hora mais tarde, quando voltava, sentia-se relaxada e rejuvenescida.

Ve chamava isso de “seu tempo de ajuste”.

Assim, o short, a camiseta e os tênis novos para caminhada, que haviam sido deixados em sua cama, lhe trouxeram um sorriso aos lábios.

Pamela mudou de roupa depressa e saiu do quarto a tempo de ver Apolo em uma versão masculina do vestuário, andando pelo corredor em sua direção.

— Não sei como Eddie consegue fazer essa mágica sem qualquer poder imortal! — ele falou, sorrindo com ironia.

— O poder de Eddie se chama “dinheiro”... Muito dinheiro. Isso, somado à sua imaginação, equivale à versão da magia no Mundo Moderno. James telefonou para o meu quarto... Pediu para que nós o encontremos na caverna.

— Então, vamos.

Apolo fez um gesto galante para que ela o precedesse pelo corredor, e Pamela percebeu que, assim como na curta viagem de carro, ele se esforçava para não tocá-la. Lembrou-se, contudo, de que o deus estava fazendo apenas o que ela mesma lhe pedira: dando a ela tempo e espaço; o que não ajudava nem um pouco a desfazer o nó que ela sentia na boca do estômago.

James já se encontrava esperando por eles com um sorriso, uma cesta de piquenique e um mapa.

— Marquei aqui uma trilha próxima. Imagino que vão gostar de explorá-la. Ela começa ao norte da casa da fazenda, segue até o First Creek Canyon e termina com uma linda lagoa alimentada por uma cachoeira. Ele apontou para o fim do traço destacado em amarelo. — O lugar perfeito para uma refeição agradável. Na cesta, vão encontrar muita água, bem como protetor solar. E, embora provavelmente não precisem dele, também incluí um telefone celular que já está programado para chamar o balcão de informações do spa . Basta clicar “estrela, sessenta e dois” caso se percam ou precisem de ajuda, o que é pouco provável.

— Você é muito eficiente, James — elogiou Pamela.

— Obrigado, senhora. Basta se lembrarem de que a noite cai depressa no deserto. Creio que o pôr do sol acontecerá hoje às 20h05. — Ele entregou a cesta a Apolo, curvou-se, educado, e deixou os dois sozinhos.

Eles ficaram em silêncio, meio sem jeito, mas Apolo foi o primeiro a falar.

— Acho melhor irmos andando.

Pamela limpou a garganta. Era ridículo ficar nervosa por estar sozinha com ele. Afinal, haviam feito até sexo!... E mais de uma vez. Não existia motivo para aquele aperto no estômago, nem para que suas mãos estivessem tão suadas. Motivo nenhum. Precisava ir com calma.

— Ok. — Ela apontou para o cesto. — Protetor solar em primeiro lugar.

Apolo levantou uma sobrancelha.

Pamela suspirou e soltou o fecho no topo da cesta de piquenique. Isso porque ela queria se comportar com naturalidade!...

Mas a situação, definitivamente, não era normal. O homem diante dela nem sabia o que era protetor solar porque era Apolo, o Deus da Luz.

Pamela suspirou. Seus nervos à flor da pele decerto eram a única coisa normal naquela situação.

Olhou para o cesto superorganizado. James tinha colocado o frasco de protetor solar fator 40 em cima de tudo o mais.

Com uma expressão curiosa, Apolo a observou espalhar a loção cremosa pelos braços e rosto.

— Tem cheiro de coco. O que é? — perguntou, interessado.

— Protetor solar. Ele bloqueia os raios de sol nocivos à nossa pele.

O deus ficou confuso.

— Os mortais podem se queimar sob muita luz. Lembra-se de Sêmele? — ela indagou.

Apolo piscou, surpreso.

— Eddie está me dando aulas de mitologia.

Desta vez, Apolo levantou ambas as sobrancelhas douradas.

— Cuidado com o que acredita das histórias contadas e recontadas em seu mundo. Posso afirmar, sem dúvida, que muitas delas são totalmente equivocadas.

— Sim, eu já percebi isso. Por aqui, dizem que Ártemis é virgem.

Ele soltou uma risada.

— O que prova a minha teoria. Agora, diga a verdade... Essa loção que cheira a coco tem mesmo poder para bloquear a luz de um imortal?

— Duvido, mas pelo menos o impede de pegar uma bela queimadura de sol.

— Queimadura de sol?

— É a mesma coisa que fazer a barba, para você. Deveria ser simples de entender, mas pode deixá-lo confuso, já que não está acostumado com as implicações... A luz solar é assim para os mortais.

Muito sério, Apolo apanhou o frasco das mãos dela, espremeu um pouco na dele, cheirou a loção e, em seguida, espalhou-a pelos braços e ombros.

Pamela o observou e, de repente, sentiu-se inexplicavelmente triste. Apolo, o Deus da Luz, não devia ter que se proteger do sol.

Uma imagem da última vez em que haviam feito amor passou por sua cabeça. Ele se transformara em uma chama, queimando com paixão imortal. Ele era o Sol. Apolo não pertencia àquele mundo. Ela até poderia ceder ao seu desejo mais profundo e se permitir amá-lo, mas não poderia iludir a si mesma pensando que sua história teria um final mais feliz do que o amor mítico de Sêmele por Zeus.

— Não se esqueça do rosto — murmurou.

— Obrigado. — Apolo sorriu e espalhou o líquido branco na pele. — Eu tinha me esquecido. Isto tudo é muito novo para mim.

Pamela sentiu o estômago se contrair outra vez, mas voltou a sorrir.

— Acho que já está bom. — Fechou o frasco e o colocou de volta no cesto.

Apolo o apanhou, e juntos eles saíram pela porta da frente da estalagem.

— Sabe qual lado é o Norte? — Apolo fez uma pausa para perguntar a ela.

Quando ela lhe lançou um olhar espantado, ele sorriu como um menino.

— Eu só estava brincando. Estou sem meus poderes, mas não sem o cérebro.

— Que alívio... — murmurou Pamela, sorrindo de volta para ele conforme percorriam o caminho de pedregulhos que rumava para a esquerda, contornando as construções dispersas e feitas de tijolos que compunham o restante do requintado spa : um restaurante e uma bem abastecida loja de presentes.

Era difícil de acreditar que, passando o resort, aquele oásis dava lugar à beleza crua do deserto. A trilha era ladeada por arbustos selvagens, com flores compridas na cor laranja, intercaladas com plantas roxas e perfumadas, as quais lembravam lavanda, bem como com as familiares folhas pontiagudas e firmes das iúcas. Parecia mais frio ali, no cânion, e muito mais verde; como se o deserto tivesse concentrado por lá toda a sua suavidade e doçura.

Conversaram pouco enquanto caminhavam pelo centro do resort . Apolo não segurou sua mão, tampouco a fez passar o braço pelo dele. Quando falava com ela era educado, até mesmo espirituoso, porém a energia da paixão que estivera presente como uma parte quase tangível de tudo o que ele dizia ou fazia, desde que tinham se conhecido na pequena mesa da Adega Perdida, se fora. Ou então se encontrava bem disfarçada, o que Pamela sentiu profundamente.

Pensou no que Eddie havia dito, e na forma como o rosto do escritor se transformava sempre que seu olhar repousava sobre Ártemis. O homem sabia do grande risco de se ferir que corria, mas acreditava que o que iria ganhar era mais valioso do que aquilo que ele poderia perder.

Não há garantias no amor, Pamela. Apenas infinitas oportunidades... para a dor e para a felicidade.

Era um conceito novo e assustador , pensou Pamela, porém ela nunca fora uma covarde. Raras eram as vezes em que tomava o caminho mais fácil.

Apolo encontrou a placa em forma de seta, em que se liam as palavras esculpidas: “First Creek Canyon”.

— Eu profetizo que First Creek Canyon é por aqui!... — bradou com a mão sobre a têmpora, dramático.

— Cuidado... — Pamela sorriu para ele. — Pode ser atingido por um raio ou algo assim.

— Por Zeus — Apolo grunhiu.

— Acha que está em apuros com ele?

— Estou com medo de que Ártemis e eu tenhamos muito a explicar. Ele é nosso pai e nos ama, mas, apesar disso, o Deus do Trovão não vai ficar nada contente por termos nos permitimos ficar presos no Reino de Las Vegas.

— Ahn... Vegas não é bem um reino. É apenas Las Vegas, uma cidade localizada no estado de Nevada. Assim como Roma é uma cidade da Itália.

Mais ou menos isso , pensou Pamela, não querendo dar início a nenhuma aula de Geografia dos Estados Unidos da América.

— Las Vegas não é um reino?

— Definitivamente, não.

Caminharam vários passos pela trilha de terra vermelha antes que Apolo falasse outra vez.

— Devo parecer um idiota para você, chamando Las Vegas de reino, ficando enjoado, cortando-me ao fazer a barba, não sabendo o que é protetor solar... — resmungou sem olhar para ela.

— Não tanto quanto eu se, de repente, me visse no meio do Olimpo.

Ele olhou para ela.

— Você foi para o Olimpo e não fez papel de tola.

— Não. — Ela suspirou. — Estava muito ocupada sendo enfeitiçada por sua irmã e, em seguida, me transformando em uma flor.

Apolo parou e a fitou. Ergueu a mão, como se quisesse tocá-la, mas não prosseguiu com o gesto. Ao contrário, cerrou o punho e deixou cair o braço ao lado do corpo.

— Sinto vergonha do que aconteceu lá. Eu devia ter sido capaz de protegê-la. Minha única defesa é que esta emoção, essa paixão, é nova para mim. Acho que... — ele fez uma pausa, o olhar encontrando e capturando o dela — ... acho que fico meio perdido.

Pamela respirou fundo.

— Eu sei exatamente o que quer dizer.

A expressão de Apolo se transformou, contudo ele não disse nada mais do que:

— Verdade?

— Verdade. — Ela começou a andar outra vez. Queria se abrir com ele, precisava se abrir com ele, mas não podia fazê-lo sem estar em movimento.

— Eu já lhe disse que fui casada, e que foi um casamento ruim.

— Sim.

— Quero que saiba por que foi tão ruim. Então, acho que vai compreender por que tem sido tão difícil para mim. Por que tenho resistido tanto em amar você.

— Estou ouvindo.

— Eu conheci Duane quando estava na faculdade. Ele é dez anos mais velho do que eu, e já era um profissional bem-sucedido. Eu o considerava bonito e inteligente, e ele parecia tão gentil... Parecia querer cuidar de mim. Compreendo agora que não me apaixonei por quem ele era; eu me apaixonei pelo sonho de vida que supostamente poderíamos ter juntos. Mas amor é amor... — ela encolheu um ombro, como se tentando se livrar da incômoda admissão — ... e nos casamos no mês em que me formei na faculdade. Do dia do nosso casamento em diante, as coisas mudaram. Compramos uma casa juntos. — Pamela riu, sem-graça. — Não. Apague isso... Duane comprou a casa. E insistiu que seria melhor se esta ficasse apenas no nome dele. Disse que seria mais rápido e fácil... assim como quando me deu um carro novo, um “presente” com que me surpreendeu. O carro também ficou no nome dele. Eu me lembro de um dia, mais ou menos uma semana depois do nosso casamento. Ele estava fora da cidade e me telefonou. Gostava de me telefonar várias vezes por dia... — Ela fez uma pausa. Apenas a lembrança da constante perseguição de Duane, de como ele vivia mandando parentes ou alguém de seu restrito grupo de amigos para “lhe fazer companhia” — de modo que sempre soubesse onde ela se encontrava e o que estava fazendo —, a deixou irritada e deprimida. Suas botas pisaram a trilha de pedregulhos com mais determinação enquanto ela aumentava o ritmo na tentativa de desafogar a antiga frustração. Aquilo tinha sido no passado, lembrou a si mesma. Ela sobrevivera e nunca mais permitiria que acontecesse de novo.

Apolo observou em silêncio enquanto Pamela lutava com as próprias emoções, revivendo o que o passado lhe causara. Queria ajudá-la, queria livrá-la da mágoa, mas sabia que o passado era um campo de batalha em que cada um precisava lutar sozinho. Se Pamela não conseguisse exorcizar seus demônios, para sempre estes assombrariam seu futuro. O futuro deles.

— Enfim... — ela continuou. — Naquele dia, Duane perguntou o que eu estava fazendo, como sempre fazia, e eu disse que pretendia pendurar um quadro novo. Eu nunca vou me esquecer de como a voz dele se alterou: “Não acha que eu gostaria de estar aí quando fizesse isso?”, exigiu de repente. Eu nem imaginava que pendurar um quadro sem ele era grande coisa... Mas era. Estávamos casados havia menos de um mês, e foi nesse dia que comecei a me sentir uma prisioneira. — Ela não conseguiu conter um arrepio.

E tinha ficado pior. Muito pior. Ela quase desistira e deixara Duane consumi-la, mas, em algum lugar dentro dela, encontrara forças para lutar. Lenta e silenciosamente, havia batalhado para crescer na carreira e, em segredo, arrumado dinheiro, de modo a poder prosseguir sem ele. As pessoas pensavam que deixar alguém que cometia abusos era uma questão de coragem. Pois ela sabia o quanto estavam enganadas. Para deixar alguém assim era preciso ter um plano, e depois ter os meios para prosseguir com ele. Seu plano incluíra um bom advogado e um negócio próprio.

Pamela endireitou a espinha e terminou sua história:

— Não quero entrar em detalhes. Basta dizer que Duane continuou me sufocando por quase sete anos antes que eu conseguisse me livrar dele. Depois se passaram mais quase dois anos antes que ele parasse de me telefonar, de aparecer nos lugares em que, sabia, eu frequentava. Estava sempre lá... sempre presente, esperando, como se eu fosse uma criança perdida que logo perceberia a bobagem que havia feito e fosse querer voltar para casa. — Ela olhou para Apolo. — Ele só me deixou em paz nestes últimos seis meses.

— Ele magoou você. — A voz de Apolo soou baixa e contida, enquanto ele imaginava o que gostaria de fazer com aquele tal Duane depois que seus poderes imortais retornassem.

— Sim, ele me magoou, mas não é isso o que ainda me afeta. A dor morreu com o amor. O que sobreviveu foi a insegurança, e eu nem a percebi. Namorei Duane por quase dois anos. Se alguém tivesse me dito, em qualquer momento antes de nos casarmos, que aquele homem tão maravilhoso, tão perfeito, era na verdade uma pessoa vingativa, que mal controlava a raiva, que tentaria me aprisionar numa gaiola, me humilhar e me transformar numa mulher assustada, numa sombra de mim mesma, eu teria rido. Jamais teria acreditado. Duane fingiu ser algo que não era para me aprisionar, e eu não me dei conta disso — Pamela terminou num sussurro.

— A farsa de que falou na noite em que assistimos à dança das fontes... Era seu casamento.

Ela assentiu com um gesto de cabeça.

— E, quando descobriu que eu era Apolo disfarçado de Febo, pensou que tinha cometido outro erro ao se entregar a mim.

— Não foi só isso. Você foi o único homem com quem estive desde Duane. Venho trabalhando, mantendo-me ocupada e... — Ela se interrompeu, sem ter certeza do que dizer.

— E tem evitado o amor — Apolo terminou por ela.

Pamela lançou-lhe um olhar rápido, de soslaio.

— Sim.

— O que tornou o meu subterfúgio ainda mais preocupante.

— Sim — ela assentiu novamente.

Apolo ponderou sobre o que Pamela havia dito enquanto percorriam a trilha sinuosa em silêncio. Estava claro agora por que ela se esquivara tanto dele, e por que não pudera admitir seu amor até estar sob a influência do poder inebriante de Ártemis. Como era surpreendente — e bom — perceber que sua reticência tinha mais a ver com o passado do que com ele!... Suspeitava até de que ser um deus fazia menos diferença para Pamela do que o fato de ele não ter sido honesto com ela.

Fizeram uma curva repentina na trilha e então subiram uma colina íngreme, indo parar no topo de um bloco de rocha cor de areia, desgastado pelo tempo, do centro do qual brotava uma cachoeira que derramava suas águas em uma lagoa grande e límpida.

— James estava certo. É o local perfeito para um piquenique! — entusiasmou-se Pamela, olhando ao redor enquanto enxugava o suor do rosto com a manga. O calor do deserto era menor no cânion, mas, ainda assim, a caminhada fizera uma camada de suor cobrir a ambos. Pamela respirou o ar refrescado pela água e ergueu o rosto para sentir a brisa que se erguia da lagoa.

— Tenho a sensação de que James está sempre certo — observou Apolo. Em seguida fez um gesto na direção de uma rocha plana, encarapitada ali perto. — Vamos nos sentar um pouco?

A subida tinha servido para ajudá-la a se livrar de grande parte da tensão que falar sobre o passado provocara nela, e Pamela sentou-se na pedra aquecida pelo sol, dobrando as pernas sob o corpo. Olhou para a lagoa cintilante, permitindo que o som e o cheiro da água lhe acalmassem os nervos. Apolo se acomodou a seu lado, perto o suficiente para que ela sentisse o calor de seu corpo, mas não chegou a tocá-la.

— Não vou lhe dizer que compreendo o que sente. Não. Como eu poderia? Não consigo entender por que um homem gostaria de aprisionar uma mulher. Eu tenho defeitos, mas querer dominar e controlar as mulheres não é um deles. — Ele apontou para a medalha dourada com a própria imagem, que ainda pendia entre os seios de Pamela. — Lembre-se de que, o que quer que aconteça entre nós dois, prometi protegê-la. Pode relaxar agora. Esse Duane não irá assediá-la de novo.

— Obrigada — ela murmurou —, mas prefiro arrumar a minha própria bagunça sozinha.

— Agora está parecendo minha irmã...

— Vou tomar isso como um elogio, ainda que assustador.

— Era para ser um elogio. — Apolo sorriu.

Pamela encontrou seu olhar, devolveu o sorriso, e ele pensou o quanto amava aquele rosto. Era tão sincero, e as emoções de Pamela, tão claras... Poderia olhar para aquele sorriso para sempre.

Surpreso, percebeu que ela havia se tornado seu Sol.

O Deus da Luz engoliu com dificuldade, então, sentindo a garganta seca. Ele a amava demais, e aquilo dava a Pamela um poder sobre ele que era assustador. Se ela lhe desse as costas...

Desviou o olhar do dela, recolhendo os pensamentos e dominando as emoções. Se Pamela lhe desse as costas, ele iria deixá-la partir. Não iria assombrá-la como fizera o tal Duane.

Apertou o maxilar. Ela não o havia abandonado ainda. E o amava. Ele sabia que sim.

Virou-se sobre a rocha, de modo a encará-la, e falou lenta e claramente:

— Não entendo esse Duane, nem o que foi para você viver sob seu controle e lutar por sua liberdade, mas, desde a primeira noite em que nos conhecemos, reconheci em seus olhos uma emoção que compreendi por completo. Sei bem o que é desejar mais e sentir-se incompleto... Mas e se o nosso destino for ficar juntos? E se tudo o que aconteceu em nossas vidas teve um propósito, o de nos preparar um para o outro? Eu sou um deus, um dos Doze Olímpicos. Quem pode saber o quão intrincados são os fios que tecem as Parcas?... — Os olhos de Pamela se voltaram para os dele, e Apolo escolheu as palavras com cuidado: — Eu já existo há muito tempo e vivi a maior parte da minha existência para as paixões e para a frivolidade. Mas também tenho muita coisa boa... Levei a cura, a música e a luz para o Mundo Antigo, ainda que só tenha me dado conta disso mais tarde. Eu sempre ansiei por mais. Tentei saciar essa fome como muitos homens fazem, sejam eles mortais ou imortais. Amei e lutei em excesso... Era como se eu estivesse tentando preencher um vazio sem fim dentro de mim.

— Apolo, eu... — Pamela começou, contudo ele balançou a cabeça.

— Não. São coisas que precisa saber. Eu não vou fingir para conquistá-la. Não quero falsidade entre nós. Você tem que me ver como eu sou, se pretende me aceitar. Eu disse que não conhecia o amor até encontrá-la, porém é mais do que isso. Eu não acreditava na existência do amor, afinal, vivi eras sem ele. Por outro lado, experimentei todos os tipos de prazer da carne. Para mim, o amor não passava de um embuste a que os mortais se apegavam, e o Deus da Luz não via utilidade em tal farsa. Eu não conseguia senti-lo. Eu não precisava disso. Não acreditava nisso. — Apolo fez uma pausa e, por fim, se permitiu tocá-la de leve enquanto afastava uma mecha escura de seu cabelo curto e bri lhante. — Então, algo aconteceu para mudar a forma como eu via a minha vida e o meu mundo. E aconteceu antes de eu conhecer você. O que sabe sobre o deus Hades?

Pamela respondeu à repentina pergunta, surpresa:

— Não é o Deus do Submundo ou algo assim?

Apolo sorriu, desejando que o amigo pudesse ouvir a resposta dela.

— Ele é o Senhor do Submundo. Mas o reino de Hades não é cheio de sofrimento e tortura, como a sua versão moderna do inferno. É um lugar incrivelmente bonito. Eu sei, porque já fui até lá muitas vezes.

— Você vai para o inferno?!

Apolo riu.

— Vou para o opulento palácio de Hades, que fica na extremidade dos Campos Elísios. Você iria gostar de Hades... Vocês dois têm muito em comum. Ele mesmo projetou e construiu seu palácio.

— É como o Caesars Palace? — Pamela indagou, irônica.

— Nem um pouco. Eu lhe dou minha palavra.

— É bom saber...

— Mas eu não mencionei Hades por conta de suas habilidades com design , e sim por conta da maneira como ele e eu nos tornamos amigos. Minha amizade com o Deus do Submundo surgiu por causa da esposa dele.

— Espere! Eu me lembro dessa história... Hades é casado com Perséfone. — Em seguida,

Pamela enrugou a testa. — Mas ele não a raptou e a fez se casar com ele por engano?

— Duvido que alguém pudesse sequestrar Lina.

— Lina? Então ele não é casado com Perséfone?

— Hades é casado com sua alma gêmea. E sua alma gêmea é nada mais, nada menos do que uma mortal vinda de um lugar de seu Mundo Moderno chamado Tulsa. O nome dela é Carolina Francesca Santoro.

— Tulsa? A de Oklahoma?! Como isso é possível? E quanto a Perséfone?

— É uma história longa e complicada. Perséfone e Lina trocaram seus corpos e identidades. O que começou com uma manipulação, por uma força externa — no caso, a mãe de Perséfone, Deméter —, terminou com Hades encontrando sua alma gêmea em Lina. Mas como eles descobriram um ao outro não é importante. O importante é o que eu vi acontecer com Hades depois que ele se permitiu amar.

— Hades não queria amar uma mortal? — Pamela indagou.

Os lábios de Apolo esboçaram um sorriso.

— Hades não queria ninguém, fosse mortal ou imortal. Ele tinha rejeitado o amor, eliminado a possibilidade de este acontecer em sua vida. Escolheu suas tarefas — o trabalho, como diz — em vez disso.

— Parece que nós dois temos, mesmo, muito em comum — Pamela concordou baixinho.

— Sim, só que ele teve mais tempo do que você para aperfeiçoar sua escolha. Precisava ver o que uma vida sem amor estava fazendo com ele, Pamela... Hades havia se tornado a sombra de um deus, vivendo uma existência vazia, sem qualquer emoção.

— Mas ele estava seguro — Pamela sussurrou. — Ele não se sentia magoado.

— Tem razão. Ele não se magoava. Não sentia nada. Eu disse que ele e eu ficamos amigos por causa de sua esposa... Isso porque o amor por Lina o transformou; despertou algo dentro dele. Hades passou de uma criatura fria, sem senso de humor, para um deus vibrante. E o amor daqueles dois também me fez mudar. Eu o vi acontecendo e, conforme fui testemunha disso, comecei a perceber o que tinha passado uma eternidade buscando. — Apolo fez uma pausa e tomou a mão de Pamela na dele. — Hades diz que Lina é sua alma gêmea e que, ao encontrá-la, ele encontrou seu lugar no mundo. Ironicamente, foi o Senhor dos Mortos que me mostrou como eu gostaria de viver. — Levou a mão dela aos lábios. — O que vi nos seus olhos foi essa mesma fome que eu sentia na alma antes de você entrar na minha vida. Nossas almas são como espelhos, Pamela, porque você é a minha alma gêmea. O que quer que tenha acontecido em nossas vidas antes disso acabou nos preparando um para o outro. Eu não sou mais o deus sem coração, incapaz de cuidar de qualquer coisa exceto do próprio prazer. E não é mais a jovem ingênua que preferia amar uma fantasia a um homem de verdade.

— Se eu ainda conseguisse aceitar isso!... — murmurou Pamela.

— Não isso , minha doce Pamela, a mim . Você só precisa me aceitar.

Ela fitou os olhos azuis e respirou fundo.

— Eu já te aceitei. Só não sei o que fazer agora.

Então Pamela sorriu para ele. Aquele sorriso aberto e honesto que ele tanto amava.

Apolo sentiu uma onda de alegria. Ela era sua alma gêmea! Mortal ou imortal, para ele, Pamela seria sempre sua parceira, seu amor, sua própria Deusa da Luz. O brilho de seu sorriso rivalizava com qualquer coisa que seu poder imortal pudesse produzir.

Segurou seu rosto entre as mãos.

— Agora apenas me beija. — Ele se inclinou e roçou os lábios nos dela. — Em seguida, damos conta da comida excelente que James mandou preparar para nós. — Beijou-a de novo, desta vez mordiscando-lhe o lábio inferior. — Depois, acho que vamos fazer amor nessa lagoa, aí embaixo... — Desta vez, o beijo durou tempo suficiente para fazer Pamela suspirar baixinho e se encostar nele. — E, esta noite, quando voltarmos para a estalagem, vamos ficar nos braços um do outro... — Apolo brincou com a boca macia novamente, pensando que esta era como um vinho doce, ainda que bem mais inebriante. — E amanhã...

— Sshh... — Pamela o interrompeu, deslizando para seus braços e colando o corpo ao dele. Não iria pensar na eternidade que os aguardava naquela noite. Iria pensar apenas nele. — Não acha que poderíamos pular a parte do piquenique e ir direto para a água, fazer amor?...

Apolo riu, feliz, depois se levantou e a ergueu nos braços. Beijou-a com paixão uma vez mais, depois tornou a colocá-la no chão e fez uma breve mesura.

— Já que insiste... — elaborou com um sorriso radiante.

Desta vez, foi Pamela quem pegou a mão dele e a levou aos lábios antes de puxá-lo pelo caminho que conduzia até o nível do pequeno lago.

— Espere! — pediu, após apenas alguns metros. — Vou pegar a cesta de piquenique. Tenho a impressão de que vamos estar com um apetite gimenso depois. Até porque... — ela sorriu por cima do ombro enquanto corria de volta pela trilha até a borda da rocha e se inclinava para apanhar o cesto onde Apolo a tinha deixado. — Não podemos desprezar o trabalho que James teve para...

O barulho de chocalho cortou suas palavras, e Pamela ficou imóvel e fria como a pedra. De algum lugar de sua mente veio o pensamento que o ruído se parecia mais com o chiar de uma carne fritando do que com o do brinquedo de criança segundo o qual ele fora denominado.

Uma terrível sensação lhe comprimiu a boca do estômago, e ela precisou lutar contra uma onda de vertigem quando seus olhos seguiram o caminho do som e pousaram na cobra enrolada ao lado da cesta de piquenique, a apenas alguns centímetros de sua mão estendida.


Capítulo 28


Apolo soube que algo estava errado antes mesmo de ver a serpente. Pamela congelara no meio da frase e, em meio ao silêncio que se fizera entre eles, ele pudera ouvir o aviso mortal da víbora.

A reação do deus foi instantânea. Apolo avançou com a mão estendida, concentrando todos os seus poderes imortais para destruir o que ameaçava seu amor.

Mas nada aconteceu, e ele amaldiçoou a si mesmo por ser um deus fraco e impotente.

Não! Não era fraco... O problema era que, no momento, ele não passava de um homem comum. E era como homem que ele deveria proteger Pamela.

Tão rápida e silenciosamente quanto lhe foi possível, postou-se atrás dela. A cobra se encontrava enrolada em uma espessa e tensa corda. Sua cabeça triangular estava erguida, e os olhos em forma de fenda miravam a mão de Pamela, tão perto e vulnerável a seu bote.

— Quando eu der o aviso, pule para o lado — ele falou numa voz calma e controlada.

O chocalho da cobra aumentou, e Pamela abriu a boca para protestar, pedir que ele se afastasse, gritar, qualquer coisa... mas já era tarde. Apolo já se movia. Ele a empurrou de lado e, com uma rapidez sobre-humana, foi ao encontro do bote da serpente.

Pamela gritou ao ver a víbora afundar as presas na parte carnuda da mão dele. Em seguida, deixando escapar uma antiga maldição, o Deus da Luz agarrou o corpo grosso do animal com a outra mão e puxou a serpente, arrancando-a dele. Antes que o réptil pudesse atacar de novo, girou o corpo e arremessou a cobra, de modo a bater sua cabeça como um chicote mortal contra o rochedo, e esta explodiu em um banho de sangue.

Ainda assim, o Deus Sol não ficou satisfeito. Bateu o bicho seguidas vezes contra a pedra, depois atirou seu corpo sem vida por sobre a borda do penhasco, dentro da lagoa lá embaixo.

Apolo tomou fôlego e virou a cabeça em busca de Pamela. Ela se encontrava agachada, não muito longe dele, os olhos arregalados pelo choque.

— A cobra a feriu?

— Não... — Pamela balançou a cabeça, trêmula.

Uma onda de alívio o inundou pouco antes de uma dor lancinante fazê-lo cair de joelhos. Sua mão! Ele nem sequer sentira a picada da víbora!... Apenas uma fúria cega e a necessidade de proteger Pamela.

Virou a mão que ardia. A dor varria seu braço a partir de duas perfurações que sangravam perto de seu pulso, abaixo do polegar.

— Deixe-me ver isso... — Pamela se pôs de joelhos a seu lado, buscando a cesta de piquenique às cegas. Tinha o rosto pálido, e suas mãos tremiam, porém sua voz soou firme. Apolo estendeu a mão, e ela prendeu a respiração. — Ah, meu Deus... Eu sabia que ela o havia pegado! — Olhou para o rosto moreno, protegendo a mão cheia de sangue junto ao corpo enquanto tateava dentro do cesto. — O que está sentindo?

— Fogo — ele falou apenas, surpreso ao descobrir que lutava por ar. Tentou rir, porém o riso saiu como um gemido. — É como se este lado estivesse em chamas.

— Você vai ficar bem. Você vai ficar bem... Aqui... Sente-se e se recoste na pedra. — Ela o orientou, segurando seus ombros, até que os descansou na pedra lisa antes de quase cair para trás, de joelhos, dizendo a si mesma o tempo todo que precisava manter a calma. Não podia entrar em pânico. — Mantenha-se sentado. — Pamela o fez descansar a mão ferida, com a palma para cima, sobre a coxa, tentando desesperadamente se lembrar de tudo o que já tinha ouvido falar sobre acidentes com ofídios peçonhentos. Ve a forçara a ler um artigo, não muito tempo antes, sobre segurança no alpinismo. Pense!... — Deixe a mão abaixo do nível do coração — disse a Apolo, que assentiu com um fraco gesto de cabeça. Em seguida, ela voltou toda a atenção para a cesta. — Onde está o maldito celular?... — falou por entre os dentes que continuavam batendo. — Ah!... — Aliviada, digitou depressa: estrela, sessenta e dois. — Vamos... Vamos! ... — murmurou, aflita. Olhando dentro do cesto, tirou dele duas garrafas de água. Enquanto falava ao telefone, abriu uma delas e a entregou a Apolo, que bebeu metade desta em um só gole. — ... Sim, é Pamela Gray! Sou hóspede de E. D. Faust. Meu assistente e eu estamos na parte superior da lagoa, no First Creek Canyon, e ele acabou de ser picado por uma cascavel! — falou rápida e claramente, como se não estivesse à beira do pânico.

— Tem certeza de que era uma cascavel, senhora? — o atendente perguntou em uma voz calma e profissional.

— Sim, tenho certeza! Cabeça triangular, corpo marrom rajado, chocalho...

— Vou enviar uma equipe de primeiros socorros agora mesmo, srta. Gray.

Ela pôde ouvir os cliques e chiados do rádio do atendente ao fundo. Em seguida, ele disparou a fazer perguntas mais específicas:

— Onde a vítima foi picada?

— Na mão direita. Abaixo do polegar, perto do pulso.

— Certifique-se de que o rapaz permaneça sentado ou deitado, e que sua mão esteja abaixo do nível do coração.

— Já fiz isso.

— Ele está consciente?

Os olhos de Pamela encontraram os de Apolo.

— Sim! — ela afirmou.

— Está com muita dor?

— Sim, ele diz que parece fogo... — A voz dela falhou.

— Pamela, é muito importante que você o mantenha calmo. Não deixe que ele entre em pânico. Ele precisa ficar o mais quieto possível.

— Compreendo. — Controle-se! , ela ordenou a si mesma. Se ela desmoronasse, Apolo não teria mais ninguém com quem contar.

— Muito bem. Tem água aí?

— Sim.

— Lave o ferimento, mas tome cuidado para não mover demais a mão ou o braço dele.

— Vou fazer isso... espere. — Ela colocou o telefone no chão e apanhou a outra garrafa de água. — A ajuda está a caminho, Apolo, mas a ferida precisa ser lavada imediatamente. Espero que não doa... Precisa ficar o mais quieto possível, por isso, se doer, tente não mover o braço.

— Faça o que tem de fazer. Eu não vou me mexer.

Quando Pamela segurou a mão dele com cuidado, Apolo fechou os olhos. Ela despejou a água engarrafada sobre as marcas profundas das presas, e o único movimento do deus foi o de sua profunda respiração.

Pamela limpou a água tingida de sangue das mãos no short e pegou o telefone.

— Pronto! O que mais?

— Remova qualquer anel, pulseira ou relógio que ele estiver usando.

— Ele não está usando nada.

— Ótimo. Agora, tudo o que pode fazer é mantê-lo calmo e ajudá-lo a se recuperar do choque.

— Não preciso fazer um torniquete ou algo assim?

— Não, a picada está muito próxima da articulação do punho. Mantê-lo calmo e cuidar para que ele não perca o calor do corpo irá ajudá-lo mais. E não deixe que ele durma! Sua pulsação pode se acelerar ou ele pode ter dificuldade para respirar. Também pode ter convulsões ou até mesmo perder a consciência. O veneno da cascavel é muito doloroso... Esteja preparada para sua reação à dor.

— Quando os paramédicos vão chegar aqui? — Foi difícil para Pamela falar em meio ao medo que lhe comprimia o peito.

— Estarão aí em menos de vinte minutos. Fique calma, srta. Gray. Uma picada de cascavel é grave, mas não necessariamente fatal.

Ela sentiu uma pontada no coração ao ouvir a palavra “fatal”.

— Eu... Eu estou me sentindo... — Apolo começou, mas parou e se inclinou para o lado, os olhos revirando.

— Preciso desligar! — Pamela disse ao atendente antes de jogar o telefone de lado e pular na direção de Apolo. — Não! — gritou, endireitando-o de volta contra a pedra. — Não pode desmaiar! — Ela o tocou no rosto e sentiu a pele quente. — Não me deixe!

Os olhos de Apolo reviraram mais uma vez, depois ele os abriu por completo. Piscou, como se com dificuldades para focar o rosto dela.

— Pamela... — disse baixinho.

— Apolo, fique comigo! — ela ordenou. Revirando a cesta, apanhou um guardanapo de linho, molhou-o com um pouco da água que restara na garrafa e enxugou o suor do rosto dele com cuidado.

— Isso é bom — ele murmurou. — Frio... bom. — Fez uma careta quando outra onda de dor que parecia lava se arrastou por seu braço. — Então é isso o que se sente quando se é queimado... Não é irônico que tenha acontecido justo comigo? — indagou, ofegante.

— Vai dar tudo certo — afirmou Pamela, enxugando-lhe a testa. — Os paramédicos vão chegar a qualquer momento e trarão o antídoto. Você vai ficar bem. Tem que ficar bem.

Apolo piscou outra vez, tentando limpar a visão.

— Está chorando. — Ele tentou enxugar as lágrimas do rosto delicado com a mão boa, mas a deixou cair de volta ao lado do corpo. — Não chore, doce Pamela... Eu já disse que o Submundo Grego é um lugar de rara beleza. Assim como você é uma mulher de rara beleza, minha alma gêmea.

— Não me fale sobre Submundo! — Lágrimas rolaram em silêncio pelo rosto de Pamela. — Você não pode morrer. É Apolo, o Deus da Luz!

— Nesse momento, o Deus da Luz não passa de um mortal. — Ele fez uma pausa. Sua respiração ofegante tornava difícil falar, e o fogo em seu braço se espalhava rapidamente. Ele podia senti-lo se agarrando a seu ombro e derramando como óleo quente em seu peito. — Pamela, escute... Hades me contou que almas gêmeas sempre se encontram. Vida após a vida, elas voltam a ficar juntas. Lembre-se disso... — O ardor no peito dele pareceu explodir, e seu rosto convulsionou com a dor. Conforme se contraía inteiro, Apolo fechou os olhos contra a agonia e mergulhou na escuridão.

— Nãão! — gritou Pamela. E, com as mãos tremendo tanto que ela mal podia controlá-las, tocou-o no rosto. Segundos antes, este estivera quente; agora estava frio e úmido! Desesperada, ela procurou pela pulsação de Apolo e não encontrou nada.

Não... Aquilo não podia acontecer daquela maneira! Não podia permitir que acontecesse assim!

Pamela se levantou e pendeu a cabeça para trás, gritando sua fúria para os Céus.

— ZEUS! Seu filho está morrendo!... Onde você está? Salve-o! Abra o seu bendito portal e leve-o para casa!... Que tipo de pai é, afinal?

Acima dela, o ar tremeluziu de repente e, em seguida, como a dobra de uma cortina invisível sendo aberta, uma parte do céu se entreabriu. Um rapaz atravessou a abertura, pairando sobre ela. Vestia uma túnica curta, muito parecida com a que Apolo usava na noite em que eles tinham se conhecido, e sandálias douradas, com asas batendo nos calcanhares — iguais as que adornavam seu chapéu em forma de capacete e a varinha de cristal que ele segurava. Seu cabelo curto e encaracolado era de um loiro-platinado, e seu belo rosto parecia ligeiramente divertido.

— O quê? Ficou sem palavras agora que seu grito sacudiu o Olimpo?...

Pamela estreitou os olhos, reconhecendo o mesmo tom arrogante que tinha ouvido inúmeras vezes na voz de Ártemis.

— Em primeiro lugar, salve-o! — exigiu. — Então estará livre para me intimidar.

O deus ergueu as sobrancelhas, surpreso.

— Tem ideia de com quem está falando, mortal?

— Sim! — ela cuspiu a palavra, frustrada. — Com esses pés que voam só pode ser Hermes. Mas podemos discutir isso mais tarde... Salve Apolo agora!

O deus bufou, indignado.

— Impertinente! — Olhou para o corpo inerte de Apolo e balançou a cabeça, desgostoso. — Aposto que ele a tem mimado.

Pamela teve vontade de agarrar o deus pelo pescoço.

— Não precisa ficar tão preocupada... Zeus não deixaria que Apolo morresse. — Enquanto falava, Hermes acenou com a varinha de cristal na direção de seu semelhante, e a luz derramou sobre o corpo do outro deus como num show pirotécnico do dia da independência dos Estados Unidos.

No instante em que a primeira faísca tocou Apolo, seu peito se inflou numa longa tomada de ar, e seus olhos se abriram. Ele olhou em volta, confuso, mas, quando seu olhar encontrou Hermes, o deus franziu a testa.

