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DEUSA DA PRIMAVERA - P. 2
DEUSA DA PRIMAVERA - P. 2

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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DEUSA DA PRIMAVERA - Parte II

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Capítulo 18

Lina sentiu-se como um gatinho bem alimentado, com o ­corpo naquele ponto maravilhoso entre o relax e a satisfação. Cada pedacinho de estresse fora massageado para fora de seus músculos. Sua pele se encontrava tão incrivelmente macia que, enquanto ela se esticava na chaise e mordiscava sementes de romã, passava os dedos, distraída, por toda a pele, a qual parecia sussurrar de prazer.

— Juventude, beleza e o poder de uma deusa... Perséfone tem tudo isso — murmurou, para depois olhar em volta, preocupada.

Não. Estava sozinha, assim como tinha pedido.

Após o banho e aquela fabulosa massagem com óleo, Eurídice a vestira com uma linda camisola branca e cintilante, e ela se aninhara junto à espreguiçadeira. Quando a pequena alma lhe perguntara se havia qualquer outra coisa de que ela precisava, ela respondera, sonolenta, que sua única vontade no momento era se deitar na chaise longue , beber ambrosia e comer romãs. E, depois, simplesmente dormir.

Eurídice batera palmas, como uma daquelas diretoras enérgicas dos colégios para meninas, e praticamente enxotara as pobres criadas da varanda, anunciando que Perséfone necessitava de privacidade.

E então, para a surpresa de Lina, a pequena alma havia deixado o quarto atrás das servas, alegando ter um encontro com Iapis onde trabalhariam em seus esboços preliminares do palácio... Mas prometera levar aquilo que completassem para sua aprovação na manhã seguinte.

Iapis e Eurídice novamente.

Lina puxou uma mecha dos cabelos longos e a girou em torno do dedo. Se não estivesse enganada, o interesse do daimon pela moça não era apenas amigável.

Talvez ela devesse falar com Hades a respeito.

Hades...

Pensar no deus trouxe a inquietação que borbulhava sob sua pele para a superfície, e ela serviu-se de outra taça de ambrosia. O que estava acontecendo com ele? Por que desaparecera de repente? Hades tinha deixado muito claro que estava interessado nela, e até a havia beijado.

Beijado uma ova . Ele a prendera contra a parede e a acariciara inteira!

Lembrar sua paixão a fez estremecer. Hades era a ­personificação do perigo. O Batman vivo.

Umedeceu os lábios secos e pôde jurar que ainda sentia o gosto dele.

Ou talvez fosse apenas a ambrosia. Ambos eram deliciosos.

Fechou os olhos, permitindo que seus próprios dedos a percorressem pescoço abaixo e roçassem os mamilos já intumescidos.

Soltou um gemido.

Merda!

O corpo de Perséfone era jovem, ágil e...

Abriu os olhos.

— ... Muito, muito excitável — falou em voz alta. — Ou talvez seja mais o meu do que o dela. Ou uma combinação do que acontece quando uma mulher de quarenta e três anos de idade que não faz sexo há, ela parou e contou, quase três anos é colocada no corpo de uma deusa jovem, em idade de casar. E depois ainda é tentada pelo sósia do Batman! — completou, frustrada. — Chega, Lina! Hora de se mexer.

Ela se levantou rápido demais e sentiu-se leve e com os joelhos fracos. A ambrosia tinha lhe subido à cabeça.

Bem como a outros pontos sensíveis.

Seus lábios se torceram num sorriso, e um calor aqueceu-lhe as faces.

Céus! , ela estava mal... Tentara até mesmo a chuveirada fria, e, definitivamente, esta não funcionara como ela havia planejado.

Suspirou e passou o dedo pelo mármore liso da balaustrada, pensando na ideia que Eurídice fazia de um chuveiro. Tinha sido uma experiência inesquecível que, no entanto, nada fizera para dissipar suas fantasias com o deus do Submundo. Na verdade, só havia piorado a situação. Seu corpo fora mimado, lavado, massageado, alisado... E agora ela se sentia como uma concubina preparada para o sultão.

Mas em que parte do inferno se encontrava o sultão?, ela se indagou, rindo da própria escolha de palavras.

Sacudiu a cabeça e revirou os olhos.

— Você bebeu ambrosia demais!

Pôs a taça meio vazia sobre o parapeito e começou, cambaleante, a descer a escadaria circular que ia até a base do palácio. Daria uma boa caminhada pelo jardim. Isso poderia lhe clarear as ideias e deixá-la com sono o suficiente para que ela se lembrasse de que a cama era um lugar para dormir mais do que para fazer sexo selvagem e suado com um deus belo e sombrio.

Envolta pela névoa de ambrosia, Lina seguiu caminho para o primeiro nível dos jardins do palácio. Quando chegou à entrada, ficou imóvel, totalmente imersa na visão mágica das tochas acesas. O Submundo era um lugar tão lindo! O céu continuara a escurecer, mas não era negro como na noite do Mundo Superior. Em vez disso, era de um cinza da cor da ardósia, iluminado por várias estrelas, cada uma delas aureolada com cores iridescentes que a lembravam o perolado de uma concha. O céu incomum fazia tudo parecer mergulhado numa escuridão suave, como se aquela parte do Submundo fosse um sonho bom.

— Essas estrelas são as coisas mais bonitas que eu já vi — disse para o céu em voz baixa.

— São as Híades.

Hades pareceu se materializar das sombras do jardim, e ela levou a mão ao pescoço, sentindo o coração bater ali.

— Você me assustou!

— Eu não queria fazer isso, mas estava pensando em você e, quando ouvi a sua voz, quis me aproximar.

Lina mordeu o lábio e tentou limpar a mente anuviada pelo vinho. Ele estava usando aquela maldita capa outra vez. Pior: tinha trocado o traje volumoso que usava de costume por outro, muito mais revelador. Havia escolhido se vestir de preto outra vez, mas na forma de uma túnica de couro curta, que parecia ter sido moldada para o seu peito e que terminava em painéis sobre os quadris. Por debaixo, vestia uma malha pregueada da cor de nuvens carregadas, que lhe deixava à mostra quase todos os músculos das pernas.

Lina se obrigou a erguer os olhos e encará-lo. Hades a fitava com tanta intensidade que ela sentiu os membros formigar.

— Eu também estava pensando em você. Estou feliz por estar aqui — disse e se obrigou a respirar enquanto ele se aproximava tal qual um felino.

Seu corpo era como uma fornalha, refletiu Lina. Podia sentir o calor que irradiava dele.

O deus tomou-lhe a mão, levou-a lentamente até a boca, e foi como se seus lábios a marcassem.

Hades não a soltou. Em vez disso, traçou em sua pele um caminho circular com o polegar.

O vento frio levou seu cheiro até Lina. Hades cheirava a noite, a couro... a homem. O perfume erótico e perigoso fez seu estômago se apertar e a fez pensar em peles suadas, escorregadias e nuas.

Sem refletir, ela respirou fundo e se recostou nele. Os olhos de Hades faiscaram, e a brisa, provocante, fez voar sua capa, que subiu atrás dele como um par de asas.

Lina se viu submersa na intensidade de seu olhar. Podia sentir sua paixão se inflamando. Aquele Hades não era apenas o deus inteligente e sexy que ela conhecera. Era o ser que a possuíra naquela ferraria. Ele se avultava sobre ela, poderoso, imortal, sedutor, atraente, irresistível... e um pouco assustador.

Mesmo assim, ela o queria. A presença do deus era magnética, porém sua alma mortal ainda lutou para manter algum controle.

Lina obrigou a mente a trabalhar, a se agarrar a alguma coisa; qualquer coisa que pudesse dizer a ele.

— Disse que as estrelas são as Híades? Eu não compreendo — conseguiu balbuciar por fim.

Ele tirou os olhos dos dela para fitar o céu noturno.

— Não entende porque as conhece apenas como as ninfas brilhantes que elas são no Mundo Superior. O que a maioria dos imortais não sabe é que um grupo de Híades da floresta se cansou das suas funções terrenas e implorou a Zeus para que ele as tornasse mortais. Assim, elas poderiam morrer e se livrar do fardo da imortalidade.

A voz dele era tão profunda e hipnótica como seus olhos, concluiu Lina, fitando-o, extasiada, enquanto ele narrava sua história. Hades era como uma chama que atraia sua alma inexoravelmente.

Batman. Era mesmo como o Batman.

E, com ambrosia na cabeça ou não, que mulher sensata não teria fantasias com o super-herói?

— Zeus concedeu às Híades seu desejo e, naquela mesma noite, elas adentraram o meu reino. Fiquei tão comovido com a iridescência de suas almas que comentei que sua grande beleza poderia iluminar Elísia inteira. As ninfas ficaram fascinadas com a minha ideia e vieram me fazer um pedido. Com o aval de Zeus, eu lhes concedi essa prerrogativa, e elas têm iluminado o céu noturno do Submundo desde então.

Lina obrigou os olhos a desviarem do atraente deus para olhar as estrelas que, na realidade, eram os espíritos das ninfas.

— O que está fazendo aqui, Perséfone?

A emoção na voz de Hades a fez segurar o ar nos pulmões e tornar a encará-lo. O que tinha acontecido com ele naquela noite? Como podia parecer tão poderoso e, ao mesmo tempo, tão vulnerável?

Balançou a cabeça e deu a única resposta que podia:

— Eu bebi muita ambrosia e pensei que um passeio pelo jardim ajudaria a me manter sóbria.

Hades a encarou por mais um momento, então piscou, passou a mão pelo cabelo e soltou outro longo suspiro. Devagar, as linhas tensas em seu rosto começaram a relaxar.

— Ambrosia demais? Pois, para mim, isso faz muito bem. Deixa a cabeça mais leve e os joelhos fracos.

Aliviada por ele parecer normal, Lina sorriu.

— Fico feliz em saber que não sou a única a ter essa reação.

— Uma caminhada ajuda realmente. — Hades devolveu-lhe o sorriso e se curvou, galante. — Eu ficaria honrado se me permitisse acompanhá-la.

Era o seu Hades arrojado outra vez.

Lina sorriu, fez uma reverência... e percebeu que estava vestindo apenas uma camisola de seda fina.

Engoliu em seco.

— Eu, ahn... Parece que não estou agasalhada o suficiente para um passeio noturno.

Os olhos de Hades brilharam ao percorrer o corpo coberto de seda, deixando seu rosto corado. Em um movimento fluido, ele soltou a capa e, tal qual um toureiro, girou-a para cobrir-lhe os ombros.

— Está melhor assim?

Abrigada em seu cheiro e calor, ela pôde apenas assentir em silêncio.

— Quer dizer que posso acompanhá-la?

— Claro.

Hades sorriu e a fez passar o braço pelo dele. Então a conduziu lentamente pelos jardins cobertos pela noite.

Não falaram mais. Apenas se habituaram à presença um do outro. Hades escolheu um caminho largo, que dividia os jardins, e Lina olhou ao redor, admirada. A suavidade incomum da noite do Submundo lançava um brilho mágico sobre as flores e sebes adormecidas e, apesar de muitos dos botões se encontrarem fechados, estes ainda pontilhavam de branco a paisagem.

— Ainda não me decidi se as acho mais bonitas durante o dia, enquanto estão em plena floração, ou como agora. Parecem crianças dormindo... — ela comentou, estendendo o braço para tocar um lírio branco.

Ao seu toque, a flor desabrochou completamente, e Lina reprimiu um grito. Tinha que se lembrar que era a deusa da Primavera. Não deveria ficar surpresa quando fazia brotar uma flor!

— Pronto. Agora pode decidir — Hades falou, divertido.

Lina franziu a testa.

— Não, eu não quero desgastá-las. — Pensou por um momento antes de acenar para o lírio. — Volte a dormir — ordenou.

Com um som muito parecido com um suspiro, a flor se fechou.

Lina voltou-se para Hades e o viu olhando para ela com uma expressão que não conseguiu interpretar. Antes que pudesse perguntar o que estava errado, ele pegou sua mão, a mesma que tinha tocado a flor, e, virando a palma para cima, levou-a aos lábios.

O toque quente fez o estômago de Lina se contrair. Céus! , ela queria que ele beijasse muito mais do que apenas sua mão...

Cedo demais, Hades a soltou.

— É uma deusa muito generosa.

Ela não era Perséfone, porém Hades a fazia sentir-se como se ela fosse uma deusa realmente.

Em vez de passar o braço pelo dele outra vez, Lina entrelaçou a mão na dele, e seus lábios trêmulos se curvaram num sorriso satisfeito.

Hades apertou seus dedos, e eles retomaram a caminhada.

— Eu gostaria de lhe mostrar uma coisa — ele falou de repente. — Algo muito importante para mim.

Lina o fitou, e seus olhos se encontraram brevemente. Então o deus desviou o olhar, e ela notou a linha tensa em seu maxilar.

— Se é importante para você, eu adoraria ver.

Hades relaxou e apertou sua mão outra vez.

— É por aqui...

O primeiro patamar do jardim chegou ao fim, e ele a fez descer a escada para o segundo nível. Mais cedo, naquele mesmo dia, quando ela viera colher néctar, não conseguira prestar muita atenção a nada, exceto em obter o líquido pegajoso.

Teria gostado de parar para observar as fontes e a coleção de estátuas, mas o deus apertou o passo. Obviamente, estava ansioso por chegar ao que desejava mostrar a ela.

Com a curiosidade aguçada, Lina correu para alcançá-lo.

No terceiro nível, Hades escolheu um caminho que bifurcava à sua direita e fazia algumas curvas em “S” para a lateral ­daquele jardim. Pouco a pouco, os jardins bem cuidados deram lugar a grandes pinheiros, e seu aroma acentuado a fez lembrar-se de férias e repouso.

— Adoro o cheiro dos pinheiros!

Em vez de responder, Hades pressionou um dedo contra seus lábios.

— Sshh! Eles não podem saber que estamos aqui.

Lina ia perguntar o que ele queria dizer com aquilo, porém o deus apontou para um aglomerado de pedras.

— Precisamos esperar ali atrás.

Intrigada e completamente confusa, ela permitiu que ele a puxasse para o lado enquanto se agachavam atrás das rochas pontiagudas.

— O que está acontecendo? — indagou, preocupada.

Hades mudou de posição, de modo a enxergar por cima da pedra mais próxima, e gesticulou para que ela fizesse o mesmo.

Lina olhou por cima da rocha. Do outro lado, a terra descia, íngreme até chegar à margem de um rio.

Piscou várias vezes para se certificar de que seus olhos não a estavam enganando, contudo a água continuava a mesma, brilhando como diamante líquido sob a luz mágica da noite do Submundo. Tudo estava muito quieto em torno deles, e Lina pôde ouvir a voz do rio, que ria e cantava palavras em uma língua estranha. Não entendeu o que dizia, mas o som era fascinante, e ela sentiu um súbito desejo de correr pela margem, entrar na água e imergir naquele riso contagiante.

A mão firme de Hades segurou-lhe o ombro, e seus lábios quase tocaram sua orelha enquanto ele falava baixinho:

— Não dê ouvidos ao chamado do rio.

Lina se concentrou na voz do deus e sentiu amenizado seu fascínio.

— Eu devia ter lhe avisado. O chamado do Lete pode ser muito forte. — A respiração de Hades era quente, e Lina se recostou nele.

Hades mudou de posição, colocou o braço sobre seus ombros e a puxou para a sua frente, para que ela pudesse descansar quase intimamente em seu colo.

Lina se moveu para trás, de encontro ao peito largo, e inclinou a cabeça para que ele pudesse captar seus sussurros.

— Este é o Lete, o rio do Esquecimento?

Sentiu que ele acenava com um gesto de cabeça e olhou para o rio, incrédula. Então aquele era o famoso rio que fazia as almas esquecerem suas vidas anteriores e as preparava para nascer de novo.

— Isso era tão importante para você?

— De certa forma — Hades sussurrou. — Mas há mais.

— Por que temos de ficar tão quietos?

— Os espíritos não podem saber que estamos aqui. Nossa presença seria uma distração. Para isso os mortos não precisam de nós.

Lina sentiu uma onda de excitação e procurou as margens do rio.

— Não vejo nenhum morto.

— Espere e olhe bem.

Ela se recostou no peito largo, e o deus a envolveu nos braços com firmeza. Era tão bom ficar perto dele! Um aroma de pinho pairava no ar, mesclando-se com o perfume inebriante e másculo de Hades.

Uma vez que ela não mais sintonizava com o apelo irresistível do Lete, a voz deste se tornou alegre e melódica.

Lina sentiu-se imersa em uma experiência sensorial inacreditável. Seu corpo inteiro estava excitado e ultrassensível. A mão do deus descansou em seu antebraço, e seu polegar lhe traçou círculos preguiçosos na pele. Ela estremeceu sob o toque.

— Minha capa não a está aquecendo? — Hades murmurou, a respiração morna contra seu ouvido. — Está com frio?

Ela balançou a cabeça negativamente e se virou nos braços fortes para ver seu rosto. Ele a envolvia por inteiro. Seu corpo era rijo, forte, e ele irradiava calor através do couro da túnica.

Seus braços a rodearam, então. Lina abriu a boca para dizer que era o seu toque que a fazia tremer daquela maneira e que...

— Ali! — O sussurro de Hades foi urgente. Ele se inclinou para a frente, movendo-a com ele. Apontou, e os olhos dela seguiram seu dedo.

Duas figuras se aproximavam do rio, no lado oposto. Conforme chegavam mais perto, Lina percebeu que elas estavam de mãos dadas. A água brilhante refletiu em seus corpos, mostrando serem um homem e uma mulher de idade. Eles se moviam lentamente, permitindo que seus ombros e quadris roçassem uns nos outros. A cada passo ou dois, o homem erguia a mão enrugada da mulher até os lábios e a mantinha lá enquanto ela o fitava com ternura.

Lina sentiu-se pouco à vontade espionando-os, mas ficou encantada com a adoração que demonstravam um pelo outro.

Por fim, o casal chegou à beira do rio e se entreolhou. O homem descansou as mãos sobre os ombros da mulher.

— Tem certeza? — Tinha a voz rachada pela idade e pela emoção, porém esta ainda era audível do outro lado do rio.

— Tenho, meu amor. Chegou a hora, mas nos encontraremos de novo — afirmou com segurança.

— Eu sempre confiei em você. Não vou duvidar de você agora — replicou ele.

Ao ver o homem puxar a esposa suavemente para seus braços e beijá-la, Lina sentiu os olhos se encherem de lágrimas e piscou depressa, querendo manter o foco. O casal terminou seu abraço e depois, com as mãos ainda unidas, eles se ajoelharam ao lado do rio, inclinaram-se e beberam da água cristalina.

No mesmo momento, seus corpos começaram a brilhar. Seus cabelos e roupas chicoteavam descontroladamente como se tivessem sido apanhados em uma lufada de vento.

Então começaram a mudar.

Lina engasgou enquanto observava os anos deixando o casal. Sua aparência mudou da velhice para a meia-idade, em seguida para a fase adulta, depois para a juventude, e, finalmente, os dois resplandeceram com a vibração da adolescência.

A metamorfose cessou e, atordoados, eles se entreolharam.

Em seguida, o homem jogou a cabeça para trás e gritou com alegria. Mais uma vez, puxou a mulher para os braços e ela pulou em seu colo, rindo e chorando ao mesmo tempo.

As lágrimas escorreram dos olhos de Lina. Eles deviam ser daquele jeito quando tinham se apaixonado.

Enquanto o casal se abraçava, seus corpos se tornaram cada vez mais brilhantes, até que ela precisou usar a mão para proteger os olhos contra a luz que deles emanava.

De repente, eles explodiram tal como duas estrelas, e foram caindo em uma chuva de faíscas sobre a água. A partir do centro de cada explosão, dois pontos de luz do tamanho de um punho fechado se formaram. Pairaram sobre as águas, adaptando-se aos seus novos sentidos, então se puseram a flutuar correnteza abaixo, como se carregados por uma brisa própria.

Lina ficou olhando para eles. As duas esferas de luz permaneciam juntas e tão próximas que, conforme se afastavam, parecia não haver mais distinção entre elas. O rio fazia uma curva para a esquerda, e as luzes o seguiram, desaparecendo de vista.

Ela enxugou os olhos, fungando.

— O que vai acontecer a eles? — perguntou com voz embargada.

— O que viu é a aparência das almas depois que todas as lembranças e todo o vínculo com os corpos são removidos. Os espíritos seguirão o Lete até a sua nascente. Lá eles renascerão como crianças para viver novas vidas — explicou Hades.

Lina virou-se em seu colo para encará-lo.

— Mas eles vão ficar juntos outra vez? Se eles renascem como novas pessoas, sem nenhuma lembrança de suas vidas anteriores, como podem se reencontrar?

— Almas gêmeas sempre se reencontram. Não precisa chorar por elas... A mulher falou a verdade: eles vão ficar juntos novamente.

— Promete? — A voz de Lina tremeu de emoção.

— Prometo, meu anjo. Prometo.

Devagar, e lutando contra eras de solidão, Hades envolveu com as mãos o rosto à sua frente e tomou uma decisão: tinha que tentar. Estaria perdido se não o fizesse.

Fitou-a nos olhos com o coração aos saltos e, respirando fundo, deixou os polegares enxugarem o resto das lágrimas da deusa.

— Era o que eu queria lhe mostrar e dividir com você, Perséfone: o vínculo que existe entre almas gêmeas. Sei que jamais vai se esquecer do que testemunhou aqui. O que viu pode até mudá-la, assim como me mudou.

Delicadamente, ele se inclinou para ela. Primeiro beijou-lhe as pálpebras fechadas, uma a uma, então colou a boca na sua.

O beijo começou doce e hesitante, mas, quando as mãos de Lina deslizaram ao redor de seus ombros, e ela abriu os lábios para aceitá-lo, Hades o aprofundou com fervor.

Perséfone estava ali, era uma realidade em seus braços. Desta vez ele não precisava imaginar que a tocava e a saboreava.

O desejo por ela, que ainda não fora verdadeiramente saciado, brotou dentro dele. Com um gemido de prazer, as línguas se encontraram. Perséfone estava lânguida e quente, e tinha gosto de ambrosia.

Hades deslizou as mãos para dentro da capa que a cobria, e estas encontraram sua cintura. Acariciou-lhe a curva dos quadris e, obedecendo às suas fantasias, mergulhou os dedos na seda de seus cabelos.

Percebeu a respiração dela se acelerar ao percorrer de cima a baixo o comprimento de suas coxas. A fina camisola de seda não representava quase nenhuma barreira.

Perséfone virou-se em seu abraço, de maneira que seu membro rijo ficou pressionado contra a curva de suas nádegas benfeitas.

Hades deixou escapar um som baixo e selvagem do fundo da garganta. Como vivera tanto tempo sem ela? Desejava-a com um fogo que o queimava vivo!

Sua mão viajou de volta para a curva tentadora da cintura delgada e continuou a subir, sentindo a perfeição da lateral de um seio. Em sua mente, ele vislumbrou outra vez os mamilos intumescidos e molhados com água e óleo. Com a ponta dos dedos, encontrou o botão macio e o acariciou através da seda fina.

Perséfone soltou uma exclamação. O som penetrou a névoa de luxúria que embaçava o cérebro de Hades e o fez recuar. A capa tinha sido deixada de lado, e a deusa estava praticamente sobre ele, tremendo, exposta, com os cabelos desgrenhados e os lábios vermelhos e inchados depois de seus beijos.

Por todos os deuses, o que havia de errado com ele? ­Perdera o controle sobre si mesmo? Não queria que acontecesse daquela maneira. Até mesmo um idiota inexperiente sabia que não deveria amar uma deusa no meio de uma floresta.

Soltando uma imprecação, ele se pôs de pé. Perséfone estava com pedaços de pinhas e sujeiras na camisola, e pareceu-lhe dolorosamente jovem e sedutora ao fitá-lo com um sorriso confuso nos lábios sensuais.

Hades se encheu de vergonha. Ainda queria deitá-la no chão e amá-la ali mesmo.

Balbuciando desculpas incoerentes, limpou as folhas dos pinheiros que tinham se apegado às suas vestes.

Lina suspirou. A força da paixão do deus despertara nela um desejo tão intenso, tão feroz, que chegava a ser assustador. Ao observar a luxúria se esvair do rosto de Hades e ser substituída por uma expressão que poderia ser raiva ou vergonha, ela controlou a respiração e se obrigou a raciocinar. Nunca tivera um deus por amante, mas não era nenhuma virgem, e, portanto, não devia reagir como uma.

— Não tive a intenção de trazê-la aqui para... — Ele balançou a cabeça, desgostoso, e continuou a limpar seu vestido — ... para amá-la como um bicho.

Não estava zangado, Lina percebeu com alívio, e sim, constrangido.

— Hades... — Segurou sua mão e a puxou até que os olhares se encontrassem. — Pare com isso. Eu estou bem. O que aconteceu?

— Uma deusa merece mais do que uma contenda no chão.

O sorriso dela foi lento e sensual.

— Não posso falar por outras deusas, mas eu estava gostando da contenda... — Tocou a veste de couro que ele usava. Ainda podia sentir o calor que emanava dele. — E eu não estava no chão... Estava praticamente sentada no seu colo.

Hades soltou um suspiro, e a expressão preocupada em seus olhos o fez parecer décadas mais velho. Com delicadeza, ele a tocou no rosto, e sua voz saiu rouca com as emoções contidas:

— É verdade que eu não a trouxe aqui para seduzi-la, mas descobri que não consigo manter o meu pensamento longe de você... nem minhas mãos. Que os deuses me ajudem, Perséfone, mas eu a desejo mais do que qualquer outra coisa — ele concluiu, ofegante.

— Então que os deuses ajudem a nós dois, Hades — ela emendou, rouca.

Quando seus lábios se encontraram, Lina se recusou a pensar em Deméter e no futuro.

Hades interrompeu o beijo suavemente, enquanto ainda era capaz de se controlar. Ela era tão macia e se mostrava tão receptiva! Que Perséfone o desejava, isso era evidente, porém ele queria mais do que possuir seu corpo. Queria sua alma.

Num gesto carinhoso, ajeitou a capa sobre seus ombros e a fez passar o braço pelo dele.

— A noite está esfriando. É melhor voltamos para o palácio. — Tirou-lhe uma mecha de cabelo do rosto, ciente da decepção nos olhos da deusa.

Bom , pensou. Queria que Perséfone desejasse e ansiasse por mais do que apenas seu corpo.

Ele a conduziu de volta ao caminho que os levaria ao palácio.

Os pensamentos de Lina fervilhavam. Sentia o corpo ainda ardendo, e sua sensibilidade aumentada, de alguma forma, se fundira com a incrível beleza da cena que tinha testemunhado entre aqueles dois companheiros de alma. A devoção pungente entre os amantes ficara gravada nela.

Sentiu a pulsação firme de Hades sob os dedos. Ele a trouxera até ali para testemunhar o renascimento das almas gêmeas, mas não usara isso como uma arma de sedução. Se essa tivesse sido sua intenção, ele poderia tê-la tomado lá mesmo, no chão.

Mas, não. Hades, pelo visto, queria mais dela do que apenas sexo.

Sua alma vibrou quando um alarme soou em sua mente.

Amor. Ele havia lhe mostrado sua ideia de amor.

Hades já não dissera que acreditava que os mortais sabiam amar melhor do que os deuses? Será que os deuses também possuíam almas gêmeas?

Ela não fazia ideia. Tudo o que sabia sobre imortais tinha lido sem a mínima atenção, décadas antes.

O que se lembrava bem era que os deuses antigos eram volúveis e que descartavam amantes a seu bel-prazer.

Isso, contudo, não condizia com o deus que caminhava a seu lado.

Fitou o perfil sombrio. Quem acreditaria que ela havia encontrado tal desejo e romance na Terra dos Mortos?

Como se pressentisse seu escrutínio, Hades olhou para ela, e seus lábios se curvaram num sorriso.

— Parece que tem muitas perguntas borbulhando na cabeça... Eu já lhe dei permissão para me perguntar qualquer coisa, e prometo que, daqui por diante, me lembrarei das boas maneiras e não insultarei minha convidada.

Lina sentiu-se corar. Desejava que aquela escuridão de sonho escondesse a cor em seu rosto.

Ela havia se esquecido por completo de repreendê-lo por sua retirada estratégica. Parecia ter acontecido séculos antes, e com duas pessoas totalmente diferentes.

Inclinou-se para ele, adorando a sensação do braço forte no seu, e a forma como ele também se curvava para ela, atento.

— O que assisti esta noite foi algo mágico — murmurou, comovida.

— Sim. O tipo mais perfeito de magia: a que é criada pela alma e não inventada pelos deuses.

— Os deuses não possuem almas gêmeas?

— Não. — Hades suspirou. — Almas mortais encontram seus pares naturalmente; não exigem a interferência do Olimpo.

As palavras trouxeram outra dúvida para Lina.

— Os mortos podem se apaixonar? — ela quis saber, pensando nos olhares tímidos que Eurídice começara a lançar para Iapis. — Ou apenas almas gêmeas têm a capacidade de amar após a morte?

— Você mesma pode responder a essa pergunta, Perséfone.

Lina o fitou, atenta. Entretanto o tom de Hades era educativo e não paternalista.

— Pense, minha deusa. Do que é que gosta? Do corpo ou da alma? — ele incitou.

— Se está falando em amor de verdade, e não apenas em desejo ou paixão, eu teria de dizer a alma.

O deus aquiesceu.

— O corpo é apenas um manto, uma cobertura temporária para a nossa verdadeira essência.

— Então as almas que habitam Elísia, ou mesmo seu palácio, podem se apaixonar?

— Qualquer um dos mortos pode encontrar um novo amor. — Hades franziu o cenho. — Mas, deve saber, nem todas as almas são capazes dessa emoção.

— Está falando de almas mortais ou das almas dos deuses?

Ele parou de andar e se virou para encará-la. Estavam em pé, muito próximos, e a mão dela ainda repousava em seu braço.

Hesitou antes de responder à pergunta. Então seus dedos roçaram a face delicada numa carícia já familiar para Lina.

— Não posso falar pelos outros deuses, apenas por mim. Minha alma anseia por uma companhia eterna. — Ele se inclinou e roçou os lábios nos seus. Em seguida, fez um gesto para o espaço logo atrás dela. — Parece que estamos de volta ao lugar em que começamos.

Lina olhou por cima do ombro e piscou, surpresa. Estavam parados na beirada da trilha que levava à varanda.

Sem falar, Hades envolveu-lhe o rosto com as mãos num gesto delicado, e Lina imaginou que o beijo fosse ser doce e breve.

Quando seus lábios se encontraram, contudo, percebeu que havia se enganado. Ele não teve pressa em saboreá-la, mergulhando os dedos em seus cabelos fartos e acariciando a base sensível de seu pescoço.

Ela correu as mãos pelos braços longos, mais uma vez impressionada com sua força.

Hades mordiscou seu lábio inferior antes de terminar o beijo. Sem soltá-la, falou de encontro à sua boca:

— Vai cavalgar comigo amanhã? — indagou, a voz rouca de desejo.

Com o coração disparado, Lina anuiu.

— Sim.

— Até amanhã, então. — Ele a soltou, relutante, e tirou outro fio de cabelo de seu rosto. Fez uma reverência, virou-se e se afastou.

Lina subiu os degraus da varanda e entrou no quarto com as pernas trêmulas. Conforme se largava na cama, avistou o próprio reflexo no espelho sobre a penteadeira, do outro lado do cômodo. Tinha as faces coradas e os cabelos desgrenhados. A capa de Hades havia se acumulado em torno de sua cintura, e a camisola transparente estava suja, com várias folhas de pinheiro pendendo da barra.

E, mesmo longe do espelho, pôde ver o contorno de seus mamilos intumescidos.

— Misericordioso Madre di Dio! — disse, usando a frase mais enfática de sua avó. — Você tem 43 anos de idade! E não se sentia assim desde... desde nunca! — Sacudiu a cabeça diante daquela imagem jovem e estranha de si mesma. — Nenhum homem jamais a fez se sentir como Hades... E ele quer amor eterno! — Fechou os olhos com força. — Oh, Deméter, o que eu vou fazer?


Capítulo 19

— Querida, você é uma verdadeira artista! — Lina estudou o desenho a carvão feito no pergaminho. Havia esperado que o mapa de Eurídice fosse um desenho tosco, mas, quando a pequena alma desenrolou o papel, ficou impressionada com a qualidade do trabalho. O projeto do palácio fora traçado em linhas fortes e claras, com cada setor nomeado em uma linda caligrafia.

O que mais a impressionou, porém, foi a forma meticulosa com que Eurídice havia simbolizado cada parte da construção. Para indicar a sala de jantar, reproduzira uma miniatura da linda mesa com os candelabros. O Salão Nobre fora adornado com um altar, sobre o qual ela desenhara o trono de Hades. Tinha esboçado até o pátio cheio de flores e a fonte maciça em seu centro.

— Gostou mesmo? — Eurídice perguntou, ofegante. — Não está pronto. Ainda precisa de muitos retoques, na verdade.

— Pois eu adorei. Sempre foi boa desenhista?

O rosto da moça se iluminou.

— Sim! Quero dizer... não exatamente. Meu pai não achava que desenho fosse um bom passatempo para uma moça; nem mesmo um hobby . Mesmo assim, eu costumava desenhar em segredo. Fazia o esboço de flores em áreas secas do chão com uma varinha, mergulhava uma pena de pássaro nos corantes da minha mãe e desenhava animais em trapos. — Ela sorriu para Lina, travessa. — Meu pai ficaria louco se descobrisse.

— Pois eu acho que ser artista é um passatempo perfeito para uma mulher, e eu lhe dou carta branca para desenhar quanto quiser — Lina afirmou.

— Muito obrigada, Perséfone! — A moça pulou de alegria. — Mal posso esperar para contar a Iapis. Ele também falou que eu desenhava bem e que me arrumaria outros materiais se eu quisesse continuar desenhando.

— É mesmo? — Lina ergueu as sobrancelhas sugestivamente.

O rosto já rosado de Eurídice assumiu um tom vermelho.

— Sim. Eu pensei que ele estivesse apenas sendo gentil, pois é sempre assim, mas, se você também concorda com ele, então deve ser verdade.

— Diga a Iapis que eu mandei enchê-la com materiais. Acaba de ser nomeada a artista particular da deusa da Primavera. — Lina levantou a mão regiamente a fim de tornar o anúncio oficial.

Os olhos de Eurídice se arregalaram. Num impulso, ela jogou os braços ao seu redor, abraçando-a com força.

— Você é a deusa mais maravilhosa do mundo!

Lina riu.

— Essa é exatamente a opinião que espero da minha artista particular.

— Precisa me dar uma tarefa. O que gostaria que eu desenhasse?

— Não deveria terminar o mapa primeiro?

— Isso será feito em breve. O que quer que eu desenhe? — ­perguntou, ansiosa.

Lina pensou por um momento, então sorriu.

— O narciso está se tornando a minha flor favorita... Por que não desenha um bem grande e bonito?

O rosto de Eurídice resplandecia quando ela fez uma profunda reverência para sua senhora.

— A artista está às suas ordens, deusa da Primavera.

Lina inclinou a cabeça como uma deusa, congratulando-se por ter deixado a pequena alma tão feliz.

— Vou tentar ser paciente e esperar por seu primeiro trabalho.

A pequena alma quase se esqueceu da mesura.

— Céus! A minha primeira incumbência! — exclamou, emocionada.

Duas batidas firmes soaram contra a porta do quarto de Lina. Eurídice praticamente dançava ao abri-la.

— Iapis! — Ela sorriu. — Perséfone declarou que eu sou sua artista particular!

Lina observou o daimon, atenta. Sua expressão foi calorosa e sincera ao parabenizar a moça, e seus olhos não deixaram o rosto delicado um só momento. Sua avó diria que ele estava com todo o jeito de um homem prestes a se apaixonar perdidamente.

Lina percebeu Eurídice tocando o braço do daimon duas vezes enquanto, animada, contava a novidade. A linguagem corporal da menina dizia, sem dúvida, que ela correspondia ao interesse de Iapis.

Menina não, corrigiu-se Lina. Tinha que parar de pensar em Eurídice como uma criança. Ela era uma mulher que já fora, inclusive, infeliz no casamento.

E pensar que seu atual corpo não parecia muito mais velho do que o dela!

— Senhora, posso elogiá-la por seu bom gosto em se tratando de artistas? — Iapis indagou, galante.

Eurídice pairava a seu lado, sorrindo.

— Obrigada, Iapis. Mas parece que estamos apenas começando a descobrir os talentos de Eurídice...

O daimon sorriu com carinho para a moça.

— Sou obrigado a concordar plenamente — respondeu, antes de se inclinar para Lina, discreto. — Hades espera pela senhora no estábulo. Ele pediu que eu a avisasse de que Órion encontra-se impaciente.

O estômago dela se contraiu à simples menção do deus.

— Ainda bem que estou pronta, então. Eu não gostaria de deixar um de seus temíveis cavalos esperando.

— Eles me assustam — declarou Eurídice.

— Basta enxergá-los como cães de grande porte — sugeriu Lina, e a pequena alma e o daimon tiveram que se apressar para segui-la quando ela começou a andar rapidamente pelo corredor e pelo pátio, plenamente consciente de que agora era ela quem parecia flutuar de alegria.

— Aproveitou seu banho de ontem à noite, senhora? — Iapis perguntou.

Lina ficou feliz por estar andando à sua frente. Sabia que sua expressão daria mostras de como a noite anterior tinha se tornado satisfatória.

— Sim, foi uma delícia. Obrigada.

— Perséfone disse que dormiu muito bem — acrescentou Eurídice, travessa.

Lina sorriu. Ela dormira envolta na capa de Hades, mergulhada em sonhos eróticos e sensuais.

— É bom saber — o daimon falou à moça com um suspiro. — Ainda mais depois da noite agitada que meu senhor teve. Hades não pregou os olhos.

— Devia ter lhe providenciado um bom banho, como fiz com Perséfone — comentou Eurídice.

Lina apertou o passo, deixando que a brisa suave que soprava no pátio lhe esfriasse as faces coradas. Já se sentia como uma mola contraída e pronta para se expandir. Decididamente, não precisava começar a visualizar o corpo nu de Hades sendo banhado e coberto de óleo.

Passou quase correndo pela fonte central e as lindas esculturas, e suspirou, aliviada, quando chegou aos portões de ferro forjado por fim.

— Acho que vou ficar aqui, Perséfone — Eurídice falou atrás dela, apontando para um pequeno canteiro de narcisos. — Assim posso fazer um primeiro esboço enquanto cavalga na companhia de Hades.

— E eu ainda preciso arrumar outros materiais para a sua desenhista particular — emendou Iapis, sem nunca deixar os olhos de Eurídice.

— Comportem-se vocês dois... Estarei de volta em breve — ­declarou Lina.

O casal se despediu dela de bom grado.

Quando ela olhou para trás, apenas alguns passos depois, viu os dois juntos. O riso de menina de Eurídice foi seguido por uma gostosa risada do daimon.

Lina suspirou. Precisava conversar com Hades sobre eles. Iapis parecia um bom rapaz, se essa era a expressão certa com que se referir a um semideus, mas, quais eram as suas intenções? Eurídice estava se recuperando de um mau relacionamento, sem dizer que havia falecido fazia pouco tempo... Tais fatos deviam deixá-la duplamente vulnerável.

Ou não?

De qualquer modo, ela se sentia responsável pela moça e não queria vê-la magoada. Iapis precisava agir com cautela. Eurídice tinha de ser tratada com cuidado e respeito.

Um relinchar estridente fez Lina interromper seu discurso interior. Órion estava do lado de fora do estábulo. Sua crina fora penteada e trançada com fitas da cor do luar, do mesmo tom do narciso colocado sob a parte superior de sua rédea.

Ele a avistou, ergueu o pescoço e bufou, dando alguns passos de lado para se exibir. A seu lado havia outro garanhão que poderia ser seu irmão gêmeo, exceto pelo fato de que sua pelagem escura contrastava com uma única mancha branca na testa, cujo formato era o de uma estrela torta. Os dois cavalos eram quase tão magníficos como o deus que segurava suas rédeas.

Hades fechou a cara para Órion.

— Acalme-se, seu tolo! — disse ao garanhão. — Dorado não está fazendo tanto estardalhaço.

Lina correu para se juntar a eles, tentando não se fixar na forma como os ombros do deus se avolumavam ainda mais conforme ele acalmava o corcel. Hades vestia outra túnica curta, que lhe expunha boa parte dos músculos dos braços e pernas, e a capa preta se agitava em torno dele.

Era o próprio Batman. Uma versão deliciosa do antigo Bruce Wayne, ela pensou, e tratou de lutar contra o impulso de se abanar.

— Não brigue com ele. Órion é incorrigível, mas adorável — falou, o coração palpitando. Roçou o rosto contra o focinho do cavalo quando ele a cutucou numa saudação, aproveitando para desviar o olhar de Hades. — Está feliz em me ver, não é, menino bonito?

Hades pensou que sabia exatamente como o garanhão se sentia. Ele também tinha vontade de sapatear e urrar à simples visão de Perséfone... Naquela manhã, ela trajava uma túnica de linho leve, com uma saia ampla o suficiente para que pudesse cavalgar com conforto. Quando a brisa soprava, colava o tecido semitransparente em seu corpo, delineando seus seios e a curva deliciosa de sua cintura, a ponto de fazê-lo lamentar por não ter chamado mais vento.

Observou, enciumado, enquanto ela acariciava Órion, mesmo se sentindo um idiota por ter ciúmes de um cavalo.

Dorado relinchou para a deusa, parecendo desolado. Em vez de fazer o mesmo, Hades suspirou.

— Perséfone, acho que ainda não foi formalmente apresentada a Dorado. Ele não conduz bem como Órion, mas é o mais rápido dos quatro. — Deu um tapinha afetuoso no pescoço brilhante do animal.

Lina acariciou a cabeça do garanhão.

— Muito prazer em conhecê-lo, Dorado. Então é mais rápido do que o seu amigo, hein? — comentou, lançando um olhar atrevido a Hades. — Será que Órion e eu não conseguiremos fugir de você?

Hades engoliu em seco. Apenas ficar próximo de Perséfone o fazia se sentir poderoso e impotente, quente e frio; tudo ao mesmo tempo. Provavelmente estava ficando louco.

Mas não se importava.

Deslocando-se para perto dela, de modo que as laterais de seus corpos se tocassem, devolveu o olhar provocador.

— Não, vocês não vão conseguir escapar de mim .

Lina se perdeu no olhar dele. Escapar? Imagine... Ela queria mais era entrar em sua pele.

Órion tornou a cutucá-la e relinchou. Ela riu, e a magia entre eles se desfez.

— Está bem, garoto impaciente!

— Órion não é impaciente. É ciumento — contrapôs Hades, fazendo nova careta para o animal, que o ignorou solenemente para lamber o ombro da deusa.

— Ciumento? — Lina fingiu surpresa. — Só porque acariciei Dorado? Como você é bobo... — sussurrou para o corcel.

— Não tem ideia do quanto — emendou Hades, ainda que não estivesse falando de Órion. — Venha — ele a segurou pelo cotovelo, guiando-a para a esquerda do cavalo a fim de ajudá-la a montar. — Os Campos Elíseos aguardam a presença da deusa da Primavera.

Cavalgaram lado a lado, seguindo a estrada de mármore preto. O constante ruído dos cascos dos cavalos se misturou ao canto lírico dos pássaros que chamavam um ao outro nos galhos dos ciprestes que ladeavam o caminho. O perfume dos narcisos impregnava o ar. De vez em quando eles passavam por grupo de espíritos, às vezes por uma alma solitária andando sozinha.

Mas suas reações eram sempre as mesmas. Primeiro, os espíritos recuavam, assustados, para a lateral da estrada, dando aos temíveis corcéis um generoso espaço. Só então percebiam quem os montava e se curvavam com reverência ao seu deus, embora mantendo os olhos fixos em Perséfone.

Os homens sorriam e cumprimentavam a deusa. Alguns deles até gritavam para ela.

Mas o que mais comoveu Lina foi a reação das mulheres. Quando estas se davam conta de que estavam na presença da deusa da Primavera, seus rostos se iluminavam de tanta alegria. Muitas se dirigiam a ela pelo nome e pediam sua bênção, a qual ela dava prontamente. Algumas até se atreviam a se aproximar de Órion, querendo tocar seu manto.

Lina mal podia acreditar na diferença que sua presença parecia fazer para elas. Precisava admitir: Deméter tinha razão. Por algum motivo, os espíritos dos mortos necessitavam saber que uma deusa ainda se preocupava com eles. Era uma tremenda responsabilidade, porém esta a fazia sentir-se querida e valorizada. Se apenas ficando à vista no Submundo ela conseguia espalhar alegria e esperança, então, estava muito contente por estar ali.

A princípio temia que Hades fosse ficar aborrecido ou até mesmo com ciúme por toda a atenção que ela vinha recebendo. Mas, embora ele houvesse proferido poucas palavras, sua expressão satisfeita e relaxada já falava por si. O deus sombrio se encontrava feliz já que os mortos reagiram tão bem a ela.

Eventualmente, a estrada se tornou mais íngreme. Quando eles alcançaram o topo, Lina fez Órion parar, perplexa.

— É como se alguém houvesse dividido a paisagem em duas e depois pintado um lado com tinta escura e o outro com clara! — Balançou a cabeça, incrédula, embora soubesse que não estava imaginando coisas. A estrada se estendia à sua frente como a linha divisória entre duas paisagens radicalmente diferentes. Era a coisa mais bizarra que ela já havia visto.

— Pintado de cores diferentes...— repetiu Hades. — É uma descrição um tanto apropriada. — Apontou para a esquerda, onde a terra declinava para uma vasta escuridão, rodeada por uma linha vermelha de fogo. — Este é o rio Flegetonte, que faz fronteira com o Tártaro, onde reina a escuridão. — Com a outra mão, ele mostrou o brilho à sua direita. — E lá você vê Elísia, onde a luz e a felicidade coexistem perfeitamente, e onde a única escuridão é a necessária para que os espíritos descansem em paz.

Lina tratou de acessar a memória espiritual de Perséfone:

O Tártaro , a voz sussurrou em sua mente, é a região do Submundo onde se aplica o castigo eterno. É um lugar de desespero e agonia. Apenas o mal o habita.

Era o inferno.

Lina não conseguia tirar os olhos do abismo escuro e, de repente, sentiu um calafrio. As trevas pareciam chamá-la, como gavinhas de uma criatura maléfica.

— Perséfone! — A voz nítida de Hades desviou sua atenção do vazio do Tártaro, e ela encontrou seu olhar. — Pode andar por qualquer lugar dentro do meu reino, com ou sem mim a seu lado, com exceção do Tártaro. Ali você não pode entrar, tampouco se aproximar de seus limites. O próprio campo foi contaminado pela natureza corrosiva de seus moradores.

— É terrível lá, não é? — O rosto dela estava sem cor.

— Tem de ser. Existe muito mal em todos os mundos. Acha que este deveria ficar impune?

Lina pensou sobre o mundo mortal, e trechos de notícias flamejaram em sua memória como pesadelos: o atentado em Oklahoma, os horrores praticados por homens e mulheres adultos que violentavam e matavam crianças indefesas e, claro, o 11 de Setembro e a covardia dos terroristas.

— Não. Eu não o deixaria impune — afirmou com segurança.

— Nem eu. Por isso ordeno que não se aproxime das fronteiras do Tártaro.

Lina estremeceu.

— Não quero ir para lá.

Hades relaxou sua expressão séria e apontou com um gesto de cabeça em direção ao brilho que iluminava o lado direito da estrada.

— Eu gostaria de lhe mostrar um pouco da beleza de Elísia.

Num esforço consciente, Lina deu as costas para os horrores do Tártaro, sorriu para Hades e acariciou o pescoço quente de Órion.

— Tudo o que você tem de fazer é mostrar o caminho, e nós o seguiremos.

Com os olhos brilhando, o deus sacudiu as rédeas de Dorado.

— É melhor me seguir. Afinal, está montando o cavalo mais lento.

Lina estreitou os olhos para ele e recitou na sua melhor imitação de John Wayne:

— Não devia falar do meu cavalo, peregrino... — Apontou para a colina. — Está vendo aquele pinheiro grande na margem do campo, lá embaixo?

Hades abriu um sorriso e assentiu:

— Dorado e eu vamos alcançá-lo primeiro. Ele é o cavalo mais rápido.

— Pode ser o cavalo mais rápido, mas certamente está carregando um peso morto — ela falou, brincando. — Ops! Foi um péssimo trocadilho para usar no Submundo... IAAH! — gritou, pegando o sorridente deus de surpresa.

Órion respondeu de imediato, saltando para frente e passando como um raio por Dorado, aterro abaixo.

O vento assobiava ao passar por suas faces enquanto o garanhão galopava. Lina inclinou-se sobre seu pescoço, e ele aumentou a velocidade até que ela mal via o mundo ao redor.

Logo atrás, podiam ouvir Dorado se aproximando.

— Não deixe que eles nos alcancem! — ela gritou nas orelhas achatadas do cavalo, e Órion respondeu com nova explosão de velocidade.

Passaram por uma silhueta alta e verde, o pinheiro, e Lina se endireitou na sela, vibrando com a vitória, enquanto o garanhão diminuía para um trote e empinava com um relincho antes de parar.

Com a respiração pesada, Dorado diminuiu o galope até parar a seu lado.

Lina riu alto diante da expressão no rosto de Hades.

— O cavalo mais rápido, é? Nunca subestime o poder de uma mulher com muitos recursos.

— Você roubou — protestou Hades, simulando seriedade, embora tentasse, sem sucesso, esconder um sorriso.

— Prefiro pensar que esgotei os meus recursos para ganhar.

— Eu não tinha ideia de que era tão competitiva.

— Há muita coisa que não sabe sobre mim, senhor do Submundo — ela declarou, ainda acariciando o pescoço do garanhão. — Não sou uma deusa comum.

Hades bufou, e Órion bufou de volta.

Dorado sacudiu a cabeça, e o deus deu alguns tapinhas no cavalo.

— Não se sinta mal, meu velho. Nosso dia vai chegar. — E, fingindo um sussurro, completou, mais para si do que Dorado: — Só precisamos ficar de olho nela... Essa deusa é astuta.

— Ahn-ahn — Lina concordou de pronto, e ambos riram.

— Perséfone! — chamou uma voz jovem.

Lina virou-se para ver quem era.

— Oh, é a deusa da Primavera! Eu sabia!

A figura ágil surgiu do bosque de pinheiros que cercava a adorável clareira em que os cavalos se encontravam, e logo foi seguida por várias outras, que pularam e dançaram com entusiasmo diante de Lina. O grupo todo era composto de mulheres jovens e bonitas, cujos corpos fortes e esculturais encontravam-se encantadoramente cobertos por trajes diáfanos. Se elas não tivessem aquela aparência translúcida que as distinguiam como espíritos do Submundo, Lina teria acreditado que havia ido parar em uma daquelas festas de clube das mulheres.

Hades cutucou Dorado com os joelhos para que pudesse ficar mais perto dela e falou em voz baixa:

— São virgens que morreram antes de se casar. Costumam farrear antes de beber do Lete.

Quando o grupo se aproximou, eles diminuíram o trote, esforçando-se para conter o entusiasmo das mulheres e evitar que estas chegassem perto demais dos temíveis cavalos. A alma que chamara a deusa pelo nome fez uma reverência profunda e graciosa, a qual o restante das virgens imitou. Quando se levantou, foi a primeira a falar:

— Ouvi dizer que tinha sido vista, e, com todo o meu coração, eu quis acreditar. Oh, senhora! É tão maravilhoso tê-la conosco!

Um coro de “Sim!”, “Estamos tão felizes!” seguiu-se a seu pequeno discurso.

— Obrigada. Minha visita está sendo maravilhosa — comentou Lina.

A virgem franziu o cenho.

— Veio apenas de visita? Quer dizer que vai nos deixar?

O prado ficou em silêncio, como se cada folha de grama ou árvore quisesse ouvir sua resposta.

Ela não soube o que dizer.

— Perséfone pode permanecer no Submundo por quanto tempo quiser. — A voz de Hades, rica em sentimentos, rompeu o silêncio.

Lina sentiu a pulsação se acelerar com a súbita satisfação que a invadiu depois daquelas palavras. Afastou toda e qualquer preocupação ou pudor quanto a não poder ficar e por ter de permanecer ali apenas por seis meses.

Em vez disso, sorriu para o deus, pensando em como gostaria de beijá-lo outra vez.

— Então não tem nenhuma razão para ter pressa! Venha dançar conosco! — chamou a virgem.

Lina se obrigou a desviar o olhar de Hades.

— Dançar com vocês? Mas não há música.

— Esse é um detalhe que pode ser solucionado — declarou Hades. — Nossa deusa quer música! — ordenou com um floreio, e a brisa passou a rodeá-los com um assobio estranho, que se transformou no som melódico de instrumentos musicais. Hades inclinou a cabeça gentilmente para ela. — Agora já tem a música.

— Parece que sim. — O coração dela bateu tão forte que, a despeito da melodia, todos deviam estar ouvindo.

Mas, dançar? Ela não saberia como dançar com aquelas mulheres.

— Sim! Ah, por favor!

— Agora pode dançar conosco!

— Venha brincar com a música do deus, Perséfone!

— Mas, eu... Bem... — Lina olhou em volta, impotente. — O que vou fazer com Órion?

— Vai deixá-lo aqui, comigo e com Dorado — decidiu Hades, já desmontando. Caminhou para a lateral do cavalo e levantou os braços, de maneira que ela não teve escolha senão deslizar por eles.

Hades a abraçou com força por um momento, então sussurrou:

— Dance para mim aqui em Elísia... Nenhuma deusa jamais fez isso.

Ela o fitou nos olhos, percebeu seu desejo, assim como sua vulnerabilidade, e soube que não tinha alternativa.

— Está bem.

— Meus cavalos e eu vamos esperá-la. — Ele fez uma pausa, depois acrescentou: — Ansiosamente.

— Certo. Bem — Lina alisou as próprias vestes, fingindo endireitar o que já estava mais do que assentado. — Não vai demorar muito.

— Perséfone! Já fizemos um círculo! — Uma das virgens gritou.

— Que bom... — ela respondeu, partindo em direção ao grupo.

Determinadas, as virgens haviam formado um meio círculo no meio da campina.

Lina ficou tão nervosa que se sentiu um pouco enjoada. Dançar com um grupo de virgens mortas? Estava ali algo para o que nem toda a experiência que adquirira na vida a tinha preparado.

Sentiu as mãos suadas. Aquilo não era como o encontro para a coleta do néctar. Não teria nenhum exemplo de como agir. As mulheres estavam esperando que ela lhes mostrasse o que fazer.

Se partisse para uma imitação dos solos disco de John Travolta, em Saturday Night Fever , na certa faria um papel ridículo. Não apenas Hades, como todas as mulheres saberiam que ela não era uma deusa, e sim uma fraude.

Pare com esse absurdo!

O eco em sua mente a assustou tanto que ela quase deu um grito.

Seu corpo sabe dançar. Relaxe e confie nele!

Lina olhou para si mesma. Havia se esquecido de que não vestia sua pele de quarenta e três anos de idade. Ela era jovem, flexível e estava em tão grande forma que provavelmente poderia comer chocolate Godiva sem parar por vários dias. Nem precisaria se preocupar se o zíper de seu jeans fecharia depois.

— Senhora?

Lina ergueu o olhar e viu todas as virgens a observá-la com expressões curiosas em seus rostos bonitos. Devia estar parecendo uma idiota, parada ali, olhando para o próprio corpo.

Sorriu, endireitou os ombros e começou a andar de novo.

— Eu estava apenas admirando... — olhou para baixo outra vez — ... os trevos deste campo. São lindos, não acham?

Todas as cabeças assentiram com vigor, como se ela as estivesse controlando por um painel de controle.

— É típico do nosso prado. Gostamos de trevos e gramados... coisas que crescem. Por isso eles brotam para nos agradar — a primeira virgem disse.

— Eu também gosto deles — afirmou Lina, juntando-se ao círculo.

Você começa no centro , sua voz interna comandou.

Ela respirou fundo e se colocou no meio do grupo. Então fez a única coisa que poderia pensar em fazer: fechou os olhos e se concentrou.

A música a invadiu e, no mesmo instante, Lina começou a se movimentar. Seus braços se elevaram, e ela girou em um círculo lento e preguiçoso.

A melodia era maravilhosa, sensual e feminina, e seu corpo logo se harmonizou com as notas, fazendo-a partir para passos mais complexos com suas longas e flexíveis pernas. Seus quadris ondulavam e balançavam, e seus braços traçavam imagens no ar.

De repente, não era mais uma padeira de quarenta e três anos de idade. Era uma jovem deusa. Era música.

Lina abriu os olhos.

Com os rostos iluminados, as moças a circundavam, tentando imitar seus movimentos. Eram lindas, e muitas tinham sido, obviamente, talentosas dançarinas.

Mas a diferença entre a dança das mortais e a de Perséfone era clara até mesmo para Lina. Perséfone movia-se com a graça inumana de uma deusa.

Seu coração se encheu de satisfação com o poder dentro dela. Devia ser assim que uma primeira bailarina se sentia no ápice de sua carreira, pensou: saltando, girando e soltando gritinhos de alegria.

Poderia ter dançado para sempre, mas uma das virgens tropeçou e desabou, rindo, em meio a um canteiro de trevos. As demais se esforçaram para manter a coreografia.

Lina, contudo, a consolou, e, com um movimento glorioso e um floreio, pôs um fim à apresentação.

Enquanto as moças gritavam e aplaudiam, ela fez a reverência profunda de uma bailarina.

As almas a rodearam, murmurando agradecimentos e perguntando quando ela voltaria a brincar com elas de novo.

Enquanto riam e conversavam, Lina tentou, discretamente, localizar Hades, e avistou Órion e Dorado. Eles pastavam, contentes, não muito longe do pinheiro que servira como sua linha de chegada.

Seus olhos se voltaram para a árvore. Hades encontrava-se recostado nela, os braços cruzados e o corpo relaxado.

Mas seus olhos brilhavam, cheios de calor e fixos nela, e seus lábios se inclinavam numa sugestão de sorriso. Quando ele percebeu que ela o fitava, levou a mão à boca e enviou-lhe um beijo.

A coisa mais romântica que um homem já lhe havia feito.

— Bem, senhoras, foi maravilhoso dançar com todas vocês. Temos que fazer isso de novo muito em breve, mas Hades e eu precisamos seguir em frente — falou, desembaraçando-se de seu círculo de admiradoras.

Várias delas dispararam olhares tímidos na direção do deus que aguardava, e não foi difícil perceber o teor de seus sussurros, dos quais Lina só pôde entender os nomes “Perséfone” e “Hades”.

Rindo e acenando em despedida, as virgens desapareceram em meio aos pinheiros.

Hades se afastou da árvore para encontrar Lina no meio do prado. Por um momento, nenhum deles falou.

Então ele estendeu a mão e afastou uma mecha do cabelo que caía, úmido, sobre seu rosto delicado.

— Nunca vi nada tão cheio de graça como a sua dança.

De repente, Lina sentiu-se com menos fôlego do que enquanto rodopiava e saltava com a música.

— Deve estar com sede — observou Hades.

Até o momento, ela não tinha percebido que se encontrava sedenta ou suada.

— Muito!

— Deve haver uma fonte aqui perto. — Ele pegou sua mão e começou a caminhar em direção ao lado oposto do campo. — As coisas nunca permanecem as mesmas em Elísia, mas tendem a ­refletir os mesmos elementos.

— Então, é uma espécie de fantasia mutável? — Lina perguntou, passando a mão pelos trevos que lhe chegavam até os joelhos ao final do prado.

No mesmo instante, tufos de flores brancas saltaram por entre as folhas, emanando um perfume de verão e relva cortada.

— Sim, um pouco. — Hades sorriu para ela. — Elísia é dividida em diferentes partes, mas essas partes podem se misturar e mudar de acordo com a vontade dos espíritos.

— Diferentes partes? Quer dizer , há um lugar para pessoas que foram muito, muito boas, outro para as que foram boas na maior parte do tempo, e outro para pessoas que foram apenas “boazinhas”?

O riso de Hades preencheu o campo.

— Você diz as coisas mais inesperadas, Perséfone... Não. Elísia é dividida em reinos diferentes. Um deles é para os guerreiros. O outro é aqui — ele fez um gesto, apontando ao redor —, para que as virgens venham se divertir. E existem vários outros. A nobreza fica em um deles. Outro é para os pastores ou guias espirituais. — Ele sorriu de lado, como se tivesse doze anos de idade. — Curiosamente, os pastores não gostam de se misturar aos outros.

— Quem poderia imaginar?

— Pois é.

— Então eles não podem se unir? E se um guerreiro quiser cor­-
tejar uma virgem? Mesmo o batalhador mais dedicado pode se cansar de fazer “coisas de homem” após algum tempo.

— Eles podem se unir, porém enfrentam muitas dificuldades. — Hades fez uma pausa, ponderando sobre a questão. — Mas talvez não devesse ser assim, tão difícil. Talvez eles não percebam o que estão perdendo porque estão distantes disso por tempo demais. — O deus olhou para longe, imerso em pensamentos.

— Pode fazer Elísia se reorganizar segundo a sua vontade? — Lina quis saber.

— Sim. — Hades se voltou para ela.

— Se é assim, mova o prado das virgens que dançam para perto do local de treinamento dos guerreiros, e as coisas acontecerão naturalmente.

Ele soltou uma risada.

— Tem razão.

Entraram na floresta de pinheiros e, após alguma procura, Hades encontrou uma pequena trilha. Seguiram por ela até cruzar um riacho que borbulhava, derramando-se sobre rochas lisas.

Hades deixou o caminho, então, e conduziu Lina córrego abaixo. Em seguida contornou uma curva onde a água se reunia em uma pequena lagoa de fundo arenoso, antes de seguir seu curso, jorrando ruidosamente por sobre um lado da margem rochosa.

— Para você, minha deusa, apenas o melhor em bebida e comida... — disse com um sorriso travesso.

— Vá brincando — ela respondeu, apressada em se agachar na borda da piscina natural. — Aquela dança me deixou tão sedenta que, para mim, no momento, água é muito melhor do que ambrosia!

Lina juntou as mãos para beber o líquido claro. Estava tão frio que fez seus dentes doerem.

Suspirou, feliz, e engoliu outro punhado.

Uma vez satisfeita, chutou para longe as chinelas de couro macio e deixou as pernas balançar dentro da água gelada.

Hades se reclinou a seu lado, encostando-se em um tronco caído. O vento mudou ao soprar as árvores acima deles, envolvendo-os numa nuvem de pinho e seiva. O céu místico do Submundo lançava um brilho opaco sobre tudo.

Lentes cor-de-rosa , Lina pensou, sonhadora.

— Deméter me disse que o Submundo era um lugar mágico, mas eu nunca acreditei que detinha tanta beleza — confessou. — Se os deuses realmente soubessem como é maravilhoso aqui embaixo, você teria uma porção de visitas.

Hades encolheu os ombros, parecendo incomodado.

Lina o estudou e decidiu não pressioná-lo mais.

Lembrou-se de suas palavras na noite anterior: ele queria mais do que apenas sexo dela. Ela sabia disso, mas, para que houvesse mais do que isso entre eles, precisariam conversar muito.

O problema era que estava velha demais para perder tempo com conversas adolescentes, cheias de silêncios e dúvidas não esclarecidas. Era uma mulher adulta e precisava dizer o que lhe ia na mente.

— Se não queria visitantes, por que construiu um palácio enorme, com todos aqueles quartos vazios à espera de ser preenchidos?

Hades considerou a questão. O quanto deveria revelar a Perséfone?

Não pretendia contar que nunca se envolvera com uma deusa, nem sexualmente nem de outra forma. Tampouco que tinha passado uma eternidade ansiando por algo mais do que a frivolidade que satisfazia a maioria dos imortais.

Lembrou-se da última vez em que havia visitado o Monte Olimpo. Afrodite o provocara sem nenhum pudor, e ele não correspondera. Mais tarde, ele a flagrara às gargalhadas com Atena, enquanto as duas deusas concluíam que parte de seu corpo devia estar tão morta quanto o restante de seu reino...

Pensar na maldade das palavras ainda lhe provocava uma onda de raiva. Seu corpo não se encontrava morto. Estava simplesmente ligado à sua alma, e esta exigia mais do que as atenções de uma deusa egoísta.

O que ele poderia dizer que não faria Perséfone fugir dele?

Olhou para ela, vendo-a aguardar, ansiosa, por uma resposta.

Precisava ser o mais honesto possível. Não podia mentir nem dissimular. Uma relação duradoura não podia ser baseada em falsidades.

Deu um longo suspiro.

— Às vezes me pergunto por que eu o construí. Talvez estivesse esperando que algum dia aprenderia a superar as minhas... — tentou encontrar a palavra certa — ... diferenças.

— Diferenças? O que quer dizer?

— Sempre tive dificuldades em interagir com outros imortais — ele confessou. — Deve saber que têm medo de mim porque sou o senhor dos Mortos.

Lina começou a negar, mas, então, lembrou-se da expressão de Deméter quando ela falara de Hades; da maneira como o descartara como um deus sem importância e desinteressante.

A lembrança a deixou, de repente, com muita raiva.

— Eles apenas não sabem como você é na verdade.

— E como eu sou, na verdade, Perséfone?

Lina sorriu para ele e disse exatamente o que pensava:

— Que é interessante, divertido, sexy e poderoso.

Hades a fitou por um momento, depois balançou a cabeça.

— Você é mesmo uma caixinha de surpresas.

— E isso é bom ou ruim?

— É milagrosamente bom.

Lina suspirou. Aquele era um caso perdido. Não conseguia resistir a Hades, nem queria.

— Fico feliz por isso.

— Você não é como os outros imortais — ele continuou, rouco. — Sabe como eles são... Vivem cheios de si, sempre se esforçando para superar um ao outro e nunca satisfeitos com o que têm. — Ele se inclinou para a frente e tocou-lhe o rosto com a ponta dos dedos. — Você é sincera e honesta, o que uma verdadeira deusa deve ser.

Sincera e honesta? Uma verdadeira deusa?

Lina quis que o chão se abrisse para sumir dentro dele. Ela não era uma coisa nem outra.

— Eu... Você... — balbuciou, sem saber o que dizer.

Hades não lhe deu chance de organizar os pensamentos. Inclinou-se e a puxou para os braços.

A boca de Perséfone continuava fria depois de ter bebido da fonte de água, e ele quis se afogar nela. Mergulhou na maciez dos lábios carnudos. Ah, se a tivesse conhecido antes! Como podia ter passado tanto tempo sem ela?

A deusa passou os braços em torno dele e pressionou os seios contra seu peito. Hades gemeu. Seu desejo por ela era palpitante e devastador.

De repente, ela estremeceu, gritou, e, jogando água para todos os lados, puxou as longas pernas nuas para fora da pequena piscina natural.

Pondo-se de pé em um salto, Lina correu para trás do deus, querendo que ele ficasse entre ela e a borda da água.

— Alguma coisa encostou em mim! — Sua voz tremeu quando lembranças das cobras d’água e tartarugas mordedoras de Oklahoma brotaram em sua mente.

Hades afagou a mão com que ela segurava seu ombro, tentando ordenar os pensamentos. Ainda podia sentir a pressão de seus seios contra o couro macio que lhe cobria o peito, e seu corpo ainda crescia com o desejo.

— Perséfone, nada em Elísia a machucaria.

— Ali! — Lina ficou com vergonha por a palavra ter saído num grito, mas apontou para um vulto escuro que passava sob a água. — Há alguma coisa ali...

Com um suspiro, Hades se levantou e cobriu os poucos metros até a margem. Agachou-se e olhou para dentro da água clara.

Todos os sentidos de Lina se puseram em alerta.

— Tenha cuidado! — pediu, preocupada. — Pode ser uma cobra.

Hades lançou-lhe um olhar confuso por sobre o ombro.

— Por que tem medo de cobras?

Lina torceu uma mecha grossa de cabelo em torno do dedo.

Cobras estão intimamente relacionadas a Deméter. Não deve temê-las! , sua voz interna a alertou.

— Eu sei que é bobagem, mas nunca gostei delas — disse, perturbada.

A testa do deus se franziu, contudo um respingar na piscina natural chamou sua atenção.

Lina se encolheu, não querendo ver o réptil liso e asqueroso.

Quando Hades tornou a fitá-la, um sorriso brotou em seus lábios.

— Não pode ter aversão a esta criatura...

— Também não gosto de tartarugas! — Lina acrescentou depressa, desviando o olhar da forma escura que tinha acabado de assomar à superfície. — Principalmente de tartarugas mordedoras!

Hades riu e fez um sinal para que ela se juntasse a ele.

— Venha... Você gosta de animais.

Lina não cedeu.

— Gosto de animais. De mamíferos, aves, até de peixes. Mas odeio répteis. Eu sei que soa mesquinho, mas...

Um barulho estranho, como um latido, veio da água, e Lina olhou por cima do ombro de Hades, avistando uma criatura que flutuava de costas.

Quase engasgou.

— Mas não é uma cobra!

A lontra ladrou para ela novamente, jogando água com suas adoráveis patas com membranas.

Lina correu para se juntar a Hades e se agachou a seu lado, apoiando-se nele.

— É a coisa mais lindinha que eu já vi!

— Não diga isso ao meu cavalo — ele aconselhou. — Órion acredita que é o seu favorito.

Lina o empurrou de leve com o ombro antes de se aproximar da margem para acariciar a barriga da lontra.

— Órion é o meu cavalo favorito. Este mocinho pode ser a minha lontra favorita, ora.

Ao seu toque, o animal entrou em um frenesi de ganidos e fungados, debatendo-se tanto que a água espirrou para todos os lados antes que ele nadasse até a borda e em seguida desaparecesse pela pequena cachoeira abaixo.

— Eu não queria assustá-lo!

Hades sorriu diante da expressão decepcionada da deusa e enxugou as gotas de água de seu rosto.

— Você não o assustou, meu anjo. As lontras de Elísia são conhecidas por sua timidez. Aliás, eu nunca tinha visto uma de tão perto antes. E certamente nunca as toquei.

Lina procurou pela doce criatura, tristonha.

— Não pode fazê-la voltar? Afinal é um deus...

Ele riu.

— Como um deus sábio, sei quando é melhor não mexer com a ordem natural das coisas. Sem dizer que teria mais sorte do que eu em domar esse bicho... É você a encantadora de animais, não eu.

— Não sou encantadora de nada — protestou Lina. — Eu apenas gosto dos bichos, e eles, de mim.

— Dos mamíferos — Hades lembrou, afastando um longo fio de cabelo da face perfeita.

Lina inclinou a cabeça de modo a lhe acariciar a mão.

— Então talvez eu seja o único que você encantou, sua feiticeira. — Ele esfregou o polegar no lábio carnudo.

— Eu não gostaria de encantar nenhum outro — Lina se ouviu dizendo, enquanto se inclinava para um beijo.

Quando algo a cutucou nas costas, ela não o empurrou, surpresa, tampouco gritou. Simplesmente levantou a mão e acariciou o focinho de Órion.

— Se algum desinformado acredita que o Submundo é o lugar perfeito para encontrar paz e tranquilidade, está errado! — Hades fechou a cara para o garanhão.

Órion bufou e jogou a cabeça, então se aninhou junto a Lina novamente, fazendo-a rir com a respiração quente em seu pescoço.

Ela segurou um punhado da crina sedosa, e Órion levantou a cabeça, pondo-a em pé.

Lina olhou para o deus que ainda fulminava o cavalo com o olhar. Em seguida se abaixou, pegou-o pela mão e o puxou até que ele se levantasse.

— Gostaria de ver mais de Elísia? — indagou Hades.

Ela se ergueu na ponta dos pés e roçou o rosto moreno com um beijo.

— Claro que eu gostaria de conhecer melhor o seu reino.

As palavras trouxeram a Hades uma onda de felicidade, e ele se inclinou para beijá-la rápida e possessivamente antes de erguê-la para a sela de Órion.


Capítulo 20

O dia passou, delicioso. Elísia era uma aventura sem fim, onde beleza e harmonia se fundiam à perfeição.

E, por onde eles passavam, as almas dos mortos respondiam à presença de Perséfone. Lina se viu alçada para além das palavras diante da felicidade que viu nos rostos dos espíritos, conforme se espalhou pelo Submundo que havia uma deusa entre eles.

Hades ficou a seu lado, muitas vezes conduzindo Dorado para mais perto a fim de poder tocá-la.

A reação dos espíritos à visita de Perséfone o encheu de prazer. Os mortos o respeitavam e temiam. Alguns lhe eram imensamente leais. Contudo, ele nunca tinha evocado neles tanto amor e alegria como ela.

Mas não sentia inveja do efeito que a deusa causava em seu reino. Ele o compreendia. Como não poderia? Perséfone despertara tais sentimentos até mesmo nele.

Mais uma vez, Hades se perguntou como existira por tanto tempo sem ela. Não imaginava o que aconteceria a ele ou a seus domínios se Perséfone decidisse ir embora.

A luz do dia havia minguado, e o céu começava a brilhar com as almas das Híades quando, finalmente, se aproximaram da base traseira do palácio. Hades cutucou Dorado, fazendo-o se aproximar de Órion, e estendeu a mão para segurar a da deusa.

Ela sorriu. A mão de Hades era quente e forte, e Lina ficou feliz por enredar os dedos nos dele, enquanto devaneava acerca das maravilhas do dia e entravam na familiar floresta de pinheiros.

Ao chegarem ao n ível inferior dos jardins, Hades fez Dorado parar, obrigando Órion a fazer o mesmo.

— Há uma última coisa que eu gostaria de mostrar a você esta noite, se estiver disposta.

— É claro — ela concordou de pronto.

— Mas temos que andar — ele falou num sussurro.

Lina também fez cair o tom de voz a um nível conspirador.

— O que vamos fazer com? — Apontou os dois garanhões, que mantinham as orelhas inclinadas para trás, obviamente, ouvindo a conversa.

— Deixe-os comigo.

Hades saltou de Dorado com agilidade e, em seguida, ergueu os braços para ajudá-la a desmontar. Ela deslizou de encontro a ele, amando a erótica sensação de ter um cavalo musculoso a um lado do corpo e um deus quente e rijo do outro.

Hades se inclinou e mordiscou-lhe o lóbulo sensível da orelha.

— Acho que é hora de nos livrarmos dos nossos ­acompanhantes. — Endireitou o corpo e gritou o comando para que os garanhões voltassem ao estábulo com uma voz tão enérgica que as folhas das árvores ao redor chacoalharam em resposta.

Órion e Dorado reagiram de imediato, disparando para os terrenos do palácio.

Lina ergueu as sobrancelhas.

— Estou impressionada. Não pensei que eles fossem obedecer tão rápido.

O deus torceu os lábios.

— Ficaram apenas surpresos. Eu raramente ordeno que façam alguma coisa. Na verdade, eles são bastante mimados.

— Então vão ficar com raiva de você depois.

— Provavelmente. — Hades riu e uniu os dedos aos dela. — O que eu quero mostrar fica por aqui... — Conduziu-a por um caminho que contornava a borda dos jardins, e eles caminharam ao lado de fileiras de cercas vivas, aparadas em cones. Flores dormiam junto às sebes, e Lina tomou o cuidado de não passar as mãos perto dos botões fechados.

Quando Hades deixou a vereda e entrou na linha de ciprestes que cercava aquele lado dos vergéis, ela não conseguiu conter sua curiosidade:

— Aonde estamos indo?

— A um campo não muito longe daqui. — Ele apontou adiante.

Tudo o que ela podia ver eram as árvores enormes, porém eles continuavam perto o suficiente do palácio para que o terreno ainda estivesse bem cuidado. O solo sob as árvores continuava forrado por grama e livre de silvas e entulho.

A noite na floresta encontrava-se vazia da melodia dos pássaros, e Lina começou a se sentir intimidada pelo enorme silêncio.

— O que há neste campo? — indagou num sussurro.

Hades apertou a mão dela.

— Não precisa mais falar baixo.

— Ah. — Ela ficou constrangida. Levantando a voz para um nível normal, repetiu a pergunta: — O que há neste campo, afinal?

— Pirilampos.

— Pirilampos?

O deus anuiu.

A última coisa que Hades tinha para lhe mostrar sobre os mistérios do Submundo eram vaga-lumes? Ela já vira vaga-lumes antes. Muitos deles.

Lendo sua expressão, ele sorriu, travesso.

— Aposto que vai achar esses pirilampos diferentes.

Lina deu de ombros e manteve a boca fechada. Perséfone talvez considerasse um campo de vaga-lumes único, mas seria necessário algo mais do que insetos de verão para surpreender uma garota de Oklahoma. Principalmente depois das maravilhas que ela já vira naquele dia.

— Ah, aqui está a quebra nas árvores. Cuidado com onde pisa... Precisamos atravessar esta pequena vala primeiro.

Lina se concentrou em atravessar o pequeno canal e não ergueu a cabeça até estar com os pés plantados no tal campo.

Quando o fez, seus olhos se arregalaram. O prado encontrava-se repleto de luz, mas não com o amarelo-claro dos vagalumes que ela vivia perseguindo na infância. Aqueles eram da cor do luar e...

— Narcisos! — exclamou, ofegante. — Misericordioso Madre di Dio! — Eles estão fazendo narcisos!

A risada suave de Hades revelou sua satisfação.

— Poucos testemunharam esse tipo de coisa... E então, deusa da Primavera, o que achou?

Lina olhou para o campo. Milhares de caprichosos vaga-lumes trabalhavam furiosamente, girando em torno das flores. Saindo de um tufo de folhagem verde, um grupo de minúsculos insetos formava uma espécie de enxame, depois começava a voar em uma espiral brilhante, dando voltas e voltas. De repente, como cometas em miniatura, sua cauda incandescente ganhava forma e massa, deixando para trás um narciso perfeito em plena floração.

— É incrível! É dessa forma que todos os narcisos são feitos?

— Todos os que existem no Submundo. Às vezes alguns desses grupos de vaga-lumes ficam confusos, se aproximam demais da abertura para a terra dos mortais e produzem uma flor no Mundo Superior. Mas eu tento evitar isso. Como deve ter notado, a fragrância dos meus narcisos é diferente daquela das flores do Mundo dos Vivos. Os mortais a consideram demasiado inebriante.

Lina se lembrou da noite em que havia se curvado para respirar o perfume do narciso incomum sob o carvalho.

— Imagino como isso deve causar problemas — disse baixinho.

Quando o som de sua voz penetrou a pequena consciência dos insetos, vários dos grupos mais próximos de vaga-lumes fizeram uma pausa em sua produção. Como se todos eles houvessem tido a mesma ideia, voaram até ela em uma nuvem brilhante e pairaram à sua frente, girando em círculos ofuscantes e fazendo um barulho estranho que fez Lina pensar em grilos sopranos.

— O que eles querem? — perguntou a Hades pelo canto da boca.

O deus inclinou a cabeça em sua direção, sorrindo.

— Querem que você os ajude a produzir as flores.

— Verdade? — ela indagou, sem saber o que fazer.

— Verdade. — Hades soltou sua mão. — Vá. Eu espero aqui.

Ela precisava fazer aquilo. Afinal, era a deusa da Primavera, e produzir flores, definitivamente, deveria fazer parte de seu trabalho.

Enquanto permaneceu parada no lugar, pensando no que fazer, Lina percebeu que queria muito se juntar aos vaga-lumes.

Basta tocar as flores, desejar que elas floresçam, e elas vão desabrochar, disse sua voz interior.

Respirando fundo, ela entrou no campo, e a relva se agitou de encontro às suas panturrilhas. Os pirilampos dançavam com alegria, formando estonteantes círculos ao seu redor.

Lina se aproximou de um aglomerado de verde que não era grama, tampouco flor. Hesitante, acariciou as folhas largas e achatadas com a ponta dos dedos, pensando o quanto gostaria de vê-las florescer.

Em uma explosão de luzes brilhantes que a fez se lembrar de fogos de artifício, uma flor branca e reluzente brotou do centro da planta.

Ela se abaixou e inalou sua fragrância única, rindo alto. Havia criado aquela maravilha! Uma alegria típica da juventude a invadiu. Sem pensar muito, seguiu os comandos do próprio corpo e, com um pulinho e uma pirueta graciosa, partiu para o amontoado seguinte de vegetação. Enquanto ela dançava, dando vida a flor após flor, os vaga-lumes a cercavam numa espécie de halo.

Hades permaneceu à beira do prado, enchendo os olhos com a bela visão. Como uma criatura podia ser tão linda?

Sentiu um desejo atroz de tê-la, e, por meio desse ato, finalmente fazer Perséfone sua.

E com a mesma intensidade que havia testemunhado tantas vezes nos olhos de almas gêmeas.

Perséfone girava e dançava, chamando os narcisos para a vida. Pois então não fizera o mesmo com ele?

O senhor dos Mortos, o deus que se dizia imune àquele tipo de sentimento, tinha caído de amores pela deusa da Primavera. Não importava o quanto pudesse parecer ridículo ou irônico. Havia acontecido.

E ele não queria que acabasse.

A decisão estava tomada. Desejava mais do que apenas observar fantasmas do amor... queria experimentá-lo por si mesmo.

Esfregou o peito instantaneamente, antecipando o velho e dolorido ardor, contudo este não veio. Embora Perséfone fizesse seu corpo doer e seu sangue latejar nas veias, não despertava sua revolta.

Parou de mover a mão e tentou se lembrar da última vez em que sentira a queimação no peito.

Piscou, surpreso. Fora na noite em que ele a ofendera e, em seguida, a abandonara à mesa de jantar. Nunca mais o sentira desde então.

Sorriu. Perséfone não era apenas o sopro da primavera. Era também um bálsamo para sua alma cansada. Talvez sua solidão tivesse realmente chegado ao fim.

Lina percebeu o olhar de Hades e, enquanto outro narciso brotava em flor, olhou para o ponto onde ele a aguardava. O deus continuava em pé à margem do prado, alto, sombrio e silencioso, assistindo-a com uma intensidade que fez seu sangue correr mais depressa.

Por que ele apenas observava?

De repente, ela desejou mais do que aquilo e um pensamento maravilhoso se formou em sua mente. Vinha brincando com virgens e ninfas desde que chegara... Agora era a vez de Hades.

Sorrindo, feliz, dançou até ele, deixando um rastro de brilhantes vaga-lumes pelo caminho, e agarrou sua mão.

— Vamos! Faça flores comigo!

Uma sombra de tristeza invadiu os olhos do deus.

— Sou o deus dos Mortos. Não posso criar vida.

— Se eu ajudá-lo, pode! — Lina afirmou com mais confiança do que sentia e puxou sua mão.

— Não, eu... — Hades suspirou. — Maldição, Perséfone, não consigo lhe negar nada!

E, relutante, permitiu que ela o arrastasse para a campina.

Cercados pela nuvem ofuscante de pirilampos, eles rumaram para uma das moitas. Lina o fez ficar atrás dela, então levou as mãos para trás, ao longo dos braços fortes, até juntar as mãos com as dele e fazer com que Hades a abraçasse. Abriu bem os dedos, como se tivesse acabado de arremessar uma bola.

— Entrelace os dedos nos meus — instruiu, a proximidade com ele tornando sua voz mais rouca. — Agora pense o quanto gostaria de ver esse narciso desabrochando.

Completamente vencido, Hades deixou que ela guiasse suas mãos. Desejava verdadeiramente produzir uma flor.

No entanto, desejava ainda mais poder fazer aquela deusa sua... e que ela permanecesse a seu lado para aliviar sua solidão por toda a eternidade.

Seus dedos começaram a formigar conforme a magia de Perséfone se fundiu com a dele e, perplexo, Hades viu um narciso cintilante brotar sob as mãos unidas.

Lina gritou de alegria e se virou, o rosto iluminado.

— Conseguimos!

Hades a envolveu nos braços e fitou os olhos brilhantes à sua frente.

— Conseguimos juntos, Perséfone. Eu não poderia ter feito isso sem a deusa da Primavera... Eu gostaria de encontrar palavras para expressar o prazer que sinto em partilhar meu mundo com você.

Sua voz soou grave, sua expressão era séria, e Lina se sentiu completamente perdida nos olhos escuros e profundos. Hades queria mais do que um simples beijo ou caso. Ela sabia que deveria inventar alguma brincadeira e dançar para longe dele, mas não teve forças para isso. Ansiava por estar com o deus tanto quanto este ansiava por estar com ela.

Beijou-o, pressionando o corpo no dele.

De repente, Hades interrompeu o beijo. Descansando a testa na dela, concentrou-se em controlar a respiração acelerada. Não a amaria no meio da floresta outra vez. Perséfone merecia mais do que isso. Ela merecia tudo o que ele poderia lhe dar de melhor.

— É tarde. Precisamos voltar para o palácio — disse, beijando-a na testa suavemente.

Lina o fitou, decepcionada.

— Eu não estou cansada.

— Nem eu.

— Não quero que este dia tenha fim, Hades.

— Não precisa ter. — Ele respirou fundo. — Ainda não conheceu meus aposentos... Gostaria de fazer isso?

Lina percebeu como fora difícil para Hades perguntar e sentiu o coração batendo forte. Um coração que não era verdadeiramente seu, dentro de um corpo que também não lhe pertencia...

Mas a alma era sua, disse a si mesma. Não era apenas seu corpo que o desejava. Ela amava a doçura e o senso de humor de Hades. Adorava o som de sua risada. Amava o poder e a paixão do deus, e também o cuidado e a sabedoria que ele demonstrava no trato com os espíritos em seu reino.

Tocou-lhe o rosto e admitiu a verdade para si mesma: ela o amava.

— Sim. Eu gostaria muito.

A alegria iluminou o rosto moreno, sendo logo seguida pelo desejo, e Hades se inclinou para beijá-la novamente, desta vez com mais ímpeto.

Em seguida, relutante, ele a soltou, pegou sua mão, e tomou com ela o caminho de volta.

Lina ouviu um zumbido estridente às sua costas, e ambos se viraram. Os vaga-lumes pairavam em um enorme aglomerado à margem do campo.

O deus riu.

— Perséfone voltará. Não está deixando o Submundo.

O frenético zunido diminuiu com as palavras.

— Eu adoraria voltar e fazer mais flores com vocês — assegurou Lina, e o zumbido mudou para uma alegre chilrear.

Sorrindo, ela e Hades continuaram seu caminho.

— É bom que eles gostem tanto de mim.

— Todo o meu reino a adora, Perséfone — ele afirmou.

Lina o fitou de soslaio.

— Apenas o se u reino?

O lábios do deus se curvaram num sorriso.

— Não, não apenas o meu reino.

Ela apertou sua mão.

— Ainda bem.

Assim que deixaram o bosque e entraram no jardim, Lina ouviu o choro.

— Alguém está chorando! — exclamou e, espreitando na penumbra, tentou descobrir quem era.

— Ali — Hades apontou à sua frente, na direção da estrada que passava em frente ao palácio e conduzia a Elísia.

Lina mal conseguiu discernir a silhueta iluminada à margem da estrada.

— É melhor vermos o que está acontecendo — sugeriu, buscando uma confirmação no rosto do deus.

— Sim. É estranho que um espírito chore em Elísia — ele comentou conforme rumavam naquela direção. — Os mortos podem sentir falta da família e de seus entes queridos da Terra dos Vivos, mas, quando são transportados pelo Estige e entram em Elísia, suas almas se enchem de alegria, ou ao menos de paz. A habilidade para deixar de sentir saudades da vida, ou ao menos a capacidade de compreender que todas as despedidas são apenas temporárias, incorpora-se ao espírito mortal. Os que ganharam a eternidade em Elísia sempre ficam contentes.

À medida que se aproximavam do espírito, o brilho tomou forma. Lina pôde ver, assim, que se tratava de uma mulher muito jovem e gorda, com os cabelos longos e escuros presos em um coque. Estava sentada à beira da estrada, a face nas mãos, chorando tão copiosamente que nem mesmo percebeu sua aproximação.

Num impulso, ela fez um sinal para que Hades ficasse para trás, e se pôs ao lado da estranha. Pouco antes de lhe tocar o om bro, percebeu que o corpo do espírito parecia muito mais denso. Se a mulher não tivesse a luminescência pálida dos mortos, ela teria acreditado que estava viva e que, de alguma forma, se perdera no Submundo.

— Querida, o que foi? — perguntou suavemente.

A alma deu um pulo e levantou o rosto molhado de lágrimas, fitando Lina com os olhos castanhos cheios de desespero. Reconheceu a deusa imediatamente e começou a se curvar, mas então viu Hades e levou a mão à boca. Mudou a direção da mesura e acabou indo para trás e para frente, sem saber a qual dos imortais prestar sua reverência.

— Eu não quis perturbar os deuses! — desculpou-se, enxugando os olhos. Pondo-se em pé, desajeitada, começou a recuar às pressas. — Por favor, perdoem-me!

— Não, eu... — Lina ergueu a mão, tentando apaziguá-la.

A mulher estacou, nervosa, olhando para sua mão estendida tal qual um rato assustado.

Lina suspirou e modulou a voz para o tom que costumava usar com os animais.

— Não vá. Você não nos perturbou. Hades e eu fomos dar um passeio e ouvimos seu pranto. Estávamos preocupados, não com raiva.

Ela pareceu relaxar um pouco.

— Qual é o seu nome? — O deus pediu no tom agradável e paternal que usara com Eurídice.

A mulher olhou para ele, ansiosa.

— Alcestes.

— Diga-nos por que estava chorando, Alcestes — Lina pediu com delicadeza.

Ela olhou para os pés.

— Estou me sentindo sozinha. Sinto falta do meu marido e da minha família. — Pressionou as costas da mão contra a boca, tentando inutilmente reprimir um soluço.

O olhar preocupado de Lina encontrou o de Hades, e ela notou que ele também parecia surpreso com as palavras do espírito.

Então o viu inclinar a cabeça para o lado e seu rosto assumiu uma expressão de aten ção. Em seguida, seus olhos pareceram escurecer, e ele apertou os lábios antes de falar com a alma.

— Não era sua hora, Alcestes — disse, a voz marcada pelo pesar.

O espírito deixou escapar outro soluço.

— Não, não era... Mas eu tinha de vir.

Hades franziu o cenho.

— Não precisava vir. A escolha foi sua.

Alcestes levantou o rosto molhado.

— Não entende? Ele perguntou aos outros e ninguém se dispôs a fazê-lo. Por isso eu tive de vir.

Totalmente confusa, Lina abanou a cabeça.

— Esperem... Agora eu é que não estou entendendo. Do que estão falando? Houve algum tipo de erro?

— Alcestes, diga a Perséfone por que entrou no Submundo — ordenou Hades.

A alma respirou fundo e enxugou o rosto com a manga da veste fúnebre.

— Fiquei casada por pouco tempo... O nome do meu marido é Admeto. — A face úmida da mulher se iluminou, e ela quase sorriu. — Ontem de madrugada os argumentadores profetizaram que Admeto morreria antes do pôr do sol. Meu marido imediatamente pediu clemência a Apolo, e o deus da Luz concordou. Na realidade, a profecia era verdadeira. As Parcas tinham terminado de tecer a vida de Admeto e, ao anoitecer, sua vida mortal seria extinta. Mas meu marido sempre foi um dos favoritos do deus da Luz, e Apolo ouvira o choro de Admeto. No fim, concedeu a ele um novo destino: ele seria poupado se alguém concordasse em morrer em seu lugar. Primeiro, meu marido foi procurar seus pais, que são velhos e não andam muito bem, mas eles se recusaram. Então procurou os irmãos. Estes também não se propuseram a morrer em seu lugar. Ele pediu aos amigos mais íntimos, assegurando que cuidaria bem de suas famílias, mas a resposta foi sempre a mesma. Ninguém estava disposto a morrer por ele. Desesperado, Admeto voltou para casa a fim de esperar por seu destino. — Alcestes fez uma pausa, procurando o olhar de Lina. — Eu não podia deixá-lo morrer.

Hades cerrou a mandíbula, mas, quando falou, sua voz não traiu nenhuma raiva.

— E Admeto permitiu que morresse por ele.

O espírito virou os enormes olhos molhados para o deus.

— Ele chorou e rasgou suas vestes... Estava desesperado.

— Mas não o suficiente para detê-la — observou o senhor do Submundo.

— Precisa entender, eu não tinha escolha! Precisava tomar o lugar dele! — Alcestes começou a chorar outra vez.

— Por isso sente essa solidão e dor agora. Não era a sua hora. Sua roda da vida ainda está girando, e sua alma sabe disso. Por isso não consegue encontrar paz — Hades explicou, solene, como se um grande peso pressionasse as palavras.

— Isso não pode ficar assim — interveio Lina. — Olhe para ela... Alcestes nem tem o mesmo corpo do restante dos espíritos.

— Isso porque não é como o restante dos espíritos. Está deslocada, fora do destino que lhe foi previsto.

— Então precisa consertar isso — Lina decidiu com firmeza.

— Ela está aqui porque um deus interferiu na vida de um mortal; algo que acontece com muita frequência, por diversas razões egoístas. Eu não acredito em interferir na vida dos mortais.

— Mas ela faz par te do seu reino, agora. Não está se intrometendo. Só está cumprindo com o seu dever!

— Perséfone — Hades falou com os dentes cerrados —, não se lembra do que aconteceu da última vez em que decidiu enviar um espírito de volta para a Terra dos Vivos?

Lina se encolheu como se ele a tivesse esbofeteado.

— Aquilo foi diferente. Não acredito que possa ser tão cruel, Hades! — Sua voz soou fria como gelo.

— Oh, por favor! — Alcestes se atirou de joelhos entre os dois imortais. — Eu não queria causar discórdia entre o rei e a rainha do Submundo!

— Do que chamou Perséfone? — Hades indagou, tenso. — Que título deu a ela?

Tremendo, a alma deslocada respondeu ao seu deus:

— Eu a chamei de rainha do Submundo, mas não fui eu quem deu esse título a ela, senhor. Simplesmente repeti o que falam de ­Perséfone no Mundo Superior. — Alcestes conseguiu sorrir para Lina. — É bem sabido que ela agora está reinando a seu lado.

Lina ficou sem palavras. Rainha do Submundo? As pessoas estavam mesmo dizendo aquilo dela?

Olhou para Hades, e o deus sombrio capturou sua expressão. Seus olhos brilharam, e seu rosto se iluminou com alegria.

Quando falou, Lina não conseguiu desviar o olhar, quase se esquecendo de respirar.

— Faça seu julgamento, rainha do Submundo. Eu me curvarei à sua vontade — disse e, num gesto quase imperceptível, inclinou a cabeça para ela.

Lina se obrigou a tirar os olhos dele e sorriu, trêmula, para Alcestes.

— Minha decisão é que retorne ao mundo dos mortais e a seu marido para terminar sua sina. E diga a Admeto que ele pode seguir o nov o destino que as Parcas teceram para ele.

Com um grito de felicidade, Alcestes se ergueu e pegou a mão de Lina, beijando-a e segurando-a junto ao rosto encharcado de lágrimas. Sorriu para ela, os olhos marejados.

— Oh, obrigada, rainha do Submundo! Meus filhos, e os filhos dos meus filhos, haverão de fazer sacrifícios pela senhora a cada primavera, até o fim dos tempos!

— É muita gentileza sua, mas saiba que eu prefiro um pouco de vinho e mel espalhados pelo chão. Não sou muito afeita a sacrifícios sangrentos — Lina declarou rapidamente.

Alcestes fez uma reverência profunda.

— Eu sempre me lembrarei de sua bondade, minha deusa!


Capítulo 21

Hades ficou muito quieto após Alcestes desaparecer pela estrada que a devolveria à sua vida mortal, e, vez ou outra, Lina o observava com discrição. Ele segurava sua mão, contudo seu rosto era inescrutável.

Definitivamente, ele a estava deixando muito nervosa. Ela ainda iria para seus aposentos? Teria interpretado mal a reação do deus ante o fato de ser ela chamada de rainha do Submundo? A felicidade que ela pensara ter visto poderia ser outro tipo de emoção?

Mas, se fosse assim, por que ele teria lhe permitido dar uma sentença com a qual não concordava?

Lina suspirou. Os pirilampos pareciam ter invadido sua mente.

Entraram no palácio pelo pátio dos fundos, então Hades rumou da esquerda, o lado oposto ao quarto dela. Passaram pela entrada da sala de jantar e, por fim, ele parou em frente a uma enorme porta em que tinha sido esculpida a imagem de Órion em pé, sobre as patas traseiras, e a do elmo.

Nervosa, Lina apontou para o entalhe.

— É uma ótima reprodução de Órion. Ele parece muito feroz.

Hades bufou.

— Pois eu acho que agora será necessária uma nova versão...
A que o mostre curvando-se à sua senhora.

— Ora... — Aliviada com a brincadeira, ela o cutucou com o cotovelo no braço. — Ele ainda é considerado um dos seus temíveis cavalos. Eurídice vive para evitá-lo.

O deus balançou a cabeça.

— Tenho medo de que sua reputação de ser um animal solitária e feroz tenha sido arruinada para sempre. — Ele se virou para ela e segurou seu queixo, erguendo-lhe a face. — Mas ele não se importa... O ganho excede a perda. — Beijou-a delicadamente, murmurando contra seus lábios: — Vai comigo para o meu quarto?

— Sim — Lina respondeu com um frio na boca do estômago.

Hades abriu a gigantesca porta, e ela finalmente entrou no mundo particular do deus do Submundo. A primeira coisa que notou foi a enorme cama no centro do aposento, encimada por um dossel que pendia em luxuosas dobras de seda pura. A própria cama se encontrava coberta com pesados lençóis brancos, fazendo o conjunto parecer uma nuvem que havia perdido seu lugar no céu. Era suntuosa, sexy... e muito, muito convidativa.

Quando percebeu que estava olhando o móvel e deixando a imaginação vagar, Lina sentiu o rosto arder. Desviou o olhar, e teve a atenção atraída para o impressionante par de lustres que pendia do teto abobadado. Pareciam feitos de vidro preto, e centenas de velas bruxuleavam, cintilando em sua base incomum.

— Seus lustres são sempre tão lindos! Estes são feitos de vidro preto?

— De obsidiana — explicou Hades. Pressionando-lhe a base das costas intimamente, ele a conduziu pelo quarto. — Quando ela é cortada e polida, assemelha-se ao vidro.

Lina sorriu.

— E quais são suas caracter ísticas? Devem ser muito especiais se a escolheu para os seus aposentos.

— Os poderes da obsidiana são a proteção, a segurança, a divinação e a paz. — Ele olhou para a luz piscante. — E eu também a considero bastante tranquilizadora.

— Sem dizer que combina com tudo aqui. — Lina apontou para o restante do vasto cômodo.

As cores predominantes eram o preto, o branco e o prata. Em vez de tornarem o quarto austero e frio, os contrastes dramáticos tinham um efeito intrigante... como se o deus tivesse encontrado o exato equilíbrio entre a luz e a escuridão.

— Gostaria de beber algo? — Hades indagou, um pouco tenso, perguntando-se se ela podia ouvir as batidas de seu coração.

Quando Perséfone assentiu, ele caminhou, apressado, até uma mesa baixa, em meio a duas poltronas de cetim branco, e serviu duas taças de uma garrafa que já havia sido aberta e colocada em um recipiente com gelo.

Lina sorriu em agradecimento e pegou a taça de cristal cheia de um líquido dourado. Seu aroma a fez sorrir.

— Ambrosia!

— Há rumores de que está apaixonada por essa bebida. — Os lábios de Hades também se curvaram num sorriso.

— Deveria haver rumores de que, às vezes, eu exagero na dose...

— Isso pode ser um segredo nosso. — Ele tornou a sorrir e ergueu a taça para ela. — Aos recomeços.

— Aos recomeços — Lina repetiu, tocando-a com a sua.

Enquanto bebiam, seus olhares se encontraram. Em seguida Hades colocou a taça de volta na mesa e, sem hesitar, ela fez o mesmo.

O deus sombrio respirou fundo, então percorreu o curto espaço entre eles e a tomou nos braços.

— Está me assustando, Perséfone. Não consigo respirar sem pensar em você...

Capturou-lhe os lábios em um beijo faminto, e eles se uniram, sedentos.

Tudo o que ela pôde pensar foi: Ah, obrigada! Finalmente!

O corpo rijo de Hades pulsou contra o dela, e o de Lina respondeu com um calor. Suas mãos percorreram o peito largo, encontrando, inquietas, a túnica de couro, e ela quis praguejar de tanta frustração. Não tinha ideia de como arrancar aquela coisa!

Enquanto os beijos profundos faziam fervilhar seu sangue, tateou a veste até encontrar amarras do couro nas laterais. Puxou-as, impaciente, soltando-as o bastante para poder deslizar as mãos para dentro da couraça e sentir os músculos rijos da cintura e do abdômen de seu amado.

Hades gemeu contra a boca carnuda, e suas mãos desceram para segurar a curva suave das nádegas de Perséfone, pressionando-a com mais firmeza contra ele. Uma onda de calor invadiu seu corpo quando ele a sentiu se movendo em resposta. Lina mordiscou seu lábio inferior, provocante, então se afastou apenas o suficiente para fitá-lo nos olhos.

— Leve-me para a cama — falou, meio sem fôlego.

Ele engoliu, tentando aliviar a secura na garganta, e acedeu. Conduziu-a até a enorme cama, repartiu a cortina de seda, mas não se juntou a ela de imediato. Recostada nos travesseiros, Perséfone era ainda mais estonteante. Diante de sua hesitação, a deusa sorriu para ele interrogativamente.

— Primeiro devo lhe dizer uma coisa. — Sua voz saiu carregada de emoção. — Eu nunca fiz isso antes.

— Nunca trouxe uma mulher para o seu quarto?

— Eu nunca trouxe uma imortal aqui. Mas não apenas isso.

Os olhos de Lina se arregalaram.

— Nunca fez amor?!

O riso de Hades soou forçado e nervoso.

— Eu fiz amor. Mas nunca com uma deusa.

Lina sentou-se, querendo desesperadamente revelar a Hades a ironia da situação. Ele estava nervoso pela mesma razão na qual ela sentia um bando de borboletas voejando no estômago.

— Para ser sincera, eu também não me deito com ninguém há um bom tempo. — Aproximou-se e tocou-lhe a mão. No mesmo momento, os dedos dele se entrelaçaram aos seus. — E juro: nenhum deus me fez sentir o que sinto por você.

Hades sentou-se a seu lado na cama, olhando suas mãos unidas.

— Quando Alcestes a chamou de rainha do Submundo, senti um orgulho indescritível só de pensar que outros acreditam que você me pertence, que poderia ser feliz reinando a meu lado. Não posso conceber algo que me traria mais alegria.

Lina deu um longo suspiro.

— Eu teria orgulho de ser chamada de rainha do Submundo, mas, não sei... — Vacilou, dividida entre a promessa que fizera a Deméter e a necessidade de dizer a verdade ao deus.

Ele a segurou pelo rosto.

— Já me basta saber que a ideia não lhe é repugnante. O tempo cuidará do resto.

Lina colocou as mãos sobre as dele.

— Como este seu reino maravilhoso poderia me causar repugnância? Eu o adoro! — disse com voz rouca.

O sorriso de Hades foi deslumbrante, e Lina se perguntou como era possível que os outros imortais não o vissem como ela.

De repente, ficou extremamente feliz por isso. Se soubessem, ele não seria seu. E seria como o restante deles.

Hades a beijou com suavidade, contudo Lina pôde sentir a tensão no corpo másculo através dos músculos rijos de seus braços. Quando falou, sua voz parecia ainda mais profunda:

— Mostre-me como lhe dar prazer. Só de pensar em você, um só vislumbre de sua pele, já faz meu sangue ferver... Mas sei que o desejo não é tão simples para as mulheres. — Embora tenso, ele conseguiu dar uma risada. — Mesmo com a minha limitada expe­riência, aprendi que as deusas são, de fato, muito mais complexas do que os deuses. Ensine-me como atiçar o seu desejo, Perséfone.

Lina sentiu a boca seca e passou a língua pelos lábios, arrepiando-se ao perceber que ele não deixara o gesto passar despercebido.

— Pode começar tirando a roupa — falou, meio sem fôlego.

Sem hesitação, Hades arrancou o quitão já solto, livrou-se da túnica curta e também da tanga de linho, igual à que usava na ferraria e que ela achara tão atraente. Uma vez livre das roupas, parou diante dela, totalmente nu.

E era magnífico. A pele lisa dourava-lhe os músculos, fazendo-o parecer ainda mais sombrio e exótico.

Céus! , ela nunca vira um homem tão perfeito!

Seus olhos viajaram pelo corpo musculoso, e sua respiração ficou presa na garganta. Hades se encontrava plenamente excitado, e uma onda inebriante de prazer a invadiu quando ela pensou que tinha um deus sob seu comando. Ficou parada por um momento, em seguida descansou as palmas das mãos no peito nu. Lentamente, ela as fez correr ao longo da pele lisa, amando sentir os músculos rijos e bem definidos do peito e dos braços de seu amor.

Quando suas mãos desceram mais, um tremor o percorreu.

— Algo de que todas as mulheres gostam é acreditar que seu toque é especial — Lina disse, rouca. — É bom saber que, mesmo que nossos corpos não tenham tanta força, um pequeno toque nosso pode fazer um homem estremecer e gemer de prazer... — Pegou a carne rija na mão e a acariciou sensualmente.

Um gemido intenso escapou da garganta de Hades, e Lina sorriu, sedutora.

— Estou machucando você?

— Não! — ele negou com voz abafada. — Embora eu acredite que possa me matar de prazer apenas com um toque... Basta pensar em você, vê-la, sentir seu cheiro, e fico excitado, dolorido, louco para amá-la!

As palavras tiveram o efeito de uma descarga elétrica no corpo de Lina, e ela o empurrou de leve para dar um puxão no laço que prendia sua própria túnica no ombro esquerdo. Contorceu-se, impa­ciente, até deixar os seios nus, e levou apenas um momento para soltar as amarras em seus quadris. Com um movimento sensual, fez o tecido deslizar por seu corpo, em seguida se jogou nos braços de Hades.

— Sua pele é tão quente! — falou entre beijos. — Eu amo senti-la de encontro a minha.

— E você me faz pegar fogo! — Hades sussurrou contra seus lábios enquanto explorava a curva de seus quadris eroticamente. De súbito, virou-se e se deitou na cama, puxando-a com ele. — Mostre-me mais, Perséfone... Ensine-me como fazê-la arder também!

Lina saiu de cima do corpo másculo, de modo que ficaram deitados de lado, de frente um para o outro. Ela mal sabia por onde começar. Já se sentia tão pronta que, por um momento, quase o fez subir nela.

Então respirou fundo e deteve o impulso. Hades não era como seu ex-marido ou qualquer outro dos seus desinteressados amantes. Desta vez seria diferente, pois Hades era diferente. Nele ela encontrara tudo o que uma mulher podia desejar: um homem que queria agradar de verdade e estava disposto a ouvir e aprender para que ela pudesse sentir prazer. Tudo o que precisava fazer, naquele momento, era mostrar o que desejava.

Mas isso era muito mais difícil do que ela havia imaginado. O que queria, afinal?

Fechou os olhos e tentou ordenar os pensamentos. Em toda a sua vida de adulta, sempre sonhara com alguém que gostasse dela o suficiente para se preocupar com seu prazer tanto quanto o seu próprio. Precisava ser honesta com Hades, bem como consigo mesma. Tinha que romper com as barreiras que seus antigos amantes a tinham feito erigir.

Estremeceu. Estava pronta.

Abriu os olhos e, bem de leve, tocou o ponto onde o próprio pescoço encontrava o ombro.

— Para mim, são as pequenas coisas que importam — falou com uma voz subitamente tímida. — Assim como ser beijada aqui...

Hades se apoiou em um cotovelo, então se inclinou para a curva delgada. Beijou-a e mordeu-a de leve, passando a língua pela área sensível.

— Eu também queria que você me acariciasse enquanto me beija... Deixe meu corpo se acostumar com o seu toque! — Lina pediu num sussurro.

Quando a respiração de Perséfone se aprofundou, Hades seguiu pela linha sedutora de seus ombros até os seios e os cobriu delicadamente com as mãos.

— Ah, sim... Aí também! — ela gemeu enquanto ele depositava minúsculos beijos nos montes arredondados.

— Sentirá prazer se eu a lamber e beijar aqui? —Tocou os mamilos túrgidos, a voz saindo rouca de desejo.

— Sim! — Lina mergulhou as mãos em seus cabelos.

Enquanto a provocava e sugava, Hades correu a mão mais para baixo. Primeiro afagou-lhe o comprimento da perna, moldando os músculos curvilíneos. Depois, lembrando-se de que Perséfone dissera dar valor às pequenas coisas, acariciou a área macia por trás de seu joelho. Ainda seguindo os sinais do corpo delicado, desenhou círculos ardentes no interior de suas coxas.

Lina se abriu para ele e, guiando-lhe a mão até o centro do próprio corpo, mostrou-lhe como acariciar seu ponto mais sensível, sussurrando incentivos meio sem fôlego ao perceber que o toque acompanhava seu ritmo.

A onda de orgasmo veio rápida e poderosa, e ela gritou o nome dele conforme uma estranha eletricidade brotou em seu âmago e irradiou por seus membros.

Hades a abraçou com força, os próprios desejos temporariamente esquecidos em meio ao espanto de ter sido capaz de evocar nela uma resposta tão apaixonada. Tinha vontade de gritar de felicidade. Perséfone o conhecia em sua essência, desejava-o e havia se entregado a ele.

Lina abriu os olhos e o fitou. Ele estava sorrindo para ela e afastando-lhe os cabelos do rosto.

Sua respiração ainda não tinha voltado ao normal quando o deus recomeçou a beijá-la.

— O melhor sexo é quando os amantes se satisfazem mutuamente — disse, ofegante, pressionando-o de volta para a cama. — É uma dança onde se dá e se recebe. Embora o prazer de seu parceiro possa se tornar o seu próprio, não devemos nos abster de nossas necessidades e desejos... — Acariciou o corpo musculoso, beijando e saboreando a salinidade de sua pele, até que a respiração dele se tornou irregular.

O suor brilhava no corpo de Hades, e todos os seus músculos se retesaram quando ele lutou para controlar o desejo.

Lina o envolveu nos braços com urgência.

— Não se contenha mais! Eu o quero dentro de mim agora... Quero sentir toda a sua paixão.

Com um grunhido, ele rolou de modo a ficar sobre ela. Apoiando-se sobre as mãos, fitou-a nos olhos enquanto mergulhava no corpo macio.

Seu calor úmido o cercou, e Hades precisou de toda a sua força de vontade para conter a explosão que ameaçava acontecer. Possuir Perséfone se revelara melhor do que qualquer fantasia; melhor do que qualquer coisa que ele pudesse ter imaginado.

Deteve-se por um momento, tentando recuperar o autocontrole.

Com um gemido, Lina arqueou o corpo, e Hades respondeu combinando sua paixão com a dela, até que teve a visão obliterada para tudo o mais, exceto para a deusa sob ele. Sentir que ela o comprimia por inteiro o levou às alturas e, conforme espasmos de prazer o percorriam, Hades afundou o rosto nos cabelos fartos de sua amada, repetindo seu nome seguidas vezes...

Um perfume doce e familiar despertou Lina. Hades encontrava-se de pé ao lado da cama, sorrindo. Estava nu, exceto pela tanga justa que o cobria bem abaixo da cintura. Em uma das mãos, segurava uma taça de ambrosia dourada e refrigerada, e, na outra, um manto leve, de seda.

— Bom dia — ela falou, sonolenta.

— Bom dia. Imaginei que estivesse com sede. — Ele ergueu o cálice de cristal. — Além disso, Eurídice trouxe algumas coisas para você. — Apontou por cima do ombro para uma mesa carregada com romãs e uma deliciosa variedade de queijos e pães.

Lina sorriu. Hades nunca estivera tão adorável, parado em pé ali, meio nervoso, tentando agir como se estivesse acostumado a ter uma deusa em sua cama.

— Obrigada. — Sentou-se e se espreguiçou.

O lençol caiu em torno de sua cintura, e os olhos dele devoraram seus seios nus.

Sem se conter, Hades colocou o que tinha nas mãos sobre a mesa de cabeceira e se ajoelhou diante dela, segurando-lhe os seios e beijando os mamilos róseos.

Embora o toque fosse suave, Lina não pôde deixar de se encolher. Seu corpo se encontrava maravilhosamente saciado, mas também muito, muito dolorido.

O deus recuou.

— Estou machucando você?

— Acho que estou um pouco sensível. Sete vezes em uma noite é, bem... um pouco incomum.

Hades sentiu que corava enquanto lhe cobria os ombros com o manto e lhe alisava os cabelos. Perséfone estava amarrotada e tinha uma marca vermelha na curva do pescoço.

E se ele tivesse sido muito bruto? Na noite anterior parecia ter dado prazer a ela, mas, naquela manhã, a deusa parecia quase descontente.

Perséfone se pôs de pé com certa cautela e tornou a encolher os ombros sob a capa.

Por todos os deuses! E se ele a tivesse ferido?

Lina abriu um sorriso e sentou-se com cuidado antes de atacar a mesa posta. Nem mesmo percebeu como o deus se retesou em resposta ao seu óbvio desconforto físico.

Hades condenou a si mesmo por ser um idiota, inexperiente.

Conforme Lina comia, sentiu sua energia retomar o nível normal e as dores em seu bem utilizado corpo se dissipar. Respondendo ao seu revigorado bom humor, o nervosismo de Hades evaporou, e eles fizeram o desjejum como dois amantes apaixonados, permitindo que seus joelhos se tocassem e alimentando um ao outro com os petiscos de seus próprios pratos.

Ele começava a explicar como tinha produzido os lustres que pendiam graciosamente do teto acima deles quando duas batidas firmes soaram na porta.

— Entre! — gritou Hades.

Iapis se fez presente, segurando uma pequena caixa quadrada nas mãos, e fez uma reverência, primeiro para o senhor do Submundo, depois para Lina.

— Bom dia, Hades, Perséfone... — Seus olhos brilhavam, e ele tentou, sem sucesso, esconder um sorriso. — Eu trouxe o que me pediu, senhor. — Entregou a caixinha a Hades.

— Excelente. Muito obrigado, Iapis.

Ao ver o daimon, Lina se lembrou de que negligenciara Eurídice por completo e sentiu uma ponta de culpa.

— Iapis, poderia levar uma mensagem a Eurídice para mim?

— Claro, senhora.

— Diga a ela que eu adoraria ver o que ela andou desenhando.

Iapis sorriu.

— Será um prazer para Eurídice, tenho certeza.

— Ótimo. Mande-a levar seus trabalhos para o meu quarto ainda hoje. E, por favor, diga-lhe que estou ansiosa por ver suas criações... e também por vê-la. Senti sua falta.

Lina pensou ter visto as faces do daimon enrubescer de leve antes que ele aquiescesse e, ainda sorrindo, se despedisse com uma mesura.

— Ele está de bom humor, sem dúvida — comentou Lina, pensativa, tamborilando os dedos na mesa.

— Ele gosta de me ver feliz — Hades falou brincando e beijando-lhe a mão.

Ela sentiu-se tão tola e sorridente como o daimon se mostrara, e tratou de se recompor.

— Não acho que ele esteja assim, feliz, apenas por causa de você.. Aliás, faz algum tempo que eu gostaria de conversar acerca do seu amigo daimon.

Hades ergueu uma sobrancelha, esperando.

— Creio que Iapis esteja interessado em Eurídice — revelou Lina.

O sorriso do deus foi como o de um menino apanhado com a mão na bo tija.

— Acho que tem razão.

— Então preciso saber de suas intenções! — ela falou com firmeza.

Hades concordou, a expressão se tornando séria no mesmo instante.

— Compreendo sua preocupação, claro... Mas acredito que eu possa falar por Iapis. Suas intenções são honradas. Ele realmente se preocupa com a pequena alma.

— Vai se certificar de que ele seja cuidadoso com Eurídice? Ela passou por muitas dificuldades. É difícil para uma mulher amar outra vez depois que foi ferida.

Hades tocou-lhe o rosto com delicadeza, pensando se a deusa estaria se referindo apenas a seu leal espírito.

— Pode confiar em mim. Sempre. Cuidarei de Eurídice como se ela fosse a própria deusa da Primavera.

— Obrigada. Não é que eu não goste de Iapis... eu gosto. Mas me preocupo muito com a minha amiga.

— É uma deusa generosa, Perséfone, já que se preocupa verdadeiramente com aqueles que a amam — ele afirmou. Então olhou para a caixa quadrada descansando ao lado, e a fez deslizar até ela.

— É algo que fiz na primeira noite em que esteve aqui. Eu não conseguia dormir. Tudo o que podia fazer era pensar em você, em seu sorriso, em seus olhos... — Fez um gesto para que ela abrisse o presente.

O fecho destravou com facilidade, e Lina levantou a tampa. Aninhada junto a um estojo de veludo preto, havia uma delicada corrente de prata. Desta pendia uma única pedra ametista, a qual fora esculpida e polida de modo requintado, na forma de um narciso em flor.

Lina sentiu os olhos marejados.

— Oh, Hades! É a coisa mais bonita que eu já ganhei!

Ele se levantou e postou-se atrás dela, tirando o colar do estojo para colocá-lo em seu pescoço. Pendurou-o perfeitamente, bem acima da curva de seus seios.

— Obrigada... Eu adorei!

O deus a puxou para seus braços.

— Na noite em que fiz isso, eu estava cheio de desejo e morrendo de saudade. Mas agora está aqui comigo, e o vazio dentro de mim não mais existe. Os mortais foram sábios em afirmar: é a rainha do Submundo. Não posso imaginar minha vida sem você. Não trouxe a primavera apenas para o meu reino, Perséfone, mas também para o meu coração. Estou apaixonado.

As lágrimas que tinham se agrupado nos olhos de Lina transbordaram, e ela não conseguiu falar.

Hades enxugou-lhe o rosto com os polegares.

— Por que está chorando, minha querida?

— As coisas são tão complicadas...

Ele franziu a testa.

— Porque é a deusa da Primavera?

— ... Também.

— Diga-me a verdade. Chora porque não se imagina permanecendo no Submundo?

O deus tentou manter a voz neutra, no entanto Lina podia ver a dor refletida em seus olhos.

— Quero estar com você — disse apenas, tentando não soar muito evasiva.

— Então não posso conceber qualquer dificuldade que não possamos vencer juntos —Hades declarou, abraçando-a com força.

Descansando em seus braços, Lina fechou os olhos, disposta a parar com as lágrimas. Chorar não ajudaria em nada. Ela o amava, mas esta era apenas uma pequena parte da verdade que ele precisava saber.

Queria tanto contar tudo a Hades! Precisava fazer isso.

Mas havia dado sua palavra, e, antes de qualquer coisa, deveria conversar co m Deméter.


Capítulo 22

— Disse que ela não está em seu quarto? — Hades virou-se para o daimon.

— Não, senhor... A deusa se foi.

— E Eurídice não sabe onde ela está?

— Não. Eurídice estava ocupada com os desenhos que mostraria à sua senhora mais tarde.

Hades andou de um lado para o outro. Perséfone havia dito que precisava de um bom banho de imersão e que depois tiraria uma soneca. Sim, ela lhe parecera estranha, mas ele atribuíra seu comportamento ao cansaço.

Assim, resolvera lhe dar algum tempo enquanto atendia às petições dos mortos... ainda que mais distraído do que nunca. A maioria deles tinha vindo ver Perséfone, e havia ficado visivelmente desapontada por a deusa não ter aparecido.

Apertou a mandíbula. Podia compreendê-los muito bem. Ele mesmo não queria mais nada a não ser vê-la por perto. Ainda trazia seu perfume na pele, e, quando divagava, podia sentir o calor suave de Perséfone contra ele.

Para onde ela havia ido? Por que não lhe dissera nada? O que estaria pensando?

Passou a mão pelo cabelo. Depois de eras de uma existência solitária, seu desejo fora feroz, e, talvez, ele houvesse sido muito bruto. Talvez a houvesse ferido.

Ou talvez não a tivesse satisfeito. E se ela o comparara a seus outros amantes imortais?

Cerrou os punhos. Apenas pensar em outro deus encostando nela o deixava com náuseas.

— Encontre-a, Iapis — rosnou.

O daimon se curvou e desapareceu.

OK , Lina admitiu para si mesma, mordendo o lábio. Estava preocupada.

— Merda! Por que tem de ser tão complicado?

As orelhas de Órion se inclinaram para trás a fim de captar suas palavras, e ele relinchou uma resposta suave.

— Eu o amo de verdade — ela disse em voz alta. — E agora? O que vamos fazer?

Lina suspirou. Sabia o que ela precisava fazer, razão pela qual escapulira com o cavalo.

— Verdade que a história que inventei foi excelente... — falou a Órion. — Tenho certeza de que Iapis ficará apenas um pouco aborrecido quando descobrir que o enorme odre de ambrosia que Eurídice o fez encher até a borda é para o Cérbero.

Ao ouvir falar do cão de três cabeças, Órion bufou com desgosto.

— Ah, ele não é tão ruim assim. Só ficou um pouco alterado pelo álcool, mas, no fim foi um amor... Além do mais, sabe que eu gosto muito mais de você. — Ela deu um tapinha na pelagem reluzente do cavalo.

Órion arqueou o pescoço e mudou o trote para um forte galope, fazendo a estrada escura passar rapidamente por baixo deles. A fiel esfera de luz pairava sobre seu ombro direito, mantendo o ritmo com o garanhão, e, a distância, Lina já podia ver o contorno leitoso do bosque de árvores fantasmas.

Perguntou a si mesma se Hades já teria notado a sua ausência. Tomara que não, mas, se ele procurasse por ela, Eurídice lhe diria que ela fora levar ao Cérbero a guloseima que prometera. Os cavalariços, por sua vez, relatariam que ela havia levado Órion para um passeio.

Hades não deveria se preocupar. Ela não queria que ele ficasse preocupado. Não desejava lhe causar nenhuma dor.

A noite que tinham passado juntos fora uma experiência nova para ela. Hades lhe despertara sentimentos que, até então, não passavam de resquícios de sonhos e fantasias. E não fora só sexo.

Suspirou outra vez. Isso teria sido fácil de lidar. Poderia ter com ele um caso tórrido e excitante, saciar a si própria e, no momento oportuno, ir embora.

Mas, decididamente, não tinha sido apenas sexo.

A lembrança das almas gêmeas ainda a assombrava, assim como o olhar de Hades quando ele declarara seu amor. Ela havia ansiado por responder com as mesmas palavras; no entanto, não era livre para se comprometer com ele. Não ainda. Não até que conversasse com Deméter.

E isso partira seu coração.

Não tivera a intenção de amá-lo. Havia ido para o Submundo com as melhores intenções e um trabalho a fazer. Ponto. Não estivera interessada em romance, amor ou sexo.

E o Mundo Inferior era o último lugar em que esperava encontrar alguma dessas coisas.

Merda! Deméter descrevera Hades como um assexuado, e ela estivera totalmente despreparada para a verdade.

Rodou um fio da crina sedosa de Órion em torno do dedo conforme o garanhão galopava pelo bosque de árvores fantasmas. Estava metida numa enorme encrenca. Amava Hades, estava certa disso, mas um pensamento incômodo não a abandonava: enquanto estivera com ele, enquanto pudera tocá-lo e fitá-lo nos olhos, fora fácil acreditar que ele a amava também. Ela , Carolina Francesca Santoro, e não uma deusa jovem e fútil.

E, não fora ele mesmo quem dissera que o verdadeiro amor tinha mais a ver com a alma do que com o corpo?

Então, por que faria diferença se seu corpo verdadeiro fosse o de uma mortal de quarenta e três anos de idade? Teoricamente, não deveria fazer.

Órion continuou disparado através do túnel escuro em direção à abertura ampla e iluminada do Mundo Superior.

Era inegável que tivesse mentido a Hades, Lina pensou. Mesmo que ela não houvesse tido a intenção de seduzi-lo, no que ele acreditaria quando soubesse a verdade? Será que compreenderia?

E, o mais importante, será que ele ainda a amaria?

O garanhão galopou até o fim da passagem, saindo para a luz suave de uma manhã fria. Ela puxou as rédeas do cavalo, obrigando-o a uma parada, apanhou as próprias coisas e, em seguida, conduziu-o até a bacia de mármore que sustentava o oráculo de Deméter.

Escorregou pelas costas de Órion.

— Fique por perto e seja bonzinho. Isso não vai demorar muito.

— Ela montou Órion para levar um agrado para o Cérbero?

O daimon concordou com um gesto de cabeça e uma expressão ligeiramente irritada no olhar.

— Eu mesmo enchi o odre. Ela levou ambrosia para aquele bruto!

Em qualquer outro momento, a notícia teria feito Hades rir. Agora, contudo, as dúvidas lhe esfaqueavam o coração.

— Mas Perséfone me disse que estava exausta. Que tomaria um banho e descansaria. Por que ela sairia para um passeio em vez disso?

— Apenas a deusa pode lhe responder isso, senhor.

O crescente sentimento de desconforto que o torturava desde aquela manhã desabrochou. Ele devia tê-la magoado, concluiu Hades. Teria assustado Perséfone? Ou teria declarado seu amor por ela cedo demais?

Sentiu o peito se apertar. Ela não havia proclamado seu amor em troca, pensou, lembrando-se de suas lágrimas.

Amaldiçoando-se em silêncio por sua inexperiência, virou-se para o daimon.

— Traga-me o elmo da invisibilidade.

Lina estudou o oráculo. Este descansava, quieto e benigno; uma simples esfera de vidro de cor leitosa.

Mas era o canal para uma deusa que detinha o poder de moldar seu futuro.

Fechou os olhos, admitindo que não estava apenas preocupada. Estava com medo. Como aquilo poderia funcionar? Ela era uma mortal de outro tempo e lugar. Ele, um deus antigo.

Sentiu lágrimas de frustração assomar aos olhos fechados.

Pare com isso! Controle-se!

Precisava contar tudo a Deméter. Não podia evitar isso por mais tempo.

Perséfone não estava com o Cérbero, embora o cão continuasse lambendo, feliz, o velho odre que ela lhe dera. Também não tinha passado por ele, voltando ao palácio, motivo pelo qual Hades seguiu adiante.

Quando encontrou o barqueiro, Caronte relatou que transportara a deusa e seu corcel para a outra margem do Estige.

Hades admitiu o pior para si mesmo: Perséfone havia definitivamente retornado à Terra dos Vivos.

Sentiu uma queimação familiar brotar no peito. Ela o deixara sem nem mesmo dizer adeus? Não queria acreditar nisso.

E não acreditaria até que a confrontasse e ela lhe dissesse isso cara a cara.

Com sua velocidade de deus, Hades seguiu pelo caminho escuro que o levaria ao Mundo Superior e à deusa da Primavera.

Lina respirou fundo e abriu os olhos. Concentrando-se em Deméter, passou as mãos três vezes pelo oráculo.

— Deméter? Precisamos conversar...

A orbe começou a rodopiar e, quase no mesmo instante, as feições benfeitas da Grande Deusa entraram em foco.

— Quando uma filha clama pela mãe, o tom de sua voz deve ser mais acolhedor do que tristonho — disse, suavizando a repreensão com um sorriso maternal.

— Eu não tinha intenção de desrespeitá-la, mas sinto-me, mesmo, um pouco deprimida — confessou Lina.

Deméter franziu o cenho.

— O que a incomoda, filha? Tenho ouvido apenas relatos positivos sobre o seu trabalho. Os espíritos se mostram satisfeitos por a deusa da Primavera estar peregrinando pelo Submundo.

Era a pura verdade. Desde a chegada da deusa, que todos acreditavam ser Perséfone, ao Mundo Inferior, as súplicas incessantes e irritantes dos parentes dos mortos havia terminado, e os sacrifícios por agradecimento, aumentado. A mortal vinha marcando presença e fazendo um excelente trabalho ao representar sua filha, refletiu a deusa da Colheita. Não podia imaginar o que a estava incomodando.

— As coisas tomaram um rumo inesperado.

A careta de Deméter se acentuou.

— Não me diga que foi descoberta.

— Não! Todos ainda pensam que sou Perséfone. — Lina fez uma pausa, mordendo o lábio. — O meu problema tem a ver com isso .

— Explique-se.

— Eu me apaixonei por Hades, e ele também me ama. Preciso contar a ele quem eu realmente sou e descobrir uma forma de consertar essa confusão — Lina falou de uma vez.

Os olhos de Deméter pareceram se transformar em pedra.

— Por acaso isso é algum tipo de brincadeira mortal?

— Não. — Lina suspirou. — Não há graça nenhuma nessa história.

— Está me dizendo que você e Hades se tornaram amantes?

— Sim.

— Então Hades brincou com seus sentimentos. — Deméter balançou a cabeça com tristeza. — E eu sou a culpada por isso. Expus uma mortal aos caprichos de um deus. Perdoe-me, Carolina Francesca Santoro... Minha intenção não era lhe causar dor.

— Não! — protestou Lina. — Não é assim. Hades não se aproveitou de mim. Nós nos apaixonamos um pelo outro!

— Vocês se apaixonaram? Um pelo outro? — A voz de Deméter soou enérgica. — Como é possível? Hades pensa que é Perséfone, deusa da Primavera. Não tem ideia de que fez amor com uma mortal. Pense, Carolina! Como pode acreditar que é você quem ele ama? — Deméter riu sem vontade, as belas feições contorcidas. — Amor! É mesmo tão ingênua? Os imortais amam de forma bem diferente dos mortais. Certamente até mesmo em seu mundo já ouviu falar dos abusos do amor imortal.

Lina ergueu o queixo e estreitou os olhos.

— Não sou nenhuma criança. Não fale comigo como se eu tivesse as emoções instáveis de uma adolescente. Conheço a diferença entre o amor e a luxúria. Sei quando um homem está me usando, assim como sei quando ele está me tratando com honestidade. As aulas foram difíceis... mas a experiência me ensinou a diferença.

— Então devia saber — concluiu Deméter.

As palavras suaves tiveram o efeito de um tapa.

— Não conhece Hades. Ele não é como o restante de vocês.

— Não é como o restante dos imortais? O que me diz é absurdo e ingênuo. Hades é um deus. A única diferença entre ele e os outros deuses é que Hades vive recluso e decidiu colocar os mortos acima dos vivos.

— Isso é apenas parte do que o torna tão diferente. — Lina respirou fundo. Não queria trair a confiança de Hades, mas precisava convencer Deméter. — Sou a única deusa a quem ele amou.

Os olhos de Deméter se estreitaram.

— Foi isso o que Hades disse? Então aqui vai sua primeira lição a respeito do amor imortal: não acredite em nada do que um deus diz quando ele está tentando se deitar com uma deusa. O que ele falou foi apenas o que você precisava ouvir para se entregar a ele.

Recusando-se a acreditar nas palavras, Lina sacudiu a cabeça de um lado para o outro. Deméter, porém, ignorou o gesto e prosseguiu.

— No que acreditou? Que ficariam juntos por toda a eternidade? Esqueça que é mortal. Esqueça que é de outro mundo. Mesmo se fosse a deusa da Primavera, acredita honestamente que Hades e Perséfone poderiam se unir e ter seus nomes ligados para sempre? A simples ideia é absurda! Como poderia existir primavera na Terra dos Mortos?

— A primavera não tem de existir lá, mas eu posso ficar no Submundo. Eu, a mortal, Carolina Francesca Santoro. Ficarei no Submundo e am arei seu deus. Apenas me transforme novamente. Devolva o meu corpo, e eu devolverei este — ela apontou para si mesma — à sua filha.

— Não posso fazer isso. Não é deste mundo, Carolina! — A raiva transformou o rosto de Deméter. — Você sabia que essa era uma situação temporária. Eu nunca disse o contrário.

— Tem de haver uma saída!

— Não há. Ambas devemos respeitar os nossos juramentos.

— Então, não posso nem mesmo dizer a Hades quem eu sou? — Lina concluiu, desesperada.

— Use a razão, Carolina, e não o coração. O que o senhor dos Mortos faria se soubesse que cortejou não a deusa da Primavera, mas uma padeira mortal de meia-idade? Abriria os braços para a sua mentira? — Deméter levantou a mão para silenciar os protestos de Lina. — Pouco importa que não tenha tido a intenção de ­enganá-lo. Você diz que eu não conheço Hades, mas todos os imortais sabem algo a respeito dele: o senhor dos Mortos preza a verdade acima de tudo. Como ele reagiria a esta farsa?

— Ele me ama!

— Hades ama Perséfone, a deusa da Primavera — falou Deméter com firmeza. — E, pense: como os espíritos do Submundo se sentiriam se soubessem que a deusa que tem trazido tanta alegria é apenas uma mortal disfarçada?

Lina ficou tensa.

— Isso os prejudicaria, sem dúvida.

— Claro que sim.

— Então não posso contar a ninguém.

— Não, filha. Não pode.

Lina fechou os olhos, e Deméter viu a mulher no corpo de Perséfone lutar para aceitar a dor causada por suas palavras.

— E lembre-se disto: quando voltar para o seu legítimo lugar, Perséfone vai considerar Hades apenas como mais um dos deuses com quem se divertiu. Não importa o que você acredita que tenha se passado entre vocês dois... E Hades, por fim, sentirá o mesmo. Ouça sua voz interior e se lembrará de que essa é apenas a maneira imortal de agir.

Quando Lina abriu os olhos, estava decidida.

— Voltarei ao Submundo para finalizar o meu trabalho, então. Disse que meu tempo está quase no fim?

Deméter aquiesceu em silêncio.

— ...Certo. Estarei pronta para partir no momento em que quiser.

— Eu sabia que você tinha sido uma escolha sábia, Carolina Francesca. — A imagem da deusa começou a se desvanecer. — Retorne com a minha bênção, filha — completou e se foi.

Lina se afastou do oráculo, e seus olhos deslizaram pela beleza do lago Averno sem realmente vê-lo.

Não chorou. Continuou muito quieta, como se a falta de movimento pudesse impedir que sentisse ainda mais dor.

Envolto na invisibilidade, Hades permaneceu na boca do túnel. Sua reação inicial ao ver Perséfone fora de alívio. Ela não o estava deixando; estava apenas consultando o oráculo da mãe. Ele não conseguia ouvir o que ela dizia, porém seu alívio foi logo substituído por preocupação. Perséfone estava visivelmente abalada. Parecia quase desesperada.

Por isso ela não lhe dissera que pretendia conversar com Deméter? Estava com medo da reação da mãe ao amor deles? Estaria tentando protegê-lo?

Perséfone sabia que, a seu modo, ele era um deus poderoso.

Mas, talvez, ela não o fosse. Era muito jovem, ainda que se comportasse com tanta maturidade que era fácil para ele esquecer sua juventude.

Sem dizer que ele se mantivera separado do restante dos imortais por muito tempo. Perséfone acreditava que ele poderia exercer seu poder apenas em seu próprio reino?

Observou seu belo rosto empalidecer. Deméter a estava magoando.

Uma onda de raiva brotou dentro dele.

Ainda usando o elmo da invisibilidade, caminhou até sua amada a tempo de ouvir a voz enérgica de Deméter derivar do oráculo:

— E lembre-se disto: quando voltar para o seu legítimo lugar, Perséfone vai considerar Hades apenas como mais um dos deuses com quem se divertiu. Não importa o que você acredita que tenha se passado entre vocês dois... E Hades, por fim, sentirá o mesmo. Ouça sua voz interior e se lembrará de que essa é apenas a maneira imortal de agir.

Hades parou. Tinha ouvido bem? Ele era apenas mais um Deus com quem ela havia se divertido?

Incrédulo, escutou a resposta de Perséfone:

— Voltarei ao Submundo para finalizar o meu trabalho, então. Disse que meu tempo está quase no fim?

Ele havia sido apenas uma missão para ela?

— ...Certo. Estarei pronta para partir no momento em que quiser.

Perséfone queria deixá-lo!

Ainda invisível, Hades assistiu à deusa que ele amava se afastar do oráculo da mãe e olhar para longe. Seus olhos estavam secos, e o rosto parecia esculpido em pedra. Uma verdadeira estranha.

Não. Não podia acreditar. Ouvira apenas uma parte da conversa e devia ter entendido mal. Conhecia Perséfone. A sua Perséfone não ousaria ludibriá-lo.

Estava prestes a tirar o elmo de invisibilidade quando um ruído chamou sua atenção. Ele e Perséfone se viraram ao mesmo tempo para o deus que caminhava ao longo da margem do lago Averno.

O belo rosto de Apolo se iluminou com prazer, e seus lábios se curvaram em um caloroso sorriso de boas-vindas.

— Ah, Perséfone! Agrada-me ver que aceitou meu convite. Todos sabíamos que tempo demais no Submundo faria a flor da primavera ansiar por sol novamente.

Com uma crescente sensação de dormência, Hades assistiu quando Apolo tomou o corpo dócil de Perséfone nos braços.

Incapaz de continuar assistindo à cena, o senhor do Submundo deu as costas para os dois amantes e, silenciosamente, retornou ao reino dos mortos.


Capítulo 23

Não demorou muito para Apolo perceber que abraçar Perséfone era como abraçar um cadáver. Recuou, assim, e estudou o rosto pálido.

— O que há de errado? Mais problemas com Deméter?

Ela abanou a cabeça e, quando piscou, duas lágrimas perfeitas caíram de seus olhos e traçaram um caminho brilhante por seu rosto.

Ele ainda se perguntava se deveria beijá-la ou materializar-lhe uma bebida, quando um monstro negro surgiu do nada e meteu o corpanzil entre eles.

— Vá embora, sua besta! — gritou, cambaleando para trás na tentativa de não ir ao chão.

O garanhão virou-se e arreganhou os dentes amarelos.

— Está tudo bem, Órion! Apolo não vai me fazer nenhum mal.

A tristeza na voz de Perséfone tocou o deus da Luz, e ele a fitou por trás do cavalo negro, que a acariciava com o focinho. A deusa devolvia o afago distraidamente, e lágrimas escorriam por seu rosto, porém ela nem sequer tomou conhecimento destas.

— Órion, eu preciso falar com a sua senhora.

Com os olhos em chamas, o garanhão virou a cabeça, pronto para enfrentá-lo, contudo ele estendeu as mãos em um declarado gesto de paz.

— Quero apenas lhe oferecer ajuda!

Órion estudou o deus, então soprou forte pelo nariz e lambeu a face de Lina. Em seguida se afastou uns poucos metros do local onde estivera pastando, embora mantendo um olho negro fixo nele.

Apolo pegou o braço de Perséfone, levou-a até um banco esculpido em rocha, e a deusa se sentou. Em seguida, ele fez um movimento com a mão, e uma taça contendo um líquido claro apareceu de repente, em meio a uma chuva de faíscas.

— É água mineral — disse, ao vê-la hesitar. — Imagino que esteja precisando de um refresco.

— Obrigada — Lina respondeu, tensa.

A água estava fresca, e ela a bebeu com vontade.

Entretanto, esta não ajudou a preencher seu vazio.

Apolo sentou-se a seu lado.

— O que lhe causou tanta dor? — indagou, preocupado.

Ela continuou emudecida, e o deus pensou que não fosse obter nenhuma resposta. Então falou com uma voz tão cheia de desesperança que ele sentiu uma constrição no próprio peito.

— A minha própria tolice foi o que me causou tanta dor.

Apolo segurou sua mão.

— O que posso fazer para ajudar?

Ela o fitou, e o jovem deus sentiu como se pudesse enxergar-lhe a alma.

— Responda-me uma coisa... O que ama, o corpo ou o espírito?

Apolo sorriu e ensaiou responder de forma inteligente, mas logo descobriu que não podia. Mais uma vez, Perséfone o surpreendia com sua franqueza.

A deusa da Primavera não se afastara de seus pensamentos desde seu último encontro.

Entreolharam-se, e Apolo não pôde menosprezar a dor no rosto delicado. Respondeu honestamente.

— Está fazendo essa pergunta ao deus errado, Perséfone. Como você bem sabe, tive muitas experiências com as vontades do corpo. Sinto desejo e o sacio. Mas, amor? A mais ilusória das emoções? Já testemunhei um guerreiro invicto cair de joelhos e atribuir mais poder a uma virgem do que ao próprio Hércules, mas não posso afirmar que já tenha experimentado esse sentimento. — Tocou-lhe o rosto, tristonho. — Ainda que olhar para você me faça pensar o contrário.

A claridade aumentou, sinalizando a chegada da aurora. Sua carruagem devia estar chegando, e seu tempo era curto, refletiu o deus.

Percebeu, no entanto, que, embora estivesse próximo de Perséfone, dando-lhe seu conforto e demonstrando sua compaixão, ela nem sequer olhava para ele. Tinha os olhos fixos na entrada do túnel que levava ao domínio do deus do Submundo.

Deixou cair a mão, estarrecido.

— Você ama Hades! — exclamou, sem se preocupar em esconder a surpresa na voz.

Os olhos de Perséfone se voltaram para os dele.

— Por que está assim, tão chocado? Porque sou a primavera e ele é a morte? Ou porque imortais não sabem como amar?

— Não creio que isso seja possível.

— Provavelmente não é. — A raiva na voz dela se foi, e o desespero voltou. Lina se pôs de pé. — Órion!

Numa velocidade sobrenatural, o garanhão se deslocou para seu lado. Sem mais palavras, ela montou o cavalo e o cutucou com os calcanhares nas laterais.

Órion saltou para a frente, deixando o deus da Luz olhando, boquiaberto, para a nuvem de poeira que se levantava de seus cascos de ferro.

— Perséfone e Hades? Como pode ser isso? — murmurou, perplexo.

Hades encontrava-se na ferraria. Após alimentar o fogo a um nível quase insuportável, despiu-se, ficando apenas com a tanga de linho. Não trabalharia em uma ferradura. Isso não o satisfaria. Precisava de algo mais, precisava fazer algo maior.

Forjaria um escudo com os mais fortes metais, decidiu. Algo que pudesse proteger um corpo, se não uma alma.

Atiçou as brasas, até que estas chiaram num calor escaldante. Então enfiou nelas uma folha disforme de metal bruto e a puxou para fora quando esta zuniu quase de pronto.

Em seguida, passou a bater nela com vontade.

Trabalhou sem parar. Seus ombros doíam e seus golpes lhe percorriam dolorosamente o corpo, ainda que não pudessem livrar sua alma da dor.

Ele não podia culpá-la. Perséfone era apenas uma jovem deusa. Ele era quem devia ter pensado melhor.

Tinha sido uma atitude sábia de sua parte se separar dos demais imortais. Perséfone apenas o ajudara a provar isso.

Sua decisão se mostrara a mais acertada por eras... Ele agira como um tolo ao se desviar dela.

Sentiu a presença da deusa no momento em que ela entrou na ferraria e se perguntou se ele sempre saberia quando ela se aproximasse. Como sua alma podia continuar ligada à dela se Perséfone não o amava?

Tal detalhe merecia consideração.

Mais tarde, contudo. Quando estivesse sozinho novamente. No momento em que pudesse pensar nela sem sentir aquele desejo cruel.

Precisava acabar com aquilo naquele instante. Tinha que readotar seus antigos métodos antes que se humilhasse ainda mais.

E antes que ela lhe causasse uma dor irreparável.

— Não imagina o quanto é lindo quando trabalha na ferraria.

Quando Perséfone entrou, ele havia parado de bater metal contra metal, e sua voz delicada soou alta demais no silêncio. Hades não conseguiu se obrigar a falar.

— Hades? — Lina engoliu em seco e continuou, mesmo sem que ele respondesse. — Eu adoraria conhecer o restante de Elísia hoje. Quer me acompanhar?

Ah, a voz de Perséfone! Era tão jovem e doce.

Por um momento, ele sentiu sua determinação fraquejar.

Então se lembrou da facilidade com que ela se deixara ficar nos braços de Apolo.

Quando se virou lentamente para encará-la, Perséfone não o fitou nos olhos, e Hades sentiu um pouco mais da alma se dissolvendo.

— Temo que nossos passeios tenham chegado ao fim. Como pode ver, há trabalhos a ser concluídos.

Lina sentiu o estômago revirar. O homem que se afastara da forja para falar com ela não era seu amante. Era o deus frio e imperioso que ela havia conhecido assim que chegara ao Submundo.

Não, concluiu, ao estudá-lo com mais cuidado. Sua impressão inicial estava errada. Hades já nem lhe era familiar.

— Pensei que gostasse de me falar sobre o seu reino — murmurou num tom vazio.

Ele riu, contudo o riso não tinha nenhum calor, e seus olhos se mostraram frios e ilegíveis.

— Perséfone, é melhor pararmos com esse...

— Mas, na noite passada... — ela o interrompeu, sacudindo a cabeça. — Não compreendo.

O choque no rosto da deusa o dilacerou. Era tudo fingimento!

Hades quis gritar sua dor, mas preferiu arremessar o martelo pela ferraria com fúria. Quando este caiu, faíscas explodiram por todos os lados, e o chão abaixo deles tremeu.

— Silêncio! — ele trovejou, os olhos também faiscando. — Eu sou o senhor dos Mortos, e não um humilde professor!

Lina sentiu o sangue se esvair da face.

— Então, todo esse tempo você apenas fingiu...

— NÃO ME VENHA FALAR DE FINGIMENTO! — As paredes da ferraria vibraram com a ira do deus.

Antes que ele destruísse a câmara em que estavam, contudo, Hades tratou de pôr a raiva sob controle.

— Não esteve de férias por aqui, brincando de rainha dos Mortos, Perséfone? — indagou, cheio de sarcasmo. — Você pode ser jovem, mas nós dois sabemos que está longe de ser inexperiente. — Desta vez, seu riso foi frio e cruel. — Sim, nossas aulas foram divertidas, mas deve compreender que já é tempo de pormos fim a esta farsa. Como pressinto que a sua visita também está chegando ao fim, nosso timing foi perfeito. Infelizmente, permiti que nosso flerte tomasse muito do tempo reservado aos meus deveres. Se não pudermos nos falar de novo antes que parta, deixe-me desejar uma agradável viagem de volta à Terra dos Vivos. Quem sabe ainda volte ao Submundo um dia? Ou talvez não. — Ele encolheu os ombros com indiferença e, em seguida, deu-lhe as costas, fazendo o pulso tremer com outra martelada, e retomou o ritmo da forja. Não tinha necessidade de vê-la sair.

Logo o suor lhe pingou do rosto, mesclando-se a lágrimas silenciosas, e, ainda assim, Hades continuou batendo contra o metal em silêncio, até que a dor em seus braços refletiu a dor em sua alma.

— Eu não pertenço a este mundo. — Lina sentiu como se seus lábios não contivessem uma só gota de sangue, e expressou o pensamento em voz alta para se assegurar de que estes ainda poderiam emitir palavras. Não lhe fez nenhum bem dizer a si própria que Deméter estava certa, que o tratamento que Hades lhe dispensara era a norma entre os imortais. Ela não era uma deusa, portanto era sua alma mortal que sofria.

Sua alma mortal não conseguia entender.

Deixou a ferraria sem se importar para onde seus pés a levavam. Queria apenas ir para longe dali.

Contornou os estábulos e passou, apressada, entre as fileiras de arbustos ornamentais, mas, em vez de se manter nos caminhos dos jardins de Hades, mergulhou na floresta que o margeava. A despeito do turbilhão de pensamentos, percebeu que refazia o caminho para o prado dos pirilampos, e imediatamente mudou de direção, a mente repelindo as doces lembranças daquela noite. Não suportaria ir até lá.

Mal reparou nos espíritos dos mortos, pouco depois, vendo-os como imagens vagas e distantes que sussurraram seu nome. Seus olhos continuavam embaçados pelas lágrimas não derramadas.

Lina se percebeu grata por nenhuma das almas ter se apro­ximado. Não estava em condições de agir como sua senhora ­naquele momento.

Quando passou, os mortos silenciaram. Algo estava errado com Perséfone. Seu rosto tinha perdido a cor, seus olhos estavam vidrados, e ela não parecia capaz de ouvi-los.

E a deusa se movia com os passos entorpecidos daqueles que haviam acabado de morrer. A preocupação com sua senhora começou a se espalhar por toda Elísia.

Lina continuou andando.

Ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

As três frases eram uma antiga ladainha familiar. Tornaram-se o seu mantra quando o marido a deixara por uma mulher mais jovem, mais perfeita, que poderia lhe dar filhos. Apenas estas a tinham ajudado em meio aos sonhos destruídos e as noites insones. Também a mantiveram inteira após a série de relacionamentos decepcionantes por que passara mais tarde. E a haviam acalmado quando ela percebera que, provavelmente, nun ca amaria outra vez.

Ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

Uma brisa travessa trouxe consigo o perfume inebriante dos narcisos, e Lina estremeceu, recuando ao avistar um leito dessas flores à sua frente. Mudou de rumo, contornando-o e escolhendo o caminho que menos narcisos apresentava.

Levou a mão ao peito, onde a flor de ametista pendia da corrente de prata. O que aquele presente havia significado? Não era um símbolo do amor de Hades. Seu discurso na ferraria tinha deixado isso dolorosamente claro.

Piscou, aflita. Em sua mente ainda ouvia o eco da indiferença em suas palavras. Acariciou o contorno bem trabalhado do narciso de pedra.

Um pagamento pelos serviços prestados. Era isso.

Hades, uma espécie diferente de deus?

Sua risada saiu como um soluço.

Fechou a mão sobre a joia e a puxou, arrebentando a corrente delicada.

— Deméter estava certa. Eu devia saber. — Arremessou o colar ao chão e continuou andando sem olhar para trás.

Ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

Lina só percebeu que a paisagem começou a mudar quando sentiu alívio por não ter de evitar mais os narcisos. Também havia menos espíritos flutuando em sua visão periférica, o que a fez relaxar. Notou vagamente que estava ficando mais escuro, porém as árvores eram muito altas e densas. Elas poderiam facilmente estar bloqueando a luz do céu aquarelado do Submundo.

E ela andara por um bom tempo. Ou assim imaginava.

Mas não se sentia cansada. Na verdade, não sentia coisa alguma.

O pensamento quase a fez sorrir. Deméter não precisava ter se preocupado. Os deuses subestimavam a resistência do espírito mortal.

Era melhor começar a voltar para o palácio. Eurídice devia estar esperando para lhe mostrar os desenhos. Ela desfrutaria da companhia da pequena alma e depois tomaria um longo banho.

Não um banho com a água dos cântaros, lembrou, tratando de afastar o pensamento. Apenas um longo e relaxante banho de imersão.

Pelo tempo que lhe restava no Submundo, podia muito bem evitar Hades. Isso não deveria ser muito difícil. Ele mesmo havia deixado bem claro que se encontrava muito ocupado para se preocupar com ela. Dessa forma, em vez de suspirar pelo deus, ela passaria algum tempo com Eurídice e seria franca com a moça sobre a natureza temporária de sua visita. Também avisaria a pequena alma para ter cuidado com aquela paixão por Iapis. Ele parecia confiável, mas, assim fora com...

Bloqueou o restante do pensamento. Montaria Órion e deixaria que os espíritos em Elísia vissem a deusa da Primavera uma última vez.

Precisava ter todo o cuidado com eles, também. Eles tinham o direito de saber que sua visita era apenas passageira. Poderia dizer que Perséfone continuaria a cuidar deles do Mundo Superior, e, depois, só poderia torcer para que a verdadeira deusa da Primavera cumprisse com sua palavra.

Estabelecer um curso de ação a fez sentir-se bem. Havia estado tão preocupada em fazer isso que nem percebeu ter alcançado a margem da floresta, até que tropeçou em uma das árvores.

Confusa, olhou ao redor, tentando entender onde estava. As árvores terminaram, assim como a grama e a vegetação. A terra ali era estéril e o solo cor de canela, trincado pela erosão. Bem à sua frente, contrastando com a treva ao fundo, avistou a silhueta flamejante de um rio de labaredas.

Lina interrompeu a respiração. O Tártaro! Ela havia tropeçado na borda do inferno!

Vire-se! Refaça seu caminho!

Sua mente sabia que aquela era a coisa mais lógica a fazer, porém seu corpo não a obedeceu.

Foi então que ouviu os sussurros vindos da escuridão além do rio de fogo. Como tentáculos nascidos do ódio, eles a chamaram, tecendo uma rede de lembranças sombrias: cada erro que cometera, cada mentira que tinha contado, todas as vezes em que suas palavras ou atitudes haviam ferido os outros.

Sua alma mortal se encolheu. Lina deixou escapar um choramingo e cambaleou sob o peso de seus próprios erros, caindo de joelhos.

Uma escuridão densa brotou da margem do rio em chamas e a lambeu como gavinhas de ódio. Ela não era uma deusa. Era uma mortal de meia-idade, comum na aparência e uma piada nos relacionamentos. Nenhum homem a amava. Por que amaria? El a não podia nem mesmo ter filhos. Fora uma fracasso como mulher e como esposa. Ficar sozinha era o que ela merecia.

Lentamente, sua alma começou a se separar do corpo de Perséfone, e Lina sentiu-se desintegrar.

— Hades, você tem que vir! — Iapis precisou gritar em meio aos incessantes golpes para ganhar a atenção do deus.

Este se endireitou e limpou o suor do rosto.

— Seja lá o que for, terá que lidar sozinho. Não quero ser incomodado.

— São os mortos. Estão pedindo para falar com você.

A expressão de Hades se tornou sombria e perigosa.

— Eles poderão falar com seu deus no momento em que eu estiver deliberando.

— Não acredito que vá querer esperar pela hora das petições para ouvir o que eles têm a dizer — Iapis insistiu.

— Deixe-me em paz! O que eles têm a dizer não me interessa hoje — ele rosnou.

Sem se abalar com a explosão do deus, Iapis o fitou nos olhos.

— Eles estão dizendo que há algo errado com Perséfone.

Hades continuava vestindo a túnica quando irrompeu da ferraria, mas a cena diante dele o fez parar. Espalhada por todos os níveis de seu paradisíaco jardim estava uma infinidade de almas. Permaneciam em silêncio, lado a lado: moças, virgens, mães de família, mulheres de meia-idade e anciãs.

Uma senhora e uma virgem que Hades reconheceu como uma das que tinha dançado com Perséfone no prado se distanciaram do grupo e se aproximaram dele, fazendo uma profunda reverência.

A mulher mais velha falou primeiro:

— Grande Deus, viemos até o senhor por conta do nosso amor à deusa da Primavera. Algo está errado. A deusa não é mais ela mesma.

— Nós a vimos caminhando pela floresta — contou a mais moça. — Chamamos por ela, no entanto Perséfone não nos ouviu, nem viu.

— Era como se estivesse morta — emendou a velha.

O medo cravou um punhal no coração de Hades.

— Onde ela estava na última vez em que a viram?

— Ali... — As duas mulheres se viraram para apontar o Tártaro.

— Selem Órion! — Ele ordenou com uma voz que chegou aos estábulos.

Então fechou os olhos e respirou profundamente, tentando se acalmar. Bloqueou as vozes dos mortos e concentrou todo o seu ser em Perséfone.

Não demorou a encontrar o elo que unia suas almas. O elo que o avisara de sua presença na ferraria e que, depois, sinalizara o momento em que ela havia partido.

Mas era como um fio cortado. Sua conexão fora prejudicada.

O medo cresceu dentro dele.

— Traga o Cérbero — ordenou a Iapis.

O daimon acenou com um gesto de cabeça e desapareceu.

Hades se voltou para os espíritos das mulheres.

— Fizeram bem em ter vindo até mim.

A velha e a virgem inclinaram as cabeças, assim como a horda de espíritos atrás delas.

Hades buscou um rosto em meio à multidão que o cercava.

— Eurídice! Traga-me uma peça do vestuário de Perséfone. Algo que ela tenha usado recentemente.

Em vez de obedecê-lo de imediato, a pequena alma se aproximou. Seus olhos se encontraram, e Hades sentiu o leve toque de sua mão no braço.

— Precisa trazê-la de volta para nós, Hades — falou, com voz entrecortada.

— Eu trarei — ele prometeu e, em seguida, marchou para o estábulo.


Órion mergulhou na floresta, galopando no encalço do Cérbero. O cão de três cabeças caçava em silêncio, seguindo o cheiro de sua senhora.

Hades sentiu as mãos úmidas de suor e tratou de segurar as rédeas do cavalo com mais força. O garanhão não precisou de estímulo para permanecer na trilha do cão, o qual os conduziu inexoravelmente na direção do reino sombrio do Tártaro.

Os pensamentos fervilharam na cabeça de Hades. Ele devia ter magoado Perséfone além da conta se a fizera rumar para as trevas... Mas não tivera a intenção de fazê-lo. Sua dor e ciúme haviam feito com que se esquecesse do quanto ela era jovem. Perséfone não fazia ideia do lugar para onde estava se dirigindo. E nem mesmo sendo uma deusa estaria protegida do desespero que reinava no Tártaro.

Apavorado, ele tentou se lembrar se ela usava o narciso de ametista quando ele a vira pela última vez.

Sim, tinha quase certeza.

Uma ponta de alívio abrandou seu pânico. A ametista ajudaria a protegê-la. Era uma joia poderosa que ele produzira especificamente para ela. Suas propriedades protetoras eram vastas.

Tentou não imaginar o que poderia estar acontecendo com Perséfone. Como deus do Submundo, conhecia muito bem os horrores do Tártaro, a morada eterna dos condenados. Apenas as almas dos mortais que haviam abraçado as trevas eram levadas para aquela região. Ele odiava aquilo, mas reconhecia a necessidade de haver um lugar que abrigasse o mal imutável.

E sua amada tinha ido justamente para lá.

Órion parou ao lado do Cérbero. O cão farejava em meio a folhas secas e arranhava algo que cintilava como prata na penumbra.

Hades desmontou e apanhou o objeto. Era o colar de ametista de Perséfone! Ela estava sem nenhum talismã para protegê-la.

— Mais rápido, Cérbero! — ordenou, nervoso.

O cão redobrou seus esforços, e Órion respondeu no mesmo ritmo, atravessando a floresta.

De súbito, o Cérbero parou à margem do Flegetonte. Começou a uivar desesperadamente, e todas as três cabeças passaram a cutucar algo que Hades imaginou ser um animal morto.

O relinchar estridente de Órion cortou o ar, e ele partiu num galope até a ribanceira do rio de sangue fervente.

Quando o cavalo estacou, Hades reconheceu o corpo.

— Não! — Saltou do lombo de Órion e empurrou de lado o corpo maciço do Cérbero. Era Perséfone caída sobre a terra rachada. Tinha os braços em torno das pernas e os joelhos pressionados contra o peito numa posição curvada e rígida. Seus olhos estavam abertos, entretanto suas pupilas encontravam-se totalmente dilatadas, e ela olhava, sem ver, a escuridão além do rio flamejante.

Hades seguiu seu olhar. A negritude do Tártaro refluía das margens do rio. Olhou para baixo e viu que as garras das trevas haviam serpenteado do Flegetonte até encharcar o solo ao redor da deusa.

A fúria pulsou por todo seu corpo. Rapidamente, ele se abaixou e amarrou a corrente quebrada em volta do pescoço frágil de Perséfone. No mesmo momento, o narciso de ametista começou a brilhar.

Então o deus levantou os braços, e o ar ao seu redor começou a girar.

Em uma voz amplificada pela raiva e pelo amor, Hades ordenou às garras das trevas:

— Fora! Não têm o direito de prejudicar esta deusa!

As gavinhas escuras estremeceram, contudo não soltaram Perséfone.

— Sou eu, Hades, o senhor dos Mortos, quem está ordenando! Não toquem nela! —rugiu, lançando todo o seu extraordinário poder contra as garras malignas.

As trevas recuaram e, com um som sibilante, se dissiparam como um ladrão se escondendo na noite.

Hades caiu de joelhos ao lado de Perséfone. Agarrou o corpo rígido da deusa pelos ombros e o virou para si.

— Perséfone!

Ela não respondeu. Continuou com o olhar vidrado para a escuridão além do Flegetonte. Tinha o rosto pálido, a pele fria ao toque, e estava ofegante como se com dificuldades para respirar.

— Acabou. Nada pode ameaçá-la agora. Olhe para mim, ­Perséfone!

Ainda assim, ela não reconheceu sua presença.

— Perséfone! Tem que me escutar. — Hades a sacudiu até que sua cabeça chacoalhasse e o Cérbero uivasse, exprimindo sua angústia.

Os lábios da deusa finalmente se moveram.

— Isso mesmo! Fale comigo! — Hades gritou.

— Muitos... erros. Não posso... — A voz dela falhou, e suas palavras se tornaram inaudíveis.

— Não pode o quê? — ele implorou, sacudindo-a outra vez.

— Não consigo encontrar meu caminho... Meu corpo não está aqui. Eu desapareci.

O vazio em sua voz o aterrorizou. O rosto de Perséfone estava branco, e seus olhos continuavam vidrados. A Perséfone que ele conhecia não estava lá. Era como se um eco de seu espírito estivesse falando através de uma concha.

De repente, nada mais importava para Hades exceto trazê-la de volta. Não se importava se a deusa pensava nele apenas como uma missão que a mãe a encarregara de cumprir. Não se importava que Apolo fosse seu amante. Não se importava que ela fosse deixá-lo.

Preocupava-se apenas que ela voltasse a ser a mesma de antes.

Cobriu o rosto frio com ambas as mãos.

— Seu caminho é este... Deve voltar para aqueles que a amam.

Perséfone piscou.

— Volte para nós, minha amada! Volte para mim...

Ela respirou profundamente, e Hades a viu levantar a mão para agarrar o narciso de ametista.

Então piscou outra vez e se esforçou para focar seu rosto.

— Hades — balbuciou com voz fraca.

Com uma exclamação de alívio, ele a puxou para os braços.

— Sim, querida! Sou eu, Hades, o deus arrogante e tolo que a ama!

— ...Leve-me daqui — ela falou chorando, e mergulhou o rosto em seu peito.


Capítulo 24

As mulheres assistiram em silêncio enquanto o senhor dos Mortos carregava sua deusa para o palácio. Embora sua expressão fosse sombria, Perséfone passara os braços pelos ombros largos e tinha o rosto pressionado em seu pescoço.

Uma onda de alívio varreu os espíritos. Ela voltaria a ser a mesma. O amor do deus lhes asseguraria isso.

Tal como o sussurro do vento nos galhos de salgueiro, o burburinho das almas foi cessando conforme estas deixavam as cercanias do palácio.

— Eurídice! — Hades chamou assim que entrou na gigantesca construção.

O espírito se materializou no mesmo instante, tendo Iapis a seu lado.

— Prepare um banho bem quente para a deusa.

— Sim, senhor — ela assentiu e desapareceu.

Iapis acompanhou Hades.

— O que posso fazer?

— Vá até Baco. Diga-lhe que necessito do seu vinho mais potente. Algo que acalme a alma de uma deusa — ele instruiu, tenso.

— Agora mesmo, senhor. — Antes de desaparecer, porém, o daimon tocou a cabeça de Perséfone. — Fique bem, minha senhora — sussurrou e foi embora.

Hades carregou Perséfone direto para o quarto. Um vapor perfumado já escapava da sala de banho e, ao adentrar a névoa úmida, ele encontrou Eurídice correndo em volta, puxando grossas toalhas das prateleiras e escolhendo esponjas macias.

Havia uma poltrona acolchoada perto da parede espelhada e, relutante, Hades colocou nela sua deusa. Os braços de Perséfone deslizaram, inertes, de seus ombros e ela permaneceu sentada e muito quieta, os olhos fechados.

Ele se ajoelhou a seu lado.

— Perséfone? Está em casa agora — falou baixinho.

Um tremor passou pelo corpo de Lina.

— Pode me ouvir, minha amada?

Ela abriu os olhos e o fitou.

— Posso — respondeu com voz inexpressiva.

— Sabe onde está?

— ... Em seu palácio?

— Sim — Hades sorriu, encorajador, ignorando o tom abatido em sua voz.

Iapis se materializou na sala de banho, segurando uma garrafa de cristal cheia de um vinho tinto e uma taça. Serviu a bebida, e um aroma inebriante derivou do vidro: cheirava a uvas e prados, a trigo maduro e noites de verão sob a lua cheia.

Iapis ofereceu a taça a Perséfone.

— Beba, senhora. Isto a reanimará.

Lina tentou segurar a taça, porém sua mão tremia tanto que ela quase a deixou cair. Hades cobriu-lhe a mão com a sua, levando o vinho a seus lábios.

Ela bebeu com vontade, e a magia da bebida dos imortais começou a aquecê-la quase no mesmo instante. Logo, o tremor em suas mãos se acalmou, e ela pôde beber sem a ajuda do deus.

— Pode ir, senhor — orientou Eurídice, assumindo o comando. — A deusa necessita de privacidade para se banhar.

Hades se pôs de pé, contudo hesitou em sair da sala.

— Meu senhor, eu o chamarei quando ela estiver pronta... — garantiu o espírito.

Ele ainda titubeava.

— Ficarei por perto, Perséfone.

A deusa ergueu o olhar.

— Não precisa se preocupar. Estou de volta — disse num murmúrio.

A despeito de seu tom inexpressivo, Hades acenou com um gesto de cabeça e, relutante, saiu da sala com Iapis.

Hades andava de um lado para o outro no corredor, do lado de fora dos aposentos de Perséfone. Quanto tempo ela levaria para se banhar? Eurídice nunca a chamaria? Teve vontade de invadir o quarto e ordenar que a pequena alma saísse. Dessa forma, poderia fazer a deusa ouvi-lo. Perséfone tinha de escutar suas desculpas... Ele era um idiota, um imaturo, um tolo ciumento.

Suspirou. Ela o conhecia. Não deveria ser tão difícil fazê-la acreditar que ele cometera um terrível erro.

A porta se abriu, e Eurídice saiu para o corredor, fechando-a delicadamente.

— Como ela está? — Hades indagou, ansioso.

O espírito fitou o deus nos olhos antes de responder. Quando o fez, parecia muito mais velha do que seus poucos anos.

— Muito combalida, senhor.

Hades passou a mão pelo cabelo.

— Sou eu o responsável.

— Creio que sim — confirmou a moça simplesmente.

Ele assentiu com vigor e virou-se para a porta. A mão pálida de Eurídice o impediu, contudo.

— Seja paciente. Trate-a com cuidado. É difícil para uma mulher amar de novo após ter sido ferida.

Iapis se materializou ao lado da pequena alma. Envolveu-a nos braços, e Eurídice recostou-se nele.

— É difícil para uma mulher amar outra vez depois de ter sido ferida, mas não impossível, senhor — corrigiu o daimon.

Hades os viu se afastar lentamente. Formavam um bonito casal.

Voltou-se para a porta, respirou fundo e entrou nos aposentos de Perséfone.

A deusa vestia uma camisola de seda pura, da cor da luz das velas, e encontrava-se encolhida na espreguiçadeira em frente às janelas altas. Parte das cortinas de veludo tinha sido puxada, e Perséfone parecia estudar os jardins mergulhados na noite enquanto saboreava o vinho de Baco.

— Seus jardins são realmente muito bonitos — falou sem olhar para ele.

Hades atravessou o cômodo e parou ao lado da chaise longue .

— Obrigado. Fico contente por gostar deles.

As palavras soaram inadequadas. Ele não queria uma conversa inconsequente, mas Eurídice o advertira para ser paciente e cuidadoso, e assim ele seria.

Por outro lado, também necessitava abrir seu coração.

Sentou-se a seu lado no divã.

— Perdoe-me, por favor. Sou mesmo um tolo.

Ela se virou para encará-lo em silêncio.

— Eu sabia que ia me deixar, então quis romper tudo primeiro — confessou o deus. — Imaginei que isso pudesse amainar minha dor. Pensei que eu pudesse voltar a ser como era antes de amar você... mas estava errado. Fui egoísta. Não pensei nos seus sentimentos. Como um monstro velho e solitário, pensei apenas em mim mesmo.

Lina ergueu a mão para impedi-lo de continuar.

— Não diga mais nada. Você é um deus e agiu como tal.

— Não! — Hades agarrou sua mão. — Não sou como os outros. Tudo o que eu disse na ferraria era mentira. Eu estava com raiva, ferido... É difícil para mim entender que pode ficar comigo e ao mesmo tempo com Apolo. Eu... — Ele vacilou. — Eu é que não estou acostumado a escolher e descartar amantes como fazem os imortais.

— Hades, Apolo não é meu amante.

O deus estudou seu rosto.

— Mas eu o vi tomá-la nos braços.

Lina piscou, surpresa.

— Estava lá?

— Eu a segui. Ouvi Deméter lembrá-la da maneira como os imortais amam, em seguida vi Apolo abraçá-la.

— Se tivesse permanecido lá um pouco mais, então, teria visto que isso foi tudo o que aconteceu. Eu não quero Apolo, Hades. Se o que Deméter me disse não houvesse me aborrecido tanto, eu nunca teria me deixado abraçar.

Hades passou a mão pela testa.

— Não deseja Apolo?

— Não.

Ele abaixou a cabeça.

— Então a dor que lhe causei foi realmente sem razão. Não sei se pode me perdoar, mas, por favor, acredite em mim quando digo que eu a amo, Perséfone.

Lina desviou o olhar para longe dele.

— Você não me ama, Hades... Ama o que pensa que eu sou. Na verdade, não me conhece.

— Como pode dizer uma coisa dessas? — Ele a segurou pelo queixo e a obrigou a fitá-lo.

— Você ama a deusa. Não a mulher dentro dela.

— Está errada, Perséfone. Mas deixe-me dizer o que eu amo em você, então poderá decidir por si mesma... Eu amo a sua curiosidade sobre tudo. Amo o modo como vê com novos olhos o meu reino. Amo o seu senso de humor, sua bondade e honestidade. Amo sua paixão desenfreada, a maneira como encanta os animais. Amo a sua lealdade. Gosto mais ainda da sua teimosia, pois foi graças a ela que um velho deus não ficou trancado na armadilha da solidão.

Lágrimas caíram dos olhos de Perséfone, e Hades as enxugou com delicadeza.

— Agora me diga... o que eu amo? A deusa ou sua alma?

— Mas não me conhece... não pode conhecer realmente — ela falou com voz entrecortada.

— Sei apenas que sinto a sua presença antes mesmo de vê-la. Alguma coisa aconteceu comigo, e isso pouco tem a ver com o lado físico. Pela primeira vez em uma eternidade, compreendo por que almas gêmeas não podem ser separadas nem mesmo após a morte. É porque seus corações batem em conjunto. Enquanto eu esperava aí, do lado de fora, podia sentir seu coração partindo. Deixe-me curá-lo, Perséfone. Quando eu o fizer, estarei curando o meu próprio.

— É possível que ame a minha alma? — Lina perguntou num sussurro.

Hades sorriu para ela ao sentir o medo dentro dele começar a se dissipar.

— A morte está completamente enamorada da primavera. Se isso é possível, então tudo o mais o é, minha amada.

Ela se deixou abraçar e suas bocas se encontraram. Hades pretendia que o beijo fosse suave e tranquilizador, mas Perséfone abriu os lábios e se espremeu contra ele, pedindo mais.

Seu desejo por ela aflorou, e ele gemeu seu nome conforme esmagava o corpo seminu contra o peito.

— Faça amor comigo! — ela falou, ofegante. — Preciso sentir você dentro de mim.

Hades a ergueu nos braços e a levou para a cama, mas, quando começou a se despir, Perséfone o deteve.

— Deixe-me fazer isso — pediu, rouca.

Sentou-se na beirada da cama, e Hades ficou diante dela, forçando as mãos a permanecer dos lados enquanto ela o desnudava. Estava usando uma versão mais curta de suas volumosas vestes, e ela despiu lentamente a roupa de seu corpo musculoso. Deslizou as mãos por seu peito, sentindo a pele quente e lisa, então se curvou, substituindo as mãos pela boca ao beijá-lo no abdômen.

Hades prendeu a respiração com a sensação da língua úmida sobre a pele, porém Lina não se fartou dele. Sentia-se como se ti­vesse sido despertada da morte e precisava de sua paixão, de seu amor, de seu toque para mantê-la ancorada ali, a seu lado.

Soltou a tanga e a fez deslizar pelos quadris estreitos. Então acariciou o membro rijo nas mãos frias, o tempo todo movendo a boca lentamente mais para baixo.

Quando o engoliu, o corpo de Hades sacudiu num espasmo e oscilou.

— Sua boca é como uma armadilha de seda! — gemeu, crente que seus joelhos cederiam a qualquer momento.

Após um tempo, Lina recuou, por fim, e mirou os olhos escuros.

— Quer ser livre?

Ele a ergueu nos braços e a segurou firmeme nte contra o corpo.

— Nunca! — sussurrou em meio aos cabelos longos. — Nunca, minha amada.

Lina o puxou para a cama. Enquanto o acariciava, Hades explorou todos os seus recantos. A camisola era tão fina que ela se sentia como se envolvida em uma névoa. Ele encontrou seu mamilo e o provocou, sugando-o através do tecido transparente. Lembrou-se dos toques que ela afirmara lhe dar prazer e, desta vez, não precisou que Perséfone guiasse sua mão.

E ela reagiu como se eles tivessem sido amantes durante séculos.

De repente, sentou-se e se livrou da camisola. Quando Hades fez menção de tomá-la de volta nos braços, ela o impediu.

— O que foi, querida?

— Quero que faça algo para mim.

— Qualquer coisa.

— Quero que faça amor comigo com os olhos fechados. Finja que não pode ver o meu corpo. — Ela o fitou, procurando por uma resposta. — Consegue fazer amor comigo sem olhar para mim?

Ele sorriu e fechou os olhos. Sem nada enxergar, abriu os braços para ela, e Lina se deixou perder neles.

Cercado por seu aroma e toque, Hades vagou por um mundo de sensações. Sem ver Perséfone, teve que prestar mais atenção a seus pequenos sons e seguir o movimento de seus quadris e corpo. Quando sua respiração se acelerou, e o nome dele escapou de seus lábios num suspiro, não precisou enxergar seu rosto corado para saber que estava lhe proporcionando prazer. Sentia o desejo dela na alma e respondia com carícia após carícia.

Quando finalmente preencheu seu corpo, eles se moveram juntos, em um ritmo antigo que não precisava de visão ou de sons... apenas de sentimentos.

Pouco mais tarde, Lina se aninhou junto a Hades, a cabeça encostada em seu ombro. Ele não sabia ainda, mas a ajudara a tomar sua decisão, e, agora que ela havia feito isso, sentia-se em paz. Sobreviveria a qualquer coisa que acontecesse em seguida. Nada poderia ser tão terrível quanto o vazio negro do Tártaro.

Com a ajuda de Hades, tinha se livrado daquele último pesadelo e agora precisava se livrar das mentiras que restavam em sua vida. Não estava mais disposta a esconder a verdade dele. Não importava mais a raiva de Deméter... ela contaria tudo. Hades merecia saber, pois a amava com a alma.

— Hades, preciso lhe dizer algo.

O deus sorriu.

— Posso ficar de olhos abertos agora?

Lina riu baixinho.

— Sim.

Sentou-se de frente para ele, o lençol de seda enrolado no corpo nu. Hades apanhou alguns travesseiros da cama em desalinho e se apoiou confortavelmente contra a cabeceira estofada. Ergueu as sobrancelhas escuras, curioso.

— Eu não queria ir para o Tártaro. Foi um acidente. Fiquei apavorada ao perceber onde estava, mas era tarde demais.

Ele franziu o cenho. E só de pensar o quanto Perséfone estivera perto de perder a alma, sentiu o estômago se apertar.

— Eu sei, meu anjo. Nem precisava me explicar isso. A culpa foi minha. Se eu não a tivesse magoado...

— Sshh... — Ela se inclinou para a frente e pressionou um dedo contra seus lábios. — Deixe-me terminar.

O deus pareceu pouco à vontade, mas ficou em silêncio.

— Foi terrível lá. — Ela estremeceu. — Foi como se o Tártaro me chamasse... Sabia coisas sobre mim: cada coisa ruim que já fiz na vida, e até mesmo as que pensei em fazer. Isso me levou a sucumbir. Podia sentir a captura da minha alma, e não havia nada que eu pudesse fazer. — Pegou a mão de Hades e entrelaçou os dedos nos dele. — Foi então que o ouvi... Você me chamou de volta. A mim , Hades. A alma que existe dentro do meu corpo.

— Eu tinha que tê-la de volta. Eu a amo.

— Eu também o amo. Mas precisa saber mais do que isso. Não sou quem você pensa... Não sou...

— Basta, Perséfone! — A voz de Deméter a interrompeu. — Seu tempo aqui acabou. Precisa voltar.

Consternado, Hades deixou a cama de um salto. Sem pensar na própria nudez, encarou a deusa que se materializou bem no meio do quarto de sua amada.

— O que pretende com essa intrusão, Deméter? — desafiou-a, irritado. — Este não é o seu reino. Não tem o direito de interferir aqui.

— Está brincando com minha filha, senhor do Submundo, e vim para buscá-la. Sou sua mãe. Esse é todo o direito de que preciso.

— Você não é minha mãe! — Lina pronunciou as palavras pausadamente, de maneira que não restasse dúvida sobre o que estava dizendo. Pôs-se ao lado de Hades, segurando o lençol sobre os seios.

Deméter suspirou.

— Não me venha com esses joguetes infantis, filha. Sua aventura terminou. Já é tempo de voltar à realidade.

— Sei que não posso ficar, mas não irei embora sem dizer a verdade a Hades. Ele merece saber. Ele me ama.

— Está sendo tola como uma criança! — replicou Deméter.

— Sabe muito bem que estou longe de ser uma criança. Deixe-me dizer, de uma vez por todas: não sou nenhuma idiota. — Lina encarou Hades e mirou seus olhos. — Não sou a verdadeira Perséfone, Hades. Meu nome é Carolina Francesca Santoro, mas a maioria das pessoas me chama de Lina. Sou uma mortal de quarenta e três anos de idade, que possui uma padaria em um lugar chamado Tulsa, Oklahoma. Deméter trocou minha alma pela alma de sua filha. — Olhou para a deusa, e seus lábios se torceram num sorriso irônico antes que ela voltasse a encará-lo. — Ela prometeu me ajudar com um problema que eu tinha, e, em troca, eu precisaria cumprir para ela uma pequena missão no Submundo.

Hades ouvia tudo de olhos arregalados.

— Lembra-se de quando a ouviu me lembrar de como os imortais amavam? Na verdade, Deméter não estava me lembrando disso; ela estava me explicando esse fato porque sou uma mortal. A coisa toda era nova para mim.

— Então não é a deusa da Primavera?

— Não. Não sou a deusa da Primavera — confirmou Lina, tão aliviada por finalmente dizer a verdade que não percebeu o rosto de Hades se tornando inexpressivo. — Eu queria lhe contar tudo, mas dei minha palavra a Deméter de que manteria a minha verdadeira identidade em segredo. — Ela tentou tocá-lo no braço, porém Hades se esquivou do toque.

— As coisas que me disse, que fizemos juntos... Foi tudo fingimento?

— Não! — Lina sentiu um nó no estômago ao ver que ele tornava a se fechar. Estendeu a mão, porém, mais uma vez, ele se afastou dela. — Tudo o que eu disse, tudo o que eu fiz foi sincero! Apenas este corpo é uma mentira. Todo o resto é real. Amar você é a minha mais pura verdade!

— Como o amor pode ser baseado em uma mentira? — ele retrucou, frio.

— Por favor, não faça isso! — Lina insistiu, tentando alcançar o homem dentro do deus. — Não permita que nos separem assim... Não podemos ficar juntos, tenho que voltar para o meu mundo, mas não quero me lembrar desse tipo de palavras quando estivermos ­separados!

— Não implore pelo amor dele como uma mortal, Carolina. — A voz de Deméter a interrompeu. — Ainda tem dentro de você o suficiente de uma deusa para ter mais orgulho.

Lina se virou para encará-la.

— Você causou isso! Hades me ama. Está se sentindo traído apenas por causa da sua insistência em manter uma mentira! E eu não posso culpá-lo... De que outra forma ele poderia se sentir?

Deméter arqueou uma sobrancelha.

— Acredita que ele a ama, Carolina Francesca Santoro? Então vamos testar a sua crença nesse amor imortal...

Com um movimento do pulso, Deméter regou Lina com faíscas douradas.

Ela sentiu o corpo tremer e, de repente, viu-se terrivelmente tonta. Fechou os olhos, lutando contra a náusea. Logo depois, uma estranha sensação a preencheu: como se tivesse acabado de voltar para um confortável par de jeans .

Antes de abrir os olhos, já sabia o que veria. Do outro lado da sala, o espelho que cobria toda a parede, o mesmo em que ela havia se olhado naquela manhã, refletiu uma nova imagem.