— Eu sei, eu sei... — O deus que pairava falou. — Estava esperando por Hades, Caronte ou outra figura tão triste quanto.

— Eu já expliquei que Hades é meu amigo... Veja como fala dele! — A voz de Apolo soou áspera, como se ele estivesse com a garganta seca. — O que está fazendo aqui, Hermes?

— Sendo subestimado. — O jovem deus fez um gesto delicado na direção de Pamela. — Sua mortal gritou por Zeus... Parece que estava morrendo — completou com um entediado suspiro.

— E Zeus o enviou — concluiu Apolo.

— É claro que Zeus me enviou. Seu pai está com raiva de você e da deliciosa Ártemis, mas dificilmente permitiria que perecessem.

De repente, Pamela sentiu os joelhos fracos e se sentou ao lado de Apolo que, no mesmo momento, a puxou para junto dele. Ela teve vontade de soluçar de alívio com a força que sentiu no braço que ele passou ao seu redor.

Hermes observou o óbvio carinho de Apolo pela mortal e decidiu que o Deus da Luz tinha mais com que se preocupar do que apenas a raiva de seu pai. Quando um deus amava uma mortal, sempre havia um preço a ser pago.

— Deve saber que, embora Zeus não fosse tolerar a sua morte, decidiu que precisa aprender uma lição por tê-lo desobedecido. Sua ferida não vai matá-lo, tampouco irá danificar seu corpo. Contudo seu pai permitirá que sinta a dor do veneno... Toda a dor do veneno — ele completou, alegre.

— Hermes, faria bem em se lembrar de que estou apenas temporariamente sem os meus poderes imortais... — A voz rouca de Apolo tornou-se clara e ameaçadora.

— Pelo visto também está temporariamente sem senso de humor — Hermes bufou. — No entanto, ainda não terminei de lhe passar a mensagem do Deus dos Trovões... Zeus irá abrir o portal ao pôr do sol da sexta-feira do mundo dos mortais. Quer que você e sua irmã se apresentem perante a ele logo em seguida. Já mencionei que o nosso Governante Supremo não está nada satisfeito?...

— Foi obra de Baco termos ficado presos aqui. Portanto, leve a seguinte mensagem de volta ao meu pai: diga-lhe que Ártemis e eu teremos muito prazer em confrontar o Deus do Vinho e seus malfeitos no Salão Nobre.

Hermes revirou os olhos claros.

— Zeus sabe tudo sobre Baco e seu ridículo plano de causar estragos divinos no Mundo Moderno, na tentativa de manter para si mesmo o reino mortal. Por isso mesmo decidiu fechar o portal de Las Vegas. Permanentemente. E com o corpulento Baco banido do Mundo Moderno como parte de sua punição.

Apolo apertou os dentes contra a dor que se abateu sobre seu corpo.

— Zeus vai fechar o portal? Mas ele não pode fazer isso. Isso significa que...

— Isso significa — Hermes interrompeu, afetado — que tem até sexta-feira para decidir se quer que a sua pequena mortal lhe faça companhia no Olimpo. A menos ... — Hermes enfatizou a palavra, batendo no rosto com os dedos numa simulação de dúvida — ... que prefira ficar aqui, como mortal. — O jovem deus estalou a língua. — E não parece que a mortalidade combina com você. — Em seguida, ainda pairando, Hermes sorriu, malicioso, e limpou as mãos, como se tivesse acabado de se livrar de uma incômoda tarefa. — Bem, já dei o recado e fiz minha boa ação do dia. Ouvi dizer que Afrodite está promovendo uma festa com jogos, e estou pensando em perder feio para ela...

Com um movimento dos pulsos delicados, o deus voador desapareceu no portal aberto no céu.

Apolo segurou a mão ferida contra o corpo e se moveu a fim de olhar para o rosto de Pamela. Suas faces estavam banhadas em lágrimas.

— Não chore, doce Pamela... Está tudo bem.

— Hermes estava dizendo a verdade? Você vai ficar bem mesmo? — ela indagou, enxugando o rosto molhado.

— Hermes é o mensageiro de Zeus. Ele é meio cínico, mas suas palavras são verdadeiras.

Pamela relaxou de encontro a ele, aliviada. De repente se endireitou, tomou o rosto de Apolo entre as mãos e o beijou com paixão.

Ignorando a dor lancinante no corpo, ele a beijou de volta, apertando o braço ao seu redor de modo a sentir a curva de seu seio e o quadril suave pressionado ao dele.

— Nunca mais me assuste desse jeito! — ela murmurou contra a boca bem-feita.

Começou a beijá-lo outra vez, mas parou de súbito ao ouvir o barulho de botas subindo rapidamente pela trilha. Endireitou a blusa e passou a mão pelo cabelo curto. — Eu devia estar tentando acalmá-lo...

Apolo conseguiu dar um sorriso.

— Você ouviu Hermes. O veneno não vai me matar, portanto pode me beijar, fazer qualquer coisa... quantas vezes quiser.

— Posso até aceitar a sua sugestão, sr. Deus da Luz. Só que mais tarde. Primeiro o mais importante. — Pamela se levantou e gritou na direção da trilha. — Aqui! Estamos aqui!

— Sim, senhorita! Estamos chegando! — alguém respondeu.

Ela olhou de volta para Apolo. Sua mão ensanguentada estava vermelha e já inchada.

— Imagino que vá ser meio difícil explicar a eles que o veneno não irá matá-lo; que apenas dói como o inferno.

O belo rosto de Apolo se contraiu quando outra onda de dor pulsou através de seu braço.

— Não dói como o inferno... É uma maldição dos infernos !


Capítulo 29


Pamela concluiu que dinheiro podia comprar muito mais do que qualquer coisa. Comprava atenção e um nível de preocupação fora do comum, embora ela estivesse gostando de fingir que os paramédicos teriam sido tão maravilhosos com qualquer pessoa, independentemente da carteira de seu patrão. Eles aplicaram o soro antiofídico por via intravenosa antes mesmo de tentar mover Apolo.

Deu um passo atrás e permitiu que eles trabalhassem em paz. Agora que sabia que Apolo não corria nenhum risco de verdade, podia apreciar a eficiência dos paramédicos enquanto eles limpavam, enfaixavam e imobilizavam a mão ferida, sem chorar histericamente ou se agarrar à mão boa do deus...

Ouviu a intensa discussão sobre como os sinais vitais de Apolo se mantinham satisfatórios, ainda mais após uma picada tão próxima a uma artéria. Sentiu o estômago se contrair outra vez e tentou obliterar a lembrança do momento em que não fora capaz de sentir o pulso do deus antes de Hermes aparecer.

— A cobra não devia estar carregada — um dos paramédicos concluiu enquanto ajudava Apolo a cobrir a pé a curta distância pela trilha até o jipe que fora convertido em ambulância.

O Deus da Luz, claro, se recusara a ser carregado em uma maca. Quando tentaram argumentar, ele insistira que poderia caminhar por conta própria, levantara-se e começara a andar a passos largos, direto para o veículo.

— Carregada? — repetiu Apolo.

— Sim, cobras venenosas podem controlar a quantidade de veneno que soltam ao picar. Você deve ter apenas assustado essa, mas não chegou a irritá-la, por isso ela inoculou uma dose pequena. Uma cascavel grande e enraivecida poderia ter lhe matado, ainda mais picando tão próximo da artéria principal, como aconteceu.

Pamela sentiu vontade de vomitar.

Apolo pareceu intrigado com a informação do paramédico, e a viagem de volta ao resort foi repleta de histórias sobre picadas de serpentes, das quais ela podia ter passado a vida sem tomar conhecimento. Por exemplo, até então ela não fazia ideia de que mais de oito mil acidentes com ofídios venenosos aconteciam nos Estados Unidos a cada ano e que, em média, atribuíam-se dez mortes a picadas de cobras. Também descobriu que os cavalos eram regularmente picados por serpentes, e que eles não costumavam se dar tão bem como os seres humanos nesses casos porque a maioria era picada no focinho quando abaixava as cabeças para investigar a cobra. E esse era, de longe, o local mais perigoso para uma picada, já que o inchaço resultante muitas vezes fechava ambas as narinas e causava sufocamento.

Pamela segurou a mão de Apolo e tentou, em vão, se concentrar em toda a conversa. Dez mortes causadas por acidentes com ofídios não lhe saía da cabeça.

— Senhor, sua irmã e o sr. Faust vão nos encontrar na frente da estalagem. De lá, eles seguirão conosco para o hospital — avisou um dos paramédicos enquanto o jipe atravessava o atalho de pedregulhos até o resort .

— Hospital? — Apolo franziu a testa e balançou a cabeça. — Posso assegurar que não há necessidade disso.

— Mas, senhor, a dose total de soro antiofídico leva várias horas para ser administrada e monitorada. É melhor que vá para o hospital e passe a noite em observação. Às vezes os sintomas do envenenamento levam horas para aparecer.

Apolo olhou pela janela do jipe e avistou Ártemis e Eddie em pé, ao lado da limusine.

— Leve-me apenas até ali — disse, apontando.

O paramédico franziu a testa, demonstrando sua reprovação, contudo o jipe seguiu a trilha e parou ao lado do enorme veículo. Antes que os médicos pudessem tocar as portas traseiras do carro, Eddie as escancarou, e uma Ártemis pálida subiu na carroceria. Ao ver o irmão com um cateter, uma cânula de oxigênio no nariz e a mão imobilizada e enfaixada, revirou os olhos e perdeu os sentidos após soltar uma exclamação digna de uma deusa.

— Que maravilha... — Pamela murmurou enquanto todos os paramédicos saltavam da ambulância e se juntavam ao redor da diva desmaiada.

— Ela nunca desmaiou antes! — disse Apolo, observando com curiosidade quando Eddie empurrou para longe os homens, ergueu Ártemis nos braços e a carregou para a pousada.

Os paramédicos só puderam correr atrás dele.

— Se é assim, para seu primeiro desmaio, ela fez bonito...

Apolo começou a rir e, em seguida, fechou os olhos contra nova pontada de dor no braço.

Pamela odiava o modo como seu rosto empalidecia e se contraía a cada vez que ele se movia demais.

— O que posso fazer?

Com os olhos ainda fechados, ele sacudiu a cabeça com força.

— Está bem. — Pamela suspirou, sentindo-se mais impotente do que nunca. — Bem... Sua irmã é, definitivamente, uma atriz e tanto — comentou, tentando manter o tom leve.

Após algumas inspirações, Apolo abriu os olhos e esboçou um sorriso.

— É mesmo.

— Está doendo como uma maldição dos infernos ?... — ela indagou, condoída.

— Sim, mas posso afirmar que estou contente por os paramédicos terem ido atrás de Ártemis. Não quero ir para o hospital, Pamela. Posso tolerar a dor que meu pai decretou ser o meu castigo. Não suportaria ser mais picado e revirado por estranhos. — Ele apontou o queixo na direção do cateter que lhe saía do braço.

— Então vamos ver o que a influência de E. D. Faust pode fazer para que seu excêntrico convidado seja tratado por aqui — ela decidiu, tirando o cateter de oxigênio do nariz de Apolo e desenganchando o saco de soro do suporte. — Ainda bem que sou viciada em ER , aquela série da TV... — Ela o estudou, preocupada. Não tinha notado as linhas de tensão em seu rosto. — Está sofrendo muito, não é?

— Zeus foi fiel à sua promessa. Estou tendo todos os sintomas da picada de cobra. — Ele moveu o ombro direito e depois se encolheu, como se a dor tivesse lhe subido pelo braço.

— Venha, vamos lá para dentro e eu o acomodarei em seu quarto. Creio que eles não dariam analgésicos para uma vítima de picada de cobra, mas acho que tenho alguma coisa na minha caixinha de primeiros socorros que fará maravilhas. Depois de alguns comprimidos de Tylenol 3 e um copo de vinho, vai estar se sentindo mais relaxado e, com sorte, sem nenhuma dor.

— Tylenol 3? — ele indagou.

— Confie em mim — reafirmou Pamela.

Apolo resmungou e segurou a mão enfaixada junto ao corpo conforme eles desciam devagar da parte de trás do jipe, subiam pela calçada e entravam na estalagem — algo fácil de fazer, porque ninguém se preocupara em fechar a porta da frente.

Ártemis encontrava-se deitada languidamente em um dos sofás, a um canto, com Eddie ajoelhado a seu lado. Um paramédico media-lhe o pulso, outro movimentava um pequeno frasco diante de seu nariz.

— Ah! — ela protestou. — Leve essa coisa fedida para longe de mim!

— Calma, calma, minha deusa... — murmurou o escritor.

— Ei, está tudo sob controle — Pamela falou em voz alta, balançando a cabeça, desgostosa. — A vítima da picada de cobra está muito bem, obrigada...

Ártemis se levantou e seus olhos azuis se arregalaram; depois se inundaram de lágrimas conforme ela fitava Apolo por cima do sofá.

— Meu irmão! — exclamou. — Ah, meu pobre irmão!... — Oscilou, erguendo as mãos na direção dele.

Apolo foi até o sofá, e Eddie deslocou seu corpanzil de modo que o deus pudesse se sentar ao lado da deusa. As lágrimas escorreram dos olhos de Ártemis e, hesitante, ela estendeu a mão para tocar o curativo em torno da mão do deus.

— Disseram que uma serpente venenosa o havia atacado. Fiquei tão assustada! Pensei que fosse... — Ártemis se interrompeu, mordendo o lábio.

Apolo pôs o braço em torno da irmã e a deixou chorar em seu ombro.

— Está tudo bem. Já passou.

— Onde estou com a cabeça? — Eddie pareceu cair em si de repente. — Você devia estar a caminho do hospital! Urgente!

— Não! — retrucou Apolo. — Eddie, eu tenho um pedido a lhe fazer.

— Pode me pedir qualquer coisa que esteja dentro do meu alcance — prometeu o autor, solene.

— Faça que eu permaneça aqui até sexta-feira.

— Não! Precisa ser cuidado pelos melhores curandeiros que houver por aqui! — protestou Ártemis, parecendo prestes a desmaiar novamente a qualquer momento.

Enquanto todos se concentraram em, mais uma vez, acalmar a deusa, Pamela conseguiu capturar seu olhar e moveu a boca, esboçando uma única palavra: Hermes .

Ártemis piscou, surpresa, e fez cessar os próprios soluços.

Em meio ao intervalo na crise de histeria da deusa, a voz de Apolo soou calma e lógica:

— O veneno de cobra não me colocou em risco de morte. Até mesmo estes homens podem atestar que meus sinais vitais continuam firmes e fortes. Preciso apenas descansar, o que vou fazer melhor aqui do que em um lugar onde estarei cercado por estranhos.

Como uma criança confusa, Ártemis olhou para o irmão.

— Não vai ficar... defeituoso ? — ela usou a palavra como se esta lhe deixasse um gosto horrível na boca.

Pamela reparou que, mesmo com a mão ferida ainda apertada contra o corpo e sofrendo com dores terríveis, Apolo balançou a cabeça e sorriu para a irmã, tranquilizando-a.

— Não ficarei defeituoso coisa nenhuma.

Ártemis conseguiu controlar os soluços por tempo suficiente para segurar o braço de Eddie.

— Oh, por favor... Não o mande embora!

— Eu nem pensaria nisso — respondeu o homenzarrão, dando-lhe um tapinha na mão. — Transfiram o equipamento que for preciso para o quarto dele — ordenou aos paramédicos. — Vou chamar meu médico particular para atender Febo.

Admirada, Pamela viu os paramédicos se prontificarem a obedecê-lo, e Eddie puxou o sempre atento James de lado, a fim de lhe explicar quem deveria ser chamado, o que deveria acontecer, quando, como e por quê.

Como se estivessem no olho de uma tempestade, Pamela, Ártemis e Apolo tiveram sua privacidade assegurada por um momento.

— Hermes? — Ártemis perguntou a Pamela num sussurro.

Ela respondeu no mesmo tom baixo:

— Ele apareceu quando Apolo... — Pamela hesitou, olhou para o deus e o viu assentir de leve. — ... quando ele foi picado pela cobra — minimizou. — Hermes tirou o veneno do corpo dele, mas deixou a dor por ordem do pai de vocês.

— Precisamos comparecer perante Zeus logo após o anoitecer de sexta-feira. Ele decidiu fechar o portal em seguida. Permanentemente.

Pamela viu a surpresa no rosto da deusa. E, quando Eddie se apressou a se juntar a eles outra vez, quase teve a certeza de ter visto algo mais... Algo parecido com tristeza.

— Está tudo sendo arranjado, meu amigo — o autor falou a Apolo.

— Obrigado, Eddie. Vou me lembrar para sempre da sua bondade — declarou o deus, muito sério.

Eddie pôs a mão no ombro de Apolo.

— É um prazer seguir antigas regras. Na minha casa, o vínculo entre hóspede e anfitrião ainda é sagrado.

Apolo curvou a cabeça em reconhecimento.

— Se os deuses ainda escutam o Mundo Moderno, poderá ser abençoado por isso.

— Eu já fui abençoado — garantiu o homem, tomando a mão de Ártemis para levá-la aos lábios.


Capítulo 30


— Então a conclusão geral é que a cobra o mordeu com pouco ou nenhum veneno — comentou Pamela, sentada ao lado de Apolo na cama. — Meus parabéns... Enganou a todos.

Ele mudou de posição, impaciente, e moveu o ombro direito.

— Achei que eles nunca fossem embora.

— Ei, eu gostei do médico de Eddie...

— O dr. Kevin Glenn era jovem demais e inteligente demais. Ele sabia que eu estava escondendo alguma coisa; estava escrito em seus olhos. Mas não sabia dizer o quê.

— Isso porque não é tão bom ator quanto sua irmã.

Apolo fez uma careta.

— Ela também parecia não ir embora nunca.

— Ártemis está apenas preocupada com você.

Ele suspirou e tentou encontrar uma posição mais confortável para a mão enfaixada.

— Eu nunca gostei de serpentes. Sei que Deméter ficaria injuriada em ouvir isso, mas, desde que enfrentei Píton, fico inquieto na presença delas.

— Píton era venenosa? — Pamela aproveitou que eles se encontravam finalmente sozinhos para revirar a bolsa à procura de sua caixinha de remédios.

— Não, mas era grande o suficiente para engolir um homem.

Ela olhou para ele.

— Está de brincadeira, não está?

— Nem um pouco.

Pamela estremeceu.

— Que coisa nojenta! — Escolheu dois comprimidos brancos e grandes, e os entregou a Apolo. — Espere... Isto vai ajudar. — Foi até o minibar e apanhou uma garrafa cara de Pinot Grigio gelado. Hóspedes de E. D. Faust não eram tratados com aquelas garrafas de miniatura baratas, oferecidas nos aviões...

Abriu-a e serviu duas taças. Esperou até que Apolo jogasse os dois comprimidos na boca e, em seguida, ofereceu-lhe o vinho.

— Melhor trazer a garrafa — ele decidiu, após dar conta da bebida em três goles.

Pamela fez como o deus pedia, reabastecendo a taça. Com apenas ela no quarto, Apolo não sentiu necessidade de mascarar sua luta contra a dor e, a cada vez que fazia uma careta ou esfregava o ombro, ela queria gritar sua frustração para os Céus outra vez.

— Ele não devia deixá-lo com tanta dor — desabafou, incapaz de manter o pensamento para si mesma por mais tempo.

Apolo tomou um longo gole do vinho e bateu no colchão, a seu lado.

— Sente-se aqui, perto de mim... Vou lhe falar um pouco a respeito de meu pai. Zeus é o nosso Governante Supremo. Ele é generoso, compassivo, bondoso e protetor para com seus filhos. Mas nunca beneficia os mentirosos ou aqueles que quebram um juramento. Sua voz pode ser ouvida no farfalhar dos galhos dos antigos carvalhos. Zeus é bom e majestoso, mas também é o Senhor dos Céus, o Deus da Chuva e o Senhor das Nuvens, e empunha um raio poderoso. É um deus apaixonado, ciumento e, quando o provocam, sua ira é algo terrível de se ver.

— Ele soa como um paradoxo.

— É o que todos nós somos: não apenas uma coisa ou outra, mas uma mistura de todas elas.

— Isso não me parece um deus dos deuses, e sim um homem — confessou Pamela.

— Verdade — concordou Apolo. — No Mundo Antigo, os deuses não criaram o Universo. Foi justamente o contrário: o Universo criou os deuses. Pense no Universo: nos céus e na Terra, no sol e na lua. São todos uma coisa ou outra?... É como a serpente, esta tarde. Ela despertou minha raiva, eu acabei por matá-la, mas ela não fez por mal. Entretanto, seu veneno é como o fogo do inferno em que o seu Mundo Moderno acredita.

— O que está dizendo, então, é que Zeus não é mau; é apenas imperfeito.

Apolo sorriu e ergueu a taça para ela em resposta.

Pamela o observou esvaziar o segundo cálice de vinho. O dia havia judiado de seu corpo mortal. Mesmo que Apolo não corresse risco de morte, as manchas escuras sob seus olhos, a palidez de sua pele e as novas linhas de tensão em seu rosto eram preocupantes. Enquanto o médico de Eddie o examinara, ele colocara um par de pijamas com calças de cordão. Tinha deixado a parte superior desabotoada, de modo que a equipe médica que pairara a seu lado pudesse manter permanente controle sobre seus sinais vitais.

Felizmente todos eles tinham ido embora e levado consigo seus cateteres, monitores, caretas de reprovação e aquele cheiro de hospital que parecia ficar impregnado na pele. Agora Apolo aparentava ser apenas um homem normal, bonito, que acabara de passar por um dia muito longo e difícil.

E isso era tudo o que ela queria pensar dele. Claro que poderiam conversar sobre os deuses e o Mundo Antigo, mas aquilo tudo afigurava-se muito abstrato e surreal diante de sua pele quente e de seu sorriso carinhoso.

A verdade, contudo, era que, na sexta-feira, Apolo iria voltar para o Olimpo. O portal iria se fechar, e ele sairia de sua vida.

Sentiu o coração pesar no peito.

— O que foi? — o deus quis saber.

Seus olhos encontraram os dele. Apolo parecia tão cansado!... Ela não podia colaborar ainda mais para seu sofrimento. Não naquela noite.

Obrigou-se a sorrir.

— Percebi que ainda não lhe agradeci por ter salvado a minha vida.

Apolo inclinou-se e passou os dedos na medalha dourada que ela carregava no pescoço.

— Eu me comprometi a protegê-la. E nunca quebro um juramento.

Seu toque mudou da medalha para acariciar de leve a lateral de seu pescoço, e Pamela estremeceu.

— Está com frio, doce Pamela — ele murmurou.

— Como eu poderia estar com frio se me toca assim?...

O sorriso de Apolo foi radiante.

— Viu? Sou o mesmo — mortal ou imortal. Você ainda sente o meu calor. — Ele se inclinou para mais perto dela e capturou seus lábios nos dele. Quando ela tentou suavizar o beijo e resistir a seu apelo erótico, Apolo sussurrou contra sua boca: — Ajude-me a esquecer a dor. Deixe que eu me perca em você...

Como ela poderia resistir?, perguntou-se Pamela. Estava ardendo por ele!

E ela o amava.

Mesmo assim, pôs a mão em seu peito, e Apolo interrompeu o beijo, lançando-lhe um olhar surpreso.

— Esta noite eu quero fazer amor com você... Permita isso — Pamela pediu com voz rouca.

Quando empurrou os ombros largos para trás, de encontro aos travesseiros de penas, ele não se opôs. Ela se levantou, então, tirou a blusa por sobre a cabeça, depois se livrou do short e dos sapatos. Em vez de se juntar a Apolo na cama, contudo, deu alguns passos para trás, de modo que ele tivesse uma visão clara de todo o seu corpo.

Adorava a maneira como os olhos do deus a tragavam. Ele a fazia se sentir bonita, desejável, poderosa.

Deve ser assim que uma deusa se sente , pensou.

Aceitar o amor de Apolo a havia transformado. Decidir se entregar a ele a arrancara da escuridão da sombra de Duane e jogara luz em seu mundo. Apolo era um deus, e ela, uma mortal; mas, com o amor dele, ela se tornara a própria Deusa da Luz.

Devagar, alcançou o fecho do sutiã de renda branco e simples. Após tirá-lo, deixou as mãos deslizarem sobre os seios sem pressa, brincando com os mamilos rosados até senti-los rijos. Com cuidado, acariciou o próprio corpo, livrando os quadris redondos da calcinha.

Os olhos de Apolo a devoravam.

Nua, Pamela se aproximou da cama.

— Não — ordenou, sorrindo, quando ele tentou se sentar para ir ao seu encontro. — É a minha vez, lembra-se?

— Você é tão linda, Pamela... — Apolo murmurou. — Espero que... — ele se interrompeu, soltando uma risada seca.

O que ela estava pensando? , pensou Pamela, mortificada. Apolo sofrendo dores terríveis, e ela agindo como uma stripper quando, na verdade, ele precisava de uma enfermeira!

Descansou os dedos com cuidado sobre o braço enfaixado.

— Posso ficar aqui, a seu lado. Não precisamos fazer nada.

— Não é isso — ele falou, aflito. — Eu quero você, quero que faça amor comigo. Só espero não decepcioná-la. Eu já disse que não usei nenhum dos meus poderes imortais para seduzi-la, e é verdade. Mas quando eu a amei... — ele moveu os ombros, inquieto — ... não pude evitar tocá-la com a minha magia. Esta noite não haverá nenhuma magia, nenhum poder. Serei apenas um homem.

— Jamais será apenas um homem, Apolo. Será sempre o homem que eu amo .

— Minha doce Pam...

Seu nome mudou para um gemido de puro prazer quando ela deslizou as mãos pela blusa do pijama, abriu-a e esfregou a ponta dos seios contra o peito musculoso, ao mesmo tempo que mordia de leve o lábio inferior e a linha firme do maxilar quadrado. Em seguida, passou a mordiscá-lo corpo abaixo, deixando um rastro quente, até desatar com habilidade o laço que lhe prendia as calças. Pôde ouvi-lo soltar uma exclamação quando o segurou nas mãos, esfregando o eixo rijo na maciez de seus seios.

E então sua boca estava nele. Primeiro usou os lábios e a língua ao longo do membro espesso e sólido, amando o modo como o corpo de Apolo estremecia e enrijecia sob seu toque, e também o modo como ele gemia seu nome cada vez mais. Engoliu-o, sugando e provocando até ouvir um grito rouco:

— Não posso esperar mais!...

Com um movimento rápido, ela montou nele. Apoiando-se nos joelhos, posicionou a ponta rija em seu calor úmido e fixou os olhos no calor azul e intenso dos olhos de seu deus.

Deixe que eu o livre da dor, mesmo que apenas por um momento!, rezou em silêncio a qualquer deus ou deusa que pudesse estar ouvindo. Então empalou-se nele, lenta, deliciosamente, engolindo-o inteiro.

Com um movimento provocante, ergueu o corpo, sentindo o membro de Apolo pulsar contra ela, então deslizou para baixo outra vez. Bem devagar. Envolveu-o, até que uma deliciosa tensão aumentou além do que ela podia suportar. Apenas nesse momento guiou a mão dele para o quadril e deixou que Apolo aumentasse o ritmo.

Moveram-se juntos, com urgência, e o delírio da paixão mortal preencheu seus corpos com um calor que foi crescendo, irrefreável, até se tornar insuportável.

Quando percebeu o corpo de Apolo se retesar sob o dela, Pamela moveu o seu próprio, cavalgando-o com mais ímpeto, de modo que, quando ele derramou sua semente morna dentro dela, também explodiu em um poderoso orgasmo.

Ao desabar sobre Apolo pouco depois, Pamela sentiu os corpos suados escorregarem um contra o outro e o braço do deus se apertar em torno dela.

— Eu te amo! — ofegou o deus, beijando-a com delicadeza.

Pamela aninhou a cabeça junto ao ombro largo, tomando o cuidado de manter o próprio peso distante de seu braço direito.

Ao mudar de posição para puxar o lençol em torno deles, seu sorriso satisfeito se ampliou para um de felicidade. Com os olhos fechados, o rosto de Apolo finalmente parecia livre da dor, relaxado e tranquilo, e ele caíra em um sono profundo.

— Obrigada — sussurrou para o vazio.

 

— Eu não sei, Apolo. Não me sinto bem deixando você. — Pamela parou perto da cama, brincando com a pulseira de couro da pasta. Por insistência dele, ela se vestira e ficara pronta para voltar a trabalhar na villa .

Afinal, Apolo lembrou, não havia nada de errado com ele. E ela ainda tinha muito trabalho a fazer.

— Vai ficar tudo bem. Eu tenho isto... — ele pegou o controle remoto — ... e isto. — Tocou com o dedo o guia de canais. — E já me explicou tudo sobre televisão a cabo. Ficarei bem entretido.

Pamela franziu a testa.

— Não se esqueça do meu telefone. Meu número é...

— Sim, sim, o seu número está escrito no papel perto do aparelho. Pode ir agora. Eddie deve estar à sua espera.

— Está bem. — Ela se inclinou para beijá-lo. — Mas sinto que estou fazendo alguma coisa errada.

— Esta noite, quando voltar para a minha cama, prometo que a deixo me compensar por estar me abandonando.

— Eu não quero te abandonar!

Apolo riu, então fez uma careta, esfregando o braço ainda dolorido.

— Eu só estava provocando você, doce Pamela. Na verdade, eu a invejo. Vou sentir falta do trabalho hoje. Tem certeza de que não há nenhuma maneira de eu...

— Você já conversou sobre isso com Eddie, e ele se recusou a deixá-lo sair deste quarto, exceto para jantar na varanda, até sexta-feira.

A reação irritada de Apolo foi interrompida por uma batida na porta. Pamela a abriu e deparou com o corpanzil de Eddie preenchendo o vão da entrada.

— Acredito que tenho um trabalho pelo qual Febo ficará muito interessado... — O autor deu um passo para o lado, fazendo um gesto autoritário, e dois homens carregaram para dentro da suíte uma pequena mesa de desenho, seguidos pelo arquiteto com quem Apolo vinha trabalhando no projeto da casa de banhos. — Se Maomé não vai à montanha, a montanha vem a Maomé!

— Brad! Não devia estar na villa ? — indagou o deus.

— Devia. Você também, mas parece que uma cobra decidiu mudar os nossos planos. — O arquiteto deu-lhe um tapinha no ombro e, em seguida, desculpou-se ao vê-lo apertar os lábios contra a dor que causou o movimento brusco. — Sinto muito, Febo. Uma cascavel também picou o meu cunhado no ano passado. Ele disse que doeu à beça, tanto que ficou de cama por uma semana. — Olhou para Eddie. — Talvez devêssemos retomar de onde paramos amanhã.

— Não! Não sei o que vocês têm em mente, mas posso garantir que estou mais do que disposto — Apolo falou depressa.

— Mas só se prometer que não vai sair daí! — Eddie entrou no quarto. — Bradley trouxe as plantas do balneário para que você o ajude a terminá-las. Isso se ficar na cama e continuar descansando.

— Tem o meu juramento — prometeu Apolo já sentado, a atenção voltada para os papéis compridos e lisos que Bradley foi desenrolando e prendendo à mesa de desenho.

— Venha, Pamela — chamou o autor. — Vamos deixar o balneário para os especialistas. A deusa nos aguarda no carro.

Enquanto eles deixavam a suíte, o resmungo de Apolo chegou até eles:

— Está aí uma coisa da qual eu não sentirei falta hoje...

— Obrigada, Eddie — agradeceu Pamela, apertando o braço do homenzarrão.

Ele sorriu para ela.

— De nada, minha querida. Febo não me parece um homem que se sente bem com a inatividade.

— Tem razão. Na verdade, tem razão em mais do que isso.

A expressão sorridente de Eddie tornou-se contemplativa.

— Parece feliz esta manhã, Pamela...

— Sim, eu estou feliz. Concluí que Sêmele não se arrependeu de sua escolha — ela confessou.


Capítulo 31


Pamela olhou para o relógio e soltou uma exclamação.

— Eddie! São quatro horas! Você não disse que as reservas para o nosso jantar eram para as seis?

— Tem razão, Pamela! — Eddie falou do outro lado do caótico pátio. Levantou-se do banco de um salto e se moveu pesadamente, ficando atrás de Matthew, que tratou de dar os últimos retoques no esboço da fonte.

Ártemis desceu com graça de seu pedestal e se juntou ao autor. Em seguida, Pamela pôde ouvi-los parabenizar Mateus por seu bom trabalho.

Um trabalho muito bem-feito...

Era tarde de sexta-feira, e o serviço estava longe de ser terminado. Como dois dias e meio haviam ido embora tão depressa?

Correu a mão pelos cabelos. Estava exausta e estressada além da conta. Tinha passado os últimos dias concentrada em dar forma à villa de sonho de Eddie: fazendo malabarismos com os pintores e pedreiros, resolvendo problemas de instalação e contratempos com os tecidos.

As noites, ela havia passado nos braços de Apolo, às voltas com o amor do Deus Sol. Dormira muito pouco, vinha trabalhando feito uma condenada... e eles ainda estavam atrasados.

Mas não trocaria um único instante do que tinha vivido.

— Pamela, que tal isto para as paredes de mentirinha do home theater ?... — O finalizador de mentirinha apontou sua caneta de penas com afetação para uma placa que fora pintada com um bordô escuro e delicados veios pretos e dourados.

— Absolutamente perfeito desta vez, Steve — ela falou com alívio. — Exatamente o acabamento que eu queria para o cômodo.

— Maravilha. Vai ficar um arraso , querida! — Ele acenou com a pena, exultante. — Vou começar na segunda-feira pela manhã — declarou Steve, entusiasmado.

— Estarei aqui — prometeu Pamela.

Steve acenou com a cabeça e saltitou, feliz, de volta para a casa, a fim de juntar suas coisas e ir embora para o fim de semana.

Bem mais séria, Pamela se pôs a arrumar com cuidado as anotações do dia na pasta. Também estaria de volta na segunda-feira. Bem ali, em Las Vegas. No mundo moderno mortal.

E Apolo e Ártemis estariam no Olimpo.

Não haveria mais jantares na varanda para eles na companhia do fantástico e divertido Eddie. Nenhuma conversa com Apolo sobre o mármore novo que acabara de chegar para o banheiro da suíte máster e que estava na cor errada. Nenhum projeto criado em conjunto, que logo se transformaria em mosaico nos pisos do balneário novo de Eddie...

Ainda assim, seus lábios se inclinaram em um sorriso secreto quando pensou nos últimos dois dias. Além de trabalhar pessoalmente com o arquiteto e, mais tarde, por meio de um telefone e de um maravilhoso notebook que Eddie fornecera — e que o deus dominara com admirável facilidade —, Apolo estava se tornando um verdadeiro cinéfilo. Antigo deus ou não, havia certas coisas nele, agora, que eram típicas de um homem moderno. Como o fato de adorar aprender sobre eletrônica; e como aderira ao controle remoto para ficar zapeando . Na noite anterior, quando ela chegara do trabalho na villa , encontrara-o absorvido no segundo filme de O Senhor dos Anéis.

— Aragorn me lembra Heitor. E o pequeno hobbit. .. o pequeno hobbit tem o coração do fiel Pátroclo, de Aquiles.

— Frodo se parece com esse tal de Pátroclo? — tinha indagado.

— Não. Eu não estava pensando em Frodo. Estava pensando em Samwise. Espero que, no final, ele se saia melhor do que Heitor e Pátroclo — Apolo declarara, muito sério.

Ela não se lembrava tão bem de mitologia para saber do que ele estivera falando, contudo lhe assegurara que Aragorn e Sam haviam tido finais felizes.

Apolo resmungara, então, e erguera a mão boa num protesto.

— Não me conte o final ou vai perder a graça.

E ela quase tinha contado. Era um filme comprido, e o tempo estava se esgotando para Apolo. Ele poderia nunca mais ver O Retorno do Rei .

Tomaram uma decisão bem tarde naquela noite.

Não , Pamela se corrigiu. Ela tomara a decisão. E se lembrava bem da tensão que irradiara do corpo de Apolo quando ele percebera que ela não iria, não poderia retornar com ele ao Olimpo.

— Eu seria inútil lá, Apolo.

— Inútil? Como pode até mesmo pensar em uma coisa dessas? — Ele fizera um gesto cheio de frustração com a mão ainda enfaixada e, em seguida, soltado uma exclamação pela dor aguda que causara a si próprio. — Pelos deuses, não vejo a hora de me ver livre desta dor! — completara, nervoso.

Ela mudara de posição e, em vez de ficar esticada a seu lado, deitara-se sobre ele. Delicadamente, tinha massageado seu ombro direito, sentindo-o relaxar sob os dedos.

— Melhor?...

Apolo balançara a cabeça e a beijara na palma da mão.

— Seu toque me acalma. É a única coisa que consegue aliviar essa dor sem fim... Não vê o quanto eu preciso de você comigo?

Ela havia sorrido para ele, tristonha.

— Apolo, nenhuma cobra vai feri-lo no Olimpo.

— Não, mas a sua ausência vai.

— Eu sei. — Ela mordera o lábio. — Também vai doer em mim ficar sem você.

— Então venha comigo! É a minha alma gêmea, e quero que seja também minha esposa.

Pamela tentou digerir a amargura de um futuro sem Apolo. Como se fosse fácil.

— O que eu faria no Monte Olimpo, em meio a vocês, deuses? — Tinha balançado a cabeça e, quando ele abrira a boca para protestar, mal tomara fôlego. — Por mais que deseje isso, eu não sou nenhuma artista. Não quero nenhum estúdio divino onde eu possa fingir que sou talentosa e que estou interessada em criar peças sabe-se lá do que para sabe-se lá quem... — Tinha balançado a cabeça de novo e suspirado. — Apolo, por acaso há algum mortal vivendo lá? Qualquer mortal?

— Muitas das ninfas e servas são semideidades — ele afirmara depressa. — E é comum se permitir que alguma sacerdotisa ou sacerdote visite seu protetor imortal.

— Semideidades não são mortais. Sacerdotisas e sacerdotes podem até visitar o Olimpo, mas depois voltam a viver sua vida mortal — ela observara, tristonha.

— Vai ser a minha esposa. Vou pedir a Zeus que a torne imortal.

Ela havia puxado a mão da dele.

— Vamos supor que eu me casasse com você e me transformasse em uma imortal. O que faria pelo restante da eternidade? Eu não teria um reino como sua irmã. Não teria trabalho, Apolo. Eu não teria nada além do que estaria autorizada a ter por seu intermédio.

Nesse momento, notara o brilho de compreensão nos olhos do deus.

— Seria outra jaula — ele falara devagar. — Não sou Duane, mas isso pouco importa. Para você seria como outra gaiola: maior, mais importante e mais dourada, talvez, mas...

— Ainda uma gaiola — ela completara.

Apolo tinha tornado a lhe segurar a mão.

— Então eu fico aqui.

Ela arregalara os olhos e sacudira a cabeça com força.

— Não! Você não pode! É Apolo, o Deus da Luz. Não pode abandonar o seu mundo. Não definitivamente. Sabe que não pode. O que aconteceria com as pessoas, lá? Não as estaria condenando à escuridão?

— O sol pode cruzar o céu antigo sem mim. Minhas éguas conhecem o caminho que minha carruagem dourada deve tomar, pois o percorrem, muitas vezes, sem que eu as esteja conduzindo.

— Apolo, não seria certo. Não pode deixar o Olimpo. Não pode ser um mortal.

— Fui mortal esta semana e posso sê-lo por uma vida.

— E quanto tempo esta duraria? Pense no que aconteceu em seu primeiro dia como mortal... Você morreu! — As palavras brotaram de seus lábios. — Não importa o que diga à sua irmã, a Eddie ou a si mesmo, eu estava lá. Eu vi acontecer. Você salvou a minha vida, e em seguida perdeu a sua. Se Hermes não tivesse aparecido, estaria morto agora. — Ela havia respirado fundo, sentindo que tremia enquanto segurava a mão dele. — Eu não poderia suportar isso, Apolo. Eu não poderia vê-lo morrer outra vez.

— Sshh... — ele murmurara, puxando-a para os braços. — Deve haver uma saída. Vamos encontrá-la.

— Como? — tinha indagado de encontro ao calor de seu peito.

— Levarei essa questão ao meu pai. Pedirei a ele que me permita acessar o seu mundo.

— E se ele disser “não”?

— Eu não sei, mas Deméter e Perséfone fizeram um acordo. Podemos fazer, também. — Apolo colocara um dedo sob seu queixo e lhe erguera o rosto. — Não vou ficar separado da minha alma gêmea. Tem o meu juramento, Pamela.

Sua boca descera sobre a dela com tanto ímpeto e proteção que ela ainda podia sentir seu calor ali no pátio...

Pamela estremeceu e tratou de prestar atenção aos papéis soltos em suas mãos. Era sexta-feira. O sol iria se pôr em apenas algumas horas, Apolo e Ártemis passariam pelo portal, retornariam ao Olimpo... e ela poderia nunca mais vê-lo outra vez.

Foi como se ela também houvesse sido envenenada, tal foi a onda de dor que o pensamento provocou.

— Pamela?

Ela olhou por cima da tampa aberta da valise direto para os olhos de Ártemis. A deusa parecia ter dormido muito pouco na noite anterior e, a despeito da luminosidade em seu rosto — resultado da magia da maquiagem moderna —, ainda era possível ver as manchas escuras sob seus olhos.

— Parece cansada — comentou Pamela.

— Meus pensamentos não me deixam descansar.

— Pensamentos?

— Estou preocupada com você. E com Eddie. — Os olhos da deusa se desviaram para o local onde, com sua habitual animação, o autor conversava com um dos representantes de tecidos. — Percebi, com a aproximação do crepúsculo, que não estou tão ansiosa como imaginava por deixar o seu mundo.

Pamela sorriu. Ártemis não estava menos vaidosa, mimada ou mandona, mas seu relacionamento com Eddie tinha, definitivamente, suavizado seus modos. Parecia mais calorosa, e não fria como a perfeição do mármore. Havia se tornado uma mulher em toda a concepção da palavra.

— Vou sentir sua falta, Ártemis.

— Então venha conosco! — pediu a deusa. — Caso se canse do Olimpo, poderá visitar o meu reino. Minhas florestas sempre acolherão a esposa de meu irmão.

— Não posso — Pamela murmurou, tocada pelas palavras da deusa. — Eu não pertenço àquele lugar.

— Você pertence a Apolo — Ártemis afirmou com segurança.

— Se eu for com ele, vou me perder. E depois não haverá nada mais em mim que ele possa amar.

Ártemis inclinou a cabeça e estudou Pamela.

— É dona de grande sabedoria, minha amiga. Daria uma excelente deusa.

— Senhoras! — Como um dos Titãs, Eddie se avultou sobre elas.

— Precisamos nos apressar. Febo nos espera, assim como o nosso jantar. Prometi deixá-las na entrada do Caesars Palace às oito da noite em ponto, para que o seu próprio motorista possa levá-los de lá para o aeroporto... — Eddie franziu a testa, demonstrando seu descontentamento pela história que elas tinham elaborado.

Para que o escritor não as seguisse até o Caesars Palace, Ártemis dissera a Eddie que sua rica família grega iria enviar seu próprio automóvel para buscar o irmão e a ela pontualmente às oito no hotel (no pôr do sol, de acordo com a pesquisa que Pamela fizera na internet), e que ela não suportava despedidas em aeroportos.

Apolo tinha ficado pálido como cera quando Pamela lhe explicara que um avião era algo enorme, parecido com um grande carro voador.

Eddie continuava insatisfeito com o arranjo, porém, como de costume, não contrariou as exigências de sua deusa. Deu apenas um longo suspiro.

Pamela reparou em como ele parecia repentinamente envelhecido.

— Concordei com a sua vontade, minha querida, mas, para isso, precisa ser pontual. Planejei um jantar de despedida espetacular para nós.

— Eddie!... — Ártemis fez um lindo beicinho, deslizando o braço pelo dele e distraindo-o, a fim de evitar mais discussões acerca de limusines e jornadas até o aeroporto. — Espero que tenha reservado um restaurante com uma boa vista. Sempre adorei nossos jantares naquela varanda maravilhosa, e não gosto nem mesmo de pensar no quanto vou sentir falta deles.

— A paisagem estará sempre esperando por você quando estiver cansada de suas viagens. Mas, esta noite, minha deusa, me pareceu sábio tentar algo novo. — O autor tocou a face de Ártemis, e ela a usou para lhe acariciar a mão.

O sorriso de Eddie quase escondeu a triste resignação que assombrou seu semblante.

Pamela os seguiu através do pátio, pensando que o escritor poderia muito bem ser um ator ainda mais competente do que a deusa.


— Sinceramente, eu detesto essas criaturas de metal — Apolo resmungou por entre os dentes após sair, desajeitado, do banco da frente da limusine.

— Senhor? — O porteiro do Bellagio pareceu confuso.

— Ele fica enjoado — explicou Pamela.

O homem, de forte sotaque inglês, examinou o rosto esverdeado do deus e sua mão enfaixada. Bufou de leve e, em seguida, abriu caminho.

Pamela segurou o braço bom de Apolo e o conduziu para a calçada. Ele passou a mão pela testa e tentou controlar o próprio estômago enquanto eles aguardavam pelo longo processo que era tirar Eddie e Ártemis do que ele, Apolo, considerava o estômago da limusine...

— Prometa que, quando chegar a hora de voltarmos ao Caesars Palace, iremos a pé até lá — ele sussurrou ao pé do ouvido de Pamela.

As palavras a fizeram se lembrar do pouco tempo que tinham juntos.

Como se ela precisasse de um lembrete!... Ironicamente, era como se o sol zombasse deles, correndo em direção ao horizonte.

Pamela tentou, sem sucesso, sorrir para Apolo.

— Prometo.

Ele encontrou seus olhos.

— Não vou viver sem você. Vai dar tudo certo. Lembre-se de que tem o meu juramento.

Ela assentiu com um rápido gesto de cabeça.

Ele é Apolo, o Deus da Luz... Pode fazer isso acontecer. Pode encontrar um modo de ficarmos juntos! , disse a si mesma com determinação enquanto piscava para combater uma súbita onda de lágrimas.

Precisava se concentrar nos arredores e se controlar. Não importava o que iria acontecer. Não queria que a última lembrança de Apolo fosse de lágrimas e um coração partido. Queria que ele soubesse que ela acreditava nele: em seu poder e em seu amor.

A entrada do Bellagio consistia de um passeio circular ornamentado, que ficava de frente para uma galeria. Esta, por sua vez, se debruçava sobre um lago artificial calmo e escuro que, ela sabia, só estava esperando uma nota musical para ganhar vida e luz.

— As fontes — comentou Apolo, seguindo seu olhar. Passou o braço em torno dela, então, e a apertou intimamente contra o corpo. — Nossas fontes.

Pamela o fitou e, dessa vez, sorriu. Ele era tão forte e seguro de si!... Tão real.

Não podia duvidar de Apolo. Fora contemplada com um juramento do Deus da Luz, e ele não iria decepcioná-la.

Mais importante do que isso: ele não decepcionaria nenhum deles dois.

— Sim, são as nossas fontes — concordou enfim.

— Não vamos nos demorar! Tenho uma surpresa para a minha deusa para a qual precisamos chegar na hora.

Eddie e Ártemis passaram por eles e entraram no Bellagio.

Pamela e Apolo seguiram mais devagar. Uma vez na entrada do hotel, ela estacou e olhou para o teto, chocada.

— Dale Chichuly! — falou, maravilhada, olhando para a espantosa obra de arte que enfeitava o saguão do Bellagio. — Eu tinha me esquecido de que foi ele quem projetou isto.

Curioso, Apolo estudou o teto.

— É uma iluminação um tanto incomum.

— É incrível! Repare na complexidade do vidro soprado e no brilho das cores. É como uma floresta de águas-vivas. Pena que Eddie não escolheu esta decoração em vez daquela coisa cafona do Caesars Palace — comentou em voz baixa, com uma risadinha.

— Eu não sei. — Apolo a abraçou e a beijou no topo da cabeça. — Acabei me afeiçoando ao gosto excêntrico de Eddie. Afinal, foi graças a ele que nos conhecemos.

— Está brincando... Está de brincadeira! — falou Ártemis, segurando o irmão pela manga e puxando-o até onde Eddie esperava, impaciente, diante de um restaurante onde se lia “Olives” em letras douradas.

— E. D. Faust e companhia. Tenho uma reserva especial — o autor anunciou ao maître.

— Claro, sr. Faust. Por aqui, por favor...

Eles seguiram o maître através do opulento restaurante — que se encontrava lotado na agitada noite de sexta-feira — até uma parede de janelas chanfradas, no meio da qual havia uma porta de vidro do chão ao teto. Um garçom a abriu para eles, revelando uma imensa varanda de mármore, a qual, por sua vez, dava direto nas famosas fontes do Bellagio. O maître os conduziu até a única mesa posta com toalha de linho, porcelanas e cristais, então se curvou primeiro para Ártemis, em seguida para Pamela, acomodando-as nas cadeiras de veludo bem estofadas.

— Conforme suas instruções, sr. Faust, a varanda foi reservada exclusivamente para os senhores.

— Perfeito. Agora pode servir o Dom Perignon .

— Oh, Eddie! Como sabia que eu estava louca para tomar esse delicioso champanhe outra vez? — encantou-se Ártemis.

— Li isso em seus belos olhos, minha deusa — declarou o escritor.

Pamela revirou os olhos e compartilhou um olhar divertido com Apolo.

O garçom desarrolhou a garrafa e, conforme servia o champanhe, as primeiras notas da música-tema de Chorus Line deu vida às fontes.


One! Singular sensation...


À medida que a música tocava e as águas dançavam, Eddie ergueu a tulipa de cristal para Ártemis.

— À você, minha deusa. Uma sensação indescritível...

— Oh, Eddie! — ela murmurou, tocando o copo no dele e piscando para combater as lágrimas que lhe inundaram os olhos. — Você me encanta!

— É um prazer muito grande para mim — ele garantiu, os olhos também brilhando de modo suspeito. Em seguida, limpou a garganta e fez um sinal para que o garçom trouxesse os cardápios.

O jantar contra o pano de fundo dos chafarizes dançantes e o céu do deserto — que, devagar, passava do azul para púrpura — foi espetacular. Com eles sozinhos ali, na varanda, a noite parecia cheia de magia e mistério. Embora estivessem no coração de Las Vegas, em uma noite movimentada de sexta-feira, tinham privacidade e uma infinidade de mordomias.

Para Pamela, foi como se eles tivessem ganhado um camarote especial dos deuses da cidade.

E quem poderia duvidar? Talvez fosse isso mesmo. Afinal, coisas mais estranhas já haviam acontecido...

Quando a última das muitas canções tocadas nas fontes cessou, Eddie olhou para o relógio. Muito sério, ergueu o corpanzil da cadeira e ficou de frente para a mesa.

— Já são quase oito horas. Compartilhamos o vinho e a comida, nossa amizade e boa música. — Seus olhos gentis se desviaram de Pamela para Apolo antes de pousar em Ártemis. — Agora, infelizmente, devo me despedir. Mas eu lhes disse antes que tinha uma surpresa... — Seu olhar permaneceu sobre o belo rosto de Ártemis. — Principalmente para você, minha deusa. — Fez um gesto, abrangendo os arredores. — Parte da surpresa foi este ambiente e o jantar. A outra parte é que eu gostaria de anunciar que me decidi sobre o assunto da minha próxima trilogia épica. Esta manhã, o meu editor concordou com a minha proposta para três livros. Eles vão contar a história de um guerreiro que é enviado por seu povo, o qual está morrendo, em uma missão quase impossível, para conquistar o coração de uma deusa que, por sua vez, promete retornar com ele, viver a seu lado e salvar seu mundo. A capa dura de cada livro irá retratar uma imagem que será sagrada durante toda a jornada do herói: a imagem de uma deusa. Essa imagem será nada menos do que aquela que o nosso Mateus fez de você. — Eddie terminou o discurso com um floreio, curvando-se para a mulher que ele proclamara sua diva.

Ártemis nada disse. Em vez disso, levantou-se e caminhou até Eddie.

— Obrigada, meu guerreiro. — Com graça, ela se curvou em uma reverência. Quando ergueu o corpo delgado e passou o braço pelo dele, Pamela pôde ver que a deusa tinha o rosto molhado.

O escritor apanhou um lenço de seda no bolso e lhe enxugou as faces. Em seguida, num gesto familiar, deu um tapinha na mão que repousava em seu braço.

— Venham. Vamos dar fim a esta nossa jornada.

Em silêncio, os quatro refizeram o caminho através do restaurante, saindo para o saguão do Bellagio. Desta vez, a obra prima de Chichuly não atraiu o olhar de Pamela. Seu coração estava pesado demais, e ela nem mesmo olhou para cima. A única coisa em que conseguia pensar era em continuar segurando a mão de Apolo e em seguir acreditando que aquela não seria a última vez em que iria tocá-lo.

E foi por meio desse toque que Pamela sentiu a tensão do deus quando a limusine estacionou em frente ao passeio circular, o que a fez se lembrar de sua promessa.

— Eddie, importa-se se Febo e eu formos caminhando? Você sabe como ele fica quando anda de carro... — acrescentou, notando, admirada, como sua voz soava normal. Perguntou-se por que seu coração não parecia estar partindo ao meio e por que motivo sua vida não estava se dissolvendo com o pôr do sol.

— Claro! Podemos encontrá-los na frente do Caesars Palace. Assim poderemos todos nos despedir em particular. — O autor conseguiu esboçar um breve sorriso antes de se abaixar para entrar na limusine.


Em seu palácio, no Monte Olimpo, Baco encontrava-se sentado no trono. Fechou os olhos e se concentrou no próprio desejo. Gotas de suor lhe banharam a testa larga, e suas faces se contraíram pelo esforço. Entre os lábios flácidos, formou-se uma linha de espuma branca que entrava e saía com sua respiração.

Onde está?!

Aumentou a concentração. Não entraria em pânico. Não ficaria desesperado. Ele iria encontrar!

Onde?! Onde ela está?

Sentira-a naqueles últimos dias. O fechamento do portal enfraquecera a sensação, porém ele sabia que ela ainda estava lá. Tudo o que tinha a fazer era encontrá-la... e ela seria sua outra vez.

Baco levantou as mãos grossas, segurando-as com as palmas voltadas para cima, como se tentando sentir o ar diante de seu pedestal.

Então algo fez cócegas em sua pele.

Com toda a sua força imortal, ele fechou as mãos, e sua mente apreendeu o tênue fio do vínculo.

Tinha encontrado!... Ele a havia encontrado!

Como um pescador puxando uma presa rara, Baco agarrou o fio da alma da mortal, arrastando-o e reforçando sua conexão até poder enxergá-la com clareza. Ela estava trabalhando. Parecia pouco mais do que uma escrava, na verdade, condenada a uma vida de trabalho pesado, carregando bebidas para homens de mãos inquietas e ousadas e, às vezes, enfiando-se em cantos escuros para levar um copo aos próprios lábios.

Baco reforçou mais o vínculo, e a mortal drenou o copo de bebida forte.

Sim... Beba-me!... Sorva-me!... Deixe-me aliviar sua dor... sussurrou através do fio, e sentiu que ela oscilava como se também tivesse sentido a conexão.

Fora assim que ela viera até ele; e fora assim que ele criara o elo entre eles: por meio de sua necessidade de beber. Aquilo a obcecava, a consumia... Ele não fizera nada de errado. Simplesmente concedera à mortal seu desejo mais sincero.

A deliciosa ironia daquilo tudo o fez querer gritar de prazer. Usaria a mortal vinculada a ele por conta de sua própria vontade para destruir o elo que o ligava à dourada Ártemis. Ao fazê-lo, os gêmeos teriam uma amostra da dor que a perda de seu reino lhe causara.

A agonia de tal perda ainda se alastrava dentro dele. Eles pensavam que o tinham derrotado...

Culpa de Apolo! Dele e de sua irmã dourada.

Mas Zeus iria puni-los?... Claro que não. Eles eram seus queridinhos, seus favoritos.

Aquilo era insuportável!

O abuso de que fora vítima tinha de ser corrigido. E, desta vez, não haveria demora. Não cometeria nenhum erro.

Baco canalizou sua energia para a mortal. Sorveu sua alma, rindo diante da facilidade com que ela a entregava a ele.

Por intermédio da moça, seu espírito readentrou o mundo mortal, espalhando-se como uma névoa funesta e invisível pelo Caesars Palace. Procurou, olhou...

Pouco depois, com um grito de triunfo, ele encontrou o que procurava. Perfeito. Eles estavam tão distraídos, tão concentrados em seus próprios problemas que nem mesmo pressentiram sua presença.

Satisfeito, Baco tornou a concentrar os poderes sobre a vulnerável mortal. Estava dentro dela, correndo por suas veias e preenchendo sua mente com seus obscuros anseios.

Sim, está indo bem! , persuadiu a moça conforme ela deixava seu posto de trabalho, levando apenas um molho de chaves. Mais depressa! O tempo urge! Deixe-me dizer o que vai fazer...


Capítulo 32


Sem falar, Apolo e Pamela caminharam devagar, de mãos dadas, ao longo do passeio que emoldurava as fontes do Bellagio. No momento, as águas se assentavam quietas e escuras, porém o calçadão estava repleto de alegres mortais conversando, e a rua adjacente, cheia de carros em movimento.

As buzinas e as freadas eram muito mais perturbadoras do que a cintilante acrópole do outro lado da rua, concluiu Apolo.

Ignorou a insistente dor que lhe irradiava da mão e subia pelo braço. Não tinha a menor gravidade, pois era algo que teria fim em breve.

E também era de pouca importância se comparada ao peso em seu coração.

Já era quase hora de o sol se pôr. Aquele não era o seu mundo, contudo ele iria se sentir para sempre ligado à luz daquele céu. Podia senti-la ao despertar pela manhã, e sempre sabia quando esta desaparecia no horizonte.

Seu tempo era curto. Ele deveria ficar. Podia ficar. Seria algo simples de fazer. Com a reabertura do portal, seus poderes lhe seriam restituídos. Poderia iludir Pamela e, em seguida, inserir em sua concentração a sugestão de que ela lhe pedira para ficar...

Como um duende do mal, sua própria mente insinuou outras possibilidades. Ele poderia levá-la com ele. Deuses vinham sequestrando suas amantes mortais por eras. O Monte Olimpo era cheio de maravilhas e indescritível beleza. Com certeza Pamela poderia ser feliz lá. E, com certeza, ela o amava o suficiente para perdoá-lo.

Mas estaria agindo de modo diferente de seu ex-marido?... Se tinha aprendido alguma coisa com Pamela, era que o amor não podia ser ditado, exigido nem aprisionado. Não poderia acorrentá-la a ele. Poderia apenas amá-la.

Havia se passado apenas uma semana do dia em que ele acreditara ter conquistado um amor?

Como fora ingênuo!... Mortal ou imortal — o amor não fazia distinção entre postos ou privilégios. O amor era uma questão de alma. Era imaterial e não estava sujeito aos caprichos do homem ou de um deus.

Apolo diminuiu o passo e conduziu Pamela até um banco próximo quando o grupo barulhento, atrás do qual eles vinham andando, parou de repente. Como numa boiada, as pessoas se misturavam, impacientes, chamando umas às outras em voz alta.

— É por causa da rua; eles estão esperando o farol abrir — explicou Pamela, sentando-se a seu lado e olhando para a água escura. Estava normal... ou quase. Lembrava uma lâmpada enfraquecida. Aquela luz habitual tinha desaparecido de seu rosto, o que a deixou mais pálida e frágil. — O grupo é muito grande. Provavelmente serão necessárias duas mudanças do sinal para que todos atravessem. — Seus olhos se voltaram para ele, tristonhos. — Depois de ter passado a semana inteira no deserto, toda essa gente me faz sentir claustrofóbica. Será que não podemos ficar sentados aqui por um minuto e deixar que sigam adiante?

— Sim — Apolo concordou, envolvendo-a com um braço. Pamela descansou a cabeça em seu ombro e se aninhou junto a ele. — Não temos que estar lá no exato instante em que o portal ressurgir. Temos tempo.

— Quanto tempo?

— Não muito. Não quero desafiar Zeus, desdenhando de sua ordem para comparecer diante dele.

— O que vai dizer a seu pai?

— A verdade. — Apolo beijou-lhe a testa. — Que encontrei minha alma gêmea no Mundo Moderno e que meu maior desejo é não me afastar mais dela.

— Espero que o seu desejo mais sincero lhe seja concedido tão depressa como foi o meu... — Pamela ergueu o rosto para o dele e, conforme Apolo a beijou, ela aspirou seu perfume. Sua proximidade a acalmava. Quando ele a tocava, conseguia acreditar que o que o deus dizia tantas vezes era a verdade: que tudo acabaria bem.

Relutante, Apolo terminou o beijo, e Pamela sentiu o estômago se apertar.

— Parece que a multidão foi embora — ele comentou.

Pamela olhou para a calçada repentinamente vazia.

— Parece que eles estavam com pressa de chegar a algum lugar. Estranho. — Sentiu um arrepio levantar os pelos dos braços e da nuca. Sua intuição lhe dizia para permanecer ali, sentada no banco ao lado de Apolo, mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele já se pusera em pé.

Com um forte sentimento de resignação, Pamela concluiu que aquilo não tinha nada a ver com uma suposta intuição, mas com o fato de ela não querer que ele fosse embora.

Distraído, o deus nem sequer se deu conta da estranheza provocada pelo passeio deserto.

— Precisamos ir também — declarou, e a fez ficar de pé a seu lado, passando o braço com firmeza ao seu redor.

Caminharam devagar e, sozinhos no meio-fio, ficaram aguardando que a luz do farol mudasse do vermelho para o verde. Ainda não chegara a hora da despedida, Apolo disse a si mesmo. Ele manteria Pamela próxima por todo o caminho até o Caesars Palace, e não a soltaria até que se encontrassem diante do portal.

De qualquer modo, sua separação seria apenas temporária.

— Meu pai vai ceder — murmurou seus pensamentos seguintes ao ouvido de Pamela. — Ele já foi vítima do amor vezes demais para não conceder o nosso pedido...

— Vítima do amor ou vítima da luxúria? — indagou Pamela.

Apolo sorriu para ela.

— Para meu pai, amor e luxúria fazem parte do mesmo banquete... e Zeus adora uma festa.

Ela bufou com sarcasmo, e de um modo não muito feminino.

Apolo riu, puxando-a mais para junto dele. Não podia perdê-la.

Pamela ofereceu os lábios e, quando ele se inclinou para beijá-la de novo, a fonte ganhou vida.

Pararam, olhando um para o outro, e então o rosto de Pamela se iluminou, cheio de felicidade.

— Perfeito! — ela murmurou em meio a uma risada. — Não poderia ser mais perfeito...

Mais uma vez, Faith Hill pareceu cantar só para eles.

— É o melhor dos presságios. Tudo vai ficar bem — Apolo afirmou, alegre, e virou-se para assistir à dança das águas.

Como se atraído pela música, o deus caminhou até o parapeito. Havia algo no ar... algo em que ele sentia um toque imortal. Tinha que ser um presságio enviado por Zeus.

Olhando por cima do ombro, sorriu, feliz, e fez um sinal para que Pamela se juntasse a ele. Ela sorriu de volta e acenou com a cabeça, mas ficou onde estava, apenas por mais um instante. Apolo olhava as águas cintilantes conforme estas esguichavam para o ar ao ritmo da canção mágica. Era tão maravilhoso que aquele deus magnífico, de alguma forma, fosse a outra metade de sua alma!...

De repente, Pamela acreditou piamente que ele faria tudo dar certo. O Deus da Luz era sua alma gêmea, e ele encontraria uma maneira de voltar para ela.


...It’s...ahhh...impossible! This kiss! This kiss!

Unstoppable! This kiss! This kiss!


Pamela levantou o pé para dar um passo adiante e captou um flash de movimento pelo canto do olho. Franzindo a testa, virou a cabeça a tempo de ver o carro... mas não a tempo de sair de seu caminho quando este invadiu o meio-fio e se chocou contra seu corpo.

Cheio de esperança, Apolo sorria para as águas quando escutou a horrível freada. Encantado que estava pela fonte e pela música, o som lhe pareceu distante.

Confuso, ele se virou para ver o que estava atrasando Pamela e, num horror indizível, assistiu quando a besta de metal atingiu o corpo frágil.

— PAMELA! — gritou.

O impacto a arremessou em direção à rua movimentada, direto para o tráfego em sentido contrário. Freios rangeram, motoristas desviaram, batendo em outros carros, enquanto tentavam, sem sucesso, não atropelá-la.

Apolo avançou. Desviando-se de carros e pessoas, seguiu a trilha sangrenta até onde ela finalmente havia parado, em um monte disforme, a meia pista.

Soltando um grito de puro desespero, ele caiu de joelhos a seu lado e puxou o corpo quebrado para os braços. Cintilando com as lágrimas, seus olhos se voltaram para a bola de fogo que ainda pairava baixo no céu.

— Deixe o firmamento! — ordenou ao sol minguante. — Devolva-me os meus poderes!

Pamela não sentiu nada; apenas que algo estava errado. Como se tivesse despertado em um quarto escuro, em uma cama estranha, os quais ela não conseguia ver e, por isso, não conseguia se orientar.

Então ouviu um grito que pareceu rasgar sua alma.

Sabia que era Apolo. Tentou abrir a boca e chamá-lo, contudo seu corpo não se encontrava mais sob seu controle.

Lutou contra a sensação, porém seus olhos se fecharam um instante antes do pôr do sol.

Apolo soube o exato momento em que Pamela morreu. Foi um momento antes de a dor em sua mão desaparecer e de o poder imortal preencher seu corpo. Em pânico, ele a deitou no pavimento e colocou as mãos em seu peito ensanguentado.

— Viva! — ordenou o Deus da Luz, embora soubesse que era tarde demais. Mesmo com seus poderes imortais, não poderia redefinir o tempo. Não podia desfazer o que já estava feito. — Não... — Suas lágrimas se mesclaram ao sangue de Pamela. — Não! — gritou.

— Alguém chame o 911!

— Oh, meu deus! Chamem uma ambulância!

— Há algum médico aqui?!

Apolo ouviu os gritos dos mortais ao seu redor. Eles viriam tomá-la dele.

— NÃO! — gritou sua ira. Pondo-se em pé, estendeu os braços. — SILÊNCIO! — Sua ordem disparou como uma flecha na direção da crescente multidão, formando uma parede de energia que ensurdeceu e emudeceu os mortais, transformando-os em boquiabertas estátuas.

O Deus da Luz olhou para o seu amor caído, então.

— Não... — Desta vez ele sussurrou a palavra. — Não vai ser assim... — decidiu, em seguida.

Precisava fazer aquilo. Se hesitasse, seria tarde demais. Independentemente das consequências, aquele era o único caminho.

Estendeu as mãos sobre o corpo de Pamela.

— Venha para mim... Eu ordeno que não se afaste deste reino.

Sob as mãos estendidas de Apolo, o corpo de Pamela começou a brilhar, em seguida uma esfera de pura luz surgiu e pairou entre as palmas do deus.

— Apolo!

Ele ouviu o grito atrás dele e, mantendo o globo de luz entre as mãos, virou-se. Como uma fada, Ártemis passou pelo carros trombados e pelos mortais congelados e silenciosos, até que chegou perto o suficiente para ver sobre quem o irmão se avultava e o que pairava entre seus dedos. Soltou uma exclamação e levou as mãos à boca.

Movendo-se com uma velocidade surpreendente, Eddie correu para se postar a seu lado. Enquanto sua mente tentava dar sentido à cena diante dele, toda a cor drenou do rosto do escritor.

— Não devia tê-lo poupado do meu encanto! — Apolo rosnou.

— Eu não sabia... Não pensei que... Oh, meu irmão! O que você fez? — Ártemis olhou do corpo de Pamela para a luz pulsante que ele segurava com possessividade.

— Cheguei tarde demais — Apolo falou, alquebrado. — O sol chegou tarde demais. Eles a mataram.

Ártemis se aproximou do deus devagar, como se ele fosse uma das criaturas selvagens de seus bosques.

— Mas... o que está fazendo? Está segurando a alma imortal de Pamela.

Apolo embalou a luz junto ao corpo.

— Eu não vou perdê-la!

— Apolo... — começou Ártemis.

— Não! Eu não vou perdê-la! — O grito do deus fez um relâmpago cortar o céu. — As leis do Universo que se danem! Sempre ouvi dizer que o amor é a força mais poderosa do Universo. — Seu olhar transtornado se voltou para o atordoado autor. — Você é um bardo neste mundo... Não é isso o que proclama?

Incapaz de encontrar palavras para articular, E. D. Faust só fez concordar com um gesto de cabeça.

— Por isso eu digo que meu amor por ela se sobrepõe às Leis do Universo!

— Apolo, não pode mantê-la assim. Sua alma imortal não descansará neste reino. Você sabe disso! — ponderou Ártemis.

— Eu não vou mantê-la neste reino.

Os olhos da deusa se arregalaram quando ela compreendeu por fim.

— Hades!

— Ele saberá o que fazer. Ele tem que saber o que fazer! — afirmou Apolo.

— Sim. — A voz da diva falhou. — Vá até seu amigo, meu irmão. Tomara ele tenha uma saída... Para vocês dois.

Com uma expressão atordoada, como se só então tivesse se dado conta da extensão do que seus poderes haviam causado, Apolo olhou para os carros amassados e para as pessoas paralisadas.

— Vou arrumar isto tudo — prometeu Ártemis. — Vá. Pamela precisa de você.

— E quanto a Zeus?

— Vou comparecer diante de nosso pai. Foi por minha causa que veio para este reino. Fui eu quem deu início a isto tudo... portanto devo terminar o que comecei.

Apolo sacudiu a cabeça.

— Não foi você, Ártemis. Foi culpa das Parcas. Pamela e eu estávamos destinados a cumprir nosso destino.

— Se é assim, deve levá-la para o Submundo e pedir a Hades que o ajude.

— Obrigado, minha irmã... — A voz dele perdeu força.

Ainda segurando a alma brilhante, o deus se deslocou por entre os carros com uma velocidade impossível de ser acompanhada por olhos mortais, direto para o Caesars Palace, onde o portal os aguardava.

Com passos pesados, Ártemis se aproximou do corpo de Pamela.

— Como algo tão forte podia ser guardado em uma concha tal frágil? — A deusa olhou para a amiga com lágrimas banhando as faces.

— Meu coração estava certo o tempo todo... — murmurou Eddie com reverência. Aproximou-se da deusa e, uma vez a seu lado, caiu sobre um joelho. — É mesmo a deusa Ártemis.

— Sim — ela confirmou, pousando a mão no ombro do escritor delicadamente. — Mas não me sinto como uma deusa. Sinto-me como uma mulher que acaba de perder uma grande amiga. — Ártemis respirou fundo e deixou escapar um soluço. — Olhe para ela, Eddie... Está toda quebrada.

Por um momento, ele hesitou. Então estendeu a mão e deu um tapinha reconfortante na mão da deusa.

— Pamela não está aqui, Ártemis. Está com Apolo.

— Tem razão. Eu sei. É exatamente isso... Só que eu não tive a chance de lhe dizer nem mesmo adeus, que eu sentia muito... ou mesmo “obrigada”.

— Às vezes não se consegue dizer essas coisas — Eddie falou com serenidade. — Isso é ser mortal. Podemos apenas tentar viver nossas vidas com alegria e paixão o bastante para que, quando chegar nossa hora, deixemos para trás boas lembranças, e não arrependimentos.

— Eu não compreendia isso antes, mas agora compreendo. Creio que, a partir deste instante, por toda a eternidade, haverá uma parte de mim que sempre irá sentir-se um pouco mortal. — Ela sorriu, tristonha, para o corpo de Pamela. — E acho que será a minha melhor parte. — Num impulso, Ártemis se curvou e segurou a medalha gravada com a imagem de seu irmão, a qual continuava pendurada no pescoço de Pamela. Com um só movimento dos dedos, a corrente se soltou e se agrupou em sua palma. — Apolo deve querer que eu guarde isto para ela. — Fechou a mão, e a medalha desapareceu. Em seguida, a deusa se ajoelhou ao lado do corpo da amiga.

— O que vai fazer? — Eddie perguntou.

— O que eu puder — decidiu Ártemis. Então levantou as mãos e começou a brilhar como a luz branca e fria de uma lua cheia. — Adeus, minha amiga... — murmurou enquanto passava as mãos luminosas por baixo do corpo de Pamela, movendo, arrumando, fazendo o que podia para endireitá-lo.

Quando a luz se apagou, o corpo fraturado da mortal fora substituído pelo de uma bela corça.

Cansada, Ártemis se pôs de pé.

— Caminhe comigo, Eddie. Devo voltar e enfrentar meu pai.

— Claro, minha deusa.

Passando o braço delicado pelo dele, o escritor a conduziu cuidadosamente para longe do corpo tombado da corça.

Tinham quase chegado à calçada quando Ártemis parou de repente. Farejando o ar como uma criatura da floresta, virou a cabeça e estreitou os olhos. O carro estava destruído. Sua frente se curvava para dentro e havia claras marcas de sangue onde este atingira o corpo de Pamela.

A deusa se aproximou e olhou dentro do automóvel. A mulher congelada pelo encanto de Apolo tinha ambas as mãos ao volante. Presa ao assento pelo cinto, ela não se ferira, entretanto seus olhos estavam arregalados e cheios de um indizível terror. Ártemis respirou fundo. O corpo da mortal cheirava a bebida, mas não a qualquer uma. Seus sentidos aguçados reconheceram o cheiro doce da ambrosia, mesclado ao da luxúria, do desespero e do vício.

A marca do Deus do Vinho estava lá. Não tão evidente quanto a de seu vínculo com Pamela, e sim mais disfarçada... porém não menos contundente.

Ártemis fechou os olhos contra a intensidade da ira que a assaltou. Baco iria pagar por aquilo!, prometeu a si mesma. Ela mesma o obrigaria a isso.

Quando abriu os olhos, viu Eddie observando-a com atenção.

— Sabe quem causou tudo isso?

— Sei — admitiu com voz contida.

O rosto de Eddie endureceu com a raiva.

— Então faça-o pagar por isso, deusa.

— Eu farei, meu guerreiro. Eu farei.

Decidida, Ártemis se virou para a carnificina que a inveja e a malevolência tinham causado e ergueu as mãos. Com a voz ampliada por seu poder imortal, a bela deusa fez suas palavras ecoar por toda Las Vegas enquanto acalmava, curava, e depois eliminava os últimos vestígios de feitiço malévolo de Baco.

— Que seus espíritos pairem livres esta noite. Nenhum outro morrerá. A corsa será o milagre que eles virão, embora não saibam como nem por quê. Sobre suas almas imortais minhas bênçãos haverão de descer, lavando suas memórias, aliviando sua dor.

Ártemis baixou as mãos, e um pandemônio se fez em torno deles.

— Dá pra acreditar?!

— É um cervo!...

Gritos preencheram a noite conforme as pessoas corriam para a rua, e o som de uma sirene de ambulância se aproximava a distância, num lamento.

Em meio ao caos, Ártemis se apoiou no braço de Eddie, e os dois se afastaram, sem ser vistos, em uma bolha poderosa de serenidade imortal.

— Fez uma boa ação, minha deusa. — Eddie afagou-lhe a mão enquanto seguiam seu caminho até a calçada que levava à entrada principal do Caesars Palace.

Ártemis sorriu para ele.

— Obrigada. — Então inclinou a cabeça, pensativa.

— Deusa? — indagou o autor.

— Eddie, talvez eu não possa mais voltar para cá. O Olimpo vai considerar estes eventos por demais preocupantes.

— Compreendo. — Ele hesitou, permitindo que a fachada de autor excêntrico cedesse, e exibiu nos olhos sua desolação. — Desde o início eu sabia que não ficaria comigo. Independentemente disso, eu me permiti amá-la... e não me arrependo um só instante dessa escolha. Vou levá-la na lembrança, e junto ao meu coração, enquanto estiver respirando.

— Talvez haja uma maneira de levar mais do que apenas a minha lembrança junto ao coração... — articulou a deusa devagar.

Os olhos do autor se arregalaram, surpresos.

— Já ouviu falar de um reino chamado Tulsa, em Oklahoma, Eddie?...


Capítulo 33


— Hades! — A voz de Apolo sacudiu as paredes do Salão Nobre do Senhor do Submundo.

O Deus da Escuridão se precipitou para a sala do trono, seguido de perto pela esposa.

— Apolo? — Hades quase não reconheceu o amigo, que nada tinha a ver com as roupas estranhas e respingadas de sangue, ou com a brilhante esfera de luz que agarrava junto ao peito. O olhar ensandecido também era estranho ao que ele conhecia do Deus da Luz.

— O que aconteceu?!

— Eles a mataram... Os monstros de metal... Eu não pude detê-los!... Não cheguei até ela a tempo. — Respirando pesadamente, Apolo falava em curtas rajadas.

A esposa de Hades saiu de trás do marido. Dentro do corpo imortal de Perséfone, Carolina sentiu a alma estremecer conforme compreendeu de imediato.

— Esta é Pamela — falou, os olhos fixos na esfera brilhante de luz.

— É a alma de uma mortal moderna?... Trouxe a alma de uma mortal moderna aqui?! — exclamou Hades.

— Claro que ele trouxe! — cochichou Lina. — O que mais ele poderia fazer?

— Precisa me ajudar a fazer isso direito! Tem que trazer Pamela de volta!

Os olhos perspicazes de Lina se ativeram ao Deus da Luz.

— Já chega dessa conversa. Ela ainda é Pamela, e provavelmente a está assustando. — Ela olhou de volta para onde o marido se encontrava. — Precisa recebê-la, meu amor.

O Senhor do Submundo moveu-se com relutância. Estendeu a mão, mas, antes de tocar a luz, seu olhar capturou o de Apolo.

— Não é aconselhável mexer com as Leis do Universo, meu amigo.

— Ela é minha alma gêmea — afirmou Apolo.

O Deus da Escuridão assentiu com um gesto de cabeça, tristonho.

— Então, vamos torcer para que as Parcas sejam compreensivas. — Tocou a esfera brilhante com a palma da mão. — É bem-vinda ao meu reino, Pamela.

A luz tremeluziu e se alongou. Com um som muito parecido com um suspiro, tomou forma, assumiu características, até que Pamela se viu em pé nos braços de Apolo. Seu corpo ainda carregava uma ligeira luminescência, porém ela agora tinha uma aparência surreal, meio transparente, como se fosse uma aquarela inacabada de si mesma.

Com um soluço, Apolo a abraçou com força. Pamela estava fria, parecia muito frágil, e ele temeu que ela pudesse flutuar caso ele afrouxasse o abraço.

Pamela não se moveu, tampouco falou.

— Pamela! — Apolo falou chorando. — Sou eu... Estou com você agora. Vai ficar tudo bem.

Um arrepio sacudiu o corpo quase etéreo.

— Apolo?

— Sim, meu doce! — Ele pressionou o rosto no cabelo macio.

Pamela se afastou dele e olhou ao redor, confusa. Viu que estava em uma enorme sala de mármore na companhia de Apolo, de uma linda mulher e de um homem alto e moreno.