Era seu velho corpo outra vez. Fora-se o corpo esbelto da jovem deusa. Suas curvas ficaram mais acentuadas, ela era mais velha e, decididamente, não era perfeita.

— Você é uma mortal! — A voz de Hades soou estrangulada.

Lina desviou o olhar do espelho para pousá-lo no deus. Ele a fitava, e seu rosto era uma máscara de choque e descrença.

— Sim, eu sou uma mortal — confirmou. Endireitando os ombros, deixou cair o lençol, expondo-se por inteiro. — E também sou a mulher que o ama.

Ele virou o rosto, recusando-se a olhar para ela.

— Como pôde mentir esse tempo todo?

— Que bem teria feito a verdade? — Deméter interveio, indignada. — Você a teria evitado como está fazendo agora. — Seu tom tornou-se sarcástico. — Ao menos possuiu o corpo de uma deusa finalmente, senhor dos Mortos. A ironia é que terá de agradecer a uma mortal por isso. Nenhuma deusa de verdade haveria de querê-lo.

O rosto de Hades ficou branco como cera, e ele travou o maxilar. Quando seus olhos encontraram os de Lina, ela só viu raiva e repugnância refletidas neles.

— Saia do meu reino — ele ordenou com uma voz que fez arrepiar seus braços.

— Vamos, Carolina... Seu tempo aqui acabou. — Deméter se pôs ao lado dela e a cobriu com seu manto.

E, sem mais nenhuma palavra, fez o Palácio de Hades desaparecer de seu entorno.


Capítulo 25

A campainha sobre a porta da frente da Pani Del Dea tilintou alegremente, permitindo a entrada de outro fluxo de clientes, bem como uma rajada de ar frio.

— Brr — Anton estremeceu. — Que droga! O inverno chegou, mesmo. Minha pele está um horror!

— Os meteorologistas estão prevendo mais neve do que o normal nesta temporada. É melhor fazer um bom estoque de hidratantes e comprar sapatos mais apropriados — Dolores observou, apontando os pés do colega.

— O que há de errado com os meus? — Anton respondeu, amuado, virando o pé de um lado para o outro, de modo que a padaria inteira pudesse admirar suas botas de cowboy de pele de enguia pretas, brilhantes, de ponta fina e salto sete.

— Lina! — ele chamou do outro lado do salão. — Acha mesmo que eu preciso de sapatos novos?

Ela olhou por cima da máquina de cappuccino . Queria dizer que não se importava com sapatos, nem com clima, nem com nada... mas a expressão ansiosa de Anton a lembrou de que precisava disfarçar. Precisava continuar fingindo, não importando como realmente se sentia.

— Suas botas estão perfeitas, meu querido. Mas lembre-se de que o meu seguro não cobre tombos fora da padaria.

Risos ecoaram na Pani Del Dea. Os clientes sorriram e passaram a fazer seus pedidos. Todos pareciam felizes. O negócio vinha crescendo a olhos vistos e, nas duas últimas semanas após ela ter voltado, Lina se surpreendera com as mudanças que Perséfone implementara durante os últimos seis meses.

A deusa da Primavera tinha mesmo operado milagres por ali. Sua campanha publicitária fora um prodígio. Novos clientes lotavam a loja dia e noite, a maioria deles clamando por algo em que pudesse espalhar o incrível cream cheese de ambrosia que era oferecido exclusivamente na Pani Del Dea. A criação de Perséfone era um sucesso.

E não fora apenas essa a mudança feita pela deusa. Em vez de começar a trabalhar com menus para eventos, como ela, Lina, imaginara que deveria, Perséfone introduzira a padaria no comércio virtual. Oferecia pela internet uma cesta com uma enorme ­variedade de seus melhores pães, como o gubana, acrescentava uma lata pequena de cream cheese de ambrosia e a despachava para todos os Estados Unidos... por um preço escandalosamente alto.

Mesmo assim, o novo serviço vinha crescendo cada vez mais. Perséfone tinha até mesmo contratado um novo funcionário em tempo integral, apenas para que este cuidasse desses pedidos pela rede.

Lina não se conformava. Fora necessária a vinda de uma deusa antiga para que ela enxergasse o potencial da internet. Agora sua dívida com a Receita poderia ser paga três vezes... assim como Deméter havia prometido. Tudo estava bem.

E ela se sentia tão infeliz que tinha vontade de morrer.

Não. Não queria pensar em morte, nem em espíritos... muito menos no senhor do Submundo.

O sino sobre a porta tiniu outra vez.

— Olá, bonitão — Anton saudou, brincando.

— Tudo bem, Anton? Bonitas botas... — falou uma voz máscula e profunda.

Anton riu, todo alegre.

Lina apertou os lábios e se preparou, feliz por ter a máquina de cappuccino entre ela e o visitante. Ao menos ele não tentaria beijá-la.

— Boa noite, Lina.

— Olá, Scott. — Ela suspirou e olhou para o rapaz alto e musculoso, notando os cabelos loiros, de corte impecável, e os olhos azuis que a fitavam com adoração. Ele vestia um terno bem cortado, gravata vermelha, e o traje nada fazia para camuflar seu físico impressionante, pelo contrário: o corte italiano o acentuava. Não pela primeira vez, Lina pensou que Scott poderia ter sido um jovem Apolo se o deus da Luz viesse à Terra como um bem-sucedido ­advogado de Tulsa.

Não era difícil entender por que Perséfone tinha se sentido atraída por ele. O fato não a surpreendera em nada.

O que não entendia era por que ele se mostrava tão encantado com o seu retorno.

— Ainda tenho ingressos para a primeira fila de Aida... Pensei em ver se mudou de ideia. Não quero ir à ópera sem você — insistiu Scott.

— Obrigada, mas não. Eu realmente não posso.

— Por que, Lina? Não compreendo. Duas semanas atrás...

— Aqui não, Scott — ela o interrompeu, mortificada por a padaria inteira estar em silêncio, acompanhando a cena, embora fingissem que nada acontecia.

— Então quando e onde? Está me evitando há duas semanas. Mereço uma explicação.

Saber que ele estava certo não fez Lina sentir-se menos miserável, nem tornou sua decisão menos certa. Scott era lindo e incrivelmente sexy . Somado a isso, parecia um sujeito agradável e honesto.

Mas ela não sentia nada por ele.

Seria tão mais fácil se estivesse apaixonada! Perder-se numa paixão juvenil até soava como uma boa ideia.

Ela até tentara sair com Scott, mas, quando ele a tocara, não havia sentido nada, exceto aquele vazio dolorido dentro dela. Scott não conseguiria fazê-la esquecer.

— Venha — chamou. Saindo de trás do balcão, segurou-o pelo braço e o levou até a porta.

Enquanto deixavam a padaria, Lina ainda pôde ouvir Anton suspirando tristemente.

— Que desperdício!

A noite estava fria, e ela já devia ter colocado as pequenas mesas e cadeiras da calçada para dentro, mas, como precisava de uma barreira entre ela e o rapaz, ficou feliz por não ter feito isso. Sentou-se a uma das mesas, e Scott se acomodou numa cadeira à sua frente.

Antes que dissesse qualquer coisa, ele mudou de posição, sentando-se junto dela. Ao vê-la estremecer, tirou o paletó e o ajeitou em seus ombros. O casaco estava quente e cheirava a uma daquelas colônias pós-barba caras e másculas. Scott teria segurado sua mão, porém Lina a manteve fora de seu alcance, no colo.

— Scott — começou, desejando sinceramente que o modo ­sensual como a camisa branca assentava no peito musculoso a fizesse sentir mais do que admiração por aquela bem tonificada compleição física. — Eu já lhe disse antes... Não há mais nada entre nós. Eu gostaria que compreendesse isso e esquecesse tudo.

Ele balançou a cabeça.

— Não posso. Não há nenhuma razão para isso. Apenas duas semanas atrás estava tudo bem... Melhor do que bem. Então um dia eu acordo e, zás! , está tudo acabado? Não há explicação. Depois de quase seis meses, você me dispensa sem nem mesmo dizer que asneira eu fiz?

— Não fez asneira nenhuma. Merda! Eu já lhe disse isso antes: o problema é comigo.

Você é perfeito , acrescentou em silêncio. Jovem, bonito, bem-sucedido e atencioso. Scott precisava encontrar uma moça linda como ele e estabelecer-se nas redondezas após conseguir um belo financiamento. Em seguida, devia ter dois ou três filhos e um cachorro.

— Então me diga outra vez. Não compreendo como pode, de repente, estar tão diferente! O que aconteceu?

— Você é moço demais para mim — Lina falou, sincera.

— Pare com isso! Tenho vinte e cinco anos, não quinze! Não sou tão jovem assim.

— O problema é que eu estou velha demais para você.

— Claro que não... — Scott se inclinou para a frente e puxou sua mão do colo, mantendo-a entre as suas. — Não me importo que esteja com quarenta e três anos. Ainda é bonita e sexy , mas também muito mais do que isso. Seu coração é jovem, você ilumina tudo por onde passa, Lina. Quando estávamos juntos, você me fazia sentir como um deus.

Ela sorriu tristemente.

— Não sou mais assim. Não me sinto mais assim. — Levantou-se e tirou a mão da dele. Em seguida deixou cair o paletó dos ombros e o entregou de volta. — Não posso lhe dar o que você precisa. Não tenho mais isso dentro de mim. Por favor, Scott, não me procure mais.

— Não... — Ele balançou a cabeça. — Estou apaixonado!

— Está bem, então aqui vai a verdade: estou apaixonada por outra pessoa.

O rapaz se endireitou na cadeira e franziu o cenho.

— Outra pessoa?

— Sim. Eu não queria que acontecesse, mas aconteceu. Sinto muito. Eu não queria magoar você.

O rosto bonito de Scott corou, e Lina o viu erguer uma barreira de orgulho entre eles. Ele se levantou, o maxilar cerrado, porém seus olhos continuaram tristes.

— Eu não tinha percebido que havia mais alguém, mas devia ter desconfiado. Você é boa demais para estar sozinha. Peço desculpas por tê-la incomodado. Adeus, Lina.

— Adeus, Scott — ela respondeu enquanto ele se afastava a passos rápidos da padaria.

Sentindo-se com setenta e três anos, em vez de quarenta e três, Lina readentrou a loja.

Anton, Dolores e os demais a fitaram cheios de expectativa, mas, quando viram que ela se encontrava sozinha, desviaram o olhar rapidamente.

— Acho que vou para casa mais cedo hoje — Lina anunciou com um suspiro.

— Sem problemas, patroinha. — Anton sorriu e afagou-lhe o braço, maternal.

— Nós fechamos a casa, pode deixar — emendou Dolores. — Precisa se dar algum tempo... Tem trabalhado muito pesado.

Anton anuiu com um gesto de cabeça.

— Por que não dorme até mais tarde amanhã, depois faz uma boa massagem e um tratamento facial? Sabe... naquele lugar que descobriu alguns meses atrás? Você mesma disse que eles sabiam tratá-la como uma deusa.

— Quer que eu ligue e marque uma hora? — Dolores se ofereceu.

— Não, eu vou ficar bem — murmurou Lina, apanhando a bolsa e o casaco. — Mas está certo, Anton. Acho que vou dormir até mais tarde amanhã. — Tentou sorrir para os dois, contudo seus lábios não formaram mais do que uma careta.

— Ah... Estamos quase sem cream cheese de ambrosia. É melhor preparar mais um pouco. Aliás, você bem que poderia nos dar a sua receita secreta — observou Dolores, balançando as sobrancelhas para a chefe.

— Sim, até já prometemos não vendê-la para terroristas ou para essas padarias industrializadas! Mesmo que esse cream cheese maravilhoso fosse dar vida nova àqueles bolinhos horríveis que eles fazem — Anton estremeceu dramaticamente.

Lina tentou recobrar seu senso de humor.

— Uma mulher tem que ter seus segredos. — Piscou para o empregado e pendurou a bolsa no ombro. — Eu os vejo amanhã à tarde com um barril inteirinho de cream cheese de ambrosia — prometeu, atravessando a porta.

Seus funcionários a observaram. Assim que ela estava fora de vista, encontraram-se atrás do balcão e uniram as cabeças.

— Há algo errado com ela — afirmou Dolores.

— Claro que há! — emendou Anton. — Pois então ela não rompeu com aquele “pedaço de mau caminho”?

— É pior do que isso. — A moça suspirou. — Lina gostava de Scott, mas tenho a sensação de que ele nunca significou mais para ela do que um passatempo agradável. Terminar com ele não a deixaria tão triste.

Anton pensou por um momento, depois acedeu.

— Tem razão. Deve ser outra coisa. É como se ela não fosse a mesma pessoa novamente. Lembra-se de como agiu estranho há alguns meses?

— Claro que me lembro. Mas Lina estava preocupada em perder a padaria.

— Bem, ela salvou a Pani Del Dea, e isso lhe fez muito bem. Lina mudou por completo. Comprou roupas diferentes, começou a andar de patins ao longo do rio... Juro que ela perdeu uns dez quilos!

Dolores assentiu.

— Até mudou o cabelo.

— E começou a namorar homens mais novos! Aliás, que homens! — Anton comentou.

— Então, qual é o problema? Até aí não há nenhuma novidade. O que isso tem a ver com o que está acontecendo com ela agora? — questionou a funcionária.

Anton encolheu os ombros.

— Será que é uma crise retardada de estresse? Ou talvez seja uma síndrome de dupla personalidade se manifestando na meia-idade.

Dolores revirou os olhos.

— Tem que parar de assistir tanto ao Discovery Health ! O que eu imagino é que ela tenha, mesmo, trabalhado demais e agora precise de férias.

— Que droga! Você sempre estraga o efeito dramático da coisa! — protestou Anton.

— Vamos simplesmente manter um olho nela e poupá-la do trabalho tanto quanto nos for possível, OK?

— OK.


Capítulo 26

— Sim, sim, eu sei, eu também te amo! — Lina lutou para passar pela porta, lidando com sua entusiasmada buldogue que babava. — Edith Anne, quer se comportar? Deixe-me tirar o casaco e pendurar a bolsa. — A buldogue recuou meio passo, ainda ganindo e se contorcendo.

Indignado, Patchy Poo the Pud saltou de seu lugar cativo na espreguiçadeira e começou a se esfregar nas pernas dela, queixando-se, com miados estridentes, de que ela não estava lhe dando atenção.

— Seus malucos — Lina murmurou, pendurando o casaco. — OK, venham aqui. — Sentou-se no meio do vestíbulo e permitiu que Edith subisse em seu colo enquanto coçava Patchy debaixo do queixo.

A buldogue a lambeu feliz. O gato ronronou.

Lina suspirou.

— Bem, pelo menos vocês dois sentiram falta do meu verdadeiro eu...

Seus bichos de estimação pareciam tão bem alimentados e saudáveis quanto na noite em que Deméter a transportara para longe. Desde o momento em que ela reaparecera no meio da sala, contudo, os dois não queriam deixá-la mais fora de vista e a seguiam de cômodo em cômodo. Patchy Poo the Pud chegava ao cúmulo de ficar do lado de fora do banheiro, miando enlouquecedoramente se ela não o deixasse entrar.

— Vocês precisam relaxar! — Lina repreendeu as criaturas adoráveis. Mas, no fundo, estava gostando que eles estivessem tão contentes por ela ter voltado.

Pelo menos não era uma decepção para eles. Todos os outros a olhavam como se, de repente, ela tivesse um terceiro olho...

Não, não era isso. As pessoas não a vinham tratando como se ela estivesse fazendo algo estranho: tratavam-na como se ela não estivesse fazendo coisa alguma; como se esperassem mais dela.

Como Perséfone tinha sido mais “Lina” do que ela própria?

Suspirou e empurrou Edith Anne para fora do colo. Perséfone era uma deusa. Era claro que as pessoas desejavam que ela fosse como Perséfone. Quem não gostaria de viver às voltas com uma divindade?

Hades...

Seus pensamentos sopraram o nome antes que pudesse evitar. Hades tinha gostado de estar com ela mais do que com qualquer deusa.

Lina balançou a cabeça.

— Não —lembrou a si mesma. — Isso não é verdade. Ele só quis ficar comigo enquanto pensava que eu era Perséfone.

Recordou-se da expressão dele no momento em que vira quem ela realmente era.

— Não! — gritou para si mesma. Não pensaria mais naquilo.

Tinha de se recompor. Vinha agindo como uma adolescente rejeitada por duas semanas. Já fora magoada antes, por que agora seria diferente? Não estava passando por outro divórcio.

Lina olhou o corredor vazio sem ver. Não era como um divórcio. Era pior.

Por que sentia como se parte dela, sua melhor parte, estivesse faltando?

Lembrou-se da noite em que ela e Hades tinham visto o casal bebendo do rio Lete. Ele havia dito que almas gêmeas sempre se reencontravam.

Mas o que acontecia quando estas estavam separadas pelo tempo e habitando dois mundos diferentes? Será que seus corações se tornavam estéreis? Será que sua capacidade para a felicidade minava até que eles se transformassem em conchas vazias e ambulantes, passando pela vida sem qualquer emoção, sem se sentir vivos?

De qualquer modo, não era o que estava acontecendo com ela. Hades não poderia ser sua alma gêmea, pois a tinha rejeitado.

E ela já estava velha demais para continuar apaixonada por alguém que não poderia ter. Cometera um grave erro. Agora teria simplesmente que superar aquilo e tocar a vida.

Mas ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

Edith Anne gania enquanto Patchy Poo the Pud se esfregava em suas pernas, preocupado.

Lina empurrou para longe a tristeza de seu coração e endireitou os ombros.

— OK, vocês dois. Vamos fazer um pouco de cream cheese de ambrosia.


Não importava quantas vezes ela o lesse, o papel ainda lhe causava um estranho pressentimento. A folha em que a receita fora escrita era de seu bloco pessoal, com as iniciais “CFS” impressas na parte superior, e na fonte Copperplate Gothic Bold, de que ela tanto gostava. As palavras tinham sido traçadas com sua caneta azul favorita, e a caligrafia era idêntica à dela própria.

Mas não havia escrito aquilo. Encontrara a receita colada com fita adesiva à tigela de Edith Anne no dia em que Deméter a trouxera de volta e quase a ignorara. Afinal, parecia feita em sua própria caligrafia. Tinha imaginado que fosse apenas uma nota qualquer, lembrando-a de comprar mais ração, guloseimas ou outro item da parafernália própria de um cão.

Então, finalmente registrara a saudação Querida Lina , e seus olhos haviam voado para o final do bilhete: Com meus votos de muita alegria e magia, Perséfone.

Levara a mensagem para a sala a fim de lê-la. Em seguida, assim como fazia naquele momento, pensara como era bizarro que ela e Perséfone possuíssem letras idênticas.

Querida Lina,

Os seis meses estão chegando ao fim, mas parece que estou aqui há muito mais tempo. Este se passa, mesmo, de forma diferente no seu mundo. Minha mãe me chamará em breve, e quero ter certeza de que você terá a receita para a ambrosia. Nossos clientes a adoram, e não quero vê-los desapontados.

Que estranho! Só agora percebi que os chamei de “nossos clientes”...

Mas eu os considero como tais. Seus amigos mortais são boas pessoas. Vou sentir falta deles.

Mas não do seu gato ou dessa cadela babona, embora o seu bichano preto e branco finalmente tinha se dignado a dormir comigo, e ontem a cadela tenha latido de modo protetor para um estranho que tentou me abordar enquanto eu brincava na beira do rio.

É... Talvez eu sinta falta deles.

Lembre-se de se divertir na vida, Lina. Você foi muito abençoada.

Com meus votos de muita alegria e magia ,

Perséfone

A receita de cream cheese fora cuidadosamente escrita no verso da nota.

Lina a estudou mais uma vez. Não queria segui-la, porém Perséfone estava certa: seus clientes a amavam, e ela também não queria decepcioná-los.

Encheu outra vez o copo de Pinot Grigio , deixando a garrafa no balcão, ao lado do pote que ela já preenchera com creme de queijo batido. Não precisou checar o calendário para saber se era lua cheia. Tudo o que teve de fazer foi olhar pela janela da cozinha.

Não havia dúvida: uma lua redonda e branca cintilava no céu claro.

— Vamos acabar logo com isso. Como se você não estivesse acostumada à magia! — Apanhou um copo medidor do armário. — E pare de falar sozinha!

Colocou a receita no balcão e começou a seguir os passos que a fariam produzir o cream cheese de ambrosia.

A receita de Perséfone era prolixa, e Lina tomou um gole do vinho enquanto a lia.

Encha aquele bonito pote amarelo – aquele da cor das madressilvas selvagens – com cream cheese. Deixe o queijo amolecer. (E, Lina, não utilize aquelas misturas de baixa caloria horrorosas... Seu sabor chega a ser uma blasfêmia!)

Lina não pôde evitar sorrir. Ela e Perséfone tinham a mesma opinião quanto a cozinhar com ingredientes de baixa caloria.

Em seguida, adicione um copo do seu vinho branco favorito ao creme de queijo e misture bem. O tipo do vinho não é importante, contanto que não seja muito doce. (Aliás, Lina, eu adorei aquele Santa Margherita Pinot Grigio que encontrei em seu refrigerador. Espero que mamãe me dê tempo suficiente para repô-lo antes de ela nos destrocar! Caso contrário, peço desculpas por acabar com o seu estoque.)

Lina riu.

— Desculpas aceitas.

Realmente, quando ela voltara não tinha uma só garrafa de vinho branco.

Após adicionar a bebida ao creme, beba o que restou na garrafa. (E, Lina, não subestime a importância desta etapa!)

Lina serviu-se de mais uma dose de vinho após acrescentar a primeira ao cream cheese . Tentou não engolir tudo de uma vez, mas queria acabar logo com aquilo.

Quanto mais bebia, mais fácil era para ela admitir: Perséfone devia ser divertida.

Leu o restante da receita, já com um sorriso induzido pelo álcool nos lábios.

Em uma noite de lua cheia, pegue a mistura e coloque-a sob o velho carvalho. Você já o conhece. Fica no pátio, próximo à fonte. Espalhei um pouco da magia da primavera por lá. (Não se surpreenda se vir uma ninfa ou duas, embora elas morram de vergonha de se mostrar no seu mundo). Antes de deixar a mistura na árvore, deve dar três voltas completas no tronco dançando, e, ao mesmo tempo, concentrar os pensamentos na doce beleza da noite. (Lina, não precisa fazer nenhum passo específico de dança. Basta ouvir a sua alma e se divertir! Aposto que seu corpo vai surpreendê-la, assim como me surpreendeu...)

— Ahn? — ela gemeu e releu a linha. — “Assim como me surpreendeu”?

Não tinha ideia do que Perséfone queria dizer com aquilo.

Mas os olhares penetrantes que Scott lhe lançara e a dificuldade que ele havia tido para manter as mãos longe dela eram uma pista.

Não que ela houvesse se mantido muito casta no corpo de Perséfone.

Mas não queria pensar naquilo.

Voltou a atenção para o final da receita:

Vá buscar a mistura pronta na manhã seguinte. Para consumo mortal, deve diluí-la dez vezes. (Tenha cuidado, Lina. Não imagino o que aconteceria se Anton a experimentasse em sua forma original!)

— Novidade... Ele decerto criaria asas e voaria como uma ­ninfa! — Lina murmurou, rindo.

Recompôs-se novamente. Perséfone tinha acabado de fazê-la rir duas vezes! E nem estava ali. Não era à toa que todos a amavam tanto.

— Bem, crianças — disse a Patchy Poo the Pud e Edith Anne. — Vou terminar esta última taça de vinho, depois levar este pote “cor de madressilva”, colocá-lo sob aquela árvore velha, fazer algumas piruetas, e, em seguida, me jogar na cama. — Deixou escapar um soluço, e seus animais de estimação a fitaram com olhos acusadores. Eles sempre sabiam quando ela havia bebido demais.

Lina passou um braço em volta do pote e rumou para a saída com a visão turva. Edith Anne, claro, ficou bem no meio do caminho.

— Não se preocupe, garota. Não vou a lugar nenhum sem você. — O lado bom de a cadela ser tão ligada a ela era que nem precisava se preocupar mais com uma guia. — Vamos voltar logo, prometo! — disse a Patchy Poo the Pud, que as observava com um misto de desdém e preocupação.

A noite tinha ficado mais fria, e Lina desejou ter apanhado um casaco. Mas a blusa de cashmere de gola alta que Perséfone adicionara ao seu guarda-roupa era confortável e quente, mesmo sendo de um rosa delicado, mais apropriado a uma adolescente do que a uma mulher de meia-idade.

Sem dizer que ela sempre ganhava elogios quando a usava.

Esqueça , disse a si mesma. Não sentia nem vontade de se preocupar com roupas. E, se não estava disposta a ir às compras, não havia muito que pudesse fazer a respeito.

Sem dizer que, em seis meses, Perséfone tinha substituído cada item em seu armário. Tudo. De sapatos e jaquetas a sensuais calcinhas e sutiãs de seda.

— Onde aquela criatura encontrou tempo para isso? — perguntou a Edith Anne.

A cadela bufou em resposta, mantendo o ritmo a seu lado.

Lina abanou a cabeça.

— Eu não sei. Perséfone deveria ser renomeada a deusa do ­Shopping em vez de a deusa da Primavera.

Deu uma risadinha. Para falar a verdade, estava mesmo um pouco bêbada. Só podia estar se continuava rumando para aquele lugar outra vez...

Seguiu o caminho de paralelepípedos que ligava o condomínio ao pátio central e ouviu a fonte antes mesmo de avistá-la. Seis meses e duas semanas antes, esta tivera um efeito calmante sobre ela. Naquele momento, porém, conforme se aproximava, sentia o estômago cada vez mais apertado.

Por sorte, a área se encontrava deserta. Lina olhou para o relógio, torcendo o pulso para que a marca fosse iluminada pela luz da lua cheia: 22h45. Como havia ficado tão tarde?

Respirando fundo, aproximou-se do velho carvalho. O mesmo em que descobrira o bonito narciso.

E este se encontrava exatamente como seis meses antes. Naquela ocasião, os galhos haviam estado nus, exceto por botões à espera de desabrochar. Agora, os ramos se apresentavam quase desnudos outra vez, e havia apenas umas poucas folhas da cor de sacolas de papel presas a estes.

Olhou mais embaixo. Raízes grossas e retorcidas cruzavam o chão a seus pés.

Devagar, ela circundou o tronco, estudando as sombras. Exceto pela poeira e pelas raízes, a área em torno da base da árvore estava vazia. Não havia nenhuma flor que cheirasse à primavera e a primeiros beijos ao luar...

Mas o que ela esperava?

Franzindo as sobrancelhas, Lina assentou o pote de creme de queijo e o vinho em um nicho meio achatado entre as duas raízes junto ao tronco da árvore. Então recuou.

Em sua mente, pôde ler as instruções de Perséfone:

Antes de deixar a mistura na árvore, deve dar três voltas completas no tronco dançando, e, ao mesmo tempo, concentrar os pensamentos na doce beleza da noite. Está bem , pensou, esfregando as mãos. Vou pensar em como a noite está bonita, dançar em volta do carvalho, e pronto.

Olhou ao redor. Exceto por Edith Anne, que continuava sentada a poucos metros dali, observando-a atentamente, o pátio continuava deserto.

— Ainda bem... Ou pensariam que eu sou louca.

Edith bufou mais uma vez.

— Não se preocupe, isto não vai demorar muito.

Pense sobre a beleza da noite , Lina disse a si mesma.

Olhou para cima. A lua estava realmente bonita, parada lá como um disco de prata iluminado por dentro.

Deu um passo hesitante, levantando as mãos acima da cabeça, e se virou. A luz do luar perpassou os galhos da árvore e acariciou o cashmere que lhe cobria os braços, tingindo-o de um rosa prateado que lembrava o peito de uma pomba. Lina pulou uma raiz, surpresa com a graça com que seu corpo efetuou o movimento, e circundou o carvalho uma vez.

Uma brisa suave soprou através dos ramos da velha árvore, e as folhas secas entoaram uma suave melodia de outono. Ela levantou os braços e rodopiou enquanto erguia o rosto para o céu e deixava a lua lhe acariciar a pele. A noite se espalhava, linda e mágica, quando circundou a árvore pela segunda vez.

Ficou na ponta de um pé, lançou a perna para a frente, e logo pensou ouvir um zumbido de vozes femininas em harmonia com o ruído das folhas. Pelo canto do olho, percebeu silhuetas familiares se juntando a ela no círculo de dança. Elas cintilavam, e suas asas zuniam melodicamente.

Com os braços estendidos, Lina pulou, girou e se deleitou com a beleza da noite.

E circundou o carvalho pela terceira vez.

Parou. Estava ofegante, e sua respiração se revelava no ar frio como pequenas e mágicas nuvens. Olhou ao redor, porém as ninfas que tinham dançado com ela haviam desaparecido.

Edith Anne se aproximou com seu andar gingado, farejando a base da árvore, curiosa. Pondo as orelhas para a frente, olhou os ramos do carvalho logo acima.

— Elas se foram — explicou Lina. — Vamos, garota... É hora de irmos também.

A dança havia deixado seu corpo mais vivo do que estivera nas últimas duas semanas. Talvez ela devesse dançar mais vezes.

Anton e Dolores também haviam lhe questionado várias vezes sobre o porquê de ela, de repente, ter parado de andar de patins ao longo do rio...

Lina pensou a respeito. Ela nunca havia andado de patins.

Mas Perséfone, obviamente, o fizera muitas vezes. Seus funcionários nem precisariam ter lhe contado isso... Seu corpo diminuíra pelo menos um tamanho, e suas pernas e nádegas se apresentavam bem mais firmes do que quando tinha vinte anos.

Caminhou de volta para o condomínio e, antes que mudasse de ideia, foi direto para casa, arrancou os sapatos e a roupa, e ficou nua diante do espelho que cobria a parede. Parecia bem mais nova do que uma mulher de quarenta anos agora. Exceto pelas manchas escuras sob os olhos, estava com a pele até mais viçosa e saudável. E usava o cabelo como Perséfone usara: nos ombros e com os cachos soltos, meio rebeldes. Seus seios já não eram tão perfeitos e empinados, porém cheios e sensuais. Sua cintura continuava delgada, e os quadris se curvavam graciosamente até as coxas firmes, as quais desciam para pernas bem torneadas.

Sorriu com o pensamento. Ela era bonita, inteligente, sexy e bem-sucedida: tudo o que um homem deveria querer.

— Já é hora de superar sua dor, Lina — disse a si mesma.

Conformada, apagou a luz do banheiro e se enfiou na cama. Sentiu o colchão afundar quando Patchy Poo the Pud se aninhou junto a seu quadril. Como de costume, Edith Anne deu duas voltinhas e, com um suspiro, se acomodou em sua própria cama.

Lina fechou os olhos. Antes de adormecer, fez uma promessa a si mesma. Na manhã seguinte começaria de novo.

Perséfone tinha razão: ela fora ricamente abençoada.


A deusa da Primavera estava distraída quando sentiu sua magia ser utilizada. Tão discretamente quanto lhe foi possível, Perséfone se desculpou e interrompeu a conversa cansativa com Hermes e Afrodite. Os imortais se despediram dela com um aceno e continuaram a debater se as Limoníades, as ninfas dos prados e das flores, eram mais belas do que as Napaeae, ninfas dos vales. Nem se importaram que a jovem deusa estivesse deixando a discussão. Ela era especialista em ninfas da floresta, mas vinha agindo de modo reticente e não tivera nada de divertido a acrescentar sobre o assunto. Na verdade, eles quase não notaram sua partida.

Mas Deméter notou.

— Filha, aonde está indo?

Perséfone fez uma pausa e esboçou uma expressão inocente de tédio antes de se virar para a mãe.

— Ora, mamãe, sabe que eu não suporto ficar trancada aqui enquanto as flores estão desabrochando. Os prados me chamam.

— Está bem, criança. Espero vê-la esta noite no Festival de Chloaia.

— Claro. — Perséfone se curvou e deixou a mãe na sala do trono.

Deméter observou a filha partir com os olhos estreitados, pronta a admitir para si mesma que trocar a mortal por Perséfone fora um erro.

Verdade que seu plano tivera o efeito desejado. A jovem deusa havia amadurecido. Para sua surpresa, continuava a ser chamada de rainha do Submundo, e os familiares dos mortos cessaram com as súplicas.

Mas a que preço? Desde seu retorno, Perséfone vinha se comportando de uma forma mais sóbria. Raramente dava festas e havia parado de se relacionar com semideuses. Mas também andava com o humor instável e distraída. Grande parte de seu brilho tinha esmaecido.

Deméter se preocupou com a filha, assim como com Carolina Francesca Santoro. A mortal parecia ter firmado lugar na consciência da jovem deusa, e aquele não era um arranjo muito confortável.

Suspirou. Não conseguia esquecer a tristeza no rosto de Lina quando Hades a rejeitara. No final, ela havia lhe causado uma ­grande dor, e não fora essa a sua intenção.

Depois começaram aqueles rumores preocupantes. Os imortais diziam a boca pequena que Hades enlouquecera, que não recebia absolutamente ninguém. Fora dito ainda que ele se recusara até mesmo a conceder uma audiência a Zeus, quando este adentrara seu obscuro reino.

— Irene — Deméter chamou sua velha amiga. — Preciso fazer algo a respeito de Hades.

— Outra vez? — perguntou a mulher.

— Outra vez — confirmou a grande deusa.


Por meio do oráculo da mãe, Perséfone assistiu à dança em torno do carvalho e sorriu quando pequenas ninfas se juntaram a Lina. O corpo da moça girava e saltava com uma graça que não era exatamente mortal.

— Seu corpo se lembra — a deusa da Primavera sussurrou para o oráculo. — Ele foi abençoado pela presença de uma deusa e nunca mais será o mesmo.

Assim como ela nunca mais seria a mesma, concluiu em silêncio. Carolina tinha saído de seu corpo, mas havia deixado para trás uma parte de sua essência.

Distraidamente, acariciou o narciso de ametista que lhe pendia entre os seios. A corrente se quebrara, porém ela o mantivera amarrado ao pescoço. Poderia removê-lo e mandar que o consertassem, mas relutava em se separar dele. De alguma forma, o contato com o pingente a acalmava.

Lina concluiu a dança e voltou para casa. Perséfone a viu nua diante do espelho, e seu sorriso espelhou o da mortal. Estava orgulhosa das mudanças que havia operado nela. Ainda se lembrava do ardor nos músculos cansados e da satisfação em ver o corpo da mortal ficar cada dia mais esbelto e flexível, bem aos moldes de uma deusa.

Quando Lina deslizou para a cama, Perséfone quase pôde sentir o corpo quente e macio do gato pressionado de modo familiar contra seu próprio quadril.

A imagem no oráculo rodopiou e desapareceu.

— O que foi, minha filha? Por que você e a mortal estão tão infelizes?

A voz de Deméter a fez pular, cheia de culpa.

— Não — Deméter continuou antes que ela saísse com uma desculpa. — Não quero palavras vazias, destinadas a aliviar os meus sentimentos. Quero a verdade.

Perséfone encontrou os olhos da mãe. Se ela queria a verdade, então que fosse.

— Sinto falta dele, mamãe. Eu não pretendia, mas caí de amores pelo mundo de Lina. É tão desorganizado, mas tão mais vibrante e vivo! E eles não sabiam que eu era uma deusa. Não sabiam que eu era sua filha e, mesmo assim, me receberam de braços abertos.

— Não foi Carolina que eles abraçaram? — Deméter perguntou gentilmente.

— Não. Eu usava seu corpo, mas a alma era minha.

Deméter abanou a cabeça, tristonha.

— Carolina me disse a mesma coisa, mas eu não a ouvi. Creio que foi um erro.

— E se houver uma maneira de corrigir seu erro?

— Desta vez eu gostaria de escutar.

— Ótimo. — Perséfone sorriu com carinho para a mãe. — Eu tenho uma ideia.


Capítulo 27

— Tem certeza de que quer que eu saia mais cedo? Não me importo de ficar — indagou Dolores.

— Não, querida. — Lina acenou com um guardanapo de linho para ela. — Eu insisto. A padaria não está muito cheia, e vamos fechar em trinta minutos. Anton e eu podemos dar conta.

— Bem, se está certa disso... — Dolores comentou, em dúvida.

— Ora, vá embora de uma vez! Lina e eu vamos nos virar bem sozinhos. Acha que eu sou algum incompetente, por acaso? — ­Anton exigiu, irritado.

— Eu nunca o chamei de incompetente... ao menos não na sua frente! — Dolores riu da própria piada.

Anton respondeu no seu melhor sotaque sulista:

— Eu nuuuunca vou ser bonzinho contigo outra vez! — entoou, erguendo o punho no ar.

Lina riu.

— Não acho que Scarlet O’Hara teria usado essas botas.

— Teria se ela fosse gay — ele rebateu, presunçoso.

— Está bem, crianças, já estou saindo. — Dolores abriu a porta, depois hesitou, sorrindo para Lina. — É bom ver você rindo de novo, chefe... — disse, então saiu, apressada, para a noite de Oklahoma.

Surpresa com as palavras da funcionária, Lina olhou para a porta fechada.

— Ela tem razão — reforçou Anton, tocando-a no braço.

— Obrigada — Ela lhe afagou a mão. — É bom rir de novo. — Eles sorriram um para o outro. — Vou começar a fechar aqui. Por que não termina a massa lá nos fundos? Já deve estar boa para ser cortada e colocada nas assadeiras.

Anton concordou e saiu em disparada pelas portas francesas que separavam a cozinha do café.

Lina tirava a placa da pizza del giorno da parede, a fim de alterá-la para a especialidade do dia seguinte, quando a porta da frente foi aberta.

— Só um momento, por favor! — falou, sem nem mesmo se voltar. — Está com sorte... ainda tenho uma pizza do dia sobrando. Três queijos com manjericão, alho e tomates secos.

— É uma das minhas favoritas, mas venho sonhando com uma fatia grossa de gubana quente com manteiga.

Lina congelou. Aquela voz... Ela a conhecia como a sua própria.

Virou-se e se viu mais uma vez atingida pela beleza da deusa da Primavera. Desta vez, contudo, Perséfone vestia calças jeans e uma confortável malha de lã; e tinha os cabelos longos puxados para trás em um grosso rabo de cavalo. Os trajes simples, entretanto, em nada dissipavam sua beleza única.

— Olá, Lina.

— Perséfone...

A deusa sorriu.

— Está aí algo com que podemos contar: reconheceremos uma à outra até no meio de uma multidão.

— Eu... — Lina passou a mão pela testa como se tentando eliminar sua confusão. — Eu não esperava vê-la. É uma surpresa e tanto.

Antes que Perséfone pudesse responder, o sino da porta soou outra vez, e uma mulher bonita e alta adentrou regiamente a padaria.

Perséfone suspirou e olhou por cima do ombro. Deméter escolheu uma mesa perto da vitrine e sentou-se como se estivesse se preparando para deliberar numa corte.

— Imaginei que mamãe me seguiria — a jovem deusa falou com um suspiro.

Anton saiu apressado da cozinha.

— Deus do Céu, quem poderia imaginar que fôssemos ter esse movimento antes de fecharmos?

Como uma pluma, flutuou até a deusa da Colheita.

— Posso lhe servir alguma coisa?

— Vinho. — Deméter levantou uma sobrancelha. — Tinto.

Anton inclinou a cabeça, considerando.

— Que tal um Chianti ?

— Se é uma sugestão de Carolina, eu a acatarei.

— Está certíssima, minha querida... Nossa Lina conhece vinhos como ninguém — ele elogiou. — Mais alguma coisa?

— Anton? — Lina reencontrou a própria voz. — Pode voltar para a massa. Eu mesma atendo as senhoras.

Deméter levantou a mão para silenciá-la.

— Não, não. Estou adorando este... — devolveu o olhar atento do rapaz — ... jovem. Vocês duas precisam conversar. Ele pode perfeitamente me atender.

Anton lançou um olhar satisfeito na direção de Lina.

— Não posso tentá-la com algo mais do que apenas vinho? Temos uma pizza fabulosa! Prometo prepará-la com as minhas próprias mãos.

— Pizza? — A deusa pronunciou a palavra como se fosse uma língua estrangeira.

— Com queijo, tomate, alho, manjericão... É de morrer!

— Então faça-a para mim — Deméter ordenou com um gesto imperioso.

Anton sorriu.

— Qual é o seu nome, querida? — perguntou antes de se afastar. — Não me lembro de ter visto você aqui antes.

Lina abriu a boca, porém Perséfone sacudiu a cabeça de leve, pedindo em silêncio para que ela se mantivesse calma.

— Pode me chamar de Regina Safra — respondeu Deméter.

— Pois, sra. Safra, uma coisa eu lhe digo: em qualquer outra pessoa esse seu traje pareceria um muumuu de seda. Sabe aqueles vestidinhos havaianos? Mas em você parece algo que uma deusa usaria! Está ma-jes-to-sa!

— Claro que estou —Deméter replicou.

— Vou trazer o seu vinho agora mesmo. — Anton rumou para a cozinha, apressado.

Quando passou por Lina e Perséfone, falou em voz baixa:

— Adoro essas coroas ricas!

Perséfone disfarçou o riso com uma tossidela, enquanto Lina fazia uma careta para o funcionário.

— Regina Safra? — ela sussurrou após Anton desaparecer cozinha adentro.

— Mamãe tem um senso de humor excêntrico, principalmente em se tratando de nomes. Sabia que, em algumas línguas, o meu nome soa apenas como “milho”?

— Estou do outro lado do salão, mas não sou surda.

— Eu sei, mamãe... — resmungou Perséfone.

— Perdão, Deméter — Lina se desculpou.

As duas moças compartilharam olhares que se transformaram em sorrisos.

Em seguida, Perséfone olhou pela padaria com estranheza.

— Dolores não está?

— Eu a deixei sair mais cedo.

A deusa da Primavera assentiu.

— Ela trabalha pesado. Merece uma folga.

— É difícil convencê-la a reservar algum tempo para si mesma. — Lina e Perséfone falaram em uníssono.

Entreolharam-se, surpresas.

— Verdade... — as duas disseram em conjunto mais uma vez.

— Aqui está o seu Chianti e um pouco de pão com azeite picante. — Anton colocou a taça de vinho tinto e uma cesta de pães diante de Deméter. — A sua pizza sairá em um instante. — Passou por Lina, cantarolando Shall We Dance de O Rei e Eu , e deu um tchauzinho para Perséfone.

A deusa riu.

— Senti tanta falta de Anton!

— Nossa, ele a impressionou mesmo.

— Parem de perder tempo — Deméter as repreendeu.

— Mamãe! Por favor, beba o seu vinho... Sua pizza ainda tem que assar. Tente ser um pouco mais paciente. — Perséfone suspirou e se virou para Lina. — Ser filha de uma deusa não é fácil.

— E eu não sei? — ela replicou.

— É mesmo... — Perséfone olhou para o balcão e respirou profundamente. — Eu precisava voltar.

A face de Lina era um ponto de interrogação.

— Por quê?

A jovem deusa encontrou seus olhos.

— Não estou feliz. Sinto saudades da minha... da nossa padaria — ela se corrigiu — e também do seu mundo.

Lina olhou para Deméter, esperando que esta fosse reagir às palavras da filha, entretanto a deusa continuou a sorver seu vinho em silêncio.

— Eu não entendo.

— Não há nada de que sinta falta no Submundo? — Perséfone perguntou numa súplica.

— O que está querendo dizer? — Lina endireitou a espinha.

A jovem deusa procurou os olhos da mortal.

— Não podemos mentir uma para a outra.

— Eu não estou tentando mentir para você — murmurou Lina. — É que...

— ... Dói — Perséfone concluiu por ela. — Eu sei. Eu também tentei não pensar sobre tudo o que havia perdido. Achei que seria fácil deixar tudo para trás.

Lina concordou com um gesto de cabeça, lutando para manter as emoções sob controle.

— Eu vou começar. — O sorriso de Perséfone foi melancólico. — Sinto falta da padaria. De sua agitação, eficiência, de seu cheiro e seus ruídos, e de como é um ponto de encontro para tantos tipos diferentes de mortais. Sinto falta de pequenas coisas, por exemplo, de como Tess Miller tem que tomar seu copo de vinho branco precisamente no mesmo horário todos os dias. Sinto falta do cachorrinho dela, apesar de ele ter chocado tanto Tess ao me desprezar que ela ameaçou levá-lo a um psiquiatra de animais! Os bichos não reagem a mim como reagem a você, sabia? — Perséfone franziu a testa enquanto a fitava. — Essa conexão que tem com os animais é muito estranha.

— Sim, eu sei.

— Mas acho que o que mais sinto falta é da maneira como todos me procuravam para resolver seus problemas. Eles nunca me viram como uma ve rsão mais jovem e incompetente da minha mãe. Ninguém corria para ela, depois de eu tomar uma decisão, para verificar se eu estava sendo sensata. Eles me respeitavam e confiavam em meu ponto de vista.

— Demonstrou ter um excelente julgamento, Perséfone — Lina assegurou. — A padaria está prosperando, todos estão felizes... Merda! Conseguiu até devolver meu antigo corpo!

A deusa lançou-lhe um olhar de franca avaliação.

— Seu corpo era um lugar bem confortável para viver, Lina. Não subestime a sua própria beleza. — Sorriu, travessa. — E há outra coisa de que sinto falta: os homens mortais são tão sensíveis!

— Scott — Lina concluiu, seca.

— Scott — ronronou Perséfone. — Foi um namorico e tanto o nosso.

— Ele se apaixonou por você.

— Claro que sim. — A moça encolheu os ombros. — Mas vai superar e se tornar um homem ainda melhor com a experiência. Saber como agradar a uma deusa é algo que todos eles deveriam aprender.

A ideia fez Lina sorrir.

— Sinto falta até mesmo daquelas duas criaturas que moram com você, principalmente do gato — admitiu Perséfone.

Desta vez, Lina riu com vontade.

— Patchy Poo the Pud é terrível, mas uma gracinha.

— É uma praga, isso sim! — a deusa falou, brincando.

Lina concordou.

— Agora é a sua vez... — incitou Perséfone. — Do que sente falta do Submundo?

— Tenho saudades de Eurídice — Lina confessou com apenas uma ligeira hesitação. — A pequena alma era como uma filha para mim. Eu me preocupo com ela.

— E do que mais?

— De Órion. Eu sei que ele devia ser um dos temíveis cavalos de Hades, mas Órion me lembrava mais um filhote de cachorro preto tamanho família.

— E?

— Sinto falta daquele céu incrível. A luz do dia era como uma pintura de aquarela em que alguém tinha soprado vida. Sei que soa irônico, pois estou falando sobre a Terra dos Mortos, mas não era escuro e sombrio lá. Ao menos não depois que você chegou a Elísia. Na verdade, foi o lugar mais incrível em que eu já estive ou imaginei. — Lina deixou a mente vagar. Agora que começara a falar, não queria mais parar. — Sabia que o céu lá é iluminado pelas almas das Híades, de maneira que, quando a noite chega, tudo em Elísia parece um sonho antigo?

— Não — Perséfone respondeu, intrigada.

— E as almas dos mortos não são assustadoras ou repugnantes. São apenas pessoas cujos corpos se tornaram menos importantes. Elas ainda têm a capacidade de amar, rir e chorar.

Perséfone pegou a mão de Lina.

— E do que sente mais falta?

Os olhos de Lina se encheram de lágrimas.

— Hades — ela sussurrou. — Você se apaixonou pela minha vida, e eu, pelo senhor do Submundo.

— Que bom! — Perséfone disse alegremente, apertando sua mão.

— Como isso pode ser bom? Eu amo Hades, mas ele ama a deusa da Primavera, não a mim.

O riso alegre da jovem deusa fez as luzes da padaria parecerem mais intensas.

— Se ele me ama, por que se recusa a me receber?

— Tentou ver Hades?

— Claro que sim. Eu estava infeliz, sentindo muita falta deste mundo. Então comecei a ouvir rumores de que Hades tinha enlouquecido, de que os espíritos do Submundo estavam perdidos, etcetera , etcetera , pois sua rainha havia deixado seus domínios.

— Espere... Hades ficou louco?! — Lina sentiu o sangue abandonar o rosto.

— Ah, não é nada disso. Ele só está de mau humor. — Perséfone fez um gesto de indiferença com a mão. — Mas os rumores me fizeram pensar que talvez eu não estivesse sozinha na minha infelicidade. Então visitei o Submundo.

— E? — Lina teve vontade de sacudi-la, de tão ansiosa.

— E a primeira coisa que aconteceu foi que aquele cão de três cabeças horrível não me deixou passar. — A moça estremeceu. — Edith Anne tem um temperamento muito mais dócil.

— O Cérbero lhe causou problemas?

— Problemas? Ele bloqueou a estrada, roncando e babando. Fiquei apavorada de chegar perto dele. Tanto que tive de pedir ajuda. — Perséfone balançou a cabeça, desgostosa.

— E Hades não veio recebê-la?

A deusa franziu o cenho.

— Um daimon apareceu em seu lugar, montado naquele cavalo preto odioso.

— Órion a tratou mal?

— Ele grudou aquelas orelhas pontudas na cabeça e arreganhou os dentes para mim.

— Eu sinto muito. Eu já repreendi Órion por esse tipo de atitude. Ele deve ter pensado que você era eu, e, quando percebeu que não... Bem, Órion devia ter se comportado melhor de qualquer maneira — Lina ponderou.

— Ah, devia. Enfim, eu disse ao daimon que queria falar com Hades, e ele me perguntou se eu era a deusa da Primavera, ou a mortal, Carolina. Como se já não soubesse! — Perséfone pareceu irritada. — Até mesmo os espíritos dos mortos sabiam. O tempo todo em que estive viajando por aquele caminho sombrio, eles me observavam. A princípio pareciam felizes, então, quando eu falava com eles, apenas tentavam ser educados e se afastavam de mim. Eu até os ouvi sussurrar coisas como: “Alguém está disfarçada de rainha do Submundo!” — Perséfone afastou uma mecha de cabelo que havia escapado do rabo de cavalo. — Foi uma experiência perturbadora, eu garanto. — Fez nova pausa para estudar as unhas bem cuidadas, e Lina teve ímpetos de sacudi-la outra vez. — Eu assegurei ao daimon que o meu corpo e a minha alma eram os mesmos. Em seguida ele desapareceu e, quando voltou, disse que seu senhor se recusava a ver Perséfone. Não bastasse isso, Hades ordenara que eu deixasse seu reino e parasse de incomodá-lo.

— E como isso prova que ele não a ama? Hades é muito ­teimoso. — Lina olhou de soslaio para Deméter, que agora fingia analisar o vinho. Inclinou-se para frente e baixou a voz: — Às vezes dá trabalho fazê-lo relaxar e conversar. Na realidade, Hades é romântico e passional. Precisa tentar de novo. Ele provavelmente vai vê-la na próxima vez.

Lina odiou a si mesma tão logo terminou de proferir as palavras. Sentiu o estômago se apertar. Não queria que Perséfone visse Hades. Não queria que ele visse ninguém, exceto ela própria.

— Pois eu acho que você deveria tentar — disse Perséfone com firmeza.

— Eu? — Ela piscou, surpresa. — Como eu poderia?

— Poderíamos trocar de corpo outra vez. — Perséfone apontou Deméter. — Minha mãe vai nos ajudar. Ela reconhece que seu plano não funcionou exatamente como esperava.

Lina olhou para a deusa, e esta inclinou a cabeça em uma pequena mesura real.

— Minha filha diz a verdade. Eu estava enganada quanto à forma como lidei com a situação.

A cena terrível passada no quarto do palácio invadiu a memória de Lina.

— Fico contente por admitir, mas isso não muda nada.

— Lembra-se, Carolina, quando foi até o meu oráculo, perturbada, porque tinha feito um erro de julgamento? — indagou Deméter.

— Sim, eu tomei uma decisão sem pensar e quase causei muita dor a Eurídice.

— Lembra-se do que eu lhe disse na ocasião?

— Disse que eu devia aprender com o meu erro — murmurou Lina.

— Pois eu bebi do meu próprio veneno. Também não considerei plenamente a minha decisão. E o que aprendi com meu deslize é que mesmo uma deusa pode ser surpreendida por suas filhas. — Deméter contemplou as duas moças com um de seus raros sorrisos, então voltou a atenção para Lina. — Hades estava sendo sincero. Ele sempre foi diferente do restante dos imortais. Creio que o senhor do Submundo realmente se apaixonou por você, Carolina.

— E eu tenho uma proposta — interveio Perséfone. — Você ama Hades. Eu amo a sua padaria e o seu mundo. Por que devemos viver para sempre sem os nossos amores?

— Mas Hades... — Lina começou.

— Ouça-me — Perséfone a interrompeu. — Como deusa da Primavera, devo estar no meu mundo por seis meses. Dessa forma, como você diria, o meu “trabalho” é concluído até a primavera seguinte. Eu poderia vir aqui durante esse intervalo. E, enquanto eu estivesse aqui, você poderia voltar ao Submundo como rainha.

A cabeça de Lina girava.

— Eu fingiria ser a deusa d a Primavera como antes?

— Não. — O sorriso de Perséfone foi enigmático. — Não teria de fingir. Todos, desde os animais até os espíritos, sabiam que eu não era você. Não fingirá, Carolina. Você é a rainha deles. Estará apenas alojada temporariamente no meu corpo, pois preciso do seu aqui. Eu, sim, terei de me fazer passar por outra pessoa.

— Não — falou Lina.

— Por que não? — Perséfone deu um longo suspiro. — Eu lhe dou minha palavra de que dispensarei qualquer Scott antes de voltar.

— Não é isso.

— Então, o que é?

— Hades não me quer, Perséfone. Ele disse que amava a minha alma, e, depois, quando viu o meu verdadeiro eu, me rejeitou.

— Lina, Hades estava apenas surpreso — garantiu Perséfone.

— Você não viu a expressão dele.

— Eu vi — Deméter interrompeu. — E o que li nela foi surpresa e dor, não desprezo ou rejeição.

— Então leu algo que eu não li — Lina concluiu com pesar.

— Creio que esteja cometendo um erro, Carolina — disse Deméter.

— Talvez. Mas e se não estiver? — Ela sentiu a onda de dor que lembrar a rejeição de Hades ainda evocava e piscou, aflita. — Não vou suportar se ele olhar para mim daquele modo outra vez. E, se não olhar, pode até ser pior. Como poderei saber que não é apenas o seu corpo que ele deseja?

— Pode viver o resto da vida sem ele? — Perséfone perguntou com suavidade.

As lágrimas escorreram dos olhos de Lina e deixaram um rastro brilhante em suas faces. — Tenho m edo do que acontecerá à minha alma se ele me rejeitar de novo, ou de que ele me aceite apenas porque quer que eu seja algo que não sou.

— Não tome nenhuma decisão antes de ponderar bem sobre ela — sugeriu Deméter.

— E prometa que vai considerar a minha proposta. O outono acabou de começar aqui. Terá até o primeiro dia da primavera para fazer isso, quando eu voltarei em busca da sua decisão. — Perséfone enxugou uma lágrima do rosto de Lina, então seu sorriso se tornou amargo. Enfiando os dedos sob o decote do suéter, ela tirou a corrente de prata que este ocultava. Sem falar nada, puxou-a por sobre a cabeça. O narciso de ametista capturou as luzes da padaria e cintilou. — Isto lhe pertence — disse, colocando-o com cuidado por sobre a cabeça de Lina. — A corrente se quebrou e foi amarrada, mas eu não a substituí. Está como você a deixou.

— Ah, meu Deus! — Lina deixou escapar um soluço e apertou a flor que tinha sido tão maravilhosamente esculpida para ela. — Pensei que nunca mais fosse ver isto outra vez! Obrigada por tê-la devolvido.

Anton irrompeu pelas portas francesas, assobiando uma canção de Gypsy e trazendo uma bandeja redonda com uma pizza cheirosa e recém-assada. Olhou para Lina e parou.

— Por que está chorando?! — Seus olhos faiscaram ao pousar em Perséfone. — Escute aqui, mocinha, se você a fez chorar, eu...

— Não, Anton, não é nada de ruim! — Lina sorriu entre lágrimas, enxugando o rosto com as costas da mão. — Perséfone me deu este colar, e ele é tão bonito que me fez chorar.

O rapaz relaxou.

— Perséfone? Como a deusa?

— Exatamente — replicou a moça.

— Também não me lembro de tê-la visto aqui antes. Como conheceu a nossa Lina? — ele indagou, intrigado.

Perséfone sorriu.

— Lina me ajud ou a crescer.

Anton pareceu confuso.

— Perséfone — Deméter chamou do outro lado do salão. — Precisamos ir.

— Anton, precisamos levar a pizza para viagem. Ah! Poderia, por favor, adicionar na caixa uma fatia grande de gubana? — pediu a deusa da Primavera.

— É claro! — ele respondeu, solícito. — Sua Majestade deseja mais alguma coisa? — Acenou com um gesto de cabeça na direção da mãe dela.

A moça riu com vontade.

— Apenas a conta, por favor.

— Eu pago — declarou Deméter e, com a dignidade típica de uma deusa, pôs-se de pé e caminhou até onde Anton esperava, na caixa registradora.

— Com o quê? — Lina sussurrou.

Perséfone encolheu os ombros.

— Anton! — interveio Lina, e ele se virou para ela.

— Com estas senhoras aceitaremos permuta. Apenas certifique-se de negociar bem...

Os olhos de Anton se arregalaram.

— Como quiser, patroa. Então, muito bem, minha rainha, o que tem a ofertar pela gubana, a pizza e o vinho?

Deméter ergueu o queixo.

— Eu prefiro o título de deusa. Rainhas têm reinos limitados demais.

— Como quiser, ó, deusa Regina Safra... O que estás a ofertar?

O sorriso de Deméter foi ardiloso.

— Gostaria de um pássaro falante?

— Não, querida. — Anton revirou os olhos. — Já temos animais em demasia circulando por aqui. Tente outra vez.

Perséfone puxou a manga de Lina.

— Deixe-os resolver isso sozinhos... Tenho mais uma pergunta.

— Qual?

— O que fez a Apolo?

— ... Nada — Lina respondeu.

— Nada? — Perséfone repetiu, confusa.

— Coisa nenhuma.

— Você rejeitou o deus da Luz? — A jovem deusa não teve a certeza de ter ouvido bem.

— Claro que sim. Costumo me interessar apenas por um deus de cada vez — ironizou Lina.

— Está falando a sério? — Perséfone segurou o queixo perfeito, pensativa. — Que conceito interessante!

— Vendido por uma coroa de ouro que provavelmente é falsa, mas que eu a-do-rei! — Anton gritou do outro lado, feliz da vida.


Capítulo 28

Hades não conseguia parar de olhar para o desenho que a pequena alma havia lhe dado.

— Gostou? — perguntou Eurídice.

— Como sabia? — A voz dele soou áspera e estranha até para seus próprios ouvidos. Quanto tempo se passara desde que tinha conversado com alguém? Não conseguia se lembrar. — Tenho pensa­do muito em Perséfone — prosseguiu a moça. — Comecei até a sonhar com ela... Mas, quando a vejo em meus sonhos, ela não é mais como era quando estava aqui. É difícil explicar, mas é como se a aparência dela nos meus sonhos fosse a mais correta. Então eu a desenhei dessa forma. Quando mostrei o esboço a Iapis, ele me disse que eu devia trazê-lo a você.

— Espero não ter me excedido, senhor — murmurou Iapis.

Hades continuou sem tirar os olhos do desenho.

— Não, meu velho amigo, não se excedeu. Tinha razão em querer me mostrar. — Ele se obrigou a desviar o olhar do esboço para fitar Eurídice. — Obrigado. Posso ficar com ele?

— É claro, senhor. Tudo o que eu criar será seu.

— Não, pequena alma — Hades respondeu, tristemente. — Qualquer coisa que criar ainda pertence a ela.

— Será que ela vai voltar para nós? — Eurídice perguntou.

O deus olhou para o desenho de Carolina. Suas feições mortais eram doces e gentis, seu corpo, cheio e feminino.

Sentiu uma estranha agitação só de olhar para a imagem e fechou os olhos, bloqueando-a em sua mente. Ele não tivera forças para confiar nela, e, por conta disso, ela quase havia perdido a alma para o Tártaro. Em seguida retornara do abismo apenas para ser traída e ferida por suas palavras duras e impensadas. Ele não merecia seu amor.

— Não — murmurou. — Não acredito que ela voltará para nós.

Eurídice deixou escapar um lamento, e, quando Hades abriu os olhos, viu Iapis tomando-a nos braços.

— Acalme-se — o daimon falou baixinho. — Onde quer que ela esteja, não deve ter se esquecido de você. Ela a amava.

— Deixem-me, por favor — Hades interveio asperamente.

Iapis fez um sinal para Eurídice ir, porém permaneceu nos aposentos de seu senhor. Sua preocupação com o deus era grande. Hades já não andava de um lado para o outro, frustrado. Não descontava sua revolta na forja. Recusava-se a comer e quase nunca dormia. Atendia seus súditos, julgando os mortos como se ele próprio estivesse entre eles, condenado a vagar eternamente pelas margens do Cócito, o rio da Lamentação.

Quando Perséfone tentara visitá-lo, Iapis havia sentido uma ponta de esperança diante da raiva demonstrada por Hades. Mas isso tinha durado pouco. Tão logo a deusa da Primavera deixara o Submundo, Hades se fechara outra vez. O deus não podia continuar como estava, entretanto Iapis não via nenhuma luz no fim do túnel. O tempo parecia inflamar ainda mais a ferida do deus sombrio em vez de curá-la.

— Iapis, você sabe o que acontece quando almas gêmeas são separadas? — Hades perguntou de repente. Estava parado em frente à janela que dava para os jardins adjacentes à floresta de Elísia que acabavam levando ao rio Lete.

— Almas gêmeas sempre se reencontram, o senhor sabe — respondeu o daimon.

— Mas o que acontece se elas não puderem encontrar uma a outra, ou se uma delas fez algo imperdoável? — Ele se virou para olhar o amigo.

— Não consegue perdoá-la, Hades?

O deus piscou e focalizou melhor o rosto de Iapis.

— Eu já a perdoei. Ela estava apenas cumprindo seu juramento a Deméter. O senso de honra de Carolina não lhe permitiria trair sua palavra, nem mesmo por amor. É a mim mesmo que eu não consigo perdoar.

— Como assim, senhor?

— Carolina Francesca Santoro é uma mortal com a coragem de uma deusa, e eu a feri pela mais cretina das razões, apenas para ­salvaguardar meu orgulho. Por isso não posso perdoar a mim mesmo. Assim sendo, como posso esperar isso dela?

— Talvez a situação seja parecida com a noite em que a insultou — lembrou Iapis com calma. — Basta perguntar e se mostrar disposto a ouvir a resposta.

Hades sacudiu a cabeça e se virou para a janela.

— Ela desnudou sua alma para mim, e eu a traí. Agora Carolina está além do meu alcance.

— Mas, se concordasse em ver Perséfone...

— Não! — Hades rosnou. — Não vou receber uma deusa frívola que zomba da alma que residiu em seu corpo.

— Hades, não pode afirmar que a deusa zomba de Carolina!

— O Cérbero a repeliu, Órion a detestou, os mortos a consideraram uma impostora... Isso basta para mim — insistiu o deus.

— Perséfone é uma deusa muito jovem.

— Ela não é Carolina.

— Não, não é — o daimon concordou com tristeza.

— Deixe-me agora — pediu Hades.

— Sim. Mas, antes, permita-me providenciar um banho e roupas limpas para o meu senhor.

Quando Hades começou a protestar, Iapis desabafou:

— Não consigo me lembrar da última vez em que tomou banho ou mudou de roupa. Está pior do que os recém-falecidos!

Os ombros poderosos de Hades caíram.

— Se eu tomar banho e mudar de roupa, vai me deixar em paz? — ele indagou, sem olhar para o daimon.

— Por algum tempo.

Hades quase sorriu.

— Então que assim seja, meu amigo.


Hades se acomodou na água quente da banheira de mármore negro, construída no chão do quarto de banho, e descansou de encontro à borda larga. Uma taça de vinho tinto e uma bandeja de prata cheia de romãs e queijo fora deixada ao seu alcance. As poucas velas acesas brilhavam suavemente em meio ao vapor que subia, tal como o luar em meio à neblina.

Bebeu o vinho com gosto. Não tinha apetite e ignorou a comida, mas o vinho o deixava mais leve. Talvez, apenas naquela noite, ele pudesse beber até esquecer. Quem sabe, assim, poderia dormir sem sonhar com ela.

Em um gole, esvaziou a taça e olhou na lateral, querendo mais. Iapis deixara o jarro perto o suficiente para que ele não tivesse de abandonar o calor reconfortante da banheira.

— Aquele daimon pensa em tudo... — resmungou consigo mesmo.

— Nem tudo.

Hades pulou ao som da voz e deixou cair a taça, que tilintou ao tombar no mármore.

Perséfone soprou o vapor e este se dissipou, tornando-a visível para Hades. Ela também descansava na borda da enorme banheira, à sua frente, e, embora estivesse submersa na água até os ombros, seu corpo nu se encontrava tão à vista como o dele.

Os olhos da deusa se arredondaram com surpresa. Carolina não era nenhuma tola... Ela mesma não fazia ideia de que o sisudo senhor do Submundo fosse tão delicioso.

— Olá, Hades... Não creio que tenhamos sido formalmente apresentados. Sou a deusa Perséfone, da Primavera.

Ele desviou o olhar do dela e saiu da banheira de um salto, vestindo um manto. Perséfone o viu cerrar a mandíbula e, quando o deus falou, foi forçando as palavras por entre os dentes.

— Afaste-se de mim! Eu me recusei a vê-la.

— Eu sei, mas estou com um problema e você é o único deus que pode me ajudar a resolvê-lo, embora Apolo seja definitivamente mais hospitaleiro. E, sem dúvida, ele se mostraria bem mais disposto a me ajudar nesta empreitada em particular... — Ela correu os dedos pela água quente. — Depois de eu ter falado com Lina, entretanto, parece que você é o meu único recurso.

— Apolo! — Hades exclamou com desdém. — O que ele tem a ver com Carolina?

— Nada. Mesmo que ele deseje o contrário.

O restante do que Perséfone dissera finalmente rompeu o choque de Hades.

— Falou com Carolina?

— Sim, falei. Na verdade, acabei de deixar sua padaria — contou a deusa, presunçosa.

Hades prendeu a respiração.

— Ela está bem?

— Em excelente forma, e seu negócio vem prosperando a cada dia.

Ele observou sem ver o vinho que tinha espirrado no chão.

— Que bom. Fico feliz por ela estar...

— Ainda não terminei — Perséfone o interrompeu e, sacudindo os dedos acima da superfície da água, fez chover as gotas sobre ele.

— Então termine de uma vez. — Hades a fulminou com o olhar.

— O que eu ia dizer era que o corpo dela está lindo, seu negócio vai bem, porém Lina continua arrasada.

— Eu... Ela... — O deus começou e depois parou, passando a mão pelo cabelo úmido.

— “Eu... Ela”, o quê? — provocou Perséfone. — Lina me disse que às vezes era difícil fazê-lo relaxar, mas que, se eu fosse obstinada o suficiente, poderia levá-lo a falar.

Hades sentiu que enrubescia, mas estreitou os olhos.

— Ela queria que você falasse comigo? Por quê?

— Ah... Duvido que ela estivesse querendo que nós nos encontrássemos. Só disse isso porque acha que está apaixonado por mim.

Hades bufou.

— Isso é ridículo!

— Obrigada pela gentileza.

— ...Eu não quis ofendê-la — ele se desculpou depressa.

— Eu sei, eu sei. — Perséfone suspirou. Afastou os cabelos do rosto, e um de seus seios despontou por cima da água, o mamilo cor de malva apontando diretamente para ele.

O deus engoliu em seco e desviou o olhar, concentrando-se no prato de frutas e queijo.

— Acho melhor conversarmos no quarto. — Apontou para um armário próximo. — Há roupas ali com as quais poderá se cobrir.

— Espere! — Perséfone chamou antes que ele saísse do banheiro. — Há algo que Lina e eu precisamos saber.

Hades a fitou, tomando o cuidado de manter os olhos focados em seu rosto.

— Fique onde está — prosseguiu a deusa. — Acredito que isso seja muito importante para nós três.

— O que precisa saber? — ele indagou, exasperado.

— Isto... — Perséfone se levantou.

A ág ua quente escorreu por sua pele lisa. As pontas de seus seios estavam rijas como se tivessem acabado de ser acariciadas, e seu corpo continuava tão esguio e extraordinário quanto ele se lembrava.

Hades olhou para a deusa enquanto ela saía lenta e graciosamente da banheira, para depois caminhar, sedutora, em sua ­direção. Quando se aproximou dele, Perséfone parou, ergueu os braços e o enlaçou pelo pescoço. Então apertou o corpo nu contra o dele e o fez colar a boca na sua.

Os lábios do deus tomaram os dela, e ele a abraçou instintivamente.

Mas não sentiu nada. Exceto pela familiaridade com o corpo curvilíneo e a boca quente e macia, Perséfone não o comoveu. Era como se ele segurasse uma estátua maleável. Delicadamente, porém com firmeza, Hades se afastou dela.

Perséfone deixou seus braços de bom grado.

— Então não é este o corpo que você deseja.

— O que eu desejo não mudou, nem vai mudar. Desejo apenas uma mulher na vida, e pouco importa o corpo que ela habita.

Por um instante, Hades pensou ver tristeza nos olhos da jovem deusa, porém esta logo se foi e, quando Perséfone sorriu, seu ar juvenil tinha voltado.

— Bem... Obrigada por nos esclarecer essa dúvida.

— De nada.

Ele buscou um manto no armário, e a deusa o vestiu. Em seguida, apanhou a taça do chão e a jarra de vinho.

— Agora, tudo o que temos de fazer é encontrar uma forma de fazer Lina acreditar nisso — decidiu a moça.

Caminharam para os aposentos de Hades, e Perséfone olhou ao redor.

— Lindo quarto!

— Obrigado. Fique à vontade enquanto vou apanhar outra taça.

Perséfone foi até a janela envolta e m veludo. Puxou de lado a cortina e olhou a vista fantástica, proporcionada pelos jardins escalonados, as estátuas em meio à bem cuidada vegetação, e as milhares e milhares de flores brancas, as quais eram banhadas por uma luz suave e incomum.

— O vinho — anunciou Hades.

Ela se afastou da janela.

— Lina tinha razão quando disse que isto tudo parece um sonho.

As palavras fizeram doer o coração do deus.

— Por que está aqui, Perséfone?

A moça ajeitou o cabelo para trás e sorriu.

— Tenho uma proposta para lhe fazer...

— Eu ainda não entendo como ajudá-la. Carolina recusou a sua proposta! Não pode obrigá-la a essa troca — Hades concluiu enquanto andava de um lado para outro à frente de Perséfone.

Ela levantou uma sobrancelha.

— Não posso?

— Não vai forçá-la. — As palavras de Hades soaram firmes, porém ele sentiu sua resolução enfraquecer. Carolina poderia voltar! Ele poderia tocá-la e conversar com ela novamente... E, sem dúvida, poderia convencê-la de seu amor.

Não, pensou, sacudindo a cabeça. Ela já havia sofrido bastante. Não permitiria que Lina fosse obrigada a fazer algo que ela mesma não acreditava poder suportar.

— Vocês dois são os reis da teimosia! Você se recusa a obrigá-la a vir; ela se recusa a vir de livre e espontânea vontade... — Perséfone suspirou. — Precisa encontrar uma maneira de convencê-la a retornar sem ser forçada, então.

— Como? — Hades quase cuspiu a palavra.

Perséfone caminhou até ele e colocou a mão em seu braço.

— Se precisar de mim, pode me chamar por meio do oráculo de mamãe. — Num impulso, beijou-o no rosto.

Hades acariciou a mão delicada e deu-lhe um sorriso cativante e paternal.

— Perdoe a minha grosseria. Deuses antigos às vezes podem ser caprichosos.

Perséfone sorriu de volta para o deus que era tão obviamente apaixonado por Carolina. — Está perdoado — falou e desapareceu.

A forja ardia com um calor de outro mundo. O suor escorria do corpo de Hades em uníssono com a batida de metal contra metal, porém o deus nem sequer tinha consciência do seu entorno.

Carolina ainda o amava!

Precisava encontrar uma forma de reparar o dano que havia causado, de maneira que ela confiasse nele novamente. Mas como?

— Está parecendo uma velha solteirona, senhor dos Mortos.

Hades virou para identificar a voz sarcástica e precisou apertar os olhos contra a luz ofuscante.

— Apolo! Você e sua luz exagerada não são necessários aqui — ele rugiu.

— Ah, sim, eu sempre me esqueço... — Apolo passou a mão no rosto, e o fulgor que o envolvia desapareceu. — Está melhor assim?

— Não me lembro de tê-lo convidado a vir ao meu reino.

— Eu tinha de vir. Precisava ver como estava a outra metade desse amor desperdiçado.

Hades se encheu de raiva.

— Não está querendo dizer que...

— E o que vejo aqui é bem menos atraente do que a versão mortal — o deus do Sol interrompeu seu discurso.

— De que mortal está falando? — exigiu Hades.

— De Carolina, claro. Sabia que ela me rejeitou? Estava mais interessada nas minhas éguas do que em mim. — Apolo riu. — Enquanto eu achava que ela era Perséfone, suas atitudes me confundiam. Quando descobri que ela era uma mortal no corpo de uma deusa, fiquei estupefato. E, depois, ainda soube que ela havia preferido você a mim... Inacreditável.

Hades estreitou os olhos para o jovem deus.

— Não acho que seja assim, tão surpreendente.

— Pois devia. — Apolo sorriu. — As mortais me acham irresistível.

— Carolina é bem mais exigente do que a maioria das mortais.

— E mais fiel também. Ela já recusou ao menos um homem desde que voltou ao próprio mundo. — Apolo lançou um olhar avaliador na direção de Hades. — E, como ele é apenas um mortal, é definitivamente mais jovem do que você...

— Andou espionando a moça? — Hades rosnou.

— Não foi o que eu disse?

— Não!

— Acho que essa sua choradeira pelo seu amor perdido afetou a sua audição. Lembro-me muito bem de ter dito que...

Em dois passos, Hades alcançou Apolo e agarrou o deus pelo pescoço, erguendo-o do solo.

— Diga-me como pôde vê-la! — trovejou, irado.

— Por meio do oráculo de Deméter, ora! — o jovem deus respondeu, esganado.

Hades deixou cair o deus da Luz e saiu correndo da ferraria.

— Selem Órion! — gritou, ofegante.

Dentro da ferraria, Apolo esfregou o pescoço e alisou as vestes amarrotadas.

— Missão cumprida... Agora está em débito comigo, Deméter — murmurou antes de desaparecer.


Capítulo 29

— É fevereiro, mas parece abril. — Lina suspirou, feliz. — Adoro quando o clima em Oklahoma está assim — disse a Edith Anne, que trotava alegremente a seu lado.

Tinha levado algum tempo para se acostumar com os patins. Não que seu corpo não soubesse o que fazer. Sua mente era que insistia em pensamentos como “Esse chão é muito duro!” ou “Devagar, assim vai cair e quebrar alguma coisa!”

Dessa forma, mesmo após vários meses de prática, Lina ainda patinava devagar, acariciando a calçada de cimento que corria ao longo do rio Arkansas com passadas controladas e cuidadosas.

— À sua esquerda! — Alguém gritou atrás dela, e Lina passou para o lado direito da calçada.

— Obrigada! — gritou quando uma bicicleta de corrida passou voando.

— De nada! — o piloto berrou de volta.

— Eu gosto quando eles fazem isso — Lina falou à buldogue, que mantinha o ritmo a seu lado, na grama que começava a verdejar.

Edith resmungou.

— Fico assustada quando alguém simplesmente passa por nós sem qualquer aviso. Aquele sujeito da bicicleta amarela e enorme quase me derrubou na semana passada! — Ela se abaixou e brincou com a orelha de Edith. A buldogue bufou outra vez e lambeu sua mão. — Acho que eu deveria prestar mais atenção ao redor, ainda mais quando tudo está calmo como nesta noite. Mas ela é sempre tão bonita!

Sorriu. O início da noite era o seu momento favorito para andar de patins. O pôr do sol em Oklahoma costumava ser glorioso e, às vezes, conforme o astro descia sobre o rio Arkansas, sua luz se refletia fora da água numa mistura de rosa e laranja com azul e cinza, lembrando a magia de Elísia.

Mas não a deixava tristonha. O tempo a ajudara nesse ponto. Gostava da lembrança em pequenas doses, pois esta a ajudava a manter o vazio sob controle.

Edith Anne parou para cheirar uma moita particularmente interessante, lotada de ervas daninhas.

— Ei, fique comigo! Se começar a se sujar com lama ou cardos, terá de tomar um banho quando chegarmos em casa.

A cadela ainda resmungou um par de vezes para as ervas daninhas antes de correr atrás dela outra vez.

Lina desacelerou para que Edith a alcançasse, e pensou ouvir cascos de cavalo ao longe.

Interessante , pensou. O tempo devia estar bom o suficiente para que o estábulo à beira do Arkansas tivesse aberto mais cedo. Passeios a cavalo ao longo do rio eram um excelente negócio enquanto o clima ajudava, mas não costumava funcionar antes de abril. Como havia perdido o anúncio no jornal? Normalmente, gostava de postar coisas assim na padaria.

Fez uma anotação mental para ve rificar aquilo no dia seguinte.

Com a buldogue a seu lado outra vez, Lina retomou o ritmo. Já percorrera quase sete quilômetros, sua respiração se mantinha normal e suas pernas continuavam firmes. Estava feliz por ter acrescentado os patins em sua rotina semanal. Não apenas para manter o corpo em forma, mas também para que ele a ajudasse a pensar.

E tinha tanto o que pensar desde a visita de Perséfone!

Merda! Ficara tentada pela proposta da deusa. Como não poderia? Retornar ao Submundo como sua rainha... Não havia nada no mundo de que gostaria mais.

Não , corrigiu-se. O que ela mais gostaria era do que a estava impedindo de aceitar a proposta de Perséfone...

Pensara no assunto incessantemente durante os longos meses de inverno. Pensara até mesmo em telefonar para a avó e lhe pedir conselhos. Sem que esta pensasse que ela fosse se comprometer.

Às vezes achava que Deméter tinha razão, que ela havia cometido um erro.

Mas, então, se lembrava de como Hades se afastara dela no momento em que ela se revelara.

“Saia do meu reino” fora sua sentença ao ver a verdadeira Carolina.

Suspirou. O tempo ajudara a curá-la, mas lembrar as palavras ainda fazia doer sua alma.

E era quase primavera. Perséfone voltaria em breve em busca de uma resposta.

Respirou profundamente e manteve o ritmo enquanto ponderava pela milésima vez qual deveria ser sua decisão. Inconscientemente, tocou o narciso de ametista que trazia sempre pendurado ao pescoço.

Não poderia retornar, mas queria tanto fazer isso! Até sonhava com a volta ao Submundo.

Não poderia, no entanto. Talvez fosse uma covarde, mas não desejava se arriscar. Tinha levado tanto tempo para cicatrizar... Não queria que a ferida se abrisse novamente.

Diria “não” a Perséfone. Talvez a deusa pudesse encontrar outra mortal com que trocar de lugar. A própria Dolores era ativa na Sociedade do Anacronismo Criativo... Provavelmente teria muito interesse em perambular pelo Monte Olimpo e brincar com as ninfas enquanto a jovem deusa assava pães.

O pensamento fez Lina rir. Ela poderia até tirar longas férias e deixar a padaria nas mãos da Dolores / Perséfone. E a Itália era tão linda na primavera!

Enquanto planejava suas férias no velho continente, notou que o ruído de cascos de cavalo vinha se aproximando cada vez mais rápido. Já estava indo para a borda do passeio quando um alegre relinchar cortou o ar.

Seu coração deu um salto ao reconhecê-lo, e ela se virou no exato momento em que uma enorme silhueta negra se avultava sobre ela e um focinho escuro quase colidia com seu rosto. Órion alternou relinchos com bufos, acariciando seus cabelos e ombros.

Em estado de choque, Lina só pôde se agarrar aos arreios do cavalo e esperar que, em seu entusiasmo, ele não a derrubasse.

— Quem se atreve a tocar o temível cavalo de Hades?

As palavras foram as mesmas que ele proferira havia muito tempo, porém seu tom era muito diferente: repleto de amor e saudade.

Lina ergueu o olhar. Hades encontrava-se sentado na sela lustrosa e tinha substituído as roupas arcaicas por uma camisa preta de corte moderno, cujas mangas deixavam à mostra os braços musculosos. Também vestia jeans e as botas típicas dos cowboys de Oklahoma. Os cabelos estavam puxados para trás, e os olhos cintilavam.

Ela o fitou sem nada dizer, sentindo a simples visão do deus reabrir a ferida recém-curada em seu coração. Durante todos aqueles meses obscuros do inverno, ele a deixara sozinha.

E fora tanto tempo... tanta dor.

A súbita onda de raiva a surpreendeu.

Hades tentou sorrir, porém seus lábios tremeram de leve.

— Perguntou quem se atrevia a tocar seu temível cavalo, Hades... — As palavras de Lina soaram entrecortadas pela emoção. — Então permita que eu me reapresente. Sou Carolina Francesca Santoro, uma mortal de meia-idade nascida em Tulsa, Oklahoma, e dona de uma padaria. E eu não me atrevi a tocar o seu temível cavalo. Foi ele quem enfiou o focinho em minhas mãos outra vez.

Hades sentiu as palavras entrando como facas no peito, mas não podia culpá-la por sua revolta. Ele a compreendia.

No entanto, não permitiria que Carolina o fizesse desistir.

Passou a perna por sobre a sela e desmontou. Queria se aproximar dela, erguê-la nos braços... Porém Lina o fitava com um olhar frio, fixo e nada acolhedor.

— Esqueceu-se de um título na sua apresentação, Carolina — pronunciou o nome dela como numa prece.

— Não creio. Sei exatamente quem sou — ela rebateu. Hades não tinha se aproximado dela; mesmo assim, Lina deu um passo para trás.

— Eu também. É Carolina Francesca Santoro, mortal de meia-idade nascida em Tulsa, Oklahoma, dona de uma padaria... e ­rainha do Submundo — ele completou num murmúrio.

Lina sentiu um tremor cortá-la dos pés à cabeça e se agarrou à sua raiva, temendo que, se esta se fosse, seu coração partisse em mil pedaços.

— Sinto muito, senhor. Deve estar confuso. A deusa Perséfone é a rainha do Submundo. Eu era apenas uma substituta temporária, e nem estava à altura do trabalho.

— Seus súditos não pensam assim, Carolina. Ele apontou para Órion, que esticou o pescoço de modo a mordiscar seu ombro enquanto ela lhe acariciava o focinho.

— Os animais sempre gostaram de mim.

Como se para comprovar suas palavras, Edith Anne pulou em suas pernas, contorcendo-se para chamar a atenção. Órion bufou e se curvou para soprar a buldogue.

— Ele me lembra um pouco o Cérbero... — Hades apontou o cachorro atarracado com um gesto de cabeça, tentando sorrir de novo, sem muito sucesso.

— Ele é ela . E ouvi dizer que Edith Anne é mais educada do que o seu Cérbero tem sido ultimamente — observou Lina, mordendo o lábio em seguida. Não deveria conversar com Hades.

— O Cérbero tem faltado com as boas maneiras sem dúvida porque sente a ausência de sua rainha, assim como o resto do Submundo.

— Um cachorro e um cavalo não são vassalos de ninguém. E eu não sou nenhuma rainha. Sou uma mortal. Não tenho nenhum súdito.

Hades voltou à sela de Órion e tirou uma tela enrolada que tinha alojado no pomo.

— Eu trouxe uma coisa para você. Eurídice queria que eu ficasse com isto, mas eu a convenci de que este trabalho lhe pertencia. Ela ainda se vê como a artista particular da deusa da Primavera, embora sinta muito a falta de sua senhora.

— Eu não sou... Não quero... — Lina balbuciou, sentindo uma onda de saudade ao pensar na moça.

Hades se aproximou dela. Nos meses em que haviam ficado separados, Lina se esquecera de seu tamanho. Ele parecia cercá-la por todos os lados.

E, mesmo vestindo roupas modernas, parecia sombrio e devastadoramente bonito.

Seu Batman.

— A pequena alma falou que isto foi um sonho que ela teve com você. E disse que se sentiu bem.

Hades estava tão perto que ela podia sentir o calor de seu corpo.

Sem palavras, Lina tomou a tela de suas mãos. Desenrolou-a e soltou uma exclamação.

— Mas sou eu!

Era ela mesma, a mortal Carolina Francesca Santoro. Seu corpo, seu rosto, seu sorriso... E não Perséfone.

Quando olhou com mais atenção para a imagem que Eurídice havia tirado de um sonho, seus dedos começaram a formigar e, de repente, uma torrente de emoção passou da tela para sua alma. Em meio a esta, ela pôde ouvir as vozes de milhares de mortos. Eles clamavam por ela, pedindo que sua rainha retornasse.

Lina sentiu as mãos tremerem, e a mágoa dentro dela começou a se dissipar.

— Seus súditos a reconhecem e clamam por você, Carolina — Hades falou suavemente.

— Pena que o próprio deus deles não tenha me reconhecido — ela retrucou, sem encará-lo.

— Não há nenhum deus ou senhor aqui... — A voz de Hades falhou, e ele precisou fazer uma pausa antes de continuar. Segurou o queixo de Lina e ergueu seu rosto de forma que ela o fitasse nos olhos. — Esta noite sou apenas um homem que procura desesperadamente por sua alma gêmea. Ela se separou de mim por conta da minha loucura, e eu tinha que perdoar a mim mesmo antes de encontrá-la e pedir que ela... Não chore, minha amada! — pediu, quando lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Lina.

— Você se afastou de mim! — ela acusou em meio a dolorosos soluços. — Quando viu quem eu realmente era, não me quis!

— Não! — Ele a puxou para os braços e a apertou contra o peito. — Eu não lhe dei as costas... Foi o orgulho que incitou as minhas palavras e ações.

— Porque não quis o amor de uma mortal de meia-idade — Lina replicou, a voz abafada de encontro a ele.

A risada de Hades soou como um soluço.

— Não. Foi porque eu estava apavorado em ter perdido a alma para uma mulher que poderia não querer nada mais do que um flerte com um deus inexperiente, sobre o qual ela poderia se gabar.

Lina ergueu os olhos para os dele.

— Eu disse a Deméter que você não havia ficado com qualquer outra deusa porque estava tentando convencê-la de que era diferente.

— Eu sei, minha querida. Perdoe o orgulho de um deus velho e solitário. — Os lábios de Hades finalmente esboçaram um sorriso. — E, por favor, volte para casa.

Em resposta, ela o puxou para um beijo.

— Carolina! — Hades soprou seu nome contra os lábios macios. — Minha alma ardeu tanto por você, minha eterna amada!

Antes que a beijasse novamente, contudo, Órion o cutucou por trás, e a cadela robusta farejou seus pés.

Ele olhou para baixo, fazendo uma careta para os rastros de saliva em suas botas.

— Órion, pare com isso! — ralhou Lina, empurrando a cabeça enorme e negra de lado. — E, Edith Anne, fique quieta! Está estragando as botas novas dele!

Hades jogou a cabeça para trás e riu. Em seguida, ergueu sua rainha nos braços e, pondo-a na sela do garanhão, montou atrás dela com uma vitalidade pouco comum para um mortal.

— Hades! O que está fazendo?

— Tirando-a do alcance desses animais. — Passou um braço em torno de sua cintura e a puxou contra ele.

— Mas, Edit h Anne...

— Não se preocupe. Órion irá devagar. Não vamos perder sua cadela.

Segurando-a com firmeza, ele estalou a língua em sinal para o cavalo. Órion virou a cabeça e bufou, mas começou a andar lentamente, de modo que a buldogue não teve problemas para trotar a seu lado.

O deus voltou sua atenção para Carolina.

— Não temos muito tempo antes que a primavera venha para o seu mundo. Talvez queira me mostrar um pouco desse reino que você chama de Tulsa... — murmurou, acariciando os suaves cachos castanhos que haviam se formado na nuca de Lina.

Na verdade, não estava sendo fácil para ele se conter. Sua vontade era amá-la ali mesmo.

Pensou em como o novo corpo de Carolina era sedutor e feminino. Ela era suave, perfumada e deliciosamente convidativa.

Lina virou-se e sorriu para ele de cenho franzido.

— Conhece o plano de Perséfone?

— Quem não conhece? — ele respondeu, bem-humorado.

— Estou começando a achar que ele pode dar certo... — Ela sorriu.

— Eu também.

Hades se inclinou para reivindicar seus lábios, porém Lina o empurrou de leve.

— Espere um minuto... Não devia estar aqui! Certamente não pode ficar por muito tempo, pois não há ninguém ocupando o seu lugar no Submundo.

— Não. — Ele sorriu para sua rainha, a alma leve. — Mas, às vezes, até mesmo a morte precisa de um descanso.

Quando seus lábios se encontraram, o sol tocava a margem do rio. Fez uma pausa ali e emitiu mais um feixe breve e intenso sobre os amantes antes de desaparecer no horizonte.


Nesta data, Tulsa lamenta o falecimento de uma matriarca local, Carolina Francesca Santoro. Filantropa e restaurateur , a sra. Santoro era também uma conhecida amiga dos animais. Dona Carolina não deixa herdeiros biológicos, contudo sua falta será sentida por muitos que a consideravam como parte da família. Por décadas sua cadeia de padarias Pani Del Dea foi parte vital de muitas comunidades de Oklahoma. Suas unidades são muito conhecidas por sua especialidade, o cream cheese de ambrosia. A receita para este delicioso queijo é um segredo bem guardado há mais de meio século.

Mas não se preocupem, fregueses assíduos da Pani Del Dea. Antes de sua morte, a sra. Santoro compartilhou a receita com uma parente italiana, sua sobrinha-neta Perséfone Libera Santoro, que assumirá a posição de acionista majoritária da Pani Del Dea S.A. A jovem srta. Santoro anunciou que dividirá seu tempo entre Oklahoma e a Itália e, fazendo jus a seu nome, Perséfone passará cada primavera e verão conosco em Tulsa.

Assim, para honrar a memória de sua tia-avó, vamos dar a ela o nosso caloroso “Olá” de Oklahoma!

Tulsa World,

21 de março de 2055

Lina sentia-se um pouco sem fôlego e deslocada, o que era no mínimo irônico. Estava, afinal, vestindo sua própria pele.

— Provavelmente é porque agora sou uma dos recém-falecidos — murmurou consigo mesma, estendendo os braços e olhando com espanto para a luminosidade do próprio corpo, o qual parecia mais substancial do que o dos mortos que costumava ver.

Também ficou contente por este ter assumido uma forma bem mais jovem do que antes de sua morte. Surpresa, percebeu que tinha se materializado no seu corpo de 43 anos e riu.

— A idade em que eu o conheci! — falou, contente.

O túnel se estendia diante dela, negro e sem fim, porém a escuridão não a intimidou, e ela avançou, confiante, sem nem mesmo olhar uma última vez para a luz do mundo mortal que nunca mais vislumbraria.

De repente, uma pequena bola incandescente surgiu acima de seu ombro, e Lina soltou uma exclamação, surpresa.

— O que está fazendo aqui?!

A esfera dançou a seu redor, ondulando tal qual um cachorrinho.

Ela nem precisava ter perguntado. Sabia quem tinha enviado a luz.

— Obrigada, Perséfone! — falou para o vazio.

Caminhou rapidamente através do grupo de lindas árvores-fantasmas, agora conhecidas como o Bosque de Perséfone e, como sempre, admirou a superfície cintilante de suas folhas.

Deixou o arvoredo e piscou, surpresa. Diante dela, a estrada de ônix que levava ao palácio de seu amado se estendia, como de costume, até os portões cor de pérola, mas, desta vez, os portões se encontravam abertos, e, atrás deles, havia uma multidão de silhuetas insubstanciais e incandescentes.

À frente da massa fervilhante estava Hades, tendo Órion a um lado e, do outro, Eurídice e Iapis.

Ao vê-la, o garanhão soltou um relincho estridente de alegria, dando-lhe as boas-vindas. Eurídice cobriu a boca pálida com a mão e, com a outra, acenou alegremente para sua senhora, enquanto lágrimas de felicidade escorriam por seu rosto.

Quando Hades começou a se mover em sua direção, porém, o mundo inteiro de Lina se estreitou, convergindo apenas para ele. O deus caminhou até ela, os olhos sorrindo, cheios de emoção.

Quando parou à sua frente, por fim, estendeu a mão e, num gesto já familiar, acariciou-lhe o rosto.

— Seja bem-vinda, minha amada.

Lina sorriu para sua alma gêmea.

Hades virou-se para encarar a turba. Com a capa revoando às suas costas, ergueu os braços vitoriosamente sobre a cabeça.

— Ela voltou! — gritou, a voz soando como um trovão.

Gritos de louvor erigiram dos mortos, ecoando no Submundo e se espalhando por todo o Olimpo.

— Alegrem-se! Nossa rainha chegou para nunca mais partir!

Em seu trono no Olimpo, Deméter ergueu a própria taça e tocou a de Perséfone em comemoração do final feliz de Carolina Francesca Santoro.

— Muito bem, minhas filhas — murmurou a deusa. — Muito bem.


Descubra o que irá acontecer em


DEUSA DA ROSA


o próximo livro da série

Goddess


Prólogo

Era uma vez, quando os homens ainda acreditavam que havia deuses e deusas na Terra, foi concedido a Hécate, grande Deusa da Noite, domínio sobre os caminhos trilhados pelo homem. A deusa da escuridão levou a sério sua missão, e passou a vigiar não somente as estradas e caminhos dos mortais, como também a proteger o percurso entre os sonhos e a realidade, entre o corpóreo e o etéreo.

Seu domínio era o lugar onde todos os sonhos, e também a magia por eles criada, se originava. Assim, a Deusa da Noite foi denominada Deusa da Magia, e também Deusa das Feras e da Lua Negra.

Sempre vigilante, Hécate convocou uma antiga e monstruosa fera para servi-la. De bom grado, esta jurou ser a guardiã da Deusa e obedecer-lhe às ordens. A criatura era a fusão perfeita entre homem e fera; filho do Titã Cronos, era um ser como nenhum outro. E, como recompensa por sua lealdade, Hécate o presenteou com o coração e a alma de um homem. Embora sua aparência fosse monstruosa, a deusa sentiu-se segura ao lhe confiar a proteção da fronteira dos caminhos que conduzem ao mundo mágico.

Este lugar foi batizado de Reino das Rosas, e aquelas que ali serviam a deusa foram chamadas de Sacerdotisas do Sangue. Durante séculos, o Guardião permaneceu fiel, seguindo os ditames de sua missão sagrada, pois era tão honrado quanto influente, e tão sábio quanto poderoso. Até um dia de Beltane 1. ...

O Guardião conhecia o seu dever. Mas, Céus! , até mesmo um protetor podia se cansar... E não cometera nenhum deslize por crueldade ou ganância. Seu único erro fora amar sem reservas. Mas ele quebrara a confiança de sua deusa e, em um rompante de raiva, Hécate lançara um feitiço sobre ele e sobre o Reino das Rosas: o reino não teria mais nenhuma Alta Sacerdotisa, e o Guardião dormiria eternamente, a menos que fosse despertado por uma mulher que carregasse o sangue mágico das Sacerdotisas de Hécate e fosse sábia o suficiente para enxergar a verdade, e compassível o bastante para passar por cima dela...

E, assim, o Reino das Rosas se desesperou, e o Guardião adormeceu enquanto sua deusa esperava.


Parte 1

Capítulo 1

— Andei tendo aqueles sonhos de novo.

Nelly se ajeitou na cadeira e deu a Mikki um de seus olhares mais clínicos.

— Gostaria de me contar sobre eles? – Nelly perguntou.

Mikki desviou o olhar da amiga. Será que ela gostaria de compartilhá-lo? Descruzou e tornou a cruzar as pernas longas, passou a mão nervosamente pelos cabelos e tentou se acomodar na poltrona.

— Antes de eu responder a essa pergunta, quero que responda a uma minha.

— É justo — concordou Nelly.

— Se eu lhe contar os meus sonhos, como vai ouvi-los? Como minha amiga ou como minha psiquiatra?

A médica riu.

— Por favor, Mikki! Estamos em uma lanchonete, não em meu consultório! Você não está pagando cento e vinte dólares por hora para eu ficar sentada aqui com você. E não vamos nos esquecer: — Ela se inclinou para a frente e exagerou no sussurro. — É minha amiga há anos, mas nunca foi minha paciente!

— É verdade. Mas não por falta de assunto.

— Ah, sem dúvida — Nelly concordou com sarcasmo. — E então? Vai me contar sobre os sonhos, ou terei de usar meus truques de psiquiatra para dissuadi-la?

— Tudo menos isso! — Mikki levantou as mãos como para se defender de um ataque. Encolheu os ombros. — Eles são iguais aos outros.

Nelly ergueu as sobrancelhas significativamente.

— Está bem! — Mikki suspirou e revirou os olhos. — Talvez tenham mudado um pouco.

— Consegue ver o rosto dele agora? — a outra moça perguntou, gentil.

— Quase. — Mikki fixou o olhar em um ponto qualquer da aconchegante lareira de tijolos. — Na verdade, acho até que vi seu rosto desta vez, mas...

— Mas?

— Eu estava tão preocupada que não consegui me concentrar nele — ela elaborou, apressada.

— Preocupada?

Mikki parou de olhar para a lareira e encontrou os olhos da amiga.

— Preocupada em ter o sonho mais erótico da minha vida! Não dei a mínima para o rosto dele.

— Ora, ora, ora — Nelly comentou surpresa. — Não me lembro de ter falado em sexo nos outros sonhos. Agora estou realmente interessada nessa história.

— Isso porque eles não... ou talvez eu... Ah, não sei. Por alguma razão, os sonhos estão mudando. — Ela se esforçou para descrever o que estava acontecendo. — Estou dizendo, Nelly, os sonhos estão ficando cada v ez mais reais.

O brilho de diversão deixou os olhos escuros da outra moça, substituído pela preocupação.

— Diga-me, querida. O que está acontecendo?

— Quanto mais realistas ficam esses sonhos, menos a minha vida parece real.

— Conte-me sobre esse último, então.

Em vez de responder de imediato, Mikki rodou uma mecha do cabelo cor de cobre no dedo e sorveu um gole do cappuccino . Ela e Nelly eram amigas fazia anos. Tinham se conhecido no hospital onde ambas trabalhavam, e haviam se tornado confidentes no mesmo instante.

Na aparência, possuíam pouca coisa em comum. Nelly era morena e esguia, de uma beleza exótica, herança do sangue haitiano da mãe. E devia ser ao menos uns vinte centímetros mais alta do que ela, calculou Mikki. Ao contrário dela que, além de clara, era cheia de curvas e um tanto comum.

A despeito de suas diferenças, contudo, não existia nenhum tipo de ciúme entre elas. E, desde que tinham se conhecido, apreciavam uma a outra por suas singularidades. Era uma amizade sólida, baseada na confiança e no respeito mútuo. E Mikki não fazia ideia do motivo pelo qual se encontrava tão hesitante em contar seus sonhos a Nelly. Principalmente o último.

— Mikki?

— Não sei por onde começar — mentiu.

Nelly esboçou um sorriso e tomou um gole do cappuccino , e mordiscou um biscoito de chocolate.

— Leve o tempo que quiser. Todos os bons psiquiatras têm uma coisa em comum...

— Eu sei, eu sei. Vocês são pacientes até demais!

— Isso mesmo.

Mikki brincou com a caneca de café. Precisava exorcizar aquele sonho de uma vez. Aquilo estava ficando estranho demais. Era como se houvesse sido hipnotizada... ou seduzida.

Continuou, entretanto, sem falar nada. Não apenas porque tinha dúvidas quanto a revelar os detalhes do sonho em voz alta, como também porque parte dela temia que a amiga, uma excelente psiquiatra, fosse proferir alguma palavra mágica que a curasse . Não tinha certeza se queria aquilo.

— Ei, sou eu! — Nelly incitou suavemente. Ela deu-lhe um sorriso apertado e respirou fundo.

— Está bem. Esse começou igual aos outros. — Cutucou o esmalte da unha, nervosa.

— Quer dizer na cama de dossel?

— Na mesma cama de dossel enorme, no quarto enorme — ela reforçou. — O lugar era o mesmo, só que não estava tão escuro como antes. Desta vez a luz entrava por uma parede inteira de janelas. — Mikki buscou a palavra. — Eram painéis de vidro verticais... Sabe o que eu quero dizer?
Nelly assentiu.

— Janelas quadriculadas?

— Quase isso. Bem, independente de como elas são chamadas, eu as notei, desta vez, porque deixavam entrar alguma luz. — Seu olhar continuou preso às chamas que queimavam, alegres, enquanto revivia o sonho. — Era uma luz suave, rosada, como a do amanhecer... Enfim, eu despertei — continuou, deixando escapar uma risadinha nervosa. — Foi estranho ter sido acordada de um sonho em outro sonho, mas eu acordei. Estava de bruços e sentia alguém escovando os meus cabelos. Uma delícia. E, fosse quem fosse, usava uma daquelas escovas grandes, de cerdas m acias. — Sorriu para a amiga. — Você sabe... Não há coisa mais gostosa do que alguém lhe escovando os cabelos.

— Concordo, mas ter o cabelo escovado não é assim tão sexy .

— Ei, já faz algum tempo, mas sei muito bem que escovar os cabelos não tem a ver com sexo! Não cheguei nessa parte ainda... Só estou contando como fiquei relaxada e feliz por conta disso — explicou Mikki, lançando a Nelly um olhar impaciente.

— Desculpe interromper. Basta fingir que não estou aqui.

— Isso é coisa de psiquiatra?

— Não. Só estou querendo ouvir a parte do sexo, caramba!

Mikki riu.

— Nesse caso, terei prazer em continuar. Vamos ver... Eu estava tão relaxada que me sentia flutuando. Foi bizarro. Senti a alma leve, como se esta estivesse deixando meu corpo... Então tudo começou a ficar muito louco.

— Como assim, “muito louco”?

— Bem, senti uma lufada de vento. Foi como se ela houvesse me pegado e me levado para algum lugar, mas não o meu corpo; apenas o meu espírito. A sensação foi de... purificação. Isso me assustou, e eu abri os olhos. Estava de volta no meu corpo, só que no meio do roseiral mais incrível que já tinha visto ou imaginado na vida. — Sua voz perdeu qualquer indício de dúvida quando passou a descrever a cena. — Foi de tirar o fôlego. Estava cercada por rosas! E das minhas favoritas: Prazer em Dobro, Chrysler Imperial, Cary Grant, Prata Esterlina... — Ela suspirou, feliz.

— Nenhuma rosa Mikado?

A pergunta de Nelly a trouxe de volta à realidade.

— Não, não vi nenhuma rosa homônima minha. — Aprumou-se, lançando à amiga um olhar irritado. — E não acho que isso esteja acontecendo porque minha mãe decidiu me dar o nome de sua rosa favorita.

Nelly fez um gesto conciliatório com a mão.

— Mikki — falou, pronunciando o apelido de forma clara, como se quisesse apagar o nome “Mikado” do ar —, precisa admitir que o fato de essas rosas aparecerem em todos os seus sonhos é muito estranho.

— Por quê? Sou voluntária no Roseiral Municipal e cultivo minhas próprias rosas. Por que uma parte integrante da minha vida não deveria figurar nos meus sonhos?

— Está certa. As rosas são uma parte importante da sua vida, assim como eram na de sua mãe e...

— ... na da minha avó. E na da minha bisavó.

Nelly sorriu, aquiescendo.

— Sabe que eu acho esse seu hobby encantador e morro de ciúme da sua capacidade de cultivar aquelas rosas maravilhosas.

— Sinto muito. Eu não devia ter sido tão indelicada. Acho que é a falta de sono.

— Não tem dormido direito? — A preocupação sombreou a expressão de Nelly.

— Não, não... — Mikki negou rapidamente. — Apenas ando levando muito trabalho para casa e ficando acordada até tarde. Por favor, não me pergunte mais nada sobre isso! , pensou, lançando um olhar tenso na direção da amiga enquanto mexia o capuccino e tomava um gole. Nelly não precisava saber que sua exaustão nada tinha a ver com falta de sono ou muito trabalho.

Tudo o que desejava era escapar daquele mundo de sonhos e dormir. O pior era que, apesar de nunca mais ter se sentido completamente descansada depois de ter ingressado naquele mundo de fantasias, ainda se via compelida a retornar para ele todas as noites.

— Mikki?

— Onde eu estava mesmo? — Ela se atrapalhou.

— No belo jardim de rosas.

— Ah, sim...

— E as coisas estavam ficando muito loucas.

— Isso mesmo. — Mikki voltou a olhar para a lareira. — Por algum tempo, eu apenas caminhei entre as rosas, tocando cada uma delas e apreciando sua beleza. Havia acertado no palpite: era de manhã cedo, o ar estava fresco e as flores ainda se encontravam respingadas com orvalho; como se tudo tivesse acabado de ser lavado. O jardim era circular, e as rosas e seus canteiros formavam uma espécie de labirinto. Fiquei andando por ali, apenas me divertindo.

Seu sorriso oscilou, e ela fez uma pausa antes de iniciar a parte seguinte do sonho. Pôde sentir as faces ganhando cor e desviou o olhar para encontrar o olhar curioso da amiga.

— Não me diga que está envergonhada! — provocou Nelly.

— Mais ou menos. — Mikki esboçou um breve sorriso.

— Mikki, você e eu fizemos depilação à brasileira juntas, esqueceu? E na mesma sala! Supere logo essa coisa e me dê mais detalhes. Se mesmo assim falhar, lembre-se... — Nelly deu mais uma mordida no biscoito e continuou com a boca cheia: —... Sou uma profissional.

— Prefiro não me lembrar — murmurou Mikki antes de respirar fundo. — Pois, então. Estou no roseiral e, de repente, sinto a presença dele . Eu não conseguia vê-lo, mas sabia que ele estava atrás de mim. — Umedeceu os lábios e, inconscientemente, levou a mão à garganta, os dedos acariciando a pele sensível na base do pescoço enquanto falava. — Comecei a andar
mais rápido porque, a princípio, senti que deveria me manter distante... Mas logo tudo mudou. Eu podia ouvi-lo atrás de mim conforme ele ia se aproximando. E ele não estava tentando se esconder. Seus ruídos eram assustadores, quase selvagens. Era como se eu estivesse sendo caçada por uma fera.

Tentou fazer a respiração voltar ao normal, embora sentisse o corpo formigar com uma onda de calor. Surpresa, percebeu uma gota de suor escorrendo entre os seios.

— Estava com medo? — Nelly perguntou.

— Não. Nem um pouco. Na verdade, estava excitada — ela respondeu tão baixo que a amiga se inclinou a fim de escutá-la melhor. — Eu queria que ele me pegasse. Quando eu corria, era só para provocá-lo; e eu queria muito fazer isso.

— Nossa! — a outra moça exclamou com um suspiro.

— Eu avisei... E o sonho fica ainda melhor.

— Oba. — Nelly mastigou outro biscoito.

— Eu corria nua e ria. O vento parecia meu amante conforme soprava no meu corpo. Eu me deliciava com cada gemido, cada rosnado, cada grunhido feito pela coisa que me perseguia. E queria ser apanhada, mas não até que ele estivesse muito, muito ansioso por me agarrar.

— Pelo amor de Deus, não pare por aí! Ele pegou você ou não?

Mikki tornou-se introspectiva, e seus olhos se voltaram para o fogo mais uma vez.

— Sim e não. Como eu disse, eu estava correndo, e ele me perseguia. Cheguei a um canto do labirinto e me virei... — Seus lábios se apertaram e em seguida se curvaram em um sorriso travesso. — Então tropecei e caí em um buraco. Quando bati no fundo, devia ter me machucado, mas minha queda foi amortecida por pétalas. Eu tinha caído em um poço cheio de pétalas de rosa! E devia haver milhares delas lá. Seu perfume preenchia o ar, e elas acariciaram o meu corpo. Cada centímetro da minha pele ganhou vida em meio a tanta suavidade... E depois as mãos dele substituíram as rosas. — Respirou fundo. — Não eram macias. Eram ásperas, fortes e exigentes. O contraste entre as duas sensações foi incrível. Ele acariciou o meu corpo nu, desde os meus seios, passando pela minha barriga e coxas... Exatamente como eu gostaria que me tocasse. Foi como se ele tivesse entrado nas minhas fantasias e conhecesse todos os meus desejos secretos.

Mikki fez uma pausa para afastar um de fio de cabelo do rosto. Sentiu a mão tremer, mas, não querendo que Nelly notasse, apressou-se em continuar com a narrativa.

— Estava mais escuro no poço do que no jardim, e minha visão parecia meio turva, quase como se o perfume das pétalas esmagadas houvesse criado uma névoa. Eu não podia vê-lo, mas, onde quer que ele me tocasse eu pegava fogo. Antes disso, em todos os meus sonhos, podia sentir sua presença como se ele fosse um ser irreal, um fantasma ou uma sombra. Eu pressentia sua presença, mas até então ele nunca havia me perseguido ou posto a mão em mim. E eu jamais o tinha tocado também. Mas, naquele poço de rosas, tudo mudou. Podia sentir suas mãos na minha pele e também podia acariciá-lo... A certa altura, eu o puxei para mim, e ele... — Mikki engoliu em seco e fechou os olhos com a lembrança. — Ele era forte e incrivelmente grande. Corri as mãos por seus ombros e braços e percebi que seus músculos eram como pedra. Foi quando senti algo diferente.

Engoliu, tentando aplacar a súbita secura na garganta. Deveria contar a Nelly? Deveria revelar aquilo a alguém?

Enquanto se lembrava, foi quase como se estivesse lá outra vez; naquele poço de sensações e fragrâncias. Suas mãos tinham se deslocado até uma massa espessa de cabelo. Tivera a intenção de segurá-lo pelo rosto, de abrir os olhos e vê-lo enfim.

Mas encontrara os chifres. A criatura que acariciava seu corpo, levando-o a uma excitação que nunca experimentara na vida possuía chifres! Não. Não podia contar aquilo a Nelly. Era absurdo demais. Sua amiga iria achar que estava ficando maluca.

— Ele usava um traje esquisito — murmurou em vez disso, nervosa. — Uma espécie de armadura cobrindo o peito, não sei. E foi incrivelmente erótico: aqueles músculos rijos cobertos pelo couro... Eu o senti e acariciei, então ele mergulhou o rosto nos meus cabelos, aqui. — Fechando os olhos, puxou uma massa de cachos avermelhados para a frente e afundou a mão neles, perto da orelha direita. — A partir desse ponto foi fácil eu escutar cada som que ele fazia. Quando eu o afagava, ele gemia ao meu ouvido; só que não era bem um gemido. Ao menos não o gemido de um ser humano... Era um rosnado baixo e profundo, que não parava nunca. — Ela franziu o cenho. — Isso devia ter me assustado. Eu devia ter gritado e lutado ou, no mínimo, ficado petrificada, paralisada de medo. Mas não queria ficar longe dele. E aquele som terrível, animalesco e maravilhoso me excitou ainda mais. Senti que iria morrer se não pudesse tê-lo por inteiro. Quando arqueei o corpo, consegui sentir sua ereção, e ele começou a se esfregar em mim... — Engoliu de novo. — Foi então que falou, e sua voz soou diferente de tudo o que já ouvi: uma voz meio de homem, meio de bicho. E era tão profunda que foi quase como se eu pudesse escutá-la também com a mente.

— E o que ele disse? — Nelly incitou, meio sem fôlego, quando ela parou de falar.

— Murmurou em meu ouvido algo como: “Nós não podemos. Eu não posso. Isto não pode acontecer!”. Mas eu não parei. Sentia o desejo dele nas palavras tanto quanto no que tinha no meio das pernas... Implorei a ele que não parasse enquanto me agarrava àquela armadura. Queria arrancá-la; eu o queria nu contra mim... Mas era tarde demais. Eu já estava gozando, e tudo o que podia fazer era colocar as pernas em volta dele conforme o meu corpo explodia. — Mikki respirou fundo. — Foi o orgasmo que me acordou.

Capítulo 18

Lina sentiu-se como um gatinho bem alimentado, com o ­corpo naquele ponto maravilhoso entre o relax e a satisfação. Cada pedacinho de estresse fora massageado para fora de seus músculos. Sua pele se encontrava tão incrivelmente macia que, enquanto ela se esticava na chaise e mordiscava sementes de romã, passava os dedos, distraída, por toda a pele, a qual parecia sussurrar de prazer.

— Juventude, beleza e o poder de uma deusa... Perséfone tem tudo isso — murmurou, para depois olhar em volta, preocupada.

Não. Estava sozinha, assim como tinha pedido.

Após o banho e aquela fabulosa massagem com óleo, Eurídice a vestira com uma linda camisola branca e cintilante, e ela se aninhara junto à espreguiçadeira. Quando a pequena alma lhe perguntara se havia qualquer outra coisa de que ela precisava, ela respondera, sonolenta, que sua única vontade no momento era se deitar na chaise longue , beber ambrosia e comer romãs. E, depois, simplesmente dormir.

Eurídice batera palmas, como uma daquelas diretoras enérgicas dos colégios para meninas, e praticamente enxotara as pobres criadas da varanda, anunciando que Perséfone necessitava de privacidade.

E então, para a surpresa de Lina, a pequena alma havia deixado o quarto atrás das servas, alegando ter um encontro com Iapis onde trabalhariam em seus esboços preliminares do palácio... Mas prometera levar aquilo que completassem para sua aprovação na manhã seguinte.

Iapis e Eurídice novamente.

Lina puxou uma mecha dos cabelos longos e a girou em torno do dedo. Se não estivesse enganada, o interesse do daimon pela moça não era apenas amigável.

Talvez ela devesse falar com Hades a respeito.

Hades...

Pensar no deus trouxe a inquietação que borbulhava sob sua pele para a superfície, e ela serviu-se de outra taça de ambrosia. O que estava acontecendo com ele? Por que desaparecera de repente? Hades tinha deixado muito claro que estava interessado nela, e até a havia beijado.

Beijado uma ova . Ele a prendera contra a parede e a acariciara inteira!

Lembrar sua paixão a fez estremecer. Hades era a ­personificação do perigo. O Batman vivo.

Umedeceu os lábios secos e pôde jurar que ainda sentia o gosto dele.

Ou talvez fosse apenas a ambrosia. Ambos eram deliciosos.

Fechou os olhos, permitindo que seus próprios dedos a percorressem pescoço abaixo e roçassem os mamilos já intumescidos.

Soltou um gemido.

Merda!

O corpo de Perséfone era jovem, ágil e...

Abriu os olhos.

— ... Muito, muito excitável — falou em voz alta. — Ou talvez seja mais o meu do que o dela. Ou uma combinação do que acontece quando uma mulher de quarenta e três anos de idade que não faz sexo há, ela parou e contou, quase três anos é colocada no corpo de uma deusa jovem, em idade de casar. E depois ainda é tentada pelo sósia do Batman! — completou, frustrada. — Chega, Lina! Hora de se mexer.

Ela se levantou rápido demais e sentiu-se leve e com os joelhos fracos. A ambrosia tinha lhe subido à cabeça.

Bem como a outros pontos sensíveis.

Seus lábios se torceram num sorriso, e um calor aqueceu-lhe as faces.

Céus! , ela estava mal... Tentara até mesmo a chuveirada fria, e, definitivamente, esta não funcionara como ela havia planejado.

Suspirou e passou o dedo pelo mármore liso da balaustrada, pensando na ideia que Eurídice fazia de um chuveiro. Tinha sido uma experiência inesquecível que, no entanto, nada fizera para dissipar suas fantasias com o deus do Submundo. Na verdade, só havia piorado a situação. Seu corpo fora mimado, lavado, massageado, alisado... E agora ela se sentia como uma concubina preparada para o sultão.

Mas em que parte do inferno se encontrava o sultão?, ela se indagou, rindo da própria escolha de palavras.

Sacudiu a cabeça e revirou os olhos.

— Você bebeu ambrosia demais!

Pôs a taça meio vazia sobre o parapeito e começou, cambaleante, a descer a escadaria circular que ia até a base do palácio. Daria uma boa caminhada pelo jardim. Isso poderia lhe clarear as ideias e deixá-la com sono o suficiente para que ela se lembrasse de que a cama era um lugar para dormir mais do que para fazer sexo selvagem e suado com um deus belo e sombrio.

Envolta pela névoa de ambrosia, Lina seguiu caminho para o primeiro nível dos jardins do palácio. Quando chegou à entrada, ficou imóvel, totalmente imersa na visão mágica das tochas acesas. O Submundo era um lugar tão lindo! O céu continuara a escurecer, mas não era negro como na noite do Mundo Superior. Em vez disso, era de um cinza da cor da ardósia, iluminado por várias estrelas, cada uma delas aureolada com cores iridescentes que a lembravam o perolado de uma concha. O céu incomum fazia tudo parecer mergulhado numa escuridão suave, como se aquela parte do Submundo fosse um sonho bom.

— Essas estrelas são as coisas mais bonitas que eu já vi — disse para o céu em voz baixa.

— São as Híades.

Hades pareceu se materializar das sombras do jardim, e ela levou a mão ao pescoço, sentindo o coração bater ali.

— Você me assustou!

— Eu não queria fazer isso, mas estava pensando em você e, quando ouvi a sua voz, quis me aproximar.

Lina mordeu o lábio e tentou limpar a mente anuviada pelo vinho. Ele estava usando aquela maldita capa outra vez. Pior: tinha trocado o traje volumoso que usava de costume por outro, muito mais revelador. Havia escolhido se vestir de preto outra vez, mas na forma de uma túnica de couro curta, que parecia ter sido moldada para o seu peito e que terminava em painéis sobre os quadris. Por debaixo, vestia uma malha pregueada da cor de nuvens carregadas, que lhe deixava à mostra quase todos os músculos das pernas.

Lina se obrigou a erguer os olhos e encará-lo. Hades a fitava com tanta intensidade que ela sentiu os membros formigar.

— Eu também estava pensando em você. Estou feliz por estar aqui — disse e se obrigou a respirar enquanto ele se aproximava tal qual um felino.

Seu corpo era como uma fornalha, refletiu Lina. Podia sentir o calor que irradiava dele.

O deus tomou-lhe a mão, levou-a lentamente até a boca, e foi como se seus lábios a marcassem.

Hades não a soltou. Em vez disso, traçou em sua pele um caminho circular com o polegar.

O vento frio levou seu cheiro até Lina. Hades cheirava a noite, a couro... a homem. O perfume erótico e perigoso fez seu estômago se apertar e a fez pensar em peles suadas, escorregadias e nuas.

Sem refletir, ela respirou fundo e se recostou nele. Os olhos de Hades faiscaram, e a brisa, provocante, fez voar sua capa, que subiu atrás dele como um par de asas.

Lina se viu submersa na intensidade de seu olhar. Podia sentir sua paixão se inflamando. Aquele Hades não era apenas o deus inteligente e sexy que ela conhecera. Era o ser que a possuíra naquela ferraria. Ele se avultava sobre ela, poderoso, imortal, sedutor, atraente, irresistível... e um pouco assustador.

Mesmo assim, ela o queria. A presença do deus era magnética, porém sua alma mortal ainda lutou para manter algum controle.

Lina obrigou a mente a trabalhar, a se agarrar a alguma coisa; qualquer coisa que pudesse dizer a ele.

— Disse que as estrelas são as Híades? Eu não compreendo — conseguiu balbuciar por fim.

Ele tirou os olhos dos dela para fitar o céu noturno.

— Não entende porque as conhece apenas como as ninfas brilhantes que elas são no Mundo Superior. O que a maioria dos imortais não sabe é que um grupo de Híades da floresta se cansou das suas funções terrenas e implorou a Zeus para que ele as tornasse mortais. Assim, elas poderiam morrer e se livrar do fardo da imortalidade.

A voz dele era tão profunda e hipnótica como seus olhos, concluiu Lina, fitando-o, extasiada, enquanto ele narrava sua história. Hades era como uma chama que atraia sua alma inexoravelmente.

Batman. Era mesmo como o Batman.

E, com ambrosia na cabeça ou não, que mulher sensata não teria fantasias com o super-herói?

— Zeus concedeu às Híades seu desejo e, naquela mesma noite, elas adentraram o meu reino. Fiquei tão comovido com a iridescência de suas almas que comentei que sua grande beleza poderia iluminar Elísia inteira. As ninfas ficaram fascinadas com a minha ideia e vieram me fazer um pedido. Com o aval de Zeus, eu lhes concedi essa prerrogativa, e elas têm iluminado o céu noturno do Submundo desde então.

Lina obrigou os olhos a desviarem do atraente deus para olhar as estrelas que, na realidade, eram os espíritos das ninfas.

— O que está fazendo aqui, Perséfone?

A emoção na voz de Hades a fez segurar o ar nos pulmões e tornar a encará-lo. O que tinha acontecido com ele naquela noite? Como podia parecer tão poderoso e, ao mesmo tempo, tão vulnerável?

Balançou a cabeça e deu a única resposta que podia:

— Eu bebi muita ambrosia e pensei que um passeio pelo jardim ajudaria a me manter sóbria.

Hades a encarou por mais um momento, então piscou, passou a mão pelo cabelo e soltou outro longo suspiro. Devagar, as linhas tensas em seu rosto começaram a relaxar.

— Ambrosia demais? Pois, para mim, isso faz muito bem. Deixa a cabeça mais leve e os joelhos fracos.

Aliviada por ele parecer normal, Lina sorriu.

— Fico feliz em saber que não sou a única a ter essa reação.

— Uma caminhada ajuda realmente. — Hades devolveu-lhe o sorriso e se curvou, galante. — Eu ficaria honrado se me permitisse acompanhá-la.

Era o seu Hades arrojado outra vez.

Lina sorriu, fez uma reverência... e percebeu que estava vestindo apenas uma camisola de seda fina.

Engoliu em seco.

— Eu, ahn... Parece que não estou agasalhada o suficiente para um passeio noturno.

Os olhos de Hades brilharam ao percorrer o corpo coberto de seda, deixando seu rosto corado. Em um movimento fluido, ele soltou a capa e, tal qual um toureiro, girou-a para cobrir-lhe os ombros.

— Está melhor assim?

Abrigada em seu cheiro e calor, ela pôde apenas assentir em silêncio.

— Quer dizer que posso acompanhá-la?

— Claro.

Hades sorriu e a fez passar o braço pelo dele. Então a conduziu lentamente pelos jardins cobertos pela noite.

Não falaram mais. Apenas se habituaram à presença um do outro. Hades escolheu um caminho largo, que dividia os jardins, e Lina olhou ao redor, admirada. A suavidade incomum da noite do Submundo lançava um brilho mágico sobre as flores e sebes adormecidas e, apesar de muitos dos botões se encontrarem fechados, estes ainda pontilhavam de branco a paisagem.

— Ainda não me decidi se as acho mais bonitas durante o dia, enquanto estão em plena floração, ou como agora. Parecem crianças dormindo... — ela comentou, estendendo o braço para tocar um lírio branco.

Ao seu toque, a flor desabrochou completamente, e Lina reprimiu um grito. Tinha que se lembrar que era a deusa da Primavera. Não deveria ficar surpresa quando fazia brotar uma flor!

— Pronto. Agora pode decidir — Hades falou, divertido.

Lina franziu a testa.

— Não, eu não quero desgastá-las. — Pensou por um momento antes de acenar para o lírio. — Volte a dormir — ordenou.

Com um som muito parecido com um suspiro, a flor se fechou.

Lina voltou-se para Hades e o viu olhando para ela com uma expressão que não conseguiu interpretar. Antes que pudesse perguntar o que estava errado, ele pegou sua mão, a mesma que tinha tocado a flor, e, virando a palma para cima, levou-a aos lábios.

O toque quente fez o estômago de Lina se contrair. Céus! , ela queria que ele beijasse muito mais do que apenas sua mão...

Cedo demais, Hades a soltou.

— É uma deusa muito generosa.

Ela não era Perséfone, porém Hades a fazia sentir-se como se ela fosse uma deusa realmente.

Em vez de passar o braço pelo dele outra vez, Lina entrelaçou a mão na dele, e seus lábios trêmulos se curvaram num sorriso satisfeito.

Hades apertou seus dedos, e eles retomaram a caminhada.

— Eu gostaria de lhe mostrar uma coisa — ele falou de repente. — Algo muito importante para mim.

Lina o fitou, e seus olhos se encontraram brevemente. Então o deus desviou o olhar, e ela notou a linha tensa em seu maxilar.

— Se é importante para você, eu adoraria ver.

Hades relaxou e apertou sua mão outra vez.

— É por aqui...

O primeiro patamar do jardim chegou ao fim, e ele a fez descer a escada para o segundo nível. Mais cedo, naquele mesmo dia, quando ela viera colher néctar, não conseguira prestar muita atenção a nada, exceto em obter o líquido pegajoso.

Teria gostado de parar para observar as fontes e a coleção de estátuas, mas o deus apertou o passo. Obviamente, estava ansioso por chegar ao que desejava mostrar a ela.

Com a curiosidade aguçada, Lina correu para alcançá-lo.

No terceiro nível, Hades escolheu um caminho que bifurcava à sua direita e fazia algumas curvas em “S” para a lateral ­daquele jardim. Pouco a pouco, os jardins bem cuidados deram lugar a grandes pinheiros, e seu aroma acentuado a fez lembrar-se de férias e repouso.

— Adoro o cheiro dos pinheiros!

Em vez de responder, Hades pressionou um dedo contra seus lábios.

— Sshh! Eles não podem saber que estamos aqui.

Lina ia perguntar o que ele queria dizer com aquilo, porém o deus apontou para um aglomerado de pedras.

— Precisamos esperar ali atrás.

Intrigada e completamente confusa, ela permitiu que ele a puxasse para o lado enquanto se agachavam atrás das rochas pontiagudas.

— O que está acontecendo? — indagou, preocupada.

Hades mudou de posição, de modo a enxergar por cima da pedra mais próxima, e gesticulou para que ela fizesse o mesmo.

Lina olhou por cima da rocha. Do outro lado, a terra descia, íngreme até chegar à margem de um rio.

Piscou várias vezes para se certificar de que seus olhos não a estavam enganando, contudo a água continuava a mesma, brilhando como diamante líquido sob a luz mágica da noite do Submundo. Tudo estava muito quieto em torno deles, e Lina pôde ouvir a voz do rio, que ria e cantava palavras em uma língua estranha. Não entendeu o que dizia, mas o som era fascinante, e ela sentiu um súbito desejo de correr pela margem, entrar na água e imergir naquele riso contagiante.

A mão firme de Hades segurou-lhe o ombro, e seus lábios quase tocaram sua orelha enquanto ele falava baixinho:

— Não dê ouvidos ao chamado do rio.

Lina se concentrou na voz do deus e sentiu amenizado seu fascínio.

— Eu devia ter lhe avisado. O chamado do Lete pode ser muito forte. — A respiração de Hades era quente, e Lina se recostou nele.

Hades mudou de posição, colocou o braço sobre seus ombros e a puxou para a sua frente, para que ela pudesse descansar quase intimamente em seu colo.

Lina se moveu para trás, de encontro ao peito largo, e inclinou a cabeça para que ele pudesse captar seus sussurros.

— Este é o Lete, o rio do Esquecimento?

Sentiu que ele acenava com um gesto de cabeça e olhou para o rio, incrédula. Então aquele era o famoso rio que fazia as almas esquecerem suas vidas anteriores e as preparava para nascer de novo.

— Isso era tão importante para você?

— De certa forma — Hades sussurrou. — Mas há mais.

— Por que temos de ficar tão quietos?

— Os espíritos não podem saber que estamos aqui. Nossa presença seria uma distração. Para isso os mortos não precisam de nós.

Lina sentiu uma onda de excitação e procurou as margens do rio.

— Não vejo nenhum morto.

— Espere e olhe bem.

Ela se recostou no peito largo, e o deus a envolveu nos braços com firmeza. Era tão bom ficar perto dele! Um aroma de pinho pairava no ar, mesclando-se com o perfume inebriante e másculo de Hades.

Uma vez que ela não mais sintonizava com o apelo irresistível do Lete, a voz deste se tornou alegre e melódica.

Lina sentiu-se imersa em uma experiência sensorial inacreditável. Seu corpo inteiro estava excitado e ultrassensível. A mão do deus descansou em seu antebraço, e seu polegar lhe traçou círculos preguiçosos na pele. Ela estremeceu sob o toque.

— Minha capa não a está aquecendo? — Hades murmurou, a respiração morna contra seu ouvido. — Está com frio?

Ela balançou a cabeça negativamente e se virou nos braços fortes para ver seu rosto. Ele a envolvia por inteiro. Seu corpo era rijo, forte, e ele irradiava calor através do couro da túnica.

Seus braços a rodearam, então. Lina abriu a boca para dizer que era o seu toque que a fazia tremer daquela maneira e que...

— Ali! — O sussurro de Hades foi urgente. Ele se inclinou para a frente, movendo-a com ele. Apontou, e os olhos dela seguiram seu dedo.

Duas figuras se aproximavam do rio, no lado oposto. Conforme chegavam mais perto, Lina percebeu que elas estavam de mãos dadas. A água brilhante refletiu em seus corpos, mostrando serem um homem e uma mulher de idade. Eles se moviam lentamente, permitindo que seus ombros e quadris roçassem uns nos outros. A cada passo ou dois, o homem erguia a mão enrugada da mulher até os lábios e a mantinha lá enquanto ela o fitava com ternura.

Lina sentiu-se pouco à vontade espionando-os, mas ficou encantada com a adoração que demonstravam um pelo outro.

Por fim, o casal chegou à beira do rio e se entreolhou. O homem descansou as mãos sobre os ombros da mulher.

— Tem certeza? — Tinha a voz rachada pela idade e pela emoção, porém esta ainda era audível do outro lado do rio.

— Tenho, meu amor. Chegou a hora, mas nos encontraremos de novo — afirmou com segurança.

— Eu sempre confiei em você. Não vou duvidar de você agora — replicou ele.

Ao ver o homem puxar a esposa suavemente para seus braços e beijá-la, Lina sentiu os olhos se encherem de lágrimas e piscou depressa, querendo manter o foco. O casal terminou seu abraço e depois, com as mãos ainda unidas, eles se ajoelharam ao lado do rio, inclinaram-se e beberam da água cristalina.

No mesmo momento, seus corpos começaram a brilhar. Seus cabelos e roupas chicoteavam descontroladamente como se tivessem sido apanhados em uma lufada de vento.

Então começaram a mudar.

Lina engasgou enquanto observava os anos deixando o casal. Sua aparência mudou da velhice para a meia-idade, em seguida para a fase adulta, depois para a juventude, e, finalmente, os dois resplandeceram com a vibração da adolescência.

A metamorfose cessou e, atordoados, eles se entreolharam.

Em seguida, o homem jogou a cabeça para trás e gritou com alegria. Mais uma vez, puxou a mulher para os braços e ela pulou em seu colo, rindo e chorando ao mesmo tempo.

As lágrimas escorreram dos olhos de Lina. Eles deviam ser daquele jeito quando tinham se apaixonado.

Enquanto o casal se abraçava, seus corpos se tornaram cada vez mais brilhantes, até que ela precisou usar a mão para proteger os olhos contra a luz que deles emanava.

De repente, eles explodiram tal como duas estrelas, e foram caindo em uma chuva de faíscas sobre a água. A partir do centro de cada explosão, dois pontos de luz do tamanho de um punho fechado se formaram. Pairaram sobre as águas, adaptando-se aos seus novos sentidos, então se puseram a flutuar correnteza abaixo, como se carregados por uma brisa própria.

Lina ficou olhando para eles. As duas esferas de luz permaneciam juntas e tão próximas que, conforme se afastavam, parecia não haver mais distinção entre elas. O rio fazia uma curva para a esquerda, e as luzes o seguiram, desaparecendo de vista.

Ela enxugou os olhos, fungando.

— O que vai acontecer a eles? — perguntou com voz embargada.

— O que viu é a aparência das almas depois que todas as lembranças e todo o vínculo com os corpos são removidos. Os espíritos seguirão o Lete até a sua nascente. Lá eles renascerão como crianças para viver novas vidas — explicou Hades.

Lina virou-se em seu colo para encará-lo.

— Mas eles vão ficar juntos outra vez? Se eles renascem como novas pessoas, sem nenhuma lembrança de suas vidas anteriores, como podem se reencontrar?

— Almas gêmeas sempre se reencontram. Não precisa chorar por elas... A mulher falou a verdade: eles vão ficar juntos novamente.

— Promete? — A voz de Lina tremeu de emoção.

— Prometo, meu anjo. Prometo.

Devagar, e lutando contra eras de solidão, Hades envolveu com as mãos o rosto à sua frente e tomou uma decisão: tinha que tentar. Estaria perdido se não o fizesse.

Fitou-a nos olhos com o coração aos saltos e, respirando fundo, deixou os polegares enxugarem o resto das lágrimas da deusa.

— Era o que eu queria lhe mostrar e dividir com você, Perséfone: o vínculo que existe entre almas gêmeas. Sei que jamais vai se esquecer do que testemunhou aqui. O que viu pode até mudá-la, assim como me mudou.

Delicadamente, ele se inclinou para ela. Primeiro beijou-lhe as pálpebras fechadas, uma a uma, então colou a boca na sua.

O beijo começou doce e hesitante, mas, quando as mãos de Lina deslizaram ao redor de seus ombros, e ela abriu os lábios para aceitá-lo, Hades o aprofundou com fervor.

Perséfone estava ali, era uma realidade em seus braços. Desta vez ele não precisava imaginar que a tocava e a saboreava.

O desejo por ela, que ainda não fora verdadeiramente saciado, brotou dentro dele. Com um gemido de prazer, as línguas se encontraram. Perséfone estava lânguida e quente, e tinha gosto de ambrosia.

Hades deslizou as mãos para dentro da capa que a cobria, e estas encontraram sua cintura. Acariciou-lhe a curva dos quadris e, obedecendo às suas fantasias, mergulhou os dedos na seda de seus cabelos.

Percebeu a respiração dela se acelerar ao percorrer de cima a baixo o comprimento de suas coxas. A fina camisola de seda não representava quase nenhuma barreira.

Perséfone virou-se em seu abraço, de maneira que seu membro rijo ficou pressionado contra a curva de suas nádegas benfeitas.

Hades deixou escapar um som baixo e selvagem do fundo da garganta. Como vivera tanto tempo sem ela? Desejava-a com um fogo que o queimava vivo!

Sua mão viajou de volta para a curva tentadora da cintura delgada e continuou a subir, sentindo a perfeição da lateral de um seio. Em sua mente, ele vislumbrou outra vez os mamilos intumescidos e molhados com água e óleo. Com a ponta dos dedos, encontrou o botão macio e o acariciou através da seda fina.

Perséfone soltou uma exclamação. O som penetrou a névoa de luxúria que embaçava o cérebro de Hades e o fez recuar. A capa tinha sido deixada de lado, e a deusa estava praticamente sobre ele, tremendo, exposta, com os cabelos desgrenhados e os lábios vermelhos e inchados depois de seus beijos.

Por todos os deuses, o que havia de errado com ele? ­Perdera o controle sobre si mesmo? Não queria que acontecesse daquela maneira. Até mesmo um idiota inexperiente sabia que não deveria amar uma deusa no meio de uma floresta.

Soltando uma imprecação, ele se pôs de pé. Perséfone estava com pedaços de pinhas e sujeiras na camisola, e pareceu-lhe dolorosamente jovem e sedutora ao fitá-lo com um sorriso confuso nos lábios sensuais.

Hades se encheu de vergonha. Ainda queria deitá-la no chão e amá-la ali mesmo.

Balbuciando desculpas incoerentes, limpou as folhas dos pinheiros que tinham se apegado às suas vestes.

Lina suspirou. A força da paixão do deus despertara nela um desejo tão intenso, tão feroz, que chegava a ser assustador. Ao observar a luxúria se esvair do rosto de Hades e ser substituída por uma expressão que poderia ser raiva ou vergonha, ela controlou a respiração e se obrigou a raciocinar. Nunca tivera um deus por amante, mas não era nenhuma virgem, e, portanto, não devia reagir como uma.

— Não tive a intenção de trazê-la aqui para... — Ele balançou a cabeça, desgostoso, e continuou a limpar seu vestido — ... para amá-la como um bicho.

Não estava zangado, Lina percebeu com alívio, e sim, constrangido.

— Hades... — Segurou sua mão e a puxou até que os olhares se encontrassem. — Pare com isso. Eu estou bem. O que aconteceu?

— Uma deusa merece mais do que uma contenda no chão.

O sorriso dela foi lento e sensual.

— Não posso falar por outras deusas, mas eu estava gostando da contenda... — Tocou a veste de couro que ele usava. Ainda podia sentir o calor que emanava dele. — E eu não estava no chão... Estava praticamente sentada no seu colo.

Hades soltou um suspiro, e a expressão preocupada em seus olhos o fez parecer décadas mais velho. Com delicadeza, ele a tocou no rosto, e sua voz saiu rouca com as emoções contidas:

— É verdade que eu não a trouxe aqui para seduzi-la, mas descobri que não consigo manter o meu pensamento longe de você... nem minhas mãos. Que os deuses me ajudem, Perséfone, mas eu a desejo mais do que qualquer outra coisa — ele concluiu, ofegante.

— Então que os deuses ajudem a nós dois, Hades — ela emendou, rouca.

Quando seus lábios se encontraram, Lina se recusou a pensar em Deméter e no futuro.

Hades interrompeu o beijo suavemente, enquanto ainda era capaz de se controlar. Ela era tão macia e se mostrava tão receptiva! Que Perséfone o desejava, isso era evidente, porém ele queria mais do que possuir seu corpo. Queria sua alma.

Num gesto carinhoso, ajeitou a capa sobre seus ombros e a fez passar o braço pelo dele.

— A noite está esfriando. É melhor voltamos para o palácio. — Tirou-lhe uma mecha de cabelo do rosto, ciente da decepção nos olhos da deusa.

Bom , pensou. Queria que Perséfone desejasse e ansiasse por mais do que apenas seu corpo.

Ele a conduziu de volta ao caminho que os levaria ao palácio.

Os pensamentos de Lina fervilhavam. Sentia o corpo ainda ardendo, e sua sensibilidade aumentada, de alguma forma, se fundira com a incrível beleza da cena que tinha testemunhado entre aqueles dois companheiros de alma. A devoção pungente entre os amantes ficara gravada nela.

Sentiu a pulsação firme de Hades sob os dedos. Ele a trouxera até ali para testemunhar o renascimento das almas gêmeas, mas não usara isso como uma arma de sedução. Se essa tivesse sido sua intenção, ele poderia tê-la tomado lá mesmo, no chão.

Mas, não. Hades, pelo visto, queria mais dela do que apenas sexo.

Sua alma vibrou quando um alarme soou em sua mente.

Amor. Ele havia lhe mostrado sua ideia de amor.

Hades já não dissera que acreditava que os mortais sabiam amar melhor do que os deuses? Será que os deuses também possuíam almas gêmeas?

Ela não fazia ideia. Tudo o que sabia sobre imortais tinha lido sem a mínima atenção, décadas antes.

O que se lembrava bem era que os deuses antigos eram volúveis e que descartavam amantes a seu bel-prazer.

Isso, contudo, não condizia com o deus que caminhava a seu lado.

Fitou o perfil sombrio. Quem acreditaria que ela havia encontrado tal desejo e romance na Terra dos Mortos?

Como se pressentisse seu escrutínio, Hades olhou para ela, e seus lábios se curvaram num sorriso.

— Parece que tem muitas perguntas borbulhando na cabeça... Eu já lhe dei permissão para me perguntar qualquer coisa, e prometo que, daqui por diante, me lembrarei das boas maneiras e não insultarei minha convidada.

Lina sentiu-se corar. Desejava que aquela escuridão de sonho escondesse a cor em seu rosto.

Ela havia se esquecido por completo de repreendê-lo por sua retirada estratégica. Parecia ter acontecido séculos antes, e com duas pessoas totalmente diferentes.

Inclinou-se para ele, adorando a sensação do braço forte no seu, e a forma como ele também se curvava para ela, atento.

— O que assisti esta noite foi algo mágico — murmurou, comovida.

— Sim. O tipo mais perfeito de magia: a que é criada pela alma e não inventada pelos deuses.

— Os deuses não possuem almas gêmeas?

— Não. — Hades suspirou. — Almas mortais encontram seus pares naturalmente; não exigem a interferência do Olimpo.

As palavras trouxeram outra dúvida para Lina.

— Os mortos podem se apaixonar? — ela quis saber, pensando nos olhares tímidos que Eurídice começara a lançar para Iapis. — Ou apenas almas gêmeas têm a capacidade de amar após a morte?

— Você mesma pode responder a essa pergunta, Perséfone.

Lina o fitou, atenta. Entretanto o tom de Hades era educativo e não paternalista.

— Pense, minha deusa. Do que é que gosta? Do corpo ou da alma? — ele incitou.

— Se está falando em amor de verdade, e não apenas em desejo ou paixão, eu teria de dizer a alma.

O deus aquiesceu.

— O corpo é apenas um manto, uma cobertura temporária para a nossa verdadeira essência.

— Então as almas que habitam Elísia, ou mesmo seu palácio, podem se apaixonar?

— Qualquer um dos mortos pode encontrar um novo amor. — Hades franziu o cenho. — Mas, deve saber, nem todas as almas são capazes dessa emoção.

— Está falando de almas mortais ou das almas dos deuses?

Ele parou de andar e se virou para encará-la. Estavam em pé, muito próximos, e a mão dela ainda repousava em seu braço.

Hesitou antes de responder à pergunta. Então seus dedos roçaram a face delicada numa carícia já familiar para Lina.

— Não posso falar pelos outros deuses, apenas por mim. Minha alma anseia por uma companhia eterna. — Ele se inclinou e roçou os lábios nos seus. Em seguida, fez um gesto para o espaço logo atrás dela. — Parece que estamos de volta ao lugar em que começamos.

Lina olhou por cima do ombro e piscou, surpresa. Estavam parados na beirada da trilha que levava à varanda.

Sem falar, Hades envolveu-lhe o rosto com as mãos num gesto delicado, e Lina imaginou que o beijo fosse ser doce e breve.

Quando seus lábios se encontraram, contudo, percebeu que havia se enganado. Ele não teve pressa em saboreá-la, mergulhando os dedos em seus cabelos fartos e acariciando a base sensível de seu pescoço.

Ela correu as mãos pelos braços longos, mais uma vez impressionada com sua força.

Hades mordiscou seu lábio inferior antes de terminar o beijo. Sem soltá-la, falou de encontro à sua boca:

— Vai cavalgar comigo amanhã? — indagou, a voz rouca de desejo.

Com o coração disparado, Lina anuiu.

— Sim.

— Até amanhã, então. — Ele a soltou, relutante, e tirou outro fio de cabelo de seu rosto. Fez uma reverência, virou-se e se afastou.

Lina subiu os degraus da varanda e entrou no quarto com as pernas trêmulas. Conforme se largava na cama, avistou o próprio reflexo no espelho sobre a penteadeira, do outro lado do cômodo. Tinha as faces coradas e os cabelos desgrenhados. A capa de Hades havia se acumulado em torno de sua cintura, e a camisola transparente estava suja, com várias folhas de pinheiro pendendo da barra.

E, mesmo longe do espelho, pôde ver o contorno de seus mamilos intumescidos.

— Misericordioso Madre di Dio! — disse, usando a frase mais enfática de sua avó. — Você tem 43 anos de idade! E não se sentia assim desde... desde nunca! — Sacudiu a cabeça diante daquela imagem jovem e estranha de si mesma. — Nenhum homem jamais a fez se sentir como Hades... E ele quer amor eterno! — Fechou os olhos com força. — Oh, Deméter, o que eu vou fazer?


Capítulo 19

— Querida, você é uma verdadeira artista! — Lina estudou o desenho a carvão feito no pergaminho. Havia esperado que o mapa de Eurídice fosse um desenho tosco, mas, quando a pequena alma desenrolou o papel, ficou impressionada com a qualidade do trabalho. O projeto do palácio fora traçado em linhas fortes e claras, com cada setor nomeado em uma linda caligrafia.

O que mais a impressionou, porém, foi a forma meticulosa com que Eurídice havia simbolizado cada parte da construção. Para indicar a sala de jantar, reproduzira uma miniatura da linda mesa com os candelabros. O Salão Nobre fora adornado com um altar, sobre o qual ela desenhara o trono de Hades. Tinha esboçado até o pátio cheio de flores e a fonte maciça em seu centro.

— Gostou mesmo? — Eurídice perguntou, ofegante. — Não está pronto. Ainda precisa de muitos retoques, na verdade.

— Pois eu adorei. Sempre foi boa desenhista?

O rosto da moça se iluminou.

— Sim! Quero dizer... não exatamente. Meu pai não achava que desenho fosse um bom passatempo para uma moça; nem mesmo um hobby . Mesmo assim, eu costumava desenhar em segredo. Fazia o esboço de flores em áreas secas do chão com uma varinha, mergulhava uma pena de pássaro nos corantes da minha mãe e desenhava animais em trapos. — Ela sorriu para Lina, travessa. — Meu pai ficaria louco se descobrisse.

— Pois eu acho que ser artista é um passatempo perfeito para uma mulher, e eu lhe dou carta branca para desenhar quanto quiser — Lina afirmou.

— Muito obrigada, Perséfone! — A moça pulou de alegria. — Mal posso esperar para contar a Iapis. Ele também falou que eu desenhava bem e que me arrumaria outros materiais se eu quisesse continuar desenhando.

— É mesmo? — Lina ergueu as sobrancelhas sugestivamente.

O rosto já rosado de Eurídice assumiu um tom vermelho.

— Sim. Eu pensei que ele estivesse apenas sendo gentil, pois é sempre assim, mas, se você também concorda com ele, então deve ser verdade.

— Diga a Iapis que eu mandei enchê-la com materiais. Acaba de ser nomeada a artista particular da deusa da Primavera. — Lina levantou a mão regiamente a fim de tornar o anúncio oficial.

Os olhos de Eurídice se arregalaram. Num impulso, ela jogou os braços ao seu redor, abraçando-a com força.

— Você é a deusa mais maravilhosa do mundo!

Lina riu.

— Essa é exatamente a opinião que espero da minha artista particular.

— Precisa me dar uma tarefa. O que gostaria que eu desenhasse?

— Não deveria terminar o mapa primeiro?

— Isso será feito em breve. O que quer que eu desenhe? — ­perguntou, ansiosa.

Lina pensou por um momento, então sorriu.

— O narciso está se tornando a minha flor favorita... Por que não desenha um bem grande e bonito?

O rosto de Eurídice resplandecia quando ela fez uma profunda reverência para sua senhora.

— A artista está às suas ordens, deusa da Primavera.

Lina inclinou a cabeça como uma deusa, congratulando-se por ter deixado a pequena alma tão feliz.

— Vou tentar ser paciente e esperar por seu primeiro trabalho.

A pequena alma quase se esqueceu da mesura.

— Céus! A minha primeira incumbência! — exclamou, emocionada.

Duas batidas firmes soaram contra a porta do quarto de Lina. Eurídice praticamente dançava ao abri-la.

— Iapis! — Ela sorriu. — Perséfone declarou que eu sou sua artista particular!

Lina observou o daimon, atenta. Sua expressão foi calorosa e sincera ao parabenizar a moça, e seus olhos não deixaram o rosto delicado um só momento. Sua avó diria que ele estava com todo o jeito de um homem prestes a se apaixonar perdidamente.

Lina percebeu Eurídice tocando o braço do daimon duas vezes enquanto, animada, contava a novidade. A linguagem corporal da menina dizia, sem dúvida, que ela correspondia ao interesse de Iapis.

Menina não, corrigiu-se Lina. Tinha que parar de pensar em Eurídice como uma criança. Ela era uma mulher que já fora, inclusive, infeliz no casamento.

E pensar que seu atual corpo não parecia muito mais velho do que o dela!

— Senhora, posso elogiá-la por seu bom gosto em se tratando de artistas? — Iapis indagou, galante.

Eurídice pairava a seu lado, sorrindo.

— Obrigada, Iapis. Mas parece que estamos apenas começando a descobrir os talentos de Eurídice...

O daimon sorriu com carinho para a moça.

— Sou obrigado a concordar plenamente — respondeu, antes de se inclinar para Lina, discreto. — Hades espera pela senhora no estábulo. Ele pediu que eu a avisasse de que Órion encontra-se impaciente.

O estômago dela se contraiu à simples menção do deus.

— Ainda bem que estou pronta, então. Eu não gostaria de deixar um de seus temíveis cavalos esperando.

— Eles me assustam — declarou Eurídice.

— Basta enxergá-los como cães de grande porte — sugeriu Lina, e a pequena alma e o daimon tiveram que se apressar para segui-la quando ela começou a andar rapidamente pelo corredor e pelo pátio, plenamente consciente de que agora era ela quem parecia flutuar de alegria.

— Aproveitou seu banho de ontem à noite, senhora? — Iapis perguntou.

Lina ficou feliz por estar andando à sua frente. Sabia que sua expressão daria mostras de como a noite anterior tinha se tornado satisfatória.

— Sim, foi uma delícia. Obrigada.

— Perséfone disse que dormiu muito bem — acrescentou Eurídice, travessa.

Lina sorriu. Ela dormira envolta na capa de Hades, mergulhada em sonhos eróticos e sensuais.

— É bom saber — o daimon falou à moça com um suspiro. — Ainda mais depois da noite agitada que meu senhor teve. Hades não pregou os olhos.

— Devia ter lhe providenciado um bom banho, como fiz com Perséfone — comentou Eurídice.

Lina apertou o passo, deixando que a brisa suave que soprava no pátio lhe esfriasse as faces coradas. Já se sentia como uma mola contraída e pronta para se expandir. Decididamente, não precisava começar a visualizar o corpo nu de Hades sendo banhado e coberto de óleo.

Passou quase correndo pela fonte central e as lindas esculturas, e suspirou, aliviada, quando chegou aos portões de ferro forjado por fim.

— Acho que vou ficar aqui, Perséfone — Eurídice falou atrás dela, apontando para um pequeno canteiro de narcisos. — Assim posso fazer um primeiro esboço enquanto cavalga na companhia de Hades.

— E eu ainda preciso arrumar outros materiais para a sua desenhista particular — emendou Iapis, sem nunca deixar os olhos de Eurídice.

— Comportem-se vocês dois... Estarei de volta em breve — ­declarou Lina.

O casal se despediu dela de bom grado.

Quando ela olhou para trás, apenas alguns passos depois, viu os dois juntos. O riso de menina de Eurídice foi seguido por uma gostosa risada do daimon.

Lina suspirou. Precisava conversar com Hades sobre eles. Iapis parecia um bom rapaz, se essa era a expressão certa com que se referir a um semideus, mas, quais eram as suas intenções? Eurídice estava se recuperando de um mau relacionamento, sem dizer que havia falecido fazia pouco tempo... Tais fatos deviam deixá-la duplamente vulnerável.

Ou não?

De qualquer modo, ela se sentia responsável pela moça e não queria vê-la magoada. Iapis precisava agir com cautela. Eurídice tinha de ser tratada com cuidado e respeito.

Um relinchar estridente fez Lina interromper seu discurso interior. Órion estava do lado de fora do estábulo. Sua crina fora penteada e trançada com fitas da cor do luar, do mesmo tom do narciso colocado sob a parte superior de sua rédea.

Ele a avistou, ergueu o pescoço e bufou, dando alguns passos de lado para se exibir. A seu lado havia outro garanhão que poderia ser seu irmão gêmeo, exceto pelo fato de que sua pelagem escura contrastava com uma única mancha branca na testa, cujo formato era o de uma estrela torta. Os dois cavalos eram quase tão magníficos como o deus que segurava suas rédeas.

Hades fechou a cara para Órion.

— Acalme-se, seu tolo! — disse ao garanhão. — Dorado não está fazendo tanto estardalhaço.

Lina correu para se juntar a eles, tentando não se fixar na forma como os ombros do deus se avolumavam ainda mais conforme ele acalmava o corcel. Hades vestia outra túnica curta, que lhe expunha boa parte dos músculos dos braços e pernas, e a capa preta se agitava em torno dele.

Era o próprio Batman. Uma versão deliciosa do antigo Bruce Wayne, ela pensou, e tratou de lutar contra o impulso de se abanar.

— Não brigue com ele. Órion é incorrigível, mas adorável — falou, o coração palpitando. Roçou o rosto contra o focinho do cavalo quando ele a cutucou numa saudação, aproveitando para desviar o olhar de Hades. — Está feliz em me ver, não é, menino bonito?

Hades pensou que sabia exatamente como o garanhão se sentia. Ele também tinha vontade de sapatear e urrar à simples visão de Perséfone... Naquela manhã, ela trajava uma túnica de linho leve, com uma saia ampla o suficiente para que pudesse cavalgar com conforto. Quando a brisa soprava, colava o tecido semitransparente em seu corpo, delineando seus seios e a curva deliciosa de sua cintura, a ponto de fazê-lo lamentar por não ter chamado mais vento.

Observou, enciumado, enquanto ela acariciava Órion, mesmo se sentindo um idiota por ter ciúmes de um cavalo.

Dorado relinchou para a deusa, parecendo desolado. Em vez de fazer o mesmo, Hades suspirou.

— Perséfone, acho que ainda não foi formalmente apresentada a Dorado. Ele não conduz bem como Órion, mas é o mais rápido dos quatro. — Deu um tapinha afetuoso no pescoço brilhante do animal.

Lina acariciou a cabeça do garanhão.

— Muito prazer em conhecê-lo, Dorado. Então é mais rápido do que o seu amigo, hein? — comentou, lançando um olhar atrevido a Hades. — Será que Órion e eu não conseguiremos fugir de você?

Hades engoliu em seco. Apenas ficar próximo de Perséfone o fazia se sentir poderoso e impotente, quente e frio; tudo ao mesmo tempo. Provavelmente estava ficando louco.

Mas não se importava.

Deslocando-se para perto dela, de modo que as laterais de seus corpos se tocassem, devolveu o olhar provocador.

— Não, vocês não vão conseguir escapar de mim .

Lina se perdeu no olhar dele. Escapar? Imagine... Ela queria mais era entrar em sua pele.

Órion tornou a cutucá-la e relinchou. Ela riu, e a magia entre eles se desfez.

— Está bem, garoto impaciente!

— Órion não é impaciente. É ciumento — contrapôs Hades, fazendo nova careta para o animal, que o ignorou solenemente para lamber o ombro da deusa.

— Ciumento? — Lina fingiu surpresa. — Só porque acariciei Dorado? Como você é bobo... — sussurrou para o corcel.

— Não tem ideia do quanto — emendou Hades, ainda que não estivesse falando de Órion. — Venha — ele a segurou pelo cotovelo, guiando-a para a esquerda do cavalo a fim de ajudá-la a montar. — Os Campos Elíseos aguardam a presença da deusa da Primavera.

Cavalgaram lado a lado, seguindo a estrada de mármore preto. O constante ruído dos cascos dos cavalos se misturou ao canto lírico dos pássaros que chamavam um ao outro nos galhos dos ciprestes que ladeavam o caminho. O perfume dos narcisos impregnava o ar. De vez em quando eles passavam por grupo de espíritos, às vezes por uma alma solitária andando sozinha.

Mas suas reações eram sempre as mesmas. Primeiro, os espíritos recuavam, assustados, para a lateral da estrada, dando aos temíveis corcéis um generoso espaço. Só então percebiam quem os montava e se curvavam com reverência ao seu deus, embora mantendo os olhos fixos em Perséfone.

Os homens sorriam e cumprimentavam a deusa. Alguns deles até gritavam para ela.

Mas o que mais comoveu Lina foi a reação das mulheres. Quando estas se davam conta de que estavam na presença da deusa da Primavera, seus rostos se iluminavam de tanta alegria. Muitas se dirigiam a ela pelo nome e pediam sua bênção, a qual ela dava prontamente. Algumas até se atreviam a se aproximar de Órion, querendo tocar seu manto.

Lina mal podia acreditar na diferença que sua presença parecia fazer para elas. Precisava admitir: Deméter tinha razão. Por algum motivo, os espíritos dos mortos necessitavam saber que uma deusa ainda se preocupava com eles. Era uma tremenda responsabilidade, porém esta a fazia sentir-se querida e valorizada. Se apenas ficando à vista no Submundo ela conseguia espalhar alegria e esperança, então, estava muito contente por estar ali.

A princípio temia que Hades fosse ficar aborrecido ou até mesmo com ciúme por toda a atenção que ela vinha recebendo. Mas, embora ele houvesse proferido poucas palavras, sua expressão satisfeita e relaxada já falava por si. O deus sombrio se encontrava feliz já que os mortos reagiram tão bem a ela.

Eventualmente, a estrada se tornou mais íngreme. Quando eles alcançaram o topo, Lina fez Órion parar, perplexa.

— É como se alguém houvesse dividido a paisagem em duas e depois pintado um lado com tinta escura e o outro com clara! — Balançou a cabeça, incrédula, embora soubesse que não estava imaginando coisas. A estrada se estendia à sua frente como a linha divisória entre duas paisagens radicalmente diferentes. Era a coisa mais bizarra que ela já havia visto.

— Pintado de cores diferentes...— repetiu Hades. — É uma descrição um tanto apropriada. — Apontou para a esquerda, onde a terra declinava para uma vasta escuridão, rodeada por uma linha vermelha de fogo. — Este é o rio Flegetonte, que faz fronteira com o Tártaro, onde reina a escuridão. — Com a outra mão, ele mostrou o brilho à sua direita. — E lá você vê Elísia, onde a luz e a felicidade coexistem perfeitamente, e onde a única escuridão é a necessária para que os espíritos descansem em paz.

Lina tratou de acessar a memória espiritual de Perséfone:

O Tártaro , a voz sussurrou em sua mente, é a região do Submundo onde se aplica o castigo eterno. É um lugar de desespero e agonia. Apenas o mal o habita.

Era o inferno.

Lina não conseguia tirar os olhos do abismo escuro e, de repente, sentiu um calafrio. As trevas pareciam chamá-la, como gavinhas de uma criatura maléfica.

— Perséfone! — A voz nítida de Hades desviou sua atenção do vazio do Tártaro, e ela encontrou seu olhar. — Pode andar por qualquer lugar dentro do meu reino, com ou sem mim a seu lado, com exceção do Tártaro. Ali você não pode entrar, tampouco se aproximar de seus limites. O próprio campo foi contaminado pela natureza corrosiva de seus moradores.

— É terrível lá, não é? — O rosto dela estava sem cor.

— Tem de ser. Existe muito mal em todos os mundos. Acha que este deveria ficar impune?

Lina pensou sobre o mundo mortal, e trechos de notícias flamejaram em sua memória como pesadelos: o atentado em Oklahoma, os horrores praticados por homens e mulheres adultos que violentavam e matavam crianças indefesas e, claro, o 11 de Setembro e a covardia dos terroristas.

— Não. Eu não o deixaria impune — afirmou com segurança.

— Nem eu. Por isso ordeno que não se aproxime das fronteiras do Tártaro.

Lina estremeceu.

— Não quero ir para lá.

Hades relaxou sua expressão séria e apontou com um gesto de cabeça em direção ao brilho que iluminava o lado direito da estrada.

— Eu gostaria de lhe mostrar um pouco da beleza de Elísia.

Num esforço consciente, Lina deu as costas para os horrores do Tártaro, sorriu para Hades e acariciou o pescoço quente de Órion.

— Tudo o que você tem de fazer é mostrar o caminho, e nós o seguiremos.

Com os olhos brilhando, o deus sacudiu as rédeas de Dorado.

— É melhor me seguir. Afinal, está montando o cavalo mais lento.

Lina estreitou os olhos para ele e recitou na sua melhor imitação de John Wayne:

— Não devia falar do meu cavalo, peregrino... — Apontou para a colina. — Está vendo aquele pinheiro grande na margem do campo, lá embaixo?

Hades abriu um sorriso e assentiu:

— Dorado e eu vamos alcançá-lo primeiro. Ele é o cavalo mais rápido.

— Pode ser o cavalo mais rápido, mas certamente está carregando um peso morto — ela falou, brincando. — Ops! Foi um péssimo trocadilho para usar no Submundo... IAAH! — gritou, pegando o sorridente deus de surpresa.

Órion respondeu de imediato, saltando para frente e passando como um raio por Dorado, aterro abaixo.

O vento assobiava ao passar por suas faces enquanto o garanhão galopava. Lina inclinou-se sobre seu pescoço, e ele aumentou a velocidade até que ela mal via o mundo ao redor.

Logo atrás, podiam ouvir Dorado se aproximando.

— Não deixe que eles nos alcancem! — ela gritou nas orelhas achatadas do cavalo, e Órion respondeu com nova explosão de velocidade.

Passaram por uma silhueta alta e verde, o pinheiro, e Lina se endireitou na sela, vibrando com a vitória, enquanto o garanhão diminuía para um trote e empinava com um relincho antes de parar.

Com a respiração pesada, Dorado diminuiu o galope até parar a seu lado.

Lina riu alto diante da expressão no rosto de Hades.

— O cavalo mais rápido, é? Nunca subestime o poder de uma mulher com muitos recursos.

— Você roubou — protestou Hades, simulando seriedade, embora tentasse, sem sucesso, esconder um sorriso.

— Prefiro pensar que esgotei os meus recursos para ganhar.

— Eu não tinha ideia de que era tão competitiva.

— Há muita coisa que não sabe sobre mim, senhor do Submundo — ela declarou, ainda acariciando o pescoço do garanhão. — Não sou uma deusa comum.

Hades bufou, e Órion bufou de volta.

Dorado sacudiu a cabeça, e o deus deu alguns tapinhas no cavalo.

— Não se sinta mal, meu velho. Nosso dia vai chegar. — E, fingindo um sussurro, completou, mais para si do que Dorado: — Só precisamos ficar de olho nela... Essa deusa é astuta.

— Ahn-ahn — Lina concordou de pronto, e ambos riram.

— Perséfone! — chamou uma voz jovem.

Lina virou-se para ver quem era.

— Oh, é a deusa da Primavera! Eu sabia!

A figura ágil surgiu do bosque de pinheiros que cercava a adorável clareira em que os cavalos se encontravam, e logo foi seguida por várias outras, que pularam e dançaram com entusiasmo diante de Lina. O grupo todo era composto de mulheres jovens e bonitas, cujos corpos fortes e esculturais encontravam-se encantadoramente cobertos por trajes diáfanos. Se elas não tivessem aquela aparência translúcida que as distinguiam como espíritos do Submundo, Lina teria acreditado que havia ido parar em uma daquelas festas de clube das mulheres.

Hades cutucou Dorado com os joelhos para que pudesse ficar mais perto dela e falou em voz baixa:

— São virgens que morreram antes de se casar. Costumam farrear antes de beber do Lete.

Quando o grupo se aproximou, eles diminuíram o trote, esforçando-se para conter o entusiasmo das mulheres e evitar que estas chegassem perto demais dos temíveis cavalos. A alma que chamara a deusa pelo nome fez uma reverência profunda e graciosa, a qual o restante das virgens imitou. Quando se levantou, foi a primeira a falar:

— Ouvi dizer que tinha sido vista, e, com todo o meu coração, eu quis acreditar. Oh, senhora! É tão maravilhoso tê-la conosco!

Um coro de “Sim!”, “Estamos tão felizes!” seguiu-se a seu pequeno discurso.

— Obrigada. Minha visita está sendo maravilhosa — comentou Lina.

A virgem franziu o cenho.

— Veio apenas de visita? Quer dizer que vai nos deixar?

O prado ficou em silêncio, como se cada folha de grama ou árvore quisesse ouvir sua resposta.

Ela não soube o que dizer.

— Perséfone pode permanecer no Submundo por quanto tempo quiser. — A voz de Hades, rica em sentimentos, rompeu o silêncio.

Lina sentiu a pulsação se acelerar com a súbita satisfação que a invadiu depois daquelas palavras. Afastou toda e qualquer preocupação ou pudor quanto a não poder ficar e por ter de permanecer ali apenas por seis meses.

Em vez disso, sorriu para o deus, pensando em como gostaria de beijá-lo outra vez.

— Então não tem nenhuma razão para ter pressa! Venha dançar conosco! — chamou a virgem.

Lina se obrigou a desviar o olhar de Hades.

— Dançar com vocês? Mas não há música.

— Esse é um detalhe que pode ser solucionado — declarou Hades. — Nossa deusa quer música! — ordenou com um floreio, e a brisa passou a rodeá-los com um assobio estranho, que se transformou no som melódico de instrumentos musicais. Hades inclinou a cabeça gentilmente para ela. — Agora já tem a música.

— Parece que sim. — O coração dela bateu tão forte que, a despeito da melodia, todos deviam estar ouvindo.

Mas, dançar? Ela não saberia como dançar com aquelas mulheres.

— Sim! Ah, por favor!

— Agora pode dançar conosco!

— Venha brincar com a música do deus, Perséfone!

— Mas, eu... Bem... — Lina olhou em volta, impotente. — O que vou fazer com Órion?

— Vai deixá-lo aqui, comigo e com Dorado — decidiu Hades, já desmontando. Caminhou para a lateral do cavalo e levantou os braços, de maneira que ela não teve escolha senão deslizar por eles.

Hades a abraçou com força por um momento, então sussurrou:

— Dance para mim aqui em Elísia... Nenhuma deusa jamais fez isso.

Ela o fitou nos olhos, percebeu seu desejo, assim como sua vulnerabilidade, e soube que não tinha alternativa.

— Está bem.

— Meus cavalos e eu vamos esperá-la. — Ele fez uma pausa, depois acrescentou: — Ansiosamente.

— Certo. Bem — Lina alisou as próprias vestes, fingindo endireitar o que já estava mais do que assentado. — Não vai demorar muito.

— Perséfone! Já fizemos um círculo! — Uma das virgens gritou.

— Que bom... — ela respondeu, partindo em direção ao grupo.

Determinadas, as virgens haviam formado um meio círculo no meio da campina.

Lina ficou tão nervosa que se sentiu um pouco enjoada. Dançar com um grupo de virgens mortas? Estava ali algo para o que nem toda a experiência que adquirira na vida a tinha preparado.

Sentiu as mãos suadas. Aquilo não era como o encontro para a coleta do néctar. Não teria nenhum exemplo de como agir. As mulheres estavam esperando que ela lhes mostrasse o que fazer.

Se partisse para uma imitação dos solos disco de John Travolta, em Saturday Night Fever , na certa faria um papel ridículo. Não apenas Hades, como todas as mulheres saberiam que ela não era uma deusa, e sim uma fraude.

Pare com esse absurdo!

O eco em sua mente a assustou tanto que ela quase deu um grito.

Seu corpo sabe dançar. Relaxe e confie nele!

Lina olhou para si mesma. Havia se esquecido de que não vestia sua pele de quarenta e três anos de idade. Ela era jovem, flexível e estava em tão grande forma que provavelmente poderia comer chocolate Godiva sem parar por vários dias. Nem precisaria se preocupar se o zíper de seu jeans fecharia depois.

— Senhora?

Lina ergueu o olhar e viu todas as virgens a observá-la com expressões curiosas em seus rostos bonitos. Devia estar parecendo uma idiota, parada ali, olhando para o próprio corpo.

Sorriu, endireitou os ombros e começou a andar de novo.

— Eu estava apenas admirando... — olhou para baixo outra vez — ... os trevos deste campo. São lindos, não acham?

Todas as cabeças assentiram com vigor, como se ela as estivesse controlando por um painel de controle.

— É típico do nosso prado. Gostamos de trevos e gramados... coisas que crescem. Por isso eles brotam para nos agradar — a primeira virgem disse.

— Eu também gosto deles — afirmou Lina, juntando-se ao círculo.

Você começa no centro , sua voz interna comandou.

Ela respirou fundo e se colocou no meio do grupo. Então fez a única coisa que poderia pensar em fazer: fechou os olhos e se concentrou.

A música a invadiu e, no mesmo instante, Lina começou a se movimentar. Seus braços se elevaram, e ela girou em um círculo lento e preguiçoso.

A melodia era maravilhosa, sensual e feminina, e seu corpo logo se harmonizou com as notas, fazendo-a partir para passos mais complexos com suas longas e flexíveis pernas. Seus quadris ondulavam e balançavam, e seus braços traçavam imagens no ar.

De repente, não era mais uma padeira de quarenta e três anos de idade. Era uma jovem deusa. Era música.

Lina abriu os olhos.

Com os rostos iluminados, as moças a circundavam, tentando imitar seus movimentos. Eram lindas, e muitas tinham sido, obviamente, talentosas dançarinas.

Mas a diferença entre a dança das mortais e a de Perséfone era clara até mesmo para Lina. Perséfone movia-se com a graça inumana de uma deusa.

Seu coração se encheu de satisfação com o poder dentro dela. Devia ser assim que uma primeira bailarina se sentia no ápice de sua carreira, pensou: saltando, girando e soltando gritinhos de alegria.

Poderia ter dançado para sempre, mas uma das virgens tropeçou e desabou, rindo, em meio a um canteiro de trevos. As demais se esforçaram para manter a coreografia.

Lina, contudo, a consolou, e, com um movimento glorioso e um floreio, pôs um fim à apresentação.

Enquanto as moças gritavam e aplaudiam, ela fez a reverência profunda de uma bailarina.

As almas a rodearam, murmurando agradecimentos e perguntando quando ela voltaria a brincar com elas de novo.

Enquanto riam e conversavam, Lina tentou, discretamente, localizar Hades, e avistou Órion e Dorado. Eles pastavam, contentes, não muito longe do pinheiro que servira como sua linha de chegada.

Seus olhos se voltaram para a árvore. Hades encontrava-se recostado nela, os braços cruzados e o corpo relaxado.

Mas seus olhos brilhavam, cheios de calor e fixos nela, e seus lábios se inclinavam numa sugestão de sorriso. Quando ele percebeu que ela o fitava, levou a mão à boca e enviou-lhe um beijo.

A coisa mais romântica que um homem já lhe havia feito.

— Bem, senhoras, foi maravilhoso dançar com todas vocês. Temos que fazer isso de novo muito em breve, mas Hades e eu precisamos seguir em frente — falou, desembaraçando-se de seu círculo de admiradoras.

Várias delas dispararam olhares tímidos na direção do deus que aguardava, e não foi difícil perceber o teor de seus sussurros, dos quais Lina só pôde entender os nomes “Perséfone” e “Hades”.

Rindo e acenando em despedida, as virgens desapareceram em meio aos pinheiros.

Hades se afastou da árvore para encontrar Lina no meio do prado. Por um momento, nenhum deles falou.

Então ele estendeu a mão e afastou uma mecha do cabelo que caía, úmido, sobre seu rosto delicado.

— Nunca vi nada tão cheio de graça como a sua dança.

De repente, Lina sentiu-se com menos fôlego do que enquanto rodopiava e saltava com a música.

— Deve estar com sede — observou Hades.

Até o momento, ela não tinha percebido que se encontrava sedenta ou suada.

— Muito!

— Deve haver uma fonte aqui perto. — Ele pegou sua mão e começou a caminhar em direção ao lado oposto do campo. — As coisas nunca permanecem as mesmas em Elísia, mas tendem a ­refletir os mesmos elementos.

— Então, é uma espécie de fantasia mutável? — Lina perguntou, passando a mão pelos trevos que lhe chegavam até os joelhos ao final do prado.

No mesmo instante, tufos de flores brancas saltaram por entre as folhas, emanando um perfume de verão e relva cortada.

— Sim, um pouco. — Hades sorriu para ela. — Elísia é dividida em diferentes partes, mas essas partes podem se misturar e mudar de acordo com a vontade dos espíritos.

— Diferentes partes? Quer dizer , há um lugar para pessoas que foram muito, muito boas, outro para as que foram boas na maior parte do tempo, e outro para pessoas que foram apenas “boazinhas”?

O riso de Hades preencheu o campo.

— Você diz as coisas mais inesperadas, Perséfone... Não. Elísia é dividida em reinos diferentes. Um deles é para os guerreiros. O outro é aqui — ele fez um gesto, apontando ao redor —, para que as virgens venham se divertir. E existem vários outros. A nobreza fica em um deles. Outro é para os pastores ou guias espirituais. — Ele sorriu de lado, como se tivesse doze anos de idade. — Curiosamente, os pastores não gostam de se misturar aos outros.

— Quem poderia imaginar?

— Pois é.

— Então eles não podem se unir? E se um guerreiro quiser cor­-
tejar uma virgem? Mesmo o batalhador mais dedicado pode se cansar de fazer “coisas de homem” após algum tempo.

— Eles podem se unir, porém enfrentam muitas dificuldades. — Hades fez uma pausa, ponderando sobre a questão. — Mas talvez não devesse ser assim, tão difícil. Talvez eles não percebam o que estão perdendo porque estão distantes disso por tempo demais. — O deus olhou para longe, imerso em pensamentos.

— Pode fazer Elísia se reorganizar segundo a sua vontade? — Lina quis saber.

— Sim. — Hades se voltou para ela.

— Se é assim, mova o prado das virgens que dançam para perto do local de treinamento dos guerreiros, e as coisas acontecerão naturalmente.

Ele soltou uma risada.

— Tem razão.

Entraram na floresta de pinheiros e, após alguma procura, Hades encontrou uma pequena trilha. Seguiram por ela até cruzar um riacho que borbulhava, derramando-se sobre rochas lisas.

Hades deixou o caminho, então, e conduziu Lina córrego abaixo. Em seguida contornou uma curva onde a água se reunia em uma pequena lagoa de fundo arenoso, antes de seguir seu curso, jorrando ruidosamente por sobre um lado da margem rochosa.

— Para você, minha deusa, apenas o melhor em bebida e comida... — disse com um sorriso travesso.

— Vá brincando — ela respondeu, apressada em se agachar na borda da piscina natural. — Aquela dança me deixou tão sedenta que, para mim, no momento, água é muito melhor do que ambrosia!

Lina juntou as mãos para beber o líquido claro. Estava tão frio que fez seus dentes doerem.

Suspirou, feliz, e engoliu outro punhado.

Uma vez satisfeita, chutou para longe as chinelas de couro macio e deixou as pernas balançar dentro da água gelada.

Hades se reclinou a seu lado, encostando-se em um tronco caído. O vento mudou ao soprar as árvores acima deles, envolvendo-os numa nuvem de pinho e seiva. O céu místico do Submundo lançava um brilho opaco sobre tudo.

Lentes cor-de-rosa , Lina pensou, sonhadora.

— Deméter me disse que o Submundo era um lugar mágico, mas eu nunca acreditei que detinha tanta beleza — confessou. — Se os deuses realmente soubessem como é maravilhoso aqui embaixo, você teria uma porção de visitas.

Hades encolheu os ombros, parecendo incomodado.

Lina o estudou e decidiu não pressioná-lo mais.

Lembrou-se de suas palavras na noite anterior: ele queria mais do que apenas sexo dela. Ela sabia disso, mas, para que houvesse mais do que isso entre eles, precisariam conversar muito.

O problema era que estava velha demais para perder tempo com conversas adolescentes, cheias de silêncios e dúvidas não esclarecidas. Era uma mulher adulta e precisava dizer o que lhe ia na mente.

— Se não queria visitantes, por que construiu um palácio enorme, com todos aqueles quartos vazios à espera de ser preenchidos?

Hades considerou a questão. O quanto deveria revelar a Perséfone?

Não pretendia contar que nunca se envolvera com uma deusa, nem sexualmente nem de outra forma. Tampouco que tinha passado uma eternidade ansiando por algo mais do que a frivolidade que satisfazia a maioria dos imortais.

Lembrou-se da última vez em que havia visitado o Monte Olimpo. Afrodite o provocara sem nenhum pudor, e ele não correspondera. Mais tarde, ele a flagrara às gargalhadas com Atena, enquanto as duas deusas concluíam que parte de seu corpo devia estar tão morta quanto o restante de seu reino...

Pensar na maldade das palavras ainda lhe provocava uma onda de raiva. Seu corpo não se encontrava morto. Estava simplesmente ligado à sua alma, e esta exigia mais do que as atenções de uma deusa egoísta.

O que ele poderia dizer que não faria Perséfone fugir dele?

Olhou para ela, vendo-a aguardar, ansiosa, por uma resposta.

Precisava ser o mais honesto possível. Não podia mentir nem dissimular. Uma relação duradoura não podia ser baseada em falsidades.

Deu um longo suspiro.

— Às vezes me pergunto por que eu o construí. Talvez estivesse esperando que algum dia aprenderia a superar as minhas... — tentou encontrar a palavra certa — ... diferenças.

— Diferenças? O que quer dizer?

— Sempre tive dificuldades em interagir com outros imortais — ele confessou. — Deve saber que têm medo de mim porque sou o senhor dos Mortos.

Lina começou a negar, mas, então, lembrou-se da expressão de Deméter quando ela falara de Hades; da maneira como o descartara como um deus sem importância e desinteressante.

A lembrança a deixou, de repente, com muita raiva.

— Eles apenas não sabem como você é na verdade.

— E como eu sou, na verdade, Perséfone?

Lina sorriu para ele e disse exatamente o que pensava:

— Que é interessante, divertido, sexy e poderoso.

Hades a fitou por um momento, depois balançou a cabeça.

— Você é mesmo uma caixinha de surpresas.

— E isso é bom ou ruim?

— É milagrosamente bom.

Lina suspirou. Aquele era um caso perdido. Não conseguia resistir a Hades, nem queria.

— Fico feliz por isso.

— Você não é como os outros imortais — ele continuou, rouco. — Sabe como eles são... Vivem cheios de si, sempre se esforçando para superar um ao outro e nunca satisfeitos com o que têm. — Ele se inclinou para a frente e tocou-lhe o rosto com a ponta dos dedos. — Você é sincera e honesta, o que uma verdadeira deusa deve ser.

Sincera e honesta? Uma verdadeira deusa?

Lina quis que o chão se abrisse para sumir dentro dele. Ela não era uma coisa nem outra.

— Eu... Você... — balbuciou, sem saber o que dizer.

Hades não lhe deu chance de organizar os pensamentos. Inclinou-se e a puxou para os braços.

A boca de Perséfone continuava fria depois de ter bebido da fonte de água, e ele quis se afogar nela. Mergulhou na maciez dos lábios carnudos. Ah, se a tivesse conhecido antes! Como podia ter passado tanto tempo sem ela?

A deusa passou os braços em torno dele e pressionou os seios contra seu peito. Hades gemeu. Seu desejo por ela era palpitante e devastador.

De repente, ela estremeceu, gritou, e, jogando água para todos os lados, puxou as longas pernas nuas para fora da pequena piscina natural.

Pondo-se de pé em um salto, Lina correu para trás do deus, querendo que ele ficasse entre ela e a borda da água.

— Alguma coisa encostou em mim! — Sua voz tremeu quando lembranças das cobras d’água e tartarugas mordedoras de Oklahoma brotaram em sua mente.

Hades afagou a mão com que ela segurava seu ombro, tentando ordenar os pensamentos. Ainda podia sentir a pressão de seus seios contra o couro macio que lhe cobria o peito, e seu corpo ainda crescia com o desejo.

— Perséfone, nada em Elísia a machucaria.

— Ali! — Lina ficou com vergonha por a palavra ter saído num grito, mas apontou para um vulto escuro que passava sob a água. — Há alguma coisa ali...

Com um suspiro, Hades se levantou e cobriu os poucos metros até a margem. Agachou-se e olhou para dentro da água clara.

Todos os sentidos de Lina se puseram em alerta.

— Tenha cuidado! — pediu, preocupada. — Pode ser uma cobra.

Hades lançou-lhe um olhar confuso por sobre o ombro.

— Por que tem medo de cobras?

Lina torceu uma mecha grossa de cabelo em torno do dedo.

Cobras estão intimamente relacionadas a Deméter. Não deve temê-las! , sua voz interna a alertou.

— Eu sei que é bobagem, mas nunca gostei delas — disse, perturbada.

A testa do deus se franziu, contudo um respingar na piscina natural chamou sua atenção.

Lina se encolheu, não querendo ver o réptil liso e asqueroso.

Quando Hades tornou a fitá-la, um sorriso brotou em seus lábios.

— Não pode ter aversão a esta criatura...

— Também não gosto de tartarugas! — Lina acrescentou depressa, desviando o olhar da forma escura que tinha acabado de assomar à superfície. — Principalmente de tartarugas mordedoras!

Hades riu e fez um sinal para que ela se juntasse a ele.

— Venha... Você gosta de animais.

Lina não cedeu.

— Gosto de animais. De mamíferos, aves, até de peixes. Mas odeio répteis. Eu sei que soa mesquinho, mas...

Um barulho estranho, como um latido, veio da água, e Lina olhou por cima do ombro de Hades, avistando uma criatura que flutuava de costas.

Quase engasgou.

— Mas não é uma cobra!

A lontra ladrou para ela novamente, jogando água com suas adoráveis patas com membranas.

Lina correu para se juntar a Hades e se agachou a seu lado, apoiando-se nele.

— É a coisa mais lindinha que eu já vi!

— Não diga isso ao meu cavalo — ele aconselhou. — Órion acredita que é o seu favorito.

Lina o empurrou de leve com o ombro antes de se aproximar da margem para acariciar a barriga da lontra.

— Órion é o meu cavalo favorito. Este mocinho pode ser a minha lontra favorita, ora.

Ao seu toque, o animal entrou em um frenesi de ganidos e fungados, debatendo-se tanto que a água espirrou para todos os lados antes que ele nadasse até a borda e em seguida desaparecesse pela pequena cachoeira abaixo.

— Eu não queria assustá-lo!

Hades sorriu diante da expressão decepcionada da deusa e enxugou as gotas de água de seu rosto.

— Você não o assustou, meu anjo. As lontras de Elísia são conhecidas por sua timidez. Aliás, eu nunca tinha visto uma de tão perto antes. E certamente nunca as toquei.

Lina procurou pela doce criatura, tristonha.

— Não pode fazê-la voltar? Afinal é um deus...

Ele riu.

— Como um deus sábio, sei quando é melhor não mexer com a ordem natural das coisas. Sem dizer que teria mais sorte do que eu em domar esse bicho... É você a encantadora de animais, não eu.

— Não sou encantadora de nada — protestou Lina. — Eu apenas gosto dos bichos, e eles, de mim.

— Dos mamíferos — Hades lembrou, afastando um longo fio de cabelo da face perfeita.

Lina inclinou a cabeça de modo a lhe acariciar a mão.

— Então talvez eu seja o único que você encantou, sua feiticeira. — Ele esfregou o polegar no lábio carnudo.

— Eu não gostaria de encantar nenhum outro — Lina se ouviu dizendo, enquanto se inclinava para um beijo.

Quando algo a cutucou nas costas, ela não o empurrou, surpresa, tampouco gritou. Simplesmente levantou a mão e acariciou o focinho de Órion.

— Se algum desinformado acredita que o Submundo é o lugar perfeito para encontrar paz e tranquilidade, está errado! — Hades fechou a cara para o garanhão.

Órion bufou e jogou a cabeça, então se aninhou junto a Lina novamente, fazendo-a rir com a respiração quente em seu pescoço.

Ela segurou um punhado da crina sedosa, e Órion levantou a cabeça, pondo-a em pé.

Lina olhou para o deus que ainda fulminava o cavalo com o olhar. Em seguida se abaixou, pegou-o pela mão e o puxou até que ele se levantasse.

— Gostaria de ver mais de Elísia? — indagou Hades.

Ela se ergueu na ponta dos pés e roçou o rosto moreno com um beijo.

— Claro que eu gostaria de conhecer melhor o seu reino.

As palavras trouxeram a Hades uma onda de felicidade, e ele se inclinou para beijá-la rápida e possessivamente antes de erguê-la para a sela de Órion.


Capítulo 20

O dia passou, delicioso. Elísia era uma aventura sem fim, onde beleza e harmonia se fundiam à perfeição.

E, por onde eles passavam, as almas dos mortos respondiam à presença de Perséfone. Lina se viu alçada para além das palavras diante da felicidade que viu nos rostos dos espíritos, conforme se espalhou pelo Submundo que havia uma deusa entre eles.

Hades ficou a seu lado, muitas vezes conduzindo Dorado para mais perto a fim de poder tocá-la.

A reação dos espíritos à visita de Perséfone o encheu de prazer. Os mortos o respeitavam e temiam. Alguns lhe eram imensamente leais. Contudo, ele nunca tinha evocado neles tanto amor e alegria como ela.

Mas não sentia inveja do efeito que a deusa causava em seu reino. Ele o compreendia. Como não poderia? Perséfone despertara tais sentimentos até mesmo nele.

Mais uma vez, Hades se perguntou como existira por tanto tempo sem ela. Não imaginava o que aconteceria a ele ou a seus domínios se Perséfone decidisse ir embora.

A luz do dia havia minguado, e o céu começava a brilhar com as almas das Híades quando, finalmente, se aproximaram da base traseira do palácio. Hades cutucou Dorado, fazendo-o se aproximar de Órion, e estendeu a mão para segurar a da deusa.

Ela sorriu. A mão de Hades era quente e forte, e Lina ficou feliz por enredar os dedos nos dele, enquanto devaneava acerca das maravilhas do dia e entravam na familiar floresta de pinheiros.

Ao chegarem ao n ível inferior dos jardins, Hades fez Dorado parar, obrigando Órion a fazer o mesmo.

— Há uma última coisa que eu gostaria de mostrar a você esta noite, se estiver disposta.

— É claro — ela concordou de pronto.

— Mas temos que andar — ele falou num sussurro.

Lina também fez cair o tom de voz a um nível conspirador.

— O que vamos fazer com? — Apontou os dois garanhões, que mantinham as orelhas inclinadas para trás, obviamente, ouvindo a conversa.

— Deixe-os comigo.

Hades saltou de Dorado com agilidade e, em seguida, ergueu os braços para ajudá-la a desmontar. Ela deslizou de encontro a ele, amando a erótica sensação de ter um cavalo musculoso a um lado do corpo e um deus quente e rijo do outro.

Hades se inclinou e mordiscou-lhe o lóbulo sensível da orelha.

— Acho que é hora de nos livrarmos dos nossos ­acompanhantes. — Endireitou o corpo e gritou o comando para que os garanhões voltassem ao estábulo com uma voz tão enérgica que as folhas das árvores ao redor chacoalharam em resposta.

Órion e Dorado reagiram de imediato, disparando para os terrenos do palácio.

Lina ergueu as sobrancelhas.

— Estou impressionada. Não pensei que eles fossem obedecer tão rápido.

O deus torceu os lábios.

— Ficaram apenas surpresos. Eu raramente ordeno que façam alguma coisa. Na verdade, eles são bastante mimados.

— Então vão ficar com raiva de você depois.

— Provavelmente. — Hades riu e uniu os dedos aos dela. — O que eu quero mostrar fica por aqui... — Conduziu-a por um caminho que contornava a borda dos jardins, e eles caminharam ao lado de fileiras de cercas vivas, aparadas em cones. Flores dormiam junto às sebes, e Lina tomou o cuidado de não passar as mãos perto dos botões fechados.

Quando Hades deixou a vereda e entrou na linha de ciprestes que cercava aquele lado dos vergéis, ela não conseguiu conter sua curiosidade:

— Aonde estamos indo?

— A um campo não muito longe daqui. — Ele apontou adiante.

Tudo o que ela podia ver eram as árvores enormes, porém eles continuavam perto o suficiente do palácio para que o terreno ainda estivesse bem cuidado. O solo sob as árvores continuava forrado por grama e livre de silvas e entulho.

A noite na floresta encontrava-se vazia da melodia dos pássaros, e Lina começou a se sentir intimidada pelo enorme silêncio.

— O que há neste campo? — indagou num sussurro.

Hades apertou a mão dela.

— Não precisa mais falar baixo.

— Ah. — Ela ficou constrangida. Levantando a voz para um nível normal, repetiu a pergunta: — O que há neste campo, afinal?

— Pirilampos.

— Pirilampos?

O deus anuiu.

A última coisa que Hades tinha para lhe mostrar sobre os mistérios do Submundo eram vaga-lumes? Ela já vira vaga-lumes antes. Muitos deles.

Lendo sua expressão, ele sorriu, travesso.

— Aposto que vai achar esses pirilampos diferentes.

Lina deu de ombros e manteve a boca fechada. Perséfone talvez considerasse um campo de vaga-lumes único, mas seria necessário algo mais do que insetos de verão para surpreender uma garota de Oklahoma. Principalmente depois das maravilhas que ela já vira naquele dia.

— Ah, aqui está a quebra nas árvores. Cuidado com onde pisa... Precisamos atravessar esta pequena vala primeiro.

Lina se concentrou em atravessar o pequeno canal e não ergueu a cabeça até estar com os pés plantados no tal campo.

Quando o fez, seus olhos se arregalaram. O prado encontrava-se repleto de luz, mas não com o amarelo-claro dos vagalumes que ela vivia perseguindo na infância. Aqueles eram da cor do luar e...

— Narcisos! — exclamou, ofegante. — Misericordioso Madre di Dio! — Eles estão fazendo narcisos!

A risada suave de Hades revelou sua satisfação.

— Poucos testemunharam esse tipo de coisa... E então, deusa da Primavera, o que achou?

Lina olhou para o campo. Milhares de caprichosos vaga-lumes trabalhavam furiosamente, girando em torno das flores. Saindo de um tufo de folhagem verde, um grupo de minúsculos insetos formava uma espécie de enxame, depois começava a voar em uma espiral brilhante, dando voltas e voltas. De repente, como cometas em miniatura, sua cauda incandescente ganhava forma e massa, deixando para trás um narciso perfeito em plena floração.

— É incrível! É dessa forma que todos os narcisos são feitos?

— Todos os que existem no Submundo. Às vezes alguns desses grupos de vaga-lumes ficam confusos, se aproximam demais da abertura para a terra dos mortais e produzem uma flor no Mundo Superior. Mas eu tento evitar isso. Como deve ter notado, a fragrância dos meus narcisos é diferente daquela das flores do Mundo dos Vivos. Os mortais a consideram demasiado inebriante.

Lina se lembrou da noite em que havia se curvado para respirar o perfume do narciso incomum sob o carvalho.

— Imagino como isso deve causar problemas — disse baixinho.

Quando o som de sua voz penetrou a pequena consciência dos insetos, vários dos grupos mais próximos de vaga-lumes fizeram uma pausa em sua produção. Como se todos eles houvessem tido a mesma ideia, voaram até ela em uma nuvem brilhante e pairaram à sua frente, girando em círculos ofuscantes e fazendo um barulho estranho que fez Lina pensar em grilos sopranos.

— O que eles querem? — perguntou a Hades pelo canto da boca.

O deus inclinou a cabeça em sua direção, sorrindo.

— Querem que você os ajude a produzir as flores.

— Verdade? — ela indagou, sem saber o que fazer.

— Verdade. — Hades soltou sua mão. — Vá. Eu espero aqui.

Ela precisava fazer aquilo. Afinal, era a deusa da Primavera, e produzir flores, definitivamente, deveria fazer parte de seu trabalho.

Enquanto permaneceu parada no lugar, pensando no que fazer, Lina percebeu que queria muito se juntar aos vaga-lumes.

Basta tocar as flores, desejar que elas floresçam, e elas vão desabrochar, disse sua voz interior.

Respirando fundo, ela entrou no campo, e a relva se agitou de encontro às suas panturrilhas. Os pirilampos dançavam com alegria, formando estonteantes círculos ao seu redor.

Lina se aproximou de um aglomerado de verde que não era grama, tampouco flor. Hesitante, acariciou as folhas largas e achatadas com a ponta dos dedos, pensando o quanto gostaria de vê-las florescer.

Em uma explosão de luzes brilhantes que a fez se lembrar de fogos de artifício, uma flor branca e reluzente brotou do centro da planta.

Ela se abaixou e inalou sua fragrância única, rindo alto. Havia criado aquela maravilha! Uma alegria típica da juventude a invadiu. Sem pensar muito, seguiu os comandos do próprio corpo e, com um pulinho e uma pirueta graciosa, partiu para o amontoado seguinte de vegetação. Enquanto ela dançava, dando vida a flor após flor, os vaga-lumes a cercavam numa espécie de halo.

Hades permaneceu à beira do prado, enchendo os olhos com a bela visão. Como uma criatura podia ser tão linda?

Sentiu um desejo atroz de tê-la, e, por meio desse ato, finalmente fazer Perséfone sua.

E com a mesma intensidade que havia testemunhado tantas vezes nos olhos de almas gêmeas.

Perséfone girava e dançava, chamando os narcisos para a vida. Pois então não fizera o mesmo com ele?

O senhor dos Mortos, o deus que se dizia imune àquele tipo de sentimento, tinha caído de amores pela deusa da Primavera. Não importava o quanto pudesse parecer ridículo ou irônico. Havia acontecido.

E ele não queria que acabasse.

A decisão estava tomada. Desejava mais do que apenas observar fantasmas do amor... queria experimentá-lo por si mesmo.

Esfregou o peito instantaneamente, antecipando o velho e dolorido ardor, contudo este não veio. Embora Perséfone fizesse seu corpo doer e seu sangue latejar nas veias, não despertava sua revolta.

Parou de mover a mão e tentou se lembrar da última vez em que sentira a queimação no peito.

Piscou, surpreso. Fora na noite em que ele a ofendera e, em seguida, a abandonara à mesa de jantar. Nunca mais o sentira desde então.

Sorriu. Perséfone não era apenas o sopro da primavera. Era também um bálsamo para sua alma cansada. Talvez sua solidão tivesse realmente chegado ao fim.

Lina percebeu o olhar de Hades e, enquanto outro narciso brotava em flor, olhou para o ponto onde ele a aguardava. O deus continuava em pé à margem do prado, alto, sombrio e silencioso, assistindo-a com uma intensidade que fez seu sangue correr mais depressa.

Por que ele apenas observava?

De repente, ela desejou mais do que aquilo e um pensamento maravilhoso se formou em sua mente. Vinha brincando com virgens e ninfas desde que chegara... Agora era a vez de Hades.

Sorrindo, feliz, dançou até ele, deixando um rastro de brilhantes vaga-lumes pelo caminho, e agarrou sua mão.

— Vamos! Faça flores comigo!

Uma sombra de tristeza invadiu os olhos do deus.

— Sou o deus dos Mortos. Não posso criar vida.

— Se eu ajudá-lo, pode! — Lina afirmou com mais confiança do que sentia e puxou sua mão.

— Não, eu... — Hades suspirou. — Maldição, Perséfone, não consigo lhe negar nada!

E, relutante, permitiu que ela o arrastasse para a campina.

Cercados pela nuvem ofuscante de pirilampos, eles rumaram para uma das moitas. Lina o fez ficar atrás dela, então levou as mãos para trás, ao longo dos braços fortes, até juntar as mãos com as dele e fazer com que Hades a abraçasse. Abriu bem os dedos, como se tivesse acabado de arremessar uma bola.

— Entrelace os dedos nos meus — instruiu, a proximidade com ele tornando sua voz mais rouca. — Agora pense o quanto gostaria de ver esse narciso desabrochando.

Completamente vencido, Hades deixou que ela guiasse suas mãos. Desejava verdadeiramente produzir uma flor.

No entanto, desejava ainda mais poder fazer aquela deusa sua... e que ela permanecesse a seu lado para aliviar sua solidão por toda a eternidade.

Seus dedos começaram a formigar conforme a magia de Perséfone se fundiu com a dele e, perplexo, Hades viu um narciso cintilante brotar sob as mãos unidas.

Lina gritou de alegria e se virou, o rosto iluminado.

— Conseguimos!

Hades a envolveu nos braços e fitou os olhos brilhantes à sua frente.

— Conseguimos juntos, Perséfone. Eu não poderia ter feito isso sem a deusa da Primavera... Eu gostaria de encontrar palavras para expressar o prazer que sinto em partilhar meu mundo com você.

Sua voz soou grave, sua expressão era séria, e Lina se sentiu completamente perdida nos olhos escuros e profundos. Hades queria mais do que um simples beijo ou caso. Ela sabia que deveria inventar alguma brincadeira e dançar para longe dele, mas não teve forças para isso. Ansiava por estar com o deus tanto quanto este ansiava por estar com ela.

Beijou-o, pressionando o corpo no dele.

De repente, Hades interrompeu o beijo. Descansando a testa na dela, concentrou-se em controlar a respiração acelerada. Não a amaria no meio da floresta outra vez. Perséfone merecia mais do que isso. Ela merecia tudo o que ele poderia lhe dar de melhor.

— É tarde. Precisamos voltar para o palácio — disse, beijando-a na testa suavemente.

Lina o fitou, decepcionada.

— Eu não estou cansada.

— Nem eu.

— Não quero que este dia tenha fim, Hades.

— Não precisa ter. — Ele respirou fundo. — Ainda não conheceu meus aposentos... Gostaria de fazer isso?

Lina percebeu como fora difícil para Hades perguntar e sentiu o coração batendo forte. Um coração que não era verdadeiramente seu, dentro de um corpo que também não lhe pertencia...

Mas a alma era sua, disse a si mesma. Não era apenas seu corpo que o desejava. Ela amava a doçura e o senso de humor de Hades. Adorava o som de sua risada. Amava o poder e a paixão do deus, e também o cuidado e a sabedoria que ele demonstrava no trato com os espíritos em seu reino.

Tocou-lhe o rosto e admitiu a verdade para si mesma: ela o amava.

— Sim. Eu gostaria muito.

A alegria iluminou o rosto moreno, sendo logo seguida pelo desejo, e Hades se inclinou para beijá-la novamente, desta vez com mais ímpeto.

Em seguida, relutante, ele a soltou, pegou sua mão, e tomou com ela o caminho de volta.

Lina ouviu um zumbido estridente às sua costas, e ambos se viraram. Os vaga-lumes pairavam em um enorme aglomerado à margem do campo.

O deus riu.

— Perséfone voltará. Não está deixando o Submundo.

O frenético zunido diminuiu com as palavras.

— Eu adoraria voltar e fazer mais flores com vocês — assegurou Lina, e o zumbido mudou para uma alegre chilrear.

Sorrindo, ela e Hades continuaram seu caminho.

— É bom que eles gostem tanto de mim.

— Todo o meu reino a adora, Perséfone — ele afirmou.

Lina o fitou de soslaio.

— Apenas o se u reino?

O lábios do deus se curvaram num sorriso.

— Não, não apenas o meu reino.

Ela apertou sua mão.

— Ainda bem.

Assim que deixaram o bosque e entraram no jardim, Lina ouviu o choro.

— Alguém está chorando! — exclamou e, espreitando na penumbra, tentou descobrir quem era.

— Ali — Hades apontou à sua frente, na direção da estrada que passava em frente ao palácio e conduzia a Elísia.

Lina mal conseguiu discernir a silhueta iluminada à margem da estrada.

— É melhor vermos o que está acontecendo — sugeriu, buscando uma confirmação no rosto do deus.

— Sim. É estranho que um espírito chore em Elísia — ele comentou conforme rumavam naquela direção. — Os mortos podem sentir falta da família e de seus entes queridos da Terra dos Vivos, mas, quando são transportados pelo Estige e entram em Elísia, suas almas se enchem de alegria, ou ao menos de paz. A habilidade para deixar de sentir saudades da vida, ou ao menos a capacidade de compreender que todas as despedidas são apenas temporárias, incorpora-se ao espírito mortal. Os que ganharam a eternidade em Elísia sempre ficam contentes.

À medida que se aproximavam do espírito, o brilho tomou forma. Lina pôde ver, assim, que se tratava de uma mulher muito jovem e gorda, com os cabelos longos e escuros presos em um coque. Estava sentada à beira da estrada, a face nas mãos, chorando tão copiosamente que nem mesmo percebeu sua aproximação.

Num impulso, ela fez um sinal para que Hades ficasse para trás, e se pôs ao lado da estranha. Pouco antes de lhe tocar o om bro, percebeu que o corpo do espírito parecia muito mais denso. Se a mulher não tivesse a luminescência pálida dos mortos, ela teria acreditado que estava viva e que, de alguma forma, se perdera no Submundo.

— Querida, o que foi? — perguntou suavemente.

A alma deu um pulo e levantou o rosto molhado de lágrimas, fitando Lina com os olhos castanhos cheios de desespero. Reconheceu a deusa imediatamente e começou a se curvar, mas então viu Hades e levou a mão à boca. Mudou a direção da mesura e acabou indo para trás e para frente, sem saber a qual dos imortais prestar sua reverência.

— Eu não quis perturbar os deuses! — desculpou-se, enxugando os olhos. Pondo-se em pé, desajeitada, começou a recuar às pressas. — Por favor, perdoem-me!

— Não, eu... — Lina ergueu a mão, tentando apaziguá-la.

A mulher estacou, nervosa, olhando para sua mão estendida tal qual um rato assustado.

Lina suspirou e modulou a voz para o tom que costumava usar com os animais.

— Não vá. Você não nos perturbou. Hades e eu fomos dar um passeio e ouvimos seu pranto. Estávamos preocupados, não com raiva.

Ela pareceu relaxar um pouco.

— Qual é o seu nome? — O deus pediu no tom agradável e paternal que usara com Eurídice.

A mulher olhou para ele, ansiosa.

— Alcestes.

— Diga-nos por que estava chorando, Alcestes — Lina pediu com delicadeza.

Ela olhou para os pés.

— Estou me sentindo sozinha. Sinto falta do meu marido e da minha família. — Pressionou as costas da mão contra a boca, tentando inutilmente reprimir um soluço.

O olhar preocupado de Lina encontrou o de Hades, e ela notou que ele também parecia surpreso com as palavras do espírito.

Então o viu inclinar a cabeça para o lado e seu rosto assumiu uma expressão de aten ção. Em seguida, seus olhos pareceram escurecer, e ele apertou os lábios antes de falar com a alma.

— Não era sua hora, Alcestes — disse, a voz marcada pelo pesar.

O espírito deixou escapar outro soluço.

— Não, não era... Mas eu tinha de vir.

Hades franziu o cenho.

— Não precisava vir. A escolha foi sua.

Alcestes levantou o rosto molhado.

— Não entende? Ele perguntou aos outros e ninguém se dispôs a fazê-lo. Por isso eu tive de vir.

Totalmente confusa, Lina abanou a cabeça.

— Esperem... Agora eu é que não estou entendendo. Do que estão falando? Houve algum tipo de erro?

— Alcestes, diga a Perséfone por que entrou no Submundo — ordenou Hades.

A alma respirou fundo e enxugou o rosto com a manga da veste fúnebre.

— Fiquei casada por pouco tempo... O nome do meu marido é Admeto. — A face úmida da mulher se iluminou, e ela quase sorriu. — Ontem de madrugada os argumentadores profetizaram que Admeto morreria antes do pôr do sol. Meu marido imediatamente pediu clemência a Apolo, e o deus da Luz concordou. Na realidade, a profecia era verdadeira. As Parcas tinham terminado de tecer a vida de Admeto e, ao anoitecer, sua vida mortal seria extinta. Mas meu marido sempre foi um dos favoritos do deus da Luz, e Apolo ouvira o choro de Admeto. No fim, concedeu a ele um novo destino: ele seria poupado se alguém concordasse em morrer em seu lugar. Primeiro, meu marido foi procurar seus pais, que são velhos e não andam muito bem, mas eles se recusaram. Então procurou os irmãos. Estes também não se propuseram a morrer em seu lugar. Ele pediu aos amigos mais íntimos, assegurando que cuidaria bem de suas famílias, mas a resposta foi sempre a mesma. Ninguém estava disposto a morrer por ele. Desesperado, Admeto voltou para casa a fim de esperar por seu destino. — Alcestes fez uma pausa, procurando o olhar de Lina. — Eu não podia deixá-lo morrer.

Hades cerrou a mandíbula, mas, quando falou, sua voz não traiu nenhuma raiva.

— E Admeto permitiu que morresse por ele.

O espírito virou os enormes olhos molhados para o deus.

— Ele chorou e rasgou suas vestes... Estava desesperado.

— Mas não o suficiente para detê-la — observou o senhor do Submundo.

— Precisa entender, eu não tinha escolha! Precisava tomar o lugar dele! — Alcestes começou a chorar outra vez.

— Por isso sente essa solidão e dor agora. Não era a sua hora. Sua roda da vida ainda está girando, e sua alma sabe disso. Por isso não consegue encontrar paz — Hades explicou, solene, como se um grande peso pressionasse as palavras.

— Isso não pode ficar assim — interveio Lina. — Olhe para ela... Alcestes nem tem o mesmo corpo do restante dos espíritos.

— Isso porque não é como o restante dos espíritos. Está deslocada, fora do destino que lhe foi previsto.

— Então precisa consertar isso — Lina decidiu com firmeza.

— Ela está aqui porque um deus interferiu na vida de um mortal; algo que acontece com muita frequência, por diversas razões egoístas. Eu não acredito em interferir na vida dos mortais.

— Mas ela faz par te do seu reino, agora. Não está se intrometendo. Só está cumprindo com o seu dever!

— Perséfone — Hades falou com os dentes cerrados —, não se lembra do que aconteceu da última vez em que decidiu enviar um espírito de volta para a Terra dos Vivos?

Lina se encolheu como se ele a tivesse esbofeteado.

— Aquilo foi diferente. Não acredito que possa ser tão cruel, Hades! — Sua voz soou fria como gelo.

— Oh, por favor! — Alcestes se atirou de joelhos entre os dois imortais. — Eu não queria causar discórdia entre o rei e a rainha do Submundo!

— Do que chamou Perséfone? — Hades indagou, tenso. — Que título deu a ela?

Tremendo, a alma deslocada respondeu ao seu deus:

— Eu a chamei de rainha do Submundo, mas não fui eu quem deu esse título a ela, senhor. Simplesmente repeti o que falam de ­Perséfone no Mundo Superior. — Alcestes conseguiu sorrir para Lina. — É bem sabido que ela agora está reinando a seu lado.

Lina ficou sem palavras. Rainha do Submundo? As pessoas estavam mesmo dizendo aquilo dela?

Olhou para Hades, e o deus sombrio capturou sua expressão. Seus olhos brilharam, e seu rosto se iluminou com alegria.

Quando falou, Lina não conseguiu desviar o olhar, quase se esquecendo de respirar.

— Faça seu julgamento, rainha do Submundo. Eu me curvarei à sua vontade — disse e, num gesto quase imperceptível, inclinou a cabeça para ela.

Lina se obrigou a tirar os olhos dele e sorriu, trêmula, para Alcestes.

— Minha decisão é que retorne ao mundo dos mortais e a seu marido para terminar sua sina. E diga a Admeto que ele pode seguir o nov o destino que as Parcas teceram para ele.

Com um grito de felicidade, Alcestes se ergueu e pegou a mão de Lina, beijando-a e segurando-a junto ao rosto encharcado de lágrimas. Sorriu para ela, os olhos marejados.

— Oh, obrigada, rainha do Submundo! Meus filhos, e os filhos dos meus filhos, haverão de fazer sacrifícios pela senhora a cada primavera, até o fim dos tempos!

— É muita gentileza sua, mas saiba que eu prefiro um pouco de vinho e mel espalhados pelo chão. Não sou muito afeita a sacrifícios sangrentos — Lina declarou rapidamente.

Alcestes fez uma reverência profunda.

— Eu sempre me lembrarei de sua bondade, minha deusa!


Capítulo 21

Hades ficou muito quieto após Alcestes desaparecer pela estrada que a devolveria à sua vida mortal, e, vez ou outra, Lina o observava com discrição. Ele segurava sua mão, contudo seu rosto era inescrutável.

Definitivamente, ele a estava deixando muito nervosa. Ela ainda iria para seus aposentos? Teria interpretado mal a reação do deus ante o fato de ser ela chamada de rainha do Submundo? A felicidade que ela pensara ter visto poderia ser outro tipo de emoção?

Mas, se fosse assim, por que ele teria lhe permitido dar uma sentença com a qual não concordava?

Lina suspirou. Os pirilampos pareciam ter invadido sua mente.

Entraram no palácio pelo pátio dos fundos, então Hades rumou da esquerda, o lado oposto ao quarto dela. Passaram pela entrada da sala de jantar e, por fim, ele parou em frente a uma enorme porta em que tinha sido esculpida a imagem de Órion em pé, sobre as patas traseiras, e a do elmo.

Nervosa, Lina apontou para o entalhe.

— É uma ótima reprodução de Órion. Ele parece muito feroz.

Hades bufou.

— Pois eu acho que agora será necessária uma nova versão...
A que o mostre curvando-se à sua senhora.

— Ora... — Aliviada com a brincadeira, ela o cutucou com o cotovelo no braço. — Ele ainda é considerado um dos seus temíveis cavalos. Eurídice vive para evitá-lo.

O deus balançou a cabeça.

— Tenho medo de que sua reputação de ser um animal solitária e feroz tenha sido arruinada para sempre. — Ele se virou para ela e segurou seu queixo, erguendo-lhe a face. — Mas ele não se importa... O ganho excede a perda. — Beijou-a delicadamente, murmurando contra seus lábios: — Vai comigo para o meu quarto?

— Sim — Lina respondeu com um frio na boca do estômago.

Hades abriu a gigantesca porta, e ela finalmente entrou no mundo particular do deus do Submundo. A primeira coisa que notou foi a enorme cama no centro do aposento, encimada por um dossel que pendia em luxuosas dobras de seda pura. A própria cama se encontrava coberta com pesados lençóis brancos, fazendo o conjunto parecer uma nuvem que havia perdido seu lugar no céu. Era suntuosa, sexy... e muito, muito convidativa.

Quando percebeu que estava olhando o móvel e deixando a imaginação vagar, Lina sentiu o rosto arder. Desviou o olhar, e teve a atenção atraída para o impressionante par de lustres que pendia do teto abobadado. Pareciam feitos de vidro preto, e centenas de velas bruxuleavam, cintilando em sua base incomum.

— Seus lustres são sempre tão lindos! Estes são feitos de vidro preto?

— De obsidiana — explicou Hades. Pressionando-lhe a base das costas intimamente, ele a conduziu pelo quarto. — Quando ela é cortada e polida, assemelha-se ao vidro.

Lina sorriu.

— E quais são suas caracter ísticas? Devem ser muito especiais se a escolheu para os seus aposentos.

— Os poderes da obsidiana são a proteção, a segurança, a divinação e a paz. — Ele olhou para a luz piscante. — E eu também a considero bastante tranquilizadora.

— Sem dizer que combina com tudo aqui. — Lina apontou para o restante do vasto cômodo.

As cores predominantes eram o preto, o branco e o prata. Em vez de tornarem o quarto austero e frio, os contrastes dramáticos tinham um efeito intrigante... como se o deus tivesse encontrado o exato equilíbrio entre a luz e a escuridão.

— Gostaria de beber algo? — Hades indagou, um pouco tenso, perguntando-se se ela podia ouvir as batidas de seu coração.

Quando Perséfone assentiu, ele caminhou, apressado, até uma mesa baixa, em meio a duas poltronas de cetim branco, e serviu duas taças de uma garrafa que já havia sido aberta e colocada em um recipiente com gelo.

Lina sorriu em agradecimento e pegou a taça de cristal cheia de um líquido dourado. Seu aroma a fez sorrir.

— Ambrosia!

— Há rumores de que está apaixonada por essa bebida. — Os lábios de Hades também se curvaram num sorriso.

— Deveria haver rumores de que, às vezes, eu exagero na dose...

— Isso pode ser um segredo nosso. — Ele tornou a sorrir e ergueu a taça para ela. — Aos recomeços.

— Aos recomeços — Lina repetiu, tocando-a com a sua.

Enquanto bebiam, seus olhares se encontraram. Em seguida Hades colocou a taça de volta na mesa e, sem hesitar, ela fez o mesmo.

O deus sombrio respirou fundo, então percorreu o curto espaço entre eles e a tomou nos braços.

— Está me assustando, Perséfone. Não consigo respirar sem pensar em você...

Capturou-lhe os lábios em um beijo faminto, e eles se uniram, sedentos.

Tudo o que ela pôde pensar foi: Ah, obrigada! Finalmente!

O corpo rijo de Hades pulsou contra o dela, e o de Lina respondeu com um calor. Suas mãos percorreram o peito largo, encontrando, inquietas, a túnica de couro, e ela quis praguejar de tanta frustração. Não tinha ideia de como arrancar aquela coisa!

Enquanto os beijos profundos faziam fervilhar seu sangue, tateou a veste até encontrar amarras do couro nas laterais. Puxou-as, impaciente, soltando-as o bastante para poder deslizar as mãos para dentro da couraça e sentir os músculos rijos da cintura e do abdômen de seu amado.

Hades gemeu contra a boca carnuda, e suas mãos desceram para segurar a curva suave das nádegas de Perséfone, pressionando-a com mais firmeza contra ele. Uma onda de calor invadiu seu corpo quando ele a sentiu se movendo em resposta. Lina mordiscou seu lábio inferior, provocante, então se afastou apenas o suficiente para fitá-lo nos olhos.

— Leve-me para a cama — falou, meio sem fôlego.

Ele engoliu, tentando aliviar a secura na garganta, e acedeu. Conduziu-a até a enorme cama, repartiu a cortina de seda, mas não se juntou a ela de imediato. Recostada nos travesseiros, Perséfone era ainda mais estonteante. Diante de sua hesitação, a deusa sorriu para ele interrogativamente.

— Primeiro devo lhe dizer uma coisa. — Sua voz saiu carregada de emoção. — Eu nunca fiz isso antes.

— Nunca trouxe uma mulher para o seu quarto?

— Eu nunca trouxe uma imortal aqui. Mas não apenas isso.

Os olhos de Lina se arregalaram.

— Nunca fez amor?!

O riso de Hades soou forçado e nervoso.

— Eu fiz amor. Mas nunca com uma deusa.

Lina sentou-se, querendo desesperadamente revelar a Hades a ironia da situação. Ele estava nervoso pela mesma razão na qual ela sentia um bando de borboletas voejando no estômago.

— Para ser sincera, eu também não me deito com ninguém há um bom tempo. — Aproximou-se e tocou-lhe a mão. No mesmo momento, os dedos dele se entrelaçaram aos seus. — E juro: nenhum deus me fez sentir o que sinto por você.

Hades sentou-se a seu lado na cama, olhando suas mãos unidas.

— Quando Alcestes a chamou de rainha do Submundo, senti um orgulho indescritível só de pensar que outros acreditam que você me pertence, que poderia ser feliz reinando a meu lado. Não posso conceber algo que me traria mais alegria.

Lina deu um longo suspiro.

— Eu teria orgulho de ser chamada de rainha do Submundo, mas, não sei... — Vacilou, dividida entre a promessa que fizera a Deméter e a necessidade de dizer a verdade ao deus.

Ele a segurou pelo rosto.

— Já me basta saber que a ideia não lhe é repugnante. O tempo cuidará do resto.

Lina colocou as mãos sobre as dele.

— Como este seu reino maravilhoso poderia me causar repugnância? Eu o adoro! — disse com voz rouca.

O sorriso de Hades foi deslumbrante, e Lina se perguntou como era possível que os outros imortais não o vissem como ela.

De repente, ficou extremamente feliz por isso. Se soubessem, ele não seria seu. E seria como o restante deles.

Hades a beijou com suavidade, contudo Lina pôde sentir a tensão no corpo másculo através dos músculos rijos de seus braços. Quando falou, sua voz parecia ainda mais profunda:

— Mostre-me como lhe dar prazer. Só de pensar em você, um só vislumbre de sua pele, já faz meu sangue ferver... Mas sei que o desejo não é tão simples para as mulheres. — Embora tenso, ele conseguiu dar uma risada. — Mesmo com a minha limitada expe­riência, aprendi que as deusas são, de fato, muito mais complexas do que os deuses. Ensine-me como atiçar o seu desejo, Perséfone.

Lina sentiu a boca seca e passou a língua pelos lábios, arrepiando-se ao perceber que ele não deixara o gesto passar despercebido.

— Pode começar tirando a roupa — falou, meio sem fôlego.

Sem hesitação, Hades arrancou o quitão já solto, livrou-se da túnica curta e também da tanga de linho, igual à que usava na ferraria e que ela achara tão atraente. Uma vez livre das roupas, parou diante dela, totalmente nu.

E era magnífico. A pele lisa dourava-lhe os músculos, fazendo-o parecer ainda mais sombrio e exótico.

Céus! , ela nunca vira um homem tão perfeito!

Seus olhos viajaram pelo corpo musculoso, e sua respiração ficou presa na garganta. Hades se encontrava plenamente excitado, e uma onda inebriante de prazer a invadiu quando ela pensou que tinha um deus sob seu comando. Ficou parada por um momento, em seguida descansou as palmas das mãos no peito nu. Lentamente, ela as fez correr ao longo da pele lisa, amando sentir os músculos rijos e bem definidos do peito e dos braços de seu amor.

Quando suas mãos desceram mais, um tremor o percorreu.

— Algo de que todas as mulheres gostam é acreditar que seu toque é especial — Lina disse, rouca. — É bom saber que, mesmo que nossos corpos não tenham tanta força, um pequeno toque nosso pode fazer um homem estremecer e gemer de prazer... — Pegou a carne rija na mão e a acariciou sensualmente.

Um gemido intenso escapou da garganta de Hades, e Lina sorriu, sedutora.

— Estou machucando você?

— Não! — ele negou com voz abafada. — Embora eu acredite que possa me matar de prazer apenas com um toque... Basta pensar em você, vê-la, sentir seu cheiro, e fico excitado, dolorido, louco para amá-la!

As palavras tiveram o efeito de uma descarga elétrica no corpo de Lina, e ela o empurrou de leve para dar um puxão no laço que prendia sua própria túnica no ombro esquerdo. Contorceu-se, impa­ciente, até deixar os seios nus, e levou apenas um momento para soltar as amarras em seus quadris. Com um movimento sensual, fez o tecido deslizar por seu corpo, em seguida se jogou nos braços de Hades.

— Sua pele é tão quente! — falou entre beijos. — Eu amo senti-la de encontro a minha.

— E você me faz pegar fogo! — Hades sussurrou contra seus lábios enquanto explorava a curva de seus quadris eroticamente. De súbito, virou-se e se deitou na cama, puxando-a com ele. — Mostre-me mais, Perséfone... Ensine-me como fazê-la arder também!

Lina saiu de cima do corpo másculo, de modo que ficaram deitados de lado, de frente um para o outro. Ela mal sabia por onde começar. Já se sentia tão pronta que, por um momento, quase o fez subir nela.

Então respirou fundo e deteve o impulso. Hades não era como seu ex-marido ou qualquer outro dos seus desinteressados amantes. Desta vez seria diferente, pois Hades era diferente. Nele ela encontrara tudo o que uma mulher podia desejar: um homem que queria agradar de verdade e estava disposto a ouvir e aprender para que ela pudesse sentir prazer. Tudo o que precisava fazer, naquele momento, era mostrar o que desejava.

Mas isso era muito mais difícil do que ela havia imaginado. O que queria, afinal?

Fechou os olhos e tentou ordenar os pensamentos. Em toda a sua vida de adulta, sempre sonhara com alguém que gostasse dela o suficiente para se preocupar com seu prazer tanto quanto o seu próprio. Precisava ser honesta com Hades, bem como consigo mesma. Tinha que romper com as barreiras que seus antigos amantes a tinham feito erigir.

Estremeceu. Estava pronta.

Abriu os olhos e, bem de leve, tocou o ponto onde o próprio pescoço encontrava o ombro.

— Para mim, são as pequenas coisas que importam — falou com uma voz subitamente tímida. — Assim como ser beijada aqui...

Hades se apoiou em um cotovelo, então se inclinou para a curva delgada. Beijou-a e mordeu-a de leve, passando a língua pela área sensível.

— Eu também queria que você me acariciasse enquanto me beija... Deixe meu corpo se acostumar com o seu toque! — Lina pediu num sussurro.

Quando a respiração de Perséfone se aprofundou, Hades seguiu pela linha sedutora de seus ombros até os seios e os cobriu delicadamente com as mãos.

— Ah, sim... Aí também! — ela gemeu enquanto ele depositava minúsculos beijos nos montes arredondados.

— Sentirá prazer se eu a lamber e beijar aqui? —Tocou os mamilos túrgidos, a voz saindo rouca de desejo.

— Sim! — Lina mergulhou as mãos em seus cabelos.

Enquanto a provocava e sugava, Hades correu a mão mais para baixo. Primeiro afagou-lhe o comprimento da perna, moldando os músculos curvilíneos. Depois, lembrando-se de que Perséfone dissera dar valor às pequenas coisas, acariciou a área macia por trás de seu joelho. Ainda seguindo os sinais do corpo delicado, desenhou círculos ardentes no interior de suas coxas.

Lina se abriu para ele e, guiando-lhe a mão até o centro do próprio corpo, mostrou-lhe como acariciar seu ponto mais sensível, sussurrando incentivos meio sem fôlego ao perceber que o toque acompanhava seu ritmo.

A onda de orgasmo veio rápida e poderosa, e ela gritou o nome dele conforme uma estranha eletricidade brotou em seu âmago e irradiou por seus membros.

Hades a abraçou com força, os próprios desejos temporariamente esquecidos em meio ao espanto de ter sido capaz de evocar nela uma resposta tão apaixonada. Tinha vontade de gritar de felicidade. Perséfone o conhecia em sua essência, desejava-o e havia se entregado a ele.

Lina abriu os olhos e o fitou. Ele estava sorrindo para ela e afastando-lhe os cabelos do rosto.

Sua respiração ainda não tinha voltado ao normal quando o deus recomeçou a beijá-la.

— O melhor sexo é quando os amantes se satisfazem mutuamente — disse, ofegante, pressionando-o de volta para a cama. — É uma dança onde se dá e se recebe. Embora o prazer de seu parceiro possa se tornar o seu próprio, não devemos nos abster de nossas necessidades e desejos... — Acariciou o corpo musculoso, beijando e saboreando a salinidade de sua pele, até que a respiração dele se tornou irregular.

O suor brilhava no corpo de Hades, e todos os seus músculos se retesaram quando ele lutou para controlar o desejo.

Lina o envolveu nos braços com urgência.

— Não se contenha mais! Eu o quero dentro de mim agora... Quero sentir toda a sua paixão.

Com um grunhido, ele rolou de modo a ficar sobre ela. Apoiando-se sobre as mãos, fitou-a nos olhos enquanto mergulhava no corpo macio.

Seu calor úmido o cercou, e Hades precisou de toda a sua força de vontade para conter a explosão que ameaçava acontecer. Possuir Perséfone se revelara melhor do que qualquer fantasia; melhor do que qualquer coisa que ele pudesse ter imaginado.

Deteve-se por um momento, tentando recuperar o autocontrole.

Com um gemido, Lina arqueou o corpo, e Hades respondeu combinando sua paixão com a dela, até que teve a visão obliterada para tudo o mais, exceto para a deusa sob ele. Sentir que ela o comprimia por inteiro o levou às alturas e, conforme espasmos de prazer o percorriam, Hades afundou o rosto nos cabelos fartos de sua amada, repetindo seu nome seguidas vezes...

Um perfume doce e familiar despertou Lina. Hades encontrava-se de pé ao lado da cama, sorrindo. Estava nu, exceto pela tanga justa que o cobria bem abaixo da cintura. Em uma das mãos, segurava uma taça de ambrosia dourada e refrigerada, e, na outra, um manto leve, de seda.

— Bom dia — ela falou, sonolenta.

— Bom dia. Imaginei que estivesse com sede. — Ele ergueu o cálice de cristal. — Além disso, Eurídice trouxe algumas coisas para você. — Apontou por cima do ombro para uma mesa carregada com romãs e uma deliciosa variedade de queijos e pães.

Lina sorriu. Hades nunca estivera tão adorável, parado em pé ali, meio nervoso, tentando agir como se estivesse acostumado a ter uma deusa em sua cama.

— Obrigada. — Sentou-se e se espreguiçou.

O lençol caiu em torno de sua cintura, e os olhos dele devoraram seus seios nus.

Sem se conter, Hades colocou o que tinha nas mãos sobre a mesa de cabeceira e se ajoelhou diante dela, segurando-lhe os seios e beijando os mamilos róseos.

Embora o toque fosse suave, Lina não pôde deixar de se encolher. Seu corpo se encontrava maravilhosamente saciado, mas também muito, muito dolorido.

O deus recuou.

— Estou machucando você?

— Acho que estou um pouco sensível. Sete vezes em uma noite é, bem... um pouco incomum.

Hades sentiu que corava enquanto lhe cobria os ombros com o manto e lhe alisava os cabelos. Perséfone estava amarrotada e tinha uma marca vermelha na curva do pescoço.

E se ele tivesse sido muito bruto? Na noite anterior parecia ter dado prazer a ela, mas, naquela manhã, a deusa parecia quase descontente.

Perséfone se pôs de pé com certa cautela e tornou a encolher os ombros sob a capa.

Por todos os deuses! E se ele a tivesse ferido?

Lina abriu um sorriso e sentou-se com cuidado antes de atacar a mesa posta. Nem mesmo percebeu como o deus se retesou em resposta ao seu óbvio desconforto físico.

Hades condenou a si mesmo por ser um idiota, inexperiente.

Conforme Lina comia, sentiu sua energia retomar o nível normal e as dores em seu bem utilizado corpo se dissipar. Respondendo ao seu revigorado bom humor, o nervosismo de Hades evaporou, e eles fizeram o desjejum como dois amantes apaixonados, permitindo que seus joelhos se tocassem e alimentando um ao outro com os petiscos de seus próprios pratos.

Ele começava a explicar como tinha produzido os lustres que pendiam graciosamente do teto acima deles quando duas batidas firmes soaram na porta.

— Entre! — gritou Hades.

Iapis se fez presente, segurando uma pequena caixa quadrada nas mãos, e fez uma reverência, primeiro para o senhor do Submundo, depois para Lina.

— Bom dia, Hades, Perséfone... — Seus olhos brilhavam, e ele tentou, sem sucesso, esconder um sorriso. — Eu trouxe o que me pediu, senhor. — Entregou a caixinha a Hades.

— Excelente. Muito obrigado, Iapis.

Ao ver o daimon, Lina se lembrou de que negligenciara Eurídice por completo e sentiu uma ponta de culpa.

— Iapis, poderia levar uma mensagem a Eurídice para mim?

— Claro, senhora.

— Diga a ela que eu adoraria ver o que ela andou desenhando.

Iapis sorriu.

— Será um prazer para Eurídice, tenho certeza.

— Ótimo. Mande-a levar seus trabalhos para o meu quarto ainda hoje. E, por favor, diga-lhe que estou ansiosa por ver suas criações... e também por vê-la. Senti sua falta.

Lina pensou ter visto as faces do daimon enrubescer de leve antes que ele aquiescesse e, ainda sorrindo, se despedisse com uma mesura.

— Ele está de bom humor, sem dúvida — comentou Lina, pensativa, tamborilando os dedos na mesa.

— Ele gosta de me ver feliz — Hades falou brincando e beijando-lhe a mão.

Ela sentiu-se tão tola e sorridente como o daimon se mostrara, e tratou de se recompor.

— Não acho que ele esteja assim, feliz, apenas por causa de você.. Aliás, faz algum tempo que eu gostaria de conversar acerca do seu amigo daimon.

Hades ergueu uma sobrancelha, esperando.

— Creio que Iapis esteja interessado em Eurídice — revelou Lina.

O sorriso do deus foi como o de um menino apanhado com a mão na bo tija.

— Acho que tem razão.

— Então preciso saber de suas intenções! — ela falou com firmeza.

Hades concordou, a expressão se tornando séria no mesmo instante.

— Compreendo sua preocupação, claro... Mas acredito que eu possa falar por Iapis. Suas intenções são honradas. Ele realmente se preocupa com a pequena alma.

— Vai se certificar de que ele seja cuidadoso com Eurídice? Ela passou por muitas dificuldades. É difícil para uma mulher amar outra vez depois que foi ferida.

Hades tocou-lhe o rosto com delicadeza, pensando se a deusa estaria se referindo apenas a seu leal espírito.

— Pode confiar em mim. Sempre. Cuidarei de Eurídice como se ela fosse a própria deusa da Primavera.

— Obrigada. Não é que eu não goste de Iapis... eu gosto. Mas me preocupo muito com a minha amiga.

— É uma deusa generosa, Perséfone, já que se preocupa verdadeiramente com aqueles que a amam — ele afirmou. Então olhou para a caixa quadrada descansando ao lado, e a fez deslizar até ela.

— É algo que fiz na primeira noite em que esteve aqui. Eu não conseguia dormir. Tudo o que podia fazer era pensar em você, em seu sorriso, em seus olhos... — Fez um gesto para que ela abrisse o presente.

O fecho destravou com facilidade, e Lina levantou a tampa. Aninhada junto a um estojo de veludo preto, havia uma delicada corrente de prata. Desta pendia uma única pedra ametista, a qual fora esculpida e polida de modo requintado, na forma de um narciso em flor.

Lina sentiu os olhos marejados.

— Oh, Hades! É a coisa mais bonita que eu já ganhei!

Ele se levantou e postou-se atrás dela, tirando o colar do estojo para colocá-lo em seu pescoço. Pendurou-o perfeitamente, bem acima da curva de seus seios.

— Obrigada... Eu adorei!

O deus a puxou para seus braços.

— Na noite em que fiz isso, eu estava cheio de desejo e morrendo de saudade. Mas agora está aqui comigo, e o vazio dentro de mim não mais existe. Os mortais foram sábios em afirmar: é a rainha do Submundo. Não posso imaginar minha vida sem você. Não trouxe a primavera apenas para o meu reino, Perséfone, mas também para o meu coração. Estou apaixonado.

As lágrimas que tinham se agrupado nos olhos de Lina transbordaram, e ela não conseguiu falar.

Hades enxugou-lhe o rosto com os polegares.

— Por que está chorando, minha querida?

— As coisas são tão complicadas...

Ele franziu a testa.

— Porque é a deusa da Primavera?

— ... Também.

— Diga-me a verdade. Chora porque não se imagina permanecendo no Submundo?

O deus tentou manter a voz neutra, no entanto Lina podia ver a dor refletida em seus olhos.

— Quero estar com você — disse apenas, tentando não soar muito evasiva.

— Então não posso conceber qualquer dificuldade que não possamos vencer juntos —Hades declarou, abraçando-a com força.

Descansando em seus braços, Lina fechou os olhos, disposta a parar com as lágrimas. Chorar não ajudaria em nada. Ela o amava, mas esta era apenas uma pequena parte da verdade que ele precisava saber.

Queria tanto contar tudo a Hades! Precisava fazer isso.

Mas havia dado sua palavra, e, antes de qualquer coisa, deveria conversar co m Deméter.


Capítulo 22

— Disse que ela não está em seu quarto? — Hades virou-se para o daimon.

— Não, senhor... A deusa se foi.

— E Eurídice não sabe onde ela está?

— Não. Eurídice estava ocupada com os desenhos que mostraria à sua senhora mais tarde.

Hades andou de um lado para o outro. Perséfone havia dito que precisava de um bom banho de imersão e que depois tiraria uma soneca. Sim, ela lhe parecera estranha, mas ele atribuíra seu comportamento ao cansaço.

Assim, resolvera lhe dar algum tempo enquanto atendia às petições dos mortos... ainda que mais distraído do que nunca. A maioria deles tinha vindo ver Perséfone, e havia ficado visivelmente desapontada por a deusa não ter aparecido.

Apertou a mandíbula. Podia compreendê-los muito bem. Ele mesmo não queria mais nada a não ser vê-la por perto. Ainda trazia seu perfume na pele, e, quando divagava, podia sentir o calor suave de Perséfone contra ele.

Para onde ela havia ido? Por que não lhe dissera nada? O que estaria pensando?

Passou a mão pelo cabelo. Depois de eras de uma existência solitária, seu desejo fora feroz, e, talvez, ele houvesse sido muito bruto. Talvez a houvesse ferido.

Ou talvez não a tivesse satisfeito. E se ela o comparara a seus outros amantes imortais?

Cerrou os punhos. Apenas pensar em outro deus encostando nela o deixava com náuseas.

— Encontre-a, Iapis — rosnou.

O daimon se curvou e desapareceu.

OK , Lina admitiu para si mesma, mordendo o lábio. Estava preocupada.

— Merda! Por que tem de ser tão complicado?

As orelhas de Órion se inclinaram para trás a fim de captar suas palavras, e ele relinchou uma resposta suave.

— Eu o amo de verdade — ela disse em voz alta. — E agora? O que vamos fazer?

Lina suspirou. Sabia o que ela precisava fazer, razão pela qual escapulira com o cavalo.

— Verdade que a história que inventei foi excelente... — falou a Órion. — Tenho certeza de que Iapis ficará apenas um pouco aborrecido quando descobrir que o enorme odre de ambrosia que Eurídice o fez encher até a borda é para o Cérbero.

Ao ouvir falar do cão de três cabeças, Órion bufou com desgosto.

— Ah, ele não é tão ruim assim. Só ficou um pouco alterado pelo álcool, mas, no fim foi um amor... Além do mais, sabe que eu gosto muito mais de você. — Ela deu um tapinha na pelagem reluzente do cavalo.

Órion arqueou o pescoço e mudou o trote para um forte galope, fazendo a estrada escura passar rapidamente por baixo deles. A fiel esfera de luz pairava sobre seu ombro direito, mantendo o ritmo com o garanhão, e, a distância, Lina já podia ver o contorno leitoso do bosque de árvores fantasmas.

Perguntou a si mesma se Hades já teria notado a sua ausência. Tomara que não, mas, se ele procurasse por ela, Eurídice lhe diria que ela fora levar ao Cérbero a guloseima que prometera. Os cavalariços, por sua vez, relatariam que ela havia levado Órion para um passeio.

Hades não deveria se preocupar. Ela não queria que ele ficasse preocupado. Não desejava lhe causar nenhuma dor.

A noite que tinham passado juntos fora uma experiência nova para ela. Hades lhe despertara sentimentos que, até então, não passavam de resquícios de sonhos e fantasias. E não fora só sexo.

Suspirou outra vez. Isso teria sido fácil de lidar. Poderia ter com ele um caso tórrido e excitante, saciar a si própria e, no momento oportuno, ir embora.

Mas, decididamente, não tinha sido apenas sexo.

A lembrança das almas gêmeas ainda a assombrava, assim como o olhar de Hades quando ele declarara seu amor. Ela havia ansiado por responder com as mesmas palavras; no entanto, não era livre para se comprometer com ele. Não ainda. Não até que conversasse com Deméter.

E isso partira seu coração.

Não tivera a intenção de amá-lo. Havia ido para o Submundo com as melhores intenções e um trabalho a fazer. Ponto. Não estivera interessada em romance, amor ou sexo.

E o Mundo Inferior era o último lugar em que esperava encontrar alguma dessas coisas.

Merda! Deméter descrevera Hades como um assexuado, e ela estivera totalmente despreparada para a verdade.

Rodou um fio da crina sedosa de Órion em torno do dedo conforme o garanhão galopava pelo bosque de árvores fantasmas. Estava metida numa enorme encrenca. Amava Hades, estava certa disso, mas um pensamento incômodo não a abandonava: enquanto estivera com ele, enquanto pudera tocá-lo e fitá-lo nos olhos, fora fácil acreditar que ele a amava também. Ela , Carolina Francesca Santoro, e não uma deusa jovem e fútil.

E, não fora ele mesmo quem dissera que o verdadeiro amor tinha mais a ver com a alma do que com o corpo?

Então, por que faria diferença se seu corpo verdadeiro fosse o de uma mortal de quarenta e três anos de idade? Teoricamente, não deveria fazer.

Órion continuou disparado através do túnel escuro em direção à abertura ampla e iluminada do Mundo Superior.

Era inegável que tivesse mentido a Hades, Lina pensou. Mesmo que ela não houvesse tido a intenção de seduzi-lo, no que ele acreditaria quando soubesse a verdade? Será que compreenderia?

E, o mais importante, será que ele ainda a amaria?

O garanhão galopou até o fim da passagem, saindo para a luz suave de uma manhã fria. Ela puxou as rédeas do cavalo, obrigando-o a uma parada, apanhou as próprias coisas e, em seguida, conduziu-o até a bacia de mármore que sustentava o oráculo de Deméter.

Escorregou pelas costas de Órion.

— Fique por perto e seja bonzinho. Isso não vai demorar muito.

— Ela montou Órion para levar um agrado para o Cérbero?

O daimon concordou com um gesto de cabeça e uma expressão ligeiramente irritada no olhar.

— Eu mesmo enchi o odre. Ela levou ambrosia para aquele bruto!

Em qualquer outro momento, a notícia teria feito Hades rir. Agora, contudo, as dúvidas lhe esfaqueavam o coração.

— Mas Perséfone me disse que estava exausta. Que tomaria um banho e descansaria. Por que ela sairia para um passeio em vez disso?

— Apenas a deusa pode lhe responder isso, senhor.

O crescente sentimento de desconforto que o torturava desde aquela manhã desabrochou. Ele devia tê-la magoado, concluiu Hades. Teria assustado Perséfone? Ou teria declarado seu amor por ela cedo demais?

Sentiu o peito se apertar. Ela não havia proclamado seu amor em troca, pensou, lembrando-se de suas lágrimas.

Amaldiçoando-se em silêncio por sua inexperiência, virou-se para o daimon.

— Traga-me o elmo da invisibilidade.

Lina estudou o oráculo. Este descansava, quieto e benigno; uma simples esfera de vidro de cor leitosa.

Mas era o canal para uma deusa que detinha o poder de moldar seu futuro.

Fechou os olhos, admitindo que não estava apenas preocupada. Estava com medo. Como aquilo poderia funcionar? Ela era uma mortal de outro tempo e lugar. Ele, um deus antigo.

Sentiu lágrimas de frustração assomar aos olhos fechados.

Pare com isso! Controle-se!

Precisava contar tudo a Deméter. Não podia evitar isso por mais tempo.

Perséfone não estava com o Cérbero, embora o cão continuasse lambendo, feliz, o velho odre que ela lhe dera. Também não tinha passado por ele, voltando ao palácio, motivo pelo qual Hades seguiu adiante.

Quando encontrou o barqueiro, Caronte relatou que transportara a deusa e seu corcel para a outra margem do Estige.

Hades admitiu o pior para si mesmo: Perséfone havia definitivamente retornado à Terra dos Vivos.

Sentiu uma queimação familiar brotar no peito. Ela o deixara sem nem mesmo dizer adeus? Não queria acreditar nisso.

E não acreditaria até que a confrontasse e ela lhe dissesse isso cara a cara.

Com sua velocidade de deus, Hades seguiu pelo caminho escuro que o levaria ao Mundo Superior e à deusa da Primavera.

Lina respirou fundo e abriu os olhos. Concentrando-se em Deméter, passou as mãos três vezes pelo oráculo.

— Deméter? Precisamos conversar...

A orbe começou a rodopiar e, quase no mesmo instante, as feições benfeitas da Grande Deusa entraram em foco.

— Quando uma filha clama pela mãe, o tom de sua voz deve ser mais acolhedor do que tristonho — disse, suavizando a repreensão com um sorriso maternal.

— Eu não tinha intenção de desrespeitá-la, mas sinto-me, mesmo, um pouco deprimida — confessou Lina.

Deméter franziu o cenho.

— O que a incomoda, filha? Tenho ouvido apenas relatos positivos sobre o seu trabalho. Os espíritos se mostram satisfeitos por a deusa da Primavera estar peregrinando pelo Submundo.

Era a pura verdade. Desde a chegada da deusa, que todos acreditavam ser Perséfone, ao Mundo Inferior, as súplicas incessantes e irritantes dos parentes dos mortos havia terminado, e os sacrifícios por agradecimento, aumentado. A mortal vinha marcando presença e fazendo um excelente trabalho ao representar sua filha, refletiu a deusa da Colheita. Não podia imaginar o que a estava incomodando.

— As coisas tomaram um rumo inesperado.

A careta de Deméter se acentuou.

— Não me diga que foi descoberta.

— Não! Todos ainda pensam que sou Perséfone. — Lina fez uma pausa, mordendo o lábio. — O meu problema tem a ver com isso .

— Explique-se.

— Eu me apaixonei por Hades, e ele também me ama. Preciso contar a ele quem eu realmente sou e descobrir uma forma de consertar essa confusão — Lina falou de uma vez.

Os olhos de Deméter pareceram se transformar em pedra.

— Por acaso isso é algum tipo de brincadeira mortal?

— Não. — Lina suspirou. — Não há graça nenhuma nessa história.

— Está me dizendo que você e Hades se tornaram amantes?

— Sim.

— Então Hades brincou com seus sentimentos. — Deméter balançou a cabeça com tristeza. — E eu sou a culpada por isso. Expus uma mortal aos caprichos de um deus. Perdoe-me, Carolina Francesca Santoro... Minha intenção não era lhe causar dor.

— Não! — protestou Lina. — Não é assim. Hades não se aproveitou de mim. Nós nos apaixonamos um pelo outro!

— Vocês se apaixonaram? Um pelo outro? — A voz de Deméter soou enérgica. — Como é possível? Hades pensa que é Perséfone, deusa da Primavera. Não tem ideia de que fez amor com uma mortal. Pense, Carolina! Como pode acreditar que é você quem ele ama? — Deméter riu sem vontade, as belas feições contorcidas. — Amor! É mesmo tão ingênua? Os imortais amam de forma bem diferente dos mortais. Certamente até mesmo em seu mundo já ouviu falar dos abusos do amor imortal.

Lina ergueu o queixo e estreitou os olhos.

— Não sou nenhuma criança. Não fale comigo como se eu tivesse as emoções instáveis de uma adolescente. Conheço a diferença entre o amor e a luxúria. Sei quando um homem está me usando, assim como sei quando ele está me tratando com honestidade. As aulas foram difíceis... mas a experiência me ensinou a diferença.

— Então devia saber — concluiu Deméter.

As palavras suaves tiveram o efeito de um tapa.

— Não conhece Hades. Ele não é como o restante de vocês.

— Não é como o restante dos imortais? O que me diz é absurdo e ingênuo. Hades é um deus. A única diferença entre ele e os outros deuses é que Hades vive recluso e decidiu colocar os mortos acima dos vivos.

— Isso é apenas parte do que o torna tão diferente. — Lina respirou fundo. Não queria trair a confiança de Hades, mas precisava convencer Deméter. — Sou a única deusa a quem ele amou.

Os olhos de Deméter se estreitaram.

— Foi isso o que Hades disse? Então aqui vai sua primeira lição a respeito do amor imortal: não acredite em nada do que um deus diz quando ele está tentando se deitar com uma deusa. O que ele falou foi apenas o que você precisava ouvir para se entregar a ele.

Recusando-se a acreditar nas palavras, Lina sacudiu a cabeça de um lado para o outro. Deméter, porém, ignorou o gesto e prosseguiu.

— No que acreditou? Que ficariam juntos por toda a eternidade? Esqueça que é mortal. Esqueça que é de outro mundo. Mesmo se fosse a deusa da Primavera, acredita honestamente que Hades e Perséfone poderiam se unir e ter seus nomes ligados para sempre? A simples ideia é absurda! Como poderia existir primavera na Terra dos Mortos?

— A primavera não tem de existir lá, mas eu posso ficar no Submundo. Eu, a mortal, Carolina Francesca Santoro. Ficarei no Submundo e am arei seu deus. Apenas me transforme novamente. Devolva o meu corpo, e eu devolverei este — ela apontou para si mesma — à sua filha.

— Não posso fazer isso. Não é deste mundo, Carolina! — A raiva transformou o rosto de Deméter. — Você sabia que essa era uma situação temporária. Eu nunca disse o contrário.

— Tem de haver uma saída!

— Não há. Ambas devemos respeitar os nossos juramentos.

— Então, não posso nem mesmo dizer a Hades quem eu sou? — Lina concluiu, desesperada.

— Use a razão, Carolina, e não o coração. O que o senhor dos Mortos faria se soubesse que cortejou não a deusa da Primavera, mas uma padeira mortal de meia-idade? Abriria os braços para a sua mentira? — Deméter levantou a mão para silenciar os protestos de Lina. — Pouco importa que não tenha tido a intenção de ­enganá-lo. Você diz que eu não conheço Hades, mas todos os imortais sabem algo a respeito dele: o senhor dos Mortos preza a verdade acima de tudo. Como ele reagiria a esta farsa?

— Ele me ama!

— Hades ama Perséfone, a deusa da Primavera — falou Deméter com firmeza. — E, pense: como os espíritos do Submundo se sentiriam se soubessem que a deusa que tem trazido tanta alegria é apenas uma mortal disfarçada?

Lina ficou tensa.

— Isso os prejudicaria, sem dúvida.

— Claro que sim.

— Então não posso contar a ninguém.

— Não, filha. Não pode.

Lina fechou os olhos, e Deméter viu a mulher no corpo de Perséfone lutar para aceitar a dor causada por suas palavras.

— E lembre-se disto: quando voltar para o seu legítimo lugar, Perséfone vai considerar Hades apenas como mais um dos deuses com quem se divertiu. Não importa o que você acredita que tenha se passado entre vocês dois... E Hades, por fim, sentirá o mesmo. Ouça sua voz interior e se lembrará de que essa é apenas a maneira imortal de agir.

Quando Lina abriu os olhos, estava decidida.

— Voltarei ao Submundo para finalizar o meu trabalho, então. Disse que meu tempo está quase no fim?

Deméter aquiesceu em silêncio.

— ...Certo. Estarei pronta para partir no momento em que quiser.

— Eu sabia que você tinha sido uma escolha sábia, Carolina Francesca. — A imagem da deusa começou a se desvanecer. — Retorne com a minha bênção, filha — completou e se foi.

Lina se afastou do oráculo, e seus olhos deslizaram pela beleza do lago Averno sem realmente vê-lo.

Não chorou. Continuou muito quieta, como se a falta de movimento pudesse impedir que sentisse ainda mais dor.

Envolto na invisibilidade, Hades permaneceu na boca do túnel. Sua reação inicial ao ver Perséfone fora de alívio. Ela não o estava deixando; estava apenas consultando o oráculo da mãe. Ele não conseguia ouvir o que ela dizia, porém seu alívio foi logo substituído por preocupação. Perséfone estava visivelmente abalada. Parecia quase desesperada.

Por isso ela não lhe dissera que pretendia conversar com Deméter? Estava com medo da reação da mãe ao amor deles? Estaria tentando protegê-lo?

Perséfone sabia que, a seu modo, ele era um deus poderoso.

Mas, talvez, ela não o fosse. Era muito jovem, ainda que se comportasse com tanta maturidade que era fácil para ele esquecer sua juventude.

Sem dizer que ele se mantivera separado do restante dos imortais por muito tempo. Perséfone acreditava que ele poderia exercer seu poder apenas em seu próprio reino?

Observou seu belo rosto empalidecer. Deméter a estava magoando.

Uma onda de raiva brotou dentro dele.

Ainda usando o elmo da invisibilidade, caminhou até sua amada a tempo de ouvir a voz enérgica de Deméter derivar do oráculo:

— E lembre-se disto: quando voltar para o seu legítimo lugar, Perséfone vai considerar Hades apenas como mais um dos deuses com quem se divertiu. Não importa o que você acredita que tenha se passado entre vocês dois... E Hades, por fim, sentirá o mesmo. Ouça sua voz interior e se lembrará de que essa é apenas a maneira imortal de agir.

Hades parou. Tinha ouvido bem? Ele era apenas mais um Deus com quem ela havia se divertido?

Incrédulo, escutou a resposta de Perséfone:

— Voltarei ao Submundo para finalizar o meu trabalho, então. Disse que meu tempo está quase no fim?

Ele havia sido apenas uma missão para ela?

— ...Certo. Estarei pronta para partir no momento em que quiser.

Perséfone queria deixá-lo!

Ainda invisível, Hades assistiu à deusa que ele amava se afastar do oráculo da mãe e olhar para longe. Seus olhos estavam secos, e o rosto parecia esculpido em pedra. Uma verdadeira estranha.

Não. Não podia acreditar. Ouvira apenas uma parte da conversa e devia ter entendido mal. Conhecia Perséfone. A sua Perséfone não ousaria ludibriá-lo.

Estava prestes a tirar o elmo de invisibilidade quando um ruído chamou sua atenção. Ele e Perséfone se viraram ao mesmo tempo para o deus que caminhava ao longo da margem do lago Averno.

O belo rosto de Apolo se iluminou com prazer, e seus lábios se curvaram em um caloroso sorriso de boas-vindas.

— Ah, Perséfone! Agrada-me ver que aceitou meu convite. Todos sabíamos que tempo demais no Submundo faria a flor da primavera ansiar por sol novamente.

Com uma crescente sensação de dormência, Hades assistiu quando Apolo tomou o corpo dócil de Perséfone nos braços.

Incapaz de continuar assistindo à cena, o senhor do Submundo deu as costas para os dois amantes e, silenciosamente, retornou ao reino dos mortos.


Capítulo 23

Não demorou muito para Apolo perceber que abraçar Perséfone era como abraçar um cadáver. Recuou, assim, e estudou o rosto pálido.

— O que há de errado? Mais problemas com Deméter?

Ela abanou a cabeça e, quando piscou, duas lágrimas perfeitas caíram de seus olhos e traçaram um caminho brilhante por seu rosto.

Ele ainda se perguntava se deveria beijá-la ou materializar-lhe uma bebida, quando um monstro negro surgiu do nada e meteu o corpanzil entre eles.

— Vá embora, sua besta! — gritou, cambaleando para trás na tentativa de não ir ao chão.

O garanhão virou-se e arreganhou os dentes amarelos.

— Está tudo bem, Órion! Apolo não vai me fazer nenhum mal.

A tristeza na voz de Perséfone tocou o deus da Luz, e ele a fitou por trás do cavalo negro, que a acariciava com o focinho. A deusa devolvia o afago distraidamente, e lágrimas escorriam por seu rosto, porém ela nem sequer tomou conhecimento destas.

— Órion, eu preciso falar com a sua senhora.

Com os olhos em chamas, o garanhão virou a cabeça, pronto para enfrentá-lo, contudo ele estendeu as mãos em um declarado gesto de paz.

— Quero apenas lhe oferecer ajuda!

Órion estudou o deus, então soprou forte pelo nariz e lambeu a face de Lina. Em seguida se afastou uns poucos metros do local onde estivera pastando, embora mantendo um olho negro fixo nele.

Apolo pegou o braço de Perséfone, levou-a até um banco esculpido em rocha, e a deusa se sentou. Em seguida, ele fez um movimento com a mão, e uma taça contendo um líquido claro apareceu de repente, em meio a uma chuva de faíscas.

— É água mineral — disse, ao vê-la hesitar. — Imagino que esteja precisando de um refresco.

— Obrigada — Lina respondeu, tensa.

A água estava fresca, e ela a bebeu com vontade.

Entretanto, esta não ajudou a preencher seu vazio.

Apolo sentou-se a seu lado.

— O que lhe causou tanta dor? — indagou, preocupado.

Ela continuou emudecida, e o deus pensou que não fosse obter nenhuma resposta. Então falou com uma voz tão cheia de desesperança que ele sentiu uma constrição no próprio peito.

— A minha própria tolice foi o que me causou tanta dor.

Apolo segurou sua mão.

— O que posso fazer para ajudar?

Ela o fitou, e o jovem deus sentiu como se pudesse enxergar-lhe a alma.

— Responda-me uma coisa... O que ama, o corpo ou o espírito?

Apolo sorriu e ensaiou responder de forma inteligente, mas logo descobriu que não podia. Mais uma vez, Perséfone o surpreendia com sua franqueza.

A deusa da Primavera não se afastara de seus pensamentos desde seu último encontro.

Entreolharam-se, e Apolo não pôde menosprezar a dor no rosto delicado. Respondeu honestamente.

— Está fazendo essa pergunta ao deus errado, Perséfone. Como você bem sabe, tive muitas experiências com as vontades do corpo. Sinto desejo e o sacio. Mas, amor? A mais ilusória das emoções? Já testemunhei um guerreiro invicto cair de joelhos e atribuir mais poder a uma virgem do que ao próprio Hércules, mas não posso afirmar que já tenha experimentado esse sentimento. — Tocou-lhe o rosto, tristonho. — Ainda que olhar para você me faça pensar o contrário.

A claridade aumentou, sinalizando a chegada da aurora. Sua carruagem devia estar chegando, e seu tempo era curto, refletiu o deus.

Percebeu, no entanto, que, embora estivesse próximo de Perséfone, dando-lhe seu conforto e demonstrando sua compaixão, ela nem sequer olhava para ele. Tinha os olhos fixos na entrada do túnel que levava ao domínio do deus do Submundo.

Deixou cair a mão, estarrecido.

— Você ama Hades! — exclamou, sem se preocupar em esconder a surpresa na voz.

Os olhos de Perséfone se voltaram para os dele.

— Por que está assim, tão chocado? Porque sou a primavera e ele é a morte? Ou porque imortais não sabem como amar?

— Não creio que isso seja possível.

— Provavelmente não é. — A raiva na voz dela se foi, e o desespero voltou. Lina se pôs de pé. — Órion!

Numa velocidade sobrenatural, o garanhão se deslocou para seu lado. Sem mais palavras, ela montou o cavalo e o cutucou com os calcanhares nas laterais.

Órion saltou para a frente, deixando o deus da Luz olhando, boquiaberto, para a nuvem de poeira que se levantava de seus cascos de ferro.

— Perséfone e Hades? Como pode ser isso? — murmurou, perplexo.

Hades encontrava-se na ferraria. Após alimentar o fogo a um nível quase insuportável, despiu-se, ficando apenas com a tanga de linho. Não trabalharia em uma ferradura. Isso não o satisfaria. Precisava de algo mais, precisava fazer algo maior.

Forjaria um escudo com os mais fortes metais, decidiu. Algo que pudesse proteger um corpo, se não uma alma.

Atiçou as brasas, até que estas chiaram num calor escaldante. Então enfiou nelas uma folha disforme de metal bruto e a puxou para fora quando esta zuniu quase de pronto.

Em seguida, passou a bater nela com vontade.

Trabalhou sem parar. Seus ombros doíam e seus golpes lhe percorriam dolorosamente o corpo, ainda que não pudessem livrar sua alma da dor.

Ele não podia culpá-la. Perséfone era apenas uma jovem deusa. Ele era quem devia ter pensado melhor.

Tinha sido uma atitude sábia de sua parte se separar dos demais imortais. Perséfone apenas o ajudara a provar isso.

Sua decisão se mostrara a mais acertada por eras... Ele agira como um tolo ao se desviar dela.

Sentiu a presença da deusa no momento em que ela entrou na ferraria e se perguntou se ele sempre saberia quando ela se aproximasse. Como sua alma podia continuar ligada à dela se Perséfone não o amava?

Tal detalhe merecia consideração.

Mais tarde, contudo. Quando estivesse sozinho novamente. No momento em que pudesse pensar nela sem sentir aquele desejo cruel.

Precisava acabar com aquilo naquele instante. Tinha que readotar seus antigos métodos antes que se humilhasse ainda mais.

E antes que ela lhe causasse uma dor irreparável.

— Não imagina o quanto é lindo quando trabalha na ferraria.

Quando Perséfone entrou, ele havia parado de bater metal contra metal, e sua voz delicada soou alta demais no silêncio. Hades não conseguiu se obrigar a falar.

— Hades? — Lina engoliu em seco e continuou, mesmo sem que ele respondesse. — Eu adoraria conhecer o restante de Elísia hoje. Quer me acompanhar?

Ah, a voz de Perséfone! Era tão jovem e doce.

Por um momento, ele sentiu sua determinação fraquejar.

Então se lembrou da facilidade com que ela se deixara ficar nos braços de Apolo.

Quando se virou lentamente para encará-la, Perséfone não o fitou nos olhos, e Hades sentiu um pouco mais da alma se dissolvendo.

— Temo que nossos passeios tenham chegado ao fim. Como pode ver, há trabalhos a ser concluídos.

Lina sentiu o estômago revirar. O homem que se afastara da forja para falar com ela não era seu amante. Era o deus frio e imperioso que ela havia conhecido assim que chegara ao Submundo.

Não, concluiu, ao estudá-lo com mais cuidado. Sua impressão inicial estava errada. Hades já nem lhe era familiar.

— Pensei que gostasse de me falar sobre o seu reino — murmurou num tom vazio.

Ele riu, contudo o riso não tinha nenhum calor, e seus olhos se mostraram frios e ilegíveis.

— Perséfone, é melhor pararmos com esse...

— Mas, na noite passada... — ela o interrompeu, sacudindo a cabeça. — Não compreendo.

O choque no rosto da deusa o dilacerou. Era tudo fingimento!

Hades quis gritar sua dor, mas preferiu arremessar o martelo pela ferraria com fúria. Quando este caiu, faíscas explodiram por todos os lados, e o chão abaixo deles tremeu.

— Silêncio! — ele trovejou, os olhos também faiscando. — Eu sou o senhor dos Mortos, e não um humilde professor!

Lina sentiu o sangue se esvair da face.

— Então, todo esse tempo você apenas fingiu...

— NÃO ME VENHA FALAR DE FINGIMENTO! — As paredes da ferraria vibraram com a ira do deus.

Antes que ele destruísse a câmara em que estavam, contudo, Hades tratou de pôr a raiva sob controle.

— Não esteve de férias por aqui, brincando de rainha dos Mortos, Perséfone? — indagou, cheio de sarcasmo. — Você pode ser jovem, mas nós dois sabemos que está longe de ser inexperiente. — Desta vez, seu riso foi frio e cruel. — Sim, nossas aulas foram divertidas, mas deve compreender que já é tempo de pormos fim a esta farsa. Como pressinto que a sua visita também está chegando ao fim, nosso timing foi perfeito. Infelizmente, permiti que nosso flerte tomasse muito do tempo reservado aos meus deveres. Se não pudermos nos falar de novo antes que parta, deixe-me desejar uma agradável viagem de volta à Terra dos Vivos. Quem sabe ainda volte ao Submundo um dia? Ou talvez não. — Ele encolheu os ombros com indiferença e, em seguida, deu-lhe as costas, fazendo o pulso tremer com outra martelada, e retomou o ritmo da forja. Não tinha necessidade de vê-la sair.

Logo o suor lhe pingou do rosto, mesclando-se a lágrimas silenciosas, e, ainda assim, Hades continuou batendo contra o metal em silêncio, até que a dor em seus braços refletiu a dor em sua alma.

— Eu não pertenço a este mundo. — Lina sentiu como se seus lábios não contivessem uma só gota de sangue, e expressou o pensamento em voz alta para se assegurar de que estes ainda poderiam emitir palavras. Não lhe fez nenhum bem dizer a si própria que Deméter estava certa, que o tratamento que Hades lhe dispensara era a norma entre os imortais. Ela não era uma deusa, portanto era sua alma mortal que sofria.

Sua alma mortal não conseguia entender.

Deixou a ferraria sem se importar para onde seus pés a levavam. Queria apenas ir para longe dali.

Contornou os estábulos e passou, apressada, entre as fileiras de arbustos ornamentais, mas, em vez de se manter nos caminhos dos jardins de Hades, mergulhou na floresta que o margeava. A despeito do turbilhão de pensamentos, percebeu que refazia o caminho para o prado dos pirilampos, e imediatamente mudou de direção, a mente repelindo as doces lembranças daquela noite. Não suportaria ir até lá.

Mal reparou nos espíritos dos mortos, pouco depois, vendo-os como imagens vagas e distantes que sussurraram seu nome. Seus olhos continuavam embaçados pelas lágrimas não derramadas.

Lina se percebeu grata por nenhuma das almas ter se apro­ximado. Não estava em condições de agir como sua senhora ­naquele momento.

Quando passou, os mortos silenciaram. Algo estava errado com Perséfone. Seu rosto tinha perdido a cor, seus olhos estavam vidrados, e ela não parecia capaz de ouvi-los.

E a deusa se movia com os passos entorpecidos daqueles que haviam acabado de morrer. A preocupação com sua senhora começou a se espalhar por toda Elísia.

Lina continuou andando.

Ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

As três frases eram uma antiga ladainha familiar. Tornaram-se o seu mantra quando o marido a deixara por uma mulher mais jovem, mais perfeita, que poderia lhe dar filhos. Apenas estas a tinham ajudado em meio aos sonhos destruídos e as noites insones. Também a mantiveram inteira após a série de relacionamentos decepcionantes por que passara mais tarde. E a haviam acalmado quando ela percebera que, provavelmente, nun ca amaria outra vez.

Ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

Uma brisa travessa trouxe consigo o perfume inebriante dos narcisos, e Lina estremeceu, recuando ao avistar um leito dessas flores à sua frente. Mudou de rumo, contornando-o e escolhendo o caminho que menos narcisos apresentava.

Levou a mão ao peito, onde a flor de ametista pendia da corrente de prata. O que aquele presente havia significado? Não era um símbolo do amor de Hades. Seu discurso na ferraria tinha deixado isso dolorosamente claro.

Piscou, aflita. Em sua mente ainda ouvia o eco da indiferença em suas palavras. Acariciou o contorno bem trabalhado do narciso de pedra.

Um pagamento pelos serviços prestados. Era isso.

Hades, uma espécie diferente de deus?

Sua risada saiu como um soluço.

Fechou a mão sobre a joia e a puxou, arrebentando a corrente delicada.

— Deméter estava certa. Eu devia saber. — Arremessou o colar ao chão e continuou andando sem olhar para trás.

Ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

Lina só percebeu que a paisagem começou a mudar quando sentiu alívio por não ter de evitar mais os narcisos. Também havia menos espíritos flutuando em sua visão periférica, o que a fez relaxar. Notou vagamente que estava ficando mais escuro, porém as árvores eram muito altas e densas. Elas poderiam facilmente estar bloqueando a luz do céu aquarelado do Submundo.

E ela andara por um bom tempo. Ou assim imaginava.

Mas não se sentia cansada. Na verdade, não sentia coisa alguma.

O pensamento quase a fez sorrir. Deméter não precisava ter se preocupado. Os deuses subestimavam a resistência do espírito mortal.

Era melhor começar a voltar para o palácio. Eurídice devia estar esperando para lhe mostrar os desenhos. Ela desfrutaria da companhia da pequena alma e depois tomaria um longo banho.

Não um banho com a água dos cântaros, lembrou, tratando de afastar o pensamento. Apenas um longo e relaxante banho de imersão.

Pelo tempo que lhe restava no Submundo, podia muito bem evitar Hades. Isso não deveria ser muito difícil. Ele mesmo havia deixado bem claro que se encontrava muito ocupado para se preocupar com ela. Dessa forma, em vez de suspirar pelo deus, ela passaria algum tempo com Eurídice e seria franca com a moça sobre a natureza temporária de sua visita. Também avisaria a pequena alma para ter cuidado com aquela paixão por Iapis. Ele parecia confiável, mas, assim fora com...

Bloqueou o restante do pensamento. Montaria Órion e deixaria que os espíritos em Elísia vissem a deusa da Primavera uma última vez.

Precisava ter todo o cuidado com eles, também. Eles tinham o direito de saber que sua visita era apenas passageira. Poderia dizer que Perséfone continuaria a cuidar deles do Mundo Superior, e, depois, só poderia torcer para que a verdadeira deusa da Primavera cumprisse com sua palavra.

Estabelecer um curso de ação a fez sentir-se bem. Havia estado tão preocupada em fazer isso que nem percebeu ter alcançado a margem da floresta, até que tropeçou em uma das árvores.

Confusa, olhou ao redor, tentando entender onde estava. As árvores terminaram, assim como a grama e a vegetação. A terra ali era estéril e o solo cor de canela, trincado pela erosão. Bem à sua frente, contrastando com a treva ao fundo, avistou a silhueta flamejante de um rio de labaredas.

Lina interrompeu a respiração. O Tártaro! Ela havia tropeçado na borda do inferno!

Vire-se! Refaça seu caminho!

Sua mente sabia que aquela era a coisa mais lógica a fazer, porém seu corpo não a obedeceu.

Foi então que ouviu os sussurros vindos da escuridão além do rio de fogo. Como tentáculos nascidos do ódio, eles a chamaram, tecendo uma rede de lembranças sombrias: cada erro que cometera, cada mentira que tinha contado, todas as vezes em que suas palavras ou atitudes haviam ferido os outros.

Sua alma mortal se encolheu. Lina deixou escapar um choramingo e cambaleou sob o peso de seus próprios erros, caindo de joelhos.

Uma escuridão densa brotou da margem do rio em chamas e a lambeu como gavinhas de ódio. Ela não era uma deusa. Era uma mortal de meia-idade, comum na aparência e uma piada nos relacionamentos. Nenhum homem a amava. Por que amaria? El a não podia nem mesmo ter filhos. Fora uma fracasso como mulher e como esposa. Ficar sozinha era o que ela merecia.

Lentamente, sua alma começou a se separar do corpo de Perséfone, e Lina sentiu-se desintegrar.

— Hades, você tem que vir! — Iapis precisou gritar em meio aos incessantes golpes para ganhar a atenção do deus.

Este se endireitou e limpou o suor do rosto.

— Seja lá o que for, terá que lidar sozinho. Não quero ser incomodado.

— São os mortos. Estão pedindo para falar com você.

A expressão de Hades se tornou sombria e perigosa.

— Eles poderão falar com seu deus no momento em que eu estiver deliberando.

— Não acredito que vá querer esperar pela hora das petições para ouvir o que eles têm a dizer — Iapis insistiu.

— Deixe-me em paz! O que eles têm a dizer não me interessa hoje — ele rosnou.

Sem se abalar com a explosão do deus, Iapis o fitou nos olhos.

— Eles estão dizendo que há algo errado com Perséfone.

Hades continuava vestindo a túnica quando irrompeu da ferraria, mas a cena diante dele o fez parar. Espalhada por todos os níveis de seu paradisíaco jardim estava uma infinidade de almas. Permaneciam em silêncio, lado a lado: moças, virgens, mães de família, mulheres de meia-idade e anciãs.

Uma senhora e uma virgem que Hades reconheceu como uma das que tinha dançado com Perséfone no prado se distanciaram do grupo e se aproximaram dele, fazendo uma profunda reverência.

A mulher mais velha falou primeiro:

— Grande Deus, viemos até o senhor por conta do nosso amor à deusa da Primavera. Algo está errado. A deusa não é mais ela mesma.

— Nós a vimos caminhando pela floresta — contou a mais moça. — Chamamos por ela, no entanto Perséfone não nos ouviu, nem viu.

— Era como se estivesse morta — emendou a velha.

O medo cravou um punhal no coração de Hades.

— Onde ela estava na última vez em que a viram?

— Ali... — As duas mulheres se viraram para apontar o Tártaro.

— Selem Órion! — Ele ordenou com uma voz que chegou aos estábulos.

Então fechou os olhos e respirou profundamente, tentando se acalmar. Bloqueou as vozes dos mortos e concentrou todo o seu ser em Perséfone.

Não demorou a encontrar o elo que unia suas almas. O elo que o avisara de sua presença na ferraria e que, depois, sinalizara o momento em que ela havia partido.

Mas era como um fio cortado. Sua conexão fora prejudicada.

O medo cresceu dentro dele.

— Traga o Cérbero — ordenou a Iapis.

O daimon acenou com um gesto de cabeça e desapareceu.

Hades se voltou para os espíritos das mulheres.

— Fizeram bem em ter vindo até mim.

A velha e a virgem inclinaram as cabeças, assim como a horda de espíritos atrás delas.

Hades buscou um rosto em meio à multidão que o cercava.

— Eurídice! Traga-me uma peça do vestuário de Perséfone. Algo que ela tenha usado recentemente.

Em vez de obedecê-lo de imediato, a pequena alma se aproximou. Seus olhos se encontraram, e Hades sentiu o leve toque de sua mão no braço.

— Precisa trazê-la de volta para nós, Hades — falou, com voz entrecortada.

— Eu trarei — ele prometeu e, em seguida, marchou para o estábulo.


Órion mergulhou na floresta, galopando no encalço do Cérbero. O cão de três cabeças caçava em silêncio, seguindo o cheiro de sua senhora.

Hades sentiu as mãos úmidas de suor e tratou de segurar as rédeas do cavalo com mais força. O garanhão não precisou de estímulo para permanecer na trilha do cão, o qual os conduziu inexoravelmente na direção do reino sombrio do Tártaro.

Os pensamentos fervilharam na cabeça de Hades. Ele devia ter magoado Perséfone além da conta se a fizera rumar para as trevas... Mas não tivera a intenção de fazê-lo. Sua dor e ciúme haviam feito com que se esquecesse do quanto ela era jovem. Perséfone não fazia ideia do lugar para onde estava se dirigindo. E nem mesmo sendo uma deusa estaria protegida do desespero que reinava no Tártaro.

Apavorado, ele tentou se lembrar se ela usava o narciso de ametista quando ele a vira pela última vez.

Sim, tinha quase certeza.

Uma ponta de alívio abrandou seu pânico. A ametista ajudaria a protegê-la. Era uma joia poderosa que ele produzira especificamente para ela. Suas propriedades protetoras eram vastas.

Tentou não imaginar o que poderia estar acontecendo com Perséfone. Como deus do Submundo, conhecia muito bem os horrores do Tártaro, a morada eterna dos condenados. Apenas as almas dos mortais que haviam abraçado as trevas eram levadas para aquela região. Ele odiava aquilo, mas reconhecia a necessidade de haver um lugar que abrigasse o mal imutável.

E sua amada tinha ido justamente para lá.

Órion parou ao lado do Cérbero. O cão farejava em meio a folhas secas e arranhava algo que cintilava como prata na penumbra.

Hades desmontou e apanhou o objeto. Era o colar de ametista de Perséfone! Ela estava sem nenhum talismã para protegê-la.

— Mais rápido, Cérbero! — ordenou, nervoso.

O cão redobrou seus esforços, e Órion respondeu no mesmo ritmo, atravessando a floresta.

De súbito, o Cérbero parou à margem do Flegetonte. Começou a uivar desesperadamente, e todas as três cabeças passaram a cutucar algo que Hades imaginou ser um animal morto.

O relinchar estridente de Órion cortou o ar, e ele partiu num galope até a ribanceira do rio de sangue fervente.

Quando o cavalo estacou, Hades reconheceu o corpo.

— Não! — Saltou do lombo de Órion e empurrou de lado o corpo maciço do Cérbero. Era Perséfone caída sobre a terra rachada. Tinha os braços em torno das pernas e os joelhos pressionados contra o peito numa posição curvada e rígida. Seus olhos estavam abertos, entretanto suas pupilas encontravam-se totalmente dilatadas, e ela olhava, sem ver, a escuridão além do rio flamejante.

Hades seguiu seu olhar. A negritude do Tártaro refluía das margens do rio. Olhou para baixo e viu que as garras das trevas haviam serpenteado do Flegetonte até encharcar o solo ao redor da deusa.

A fúria pulsou por todo seu corpo. Rapidamente, ele se abaixou e amarrou a corrente quebrada em volta do pescoço frágil de Perséfone. No mesmo momento, o narciso de ametista começou a brilhar.

Então o deus levantou os braços, e o ar ao seu redor começou a girar.

Em uma voz amplificada pela raiva e pelo amor, Hades ordenou às garras das trevas:

— Fora! Não têm o direito de prejudicar esta deusa!

As gavinhas escuras estremeceram, contudo não soltaram Perséfone.

— Sou eu, Hades, o senhor dos Mortos, quem está ordenando! Não toquem nela! —rugiu, lançando todo o seu extraordinário poder contra as garras malignas.

As trevas recuaram e, com um som sibilante, se dissiparam como um ladrão se escondendo na noite.

Hades caiu de joelhos ao lado de Perséfone. Agarrou o corpo rígido da deusa pelos ombros e o virou para si.

— Perséfone!

Ela não respondeu. Continuou com o olhar vidrado para a escuridão além do Flegetonte. Tinha o rosto pálido, a pele fria ao toque, e estava ofegante como se com dificuldades para respirar.

— Acabou. Nada pode ameaçá-la agora. Olhe para mim, ­Perséfone!

Ainda assim, ela não reconheceu sua presença.

— Perséfone! Tem que me escutar. — Hades a sacudiu até que sua cabeça chacoalhasse e o Cérbero uivasse, exprimindo sua angústia.

Os lábios da deusa finalmente se moveram.

— Isso mesmo! Fale comigo! — Hades gritou.

— Muitos... erros. Não posso... — A voz dela falhou, e suas palavras se tornaram inaudíveis.

— Não pode o quê? — ele implorou, sacudindo-a outra vez.

— Não consigo encontrar meu caminho... Meu corpo não está aqui. Eu desapareci.

O vazio em sua voz o aterrorizou. O rosto de Perséfone estava branco, e seus olhos continuavam vidrados. A Perséfone que ele conhecia não estava lá. Era como se um eco de seu espírito estivesse falando através de uma concha.

De repente, nada mais importava para Hades exceto trazê-la de volta. Não se importava se a deusa pensava nele apenas como uma missão que a mãe a encarregara de cumprir. Não se importava que Apolo fosse seu amante. Não se importava que ela fosse deixá-lo.

Preocupava-se apenas que ela voltasse a ser a mesma de antes.

Cobriu o rosto frio com ambas as mãos.

— Seu caminho é este... Deve voltar para aqueles que a amam.

Perséfone piscou.

— Volte para nós, minha amada! Volte para mim...

Ela respirou profundamente, e Hades a viu levantar a mão para agarrar o narciso de ametista.

Então piscou outra vez e se esforçou para focar seu rosto.

— Hades — balbuciou com voz fraca.

Com uma exclamação de alívio, ele a puxou para os braços.

— Sim, querida! Sou eu, Hades, o deus arrogante e tolo que a ama!

— ...Leve-me daqui — ela falou chorando, e mergulhou o rosto em seu peito.


Capítulo 24

As mulheres assistiram em silêncio enquanto o senhor dos Mortos carregava sua deusa para o palácio. Embora sua expressão fosse sombria, Perséfone passara os braços pelos ombros largos e tinha o rosto pressionado em seu pescoço.

Uma onda de alívio varreu os espíritos. Ela voltaria a ser a mesma. O amor do deus lhes asseguraria isso.

Tal como o sussurro do vento nos galhos de salgueiro, o burburinho das almas foi cessando conforme estas deixavam as cercanias do palácio.

— Eurídice! — Hades chamou assim que entrou na gigantesca construção.

O espírito se materializou no mesmo instante, tendo Iapis a seu lado.

— Prepare um banho bem quente para a deusa.

— Sim, senhor — ela assentiu e desapareceu.

Iapis acompanhou Hades.

— O que posso fazer?

— Vá até Baco. Diga-lhe que necessito do seu vinho mais potente. Algo que acalme a alma de uma deusa — ele instruiu, tenso.

— Agora mesmo, senhor. — Antes de desaparecer, porém, o daimon tocou a cabeça de Perséfone. — Fique bem, minha senhora — sussurrou e foi embora.

Hades carregou Perséfone direto para o quarto. Um vapor perfumado já escapava da sala de banho e, ao adentrar a névoa úmida, ele encontrou Eurídice correndo em volta, puxando grossas toalhas das prateleiras e escolhendo esponjas macias.

Havia uma poltrona acolchoada perto da parede espelhada e, relutante, Hades colocou nela sua deusa. Os braços de Perséfone deslizaram, inertes, de seus ombros e ela permaneceu sentada e muito quieta, os olhos fechados.

Ele se ajoelhou a seu lado.

— Perséfone? Está em casa agora — falou baixinho.

Um tremor passou pelo corpo de Lina.

— Pode me ouvir, minha amada?

Ela abriu os olhos e o fitou.

— Posso — respondeu com voz inexpressiva.

— Sabe onde está?

— ... Em seu palácio?

— Sim — Hades sorriu, encorajador, ignorando o tom abatido em sua voz.

Iapis se materializou na sala de banho, segurando uma garrafa de cristal cheia de um vinho tinto e uma taça. Serviu a bebida, e um aroma inebriante derivou do vidro: cheirava a uvas e prados, a trigo maduro e noites de verão sob a lua cheia.

Iapis ofereceu a taça a Perséfone.

— Beba, senhora. Isto a reanimará.

Lina tentou segurar a taça, porém sua mão tremia tanto que ela quase a deixou cair. Hades cobriu-lhe a mão com a sua, levando o vinho a seus lábios.

Ela bebeu com vontade, e a magia da bebida dos imortais começou a aquecê-la quase no mesmo instante. Logo, o tremor em suas mãos se acalmou, e ela pôde beber sem a ajuda do deus.

— Pode ir, senhor — orientou Eurídice, assumindo o comando. — A deusa necessita de privacidade para se banhar.

Hades se pôs de pé, contudo hesitou em sair da sala.

— Meu senhor, eu o chamarei quando ela estiver pronta... — garantiu o espírito.

Ele ainda titubeava.

— Ficarei por perto, Perséfone.

A deusa ergueu o olhar.

— Não precisa se preocupar. Estou de volta — disse num murmúrio.

A despeito de seu tom inexpressivo, Hades acenou com um gesto de cabeça e, relutante, saiu da sala com Iapis.

Hades andava de um lado para o outro no corredor, do lado de fora dos aposentos de Perséfone. Quanto tempo ela levaria para se banhar? Eurídice nunca a chamaria? Teve vontade de invadir o quarto e ordenar que a pequena alma saísse. Dessa forma, poderia fazer a deusa ouvi-lo. Perséfone tinha de escutar suas desculpas... Ele era um idiota, um imaturo, um tolo ciumento.

Suspirou. Ela o conhecia. Não deveria ser tão difícil fazê-la acreditar que ele cometera um terrível erro.

A porta se abriu, e Eurídice saiu para o corredor, fechando-a delicadamente.

— Como ela está? — Hades indagou, ansioso.

O espírito fitou o deus nos olhos antes de responder. Quando o fez, parecia muito mais velha do que seus poucos anos.

— Muito combalida, senhor.

Hades passou a mão pelo cabelo.

— Sou eu o responsável.

— Creio que sim — confirmou a moça simplesmente.

Ele assentiu com vigor e virou-se para a porta. A mão pálida de Eurídice o impediu, contudo.

— Seja paciente. Trate-a com cuidado. É difícil para uma mulher amar de novo após ter sido ferida.

Iapis se materializou ao lado da pequena alma. Envolveu-a nos braços, e Eurídice recostou-se nele.

— É difícil para uma mulher amar outra vez depois de ter sido ferida, mas não impossível, senhor — corrigiu o daimon.

Hades os viu se afastar lentamente. Formavam um bonito casal.

Voltou-se para a porta, respirou fundo e entrou nos aposentos de Perséfone.

A deusa vestia uma camisola de seda pura, da cor da luz das velas, e encontrava-se encolhida na espreguiçadeira em frente às janelas altas. Parte das cortinas de veludo tinha sido puxada, e Perséfone parecia estudar os jardins mergulhados na noite enquanto saboreava o vinho de Baco.

— Seus jardins são realmente muito bonitos — falou sem olhar para ele.

Hades atravessou o cômodo e parou ao lado da chaise longue .

— Obrigado. Fico contente por gostar deles.

As palavras soaram inadequadas. Ele não queria uma conversa inconsequente, mas Eurídice o advertira para ser paciente e cuidadoso, e assim ele seria.

Por outro lado, também necessitava abrir seu coração.

Sentou-se a seu lado no divã.

— Perdoe-me, por favor. Sou mesmo um tolo.

Ela se virou para encará-lo em silêncio.

— Eu sabia que ia me deixar, então quis romper tudo primeiro — confessou o deus. — Imaginei que isso pudesse amainar minha dor. Pensei que eu pudesse voltar a ser como era antes de amar você... mas estava errado. Fui egoísta. Não pensei nos seus sentimentos. Como um monstro velho e solitário, pensei apenas em mim mesmo.

Lina ergueu a mão para impedi-lo de continuar.

— Não diga mais nada. Você é um deus e agiu como tal.

— Não! — Hades agarrou sua mão. — Não sou como os outros. Tudo o que eu disse na ferraria era mentira. Eu estava com raiva, ferido... É difícil para mim entender que pode ficar comigo e ao mesmo tempo com Apolo. Eu... — Ele vacilou. — Eu é que não estou acostumado a escolher e descartar amantes como fazem os imortais.

— Hades, Apolo não é meu amante.

O deus estudou seu rosto.

— Mas eu o vi tomá-la nos braços.

Lina piscou, surpresa.

— Estava lá?

— Eu a segui. Ouvi Deméter lembrá-la da maneira como os imortais amam, em seguida vi Apolo abraçá-la.

— Se tivesse permanecido lá um pouco mais, então, teria visto que isso foi tudo o que aconteceu. Eu não quero Apolo, Hades. Se o que Deméter me disse não houvesse me aborrecido tanto, eu nunca teria me deixado abraçar.

Hades passou a mão pela testa.

— Não deseja Apolo?

— Não.

Ele abaixou a cabeça.

— Então a dor que lhe causei foi realmente sem razão. Não sei se pode me perdoar, mas, por favor, acredite em mim quando digo que eu a amo, Perséfone.

Lina desviou o olhar para longe dele.

— Você não me ama, Hades... Ama o que pensa que eu sou. Na verdade, não me conhece.

— Como pode dizer uma coisa dessas? — Ele a segurou pelo queixo e a obrigou a fitá-lo.

— Você ama a deusa. Não a mulher dentro dela.

— Está errada, Perséfone. Mas deixe-me dizer o que eu amo em você, então poderá decidir por si mesma... Eu amo a sua curiosidade sobre tudo. Amo o modo como vê com novos olhos o meu reino. Amo o seu senso de humor, sua bondade e honestidade. Amo sua paixão desenfreada, a maneira como encanta os animais. Amo a sua lealdade. Gosto mais ainda da sua teimosia, pois foi graças a ela que um velho deus não ficou trancado na armadilha da solidão.

Lágrimas caíram dos olhos de Perséfone, e Hades as enxugou com delicadeza.

— Agora me diga... o que eu amo? A deusa ou sua alma?

— Mas não me conhece... não pode conhecer realmente — ela falou com voz entrecortada.

— Sei apenas que sinto a sua presença antes mesmo de vê-la. Alguma coisa aconteceu comigo, e isso pouco tem a ver com o lado físico. Pela primeira vez em uma eternidade, compreendo por que almas gêmeas não podem ser separadas nem mesmo após a morte. É porque seus corações batem em conjunto. Enquanto eu esperava aí, do lado de fora, podia sentir seu coração partindo. Deixe-me curá-lo, Perséfone. Quando eu o fizer, estarei curando o meu próprio.

— É possível que ame a minha alma? — Lina perguntou num sussurro.

Hades sorriu para ela ao sentir o medo dentro dele começar a se dissipar.

— A morte está completamente enamorada da primavera. Se isso é possível, então tudo o mais o é, minha amada.

Ela se deixou abraçar e suas bocas se encontraram. Hades pretendia que o beijo fosse suave e tranquilizador, mas Perséfone abriu os lábios e se espremeu contra ele, pedindo mais.

Seu desejo por ela aflorou, e ele gemeu seu nome conforme esmagava o corpo seminu contra o peito.

— Faça amor comigo! — ela falou, ofegante. — Preciso sentir você dentro de mim.

Hades a ergueu nos braços e a levou para a cama, mas, quando começou a se despir, Perséfone o deteve.

— Deixe-me fazer isso — pediu, rouca.

Sentou-se na beirada da cama, e Hades ficou diante dela, forçando as mãos a permanecer dos lados enquanto ela o desnudava. Estava usando uma versão mais curta de suas volumosas vestes, e ela despiu lentamente a roupa de seu corpo musculoso. Deslizou as mãos por seu peito, sentindo a pele quente e lisa, então se curvou, substituindo as mãos pela boca ao beijá-lo no abdômen.

Hades prendeu a respiração com a sensação da língua úmida sobre a pele, porém Lina não se fartou dele. Sentia-se como se ti­vesse sido despertada da morte e precisava de sua paixão, de seu amor, de seu toque para mantê-la ancorada ali, a seu lado.

Soltou a tanga e a fez deslizar pelos quadris estreitos. Então acariciou o membro rijo nas mãos frias, o tempo todo movendo a boca lentamente mais para baixo.

Quando o engoliu, o corpo de Hades sacudiu num espasmo e oscilou.

— Sua boca é como uma armadilha de seda! — gemeu, crente que seus joelhos cederiam a qualquer momento.

Após um tempo, Lina recuou, por fim, e mirou os olhos escuros.

— Quer ser livre?

Ele a ergueu nos braços e a segurou firmeme nte contra o corpo.

— Nunca! — sussurrou em meio aos cabelos longos. — Nunca, minha amada.

Lina o puxou para a cama. Enquanto o acariciava, Hades explorou todos os seus recantos. A camisola era tão fina que ela se sentia como se envolvida em uma névoa. Ele encontrou seu mamilo e o provocou, sugando-o através do tecido transparente. Lembrou-se dos toques que ela afirmara lhe dar prazer e, desta vez, não precisou que Perséfone guiasse sua mão.

E ela reagiu como se eles tivessem sido amantes durante séculos.

De repente, sentou-se e se livrou da camisola. Quando Hades fez menção de tomá-la de volta nos braços, ela o impediu.

— O que foi, querida?

— Quero que faça algo para mim.

— Qualquer coisa.

— Quero que faça amor comigo com os olhos fechados. Finja que não pode ver o meu corpo. — Ela o fitou, procurando por uma resposta. — Consegue fazer amor comigo sem olhar para mim?

Ele sorriu e fechou os olhos. Sem nada enxergar, abriu os braços para ela, e Lina se deixou perder neles.

Cercado por seu aroma e toque, Hades vagou por um mundo de sensações. Sem ver Perséfone, teve que prestar mais atenção a seus pequenos sons e seguir o movimento de seus quadris e corpo. Quando sua respiração se acelerou, e o nome dele escapou de seus lábios num suspiro, não precisou enxergar seu rosto corado para saber que estava lhe proporcionando prazer. Sentia o desejo dela na alma e respondia com carícia após carícia.

Quando finalmente preencheu seu corpo, eles se moveram juntos, em um ritmo antigo que não precisava de visão ou de sons... apenas de sentimentos.

Pouco mais tarde, Lina se aninhou junto a Hades, a cabeça encostada em seu ombro. Ele não sabia ainda, mas a ajudara a tomar sua decisão, e, agora que ela havia feito isso, sentia-se em paz. Sobreviveria a qualquer coisa que acontecesse em seguida. Nada poderia ser tão terrível quanto o vazio negro do Tártaro.

Com a ajuda de Hades, tinha se livrado daquele último pesadelo e agora precisava se livrar das mentiras que restavam em sua vida. Não estava mais disposta a esconder a verdade dele. Não importava mais a raiva de Deméter... ela contaria tudo. Hades merecia saber, pois a amava com a alma.

— Hades, preciso lhe dizer algo.

O deus sorriu.

— Posso ficar de olhos abertos agora?

Lina riu baixinho.

— Sim.

Sentou-se de frente para ele, o lençol de seda enrolado no corpo nu. Hades apanhou alguns travesseiros da cama em desalinho e se apoiou confortavelmente contra a cabeceira estofada. Ergueu as sobrancelhas escuras, curioso.

— Eu não queria ir para o Tártaro. Foi um acidente. Fiquei apavorada ao perceber onde estava, mas era tarde demais.

Ele franziu o cenho. E só de pensar o quanto Perséfone estivera perto de perder a alma, sentiu o estômago se apertar.

— Eu sei, meu anjo. Nem precisava me explicar isso. A culpa foi minha. Se eu não a tivesse magoado...

— Sshh... — Ela se inclinou para a frente e pressionou um dedo contra seus lábios. — Deixe-me terminar.

O deus pareceu pouco à vontade, mas ficou em silêncio.

— Foi terrível lá. — Ela estremeceu. — Foi como se o Tártaro me chamasse... Sabia coisas sobre mim: cada coisa ruim que já fiz na vida, e até mesmo as que pensei em fazer. Isso me levou a sucumbir. Podia sentir a captura da minha alma, e não havia nada que eu pudesse fazer. — Pegou a mão de Hades e entrelaçou os dedos nos dele. — Foi então que o ouvi... Você me chamou de volta. A mim , Hades. A alma que existe dentro do meu corpo.

— Eu tinha que tê-la de volta. Eu a amo.

— Eu também o amo. Mas precisa saber mais do que isso. Não sou quem você pensa... Não sou...

— Basta, Perséfone! — A voz de Deméter a interrompeu. — Seu tempo aqui acabou. Precisa voltar.

Consternado, Hades deixou a cama de um salto. Sem pensar na própria nudez, encarou a deusa que se materializou bem no meio do quarto de sua amada.

— O que pretende com essa intrusão, Deméter? — desafiou-a, irritado. — Este não é o seu reino. Não tem o direito de interferir aqui.

— Está brincando com minha filha, senhor do Submundo, e vim para buscá-la. Sou sua mãe. Esse é todo o direito de que preciso.

— Você não é minha mãe! — Lina pronunciou as palavras pausadamente, de maneira que não restasse dúvida sobre o que estava dizendo. Pôs-se ao lado de Hades, segurando o lençol sobre os seios.

Deméter suspirou.

— Não me venha com esses joguetes infantis, filha. Sua aventura terminou. Já é tempo de voltar à realidade.

— Sei que não posso ficar, mas não irei embora sem dizer a verdade a Hades. Ele merece saber. Ele me ama.

— Está sendo tola como uma criança! — replicou Deméter.

— Sabe muito bem que estou longe de ser uma criança. Deixe-me dizer, de uma vez por todas: não sou nenhuma idiota. — Lina encarou Hades e mirou seus olhos. — Não sou a verdadeira Perséfone, Hades. Meu nome é Carolina Francesca Santoro, mas a maioria das pessoas me chama de Lina. Sou uma mortal de quarenta e três anos de idade, que possui uma padaria em um lugar chamado Tulsa, Oklahoma. Deméter trocou minha alma pela alma de sua filha. — Olhou para a deusa, e seus lábios se torceram num sorriso irônico antes que ela voltasse a encará-lo. — Ela prometeu me ajudar com um problema que eu tinha, e, em troca, eu precisaria cumprir para ela uma pequena missão no Submundo.

Hades ouvia tudo de olhos arregalados.

— Lembra-se de quando a ouviu me lembrar de como os imortais amavam? Na verdade, Deméter não estava me lembrando disso; ela estava me explicando esse fato porque sou uma mortal. A coisa toda era nova para mim.

— Então não é a deusa da Primavera?

— Não. Não sou a deusa da Primavera — confirmou Lina, tão aliviada por finalmente dizer a verdade que não percebeu o rosto de Hades se tornando inexpressivo. — Eu queria lhe contar tudo, mas dei minha palavra a Deméter de que manteria a minha verdadeira identidade em segredo. — Ela tentou tocá-lo no braço, porém Hades se esquivou do toque.

— As coisas que me disse, que fizemos juntos... Foi tudo fingimento?

— Não! — Lina sentiu um nó no estômago ao ver que ele tornava a se fechar. Estendeu a mão, porém, mais uma vez, ele se afastou dela. — Tudo o que eu disse, tudo o que eu fiz foi sincero! Apenas este corpo é uma mentira. Todo o resto é real. Amar você é a minha mais pura verdade!

— Como o amor pode ser baseado em uma mentira? — ele retrucou, frio.

— Por favor, não faça isso! — Lina insistiu, tentando alcançar o homem dentro do deus. — Não permita que nos separem assim... Não podemos ficar juntos, tenho que voltar para o meu mundo, mas não quero me lembrar desse tipo de palavras quando estivermos ­separados!

— Não implore pelo amor dele como uma mortal, Carolina. — A voz de Deméter a interrompeu. — Ainda tem dentro de você o suficiente de uma deusa para ter mais orgulho.

Lina se virou para encará-la.

— Você causou isso! Hades me ama. Está se sentindo traído apenas por causa da sua insistência em manter uma mentira! E eu não posso culpá-lo... De que outra forma ele poderia se sentir?

Deméter arqueou uma sobrancelha.

— Acredita que ele a ama, Carolina Francesca Santoro? Então vamos testar a sua crença nesse amor imortal...

Com um movimento do pulso, Deméter regou Lina com faíscas douradas.

Ela sentiu o corpo tremer e, de repente, viu-se terrivelmente tonta. Fechou os olhos, lutando contra a náusea. Logo depois, uma estranha sensação a preencheu: como se tivesse acabado de voltar para um confortável par de jeans .

Antes de abrir os olhos, já sabia o que veria. Do outro lado da sala, o espelho que cobria toda a parede, o mesmo em que ela havia se olhado naquela manhã, refletiu uma nova imagem.

Era seu velho corpo outra vez. Fora-se o corpo esbelto da jovem deusa. Suas curvas ficaram mais acentuadas, ela era mais velha e, decididamente, não era perfeita.

— Você é uma mortal! — A voz de Hades soou estrangulada.

Lina desviou o olhar do espelho para pousá-lo no deus. Ele a fitava, e seu rosto era uma máscara de choque e descrença.

— Sim, eu sou uma mortal — confirmou. Endireitando os ombros, deixou cair o lençol, expondo-se por inteiro. — E também sou a mulher que o ama.

Ele virou o rosto, recusando-se a olhar para ela.

— Como pôde mentir esse tempo todo?

— Que bem teria feito a verdade? — Deméter interveio, indignada. — Você a teria evitado como está fazendo agora. — Seu tom tornou-se sarcástico. — Ao menos possuiu o corpo de uma deusa finalmente, senhor dos Mortos. A ironia é que terá de agradecer a uma mortal por isso. Nenhuma deusa de verdade haveria de querê-lo.

O rosto de Hades ficou branco como cera, e ele travou o maxilar. Quando seus olhos encontraram os de Lina, ela só viu raiva e repugnância refletidas neles.

— Saia do meu reino — ele ordenou com uma voz que fez arrepiar seus braços.

— Vamos, Carolina... Seu tempo aqui acabou. — Deméter se pôs ao lado dela e a cobriu com seu manto.

E, sem mais nenhuma palavra, fez o Palácio de Hades desaparecer de seu entorno.


Capítulo 25

A campainha sobre a porta da frente da Pani Del Dea tilintou alegremente, permitindo a entrada de outro fluxo de clientes, bem como uma rajada de ar frio.

— Brr — Anton estremeceu. — Que droga! O inverno chegou, mesmo. Minha pele está um horror!

— Os meteorologistas estão prevendo mais neve do que o normal nesta temporada. É melhor fazer um bom estoque de hidratantes e comprar sapatos mais apropriados — Dolores observou, apontando os pés do colega.

— O que há de errado com os meus? — Anton respondeu, amuado, virando o pé de um lado para o outro, de modo que a padaria inteira pudesse admirar suas botas de cowboy de pele de enguia pretas, brilhantes, de ponta fina e salto sete.

— Lina! — ele chamou do outro lado do salão. — Acha mesmo que eu preciso de sapatos novos?

Ela olhou por cima da máquina de cappuccino . Queria dizer que não se importava com sapatos, nem com clima, nem com nada... mas a expressão ansiosa de Anton a lembrou de que precisava disfarçar. Precisava continuar fingindo, não importando como realmente se sentia.

— Suas botas estão perfeitas, meu querido. Mas lembre-se de que o meu seguro não cobre tombos fora da padaria.

Risos ecoaram na Pani Del Dea. Os clientes sorriram e passaram a fazer seus pedidos. Todos pareciam felizes. O negócio vinha crescendo a olhos vistos e, nas duas últimas semanas após ela ter voltado, Lina se surpreendera com as mudanças que Perséfone implementara durante os últimos seis meses.

A deusa da Primavera tinha mesmo operado milagres por ali. Sua campanha publicitária fora um prodígio. Novos clientes lotavam a loja dia e noite, a maioria deles clamando por algo em que pudesse espalhar o incrível cream cheese de ambrosia que era oferecido exclusivamente na Pani Del Dea. A criação de Perséfone era um sucesso.

E não fora apenas essa a mudança feita pela deusa. Em vez de começar a trabalhar com menus para eventos, como ela, Lina, imaginara que deveria, Perséfone introduzira a padaria no comércio virtual. Oferecia pela internet uma cesta com uma enorme ­variedade de seus melhores pães, como o gubana, acrescentava uma lata pequena de cream cheese de ambrosia e a despachava para todos os Estados Unidos... por um preço escandalosamente alto.

Mesmo assim, o novo serviço vinha crescendo cada vez mais. Perséfone tinha até mesmo contratado um novo funcionário em tempo integral, apenas para que este cuidasse desses pedidos pela rede.

Lina não se conformava. Fora necessária a vinda de uma deusa antiga para que ela enxergasse o potencial da internet. Agora sua dívida com a Receita poderia ser paga três vezes... assim como Deméter havia prometido. Tudo estava bem.

E ela se sentia tão infeliz que tinha vontade de morrer.

Não. Não queria pensar em morte, nem em espíritos... muito menos no senhor do Submundo.

O sino sobre a porta tiniu outra vez.

— Olá, bonitão — Anton saudou, brincando.

— Tudo bem, Anton? Bonitas botas... — falou uma voz máscula e profunda.

Anton riu, todo alegre.

Lina apertou os lábios e se preparou, feliz por ter a máquina de cappuccino entre ela e o visitante. Ao menos ele não tentaria beijá-la.

— Boa noite, Lina.

— Olá, Scott. — Ela suspirou e olhou para o rapaz alto e musculoso, notando os cabelos loiros, de corte impecável, e os olhos azuis que a fitavam com adoração. Ele vestia um terno bem cortado, gravata vermelha, e o traje nada fazia para camuflar seu físico impressionante, pelo contrário: o corte italiano o acentuava. Não pela primeira vez, Lina pensou que Scott poderia ter sido um jovem Apolo se o deus da Luz viesse à Terra como um bem-sucedido ­advogado de Tulsa.

Não era difícil entender por que Perséfone tinha se sentido atraída por ele. O fato não a surpreendera em nada.

O que não entendia era por que ele se mostrava tão encantado com o seu retorno.

— Ainda tenho ingressos para a primeira fila de Aida... Pensei em ver se mudou de ideia. Não quero ir à ópera sem você — insistiu Scott.

— Obrigada, mas não. Eu realmente não posso.

— Por que, Lina? Não compreendo. Duas semanas atrás...

— Aqui não, Scott — ela o interrompeu, mortificada por a padaria inteira estar em silêncio, acompanhando a cena, embora fingissem que nada acontecia.

— Então quando e onde? Está me evitando há duas semanas. Mereço uma explicação.

Saber que ele estava certo não fez Lina sentir-se menos miserável, nem tornou sua decisão menos certa. Scott era lindo e incrivelmente sexy . Somado a isso, parecia um sujeito agradável e honesto.

Mas ela não sentia nada por ele.

Seria tão mais fácil se estivesse apaixonada! Perder-se numa paixão juvenil até soava como uma boa ideia.

Ela até tentara sair com Scott, mas, quando ele a tocara, não havia sentido nada, exceto aquele vazio dolorido dentro dela. Scott não conseguiria fazê-la esquecer.

— Venha — chamou. Saindo de trás do balcão, segurou-o pelo braço e o levou até a porta.

Enquanto deixavam a padaria, Lina ainda pôde ouvir Anton suspirando tristemente.

— Que desperdício!

A noite estava fria, e ela já devia ter colocado as pequenas mesas e cadeiras da calçada para dentro, mas, como precisava de uma barreira entre ela e o rapaz, ficou feliz por não ter feito isso. Sentou-se a uma das mesas, e Scott se acomodou numa cadeira à sua frente.

Antes que dissesse qualquer coisa, ele mudou de posição, sentando-se junto dela. Ao vê-la estremecer, tirou o paletó e o ajeitou em seus ombros. O casaco estava quente e cheirava a uma daquelas colônias pós-barba caras e másculas. Scott teria segurado sua mão, porém Lina a manteve fora de seu alcance, no colo.

— Scott — começou, desejando sinceramente que o modo ­sensual como a camisa branca assentava no peito musculoso a fizesse sentir mais do que admiração por aquela bem tonificada compleição física. — Eu já lhe disse antes... Não há mais nada entre nós. Eu gostaria que compreendesse isso e esquecesse tudo.

Ele balançou a cabeça.

— Não posso. Não há nenhuma razão para isso. Apenas duas semanas atrás estava tudo bem... Melhor do que bem. Então um dia eu acordo e, zás! , está tudo acabado? Não há explicação. Depois de quase seis meses, você me dispensa sem nem mesmo dizer que asneira eu fiz?

— Não fez asneira nenhuma. Merda! Eu já lhe disse isso antes: o problema é comigo.

Você é perfeito , acrescentou em silêncio. Jovem, bonito, bem-sucedido e atencioso. Scott precisava encontrar uma moça linda como ele e estabelecer-se nas redondezas após conseguir um belo financiamento. Em seguida, devia ter dois ou três filhos e um cachorro.

— Então me diga outra vez. Não compreendo como pode, de repente, estar tão diferente! O que aconteceu?

— Você é moço demais para mim — Lina falou, sincera.

— Pare com isso! Tenho vinte e cinco anos, não quinze! Não sou tão jovem assim.

— O problema é que eu estou velha demais para você.

— Claro que não... — Scott se inclinou para a frente e puxou sua mão do colo, mantendo-a entre as suas. — Não me importo que esteja com quarenta e três anos. Ainda é bonita e sexy , mas também muito mais do que isso. Seu coração é jovem, você ilumina tudo por onde passa, Lina. Quando estávamos juntos, você me fazia sentir como um deus.

Ela sorriu tristemente.

— Não sou mais assim. Não me sinto mais assim. — Levantou-se e tirou a mão da dele. Em seguida deixou cair o paletó dos ombros e o entregou de volta. — Não posso lhe dar o que você precisa. Não tenho mais isso dentro de mim. Por favor, Scott, não me procure mais.

— Não... — Ele balançou a cabeça. — Estou apaixonado!

— Está bem, então aqui vai a verdade: estou apaixonada por outra pessoa.

O rapaz se endireitou na cadeira e franziu o cenho.

— Outra pessoa?

— Sim. Eu não queria que acontecesse, mas aconteceu. Sinto muito. Eu não queria magoar você.

O rosto bonito de Scott corou, e Lina o viu erguer uma barreira de orgulho entre eles. Ele se levantou, o maxilar cerrado, porém seus olhos continuaram tristes.

— Eu não tinha percebido que havia mais alguém, mas devia ter desconfiado. Você é boa demais para estar sozinha. Peço desculpas por tê-la incomodado. Adeus, Lina.

— Adeus, Scott — ela respondeu enquanto ele se afastava a passos rápidos da padaria.

Sentindo-se com setenta e três anos, em vez de quarenta e três, Lina readentrou a loja.

Anton, Dolores e os demais a fitaram cheios de expectativa, mas, quando viram que ela se encontrava sozinha, desviaram o olhar rapidamente.

— Acho que vou para casa mais cedo hoje — Lina anunciou com um suspiro.

— Sem problemas, patroinha. — Anton sorriu e afagou-lhe o braço, maternal.

— Nós fechamos a casa, pode deixar — emendou Dolores. — Precisa se dar algum tempo... Tem trabalhado muito pesado.

Anton anuiu com um gesto de cabeça.

— Por que não dorme até mais tarde amanhã, depois faz uma boa massagem e um tratamento facial? Sabe... naquele lugar que descobriu alguns meses atrás? Você mesma disse que eles sabiam tratá-la como uma deusa.

— Quer que eu ligue e marque uma hora? — Dolores se ofereceu.

— Não, eu vou ficar bem — murmurou Lina, apanhando a bolsa e o casaco. — Mas está certo, Anton. Acho que vou dormir até mais tarde amanhã. — Tentou sorrir para os dois, contudo seus lábios não formaram mais do que uma careta.

— Ah... Estamos quase sem cream cheese de ambrosia. É melhor preparar mais um pouco. Aliás, você bem que poderia nos dar a sua receita secreta — observou Dolores, balançando as sobrancelhas para a chefe.

— Sim, até já prometemos não vendê-la para terroristas ou para essas padarias industrializadas! Mesmo que esse cream cheese maravilhoso fosse dar vida nova àqueles bolinhos horríveis que eles fazem — Anton estremeceu dramaticamente.

Lina tentou recobrar seu senso de humor.

— Uma mulher tem que ter seus segredos. — Piscou para o empregado e pendurou a bolsa no ombro. — Eu os vejo amanhã à tarde com um barril inteirinho de cream cheese de ambrosia — prometeu, atravessando a porta.

Seus funcionários a observaram. Assim que ela estava fora de vista, encontraram-se atrás do balcão e uniram as cabeças.

— Há algo errado com ela — afirmou Dolores.

— Claro que há! — emendou Anton. — Pois então ela não rompeu com aquele “pedaço de mau caminho”?

— É pior do que isso. — A moça suspirou. — Lina gostava de Scott, mas tenho a sensação de que ele nunca significou mais para ela do que um passatempo agradável. Terminar com ele não a deixaria tão triste.

Anton pensou por um momento, depois acedeu.

— Tem razão. Deve ser outra coisa. É como se ela não fosse a mesma pessoa novamente. Lembra-se de como agiu estranho há alguns meses?

— Claro que me lembro. Mas Lina estava preocupada em perder a padaria.

— Bem, ela salvou a Pani Del Dea, e isso lhe fez muito bem. Lina mudou por completo. Comprou roupas diferentes, começou a andar de patins ao longo do rio... Juro que ela perdeu uns dez quilos!

Dolores assentiu.

— Até mudou o cabelo.

— E começou a namorar homens mais novos! Aliás, que homens! — Anton comentou.

— Então, qual é o problema? Até aí não há nenhuma novidade. O que isso tem a ver com o que está acontecendo com ela agora? — questionou a funcionária.

Anton encolheu os ombros.

— Será que é uma crise retardada de estresse? Ou talvez seja uma síndrome de dupla personalidade se manifestando na meia-idade.

Dolores revirou os olhos.

— Tem que parar de assistir tanto ao Discovery Health ! O que eu imagino é que ela tenha, mesmo, trabalhado demais e agora precise de férias.

— Que droga! Você sempre estraga o efeito dramático da coisa! — protestou Anton.

— Vamos simplesmente manter um olho nela e poupá-la do trabalho tanto quanto nos for possível, OK?

— OK.


Capítulo 26

— Sim, sim, eu sei, eu também te amo! — Lina lutou para passar pela porta, lidando com sua entusiasmada buldogue que babava. — Edith Anne, quer se comportar? Deixe-me tirar o casaco e pendurar a bolsa. — A buldogue recuou meio passo, ainda ganindo e se contorcendo.

Indignado, Patchy Poo the Pud saltou de seu lugar cativo na espreguiçadeira e começou a se esfregar nas pernas dela, queixando-se, com miados estridentes, de que ela não estava lhe dando atenção.

— Seus malucos — Lina murmurou, pendurando o casaco. — OK, venham aqui. — Sentou-se no meio do vestíbulo e permitiu que Edith subisse em seu colo enquanto coçava Patchy debaixo do queixo.

A buldogue a lambeu feliz. O gato ronronou.

Lina suspirou.

— Bem, pelo menos vocês dois sentiram falta do meu verdadeiro eu...

Seus bichos de estimação pareciam tão bem alimentados e saudáveis quanto na noite em que Deméter a transportara para longe. Desde o momento em que ela reaparecera no meio da sala, contudo, os dois não queriam deixá-la mais fora de vista e a seguiam de cômodo em cômodo. Patchy Poo the Pud chegava ao cúmulo de ficar do lado de fora do banheiro, miando enlouquecedoramente se ela não o deixasse entrar.

— Vocês precisam relaxar! — Lina repreendeu as criaturas adoráveis. Mas, no fundo, estava gostando que eles estivessem tão contentes por ela ter voltado.

Pelo menos não era uma decepção para eles. Todos os outros a olhavam como se, de repente, ela tivesse um terceiro olho...

Não, não era isso. As pessoas não a vinham tratando como se ela estivesse fazendo algo estranho: tratavam-na como se ela não estivesse fazendo coisa alguma; como se esperassem mais dela.

Como Perséfone tinha sido mais “Lina” do que ela própria?

Suspirou e empurrou Edith Anne para fora do colo. Perséfone era uma deusa. Era claro que as pessoas desejavam que ela fosse como Perséfone. Quem não gostaria de viver às voltas com uma divindade?

Hades...

Seus pensamentos sopraram o nome antes que pudesse evitar. Hades tinha gostado de estar com ela mais do que com qualquer deusa.

Lina balançou a cabeça.

— Não —lembrou a si mesma. — Isso não é verdade. Ele só quis ficar comigo enquanto pensava que eu era Perséfone.

Recordou-se da expressão dele no momento em que vira quem ela realmente era.

— Não! — gritou para si mesma. Não pensaria mais naquilo.

Tinha de se recompor. Vinha agindo como uma adolescente rejeitada por duas semanas. Já fora magoada antes, por que agora seria diferente? Não estava passando por outro divórcio.

Lina olhou o corredor vazio sem ver. Não era como um divórcio. Era pior.

Por que sentia como se parte dela, sua melhor parte, estivesse faltando?

Lembrou-se da noite em que ela e Hades tinham visto o casal bebendo do rio Lete. Ele havia dito que almas gêmeas sempre se reencontravam.

Mas o que acontecia quando estas estavam separadas pelo tempo e habitando dois mundos diferentes? Será que seus corações se tornavam estéreis? Será que sua capacidade para a felicidade minava até que eles se transformassem em conchas vazias e ambulantes, passando pela vida sem qualquer emoção, sem se sentir vivos?

De qualquer modo, não era o que estava acontecendo com ela. Hades não poderia ser sua alma gêmea, pois a tinha rejeitado.

E ela já estava velha demais para continuar apaixonada por alguém que não poderia ter. Cometera um grave erro. Agora teria simplesmente que superar aquilo e tocar a vida.

Mas ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

Edith Anne gania enquanto Patchy Poo the Pud se esfregava em suas pernas, preocupado.

Lina empurrou para longe a tristeza de seu coração e endireitou os ombros.

— OK, vocês dois. Vamos fazer um pouco de cream cheese de ambrosia.


Não importava quantas vezes ela o lesse, o papel ainda lhe causava um estranho pressentimento. A folha em que a receita fora escrita era de seu bloco pessoal, com as iniciais “CFS” impressas na parte superior, e na fonte Copperplate Gothic Bold, de que ela tanto gostava. As palavras tinham sido traçadas com sua caneta azul favorita, e a caligrafia era idêntica à dela própria.

Mas não havia escrito aquilo. Encontrara a receita colada com fita adesiva à tigela de Edith Anne no dia em que Deméter a trouxera de volta e quase a ignorara. Afinal, parecia feita em sua própria caligrafia. Tinha imaginado que fosse apenas uma nota qualquer, lembrando-a de comprar mais ração, guloseimas ou outro item da parafernália própria de um cão.

Então, finalmente registrara a saudação Querida Lina , e seus olhos haviam voado para o final do bilhete: Com meus votos de muita alegria e magia, Perséfone.

Levara a mensagem para a sala a fim de lê-la. Em seguida, assim como fazia naquele momento, pensara como era bizarro que ela e Perséfone possuíssem letras idênticas.

Querida Lina,

Os seis meses estão chegando ao fim, mas parece que estou aqui há muito mais tempo. Este se passa, mesmo, de forma diferente no seu mundo. Minha mãe me chamará em breve, e quero ter certeza de que você terá a receita para a ambrosia. Nossos clientes a adoram, e não quero vê-los desapontados.

Que estranho! Só agora percebi que os chamei de “nossos clientes”...

Mas eu os considero como tais. Seus amigos mortais são boas pessoas. Vou sentir falta deles.

Mas não do seu gato ou dessa cadela babona, embora o seu bichano preto e branco finalmente tinha se dignado a dormir comigo, e ontem a cadela tenha latido de modo protetor para um estranho que tentou me abordar enquanto eu brincava na beira do rio.

É... Talvez eu sinta falta deles.

Lembre-se de se divertir na vida, Lina. Você foi muito abençoada.

Com meus votos de muita alegria e magia ,

Perséfone

A receita de cream cheese fora cuidadosamente escrita no verso da nota.

Lina a estudou mais uma vez. Não queria segui-la, porém Perséfone estava certa: seus clientes a amavam, e ela também não queria decepcioná-los.

Encheu outra vez o copo de Pinot Grigio , deixando a garrafa no balcão, ao lado do pote que ela já preenchera com creme de queijo batido. Não precisou checar o calendário para saber se era lua cheia. Tudo o que teve de fazer foi olhar pela janela da cozinha.

Não havia dúvida: uma lua redonda e branca cintilava no céu claro.

— Vamos acabar logo com isso. Como se você não estivesse acostumada à magia! — Apanhou um copo medidor do armário. — E pare de falar sozinha!

Colocou a receita no balcão e começou a seguir os passos que a fariam produzir o cream cheese de ambrosia.

A receita de Perséfone era prolixa, e Lina tomou um gole do vinho enquanto a lia.

Encha aquele bonito pote amarelo – aquele da cor das madressilvas selvagens – com cream cheese. Deixe o queijo amolecer. (E, Lina, não utilize aquelas misturas de baixa caloria horrorosas... Seu sabor chega a ser uma blasfêmia!)

Lina não pôde evitar sorrir. Ela e Perséfone tinham a mesma opinião quanto a cozinhar com ingredientes de baixa caloria.

Em seguida, adicione um copo do seu vinho branco favorito ao creme de queijo e misture bem. O tipo do vinho não é importante, contanto que não seja muito doce. (Aliás, Lina, eu adorei aquele Santa Margherita Pinot Grigio que encontrei em seu refrigerador. Espero que mamãe me dê tempo suficiente para repô-lo antes de ela nos destrocar! Caso contrário, peço desculpas por acabar com o seu estoque.)

Lina riu.

— Desculpas aceitas.

Realmente, quando ela voltara não tinha uma só garrafa de vinho branco.

Após adicionar a bebida ao creme, beba o que restou na garrafa. (E, Lina, não subestime a importância desta etapa!)

Lina serviu-se de mais uma dose de vinho após acrescentar a primeira ao cream cheese . Tentou não engolir tudo de uma vez, mas queria acabar logo com aquilo.

Quanto mais bebia, mais fácil era para ela admitir: Perséfone devia ser divertida.

Leu o restante da receita, já com um sorriso induzido pelo álcool nos lábios.

Em uma noite de lua cheia, pegue a mistura e coloque-a sob o velho carvalho. Você já o conhece. Fica no pátio, próximo à fonte. Espalhei um pouco da magia da primavera por lá. (Não se surpreenda se vir uma ninfa ou duas, embora elas morram de vergonha de se mostrar no seu mundo). Antes de deixar a mistura na árvore, deve dar três voltas completas no tronco dançando, e, ao mesmo tempo, concentrar os pensamentos na doce beleza da noite. (Lina, não precisa fazer nenhum passo específico de dança. Basta ouvir a sua alma e se divertir! Aposto que seu corpo vai surpreendê-la, assim como me surpreendeu...)

— Ahn? — ela gemeu e releu a linha. — “Assim como me surpreendeu”?

Não tinha ideia do que Perséfone queria dizer com aquilo.

Mas os olhares penetrantes que Scott lhe lançara e a dificuldade que ele havia tido para manter as mãos longe dela eram uma pista.

Não que ela houvesse se mantido muito casta no corpo de Perséfone.

Mas não queria pensar naquilo.

Voltou a atenção para o final da receita:

Vá buscar a mistura pronta na manhã seguinte. Para consumo mortal, deve diluí-la dez vezes. (Tenha cuidado, Lina. Não imagino o que aconteceria se Anton a experimentasse em sua forma original!)

— Novidade... Ele decerto criaria asas e voaria como uma ­ninfa! — Lina murmurou, rindo.

Recompôs-se novamente. Perséfone tinha acabado de fazê-la rir duas vezes! E nem estava ali. Não era à toa que todos a amavam tanto.

— Bem, crianças — disse a Patchy Poo the Pud e Edith Anne. — Vou terminar esta última taça de vinho, depois levar este pote “cor de madressilva”, colocá-lo sob aquela árvore velha, fazer algumas piruetas, e, em seguida, me jogar na cama. — Deixou escapar um soluço, e seus animais de estimação a fitaram com olhos acusadores. Eles sempre sabiam quando ela havia bebido demais.

Lina passou um braço em volta do pote e rumou para a saída com a visão turva. Edith Anne, claro, ficou bem no meio do caminho.

— Não se preocupe, garota. Não vou a lugar nenhum sem você. — O lado bom de a cadela ser tão ligada a ela era que nem precisava se preocupar mais com uma guia. — Vamos voltar logo, prometo! — disse a Patchy Poo the Pud, que as observava com um misto de desdém e preocupação.

A noite tinha ficado mais fria, e Lina desejou ter apanhado um casaco. Mas a blusa de cashmere de gola alta que Perséfone adicionara ao seu guarda-roupa era confortável e quente, mesmo sendo de um rosa delicado, mais apropriado a uma adolescente do que a uma mulher de meia-idade.

Sem dizer que ela sempre ganhava elogios quando a usava.

Esqueça , disse a si mesma. Não sentia nem vontade de se preocupar com roupas. E, se não estava disposta a ir às compras, não havia muito que pudesse fazer a respeito.

Sem dizer que, em seis meses, Perséfone tinha substituído cada item em seu armário. Tudo. De sapatos e jaquetas a sensuais calcinhas e sutiãs de seda.

— Onde aquela criatura encontrou tempo para isso? — perguntou a Edith Anne.

A cadela bufou em resposta, mantendo o ritmo a seu lado.

Lina abanou a cabeça.

— Eu não sei. Perséfone deveria ser renomeada a deusa do ­Shopping em vez de a deusa da Primavera.

Deu uma risadinha. Para falar a verdade, estava mesmo um pouco bêbada. Só podia estar se continuava rumando para aquele lugar outra vez...

Seguiu o caminho de paralelepípedos que ligava o condomínio ao pátio central e ouviu a fonte antes mesmo de avistá-la. Seis meses e duas semanas antes, esta tivera um efeito calmante sobre ela. Naquele momento, porém, conforme se aproximava, sentia o estômago cada vez mais apertado.

Por sorte, a área se encontrava deserta. Lina olhou para o relógio, torcendo o pulso para que a marca fosse iluminada pela luz da lua cheia: 22h45. Como havia ficado tão tarde?

Respirando fundo, aproximou-se do velho carvalho. O mesmo em que descobrira o bonito narciso.

E este se encontrava exatamente como seis meses antes. Naquela ocasião, os galhos haviam estado nus, exceto por botões à espera de desabrochar. Agora, os ramos se apresentavam quase desnudos outra vez, e havia apenas umas poucas folhas da cor de sacolas de papel presas a estes.

Olhou mais embaixo. Raízes grossas e retorcidas cruzavam o chão a seus pés.

Devagar, ela circundou o tronco, estudando as sombras. Exceto pela poeira e pelas raízes, a área em torno da base da árvore estava vazia. Não havia nenhuma flor que cheirasse à primavera e a primeiros beijos ao luar...

Mas o que ela esperava?

Franzindo as sobrancelhas, Lina assentou o pote de creme de queijo e o vinho em um nicho meio achatado entre as duas raízes junto ao tronco da árvore. Então recuou.

Em sua mente, pôde ler as instruções de Perséfone:

Antes de deixar a mistura na árvore, deve dar três voltas completas no tronco dançando, e, ao mesmo tempo, concentrar os pensamentos na doce beleza da noite. Está bem , pensou, esfregando as mãos. Vou pensar em como a noite está bonita, dançar em volta do carvalho, e pronto.

Olhou ao redor. Exceto por Edith Anne, que continuava sentada a poucos metros dali, observando-a atentamente, o pátio continuava deserto.

— Ainda bem... Ou pensariam que eu sou louca.

Edith bufou mais uma vez.

— Não se preocupe, isto não vai demorar muito.

Pense sobre a beleza da noite , Lina disse a si mesma.

Olhou para cima. A lua estava realmente bonita, parada lá como um disco de prata iluminado por dentro.

Deu um passo hesitante, levantando as mãos acima da cabeça, e se virou. A luz do luar perpassou os galhos da árvore e acariciou o cashmere que lhe cobria os braços, tingindo-o de um rosa prateado que lembrava o peito de uma pomba. Lina pulou uma raiz, surpresa com a graça com que seu corpo efetuou o movimento, e circundou o carvalho uma vez.

Uma brisa suave soprou através dos ramos da velha árvore, e as folhas secas entoaram uma suave melodia de outono. Ela levantou os braços e rodopiou enquanto erguia o rosto para o céu e deixava a lua lhe acariciar a pele. A noite se espalhava, linda e mágica, quando circundou a árvore pela segunda vez.

Ficou na ponta de um pé, lançou a perna para a frente, e logo pensou ouvir um zumbido de vozes femininas em harmonia com o ruído das folhas. Pelo canto do olho, percebeu silhuetas familiares se juntando a ela no círculo de dança. Elas cintilavam, e suas asas zuniam melodicamente.

Com os braços estendidos, Lina pulou, girou e se deleitou com a beleza da noite.

E circundou o carvalho pela terceira vez.

Parou. Estava ofegante, e sua respiração se revelava no ar frio como pequenas e mágicas nuvens. Olhou ao redor, porém as ninfas que tinham dançado com ela haviam desaparecido.

Edith Anne se aproximou com seu andar gingado, farejando a base da árvore, curiosa. Pondo as orelhas para a frente, olhou os ramos do carvalho logo acima.

— Elas se foram — explicou Lina. — Vamos, garota... É hora de irmos também.

A dança havia deixado seu corpo mais vivo do que estivera nas últimas duas semanas. Talvez ela devesse dançar mais vezes.

Anton e Dolores também haviam lhe questionado várias vezes sobre o porquê de ela, de repente, ter parado de andar de patins ao longo do rio...

Lina pensou a respeito. Ela nunca havia andado de patins.

Mas Perséfone, obviamente, o fizera muitas vezes. Seus funcionários nem precisariam ter lhe contado isso... Seu corpo diminuíra pelo menos um tamanho, e suas pernas e nádegas se apresentavam bem mais firmes do que quando tinha vinte anos.

Caminhou de volta para o condomínio e, antes que mudasse de ideia, foi direto para casa, arrancou os sapatos e a roupa, e ficou nua diante do espelho que cobria a parede. Parecia bem mais nova do que uma mulher de quarenta anos agora. Exceto pelas manchas escuras sob os olhos, estava com a pele até mais viçosa e saudável. E usava o cabelo como Perséfone usara: nos ombros e com os cachos soltos, meio rebeldes. Seus seios já não eram tão perfeitos e empinados, porém cheios e sensuais. Sua cintura continuava delgada, e os quadris se curvavam graciosamente até as coxas firmes, as quais desciam para pernas bem torneadas.

Sorriu com o pensamento. Ela era bonita, inteligente, sexy e bem-sucedida: tudo o que um homem deveria querer.

— Já é hora de superar sua dor, Lina — disse a si mesma.

Conformada, apagou a luz do banheiro e se enfiou na cama. Sentiu o colchão afundar quando Patchy Poo the Pud se aninhou junto a seu quadril. Como de costume, Edith Anne deu duas voltinhas e, com um suspiro, se acomodou em sua própria cama.

Lina fechou os olhos. Antes de adormecer, fez uma promessa a si mesma. Na manhã seguinte começaria de novo.

Perséfone tinha razão: ela fora ricamente abençoada.


A deusa da Primavera estava distraída quando sentiu sua magia ser utilizada. Tão discretamente quanto lhe foi possível, Perséfone se desculpou e interrompeu a conversa cansativa com Hermes e Afrodite. Os imortais se despediram dela com um aceno e continuaram a debater se as Limoníades, as ninfas dos prados e das flores, eram mais belas do que as Napaeae, ninfas dos vales. Nem se importaram que a jovem deusa estivesse deixando a discussão. Ela era especialista em ninfas da floresta, mas vinha agindo de modo reticente e não tivera nada de divertido a acrescentar sobre o assunto. Na verdade, eles quase não notaram sua partida.

Mas Deméter notou.

— Filha, aonde está indo?

Perséfone fez uma pausa e esboçou uma expressão inocente de tédio antes de se virar para a mãe.

— Ora, mamãe, sabe que eu não suporto ficar trancada aqui enquanto as flores estão desabrochando. Os prados me chamam.

— Está bem, criança. Espero vê-la esta noite no Festival de Chloaia.

— Claro. — Perséfone se curvou e deixou a mãe na sala do trono.

Deméter observou a filha partir com os olhos estreitados, pronta a admitir para si mesma que trocar a mortal por Perséfone fora um erro.

Verdade que seu plano tivera o efeito desejado. A jovem deusa havia amadurecido. Para sua surpresa, continuava a ser chamada de rainha do Submundo, e os familiares dos mortos cessaram com as súplicas.

Mas a que preço? Desde seu retorno, Perséfone vinha se comportando de uma forma mais sóbria. Raramente dava festas e havia parado de se relacionar com semideuses. Mas também andava com o humor instável e distraída. Grande parte de seu brilho tinha esmaecido.

Deméter se preocupou com a filha, assim como com Carolina Francesca Santoro. A mortal parecia ter firmado lugar na consciência da jovem deusa, e aquele não era um arranjo muito confortável.

Suspirou. Não conseguia esquecer a tristeza no rosto de Lina quando Hades a rejeitara. No final, ela havia lhe causado uma ­grande dor, e não fora essa a sua intenção.

Depois começaram aqueles rumores preocupantes. Os imortais diziam a boca pequena que Hades enlouquecera, que não recebia absolutamente ninguém. Fora dito ainda que ele se recusara até mesmo a conceder uma audiência a Zeus, quando este adentrara seu obscuro reino.

— Irene — Deméter chamou sua velha amiga. — Preciso fazer algo a respeito de Hades.

— Outra vez? — perguntou a mulher.

— Outra vez — confirmou a grande deusa.


Por meio do oráculo da mãe, Perséfone assistiu à dança em torno do carvalho e sorriu quando pequenas ninfas se juntaram a Lina. O corpo da moça girava e saltava com uma graça que não era exatamente mortal.

— Seu corpo se lembra — a deusa da Primavera sussurrou para o oráculo. — Ele foi abençoado pela presença de uma deusa e nunca mais será o mesmo.

Assim como ela nunca mais seria a mesma, concluiu em silêncio. Carolina tinha saído de seu corpo, mas havia deixado para trás uma parte de sua essência.

Distraidamente, acariciou o narciso de ametista que lhe pendia entre os seios. A corrente se quebrara, porém ela o mantivera amarrado ao pescoço. Poderia removê-lo e mandar que o consertassem, mas relutava em se separar dele. De alguma forma, o contato com o pingente a acalmava.

Lina concluiu a dança e voltou para casa. Perséfone a viu nua diante do espelho, e seu sorriso espelhou o da mortal. Estava orgulhosa das mudanças que havia operado nela. Ainda se lembrava do ardor nos músculos cansados e da satisfação em ver o corpo da mortal ficar cada dia mais esbelto e flexível, bem aos moldes de uma deusa.

Quando Lina deslizou para a cama, Perséfone quase pôde sentir o corpo quente e macio do gato pressionado de modo familiar contra seu próprio quadril.

A imagem no oráculo rodopiou e desapareceu.

— O que foi, minha filha? Por que você e a mortal estão tão infelizes?

A voz de Deméter a fez pular, cheia de culpa.

— Não — Deméter continuou antes que ela saísse com uma desculpa. — Não quero palavras vazias, destinadas a aliviar os meus sentimentos. Quero a verdade.

Perséfone encontrou os olhos da mãe. Se ela queria a verdade, então que fosse.

— Sinto falta dele, mamãe. Eu não pretendia, mas caí de amores pelo mundo de Lina. É tão desorganizado, mas tão mais vibrante e vivo! E eles não sabiam que eu era uma deusa. Não sabiam que eu era sua filha e, mesmo assim, me receberam de braços abertos.

— Não foi Carolina que eles abraçaram? — Deméter perguntou gentilmente.

— Não. Eu usava seu corpo, mas a alma era minha.

Deméter abanou a cabeça, tristonha.

— Carolina me disse a mesma coisa, mas eu não a ouvi. Creio que foi um erro.

— E se houver uma maneira de corrigir seu erro?

— Desta vez eu gostaria de escutar.

— Ótimo. — Perséfone sorriu com carinho para a mãe. — Eu tenho uma ideia.


Capítulo 27

— Tem certeza de que quer que eu saia mais cedo? Não me importo de ficar — indagou Dolores.

— Não, querida. — Lina acenou com um guardanapo de linho para ela. — Eu insisto. A padaria não está muito cheia, e vamos fechar em trinta minutos. Anton e eu podemos dar conta.

— Bem, se está certa disso... — Dolores comentou, em dúvida.

— Ora, vá embora de uma vez! Lina e eu vamos nos virar bem sozinhos. Acha que eu sou algum incompetente, por acaso? — ­Anton exigiu, irritado.

— Eu nunca o chamei de incompetente... ao menos não na sua frente! — Dolores riu da própria piada.

Anton respondeu no seu melhor sotaque sulista:

— Eu nuuuunca vou ser bonzinho contigo outra vez! — entoou, erguendo o punho no ar.

Lina riu.

— Não acho que Scarlet O’Hara teria usado essas botas.

— Teria se ela fosse gay — ele rebateu, presunçoso.

— Está bem, crianças, já estou saindo. — Dolores abriu a porta, depois hesitou, sorrindo para Lina. — É bom ver você rindo de novo, chefe... — disse, então saiu, apressada, para a noite de Oklahoma.

Surpresa com as palavras da funcionária, Lina olhou para a porta fechada.

— Ela tem razão — reforçou Anton, tocando-a no braço.

— Obrigada — Ela lhe afagou a mão. — É bom rir de novo. — Eles sorriram um para o outro. — Vou começar a fechar aqui. Por que não termina a massa lá nos fundos? Já deve estar boa para ser cortada e colocada nas assadeiras.

Anton concordou e saiu em disparada pelas portas francesas que separavam a cozinha do café.

Lina tirava a placa da pizza del giorno da parede, a fim de alterá-la para a especialidade do dia seguinte, quando a porta da frente foi aberta.

— Só um momento, por favor! — falou, sem nem mesmo se voltar. — Está com sorte... ainda tenho uma pizza do dia sobrando. Três queijos com manjericão, alho e tomates secos.

— É uma das minhas favoritas, mas venho sonhando com uma fatia grossa de gubana quente com manteiga.

Lina congelou. Aquela voz... Ela a conhecia como a sua própria.

Virou-se e se viu mais uma vez atingida pela beleza da deusa da Primavera. Desta vez, contudo, Perséfone vestia calças jeans e uma confortável malha de lã; e tinha os cabelos longos puxados para trás em um grosso rabo de cavalo. Os trajes simples, entretanto, em nada dissipavam sua beleza única.

— Olá, Lina.

— Perséfone...

A deusa sorriu.

— Está aí algo com que podemos contar: reconheceremos uma à outra até no meio de uma multidão.

— Eu... — Lina passou a mão pela testa como se tentando eliminar sua confusão. — Eu não esperava vê-la. É uma surpresa e tanto.

Antes que Perséfone pudesse responder, o sino da porta soou outra vez, e uma mulher bonita e alta adentrou regiamente a padaria.

Perséfone suspirou e olhou por cima do ombro. Deméter escolheu uma mesa perto da vitrine e sentou-se como se estivesse se preparando para deliberar numa corte.

— Imaginei que mamãe me seguiria — a jovem deusa falou com um suspiro.

Anton saiu apressado da cozinha.

— Deus do Céu, quem poderia imaginar que fôssemos ter esse movimento antes de fecharmos?

Como uma pluma, flutuou até a deusa da Colheita.

— Posso lhe servir alguma coisa?

— Vinho. — Deméter levantou uma sobrancelha. — Tinto.

Anton inclinou a cabeça, considerando.

— Que tal um Chianti ?

— Se é uma sugestão de Carolina, eu a acatarei.

— Está certíssima, minha querida... Nossa Lina conhece vinhos como ninguém — ele elogiou. — Mais alguma coisa?

— Anton? — Lina reencontrou a própria voz. — Pode voltar para a massa. Eu mesma atendo as senhoras.

Deméter levantou a mão para silenciá-la.

— Não, não. Estou adorando este... — devolveu o olhar atento do rapaz — ... jovem. Vocês duas precisam conversar. Ele pode perfeitamente me atender.

Anton lançou um olhar satisfeito na direção de Lina.

— Não posso tentá-la com algo mais do que apenas vinho? Temos uma pizza fabulosa! Prometo prepará-la com as minhas próprias mãos.

— Pizza? — A deusa pronunciou a palavra como se fosse uma língua estrangeira.

— Com queijo, tomate, alho, manjericão... É de morrer!

— Então faça-a para mim — Deméter ordenou com um gesto imperioso.

Anton sorriu.

— Qual é o seu nome, querida? — perguntou antes de se afastar. — Não me lembro de ter visto você aqui antes.

Lina abriu a boca, porém Perséfone sacudiu a cabeça de leve, pedindo em silêncio para que ela se mantivesse calma.

— Pode me chamar de Regina Safra — respondeu Deméter.

— Pois, sra. Safra, uma coisa eu lhe digo: em qualquer outra pessoa esse seu traje pareceria um muumuu de seda. Sabe aqueles vestidinhos havaianos? Mas em você parece algo que uma deusa usaria! Está ma-jes-to-sa!

— Claro que estou —Deméter replicou.

— Vou trazer o seu vinho agora mesmo. — Anton rumou para a cozinha, apressado.

Quando passou por Lina e Perséfone, falou em voz baixa:

— Adoro essas coroas ricas!

Perséfone disfarçou o riso com uma tossidela, enquanto Lina fazia uma careta para o funcionário.

— Regina Safra? — ela sussurrou após Anton desaparecer cozinha adentro.

— Mamãe tem um senso de humor excêntrico, principalmente em se tratando de nomes. Sabia que, em algumas línguas, o meu nome soa apenas como “milho”?

— Estou do outro lado do salão, mas não sou surda.

— Eu sei, mamãe... — resmungou Perséfone.

— Perdão, Deméter — Lina se desculpou.

As duas moças compartilharam olhares que se transformaram em sorrisos.

Em seguida, Perséfone olhou pela padaria com estranheza.

— Dolores não está?

— Eu a deixei sair mais cedo.

A deusa da Primavera assentiu.

— Ela trabalha pesado. Merece uma folga.

— É difícil convencê-la a reservar algum tempo para si mesma. — Lina e Perséfone falaram em uníssono.

Entreolharam-se, surpresas.

— Verdade... — as duas disseram em conjunto mais uma vez.

— Aqui está o seu Chianti e um pouco de pão com azeite picante. — Anton colocou a taça de vinho tinto e uma cesta de pães diante de Deméter. — A sua pizza sairá em um instante. — Passou por Lina, cantarolando Shall We Dance de O Rei e Eu , e deu um tchauzinho para Perséfone.

A deusa riu.

— Senti tanta falta de Anton!

— Nossa, ele a impressionou mesmo.

— Parem de perder tempo — Deméter as repreendeu.

— Mamãe! Por favor, beba o seu vinho... Sua pizza ainda tem que assar. Tente ser um pouco mais paciente. — Perséfone suspirou e se virou para Lina. — Ser filha de uma deusa não é fácil.

— E eu não sei? — ela replicou.

— É mesmo... — Perséfone olhou para o balcão e respirou profundamente. — Eu precisava voltar.

A face de Lina era um ponto de interrogação.

— Por quê?

A jovem deusa encontrou seus olhos.

— Não estou feliz. Sinto saudades da minha... da nossa padaria — ela se corrigiu — e também do seu mundo.

Lina olhou para Deméter, esperando que esta fosse reagir às palavras da filha, entretanto a deusa continuou a sorver seu vinho em silêncio.

— Eu não entendo.

— Não há nada de que sinta falta no Submundo? — Perséfone perguntou numa súplica.

— O que está querendo dizer? — Lina endireitou a espinha.

A jovem deusa procurou os olhos da mortal.

— Não podemos mentir uma para a outra.

— Eu não estou tentando mentir para você — murmurou Lina. — É que...

— ... Dói — Perséfone concluiu por ela. — Eu sei. Eu também tentei não pensar sobre tudo o que havia perdido. Achei que seria fácil deixar tudo para trás.

Lina concordou com um gesto de cabeça, lutando para manter as emoções sob controle.

— Eu vou começar. — O sorriso de Perséfone foi melancólico. — Sinto falta da padaria. De sua agitação, eficiência, de seu cheiro e seus ruídos, e de como é um ponto de encontro para tantos tipos diferentes de mortais. Sinto falta de pequenas coisas, por exemplo, de como Tess Miller tem que tomar seu copo de vinho branco precisamente no mesmo horário todos os dias. Sinto falta do cachorrinho dela, apesar de ele ter chocado tanto Tess ao me desprezar que ela ameaçou levá-lo a um psiquiatra de animais! Os bichos não reagem a mim como reagem a você, sabia? — Perséfone franziu a testa enquanto a fitava. — Essa conexão que tem com os animais é muito estranha.

— Sim, eu sei.

— Mas acho que o que mais sinto falta é da maneira como todos me procuravam para resolver seus problemas. Eles nunca me viram como uma ve rsão mais jovem e incompetente da minha mãe. Ninguém corria para ela, depois de eu tomar uma decisão, para verificar se eu estava sendo sensata. Eles me respeitavam e confiavam em meu ponto de vista.

— Demonstrou ter um excelente julgamento, Perséfone — Lina assegurou. — A padaria está prosperando, todos estão felizes... Merda! Conseguiu até devolver meu antigo corpo!

A deusa lançou-lhe um olhar de franca avaliação.

— Seu corpo era um lugar bem confortável para viver, Lina. Não subestime a sua própria beleza. — Sorriu, travessa. — E há outra coisa de que sinto falta: os homens mortais são tão sensíveis!

— Scott — Lina concluiu, seca.

— Scott — ronronou Perséfone. — Foi um namorico e tanto o nosso.

— Ele se apaixonou por você.

— Claro que sim. — A moça encolheu os ombros. — Mas vai superar e se tornar um homem ainda melhor com a experiência. Saber como agradar a uma deusa é algo que todos eles deveriam aprender.

A ideia fez Lina sorrir.

— Sinto falta até mesmo daquelas duas criaturas que moram com você, principalmente do gato — admitiu Perséfone.

Desta vez, Lina riu com vontade.

— Patchy Poo the Pud é terrível, mas uma gracinha.

— É uma praga, isso sim! — a deusa falou, brincando.

Lina concordou.

— Agora é a sua vez... — incitou Perséfone. — Do que sente falta do Submundo?

— Tenho saudades de Eurídice — Lina confessou com apenas uma ligeira hesitação. — A pequena alma era como uma filha para mim. Eu me preocupo com ela.

— E do que mais?

— De Órion. Eu sei que ele devia ser um dos temíveis cavalos de Hades, mas Órion me lembrava mais um filhote de cachorro preto tamanho família.

— E?

— Sinto falta daquele céu incrível. A luz do dia era como uma pintura de aquarela em que alguém tinha soprado vida. Sei que soa irônico, pois estou falando sobre a Terra dos Mortos, mas não era escuro e sombrio lá. Ao menos não depois que você chegou a Elísia. Na verdade, foi o lugar mais incrível em que eu já estive ou imaginei. — Lina deixou a mente vagar. Agora que começara a falar, não queria mais parar. — Sabia que o céu lá é iluminado pelas almas das Híades, de maneira que, quando a noite chega, tudo em Elísia parece um sonho antigo?

— Não — Perséfone respondeu, intrigada.

— E as almas dos mortos não são assustadoras ou repugnantes. São apenas pessoas cujos corpos se tornaram menos importantes. Elas ainda têm a capacidade de amar, rir e chorar.

Perséfone pegou a mão de Lina.

— E do que sente mais falta?

Os olhos de Lina se encheram de lágrimas.

— Hades — ela sussurrou. — Você se apaixonou pela minha vida, e eu, pelo senhor do Submundo.

— Que bom! — Perséfone disse alegremente, apertando sua mão.

— Como isso pode ser bom? Eu amo Hades, mas ele ama a deusa da Primavera, não a mim.

O riso alegre da jovem deusa fez as luzes da padaria parecerem mais intensas.

— Se ele me ama, por que se recusa a me receber?

— Tentou ver Hades?

— Claro que sim. Eu estava infeliz, sentindo muita falta deste mundo. Então comecei a ouvir rumores de que Hades tinha enlouquecido, de que os espíritos do Submundo estavam perdidos, etcetera , etcetera , pois sua rainha havia deixado seus domínios.

— Espere... Hades ficou louco?! — Lina sentiu o sangue abandonar o rosto.

— Ah, não é nada disso. Ele só está de mau humor. — Perséfone fez um gesto de indiferença com a mão. — Mas os rumores me fizeram pensar que talvez eu não estivesse sozinha na minha infelicidade. Então visitei o Submundo.

— E? — Lina teve vontade de sacudi-la, de tão ansiosa.

— E a primeira coisa que aconteceu foi que aquele cão de três cabeças horrível não me deixou passar. — A moça estremeceu. — Edith Anne tem um temperamento muito mais dócil.

— O Cérbero lhe causou problemas?

— Problemas? Ele bloqueou a estrada, roncando e babando. Fiquei apavorada de chegar perto dele. Tanto que tive de pedir ajuda. — Perséfone balançou a cabeça, desgostosa.

— E Hades não veio recebê-la?

A deusa franziu o cenho.

— Um daimon apareceu em seu lugar, montado naquele cavalo preto odioso.

— Órion a tratou mal?

— Ele grudou aquelas orelhas pontudas na cabeça e arreganhou os dentes para mim.

— Eu sinto muito. Eu já repreendi Órion por esse tipo de atitude. Ele deve ter pensado que você era eu, e, quando percebeu que não... Bem, Órion devia ter se comportado melhor de qualquer maneira — Lina ponderou.

— Ah, devia. Enfim, eu disse ao daimon que queria falar com Hades, e ele me perguntou se eu era a deusa da Primavera, ou a mortal, Carolina. Como se já não soubesse! — Perséfone pareceu irritada. — Até mesmo os espíritos dos mortos sabiam. O tempo todo em que estive viajando por aquele caminho sombrio, eles me observavam. A princípio pareciam felizes, então, quando eu falava com eles, apenas tentavam ser educados e se afastavam de mim. Eu até os ouvi sussurrar coisas como: “Alguém está disfarçada de rainha do Submundo!” — Perséfone afastou uma mecha de cabelo que havia escapado do rabo de cavalo. — Foi uma experiência perturbadora, eu garanto. — Fez nova pausa para estudar as unhas bem cuidadas, e Lina teve ímpetos de sacudi-la outra vez. — Eu assegurei ao daimon que o meu corpo e a minha alma eram os mesmos. Em seguida ele desapareceu e, quando voltou, disse que seu senhor se recusava a ver Perséfone. Não bastasse isso, Hades ordenara que eu deixasse seu reino e parasse de incomodá-lo.

— E como isso prova que ele não a ama? Hades é muito ­teimoso. — Lina olhou de soslaio para Deméter, que agora fingia analisar o vinho. Inclinou-se para frente e baixou a voz: — Às vezes dá trabalho fazê-lo relaxar e conversar. Na realidade, Hades é romântico e passional. Precisa tentar de novo. Ele provavelmente vai vê-la na próxima vez.

Lina odiou a si mesma tão logo terminou de proferir as palavras. Sentiu o estômago se apertar. Não queria que Perséfone visse Hades. Não queria que ele visse ninguém, exceto ela própria.

— Pois eu acho que você deveria tentar — disse Perséfone com firmeza.

— Eu? — Ela piscou, surpresa. — Como eu poderia?

— Poderíamos trocar de corpo outra vez. — Perséfone apontou Deméter. — Minha mãe vai nos ajudar. Ela reconhece que seu plano não funcionou exatamente como esperava.

Lina olhou para a deusa, e esta inclinou a cabeça em uma pequena mesura real.

— Minha filha diz a verdade. Eu estava enganada quanto à forma como lidei com a situação.

A cena terrível passada no quarto do palácio invadiu a memória de Lina.

— Fico contente por admitir, mas isso não muda nada.

— Lembra-se, Carolina, quando foi até o meu oráculo, perturbada, porque tinha feito um erro de julgamento? — indagou Deméter.

— Sim, eu tomei uma decisão sem pensar e quase causei muita dor a Eurídice.

— Lembra-se do que eu lhe disse na ocasião?

— Disse que eu devia aprender com o meu erro — murmurou Lina.

— Pois eu bebi do meu próprio veneno. Também não considerei plenamente a minha decisão. E o que aprendi com meu deslize é que mesmo uma deusa pode ser surpreendida por suas filhas. — Deméter contemplou as duas moças com um de seus raros sorrisos, então voltou a atenção para Lina. — Hades estava sendo sincero. Ele sempre foi diferente do restante dos imortais. Creio que o senhor do Submundo realmente se apaixonou por você, Carolina.

— E eu tenho uma proposta — interveio Perséfone. — Você ama Hades. Eu amo a sua padaria e o seu mundo. Por que devemos viver para sempre sem os nossos amores?

— Mas Hades... — Lina começou.

— Ouça-me — Perséfone a interrompeu. — Como deusa da Primavera, devo estar no meu mundo por seis meses. Dessa forma, como você diria, o meu “trabalho” é concluído até a primavera seguinte. Eu poderia vir aqui durante esse intervalo. E, enquanto eu estivesse aqui, você poderia voltar ao Submundo como rainha.

A cabeça de Lina girava.

— Eu fingiria ser a deusa d a Primavera como antes?

— Não. — O sorriso de Perséfone foi enigmático. — Não teria de fingir. Todos, desde os animais até os espíritos, sabiam que eu não era você. Não fingirá, Carolina. Você é a rainha deles. Estará apenas alojada temporariamente no meu corpo, pois preciso do seu aqui. Eu, sim, terei de me fazer passar por outra pessoa.

— Não — falou Lina.

— Por que não? — Perséfone deu um longo suspiro. — Eu lhe dou minha palavra de que dispensarei qualquer Scott antes de voltar.

— Não é isso.

— Então, o que é?

— Hades não me quer, Perséfone. Ele disse que amava a minha alma, e, depois, quando viu o meu verdadeiro eu, me rejeitou.

— Lina, Hades estava apenas surpreso — garantiu Perséfone.

— Você não viu a expressão dele.

— Eu vi — Deméter interrompeu. — E o que li nela foi surpresa e dor, não desprezo ou rejeição.

— Então leu algo que eu não li — Lina concluiu com pesar.

— Creio que esteja cometendo um erro, Carolina — disse Deméter.

— Talvez. Mas e se não estiver? — Ela sentiu a onda de dor que lembrar a rejeição de Hades ainda evocava e piscou, aflita. — Não vou suportar se ele olhar para mim daquele modo outra vez. E, se não olhar, pode até ser pior. Como poderei saber que não é apenas o seu corpo que ele deseja?

— Pode viver o resto da vida sem ele? — Perséfone perguntou com suavidade.

As lágrimas escorreram dos olhos de Lina e deixaram um rastro brilhante em suas faces. — Tenho m edo do que acontecerá à minha alma se ele me rejeitar de novo, ou de que ele me aceite apenas porque quer que eu seja algo que não sou.

— Não tome nenhuma decisão antes de ponderar bem sobre ela — sugeriu Deméter.

— E prometa que vai considerar a minha proposta. O outono acabou de começar aqui. Terá até o primeiro dia da primavera para fazer isso, quando eu voltarei em busca da sua decisão. — Perséfone enxugou uma lágrima do rosto de Lina, então seu sorriso se tornou amargo. Enfiando os dedos sob o decote do suéter, ela tirou a corrente de prata que este ocultava. Sem falar nada, puxou-a por sobre a cabeça. O narciso de ametista capturou as luzes da padaria e cintilou. — Isto lhe pertence — disse, colocando-o com cuidado por sobre a cabeça de Lina. — A corrente se quebrou e foi amarrada, mas eu não a substituí. Está como você a deixou.

— Ah, meu Deus! — Lina deixou escapar um soluço e apertou a flor que tinha sido tão maravilhosamente esculpida para ela. — Pensei que nunca mais fosse ver isto outra vez! Obrigada por tê-la devolvido.

Anton irrompeu pelas portas francesas, assobiando uma canção de Gypsy e trazendo uma bandeja redonda com uma pizza cheirosa e recém-assada. Olhou para Lina e parou.

— Por que está chorando?! — Seus olhos faiscaram ao pousar em Perséfone. — Escute aqui, mocinha, se você a fez chorar, eu...

— Não, Anton, não é nada de ruim! — Lina sorriu entre lágrimas, enxugando o rosto com as costas da mão. — Perséfone me deu este colar, e ele é tão bonito que me fez chorar.

O rapaz relaxou.

— Perséfone? Como a deusa?

— Exatamente — replicou a moça.

— Também não me lembro de tê-la visto aqui antes. Como conheceu a nossa Lina? — ele indagou, intrigado.

Perséfone sorriu.

— Lina me ajud ou a crescer.

Anton pareceu confuso.

— Perséfone — Deméter chamou do outro lado do salão. — Precisamos ir.

— Anton, precisamos levar a pizza para viagem. Ah! Poderia, por favor, adicionar na caixa uma fatia grande de gubana? — pediu a deusa da Primavera.

— É claro! — ele respondeu, solícito. — Sua Majestade deseja mais alguma coisa? — Acenou com um gesto de cabeça na direção da mãe dela.

A moça riu com vontade.

— Apenas a conta, por favor.

— Eu pago — declarou Deméter e, com a dignidade típica de uma deusa, pôs-se de pé e caminhou até onde Anton esperava, na caixa registradora.

— Com o quê? — Lina sussurrou.

Perséfone encolheu os ombros.

— Anton! — interveio Lina, e ele se virou para ela.

— Com estas senhoras aceitaremos permuta. Apenas certifique-se de negociar bem...

Os olhos de Anton se arregalaram.

— Como quiser, patroa. Então, muito bem, minha rainha, o que tem a ofertar pela gubana, a pizza e o vinho?

Deméter ergueu o queixo.

— Eu prefiro o título de deusa. Rainhas têm reinos limitados demais.

— Como quiser, ó, deusa Regina Safra... O que estás a ofertar?

O sorriso de Deméter foi ardiloso.

— Gostaria de um pássaro falante?

— Não, querida. — Anton revirou os olhos. — Já temos animais em demasia circulando por aqui. Tente outra vez.

Perséfone puxou a manga de Lina.

— Deixe-os resolver isso sozinhos... Tenho mais uma pergunta.

— Qual?

— O que fez a Apolo?

— ... Nada — Lina respondeu.

— Nada? — Perséfone repetiu, confusa.

— Coisa nenhuma.

— Você rejeitou o deus da Luz? — A jovem deusa não teve a certeza de ter ouvido bem.

— Claro que sim. Costumo me interessar apenas por um deus de cada vez — ironizou Lina.

— Está falando a sério? — Perséfone segurou o queixo perfeito, pensativa. — Que conceito interessante!

— Vendido por uma coroa de ouro que provavelmente é falsa, mas que eu a-do-rei! — Anton gritou do outro lado, feliz da vida.


Capítulo 28

Hades não conseguia parar de olhar para o desenho que a pequena alma havia lhe dado.

— Gostou? — perguntou Eurídice.

— Como sabia? — A voz dele soou áspera e estranha até para seus próprios ouvidos. Quanto tempo se passara desde que tinha conversado com alguém? Não conseguia se lembrar. — Tenho pensa­do muito em Perséfone — prosseguiu a moça. — Comecei até a sonhar com ela... Mas, quando a vejo em meus sonhos, ela não é mais como era quando estava aqui. É difícil explicar, mas é como se a aparência dela nos meus sonhos fosse a mais correta. Então eu a desenhei dessa forma. Quando mostrei o esboço a Iapis, ele me disse que eu devia trazê-lo a você.

— Espero não ter me excedido, senhor — murmurou Iapis.

Hades continuou sem tirar os olhos do desenho.

— Não, meu velho amigo, não se excedeu. Tinha razão em querer me mostrar. — Ele se obrigou a desviar o olhar do esboço para fitar Eurídice. — Obrigado. Posso ficar com ele?

— É claro, senhor. Tudo o que eu criar será seu.

— Não, pequena alma — Hades respondeu, tristemente. — Qualquer coisa que criar ainda pertence a ela.

— Será que ela vai voltar para nós? — Eurídice perguntou.

O deus olhou para o desenho de Carolina. Suas feições mortais eram doces e gentis, seu corpo, cheio e feminino.

Sentiu uma estranha agitação só de olhar para a imagem e fechou os olhos, bloqueando-a em sua mente. Ele não tivera forças para confiar nela, e, por conta disso, ela quase havia perdido a alma para o Tártaro. Em seguida retornara do abismo apenas para ser traída e ferida por suas palavras duras e impensadas. Ele não merecia seu amor.

— Não — murmurou. — Não acredito que ela voltará para nós.

Eurídice deixou escapar um lamento, e, quando Hades abriu os olhos, viu Iapis tomando-a nos braços.

— Acalme-se — o daimon falou baixinho. — Onde quer que ela esteja, não deve ter se esquecido de você. Ela a amava.

— Deixem-me, por favor — Hades interveio asperamente.

Iapis fez um sinal para Eurídice ir, porém permaneceu nos aposentos de seu senhor. Sua preocupação com o deus era grande. Hades já não andava de um lado para o outro, frustrado. Não descontava sua revolta na forja. Recusava-se a comer e quase nunca dormia. Atendia seus súditos, julgando os mortos como se ele próprio estivesse entre eles, condenado a vagar eternamente pelas margens do Cócito, o rio da Lamentação.

Quando Perséfone tentara visitá-lo, Iapis havia sentido uma ponta de esperança diante da raiva demonstrada por Hades. Mas isso tinha durado pouco. Tão logo a deusa da Primavera deixara o Submundo, Hades se fechara outra vez. O deus não podia continuar como estava, entretanto Iapis não via nenhuma luz no fim do túnel. O tempo parecia inflamar ainda mais a ferida do deus sombrio em vez de curá-la.

— Iapis, você sabe o que acontece quando almas gêmeas são separadas? — Hades perguntou de repente. Estava parado em frente à janela que dava para os jardins adjacentes à floresta de Elísia que acabavam levando ao rio Lete.

— Almas gêmeas sempre se reencontram, o senhor sabe — respondeu o daimon.

— Mas o que acontece se elas não puderem encontrar uma a outra, ou se uma delas fez algo imperdoável? — Ele se virou para olhar o amigo.

— Não consegue perdoá-la, Hades?

O deus piscou e focalizou melhor o rosto de Iapis.

— Eu já a perdoei. Ela estava apenas cumprindo seu juramento a Deméter. O senso de honra de Carolina não lhe permitiria trair sua palavra, nem mesmo por amor. É a mim mesmo que eu não consigo perdoar.

— Como assim, senhor?

— Carolina Francesca Santoro é uma mortal com a coragem de uma deusa, e eu a feri pela mais cretina das razões, apenas para ­salvaguardar meu orgulho. Por isso não posso perdoar a mim mesmo. Assim sendo, como posso esperar isso dela?

— Talvez a situação seja parecida com a noite em que a insultou — lembrou Iapis com calma. — Basta perguntar e se mostrar disposto a ouvir a resposta.

Hades sacudiu a cabeça e se virou para a janela.

— Ela desnudou sua alma para mim, e eu a traí. Agora Carolina está além do meu alcance.

— Mas, se concordasse em ver Perséfone...

— Não! — Hades rosnou. — Não vou receber uma deusa frívola que zomba da alma que residiu em seu corpo.

— Hades, não pode afirmar que a deusa zomba de Carolina!

— O Cérbero a repeliu, Órion a detestou, os mortos a consideraram uma impostora... Isso basta para mim — insistiu o deus.

— Perséfone é uma deusa muito jovem.

— Ela não é Carolina.

— Não, não é — o daimon concordou com tristeza.

— Deixe-me agora — pediu Hades.

— Sim. Mas, antes, permita-me providenciar um banho e roupas limpas para o meu senhor.

Quando Hades começou a protestar, Iapis desabafou:

— Não consigo me lembrar da última vez em que tomou banho ou mudou de roupa. Está pior do que os recém-falecidos!

Os ombros poderosos de Hades caíram.

— Se eu tomar banho e mudar de roupa, vai me deixar em paz? — ele indagou, sem olhar para o daimon.

— Por algum tempo.

Hades quase sorriu.

— Então que assim seja, meu amigo.


Hades se acomodou na água quente da banheira de mármore negro, construída no chão do quarto de banho, e descansou de encontro à borda larga. Uma taça de vinho tinto e uma bandeja de prata cheia de romãs e queijo fora deixada ao seu alcance. As poucas velas acesas brilhavam suavemente em meio ao vapor que subia, tal como o luar em meio à neblina.

Bebeu o vinho com gosto. Não tinha apetite e ignorou a comida, mas o vinho o deixava mais leve. Talvez, apenas naquela noite, ele pudesse beber até esquecer. Quem sabe, assim, poderia dormir sem sonhar com ela.

Em um gole, esvaziou a taça e olhou na lateral, querendo mais. Iapis deixara o jarro perto o suficiente para que ele não tivesse de abandonar o calor reconfortante da banheira.

— Aquele daimon pensa em tudo... — resmungou consigo mesmo.

— Nem tudo.

Hades pulou ao som da voz e deixou cair a taça, que tilintou ao tombar no mármore.

Perséfone soprou o vapor e este se dissipou, tornando-a visível para Hades. Ela também descansava na borda da enorme banheira, à sua frente, e, embora estivesse submersa na água até os ombros, seu corpo nu se encontrava tão à vista como o dele.

Os olhos da deusa se arredondaram com surpresa. Carolina não era nenhuma tola... Ela mesma não fazia ideia de que o sisudo senhor do Submundo fosse tão delicioso.

— Olá, Hades... Não creio que tenhamos sido formalmente apresentados. Sou a deusa Perséfone, da Primavera.

Ele desviou o olhar do dela e saiu da banheira de um salto, vestindo um manto. Perséfone o viu cerrar a mandíbula e, quando o deus falou, foi forçando as palavras por entre os dentes.

— Afaste-se de mim! Eu me recusei a vê-la.

— Eu sei, mas estou com um problema e você é o único deus que pode me ajudar a resolvê-lo, embora Apolo seja definitivamente mais hospitaleiro. E, sem dúvida, ele se mostraria bem mais disposto a me ajudar nesta empreitada em particular... — Ela correu os dedos pela água quente. — Depois de eu ter falado com Lina, entretanto, parece que você é o meu único recurso.

— Apolo! — Hades exclamou com desdém. — O que ele tem a ver com Carolina?

— Nada. Mesmo que ele deseje o contrário.

O restante do que Perséfone dissera finalmente rompeu o choque de Hades.

— Falou com Carolina?

— Sim, falei. Na verdade, acabei de deixar sua padaria — contou a deusa, presunçosa.

Hades prendeu a respiração.

— Ela está bem?

— Em excelente forma, e seu negócio vem prosperando a cada dia.

Ele observou sem ver o vinho que tinha espirrado no chão.

— Que bom. Fico feliz por ela estar...

— Ainda não terminei — Perséfone o interrompeu e, sacudindo os dedos acima da superfície da água, fez chover as gotas sobre ele.

— Então termine de uma vez. — Hades a fulminou com o olhar.

— O que eu ia dizer era que o corpo dela está lindo, seu negócio vai bem, porém Lina continua arrasada.

— Eu... Ela... — O deus começou e depois parou, passando a mão pelo cabelo úmido.

— “Eu... Ela”, o quê? — provocou Perséfone. — Lina me disse que às vezes era difícil fazê-lo relaxar, mas que, se eu fosse obstinada o suficiente, poderia levá-lo a falar.

Hades sentiu que enrubescia, mas estreitou os olhos.

— Ela queria que você falasse comigo? Por quê?

— Ah... Duvido que ela estivesse querendo que nós nos encontrássemos. Só disse isso porque acha que está apaixonado por mim.

Hades bufou.

— Isso é ridículo!

— Obrigada pela gentileza.

— ...Eu não quis ofendê-la — ele se desculpou depressa.

— Eu sei, eu sei. — Perséfone suspirou. Afastou os cabelos do rosto, e um de seus seios despontou por cima da água, o mamilo cor de malva apontando diretamente para ele.

O deus engoliu em seco e desviou o olhar, concentrando-se no prato de frutas e queijo.

— Acho melhor conversarmos no quarto. — Apontou para um armário próximo. — Há roupas ali com as quais poderá se cobrir.

— Espere! — Perséfone chamou antes que ele saísse do banheiro. — Há algo que Lina e eu precisamos saber.

Hades a fitou, tomando o cuidado de manter os olhos focados em seu rosto.

— Fique onde está — prosseguiu a deusa. — Acredito que isso seja muito importante para nós três.

— O que precisa saber? — ele indagou, exasperado.

— Isto... — Perséfone se levantou.

A ág ua quente escorreu por sua pele lisa. As pontas de seus seios estavam rijas como se tivessem acabado de ser acariciadas, e seu corpo continuava tão esguio e extraordinário quanto ele se lembrava.

Hades olhou para a deusa enquanto ela saía lenta e graciosamente da banheira, para depois caminhar, sedutora, em sua ­direção. Quando se aproximou dele, Perséfone parou, ergueu os braços e o enlaçou pelo pescoço. Então apertou o corpo nu contra o dele e o fez colar a boca na sua.