Em seguida, seu olhar baixou para o próprio corpo e seu rosto perdeu a cor com o choque.

— Diga-me que isto é um sonho, Apolo. Diga-me que muito em breve eu vou acordar! — falou com voz trêmula.

— Não posso — ele respondeu, combalido.

— Pamela... — A voz de Lina soou suave como uma lagoa quente e tranquila. Cuidadosa, ela tocou o espírito recém-desencarnado no braço. — Sou Carolina, mas pode me chamar de Lina se quiser. E este é meu marido, Hades.

Os olhos de Pamela pareceram ainda mais enormes e redondos no rosto pálido.

— Hades? — ela sussurrou. Apática, levantou a mão translúcida e olhou para ele. — Estou morta e vim para o... — Seus olhos voaram para o Deus da Escuridão, e ela entreabriu a boca como se fosse gritar.

— Está em Elysia — explicou Lina com um sorriso gentil. Então pegou a mão que Pamela ainda segurava diante do rosto e a envolveu com seu calor, desejando que os poderes imortais que descansavam dentro do corpo de Perséfone a consolassem. — Mais especificamente, está em nosso palácio, às margens dos Campos Elíseos. O Submundo é um lugar muito bonito, querida. Não há nada aqui de que precise ter medo.

— Submundo? — Balançando a cabeça, Pamela olhou para Apolo.

— Por que estou no Submundo Grego?!

— Eu não sabia mais o que fazer. — Os olhos de Apolo imploraram para que ela o compreendesse.

— Não... — sussurrou Pamela. — Não, não pode ser!

— Você morreu antes do pôr do sol, e eu não podia fazer nada para salvá-la. Por favor, perdoe-me! Eu não podia deixá-la partir. Jamais!

Pamela continuou balançando a cabeça e olhando para ele.

Logo depois se lembrou. Viu o carro vindo em sua direção, e foi como se sentisse mais uma vez o impacto mortal.

Com um movimento espasmódico, saiu dos braços de Apolo e o fitou com olhos enormes.

— Não sei o que podemos fazer agora — ele murmurou, perdido.

— Bem — Lina falou com naturalidade —, o próximo passo é você ir com Hades e tirar essas roupas sujas de... — ela fez uma pausa e reformulou a frase: — ... roupas que não estejam tão sujas. Enquanto fizerem isso, vou mostrar os arredores a Pamela. Vão andando... — Ela capturou os olhos do marido e ergueu as sobrancelhas. — Nós ficaremos bem.

— Eu não vou me demorar. — Apolo tranquilizou Pamela.

Ela o fitou, como se em transe, enquanto observava-o deixar o salão na companhia de Hades.

Lina continuou segurando a mão fria de Pamela. Gentil, levou-a na direção de uma enorme porta incrustrada com prata, do outro lado do salão. O espírito recém-desencarnado a seguiu com resignação.

Após atravessarem o portal, elas adentraram um corredor largo, repleto de lustres de cristais. Lina virou para a direita e, em seguida, para a esquerda. Grandes portas de vidro se abriram sem que elas as tocassem, e as duas mulheres saíram para um pátio incrivelmente bonito, cheio de estátuas de mármore, com uma fonte enorme e flores em diversas nuances de branco.

Apesar do pânico que lhe embotava o raciocínio, a designer dentro de Pamela percebeu a beleza que a rodeava.

— É fantástico, não é? — comentou Lina. — Adorei este lugar desde o primeiro momento em que pus os olhos nele.

Pamela olhou para a moça e piscou como uma sonâmbula lutando para despertar.

— Você não é um deles, é?

— Não — Lina negou com um gesto de cabeça, fazendo os cabelos castanhos dançar em torno da cintura delgada. Então sorriu e apontou para o próprio corpo.

— Isto é de um deles, mas isto... — colocou a mão sobre o coração — ... é muito mortal. Sou como você: um espírito que foi deslocado do que eles chamam “o Mundo Moderno mortal”. Venha... vamos nos sentar naquele banco. — Lina esperou até que Pamela houvesse se acomodado para continuar. — Na verdade, sou uma padeira de Tulsa. É uma longa história, mas o resultado final é que Perséfone e eu fizemos um acordo. Quando é primavera e verão em Tulsa, o espírito dela fica lá, no meu corpo, e eu fico aqui, no Submundo, com Hades. Quando é outono e inverno em Oklahoma, eu vou para lá, e ela se diverte pelo Olimpo, ou onde quer que seja, em seu corpo de deusa. — Lina sorriu. — Foi um bom negócio. Os invernos em Oklahoma são agradáveis, e o tempo em Elysia... — ela fez um gesto, abrangendo tudo ao redor — ... é sempre perfeito. Sem dizer que também há Hades, claro. — Seus olhos suavizaram-se ainda mais.

— Eu não consigo... Não sei se posso aceitar tudo isso. — Pamela passou a mão sobre a testa e deu um pulo ao ver seu tom pálido e fantasmagórico. — Não me sinto como eu mesma; nem pareço comigo!

— Eu sei, querida, eu sei. É sempre difícil quando se morre antes de se estar preparado. E com você será ainda mais difícil porque não é aqui que vai ficar... Mas prometo que será sempre bem-vinda em Elysia. Vai encontrar paz aqui. Não precisa ter medo. Basta escutar seu espírito. Ele sabe mais do que você imagina.

— Paz... — repetiu Pamela. Já não estava mais ofegante, nem sentia tanto medo.

Em meio ao choque e ao pânico, percebeu algo que lembrava um pouco a voz de Lina. Algo delicado, quente e reconfortante, como uma chuva no final da primavera ou uma sesta à tarde.

E estava no ar, ao seu redor.

Uma leve brisa soprou seu corpo espiritual, acalmando-a. Parecia sussurrar o nome dela, como uma mãe acolhendo uma criança perdida nos braços.

— Entende o que quero dizer? — Lina perguntou, estudando seu rosto.

Pamela respirou fundo e olhou para o próprio corpo outra vez. Desta vez, sua pele luminosa não a assustou. Sim, ainda era ela: seus braços, pernas e o restante do corpo.

Ergueu a mão outra vez, estudou-a... e reconheceu a alma dentro daquele invólucro transformado.

A brisa quente tornou a soprar, acariciando-a com uma aceitação e um amor quase palpáveis.

— Acho que estou começando a compreender. — Pensativa, ela passou os dedos pelo cabelo curto, percebendo apenas vagamente que era como passar a mão através de uma névoa fria. Virou-se no banco, de modo a ficar de frente para Lina. — Eu acredito que possa encontrar a paz aqui, mas e quanto ao amor?

— Você já sabe a resposta, Pamela. Ainda ama Apolo?

— Claro — ela respondeu sem hesitação.

Lina sorriu.

— Porque o amor é uma das poucas coisas que podemos levar conosco.

— Mas e quanto a... — Pamela tornou a levantar a mão semitransparente. — Não sou mais como era antes.

— Não, não é mais a mesma, contudo seu espírito tem forma e sentimentos. O resto é com você e Apolo...

— Não seria como fazer amor com um fantasma para ele? — Pamela indagou, combalida.

Lina segurou-lhe a mão mais uma vez.

— Prefiro pensar que isso, sim, é amar a pessoa em sua essência.

— Então estou morta. — Desta vez, quando disse isso, Pamela não sentiu o coração fraquejar. Não se sentiu como se precisasse acordar de um pesadelo.

Os pensamentos se alternavam em sua mente. Preocupou-se com o irmão, com os pais e com Vernelle, porém sua preocupação assumiu um caráter distante, literalmente de outro mundo; como se ela estivesse se recordando de um sonho doce e recorrente. Não que ela os tivesse esquecido ou deixado de amá-los. Apenas se sentia à parte da vida que tinha conhecido.

Perguntou-se se aquilo era algum tipo de mecanismo de defesa inato da alma para impedir que o espírito ficasse se consumindo por toda a eternidade por aqueles que havia deixado para trás.

Eternidade... Ainda era incompreensível.

— Estou morta, mas ainda sou eu.

— Sim, querida, e você vai ficar bem — afirmou Lina. Depois ergueu o olhar e sorriu. — Aí vêm os nossos deuses.

Hades e Apolo caminhavam em sua direção através do pátio florido. O Deus da Escuridão estava com a mão no ombro do amigo e falava com ele, enérgico, enquanto andava. Apolo acenou com a cabeça em resposta, mas, quando viu Pamela, sua atenção se voltou completamente para ela, e ele correu até onde as mulheres se encontravam sentadas.

Parou ao lado do banco.

— Parece tão mal quanto estava logo após a cobra tê-lo picado — comentou Pamela. — Sua mão não está doendo mais, está?

— Não — ele afirmou e quase riu. — Não há mais nenhuma lesão em meu corpo. — Passou os dedos de leve pelo rosto delicado. — É você de novo, doce Pamela?

— Sim, acho que sim. Sinto-me diferente, mas ainda sou eu. Talvez mais do que sempre fui... — ela completou com uma voz marcada pela perplexidade.

— E me perdoa por ter roubado sua alma e tê-la trazido para cá?

Pamela estudou o rosto bonito à sua frente. Lina tinha razão. Ela havia trazido o amor consigo. E também outras coisas, como fé, esperança e perdão.

— Está tudo bem, Apolo. Eu o perdoo.

Emudecido, o Deus da Luz caiu de joelhos, afundou a cabeça em seu colo e, enquanto ela lhe acariciava o cabelo, chorou.


No Monte Olimpo, Zeus ouviu Ártemis terminar sua história. A Deusa da Caça fora implacável em sua ira, mas também fora apaixonada na defesa dos mortais modernos.

Intrigado, Zeus viu a filha enxugar as lágrimas de seu belo rosto enquanto descrevia a morte da mulher que ela afirmava ser a amada de seu irmão. Mal podia acreditar na mudança que se operara em Ártemis. A deusa nunca se importara muito com os mortais.

Verdade que ela não costumava ser cruel com eles; apenas indiferente, fria, intocável... Os mortais faziam sacrifícios pela Deusa da Caça, solicitavam sua ajuda, e Ártemis eventualmente até atendia a seus pedidos, se lhe desse na telha... Mas nunca, em todas as suas eras de existência, ele a vira chorar por uma mortal.

A diva também tinha falado do bardo que abrigara a ela e a seu irmão gêmeo com tanta dedicação, como se ela também se importasse com o tal mortal.

Fascinante.

— ... Aquela mulher pobre e fraca, que não passou de um instrumento para a morte de Pamela, estava sob a influência de Baco. Senti o mau cheiro daquele infeliz. Era como se ela tivesse passado a noite se banhando nele... O Deus do Vinho é o culpado, e não apenas pela morte de uma inocente. Ele manipulou todos os eventos que culminaram nesta triste noite. E por quê? — A Deusa da Caça se voltou para Baco, que também se postara diante do grande Zeus, onde este se encontrava sentado em seu elevado trono. — Por nenhuma outra razão a não ser inveja e despeito!

— Por retribuição! — gritou o Deus do Vinho.

— Retribuição?! — devolveu Ártemis. — Por que Pamela merecia um castigo? Ela era gentil e leal! Tudo o que fez foi amar o meu irmão e nos socorrer quando nos vimos presos em seu mundo, sem os nossos poderes!

— A punição não era para ela. Era para você e para aquele seu irmão arrogante. — Baco voltou os olhos estreitos e malévolos para Zeus. — Não percebe? Eles pensaram que podiam dominar o meu reino e nunca ser punidos por sua transgressão. Não agiram como meros visitantes, mas sim como usurpadores!

— SILÊNCIO! — ordenou Zeus, fazendo um trovão rugir no céu. — Sou eu quem deve julgar. Aproxime-se, Baco.

O deus caminhou, hesitante, até a beira do pedestal de Zeus.

— Você é meu filho, Baco, e eu o amo. Mas também é filho de sua mãe, e ela desejava o que não podia ter... Sêmele não conseguia agir com bom-senso, e isso acabou lhe custando a vida. Agora você também deseja o que não é seu. Assim como à sua mãe, eu também lhe dei uma chance de usar a razão. Em vez disso, reagiu com mentiras e com ódio. Diga-me, Baco, Deus do Vinho, o que faz quando uma de suas videiras deixa de produzir bons frutos?

Confuso, Baco piscou os olhos pequenos e olhou para Zeus de soslaio.

— Ela é podada ao final da estação, para que na próxima temporada reviva e dê bons frutos.

Zeus assentiu, solene.

— Será esse o seu castigo, meu filho. A partir de hoje, a cada final de estação, o seu corpo será enviado aos Titãs para ser desmembrado — podado — por suas poderosas águias. A cada vez que renascer, lembre-se da lição da videira morta. Pense em seus erros, aprenda com eles e dê bons frutos novamente.

Enquanto Baco gritava, aterrorizado, Zeus ergueu a mão poderosa, e o Deus do Vinho desapareceu.

Zeus se voltou para Ártemis.

— Aproxime-se de mim, minha filha.

Sem demonstrar nenhum medo, a deusa caminhou até o pedestal.

— Conte-me o que aprendeu no Reino de Las Vegas — ele ordenou.

Ártemis encontrou os olhos cinzentos e tempestuosos do pai.

— Aprendi o que é ser mortal.

— Diga-me o que isso significa, Ártemis.

— Significa que eles não são frágeis, inconsequentes; seres que vivem e morrem em um piscar dos nossos olhos. Não são nem um pouco fracos. Apenas os seus corpos mortais sucumbem. Dentro de muitos deles existem centelhas de honra e lealdade, de amizade e amor. E eles brilham tanto que, se pudéssemos vê-los como realmente são, sua luz cegaria até mesmo os deuses.

— E foi uma lição valiosa?

— Eu a levarei comigo para sempre.

— Então a aprendeu de modo mais profundo do que qualquer castigo que eu lhe poderia infligir... Você a aprendeu no fundo da alma. Não vou acrescentar nada a isso, portanto. A verdade que agora carrega em seu coração é lição suficiente. Você é livre para fazer o que quiser.

Ártemis inclinou a cabeça, mas, antes que pudesse sair da sala do trono, a voz do pai a deteve.

— Uma última coisa, minha filha. Seu irmão precisa de você. Eu lhe concedo o poder de que vai precisar para ajudá-lo... Se assim quiser.

Confusa, Ártemis inclinou a cabeça outra vez.

Mas claro que iria ajudar Apolo.

— Obrigada, meu pai.

— Não me agradeça ainda, filha. O amor é muitas vezes tão doloroso quanto é doce... Pode ir até Apolo agora.

A tristeza na voz poderosa de Zeus não lhe passou despercebida.

Assim que se viu livre da presença do pai, Ártemis fechou os olhos e se transportou para o Submundo.


Capítulo 34


— Ártemis, estou pedindo para que tente me entender e pense em uma maneira de me ajudar — implorou Apolo.

— Eu não posso! Não vou fazer isso! Não entendo por que não pode simplesmente deixar as coisas como estão... Pamela parece feliz. Por que ela iria querer que mude isso? — Ártemis puxou, irritada, uma das rosas cor de creme e perfeitas que cobriam parte dos jardins ornamentados, os quais se estendiam em camadas por trás do palácio de Hades e terminavam à beira dos Campos Elíseos. Mal havia tido tempo de conversar com Pamela, pois, assim que se materializara no Submundo, Apolo dissera que precisava falar com ela e a puxara na direção do jardim.

Agora mal podia acreditar no que ele queria dizer a ela.

Apolo suspirou.

— Ainda não conversei com Pamela a respeito. Eu queria lhe dizer o que estava pensando, primeiro, para que pudesse me ajudar a decidir o que fazer com... — A voz do deus sumiu enquanto ele andava, inquieto, de um lado para o outro do caminho à sua frente.

— ... com o insignificante fato de o Deus da Luz estar pensando em deixar o Olimpo. E para sempre!

Apolo franziu a testa.

— Não para sempre. Apenas por uma vida.

— O que decerto vai parecer uma eternidade para um Mundo Antigo que se verá desprovido de seu Apolo!

— Talvez pudéssemos falar com nosso pai. Você disse que ele não está mais aborrecido conosco. Talvez eu pudesse convencê-lo a...

— A quê? A verificar se a sua carruagem continua a fazer o sol se erguer no firmamento?... Acorde, criatura! Espera isso dele, mesmo? — Ártemis jogou o cabelo dourado para trás, tentando ignorar as palavras que a assombravam: Seu irmão precisa de você. Eu lhe concedo o poder de que vai precisar para ajudá-lo... Se assim quiser.

Agora entendia o que Zeus havia dito. Compreendia, e estava odiando aquilo tudo.

Apolo balançou a cabeça, angustiado, e passou a mão pela testa.

— Não, eu... Não sei o que fazer, irmã. Eu só quero uma chance, e esse me parece o único caminho.

Ártemis sentiu o peito se apertar.

— Pamela não faz ideia do que está pensando em fazer?

— Não, ainda não — ele admitiu.

— E quanto a Hades e Lina? Já falou com eles a respeito?

Apolo assentiu.

— E o que eles acharam desse seu plano?

— Hades disse que eu estava ficando louco. Lina compreendeu.

— Pois bem, estou mais de acordo com Hades do que com Lina!

— Eu já imaginava — ele murmurou, desanimado.

— O que esperava?!

Os olhos de Apolo encontraram os dela.

— Pensei que, talvez, minha irmã pudesse me ajudar a encontrar uma saída...

Ártemis sentiu uma pontada de dor ao tomar sua decisão. Não tinha escolha. Amava Apolo demais.

— Vou guiar a sua carruagem, meu irmão.

— Você? Mas como...

A deusa ergueu a mão delicada e perfeita, e lançou mão da arrogância para domar as lágrimas que lhe ardiam nos olhos.

— Duvida dos meus poderes?

— Não! Eu...

— Então está resolvido. — Ártemis estudou as unhas bem-cuidadas. — Eu sempre achei que aquela sua carruagem precisava ser modernizada, mesmo. É muito antiquada, muito... — estremeceu dramaticamente — ... espartana.

Apolo apenas a fitou, boquiaberto, e ela lançou-lhe um olhar severo.

— Não vai agradecer à sua irmã?

Com um grito, ele a ergueu nos braços e a fez girar no ar.

O corpo etéreo de Pamela emergiu de um dos passeios perpendiculares nesse momento.

— Maldição dos infernos ! O que está... — Ela soltou uma exclamação e cobriu a boca. Em seguida começou a rir. — Eu disse “inferno” e me assustei!... — Balançou a cabeça, os cabelos curtos se movendo como espuma do mar ao redor do rosto delicado.

Apolo sorriu e estendeu a mão para ela. Ainda rindo um pouco, Pamela segurou a mão sólida e quente em seus dedos frios.

— Como eu ia dizendo... o que está acontecendo aqui, com vocês dois? Ouvi você gritar lá da outra camada do jardim!

Apolo olhou para Ártemis, que olhou para Apolo.

— E então? — insistiu Pamela. — Ninguém vai dizer nada?

— O plano é seu. Você conta — Ártemis decidiu.

— Que plano?...

Apolo respirou fundo.

— Eu tive uma ideia. Falei com Hades e Lina a respeito, mas só agora contei a Ártemis. E os três o consideraram viável.

— Maluco, mas possível — resmungou a deusa.

Apolo sorriu com carinho para a irmã antes de se voltar para sua amada.

— Você já está aqui há tempo suficiente para saber que existem sete rios no Submundo.

— Sim. — Ela assentiu com um gesto de cabeça.

— Minha ideia tem a ver com o primeiro deles: o Rio Lete.

Pamela encolheu os ombros pálidos.

— Sei, e qual é a ideia?

— Primeiro precisa entender o Rio Lete — interveio Lina, aproximando-se pelo passeio de braços dados com o marido.

— Ele é chamado de “o Rio do Esquecimento” — explicou Hades.

Apolo balançou a cabeça, fingindo-se desgostoso.

— Não existe privacidade aqui no Submundo?... — indagou, porém foi solenemente ignorado.

— O Rio do Esquecimento. O que isso significa? — Pamela quis saber.

— Ele tem a finalidade de lavar uma alma de todas as recordações, de modo que esta possa renascer e viver outra vida — Lina explanou.

Pamela encontrou os brilhantes olhos azuis de Apolo.

— E?...

— Se bebêssemos das águas do Rio Lete, você e eu poderíamos renascer e ter uma vida juntos. Poderíamos nos casar, ter filhos e envelhecer juntos.

— Mas você não é mortal — retrucou Pamela com voz fraca, pois era como se as palavras do deus tivessem feito seu espírito alçar voo.

Viver de novo?... Amar e ter filhos... com Apolo?

— O Lete terá o mesmo efeito sobre o espírito dele — afirmou Lina. — Tudo o que Apolo precisa fazer é deixar seu corpo imortal, assim como Perséfone faz a cada seis meses.

— Mas como ele pode fazer isso? Como pode deixar de ser Apolo?

— É aí que entra Ártemis. Ela concordou em cuidar para que o Mundo Antigo não fique desprovido de luz enquanto eu estiver ausente.

— Concordou? — repetiu Pamela, olhando para a deusa.

Ártemis deu de ombros com indiferença. Em seguida, fingindo cheirar uma rosa branca como leite, curvou-se para a flor perfumada e virou a cabeça, enxugando a face úmida.

Apolo segurou Pamela pelos ombros.

— Poderíamos ambos viver uma vida mortal. E nossos filhos prosseguiriam depois de nós. Pense nisso, Pamela!

Ela sentiu-se tonta, e ficou feliz por Apolo a estar segurando com firmeza.

— Espere... — Olhou para Lina. — Não disse que o Lete apaga todas as lembranças? Se não lembrarmos um do outro, como poderei encontrá-lo? Ou Apolo a mim?

Lina sorriu e se inclinou para Hades, que passou o braço em torno dela.

— Almas gêmeas sempre encontram uma a outra.

— Quanto a isso, têm a minha promessa sagrada — concordou Hades.

O olhar de Pamela se desviou para a silenciosa Ártemis.

— Não quer que ele faça isso, não é?...

— Não quero perder meu irmão — ela admitiu.

Apolo tirou a mão do ombro de Pamela e a pousou no braço da irmã.

— Não creio que iria me perder. Acho que tomaria conta de mim. Assim como de meus filhos... e netos.

Ártemis baixou a cabeça e colocou a mão sobre a dele.

— Claro que sim, meu irmão. Quanto a isso tem meu juramento.

Apolo voltou-se para Pamela.

— Então, tudo o que resta é você concordar, minha doce Pamela.

Ela sentiu como se sua alma fosse explodir de felicidade.

— Sim! Vamos fazer isso!

Apolo virou-se para Hades e ergueu uma sobrancelha para o amigo.

— Agora?...

Hades deu de ombros, e Lina deu-lhe uma cotovelada.

— Seria perfeito ! — decretou a Rainha do Submundo.

Apolo se afastou um passo de Pamela, que ainda franzia a testa, confusa. Ergueu o queixo regiamente, e ela pensou que o deus era exatamente como no perfil estampado na antiga medalha que ele lhe dera já havia algum tempo.

Ia dizer isso a ele, quando o corpo de Apolo de repente tremeu e, em seguida, se transformou em mármore sólido, ao mesmo tempo que seu brilhante espírito o deixava.

A forma reluzente do Deus da Luz se voltou para Hades.

— Cuide bem do meu corpo... Vou precisar dele algum dia.

— Pode deixar, meu amigo.

Lina estendeu os braços, segurou-o pelo rosto com ambas as mãos e o beijou de leve nos lábios. Depois voltou para o lado do marido.

— Eu lhes desejo uma vida repleta de felicidade e alegria... Sabe o caminho, não sabe, Apolo?

O deus brilhante acenou com a cabeça.

— Não vão conosco? — indagou Pamela.

Lina sorriu para ela.

— Para isso, não vai precisar da presença dos deuses. É o tipo de coisa que as almas fazem melhor sem a nossa interferência.

— Também vou me despedir de vocês aqui — decidiu Ártemis.

Em primeiro lugar, a deusa foi até Pamela e a abraçou com força.

— Cuide bem dele por mim — sussurrou para a alma mortal que o irmão tanto amava. Então se voltou para Apolo e mergulhou nos braços brilhantes. Sem se importar com as lágrimas que agora lhe corriam soltas pela face, pressionou o rosto contra o dele. — Onde quer que esteja... Seja quem for... Saiba que o meu amor e minha bênção sempre estará com você, assim como com seus filhos e os filhos de seus filhos.

— Obrigado pela compreensão, minha irmã. E obrigado por ser a minha luz enquanto eu não puder sê-la. — Apolo beijou-lhe cada uma das faces úmidas.

— Eu te amo — declarou a Deusa da Caça conforme seu corpo se esvaecia até desaparecer por completo.


Apolo e Pamela caminharam em silêncio através dos pinheiros altos que começavam onde os jardins de Hades terminavam. Iam de mãos dadas, e seus ombros e quadris roçavam com intimidade.

Não demorou para que, em meio às árvores, começassem a capturar o reflexo cristalino da água em movimento. O rio os chamava com seu canto sussurrante e sedutor.

Inconscientemente, eles andaram mais rápido.

As árvores chegaram ao fim, e eles se viram em pé sobre um afloramento de rochas que dava para a água, a qual brilhava como joia líquida.

— Está com medo? — perguntou Apolo.

— Não — garantiu Pamela. — Você vai me encontrar. Eu sei que vai.

— Sempre — ele prometeu.

Juntos, eles se ajoelharam na beira da água. Apolo juntou as mãos em concha, mergulhou-as na água fria e as ergueu, de modo que Pamela pudesse bebê-la. Então, enquanto ela observava, afundou-as outra vez e fez o mesmo.

Em pé, tomou-a nos braços e a beijou. Conforme seus corpos espirituais se uniram, começaram a brilhar. Seus cabelos e roupas puseram-se a açoitá-los violentamente, como se eles estivessem bem no meio de uma violenta tempestade.

Apolo pendeu a cabeça para trás e riu, extasiado, e o riso de Pamela se juntou ao dele à medida que suas almas se inundavam com uma onda de amor e alegria.

Mais uma vez, o deus puxou sua alma gêmea para os braços, e Pamela enroscou o corpo luminoso no dele. Enquanto se abraçavam, seus corpos continuaram a se transformar, perdendo suas características, de modo que foi como se houvessem se fundido e se tornado um só.

De repente, a esfera incandescente explodiu, fazendo chover faíscas na água.

Do centro do gêiser chamejante, surgiram duas pequenas bolas com luzes idênticas. Elas pairaram acima do rio por um momento, aclimatando-se a seus novos sentidos. Em seguida, como se seguindo uma trilha de doces lembranças, começaram a flutuar corrente abaixo, em direção ao seu novo começo.


Epílogo


Kristin estava tão entediada que pensou que iria morrer. Desejou morrer. Poderia muito bem morrer... Que outra coisa havia para fazer?

Era típico de seus pais forçá-la a tirar aquelas férias idiotas em família. Eles não podiam tê-la deixado em casa com suas amigas Janice, Rebecca e Ruth?

Claro que não, mesmo ela tendo acabado de fazer treze anos! Não era idade suficiente para que ela ficasse em casa sozinha por duas semaninhas ...

Aquilo não fazia o menor sentido.

Por isso ali estava ela, sentada em uma praia, sozinha, enquanto o sol nascia. E por quê? Porque ninguém mais na família saía da cama antes da hora do almoço. Estava condenada a conviver com pessoas que dormiam na melhor parte do dia!

E aquele era apenas o segundo dia daquelas duas semanas de tortura que seus pais chamavam de férias.

Considerou se lançar ao mar.

Não. Ela nadava muito bem. Levaria uma eternidade para se afogar.

Kristin afundou os pés na areia branca e deixou as marolas baterem nos dedos. Talvez devesse ler um livro. Outro livro.

Passou a mão pelo cabelo curto, irritada. Ela o havia cortado poucos antes de eles partirem, e ainda não se acostumara com o novo corte. Principalmente com o modo como os fios espetavam na frente.

Suspirou. Não devia tê-los cortado. Nunca mais iria conseguir um namorado. Nunca mais!... Iria morrer solteirona.

Uma sombra bloqueou parte do sol da manhã, e ela suspirou mais uma vez. Na certa era seu irmão caçula. Perfeito.

Apanhou um punhado de areia molhada e estava prestes a jogá-lo nele quando a sombra falou.

— Oi — soou a voz estranha.

Kristin se virou e segurou a mão cheia de areia diante dos olhos, protegendo-os do brilho ofuscante do sol que nascia.

Quase desmaiou. Era um menino! Um menino lindo, alto e loiro... Devia ter uns dezesseis anos e estava sorrindo para ela.

— Oi — respondeu, tímida.

— Acordou agora ou está indo para a cama? — ele perguntou sem pestanejar.

— Acordei agora — ela respondeu, não querendo olhar para os olhos dele como se fosse uma idiota. Eles eram tão azuis quanto o oceano!

— Eu também. — Ele sentou-se a seu lado. — Prefiro as manhãs.

— Eu também! — Kristin concordou depressa.

— Minha família inteira ainda está dormindo.

— A minha também! Eles dormem demais.

— Verdade.

Kristin mal podia acreditar em como ele era... quente. Não estava sentado muito próximo, mas ela podia jurar que sentia ondas de calor vindo de seu corpo.

Quis dizer algo, mas não queria gaguejar, muito menos parecer estúpida.

— Ei, o que é isso? — ele indagou, apontando para algo que brilhava na beira da água, meio encoberto pela areia em que seus dedos dos pés estavam enterrados. Inclinou-se, quase tocando nela, e agarrou o objeto, levantando-o da areia. — Uau!! — exclamou, entusiasmado.

— Incrível! — concordou Kristin. Mal podia desviar o olhar da ofuscante medalha que pendia da corrente dourada. Ela brilhava à luz crescente e tinha o perfil de um homem estampado em sua face. Um homem lindo, com cabelos encaracolados.

— É sua — ele declarou, solene.

— Minha?... Nã-nã.

— Hã-hã! Claro que é. Estava aos seus pés, na sua praia, durante a sua manhã. É sua. — Ele abriu o pequeno fecho e colocou a corrente em torno do pescoço dela.

A medalha ficou no lugar como um pedaço de sol. Kristin a tocou e a sentiu quente.

— Viu?... Combinou direitinho — ele comentou sorrindo.

Ela pensou que fosse desmaiar. Ele era tão, tão absurdamente lindo!

— Meu nome é Kristin.

— O meu é Jordan.

— Oi, Jordan.

— Oi, Kristin.

Sorriram um para o outro, e o sol explodiu do oceano em direção ao céu da manhã.

— Ei... — Jordan comentou. — Gostei do seu cabelo.

— Obrigada — ela agradeceu, pensando que, talvez, aquelas férias de verão não fossem ser uma tortura, afinal.

Nenhum dos adolescentes notou a mulher alta e loira que os observava das sombras. Então é verdade que almas gêmeas sempre se encontram , refletiu Ártemis. Eu nunca devia ter duvidado de você, meu irmão.

A deusa enxugou os olhos e sorriu, tristonha, enquanto desaparecia, em silêncio, por detrás das palmeiras.

Capítulo 26


Pamela ficou surpresa ao perceber que Apolo a estava evitando. E também se viu chocada ao se dar conta do quanto aquilo a incomodava.

Ela até o flagrara olhando para ela, mas, no momento em que havia tentado encontrar seu olhar, ele tinha se virado e fingido estar às voltas com o trabalhador mais próximo.

Apolo a evitara até mesmo durante a pausa para o almoço. Assim, ela se sentara com Eddie e Ártemis e os observara flertando desavergonhadamente enquanto engolia um dos excelentes sanduíches gourmet que o genial cozinheiro de Eddie fizera para todos. Apolo fizera uma pausa apenas suficiente para apanhar um sanduíche e lançar-lhe um sorriso breve, distraído, antes de voltar para junto do arquiteto, próximo do local onde os trabalhadores já haviam começado a demarcar o terreno para o balneário.

Não que ela não estivesse ocupada. Naquele dia eles tinham escolhido o piso, o que acabara por se tornar um grande acontecimento. A princípio Eddie queria uma reprodução horrível do revestimento de pedra brega e tão abundante no Fórum. Por sorte, de cima de seu pedestal — onde posava regiamente, segurando um arco em vez do vaso do dia anterior —, Ártemis balançara a cabeça e protestara mais do que depressa:

— Ah, não, Eddie. É horrível!

E pronto. A pedra falsa fora vetada.

Em seguida, ela, Pamela, pedira a três representantes de marmorarias que trouxessem amostras de suas melhores pedras.

E a confusão tinha começado. Eddie encantara-se com as diferentes cores e variedades, e ficara mudando de uma amostra horrorosa para outra, cada vez mais entusiasmado, insistindo para que colocassem um padrão diferente em cada cômodo. A verdade era que ela estava tendo uma tremenda dor de cabeça com o escritor, refletiu Pamela. Havia tentado explicar a ele que, com o piso plano aberto da casa, passar do mármore Santiago — com veios vermelhos, dourados, alaranjados e verdes — para o Verde Fire —, que era predominantemente verde-limão, amarelo e preto — e depois para o Golden Alexandra —, que era apenas dourado — seria um erro de design terrível.

Mais uma vez, Ártemis viera em seu socorro.

— Eu gosto daquele — a diva tinha decidido, apontando o dedo delicado para um quadrado de pedra esquecido, o qual se encontrava bem distante dos outros.

— Gosta mesmo, minha deusa? — Eddie indagara de imediato, todo atencioso.

Ela, Pamela, pulara até a amostra, que era de uma cor creme discreta, com leves veios manteiga, os quais passavam de uma sugestão de amarelo para um rosa dourado.

Tinha sorrido, então.

— É lindo, mas não é mármore. É um pedaço de pedra calcária. — Levara-a para Ártemis, que passara a mão pela superfície lisa.

— Mas é suave e perfeita! — ronronara a deusa, olhando para o autor. — Eddie, eu adoraria ter esta pedra contra a minha pele nua!...

Os olhos do homem haviam até escurecido.

— Permita-me atender ao seu desejo, minha deusa. Escolho este calcário para cobrir o chão da minha humilde morada.

Humilde morada! Essa fora muito boa , pensou Pamela.

Tinha piscado para Ártemis em um rápido agradecimento, depois se pusera a tratar de detalhes do pedido com o entusiasmado representante da tal pedra.

Em algum ponto da vultosa transação, contudo, vira-se dominada pela inspiração. Tinha pedido ao vendedor que esperasse um instante e, sorrindo, voltara para junto de Eddie, no banco próximo ao pedestal da deusa.

— Tive uma ideia que pode achar interessante.

— Fale, Pamela!

— O que acha de colocar o calcário em todos os ambientes da casa, exceto nas salas de banho? Assim poderia dar asas à imaginação e escolher um mármore diferente para cada uma delas. Em seguida, poderíamos personalizar o ambiente conforme as cores e o padrão do mármore. Seria uma aventura entrar em cada um dos banhos. No caso dos banheiros das suítes, como o da suíte máster e os das outras cinco, usaríamos a cor do mármore escolhido como base para a decoração do quarto.

— Que ideia maravilhosa! — Ártemis havia exclamado com o que parecia genuíno entusiasmo. — Vai ser tão divertido escolher todos eles!

A estrondosa gargalhada de Eddie fizera várias cabeças se voltar.

— Muito bem pensado, Pamela!

Ela sorrira para o homenzarrão.

— Sua casa vai ser realmente única, Eddie.

E, pela primeira vez, usara a palavra como um elogio.

Logo depois, tinha chamado os representantes das pedras para que lhe trouxessem as mais diferentes amostras de mármore.


Pamela estava bebendo uma garrafa de água mineral gelada e estudando uma das amostras de mármore — que lembrava um caleidoscópio — quando sentiu os olhos de Apolo mais uma vez.

Ergueu a cabeça. Ele devia estar fazendo uma pausa porque se encontrava parado do outro lado do pátio, olhando por sobre o ombro do artista que fazia o desenho de sua irmã. Tinha a cabeça ainda inclinada para baixo, em direção ao esboço, porém seus olhos estavam fixos nela.

Pamela sentiu o estômago se apertar no mesmo instante.

Por favor, faça que ele não desvie o olhar! , pensou. E sorriu para ele, tímida.

Apolo devolveu o sorriso, e então sua expressão mudou, como se ele houvesse se lembrado. Baixou os olhos de volta para o esboço, e Pamela suspirou.

— Por que está judiando de Febo? — A voz de Eddie soou estranhamente baixa a seu lado. Ela deu um pulo, perguntando-se como, diabos, o escritor havia chegado tão perto sem que ela houvesse escutado. Olhou para o homem enorme, pronta a insistir que não sabia do que ele estava falando... mas a genuína preocupação em seu rosto a fez conter a negligência nas palavras.

— Não estou judiando dele. Só não sei o que fazer com Febo.

— Mas sabe que ele a ama.

Pamela piscou, surpresa, e Eddie soltou uma versão baixa, mais moderada, de sua risada.

— Precisa se lembrar de que sou um autor, ou seja, não passo de um contador de histórias que observa o mundo e, em seguida, o reformula segundo sua própria visão para entreter e divertir. Além disso, Febo não tenta ocultar seus sentimentos por você. É você quem mascara o que o seu coração sente por ele. Não é verdade?

— Sim — ela concordou.

— Eu sei que é muito atrevimento da minha parte perguntar, mas por quê? Ele me parece um homem de excelente caráter.

Pamela hesitou, sem saber se poderia contar a Eddie parte da verdade.

— Pode se abrir comigo sem medo, Pamela. O que disser não afetará nossa relação profissional. Eu gostaria muito que pensasse em mim como um amigo. Sempre achei ridículo quando as pessoas dizem que nunca misturam negócios com prazer. Como suas vidas devem ser sem-graça se marcham sozinhas sob o peso de regras tão restritivas!... Então, me diga, o que a impede de aceitar Febo?

Ela estudou os olhos de Eddie. Eles não continham malícia e pareciam cheios de genuína preocupação.

— Se eu lhe disser a verdade, não preciso temer que ela vá aparecer em um de seus livros? — perguntou em tom de brincadeira.

Desta vez a risada de Eddie retumbou por todo o pátio.

— Isso é sempre um risco quando se tem um amigo escritor... — ele se inclinou e baixou a voz para um falso sussurro: — Mas eu prometo mudar o seu nome.

Tomando uma decisão apenas com base no que os instintos lhe diziam, Pamela deixou escapar:

— Estou com medo de sair ferida... Você não?

O olhar de Eddie se desviou dela para Ártemis. Por um momento, a tristeza sombreou seu semblante. Então ele respirou fundo, e esta se foi, substituída por um sorriso. Sem tirar o olhar da deusa, o autor comentou:

— Lembra-se de que, quando nos conhecemos, eu queria que a estátua central da minha fonte fosse feita segundo uma imagem do deus Baco?

— Sim — Pamela acenou com a cabeça, torcendo para não ter dito algo que o fizera reconsiderar aquela ideia medonha.

— Baco sempre foi um dos meus deuses favoritos, mas não é tipicamente olímpico. Diz a mitologia que ele foi o último deus a entrar no Olimpo. Homero não o reconhecia como tal. Baco era de uma natureza estranha para os outros deuses. Eles, que sempre haviam primado pela ordem e pela beleza, nem sempre apreciaram o caráter único de Baco ou de seus adoradores. E eu compreendo isso. Sei bem o que é ser denominado uma coisa e encarado como outra. — Eddie balançou a cabeça e a fitou com carinho. — Agora estou divagando... Não é a história de Baco que quero que ouça, mas a da mãe dele. — O escritor fez um sinal para que um dos trabalhadores lhes trouxessem cadeiras.

Pamela se sentou a seu lado, esperando, enquanto Eddie acomodava o corpanzil e pedia um copo gelado de hidromel. Quando ele perguntou se ela se juntaria a ele no drinque, Pamela deu de ombros e assentiu. Por que não? Trabalhando para Eddie, decerto poderia sair um pouco da linha.

Tão logo o hidromel chegou, o escritor tomou um longo gole antes de se lançar em sua história.

— Sêmele era uma linda princesa de Tebas. Nascida de pais mortais, tinha o rosto e a silhueta de uma deusa... Infelizmente, ela chamou a atenção de Zeus, o Governante Supremo do Olimpo. Zeus flertava com muitas donzelas mortais, assim como a maioria dos deuses e deusas.

Nesse ponto, Pamela bufou, desgostosa, e cruzou as pernas outra vez.

Eddie sorriu.

— Lembre-se, minha querida. Era um mundo diferente. Finja, apenas por um momento, que é uma linda jovem vivendo na Grécia antiga. Nascida em uma família de comerciantes, está insatisfeita com o papel que o destino lhe reservou. Você colocaria de lado suas aspirações mais secretas e se casaria, submissa, com quem a família escolhesse? E se, digamos, um belo homem atravessasse o seu caminho? O filho mais velho de um rico latifundiário, talvez?... Ele está longe do seu alcance, mas você encontra o amor em seus braços... De repente, entretanto, descobre que está grávida. Iria se deixar expulsar de casa, desonrada, quando seu romance fosse descoberto? Ou contaria como, um dia, enquanto estava colhendo flores em um prado distante da cidade, um deus surgira, a seduzira e lhe fizera um filho?... Um filho que nascera em meio a muito alvoroço, e cuja vida é rodeada de mistério e magia?

— Compreendo — Pamela murmurou.

— Posso continuar com o meu conto?

— Desculpe — ela murmurou, recostando-se na cadeira para beber o hidromel.

— Como eu estava dizendo, Sêmele se tornou uma das muitas amantes mortais de Zeus. Mas ela era diferente, e não apenas por conta de sua extraordinária beleza. Diz a mitologia que Zeus se encontrava completamente apaixonado por sua jovem amante, tanto que, quando ela lhe disse que teria um filho dele, o deus fez um juramento sobre o Rio Styx de que lhe daria qualquer coisa que ela lhe pedisse. — Eddie parou e sorveu o hidromel em lenta contemplação.

— E então, o que aconteceu?

— O maior desejo de Sêmele era ver Zeus em todo o seu esplendor como Senhor do Olimpo e Deus dos Trovões. Zeus implorou à amante que reconsiderasse seu pedido. Ele sabia que nenhuma mortal poderia contemplá-lo como tal e viver, porém ela não quis voltar atrás em sua maior vontade. O Senhor dos Deuses tinha feito um juramento sobre o Rio Styx, e nem mesmo ele poderia romper aquele vínculo. Assim, com as faces banhadas por lágrimas devido a sua previsão, foi até ela uma última vez e se revelou conforme ela desejara. E assim, diante da glória de sua luz ardente e terrível, Sêmele sucumbiu.

— Mas isso não pode estar certo! Se ela morreu, como foi que Baco nasceu?

— Por causa de seu amor por Sêmele, Zeus lhe arrancou o filho do ventre enquanto ela perecia e carregou a criança dentro de sua própria coxa até que chegou a hora de o Deus do Vinho nascer.

Antes do dia anterior Pamela teria reagido com ironia àquele antigo mito contado por Eddie. Agora sabia muito bem que a possibilidade de este ser muito mais do que ficção era grande e se condoeu pela tragédia de Sêmele, que havia morrido ao se recusar a deixar de lado seu desejo mais profundo.

— Eu não fazia ideia — falou baixinho.

— Acha que Sêmele se arrependeu de seu desejo? — perguntou Eddie.

— Bem... este a matou.

— Mas acha que ela se arrependeu? Acha que ela teria trocado aquele momento extraordinário de realização, de total satisfação — tão intenso que seu corpo mortal não pôde suportá-lo —, por uma vida segura, porém desprovida daquele instante ofuscante de esplendor?

— Não sei se posso responder a essa pergunta. O que acha, Eddie?

— Precisa tomar uma decisão por si mesma. — O olhar do escritor se desviou dela e encontrou Ártemis. Seu sorriso já não denotava tristeza. — Eu tomei a minha.

— E não sente medo? — Pamela descobriu que mal conseguia formular as palavras.

— Claro. Não há garantias no amor, Pamela. Apenas infinitas oportunidades... para a dor e para a felicidade. Mas posso dizer, sem qualquer dúvida, que prefiro tocar essa felicidade por um instante e me deixar ferir do que viver minha vida na escuridão, sem nenhuma luz.

Com as palavras, algo mudou dentro de Pamela. Algo que se encontrava adormecido dentro dela finalmente fez mais do que se agitar. Despertou por completo. Ela sabia o que era viver na escuridão, e também sabia o que era tocar a luz...

— Também não quero uma vida desprovida de luz — murmurou em meio ao nó na garganta.

Eddie olhou para ela e sorriu.

— Muito bem, Pamela. Muito bem.

De repente, ele se levantou, e sua voz grave ressoou por toda a vila.

— Febo! Venha até aqui!

Pamela tentou dizer algo, como: “Espere, Eddie! Eu não disse que estava pronta para tocar a bendita luz agora!...”, mas o autor ignorou seus murmúrios desesperados.

Quando Apolo se apressou em ir até eles, Pamela ficou mortificada ao perceber que seu rosto ardia. Estava corando como uma adolescente!

Que maravilha!...

— Aí está você, meu rapaz! Tenho um pedido para lhe fazer.

— O que posso fazer por você, Eddie?

— Acho que Pamela anda trabalhando demais, e possuo uma regra rigorosa: sempre misturar negócios com prazer! Mas parece que nossa amiga desconhece essa regra... — observou Eddie, como se ela não estivesse sentada a centímetros dele e com o rosto pegando fogo.

— Eu já reparei — concordou Apolo, tentando manter a expressão neutra.

— Que bom! Então sabe exatamente o que precisa fazer... — Diante da expressão vazia do gêmeo dourado, Eddie se ergueu e lhe deu um tapinha no ombro. — Vamos! Tire-a daqui, homem! Vá passear um pouco com Pamela no resort . Visitem as fontes e refresquem-se. Vou pedir a James que lhes providencie um belo almoço... e não esperaremos vê-los tão cedo!

Apolo pareceu tão surpreso quanto Pamela.

— James! — Eddie gritou, e seu assistente, como de costume, surgiu como num passe de mágica. — Peça a Robert que leve Pamela e Febo de volta para o resort , e faça o pessoal preparar um belo piquenique à moda antiga para os dois. Eles precisam de algum tempo para descansar e... — parou, piscando para Febo — ... aproveitar um pouco.

— Agora mesmo, Eddie — aquiesceu James antes de se afastar correndo.

— Podem ir — falou o escritor. — E não se preocupe, Pamela. Diana e eu terminamos de escolher o mármore para os banheiros.

— Tem certeza de que não precisa de mim para fechar o negócio com o representante da pedra calcário?

— Não, não... — Eddie afastou sua preocupação. — Ele já tem a planta. Agora fora daqui, vocês dois!

Sem ver alternativa, Pamela se levantou e começou a caminhar com Apolo pelo pátio. As portas estavam abertas, e o sol refletiu a lataria prateada da limusine que parou diante da villa.

Apolo estacou.

— Lembre-se, Febo, precisa matar o dragão antes de ganhar a donzela! — Eddie gritou atrás deles.

O Deus da Luz ergueu a mão e acenou de volta para Eddie com bom humor, mas Pamela ouviu seu suspiro dolorido e percebeu como seu rosto tinha empalidecido diante do veículo.

Apolo endireitou os ombros, então, e avançou novamente.

— Existem dragões no Mundo Antigo? — Pamela murmurou enquanto caminhava a seu lado.

— Sim, mas não carros. E juro que eu preferiria enfrentar os dragões.

— Vou me sentar no banco da frente com você.

— Não posso matar essa coisa?...

— Eu não acho que seria uma boa ideia. — Pamela tentou não rir, sem sucesso.


Capítulo 27


Fazer caminhadas e andar pelas trilhas do Pikes Peak sempre fora um dos passatempos favoritos de Pamela, assim como sua principal forma de exercício. Por que deveria malhar no sufocante confinamento de uma academia feita pelo homem quando contava com o esplendor das Montanhas Rochosas do Colorado ao seu redor? Não que ela fosse uma daquelas praticantes que vivia de mochilas nas costas, acampando e desprezando as conveniências da vida moderna. Escalar uma parede de rocha nunca a seduzira. Tampouco dormir no chão e fazer xixi no mato.

Mas pegar uma trilha que serpenteasse pela montanha — principalmente no início da manhã, quando tudo parecia ainda mais fresco, quieto e particular — era algo que incluía em sua rotina ao menos quatro vezes por semana desde que tinha deixado Duane. Caminhadas eram sinônimo de liberdade para ela. E não importava o quanto estivesse lenta ou estressada no início de cada uma delas. Uma hora mais tarde, quando voltava, sentia-se relaxada e rejuvenescida.

Ve chamava isso de “seu tempo de ajuste”.

Assim, o short, a camiseta e os tênis novos para caminhada, que haviam sido deixados em sua cama, lhe trouxeram um sorriso aos lábios.

Pamela mudou de roupa depressa e saiu do quarto a tempo de ver Apolo em uma versão masculina do vestuário, andando pelo corredor em sua direção.

— Não sei como Eddie consegue fazer essa mágica sem qualquer poder imortal! — ele falou, sorrindo com ironia.

— O poder de Eddie se chama “dinheiro”... Muito dinheiro. Isso, somado à sua imaginação, equivale à versão da magia no Mundo Moderno. James telefonou para o meu quarto... Pediu para que nós o encontremos na caverna.

— Então, vamos.

Apolo fez um gesto galante para que ela o precedesse pelo corredor, e Pamela percebeu que, assim como na curta viagem de carro, ele se esforçava para não tocá-la. Lembrou-se, contudo, de que o deus estava fazendo apenas o que ela mesma lhe pedira: dando a ela tempo e espaço; o que não ajudava nem um pouco a desfazer o nó que ela sentia na boca do estômago.

James já se encontrava esperando por eles com um sorriso, uma cesta de piquenique e um mapa.

— Marquei aqui uma trilha próxima. Imagino que vão gostar de explorá-la. Ela começa ao norte da casa da fazenda, segue até o First Creek Canyon e termina com uma linda lagoa alimentada por uma cachoeira. Ele apontou para o fim do traço destacado em amarelo. — O lugar perfeito para uma refeição agradável. Na cesta, vão encontrar muita água, bem como protetor solar. E, embora provavelmente não precisem dele, também incluí um telefone celular que já está programado para chamar o balcão de informações do spa . Basta clicar “estrela, sessenta e dois” caso se percam ou precisem de ajuda, o que é pouco provável.

— Você é muito eficiente, James — elogiou Pamela.

— Obrigado, senhora. Basta se lembrarem de que a noite cai depressa no deserto. Creio que o pôr do sol acontecerá hoje às 20h05. — Ele entregou a cesta a Apolo, curvou-se, educado, e deixou os dois sozinhos.

Eles ficaram em silêncio, meio sem jeito, mas Apolo foi o primeiro a falar.

— Acho melhor irmos andando.

Pamela limpou a garganta. Era ridículo ficar nervosa por estar sozinha com ele. Afinal, haviam feito até sexo!... E mais de uma vez. Não existia motivo para aquele aperto no estômago, nem para que suas mãos estivessem tão suadas. Motivo nenhum. Precisava ir com calma.

— Ok. — Ela apontou para o cesto. — Protetor solar em primeiro lugar.

Apolo levantou uma sobrancelha.

Pamela suspirou e soltou o fecho no topo da cesta de piquenique. Isso porque ela queria se comportar com naturalidade!...

Mas a situação, definitivamente, não era normal. O homem diante dela nem sabia o que era protetor solar porque era Apolo, o Deus da Luz.

Pamela suspirou. Seus nervos à flor da pele decerto eram a única coisa normal naquela situação.

Olhou para o cesto superorganizado. James tinha colocado o frasco de protetor solar fator 40 em cima de tudo o mais.

Com uma expressão curiosa, Apolo a observou espalhar a loção cremosa pelos braços e rosto.

— Tem cheiro de coco. O que é? — perguntou, interessado.

— Protetor solar. Ele bloqueia os raios de sol nocivos à nossa pele.

O deus ficou confuso.

— Os mortais podem se queimar sob muita luz. Lembra-se de Sêmele? — ela indagou.

Apolo piscou, surpreso.

— Eddie está me dando aulas de mitologia.

Desta vez, Apolo levantou ambas as sobrancelhas douradas.

— Cuidado com o que acredita das histórias contadas e recontadas em seu mundo. Posso afirmar, sem dúvida, que muitas delas são totalmente equivocadas.

— Sim, eu já percebi isso. Por aqui, dizem que Ártemis é virgem.

Ele soltou uma risada.

— O que prova a minha teoria. Agora, diga a verdade... Essa loção que cheira a coco tem mesmo poder para bloquear a luz de um imortal?

— Duvido, mas pelo menos o impede de pegar uma bela queimadura de sol.

— Queimadura de sol?

— É a mesma coisa que fazer a barba, para você. Deveria ser simples de entender, mas pode deixá-lo confuso, já que não está acostumado com as implicações... A luz solar é assim para os mortais.

Muito sério, Apolo apanhou o frasco das mãos dela, espremeu um pouco na dele, cheirou a loção e, em seguida, espalhou-a pelos braços e ombros.

Pamela o observou e, de repente, sentiu-se inexplicavelmente triste. Apolo, o Deus da Luz, não devia ter que se proteger do sol.

Uma imagem da última vez em que haviam feito amor passou por sua cabeça. Ele se transformara em uma chama, queimando com paixão imortal. Ele era o Sol. Apolo não pertencia àquele mundo. Ela até poderia ceder ao seu desejo mais profundo e se permitir amá-lo, mas não poderia iludir a si mesma pensando que sua história teria um final mais feliz do que o amor mítico de Sêmele por Zeus.

— Não se esqueça do rosto — murmurou.

— Obrigado. — Apolo sorriu e espalhou o líquido branco na pele. — Eu tinha me esquecido. Isto tudo é muito novo para mim.

Pamela sentiu o estômago se contrair outra vez, mas voltou a sorrir.

— Acho que já está bom. — Fechou o frasco e o colocou de volta no cesto.

Apolo o apanhou, e juntos eles saíram pela porta da frente da estalagem.

— Sabe qual lado é o Norte? — Apolo fez uma pausa para perguntar a ela.

Quando ela lhe lançou um olhar espantado, ele sorriu como um menino.

— Eu só estava brincando. Estou sem meus poderes, mas não sem o cérebro.

— Que alívio... — murmurou Pamela, sorrindo de volta para ele conforme percorriam o caminho de pedregulhos que rumava para a esquerda, contornando as construções dispersas e feitas de tijolos que compunham o restante do requintado spa : um restaurante e uma bem abastecida loja de presentes.

Era difícil de acreditar que, passando o resort, aquele oásis dava lugar à beleza crua do deserto. A trilha era ladeada por arbustos selvagens, com flores compridas na cor laranja, intercaladas com plantas roxas e perfumadas, as quais lembravam lavanda, bem como com as familiares folhas pontiagudas e firmes das iúcas. Parecia mais frio ali, no cânion, e muito mais verde; como se o deserto tivesse concentrado por lá toda a sua suavidade e doçura.

Conversaram pouco enquanto caminhavam pelo centro do resort . Apolo não segurou sua mão, tampouco a fez passar o braço pelo dele. Quando falava com ela era educado, até mesmo espirituoso, porém a energia da paixão que estivera presente como uma parte quase tangível de tudo o que ele dizia ou fazia, desde que tinham se conhecido na pequena mesa da Adega Perdida, se fora. Ou então se encontrava bem disfarçada, o que Pamela sentiu profundamente.

Pensou no que Eddie havia dito, e na forma como o rosto do escritor se transformava sempre que seu olhar repousava sobre Ártemis. O homem sabia do grande risco de se ferir que corria, mas acreditava que o que iria ganhar era mais valioso do que aquilo que ele poderia perder.

Não há garantias no amor, Pamela. Apenas infinitas oportunidades... para a dor e para a felicidade.

Era um conceito novo e assustador , pensou Pamela, porém ela nunca fora uma covarde. Raras eram as vezes em que tomava o caminho mais fácil.

Apolo encontrou a placa em forma de seta, em que se liam as palavras esculpidas: “First Creek Canyon”.

— Eu profetizo que First Creek Canyon é por aqui!... — bradou com a mão sobre a têmpora, dramático.

— Cuidado... — Pamela sorriu para ele. — Pode ser atingido por um raio ou algo assim.

— Por Zeus — Apolo grunhiu.

— Acha que está em apuros com ele?

— Estou com medo de que Ártemis e eu tenhamos muito a explicar. Ele é nosso pai e nos ama, mas, apesar disso, o Deus do Trovão não vai ficar nada contente por termos nos permitimos ficar presos no Reino de Las Vegas.

— Ahn... Vegas não é bem um reino. É apenas Las Vegas, uma cidade localizada no estado de Nevada. Assim como Roma é uma cidade da Itália.

Mais ou menos isso , pensou Pamela, não querendo dar início a nenhuma aula de Geografia dos Estados Unidos da América.

— Las Vegas não é um reino?

— Definitivamente, não.

Caminharam vários passos pela trilha de terra vermelha antes que Apolo falasse outra vez.

— Devo parecer um idiota para você, chamando Las Vegas de reino, ficando enjoado, cortando-me ao fazer a barba, não sabendo o que é protetor solar... — resmungou sem olhar para ela.

— Não tanto quanto eu se, de repente, me visse no meio do Olimpo.

Ele olhou para ela.

— Você foi para o Olimpo e não fez papel de tola.

— Não. — Ela suspirou. — Estava muito ocupada sendo enfeitiçada por sua irmã e, em seguida, me transformando em uma flor.

Apolo parou e a fitou. Ergueu a mão, como se quisesse tocá-la, mas não prosseguiu com o gesto. Ao contrário, cerrou o punho e deixou cair o braço ao lado do corpo.

— Sinto vergonha do que aconteceu lá. Eu devia ter sido capaz de protegê-la. Minha única defesa é que esta emoção, essa paixão, é nova para mim. Acho que... — ele fez uma pausa, o olhar encontrando e capturando o dela — ... acho que fico meio perdido.

Pamela respirou fundo.

— Eu sei exatamente o que quer dizer.

A expressão de Apolo se transformou, contudo ele não disse nada mais do que:

— Verdade?

— Verdade. — Ela começou a andar outra vez. Queria se abrir com ele, precisava se abrir com ele, mas não podia fazê-lo sem estar em movimento.

— Eu já lhe disse que fui casada, e que foi um casamento ruim.

— Sim.

— Quero que saiba por que foi tão ruim. Então, acho que vai compreender por que tem sido tão difícil para mim. Por que tenho resistido tanto em amar você.

— Estou ouvindo.

— Eu conheci Duane quando estava na faculdade. Ele é dez anos mais velho do que eu, e já era um profissional bem-sucedido. Eu o considerava bonito e inteligente, e ele parecia tão gentil... Parecia querer cuidar de mim. Compreendo agora que não me apaixonei por quem ele era; eu me apaixonei pelo sonho de vida que supostamente poderíamos ter juntos. Mas amor é amor... — ela encolheu um ombro, como se tentando se livrar da incômoda admissão — ... e nos casamos no mês em que me formei na faculdade. Do dia do nosso casamento em diante, as coisas mudaram. Compramos uma casa juntos. — Pamela riu, sem-graça. — Não. Apague isso... Duane comprou a casa. E insistiu que seria melhor se esta ficasse apenas no nome dele. Disse que seria mais rápido e fácil... assim como quando me deu um carro novo, um “presente” com que me surpreendeu. O carro também ficou no nome dele. Eu me lembro de um dia, mais ou menos uma semana depois do nosso casamento. Ele estava fora da cidade e me telefonou. Gostava de me telefonar várias vezes por dia... — Ela fez uma pausa. Apenas a lembrança da constante perseguição de Duane, de como ele vivia mandando parentes ou alguém de seu restrito grupo de amigos para “lhe fazer companhia” — de modo que sempre soubesse onde ela se encontrava e o que estava fazendo —, a deixou irritada e deprimida. Suas botas pisaram a trilha de pedregulhos com mais determinação enquanto ela aumentava o ritmo na tentativa de desafogar a antiga frustração. Aquilo tinha sido no passado, lembrou a si mesma. Ela sobrevivera e nunca mais permitiria que acontecesse de novo.

Apolo observou em silêncio enquanto Pamela lutava com as próprias emoções, revivendo o que o passado lhe causara. Queria ajudá-la, queria livrá-la da mágoa, mas sabia que o passado era um campo de batalha em que cada um precisava lutar sozinho. Se Pamela não conseguisse exorcizar seus demônios, para sempre estes assombrariam seu futuro. O futuro deles.

— Enfim... — ela continuou. — Naquele dia, Duane perguntou o que eu estava fazendo, como sempre fazia, e eu disse que pretendia pendurar um quadro novo. Eu nunca vou me esquecer de como a voz dele se alterou: “Não acha que eu gostaria de estar aí quando fizesse isso?”, exigiu de repente. Eu nem imaginava que pendurar um quadro sem ele era grande coisa... Mas era. Estávamos casados havia menos de um mês, e foi nesse dia que comecei a me sentir uma prisioneira. — Ela não conseguiu conter um arrepio.

E tinha ficado pior. Muito pior. Ela quase desistira e deixara Duane consumi-la, mas, em algum lugar dentro dela, encontrara forças para lutar. Lenta e silenciosamente, havia batalhado para crescer na carreira e, em segredo, arrumado dinheiro, de modo a poder prosseguir sem ele. As pessoas pensavam que deixar alguém que cometia abusos era uma questão de coragem. Pois ela sabia o quanto estavam enganadas. Para deixar alguém assim era preciso ter um plano, e depois ter os meios para prosseguir com ele. Seu plano incluíra um bom advogado e um negócio próprio.

Pamela endireitou a espinha e terminou sua história:

— Não quero entrar em detalhes. Basta dizer que Duane continuou me sufocando por quase sete anos antes que eu conseguisse me livrar dele. Depois se passaram mais quase dois anos antes que ele parasse de me telefonar, de aparecer nos lugares em que, sabia, eu frequentava. Estava sempre lá... sempre presente, esperando, como se eu fosse uma criança perdida que logo perceberia a bobagem que havia feito e fosse querer voltar para casa. — Ela olhou para Apolo. — Ele só me deixou em paz nestes últimos seis meses.

— Ele magoou você. — A voz de Apolo soou baixa e contida, enquanto ele imaginava o que gostaria de fazer com aquele tal Duane depois que seus poderes imortais retornassem.

— Sim, ele me magoou, mas não é isso o que ainda me afeta. A dor morreu com o amor. O que sobreviveu foi a insegurança, e eu nem a percebi. Namorei Duane por quase dois anos. Se alguém tivesse me dito, em qualquer momento antes de nos casarmos, que aquele homem tão maravilhoso, tão perfeito, era na verdade uma pessoa vingativa, que mal controlava a raiva, que tentaria me aprisionar numa gaiola, me humilhar e me transformar numa mulher assustada, numa sombra de mim mesma, eu teria rido. Jamais teria acreditado. Duane fingiu ser algo que não era para me aprisionar, e eu não me dei conta disso — Pamela terminou num sussurro.

— A farsa de que falou na noite em que assistimos à dança das fontes... Era seu casamento.

Ela assentiu com um gesto de cabeça.

— E, quando descobriu que eu era Apolo disfarçado de Febo, pensou que tinha cometido outro erro ao se entregar a mim.

— Não foi só isso. Você foi o único homem com quem estive desde Duane. Venho trabalhando, mantendo-me ocupada e... — Ela se interrompeu, sem ter certeza do que dizer.

— E tem evitado o amor — Apolo terminou por ela.

Pamela lançou-lhe um olhar rápido, de soslaio.

— Sim.

— O que tornou o meu subterfúgio ainda mais preocupante.

— Sim — ela assentiu novamente.

Apolo ponderou sobre o que Pamela havia dito enquanto percorriam a trilha sinuosa em silêncio. Estava claro agora por que ela se esquivara tanto dele, e por que não pudera admitir seu amor até estar sob a influência do poder inebriante de Ártemis. Como era surpreendente — e bom — perceber que sua reticência tinha mais a ver com o passado do que com ele!... Suspeitava até de que ser um deus fazia menos diferença para Pamela do que o fato de ele não ter sido honesto com ela.

Fizeram uma curva repentina na trilha e então subiram uma colina íngreme, indo parar no topo de um bloco de rocha cor de areia, desgastado pelo tempo, do centro do qual brotava uma cachoeira que derramava suas águas em uma lagoa grande e límpida.

— James estava certo. É o local perfeito para um piquenique! — entusiasmou-se Pamela, olhando ao redor enquanto enxugava o suor do rosto com a manga. O calor do deserto era menor no cânion, mas, ainda assim, a caminhada fizera uma camada de suor cobrir a ambos. Pamela respirou o ar refrescado pela água e ergueu o rosto para sentir a brisa que se erguia da lagoa.

— Tenho a sensação de que James está sempre certo — observou Apolo. Em seguida fez um gesto na direção de uma rocha plana, encarapitada ali perto. — Vamos nos sentar um pouco?

A subida tinha servido para ajudá-la a se livrar de grande parte da tensão que falar sobre o passado provocara nela, e Pamela sentou-se na pedra aquecida pelo sol, dobrando as pernas sob o corpo. Olhou para a lagoa cintilante, permitindo que o som e o cheiro da água lhe acalmassem os nervos. Apolo se acomodou a seu lado, perto o suficiente para que ela sentisse o calor de seu corpo, mas não chegou a tocá-la.

— Não vou lhe dizer que compreendo o que sente. Não. Como eu poderia? Não consigo entender por que um homem gostaria de aprisionar uma mulher. Eu tenho defeitos, mas querer dominar e controlar as mulheres não é um deles. — Ele apontou para a medalha dourada com a própria imagem, que ainda pendia entre os seios de Pamela. — Lembre-se de que, o que quer que aconteça entre nós dois, prometi protegê-la. Pode relaxar agora. Esse Duane não irá assediá-la de novo.

— Obrigada — ela murmurou —, mas prefiro arrumar a minha própria bagunça sozinha.

— Agora está parecendo minha irmã...

— Vou tomar isso como um elogio, ainda que assustador.

— Era para ser um elogio. — Apolo sorriu.

Pamela encontrou seu olhar, devolveu o sorriso, e ele pensou o quanto amava aquele rosto. Era tão sincero, e as emoções de Pamela, tão claras... Poderia olhar para aquele sorriso para sempre.

Surpreso, percebeu que ela havia se tornado seu Sol.

O Deus da Luz engoliu com dificuldade, então, sentindo a garganta seca. Ele a amava demais, e aquilo dava a Pamela um poder sobre ele que era assustador. Se ela lhe desse as costas...

Desviou o olhar do dela, recolhendo os pensamentos e dominando as emoções. Se Pamela lhe desse as costas, ele iria deixá-la partir. Não iria assombrá-la como fizera o tal Duane.

Apertou o maxilar. Ela não o havia abandonado ainda. E o amava. Ele sabia que sim.

Virou-se sobre a rocha, de modo a encará-la, e falou lenta e claramente:

— Não entendo esse Duane, nem o que foi para você viver sob seu controle e lutar por sua liberdade, mas, desde a primeira noite em que nos conhecemos, reconheci em seus olhos uma emoção que compreendi por completo. Sei bem o que é desejar mais e sentir-se incompleto... Mas e se o nosso destino for ficar juntos? E se tudo o que aconteceu em nossas vidas teve um propósito, o de nos preparar um para o outro? Eu sou um deus, um dos Doze Olímpicos. Quem pode saber o quão intrincados são os fios que tecem as Parcas?... — Os olhos de Pamela se voltaram para os dele, e Apolo escolheu as palavras com cuidado: — Eu já existo há muito tempo e vivi a maior parte da minha existência para as paixões e para a frivolidade. Mas também tenho muita coisa boa... Levei a cura, a música e a luz para o Mundo Antigo, ainda que só tenha me dado conta disso mais tarde. Eu sempre ansiei por mais. Tentei saciar essa fome como muitos homens fazem, sejam eles mortais ou imortais. Amei e lutei em excesso... Era como se eu estivesse tentando preencher um vazio sem fim dentro de mim.

— Apolo, eu... — Pamela começou, contudo ele balançou a cabeça.

— Não. São coisas que precisa saber. Eu não vou fingir para conquistá-la. Não quero falsidade entre nós. Você tem que me ver como eu sou, se pretende me aceitar. Eu disse que não conhecia o amor até encontrá-la, porém é mais do que isso. Eu não acreditava na existência do amor, afinal, vivi eras sem ele. Por outro lado, experimentei todos os tipos de prazer da carne. Para mim, o amor não passava de um embuste a que os mortais se apegavam, e o Deus da Luz não via utilidade em tal farsa. Eu não conseguia senti-lo. Eu não precisava disso. Não acreditava nisso. — Apolo fez uma pausa e, por fim, se permitiu tocá-la de leve enquanto afastava uma mecha escura de seu cabelo curto e bri lhante. — Então, algo aconteceu para mudar a forma como eu via a minha vida e o meu mundo. E aconteceu antes de eu conhecer você. O que sabe sobre o deus Hades?

Pamela respondeu à repentina pergunta, surpresa:

— Não é o Deus do Submundo ou algo assim?

Apolo sorriu, desejando que o amigo pudesse ouvir a resposta dela.

— Ele é o Senhor do Submundo. Mas o reino de Hades não é cheio de sofrimento e tortura, como a sua versão moderna do inferno. É um lugar incrivelmente bonito. Eu sei, porque já fui até lá muitas vezes.

— Você vai para o inferno?!

Apolo riu.

— Vou para o opulento palácio de Hades, que fica na extremidade dos Campos Elísios. Você iria gostar de Hades... Vocês dois têm muito em comum. Ele mesmo projetou e construiu seu palácio.

— É como o Caesars Palace? — Pamela indagou, irônica.

— Nem um pouco. Eu lhe dou minha palavra.

— É bom saber...

— Mas eu não mencionei Hades por conta de suas habilidades com design , e sim por conta da maneira como ele e eu nos tornamos amigos. Minha amizade com o Deus do Submundo surgiu por causa da esposa dele.

— Espere! Eu me lembro dessa história... Hades é casado com Perséfone. — Em seguida,

Pamela enrugou a testa. — Mas ele não a raptou e a fez se casar com ele por engano?

— Duvido que alguém pudesse sequestrar Lina.

— Lina? Então ele não é casado com Perséfone?

— Hades é casado com sua alma gêmea. E sua alma gêmea é nada mais, nada menos do que uma mortal vinda de um lugar de seu Mundo Moderno chamado Tulsa. O nome dela é Carolina Francesca Santoro.

— Tulsa? A de Oklahoma?! Como isso é possível? E quanto a Perséfone?

— É uma história longa e complicada. Perséfone e Lina trocaram seus corpos e identidades. O que começou com uma manipulação, por uma força externa — no caso, a mãe de Perséfone, Deméter —, terminou com Hades encontrando sua alma gêmea em Lina. Mas como eles descobriram um ao outro não é importante. O importante é o que eu vi acontecer com Hades depois que ele se permitiu amar.

— Hades não queria amar uma mortal? — Pamela indagou.

Os lábios de Apolo esboçaram um sorriso.

— Hades não queria ninguém, fosse mortal ou imortal. Ele tinha rejeitado o amor, eliminado a possibilidade de este acontecer em sua vida. Escolheu suas tarefas — o trabalho, como diz — em vez disso.

— Parece que nós dois temos, mesmo, muito em comum — Pamela concordou baixinho.

— Sim, só que ele teve mais tempo do que você para aperfeiçoar sua escolha. Precisava ver o que uma vida sem amor estava fazendo com ele, Pamela... Hades havia se tornado a sombra de um deus, vivendo uma existência vazia, sem qualquer emoção.

— Mas ele estava seguro — Pamela sussurrou. — Ele não se sentia magoado.

— Tem razão. Ele não se magoava. Não sentia nada. Eu disse que ele e eu ficamos amigos por causa de sua esposa... Isso porque o amor por Lina o transformou; despertou algo dentro dele. Hades passou de uma criatura fria, sem senso de humor, para um deus vibrante. E o amor daqueles dois também me fez mudar. Eu o vi acontecendo e, conforme fui testemunha disso, comecei a perceber o que tinha passado uma eternidade buscando. — Apolo fez uma pausa e tomou a mão de Pamela na dele. — Hades diz que Lina é sua alma gêmea e que, ao encontrá-la, ele encontrou seu lugar no mundo. Ironicamente, foi o Senhor dos Mortos que me mostrou como eu gostaria de viver. — Levou a mão dela aos lábios. — O que vi nos seus olhos foi essa mesma fome que eu sentia na alma antes de você entrar na minha vida. Nossas almas são como espelhos, Pamela, porque você é a minha alma gêmea. O que quer que tenha acontecido em nossas vidas antes disso acabou nos preparando um para o outro. Eu não sou mais o deus sem coração, incapaz de cuidar de qualquer coisa exceto do próprio prazer. E não é mais a jovem ingênua que preferia amar uma fantasia a um homem de verdade.

— Se eu ainda conseguisse aceitar isso!... — murmurou Pamela.

— Não isso , minha doce Pamela, a mim . Você só precisa me aceitar.

Ela fitou os olhos azuis e respirou fundo.

— Eu já te aceitei. Só não sei o que fazer agora.

Então Pamela sorriu para ele. Aquele sorriso aberto e honesto que ele tanto amava.

Apolo sentiu uma onda de alegria. Ela era sua alma gêmea! Mortal ou imortal, para ele, Pamela seria sempre sua parceira, seu amor, sua própria Deusa da Luz. O brilho de seu sorriso rivalizava com qualquer coisa que seu poder imortal pudesse produzir.

Segurou seu rosto entre as mãos.

— Agora apenas me beija. — Ele se inclinou e roçou os lábios nos dela. — Em seguida, damos conta da comida excelente que James mandou preparar para nós. — Beijou-a de novo, desta vez mordiscando-lhe o lábio inferior. — Depois, acho que vamos fazer amor nessa lagoa, aí embaixo... — Desta vez, o beijo durou tempo suficiente para fazer Pamela suspirar baixinho e se encostar nele. — E, esta noite, quando voltarmos para a estalagem, vamos ficar nos braços um do outro... — Apolo brincou com a boca macia novamente, pensando que esta era como um vinho doce, ainda que bem mais inebriante. — E amanhã...

— Sshh... — Pamela o interrompeu, deslizando para seus braços e colando o corpo ao dele. Não iria pensar na eternidade que os aguardava naquela noite. Iria pensar apenas nele. — Não acha que poderíamos pular a parte do piquenique e ir direto para a água, fazer amor?...

Apolo riu, feliz, depois se levantou e a ergueu nos braços. Beijou-a com paixão uma vez mais, depois tornou a colocá-la no chão e fez uma breve mesura.

— Já que insiste... — elaborou com um sorriso radiante.

Desta vez, foi Pamela quem pegou a mão dele e a levou aos lábios antes de puxá-lo pelo caminho que conduzia até o nível do pequeno lago.

— Espere! — pediu, após apenas alguns metros. — Vou pegar a cesta de piquenique. Tenho a impressão de que vamos estar com um apetite gimenso depois. Até porque... — ela sorriu por cima do ombro enquanto corria de volta pela trilha até a borda da rocha e se inclinava para apanhar o cesto onde Apolo a tinha deixado. — Não podemos desprezar o trabalho que James teve para...

O barulho de chocalho cortou suas palavras, e Pamela ficou imóvel e fria como a pedra. De algum lugar de sua mente veio o pensamento que o ruído se parecia mais com o chiar de uma carne fritando do que com o do brinquedo de criança segundo o qual ele fora denominado.

Uma terrível sensação lhe comprimiu a boca do estômago, e ela precisou lutar contra uma onda de vertigem quando seus olhos seguiram o caminho do som e pousaram na cobra enrolada ao lado da cesta de piquenique, a apenas alguns centímetros de sua mão estendida.


Capítulo 28


Apolo soube que algo estava errado antes mesmo de ver a serpente. Pamela congelara no meio da frase e, em meio ao silêncio que se fizera entre eles, ele pudera ouvir o aviso mortal da víbora.

A reação do deus foi instantânea. Apolo avançou com a mão estendida, concentrando todos os seus poderes imortais para destruir o que ameaçava seu amor.

Mas nada aconteceu, e ele amaldiçoou a si mesmo por ser um deus fraco e impotente.

Não! Não era fraco... O problema era que, no momento, ele não passava de um homem comum. E era como homem que ele deveria proteger Pamela.

Tão rápida e silenciosamente quanto lhe foi possível, postou-se atrás dela. A cobra se encontrava enrolada em uma espessa e tensa corda. Sua cabeça triangular estava erguida, e os olhos em forma de fenda miravam a mão de Pamela, tão perto e vulnerável a seu bote.

— Quando eu der o aviso, pule para o lado — ele falou numa voz calma e controlada.

O chocalho da cobra aumentou, e Pamela abriu a boca para protestar, pedir que ele se afastasse, gritar, qualquer coisa... mas já era tarde. Apolo já se movia. Ele a empurrou de lado e, com uma rapidez sobre-humana, foi ao encontro do bote da serpente.

Pamela gritou ao ver a víbora afundar as presas na parte carnuda da mão dele. Em seguida, deixando escapar uma antiga maldição, o Deus da Luz agarrou o corpo grosso do animal com a outra mão e puxou a serpente, arrancando-a dele. Antes que o réptil pudesse atacar de novo, girou o corpo e arremessou a cobra, de modo a bater sua cabeça como um chicote mortal contra o rochedo, e esta explodiu em um banho de sangue.

Ainda assim, o Deus Sol não ficou satisfeito. Bateu o bicho seguidas vezes contra a pedra, depois atirou seu corpo sem vida por sobre a borda do penhasco, dentro da lagoa lá embaixo.

Apolo tomou fôlego e virou a cabeça em busca de Pamela. Ela se encontrava agachada, não muito longe dele, os olhos arregalados pelo choque.

— A cobra a feriu?

— Não... — Pamela balançou a cabeça, trêmula.

Uma onda de alívio o inundou pouco antes de uma dor lancinante fazê-lo cair de joelhos. Sua mão! Ele nem sequer sentira a picada da víbora!... Apenas uma fúria cega e a necessidade de proteger Pamela.

Virou a mão que ardia. A dor varria seu braço a partir de duas perfurações que sangravam perto de seu pulso, abaixo do polegar.

— Deixe-me ver isso... — Pamela se pôs de joelhos a seu lado, buscando a cesta de piquenique às cegas. Tinha o rosto pálido, e suas mãos tremiam, porém sua voz soou firme. Apolo estendeu a mão, e ela prendeu a respiração. — Ah, meu Deus... Eu sabia que ela o havia pegado! — Olhou para o rosto moreno, protegendo a mão cheia de sangue junto ao corpo enquanto tateava dentro do cesto. — O que está sentindo?

— Fogo — ele falou apenas, surpreso ao descobrir que lutava por ar. Tentou rir, porém o riso saiu como um gemido. — É como se este lado estivesse em chamas.