Os lábios do deus tomaram os dela, e ele a abraçou instintivamente.

Mas não sentiu nada. Exceto pela familiaridade com o corpo curvilíneo e a boca quente e macia, Perséfone não o comoveu. Era como se ele segurasse uma estátua maleável. Delicadamente, porém com firmeza, Hades se afastou dela.

Perséfone deixou seus braços de bom grado.

— Então não é este o corpo que você deseja.

— O que eu desejo não mudou, nem vai mudar. Desejo apenas uma mulher na vida, e pouco importa o corpo que ela habita.

Por um instante, Hades pensou ver tristeza nos olhos da jovem deusa, porém esta logo se foi e, quando Perséfone sorriu, seu ar juvenil tinha voltado.

— Bem... Obrigada por nos esclarecer essa dúvida.

— De nada.

Ele buscou um manto no armário, e a deusa o vestiu. Em seguida, apanhou a taça do chão e a jarra de vinho.

— Agora, tudo o que temos de fazer é encontrar uma forma de fazer Lina acreditar nisso — decidiu a moça.

Caminharam para os aposentos de Hades, e Perséfone olhou ao redor.

— Lindo quarto!

— Obrigado. Fique à vontade enquanto vou apanhar outra taça.

Perséfone foi até a janela envolta e m veludo. Puxou de lado a cortina e olhou a vista fantástica, proporcionada pelos jardins escalonados, as estátuas em meio à bem cuidada vegetação, e as milhares e milhares de flores brancas, as quais eram banhadas por uma luz suave e incomum.

— O vinho — anunciou Hades.

Ela se afastou da janela.

— Lina tinha razão quando disse que isto tudo parece um sonho.

As palavras fizeram doer o coração do deus.

— Por que está aqui, Perséfone?

A moça ajeitou o cabelo para trás e sorriu.

— Tenho uma proposta para lhe fazer...

— Eu ainda não entendo como ajudá-la. Carolina recusou a sua proposta! Não pode obrigá-la a essa troca — Hades concluiu enquanto andava de um lado para outro à frente de Perséfone.

Ela levantou uma sobrancelha.

— Não posso?

— Não vai forçá-la. — As palavras de Hades soaram firmes, porém ele sentiu sua resolução enfraquecer. Carolina poderia voltar! Ele poderia tocá-la e conversar com ela novamente... E, sem dúvida, poderia convencê-la de seu amor.

Não, pensou, sacudindo a cabeça. Ela já havia sofrido bastante. Não permitiria que Lina fosse obrigada a fazer algo que ela mesma não acreditava poder suportar.

— Vocês dois são os reis da teimosia! Você se recusa a obrigá-la a vir; ela se recusa a vir de livre e espontânea vontade... — Perséfone suspirou. — Precisa encontrar uma maneira de convencê-la a retornar sem ser forçada, então.

— Como? — Hades quase cuspiu a palavra.

Perséfone caminhou até ele e colocou a mão em seu braço.

— Se precisar de mim, pode me chamar por meio do oráculo de mamãe. — Num impulso, beijou-o no rosto.

Hades acariciou a mão delicada e deu-lhe um sorriso cativante e paternal.

— Perdoe a minha grosseria. Deuses antigos às vezes podem ser caprichosos.

Perséfone sorriu de volta para o deus que era tão obviamente apaixonado por Carolina. — Está perdoado — falou e desapareceu.

A forja ardia com um calor de outro mundo. O suor escorria do corpo de Hades em uníssono com a batida de metal contra metal, porém o deus nem sequer tinha consciência do seu entorno.

Carolina ainda o amava!

Precisava encontrar uma forma de reparar o dano que havia causado, de maneira que ela confiasse nele novamente. Mas como?

— Está parecendo uma velha solteirona, senhor dos Mortos.

Hades virou para identificar a voz sarcástica e precisou apertar os olhos contra a luz ofuscante.

— Apolo! Você e sua luz exagerada não são necessários aqui — ele rugiu.

— Ah, sim, eu sempre me esqueço... — Apolo passou a mão no rosto, e o fulgor que o envolvia desapareceu. — Está melhor assim?

— Não me lembro de tê-lo convidado a vir ao meu reino.

— Eu tinha de vir. Precisava ver como estava a outra metade desse amor desperdiçado.

Hades se encheu de raiva.

— Não está querendo dizer que...

— E o que vejo aqui é bem menos atraente do que a versão mortal — o deus do Sol interrompeu seu discurso.

— De que mortal está falando? — exigiu Hades.

— De Carolina, claro. Sabia que ela me rejeitou? Estava mais interessada nas minhas éguas do que em mim. — Apolo riu. — Enquanto eu achava que ela era Perséfone, suas atitudes me confundiam. Quando descobri que ela era uma mortal no corpo de uma deusa, fiquei estupefato. E, depois, ainda soube que ela havia preferido você a mim... Inacreditável.

Hades estreitou os olhos para o jovem deus.

— Não acho que seja assim, tão surpreendente.

— Pois devia. — Apolo sorriu. — As mortais me acham irresistível.

— Carolina é bem mais exigente do que a maioria das mortais.

— E mais fiel também. Ela já recusou ao menos um homem desde que voltou ao próprio mundo. — Apolo lançou um olhar avaliador na direção de Hades. — E, como ele é apenas um mortal, é definitivamente mais jovem do que você...

— Andou espionando a moça? — Hades rosnou.

— Não foi o que eu disse?

— Não!

— Acho que essa sua choradeira pelo seu amor perdido afetou a sua audição. Lembro-me muito bem de ter dito que...

Em dois passos, Hades alcançou Apolo e agarrou o deus pelo pescoço, erguendo-o do solo.

— Diga-me como pôde vê-la! — trovejou, irado.

— Por meio do oráculo de Deméter, ora! — o jovem deus respondeu, esganado.

Hades deixou cair o deus da Luz e saiu correndo da ferraria.

— Selem Órion! — gritou, ofegante.

Dentro da ferraria, Apolo esfregou o pescoço e alisou as vestes amarrotadas.

— Missão cumprida... Agora está em débito comigo, Deméter — murmurou antes de desaparecer.


Capítulo 29

— É fevereiro, mas parece abril. — Lina suspirou, feliz. — Adoro quando o clima em Oklahoma está assim — disse a Edith Anne, que trotava alegremente a seu lado.

Tinha levado algum tempo para se acostumar com os patins. Não que seu corpo não soubesse o que fazer. Sua mente era que insistia em pensamentos como “Esse chão é muito duro!” ou “Devagar, assim vai cair e quebrar alguma coisa!”

Dessa forma, mesmo após vários meses de prática, Lina ainda patinava devagar, acariciando a calçada de cimento que corria ao longo do rio Arkansas com passadas controladas e cuidadosas.

— À sua esquerda! — Alguém gritou atrás dela, e Lina passou para o lado direito da calçada.

— Obrigada! — gritou quando uma bicicleta de corrida passou voando.

— De nada! — o piloto berrou de volta.

— Eu gosto quando eles fazem isso — Lina falou à buldogue, que mantinha o ritmo a seu lado, na grama que começava a verdejar.

Edith resmungou.

— Fico assustada quando alguém simplesmente passa por nós sem qualquer aviso. Aquele sujeito da bicicleta amarela e enorme quase me derrubou na semana passada! — Ela se abaixou e brincou com a orelha de Edith. A buldogue bufou outra vez e lambeu sua mão. — Acho que eu deveria prestar mais atenção ao redor, ainda mais quando tudo está calmo como nesta noite. Mas ela é sempre tão bonita!

Sorriu. O início da noite era o seu momento favorito para andar de patins. O pôr do sol em Oklahoma costumava ser glorioso e, às vezes, conforme o astro descia sobre o rio Arkansas, sua luz se refletia fora da água numa mistura de rosa e laranja com azul e cinza, lembrando a magia de Elísia.

Mas não a deixava tristonha. O tempo a ajudara nesse ponto. Gostava da lembrança em pequenas doses, pois esta a ajudava a manter o vazio sob controle.

Edith Anne parou para cheirar uma moita particularmente interessante, lotada de ervas daninhas.

— Ei, fique comigo! Se começar a se sujar com lama ou cardos, terá de tomar um banho quando chegarmos em casa.

A cadela ainda resmungou um par de vezes para as ervas daninhas antes de correr atrás dela outra vez.

Lina desacelerou para que Edith a alcançasse, e pensou ouvir cascos de cavalo ao longe.

Interessante , pensou. O tempo devia estar bom o suficiente para que o estábulo à beira do Arkansas tivesse aberto mais cedo. Passeios a cavalo ao longo do rio eram um excelente negócio enquanto o clima ajudava, mas não costumava funcionar antes de abril. Como havia perdido o anúncio no jornal? Normalmente, gostava de postar coisas assim na padaria.

Fez uma anotação mental para ve rificar aquilo no dia seguinte.

Com a buldogue a seu lado outra vez, Lina retomou o ritmo. Já percorrera quase sete quilômetros, sua respiração se mantinha normal e suas pernas continuavam firmes. Estava feliz por ter acrescentado os patins em sua rotina semanal. Não apenas para manter o corpo em forma, mas também para que ele a ajudasse a pensar.

E tinha tanto o que pensar desde a visita de Perséfone!

Merda! Ficara tentada pela proposta da deusa. Como não poderia? Retornar ao Submundo como sua rainha... Não havia nada no mundo de que gostaria mais.

Não , corrigiu-se. O que ela mais gostaria era do que a estava impedindo de aceitar a proposta de Perséfone...

Pensara no assunto incessantemente durante os longos meses de inverno. Pensara até mesmo em telefonar para a avó e lhe pedir conselhos. Sem que esta pensasse que ela fosse se comprometer.

Às vezes achava que Deméter tinha razão, que ela havia cometido um erro.

Mas, então, se lembrava de como Hades se afastara dela no momento em que ela se revelara.

“Saia do meu reino” fora sua sentença ao ver a verdadeira Carolina.

Suspirou. O tempo ajudara a curá-la, mas lembrar as palavras ainda fazia doer sua alma.

E era quase primavera. Perséfone voltaria em breve em busca de uma resposta.

Respirou profundamente e manteve o ritmo enquanto ponderava pela milésima vez qual deveria ser sua decisão. Inconscientemente, tocou o narciso de ametista que trazia sempre pendurado ao pescoço.

Não poderia retornar, mas queria tanto fazer isso! Até sonhava com a volta ao Submundo.

Não poderia, no entanto. Talvez fosse uma covarde, mas não desejava se arriscar. Tinha levado tanto tempo para cicatrizar... Não queria que a ferida se abrisse novamente.

Diria “não” a Perséfone. Talvez a deusa pudesse encontrar outra mortal com que trocar de lugar. A própria Dolores era ativa na Sociedade do Anacronismo Criativo... Provavelmente teria muito interesse em perambular pelo Monte Olimpo e brincar com as ninfas enquanto a jovem deusa assava pães.

O pensamento fez Lina rir. Ela poderia até tirar longas férias e deixar a padaria nas mãos da Dolores / Perséfone. E a Itália era tão linda na primavera!

Enquanto planejava suas férias no velho continente, notou que o ruído de cascos de cavalo vinha se aproximando cada vez mais rápido. Já estava indo para a borda do passeio quando um alegre relinchar cortou o ar.

Seu coração deu um salto ao reconhecê-lo, e ela se virou no exato momento em que uma enorme silhueta negra se avultava sobre ela e um focinho escuro quase colidia com seu rosto. Órion alternou relinchos com bufos, acariciando seus cabelos e ombros.

Em estado de choque, Lina só pôde se agarrar aos arreios do cavalo e esperar que, em seu entusiasmo, ele não a derrubasse.

— Quem se atreve a tocar o temível cavalo de Hades?

As palavras foram as mesmas que ele proferira havia muito tempo, porém seu tom era muito diferente: repleto de amor e saudade.

Lina ergueu o olhar. Hades encontrava-se sentado na sela lustrosa e tinha substituído as roupas arcaicas por uma camisa preta de corte moderno, cujas mangas deixavam à mostra os braços musculosos. Também vestia jeans e as botas típicas dos cowboys de Oklahoma. Os cabelos estavam puxados para trás, e os olhos cintilavam.

Ela o fitou sem nada dizer, sentindo a simples visão do deus reabrir a ferida recém-curada em seu coração. Durante todos aqueles meses obscuros do inverno, ele a deixara sozinha.

E fora tanto tempo... tanta dor.

A súbita onda de raiva a surpreendeu.

Hades tentou sorrir, porém seus lábios tremeram de leve.

— Perguntou quem se atrevia a tocar seu temível cavalo, Hades... — As palavras de Lina soaram entrecortadas pela emoção. — Então permita que eu me reapresente. Sou Carolina Francesca Santoro, uma mortal de meia-idade nascida em Tulsa, Oklahoma, e dona de uma padaria. E eu não me atrevi a tocar o seu temível cavalo. Foi ele quem enfiou o focinho em minhas mãos outra vez.

Hades sentiu as palavras entrando como facas no peito, mas não podia culpá-la por sua revolta. Ele a compreendia.

No entanto, não permitiria que Carolina o fizesse desistir.

Passou a perna por sobre a sela e desmontou. Queria se aproximar dela, erguê-la nos braços... Porém Lina o fitava com um olhar frio, fixo e nada acolhedor.

— Esqueceu-se de um título na sua apresentação, Carolina — pronunciou o nome dela como numa prece.

— Não creio. Sei exatamente quem sou — ela rebateu. Hades não tinha se aproximado dela; mesmo assim, Lina deu um passo para trás.

— Eu também. É Carolina Francesca Santoro, mortal de meia-idade nascida em Tulsa, Oklahoma, dona de uma padaria... e ­rainha do Submundo — ele completou num murmúrio.

Lina sentiu um tremor cortá-la dos pés à cabeça e se agarrou à sua raiva, temendo que, se esta se fosse, seu coração partisse em mil pedaços.

— Sinto muito, senhor. Deve estar confuso. A deusa Perséfone é a rainha do Submundo. Eu era apenas uma substituta temporária, e nem estava à altura do trabalho.

— Seus súditos não pensam assim, Carolina. Ele apontou para Órion, que esticou o pescoço de modo a mordiscar seu ombro enquanto ela lhe acariciava o focinho.

— Os animais sempre gostaram de mim.

Como se para comprovar suas palavras, Edith Anne pulou em suas pernas, contorcendo-se para chamar a atenção. Órion bufou e se curvou para soprar a buldogue.

— Ele me lembra um pouco o Cérbero... — Hades apontou o cachorro atarracado com um gesto de cabeça, tentando sorrir de novo, sem muito sucesso.

— Ele é ela . E ouvi dizer que Edith Anne é mais educada do que o seu Cérbero tem sido ultimamente — observou Lina, mordendo o lábio em seguida. Não deveria conversar com Hades.

— O Cérbero tem faltado com as boas maneiras sem dúvida porque sente a ausência de sua rainha, assim como o resto do Submundo.

— Um cachorro e um cavalo não são vassalos de ninguém. E eu não sou nenhuma rainha. Sou uma mortal. Não tenho nenhum súdito.

Hades voltou à sela de Órion e tirou uma tela enrolada que tinha alojado no pomo.

— Eu trouxe uma coisa para você. Eurídice queria que eu ficasse com isto, mas eu a convenci de que este trabalho lhe pertencia. Ela ainda se vê como a artista particular da deusa da Primavera, embora sinta muito a falta de sua senhora.

— Eu não sou... Não quero... — Lina balbuciou, sentindo uma onda de saudade ao pensar na moça.

Hades se aproximou dela. Nos meses em que haviam ficado separados, Lina se esquecera de seu tamanho. Ele parecia cercá-la por todos os lados.

E, mesmo vestindo roupas modernas, parecia sombrio e devastadoramente bonito.

Seu Batman.

— A pequena alma falou que isto foi um sonho que ela teve com você. E disse que se sentiu bem.

Hades estava tão perto que ela podia sentir o calor de seu corpo.

Sem palavras, Lina tomou a tela de suas mãos. Desenrolou-a e soltou uma exclamação.

— Mas sou eu!

Era ela mesma, a mortal Carolina Francesca Santoro. Seu corpo, seu rosto, seu sorriso... E não Perséfone.

Quando olhou com mais atenção para a imagem que Eurídice havia tirado de um sonho, seus dedos começaram a formigar e, de repente, uma torrente de emoção passou da tela para sua alma. Em meio a esta, ela pôde ouvir as vozes de milhares de mortos. Eles clamavam por ela, pedindo que sua rainha retornasse.

Lina sentiu as mãos tremerem, e a mágoa dentro dela começou a se dissipar.

— Seus súditos a reconhecem e clamam por você, Carolina — Hades falou suavemente.

— Pena que o próprio deus deles não tenha me reconhecido — ela retrucou, sem encará-lo.

— Não há nenhum deus ou senhor aqui... — A voz de Hades falhou, e ele precisou fazer uma pausa antes de continuar. Segurou o queixo de Lina e ergueu seu rosto de forma que ela o fitasse nos olhos. — Esta noite sou apenas um homem que procura desesperadamente por sua alma gêmea. Ela se separou de mim por conta da minha loucura, e eu tinha que perdoar a mim mesmo antes de encontrá-la e pedir que ela... Não chore, minha amada! — pediu, quando lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Lina.

— Você se afastou de mim! — ela acusou em meio a dolorosos soluços. — Quando viu quem eu realmente era, não me quis!

— Não! — Ele a puxou para os braços e a apertou contra o peito. — Eu não lhe dei as costas... Foi o orgulho que incitou as minhas palavras e ações.

— Porque não quis o amor de uma mortal de meia-idade — Lina replicou, a voz abafada de encontro a ele.

A risada de Hades soou como um soluço.

— Não. Foi porque eu estava apavorado em ter perdido a alma para uma mulher que poderia não querer nada mais do que um flerte com um deus inexperiente, sobre o qual ela poderia se gabar.

Lina ergueu os olhos para os dele.

— Eu disse a Deméter que você não havia ficado com qualquer outra deusa porque estava tentando convencê-la de que era diferente.

— Eu sei, minha querida. Perdoe o orgulho de um deus velho e solitário. — Os lábios de Hades finalmente esboçaram um sorriso. — E, por favor, volte para casa.

Em resposta, ela o puxou para um beijo.

— Carolina! — Hades soprou seu nome contra os lábios macios. — Minha alma ardeu tanto por você, minha eterna amada!

Antes que a beijasse novamente, contudo, Órion o cutucou por trás, e a cadela robusta farejou seus pés.

Ele olhou para baixo, fazendo uma careta para os rastros de saliva em suas botas.

— Órion, pare com isso! — ralhou Lina, empurrando a cabeça enorme e negra de lado. — E, Edith Anne, fique quieta! Está estragando as botas novas dele!

Hades jogou a cabeça para trás e riu. Em seguida, ergueu sua rainha nos braços e, pondo-a na sela do garanhão, montou atrás dela com uma vitalidade pouco comum para um mortal.

— Hades! O que está fazendo?

— Tirando-a do alcance desses animais. — Passou um braço em torno de sua cintura e a puxou contra ele.

— Mas, Edit h Anne...

— Não se preocupe. Órion irá devagar. Não vamos perder sua cadela.

Segurando-a com firmeza, ele estalou a língua em sinal para o cavalo. Órion virou a cabeça e bufou, mas começou a andar lentamente, de modo que a buldogue não teve problemas para trotar a seu lado.

O deus voltou sua atenção para Carolina.

— Não temos muito tempo antes que a primavera venha para o seu mundo. Talvez queira me mostrar um pouco desse reino que você chama de Tulsa... — murmurou, acariciando os suaves cachos castanhos que haviam se formado na nuca de Lina.

Na verdade, não estava sendo fácil para ele se conter. Sua vontade era amá-la ali mesmo.

Pensou em como o novo corpo de Carolina era sedutor e feminino. Ela era suave, perfumada e deliciosamente convidativa.

Lina virou-se e sorriu para ele de cenho franzido.

— Conhece o plano de Perséfone?

— Quem não conhece? — ele respondeu, bem-humorado.

— Estou começando a achar que ele pode dar certo... — Ela sorriu.

— Eu também.

Hades se inclinou para reivindicar seus lábios, porém Lina o empurrou de leve.

— Espere um minuto... Não devia estar aqui! Certamente não pode ficar por muito tempo, pois não há ninguém ocupando o seu lugar no Submundo.

— Não. — Ele sorriu para sua rainha, a alma leve. — Mas, às vezes, até mesmo a morte precisa de um descanso.

Quando seus lábios se encontraram, o sol tocava a margem do rio. Fez uma pausa ali e emitiu mais um feixe breve e intenso sobre os amantes antes de desaparecer no horizonte.


Nesta data, Tulsa lamenta o falecimento de uma matriarca local, Carolina Francesca Santoro. Filantropa e restaurateur , a sra. Santoro era também uma conhecida amiga dos animais. Dona Carolina não deixa herdeiros biológicos, contudo sua falta será sentida por muitos que a consideravam como parte da família. Por décadas sua cadeia de padarias Pani Del Dea foi parte vital de muitas comunidades de Oklahoma. Suas unidades são muito conhecidas por sua especialidade, o cream cheese de ambrosia. A receita para este delicioso queijo é um segredo bem guardado há mais de meio século.

Mas não se preocupem, fregueses assíduos da Pani Del Dea. Antes de sua morte, a sra. Santoro compartilhou a receita com uma parente italiana, sua sobrinha-neta Perséfone Libera Santoro, que assumirá a posição de acionista majoritária da Pani Del Dea S.A. A jovem srta. Santoro anunciou que dividirá seu tempo entre Oklahoma e a Itália e, fazendo jus a seu nome, Perséfone passará cada primavera e verão conosco em Tulsa.

Assim, para honrar a memória de sua tia-avó, vamos dar a ela o nosso caloroso “Olá” de Oklahoma!

Tulsa World,

21 de março de 2055

Lina sentia-se um pouco sem fôlego e deslocada, o que era no mínimo irônico. Estava, afinal, vestindo sua própria pele.

— Provavelmente é porque agora sou uma dos recém-falecidos — murmurou consigo mesma, estendendo os braços e olhando com espanto para a luminosidade do próprio corpo, o qual parecia mais substancial do que o dos mortos que costumava ver.

Também ficou contente por este ter assumido uma forma bem mais jovem do que antes de sua morte. Surpresa, percebeu que tinha se materializado no seu corpo de 43 anos e riu.

— A idade em que eu o conheci! — falou, contente.

O túnel se estendia diante dela, negro e sem fim, porém a escuridão não a intimidou, e ela avançou, confiante, sem nem mesmo olhar uma última vez para a luz do mundo mortal que nunca mais vislumbraria.

De repente, uma pequena bola incandescente surgiu acima de seu ombro, e Lina soltou uma exclamação, surpresa.

— O que está fazendo aqui?!

A esfera dançou a seu redor, ondulando tal qual um cachorrinho.

Ela nem precisava ter perguntado. Sabia quem tinha enviado a luz.

— Obrigada, Perséfone! — falou para o vazio.

Caminhou rapidamente através do grupo de lindas árvores-fantasmas, agora conhecidas como o Bosque de Perséfone e, como sempre, admirou a superfície cintilante de suas folhas.

Deixou o arvoredo e piscou, surpresa. Diante dela, a estrada de ônix que levava ao palácio de seu amado se estendia, como de costume, até os portões cor de pérola, mas, desta vez, os portões se encontravam abertos, e, atrás deles, havia uma multidão de silhuetas insubstanciais e incandescentes.

À frente da massa fervilhante estava Hades, tendo Órion a um lado e, do outro, Eurídice e Iapis.

Ao vê-la, o garanhão soltou um relincho estridente de alegria, dando-lhe as boas-vindas. Eurídice cobriu a boca pálida com a mão e, com a outra, acenou alegremente para sua senhora, enquanto lágrimas de felicidade escorriam por seu rosto.

Quando Hades começou a se mover em sua direção, porém, o mundo inteiro de Lina se estreitou, convergindo apenas para ele. O deus caminhou até ela, os olhos sorrindo, cheios de emoção.

Quando parou à sua frente, por fim, estendeu a mão e, num gesto já familiar, acariciou-lhe o rosto.

— Seja bem-vinda, minha amada.

Lina sorriu para sua alma gêmea.

Hades virou-se para encarar a turba. Com a capa revoando às suas costas, ergueu os braços vitoriosamente sobre a cabeça.

— Ela voltou! — gritou, a voz soando como um trovão.

Gritos de louvor erigiram dos mortos, ecoando no Submundo e se espalhando por todo o Olimpo.

— Alegrem-se! Nossa rainha chegou para nunca mais partir!

Em seu trono no Olimpo, Deméter ergueu a própria taça e tocou a de Perséfone em comemoração do final feliz de Carolina Francesca Santoro.

— Muito bem, minhas filhas — murmurou a deusa. — Muito bem.


Descubra o que irá acontecer em


DEUSA DA ROSA


o próximo livro da série

Goddess


Prólogo

Era uma vez, quando os homens ainda acreditavam que havia deuses e deusas na Terra, foi concedido a Hécate, grande Deusa da Noite, domínio sobre os caminhos trilhados pelo homem. A deusa da escuridão levou a sério sua missão, e passou a vigiar não somente as estradas e caminhos dos mortais, como também a proteger o percurso entre os sonhos e a realidade, entre o corpóreo e o etéreo.

Seu domínio era o lugar onde todos os sonhos, e também a magia por eles criada, se originava. Assim, a Deusa da Noite foi denominada Deusa da Magia, e também Deusa das Feras e da Lua Negra.

Sempre vigilante, Hécate convocou uma antiga e monstruosa fera para servi-la. De bom grado, esta jurou ser a guardiã da Deusa e obedecer-lhe às ordens. A criatura era a fusão perfeita entre homem e fera; filho do Titã Cronos, era um ser como nenhum outro. E, como recompensa por sua lealdade, Hécate o presenteou com o coração e a alma de um homem. Embora sua aparência fosse monstruosa, a deusa sentiu-se segura ao lhe confiar a proteção da fronteira dos caminhos que conduzem ao mundo mágico.

Este lugar foi batizado de Reino das Rosas, e aquelas que ali serviam a deusa foram chamadas de Sacerdotisas do Sangue. Durante séculos, o Guardião permaneceu fiel, seguindo os ditames de sua missão sagrada, pois era tão honrado quanto influente, e tão sábio quanto poderoso. Até um dia de Beltane 1. ...

O Guardião conhecia o seu dever. Mas, Céus! , até mesmo um protetor podia se cansar... E não cometera nenhum deslize por crueldade ou ganância. Seu único erro fora amar sem reservas. Mas ele quebrara a confiança de sua deusa e, em um rompante de raiva, Hécate lançara um feitiço sobre ele e sobre o Reino das Rosas: o reino não teria mais nenhuma Alta Sacerdotisa, e o Guardião dormiria eternamente, a menos que fosse despertado por uma mulher que carregasse o sangue mágico das Sacerdotisas de Hécate e fosse sábia o suficiente para enxergar a verdade, e compassível o bastante para passar por cima dela...

E, assim, o Reino das Rosas se desesperou, e o Guardião adormeceu enquanto sua deusa esperava.


Parte 1

Capítulo 1

— Andei tendo aqueles sonhos de novo.

Nelly se ajeitou na cadeira e deu a Mikki um de seus olhares mais clínicos.

— Gostaria de me contar sobre eles? – Nelly perguntou.

Mikki desviou o olhar da amiga. Será que ela gostaria de compartilhá-lo? Descruzou e tornou a cruzar as pernas longas, passou a mão nervosamente pelos cabelos e tentou se acomodar na poltrona.

— Antes de eu responder a essa pergunta, quero que responda a uma minha.

— É justo — concordou Nelly.

— Se eu lhe contar os meus sonhos, como vai ouvi-los? Como minha amiga ou como minha psiquiatra?

A médica riu.

— Por favor, Mikki! Estamos em uma lanchonete, não em meu consultório! Você não está pagando cento e vinte dólares por hora para eu ficar sentada aqui com você. E não vamos nos esquecer: — Ela se inclinou para a frente e exagerou no sussurro. — É minha amiga há anos, mas nunca foi minha paciente!

— É verdade. Mas não por falta de assunto.

— Ah, sem dúvida — Nelly concordou com sarcasmo. — E então? Vai me contar sobre os sonhos, ou terei de usar meus truques de psiquiatra para dissuadi-la?

— Tudo menos isso! — Mikki levantou as mãos como para se defender de um ataque. Encolheu os ombros. — Eles são iguais aos outros.

Nelly ergueu as sobrancelhas significativamente.

— Está bem! — Mikki suspirou e revirou os olhos. — Talvez tenham mudado um pouco.

— Consegue ver o rosto dele agora? — a outra moça perguntou, gentil.

— Quase. — Mikki fixou o olhar em um ponto qualquer da aconchegante lareira de tijolos. — Na verdade, acho até que vi seu rosto desta vez, mas...

— Mas?

— Eu estava tão preocupada que não consegui me concentrar nele — ela elaborou, apressada.

— Preocupada?

Mikki parou de olhar para a lareira e encontrou os olhos da amiga.

— Preocupada em ter o sonho mais erótico da minha vida! Não dei a mínima para o rosto dele.

— Ora, ora, ora — Nelly comentou surpresa. — Não me lembro de ter falado em sexo nos outros sonhos. Agora estou realmente interessada nessa história.

— Isso porque eles não... ou talvez eu... Ah, não sei. Por alguma razão, os sonhos estão mudando. — Ela se esforçou para descrever o que estava acontecendo. — Estou dizendo, Nelly, os sonhos estão ficando cada v ez mais reais.

O brilho de diversão deixou os olhos escuros da outra moça, substituído pela preocupação.

— Diga-me, querida. O que está acontecendo?

— Quanto mais realistas ficam esses sonhos, menos a minha vida parece real.

— Conte-me sobre esse último, então.

Em vez de responder de imediato, Mikki rodou uma mecha do cabelo cor de cobre no dedo e sorveu um gole do cappuccino . Ela e Nelly eram amigas fazia anos. Tinham se conhecido no hospital onde ambas trabalhavam, e haviam se tornado confidentes no mesmo instante.

Na aparência, possuíam pouca coisa em comum. Nelly era morena e esguia, de uma beleza exótica, herança do sangue haitiano da mãe. E devia ser ao menos uns vinte centímetros mais alta do que ela, calculou Mikki. Ao contrário dela que, além de clara, era cheia de curvas e um tanto comum.

A despeito de suas diferenças, contudo, não existia nenhum tipo de ciúme entre elas. E, desde que tinham se conhecido, apreciavam uma a outra por suas singularidades. Era uma amizade sólida, baseada na confiança e no respeito mútuo. E Mikki não fazia ideia do motivo pelo qual se encontrava tão hesitante em contar seus sonhos a Nelly. Principalmente o último.

— Mikki?

— Não sei por onde começar — mentiu.

Nelly esboçou um sorriso e tomou um gole do cappuccino , e mordiscou um biscoito de chocolate.

— Leve o tempo que quiser. Todos os bons psiquiatras têm uma coisa em comum...

— Eu sei, eu sei. Vocês são pacientes até demais!

— Isso mesmo.

Mikki brincou com a caneca de café. Precisava exorcizar aquele sonho de uma vez. Aquilo estava ficando estranho demais. Era como se houvesse sido hipnotizada... ou seduzida.

Continuou, entretanto, sem falar nada. Não apenas porque tinha dúvidas quanto a revelar os detalhes do sonho em voz alta, como também porque parte dela temia que a amiga, uma excelente psiquiatra, fosse proferir alguma palavra mágica que a curasse . Não tinha certeza se queria aquilo.

— Ei, sou eu! — Nelly incitou suavemente. Ela deu-lhe um sorriso apertado e respirou fundo.

— Está bem. Esse começou igual aos outros. — Cutucou o esmalte da unha, nervosa.

— Quer dizer na cama de dossel?

— Na mesma cama de dossel enorme, no quarto enorme — ela reforçou. — O lugar era o mesmo, só que não estava tão escuro como antes. Desta vez a luz entrava por uma parede inteira de janelas. — Mikki buscou a palavra. — Eram painéis de vidro verticais... Sabe o que eu quero dizer?
Nelly assentiu.

— Janelas quadriculadas?

— Quase isso. Bem, independente de como elas são chamadas, eu as notei, desta vez, porque deixavam entrar alguma luz. — Seu olhar continuou preso às chamas que queimavam, alegres, enquanto revivia o sonho. — Era uma luz suave, rosada, como a do amanhecer... Enfim, eu despertei — continuou, deixando escapar uma risadinha nervosa. — Foi estranho ter sido acordada de um sonho em outro sonho, mas eu acordei. Estava de bruços e sentia alguém escovando os meus cabelos. Uma delícia. E, fosse quem fosse, usava uma daquelas escovas grandes, de cerdas m acias. — Sorriu para a amiga. — Você sabe... Não há coisa mais gostosa do que alguém lhe escovando os cabelos.

— Concordo, mas ter o cabelo escovado não é assim tão sexy .

— Ei, já faz algum tempo, mas sei muito bem que escovar os cabelos não tem a ver com sexo! Não cheguei nessa parte ainda... Só estou contando como fiquei relaxada e feliz por conta disso — explicou Mikki, lançando a Nelly um olhar impaciente.

— Desculpe interromper. Basta fingir que não estou aqui.

— Isso é coisa de psiquiatra?

— Não. Só estou querendo ouvir a parte do sexo, caramba!

Mikki riu.

— Nesse caso, terei prazer em continuar. Vamos ver... Eu estava tão relaxada que me sentia flutuando. Foi bizarro. Senti a alma leve, como se esta estivesse deixando meu corpo... Então tudo começou a ficar muito louco.

— Como assim, “muito louco”?

— Bem, senti uma lufada de vento. Foi como se ela houvesse me pegado e me levado para algum lugar, mas não o meu corpo; apenas o meu espírito. A sensação foi de... purificação. Isso me assustou, e eu abri os olhos. Estava de volta no meu corpo, só que no meio do roseiral mais incrível que já tinha visto ou imaginado na vida. — Sua voz perdeu qualquer indício de dúvida quando passou a descrever a cena. — Foi de tirar o fôlego. Estava cercada por rosas! E das minhas favoritas: Prazer em Dobro, Chrysler Imperial, Cary Grant, Prata Esterlina... — Ela suspirou, feliz.

— Nenhuma rosa Mikado?

A pergunta de Nelly a trouxe de volta à realidade.

— Não, não vi nenhuma rosa homônima minha. — Aprumou-se, lançando à amiga um olhar irritado. — E não acho que isso esteja acontecendo porque minha mãe decidiu me dar o nome de sua rosa favorita.

Nelly fez um gesto conciliatório com a mão.

— Mikki — falou, pronunciando o apelido de forma clara, como se quisesse apagar o nome “Mikado” do ar —, precisa admitir que o fato de essas rosas aparecerem em todos os seus sonhos é muito estranho.

— Por quê? Sou voluntária no Roseiral Municipal e cultivo minhas próprias rosas. Por que uma parte integrante da minha vida não deveria figurar nos meus sonhos?

— Está certa. As rosas são uma parte importante da sua vida, assim como eram na de sua mãe e...

— ... na da minha avó. E na da minha bisavó.

Nelly sorriu, aquiescendo.

— Sabe que eu acho esse seu hobby encantador e morro de ciúme da sua capacidade de cultivar aquelas rosas maravilhosas.

— Sinto muito. Eu não devia ter sido tão indelicada. Acho que é a falta de sono.

— Não tem dormido direito? — A preocupação sombreou a expressão de Nelly.

— Não, não... — Mikki negou rapidamente. — Apenas ando levando muito trabalho para casa e ficando acordada até tarde. Por favor, não me pergunte mais nada sobre isso! , pensou, lançando um olhar tenso na direção da amiga enquanto mexia o capuccino e tomava um gole. Nelly não precisava saber que sua exaustão nada tinha a ver com falta de sono ou muito trabalho.

Tudo o que desejava era escapar daquele mundo de sonhos e dormir. O pior era que, apesar de nunca mais ter se sentido completamente descansada depois de ter ingressado naquele mundo de fantasias, ainda se via compelida a retornar para ele todas as noites.

— Mikki?

— Onde eu estava mesmo? — Ela se atrapalhou.

— No belo jardim de rosas.

— Ah, sim...

— E as coisas estavam ficando muito loucas.

— Isso mesmo. — Mikki voltou a olhar para a lareira. — Por algum tempo, eu apenas caminhei entre as rosas, tocando cada uma delas e apreciando sua beleza. Havia acertado no palpite: era de manhã cedo, o ar estava fresco e as flores ainda se encontravam respingadas com orvalho; como se tudo tivesse acabado de ser lavado. O jardim era circular, e as rosas e seus canteiros formavam uma espécie de labirinto. Fiquei andando por ali, apenas me divertindo.

Seu sorriso oscilou, e ela fez uma pausa antes de iniciar a parte seguinte do sonho. Pôde sentir as faces ganhando cor e desviou o olhar para encontrar o olhar curioso da amiga.

— Não me diga que está envergonhada! — provocou Nelly.

— Mais ou menos. — Mikki esboçou um breve sorriso.

— Mikki, você e eu fizemos depilação à brasileira juntas, esqueceu? E na mesma sala! Supere logo essa coisa e me dê mais detalhes. Se mesmo assim falhar, lembre-se... — Nelly deu mais uma mordida no biscoito e continuou com a boca cheia: —... Sou uma profissional.

— Prefiro não me lembrar — murmurou Mikki antes de respirar fundo. — Pois, então. Estou no roseiral e, de repente, sinto a presença dele . Eu não conseguia vê-lo, mas sabia que ele estava atrás de mim. — Umedeceu os lábios e, inconscientemente, levou a mão à garganta, os dedos acariciando a pele sensível na base do pescoço enquanto falava. — Comecei a andar
mais rápido porque, a princípio, senti que deveria me manter distante... Mas logo tudo mudou. Eu podia ouvi-lo atrás de mim conforme ele ia se aproximando. E ele não estava tentando se esconder. Seus ruídos eram assustadores, quase selvagens. Era como se eu estivesse sendo caçada por uma fera.

Tentou fazer a respiração voltar ao normal, embora sentisse o corpo formigar com uma onda de calor. Surpresa, percebeu uma gota de suor escorrendo entre os seios.

— Estava com medo? — Nelly perguntou.

— Não. Nem um pouco. Na verdade, estava excitada — ela respondeu tão baixo que a amiga se inclinou a fim de escutá-la melhor. — Eu queria que ele me pegasse. Quando eu corria, era só para provocá-lo; e eu queria muito fazer isso.

— Nossa! — a outra moça exclamou com um suspiro.

— Eu avisei... E o sonho fica ainda melhor.

— Oba. — Nelly mastigou outro biscoito.

— Eu corria nua e ria. O vento parecia meu amante conforme soprava no meu corpo. Eu me deliciava com cada gemido, cada rosnado, cada grunhido feito pela coisa que me perseguia. E queria ser apanhada, mas não até que ele estivesse muito, muito ansioso por me agarrar.

— Pelo amor de Deus, não pare por aí! Ele pegou você ou não?

Mikki tornou-se introspectiva, e seus olhos se voltaram para o fogo mais uma vez.

— Sim e não. Como eu disse, eu estava correndo, e ele me perseguia. Cheguei a um canto do labirinto e me virei... — Seus lábios se apertaram e em seguida se curvaram em um sorriso travesso. — Então tropecei e caí em um buraco. Quando bati no fundo, devia ter me machucado, mas minha queda foi amortecida por pétalas. Eu tinha caído em um poço cheio de pétalas de rosa! E devia haver milhares delas lá. Seu perfume preenchia o ar, e elas acariciaram o meu corpo. Cada centímetro da minha pele ganhou vida em meio a tanta suavidade... E depois as mãos dele substituíram as rosas. — Respirou fundo. — Não eram macias. Eram ásperas, fortes e exigentes. O contraste entre as duas sensações foi incrível. Ele acariciou o meu corpo nu, desde os meus seios, passando pela minha barriga e coxas... Exatamente como eu gostaria que me tocasse. Foi como se ele tivesse entrado nas minhas fantasias e conhecesse todos os meus desejos secretos.

Mikki fez uma pausa para afastar um de fio de cabelo do rosto. Sentiu a mão tremer, mas, não querendo que Nelly notasse, apressou-se em continuar com a narrativa.

— Estava mais escuro no poço do que no jardim, e minha visão parecia meio turva, quase como se o perfume das pétalas esmagadas houvesse criado uma névoa. Eu não podia vê-lo, mas, onde quer que ele me tocasse eu pegava fogo. Antes disso, em todos os meus sonhos, podia sentir sua presença como se ele fosse um ser irreal, um fantasma ou uma sombra. Eu pressentia sua presença, mas até então ele nunca havia me perseguido ou posto a mão em mim. E eu jamais o tinha tocado também. Mas, naquele poço de rosas, tudo mudou. Podia sentir suas mãos na minha pele e também podia acariciá-lo... A certa altura, eu o puxei para mim, e ele... — Mikki engoliu em seco e fechou os olhos com a lembrança. — Ele era forte e incrivelmente grande. Corri as mãos por seus ombros e braços e percebi que seus músculos eram como pedra. Foi quando senti algo diferente.

Engoliu, tentando aplacar a súbita secura na garganta. Deveria contar a Nelly? Deveria revelar aquilo a alguém?

Enquanto se lembrava, foi quase como se estivesse lá outra vez; naquele poço de sensações e fragrâncias. Suas mãos tinham se deslocado até uma massa espessa de cabelo. Tivera a intenção de segurá-lo pelo rosto, de abrir os olhos e vê-lo enfim.

Mas encontrara os chifres. A criatura que acariciava seu corpo, levando-o a uma excitação que nunca experimentara na vida possuía chifres! Não. Não podia contar aquilo a Nelly. Era absurdo demais. Sua amiga iria achar que estava ficando maluca.

— Ele usava um traje esquisito — murmurou em vez disso, nervosa. — Uma espécie de armadura cobrindo o peito, não sei. E foi incrivelmente erótico: aqueles músculos rijos cobertos pelo couro... Eu o senti e acariciei, então ele mergulhou o rosto nos meus cabelos, aqui. — Fechando os olhos, puxou uma massa de cachos avermelhados para a frente e afundou a mão neles, perto da orelha direita. — A partir desse ponto foi fácil eu escutar cada som que ele fazia. Quando eu o afagava, ele gemia ao meu ouvido; só que não era bem um gemido. Ao menos não o gemido de um ser humano... Era um rosnado baixo e profundo, que não parava nunca. — Ela franziu o cenho. — Isso devia ter me assustado. Eu devia ter gritado e lutado ou, no mínimo, ficado petrificada, paralisada de medo. Mas não queria ficar longe dele. E aquele som terrível, animalesco e maravilhoso me excitou ainda mais. Senti que iria morrer se não pudesse tê-lo por inteiro. Quando arqueei o corpo, consegui sentir sua ereção, e ele começou a se esfregar em mim... — Engoliu de novo. — Foi então que falou, e sua voz soou diferente de tudo o que já ouvi: uma voz meio de homem, meio de bicho. E era tão profunda que foi quase como se eu pudesse escutá-la também com a mente.

— E o que ele disse? — Nelly incitou, meio sem fôlego, quando ela parou de falar.

— Murmurou em meu ouvido algo como: “Nós não podemos. Eu não posso. Isto não pode acontecer!”. Mas eu não parei. Sentia o desejo dele nas palavras tanto quanto no que tinha no meio das pernas... Implorei a ele que não parasse enquanto me agarrava àquela armadura. Queria arrancá-la; eu o queria nu contra mim... Mas era tarde demais. Eu já estava gozando, e tudo o que podia fazer era colocar as pernas em volta dele conforme o meu corpo explodia. — Mikki respirou fundo. — Foi o orgasmo que me acordou.

Capítulo 18

Lina sentiu-se como um gatinho bem alimentado, com o ­corpo naquele ponto maravilhoso entre o relax e a satisfação. Cada pedacinho de estresse fora massageado para fora de seus músculos. Sua pele se encontrava tão incrivelmente macia que, enquanto ela se esticava na chaise e mordiscava sementes de romã, passava os dedos, distraída, por toda a pele, a qual parecia sussurrar de prazer.

— Juventude, beleza e o poder de uma deusa... Perséfone tem tudo isso — murmurou, para depois olhar em volta, preocupada.

Não. Estava sozinha, assim como tinha pedido.

Após o banho e aquela fabulosa massagem com óleo, Eurídice a vestira com uma linda camisola branca e cintilante, e ela se aninhara junto à espreguiçadeira. Quando a pequena alma lhe perguntara se havia qualquer outra coisa de que ela precisava, ela respondera, sonolenta, que sua única vontade no momento era se deitar na chaise longue , beber ambrosia e comer romãs. E, depois, simplesmente dormir.

Eurídice batera palmas, como uma daquelas diretoras enérgicas dos colégios para meninas, e praticamente enxotara as pobres criadas da varanda, anunciando que Perséfone necessitava de privacidade.

E então, para a surpresa de Lina, a pequena alma havia deixado o quarto atrás das servas, alegando ter um encontro com Iapis onde trabalhariam em seus esboços preliminares do palácio... Mas prometera levar aquilo que completassem para sua aprovação na manhã seguinte.

Iapis e Eurídice novamente.

Lina puxou uma mecha dos cabelos longos e a girou em torno do dedo. Se não estivesse enganada, o interesse do daimon pela moça não era apenas amigável.

Talvez ela devesse falar com Hades a respeito.

Hades...

Pensar no deus trouxe a inquietação que borbulhava sob sua pele para a superfície, e ela serviu-se de outra taça de ambrosia. O que estava acontecendo com ele? Por que desaparecera de repente? Hades tinha deixado muito claro que estava interessado nela, e até a havia beijado.

Beijado uma ova . Ele a prendera contra a parede e a acariciara inteira!

Lembrar sua paixão a fez estremecer. Hades era a ­personificação do perigo. O Batman vivo.

Umedeceu os lábios secos e pôde jurar que ainda sentia o gosto dele.

Ou talvez fosse apenas a ambrosia. Ambos eram deliciosos.

Fechou os olhos, permitindo que seus próprios dedos a percorressem pescoço abaixo e roçassem os mamilos já intumescidos.

Soltou um gemido.

Merda!

O corpo de Perséfone era jovem, ágil e...

Abriu os olhos.

— ... Muito, muito excitável — falou em voz alta. — Ou talvez seja mais o meu do que o dela. Ou uma combinação do que acontece quando uma mulher de quarenta e três anos de idade que não faz sexo há, ela parou e contou, quase três anos é colocada no corpo de uma deusa jovem, em idade de casar. E depois ainda é tentada pelo sósia do Batman! — completou, frustrada. — Chega, Lina! Hora de se mexer.

Ela se levantou rápido demais e sentiu-se leve e com os joelhos fracos. A ambrosia tinha lhe subido à cabeça.

Bem como a outros pontos sensíveis.

Seus lábios se torceram num sorriso, e um calor aqueceu-lhe as faces.

Céus! , ela estava mal... Tentara até mesmo a chuveirada fria, e, definitivamente, esta não funcionara como ela havia planejado.

Suspirou e passou o dedo pelo mármore liso da balaustrada, pensando na ideia que Eurídice fazia de um chuveiro. Tinha sido uma experiência inesquecível que, no entanto, nada fizera para dissipar suas fantasias com o deus do Submundo. Na verdade, só havia piorado a situação. Seu corpo fora mimado, lavado, massageado, alisado... E agora ela se sentia como uma concubina preparada para o sultão.

Mas em que parte do inferno se encontrava o sultão?, ela se indagou, rindo da própria escolha de palavras.

Sacudiu a cabeça e revirou os olhos.

— Você bebeu ambrosia demais!

Pôs a taça meio vazia sobre o parapeito e começou, cambaleante, a descer a escadaria circular que ia até a base do palácio. Daria uma boa caminhada pelo jardim. Isso poderia lhe clarear as ideias e deixá-la com sono o suficiente para que ela se lembrasse de que a cama era um lugar para dormir mais do que para fazer sexo selvagem e suado com um deus belo e sombrio.

Envolta pela névoa de ambrosia, Lina seguiu caminho para o primeiro nível dos jardins do palácio. Quando chegou à entrada, ficou imóvel, totalmente imersa na visão mágica das tochas acesas. O Submundo era um lugar tão lindo! O céu continuara a escurecer, mas não era negro como na noite do Mundo Superior. Em vez disso, era de um cinza da cor da ardósia, iluminado por várias estrelas, cada uma delas aureolada com cores iridescentes que a lembravam o perolado de uma concha. O céu incomum fazia tudo parecer mergulhado numa escuridão suave, como se aquela parte do Submundo fosse um sonho bom.

— Essas estrelas são as coisas mais bonitas que eu já vi — disse para o céu em voz baixa.

— São as Híades.

Hades pareceu se materializar das sombras do jardim, e ela levou a mão ao pescoço, sentindo o coração bater ali.

— Você me assustou!

— Eu não queria fazer isso, mas estava pensando em você e, quando ouvi a sua voz, quis me aproximar.

Lina mordeu o lábio e tentou limpar a mente anuviada pelo vinho. Ele estava usando aquela maldita capa outra vez. Pior: tinha trocado o traje volumoso que usava de costume por outro, muito mais revelador. Havia escolhido se vestir de preto outra vez, mas na forma de uma túnica de couro curta, que parecia ter sido moldada para o seu peito e que terminava em painéis sobre os quadris. Por debaixo, vestia uma malha pregueada da cor de nuvens carregadas, que lhe deixava à mostra quase todos os músculos das pernas.

Lina se obrigou a erguer os olhos e encará-lo. Hades a fitava com tanta intensidade que ela sentiu os membros formigar.

— Eu também estava pensando em você. Estou feliz por estar aqui — disse e se obrigou a respirar enquanto ele se aproximava tal qual um felino.

Seu corpo era como uma fornalha, refletiu Lina. Podia sentir o calor que irradiava dele.

O deus tomou-lhe a mão, levou-a lentamente até a boca, e foi como se seus lábios a marcassem.

Hades não a soltou. Em vez disso, traçou em sua pele um caminho circular com o polegar.

O vento frio levou seu cheiro até Lina. Hades cheirava a noite, a couro... a homem. O perfume erótico e perigoso fez seu estômago se apertar e a fez pensar em peles suadas, escorregadias e nuas.

Sem refletir, ela respirou fundo e se recostou nele. Os olhos de Hades faiscaram, e a brisa, provocante, fez voar sua capa, que subiu atrás dele como um par de asas.

Lina se viu submersa na intensidade de seu olhar. Podia sentir sua paixão se inflamando. Aquele Hades não era apenas o deus inteligente e sexy que ela conhecera. Era o ser que a possuíra naquela ferraria. Ele se avultava sobre ela, poderoso, imortal, sedutor, atraente, irresistível... e um pouco assustador.

Mesmo assim, ela o queria. A presença do deus era magnética, porém sua alma mortal ainda lutou para manter algum controle.

Lina obrigou a mente a trabalhar, a se agarrar a alguma coisa; qualquer coisa que pudesse dizer a ele.

— Disse que as estrelas são as Híades? Eu não compreendo — conseguiu balbuciar por fim.

Ele tirou os olhos dos dela para fitar o céu noturno.

— Não entende porque as conhece apenas como as ninfas brilhantes que elas são no Mundo Superior. O que a maioria dos imortais não sabe é que um grupo de Híades da floresta se cansou das suas funções terrenas e implorou a Zeus para que ele as tornasse mortais. Assim, elas poderiam morrer e se livrar do fardo da imortalidade.

A voz dele era tão profunda e hipnótica como seus olhos, concluiu Lina, fitando-o, extasiada, enquanto ele narrava sua história. Hades era como uma chama que atraia sua alma inexoravelmente.

Batman. Era mesmo como o Batman.

E, com ambrosia na cabeça ou não, que mulher sensata não teria fantasias com o super-herói?

— Zeus concedeu às Híades seu desejo e, naquela mesma noite, elas adentraram o meu reino. Fiquei tão comovido com a iridescência de suas almas que comentei que sua grande beleza poderia iluminar Elísia inteira. As ninfas ficaram fascinadas com a minha ideia e vieram me fazer um pedido. Com o aval de Zeus, eu lhes concedi essa prerrogativa, e elas têm iluminado o céu noturno do Submundo desde então.

Lina obrigou os olhos a desviarem do atraente deus para olhar as estrelas que, na realidade, eram os espíritos das ninfas.

— O que está fazendo aqui, Perséfone?

A emoção na voz de Hades a fez segurar o ar nos pulmões e tornar a encará-lo. O que tinha acontecido com ele naquela noite? Como podia parecer tão poderoso e, ao mesmo tempo, tão vulnerável?

Balançou a cabeça e deu a única resposta que podia:

— Eu bebi muita ambrosia e pensei que um passeio pelo jardim ajudaria a me manter sóbria.

Hades a encarou por mais um momento, então piscou, passou a mão pelo cabelo e soltou outro longo suspiro. Devagar, as linhas tensas em seu rosto começaram a relaxar.

— Ambrosia demais? Pois, para mim, isso faz muito bem. Deixa a cabeça mais leve e os joelhos fracos.

Aliviada por ele parecer normal, Lina sorriu.

— Fico feliz em saber que não sou a única a ter essa reação.

— Uma caminhada ajuda realmente. — Hades devolveu-lhe o sorriso e se curvou, galante. — Eu ficaria honrado se me permitisse acompanhá-la.

Era o seu Hades arrojado outra vez.

Lina sorriu, fez uma reverência... e percebeu que estava vestindo apenas uma camisola de seda fina.

Engoliu em seco.

— Eu, ahn... Parece que não estou agasalhada o suficiente para um passeio noturno.

Os olhos de Hades brilharam ao percorrer o corpo coberto de seda, deixando seu rosto corado. Em um movimento fluido, ele soltou a capa e, tal qual um toureiro, girou-a para cobrir-lhe os ombros.

— Está melhor assim?

Abrigada em seu cheiro e calor, ela pôde apenas assentir em silêncio.

— Quer dizer que posso acompanhá-la?

— Claro.

Hades sorriu e a fez passar o braço pelo dele. Então a conduziu lentamente pelos jardins cobertos pela noite.

Não falaram mais. Apenas se habituaram à presença um do outro. Hades escolheu um caminho largo, que dividia os jardins, e Lina olhou ao redor, admirada. A suavidade incomum da noite do Submundo lançava um brilho mágico sobre as flores e sebes adormecidas e, apesar de muitos dos botões se encontrarem fechados, estes ainda pontilhavam de branco a paisagem.

— Ainda não me decidi se as acho mais bonitas durante o dia, enquanto estão em plena floração, ou como agora. Parecem crianças dormindo... — ela comentou, estendendo o braço para tocar um lírio branco.

Ao seu toque, a flor desabrochou completamente, e Lina reprimiu um grito. Tinha que se lembrar que era a deusa da Primavera. Não deveria ficar surpresa quando fazia brotar uma flor!

— Pronto. Agora pode decidir — Hades falou, divertido.

Lina franziu a testa.

— Não, eu não quero desgastá-las. — Pensou por um momento antes de acenar para o lírio. — Volte a dormir — ordenou.

Com um som muito parecido com um suspiro, a flor se fechou.

Lina voltou-se para Hades e o viu olhando para ela com uma expressão que não conseguiu interpretar. Antes que pudesse perguntar o que estava errado, ele pegou sua mão, a mesma que tinha tocado a flor, e, virando a palma para cima, levou-a aos lábios.

O toque quente fez o estômago de Lina se contrair. Céus! , ela queria que ele beijasse muito mais do que apenas sua mão...

Cedo demais, Hades a soltou.

— É uma deusa muito generosa.

Ela não era Perséfone, porém Hades a fazia sentir-se como se ela fosse uma deusa realmente.

Em vez de passar o braço pelo dele outra vez, Lina entrelaçou a mão na dele, e seus lábios trêmulos se curvaram num sorriso satisfeito.

Hades apertou seus dedos, e eles retomaram a caminhada.

— Eu gostaria de lhe mostrar uma coisa — ele falou de repente. — Algo muito importante para mim.

Lina o fitou, e seus olhos se encontraram brevemente. Então o deus desviou o olhar, e ela notou a linha tensa em seu maxilar.

— Se é importante para você, eu adoraria ver.

Hades relaxou e apertou sua mão outra vez.

— É por aqui...

O primeiro patamar do jardim chegou ao fim, e ele a fez descer a escada para o segundo nível. Mais cedo, naquele mesmo dia, quando ela viera colher néctar, não conseguira prestar muita atenção a nada, exceto em obter o líquido pegajoso.

Teria gostado de parar para observar as fontes e a coleção de estátuas, mas o deus apertou o passo. Obviamente, estava ansioso por chegar ao que desejava mostrar a ela.

Com a curiosidade aguçada, Lina correu para alcançá-lo.

No terceiro nível, Hades escolheu um caminho que bifurcava à sua direita e fazia algumas curvas em “S” para a lateral ­daquele jardim. Pouco a pouco, os jardins bem cuidados deram lugar a grandes pinheiros, e seu aroma acentuado a fez lembrar-se de férias e repouso.

— Adoro o cheiro dos pinheiros!

Em vez de responder, Hades pressionou um dedo contra seus lábios.

— Sshh! Eles não podem saber que estamos aqui.

Lina ia perguntar o que ele queria dizer com aquilo, porém o deus apontou para um aglomerado de pedras.

— Precisamos esperar ali atrás.

Intrigada e completamente confusa, ela permitiu que ele a puxasse para o lado enquanto se agachavam atrás das rochas pontiagudas.

— O que está acontecendo? — indagou, preocupada.

Hades mudou de posição, de modo a enxergar por cima da pedra mais próxima, e gesticulou para que ela fizesse o mesmo.

Lina olhou por cima da rocha. Do outro lado, a terra descia, íngreme até chegar à margem de um rio.

Piscou várias vezes para se certificar de que seus olhos não a estavam enganando, contudo a água continuava a mesma, brilhando como diamante líquido sob a luz mágica da noite do Submundo. Tudo estava muito quieto em torno deles, e Lina pôde ouvir a voz do rio, que ria e cantava palavras em uma língua estranha. Não entendeu o que dizia, mas o som era fascinante, e ela sentiu um súbito desejo de correr pela margem, entrar na água e imergir naquele riso contagiante.

A mão firme de Hades segurou-lhe o ombro, e seus lábios quase tocaram sua orelha enquanto ele falava baixinho:

— Não dê ouvidos ao chamado do rio.

Lina se concentrou na voz do deus e sentiu amenizado seu fascínio.

— Eu devia ter lhe avisado. O chamado do Lete pode ser muito forte. — A respiração de Hades era quente, e Lina se recostou nele.

Hades mudou de posição, colocou o braço sobre seus ombros e a puxou para a sua frente, para que ela pudesse descansar quase intimamente em seu colo.

Lina se moveu para trás, de encontro ao peito largo, e inclinou a cabeça para que ele pudesse captar seus sussurros.

— Este é o Lete, o rio do Esquecimento?

Sentiu que ele acenava com um gesto de cabeça e olhou para o rio, incrédula. Então aquele era o famoso rio que fazia as almas esquecerem suas vidas anteriores e as preparava para nascer de novo.

— Isso era tão importante para você?

— De certa forma — Hades sussurrou. — Mas há mais.

— Por que temos de ficar tão quietos?

— Os espíritos não podem saber que estamos aqui. Nossa presença seria uma distração. Para isso os mortos não precisam de nós.

Lina sentiu uma onda de excitação e procurou as margens do rio.

— Não vejo nenhum morto.

— Espere e olhe bem.

Ela se recostou no peito largo, e o deus a envolveu nos braços com firmeza. Era tão bom ficar perto dele! Um aroma de pinho pairava no ar, mesclando-se com o perfume inebriante e másculo de Hades.

Uma vez que ela não mais sintonizava com o apelo irresistível do Lete, a voz deste se tornou alegre e melódica.

Lina sentiu-se imersa em uma experiência sensorial inacreditável. Seu corpo inteiro estava excitado e ultrassensível. A mão do deus descansou em seu antebraço, e seu polegar lhe traçou círculos preguiçosos na pele. Ela estremeceu sob o toque.

— Minha capa não a está aquecendo? — Hades murmurou, a respiração morna contra seu ouvido. — Está com frio?

Ela balançou a cabeça negativamente e se virou nos braços fortes para ver seu rosto. Ele a envolvia por inteiro. Seu corpo era rijo, forte, e ele irradiava calor através do couro da túnica.

Seus braços a rodearam, então. Lina abriu a boca para dizer que era o seu toque que a fazia tremer daquela maneira e que...

— Ali! — O sussurro de Hades foi urgente. Ele se inclinou para a frente, movendo-a com ele. Apontou, e os olhos dela seguiram seu dedo.

Duas figuras se aproximavam do rio, no lado oposto. Conforme chegavam mais perto, Lina percebeu que elas estavam de mãos dadas. A água brilhante refletiu em seus corpos, mostrando serem um homem e uma mulher de idade. Eles se moviam lentamente, permitindo que seus ombros e quadris roçassem uns nos outros. A cada passo ou dois, o homem erguia a mão enrugada da mulher até os lábios e a mantinha lá enquanto ela o fitava com ternura.

Lina sentiu-se pouco à vontade espionando-os, mas ficou encantada com a adoração que demonstravam um pelo outro.

Por fim, o casal chegou à beira do rio e se entreolhou. O homem descansou as mãos sobre os ombros da mulher.

— Tem certeza? — Tinha a voz rachada pela idade e pela emoção, porém esta ainda era audível do outro lado do rio.

— Tenho, meu amor. Chegou a hora, mas nos encontraremos de novo — afirmou com segurança.

— Eu sempre confiei em você. Não vou duvidar de você agora — replicou ele.

Ao ver o homem puxar a esposa suavemente para seus braços e beijá-la, Lina sentiu os olhos se encherem de lágrimas e piscou depressa, querendo manter o foco. O casal terminou seu abraço e depois, com as mãos ainda unidas, eles se ajoelharam ao lado do rio, inclinaram-se e beberam da água cristalina.

No mesmo momento, seus corpos começaram a brilhar. Seus cabelos e roupas chicoteavam descontroladamente como se tivessem sido apanhados em uma lufada de vento.

Então começaram a mudar.

Lina engasgou enquanto observava os anos deixando o casal. Sua aparência mudou da velhice para a meia-idade, em seguida para a fase adulta, depois para a juventude, e, finalmente, os dois resplandeceram com a vibração da adolescência.

A metamorfose cessou e, atordoados, eles se entreolharam.

Em seguida, o homem jogou a cabeça para trás e gritou com alegria. Mais uma vez, puxou a mulher para os braços e ela pulou em seu colo, rindo e chorando ao mesmo tempo.

As lágrimas escorreram dos olhos de Lina. Eles deviam ser daquele jeito quando tinham se apaixonado.

Enquanto o casal se abraçava, seus corpos se tornaram cada vez mais brilhantes, até que ela precisou usar a mão para proteger os olhos contra a luz que deles emanava.

De repente, eles explodiram tal como duas estrelas, e foram caindo em uma chuva de faíscas sobre a água. A partir do centro de cada explosão, dois pontos de luz do tamanho de um punho fechado se formaram. Pairaram sobre as águas, adaptando-se aos seus novos sentidos, então se puseram a flutuar correnteza abaixo, como se carregados por uma brisa própria.

Lina ficou olhando para eles. As duas esferas de luz permaneciam juntas e tão próximas que, conforme se afastavam, parecia não haver mais distinção entre elas. O rio fazia uma curva para a esquerda, e as luzes o seguiram, desaparecendo de vista.

Ela enxugou os olhos, fungando.

— O que vai acontecer a eles? — perguntou com voz embargada.

— O que viu é a aparência das almas depois que todas as lembranças e todo o vínculo com os corpos são removidos. Os espíritos seguirão o Lete até a sua nascente. Lá eles renascerão como crianças para viver novas vidas — explicou Hades.

Lina virou-se em seu colo para encará-lo.

— Mas eles vão ficar juntos outra vez? Se eles renascem como novas pessoas, sem nenhuma lembrança de suas vidas anteriores, como podem se reencontrar?

— Almas gêmeas sempre se reencontram. Não precisa chorar por elas... A mulher falou a verdade: eles vão ficar juntos novamente.

— Promete? — A voz de Lina tremeu de emoção.

— Prometo, meu anjo. Prometo.

Devagar, e lutando contra eras de solidão, Hades envolveu com as mãos o rosto à sua frente e tomou uma decisão: tinha que tentar. Estaria perdido se não o fizesse.

Fitou-a nos olhos com o coração aos saltos e, respirando fundo, deixou os polegares enxugarem o resto das lágrimas da deusa.

— Era o que eu queria lhe mostrar e dividir com você, Perséfone: o vínculo que existe entre almas gêmeas. Sei que jamais vai se esquecer do que testemunhou aqui. O que viu pode até mudá-la, assim como me mudou.

Delicadamente, ele se inclinou para ela. Primeiro beijou-lhe as pálpebras fechadas, uma a uma, então colou a boca na sua.

O beijo começou doce e hesitante, mas, quando as mãos de Lina deslizaram ao redor de seus ombros, e ela abriu os lábios para aceitá-lo, Hades o aprofundou com fervor.

Perséfone estava ali, era uma realidade em seus braços. Desta vez ele não precisava imaginar que a tocava e a saboreava.

O desejo por ela, que ainda não fora verdadeiramente saciado, brotou dentro dele. Com um gemido de prazer, as línguas se encontraram. Perséfone estava lânguida e quente, e tinha gosto de ambrosia.

Hades deslizou as mãos para dentro da capa que a cobria, e estas encontraram sua cintura. Acariciou-lhe a curva dos quadris e, obedecendo às suas fantasias, mergulhou os dedos na seda de seus cabelos.

Percebeu a respiração dela se acelerar ao percorrer de cima a baixo o comprimento de suas coxas. A fina camisola de seda não representava quase nenhuma barreira.

Perséfone virou-se em seu abraço, de maneira que seu membro rijo ficou pressionado contra a curva de suas nádegas benfeitas.

Hades deixou escapar um som baixo e selvagem do fundo da garganta. Como vivera tanto tempo sem ela? Desejava-a com um fogo que o queimava vivo!

Sua mão viajou de volta para a curva tentadora da cintura delgada e continuou a subir, sentindo a perfeição da lateral de um seio. Em sua mente, ele vislumbrou outra vez os mamilos intumescidos e molhados com água e óleo. Com a ponta dos dedos, encontrou o botão macio e o acariciou através da seda fina.

Perséfone soltou uma exclamação. O som penetrou a névoa de luxúria que embaçava o cérebro de Hades e o fez recuar. A capa tinha sido deixada de lado, e a deusa estava praticamente sobre ele, tremendo, exposta, com os cabelos desgrenhados e os lábios vermelhos e inchados depois de seus beijos.

Por todos os deuses, o que havia de errado com ele? ­Perdera o controle sobre si mesmo? Não queria que acontecesse daquela maneira. Até mesmo um idiota inexperiente sabia que não deveria amar uma deusa no meio de uma floresta.

Soltando uma imprecação, ele se pôs de pé. Perséfone estava com pedaços de pinhas e sujeiras na camisola, e pareceu-lhe dolorosamente jovem e sedutora ao fitá-lo com um sorriso confuso nos lábios sensuais.

Hades se encheu de vergonha. Ainda queria deitá-la no chão e amá-la ali mesmo.

Balbuciando desculpas incoerentes, limpou as folhas dos pinheiros que tinham se apegado às suas vestes.

Lina suspirou. A força da paixão do deus despertara nela um desejo tão intenso, tão feroz, que chegava a ser assustador. Ao observar a luxúria se esvair do rosto de Hades e ser substituída por uma expressão que poderia ser raiva ou vergonha, ela controlou a respiração e se obrigou a raciocinar. Nunca tivera um deus por amante, mas não era nenhuma virgem, e, portanto, não devia reagir como uma.

— Não tive a intenção de trazê-la aqui para... — Ele balançou a cabeça, desgostoso, e continuou a limpar seu vestido — ... para amá-la como um bicho.

Não estava zangado, Lina percebeu com alívio, e sim, constrangido.

— Hades... — Segurou sua mão e a puxou até que os olhares se encontrassem. — Pare com isso. Eu estou bem. O que aconteceu?

— Uma deusa merece mais do que uma contenda no chão.

O sorriso dela foi lento e sensual.

— Não posso falar por outras deusas, mas eu estava gostando da contenda... — Tocou a veste de couro que ele usava. Ainda podia sentir o calor que emanava dele. — E eu não estava no chão... Estava praticamente sentada no seu colo.

Hades soltou um suspiro, e a expressão preocupada em seus olhos o fez parecer décadas mais velho. Com delicadeza, ele a tocou no rosto, e sua voz saiu rouca com as emoções contidas:

— É verdade que eu não a trouxe aqui para seduzi-la, mas descobri que não consigo manter o meu pensamento longe de você... nem minhas mãos. Que os deuses me ajudem, Perséfone, mas eu a desejo mais do que qualquer outra coisa — ele concluiu, ofegante.

— Então que os deuses ajudem a nós dois, Hades — ela emendou, rouca.

Quando seus lábios se encontraram, Lina se recusou a pensar em Deméter e no futuro.

Hades interrompeu o beijo suavemente, enquanto ainda era capaz de se controlar. Ela era tão macia e se mostrava tão receptiva! Que Perséfone o desejava, isso era evidente, porém ele queria mais do que possuir seu corpo. Queria sua alma.

Num gesto carinhoso, ajeitou a capa sobre seus ombros e a fez passar o braço pelo dele.

— A noite está esfriando. É melhor voltamos para o palácio. — Tirou-lhe uma mecha de cabelo do rosto, ciente da decepção nos olhos da deusa.

Bom , pensou. Queria que Perséfone desejasse e ansiasse por mais do que apenas seu corpo.

Ele a conduziu de volta ao caminho que os levaria ao palácio.

Os pensamentos de Lina fervilhavam. Sentia o corpo ainda ardendo, e sua sensibilidade aumentada, de alguma forma, se fundira com a incrível beleza da cena que tinha testemunhado entre aqueles dois companheiros de alma. A devoção pungente entre os amantes ficara gravada nela.

Sentiu a pulsação firme de Hades sob os dedos. Ele a trouxera até ali para testemunhar o renascimento das almas gêmeas, mas não usara isso como uma arma de sedução. Se essa tivesse sido sua intenção, ele poderia tê-la tomado lá mesmo, no chão.

Mas, não. Hades, pelo visto, queria mais dela do que apenas sexo.

Sua alma vibrou quando um alarme soou em sua mente.

Amor. Ele havia lhe mostrado sua ideia de amor.

Hades já não dissera que acreditava que os mortais sabiam amar melhor do que os deuses? Será que os deuses também possuíam almas gêmeas?

Ela não fazia ideia. Tudo o que sabia sobre imortais tinha lido sem a mínima atenção, décadas antes.

O que se lembrava bem era que os deuses antigos eram volúveis e que descartavam amantes a seu bel-prazer.

Isso, contudo, não condizia com o deus que caminhava a seu lado.

Fitou o perfil sombrio. Quem acreditaria que ela havia encontrado tal desejo e romance na Terra dos Mortos?

Como se pressentisse seu escrutínio, Hades olhou para ela, e seus lábios se curvaram num sorriso.

— Parece que tem muitas perguntas borbulhando na cabeça... Eu já lhe dei permissão para me perguntar qualquer coisa, e prometo que, daqui por diante, me lembrarei das boas maneiras e não insultarei minha convidada.

Lina sentiu-se corar. Desejava que aquela escuridão de sonho escondesse a cor em seu rosto.

Ela havia se esquecido por completo de repreendê-lo por sua retirada estratégica. Parecia ter acontecido séculos antes, e com duas pessoas totalmente diferentes.

Inclinou-se para ele, adorando a sensação do braço forte no seu, e a forma como ele também se curvava para ela, atento.

— O que assisti esta noite foi algo mágico — murmurou, comovida.

— Sim. O tipo mais perfeito de magia: a que é criada pela alma e não inventada pelos deuses.

— Os deuses não possuem almas gêmeas?

— Não. — Hades suspirou. — Almas mortais encontram seus pares naturalmente; não exigem a interferência do Olimpo.

As palavras trouxeram outra dúvida para Lina.

— Os mortos podem se apaixonar? — ela quis saber, pensando nos olhares tímidos que Eurídice começara a lançar para Iapis. — Ou apenas almas gêmeas têm a capacidade de amar após a morte?

— Você mesma pode responder a essa pergunta, Perséfone.

Lina o fitou, atenta. Entretanto o tom de Hades era educativo e não paternalista.

— Pense, minha deusa. Do que é que gosta? Do corpo ou da alma? — ele incitou.

— Se está falando em amor de verdade, e não apenas em desejo ou paixão, eu teria de dizer a alma.

O deus aquiesceu.

— O corpo é apenas um manto, uma cobertura temporária para a nossa verdadeira essência.

— Então as almas que habitam Elísia, ou mesmo seu palácio, podem se apaixonar?

— Qualquer um dos mortos pode encontrar um novo amor. — Hades franziu o cenho. — Mas, deve saber, nem todas as almas são capazes dessa emoção.

— Está falando de almas mortais ou das almas dos deuses?

Ele parou de andar e se virou para encará-la. Estavam em pé, muito próximos, e a mão dela ainda repousava em seu braço.

Hesitou antes de responder à pergunta. Então seus dedos roçaram a face delicada numa carícia já familiar para Lina.

— Não posso falar pelos outros deuses, apenas por mim. Minha alma anseia por uma companhia eterna. — Ele se inclinou e roçou os lábios nos seus. Em seguida, fez um gesto para o espaço logo atrás dela. — Parece que estamos de volta ao lugar em que começamos.

Lina olhou por cima do ombro e piscou, surpresa. Estavam parados na beirada da trilha que levava à varanda.

Sem falar, Hades envolveu-lhe o rosto com as mãos num gesto delicado, e Lina imaginou que o beijo fosse ser doce e breve.

Quando seus lábios se encontraram, contudo, percebeu que havia se enganado. Ele não teve pressa em saboreá-la, mergulhando os dedos em seus cabelos fartos e acariciando a base sensível de seu pescoço.

Ela correu as mãos pelos braços longos, mais uma vez impressionada com sua força.

Hades mordiscou seu lábio inferior antes de terminar o beijo. Sem soltá-la, falou de encontro à sua boca:

— Vai cavalgar comigo amanhã? — indagou, a voz rouca de desejo.

Com o coração disparado, Lina anuiu.

— Sim.

— Até amanhã, então. — Ele a soltou, relutante, e tirou outro fio de cabelo de seu rosto. Fez uma reverência, virou-se e se afastou.

Lina subiu os degraus da varanda e entrou no quarto com as pernas trêmulas. Conforme se largava na cama, avistou o próprio reflexo no espelho sobre a penteadeira, do outro lado do cômodo. Tinha as faces coradas e os cabelos desgrenhados. A capa de Hades havia se acumulado em torno de sua cintura, e a camisola transparente estava suja, com várias folhas de pinheiro pendendo da barra.

E, mesmo longe do espelho, pôde ver o contorno de seus mamilos intumescidos.

— Misericordioso Madre di Dio! — disse, usando a frase mais enfática de sua avó. — Você tem 43 anos de idade! E não se sentia assim desde... desde nunca! — Sacudiu a cabeça diante daquela imagem jovem e estranha de si mesma. — Nenhum homem jamais a fez se sentir como Hades... E ele quer amor eterno! — Fechou os olhos com força. — Oh, Deméter, o que eu vou fazer?


Capítulo 19

— Querida, você é uma verdadeira artista! — Lina estudou o desenho a carvão feito no pergaminho. Havia esperado que o mapa de Eurídice fosse um desenho tosco, mas, quando a pequena alma desenrolou o papel, ficou impressionada com a qualidade do trabalho. O projeto do palácio fora traçado em linhas fortes e claras, com cada setor nomeado em uma linda caligrafia.

O que mais a impressionou, porém, foi a forma meticulosa com que Eurídice havia simbolizado cada parte da construção. Para indicar a sala de jantar, reproduzira uma miniatura da linda mesa com os candelabros. O Salão Nobre fora adornado com um altar, sobre o qual ela desenhara o trono de Hades. Tinha esboçado até o pátio cheio de flores e a fonte maciça em seu centro.

— Gostou mesmo? — Eurídice perguntou, ofegante. — Não está pronto. Ainda precisa de muitos retoques, na verdade.

— Pois eu adorei. Sempre foi boa desenhista?

O rosto da moça se iluminou.

— Sim! Quero dizer... não exatamente. Meu pai não achava que desenho fosse um bom passatempo para uma moça; nem mesmo um hobby . Mesmo assim, eu costumava desenhar em segredo. Fazia o esboço de flores em áreas secas do chão com uma varinha, mergulhava uma pena de pássaro nos corantes da minha mãe e desenhava animais em trapos. — Ela sorriu para Lina, travessa. — Meu pai ficaria louco se descobrisse.

— Pois eu acho que ser artista é um passatempo perfeito para uma mulher, e eu lhe dou carta branca para desenhar quanto quiser — Lina afirmou.

— Muito obrigada, Perséfone! — A moça pulou de alegria. — Mal posso esperar para contar a Iapis. Ele também falou que eu desenhava bem e que me arrumaria outros materiais se eu quisesse continuar desenhando.

— É mesmo? — Lina ergueu as sobrancelhas sugestivamente.

O rosto já rosado de Eurídice assumiu um tom vermelho.

— Sim. Eu pensei que ele estivesse apenas sendo gentil, pois é sempre assim, mas, se você também concorda com ele, então deve ser verdade.

— Diga a Iapis que eu mandei enchê-la com materiais. Acaba de ser nomeada a artista particular da deusa da Primavera. — Lina levantou a mão regiamente a fim de tornar o anúncio oficial.

Os olhos de Eurídice se arregalaram. Num impulso, ela jogou os braços ao seu redor, abraçando-a com força.

— Você é a deusa mais maravilhosa do mundo!

Lina riu.

— Essa é exatamente a opinião que espero da minha artista particular.

— Precisa me dar uma tarefa. O que gostaria que eu desenhasse?

— Não deveria terminar o mapa primeiro?

— Isso será feito em breve. O que quer que eu desenhe? — ­perguntou, ansiosa.

Lina pensou por um momento, então sorriu.

— O narciso está se tornando a minha flor favorita... Por que não desenha um bem grande e bonito?

O rosto de Eurídice resplandecia quando ela fez uma profunda reverência para sua senhora.

— A artista está às suas ordens, deusa da Primavera.

Lina inclinou a cabeça como uma deusa, congratulando-se por ter deixado a pequena alma tão feliz.

— Vou tentar ser paciente e esperar por seu primeiro trabalho.

A pequena alma quase se esqueceu da mesura.

— Céus! A minha primeira incumbência! — exclamou, emocionada.

Duas batidas firmes soaram contra a porta do quarto de Lina. Eurídice praticamente dançava ao abri-la.

— Iapis! — Ela sorriu. — Perséfone declarou que eu sou sua artista particular!

Lina observou o daimon, atenta. Sua expressão foi calorosa e sincera ao parabenizar a moça, e seus olhos não deixaram o rosto delicado um só momento. Sua avó diria que ele estava com todo o jeito de um homem prestes a se apaixonar perdidamente.

Lina percebeu Eurídice tocando o braço do daimon duas vezes enquanto, animada, contava a novidade. A linguagem corporal da menina dizia, sem dúvida, que ela correspondia ao interesse de Iapis.

Menina não, corrigiu-se Lina. Tinha que parar de pensar em Eurídice como uma criança. Ela era uma mulher que já fora, inclusive, infeliz no casamento.

E pensar que seu atual corpo não parecia muito mais velho do que o dela!

— Senhora, posso elogiá-la por seu bom gosto em se tratando de artistas? — Iapis indagou, galante.

Eurídice pairava a seu lado, sorrindo.

— Obrigada, Iapis. Mas parece que estamos apenas começando a descobrir os talentos de Eurídice...

O daimon sorriu com carinho para a moça.

— Sou obrigado a concordar plenamente — respondeu, antes de se inclinar para Lina, discreto. — Hades espera pela senhora no estábulo. Ele pediu que eu a avisasse de que Órion encontra-se impaciente.

O estômago dela se contraiu à simples menção do deus.

— Ainda bem que estou pronta, então. Eu não gostaria de deixar um de seus temíveis cavalos esperando.

— Eles me assustam — declarou Eurídice.

— Basta enxergá-los como cães de grande porte — sugeriu Lina, e a pequena alma e o daimon tiveram que se apressar para segui-la quando ela começou a andar rapidamente pelo corredor e pelo pátio, plenamente consciente de que agora era ela quem parecia flutuar de alegria.

— Aproveitou seu banho de ontem à noite, senhora? — Iapis perguntou.

Lina ficou feliz por estar andando à sua frente. Sabia que sua expressão daria mostras de como a noite anterior tinha se tornado satisfatória.

— Sim, foi uma delícia. Obrigada.

— Perséfone disse que dormiu muito bem — acrescentou Eurídice, travessa.

Lina sorriu. Ela dormira envolta na capa de Hades, mergulhada em sonhos eróticos e sensuais.

— É bom saber — o daimon falou à moça com um suspiro. — Ainda mais depois da noite agitada que meu senhor teve. Hades não pregou os olhos.

— Devia ter lhe providenciado um bom banho, como fiz com Perséfone — comentou Eurídice.

Lina apertou o passo, deixando que a brisa suave que soprava no pátio lhe esfriasse as faces coradas. Já se sentia como uma mola contraída e pronta para se expandir. Decididamente, não precisava começar a visualizar o corpo nu de Hades sendo banhado e coberto de óleo.

Passou quase correndo pela fonte central e as lindas esculturas, e suspirou, aliviada, quando chegou aos portões de ferro forjado por fim.

— Acho que vou ficar aqui, Perséfone — Eurídice falou atrás dela, apontando para um pequeno canteiro de narcisos. — Assim posso fazer um primeiro esboço enquanto cavalga na companhia de Hades.

— E eu ainda preciso arrumar outros materiais para a sua desenhista particular — emendou Iapis, sem nunca deixar os olhos de Eurídice.

— Comportem-se vocês dois... Estarei de volta em breve — ­declarou Lina.

O casal se despediu dela de bom grado.

Quando ela olhou para trás, apenas alguns passos depois, viu os dois juntos. O riso de menina de Eurídice foi seguido por uma gostosa risada do daimon.

Lina suspirou. Precisava conversar com Hades sobre eles. Iapis parecia um bom rapaz, se essa era a expressão certa com que se referir a um semideus, mas, quais eram as suas intenções? Eurídice estava se recuperando de um mau relacionamento, sem dizer que havia falecido fazia pouco tempo... Tais fatos deviam deixá-la duplamente vulnerável.

Ou não?

De qualquer modo, ela se sentia responsável pela moça e não queria vê-la magoada. Iapis precisava agir com cautela. Eurídice tinha de ser tratada com cuidado e respeito.

Um relinchar estridente fez Lina interromper seu discurso interior. Órion estava do lado de fora do estábulo. Sua crina fora penteada e trançada com fitas da cor do luar, do mesmo tom do narciso colocado sob a parte superior de sua rédea.

Ele a avistou, ergueu o pescoço e bufou, dando alguns passos de lado para se exibir. A seu lado havia outro garanhão que poderia ser seu irmão gêmeo, exceto pelo fato de que sua pelagem escura contrastava com uma única mancha branca na testa, cujo formato era o de uma estrela torta. Os dois cavalos eram quase tão magníficos como o deus que segurava suas rédeas.

Hades fechou a cara para Órion.

— Acalme-se, seu tolo! — disse ao garanhão. — Dorado não está fazendo tanto estardalhaço.

Lina correu para se juntar a eles, tentando não se fixar na forma como os ombros do deus se avolumavam ainda mais conforme ele acalmava o corcel. Hades vestia outra túnica curta, que lhe expunha boa parte dos músculos dos braços e pernas, e a capa preta se agitava em torno dele.

Era o próprio Batman. Uma versão deliciosa do antigo Bruce Wayne, ela pensou, e tratou de lutar contra o impulso de se abanar.

— Não brigue com ele. Órion é incorrigível, mas adorável — falou, o coração palpitando. Roçou o rosto contra o focinho do cavalo quando ele a cutucou numa saudação, aproveitando para desviar o olhar de Hades. — Está feliz em me ver, não é, menino bonito?

Hades pensou que sabia exatamente como o garanhão se sentia. Ele também tinha vontade de sapatear e urrar à simples visão de Perséfone... Naquela manhã, ela trajava uma túnica de linho leve, com uma saia ampla o suficiente para que pudesse cavalgar com conforto. Quando a brisa soprava, colava o tecido semitransparente em seu corpo, delineando seus seios e a curva deliciosa de sua cintura, a ponto de fazê-lo lamentar por não ter chamado mais vento.

Observou, enciumado, enquanto ela acariciava Órion, mesmo se sentindo um idiota por ter ciúmes de um cavalo.

Dorado relinchou para a deusa, parecendo desolado. Em vez de fazer o mesmo, Hades suspirou.

— Perséfone, acho que ainda não foi formalmente apresentada a Dorado. Ele não conduz bem como Órion, mas é o mais rápido dos quatro. — Deu um tapinha afetuoso no pescoço brilhante do animal.

Lina acariciou a cabeça do garanhão.

— Muito prazer em conhecê-lo, Dorado. Então é mais rápido do que o seu amigo, hein? — comentou, lançando um olhar atrevido a Hades. — Será que Órion e eu não conseguiremos fugir de você?

Hades engoliu em seco. Apenas ficar próximo de Perséfone o fazia se sentir poderoso e impotente, quente e frio; tudo ao mesmo tempo. Provavelmente estava ficando louco.

Mas não se importava.

Deslocando-se para perto dela, de modo que as laterais de seus corpos se tocassem, devolveu o olhar provocador.

— Não, vocês não vão conseguir escapar de mim .

Lina se perdeu no olhar dele. Escapar? Imagine... Ela queria mais era entrar em sua pele.

Órion tornou a cutucá-la e relinchou. Ela riu, e a magia entre eles se desfez.

— Está bem, garoto impaciente!

— Órion não é impaciente. É ciumento — contrapôs Hades, fazendo nova careta para o animal, que o ignorou solenemente para lamber o ombro da deusa.

— Ciumento? — Lina fingiu surpresa. — Só porque acariciei Dorado? Como você é bobo... — sussurrou para o corcel.

— Não tem ideia do quanto — emendou Hades, ainda que não estivesse falando de Órion. — Venha — ele a segurou pelo cotovelo, guiando-a para a esquerda do cavalo a fim de ajudá-la a montar. — Os Campos Elíseos aguardam a presença da deusa da Primavera.

Cavalgaram lado a lado, seguindo a estrada de mármore preto. O constante ruído dos cascos dos cavalos se misturou ao canto lírico dos pássaros que chamavam um ao outro nos galhos dos ciprestes que ladeavam o caminho. O perfume dos narcisos impregnava o ar. De vez em quando eles passavam por grupo de espíritos, às vezes por uma alma solitária andando sozinha.

Mas suas reações eram sempre as mesmas. Primeiro, os espíritos recuavam, assustados, para a lateral da estrada, dando aos temíveis corcéis um generoso espaço. Só então percebiam quem os montava e se curvavam com reverência ao seu deus, embora mantendo os olhos fixos em Perséfone.

Os homens sorriam e cumprimentavam a deusa. Alguns deles até gritavam para ela.

Mas o que mais comoveu Lina foi a reação das mulheres. Quando estas se davam conta de que estavam na presença da deusa da Primavera, seus rostos se iluminavam de tanta alegria. Muitas se dirigiam a ela pelo nome e pediam sua bênção, a qual ela dava prontamente. Algumas até se atreviam a se aproximar de Órion, querendo tocar seu manto.

Lina mal podia acreditar na diferença que sua presença parecia fazer para elas. Precisava admitir: Deméter tinha razão. Por algum motivo, os espíritos dos mortos necessitavam saber que uma deusa ainda se preocupava com eles. Era uma tremenda responsabilidade, porém esta a fazia sentir-se querida e valorizada. Se apenas ficando à vista no Submundo ela conseguia espalhar alegria e esperança, então, estava muito contente por estar ali.

A princípio temia que Hades fosse ficar aborrecido ou até mesmo com ciúme por toda a atenção que ela vinha recebendo. Mas, embora ele houvesse proferido poucas palavras, sua expressão satisfeita e relaxada já falava por si. O deus sombrio se encontrava feliz já que os mortos reagiram tão bem a ela.

Eventualmente, a estrada se tornou mais íngreme. Quando eles alcançaram o topo, Lina fez Órion parar, perplexa.

— É como se alguém houvesse dividido a paisagem em duas e depois pintado um lado com tinta escura e o outro com clara! — Balançou a cabeça, incrédula, embora soubesse que não estava imaginando coisas. A estrada se estendia à sua frente como a linha divisória entre duas paisagens radicalmente diferentes. Era a coisa mais bizarra que ela já havia visto.

— Pintado de cores diferentes...— repetiu Hades. — É uma descrição um tanto apropriada. — Apontou para a esquerda, onde a terra declinava para uma vasta escuridão, rodeada por uma linha vermelha de fogo. — Este é o rio Flegetonte, que faz fronteira com o Tártaro, onde reina a escuridão. — Com a outra mão, ele mostrou o brilho à sua direita. — E lá você vê Elísia, onde a luz e a felicidade coexistem perfeitamente, e onde a única escuridão é a necessária para que os espíritos descansem em paz.

Lina tratou de acessar a memória espiritual de Perséfone:

O Tártaro , a voz sussurrou em sua mente, é a região do Submundo onde se aplica o castigo eterno. É um lugar de desespero e agonia. Apenas o mal o habita.

Era o inferno.

Lina não conseguia tirar os olhos do abismo escuro e, de repente, sentiu um calafrio. As trevas pareciam chamá-la, como gavinhas de uma criatura maléfica.

— Perséfone! — A voz nítida de Hades desviou sua atenção do vazio do Tártaro, e ela encontrou seu olhar. — Pode andar por qualquer lugar dentro do meu reino, com ou sem mim a seu lado, com exceção do Tártaro. Ali você não pode entrar, tampouco se aproximar de seus limites. O próprio campo foi contaminado pela natureza corrosiva de seus moradores.

— É terrível lá, não é? — O rosto dela estava sem cor.

— Tem de ser. Existe muito mal em todos os mundos. Acha que este deveria ficar impune?

Lina pensou sobre o mundo mortal, e trechos de notícias flamejaram em sua memória como pesadelos: o atentado em Oklahoma, os horrores praticados por homens e mulheres adultos que violentavam e matavam crianças indefesas e, claro, o 11 de Setembro e a covardia dos terroristas.

— Não. Eu não o deixaria impune — afirmou com segurança.

— Nem eu. Por isso ordeno que não se aproxime das fronteiras do Tártaro.

Lina estremeceu.

— Não quero ir para lá.

Hades relaxou sua expressão séria e apontou com um gesto de cabeça em direção ao brilho que iluminava o lado direito da estrada.

— Eu gostaria de lhe mostrar um pouco da beleza de Elísia.

Num esforço consciente, Lina deu as costas para os horrores do Tártaro, sorriu para Hades e acariciou o pescoço quente de Órion.

— Tudo o que você tem de fazer é mostrar o caminho, e nós o seguiremos.

Com os olhos brilhando, o deus sacudiu as rédeas de Dorado.

— É melhor me seguir. Afinal, está montando o cavalo mais lento.

Lina estreitou os olhos para ele e recitou na sua melhor imitação de John Wayne:

— Não devia falar do meu cavalo, peregrino... — Apontou para a colina. — Está vendo aquele pinheiro grande na margem do campo, lá embaixo?

Hades abriu um sorriso e assentiu:

— Dorado e eu vamos alcançá-lo primeiro. Ele é o cavalo mais rápido.

— Pode ser o cavalo mais rápido, mas certamente está carregando um peso morto — ela falou, brincando. — Ops! Foi um péssimo trocadilho para usar no Submundo... IAAH! — gritou, pegando o sorridente deus de surpresa.

Órion respondeu de imediato, saltando para frente e passando como um raio por Dorado, aterro abaixo.

O vento assobiava ao passar por suas faces enquanto o garanhão galopava. Lina inclinou-se sobre seu pescoço, e ele aumentou a velocidade até que ela mal via o mundo ao redor.

Logo atrás, podiam ouvir Dorado se aproximando.

— Não deixe que eles nos alcancem! — ela gritou nas orelhas achatadas do cavalo, e Órion respondeu com nova explosão de velocidade.

Passaram por uma silhueta alta e verde, o pinheiro, e Lina se endireitou na sela, vibrando com a vitória, enquanto o garanhão diminuía para um trote e empinava com um relincho antes de parar.

Com a respiração pesada, Dorado diminuiu o galope até parar a seu lado.

Lina riu alto diante da expressão no rosto de Hades.

— O cavalo mais rápido, é? Nunca subestime o poder de uma mulher com muitos recursos.

— Você roubou — protestou Hades, simulando seriedade, embora tentasse, sem sucesso, esconder um sorriso.

— Prefiro pensar que esgotei os meus recursos para ganhar.

— Eu não tinha ideia de que era tão competitiva.

— Há muita coisa que não sabe sobre mim, senhor do Submundo — ela declarou, ainda acariciando o pescoço do garanhão. — Não sou uma deusa comum.

Hades bufou, e Órion bufou de volta.

Dorado sacudiu a cabeça, e o deus deu alguns tapinhas no cavalo.

— Não se sinta mal, meu velho. Nosso dia vai chegar. — E, fingindo um sussurro, completou, mais para si do que Dorado: — Só precisamos ficar de olho nela... Essa deusa é astuta.

— Ahn-ahn — Lina concordou de pronto, e ambos riram.

— Perséfone! — chamou uma voz jovem.

Lina virou-se para ver quem era.

— Oh, é a deusa da Primavera! Eu sabia!

A figura ágil surgiu do bosque de pinheiros que cercava a adorável clareira em que os cavalos se encontravam, e logo foi seguida por várias outras, que pularam e dançaram com entusiasmo diante de Lina. O grupo todo era composto de mulheres jovens e bonitas, cujos corpos fortes e esculturais encontravam-se encantadoramente cobertos por trajes diáfanos. Se elas não tivessem aquela aparência translúcida que as distinguiam como espíritos do Submundo, Lina teria acreditado que havia ido parar em uma daquelas festas de clube das mulheres.

Hades cutucou Dorado com os joelhos para que pudesse ficar mais perto dela e falou em voz baixa:

— São virgens que morreram antes de se casar. Costumam farrear antes de beber do Lete.

Quando o grupo se aproximou, eles diminuíram o trote, esforçando-se para conter o entusiasmo das mulheres e evitar que estas chegassem perto demais dos temíveis cavalos. A alma que chamara a deusa pelo nome fez uma reverência profunda e graciosa, a qual o restante das virgens imitou. Quando se levantou, foi a primeira a falar:

— Ouvi dizer que tinha sido vista, e, com todo o meu coração, eu quis acreditar. Oh, senhora! É tão maravilhoso tê-la conosco!

Um coro de “Sim!”, “Estamos tão felizes!” seguiu-se a seu pequeno discurso.

— Obrigada. Minha visita está sendo maravilhosa — comentou Lina.

A virgem franziu o cenho.

— Veio apenas de visita? Quer dizer que vai nos deixar?

O prado ficou em silêncio, como se cada folha de grama ou árvore quisesse ouvir sua resposta.

Ela não soube o que dizer.

— Perséfone pode permanecer no Submundo por quanto tempo quiser. — A voz de Hades, rica em sentimentos, rompeu o silêncio.

Lina sentiu a pulsação se acelerar com a súbita satisfação que a invadiu depois daquelas palavras. Afastou toda e qualquer preocupação ou pudor quanto a não poder ficar e por ter de permanecer ali apenas por seis meses.

Em vez disso, sorriu para o deus, pensando em como gostaria de beijá-lo outra vez.

— Então não tem nenhuma razão para ter pressa! Venha dançar conosco! — chamou a virgem.

Lina se obrigou a desviar o olhar de Hades.

— Dançar com vocês? Mas não há música.

— Esse é um detalhe que pode ser solucionado — declarou Hades. — Nossa deusa quer música! — ordenou com um floreio, e a brisa passou a rodeá-los com um assobio estranho, que se transformou no som melódico de instrumentos musicais. Hades inclinou a cabeça gentilmente para ela. — Agora já tem a música.

— Parece que sim. — O coração dela bateu tão forte que, a despeito da melodia, todos deviam estar ouvindo.

Mas, dançar? Ela não saberia como dançar com aquelas mulheres.

— Sim! Ah, por favor!

— Agora pode dançar conosco!

— Venha brincar com a música do deus, Perséfone!

— Mas, eu... Bem... — Lina olhou em volta, impotente. — O que vou fazer com Órion?

— Vai deixá-lo aqui, comigo e com Dorado — decidiu Hades, já desmontando. Caminhou para a lateral do cavalo e levantou os braços, de maneira que ela não teve escolha senão deslizar por eles.

Hades a abraçou com força por um momento, então sussurrou:

— Dance para mim aqui em Elísia... Nenhuma deusa jamais fez isso.

Ela o fitou nos olhos, percebeu seu desejo, assim como sua vulnerabilidade, e soube que não tinha alternativa.

— Está bem.

— Meus cavalos e eu vamos esperá-la. — Ele fez uma pausa, depois acrescentou: — Ansiosamente.

— Certo. Bem — Lina alisou as próprias vestes, fingindo endireitar o que já estava mais do que assentado. — Não vai demorar muito.

— Perséfone! Já fizemos um círculo! — Uma das virgens gritou.

— Que bom... — ela respondeu, partindo em direção ao grupo.

Determinadas, as virgens haviam formado um meio círculo no meio da campina.

Lina ficou tão nervosa que se sentiu um pouco enjoada. Dançar com um grupo de virgens mortas? Estava ali algo para o que nem toda a experiência que adquirira na vida a tinha preparado.

Sentiu as mãos suadas. Aquilo não era como o encontro para a coleta do néctar. Não teria nenhum exemplo de como agir. As mulheres estavam esperando que ela lhes mostrasse o que fazer.

Se partisse para uma imitação dos solos disco de John Travolta, em Saturday Night Fever , na certa faria um papel ridículo. Não apenas Hades, como todas as mulheres saberiam que ela não era uma deusa, e sim uma fraude.

Pare com esse absurdo!

O eco em sua mente a assustou tanto que ela quase deu um grito.

Seu corpo sabe dançar. Relaxe e confie nele!

Lina olhou para si mesma. Havia se esquecido de que não vestia sua pele de quarenta e três anos de idade. Ela era jovem, flexível e estava em tão grande forma que provavelmente poderia comer chocolate Godiva sem parar por vários dias. Nem precisaria se preocupar se o zíper de seu jeans fecharia depois.

— Senhora?

Lina ergueu o olhar e viu todas as virgens a observá-la com expressões curiosas em seus rostos bonitos. Devia estar parecendo uma idiota, parada ali, olhando para o próprio corpo.

Sorriu, endireitou os ombros e começou a andar de novo.

— Eu estava apenas admirando... — olhou para baixo outra vez — ... os trevos deste campo. São lindos, não acham?

Todas as cabeças assentiram com vigor, como se ela as estivesse controlando por um painel de controle.

— É típico do nosso prado. Gostamos de trevos e gramados... coisas que crescem. Por isso eles brotam para nos agradar — a primeira virgem disse.

— Eu também gosto deles — afirmou Lina, juntando-se ao círculo.

Você começa no centro , sua voz interna comandou.

Ela respirou fundo e se colocou no meio do grupo. Então fez a única coisa que poderia pensar em fazer: fechou os olhos e se concentrou.

A música a invadiu e, no mesmo instante, Lina começou a se movimentar. Seus braços se elevaram, e ela girou em um círculo lento e preguiçoso.

A melodia era maravilhosa, sensual e feminina, e seu corpo logo se harmonizou com as notas, fazendo-a partir para passos mais complexos com suas longas e flexíveis pernas. Seus quadris ondulavam e balançavam, e seus braços traçavam imagens no ar.

De repente, não era mais uma padeira de quarenta e três anos de idade. Era uma jovem deusa. Era música.

Lina abriu os olhos.

Com os rostos iluminados, as moças a circundavam, tentando imitar seus movimentos. Eram lindas, e muitas tinham sido, obviamente, talentosas dançarinas.

Mas a diferença entre a dança das mortais e a de Perséfone era clara até mesmo para Lina. Perséfone movia-se com a graça inumana de uma deusa.

Seu coração se encheu de satisfação com o poder dentro dela. Devia ser assim que uma primeira bailarina se sentia no ápice de sua carreira, pensou: saltando, girando e soltando gritinhos de alegria.

Poderia ter dançado para sempre, mas uma das virgens tropeçou e desabou, rindo, em meio a um canteiro de trevos. As demais se esforçaram para manter a coreografia.

Lina, contudo, a consolou, e, com um movimento glorioso e um floreio, pôs um fim à apresentação.

Enquanto as moças gritavam e aplaudiam, ela fez a reverência profunda de uma bailarina.

As almas a rodearam, murmurando agradecimentos e perguntando quando ela voltaria a brincar com elas de novo.

Enquanto riam e conversavam, Lina tentou, discretamente, localizar Hades, e avistou Órion e Dorado. Eles pastavam, contentes, não muito longe do pinheiro que servira como sua linha de chegada.

Seus olhos se voltaram para a árvore. Hades encontrava-se recostado nela, os braços cruzados e o corpo relaxado.

Mas seus olhos brilhavam, cheios de calor e fixos nela, e seus lábios se inclinavam numa sugestão de sorriso. Quando ele percebeu que ela o fitava, levou a mão à boca e enviou-lhe um beijo.

A coisa mais romântica que um homem já lhe havia feito.

— Bem, senhoras, foi maravilhoso dançar com todas vocês. Temos que fazer isso de novo muito em breve, mas Hades e eu precisamos seguir em frente — falou, desembaraçando-se de seu círculo de admiradoras.

Várias delas dispararam olhares tímidos na direção do deus que aguardava, e não foi difícil perceber o teor de seus sussurros, dos quais Lina só pôde entender os nomes “Perséfone” e “Hades”.

Rindo e acenando em despedida, as virgens desapareceram em meio aos pinheiros.

Hades se afastou da árvore para encontrar Lina no meio do prado. Por um momento, nenhum deles falou.

Então ele estendeu a mão e afastou uma mecha do cabelo que caía, úmido, sobre seu rosto delicado.

— Nunca vi nada tão cheio de graça como a sua dança.

De repente, Lina sentiu-se com menos fôlego do que enquanto rodopiava e saltava com a música.

— Deve estar com sede — observou Hades.

Até o momento, ela não tinha percebido que se encontrava sedenta ou suada.

— Muito!

— Deve haver uma fonte aqui perto. — Ele pegou sua mão e começou a caminhar em direção ao lado oposto do campo. — As coisas nunca permanecem as mesmas em Elísia, mas tendem a ­refletir os mesmos elementos.

— Então, é uma espécie de fantasia mutável? — Lina perguntou, passando a mão pelos trevos que lhe chegavam até os joelhos ao final do prado.

No mesmo instante, tufos de flores brancas saltaram por entre as folhas, emanando um perfume de verão e relva cortada.

— Sim, um pouco. — Hades sorriu para ela. — Elísia é dividida em diferentes partes, mas essas partes podem se misturar e mudar de acordo com a vontade dos espíritos.

— Diferentes partes? Quer dizer , há um lugar para pessoas que foram muito, muito boas, outro para as que foram boas na maior parte do tempo, e outro para pessoas que foram apenas “boazinhas”?

O riso de Hades preencheu o campo.

— Você diz as coisas mais inesperadas, Perséfone... Não. Elísia é dividida em reinos diferentes. Um deles é para os guerreiros. O outro é aqui — ele fez um gesto, apontando ao redor —, para que as virgens venham se divertir. E existem vários outros. A nobreza fica em um deles. Outro é para os pastores ou guias espirituais. — Ele sorriu de lado, como se tivesse doze anos de idade. — Curiosamente, os pastores não gostam de se misturar aos outros.

— Quem poderia imaginar?

— Pois é.

— Então eles não podem se unir? E se um guerreiro quiser cor­-
tejar uma virgem? Mesmo o batalhador mais dedicado pode se cansar de fazer “coisas de homem” após algum tempo.

— Eles podem se unir, porém enfrentam muitas dificuldades. — Hades fez uma pausa, ponderando sobre a questão. — Mas talvez não devesse ser assim, tão difícil. Talvez eles não percebam o que estão perdendo porque estão distantes disso por tempo demais. — O deus olhou para longe, imerso em pensamentos.

— Pode fazer Elísia se reorganizar segundo a sua vontade? — Lina quis saber.

— Sim. — Hades se voltou para ela.

— Se é assim, mova o prado das virgens que dançam para perto do local de treinamento dos guerreiros, e as coisas acontecerão naturalmente.

Ele soltou uma risada.

— Tem razão.

Entraram na floresta de pinheiros e, após alguma procura, Hades encontrou uma pequena trilha. Seguiram por ela até cruzar um riacho que borbulhava, derramando-se sobre rochas lisas.

Hades deixou o caminho, então, e conduziu Lina córrego abaixo. Em seguida contornou uma curva onde a água se reunia em uma pequena lagoa de fundo arenoso, antes de seguir seu curso, jorrando ruidosamente por sobre um lado da margem rochosa.

— Para você, minha deusa, apenas o melhor em bebida e comida... — disse com um sorriso travesso.

— Vá brincando — ela respondeu, apressada em se agachar na borda da piscina natural. — Aquela dança me deixou tão sedenta que, para mim, no momento, água é muito melhor do que ambrosia!

Lina juntou as mãos para beber o líquido claro. Estava tão frio que fez seus dentes doerem.

Suspirou, feliz, e engoliu outro punhado.

Uma vez satisfeita, chutou para longe as chinelas de couro macio e deixou as pernas balançar dentro da água gelada.

Hades se reclinou a seu lado, encostando-se em um tronco caído. O vento mudou ao soprar as árvores acima deles, envolvendo-os numa nuvem de pinho e seiva. O céu místico do Submundo lançava um brilho opaco sobre tudo.

Lentes cor-de-rosa , Lina pensou, sonhadora.

— Deméter me disse que o Submundo era um lugar mágico, mas eu nunca acreditei que detinha tanta beleza — confessou. — Se os deuses realmente soubessem como é maravilhoso aqui embaixo, você teria uma porção de visitas.

Hades encolheu os ombros, parecendo incomodado.

Lina o estudou e decidiu não pressioná-lo mais.

Lembrou-se de suas palavras na noite anterior: ele queria mais do que apenas sexo dela. Ela sabia disso, mas, para que houvesse mais do que isso entre eles, precisariam conversar muito.

O problema era que estava velha demais para perder tempo com conversas adolescentes, cheias de silêncios e dúvidas não esclarecidas. Era uma mulher adulta e precisava dizer o que lhe ia na mente.

— Se não queria visitantes, por que construiu um palácio enorme, com todos aqueles quartos vazios à espera de ser preenchidos?

Hades considerou a questão. O quanto deveria revelar a Perséfone?

Não pretendia contar que nunca se envolvera com uma deusa, nem sexualmente nem de outra forma. Tampouco que tinha passado uma eternidade ansiando por algo mais do que a frivolidade que satisfazia a maioria dos imortais.

Lembrou-se da última vez em que havia visitado o Monte Olimpo. Afrodite o provocara sem nenhum pudor, e ele não correspondera. Mais tarde, ele a flagrara às gargalhadas com Atena, enquanto as duas deusas concluíam que parte de seu corpo devia estar tão morta quanto o restante de seu reino...

Pensar na maldade das palavras ainda lhe provocava uma onda de raiva. Seu corpo não se encontrava morto. Estava simplesmente ligado à sua alma, e esta exigia mais do que as atenções de uma deusa egoísta.

O que ele poderia dizer que não faria Perséfone fugir dele?

Olhou para ela, vendo-a aguardar, ansiosa, por uma resposta.

Precisava ser o mais honesto possível. Não podia mentir nem dissimular. Uma relação duradoura não podia ser baseada em falsidades.

Deu um longo suspiro.

— Às vezes me pergunto por que eu o construí. Talvez estivesse esperando que algum dia aprenderia a superar as minhas... — tentou encontrar a palavra certa — ... diferenças.

— Diferenças? O que quer dizer?

— Sempre tive dificuldades em interagir com outros imortais — ele confessou. — Deve saber que têm medo de mim porque sou o senhor dos Mortos.

Lina começou a negar, mas, então, lembrou-se da expressão de Deméter quando ela falara de Hades; da maneira como o descartara como um deus sem importância e desinteressante.

A lembrança a deixou, de repente, com muita raiva.

— Eles apenas não sabem como você é na verdade.

— E como eu sou, na verdade, Perséfone?

Lina sorriu para ele e disse exatamente o que pensava:

— Que é interessante, divertido, sexy e poderoso.

Hades a fitou por um momento, depois balançou a cabeça.

— Você é mesmo uma caixinha de surpresas.

— E isso é bom ou ruim?

— É milagrosamente bom.

Lina suspirou. Aquele era um caso perdido. Não conseguia resistir a Hades, nem queria.

— Fico feliz por isso.

— Você não é como os outros imortais — ele continuou, rouco. — Sabe como eles são... Vivem cheios de si, sempre se esforçando para superar um ao outro e nunca satisfeitos com o que têm. — Ele se inclinou para a frente e tocou-lhe o rosto com a ponta dos dedos. — Você é sincera e honesta, o que uma verdadeira deusa deve ser.

Sincera e honesta? Uma verdadeira deusa?

Lina quis que o chão se abrisse para sumir dentro dele. Ela não era uma coisa nem outra.

— Eu... Você... — balbuciou, sem saber o que dizer.

Hades não lhe deu chance de organizar os pensamentos. Inclinou-se e a puxou para os braços.

A boca de Perséfone continuava fria depois de ter bebido da fonte de água, e ele quis se afogar nela. Mergulhou na maciez dos lábios carnudos. Ah, se a tivesse conhecido antes! Como podia ter passado tanto tempo sem ela?

A deusa passou os braços em torno dele e pressionou os seios contra seu peito. Hades gemeu. Seu desejo por ela era palpitante e devastador.

De repente, ela estremeceu, gritou, e, jogando água para todos os lados, puxou as longas pernas nuas para fora da pequena piscina natural.

Pondo-se de pé em um salto, Lina correu para trás do deus, querendo que ele ficasse entre ela e a borda da água.

— Alguma coisa encostou em mim! — Sua voz tremeu quando lembranças das cobras d’água e tartarugas mordedoras de Oklahoma brotaram em sua mente.

Hades afagou a mão com que ela segurava seu ombro, tentando ordenar os pensamentos. Ainda podia sentir a pressão de seus seios contra o couro macio que lhe cobria o peito, e seu corpo ainda crescia com o desejo.

— Perséfone, nada em Elísia a machucaria.

— Ali! — Lina ficou com vergonha por a palavra ter saído num grito, mas apontou para um vulto escuro que passava sob a água. — Há alguma coisa ali...

Com um suspiro, Hades se levantou e cobriu os poucos metros até a margem. Agachou-se e olhou para dentro da água clara.

Todos os sentidos de Lina se puseram em alerta.

— Tenha cuidado! — pediu, preocupada. — Pode ser uma cobra.

Hades lançou-lhe um olhar confuso por sobre o ombro.

— Por que tem medo de cobras?

Lina torceu uma mecha grossa de cabelo em torno do dedo.

Cobras estão intimamente relacionadas a Deméter. Não deve temê-las! , sua voz interna a alertou.

— Eu sei que é bobagem, mas nunca gostei delas — disse, perturbada.

A testa do deus se franziu, contudo um respingar na piscina natural chamou sua atenção.

Lina se encolheu, não querendo ver o réptil liso e asqueroso.

Quando Hades tornou a fitá-la, um sorriso brotou em seus lábios.

— Não pode ter aversão a esta criatura...

— Também não gosto de tartarugas! — Lina acrescentou depressa, desviando o olhar da forma escura que tinha acabado de assomar à superfície. — Principalmente de tartarugas mordedoras!

Hades riu e fez um sinal para que ela se juntasse a ele.

— Venha... Você gosta de animais.

Lina não cedeu.

— Gosto de animais. De mamíferos, aves, até de peixes. Mas odeio répteis. Eu sei que soa mesquinho, mas...

Um barulho estranho, como um latido, veio da água, e Lina olhou por cima do ombro de Hades, avistando uma criatura que flutuava de costas.

Quase engasgou.

— Mas não é uma cobra!

A lontra ladrou para ela novamente, jogando água com suas adoráveis patas com membranas.

Lina correu para se juntar a Hades e se agachou a seu lado, apoiando-se nele.

— É a coisa mais lindinha que eu já vi!

— Não diga isso ao meu cavalo — ele aconselhou. — Órion acredita que é o seu favorito.

Lina o empurrou de leve com o ombro antes de se aproximar da margem para acariciar a barriga da lontra.

— Órion é o meu cavalo favorito. Este mocinho pode ser a minha lontra favorita, ora.

Ao seu toque, o animal entrou em um frenesi de ganidos e fungados, debatendo-se tanto que a água espirrou para todos os lados antes que ele nadasse até a borda e em seguida desaparecesse pela pequena cachoeira abaixo.

— Eu não queria assustá-lo!

Hades sorriu diante da expressão decepcionada da deusa e enxugou as gotas de água de seu rosto.

— Você não o assustou, meu anjo. As lontras de Elísia são conhecidas por sua timidez. Aliás, eu nunca tinha visto uma de tão perto antes. E certamente nunca as toquei.

Lina procurou pela doce criatura, tristonha.

— Não pode fazê-la voltar? Afinal é um deus...

Ele riu.

— Como um deus sábio, sei quando é melhor não mexer com a ordem natural das coisas. Sem dizer que teria mais sorte do que eu em domar esse bicho... É você a encantadora de animais, não eu.

— Não sou encantadora de nada — protestou Lina. — Eu apenas gosto dos bichos, e eles, de mim.

— Dos mamíferos — Hades lembrou, afastando um longo fio de cabelo da face perfeita.

Lina inclinou a cabeça de modo a lhe acariciar a mão.

— Então talvez eu seja o único que você encantou, sua feiticeira. — Ele esfregou o polegar no lábio carnudo.

— Eu não gostaria de encantar nenhum outro — Lina se ouviu dizendo, enquanto se inclinava para um beijo.

Quando algo a cutucou nas costas, ela não o empurrou, surpresa, tampouco gritou. Simplesmente levantou a mão e acariciou o focinho de Órion.

— Se algum desinformado acredita que o Submundo é o lugar perfeito para encontrar paz e tranquilidade, está errado! — Hades fechou a cara para o garanhão.

Órion bufou e jogou a cabeça, então se aninhou junto a Lina novamente, fazendo-a rir com a respiração quente em seu pescoço.

Ela segurou um punhado da crina sedosa, e Órion levantou a cabeça, pondo-a em pé.

Lina olhou para o deus que ainda fulminava o cavalo com o olhar. Em seguida se abaixou, pegou-o pela mão e o puxou até que ele se levantasse.

— Gostaria de ver mais de Elísia? — indagou Hades.

Ela se ergueu na ponta dos pés e roçou o rosto moreno com um beijo.

— Claro que eu gostaria de conhecer melhor o seu reino.

As palavras trouxeram a Hades uma onda de felicidade, e ele se inclinou para beijá-la rápida e possessivamente antes de erguê-la para a sela de Órion.


Capítulo 20

O dia passou, delicioso. Elísia era uma aventura sem fim, onde beleza e harmonia se fundiam à perfeição.

E, por onde eles passavam, as almas dos mortos respondiam à presença de Perséfone. Lina se viu alçada para além das palavras diante da felicidade que viu nos rostos dos espíritos, conforme se espalhou pelo Submundo que havia uma deusa entre eles.

Hades ficou a seu lado, muitas vezes conduzindo Dorado para mais perto a fim de poder tocá-la.

A reação dos espíritos à visita de Perséfone o encheu de prazer. Os mortos o respeitavam e temiam. Alguns lhe eram imensamente leais. Contudo, ele nunca tinha evocado neles tanto amor e alegria como ela.

Mas não sentia inveja do efeito que a deusa causava em seu reino. Ele o compreendia. Como não poderia? Perséfone despertara tais sentimentos até mesmo nele.

Mais uma vez, Hades se perguntou como existira por tanto tempo sem ela. Não imaginava o que aconteceria a ele ou a seus domínios se Perséfone decidisse ir embora.

A luz do dia havia minguado, e o céu começava a brilhar com as almas das Híades quando, finalmente, se aproximaram da base traseira do palácio. Hades cutucou Dorado, fazendo-o se aproximar de Órion, e estendeu a mão para segurar a da deusa.

Ela sorriu. A mão de Hades era quente e forte, e Lina ficou feliz por enredar os dedos nos dele, enquanto devaneava acerca das maravilhas do dia e entravam na familiar floresta de pinheiros.

Ao chegarem ao n ível inferior dos jardins, Hades fez Dorado parar, obrigando Órion a fazer o mesmo.

— Há uma última coisa que eu gostaria de mostrar a você esta noite, se estiver disposta.

— É claro — ela concordou de pronto.

— Mas temos que andar — ele falou num sussurro.

Lina também fez cair o tom de voz a um nível conspirador.

— O que vamos fazer com? — Apontou os dois garanhões, que mantinham as orelhas inclinadas para trás, obviamente, ouvindo a conversa.

— Deixe-os comigo.

Hades saltou de Dorado com agilidade e, em seguida, ergueu os braços para ajudá-la a desmontar. Ela deslizou de encontro a ele, amando a erótica sensação de ter um cavalo musculoso a um lado do corpo e um deus quente e rijo do outro.

Hades se inclinou e mordiscou-lhe o lóbulo sensível da orelha.

— Acho que é hora de nos livrarmos dos nossos ­acompanhantes. — Endireitou o corpo e gritou o comando para que os garanhões voltassem ao estábulo com uma voz tão enérgica que as folhas das árvores ao redor chacoalharam em resposta.

Órion e Dorado reagiram de imediato, disparando para os terrenos do palácio.

Lina ergueu as sobrancelhas.

— Estou impressionada. Não pensei que eles fossem obedecer tão rápido.

O deus torceu os lábios.

— Ficaram apenas surpresos. Eu raramente ordeno que façam alguma coisa. Na verdade, eles são bastante mimados.

— Então vão ficar com raiva de você depois.

— Provavelmente. — Hades riu e uniu os dedos aos dela. — O que eu quero mostrar fica por aqui... — Conduziu-a por um caminho que contornava a borda dos jardins, e eles caminharam ao lado de fileiras de cercas vivas, aparadas em cones. Flores dormiam junto às sebes, e Lina tomou o cuidado de não passar as mãos perto dos botões fechados.

Quando Hades deixou a vereda e entrou na linha de ciprestes que cercava aquele lado dos vergéis, ela não conseguiu conter sua curiosidade:

— Aonde estamos indo?

— A um campo não muito longe daqui. — Ele apontou adiante.

Tudo o que ela podia ver eram as árvores enormes, porém eles continuavam perto o suficiente do palácio para que o terreno ainda estivesse bem cuidado. O solo sob as árvores continuava forrado por grama e livre de silvas e entulho.

A noite na floresta encontrava-se vazia da melodia dos pássaros, e Lina começou a se sentir intimidada pelo enorme silêncio.

— O que há neste campo? — indagou num sussurro.

Hades apertou a mão dela.

— Não precisa mais falar baixo.

— Ah. — Ela ficou constrangida. Levantando a voz para um nível normal, repetiu a pergunta: — O que há neste campo, afinal?

— Pirilampos.

— Pirilampos?

O deus anuiu.

A última coisa que Hades tinha para lhe mostrar sobre os mistérios do Submundo eram vaga-lumes? Ela já vira vaga-lumes antes. Muitos deles.

Lendo sua expressão, ele sorriu, travesso.

— Aposto que vai achar esses pirilampos diferentes.

Lina deu de ombros e manteve a boca fechada. Perséfone talvez considerasse um campo de vaga-lumes único, mas seria necessário algo mais do que insetos de verão para surpreender uma garota de Oklahoma. Principalmente depois das maravilhas que ela já vira naquele dia.

— Ah, aqui está a quebra nas árvores. Cuidado com onde pisa... Precisamos atravessar esta pequena vala primeiro.

Lina se concentrou em atravessar o pequeno canal e não ergueu a cabeça até estar com os pés plantados no tal campo.

Quando o fez, seus olhos se arregalaram. O prado encontrava-se repleto de luz, mas não com o amarelo-claro dos vagalumes que ela vivia perseguindo na infância. Aqueles eram da cor do luar e...

— Narcisos! — exclamou, ofegante. — Misericordioso Madre di Dio! — Eles estão fazendo narcisos!

A risada suave de Hades revelou sua satisfação.

— Poucos testemunharam esse tipo de coisa... E então, deusa da Primavera, o que achou?

Lina olhou para o campo. Milhares de caprichosos vaga-lumes trabalhavam furiosamente, girando em torno das flores. Saindo de um tufo de folhagem verde, um grupo de minúsculos insetos formava uma espécie de enxame, depois começava a voar em uma espiral brilhante, dando voltas e voltas. De repente, como cometas em miniatura, sua cauda incandescente ganhava forma e massa, deixando para trás um narciso perfeito em plena floração.

— É incrível! É dessa forma que todos os narcisos são feitos?

— Todos os que existem no Submundo. Às vezes alguns desses grupos de vaga-lumes ficam confusos, se aproximam demais da abertura para a terra dos mortais e produzem uma flor no Mundo Superior. Mas eu tento evitar isso. Como deve ter notado, a fragrância dos meus narcisos é diferente daquela das flores do Mundo dos Vivos. Os mortais a consideram demasiado inebriante.

Lina se lembrou da noite em que havia se curvado para respirar o perfume do narciso incomum sob o carvalho.

— Imagino como isso deve causar problemas — disse baixinho.

Quando o som de sua voz penetrou a pequena consciência dos insetos, vários dos grupos mais próximos de vaga-lumes fizeram uma pausa em sua produção. Como se todos eles houvessem tido a mesma ideia, voaram até ela em uma nuvem brilhante e pairaram à sua frente, girando em círculos ofuscantes e fazendo um barulho estranho que fez Lina pensar em grilos sopranos.

— O que eles querem? — perguntou a Hades pelo canto da boca.

O deus inclinou a cabeça em sua direção, sorrindo.

— Querem que você os ajude a produzir as flores.

— Verdade? — ela indagou, sem saber o que fazer.

— Verdade. — Hades soltou sua mão. — Vá. Eu espero aqui.

Ela precisava fazer aquilo. Afinal, era a deusa da Primavera, e produzir flores, definitivamente, deveria fazer parte de seu trabalho.

Enquanto permaneceu parada no lugar, pensando no que fazer, Lina percebeu que queria muito se juntar aos vaga-lumes.

Basta tocar as flores, desejar que elas floresçam, e elas vão desabrochar, disse sua voz interior.

Respirando fundo, ela entrou no campo, e a relva se agitou de encontro às suas panturrilhas. Os pirilampos dançavam com alegria, formando estonteantes círculos ao seu redor.

Lina se aproximou de um aglomerado de verde que não era grama, tampouco flor. Hesitante, acariciou as folhas largas e achatadas com a ponta dos dedos, pensando o quanto gostaria de vê-las florescer.

Em uma explosão de luzes brilhantes que a fez se lembrar de fogos de artifício, uma flor branca e reluzente brotou do centro da planta.

Ela se abaixou e inalou sua fragrância única, rindo alto. Havia criado aquela maravilha! Uma alegria típica da juventude a invadiu. Sem pensar muito, seguiu os comandos do próprio corpo e, com um pulinho e uma pirueta graciosa, partiu para o amontoado seguinte de vegetação. Enquanto ela dançava, dando vida a flor após flor, os vaga-lumes a cercavam numa espécie de halo.

Hades permaneceu à beira do prado, enchendo os olhos com a bela visão. Como uma criatura podia ser tão linda?

Sentiu um desejo atroz de tê-la, e, por meio desse ato, finalmente fazer Perséfone sua.

E com a mesma intensidade que havia testemunhado tantas vezes nos olhos de almas gêmeas.

Perséfone girava e dançava, chamando os narcisos para a vida. Pois então não fizera o mesmo com ele?

O senhor dos Mortos, o deus que se dizia imune àquele tipo de sentimento, tinha caído de amores pela deusa da Primavera. Não importava o quanto pudesse parecer ridículo ou irônico. Havia acontecido.

E ele não queria que acabasse.

A decisão estava tomada. Desejava mais do que apenas observar fantasmas do amor... queria experimentá-lo por si mesmo.

Esfregou o peito instantaneamente, antecipando o velho e dolorido ardor, contudo este não veio. Embora Perséfone fizesse seu corpo doer e seu sangue latejar nas veias, não despertava sua revolta.

Parou de mover a mão e tentou se lembrar da última vez em que sentira a queimação no peito.

Piscou, surpreso. Fora na noite em que ele a ofendera e, em seguida, a abandonara à mesa de jantar. Nunca mais o sentira desde então.

Sorriu. Perséfone não era apenas o sopro da primavera. Era também um bálsamo para sua alma cansada. Talvez sua solidão tivesse realmente chegado ao fim.

Lina percebeu o olhar de Hades e, enquanto outro narciso brotava em flor, olhou para o ponto onde ele a aguardava. O deus continuava em pé à margem do prado, alto, sombrio e silencioso, assistindo-a com uma intensidade que fez seu sangue correr mais depressa.

Por que ele apenas observava?

De repente, ela desejou mais do que aquilo e um pensamento maravilhoso se formou em sua mente. Vinha brincando com virgens e ninfas desde que chegara... Agora era a vez de Hades.

Sorrindo, feliz, dançou até ele, deixando um rastro de brilhantes vaga-lumes pelo caminho, e agarrou sua mão.

— Vamos! Faça flores comigo!

Uma sombra de tristeza invadiu os olhos do deus.

— Sou o deus dos Mortos. Não posso criar vida.

— Se eu ajudá-lo, pode! — Lina afirmou com mais confiança do que sentia e puxou sua mão.

— Não, eu... — Hades suspirou. — Maldição, Perséfone, não consigo lhe negar nada!

E, relutante, permitiu que ela o arrastasse para a campina.

Cercados pela nuvem ofuscante de pirilampos, eles rumaram para uma das moitas. Lina o fez ficar atrás dela, então levou as mãos para trás, ao longo dos braços fortes, até juntar as mãos com as dele e fazer com que Hades a abraçasse. Abriu bem os dedos, como se tivesse acabado de arremessar uma bola.

— Entrelace os dedos nos meus — instruiu, a proximidade com ele tornando sua voz mais rouca. — Agora pense o quanto gostaria de ver esse narciso desabrochando.

Completamente vencido, Hades deixou que ela guiasse suas mãos. Desejava verdadeiramente produzir uma flor.

No entanto, desejava ainda mais poder fazer aquela deusa sua... e que ela permanecesse a seu lado para aliviar sua solidão por toda a eternidade.

Seus dedos começaram a formigar conforme a magia de Perséfone se fundiu com a dele e, perplexo, Hades viu um narciso cintilante brotar sob as mãos unidas.

Lina gritou de alegria e se virou, o rosto iluminado.

— Conseguimos!

Hades a envolveu nos braços e fitou os olhos brilhantes à sua frente.

— Conseguimos juntos, Perséfone. Eu não poderia ter feito isso sem a deusa da Primavera... Eu gostaria de encontrar palavras para expressar o prazer que sinto em partilhar meu mundo com você.

Sua voz soou grave, sua expressão era séria, e Lina se sentiu completamente perdida nos olhos escuros e profundos. Hades queria mais do que um simples beijo ou caso. Ela sabia que deveria inventar alguma brincadeira e dançar para longe dele, mas não teve forças para isso. Ansiava por estar com o deus tanto quanto este ansiava por estar com ela.

Beijou-o, pressionando o corpo no dele.

De repente, Hades interrompeu o beijo. Descansando a testa na dela, concentrou-se em controlar a respiração acelerada. Não a amaria no meio da floresta outra vez. Perséfone merecia mais do que isso. Ela merecia tudo o que ele poderia lhe dar de melhor.

— É tarde. Precisamos voltar para o palácio — disse, beijando-a na testa suavemente.

Lina o fitou, decepcionada.

— Eu não estou cansada.

— Nem eu.

— Não quero que este dia tenha fim, Hades.

— Não precisa ter. — Ele respirou fundo. — Ainda não conheceu meus aposentos... Gostaria de fazer isso?

Lina percebeu como fora difícil para Hades perguntar e sentiu o coração batendo forte. Um coração que não era verdadeiramente seu, dentro de um corpo que também não lhe pertencia...

Mas a alma era sua, disse a si mesma. Não era apenas seu corpo que o desejava. Ela amava a doçura e o senso de humor de Hades. Adorava o som de sua risada. Amava o poder e a paixão do deus, e também o cuidado e a sabedoria que ele demonstrava no trato com os espíritos em seu reino.

Tocou-lhe o rosto e admitiu a verdade para si mesma: ela o amava.

— Sim. Eu gostaria muito.

A alegria iluminou o rosto moreno, sendo logo seguida pelo desejo, e Hades se inclinou para beijá-la novamente, desta vez com mais ímpeto.

Em seguida, relutante, ele a soltou, pegou sua mão, e tomou com ela o caminho de volta.

Lina ouviu um zumbido estridente às sua costas, e ambos se viraram. Os vaga-lumes pairavam em um enorme aglomerado à margem do campo.

O deus riu.

— Perséfone voltará. Não está deixando o Submundo.

O frenético zunido diminuiu com as palavras.

— Eu adoraria voltar e fazer mais flores com vocês — assegurou Lina, e o zumbido mudou para uma alegre chilrear.

Sorrindo, ela e Hades continuaram seu caminho.

— É bom que eles gostem tanto de mim.

— Todo o meu reino a adora, Perséfone — ele afirmou.

Lina o fitou de soslaio.

— Apenas o se u reino?

O lábios do deus se curvaram num sorriso.

— Não, não apenas o meu reino.

Ela apertou sua mão.

— Ainda bem.

Assim que deixaram o bosque e entraram no jardim, Lina ouviu o choro.

— Alguém está chorando! — exclamou e, espreitando na penumbra, tentou descobrir quem era.

— Ali — Hades apontou à sua frente, na direção da estrada que passava em frente ao palácio e conduzia a Elísia.

Lina mal conseguiu discernir a silhueta iluminada à margem da estrada.

— É melhor vermos o que está acontecendo — sugeriu, buscando uma confirmação no rosto do deus.

— Sim. É estranho que um espírito chore em Elísia — ele comentou conforme rumavam naquela direção. — Os mortos podem sentir falta da família e de seus entes queridos da Terra dos Vivos, mas, quando são transportados pelo Estige e entram em Elísia, suas almas se enchem de alegria, ou ao menos de paz. A habilidade para deixar de sentir saudades da vida, ou ao menos a capacidade de compreender que todas as despedidas são apenas temporárias, incorpora-se ao espírito mortal. Os que ganharam a eternidade em Elísia sempre ficam contentes.

À medida que se aproximavam do espírito, o brilho tomou forma. Lina pôde ver, assim, que se tratava de uma mulher muito jovem e gorda, com os cabelos longos e escuros presos em um coque. Estava sentada à beira da estrada, a face nas mãos, chorando tão copiosamente que nem mesmo percebeu sua aproximação.

Num impulso, ela fez um sinal para que Hades ficasse para trás, e se pôs ao lado da estranha. Pouco antes de lhe tocar o om bro, percebeu que o corpo do espírito parecia muito mais denso. Se a mulher não tivesse a luminescência pálida dos mortos, ela teria acreditado que estava viva e que, de alguma forma, se perdera no Submundo.

— Querida, o que foi? — perguntou suavemente.

A alma deu um pulo e levantou o rosto molhado de lágrimas, fitando Lina com os olhos castanhos cheios de desespero. Reconheceu a deusa imediatamente e começou a se curvar, mas então viu Hades e levou a mão à boca. Mudou a direção da mesura e acabou indo para trás e para frente, sem saber a qual dos imortais prestar sua reverência.

— Eu não quis perturbar os deuses! — desculpou-se, enxugando os olhos. Pondo-se em pé, desajeitada, começou a recuar às pressas. — Por favor, perdoem-me!

— Não, eu... — Lina ergueu a mão, tentando apaziguá-la.

A mulher estacou, nervosa, olhando para sua mão estendida tal qual um rato assustado.

Lina suspirou e modulou a voz para o tom que costumava usar com os animais.

— Não vá. Você não nos perturbou. Hades e eu fomos dar um passeio e ouvimos seu pranto. Estávamos preocupados, não com raiva.

Ela pareceu relaxar um pouco.

— Qual é o seu nome? — O deus pediu no tom agradável e paternal que usara com Eurídice.

A mulher olhou para ele, ansiosa.

— Alcestes.

— Diga-nos por que estava chorando, Alcestes — Lina pediu com delicadeza.

Ela olhou para os pés.

— Estou me sentindo sozinha. Sinto falta do meu marido e da minha família. — Pressionou as costas da mão contra a boca, tentando inutilmente reprimir um soluço.

O olhar preocupado de Lina encontrou o de Hades, e ela notou que ele também parecia surpreso com as palavras do espírito.

Então o viu inclinar a cabeça para o lado e seu rosto assumiu uma expressão de aten ção. Em seguida, seus olhos pareceram escurecer, e ele apertou os lábios antes de falar com a alma.

— Não era sua hora, Alcestes — disse, a voz marcada pelo pesar.

O espírito deixou escapar outro soluço.

— Não, não era... Mas eu tinha de vir.

Hades franziu o cenho.

— Não precisava vir. A escolha foi sua.

Alcestes levantou o rosto molhado.

— Não entende? Ele perguntou aos outros e ninguém se dispôs a fazê-lo. Por isso eu tive de vir.

Totalmente confusa, Lina abanou a cabeça.

— Esperem... Agora eu é que não estou entendendo. Do que estão falando? Houve algum tipo de erro?

— Alcestes, diga a Perséfone por que entrou no Submundo — ordenou Hades.

A alma respirou fundo e enxugou o rosto com a manga da veste fúnebre.

— Fiquei casada por pouco tempo... O nome do meu marido é Admeto. — A face úmida da mulher se iluminou, e ela quase sorriu. — Ontem de madrugada os argumentadores profetizaram que Admeto morreria antes do pôr do sol. Meu marido imediatamente pediu clemência a Apolo, e o deus da Luz concordou. Na realidade, a profecia era verdadeira. As Parcas tinham terminado de tecer a vida de Admeto e, ao anoitecer, sua vida mortal seria extinta. Mas meu marido sempre foi um dos favoritos do deus da Luz, e Apolo ouvira o choro de Admeto. No fim, concedeu a ele um novo destino: ele seria poupado se alguém concordasse em morrer em seu lugar. Primeiro, meu marido foi procurar seus pais, que são velhos e não andam muito bem, mas eles se recusaram. Então procurou os irmãos. Estes também não se propuseram a morrer em seu lugar. Ele pediu aos amigos mais íntimos, assegurando que cuidaria bem de suas famílias, mas a resposta foi sempre a mesma. Ninguém estava disposto a morrer por ele. Desesperado, Admeto voltou para casa a fim de esperar por seu destino. — Alcestes fez uma pausa, procurando o olhar de Lina. — Eu não podia deixá-lo morrer.

Hades cerrou a mandíbula, mas, quando falou, sua voz não traiu nenhuma raiva.

— E Admeto permitiu que morresse por ele.

O espírito virou os enormes olhos molhados para o deus.

— Ele chorou e rasgou suas vestes... Estava desesperado.

— Mas não o suficiente para detê-la — observou o senhor do Submundo.

— Precisa entender, eu não tinha escolha! Precisava tomar o lugar dele! — Alcestes começou a chorar outra vez.

— Por isso sente essa solidão e dor agora. Não era a sua hora. Sua roda da vida ainda está girando, e sua alma sabe disso. Por isso não consegue encontrar paz — Hades explicou, solene, como se um grande peso pressionasse as palavras.

— Isso não pode ficar assim — interveio Lina. — Olhe para ela... Alcestes nem tem o mesmo corpo do restante dos espíritos.

— Isso porque não é como o restante dos espíritos. Está deslocada, fora do destino que lhe foi previsto.

— Então precisa consertar isso — Lina decidiu com firmeza.

— Ela está aqui porque um deus interferiu na vida de um mortal; algo que acontece com muita frequência, por diversas razões egoístas. Eu não acredito em interferir na vida dos mortais.

— Mas ela faz par te do seu reino, agora. Não está se intrometendo. Só está cumprindo com o seu dever!

— Perséfone — Hades falou com os dentes cerrados —, não se lembra do que aconteceu da última vez em que decidiu enviar um espírito de volta para a Terra dos Vivos?

Lina se encolheu como se ele a tivesse esbofeteado.

— Aquilo foi diferente. Não acredito que possa ser tão cruel, Hades! — Sua voz soou fria como gelo.

— Oh, por favor! — Alcestes se atirou de joelhos entre os dois imortais. — Eu não queria causar discórdia entre o rei e a rainha do Submundo!

— Do que chamou Perséfone? — Hades indagou, tenso. — Que título deu a ela?

Tremendo, a alma deslocada respondeu ao seu deus:

— Eu a chamei de rainha do Submundo, mas não fui eu quem deu esse título a ela, senhor. Simplesmente repeti o que falam de ­Perséfone no Mundo Superior. — Alcestes conseguiu sorrir para Lina. — É bem sabido que ela agora está reinando a seu lado.

Lina ficou sem palavras. Rainha do Submundo? As pessoas estavam mesmo dizendo aquilo dela?

Olhou para Hades, e o deus sombrio capturou sua expressão. Seus olhos brilharam, e seu rosto se iluminou com alegria.

Quando falou, Lina não conseguiu desviar o olhar, quase se esquecendo de respirar.

— Faça seu julgamento, rainha do Submundo. Eu me curvarei à sua vontade — disse e, num gesto quase imperceptível, inclinou a cabeça para ela.

Lina se obrigou a tirar os olhos dele e sorriu, trêmula, para Alcestes.

— Minha decisão é que retorne ao mundo dos mortais e a seu marido para terminar sua sina. E diga a Admeto que ele pode seguir o nov o destino que as Parcas teceram para ele.

Com um grito de felicidade, Alcestes se ergueu e pegou a mão de Lina, beijando-a e segurando-a junto ao rosto encharcado de lágrimas. Sorriu para ela, os olhos marejados.

— Oh, obrigada, rainha do Submundo! Meus filhos, e os filhos dos meus filhos, haverão de fazer sacrifícios pela senhora a cada primavera, até o fim dos tempos!

— É muita gentileza sua, mas saiba que eu prefiro um pouco de vinho e mel espalhados pelo chão. Não sou muito afeita a sacrifícios sangrentos — Lina declarou rapidamente.

Alcestes fez uma reverência profunda.

— Eu sempre me lembrarei de sua bondade, minha deusa!


Capítulo 21

Hades ficou muito quieto após Alcestes desaparecer pela estrada que a devolveria à sua vida mortal, e, vez ou outra, Lina o observava com discrição. Ele segurava sua mão, contudo seu rosto era inescrutável.

Definitivamente, ele a estava deixando muito nervosa. Ela ainda iria para seus aposentos? Teria interpretado mal a reação do deus ante o fato de ser ela chamada de rainha do Submundo? A felicidade que ela pensara ter visto poderia ser outro tipo de emoção?

Mas, se fosse assim, por que ele teria lhe permitido dar uma sentença com a qual não concordava?

Lina suspirou. Os pirilampos pareciam ter invadido sua mente.

Entraram no palácio pelo pátio dos fundos, então Hades rumou da esquerda, o lado oposto ao quarto dela. Passaram pela entrada da sala de jantar e, por fim, ele parou em frente a uma enorme porta em que tinha sido esculpida a imagem de Órion em pé, sobre as patas traseiras, e a do elmo.

Nervosa, Lina apontou para o entalhe.

— É uma ótima reprodução de Órion. Ele parece muito feroz.

Hades bufou.

— Pois eu acho que agora será necessária uma nova versão...
A que o mostre curvando-se à sua senhora.

— Ora... — Aliviada com a brincadeira, ela o cutucou com o cotovelo no braço. — Ele ainda é considerado um dos seus temíveis cavalos. Eurídice vive para evitá-lo.

O deus balançou a cabeça.

— Tenho medo de que sua reputação de ser um animal solitária e feroz tenha sido arruinada para sempre. — Ele se virou para ela e segurou seu queixo, erguendo-lhe a face. — Mas ele não se importa... O ganho excede a perda. — Beijou-a delicadamente, murmurando contra seus lábios: — Vai comigo para o meu quarto?

— Sim — Lina respondeu com um frio na boca do estômago.

Hades abriu a gigantesca porta, e ela finalmente entrou no mundo particular do deus do Submundo. A primeira coisa que notou foi a enorme cama no centro do aposento, encimada por um dossel que pendia em luxuosas dobras de seda pura. A própria cama se encontrava coberta com pesados lençóis brancos, fazendo o conjunto parecer uma nuvem que havia perdido seu lugar no céu. Era suntuosa, sexy... e muito, muito convidativa.

Quando percebeu que estava olhando o móvel e deixando a imaginação vagar, Lina sentiu o rosto arder. Desviou o olhar, e teve a atenção atraída para o impressionante par de lustres que pendia do teto abobadado. Pareciam feitos de vidro preto, e centenas de velas bruxuleavam, cintilando em sua base incomum.

— Seus lustres são sempre tão lindos! Estes são feitos de vidro preto?

— De obsidiana — explicou Hades. Pressionando-lhe a base das costas intimamente, ele a conduziu pelo quarto. — Quando ela é cortada e polida, assemelha-se ao vidro.

Lina sorriu.

— E quais são suas caracter ísticas? Devem ser muito especiais se a escolheu para os seus aposentos.

— Os poderes da obsidiana são a proteção, a segurança, a divinação e a paz. — Ele olhou para a luz piscante. — E eu também a considero bastante tranquilizadora.

— Sem dizer que combina com tudo aqui. — Lina apontou para o restante do vasto cômodo.

As cores predominantes eram o preto, o branco e o prata. Em vez de tornarem o quarto austero e frio, os contrastes dramáticos tinham um efeito intrigante... como se o deus tivesse encontrado o exato equilíbrio entre a luz e a escuridão.

— Gostaria de beber algo? — Hades indagou, um pouco tenso, perguntando-se se ela podia ouvir as batidas de seu coração.

Quando Perséfone assentiu, ele caminhou, apressado, até uma mesa baixa, em meio a duas poltronas de cetim branco, e serviu duas taças de uma garrafa que já havia sido aberta e colocada em um recipiente com gelo.

Lina sorriu em agradecimento e pegou a taça de cristal cheia de um líquido dourado. Seu aroma a fez sorrir.

— Ambrosia!

— Há rumores de que está apaixonada por essa bebida. — Os lábios de Hades também se curvaram num sorriso.

— Deveria haver rumores de que, às vezes, eu exagero na dose...

— Isso pode ser um segredo nosso. — Ele tornou a sorrir e ergueu a taça para ela. — Aos recomeços.

— Aos recomeços — Lina repetiu, tocando-a com a sua.

Enquanto bebiam, seus olhares se encontraram. Em seguida Hades colocou a taça de volta na mesa e, sem hesitar, ela fez o mesmo.

O deus sombrio respirou fundo, então percorreu o curto espaço entre eles e a tomou nos braços.

— Está me assustando, Perséfone. Não consigo respirar sem pensar em você...

Capturou-lhe os lábios em um beijo faminto, e eles se uniram, sedentos.

Tudo o que ela pôde pensar foi: Ah, obrigada! Finalmente!

O corpo rijo de Hades pulsou contra o dela, e o de Lina respondeu com um calor. Suas mãos percorreram o peito largo, encontrando, inquietas, a túnica de couro, e ela quis praguejar de tanta frustração. Não tinha ideia de como arrancar aquela coisa!

Enquanto os beijos profundos faziam fervilhar seu sangue, tateou a veste até encontrar amarras do couro nas laterais. Puxou-as, impaciente, soltando-as o bastante para poder deslizar as mãos para dentro da couraça e sentir os músculos rijos da cintura e do abdômen de seu amado.

Hades gemeu contra a boca carnuda, e suas mãos desceram para segurar a curva suave das nádegas de Perséfone, pressionando-a com mais firmeza contra ele. Uma onda de calor invadiu seu corpo quando ele a sentiu se movendo em resposta. Lina mordiscou seu lábio inferior, provocante, então se afastou apenas o suficiente para fitá-lo nos olhos.

— Leve-me para a cama — falou, meio sem fôlego.

Ele engoliu, tentando aliviar a secura na garganta, e acedeu. Conduziu-a até a enorme cama, repartiu a cortina de seda, mas não se juntou a ela de imediato. Recostada nos travesseiros, Perséfone era ainda mais estonteante. Diante de sua hesitação, a deusa sorriu para ele interrogativamente.

— Primeiro devo lhe dizer uma coisa. — Sua voz saiu carregada de emoção. — Eu nunca fiz isso antes.

— Nunca trouxe uma mulher para o seu quarto?

— Eu nunca trouxe uma imortal aqui. Mas não apenas isso.

Os olhos de Lina se arregalaram.

— Nunca fez amor?!

O riso de Hades soou forçado e nervoso.

— Eu fiz amor. Mas nunca com uma deusa.

Lina sentou-se, querendo desesperadamente revelar a Hades a ironia da situação. Ele estava nervoso pela mesma razão na qual ela sentia um bando de borboletas voejando no estômago.

— Para ser sincera, eu também não me deito com ninguém há um bom tempo. — Aproximou-se e tocou-lhe a mão. No mesmo momento, os dedos dele se entrelaçaram aos seus. — E juro: nenhum deus me fez sentir o que sinto por você.

Hades sentou-se a seu lado na cama, olhando suas mãos unidas.

— Quando Alcestes a chamou de rainha do Submundo, senti um orgulho indescritível só de pensar que outros acreditam que você me pertence, que poderia ser feliz reinando a meu lado. Não posso conceber algo que me traria mais alegria.

Lina deu um longo suspiro.

— Eu teria orgulho de ser chamada de rainha do Submundo, mas, não sei... — Vacilou, dividida entre a promessa que fizera a Deméter e a necessidade de dizer a verdade ao deus.

Ele a segurou pelo rosto.

— Já me basta saber que a ideia não lhe é repugnante. O tempo cuidará do resto.

Lina colocou as mãos sobre as dele.

— Como este seu reino maravilhoso poderia me causar repugnância? Eu o adoro! — disse com voz rouca.

O sorriso de Hades foi deslumbrante, e Lina se perguntou como era possível que os outros imortais não o vissem como ela.

De repente, ficou extremamente feliz por isso. Se soubessem, ele não seria seu. E seria como o restante deles.

Hades a beijou com suavidade, contudo Lina pôde sentir a tensão no corpo másculo através dos músculos rijos de seus braços. Quando falou, sua voz parecia ainda mais profunda:

— Mostre-me como lhe dar prazer. Só de pensar em você, um só vislumbre de sua pele, já faz meu sangue ferver... Mas sei que o desejo não é tão simples para as mulheres. — Embora tenso, ele conseguiu dar uma risada. — Mesmo com a minha limitada expe­riência, aprendi que as deusas são, de fato, muito mais complexas do que os deuses. Ensine-me como atiçar o seu desejo, Perséfone.

Lina sentiu a boca seca e passou a língua pelos lábios, arrepiando-se ao perceber que ele não deixara o gesto passar despercebido.

— Pode começar tirando a roupa — falou, meio sem fôlego.

Sem hesitação, Hades arrancou o quitão já solto, livrou-se da túnica curta e também da tanga de linho, igual à que usava na ferraria e que ela achara tão atraente. Uma vez livre das roupas, parou diante dela, totalmente nu.

E era magnífico. A pele lisa dourava-lhe os músculos, fazendo-o parecer ainda mais sombrio e exótico.

Céus! , ela nunca vira um homem tão perfeito!

Seus olhos viajaram pelo corpo musculoso, e sua respiração ficou presa na garganta. Hades se encontrava plenamente excitado, e uma onda inebriante de prazer a invadiu quando ela pensou que tinha um deus sob seu comando. Ficou parada por um momento, em seguida descansou as palmas das mãos no peito nu. Lentamente, ela as fez correr ao longo da pele lisa, amando sentir os músculos rijos e bem definidos do peito e dos braços de seu amor.

Quando suas mãos desceram mais, um tremor o percorreu.

— Algo de que todas as mulheres gostam é acreditar que seu toque é especial — Lina disse, rouca. — É bom saber que, mesmo que nossos corpos não tenham tanta força, um pequeno toque nosso pode fazer um homem estremecer e gemer de prazer... — Pegou a carne rija na mão e a acariciou sensualmente.

Um gemido intenso escapou da garganta de Hades, e Lina sorriu, sedutora.

— Estou machucando você?

— Não! — ele negou com voz abafada. — Embora eu acredite que possa me matar de prazer apenas com um toque... Basta pensar em você, vê-la, sentir seu cheiro, e fico excitado, dolorido, louco para amá-la!

As palavras tiveram o efeito de uma descarga elétrica no corpo de Lina, e ela o empurrou de leve para dar um puxão no laço que prendia sua própria túnica no ombro esquerdo. Contorceu-se, impa­ciente, até deixar os seios nus, e levou apenas um momento para soltar as amarras em seus quadris. Com um movimento sensual, fez o tecido deslizar por seu corpo, em seguida se jogou nos braços de Hades.

— Sua pele é tão quente! — falou entre beijos. — Eu amo senti-la de encontro a minha.

— E você me faz pegar fogo! — Hades sussurrou contra seus lábios enquanto explorava a curva de seus quadris eroticamente. De súbito, virou-se e se deitou na cama, puxando-a com ele. — Mostre-me mais, Perséfone... Ensine-me como fazê-la arder também!

Lina saiu de cima do corpo másculo, de modo que ficaram deitados de lado, de frente um para o outro. Ela mal sabia por onde começar. Já se sentia tão pronta que, por um momento, quase o fez subir nela.

Então respirou fundo e deteve o impulso. Hades não era como seu ex-marido ou qualquer outro dos seus desinteressados amantes. Desta vez seria diferente, pois Hades era diferente. Nele ela encontrara tudo o que uma mulher podia desejar: um homem que queria agradar de verdade e estava disposto a ouvir e aprender para que ela pudesse sentir prazer. Tudo o que precisava fazer, naquele momento, era mostrar o que desejava.

Mas isso era muito mais difícil do que ela havia imaginado. O que queria, afinal?

Fechou os olhos e tentou ordenar os pensamentos. Em toda a sua vida de adulta, sempre sonhara com alguém que gostasse dela o suficiente para se preocupar com seu prazer tanto quanto o seu próprio. Precisava ser honesta com Hades, bem como consigo mesma. Tinha que romper com as barreiras que seus antigos amantes a tinham feito erigir.

Estremeceu. Estava pronta.

Abriu os olhos e, bem de leve, tocou o ponto onde o próprio pescoço encontrava o ombro.

— Para mim, são as pequenas coisas que importam — falou com uma voz subitamente tímida. — Assim como ser beijada aqui...

Hades se apoiou em um cotovelo, então se inclinou para a curva delgada. Beijou-a e mordeu-a de leve, passando a língua pela área sensível.

— Eu também queria que você me acariciasse enquanto me beija... Deixe meu corpo se acostumar com o seu toque! — Lina pediu num sussurro.

Quando a respiração de Perséfone se aprofundou, Hades seguiu pela linha sedutora de seus ombros até os seios e os cobriu delicadamente com as mãos.

— Ah, sim... Aí também! — ela gemeu enquanto ele depositava minúsculos beijos nos montes arredondados.

— Sentirá prazer se eu a lamber e beijar aqui? —Tocou os mamilos túrgidos, a voz saindo rouca de desejo.

— Sim! — Lina mergulhou as mãos em seus cabelos.

Enquanto a provocava e sugava, Hades correu a mão mais para baixo. Primeiro afagou-lhe o comprimento da perna, moldando os músculos curvilíneos. Depois, lembrando-se de que Perséfone dissera dar valor às pequenas coisas, acariciou a área macia por trás de seu joelho. Ainda seguindo os sinais do corpo delicado, desenhou círculos ardentes no interior de suas coxas.

Lina se abriu para ele e, guiando-lhe a mão até o centro do próprio corpo, mostrou-lhe como acariciar seu ponto mais sensível, sussurrando incentivos meio sem fôlego ao perceber que o toque acompanhava seu ritmo.

A onda de orgasmo veio rápida e poderosa, e ela gritou o nome dele conforme uma estranha eletricidade brotou em seu âmago e irradiou por seus membros.

Hades a abraçou com força, os próprios desejos temporariamente esquecidos em meio ao espanto de ter sido capaz de evocar nela uma resposta tão apaixonada. Tinha vontade de gritar de felicidade. Perséfone o conhecia em sua essência, desejava-o e havia se entregado a ele.

Lina abriu os olhos e o fitou. Ele estava sorrindo para ela e afastando-lhe os cabelos do rosto.

Sua respiração ainda não tinha voltado ao normal quando o deus recomeçou a beijá-la.

— O melhor sexo é quando os amantes se satisfazem mutuamente — disse, ofegante, pressionando-o de volta para a cama. — É uma dança onde se dá e se recebe. Embora o prazer de seu parceiro possa se tornar o seu próprio, não devemos nos abster de nossas necessidades e desejos... — Acariciou o corpo musculoso, beijando e saboreando a salinidade de sua pele, até que a respiração dele se tornou irregular.

O suor brilhava no corpo de Hades, e todos os seus músculos se retesaram quando ele lutou para controlar o desejo.

Lina o envolveu nos braços com urgência.

— Não se contenha mais! Eu o quero dentro de mim agora... Quero sentir toda a sua paixão.

Com um grunhido, ele rolou de modo a ficar sobre ela. Apoiando-se sobre as mãos, fitou-a nos olhos enquanto mergulhava no corpo macio.

Seu calor úmido o cercou, e Hades precisou de toda a sua força de vontade para conter a explosão que ameaçava acontecer. Possuir Perséfone se revelara melhor do que qualquer fantasia; melhor do que qualquer coisa que ele pudesse ter imaginado.

Deteve-se por um momento, tentando recuperar o autocontrole.

Com um gemido, Lina arqueou o corpo, e Hades respondeu combinando sua paixão com a dela, até que teve a visão obliterada para tudo o mais, exceto para a deusa sob ele. Sentir que ela o comprimia por inteiro o levou às alturas e, conforme espasmos de prazer o percorriam, Hades afundou o rosto nos cabelos fartos de sua amada, repetindo seu nome seguidas vezes...

Um perfume doce e familiar despertou Lina. Hades encontrava-se de pé ao lado da cama, sorrindo. Estava nu, exceto pela tanga justa que o cobria bem abaixo da cintura. Em uma das mãos, segurava uma taça de ambrosia dourada e refrigerada, e, na outra, um manto leve, de seda.

— Bom dia — ela falou, sonolenta.

— Bom dia. Imaginei que estivesse com sede. — Ele ergueu o cálice de cristal. — Além disso, Eurídice trouxe algumas coisas para você. — Apontou por cima do ombro para uma mesa carregada com romãs e uma deliciosa variedade de queijos e pães.

Lina sorriu. Hades nunca estivera tão adorável, parado em pé ali, meio nervoso, tentando agir como se estivesse acostumado a ter uma deusa em sua cama.

— Obrigada. — Sentou-se e se espreguiçou.

O lençol caiu em torno de sua cintura, e os olhos dele devoraram seus seios nus.

Sem se conter, Hades colocou o que tinha nas mãos sobre a mesa de cabeceira e se ajoelhou diante dela, segurando-lhe os seios e beijando os mamilos róseos.

Embora o toque fosse suave, Lina não pôde deixar de se encolher. Seu corpo se encontrava maravilhosamente saciado, mas também muito, muito dolorido.

O deus recuou.

— Estou machucando você?

— Acho que estou um pouco sensível. Sete vezes em uma noite é, bem... um pouco incomum.

Hades sentiu que corava enquanto lhe cobria os ombros com o manto e lhe alisava os cabelos. Perséfone estava amarrotada e tinha uma marca vermelha na curva do pescoço.

E se ele tivesse sido muito bruto? Na noite anterior parecia ter dado prazer a ela, mas, naquela manhã, a deusa parecia quase descontente.

Perséfone se pôs de pé com certa cautela e tornou a encolher os ombros sob a capa.

Por todos os deuses! E se ele a tivesse ferido?

Lina abriu um sorriso e sentou-se com cuidado antes de atacar a mesa posta. Nem mesmo percebeu como o deus se retesou em resposta ao seu óbvio desconforto físico.

Hades condenou a si mesmo por ser um idiota, inexperiente.

Conforme Lina comia, sentiu sua energia retomar o nível normal e as dores em seu bem utilizado corpo se dissipar. Respondendo ao seu revigorado bom humor, o nervosismo de Hades evaporou, e eles fizeram o desjejum como dois amantes apaixonados, permitindo que seus joelhos se tocassem e alimentando um ao outro com os petiscos de seus próprios pratos.

Ele começava a explicar como tinha produzido os lustres que pendiam graciosamente do teto acima deles quando duas batidas firmes soaram na porta.

— Entre! — gritou Hades.

Iapis se fez presente, segurando uma pequena caixa quadrada nas mãos, e fez uma reverência, primeiro para o senhor do Submundo, depois para Lina.

— Bom dia, Hades, Perséfone... — Seus olhos brilhavam, e ele tentou, sem sucesso, esconder um sorriso. — Eu trouxe o que me pediu, senhor. — Entregou a caixinha a Hades.

— Excelente. Muito obrigado, Iapis.

Ao ver o daimon, Lina se lembrou de que negligenciara Eurídice por completo e sentiu uma ponta de culpa.

— Iapis, poderia levar uma mensagem a Eurídice para mim?

— Claro, senhora.

— Diga a ela que eu adoraria ver o que ela andou desenhando.

Iapis sorriu.

— Será um prazer para Eurídice, tenho certeza.

— Ótimo. Mande-a levar seus trabalhos para o meu quarto ainda hoje. E, por favor, diga-lhe que estou ansiosa por ver suas criações... e também por vê-la. Senti sua falta.

Lina pensou ter visto as faces do daimon enrubescer de leve antes que ele aquiescesse e, ainda sorrindo, se despedisse com uma mesura.

— Ele está de bom humor, sem dúvida — comentou Lina, pensativa, tamborilando os dedos na mesa.

— Ele gosta de me ver feliz — Hades falou brincando e beijando-lhe a mão.

Ela sentiu-se tão tola e sorridente como o daimon se mostrara, e tratou de se recompor.

— Não acho que ele esteja assim, feliz, apenas por causa de você.. Aliás, faz algum tempo que eu gostaria de conversar acerca do seu amigo daimon.

Hades ergueu uma sobrancelha, esperando.

— Creio que Iapis esteja interessado em Eurídice — revelou Lina.

O sorriso do deus foi como o de um menino apanhado com a mão na bo tija.

— Acho que tem razão.

— Então preciso saber de suas intenções! — ela falou com firmeza.

Hades concordou, a expressão se tornando séria no mesmo instante.

— Compreendo sua preocupação, claro... Mas acredito que eu possa falar por Iapis. Suas intenções são honradas. Ele realmente se preocupa com a pequena alma.

— Vai se certificar de que ele seja cuidadoso com Eurídice? Ela passou por muitas dificuldades. É difícil para uma mulher amar outra vez depois que foi ferida.

Hades tocou-lhe o rosto com delicadeza, pensando se a deusa estaria se referindo apenas a seu leal espírito.

— Pode confiar em mim. Sempre. Cuidarei de Eurídice como se ela fosse a própria deusa da Primavera.

— Obrigada. Não é que eu não goste de Iapis... eu gosto. Mas me preocupo muito com a minha amiga.

— É uma deusa generosa, Perséfone, já que se preocupa verdadeiramente com aqueles que a amam — ele afirmou. Então olhou para a caixa quadrada descansando ao lado, e a fez deslizar até ela.

— É algo que fiz na primeira noite em que esteve aqui. Eu não conseguia dormir. Tudo o que podia fazer era pensar em você, em seu sorriso, em seus olhos... — Fez um gesto para que ela abrisse o presente.

O fecho destravou com facilidade, e Lina levantou a tampa. Aninhada junto a um estojo de veludo preto, havia uma delicada corrente de prata. Desta pendia uma única pedra ametista, a qual fora esculpida e polida de modo requintado, na forma de um narciso em flor.

Lina sentiu os olhos marejados.

— Oh, Hades! É a coisa mais bonita que eu já ganhei!

Ele se levantou e postou-se atrás dela, tirando o colar do estojo para colocá-lo em seu pescoço. Pendurou-o perfeitamente, bem acima da curva de seus seios.

— Obrigada... Eu adorei!

O deus a puxou para seus braços.

— Na noite em que fiz isso, eu estava cheio de desejo e morrendo de saudade. Mas agora está aqui comigo, e o vazio dentro de mim não mais existe. Os mortais foram sábios em afirmar: é a rainha do Submundo. Não posso imaginar minha vida sem você. Não trouxe a primavera apenas para o meu reino, Perséfone, mas também para o meu coração. Estou apaixonado.

As lágrimas que tinham se agrupado nos olhos de Lina transbordaram, e ela não conseguiu falar.

Hades enxugou-lhe o rosto com os polegares.

— Por que está chorando, minha querida?

— As coisas são tão complicadas...

Ele franziu a testa.

— Porque é a deusa da Primavera?

— ... Também.

— Diga-me a verdade. Chora porque não se imagina permanecendo no Submundo?

O deus tentou manter a voz neutra, no entanto Lina podia ver a dor refletida em seus olhos.

— Quero estar com você — disse apenas, tentando não soar muito evasiva.

— Então não posso conceber qualquer dificuldade que não possamos vencer juntos —Hades declarou, abraçando-a com força.

Descansando em seus braços, Lina fechou os olhos, disposta a parar com as lágrimas. Chorar não ajudaria em nada. Ela o amava, mas esta era apenas uma pequena parte da verdade que ele precisava saber.

Queria tanto contar tudo a Hades! Precisava fazer isso.

Mas havia dado sua palavra, e, antes de qualquer coisa, deveria conversar co m Deméter.


Capítulo 22

— Disse que ela não está em seu quarto? — Hades virou-se para o daimon.

— Não, senhor... A deusa se foi.

— E Eurídice não sabe onde ela está?

— Não. Eurídice estava ocupada com os desenhos que mostraria à sua senhora mais tarde.

Hades andou de um lado para o outro. Perséfone havia dito que precisava de um bom banho de imersão e que depois tiraria uma soneca. Sim, ela lhe parecera estranha, mas ele atribuíra seu comportamento ao cansaço.

Assim, resolvera lhe dar algum tempo enquanto atendia às petições dos mortos... ainda que mais distraído do que nunca. A maioria deles tinha vindo ver Perséfone, e havia ficado visivelmente desapontada por a deusa não ter aparecido.

Apertou a mandíbula. Podia compreendê-los muito bem. Ele mesmo não queria mais nada a não ser vê-la por perto. Ainda trazia seu perfume na pele, e, quando divagava, podia sentir o calor suave de Perséfone contra ele.

Para onde ela havia ido? Por que não lhe dissera nada? O que estaria pensando?

Passou a mão pelo cabelo. Depois de eras de uma existência solitária, seu desejo fora feroz, e, talvez, ele houvesse sido muito bruto. Talvez a houvesse ferido.

Ou talvez não a tivesse satisfeito. E se ela o comparara a seus outros amantes imortais?

Cerrou os punhos. Apenas pensar em outro deus encostando nela o deixava com náuseas.

— Encontre-a, Iapis — rosnou.

O daimon se curvou e desapareceu.

OK , Lina admitiu para si mesma, mordendo o lábio. Estava preocupada.

— Merda! Por que tem de ser tão complicado?

As orelhas de Órion se inclinaram para trás a fim de captar suas palavras, e ele relinchou uma resposta suave.

— Eu o amo de verdade — ela disse em voz alta. — E agora? O que vamos fazer?

Lina suspirou. Sabia o que ela precisava fazer, razão pela qual escapulira com o cavalo.

— Verdade que a história que inventei foi excelente... — falou a Órion. — Tenho certeza de que Iapis ficará apenas um pouco aborrecido quando descobrir que o enorme odre de ambrosia que Eurídice o fez encher até a borda é para o Cérbero.

Ao ouvir falar do cão de três cabeças, Órion bufou com desgosto.

— Ah, ele não é tão ruim assim. Só ficou um pouco alterado pelo álcool, mas, no fim foi um amor... Além do mais, sabe que eu gosto muito mais de você. — Ela deu um tapinha na pelagem reluzente do cavalo.

Órion arqueou o pescoço e mudou o trote para um forte galope, fazendo a estrada escura passar rapidamente por baixo deles. A fiel esfera de luz pairava sobre seu ombro direito, mantendo o ritmo com o garanhão, e, a distância, Lina já podia ver o contorno leitoso do bosque de árvores fantasmas.

Perguntou a si mesma se Hades já teria notado a sua ausência. Tomara que não, mas, se ele procurasse por ela, Eurídice lhe diria que ela fora levar ao Cérbero a guloseima que prometera. Os cavalariços, por sua vez, relatariam que ela havia levado Órion para um passeio.

Hades não deveria se preocupar. Ela não queria que ele ficasse preocupado. Não desejava lhe causar nenhuma dor.

A noite que tinham passado juntos fora uma experiência nova para ela. Hades lhe despertara sentimentos que, até então, não passavam de resquícios de sonhos e fantasias. E não fora só sexo.

Suspirou outra vez. Isso teria sido fácil de lidar. Poderia ter com ele um caso tórrido e excitante, saciar a si própria e, no momento oportuno, ir embora.

Mas, decididamente, não tinha sido apenas sexo.

A lembrança das almas gêmeas ainda a assombrava, assim como o olhar de Hades quando ele declarara seu amor. Ela havia ansiado por responder com as mesmas palavras; no entanto, não era livre para se comprometer com ele. Não ainda. Não até que conversasse com Deméter.

E isso partira seu coração.

Não tivera a intenção de amá-lo. Havia ido para o Submundo com as melhores intenções e um trabalho a fazer. Ponto. Não estivera interessada em romance, amor ou sexo.

E o Mundo Inferior era o último lugar em que esperava encontrar alguma dessas coisas.

Merda! Deméter descrevera Hades como um assexuado, e ela estivera totalmente despreparada para a verdade.

Rodou um fio da crina sedosa de Órion em torno do dedo conforme o garanhão galopava pelo bosque de árvores fantasmas. Estava metida numa enorme encrenca. Amava Hades, estava certa disso, mas um pensamento incômodo não a abandonava: enquanto estivera com ele, enquanto pudera tocá-lo e fitá-lo nos olhos, fora fácil acreditar que ele a amava também. Ela , Carolina Francesca Santoro, e não uma deusa jovem e fútil.

E, não fora ele mesmo quem dissera que o verdadeiro amor tinha mais a ver com a alma do que com o corpo?

Então, por que faria diferença se seu corpo verdadeiro fosse o de uma mortal de quarenta e três anos de idade? Teoricamente, não deveria fazer.

Órion continuou disparado através do túnel escuro em direção à abertura ampla e iluminada do Mundo Superior.

Era inegável que tivesse mentido a Hades, Lina pensou. Mesmo que ela não houvesse tido a intenção de seduzi-lo, no que ele acreditaria quando soubesse a verdade? Será que compreenderia?

E, o mais importante, será que ele ainda a amaria?

O garanhão galopou até o fim da passagem, saindo para a luz suave de uma manhã fria. Ela puxou as rédeas do cavalo, obrigando-o a uma parada, apanhou as próprias coisas e, em seguida, conduziu-o até a bacia de mármore que sustentava o oráculo de Deméter.

Escorregou pelas costas de Órion.

— Fique por perto e seja bonzinho. Isso não vai demorar muito.

— Ela montou Órion para levar um agrado para o Cérbero?

O daimon concordou com um gesto de cabeça e uma expressão ligeiramente irritada no olhar.

— Eu mesmo enchi o odre. Ela levou ambrosia para aquele bruto!

Em qualquer outro momento, a notícia teria feito Hades rir. Agora, contudo, as dúvidas lhe esfaqueavam o coração.

— Mas Perséfone me disse que estava exausta. Que tomaria um banho e descansaria. Por que ela sairia para um passeio em vez disso?

— Apenas a deusa pode lhe responder isso, senhor.

O crescente sentimento de desconforto que o torturava desde aquela manhã desabrochou. Ele devia tê-la magoado, concluiu Hades. Teria assustado Perséfone? Ou teria declarado seu amor por ela cedo demais?

Sentiu o peito se apertar. Ela não havia proclamado seu amor em troca, pensou, lembrando-se de suas lágrimas.

Amaldiçoando-se em silêncio por sua inexperiência, virou-se para o daimon.

— Traga-me o elmo da invisibilidade.

Lina estudou o oráculo. Este descansava, quieto e benigno; uma simples esfera de vidro de cor leitosa.

Mas era o canal para uma deusa que detinha o poder de moldar seu futuro.

Fechou os olhos, admitindo que não estava apenas preocupada. Estava com medo. Como aquilo poderia funcionar? Ela era uma mortal de outro tempo e lugar. Ele, um deus antigo.

Sentiu lágrimas de frustração assomar aos olhos fechados.

Pare com isso! Controle-se!

Precisava contar tudo a Deméter. Não podia evitar isso por mais tempo.

Perséfone não estava com o Cérbero, embora o cão continuasse lambendo, feliz, o velho odre que ela lhe dera. Também não tinha passado por ele, voltando ao palácio, motivo pelo qual Hades seguiu adiante.

Quando encontrou o barqueiro, Caronte relatou que transportara a deusa e seu corcel para a outra margem do Estige.

Hades admitiu o pior para si mesmo: Perséfone havia definitivamente retornado à Terra dos Vivos.

Sentiu uma queimação familiar brotar no peito. Ela o deixara sem nem mesmo dizer adeus? Não queria acreditar nisso.

E não acreditaria até que a confrontasse e ela lhe dissesse isso cara a cara.

Com sua velocidade de deus, Hades seguiu pelo caminho escuro que o levaria ao Mundo Superior e à deusa da Primavera.

Lina respirou fundo e abriu os olhos. Concentrando-se em Deméter, passou as mãos três vezes pelo oráculo.

— Deméter? Precisamos conversar...

A orbe começou a rodopiar e, quase no mesmo instante, as feições benfeitas da Grande Deusa entraram em foco.

— Quando uma filha clama pela mãe, o tom de sua voz deve ser mais acolhedor do que tristonho — disse, suavizando a repreensão com um sorriso maternal.

— Eu não tinha intenção de desrespeitá-la, mas sinto-me, mesmo, um pouco deprimida — confessou Lina.

Deméter franziu o cenho.

— O que a incomoda, filha? Tenho ouvido apenas relatos positivos sobre o seu trabalho. Os espíritos se mostram satisfeitos por a deusa da Primavera estar peregrinando pelo Submundo.

Era a pura verdade. Desde a chegada da deusa, que todos acreditavam ser Perséfone, ao Mundo Inferior, as súplicas incessantes e irritantes dos parentes dos mortos havia terminado, e os sacrifícios por agradecimento, aumentado. A mortal vinha marcando presença e fazendo um excelente trabalho ao representar sua filha, refletiu a deusa da Colheita. Não podia imaginar o que a estava incomodando.

— As coisas tomaram um rumo inesperado.

A careta de Deméter se acentuou.

— Não me diga que foi descoberta.

— Não! Todos ainda pensam que sou Perséfone. — Lina fez uma pausa, mordendo o lábio. — O meu problema tem a ver com isso .

— Explique-se.

— Eu me apaixonei por Hades, e ele também me ama. Preciso contar a ele quem eu realmente sou e descobrir uma forma de consertar essa confusão — Lina falou de uma vez.

Os olhos de Deméter pareceram se transformar em pedra.

— Por acaso isso é algum tipo de brincadeira mortal?

— Não. — Lina suspirou. — Não há graça nenhuma nessa história.

— Está me dizendo que você e Hades se tornaram amantes?

— Sim.

— Então Hades brincou com seus sentimentos. — Deméter balançou a cabeça com tristeza. — E eu sou a culpada por isso. Expus uma mortal aos caprichos de um deus. Perdoe-me, Carolina Francesca Santoro... Minha intenção não era lhe causar dor.

— Não! — protestou Lina. — Não é assim. Hades não se aproveitou de mim. Nós nos apaixonamos um pelo outro!

— Vocês se apaixonaram? Um pelo outro? — A voz de Deméter soou enérgica. — Como é possível? Hades pensa que é Perséfone, deusa da Primavera. Não tem ideia de que fez amor com uma mortal. Pense, Carolina! Como pode acreditar que é você quem ele ama? — Deméter riu sem vontade, as belas feições contorcidas. — Amor! É mesmo tão ingênua? Os imortais amam de forma bem diferente dos mortais. Certamente até mesmo em seu mundo já ouviu falar dos abusos do amor imortal.

Lina ergueu o queixo e estreitou os olhos.

— Não sou nenhuma criança. Não fale comigo como se eu tivesse as emoções instáveis de uma adolescente. Conheço a diferença entre o amor e a luxúria. Sei quando um homem está me usando, assim como sei quando ele está me tratando com honestidade. As aulas foram difíceis... mas a experiência me ensinou a diferença.

— Então devia saber — concluiu Deméter.

As palavras suaves tiveram o efeito de um tapa.

— Não conhece Hades. Ele não é como o restante de vocês.

— Não é como o restante dos imortais? O que me diz é absurdo e ingênuo. Hades é um deus. A única diferença entre ele e os outros deuses é que Hades vive recluso e decidiu colocar os mortos acima dos vivos.

— Isso é apenas parte do que o torna tão diferente. — Lina respirou fundo. Não queria trair a confiança de Hades, mas precisava convencer Deméter. — Sou a única deusa a quem ele amou.

Os olhos de Deméter se estreitaram.

— Foi isso o que Hades disse? Então aqui vai sua primeira lição a respeito do amor imortal: não acredite em nada do que um deus diz quando ele está tentando se deitar com uma deusa. O que ele falou foi apenas o que você precisava ouvir para se entregar a ele.

Recusando-se a acreditar nas palavras, Lina sacudiu a cabeça de um lado para o outro. Deméter, porém, ignorou o gesto e prosseguiu.

— No que acreditou? Que ficariam juntos por toda a eternidade? Esqueça que é mortal. Esqueça que é de outro mundo. Mesmo se fosse a deusa da Primavera, acredita honestamente que Hades e Perséfone poderiam se unir e ter seus nomes ligados para sempre? A simples ideia é absurda! Como poderia existir primavera na Terra dos Mortos?

— A primavera não tem de existir lá, mas eu posso ficar no Submundo. Eu, a mortal, Carolina Francesca Santoro. Ficarei no Submundo e am arei seu deus. Apenas me transforme novamente. Devolva o meu corpo, e eu devolverei este — ela apontou para si mesma — à sua filha.

— Não posso fazer isso. Não é deste mundo, Carolina! — A raiva transformou o rosto de Deméter. — Você sabia que essa era uma situação temporária. Eu nunca disse o contrário.

— Tem de haver uma saída!

— Não há. Ambas devemos respeitar os nossos juramentos.

— Então, não posso nem mesmo dizer a Hades quem eu sou? — Lina concluiu, desesperada.

— Use a razão, Carolina, e não o coração. O que o senhor dos Mortos faria se soubesse que cortejou não a deusa da Primavera, mas uma padeira mortal de meia-idade? Abriria os braços para a sua mentira? — Deméter levantou a mão para silenciar os protestos de Lina. — Pouco importa que não tenha tido a intenção de ­enganá-lo. Você diz que eu não conheço Hades, mas todos os imortais sabem algo a respeito dele: o senhor dos Mortos preza a verdade acima de tudo. Como ele reagiria a esta farsa?

— Ele me ama!

— Hades ama Perséfone, a deusa da Primavera — falou Deméter com firmeza. — E, pense: como os espíritos do Submundo se sentiriam se soubessem que a deusa que tem trazido tanta alegria é apenas uma mortal disfarçada?

Lina ficou tensa.

— Isso os prejudicaria, sem dúvida.

— Claro que sim.

— Então não posso contar a ninguém.

— Não, filha. Não pode.

Lina fechou os olhos, e Deméter viu a mulher no corpo de Perséfone lutar para aceitar a dor causada por suas palavras.

— E lembre-se disto: quando voltar para o seu legítimo lugar, Perséfone vai considerar Hades apenas como mais um dos deuses com quem se divertiu. Não importa o que você acredita que tenha se passado entre vocês dois... E Hades, por fim, sentirá o mesmo. Ouça sua voz interior e se lembrará de que essa é apenas a maneira imortal de agir.

Quando Lina abriu os olhos, estava decidida.

— Voltarei ao Submundo para finalizar o meu trabalho, então. Disse que meu tempo está quase no fim?

Deméter aquiesceu em silêncio.

— ...Certo. Estarei pronta para partir no momento em que quiser.

— Eu sabia que você tinha sido uma escolha sábia, Carolina Francesca. — A imagem da deusa começou a se desvanecer. — Retorne com a minha bênção, filha — completou e se foi.

Lina se afastou do oráculo, e seus olhos deslizaram pela beleza do lago Averno sem realmente vê-lo.

Não chorou. Continuou muito quieta, como se a falta de movimento pudesse impedir que sentisse ainda mais dor.

Envolto na invisibilidade, Hades permaneceu na boca do túnel. Sua reação inicial ao ver Perséfone fora de alívio. Ela não o estava deixando; estava apenas consultando o oráculo da mãe. Ele não conseguia ouvir o que ela dizia, porém seu alívio foi logo substituído por preocupação. Perséfone estava visivelmente abalada. Parecia quase desesperada.

Por isso ela não lhe dissera que pretendia conversar com Deméter? Estava com medo da reação da mãe ao amor deles? Estaria tentando protegê-lo?

Perséfone sabia que, a seu modo, ele era um deus poderoso.

Mas, talvez, ela não o fosse. Era muito jovem, ainda que se comportasse com tanta maturidade que era fácil para ele esquecer sua juventude.

Sem dizer que ele se mantivera separado do restante dos imortais por muito tempo. Perséfone acreditava que ele poderia exercer seu poder apenas em seu próprio reino?

Observou seu belo rosto empalidecer. Deméter a estava magoando.

Uma onda de raiva brotou dentro dele.

Ainda usando o elmo da invisibilidade, caminhou até sua amada a tempo de ouvir a voz enérgica de Deméter derivar do oráculo:

— E lembre-se disto: quando voltar para o seu legítimo lugar, Perséfone vai considerar Hades apenas como mais um dos deuses com quem se divertiu. Não importa o que você acredita que tenha se passado entre vocês dois... E Hades, por fim, sentirá o mesmo. Ouça sua voz interior e se lembrará de que essa é apenas a maneira imortal de agir.

Hades parou. Tinha ouvido bem? Ele era apenas mais um Deus com quem ela havia se divertido?

Incrédulo, escutou a resposta de Perséfone:

— Voltarei ao Submundo para finalizar o meu trabalho, então. Disse que meu tempo está quase no fim?

Ele havia sido apenas uma missão para ela?

— ...Certo. Estarei pronta para partir no momento em que quiser.

Perséfone queria deixá-lo!

Ainda invisível, Hades assistiu à deusa que ele amava se afastar do oráculo da mãe e olhar para longe. Seus olhos estavam secos, e o rosto parecia esculpido em pedra. Uma verdadeira estranha.

Não. Não podia acreditar. Ouvira apenas uma parte da conversa e devia ter entendido mal. Conhecia Perséfone. A sua Perséfone não ousaria ludibriá-lo.

Estava prestes a tirar o elmo de invisibilidade quando um ruído chamou sua atenção. Ele e Perséfone se viraram ao mesmo tempo para o deus que caminhava ao longo da margem do lago Averno.

O belo rosto de Apolo se iluminou com prazer, e seus lábios se curvaram em um caloroso sorriso de boas-vindas.

— Ah, Perséfone! Agrada-me ver que aceitou meu convite. Todos sabíamos que tempo demais no Submundo faria a flor da primavera ansiar por sol novamente.

Com uma crescente sensação de dormência, Hades assistiu quando Apolo tomou o corpo dócil de Perséfone nos braços.

Incapaz de continuar assistindo à cena, o senhor do Submundo deu as costas para os dois amantes e, silenciosamente, retornou ao reino dos mortos.


Capítulo 23

Não demorou muito para Apolo perceber que abraçar Perséfone era como abraçar um cadáver. Recuou, assim, e estudou o rosto pálido.