— Você vai ficar bem. Você vai ficar bem... Aqui... Sente-se e se recoste na pedra. — Ela o orientou, segurando seus ombros, até que os descansou na pedra lisa antes de quase cair para trás, de joelhos, dizendo a si mesma o tempo todo que precisava manter a calma. Não podia entrar em pânico. — Mantenha-se sentado. — Pamela o fez descansar a mão ferida, com a palma para cima, sobre a coxa, tentando desesperadamente se lembrar de tudo o que já tinha ouvido falar sobre acidentes com ofídios peçonhentos. Ve a forçara a ler um artigo, não muito tempo antes, sobre segurança no alpinismo. Pense!... — Deixe a mão abaixo do nível do coração — disse a Apolo, que assentiu com um fraco gesto de cabeça. Em seguida, ela voltou toda a atenção para a cesta. — Onde está o maldito celular?... — falou por entre os dentes que continuavam batendo. — Ah!... — Aliviada, digitou depressa: estrela, sessenta e dois. — Vamos... Vamos! ... — murmurou, aflita. Olhando dentro do cesto, tirou dele duas garrafas de água. Enquanto falava ao telefone, abriu uma delas e a entregou a Apolo, que bebeu metade desta em um só gole. — ... Sim, é Pamela Gray! Sou hóspede de E. D. Faust. Meu assistente e eu estamos na parte superior da lagoa, no First Creek Canyon, e ele acabou de ser picado por uma cascavel! — falou rápida e claramente, como se não estivesse à beira do pânico.

— Tem certeza de que era uma cascavel, senhora? — o atendente perguntou em uma voz calma e profissional.

— Sim, tenho certeza! Cabeça triangular, corpo marrom rajado, chocalho...

— Vou enviar uma equipe de primeiros socorros agora mesmo, srta. Gray.

Ela pôde ouvir os cliques e chiados do rádio do atendente ao fundo. Em seguida, ele disparou a fazer perguntas mais específicas:

— Onde a vítima foi picada?

— Na mão direita. Abaixo do polegar, perto do pulso.

— Certifique-se de que o rapaz permaneça sentado ou deitado, e que sua mão esteja abaixo do nível do coração.

— Já fiz isso.

— Ele está consciente?

Os olhos de Pamela encontraram os de Apolo.

— Sim! — ela afirmou.

— Está com muita dor?

— Sim, ele diz que parece fogo... — A voz dela falhou.

— Pamela, é muito importante que você o mantenha calmo. Não deixe que ele entre em pânico. Ele precisa ficar o mais quieto possível.

— Compreendo. — Controle-se! , ela ordenou a si mesma. Se ela desmoronasse, Apolo não teria mais ninguém com quem contar.

— Muito bem. Tem água aí?

— Sim.

— Lave o ferimento, mas tome cuidado para não mover demais a mão ou o braço dele.

— Vou fazer isso... espere. — Ela colocou o telefone no chão e apanhou a outra garrafa de água. — A ajuda está a caminho, Apolo, mas a ferida precisa ser lavada imediatamente. Espero que não doa... Precisa ficar o mais quieto possível, por isso, se doer, tente não mover o braço.

— Faça o que tem de fazer. Eu não vou me mexer.

Quando Pamela segurou a mão dele com cuidado, Apolo fechou os olhos. Ela despejou a água engarrafada sobre as marcas profundas das presas, e o único movimento do deus foi o de sua profunda respiração.

Pamela limpou a água tingida de sangue das mãos no short e pegou o telefone.

— Pronto! O que mais?

— Remova qualquer anel, pulseira ou relógio que ele estiver usando.

— Ele não está usando nada.

— Ótimo. Agora, tudo o que pode fazer é mantê-lo calmo e ajudá-lo a se recuperar do choque.

— Não preciso fazer um torniquete ou algo assim?

— Não, a picada está muito próxima da articulação do punho. Mantê-lo calmo e cuidar para que ele não perca o calor do corpo irá ajudá-lo mais. E não deixe que ele durma! Sua pulsação pode se acelerar ou ele pode ter dificuldade para respirar. Também pode ter convulsões ou até mesmo perder a consciência. O veneno da cascavel é muito doloroso... Esteja preparada para sua reação à dor.

— Quando os paramédicos vão chegar aqui? — Foi difícil para Pamela falar em meio ao medo que lhe comprimia o peito.

— Estarão aí em menos de vinte minutos. Fique calma, srta. Gray. Uma picada de cascavel é grave, mas não necessariamente fatal.

Ela sentiu uma pontada no coração ao ouvir a palavra “fatal”.

— Eu... Eu estou me sentindo... — Apolo começou, mas parou e se inclinou para o lado, os olhos revirando.

— Preciso desligar! — Pamela disse ao atendente antes de jogar o telefone de lado e pular na direção de Apolo. — Não! — gritou, endireitando-o de volta contra a pedra. — Não pode desmaiar! — Ela o tocou no rosto e sentiu a pele quente. — Não me deixe!

Os olhos de Apolo reviraram mais uma vez, depois ele os abriu por completo. Piscou, como se com dificuldades para focar o rosto dela.

— Pamela... — disse baixinho.

— Apolo, fique comigo! — ela ordenou. Revirando a cesta, apanhou um guardanapo de linho, molhou-o com um pouco da água que restara na garrafa e enxugou o suor do rosto dele com cuidado.

— Isso é bom — ele murmurou. — Frio... bom. — Fez uma careta quando outra onda de dor que parecia lava se arrastou por seu braço. — Então é isso o que se sente quando se é queimado... Não é irônico que tenha acontecido justo comigo? — indagou, ofegante.

— Vai dar tudo certo — afirmou Pamela, enxugando-lhe a testa. — Os paramédicos vão chegar a qualquer momento e trarão o antídoto. Você vai ficar bem. Tem que ficar bem.

Apolo piscou outra vez, tentando limpar a visão.

— Está chorando. — Ele tentou enxugar as lágrimas do rosto delicado com a mão boa, mas a deixou cair de volta ao lado do corpo. — Não chore, doce Pamela... Eu já disse que o Submundo Grego é um lugar de rara beleza. Assim como você é uma mulher de rara beleza, minha alma gêmea.

— Não me fale sobre Submundo! — Lágrimas rolaram em silêncio pelo rosto de Pamela. — Você não pode morrer. É Apolo, o Deus da Luz!

— Nesse momento, o Deus da Luz não passa de um mortal. — Ele fez uma pausa. Sua respiração ofegante tornava difícil falar, e o fogo em seu braço se espalhava rapidamente. Ele podia senti-lo se agarrando a seu ombro e derramando como óleo quente em seu peito. — Pamela, escute... Hades me contou que almas gêmeas sempre se encontram. Vida após a vida, elas voltam a ficar juntas. Lembre-se disso... — O ardor no peito dele pareceu explodir, e seu rosto convulsionou com a dor. Conforme se contraía inteiro, Apolo fechou os olhos contra a agonia e mergulhou na escuridão.

— Nãão! — gritou Pamela. E, com as mãos tremendo tanto que ela mal podia controlá-las, tocou-o no rosto. Segundos antes, este estivera quente; agora estava frio e úmido! Desesperada, ela procurou pela pulsação de Apolo e não encontrou nada.

Não... Aquilo não podia acontecer daquela maneira! Não podia permitir que acontecesse assim!

Pamela se levantou e pendeu a cabeça para trás, gritando sua fúria para os Céus.

— ZEUS! Seu filho está morrendo!... Onde você está? Salve-o! Abra o seu bendito portal e leve-o para casa!... Que tipo de pai é, afinal?

Acima dela, o ar tremeluziu de repente e, em seguida, como a dobra de uma cortina invisível sendo aberta, uma parte do céu se entreabriu. Um rapaz atravessou a abertura, pairando sobre ela. Vestia uma túnica curta, muito parecida com a que Apolo usava na noite em que eles tinham se conhecido, e sandálias douradas, com asas batendo nos calcanhares — iguais as que adornavam seu chapéu em forma de capacete e a varinha de cristal que ele segurava. Seu cabelo curto e encaracolado era de um loiro-platinado, e seu belo rosto parecia ligeiramente divertido.

— O quê? Ficou sem palavras agora que seu grito sacudiu o Olimpo?...

Pamela estreitou os olhos, reconhecendo o mesmo tom arrogante que tinha ouvido inúmeras vezes na voz de Ártemis.

— Em primeiro lugar, salve-o! — exigiu. — Então estará livre para me intimidar.

O deus ergueu as sobrancelhas, surpreso.

— Tem ideia de com quem está falando, mortal?

— Sim! — ela cuspiu a palavra, frustrada. — Com esses pés que voam só pode ser Hermes. Mas podemos discutir isso mais tarde... Salve Apolo agora!

O deus bufou, indignado.

— Impertinente! — Olhou para o corpo inerte de Apolo e balançou a cabeça, desgostoso. — Aposto que ele a tem mimado.

Pamela teve vontade de agarrar o deus pelo pescoço.

— Não precisa ficar tão preocupada... Zeus não deixaria que Apolo morresse. — Enquanto falava, Hermes acenou com a varinha de cristal na direção de seu semelhante, e a luz derramou sobre o corpo do outro deus como num show pirotécnico do dia da independência dos Estados Unidos.

No instante em que a primeira faísca tocou Apolo, seu peito se inflou numa longa tomada de ar, e seus olhos se abriram. Ele olhou em volta, confuso, mas, quando seu olhar encontrou Hermes, o deus franziu a testa.

— Eu sei, eu sei... — O deus que pairava falou. — Estava esperando por Hades, Caronte ou outra figura tão triste quanto.

— Eu já expliquei que Hades é meu amigo... Veja como fala dele! — A voz de Apolo soou áspera, como se ele estivesse com a garganta seca. — O que está fazendo aqui, Hermes?

— Sendo subestimado. — O jovem deus fez um gesto delicado na direção de Pamela. — Sua mortal gritou por Zeus... Parece que estava morrendo — completou com um entediado suspiro.

— E Zeus o enviou — concluiu Apolo.

— É claro que Zeus me enviou. Seu pai está com raiva de você e da deliciosa Ártemis, mas dificilmente permitiria que perecessem.

De repente, Pamela sentiu os joelhos fracos e se sentou ao lado de Apolo que, no mesmo momento, a puxou para junto dele. Ela teve vontade de soluçar de alívio com a força que sentiu no braço que ele passou ao seu redor.

Hermes observou o óbvio carinho de Apolo pela mortal e decidiu que o Deus da Luz tinha mais com que se preocupar do que apenas a raiva de seu pai. Quando um deus amava uma mortal, sempre havia um preço a ser pago.

— Deve saber que, embora Zeus não fosse tolerar a sua morte, decidiu que precisa aprender uma lição por tê-lo desobedecido. Sua ferida não vai matá-lo, tampouco irá danificar seu corpo. Contudo seu pai permitirá que sinta a dor do veneno... Toda a dor do veneno — ele completou, alegre.

— Hermes, faria bem em se lembrar de que estou apenas temporariamente sem os meus poderes imortais... — A voz rouca de Apolo tornou-se clara e ameaçadora.

— Pelo visto também está temporariamente sem senso de humor — Hermes bufou. — No entanto, ainda não terminei de lhe passar a mensagem do Deus dos Trovões... Zeus irá abrir o portal ao pôr do sol da sexta-feira do mundo dos mortais. Quer que você e sua irmã se apresentem perante a ele logo em seguida. Já mencionei que o nosso Governante Supremo não está nada satisfeito?...

— Foi obra de Baco termos ficado presos aqui. Portanto, leve a seguinte mensagem de volta ao meu pai: diga-lhe que Ártemis e eu teremos muito prazer em confrontar o Deus do Vinho e seus malfeitos no Salão Nobre.

Hermes revirou os olhos claros.

— Zeus sabe tudo sobre Baco e seu ridículo plano de causar estragos divinos no Mundo Moderno, na tentativa de manter para si mesmo o reino mortal. Por isso mesmo decidiu fechar o portal de Las Vegas. Permanentemente. E com o corpulento Baco banido do Mundo Moderno como parte de sua punição.

Apolo apertou os dentes contra a dor que se abateu sobre seu corpo.

— Zeus vai fechar o portal? Mas ele não pode fazer isso. Isso significa que...

— Isso significa — Hermes interrompeu, afetado — que tem até sexta-feira para decidir se quer que a sua pequena mortal lhe faça companhia no Olimpo. A menos ... — Hermes enfatizou a palavra, batendo no rosto com os dedos numa simulação de dúvida — ... que prefira ficar aqui, como mortal. — O jovem deus estalou a língua. — E não parece que a mortalidade combina com você. — Em seguida, ainda pairando, Hermes sorriu, malicioso, e limpou as mãos, como se tivesse acabado de se livrar de uma incômoda tarefa. — Bem, já dei o recado e fiz minha boa ação do dia. Ouvi dizer que Afrodite está promovendo uma festa com jogos, e estou pensando em perder feio para ela...

Com um movimento dos pulsos delicados, o deus voador desapareceu no portal aberto no céu.

Apolo segurou a mão ferida contra o corpo e se moveu a fim de olhar para o rosto de Pamela. Suas faces estavam banhadas em lágrimas.

— Não chore, doce Pamela... Está tudo bem.

— Hermes estava dizendo a verdade? Você vai ficar bem mesmo? — ela indagou, enxugando o rosto molhado.

— Hermes é o mensageiro de Zeus. Ele é meio cínico, mas suas palavras são verdadeiras.

Pamela relaxou de encontro a ele, aliviada. De repente se endireitou, tomou o rosto de Apolo entre as mãos e o beijou com paixão.

Ignorando a dor lancinante no corpo, ele a beijou de volta, apertando o braço ao seu redor de modo a sentir a curva de seu seio e o quadril suave pressionado ao dele.

— Nunca mais me assuste desse jeito! — ela murmurou contra a boca bem-feita.

Começou a beijá-lo outra vez, mas parou de súbito ao ouvir o barulho de botas subindo rapidamente pela trilha. Endireitou a blusa e passou a mão pelo cabelo curto. — Eu devia estar tentando acalmá-lo...

Apolo conseguiu dar um sorriso.

— Você ouviu Hermes. O veneno não vai me matar, portanto pode me beijar, fazer qualquer coisa... quantas vezes quiser.

— Posso até aceitar a sua sugestão, sr. Deus da Luz. Só que mais tarde. Primeiro o mais importante. — Pamela se levantou e gritou na direção da trilha. — Aqui! Estamos aqui!

— Sim, senhorita! Estamos chegando! — alguém respondeu.

Ela olhou de volta para Apolo. Sua mão ensanguentada estava vermelha e já inchada.

— Imagino que vá ser meio difícil explicar a eles que o veneno não irá matá-lo; que apenas dói como o inferno.

O belo rosto de Apolo se contraiu quando outra onda de dor pulsou através de seu braço.

— Não dói como o inferno... É uma maldição dos infernos !


Capítulo 29


Pamela concluiu que dinheiro podia comprar muito mais do que qualquer coisa. Comprava atenção e um nível de preocupação fora do comum, embora ela estivesse gostando de fingir que os paramédicos teriam sido tão maravilhosos com qualquer pessoa, independentemente da carteira de seu patrão. Eles aplicaram o soro antiofídico por via intravenosa antes mesmo de tentar mover Apolo.

Deu um passo atrás e permitiu que eles trabalhassem em paz. Agora que sabia que Apolo não corria nenhum risco de verdade, podia apreciar a eficiência dos paramédicos enquanto eles limpavam, enfaixavam e imobilizavam a mão ferida, sem chorar histericamente ou se agarrar à mão boa do deus...

Ouviu a intensa discussão sobre como os sinais vitais de Apolo se mantinham satisfatórios, ainda mais após uma picada tão próxima a uma artéria. Sentiu o estômago se contrair outra vez e tentou obliterar a lembrança do momento em que não fora capaz de sentir o pulso do deus antes de Hermes aparecer.

— A cobra não devia estar carregada — um dos paramédicos concluiu enquanto ajudava Apolo a cobrir a pé a curta distância pela trilha até o jipe que fora convertido em ambulância.

O Deus da Luz, claro, se recusara a ser carregado em uma maca. Quando tentaram argumentar, ele insistira que poderia caminhar por conta própria, levantara-se e começara a andar a passos largos, direto para o veículo.

— Carregada? — repetiu Apolo.

— Sim, cobras venenosas podem controlar a quantidade de veneno que soltam ao picar. Você deve ter apenas assustado essa, mas não chegou a irritá-la, por isso ela inoculou uma dose pequena. Uma cascavel grande e enraivecida poderia ter lhe matado, ainda mais picando tão próximo da artéria principal, como aconteceu.

Pamela sentiu vontade de vomitar.

Apolo pareceu intrigado com a informação do paramédico, e a viagem de volta ao resort foi repleta de histórias sobre picadas de serpentes, das quais ela podia ter passado a vida sem tomar conhecimento. Por exemplo, até então ela não fazia ideia de que mais de oito mil acidentes com ofídios venenosos aconteciam nos Estados Unidos a cada ano e que, em média, atribuíam-se dez mortes a picadas de cobras. Também descobriu que os cavalos eram regularmente picados por serpentes, e que eles não costumavam se dar tão bem como os seres humanos nesses casos porque a maioria era picada no focinho quando abaixava as cabeças para investigar a cobra. E esse era, de longe, o local mais perigoso para uma picada, já que o inchaço resultante muitas vezes fechava ambas as narinas e causava sufocamento.

Pamela segurou a mão de Apolo e tentou, em vão, se concentrar em toda a conversa. Dez mortes causadas por acidentes com ofídios não lhe saía da cabeça.

— Senhor, sua irmã e o sr. Faust vão nos encontrar na frente da estalagem. De lá, eles seguirão conosco para o hospital — avisou um dos paramédicos enquanto o jipe atravessava o atalho de pedregulhos até o resort .

— Hospital? — Apolo franziu a testa e balançou a cabeça. — Posso assegurar que não há necessidade disso.

— Mas, senhor, a dose total de soro antiofídico leva várias horas para ser administrada e monitorada. É melhor que vá para o hospital e passe a noite em observação. Às vezes os sintomas do envenenamento levam horas para aparecer.

Apolo olhou pela janela do jipe e avistou Ártemis e Eddie em pé, ao lado da limusine.

— Leve-me apenas até ali — disse, apontando.

O paramédico franziu a testa, demonstrando sua reprovação, contudo o jipe seguiu a trilha e parou ao lado do enorme veículo. Antes que os médicos pudessem tocar as portas traseiras do carro, Eddie as escancarou, e uma Ártemis pálida subiu na carroceria. Ao ver o irmão com um cateter, uma cânula de oxigênio no nariz e a mão imobilizada e enfaixada, revirou os olhos e perdeu os sentidos após soltar uma exclamação digna de uma deusa.

— Que maravilha... — Pamela murmurou enquanto todos os paramédicos saltavam da ambulância e se juntavam ao redor da diva desmaiada.

— Ela nunca desmaiou antes! — disse Apolo, observando com curiosidade quando Eddie empurrou para longe os homens, ergueu Ártemis nos braços e a carregou para a pousada.

Os paramédicos só puderam correr atrás dele.

— Se é assim, para seu primeiro desmaio, ela fez bonito...

Apolo começou a rir e, em seguida, fechou os olhos contra nova pontada de dor no braço.

Pamela odiava o modo como seu rosto empalidecia e se contraía a cada vez que ele se movia demais.

— O que posso fazer?

Com os olhos ainda fechados, ele sacudiu a cabeça com força.

— Está bem. — Pamela suspirou, sentindo-se mais impotente do que nunca. — Bem... Sua irmã é, definitivamente, uma atriz e tanto — comentou, tentando manter o tom leve.

Após algumas inspirações, Apolo abriu os olhos e esboçou um sorriso.

— É mesmo.

— Está doendo como uma maldição dos infernos ?... — ela indagou, condoída.

— Sim, mas posso afirmar que estou contente por os paramédicos terem ido atrás de Ártemis. Não quero ir para o hospital, Pamela. Posso tolerar a dor que meu pai decretou ser o meu castigo. Não suportaria ser mais picado e revirado por estranhos. — Ele apontou o queixo na direção do cateter que lhe saía do braço.

— Então vamos ver o que a influência de E. D. Faust pode fazer para que seu excêntrico convidado seja tratado por aqui — ela decidiu, tirando o cateter de oxigênio do nariz de Apolo e desenganchando o saco de soro do suporte. — Ainda bem que sou viciada em ER , aquela série da TV... — Ela o estudou, preocupada. Não tinha notado as linhas de tensão em seu rosto. — Está sofrendo muito, não é?

— Zeus foi fiel à sua promessa. Estou tendo todos os sintomas da picada de cobra. — Ele moveu o ombro direito e depois se encolheu, como se a dor tivesse lhe subido pelo braço.

— Venha, vamos lá para dentro e eu o acomodarei em seu quarto. Creio que eles não dariam analgésicos para uma vítima de picada de cobra, mas acho que tenho alguma coisa na minha caixinha de primeiros socorros que fará maravilhas. Depois de alguns comprimidos de Tylenol 3 e um copo de vinho, vai estar se sentindo mais relaxado e, com sorte, sem nenhuma dor.

— Tylenol 3? — ele indagou.

— Confie em mim — reafirmou Pamela.

Apolo resmungou e segurou a mão enfaixada junto ao corpo conforme eles desciam devagar da parte de trás do jipe, subiam pela calçada e entravam na estalagem — algo fácil de fazer, porque ninguém se preocupara em fechar a porta da frente.

Ártemis encontrava-se deitada languidamente em um dos sofás, a um canto, com Eddie ajoelhado a seu lado. Um paramédico media-lhe o pulso, outro movimentava um pequeno frasco diante de seu nariz.

— Ah! — ela protestou. — Leve essa coisa fedida para longe de mim!

— Calma, calma, minha deusa... — murmurou o escritor.

— Ei, está tudo sob controle — Pamela falou em voz alta, balançando a cabeça, desgostosa. — A vítima da picada de cobra está muito bem, obrigada...

Ártemis se levantou e seus olhos azuis se arregalaram; depois se inundaram de lágrimas conforme ela fitava Apolo por cima do sofá.

— Meu irmão! — exclamou. — Ah, meu pobre irmão!... — Oscilou, erguendo as mãos na direção dele.

Apolo foi até o sofá, e Eddie deslocou seu corpanzil de modo que o deus pudesse se sentar ao lado da deusa. As lágrimas escorreram dos olhos de Ártemis e, hesitante, ela estendeu a mão para tocar o curativo em torno da mão do deus.

— Disseram que uma serpente venenosa o havia atacado. Fiquei tão assustada! Pensei que fosse... — Ártemis se interrompeu, mordendo o lábio.

Apolo pôs o braço em torno da irmã e a deixou chorar em seu ombro.

— Está tudo bem. Já passou.

— Onde estou com a cabeça? — Eddie pareceu cair em si de repente. — Você devia estar a caminho do hospital! Urgente!

— Não! — retrucou Apolo. — Eddie, eu tenho um pedido a lhe fazer.

— Pode me pedir qualquer coisa que esteja dentro do meu alcance — prometeu o autor, solene.

— Faça que eu permaneça aqui até sexta-feira.

— Não! Precisa ser cuidado pelos melhores curandeiros que houver por aqui! — protestou Ártemis, parecendo prestes a desmaiar novamente a qualquer momento.

Enquanto todos se concentraram em, mais uma vez, acalmar a deusa, Pamela conseguiu capturar seu olhar e moveu a boca, esboçando uma única palavra: Hermes .

Ártemis piscou, surpresa, e fez cessar os próprios soluços.

Em meio ao intervalo na crise de histeria da deusa, a voz de Apolo soou calma e lógica:

— O veneno de cobra não me colocou em risco de morte. Até mesmo estes homens podem atestar que meus sinais vitais continuam firmes e fortes. Preciso apenas descansar, o que vou fazer melhor aqui do que em um lugar onde estarei cercado por estranhos.

Como uma criança confusa, Ártemis olhou para o irmão.

— Não vai ficar... defeituoso ? — ela usou a palavra como se esta lhe deixasse um gosto horrível na boca.

Pamela reparou que, mesmo com a mão ferida ainda apertada contra o corpo e sofrendo com dores terríveis, Apolo balançou a cabeça e sorriu para a irmã, tranquilizando-a.

— Não ficarei defeituoso coisa nenhuma.

Ártemis conseguiu controlar os soluços por tempo suficiente para segurar o braço de Eddie.

— Oh, por favor... Não o mande embora!

— Eu nem pensaria nisso — respondeu o homenzarrão, dando-lhe um tapinha na mão. — Transfiram o equipamento que for preciso para o quarto dele — ordenou aos paramédicos. — Vou chamar meu médico particular para atender Febo.

Admirada, Pamela viu os paramédicos se prontificarem a obedecê-lo, e Eddie puxou o sempre atento James de lado, a fim de lhe explicar quem deveria ser chamado, o que deveria acontecer, quando, como e por quê.

Como se estivessem no olho de uma tempestade, Pamela, Ártemis e Apolo tiveram sua privacidade assegurada por um momento.

— Hermes? — Ártemis perguntou a Pamela num sussurro.

Ela respondeu no mesmo tom baixo:

— Ele apareceu quando Apolo... — Pamela hesitou, olhou para o deus e o viu assentir de leve. — ... quando ele foi picado pela cobra — minimizou. — Hermes tirou o veneno do corpo dele, mas deixou a dor por ordem do pai de vocês.

— Precisamos comparecer perante Zeus logo após o anoitecer de sexta-feira. Ele decidiu fechar o portal em seguida. Permanentemente.

Pamela viu a surpresa no rosto da deusa. E, quando Eddie se apressou a se juntar a eles outra vez, quase teve a certeza de ter visto algo mais... Algo parecido com tristeza.

— Está tudo sendo arranjado, meu amigo — o autor falou a Apolo.

— Obrigado, Eddie. Vou me lembrar para sempre da sua bondade — declarou o deus, muito sério.

Eddie pôs a mão no ombro de Apolo.

— É um prazer seguir antigas regras. Na minha casa, o vínculo entre hóspede e anfitrião ainda é sagrado.

Apolo curvou a cabeça em reconhecimento.

— Se os deuses ainda escutam o Mundo Moderno, poderá ser abençoado por isso.

— Eu já fui abençoado — garantiu o homem, tomando a mão de Ártemis para levá-la aos lábios.


Capítulo 30


— Então a conclusão geral é que a cobra o mordeu com pouco ou nenhum veneno — comentou Pamela, sentada ao lado de Apolo na cama. — Meus parabéns... Enganou a todos.

Ele mudou de posição, impaciente, e moveu o ombro direito.

— Achei que eles nunca fossem embora.

— Ei, eu gostei do médico de Eddie...

— O dr. Kevin Glenn era jovem demais e inteligente demais. Ele sabia que eu estava escondendo alguma coisa; estava escrito em seus olhos. Mas não sabia dizer o quê.

— Isso porque não é tão bom ator quanto sua irmã.

Apolo fez uma careta.

— Ela também parecia não ir embora nunca.

— Ártemis está apenas preocupada com você.

Ele suspirou e tentou encontrar uma posição mais confortável para a mão enfaixada.

— Eu nunca gostei de serpentes. Sei que Deméter ficaria injuriada em ouvir isso, mas, desde que enfrentei Píton, fico inquieto na presença delas.

— Píton era venenosa? — Pamela aproveitou que eles se encontravam finalmente sozinhos para revirar a bolsa à procura de sua caixinha de remédios.

— Não, mas era grande o suficiente para engolir um homem.

Ela olhou para ele.

— Está de brincadeira, não está?

— Nem um pouco.

Pamela estremeceu.

— Que coisa nojenta! — Escolheu dois comprimidos brancos e grandes, e os entregou a Apolo. — Espere... Isto vai ajudar. — Foi até o minibar e apanhou uma garrafa cara de Pinot Grigio gelado. Hóspedes de E. D. Faust não eram tratados com aquelas garrafas de miniatura baratas, oferecidas nos aviões...

Abriu-a e serviu duas taças. Esperou até que Apolo jogasse os dois comprimidos na boca e, em seguida, ofereceu-lhe o vinho.

— Melhor trazer a garrafa — ele decidiu, após dar conta da bebida em três goles.

Pamela fez como o deus pedia, reabastecendo a taça. Com apenas ela no quarto, Apolo não sentiu necessidade de mascarar sua luta contra a dor e, a cada vez que fazia uma careta ou esfregava o ombro, ela queria gritar sua frustração para os Céus outra vez.

— Ele não devia deixá-lo com tanta dor — desabafou, incapaz de manter o pensamento para si mesma por mais tempo.

Apolo tomou um longo gole do vinho e bateu no colchão, a seu lado.

— Sente-se aqui, perto de mim... Vou lhe falar um pouco a respeito de meu pai. Zeus é o nosso Governante Supremo. Ele é generoso, compassivo, bondoso e protetor para com seus filhos. Mas nunca beneficia os mentirosos ou aqueles que quebram um juramento. Sua voz pode ser ouvida no farfalhar dos galhos dos antigos carvalhos. Zeus é bom e majestoso, mas também é o Senhor dos Céus, o Deus da Chuva e o Senhor das Nuvens, e empunha um raio poderoso. É um deus apaixonado, ciumento e, quando o provocam, sua ira é algo terrível de se ver.

— Ele soa como um paradoxo.

— É o que todos nós somos: não apenas uma coisa ou outra, mas uma mistura de todas elas.

— Isso não me parece um deus dos deuses, e sim um homem — confessou Pamela.

— Verdade — concordou Apolo. — No Mundo Antigo, os deuses não criaram o Universo. Foi justamente o contrário: o Universo criou os deuses. Pense no Universo: nos céus e na Terra, no sol e na lua. São todos uma coisa ou outra?... É como a serpente, esta tarde. Ela despertou minha raiva, eu acabei por matá-la, mas ela não fez por mal. Entretanto, seu veneno é como o fogo do inferno em que o seu Mundo Moderno acredita.

— O que está dizendo, então, é que Zeus não é mau; é apenas imperfeito.

Apolo sorriu e ergueu a taça para ela em resposta.

Pamela o observou esvaziar o segundo cálice de vinho. O dia havia judiado de seu corpo mortal. Mesmo que Apolo não corresse risco de morte, as manchas escuras sob seus olhos, a palidez de sua pele e as novas linhas de tensão em seu rosto eram preocupantes. Enquanto o médico de Eddie o examinara, ele colocara um par de pijamas com calças de cordão. Tinha deixado a parte superior desabotoada, de modo que a equipe médica que pairara a seu lado pudesse manter permanente controle sobre seus sinais vitais.

Felizmente todos eles tinham ido embora e levado consigo seus cateteres, monitores, caretas de reprovação e aquele cheiro de hospital que parecia ficar impregnado na pele. Agora Apolo aparentava ser apenas um homem normal, bonito, que acabara de passar por um dia muito longo e difícil.

E isso era tudo o que ela queria pensar dele. Claro que poderiam conversar sobre os deuses e o Mundo Antigo, mas aquilo tudo afigurava-se muito abstrato e surreal diante de sua pele quente e de seu sorriso carinhoso.

A verdade, contudo, era que, na sexta-feira, Apolo iria voltar para o Olimpo. O portal iria se fechar, e ele sairia de sua vida.

Sentiu o coração pesar no peito.

— O que foi? — o deus quis saber.

Seus olhos encontraram os dele. Apolo parecia tão cansado!... Ela não podia colaborar ainda mais para seu sofrimento. Não naquela noite.

Obrigou-se a sorrir.

— Percebi que ainda não lhe agradeci por ter salvado a minha vida.

Apolo inclinou-se e passou os dedos na medalha dourada que ela carregava no pescoço.

— Eu me comprometi a protegê-la. E nunca quebro um juramento.

Seu toque mudou da medalha para acariciar de leve a lateral de seu pescoço, e Pamela estremeceu.

— Está com frio, doce Pamela — ele murmurou.

— Como eu poderia estar com frio se me toca assim?...

O sorriso de Apolo foi radiante.

— Viu? Sou o mesmo — mortal ou imortal. Você ainda sente o meu calor. — Ele se inclinou para mais perto dela e capturou seus lábios nos dele. Quando ela tentou suavizar o beijo e resistir a seu apelo erótico, Apolo sussurrou contra sua boca: — Ajude-me a esquecer a dor. Deixe que eu me perca em você...

Como ela poderia resistir?, perguntou-se Pamela. Estava ardendo por ele!

E ela o amava.

Mesmo assim, pôs a mão em seu peito, e Apolo interrompeu o beijo, lançando-lhe um olhar surpreso.

— Esta noite eu quero fazer amor com você... Permita isso — Pamela pediu com voz rouca.

Quando empurrou os ombros largos para trás, de encontro aos travesseiros de penas, ele não se opôs. Ela se levantou, então, tirou a blusa por sobre a cabeça, depois se livrou do short e dos sapatos. Em vez de se juntar a Apolo na cama, contudo, deu alguns passos para trás, de modo que ele tivesse uma visão clara de todo o seu corpo.

Adorava a maneira como os olhos do deus a tragavam. Ele a fazia se sentir bonita, desejável, poderosa.

Deve ser assim que uma deusa se sente , pensou.

Aceitar o amor de Apolo a havia transformado. Decidir se entregar a ele a arrancara da escuridão da sombra de Duane e jogara luz em seu mundo. Apolo era um deus, e ela, uma mortal; mas, com o amor dele, ela se tornara a própria Deusa da Luz.

Devagar, alcançou o fecho do sutiã de renda branco e simples. Após tirá-lo, deixou as mãos deslizarem sobre os seios sem pressa, brincando com os mamilos rosados até senti-los rijos. Com cuidado, acariciou o próprio corpo, livrando os quadris redondos da calcinha.

Os olhos de Apolo a devoravam.

Nua, Pamela se aproximou da cama.

— Não — ordenou, sorrindo, quando ele tentou se sentar para ir ao seu encontro. — É a minha vez, lembra-se?

— Você é tão linda, Pamela... — Apolo murmurou. — Espero que... — ele se interrompeu, soltando uma risada seca.

O que ela estava pensando? , pensou Pamela, mortificada. Apolo sofrendo dores terríveis, e ela agindo como uma stripper quando, na verdade, ele precisava de uma enfermeira!

Descansou os dedos com cuidado sobre o braço enfaixado.

— Posso ficar aqui, a seu lado. Não precisamos fazer nada.

— Não é isso — ele falou, aflito. — Eu quero você, quero que faça amor comigo. Só espero não decepcioná-la. Eu já disse que não usei nenhum dos meus poderes imortais para seduzi-la, e é verdade. Mas quando eu a amei... — ele moveu os ombros, inquieto — ... não pude evitar tocá-la com a minha magia. Esta noite não haverá nenhuma magia, nenhum poder. Serei apenas um homem.

— Jamais será apenas um homem, Apolo. Será sempre o homem que eu amo .

— Minha doce Pam...

Seu nome mudou para um gemido de puro prazer quando ela deslizou as mãos pela blusa do pijama, abriu-a e esfregou a ponta dos seios contra o peito musculoso, ao mesmo tempo que mordia de leve o lábio inferior e a linha firme do maxilar quadrado. Em seguida, passou a mordiscá-lo corpo abaixo, deixando um rastro quente, até desatar com habilidade o laço que lhe prendia as calças. Pôde ouvi-lo soltar uma exclamação quando o segurou nas mãos, esfregando o eixo rijo na maciez de seus seios.

E então sua boca estava nele. Primeiro usou os lábios e a língua ao longo do membro espesso e sólido, amando o modo como o corpo de Apolo estremecia e enrijecia sob seu toque, e também o modo como ele gemia seu nome cada vez mais. Engoliu-o, sugando e provocando até ouvir um grito rouco:

— Não posso esperar mais!...

Com um movimento rápido, ela montou nele. Apoiando-se nos joelhos, posicionou a ponta rija em seu calor úmido e fixou os olhos no calor azul e intenso dos olhos de seu deus.

Deixe que eu o livre da dor, mesmo que apenas por um momento!, rezou em silêncio a qualquer deus ou deusa que pudesse estar ouvindo. Então empalou-se nele, lenta, deliciosamente, engolindo-o inteiro.

Com um movimento provocante, ergueu o corpo, sentindo o membro de Apolo pulsar contra ela, então deslizou para baixo outra vez. Bem devagar. Envolveu-o, até que uma deliciosa tensão aumentou além do que ela podia suportar. Apenas nesse momento guiou a mão dele para o quadril e deixou que Apolo aumentasse o ritmo.

Moveram-se juntos, com urgência, e o delírio da paixão mortal preencheu seus corpos com um calor que foi crescendo, irrefreável, até se tornar insuportável.

Quando percebeu o corpo de Apolo se retesar sob o dela, Pamela moveu o seu próprio, cavalgando-o com mais ímpeto, de modo que, quando ele derramou sua semente morna dentro dela, também explodiu em um poderoso orgasmo.

Ao desabar sobre Apolo pouco depois, Pamela sentiu os corpos suados escorregarem um contra o outro e o braço do deus se apertar em torno dela.

— Eu te amo! — ofegou o deus, beijando-a com delicadeza.

Pamela aninhou a cabeça junto ao ombro largo, tomando o cuidado de manter o próprio peso distante de seu braço direito.

Ao mudar de posição para puxar o lençol em torno deles, seu sorriso satisfeito se ampliou para um de felicidade. Com os olhos fechados, o rosto de Apolo finalmente parecia livre da dor, relaxado e tranquilo, e ele caíra em um sono profundo.

— Obrigada — sussurrou para o vazio.

 

— Eu não sei, Apolo. Não me sinto bem deixando você. — Pamela parou perto da cama, brincando com a pulseira de couro da pasta. Por insistência dele, ela se vestira e ficara pronta para voltar a trabalhar na villa .

Afinal, Apolo lembrou, não havia nada de errado com ele. E ela ainda tinha muito trabalho a fazer.

— Vai ficar tudo bem. Eu tenho isto... — ele pegou o controle remoto — ... e isto. — Tocou com o dedo o guia de canais. — E já me explicou tudo sobre televisão a cabo. Ficarei bem entretido.

Pamela franziu a testa.

— Não se esqueça do meu telefone. Meu número é...

— Sim, sim, o seu número está escrito no papel perto do aparelho. Pode ir agora. Eddie deve estar à sua espera.

— Está bem. — Ela se inclinou para beijá-lo. — Mas sinto que estou fazendo alguma coisa errada.

— Esta noite, quando voltar para a minha cama, prometo que a deixo me compensar por estar me abandonando.

— Eu não quero te abandonar!

Apolo riu, então fez uma careta, esfregando o braço ainda dolorido.

— Eu só estava provocando você, doce Pamela. Na verdade, eu a invejo. Vou sentir falta do trabalho hoje. Tem certeza de que não há nenhuma maneira de eu...

— Você já conversou sobre isso com Eddie, e ele se recusou a deixá-lo sair deste quarto, exceto para jantar na varanda, até sexta-feira.

A reação irritada de Apolo foi interrompida por uma batida na porta. Pamela a abriu e deparou com o corpanzil de Eddie preenchendo o vão da entrada.

— Acredito que tenho um trabalho pelo qual Febo ficará muito interessado... — O autor deu um passo para o lado, fazendo um gesto autoritário, e dois homens carregaram para dentro da suíte uma pequena mesa de desenho, seguidos pelo arquiteto com quem Apolo vinha trabalhando no projeto da casa de banhos. — Se Maomé não vai à montanha, a montanha vem a Maomé!

— Brad! Não devia estar na villa ? — indagou o deus.

— Devia. Você também, mas parece que uma cobra decidiu mudar os nossos planos. — O arquiteto deu-lhe um tapinha no ombro e, em seguida, desculpou-se ao vê-lo apertar os lábios contra a dor que causou o movimento brusco. — Sinto muito, Febo. Uma cascavel também picou o meu cunhado no ano passado. Ele disse que doeu à beça, tanto que ficou de cama por uma semana. — Olhou para Eddie. — Talvez devêssemos retomar de onde paramos amanhã.

— Não! Não sei o que vocês têm em mente, mas posso garantir que estou mais do que disposto — Apolo falou depressa.

— Mas só se prometer que não vai sair daí! — Eddie entrou no quarto. — Bradley trouxe as plantas do balneário para que você o ajude a terminá-las. Isso se ficar na cama e continuar descansando.