— O que há de errado? Mais problemas com Deméter?

Ela abanou a cabeça e, quando piscou, duas lágrimas perfeitas caíram de seus olhos e traçaram um caminho brilhante por seu rosto.

Ele ainda se perguntava se deveria beijá-la ou materializar-lhe uma bebida, quando um monstro negro surgiu do nada e meteu o corpanzil entre eles.

— Vá embora, sua besta! — gritou, cambaleando para trás na tentativa de não ir ao chão.

O garanhão virou-se e arreganhou os dentes amarelos.

— Está tudo bem, Órion! Apolo não vai me fazer nenhum mal.

A tristeza na voz de Perséfone tocou o deus da Luz, e ele a fitou por trás do cavalo negro, que a acariciava com o focinho. A deusa devolvia o afago distraidamente, e lágrimas escorriam por seu rosto, porém ela nem sequer tomou conhecimento destas.

— Órion, eu preciso falar com a sua senhora.

Com os olhos em chamas, o garanhão virou a cabeça, pronto para enfrentá-lo, contudo ele estendeu as mãos em um declarado gesto de paz.

— Quero apenas lhe oferecer ajuda!

Órion estudou o deus, então soprou forte pelo nariz e lambeu a face de Lina. Em seguida se afastou uns poucos metros do local onde estivera pastando, embora mantendo um olho negro fixo nele.

Apolo pegou o braço de Perséfone, levou-a até um banco esculpido em rocha, e a deusa se sentou. Em seguida, ele fez um movimento com a mão, e uma taça contendo um líquido claro apareceu de repente, em meio a uma chuva de faíscas.

— É água mineral — disse, ao vê-la hesitar. — Imagino que esteja precisando de um refresco.

— Obrigada — Lina respondeu, tensa.

A água estava fresca, e ela a bebeu com vontade.

Entretanto, esta não ajudou a preencher seu vazio.

Apolo sentou-se a seu lado.

— O que lhe causou tanta dor? — indagou, preocupado.

Ela continuou emudecida, e o deus pensou que não fosse obter nenhuma resposta. Então falou com uma voz tão cheia de desesperança que ele sentiu uma constrição no próprio peito.

— A minha própria tolice foi o que me causou tanta dor.

Apolo segurou sua mão.

— O que posso fazer para ajudar?

Ela o fitou, e o jovem deus sentiu como se pudesse enxergar-lhe a alma.

— Responda-me uma coisa... O que ama, o corpo ou o espírito?

Apolo sorriu e ensaiou responder de forma inteligente, mas logo descobriu que não podia. Mais uma vez, Perséfone o surpreendia com sua franqueza.

A deusa da Primavera não se afastara de seus pensamentos desde seu último encontro.

Entreolharam-se, e Apolo não pôde menosprezar a dor no rosto delicado. Respondeu honestamente.

— Está fazendo essa pergunta ao deus errado, Perséfone. Como você bem sabe, tive muitas experiências com as vontades do corpo. Sinto desejo e o sacio. Mas, amor? A mais ilusória das emoções? Já testemunhei um guerreiro invicto cair de joelhos e atribuir mais poder a uma virgem do que ao próprio Hércules, mas não posso afirmar que já tenha experimentado esse sentimento. — Tocou-lhe o rosto, tristonho. — Ainda que olhar para você me faça pensar o contrário.

A claridade aumentou, sinalizando a chegada da aurora. Sua carruagem devia estar chegando, e seu tempo era curto, refletiu o deus.

Percebeu, no entanto, que, embora estivesse próximo de Perséfone, dando-lhe seu conforto e demonstrando sua compaixão, ela nem sequer olhava para ele. Tinha os olhos fixos na entrada do túnel que levava ao domínio do deus do Submundo.

Deixou cair a mão, estarrecido.

— Você ama Hades! — exclamou, sem se preocupar em esconder a surpresa na voz.

Os olhos de Perséfone se voltaram para os dele.

— Por que está assim, tão chocado? Porque sou a primavera e ele é a morte? Ou porque imortais não sabem como amar?

— Não creio que isso seja possível.

— Provavelmente não é. — A raiva na voz dela se foi, e o desespero voltou. Lina se pôs de pé. — Órion!

Numa velocidade sobrenatural, o garanhão se deslocou para seu lado. Sem mais palavras, ela montou o cavalo e o cutucou com os calcanhares nas laterais.

Órion saltou para a frente, deixando o deus da Luz olhando, boquiaberto, para a nuvem de poeira que se levantava de seus cascos de ferro.

— Perséfone e Hades? Como pode ser isso? — murmurou, perplexo.

Hades encontrava-se na ferraria. Após alimentar o fogo a um nível quase insuportável, despiu-se, ficando apenas com a tanga de linho. Não trabalharia em uma ferradura. Isso não o satisfaria. Precisava de algo mais, precisava fazer algo maior.

Forjaria um escudo com os mais fortes metais, decidiu. Algo que pudesse proteger um corpo, se não uma alma.

Atiçou as brasas, até que estas chiaram num calor escaldante. Então enfiou nelas uma folha disforme de metal bruto e a puxou para fora quando esta zuniu quase de pronto.

Em seguida, passou a bater nela com vontade.

Trabalhou sem parar. Seus ombros doíam e seus golpes lhe percorriam dolorosamente o corpo, ainda que não pudessem livrar sua alma da dor.

Ele não podia culpá-la. Perséfone era apenas uma jovem deusa. Ele era quem devia ter pensado melhor.

Tinha sido uma atitude sábia de sua parte se separar dos demais imortais. Perséfone apenas o ajudara a provar isso.

Sua decisão se mostrara a mais acertada por eras... Ele agira como um tolo ao se desviar dela.

Sentiu a presença da deusa no momento em que ela entrou na ferraria e se perguntou se ele sempre saberia quando ela se aproximasse. Como sua alma podia continuar ligada à dela se Perséfone não o amava?

Tal detalhe merecia consideração.

Mais tarde, contudo. Quando estivesse sozinho novamente. No momento em que pudesse pensar nela sem sentir aquele desejo cruel.

Precisava acabar com aquilo naquele instante. Tinha que readotar seus antigos métodos antes que se humilhasse ainda mais.

E antes que ela lhe causasse uma dor irreparável.

— Não imagina o quanto é lindo quando trabalha na ferraria.

Quando Perséfone entrou, ele havia parado de bater metal contra metal, e sua voz delicada soou alta demais no silêncio. Hades não conseguiu se obrigar a falar.

— Hades? — Lina engoliu em seco e continuou, mesmo sem que ele respondesse. — Eu adoraria conhecer o restante de Elísia hoje. Quer me acompanhar?

Ah, a voz de Perséfone! Era tão jovem e doce.

Por um momento, ele sentiu sua determinação fraquejar.

Então se lembrou da facilidade com que ela se deixara ficar nos braços de Apolo.

Quando se virou lentamente para encará-la, Perséfone não o fitou nos olhos, e Hades sentiu um pouco mais da alma se dissolvendo.

— Temo que nossos passeios tenham chegado ao fim. Como pode ver, há trabalhos a ser concluídos.

Lina sentiu o estômago revirar. O homem que se afastara da forja para falar com ela não era seu amante. Era o deus frio e imperioso que ela havia conhecido assim que chegara ao Submundo.

Não, concluiu, ao estudá-lo com mais cuidado. Sua impressão inicial estava errada. Hades já nem lhe era familiar.

— Pensei que gostasse de me falar sobre o seu reino — murmurou num tom vazio.

Ele riu, contudo o riso não tinha nenhum calor, e seus olhos se mostraram frios e ilegíveis.

— Perséfone, é melhor pararmos com esse...

— Mas, na noite passada... — ela o interrompeu, sacudindo a cabeça. — Não compreendo.

O choque no rosto da deusa o dilacerou. Era tudo fingimento!

Hades quis gritar sua dor, mas preferiu arremessar o martelo pela ferraria com fúria. Quando este caiu, faíscas explodiram por todos os lados, e o chão abaixo deles tremeu.

— Silêncio! — ele trovejou, os olhos também faiscando. — Eu sou o senhor dos Mortos, e não um humilde professor!

Lina sentiu o sangue se esvair da face.

— Então, todo esse tempo você apenas fingiu...

— NÃO ME VENHA FALAR DE FINGIMENTO! — As paredes da ferraria vibraram com a ira do deus.

Antes que ele destruísse a câmara em que estavam, contudo, Hades tratou de pôr a raiva sob controle.

— Não esteve de férias por aqui, brincando de rainha dos Mortos, Perséfone? — indagou, cheio de sarcasmo. — Você pode ser jovem, mas nós dois sabemos que está longe de ser inexperiente. — Desta vez, seu riso foi frio e cruel. — Sim, nossas aulas foram divertidas, mas deve compreender que já é tempo de pormos fim a esta farsa. Como pressinto que a sua visita também está chegando ao fim, nosso timing foi perfeito. Infelizmente, permiti que nosso flerte tomasse muito do tempo reservado aos meus deveres. Se não pudermos nos falar de novo antes que parta, deixe-me desejar uma agradável viagem de volta à Terra dos Vivos. Quem sabe ainda volte ao Submundo um dia? Ou talvez não. — Ele encolheu os ombros com indiferença e, em seguida, deu-lhe as costas, fazendo o pulso tremer com outra martelada, e retomou o ritmo da forja. Não tinha necessidade de vê-la sair.

Logo o suor lhe pingou do rosto, mesclando-se a lágrimas silenciosas, e, ainda assim, Hades continuou batendo contra o metal em silêncio, até que a dor em seus braços refletiu a dor em sua alma.

— Eu não pertenço a este mundo. — Lina sentiu como se seus lábios não contivessem uma só gota de sangue, e expressou o pensamento em voz alta para se assegurar de que estes ainda poderiam emitir palavras. Não lhe fez nenhum bem dizer a si própria que Deméter estava certa, que o tratamento que Hades lhe dispensara era a norma entre os imortais. Ela não era uma deusa, portanto era sua alma mortal que sofria.

Sua alma mortal não conseguia entender.

Deixou a ferraria sem se importar para onde seus pés a levavam. Queria apenas ir para longe dali.

Contornou os estábulos e passou, apressada, entre as fileiras de arbustos ornamentais, mas, em vez de se manter nos caminhos dos jardins de Hades, mergulhou na floresta que o margeava. A despeito do turbilhão de pensamentos, percebeu que refazia o caminho para o prado dos pirilampos, e imediatamente mudou de direção, a mente repelindo as doces lembranças daquela noite. Não suportaria ir até lá.

Mal reparou nos espíritos dos mortos, pouco depois, vendo-os como imagens vagas e distantes que sussurraram seu nome. Seus olhos continuavam embaçados pelas lágrimas não derramadas.

Lina se percebeu grata por nenhuma das almas ter se apro­ximado. Não estava em condições de agir como sua senhora ­naquele momento.

Quando passou, os mortos silenciaram. Algo estava errado com Perséfone. Seu rosto tinha perdido a cor, seus olhos estavam vidrados, e ela não parecia capaz de ouvi-los.

E a deusa se movia com os passos entorpecidos daqueles que haviam acabado de morrer. A preocupação com sua senhora começou a se espalhar por toda Elísia.

Lina continuou andando.

Ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

As três frases eram uma antiga ladainha familiar. Tornaram-se o seu mantra quando o marido a deixara por uma mulher mais jovem, mais perfeita, que poderia lhe dar filhos. Apenas estas a tinham ajudado em meio aos sonhos destruídos e as noites insones. Também a mantiveram inteira após a série de relacionamentos decepcionantes por que passara mais tarde. E a haviam acalmado quando ela percebera que, provavelmente, nun ca amaria outra vez.

Ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

Uma brisa travessa trouxe consigo o perfume inebriante dos narcisos, e Lina estremeceu, recuando ao avistar um leito dessas flores à sua frente. Mudou de rumo, contornando-o e escolhendo o caminho que menos narcisos apresentava.

Levou a mão ao peito, onde a flor de ametista pendia da corrente de prata. O que aquele presente havia significado? Não era um símbolo do amor de Hades. Seu discurso na ferraria tinha deixado isso dolorosamente claro.

Piscou, aflita. Em sua mente ainda ouvia o eco da indiferença em suas palavras. Acariciou o contorno bem trabalhado do narciso de pedra.

Um pagamento pelos serviços prestados. Era isso.

Hades, uma espécie diferente de deus?

Sua risada saiu como um soluço.

Fechou a mão sobre a joia e a puxou, arrebentando a corrente delicada.

— Deméter estava certa. Eu devia saber. — Arremessou o colar ao chão e continuou andando sem olhar para trás.

Ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

Lina só percebeu que a paisagem começou a mudar quando sentiu alívio por não ter de evitar mais os narcisos. Também havia menos espíritos flutuando em sua visão periférica, o que a fez relaxar. Notou vagamente que estava ficando mais escuro, porém as árvores eram muito altas e densas. Elas poderiam facilmente estar bloqueando a luz do céu aquarelado do Submundo.

E ela andara por um bom tempo. Ou assim imaginava.

Mas não se sentia cansada. Na verdade, não sentia coisa alguma.

O pensamento quase a fez sorrir. Deméter não precisava ter se preocupado. Os deuses subestimavam a resistência do espírito mortal.

Era melhor começar a voltar para o palácio. Eurídice devia estar esperando para lhe mostrar os desenhos. Ela desfrutaria da companhia da pequena alma e depois tomaria um longo banho.

Não um banho com a água dos cântaros, lembrou, tratando de afastar o pensamento. Apenas um longo e relaxante banho de imersão.

Pelo tempo que lhe restava no Submundo, podia muito bem evitar Hades. Isso não deveria ser muito difícil. Ele mesmo havia deixado bem claro que se encontrava muito ocupado para se preocupar com ela. Dessa forma, em vez de suspirar pelo deus, ela passaria algum tempo com Eurídice e seria franca com a moça sobre a natureza temporária de sua visita. Também avisaria a pequena alma para ter cuidado com aquela paixão por Iapis. Ele parecia confiável, mas, assim fora com...

Bloqueou o restante do pensamento. Montaria Órion e deixaria que os espíritos em Elísia vissem a deusa da Primavera uma última vez.

Precisava ter todo o cuidado com eles, também. Eles tinham o direito de saber que sua visita era apenas passageira. Poderia dizer que Perséfone continuaria a cuidar deles do Mundo Superior, e, depois, só poderia torcer para que a verdadeira deusa da Primavera cumprisse com sua palavra.

Estabelecer um curso de ação a fez sentir-se bem. Havia estado tão preocupada em fazer isso que nem percebeu ter alcançado a margem da floresta, até que tropeçou em uma das árvores.

Confusa, olhou ao redor, tentando entender onde estava. As árvores terminaram, assim como a grama e a vegetação. A terra ali era estéril e o solo cor de canela, trincado pela erosão. Bem à sua frente, contrastando com a treva ao fundo, avistou a silhueta flamejante de um rio de labaredas.

Lina interrompeu a respiração. O Tártaro! Ela havia tropeçado na borda do inferno!

Vire-se! Refaça seu caminho!

Sua mente sabia que aquela era a coisa mais lógica a fazer, porém seu corpo não a obedeceu.

Foi então que ouviu os sussurros vindos da escuridão além do rio de fogo. Como tentáculos nascidos do ódio, eles a chamaram, tecendo uma rede de lembranças sombrias: cada erro que cometera, cada mentira que tinha contado, todas as vezes em que suas palavras ou atitudes haviam ferido os outros.

Sua alma mortal se encolheu. Lina deixou escapar um choramingo e cambaleou sob o peso de seus próprios erros, caindo de joelhos.

Uma escuridão densa brotou da margem do rio em chamas e a lambeu como gavinhas de ódio. Ela não era uma deusa. Era uma mortal de meia-idade, comum na aparência e uma piada nos relacionamentos. Nenhum homem a amava. Por que amaria? El a não podia nem mesmo ter filhos. Fora uma fracasso como mulher e como esposa. Ficar sozinha era o que ela merecia.

Lentamente, sua alma começou a se separar do corpo de Perséfone, e Lina sentiu-se desintegrar.

— Hades, você tem que vir! — Iapis precisou gritar em meio aos incessantes golpes para ganhar a atenção do deus.

Este se endireitou e limpou o suor do rosto.

— Seja lá o que for, terá que lidar sozinho. Não quero ser incomodado.

— São os mortos. Estão pedindo para falar com você.

A expressão de Hades se tornou sombria e perigosa.

— Eles poderão falar com seu deus no momento em que eu estiver deliberando.

— Não acredito que vá querer esperar pela hora das petições para ouvir o que eles têm a dizer — Iapis insistiu.

— Deixe-me em paz! O que eles têm a dizer não me interessa hoje — ele rosnou.

Sem se abalar com a explosão do deus, Iapis o fitou nos olhos.

— Eles estão dizendo que há algo errado com Perséfone.

Hades continuava vestindo a túnica quando irrompeu da ferraria, mas a cena diante dele o fez parar. Espalhada por todos os níveis de seu paradisíaco jardim estava uma infinidade de almas. Permaneciam em silêncio, lado a lado: moças, virgens, mães de família, mulheres de meia-idade e anciãs.

Uma senhora e uma virgem que Hades reconheceu como uma das que tinha dançado com Perséfone no prado se distanciaram do grupo e se aproximaram dele, fazendo uma profunda reverência.

A mulher mais velha falou primeiro:

— Grande Deus, viemos até o senhor por conta do nosso amor à deusa da Primavera. Algo está errado. A deusa não é mais ela mesma.

— Nós a vimos caminhando pela floresta — contou a mais moça. — Chamamos por ela, no entanto Perséfone não nos ouviu, nem viu.

— Era como se estivesse morta — emendou a velha.

O medo cravou um punhal no coração de Hades.

— Onde ela estava na última vez em que a viram?

— Ali... — As duas mulheres se viraram para apontar o Tártaro.

— Selem Órion! — Ele ordenou com uma voz que chegou aos estábulos.

Então fechou os olhos e respirou profundamente, tentando se acalmar. Bloqueou as vozes dos mortos e concentrou todo o seu ser em Perséfone.

Não demorou a encontrar o elo que unia suas almas. O elo que o avisara de sua presença na ferraria e que, depois, sinalizara o momento em que ela havia partido.

Mas era como um fio cortado. Sua conexão fora prejudicada.

O medo cresceu dentro dele.

— Traga o Cérbero — ordenou a Iapis.

O daimon acenou com um gesto de cabeça e desapareceu.

Hades se voltou para os espíritos das mulheres.

— Fizeram bem em ter vindo até mim.

A velha e a virgem inclinaram as cabeças, assim como a horda de espíritos atrás delas.

Hades buscou um rosto em meio à multidão que o cercava.

— Eurídice! Traga-me uma peça do vestuário de Perséfone. Algo que ela tenha usado recentemente.

Em vez de obedecê-lo de imediato, a pequena alma se aproximou. Seus olhos se encontraram, e Hades sentiu o leve toque de sua mão no braço.

— Precisa trazê-la de volta para nós, Hades — falou, com voz entrecortada.

— Eu trarei — ele prometeu e, em seguida, marchou para o estábulo.


Órion mergulhou na floresta, galopando no encalço do Cérbero. O cão de três cabeças caçava em silêncio, seguindo o cheiro de sua senhora.

Hades sentiu as mãos úmidas de suor e tratou de segurar as rédeas do cavalo com mais força. O garanhão não precisou de estímulo para permanecer na trilha do cão, o qual os conduziu inexoravelmente na direção do reino sombrio do Tártaro.

Os pensamentos fervilharam na cabeça de Hades. Ele devia ter magoado Perséfone além da conta se a fizera rumar para as trevas... Mas não tivera a intenção de fazê-lo. Sua dor e ciúme haviam feito com que se esquecesse do quanto ela era jovem. Perséfone não fazia ideia do lugar para onde estava se dirigindo. E nem mesmo sendo uma deusa estaria protegida do desespero que reinava no Tártaro.

Apavorado, ele tentou se lembrar se ela usava o narciso de ametista quando ele a vira pela última vez.

Sim, tinha quase certeza.

Uma ponta de alívio abrandou seu pânico. A ametista ajudaria a protegê-la. Era uma joia poderosa que ele produzira especificamente para ela. Suas propriedades protetoras eram vastas.

Tentou não imaginar o que poderia estar acontecendo com Perséfone. Como deus do Submundo, conhecia muito bem os horrores do Tártaro, a morada eterna dos condenados. Apenas as almas dos mortais que haviam abraçado as trevas eram levadas para aquela região. Ele odiava aquilo, mas reconhecia a necessidade de haver um lugar que abrigasse o mal imutável.

E sua amada tinha ido justamente para lá.

Órion parou ao lado do Cérbero. O cão farejava em meio a folhas secas e arranhava algo que cintilava como prata na penumbra.

Hades desmontou e apanhou o objeto. Era o colar de ametista de Perséfone! Ela estava sem nenhum talismã para protegê-la.

— Mais rápido, Cérbero! — ordenou, nervoso.

O cão redobrou seus esforços, e Órion respondeu no mesmo ritmo, atravessando a floresta.

De súbito, o Cérbero parou à margem do Flegetonte. Começou a uivar desesperadamente, e todas as três cabeças passaram a cutucar algo que Hades imaginou ser um animal morto.

O relinchar estridente de Órion cortou o ar, e ele partiu num galope até a ribanceira do rio de sangue fervente.

Quando o cavalo estacou, Hades reconheceu o corpo.

— Não! — Saltou do lombo de Órion e empurrou de lado o corpo maciço do Cérbero. Era Perséfone caída sobre a terra rachada. Tinha os braços em torno das pernas e os joelhos pressionados contra o peito numa posição curvada e rígida. Seus olhos estavam abertos, entretanto suas pupilas encontravam-se totalmente dilatadas, e ela olhava, sem ver, a escuridão além do rio flamejante.

Hades seguiu seu olhar. A negritude do Tártaro refluía das margens do rio. Olhou para baixo e viu que as garras das trevas haviam serpenteado do Flegetonte até encharcar o solo ao redor da deusa.

A fúria pulsou por todo seu corpo. Rapidamente, ele se abaixou e amarrou a corrente quebrada em volta do pescoço frágil de Perséfone. No mesmo momento, o narciso de ametista começou a brilhar.

Então o deus levantou os braços, e o ar ao seu redor começou a girar.

Em uma voz amplificada pela raiva e pelo amor, Hades ordenou às garras das trevas:

— Fora! Não têm o direito de prejudicar esta deusa!

As gavinhas escuras estremeceram, contudo não soltaram Perséfone.

— Sou eu, Hades, o senhor dos Mortos, quem está ordenando! Não toquem nela! —rugiu, lançando todo o seu extraordinário poder contra as garras malignas.

As trevas recuaram e, com um som sibilante, se dissiparam como um ladrão se escondendo na noite.

Hades caiu de joelhos ao lado de Perséfone. Agarrou o corpo rígido da deusa pelos ombros e o virou para si.

— Perséfone!

Ela não respondeu. Continuou com o olhar vidrado para a escuridão além do Flegetonte. Tinha o rosto pálido, a pele fria ao toque, e estava ofegante como se com dificuldades para respirar.

— Acabou. Nada pode ameaçá-la agora. Olhe para mim, ­Perséfone!

Ainda assim, ela não reconheceu sua presença.

— Perséfone! Tem que me escutar. — Hades a sacudiu até que sua cabeça chacoalhasse e o Cérbero uivasse, exprimindo sua angústia.

Os lábios da deusa finalmente se moveram.

— Isso mesmo! Fale comigo! — Hades gritou.

— Muitos... erros. Não posso... — A voz dela falhou, e suas palavras se tornaram inaudíveis.

— Não pode o quê? — ele implorou, sacudindo-a outra vez.

— Não consigo encontrar meu caminho... Meu corpo não está aqui. Eu desapareci.

O vazio em sua voz o aterrorizou. O rosto de Perséfone estava branco, e seus olhos continuavam vidrados. A Perséfone que ele conhecia não estava lá. Era como se um eco de seu espírito estivesse falando através de uma concha.

De repente, nada mais importava para Hades exceto trazê-la de volta. Não se importava se a deusa pensava nele apenas como uma missão que a mãe a encarregara de cumprir. Não se importava que Apolo fosse seu amante. Não se importava que ela fosse deixá-lo.

Preocupava-se apenas que ela voltasse a ser a mesma de antes.

Cobriu o rosto frio com ambas as mãos.

— Seu caminho é este... Deve voltar para aqueles que a amam.

Perséfone piscou.

— Volte para nós, minha amada! Volte para mim...

Ela respirou profundamente, e Hades a viu levantar a mão para agarrar o narciso de ametista.

Então piscou outra vez e se esforçou para focar seu rosto.

— Hades — balbuciou com voz fraca.

Com uma exclamação de alívio, ele a puxou para os braços.

— Sim, querida! Sou eu, Hades, o deus arrogante e tolo que a ama!

— ...Leve-me daqui — ela falou chorando, e mergulhou o rosto em seu peito.


Capítulo 24

As mulheres assistiram em silêncio enquanto o senhor dos Mortos carregava sua deusa para o palácio. Embora sua expressão fosse sombria, Perséfone passara os braços pelos ombros largos e tinha o rosto pressionado em seu pescoço.

Uma onda de alívio varreu os espíritos. Ela voltaria a ser a mesma. O amor do deus lhes asseguraria isso.

Tal como o sussurro do vento nos galhos de salgueiro, o burburinho das almas foi cessando conforme estas deixavam as cercanias do palácio.

— Eurídice! — Hades chamou assim que entrou na gigantesca construção.

O espírito se materializou no mesmo instante, tendo Iapis a seu lado.

— Prepare um banho bem quente para a deusa.

— Sim, senhor — ela assentiu e desapareceu.

Iapis acompanhou Hades.

— O que posso fazer?

— Vá até Baco. Diga-lhe que necessito do seu vinho mais potente. Algo que acalme a alma de uma deusa — ele instruiu, tenso.

— Agora mesmo, senhor. — Antes de desaparecer, porém, o daimon tocou a cabeça de Perséfone. — Fique bem, minha senhora — sussurrou e foi embora.

Hades carregou Perséfone direto para o quarto. Um vapor perfumado já escapava da sala de banho e, ao adentrar a névoa úmida, ele encontrou Eurídice correndo em volta, puxando grossas toalhas das prateleiras e escolhendo esponjas macias.

Havia uma poltrona acolchoada perto da parede espelhada e, relutante, Hades colocou nela sua deusa. Os braços de Perséfone deslizaram, inertes, de seus ombros e ela permaneceu sentada e muito quieta, os olhos fechados.

Ele se ajoelhou a seu lado.

— Perséfone? Está em casa agora — falou baixinho.

Um tremor passou pelo corpo de Lina.

— Pode me ouvir, minha amada?

Ela abriu os olhos e o fitou.

— Posso — respondeu com voz inexpressiva.

— Sabe onde está?

— ... Em seu palácio?

— Sim — Hades sorriu, encorajador, ignorando o tom abatido em sua voz.

Iapis se materializou na sala de banho, segurando uma garrafa de cristal cheia de um vinho tinto e uma taça. Serviu a bebida, e um aroma inebriante derivou do vidro: cheirava a uvas e prados, a trigo maduro e noites de verão sob a lua cheia.

Iapis ofereceu a taça a Perséfone.

— Beba, senhora. Isto a reanimará.

Lina tentou segurar a taça, porém sua mão tremia tanto que ela quase a deixou cair. Hades cobriu-lhe a mão com a sua, levando o vinho a seus lábios.

Ela bebeu com vontade, e a magia da bebida dos imortais começou a aquecê-la quase no mesmo instante. Logo, o tremor em suas mãos se acalmou, e ela pôde beber sem a ajuda do deus.

— Pode ir, senhor — orientou Eurídice, assumindo o comando. — A deusa necessita de privacidade para se banhar.

Hades se pôs de pé, contudo hesitou em sair da sala.

— Meu senhor, eu o chamarei quando ela estiver pronta... — garantiu o espírito.

Ele ainda titubeava.

— Ficarei por perto, Perséfone.

A deusa ergueu o olhar.

— Não precisa se preocupar. Estou de volta — disse num murmúrio.

A despeito de seu tom inexpressivo, Hades acenou com um gesto de cabeça e, relutante, saiu da sala com Iapis.

Hades andava de um lado para o outro no corredor, do lado de fora dos aposentos de Perséfone. Quanto tempo ela levaria para se banhar? Eurídice nunca a chamaria? Teve vontade de invadir o quarto e ordenar que a pequena alma saísse. Dessa forma, poderia fazer a deusa ouvi-lo. Perséfone tinha de escutar suas desculpas... Ele era um idiota, um imaturo, um tolo ciumento.

Suspirou. Ela o conhecia. Não deveria ser tão difícil fazê-la acreditar que ele cometera um terrível erro.

A porta se abriu, e Eurídice saiu para o corredor, fechando-a delicadamente.

— Como ela está? — Hades indagou, ansioso.

O espírito fitou o deus nos olhos antes de responder. Quando o fez, parecia muito mais velha do que seus poucos anos.

— Muito combalida, senhor.

Hades passou a mão pelo cabelo.

— Sou eu o responsável.

— Creio que sim — confirmou a moça simplesmente.

Ele assentiu com vigor e virou-se para a porta. A mão pálida de Eurídice o impediu, contudo.

— Seja paciente. Trate-a com cuidado. É difícil para uma mulher amar de novo após ter sido ferida.

Iapis se materializou ao lado da pequena alma. Envolveu-a nos braços, e Eurídice recostou-se nele.

— É difícil para uma mulher amar outra vez depois de ter sido ferida, mas não impossível, senhor — corrigiu o daimon.

Hades os viu se afastar lentamente. Formavam um bonito casal.

Voltou-se para a porta, respirou fundo e entrou nos aposentos de Perséfone.

A deusa vestia uma camisola de seda pura, da cor da luz das velas, e encontrava-se encolhida na espreguiçadeira em frente às janelas altas. Parte das cortinas de veludo tinha sido puxada, e Perséfone parecia estudar os jardins mergulhados na noite enquanto saboreava o vinho de Baco.

— Seus jardins são realmente muito bonitos — falou sem olhar para ele.

Hades atravessou o cômodo e parou ao lado da chaise longue .

— Obrigado. Fico contente por gostar deles.

As palavras soaram inadequadas. Ele não queria uma conversa inconsequente, mas Eurídice o advertira para ser paciente e cuidadoso, e assim ele seria.

Por outro lado, também necessitava abrir seu coração.

Sentou-se a seu lado no divã.

— Perdoe-me, por favor. Sou mesmo um tolo.

Ela se virou para encará-lo em silêncio.

— Eu sabia que ia me deixar, então quis romper tudo primeiro — confessou o deus. — Imaginei que isso pudesse amainar minha dor. Pensei que eu pudesse voltar a ser como era antes de amar você... mas estava errado. Fui egoísta. Não pensei nos seus sentimentos. Como um monstro velho e solitário, pensei apenas em mim mesmo.

Lina ergueu a mão para impedi-lo de continuar.

— Não diga mais nada. Você é um deus e agiu como tal.

— Não! — Hades agarrou sua mão. — Não sou como os outros. Tudo o que eu disse na ferraria era mentira. Eu estava com raiva, ferido... É difícil para mim entender que pode ficar comigo e ao mesmo tempo com Apolo. Eu... — Ele vacilou. — Eu é que não estou acostumado a escolher e descartar amantes como fazem os imortais.

— Hades, Apolo não é meu amante.

O deus estudou seu rosto.

— Mas eu o vi tomá-la nos braços.

Lina piscou, surpresa.

— Estava lá?

— Eu a segui. Ouvi Deméter lembrá-la da maneira como os imortais amam, em seguida vi Apolo abraçá-la.

— Se tivesse permanecido lá um pouco mais, então, teria visto que isso foi tudo o que aconteceu. Eu não quero Apolo, Hades. Se o que Deméter me disse não houvesse me aborrecido tanto, eu nunca teria me deixado abraçar.

Hades passou a mão pela testa.

— Não deseja Apolo?

— Não.

Ele abaixou a cabeça.

— Então a dor que lhe causei foi realmente sem razão. Não sei se pode me perdoar, mas, por favor, acredite em mim quando digo que eu a amo, Perséfone.

Lina desviou o olhar para longe dele.

— Você não me ama, Hades... Ama o que pensa que eu sou. Na verdade, não me conhece.

— Como pode dizer uma coisa dessas? — Ele a segurou pelo queixo e a obrigou a fitá-lo.

— Você ama a deusa. Não a mulher dentro dela.

— Está errada, Perséfone. Mas deixe-me dizer o que eu amo em você, então poderá decidir por si mesma... Eu amo a sua curiosidade sobre tudo. Amo o modo como vê com novos olhos o meu reino. Amo o seu senso de humor, sua bondade e honestidade. Amo sua paixão desenfreada, a maneira como encanta os animais. Amo a sua lealdade. Gosto mais ainda da sua teimosia, pois foi graças a ela que um velho deus não ficou trancado na armadilha da solidão.

Lágrimas caíram dos olhos de Perséfone, e Hades as enxugou com delicadeza.

— Agora me diga... o que eu amo? A deusa ou sua alma?

— Mas não me conhece... não pode conhecer realmente — ela falou com voz entrecortada.

— Sei apenas que sinto a sua presença antes mesmo de vê-la. Alguma coisa aconteceu comigo, e isso pouco tem a ver com o lado físico. Pela primeira vez em uma eternidade, compreendo por que almas gêmeas não podem ser separadas nem mesmo após a morte. É porque seus corações batem em conjunto. Enquanto eu esperava aí, do lado de fora, podia sentir seu coração partindo. Deixe-me curá-lo, Perséfone. Quando eu o fizer, estarei curando o meu próprio.

— É possível que ame a minha alma? — Lina perguntou num sussurro.

Hades sorriu para ela ao sentir o medo dentro dele começar a se dissipar.

— A morte está completamente enamorada da primavera. Se isso é possível, então tudo o mais o é, minha amada.

Ela se deixou abraçar e suas bocas se encontraram. Hades pretendia que o beijo fosse suave e tranquilizador, mas Perséfone abriu os lábios e se espremeu contra ele, pedindo mais.

Seu desejo por ela aflorou, e ele gemeu seu nome conforme esmagava o corpo seminu contra o peito.

— Faça amor comigo! — ela falou, ofegante. — Preciso sentir você dentro de mim.

Hades a ergueu nos braços e a levou para a cama, mas, quando começou a se despir, Perséfone o deteve.

— Deixe-me fazer isso — pediu, rouca.

Sentou-se na beirada da cama, e Hades ficou diante dela, forçando as mãos a permanecer dos lados enquanto ela o desnudava. Estava usando uma versão mais curta de suas volumosas vestes, e ela despiu lentamente a roupa de seu corpo musculoso. Deslizou as mãos por seu peito, sentindo a pele quente e lisa, então se curvou, substituindo as mãos pela boca ao beijá-lo no abdômen.

Hades prendeu a respiração com a sensação da língua úmida sobre a pele, porém Lina não se fartou dele. Sentia-se como se ti­vesse sido despertada da morte e precisava de sua paixão, de seu amor, de seu toque para mantê-la ancorada ali, a seu lado.

Soltou a tanga e a fez deslizar pelos quadris estreitos. Então acariciou o membro rijo nas mãos frias, o tempo todo movendo a boca lentamente mais para baixo.

Quando o engoliu, o corpo de Hades sacudiu num espasmo e oscilou.

— Sua boca é como uma armadilha de seda! — gemeu, crente que seus joelhos cederiam a qualquer momento.

Após um tempo, Lina recuou, por fim, e mirou os olhos escuros.

— Quer ser livre?

Ele a ergueu nos braços e a segurou firmeme nte contra o corpo.

— Nunca! — sussurrou em meio aos cabelos longos. — Nunca, minha amada.

Lina o puxou para a cama. Enquanto o acariciava, Hades explorou todos os seus recantos. A camisola era tão fina que ela se sentia como se envolvida em uma névoa. Ele encontrou seu mamilo e o provocou, sugando-o através do tecido transparente. Lembrou-se dos toques que ela afirmara lhe dar prazer e, desta vez, não precisou que Perséfone guiasse sua mão.

E ela reagiu como se eles tivessem sido amantes durante séculos.

De repente, sentou-se e se livrou da camisola. Quando Hades fez menção de tomá-la de volta nos braços, ela o impediu.

— O que foi, querida?

— Quero que faça algo para mim.

— Qualquer coisa.

— Quero que faça amor comigo com os olhos fechados. Finja que não pode ver o meu corpo. — Ela o fitou, procurando por uma resposta. — Consegue fazer amor comigo sem olhar para mim?

Ele sorriu e fechou os olhos. Sem nada enxergar, abriu os braços para ela, e Lina se deixou perder neles.

Cercado por seu aroma e toque, Hades vagou por um mundo de sensações. Sem ver Perséfone, teve que prestar mais atenção a seus pequenos sons e seguir o movimento de seus quadris e corpo. Quando sua respiração se acelerou, e o nome dele escapou de seus lábios num suspiro, não precisou enxergar seu rosto corado para saber que estava lhe proporcionando prazer. Sentia o desejo dela na alma e respondia com carícia após carícia.

Quando finalmente preencheu seu corpo, eles se moveram juntos, em um ritmo antigo que não precisava de visão ou de sons... apenas de sentimentos.

Pouco mais tarde, Lina se aninhou junto a Hades, a cabeça encostada em seu ombro. Ele não sabia ainda, mas a ajudara a tomar sua decisão, e, agora que ela havia feito isso, sentia-se em paz. Sobreviveria a qualquer coisa que acontecesse em seguida. Nada poderia ser tão terrível quanto o vazio negro do Tártaro.

Com a ajuda de Hades, tinha se livrado daquele último pesadelo e agora precisava se livrar das mentiras que restavam em sua vida. Não estava mais disposta a esconder a verdade dele. Não importava mais a raiva de Deméter... ela contaria tudo. Hades merecia saber, pois a amava com a alma.

— Hades, preciso lhe dizer algo.

O deus sorriu.

— Posso ficar de olhos abertos agora?

Lina riu baixinho.

— Sim.

Sentou-se de frente para ele, o lençol de seda enrolado no corpo nu. Hades apanhou alguns travesseiros da cama em desalinho e se apoiou confortavelmente contra a cabeceira estofada. Ergueu as sobrancelhas escuras, curioso.

— Eu não queria ir para o Tártaro. Foi um acidente. Fiquei apavorada ao perceber onde estava, mas era tarde demais.

Ele franziu o cenho. E só de pensar o quanto Perséfone estivera perto de perder a alma, sentiu o estômago se apertar.

— Eu sei, meu anjo. Nem precisava me explicar isso. A culpa foi minha. Se eu não a tivesse magoado...

— Sshh... — Ela se inclinou para a frente e pressionou um dedo contra seus lábios. — Deixe-me terminar.

O deus pareceu pouco à vontade, mas ficou em silêncio.

— Foi terrível lá. — Ela estremeceu. — Foi como se o Tártaro me chamasse... Sabia coisas sobre mim: cada coisa ruim que já fiz na vida, e até mesmo as que pensei em fazer. Isso me levou a sucumbir. Podia sentir a captura da minha alma, e não havia nada que eu pudesse fazer. — Pegou a mão de Hades e entrelaçou os dedos nos dele. — Foi então que o ouvi... Você me chamou de volta. A mim , Hades. A alma que existe dentro do meu corpo.

— Eu tinha que tê-la de volta. Eu a amo.

— Eu também o amo. Mas precisa saber mais do que isso. Não sou quem você pensa... Não sou...

— Basta, Perséfone! — A voz de Deméter a interrompeu. — Seu tempo aqui acabou. Precisa voltar.

Consternado, Hades deixou a cama de um salto. Sem pensar na própria nudez, encarou a deusa que se materializou bem no meio do quarto de sua amada.

— O que pretende com essa intrusão, Deméter? — desafiou-a, irritado. — Este não é o seu reino. Não tem o direito de interferir aqui.

— Está brincando com minha filha, senhor do Submundo, e vim para buscá-la. Sou sua mãe. Esse é todo o direito de que preciso.

— Você não é minha mãe! — Lina pronunciou as palavras pausadamente, de maneira que não restasse dúvida sobre o que estava dizendo. Pôs-se ao lado de Hades, segurando o lençol sobre os seios.

Deméter suspirou.

— Não me venha com esses joguetes infantis, filha. Sua aventura terminou. Já é tempo de voltar à realidade.

— Sei que não posso ficar, mas não irei embora sem dizer a verdade a Hades. Ele merece saber. Ele me ama.

— Está sendo tola como uma criança! — replicou Deméter.

— Sabe muito bem que estou longe de ser uma criança. Deixe-me dizer, de uma vez por todas: não sou nenhuma idiota. — Lina encarou Hades e mirou seus olhos. — Não sou a verdadeira Perséfone, Hades. Meu nome é Carolina Francesca Santoro, mas a maioria das pessoas me chama de Lina. Sou uma mortal de quarenta e três anos de idade, que possui uma padaria em um lugar chamado Tulsa, Oklahoma. Deméter trocou minha alma pela alma de sua filha. — Olhou para a deusa, e seus lábios se torceram num sorriso irônico antes que ela voltasse a encará-lo. — Ela prometeu me ajudar com um problema que eu tinha, e, em troca, eu precisaria cumprir para ela uma pequena missão no Submundo.

Hades ouvia tudo de olhos arregalados.

— Lembra-se de quando a ouviu me lembrar de como os imortais amavam? Na verdade, Deméter não estava me lembrando disso; ela estava me explicando esse fato porque sou uma mortal. A coisa toda era nova para mim.

— Então não é a deusa da Primavera?

— Não. Não sou a deusa da Primavera — confirmou Lina, tão aliviada por finalmente dizer a verdade que não percebeu o rosto de Hades se tornando inexpressivo. — Eu queria lhe contar tudo, mas dei minha palavra a Deméter de que manteria a minha verdadeira identidade em segredo. — Ela tentou tocá-lo no braço, porém Hades se esquivou do toque.

— As coisas que me disse, que fizemos juntos... Foi tudo fingimento?

— Não! — Lina sentiu um nó no estômago ao ver que ele tornava a se fechar. Estendeu a mão, porém, mais uma vez, ele se afastou dela. — Tudo o que eu disse, tudo o que eu fiz foi sincero! Apenas este corpo é uma mentira. Todo o resto é real. Amar você é a minha mais pura verdade!

— Como o amor pode ser baseado em uma mentira? — ele retrucou, frio.

— Por favor, não faça isso! — Lina insistiu, tentando alcançar o homem dentro do deus. — Não permita que nos separem assim... Não podemos ficar juntos, tenho que voltar para o meu mundo, mas não quero me lembrar desse tipo de palavras quando estivermos ­separados!

— Não implore pelo amor dele como uma mortal, Carolina. — A voz de Deméter a interrompeu. — Ainda tem dentro de você o suficiente de uma deusa para ter mais orgulho.

Lina se virou para encará-la.

— Você causou isso! Hades me ama. Está se sentindo traído apenas por causa da sua insistência em manter uma mentira! E eu não posso culpá-lo... De que outra forma ele poderia se sentir?

Deméter arqueou uma sobrancelha.

— Acredita que ele a ama, Carolina Francesca Santoro? Então vamos testar a sua crença nesse amor imortal...

Com um movimento do pulso, Deméter regou Lina com faíscas douradas.

Ela sentiu o corpo tremer e, de repente, viu-se terrivelmente tonta. Fechou os olhos, lutando contra a náusea. Logo depois, uma estranha sensação a preencheu: como se tivesse acabado de voltar para um confortável par de jeans .

Antes de abrir os olhos, já sabia o que veria. Do outro lado da sala, o espelho que cobria toda a parede, o mesmo em que ela havia se olhado naquela manhã, refletiu uma nova imagem.

Era seu velho corpo outra vez. Fora-se o corpo esbelto da jovem deusa. Suas curvas ficaram mais acentuadas, ela era mais velha e, decididamente, não era perfeita.

— Você é uma mortal! — A voz de Hades soou estrangulada.

Lina desviou o olhar do espelho para pousá-lo no deus. Ele a fitava, e seu rosto era uma máscara de choque e descrença.

— Sim, eu sou uma mortal — confirmou. Endireitando os ombros, deixou cair o lençol, expondo-se por inteiro. — E também sou a mulher que o ama.

Ele virou o rosto, recusando-se a olhar para ela.

— Como pôde mentir esse tempo todo?

— Que bem teria feito a verdade? — Deméter interveio, indignada. — Você a teria evitado como está fazendo agora. — Seu tom tornou-se sarcástico. — Ao menos possuiu o corpo de uma deusa finalmente, senhor dos Mortos. A ironia é que terá de agradecer a uma mortal por isso. Nenhuma deusa de verdade haveria de querê-lo.

O rosto de Hades ficou branco como cera, e ele travou o maxilar. Quando seus olhos encontraram os de Lina, ela só viu raiva e repugnância refletidas neles.

— Saia do meu reino — ele ordenou com uma voz que fez arrepiar seus braços.

— Vamos, Carolina... Seu tempo aqui acabou. — Deméter se pôs ao lado dela e a cobriu com seu manto.

E, sem mais nenhuma palavra, fez o Palácio de Hades desaparecer de seu entorno.


Capítulo 25

A campainha sobre a porta da frente da Pani Del Dea tilintou alegremente, permitindo a entrada de outro fluxo de clientes, bem como uma rajada de ar frio.

— Brr — Anton estremeceu. — Que droga! O inverno chegou, mesmo. Minha pele está um horror!

— Os meteorologistas estão prevendo mais neve do que o normal nesta temporada. É melhor fazer um bom estoque de hidratantes e comprar sapatos mais apropriados — Dolores observou, apontando os pés do colega.

— O que há de errado com os meus? — Anton respondeu, amuado, virando o pé de um lado para o outro, de modo que a padaria inteira pudesse admirar suas botas de cowboy de pele de enguia pretas, brilhantes, de ponta fina e salto sete.

— Lina! — ele chamou do outro lado do salão. — Acha mesmo que eu preciso de sapatos novos?

Ela olhou por cima da máquina de cappuccino . Queria dizer que não se importava com sapatos, nem com clima, nem com nada... mas a expressão ansiosa de Anton a lembrou de que precisava disfarçar. Precisava continuar fingindo, não importando como realmente se sentia.

— Suas botas estão perfeitas, meu querido. Mas lembre-se de que o meu seguro não cobre tombos fora da padaria.

Risos ecoaram na Pani Del Dea. Os clientes sorriram e passaram a fazer seus pedidos. Todos pareciam felizes. O negócio vinha crescendo a olhos vistos e, nas duas últimas semanas após ela ter voltado, Lina se surpreendera com as mudanças que Perséfone implementara durante os últimos seis meses.

A deusa da Primavera tinha mesmo operado milagres por ali. Sua campanha publicitária fora um prodígio. Novos clientes lotavam a loja dia e noite, a maioria deles clamando por algo em que pudesse espalhar o incrível cream cheese de ambrosia que era oferecido exclusivamente na Pani Del Dea. A criação de Perséfone era um sucesso.

E não fora apenas essa a mudança feita pela deusa. Em vez de começar a trabalhar com menus para eventos, como ela, Lina, imaginara que deveria, Perséfone introduzira a padaria no comércio virtual. Oferecia pela internet uma cesta com uma enorme ­variedade de seus melhores pães, como o gubana, acrescentava uma lata pequena de cream cheese de ambrosia e a despachava para todos os Estados Unidos... por um preço escandalosamente alto.

Mesmo assim, o novo serviço vinha crescendo cada vez mais. Perséfone tinha até mesmo contratado um novo funcionário em tempo integral, apenas para que este cuidasse desses pedidos pela rede.

Lina não se conformava. Fora necessária a vinda de uma deusa antiga para que ela enxergasse o potencial da internet. Agora sua dívida com a Receita poderia ser paga três vezes... assim como Deméter havia prometido. Tudo estava bem.

E ela se sentia tão infeliz que tinha vontade de morrer.

Não. Não queria pensar em morte, nem em espíritos... muito menos no senhor do Submundo.

O sino sobre a porta tiniu outra vez.

— Olá, bonitão — Anton saudou, brincando.

— Tudo bem, Anton? Bonitas botas... — falou uma voz máscula e profunda.

Anton riu, todo alegre.

Lina apertou os lábios e se preparou, feliz por ter a máquina de cappuccino entre ela e o visitante. Ao menos ele não tentaria beijá-la.

— Boa noite, Lina.

— Olá, Scott. — Ela suspirou e olhou para o rapaz alto e musculoso, notando os cabelos loiros, de corte impecável, e os olhos azuis que a fitavam com adoração. Ele vestia um terno bem cortado, gravata vermelha, e o traje nada fazia para camuflar seu físico impressionante, pelo contrário: o corte italiano o acentuava. Não pela primeira vez, Lina pensou que Scott poderia ter sido um jovem Apolo se o deus da Luz viesse à Terra como um bem-sucedido ­advogado de Tulsa.

Não era difícil entender por que Perséfone tinha se sentido atraída por ele. O fato não a surpreendera em nada.

O que não entendia era por que ele se mostrava tão encantado com o seu retorno.

— Ainda tenho ingressos para a primeira fila de Aida... Pensei em ver se mudou de ideia. Não quero ir à ópera sem você — insistiu Scott.

— Obrigada, mas não. Eu realmente não posso.

— Por que, Lina? Não compreendo. Duas semanas atrás...

— Aqui não, Scott — ela o interrompeu, mortificada por a padaria inteira estar em silêncio, acompanhando a cena, embora fingissem que nada acontecia.

— Então quando e onde? Está me evitando há duas semanas. Mereço uma explicação.

Saber que ele estava certo não fez Lina sentir-se menos miserável, nem tornou sua decisão menos certa. Scott era lindo e incrivelmente sexy . Somado a isso, parecia um sujeito agradável e honesto.

Mas ela não sentia nada por ele.

Seria tão mais fácil se estivesse apaixonada! Perder-se numa paixão juvenil até soava como uma boa ideia.

Ela até tentara sair com Scott, mas, quando ele a tocara, não havia sentido nada, exceto aquele vazio dolorido dentro dela. Scott não conseguiria fazê-la esquecer.

— Venha — chamou. Saindo de trás do balcão, segurou-o pelo braço e o levou até a porta.

Enquanto deixavam a padaria, Lina ainda pôde ouvir Anton suspirando tristemente.

— Que desperdício!

A noite estava fria, e ela já devia ter colocado as pequenas mesas e cadeiras da calçada para dentro, mas, como precisava de uma barreira entre ela e o rapaz, ficou feliz por não ter feito isso. Sentou-se a uma das mesas, e Scott se acomodou numa cadeira à sua frente.

Antes que dissesse qualquer coisa, ele mudou de posição, sentando-se junto dela. Ao vê-la estremecer, tirou o paletó e o ajeitou em seus ombros. O casaco estava quente e cheirava a uma daquelas colônias pós-barba caras e másculas. Scott teria segurado sua mão, porém Lina a manteve fora de seu alcance, no colo.

— Scott — começou, desejando sinceramente que o modo ­sensual como a camisa branca assentava no peito musculoso a fizesse sentir mais do que admiração por aquela bem tonificada compleição física. — Eu já lhe disse antes... Não há mais nada entre nós. Eu gostaria que compreendesse isso e esquecesse tudo.

Ele balançou a cabeça.

— Não posso. Não há nenhuma razão para isso. Apenas duas semanas atrás estava tudo bem... Melhor do que bem. Então um dia eu acordo e, zás! , está tudo acabado? Não há explicação. Depois de quase seis meses, você me dispensa sem nem mesmo dizer que asneira eu fiz?

— Não fez asneira nenhuma. Merda! Eu já lhe disse isso antes: o problema é comigo.

Você é perfeito , acrescentou em silêncio. Jovem, bonito, bem-sucedido e atencioso. Scott precisava encontrar uma moça linda como ele e estabelecer-se nas redondezas após conseguir um belo financiamento. Em seguida, devia ter dois ou três filhos e um cachorro.

— Então me diga outra vez. Não compreendo como pode, de repente, estar tão diferente! O que aconteceu?

— Você é moço demais para mim — Lina falou, sincera.

— Pare com isso! Tenho vinte e cinco anos, não quinze! Não sou tão jovem assim.

— O problema é que eu estou velha demais para você.

— Claro que não... — Scott se inclinou para a frente e puxou sua mão do colo, mantendo-a entre as suas. — Não me importo que esteja com quarenta e três anos. Ainda é bonita e sexy , mas também muito mais do que isso. Seu coração é jovem, você ilumina tudo por onde passa, Lina. Quando estávamos juntos, você me fazia sentir como um deus.

Ela sorriu tristemente.

— Não sou mais assim. Não me sinto mais assim. — Levantou-se e tirou a mão da dele. Em seguida deixou cair o paletó dos ombros e o entregou de volta. — Não posso lhe dar o que você precisa. Não tenho mais isso dentro de mim. Por favor, Scott, não me procure mais.

— Não... — Ele balançou a cabeça. — Estou apaixonado!

— Está bem, então aqui vai a verdade: estou apaixonada por outra pessoa.

O rapaz se endireitou na cadeira e franziu o cenho.

— Outra pessoa?

— Sim. Eu não queria que acontecesse, mas aconteceu. Sinto muito. Eu não queria magoar você.

O rosto bonito de Scott corou, e Lina o viu erguer uma barreira de orgulho entre eles. Ele se levantou, o maxilar cerrado, porém seus olhos continuaram tristes.

— Eu não tinha percebido que havia mais alguém, mas devia ter desconfiado. Você é boa demais para estar sozinha. Peço desculpas por tê-la incomodado. Adeus, Lina.

— Adeus, Scott — ela respondeu enquanto ele se afastava a passos rápidos da padaria.

Sentindo-se com setenta e três anos, em vez de quarenta e três, Lina readentrou a loja.

Anton, Dolores e os demais a fitaram cheios de expectativa, mas, quando viram que ela se encontrava sozinha, desviaram o olhar rapidamente.

— Acho que vou para casa mais cedo hoje — Lina anunciou com um suspiro.

— Sem problemas, patroinha. — Anton sorriu e afagou-lhe o braço, maternal.

— Nós fechamos a casa, pode deixar — emendou Dolores. — Precisa se dar algum tempo... Tem trabalhado muito pesado.

Anton anuiu com um gesto de cabeça.

— Por que não dorme até mais tarde amanhã, depois faz uma boa massagem e um tratamento facial? Sabe... naquele lugar que descobriu alguns meses atrás? Você mesma disse que eles sabiam tratá-la como uma deusa.

— Quer que eu ligue e marque uma hora? — Dolores se ofereceu.

— Não, eu vou ficar bem — murmurou Lina, apanhando a bolsa e o casaco. — Mas está certo, Anton. Acho que vou dormir até mais tarde amanhã. — Tentou sorrir para os dois, contudo seus lábios não formaram mais do que uma careta.

— Ah... Estamos quase sem cream cheese de ambrosia. É melhor preparar mais um pouco. Aliás, você bem que poderia nos dar a sua receita secreta — observou Dolores, balançando as sobrancelhas para a chefe.

— Sim, até já prometemos não vendê-la para terroristas ou para essas padarias industrializadas! Mesmo que esse cream cheese maravilhoso fosse dar vida nova àqueles bolinhos horríveis que eles fazem — Anton estremeceu dramaticamente.

Lina tentou recobrar seu senso de humor.

— Uma mulher tem que ter seus segredos. — Piscou para o empregado e pendurou a bolsa no ombro. — Eu os vejo amanhã à tarde com um barril inteirinho de cream cheese de ambrosia — prometeu, atravessando a porta.

Seus funcionários a observaram. Assim que ela estava fora de vista, encontraram-se atrás do balcão e uniram as cabeças.

— Há algo errado com ela — afirmou Dolores.

— Claro que há! — emendou Anton. — Pois então ela não rompeu com aquele “pedaço de mau caminho”?

— É pior do que isso. — A moça suspirou. — Lina gostava de Scott, mas tenho a sensação de que ele nunca significou mais para ela do que um passatempo agradável. Terminar com ele não a deixaria tão triste.

Anton pensou por um momento, depois acedeu.

— Tem razão. Deve ser outra coisa. É como se ela não fosse a mesma pessoa novamente. Lembra-se de como agiu estranho há alguns meses?

— Claro que me lembro. Mas Lina estava preocupada em perder a padaria.

— Bem, ela salvou a Pani Del Dea, e isso lhe fez muito bem. Lina mudou por completo. Comprou roupas diferentes, começou a andar de patins ao longo do rio... Juro que ela perdeu uns dez quilos!

Dolores assentiu.

— Até mudou o cabelo.

— E começou a namorar homens mais novos! Aliás, que homens! — Anton comentou.

— Então, qual é o problema? Até aí não há nenhuma novidade. O que isso tem a ver com o que está acontecendo com ela agora? — questionou a funcionária.

Anton encolheu os ombros.

— Será que é uma crise retardada de estresse? Ou talvez seja uma síndrome de dupla personalidade se manifestando na meia-idade.

Dolores revirou os olhos.

— Tem que parar de assistir tanto ao Discovery Health ! O que eu imagino é que ela tenha, mesmo, trabalhado demais e agora precise de férias.

— Que droga! Você sempre estraga o efeito dramático da coisa! — protestou Anton.

— Vamos simplesmente manter um olho nela e poupá-la do trabalho tanto quanto nos for possível, OK?

— OK.


Capítulo 26

— Sim, sim, eu sei, eu também te amo! — Lina lutou para passar pela porta, lidando com sua entusiasmada buldogue que babava. — Edith Anne, quer se comportar? Deixe-me tirar o casaco e pendurar a bolsa. — A buldogue recuou meio passo, ainda ganindo e se contorcendo.

Indignado, Patchy Poo the Pud saltou de seu lugar cativo na espreguiçadeira e começou a se esfregar nas pernas dela, queixando-se, com miados estridentes, de que ela não estava lhe dando atenção.

— Seus malucos — Lina murmurou, pendurando o casaco. — OK, venham aqui. — Sentou-se no meio do vestíbulo e permitiu que Edith subisse em seu colo enquanto coçava Patchy debaixo do queixo.

A buldogue a lambeu feliz. O gato ronronou.

Lina suspirou.

— Bem, pelo menos vocês dois sentiram falta do meu verdadeiro eu...

Seus bichos de estimação pareciam tão bem alimentados e saudáveis quanto na noite em que Deméter a transportara para longe. Desde o momento em que ela reaparecera no meio da sala, contudo, os dois não queriam deixá-la mais fora de vista e a seguiam de cômodo em cômodo. Patchy Poo the Pud chegava ao cúmulo de ficar do lado de fora do banheiro, miando enlouquecedoramente se ela não o deixasse entrar.

— Vocês precisam relaxar! — Lina repreendeu as criaturas adoráveis. Mas, no fundo, estava gostando que eles estivessem tão contentes por ela ter voltado.

Pelo menos não era uma decepção para eles. Todos os outros a olhavam como se, de repente, ela tivesse um terceiro olho...

Não, não era isso. As pessoas não a vinham tratando como se ela estivesse fazendo algo estranho: tratavam-na como se ela não estivesse fazendo coisa alguma; como se esperassem mais dela.

Como Perséfone tinha sido mais “Lina” do que ela própria?

Suspirou e empurrou Edith Anne para fora do colo. Perséfone era uma deusa. Era claro que as pessoas desejavam que ela fosse como Perséfone. Quem não gostaria de viver às voltas com uma divindade?

Hades...

Seus pensamentos sopraram o nome antes que pudesse evitar. Hades tinha gostado de estar com ela mais do que com qualquer deusa.

Lina balançou a cabeça.

— Não —lembrou a si mesma. — Isso não é verdade. Ele só quis ficar comigo enquanto pensava que eu era Perséfone.

Recordou-se da expressão dele no momento em que vira quem ela realmente era.

— Não! — gritou para si mesma. Não pensaria mais naquilo.

Tinha de se recompor. Vinha agindo como uma adolescente rejeitada por duas semanas. Já fora magoada antes, por que agora seria diferente? Não estava passando por outro divórcio.

Lina olhou o corredor vazio sem ver. Não era como um divórcio. Era pior.

Por que sentia como se parte dela, sua melhor parte, estivesse faltando?

Lembrou-se da noite em que ela e Hades tinham visto o casal bebendo do rio Lete. Ele havia dito que almas gêmeas sempre se reencontravam.

Mas o que acontecia quando estas estavam separadas pelo tempo e habitando dois mundos diferentes? Será que seus corações se tornavam estéreis? Será que sua capacidade para a felicidade minava até que eles se transformassem em conchas vazias e ambulantes, passando pela vida sem qualquer emoção, sem se sentir vivos?

De qualquer modo, não era o que estava acontecendo com ela. Hades não poderia ser sua alma gêmea, pois a tinha rejeitado.

E ela já estava velha demais para continuar apaixonada por alguém que não poderia ter. Cometera um grave erro. Agora teria simplesmente que superar aquilo e tocar a vida.

Mas ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

Edith Anne gania enquanto Patchy Poo the Pud se esfregava em suas pernas, preocupado.

Lina empurrou para longe a tristeza de seu coração e endireitou os ombros.

— OK, vocês dois. Vamos fazer um pouco de cream cheese de ambrosia.


Não importava quantas vezes ela o lesse, o papel ainda lhe causava um estranho pressentimento. A folha em que a receita fora escrita era de seu bloco pessoal, com as iniciais “CFS” impressas na parte superior, e na fonte Copperplate Gothic Bold, de que ela tanto gostava. As palavras tinham sido traçadas com sua caneta azul favorita, e a caligrafia era idêntica à dela própria.

Mas não havia escrito aquilo. Encontrara a receita colada com fita adesiva à tigela de Edith Anne no dia em que Deméter a trouxera de volta e quase a ignorara. Afinal, parecia feita em sua própria caligrafia. Tinha imaginado que fosse apenas uma nota qualquer, lembrando-a de comprar mais ração, guloseimas ou outro item da parafernália própria de um cão.

Então, finalmente registrara a saudação Querida Lina , e seus olhos haviam voado para o final do bilhete: Com meus votos de muita alegria e magia, Perséfone.

Levara a mensagem para a sala a fim de lê-la. Em seguida, assim como fazia naquele momento, pensara como era bizarro que ela e Perséfone possuíssem letras idênticas.

Querida Lina,

Os seis meses estão chegando ao fim, mas parece que estou aqui há muito mais tempo. Este se passa, mesmo, de forma diferente no seu mundo. Minha mãe me chamará em breve, e quero ter certeza de que você terá a receita para a ambrosia. Nossos clientes a adoram, e não quero vê-los desapontados.

Que estranho! Só agora percebi que os chamei de “nossos clientes”...

Mas eu os considero como tais. Seus amigos mortais são boas pessoas. Vou sentir falta deles.

Mas não do seu gato ou dessa cadela babona, embora o seu bichano preto e branco finalmente tinha se dignado a dormir comigo, e ontem a cadela tenha latido de modo protetor para um estranho que tentou me abordar enquanto eu brincava na beira do rio.

É... Talvez eu sinta falta deles.

Lembre-se de se divertir na vida, Lina. Você foi muito abençoada.

Com meus votos de muita alegria e magia ,

Perséfone

A receita de cream cheese fora cuidadosamente escrita no verso da nota.

Lina a estudou mais uma vez. Não queria segui-la, porém Perséfone estava certa: seus clientes a amavam, e ela também não queria decepcioná-los.

Encheu outra vez o copo de Pinot Grigio , deixando a garrafa no balcão, ao lado do pote que ela já preenchera com creme de queijo batido. Não precisou checar o calendário para saber se era lua cheia. Tudo o que teve de fazer foi olhar pela janela da cozinha.

Não havia dúvida: uma lua redonda e branca cintilava no céu claro.

— Vamos acabar logo com isso. Como se você não estivesse acostumada à magia! — Apanhou um copo medidor do armário. — E pare de falar sozinha!

Colocou a receita no balcão e começou a seguir os passos que a fariam produzir o cream cheese de ambrosia.

A receita de Perséfone era prolixa, e Lina tomou um gole do vinho enquanto a lia.

Encha aquele bonito pote amarelo – aquele da cor das madressilvas selvagens – com cream cheese. Deixe o queijo amolecer. (E, Lina, não utilize aquelas misturas de baixa caloria horrorosas... Seu sabor chega a ser uma blasfêmia!)

Lina não pôde evitar sorrir. Ela e Perséfone tinham a mesma opinião quanto a cozinhar com ingredientes de baixa caloria.

Em seguida, adicione um copo do seu vinho branco favorito ao creme de queijo e misture bem. O tipo do vinho não é importante, contanto que não seja muito doce. (Aliás, Lina, eu adorei aquele Santa Margherita Pinot Grigio que encontrei em seu refrigerador. Espero que mamãe me dê tempo suficiente para repô-lo antes de ela nos destrocar! Caso contrário, peço desculpas por acabar com o seu estoque.)

Lina riu.

— Desculpas aceitas.

Realmente, quando ela voltara não tinha uma só garrafa de vinho branco.

Após adicionar a bebida ao creme, beba o que restou na garrafa. (E, Lina, não subestime a importância desta etapa!)

Lina serviu-se de mais uma dose de vinho após acrescentar a primeira ao cream cheese . Tentou não engolir tudo de uma vez, mas queria acabar logo com aquilo.

Quanto mais bebia, mais fácil era para ela admitir: Perséfone devia ser divertida.

Leu o restante da receita, já com um sorriso induzido pelo álcool nos lábios.

Em uma noite de lua cheia, pegue a mistura e coloque-a sob o velho carvalho. Você já o conhece. Fica no pátio, próximo à fonte. Espalhei um pouco da magia da primavera por lá. (Não se surpreenda se vir uma ninfa ou duas, embora elas morram de vergonha de se mostrar no seu mundo). Antes de deixar a mistura na árvore, deve dar três voltas completas no tronco dançando, e, ao mesmo tempo, concentrar os pensamentos na doce beleza da noite. (Lina, não precisa fazer nenhum passo específico de dança. Basta ouvir a sua alma e se divertir! Aposto que seu corpo vai surpreendê-la, assim como me surpreendeu...)

— Ahn? — ela gemeu e releu a linha. — “Assim como me surpreendeu”?

Não tinha ideia do que Perséfone queria dizer com aquilo.

Mas os olhares penetrantes que Scott lhe lançara e a dificuldade que ele havia tido para manter as mãos longe dela eram uma pista.

Não que ela houvesse se mantido muito casta no corpo de Perséfone.

Mas não queria pensar naquilo.

Voltou a atenção para o final da receita:

Vá buscar a mistura pronta na manhã seguinte. Para consumo mortal, deve diluí-la dez vezes. (Tenha cuidado, Lina. Não imagino o que aconteceria se Anton a experimentasse em sua forma original!)

— Novidade... Ele decerto criaria asas e voaria como uma ­ninfa! — Lina murmurou, rindo.

Recompôs-se novamente. Perséfone tinha acabado de fazê-la rir duas vezes! E nem estava ali. Não era à toa que todos a amavam tanto.

— Bem, crianças — disse a Patchy Poo the Pud e Edith Anne. — Vou terminar esta última taça de vinho, depois levar este pote “cor de madressilva”, colocá-lo sob aquela árvore velha, fazer algumas piruetas, e, em seguida, me jogar na cama. — Deixou escapar um soluço, e seus animais de estimação a fitaram com olhos acusadores. Eles sempre sabiam quando ela havia bebido demais.

Lina passou um braço em volta do pote e rumou para a saída com a visão turva. Edith Anne, claro, ficou bem no meio do caminho.

— Não se preocupe, garota. Não vou a lugar nenhum sem você. — O lado bom de a cadela ser tão ligada a ela era que nem precisava se preocupar mais com uma guia. — Vamos voltar logo, prometo! — disse a Patchy Poo the Pud, que as observava com um misto de desdém e preocupação.

A noite tinha ficado mais fria, e Lina desejou ter apanhado um casaco. Mas a blusa de cashmere de gola alta que Perséfone adicionara ao seu guarda-roupa era confortável e quente, mesmo sendo de um rosa delicado, mais apropriado a uma adolescente do que a uma mulher de meia-idade.

Sem dizer que ela sempre ganhava elogios quando a usava.

Esqueça , disse a si mesma. Não sentia nem vontade de se preocupar com roupas. E, se não estava disposta a ir às compras, não havia muito que pudesse fazer a respeito.

Sem dizer que, em seis meses, Perséfone tinha substituído cada item em seu armário. Tudo. De sapatos e jaquetas a sensuais calcinhas e sutiãs de seda.

— Onde aquela criatura encontrou tempo para isso? — perguntou a Edith Anne.

A cadela bufou em resposta, mantendo o ritmo a seu lado.

Lina abanou a cabeça.

— Eu não sei. Perséfone deveria ser renomeada a deusa do ­Shopping em vez de a deusa da Primavera.

Deu uma risadinha. Para falar a verdade, estava mesmo um pouco bêbada. Só podia estar se continuava rumando para aquele lugar outra vez...

Seguiu o caminho de paralelepípedos que ligava o condomínio ao pátio central e ouviu a fonte antes mesmo de avistá-la. Seis meses e duas semanas antes, esta tivera um efeito calmante sobre ela. Naquele momento, porém, conforme se aproximava, sentia o estômago cada vez mais apertado.

Por sorte, a área se encontrava deserta. Lina olhou para o relógio, torcendo o pulso para que a marca fosse iluminada pela luz da lua cheia: 22h45. Como havia ficado tão tarde?

Respirando fundo, aproximou-se do velho carvalho. O mesmo em que descobrira o bonito narciso.

E este se encontrava exatamente como seis meses antes. Naquela ocasião, os galhos haviam estado nus, exceto por botões à espera de desabrochar. Agora, os ramos se apresentavam quase desnudos outra vez, e havia apenas umas poucas folhas da cor de sacolas de papel presas a estes.

Olhou mais embaixo. Raízes grossas e retorcidas cruzavam o chão a seus pés.

Devagar, ela circundou o tronco, estudando as sombras. Exceto pela poeira e pelas raízes, a área em torno da base da árvore estava vazia. Não havia nenhuma flor que cheirasse à primavera e a primeiros beijos ao luar...

Mas o que ela esperava?

Franzindo as sobrancelhas, Lina assentou o pote de creme de queijo e o vinho em um nicho meio achatado entre as duas raízes junto ao tronco da árvore. Então recuou.

Em sua mente, pôde ler as instruções de Perséfone:

Antes de deixar a mistura na árvore, deve dar três voltas completas no tronco dançando, e, ao mesmo tempo, concentrar os pensamentos na doce beleza da noite. Está bem , pensou, esfregando as mãos. Vou pensar em como a noite está bonita, dançar em volta do carvalho, e pronto.

Olhou ao redor. Exceto por Edith Anne, que continuava sentada a poucos metros dali, observando-a atentamente, o pátio continuava deserto.

— Ainda bem... Ou pensariam que eu sou louca.

Edith bufou mais uma vez.

— Não se preocupe, isto não vai demorar muito.

Pense sobre a beleza da noite , Lina disse a si mesma.

Olhou para cima. A lua estava realmente bonita, parada lá como um disco de prata iluminado por dentro.

Deu um passo hesitante, levantando as mãos acima da cabeça, e se virou. A luz do luar perpassou os galhos da árvore e acariciou o cashmere que lhe cobria os braços, tingindo-o de um rosa prateado que lembrava o peito de uma pomba. Lina pulou uma raiz, surpresa com a graça com que seu corpo efetuou o movimento, e circundou o carvalho uma vez.

Uma brisa suave soprou através dos ramos da velha árvore, e as folhas secas entoaram uma suave melodia de outono. Ela levantou os braços e rodopiou enquanto erguia o rosto para o céu e deixava a lua lhe acariciar a pele. A noite se espalhava, linda e mágica, quando circundou a árvore pela segunda vez.

Ficou na ponta de um pé, lançou a perna para a frente, e logo pensou ouvir um zumbido de vozes femininas em harmonia com o ruído das folhas. Pelo canto do olho, percebeu silhuetas familiares se juntando a ela no círculo de dança. Elas cintilavam, e suas asas zuniam melodicamente.

Com os braços estendidos, Lina pulou, girou e se deleitou com a beleza da noite.

E circundou o carvalho pela terceira vez.

Parou. Estava ofegante, e sua respiração se revelava no ar frio como pequenas e mágicas nuvens. Olhou ao redor, porém as ninfas que tinham dançado com ela haviam desaparecido.

Edith Anne se aproximou com seu andar gingado, farejando a base da árvore, curiosa. Pondo as orelhas para a frente, olhou os ramos do carvalho logo acima.

— Elas se foram — explicou Lina. — Vamos, garota... É hora de irmos também.

A dança havia deixado seu corpo mais vivo do que estivera nas últimas duas semanas. Talvez ela devesse dançar mais vezes.

Anton e Dolores também haviam lhe questionado várias vezes sobre o porquê de ela, de repente, ter parado de andar de patins ao longo do rio...

Lina pensou a respeito. Ela nunca havia andado de patins.

Mas Perséfone, obviamente, o fizera muitas vezes. Seus funcionários nem precisariam ter lhe contado isso... Seu corpo diminuíra pelo menos um tamanho, e suas pernas e nádegas se apresentavam bem mais firmes do que quando tinha vinte anos.

Caminhou de volta para o condomínio e, antes que mudasse de ideia, foi direto para casa, arrancou os sapatos e a roupa, e ficou nua diante do espelho que cobria a parede. Parecia bem mais nova do que uma mulher de quarenta anos agora. Exceto pelas manchas escuras sob os olhos, estava com a pele até mais viçosa e saudável. E usava o cabelo como Perséfone usara: nos ombros e com os cachos soltos, meio rebeldes. Seus seios já não eram tão perfeitos e empinados, porém cheios e sensuais. Sua cintura continuava delgada, e os quadris se curvavam graciosamente até as coxas firmes, as quais desciam para pernas bem torneadas.

Sorriu com o pensamento. Ela era bonita, inteligente, sexy e bem-sucedida: tudo o que um homem deveria querer.

— Já é hora de superar sua dor, Lina — disse a si mesma.

Conformada, apagou a luz do banheiro e se enfiou na cama. Sentiu o colchão afundar quando Patchy Poo the Pud se aninhou junto a seu quadril. Como de costume, Edith Anne deu duas voltinhas e, com um suspiro, se acomodou em sua própria cama.

Lina fechou os olhos. Antes de adormecer, fez uma promessa a si mesma. Na manhã seguinte começaria de novo.

Perséfone tinha razão: ela fora ricamente abençoada.


A deusa da Primavera estava distraída quando sentiu sua magia ser utilizada. Tão discretamente quanto lhe foi possível, Perséfone se desculpou e interrompeu a conversa cansativa com Hermes e Afrodite. Os imortais se despediram dela com um aceno e continuaram a debater se as Limoníades, as ninfas dos prados e das flores, eram mais belas do que as Napaeae, ninfas dos vales. Nem se importaram que a jovem deusa estivesse deixando a discussão. Ela era especialista em ninfas da floresta, mas vinha agindo de modo reticente e não tivera nada de divertido a acrescentar sobre o assunto. Na verdade, eles quase não notaram sua partida.

Mas Deméter notou.

— Filha, aonde está indo?

Perséfone fez uma pausa e esboçou uma expressão inocente de tédio antes de se virar para a mãe.

— Ora, mamãe, sabe que eu não suporto ficar trancada aqui enquanto as flores estão desabrochando. Os prados me chamam.

— Está bem, criança. Espero vê-la esta noite no Festival de Chloaia.

— Claro. — Perséfone se curvou e deixou a mãe na sala do trono.

Deméter observou a filha partir com os olhos estreitados, pronta a admitir para si mesma que trocar a mortal por Perséfone fora um erro.

Verdade que seu plano tivera o efeito desejado. A jovem deusa havia amadurecido. Para sua surpresa, continuava a ser chamada de rainha do Submundo, e os familiares dos mortos cessaram com as súplicas.

Mas a que preço? Desde seu retorno, Perséfone vinha se comportando de uma forma mais sóbria. Raramente dava festas e havia parado de se relacionar com semideuses. Mas também andava com o humor instável e distraída. Grande parte de seu brilho tinha esmaecido.

Deméter se preocupou com a filha, assim como com Carolina Francesca Santoro. A mortal parecia ter firmado lugar na consciência da jovem deusa, e aquele não era um arranjo muito confortável.

Suspirou. Não conseguia esquecer a tristeza no rosto de Lina quando Hades a rejeitara. No final, ela havia lhe causado uma ­grande dor, e não fora essa a sua intenção.

Depois começaram aqueles rumores preocupantes. Os imortais diziam a boca pequena que Hades enlouquecera, que não recebia absolutamente ninguém. Fora dito ainda que ele se recusara até mesmo a conceder uma audiência a Zeus, quando este adentrara seu obscuro reino.

— Irene — Deméter chamou sua velha amiga. — Preciso fazer algo a respeito de Hades.

— Outra vez? — perguntou a mulher.

— Outra vez — confirmou a grande deusa.


Por meio do oráculo da mãe, Perséfone assistiu à dança em torno do carvalho e sorriu quando pequenas ninfas se juntaram a Lina. O corpo da moça girava e saltava com uma graça que não era exatamente mortal.

— Seu corpo se lembra — a deusa da Primavera sussurrou para o oráculo. — Ele foi abençoado pela presença de uma deusa e nunca mais será o mesmo.

Assim como ela nunca mais seria a mesma, concluiu em silêncio. Carolina tinha saído de seu corpo, mas havia deixado para trás uma parte de sua essência.

Distraidamente, acariciou o narciso de ametista que lhe pendia entre os seios. A corrente se quebrara, porém ela o mantivera amarrado ao pescoço. Poderia removê-lo e mandar que o consertassem, mas relutava em se separar dele. De alguma forma, o contato com o pingente a acalmava.

Lina concluiu a dança e voltou para casa. Perséfone a viu nua diante do espelho, e seu sorriso espelhou o da mortal. Estava orgulhosa das mudanças que havia operado nela. Ainda se lembrava do ardor nos músculos cansados e da satisfação em ver o corpo da mortal ficar cada dia mais esbelto e flexível, bem aos moldes de uma deusa.

Quando Lina deslizou para a cama, Perséfone quase pôde sentir o corpo quente e macio do gato pressionado de modo familiar contra seu próprio quadril.

A imagem no oráculo rodopiou e desapareceu.

— O que foi, minha filha? Por que você e a mortal estão tão infelizes?

A voz de Deméter a fez pular, cheia de culpa.

— Não — Deméter continuou antes que ela saísse com uma desculpa. — Não quero palavras vazias, destinadas a aliviar os meus sentimentos. Quero a verdade.

Perséfone encontrou os olhos da mãe. Se ela queria a verdade, então que fosse.

— Sinto falta dele, mamãe. Eu não pretendia, mas caí de amores pelo mundo de Lina. É tão desorganizado, mas tão mais vibrante e vivo! E eles não sabiam que eu era uma deusa. Não sabiam que eu era sua filha e, mesmo assim, me receberam de braços abertos.

— Não foi Carolina que eles abraçaram? — Deméter perguntou gentilmente.

— Não. Eu usava seu corpo, mas a alma era minha.

Deméter abanou a cabeça, tristonha.

— Carolina me disse a mesma coisa, mas eu não a ouvi. Creio que foi um erro.

— E se houver uma maneira de corrigir seu erro?

— Desta vez eu gostaria de escutar.

— Ótimo. — Perséfone sorriu com carinho para a mãe. — Eu tenho uma ideia.


Capítulo 27

— Tem certeza de que quer que eu saia mais cedo? Não me importo de ficar — indagou Dolores.

— Não, querida. — Lina acenou com um guardanapo de linho para ela. — Eu insisto. A padaria não está muito cheia, e vamos fechar em trinta minutos. Anton e eu podemos dar conta.

— Bem, se está certa disso... — Dolores comentou, em dúvida.

— Ora, vá embora de uma vez! Lina e eu vamos nos virar bem sozinhos. Acha que eu sou algum incompetente, por acaso? — ­Anton exigiu, irritado.

— Eu nunca o chamei de incompetente... ao menos não na sua frente! — Dolores riu da própria piada.

Anton respondeu no seu melhor sotaque sulista:

— Eu nuuuunca vou ser bonzinho contigo outra vez! — entoou, erguendo o punho no ar.

Lina riu.

— Não acho que Scarlet O’Hara teria usado essas botas.

— Teria se ela fosse gay — ele rebateu, presunçoso.

— Está bem, crianças, já estou saindo. — Dolores abriu a porta, depois hesitou, sorrindo para Lina. — É bom ver você rindo de novo, chefe... — disse, então saiu, apressada, para a noite de Oklahoma.

Surpresa com as palavras da funcionária, Lina olhou para a porta fechada.

— Ela tem razão — reforçou Anton, tocando-a no braço.

— Obrigada — Ela lhe afagou a mão. — É bom rir de novo. — Eles sorriram um para o outro. — Vou começar a fechar aqui. Por que não termina a massa lá nos fundos? Já deve estar boa para ser cortada e colocada nas assadeiras.

Anton concordou e saiu em disparada pelas portas francesas que separavam a cozinha do café.

Lina tirava a placa da pizza del giorno da parede, a fim de alterá-la para a especialidade do dia seguinte, quando a porta da frente foi aberta.

— Só um momento, por favor! — falou, sem nem mesmo se voltar. — Está com sorte... ainda tenho uma pizza do dia sobrando. Três queijos com manjericão, alho e tomates secos.

— É uma das minhas favoritas, mas venho sonhando com uma fatia grossa de gubana quente com manteiga.

Lina congelou. Aquela voz... Ela a conhecia como a sua própria.

Virou-se e se viu mais uma vez atingida pela beleza da deusa da Primavera. Desta vez, contudo, Perséfone vestia calças jeans e uma confortável malha de lã; e tinha os cabelos longos puxados para trás em um grosso rabo de cavalo. Os trajes simples, entretanto, em nada dissipavam sua beleza única.

— Olá, Lina.

— Perséfone...

A deusa sorriu.

— Está aí algo com que podemos contar: reconheceremos uma à outra até no meio de uma multidão.

— Eu... — Lina passou a mão pela testa como se tentando eliminar sua confusão. — Eu não esperava vê-la. É uma surpresa e tanto.

Antes que Perséfone pudesse responder, o sino da porta soou outra vez, e uma mulher bonita e alta adentrou regiamente a padaria.

Perséfone suspirou e olhou por cima do ombro. Deméter escolheu uma mesa perto da vitrine e sentou-se como se estivesse se preparando para deliberar numa corte.

— Imaginei que mamãe me seguiria — a jovem deusa falou com um suspiro.

Anton saiu apressado da cozinha.

— Deus do Céu, quem poderia imaginar que fôssemos ter esse movimento antes de fecharmos?

Como uma pluma, flutuou até a deusa da Colheita.

— Posso lhe servir alguma coisa?

— Vinho. — Deméter levantou uma sobrancelha. — Tinto.

Anton inclinou a cabeça, considerando.

— Que tal um Chianti ?

— Se é uma sugestão de Carolina, eu a acatarei.

— Está certíssima, minha querida... Nossa Lina conhece vinhos como ninguém — ele elogiou. — Mais alguma coisa?

— Anton? — Lina reencontrou a própria voz. — Pode voltar para a massa. Eu mesma atendo as senhoras.

Deméter levantou a mão para silenciá-la.

— Não, não. Estou adorando este... — devolveu o olhar atento do rapaz — ... jovem. Vocês duas precisam conversar. Ele pode perfeitamente me atender.

Anton lançou um olhar satisfeito na direção de Lina.

— Não posso tentá-la com algo mais do que apenas vinho? Temos uma pizza fabulosa! Prometo prepará-la com as minhas próprias mãos.

— Pizza? — A deusa pronunciou a palavra como se fosse uma língua estrangeira.

— Com queijo, tomate, alho, manjericão... É de morrer!

— Então faça-a para mim — Deméter ordenou com um gesto imperioso.

Anton sorriu.

— Qual é o seu nome, querida? — perguntou antes de se afastar. — Não me lembro de ter visto você aqui antes.

Lina abriu a boca, porém Perséfone sacudiu a cabeça de leve, pedindo em silêncio para que ela se mantivesse calma.

— Pode me chamar de Regina Safra — respondeu Deméter.

— Pois, sra. Safra, uma coisa eu lhe digo: em qualquer outra pessoa esse seu traje pareceria um muumuu de seda. Sabe aqueles vestidinhos havaianos? Mas em você parece algo que uma deusa usaria! Está ma-jes-to-sa!

— Claro que estou —Deméter replicou.

— Vou trazer o seu vinho agora mesmo. — Anton rumou para a cozinha, apressado.

Quando passou por Lina e Perséfone, falou em voz baixa:

— Adoro essas coroas ricas!

Perséfone disfarçou o riso com uma tossidela, enquanto Lina fazia uma careta para o funcionário.

— Regina Safra? — ela sussurrou após Anton desaparecer cozinha adentro.

— Mamãe tem um senso de humor excêntrico, principalmente em se tratando de nomes. Sabia que, em algumas línguas, o meu nome soa apenas como “milho”?

— Estou do outro lado do salão, mas não sou surda.

— Eu sei, mamãe... — resmungou Perséfone.

— Perdão, Deméter — Lina se desculpou.

As duas moças compartilharam olhares que se transformaram em sorrisos.

Em seguida, Perséfone olhou pela padaria com estranheza.

— Dolores não está?

— Eu a deixei sair mais cedo.

A deusa da Primavera assentiu.

— Ela trabalha pesado. Merece uma folga.

— É difícil convencê-la a reservar algum tempo para si mesma. — Lina e Perséfone falaram em uníssono.

Entreolharam-se, surpresas.

— Verdade... — as duas disseram em conjunto mais uma vez.

— Aqui está o seu Chianti e um pouco de pão com azeite picante. — Anton colocou a taça de vinho tinto e uma cesta de pães diante de Deméter. — A sua pizza sairá em um instante. — Passou por Lina, cantarolando Shall We Dance de O Rei e Eu , e deu um tchauzinho para Perséfone.

A deusa riu.

— Senti tanta falta de Anton!

— Nossa, ele a impressionou mesmo.

— Parem de perder tempo — Deméter as repreendeu.

— Mamãe! Por favor, beba o seu vinho... Sua pizza ainda tem que assar. Tente ser um pouco mais paciente. — Perséfone suspirou e se virou para Lina. — Ser filha de uma deusa não é fácil.

— E eu não sei? — ela replicou.

— É mesmo... — Perséfone olhou para o balcão e respirou profundamente. — Eu precisava voltar.

A face de Lina era um ponto de interrogação.

— Por quê?

A jovem deusa encontrou seus olhos.

— Não estou feliz. Sinto saudades da minha... da nossa padaria — ela se corrigiu — e também do seu mundo.

Lina olhou para Deméter, esperando que esta fosse reagir às palavras da filha, entretanto a deusa continuou a sorver seu vinho em silêncio.

— Eu não entendo.

— Não há nada de que sinta falta no Submundo? — Perséfone perguntou numa súplica.

— O que está querendo dizer? — Lina endireitou a espinha.

A jovem deusa procurou os olhos da mortal.

— Não podemos mentir uma para a outra.

— Eu não estou tentando mentir para você — murmurou Lina. — É que...

— ... Dói — Perséfone concluiu por ela. — Eu sei. Eu também tentei não pensar sobre tudo o que havia perdido. Achei que seria fácil deixar tudo para trás.

Lina concordou com um gesto de cabeça, lutando para manter as emoções sob controle.

— Eu vou começar. — O sorriso de Perséfone foi melancólico. — Sinto falta da padaria. De sua agitação, eficiência, de seu cheiro e seus ruídos, e de como é um ponto de encontro para tantos tipos diferentes de mortais. Sinto falta de pequenas coisas, por exemplo, de como Tess Miller tem que tomar seu copo de vinho branco precisamente no mesmo horário todos os dias. Sinto falta do cachorrinho dela, apesar de ele ter chocado tanto Tess ao me desprezar que ela ameaçou levá-lo a um psiquiatra de animais! Os bichos não reagem a mim como reagem a você, sabia? — Perséfone franziu a testa enquanto a fitava. — Essa conexão que tem com os animais é muito estranha.

— Sim, eu sei.

— Mas acho que o que mais sinto falta é da maneira como todos me procuravam para resolver seus problemas. Eles nunca me viram como uma ve rsão mais jovem e incompetente da minha mãe. Ninguém corria para ela, depois de eu tomar uma decisão, para verificar se eu estava sendo sensata. Eles me respeitavam e confiavam em meu ponto de vista.

— Demonstrou ter um excelente julgamento, Perséfone — Lina assegurou. — A padaria está prosperando, todos estão felizes... Merda! Conseguiu até devolver meu antigo corpo!

A deusa lançou-lhe um olhar de franca avaliação.

— Seu corpo era um lugar bem confortável para viver, Lina. Não subestime a sua própria beleza. — Sorriu, travessa. — E há outra coisa de que sinto falta: os homens mortais são tão sensíveis!

— Scott — Lina concluiu, seca.

— Scott — ronronou Perséfone. — Foi um namorico e tanto o nosso.

— Ele se apaixonou por você.

— Claro que sim. — A moça encolheu os ombros. — Mas vai superar e se tornar um homem ainda melhor com a experiência. Saber como agradar a uma deusa é algo que todos eles deveriam aprender.

A ideia fez Lina sorrir.

— Sinto falta até mesmo daquelas duas criaturas que moram com você, principalmente do gato — admitiu Perséfone.

Desta vez, Lina riu com vontade.

— Patchy Poo the Pud é terrível, mas uma gracinha.

— É uma praga, isso sim! — a deusa falou, brincando.

Lina concordou.

— Agora é a sua vez... — incitou Perséfone. — Do que sente falta do Submundo?

— Tenho saudades de Eurídice — Lina confessou com apenas uma ligeira hesitação. — A pequena alma era como uma filha para mim. Eu me preocupo com ela.

— E do que mais?

— De Órion. Eu sei que ele devia ser um dos temíveis cavalos de Hades, mas Órion me lembrava mais um filhote de cachorro preto tamanho família.

— E?

— Sinto falta daquele céu incrível. A luz do dia era como uma pintura de aquarela em que alguém tinha soprado vida. Sei que soa irônico, pois estou falando sobre a Terra dos Mortos, mas não era escuro e sombrio lá. Ao menos não depois que você chegou a Elísia. Na verdade, foi o lugar mais incrível em que eu já estive ou imaginei. — Lina deixou a mente vagar. Agora que começara a falar, não queria mais parar. — Sabia que o céu lá é iluminado pelas almas das Híades, de maneira que, quando a noite chega, tudo em Elísia parece um sonho antigo?

— Não — Perséfone respondeu, intrigada.

— E as almas dos mortos não são assustadoras ou repugnantes. São apenas pessoas cujos corpos se tornaram menos importantes. Elas ainda têm a capacidade de amar, rir e chorar.

Perséfone pegou a mão de Lina.

— E do que sente mais falta?

Os olhos de Lina se encheram de lágrimas.

— Hades — ela sussurrou. — Você se apaixonou pela minha vida, e eu, pelo senhor do Submundo.

— Que bom! — Perséfone disse alegremente, apertando sua mão.

— Como isso pode ser bom? Eu amo Hades, mas ele ama a deusa da Primavera, não a mim.

O riso alegre da jovem deusa fez as luzes da padaria parecerem mais intensas.

— Se ele me ama, por que se recusa a me receber?

— Tentou ver Hades?

— Claro que sim. Eu estava infeliz, sentindo muita falta deste mundo. Então comecei a ouvir rumores de que Hades tinha enlouquecido, de que os espíritos do Submundo estavam perdidos, etcetera , etcetera , pois sua rainha havia deixado seus domínios.

— Espere... Hades ficou louco?! — Lina sentiu o sangue abandonar o rosto.

— Ah, não é nada disso. Ele só está de mau humor. — Perséfone fez um gesto de indiferença com a mão. — Mas os rumores me fizeram pensar que talvez eu não estivesse sozinha na minha infelicidade. Então visitei o Submundo.

— E? — Lina teve vontade de sacudi-la, de tão ansiosa.

— E a primeira coisa que aconteceu foi que aquele cão de três cabeças horrível não me deixou passar. — A moça estremeceu. — Edith Anne tem um temperamento muito mais dócil.

— O Cérbero lhe causou problemas?

— Problemas? Ele bloqueou a estrada, roncando e babando. Fiquei apavorada de chegar perto dele. Tanto que tive de pedir ajuda. — Perséfone balançou a cabeça, desgostosa.

— E Hades não veio recebê-la?

A deusa franziu o cenho.

— Um daimon apareceu em seu lugar, montado naquele cavalo preto odioso.

— Órion a tratou mal?

— Ele grudou aquelas orelhas pontudas na cabeça e arreganhou os dentes para mim.

— Eu sinto muito. Eu já repreendi Órion por esse tipo de atitude. Ele deve ter pensado que você era eu, e, quando percebeu que não... Bem, Órion devia ter se comportado melhor de qualquer maneira — Lina ponderou.

— Ah, devia. Enfim, eu disse ao daimon que queria falar com Hades, e ele me perguntou se eu era a deusa da Primavera, ou a mortal, Carolina. Como se já não soubesse! — Perséfone pareceu irritada. — Até mesmo os espíritos dos mortos sabiam. O tempo todo em que estive viajando por aquele caminho sombrio, eles me observavam. A princípio pareciam felizes, então, quando eu falava com eles, apenas tentavam ser educados e se afastavam de mim. Eu até os ouvi sussurrar coisas como: “Alguém está disfarçada de rainha do Submundo!” — Perséfone afastou uma mecha de cabelo que havia escapado do rabo de cavalo. — Foi uma experiência perturbadora, eu garanto. — Fez nova pausa para estudar as unhas bem cuidadas, e Lina teve ímpetos de sacudi-la outra vez. — Eu assegurei ao daimon que o meu corpo e a minha alma eram os mesmos. Em seguida ele desapareceu e, quando voltou, disse que seu senhor se recusava a ver Perséfone. Não bastasse isso, Hades ordenara que eu deixasse seu reino e parasse de incomodá-lo.

— E como isso prova que ele não a ama? Hades é muito ­teimoso. — Lina olhou de soslaio para Deméter, que agora fingia analisar o vinho. Inclinou-se para frente e baixou a voz: — Às vezes dá trabalho fazê-lo relaxar e conversar. Na realidade, Hades é romântico e passional. Precisa tentar de novo. Ele provavelmente vai vê-la na próxima vez.

Lina odiou a si mesma tão logo terminou de proferir as palavras. Sentiu o estômago se apertar. Não queria que Perséfone visse Hades. Não queria que ele visse ninguém, exceto ela própria.

— Pois eu acho que você deveria tentar — disse Perséfone com firmeza.

— Eu? — Ela piscou, surpresa. — Como eu poderia?

— Poderíamos trocar de corpo outra vez. — Perséfone apontou Deméter. — Minha mãe vai nos ajudar. Ela reconhece que seu plano não funcionou exatamente como esperava.

Lina olhou para a deusa, e esta inclinou a cabeça em uma pequena mesura real.

— Minha filha diz a verdade. Eu estava enganada quanto à forma como lidei com a situação.

A cena terrível passada no quarto do palácio invadiu a memória de Lina.

— Fico contente por admitir, mas isso não muda nada.

— Lembra-se, Carolina, quando foi até o meu oráculo, perturbada, porque tinha feito um erro de julgamento? — indagou Deméter.

— Sim, eu tomei uma decisão sem pensar e quase causei muita dor a Eurídice.

— Lembra-se do que eu lhe disse na ocasião?

— Disse que eu devia aprender com o meu erro — murmurou Lina.

— Pois eu bebi do meu próprio veneno. Também não considerei plenamente a minha decisão. E o que aprendi com meu deslize é que mesmo uma deusa pode ser surpreendida por suas filhas. — Deméter contemplou as duas moças com um de seus raros sorrisos, então voltou a atenção para Lina. — Hades estava sendo sincero. Ele sempre foi diferente do restante dos imortais. Creio que o senhor do Submundo realmente se apaixonou por você, Carolina.

— E eu tenho uma proposta — interveio Perséfone. — Você ama Hades. Eu amo a sua padaria e o seu mundo. Por que devemos viver para sempre sem os nossos amores?

— Mas Hades... — Lina começou.

— Ouça-me — Perséfone a interrompeu. — Como deusa da Primavera, devo estar no meu mundo por seis meses. Dessa forma, como você diria, o meu “trabalho” é concluído até a primavera seguinte. Eu poderia vir aqui durante esse intervalo. E, enquanto eu estivesse aqui, você poderia voltar ao Submundo como rainha.

A cabeça de Lina girava.

— Eu fingiria ser a deusa d a Primavera como antes?

— Não. — O sorriso de Perséfone foi enigmático. — Não teria de fingir. Todos, desde os animais até os espíritos, sabiam que eu não era você. Não fingirá, Carolina. Você é a rainha deles. Estará apenas alojada temporariamente no meu corpo, pois preciso do seu aqui. Eu, sim, terei de me fazer passar por outra pessoa.

— Não — falou Lina.

— Por que não? — Perséfone deu um longo suspiro. — Eu lhe dou minha palavra de que dispensarei qualquer Scott antes de voltar.

— Não é isso.

— Então, o que é?

— Hades não me quer, Perséfone. Ele disse que amava a minha alma, e, depois, quando viu o meu verdadeiro eu, me rejeitou.

— Lina, Hades estava apenas surpreso — garantiu Perséfone.

— Você não viu a expressão dele.

— Eu vi — Deméter interrompeu. — E o que li nela foi surpresa e dor, não desprezo ou rejeição.

— Então leu algo que eu não li — Lina concluiu com pesar.

— Creio que esteja cometendo um erro, Carolina — disse Deméter.

— Talvez. Mas e se não estiver? — Ela sentiu a onda de dor que lembrar a rejeição de Hades ainda evocava e piscou, aflita. — Não vou suportar se ele olhar para mim daquele modo outra vez. E, se não olhar, pode até ser pior. Como poderei saber que não é apenas o seu corpo que ele deseja?

— Pode viver o resto da vida sem ele? — Perséfone perguntou com suavidade.

As lágrimas escorreram dos olhos de Lina e deixaram um rastro brilhante em suas faces. — Tenho m edo do que acontecerá à minha alma se ele me rejeitar de novo, ou de que ele me aceite apenas porque quer que eu seja algo que não sou.

— Não tome nenhuma decisão antes de ponderar bem sobre ela — sugeriu Deméter.

— E prometa que vai considerar a minha proposta. O outono acabou de começar aqui. Terá até o primeiro dia da primavera para fazer isso, quando eu voltarei em busca da sua decisão. — Perséfone enxugou uma lágrima do rosto de Lina, então seu sorriso se tornou amargo. Enfiando os dedos sob o decote do suéter, ela tirou a corrente de prata que este ocultava. Sem falar nada, puxou-a por sobre a cabeça. O narciso de ametista capturou as luzes da padaria e cintilou. — Isto lhe pertence — disse, colocando-o com cuidado por sobre a cabeça de Lina. — A corrente se quebrou e foi amarrada, mas eu não a substituí. Está como você a deixou.

— Ah, meu Deus! — Lina deixou escapar um soluço e apertou a flor que tinha sido tão maravilhosamente esculpida para ela. — Pensei que nunca mais fosse ver isto outra vez! Obrigada por tê-la devolvido.

Anton irrompeu pelas portas francesas, assobiando uma canção de Gypsy e trazendo uma bandeja redonda com uma pizza cheirosa e recém-assada. Olhou para Lina e parou.

— Por que está chorando?! — Seus olhos faiscaram ao pousar em Perséfone. — Escute aqui, mocinha, se você a fez chorar, eu...

— Não, Anton, não é nada de ruim! — Lina sorriu entre lágrimas, enxugando o rosto com as costas da mão. — Perséfone me deu este colar, e ele é tão bonito que me fez chorar.

O rapaz relaxou.

— Perséfone? Como a deusa?

— Exatamente — replicou a moça.

— Também não me lembro de tê-la visto aqui antes. Como conheceu a nossa Lina? — ele indagou, intrigado.

Perséfone sorriu.

— Lina me ajud ou a crescer.

Anton pareceu confuso.

— Perséfone — Deméter chamou do outro lado do salão. — Precisamos ir.

— Anton, precisamos levar a pizza para viagem. Ah! Poderia, por favor, adicionar na caixa uma fatia grande de gubana? — pediu a deusa da Primavera.

— É claro! — ele respondeu, solícito. — Sua Majestade deseja mais alguma coisa? — Acenou com um gesto de cabeça na direção da mãe dela.

A moça riu com vontade.

— Apenas a conta, por favor.

— Eu pago — declarou Deméter e, com a dignidade típica de uma deusa, pôs-se de pé e caminhou até onde Anton esperava, na caixa registradora.

— Com o quê? — Lina sussurrou.

Perséfone encolheu os ombros.

— Anton! — interveio Lina, e ele se virou para ela.

— Com estas senhoras aceitaremos permuta. Apenas certifique-se de negociar bem...

Os olhos de Anton se arregalaram.

— Como quiser, patroa. Então, muito bem, minha rainha, o que tem a ofertar pela gubana, a pizza e o vinho?

Deméter ergueu o queixo.

— Eu prefiro o título de deusa. Rainhas têm reinos limitados demais.

— Como quiser, ó, deusa Regina Safra... O que estás a ofertar?

O sorriso de Deméter foi ardiloso.

— Gostaria de um pássaro falante?

— Não, querida. — Anton revirou os olhos. — Já temos animais em demasia circulando por aqui. Tente outra vez.

Perséfone puxou a manga de Lina.

— Deixe-os resolver isso sozinhos... Tenho mais uma pergunta.

— Qual?

— O que fez a Apolo?

— ... Nada — Lina respondeu.

— Nada? — Perséfone repetiu, confusa.

— Coisa nenhuma.

— Você rejeitou o deus da Luz? — A jovem deusa não teve a certeza de ter ouvido bem.

— Claro que sim. Costumo me interessar apenas por um deus de cada vez — ironizou Lina.

— Está falando a sério? — Perséfone segurou o queixo perfeito, pensativa. — Que conceito interessante!

— Vendido por uma coroa de ouro que provavelmente é falsa, mas que eu a-do-rei! — Anton gritou do outro lado, feliz da vida.


Capítulo 28

Hades não conseguia parar de olhar para o desenho que a pequena alma havia lhe dado.

— Gostou? — perguntou Eurídice.

— Como sabia? — A voz dele soou áspera e estranha até para seus próprios ouvidos. Quanto tempo se passara desde que tinha conversado com alguém? Não conseguia se lembrar. — Tenho pensa­do muito em Perséfone — prosseguiu a moça. — Comecei até a sonhar com ela... Mas, quando a vejo em meus sonhos, ela não é mais como era quando estava aqui. É difícil explicar, mas é como se a aparência dela nos meus sonhos fosse a mais correta. Então eu a desenhei dessa forma. Quando mostrei o esboço a Iapis, ele me disse que eu devia trazê-lo a você.

— Espero não ter me excedido, senhor — murmurou Iapis.

Hades continuou sem tirar os olhos do desenho.

— Não, meu velho amigo, não se excedeu. Tinha razão em querer me mostrar. — Ele se obrigou a desviar o olhar do esboço para fitar Eurídice. — Obrigado. Posso ficar com ele?

— É claro, senhor. Tudo o que eu criar será seu.

— Não, pequena alma — Hades respondeu, tristemente. — Qualquer coisa que criar ainda pertence a ela.

— Será que ela vai voltar para nós? — Eurídice perguntou.

O deus olhou para o desenho de Carolina. Suas feições mortais eram doces e gentis, seu corpo, cheio e feminino.

Sentiu uma estranha agitação só de olhar para a imagem e fechou os olhos, bloqueando-a em sua mente. Ele não tivera forças para confiar nela, e, por conta disso, ela quase havia perdido a alma para o Tártaro. Em seguida retornara do abismo apenas para ser traída e ferida por suas palavras duras e impensadas. Ele não merecia seu amor.

— Não — murmurou. — Não acredito que ela voltará para nós.

Eurídice deixou escapar um lamento, e, quando Hades abriu os olhos, viu Iapis tomando-a nos braços.

— Acalme-se — o daimon falou baixinho. — Onde quer que ela esteja, não deve ter se esquecido de você. Ela a amava.

— Deixem-me, por favor — Hades interveio asperamente.

Iapis fez um sinal para Eurídice ir, porém permaneceu nos aposentos de seu senhor. Sua preocupação com o deus era grande. Hades já não andava de um lado para o outro, frustrado. Não descontava sua revolta na forja. Recusava-se a comer e quase nunca dormia. Atendia seus súditos, julgando os mortos como se ele próprio estivesse entre eles, condenado a vagar eternamente pelas margens do Cócito, o rio da Lamentação.

Quando Perséfone tentara visitá-lo, Iapis havia sentido uma ponta de esperança diante da raiva demonstrada por Hades. Mas isso tinha durado pouco. Tão logo a deusa da Primavera deixara o Submundo, Hades se fechara outra vez. O deus não podia continuar como estava, entretanto Iapis não via nenhuma luz no fim do túnel. O tempo parecia inflamar ainda mais a ferida do deus sombrio em vez de curá-la.

— Iapis, você sabe o que acontece quando almas gêmeas são separadas? — Hades perguntou de repente. Estava parado em frente à janela que dava para os jardins adjacentes à floresta de Elísia que acabavam levando ao rio Lete.

— Almas gêmeas sempre se reencontram, o senhor sabe — respondeu o daimon.

— Mas o que acontece se elas não puderem encontrar uma a outra, ou se uma delas fez algo imperdoável? — Ele se virou para olhar o amigo.

— Não consegue perdoá-la, Hades?

O deus piscou e focalizou melhor o rosto de Iapis.

— Eu já a perdoei. Ela estava apenas cumprindo seu juramento a Deméter. O senso de honra de Carolina não lhe permitiria trair sua palavra, nem mesmo por amor. É a mim mesmo que eu não consigo perdoar.

— Como assim, senhor?

— Carolina Francesca Santoro é uma mortal com a coragem de uma deusa, e eu a feri pela mais cretina das razões, apenas para ­salvaguardar meu orgulho. Por isso não posso perdoar a mim mesmo. Assim sendo, como posso esperar isso dela?

— Talvez a situação seja parecida com a noite em que a insultou — lembrou Iapis com calma. — Basta perguntar e se mostrar disposto a ouvir a resposta.

Hades sacudiu a cabeça e se virou para a janela.

— Ela desnudou sua alma para mim, e eu a traí. Agora Carolina está além do meu alcance.

— Mas, se concordasse em ver Perséfone...

— Não! — Hades rosnou. — Não vou receber uma deusa frívola que zomba da alma que residiu em seu corpo.

— Hades, não pode afirmar que a deusa zomba de Carolina!

— O Cérbero a repeliu, Órion a detestou, os mortos a consideraram uma impostora... Isso basta para mim — insistiu o deus.

— Perséfone é uma deusa muito jovem.

— Ela não é Carolina.

— Não, não é — o daimon concordou com tristeza.

— Deixe-me agora — pediu Hades.

— Sim. Mas, antes, permita-me providenciar um banho e roupas limpas para o meu senhor.

Quando Hades começou a protestar, Iapis desabafou:

— Não consigo me lembrar da última vez em que tomou banho ou mudou de roupa. Está pior do que os recém-falecidos!

Os ombros poderosos de Hades caíram.

— Se eu tomar banho e mudar de roupa, vai me deixar em paz? — ele indagou, sem olhar para o daimon.

— Por algum tempo.

Hades quase sorriu.

— Então que assim seja, meu amigo.


Hades se acomodou na água quente da banheira de mármore negro, construída no chão do quarto de banho, e descansou de encontro à borda larga. Uma taça de vinho tinto e uma bandeja de prata cheia de romãs e queijo fora deixada ao seu alcance. As poucas velas acesas brilhavam suavemente em meio ao vapor que subia, tal como o luar em meio à neblina.

Bebeu o vinho com gosto. Não tinha apetite e ignorou a comida, mas o vinho o deixava mais leve. Talvez, apenas naquela noite, ele pudesse beber até esquecer. Quem sabe, assim, poderia dormir sem sonhar com ela.

Em um gole, esvaziou a taça e olhou na lateral, querendo mais. Iapis deixara o jarro perto o suficiente para que ele não tivesse de abandonar o calor reconfortante da banheira.

— Aquele daimon pensa em tudo... — resmungou consigo mesmo.

— Nem tudo.

Hades pulou ao som da voz e deixou cair a taça, que tilintou ao tombar no mármore.

Perséfone soprou o vapor e este se dissipou, tornando-a visível para Hades. Ela também descansava na borda da enorme banheira, à sua frente, e, embora estivesse submersa na água até os ombros, seu corpo nu se encontrava tão à vista como o dele.

Os olhos da deusa se arredondaram com surpresa. Carolina não era nenhuma tola... Ela mesma não fazia ideia de que o sisudo senhor do Submundo fosse tão delicioso.

— Olá, Hades... Não creio que tenhamos sido formalmente apresentados. Sou a deusa Perséfone, da Primavera.

Ele desviou o olhar do dela e saiu da banheira de um salto, vestindo um manto. Perséfone o viu cerrar a mandíbula e, quando o deus falou, foi forçando as palavras por entre os dentes.

— Afaste-se de mim! Eu me recusei a vê-la.

— Eu sei, mas estou com um problema e você é o único deus que pode me ajudar a resolvê-lo, embora Apolo seja definitivamente mais hospitaleiro. E, sem dúvida, ele se mostraria bem mais disposto a me ajudar nesta empreitada em particular... — Ela correu os dedos pela água quente. — Depois de eu ter falado com Lina, entretanto, parece que você é o meu único recurso.

— Apolo! — Hades exclamou com desdém. — O que ele tem a ver com Carolina?

— Nada. Mesmo que ele deseje o contrário.

O restante do que Perséfone dissera finalmente rompeu o choque de Hades.

— Falou com Carolina?

— Sim, falei. Na verdade, acabei de deixar sua padaria — contou a deusa, presunçosa.

Hades prendeu a respiração.

— Ela está bem?

— Em excelente forma, e seu negócio vem prosperando a cada dia.

Ele observou sem ver o vinho que tinha espirrado no chão.

— Que bom. Fico feliz por ela estar...

— Ainda não terminei — Perséfone o interrompeu e, sacudindo os dedos acima da superfície da água, fez chover as gotas sobre ele.

— Então termine de uma vez. — Hades a fulminou com o olhar.

— O que eu ia dizer era que o corpo dela está lindo, seu negócio vai bem, porém Lina continua arrasada.

— Eu... Ela... — O deus começou e depois parou, passando a mão pelo cabelo úmido.

— “Eu... Ela”, o quê? — provocou Perséfone. — Lina me disse que às vezes era difícil fazê-lo relaxar, mas que, se eu fosse obstinada o suficiente, poderia levá-lo a falar.

Hades sentiu que enrubescia, mas estreitou os olhos.

— Ela queria que você falasse comigo? Por quê?

— Ah... Duvido que ela estivesse querendo que nós nos encontrássemos. Só disse isso porque acha que está apaixonado por mim.

Hades bufou.

— Isso é ridículo!

— Obrigada pela gentileza.

— ...Eu não quis ofendê-la — ele se desculpou depressa.

— Eu sei, eu sei. — Perséfone suspirou. Afastou os cabelos do rosto, e um de seus seios despontou por cima da água, o mamilo cor de malva apontando diretamente para ele.

O deus engoliu em seco e desviou o olhar, concentrando-se no prato de frutas e queijo.

— Acho melhor conversarmos no quarto. — Apontou para um armário próximo. — Há roupas ali com as quais poderá se cobrir.

— Espere! — Perséfone chamou antes que ele saísse do banheiro. — Há algo que Lina e eu precisamos saber.

Hades a fitou, tomando o cuidado de manter os olhos focados em seu rosto.

— Fique onde está — prosseguiu a deusa. — Acredito que isso seja muito importante para nós três.

— O que precisa saber? — ele indagou, exasperado.

— Isto... — Perséfone se levantou.

A ág ua quente escorreu por sua pele lisa. As pontas de seus seios estavam rijas como se tivessem acabado de ser acariciadas, e seu corpo continuava tão esguio e extraordinário quanto ele se lembrava.

Hades olhou para a deusa enquanto ela saía lenta e graciosamente da banheira, para depois caminhar, sedutora, em sua ­direção. Quando se aproximou dele, Perséfone parou, ergueu os braços e o enlaçou pelo pescoço. Então apertou o corpo nu contra o dele e o fez colar a boca na sua.

Os lábios do deus tomaram os dela, e ele a abraçou instintivamente.

Mas não sentiu nada. Exceto pela familiaridade com o corpo curvilíneo e a boca quente e macia, Perséfone não o comoveu. Era como se ele segurasse uma estátua maleável. Delicadamente, porém com firmeza, Hades se afastou dela.

Perséfone deixou seus braços de bom grado.

— Então não é este o corpo que você deseja.

— O que eu desejo não mudou, nem vai mudar. Desejo apenas uma mulher na vida, e pouco importa o corpo que ela habita.

Por um instante, Hades pensou ver tristeza nos olhos da jovem deusa, porém esta logo se foi e, quando Perséfone sorriu, seu ar juvenil tinha voltado.

— Bem... Obrigada por nos esclarecer essa dúvida.

— De nada.

Ele buscou um manto no armário, e a deusa o vestiu. Em seguida, apanhou a taça do chão e a jarra de vinho.

— Agora, tudo o que temos de fazer é encontrar uma forma de fazer Lina acreditar nisso — decidiu a moça.

Caminharam para os aposentos de Hades, e Perséfone olhou ao redor.

— Lindo quarto!

— Obrigado. Fique à vontade enquanto vou apanhar outra taça.

Perséfone foi até a janela envolta e m veludo. Puxou de lado a cortina e olhou a vista fantástica, proporcionada pelos jardins escalonados, as estátuas em meio à bem cuidada vegetação, e as milhares e milhares de flores brancas, as quais eram banhadas por uma luz suave e incomum.

— O vinho — anunciou Hades.

Ela se afastou da janela.

— Lina tinha razão quando disse que isto tudo parece um sonho.

As palavras fizeram doer o coração do deus.

— Por que está aqui, Perséfone?

A moça ajeitou o cabelo para trás e sorriu.

— Tenho uma proposta para lhe fazer...

— Eu ainda não entendo como ajudá-la. Carolina recusou a sua proposta! Não pode obrigá-la a essa troca — Hades concluiu enquanto andava de um lado para outro à frente de Perséfone.

Ela levantou uma sobrancelha.

— Não posso?

— Não vai forçá-la. — As palavras de Hades soaram firmes, porém ele sentiu sua resolução enfraquecer. Carolina poderia voltar! Ele poderia tocá-la e conversar com ela novamente... E, sem dúvida, poderia convencê-la de seu amor.

Não, pensou, sacudindo a cabeça. Ela já havia sofrido bastante. Não permitiria que Lina fosse obrigada a fazer algo que ela mesma não acreditava poder suportar.

— Vocês dois são os reis da teimosia! Você se recusa a obrigá-la a vir; ela se recusa a vir de livre e espontânea vontade... — Perséfone suspirou. — Precisa encontrar uma maneira de convencê-la a retornar sem ser forçada, então.

— Como? — Hades quase cuspiu a palavra.

Perséfone caminhou até ele e colocou a mão em seu braço.

— Se precisar de mim, pode me chamar por meio do oráculo de mamãe. — Num impulso, beijou-o no rosto.

Hades acariciou a mão delicada e deu-lhe um sorriso cativante e paternal.

— Perdoe a minha grosseria. Deuses antigos às vezes podem ser caprichosos.

Perséfone sorriu de volta para o deus que era tão obviamente apaixonado por Carolina. — Está perdoado — falou e desapareceu.

A forja ardia com um calor de outro mundo. O suor escorria do corpo de Hades em uníssono com a batida de metal contra metal, porém o deus nem sequer tinha consciência do seu entorno.

Carolina ainda o amava!

Precisava encontrar uma forma de reparar o dano que havia causado, de maneira que ela confiasse nele novamente. Mas como?

— Está parecendo uma velha solteirona, senhor dos Mortos.

Hades virou para identificar a voz sarcástica e precisou apertar os olhos contra a luz ofuscante.

— Apolo! Você e sua luz exagerada não são necessários aqui — ele rugiu.

— Ah, sim, eu sempre me esqueço... — Apolo passou a mão no rosto, e o fulgor que o envolvia desapareceu. — Está melhor assim?

— Não me lembro de tê-lo convidado a vir ao meu reino.

— Eu tinha de vir. Precisava ver como estava a outra metade desse amor desperdiçado.

Hades se encheu de raiva.

— Não está querendo dizer que...

— E o que vejo aqui é bem menos atraente do que a versão mortal — o deus do Sol interrompeu seu discurso.

— De que mortal está falando? — exigiu Hades.

— De Carolina, claro. Sabia que ela me rejeitou? Estava mais interessada nas minhas éguas do que em mim. — Apolo riu. — Enquanto eu achava que ela era Perséfone, suas atitudes me confundiam. Quando descobri que ela era uma mortal no corpo de uma deusa, fiquei estupefato. E, depois, ainda soube que ela havia preferido você a mim... Inacreditável.

Hades estreitou os olhos para o jovem deus.

— Não acho que seja assim, tão surpreendente.

— Pois devia. — Apolo sorriu. — As mortais me acham irresistível.

— Carolina é bem mais exigente do que a maioria das mortais.

— E mais fiel também. Ela já recusou ao menos um homem desde que voltou ao próprio mundo. — Apolo lançou um olhar avaliador na direção de Hades. — E, como ele é apenas um mortal, é definitivamente mais jovem do que você...

— Andou espionando a moça? — Hades rosnou.

— Não foi o que eu disse?

— Não!

— Acho que essa sua choradeira pelo seu amor perdido afetou a sua audição. Lembro-me muito bem de ter dito que...

Em dois passos, Hades alcançou Apolo e agarrou o deus pelo pescoço, erguendo-o do solo.

— Diga-me como pôde vê-la! — trovejou, irado.

— Por meio do oráculo de Deméter, ora! — o jovem deus respondeu, esganado.

Hades deixou cair o deus da Luz e saiu correndo da ferraria.

— Selem Órion! — gritou, ofegante.

Dentro da ferraria, Apolo esfregou o pescoço e alisou as vestes amarrotadas.

— Missão cumprida... Agora está em débito comigo, Deméter — murmurou antes de desaparecer.


Capítulo 29

— É fevereiro, mas parece abril. — Lina suspirou, feliz. — Adoro quando o clima em Oklahoma está assim — disse a Edith Anne, que trotava alegremente a seu lado.

Tinha levado algum tempo para se acostumar com os patins. Não que seu corpo não soubesse o que fazer. Sua mente era que insistia em pensamentos como “Esse chão é muito duro!” ou “Devagar, assim vai cair e quebrar alguma coisa!”

Dessa forma, mesmo após vários meses de prática, Lina ainda patinava devagar, acariciando a calçada de cimento que corria ao longo do rio Arkansas com passadas controladas e cuidadosas.

— À sua esquerda! — Alguém gritou atrás dela, e Lina passou para o lado direito da calçada.

— Obrigada! — gritou quando uma bicicleta de corrida passou voando.

— De nada! — o piloto berrou de volta.

— Eu gosto quando eles fazem isso — Lina falou à buldogue, que mantinha o ritmo a seu lado, na grama que começava a verdejar.

Edith resmungou.

— Fico assustada quando alguém simplesmente passa por nós sem qualquer aviso. Aquele sujeito da bicicleta amarela e enorme quase me derrubou na semana passada! — Ela se abaixou e brincou com a orelha de Edith. A buldogue bufou outra vez e lambeu sua mão. — Acho que eu deveria prestar mais atenção ao redor, ainda mais quando tudo está calmo como nesta noite. Mas ela é sempre tão bonita!

Sorriu. O início da noite era o seu momento favorito para andar de patins. O pôr do sol em Oklahoma costumava ser glorioso e, às vezes, conforme o astro descia sobre o rio Arkansas, sua luz se refletia fora da água numa mistura de rosa e laranja com azul e cinza, lembrando a magia de Elísia.

Mas não a deixava tristonha. O tempo a ajudara nesse ponto. Gostava da lembrança em pequenas doses, pois esta a ajudava a manter o vazio sob controle.

Edith Anne parou para cheirar uma moita particularmente interessante, lotada de ervas daninhas.

— Ei, fique comigo! Se começar a se sujar com lama ou cardos, terá de tomar um banho quando chegarmos em casa.

A cadela ainda resmungou um par de vezes para as ervas daninhas antes de correr atrás dela outra vez.

Lina desacelerou para que Edith a alcançasse, e pensou ouvir cascos de cavalo ao longe.

Interessante , pensou. O tempo devia estar bom o suficiente para que o estábulo à beira do Arkansas tivesse aberto mais cedo. Passeios a cavalo ao longo do rio eram um excelente negócio enquanto o clima ajudava, mas não costumava funcionar antes de abril. Como havia perdido o anúncio no jornal? Normalmente, gostava de postar coisas assim na padaria.

Fez uma anotação mental para ve rificar aquilo no dia seguinte.

Com a buldogue a seu lado outra vez, Lina retomou o ritmo. Já percorrera quase sete quilômetros, sua respiração se mantinha normal e suas pernas continuavam firmes. Estava feliz por ter acrescentado os patins em sua rotina semanal. Não apenas para manter o corpo em forma, mas também para que ele a ajudasse a pensar.

E tinha tanto o que pensar desde a visita de Perséfone!

Merda! Ficara tentada pela proposta da deusa. Como não poderia? Retornar ao Submundo como sua rainha... Não havia nada no mundo de que gostaria mais.

Não , corrigiu-se. O que ela mais gostaria era do que a estava impedindo de aceitar a proposta de Perséfone...

Pensara no assunto incessantemente durante os longos meses de inverno. Pensara até mesmo em telefonar para a avó e lhe pedir conselhos. Sem que esta pensasse que ela fosse se comprometer.

Às vezes achava que Deméter tinha razão, que ela havia cometido um erro.

Mas, então, se lembrava de como Hades se afastara dela no momento em que ela se revelara.

“Saia do meu reino” fora sua sentença ao ver a verdadeira Carolina.

Suspirou. O tempo ajudara a curá-la, mas lembrar as palavras ainda fazia doer sua alma.

E era quase primavera. Perséfone voltaria em breve em busca de uma resposta.

Respirou profundamente e manteve o ritmo enquanto ponderava pela milésima vez qual deveria ser sua decisão. Inconscientemente, tocou o narciso de ametista que trazia sempre pendurado ao pescoço.

Não poderia retornar, mas queria tanto fazer isso! Até sonhava com a volta ao Submundo.

Não poderia, no entanto. Talvez fosse uma covarde, mas não desejava se arriscar. Tinha levado tanto tempo para cicatrizar... Não queria que a ferida se abrisse novamente.

Diria “não” a Perséfone. Talvez a deusa pudesse encontrar outra mortal com que trocar de lugar. A própria Dolores era ativa na Sociedade do Anacronismo Criativo... Provavelmente teria muito interesse em perambular pelo Monte Olimpo e brincar com as ninfas enquanto a jovem deusa assava pães.

O pensamento fez Lina rir. Ela poderia até tirar longas férias e deixar a padaria nas mãos da Dolores / Perséfone. E a Itália era tão linda na primavera!

Enquanto planejava suas férias no velho continente, notou que o ruído de cascos de cavalo vinha se aproximando cada vez mais rápido. Já estava indo para a borda do passeio quando um alegre relinchar cortou o ar.

Seu coração deu um salto ao reconhecê-lo, e ela se virou no exato momento em que uma enorme silhueta negra se avultava sobre ela e um focinho escuro quase colidia com seu rosto. Órion alternou relinchos com bufos, acariciando seus cabelos e ombros.

Em estado de choque, Lina só pôde se agarrar aos arreios do cavalo e esperar que, em seu entusiasmo, ele não a derrubasse.

— Quem se atreve a tocar o temível cavalo de Hades?

As palavras foram as mesmas que ele proferira havia muito tempo, porém seu tom era muito diferente: repleto de amor e saudade.

Lina ergueu o olhar. Hades encontrava-se sentado na sela lustrosa e tinha substituído as roupas arcaicas por uma camisa preta de corte moderno, cujas mangas deixavam à mostra os braços musculosos. Também vestia jeans e as botas típicas dos cowboys de Oklahoma. Os cabelos estavam puxados para trás, e os olhos cintilavam.

Ela o fitou sem nada dizer, sentindo a simples visão do deus reabrir a ferida recém-curada em seu coração. Durante todos aqueles meses obscuros do inverno, ele a deixara sozinha.

E fora tanto tempo... tanta dor.

A súbita onda de raiva a surpreendeu.

Hades tentou sorrir, porém seus lábios tremeram de leve.

— Perguntou quem se atrevia a tocar seu temível cavalo, Hades... — As palavras de Lina soaram entrecortadas pela emoção. — Então permita que eu me reapresente. Sou Carolina Francesca Santoro, uma mortal de meia-idade nascida em Tulsa, Oklahoma, e dona de uma padaria. E eu não me atrevi a tocar o seu temível cavalo. Foi ele quem enfiou o focinho em minhas mãos outra vez.

Hades sentiu as palavras entrando como facas no peito, mas não podia culpá-la por sua revolta. Ele a compreendia.

No entanto, não permitiria que Carolina o fizesse desistir.

Passou a perna por sobre a sela e desmontou. Queria se aproximar dela, erguê-la nos braços... Porém Lina o fitava com um olhar frio, fixo e nada acolhedor.

— Esqueceu-se de um título na sua apresentação, Carolina — pronunciou o nome dela como numa prece.

— Não creio. Sei exatamente quem sou — ela rebateu. Hades não tinha se aproximado dela; mesmo assim, Lina deu um passo para trás.

— Eu também. É Carolina Francesca Santoro, mortal de meia-idade nascida em Tulsa, Oklahoma, dona de uma padaria... e ­rainha do Submundo — ele completou num murmúrio.

Lina sentiu um tremor cortá-la dos pés à cabeça e se agarrou à sua raiva, temendo que, se esta se fosse, seu coração partisse em mil pedaços.

— Sinto muito, senhor. Deve estar confuso. A deusa Perséfone é a rainha do Submundo. Eu era apenas uma substituta temporária, e nem estava à altura do trabalho.

— Seus súditos não pensam assim, Carolina. Ele apontou para Órion, que esticou o pescoço de modo a mordiscar seu ombro enquanto ela lhe acariciava o focinho.

— Os animais sempre gostaram de mim.

Como se para comprovar suas palavras, Edith Anne pulou em suas pernas, contorcendo-se para chamar a atenção. Órion bufou e se curvou para soprar a buldogue.

— Ele me lembra um pouco o Cérbero... — Hades apontou o cachorro atarracado com um gesto de cabeça, tentando sorrir de novo, sem muito sucesso.

— Ele é ela . E ouvi dizer que Edith Anne é mais educada do que o seu Cérbero tem sido ultimamente — observou Lina, mordendo o lábio em seguida. Não deveria conversar com Hades.

— O Cérbero tem faltado com as boas maneiras sem dúvida porque sente a ausência de sua rainha, assim como o resto do Submundo.

— Um cachorro e um cavalo não são vassalos de ninguém. E eu não sou nenhuma rainha. Sou uma mortal. Não tenho nenhum súdito.

Hades voltou à sela de Órion e tirou uma tela enrolada que tinha alojado no pomo.

— Eu trouxe uma coisa para você. Eurídice queria que eu ficasse com isto, mas eu a convenci de que este trabalho lhe pertencia. Ela ainda se vê como a artista particular da deusa da Primavera, embora sinta muito a falta de sua senhora.

— Eu não sou... Não quero... — Lina balbuciou, sentindo uma onda de saudade ao pensar na moça.

Hades se aproximou dela. Nos meses em que haviam ficado separados, Lina se esquecera de seu tamanho. Ele parecia cercá-la por todos os lados.

E, mesmo vestindo roupas modernas, parecia sombrio e devastadoramente bonito.

Seu Batman.

— A pequena alma falou que isto foi um sonho que ela teve com você. E disse que se sentiu bem.

Hades estava tão perto que ela podia sentir o calor de seu corpo.

Sem palavras, Lina tomou a tela de suas mãos. Desenrolou-a e soltou uma exclamação.

— Mas sou eu!

Era ela mesma, a mortal Carolina Francesca Santoro. Seu corpo, seu rosto, seu sorriso... E não Perséfone.

Quando olhou com mais atenção para a imagem que Eurídice havia tirado de um sonho, seus dedos começaram a formigar e, de repente, uma torrente de emoção passou da tela para sua alma. Em meio a esta, ela pôde ouvir as vozes de milhares de mortos. Eles clamavam por ela, pedindo que sua rainha retornasse.

Lina sentiu as mãos tremerem, e a mágoa dentro dela começou a se dissipar.

— Seus súditos a reconhecem e clamam por você, Carolina — Hades falou suavemente.

— Pena que o próprio deus deles não tenha me reconhecido — ela retrucou, sem encará-lo.

— Não há nenhum deus ou senhor aqui... — A voz de Hades falhou, e ele precisou fazer uma pausa antes de continuar. Segurou o queixo de Lina e ergueu seu rosto de forma que ela o fitasse nos olhos. — Esta noite sou apenas um homem que procura desesperadamente por sua alma gêmea. Ela se separou de mim por conta da minha loucura, e eu tinha que perdoar a mim mesmo antes de encontrá-la e pedir que ela... Não chore, minha amada! — pediu, quando lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Lina.

— Você se afastou de mim! — ela acusou em meio a dolorosos soluços. — Quando viu quem eu realmente era, não me quis!

— Não! — Ele a puxou para os braços e a apertou contra o peito. — Eu não lhe dei as costas... Foi o orgulho que incitou as minhas palavras e ações.

— Porque não quis o amor de uma mortal de meia-idade — Lina replicou, a voz abafada de encontro a ele.

A risada de Hades soou como um soluço.

— Não. Foi porque eu estava apavorado em ter perdido a alma para uma mulher que poderia não querer nada mais do que um flerte com um deus inexperiente, sobre o qual ela poderia se gabar.

Lina ergueu os olhos para os dele.

— Eu disse a Deméter que você não havia ficado com qualquer outra deusa porque estava tentando convencê-la de que era diferente.

— Eu sei, minha querida. Perdoe o orgulho de um deus velho e solitário. — Os lábios de Hades finalmente esboçaram um sorriso. — E, por favor, volte para casa.

Em resposta, ela o puxou para um beijo.

— Carolina! — Hades soprou seu nome contra os lábios macios. — Minha alma ardeu tanto por você, minha eterna amada!

Antes que a beijasse novamente, contudo, Órion o cutucou por trás, e a cadela robusta farejou seus pés.

Ele olhou para baixo, fazendo uma careta para os rastros de saliva em suas botas.

— Órion, pare com isso! — ralhou Lina, empurrando a cabeça enorme e negra de lado. — E, Edith Anne, fique quieta! Está estragando as botas novas dele!

Hades jogou a cabeça para trás e riu. Em seguida, ergueu sua rainha nos braços e, pondo-a na sela do garanhão, montou atrás dela com uma vitalidade pouco comum para um mortal.

— Hades! O que está fazendo?

— Tirando-a do alcance desses animais. — Passou um braço em torno de sua cintura e a puxou contra ele.

— Mas, Edit h Anne...

— Não se preocupe. Órion irá devagar. Não vamos perder sua cadela.

Segurando-a com firmeza, ele estalou a língua em sinal para o cavalo. Órion virou a cabeça e bufou, mas começou a andar lentamente, de modo que a buldogue não teve problemas para trotar a seu lado.

O deus voltou sua atenção para Carolina.

— Não temos muito tempo antes que a primavera venha para o seu mundo. Talvez queira me mostrar um pouco desse reino que você chama de Tulsa... — murmurou, acariciando os suaves cachos castanhos que haviam se formado na nuca de Lina.

Na verdade, não estava sendo fácil para ele se conter. Sua vontade era amá-la ali mesmo.

Pensou em como o novo corpo de Carolina era sedutor e feminino. Ela era suave, perfumada e deliciosamente convidativa.

Lina virou-se e sorriu para ele de cenho franzido.

— Conhece o plano de Perséfone?

— Quem não conhece? — ele respondeu, bem-humorado.

— Estou começando a achar que ele pode dar certo... — Ela sorriu.

— Eu também.

Hades se inclinou para reivindicar seus lábios, porém Lina o empurrou de leve.

— Espere um minuto... Não devia estar aqui! Certamente não pode ficar por muito tempo, pois não há ninguém ocupando o seu lugar no Submundo.

— Não. — Ele sorriu para sua rainha, a alma leve. — Mas, às vezes, até mesmo a morte precisa de um descanso.

Quando seus lábios se encontraram, o sol tocava a margem do rio. Fez uma pausa ali e emitiu mais um feixe breve e intenso sobre os amantes antes de desaparecer no horizonte.


Nesta data, Tulsa lamenta o falecimento de uma matriarca local, Carolina Francesca Santoro. Filantropa e restaurateur , a sra. Santoro era também uma conhecida amiga dos animais. Dona Carolina não deixa herdeiros biológicos, contudo sua falta será sentida por muitos que a consideravam como parte da família. Por décadas sua cadeia de padarias Pani Del Dea foi parte vital de muitas comunidades de Oklahoma. Suas unidades são muito conhecidas por sua especialidade, o cream cheese de ambrosia. A receita para este delicioso queijo é um segredo bem guardado há mais de meio século.

Mas não se preocupem, fregueses assíduos da Pani Del Dea. Antes de sua morte, a sra. Santoro compartilhou a receita com uma parente italiana, sua sobrinha-neta Perséfone Libera Santoro, que assumirá a posição de acionista majoritária da Pani Del Dea S.A. A jovem srta. Santoro anunciou que dividirá seu tempo entre Oklahoma e a Itália e, fazendo jus a seu nome, Perséfone passará cada primavera e verão conosco em Tulsa.

Assim, para honrar a memória de sua tia-avó, vamos dar a ela o nosso caloroso “Olá” de Oklahoma!

Tulsa World,

21 de março de 2055

Lina sentia-se um pouco sem fôlego e deslocada, o que era no mínimo irônico. Estava, afinal, vestindo sua própria pele.

— Provavelmente é porque agora sou uma dos recém-falecidos — murmurou consigo mesma, estendendo os braços e olhando com espanto para a luminosidade do próprio corpo, o qual parecia mais substancial do que o dos mortos que costumava ver.

Também ficou contente por este ter assumido uma forma bem mais jovem do que antes de sua morte. Surpresa, percebeu que tinha se materializado no seu corpo de 43 anos e riu.

— A idade em que eu o conheci! — falou, contente.

O túnel se estendia diante dela, negro e sem fim, porém a escuridão não a intimidou, e ela avançou, confiante, sem nem mesmo olhar uma última vez para a luz do mundo mortal que nunca mais vislumbraria.

De repente, uma pequena bola incandescente surgiu acima de seu ombro, e Lina soltou uma exclamação, surpresa.

— O que está fazendo aqui?!

A esfera dançou a seu redor, ondulando tal qual um cachorrinho.

Ela nem precisava ter perguntado. Sabia quem tinha enviado a luz.

— Obrigada, Perséfone! — falou para o vazio.

Caminhou rapidamente através do grupo de lindas árvores-fantasmas, agora conhecidas como o Bosque de Perséfone e, como sempre, admirou a superfície cintilante de suas folhas.

Deixou o arvoredo e piscou, surpresa. Diante dela, a estrada de ônix que levava ao palácio de seu amado se estendia, como de costume, até os portões cor de pérola, mas, desta vez, os portões se encontravam abertos, e, atrás deles, havia uma multidão de silhuetas insubstanciais e incandescentes.

À frente da massa fervilhante estava Hades, tendo Órion a um lado e, do outro, Eurídice e Iapis.

Ao vê-la, o garanhão soltou um relincho estridente de alegria, dando-lhe as boas-vindas. Eurídice cobriu a boca pálida com a mão e, com a outra, acenou alegremente para sua senhora, enquanto lágrimas de felicidade escorriam por seu rosto.

Quando Hades começou a se mover em sua direção, porém, o mundo inteiro de Lina se estreitou, convergindo apenas para ele. O deus caminhou até ela, os olhos sorrindo, cheios de emoção.

Quando parou à sua frente, por fim, estendeu a mão e, num gesto já familiar, acariciou-lhe o rosto.

— Seja bem-vinda, minha amada.

Lina sorriu para sua alma gêmea.

Hades virou-se para encarar a turba. Com a capa revoando às suas costas, ergueu os braços vitoriosamente sobre a cabeça.

— Ela voltou! — gritou, a voz soando como um trovão.

Gritos de louvor erigiram dos mortos, ecoando no Submundo e se espalhando por todo o Olimpo.

— Alegrem-se! Nossa rainha chegou para nunca mais partir!

Em seu trono no Olimpo, Deméter ergueu a própria taça e tocou a de Perséfone em comemoração do final feliz de Carolina Francesca Santoro.

— Muito bem, minhas filhas — murmurou a deusa. — Muito bem.


Descubra o que irá acontecer em


DEUSA DA ROSA


o próximo livro da série

Goddess


Prólogo

Era uma vez, quando os homens ainda acreditavam que havia deuses e deusas na Terra, foi concedido a Hécate, grande Deusa da Noite, domínio sobre os caminhos trilhados pelo homem. A deusa da escuridão levou a sério sua missão, e passou a vigiar não somente as estradas e caminhos dos mortais, como também a proteger o percurso entre os sonhos e a realidade, entre o corpóreo e o etéreo.

Seu domínio era o lugar onde todos os sonhos, e também a magia por eles criada, se originava. Assim, a Deusa da Noite foi denominada Deusa da Magia, e também Deusa das Feras e da Lua Negra.

Sempre vigilante, Hécate convocou uma antiga e monstruosa fera para servi-la. De bom grado, esta jurou ser a guardiã da Deusa e obedecer-lhe às ordens. A criatura era a fusão perfeita entre homem e fera; filho do Titã Cronos, era um ser como nenhum outro. E, como recompensa por sua lealdade, Hécate o presenteou com o coração e a alma de um homem. Embora sua aparência fosse monstruosa, a deusa sentiu-se segura ao lhe confiar a proteção da fronteira dos caminhos que conduzem ao mundo mágico.

Este lugar foi batizado de Reino das Rosas, e aquelas que ali serviam a deusa foram chamadas de Sacerdotisas do Sangue. Durante séculos, o Guardião permaneceu fiel, seguindo os ditames de sua missão sagrada, pois era tão honrado quanto influente, e tão sábio quanto poderoso. Até um dia de Beltane 1. ...

O Guardião conhecia o seu dever. Mas, Céus! , até mesmo um protetor podia se cansar... E não cometera nenhum deslize por crueldade ou ganância. Seu único erro fora amar sem reservas. Mas ele quebrara a confiança de sua deusa e, em um rompante de raiva, Hécate lançara um feitiço sobre ele e sobre o Reino das Rosas: o reino não teria mais nenhuma Alta Sacerdotisa, e o Guardião dormiria eternamente, a menos que fosse despertado por uma mulher que carregasse o sangue mágico das Sacerdotisas de Hécate e fosse sábia o suficiente para enxergar a verdade, e compassível o bastante para passar por cima dela...

E, assim, o Reino das Rosas se desesperou, e o Guardião adormeceu enquanto sua deusa esperava.


Parte 1

Capítulo 1

— Andei tendo aqueles sonhos de novo.

Nelly se ajeitou na cadeira e deu a Mikki um de seus olhares mais clínicos.

— Gostaria de me contar sobre eles? – Nelly perguntou.

Mikki desviou o olhar da amiga. Será que ela gostaria de compartilhá-lo? Descruzou e tornou a cruzar as pernas longas, passou a mão nervosamente pelos cabelos e tentou se acomodar na poltrona.

— Antes de eu responder a essa pergunta, quero que responda a uma minha.

— É justo — concordou Nelly.

— Se eu lhe contar os meus sonhos, como vai ouvi-los? Como minha amiga ou como minha psiquiatra?

A médica riu.

— Por favor, Mikki! Estamos em uma lanchonete, não em meu consultório! Você não está pagando cento e vinte dólares por hora para eu ficar sentada aqui com você. E não vamos nos esquecer: — Ela se inclinou para a frente e exagerou no sussurro. — É minha amiga há anos, mas nunca foi minha paciente!

— É verdade. Mas não por falta de assunto.

— Ah, sem dúvida — Nelly concordou com sarcasmo. — E então? Vai me contar sobre os sonhos, ou terei de usar meus truques de psiquiatra para dissuadi-la?

— Tudo menos isso! — Mikki levantou as mãos como para se defender de um ataque. Encolheu os ombros. — Eles são iguais aos outros.

Nelly ergueu as sobrancelhas significativamente.

— Está bem! — Mikki suspirou e revirou os olhos. — Talvez tenham mudado um pouco.

— Consegue ver o rosto dele agora? — a outra moça perguntou, gentil.

— Quase. — Mikki fixou o olhar em um ponto qualquer da aconchegante lareira de tijolos. — Na verdade, acho até que vi seu rosto desta vez, mas...

— Mas?

— Eu estava tão preocupada que não consegui me concentrar nele — ela elaborou, apressada.

— Preocupada?

Mikki parou de olhar para a lareira e encontrou os olhos da amiga.

— Preocupada em ter o sonho mais erótico da minha vida! Não dei a mínima para o rosto dele.

— Ora, ora, ora — Nelly comentou surpresa. — Não me lembro de ter falado em sexo nos outros sonhos. Agora estou realmente interessada nessa história.

— Isso porque eles não... ou talvez eu... Ah, não sei. Por alguma razão, os sonhos estão mudando. — Ela se esforçou para descrever o que estava acontecendo. — Estou dizendo, Nelly, os sonhos estão ficando cada v ez mais reais.

O brilho de diversão deixou os olhos escuros da outra moça, substituído pela preocupação.

— Diga-me, querida. O que está acontecendo?

— Quanto mais realistas ficam esses sonhos, menos a minha vida parece real.

— Conte-me sobre esse último, então.

Em vez de responder de imediato, Mikki rodou uma mecha do cabelo cor de cobre no dedo e sorveu um gole do cappuccino . Ela e Nelly eram amigas fazia anos. Tinham se conhecido no hospital onde ambas trabalhavam, e haviam se tornado confidentes no mesmo instante.

Na aparência, possuíam pouca coisa em comum. Nelly era morena e esguia, de uma beleza exótica, herança do sangue haitiano da mãe. E devia ser ao menos uns vinte centímetros mais alta do que ela, calculou Mikki. Ao contrário dela que, além de clara, era cheia de curvas e um tanto comum.

A despeito de suas diferenças, contudo, não existia nenhum tipo de ciúme entre elas. E, desde que tinham se conhecido, apreciavam uma a outra por suas singularidades. Era uma amizade sólida, baseada na confiança e no respeito mútuo. E Mikki não fazia ideia do motivo pelo qual se encontrava tão hesitante em contar seus sonhos a Nelly. Principalmente o último.

— Mikki?

— Não sei por onde começar — mentiu.

Nelly esboçou um sorriso e tomou um gole do cappuccino , e mordiscou um biscoito de chocolate.

— Leve o tempo que quiser. Todos os bons psiquiatras têm uma coisa em comum...

— Eu sei, eu sei. Vocês são pacientes até demais!

— Isso mesmo.

Mikki brincou com a caneca de café. Precisava exorcizar aquele sonho de uma vez. Aquilo estava ficando estranho demais. Era como se houvesse sido hipnotizada... ou seduzida.

Continuou, entretanto, sem falar nada. Não apenas porque tinha dúvidas quanto a revelar os detalhes do sonho em voz alta, como também porque parte dela temia que a amiga, uma excelente psiquiatra, fosse proferir alguma palavra mágica que a curasse . Não tinha certeza se queria aquilo.

— Ei, sou eu! — Nelly incitou suavemente. Ela deu-lhe um sorriso apertado e respirou fundo.

— Está bem. Esse começou igual aos outros. — Cutucou o esmalte da unha, nervosa.

— Quer dizer na cama de dossel?

— Na mesma cama de dossel enorme, no quarto enorme — ela reforçou. — O lugar era o mesmo, só que não estava tão escuro como antes. Desta vez a luz entrava por uma parede inteira de janelas. — Mikki buscou a palavra. — Eram painéis de vidro verticais... Sabe o que eu quero dizer?
Nelly assentiu.

— Janelas quadriculadas?

— Quase isso. Bem, independente de como elas são chamadas, eu as notei, desta vez, porque deixavam entrar alguma luz. — Seu olhar continuou preso às chamas que queimavam, alegres, enquanto revivia o sonho. — Era uma luz suave, rosada, como a do amanhecer... Enfim, eu despertei — continuou, deixando escapar uma risadinha nervosa. — Foi estranho ter sido acordada de um sonho em outro sonho, mas eu acordei. Estava de bruços e sentia alguém escovando os meus cabelos. Uma delícia. E, fosse quem fosse, usava uma daquelas escovas grandes, de cerdas m acias. — Sorriu para a amiga. — Você sabe... Não há coisa mais gostosa do que alguém lhe escovando os cabelos.

— Concordo, mas ter o cabelo escovado não é assim tão sexy .

— Ei, já faz algum tempo, mas sei muito bem que escovar os cabelos não tem a ver com sexo! Não cheguei nessa parte ainda... Só estou contando como fiquei relaxada e feliz por conta disso — explicou Mikki, lançando a Nelly um olhar impaciente.

— Desculpe interromper. Basta fingir que não estou aqui.

— Isso é coisa de psiquiatra?

— Não. Só estou querendo ouvir a parte do sexo, caramba!

Mikki riu.

— Nesse caso, terei prazer em continuar. Vamos ver... Eu estava tão relaxada que me sentia flutuando. Foi bizarro. Senti a alma leve, como se esta estivesse deixando meu corpo... Então tudo começou a ficar muito louco.

— Como assim, “muito louco”?

— Bem, senti uma lufada de vento. Foi como se ela houvesse me pegado e me levado para algum lugar, mas não o meu corpo; apenas o meu espírito. A sensação foi de... purificação. Isso me assustou, e eu abri os olhos. Estava de volta no meu corpo, só que no meio do roseiral mais incrível que já tinha visto ou imaginado na vida. — Sua voz perdeu qualquer indício de dúvida quando passou a descrever a cena. — Foi de tirar o fôlego. Estava cercada por rosas! E das minhas favoritas: Prazer em Dobro, Chrysler Imperial, Cary Grant, Prata Esterlina... — Ela suspirou, feliz.

— Nenhuma rosa Mikado?

A pergunta de Nelly a trouxe de volta à realidade.

— Não, não vi nenhuma rosa homônima minha. — Aprumou-se, lançando à amiga um olhar irritado. — E não acho que isso esteja acontecendo porque minha mãe decidiu me dar o nome de sua rosa favorita.

Nelly fez um gesto conciliatório com a mão.

— Mikki — falou, pronunciando o apelido de forma clara, como se quisesse apagar o nome “Mikado” do ar —, precisa admitir que o fato de essas rosas aparecerem em todos os seus sonhos é muito estranho.

— Por quê? Sou voluntária no Roseiral Municipal e cultivo minhas próprias rosas. Por que uma parte integrante da minha vida não deveria figurar nos meus sonhos?

— Está certa. As rosas são uma parte importante da sua vida, assim como eram na de sua mãe e...

— ... na da minha avó. E na da minha bisavó.

Nelly sorriu, aquiescendo.

— Sabe que eu acho esse seu hobby encantador e morro de ciúme da sua capacidade de cultivar aquelas rosas maravilhosas.

— Sinto muito. Eu não devia ter sido tão indelicada. Acho que é a falta de sono.

— Não tem dormido direito? — A preocupação sombreou a expressão de Nelly.

— Não, não... — Mikki negou rapidamente. — Apenas ando levando muito trabalho para casa e ficando acordada até tarde. Por favor, não me pergunte mais nada sobre isso! , pensou, lançando um olhar tenso na direção da amiga enquanto mexia o capuccino e tomava um gole. Nelly não precisava saber que sua exaustão nada tinha a ver com falta de sono ou muito trabalho.

Tudo o que desejava era escapar daquele mundo de sonhos e dormir. O pior era que, apesar de nunca mais ter se sentido completamente descansada depois de ter ingressado naquele mundo de fantasias, ainda se via compelida a retornar para ele todas as noites.

— Mikki?

— Onde eu estava mesmo? — Ela se atrapalhou.

— No belo jardim de rosas.

— Ah, sim...

— E as coisas estavam ficando muito loucas.

— Isso mesmo. — Mikki voltou a olhar para a lareira. — Por algum tempo, eu apenas caminhei entre as rosas, tocando cada uma delas e apreciando sua beleza. Havia acertado no palpite: era de manhã cedo, o ar estava fresco e as flores ainda se encontravam respingadas com orvalho; como se tudo tivesse acabado de ser lavado. O jardim era circular, e as rosas e seus canteiros formavam uma espécie de labirinto. Fiquei andando por ali, apenas me divertindo.

Seu sorriso oscilou, e ela fez uma pausa antes de iniciar a parte seguinte do sonho. Pôde sentir as faces ganhando cor e desviou o olhar para encontrar o olhar curioso da amiga.

— Não me diga que está envergonhada! — provocou Nelly.

— Mais ou menos. — Mikki esboçou um breve sorriso.

— Mikki, você e eu fizemos depilação à brasileira juntas, esqueceu? E na mesma sala! Supere logo essa coisa e me dê mais detalhes. Se mesmo assim falhar, lembre-se... — Nelly deu mais uma mordida no biscoito e continuou com a boca cheia: —... Sou uma profissional.

— Prefiro não me lembrar — murmurou Mikki antes de respirar fundo. — Pois, então. Estou no roseiral e, de repente, sinto a presença dele . Eu não conseguia vê-lo, mas sabia que ele estava atrás de mim. — Umedeceu os lábios e, inconscientemente, levou a mão à garganta, os dedos acariciando a pele sensível na base do pescoço enquanto falava. — Comecei a andar
mais rápido porque, a princípio, senti que deveria me manter distante... Mas logo tudo mudou. Eu podia ouvi-lo atrás de mim conforme ele ia se aproximando. E ele não estava tentando se esconder. Seus ruídos eram assustadores, quase selvagens. Era como se eu estivesse sendo caçada por uma fera.

Tentou fazer a respiração voltar ao normal, embora sentisse o corpo formigar com uma onda de calor. Surpresa, percebeu uma gota de suor escorrendo entre os seios.

— Estava com medo? — Nelly perguntou.

— Não. Nem um pouco. Na verdade, estava excitada — ela respondeu tão baixo que a amiga se inclinou a fim de escutá-la melhor. — Eu queria que ele me pegasse. Quando eu corria, era só para provocá-lo; e eu queria muito fazer isso.

— Nossa! — a outra moça exclamou com um suspiro.

— Eu avisei... E o sonho fica ainda melhor.

— Oba. — Nelly mastigou outro biscoito.

— Eu corria nua e ria. O vento parecia meu amante conforme soprava no meu corpo. Eu me deliciava com cada gemido, cada rosnado, cada grunhido feito pela coisa que me perseguia. E queria ser apanhada, mas não até que ele estivesse muito, muito ansioso por me agarrar.

— Pelo amor de Deus, não pare por aí! Ele pegou você ou não?

Mikki tornou-se introspectiva, e seus olhos se voltaram para o fogo mais uma vez.

— Sim e não. Como eu disse, eu estava correndo, e ele me perseguia. Cheguei a um canto do labirinto e me virei... — Seus lábios se apertaram e em seguida se curvaram em um sorriso travesso. — Então tropecei e caí em um buraco. Quando bati no fundo, devia ter me machucado, mas minha queda foi amortecida por pétalas. Eu tinha caído em um poço cheio de pétalas de rosa! E devia haver milhares delas lá. Seu perfume preenchia o ar, e elas acariciaram o meu corpo. Cada centímetro da minha pele ganhou vida em meio a tanta suavidade... E depois as mãos dele substituíram as rosas. — Respirou fundo. — Não eram macias. Eram ásperas, fortes e exigentes. O contraste entre as duas sensações foi incrível. Ele acariciou o meu corpo nu, desde os meus seios, passando pela minha barriga e coxas... Exatamente como eu gostaria que me tocasse. Foi como se ele tivesse entrado nas minhas fantasias e conhecesse todos os meus desejos secretos.

Mikki fez uma pausa para afastar um de fio de cabelo do rosto. Sentiu a mão tremer, mas, não querendo que Nelly notasse, apressou-se em continuar com a narrativa.

— Estava mais escuro no poço do que no jardim, e minha visão parecia meio turva, quase como se o perfume das pétalas esmagadas houvesse criado uma névoa. Eu não podia vê-lo, mas, onde quer que ele me tocasse eu pegava fogo. Antes disso, em todos os meus sonhos, podia sentir sua presença como se ele fosse um ser irreal, um fantasma ou uma sombra. Eu pressentia sua presença, mas até então ele nunca havia me perseguido ou posto a mão em mim. E eu jamais o tinha tocado também. Mas, naquele poço de rosas, tudo mudou. Podia sentir suas mãos na minha pele e também podia acariciá-lo... A certa altura, eu o puxei para mim, e ele... — Mikki engoliu em seco e fechou os olhos com a lembrança. — Ele era forte e incrivelmente grande. Corri as mãos por seus ombros e braços e percebi que seus músculos eram como pedra. Foi quando senti algo diferente.

Engoliu, tentando aplacar a súbita secura na garganta. Deveria contar a Nelly? Deveria revelar aquilo a alguém?

Enquanto se lembrava, foi quase como se estivesse lá outra vez; naquele poço de sensações e fragrâncias. Suas mãos tinham se deslocado até uma massa espessa de cabelo. Tivera a intenção de segurá-lo pelo rosto, de abrir os olhos e vê-lo enfim.

Mas encontrara os chifres. A criatura que acariciava seu corpo, levando-o a uma excitação que nunca experimentara na vida possuía chifres! Não. Não podia contar aquilo a Nelly. Era absurdo demais. Sua amiga iria achar que estava ficando maluca.

— Ele usava um traje esquisito — murmurou em vez disso, nervosa. — Uma espécie de armadura cobrindo o peito, não sei. E foi incrivelmente erótico: aqueles músculos rijos cobertos pelo couro... Eu o senti e acariciei, então ele mergulhou o rosto nos meus cabelos, aqui. — Fechando os olhos, puxou uma massa de cachos avermelhados para a frente e afundou a mão neles, perto da orelha direita. — A partir desse ponto foi fácil eu escutar cada som que ele fazia. Quando eu o afagava, ele gemia ao meu ouvido; só que não era bem um gemido. Ao menos não o gemido de um ser humano... Era um rosnado baixo e profundo, que não parava nunca. — Ela franziu o cenho. — Isso devia ter me assustado. Eu devia ter gritado e lutado ou, no mínimo, ficado petrificada, paralisada de medo. Mas não queria ficar longe dele. E aquele som terrível, animalesco e maravilhoso me excitou ainda mais. Senti que iria morrer se não pudesse tê-lo por inteiro. Quando arqueei o corpo, consegui sentir sua ereção, e ele começou a se esfregar em mim... — Engoliu de novo. — Foi então que falou, e sua voz soou diferente de tudo o que já ouvi: uma voz meio de homem, meio de bicho. E era tão profunda que foi quase como se eu pudesse escutá-la também com a mente.

— E o que ele disse? — Nelly incitou, meio sem fôlego, quando ela parou de falar.

— Murmurou em meu ouvido algo como: “Nós não podemos. Eu não posso. Isto não pode acontecer!”. Mas eu não parei. Sentia o desejo dele nas palavras tanto quanto no que tinha no meio das pernas... Implorei a ele que não parasse enquanto me agarrava àquela armadura. Queria arrancá-la; eu o queria nu contra mim... Mas era tarde demais. Eu já estava gozando, e tudo o que podia fazer era colocar as pernas em volta dele conforme o meu corpo explodia. — Mikki respirou fundo. — Foi o orgasmo que me acordou.

Capítulo 18

Lina sentiu-se como um gatinho bem alimentado, com o ­corpo naquele ponto maravilhoso entre o relax e a satisfação. Cada pedacinho de estresse fora massageado para fora de seus músculos. Sua pele se encontrava tão incrivelmente macia que, enquanto ela se esticava na chaise e mordiscava sementes de romã, passava os dedos, distraída, por toda a pele, a qual parecia sussurrar de prazer.

— Juventude, beleza e o poder de uma deusa... Perséfone tem tudo isso — murmurou, para depois olhar em volta, preocupada.

Não. Estava sozinha, assim como tinha pedido.

Após o banho e aquela fabulosa massagem com óleo, Eurídice a vestira com uma linda camisola branca e cintilante, e ela se aninhara junto à espreguiçadeira. Quando a pequena alma lhe perguntara se havia qualquer outra coisa de que ela precisava, ela respondera, sonolenta, que sua única vontade no momento era se deitar na chaise longue , beber ambrosia e comer romãs. E, depois, simplesmente dormir.

Eurídice batera palmas, como uma daquelas diretoras enérgicas dos colégios para meninas, e praticamente enxotara as pobres criadas da varanda, anunciando que Perséfone necessitava de privacidade.

E então, para a surpresa de Lina, a pequena alma havia deixado o quarto atrás das servas, alegando ter um encontro com Iapis onde trabalhariam em seus esboços preliminares do palácio... Mas prometera levar aquilo que completassem para sua aprovação na manhã seguinte.

Iapis e Eurídice novamente.

Lina puxou uma mecha dos cabelos longos e a girou em torno do dedo. Se não estivesse enganada, o interesse do daimon pela moça não era apenas amigável.

Talvez ela devesse falar com Hades a respeito.

Hades...

Pensar no deus trouxe a inquietação que borbulhava sob sua pele para a superfície, e ela serviu-se de outra taça de ambrosia. O que estava acontecendo com ele? Por que desaparecera de repente? Hades tinha deixado muito claro que estava interessado nela, e até a havia beijado.

Beijado uma ova . Ele a prendera contra a parede e a acariciara inteira!

Lembrar sua paixão a fez estremecer. Hades era a ­personificação do perigo. O Batman vivo.

Umedeceu os lábios secos e pôde jurar que ainda sentia o gosto dele.

Ou talvez fosse apenas a ambrosia. Ambos eram deliciosos.

Fechou os olhos, permitindo que seus próprios dedos a percorressem pescoço abaixo e roçassem os mamilos já intumescidos.

Soltou um gemido.

Merda!

O corpo de Perséfone era jovem, ágil e...

Abriu os olhos.

— ... Muito, muito excitável — falou em voz alta. — Ou talvez seja mais o meu do que o dela. Ou uma combinação do que acontece quando uma mulher de quarenta e três anos de idade que não faz sexo há, ela parou e contou, quase três anos é colocada no corpo de uma deusa jovem, em idade de casar. E depois ainda é tentada pelo sósia do Batman! — completou, frustrada. — Chega, Lina! Hora de se mexer.

Ela se levantou rápido demais e sentiu-se leve e com os joelhos fracos. A ambrosia tinha lhe subido à cabeça.

Bem como a outros pontos sensíveis.

Seus lábios se torceram num sorriso, e um calor aqueceu-lhe as faces.

Céus! , ela estava mal... Tentara até mesmo a chuveirada fria, e, definitivamente, esta não funcionara como ela havia planejado.

Suspirou e passou o dedo pelo mármore liso da balaustrada, pensando na ideia que Eurídice fazia de um chuveiro. Tinha sido uma experiência inesquecível que, no entanto, nada fizera para dissipar suas fantasias com o deus do Submundo. Na verdade, só havia piorado a situação. Seu corpo fora mimado, lavado, massageado, alisado... E agora ela se sentia como uma concubina preparada para o sultão.

Mas em que parte do inferno se encontrava o sultão?, ela se indagou, rindo da própria escolha de palavras.

Sacudiu a cabeça e revirou os olhos.

— Você bebeu ambrosia demais!

Pôs a taça meio vazia sobre o parapeito e começou, cambaleante, a descer a escadaria circular que ia até a base do palácio. Daria uma boa caminhada pelo jardim. Isso poderia lhe clarear as ideias e deixá-la com sono o suficiente para que ela se lembrasse de que a cama era um lugar para dormir mais do que para fazer sexo selvagem e suado com um deus belo e sombrio.

Envolta pela névoa de ambrosia, Lina seguiu caminho para o primeiro nível dos jardins do palácio. Quando chegou à entrada, ficou imóvel, totalmente imersa na visão mágica das tochas acesas. O Submundo era um lugar tão lindo! O céu continuara a escurecer, mas não era negro como na noite do Mundo Superior. Em vez disso, era de um cinza da cor da ardósia, iluminado por várias estrelas, cada uma delas aureolada com cores iridescentes que a lembravam o perolado de uma concha. O céu incomum fazia tudo parecer mergulhado numa escuridão suave, como se aquela parte do Submundo fosse um sonho bom.

— Essas estrelas são as coisas mais bonitas que eu já vi — disse para o céu em voz baixa.

— São as Híades.

Hades pareceu se materializar das sombras do jardim, e ela levou a mão ao pescoço, sentindo o coração bater ali.

— Você me assustou!

— Eu não queria fazer isso, mas estava pensando em você e, quando ouvi a sua voz, quis me aproximar.

Lina mordeu o lábio e tentou limpar a mente anuviada pelo vinho. Ele estava usando aquela maldita capa outra vez. Pior: tinha trocado o traje volumoso que usava de costume por outro, muito mais revelador. Havia escolhido se vestir de preto outra vez, mas na forma de uma túnica de couro curta, que parecia ter sido moldada para o seu peito e que terminava em painéis sobre os quadris. Por debaixo, vestia uma malha pregueada da cor de nuvens carregadas, que lhe deixava à mostra quase todos os músculos das pernas.

Lina se obrigou a erguer os olhos e encará-lo. Hades a fitava com tanta intensidade que ela sentiu os membros formigar.

— Eu também estava pensando em você. Estou feliz por estar aqui — disse e se obrigou a respirar enquanto ele se aproximava tal qual um felino.

Seu corpo era como uma fornalha, refletiu Lina. Podia sentir o calor que irradiava dele.

O deus tomou-lhe a mão, levou-a lentamente até a boca, e foi como se seus lábios a marcassem.

Hades não a soltou. Em vez disso, traçou em sua pele um caminho circular com o polegar.

O vento frio levou seu cheiro até Lina. Hades cheirava a noite, a couro... a homem. O perfume erótico e perigoso fez seu estômago se apertar e a fez pensar em peles suadas, escorregadias e nuas.

Sem refletir, ela respirou fundo e se recostou nele. Os olhos de Hades faiscaram, e a brisa, provocante, fez voar sua capa, que subiu atrás dele como um par de asas.

Lina se viu submersa na intensidade de seu olhar. Podia sentir sua paixão se inflamando. Aquele Hades não era apenas o deus inteligente e sexy que ela conhecera. Era o ser que a possuíra naquela ferraria. Ele se avultava sobre ela, poderoso, imortal, sedutor, atraente, irresistível... e um pouco assustador.

Mesmo assim, ela o queria. A presença do deus era magnética, porém sua alma mortal ainda lutou para manter algum controle.

Lina obrigou a mente a trabalhar, a se agarrar a alguma coisa; qualquer coisa que pudesse dizer a ele.

— Disse que as estrelas são as Híades? Eu não compreendo — conseguiu balbuciar por fim.

Ele tirou os olhos dos dela para fitar o céu noturno.

— Não entende porque as conhece apenas como as ninfas brilhantes que elas são no Mundo Superior. O que a maioria dos imortais não sabe é que um grupo de Híades da floresta se cansou das suas funções terrenas e implorou a Zeus para que ele as tornasse mortais. Assim, elas poderiam morrer e se livrar do fardo da imortalidade.

A voz dele era tão profunda e hipnótica como seus olhos, concluiu Lina, fitando-o, extasiada, enquanto ele narrava sua história. Hades era como uma chama que atraia sua alma inexoravelmente.

Batman. Era mesmo como o Batman.

E, com ambrosia na cabeça ou não, que mulher sensata não teria fantasias com o super-herói?

— Zeus concedeu às Híades seu desejo e, naquela mesma noite, elas adentraram o meu reino. Fiquei tão comovido com a iridescência de suas almas que comentei que sua grande beleza poderia iluminar Elísia inteira. As ninfas ficaram fascinadas com a minha ideia e vieram me fazer um pedido. Com o aval de Zeus, eu lhes concedi essa prerrogativa, e elas têm iluminado o céu noturno do Submundo desde então.

Lina obrigou os olhos a desviarem do atraente deus para olhar as estrelas que, na realidade, eram os espíritos das ninfas.

— O que está fazendo aqui, Perséfone?

A emoção na voz de Hades a fez segurar o ar nos pulmões e tornar a encará-lo. O que tinha acontecido com ele naquela noite? Como podia parecer tão poderoso e, ao mesmo tempo, tão vulnerável?

Balançou a cabeça e deu a única resposta que podia:

— Eu bebi muita ambrosia e pensei que um passeio pelo jardim ajudaria a me manter sóbria.

Hades a encarou por mais um momento, então piscou, passou a mão pelo cabelo e soltou outro longo suspiro. Devagar, as linhas tensas em seu rosto começaram a relaxar.

— Ambrosia demais? Pois, para mim, isso faz muito bem. Deixa a cabeça mais leve e os joelhos fracos.

Aliviada por ele parecer normal, Lina sorriu.

— Fico feliz em saber que não sou a única a ter essa reação.

— Uma caminhada ajuda realmente. — Hades devolveu-lhe o sorriso e se curvou, galante. — Eu ficaria honrado se me permitisse acompanhá-la.

Era o seu Hades arrojado outra vez.

Lina sorriu, fez uma reverência... e percebeu que estava vestindo apenas uma camisola de seda fina.

Engoliu em seco.

— Eu, ahn... Parece que não estou agasalhada o suficiente para um passeio noturno.

Os olhos de Hades brilharam ao percorrer o corpo coberto de seda, deixando seu rosto corado. Em um movimento fluido, ele soltou a capa e, tal qual um toureiro, girou-a para cobrir-lhe os ombros.

— Está melhor assim?

Abrigada em seu cheiro e calor, ela pôde apenas assentir em silêncio.

— Quer dizer que posso acompanhá-la?

— Claro.

Hades sorriu e a fez passar o braço pelo dele. Então a conduziu lentamente pelos jardins cobertos pela noite.

Não falaram mais. Apenas se habituaram à presença um do outro. Hades escolheu um caminho largo, que dividia os jardins, e Lina olhou ao redor, admirada. A suavidade incomum da noite do Submundo lançava um brilho mágico sobre as flores e sebes adormecidas e, apesar de muitos dos botões se encontrarem fechados, estes ainda pontilhavam de branco a paisagem.

— Ainda não me decidi se as acho mais bonitas durante o dia, enquanto estão em plena floração, ou como agora. Parecem crianças dormindo... — ela comentou, estendendo o braço para tocar um lírio branco.

Ao seu toque, a flor desabrochou completamente, e Lina reprimiu um grito. Tinha que se lembrar que era a deusa da Primavera. Não deveria ficar surpresa quando fazia brotar uma flor!

— Pronto. Agora pode decidir — Hades falou, divertido.

Lina franziu a testa.

— Não, eu não quero desgastá-las. — Pensou por um momento antes de acenar para o lírio. — Volte a dormir — ordenou.

Com um som muito parecido com um suspiro, a flor se fechou.

Lina voltou-se para Hades e o viu olhando para ela com uma expressão que não conseguiu interpretar. Antes que pudesse perguntar o que estava errado, ele pegou sua mão, a mesma que tinha tocado a flor, e, virando a palma para cima, levou-a aos lábios.

O toque quente fez o estômago de Lina se contrair. Céus! , ela queria que ele beijasse muito mais do que apenas sua mão...

Cedo demais, Hades a soltou.

— É uma deusa muito generosa.

Ela não era Perséfone, porém Hades a fazia sentir-se como se ela fosse uma deusa realmente.

Em vez de passar o braço pelo dele outra vez, Lina entrelaçou a mão na dele, e seus lábios trêmulos se curvaram num sorriso satisfeito.

Hades apertou seus dedos, e eles retomaram a caminhada.

— Eu gostaria de lhe mostrar uma coisa — ele falou de repente. — Algo muito importante para mim.

Lina o fitou, e seus olhos se encontraram brevemente. Então o deus desviou o olhar, e ela notou a linha tensa em seu maxilar.

— Se é importante para você, eu adoraria ver.

Hades relaxou e apertou sua mão outra vez.

— É por aqui...

O primeiro patamar do jardim chegou ao fim, e ele a fez descer a escada para o segundo nível. Mais cedo, naquele mesmo dia, quando ela viera colher néctar, não conseguira prestar muita atenção a nada, exceto em obter o líquido pegajoso.

Teria gostado de parar para observar as fontes e a coleção de estátuas, mas o deus apertou o passo. Obviamente, estava ansioso por chegar ao que desejava mostrar a ela.

Com a curiosidade aguçada, Lina correu para alcançá-lo.

No terceiro nível, Hades escolheu um caminho que bifurcava à sua direita e fazia algumas curvas em “S” para a lateral ­daquele jardim. Pouco a pouco, os jardins bem cuidados deram lugar a grandes pinheiros, e seu aroma acentuado a fez lembrar-se de férias e repouso.

— Adoro o cheiro dos pinheiros!

Em vez de responder, Hades pressionou um dedo contra seus lábios.

— Sshh! Eles não podem saber que estamos aqui.

Lina ia perguntar o que ele queria dizer com aquilo, porém o deus apontou para um aglomerado de pedras.

— Precisamos esperar ali atrás.

Intrigada e completamente confusa, ela permitiu que ele a puxasse para o lado enquanto se agachavam atrás das rochas pontiagudas.

— O que está acontecendo? — indagou, preocupada.

Hades mudou de posição, de modo a enxergar por cima da pedra mais próxima, e gesticulou para que ela fizesse o mesmo.

Lina olhou por cima da rocha. Do outro lado, a terra descia, íngreme até chegar à margem de um rio.

Piscou várias vezes para se certificar de que seus olhos não a estavam enganando, contudo a água continuava a mesma, brilhando como diamante líquido sob a luz mágica da noite do Submundo. Tudo estava muito quieto em torno deles, e Lina pôde ouvir a voz do rio, que ria e cantava palavras em uma língua estranha. Não entendeu o que dizia, mas o som era fascinante, e ela sentiu um súbito desejo de correr pela margem, entrar na água e imergir naquele riso contagiante.

A mão firme de Hades segurou-lhe o ombro, e seus lábios quase tocaram sua orelha enquanto ele falava baixinho:

— Não dê ouvidos ao chamado do rio.

Lina se concentrou na voz do deus e sentiu amenizado seu fascínio.

— Eu devia ter lhe avisado. O chamado do Lete pode ser muito forte. — A respiração de Hades era quente, e Lina se recostou nele.

Hades mudou de posição, colocou o braço sobre seus ombros e a puxou para a sua frente, para que ela pudesse descansar quase intimamente em seu colo.

Lina se moveu para trás, de encontro ao peito largo, e inclinou a cabeça para que ele pudesse captar seus sussurros.

— Este é o Lete, o rio do Esquecimento?

Sentiu que ele acenava com um gesto de cabeça e olhou para o rio, incrédula. Então aquele era o famoso rio que fazia as almas esquecerem suas vidas anteriores e as preparava para nascer de novo.

— Isso era tão importante para você?

— De certa forma — Hades sussurrou. — Mas há mais.

— Por que temos de ficar tão quietos?

— Os espíritos não podem saber que estamos aqui. Nossa presença seria uma distração. Para isso os mortos não precisam de nós.

Lina sentiu uma onda de excitação e procurou as margens do rio.

— Não vejo nenhum morto.

— Espere e olhe bem.

Ela se recostou no peito largo, e o deus a envolveu nos braços com firmeza. Era tão bom ficar perto dele! Um aroma de pinho pairava no ar, mesclando-se com o perfume inebriante e másculo de Hades.

Uma vez que ela não mais sintonizava com o apelo irresistível do Lete, a voz deste se tornou alegre e melódica.

Lina sentiu-se imersa em uma experiência sensorial inacreditável. Seu corpo inteiro estava excitado e ultrassensível. A mão do deus descansou em seu antebraço, e seu polegar lhe traçou círculos preguiçosos na pele. Ela estremeceu sob o toque.

— Minha capa não a está aquecendo? — Hades murmurou, a respiração morna contra seu ouvido. — Está com frio?

Ela balançou a cabeça negativamente e se virou nos braços fortes para ver seu rosto. Ele a envolvia por inteiro. Seu corpo era rijo, forte, e ele irradiava calor através do couro da túnica.

Seus braços a rodearam, então. Lina abriu a boca para dizer que era o seu toque que a fazia tremer daquela maneira e que...

— Ali! — O sussurro de Hades foi urgente. Ele se inclinou para a frente, movendo-a com ele. Apontou, e os olhos dela seguiram seu dedo.

Duas figuras se aproximavam do rio, no lado oposto. Conforme chegavam mais perto, Lina percebeu que elas estavam de mãos dadas. A água brilhante refletiu em seus corpos, mostrando serem um homem e uma mulher de idade. Eles se moviam lentamente, permitindo que seus ombros e quadris roçassem uns nos outros. A cada passo ou dois, o homem erguia a mão enrugada da mulher até os lábios e a mantinha lá enquanto ela o fitava com ternura.

Lina sentiu-se pouco à vontade espionando-os, mas ficou encantada com a adoração que demonstravam um pelo outro.

Por fim, o casal chegou à beira do rio e se entreolhou. O homem descansou as mãos sobre os ombros da mulher.

— Tem certeza? — Tinha a voz rachada pela idade e pela emoção, porém esta ainda era audível do outro lado do rio.

— Tenho, meu amor. Chegou a hora, mas nos encontraremos de novo — afirmou com segurança.

— Eu sempre confiei em você. Não vou duvidar de você agora — replicou ele.

Ao ver o homem puxar a esposa suavemente para seus braços e beijá-la, Lina sentiu os olhos se encherem de lágrimas e piscou depressa, querendo manter o foco. O casal terminou seu abraço e depois, com as mãos ainda unidas, eles se ajoelharam ao lado do rio, inclinaram-se e beberam da água cristalina.

No mesmo momento, seus corpos começaram a brilhar. Seus cabelos e roupas chicoteavam descontroladamente como se tivessem sido apanhados em uma lufada de vento.

Então começaram a mudar.

Lina engasgou enquanto observava os anos deixando o casal. Sua aparência mudou da velhice para a meia-idade, em seguida para a fase adulta, depois para a juventude, e, finalmente, os dois resplandeceram com a vibração da adolescência.

A metamorfose cessou e, atordoados, eles se entreolharam.

Em seguida, o homem jogou a cabeça para trás e gritou com alegria. Mais uma vez, puxou a mulher para os braços e ela pulou em seu colo, rindo e chorando ao mesmo tempo.

As lágrimas escorreram dos olhos de Lina. Eles deviam ser daquele jeito quando tinham se apaixonado.

Enquanto o casal se abraçava, seus corpos se tornaram cada vez mais brilhantes, até que ela precisou usar a mão para proteger os olhos contra a luz que deles emanava.

De repente, eles explodiram tal como duas estrelas, e foram caindo em uma chuva de faíscas sobre a água. A partir do centro de cada explosão, dois pontos de luz do tamanho de um punho fechado se formaram. Pairaram sobre as águas, adaptando-se aos seus novos sentidos, então se puseram a flutuar correnteza abaixo, como se carregados por uma brisa própria.

Lina ficou olhando para eles. As duas esferas de luz permaneciam juntas e tão próximas que, conforme se afastavam, parecia não haver mais distinção entre elas. O rio fazia uma curva para a esquerda, e as luzes o seguiram, desaparecendo de vista.

Ela enxugou os olhos, fungando.

— O que vai acontecer a eles? — perguntou com voz embargada.

— O que viu é a aparência das almas depois que todas as lembranças e todo o vínculo com os corpos são removidos. Os espíritos seguirão o Lete até a sua nascente. Lá eles renascerão como crianças para viver novas vidas — explicou Hades.

Lina virou-se em seu colo para encará-lo.

— Mas eles vão ficar juntos outra vez? Se eles renascem como novas pessoas, sem nenhuma lembrança de suas vidas anteriores, como podem se reencontrar?

— Almas gêmeas sempre se reencontram. Não precisa chorar por elas... A mulher falou a verdade: eles vão ficar juntos novamente.

— Promete? — A voz de Lina tremeu de emoção.

— Prometo, meu anjo. Prometo.

Devagar, e lutando contra eras de solidão, Hades envolveu com as mãos o rosto à sua frente e tomou uma decisão: tinha que tentar. Estaria perdido se não o fizesse.

Fitou-a nos olhos com o coração aos saltos e, respirando fundo, deixou os polegares enxugarem o resto das lágrimas da deusa.

— Era o que eu queria lhe mostrar e dividir com você, Perséfone: o vínculo que existe entre almas gêmeas. Sei que jamais vai se esquecer do que testemunhou aqui. O que viu pode até mudá-la, assim como me mudou.

Delicadamente, ele se inclinou para ela. Primeiro beijou-lhe as pálpebras fechadas, uma a uma, então colou a boca na sua.

O beijo começou doce e hesitante, mas, quando as mãos de Lina deslizaram ao redor de seus ombros, e ela abriu os lábios para aceitá-lo, Hades o aprofundou com fervor.

Perséfone estava ali, era uma realidade em seus braços. Desta vez ele não precisava imaginar que a tocava e a saboreava.

O desejo por ela, que ainda não fora verdadeiramente saciado, brotou dentro dele. Com um gemido de prazer, as línguas se encontraram. Perséfone estava lânguida e quente, e tinha gosto de ambrosia.

Hades deslizou as mãos para dentro da capa que a cobria, e estas encontraram sua cintura. Acariciou-lhe a curva dos quadris e, obedecendo às suas fantasias, mergulhou os dedos na seda de seus cabelos.

Percebeu a respiração dela se acelerar ao percorrer de cima a baixo o comprimento de suas coxas. A fina camisola de seda não representava quase nenhuma barreira.

Perséfone virou-se em seu abraço, de maneira que seu membro rijo ficou pressionado contra a curva de suas nádegas benfeitas.

Hades deixou escapar um som baixo e selvagem do fundo da garganta. Como vivera tanto tempo sem ela? Desejava-a com um fogo que o queimava vivo!

Sua mão viajou de volta para a curva tentadora da cintura delgada e continuou a subir, sentindo a perfeição da lateral de um seio. Em sua mente, ele vislumbrou outra vez os mamilos intumescidos e molhados com água e óleo. Com a ponta dos dedos, encontrou o botão macio e o acariciou através da seda fina.

Perséfone soltou uma exclamação. O som penetrou a névoa de luxúria que embaçava o cérebro de Hades e o fez recuar. A capa tinha sido deixada de lado, e a deusa estava praticamente sobre ele, tremendo, exposta, com os cabelos desgrenhados e os lábios vermelhos e inchados depois de seus beijos.

Por todos os deuses, o que havia de errado com ele? ­Perdera o controle sobre si mesmo? Não queria que acontecesse daquela maneira. Até mesmo um idiota inexperiente sabia que não deveria amar uma deusa no meio de uma floresta.

Soltando uma imprecação, ele se pôs de pé. Perséfone estava com pedaços de pinhas e sujeiras na camisola, e pareceu-lhe dolorosamente jovem e sedutora ao fitá-lo com um sorriso confuso nos lábios sensuais.

Hades se encheu de vergonha. Ainda queria deitá-la no chão e amá-la ali mesmo.

Balbuciando desculpas incoerentes, limpou as folhas dos pinheiros que tinham se apegado às suas vestes.

Lina suspirou. A força da paixão do deus despertara nela um desejo tão intenso, tão feroz, que chegava a ser assustador. Ao observar a luxúria se esvair do rosto de Hades e ser substituída por uma expressão que poderia ser raiva ou vergonha, ela controlou a respiração e se obrigou a raciocinar. Nunca tivera um deus por amante, mas não era nenhuma virgem, e, portanto, não devia reagir como uma.

— Não tive a intenção de trazê-la aqui para... — Ele balançou a cabeça, desgostoso, e continuou a limpar seu vestido — ... para amá-la como um bicho.

Não estava zangado, Lina percebeu com alívio, e sim, constrangido.

— Hades... — Segurou sua mão e a puxou até que os olhares se encontrassem. — Pare com isso. Eu estou bem. O que aconteceu?

— Uma deusa merece mais do que uma contenda no chão.

O sorriso dela foi lento e sensual.

— Não posso falar por outras deusas, mas eu estava gostando da contenda... — Tocou a veste de couro que ele usava. Ainda podia sentir o calor que emanava dele. — E eu não estava no chão... Estava praticamente sentada no seu colo.