— Tem o meu juramento — prometeu Apolo já sentado, a atenção voltada para os papéis compridos e lisos que Bradley foi desenrolando e prendendo à mesa de desenho.

— Venha, Pamela — chamou o autor. — Vamos deixar o balneário para os especialistas. A deusa nos aguarda no carro.

Enquanto eles deixavam a suíte, o resmungo de Apolo chegou até eles:

— Está aí uma coisa da qual eu não sentirei falta hoje...

— Obrigada, Eddie — agradeceu Pamela, apertando o braço do homenzarrão.

Ele sorriu para ela.

— De nada, minha querida. Febo não me parece um homem que se sente bem com a inatividade.

— Tem razão. Na verdade, tem razão em mais do que isso.

A expressão sorridente de Eddie tornou-se contemplativa.

— Parece feliz esta manhã, Pamela...

— Sim, eu estou feliz. Concluí que Sêmele não se arrependeu de sua escolha — ela confessou.


Capítulo 31


Pamela olhou para o relógio e soltou uma exclamação.

— Eddie! São quatro horas! Você não disse que as reservas para o nosso jantar eram para as seis?

— Tem razão, Pamela! — Eddie falou do outro lado do caótico pátio. Levantou-se do banco de um salto e se moveu pesadamente, ficando atrás de Matthew, que tratou de dar os últimos retoques no esboço da fonte.

Ártemis desceu com graça de seu pedestal e se juntou ao autor. Em seguida, Pamela pôde ouvi-los parabenizar Mateus por seu bom trabalho.

Um trabalho muito bem-feito...

Era tarde de sexta-feira, e o serviço estava longe de ser terminado. Como dois dias e meio haviam ido embora tão depressa?

Correu a mão pelos cabelos. Estava exausta e estressada além da conta. Tinha passado os últimos dias concentrada em dar forma à villa de sonho de Eddie: fazendo malabarismos com os pintores e pedreiros, resolvendo problemas de instalação e contratempos com os tecidos.

As noites, ela havia passado nos braços de Apolo, às voltas com o amor do Deus Sol. Dormira muito pouco, vinha trabalhando feito uma condenada... e eles ainda estavam atrasados.

Mas não trocaria um único instante do que tinha vivido.

— Pamela, que tal isto para as paredes de mentirinha do home theater ?... — O finalizador de mentirinha apontou sua caneta de penas com afetação para uma placa que fora pintada com um bordô escuro e delicados veios pretos e dourados.

— Absolutamente perfeito desta vez, Steve — ela falou com alívio. — Exatamente o acabamento que eu queria para o cômodo.

— Maravilha. Vai ficar um arraso , querida! — Ele acenou com a pena, exultante. — Vou começar na segunda-feira pela manhã — declarou Steve, entusiasmado.

— Estarei aqui — prometeu Pamela.

Steve acenou com a cabeça e saltitou, feliz, de volta para a casa, a fim de juntar suas coisas e ir embora para o fim de semana.

Bem mais séria, Pamela se pôs a arrumar com cuidado as anotações do dia na pasta. Também estaria de volta na segunda-feira. Bem ali, em Las Vegas. No mundo moderno mortal.

E Apolo e Ártemis estariam no Olimpo.

Não haveria mais jantares na varanda para eles na companhia do fantástico e divertido Eddie. Nenhuma conversa com Apolo sobre o mármore novo que acabara de chegar para o banheiro da suíte máster e que estava na cor errada. Nenhum projeto criado em conjunto, que logo se transformaria em mosaico nos pisos do balneário novo de Eddie...

Ainda assim, seus lábios se inclinaram em um sorriso secreto quando pensou nos últimos dois dias. Além de trabalhar pessoalmente com o arquiteto e, mais tarde, por meio de um telefone e de um maravilhoso notebook que Eddie fornecera — e que o deus dominara com admirável facilidade —, Apolo estava se tornando um verdadeiro cinéfilo. Antigo deus ou não, havia certas coisas nele, agora, que eram típicas de um homem moderno. Como o fato de adorar aprender sobre eletrônica; e como aderira ao controle remoto para ficar zapeando . Na noite anterior, quando ela chegara do trabalho na villa , encontrara-o absorvido no segundo filme de O Senhor dos Anéis.

— Aragorn me lembra Heitor. E o pequeno hobbit. .. o pequeno hobbit tem o coração do fiel Pátroclo, de Aquiles.

— Frodo se parece com esse tal de Pátroclo? — tinha indagado.

— Não. Eu não estava pensando em Frodo. Estava pensando em Samwise. Espero que, no final, ele se saia melhor do que Heitor e Pátroclo — Apolo declarara, muito sério.

Ela não se lembrava tão bem de mitologia para saber do que ele estivera falando, contudo lhe assegurara que Aragorn e Sam haviam tido finais felizes.

Apolo resmungara, então, e erguera a mão boa num protesto.

— Não me conte o final ou vai perder a graça.

E ela quase tinha contado. Era um filme comprido, e o tempo estava se esgotando para Apolo. Ele poderia nunca mais ver O Retorno do Rei .

Tomaram uma decisão bem tarde naquela noite.

Não , Pamela se corrigiu. Ela tomara a decisão. E se lembrava bem da tensão que irradiara do corpo de Apolo quando ele percebera que ela não iria, não poderia retornar com ele ao Olimpo.

— Eu seria inútil lá, Apolo.

— Inútil? Como pode até mesmo pensar em uma coisa dessas? — Ele fizera um gesto cheio de frustração com a mão ainda enfaixada e, em seguida, soltado uma exclamação pela dor aguda que causara a si próprio. — Pelos deuses, não vejo a hora de me ver livre desta dor! — completara, nervoso.

Ela mudara de posição e, em vez de ficar esticada a seu lado, deitara-se sobre ele. Delicadamente, tinha massageado seu ombro direito, sentindo-o relaxar sob os dedos.

— Melhor?...

Apolo balançara a cabeça e a beijara na palma da mão.

— Seu toque me acalma. É a única coisa que consegue aliviar essa dor sem fim... Não vê o quanto eu preciso de você comigo?

Ela havia sorrido para ele, tristonha.

— Apolo, nenhuma cobra vai feri-lo no Olimpo.

— Não, mas a sua ausência vai.

— Eu sei. — Ela mordera o lábio. — Também vai doer em mim ficar sem você.

— Então venha comigo! É a minha alma gêmea, e quero que seja também minha esposa.

Pamela tentou digerir a amargura de um futuro sem Apolo. Como se fosse fácil.

— O que eu faria no Monte Olimpo, em meio a vocês, deuses? — Tinha balançado a cabeça e, quando ele abrira a boca para protestar, mal tomara fôlego. — Por mais que deseje isso, eu não sou nenhuma artista. Não quero nenhum estúdio divino onde eu possa fingir que sou talentosa e que estou interessada em criar peças sabe-se lá do que para sabe-se lá quem... — Tinha balançado a cabeça de novo e suspirado. — Apolo, por acaso há algum mortal vivendo lá? Qualquer mortal?

— Muitas das ninfas e servas são semideidades — ele afirmara depressa. — E é comum se permitir que alguma sacerdotisa ou sacerdote visite seu protetor imortal.

— Semideidades não são mortais. Sacerdotisas e sacerdotes podem até visitar o Olimpo, mas depois voltam a viver sua vida mortal — ela observara, tristonha.

— Vai ser a minha esposa. Vou pedir a Zeus que a torne imortal.

Ela havia puxado a mão da dele.

— Vamos supor que eu me casasse com você e me transformasse em uma imortal. O que faria pelo restante da eternidade? Eu não teria um reino como sua irmã. Não teria trabalho, Apolo. Eu não teria nada além do que estaria autorizada a ter por seu intermédio.

Nesse momento, notara o brilho de compreensão nos olhos do deus.

— Seria outra jaula — ele falara devagar. — Não sou Duane, mas isso pouco importa. Para você seria como outra gaiola: maior, mais importante e mais dourada, talvez, mas...

— Ainda uma gaiola — ela completara.

Apolo tinha tornado a lhe segurar a mão.

— Então eu fico aqui.

Ela arregalara os olhos e sacudira a cabeça com força.

— Não! Você não pode! É Apolo, o Deus da Luz. Não pode abandonar o seu mundo. Não definitivamente. Sabe que não pode. O que aconteceria com as pessoas, lá? Não as estaria condenando à escuridão?

— O sol pode cruzar o céu antigo sem mim. Minhas éguas conhecem o caminho que minha carruagem dourada deve tomar, pois o percorrem, muitas vezes, sem que eu as esteja conduzindo.

— Apolo, não seria certo. Não pode deixar o Olimpo. Não pode ser um mortal.

— Fui mortal esta semana e posso sê-lo por uma vida.

— E quanto tempo esta duraria? Pense no que aconteceu em seu primeiro dia como mortal... Você morreu! — As palavras brotaram de seus lábios. — Não importa o que diga à sua irmã, a Eddie ou a si mesmo, eu estava lá. Eu vi acontecer. Você salvou a minha vida, e em seguida perdeu a sua. Se Hermes não tivesse aparecido, estaria morto agora. — Ela havia respirado fundo, sentindo que tremia enquanto segurava a mão dele. — Eu não poderia suportar isso, Apolo. Eu não poderia vê-lo morrer outra vez.

— Sshh... — ele murmurara, puxando-a para os braços. — Deve haver uma saída. Vamos encontrá-la.

— Como? — tinha indagado de encontro ao calor de seu peito.

— Levarei essa questão ao meu pai. Pedirei a ele que me permita acessar o seu mundo.

— E se ele disser “não”?

— Eu não sei, mas Deméter e Perséfone fizeram um acordo. Podemos fazer, também. — Apolo colocara um dedo sob seu queixo e lhe erguera o rosto. — Não vou ficar separado da minha alma gêmea. Tem o meu juramento, Pamela.

Sua boca descera sobre a dela com tanto ímpeto e proteção que ela ainda podia sentir seu calor ali no pátio...

Pamela estremeceu e tratou de prestar atenção aos papéis soltos em suas mãos. Era sexta-feira. O sol iria se pôr em apenas algumas horas, Apolo e Ártemis passariam pelo portal, retornariam ao Olimpo... e ela poderia nunca mais vê-lo outra vez.

Foi como se ela também houvesse sido envenenada, tal foi a onda de dor que o pensamento provocou.

— Pamela?

Ela olhou por cima da tampa aberta da valise direto para os olhos de Ártemis. A deusa parecia ter dormido muito pouco na noite anterior e, a despeito da luminosidade em seu rosto — resultado da magia da maquiagem moderna —, ainda era possível ver as manchas escuras sob seus olhos.

— Parece cansada — comentou Pamela.

— Meus pensamentos não me deixam descansar.

— Pensamentos?

— Estou preocupada com você. E com Eddie. — Os olhos da deusa se desviaram para o local onde, com sua habitual animação, o autor conversava com um dos representantes de tecidos. — Percebi, com a aproximação do crepúsculo, que não estou tão ansiosa como imaginava por deixar o seu mundo.

Pamela sorriu. Ártemis não estava menos vaidosa, mimada ou mandona, mas seu relacionamento com Eddie tinha, definitivamente, suavizado seus modos. Parecia mais calorosa, e não fria como a perfeição do mármore. Havia se tornado uma mulher em toda a concepção da palavra.

— Vou sentir sua falta, Ártemis.

— Então venha conosco! — pediu a deusa. — Caso se canse do Olimpo, poderá visitar o meu reino. Minhas florestas sempre acolherão a esposa de meu irmão.

— Não posso — Pamela murmurou, tocada pelas palavras da deusa. — Eu não pertenço àquele lugar.

— Você pertence a Apolo — Ártemis afirmou com segurança.

— Se eu for com ele, vou me perder. E depois não haverá nada mais em mim que ele possa amar.

Ártemis inclinou a cabeça e estudou Pamela.

— É dona de grande sabedoria, minha amiga. Daria uma excelente deusa.

— Senhoras! — Como um dos Titãs, Eddie se avultou sobre elas.

— Precisamos nos apressar. Febo nos espera, assim como o nosso jantar. Prometi deixá-las na entrada do Caesars Palace às oito da noite em ponto, para que o seu próprio motorista possa levá-los de lá para o aeroporto... — Eddie franziu a testa, demonstrando seu descontentamento pela história que elas tinham elaborado.

Para que o escritor não as seguisse até o Caesars Palace, Ártemis dissera a Eddie que sua rica família grega iria enviar seu próprio automóvel para buscar o irmão e a ela pontualmente às oito no hotel (no pôr do sol, de acordo com a pesquisa que Pamela fizera na internet), e que ela não suportava despedidas em aeroportos.

Apolo tinha ficado pálido como cera quando Pamela lhe explicara que um avião era algo enorme, parecido com um grande carro voador.

Eddie continuava insatisfeito com o arranjo, porém, como de costume, não contrariou as exigências de sua deusa. Deu apenas um longo suspiro.

Pamela reparou em como ele parecia repentinamente envelhecido.

— Concordei com a sua vontade, minha querida, mas, para isso, precisa ser pontual. Planejei um jantar de despedida espetacular para nós.

— Eddie!... — Ártemis fez um lindo beicinho, deslizando o braço pelo dele e distraindo-o, a fim de evitar mais discussões acerca de limusines e jornadas até o aeroporto. — Espero que tenha reservado um restaurante com uma boa vista. Sempre adorei nossos jantares naquela varanda maravilhosa, e não gosto nem mesmo de pensar no quanto vou sentir falta deles.

— A paisagem estará sempre esperando por você quando estiver cansada de suas viagens. Mas, esta noite, minha deusa, me pareceu sábio tentar algo novo. — O autor tocou a face de Ártemis, e ela a usou para lhe acariciar a mão.

O sorriso de Eddie quase escondeu a triste resignação que assombrou seu semblante.

Pamela os seguiu através do pátio, pensando que o escritor poderia muito bem ser um ator ainda mais competente do que a deusa.


— Sinceramente, eu detesto essas criaturas de metal — Apolo resmungou por entre os dentes após sair, desajeitado, do banco da frente da limusine.

— Senhor? — O porteiro do Bellagio pareceu confuso.

— Ele fica enjoado — explicou Pamela.

O homem, de forte sotaque inglês, examinou o rosto esverdeado do deus e sua mão enfaixada. Bufou de leve e, em seguida, abriu caminho.

Pamela segurou o braço bom de Apolo e o conduziu para a calçada. Ele passou a mão pela testa e tentou controlar o próprio estômago enquanto eles aguardavam pelo longo processo que era tirar Eddie e Ártemis do que ele, Apolo, considerava o estômago da limusine...

— Prometa que, quando chegar a hora de voltarmos ao Caesars Palace, iremos a pé até lá — ele sussurrou ao pé do ouvido de Pamela.

As palavras a fizeram se lembrar do pouco tempo que tinham juntos.

Como se ela precisasse de um lembrete!... Ironicamente, era como se o sol zombasse deles, correndo em direção ao horizonte.

Pamela tentou, sem sucesso, sorrir para Apolo.

— Prometo.

Ele encontrou seus olhos.

— Não vou viver sem você. Vai dar tudo certo. Lembre-se de que tem o meu juramento.

Ela assentiu com um rápido gesto de cabeça.

Ele é Apolo, o Deus da Luz... Pode fazer isso acontecer. Pode encontrar um modo de ficarmos juntos! , disse a si mesma com determinação enquanto piscava para combater uma súbita onda de lágrimas.

Precisava se concentrar nos arredores e se controlar. Não importava o que iria acontecer. Não queria que a última lembrança de Apolo fosse de lágrimas e um coração partido. Queria que ele soubesse que ela acreditava nele: em seu poder e em seu amor.

A entrada do Bellagio consistia de um passeio circular ornamentado, que ficava de frente para uma galeria. Esta, por sua vez, se debruçava sobre um lago artificial calmo e escuro que, ela sabia, só estava esperando uma nota musical para ganhar vida e luz.

— As fontes — comentou Apolo, seguindo seu olhar. Passou o braço em torno dela, então, e a apertou intimamente contra o corpo. — Nossas fontes.

Pamela o fitou e, dessa vez, sorriu. Ele era tão forte e seguro de si!... Tão real.

Não podia duvidar de Apolo. Fora contemplada com um juramento do Deus da Luz, e ele não iria decepcioná-la.

Mais importante do que isso: ele não decepcionaria nenhum deles dois.

— Sim, são as nossas fontes — concordou enfim.

— Não vamos nos demorar! Tenho uma surpresa para a minha deusa para a qual precisamos chegar na hora.

Eddie e Ártemis passaram por eles e entraram no Bellagio.

Pamela e Apolo seguiram mais devagar. Uma vez na entrada do hotel, ela estacou e olhou para o teto, chocada.

— Dale Chichuly! — falou, maravilhada, olhando para a espantosa obra de arte que enfeitava o saguão do Bellagio. — Eu tinha me esquecido de que foi ele quem projetou isto.

Curioso, Apolo estudou o teto.

— É uma iluminação um tanto incomum.

— É incrível! Repare na complexidade do vidro soprado e no brilho das cores. É como uma floresta de águas-vivas. Pena que Eddie não escolheu esta decoração em vez daquela coisa cafona do Caesars Palace — comentou em voz baixa, com uma risadinha.

— Eu não sei. — Apolo a abraçou e a beijou no topo da cabeça. — Acabei me afeiçoando ao gosto excêntrico de Eddie. Afinal, foi graças a ele que nos conhecemos.

— Está brincando... Está de brincadeira! — falou Ártemis, segurando o irmão pela manga e puxando-o até onde Eddie esperava, impaciente, diante de um restaurante onde se lia “Olives” em letras douradas.

— E. D. Faust e companhia. Tenho uma reserva especial — o autor anunciou ao maître.

— Claro, sr. Faust. Por aqui, por favor...

Eles seguiram o maître através do opulento restaurante — que se encontrava lotado na agitada noite de sexta-feira — até uma parede de janelas chanfradas, no meio da qual havia uma porta de vidro do chão ao teto. Um garçom a abriu para eles, revelando uma imensa varanda de mármore, a qual, por sua vez, dava direto nas famosas fontes do Bellagio. O maître os conduziu até a única mesa posta com toalha de linho, porcelanas e cristais, então se curvou primeiro para Ártemis, em seguida para Pamela, acomodando-as nas cadeiras de veludo bem estofadas.

— Conforme suas instruções, sr. Faust, a varanda foi reservada exclusivamente para os senhores.

— Perfeito. Agora pode servir o Dom Perignon .

— Oh, Eddie! Como sabia que eu estava louca para tomar esse delicioso champanhe outra vez? — encantou-se Ártemis.

— Li isso em seus belos olhos, minha deusa — declarou o escritor.

Pamela revirou os olhos e compartilhou um olhar divertido com Apolo.

O garçom desarrolhou a garrafa e, conforme servia o champanhe, as primeiras notas da música-tema de Chorus Line deu vida às fontes.


One! Singular sensation...


À medida que a música tocava e as águas dançavam, Eddie ergueu a tulipa de cristal para Ártemis.

— À você, minha deusa. Uma sensação indescritível...

— Oh, Eddie! — ela murmurou, tocando o copo no dele e piscando para combater as lágrimas que lhe inundaram os olhos. — Você me encanta!

— É um prazer muito grande para mim — ele garantiu, os olhos também brilhando de modo suspeito. Em seguida, limpou a garganta e fez um sinal para que o garçom trouxesse os cardápios.

O jantar contra o pano de fundo dos chafarizes dançantes e o céu do deserto — que, devagar, passava do azul para púrpura — foi espetacular. Com eles sozinhos ali, na varanda, a noite parecia cheia de magia e mistério. Embora estivessem no coração de Las Vegas, em uma noite movimentada de sexta-feira, tinham privacidade e uma infinidade de mordomias.

Para Pamela, foi como se eles tivessem ganhado um camarote especial dos deuses da cidade.

E quem poderia duvidar? Talvez fosse isso mesmo. Afinal, coisas mais estranhas já haviam acontecido...

Quando a última das muitas canções tocadas nas fontes cessou, Eddie olhou para o relógio. Muito sério, ergueu o corpanzil da cadeira e ficou de frente para a mesa.

— Já são quase oito horas. Compartilhamos o vinho e a comida, nossa amizade e boa música. — Seus olhos gentis se desviaram de Pamela para Apolo antes de pousar em Ártemis. — Agora, infelizmente, devo me despedir. Mas eu lhes disse antes que tinha uma surpresa... — Seu olhar permaneceu sobre o belo rosto de Ártemis. — Principalmente para você, minha deusa. — Fez um gesto, abrangendo os arredores. — Parte da surpresa foi este ambiente e o jantar. A outra parte é que eu gostaria de anunciar que me decidi sobre o assunto da minha próxima trilogia épica. Esta manhã, o meu editor concordou com a minha proposta para três livros. Eles vão contar a história de um guerreiro que é enviado por seu povo, o qual está morrendo, em uma missão quase impossível, para conquistar o coração de uma deusa que, por sua vez, promete retornar com ele, viver a seu lado e salvar seu mundo. A capa dura de cada livro irá retratar uma imagem que será sagrada durante toda a jornada do herói: a imagem de uma deusa. Essa imagem será nada menos do que aquela que o nosso Mateus fez de você. — Eddie terminou o discurso com um floreio, curvando-se para a mulher que ele proclamara sua diva.

Ártemis nada disse. Em vez disso, levantou-se e caminhou até Eddie.

— Obrigada, meu guerreiro. — Com graça, ela se curvou em uma reverência. Quando ergueu o corpo delgado e passou o braço pelo dele, Pamela pôde ver que a deusa tinha o rosto molhado.

O escritor apanhou um lenço de seda no bolso e lhe enxugou as faces. Em seguida, num gesto familiar, deu um tapinha na mão que repousava em seu braço.

— Venham. Vamos dar fim a esta nossa jornada.

Em silêncio, os quatro refizeram o caminho através do restaurante, saindo para o saguão do Bellagio. Desta vez, a obra prima de Chichuly não atraiu o olhar de Pamela. Seu coração estava pesado demais, e ela nem mesmo olhou para cima. A única coisa em que conseguia pensar era em continuar segurando a mão de Apolo e em seguir acreditando que aquela não seria a última vez em que iria tocá-lo.

E foi por meio desse toque que Pamela sentiu a tensão do deus quando a limusine estacionou em frente ao passeio circular, o que a fez se lembrar de sua promessa.

— Eddie, importa-se se Febo e eu formos caminhando? Você sabe como ele fica quando anda de carro... — acrescentou, notando, admirada, como sua voz soava normal. Perguntou-se por que seu coração não parecia estar partindo ao meio e por que motivo sua vida não estava se dissolvendo com o pôr do sol.

— Claro! Podemos encontrá-los na frente do Caesars Palace. Assim poderemos todos nos despedir em particular. — O autor conseguiu esboçar um breve sorriso antes de se abaixar para entrar na limusine.


Em seu palácio, no Monte Olimpo, Baco encontrava-se sentado no trono. Fechou os olhos e se concentrou no próprio desejo. Gotas de suor lhe banharam a testa larga, e suas faces se contraíram pelo esforço. Entre os lábios flácidos, formou-se uma linha de espuma branca que entrava e saía com sua respiração.

Onde está?!

Aumentou a concentração. Não entraria em pânico. Não ficaria desesperado. Ele iria encontrar!

Onde?! Onde ela está?

Sentira-a naqueles últimos dias. O fechamento do portal enfraquecera a sensação, porém ele sabia que ela ainda estava lá. Tudo o que tinha a fazer era encontrá-la... e ela seria sua outra vez.

Baco levantou as mãos grossas, segurando-as com as palmas voltadas para cima, como se tentando sentir o ar diante de seu pedestal.

Então algo fez cócegas em sua pele.

Com toda a sua força imortal, ele fechou as mãos, e sua mente apreendeu o tênue fio do vínculo.

Tinha encontrado!... Ele a havia encontrado!

Como um pescador puxando uma presa rara, Baco agarrou o fio da alma da mortal, arrastando-o e reforçando sua conexão até poder enxergá-la com clareza. Ela estava trabalhando. Parecia pouco mais do que uma escrava, na verdade, condenada a uma vida de trabalho pesado, carregando bebidas para homens de mãos inquietas e ousadas e, às vezes, enfiando-se em cantos escuros para levar um copo aos próprios lábios.

Baco reforçou mais o vínculo, e a mortal drenou o copo de bebida forte.

Sim... Beba-me!... Sorva-me!... Deixe-me aliviar sua dor... sussurrou através do fio, e sentiu que ela oscilava como se também tivesse sentido a conexão.

Fora assim que ela viera até ele; e fora assim que ele criara o elo entre eles: por meio de sua necessidade de beber. Aquilo a obcecava, a consumia... Ele não fizera nada de errado. Simplesmente concedera à mortal seu desejo mais sincero.

A deliciosa ironia daquilo tudo o fez querer gritar de prazer. Usaria a mortal vinculada a ele por conta de sua própria vontade para destruir o elo que o ligava à dourada Ártemis. Ao fazê-lo, os gêmeos teriam uma amostra da dor que a perda de seu reino lhe causara.

A agonia de tal perda ainda se alastrava dentro dele. Eles pensavam que o tinham derrotado...

Culpa de Apolo! Dele e de sua irmã dourada.

Mas Zeus iria puni-los?... Claro que não. Eles eram seus queridinhos, seus favoritos.

Aquilo era insuportável!

O abuso de que fora vítima tinha de ser corrigido. E, desta vez, não haveria demora. Não cometeria nenhum erro.

Baco canalizou sua energia para a mortal. Sorveu sua alma, rindo diante da facilidade com que ela a entregava a ele.

Por intermédio da moça, seu espírito readentrou o mundo mortal, espalhando-se como uma névoa funesta e invisível pelo Caesars Palace. Procurou, olhou...

Pouco depois, com um grito de triunfo, ele encontrou o que procurava. Perfeito. Eles estavam tão distraídos, tão concentrados em seus próprios problemas que nem mesmo pressentiram sua presença.

Satisfeito, Baco tornou a concentrar os poderes sobre a vulnerável mortal. Estava dentro dela, correndo por suas veias e preenchendo sua mente com seus obscuros anseios.

Sim, está indo bem! , persuadiu a moça conforme ela deixava seu posto de trabalho, levando apenas um molho de chaves. Mais depressa! O tempo urge! Deixe-me dizer o que vai fazer...


Capítulo 32


Sem falar, Apolo e Pamela caminharam devagar, de mãos dadas, ao longo do passeio que emoldurava as fontes do Bellagio. No momento, as águas se assentavam quietas e escuras, porém o calçadão estava repleto de alegres mortais conversando, e a rua adjacente, cheia de carros em movimento.

As buzinas e as freadas eram muito mais perturbadoras do que a cintilante acrópole do outro lado da rua, concluiu Apolo.

Ignorou a insistente dor que lhe irradiava da mão e subia pelo braço. Não tinha a menor gravidade, pois era algo que teria fim em breve.

E também era de pouca importância se comparada ao peso em seu coração.

Já era quase hora de o sol se pôr. Aquele não era o seu mundo, contudo ele iria se sentir para sempre ligado à luz daquele céu. Podia senti-la ao despertar pela manhã, e sempre sabia quando esta desaparecia no horizonte.

Seu tempo era curto. Ele deveria ficar. Podia ficar. Seria algo simples de fazer. Com a reabertura do portal, seus poderes lhe seriam restituídos. Poderia iludir Pamela e, em seguida, inserir em sua concentração a sugestão de que ela lhe pedira para ficar...

Como um duende do mal, sua própria mente insinuou outras possibilidades. Ele poderia levá-la com ele. Deuses vinham sequestrando suas amantes mortais por eras. O Monte Olimpo era cheio de maravilhas e indescritível beleza. Com certeza Pamela poderia ser feliz lá. E, com certeza, ela o amava o suficiente para perdoá-lo.

Mas estaria agindo de modo diferente de seu ex-marido?... Se tinha aprendido alguma coisa com Pamela, era que o amor não podia ser ditado, exigido nem aprisionado. Não poderia acorrentá-la a ele. Poderia apenas amá-la.

Havia se passado apenas uma semana do dia em que ele acreditara ter conquistado um amor?

Como fora ingênuo!... Mortal ou imortal — o amor não fazia distinção entre postos ou privilégios. O amor era uma questão de alma. Era imaterial e não estava sujeito aos caprichos do homem ou de um deus.

Apolo diminuiu o passo e conduziu Pamela até um banco próximo quando o grupo barulhento, atrás do qual eles vinham andando, parou de repente. Como numa boiada, as pessoas se misturavam, impacientes, chamando umas às outras em voz alta.

— É por causa da rua; eles estão esperando o farol abrir — explicou Pamela, sentando-se a seu lado e olhando para a água escura. Estava normal... ou quase. Lembrava uma lâmpada enfraquecida. Aquela luz habitual tinha desaparecido de seu rosto, o que a deixou mais pálida e frágil. — O grupo é muito grande. Provavelmente serão necessárias duas mudanças do sinal para que todos atravessem. — Seus olhos se voltaram para ele, tristonhos. — Depois de ter passado a semana inteira no deserto, toda essa gente me faz sentir claustrofóbica. Será que não podemos ficar sentados aqui por um minuto e deixar que sigam adiante?

— Sim — Apolo concordou, envolvendo-a com um braço. Pamela descansou a cabeça em seu ombro e se aninhou junto a ele. — Não temos que estar lá no exato instante em que o portal ressurgir. Temos tempo.

— Quanto tempo?

— Não muito. Não quero desafiar Zeus, desdenhando de sua ordem para comparecer diante dele.

— O que vai dizer a seu pai?

— A verdade. — Apolo beijou-lhe a testa. — Que encontrei minha alma gêmea no Mundo Moderno e que meu maior desejo é não me afastar mais dela.

— Espero que o seu desejo mais sincero lhe seja concedido tão depressa como foi o meu... — Pamela ergueu o rosto para o dele e, conforme Apolo a beijou, ela aspirou seu perfume. Sua proximidade a acalmava. Quando ele a tocava, conseguia acreditar que o que o deus dizia tantas vezes era a verdade: que tudo acabaria bem.

Relutante, Apolo terminou o beijo, e Pamela sentiu o estômago se apertar.

— Parece que a multidão foi embora — ele comentou.

Pamela olhou para a calçada repentinamente vazia.

— Parece que eles estavam com pressa de chegar a algum lugar. Estranho. — Sentiu um arrepio levantar os pelos dos braços e da nuca. Sua intuição lhe dizia para permanecer ali, sentada no banco ao lado de Apolo, mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele já se pusera em pé.

Com um forte sentimento de resignação, Pamela concluiu que aquilo não tinha nada a ver com uma suposta intuição, mas com o fato de ela não querer que ele fosse embora.

Distraído, o deus nem sequer se deu conta da estranheza provocada pelo passeio deserto.

— Precisamos ir também — declarou, e a fez ficar de pé a seu lado, passando o braço com firmeza ao seu redor.

Caminharam devagar e, sozinhos no meio-fio, ficaram aguardando que a luz do farol mudasse do vermelho para o verde. Ainda não chegara a hora da despedida, Apolo disse a si mesmo. Ele manteria Pamela próxima por todo o caminho até o Caesars Palace, e não a soltaria até que se encontrassem diante do portal.

De qualquer modo, sua separação seria apenas temporária.

— Meu pai vai ceder — murmurou seus pensamentos seguintes ao ouvido de Pamela. — Ele já foi vítima do amor vezes demais para não conceder o nosso pedido...

— Vítima do amor ou vítima da luxúria? — indagou Pamela.

Apolo sorriu para ela.

— Para meu pai, amor e luxúria fazem parte do mesmo banquete... e Zeus adora uma festa.

Ela bufou com sarcasmo, e de um modo não muito feminino.

Apolo riu, puxando-a mais para junto dele. Não podia perdê-la.

Pamela ofereceu os lábios e, quando ele se inclinou para beijá-la de novo, a fonte ganhou vida.

Pararam, olhando um para o outro, e então o rosto de Pamela se iluminou, cheio de felicidade.

— Perfeito! — ela murmurou em meio a uma risada. — Não poderia ser mais perfeito...

Mais uma vez, Faith Hill pareceu cantar só para eles.

— É o melhor dos presságios. Tudo vai ficar bem — Apolo afirmou, alegre, e virou-se para assistir à dança das águas.

Como se atraído pela música, o deus caminhou até o parapeito. Havia algo no ar... algo em que ele sentia um toque imortal. Tinha que ser um presságio enviado por Zeus.

Olhando por cima do ombro, sorriu, feliz, e fez um sinal para que Pamela se juntasse a ele. Ela sorriu de volta e acenou com a cabeça, mas ficou onde estava, apenas por mais um instante. Apolo olhava as águas cintilantes conforme estas esguichavam para o ar ao ritmo da canção mágica. Era tão maravilhoso que aquele deus magnífico, de alguma forma, fosse a outra metade de sua alma!...

De repente, Pamela acreditou piamente que ele faria tudo dar certo. O Deus da Luz era sua alma gêmea, e ele encontraria uma maneira de voltar para ela.


...It’s...ahhh...impossible! This kiss! This kiss!

Unstoppable! This kiss! This kiss!


Pamela levantou o pé para dar um passo adiante e captou um flash de movimento pelo canto do olho. Franzindo a testa, virou a cabeça a tempo de ver o carro... mas não a tempo de sair de seu caminho quando este invadiu o meio-fio e se chocou contra seu corpo.

Cheio de esperança, Apolo sorria para as águas quando escutou a horrível freada. Encantado que estava pela fonte e pela música, o som lhe pareceu distante.

Confuso, ele se virou para ver o que estava atrasando Pamela e, num horror indizível, assistiu quando a besta de metal atingiu o corpo frágil.

— PAMELA! — gritou.

O impacto a arremessou em direção à rua movimentada, direto para o tráfego em sentido contrário. Freios rangeram, motoristas desviaram, batendo em outros carros, enquanto tentavam, sem sucesso, não atropelá-la.

Apolo avançou. Desviando-se de carros e pessoas, seguiu a trilha sangrenta até onde ela finalmente havia parado, em um monte disforme, a meia pista.

Soltando um grito de puro desespero, ele caiu de joelhos a seu lado e puxou o corpo quebrado para os braços. Cintilando com as lágrimas, seus olhos se voltaram para a bola de fogo que ainda pairava baixo no céu.

— Deixe o firmamento! — ordenou ao sol minguante. — Devolva-me os meus poderes!

Pamela não sentiu nada; apenas que algo estava errado. Como se tivesse despertado em um quarto escuro, em uma cama estranha, os quais ela não conseguia ver e, por isso, não conseguia se orientar.

Então ouviu um grito que pareceu rasgar sua alma.

Sabia que era Apolo. Tentou abrir a boca e chamá-lo, contudo seu corpo não se encontrava mais sob seu controle.

Lutou contra a sensação, porém seus olhos se fecharam um instante antes do pôr do sol.

Apolo soube o exato momento em que Pamela morreu. Foi um momento antes de a dor em sua mão desaparecer e de o poder imortal preencher seu corpo. Em pânico, ele a deitou no pavimento e colocou as mãos em seu peito ensanguentado.

— Viva! — ordenou o Deus da Luz, embora soubesse que era tarde demais. Mesmo com seus poderes imortais, não poderia redefinir o tempo. Não podia desfazer o que já estava feito. — Não... — Suas lágrimas se mesclaram ao sangue de Pamela. — Não! — gritou.

— Alguém chame o 911!

— Oh, meu deus! Chamem uma ambulância!

— Há algum médico aqui?!

Apolo ouviu os gritos dos mortais ao seu redor. Eles viriam tomá-la dele.

— NÃO! — gritou sua ira. Pondo-se em pé, estendeu os braços. — SILÊNCIO! — Sua ordem disparou como uma flecha na direção da crescente multidão, formando uma parede de energia que ensurdeceu e emudeceu os mortais, transformando-os em boquiabertas estátuas.

O Deus da Luz olhou para o seu amor caído, então.

— Não... — Desta vez ele sussurrou a palavra. — Não vai ser assim... — decidiu, em seguida.

Precisava fazer aquilo. Se hesitasse, seria tarde demais. Independentemente das consequências, aquele era o único caminho.

Estendeu as mãos sobre o corpo de Pamela.

— Venha para mim... Eu ordeno que não se afaste deste reino.

Sob as mãos estendidas de Apolo, o corpo de Pamela começou a brilhar, em seguida uma esfera de pura luz surgiu e pairou entre as palmas do deus.

— Apolo!

Ele ouviu o grito atrás dele e, mantendo o globo de luz entre as mãos, virou-se. Como uma fada, Ártemis passou pelo carros trombados e pelos mortais congelados e silenciosos, até que chegou perto o suficiente para ver sobre quem o irmão se avultava e o que pairava entre seus dedos. Soltou uma exclamação e levou as mãos à boca.

Movendo-se com uma velocidade surpreendente, Eddie correu para se postar a seu lado. Enquanto sua mente tentava dar sentido à cena diante dele, toda a cor drenou do rosto do escritor.

— Não devia tê-lo poupado do meu encanto! — Apolo rosnou.

— Eu não sabia... Não pensei que... Oh, meu irmão! O que você fez? — Ártemis olhou do corpo de Pamela para a luz pulsante que ele segurava com possessividade.

— Cheguei tarde demais — Apolo falou, alquebrado. — O sol chegou tarde demais. Eles a mataram.

Ártemis se aproximou do deus devagar, como se ele fosse uma das criaturas selvagens de seus bosques.

— Mas... o que está fazendo? Está segurando a alma imortal de Pamela.

Apolo embalou a luz junto ao corpo.

— Eu não vou perdê-la!

— Apolo... — começou Ártemis.

— Não! Eu não vou perdê-la! — O grito do deus fez um relâmpago cortar o céu. — As leis do Universo que se danem! Sempre ouvi dizer que o amor é a força mais poderosa do Universo. — Seu olhar transtornado se voltou para o atordoado autor. — Você é um bardo neste mundo... Não é isso o que proclama?

Incapaz de encontrar palavras para articular, E. D. Faust só fez concordar com um gesto de cabeça.

— Por isso eu digo que meu amor por ela se sobrepõe às Leis do Universo!

— Apolo, não pode mantê-la assim. Sua alma imortal não descansará neste reino. Você sabe disso! — ponderou Ártemis.

— Eu não vou mantê-la neste reino.

Os olhos da deusa se arregalaram quando ela compreendeu por fim.

— Hades!

— Ele saberá o que fazer. Ele tem que saber o que fazer! — afirmou Apolo.

— Sim. — A voz da diva falhou. — Vá até seu amigo, meu irmão. Tomara ele tenha uma saída... Para vocês dois.

Com uma expressão atordoada, como se só então tivesse se dado conta da extensão do que seus poderes haviam causado, Apolo olhou para os carros amassados e para as pessoas paralisadas.

— Vou arrumar isto tudo — prometeu Ártemis. — Vá. Pamela precisa de você.

— E quanto a Zeus?

— Vou comparecer diante de nosso pai. Foi por minha causa que veio para este reino. Fui eu quem deu início a isto tudo... portanto devo terminar o que comecei.

Apolo sacudiu a cabeça.

— Não foi você, Ártemis. Foi culpa das Parcas. Pamela e eu estávamos destinados a cumprir nosso destino.

— Se é assim, deve levá-la para o Submundo e pedir a Hades que o ajude.

— Obrigado, minha irmã... — A voz dele perdeu força.

Ainda segurando a alma brilhante, o deus se deslocou por entre os carros com uma velocidade impossível de ser acompanhada por olhos mortais, direto para o Caesars Palace, onde o portal os aguardava.

Com passos pesados, Ártemis se aproximou do corpo de Pamela.

— Como algo tão forte podia ser guardado em uma concha tal frágil? — A deusa olhou para a amiga com lágrimas banhando as faces.