Hades soltou um suspiro, e a expressão preocupada em seus olhos o fez parecer décadas mais velho. Com delicadeza, ele a tocou no rosto, e sua voz saiu rouca com as emoções contidas:

— É verdade que eu não a trouxe aqui para seduzi-la, mas descobri que não consigo manter o meu pensamento longe de você... nem minhas mãos. Que os deuses me ajudem, Perséfone, mas eu a desejo mais do que qualquer outra coisa — ele concluiu, ofegante.

— Então que os deuses ajudem a nós dois, Hades — ela emendou, rouca.

Quando seus lábios se encontraram, Lina se recusou a pensar em Deméter e no futuro.

Hades interrompeu o beijo suavemente, enquanto ainda era capaz de se controlar. Ela era tão macia e se mostrava tão receptiva! Que Perséfone o desejava, isso era evidente, porém ele queria mais do que possuir seu corpo. Queria sua alma.

Num gesto carinhoso, ajeitou a capa sobre seus ombros e a fez passar o braço pelo dele.

— A noite está esfriando. É melhor voltamos para o palácio. — Tirou-lhe uma mecha de cabelo do rosto, ciente da decepção nos olhos da deusa.

Bom , pensou. Queria que Perséfone desejasse e ansiasse por mais do que apenas seu corpo.

Ele a conduziu de volta ao caminho que os levaria ao palácio.

Os pensamentos de Lina fervilhavam. Sentia o corpo ainda ardendo, e sua sensibilidade aumentada, de alguma forma, se fundira com a incrível beleza da cena que tinha testemunhado entre aqueles dois companheiros de alma. A devoção pungente entre os amantes ficara gravada nela.

Sentiu a pulsação firme de Hades sob os dedos. Ele a trouxera até ali para testemunhar o renascimento das almas gêmeas, mas não usara isso como uma arma de sedução. Se essa tivesse sido sua intenção, ele poderia tê-la tomado lá mesmo, no chão.

Mas, não. Hades, pelo visto, queria mais dela do que apenas sexo.

Sua alma vibrou quando um alarme soou em sua mente.

Amor. Ele havia lhe mostrado sua ideia de amor.

Hades já não dissera que acreditava que os mortais sabiam amar melhor do que os deuses? Será que os deuses também possuíam almas gêmeas?

Ela não fazia ideia. Tudo o que sabia sobre imortais tinha lido sem a mínima atenção, décadas antes.

O que se lembrava bem era que os deuses antigos eram volúveis e que descartavam amantes a seu bel-prazer.

Isso, contudo, não condizia com o deus que caminhava a seu lado.

Fitou o perfil sombrio. Quem acreditaria que ela havia encontrado tal desejo e romance na Terra dos Mortos?

Como se pressentisse seu escrutínio, Hades olhou para ela, e seus lábios se curvaram num sorriso.

— Parece que tem muitas perguntas borbulhando na cabeça... Eu já lhe dei permissão para me perguntar qualquer coisa, e prometo que, daqui por diante, me lembrarei das boas maneiras e não insultarei minha convidada.

Lina sentiu-se corar. Desejava que aquela escuridão de sonho escondesse a cor em seu rosto.

Ela havia se esquecido por completo de repreendê-lo por sua retirada estratégica. Parecia ter acontecido séculos antes, e com duas pessoas totalmente diferentes.

Inclinou-se para ele, adorando a sensação do braço forte no seu, e a forma como ele também se curvava para ela, atento.

— O que assisti esta noite foi algo mágico — murmurou, comovida.

— Sim. O tipo mais perfeito de magia: a que é criada pela alma e não inventada pelos deuses.

— Os deuses não possuem almas gêmeas?

— Não. — Hades suspirou. — Almas mortais encontram seus pares naturalmente; não exigem a interferência do Olimpo.

As palavras trouxeram outra dúvida para Lina.

— Os mortos podem se apaixonar? — ela quis saber, pensando nos olhares tímidos que Eurídice começara a lançar para Iapis. — Ou apenas almas gêmeas têm a capacidade de amar após a morte?

— Você mesma pode responder a essa pergunta, Perséfone.

Lina o fitou, atenta. Entretanto o tom de Hades era educativo e não paternalista.

— Pense, minha deusa. Do que é que gosta? Do corpo ou da alma? — ele incitou.

— Se está falando em amor de verdade, e não apenas em desejo ou paixão, eu teria de dizer a alma.

O deus aquiesceu.

— O corpo é apenas um manto, uma cobertura temporária para a nossa verdadeira essência.

— Então as almas que habitam Elísia, ou mesmo seu palácio, podem se apaixonar?

— Qualquer um dos mortos pode encontrar um novo amor. — Hades franziu o cenho. — Mas, deve saber, nem todas as almas são capazes dessa emoção.

— Está falando de almas mortais ou das almas dos deuses?

Ele parou de andar e se virou para encará-la. Estavam em pé, muito próximos, e a mão dela ainda repousava em seu braço.

Hesitou antes de responder à pergunta. Então seus dedos roçaram a face delicada numa carícia já familiar para Lina.

— Não posso falar pelos outros deuses, apenas por mim. Minha alma anseia por uma companhia eterna. — Ele se inclinou e roçou os lábios nos seus. Em seguida, fez um gesto para o espaço logo atrás dela. — Parece que estamos de volta ao lugar em que começamos.

Lina olhou por cima do ombro e piscou, surpresa. Estavam parados na beirada da trilha que levava à varanda.

Sem falar, Hades envolveu-lhe o rosto com as mãos num gesto delicado, e Lina imaginou que o beijo fosse ser doce e breve.

Quando seus lábios se encontraram, contudo, percebeu que havia se enganado. Ele não teve pressa em saboreá-la, mergulhando os dedos em seus cabelos fartos e acariciando a base sensível de seu pescoço.

Ela correu as mãos pelos braços longos, mais uma vez impressionada com sua força.

Hades mordiscou seu lábio inferior antes de terminar o beijo. Sem soltá-la, falou de encontro à sua boca:

— Vai cavalgar comigo amanhã? — indagou, a voz rouca de desejo.

Com o coração disparado, Lina anuiu.

— Sim.

— Até amanhã, então. — Ele a soltou, relutante, e tirou outro fio de cabelo de seu rosto. Fez uma reverência, virou-se e se afastou.

Lina subiu os degraus da varanda e entrou no quarto com as pernas trêmulas. Conforme se largava na cama, avistou o próprio reflexo no espelho sobre a penteadeira, do outro lado do cômodo. Tinha as faces coradas e os cabelos desgrenhados. A capa de Hades havia se acumulado em torno de sua cintura, e a camisola transparente estava suja, com várias folhas de pinheiro pendendo da barra.

E, mesmo longe do espelho, pôde ver o contorno de seus mamilos intumescidos.

— Misericordioso Madre di Dio! — disse, usando a frase mais enfática de sua avó. — Você tem 43 anos de idade! E não se sentia assim desde... desde nunca! — Sacudiu a cabeça diante daquela imagem jovem e estranha de si mesma. — Nenhum homem jamais a fez se sentir como Hades... E ele quer amor eterno! — Fechou os olhos com força. — Oh, Deméter, o que eu vou fazer?


Capítulo 19

— Querida, você é uma verdadeira artista! — Lina estudou o desenho a carvão feito no pergaminho. Havia esperado que o mapa de Eurídice fosse um desenho tosco, mas, quando a pequena alma desenrolou o papel, ficou impressionada com a qualidade do trabalho. O projeto do palácio fora traçado em linhas fortes e claras, com cada setor nomeado em uma linda caligrafia.

O que mais a impressionou, porém, foi a forma meticulosa com que Eurídice havia simbolizado cada parte da construção. Para indicar a sala de jantar, reproduzira uma miniatura da linda mesa com os candelabros. O Salão Nobre fora adornado com um altar, sobre o qual ela desenhara o trono de Hades. Tinha esboçado até o pátio cheio de flores e a fonte maciça em seu centro.

— Gostou mesmo? — Eurídice perguntou, ofegante. — Não está pronto. Ainda precisa de muitos retoques, na verdade.

— Pois eu adorei. Sempre foi boa desenhista?

O rosto da moça se iluminou.

— Sim! Quero dizer... não exatamente. Meu pai não achava que desenho fosse um bom passatempo para uma moça; nem mesmo um hobby . Mesmo assim, eu costumava desenhar em segredo. Fazia o esboço de flores em áreas secas do chão com uma varinha, mergulhava uma pena de pássaro nos corantes da minha mãe e desenhava animais em trapos. — Ela sorriu para Lina, travessa. — Meu pai ficaria louco se descobrisse.

— Pois eu acho que ser artista é um passatempo perfeito para uma mulher, e eu lhe dou carta branca para desenhar quanto quiser — Lina afirmou.

— Muito obrigada, Perséfone! — A moça pulou de alegria. — Mal posso esperar para contar a Iapis. Ele também falou que eu desenhava bem e que me arrumaria outros materiais se eu quisesse continuar desenhando.

— É mesmo? — Lina ergueu as sobrancelhas sugestivamente.

O rosto já rosado de Eurídice assumiu um tom vermelho.

— Sim. Eu pensei que ele estivesse apenas sendo gentil, pois é sempre assim, mas, se você também concorda com ele, então deve ser verdade.

— Diga a Iapis que eu mandei enchê-la com materiais. Acaba de ser nomeada a artista particular da deusa da Primavera. — Lina levantou a mão regiamente a fim de tornar o anúncio oficial.

Os olhos de Eurídice se arregalaram. Num impulso, ela jogou os braços ao seu redor, abraçando-a com força.

— Você é a deusa mais maravilhosa do mundo!

Lina riu.

— Essa é exatamente a opinião que espero da minha artista particular.

— Precisa me dar uma tarefa. O que gostaria que eu desenhasse?

— Não deveria terminar o mapa primeiro?

— Isso será feito em breve. O que quer que eu desenhe? — ­perguntou, ansiosa.

Lina pensou por um momento, então sorriu.

— O narciso está se tornando a minha flor favorita... Por que não desenha um bem grande e bonito?

O rosto de Eurídice resplandecia quando ela fez uma profunda reverência para sua senhora.

— A artista está às suas ordens, deusa da Primavera.

Lina inclinou a cabeça como uma deusa, congratulando-se por ter deixado a pequena alma tão feliz.

— Vou tentar ser paciente e esperar por seu primeiro trabalho.

A pequena alma quase se esqueceu da mesura.

— Céus! A minha primeira incumbência! — exclamou, emocionada.

Duas batidas firmes soaram contra a porta do quarto de Lina. Eurídice praticamente dançava ao abri-la.

— Iapis! — Ela sorriu. — Perséfone declarou que eu sou sua artista particular!

Lina observou o daimon, atenta. Sua expressão foi calorosa e sincera ao parabenizar a moça, e seus olhos não deixaram o rosto delicado um só momento. Sua avó diria que ele estava com todo o jeito de um homem prestes a se apaixonar perdidamente.

Lina percebeu Eurídice tocando o braço do daimon duas vezes enquanto, animada, contava a novidade. A linguagem corporal da menina dizia, sem dúvida, que ela correspondia ao interesse de Iapis.

Menina não, corrigiu-se Lina. Tinha que parar de pensar em Eurídice como uma criança. Ela era uma mulher que já fora, inclusive, infeliz no casamento.

E pensar que seu atual corpo não parecia muito mais velho do que o dela!

— Senhora, posso elogiá-la por seu bom gosto em se tratando de artistas? — Iapis indagou, galante.

Eurídice pairava a seu lado, sorrindo.

— Obrigada, Iapis. Mas parece que estamos apenas começando a descobrir os talentos de Eurídice...

O daimon sorriu com carinho para a moça.

— Sou obrigado a concordar plenamente — respondeu, antes de se inclinar para Lina, discreto. — Hades espera pela senhora no estábulo. Ele pediu que eu a avisasse de que Órion encontra-se impaciente.

O estômago dela se contraiu à simples menção do deus.

— Ainda bem que estou pronta, então. Eu não gostaria de deixar um de seus temíveis cavalos esperando.

— Eles me assustam — declarou Eurídice.

— Basta enxergá-los como cães de grande porte — sugeriu Lina, e a pequena alma e o daimon tiveram que se apressar para segui-la quando ela começou a andar rapidamente pelo corredor e pelo pátio, plenamente consciente de que agora era ela quem parecia flutuar de alegria.

— Aproveitou seu banho de ontem à noite, senhora? — Iapis perguntou.

Lina ficou feliz por estar andando à sua frente. Sabia que sua expressão daria mostras de como a noite anterior tinha se tornado satisfatória.

— Sim, foi uma delícia. Obrigada.

— Perséfone disse que dormiu muito bem — acrescentou Eurídice, travessa.

Lina sorriu. Ela dormira envolta na capa de Hades, mergulhada em sonhos eróticos e sensuais.

— É bom saber — o daimon falou à moça com um suspiro. — Ainda mais depois da noite agitada que meu senhor teve. Hades não pregou os olhos.

— Devia ter lhe providenciado um bom banho, como fiz com Perséfone — comentou Eurídice.

Lina apertou o passo, deixando que a brisa suave que soprava no pátio lhe esfriasse as faces coradas. Já se sentia como uma mola contraída e pronta para se expandir. Decididamente, não precisava começar a visualizar o corpo nu de Hades sendo banhado e coberto de óleo.

Passou quase correndo pela fonte central e as lindas esculturas, e suspirou, aliviada, quando chegou aos portões de ferro forjado por fim.

— Acho que vou ficar aqui, Perséfone — Eurídice falou atrás dela, apontando para um pequeno canteiro de narcisos. — Assim posso fazer um primeiro esboço enquanto cavalga na companhia de Hades.

— E eu ainda preciso arrumar outros materiais para a sua desenhista particular — emendou Iapis, sem nunca deixar os olhos de Eurídice.

— Comportem-se vocês dois... Estarei de volta em breve — ­declarou Lina.

O casal se despediu dela de bom grado.

Quando ela olhou para trás, apenas alguns passos depois, viu os dois juntos. O riso de menina de Eurídice foi seguido por uma gostosa risada do daimon.

Lina suspirou. Precisava conversar com Hades sobre eles. Iapis parecia um bom rapaz, se essa era a expressão certa com que se referir a um semideus, mas, quais eram as suas intenções? Eurídice estava se recuperando de um mau relacionamento, sem dizer que havia falecido fazia pouco tempo... Tais fatos deviam deixá-la duplamente vulnerável.

Ou não?

De qualquer modo, ela se sentia responsável pela moça e não queria vê-la magoada. Iapis precisava agir com cautela. Eurídice tinha de ser tratada com cuidado e respeito.

Um relinchar estridente fez Lina interromper seu discurso interior. Órion estava do lado de fora do estábulo. Sua crina fora penteada e trançada com fitas da cor do luar, do mesmo tom do narciso colocado sob a parte superior de sua rédea.

Ele a avistou, ergueu o pescoço e bufou, dando alguns passos de lado para se exibir. A seu lado havia outro garanhão que poderia ser seu irmão gêmeo, exceto pelo fato de que sua pelagem escura contrastava com uma única mancha branca na testa, cujo formato era o de uma estrela torta. Os dois cavalos eram quase tão magníficos como o deus que segurava suas rédeas.

Hades fechou a cara para Órion.

— Acalme-se, seu tolo! — disse ao garanhão. — Dorado não está fazendo tanto estardalhaço.

Lina correu para se juntar a eles, tentando não se fixar na forma como os ombros do deus se avolumavam ainda mais conforme ele acalmava o corcel. Hades vestia outra túnica curta, que lhe expunha boa parte dos músculos dos braços e pernas, e a capa preta se agitava em torno dele.

Era o próprio Batman. Uma versão deliciosa do antigo Bruce Wayne, ela pensou, e tratou de lutar contra o impulso de se abanar.

— Não brigue com ele. Órion é incorrigível, mas adorável — falou, o coração palpitando. Roçou o rosto contra o focinho do cavalo quando ele a cutucou numa saudação, aproveitando para desviar o olhar de Hades. — Está feliz em me ver, não é, menino bonito?

Hades pensou que sabia exatamente como o garanhão se sentia. Ele também tinha vontade de sapatear e urrar à simples visão de Perséfone... Naquela manhã, ela trajava uma túnica de linho leve, com uma saia ampla o suficiente para que pudesse cavalgar com conforto. Quando a brisa soprava, colava o tecido semitransparente em seu corpo, delineando seus seios e a curva deliciosa de sua cintura, a ponto de fazê-lo lamentar por não ter chamado mais vento.

Observou, enciumado, enquanto ela acariciava Órion, mesmo se sentindo um idiota por ter ciúmes de um cavalo.

Dorado relinchou para a deusa, parecendo desolado. Em vez de fazer o mesmo, Hades suspirou.

— Perséfone, acho que ainda não foi formalmente apresentada a Dorado. Ele não conduz bem como Órion, mas é o mais rápido dos quatro. — Deu um tapinha afetuoso no pescoço brilhante do animal.

Lina acariciou a cabeça do garanhão.

— Muito prazer em conhecê-lo, Dorado. Então é mais rápido do que o seu amigo, hein? — comentou, lançando um olhar atrevido a Hades. — Será que Órion e eu não conseguiremos fugir de você?

Hades engoliu em seco. Apenas ficar próximo de Perséfone o fazia se sentir poderoso e impotente, quente e frio; tudo ao mesmo tempo. Provavelmente estava ficando louco.

Mas não se importava.

Deslocando-se para perto dela, de modo que as laterais de seus corpos se tocassem, devolveu o olhar provocador.

— Não, vocês não vão conseguir escapar de mim .

Lina se perdeu no olhar dele. Escapar? Imagine... Ela queria mais era entrar em sua pele.

Órion tornou a cutucá-la e relinchou. Ela riu, e a magia entre eles se desfez.

— Está bem, garoto impaciente!

— Órion não é impaciente. É ciumento — contrapôs Hades, fazendo nova careta para o animal, que o ignorou solenemente para lamber o ombro da deusa.

— Ciumento? — Lina fingiu surpresa. — Só porque acariciei Dorado? Como você é bobo... — sussurrou para o corcel.

— Não tem ideia do quanto — emendou Hades, ainda que não estivesse falando de Órion. — Venha — ele a segurou pelo cotovelo, guiando-a para a esquerda do cavalo a fim de ajudá-la a montar. — Os Campos Elíseos aguardam a presença da deusa da Primavera.

Cavalgaram lado a lado, seguindo a estrada de mármore preto. O constante ruído dos cascos dos cavalos se misturou ao canto lírico dos pássaros que chamavam um ao outro nos galhos dos ciprestes que ladeavam o caminho. O perfume dos narcisos impregnava o ar. De vez em quando eles passavam por grupo de espíritos, às vezes por uma alma solitária andando sozinha.

Mas suas reações eram sempre as mesmas. Primeiro, os espíritos recuavam, assustados, para a lateral da estrada, dando aos temíveis corcéis um generoso espaço. Só então percebiam quem os montava e se curvavam com reverência ao seu deus, embora mantendo os olhos fixos em Perséfone.

Os homens sorriam e cumprimentavam a deusa. Alguns deles até gritavam para ela.

Mas o que mais comoveu Lina foi a reação das mulheres. Quando estas se davam conta de que estavam na presença da deusa da Primavera, seus rostos se iluminavam de tanta alegria. Muitas se dirigiam a ela pelo nome e pediam sua bênção, a qual ela dava prontamente. Algumas até se atreviam a se aproximar de Órion, querendo tocar seu manto.

Lina mal podia acreditar na diferença que sua presença parecia fazer para elas. Precisava admitir: Deméter tinha razão. Por algum motivo, os espíritos dos mortos necessitavam saber que uma deusa ainda se preocupava com eles. Era uma tremenda responsabilidade, porém esta a fazia sentir-se querida e valorizada. Se apenas ficando à vista no Submundo ela conseguia espalhar alegria e esperança, então, estava muito contente por estar ali.

A princípio temia que Hades fosse ficar aborrecido ou até mesmo com ciúme por toda a atenção que ela vinha recebendo. Mas, embora ele houvesse proferido poucas palavras, sua expressão satisfeita e relaxada já falava por si. O deus sombrio se encontrava feliz já que os mortos reagiram tão bem a ela.

Eventualmente, a estrada se tornou mais íngreme. Quando eles alcançaram o topo, Lina fez Órion parar, perplexa.

— É como se alguém houvesse dividido a paisagem em duas e depois pintado um lado com tinta escura e o outro com clara! — Balançou a cabeça, incrédula, embora soubesse que não estava imaginando coisas. A estrada se estendia à sua frente como a linha divisória entre duas paisagens radicalmente diferentes. Era a coisa mais bizarra que ela já havia visto.

— Pintado de cores diferentes...— repetiu Hades. — É uma descrição um tanto apropriada. — Apontou para a esquerda, onde a terra declinava para uma vasta escuridão, rodeada por uma linha vermelha de fogo. — Este é o rio Flegetonte, que faz fronteira com o Tártaro, onde reina a escuridão. — Com a outra mão, ele mostrou o brilho à sua direita. — E lá você vê Elísia, onde a luz e a felicidade coexistem perfeitamente, e onde a única escuridão é a necessária para que os espíritos descansem em paz.

Lina tratou de acessar a memória espiritual de Perséfone:

O Tártaro , a voz sussurrou em sua mente, é a região do Submundo onde se aplica o castigo eterno. É um lugar de desespero e agonia. Apenas o mal o habita.

Era o inferno.

Lina não conseguia tirar os olhos do abismo escuro e, de repente, sentiu um calafrio. As trevas pareciam chamá-la, como gavinhas de uma criatura maléfica.

— Perséfone! — A voz nítida de Hades desviou sua atenção do vazio do Tártaro, e ela encontrou seu olhar. — Pode andar por qualquer lugar dentro do meu reino, com ou sem mim a seu lado, com exceção do Tártaro. Ali você não pode entrar, tampouco se aproximar de seus limites. O próprio campo foi contaminado pela natureza corrosiva de seus moradores.

— É terrível lá, não é? — O rosto dela estava sem cor.

— Tem de ser. Existe muito mal em todos os mundos. Acha que este deveria ficar impune?

Lina pensou sobre o mundo mortal, e trechos de notícias flamejaram em sua memória como pesadelos: o atentado em Oklahoma, os horrores praticados por homens e mulheres adultos que violentavam e matavam crianças indefesas e, claro, o 11 de Setembro e a covardia dos terroristas.

— Não. Eu não o deixaria impune — afirmou com segurança.

— Nem eu. Por isso ordeno que não se aproxime das fronteiras do Tártaro.

Lina estremeceu.

— Não quero ir para lá.

Hades relaxou sua expressão séria e apontou com um gesto de cabeça em direção ao brilho que iluminava o lado direito da estrada.

— Eu gostaria de lhe mostrar um pouco da beleza de Elísia.

Num esforço consciente, Lina deu as costas para os horrores do Tártaro, sorriu para Hades e acariciou o pescoço quente de Órion.

— Tudo o que você tem de fazer é mostrar o caminho, e nós o seguiremos.

Com os olhos brilhando, o deus sacudiu as rédeas de Dorado.

— É melhor me seguir. Afinal, está montando o cavalo mais lento.

Lina estreitou os olhos para ele e recitou na sua melhor imitação de John Wayne:

— Não devia falar do meu cavalo, peregrino... — Apontou para a colina. — Está vendo aquele pinheiro grande na margem do campo, lá embaixo?

Hades abriu um sorriso e assentiu:

— Dorado e eu vamos alcançá-lo primeiro. Ele é o cavalo mais rápido.

— Pode ser o cavalo mais rápido, mas certamente está carregando um peso morto — ela falou, brincando. — Ops! Foi um péssimo trocadilho para usar no Submundo... IAAH! — gritou, pegando o sorridente deus de surpresa.

Órion respondeu de imediato, saltando para frente e passando como um raio por Dorado, aterro abaixo.

O vento assobiava ao passar por suas faces enquanto o garanhão galopava. Lina inclinou-se sobre seu pescoço, e ele aumentou a velocidade até que ela mal via o mundo ao redor.

Logo atrás, podiam ouvir Dorado se aproximando.

— Não deixe que eles nos alcancem! — ela gritou nas orelhas achatadas do cavalo, e Órion respondeu com nova explosão de velocidade.

Passaram por uma silhueta alta e verde, o pinheiro, e Lina se endireitou na sela, vibrando com a vitória, enquanto o garanhão diminuía para um trote e empinava com um relincho antes de parar.

Com a respiração pesada, Dorado diminuiu o galope até parar a seu lado.

Lina riu alto diante da expressão no rosto de Hades.

— O cavalo mais rápido, é? Nunca subestime o poder de uma mulher com muitos recursos.

— Você roubou — protestou Hades, simulando seriedade, embora tentasse, sem sucesso, esconder um sorriso.

— Prefiro pensar que esgotei os meus recursos para ganhar.

— Eu não tinha ideia de que era tão competitiva.

— Há muita coisa que não sabe sobre mim, senhor do Submundo — ela declarou, ainda acariciando o pescoço do garanhão. — Não sou uma deusa comum.

Hades bufou, e Órion bufou de volta.

Dorado sacudiu a cabeça, e o deus deu alguns tapinhas no cavalo.

— Não se sinta mal, meu velho. Nosso dia vai chegar. — E, fingindo um sussurro, completou, mais para si do que Dorado: — Só precisamos ficar de olho nela... Essa deusa é astuta.

— Ahn-ahn — Lina concordou de pronto, e ambos riram.

— Perséfone! — chamou uma voz jovem.

Lina virou-se para ver quem era.

— Oh, é a deusa da Primavera! Eu sabia!

A figura ágil surgiu do bosque de pinheiros que cercava a adorável clareira em que os cavalos se encontravam, e logo foi seguida por várias outras, que pularam e dançaram com entusiasmo diante de Lina. O grupo todo era composto de mulheres jovens e bonitas, cujos corpos fortes e esculturais encontravam-se encantadoramente cobertos por trajes diáfanos. Se elas não tivessem aquela aparência translúcida que as distinguiam como espíritos do Submundo, Lina teria acreditado que havia ido parar em uma daquelas festas de clube das mulheres.

Hades cutucou Dorado com os joelhos para que pudesse ficar mais perto dela e falou em voz baixa:

— São virgens que morreram antes de se casar. Costumam farrear antes de beber do Lete.

Quando o grupo se aproximou, eles diminuíram o trote, esforçando-se para conter o entusiasmo das mulheres e evitar que estas chegassem perto demais dos temíveis cavalos. A alma que chamara a deusa pelo nome fez uma reverência profunda e graciosa, a qual o restante das virgens imitou. Quando se levantou, foi a primeira a falar:

— Ouvi dizer que tinha sido vista, e, com todo o meu coração, eu quis acreditar. Oh, senhora! É tão maravilhoso tê-la conosco!

Um coro de “Sim!”, “Estamos tão felizes!” seguiu-se a seu pequeno discurso.

— Obrigada. Minha visita está sendo maravilhosa — comentou Lina.

A virgem franziu o cenho.

— Veio apenas de visita? Quer dizer que vai nos deixar?

O prado ficou em silêncio, como se cada folha de grama ou árvore quisesse ouvir sua resposta.

Ela não soube o que dizer.

— Perséfone pode permanecer no Submundo por quanto tempo quiser. — A voz de Hades, rica em sentimentos, rompeu o silêncio.

Lina sentiu a pulsação se acelerar com a súbita satisfação que a invadiu depois daquelas palavras. Afastou toda e qualquer preocupação ou pudor quanto a não poder ficar e por ter de permanecer ali apenas por seis meses.

Em vez disso, sorriu para o deus, pensando em como gostaria de beijá-lo outra vez.

— Então não tem nenhuma razão para ter pressa! Venha dançar conosco! — chamou a virgem.

Lina se obrigou a desviar o olhar de Hades.

— Dançar com vocês? Mas não há música.

— Esse é um detalhe que pode ser solucionado — declarou Hades. — Nossa deusa quer música! — ordenou com um floreio, e a brisa passou a rodeá-los com um assobio estranho, que se transformou no som melódico de instrumentos musicais. Hades inclinou a cabeça gentilmente para ela. — Agora já tem a música.

— Parece que sim. — O coração dela bateu tão forte que, a despeito da melodia, todos deviam estar ouvindo.

Mas, dançar? Ela não saberia como dançar com aquelas mulheres.

— Sim! Ah, por favor!

— Agora pode dançar conosco!

— Venha brincar com a música do deus, Perséfone!

— Mas, eu... Bem... — Lina olhou em volta, impotente. — O que vou fazer com Órion?

— Vai deixá-lo aqui, comigo e com Dorado — decidiu Hades, já desmontando. Caminhou para a lateral do cavalo e levantou os braços, de maneira que ela não teve escolha senão deslizar por eles.

Hades a abraçou com força por um momento, então sussurrou:

— Dance para mim aqui em Elísia... Nenhuma deusa jamais fez isso.

Ela o fitou nos olhos, percebeu seu desejo, assim como sua vulnerabilidade, e soube que não tinha alternativa.

— Está bem.

— Meus cavalos e eu vamos esperá-la. — Ele fez uma pausa, depois acrescentou: — Ansiosamente.

— Certo. Bem — Lina alisou as próprias vestes, fingindo endireitar o que já estava mais do que assentado. — Não vai demorar muito.

— Perséfone! Já fizemos um círculo! — Uma das virgens gritou.

— Que bom... — ela respondeu, partindo em direção ao grupo.

Determinadas, as virgens haviam formado um meio círculo no meio da campina.

Lina ficou tão nervosa que se sentiu um pouco enjoada. Dançar com um grupo de virgens mortas? Estava ali algo para o que nem toda a experiência que adquirira na vida a tinha preparado.

Sentiu as mãos suadas. Aquilo não era como o encontro para a coleta do néctar. Não teria nenhum exemplo de como agir. As mulheres estavam esperando que ela lhes mostrasse o que fazer.

Se partisse para uma imitação dos solos disco de John Travolta, em Saturday Night Fever , na certa faria um papel ridículo. Não apenas Hades, como todas as mulheres saberiam que ela não era uma deusa, e sim uma fraude.

Pare com esse absurdo!

O eco em sua mente a assustou tanto que ela quase deu um grito.

Seu corpo sabe dançar. Relaxe e confie nele!

Lina olhou para si mesma. Havia se esquecido de que não vestia sua pele de quarenta e três anos de idade. Ela era jovem, flexível e estava em tão grande forma que provavelmente poderia comer chocolate Godiva sem parar por vários dias. Nem precisaria se preocupar se o zíper de seu jeans fecharia depois.

— Senhora?

Lina ergueu o olhar e viu todas as virgens a observá-la com expressões curiosas em seus rostos bonitos. Devia estar parecendo uma idiota, parada ali, olhando para o próprio corpo.

Sorriu, endireitou os ombros e começou a andar de novo.

— Eu estava apenas admirando... — olhou para baixo outra vez — ... os trevos deste campo. São lindos, não acham?

Todas as cabeças assentiram com vigor, como se ela as estivesse controlando por um painel de controle.

— É típico do nosso prado. Gostamos de trevos e gramados... coisas que crescem. Por isso eles brotam para nos agradar — a primeira virgem disse.

— Eu também gosto deles — afirmou Lina, juntando-se ao círculo.

Você começa no centro , sua voz interna comandou.

Ela respirou fundo e se colocou no meio do grupo. Então fez a única coisa que poderia pensar em fazer: fechou os olhos e se concentrou.

A música a invadiu e, no mesmo instante, Lina começou a se movimentar. Seus braços se elevaram, e ela girou em um círculo lento e preguiçoso.

A melodia era maravilhosa, sensual e feminina, e seu corpo logo se harmonizou com as notas, fazendo-a partir para passos mais complexos com suas longas e flexíveis pernas. Seus quadris ondulavam e balançavam, e seus braços traçavam imagens no ar.

De repente, não era mais uma padeira de quarenta e três anos de idade. Era uma jovem deusa. Era música.

Lina abriu os olhos.

Com os rostos iluminados, as moças a circundavam, tentando imitar seus movimentos. Eram lindas, e muitas tinham sido, obviamente, talentosas dançarinas.

Mas a diferença entre a dança das mortais e a de Perséfone era clara até mesmo para Lina. Perséfone movia-se com a graça inumana de uma deusa.

Seu coração se encheu de satisfação com o poder dentro dela. Devia ser assim que uma primeira bailarina se sentia no ápice de sua carreira, pensou: saltando, girando e soltando gritinhos de alegria.

Poderia ter dançado para sempre, mas uma das virgens tropeçou e desabou, rindo, em meio a um canteiro de trevos. As demais se esforçaram para manter a coreografia.

Lina, contudo, a consolou, e, com um movimento glorioso e um floreio, pôs um fim à apresentação.

Enquanto as moças gritavam e aplaudiam, ela fez a reverência profunda de uma bailarina.

As almas a rodearam, murmurando agradecimentos e perguntando quando ela voltaria a brincar com elas de novo.

Enquanto riam e conversavam, Lina tentou, discretamente, localizar Hades, e avistou Órion e Dorado. Eles pastavam, contentes, não muito longe do pinheiro que servira como sua linha de chegada.

Seus olhos se voltaram para a árvore. Hades encontrava-se recostado nela, os braços cruzados e o corpo relaxado.

Mas seus olhos brilhavam, cheios de calor e fixos nela, e seus lábios se inclinavam numa sugestão de sorriso. Quando ele percebeu que ela o fitava, levou a mão à boca e enviou-lhe um beijo.

A coisa mais romântica que um homem já lhe havia feito.

— Bem, senhoras, foi maravilhoso dançar com todas vocês. Temos que fazer isso de novo muito em breve, mas Hades e eu precisamos seguir em frente — falou, desembaraçando-se de seu círculo de admiradoras.

Várias delas dispararam olhares tímidos na direção do deus que aguardava, e não foi difícil perceber o teor de seus sussurros, dos quais Lina só pôde entender os nomes “Perséfone” e “Hades”.

Rindo e acenando em despedida, as virgens desapareceram em meio aos pinheiros.

Hades se afastou da árvore para encontrar Lina no meio do prado. Por um momento, nenhum deles falou.

Então ele estendeu a mão e afastou uma mecha do cabelo que caía, úmido, sobre seu rosto delicado.

— Nunca vi nada tão cheio de graça como a sua dança.

De repente, Lina sentiu-se com menos fôlego do que enquanto rodopiava e saltava com a música.

— Deve estar com sede — observou Hades.

Até o momento, ela não tinha percebido que se encontrava sedenta ou suada.

— Muito!

— Deve haver uma fonte aqui perto. — Ele pegou sua mão e começou a caminhar em direção ao lado oposto do campo. — As coisas nunca permanecem as mesmas em Elísia, mas tendem a ­refletir os mesmos elementos.

— Então, é uma espécie de fantasia mutável? — Lina perguntou, passando a mão pelos trevos que lhe chegavam até os joelhos ao final do prado.

No mesmo instante, tufos de flores brancas saltaram por entre as folhas, emanando um perfume de verão e relva cortada.

— Sim, um pouco. — Hades sorriu para ela. — Elísia é dividida em diferentes partes, mas essas partes podem se misturar e mudar de acordo com a vontade dos espíritos.

— Diferentes partes? Quer dizer , há um lugar para pessoas que foram muito, muito boas, outro para as que foram boas na maior parte do tempo, e outro para pessoas que foram apenas “boazinhas”?

O riso de Hades preencheu o campo.

— Você diz as coisas mais inesperadas, Perséfone... Não. Elísia é dividida em reinos diferentes. Um deles é para os guerreiros. O outro é aqui — ele fez um gesto, apontando ao redor —, para que as virgens venham se divertir. E existem vários outros. A nobreza fica em um deles. Outro é para os pastores ou guias espirituais. — Ele sorriu de lado, como se tivesse doze anos de idade. — Curiosamente, os pastores não gostam de se misturar aos outros.

— Quem poderia imaginar?

— Pois é.

— Então eles não podem se unir? E se um guerreiro quiser cor­-
tejar uma virgem? Mesmo o batalhador mais dedicado pode se cansar de fazer “coisas de homem” após algum tempo.

— Eles podem se unir, porém enfrentam muitas dificuldades. — Hades fez uma pausa, ponderando sobre a questão. — Mas talvez não devesse ser assim, tão difícil. Talvez eles não percebam o que estão perdendo porque estão distantes disso por tempo demais. — O deus olhou para longe, imerso em pensamentos.

— Pode fazer Elísia se reorganizar segundo a sua vontade? — Lina quis saber.

— Sim. — Hades se voltou para ela.

— Se é assim, mova o prado das virgens que dançam para perto do local de treinamento dos guerreiros, e as coisas acontecerão naturalmente.

Ele soltou uma risada.

— Tem razão.

Entraram na floresta de pinheiros e, após alguma procura, Hades encontrou uma pequena trilha. Seguiram por ela até cruzar um riacho que borbulhava, derramando-se sobre rochas lisas.

Hades deixou o caminho, então, e conduziu Lina córrego abaixo. Em seguida contornou uma curva onde a água se reunia em uma pequena lagoa de fundo arenoso, antes de seguir seu curso, jorrando ruidosamente por sobre um lado da margem rochosa.

— Para você, minha deusa, apenas o melhor em bebida e comida... — disse com um sorriso travesso.

— Vá brincando — ela respondeu, apressada em se agachar na borda da piscina natural. — Aquela dança me deixou tão sedenta que, para mim, no momento, água é muito melhor do que ambrosia!

Lina juntou as mãos para beber o líquido claro. Estava tão frio que fez seus dentes doerem.

Suspirou, feliz, e engoliu outro punhado.

Uma vez satisfeita, chutou para longe as chinelas de couro macio e deixou as pernas balançar dentro da água gelada.

Hades se reclinou a seu lado, encostando-se em um tronco caído. O vento mudou ao soprar as árvores acima deles, envolvendo-os numa nuvem de pinho e seiva. O céu místico do Submundo lançava um brilho opaco sobre tudo.

Lentes cor-de-rosa , Lina pensou, sonhadora.

— Deméter me disse que o Submundo era um lugar mágico, mas eu nunca acreditei que detinha tanta beleza — confessou. — Se os deuses realmente soubessem como é maravilhoso aqui embaixo, você teria uma porção de visitas.

Hades encolheu os ombros, parecendo incomodado.

Lina o estudou e decidiu não pressioná-lo mais.

Lembrou-se de suas palavras na noite anterior: ele queria mais do que apenas sexo dela. Ela sabia disso, mas, para que houvesse mais do que isso entre eles, precisariam conversar muito.

O problema era que estava velha demais para perder tempo com conversas adolescentes, cheias de silêncios e dúvidas não esclarecidas. Era uma mulher adulta e precisava dizer o que lhe ia na mente.

— Se não queria visitantes, por que construiu um palácio enorme, com todos aqueles quartos vazios à espera de ser preenchidos?

Hades considerou a questão. O quanto deveria revelar a Perséfone?

Não pretendia contar que nunca se envolvera com uma deusa, nem sexualmente nem de outra forma. Tampouco que tinha passado uma eternidade ansiando por algo mais do que a frivolidade que satisfazia a maioria dos imortais.

Lembrou-se da última vez em que havia visitado o Monte Olimpo. Afrodite o provocara sem nenhum pudor, e ele não correspondera. Mais tarde, ele a flagrara às gargalhadas com Atena, enquanto as duas deusas concluíam que parte de seu corpo devia estar tão morta quanto o restante de seu reino...

Pensar na maldade das palavras ainda lhe provocava uma onda de raiva. Seu corpo não se encontrava morto. Estava simplesmente ligado à sua alma, e esta exigia mais do que as atenções de uma deusa egoísta.

O que ele poderia dizer que não faria Perséfone fugir dele?

Olhou para ela, vendo-a aguardar, ansiosa, por uma resposta.

Precisava ser o mais honesto possível. Não podia mentir nem dissimular. Uma relação duradoura não podia ser baseada em falsidades.

Deu um longo suspiro.

— Às vezes me pergunto por que eu o construí. Talvez estivesse esperando que algum dia aprenderia a superar as minhas... — tentou encontrar a palavra certa — ... diferenças.

— Diferenças? O que quer dizer?

— Sempre tive dificuldades em interagir com outros imortais — ele confessou. — Deve saber que têm medo de mim porque sou o senhor dos Mortos.

Lina começou a negar, mas, então, lembrou-se da expressão de Deméter quando ela falara de Hades; da maneira como o descartara como um deus sem importância e desinteressante.

A lembrança a deixou, de repente, com muita raiva.

— Eles apenas não sabem como você é na verdade.

— E como eu sou, na verdade, Perséfone?

Lina sorriu para ele e disse exatamente o que pensava:

— Que é interessante, divertido, sexy e poderoso.

Hades a fitou por um momento, depois balançou a cabeça.

— Você é mesmo uma caixinha de surpresas.

— E isso é bom ou ruim?

— É milagrosamente bom.

Lina suspirou. Aquele era um caso perdido. Não conseguia resistir a Hades, nem queria.

— Fico feliz por isso.

— Você não é como os outros imortais — ele continuou, rouco. — Sabe como eles são... Vivem cheios de si, sempre se esforçando para superar um ao outro e nunca satisfeitos com o que têm. — Ele se inclinou para a frente e tocou-lhe o rosto com a ponta dos dedos. — Você é sincera e honesta, o que uma verdadeira deusa deve ser.

Sincera e honesta? Uma verdadeira deusa?

Lina quis que o chão se abrisse para sumir dentro dele. Ela não era uma coisa nem outra.

— Eu... Você... — balbuciou, sem saber o que dizer.

Hades não lhe deu chance de organizar os pensamentos. Inclinou-se e a puxou para os braços.

A boca de Perséfone continuava fria depois de ter bebido da fonte de água, e ele quis se afogar nela. Mergulhou na maciez dos lábios carnudos. Ah, se a tivesse conhecido antes! Como podia ter passado tanto tempo sem ela?

A deusa passou os braços em torno dele e pressionou os seios contra seu peito. Hades gemeu. Seu desejo por ela era palpitante e devastador.

De repente, ela estremeceu, gritou, e, jogando água para todos os lados, puxou as longas pernas nuas para fora da pequena piscina natural.

Pondo-se de pé em um salto, Lina correu para trás do deus, querendo que ele ficasse entre ela e a borda da água.

— Alguma coisa encostou em mim! — Sua voz tremeu quando lembranças das cobras d’água e tartarugas mordedoras de Oklahoma brotaram em sua mente.

Hades afagou a mão com que ela segurava seu ombro, tentando ordenar os pensamentos. Ainda podia sentir a pressão de seus seios contra o couro macio que lhe cobria o peito, e seu corpo ainda crescia com o desejo.

— Perséfone, nada em Elísia a machucaria.

— Ali! — Lina ficou com vergonha por a palavra ter saído num grito, mas apontou para um vulto escuro que passava sob a água. — Há alguma coisa ali...

Com um suspiro, Hades se levantou e cobriu os poucos metros até a margem. Agachou-se e olhou para dentro da água clara.

Todos os sentidos de Lina se puseram em alerta.

— Tenha cuidado! — pediu, preocupada. — Pode ser uma cobra.

Hades lançou-lhe um olhar confuso por sobre o ombro.

— Por que tem medo de cobras?

Lina torceu uma mecha grossa de cabelo em torno do dedo.

Cobras estão intimamente relacionadas a Deméter. Não deve temê-las! , sua voz interna a alertou.

— Eu sei que é bobagem, mas nunca gostei delas — disse, perturbada.

A testa do deus se franziu, contudo um respingar na piscina natural chamou sua atenção.

Lina se encolheu, não querendo ver o réptil liso e asqueroso.

Quando Hades tornou a fitá-la, um sorriso brotou em seus lábios.

— Não pode ter aversão a esta criatura...

— Também não gosto de tartarugas! — Lina acrescentou depressa, desviando o olhar da forma escura que tinha acabado de assomar à superfície. — Principalmente de tartarugas mordedoras!

Hades riu e fez um sinal para que ela se juntasse a ele.

— Venha... Você gosta de animais.

Lina não cedeu.

— Gosto de animais. De mamíferos, aves, até de peixes. Mas odeio répteis. Eu sei que soa mesquinho, mas...

Um barulho estranho, como um latido, veio da água, e Lina olhou por cima do ombro de Hades, avistando uma criatura que flutuava de costas.

Quase engasgou.

— Mas não é uma cobra!

A lontra ladrou para ela novamente, jogando água com suas adoráveis patas com membranas.

Lina correu para se juntar a Hades e se agachou a seu lado, apoiando-se nele.

— É a coisa mais lindinha que eu já vi!

— Não diga isso ao meu cavalo — ele aconselhou. — Órion acredita que é o seu favorito.

Lina o empurrou de leve com o ombro antes de se aproximar da margem para acariciar a barriga da lontra.

— Órion é o meu cavalo favorito. Este mocinho pode ser a minha lontra favorita, ora.

Ao seu toque, o animal entrou em um frenesi de ganidos e fungados, debatendo-se tanto que a água espirrou para todos os lados antes que ele nadasse até a borda e em seguida desaparecesse pela pequena cachoeira abaixo.

— Eu não queria assustá-lo!

Hades sorriu diante da expressão decepcionada da deusa e enxugou as gotas de água de seu rosto.

— Você não o assustou, meu anjo. As lontras de Elísia são conhecidas por sua timidez. Aliás, eu nunca tinha visto uma de tão perto antes. E certamente nunca as toquei.

Lina procurou pela doce criatura, tristonha.

— Não pode fazê-la voltar? Afinal é um deus...

Ele riu.

— Como um deus sábio, sei quando é melhor não mexer com a ordem natural das coisas. Sem dizer que teria mais sorte do que eu em domar esse bicho... É você a encantadora de animais, não eu.

— Não sou encantadora de nada — protestou Lina. — Eu apenas gosto dos bichos, e eles, de mim.

— Dos mamíferos — Hades lembrou, afastando um longo fio de cabelo da face perfeita.

Lina inclinou a cabeça de modo a lhe acariciar a mão.

— Então talvez eu seja o único que você encantou, sua feiticeira. — Ele esfregou o polegar no lábio carnudo.

— Eu não gostaria de encantar nenhum outro — Lina se ouviu dizendo, enquanto se inclinava para um beijo.

Quando algo a cutucou nas costas, ela não o empurrou, surpresa, tampouco gritou. Simplesmente levantou a mão e acariciou o focinho de Órion.

— Se algum desinformado acredita que o Submundo é o lugar perfeito para encontrar paz e tranquilidade, está errado! — Hades fechou a cara para o garanhão.

Órion bufou e jogou a cabeça, então se aninhou junto a Lina novamente, fazendo-a rir com a respiração quente em seu pescoço.

Ela segurou um punhado da crina sedosa, e Órion levantou a cabeça, pondo-a em pé.

Lina olhou para o deus que ainda fulminava o cavalo com o olhar. Em seguida se abaixou, pegou-o pela mão e o puxou até que ele se levantasse.

— Gostaria de ver mais de Elísia? — indagou Hades.

Ela se ergueu na ponta dos pés e roçou o rosto moreno com um beijo.

— Claro que eu gostaria de conhecer melhor o seu reino.

As palavras trouxeram a Hades uma onda de felicidade, e ele se inclinou para beijá-la rápida e possessivamente antes de erguê-la para a sela de Órion.


Capítulo 20

O dia passou, delicioso. Elísia era uma aventura sem fim, onde beleza e harmonia se fundiam à perfeição.

E, por onde eles passavam, as almas dos mortos respondiam à presença de Perséfone. Lina se viu alçada para além das palavras diante da felicidade que viu nos rostos dos espíritos, conforme se espalhou pelo Submundo que havia uma deusa entre eles.

Hades ficou a seu lado, muitas vezes conduzindo Dorado para mais perto a fim de poder tocá-la.

A reação dos espíritos à visita de Perséfone o encheu de prazer. Os mortos o respeitavam e temiam. Alguns lhe eram imensamente leais. Contudo, ele nunca tinha evocado neles tanto amor e alegria como ela.

Mas não sentia inveja do efeito que a deusa causava em seu reino. Ele o compreendia. Como não poderia? Perséfone despertara tais sentimentos até mesmo nele.

Mais uma vez, Hades se perguntou como existira por tanto tempo sem ela. Não imaginava o que aconteceria a ele ou a seus domínios se Perséfone decidisse ir embora.

A luz do dia havia minguado, e o céu começava a brilhar com as almas das Híades quando, finalmente, se aproximaram da base traseira do palácio. Hades cutucou Dorado, fazendo-o se aproximar de Órion, e estendeu a mão para segurar a da deusa.

Ela sorriu. A mão de Hades era quente e forte, e Lina ficou feliz por enredar os dedos nos dele, enquanto devaneava acerca das maravilhas do dia e entravam na familiar floresta de pinheiros.

Ao chegarem ao n ível inferior dos jardins, Hades fez Dorado parar, obrigando Órion a fazer o mesmo.

— Há uma última coisa que eu gostaria de mostrar a você esta noite, se estiver disposta.

— É claro — ela concordou de pronto.

— Mas temos que andar — ele falou num sussurro.

Lina também fez cair o tom de voz a um nível conspirador.

— O que vamos fazer com? — Apontou os dois garanhões, que mantinham as orelhas inclinadas para trás, obviamente, ouvindo a conversa.

— Deixe-os comigo.

Hades saltou de Dorado com agilidade e, em seguida, ergueu os braços para ajudá-la a desmontar. Ela deslizou de encontro a ele, amando a erótica sensação de ter um cavalo musculoso a um lado do corpo e um deus quente e rijo do outro.

Hades se inclinou e mordiscou-lhe o lóbulo sensível da orelha.

— Acho que é hora de nos livrarmos dos nossos ­acompanhantes. — Endireitou o corpo e gritou o comando para que os garanhões voltassem ao estábulo com uma voz tão enérgica que as folhas das árvores ao redor chacoalharam em resposta.

Órion e Dorado reagiram de imediato, disparando para os terrenos do palácio.

Lina ergueu as sobrancelhas.

— Estou impressionada. Não pensei que eles fossem obedecer tão rápido.

O deus torceu os lábios.

— Ficaram apenas surpresos. Eu raramente ordeno que façam alguma coisa. Na verdade, eles são bastante mimados.

— Então vão ficar com raiva de você depois.

— Provavelmente. — Hades riu e uniu os dedos aos dela. — O que eu quero mostrar fica por aqui... — Conduziu-a por um caminho que contornava a borda dos jardins, e eles caminharam ao lado de fileiras de cercas vivas, aparadas em cones. Flores dormiam junto às sebes, e Lina tomou o cuidado de não passar as mãos perto dos botões fechados.

Quando Hades deixou a vereda e entrou na linha de ciprestes que cercava aquele lado dos vergéis, ela não conseguiu conter sua curiosidade:

— Aonde estamos indo?

— A um campo não muito longe daqui. — Ele apontou adiante.

Tudo o que ela podia ver eram as árvores enormes, porém eles continuavam perto o suficiente do palácio para que o terreno ainda estivesse bem cuidado. O solo sob as árvores continuava forrado por grama e livre de silvas e entulho.

A noite na floresta encontrava-se vazia da melodia dos pássaros, e Lina começou a se sentir intimidada pelo enorme silêncio.

— O que há neste campo? — indagou num sussurro.

Hades apertou a mão dela.

— Não precisa mais falar baixo.

— Ah. — Ela ficou constrangida. Levantando a voz para um nível normal, repetiu a pergunta: — O que há neste campo, afinal?

— Pirilampos.

— Pirilampos?

O deus anuiu.

A última coisa que Hades tinha para lhe mostrar sobre os mistérios do Submundo eram vaga-lumes? Ela já vira vaga-lumes antes. Muitos deles.

Lendo sua expressão, ele sorriu, travesso.

— Aposto que vai achar esses pirilampos diferentes.

Lina deu de ombros e manteve a boca fechada. Perséfone talvez considerasse um campo de vaga-lumes único, mas seria necessário algo mais do que insetos de verão para surpreender uma garota de Oklahoma. Principalmente depois das maravilhas que ela já vira naquele dia.

— Ah, aqui está a quebra nas árvores. Cuidado com onde pisa... Precisamos atravessar esta pequena vala primeiro.

Lina se concentrou em atravessar o pequeno canal e não ergueu a cabeça até estar com os pés plantados no tal campo.

Quando o fez, seus olhos se arregalaram. O prado encontrava-se repleto de luz, mas não com o amarelo-claro dos vagalumes que ela vivia perseguindo na infância. Aqueles eram da cor do luar e...

— Narcisos! — exclamou, ofegante. — Misericordioso Madre di Dio! — Eles estão fazendo narcisos!

A risada suave de Hades revelou sua satisfação.

— Poucos testemunharam esse tipo de coisa... E então, deusa da Primavera, o que achou?

Lina olhou para o campo. Milhares de caprichosos vaga-lumes trabalhavam furiosamente, girando em torno das flores. Saindo de um tufo de folhagem verde, um grupo de minúsculos insetos formava uma espécie de enxame, depois começava a voar em uma espiral brilhante, dando voltas e voltas. De repente, como cometas em miniatura, sua cauda incandescente ganhava forma e massa, deixando para trás um narciso perfeito em plena floração.

— É incrível! É dessa forma que todos os narcisos são feitos?

— Todos os que existem no Submundo. Às vezes alguns desses grupos de vaga-lumes ficam confusos, se aproximam demais da abertura para a terra dos mortais e produzem uma flor no Mundo Superior. Mas eu tento evitar isso. Como deve ter notado, a fragrância dos meus narcisos é diferente daquela das flores do Mundo dos Vivos. Os mortais a consideram demasiado inebriante.

Lina se lembrou da noite em que havia se curvado para respirar o perfume do narciso incomum sob o carvalho.

— Imagino como isso deve causar problemas — disse baixinho.

Quando o som de sua voz penetrou a pequena consciência dos insetos, vários dos grupos mais próximos de vaga-lumes fizeram uma pausa em sua produção. Como se todos eles houvessem tido a mesma ideia, voaram até ela em uma nuvem brilhante e pairaram à sua frente, girando em círculos ofuscantes e fazendo um barulho estranho que fez Lina pensar em grilos sopranos.

— O que eles querem? — perguntou a Hades pelo canto da boca.

O deus inclinou a cabeça em sua direção, sorrindo.

— Querem que você os ajude a produzir as flores.

— Verdade? — ela indagou, sem saber o que fazer.

— Verdade. — Hades soltou sua mão. — Vá. Eu espero aqui.

Ela precisava fazer aquilo. Afinal, era a deusa da Primavera, e produzir flores, definitivamente, deveria fazer parte de seu trabalho.

Enquanto permaneceu parada no lugar, pensando no que fazer, Lina percebeu que queria muito se juntar aos vaga-lumes.

Basta tocar as flores, desejar que elas floresçam, e elas vão desabrochar, disse sua voz interior.

Respirando fundo, ela entrou no campo, e a relva se agitou de encontro às suas panturrilhas. Os pirilampos dançavam com alegria, formando estonteantes círculos ao seu redor.

Lina se aproximou de um aglomerado de verde que não era grama, tampouco flor. Hesitante, acariciou as folhas largas e achatadas com a ponta dos dedos, pensando o quanto gostaria de vê-las florescer.

Em uma explosão de luzes brilhantes que a fez se lembrar de fogos de artifício, uma flor branca e reluzente brotou do centro da planta.

Ela se abaixou e inalou sua fragrância única, rindo alto. Havia criado aquela maravilha! Uma alegria típica da juventude a invadiu. Sem pensar muito, seguiu os comandos do próprio corpo e, com um pulinho e uma pirueta graciosa, partiu para o amontoado seguinte de vegetação. Enquanto ela dançava, dando vida a flor após flor, os vaga-lumes a cercavam numa espécie de halo.

Hades permaneceu à beira do prado, enchendo os olhos com a bela visão. Como uma criatura podia ser tão linda?

Sentiu um desejo atroz de tê-la, e, por meio desse ato, finalmente fazer Perséfone sua.

E com a mesma intensidade que havia testemunhado tantas vezes nos olhos de almas gêmeas.

Perséfone girava e dançava, chamando os narcisos para a vida. Pois então não fizera o mesmo com ele?

O senhor dos Mortos, o deus que se dizia imune àquele tipo de sentimento, tinha caído de amores pela deusa da Primavera. Não importava o quanto pudesse parecer ridículo ou irônico. Havia acontecido.

E ele não queria que acabasse.

A decisão estava tomada. Desejava mais do que apenas observar fantasmas do amor... queria experimentá-lo por si mesmo.

Esfregou o peito instantaneamente, antecipando o velho e dolorido ardor, contudo este não veio. Embora Perséfone fizesse seu corpo doer e seu sangue latejar nas veias, não despertava sua revolta.

Parou de mover a mão e tentou se lembrar da última vez em que sentira a queimação no peito.

Piscou, surpreso. Fora na noite em que ele a ofendera e, em seguida, a abandonara à mesa de jantar. Nunca mais o sentira desde então.

Sorriu. Perséfone não era apenas o sopro da primavera. Era também um bálsamo para sua alma cansada. Talvez sua solidão tivesse realmente chegado ao fim.

Lina percebeu o olhar de Hades e, enquanto outro narciso brotava em flor, olhou para o ponto onde ele a aguardava. O deus continuava em pé à margem do prado, alto, sombrio e silencioso, assistindo-a com uma intensidade que fez seu sangue correr mais depressa.

Por que ele apenas observava?

De repente, ela desejou mais do que aquilo e um pensamento maravilhoso se formou em sua mente. Vinha brincando com virgens e ninfas desde que chegara... Agora era a vez de Hades.

Sorrindo, feliz, dançou até ele, deixando um rastro de brilhantes vaga-lumes pelo caminho, e agarrou sua mão.

— Vamos! Faça flores comigo!

Uma sombra de tristeza invadiu os olhos do deus.

— Sou o deus dos Mortos. Não posso criar vida.

— Se eu ajudá-lo, pode! — Lina afirmou com mais confiança do que sentia e puxou sua mão.

— Não, eu... — Hades suspirou. — Maldição, Perséfone, não consigo lhe negar nada!

E, relutante, permitiu que ela o arrastasse para a campina.

Cercados pela nuvem ofuscante de pirilampos, eles rumaram para uma das moitas. Lina o fez ficar atrás dela, então levou as mãos para trás, ao longo dos braços fortes, até juntar as mãos com as dele e fazer com que Hades a abraçasse. Abriu bem os dedos, como se tivesse acabado de arremessar uma bola.

— Entrelace os dedos nos meus — instruiu, a proximidade com ele tornando sua voz mais rouca. — Agora pense o quanto gostaria de ver esse narciso desabrochando.

Completamente vencido, Hades deixou que ela guiasse suas mãos. Desejava verdadeiramente produzir uma flor.

No entanto, desejava ainda mais poder fazer aquela deusa sua... e que ela permanecesse a seu lado para aliviar sua solidão por toda a eternidade.

Seus dedos começaram a formigar conforme a magia de Perséfone se fundiu com a dele e, perplexo, Hades viu um narciso cintilante brotar sob as mãos unidas.

Lina gritou de alegria e se virou, o rosto iluminado.

— Conseguimos!

Hades a envolveu nos braços e fitou os olhos brilhantes à sua frente.

— Conseguimos juntos, Perséfone. Eu não poderia ter feito isso sem a deusa da Primavera... Eu gostaria de encontrar palavras para expressar o prazer que sinto em partilhar meu mundo com você.

Sua voz soou grave, sua expressão era séria, e Lina se sentiu completamente perdida nos olhos escuros e profundos. Hades queria mais do que um simples beijo ou caso. Ela sabia que deveria inventar alguma brincadeira e dançar para longe dele, mas não teve forças para isso. Ansiava por estar com o deus tanto quanto este ansiava por estar com ela.

Beijou-o, pressionando o corpo no dele.

De repente, Hades interrompeu o beijo. Descansando a testa na dela, concentrou-se em controlar a respiração acelerada. Não a amaria no meio da floresta outra vez. Perséfone merecia mais do que isso. Ela merecia tudo o que ele poderia lhe dar de melhor.

— É tarde. Precisamos voltar para o palácio — disse, beijando-a na testa suavemente.

Lina o fitou, decepcionada.

— Eu não estou cansada.

— Nem eu.

— Não quero que este dia tenha fim, Hades.

— Não precisa ter. — Ele respirou fundo. — Ainda não conheceu meus aposentos... Gostaria de fazer isso?

Lina percebeu como fora difícil para Hades perguntar e sentiu o coração batendo forte. Um coração que não era verdadeiramente seu, dentro de um corpo que também não lhe pertencia...

Mas a alma era sua, disse a si mesma. Não era apenas seu corpo que o desejava. Ela amava a doçura e o senso de humor de Hades. Adorava o som de sua risada. Amava o poder e a paixão do deus, e também o cuidado e a sabedoria que ele demonstrava no trato com os espíritos em seu reino.

Tocou-lhe o rosto e admitiu a verdade para si mesma: ela o amava.

— Sim. Eu gostaria muito.

A alegria iluminou o rosto moreno, sendo logo seguida pelo desejo, e Hades se inclinou para beijá-la novamente, desta vez com mais ímpeto.

Em seguida, relutante, ele a soltou, pegou sua mão, e tomou com ela o caminho de volta.

Lina ouviu um zumbido estridente às sua costas, e ambos se viraram. Os vaga-lumes pairavam em um enorme aglomerado à margem do campo.

O deus riu.

— Perséfone voltará. Não está deixando o Submundo.

O frenético zunido diminuiu com as palavras.

— Eu adoraria voltar e fazer mais flores com vocês — assegurou Lina, e o zumbido mudou para uma alegre chilrear.

Sorrindo, ela e Hades continuaram seu caminho.

— É bom que eles gostem tanto de mim.

— Todo o meu reino a adora, Perséfone — ele afirmou.

Lina o fitou de soslaio.

— Apenas o se u reino?

O lábios do deus se curvaram num sorriso.

— Não, não apenas o meu reino.

Ela apertou sua mão.

— Ainda bem.

Assim que deixaram o bosque e entraram no jardim, Lina ouviu o choro.

— Alguém está chorando! — exclamou e, espreitando na penumbra, tentou descobrir quem era.

— Ali — Hades apontou à sua frente, na direção da estrada que passava em frente ao palácio e conduzia a Elísia.

Lina mal conseguiu discernir a silhueta iluminada à margem da estrada.

— É melhor vermos o que está acontecendo — sugeriu, buscando uma confirmação no rosto do deus.

— Sim. É estranho que um espírito chore em Elísia — ele comentou conforme rumavam naquela direção. — Os mortos podem sentir falta da família e de seus entes queridos da Terra dos Vivos, mas, quando são transportados pelo Estige e entram em Elísia, suas almas se enchem de alegria, ou ao menos de paz. A habilidade para deixar de sentir saudades da vida, ou ao menos a capacidade de compreender que todas as despedidas são apenas temporárias, incorpora-se ao espírito mortal. Os que ganharam a eternidade em Elísia sempre ficam contentes.

À medida que se aproximavam do espírito, o brilho tomou forma. Lina pôde ver, assim, que se tratava de uma mulher muito jovem e gorda, com os cabelos longos e escuros presos em um coque. Estava sentada à beira da estrada, a face nas mãos, chorando tão copiosamente que nem mesmo percebeu sua aproximação.

Num impulso, ela fez um sinal para que Hades ficasse para trás, e se pôs ao lado da estranha. Pouco antes de lhe tocar o om bro, percebeu que o corpo do espírito parecia muito mais denso. Se a mulher não tivesse a luminescência pálida dos mortos, ela teria acreditado que estava viva e que, de alguma forma, se perdera no Submundo.

— Querida, o que foi? — perguntou suavemente.

A alma deu um pulo e levantou o rosto molhado de lágrimas, fitando Lina com os olhos castanhos cheios de desespero. Reconheceu a deusa imediatamente e começou a se curvar, mas então viu Hades e levou a mão à boca. Mudou a direção da mesura e acabou indo para trás e para frente, sem saber a qual dos imortais prestar sua reverência.

— Eu não quis perturbar os deuses! — desculpou-se, enxugando os olhos. Pondo-se em pé, desajeitada, começou a recuar às pressas. — Por favor, perdoem-me!

— Não, eu... — Lina ergueu a mão, tentando apaziguá-la.

A mulher estacou, nervosa, olhando para sua mão estendida tal qual um rato assustado.

Lina suspirou e modulou a voz para o tom que costumava usar com os animais.

— Não vá. Você não nos perturbou. Hades e eu fomos dar um passeio e ouvimos seu pranto. Estávamos preocupados, não com raiva.

Ela pareceu relaxar um pouco.

— Qual é o seu nome? — O deus pediu no tom agradável e paternal que usara com Eurídice.

A mulher olhou para ele, ansiosa.

— Alcestes.

— Diga-nos por que estava chorando, Alcestes — Lina pediu com delicadeza.

Ela olhou para os pés.

— Estou me sentindo sozinha. Sinto falta do meu marido e da minha família. — Pressionou as costas da mão contra a boca, tentando inutilmente reprimir um soluço.

O olhar preocupado de Lina encontrou o de Hades, e ela notou que ele também parecia surpreso com as palavras do espírito.

Então o viu inclinar a cabeça para o lado e seu rosto assumiu uma expressão de aten ção. Em seguida, seus olhos pareceram escurecer, e ele apertou os lábios antes de falar com a alma.

— Não era sua hora, Alcestes — disse, a voz marcada pelo pesar.

O espírito deixou escapar outro soluço.

— Não, não era... Mas eu tinha de vir.

Hades franziu o cenho.

— Não precisava vir. A escolha foi sua.

Alcestes levantou o rosto molhado.

— Não entende? Ele perguntou aos outros e ninguém se dispôs a fazê-lo. Por isso eu tive de vir.

Totalmente confusa, Lina abanou a cabeça.

— Esperem... Agora eu é que não estou entendendo. Do que estão falando? Houve algum tipo de erro?

— Alcestes, diga a Perséfone por que entrou no Submundo — ordenou Hades.

A alma respirou fundo e enxugou o rosto com a manga da veste fúnebre.

— Fiquei casada por pouco tempo... O nome do meu marido é Admeto. — A face úmida da mulher se iluminou, e ela quase sorriu. — Ontem de madrugada os argumentadores profetizaram que Admeto morreria antes do pôr do sol. Meu marido imediatamente pediu clemência a Apolo, e o deus da Luz concordou. Na realidade, a profecia era verdadeira. As Parcas tinham terminado de tecer a vida de Admeto e, ao anoitecer, sua vida mortal seria extinta. Mas meu marido sempre foi um dos favoritos do deus da Luz, e Apolo ouvira o choro de Admeto. No fim, concedeu a ele um novo destino: ele seria poupado se alguém concordasse em morrer em seu lugar. Primeiro, meu marido foi procurar seus pais, que são velhos e não andam muito bem, mas eles se recusaram. Então procurou os irmãos. Estes também não se propuseram a morrer em seu lugar. Ele pediu aos amigos mais íntimos, assegurando que cuidaria bem de suas famílias, mas a resposta foi sempre a mesma. Ninguém estava disposto a morrer por ele. Desesperado, Admeto voltou para casa a fim de esperar por seu destino. — Alcestes fez uma pausa, procurando o olhar de Lina. — Eu não podia deixá-lo morrer.

Hades cerrou a mandíbula, mas, quando falou, sua voz não traiu nenhuma raiva.

— E Admeto permitiu que morresse por ele.

O espírito virou os enormes olhos molhados para o deus.

— Ele chorou e rasgou suas vestes... Estava desesperado.

— Mas não o suficiente para detê-la — observou o senhor do Submundo.

— Precisa entender, eu não tinha escolha! Precisava tomar o lugar dele! — Alcestes começou a chorar outra vez.

— Por isso sente essa solidão e dor agora. Não era a sua hora. Sua roda da vida ainda está girando, e sua alma sabe disso. Por isso não consegue encontrar paz — Hades explicou, solene, como se um grande peso pressionasse as palavras.

— Isso não pode ficar assim — interveio Lina. — Olhe para ela... Alcestes nem tem o mesmo corpo do restante dos espíritos.

— Isso porque não é como o restante dos espíritos. Está deslocada, fora do destino que lhe foi previsto.

— Então precisa consertar isso — Lina decidiu com firmeza.

— Ela está aqui porque um deus interferiu na vida de um mortal; algo que acontece com muita frequência, por diversas razões egoístas. Eu não acredito em interferir na vida dos mortais.

— Mas ela faz par te do seu reino, agora. Não está se intrometendo. Só está cumprindo com o seu dever!

— Perséfone — Hades falou com os dentes cerrados —, não se lembra do que aconteceu da última vez em que decidiu enviar um espírito de volta para a Terra dos Vivos?

Lina se encolheu como se ele a tivesse esbofeteado.

— Aquilo foi diferente. Não acredito que possa ser tão cruel, Hades! — Sua voz soou fria como gelo.

— Oh, por favor! — Alcestes se atirou de joelhos entre os dois imortais. — Eu não queria causar discórdia entre o rei e a rainha do Submundo!

— Do que chamou Perséfone? — Hades indagou, tenso. — Que título deu a ela?

Tremendo, a alma deslocada respondeu ao seu deus:

— Eu a chamei de rainha do Submundo, mas não fui eu quem deu esse título a ela, senhor. Simplesmente repeti o que falam de ­Perséfone no Mundo Superior. — Alcestes conseguiu sorrir para Lina. — É bem sabido que ela agora está reinando a seu lado.

Lina ficou sem palavras. Rainha do Submundo? As pessoas estavam mesmo dizendo aquilo dela?

Olhou para Hades, e o deus sombrio capturou sua expressão. Seus olhos brilharam, e seu rosto se iluminou com alegria.

Quando falou, Lina não conseguiu desviar o olhar, quase se esquecendo de respirar.

— Faça seu julgamento, rainha do Submundo. Eu me curvarei à sua vontade — disse e, num gesto quase imperceptível, inclinou a cabeça para ela.

Lina se obrigou a tirar os olhos dele e sorriu, trêmula, para Alcestes.

— Minha decisão é que retorne ao mundo dos mortais e a seu marido para terminar sua sina. E diga a Admeto que ele pode seguir o nov o destino que as Parcas teceram para ele.

Com um grito de felicidade, Alcestes se ergueu e pegou a mão de Lina, beijando-a e segurando-a junto ao rosto encharcado de lágrimas. Sorriu para ela, os olhos marejados.

— Oh, obrigada, rainha do Submundo! Meus filhos, e os filhos dos meus filhos, haverão de fazer sacrifícios pela senhora a cada primavera, até o fim dos tempos!

— É muita gentileza sua, mas saiba que eu prefiro um pouco de vinho e mel espalhados pelo chão. Não sou muito afeita a sacrifícios sangrentos — Lina declarou rapidamente.

Alcestes fez uma reverência profunda.

— Eu sempre me lembrarei de sua bondade, minha deusa!


Capítulo 21

Hades ficou muito quieto após Alcestes desaparecer pela estrada que a devolveria à sua vida mortal, e, vez ou outra, Lina o observava com discrição. Ele segurava sua mão, contudo seu rosto era inescrutável.

Definitivamente, ele a estava deixando muito nervosa. Ela ainda iria para seus aposentos? Teria interpretado mal a reação do deus ante o fato de ser ela chamada de rainha do Submundo? A felicidade que ela pensara ter visto poderia ser outro tipo de emoção?

Mas, se fosse assim, por que ele teria lhe permitido dar uma sentença com a qual não concordava?

Lina suspirou. Os pirilampos pareciam ter invadido sua mente.

Entraram no palácio pelo pátio dos fundos, então Hades rumou da esquerda, o lado oposto ao quarto dela. Passaram pela entrada da sala de jantar e, por fim, ele parou em frente a uma enorme porta em que tinha sido esculpida a imagem de Órion em pé, sobre as patas traseiras, e a do elmo.

Nervosa, Lina apontou para o entalhe.

— É uma ótima reprodução de Órion. Ele parece muito feroz.

Hades bufou.

— Pois eu acho que agora será necessária uma nova versão...
A que o mostre curvando-se à sua senhora.

— Ora... — Aliviada com a brincadeira, ela o cutucou com o cotovelo no braço. — Ele ainda é considerado um dos seus temíveis cavalos. Eurídice vive para evitá-lo.

O deus balançou a cabeça.

— Tenho medo de que sua reputação de ser um animal solitária e feroz tenha sido arruinada para sempre. — Ele se virou para ela e segurou seu queixo, erguendo-lhe a face. — Mas ele não se importa... O ganho excede a perda. — Beijou-a delicadamente, murmurando contra seus lábios: — Vai comigo para o meu quarto?

— Sim — Lina respondeu com um frio na boca do estômago.

Hades abriu a gigantesca porta, e ela finalmente entrou no mundo particular do deus do Submundo. A primeira coisa que notou foi a enorme cama no centro do aposento, encimada por um dossel que pendia em luxuosas dobras de seda pura. A própria cama se encontrava coberta com pesados lençóis brancos, fazendo o conjunto parecer uma nuvem que havia perdido seu lugar no céu. Era suntuosa, sexy... e muito, muito convidativa.

Quando percebeu que estava olhando o móvel e deixando a imaginação vagar, Lina sentiu o rosto arder. Desviou o olhar, e teve a atenção atraída para o impressionante par de lustres que pendia do teto abobadado. Pareciam feitos de vidro preto, e centenas de velas bruxuleavam, cintilando em sua base incomum.

— Seus lustres são sempre tão lindos! Estes são feitos de vidro preto?

— De obsidiana — explicou Hades. Pressionando-lhe a base das costas intimamente, ele a conduziu pelo quarto. — Quando ela é cortada e polida, assemelha-se ao vidro.

Lina sorriu.

— E quais são suas caracter ísticas? Devem ser muito especiais se a escolheu para os seus aposentos.

— Os poderes da obsidiana são a proteção, a segurança, a divinação e a paz. — Ele olhou para a luz piscante. — E eu também a considero bastante tranquilizadora.

— Sem dizer que combina com tudo aqui. — Lina apontou para o restante do vasto cômodo.

As cores predominantes eram o preto, o branco e o prata. Em vez de tornarem o quarto austero e frio, os contrastes dramáticos tinham um efeito intrigante... como se o deus tivesse encontrado o exato equilíbrio entre a luz e a escuridão.

— Gostaria de beber algo? — Hades indagou, um pouco tenso, perguntando-se se ela podia ouvir as batidas de seu coração.

Quando Perséfone assentiu, ele caminhou, apressado, até uma mesa baixa, em meio a duas poltronas de cetim branco, e serviu duas taças de uma garrafa que já havia sido aberta e colocada em um recipiente com gelo.

Lina sorriu em agradecimento e pegou a taça de cristal cheia de um líquido dourado. Seu aroma a fez sorrir.

— Ambrosia!

— Há rumores de que está apaixonada por essa bebida. — Os lábios de Hades também se curvaram num sorriso.

— Deveria haver rumores de que, às vezes, eu exagero na dose...

— Isso pode ser um segredo nosso. — Ele tornou a sorrir e ergueu a taça para ela. — Aos recomeços.

— Aos recomeços — Lina repetiu, tocando-a com a sua.

Enquanto bebiam, seus olhares se encontraram. Em seguida Hades colocou a taça de volta na mesa e, sem hesitar, ela fez o mesmo.

O deus sombrio respirou fundo, então percorreu o curto espaço entre eles e a tomou nos braços.

— Está me assustando, Perséfone. Não consigo respirar sem pensar em você...

Capturou-lhe os lábios em um beijo faminto, e eles se uniram, sedentos.

Tudo o que ela pôde pensar foi: Ah, obrigada! Finalmente!

O corpo rijo de Hades pulsou contra o dela, e o de Lina respondeu com um calor. Suas mãos percorreram o peito largo, encontrando, inquietas, a túnica de couro, e ela quis praguejar de tanta frustração. Não tinha ideia de como arrancar aquela coisa!

Enquanto os beijos profundos faziam fervilhar seu sangue, tateou a veste até encontrar amarras do couro nas laterais. Puxou-as, impaciente, soltando-as o bastante para poder deslizar as mãos para dentro da couraça e sentir os músculos rijos da cintura e do abdômen de seu amado.

Hades gemeu contra a boca carnuda, e suas mãos desceram para segurar a curva suave das nádegas de Perséfone, pressionando-a com mais firmeza contra ele. Uma onda de calor invadiu seu corpo quando ele a sentiu se movendo em resposta. Lina mordiscou seu lábio inferior, provocante, então se afastou apenas o suficiente para fitá-lo nos olhos.

— Leve-me para a cama — falou, meio sem fôlego.

Ele engoliu, tentando aliviar a secura na garganta, e acedeu. Conduziu-a até a enorme cama, repartiu a cortina de seda, mas não se juntou a ela de imediato. Recostada nos travesseiros, Perséfone era ainda mais estonteante. Diante de sua hesitação, a deusa sorriu para ele interrogativamente.

— Primeiro devo lhe dizer uma coisa. — Sua voz saiu carregada de emoção. — Eu nunca fiz isso antes.

— Nunca trouxe uma mulher para o seu quarto?

— Eu nunca trouxe uma imortal aqui. Mas não apenas isso.

Os olhos de Lina se arregalaram.

— Nunca fez amor?!

O riso de Hades soou forçado e nervoso.

— Eu fiz amor. Mas nunca com uma deusa.

Lina sentou-se, querendo desesperadamente revelar a Hades a ironia da situação. Ele estava nervoso pela mesma razão na qual ela sentia um bando de borboletas voejando no estômago.

— Para ser sincera, eu também não me deito com ninguém há um bom tempo. — Aproximou-se e tocou-lhe a mão. No mesmo momento, os dedos dele se entrelaçaram aos seus. — E juro: nenhum deus me fez sentir o que sinto por você.

Hades sentou-se a seu lado na cama, olhando suas mãos unidas.

— Quando Alcestes a chamou de rainha do Submundo, senti um orgulho indescritível só de pensar que outros acreditam que você me pertence, que poderia ser feliz reinando a meu lado. Não posso conceber algo que me traria mais alegria.

Lina deu um longo suspiro.

— Eu teria orgulho de ser chamada de rainha do Submundo, mas, não sei... — Vacilou, dividida entre a promessa que fizera a Deméter e a necessidade de dizer a verdade ao deus.

Ele a segurou pelo rosto.

— Já me basta saber que a ideia não lhe é repugnante. O tempo cuidará do resto.

Lina colocou as mãos sobre as dele.

— Como este seu reino maravilhoso poderia me causar repugnância? Eu o adoro! — disse com voz rouca.

O sorriso de Hades foi deslumbrante, e Lina se perguntou como era possível que os outros imortais não o vissem como ela.

De repente, ficou extremamente feliz por isso. Se soubessem, ele não seria seu. E seria como o restante deles.

Hades a beijou com suavidade, contudo Lina pôde sentir a tensão no corpo másculo através dos músculos rijos de seus braços. Quando falou, sua voz parecia ainda mais profunda:

— Mostre-me como lhe dar prazer. Só de pensar em você, um só vislumbre de sua pele, já faz meu sangue ferver... Mas sei que o desejo não é tão simples para as mulheres. — Embora tenso, ele conseguiu dar uma risada. — Mesmo com a minha limitada expe­riência, aprendi que as deusas são, de fato, muito mais complexas do que os deuses. Ensine-me como atiçar o seu desejo, Perséfone.

Lina sentiu a boca seca e passou a língua pelos lábios, arrepiando-se ao perceber que ele não deixara o gesto passar despercebido.

— Pode começar tirando a roupa — falou, meio sem fôlego.

Sem hesitação, Hades arrancou o quitão já solto, livrou-se da túnica curta e também da tanga de linho, igual à que usava na ferraria e que ela achara tão atraente. Uma vez livre das roupas, parou diante dela, totalmente nu.

E era magnífico. A pele lisa dourava-lhe os músculos, fazendo-o parecer ainda mais sombrio e exótico.

Céus! , ela nunca vira um homem tão perfeito!

Seus olhos viajaram pelo corpo musculoso, e sua respiração ficou presa na garganta. Hades se encontrava plenamente excitado, e uma onda inebriante de prazer a invadiu quando ela pensou que tinha um deus sob seu comando. Ficou parada por um momento, em seguida descansou as palmas das mãos no peito nu. Lentamente, ela as fez correr ao longo da pele lisa, amando sentir os músculos rijos e bem definidos do peito e dos braços de seu amor.

Quando suas mãos desceram mais, um tremor o percorreu.

— Algo de que todas as mulheres gostam é acreditar que seu toque é especial — Lina disse, rouca. — É bom saber que, mesmo que nossos corpos não tenham tanta força, um pequeno toque nosso pode fazer um homem estremecer e gemer de prazer... — Pegou a carne rija na mão e a acariciou sensualmente.

Um gemido intenso escapou da garganta de Hades, e Lina sorriu, sedutora.

— Estou machucando você?

— Não! — ele negou com voz abafada. — Embora eu acredite que possa me matar de prazer apenas com um toque... Basta pensar em você, vê-la, sentir seu cheiro, e fico excitado, dolorido, louco para amá-la!

As palavras tiveram o efeito de uma descarga elétrica no corpo de Lina, e ela o empurrou de leve para dar um puxão no laço que prendia sua própria túnica no ombro esquerdo. Contorceu-se, impa­ciente, até deixar os seios nus, e levou apenas um momento para soltar as amarras em seus quadris. Com um movimento sensual, fez o tecido deslizar por seu corpo, em seguida se jogou nos braços de Hades.

— Sua pele é tão quente! — falou entre beijos. — Eu amo senti-la de encontro a minha.

— E você me faz pegar fogo! — Hades sussurrou contra seus lábios enquanto explorava a curva de seus quadris eroticamente. De súbito, virou-se e se deitou na cama, puxando-a com ele. — Mostre-me mais, Perséfone... Ensine-me como fazê-la arder também!

Lina saiu de cima do corpo másculo, de modo que ficaram deitados de lado, de frente um para o outro. Ela mal sabia por onde começar. Já se sentia tão pronta que, por um momento, quase o fez subir nela.

Então respirou fundo e deteve o impulso. Hades não era como seu ex-marido ou qualquer outro dos seus desinteressados amantes. Desta vez seria diferente, pois Hades era diferente. Nele ela encontrara tudo o que uma mulher podia desejar: um homem que queria agradar de verdade e estava disposto a ouvir e aprender para que ela pudesse sentir prazer. Tudo o que precisava fazer, naquele momento, era mostrar o que desejava.

Mas isso era muito mais difícil do que ela havia imaginado. O que queria, afinal?

Fechou os olhos e tentou ordenar os pensamentos. Em toda a sua vida de adulta, sempre sonhara com alguém que gostasse dela o suficiente para se preocupar com seu prazer tanto quanto o seu próprio. Precisava ser honesta com Hades, bem como consigo mesma. Tinha que romper com as barreiras que seus antigos amantes a tinham feito erigir.

Estremeceu. Estava pronta.

Abriu os olhos e, bem de leve, tocou o ponto onde o próprio pescoço encontrava o ombro.

— Para mim, são as pequenas coisas que importam — falou com uma voz subitamente tímida. — Assim como ser beijada aqui...

Hades se apoiou em um cotovelo, então se inclinou para a curva delgada. Beijou-a e mordeu-a de leve, passando a língua pela área sensível.

— Eu também queria que você me acariciasse enquanto me beija... Deixe meu corpo se acostumar com o seu toque! — Lina pediu num sussurro.

Quando a respiração de Perséfone se aprofundou, Hades seguiu pela linha sedutora de seus ombros até os seios e os cobriu delicadamente com as mãos.

— Ah, sim... Aí também! — ela gemeu enquanto ele depositava minúsculos beijos nos montes arredondados.

— Sentirá prazer se eu a lamber e beijar aqui? —Tocou os mamilos túrgidos, a voz saindo rouca de desejo.

— Sim! — Lina mergulhou as mãos em seus cabelos.

Enquanto a provocava e sugava, Hades correu a mão mais para baixo. Primeiro afagou-lhe o comprimento da perna, moldando os músculos curvilíneos. Depois, lembrando-se de que Perséfone dissera dar valor às pequenas coisas, acariciou a área macia por trás de seu joelho. Ainda seguindo os sinais do corpo delicado, desenhou círculos ardentes no interior de suas coxas.

Lina se abriu para ele e, guiando-lhe a mão até o centro do próprio corpo, mostrou-lhe como acariciar seu ponto mais sensível, sussurrando incentivos meio sem fôlego ao perceber que o toque acompanhava seu ritmo.

A onda de orgasmo veio rápida e poderosa, e ela gritou o nome dele conforme uma estranha eletricidade brotou em seu âmago e irradiou por seus membros.

Hades a abraçou com força, os próprios desejos temporariamente esquecidos em meio ao espanto de ter sido capaz de evocar nela uma resposta tão apaixonada. Tinha vontade de gritar de felicidade. Perséfone o conhecia em sua essência, desejava-o e havia se entregado a ele.

Lina abriu os olhos e o fitou. Ele estava sorrindo para ela e afastando-lhe os cabelos do rosto.

Sua respiração ainda não tinha voltado ao normal quando o deus recomeçou a beijá-la.

— O melhor sexo é quando os amantes se satisfazem mutuamente — disse, ofegante, pressionando-o de volta para a cama. — É uma dança onde se dá e se recebe. Embora o prazer de seu parceiro possa se tornar o seu próprio, não devemos nos abster de nossas necessidades e desejos... — Acariciou o corpo musculoso, beijando e saboreando a salinidade de sua pele, até que a respiração dele se tornou irregular.

O suor brilhava no corpo de Hades, e todos os seus músculos se retesaram quando ele lutou para controlar o desejo.

Lina o envolveu nos braços com urgência.

— Não se contenha mais! Eu o quero dentro de mim agora... Quero sentir toda a sua paixão.

Com um grunhido, ele rolou de modo a ficar sobre ela. Apoiando-se sobre as mãos, fitou-a nos olhos enquanto mergulhava no corpo macio.

Seu calor úmido o cercou, e Hades precisou de toda a sua força de vontade para conter a explosão que ameaçava acontecer. Possuir Perséfone se revelara melhor do que qualquer fantasia; melhor do que qualquer coisa que ele pudesse ter imaginado.

Deteve-se por um momento, tentando recuperar o autocontrole.

Com um gemido, Lina arqueou o corpo, e Hades respondeu combinando sua paixão com a dela, até que teve a visão obliterada para tudo o mais, exceto para a deusa sob ele. Sentir que ela o comprimia por inteiro o levou às alturas e, conforme espasmos de prazer o percorriam, Hades afundou o rosto nos cabelos fartos de sua amada, repetindo seu nome seguidas vezes...

Um perfume doce e familiar despertou Lina. Hades encontrava-se de pé ao lado da cama, sorrindo. Estava nu, exceto pela tanga justa que o cobria bem abaixo da cintura. Em uma das mãos, segurava uma taça de ambrosia dourada e refrigerada, e, na outra, um manto leve, de seda.

— Bom dia — ela falou, sonolenta.

— Bom dia. Imaginei que estivesse com sede. — Ele ergueu o cálice de cristal. — Além disso, Eurídice trouxe algumas coisas para você. — Apontou por cima do ombro para uma mesa carregada com romãs e uma deliciosa variedade de queijos e pães.

Lina sorriu. Hades nunca estivera tão adorável, parado em pé ali, meio nervoso, tentando agir como se estivesse acostumado a ter uma deusa em sua cama.

— Obrigada. — Sentou-se e se espreguiçou.

O lençol caiu em torno de sua cintura, e os olhos dele devoraram seus seios nus.

Sem se conter, Hades colocou o que tinha nas mãos sobre a mesa de cabeceira e se ajoelhou diante dela, segurando-lhe os seios e beijando os mamilos róseos.

Embora o toque fosse suave, Lina não pôde deixar de se encolher. Seu corpo se encontrava maravilhosamente saciado, mas também muito, muito dolorido.

O deus recuou.

— Estou machucando você?

— Acho que estou um pouco sensível. Sete vezes em uma noite é, bem... um pouco incomum.

Hades sentiu que corava enquanto lhe cobria os ombros com o manto e lhe alisava os cabelos. Perséfone estava amarrotada e tinha uma marca vermelha na curva do pescoço.

E se ele tivesse sido muito bruto? Na noite anterior parecia ter dado prazer a ela, mas, naquela manhã, a deusa parecia quase descontente.

Perséfone se pôs de pé com certa cautela e tornou a encolher os ombros sob a capa.

Por todos os deuses! E se ele a tivesse ferido?

Lina abriu um sorriso e sentou-se com cuidado antes de atacar a mesa posta. Nem mesmo percebeu como o deus se retesou em resposta ao seu óbvio desconforto físico.

Hades condenou a si mesmo por ser um idiota, inexperiente.

Conforme Lina comia, sentiu sua energia retomar o nível normal e as dores em seu bem utilizado corpo se dissipar. Respondendo ao seu revigorado bom humor, o nervosismo de Hades evaporou, e eles fizeram o desjejum como dois amantes apaixonados, permitindo que seus joelhos se tocassem e alimentando um ao outro com os petiscos de seus próprios pratos.

Ele começava a explicar como tinha produzido os lustres que pendiam graciosamente do teto acima deles quando duas batidas firmes soaram na porta.

— Entre! — gritou Hades.

Iapis se fez presente, segurando uma pequena caixa quadrada nas mãos, e fez uma reverência, primeiro para o senhor do Submundo, depois para Lina.

— Bom dia, Hades, Perséfone... — Seus olhos brilhavam, e ele tentou, sem sucesso, esconder um sorriso. — Eu trouxe o que me pediu, senhor. — Entregou a caixinha a Hades.

— Excelente. Muito obrigado, Iapis.

Ao ver o daimon, Lina se lembrou de que negligenciara Eurídice por completo e sentiu uma ponta de culpa.

— Iapis, poderia levar uma mensagem a Eurídice para mim?

— Claro, senhora.

— Diga a ela que eu adoraria ver o que ela andou desenhando.

Iapis sorriu.

— Será um prazer para Eurídice, tenho certeza.

— Ótimo. Mande-a levar seus trabalhos para o meu quarto ainda hoje. E, por favor, diga-lhe que estou ansiosa por ver suas criações... e também por vê-la. Senti sua falta.

Lina pensou ter visto as faces do daimon enrubescer de leve antes que ele aquiescesse e, ainda sorrindo, se despedisse com uma mesura.

— Ele está de bom humor, sem dúvida — comentou Lina, pensativa, tamborilando os dedos na mesa.

— Ele gosta de me ver feliz — Hades falou brincando e beijando-lhe a mão.

Ela sentiu-se tão tola e sorridente como o daimon se mostrara, e tratou de se recompor.

— Não acho que ele esteja assim, feliz, apenas por causa de você.. Aliás, faz algum tempo que eu gostaria de conversar acerca do seu amigo daimon.

Hades ergueu uma sobrancelha, esperando.

— Creio que Iapis esteja interessado em Eurídice — revelou Lina.

O sorriso do deus foi como o de um menino apanhado com a mão na bo tija.

— Acho que tem razão.

— Então preciso saber de suas intenções! — ela falou com firmeza.

Hades concordou, a expressão se tornando séria no mesmo instante.

— Compreendo sua preocupação, claro... Mas acredito que eu possa falar por Iapis. Suas intenções são honradas. Ele realmente se preocupa com a pequena alma.

— Vai se certificar de que ele seja cuidadoso com Eurídice? Ela passou por muitas dificuldades. É difícil para uma mulher amar outra vez depois que foi ferida.

Hades tocou-lhe o rosto com delicadeza, pensando se a deusa estaria se referindo apenas a seu leal espírito.

— Pode confiar em mim. Sempre. Cuidarei de Eurídice como se ela fosse a própria deusa da Primavera.

— Obrigada. Não é que eu não goste de Iapis... eu gosto. Mas me preocupo muito com a minha amiga.

— É uma deusa generosa, Perséfone, já que se preocupa verdadeiramente com aqueles que a amam — ele afirmou. Então olhou para a caixa quadrada descansando ao lado, e a fez deslizar até ela.

— É algo que fiz na primeira noite em que esteve aqui. Eu não conseguia dormir. Tudo o que podia fazer era pensar em você, em seu sorriso, em seus olhos... — Fez um gesto para que ela abrisse o presente.

O fecho destravou com facilidade, e Lina levantou a tampa. Aninhada junto a um estojo de veludo preto, havia uma delicada corrente de prata. Desta pendia uma única pedra ametista, a qual fora esculpida e polida de modo requintado, na forma de um narciso em flor.

Lina sentiu os olhos marejados.

— Oh, Hades! É a coisa mais bonita que eu já ganhei!

Ele se levantou e postou-se atrás dela, tirando o colar do estojo para colocá-lo em seu pescoço. Pendurou-o perfeitamente, bem acima da curva de seus seios.

— Obrigada... Eu adorei!

O deus a puxou para seus braços.

— Na noite em que fiz isso, eu estava cheio de desejo e morrendo de saudade. Mas agora está aqui comigo, e o vazio dentro de mim não mais existe. Os mortais foram sábios em afirmar: é a rainha do Submundo. Não posso imaginar minha vida sem você. Não trouxe a primavera apenas para o meu reino, Perséfone, mas também para o meu coração. Estou apaixonado.

As lágrimas que tinham se agrupado nos olhos de Lina transbordaram, e ela não conseguiu falar.

Hades enxugou-lhe o rosto com os polegares.

— Por que está chorando, minha querida?

— As coisas são tão complicadas...

Ele franziu a testa.

— Porque é a deusa da Primavera?

— ... Também.

— Diga-me a verdade. Chora porque não se imagina permanecendo no Submundo?

O deus tentou manter a voz neutra, no entanto Lina podia ver a dor refletida em seus olhos.

— Quero estar com você — disse apenas, tentando não soar muito evasiva.

— Então não posso conceber qualquer dificuldade que não possamos vencer juntos —Hades declarou, abraçando-a com força.

Descansando em seus braços, Lina fechou os olhos, disposta a parar com as lágrimas. Chorar não ajudaria em nada. Ela o amava, mas esta era apenas uma pequena parte da verdade que ele precisava saber.

Queria tanto contar tudo a Hades! Precisava fazer isso.

Mas havia dado sua palavra, e, antes de qualquer coisa, deveria conversar co m Deméter.


Capítulo 22

— Disse que ela não está em seu quarto? — Hades virou-se para o daimon.

— Não, senhor... A deusa se foi.

— E Eurídice não sabe onde ela está?

— Não. Eurídice estava ocupada com os desenhos que mostraria à sua senhora mais tarde.

Hades andou de um lado para o outro. Perséfone havia dito que precisava de um bom banho de imersão e que depois tiraria uma soneca. Sim, ela lhe parecera estranha, mas ele atribuíra seu comportamento ao cansaço.

Assim, resolvera lhe dar algum tempo enquanto atendia às petições dos mortos... ainda que mais distraído do que nunca. A maioria deles tinha vindo ver Perséfone, e havia ficado visivelmente desapontada por a deusa não ter aparecido.

Apertou a mandíbula. Podia compreendê-los muito bem. Ele mesmo não queria mais nada a não ser vê-la por perto. Ainda trazia seu perfume na pele, e, quando divagava, podia sentir o calor suave de Perséfone contra ele.

Para onde ela havia ido? Por que não lhe dissera nada? O que estaria pensando?

Passou a mão pelo cabelo. Depois de eras de uma existência solitária, seu desejo fora feroz, e, talvez, ele houvesse sido muito bruto. Talvez a houvesse ferido.

Ou talvez não a tivesse satisfeito. E se ela o comparara a seus outros amantes imortais?

Cerrou os punhos. Apenas pensar em outro deus encostando nela o deixava com náuseas.

— Encontre-a, Iapis — rosnou.

O daimon se curvou e desapareceu.

OK , Lina admitiu para si mesma, mordendo o lábio. Estava preocupada.

— Merda! Por que tem de ser tão complicado?

As orelhas de Órion se inclinaram para trás a fim de captar suas palavras, e ele relinchou uma resposta suave.

— Eu o amo de verdade — ela disse em voz alta. — E agora? O que vamos fazer?

Lina suspirou. Sabia o que ela precisava fazer, razão pela qual escapulira com o cavalo.

— Verdade que a história que inventei foi excelente... — falou a Órion. — Tenho certeza de que Iapis ficará apenas um pouco aborrecido quando descobrir que o enorme odre de ambrosia que Eurídice o fez encher até a borda é para o Cérbero.

Ao ouvir falar do cão de três cabeças, Órion bufou com desgosto.

— Ah, ele não é tão ruim assim. Só ficou um pouco alterado pelo álcool, mas, no fim foi um amor... Além do mais, sabe que eu gosto muito mais de você. — Ela deu um tapinha na pelagem reluzente do cavalo.

Órion arqueou o pescoço e mudou o trote para um forte galope, fazendo a estrada escura passar rapidamente por baixo deles. A fiel esfera de luz pairava sobre seu ombro direito, mantendo o ritmo com o garanhão, e, a distância, Lina já podia ver o contorno leitoso do bosque de árvores fantasmas.

Perguntou a si mesma se Hades já teria notado a sua ausência. Tomara que não, mas, se ele procurasse por ela, Eurídice lhe diria que ela fora levar ao Cérbero a guloseima que prometera. Os cavalariços, por sua vez, relatariam que ela havia levado Órion para um passeio.

Hades não deveria se preocupar. Ela não queria que ele ficasse preocupado. Não desejava lhe causar nenhuma dor.

A noite que tinham passado juntos fora uma experiência nova para ela. Hades lhe despertara sentimentos que, até então, não passavam de resquícios de sonhos e fantasias. E não fora só sexo.

Suspirou outra vez. Isso teria sido fácil de lidar. Poderia ter com ele um caso tórrido e excitante, saciar a si própria e, no momento oportuno, ir embora.

Mas, decididamente, não tinha sido apenas sexo.

A lembrança das almas gêmeas ainda a assombrava, assim como o olhar de Hades quando ele declarara seu amor. Ela havia ansiado por responder com as mesmas palavras; no entanto, não era livre para se comprometer com ele. Não ainda. Não até que conversasse com Deméter.

E isso partira seu coração.

Não tivera a intenção de amá-lo. Havia ido para o Submundo com as melhores intenções e um trabalho a fazer. Ponto. Não estivera interessada em romance, amor ou sexo.

E o Mundo Inferior era o último lugar em que esperava encontrar alguma dessas coisas.

Merda! Deméter descrevera Hades como um assexuado, e ela estivera totalmente despreparada para a verdade.

Rodou um fio da crina sedosa de Órion em torno do dedo conforme o garanhão galopava pelo bosque de árvores fantasmas. Estava metida numa enorme encrenca. Amava Hades, estava certa disso, mas um pensamento incômodo não a abandonava: enquanto estivera com ele, enquanto pudera tocá-lo e fitá-lo nos olhos, fora fácil acreditar que ele a amava também. Ela , Carolina Francesca Santoro, e não uma deusa jovem e fútil.

E, não fora ele mesmo quem dissera que o verdadeiro amor tinha mais a ver com a alma do que com o corpo?

Então, por que faria diferença se seu corpo verdadeiro fosse o de uma mortal de quarenta e três anos de idade? Teoricamente, não deveria fazer.

Órion continuou disparado através do túnel escuro em direção à abertura ampla e iluminada do Mundo Superior.

Era inegável que tivesse mentido a Hades, Lina pensou. Mesmo que ela não houvesse tido a intenção de seduzi-lo, no que ele acreditaria quando soubesse a verdade? Será que compreenderia?

E, o mais importante, será que ele ainda a amaria?

O garanhão galopou até o fim da passagem, saindo para a luz suave de uma manhã fria. Ela puxou as rédeas do cavalo, obrigando-o a uma parada, apanhou as próprias coisas e, em seguida, conduziu-o até a bacia de mármore que sustentava o oráculo de Deméter.

Escorregou pelas costas de Órion.

— Fique por perto e seja bonzinho. Isso não vai demorar muito.

— Ela montou Órion para levar um agrado para o Cérbero?

O daimon concordou com um gesto de cabeça e uma expressão ligeiramente irritada no olhar.

— Eu mesmo enchi o odre. Ela levou ambrosia para aquele bruto!

Em qualquer outro momento, a notícia teria feito Hades rir. Agora, contudo, as dúvidas lhe esfaqueavam o coração.

— Mas Perséfone me disse que estava exausta. Que tomaria um banho e descansaria. Por que ela sairia para um passeio em vez disso?

— Apenas a deusa pode lhe responder isso, senhor.

O crescente sentimento de desconforto que o torturava desde aquela manhã desabrochou. Ele devia tê-la magoado, concluiu Hades. Teria assustado Perséfone? Ou teria declarado seu amor por ela cedo demais?

Sentiu o peito se apertar. Ela não havia proclamado seu amor em troca, pensou, lembrando-se de suas lágrimas.

Amaldiçoando-se em silêncio por sua inexperiência, virou-se para o daimon.

— Traga-me o elmo da invisibilidade.

Lina estudou o oráculo. Este descansava, quieto e benigno; uma simples esfera de vidro de cor leitosa.

Mas era o canal para uma deusa que detinha o poder de moldar seu futuro.

Fechou os olhos, admitindo que não estava apenas preocupada. Estava com medo. Como aquilo poderia funcionar? Ela era uma mortal de outro tempo e lugar. Ele, um deus antigo.

Sentiu lágrimas de frustração assomar aos olhos fechados.

Pare com isso! Controle-se!

Precisava contar tudo a Deméter. Não podia evitar isso por mais tempo.

Perséfone não estava com o Cérbero, embora o cão continuasse lambendo, feliz, o velho odre que ela lhe dera. Também não tinha passado por ele, voltando ao palácio, motivo pelo qual Hades seguiu adiante.

Quando encontrou o barqueiro, Caronte relatou que transportara a deusa e seu corcel para a outra margem do Estige.

Hades admitiu o pior para si mesmo: Perséfone havia definitivamente retornado à Terra dos Vivos.

Sentiu uma queimação familiar brotar no peito. Ela o deixara sem nem mesmo dizer adeus? Não queria acreditar nisso.

E não acreditaria até que a confrontasse e ela lhe dissesse isso cara a cara.

Com sua velocidade de deus, Hades seguiu pelo caminho escuro que o levaria ao Mundo Superior e à deusa da Primavera.

Lina respirou fundo e abriu os olhos. Concentrando-se em Deméter, passou as mãos três vezes pelo oráculo.

— Deméter? Precisamos conversar...

A orbe começou a rodopiar e, quase no mesmo instante, as feições benfeitas da Grande Deusa entraram em foco.

— Quando uma filha clama pela mãe, o tom de sua voz deve ser mais acolhedor do que tristonho — disse, suavizando a repreensão com um sorriso maternal.

— Eu não tinha intenção de desrespeitá-la, mas sinto-me, mesmo, um pouco deprimida — confessou Lina.

Deméter franziu o cenho.

— O que a incomoda, filha? Tenho ouvido apenas relatos positivos sobre o seu trabalho. Os espíritos se mostram satisfeitos por a deusa da Primavera estar peregrinando pelo Submundo.

Era a pura verdade. Desde a chegada da deusa, que todos acreditavam ser Perséfone, ao Mundo Inferior, as súplicas incessantes e irritantes dos parentes dos mortos havia terminado, e os sacrifícios por agradecimento, aumentado. A mortal vinha marcando presença e fazendo um excelente trabalho ao representar sua filha, refletiu a deusa da Colheita. Não podia imaginar o que a estava incomodando.

— As coisas tomaram um rumo inesperado.

A careta de Deméter se acentuou.

— Não me diga que foi descoberta.

— Não! Todos ainda pensam que sou Perséfone. — Lina fez uma pausa, mordendo o lábio. — O meu problema tem a ver com isso .

— Explique-se.

— Eu me apaixonei por Hades, e ele também me ama. Preciso contar a ele quem eu realmente sou e descobrir uma forma de consertar essa confusão — Lina falou de uma vez.

Os olhos de Deméter pareceram se transformar em pedra.

— Por acaso isso é algum tipo de brincadeira mortal?

— Não. — Lina suspirou. — Não há graça nenhuma nessa história.

— Está me dizendo que você e Hades se tornaram amantes?

— Sim.

— Então Hades brincou com seus sentimentos. — Deméter balançou a cabeça com tristeza. — E eu sou a culpada por isso. Expus uma mortal aos caprichos de um deus. Perdoe-me, Carolina Francesca Santoro... Minha intenção não era lhe causar dor.

— Não! — protestou Lina. — Não é assim. Hades não se aproveitou de mim. Nós nos apaixonamos um pelo outro!

— Vocês se apaixonaram? Um pelo outro? — A voz de Deméter soou enérgica. — Como é possível? Hades pensa que é Perséfone, deusa da Primavera. Não tem ideia de que fez amor com uma mortal. Pense, Carolina! Como pode acreditar que é você quem ele ama? — Deméter riu sem vontade, as belas feições contorcidas. — Amor! É mesmo tão ingênua? Os imortais amam de forma bem diferente dos mortais. Certamente até mesmo em seu mundo já ouviu falar dos abusos do amor imortal.

Lina ergueu o queixo e estreitou os olhos.

— Não sou nenhuma criança. Não fale comigo como se eu tivesse as emoções instáveis de uma adolescente. Conheço a diferença entre o amor e a luxúria. Sei quando um homem está me usando, assim como sei quando ele está me tratando com honestidade. As aulas foram difíceis... mas a experiência me ensinou a diferença.

— Então devia saber — concluiu Deméter.

As palavras suaves tiveram o efeito de um tapa.

— Não conhece Hades. Ele não é como o restante de vocês.

— Não é como o restante dos imortais? O que me diz é absurdo e ingênuo. Hades é um deus. A única diferença entre ele e os outros deuses é que Hades vive recluso e decidiu colocar os mortos acima dos vivos.

— Isso é apenas parte do que o torna tão diferente. — Lina respirou fundo. Não queria trair a confiança de Hades, mas precisava convencer Deméter. — Sou a única deusa a quem ele amou.

Os olhos de Deméter se estreitaram.

— Foi isso o que Hades disse? Então aqui vai sua primeira lição a respeito do amor imortal: não acredite em nada do que um deus diz quando ele está tentando se deitar com uma deusa. O que ele falou foi apenas o que você precisava ouvir para se entregar a ele.

Recusando-se a acreditar nas palavras, Lina sacudiu a cabeça de um lado para o outro. Deméter, porém, ignorou o gesto e prosseguiu.

— No que acreditou? Que ficariam juntos por toda a eternidade? Esqueça que é mortal. Esqueça que é de outro mundo. Mesmo se fosse a deusa da Primavera, acredita honestamente que Hades e Perséfone poderiam se unir e ter seus nomes ligados para sempre? A simples ideia é absurda! Como poderia existir primavera na Terra dos Mortos?

— A primavera não tem de existir lá, mas eu posso ficar no Submundo. Eu, a mortal, Carolina Francesca Santoro. Ficarei no Submundo e am arei seu deus. Apenas me transforme novamente. Devolva o meu corpo, e eu devolverei este — ela apontou para si mesma — à sua filha.

— Não posso fazer isso. Não é deste mundo, Carolina! — A raiva transformou o rosto de Deméter. — Você sabia que essa era uma situação temporária. Eu nunca disse o contrário.

— Tem de haver uma saída!

— Não há. Ambas devemos respeitar os nossos juramentos.

— Então, não posso nem mesmo dizer a Hades quem eu sou? — Lina concluiu, desesperada.

— Use a razão, Carolina, e não o coração. O que o senhor dos Mortos faria se soubesse que cortejou não a deusa da Primavera, mas uma padeira mortal de meia-idade? Abriria os braços para a sua mentira? — Deméter levantou a mão para silenciar os protestos de Lina. — Pouco importa que não tenha tido a intenção de ­enganá-lo. Você diz que eu não conheço Hades, mas todos os imortais sabem algo a respeito dele: o senhor dos Mortos preza a verdade acima de tudo. Como ele reagiria a esta farsa?

— Ele me ama!

— Hades ama Perséfone, a deusa da Primavera — falou Deméter com firmeza. — E, pense: como os espíritos do Submundo se sentiriam se soubessem que a deusa que tem trazido tanta alegria é apenas uma mortal disfarçada?

Lina ficou tensa.

— Isso os prejudicaria, sem dúvida.

— Claro que sim.

— Então não posso contar a ninguém.

— Não, filha. Não pode.

Lina fechou os olhos, e Deméter viu a mulher no corpo de Perséfone lutar para aceitar a dor causada por suas palavras.

— E lembre-se disto: quando voltar para o seu legítimo lugar, Perséfone vai considerar Hades apenas como mais um dos deuses com quem se divertiu. Não importa o que você acredita que tenha se passado entre vocês dois... E Hades, por fim, sentirá o mesmo. Ouça sua voz interior e se lembrará de que essa é apenas a maneira imortal de agir.

Quando Lina abriu os olhos, estava decidida.

— Voltarei ao Submundo para finalizar o meu trabalho, então. Disse que meu tempo está quase no fim?

Deméter aquiesceu em silêncio.

— ...Certo. Estarei pronta para partir no momento em que quiser.

— Eu sabia que você tinha sido uma escolha sábia, Carolina Francesca. — A imagem da deusa começou a se desvanecer. — Retorne com a minha bênção, filha — completou e se foi.

Lina se afastou do oráculo, e seus olhos deslizaram pela beleza do lago Averno sem realmente vê-lo.

Não chorou. Continuou muito quieta, como se a falta de movimento pudesse impedir que sentisse ainda mais dor.

Envolto na invisibilidade, Hades permaneceu na boca do túnel. Sua reação inicial ao ver Perséfone fora de alívio. Ela não o estava deixando; estava apenas consultando o oráculo da mãe. Ele não conseguia ouvir o que ela dizia, porém seu alívio foi logo substituído por preocupação. Perséfone estava visivelmente abalada. Parecia quase desesperada.

Por isso ela não lhe dissera que pretendia conversar com Deméter? Estava com medo da reação da mãe ao amor deles? Estaria tentando protegê-lo?

Perséfone sabia que, a seu modo, ele era um deus poderoso.

Mas, talvez, ela não o fosse. Era muito jovem, ainda que se comportasse com tanta maturidade que era fácil para ele esquecer sua juventude.

Sem dizer que ele se mantivera separado do restante dos imortais por muito tempo. Perséfone acreditava que ele poderia exercer seu poder apenas em seu próprio reino?

Observou seu belo rosto empalidecer. Deméter a estava magoando.

Uma onda de raiva brotou dentro dele.

Ainda usando o elmo da invisibilidade, caminhou até sua amada a tempo de ouvir a voz enérgica de Deméter derivar do oráculo:

— E lembre-se disto: quando voltar para o seu legítimo lugar, Perséfone vai considerar Hades apenas como mais um dos deuses com quem se divertiu. Não importa o que você acredita que tenha se passado entre vocês dois... E Hades, por fim, sentirá o mesmo. Ouça sua voz interior e se lembrará de que essa é apenas a maneira imortal de agir.

Hades parou. Tinha ouvido bem? Ele era apenas mais um Deus com quem ela havia se divertido?

Incrédulo, escutou a resposta de Perséfone:

— Voltarei ao Submundo para finalizar o meu trabalho, então. Disse que meu tempo está quase no fim?

Ele havia sido apenas uma missão para ela?

— ...Certo. Estarei pronta para partir no momento em que quiser.

Perséfone queria deixá-lo!

Ainda invisível, Hades assistiu à deusa que ele amava se afastar do oráculo da mãe e olhar para longe. Seus olhos estavam secos, e o rosto parecia esculpido em pedra. Uma verdadeira estranha.

Não. Não podia acreditar. Ouvira apenas uma parte da conversa e devia ter entendido mal. Conhecia Perséfone. A sua Perséfone não ousaria ludibriá-lo.

Estava prestes a tirar o elmo de invisibilidade quando um ruído chamou sua atenção. Ele e Perséfone se viraram ao mesmo tempo para o deus que caminhava ao longo da margem do lago Averno.

O belo rosto de Apolo se iluminou com prazer, e seus lábios se curvaram em um caloroso sorriso de boas-vindas.

— Ah, Perséfone! Agrada-me ver que aceitou meu convite. Todos sabíamos que tempo demais no Submundo faria a flor da primavera ansiar por sol novamente.

Com uma crescente sensação de dormência, Hades assistiu quando Apolo tomou o corpo dócil de Perséfone nos braços.

Incapaz de continuar assistindo à cena, o senhor do Submundo deu as costas para os dois amantes e, silenciosamente, retornou ao reino dos mortos.


Capítulo 23

Não demorou muito para Apolo perceber que abraçar Perséfone era como abraçar um cadáver. Recuou, assim, e estudou o rosto pálido.

— O que há de errado? Mais problemas com Deméter?

Ela abanou a cabeça e, quando piscou, duas lágrimas perfeitas caíram de seus olhos e traçaram um caminho brilhante por seu rosto.

Ele ainda se perguntava se deveria beijá-la ou materializar-lhe uma bebida, quando um monstro negro surgiu do nada e meteu o corpanzil entre eles.

— Vá embora, sua besta! — gritou, cambaleando para trás na tentativa de não ir ao chão.

O garanhão virou-se e arreganhou os dentes amarelos.

— Está tudo bem, Órion! Apolo não vai me fazer nenhum mal.

A tristeza na voz de Perséfone tocou o deus da Luz, e ele a fitou por trás do cavalo negro, que a acariciava com o focinho. A deusa devolvia o afago distraidamente, e lágrimas escorriam por seu rosto, porém ela nem sequer tomou conhecimento destas.

— Órion, eu preciso falar com a sua senhora.

Com os olhos em chamas, o garanhão virou a cabeça, pronto para enfrentá-lo, contudo ele estendeu as mãos em um declarado gesto de paz.

— Quero apenas lhe oferecer ajuda!

Órion estudou o deus, então soprou forte pelo nariz e lambeu a face de Lina. Em seguida se afastou uns poucos metros do local onde estivera pastando, embora mantendo um olho negro fixo nele.

Apolo pegou o braço de Perséfone, levou-a até um banco esculpido em rocha, e a deusa se sentou. Em seguida, ele fez um movimento com a mão, e uma taça contendo um líquido claro apareceu de repente, em meio a uma chuva de faíscas.

— É água mineral — disse, ao vê-la hesitar. — Imagino que esteja precisando de um refresco.

— Obrigada — Lina respondeu, tensa.

A água estava fresca, e ela a bebeu com vontade.

Entretanto, esta não ajudou a preencher seu vazio.

Apolo sentou-se a seu lado.

— O que lhe causou tanta dor? — indagou, preocupado.

Ela continuou emudecida, e o deus pensou que não fosse obter nenhuma resposta. Então falou com uma voz tão cheia de desesperança que ele sentiu uma constrição no próprio peito.

— A minha própria tolice foi o que me causou tanta dor.

Apolo segurou sua mão.

— O que posso fazer para ajudar?

Ela o fitou, e o jovem deus sentiu como se pudesse enxergar-lhe a alma.

— Responda-me uma coisa... O que ama, o corpo ou o espírito?

Apolo sorriu e ensaiou responder de forma inteligente, mas logo descobriu que não podia. Mais uma vez, Perséfone o surpreendia com sua franqueza.

A deusa da Primavera não se afastara de seus pensamentos desde seu último encontro.

Entreolharam-se, e Apolo não pôde menosprezar a dor no rosto delicado. Respondeu honestamente.

— Está fazendo essa pergunta ao deus errado, Perséfone. Como você bem sabe, tive muitas experiências com as vontades do corpo. Sinto desejo e o sacio. Mas, amor? A mais ilusória das emoções? Já testemunhei um guerreiro invicto cair de joelhos e atribuir mais poder a uma virgem do que ao próprio Hércules, mas não posso afirmar que já tenha experimentado esse sentimento. — Tocou-lhe o rosto, tristonho. — Ainda que olhar para você me faça pensar o contrário.

A claridade aumentou, sinalizando a chegada da aurora. Sua carruagem devia estar chegando, e seu tempo era curto, refletiu o deus.

Percebeu, no entanto, que, embora estivesse próximo de Perséfone, dando-lhe seu conforto e demonstrando sua compaixão, ela nem sequer olhava para ele. Tinha os olhos fixos na entrada do túnel que levava ao domínio do deus do Submundo.

Deixou cair a mão, estarrecido.

— Você ama Hades! — exclamou, sem se preocupar em esconder a surpresa na voz.

Os olhos de Perséfone se voltaram para os dele.

— Por que está assim, tão chocado? Porque sou a primavera e ele é a morte? Ou porque imortais não sabem como amar?

— Não creio que isso seja possível.

— Provavelmente não é. — A raiva na voz dela se foi, e o desespero voltou. Lina se pôs de pé. — Órion!

Numa velocidade sobrenatural, o garanhão se deslocou para seu lado. Sem mais palavras, ela montou o cavalo e o cutucou com os calcanhares nas laterais.

Órion saltou para a frente, deixando o deus da Luz olhando, boquiaberto, para a nuvem de poeira que se levantava de seus cascos de ferro.

— Perséfone e Hades? Como pode ser isso? — murmurou, perplexo.

Hades encontrava-se na ferraria. Após alimentar o fogo a um nível quase insuportável, despiu-se, ficando apenas com a tanga de linho. Não trabalharia em uma ferradura. Isso não o satisfaria. Precisava de algo mais, precisava fazer algo maior.

Forjaria um escudo com os mais fortes metais, decidiu. Algo que pudesse proteger um corpo, se não uma alma.

Atiçou as brasas, até que estas chiaram num calor escaldante. Então enfiou nelas uma folha disforme de metal bruto e a puxou para fora quando esta zuniu quase de pronto.

Em seguida, passou a bater nela com vontade.

Trabalhou sem parar. Seus ombros doíam e seus golpes lhe percorriam dolorosamente o corpo, ainda que não pudessem livrar sua alma da dor.

Ele não podia culpá-la. Perséfone era apenas uma jovem deusa. Ele era quem devia ter pensado melhor.

Tinha sido uma atitude sábia de sua parte se separar dos demais imortais. Perséfone apenas o ajudara a provar isso.

Sua decisão se mostrara a mais acertada por eras... Ele agira como um tolo ao se desviar dela.

Sentiu a presença da deusa no momento em que ela entrou na ferraria e se perguntou se ele sempre saberia quando ela se aproximasse. Como sua alma podia continuar ligada à dela se Perséfone não o amava?

Tal detalhe merecia consideração.

Mais tarde, contudo. Quando estivesse sozinho novamente. No momento em que pudesse pensar nela sem sentir aquele desejo cruel.

Precisava acabar com aquilo naquele instante. Tinha que readotar seus antigos métodos antes que se humilhasse ainda mais.

E antes que ela lhe causasse uma dor irreparável.

— Não imagina o quanto é lindo quando trabalha na ferraria.

Quando Perséfone entrou, ele havia parado de bater metal contra metal, e sua voz delicada soou alta demais no silêncio. Hades não conseguiu se obrigar a falar.

— Hades? — Lina engoliu em seco e continuou, mesmo sem que ele respondesse. — Eu adoraria conhecer o restante de Elísia hoje. Quer me acompanhar?

Ah, a voz de Perséfone! Era tão jovem e doce.

Por um momento, ele sentiu sua determinação fraquejar.

Então se lembrou da facilidade com que ela se deixara ficar nos braços de Apolo.

Quando se virou lentamente para encará-la, Perséfone não o fitou nos olhos, e Hades sentiu um pouco mais da alma se dissolvendo.

— Temo que nossos passeios tenham chegado ao fim. Como pode ver, há trabalhos a ser concluídos.

Lina sentiu o estômago revirar. O homem que se afastara da forja para falar com ela não era seu amante. Era o deus frio e imperioso que ela havia conhecido assim que chegara ao Submundo.

Não, concluiu, ao estudá-lo com mais cuidado. Sua impressão inicial estava errada. Hades já nem lhe era familiar.

— Pensei que gostasse de me falar sobre o seu reino — murmurou num tom vazio.

Ele riu, contudo o riso não tinha nenhum calor, e seus olhos se mostraram frios e ilegíveis.

— Perséfone, é melhor pararmos com esse...

— Mas, na noite passada... — ela o interrompeu, sacudindo a cabeça. — Não compreendo.

O choque no rosto da deusa o dilacerou. Era tudo fingimento!

Hades quis gritar sua dor, mas preferiu arremessar o martelo pela ferraria com fúria. Quando este caiu, faíscas explodiram por todos os lados, e o chão abaixo deles tremeu.

— Silêncio! — ele trovejou, os olhos também faiscando. — Eu sou o senhor dos Mortos, e não um humilde professor!

Lina sentiu o sangue se esvair da face.

— Então, todo esse tempo você apenas fingiu...

— NÃO ME VENHA FALAR DE FINGIMENTO! — As paredes da ferraria vibraram com a ira do deus.

Antes que ele destruísse a câmara em que estavam, contudo, Hades tratou de pôr a raiva sob controle.

— Não esteve de férias por aqui, brincando de rainha dos Mortos, Perséfone? — indagou, cheio de sarcasmo. — Você pode ser jovem, mas nós dois sabemos que está longe de ser inexperiente. — Desta vez, seu riso foi frio e cruel. — Sim, nossas aulas foram divertidas, mas deve compreender que já é tempo de pormos fim a esta farsa. Como pressinto que a sua visita também está chegando ao fim, nosso timing foi perfeito. Infelizmente, permiti que nosso flerte tomasse muito do tempo reservado aos meus deveres. Se não pudermos nos falar de novo antes que parta, deixe-me desejar uma agradável viagem de volta à Terra dos Vivos. Quem sabe ainda volte ao Submundo um dia? Ou talvez não. — Ele encolheu os ombros com indiferença e, em seguida, deu-lhe as costas, fazendo o pulso tremer com outra martelada, e retomou o ritmo da forja. Não tinha necessidade de vê-la sair.

Logo o suor lhe pingou do rosto, mesclando-se a lágrimas silenciosas, e, ainda assim, Hades continuou batendo contra o metal em silêncio, até que a dor em seus braços refletiu a dor em sua alma.

— Eu não pertenço a este mundo. — Lina sentiu como se seus lábios não contivessem uma só gota de sangue, e expressou o pensamento em voz alta para se assegurar de que estes ainda poderiam emitir palavras. Não lhe fez nenhum bem dizer a si própria que Deméter estava certa, que o tratamento que Hades lhe dispensara era a norma entre os imortais. Ela não era uma deusa, portanto era sua alma mortal que sofria.

Sua alma mortal não conseguia entender.

Deixou a ferraria sem se importar para onde seus pés a levavam. Queria apenas ir para longe dali.

Contornou os estábulos e passou, apressada, entre as fileiras de arbustos ornamentais, mas, em vez de se manter nos caminhos dos jardins de Hades, mergulhou na floresta que o margeava. A despeito do turbilhão de pensamentos, percebeu que refazia o caminho para o prado dos pirilampos, e imediatamente mudou de direção, a mente repelindo as doces lembranças daquela noite. Não suportaria ir até lá.

Mal reparou nos espíritos dos mortos, pouco depois, vendo-os como imagens vagas e distantes que sussurraram seu nome. Seus olhos continuavam embaçados pelas lágrimas não derramadas.

Lina se percebeu grata por nenhuma das almas ter se apro­ximado. Não estava em condições de agir como sua senhora ­naquele momento.

Quando passou, os mortos silenciaram. Algo estava errado com Perséfone. Seu rosto tinha perdido a cor, seus olhos estavam vidrados, e ela não parecia capaz de ouvi-los.

E a deusa se movia com os passos entorpecidos daqueles que haviam acabado de morrer. A preocupação com sua senhora começou a se espalhar por toda Elísia.

Lina continuou andando.

Ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

As três frases eram uma antiga ladainha familiar. Tornaram-se o seu mantra quando o marido a deixara por uma mulher mais jovem, mais perfeita, que poderia lhe dar filhos. Apenas estas a tinham ajudado em meio aos sonhos destruídos e as noites insones. Também a mantiveram inteira após a série de relacionamentos decepcionantes por que passara mais tarde. E a haviam acalmado quando ela percebera que, provavelmente, nun ca amaria outra vez.

Ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

Uma brisa travessa trouxe consigo o perfume inebriante dos narcisos, e Lina estremeceu, recuando ao avistar um leito dessas flores à sua frente. Mudou de rumo, contornando-o e escolhendo o caminho que menos narcisos apresentava.

Levou a mão ao peito, onde a flor de ametista pendia da corrente de prata. O que aquele presente havia significado? Não era um símbolo do amor de Hades. Seu discurso na ferraria tinha deixado isso dolorosamente claro.

Piscou, aflita. Em sua mente ainda ouvia o eco da indiferença em suas palavras. Acariciou o contorno bem trabalhado do narciso de pedra.

Um pagamento pelos serviços prestados. Era isso.

Hades, uma espécie diferente de deus?

Sua risada saiu como um soluço.

Fechou a mão sobre a joia e a puxou, arrebentando a corrente delicada.

— Deméter estava certa. Eu devia saber. — Arremessou o colar ao chão e continuou andando sem olhar para trás.

Ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

Lina só percebeu que a paisagem começou a mudar quando sentiu alívio por não ter de evitar mais os narcisos. Também havia menos espíritos flutuando em sua visão periférica, o que a fez relaxar. Notou vagamente que estava ficando mais escuro, porém as árvores eram muito altas e densas. Elas poderiam facilmente estar bloqueando a luz do céu aquarelado do Submundo.

E ela andara por um bom tempo. Ou assim imaginava.

Mas não se sentia cansada. Na verdade, não sentia coisa alguma.

O pensamento quase a fez sorrir. Deméter não precisava ter se preocupado. Os deuses subestimavam a resistência do espírito mortal.

Era melhor começar a voltar para o palácio. Eurídice devia estar esperando para lhe mostrar os desenhos. Ela desfrutaria da companhia da pequena alma e depois tomaria um longo banho.

Não um banho com a água dos cântaros, lembrou, tratando de afastar o pensamento. Apenas um longo e relaxante banho de imersão.

Pelo tempo que lhe restava no Submundo, podia muito bem evitar Hades. Isso não deveria ser muito difícil. Ele mesmo havia deixado bem claro que se encontrava muito ocupado para se preocupar com ela. Dessa forma, em vez de suspirar pelo deus, ela passaria algum tempo com Eurídice e seria franca com a moça sobre a natureza temporária de sua visita. Também avisaria a pequena alma para ter cuidado com aquela paixão por Iapis. Ele parecia confiável, mas, assim fora com...

Bloqueou o restante do pensamento. Montaria Órion e deixaria que os espíritos em Elísia vissem a deusa da Primavera uma última vez.

Precisava ter todo o cuidado com eles, também. Eles tinham o direito de saber que sua visita era apenas passageira. Poderia dizer que Perséfone continuaria a cuidar deles do Mundo Superior, e, depois, só poderia torcer para que a verdadeira deusa da Primavera cumprisse com sua palavra.

Estabelecer um curso de ação a fez sentir-se bem. Havia estado tão preocupada em fazer isso que nem percebeu ter alcançado a margem da floresta, até que tropeçou em uma das árvores.

Confusa, olhou ao redor, tentando entender onde estava. As árvores terminaram, assim como a grama e a vegetação. A terra ali era estéril e o solo cor de canela, trincado pela erosão. Bem à sua frente, contrastando com a treva ao fundo, avistou a silhueta flamejante de um rio de labaredas.

Lina interrompeu a respiração. O Tártaro! Ela havia tropeçado na borda do inferno!

Vire-se! Refaça seu caminho!

Sua mente sabia que aquela era a coisa mais lógica a fazer, porém seu corpo não a obedeceu.

Foi então que ouviu os sussurros vindos da escuridão além do rio de fogo. Como tentáculos nascidos do ódio, eles a chamaram, tecendo uma rede de lembranças sombrias: cada erro que cometera, cada mentira que tinha contado, todas as vezes em que suas palavras ou atitudes haviam ferido os outros.

Sua alma mortal se encolheu. Lina deixou escapar um choramingo e cambaleou sob o peso de seus próprios erros, caindo de joelhos.

Uma escuridão densa brotou da margem do rio em chamas e a lambeu como gavinhas de ódio. Ela não era uma deusa. Era uma mortal de meia-idade, comum na aparência e uma piada nos relacionamentos. Nenhum homem a amava. Por que amaria? El a não podia nem mesmo ter filhos. Fora uma fracasso como mulher e como esposa. Ficar sozinha era o que ela merecia.

Lentamente, sua alma começou a se separar do corpo de Perséfone, e Lina sentiu-se desintegrar.

— Hades, você tem que vir! — Iapis precisou gritar em meio aos incessantes golpes para ganhar a atenção do deus.

Este se endireitou e limpou o suor do rosto.

— Seja lá o que for, terá que lidar sozinho. Não quero ser incomodado.

— São os mortos. Estão pedindo para falar com você.

A expressão de Hades se tornou sombria e perigosa.

— Eles poderão falar com seu deus no momento em que eu estiver deliberando.

— Não acredito que vá querer esperar pela hora das petições para ouvir o que eles têm a dizer — Iapis insistiu.

— Deixe-me em paz! O que eles têm a dizer não me interessa hoje — ele rosnou.

Sem se abalar com a explosão do deus, Iapis o fitou nos olhos.

— Eles estão dizendo que há algo errado com Perséfone.

Hades continuava vestindo a túnica quando irrompeu da ferraria, mas a cena diante dele o fez parar. Espalhada por todos os níveis de seu paradisíaco jardim estava uma infinidade de almas. Permaneciam em silêncio, lado a lado: moças, virgens, mães de família, mulheres de meia-idade e anciãs.

Uma senhora e uma virgem que Hades reconheceu como uma das que tinha dançado com Perséfone no prado se distanciaram do grupo e se aproximaram dele, fazendo uma profunda reverência.

A mulher mais velha falou primeiro:

— Grande Deus, viemos até o senhor por conta do nosso amor à deusa da Primavera. Algo está errado. A deusa não é mais ela mesma.

— Nós a vimos caminhando pela floresta — contou a mais moça. — Chamamos por ela, no entanto Perséfone não nos ouviu, nem viu.

— Era como se estivesse morta — emendou a velha.

O medo cravou um punhal no coração de Hades.

— Onde ela estava na última vez em que a viram?

— Ali... — As duas mulheres se viraram para apontar o Tártaro.

— Selem Órion! — Ele ordenou com uma voz que chegou aos estábulos.

Então fechou os olhos e respirou profundamente, tentando se acalmar. Bloqueou as vozes dos mortos e concentrou todo o seu ser em Perséfone.

Não demorou a encontrar o elo que unia suas almas. O elo que o avisara de sua presença na ferraria e que, depois, sinalizara o momento em que ela havia partido.

Mas era como um fio cortado. Sua conexão fora prejudicada.

O medo cresceu dentro dele.

— Traga o Cérbero — ordenou a Iapis.

O daimon acenou com um gesto de cabeça e desapareceu.

Hades se voltou para os espíritos das mulheres.

— Fizeram bem em ter vindo até mim.

A velha e a virgem inclinaram as cabeças, assim como a horda de espíritos atrás delas.

Hades buscou um rosto em meio à multidão que o cercava.

— Eurídice! Traga-me uma peça do vestuário de Perséfone. Algo que ela tenha usado recentemente.

Em vez de obedecê-lo de imediato, a pequena alma se aproximou. Seus olhos se encontraram, e Hades sentiu o leve toque de sua mão no braço.

— Precisa trazê-la de volta para nós, Hades — falou, com voz entrecortada.

— Eu trarei — ele prometeu e, em seguida, marchou para o estábulo.


Órion mergulhou na floresta, galopando no encalço do Cérbero. O cão de três cabeças caçava em silêncio, seguindo o cheiro de sua senhora.

Hades sentiu as mãos úmidas de suor e tratou de segurar as rédeas do cavalo com mais força. O garanhão não precisou de estímulo para permanecer na trilha do cão, o qual os conduziu inexoravelmente na direção do reino sombrio do Tártaro.

Os pensamentos fervilharam na cabeça de Hades. Ele devia ter magoado Perséfone além da conta se a fizera rumar para as trevas... Mas não tivera a intenção de fazê-lo. Sua dor e ciúme haviam feito com que se esquecesse do quanto ela era jovem. Perséfone não fazia ideia do lugar para onde estava se dirigindo. E nem mesmo sendo uma deusa estaria protegida do desespero que reinava no Tártaro.

Apavorado, ele tentou se lembrar se ela usava o narciso de ametista quando ele a vira pela última vez.

Sim, tinha quase certeza.

Uma ponta de alívio abrandou seu pânico. A ametista ajudaria a protegê-la. Era uma joia poderosa que ele produzira especificamente para ela. Suas propriedades protetoras eram vastas.

Tentou não imaginar o que poderia estar acontecendo com Perséfone. Como deus do Submundo, conhecia muito bem os horrores do Tártaro, a morada eterna dos condenados. Apenas as almas dos mortais que haviam abraçado as trevas eram levadas para aquela região. Ele odiava aquilo, mas reconhecia a necessidade de haver um lugar que abrigasse o mal imutável.

E sua amada tinha ido justamente para lá.

Órion parou ao lado do Cérbero. O cão farejava em meio a folhas secas e arranhava algo que cintilava como prata na penumbra.

Hades desmontou e apanhou o objeto. Era o colar de ametista de Perséfone! Ela estava sem nenhum talismã para protegê-la.

— Mais rápido, Cérbero! — ordenou, nervoso.

O cão redobrou seus esforços, e Órion respondeu no mesmo ritmo, atravessando a floresta.

De súbito, o Cérbero parou à margem do Flegetonte. Começou a uivar desesperadamente, e todas as três cabeças passaram a cutucar algo que Hades imaginou ser um animal morto.

O relinchar estridente de Órion cortou o ar, e ele partiu num galope até a ribanceira do rio de sangue fervente.

Quando o cavalo estacou, Hades reconheceu o corpo.

— Não! — Saltou do lombo de Órion e empurrou de lado o corpo maciço do Cérbero. Era Perséfone caída sobre a terra rachada. Tinha os braços em torno das pernas e os joelhos pressionados contra o peito numa posição curvada e rígida. Seus olhos estavam abertos, entretanto suas pupilas encontravam-se totalmente dilatadas, e ela olhava, sem ver, a escuridão além do rio flamejante.

Hades seguiu seu olhar. A negritude do Tártaro refluía das margens do rio. Olhou para baixo e viu que as garras das trevas haviam serpenteado do Flegetonte até encharcar o solo ao redor da deusa.

A fúria pulsou por todo seu corpo. Rapidamente, ele se abaixou e amarrou a corrente quebrada em volta do pescoço frágil de Perséfone. No mesmo momento, o narciso de ametista começou a brilhar.

Então o deus levantou os braços, e o ar ao seu redor começou a girar.

Em uma voz amplificada pela raiva e pelo amor, Hades ordenou às garras das trevas:

— Fora! Não têm o direito de prejudicar esta deusa!

As gavinhas escuras estremeceram, contudo não soltaram Perséfone.

— Sou eu, Hades, o senhor dos Mortos, quem está ordenando! Não toquem nela! —rugiu, lançando todo o seu extraordinário poder contra as garras malignas.

As trevas recuaram e, com um som sibilante, se dissiparam como um ladrão se escondendo na noite.

Hades caiu de joelhos ao lado de Perséfone. Agarrou o corpo rígido da deusa pelos ombros e o virou para si.

— Perséfone!

Ela não respondeu. Continuou com o olhar vidrado para a escuridão além do Flegetonte. Tinha o rosto pálido, a pele fria ao toque, e estava ofegante como se com dificuldades para respirar.

— Acabou. Nada pode ameaçá-la agora. Olhe para mim, ­Perséfone!

Ainda assim, ela não reconheceu sua presença.

— Perséfone! Tem que me escutar. — Hades a sacudiu até que sua cabeça chacoalhasse e o Cérbero uivasse, exprimindo sua angústia.

Os lábios da deusa finalmente se moveram.

— Isso mesmo! Fale comigo! — Hades gritou.

— Muitos... erros. Não posso... — A voz dela falhou, e suas palavras se tornaram inaudíveis.

— Não pode o quê? — ele implorou, sacudindo-a outra vez.

— Não consigo encontrar meu caminho... Meu corpo não está aqui. Eu desapareci.

O vazio em sua voz o aterrorizou. O rosto de Perséfone estava branco, e seus olhos continuavam vidrados. A Perséfone que ele conhecia não estava lá. Era como se um eco de seu espírito estivesse falando através de uma concha.

De repente, nada mais importava para Hades exceto trazê-la de volta. Não se importava se a deusa pensava nele apenas como uma missão que a mãe a encarregara de cumprir. Não se importava que Apolo fosse seu amante. Não se importava que ela fosse deixá-lo.

Preocupava-se apenas que ela voltasse a ser a mesma de antes.

Cobriu o rosto frio com ambas as mãos.

— Seu caminho é este... Deve voltar para aqueles que a amam.

Perséfone piscou.

— Volte para nós, minha amada! Volte para mim...

Ela respirou profundamente, e Hades a viu levantar a mão para agarrar o narciso de ametista.

Então piscou outra vez e se esforçou para focar seu rosto.

— Hades — balbuciou com voz fraca.

Com uma exclamação de alívio, ele a puxou para os braços.

— Sim, querida! Sou eu, Hades, o deus arrogante e tolo que a ama!

— ...Leve-me daqui — ela falou chorando, e mergulhou o rosto em seu peito.


Capítulo 24

As mulheres assistiram em silêncio enquanto o senhor dos Mortos carregava sua deusa para o palácio. Embora sua expressão fosse sombria, Perséfone passara os braços pelos ombros largos e tinha o rosto pressionado em seu pescoço.

Uma onda de alívio varreu os espíritos. Ela voltaria a ser a mesma. O amor do deus lhes asseguraria isso.

Tal como o sussurro do vento nos galhos de salgueiro, o burburinho das almas foi cessando conforme estas deixavam as cercanias do palácio.

— Eurídice! — Hades chamou assim que entrou na gigantesca construção.

O espírito se materializou no mesmo instante, tendo Iapis a seu lado.

— Prepare um banho bem quente para a deusa.

— Sim, senhor — ela assentiu e desapareceu.

Iapis acompanhou Hades.

— O que posso fazer?

— Vá até Baco. Diga-lhe que necessito do seu vinho mais potente. Algo que acalme a alma de uma deusa — ele instruiu, tenso.

— Agora mesmo, senhor. — Antes de desaparecer, porém, o daimon tocou a cabeça de Perséfone. — Fique bem, minha senhora — sussurrou e foi embora.

Hades carregou Perséfone direto para o quarto. Um vapor perfumado já escapava da sala de banho e, ao adentrar a névoa úmida, ele encontrou Eurídice correndo em volta, puxando grossas toalhas das prateleiras e escolhendo esponjas macias.

Havia uma poltrona acolchoada perto da parede espelhada e, relutante, Hades colocou nela sua deusa. Os braços de Perséfone deslizaram, inertes, de seus ombros e ela permaneceu sentada e muito quieta, os olhos fechados.

Ele se ajoelhou a seu lado.

— Perséfone? Está em casa agora — falou baixinho.

Um tremor passou pelo corpo de Lina.

— Pode me ouvir, minha amada?

Ela abriu os olhos e o fitou.

— Posso — respondeu com voz inexpressiva.

— Sabe onde está?

— ... Em seu palácio?

— Sim — Hades sorriu, encorajador, ignorando o tom abatido em sua voz.

Iapis se materializou na sala de banho, segurando uma garrafa de cristal cheia de um vinho tinto e uma taça. Serviu a bebida, e um aroma inebriante derivou do vidro: cheirava a uvas e prados, a trigo maduro e noites de verão sob a lua cheia.

Iapis ofereceu a taça a Perséfone.

— Beba, senhora. Isto a reanimará.

Lina tentou segurar a taça, porém sua mão tremia tanto que ela quase a deixou cair. Hades cobriu-lhe a mão com a sua, levando o vinho a seus lábios.

Ela bebeu com vontade, e a magia da bebida dos imortais começou a aquecê-la quase no mesmo instante. Logo, o tremor em suas mãos se acalmou, e ela pôde beber sem a ajuda do deus.

— Pode ir, senhor — orientou Eurídice, assumindo o comando. — A deusa necessita de privacidade para se banhar.

Hades se pôs de pé, contudo hesitou em sair da sala.

— Meu senhor, eu o chamarei quando ela estiver pronta... — garantiu o espírito.

Ele ainda titubeava.

— Ficarei por perto, Perséfone.

A deusa ergueu o olhar.

— Não precisa se preocupar. Estou de volta — disse num murmúrio.

A despeito de seu tom inexpressivo, Hades acenou com um gesto de cabeça e, relutante, saiu da sala com Iapis.

Hades andava de um lado para o outro no corredor, do lado de fora dos aposentos de Perséfone. Quanto tempo ela levaria para se banhar? Eurídice nunca a chamaria? Teve vontade de invadir o quarto e ordenar que a pequena alma saísse. Dessa forma, poderia fazer a deusa ouvi-lo. Perséfone tinha de escutar suas desculpas... Ele era um idiota, um imaturo, um tolo ciumento.

Suspirou. Ela o conhecia. Não deveria ser tão difícil fazê-la acreditar que ele cometera um terrível erro.

A porta se abriu, e Eurídice saiu para o corredor, fechando-a delicadamente.

— Como ela está? — Hades indagou, ansioso.

O espírito fitou o deus nos olhos antes de responder. Quando o fez, parecia muito mais velha do que seus poucos anos.

— Muito combalida, senhor.

Hades passou a mão pelo cabelo.

— Sou eu o responsável.

— Creio que sim — confirmou a moça simplesmente.

Ele assentiu com vigor e virou-se para a porta. A mão pálida de Eurídice o impediu, contudo.

— Seja paciente. Trate-a com cuidado. É difícil para uma mulher amar de novo após ter sido ferida.

Iapis se materializou ao lado da pequena alma. Envolveu-a nos braços, e Eurídice recostou-se nele.

— É difícil para uma mulher amar outra vez depois de ter sido ferida, mas não impossível, senhor — corrigiu o daimon.

Hades os viu se afastar lentamente. Formavam um bonito casal.

Voltou-se para a porta, respirou fundo e entrou nos aposentos de Perséfone.

A deusa vestia uma camisola de seda pura, da cor da luz das velas, e encontrava-se encolhida na espreguiçadeira em frente às janelas altas. Parte das cortinas de veludo tinha sido puxada, e Perséfone parecia estudar os jardins mergulhados na noite enquanto saboreava o vinho de Baco.

— Seus jardins são realmente muito bonitos — falou sem olhar para ele.

Hades atravessou o cômodo e parou ao lado da chaise longue .

— Obrigado. Fico contente por gostar deles.

As palavras soaram inadequadas. Ele não queria uma conversa inconsequente, mas Eurídice o advertira para ser paciente e cuidadoso, e assim ele seria.

Por outro lado, também necessitava abrir seu coração.

Sentou-se a seu lado no divã.

— Perdoe-me, por favor. Sou mesmo um tolo.

Ela se virou para encará-lo em silêncio.

— Eu sabia que ia me deixar, então quis romper tudo primeiro — confessou o deus. — Imaginei que isso pudesse amainar minha dor. Pensei que eu pudesse voltar a ser como era antes de amar você... mas estava errado. Fui egoísta. Não pensei nos seus sentimentos. Como um monstro velho e solitário, pensei apenas em mim mesmo.

Lina ergueu a mão para impedi-lo de continuar.

— Não diga mais nada. Você é um deus e agiu como tal.

— Não! — Hades agarrou sua mão. — Não sou como os outros. Tudo o que eu disse na ferraria era mentira. Eu estava com raiva, ferido... É difícil para mim entender que pode ficar comigo e ao mesmo tempo com Apolo. Eu... — Ele vacilou. — Eu é que não estou acostumado a escolher e descartar amantes como fazem os imortais.

— Hades, Apolo não é meu amante.

O deus estudou seu rosto.

— Mas eu o vi tomá-la nos braços.

Lina piscou, surpresa.

— Estava lá?

— Eu a segui. Ouvi Deméter lembrá-la da maneira como os imortais amam, em seguida vi Apolo abraçá-la.

— Se tivesse permanecido lá um pouco mais, então, teria visto que isso foi tudo o que aconteceu. Eu não quero Apolo, Hades. Se o que Deméter me disse não houvesse me aborrecido tanto, eu nunca teria me deixado abraçar.

Hades passou a mão pela testa.

— Não deseja Apolo?

— Não.

Ele abaixou a cabeça.

— Então a dor que lhe causei foi realmente sem razão. Não sei se pode me perdoar, mas, por favor, acredite em mim quando digo que eu a amo, Perséfone.

Lina desviou o olhar para longe dele.

— Você não me ama, Hades... Ama o que pensa que eu sou. Na verdade, não me conhece.

— Como pode dizer uma coisa dessas? — Ele a segurou pelo queixo e a obrigou a fitá-lo.

— Você ama a deusa. Não a mulher dentro dela.

— Está errada, Perséfone. Mas deixe-me dizer o que eu amo em você, então poderá decidir por si mesma... Eu amo a sua curiosidade sobre tudo. Amo o modo como vê com novos olhos o meu reino. Amo o seu senso de humor, sua bondade e honestidade. Amo sua paixão desenfreada, a maneira como encanta os animais. Amo a sua lealdade. Gosto mais ainda da sua teimosia, pois foi graças a ela que um velho deus não ficou trancado na armadilha da solidão.

Lágrimas caíram dos olhos de Perséfone, e Hades as enxugou com delicadeza.

— Agora me diga... o que eu amo? A deusa ou sua alma?

— Mas não me conhece... não pode conhecer realmente — ela falou com voz entrecortada.

— Sei apenas que sinto a sua presença antes mesmo de vê-la. Alguma coisa aconteceu comigo, e isso pouco tem a ver com o lado físico. Pela primeira vez em uma eternidade, compreendo por que almas gêmeas não podem ser separadas nem mesmo após a morte. É porque seus corações batem em conjunto. Enquanto eu esperava aí, do lado de fora, podia sentir seu coração partindo. Deixe-me curá-lo, Perséfone. Quando eu o fizer, estarei curando o meu próprio.

— É possível que ame a minha alma? — Lina perguntou num sussurro.

Hades sorriu para ela ao sentir o medo dentro dele começar a se dissipar.

— A morte está completamente enamorada da primavera. Se isso é possível, então tudo o mais o é, minha amada.

Ela se deixou abraçar e suas bocas se encontraram. Hades pretendia que o beijo fosse suave e tranquilizador, mas Perséfone abriu os lábios e se espremeu contra ele, pedindo mais.

Seu desejo por ela aflorou, e ele gemeu seu nome conforme esmagava o corpo seminu contra o peito.

— Faça amor comigo! — ela falou, ofegante. — Preciso sentir você dentro de mim.

Hades a ergueu nos braços e a levou para a cama, mas, quando começou a se despir, Perséfone o deteve.

— Deixe-me fazer isso — pediu, rouca.

Sentou-se na beirada da cama, e Hades ficou diante dela, forçando as mãos a permanecer dos lados enquanto ela o desnudava. Estava usando uma versão mais curta de suas volumosas vestes, e ela despiu lentamente a roupa de seu corpo musculoso. Deslizou as mãos por seu peito, sentindo a pele quente e lisa, então se curvou, substituindo as mãos pela boca ao beijá-lo no abdômen.

Hades prendeu a respiração com a sensação da língua úmida sobre a pele, porém Lina não se fartou dele. Sentia-se como se ti­vesse sido despertada da morte e precisava de sua paixão, de seu amor, de seu toque para mantê-la ancorada ali, a seu lado.

Soltou a tanga e a fez deslizar pelos quadris estreitos. Então acariciou o membro rijo nas mãos frias, o tempo todo movendo a boca lentamente mais para baixo.

Quando o engoliu, o corpo de Hades sacudiu num espasmo e oscilou.

— Sua boca é como uma armadilha de seda! — gemeu, crente que seus joelhos cederiam a qualquer momento.

Após um tempo, Lina recuou, por fim, e mirou os olhos escuros.

— Quer ser livre?

Ele a ergueu nos braços e a segurou firmeme nte contra o corpo.

— Nunca! — sussurrou em meio aos cabelos longos. — Nunca, minha amada.

Lina o puxou para a cama. Enquanto o acariciava, Hades explorou todos os seus recantos. A camisola era tão fina que ela se sentia como se envolvida em uma névoa. Ele encontrou seu mamilo e o provocou, sugando-o através do tecido transparente. Lembrou-se dos toques que ela afirmara lhe dar prazer e, desta vez, não precisou que Perséfone guiasse sua mão.

E ela reagiu como se eles tivessem sido amantes durante séculos.

De repente, sentou-se e se livrou da camisola. Quando Hades fez menção de tomá-la de volta nos braços, ela o impediu.

— O que foi, querida?

— Quero que faça algo para mim.

— Qualquer coisa.

— Quero que faça amor comigo com os olhos fechados. Finja que não pode ver o meu corpo. — Ela o fitou, procurando por uma resposta. — Consegue fazer amor comigo sem olhar para mim?

Ele sorriu e fechou os olhos. Sem nada enxergar, abriu os braços para ela, e Lina se deixou perder neles.

Cercado por seu aroma e toque, Hades vagou por um mundo de sensações. Sem ver Perséfone, teve que prestar mais atenção a seus pequenos sons e seguir o movimento de seus quadris e corpo. Quando sua respiração se acelerou, e o nome dele escapou de seus lábios num suspiro, não precisou enxergar seu rosto corado para saber que estava lhe proporcionando prazer. Sentia o desejo dela na alma e respondia com carícia após carícia.

Quando finalmente preencheu seu corpo, eles se moveram juntos, em um ritmo antigo que não precisava de visão ou de sons... apenas de sentimentos.

Pouco mais tarde, Lina se aninhou junto a Hades, a cabeça encostada em seu ombro. Ele não sabia ainda, mas a ajudara a tomar sua decisão, e, agora que ela havia feito isso, sentia-se em paz. Sobreviveria a qualquer coisa que acontecesse em seguida. Nada poderia ser tão terrível quanto o vazio negro do Tártaro.

Com a ajuda de Hades, tinha se livrado daquele último pesadelo e agora precisava se livrar das mentiras que restavam em sua vida. Não estava mais disposta a esconder a verdade dele. Não importava mais a raiva de Deméter... ela contaria tudo. Hades merecia saber, pois a amava com a alma.

— Hades, preciso lhe dizer algo.

O deus sorriu.

— Posso ficar de olhos abertos agora?

Lina riu baixinho.

— Sim.

Sentou-se de frente para ele, o lençol de seda enrolado no corpo nu. Hades apanhou alguns travesseiros da cama em desalinho e se apoiou confortavelmente contra a cabeceira estofada. Ergueu as sobrancelhas escuras, curioso.

— Eu não queria ir para o Tártaro. Foi um acidente. Fiquei apavorada ao perceber onde estava, mas era tarde demais.

Ele franziu o cenho. E só de pensar o quanto Perséfone estivera perto de perder a alma, sentiu o estômago se apertar.

— Eu sei, meu anjo. Nem precisava me explicar isso. A culpa foi minha. Se eu não a tivesse magoado...

— Sshh... — Ela se inclinou para a frente e pressionou um dedo contra seus lábios. — Deixe-me terminar.

O deus pareceu pouco à vontade, mas ficou em silêncio.

— Foi terrível lá. — Ela estremeceu. — Foi como se o Tártaro me chamasse... Sabia coisas sobre mim: cada coisa ruim que já fiz na vida, e até mesmo as que pensei em fazer. Isso me levou a sucumbir. Podia sentir a captura da minha alma, e não havia nada que eu pudesse fazer. — Pegou a mão de Hades e entrelaçou os dedos nos dele. — Foi então que o ouvi... Você me chamou de volta. A mim , Hades. A alma que existe dentro do meu corpo.

— Eu tinha que tê-la de volta. Eu a amo.

— Eu também o amo. Mas precisa saber mais do que isso. Não sou quem você pensa... Não sou...

— Basta, Perséfone! — A voz de Deméter a interrompeu. — Seu tempo aqui acabou. Precisa voltar.

Consternado, Hades deixou a cama de um salto. Sem pensar na própria nudez, encarou a deusa que se materializou bem no meio do quarto de sua amada.

— O que pretende com essa intrusão, Deméter? — desafiou-a, irritado. — Este não é o seu reino. Não tem o direito de interferir aqui.

— Está brincando com minha filha, senhor do Submundo, e vim para buscá-la. Sou sua mãe. Esse é todo o direito de que preciso.

— Você não é minha mãe! — Lina pronunciou as palavras pausadamente, de maneira que não restasse dúvida sobre o que estava dizendo. Pôs-se ao lado de Hades, segurando o lençol sobre os seios.

Deméter suspirou.

— Não me venha com esses joguetes infantis, filha. Sua aventura terminou. Já é tempo de voltar à realidade.

— Sei que não posso ficar, mas não irei embora sem dizer a verdade a Hades. Ele merece saber. Ele me ama.

— Está sendo tola como uma criança! — replicou Deméter.

— Sabe muito bem que estou longe de ser uma criança. Deixe-me dizer, de uma vez por todas: não sou nenhuma idiota. — Lina encarou Hades e mirou seus olhos. — Não sou a verdadeira Perséfone, Hades. Meu nome é Carolina Francesca Santoro, mas a maioria das pessoas me chama de Lina. Sou uma mortal de quarenta e três anos de idade, que possui uma padaria em um lugar chamado Tulsa, Oklahoma. Deméter trocou minha alma pela alma de sua filha. — Olhou para a deusa, e seus lábios se torceram num sorriso irônico antes que ela voltasse a encará-lo. — Ela prometeu me ajudar com um problema que eu tinha, e, em troca, eu precisaria cumprir para ela uma pequena missão no Submundo.

Hades ouvia tudo de olhos arregalados.

— Lembra-se de quando a ouviu me lembrar de como os imortais amavam? Na verdade, Deméter não estava me lembrando disso; ela estava me explicando esse fato porque sou uma mortal. A coisa toda era nova para mim.

— Então não é a deusa da Primavera?

— Não. Não sou a deusa da Primavera — confirmou Lina, tão aliviada por finalmente dizer a verdade que não percebeu o rosto de Hades se tornando inexpressivo. — Eu queria lhe contar tudo, mas dei minha palavra a Deméter de que manteria a minha verdadeira identidade em segredo. — Ela tentou tocá-lo no braço, porém Hades se esquivou do toque.

— As coisas que me disse, que fizemos juntos... Foi tudo fingimento?

— Não! — Lina sentiu um nó no estômago ao ver que ele tornava a se fechar. Estendeu a mão, porém, mais uma vez, ele se afastou dela. — Tudo o que eu disse, tudo o que eu fiz foi sincero! Apenas este corpo é uma mentira. Todo o resto é real. Amar você é a minha mais pura verdade!

— Como o amor pode ser baseado em uma mentira? — ele retrucou, frio.

— Por favor, não faça isso! — Lina insistiu, tentando alcançar o homem dentro do deus. — Não permita que nos separem assim... Não podemos ficar juntos, tenho que voltar para o meu mundo, mas não quero me lembrar desse tipo de palavras quando estivermos ­separados!

— Não implore pelo amor dele como uma mortal, Carolina. — A voz de Deméter a interrompeu. — Ainda tem dentro de você o suficiente de uma deusa para ter mais orgulho.

Lina se virou para encará-la.

— Você causou isso! Hades me ama. Está se sentindo traído apenas por causa da sua insistência em manter uma mentira! E eu não posso culpá-lo... De que outra forma ele poderia se sentir?

Deméter arqueou uma sobrancelha.

— Acredita que ele a ama, Carolina Francesca Santoro? Então vamos testar a sua crença nesse amor imortal...

Com um movimento do pulso, Deméter regou Lina com faíscas douradas.

Ela sentiu o corpo tremer e, de repente, viu-se terrivelmente tonta. Fechou os olhos, lutando contra a náusea. Logo depois, uma estranha sensação a preencheu: como se tivesse acabado de voltar para um confortável par de jeans .

Antes de abrir os olhos, já sabia o que veria. Do outro lado da sala, o espelho que cobria toda a parede, o mesmo em que ela havia se olhado naquela manhã, refletiu uma nova imagem.

Era seu velho corpo outra vez. Fora-se o corpo esbelto da jovem deusa. Suas curvas ficaram mais acentuadas, ela era mais velha e, decididamente, não era perfeita.

— Você é uma mortal! — A voz de Hades soou estrangulada.

Lina desviou o olhar do espelho para pousá-lo no deus. Ele a fitava, e seu rosto era uma máscara de choque e descrença.

— Sim, eu sou uma mortal — confirmou. Endireitando os ombros, deixou cair o lençol, expondo-se por inteiro. — E também sou a mulher que o ama.

Ele virou o rosto, recusando-se a olhar para ela.

— Como pôde mentir esse tempo todo?

— Que bem teria feito a verdade? — Deméter interveio, indignada. — Você a teria evitado como está fazendo agora. — Seu tom tornou-se sarcástico. — Ao menos possuiu o corpo de uma deusa finalmente, senhor dos Mortos. A ironia é que terá de agradecer a uma mortal por isso. Nenhuma deusa de verdade haveria de querê-lo.

O rosto de Hades ficou branco como cera, e ele travou o maxilar. Quando seus olhos encontraram os de Lina, ela só viu raiva e repugnância refletidas neles.

— Saia do meu reino — ele ordenou com uma voz que fez arrepiar seus braços.

— Vamos, Carolina... Seu tempo aqui acabou. — Deméter se pôs ao lado dela e a cobriu com seu manto.

E, sem mais nenhuma palavra, fez o Palácio de Hades desaparecer de seu entorno.


Capítulo 25

A campainha sobre a porta da frente da Pani Del Dea tilintou alegremente, permitindo a entrada de outro fluxo de clientes, bem como uma rajada de ar frio.

— Brr — Anton estremeceu. — Que droga! O inverno chegou, mesmo. Minha pele está um horror!

— Os meteorologistas estão prevendo mais neve do que o normal nesta temporada. É melhor fazer um bom estoque de hidratantes e comprar sapatos mais apropriados — Dolores observou, apontando os pés do colega.

— O que há de errado com os meus? — Anton respondeu, amuado, virando o pé de um lado para o outro, de modo que a padaria inteira pudesse admirar suas botas de cowboy de pele de enguia pretas, brilhantes, de ponta fina e salto sete.

— Lina! — ele chamou do outro lado do salão. — Acha mesmo que eu preciso de sapatos novos?

Ela olhou por cima da máquina de cappuccino . Queria dizer que não se importava com sapatos, nem com clima, nem com nada... mas a expressão ansiosa de Anton a lembrou de que precisava disfarçar. Precisava continuar fingindo, não importando como realmente se sentia.

— Suas botas estão perfeitas, meu querido. Mas lembre-se de que o meu seguro não cobre tombos fora da padaria.

Risos ecoaram na Pani Del Dea. Os clientes sorriram e passaram a fazer seus pedidos. Todos pareciam felizes. O negócio vinha crescendo a olhos vistos e, nas duas últimas semanas após ela ter voltado, Lina se surpreendera com as mudanças que Perséfone implementara durante os últimos seis meses.

A deusa da Primavera tinha mesmo operado milagres por ali. Sua campanha publicitária fora um prodígio. Novos clientes lotavam a loja dia e noite, a maioria deles clamando por algo em que pudesse espalhar o incrível cream cheese de ambrosia que era oferecido exclusivamente na Pani Del Dea. A criação de Perséfone era um sucesso.

E não fora apenas essa a mudança feita pela deusa. Em vez de começar a trabalhar com menus para eventos, como ela, Lina, imaginara que deveria, Perséfone introduzira a padaria no comércio virtual. Oferecia pela internet uma cesta com uma enorme ­variedade de seus melhores pães, como o gubana, acrescentava uma lata pequena de cream cheese de ambrosia e a despachava para todos os Estados Unidos... por um preço escandalosamente alto.

Mesmo assim, o novo serviço vinha crescendo cada vez mais. Perséfone tinha até mesmo contratado um novo funcionário em tempo integral, apenas para que este cuidasse desses pedidos pela rede.

Lina não se conformava. Fora necessária a vinda de uma deusa antiga para que ela enxergasse o potencial da internet. Agora sua dívida com a Receita poderia ser paga três vezes... assim como Deméter havia prometido. Tudo estava bem.

E ela se sentia tão infeliz que tinha vontade de morrer.

Não. Não queria pensar em morte, nem em espíritos... muito menos no senhor do Submundo.

O sino sobre a porta tiniu outra vez.

— Olá, bonitão — Anton saudou, brincando.

— Tudo bem, Anton? Bonitas botas... — falou uma voz máscula e profunda.

Anton riu, todo alegre.

Lina apertou os lábios e se preparou, feliz por ter a máquina de cappuccino entre ela e o visitante. Ao menos ele não tentaria beijá-la.

— Boa noite, Lina.

— Olá, Scott. — Ela suspirou e olhou para o rapaz alto e musculoso, notando os cabelos loiros, de corte impecável, e os olhos azuis que a fitavam com adoração. Ele vestia um terno bem cortado, gravata vermelha, e o traje nada fazia para camuflar seu físico impressionante, pelo contrário: o corte italiano o acentuava. Não pela primeira vez, Lina pensou que Scott poderia ter sido um jovem Apolo se o deus da Luz viesse à Terra como um bem-sucedido ­advogado de Tulsa.

Não era difícil entender por que Perséfone tinha se sentido atraída por ele. O fato não a surpreendera em nada.

O que não entendia era por que ele se mostrava tão encantado com o seu retorno.

— Ainda tenho ingressos para a primeira fila de Aida... Pensei em ver se mudou de ideia. Não quero ir à ópera sem você — insistiu Scott.

— Obrigada, mas não. Eu realmente não posso.

— Por que, Lina? Não compreendo. Duas semanas atrás...

— Aqui não, Scott — ela o interrompeu, mortificada por a padaria inteira estar em silêncio, acompanhando a cena, embora fingissem que nada acontecia.

— Então quando e onde? Está me evitando há duas semanas. Mereço uma explicação.

Saber que ele estava certo não fez Lina sentir-se menos miserável, nem tornou sua decisão menos certa. Scott era lindo e incrivelmente sexy . Somado a isso, parecia um sujeito agradável e honesto.

Mas ela não sentia nada por ele.

Seria tão mais fácil se estivesse apaixonada! Perder-se numa paixão juvenil até soava como uma boa ideia.

Ela até tentara sair com Scott, mas, quando ele a tocara, não havia sentido nada, exceto aquele vazio dolorido dentro dela. Scott não conseguiria fazê-la esquecer.

— Venha — chamou. Saindo de trás do balcão, segurou-o pelo braço e o levou até a porta.

Enquanto deixavam a padaria, Lina ainda pôde ouvir Anton suspirando tristemente.

— Que desperdício!

A noite estava fria, e ela já devia ter colocado as pequenas mesas e cadeiras da calçada para dentro, mas, como precisava de uma barreira entre ela e o rapaz, ficou feliz por não ter feito isso. Sentou-se a uma das mesas, e Scott se acomodou numa cadeira à sua frente.

Antes que dissesse qualquer coisa, ele mudou de posição, sentando-se junto dela. Ao vê-la estremecer, tirou o paletó e o ajeitou em seus ombros. O casaco estava quente e cheirava a uma daquelas colônias pós-barba caras e másculas. Scott teria segurado sua mão, porém Lina a manteve fora de seu alcance, no colo.

— Scott — começou, desejando sinceramente que o modo ­sensual como a camisa branca assentava no peito musculoso a fizesse sentir mais do que admiração por aquela bem tonificada compleição física. — Eu já lhe disse antes... Não há mais nada entre nós. Eu gostaria que compreendesse isso e esquecesse tudo.

Ele balançou a cabeça.

— Não posso. Não há nenhuma razão para isso. Apenas duas semanas atrás estava tudo bem... Melhor do que bem. Então um dia eu acordo e, zás! , está tudo acabado? Não há explicação. Depois de quase seis meses, você me dispensa sem nem mesmo dizer que asneira eu fiz?

— Não fez asneira nenhuma. Merda! Eu já lhe disse isso antes: o problema é comigo.

Você é perfeito , acrescentou em silêncio. Jovem, bonito, bem-sucedido e atencioso. Scott precisava encontrar uma moça linda como ele e estabelecer-se nas redondezas após conseguir um belo financiamento. Em seguida, devia ter dois ou três filhos e um cachorro.

— Então me diga outra vez. Não compreendo como pode, de repente, estar tão diferente! O que aconteceu?

— Você é moço demais para mim — Lina falou, sincera.

— Pare com isso! Tenho vinte e cinco anos, não quinze! Não sou tão jovem assim.

— O problema é que eu estou velha demais para você.

— Claro que não... — Scott se inclinou para a frente e puxou sua mão do colo, mantendo-a entre as suas. — Não me importo que esteja com quarenta e três anos. Ainda é bonita e sexy , mas também muito mais do que isso. Seu coração é jovem, você ilumina tudo por onde passa, Lina. Quando estávamos juntos, você me fazia sentir como um deus.

Ela sorriu tristemente.

— Não sou mais assim. Não me sinto mais assim. — Levantou-se e tirou a mão da dele. Em seguida deixou cair o paletó dos ombros e o entregou de volta. — Não posso lhe dar o que você precisa. Não tenho mais isso dentro de mim. Por favor, Scott, não me procure mais.

— Não... — Ele balançou a cabeça. — Estou apaixonado!

— Está bem, então aqui vai a verdade: estou apaixonada por outra pessoa.

O rapaz se endireitou na cadeira e franziu o cenho.

— Outra pessoa?

— Sim. Eu não queria que acontecesse, mas aconteceu. Sinto muito. Eu não queria magoar você.

O rosto bonito de Scott corou, e Lina o viu erguer uma barreira de orgulho entre eles. Ele se levantou, o maxilar cerrado, porém seus olhos continuaram tristes.

— Eu não tinha percebido que havia mais alguém, mas devia ter desconfiado. Você é boa demais para estar sozinha. Peço desculpas por tê-la incomodado. Adeus, Lina.

— Adeus, Scott — ela respondeu enquanto ele se afastava a passos rápidos da padaria.

Sentindo-se com setenta e três anos, em vez de quarenta e três, Lina readentrou a loja.

Anton, Dolores e os demais a fitaram cheios de expectativa, mas, quando viram que ela se encontrava sozinha, desviaram o olhar rapidamente.

— Acho que vou para casa mais cedo hoje — Lina anunciou com um suspiro.

— Sem problemas, patroinha. — Anton sorriu e afagou-lhe o braço, maternal.

— Nós fechamos a casa, pode deixar — emendou Dolores. — Precisa se dar algum tempo... Tem trabalhado muito pesado.

Anton anuiu com um gesto de cabeça.

— Por que não dorme até mais tarde amanhã, depois faz uma boa massagem e um tratamento facial? Sabe... naquele lugar que descobriu alguns meses atrás? Você mesma disse que eles sabiam tratá-la como uma deusa.

— Quer que eu ligue e marque uma hora? — Dolores se ofereceu.

— Não, eu vou ficar bem — murmurou Lina, apanhando a bolsa e o casaco. — Mas está certo, Anton. Acho que vou dormir até mais tarde amanhã. — Tentou sorrir para os dois, contudo seus lábios não formaram mais do que uma careta.

— Ah... Estamos quase sem cream cheese de ambrosia. É melhor preparar mais um pouco. Aliás, você bem que poderia nos dar a sua receita secreta — observou Dolores, balançando as sobrancelhas para a chefe.

— Sim, até já prometemos não vendê-la para terroristas ou para essas padarias industrializadas! Mesmo que esse cream cheese maravilhoso fosse dar vida nova àqueles bolinhos horríveis que eles fazem — Anton estremeceu dramaticamente.

Lina tentou recobrar seu senso de humor.

— Uma mulher tem que ter seus segredos. — Piscou para o empregado e pendurou a bolsa no ombro. — Eu os vejo amanhã à tarde com um barril inteirinho de cream cheese de ambrosia — prometeu, atravessando a porta.

Seus funcionários a observaram. Assim que ela estava fora de vista, encontraram-se atrás do balcão e uniram as cabeças.

— Há algo errado com ela — afirmou Dolores.

— Claro que há! — emendou Anton. — Pois então ela não rompeu com aquele “pedaço de mau caminho”?

— É pior do que isso. — A moça suspirou. — Lina gostava de Scott, mas tenho a sensação de que ele nunca significou mais para ela do que um passatempo agradável. Terminar com ele não a deixaria tão triste.

Anton pensou por um momento, depois acedeu.

— Tem razão. Deve ser outra coisa. É como se ela não fosse a mesma pessoa novamente. Lembra-se de como agiu estranho há alguns meses?

— Claro que me lembro. Mas Lina estava preocupada em perder a padaria.

— Bem, ela salvou a Pani Del Dea, e isso lhe fez muito bem. Lina mudou por completo. Comprou roupas diferentes, começou a andar de patins ao longo do rio... Juro que ela perdeu uns dez quilos!

Dolores assentiu.

— Até mudou o cabelo.

— E começou a namorar homens mais novos! Aliás, que homens! — Anton comentou.

— Então, qual é o problema? Até aí não há nenhuma novidade. O que isso tem a ver com o que está acontecendo com ela agora? — questionou a funcionária.

Anton encolheu os ombros.

— Será que é uma crise retardada de estresse? Ou talvez seja uma síndrome de dupla personalidade se manifestando na meia-idade.

Dolores revirou os olhos.

— Tem que parar de assistir tanto ao Discovery Health ! O que eu imagino é que ela tenha, mesmo, trabalhado demais e agora precise de férias.

— Que droga! Você sempre estraga o efeito dramático da coisa! — protestou Anton.

— Vamos simplesmente manter um olho nela e poupá-la do trabalho tanto quanto nos for possível, OK?

— OK.


Capítulo 26

— Sim, sim, eu sei, eu também te amo! — Lina lutou para passar pela porta, lidando com sua entusiasmada buldogue que babava. — Edith Anne, quer se comportar? Deixe-me tirar o casaco e pendurar a bolsa. — A buldogue recuou meio passo, ainda ganindo e se contorcendo.

Indignado, Patchy Poo the Pud saltou de seu lugar cativo na espreguiçadeira e começou a se esfregar nas pernas dela, queixando-se, com miados estridentes, de que ela não estava lhe dando atenção.

— Seus malucos — Lina murmurou, pendurando o casaco. — OK, venham aqui. — Sentou-se no meio do vestíbulo e permitiu que Edith subisse em seu colo enquanto coçava Patchy debaixo do queixo.

A buldogue a lambeu feliz. O gato ronronou.

Lina suspirou.

— Bem, pelo menos vocês dois sentiram falta do meu verdadeiro eu...

Seus bichos de estimação pareciam tão bem alimentados e saudáveis quanto na noite em que Deméter a transportara para longe. Desde o momento em que ela reaparecera no meio da sala, contudo, os dois não queriam deixá-la mais fora de vista e a seguiam de cômodo em cômodo. Patchy Poo the Pud chegava ao cúmulo de ficar do lado de fora do banheiro, miando enlouquecedoramente se ela não o deixasse entrar.

— Vocês precisam relaxar! — Lina repreendeu as criaturas adoráveis. Mas, no fundo, estava gostando que eles estivessem tão contentes por ela ter voltado.

Pelo menos não era uma decepção para eles. Todos os outros a olhavam como se, de repente, ela tivesse um terceiro olho...

Não, não era isso. As pessoas não a vinham tratando como se ela estivesse fazendo algo estranho: tratavam-na como se ela não estivesse fazendo coisa alguma; como se esperassem mais dela.

Como Perséfone tinha sido mais “Lina” do que ela própria?

Suspirou e empurrou Edith Anne para fora do colo. Perséfone era uma deusa. Era claro que as pessoas desejavam que ela fosse como Perséfone. Quem não gostaria de viver às voltas com uma divindade?

Hades...

Seus pensamentos sopraram o nome antes que pudesse evitar. Hades tinha gostado de estar com ela mais do que com qualquer deusa.

Lina balançou a cabeça.

— Não —lembrou a si mesma. — Isso não é verdade. Ele só quis ficar comigo enquanto pensava que eu era Perséfone.

Recordou-se da expressão dele no momento em que vira quem ela realmente era.

— Não! — gritou para si mesma. Não pensaria mais naquilo.

Tinha de se recompor. Vinha agindo como uma adolescente rejeitada por duas semanas. Já fora magoada antes, por que agora seria diferente? Não estava passando por outro divórcio.

Lina olhou o corredor vazio sem ver. Não era como um divórcio. Era pior.

Por que sentia como se parte dela, sua melhor parte, estivesse faltando?

Lembrou-se da noite em que ela e Hades tinham visto o casal bebendo do rio Lete. Ele havia dito que almas gêmeas sempre se reencontravam.

Mas o que acontecia quando estas estavam separadas pelo tempo e habitando dois mundos diferentes? Será que seus corações se tornavam estéreis? Será que sua capacidade para a felicidade minava até que eles se transformassem em conchas vazias e ambulantes, passando pela vida sem qualquer emoção, sem se sentir vivos?

De qualquer modo, não era o que estava acontecendo com ela. Hades não poderia ser sua alma gêmea, pois a tinha rejeitado.

E ela já estava velha demais para continuar apaixonada por alguém que não poderia ter. Cometera um grave erro. Agora teria simplesmente que superar aquilo e tocar a vida.

Mas ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

Edith Anne gania enquanto Patchy Poo the Pud se esfregava em suas pernas, preocupado.

Lina empurrou para longe a tristeza de seu coração e endireitou os ombros.

— OK, vocês dois. Vamos fazer um pouco de cream cheese de ambrosia.


Não importava quantas vezes ela o lesse, o papel ainda lhe causava um estranho pressentimento. A folha em que a receita fora escrita era de seu bloco pessoal, com as iniciais “CFS” impressas na parte superior, e na fonte Copperplate Gothic Bold, de que ela tanto gostava. As palavras tinham sido traçadas com sua caneta azul favorita, e a caligrafia era idêntica à dela própria.

Mas não havia escrito aquilo. Encontrara a receita colada com fita adesiva à tigela de Edith Anne no dia em que Deméter a trouxera de volta e quase a ignorara. Afinal, parecia feita em sua própria caligrafia. Tinha imaginado que fosse apenas uma nota qualquer, lembrando-a de comprar mais ração, guloseimas ou outro item da parafernália própria de um cão.

Então, finalmente registrara a saudação Querida Lina , e seus olhos haviam voado para o final do bilhete: Com meus votos de muita alegria e magia, Perséfone.

Levara a mensagem para a sala a fim de lê-la. Em seguida, assim como fazia naquele momento, pensara como era bizarro que ela e Perséfone possuíssem letras idênticas.

Querida Lina,

Os seis meses estão chegando ao fim, mas parece que estou aqui há muito mais tempo. Este se passa, mesmo, de forma diferente no seu mundo. Minha mãe me chamará em breve, e quero ter certeza de que você terá a receita para a ambrosia. Nossos clientes a adoram, e não quero vê-los desapontados.

Que estranho! Só agora percebi que os chamei de “nossos clientes”...

Mas eu os considero como tais. Seus amigos mortais são boas pessoas. Vou sentir falta deles.

Mas não do seu gato ou dessa cadela babona, embora o seu bichano preto e branco finalmente tinha se dignado a dormir comigo, e ontem a cadela tenha latido de modo protetor para um estranho que tentou me abordar enquanto eu brincava na beira do rio.

É... Talvez eu sinta falta deles.

Lembre-se de se divertir na vida, Lina. Você foi muito abençoada.

Com meus votos de muita alegria e magia ,

Perséfone

A receita de cream cheese fora cuidadosamente escrita no verso da nota.

Lina a estudou mais uma vez. Não queria segui-la, porém Perséfone estava certa: seus clientes a amavam, e ela também não queria decepcioná-los.

Encheu outra vez o copo de Pinot Grigio , deixando a garrafa no balcão, ao lado do pote que ela já preenchera com creme de queijo batido. Não precisou checar o calendário para saber se era lua cheia. Tudo o que teve de fazer foi olhar pela janela da cozinha.

Não havia dúvida: uma lua redonda e branca cintilava no céu claro.

— Vamos acabar logo com isso. Como se você não estivesse acostumada à magia! — Apanhou um copo medidor do armário. — E pare de falar sozinha!

Colocou a receita no balcão e começou a seguir os passos que a fariam produzir o cream cheese de ambrosia.

A receita de Perséfone era prolixa, e Lina tomou um gole do vinho enquanto a lia.

Encha aquele bonito pote amarelo – aquele da cor das madressilvas selvagens – com cream cheese. Deixe o queijo amolecer. (E, Lina, não utilize aquelas misturas de baixa caloria horrorosas... Seu sabor chega a ser uma blasfêmia!)

Lina não pôde evitar sorrir. Ela e Perséfone tinham a mesma opinião quanto a cozinhar com ingredientes de baixa caloria.

Em seguida, adicione um copo do seu vinho branco favorito ao creme de queijo e misture bem. O tipo do vinho não é importante, contanto que não seja muito doce. (Aliás, Lina, eu adorei aquele Santa Margherita Pinot Grigio que encontrei em seu refrigerador. Espero que mamãe me dê tempo suficiente para repô-lo antes de ela nos destrocar! Caso contrário, peço desculpas por acabar com o seu estoque.)

Lina riu.

— Desculpas aceitas.

Realmente, quando ela voltara não tinha uma só garrafa de vinho branco.

Após adicionar a bebida ao creme, beba o que restou na garrafa. (E, Lina, não subestime a importância desta etapa!)

Lina serviu-se de mais uma dose de vinho após acrescentar a primeira ao cream cheese . Tentou não engolir tudo de uma vez, mas queria acabar logo com aquilo.

Quanto mais bebia, mais fácil era para ela admitir: Perséfone devia ser divertida.

Leu o restante da receita, já com um sorriso induzido pelo álcool nos lábios.

Em uma noite de lua cheia, pegue a mistura e coloque-a sob o velho carvalho. Você já o conhece. Fica no pátio, próximo à fonte. Espalhei um pouco da magia da primavera por lá. (Não se surpreenda se vir uma ninfa ou duas, embora elas morram de vergonha de se mostrar no seu mundo). Antes de deixar a mistura na árvore, deve dar três voltas completas no tronco dançando, e, ao mesmo tempo, concentrar os pensamentos na doce beleza da noite. (Lina, não precisa fazer nenhum passo específico de dança. Basta ouvir a sua alma e se divertir! Aposto que seu corpo vai surpreendê-la, assim como me surpreendeu...)

— Ahn? — ela gemeu e releu a linha. — “Assim como me surpreendeu”?

Não tinha ideia do que Perséfone queria dizer com aquilo.

Mas os olhares penetrantes que Scott lhe lançara e a dificuldade que ele havia tido para manter as mãos longe dela eram uma pista.

Não que ela houvesse se mantido muito casta no corpo de Perséfone.

Mas não queria pensar naquilo.

Voltou a atenção para o final da receita:

Vá buscar a mistura pronta na manhã seguinte. Para consumo mortal, deve diluí-la dez vezes. (Tenha cuidado, Lina. Não imagino o que aconteceria se Anton a experimentasse em sua forma original!)

— Novidade... Ele decerto criaria asas e voaria como uma ­ninfa! — Lina murmurou, rindo.

Recompôs-se novamente. Perséfone tinha acabado de fazê-la rir duas vezes! E nem estava ali. Não era à toa que todos a amavam tanto.

— Bem, crianças — disse a Patchy Poo the Pud e Edith Anne. — Vou terminar esta última taça de vinho, depois levar este pote “cor de madressilva”, colocá-lo sob aquela árvore velha, fazer algumas piruetas, e, em seguida, me jogar na cama. — Deixou escapar um soluço, e seus animais de estimação a fitaram com olhos acusadores. Eles sempre sabiam quando ela havia bebido demais.

Lina passou um braço em volta do pote e rumou para a saída com a visão turva. Edith Anne, claro, ficou bem no meio do caminho.

— Não se preocupe, garota. Não vou a lugar nenhum sem você. — O lado bom de a cadela ser tão ligada a ela era que nem precisava se preocupar mais com uma guia. — Vamos voltar logo, prometo! — disse a Patchy Poo the Pud, que as observava com um misto de desdém e preocupação.

A noite tinha ficado mais fria, e Lina desejou ter apanhado um casaco. Mas a blusa de cashmere de gola alta que Perséfone adicionara ao seu guarda-roupa era confortável e quente, mesmo sendo de um rosa delicado, mais apropriado a uma adolescente do que a uma mulher de meia-idade.

Sem dizer que ela sempre ganhava elogios quando a usava.

Esqueça , disse a si mesma. Não sentia nem vontade de se preocupar com roupas. E, se não estava disposta a ir às compras, não havia muito que pudesse fazer a respeito.

Sem dizer que, em seis meses, Perséfone tinha substituído cada item em seu armário. Tudo. De sapatos e jaquetas a sensuais calcinhas e sutiãs de seda.

— Onde aquela criatura encontrou tempo para isso? — perguntou a Edith Anne.

A cadela bufou em resposta, mantendo o ritmo a seu lado.

Lina abanou a cabeça.

— Eu não sei. Perséfone deveria ser renomeada a deusa do ­Shopping em vez de a deusa da Primavera.

Deu uma risadinha. Para falar a verdade, estava mesmo um pouco bêbada. Só podia estar se continuava rumando para aquele lugar outra vez...

Seguiu o caminho de paralelepípedos que ligava o condomínio ao pátio central e ouviu a fonte antes mesmo de avistá-la. Seis meses e duas semanas antes, esta tivera um efeito calmante sobre ela. Naquele momento, porém, conforme se aproximava, sentia o estômago cada vez mais apertado.

Por sorte, a área se encontrava deserta. Lina olhou para o relógio, torcendo o pulso para que a marca fosse iluminada pela luz da lua cheia: 22h45. Como havia ficado tão tarde?

Respirando fundo, aproximou-se do velho carvalho. O mesmo em que descobrira o bonito narciso.

E este se encontrava exatamente como seis meses antes. Naquela ocasião, os galhos haviam estado nus, exceto por botões à espera de desabrochar. Agora, os ramos se apresentavam quase desnudos outra vez, e havia apenas umas poucas folhas da cor de sacolas de papel presas a estes.

Olhou mais embaixo. Raízes grossas e retorcidas cruzavam o chão a seus pés.

Devagar, ela circundou o tronco, estudando as sombras. Exceto pela poeira e pelas raízes, a área em torno da base da árvore estava vazia. Não havia nenhuma flor que cheirasse à primavera e a primeiros beijos ao luar...

Mas o que ela esperava?

Franzindo as sobrancelhas, Lina assentou o pote de creme de queijo e o vinho em um nicho meio achatado entre as duas raízes junto ao tronco da árvore. Então recuou.

Em sua mente, pôde ler as instruções de Perséfone:

Antes de deixar a mistura na árvore, deve dar três voltas completas no tronco dançando, e, ao mesmo tempo, concentrar os pensamentos na doce beleza da noite. Está bem , pensou, esfregando as mãos. Vou pensar em como a noite está bonita, dançar em volta do carvalho, e pronto.

Olhou ao redor. Exceto por Edith Anne, que continuava sentada a poucos metros dali, observando-a atentamente, o pátio continuava deserto.

— Ainda bem... Ou pensariam que eu sou louca.

Edith bufou mais uma vez.

— Não se preocupe, isto não vai demorar muito.

Pense sobre a beleza da noite , Lina disse a si mesma.

Olhou para cima. A lua estava realmente bonita, parada lá como um disco de prata iluminado por dentro.

Deu um passo hesitante, levantando as mãos acima da cabeça, e se virou. A luz do luar perpassou os galhos da árvore e acariciou o cashmere que lhe cobria os braços, tingindo-o de um rosa prateado que lembrava o peito de uma pomba. Lina pulou uma raiz, surpresa com a graça com que seu corpo efetuou o movimento, e circundou o carvalho uma vez.

Uma brisa suave soprou através dos ramos da velha árvore, e as folhas secas entoaram uma suave melodia de outono. Ela levantou os braços e rodopiou enquanto erguia o rosto para o céu e deixava a lua lhe acariciar a pele. A noite se espalhava, linda e mágica, quando circundou a árvore pela segunda vez.

Ficou na ponta de um pé, lançou a perna para a frente, e logo pensou ouvir um zumbido de vozes femininas em harmonia com o ruído das folhas. Pelo canto do olho, percebeu silhuetas familiares se juntando a ela no círculo de dança. Elas cintilavam, e suas asas zuniam melodicamente.

Com os braços estendidos, Lina pulou, girou e se deleitou com a beleza da noite.

E circundou o carvalho pela terceira vez.

Parou. Estava ofegante, e sua respiração se revelava no ar frio como pequenas e mágicas nuvens. Olhou ao redor, porém as ninfas que tinham dançado com ela haviam desaparecido.

Edith Anne se aproximou com seu andar gingado, farejando a base da árvore, curiosa. Pondo as orelhas para a frente, olhou os ramos do carvalho logo acima.

— Elas se foram — explicou Lina. — Vamos, garota... É hora de irmos também.

A dança havia deixado seu corpo mais vivo do que estivera nas últimas duas semanas. Talvez ela devesse dançar mais vezes.

Anton e Dolores também haviam lhe questionado várias vezes sobre o porquê de ela, de repente, ter parado de andar de patins ao longo do rio...

Lina pensou a respeito. Ela nunca havia andado de patins.

Mas Perséfone, obviamente, o fizera muitas vezes. Seus funcionários nem precisariam ter lhe contado isso... Seu corpo diminuíra pelo menos um tamanho, e suas pernas e nádegas se apresentavam bem mais firmes do que quando tinha vinte anos.

Caminhou de volta para o condomínio e, antes que mudasse de ideia, foi direto para casa, arrancou os sapatos e a roupa, e ficou nua diante do espelho que cobria a parede. Parecia bem mais nova do que uma mulher de quarenta anos agora. Exceto pelas manchas escuras sob os olhos, estava com a pele até mais viçosa e saudável. E usava o cabelo como Perséfone usara: nos ombros e com os cachos soltos, meio rebeldes. Seus seios já não eram tão perfeitos e empinados, porém cheios e sensuais. Sua cintura continuava delgada, e os quadris se curvavam graciosamente até as coxas firmes, as quais desciam para pernas bem torneadas.

Sorriu com o pensamento. Ela era bonita, inteligente, sexy e bem-sucedida: tudo o que um homem deveria querer.

— Já é hora de superar sua dor, Lina — disse a si mesma.

Conformada, apagou a luz do banheiro e se enfiou na cama. Sentiu o colchão afundar quando Patchy Poo the Pud se aninhou junto a seu quadril. Como de costume, Edith Anne deu duas voltinhas e, com um suspiro, se acomodou em sua própria cama.

Lina fechou os olhos. Antes de adormecer, fez uma promessa a si mesma. Na manhã seguinte começaria de novo.

Perséfone tinha razão: ela fora ricamente abençoada.


A deusa da Primavera estava distraída quando sentiu sua magia ser utilizada. Tão discretamente quanto lhe foi possível, Perséfone se desculpou e interrompeu a conversa cansativa com Hermes e Afrodite. Os imortais se despediram dela com um aceno e continuaram a debater se as Limoníades, as ninfas dos prados e das flores, eram mais belas do que as Napaeae, ninfas dos vales. Nem se importaram que a jovem deusa estivesse deixando a discussão. Ela era especialista em ninfas da floresta, mas vinha agindo de modo reticente e não tivera nada de divertido a acrescentar sobre o assunto. Na verdade, eles quase não notaram sua partida.

Mas Deméter notou.

— Filha, aonde está indo?

Perséfone fez uma pausa e esboçou uma expressão inocente de tédio antes de se virar para a mãe.

— Ora, mamãe, sabe que eu não suporto ficar trancada aqui enquanto as flores estão desabrochando. Os prados me chamam.

— Está bem, criança. Espero vê-la esta noite no Festival de Chloaia.

— Claro. — Perséfone se curvou e deixou a mãe na sala do trono.

Deméter observou a filha partir com os olhos estreitados, pronta a admitir para si mesma que trocar a mortal por Perséfone fora um erro.

Verdade que seu plano tivera o efeito desejado. A jovem deusa havia amadurecido. Para sua surpresa, continuava a ser chamada de rainha do Submundo, e os familiares dos mortos cessaram com as súplicas.

Mas a que preço? Desde seu retorno, Perséfone vinha se comportando de uma forma mais sóbria. Raramente dava festas e havia parado de se relacionar com semideuses. Mas também andava com o humor instável e distraída. Grande parte de seu brilho tinha esmaecido.

Deméter se preocupou com a filha, assim como com Carolina Francesca Santoro. A mortal parecia ter firmado lugar na consciência da jovem deusa, e aquele não era um arranjo muito confortável.

Suspirou. Não conseguia esquecer a tristeza no rosto de Lina quando Hades a rejeitara. No final, ela havia lhe causado uma ­grande dor, e não fora essa a sua intenção.

Depois começaram aqueles rumores preocupantes. Os imortais diziam a boca pequena que Hades enlouquecera, que não recebia absolutamente ninguém. Fora dito ainda que ele se recusara até mesmo a conceder uma audiência a Zeus, quando este adentrara seu obscuro reino.

— Irene — Deméter chamou sua velha amiga. — Preciso fazer algo a respeito de Hades.

— Outra vez? — perguntou a mulher.

— Outra vez — confirmou a grande deusa.


Por meio do oráculo da mãe, Perséfone assistiu à dança em torno do carvalho e sorriu quando pequenas ninfas se juntaram a Lina. O corpo da moça girava e saltava com uma graça que não era exatamente mortal.

— Seu corpo se lembra — a deusa da Primavera sussurrou para o oráculo. — Ele foi abençoado pela presença de uma deusa e nunca mais será o mesmo.

Assim como ela nunca mais seria a mesma, concluiu em silêncio. Carolina tinha saído de seu corpo, mas havia deixado para trás uma parte de sua essência.

Distraidamente, acariciou o narciso de ametista que lhe pendia entre os seios. A corrente se quebrara, porém ela o mantivera amarrado ao pescoço. Poderia removê-lo e mandar que o consertassem, mas relutava em se separar dele. De alguma forma, o contato com o pingente a acalmava.

Lina concluiu a dança e voltou para casa. Perséfone a viu nua diante do espelho, e seu sorriso espelhou o da mortal. Estava orgulhosa das mudanças que havia operado nela. Ainda se lembrava do ardor nos músculos cansados e da satisfação em ver o corpo da mortal ficar cada dia mais esbelto e flexível, bem aos moldes de uma deusa.

Quando Lina deslizou para a cama, Perséfone quase pôde sentir o corpo quente e macio do gato pressionado de modo familiar contra seu próprio quadril.

A imagem no oráculo rodopiou e desapareceu.

— O que foi, minha filha? Por que você e a mortal estão tão infelizes?

A voz de Deméter a fez pular, cheia de culpa.

— Não — Deméter continuou antes que ela saísse com uma desculpa. — Não quero palavras vazias, destinadas a aliviar os meus sentimentos. Quero a verdade.

Perséfone encontrou os olhos da mãe. Se ela queria a verdade, então que fosse.

— Sinto falta dele, mamãe. Eu não pretendia, mas caí de amores pelo mundo de Lina. É tão desorganizado, mas tão mais vibrante e vivo! E eles não sabiam que eu era uma deusa. Não sabiam que eu era sua filha e, mesmo assim, me receberam de braços abertos.

— Não foi Carolina que eles abraçaram? — Deméter perguntou gentilmente.

— Não. Eu usava seu corpo, mas a alma era minha.

Deméter abanou a cabeça, tristonha.

— Carolina me disse a mesma coisa, mas eu não a ouvi. Creio que foi um erro.

— E se houver uma maneira de corrigir seu erro?

— Desta vez eu gostaria de escutar.

— Ótimo. — Perséfone sorriu com carinho para a mãe. — Eu tenho uma ideia.


Capítulo 27

— Tem certeza de que quer que eu saia mais cedo? Não me importo de ficar — indagou Dolores.

— Não, querida. — Lina acenou com um guardanapo de linho para ela. — Eu insisto. A padaria não está muito cheia, e vamos fechar em trinta minutos. Anton e eu podemos dar conta.

— Bem, se está certa disso... — Dolores comentou, em dúvida.

— Ora, vá embora de uma vez! Lina e eu vamos nos virar bem sozinhos. Acha que eu sou algum incompetente, por acaso? — ­Anton exigiu, irritado.

— Eu nunca o chamei de incompetente... ao menos não na sua frente! — Dolores riu da própria piada.

Anton respondeu no seu melhor sotaque sulista:

— Eu nuuuunca vou ser bonzinho contigo outra vez! — entoou, erguendo o punho no ar.

Lina riu.

— Não acho que Scarlet O’Hara teria usado essas botas.

— Teria se ela fosse gay — ele rebateu, presunçoso.

— Está bem, crianças, já estou saindo. — Dolores abriu a porta, depois hesitou, sorrindo para Lina. — É bom ver você rindo de novo, chefe... — disse, então saiu, apressada, para a noite de Oklahoma.

Surpresa com as palavras da funcionária, Lina olhou para a porta fechada.

— Ela tem razão — reforçou Anton, tocando-a no braço.

— Obrigada — Ela lhe afagou a mão. — É bom rir de novo. — Eles sorriram um para o outro. — Vou começar a fechar aqui. Por que não termina a massa lá nos fundos? Já deve estar boa para ser cortada e colocada nas assadeiras.

Anton concordou e saiu em disparada pelas portas francesas que separavam a cozinha do café.

Lina tirava a placa da pizza del giorno da parede, a fim de alterá-la para a especialidade do dia seguinte, quando a porta da frente foi aberta.

— Só um momento, por favor! — falou, sem nem mesmo se voltar. — Está com sorte... ainda tenho uma pizza do dia sobrando. Três queijos com manjericão, alho e tomates secos.

— É uma das minhas favoritas, mas venho sonhando com uma fatia grossa de gubana quente com manteiga.

Lina congelou. Aquela voz... Ela a conhecia como a sua própria.

Virou-se e se viu mais uma vez atingida pela beleza da deusa da Primavera. Desta vez, contudo, Perséfone vestia calças jeans e uma confortável malha de lã; e tinha os cabelos longos puxados para trás em um grosso rabo de cavalo. Os trajes simples, entretanto, em nada dissipavam sua beleza única.

— Olá, Lina.

— Perséfone...

A deusa sorriu.

— Está aí algo com que podemos contar: reconheceremos uma à outra até no meio de uma multidão.

— Eu... — Lina passou a mão pela testa como se tentando eliminar sua confusão. — Eu não esperava vê-la. É uma surpresa e tanto.

Antes que Perséfone pudesse responder, o sino da porta soou outra vez, e uma mulher bonita e alta adentrou regiamente a padaria.

Perséfone suspirou e olhou por cima do ombro. Deméter escolheu uma mesa perto da vitrine e sentou-se como se estivesse se preparando para deliberar numa corte.

— Imaginei que mamãe me seguiria — a jovem deusa falou com um suspiro.

Anton saiu apressado da cozinha.

— Deus do Céu, quem poderia imaginar que fôssemos ter esse movimento antes de fecharmos?

Como uma pluma, flutuou até a deusa da Colheita.

— Posso lhe servir alguma coisa?

— Vinho. — Deméter levantou uma sobrancelha. — Tinto.

Anton inclinou a cabeça, considerando.

— Que tal um Chianti ?

— Se é uma sugestão de Carolina, eu a acatarei.

— Está certíssima, minha querida... Nossa Lina conhece vinhos como ninguém — ele elogiou. — Mais alguma coisa?

— Anton? — Lina reencontrou a própria voz. — Pode voltar para a massa. Eu mesma atendo as senhoras.

Deméter levantou a mão para silenciá-la.

— Não, não. Estou adorando este... — devolveu o olhar atento do rapaz — ... jovem. Vocês duas precisam conversar. Ele pode perfeitamente me atender.

Anton lançou um olhar satisfeito na direção de Lina.

— Não posso tentá-la com algo mais do que apenas vinho? Temos uma pizza fabulosa! Prometo prepará-la com as minhas próprias mãos.

— Pizza? — A deusa pronunciou a palavra como se fosse uma língua estrangeira.

— Com queijo, tomate, alho, manjericão... É de morrer!

— Então faça-a para mim — Deméter ordenou com um gesto imperioso.

Anton sorriu.

— Qual é o seu nome, querida? — perguntou antes de se afastar. — Não me lembro de ter visto você aqui antes.

Lina abriu a boca, porém Perséfone sacudiu a cabeça de leve, pedindo em silêncio para que ela se mantivesse calma.

— Pode me chamar de Regina Safra — respondeu Deméter.

— Pois, sra. Safra, uma coisa eu lhe digo: em qualquer outra pessoa esse seu traje pareceria um muumuu de seda. Sabe aqueles vestidinhos havaianos? Mas em você parece algo que uma deusa usaria! Está ma-jes-to-sa!

— Claro que estou —Deméter replicou.

— Vou trazer o seu vinho agora mesmo. — Anton rumou para a cozinha, apressado.

Quando passou por Lina e Perséfone, falou em voz baixa:

— Adoro essas coroas ricas!

Perséfone disfarçou o riso com uma tossidela, enquanto Lina fazia uma careta para o funcionário.

— Regina Safra? — ela sussurrou após Anton desaparecer cozinha adentro.

— Mamãe tem um senso de humor excêntrico, principalmente em se tratando de nomes. Sabia que, em algumas línguas, o meu nome soa apenas como “milho”?

— Estou do outro lado do salão, mas não sou surda.

— Eu sei, mamãe... — resmungou Perséfone.

— Perdão, Deméter — Lina se desculpou.

As duas moças compartilharam olhares que se transformaram em sorrisos.

Em seguida, Perséfone olhou pela padaria com estranheza.

— Dolores não está?

— Eu a deixei sair mais cedo.

A deusa da Primavera assentiu.

— Ela trabalha pesado. Merece uma folga.

— É difícil convencê-la a reservar algum tempo para si mesma. — Lina e Perséfone falaram em uníssono.

Entreolharam-se, surpresas.

— Verdade... — as duas disseram em conjunto mais uma vez.

— Aqui está o seu Chianti e um pouco de pão com azeite picante. — Anton colocou a taça de vinho tinto e uma cesta de pães diante de Deméter. — A sua pizza sairá em um instante. — Passou por Lina, cantarolando Shall We Dance de O Rei e Eu , e deu um tchauzinho para Perséfone.

A deusa riu.

— Senti tanta falta de Anton!

— Nossa, ele a impressionou mesmo.

— Parem de perder tempo — Deméter as repreendeu.

— Mamãe! Por favor, beba o seu vinho... Sua pizza ainda tem que assar. Tente ser um pouco mais paciente. — Perséfone suspirou e se virou para Lina. — Ser filha de uma deusa não é fácil.

— E eu não sei? — ela replicou.

— É mesmo... — Perséfone olhou para o balcão e respirou profundamente. — Eu precisava voltar.

A face de Lina era um ponto de interrogação.

— Por quê?

A jovem deusa encontrou seus olhos.

— Não estou feliz. Sinto saudades da minha... da nossa padaria — ela se corrigiu — e também do seu mundo.

Lina olhou para Deméter, esperando que esta fosse reagir às palavras da filha, entretanto a deusa continuou a sorver seu vinho em silêncio.

— Eu não entendo.

— Não há nada de que sinta falta no Submundo? — Perséfone perguntou numa súplica.

— O que está querendo dizer? — Lina endireitou a espinha.

A jovem deusa procurou os olhos da mortal.

— Não podemos mentir uma para a outra.

— Eu não estou tentando mentir para você — murmurou Lina. — É que...

— ... Dói — Perséfone concluiu por ela. — Eu sei. Eu também tentei não pensar sobre tudo o que havia perdido. Achei que seria fácil deixar tudo para trás.

Lina concordou com um gesto de cabeça, lutando para manter as emoções sob controle.

— Eu vou começar. — O sorriso de Perséfone foi melancólico. — Sinto falta da padaria. De sua agitação, eficiência, de seu cheiro e seus ruídos, e de como é um ponto de encontro para tantos tipos diferentes de mortais. Sinto falta de pequenas coisas, por exemplo, de como Tess Miller tem que tomar seu copo de vinho branco precisamente no mesmo horário todos os dias. Sinto falta do cachorrinho dela, apesar de ele ter chocado tanto Tess ao me desprezar que ela ameaçou levá-lo a um psiquiatra de animais! Os bichos não reagem a mim como reagem a você, sabia? — Perséfone franziu a testa enquanto a fitava. — Essa conexão que tem com os animais é muito estranha.

— Sim, eu sei.

— Mas acho que o que mais sinto falta é da maneira como todos me procuravam para resolver seus problemas. Eles nunca me viram como uma ve rsão mais jovem e incompetente da minha mãe. Ninguém corria para ela, depois de eu tomar uma decisão, para verificar se eu estava sendo sensata. Eles me respeitavam e confiavam em meu ponto de vista.

— Demonstrou ter um excelente julgamento, Perséfone — Lina assegurou. — A padaria está prosperando, todos estão felizes... Merda! Conseguiu até devolver meu antigo corpo!

A deusa lançou-lhe um olhar de franca avaliação.

— Seu corpo era um lugar bem confortável para viver, Lina. Não subestime a sua própria beleza. — Sorriu, travessa. — E há outra coisa de que sinto falta: os homens mortais são tão sensíveis!

— Scott — Lina concluiu, seca.

— Scott — ronronou Perséfone. — Foi um namorico e tanto o nosso.

— Ele se apaixonou por você.

— Claro que sim. — A moça encolheu os ombros. — Mas vai superar e se tornar um homem ainda melhor com a experiência. Saber como agradar a uma deusa é algo que todos eles deveriam aprender.

A ideia fez Lina sorrir.

— Sinto falta até mesmo daquelas duas criaturas que moram com você, principalmente do gato — admitiu Perséfone.

Desta vez, Lina riu com vontade.

— Patchy Poo the Pud é terrível, mas uma gracinha.

— É uma praga, isso sim! — a deusa falou, brincando.

Lina concordou.

— Agora é a sua vez... — incitou Perséfone. — Do que sente falta do Submundo?

— Tenho saudades de Eurídice — Lina confessou com apenas uma ligeira hesitação. — A pequena alma era como uma filha para mim. Eu me preocupo com ela.

— E do que mais?

— De Órion. Eu sei que ele devia ser um dos temíveis cavalos de Hades, mas Órion me lembrava mais um filhote de cachorro preto tamanho família.

— E?

— Sinto falta daquele céu incrível. A luz do dia era como uma pintura de aquarela em que alguém tinha soprado vida. Sei que soa irônico, pois estou falando sobre a Terra dos Mortos, mas não era escuro e sombrio lá. Ao menos não depois que você chegou a Elísia. Na verdade, foi o lugar mais incrível em que eu já estive ou imaginei. — Lina deixou a mente vagar. Agora que começara a falar, não queria mais parar. — Sabia que o céu lá é iluminado pelas almas das Híades, de maneira que, quando a noite chega, tudo em Elísia parece um sonho antigo?

— Não — Perséfone respondeu, intrigada.

— E as almas dos mortos não são assustadoras ou repugnantes. São apenas pessoas cujos corpos se tornaram menos importantes. Elas ainda têm a capacidade de amar, rir e chorar.

Perséfone pegou a mão de Lina.

— E do que sente mais falta?

Os olhos de Lina se encheram de lágrimas.

— Hades — ela sussurrou. — Você se apaixonou pela minha vida, e eu, pelo senhor do Submundo.

— Que bom! — Perséfone disse alegremente, apertando sua mão.

— Como isso pode ser bom? Eu amo Hades, mas ele ama a deusa da Primavera, não a mim.

O riso alegre da jovem deusa fez as luzes da padaria parecerem mais intensas.

— Se ele me ama, por que se recusa a me receber?

— Tentou ver Hades?

— Claro que sim. Eu estava infeliz, sentindo muita falta deste mundo. Então comecei a ouvir rumores de que Hades tinha enlouquecido, de que os espíritos do Submundo estavam perdidos, etcetera , etcetera , pois sua rainha havia deixado seus domínios.

— Espere... Hades ficou louco?! — Lina sentiu o sangue abandonar o rosto.

— Ah, não é nada disso. Ele só está de mau humor. — Perséfone fez um gesto de indiferença com a mão. — Mas os rumores me fizeram pensar que talvez eu não estivesse sozinha na minha infelicidade. Então visitei o Submundo.

— E? — Lina teve vontade de sacudi-la, de tão ansiosa.

— E a primeira coisa que aconteceu foi que aquele cão de três cabeças horrível não me deixou passar. — A moça estremeceu. — Edith Anne tem um temperamento muito mais dócil.

— O Cérbero lhe causou problemas?

— Problemas? Ele bloqueou a estrada, roncando e babando. Fiquei apavorada de chegar perto dele. Tanto que tive de pedir ajuda. — Perséfone balançou a cabeça, desgostosa.

— E Hades não veio recebê-la?

A deusa franziu o cenho.

— Um daimon apareceu em seu lugar, montado naquele cavalo preto odioso.

— Órion a tratou mal?

— Ele grudou aquelas orelhas pontudas na cabeça e arreganhou os dentes para mim.

— Eu sinto muito. Eu já repreendi Órion por esse tipo de atitude. Ele deve ter pensado que você era eu, e, quando percebeu que não... Bem, Órion devia ter se comportado melhor de qualquer maneira — Lina ponderou.

— Ah, devia. Enfim, eu disse ao daimon que queria falar com Hades, e ele me perguntou se eu era a deusa da Primavera, ou a mortal, Carolina. Como se já não soubesse! — Perséfone pareceu irritada. — Até mesmo os espíritos dos mortos sabiam. O tempo todo em que estive viajando por aquele caminho sombrio, eles me observavam. A princípio pareciam felizes, então, quando eu falava com eles, apenas tentavam ser educados e se afastavam de mim. Eu até os ouvi sussurrar coisas como: “Alguém está disfarçada de rainha do Submundo!” — Perséfone afastou uma mecha de cabelo que havia escapado do rabo de cavalo. — Foi uma experiência perturbadora, eu garanto. — Fez nova pausa para estudar as unhas bem cuidadas, e Lina teve ímpetos de sacudi-la outra vez. — Eu assegurei ao daimon que o meu corpo e a minha alma eram os mesmos. Em seguida ele desapareceu e, quando voltou, disse que seu senhor se recusava a ver Perséfone. Não bastasse isso, Hades ordenara que eu deixasse seu reino e parasse de incomodá-lo.

— E como isso prova que ele não a ama? Hades é muito ­teimoso. — Lina olhou de soslaio para Deméter, que agora fingia analisar o vinho. Inclinou-se para frente e baixou a voz: — Às vezes dá trabalho fazê-lo relaxar e conversar. Na realidade, Hades é romântico e passional. Precisa tentar de novo. Ele provavelmente vai vê-la na próxima vez.

Lina odiou a si mesma tão logo terminou de proferir as palavras. Sentiu o estômago se apertar. Não queria que Perséfone visse Hades. Não queria que ele visse ninguém, exceto ela própria.

— Pois eu acho que você deveria tentar — disse Perséfone com firmeza.

— Eu? — Ela piscou, surpresa. — Como eu poderia?

— Poderíamos trocar de corpo outra vez. — Perséfone apontou Deméter. — Minha mãe vai nos ajudar. Ela reconhece que seu plano não funcionou exatamente como esperava.

Lina olhou para a deusa, e esta inclinou a cabeça em uma pequena mesura real.

— Minha filha diz a verdade. Eu estava enganada quanto à forma como lidei com a situação.

A cena terrível passada no quarto do palácio invadiu a memória de Lina.

— Fico contente por admitir, mas isso não muda nada.

— Lembra-se, Carolina, quando foi até o meu oráculo, perturbada, porque tinha feito um erro de julgamento? — indagou Deméter.

— Sim, eu tomei uma decisão sem pensar e quase causei muita dor a Eurídice.

— Lembra-se do que eu lhe disse na ocasião?

— Disse que eu devia aprender com o meu erro — murmurou Lina.

— Pois eu bebi do meu próprio veneno. Também não considerei plenamente a minha decisão. E o que aprendi com meu deslize é que mesmo uma deusa pode ser surpreendida por suas filhas. — Deméter contemplou as duas moças com um de seus raros sorrisos, então voltou a atenção para Lina. — Hades estava sendo sincero. Ele sempre foi diferente do restante dos imortais. Creio que o senhor do Submundo realmente se apaixonou por você, Carolina.

— E eu tenho uma proposta — interveio Perséfone. — Você ama Hades. Eu amo a sua padaria e o seu mundo. Por que devemos viver para sempre sem os nossos amores?

— Mas Hades... — Lina começou.

— Ouça-me — Perséfone a interrompeu. — Como deusa da Primavera, devo estar no meu mundo por seis meses. Dessa forma, como você diria, o meu “trabalho” é concluído até a primavera seguinte. Eu poderia vir aqui durante esse intervalo. E, enquanto eu estivesse aqui, você poderia voltar ao Submundo como rainha.

A cabeça de Lina girava.

— Eu fingiria ser a deusa d a Primavera como antes?

— Não. — O sorriso de Perséfone foi enigmático. — Não teria de fingir. Todos, desde os animais até os espíritos, sabiam que eu não era você. Não fingirá, Carolina. Você é a rainha deles. Estará apenas alojada temporariamente no meu corpo, pois preciso do seu aqui. Eu, sim, terei de me fazer passar por outra pessoa.

— Não — falou Lina.

— Por que não? — Perséfone deu um longo suspiro. — Eu lhe dou minha palavra de que dispensarei qualquer Scott antes de voltar.

— Não é isso.

— Então, o que é?

— Hades não me quer, Perséfone. Ele disse que amava a minha alma, e, depois, quando viu o meu verdadeiro eu, me rejeitou.

— Lina, Hades estava apenas surpreso — garantiu Perséfone.

— Você não viu a expressão dele.

— Eu vi — Deméter interrompeu. — E o que li nela foi surpresa e dor, não desprezo ou rejeição.

— Então leu algo que eu não li — Lina concluiu com pesar.

— Creio que esteja cometendo um erro, Carolina — disse Deméter.

— Talvez. Mas e se não estiver? — Ela sentiu a onda de dor que lembrar a rejeição de Hades ainda evocava e piscou, aflita. — Não vou suportar se ele olhar para mim daquele modo outra vez. E, se não olhar, pode até ser pior. Como poderei saber que não é apenas o seu corpo que ele deseja?

— Pode viver o resto da vida sem ele? — Perséfone perguntou com suavidade.

As lágrimas escorreram dos olhos de Lina e deixaram um rastro brilhante em suas faces. — Tenho m edo do que acontecerá à minha alma se ele me rejeitar de novo, ou de que ele me aceite apenas porque quer que eu seja algo que não sou.

— Não tome nenhuma decisão antes de ponderar bem sobre ela — sugeriu Deméter.

— E prometa que vai considerar a minha proposta. O outono acabou de começar aqui. Terá até o primeiro dia da primavera para fazer isso, quando eu voltarei em busca da sua decisão. — Perséfone enxugou uma lágrima do rosto de Lina, então seu sorriso se tornou amargo. Enfiando os dedos sob o decote do suéter, ela tirou a corrente de prata que este ocultava. Sem falar nada, puxou-a por sobre a cabeça. O narciso de ametista capturou as luzes da padaria e cintilou. — Isto lhe pertence — disse, colocando-o com cuidado por sobre a cabeça de Lina. — A corrente se quebrou e foi amarrada, mas eu não a substituí. Está como você a deixou.

— Ah, meu Deus! — Lina deixou escapar um soluço e apertou a flor que tinha sido tão maravilhosamente esculpida para ela. — Pensei que nunca mais fosse ver isto outra vez! Obrigada por tê-la devolvido.

Anton irrompeu pelas portas francesas, assobiando uma canção de Gypsy e trazendo uma bandeja redonda com uma pizza cheirosa e recém-assada. Olhou para Lina e parou.

— Por que está chorando?! — Seus olhos faiscaram ao pousar em Perséfone. — Escute aqui, mocinha, se você a fez chorar, eu...

— Não, Anton, não é nada de ruim! — Lina sorriu entre lágrimas, enxugando o rosto com as costas da mão. — Perséfone me deu este colar, e ele é tão bonito que me fez chorar.

O rapaz relaxou.

— Perséfone? Como a deusa?

— Exatamente — replicou a moça.

— Também não me lembro de tê-la visto aqui antes. Como conheceu a nossa Lina? — ele indagou, intrigado.

Perséfone sorriu.

— Lina me ajud ou a crescer.

Anton pareceu confuso.

— Perséfone — Deméter chamou do outro lado do salão. — Precisamos ir.

— Anton, precisamos levar a pizza para viagem. Ah! Poderia, por favor, adicionar na caixa uma fatia grande de gubana? — pediu a deusa da Primavera.

— É claro! — ele respondeu, solícito. — Sua Majestade deseja mais alguma coisa? — Acenou com um gesto de cabeça na direção da mãe dela.

A moça riu com vontade.

— Apenas a conta, por favor.

— Eu pago — declarou Deméter e, com a dignidade típica de uma deusa, pôs-se de pé e caminhou até onde Anton esperava, na caixa registradora.

— Com o quê? — Lina sussurrou.

Perséfone encolheu os ombros.

— Anton! — interveio Lina, e ele se virou para ela.

— Com estas senhoras aceitaremos permuta. Apenas certifique-se de negociar bem...

Os olhos de Anton se arregalaram.

— Como quiser, patroa. Então, muito bem, minha rainha, o que tem a ofertar pela gubana, a pizza e o vinho?

Deméter ergueu o queixo.

— Eu prefiro o título de deusa. Rainhas têm reinos limitados demais.

— Como quiser, ó, deusa Regina Safra... O que estás a ofertar?

O sorriso de Deméter foi ardiloso.

— Gostaria de um pássaro falante?

— Não, querida. — Anton revirou os olhos. — Já temos animais em demasia circulando por aqui. Tente outra vez.

Perséfone puxou a manga de Lina.

— Deixe-os resolver isso sozinhos... Tenho mais uma pergunta.

— Qual?

— O que fez a Apolo?

— ... Nada — Lina respondeu.

— Nada? — Perséfone repetiu, confusa.

— Coisa nenhuma.

— Você rejeitou o deus da Luz? — A jovem deusa não teve a certeza de ter ouvido bem.

— Claro que sim. Costumo me interessar apenas por um deus de cada vez — ironizou Lina.

— Está falando a sério? — Perséfone segurou o queixo perfeito, pensativa. — Que conceito interessante!

— Vendido por uma coroa de ouro que provavelmente é falsa, mas que eu a-do-rei! — Anton gritou do outro lado, feliz da vida.


Capítulo 28

Hades não conseguia parar de olhar para o desenho que a pequena alma havia lhe dado.

— Gostou? — perguntou Eurídice.

— Como sabia? — A voz dele soou áspera e estranha até para seus próprios ouvidos. Quanto tempo se passara desde que tinha conversado com alguém? Não conseguia se lembrar. — Tenho pensa­do muito em Perséfone — prosseguiu a moça. — Comecei até a sonhar com ela... Mas, quando a vejo em meus sonhos, ela não é mais como era quando estava aqui. É difícil explicar, mas é como se a aparência dela nos meus sonhos fosse a mais correta. Então eu a desenhei dessa forma. Quando mostrei o esboço a Iapis, ele me disse que eu devia trazê-lo a você.

— Espero não ter me excedido, senhor — murmurou Iapis.

Hades continuou sem tirar os olhos do desenho.

— Não, meu velho amigo, não se excedeu. Tinha razão em querer me mostrar. — Ele se obrigou a desviar o olhar do esboço para fitar Eurídice. — Obrigado. Posso ficar com ele?

— É claro, senhor. Tudo o que eu criar será seu.

— Não, pequena alma — Hades respondeu, tristemente. — Qualquer coisa que criar ainda pertence a ela.

— Será que ela vai voltar para nós? — Eurídice perguntou.

O deus olhou para o desenho de Carolina. Suas feições mortais eram doces e gentis, seu corpo, cheio e feminino.

Sentiu uma estranha agitação só de olhar para a imagem e fechou os olhos, bloqueando-a em sua mente. Ele não tivera forças para confiar nela, e, por conta disso, ela quase havia perdido a alma para o Tártaro. Em seguida retornara do abismo apenas para ser traída e ferida por suas palavras duras e impensadas. Ele não merecia seu amor.

— Não — murmurou. — Não acredito que ela voltará para nós.

Eurídice deixou escapar um lamento, e, quando Hades abriu os olhos, viu Iapis tomando-a nos braços.

— Acalme-se — o daimon falou baixinho. — Onde quer que ela esteja, não deve ter se esquecido de você. Ela a amava.

— Deixem-me, por favor — Hades interveio asperamente.

Iapis fez um sinal para Eurídice ir, porém permaneceu nos aposentos de seu senhor. Sua preocupação com o deus era grande. Hades já não andava de um lado para o outro, frustrado. Não descontava sua revolta na forja. Recusava-se a comer e quase nunca dormia. Atendia seus súditos, julgando os mortos como se ele próprio estivesse entre eles, condenado a vagar eternamente pelas margens do Cócito, o rio da Lamentação.

Quando Perséfone tentara visitá-lo, Iapis havia sentido uma ponta de esperança diante da raiva demonstrada por Hades. Mas isso tinha durado pouco. Tão logo a deusa da Primavera deixara o Submundo, Hades se fechara outra vez. O deus não podia continuar como estava, entretanto Iapis não via nenhuma luz no fim do túnel. O tempo parecia inflamar ainda mais a ferida do deus sombrio em vez de curá-la.

— Iapis, você sabe o que acontece quando almas gêmeas são separadas? — Hades perguntou de repente. Estava parado em frente à janela que dava para os jardins adjacentes à floresta de Elísia que acabavam levando ao rio Lete.

— Almas gêmeas sempre se reencontram, o senhor sabe — respondeu o daimon.

— Mas o que acontece se elas não puderem encontrar uma a outra, ou se uma delas fez algo imperdoável? — Ele se virou para olhar o amigo.

— Não consegue perdoá-la, Hades?

O deus piscou e focalizou melhor o rosto de Iapis.

— Eu já a perdoei. Ela estava apenas cumprindo seu juramento a Deméter. O senso de honra de Carolina não lhe permitiria trair sua palavra, nem mesmo por amor. É a mim mesmo que eu não consigo perdoar.

— Como assim, senhor?

— Carolina Francesca Santoro é uma mortal com a coragem de uma deusa, e eu a feri pela mais cretina das razões, apenas para ­salvaguardar meu orgulho. Por isso não posso perdoar a mim mesmo. Assim sendo, como posso esperar isso dela?

— Talvez a situação seja parecida com a noite em que a insultou — lembrou Iapis com calma. — Basta perguntar e se mostrar disposto a ouvir a resposta.

Hades sacudiu a cabeça e se virou para a janela.

— Ela desnudou sua alma para mim, e eu a traí. Agora Carolina está além do meu alcance.

— Mas, se concordasse em ver Perséfone...

— Não! — Hades rosnou. — Não vou receber uma deusa frívola que zomba da alma que residiu em seu corpo.

— Hades, não pode afirmar que a deusa zomba de Carolina!

— O Cérbero a repeliu, Órion a detestou, os mortos a consideraram uma impostora... Isso basta para mim — insistiu o deus.

— Perséfone é uma deusa muito jovem.

— Ela não é Carolina.

— Não, não é — o daimon concordou com tristeza.

— Deixe-me agora — pediu Hades.

— Sim. Mas, antes, permita-me providenciar um banho e roupas limpas para o meu senhor.

Quando Hades começou a protestar, Iapis desabafou:

— Não consigo me lembrar da última vez em que tomou banho ou mudou de roupa. Está pior do que os recém-falecidos!

Os ombros poderosos de Hades caíram.

— Se eu tomar banho e mudar de roupa, vai me deixar em paz? — ele indagou, sem olhar para o daimon.

— Por algum tempo.

Hades quase sorriu.

— Então que assim seja, meu amigo.


Hades se acomodou na água quente da banheira de mármore negro, construída no chão do quarto de banho, e descansou de encontro à borda larga. Uma taça de vinho tinto e uma bandeja de prata cheia de romãs e queijo fora deixada ao seu alcance. As poucas velas acesas brilhavam suavemente em meio ao vapor que subia, tal como o luar em meio à neblina.

Bebeu o vinho com gosto. Não tinha apetite e ignorou a comida, mas o vinho o deixava mais leve. Talvez, apenas naquela noite, ele pudesse beber até esquecer. Quem sabe, assim, poderia dormir sem sonhar com ela.

Em um gole, esvaziou a taça e olhou na lateral, querendo mais. Iapis deixara o jarro perto o suficiente para que ele não tivesse de abandonar o calor reconfortante da banheira.

— Aquele daimon pensa em tudo... — resmungou consigo mesmo.

— Nem tudo.

Hades pulou ao som da voz e deixou cair a taça, que tilintou ao tombar no mármore.

Perséfone soprou o vapor e este se dissipou, tornando-a visível para Hades. Ela também descansava na borda da enorme banheira, à sua frente, e, embora estivesse submersa na água até os ombros, seu corpo nu se encontrava tão à vista como o dele.

Os olhos da deusa se arredondaram com surpresa. Carolina não era nenhuma tola... Ela mesma não fazia ideia de que o sisudo senhor do Submundo fosse tão delicioso.

— Olá, Hades... Não creio que tenhamos sido formalmente apresentados. Sou a deusa Perséfone, da Primavera.

Ele desviou o olhar do dela e saiu da banheira de um salto, vestindo um manto. Perséfone o viu cerrar a mandíbula e, quando o deus falou, foi forçando as palavras por entre os dentes.

— Afaste-se de mim! Eu me recusei a vê-la.

— Eu sei, mas estou com um problema e você é o único deus que pode me ajudar a resolvê-lo, embora Apolo seja definitivamente mais hospitaleiro. E, sem dúvida, ele se mostraria bem mais disposto a me ajudar nesta empreitada em particular... — Ela correu os dedos pela água quente. — Depois de eu ter falado com Lina, entretanto, parece que você é o meu único recurso.

— Apolo! — Hades exclamou com desdém. — O que ele tem a ver com Carolina?

— Nada. Mesmo que ele deseje o contrário.

O restante do que Perséfone dissera finalmente rompeu o choque de Hades.

— Falou com Carolina?

— Sim, falei. Na verdade, acabei de deixar sua padaria — contou a deusa, presunçosa.

Hades prendeu a respiração.

— Ela está bem?

— Em excelente forma, e seu negócio vem prosperando a cada dia.

Ele observou sem ver o vinho que tinha espirrado no chão.

— Que bom. Fico feliz por ela estar...

— Ainda não terminei — Perséfone o interrompeu e, sacudindo os dedos acima da superfície da água, fez chover as gotas sobre ele.

— Então termine de uma vez. — Hades a fulminou com o olhar.

— O que eu ia dizer era que o corpo dela está lindo, seu negócio vai bem, porém Lina continua arrasada.

— Eu... Ela... — O deus começou e depois parou, passando a mão pelo cabelo úmido.

— “Eu... Ela”, o quê? — provocou Perséfone. — Lina me disse que às vezes era difícil fazê-lo relaxar, mas que, se eu fosse obstinada o suficiente, poderia levá-lo a falar.

Hades sentiu que enrubescia, mas estreitou os olhos.

— Ela queria que você falasse comigo? Por quê?

— Ah... Duvido que ela estivesse querendo que nós nos encontrássemos. Só disse isso porque acha que está apaixonado por mim.

Hades bufou.

— Isso é ridículo!

— Obrigada pela gentileza.

— ...Eu não quis ofendê-la — ele se desculpou depressa.

— Eu sei, eu sei. — Perséfone suspirou. Afastou os cabelos do rosto, e um de seus seios despontou por cima da água, o mamilo cor de malva apontando diretamente para ele.

O deus engoliu em seco e desviou o olhar, concentrando-se no prato de frutas e queijo.

— Acho melhor conversarmos no quarto. — Apontou para um armário próximo. — Há roupas ali com as quais poderá se cobrir.

— Espere! — Perséfone chamou antes que ele saísse do banheiro. — Há algo que Lina e eu precisamos saber.

Hades a fitou, tomando o cuidado de manter os olhos focados em seu rosto.

— Fique onde está — prosseguiu a deusa. — Acredito que isso seja muito importante para nós três.

— O que precisa saber? — ele indagou, exasperado.

— Isto... — Perséfone se levantou.

A ág ua quente escorreu por sua pele lisa. As pontas de seus seios estavam rijas como se tivessem acabado de ser acariciadas, e seu corpo continuava tão esguio e extraordinário quanto ele se lembrava.

Hades olhou para a deusa enquanto ela saía lenta e graciosamente da banheira, para depois caminhar, sedutora, em sua ­direção. Quando se aproximou dele, Perséfone parou, ergueu os braços e o enlaçou pelo pescoço. Então apertou o corpo nu contra o dele e o fez colar a boca na sua.

Os lábios do deus tomaram os dela, e ele a abraçou instintivamente.

Mas não sentiu nada. Exceto pela familiaridade com o corpo curvilíneo e a boca quente e macia, Perséfone não o comoveu. Era como se ele segurasse uma estátua maleável. Delicadamente, porém com firmeza, Hades se afastou dela.

Perséfone deixou seus braços de bom grado.

— Então não é este o corpo que você deseja.

— O que eu desejo não mudou, nem vai mudar. Desejo apenas uma mulher na vida, e pouco importa o corpo que ela habita.

Por um instante, Hades pensou ver tristeza nos olhos da jovem deusa, porém esta logo se foi e, quando Perséfone sorriu, seu ar juvenil tinha voltado.

— Bem... Obrigada por nos esclarecer essa dúvida.

— De nada.

Ele buscou um manto no armário, e a deusa o vestiu. Em seguida, apanhou a taça do chão e a jarra de vinho.

— Agora, tudo o que temos de fazer é encontrar uma forma de fazer Lina acreditar nisso — decidiu a moça.

Caminharam para os aposentos de Hades, e Perséfone olhou ao redor.

— Lindo quarto!

— Obrigado. Fique à vontade enquanto vou apanhar outra taça.

Perséfone foi até a janela envolta e m veludo. Puxou de lado a cortina e olhou a vista fantástica, proporcionada pelos jardins escalonados, as estátuas em meio à bem cuidada vegetação, e as milhares e milhares de flores brancas, as quais eram banhadas por uma luz suave e incomum.

— O vinho — anunciou Hades.

Ela se afastou da janela.

— Lina tinha razão quando disse que isto tudo parece um sonho.

As palavras fizeram doer o coração do deus.

— Por que está aqui, Perséfone?

A moça ajeitou o cabelo para trás e sorriu.

— Tenho uma proposta para lhe fazer...

— Eu ainda não entendo como ajudá-la. Carolina recusou a sua proposta! Não pode obrigá-la a essa troca — Hades concluiu enquanto andava de um lado para outro à frente de Perséfone.

Ela levantou uma sobrancelha.

— Não posso?

— Não vai forçá-la. — As palavras de Hades soaram firmes, porém ele sentiu sua resolução enfraquecer. Carolina poderia voltar! Ele poderia tocá-la e conversar com ela novamente... E, sem dúvida, poderia convencê-la de seu amor.

Não, pensou, sacudindo a cabeça. Ela já havia sofrido bastante. Não permitiria que Lina fosse obrigada a fazer algo que ela mesma não acreditava poder suportar.

— Vocês dois são os reis da teimosia! Você se recusa a obrigá-la a vir; ela se recusa a vir de livre e espontânea vontade... — Perséfone suspirou. — Precisa encontrar uma maneira de convencê-la a retornar sem ser forçada, então.

— Como? — Hades quase cuspiu a palavra.

Perséfone caminhou até ele e colocou a mão em seu braço.

— Se precisar de mim, pode me chamar por meio do oráculo de mamãe. — Num impulso, beijou-o no rosto.

Hades acariciou a mão delicada e deu-lhe um sorriso cativante e paternal.

— Perdoe a minha grosseria. Deuses antigos às vezes podem ser caprichosos.

Perséfone sorriu de volta para o deus que era tão obviamente apaixonado por Carolina. — Está perdoado — falou e desapareceu.

A forja ardia com um calor de outro mundo. O suor escorria do corpo de Hades em uníssono com a batida de metal contra metal, porém o deus nem sequer tinha consciência do seu entorno.

Carolina ainda o amava!

Precisava encontrar uma forma de reparar o dano que havia causado, de maneira que ela confiasse nele novamente. Mas como?

— Está parecendo uma velha solteirona, senhor dos Mortos.

Hades virou para identificar a voz sarcástica e precisou apertar os olhos contra a luz ofuscante.

— Apolo! Você e sua luz exagerada não são necessários aqui — ele rugiu.

— Ah, sim, eu sempre me esqueço... — Apolo passou a mão no rosto, e o fulgor que o envolvia desapareceu. — Está melhor assim?

— Não me lembro de tê-lo convidado a vir ao meu reino.

— Eu tinha de vir. Precisava ver como estava a outra metade desse amor desperdiçado.

Hades se encheu de raiva.

— Não está querendo dizer que...

— E o que vejo aqui é bem menos atraente do que a versão mortal — o deus do Sol interrompeu seu discurso.

— De que mortal está falando? — exigiu Hades.

— De Carolina, claro. Sabia que ela me rejeitou? Estava mais interessada nas minhas éguas do que em mim. — Apolo riu. — Enquanto eu achava que ela era Perséfone, suas atitudes me confundiam. Quando descobri que ela era uma mortal no corpo de uma deusa, fiquei estupefato. E, depois, ainda soube que ela havia preferido você a mim... Inacreditável.

Hades estreitou os olhos para o jovem deus.

— Não acho que seja assim, tão surpreendente.

— Pois devia. — Apolo sorriu. — As mortais me acham irresistível.

— Carolina é bem mais exigente do que a maioria das mortais.

— E mais fiel também. Ela já recusou ao menos um homem desde que voltou ao próprio mundo. — Apolo lançou um olhar avaliador na direção de Hades. — E, como ele é apenas um mortal, é definitivamente mais jovem do que você...

— Andou espionando a moça? — Hades rosnou.

— Não foi o que eu disse?

— Não!

— Acho que essa sua choradeira pelo seu amor perdido afetou a sua audição. Lembro-me muito bem de ter dito que...

Em dois passos, Hades alcançou Apolo e agarrou o deus pelo pescoço, erguendo-o do solo.

— Diga-me como pôde vê-la! — trovejou, irado.

— Por meio do oráculo de Deméter, ora! — o jovem deus respondeu, esganado.

Hades deixou cair o deus da Luz e saiu correndo da ferraria.

— Selem Órion! — gritou, ofegante.

Dentro da ferraria, Apolo esfregou o pescoço e alisou as vestes amarrotadas.

— Missão cumprida... Agora está em débito comigo, Deméter — murmurou antes de desaparecer.


Capítulo 29

— É fevereiro, mas parece abril. — Lina suspirou, feliz. — Adoro quando o clima em Oklahoma está assim — disse a Edith Anne, que trotava alegremente a seu lado.

Tinha levado algum tempo para se acostumar com os patins. Não que seu corpo não soubesse o que fazer. Sua mente era que insistia em pensamentos como “Esse chão é muito duro!” ou “Devagar, assim vai cair e quebrar alguma coisa!”

Dessa forma, mesmo após vários meses de prática, Lina ainda patinava devagar, acariciando a calçada de cimento que corria ao longo do rio Arkansas com passadas controladas e cuidadosas.

— À sua esquerda! — Alguém gritou atrás dela, e Lina passou para o lado direito da calçada.

— Obrigada! — gritou quando uma bicicleta de corrida passou voando.

— De nada! — o piloto berrou de volta.

— Eu gosto quando eles fazem isso — Lina falou à buldogue, que mantinha o ritmo a seu lado, na grama que começava a verdejar.

Edith resmungou.

— Fico assustada quando alguém simplesmente passa por nós sem qualquer aviso. Aquele sujeito da bicicleta amarela e enorme quase me derrubou na semana passada! — Ela se abaixou e brincou com a orelha de Edith. A buldogue bufou outra vez e lambeu sua mão. — Acho que eu deveria prestar mais atenção ao redor, ainda mais quando tudo está calmo como nesta noite. Mas ela é sempre tão bonita!

Sorriu. O início da noite era o seu momento favorito para andar de patins. O pôr do sol em Oklahoma costumava ser glorioso e, às vezes, conforme o astro descia sobre o rio Arkansas, sua luz se refletia fora da água numa mistura de rosa e laranja com azul e cinza, lembrando a magia de Elísia.

Mas não a deixava tristonha. O tempo a ajudara nesse ponto. Gostava da lembrança em pequenas doses, pois esta a ajudava a manter o vazio sob controle.

Edith Anne parou para cheirar uma moita particularmente interessante, lotada de ervas daninhas.

— Ei, fique comigo! Se começar a se sujar com lama ou cardos, terá de tomar um banho quando chegarmos em casa.

A cadela ainda resmungou um par de vezes para as ervas daninhas antes de correr atrás dela outra vez.

Lina desacelerou para que Edith a alcançasse, e pensou ouvir cascos de cavalo ao longe.

Interessante , pensou. O tempo devia estar bom o suficiente para que o estábulo à beira do Arkansas tivesse aberto mais cedo. Passeios a cavalo ao longo do rio eram um excelente negócio enquanto o clima ajudava, mas não costumava funcionar antes de abril. Como havia perdido o anúncio no jornal? Normalmente, gostava de postar coisas assim na padaria.

Fez uma anotação mental para ve rificar aquilo no dia seguinte.

Com a buldogue a seu lado outra vez, Lina retomou o ritmo. Já percorrera quase sete quilômetros, sua respiração se mantinha normal e suas pernas continuavam firmes. Estava feliz por ter acrescentado os patins em sua rotina semanal. Não apenas para manter o corpo em forma, mas também para que ele a ajudasse a pensar.

E tinha tanto o que pensar desde a visita de Perséfone!

Merda! Ficara tentada pela proposta da deusa. Como não poderia? Retornar ao Submundo como sua rainha... Não havia nada no mundo de que gostaria mais.

Não , corrigiu-se. O que ela mais gostaria era do que a estava impedindo de aceitar a proposta de Perséfone...

Pensara no assunto incessantemente durante os longos meses de inverno. Pensara até mesmo em telefonar para a avó e lhe pedir conselhos. Sem que esta pensasse que ela fosse se comprometer.

Às vezes achava que Deméter tinha razão, que ela havia cometido um erro.

Mas, então, se lembrava de como Hades se afastara dela no momento em que ela se revelara.

“Saia do meu reino” fora sua sentença ao ver a verdadeira Carolina.

Suspirou. O tempo ajudara a curá-la, mas lembrar as palavras ainda fazia doer sua alma.

E era quase primavera. Perséfone voltaria em breve em busca de uma resposta.

Respirou profundamente e manteve o ritmo enquanto ponderava pela milésima vez qual deveria ser sua decisão. Inconscientemente, tocou o narciso de ametista que trazia sempre pendurado ao pescoço.

Não poderia retornar, mas queria tanto fazer isso! Até sonhava com a volta ao Submundo.

Não poderia, no entanto. Talvez fosse uma covarde, mas não desejava se arriscar. Tinha levado tanto tempo para cicatrizar... Não queria que a ferida se abrisse novamente.

Diria “não” a Perséfone. Talvez a deusa pudesse encontrar outra mortal com que trocar de lugar. A própria Dolores era ativa na Sociedade do Anacronismo Criativo... Provavelmente teria muito interesse em perambular pelo Monte Olimpo e brincar com as ninfas enquanto a jovem deusa assava pães.

O pensamento fez Lina rir. Ela poderia até tirar longas férias e deixar a padaria nas mãos da Dolores / Perséfone. E a Itália era tão linda na primavera!

Enquanto planejava suas férias no velho continente, notou que o ruído de cascos de cavalo vinha se aproximando cada vez mais rápido. Já estava indo para a borda do passeio quando um alegre relinchar cortou o ar.

Seu coração deu um salto ao reconhecê-lo, e ela se virou no exato momento em que uma enorme silhueta negra se avultava sobre ela e um focinho escuro quase colidia com seu rosto. Órion alternou relinchos com bufos, acariciando seus cabelos e ombros.

Em estado de choque, Lina só pôde se agarrar aos arreios do cavalo e esperar que, em seu entusiasmo, ele não a derrubasse.

— Quem se atreve a tocar o temível cavalo de Hades?

As palavras foram as mesmas que ele proferira havia muito tempo, porém seu tom era muito diferente: repleto de amor e saudade.

Lina ergueu o olhar. Hades encontrava-se sentado na sela lustrosa e tinha substituído as roupas arcaicas por uma camisa preta de corte moderno, cujas mangas deixavam à mostra os braços musculosos. Também vestia jeans e as botas típicas dos cowboys de Oklahoma. Os cabelos estavam puxados para trás, e os olhos cintilavam.

Ela o fitou sem nada dizer, sentindo a simples visão do deus reabrir a ferida recém-curada em seu coração. Durante todos aqueles meses obscuros do inverno, ele a deixara sozinha.

E fora tanto tempo... tanta dor.

A súbita onda de raiva a surpreendeu.

Hades tentou sorrir, porém seus lábios tremeram de leve.

— Perguntou quem se atrevia a tocar seu temível cavalo, Hades... — As palavras de Lina soaram entrecortadas pela emoção. — Então permita que eu me reapresente. Sou Carolina Francesca Santoro, uma mortal de meia-idade nascida em Tulsa, Oklahoma, e dona de uma padaria. E eu não me atrevi a tocar o seu temível cavalo. Foi ele quem enfiou o focinho em minhas mãos outra vez.

Hades sentiu as palavras entrando como facas no peito, mas não podia culpá-la por sua revolta. Ele a compreendia.

No entanto, não permitiria que Carolina o fizesse desistir.

Passou a perna por sobre a sela e desmontou. Queria se aproximar dela, erguê-la nos braços... Porém Lina o fitava com um olhar frio, fixo e nada acolhedor.

— Esqueceu-se de um título na sua apresentação, Carolina — pronunciou o nome dela como numa prece.

— Não creio. Sei exatamente quem sou — ela rebateu. Hades não tinha se aproximado dela; mesmo assim, Lina deu um passo para trás.

— Eu também. É Carolina Francesca Santoro, mortal de meia-idade nascida em Tulsa, Oklahoma, dona de uma padaria... e ­rainha do Submundo — ele completou num murmúrio.

Lina sentiu um tremor cortá-la dos pés à cabeça e se agarrou à sua raiva, temendo que, se esta se fosse, seu coração partisse em mil pedaços.

— Sinto muito, senhor. Deve estar confuso. A deusa Perséfone é a rainha do Submundo. Eu era apenas uma substituta temporária, e nem estava à altura do trabalho.

— Seus súditos não pensam assim, Carolina. Ele apontou para Órion, que esticou o pescoço de modo a mordiscar seu ombro enquanto ela lhe acariciava o focinho.

— Os animais sempre gostaram de mim.

Como se para comprovar suas palavras, Edith Anne pulou em suas pernas, contorcendo-se para chamar a atenção. Órion bufou e se curvou para soprar a buldogue.

— Ele me lembra um pouco o Cérbero... — Hades apontou o cachorro atarracado com um gesto de cabeça, tentando sorrir de novo, sem muito sucesso.

— Ele é ela . E ouvi dizer que Edith Anne é mais educada do que o seu Cérbero tem sido ultimamente — observou Lina, mordendo o lábio em seguida. Não deveria conversar com Hades.

— O Cérbero tem faltado com as boas maneiras sem dúvida porque sente a ausência de sua rainha, assim como o resto do Submundo.

— Um cachorro e um cavalo não são vassalos de ninguém. E eu não sou nenhuma rainha. Sou uma mortal. Não tenho nenhum súdito.

Hades voltou à sela de Órion e tirou uma tela enrolada que tinha alojado no pomo.

— Eu trouxe uma coisa para você. Eurídice queria que eu ficasse com isto, mas eu a convenci de que este trabalho lhe pertencia. Ela ainda se vê como a artista particular da deusa da Primavera, embora sinta muito a falta de sua senhora.

— Eu não sou... Não quero... — Lina balbuciou, sentindo uma onda de saudade ao pensar na moça.

Hades se aproximou dela. Nos meses em que haviam ficado separados, Lina se esquecera de seu tamanho. Ele parecia cercá-la por todos os lados.

E, mesmo vestindo roupas modernas, parecia sombrio e devastadoramente bonito.

Seu Batman.

— A pequena alma falou que isto foi um sonho que ela teve com você. E disse que se sentiu bem.

Hades estava tão perto que ela podia sentir o calor de seu corpo.

Sem palavras, Lina tomou a tela de suas mãos. Desenrolou-a e soltou uma exclamação.

— Mas sou eu!

Era ela mesma, a mortal Carolina Francesca Santoro. Seu corpo, seu rosto, seu sorriso... E não Perséfone.

Quando olhou com mais atenção para a imagem que Eurídice havia tirado de um sonho, seus dedos começaram a formigar e, de repente, uma torrente de emoção passou da tela para sua alma. Em meio a esta, ela pôde ouvir as vozes de milhares de mortos. Eles clamavam por ela, pedindo que sua rainha retornasse.

Lina sentiu as mãos tremerem, e a mágoa dentro dela começou a se dissipar.

— Seus súditos a reconhecem e clamam por você, Carolina — Hades falou suavemente.

— Pena que o próprio deus deles não tenha me reconhecido — ela retrucou, sem encará-lo.

— Não há nenhum deus ou senhor aqui... — A voz de Hades falhou, e ele precisou fazer uma pausa antes de continuar. Segurou o queixo de Lina e ergueu seu rosto de forma que ela o fitasse nos olhos. — Esta noite sou apenas um homem que procura desesperadamente por sua alma gêmea. Ela se separou de mim por conta da minha loucura, e eu tinha que perdoar a mim mesmo antes de encontrá-la e pedir que ela... Não chore, minha amada! — pediu, quando lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Lina.

— Você se afastou de mim! — ela acusou em meio a dolorosos soluços. — Quando viu quem eu realmente era, não me quis!

— Não! — Ele a puxou para os braços e a apertou contra o peito. — Eu não lhe dei as costas... Foi o orgulho que incitou as minhas palavras e ações.

— Porque não quis o amor de uma mortal de meia-idade — Lina replicou, a voz abafada de encontro a ele.

A risada de Hades soou como um soluço.

— Não. Foi porque eu estava apavorado em ter perdido a alma para uma mulher que poderia não querer nada mais do que um flerte com um deus inexperiente, sobre o qual ela poderia se gabar.

Lina ergueu os olhos para os dele.

— Eu disse a Deméter que você não havia ficado com qualquer outra deusa porque estava tentando convencê-la de que era diferente.

— Eu sei, minha querida. Perdoe o orgulho de um deus velho e solitário. — Os lábios de Hades finalmente esboçaram um sorriso. — E, por favor, volte para casa.

Em resposta, ela o puxou para um beijo.

— Carolina! — Hades soprou seu nome contra os lábios macios. — Minha alma ardeu tanto por você, minha eterna amada!

Antes que a beijasse novamente, contudo, Órion o cutucou por trás, e a cadela robusta farejou seus pés.

Ele olhou para baixo, fazendo uma careta para os rastros de saliva em suas botas.

— Órion, pare com isso! — ralhou Lina, empurrando a cabeça enorme e negra de lado. — E, Edith Anne, fique quieta! Está estragando as botas novas dele!

Hades jogou a cabeça para trás e riu. Em seguida, ergueu sua rainha nos braços e, pondo-a na sela do garanhão, montou atrás dela com uma vitalidade pouco comum para um mortal.

— Hades! O que está fazendo?

— Tirando-a do alcance desses animais. — Passou um braço em torno de sua cintura e a puxou contra ele.

— Mas, Edit h Anne...

— Não se preocupe. Órion irá devagar. Não vamos perder sua cadela.

Segurando-a com firmeza, ele estalou a língua em sinal para o cavalo. Órion virou a cabeça e bufou, mas começou a andar lentamente, de modo que a buldogue não teve problemas para trotar a seu lado.

O deus voltou sua atenção para Carolina.

— Não temos muito tempo antes que a primavera venha para o seu mundo. Talvez queira me mostrar um pouco desse reino que você chama de Tulsa... — murmurou, acariciando os suaves cachos castanhos que haviam se formado na nuca de Lina.

Na verdade, não estava sendo fácil para ele se conter. Sua vontade era amá-la ali mesmo.

Pensou em como o novo corpo de Carolina era sedutor e feminino. Ela era suave, perfumada e deliciosamente convidativa.

Lina virou-se e sorriu para ele de cenho franzido.

— Conhece o plano de Perséfone?

— Quem não conhece? — ele respondeu, bem-humorado.

— Estou começando a achar que ele pode dar certo... — Ela sorriu.

— Eu também.

Hades se inclinou para reivindicar seus lábios, porém Lina o empurrou de leve.

— Espere um minuto... Não devia estar aqui! Certamente não pode ficar por muito tempo, pois não há ninguém ocupando o seu lugar no Submundo.

— Não. — Ele sorriu para sua rainha, a alma leve. — Mas, às vezes, até mesmo a morte precisa de um descanso.

Quando seus lábios se encontraram, o sol tocava a margem do rio. Fez uma pausa ali e emitiu mais um feixe breve e intenso sobre os amantes antes de desaparecer no horizonte.


Nesta data, Tulsa lamenta o falecimento de uma matriarca local, Carolina Francesca Santoro. Filantropa e restaurateur , a sra. Santoro era também uma conhecida amiga dos animais. Dona Carolina não deixa herdeiros biológicos, contudo sua falta será sentida por muitos que a consideravam como parte da família. Por décadas sua cadeia de padarias Pani Del Dea foi parte vital de muitas comunidades de Oklahoma. Suas unidades são muito conhecidas por sua especialidade, o cream cheese de ambrosia. A receita para este delicioso queijo é um segredo bem guardado há mais de meio século.

Mas não se preocupem, fregueses assíduos da Pani Del Dea. Antes de sua morte, a sra. Santoro compartilhou a receita com uma parente italiana, sua sobrinha-neta Perséfone Libera Santoro, que assumirá a posição de acionista majoritária da Pani Del Dea S.A. A jovem srta. Santoro anunciou que dividirá seu tempo entre Oklahoma e a Itália e, fazendo jus a seu nome, Perséfone passará cada primavera e verão conosco em Tulsa.

Assim, para honrar a memória de sua tia-avó, vamos dar a ela o nosso caloroso “Olá” de Oklahoma!

Tulsa World,

21 de março de 2055

Lina sentia-se um pouco sem fôlego e deslocada, o que era no mínimo irônico. Estava, afinal, vestindo sua própria pele.

— Provavelmente é porque agora sou uma dos recém-falecidos — murmurou consigo mesma, estendendo os braços e olhando com espanto para a luminosidade do próprio corpo, o qual parecia mais substancial do que o dos mortos que costumava ver.

Também ficou contente por este ter assumido uma forma bem mais jovem do que antes de sua morte. Surpresa, percebeu que tinha se materializado no seu corpo de 43 anos e riu.

— A idade em que eu o conheci! — falou, contente.

O túnel se estendia diante dela, negro e sem fim, porém a escuridão não a intimidou, e ela avançou, confiante, sem nem mesmo olhar uma última vez para a luz do mundo mortal que nunca mais vislumbraria.

De repente, uma pequena bola incandescente surgiu acima de seu ombro, e Lina soltou uma exclamação, surpresa.

— O que está fazendo aqui?!

A esfera dançou a seu redor, ondulando tal qual um cachorrinho.

Ela nem precisava ter perguntado. Sabia quem tinha enviado a luz.

— Obrigada, Perséfone! — falou para o vazio.

Caminhou rapidamente através do grupo de lindas árvores-fantasmas, agora conhecidas como o Bosque de Perséfone e, como sempre, admirou a superfície cintilante de suas folhas.

Deixou o arvoredo e piscou, surpresa. Diante dela, a estrada de ônix que levava ao palácio de seu amado se estendia, como de costume, até os portões cor de pérola, mas, desta vez, os portões se encontravam abertos, e, atrás deles, havia uma multidão de silhuetas insubstanciais e incandescentes.

À frente da massa fervilhante estava Hades, tendo Órion a um lado e, do outro, Eurídice e Iapis.

Ao vê-la, o garanhão soltou um relincho estridente de alegria, dando-lhe as boas-vindas. Eurídice cobriu a boca pálida com a mão e, com a outra, acenou alegremente para sua senhora, enquanto lágrimas de felicidade escorriam por seu rosto.

Quando Hades começou a se mover em sua direção, porém, o mundo inteiro de Lina se estreitou, convergindo apenas para ele. O deus caminhou até ela, os olhos sorrindo, cheios de emoção.

Quando parou à sua frente, por fim, estendeu a mão e, num gesto já familiar, acariciou-lhe o rosto.

— Seja bem-vinda, minha amada.

Lina sorriu para sua alma gêmea.

Hades virou-se para encarar a turba. Com a capa revoando às suas costas, ergueu os braços vitoriosamente sobre a cabeça.

— Ela voltou! — gritou, a voz soando como um trovão.

Gritos de louvor erigiram dos mortos, ecoando no Submundo e se espalhando por todo o Olimpo.

— Alegrem-se! Nossa rainha chegou para nunca mais partir!

Em seu trono no Olimpo, Deméter ergueu a própria taça e tocou a de Perséfone em comemoração do final feliz de Carolina Francesca Santoro.

— Muito bem, minhas filhas — murmurou a deusa. — Muito bem.


Descubra o que irá acontecer em


DEUSA DA ROSA


o próximo livro da série

Goddess


Prólogo

Era uma vez, quando os homens ainda acreditavam que havia deuses e deusas na Terra, foi concedido a Hécate, grande Deusa da Noite, domínio sobre os caminhos trilhados pelo homem. A deusa da escuridão levou a sério sua missão, e passou a vigiar não somente as estradas e caminhos dos mortais, como também a proteger o percurso entre os sonhos e a realidade, entre o corpóreo e o etéreo.

Seu domínio era o lugar onde todos os sonhos, e também a magia por eles criada, se originava. Assim, a Deusa da Noite foi denominada Deusa da Magia, e também Deusa das Feras e da Lua Negra.

Sempre vigilante, Hécate convocou uma antiga e monstruosa fera para servi-la. De bom grado, esta jurou ser a guardiã da Deusa e obedecer-lhe às ordens. A criatura era a fusão perfeita entre homem e fera; filho do Titã Cronos, era um ser como nenhum outro. E, como recompensa por sua lealdade, Hécate o presenteou com o coração e a alma de um homem. Embora sua aparência fosse monstruosa, a deusa sentiu-se segura ao lhe confiar a proteção da fronteira dos caminhos que conduzem ao mundo mágico.

Este lugar foi batizado de Reino das Rosas, e aquelas que ali serviam a deusa foram chamadas de Sacerdotisas do Sangue. Durante séculos, o Guardião permaneceu fiel, seguindo os ditames de sua missão sagrada, pois era tão honrado quanto influente, e tão sábio quanto poderoso. Até um dia de Beltane 1. ...

O Guardião conhecia o seu dever. Mas, Céus! , até mesmo um protetor podia se cansar... E não cometera nenhum deslize por crueldade ou ganância. Seu único erro fora amar sem reservas. Mas ele quebrara a confiança de sua deusa e, em um rompante de raiva, Hécate lançara um feitiço sobre ele e sobre o Reino das Rosas: o reino não teria mais nenhuma Alta Sacerdotisa, e o Guardião dormiria eternamente, a menos que fosse despertado por uma mulher que carregasse o sangue mágico das Sacerdotisas de Hécate e fosse sábia o suficiente para enxergar a verdade, e compassível o bastante para passar por cima dela...

E, assim, o Reino das Rosas se desesperou, e o Guardião adormeceu enquanto sua deusa esperava.


Parte 1

Capítulo 1

— Andei tendo aqueles sonhos de novo.

Nelly se ajeitou na cadeira e deu a Mikki um de seus olhares mais clínicos.

— Gostaria de me contar sobre eles? – Nelly perguntou.

Mikki desviou o olhar da amiga. Será que ela gostaria de compartilhá-lo? Descruzou e tornou a cruzar as pernas longas, passou a mão nervosamente pelos cabelos e tentou se acomodar na poltrona.

— Antes de eu responder a essa pergunta, quero que responda a uma minha.

— É justo — concordou Nelly.

— Se eu lhe contar os meus sonhos, como vai ouvi-los? Como minha amiga ou como minha psiquiatra?

A médica riu.

— Por favor, Mikki! Estamos em uma lanchonete, não em meu consultório! Você não está pagando cento e vinte dólares por hora para eu ficar sentada aqui com você. E não vamos nos esquecer: — Ela se inclinou para a frente e exagerou no sussurro. — É minha amiga há anos, mas nunca foi minha paciente!

— É verdade. Mas não por falta de assunto.

— Ah, sem dúvida — Nelly concordou com sarcasmo. — E então? Vai me contar sobre os sonhos, ou terei de usar meus truques de psiquiatra para dissuadi-la?

— Tudo menos isso! — Mikki levantou as mãos como para se defender de um ataque. Encolheu os ombros. — Eles são iguais aos outros.

Nelly ergueu as sobrancelhas significativamente.

— Está bem! — Mikki suspirou e revirou os olhos. — Talvez tenham mudado um pouco.

— Consegue ver o rosto dele agora? — a outra moça perguntou, gentil.

— Quase. — Mikki fixou o olhar em um ponto qualquer da aconchegante lareira de tijolos. — Na verdade, acho até que vi seu rosto desta vez, mas...

— Mas?

— Eu estava tão preocupada que não consegui me concentrar nele — ela elaborou, apressada.

— Preocupada?

Mikki parou de olhar para a lareira e encontrou os olhos da amiga.

— Preocupada em ter o sonho mais erótico da minha vida! Não dei a mínima para o rosto dele.

— Ora, ora, ora — Nelly comentou surpresa. — Não me lembro de ter falado em sexo nos outros sonhos. Agora estou realmente interessada nessa história.

— Isso porque eles não... ou talvez eu... Ah, não sei. Por alguma razão, os sonhos estão mudando. — Ela se esforçou para descrever o que estava acontecendo. — Estou dizendo, Nelly, os sonhos estão ficando cada v ez mais reais.

O brilho de diversão deixou os olhos escuros da outra moça, substituído pela preocupação.

— Diga-me, querida. O que está acontecendo?

— Quanto mais realistas ficam esses sonhos, menos a minha vida parece real.

— Conte-me sobre esse último, então.

Em vez de responder de imediato, Mikki rodou uma mecha do cabelo cor de cobre no dedo e sorveu um gole do cappuccino . Ela e Nelly eram amigas fazia anos. Tinham se conhecido no hospital onde ambas trabalhavam, e haviam se tornado confidentes no mesmo instante.

Na aparência, possuíam pouca coisa em comum. Nelly era morena e esguia, de uma beleza exótica, herança do sangue haitiano da mãe. E devia ser ao menos uns vinte centímetros mais alta do que ela, calculou Mikki. Ao contrário dela que, além de clara, era cheia de curvas e um tanto comum.

A despeito de suas diferenças, contudo, não existia nenhum tipo de ciúme entre elas. E, desde que tinham se conhecido, apreciavam uma a outra por suas singularidades. Era uma amizade sólida, baseada na confiança e no respeito mútuo. E Mikki não fazia ideia do motivo pelo qual se encontrava tão hesitante em contar seus sonhos a Nelly. Principalmente o último.

— Mikki?

— Não sei por onde começar — mentiu.

Nelly esboçou um sorriso e tomou um gole do cappuccino , e mordiscou um biscoito de chocolate.

— Leve o tempo que quiser. Todos os bons psiquiatras têm uma coisa em comum...

— Eu sei, eu sei. Vocês são pacientes até demais!

— Isso mesmo.

Mikki brincou com a caneca de café. Precisava exorcizar aquele sonho de uma vez. Aquilo estava ficando estranho demais. Era como se houvesse sido hipnotizada... ou seduzida.

Continuou, entretanto, sem falar nada. Não apenas porque tinha dúvidas quanto a revelar os detalhes do sonho em voz alta, como também porque parte dela temia que a amiga, uma excelente psiquiatra, fosse proferir alguma palavra mágica que a curasse . Não tinha certeza se queria aquilo.

— Ei, sou eu! — Nelly incitou suavemente. Ela deu-lhe um sorriso apertado e respirou fundo.

— Está bem. Esse começou igual aos outros. — Cutucou o esmalte da unha, nervosa.

— Quer dizer na cama de dossel?

— Na mesma cama de dossel enorme, no quarto enorme — ela reforçou. — O lugar era o mesmo, só que não estava tão escuro como antes. Desta vez a luz entrava por uma parede inteira de janelas. — Mikki buscou a palavra. — Eram painéis de vidro verticais... Sabe o que eu quero dizer?
Nelly assentiu.

— Janelas quadriculadas?

— Quase isso. Bem, independente de como elas são chamadas, eu as notei, desta vez, porque deixavam entrar alguma luz. — Seu olhar continuou preso às chamas que queimavam, alegres, enquanto revivia o sonho. — Era uma luz suave, rosada, como a do amanhecer... Enfim, eu despertei — continuou, deixando escapar uma risadinha nervosa. — Foi estranho ter sido acordada de um sonho em outro sonho, mas eu acordei. Estava de bruços e sentia alguém escovando os meus cabelos. Uma delícia. E, fosse quem fosse, usava uma daquelas escovas grandes, de cerdas m acias. — Sorriu para a amiga. — Você sabe... Não há coisa mais gostosa do que alguém lhe escovando os cabelos.

— Concordo, mas ter o cabelo escovado não é assim tão sexy .

— Ei, já faz algum tempo, mas sei muito bem que escovar os cabelos não tem a ver com sexo! Não cheguei nessa parte ainda... Só estou contando como fiquei relaxada e feliz por conta disso — explicou Mikki, lançando a Nelly um olhar impaciente.

— Desculpe interromper. Basta fingir que não estou aqui.

— Isso é coisa de psiquiatra?

— Não. Só estou querendo ouvir a parte do sexo, caramba!

Mikki riu.

— Nesse caso, terei prazer em continuar. Vamos ver... Eu estava tão relaxada que me sentia flutuando. Foi bizarro. Senti a alma leve, como se esta estivesse deixando meu corpo... Então tudo começou a ficar muito louco.

— Como assim, “muito louco”?

— Bem, senti uma lufada de vento. Foi como se ela houvesse me pegado e me levado para algum lugar, mas não o meu corpo; apenas o meu espírito. A sensação foi de... purificação. Isso me assustou, e eu abri os olhos. Estava de volta no meu corpo, só que no meio do roseiral mais incrível que já tinha visto ou imaginado na vida. — Sua voz perdeu qualquer indício de dúvida quando passou a descrever a cena. — Foi de tirar o fôlego. Estava cercada por rosas! E das minhas favoritas: Prazer em Dobro, Chrysler Imperial, Cary Grant, Prata Esterlina... — Ela suspirou, feliz.

— Nenhuma rosa Mikado?

A pergunta de Nelly a trouxe de volta à realidade.

— Não, não vi nenhuma rosa homônima minha. — Aprumou-se, lançando à amiga um olhar irritado. — E não acho que isso esteja acontecendo porque minha mãe decidiu me dar o nome de sua rosa favorita.

Nelly fez um gesto conciliatório com a mão.

— Mikki — falou, pronunciando o apelido de forma clara, como se quisesse apagar o nome “Mikado” do ar —, precisa admitir que o fato de essas rosas aparecerem em todos os seus sonhos é muito estranho.

— Por quê? Sou voluntária no Roseiral Municipal e cultivo minhas próprias rosas. Por que uma parte integrante da minha vida não deveria figurar nos meus sonhos?

— Está certa. As rosas são uma parte importante da sua vida, assim como eram na de sua mãe e...

— ... na da minha avó. E na da minha bisavó.

Nelly sorriu, aquiescendo.

— Sabe que eu acho esse seu hobby encantador e morro de ciúme da sua capacidade de cultivar aquelas rosas maravilhosas.

— Sinto muito. Eu não devia ter sido tão indelicada. Acho que é a falta de sono.

— Não tem dormido direito? — A preocupação sombreou a expressão de Nelly.

— Não, não... — Mikki negou rapidamente. — Apenas ando levando muito trabalho para casa e ficando acordada até tarde. Por favor, não me pergunte mais nada sobre isso! , pensou, lançando um olhar tenso na direção da amiga enquanto mexia o capuccino e tomava um gole. Nelly não precisava saber que sua exaustão nada tinha a ver com falta de sono ou muito trabalho.

Tudo o que desejava era escapar daquele mundo de sonhos e dormir. O pior era que, apesar de nunca mais ter se sentido completamente descansada depois de ter ingressado naquele mundo de fantasias, ainda se via compelida a retornar para ele todas as noites.

— Mikki?

— Onde eu estava mesmo? — Ela se atrapalhou.

— No belo jardim de rosas.

— Ah, sim...

— E as coisas estavam ficando muito loucas.

— Isso mesmo. — Mikki voltou a olhar para a lareira. — Por algum tempo, eu apenas caminhei entre as rosas, tocando cada uma delas e apreciando sua beleza. Havia acertado no palpite: era de manhã cedo, o ar estava fresco e as flores ainda se encontravam respingadas com orvalho; como se tudo tivesse acabado de ser lavado. O jardim era circular, e as rosas e seus canteiros formavam uma espécie de labirinto. Fiquei andando por ali, apenas me divertindo.

Seu sorriso oscilou, e ela fez uma pausa antes de iniciar a parte seguinte do sonho. Pôde sentir as faces ganhando cor e desviou o olhar para encontrar o olhar curioso da amiga.

— Não me diga que está envergonhada! — provocou Nelly.

— Mais ou menos. — Mikki esboçou um breve sorriso.

— Mikki, você e eu fizemos depilação à brasileira juntas, esqueceu? E na mesma sala! Supere logo essa coisa e me dê mais detalhes. Se mesmo assim falhar, lembre-se... — Nelly deu mais uma mordida no biscoito e continuou com a boca cheia: —... Sou uma profissional.

— Prefiro não me lembrar — murmurou Mikki antes de respirar fundo. — Pois, então. Estou no roseiral e, de repente, sinto a presença dele . Eu não conseguia vê-lo, mas sabia que ele estava atrás de mim. — Umedeceu os lábios e, inconscientemente, levou a mão à garganta, os dedos acariciando a pele sensível na base do pescoço enquanto falava. — Comecei a andar
mais rápido porque, a princípio, senti que deveria me manter distante... Mas logo tudo mudou. Eu podia ouvi-lo atrás de mim conforme ele ia se aproximando. E ele não estava tentando se esconder. Seus ruídos eram assustadores, quase selvagens. Era como se eu estivesse sendo caçada por uma fera.

Tentou fazer a respiração voltar ao normal, embora sentisse o corpo formigar com uma onda de calor. Surpresa, percebeu uma gota de suor escorrendo entre os seios.

— Estava com medo? — Nelly perguntou.

— Não. Nem um pouco. Na verdade, estava excitada — ela respondeu tão baixo que a amiga se inclinou a fim de escutá-la melhor. — Eu queria que ele me pegasse. Quando eu corria, era só para provocá-lo; e eu queria muito fazer isso.

— Nossa! — a outra moça exclamou com um suspiro.

— Eu avisei... E o sonho fica ainda melhor.

— Oba. — Nelly mastigou outro biscoito.

— Eu corria nua e ria. O vento parecia meu amante conforme soprava no meu corpo. Eu me deliciava com cada gemido, cada rosnado, cada grunhido feito pela coisa que me perseguia. E queria ser apanhada, mas não até que ele estivesse muito, muito ansioso por me agarrar.

— Pelo amor de Deus, não pare por aí! Ele pegou você ou não?

Mikki tornou-se introspectiva, e seus olhos se voltaram para o fogo mais uma vez.

— Sim e não. Como eu disse, eu estava correndo, e ele me perseguia. Cheguei a um canto do labirinto e me virei... — Seus lábios se apertaram e em seguida se curvaram em um sorriso travesso. — Então tropecei e caí em um buraco. Quando bati no fundo, devia ter me machucado, mas minha queda foi amortecida por pétalas. Eu tinha caído em um poço cheio de pétalas de rosa! E devia haver milhares delas lá. Seu perfume preenchia o ar, e elas acariciaram o meu corpo. Cada centímetro da minha pele ganhou vida em meio a tanta suavidade... E depois as mãos dele substituíram as rosas. — Respirou fundo. — Não eram macias. Eram ásperas, fortes e exigentes. O contraste entre as duas sensações foi incrível. Ele acariciou o meu corpo nu, desde os meus seios, passando pela minha barriga e coxas... Exatamente como eu gostaria que me tocasse. Foi como se ele tivesse entrado nas minhas fantasias e conhecesse todos os meus desejos secretos.

Mikki fez uma pausa para afastar um de fio de cabelo do rosto. Sentiu a mão tremer, mas, não querendo que Nelly notasse, apressou-se em continuar com a narrativa.

— Estava mais escuro no poço do que no jardim, e minha visão parecia meio turva, quase como se o perfume das pétalas esmagadas houvesse criado uma névoa. Eu não podia vê-lo, mas, onde quer que ele me tocasse eu pegava fogo. Antes disso, em todos os meus sonhos, podia sentir sua presença como se ele fosse um ser irreal, um fantasma ou uma sombra. Eu pressentia sua presença, mas até então ele nunca havia me perseguido ou posto a mão em mim. E eu jamais o tinha tocado também. Mas, naquele poço de rosas, tudo mudou. Podia sentir suas mãos na minha pele e também podia acariciá-lo... A certa altura, eu o puxei para mim, e ele... — Mikki engoliu em seco e fechou os olhos com a lembrança. — Ele era forte e incrivelmente grande. Corri as mãos por seus ombros e braços e percebi que seus músculos eram como pedra. Foi quando senti algo diferente.

Engoliu, tentando aplacar a súbita secura na garganta. Deveria contar a Nelly? Deveria revelar aquilo a alguém?

Enquanto se lembrava, foi quase como se estivesse lá outra vez; naquele poço de sensações e fragrâncias. Suas mãos tinham se deslocado até uma massa espessa de cabelo. Tivera a intenção de segurá-lo pelo rosto, de abrir os olhos e vê-lo enfim.

Mas encontrara os chifres. A criatura que acariciava seu corpo, levando-o a uma excitação que nunca experimentara na vida possuía chifres! Não. Não podia contar aquilo a Nelly. Era absurdo demais. Sua amiga iria achar que estava ficando maluca.

— Ele usava um traje esquisito — murmurou em vez disso, nervosa. — Uma espécie de armadura cobrindo o peito, não sei. E foi incrivelmente erótico: aqueles músculos rijos cobertos pelo couro... Eu o senti e acariciei, então ele mergulhou o rosto nos meus cabelos, aqui. — Fechando os olhos, puxou uma massa de cachos avermelhados para a frente e afundou a mão neles, perto da orelha direita. — A partir desse ponto foi fácil eu escutar cada som que ele fazia. Quando eu o afagava, ele gemia ao meu ouvido; só que não era bem um gemido. Ao menos não o gemido de um ser humano... Era um rosnado baixo e profundo, que não parava nunca. — Ela franziu o cenho. — Isso devia ter me assustado. Eu devia ter gritado e lutado ou, no mínimo, ficado petrificada, paralisada de medo. Mas não queria ficar longe dele. E aquele som terrível, animalesco e maravilhoso me excitou ainda mais. Senti que iria morrer se não pudesse tê-lo por inteiro. Quando arqueei o corpo, consegui sentir sua ereção, e ele começou a se esfregar em mim... — Engoliu de novo. — Foi então que falou, e sua voz soou diferente de tudo o que já ouvi: uma voz meio de homem, meio de bicho. E era tão profunda que foi quase como se eu pudesse escutá-la também com a mente.

— E o que ele disse? — Nelly incitou, meio sem fôlego, quando ela parou de falar.

— Murmurou em meu ouvido algo como: “Nós não podemos. Eu não posso. Isto não pode acontecer!”. Mas eu não parei. Sentia o desejo dele nas palavras tanto quanto no que tinha no meio das pernas... Implorei a ele que não parasse enquanto me agarrava àquela armadura. Queria arrancá-la; eu o queria nu contra mim... Mas era tarde demais. Eu já estava gozando, e tudo o que podia fazer era colocar as pernas em volta dele conforme o meu corpo explodia. — Mikki respirou fundo. — Foi o orgasmo que me acordou.

Capítulo 18

Lina sentiu-se como um gatinho bem alimentado, com o ­corpo naquele ponto maravilhoso entre o relax e a satisfação. Cada pedacinho de estresse fora massageado para fora de seus músculos. Sua pele se encontrava tão incrivelmente macia que, enquanto ela se esticava na chaise e mordiscava sementes de romã, passava os dedos, distraída, por toda a pele, a qual parecia sussurrar de prazer.

— Juventude, beleza e o poder de uma deusa... Perséfone tem tudo isso — murmurou, para depois olhar em volta, preocupada.

Não. Estava sozinha, assim como tinha pedido.

Após o banho e aquela fabulosa massagem com óleo, Eurídice a vestira com uma linda camisola branca e cintilante, e ela se aninhara junto à espreguiçadeira. Quando a pequena alma lhe perguntara se havia qualquer outra coisa de que ela precisava, ela respondera, sonolenta, que sua única vontade no momento era se deitar na chaise longue , beber ambrosia e comer romãs. E, depois, simplesmente dormir.

Eurídice batera palmas, como uma daquelas diretoras enérgicas dos colégios para meninas, e praticamente enxotara as pobres criadas da varanda, anunciando que Perséfone necessitava de privacidade.

E então, para a surpresa de Lina, a pequena alma havia deixado o quarto atrás das servas, alegando ter um encontro com Iapis onde trabalhariam em seus esboços preliminares do palácio... Mas prometera levar aquilo que completassem para sua aprovação na manhã seguinte.

Iapis e Eurídice novamente.

Lina puxou uma mecha dos cabelos longos e a girou em torno do dedo. Se não estivesse enganada, o interesse do daimon pela moça não era apenas amigável.

Talvez ela devesse falar com Hades a respeito.

Hades...

Pensar no deus trouxe a inquietação que borbulhava sob sua pele para a superfície, e ela serviu-se de outra taça de ambrosia. O que estava acontecendo com ele? Por que desaparecera de repente? Hades tinha deixado muito claro que estava interessado nela, e até a havia beijado.

Beijado uma ova . Ele a prendera contra a parede e a acariciara inteira!

Lembrar sua paixão a fez estremecer. Hades era a ­personificação do perigo. O Batman vivo.

Umedeceu os lábios secos e pôde jurar que ainda sentia o gosto dele.

Ou talvez fosse apenas a ambrosia. Ambos eram deliciosos.

Fechou os olhos, permitindo que seus próprios dedos a percorressem pescoço abaixo e roçassem os mamilos já intumescidos.

Soltou um gemido.

Merda!

O corpo de Perséfone era jovem, ágil e...

Abriu os olhos.

— ... Muito, muito excitável — falou em voz alta. — Ou talvez seja mais o meu do que o dela. Ou uma combinação do que acontece quando uma mulher de quarenta e três anos de idade que não faz sexo há, ela parou e contou, quase três anos é colocada no corpo de uma deusa jovem, em idade de casar. E depois ainda é tentada pelo sósia do Batman! — completou, frustrada. — Chega, Lina! Hora de se mexer.

Ela se levantou rápido demais e sentiu-se leve e com os joelhos fracos. A ambrosia tinha lhe subido à cabeça.

Bem como a outros pontos sensíveis.

Seus lábios se torceram num sorriso, e um calor aqueceu-lhe as faces.

Céus! , ela estava mal... Tentara até mesmo a chuveirada fria, e, definitivamente, esta não funcionara como ela havia planejado.

Suspirou e passou o dedo pelo mármore liso da balaustrada, pensando na ideia que Eurídice fazia de um chuveiro. Tinha sido uma experiência inesquecível que, no entanto, nada fizera para dissipar suas fantasias com o deus do Submundo. Na verdade, só havia piorado a situação. Seu corpo fora mimado, lavado, massageado, alisado... E agora ela se sentia como uma concubina preparada para o sultão.

Mas em que parte do inferno se encontrava o sultão?, ela se indagou, rindo da própria escolha de palavras.

Sacudiu a cabeça e revirou os olhos.

— Você bebeu ambrosia demais!

Pôs a taça meio vazia sobre o parapeito e começou, cambaleante, a descer a escadaria circular que ia até a base do palácio. Daria uma boa caminhada pelo jardim. Isso poderia lhe clarear as ideias e deixá-la com sono o suficiente para que ela se lembrasse de que a cama era um lugar para dormir mais do que para fazer sexo selvagem e suado com um deus belo e sombrio.

Envolta pela névoa de ambrosia, Lina seguiu caminho para o primeiro nível dos jardins do palácio. Quando chegou à entrada, ficou imóvel, totalmente imersa na visão mágica das tochas acesas. O Submundo era um lugar tão lindo! O céu continuara a escurecer, mas não era negro como na noite do Mundo Superior. Em vez disso, era de um cinza da cor da ardósia, iluminado por várias estrelas, cada uma delas aureolada com cores iridescentes que a lembravam o perolado de uma concha. O céu incomum fazia tudo parecer mergulhado numa escuridão suave, como se aquela parte do Submundo fosse um sonho bom.

— Essas estrelas são as coisas mais bonitas que eu já vi — disse para o céu em voz baixa.

— São as Híades.

Hades pareceu se materializar das sombras do jardim, e ela levou a mão ao pescoço, sentindo o coração bater ali.

— Você me assustou!

— Eu não queria fazer isso, mas estava pensando em você e, quando ouvi a sua voz, quis me aproximar.

Lina mordeu o lábio e tentou limpar a mente anuviada pelo vinho. Ele estava usando aquela maldita capa outra vez. Pior: tinha trocado o traje volumoso que usava de costume por outro, muito mais revelador. Havia escolhido se vestir de preto outra vez, mas na forma de uma túnica de couro curta, que parecia ter sido moldada para o seu peito e que terminava em painéis sobre os quadris. Por debaixo, vestia uma malha pregueada da cor de nuvens carregadas, que lhe deixava à mostra quase todos os músculos das pernas.

Lina se obrigou a erguer os olhos e encará-lo. Hades a fitava com tanta intensidade que ela sentiu os membros formigar.

— Eu também estava pensando em você. Estou feliz por estar aqui — disse e se obrigou a respirar enquanto ele se aproximava tal qual um felino.

Seu corpo era como uma fornalha, refletiu Lina. Podia sentir o calor que irradiava dele.

O deus tomou-lhe a mão, levou-a lentamente até a boca, e foi como se seus lábios a marcassem.

Hades não a soltou. Em vez disso, traçou em sua pele um caminho circular com o polegar.

O vento frio levou seu cheiro até Lina. Hades cheirava a noite, a couro... a homem. O perfume erótico e perigoso fez seu estômago se apertar e a fez pensar em peles suadas, escorregadias e nuas.

Sem refletir, ela respirou fundo e se recostou nele. Os olhos de Hades faiscaram, e a brisa, provocante, fez voar sua capa, que subiu atrás dele como um par de asas.

Lina se viu submersa na intensidade de seu olhar. Podia sentir sua paixão se inflamando. Aquele Hades não era apenas o deus inteligente e sexy que ela conhecera. Era o ser que a possuíra naquela ferraria. Ele se avultava sobre ela, poderoso, imortal, sedutor, atraente, irresistível... e um pouco assustador.

Mesmo assim, ela o queria. A presença do deus era magnética, porém sua alma mortal ainda lutou para manter algum controle.

Lina obrigou a mente a trabalhar, a se agarrar a alguma coisa; qualquer coisa que pudesse dizer a ele.

— Disse que as estrelas são as Híades? Eu não compreendo — conseguiu balbuciar por fim.

Ele tirou os olhos dos dela para fitar o céu noturno.

— Não entende porque as conhece apenas como as ninfas brilhantes que elas são no Mundo Superior. O que a maioria dos imortais não sabe é que um grupo de Híades da floresta se cansou das suas funções terrenas e implorou a Zeus para que ele as tornasse mortais. Assim, elas poderiam morrer e se livrar do fardo da imortalidade.

A voz dele era tão profunda e hipnótica como seus olhos, concluiu Lina, fitando-o, extasiada, enquanto ele narrava sua história. Hades era como uma chama que atraia sua alma inexoravelmente.

Batman. Era mesmo como o Batman.

E, com ambrosia na cabeça ou não, que mulher sensata não teria fantasias com o super-herói?

— Zeus concedeu às Híades seu desejo e, naquela mesma noite, elas adentraram o meu reino. Fiquei tão comovido com a iridescência de suas almas que comentei que sua grande beleza poderia iluminar Elísia inteira. As ninfas ficaram fascinadas com a minha ideia e vieram me fazer um pedido. Com o aval de Zeus, eu lhes concedi essa prerrogativa, e elas têm iluminado o céu noturno do Submundo desde então.

Lina obrigou os olhos a desviarem do atraente deus para olhar as estrelas que, na realidade, eram os espíritos das ninfas.

— O que está fazendo aqui, Perséfone?

A emoção na voz de Hades a fez segurar o ar nos pulmões e tornar a encará-lo. O que tinha acontecido com ele naquela noite? Como podia parecer tão poderoso e, ao mesmo tempo, tão vulnerável?

Balançou a cabeça e deu a única resposta que podia:

— Eu bebi muita ambrosia e pensei que um passeio pelo jardim ajudaria a me manter sóbria.

Hades a encarou por mais um momento, então piscou, passou a mão pelo cabelo e soltou outro longo suspiro. Devagar, as linhas tensas em seu rosto começaram a relaxar.

— Ambrosia demais? Pois, para mim, isso faz muito bem. Deixa a cabeça mais leve e os joelhos fracos.

Aliviada por ele parecer normal, Lina sorriu.

— Fico feliz em saber que não sou a única a ter essa reação.

— Uma caminhada ajuda realmente. — Hades devolveu-lhe o sorriso e se curvou, galante. — Eu ficaria honrado se me permitisse acompanhá-la.

Era o seu Hades arrojado outra vez.

Lina sorriu, fez uma reverência... e percebeu que estava vestindo apenas uma camisola de seda fina.

Engoliu em seco.

— Eu, ahn... Parece que não estou agasalhada o suficiente para um passeio noturno.

Os olhos de Hades brilharam ao percorrer o corpo coberto de seda, deixando seu rosto corado. Em um movimento fluido, ele soltou a capa e, tal qual um toureiro, girou-a para cobrir-lhe os ombros.

— Está melhor assim?

Abrigada em seu cheiro e calor, ela pôde apenas assentir em silêncio.

— Quer dizer que posso acompanhá-la?

— Claro.

Hades sorriu e a fez passar o braço pelo dele. Então a conduziu lentamente pelos jardins cobertos pela noite.

Não falaram mais. Apenas se habituaram à presença um do outro. Hades escolheu um caminho largo, que dividia os jardins, e Lina olhou ao redor, admirada. A suavidade incomum da noite do Submundo lançava um brilho mágico sobre as flores e sebes adormecidas e, apesar de muitos dos botões se encontrarem fechados, estes ainda pontilhavam de branco a paisagem.

— Ainda não me decidi se as acho mais bonitas durante o dia, enquanto estão em plena floração, ou como agora. Parecem crianças dormindo... — ela comentou, estendendo o braço para tocar um lírio branco.

Ao seu toque, a flor desabrochou completamente, e Lina reprimiu um grito. Tinha que se lembrar que era a deusa da Primavera. Não deveria ficar surpresa quando fazia brotar uma flor!

— Pronto. Agora pode decidir — Hades falou, divertido.

Lina franziu a testa.

— Não, eu não quero desgastá-las. — Pensou por um momento antes de acenar para o lírio. — Volte a dormir — ordenou.

Com um som muito parecido com um suspiro, a flor se fechou.

Lina voltou-se para Hades e o viu olhando para ela com uma expressão que não conseguiu interpretar. Antes que pudesse perguntar o que estava errado, ele pegou sua mão, a mesma que tinha tocado a flor, e, virando a palma para cima, levou-a aos lábios.

O toque quente fez o estômago de Lina se contrair. Céus! , ela queria que ele beijasse muito mais do que apenas sua mão...

Cedo demais, Hades a soltou.

— É uma deusa muito generosa.

Ela não era Perséfone, porém Hades a fazia sentir-se como se ela fosse uma deusa realmente.

Em vez de passar o braço pelo dele outra vez, Lina entrelaçou a mão na dele, e seus lábios trêmulos se curvaram num sorriso satisfeito.

Hades apertou seus dedos, e eles retomaram a caminhada.

— Eu gostaria de lhe mostrar uma coisa — ele falou de repente. — Algo muito importante para mim.

Lina o fitou, e seus olhos se encontraram brevemente. Então o deus desviou o olhar, e ela notou a linha tensa em seu maxilar.

— Se é importante para você, eu adoraria ver.

Hades relaxou e apertou sua mão outra vez.

— É por aqui...

O primeiro patamar do jardim chegou ao fim, e ele a fez descer a escada para o segundo nível. Mais cedo, naquele mesmo dia, quando ela viera colher néctar, não conseguira prestar muita atenção a nada, exceto em obter o líquido pegajoso.

Teria gostado de parar para observar as fontes e a coleção de estátuas, mas o deus apertou o passo. Obviamente, estava ansioso por chegar ao que desejava mostrar a ela.

Com a curiosidade aguçada, Lina correu para alcançá-lo.

No terceiro nível, Hades escolheu um caminho que bifurcava à sua direita e fazia algumas curvas em “S” para a lateral ­daquele jardim. Pouco a pouco, os jardins bem cuidados deram lugar a grandes pinheiros, e seu aroma acentuado a fez lembrar-se de férias e repouso.

— Adoro o cheiro dos pinheiros!

Em vez de responder, Hades pressionou um dedo contra seus lábios.

— Sshh! Eles não podem saber que estamos aqui.

Lina ia perguntar o que ele queria dizer com aquilo, porém o deus apontou para um aglomerado de pedras.

— Precisamos esperar ali atrás.

Intrigada e completamente confusa, ela permitiu que ele a puxasse para o lado enquanto se agachavam atrás das rochas pontiagudas.

— O que está acontecendo? — indagou, preocupada.

Hades mudou de posição, de modo a enxergar por cima da pedra mais próxima, e gesticulou para que ela fizesse o mesmo.

Lina olhou por cima da rocha. Do outro lado, a terra descia, íngreme até chegar à margem de um rio.

Piscou várias vezes para se certificar de que seus olhos não a estavam enganando, contudo a água continuava a mesma, brilhando como diamante líquido sob a luz mágica da noite do Submundo. Tudo estava muito quieto em torno deles, e Lina pôde ouvir a voz do rio, que ria e cantava palavras em uma língua estranha. Não entendeu o que dizia, mas o som era fascinante, e ela sentiu um súbito desejo de correr pela margem, entrar na água e imergir naquele riso contagiante.

A mão firme de Hades segurou-lhe o ombro, e seus lábios quase tocaram sua orelha enquanto ele falava baixinho:

— Não dê ouvidos ao chamado do rio.

Lina se concentrou na voz do deus e sentiu amenizado seu fascínio.

— Eu devia ter lhe avisado. O chamado do Lete pode ser muito forte. — A respiração de Hades era quente, e Lina se recostou nele.

Hades mudou de posição, colocou o braço sobre seus ombros e a puxou para a sua frente, para que ela pudesse descansar quase intimamente em seu colo.

Lina se moveu para trás, de encontro ao peito largo, e inclinou a cabeça para que ele pudesse captar seus sussurros.

— Este é o Lete, o rio do Esquecimento?

Sentiu que ele acenava com um gesto de cabeça e olhou para o rio, incrédula. Então aquele era o famoso rio que fazia as almas esquecerem suas vidas anteriores e as preparava para nascer de novo.

— Isso era tão importante para você?

— De certa forma — Hades sussurrou. — Mas há mais.

— Por que temos de ficar tão quietos?

— Os espíritos não podem saber que estamos aqui. Nossa presença seria uma distração. Para isso os mortos não precisam de nós.

Lina sentiu uma onda de excitação e procurou as margens do rio.

— Não vejo nenhum morto.

— Espere e olhe bem.

Ela se recostou no peito largo, e o deus a envolveu nos braços com firmeza. Era tão bom ficar perto dele! Um aroma de pinho pairava no ar, mesclando-se com o perfume inebriante e másculo de Hades.

Uma vez que ela não mais sintonizava com o apelo irresistível do Lete, a voz deste se tornou alegre e melódica.

Lina sentiu-se imersa em uma experiência sensorial inacreditável. Seu corpo inteiro estava excitado e ultrassensível. A mão do deus descansou em seu antebraço, e seu polegar lhe traçou círculos preguiçosos na pele. Ela estremeceu sob o toque.

— Minha capa não a está aquecendo? — Hades murmurou, a respiração morna contra seu ouvido. — Está com frio?

Ela balançou a cabeça negativamente e se virou nos braços fortes para ver seu rosto. Ele a envolvia por inteiro. Seu corpo era rijo, forte, e ele irradiava calor através do couro da túnica.

Seus braços a rodearam, então. Lina abriu a boca para dizer que era o seu toque que a fazia tremer daquela maneira e que...

— Ali! — O sussurro de Hades foi urgente. Ele se inclinou para a frente, movendo-a com ele. Apontou, e os olhos dela seguiram seu dedo.

Duas figuras se aproximavam do rio, no lado oposto. Conforme chegavam mais perto, Lina percebeu que elas estavam de mãos dadas. A água brilhante refletiu em seus corpos, mostrando serem um homem e uma mulher de idade. Eles se moviam lentamente, permitindo que seus ombros e quadris roçassem uns nos outros. A cada passo ou dois, o homem erguia a mão enrugada da mulher até os lábios e a mantinha lá enquanto ela o fitava com ternura.

Lina sentiu-se pouco à vontade espionando-os, mas ficou encantada com a adoração que demonstravam um pelo outro.

Por fim, o casal chegou à beira do rio e se entreolhou. O homem descansou as mãos sobre os ombros da mulher.

— Tem certeza? — Tinha a voz rachada pela idade e pela emoção, porém esta ainda era audível do outro lado do rio.

— Tenho, meu amor. Chegou a hora, mas nos encontraremos de novo — afirmou com segurança.

— Eu sempre confiei em você. Não vou duvidar de você agora — replicou ele.

Ao ver o homem puxar a esposa suavemente para seus braços e beijá-la, Lina sentiu os olhos se encherem de lágrimas e piscou depressa, querendo manter o foco. O casal terminou seu abraço e depois, com as mãos ainda unidas, eles se ajoelharam ao lado do rio, inclinaram-se e beberam da água cristalina.

No mesmo momento, seus corpos começaram a brilhar. Seus cabelos e roupas chicoteavam descontroladamente como se tivessem sido apanhados em uma lufada de vento.

Então começaram a mudar.

Lina engasgou enquanto observava os anos deixando o casal. Sua aparência mudou da velhice para a meia-idade, em seguida para a fase adulta, depois para a juventude, e, finalmente, os dois resplandeceram com a vibração da adolescência.

A metamorfose cessou e, atordoados, eles se entreolharam.

Em seguida, o homem jogou a cabeça para trás e gritou com alegria. Mais uma vez, puxou a mulher para os braços e ela pulou em seu colo, rindo e chorando ao mesmo tempo.

As lágrimas escorreram dos olhos de Lina. Eles deviam ser daquele jeito quando tinham se apaixonado.

Enquanto o casal se abraçava, seus corpos se tornaram cada vez mais brilhantes, até que ela precisou usar a mão para proteger os olhos contra a luz que deles emanava.

De repente, eles explodiram tal como duas estrelas, e foram caindo em uma chuva de faíscas sobre a água. A partir do centro de cada explosão, dois pontos de luz do tamanho de um punho fechado se formaram. Pairaram sobre as águas, adaptando-se aos seus novos sentidos, então se puseram a flutuar correnteza abaixo, como se carregados por uma brisa própria.

Lina ficou olhando para eles. As duas esferas de luz permaneciam juntas e tão próximas que, conforme se afastavam, parecia não haver mais distinção entre elas. O rio fazia uma curva para a esquerda, e as luzes o seguiram, desaparecendo de vista.

Ela enxugou os olhos, fungando.

— O que vai acontecer a eles? — perguntou com voz embargada.

— O que viu é a aparência das almas depois que todas as lembranças e todo o vínculo com os corpos são removidos. Os espíritos seguirão o Lete até a sua nascente. Lá eles renascerão como crianças para viver novas vidas — explicou Hades.

Lina virou-se em seu colo para encará-lo.

— Mas eles vão ficar juntos outra vez? Se eles renascem como novas pessoas, sem nenhuma lembrança de suas vidas anteriores, como podem se reencontrar?

— Almas gêmeas sempre se reencontram. Não precisa chorar por elas... A mulher falou a verdade: eles vão ficar juntos novamente.

— Promete? — A voz de Lina tremeu de emoção.

— Prometo, meu anjo. Prometo.

Devagar, e lutando contra eras de solidão, Hades envolveu com as mãos o rosto à sua frente e tomou uma decisão: tinha que tentar. Estaria perdido se não o fizesse.

Fitou-a nos olhos com o coração aos saltos e, respirando fundo, deixou os polegares enxugarem o resto das lágrimas da deusa.

— Era o que eu queria lhe mostrar e dividir com você, Perséfone: o vínculo que existe entre almas gêmeas. Sei que jamais vai se esquecer do que testemunhou aqui. O que viu pode até mudá-la, assim como me mudou.

Delicadamente, ele se inclinou para ela. Primeiro beijou-lhe as pálpebras fechadas, uma a uma, então colou a boca na sua.

O beijo começou doce e hesitante, mas, quando as mãos de Lina deslizaram ao redor de seus ombros, e ela abriu os lábios para aceitá-lo, Hades o aprofundou com fervor.

Perséfone estava ali, era uma realidade em seus braços. Desta vez ele não precisava imaginar que a tocava e a saboreava.

O desejo por ela, que ainda não fora verdadeiramente saciado, brotou dentro dele. Com um gemido de prazer, as línguas se encontraram. Perséfone estava lânguida e quente, e tinha gosto de ambrosia.

Hades deslizou as mãos para dentro da capa que a cobria, e estas encontraram sua cintura. Acariciou-lhe a curva dos quadris e, obedecendo às suas fantasias, mergulhou os dedos na seda de seus cabelos.

Percebeu a respiração dela se acelerar ao percorrer de cima a baixo o comprimento de suas coxas. A fina camisola de seda não representava quase nenhuma barreira.

Perséfone virou-se em seu abraço, de maneira que seu membro rijo ficou pressionado contra a curva de suas nádegas benfeitas.

Hades deixou escapar um som baixo e selvagem do fundo da garganta. Como vivera tanto tempo sem ela? Desejava-a com um fogo que o queimava vivo!

Sua mão viajou de volta para a curva tentadora da cintura delgada e continuou a subir, sentindo a perfeição da lateral de um seio. Em sua mente, ele vislumbrou outra vez os mamilos intumescidos e molhados com água e óleo. Com a ponta dos dedos, encontrou o botão macio e o acariciou através da seda fina.

Perséfone soltou uma exclamação. O som penetrou a névoa de luxúria que embaçava o cérebro de Hades e o fez recuar. A capa tinha sido deixada de lado, e a deusa estava praticamente sobre ele, tremendo, exposta, com os cabelos desgrenhados e os lábios vermelhos e inchados depois de seus beijos.

Por todos os deuses, o que havia de errado com ele? ­Perdera o controle sobre si mesmo? Não queria que acontecesse daquela maneira. Até mesmo um idiota inexperiente sabia que não deveria amar uma deusa no meio de uma floresta.

Soltando uma imprecação, ele se pôs de pé. Perséfone estava com pedaços de pinhas e sujeiras na camisola, e pareceu-lhe dolorosamente jovem e sedutora ao fitá-lo com um sorriso confuso nos lábios sensuais.

Hades se encheu de vergonha. Ainda queria deitá-la no chão e amá-la ali mesmo.

Balbuciando desculpas incoerentes, limpou as folhas dos pinheiros que tinham se apegado às suas vestes.

Lina suspirou. A força da paixão do deus despertara nela um desejo tão intenso, tão feroz, que chegava a ser assustador. Ao observar a luxúria se esvair do rosto de Hades e ser substituída por uma expressão que poderia ser raiva ou vergonha, ela controlou a respiração e se obrigou a raciocinar. Nunca tivera um deus por amante, mas não era nenhuma virgem, e, portanto, não devia reagir como uma.

— Não tive a intenção de trazê-la aqui para... — Ele balançou a cabeça, desgostoso, e continuou a limpar seu vestido — ... para amá-la como um bicho.

Não estava zangado, Lina percebeu com alívio, e sim, constrangido.

— Hades... — Segurou sua mão e a puxou até que os olhares se encontrassem. — Pare com isso. Eu estou bem. O que aconteceu?

— Uma deusa merece mais do que uma contenda no chão.

O sorriso dela foi lento e sensual.

— Não posso falar por outras deusas, mas eu estava gostando da contenda... — Tocou a veste de couro que ele usava. Ainda podia sentir o calor que emanava dele. — E eu não estava no chão... Estava praticamente sentada no seu colo.

Hades soltou um suspiro, e a expressão preocupada em seus olhos o fez parecer décadas mais velho. Com delicadeza, ele a tocou no rosto, e sua voz saiu rouca com as emoções contidas:

— É verdade que eu não a trouxe aqui para seduzi-la, mas descobri que não consigo manter o meu pensamento longe de você... nem minhas mãos. Que os deuses me ajudem, Perséfone, mas eu a desejo mais do que qualquer outra coisa — ele concluiu, ofegante.

— Então que os deuses ajudem a nós dois, Hades — ela emendou, rouca.

Quando seus lábios se encontraram, Lina se recusou a pensar em Deméter e no futuro.

Hades interrompeu o beijo suavemente, enquanto ainda era capaz de se controlar. Ela era tão macia e se mostrava tão receptiva! Que Perséfone o desejava, isso era evidente, porém ele queria mais do que possuir seu corpo. Queria sua alma.

Num gesto carinhoso, ajeitou a capa sobre seus ombros e a fez passar o braço pelo dele.

— A noite está esfriando. É melhor voltamos para o palácio. — Tirou-lhe uma mecha de cabelo do rosto, ciente da decepção nos olhos da deusa.

Bom , pensou. Queria que Perséfone desejasse e ansiasse por mais do que apenas seu corpo.

Ele a conduziu de volta ao caminho que os levaria ao palácio.

Os pensamentos de Lina fervilhavam. Sentia o corpo ainda ardendo, e sua sensibilidade aumentada, de alguma forma, se fundira com a incrível beleza da cena que tinha testemunhado entre aqueles dois companheiros de alma. A devoção pungente entre os amantes ficara gravada nela.

Sentiu a pulsação firme de Hades sob os dedos. Ele a trouxera até ali para testemunhar o renascimento das almas gêmeas, mas não usara isso como uma arma de sedução. Se essa tivesse sido sua intenção, ele poderia tê-la tomado lá mesmo, no chão.

Mas, não. Hades, pelo visto, queria mais dela do que apenas sexo.

Sua alma vibrou quando um alarme soou em sua mente.

Amor. Ele havia lhe mostrado sua ideia de amor.

Hades já não dissera que acreditava que os mortais sabiam amar melhor do que os deuses? Será que os deuses também possuíam almas gêmeas?

Ela não fazia ideia. Tudo o que sabia sobre imortais tinha lido sem a mínima atenção, décadas antes.

O que se lembrava bem era que os deuses antigos eram volúveis e que descartavam amantes a seu bel-prazer.

Isso, contudo, não condizia com o deus que caminhava a seu lado.

Fitou o perfil sombrio. Quem acreditaria que ela havia encontrado tal desejo e romance na Terra dos Mortos?

Como se pressentisse seu escrutínio, Hades olhou para ela, e seus lábios se curvaram num sorriso.

— Parece que tem muitas perguntas borbulhando na cabeça... Eu já lhe dei permissão para me perguntar qualquer coisa, e prometo que, daqui por diante, me lembrarei das boas maneiras e não insultarei minha convidada.

Lina sentiu-se corar. Desejava que aquela escuridão de sonho escondesse a cor em seu rosto.

Ela havia se esquecido por completo de repreendê-lo por sua retirada estratégica. Parecia ter acontecido séculos antes, e com duas pessoas totalmente diferentes.

Inclinou-se para ele, adorando a sensação do braço forte no seu, e a forma como ele também se curvava para ela, atento.

— O que assisti esta noite foi algo mágico — murmurou, comovida.

— Sim. O tipo mais perfeito de magia: a que é criada pela alma e não inventada pelos deuses.

— Os deuses não possuem almas gêmeas?

— Não. — Hades suspirou. — Almas mortais encontram seus pares naturalmente; não exigem a interferência do Olimpo.

As palavras trouxeram outra dúvida para Lina.

— Os mortos podem se apaixonar? — ela quis saber, pensando nos olhares tímidos que Eurídice começara a lançar para Iapis. — Ou apenas almas gêmeas têm a capacidade de amar após a morte?

— Você mesma pode responder a essa pergunta, Perséfone.

Lina o fitou, atenta. Entretanto o tom de Hades era educativo e não paternalista.

— Pense, minha deusa. Do que é que gosta? Do corpo ou da alma? — ele incitou.

— Se está falando em amor de verdade, e não apenas em desejo ou paixão, eu teria de dizer a alma.

O deus aquiesceu.

— O corpo é apenas um manto, uma cobertura temporária para a nossa verdadeira essência.

— Então as almas que habitam Elísia, ou mesmo seu palácio, podem se apaixonar?

— Qualquer um dos mortos pode encontrar um novo amor. — Hades franziu o cenho. — Mas, deve saber, nem todas as almas são capazes dessa emoção.

— Está falando de almas mortais ou das almas dos deuses?

Ele parou de andar e se virou para encará-la. Estavam em pé, muito próximos, e a mão dela ainda repousava em seu braço.

Hesitou antes de responder à pergunta. Então seus dedos roçaram a face delicada numa carícia já familiar para Lina.

— Não posso falar pelos outros deuses, apenas por mim. Minha alma anseia por uma companhia eterna. — Ele se inclinou e roçou os lábios nos seus. Em seguida, fez um gesto para o espaço logo atrás dela. — Parece que estamos de volta ao lugar em que começamos.

Lina olhou por cima do ombro e piscou, surpresa. Estavam parados na beirada da trilha que levava à varanda.

Sem falar, Hades envolveu-lhe o rosto com as mãos num gesto delicado, e Lina imaginou que o beijo fosse ser doce e breve.

Quando seus lábios se encontraram, contudo, percebeu que havia se enganado. Ele não teve pressa em saboreá-la, mergulhando os dedos em seus cabelos fartos e acariciando a base sensível de seu pescoço.

Ela correu as mãos pelos braços longos, mais uma vez impressionada com sua força.

Hades mordiscou seu lábio inferior antes de terminar o beijo. Sem soltá-la, falou de encontro à sua boca:

— Vai cavalgar comigo amanhã? — indagou, a voz rouca de desejo.

Com o coração disparado, Lina anuiu.

— Sim.

— Até amanhã, então. — Ele a soltou, relutante, e tirou outro fio de cabelo de seu rosto. Fez uma reverência, virou-se e se afastou.

Lina subiu os degraus da varanda e entrou no quarto com as pernas trêmulas. Conforme se largava na cama, avistou o próprio reflexo no espelho sobre a penteadeira, do outro lado do cômodo. Tinha as faces coradas e os cabelos desgrenhados. A capa de Hades havia se acumulado em torno de sua cintura, e a camisola transparente estava suja, com várias folhas de pinheiro pendendo da barra.

E, mesmo longe do espelho, pôde ver o contorno de seus mamilos intumescidos.

— Misericordioso Madre di Dio! — disse, usando a frase mais enfática de sua avó. — Você tem 43 anos de idade! E não se sentia assim desde... desde nunca! — Sacudiu a cabeça diante daquela imagem jovem e estranha de si mesma. — Nenhum homem jamais a fez se sentir como Hades... E ele quer amor eterno! — Fechou os olhos com força. — Oh, Deméter, o que eu vou fazer?


Capítulo 19

— Querida, você é uma verdadeira artista! — Lina estudou o desenho a carvão feito no pergaminho. Havia esperado que o mapa de Eurídice fosse um desenho tosco, mas, quando a pequena alma desenrolou o papel, ficou impressionada com a qualidade do trabalho. O projeto do palácio fora traçado em linhas fortes e claras, com cada setor nomeado em uma linda caligrafia.

O que mais a impressionou, porém, foi a forma meticulosa com que Eurídice havia simbolizado cada parte da construção. Para indicar a sala de jantar, reproduzira uma miniatura da linda mesa com os candelabros. O Salão Nobre fora adornado com um altar, sobre o qual ela desenhara o trono de Hades. Tinha esboçado até o pátio cheio de flores e a fonte maciça em seu centro.

— Gostou mesmo? — Eurídice perguntou, ofegante. — Não está pronto. Ainda precisa de muitos retoques, na verdade.

— Pois eu adorei. Sempre foi boa desenhista?

O rosto da moça se iluminou.

— Sim! Quero dizer... não exatamente. Meu pai não achava que desenho fosse um bom passatempo para uma moça; nem mesmo um hobby . Mesmo assim, eu costumava desenhar em segredo. Fazia o esboço de flores em áreas secas do chão com uma varinha, mergulhava uma pena de pássaro nos corantes da minha mãe e desenhava animais em trapos. — Ela sorriu para Lina, travessa. — Meu pai ficaria louco se descobrisse.

— Pois eu acho que ser artista é um passatempo perfeito para uma mulher, e eu lhe dou carta branca para desenhar quanto quiser — Lina afirmou.

— Muito obrigada, Perséfone! — A moça pulou de alegria. — Mal posso esperar para contar a Iapis. Ele também falou que eu desenhava bem e que me arrumaria outros materiais se eu quisesse continuar desenhando.

— É mesmo? — Lina ergueu as sobrancelhas sugestivamente.

O rosto já rosado de Eurídice assumiu um tom vermelho.

— Sim. Eu pensei que ele estivesse apenas sendo gentil, pois é sempre assim, mas, se você também concorda com ele, então deve ser verdade.

— Diga a Iapis que eu mandei enchê-la com materiais. Acaba de ser nomeada a artista particular da deusa da Primavera. — Lina levantou a mão regiamente a fim de tornar o anúncio oficial.

Os olhos de Eurídice se arregalaram. Num impulso, ela jogou os braços ao seu redor, abraçando-a com força.

— Você é a deusa mais maravilhosa do mundo!

Lina riu.

— Essa é exatamente a opinião que espero da minha artista particular.

— Precisa me dar uma tarefa. O que gostaria que eu desenhasse?

— Não deveria terminar o mapa primeiro?

— Isso será feito em breve. O que quer que eu desenhe? — ­perguntou, ansiosa.

Lina pensou por um momento, então sorriu.

— O narciso está se tornando a minha flor favorita... Por que não desenha um bem grande e bonito?

O rosto de Eurídice resplandecia quando ela fez uma profunda reverência para sua senhora.

— A artista está às suas ordens, deusa da Primavera.

Lina inclinou a cabeça como uma deusa, congratulando-se por ter deixado a pequena alma tão feliz.

— Vou tentar ser paciente e esperar por seu primeiro trabalho.

A pequena alma quase se esqueceu da mesura.

— Céus! A minha primeira incumbência! — exclamou, emocionada.

Duas batidas firmes soaram contra a porta do quarto de Lina. Eurídice praticamente dançava ao abri-la.

— Iapis! — Ela sorriu. — Perséfone declarou que eu sou sua artista particular!

Lina observou o daimon, atenta. Sua expressão foi calorosa e sincera ao parabenizar a moça, e seus olhos não deixaram o rosto delicado um só momento. Sua avó diria que ele estava com todo o jeito de um homem prestes a se apaixonar perdidamente.

Lina percebeu Eurídice tocando o braço do daimon duas vezes enquanto, animada, contava a novidade. A linguagem corporal da menina dizia, sem dúvida, que ela correspondia ao interesse de Iapis.

Menina não, corrigiu-se Lina. Tinha que parar de pensar em Eurídice como uma criança. Ela era uma mulher que já fora, inclusive, infeliz no casamento.

E pensar que seu atual corpo não parecia muito mais velho do que o dela!

— Senhora, posso elogiá-la por seu bom gosto em se tratando de artistas? — Iapis indagou, galante.

Eurídice pairava a seu lado, sorrindo.

— Obrigada, Iapis. Mas parece que estamos apenas começando a descobrir os talentos de Eurídice...

O daimon sorriu com carinho para a moça.

— Sou obrigado a concordar plenamente — respondeu, antes de se inclinar para Lina, discreto. — Hades espera pela senhora no estábulo. Ele pediu que eu a avisasse de que Órion encontra-se impaciente.

O estômago dela se contraiu à simples menção do deus.

— Ainda bem que estou pronta, então. Eu não gostaria de deixar um de seus temíveis cavalos esperando.

— Eles me assustam — declarou Eurídice.

— Basta enxergá-los como cães de grande porte — sugeriu Lina, e a pequena alma e o daimon tiveram que se apressar para segui-la quando ela começou a andar rapidamente pelo corredor e pelo pátio, plenamente consciente de que agora era ela quem parecia flutuar de alegria.

— Aproveitou seu banho de ontem à noite, senhora? — Iapis perguntou.

Lina ficou feliz por estar andando à sua frente. Sabia que sua expressão daria mostras de como a noite anterior tinha se tornado satisfatória.

— Sim, foi uma delícia. Obrigada.

— Perséfone disse que dormiu muito bem — acrescentou Eurídice, travessa.

Lina sorriu. Ela dormira envolta na capa de Hades, mergulhada em sonhos eróticos e sensuais.

— É bom saber — o daimon falou à moça com um suspiro. — Ainda mais depois da noite agitada que meu senhor teve. Hades não pregou os olhos.

— Devia ter lhe providenciado um bom banho, como fiz com Perséfone — comentou Eurídice.

Lina apertou o passo, deixando que a brisa suave que soprava no pátio lhe esfriasse as faces coradas. Já se sentia como uma mola contraída e pronta para se expandir. Decididamente, não precisava começar a visualizar o corpo nu de Hades sendo banhado e coberto de óleo.

Passou quase correndo pela fonte central e as lindas esculturas, e suspirou, aliviada, quando chegou aos portões de ferro forjado por fim.

— Acho que vou ficar aqui, Perséfone — Eurídice falou atrás dela, apontando para um pequeno canteiro de narcisos. — Assim posso fazer um primeiro esboço enquanto cavalga na companhia de Hades.

— E eu ainda preciso arrumar outros materiais para a sua desenhista particular — emendou Iapis, sem nunca deixar os olhos de Eurídice.

— Comportem-se vocês dois... Estarei de volta em breve — ­declarou Lina.

O casal se despediu dela de bom grado.

Quando ela olhou para trás, apenas alguns passos depois, viu os dois juntos. O riso de menina de Eurídice foi seguido por uma gostosa risada do daimon.

Lina suspirou. Precisava conversar com Hades sobre eles. Iapis parecia um bom rapaz, se essa era a expressão certa com que se referir a um semideus, mas, quais eram as suas intenções? Eurídice estava se recuperando de um mau relacionamento, sem dizer que havia falecido fazia pouco tempo... Tais fatos deviam deixá-la duplamente vulnerável.

Ou não?

De qualquer modo, ela se sentia responsável pela moça e não queria vê-la magoada. Iapis precisava agir com cautela. Eurídice tinha de ser tratada com cuidado e respeito.

Um relinchar estridente fez Lina interromper seu discurso interior. Órion estava do lado de fora do estábulo. Sua crina fora penteada e trançada com fitas da cor do luar, do mesmo tom do narciso colocado sob a parte superior de sua rédea.

Ele a avistou, ergueu o pescoço e bufou, dando alguns passos de lado para se exibir. A seu lado havia outro garanhão que poderia ser seu irmão gêmeo, exceto pelo fato de que sua pelagem escura contrastava com uma única mancha branca na testa, cujo formato era o de uma estrela torta. Os dois cavalos eram quase tão magníficos como o deus que segurava suas rédeas.

Hades fechou a cara para Órion.

— Acalme-se, seu tolo! — disse ao garanhão. — Dorado não está fazendo tanto estardalhaço.

Lina correu para se juntar a eles, tentando não se fixar na forma como os ombros do deus se avolumavam ainda mais conforme ele acalmava o corcel. Hades vestia outra túnica curta, que lhe expunha boa parte dos músculos dos braços e pernas, e a capa preta se agitava em torno dele.

Era o próprio Batman. Uma versão deliciosa do antigo Bruce Wayne, ela pensou, e tratou de lutar contra o impulso de se abanar.

— Não brigue com ele. Órion é incorrigível, mas adorável — falou, o coração palpitando. Roçou o rosto contra o focinho do cavalo quando ele a cutucou numa saudação, aproveitando para desviar o olhar de Hades. — Está feliz em me ver, não é, menino bonito?

Hades pensou que sabia exatamente como o garanhão se sentia. Ele também tinha vontade de sapatear e urrar à simples visão de Perséfone... Naquela manhã, ela trajava uma túnica de linho leve, com uma saia ampla o suficiente para que pudesse cavalgar com conforto. Quando a brisa soprava, colava o tecido semitransparente em seu corpo, delineando seus seios e a curva deliciosa de sua cintura, a ponto de fazê-lo lamentar por não ter chamado mais vento.

Observou, enciumado, enquanto ela acariciava Órion, mesmo se sentindo um idiota por ter ciúmes de um cavalo.

Dorado relinchou para a deusa, parecendo desolado. Em vez de fazer o mesmo, Hades suspirou.

— Perséfone, acho que ainda não foi formalmente apresentada a Dorado. Ele não conduz bem como Órion, mas é o mais rápido dos quatro. — Deu um tapinha afetuoso no pescoço brilhante do animal.

Lina acariciou a cabeça do garanhão.

— Muito prazer em conhecê-lo, Dorado. Então é mais rápido do que o seu amigo, hein? — comentou, lançando um olhar atrevido a Hades. — Será que Órion e eu não conseguiremos fugir de você?

Hades engoliu em seco. Apenas ficar próximo de Perséfone o fazia se sentir poderoso e impotente, quente e frio; tudo ao mesmo tempo. Provavelmente estava ficando louco.

Mas não se importava.

Deslocando-se para perto dela, de modo que as laterais de seus corpos se tocassem, devolveu o olhar provocador.

— Não, vocês não vão conseguir escapar de mim .

Lina se perdeu no olhar dele. Escapar? Imagine... Ela queria mais era entrar em sua pele.

Órion tornou a cutucá-la e relinchou. Ela riu, e a magia entre eles se desfez.

— Está bem, garoto impaciente!

— Órion não é impaciente. É ciumento — contrapôs Hades, fazendo nova careta para o animal, que o ignorou solenemente para lamber o ombro da deusa.

— Ciumento? — Lina fingiu surpresa. — Só porque acariciei Dorado? Como você é bobo... — sussurrou para o corcel.

— Não tem ideia do quanto — emendou Hades, ainda que não estivesse falando de Órion. — Venha — ele a segurou pelo cotovelo, guiando-a para a esquerda do cavalo a fim de ajudá-la a montar. — Os Campos Elíseos aguardam a presença da deusa da Primavera.

Cavalgaram lado a lado, seguindo a estrada de mármore preto. O constante ruído dos cascos dos cavalos se misturou ao canto lírico dos pássaros que chamavam um ao outro nos galhos dos ciprestes que ladeavam o caminho. O perfume dos narcisos impregnava o ar. De vez em quando eles passavam por grupo de espíritos, às vezes por uma alma solitária andando sozinha.

Mas suas reações eram sempre as mesmas. Primeiro, os espíritos recuavam, assustados, para a lateral da estrada, dando aos temíveis corcéis um generoso espaço. Só então percebiam quem os montava e se curvavam com reverência ao seu deus, embora mantendo os olhos fixos em Perséfone.

Os homens sorriam e cumprimentavam a deusa. Alguns deles até gritavam para ela.

Mas o que mais comoveu Lina foi a reação das mulheres. Quando estas se davam conta de que estavam na presença da deusa da Primavera, seus rostos se iluminavam de tanta alegria. Muitas se dirigiam a ela pelo nome e pediam sua bênção, a qual ela dava prontamente. Algumas até se atreviam a se aproximar de Órion, querendo tocar seu manto.

Lina mal podia acreditar na diferença que sua presença parecia fazer para elas. Precisava admitir: Deméter tinha razão. Por algum motivo, os espíritos dos mortos necessitavam saber que uma deusa ainda se preocupava com eles. Era uma tremenda responsabilidade, porém esta a fazia sentir-se querida e valorizada. Se apenas ficando à vista no Submundo ela conseguia espalhar alegria e esperança, então, estava muito contente por estar ali.

A princípio temia que Hades fosse ficar aborrecido ou até mesmo com ciúme por toda a atenção que ela vinha recebendo. Mas, embora ele houvesse proferido poucas palavras, sua expressão satisfeita e relaxada já falava por si. O deus sombrio se encontrava feliz já que os mortos reagiram tão bem a ela.

Eventualmente, a estrada se tornou mais íngreme. Quando eles alcançaram o topo, Lina fez Órion parar, perplexa.

— É como se alguém houvesse dividido a paisagem em duas e depois pintado um lado com tinta escura e o outro com clara! — Balançou a cabeça, incrédula, embora soubesse que não estava imaginando coisas. A estrada se estendia à sua frente como a linha divisória entre duas paisagens radicalmente diferentes. Era a coisa mais bizarra que ela já havia visto.

— Pintado de cores diferentes...— repetiu Hades. — É uma descrição um tanto apropriada. — Apontou para a esquerda, onde a terra declinava para uma vasta escuridão, rodeada por uma linha vermelha de fogo. — Este é o rio Flegetonte, que faz fronteira com o Tártaro, onde reina a escuridão. — Com a outra mão, ele mostrou o brilho à sua direita. — E lá você vê Elísia, onde a luz e a felicidade coexistem perfeitamente, e onde a única escuridão é a necessária para que os espíritos descansem em paz.

Lina tratou de acessar a memória espiritual de Perséfone:

O Tártaro , a voz sussurrou em sua mente, é a região do Submundo onde se aplica o castigo eterno. É um lugar de desespero e agonia. Apenas o mal o habita.

Era o inferno.

Lina não conseguia tirar os olhos do abismo escuro e, de repente, sentiu um calafrio. As trevas pareciam chamá-la, como gavinhas de uma criatura maléfica.

— Perséfone! — A voz nítida de Hades desviou sua atenção do vazio do Tártaro, e ela encontrou seu olhar. — Pode andar por qualquer lugar dentro do meu reino, com ou sem mim a seu lado, com exceção do Tártaro. Ali você não pode entrar, tampouco se aproximar de seus limites. O próprio campo foi contaminado pela natureza corrosiva de seus moradores.

— É terrível lá, não é? — O rosto dela estava sem cor.

— Tem de ser. Existe muito mal em todos os mundos. Acha que este deveria ficar impune?

Lina pensou sobre o mundo mortal, e trechos de notícias flamejaram em sua memória como pesadelos: o atentado em Oklahoma, os horrores praticados por homens e mulheres adultos que violentavam e matavam crianças indefesas e, claro, o 11 de Setembro e a covardia dos terroristas.

— Não. Eu não o deixaria impune — afirmou com segurança.

— Nem eu. Por isso ordeno que não se aproxime das fronteiras do Tártaro.

Lina estremeceu.

— Não quero ir para lá.

Hades relaxou sua expressão séria e apontou com um gesto de cabeça em direção ao brilho que iluminava o lado direito da estrada.

— Eu gostaria de lhe mostrar um pouco da beleza de Elísia.

Num esforço consciente, Lina deu as costas para os horrores do Tártaro, sorriu para Hades e acariciou o pescoço quente de Órion.

— Tudo o que você tem de fazer é mostrar o caminho, e nós o seguiremos.

Com os olhos brilhando, o deus sacudiu as rédeas de Dorado.

— É melhor me seguir. Afinal, está montando o cavalo mais lento.

Lina estreitou os olhos para ele e recitou na sua melhor imitação de John Wayne:

— Não devia falar do meu cavalo, peregrino... — Apontou para a colina. — Está vendo aquele pinheiro grande na margem do campo, lá embaixo?

Hades abriu um sorriso e assentiu:

— Dorado e eu vamos alcançá-lo primeiro. Ele é o cavalo mais rápido.

— Pode ser o cavalo mais rápido, mas certamente está carregando um peso morto — ela falou, brincando. — Ops! Foi um péssimo trocadilho para usar no Submundo... IAAH! — gritou, pegando o sorridente deus de surpresa.

Órion respondeu de imediato, saltando para frente e passando como um raio por Dorado, aterro abaixo.

O vento assobiava ao passar por suas faces enquanto o garanhão galopava. Lina inclinou-se sobre seu pescoço, e ele aumentou a velocidade até que ela mal via o mundo ao redor.

Logo atrás, podiam ouvir Dorado se aproximando.

— Não deixe que eles nos alcancem! — ela gritou nas orelhas achatadas do cavalo, e Órion respondeu com nova explosão de velocidade.

Passaram por uma silhueta alta e verde, o pinheiro, e Lina se endireitou na sela, vibrando com a vitória, enquanto o garanhão diminuía para um trote e empinava com um relincho antes de parar.

Com a respiração pesada, Dorado diminuiu o galope até parar a seu lado.

Lina riu alto diante da expressão no rosto de Hades.

— O cavalo mais rápido, é? Nunca subestime o poder de uma mulher com muitos recursos.

— Você roubou — protestou Hades, simulando seriedade, embora tentasse, sem sucesso, esconder um sorriso.

— Prefiro pensar que esgotei os meus recursos para ganhar.

— Eu não tinha ideia de que era tão competitiva.

— Há muita coisa que não sabe sobre mim, senhor do Submundo — ela declarou, ainda acariciando o pescoço do garanhão. — Não sou uma deusa comum.

Hades bufou, e Órion bufou de volta.

Dorado sacudiu a cabeça, e o deus deu alguns tapinhas no cavalo.

— Não se sinta mal, meu velho. Nosso dia vai chegar. — E, fingindo um sussurro, completou, mais para si do que Dorado: — Só precisamos ficar de olho nela... Essa deusa é astuta.

— Ahn-ahn — Lina concordou de pronto, e ambos riram.

— Perséfone! — chamou uma voz jovem.

Lina virou-se para ver quem era.

— Oh, é a deusa da Primavera! Eu sabia!

A figura ágil surgiu do bosque de pinheiros que cercava a adorável clareira em que os cavalos se encontravam, e logo foi seguida por várias outras, que pularam e dançaram com entusiasmo diante de Lina. O grupo todo era composto de mulheres jovens e bonitas, cujos corpos fortes e esculturais encontravam-se encantadoramente cobertos por trajes diáfanos. Se elas não tivessem aquela aparência translúcida que as distinguiam como espíritos do Submundo, Lina teria acreditado que havia ido parar em uma daquelas festas de clube das mulheres.

Hades cutucou Dorado com os joelhos para que pudesse ficar mais perto dela e falou em voz baixa:

— São virgens que morreram antes de se casar. Costumam farrear antes de beber do Lete.

Quando o grupo se aproximou, eles diminuíram o trote, esforçando-se para conter o entusiasmo das mulheres e evitar que estas chegassem perto demais dos temíveis cavalos. A alma que chamara a deusa pelo nome fez uma reverência profunda e graciosa, a qual o restante das virgens imitou. Quando se levantou, foi a primeira a falar:

— Ouvi dizer que tinha sido vista, e, com todo o meu coração, eu quis acreditar. Oh, senhora! É tão maravilhoso tê-la conosco!

Um coro de “Sim!”, “Estamos tão felizes!” seguiu-se a seu pequeno discurso.

— Obrigada. Minha visita está sendo maravilhosa — comentou Lina.

A virgem franziu o cenho.

— Veio apenas de visita? Quer dizer que vai nos deixar?

O prado ficou em silêncio, como se cada folha de grama ou árvore quisesse ouvir sua resposta.

Ela não soube o que dizer.

— Perséfone pode permanecer no Submundo por quanto tempo quiser. — A voz de Hades, rica em sentimentos, rompeu o silêncio.

Lina sentiu a pulsação se acelerar com a súbita satisfação que a invadiu depois daquelas palavras. Afastou toda e qualquer preocupação ou pudor quanto a não poder ficar e por ter de permanecer ali apenas por seis meses.

Em vez disso, sorriu para o deus, pensando em como gostaria de beijá-lo outra vez.

— Então não tem nenhuma razão para ter pressa! Venha dançar conosco! — chamou a virgem.

Lina se obrigou a desviar o olhar de Hades.

— Dançar com vocês? Mas não há música.

— Esse é um detalhe que pode ser solucionado — declarou Hades. — Nossa deusa quer música! — ordenou com um floreio, e a brisa passou a rodeá-los com um assobio estranho, que se transformou no som melódico de instrumentos musicais. Hades inclinou a cabeça gentilmente para ela. — Agora já tem a música.

— Parece que sim. — O coração dela bateu tão forte que, a despeito da melodia, todos deviam estar ouvindo.

Mas, dançar? Ela não saberia como dançar com aquelas mulheres.

— Sim! Ah, por favor!

— Agora pode dançar conosco!

— Venha brincar com a música do deus, Perséfone!

— Mas, eu... Bem... — Lina olhou em volta, impotente. — O que vou fazer com Órion?

— Vai deixá-lo aqui, comigo e com Dorado — decidiu Hades, já desmontando. Caminhou para a lateral do cavalo e levantou os braços, de maneira que ela não teve escolha senão deslizar por eles.

Hades a abraçou com força por um momento, então sussurrou:

— Dance para mim aqui em Elísia... Nenhuma deusa jamais fez isso.

Ela o fitou nos olhos, percebeu seu desejo, assim como sua vulnerabilidade, e soube que não tinha alternativa.

— Está bem.

— Meus cavalos e eu vamos esperá-la. — Ele fez uma pausa, depois acrescentou: — Ansiosamente.

— Certo. Bem — Lina alisou as próprias vestes, fingindo endireitar o que já estava mais do que assentado. — Não vai demorar muito.

— Perséfone! Já fizemos um círculo! — Uma das virgens gritou.

— Que bom... — ela respondeu, partindo em direção ao grupo.

Determinadas, as virgens haviam formado um meio círculo no meio da campina.

Lina ficou tão nervosa que se sentiu um pouco enjoada. Dançar com um grupo de virgens mortas? Estava ali algo para o que nem toda a experiência que adquirira na vida a tinha preparado.

Sentiu as mãos suadas. Aquilo não era como o encontro para a coleta do néctar. Não teria nenhum exemplo de como agir. As mulheres estavam esperando que ela lhes mostrasse o que fazer.

Se partisse para uma imitação dos solos disco de John Travolta, em Saturday Night Fever , na certa faria um papel ridículo. Não apenas Hades, como todas as mulheres saberiam que ela não era uma deusa, e sim uma fraude.

Pare com esse absurdo!

O eco em sua mente a assustou tanto que ela quase deu um grito.

Seu corpo sabe dançar. Relaxe e confie nele!

Lina olhou para si mesma. Havia se esquecido de que não vestia sua pele de quarenta e três anos de idade. Ela era jovem, flexível e estava em tão grande forma que provavelmente poderia comer chocolate Godiva sem parar por vários dias. Nem precisaria se preocupar se o zíper de seu jeans fecharia depois.

— Senhora?

Lina ergueu o olhar e viu todas as virgens a observá-la com expressões curiosas em seus rostos bonitos. Devia estar parecendo uma idiota, parada ali, olhando para o próprio corpo.

Sorriu, endireitou os ombros e começou a andar de novo.

— Eu estava apenas admirando... — olhou para baixo outra vez — ... os trevos deste campo. São lindos, não acham?

Todas as cabeças assentiram com vigor, como se ela as estivesse controlando por um painel de controle.

— É típico do nosso prado. Gostamos de trevos e gramados... coisas que crescem. Por isso eles brotam para nos agradar — a primeira virgem disse.

— Eu também gosto deles — afirmou Lina, juntando-se ao círculo.

Você começa no centro , sua voz interna comandou.

Ela respirou fundo e se colocou no meio do grupo. Então fez a única coisa que poderia pensar em fazer: fechou os olhos e se concentrou.

A música a invadiu e, no mesmo instante, Lina começou a se movimentar. Seus braços se elevaram, e ela girou em um círculo lento e preguiçoso.

A melodia era maravilhosa, sensual e feminina, e seu corpo logo se harmonizou com as notas, fazendo-a partir para passos mais complexos com suas longas e flexíveis pernas. Seus quadris ondulavam e balançavam, e seus braços traçavam imagens no ar.

De repente, não era mais uma padeira de quarenta e três anos de idade. Era uma jovem deusa. Era música.

Lina abriu os olhos.

Com os rostos iluminados, as moças a circundavam, tentando imitar seus movimentos. Eram lindas, e muitas tinham sido, obviamente, talentosas dançarinas.

Mas a diferença entre a dança das mortais e a de Perséfone era clara até mesmo para Lina. Perséfone movia-se com a graça inumana de uma deusa.

Seu coração se encheu de satisfação com o poder dentro dela. Devia ser assim que uma primeira bailarina se sentia no ápice de sua carreira, pensou: saltando, girando e soltando gritinhos de alegria.

Poderia ter dançado para sempre, mas uma das virgens tropeçou e desabou, rindo, em meio a um canteiro de trevos. As demais se esforçaram para manter a coreografia.

Lina, contudo, a consolou, e, com um movimento glorioso e um floreio, pôs um fim à apresentação.

Enquanto as moças gritavam e aplaudiam, ela fez a reverência profunda de uma bailarina.

As almas a rodearam, murmurando agradecimentos e perguntando quando ela voltaria a brincar com elas de novo.

Enquanto riam e conversavam, Lina tentou, discretamente, localizar Hades, e avistou Órion e Dorado. Eles pastavam, contentes, não muito longe do pinheiro que servira como sua linha de chegada.

Seus olhos se voltaram para a árvore. Hades encontrava-se recostado nela, os braços cruzados e o corpo relaxado.

Mas seus olhos brilhavam, cheios de calor e fixos nela, e seus lábios se inclinavam numa sugestão de sorriso. Quando ele percebeu que ela o fitava, levou a mão à boca e enviou-lhe um beijo.

A coisa mais romântica que um homem já lhe havia feito.

— Bem, senhoras, foi maravilhoso dançar com todas vocês. Temos que fazer isso de novo muito em breve, mas Hades e eu precisamos seguir em frente — falou, desembaraçando-se de seu círculo de admiradoras.

Várias delas dispararam olhares tímidos na direção do deus que aguardava, e não foi difícil perceber o teor de seus sussurros, dos quais Lina só pôde entender os nomes “Perséfone” e “Hades”.

Rindo e acenando em despedida, as virgens desapareceram em meio aos pinheiros.

Hades se afastou da árvore para encontrar Lina no meio do prado. Por um momento, nenhum deles falou.

Então ele estendeu a mão e afastou uma mecha do cabelo que caía, úmido, sobre seu rosto delicado.

— Nunca vi nada tão cheio de graça como a sua dança.

De repente, Lina sentiu-se com menos fôlego do que enquanto rodopiava e saltava com a música.

— Deve estar com sede — observou Hades.

Até o momento, ela não tinha percebido que se encontrava sedenta ou suada.

— Muito!

— Deve haver uma fonte aqui perto. — Ele pegou sua mão e começou a caminhar em direção ao lado oposto do campo. — As coisas nunca permanecem as mesmas em Elísia, mas tendem a ­refletir os mesmos elementos.

— Então, é uma espécie de fantasia mutável? — Lina perguntou, passando a mão pelos trevos que lhe chegavam até os joelhos ao final do prado.

No mesmo instante, tufos de flores brancas saltaram por entre as folhas, emanando um perfume de verão e relva cortada.

— Sim, um pouco. — Hades sorriu para ela. — Elísia é dividida em diferentes partes, mas essas partes podem se misturar e mudar de acordo com a vontade dos espíritos.

— Diferentes partes? Quer dizer , há um lugar para pessoas que foram muito, muito boas, outro para as que foram boas na maior parte do tempo, e outro para pessoas que foram apenas “boazinhas”?

O riso de Hades preencheu o campo.

— Você diz as coisas mais inesperadas, Perséfone... Não. Elísia é dividida em reinos diferentes. Um deles é para os guerreiros. O outro é aqui — ele fez um gesto, apontando ao redor —, para que as virgens venham se divertir. E existem vários outros. A nobreza fica em um deles. Outro é para os pastores ou guias espirituais. — Ele sorriu de lado, como se tivesse doze anos de idade. — Curiosamente, os pastores não gostam de se misturar aos outros.

— Quem poderia imaginar?

— Pois é.

— Então eles não podem se unir? E se um guerreiro quiser cor­-
tejar uma virgem? Mesmo o batalhador mais dedicado pode se cansar de fazer “coisas de homem” após algum tempo.

— Eles podem se unir, porém enfrentam muitas dificuldades. — Hades fez uma pausa, ponderando sobre a questão. — Mas talvez não devesse ser assim, tão difícil. Talvez eles não percebam o que estão perdendo porque estão distantes disso por tempo demais. — O deus olhou para longe, imerso em pensamentos.

— Pode fazer Elísia se reorganizar segundo a sua vontade? — Lina quis saber.

— Sim. — Hades se voltou para ela.

— Se é assim, mova o prado das virgens que dançam para perto do local de treinamento dos guerreiros, e as coisas acontecerão naturalmente.

Ele soltou uma risada.

— Tem razão.

Entraram na floresta de pinheiros e, após alguma procura, Hades encontrou uma pequena trilha. Seguiram por ela até cruzar um riacho que borbulhava, derramando-se sobre rochas lisas.

Hades deixou o caminho, então, e conduziu Lina córrego abaixo. Em seguida contornou uma curva onde a água se reunia em uma pequena lagoa de fundo arenoso, antes de seguir seu curso, jorrando ruidosamente por sobre um lado da margem rochosa.

— Para você, minha deusa, apenas o melhor em bebida e comida... — disse com um sorriso travesso.

— Vá brincando — ela respondeu, apressada em se agachar na borda da piscina natural. — Aquela dança me deixou tão sedenta que, para mim, no momento, água é muito melhor do que ambrosia!

Lina juntou as mãos para beber o líquido claro. Estava tão frio que fez seus dentes doerem.

Suspirou, feliz, e engoliu outro punhado.

Uma vez satisfeita, chutou para longe as chinelas de couro macio e deixou as pernas balançar dentro da água gelada.

Hades se reclinou a seu lado, encostando-se em um tronco caído. O vento mudou ao soprar as árvores acima deles, envolvendo-os numa nuvem de pinho e seiva. O céu místico do Submundo lançava um brilho opaco sobre tudo.

Lentes cor-de-rosa , Lina pensou, sonhadora.

— Deméter me disse que o Submundo era um lugar mágico, mas eu nunca acreditei que detinha tanta beleza — confessou. — Se os deuses realmente soubessem como é maravilhoso aqui embaixo, você teria uma porção de visitas.

Hades encolheu os ombros, parecendo incomodado.

Lina o estudou e decidiu não pressioná-lo mais.

Lembrou-se de suas palavras na noite anterior: ele queria mais do que apenas sexo dela. Ela sabia disso, mas, para que houvesse mais do que isso entre eles, precisariam conversar muito.

O problema era que estava velha demais para perder tempo com conversas adolescentes, cheias de silêncios e dúvidas não esclarecidas. Era uma mulher adulta e precisava dizer o que lhe ia na mente.

— Se não queria visitantes, por que construiu um palácio enorme, com todos aqueles quartos vazios à espera de ser preenchidos?

Hades considerou a questão. O quanto deveria revelar a Perséfone?

Não pretendia contar que nunca se envolvera com uma deusa, nem sexualmente nem de outra forma. Tampouco que tinha passado uma eternidade ansiando por algo mais do que a frivolidade que satisfazia a maioria dos imortais.

Lembrou-se da última vez em que havia visitado o Monte Olimpo. Afrodite o provocara sem nenhum pudor, e ele não correspondera. Mais tarde, ele a flagrara às gargalhadas com Atena, enquanto as duas deusas concluíam que parte de seu corpo devia estar tão morta quanto o restante de seu reino...

Pensar na maldade das palavras ainda lhe provocava uma onda de raiva. Seu corpo não se encontrava morto. Estava simplesmente ligado à sua alma, e esta exigia mais do que as atenções de uma deusa egoísta.

O que ele poderia dizer que não faria Perséfone fugir dele?

Olhou para ela, vendo-a aguardar, ansiosa, por uma resposta.

Precisava ser o mais honesto possível. Não podia mentir nem dissimular. Uma relação duradoura não podia ser baseada em falsidades.

Deu um longo suspiro.

— Às vezes me pergunto por que eu o construí. Talvez estivesse esperando que algum dia aprenderia a superar as minhas... — tentou encontrar a palavra certa — ... diferenças.

— Diferenças? O que quer dizer?

— Sempre tive dificuldades em interagir com outros imortais — ele confessou. — Deve saber que têm medo de mim porque sou o senhor dos Mortos.

Lina começou a negar, mas, então, lembrou-se da expressão de Deméter quando ela falara de Hades; da maneira como o descartara como um deus sem importância e desinteressante.

A lembrança a deixou, de repente, com muita raiva.

— Eles apenas não sabem como você é na verdade.

— E como eu sou, na verdade, Perséfone?

Lina sorriu para ele e disse exatamente o que pensava:

— Que é interessante, divertido, sexy e poderoso.

Hades a fitou por um momento, depois balançou a cabeça.

— Você é mesmo uma caixinha de surpresas.

— E isso é bom ou ruim?

— É milagrosamente bom.

Lina suspirou. Aquele era um caso perdido. Não conseguia resistir a Hades, nem queria.

— Fico feliz por isso.

— Você não é como os outros imortais — ele continuou, rouco. — Sabe como eles são... Vivem cheios de si, sempre se esforçando para superar um ao outro e nunca satisfeitos com o que têm. — Ele se inclinou para a frente e tocou-lhe o rosto com a ponta dos dedos. — Você é sincera e honesta, o que uma verdadeira deusa deve ser.

Sincera e honesta? Uma verdadeira deusa?

Lina quis que o chão se abrisse para sumir dentro dele. Ela não era uma coisa nem outra.

— Eu... Você... — balbuciou, sem saber o que dizer.

Hades não lhe deu chance de organizar os pensamentos. Inclinou-se e a puxou para os braços.

A boca de Perséfone continuava fria depois de ter bebido da fonte de água, e ele quis se afogar nela. Mergulhou na maciez dos lábios carnudos. Ah, se a tivesse conhecido antes! Como podia ter passado tanto tempo sem ela?

A deusa passou os braços em torno dele e pressionou os seios contra seu peito. Hades gemeu. Seu desejo por ela era palpitante e devastador.

De repente, ela estremeceu, gritou, e, jogando água para todos os lados, puxou as longas pernas nuas para fora da pequena piscina natural.

Pondo-se de pé em um salto, Lina correu para trás do deus, querendo que ele ficasse entre ela e a borda da água.

— Alguma coisa encostou em mim! — Sua voz tremeu quando lembranças das cobras d’água e tartarugas mordedoras de Oklahoma brotaram em sua mente.

Hades afagou a mão com que ela segurava seu ombro, tentando ordenar os pensamentos. Ainda podia sentir a pressão de seus seios contra o couro macio que lhe cobria o peito, e seu corpo ainda crescia com o desejo.

— Perséfone, nada em Elísia a machucaria.

— Ali! — Lina ficou com vergonha por a palavra ter saído num grito, mas apontou para um vulto escuro que passava sob a água. — Há alguma coisa ali...

Com um suspiro, Hades se levantou e cobriu os poucos metros até a margem. Agachou-se e olhou para dentro da água clara.

Todos os sentidos de Lina se puseram em alerta.

— Tenha cuidado! — pediu, preocupada. — Pode ser uma cobra.

Hades lançou-lhe um olhar confuso por sobre o ombro.

— Por que tem medo de cobras?

Lina torceu uma mecha grossa de cabelo em torno do dedo.

Cobras estão intimamente relacionadas a Deméter. Não deve temê-las! , sua voz interna a alertou.

— Eu sei que é bobagem, mas nunca gostei delas — disse, perturbada.

A testa do deus se franziu, contudo um respingar na piscina natural chamou sua atenção.

Lina se encolheu, não querendo ver o réptil liso e asqueroso.

Quando Hades tornou a fitá-la, um sorriso brotou em seus lábios.

— Não pode ter aversão a esta criatura...

— Também não gosto de tartarugas! — Lina acrescentou depressa, desviando o olhar da forma escura que tinha acabado de assomar à superfície. — Principalmente de tartarugas mordedoras!

Hades riu e fez um sinal para que ela se juntasse a ele.

— Venha... Você gosta de animais.

Lina não cedeu.

— Gosto de animais. De mamíferos, aves, até de peixes. Mas odeio répteis. Eu sei que soa mesquinho, mas...

Um barulho estranho, como um latido, veio da água, e Lina olhou por cima do ombro de Hades, avistando uma criatura que flutuava de costas.

Quase engasgou.

— Mas não é uma cobra!

A lontra ladrou para ela novamente, jogando água com suas adoráveis patas com membranas.

Lina correu para se juntar a Hades e se agachou a seu lado, apoiando-se nele.

— É a coisa mais lindinha que eu já vi!

— Não diga isso ao meu cavalo — ele aconselhou. — Órion acredita que é o seu favorito.

Lina o empurrou de leve com o ombro antes de se aproximar da margem para acariciar a barriga da lontra.

— Órion é o meu cavalo favorito. Este mocinho pode ser a minha lontra favorita, ora.

Ao seu toque, o animal entrou em um frenesi de ganidos e fungados, debatendo-se tanto que a água espirrou para todos os lados antes que ele nadasse até a borda e em seguida desaparecesse pela pequena cachoeira abaixo.

— Eu não queria assustá-lo!

Hades sorriu diante da expressão decepcionada da deusa e enxugou as gotas de água de seu rosto.

— Você não o assustou, meu anjo. As lontras de Elísia são conhecidas por sua timidez. Aliás, eu nunca tinha visto uma de tão perto antes. E certamente nunca as toquei.

Lina procurou pela doce criatura, tristonha.

— Não pode fazê-la voltar? Afinal é um deus...

Ele riu.

— Como um deus sábio, sei quando é melhor não mexer com a ordem natural das coisas. Sem dizer que teria mais sorte do que eu em domar esse bicho... É você a encantadora de animais, não eu.

— Não sou encantadora de nada — protestou Lina. — Eu apenas gosto dos bichos, e eles, de mim.

— Dos mamíferos — Hades lembrou, afastando um longo fio de cabelo da face perfeita.

Lina inclinou a cabeça de modo a lhe acariciar a mão.

— Então talvez eu seja o único que você encantou, sua feiticeira. — Ele esfregou o polegar no lábio carnudo.

— Eu não gostaria de encantar nenhum outro — Lina se ouviu dizendo, enquanto se inclinava para um beijo.

Quando algo a cutucou nas costas, ela não o empurrou, surpresa, tampouco gritou. Simplesmente levantou a mão e acariciou o focinho de Órion.

— Se algum desinformado acredita que o Submundo é o lugar perfeito para encontrar paz e tranquilidade, está errado! — Hades fechou a cara para o garanhão.

Órion bufou e jogou a cabeça, então se aninhou junto a Lina novamente, fazendo-a rir com a respiração quente em seu pescoço.

Ela segurou um punhado da crina sedosa, e Órion levantou a cabeça, pondo-a em pé.

Lina olhou para o deus que ainda fulminava o cavalo com o olhar. Em seguida se abaixou, pegou-o pela mão e o puxou até que ele se levantasse.

— Gostaria de ver mais de Elísia? — indagou Hades.

Ela se ergueu na ponta dos pés e roçou o rosto moreno com um beijo.

— Claro que eu gostaria de conhecer melhor o seu reino.

As palavras trouxeram a Hades uma onda de felicidade, e ele se inclinou para beijá-la rápida e possessivamente antes de erguê-la para a sela de Órion.


Capítulo 20

O dia passou, delicioso. Elísia era uma aventura sem fim, onde beleza e harmonia se fundiam à perfeição.

E, por onde eles passavam, as almas dos mortos respondiam à presença de Perséfone. Lina se viu alçada para além das palavras diante da felicidade que viu nos rostos dos espíritos, conforme se espalhou pelo Submundo que havia uma deusa entre eles.

Hades ficou a seu lado, muitas vezes conduzindo Dorado para mais perto a fim de poder tocá-la.

A reação dos espíritos à visita de Perséfone o encheu de prazer. Os mortos o respeitavam e temiam. Alguns lhe eram imensamente leais. Contudo, ele nunca tinha evocado neles tanto amor e alegria como ela.

Mas não sentia inveja do efeito que a deusa causava em seu reino. Ele o compreendia. Como não poderia? Perséfone despertara tais sentimentos até mesmo nele.

Mais uma vez, Hades se perguntou como existira por tanto tempo sem ela. Não imaginava o que aconteceria a ele ou a seus domínios se Perséfone decidisse ir embora.

A luz do dia havia minguado, e o céu começava a brilhar com as almas das Híades quando, finalmente, se aproximaram da base traseira do palácio. Hades cutucou Dorado, fazendo-o se aproximar de Órion, e estendeu a mão para segurar a da deusa.

Ela sorriu. A mão de Hades era quente e forte, e Lina ficou feliz por enredar os dedos nos dele, enquanto devaneava acerca das maravilhas do dia e entravam na familiar floresta de pinheiros.

Ao chegarem ao n ível inferior dos jardins, Hades fez Dorado parar, obrigando Órion a fazer o mesmo.

— Há uma última coisa que eu gostaria de mostrar a você esta noite, se estiver disposta.

— É claro — ela concordou de pronto.

— Mas temos que andar — ele falou num sussurro.

Lina também fez cair o tom de voz a um nível conspirador.

— O que vamos fazer com? — Apontou os dois garanhões, que mantinham as orelhas inclinadas para trás, obviamente, ouvindo a conversa.

— Deixe-os comigo.

Hades saltou de Dorado com agilidade e, em seguida, ergueu os braços para ajudá-la a desmontar. Ela deslizou de encontro a ele, amando a erótica sensação de ter um cavalo musculoso a um lado do corpo e um deus quente e rijo do outro.

Hades se inclinou e mordiscou-lhe o lóbulo sensível da orelha.

— Acho que é hora de nos livrarmos dos nossos ­acompanhantes. — Endireitou o corpo e gritou o comando para que os garanhões voltassem ao estábulo com uma voz tão enérgica que as folhas das árvores ao redor chacoalharam em resposta.

Órion e Dorado reagiram de imediato, disparando para os terrenos do palácio.

Lina ergueu as sobrancelhas.

— Estou impressionada. Não pensei que eles fossem obedecer tão rápido.

O deus torceu os lábios.

— Ficaram apenas surpresos. Eu raramente ordeno que façam alguma coisa. Na verdade, eles são bastante mimados.

— Então vão ficar com raiva de você depois.

— Provavelmente. — Hades riu e uniu os dedos aos dela. — O que eu quero mostrar fica por aqui... — Conduziu-a por um caminho que contornava a borda dos jardins, e eles caminharam ao lado de fileiras de cercas vivas, aparadas em cones. Flores dormiam junto às sebes, e Lina tomou o cuidado de não passar as mãos perto dos botões fechados.

Quando Hades deixou a vereda e entrou na linha de ciprestes que cercava aquele lado dos vergéis, ela não conseguiu conter sua curiosidade:

— Aonde estamos indo?

— A um campo não muito longe daqui. — Ele apontou adiante.

Tudo o que ela podia ver eram as árvores enormes, porém eles continuavam perto o suficiente do palácio para que o terreno ainda estivesse bem cuidado. O solo sob as árvores continuava forrado por grama e livre de silvas e entulho.

A noite na floresta encontrava-se vazia da melodia dos pássaros, e Lina começou a se sentir intimidada pelo enorme silêncio.

— O que há neste campo? — indagou num sussurro.

Hades apertou a mão dela.

— Não precisa mais falar baixo.

— Ah. — Ela ficou constrangida. Levantando a voz para um nível normal, repetiu a pergunta: — O que há neste campo, afinal?

— Pirilampos.

— Pirilampos?

O deus anuiu.

A última coisa que Hades tinha para lhe mostrar sobre os mistérios do Submundo eram vaga-lumes? Ela já vira vaga-lumes antes. Muitos deles.

Lendo sua expressão, ele sorriu, travesso.

— Aposto que vai achar esses pirilampos diferentes.

Lina deu de ombros e manteve a boca fechada. Perséfone talvez considerasse um campo de vaga-lumes único, mas seria necessário algo mais do que insetos de verão para surpreender uma garota de Oklahoma. Principalmente depois das maravilhas que ela já vira naquele dia.

— Ah, aqui está a quebra nas árvores. Cuidado com onde pisa... Precisamos atravessar esta pequena vala primeiro.

Lina se concentrou em atravessar o pequeno canal e não ergueu a cabeça até estar com os pés plantados no tal campo.

Quando o fez, seus olhos se arregalaram. O prado encontrava-se repleto de luz, mas não com o amarelo-claro dos vagalumes que ela vivia perseguindo na infância. Aqueles eram da cor do luar e...

— Narcisos! — exclamou, ofegante. — Misericordioso Madre di Dio! — Eles estão fazendo narcisos!

A risada suave de Hades revelou sua satisfação.

— Poucos testemunharam esse tipo de coisa... E então, deusa da Primavera, o que achou?

Lina olhou para o campo. Milhares de caprichosos vaga-lumes trabalhavam furiosamente, girando em torno das flores. Saindo de um tufo de folhagem verde, um grupo de minúsculos insetos formava uma espécie de enxame, depois começava a voar em uma espiral brilhante, dando voltas e voltas. De repente, como cometas em miniatura, sua cauda incandescente ganhava forma e massa, deixando para trás um narciso perfeito em plena floração.

— É incrível! É dessa forma que todos os narcisos são feitos?

— Todos os que existem no Submundo. Às vezes alguns desses grupos de vaga-lumes ficam confusos, se aproximam demais da abertura para a terra dos mortais e produzem uma flor no Mundo Superior. Mas eu tento evitar isso. Como deve ter notado, a fragrância dos meus narcisos é diferente daquela das flores do Mundo dos Vivos. Os mortais a consideram demasiado inebriante.

Lina se lembrou da noite em que havia se curvado para respirar o perfume do narciso incomum sob o carvalho.

— Imagino como isso deve causar problemas — disse baixinho.

Quando o som de sua voz penetrou a pequena consciência dos insetos, vários dos grupos mais próximos de vaga-lumes fizeram uma pausa em sua produção. Como se todos eles houvessem tido a mesma ideia, voaram até ela em uma nuvem brilhante e pairaram à sua frente, girando em círculos ofuscantes e fazendo um barulho estranho que fez Lina pensar em grilos sopranos.

— O que eles querem? — perguntou a Hades pelo canto da boca.

O deus inclinou a cabeça em sua direção, sorrindo.

— Querem que você os ajude a produzir as flores.

— Verdade? — ela indagou, sem saber o que fazer.

— Verdade. — Hades soltou sua mão. — Vá. Eu espero aqui.

Ela precisava fazer aquilo. Afinal, era a deusa da Primavera, e produzir flores, definitivamente, deveria fazer parte de seu trabalho.

Enquanto permaneceu parada no lugar, pensando no que fazer, Lina percebeu que queria muito se juntar aos vaga-lumes.

Basta tocar as flores, desejar que elas floresçam, e elas vão desabrochar, disse sua voz interior.

Respirando fundo, ela entrou no campo, e a relva se agitou de encontro às suas panturrilhas. Os pirilampos dançavam com alegria, formando estonteantes círculos ao seu redor.

Lina se aproximou de um aglomerado de verde que não era grama, tampouco flor. Hesitante, acariciou as folhas largas e achatadas com a ponta dos dedos, pensando o quanto gostaria de vê-las florescer.

Em uma explosão de luzes brilhantes que a fez se lembrar de fogos de artifício, uma flor branca e reluzente brotou do centro da planta.

Ela se abaixou e inalou sua fragrância única, rindo alto. Havia criado aquela maravilha! Uma alegria típica da juventude a invadiu. Sem pensar muito, seguiu os comandos do próprio corpo e, com um pulinho e uma pirueta graciosa, partiu para o amontoado seguinte de vegetação. Enquanto ela dançava, dando vida a flor após flor, os vaga-lumes a cercavam numa espécie de halo.

Hades permaneceu à beira do prado, enchendo os olhos com a bela visão. Como uma criatura podia ser tão linda?

Sentiu um desejo atroz de tê-la, e, por meio desse ato, finalmente fazer Perséfone sua.

E com a mesma intensidade que havia testemunhado tantas vezes nos olhos de almas gêmeas.

Perséfone girava e dançava, chamando os narcisos para a vida. Pois então não fizera o mesmo com ele?

O senhor dos Mortos, o deus que se dizia imune àquele tipo de sentimento, tinha caído de amores pela deusa da Primavera. Não importava o quanto pudesse parecer ridículo ou irônico. Havia acontecido.

E ele não queria que acabasse.

A decisão estava tomada. Desejava mais do que apenas observar fantasmas do amor... queria experimentá-lo por si mesmo.

Esfregou o peito instantaneamente, antecipando o velho e dolorido ardor, contudo este não veio. Embora Perséfone fizesse seu corpo doer e seu sangue latejar nas veias, não despertava sua revolta.

Parou de mover a mão e tentou se lembrar da última vez em que sentira a queimação no peito.

Piscou, surpreso. Fora na noite em que ele a ofendera e, em seguida, a abandonara à mesa de jantar. Nunca mais o sentira desde então.

Sorriu. Perséfone não era apenas o sopro da primavera. Era também um bálsamo para sua alma cansada. Talvez sua solidão tivesse realmente chegado ao fim.

Lina percebeu o olhar de Hades e, enquanto outro narciso brotava em flor, olhou para o ponto onde ele a aguardava. O deus continuava em pé à margem do prado, alto, sombrio e silencioso, assistindo-a com uma intensidade que fez seu sangue correr mais depressa.

Por que ele apenas observava?

De repente, ela desejou mais do que aquilo e um pensamento maravilhoso se formou em sua mente. Vinha brincando com virgens e ninfas desde que chegara... Agora era a vez de Hades.

Sorrindo, feliz, dançou até ele, deixando um rastro de brilhantes vaga-lumes pelo caminho, e agarrou sua mão.

— Vamos! Faça flores comigo!

Uma sombra de tristeza invadiu os olhos do deus.

— Sou o deus dos Mortos. Não posso criar vida.

— Se eu ajudá-lo, pode! — Lina afirmou com mais confiança do que sentia e puxou sua mão.

— Não, eu... — Hades suspirou. — Maldição, Perséfone, não consigo lhe negar nada!

E, relutante, permitiu que ela o arrastasse para a campina.

Cercados pela nuvem ofuscante de pirilampos, eles rumaram para uma das moitas. Lina o fez ficar atrás dela, então levou as mãos para trás, ao longo dos braços fortes, até juntar as mãos com as dele e fazer com que Hades a abraçasse. Abriu bem os dedos, como se tivesse acabado de arremessar uma bola.

— Entrelace os dedos nos meus — instruiu, a proximidade com ele tornando sua voz mais rouca. — Agora pense o quanto gostaria de ver esse narciso desabrochando.

Completamente vencido, Hades deixou que ela guiasse suas mãos. Desejava verdadeiramente produzir uma flor.

No entanto, desejava ainda mais poder fazer aquela deusa sua... e que ela permanecesse a seu lado para aliviar sua solidão por toda a eternidade.

Seus dedos começaram a formigar conforme a magia de Perséfone se fundiu com a dele e, perplexo, Hades viu um narciso cintilante brotar sob as mãos unidas.

Lina gritou de alegria e se virou, o rosto iluminado.

— Conseguimos!

Hades a envolveu nos braços e fitou os olhos brilhantes à sua frente.

— Conseguimos juntos, Perséfone. Eu não poderia ter feito isso sem a deusa da Primavera... Eu gostaria de encontrar palavras para expressar o prazer que sinto em partilhar meu mundo com você.

Sua voz soou grave, sua expressão era séria, e Lina se sentiu completamente perdida nos olhos escuros e profundos. Hades queria mais do que um simples beijo ou caso. Ela sabia que deveria inventar alguma brincadeira e dançar para longe dele, mas não teve forças para isso. Ansiava por estar com o deus tanto quanto este ansiava por estar com ela.

Beijou-o, pressionando o corpo no dele.

De repente, Hades interrompeu o beijo. Descansando a testa na dela, concentrou-se em controlar a respiração acelerada. Não a amaria no meio da floresta outra vez. Perséfone merecia mais do que isso. Ela merecia tudo o que ele poderia lhe dar de melhor.

— É tarde. Precisamos voltar para o palácio — disse, beijando-a na testa suavemente.

Lina o fitou, decepcionada.

— Eu não estou cansada.

— Nem eu.

— Não quero que este dia tenha fim, Hades.

— Não precisa ter. — Ele respirou fundo. — Ainda não conheceu meus aposentos... Gostaria de fazer isso?

Lina percebeu como fora difícil para Hades perguntar e sentiu o coração batendo forte. Um coração que não era verdadeiramente seu, dentro de um corpo que também não lhe pertencia...

Mas a alma era sua, disse a si mesma. Não era apenas seu corpo que o desejava. Ela amava a doçura e o senso de humor de Hades. Adorava o som de sua risada. Amava o poder e a paixão do deus, e também o cuidado e a sabedoria que ele demonstrava no trato com os espíritos em seu reino.

Tocou-lhe o rosto e admitiu a verdade para si mesma: ela o amava.

— Sim. Eu gostaria muito.

A alegria iluminou o rosto moreno, sendo logo seguida pelo desejo, e Hades se inclinou para beijá-la novamente, desta vez com mais ímpeto.

Em seguida, relutante, ele a soltou, pegou sua mão, e tomou com ela o caminho de volta.

Lina ouviu um zumbido estridente às sua costas, e ambos se viraram. Os vaga-lumes pairavam em um enorme aglomerado à margem do campo.

O deus riu.

— Perséfone voltará. Não está deixando o Submundo.

O frenético zunido diminuiu com as palavras.

— Eu adoraria voltar e fazer mais flores com vocês — assegurou Lina, e o zumbido mudou para uma alegre chilrear.

Sorrindo, ela e Hades continuaram seu caminho.

— É bom que eles gostem tanto de mim.

— Todo o meu reino a adora, Perséfone — ele afirmou.

Lina o fitou de soslaio.

— Apenas o se u reino?

O lábios do deus se curvaram num sorriso.

— Não, não apenas o meu reino.

Ela apertou sua mão.

— Ainda bem.

Assim que deixaram o bosque e entraram no jardim, Lina ouviu o choro.

— Alguém está chorando! — exclamou e, espreitando na penumbra, tentou descobrir quem era.

— Ali — Hades apontou à sua frente, na direção da estrada que passava em frente ao palácio e conduzia a Elísia.

Lina mal conseguiu discernir a silhueta iluminada à margem da estrada.

— É melhor vermos o que está acontecendo — sugeriu, buscando uma confirmação no rosto do deus.

— Sim. É estranho que um espírito chore em Elísia — ele comentou conforme rumavam naquela direção. — Os mortos podem sentir falta da família e de seus entes queridos da Terra dos Vivos, mas, quando são transportados pelo Estige e entram em Elísia, suas almas se enchem de alegria, ou ao menos de paz. A habilidade para deixar de sentir saudades da vida, ou ao menos a capacidade de compreender que todas as despedidas são apenas temporárias, incorpora-se ao espírito mortal. Os que ganharam a eternidade em Elísia sempre ficam contentes.

À medida que se aproximavam do espírito, o brilho tomou forma. Lina pôde ver, assim, que se tratava de uma mulher muito jovem e gorda, com os cabelos longos e escuros presos em um coque. Estava sentada à beira da estrada, a face nas mãos, chorando tão copiosamente que nem mesmo percebeu sua aproximação.

Num impulso, ela fez um sinal para que Hades ficasse para trás, e se pôs ao lado da estranha. Pouco antes de lhe tocar o om bro, percebeu que o corpo do espírito parecia muito mais denso. Se a mulher não tivesse a luminescência pálida dos mortos, ela teria acreditado que estava viva e que, de alguma forma, se perdera no Submundo.

— Querida, o que foi? — perguntou suavemente.

A alma deu um pulo e levantou o rosto molhado de lágrimas, fitando Lina com os olhos castanhos cheios de desespero. Reconheceu a deusa imediatamente e começou a se curvar, mas então viu Hades e levou a mão à boca. Mudou a direção da mesura e acabou indo para trás e para frente, sem saber a qual dos imortais prestar sua reverência.

— Eu não quis perturbar os deuses! — desculpou-se, enxugando os olhos. Pondo-se em pé, desajeitada, começou a recuar às pressas. — Por favor, perdoem-me!

— Não, eu... — Lina ergueu a mão, tentando apaziguá-la.

A mulher estacou, nervosa, olhando para sua mão estendida tal qual um rato assustado.

Lina suspirou e modulou a voz para o tom que costumava usar com os animais.

— Não vá. Você não nos perturbou. Hades e eu fomos dar um passeio e ouvimos seu pranto. Estávamos preocupados, não com raiva.

Ela pareceu relaxar um pouco.

— Qual é o seu nome? — O deus pediu no tom agradável e paternal que usara com Eurídice.

A mulher olhou para ele, ansiosa.

— Alcestes.

— Diga-nos por que estava chorando, Alcestes — Lina pediu com delicadeza.

Ela olhou para os pés.

— Estou me sentindo sozinha. Sinto falta do meu marido e da minha família. — Pressionou as costas da mão contra a boca, tentando inutilmente reprimir um soluço.

O olhar preocupado de Lina encontrou o de Hades, e ela notou que ele também parecia surpreso com as palavras do espírito.

Então o viu inclinar a cabeça para o lado e seu rosto assumiu uma expressão de aten ção. Em seguida, seus olhos pareceram escurecer, e ele apertou os lábios antes de falar com a alma.

— Não era sua hora, Alcestes — disse, a voz marcada pelo pesar.

O espírito deixou escapar outro soluço.

— Não, não era... Mas eu tinha de vir.

Hades franziu o cenho.

— Não precisava vir. A escolha foi sua.

Alcestes levantou o rosto molhado.

— Não entende? Ele perguntou aos outros e ninguém se dispôs a fazê-lo. Por isso eu tive de vir.

Totalmente confusa, Lina abanou a cabeça.

— Esperem... Agora eu é que não estou entendendo. Do que estão falando? Houve algum tipo de erro?

— Alcestes, diga a Perséfone por que entrou no Submundo — ordenou Hades.

A alma respirou fundo e enxugou o rosto com a manga da veste fúnebre.

— Fiquei casada por pouco tempo... O nome do meu marido é Admeto. — A face úmida da mulher se iluminou, e ela quase sorriu. — Ontem de madrugada os argumentadores profetizaram que Admeto morreria antes do pôr do sol. Meu marido imediatamente pediu clemência a Apolo, e o deus da Luz concordou. Na realidade, a profecia era verdadeira. As Parcas tinham terminado de tecer a vida de Admeto e, ao anoitecer, sua vida mortal seria extinta. Mas meu marido sempre foi um dos favoritos do deus da Luz, e Apolo ouvira o choro de Admeto. No fim, concedeu a ele um novo destino: ele seria poupado se alguém concordasse em morrer em seu lugar. Primeiro, meu marido foi procurar seus pais, que são velhos e não andam muito bem, mas eles se recusaram. Então procurou os irmãos. Estes também não se propuseram a morrer em seu lugar. Ele pediu aos amigos mais íntimos, assegurando que cuidaria bem de suas famílias, mas a resposta foi sempre a mesma. Ninguém estava disposto a morrer por ele. Desesperado, Admeto voltou para casa a fim de esperar por seu destino. — Alcestes fez uma pausa, procurando o olhar de Lina. — Eu não podia deixá-lo morrer.

Hades cerrou a mandíbula, mas, quando falou, sua voz não traiu nenhuma raiva.

— E Admeto permitiu que morresse por ele.

O espírito virou os enormes olhos molhados para o deus.

— Ele chorou e rasgou suas vestes... Estava desesperado.

— Mas não o suficiente para detê-la — observou o senhor do Submundo.

— Precisa entender, eu não tinha escolha! Precisava tomar o lugar dele! — Alcestes começou a chorar outra vez.

— Por isso sente essa solidão e dor agora. Não era a sua hora. Sua roda da vida ainda está girando, e sua alma sabe disso. Por isso não consegue encontrar paz — Hades explicou, solene, como se um grande peso pressionasse as palavras.

— Isso não pode ficar assim — interveio Lina. — Olhe para ela... Alcestes nem tem o mesmo corpo do restante dos espíritos.

— Isso porque não é como o restante dos espíritos. Está deslocada, fora do destino que lhe foi previsto.

— Então precisa consertar isso — Lina decidiu com firmeza.

— Ela está aqui porque um deus interferiu na vida de um mortal; algo que acontece com muita frequência, por diversas razões egoístas. Eu não acredito em interferir na vida dos mortais.

— Mas ela faz par te do seu reino, agora. Não está se intrometendo. Só está cumprindo com o seu dever!

— Perséfone — Hades falou com os dentes cerrados —, não se lembra do que aconteceu da última vez em que decidiu enviar um espírito de volta para a Terra dos Vivos?

Lina se encolheu como se ele a tivesse esbofeteado.

— Aquilo foi diferente. Não acredito que possa ser tão cruel, Hades! — Sua voz soou fria como gelo.

— Oh, por favor! — Alcestes se atirou de joelhos entre os dois imortais. — Eu não queria causar discórdia entre o rei e a rainha do Submundo!

— Do que chamou Perséfone? — Hades indagou, tenso. — Que título deu a ela?