— Meu coração estava certo o tempo todo... — murmurou Eddie com reverência. Aproximou-se da deusa e, uma vez a seu lado, caiu sobre um joelho. — É mesmo a deusa Ártemis.

— Sim — ela confirmou, pousando a mão no ombro do escritor delicadamente. — Mas não me sinto como uma deusa. Sinto-me como uma mulher que acaba de perder uma grande amiga. — Ártemis respirou fundo e deixou escapar um soluço. — Olhe para ela, Eddie... Está toda quebrada.

Por um momento, ele hesitou. Então estendeu a mão e deu um tapinha reconfortante na mão da deusa.

— Pamela não está aqui, Ártemis. Está com Apolo.

— Tem razão. Eu sei. É exatamente isso... Só que eu não tive a chance de lhe dizer nem mesmo adeus, que eu sentia muito... ou mesmo “obrigada”.

— Às vezes não se consegue dizer essas coisas — Eddie falou com serenidade. — Isso é ser mortal. Podemos apenas tentar viver nossas vidas com alegria e paixão o bastante para que, quando chegar nossa hora, deixemos para trás boas lembranças, e não arrependimentos.

— Eu não compreendia isso antes, mas agora compreendo. Creio que, a partir deste instante, por toda a eternidade, haverá uma parte de mim que sempre irá sentir-se um pouco mortal. — Ela sorriu, tristonha, para o corpo de Pamela. — E acho que será a minha melhor parte. — Num impulso, Ártemis se curvou e segurou a medalha gravada com a imagem de seu irmão, a qual continuava pendurada no pescoço de Pamela. Com um só movimento dos dedos, a corrente se soltou e se agrupou em sua palma. — Apolo deve querer que eu guarde isto para ela. — Fechou a mão, e a medalha desapareceu. Em seguida, a deusa se ajoelhou ao lado do corpo da amiga.

— O que vai fazer? — Eddie perguntou.

— O que eu puder — decidiu Ártemis. Então levantou as mãos e começou a brilhar como a luz branca e fria de uma lua cheia. — Adeus, minha amiga... — murmurou enquanto passava as mãos luminosas por baixo do corpo de Pamela, movendo, arrumando, fazendo o que podia para endireitá-lo.

Quando a luz se apagou, o corpo fraturado da mortal fora substituído pelo de uma bela corça.

Cansada, Ártemis se pôs de pé.

— Caminhe comigo, Eddie. Devo voltar e enfrentar meu pai.

— Claro, minha deusa.

Passando o braço delicado pelo dele, o escritor a conduziu cuidadosamente para longe do corpo tombado da corça.

Tinham quase chegado à calçada quando Ártemis parou de repente. Farejando o ar como uma criatura da floresta, virou a cabeça e estreitou os olhos. O carro estava destruído. Sua frente se curvava para dentro e havia claras marcas de sangue onde este atingira o corpo de Pamela.

A deusa se aproximou e olhou dentro do automóvel. A mulher congelada pelo encanto de Apolo tinha ambas as mãos ao volante. Presa ao assento pelo cinto, ela não se ferira, entretanto seus olhos estavam arregalados e cheios de um indizível terror. Ártemis respirou fundo. O corpo da mortal cheirava a bebida, mas não a qualquer uma. Seus sentidos aguçados reconheceram o cheiro doce da ambrosia, mesclado ao da luxúria, do desespero e do vício.

A marca do Deus do Vinho estava lá. Não tão evidente quanto a de seu vínculo com Pamela, e sim mais disfarçada... porém não menos contundente.

Ártemis fechou os olhos contra a intensidade da ira que a assaltou. Baco iria pagar por aquilo!, prometeu a si mesma. Ela mesma o obrigaria a isso.

Quando abriu os olhos, viu Eddie observando-a com atenção.

— Sabe quem causou tudo isso?

— Sei — admitiu com voz contida.

O rosto de Eddie endureceu com a raiva.

— Então faça-o pagar por isso, deusa.

— Eu farei, meu guerreiro. Eu farei.

Decidida, Ártemis se virou para a carnificina que a inveja e a malevolência tinham causado e ergueu as mãos. Com a voz ampliada por seu poder imortal, a bela deusa fez suas palavras ecoar por toda Las Vegas enquanto acalmava, curava, e depois eliminava os últimos vestígios de feitiço malévolo de Baco.

— Que seus espíritos pairem livres esta noite. Nenhum outro morrerá. A corsa será o milagre que eles virão, embora não saibam como nem por quê. Sobre suas almas imortais minhas bênçãos haverão de descer, lavando suas memórias, aliviando sua dor.

Ártemis baixou as mãos, e um pandemônio se fez em torno deles.

— Dá pra acreditar?!

— É um cervo!...

Gritos preencheram a noite conforme as pessoas corriam para a rua, e o som de uma sirene de ambulância se aproximava a distância, num lamento.

Em meio ao caos, Ártemis se apoiou no braço de Eddie, e os dois se afastaram, sem ser vistos, em uma bolha poderosa de serenidade imortal.

— Fez uma boa ação, minha deusa. — Eddie afagou-lhe a mão enquanto seguiam seu caminho até a calçada que levava à entrada principal do Caesars Palace.

Ártemis sorriu para ele.

— Obrigada. — Então inclinou a cabeça, pensativa.

— Deusa? — indagou o autor.

— Eddie, talvez eu não possa mais voltar para cá. O Olimpo vai considerar estes eventos por demais preocupantes.

— Compreendo. — Ele hesitou, permitindo que a fachada de autor excêntrico cedesse, e exibiu nos olhos sua desolação. — Desde o início eu sabia que não ficaria comigo. Independentemente disso, eu me permiti amá-la... e não me arrependo um só instante dessa escolha. Vou levá-la na lembrança, e junto ao meu coração, enquanto estiver respirando.

— Talvez haja uma maneira de levar mais do que apenas a minha lembrança junto ao coração... — articulou a deusa devagar.

Os olhos do autor se arregalaram, surpresos.

— Já ouviu falar de um reino chamado Tulsa, em Oklahoma, Eddie?...


Capítulo 33


— Hades! — A voz de Apolo sacudiu as paredes do Salão Nobre do Senhor do Submundo.

O Deus da Escuridão se precipitou para a sala do trono, seguido de perto pela esposa.

— Apolo? — Hades quase não reconheceu o amigo, que nada tinha a ver com as roupas estranhas e respingadas de sangue, ou com a brilhante esfera de luz que agarrava junto ao peito. O olhar ensandecido também era estranho ao que ele conhecia do Deus da Luz.

— O que aconteceu?!

— Eles a mataram... Os monstros de metal... Eu não pude detê-los!... Não cheguei até ela a tempo. — Respirando pesadamente, Apolo falava em curtas rajadas.

A esposa de Hades saiu de trás do marido. Dentro do corpo imortal de Perséfone, Carolina sentiu a alma estremecer conforme compreendeu de imediato.

— Esta é Pamela — falou, os olhos fixos na esfera brilhante de luz.

— É a alma de uma mortal moderna?... Trouxe a alma de uma mortal moderna aqui?! — exclamou Hades.

— Claro que ele trouxe! — cochichou Lina. — O que mais ele poderia fazer?

— Precisa me ajudar a fazer isso direito! Tem que trazer Pamela de volta!

Os olhos perspicazes de Lina se ativeram ao Deus da Luz.

— Já chega dessa conversa. Ela ainda é Pamela, e provavelmente a está assustando. — Ela olhou de volta para onde o marido se encontrava. — Precisa recebê-la, meu amor.

O Senhor do Submundo moveu-se com relutância. Estendeu a mão, mas, antes de tocar a luz, seu olhar capturou o de Apolo.

— Não é aconselhável mexer com as Leis do Universo, meu amigo.

— Ela é minha alma gêmea — afirmou Apolo.

O Deus da Escuridão assentiu com um gesto de cabeça, tristonho.

— Então, vamos torcer para que as Parcas sejam compreensivas. — Tocou a esfera brilhante com a palma da mão. — É bem-vinda ao meu reino, Pamela.

A luz tremeluziu e se alongou. Com um som muito parecido com um suspiro, tomou forma, assumiu características, até que Pamela se viu em pé nos braços de Apolo. Seu corpo ainda carregava uma ligeira luminescência, porém ela agora tinha uma aparência surreal, meio transparente, como se fosse uma aquarela inacabada de si mesma.

Com um soluço, Apolo a abraçou com força. Pamela estava fria, parecia muito frágil, e ele temeu que ela pudesse flutuar caso ele afrouxasse o abraço.

Pamela não se moveu, tampouco falou.

— Pamela! — Apolo falou chorando. — Sou eu... Estou com você agora. Vai ficar tudo bem.

Um arrepio sacudiu o corpo quase etéreo.

— Apolo?

— Sim, meu doce! — Ele pressionou o rosto no cabelo macio.

Pamela se afastou dele e olhou ao redor, confusa. Viu que estava em uma enorme sala de mármore na companhia de Apolo, de uma linda mulher e de um homem alto e moreno.

Em seguida, seu olhar baixou para o próprio corpo e seu rosto perdeu a cor com o choque.

— Diga-me que isto é um sonho, Apolo. Diga-me que muito em breve eu vou acordar! — falou com voz trêmula.

— Não posso — ele respondeu, combalido.

— Pamela... — A voz de Lina soou suave como uma lagoa quente e tranquila. Cuidadosa, ela tocou o espírito recém-desencarnado no braço. — Sou Carolina, mas pode me chamar de Lina se quiser. E este é meu marido, Hades.

Os olhos de Pamela pareceram ainda mais enormes e redondos no rosto pálido.

— Hades? — ela sussurrou. Apática, levantou a mão translúcida e olhou para ele. — Estou morta e vim para o... — Seus olhos voaram para o Deus da Escuridão, e ela entreabriu a boca como se fosse gritar.

— Está em Elysia — explicou Lina com um sorriso gentil. Então pegou a mão que Pamela ainda segurava diante do rosto e a envolveu com seu calor, desejando que os poderes imortais que descansavam dentro do corpo de Perséfone a consolassem. — Mais especificamente, está em nosso palácio, às margens dos Campos Elíseos. O Submundo é um lugar muito bonito, querida. Não há nada aqui de que precise ter medo.

— Submundo? — Balançando a cabeça, Pamela olhou para Apolo.

— Por que estou no Submundo Grego?!

— Eu não sabia mais o que fazer. — Os olhos de Apolo imploraram para que ela o compreendesse.

— Não... — sussurrou Pamela. — Não, não pode ser!

— Você morreu antes do pôr do sol, e eu não podia fazer nada para salvá-la. Por favor, perdoe-me! Eu não podia deixá-la partir. Jamais!

Pamela continuou balançando a cabeça e olhando para ele.

Logo depois se lembrou. Viu o carro vindo em sua direção, e foi como se sentisse mais uma vez o impacto mortal.

Com um movimento espasmódico, saiu dos braços de Apolo e o fitou com olhos enormes.

— Não sei o que podemos fazer agora — ele murmurou, perdido.

— Bem — Lina falou com naturalidade —, o próximo passo é você ir com Hades e tirar essas roupas sujas de... — ela fez uma pausa e reformulou a frase: — ... roupas que não estejam tão sujas. Enquanto fizerem isso, vou mostrar os arredores a Pamela. Vão andando... — Ela capturou os olhos do marido e ergueu as sobrancelhas. — Nós ficaremos bem.

— Eu não vou me demorar. — Apolo tranquilizou Pamela.

Ela o fitou, como se em transe, enquanto observava-o deixar o salão na companhia de Hades.

Lina continuou segurando a mão fria de Pamela. Gentil, levou-a na direção de uma enorme porta incrustrada com prata, do outro lado do salão. O espírito recém-desencarnado a seguiu com resignação.

Após atravessarem o portal, elas adentraram um corredor largo, repleto de lustres de cristais. Lina virou para a direita e, em seguida, para a esquerda. Grandes portas de vidro se abriram sem que elas as tocassem, e as duas mulheres saíram para um pátio incrivelmente bonito, cheio de estátuas de mármore, com uma fonte enorme e flores em diversas nuances de branco.

Apesar do pânico que lhe embotava o raciocínio, a designer dentro de Pamela percebeu a beleza que a rodeava.

— É fantástico, não é? — comentou Lina. — Adorei este lugar desde o primeiro momento em que pus os olhos nele.

Pamela olhou para a moça e piscou como uma sonâmbula lutando para despertar.

— Você não é um deles, é?

— Não — Lina negou com um gesto de cabeça, fazendo os cabelos castanhos dançar em torno da cintura delgada. Então sorriu e apontou para o próprio corpo.

— Isto é de um deles, mas isto... — colocou a mão sobre o coração — ... é muito mortal. Sou como você: um espírito que foi deslocado do que eles chamam “o Mundo Moderno mortal”. Venha... vamos nos sentar naquele banco. — Lina esperou até que Pamela houvesse se acomodado para continuar. — Na verdade, sou uma padeira de Tulsa. É uma longa história, mas o resultado final é que Perséfone e eu fizemos um acordo. Quando é primavera e verão em Tulsa, o espírito dela fica lá, no meu corpo, e eu fico aqui, no Submundo, com Hades. Quando é outono e inverno em Oklahoma, eu vou para lá, e ela se diverte pelo Olimpo, ou onde quer que seja, em seu corpo de deusa. — Lina sorriu. — Foi um bom negócio. Os invernos em Oklahoma são agradáveis, e o tempo em Elysia... — ela fez um gesto, abrangendo tudo ao redor — ... é sempre perfeito. Sem dizer que também há Hades, claro. — Seus olhos suavizaram-se ainda mais.

— Eu não consigo... Não sei se posso aceitar tudo isso. — Pamela passou a mão sobre a testa e deu um pulo ao ver seu tom pálido e fantasmagórico. — Não me sinto como eu mesma; nem pareço comigo!

— Eu sei, querida, eu sei. É sempre difícil quando se morre antes de se estar preparado. E com você será ainda mais difícil porque não é aqui que vai ficar... Mas prometo que será sempre bem-vinda em Elysia. Vai encontrar paz aqui. Não precisa ter medo. Basta escutar seu espírito. Ele sabe mais do que você imagina.

— Paz... — repetiu Pamela. Já não estava mais ofegante, nem sentia tanto medo.

Em meio ao choque e ao pânico, percebeu algo que lembrava um pouco a voz de Lina. Algo delicado, quente e reconfortante, como uma chuva no final da primavera ou uma sesta à tarde.

E estava no ar, ao seu redor.

Uma leve brisa soprou seu corpo espiritual, acalmando-a. Parecia sussurrar o nome dela, como uma mãe acolhendo uma criança perdida nos braços.

— Entende o que quero dizer? — Lina perguntou, estudando seu rosto.

Pamela respirou fundo e olhou para o próprio corpo outra vez. Desta vez, sua pele luminosa não a assustou. Sim, ainda era ela: seus braços, pernas e o restante do corpo.

Ergueu a mão outra vez, estudou-a... e reconheceu a alma dentro daquele invólucro transformado.

A brisa quente tornou a soprar, acariciando-a com uma aceitação e um amor quase palpáveis.

— Acho que estou começando a compreender. — Pensativa, ela passou os dedos pelo cabelo curto, percebendo apenas vagamente que era como passar a mão através de uma névoa fria. Virou-se no banco, de modo a ficar de frente para Lina. — Eu acredito que possa encontrar a paz aqui, mas e quanto ao amor?

— Você já sabe a resposta, Pamela. Ainda ama Apolo?

— Claro — ela respondeu sem hesitação.

Lina sorriu.

— Porque o amor é uma das poucas coisas que podemos levar conosco.

— Mas e quanto a... — Pamela tornou a levantar a mão semitransparente. — Não sou mais como era antes.

— Não, não é mais a mesma, contudo seu espírito tem forma e sentimentos. O resto é com você e Apolo...

— Não seria como fazer amor com um fantasma para ele? — Pamela indagou, combalida.

Lina segurou-lhe a mão mais uma vez.

— Prefiro pensar que isso, sim, é amar a pessoa em sua essência.

— Então estou morta. — Desta vez, quando disse isso, Pamela não sentiu o coração fraquejar. Não se sentiu como se precisasse acordar de um pesadelo.

Os pensamentos se alternavam em sua mente. Preocupou-se com o irmão, com os pais e com Vernelle, porém sua preocupação assumiu um caráter distante, literalmente de outro mundo; como se ela estivesse se recordando de um sonho doce e recorrente. Não que ela os tivesse esquecido ou deixado de amá-los. Apenas se sentia à parte da vida que tinha conhecido.

Perguntou-se se aquilo era algum tipo de mecanismo de defesa inato da alma para impedir que o espírito ficasse se consumindo por toda a eternidade por aqueles que havia deixado para trás.

Eternidade... Ainda era incompreensível.

— Estou morta, mas ainda sou eu.

— Sim, querida, e você vai ficar bem — afirmou Lina. Depois ergueu o olhar e sorriu. — Aí vêm os nossos deuses.

Hades e Apolo caminhavam em sua direção através do pátio florido. O Deus da Escuridão estava com a mão no ombro do amigo e falava com ele, enérgico, enquanto andava. Apolo acenou com a cabeça em resposta, mas, quando viu Pamela, sua atenção se voltou completamente para ela, e ele correu até onde as mulheres se encontravam sentadas.

Parou ao lado do banco.

— Parece tão mal quanto estava logo após a cobra tê-lo picado — comentou Pamela. — Sua mão não está doendo mais, está?

— Não — ele afirmou e quase riu. — Não há mais nenhuma lesão em meu corpo. — Passou os dedos de leve pelo rosto delicado. — É você de novo, doce Pamela?

— Sim, acho que sim. Sinto-me diferente, mas ainda sou eu. Talvez mais do que sempre fui... — ela completou com uma voz marcada pela perplexidade.

— E me perdoa por ter roubado sua alma e tê-la trazido para cá?

Pamela estudou o rosto bonito à sua frente. Lina tinha razão. Ela havia trazido o amor consigo. E também outras coisas, como fé, esperança e perdão.

— Está tudo bem, Apolo. Eu o perdoo.

Emudecido, o Deus da Luz caiu de joelhos, afundou a cabeça em seu colo e, enquanto ela lhe acariciava o cabelo, chorou.


No Monte Olimpo, Zeus ouviu Ártemis terminar sua história. A Deusa da Caça fora implacável em sua ira, mas também fora apaixonada na defesa dos mortais modernos.

Intrigado, Zeus viu a filha enxugar as lágrimas de seu belo rosto enquanto descrevia a morte da mulher que ela afirmava ser a amada de seu irmão. Mal podia acreditar na mudança que se operara em Ártemis. A deusa nunca se importara muito com os mortais.

Verdade que ela não costumava ser cruel com eles; apenas indiferente, fria, intocável... Os mortais faziam sacrifícios pela Deusa da Caça, solicitavam sua ajuda, e Ártemis eventualmente até atendia a seus pedidos, se lhe desse na telha... Mas nunca, em todas as suas eras de existência, ele a vira chorar por uma mortal.

A diva também tinha falado do bardo que abrigara a ela e a seu irmão gêmeo com tanta dedicação, como se ela também se importasse com o tal mortal.

Fascinante.

— ... Aquela mulher pobre e fraca, que não passou de um instrumento para a morte de Pamela, estava sob a influência de Baco. Senti o mau cheiro daquele infeliz. Era como se ela tivesse passado a noite se banhando nele... O Deus do Vinho é o culpado, e não apenas pela morte de uma inocente. Ele manipulou todos os eventos que culminaram nesta triste noite. E por quê? — A Deusa da Caça se voltou para Baco, que também se postara diante do grande Zeus, onde este se encontrava sentado em seu elevado trono. — Por nenhuma outra razão a não ser inveja e despeito!

— Por retribuição! — gritou o Deus do Vinho.

— Retribuição?! — devolveu Ártemis. — Por que Pamela merecia um castigo? Ela era gentil e leal! Tudo o que fez foi amar o meu irmão e nos socorrer quando nos vimos presos em seu mundo, sem os nossos poderes!

— A punição não era para ela. Era para você e para aquele seu irmão arrogante. — Baco voltou os olhos estreitos e malévolos para Zeus. — Não percebe? Eles pensaram que podiam dominar o meu reino e nunca ser punidos por sua transgressão. Não agiram como meros visitantes, mas sim como usurpadores!

— SILÊNCIO! — ordenou Zeus, fazendo um trovão rugir no céu. — Sou eu quem deve julgar. Aproxime-se, Baco.

O deus caminhou, hesitante, até a beira do pedestal de Zeus.

— Você é meu filho, Baco, e eu o amo. Mas também é filho de sua mãe, e ela desejava o que não podia ter... Sêmele não conseguia agir com bom-senso, e isso acabou lhe custando a vida. Agora você também deseja o que não é seu. Assim como à sua mãe, eu também lhe dei uma chance de usar a razão. Em vez disso, reagiu com mentiras e com ódio. Diga-me, Baco, Deus do Vinho, o que faz quando uma de suas videiras deixa de produzir bons frutos?

Confuso, Baco piscou os olhos pequenos e olhou para Zeus de soslaio.

— Ela é podada ao final da estação, para que na próxima temporada reviva e dê bons frutos.

Zeus assentiu, solene.

— Será esse o seu castigo, meu filho. A partir de hoje, a cada final de estação, o seu corpo será enviado aos Titãs para ser desmembrado — podado — por suas poderosas águias. A cada vez que renascer, lembre-se da lição da videira morta. Pense em seus erros, aprenda com eles e dê bons frutos novamente.

Enquanto Baco gritava, aterrorizado, Zeus ergueu a mão poderosa, e o Deus do Vinho desapareceu.

Zeus se voltou para Ártemis.

— Aproxime-se de mim, minha filha.

Sem demonstrar nenhum medo, a deusa caminhou até o pedestal.

— Conte-me o que aprendeu no Reino de Las Vegas — ele ordenou.

Ártemis encontrou os olhos cinzentos e tempestuosos do pai.

— Aprendi o que é ser mortal.

— Diga-me o que isso significa, Ártemis.

— Significa que eles não são frágeis, inconsequentes; seres que vivem e morrem em um piscar dos nossos olhos. Não são nem um pouco fracos. Apenas os seus corpos mortais sucumbem. Dentro de muitos deles existem centelhas de honra e lealdade, de amizade e amor. E eles brilham tanto que, se pudéssemos vê-los como realmente são, sua luz cegaria até mesmo os deuses.

— E foi uma lição valiosa?

— Eu a levarei comigo para sempre.

— Então a aprendeu de modo mais profundo do que qualquer castigo que eu lhe poderia infligir... Você a aprendeu no fundo da alma. Não vou acrescentar nada a isso, portanto. A verdade que agora carrega em seu coração é lição suficiente. Você é livre para fazer o que quiser.

Ártemis inclinou a cabeça, mas, antes que pudesse sair da sala do trono, a voz do pai a deteve.

— Uma última coisa, minha filha. Seu irmão precisa de você. Eu lhe concedo o poder de que vai precisar para ajudá-lo... Se assim quiser.

Confusa, Ártemis inclinou a cabeça outra vez.

Mas claro que iria ajudar Apolo.

— Obrigada, meu pai.

— Não me agradeça ainda, filha. O amor é muitas vezes tão doloroso quanto é doce... Pode ir até Apolo agora.

A tristeza na voz poderosa de Zeus não lhe passou despercebida.

Assim que se viu livre da presença do pai, Ártemis fechou os olhos e se transportou para o Submundo.


Capítulo 34


— Ártemis, estou pedindo para que tente me entender e pense em uma maneira de me ajudar — implorou Apolo.

— Eu não posso! Não vou fazer isso! Não entendo por que não pode simplesmente deixar as coisas como estão... Pamela parece feliz. Por que ela iria querer que mude isso? — Ártemis puxou, irritada, uma das rosas cor de creme e perfeitas que cobriam parte dos jardins ornamentados, os quais se estendiam em camadas por trás do palácio de Hades e terminavam à beira dos Campos Elíseos. Mal havia tido tempo de conversar com Pamela, pois, assim que se materializara no Submundo, Apolo dissera que precisava falar com ela e a puxara na direção do jardim.

Agora mal podia acreditar no que ele queria dizer a ela.

Apolo suspirou.

— Ainda não conversei com Pamela a respeito. Eu queria lhe dizer o que estava pensando, primeiro, para que pudesse me ajudar a decidir o que fazer com... — A voz do deus sumiu enquanto ele andava, inquieto, de um lado para o outro do caminho à sua frente.

— ... com o insignificante fato de o Deus da Luz estar pensando em deixar o Olimpo. E para sempre!

Apolo franziu a testa.

— Não para sempre. Apenas por uma vida.

— O que decerto vai parecer uma eternidade para um Mundo Antigo que se verá desprovido de seu Apolo!

— Talvez pudéssemos falar com nosso pai. Você disse que ele não está mais aborrecido conosco. Talvez eu pudesse convencê-lo a...

— A quê? A verificar se a sua carruagem continua a fazer o sol se erguer no firmamento?... Acorde, criatura! Espera isso dele, mesmo? — Ártemis jogou o cabelo dourado para trás, tentando ignorar as palavras que a assombravam: Seu irmão precisa de você. Eu lhe concedo o poder de que vai precisar para ajudá-lo... Se assim quiser.

Agora entendia o que Zeus havia dito. Compreendia, e estava odiando aquilo tudo.

Apolo balançou a cabeça, angustiado, e passou a mão pela testa.

— Não, eu... Não sei o que fazer, irmã. Eu só quero uma chance, e esse me parece o único caminho.

Ártemis sentiu o peito se apertar.

— Pamela não faz ideia do que está pensando em fazer?

— Não, ainda não — ele admitiu.

— E quanto a Hades e Lina? Já falou com eles a respeito?

Apolo assentiu.

— E o que eles acharam desse seu plano?

— Hades disse que eu estava ficando louco. Lina compreendeu.

— Pois bem, estou mais de acordo com Hades do que com Lina!

— Eu já imaginava — ele murmurou, desanimado.

— O que esperava?!

Os olhos de Apolo encontraram os dela.

— Pensei que, talvez, minha irmã pudesse me ajudar a encontrar uma saída...

Ártemis sentiu uma pontada de dor ao tomar sua decisão. Não tinha escolha. Amava Apolo demais.

— Vou guiar a sua carruagem, meu irmão.

— Você? Mas como...

A deusa ergueu a mão delicada e perfeita, e lançou mão da arrogância para domar as lágrimas que lhe ardiam nos olhos.

— Duvida dos meus poderes?

— Não! Eu...

— Então está resolvido. — Ártemis estudou as unhas bem-cuidadas. — Eu sempre achei que aquela sua carruagem precisava ser modernizada, mesmo. É muito antiquada, muito... — estremeceu dramaticamente — ... espartana.

Apolo apenas a fitou, boquiaberto, e ela lançou-lhe um olhar severo.

— Não vai agradecer à sua irmã?

Com um grito, ele a ergueu nos braços e a fez girar no ar.

O corpo etéreo de Pamela emergiu de um dos passeios perpendiculares nesse momento.

— Maldição dos infernos ! O que está... — Ela soltou uma exclamação e cobriu a boca. Em seguida começou a rir. — Eu disse “inferno” e me assustei!... — Balançou a cabeça, os cabelos curtos se movendo como espuma do mar ao redor do rosto delicado.

Apolo sorriu e estendeu a mão para ela. Ainda rindo um pouco, Pamela segurou a mão sólida e quente em seus dedos frios.

— Como eu ia dizendo... o que está acontecendo aqui, com vocês dois? Ouvi você gritar lá da outra camada do jardim!

Apolo olhou para Ártemis, que olhou para Apolo.

— E então? — insistiu Pamela. — Ninguém vai dizer nada?

— O plano é seu. Você conta — Ártemis decidiu.

— Que plano?...

Apolo respirou fundo.

— Eu tive uma ideia. Falei com Hades e Lina a respeito, mas só agora contei a Ártemis. E os três o consideraram viável.

— Maluco, mas possível — resmungou a deusa.

Apolo sorriu com carinho para a irmã antes de se voltar para sua amada.

— Você já está aqui há tempo suficiente para saber que existem sete rios no Submundo.

— Sim. — Ela assentiu com um gesto de cabeça.

— Minha ideia tem a ver com o primeiro deles: o Rio Lete.

Pamela encolheu os ombros pálidos.

— Sei, e qual é a ideia?

— Primeiro precisa entender o Rio Lete — interveio Lina, aproximando-se pelo passeio de braços dados com o marido.

— Ele é chamado de “o Rio do Esquecimento” — explicou Hades.

Apolo balançou a cabeça, fingindo-se desgostoso.

— Não existe privacidade aqui no Submundo?... — indagou, porém foi solenemente ignorado.

— O Rio do Esquecimento. O que isso significa? — Pamela quis saber.

— Ele tem a finalidade de lavar uma alma de todas as recordações, de modo que esta possa renascer e viver outra vida — Lina explanou.

Pamela encontrou os brilhantes olhos azuis de Apolo.

— E?...

— Se bebêssemos das águas do Rio Lete, você e eu poderíamos renascer e ter uma vida juntos. Poderíamos nos casar, ter filhos e envelhecer juntos.

— Mas você não é mortal — retrucou Pamela com voz fraca, pois era como se as palavras do deus tivessem feito seu espírito alçar voo.

Viver de novo?... Amar e ter filhos... com Apolo?

— O Lete terá o mesmo efeito sobre o espírito dele — afirmou Lina. — Tudo o que Apolo precisa fazer é deixar seu corpo imortal, assim como Perséfone faz a cada seis meses.

— Mas como ele pode fazer isso? Como pode deixar de ser Apolo?

— É aí que entra Ártemis. Ela concordou em cuidar para que o Mundo Antigo não fique desprovido de luz enquanto eu estiver ausente.

— Concordou? — repetiu Pamela, olhando para a deusa.

Ártemis deu de ombros com indiferença. Em seguida, fingindo cheirar uma rosa branca como leite, curvou-se para a flor perfumada e virou a cabeça, enxugando a face úmida.

Apolo segurou Pamela pelos ombros.

— Poderíamos ambos viver uma vida mortal. E nossos filhos prosseguiriam depois de nós. Pense nisso, Pamela!

Ela sentiu-se tonta, e ficou feliz por Apolo a estar segurando com firmeza.

— Espere... — Olhou para Lina. — Não disse que o Lete apaga todas as lembranças? Se não lembrarmos um do outro, como poderei encontrá-lo? Ou Apolo a mim?

Lina sorriu e se inclinou para Hades, que passou o braço em torno dela.

— Almas gêmeas sempre encontram uma a outra.

— Quanto a isso, têm a minha promessa sagrada — concordou Hades.

O olhar de Pamela se desviou para a silenciosa Ártemis.

— Não quer que ele faça isso, não é?...

— Não quero perder meu irmão — ela admitiu.

Apolo tirou a mão do ombro de Pamela e a pousou no braço da irmã.

— Não creio que iria me perder. Acho que tomaria conta de mim. Assim como de meus filhos... e netos.

Ártemis baixou a cabeça e colocou a mão sobre a dele.

— Claro que sim, meu irmão. Quanto a isso tem meu juramento.

Apolo voltou-se para Pamela.

— Então, tudo o que resta é você concordar, minha doce Pamela.

Ela sentiu como se sua alma fosse explodir de felicidade.

— Sim! Vamos fazer isso!

Apolo virou-se para Hades e ergueu uma sobrancelha para o amigo.

— Agora?...

Hades deu de ombros, e Lina deu-lhe uma cotovelada.

— Seria perfeito ! — decretou a Rainha do Submundo.

Apolo se afastou um passo de Pamela, que ainda franzia a testa, confusa. Ergueu o queixo regiamente, e ela pensou que o deus era exatamente como no perfil estampado na antiga medalha que ele lhe dera já havia algum tempo.

Ia dizer isso a ele, quando o corpo de Apolo de repente tremeu e, em seguida, se transformou em mármore sólido, ao mesmo tempo que seu brilhante espírito o deixava.

A forma reluzente do Deus da Luz se voltou para Hades.

— Cuide bem do meu corpo... Vou precisar dele algum dia.

— Pode deixar, meu amigo.

Lina estendeu os braços, segurou-o pelo rosto com ambas as mãos e o beijou de leve nos lábios. Depois voltou para o lado do marido.

— Eu lhes desejo uma vida repleta de felicidade e alegria... Sabe o caminho, não sabe, Apolo?

O deus brilhante acenou com a cabeça.

— Não vão conosco? — indagou Pamela.

Lina sorriu para ela.

— Para isso, não vai precisar da presença dos deuses. É o tipo de coisa que as almas fazem melhor sem a nossa interferência.

— Também vou me despedir de vocês aqui — decidiu Ártemis.

Em primeiro lugar, a deusa foi até Pamela e a abraçou com força.

— Cuide bem dele por mim — sussurrou para a alma mortal que o irmão tanto amava. Então se voltou para Apolo e mergulhou nos braços brilhantes. Sem se importar com as lágrimas que agora lhe corriam soltas pela face, pressionou o rosto contra o dele. — Onde quer que esteja... Seja quem for... Saiba que o meu amor e minha bênção sempre estará com você, assim como com seus filhos e os filhos de seus filhos.

— Obrigado pela compreensão, minha irmã. E obrigado por ser a minha luz enquanto eu não puder sê-la. — Apolo beijou-lhe cada uma das faces úmidas.

— Eu te amo — declarou a Deusa da Caça conforme seu corpo se esvaecia até desaparecer por completo.


Apolo e Pamela caminharam em silêncio através dos pinheiros altos que começavam onde os jardins de Hades terminavam. Iam de mãos dadas, e seus ombros e quadris roçavam com intimidade.

Não demorou para que, em meio às árvores, começassem a capturar o reflexo cristalino da água em movimento. O rio os chamava com seu canto sussurrante e sedutor.

Inconscientemente, eles andaram mais rápido.

As árvores chegaram ao fim, e eles se viram em pé sobre um afloramento de rochas que dava para a água, a qual brilhava como joia líquida.

— Está com medo? — perguntou Apolo.

— Não — garantiu Pamela. — Você vai me encontrar. Eu sei que vai.

— Sempre — ele prometeu.

Juntos, eles se ajoelharam na beira da água. Apolo juntou as mãos em concha, mergulhou-as na água fria e as ergueu, de modo que Pamela pudesse bebê-la. Então, enquanto ela observava, afundou-as outra vez e fez o mesmo.

Em pé, tomou-a nos braços e a beijou. Conforme seus corpos espirituais se uniram, começaram a brilhar. Seus cabelos e roupas puseram-se a açoitá-los violentamente, como se eles estivessem bem no meio de uma violenta tempestade.

Apolo pendeu a cabeça para trás e riu, extasiado, e o riso de Pamela se juntou ao dele à medida que suas almas se inundavam com uma onda de amor e alegria.

Mais uma vez, o deus puxou sua alma gêmea para os braços, e Pamela enroscou o corpo luminoso no dele. Enquanto se abraçavam, seus corpos continuaram a se transformar, perdendo suas características, de modo que foi como se houvessem se fundido e se tornado um só.

De repente, a esfera incandescente explodiu, fazendo chover faíscas na água.

Do centro do gêiser chamejante, surgiram duas pequenas bolas com luzes idênticas. Elas pairaram acima do rio por um momento, aclimatando-se a seus novos sentidos. Em seguida, como se seguindo uma trilha de doces lembranças, começaram a flutuar corrente abaixo, em direção ao seu novo começo.


Epílogo


Kristin estava tão entediada que pensou que iria morrer. Desejou morrer. Poderia muito bem morrer... Que outra coisa havia para fazer?

Era típico de seus pais forçá-la a tirar aquelas férias idiotas em família. Eles não podiam tê-la deixado em casa com suas amigas Janice, Rebecca e Ruth?

Claro que não, mesmo ela tendo acabado de fazer treze anos! Não era idade suficiente para que ela ficasse em casa sozinha por duas semaninhas ...

Aquilo não fazia o menor sentido.

Por isso ali estava ela, sentada em uma praia, sozinha, enquanto o sol nascia. E por quê? Porque ninguém mais na família saía da cama antes da hora do almoço. Estava condenada a conviver com pessoas que dormiam na melhor parte do dia!

E aquele era apenas o segundo dia daquelas duas semanas de tortura que seus pais chamavam de férias.

Considerou se lançar ao mar.

Não. Ela nadava muito bem. Levaria uma eternidade para se afogar.

Kristin afundou os pés na areia branca e deixou as marolas baterem nos dedos. Talvez devesse ler um livro. Outro livro.

Passou a mão pelo cabelo curto, irritada. Ela o havia cortado poucos antes de eles partirem, e ainda não se acostumara com o novo corte. Principalmente com o modo como os fios espetavam na frente.

Suspirou. Não devia tê-los cortado. Nunca mais iria conseguir um namorado. Nunca mais!... Iria morrer solteirona.

Uma sombra bloqueou parte do sol da manhã, e ela suspirou mais uma vez. Na certa era seu irmão caçula. Perfeito.

Apanhou um punhado de areia molhada e estava prestes a jogá-lo nele quando a sombra falou.

— Oi — soou a voz estranha.

Kristin se virou e segurou a mão cheia de areia diante dos olhos, protegendo-os do brilho ofuscante do sol que nascia.

Quase desmaiou. Era um menino! Um menino lindo, alto e loiro... Devia ter uns dezesseis anos e estava sorrindo para ela.

— Oi — respondeu, tímida.

— Acordou agora ou está indo para a cama? — ele perguntou sem pestanejar.

— Acordei agora — ela respondeu, não querendo olhar para os olhos dele como se fosse uma idiota. Eles eram tão azuis quanto o oceano!

— Eu também. — Ele sentou-se a seu lado. — Prefiro as manhãs.

— Eu também! — Kristin concordou depressa.

— Minha família inteira ainda está dormindo.

— A minha também! Eles dormem demais.

— Verdade.

Kristin mal podia acreditar em como ele era... quente. Não estava sentado muito próximo, mas ela podia jurar que sentia ondas de calor vindo de seu corpo.

Quis dizer algo, mas não queria gaguejar, muito menos parecer estúpida.

— Ei, o que é isso? — ele indagou, apontando para algo que brilhava na beira da água, meio encoberto pela areia em que seus dedos dos pés estavam enterrados. Inclinou-se, quase tocando nela, e agarrou o objeto, levantando-o da areia. — Uau!! — exclamou, entusiasmado.

— Incrível! — concordou Kristin. Mal podia desviar o olhar da ofuscante medalha que pendia da corrente dourada. Ela brilhava à luz crescente e tinha o perfil de um homem estampado em sua face. Um homem lindo, com cabelos encaracolados.

— É sua — ele declarou, solene.

— Minha?... Nã-nã.

— Hã-hã! Claro que é. Estava aos seus pés, na sua praia, durante a sua manhã. É sua. — Ele abriu o pequeno fecho e colocou a corrente em torno do pescoço dela.

A medalha ficou no lugar como um pedaço de sol. Kristin a tocou e a sentiu quente.

— Viu?... Combinou direitinho — ele comentou sorrindo.

Ela pensou que fosse desmaiar. Ele era tão, tão absurdamente lindo!

— Meu nome é Kristin.

— O meu é Jordan.

— Oi, Jordan.

— Oi, Kristin.

Sorriram um para o outro, e o sol explodiu do oceano em direção ao céu da manhã.

— Ei... — Jordan comentou. — Gostei do seu cabelo.

— Obrigada — ela agradeceu, pensando que, talvez, aquelas férias de verão não fossem ser uma tortura, afinal.

Nenhum dos adolescentes notou a mulher alta e loira que os observava das sombras. Então é verdade que almas gêmeas sempre se encontram , refletiu Ártemis. Eu nunca devia ter duvidado de você, meu irmão.

A deusa enxugou os olhos e sorriu, tristonha, enquanto desaparecia, em silêncio, por detrás das palmeiras.

 

 

                                                   P. C. Cast          

 

 

 

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