Tremendo, a alma deslocada respondeu ao seu deus:

— Eu a chamei de rainha do Submundo, mas não fui eu quem deu esse título a ela, senhor. Simplesmente repeti o que falam de ­Perséfone no Mundo Superior. — Alcestes conseguiu sorrir para Lina. — É bem sabido que ela agora está reinando a seu lado.

Lina ficou sem palavras. Rainha do Submundo? As pessoas estavam mesmo dizendo aquilo dela?

Olhou para Hades, e o deus sombrio capturou sua expressão. Seus olhos brilharam, e seu rosto se iluminou com alegria.

Quando falou, Lina não conseguiu desviar o olhar, quase se esquecendo de respirar.

— Faça seu julgamento, rainha do Submundo. Eu me curvarei à sua vontade — disse e, num gesto quase imperceptível, inclinou a cabeça para ela.

Lina se obrigou a tirar os olhos dele e sorriu, trêmula, para Alcestes.

— Minha decisão é que retorne ao mundo dos mortais e a seu marido para terminar sua sina. E diga a Admeto que ele pode seguir o nov o destino que as Parcas teceram para ele.

Com um grito de felicidade, Alcestes se ergueu e pegou a mão de Lina, beijando-a e segurando-a junto ao rosto encharcado de lágrimas. Sorriu para ela, os olhos marejados.

— Oh, obrigada, rainha do Submundo! Meus filhos, e os filhos dos meus filhos, haverão de fazer sacrifícios pela senhora a cada primavera, até o fim dos tempos!

— É muita gentileza sua, mas saiba que eu prefiro um pouco de vinho e mel espalhados pelo chão. Não sou muito afeita a sacrifícios sangrentos — Lina declarou rapidamente.

Alcestes fez uma reverência profunda.

— Eu sempre me lembrarei de sua bondade, minha deusa!


Capítulo 21

Hades ficou muito quieto após Alcestes desaparecer pela estrada que a devolveria à sua vida mortal, e, vez ou outra, Lina o observava com discrição. Ele segurava sua mão, contudo seu rosto era inescrutável.

Definitivamente, ele a estava deixando muito nervosa. Ela ainda iria para seus aposentos? Teria interpretado mal a reação do deus ante o fato de ser ela chamada de rainha do Submundo? A felicidade que ela pensara ter visto poderia ser outro tipo de emoção?

Mas, se fosse assim, por que ele teria lhe permitido dar uma sentença com a qual não concordava?

Lina suspirou. Os pirilampos pareciam ter invadido sua mente.

Entraram no palácio pelo pátio dos fundos, então Hades rumou da esquerda, o lado oposto ao quarto dela. Passaram pela entrada da sala de jantar e, por fim, ele parou em frente a uma enorme porta em que tinha sido esculpida a imagem de Órion em pé, sobre as patas traseiras, e a do elmo.

Nervosa, Lina apontou para o entalhe.

— É uma ótima reprodução de Órion. Ele parece muito feroz.

Hades bufou.

— Pois eu acho que agora será necessária uma nova versão...
A que o mostre curvando-se à sua senhora.

— Ora... — Aliviada com a brincadeira, ela o cutucou com o cotovelo no braço. — Ele ainda é considerado um dos seus temíveis cavalos. Eurídice vive para evitá-lo.

O deus balançou a cabeça.

— Tenho medo de que sua reputação de ser um animal solitária e feroz tenha sido arruinada para sempre. — Ele se virou para ela e segurou seu queixo, erguendo-lhe a face. — Mas ele não se importa... O ganho excede a perda. — Beijou-a delicadamente, murmurando contra seus lábios: — Vai comigo para o meu quarto?

— Sim — Lina respondeu com um frio na boca do estômago.

Hades abriu a gigantesca porta, e ela finalmente entrou no mundo particular do deus do Submundo. A primeira coisa que notou foi a enorme cama no centro do aposento, encimada por um dossel que pendia em luxuosas dobras de seda pura. A própria cama se encontrava coberta com pesados lençóis brancos, fazendo o conjunto parecer uma nuvem que havia perdido seu lugar no céu. Era suntuosa, sexy... e muito, muito convidativa.

Quando percebeu que estava olhando o móvel e deixando a imaginação vagar, Lina sentiu o rosto arder. Desviou o olhar, e teve a atenção atraída para o impressionante par de lustres que pendia do teto abobadado. Pareciam feitos de vidro preto, e centenas de velas bruxuleavam, cintilando em sua base incomum.

— Seus lustres são sempre tão lindos! Estes são feitos de vidro preto?

— De obsidiana — explicou Hades. Pressionando-lhe a base das costas intimamente, ele a conduziu pelo quarto. — Quando ela é cortada e polida, assemelha-se ao vidro.

Lina sorriu.

— E quais são suas caracter ísticas? Devem ser muito especiais se a escolheu para os seus aposentos.

— Os poderes da obsidiana são a proteção, a segurança, a divinação e a paz. — Ele olhou para a luz piscante. — E eu também a considero bastante tranquilizadora.

— Sem dizer que combina com tudo aqui. — Lina apontou para o restante do vasto cômodo.

As cores predominantes eram o preto, o branco e o prata. Em vez de tornarem o quarto austero e frio, os contrastes dramáticos tinham um efeito intrigante... como se o deus tivesse encontrado o exato equilíbrio entre a luz e a escuridão.

— Gostaria de beber algo? — Hades indagou, um pouco tenso, perguntando-se se ela podia ouvir as batidas de seu coração.

Quando Perséfone assentiu, ele caminhou, apressado, até uma mesa baixa, em meio a duas poltronas de cetim branco, e serviu duas taças de uma garrafa que já havia sido aberta e colocada em um recipiente com gelo.

Lina sorriu em agradecimento e pegou a taça de cristal cheia de um líquido dourado. Seu aroma a fez sorrir.

— Ambrosia!

— Há rumores de que está apaixonada por essa bebida. — Os lábios de Hades também se curvaram num sorriso.

— Deveria haver rumores de que, às vezes, eu exagero na dose...

— Isso pode ser um segredo nosso. — Ele tornou a sorrir e ergueu a taça para ela. — Aos recomeços.

— Aos recomeços — Lina repetiu, tocando-a com a sua.

Enquanto bebiam, seus olhares se encontraram. Em seguida Hades colocou a taça de volta na mesa e, sem hesitar, ela fez o mesmo.

O deus sombrio respirou fundo, então percorreu o curto espaço entre eles e a tomou nos braços.

— Está me assustando, Perséfone. Não consigo respirar sem pensar em você...

Capturou-lhe os lábios em um beijo faminto, e eles se uniram, sedentos.

Tudo o que ela pôde pensar foi: Ah, obrigada! Finalmente!

O corpo rijo de Hades pulsou contra o dela, e o de Lina respondeu com um calor. Suas mãos percorreram o peito largo, encontrando, inquietas, a túnica de couro, e ela quis praguejar de tanta frustração. Não tinha ideia de como arrancar aquela coisa!

Enquanto os beijos profundos faziam fervilhar seu sangue, tateou a veste até encontrar amarras do couro nas laterais. Puxou-as, impaciente, soltando-as o bastante para poder deslizar as mãos para dentro da couraça e sentir os músculos rijos da cintura e do abdômen de seu amado.

Hades gemeu contra a boca carnuda, e suas mãos desceram para segurar a curva suave das nádegas de Perséfone, pressionando-a com mais firmeza contra ele. Uma onda de calor invadiu seu corpo quando ele a sentiu se movendo em resposta. Lina mordiscou seu lábio inferior, provocante, então se afastou apenas o suficiente para fitá-lo nos olhos.

— Leve-me para a cama — falou, meio sem fôlego.

Ele engoliu, tentando aliviar a secura na garganta, e acedeu. Conduziu-a até a enorme cama, repartiu a cortina de seda, mas não se juntou a ela de imediato. Recostada nos travesseiros, Perséfone era ainda mais estonteante. Diante de sua hesitação, a deusa sorriu para ele interrogativamente.

— Primeiro devo lhe dizer uma coisa. — Sua voz saiu carregada de emoção. — Eu nunca fiz isso antes.

— Nunca trouxe uma mulher para o seu quarto?

— Eu nunca trouxe uma imortal aqui. Mas não apenas isso.

Os olhos de Lina se arregalaram.

— Nunca fez amor?!

O riso de Hades soou forçado e nervoso.

— Eu fiz amor. Mas nunca com uma deusa.

Lina sentou-se, querendo desesperadamente revelar a Hades a ironia da situação. Ele estava nervoso pela mesma razão na qual ela sentia um bando de borboletas voejando no estômago.

— Para ser sincera, eu também não me deito com ninguém há um bom tempo. — Aproximou-se e tocou-lhe a mão. No mesmo momento, os dedos dele se entrelaçaram aos seus. — E juro: nenhum deus me fez sentir o que sinto por você.

Hades sentou-se a seu lado na cama, olhando suas mãos unidas.

— Quando Alcestes a chamou de rainha do Submundo, senti um orgulho indescritível só de pensar que outros acreditam que você me pertence, que poderia ser feliz reinando a meu lado. Não posso conceber algo que me traria mais alegria.

Lina deu um longo suspiro.

— Eu teria orgulho de ser chamada de rainha do Submundo, mas, não sei... — Vacilou, dividida entre a promessa que fizera a Deméter e a necessidade de dizer a verdade ao deus.

Ele a segurou pelo rosto.

— Já me basta saber que a ideia não lhe é repugnante. O tempo cuidará do resto.

Lina colocou as mãos sobre as dele.

— Como este seu reino maravilhoso poderia me causar repugnância? Eu o adoro! — disse com voz rouca.

O sorriso de Hades foi deslumbrante, e Lina se perguntou como era possível que os outros imortais não o vissem como ela.

De repente, ficou extremamente feliz por isso. Se soubessem, ele não seria seu. E seria como o restante deles.

Hades a beijou com suavidade, contudo Lina pôde sentir a tensão no corpo másculo através dos músculos rijos de seus braços. Quando falou, sua voz parecia ainda mais profunda:

— Mostre-me como lhe dar prazer. Só de pensar em você, um só vislumbre de sua pele, já faz meu sangue ferver... Mas sei que o desejo não é tão simples para as mulheres. — Embora tenso, ele conseguiu dar uma risada. — Mesmo com a minha limitada expe­riência, aprendi que as deusas são, de fato, muito mais complexas do que os deuses. Ensine-me como atiçar o seu desejo, Perséfone.

Lina sentiu a boca seca e passou a língua pelos lábios, arrepiando-se ao perceber que ele não deixara o gesto passar despercebido.

— Pode começar tirando a roupa — falou, meio sem fôlego.

Sem hesitação, Hades arrancou o quitão já solto, livrou-se da túnica curta e também da tanga de linho, igual à que usava na ferraria e que ela achara tão atraente. Uma vez livre das roupas, parou diante dela, totalmente nu.

E era magnífico. A pele lisa dourava-lhe os músculos, fazendo-o parecer ainda mais sombrio e exótico.

Céus! , ela nunca vira um homem tão perfeito!

Seus olhos viajaram pelo corpo musculoso, e sua respiração ficou presa na garganta. Hades se encontrava plenamente excitado, e uma onda inebriante de prazer a invadiu quando ela pensou que tinha um deus sob seu comando. Ficou parada por um momento, em seguida descansou as palmas das mãos no peito nu. Lentamente, ela as fez correr ao longo da pele lisa, amando sentir os músculos rijos e bem definidos do peito e dos braços de seu amor.

Quando suas mãos desceram mais, um tremor o percorreu.

— Algo de que todas as mulheres gostam é acreditar que seu toque é especial — Lina disse, rouca. — É bom saber que, mesmo que nossos corpos não tenham tanta força, um pequeno toque nosso pode fazer um homem estremecer e gemer de prazer... — Pegou a carne rija na mão e a acariciou sensualmente.

Um gemido intenso escapou da garganta de Hades, e Lina sorriu, sedutora.

— Estou machucando você?

— Não! — ele negou com voz abafada. — Embora eu acredite que possa me matar de prazer apenas com um toque... Basta pensar em você, vê-la, sentir seu cheiro, e fico excitado, dolorido, louco para amá-la!

As palavras tiveram o efeito de uma descarga elétrica no corpo de Lina, e ela o empurrou de leve para dar um puxão no laço que prendia sua própria túnica no ombro esquerdo. Contorceu-se, impa­ciente, até deixar os seios nus, e levou apenas um momento para soltar as amarras em seus quadris. Com um movimento sensual, fez o tecido deslizar por seu corpo, em seguida se jogou nos braços de Hades.

— Sua pele é tão quente! — falou entre beijos. — Eu amo senti-la de encontro a minha.

— E você me faz pegar fogo! — Hades sussurrou contra seus lábios enquanto explorava a curva de seus quadris eroticamente. De súbito, virou-se e se deitou na cama, puxando-a com ele. — Mostre-me mais, Perséfone... Ensine-me como fazê-la arder também!

Lina saiu de cima do corpo másculo, de modo que ficaram deitados de lado, de frente um para o outro. Ela mal sabia por onde começar. Já se sentia tão pronta que, por um momento, quase o fez subir nela.

Então respirou fundo e deteve o impulso. Hades não era como seu ex-marido ou qualquer outro dos seus desinteressados amantes. Desta vez seria diferente, pois Hades era diferente. Nele ela encontrara tudo o que uma mulher podia desejar: um homem que queria agradar de verdade e estava disposto a ouvir e aprender para que ela pudesse sentir prazer. Tudo o que precisava fazer, naquele momento, era mostrar o que desejava.

Mas isso era muito mais difícil do que ela havia imaginado. O que queria, afinal?

Fechou os olhos e tentou ordenar os pensamentos. Em toda a sua vida de adulta, sempre sonhara com alguém que gostasse dela o suficiente para se preocupar com seu prazer tanto quanto o seu próprio. Precisava ser honesta com Hades, bem como consigo mesma. Tinha que romper com as barreiras que seus antigos amantes a tinham feito erigir.

Estremeceu. Estava pronta.

Abriu os olhos e, bem de leve, tocou o ponto onde o próprio pescoço encontrava o ombro.

— Para mim, são as pequenas coisas que importam — falou com uma voz subitamente tímida. — Assim como ser beijada aqui...

Hades se apoiou em um cotovelo, então se inclinou para a curva delgada. Beijou-a e mordeu-a de leve, passando a língua pela área sensível.

— Eu também queria que você me acariciasse enquanto me beija... Deixe meu corpo se acostumar com o seu toque! — Lina pediu num sussurro.

Quando a respiração de Perséfone se aprofundou, Hades seguiu pela linha sedutora de seus ombros até os seios e os cobriu delicadamente com as mãos.

— Ah, sim... Aí também! — ela gemeu enquanto ele depositava minúsculos beijos nos montes arredondados.

— Sentirá prazer se eu a lamber e beijar aqui? —Tocou os mamilos túrgidos, a voz saindo rouca de desejo.

— Sim! — Lina mergulhou as mãos em seus cabelos.

Enquanto a provocava e sugava, Hades correu a mão mais para baixo. Primeiro afagou-lhe o comprimento da perna, moldando os músculos curvilíneos. Depois, lembrando-se de que Perséfone dissera dar valor às pequenas coisas, acariciou a área macia por trás de seu joelho. Ainda seguindo os sinais do corpo delicado, desenhou círculos ardentes no interior de suas coxas.

Lina se abriu para ele e, guiando-lhe a mão até o centro do próprio corpo, mostrou-lhe como acariciar seu ponto mais sensível, sussurrando incentivos meio sem fôlego ao perceber que o toque acompanhava seu ritmo.

A onda de orgasmo veio rápida e poderosa, e ela gritou o nome dele conforme uma estranha eletricidade brotou em seu âmago e irradiou por seus membros.

Hades a abraçou com força, os próprios desejos temporariamente esquecidos em meio ao espanto de ter sido capaz de evocar nela uma resposta tão apaixonada. Tinha vontade de gritar de felicidade. Perséfone o conhecia em sua essência, desejava-o e havia se entregado a ele.

Lina abriu os olhos e o fitou. Ele estava sorrindo para ela e afastando-lhe os cabelos do rosto.

Sua respiração ainda não tinha voltado ao normal quando o deus recomeçou a beijá-la.

— O melhor sexo é quando os amantes se satisfazem mutuamente — disse, ofegante, pressionando-o de volta para a cama. — É uma dança onde se dá e se recebe. Embora o prazer de seu parceiro possa se tornar o seu próprio, não devemos nos abster de nossas necessidades e desejos... — Acariciou o corpo musculoso, beijando e saboreando a salinidade de sua pele, até que a respiração dele se tornou irregular.

O suor brilhava no corpo de Hades, e todos os seus músculos se retesaram quando ele lutou para controlar o desejo.

Lina o envolveu nos braços com urgência.

— Não se contenha mais! Eu o quero dentro de mim agora... Quero sentir toda a sua paixão.

Com um grunhido, ele rolou de modo a ficar sobre ela. Apoiando-se sobre as mãos, fitou-a nos olhos enquanto mergulhava no corpo macio.

Seu calor úmido o cercou, e Hades precisou de toda a sua força de vontade para conter a explosão que ameaçava acontecer. Possuir Perséfone se revelara melhor do que qualquer fantasia; melhor do que qualquer coisa que ele pudesse ter imaginado.

Deteve-se por um momento, tentando recuperar o autocontrole.

Com um gemido, Lina arqueou o corpo, e Hades respondeu combinando sua paixão com a dela, até que teve a visão obliterada para tudo o mais, exceto para a deusa sob ele. Sentir que ela o comprimia por inteiro o levou às alturas e, conforme espasmos de prazer o percorriam, Hades afundou o rosto nos cabelos fartos de sua amada, repetindo seu nome seguidas vezes...

Um perfume doce e familiar despertou Lina. Hades encontrava-se de pé ao lado da cama, sorrindo. Estava nu, exceto pela tanga justa que o cobria bem abaixo da cintura. Em uma das mãos, segurava uma taça de ambrosia dourada e refrigerada, e, na outra, um manto leve, de seda.

— Bom dia — ela falou, sonolenta.

— Bom dia. Imaginei que estivesse com sede. — Ele ergueu o cálice de cristal. — Além disso, Eurídice trouxe algumas coisas para você. — Apontou por cima do ombro para uma mesa carregada com romãs e uma deliciosa variedade de queijos e pães.

Lina sorriu. Hades nunca estivera tão adorável, parado em pé ali, meio nervoso, tentando agir como se estivesse acostumado a ter uma deusa em sua cama.

— Obrigada. — Sentou-se e se espreguiçou.

O lençol caiu em torno de sua cintura, e os olhos dele devoraram seus seios nus.

Sem se conter, Hades colocou o que tinha nas mãos sobre a mesa de cabeceira e se ajoelhou diante dela, segurando-lhe os seios e beijando os mamilos róseos.

Embora o toque fosse suave, Lina não pôde deixar de se encolher. Seu corpo se encontrava maravilhosamente saciado, mas também muito, muito dolorido.

O deus recuou.

— Estou machucando você?

— Acho que estou um pouco sensível. Sete vezes em uma noite é, bem... um pouco incomum.

Hades sentiu que corava enquanto lhe cobria os ombros com o manto e lhe alisava os cabelos. Perséfone estava amarrotada e tinha uma marca vermelha na curva do pescoço.

E se ele tivesse sido muito bruto? Na noite anterior parecia ter dado prazer a ela, mas, naquela manhã, a deusa parecia quase descontente.

Perséfone se pôs de pé com certa cautela e tornou a encolher os ombros sob a capa.

Por todos os deuses! E se ele a tivesse ferido?

Lina abriu um sorriso e sentou-se com cuidado antes de atacar a mesa posta. Nem mesmo percebeu como o deus se retesou em resposta ao seu óbvio desconforto físico.

Hades condenou a si mesmo por ser um idiota, inexperiente.

Conforme Lina comia, sentiu sua energia retomar o nível normal e as dores em seu bem utilizado corpo se dissipar. Respondendo ao seu revigorado bom humor, o nervosismo de Hades evaporou, e eles fizeram o desjejum como dois amantes apaixonados, permitindo que seus joelhos se tocassem e alimentando um ao outro com os petiscos de seus próprios pratos.

Ele começava a explicar como tinha produzido os lustres que pendiam graciosamente do teto acima deles quando duas batidas firmes soaram na porta.

— Entre! — gritou Hades.

Iapis se fez presente, segurando uma pequena caixa quadrada nas mãos, e fez uma reverência, primeiro para o senhor do Submundo, depois para Lina.

— Bom dia, Hades, Perséfone... — Seus olhos brilhavam, e ele tentou, sem sucesso, esconder um sorriso. — Eu trouxe o que me pediu, senhor. — Entregou a caixinha a Hades.

— Excelente. Muito obrigado, Iapis.

Ao ver o daimon, Lina se lembrou de que negligenciara Eurídice por completo e sentiu uma ponta de culpa.

— Iapis, poderia levar uma mensagem a Eurídice para mim?

— Claro, senhora.

— Diga a ela que eu adoraria ver o que ela andou desenhando.

Iapis sorriu.

— Será um prazer para Eurídice, tenho certeza.

— Ótimo. Mande-a levar seus trabalhos para o meu quarto ainda hoje. E, por favor, diga-lhe que estou ansiosa por ver suas criações... e também por vê-la. Senti sua falta.

Lina pensou ter visto as faces do daimon enrubescer de leve antes que ele aquiescesse e, ainda sorrindo, se despedisse com uma mesura.

— Ele está de bom humor, sem dúvida — comentou Lina, pensativa, tamborilando os dedos na mesa.

— Ele gosta de me ver feliz — Hades falou brincando e beijando-lhe a mão.

Ela sentiu-se tão tola e sorridente como o daimon se mostrara, e tratou de se recompor.

— Não acho que ele esteja assim, feliz, apenas por causa de você.. Aliás, faz algum tempo que eu gostaria de conversar acerca do seu amigo daimon.

Hades ergueu uma sobrancelha, esperando.

— Creio que Iapis esteja interessado em Eurídice — revelou Lina.

O sorriso do deus foi como o de um menino apanhado com a mão na bo tija.

— Acho que tem razão.

— Então preciso saber de suas intenções! — ela falou com firmeza.

Hades concordou, a expressão se tornando séria no mesmo instante.

— Compreendo sua preocupação, claro... Mas acredito que eu possa falar por Iapis. Suas intenções são honradas. Ele realmente se preocupa com a pequena alma.

— Vai se certificar de que ele seja cuidadoso com Eurídice? Ela passou por muitas dificuldades. É difícil para uma mulher amar outra vez depois que foi ferida.

Hades tocou-lhe o rosto com delicadeza, pensando se a deusa estaria se referindo apenas a seu leal espírito.

— Pode confiar em mim. Sempre. Cuidarei de Eurídice como se ela fosse a própria deusa da Primavera.

— Obrigada. Não é que eu não goste de Iapis... eu gosto. Mas me preocupo muito com a minha amiga.

— É uma deusa generosa, Perséfone, já que se preocupa verdadeiramente com aqueles que a amam — ele afirmou. Então olhou para a caixa quadrada descansando ao lado, e a fez deslizar até ela.

— É algo que fiz na primeira noite em que esteve aqui. Eu não conseguia dormir. Tudo o que podia fazer era pensar em você, em seu sorriso, em seus olhos... — Fez um gesto para que ela abrisse o presente.

O fecho destravou com facilidade, e Lina levantou a tampa. Aninhada junto a um estojo de veludo preto, havia uma delicada corrente de prata. Desta pendia uma única pedra ametista, a qual fora esculpida e polida de modo requintado, na forma de um narciso em flor.

Lina sentiu os olhos marejados.

— Oh, Hades! É a coisa mais bonita que eu já ganhei!

Ele se levantou e postou-se atrás dela, tirando o colar do estojo para colocá-lo em seu pescoço. Pendurou-o perfeitamente, bem acima da curva de seus seios.

— Obrigada... Eu adorei!

O deus a puxou para seus braços.

— Na noite em que fiz isso, eu estava cheio de desejo e morrendo de saudade. Mas agora está aqui comigo, e o vazio dentro de mim não mais existe. Os mortais foram sábios em afirmar: é a rainha do Submundo. Não posso imaginar minha vida sem você. Não trouxe a primavera apenas para o meu reino, Perséfone, mas também para o meu coração. Estou apaixonado.

As lágrimas que tinham se agrupado nos olhos de Lina transbordaram, e ela não conseguiu falar.

Hades enxugou-lhe o rosto com os polegares.

— Por que está chorando, minha querida?

— As coisas são tão complicadas...

Ele franziu a testa.

— Porque é a deusa da Primavera?

— ... Também.

— Diga-me a verdade. Chora porque não se imagina permanecendo no Submundo?

O deus tentou manter a voz neutra, no entanto Lina podia ver a dor refletida em seus olhos.

— Quero estar com você — disse apenas, tentando não soar muito evasiva.

— Então não posso conceber qualquer dificuldade que não possamos vencer juntos —Hades declarou, abraçando-a com força.

Descansando em seus braços, Lina fechou os olhos, disposta a parar com as lágrimas. Chorar não ajudaria em nada. Ela o amava, mas esta era apenas uma pequena parte da verdade que ele precisava saber.

Queria tanto contar tudo a Hades! Precisava fazer isso.

Mas havia dado sua palavra, e, antes de qualquer coisa, deveria conversar co m Deméter.


Capítulo 22

— Disse que ela não está em seu quarto? — Hades virou-se para o daimon.

— Não, senhor... A deusa se foi.

— E Eurídice não sabe onde ela está?

— Não. Eurídice estava ocupada com os desenhos que mostraria à sua senhora mais tarde.

Hades andou de um lado para o outro. Perséfone havia dito que precisava de um bom banho de imersão e que depois tiraria uma soneca. Sim, ela lhe parecera estranha, mas ele atribuíra seu comportamento ao cansaço.

Assim, resolvera lhe dar algum tempo enquanto atendia às petições dos mortos... ainda que mais distraído do que nunca. A maioria deles tinha vindo ver Perséfone, e havia ficado visivelmente desapontada por a deusa não ter aparecido.

Apertou a mandíbula. Podia compreendê-los muito bem. Ele mesmo não queria mais nada a não ser vê-la por perto. Ainda trazia seu perfume na pele, e, quando divagava, podia sentir o calor suave de Perséfone contra ele.

Para onde ela havia ido? Por que não lhe dissera nada? O que estaria pensando?

Passou a mão pelo cabelo. Depois de eras de uma existência solitária, seu desejo fora feroz, e, talvez, ele houvesse sido muito bruto. Talvez a houvesse ferido.

Ou talvez não a tivesse satisfeito. E se ela o comparara a seus outros amantes imortais?

Cerrou os punhos. Apenas pensar em outro deus encostando nela o deixava com náuseas.

— Encontre-a, Iapis — rosnou.

O daimon se curvou e desapareceu.

OK , Lina admitiu para si mesma, mordendo o lábio. Estava preocupada.

— Merda! Por que tem de ser tão complicado?

As orelhas de Órion se inclinaram para trás a fim de captar suas palavras, e ele relinchou uma resposta suave.

— Eu o amo de verdade — ela disse em voz alta. — E agora? O que vamos fazer?

Lina suspirou. Sabia o que ela precisava fazer, razão pela qual escapulira com o cavalo.

— Verdade que a história que inventei foi excelente... — falou a Órion. — Tenho certeza de que Iapis ficará apenas um pouco aborrecido quando descobrir que o enorme odre de ambrosia que Eurídice o fez encher até a borda é para o Cérbero.

Ao ouvir falar do cão de três cabeças, Órion bufou com desgosto.

— Ah, ele não é tão ruim assim. Só ficou um pouco alterado pelo álcool, mas, no fim foi um amor... Além do mais, sabe que eu gosto muito mais de você. — Ela deu um tapinha na pelagem reluzente do cavalo.

Órion arqueou o pescoço e mudou o trote para um forte galope, fazendo a estrada escura passar rapidamente por baixo deles. A fiel esfera de luz pairava sobre seu ombro direito, mantendo o ritmo com o garanhão, e, a distância, Lina já podia ver o contorno leitoso do bosque de árvores fantasmas.

Perguntou a si mesma se Hades já teria notado a sua ausência. Tomara que não, mas, se ele procurasse por ela, Eurídice lhe diria que ela fora levar ao Cérbero a guloseima que prometera. Os cavalariços, por sua vez, relatariam que ela havia levado Órion para um passeio.

Hades não deveria se preocupar. Ela não queria que ele ficasse preocupado. Não desejava lhe causar nenhuma dor.

A noite que tinham passado juntos fora uma experiência nova para ela. Hades lhe despertara sentimentos que, até então, não passavam de resquícios de sonhos e fantasias. E não fora só sexo.

Suspirou outra vez. Isso teria sido fácil de lidar. Poderia ter com ele um caso tórrido e excitante, saciar a si própria e, no momento oportuno, ir embora.

Mas, decididamente, não tinha sido apenas sexo.

A lembrança das almas gêmeas ainda a assombrava, assim como o olhar de Hades quando ele declarara seu amor. Ela havia ansiado por responder com as mesmas palavras; no entanto, não era livre para se comprometer com ele. Não ainda. Não até que conversasse com Deméter.

E isso partira seu coração.

Não tivera a intenção de amá-lo. Havia ido para o Submundo com as melhores intenções e um trabalho a fazer. Ponto. Não estivera interessada em romance, amor ou sexo.

E o Mundo Inferior era o último lugar em que esperava encontrar alguma dessas coisas.

Merda! Deméter descrevera Hades como um assexuado, e ela estivera totalmente despreparada para a verdade.

Rodou um fio da crina sedosa de Órion em torno do dedo conforme o garanhão galopava pelo bosque de árvores fantasmas. Estava metida numa enorme encrenca. Amava Hades, estava certa disso, mas um pensamento incômodo não a abandonava: enquanto estivera com ele, enquanto pudera tocá-lo e fitá-lo nos olhos, fora fácil acreditar que ele a amava também. Ela , Carolina Francesca Santoro, e não uma deusa jovem e fútil.

E, não fora ele mesmo quem dissera que o verdadeiro amor tinha mais a ver com a alma do que com o corpo?

Então, por que faria diferença se seu corpo verdadeiro fosse o de uma mortal de quarenta e três anos de idade? Teoricamente, não deveria fazer.

Órion continuou disparado através do túnel escuro em direção à abertura ampla e iluminada do Mundo Superior.

Era inegável que tivesse mentido a Hades, Lina pensou. Mesmo que ela não houvesse tido a intenção de seduzi-lo, no que ele acreditaria quando soubesse a verdade? Será que compreenderia?

E, o mais importante, será que ele ainda a amaria?

O garanhão galopou até o fim da passagem, saindo para a luz suave de uma manhã fria. Ela puxou as rédeas do cavalo, obrigando-o a uma parada, apanhou as próprias coisas e, em seguida, conduziu-o até a bacia de mármore que sustentava o oráculo de Deméter.

Escorregou pelas costas de Órion.

— Fique por perto e seja bonzinho. Isso não vai demorar muito.

— Ela montou Órion para levar um agrado para o Cérbero?

O daimon concordou com um gesto de cabeça e uma expressão ligeiramente irritada no olhar.

— Eu mesmo enchi o odre. Ela levou ambrosia para aquele bruto!

Em qualquer outro momento, a notícia teria feito Hades rir. Agora, contudo, as dúvidas lhe esfaqueavam o coração.

— Mas Perséfone me disse que estava exausta. Que tomaria um banho e descansaria. Por que ela sairia para um passeio em vez disso?

— Apenas a deusa pode lhe responder isso, senhor.

O crescente sentimento de desconforto que o torturava desde aquela manhã desabrochou. Ele devia tê-la magoado, concluiu Hades. Teria assustado Perséfone? Ou teria declarado seu amor por ela cedo demais?

Sentiu o peito se apertar. Ela não havia proclamado seu amor em troca, pensou, lembrando-se de suas lágrimas.

Amaldiçoando-se em silêncio por sua inexperiência, virou-se para o daimon.

— Traga-me o elmo da invisibilidade.

Lina estudou o oráculo. Este descansava, quieto e benigno; uma simples esfera de vidro de cor leitosa.

Mas era o canal para uma deusa que detinha o poder de moldar seu futuro.

Fechou os olhos, admitindo que não estava apenas preocupada. Estava com medo. Como aquilo poderia funcionar? Ela era uma mortal de outro tempo e lugar. Ele, um deus antigo.

Sentiu lágrimas de frustração assomar aos olhos fechados.

Pare com isso! Controle-se!

Precisava contar tudo a Deméter. Não podia evitar isso por mais tempo.

Perséfone não estava com o Cérbero, embora o cão continuasse lambendo, feliz, o velho odre que ela lhe dera. Também não tinha passado por ele, voltando ao palácio, motivo pelo qual Hades seguiu adiante.

Quando encontrou o barqueiro, Caronte relatou que transportara a deusa e seu corcel para a outra margem do Estige.

Hades admitiu o pior para si mesmo: Perséfone havia definitivamente retornado à Terra dos Vivos.

Sentiu uma queimação familiar brotar no peito. Ela o deixara sem nem mesmo dizer adeus? Não queria acreditar nisso.

E não acreditaria até que a confrontasse e ela lhe dissesse isso cara a cara.

Com sua velocidade de deus, Hades seguiu pelo caminho escuro que o levaria ao Mundo Superior e à deusa da Primavera.

Lina respirou fundo e abriu os olhos. Concentrando-se em Deméter, passou as mãos três vezes pelo oráculo.

— Deméter? Precisamos conversar...

A orbe começou a rodopiar e, quase no mesmo instante, as feições benfeitas da Grande Deusa entraram em foco.

— Quando uma filha clama pela mãe, o tom de sua voz deve ser mais acolhedor do que tristonho — disse, suavizando a repreensão com um sorriso maternal.

— Eu não tinha intenção de desrespeitá-la, mas sinto-me, mesmo, um pouco deprimida — confessou Lina.

Deméter franziu o cenho.

— O que a incomoda, filha? Tenho ouvido apenas relatos positivos sobre o seu trabalho. Os espíritos se mostram satisfeitos por a deusa da Primavera estar peregrinando pelo Submundo.

Era a pura verdade. Desde a chegada da deusa, que todos acreditavam ser Perséfone, ao Mundo Inferior, as súplicas incessantes e irritantes dos parentes dos mortos havia terminado, e os sacrifícios por agradecimento, aumentado. A mortal vinha marcando presença e fazendo um excelente trabalho ao representar sua filha, refletiu a deusa da Colheita. Não podia imaginar o que a estava incomodando.

— As coisas tomaram um rumo inesperado.

A careta de Deméter se acentuou.

— Não me diga que foi descoberta.

— Não! Todos ainda pensam que sou Perséfone. — Lina fez uma pausa, mordendo o lábio. — O meu problema tem a ver com isso .

— Explique-se.

— Eu me apaixonei por Hades, e ele também me ama. Preciso contar a ele quem eu realmente sou e descobrir uma forma de consertar essa confusão — Lina falou de uma vez.

Os olhos de Deméter pareceram se transformar em pedra.

— Por acaso isso é algum tipo de brincadeira mortal?

— Não. — Lina suspirou. — Não há graça nenhuma nessa história.

— Está me dizendo que você e Hades se tornaram amantes?

— Sim.

— Então Hades brincou com seus sentimentos. — Deméter balançou a cabeça com tristeza. — E eu sou a culpada por isso. Expus uma mortal aos caprichos de um deus. Perdoe-me, Carolina Francesca Santoro... Minha intenção não era lhe causar dor.

— Não! — protestou Lina. — Não é assim. Hades não se aproveitou de mim. Nós nos apaixonamos um pelo outro!

— Vocês se apaixonaram? Um pelo outro? — A voz de Deméter soou enérgica. — Como é possível? Hades pensa que é Perséfone, deusa da Primavera. Não tem ideia de que fez amor com uma mortal. Pense, Carolina! Como pode acreditar que é você quem ele ama? — Deméter riu sem vontade, as belas feições contorcidas. — Amor! É mesmo tão ingênua? Os imortais amam de forma bem diferente dos mortais. Certamente até mesmo em seu mundo já ouviu falar dos abusos do amor imortal.

Lina ergueu o queixo e estreitou os olhos.

— Não sou nenhuma criança. Não fale comigo como se eu tivesse as emoções instáveis de uma adolescente. Conheço a diferença entre o amor e a luxúria. Sei quando um homem está me usando, assim como sei quando ele está me tratando com honestidade. As aulas foram difíceis... mas a experiência me ensinou a diferença.

— Então devia saber — concluiu Deméter.

As palavras suaves tiveram o efeito de um tapa.

— Não conhece Hades. Ele não é como o restante de vocês.

— Não é como o restante dos imortais? O que me diz é absurdo e ingênuo. Hades é um deus. A única diferença entre ele e os outros deuses é que Hades vive recluso e decidiu colocar os mortos acima dos vivos.

— Isso é apenas parte do que o torna tão diferente. — Lina respirou fundo. Não queria trair a confiança de Hades, mas precisava convencer Deméter. — Sou a única deusa a quem ele amou.

Os olhos de Deméter se estreitaram.

— Foi isso o que Hades disse? Então aqui vai sua primeira lição a respeito do amor imortal: não acredite em nada do que um deus diz quando ele está tentando se deitar com uma deusa. O que ele falou foi apenas o que você precisava ouvir para se entregar a ele.

Recusando-se a acreditar nas palavras, Lina sacudiu a cabeça de um lado para o outro. Deméter, porém, ignorou o gesto e prosseguiu.

— No que acreditou? Que ficariam juntos por toda a eternidade? Esqueça que é mortal. Esqueça que é de outro mundo. Mesmo se fosse a deusa da Primavera, acredita honestamente que Hades e Perséfone poderiam se unir e ter seus nomes ligados para sempre? A simples ideia é absurda! Como poderia existir primavera na Terra dos Mortos?

— A primavera não tem de existir lá, mas eu posso ficar no Submundo. Eu, a mortal, Carolina Francesca Santoro. Ficarei no Submundo e am arei seu deus. Apenas me transforme novamente. Devolva o meu corpo, e eu devolverei este — ela apontou para si mesma — à sua filha.

— Não posso fazer isso. Não é deste mundo, Carolina! — A raiva transformou o rosto de Deméter. — Você sabia que essa era uma situação temporária. Eu nunca disse o contrário.

— Tem de haver uma saída!

— Não há. Ambas devemos respeitar os nossos juramentos.

— Então, não posso nem mesmo dizer a Hades quem eu sou? — Lina concluiu, desesperada.

— Use a razão, Carolina, e não o coração. O que o senhor dos Mortos faria se soubesse que cortejou não a deusa da Primavera, mas uma padeira mortal de meia-idade? Abriria os braços para a sua mentira? — Deméter levantou a mão para silenciar os protestos de Lina. — Pouco importa que não tenha tido a intenção de ­enganá-lo. Você diz que eu não conheço Hades, mas todos os imortais sabem algo a respeito dele: o senhor dos Mortos preza a verdade acima de tudo. Como ele reagiria a esta farsa?

— Ele me ama!

— Hades ama Perséfone, a deusa da Primavera — falou Deméter com firmeza. — E, pense: como os espíritos do Submundo se sentiriam se soubessem que a deusa que tem trazido tanta alegria é apenas uma mortal disfarçada?

Lina ficou tensa.

— Isso os prejudicaria, sem dúvida.

— Claro que sim.

— Então não posso contar a ninguém.

— Não, filha. Não pode.

Lina fechou os olhos, e Deméter viu a mulher no corpo de Perséfone lutar para aceitar a dor causada por suas palavras.

— E lembre-se disto: quando voltar para o seu legítimo lugar, Perséfone vai considerar Hades apenas como mais um dos deuses com quem se divertiu. Não importa o que você acredita que tenha se passado entre vocês dois... E Hades, por fim, sentirá o mesmo. Ouça sua voz interior e se lembrará de que essa é apenas a maneira imortal de agir.

Quando Lina abriu os olhos, estava decidida.

— Voltarei ao Submundo para finalizar o meu trabalho, então. Disse que meu tempo está quase no fim?

Deméter aquiesceu em silêncio.

— ...Certo. Estarei pronta para partir no momento em que quiser.

— Eu sabia que você tinha sido uma escolha sábia, Carolina Francesca. — A imagem da deusa começou a se desvanecer. — Retorne com a minha bênção, filha — completou e se foi.

Lina se afastou do oráculo, e seus olhos deslizaram pela beleza do lago Averno sem realmente vê-lo.

Não chorou. Continuou muito quieta, como se a falta de movimento pudesse impedir que sentisse ainda mais dor.

Envolto na invisibilidade, Hades permaneceu na boca do túnel. Sua reação inicial ao ver Perséfone fora de alívio. Ela não o estava deixando; estava apenas consultando o oráculo da mãe. Ele não conseguia ouvir o que ela dizia, porém seu alívio foi logo substituído por preocupação. Perséfone estava visivelmente abalada. Parecia quase desesperada.

Por isso ela não lhe dissera que pretendia conversar com Deméter? Estava com medo da reação da mãe ao amor deles? Estaria tentando protegê-lo?

Perséfone sabia que, a seu modo, ele era um deus poderoso.

Mas, talvez, ela não o fosse. Era muito jovem, ainda que se comportasse com tanta maturidade que era fácil para ele esquecer sua juventude.

Sem dizer que ele se mantivera separado do restante dos imortais por muito tempo. Perséfone acreditava que ele poderia exercer seu poder apenas em seu próprio reino?

Observou seu belo rosto empalidecer. Deméter a estava magoando.

Uma onda de raiva brotou dentro dele.

Ainda usando o elmo da invisibilidade, caminhou até sua amada a tempo de ouvir a voz enérgica de Deméter derivar do oráculo:

— E lembre-se disto: quando voltar para o seu legítimo lugar, Perséfone vai considerar Hades apenas como mais um dos deuses com quem se divertiu. Não importa o que você acredita que tenha se passado entre vocês dois... E Hades, por fim, sentirá o mesmo. Ouça sua voz interior e se lembrará de que essa é apenas a maneira imortal de agir.

Hades parou. Tinha ouvido bem? Ele era apenas mais um Deus com quem ela havia se divertido?

Incrédulo, escutou a resposta de Perséfone:

— Voltarei ao Submundo para finalizar o meu trabalho, então. Disse que meu tempo está quase no fim?

Ele havia sido apenas uma missão para ela?

— ...Certo. Estarei pronta para partir no momento em que quiser.

Perséfone queria deixá-lo!

Ainda invisível, Hades assistiu à deusa que ele amava se afastar do oráculo da mãe e olhar para longe. Seus olhos estavam secos, e o rosto parecia esculpido em pedra. Uma verdadeira estranha.

Não. Não podia acreditar. Ouvira apenas uma parte da conversa e devia ter entendido mal. Conhecia Perséfone. A sua Perséfone não ousaria ludibriá-lo.

Estava prestes a tirar o elmo de invisibilidade quando um ruído chamou sua atenção. Ele e Perséfone se viraram ao mesmo tempo para o deus que caminhava ao longo da margem do lago Averno.

O belo rosto de Apolo se iluminou com prazer, e seus lábios se curvaram em um caloroso sorriso de boas-vindas.

— Ah, Perséfone! Agrada-me ver que aceitou meu convite. Todos sabíamos que tempo demais no Submundo faria a flor da primavera ansiar por sol novamente.

Com uma crescente sensação de dormência, Hades assistiu quando Apolo tomou o corpo dócil de Perséfone nos braços.

Incapaz de continuar assistindo à cena, o senhor do Submundo deu as costas para os dois amantes e, silenciosamente, retornou ao reino dos mortos.


Capítulo 23

Não demorou muito para Apolo perceber que abraçar Perséfone era como abraçar um cadáver. Recuou, assim, e estudou o rosto pálido.

— O que há de errado? Mais problemas com Deméter?

Ela abanou a cabeça e, quando piscou, duas lágrimas perfeitas caíram de seus olhos e traçaram um caminho brilhante por seu rosto.

Ele ainda se perguntava se deveria beijá-la ou materializar-lhe uma bebida, quando um monstro negro surgiu do nada e meteu o corpanzil entre eles.

— Vá embora, sua besta! — gritou, cambaleando para trás na tentativa de não ir ao chão.

O garanhão virou-se e arreganhou os dentes amarelos.

— Está tudo bem, Órion! Apolo não vai me fazer nenhum mal.

A tristeza na voz de Perséfone tocou o deus da Luz, e ele a fitou por trás do cavalo negro, que a acariciava com o focinho. A deusa devolvia o afago distraidamente, e lágrimas escorriam por seu rosto, porém ela nem sequer tomou conhecimento destas.

— Órion, eu preciso falar com a sua senhora.

Com os olhos em chamas, o garanhão virou a cabeça, pronto para enfrentá-lo, contudo ele estendeu as mãos em um declarado gesto de paz.

— Quero apenas lhe oferecer ajuda!

Órion estudou o deus, então soprou forte pelo nariz e lambeu a face de Lina. Em seguida se afastou uns poucos metros do local onde estivera pastando, embora mantendo um olho negro fixo nele.

Apolo pegou o braço de Perséfone, levou-a até um banco esculpido em rocha, e a deusa se sentou. Em seguida, ele fez um movimento com a mão, e uma taça contendo um líquido claro apareceu de repente, em meio a uma chuva de faíscas.

— É água mineral — disse, ao vê-la hesitar. — Imagino que esteja precisando de um refresco.

— Obrigada — Lina respondeu, tensa.

A água estava fresca, e ela a bebeu com vontade.

Entretanto, esta não ajudou a preencher seu vazio.

Apolo sentou-se a seu lado.

— O que lhe causou tanta dor? — indagou, preocupado.

Ela continuou emudecida, e o deus pensou que não fosse obter nenhuma resposta. Então falou com uma voz tão cheia de desesperança que ele sentiu uma constrição no próprio peito.

— A minha própria tolice foi o que me causou tanta dor.

Apolo segurou sua mão.

— O que posso fazer para ajudar?

Ela o fitou, e o jovem deus sentiu como se pudesse enxergar-lhe a alma.

— Responda-me uma coisa... O que ama, o corpo ou o espírito?

Apolo sorriu e ensaiou responder de forma inteligente, mas logo descobriu que não podia. Mais uma vez, Perséfone o surpreendia com sua franqueza.

A deusa da Primavera não se afastara de seus pensamentos desde seu último encontro.

Entreolharam-se, e Apolo não pôde menosprezar a dor no rosto delicado. Respondeu honestamente.

— Está fazendo essa pergunta ao deus errado, Perséfone. Como você bem sabe, tive muitas experiências com as vontades do corpo. Sinto desejo e o sacio. Mas, amor? A mais ilusória das emoções? Já testemunhei um guerreiro invicto cair de joelhos e atribuir mais poder a uma virgem do que ao próprio Hércules, mas não posso afirmar que já tenha experimentado esse sentimento. — Tocou-lhe o rosto, tristonho. — Ainda que olhar para você me faça pensar o contrário.

A claridade aumentou, sinalizando a chegada da aurora. Sua carruagem devia estar chegando, e seu tempo era curto, refletiu o deus.

Percebeu, no entanto, que, embora estivesse próximo de Perséfone, dando-lhe seu conforto e demonstrando sua compaixão, ela nem sequer olhava para ele. Tinha os olhos fixos na entrada do túnel que levava ao domínio do deus do Submundo.

Deixou cair a mão, estarrecido.

— Você ama Hades! — exclamou, sem se preocupar em esconder a surpresa na voz.

Os olhos de Perséfone se voltaram para os dele.

— Por que está assim, tão chocado? Porque sou a primavera e ele é a morte? Ou porque imortais não sabem como amar?

— Não creio que isso seja possível.

— Provavelmente não é. — A raiva na voz dela se foi, e o desespero voltou. Lina se pôs de pé. — Órion!

Numa velocidade sobrenatural, o garanhão se deslocou para seu lado. Sem mais palavras, ela montou o cavalo e o cutucou com os calcanhares nas laterais.

Órion saltou para a frente, deixando o deus da Luz olhando, boquiaberto, para a nuvem de poeira que se levantava de seus cascos de ferro.

— Perséfone e Hades? Como pode ser isso? — murmurou, perplexo.

Hades encontrava-se na ferraria. Após alimentar o fogo a um nível quase insuportável, despiu-se, ficando apenas com a tanga de linho. Não trabalharia em uma ferradura. Isso não o satisfaria. Precisava de algo mais, precisava fazer algo maior.

Forjaria um escudo com os mais fortes metais, decidiu. Algo que pudesse proteger um corpo, se não uma alma.

Atiçou as brasas, até que estas chiaram num calor escaldante. Então enfiou nelas uma folha disforme de metal bruto e a puxou para fora quando esta zuniu quase de pronto.

Em seguida, passou a bater nela com vontade.

Trabalhou sem parar. Seus ombros doíam e seus golpes lhe percorriam dolorosamente o corpo, ainda que não pudessem livrar sua alma da dor.

Ele não podia culpá-la. Perséfone era apenas uma jovem deusa. Ele era quem devia ter pensado melhor.

Tinha sido uma atitude sábia de sua parte se separar dos demais imortais. Perséfone apenas o ajudara a provar isso.

Sua decisão se mostrara a mais acertada por eras... Ele agira como um tolo ao se desviar dela.

Sentiu a presença da deusa no momento em que ela entrou na ferraria e se perguntou se ele sempre saberia quando ela se aproximasse. Como sua alma podia continuar ligada à dela se Perséfone não o amava?

Tal detalhe merecia consideração.

Mais tarde, contudo. Quando estivesse sozinho novamente. No momento em que pudesse pensar nela sem sentir aquele desejo cruel.

Precisava acabar com aquilo naquele instante. Tinha que readotar seus antigos métodos antes que se humilhasse ainda mais.

E antes que ela lhe causasse uma dor irreparável.

— Não imagina o quanto é lindo quando trabalha na ferraria.

Quando Perséfone entrou, ele havia parado de bater metal contra metal, e sua voz delicada soou alta demais no silêncio. Hades não conseguiu se obrigar a falar.

— Hades? — Lina engoliu em seco e continuou, mesmo sem que ele respondesse. — Eu adoraria conhecer o restante de Elísia hoje. Quer me acompanhar?

Ah, a voz de Perséfone! Era tão jovem e doce.

Por um momento, ele sentiu sua determinação fraquejar.

Então se lembrou da facilidade com que ela se deixara ficar nos braços de Apolo.

Quando se virou lentamente para encará-la, Perséfone não o fitou nos olhos, e Hades sentiu um pouco mais da alma se dissolvendo.

— Temo que nossos passeios tenham chegado ao fim. Como pode ver, há trabalhos a ser concluídos.

Lina sentiu o estômago revirar. O homem que se afastara da forja para falar com ela não era seu amante. Era o deus frio e imperioso que ela havia conhecido assim que chegara ao Submundo.

Não, concluiu, ao estudá-lo com mais cuidado. Sua impressão inicial estava errada. Hades já nem lhe era familiar.

— Pensei que gostasse de me falar sobre o seu reino — murmurou num tom vazio.

Ele riu, contudo o riso não tinha nenhum calor, e seus olhos se mostraram frios e ilegíveis.

— Perséfone, é melhor pararmos com esse...

— Mas, na noite passada... — ela o interrompeu, sacudindo a cabeça. — Não compreendo.

O choque no rosto da deusa o dilacerou. Era tudo fingimento!

Hades quis gritar sua dor, mas preferiu arremessar o martelo pela ferraria com fúria. Quando este caiu, faíscas explodiram por todos os lados, e o chão abaixo deles tremeu.

— Silêncio! — ele trovejou, os olhos também faiscando. — Eu sou o senhor dos Mortos, e não um humilde professor!

Lina sentiu o sangue se esvair da face.

— Então, todo esse tempo você apenas fingiu...

— NÃO ME VENHA FALAR DE FINGIMENTO! — As paredes da ferraria vibraram com a ira do deus.

Antes que ele destruísse a câmara em que estavam, contudo, Hades tratou de pôr a raiva sob controle.

— Não esteve de férias por aqui, brincando de rainha dos Mortos, Perséfone? — indagou, cheio de sarcasmo. — Você pode ser jovem, mas nós dois sabemos que está longe de ser inexperiente. — Desta vez, seu riso foi frio e cruel. — Sim, nossas aulas foram divertidas, mas deve compreender que já é tempo de pormos fim a esta farsa. Como pressinto que a sua visita também está chegando ao fim, nosso timing foi perfeito. Infelizmente, permiti que nosso flerte tomasse muito do tempo reservado aos meus deveres. Se não pudermos nos falar de novo antes que parta, deixe-me desejar uma agradável viagem de volta à Terra dos Vivos. Quem sabe ainda volte ao Submundo um dia? Ou talvez não. — Ele encolheu os ombros com indiferença e, em seguida, deu-lhe as costas, fazendo o pulso tremer com outra martelada, e retomou o ritmo da forja. Não tinha necessidade de vê-la sair.

Logo o suor lhe pingou do rosto, mesclando-se a lágrimas silenciosas, e, ainda assim, Hades continuou batendo contra o metal em silêncio, até que a dor em seus braços refletiu a dor em sua alma.

— Eu não pertenço a este mundo. — Lina sentiu como se seus lábios não contivessem uma só gota de sangue, e expressou o pensamento em voz alta para se assegurar de que estes ainda poderiam emitir palavras. Não lhe fez nenhum bem dizer a si própria que Deméter estava certa, que o tratamento que Hades lhe dispensara era a norma entre os imortais. Ela não era uma deusa, portanto era sua alma mortal que sofria.

Sua alma mortal não conseguia entender.

Deixou a ferraria sem se importar para onde seus pés a levavam. Queria apenas ir para longe dali.

Contornou os estábulos e passou, apressada, entre as fileiras de arbustos ornamentais, mas, em vez de se manter nos caminhos dos jardins de Hades, mergulhou na floresta que o margeava. A despeito do turbilhão de pensamentos, percebeu que refazia o caminho para o prado dos pirilampos, e imediatamente mudou de direção, a mente repelindo as doces lembranças daquela noite. Não suportaria ir até lá.

Mal reparou nos espíritos dos mortos, pouco depois, vendo-os como imagens vagas e distantes que sussurraram seu nome. Seus olhos continuavam embaçados pelas lágrimas não derramadas.

Lina se percebeu grata por nenhuma das almas ter se apro­ximado. Não estava em condições de agir como sua senhora ­naquele momento.

Quando passou, os mortos silenciaram. Algo estava errado com Perséfone. Seu rosto tinha perdido a cor, seus olhos estavam vidrados, e ela não parecia capaz de ouvi-los.

E a deusa se movia com os passos entorpecidos daqueles que haviam acabado de morrer. A preocupação com sua senhora começou a se espalhar por toda Elísia.

Lina continuou andando.

Ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

As três frases eram uma antiga ladainha familiar. Tornaram-se o seu mantra quando o marido a deixara por uma mulher mais jovem, mais perfeita, que poderia lhe dar filhos. Apenas estas a tinham ajudado em meio aos sonhos destruídos e as noites insones. Também a mantiveram inteira após a série de relacionamentos decepcionantes por que passara mais tarde. E a haviam acalmado quando ela percebera que, provavelmente, nun ca amaria outra vez.

Ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

Uma brisa travessa trouxe consigo o perfume inebriante dos narcisos, e Lina estremeceu, recuando ao avistar um leito dessas flores à sua frente. Mudou de rumo, contornando-o e escolhendo o caminho que menos narcisos apresentava.

Levou a mão ao peito, onde a flor de ametista pendia da corrente de prata. O que aquele presente havia significado? Não era um símbolo do amor de Hades. Seu discurso na ferraria tinha deixado isso dolorosamente claro.

Piscou, aflita. Em sua mente ainda ouvia o eco da indiferença em suas palavras. Acariciou o contorno bem trabalhado do narciso de pedra.

Um pagamento pelos serviços prestados. Era isso.

Hades, uma espécie diferente de deus?

Sua risada saiu como um soluço.

Fechou a mão sobre a joia e a puxou, arrebentando a corrente delicada.

— Deméter estava certa. Eu devia saber. — Arremessou o colar ao chão e continuou andando sem olhar para trás.

Ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

Lina só percebeu que a paisagem começou a mudar quando sentiu alívio por não ter de evitar mais os narcisos. Também havia menos espíritos flutuando em sua visão periférica, o que a fez relaxar. Notou vagamente que estava ficando mais escuro, porém as árvores eram muito altas e densas. Elas poderiam facilmente estar bloqueando a luz do céu aquarelado do Submundo.

E ela andara por um bom tempo. Ou assim imaginava.

Mas não se sentia cansada. Na verdade, não sentia coisa alguma.

O pensamento quase a fez sorrir. Deméter não precisava ter se preocupado. Os deuses subestimavam a resistência do espírito mortal.

Era melhor começar a voltar para o palácio. Eurídice devia estar esperando para lhe mostrar os desenhos. Ela desfrutaria da companhia da pequena alma e depois tomaria um longo banho.

Não um banho com a água dos cântaros, lembrou, tratando de afastar o pensamento. Apenas um longo e relaxante banho de imersão.

Pelo tempo que lhe restava no Submundo, podia muito bem evitar Hades. Isso não deveria ser muito difícil. Ele mesmo havia deixado bem claro que se encontrava muito ocupado para se preocupar com ela. Dessa forma, em vez de suspirar pelo deus, ela passaria algum tempo com Eurídice e seria franca com a moça sobre a natureza temporária de sua visita. Também avisaria a pequena alma para ter cuidado com aquela paixão por Iapis. Ele parecia confiável, mas, assim fora com...

Bloqueou o restante do pensamento. Montaria Órion e deixaria que os espíritos em Elísia vissem a deusa da Primavera uma última vez.

Precisava ter todo o cuidado com eles, também. Eles tinham o direito de saber que sua visita era apenas passageira. Poderia dizer que Perséfone continuaria a cuidar deles do Mundo Superior, e, depois, só poderia torcer para que a verdadeira deusa da Primavera cumprisse com sua palavra.

Estabelecer um curso de ação a fez sentir-se bem. Havia estado tão preocupada em fazer isso que nem percebeu ter alcançado a margem da floresta, até que tropeçou em uma das árvores.

Confusa, olhou ao redor, tentando entender onde estava. As árvores terminaram, assim como a grama e a vegetação. A terra ali era estéril e o solo cor de canela, trincado pela erosão. Bem à sua frente, contrastando com a treva ao fundo, avistou a silhueta flamejante de um rio de labaredas.

Lina interrompeu a respiração. O Tártaro! Ela havia tropeçado na borda do inferno!

Vire-se! Refaça seu caminho!

Sua mente sabia que aquela era a coisa mais lógica a fazer, porém seu corpo não a obedeceu.

Foi então que ouviu os sussurros vindos da escuridão além do rio de fogo. Como tentáculos nascidos do ódio, eles a chamaram, tecendo uma rede de lembranças sombrias: cada erro que cometera, cada mentira que tinha contado, todas as vezes em que suas palavras ou atitudes haviam ferido os outros.

Sua alma mortal se encolheu. Lina deixou escapar um choramingo e cambaleou sob o peso de seus próprios erros, caindo de joelhos.

Uma escuridão densa brotou da margem do rio em chamas e a lambeu como gavinhas de ódio. Ela não era uma deusa. Era uma mortal de meia-idade, comum na aparência e uma piada nos relacionamentos. Nenhum homem a amava. Por que amaria? El a não podia nem mesmo ter filhos. Fora uma fracasso como mulher e como esposa. Ficar sozinha era o que ela merecia.

Lentamente, sua alma começou a se separar do corpo de Perséfone, e Lina sentiu-se desintegrar.

— Hades, você tem que vir! — Iapis precisou gritar em meio aos incessantes golpes para ganhar a atenção do deus.

Este se endireitou e limpou o suor do rosto.

— Seja lá o que for, terá que lidar sozinho. Não quero ser incomodado.

— São os mortos. Estão pedindo para falar com você.

A expressão de Hades se tornou sombria e perigosa.

— Eles poderão falar com seu deus no momento em que eu estiver deliberando.

— Não acredito que vá querer esperar pela hora das petições para ouvir o que eles têm a dizer — Iapis insistiu.

— Deixe-me em paz! O que eles têm a dizer não me interessa hoje — ele rosnou.

Sem se abalar com a explosão do deus, Iapis o fitou nos olhos.

— Eles estão dizendo que há algo errado com Perséfone.

Hades continuava vestindo a túnica quando irrompeu da ferraria, mas a cena diante dele o fez parar. Espalhada por todos os níveis de seu paradisíaco jardim estava uma infinidade de almas. Permaneciam em silêncio, lado a lado: moças, virgens, mães de família, mulheres de meia-idade e anciãs.

Uma senhora e uma virgem que Hades reconheceu como uma das que tinha dançado com Perséfone no prado se distanciaram do grupo e se aproximaram dele, fazendo uma profunda reverência.

A mulher mais velha falou primeiro:

— Grande Deus, viemos até o senhor por conta do nosso amor à deusa da Primavera. Algo está errado. A deusa não é mais ela mesma.

— Nós a vimos caminhando pela floresta — contou a mais moça. — Chamamos por ela, no entanto Perséfone não nos ouviu, nem viu.

— Era como se estivesse morta — emendou a velha.

O medo cravou um punhal no coração de Hades.

— Onde ela estava na última vez em que a viram?

— Ali... — As duas mulheres se viraram para apontar o Tártaro.

— Selem Órion! — Ele ordenou com uma voz que chegou aos estábulos.

Então fechou os olhos e respirou profundamente, tentando se acalmar. Bloqueou as vozes dos mortos e concentrou todo o seu ser em Perséfone.

Não demorou a encontrar o elo que unia suas almas. O elo que o avisara de sua presença na ferraria e que, depois, sinalizara o momento em que ela havia partido.

Mas era como um fio cortado. Sua conexão fora prejudicada.

O medo cresceu dentro dele.

— Traga o Cérbero — ordenou a Iapis.

O daimon acenou com um gesto de cabeça e desapareceu.

Hades se voltou para os espíritos das mulheres.

— Fizeram bem em ter vindo até mim.

A velha e a virgem inclinaram as cabeças, assim como a horda de espíritos atrás delas.

Hades buscou um rosto em meio à multidão que o cercava.

— Eurídice! Traga-me uma peça do vestuário de Perséfone. Algo que ela tenha usado recentemente.

Em vez de obedecê-lo de imediato, a pequena alma se aproximou. Seus olhos se encontraram, e Hades sentiu o leve toque de sua mão no braço.

— Precisa trazê-la de volta para nós, Hades — falou, com voz entrecortada.

— Eu trarei — ele prometeu e, em seguida, marchou para o estábulo.


Órion mergulhou na floresta, galopando no encalço do Cérbero. O cão de três cabeças caçava em silêncio, seguindo o cheiro de sua senhora.

Hades sentiu as mãos úmidas de suor e tratou de segurar as rédeas do cavalo com mais força. O garanhão não precisou de estímulo para permanecer na trilha do cão, o qual os conduziu inexoravelmente na direção do reino sombrio do Tártaro.

Os pensamentos fervilharam na cabeça de Hades. Ele devia ter magoado Perséfone além da conta se a fizera rumar para as trevas... Mas não tivera a intenção de fazê-lo. Sua dor e ciúme haviam feito com que se esquecesse do quanto ela era jovem. Perséfone não fazia ideia do lugar para onde estava se dirigindo. E nem mesmo sendo uma deusa estaria protegida do desespero que reinava no Tártaro.

Apavorado, ele tentou se lembrar se ela usava o narciso de ametista quando ele a vira pela última vez.

Sim, tinha quase certeza.

Uma ponta de alívio abrandou seu pânico. A ametista ajudaria a protegê-la. Era uma joia poderosa que ele produzira especificamente para ela. Suas propriedades protetoras eram vastas.

Tentou não imaginar o que poderia estar acontecendo com Perséfone. Como deus do Submundo, conhecia muito bem os horrores do Tártaro, a morada eterna dos condenados. Apenas as almas dos mortais que haviam abraçado as trevas eram levadas para aquela região. Ele odiava aquilo, mas reconhecia a necessidade de haver um lugar que abrigasse o mal imutável.

E sua amada tinha ido justamente para lá.

Órion parou ao lado do Cérbero. O cão farejava em meio a folhas secas e arranhava algo que cintilava como prata na penumbra.

Hades desmontou e apanhou o objeto. Era o colar de ametista de Perséfone! Ela estava sem nenhum talismã para protegê-la.

— Mais rápido, Cérbero! — ordenou, nervoso.

O cão redobrou seus esforços, e Órion respondeu no mesmo ritmo, atravessando a floresta.

De súbito, o Cérbero parou à margem do Flegetonte. Começou a uivar desesperadamente, e todas as três cabeças passaram a cutucar algo que Hades imaginou ser um animal morto.

O relinchar estridente de Órion cortou o ar, e ele partiu num galope até a ribanceira do rio de sangue fervente.

Quando o cavalo estacou, Hades reconheceu o corpo.

— Não! — Saltou do lombo de Órion e empurrou de lado o corpo maciço do Cérbero. Era Perséfone caída sobre a terra rachada. Tinha os braços em torno das pernas e os joelhos pressionados contra o peito numa posição curvada e rígida. Seus olhos estavam abertos, entretanto suas pupilas encontravam-se totalmente dilatadas, e ela olhava, sem ver, a escuridão além do rio flamejante.

Hades seguiu seu olhar. A negritude do Tártaro refluía das margens do rio. Olhou para baixo e viu que as garras das trevas haviam serpenteado do Flegetonte até encharcar o solo ao redor da deusa.

A fúria pulsou por todo seu corpo. Rapidamente, ele se abaixou e amarrou a corrente quebrada em volta do pescoço frágil de Perséfone. No mesmo momento, o narciso de ametista começou a brilhar.

Então o deus levantou os braços, e o ar ao seu redor começou a girar.

Em uma voz amplificada pela raiva e pelo amor, Hades ordenou às garras das trevas:

— Fora! Não têm o direito de prejudicar esta deusa!

As gavinhas escuras estremeceram, contudo não soltaram Perséfone.

— Sou eu, Hades, o senhor dos Mortos, quem está ordenando! Não toquem nela! —rugiu, lançando todo o seu extraordinário poder contra as garras malignas.

As trevas recuaram e, com um som sibilante, se dissiparam como um ladrão se escondendo na noite.

Hades caiu de joelhos ao lado de Perséfone. Agarrou o corpo rígido da deusa pelos ombros e o virou para si.

— Perséfone!

Ela não respondeu. Continuou com o olhar vidrado para a escuridão além do Flegetonte. Tinha o rosto pálido, a pele fria ao toque, e estava ofegante como se com dificuldades para respirar.

— Acabou. Nada pode ameaçá-la agora. Olhe para mim, ­Perséfone!

Ainda assim, ela não reconheceu sua presença.

— Perséfone! Tem que me escutar. — Hades a sacudiu até que sua cabeça chacoalhasse e o Cérbero uivasse, exprimindo sua angústia.

Os lábios da deusa finalmente se moveram.

— Isso mesmo! Fale comigo! — Hades gritou.

— Muitos... erros. Não posso... — A voz dela falhou, e suas palavras se tornaram inaudíveis.

— Não pode o quê? — ele implorou, sacudindo-a outra vez.

— Não consigo encontrar meu caminho... Meu corpo não está aqui. Eu desapareci.

O vazio em sua voz o aterrorizou. O rosto de Perséfone estava branco, e seus olhos continuavam vidrados. A Perséfone que ele conhecia não estava lá. Era como se um eco de seu espírito estivesse falando através de uma concha.

De repente, nada mais importava para Hades exceto trazê-la de volta. Não se importava se a deusa pensava nele apenas como uma missão que a mãe a encarregara de cumprir. Não se importava que Apolo fosse seu amante. Não se importava que ela fosse deixá-lo.

Preocupava-se apenas que ela voltasse a ser a mesma de antes.

Cobriu o rosto frio com ambas as mãos.

— Seu caminho é este... Deve voltar para aqueles que a amam.

Perséfone piscou.

— Volte para nós, minha amada! Volte para mim...

Ela respirou profundamente, e Hades a viu levantar a mão para agarrar o narciso de ametista.

Então piscou outra vez e se esforçou para focar seu rosto.

— Hades — balbuciou com voz fraca.

Com uma exclamação de alívio, ele a puxou para os braços.

— Sim, querida! Sou eu, Hades, o deus arrogante e tolo que a ama!

— ...Leve-me daqui — ela falou chorando, e mergulhou o rosto em seu peito.


Capítulo 24

As mulheres assistiram em silêncio enquanto o senhor dos Mortos carregava sua deusa para o palácio. Embora sua expressão fosse sombria, Perséfone passara os braços pelos ombros largos e tinha o rosto pressionado em seu pescoço.

Uma onda de alívio varreu os espíritos. Ela voltaria a ser a mesma. O amor do deus lhes asseguraria isso.

Tal como o sussurro do vento nos galhos de salgueiro, o burburinho das almas foi cessando conforme estas deixavam as cercanias do palácio.

— Eurídice! — Hades chamou assim que entrou na gigantesca construção.

O espírito se materializou no mesmo instante, tendo Iapis a seu lado.

— Prepare um banho bem quente para a deusa.

— Sim, senhor — ela assentiu e desapareceu.

Iapis acompanhou Hades.

— O que posso fazer?

— Vá até Baco. Diga-lhe que necessito do seu vinho mais potente. Algo que acalme a alma de uma deusa — ele instruiu, tenso.

— Agora mesmo, senhor. — Antes de desaparecer, porém, o daimon tocou a cabeça de Perséfone. — Fique bem, minha senhora — sussurrou e foi embora.

Hades carregou Perséfone direto para o quarto. Um vapor perfumado já escapava da sala de banho e, ao adentrar a névoa úmida, ele encontrou Eurídice correndo em volta, puxando grossas toalhas das prateleiras e escolhendo esponjas macias.

Havia uma poltrona acolchoada perto da parede espelhada e, relutante, Hades colocou nela sua deusa. Os braços de Perséfone deslizaram, inertes, de seus ombros e ela permaneceu sentada e muito quieta, os olhos fechados.

Ele se ajoelhou a seu lado.

— Perséfone? Está em casa agora — falou baixinho.

Um tremor passou pelo corpo de Lina.

— Pode me ouvir, minha amada?

Ela abriu os olhos e o fitou.

— Posso — respondeu com voz inexpressiva.

— Sabe onde está?

— ... Em seu palácio?

— Sim — Hades sorriu, encorajador, ignorando o tom abatido em sua voz.

Iapis se materializou na sala de banho, segurando uma garrafa de cristal cheia de um vinho tinto e uma taça. Serviu a bebida, e um aroma inebriante derivou do vidro: cheirava a uvas e prados, a trigo maduro e noites de verão sob a lua cheia.

Iapis ofereceu a taça a Perséfone.

— Beba, senhora. Isto a reanimará.

Lina tentou segurar a taça, porém sua mão tremia tanto que ela quase a deixou cair. Hades cobriu-lhe a mão com a sua, levando o vinho a seus lábios.

Ela bebeu com vontade, e a magia da bebida dos imortais começou a aquecê-la quase no mesmo instante. Logo, o tremor em suas mãos se acalmou, e ela pôde beber sem a ajuda do deus.

— Pode ir, senhor — orientou Eurídice, assumindo o comando. — A deusa necessita de privacidade para se banhar.

Hades se pôs de pé, contudo hesitou em sair da sala.

— Meu senhor, eu o chamarei quando ela estiver pronta... — garantiu o espírito.

Ele ainda titubeava.

— Ficarei por perto, Perséfone.

A deusa ergueu o olhar.

— Não precisa se preocupar. Estou de volta — disse num murmúrio.

A despeito de seu tom inexpressivo, Hades acenou com um gesto de cabeça e, relutante, saiu da sala com Iapis.

Hades andava de um lado para o outro no corredor, do lado de fora dos aposentos de Perséfone. Quanto tempo ela levaria para se banhar? Eurídice nunca a chamaria? Teve vontade de invadir o quarto e ordenar que a pequena alma saísse. Dessa forma, poderia fazer a deusa ouvi-lo. Perséfone tinha de escutar suas desculpas... Ele era um idiota, um imaturo, um tolo ciumento.

Suspirou. Ela o conhecia. Não deveria ser tão difícil fazê-la acreditar que ele cometera um terrível erro.

A porta se abriu, e Eurídice saiu para o corredor, fechando-a delicadamente.

— Como ela está? — Hades indagou, ansioso.

O espírito fitou o deus nos olhos antes de responder. Quando o fez, parecia muito mais velha do que seus poucos anos.

— Muito combalida, senhor.

Hades passou a mão pelo cabelo.

— Sou eu o responsável.

— Creio que sim — confirmou a moça simplesmente.

Ele assentiu com vigor e virou-se para a porta. A mão pálida de Eurídice o impediu, contudo.

— Seja paciente. Trate-a com cuidado. É difícil para uma mulher amar de novo após ter sido ferida.

Iapis se materializou ao lado da pequena alma. Envolveu-a nos braços, e Eurídice recostou-se nele.

— É difícil para uma mulher amar outra vez depois de ter sido ferida, mas não impossível, senhor — corrigiu o daimon.

Hades os viu se afastar lentamente. Formavam um bonito casal.

Voltou-se para a porta, respirou fundo e entrou nos aposentos de Perséfone.

A deusa vestia uma camisola de seda pura, da cor da luz das velas, e encontrava-se encolhida na espreguiçadeira em frente às janelas altas. Parte das cortinas de veludo tinha sido puxada, e Perséfone parecia estudar os jardins mergulhados na noite enquanto saboreava o vinho de Baco.

— Seus jardins são realmente muito bonitos — falou sem olhar para ele.

Hades atravessou o cômodo e parou ao lado da chaise longue .

— Obrigado. Fico contente por gostar deles.

As palavras soaram inadequadas. Ele não queria uma conversa inconsequente, mas Eurídice o advertira para ser paciente e cuidadoso, e assim ele seria.

Por outro lado, também necessitava abrir seu coração.

Sentou-se a seu lado no divã.

— Perdoe-me, por favor. Sou mesmo um tolo.

Ela se virou para encará-lo em silêncio.

— Eu sabia que ia me deixar, então quis romper tudo primeiro — confessou o deus. — Imaginei que isso pudesse amainar minha dor. Pensei que eu pudesse voltar a ser como era antes de amar você... mas estava errado. Fui egoísta. Não pensei nos seus sentimentos. Como um monstro velho e solitário, pensei apenas em mim mesmo.

Lina ergueu a mão para impedi-lo de continuar.

— Não diga mais nada. Você é um deus e agiu como tal.

— Não! — Hades agarrou sua mão. — Não sou como os outros. Tudo o que eu disse na ferraria era mentira. Eu estava com raiva, ferido... É difícil para mim entender que pode ficar comigo e ao mesmo tempo com Apolo. Eu... — Ele vacilou. — Eu é que não estou acostumado a escolher e descartar amantes como fazem os imortais.

— Hades, Apolo não é meu amante.

O deus estudou seu rosto.

— Mas eu o vi tomá-la nos braços.

Lina piscou, surpresa.

— Estava lá?

— Eu a segui. Ouvi Deméter lembrá-la da maneira como os imortais amam, em seguida vi Apolo abraçá-la.

— Se tivesse permanecido lá um pouco mais, então, teria visto que isso foi tudo o que aconteceu. Eu não quero Apolo, Hades. Se o que Deméter me disse não houvesse me aborrecido tanto, eu nunca teria me deixado abraçar.

Hades passou a mão pela testa.

— Não deseja Apolo?

— Não.

Ele abaixou a cabeça.

— Então a dor que lhe causei foi realmente sem razão. Não sei se pode me perdoar, mas, por favor, acredite em mim quando digo que eu a amo, Perséfone.

Lina desviou o olhar para longe dele.

— Você não me ama, Hades... Ama o que pensa que eu sou. Na verdade, não me conhece.

— Como pode dizer uma coisa dessas? — Ele a segurou pelo queixo e a obrigou a fitá-lo.

— Você ama a deusa. Não a mulher dentro dela.

— Está errada, Perséfone. Mas deixe-me dizer o que eu amo em você, então poderá decidir por si mesma... Eu amo a sua curiosidade sobre tudo. Amo o modo como vê com novos olhos o meu reino. Amo o seu senso de humor, sua bondade e honestidade. Amo sua paixão desenfreada, a maneira como encanta os animais. Amo a sua lealdade. Gosto mais ainda da sua teimosia, pois foi graças a ela que um velho deus não ficou trancado na armadilha da solidão.

Lágrimas caíram dos olhos de Perséfone, e Hades as enxugou com delicadeza.

— Agora me diga... o que eu amo? A deusa ou sua alma?

— Mas não me conhece... não pode conhecer realmente — ela falou com voz entrecortada.

— Sei apenas que sinto a sua presença antes mesmo de vê-la. Alguma coisa aconteceu comigo, e isso pouco tem a ver com o lado físico. Pela primeira vez em uma eternidade, compreendo por que almas gêmeas não podem ser separadas nem mesmo após a morte. É porque seus corações batem em conjunto. Enquanto eu esperava aí, do lado de fora, podia sentir seu coração partindo. Deixe-me curá-lo, Perséfone. Quando eu o fizer, estarei curando o meu próprio.

— É possível que ame a minha alma? — Lina perguntou num sussurro.

Hades sorriu para ela ao sentir o medo dentro dele começar a se dissipar.

— A morte está completamente enamorada da primavera. Se isso é possível, então tudo o mais o é, minha amada.

Ela se deixou abraçar e suas bocas se encontraram. Hades pretendia que o beijo fosse suave e tranquilizador, mas Perséfone abriu os lábios e se espremeu contra ele, pedindo mais.

Seu desejo por ela aflorou, e ele gemeu seu nome conforme esmagava o corpo seminu contra o peito.

— Faça amor comigo! — ela falou, ofegante. — Preciso sentir você dentro de mim.

Hades a ergueu nos braços e a levou para a cama, mas, quando começou a se despir, Perséfone o deteve.

— Deixe-me fazer isso — pediu, rouca.

Sentou-se na beirada da cama, e Hades ficou diante dela, forçando as mãos a permanecer dos lados enquanto ela o desnudava. Estava usando uma versão mais curta de suas volumosas vestes, e ela despiu lentamente a roupa de seu corpo musculoso. Deslizou as mãos por seu peito, sentindo a pele quente e lisa, então se curvou, substituindo as mãos pela boca ao beijá-lo no abdômen.

Hades prendeu a respiração com a sensação da língua úmida sobre a pele, porém Lina não se fartou dele. Sentia-se como se ti­vesse sido despertada da morte e precisava de sua paixão, de seu amor, de seu toque para mantê-la ancorada ali, a seu lado.

Soltou a tanga e a fez deslizar pelos quadris estreitos. Então acariciou o membro rijo nas mãos frias, o tempo todo movendo a boca lentamente mais para baixo.

Quando o engoliu, o corpo de Hades sacudiu num espasmo e oscilou.

— Sua boca é como uma armadilha de seda! — gemeu, crente que seus joelhos cederiam a qualquer momento.

Após um tempo, Lina recuou, por fim, e mirou os olhos escuros.

— Quer ser livre?

Ele a ergueu nos braços e a segurou firmeme nte contra o corpo.

— Nunca! — sussurrou em meio aos cabelos longos. — Nunca, minha amada.

Lina o puxou para a cama. Enquanto o acariciava, Hades explorou todos os seus recantos. A camisola era tão fina que ela se sentia como se envolvida em uma névoa. Ele encontrou seu mamilo e o provocou, sugando-o através do tecido transparente. Lembrou-se dos toques que ela afirmara lhe dar prazer e, desta vez, não precisou que Perséfone guiasse sua mão.

E ela reagiu como se eles tivessem sido amantes durante séculos.

De repente, sentou-se e se livrou da camisola. Quando Hades fez menção de tomá-la de volta nos braços, ela o impediu.

— O que foi, querida?

— Quero que faça algo para mim.

— Qualquer coisa.

— Quero que faça amor comigo com os olhos fechados. Finja que não pode ver o meu corpo. — Ela o fitou, procurando por uma resposta. — Consegue fazer amor comigo sem olhar para mim?

Ele sorriu e fechou os olhos. Sem nada enxergar, abriu os braços para ela, e Lina se deixou perder neles.

Cercado por seu aroma e toque, Hades vagou por um mundo de sensações. Sem ver Perséfone, teve que prestar mais atenção a seus pequenos sons e seguir o movimento de seus quadris e corpo. Quando sua respiração se acelerou, e o nome dele escapou de seus lábios num suspiro, não precisou enxergar seu rosto corado para saber que estava lhe proporcionando prazer. Sentia o desejo dela na alma e respondia com carícia após carícia.

Quando finalmente preencheu seu corpo, eles se moveram juntos, em um ritmo antigo que não precisava de visão ou de sons... apenas de sentimentos.

Pouco mais tarde, Lina se aninhou junto a Hades, a cabeça encostada em seu ombro. Ele não sabia ainda, mas a ajudara a tomar sua decisão, e, agora que ela havia feito isso, sentia-se em paz. Sobreviveria a qualquer coisa que acontecesse em seguida. Nada poderia ser tão terrível quanto o vazio negro do Tártaro.

Com a ajuda de Hades, tinha se livrado daquele último pesadelo e agora precisava se livrar das mentiras que restavam em sua vida. Não estava mais disposta a esconder a verdade dele. Não importava mais a raiva de Deméter... ela contaria tudo. Hades merecia saber, pois a amava com a alma.

— Hades, preciso lhe dizer algo.

O deus sorriu.

— Posso ficar de olhos abertos agora?

Lina riu baixinho.

— Sim.

Sentou-se de frente para ele, o lençol de seda enrolado no corpo nu. Hades apanhou alguns travesseiros da cama em desalinho e se apoiou confortavelmente contra a cabeceira estofada. Ergueu as sobrancelhas escuras, curioso.

— Eu não queria ir para o Tártaro. Foi um acidente. Fiquei apavorada ao perceber onde estava, mas era tarde demais.

Ele franziu o cenho. E só de pensar o quanto Perséfone estivera perto de perder a alma, sentiu o estômago se apertar.

— Eu sei, meu anjo. Nem precisava me explicar isso. A culpa foi minha. Se eu não a tivesse magoado...

— Sshh... — Ela se inclinou para a frente e pressionou um dedo contra seus lábios. — Deixe-me terminar.

O deus pareceu pouco à vontade, mas ficou em silêncio.

— Foi terrível lá. — Ela estremeceu. — Foi como se o Tártaro me chamasse... Sabia coisas sobre mim: cada coisa ruim que já fiz na vida, e até mesmo as que pensei em fazer. Isso me levou a sucumbir. Podia sentir a captura da minha alma, e não havia nada que eu pudesse fazer. — Pegou a mão de Hades e entrelaçou os dedos nos dele. — Foi então que o ouvi... Você me chamou de volta. A mim , Hades. A alma que existe dentro do meu corpo.

— Eu tinha que tê-la de volta. Eu a amo.

— Eu também o amo. Mas precisa saber mais do que isso. Não sou quem você pensa... Não sou...

— Basta, Perséfone! — A voz de Deméter a interrompeu. — Seu tempo aqui acabou. Precisa voltar.

Consternado, Hades deixou a cama de um salto. Sem pensar na própria nudez, encarou a deusa que se materializou bem no meio do quarto de sua amada.

— O que pretende com essa intrusão, Deméter? — desafiou-a, irritado. — Este não é o seu reino. Não tem o direito de interferir aqui.

— Está brincando com minha filha, senhor do Submundo, e vim para buscá-la. Sou sua mãe. Esse é todo o direito de que preciso.

— Você não é minha mãe! — Lina pronunciou as palavras pausadamente, de maneira que não restasse dúvida sobre o que estava dizendo. Pôs-se ao lado de Hades, segurando o lençol sobre os seios.

Deméter suspirou.

— Não me venha com esses joguetes infantis, filha. Sua aventura terminou. Já é tempo de voltar à realidade.

— Sei que não posso ficar, mas não irei embora sem dizer a verdade a Hades. Ele merece saber. Ele me ama.

— Está sendo tola como uma criança! — replicou Deméter.

— Sabe muito bem que estou longe de ser uma criança. Deixe-me dizer, de uma vez por todas: não sou nenhuma idiota. — Lina encarou Hades e mirou seus olhos. — Não sou a verdadeira Perséfone, Hades. Meu nome é Carolina Francesca Santoro, mas a maioria das pessoas me chama de Lina. Sou uma mortal de quarenta e três anos de idade, que possui uma padaria em um lugar chamado Tulsa, Oklahoma. Deméter trocou minha alma pela alma de sua filha. — Olhou para a deusa, e seus lábios se torceram num sorriso irônico antes que ela voltasse a encará-lo. — Ela prometeu me ajudar com um problema que eu tinha, e, em troca, eu precisaria cumprir para ela uma pequena missão no Submundo.

Hades ouvia tudo de olhos arregalados.

— Lembra-se de quando a ouviu me lembrar de como os imortais amavam? Na verdade, Deméter não estava me lembrando disso; ela estava me explicando esse fato porque sou uma mortal. A coisa toda era nova para mim.

— Então não é a deusa da Primavera?

— Não. Não sou a deusa da Primavera — confirmou Lina, tão aliviada por finalmente dizer a verdade que não percebeu o rosto de Hades se tornando inexpressivo. — Eu queria lhe contar tudo, mas dei minha palavra a Deméter de que manteria a minha verdadeira identidade em segredo. — Ela tentou tocá-lo no braço, porém Hades se esquivou do toque.

— As coisas que me disse, que fizemos juntos... Foi tudo fingimento?

— Não! — Lina sentiu um nó no estômago ao ver que ele tornava a se fechar. Estendeu a mão, porém, mais uma vez, ele se afastou dela. — Tudo o que eu disse, tudo o que eu fiz foi sincero! Apenas este corpo é uma mentira. Todo o resto é real. Amar você é a minha mais pura verdade!

— Como o amor pode ser baseado em uma mentira? — ele retrucou, frio.

— Por favor, não faça isso! — Lina insistiu, tentando alcançar o homem dentro do deus. — Não permita que nos separem assim... Não podemos ficar juntos, tenho que voltar para o meu mundo, mas não quero me lembrar desse tipo de palavras quando estivermos ­separados!

— Não implore pelo amor dele como uma mortal, Carolina. — A voz de Deméter a interrompeu. — Ainda tem dentro de você o suficiente de uma deusa para ter mais orgulho.

Lina se virou para encará-la.

— Você causou isso! Hades me ama. Está se sentindo traído apenas por causa da sua insistência em manter uma mentira! E eu não posso culpá-lo... De que outra forma ele poderia se sentir?

Deméter arqueou uma sobrancelha.

— Acredita que ele a ama, Carolina Francesca Santoro? Então vamos testar a sua crença nesse amor imortal...

Com um movimento do pulso, Deméter regou Lina com faíscas douradas.

Ela sentiu o corpo tremer e, de repente, viu-se terrivelmente tonta. Fechou os olhos, lutando contra a náusea. Logo depois, uma estranha sensação a preencheu: como se tivesse acabado de voltar para um confortável par de jeans .

Antes de abrir os olhos, já sabia o que veria. Do outro lado da sala, o espelho que cobria toda a parede, o mesmo em que ela havia se olhado naquela manhã, refletiu uma nova imagem.

Era seu velho corpo outra vez. Fora-se o corpo esbelto da jovem deusa. Suas curvas ficaram mais acentuadas, ela era mais velha e, decididamente, não era perfeita.

— Você é uma mortal! — A voz de Hades soou estrangulada.

Lina desviou o olhar do espelho para pousá-lo no deus. Ele a fitava, e seu rosto era uma máscara de choque e descrença.

— Sim, eu sou uma mortal — confirmou. Endireitando os ombros, deixou cair o lençol, expondo-se por inteiro. — E também sou a mulher que o ama.

Ele virou o rosto, recusando-se a olhar para ela.

— Como pôde mentir esse tempo todo?

— Que bem teria feito a verdade? — Deméter interveio, indignada. — Você a teria evitado como está fazendo agora. — Seu tom tornou-se sarcástico. — Ao menos possuiu o corpo de uma deusa finalmente, senhor dos Mortos. A ironia é que terá de agradecer a uma mortal por isso. Nenhuma deusa de verdade haveria de querê-lo.

O rosto de Hades ficou branco como cera, e ele travou o maxilar. Quando seus olhos encontraram os de Lina, ela só viu raiva e repugnância refletidas neles.

— Saia do meu reino — ele ordenou com uma voz que fez arrepiar seus braços.

— Vamos, Carolina... Seu tempo aqui acabou. — Deméter se pôs ao lado dela e a cobriu com seu manto.

E, sem mais nenhuma palavra, fez o Palácio de Hades desaparecer de seu entorno.


Capítulo 25

A campainha sobre a porta da frente da Pani Del Dea tilintou alegremente, permitindo a entrada de outro fluxo de clientes, bem como uma rajada de ar frio.

— Brr — Anton estremeceu. — Que droga! O inverno chegou, mesmo. Minha pele está um horror!

— Os meteorologistas estão prevendo mais neve do que o normal nesta temporada. É melhor fazer um bom estoque de hidratantes e comprar sapatos mais apropriados — Dolores observou, apontando os pés do colega.

— O que há de errado com os meus? — Anton respondeu, amuado, virando o pé de um lado para o outro, de modo que a padaria inteira pudesse admirar suas botas de cowboy de pele de enguia pretas, brilhantes, de ponta fina e salto sete.

— Lina! — ele chamou do outro lado do salão. — Acha mesmo que eu preciso de sapatos novos?

Ela olhou por cima da máquina de cappuccino . Queria dizer que não se importava com sapatos, nem com clima, nem com nada... mas a expressão ansiosa de Anton a lembrou de que precisava disfarçar. Precisava continuar fingindo, não importando como realmente se sentia.

— Suas botas estão perfeitas, meu querido. Mas lembre-se de que o meu seguro não cobre tombos fora da padaria.

Risos ecoaram na Pani Del Dea. Os clientes sorriram e passaram a fazer seus pedidos. Todos pareciam felizes. O negócio vinha crescendo a olhos vistos e, nas duas últimas semanas após ela ter voltado, Lina se surpreendera com as mudanças que Perséfone implementara durante os últimos seis meses.

A deusa da Primavera tinha mesmo operado milagres por ali. Sua campanha publicitária fora um prodígio. Novos clientes lotavam a loja dia e noite, a maioria deles clamando por algo em que pudesse espalhar o incrível cream cheese de ambrosia que era oferecido exclusivamente na Pani Del Dea. A criação de Perséfone era um sucesso.

E não fora apenas essa a mudança feita pela deusa. Em vez de começar a trabalhar com menus para eventos, como ela, Lina, imaginara que deveria, Perséfone introduzira a padaria no comércio virtual. Oferecia pela internet uma cesta com uma enorme ­variedade de seus melhores pães, como o gubana, acrescentava uma lata pequena de cream cheese de ambrosia e a despachava para todos os Estados Unidos... por um preço escandalosamente alto.

Mesmo assim, o novo serviço vinha crescendo cada vez mais. Perséfone tinha até mesmo contratado um novo funcionário em tempo integral, apenas para que este cuidasse desses pedidos pela rede.

Lina não se conformava. Fora necessária a vinda de uma deusa antiga para que ela enxergasse o potencial da internet. Agora sua dívida com a Receita poderia ser paga três vezes... assim como Deméter havia prometido. Tudo estava bem.

E ela se sentia tão infeliz que tinha vontade de morrer.

Não. Não queria pensar em morte, nem em espíritos... muito menos no senhor do Submundo.

O sino sobre a porta tiniu outra vez.

— Olá, bonitão — Anton saudou, brincando.

— Tudo bem, Anton? Bonitas botas... — falou uma voz máscula e profunda.

Anton riu, todo alegre.

Lina apertou os lábios e se preparou, feliz por ter a máquina de cappuccino entre ela e o visitante. Ao menos ele não tentaria beijá-la.

— Boa noite, Lina.

— Olá, Scott. — Ela suspirou e olhou para o rapaz alto e musculoso, notando os cabelos loiros, de corte impecável, e os olhos azuis que a fitavam com adoração. Ele vestia um terno bem cortado, gravata vermelha, e o traje nada fazia para camuflar seu físico impressionante, pelo contrário: o corte italiano o acentuava. Não pela primeira vez, Lina pensou que Scott poderia ter sido um jovem Apolo se o deus da Luz viesse à Terra como um bem-sucedido ­advogado de Tulsa.

Não era difícil entender por que Perséfone tinha se sentido atraída por ele. O fato não a surpreendera em nada.

O que não entendia era por que ele se mostrava tão encantado com o seu retorno.

— Ainda tenho ingressos para a primeira fila de Aida... Pensei em ver se mudou de ideia. Não quero ir à ópera sem você — insistiu Scott.

— Obrigada, mas não. Eu realmente não posso.

— Por que, Lina? Não compreendo. Duas semanas atrás...

— Aqui não, Scott — ela o interrompeu, mortificada por a padaria inteira estar em silêncio, acompanhando a cena, embora fingissem que nada acontecia.

— Então quando e onde? Está me evitando há duas semanas. Mereço uma explicação.

Saber que ele estava certo não fez Lina sentir-se menos miserável, nem tornou sua decisão menos certa. Scott era lindo e incrivelmente sexy . Somado a isso, parecia um sujeito agradável e honesto.

Mas ela não sentia nada por ele.

Seria tão mais fácil se estivesse apaixonada! Perder-se numa paixão juvenil até soava como uma boa ideia.

Ela até tentara sair com Scott, mas, quando ele a tocara, não havia sentido nada, exceto aquele vazio dolorido dentro dela. Scott não conseguiria fazê-la esquecer.

— Venha — chamou. Saindo de trás do balcão, segurou-o pelo braço e o levou até a porta.

Enquanto deixavam a padaria, Lina ainda pôde ouvir Anton suspirando tristemente.

— Que desperdício!

A noite estava fria, e ela já devia ter colocado as pequenas mesas e cadeiras da calçada para dentro, mas, como precisava de uma barreira entre ela e o rapaz, ficou feliz por não ter feito isso. Sentou-se a uma das mesas, e Scott se acomodou numa cadeira à sua frente.

Antes que dissesse qualquer coisa, ele mudou de posição, sentando-se junto dela. Ao vê-la estremecer, tirou o paletó e o ajeitou em seus ombros. O casaco estava quente e cheirava a uma daquelas colônias pós-barba caras e másculas. Scott teria segurado sua mão, porém Lina a manteve fora de seu alcance, no colo.

— Scott — começou, desejando sinceramente que o modo ­sensual como a camisa branca assentava no peito musculoso a fizesse sentir mais do que admiração por aquela bem tonificada compleição física. — Eu já lhe disse antes... Não há mais nada entre nós. Eu gostaria que compreendesse isso e esquecesse tudo.

Ele balançou a cabeça.

— Não posso. Não há nenhuma razão para isso. Apenas duas semanas atrás estava tudo bem... Melhor do que bem. Então um dia eu acordo e, zás! , está tudo acabado? Não há explicação. Depois de quase seis meses, você me dispensa sem nem mesmo dizer que asneira eu fiz?

— Não fez asneira nenhuma. Merda! Eu já lhe disse isso antes: o problema é comigo.

Você é perfeito , acrescentou em silêncio. Jovem, bonito, bem-sucedido e atencioso. Scott precisava encontrar uma moça linda como ele e estabelecer-se nas redondezas após conseguir um belo financiamento. Em seguida, devia ter dois ou três filhos e um cachorro.

— Então me diga outra vez. Não compreendo como pode, de repente, estar tão diferente! O que aconteceu?

— Você é moço demais para mim — Lina falou, sincera.

— Pare com isso! Tenho vinte e cinco anos, não quinze! Não sou tão jovem assim.

— O problema é que eu estou velha demais para você.

— Claro que não... — Scott se inclinou para a frente e puxou sua mão do colo, mantendo-a entre as suas. — Não me importo que esteja com quarenta e três anos. Ainda é bonita e sexy , mas também muito mais do que isso. Seu coração é jovem, você ilumina tudo por onde passa, Lina. Quando estávamos juntos, você me fazia sentir como um deus.

Ela sorriu tristemente.

— Não sou mais assim. Não me sinto mais assim. — Levantou-se e tirou a mão da dele. Em seguida deixou cair o paletó dos ombros e o entregou de volta. — Não posso lhe dar o que você precisa. Não tenho mais isso dentro de mim. Por favor, Scott, não me procure mais.

— Não... — Ele balançou a cabeça. — Estou apaixonado!

— Está bem, então aqui vai a verdade: estou apaixonada por outra pessoa.

O rapaz se endireitou na cadeira e franziu o cenho.

— Outra pessoa?

— Sim. Eu não queria que acontecesse, mas aconteceu. Sinto muito. Eu não queria magoar você.

O rosto bonito de Scott corou, e Lina o viu erguer uma barreira de orgulho entre eles. Ele se levantou, o maxilar cerrado, porém seus olhos continuaram tristes.

— Eu não tinha percebido que havia mais alguém, mas devia ter desconfiado. Você é boa demais para estar sozinha. Peço desculpas por tê-la incomodado. Adeus, Lina.

— Adeus, Scott — ela respondeu enquanto ele se afastava a passos rápidos da padaria.

Sentindo-se com setenta e três anos, em vez de quarenta e três, Lina readentrou a loja.

Anton, Dolores e os demais a fitaram cheios de expectativa, mas, quando viram que ela se encontrava sozinha, desviaram o olhar rapidamente.

— Acho que vou para casa mais cedo hoje — Lina anunciou com um suspiro.

— Sem problemas, patroinha. — Anton sorriu e afagou-lhe o braço, maternal.

— Nós fechamos a casa, pode deixar — emendou Dolores. — Precisa se dar algum tempo... Tem trabalhado muito pesado.

Anton anuiu com um gesto de cabeça.

— Por que não dorme até mais tarde amanhã, depois faz uma boa massagem e um tratamento facial? Sabe... naquele lugar que descobriu alguns meses atrás? Você mesma disse que eles sabiam tratá-la como uma deusa.

— Quer que eu ligue e marque uma hora? — Dolores se ofereceu.

— Não, eu vou ficar bem — murmurou Lina, apanhando a bolsa e o casaco. — Mas está certo, Anton. Acho que vou dormir até mais tarde amanhã. — Tentou sorrir para os dois, contudo seus lábios não formaram mais do que uma careta.

— Ah... Estamos quase sem cream cheese de ambrosia. É melhor preparar mais um pouco. Aliás, você bem que poderia nos dar a sua receita secreta — observou Dolores, balançando as sobrancelhas para a chefe.

— Sim, até já prometemos não vendê-la para terroristas ou para essas padarias industrializadas! Mesmo que esse cream cheese maravilhoso fosse dar vida nova àqueles bolinhos horríveis que eles fazem — Anton estremeceu dramaticamente.

Lina tentou recobrar seu senso de humor.

— Uma mulher tem que ter seus segredos. — Piscou para o empregado e pendurou a bolsa no ombro. — Eu os vejo amanhã à tarde com um barril inteirinho de cream cheese de ambrosia — prometeu, atravessando a porta.

Seus funcionários a observaram. Assim que ela estava fora de vista, encontraram-se atrás do balcão e uniram as cabeças.

— Há algo errado com ela — afirmou Dolores.

— Claro que há! — emendou Anton. — Pois então ela não rompeu com aquele “pedaço de mau caminho”?

— É pior do que isso. — A moça suspirou. — Lina gostava de Scott, mas tenho a sensação de que ele nunca significou mais para ela do que um passatempo agradável. Terminar com ele não a deixaria tão triste.

Anton pensou por um momento, depois acedeu.

— Tem razão. Deve ser outra coisa. É como se ela não fosse a mesma pessoa novamente. Lembra-se de como agiu estranho há alguns meses?

— Claro que me lembro. Mas Lina estava preocupada em perder a padaria.

— Bem, ela salvou a Pani Del Dea, e isso lhe fez muito bem. Lina mudou por completo. Comprou roupas diferentes, começou a andar de patins ao longo do rio... Juro que ela perdeu uns dez quilos!

Dolores assentiu.

— Até mudou o cabelo.

— E começou a namorar homens mais novos! Aliás, que homens! — Anton comentou.

— Então, qual é o problema? Até aí não há nenhuma novidade. O que isso tem a ver com o que está acontecendo com ela agora? — questionou a funcionária.

Anton encolheu os ombros.

— Será que é uma crise retardada de estresse? Ou talvez seja uma síndrome de dupla personalidade se manifestando na meia-idade.

Dolores revirou os olhos.

— Tem que parar de assistir tanto ao Discovery Health ! O que eu imagino é que ela tenha, mesmo, trabalhado demais e agora precise de férias.

— Que droga! Você sempre estraga o efeito dramático da coisa! — protestou Anton.

— Vamos simplesmente manter um olho nela e poupá-la do trabalho tanto quanto nos for possível, OK?

— OK.


Capítulo 26

— Sim, sim, eu sei, eu também te amo! — Lina lutou para passar pela porta, lidando com sua entusiasmada buldogue que babava. — Edith Anne, quer se comportar? Deixe-me tirar o casaco e pendurar a bolsa. — A buldogue recuou meio passo, ainda ganindo e se contorcendo.

Indignado, Patchy Poo the Pud saltou de seu lugar cativo na espreguiçadeira e começou a se esfregar nas pernas dela, queixando-se, com miados estridentes, de que ela não estava lhe dando atenção.

— Seus malucos — Lina murmurou, pendurando o casaco. — OK, venham aqui. — Sentou-se no meio do vestíbulo e permitiu que Edith subisse em seu colo enquanto coçava Patchy debaixo do queixo.

A buldogue a lambeu feliz. O gato ronronou.

Lina suspirou.

— Bem, pelo menos vocês dois sentiram falta do meu verdadeiro eu...

Seus bichos de estimação pareciam tão bem alimentados e saudáveis quanto na noite em que Deméter a transportara para longe. Desde o momento em que ela reaparecera no meio da sala, contudo, os dois não queriam deixá-la mais fora de vista e a seguiam de cômodo em cômodo. Patchy Poo the Pud chegava ao cúmulo de ficar do lado de fora do banheiro, miando enlouquecedoramente se ela não o deixasse entrar.

— Vocês precisam relaxar! — Lina repreendeu as criaturas adoráveis. Mas, no fundo, estava gostando que eles estivessem tão contentes por ela ter voltado.

Pelo menos não era uma decepção para eles. Todos os outros a olhavam como se, de repente, ela tivesse um terceiro olho...

Não, não era isso. As pessoas não a vinham tratando como se ela estivesse fazendo algo estranho: tratavam-na como se ela não estivesse fazendo coisa alguma; como se esperassem mais dela.

Como Perséfone tinha sido mais “Lina” do que ela própria?

Suspirou e empurrou Edith Anne para fora do colo. Perséfone era uma deusa. Era claro que as pessoas desejavam que ela fosse como Perséfone. Quem não gostaria de viver às voltas com uma divindade?

Hades...

Seus pensamentos sopraram o nome antes que pudesse evitar. Hades tinha gostado de estar com ela mais do que com qualquer deusa.

Lina balançou a cabeça.

— Não —lembrou a si mesma. — Isso não é verdade. Ele só quis ficar comigo enquanto pensava que eu era Perséfone.

Recordou-se da expressão dele no momento em que vira quem ela realmente era.

— Não! — gritou para si mesma. Não pensaria mais naquilo.

Tinha de se recompor. Vinha agindo como uma adolescente rejeitada por duas semanas. Já fora magoada antes, por que agora seria diferente? Não estava passando por outro divórcio.

Lina olhou o corredor vazio sem ver. Não era como um divórcio. Era pior.

Por que sentia como se parte dela, sua melhor parte, estivesse faltando?

Lembrou-se da noite em que ela e Hades tinham visto o casal bebendo do rio Lete. Ele havia dito que almas gêmeas sempre se reencontravam.

Mas o que acontecia quando estas estavam separadas pelo tempo e habitando dois mundos diferentes? Será que seus corações se tornavam estéreis? Será que sua capacidade para a felicidade minava até que eles se transformassem em conchas vazias e ambulantes, passando pela vida sem qualquer emoção, sem se sentir vivos?

De qualquer modo, não era o que estava acontecendo com ela. Hades não poderia ser sua alma gêmea, pois a tinha rejeitado.

E ela já estava velha demais para continuar apaixonada por alguém que não poderia ter. Cometera um grave erro. Agora teria simplesmente que superar aquilo e tocar a vida.

Mas ficaria bem. Tudo daria certo. O tempo faria com que não doesse tanto.

Edith Anne gania enquanto Patchy Poo the Pud se esfregava em suas pernas, preocupado.

Lina empurrou para longe a tristeza de seu coração e endireitou os ombros.

— OK, vocês dois. Vamos fazer um pouco de cream cheese de ambrosia.


Não importava quantas vezes ela o lesse, o papel ainda lhe causava um estranho pressentimento. A folha em que a receita fora escrita era de seu bloco pessoal, com as iniciais “CFS” impressas na parte superior, e na fonte Copperplate Gothic Bold, de que ela tanto gostava. As palavras tinham sido traçadas com sua caneta azul favorita, e a caligrafia era idêntica à dela própria.

Mas não havia escrito aquilo. Encontrara a receita colada com fita adesiva à tigela de Edith Anne no dia em que Deméter a trouxera de volta e quase a ignorara. Afinal, parecia feita em sua própria caligrafia. Tinha imaginado que fosse apenas uma nota qualquer, lembrando-a de comprar mais ração, guloseimas ou outro item da parafernália própria de um cão.

Então, finalmente registrara a saudação Querida Lina , e seus olhos haviam voado para o final do bilhete: Com meus votos de muita alegria e magia, Perséfone.

Levara a mensagem para a sala a fim de lê-la. Em seguida, assim como fazia naquele momento, pensara como era bizarro que ela e Perséfone possuíssem letras idênticas.

Querida Lina,

Os seis meses estão chegando ao fim, mas parece que estou aqui há muito mais tempo. Este se passa, mesmo, de forma diferente no seu mundo. Minha mãe me chamará em breve, e quero ter certeza de que você terá a receita para a ambrosia. Nossos clientes a adoram, e não quero vê-los desapontados.

Que estranho! Só agora percebi que os chamei de “nossos clientes”...

Mas eu os considero como tais. Seus amigos mortais são boas pessoas. Vou sentir falta deles.

Mas não do seu gato ou dessa cadela babona, embora o seu bichano preto e branco finalmente tinha se dignado a dormir comigo, e ontem a cadela tenha latido de modo protetor para um estranho que tentou me abordar enquanto eu brincava na beira do rio.

É... Talvez eu sinta falta deles.

Lembre-se de se divertir na vida, Lina. Você foi muito abençoada.

Com meus votos de muita alegria e magia ,

Perséfone

A receita de cream cheese fora cuidadosamente escrita no verso da nota.

Lina a estudou mais uma vez. Não queria segui-la, porém Perséfone estava certa: seus clientes a amavam, e ela também não queria decepcioná-los.

Encheu outra vez o copo de Pinot Grigio , deixando a garrafa no balcão, ao lado do pote que ela já preenchera com creme de queijo batido. Não precisou checar o calendário para saber se era lua cheia. Tudo o que teve de fazer foi olhar pela janela da cozinha.

Não havia dúvida: uma lua redonda e branca cintilava no céu claro.

— Vamos acabar logo com isso. Como se você não estivesse acostumada à magia! — Apanhou um copo medidor do armário. — E pare de falar sozinha!

Colocou a receita no balcão e começou a seguir os passos que a fariam produzir o cream cheese de ambrosia.

A receita de Perséfone era prolixa, e Lina tomou um gole do vinho enquanto a lia.

Encha aquele bonito pote amarelo – aquele da cor das madressilvas selvagens – com cream cheese. Deixe o queijo amolecer. (E, Lina, não utilize aquelas misturas de baixa caloria horrorosas... Seu sabor chega a ser uma blasfêmia!)

Lina não pôde evitar sorrir. Ela e Perséfone tinham a mesma opinião quanto a cozinhar com ingredientes de baixa caloria.

Em seguida, adicione um copo do seu vinho branco favorito ao creme de queijo e misture bem. O tipo do vinho não é importante, contanto que não seja muito doce. (Aliás, Lina, eu adorei aquele Santa Margherita Pinot Grigio que encontrei em seu refrigerador. Espero que mamãe me dê tempo suficiente para repô-lo antes de ela nos destrocar! Caso contrário, peço desculpas por acabar com o seu estoque.)

Lina riu.

— Desculpas aceitas.

Realmente, quando ela voltara não tinha uma só garrafa de vinho branco.

Após adicionar a bebida ao creme, beba o que restou na garrafa. (E, Lina, não subestime a importância desta etapa!)

Lina serviu-se de mais uma dose de vinho após acrescentar a primeira ao cream cheese . Tentou não engolir tudo de uma vez, mas queria acabar logo com aquilo.

Quanto mais bebia, mais fácil era para ela admitir: Perséfone devia ser divertida.

Leu o restante da receita, já com um sorriso induzido pelo álcool nos lábios.

Em uma noite de lua cheia, pegue a mistura e coloque-a sob o velho carvalho. Você já o conhece. Fica no pátio, próximo à fonte. Espalhei um pouco da magia da primavera por lá. (Não se surpreenda se vir uma ninfa ou duas, embora elas morram de vergonha de se mostrar no seu mundo). Antes de deixar a mistura na árvore, deve dar três voltas completas no tronco dançando, e, ao mesmo tempo, concentrar os pensamentos na doce beleza da noite. (Lina, não precisa fazer nenhum passo específico de dança. Basta ouvir a sua alma e se divertir! Aposto que seu corpo vai surpreendê-la, assim como me surpreendeu...)

— Ahn? — ela gemeu e releu a linha. — “Assim como me surpreendeu”?

Não tinha ideia do que Perséfone queria dizer com aquilo.

Mas os olhares penetrantes que Scott lhe lançara e a dificuldade que ele havia tido para manter as mãos longe dela eram uma pista.

Não que ela houvesse se mantido muito casta no corpo de Perséfone.

Mas não queria pensar naquilo.

Voltou a atenção para o final da receita:

Vá buscar a mistura pronta na manhã seguinte. Para consumo mortal, deve diluí-la dez vezes. (Tenha cuidado, Lina. Não imagino o que aconteceria se Anton a experimentasse em sua forma original!)

— Novidade... Ele decerto criaria asas e voaria como uma ­ninfa! — Lina murmurou, rindo.

Recompôs-se novamente. Perséfone tinha acabado de fazê-la rir duas vezes! E nem estava ali. Não era à toa que todos a amavam tanto.

— Bem, crianças — disse a Patchy Poo the Pud e Edith Anne. — Vou terminar esta última taça de vinho, depois levar este pote “cor de madressilva”, colocá-lo sob aquela árvore velha, fazer algumas piruetas, e, em seguida, me jogar na cama. — Deixou escapar um soluço, e seus animais de estimação a fitaram com olhos acusadores. Eles sempre sabiam quando ela havia bebido demais.

Lina passou um braço em volta do pote e rumou para a saída com a visão turva. Edith Anne, claro, ficou bem no meio do caminho.

— Não se preocupe, garota. Não vou a lugar nenhum sem você. — O lado bom de a cadela ser tão ligada a ela era que nem precisava se preocupar mais com uma guia. — Vamos voltar logo, prometo! — disse a Patchy Poo the Pud, que as observava com um misto de desdém e preocupação.

A noite tinha ficado mais fria, e Lina desejou ter apanhado um casaco. Mas a blusa de cashmere de gola alta que Perséfone adicionara ao seu guarda-roupa era confortável e quente, mesmo sendo de um rosa delicado, mais apropriado a uma adolescente do que a uma mulher de meia-idade.

Sem dizer que ela sempre ganhava elogios quando a usava.

Esqueça , disse a si mesma. Não sentia nem vontade de se preocupar com roupas. E, se não estava disposta a ir às compras, não havia muito que pudesse fazer a respeito.

Sem dizer que, em seis meses, Perséfone tinha substituído cada item em seu armário. Tudo. De sapatos e jaquetas a sensuais calcinhas e sutiãs de seda.

— Onde aquela criatura encontrou tempo para isso? — perguntou a Edith Anne.

A cadela bufou em resposta, mantendo o ritmo a seu lado.

Lina abanou a cabeça.

— Eu não sei. Perséfone deveria ser renomeada a deusa do ­Shopping em vez de a deusa da Primavera.

Deu uma risadinha. Para falar a verdade, estava mesmo um pouco bêbada. Só podia estar se continuava rumando para aquele lugar outra vez...

Seguiu o caminho de paralelepípedos que ligava o condomínio ao pátio central e ouviu a fonte antes mesmo de avistá-la. Seis meses e duas semanas antes, esta tivera um efeito calmante sobre ela. Naquele momento, porém, conforme se aproximava, sentia o estômago cada vez mais apertado.

Por sorte, a área se encontrava deserta. Lina olhou para o relógio, torcendo o pulso para que a marca fosse iluminada pela luz da lua cheia: 22h45. Como havia ficado tão tarde?

Respirando fundo, aproximou-se do velho carvalho. O mesmo em que descobrira o bonito narciso.

E este se encontrava exatamente como seis meses antes. Naquela ocasião, os galhos haviam estado nus, exceto por botões à espera de desabrochar. Agora, os ramos se apresentavam quase desnudos outra vez, e havia apenas umas poucas folhas da cor de sacolas de papel presas a estes.

Olhou mais embaixo. Raízes grossas e retorcidas cruzavam o chão a seus pés.

Devagar, ela circundou o tronco, estudando as sombras. Exceto pela poeira e pelas raízes, a área em torno da base da árvore estava vazia. Não havia nenhuma flor que cheirasse à primavera e a primeiros beijos ao luar...

Mas o que ela esperava?

Franzindo as sobrancelhas, Lina assentou o pote de creme de queijo e o vinho em um nicho meio achatado entre as duas raízes junto ao tronco da árvore. Então recuou.

Em sua mente, pôde ler as instruções de Perséfone:

Antes de deixar a mistura na árvore, deve dar três voltas completas no tronco dançando, e, ao mesmo tempo, concentrar os pensamentos na doce beleza da noite. Está bem , pensou, esfregando as mãos. Vou pensar em como a noite está bonita, dançar em volta do carvalho, e pronto.

Olhou ao redor. Exceto por Edith Anne, que continuava sentada a poucos metros dali, observando-a atentamente, o pátio continuava deserto.

— Ainda bem... Ou pensariam que eu sou louca.

Edith bufou mais uma vez.

— Não se preocupe, isto não vai demorar muito.

Pense sobre a beleza da noite , Lina disse a si mesma.

Olhou para cima. A lua estava realmente bonita, parada lá como um disco de prata iluminado por dentro.

Deu um passo hesitante, levantando as mãos acima da cabeça, e se virou. A luz do luar perpassou os galhos da árvore e acariciou o cashmere que lhe cobria os braços, tingindo-o de um rosa prateado que lembrava o peito de uma pomba. Lina pulou uma raiz, surpresa com a graça com que seu corpo efetuou o movimento, e circundou o carvalho uma vez.

Uma brisa suave soprou através dos ramos da velha árvore, e as folhas secas entoaram uma suave melodia de outono. Ela levantou os braços e rodopiou enquanto erguia o rosto para o céu e deixava a lua lhe acariciar a pele. A noite se espalhava, linda e mágica, quando circundou a árvore pela segunda vez.

Ficou na ponta de um pé, lançou a perna para a frente, e logo pensou ouvir um zumbido de vozes femininas em harmonia com o ruído das folhas. Pelo canto do olho, percebeu silhuetas familiares se juntando a ela no círculo de dança. Elas cintilavam, e suas asas zuniam melodicamente.

Com os braços estendidos, Lina pulou, girou e se deleitou com a beleza da noite.

E circundou o carvalho pela terceira vez.

Parou. Estava ofegante, e sua respiração se revelava no ar frio como pequenas e mágicas nuvens. Olhou ao redor, porém as ninfas que tinham dançado com ela haviam desaparecido.

Edith Anne se aproximou com seu andar gingado, farejando a base da árvore, curiosa. Pondo as orelhas para a frente, olhou os ramos do carvalho logo acima.

— Elas se foram — explicou Lina. — Vamos, garota... É hora de irmos também.

A dança havia deixado seu corpo mais vivo do que estivera nas últimas duas semanas. Talvez ela devesse dançar mais vezes.

Anton e Dolores também haviam lhe questionado várias vezes sobre o porquê de ela, de repente, ter parado de andar de patins ao longo do rio...

Lina pensou a respeito. Ela nunca havia andado de patins.

Mas Perséfone, obviamente, o fizera muitas vezes. Seus funcionários nem precisariam ter lhe contado isso... Seu corpo diminuíra pelo menos um tamanho, e suas pernas e nádegas se apresentavam bem mais firmes do que quando tinha vinte anos.

Caminhou de volta para o condomínio e, antes que mudasse de ideia, foi direto para casa, arrancou os sapatos e a roupa, e ficou nua diante do espelho que cobria a parede. Parecia bem mais nova do que uma mulher de quarenta anos agora. Exceto pelas manchas escuras sob os olhos, estava com a pele até mais viçosa e saudável. E usava o cabelo como Perséfone usara: nos ombros e com os cachos soltos, meio rebeldes. Seus seios já não eram tão perfeitos e empinados, porém cheios e sensuais. Sua cintura continuava delgada, e os quadris se curvavam graciosamente até as coxas firmes, as quais desciam para pernas bem torneadas.

Sorriu com o pensamento. Ela era bonita, inteligente, sexy e bem-sucedida: tudo o que um homem deveria querer.

— Já é hora de superar sua dor, Lina — disse a si mesma.

Conformada, apagou a luz do banheiro e se enfiou na cama. Sentiu o colchão afundar quando Patchy Poo the Pud se aninhou junto a seu quadril. Como de costume, Edith Anne deu duas voltinhas e, com um suspiro, se acomodou em sua própria cama.

Lina fechou os olhos. Antes de adormecer, fez uma promessa a si mesma. Na manhã seguinte começaria de novo.

Perséfone tinha razão: ela fora ricamente abençoada.


A deusa da Primavera estava distraída quando sentiu sua magia ser utilizada. Tão discretamente quanto lhe foi possível, Perséfone se desculpou e interrompeu a conversa cansativa com Hermes e Afrodite. Os imortais se despediram dela com um aceno e continuaram a debater se as Limoníades, as ninfas dos prados e das flores, eram mais belas do que as Napaeae, ninfas dos vales. Nem se importaram que a jovem deusa estivesse deixando a discussão. Ela era especialista em ninfas da floresta, mas vinha agindo de modo reticente e não tivera nada de divertido a acrescentar sobre o assunto. Na verdade, eles quase não notaram sua partida.

Mas Deméter notou.

— Filha, aonde está indo?

Perséfone fez uma pausa e esboçou uma expressão inocente de tédio antes de se virar para a mãe.

— Ora, mamãe, sabe que eu não suporto ficar trancada aqui enquanto as flores estão desabrochando. Os prados me chamam.

— Está bem, criança. Espero vê-la esta noite no Festival de Chloaia.

— Claro. — Perséfone se curvou e deixou a mãe na sala do trono.

Deméter observou a filha partir com os olhos estreitados, pronta a admitir para si mesma que trocar a mortal por Perséfone fora um erro.

Verdade que seu plano tivera o efeito desejado. A jovem deusa havia amadurecido. Para sua surpresa, continuava a ser chamada de rainha do Submundo, e os familiares dos mortos cessaram com as súplicas.

Mas a que preço? Desde seu retorno, Perséfone vinha se comportando de uma forma mais sóbria. Raramente dava festas e havia parado de se relacionar com semideuses. Mas também andava com o humor instável e distraída. Grande parte de seu brilho tinha esmaecido.

Deméter se preocupou com a filha, assim como com Carolina Francesca Santoro. A mortal parecia ter firmado lugar na consciência da jovem deusa, e aquele não era um arranjo muito confortável.

Suspirou. Não conseguia esquecer a tristeza no rosto de Lina quando Hades a rejeitara. No final, ela havia lhe causado uma ­grande dor, e não fora essa a sua intenção.

Depois começaram aqueles rumores preocupantes. Os imortais diziam a boca pequena que Hades enlouquecera, que não recebia absolutamente ninguém. Fora dito ainda que ele se recusara até mesmo a conceder uma audiência a Zeus, quando este adentrara seu obscuro reino.

— Irene — Deméter chamou sua velha amiga. — Preciso fazer algo a respeito de Hades.

— Outra vez? — perguntou a mulher.

— Outra vez — confirmou a grande deusa.


Por meio do oráculo da mãe, Perséfone assistiu à dança em torno do carvalho e sorriu quando pequenas ninfas se juntaram a Lina. O corpo da moça girava e saltava com uma graça que não era exatamente mortal.

— Seu corpo se lembra — a deusa da Primavera sussurrou para o oráculo. — Ele foi abençoado pela presença de uma deusa e nunca mais será o mesmo.

Assim como ela nunca mais seria a mesma, concluiu em silêncio. Carolina tinha saído de seu corpo, mas havia deixado para trás uma parte de sua essência.

Distraidamente, acariciou o narciso de ametista que lhe pendia entre os seios. A corrente se quebrara, porém ela o mantivera amarrado ao pescoço. Poderia removê-lo e mandar que o consertassem, mas relutava em se separar dele. De alguma forma, o contato com o pingente a acalmava.

Lina concluiu a dança e voltou para casa. Perséfone a viu nua diante do espelho, e seu sorriso espelhou o da mortal. Estava orgulhosa das mudanças que havia operado nela. Ainda se lembrava do ardor nos músculos cansados e da satisfação em ver o corpo da mortal ficar cada dia mais esbelto e flexível, bem aos moldes de uma deusa.

Quando Lina deslizou para a cama, Perséfone quase pôde sentir o corpo quente e macio do gato pressionado de modo familiar contra seu próprio quadril.

A imagem no oráculo rodopiou e desapareceu.

— O que foi, minha filha? Por que você e a mortal estão tão infelizes?

A voz de Deméter a fez pular, cheia de culpa.

— Não — Deméter continuou antes que ela saísse com uma desculpa. — Não quero palavras vazias, destinadas a aliviar os meus sentimentos. Quero a verdade.

Perséfone encontrou os olhos da mãe. Se ela queria a verdade, então que fosse.

— Sinto falta dele, mamãe. Eu não pretendia, mas caí de amores pelo mundo de Lina. É tão desorganizado, mas tão mais vibrante e vivo! E eles não sabiam que eu era uma deusa. Não sabiam que eu era sua filha e, mesmo assim, me receberam de braços abertos.

— Não foi Carolina que eles abraçaram? — Deméter perguntou gentilmente.

— Não. Eu usava seu corpo, mas a alma era minha.

Deméter abanou a cabeça, tristonha.

— Carolina me disse a mesma coisa, mas eu não a ouvi. Creio que foi um erro.

— E se houver uma maneira de corrigir seu erro?

— Desta vez eu gostaria de escutar.

— Ótimo. — Perséfone sorriu com carinho para a mãe. — Eu tenho uma ideia.


Capítulo 27

— Tem certeza de que quer que eu saia mais cedo? Não me importo de ficar — indagou Dolores.

— Não, querida. — Lina acenou com um guardanapo de linho para ela. — Eu insisto. A padaria não está muito cheia, e vamos fechar em trinta minutos. Anton e eu podemos dar conta.

— Bem, se está certa disso... — Dolores comentou, em dúvida.

— Ora, vá embora de uma vez! Lina e eu vamos nos virar bem sozinhos. Acha que eu sou algum incompetente, por acaso? — ­Anton exigiu, irritado.

— Eu nunca o chamei de incompetente... ao menos não na sua frente! — Dolores riu da própria piada.

Anton respondeu no seu melhor sotaque sulista:

— Eu nuuuunca vou ser bonzinho contigo outra vez! — entoou, erguendo o punho no ar.

Lina riu.

— Não acho que Scarlet O’Hara teria usado essas botas.

— Teria se ela fosse gay — ele rebateu, presunçoso.

— Está bem, crianças, já estou saindo. — Dolores abriu a porta, depois hesitou, sorrindo para Lina. — É bom ver você rindo de novo, chefe... — disse, então saiu, apressada, para a noite de Oklahoma.

Surpresa com as palavras da funcionária, Lina olhou para a porta fechada.

— Ela tem razão — reforçou Anton, tocando-a no braço.

— Obrigada — Ela lhe afagou a mão. — É bom rir de novo. — Eles sorriram um para o outro. — Vou começar a fechar aqui. Por que não termina a massa lá nos fundos? Já deve estar boa para ser cortada e colocada nas assadeiras.

Anton concordou e saiu em disparada pelas portas francesas que separavam a cozinha do café.

Lina tirava a placa da pizza del giorno da parede, a fim de alterá-la para a especialidade do dia seguinte, quando a porta da frente foi aberta.

— Só um momento, por favor! — falou, sem nem mesmo se voltar. — Está com sorte... ainda tenho uma pizza do dia sobrando. Três queijos com manjericão, alho e tomates secos.

— É uma das minhas favoritas, mas venho sonhando com uma fatia grossa de gubana quente com manteiga.

Lina congelou. Aquela voz... Ela a conhecia como a sua própria.

Virou-se e se viu mais uma vez atingida pela beleza da deusa da Primavera. Desta vez, contudo, Perséfone vestia calças jeans e uma confortável malha de lã; e tinha os cabelos longos puxados para trás em um grosso rabo de cavalo. Os trajes simples, entretanto, em nada dissipavam sua beleza única.

— Olá, Lina.

— Perséfone...

A deusa sorriu.

— Está aí algo com que podemos contar: reconheceremos uma à outra até no meio de uma multidão.

— Eu... — Lina passou a mão pela testa como se tentando eliminar sua confusão. — Eu não esperava vê-la. É uma surpresa e tanto.

Antes que Perséfone pudesse responder, o sino da porta soou outra vez, e uma mulher bonita e alta adentrou regiamente a padaria.

Perséfone suspirou e olhou por cima do ombro. Deméter escolheu uma mesa perto da vitrine e sentou-se como se estivesse se preparando para deliberar numa corte.

— Imaginei que mamãe me seguiria — a jovem deusa falou com um suspiro.

Anton saiu apressado da cozinha.

— Deus do Céu, quem poderia imaginar que fôssemos ter esse movimento antes de fecharmos?

Como uma pluma, flutuou até a deusa da Colheita.

— Posso lhe servir alguma coisa?

— Vinho. — Deméter levantou uma sobrancelha. — Tinto.

Anton inclinou a cabeça, considerando.

— Que tal um Chianti ?

— Se é uma sugestão de Carolina, eu a acatarei.

— Está certíssima, minha querida... Nossa Lina conhece vinhos como ninguém — ele elogiou. — Mais alguma coisa?

— Anton? — Lina reencontrou a própria voz. — Pode voltar para a massa. Eu mesma atendo as senhoras.

Deméter levantou a mão para silenciá-la.

— Não, não. Estou adorando este... — devolveu o olhar atento do rapaz — ... jovem. Vocês duas precisam conversar. Ele pode perfeitamente me atender.

Anton lançou um olhar satisfeito na direção de Lina.

— Não posso tentá-la com algo mais do que apenas vinho? Temos uma pizza fabulosa! Prometo prepará-la com as minhas próprias mãos.

— Pizza? — A deusa pronunciou a palavra como se fosse uma língua estrangeira.

— Com queijo, tomate, alho, manjericão... É de morrer!

— Então faça-a para mim — Deméter ordenou com um gesto imperioso.

Anton sorriu.

— Qual é o seu nome, querida? — perguntou antes de se afastar. — Não me lembro de ter visto você aqui antes.

Lina abriu a boca, porém Perséfone sacudiu a cabeça de leve, pedindo em silêncio para que ela se mantivesse calma.

— Pode me chamar de Regina Safra — respondeu Deméter.

— Pois, sra. Safra, uma coisa eu lhe digo: em qualquer outra pessoa esse seu traje pareceria um muumuu de seda. Sabe aqueles vestidinhos havaianos? Mas em você parece algo que uma deusa usaria! Está ma-jes-to-sa!

— Claro que estou —Deméter replicou.

— Vou trazer o seu vinho agora mesmo. — Anton rumou para a cozinha, apressado.

Quando passou por Lina e Perséfone, falou em voz baixa:

— Adoro essas coroas ricas!

Perséfone disfarçou o riso com uma tossidela, enquanto Lina fazia uma careta para o funcionário.

— Regina Safra? — ela sussurrou após Anton desaparecer cozinha adentro.

— Mamãe tem um senso de humor excêntrico, principalmente em se tratando de nomes. Sabia que, em algumas línguas, o meu nome soa apenas como “milho”?

— Estou do outro lado do salão, mas não sou surda.

— Eu sei, mamãe... — resmungou Perséfone.

— Perdão, Deméter — Lina se desculpou.

As duas moças compartilharam olhares que se transformaram em sorrisos.

Em seguida, Perséfone olhou pela padaria com estranheza.

— Dolores não está?

— Eu a deixei sair mais cedo.

A deusa da Primavera assentiu.

— Ela trabalha pesado. Merece uma folga.

— É difícil convencê-la a reservar algum tempo para si mesma. — Lina e Perséfone falaram em uníssono.

Entreolharam-se, surpresas.

— Verdade... — as duas disseram em conjunto mais uma vez.

— Aqui está o seu Chianti e um pouco de pão com azeite picante. — Anton colocou a taça de vinho tinto e uma cesta de pães diante de Deméter. — A sua pizza sairá em um instante. — Passou por Lina, cantarolando Shall We Dance de O Rei e Eu , e deu um tchauzinho para Perséfone.

A deusa riu.

— Senti tanta falta de Anton!

— Nossa, ele a impressionou mesmo.

— Parem de perder tempo — Deméter as repreendeu.

— Mamãe! Por favor, beba o seu vinho... Sua pizza ainda tem que assar. Tente ser um pouco mais paciente. — Perséfone suspirou e se virou para Lina. — Ser filha de uma deusa não é fácil.

— E eu não sei? — ela replicou.

— É mesmo... — Perséfone olhou para o balcão e respirou profundamente. — Eu precisava voltar.

A face de Lina era um ponto de interrogação.

— Por quê?

A jovem deusa encontrou seus olhos.

— Não estou feliz. Sinto saudades da minha... da nossa padaria — ela se corrigiu — e também do seu mundo.

Lina olhou para Deméter, esperando que esta fosse reagir às palavras da filha, entretanto a deusa continuou a sorver seu vinho em silêncio.

— Eu não entendo.

— Não há nada de que sinta falta no Submundo? — Perséfone perguntou numa súplica.

— O que está querendo dizer? — Lina endireitou a espinha.

A jovem deusa procurou os olhos da mortal.

— Não podemos mentir uma para a outra.

— Eu não estou tentando mentir para você — murmurou Lina. — É que...

— ... Dói — Perséfone concluiu por ela. — Eu sei. Eu também tentei não pensar sobre tudo o que havia perdido. Achei que seria fácil deixar tudo para trás.

Lina concordou com um gesto de cabeça, lutando para manter as emoções sob controle.

— Eu vou começar. — O sorriso de Perséfone foi melancólico. — Sinto falta da padaria. De sua agitação, eficiência, de seu cheiro e seus ruídos, e de como é um ponto de encontro para tantos tipos diferentes de mortais. Sinto falta de pequenas coisas, por exemplo, de como Tess Miller tem que tomar seu copo de vinho branco precisamente no mesmo horário todos os dias. Sinto falta do cachorrinho dela, apesar de ele ter chocado tanto Tess ao me desprezar que ela ameaçou levá-lo a um psiquiatra de animais! Os bichos não reagem a mim como reagem a você, sabia? — Perséfone franziu a testa enquanto a fitava. — Essa conexão que tem com os animais é muito estranha.

— Sim, eu sei.

— Mas acho que o que mais sinto falta é da maneira como todos me procuravam para resolver seus problemas. Eles nunca me viram como uma ve rsão mais jovem e incompetente da minha mãe. Ninguém corria para ela, depois de eu tomar uma decisão, para verificar se eu estava sendo sensata. Eles me respeitavam e confiavam em meu ponto de vista.

— Demonstrou ter um excelente julgamento, Perséfone — Lina assegurou. — A padaria está prosperando, todos estão felizes... Merda! Conseguiu até devolver meu antigo corpo!

A deusa lançou-lhe um olhar de franca avaliação.

— Seu corpo era um lugar bem confortável para viver, Lina. Não subestime a sua própria beleza. — Sorriu, travessa. — E há outra coisa de que sinto falta: os homens mortais são tão sensíveis!

— Scott — Lina concluiu, seca.

— Scott — ronronou Perséfone. — Foi um namorico e tanto o nosso.

— Ele se apaixonou por você.

— Claro que sim. — A moça encolheu os ombros. — Mas vai superar e se tornar um homem ainda melhor com a experiência. Saber como agradar a uma deusa é algo que todos eles deveriam aprender.

A ideia fez Lina sorrir.

— Sinto falta até mesmo daquelas duas criaturas que moram com você, principalmente do gato — admitiu Perséfone.

Desta vez, Lina riu com vontade.

— Patchy Poo the Pud é terrível, mas uma gracinha.

— É uma praga, isso sim! — a deusa falou, brincando.

Lina concordou.

— Agora é a sua vez... — incitou Perséfone. — Do que sente falta do Submundo?

— Tenho saudades de Eurídice — Lina confessou com apenas uma ligeira hesitação. — A pequena alma era como uma filha para mim. Eu me preocupo com ela.

— E do que mais?

— De Órion. Eu sei que ele devia ser um dos temíveis cavalos de Hades, mas Órion me lembrava mais um filhote de cachorro preto tamanho família.

— E?

— Sinto falta daquele céu incrível. A luz do dia era como uma pintura de aquarela em que alguém tinha soprado vida. Sei que soa irônico, pois estou falando sobre a Terra dos Mortos, mas não era escuro e sombrio lá. Ao menos não depois que você chegou a Elísia. Na verdade, foi o lugar mais incrível em que eu já estive ou imaginei. — Lina deixou a mente vagar. Agora que começara a falar, não queria mais parar. — Sabia que o céu lá é iluminado pelas almas das Híades, de maneira que, quando a noite chega, tudo em Elísia parece um sonho antigo?

— Não — Perséfone respondeu, intrigada.

— E as almas dos mortos não são assustadoras ou repugnantes. São apenas pessoas cujos corpos se tornaram menos importantes. Elas ainda têm a capacidade de amar, rir e chorar.

Perséfone pegou a mão de Lina.

— E do que sente mais falta?

Os olhos de Lina se encheram de lágrimas.

— Hades — ela sussurrou. — Você se apaixonou pela minha vida, e eu, pelo senhor do Submundo.

— Que bom! — Perséfone disse alegremente, apertando sua mão.

— Como isso pode ser bom? Eu amo Hades, mas ele ama a deusa da Primavera, não a mim.

O riso alegre da jovem deusa fez as luzes da padaria parecerem mais intensas.

— Se ele me ama, por que se recusa a me receber?

— Tentou ver Hades?

— Claro que sim. Eu estava infeliz, sentindo muita falta deste mundo. Então comecei a ouvir rumores de que Hades tinha enlouquecido, de que os espíritos do Submundo estavam perdidos, etcetera , etcetera , pois sua rainha havia deixado seus domínios.

— Espere... Hades ficou louco?! — Lina sentiu o sangue abandonar o rosto.

— Ah, não é nada disso. Ele só está de mau humor. — Perséfone fez um gesto de indiferença com a mão. — Mas os rumores me fizeram pensar que talvez eu não estivesse sozinha na minha infelicidade. Então visitei o Submundo.

— E? — Lina teve vontade de sacudi-la, de tão ansiosa.

— E a primeira coisa que aconteceu foi que aquele cão de três cabeças horrível não me deixou passar. — A moça estremeceu. — Edith Anne tem um temperamento muito mais dócil.

— O Cérbero lhe causou problemas?

— Problemas? Ele bloqueou a estrada, roncando e babando. Fiquei apavorada de chegar perto dele. Tanto que tive de pedir ajuda. — Perséfone balançou a cabeça, desgostosa.

— E Hades não veio recebê-la?

A deusa franziu o cenho.

— Um daimon apareceu em seu lugar, montado naquele cavalo preto odioso.

— Órion a tratou mal?

— Ele grudou aquelas orelhas pontudas na cabeça e arreganhou os dentes para mim.

— Eu sinto muito. Eu já repreendi Órion por esse tipo de atitude. Ele deve ter pensado que você era eu, e, quando percebeu que não... Bem, Órion devia ter se comportado melhor de qualquer maneira — Lina ponderou.

— Ah, devia. Enfim, eu disse ao daimon que queria falar com Hades, e ele me perguntou se eu era a deusa da Primavera, ou a mortal, Carolina. Como se já não soubesse! — Perséfone pareceu irritada. — Até mesmo os espíritos dos mortos sabiam. O tempo todo em que estive viajando por aquele caminho sombrio, eles me observavam. A princípio pareciam felizes, então, quando eu falava com eles, apenas tentavam ser educados e se afastavam de mim. Eu até os ouvi sussurrar coisas como: “Alguém está disfarçada de rainha do Submundo!” — Perséfone afastou uma mecha de cabelo que havia escapado do rabo de cavalo. — Foi uma experiência perturbadora, eu garanto. — Fez nova pausa para estudar as unhas bem cuidadas, e Lina teve ímpetos de sacudi-la outra vez. — Eu assegurei ao daimon que o meu corpo e a minha alma eram os mesmos. Em seguida ele desapareceu e, quando voltou, disse que seu senhor se recusava a ver Perséfone. Não bastasse isso, Hades ordenara que eu deixasse seu reino e parasse de incomodá-lo.

— E como isso prova que ele não a ama? Hades é muito ­teimoso. — Lina olhou de soslaio para Deméter, que agora fingia analisar o vinho. Inclinou-se para frente e baixou a voz: — Às vezes dá trabalho fazê-lo relaxar e conversar. Na realidade, Hades é romântico e passional. Precisa tentar de novo. Ele provavelmente vai vê-la na próxima vez.

Lina odiou a si mesma tão logo terminou de proferir as palavras. Sentiu o estômago se apertar. Não queria que Perséfone visse Hades. Não queria que ele visse ninguém, exceto ela própria.

— Pois eu acho que você deveria tentar — disse Perséfone com firmeza.

— Eu? — Ela piscou, surpresa. — Como eu poderia?

— Poderíamos trocar de corpo outra vez. — Perséfone apontou Deméter. — Minha mãe vai nos ajudar. Ela reconhece que seu plano não funcionou exatamente como esperava.

Lina olhou para a deusa, e esta inclinou a cabeça em uma pequena mesura real.

— Minha filha diz a verdade. Eu estava enganada quanto à forma como lidei com a situação.

A cena terrível passada no quarto do palácio invadiu a memória de Lina.

— Fico contente por admitir, mas isso não muda nada.

— Lembra-se, Carolina, quando foi até o meu oráculo, perturbada, porque tinha feito um erro de julgamento? — indagou Deméter.

— Sim, eu tomei uma decisão sem pensar e quase causei muita dor a Eurídice.

— Lembra-se do que eu lhe disse na ocasião?

— Disse que eu devia aprender com o meu erro — murmurou Lina.

— Pois eu bebi do meu próprio veneno. Também não considerei plenamente a minha decisão. E o que aprendi com meu deslize é que mesmo uma deusa pode ser surpreendida por suas filhas. — Deméter contemplou as duas moças com um de seus raros sorrisos, então voltou a atenção para Lina. — Hades estava sendo sincero. Ele sempre foi diferente do restante dos imortais. Creio que o senhor do Submundo realmente se apaixonou por você, Carolina.

— E eu tenho uma proposta — interveio Perséfone. — Você ama Hades. Eu amo a sua padaria e o seu mundo. Por que devemos viver para sempre sem os nossos amores?

— Mas Hades... — Lina começou.

— Ouça-me — Perséfone a interrompeu. — Como deusa da Primavera, devo estar no meu mundo por seis meses. Dessa forma, como você diria, o meu “trabalho” é concluído até a primavera seguinte. Eu poderia vir aqui durante esse intervalo. E, enquanto eu estivesse aqui, você poderia voltar ao Submundo como rainha.

A cabeça de Lina girava.

— Eu fingiria ser a deusa d a Primavera como antes?

— Não. — O sorriso de Perséfone foi enigmático. — Não teria de fingir. Todos, desde os animais até os espíritos, sabiam que eu não era você. Não fingirá, Carolina. Você é a rainha deles. Estará apenas alojada temporariamente no meu corpo, pois preciso do seu aqui. Eu, sim, terei de me fazer passar por outra pessoa.

— Não — falou Lina.

— Por que não? — Perséfone deu um longo suspiro. — Eu lhe dou minha palavra de que dispensarei qualquer Scott antes de voltar.

— Não é isso.

— Então, o que é?

— Hades não me quer, Perséfone. Ele disse que amava a minha alma, e, depois, quando viu o meu verdadeiro eu, me rejeitou.

— Lina, Hades estava apenas surpreso — garantiu Perséfone.

— Você não viu a expressão dele.

— Eu vi — Deméter interrompeu. — E o que li nela foi surpresa e dor, não desprezo ou rejeição.

— Então leu algo que eu não li — Lina concluiu com pesar.

— Creio que esteja cometendo um erro, Carolina — disse Deméter.

— Talvez. Mas e se não estiver? — Ela sentiu a onda de dor que lembrar a rejeição de Hades ainda evocava e piscou, aflita. — Não vou suportar se ele olhar para mim daquele modo outra vez. E, se não olhar, pode até ser pior. Como poderei saber que não é apenas o seu corpo que ele deseja?

— Pode viver o resto da vida sem ele? — Perséfone perguntou com suavidade.

As lágrimas escorreram dos olhos de Lina e deixaram um rastro brilhante em suas faces. — Tenho m edo do que acontecerá à minha alma se ele me rejeitar de novo, ou de que ele me aceite apenas porque quer que eu seja algo que não sou.

— Não tome nenhuma decisão antes de ponderar bem sobre ela — sugeriu Deméter.

— E prometa que vai considerar a minha proposta. O outono acabou de começar aqui. Terá até o primeiro dia da primavera para fazer isso, quando eu voltarei em busca da sua decisão. — Perséfone enxugou uma lágrima do rosto de Lina, então seu sorriso se tornou amargo. Enfiando os dedos sob o decote do suéter, ela tirou a corrente de prata que este ocultava. Sem falar nada, puxou-a por sobre a cabeça. O narciso de ametista capturou as luzes da padaria e cintilou. — Isto lhe pertence — disse, colocando-o com cuidado por sobre a cabeça de Lina. — A corrente se quebrou e foi amarrada, mas eu não a substituí. Está como você a deixou.

— Ah, meu Deus! — Lina deixou escapar um soluço e apertou a flor que tinha sido tão maravilhosamente esculpida para ela. — Pensei que nunca mais fosse ver isto outra vez! Obrigada por tê-la devolvido.

Anton irrompeu pelas portas francesas, assobiando uma canção de Gypsy e trazendo uma bandeja redonda com uma pizza cheirosa e recém-assada. Olhou para Lina e parou.

— Por que está chorando?! — Seus olhos faiscaram ao pousar em Perséfone. — Escute aqui, mocinha, se você a fez chorar, eu...

— Não, Anton, não é nada de ruim! — Lina sorriu entre lágrimas, enxugando o rosto com as costas da mão. — Perséfone me deu este colar, e ele é tão bonito que me fez chorar.

O rapaz relaxou.

— Perséfone? Como a deusa?

— Exatamente — replicou a moça.

— Também não me lembro de tê-la visto aqui antes. Como conheceu a nossa Lina? — ele indagou, intrigado.

Perséfone sorriu.

— Lina me ajud ou a crescer.

Anton pareceu confuso.

— Perséfone — Deméter chamou do outro lado do salão. — Precisamos ir.

— Anton, precisamos levar a pizza para viagem. Ah! Poderia, por favor, adicionar na caixa uma fatia grande de gubana? — pediu a deusa da Primavera.

— É claro! — ele respondeu, solícito. — Sua Majestade deseja mais alguma coisa? — Acenou com um gesto de cabeça na direção da mãe dela.

A moça riu com vontade.

— Apenas a conta, por favor.

— Eu pago — declarou Deméter e, com a dignidade típica de uma deusa, pôs-se de pé e caminhou até onde Anton esperava, na caixa registradora.

— Com o quê? — Lina sussurrou.

Perséfone encolheu os ombros.

— Anton! — interveio Lina, e ele se virou para ela.

— Com estas senhoras aceitaremos permuta. Apenas certifique-se de negociar bem...

Os olhos de Anton se arregalaram.

— Como quiser, patroa. Então, muito bem, minha rainha, o que tem a ofertar pela gubana, a pizza e o vinho?

Deméter ergueu o queixo.

— Eu prefiro o título de deusa. Rainhas têm reinos limitados demais.

— Como quiser, ó, deusa Regina Safra... O que estás a ofertar?

O sorriso de Deméter foi ardiloso.

— Gostaria de um pássaro falante?

— Não, querida. — Anton revirou os olhos. — Já temos animais em demasia circulando por aqui. Tente outra vez.

Perséfone puxou a manga de Lina.

— Deixe-os resolver isso sozinhos... Tenho mais uma pergunta.

— Qual?

— O que fez a Apolo?

— ... Nada — Lina respondeu.

— Nada? — Perséfone repetiu, confusa.

— Coisa nenhuma.

— Você rejeitou o deus da Luz? — A jovem deusa não teve a certeza de ter ouvido bem.

— Claro que sim. Costumo me interessar apenas por um deus de cada vez — ironizou Lina.

— Está falando a sério? — Perséfone segurou o queixo perfeito, pensativa. — Que conceito interessante!

— Vendido por uma coroa de ouro que provavelmente é falsa, mas que eu a-do-rei! — Anton gritou do outro lado, feliz da vida.


Capítulo 28

Hades não conseguia parar de olhar para o desenho que a pequena alma havia lhe dado.

— Gostou? — perguntou Eurídice.

— Como sabia? — A voz dele soou áspera e estranha até para seus próprios ouvidos. Quanto tempo se passara desde que tinha conversado com alguém? Não conseguia se lembrar. — Tenho pensa­do muito em Perséfone — prosseguiu a moça. — Comecei até a sonhar com ela... Mas, quando a vejo em meus sonhos, ela não é mais como era quando estava aqui. É difícil explicar, mas é como se a aparência dela nos meus sonhos fosse a mais correta. Então eu a desenhei dessa forma. Quando mostrei o esboço a Iapis, ele me disse que eu devia trazê-lo a você.

— Espero não ter me excedido, senhor — murmurou Iapis.

Hades continuou sem tirar os olhos do desenho.

— Não, meu velho amigo, não se excedeu. Tinha razão em querer me mostrar. — Ele se obrigou a desviar o olhar do esboço para fitar Eurídice. — Obrigado. Posso ficar com ele?

— É claro, senhor. Tudo o que eu criar será seu.

— Não, pequena alma — Hades respondeu, tristemente. — Qualquer coisa que criar ainda pertence a ela.

— Será que ela vai voltar para nós? — Eurídice perguntou.

O deus olhou para o desenho de Carolina. Suas feições mortais eram doces e gentis, seu corpo, cheio e feminino.

Sentiu uma estranha agitação só de olhar para a imagem e fechou os olhos, bloqueando-a em sua mente. Ele não tivera forças para confiar nela, e, por conta disso, ela quase havia perdido a alma para o Tártaro. Em seguida retornara do abismo apenas para ser traída e ferida por suas palavras duras e impensadas. Ele não merecia seu amor.

— Não — murmurou. — Não acredito que ela voltará para nós.

Eurídice deixou escapar um lamento, e, quando Hades abriu os olhos, viu Iapis tomando-a nos braços.

— Acalme-se — o daimon falou baixinho. — Onde quer que ela esteja, não deve ter se esquecido de você. Ela a amava.

— Deixem-me, por favor — Hades interveio asperamente.

Iapis fez um sinal para Eurídice ir, porém permaneceu nos aposentos de seu senhor. Sua preocupação com o deus era grande. Hades já não andava de um lado para o outro, frustrado. Não descontava sua revolta na forja. Recusava-se a comer e quase nunca dormia. Atendia seus súditos, julgando os mortos como se ele próprio estivesse entre eles, condenado a vagar eternamente pelas margens do Cócito, o rio da Lamentação.

Quando Perséfone tentara visitá-lo, Iapis havia sentido uma ponta de esperança diante da raiva demonstrada por Hades. Mas isso tinha durado pouco. Tão logo a deusa da Primavera deixara o Submundo, Hades se fechara outra vez. O deus não podia continuar como estava, entretanto Iapis não via nenhuma luz no fim do túnel. O tempo parecia inflamar ainda mais a ferida do deus sombrio em vez de curá-la.

— Iapis, você sabe o que acontece quando almas gêmeas são separadas? — Hades perguntou de repente. Estava parado em frente à janela que dava para os jardins adjacentes à floresta de Elísia que acabavam levando ao rio Lete.

— Almas gêmeas sempre se reencontram, o senhor sabe — respondeu o daimon.

— Mas o que acontece se elas não puderem encontrar uma a outra, ou se uma delas fez algo imperdoável? — Ele se virou para olhar o amigo.

— Não consegue perdoá-la, Hades?

O deus piscou e focalizou melhor o rosto de Iapis.

— Eu já a perdoei. Ela estava apenas cumprindo seu juramento a Deméter. O senso de honra de Carolina não lhe permitiria trair sua palavra, nem mesmo por amor. É a mim mesmo que eu não consigo perdoar.

— Como assim, senhor?

— Carolina Francesca Santoro é uma mortal com a coragem de uma deusa, e eu a feri pela mais cretina das razões, apenas para ­salvaguardar meu orgulho. Por isso não posso perdoar a mim mesmo. Assim sendo, como posso esperar isso dela?

— Talvez a situação seja parecida com a noite em que a insultou — lembrou Iapis com calma. — Basta perguntar e se mostrar disposto a ouvir a resposta.

Hades sacudiu a cabeça e se virou para a janela.

— Ela desnudou sua alma para mim, e eu a traí. Agora Carolina está além do meu alcance.

— Mas, se concordasse em ver Perséfone...

— Não! — Hades rosnou. — Não vou receber uma deusa frívola que zomba da alma que residiu em seu corpo.

— Hades, não pode afirmar que a deusa zomba de Carolina!

— O Cérbero a repeliu, Órion a detestou, os mortos a consideraram uma impostora... Isso basta para mim — insistiu o deus.

— Perséfone é uma deusa muito jovem.

— Ela não é Carolina.

— Não, não é — o daimon concordou com tristeza.

— Deixe-me agora — pediu Hades.

— Sim. Mas, antes, permita-me providenciar um banho e roupas limpas para o meu senhor.

Quando Hades começou a protestar, Iapis desabafou:

— Não consigo me lembrar da última vez em que tomou banho ou mudou de roupa. Está pior do que os recém-falecidos!

Os ombros poderosos de Hades caíram.

— Se eu tomar banho e mudar de roupa, vai me deixar em paz? — ele indagou, sem olhar para o daimon.

— Por algum tempo.

Hades quase sorriu.

— Então que assim seja, meu amigo.


Hades se acomodou na água quente da banheira de mármore negro, construída no chão do quarto de banho, e descansou de encontro à borda larga. Uma taça de vinho tinto e uma bandeja de prata cheia de romãs e queijo fora deixada ao seu alcance. As poucas velas acesas brilhavam suavemente em meio ao vapor que subia, tal como o luar em meio à neblina.

Bebeu o vinho com gosto. Não tinha apetite e ignorou a comida, mas o vinho o deixava mais leve. Talvez, apenas naquela noite, ele pudesse beber até esquecer. Quem sabe, assim, poderia dormir sem sonhar com ela.

Em um gole, esvaziou a taça e olhou na lateral, querendo mais. Iapis deixara o jarro perto o suficiente para que ele não tivesse de abandonar o calor reconfortante da banheira.

— Aquele daimon pensa em tudo... — resmungou consigo mesmo.

— Nem tudo.

Hades pulou ao som da voz e deixou cair a taça, que tilintou ao tombar no mármore.

Perséfone soprou o vapor e este se dissipou, tornando-a visível para Hades. Ela também descansava na borda da enorme banheira, à sua frente, e, embora estivesse submersa na água até os ombros, seu corpo nu se encontrava tão à vista como o dele.

Os olhos da deusa se arredondaram com surpresa. Carolina não era nenhuma tola... Ela mesma não fazia ideia de que o sisudo senhor do Submundo fosse tão delicioso.

— Olá, Hades... Não creio que tenhamos sido formalmente apresentados. Sou a deusa Perséfone, da Primavera.

Ele desviou o olhar do dela e saiu da banheira de um salto, vestindo um manto. Perséfone o viu cerrar a mandíbula e, quando o deus falou, foi forçando as palavras por entre os dentes.

— Afaste-se de mim! Eu me recusei a vê-la.

— Eu sei, mas estou com um problema e você é o único deus que pode me ajudar a resolvê-lo, embora Apolo seja definitivamente mais hospitaleiro. E, sem dúvida, ele se mostraria bem mais disposto a me ajudar nesta empreitada em particular... — Ela correu os dedos pela água quente. — Depois de eu ter falado com Lina, entretanto, parece que você é o meu único recurso.

— Apolo! — Hades exclamou com desdém. — O que ele tem a ver com Carolina?

— Nada. Mesmo que ele deseje o contrário.

O restante do que Perséfone dissera finalmente rompeu o choque de Hades.

— Falou com Carolina?

— Sim, falei. Na verdade, acabei de deixar sua padaria — contou a deusa, presunçosa.

Hades prendeu a respiração.

— Ela está bem?

— Em excelente forma, e seu negócio vem prosperando a cada dia.

Ele observou sem ver o vinho que tinha espirrado no chão.

— Que bom. Fico feliz por ela estar...

— Ainda não terminei — Perséfone o interrompeu e, sacudindo os dedos acima da superfície da água, fez chover as gotas sobre ele.

— Então termine de uma vez. — Hades a fulminou com o olhar.

— O que eu ia dizer era que o corpo dela está lindo, seu negócio vai bem, porém Lina continua arrasada.

— Eu... Ela... — O deus começou e depois parou, passando a mão pelo cabelo úmido.

— “Eu... Ela”, o quê? — provocou Perséfone. — Lina me disse que às vezes era difícil fazê-lo relaxar, mas que, se eu fosse obstinada o suficiente, poderia levá-lo a falar.

Hades sentiu que enrubescia, mas estreitou os olhos.

— Ela queria que você falasse comigo? Por quê?

— Ah... Duvido que ela estivesse querendo que nós nos encontrássemos. Só disse isso porque acha que está apaixonado por mim.

Hades bufou.

— Isso é ridículo!

— Obrigada pela gentileza.

— ...Eu não quis ofendê-la — ele se desculpou depressa.

— Eu sei, eu sei. — Perséfone suspirou. Afastou os cabelos do rosto, e um de seus seios despontou por cima da água, o mamilo cor de malva apontando diretamente para ele.

O deus engoliu em seco e desviou o olhar, concentrando-se no prato de frutas e queijo.

— Acho melhor conversarmos no quarto. — Apontou para um armário próximo. — Há roupas ali com as quais poderá se cobrir.

— Espere! — Perséfone chamou antes que ele saísse do banheiro. — Há algo que Lina e eu precisamos saber.

Hades a fitou, tomando o cuidado de manter os olhos focados em seu rosto.

— Fique onde está — prosseguiu a deusa. — Acredito que isso seja muito importante para nós três.

— O que precisa saber? — ele indagou, exasperado.

— Isto... — Perséfone se levantou.

A ág ua quente escorreu por sua pele lisa. As pontas de seus seios estavam rijas como se tivessem acabado de ser acariciadas, e seu corpo continuava tão esguio e extraordinário quanto ele se lembrava.

Hades olhou para a deusa enquanto ela saía lenta e graciosamente da banheira, para depois caminhar, sedutora, em sua ­direção. Quando se aproximou dele, Perséfone parou, ergueu os braços e o enlaçou pelo pescoço. Então apertou o corpo nu contra o dele e o fez colar a boca na sua.

Os lábios do deus tomaram os dela, e ele a abraçou instintivamente.

Mas não sentiu nada. Exceto pela familiaridade com o corpo curvilíneo e a boca quente e macia, Perséfone não o comoveu. Era como se ele segurasse uma estátua maleável. Delicadamente, porém com firmeza, Hades se afastou dela.

Perséfone deixou seus braços de bom grado.

— Então não é este o corpo que você deseja.

— O que eu desejo não mudou, nem vai mudar. Desejo apenas uma mulher na vida, e pouco importa o corpo que ela habita.

Por um instante, Hades pensou ver tristeza nos olhos da jovem deusa, porém esta logo se foi e, quando Perséfone sorriu, seu ar juvenil tinha voltado.

— Bem... Obrigada por nos esclarecer essa dúvida.

— De nada.

Ele buscou um manto no armário, e a deusa o vestiu. Em seguida, apanhou a taça do chão e a jarra de vinho.

— Agora, tudo o que temos de fazer é encontrar uma forma de fazer Lina acreditar nisso — decidiu a moça.

Caminharam para os aposentos de Hades, e Perséfone olhou ao redor.

— Lindo quarto!

— Obrigado. Fique à vontade enquanto vou apanhar outra taça.

Perséfone foi até a janela envolta e m veludo. Puxou de lado a cortina e olhou a vista fantástica, proporcionada pelos jardins escalonados, as estátuas em meio à bem cuidada vegetação, e as milhares e milhares de flores brancas, as quais eram banhadas por uma luz suave e incomum.

— O vinho — anunciou Hades.

Ela se afastou da janela.

— Lina tinha razão quando disse que isto tudo parece um sonho.

As palavras fizeram doer o coração do deus.

— Por que está aqui, Perséfone?

A moça ajeitou o cabelo para trás e sorriu.

— Tenho uma proposta para lhe fazer...

— Eu ainda não entendo como ajudá-la. Carolina recusou a sua proposta! Não pode obrigá-la a essa troca — Hades concluiu enquanto andava de um lado para outro à frente de Perséfone.

Ela levantou uma sobrancelha.

— Não posso?

— Não vai forçá-la. — As palavras de Hades soaram firmes, porém ele sentiu sua resolução enfraquecer. Carolina poderia voltar! Ele poderia tocá-la e conversar com ela novamente... E, sem dúvida, poderia convencê-la de seu amor.

Não, pensou, sacudindo a cabeça. Ela já havia sofrido bastante. Não permitiria que Lina fosse obrigada a fazer algo que ela mesma não acreditava poder suportar.

— Vocês dois são os reis da teimosia! Você se recusa a obrigá-la a vir; ela se recusa a vir de livre e espontânea vontade... — Perséfone suspirou. — Precisa encontrar uma maneira de convencê-la a retornar sem ser forçada, então.

— Como? — Hades quase cuspiu a palavra.

Perséfone caminhou até ele e colocou a mão em seu braço.

— Se precisar de mim, pode me chamar por meio do oráculo de mamãe. — Num impulso, beijou-o no rosto.

Hades acariciou a mão delicada e deu-lhe um sorriso cativante e paternal.

— Perdoe a minha grosseria. Deuses antigos às vezes podem ser caprichosos.

Perséfone sorriu de volta para o deus que era tão obviamente apaixonado por Carolina. — Está perdoado — falou e desapareceu.

A forja ardia com um calor de outro mundo. O suor escorria do corpo de Hades em uníssono com a batida de metal contra metal, porém o deus nem sequer tinha consciência do seu entorno.

Carolina ainda o amava!

Precisava encontrar uma forma de reparar o dano que havia causado, de maneira que ela confiasse nele novamente. Mas como?

— Está parecendo uma velha solteirona, senhor dos Mortos.

Hades virou para identificar a voz sarcástica e precisou apertar os olhos contra a luz ofuscante.

— Apolo! Você e sua luz exagerada não são necessários aqui — ele rugiu.

— Ah, sim, eu sempre me esqueço... — Apolo passou a mão no rosto, e o fulgor que o envolvia desapareceu. — Está melhor assim?

— Não me lembro de tê-lo convidado a vir ao meu reino.

— Eu tinha de vir. Precisava ver como estava a outra metade desse amor desperdiçado.

Hades se encheu de raiva.

— Não está querendo dizer que...

— E o que vejo aqui é bem menos atraente do que a versão mortal — o deus do Sol interrompeu seu discurso.

— De que mortal está falando? — exigiu Hades.

— De Carolina, claro. Sabia que ela me rejeitou? Estava mais interessada nas minhas éguas do que em mim. — Apolo riu. — Enquanto eu achava que ela era Perséfone, suas atitudes me confundiam. Quando descobri que ela era uma mortal no corpo de uma deusa, fiquei estupefato. E, depois, ainda soube que ela havia preferido você a mim... Inacreditável.

Hades estreitou os olhos para o jovem deus.

— Não acho que seja assim, tão surpreendente.

— Pois devia. — Apolo sorriu. — As mortais me acham irresistível.

— Carolina é bem mais exigente do que a maioria das mortais.

— E mais fiel também. Ela já recusou ao menos um homem desde que voltou ao próprio mundo. — Apolo lançou um olhar avaliador na direção de Hades. — E, como ele é apenas um mortal, é definitivamente mais jovem do que você...

— Andou espionando a moça? — Hades rosnou.

— Não foi o que eu disse?

— Não!

— Acho que essa sua choradeira pelo seu amor perdido afetou a sua audição. Lembro-me muito bem de ter dito que...

Em dois passos, Hades alcançou Apolo e agarrou o deus pelo pescoço, erguendo-o do solo.

— Diga-me como pôde vê-la! — trovejou, irado.

— Por meio do oráculo de Deméter, ora! — o jovem deus respondeu, esganado.

Hades deixou cair o deus da Luz e saiu correndo da ferraria.

— Selem Órion! — gritou, ofegante.

Dentro da ferraria, Apolo esfregou o pescoço e alisou as vestes amarrotadas.

— Missão cumprida... Agora está em débito comigo, Deméter — murmurou antes de desaparecer.


Capítulo 29

— É fevereiro, mas parece abril. — Lina suspirou, feliz. — Adoro quando o clima em Oklahoma está assim — disse a Edith Anne, que trotava alegremente a seu lado.

Tinha levado algum tempo para se acostumar com os patins. Não que seu corpo não soubesse o que fazer. Sua mente era que insistia em pensamentos como “Esse chão é muito duro!” ou “Devagar, assim vai cair e quebrar alguma coisa!”

Dessa forma, mesmo após vários meses de prática, Lina ainda patinava devagar, acariciando a calçada de cimento que corria ao longo do rio Arkansas com passadas controladas e cuidadosas.

— À sua esquerda! — Alguém gritou atrás dela, e Lina passou para o lado direito da calçada.

— Obrigada! — gritou quando uma bicicleta de corrida passou voando.

— De nada! — o piloto berrou de volta.

— Eu gosto quando eles fazem isso — Lina falou à buldogue, que mantinha o ritmo a seu lado, na grama que começava a verdejar.

Edith resmungou.

— Fico assustada quando alguém simplesmente passa por nós sem qualquer aviso. Aquele sujeito da bicicleta amarela e enorme quase me derrubou na semana passada! — Ela se abaixou e brincou com a orelha de Edith. A buldogue bufou outra vez e lambeu sua mão. — Acho que eu deveria prestar mais atenção ao redor, ainda mais quando tudo está calmo como nesta noite. Mas ela é sempre tão bonita!

Sorriu. O início da noite era o seu momento favorito para andar de patins. O pôr do sol em Oklahoma costumava ser glorioso e, às vezes, conforme o astro descia sobre o rio Arkansas, sua luz se refletia fora da água numa mistura de rosa e laranja com azul e cinza, lembrando a magia de Elísia.

Mas não a deixava tristonha. O tempo a ajudara nesse ponto. Gostava da lembrança em pequenas doses, pois esta a ajudava a manter o vazio sob controle.

Edith Anne parou para cheirar uma moita particularmente interessante, lotada de ervas daninhas.

— Ei, fique comigo! Se começar a se sujar com lama ou cardos, terá de tomar um banho quando chegarmos em casa.

A cadela ainda resmungou um par de vezes para as ervas daninhas antes de correr atrás dela outra vez.

Lina desacelerou para que Edith a alcançasse, e pensou ouvir cascos de cavalo ao longe.

Interessante , pensou. O tempo devia estar bom o suficiente para que o estábulo à beira do Arkansas tivesse aberto mais cedo. Passeios a cavalo ao longo do rio eram um excelente negócio enquanto o clima ajudava, mas não costumava funcionar antes de abril. Como havia perdido o anúncio no jornal? Normalmente, gostava de postar coisas assim na padaria.

Fez uma anotação mental para ve rificar aquilo no dia seguinte.

Com a buldogue a seu lado outra vez, Lina retomou o ritmo. Já percorrera quase sete quilômetros, sua respiração se mantinha normal e suas pernas continuavam firmes. Estava feliz por ter acrescentado os patins em sua rotina semanal. Não apenas para manter o corpo em forma, mas também para que ele a ajudasse a pensar.

E tinha tanto o que pensar desde a visita de Perséfone!

Merda! Ficara tentada pela proposta da deusa. Como não poderia? Retornar ao Submundo como sua rainha... Não havia nada no mundo de que gostaria mais.

Não , corrigiu-se. O que ela mais gostaria era do que a estava impedindo de aceitar a proposta de Perséfone...

Pensara no assunto incessantemente durante os longos meses de inverno. Pensara até mesmo em telefonar para a avó e lhe pedir conselhos. Sem que esta pensasse que ela fosse se comprometer.

Às vezes achava que Deméter tinha razão, que ela havia cometido um erro.

Mas, então, se lembrava de como Hades se afastara dela no momento em que ela se revelara.

“Saia do meu reino” fora sua sentença ao ver a verdadeira Carolina.

Suspirou. O tempo ajudara a curá-la, mas lembrar as palavras ainda fazia doer sua alma.

E era quase primavera. Perséfone voltaria em breve em busca de uma resposta.

Respirou profundamente e manteve o ritmo enquanto ponderava pela milésima vez qual deveria ser sua decisão. Inconscientemente, tocou o narciso de ametista que trazia sempre pendurado ao pescoço.

Não poderia retornar, mas queria tanto fazer isso! Até sonhava com a volta ao Submundo.

Não poderia, no entanto. Talvez fosse uma covarde, mas não desejava se arriscar. Tinha levado tanto tempo para cicatrizar... Não queria que a ferida se abrisse novamente.

Diria “não” a Perséfone. Talvez a deusa pudesse encontrar outra mortal com que trocar de lugar. A própria Dolores era ativa na Sociedade do Anacronismo Criativo... Provavelmente teria muito interesse em perambular pelo Monte Olimpo e brincar com as ninfas enquanto a jovem deusa assava pães.

O pensamento fez Lina rir. Ela poderia até tirar longas férias e deixar a padaria nas mãos da Dolores / Perséfone. E a Itália era tão linda na primavera!

Enquanto planejava suas férias no velho continente, notou que o ruído de cascos de cavalo vinha se aproximando cada vez mais rápido. Já estava indo para a borda do passeio quando um alegre relinchar cortou o ar.

Seu coração deu um salto ao reconhecê-lo, e ela se virou no exato momento em que uma enorme silhueta negra se avultava sobre ela e um focinho escuro quase colidia com seu rosto. Órion alternou relinchos com bufos, acariciando seus cabelos e ombros.

Em estado de choque, Lina só pôde se agarrar aos arreios do cavalo e esperar que, em seu entusiasmo, ele não a derrubasse.

— Quem se atreve a tocar o temível cavalo de Hades?

As palavras foram as mesmas que ele proferira havia muito tempo, porém seu tom era muito diferente: repleto de amor e saudade.

Lina ergueu o olhar. Hades encontrava-se sentado na sela lustrosa e tinha substituído as roupas arcaicas por uma camisa preta de corte moderno, cujas mangas deixavam à mostra os braços musculosos. Também vestia jeans e as botas típicas dos cowboys de Oklahoma. Os cabelos estavam puxados para trás, e os olhos cintilavam.

Ela o fitou sem nada dizer, sentindo a simples visão do deus reabrir a ferida recém-curada em seu coração. Durante todos aqueles meses obscuros do inverno, ele a deixara sozinha.

E fora tanto tempo... tanta dor.

A súbita onda de raiva a surpreendeu.

Hades tentou sorrir, porém seus lábios tremeram de leve.

— Perguntou quem se atrevia a tocar seu temível cavalo, Hades... — As palavras de Lina soaram entrecortadas pela emoção. — Então permita que eu me reapresente. Sou Carolina Francesca Santoro, uma mortal de meia-idade nascida em Tulsa, Oklahoma, e dona de uma padaria. E eu não me atrevi a tocar o seu temível cavalo. Foi ele quem enfiou o focinho em minhas mãos outra vez.

Hades sentiu as palavras entrando como facas no peito, mas não podia culpá-la por sua revolta. Ele a compreendia.

No entanto, não permitiria que Carolina o fizesse desistir.

Passou a perna por sobre a sela e desmontou. Queria se aproximar dela, erguê-la nos braços... Porém Lina o fitava com um olhar frio, fixo e nada acolhedor.

— Esqueceu-se de um título na sua apresentação, Carolina — pronunciou o nome dela como numa prece.

— Não creio. Sei exatamente quem sou — ela rebateu. Hades não tinha se aproximado dela; mesmo assim, Lina deu um passo para trás.

— Eu também. É Carolina Francesca Santoro, mortal de meia-idade nascida em Tulsa, Oklahoma, dona de uma padaria... e ­rainha do Submundo — ele completou num murmúrio.

Lina sentiu um tremor cortá-la dos pés à cabeça e se agarrou à sua raiva, temendo que, se esta se fosse, seu coração partisse em mil pedaços.

— Sinto muito, senhor. Deve estar confuso. A deusa Perséfone é a rainha do Submundo. Eu era apenas uma substituta temporária, e nem estava à altura do trabalho.

— Seus súditos não pensam assim, Carolina. Ele apontou para Órion, que esticou o pescoço de modo a mordiscar seu ombro enquanto ela lhe acariciava o focinho.

— Os animais sempre gostaram de mim.

Como se para comprovar suas palavras, Edith Anne pulou em suas pernas, contorcendo-se para chamar a atenção. Órion bufou e se curvou para soprar a buldogue.

— Ele me lembra um pouco o Cérbero... — Hades apontou o cachorro atarracado com um gesto de cabeça, tentando sorrir de novo, sem muito sucesso.

— Ele é ela . E ouvi dizer que Edith Anne é mais educada do que o seu Cérbero tem sido ultimamente — observou Lina, mordendo o lábio em seguida. Não deveria conversar com Hades.

— O Cérbero tem faltado com as boas maneiras sem dúvida porque sente a ausência de sua rainha, assim como o resto do Submundo.

— Um cachorro e um cavalo não são vassalos de ninguém. E eu não sou nenhuma rainha. Sou uma mortal. Não tenho nenhum súdito.

Hades voltou à sela de Órion e tirou uma tela enrolada que tinha alojado no pomo.

— Eu trouxe uma coisa para você. Eurídice queria que eu ficasse com isto, mas eu a convenci de que este trabalho lhe pertencia. Ela ainda se vê como a artista particular da deusa da Primavera, embora sinta muito a falta de sua senhora.

— Eu não sou... Não quero... — Lina balbuciou, sentindo uma onda de saudade ao pensar na moça.

Hades se aproximou dela. Nos meses em que haviam ficado separados, Lina se esquecera de seu tamanho. Ele parecia cercá-la por todos os lados.

E, mesmo vestindo roupas modernas, parecia sombrio e devastadoramente bonito.

Seu Batman.

— A pequena alma falou que isto foi um sonho que ela teve com você. E disse que se sentiu bem.

Hades estava tão perto que ela podia sentir o calor de seu corpo.

Sem palavras, Lina tomou a tela de suas mãos. Desenrolou-a e soltou uma exclamação.

— Mas sou eu!

Era ela mesma, a mortal Carolina Francesca Santoro. Seu corpo, seu rosto, seu sorriso... E não Perséfone.

Quando olhou com mais atenção para a imagem que Eurídice havia tirado de um sonho, seus dedos começaram a formigar e, de repente, uma torrente de emoção passou da tela para sua alma. Em meio a esta, ela pôde ouvir as vozes de milhares de mortos. Eles clamavam por ela, pedindo que sua rainha retornasse.

Lina sentiu as mãos tremerem, e a mágoa dentro dela começou a se dissipar.

— Seus súditos a reconhecem e clamam por você, Carolina — Hades falou suavemente.

— Pena que o próprio deus deles não tenha me reconhecido — ela retrucou, sem encará-lo.

— Não há nenhum deus ou senhor aqui... — A voz de Hades falhou, e ele precisou fazer uma pausa antes de continuar. Segurou o queixo de Lina e ergueu seu rosto de forma que ela o fitasse nos olhos. — Esta noite sou apenas um homem que procura desesperadamente por sua alma gêmea. Ela se separou de mim por conta da minha loucura, e eu tinha que perdoar a mim mesmo antes de encontrá-la e pedir que ela... Não chore, minha amada! — pediu, quando lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Lina.

— Você se afastou de mim! — ela acusou em meio a dolorosos soluços. — Quando viu quem eu realmente era, não me quis!

— Não! — Ele a puxou para os braços e a apertou contra o peito. — Eu não lhe dei as costas... Foi o orgulho que incitou as minhas palavras e ações.

— Porque não quis o amor de uma mortal de meia-idade — Lina replicou, a voz abafada de encontro a ele.

A risada de Hades soou como um soluço.

— Não. Foi porque eu estava apavorado em ter perdido a alma para uma mulher que poderia não querer nada mais do que um flerte com um deus inexperiente, sobre o qual ela poderia se gabar.

Lina ergueu os olhos para os dele.

— Eu disse a Deméter que você não havia ficado com qualquer outra deusa porque estava tentando convencê-la de que era diferente.

— Eu sei, minha querida. Perdoe o orgulho de um deus velho e solitário. — Os lábios de Hades finalmente esboçaram um sorriso. — E, por favor, volte para casa.

Em resposta, ela o puxou para um beijo.

— Carolina! — Hades soprou seu nome contra os lábios macios. — Minha alma ardeu tanto por você, minha eterna amada!

Antes que a beijasse novamente, contudo, Órion o cutucou por trás, e a cadela robusta farejou seus pés.

Ele olhou para baixo, fazendo uma careta para os rastros de saliva em suas botas.

— Órion, pare com isso! — ralhou Lina, empurrando a cabeça enorme e negra de lado. — E, Edith Anne, fique quieta! Está estragando as botas novas dele!

Hades jogou a cabeça para trás e riu. Em seguida, ergueu sua rainha nos braços e, pondo-a na sela do garanhão, montou atrás dela com uma vitalidade pouco comum para um mortal.

— Hades! O que está fazendo?

— Tirando-a do alcance desses animais. — Passou um braço em torno de sua cintura e a puxou contra ele.

— Mas, Edit h Anne...

— Não se preocupe. Órion irá devagar. Não vamos perder sua cadela.

Segurando-a com firmeza, ele estalou a língua em sinal para o cavalo. Órion virou a cabeça e bufou, mas começou a andar lentamente, de modo que a buldogue não teve problemas para trotar a seu lado.

O deus voltou sua atenção para Carolina.

— Não temos muito tempo antes que a primavera venha para o seu mundo. Talvez queira me mostrar um pouco desse reino que você chama de Tulsa... — murmurou, acariciando os suaves cachos castanhos que haviam se formado na nuca de Lina.

Na verdade, não estava sendo fácil para ele se conter. Sua vontade era amá-la ali mesmo.

Pensou em como o novo corpo de Carolina era sedutor e feminino. Ela era suave, perfumada e deliciosamente convidativa.

Lina virou-se e sorriu para ele de cenho franzido.

— Conhece o plano de Perséfone?

— Quem não conhece? — ele respondeu, bem-humorado.

— Estou começando a achar que ele pode dar certo... — Ela sorriu.

— Eu também.

Hades se inclinou para reivindicar seus lábios, porém Lina o empurrou de leve.

— Espere um minuto... Não devia estar aqui! Certamente não pode ficar por muito tempo, pois não há ninguém ocupando o seu lugar no Submundo.

— Não. — Ele sorriu para sua rainha, a alma leve. — Mas, às vezes, até mesmo a morte precisa de um descanso.

Quando seus lábios se encontraram, o sol tocava a margem do rio. Fez uma pausa ali e emitiu mais um feixe breve e intenso sobre os amantes antes de desaparecer no horizonte.


Nesta data, Tulsa lamenta o falecimento de uma matriarca local, Carolina Francesca Santoro. Filantropa e restaurateur , a sra. Santoro era também uma conhecida amiga dos animais. Dona Carolina não deixa herdeiros biológicos, contudo sua falta será sentida por muitos que a consideravam como parte da família. Por décadas sua cadeia de padarias Pani Del Dea foi parte vital de muitas comunidades de Oklahoma. Suas unidades são muito conhecidas por sua especialidade, o cream cheese de ambrosia. A receita para este delicioso queijo é um segredo bem guardado há mais de meio século.

Mas não se preocupem, fregueses assíduos da Pani Del Dea. Antes de sua morte, a sra. Santoro compartilhou a receita com uma parente italiana, sua sobrinha-neta Perséfone Libera Santoro, que assumirá a posição de acionista majoritária da Pani Del Dea S.A. A jovem srta. Santoro anunciou que dividirá seu tempo entre Oklahoma e a Itália e, fazendo jus a seu nome, Perséfone passará cada primavera e verão conosco em Tulsa.

Assim, para honrar a memória de sua tia-avó, vamos dar a ela o nosso caloroso “Olá” de Oklahoma!

Tulsa World,

21 de março de 2055

Lina sentia-se um pouco sem fôlego e deslocada, o que era no mínimo irônico. Estava, afinal, vestindo sua própria pele.

— Provavelmente é porque agora sou uma dos recém-falecidos — murmurou consigo mesma, estendendo os braços e olhando com espanto para a luminosidade do próprio corpo, o qual parecia mais substancial do que o dos mortos que costumava ver.

Também ficou contente por este ter assumido uma forma bem mais jovem do que antes de sua morte. Surpresa, percebeu que tinha se materializado no seu corpo de 43 anos e riu.

— A idade em que eu o conheci! — falou, contente.

O túnel se estendia diante dela, negro e sem fim, porém a escuridão não a intimidou, e ela avançou, confiante, sem nem mesmo olhar uma última vez para a luz do mundo mortal que nunca mais vislumbraria.

De repente, uma pequena bola incandescente surgiu acima de seu ombro, e Lina soltou uma exclamação, surpresa.

— O que está fazendo aqui?!

A esfera dançou a seu redor, ondulando tal qual um cachorrinho.

Ela nem precisava ter perguntado. Sabia quem tinha enviado a luz.

— Obrigada, Perséfone! — falou para o vazio.

Caminhou rapidamente através do grupo de lindas árvores-fantasmas, agora conhecidas como o Bosque de Perséfone e, como sempre, admirou a superfície cintilante de suas folhas.

Deixou o arvoredo e piscou, surpresa. Diante dela, a estrada de ônix que levava ao palácio de seu amado se estendia, como de costume, até os portões cor de pérola, mas, desta vez, os portões se encontravam abertos, e, atrás deles, havia uma multidão de silhuetas insubstanciais e incandescentes.

À frente da massa fervilhante estava Hades, tendo Órion a um lado e, do outro, Eurídice e Iapis.

Ao vê-la, o garanhão soltou um relincho estridente de alegria, dando-lhe as boas-vindas. Eurídice cobriu a boca pálida com a mão e, com a outra, acenou alegremente para sua senhora, enquanto lágrimas de felicidade escorriam por seu rosto.

Quando Hades começou a se mover em sua direção, porém, o mundo inteiro de Lina se estreitou, convergindo apenas para ele. O deus caminhou até ela, os olhos sorrindo, cheios de emoção.

Quando parou à sua frente, por fim, estendeu a mão e, num gesto já familiar, acariciou-lhe o rosto.

— Seja bem-vinda, minha amada.

Lina sorriu para sua alma gêmea.

Hades virou-se para encarar a turba. Com a capa revoando às suas costas, ergueu os braços vitoriosamente sobre a cabeça.

— Ela voltou! — gritou, a voz soando como um trovão.

Gritos de louvor erigiram dos mortos, ecoando no Submundo e se espalhando por todo o Olimpo.

— Alegrem-se! Nossa rainha chegou para nunca mais partir!

Em seu trono no Olimpo, Deméter ergueu a própria taça e tocou a de Perséfone em comemoração do final feliz de Carolina Francesca Santoro.

— Muito bem, minhas filhas — murmurou a deusa. — Muito bem.


Descubra o que irá acontecer em


DEUSA DA ROSA


o próximo livro da série

Goddess


Prólogo

Era uma vez, quando os homens ainda acreditavam que havia deuses e deusas na Terra, foi concedido a Hécate, grande Deusa da Noite, domínio sobre os caminhos trilhados pelo homem. A deusa da escuridão levou a sério sua missão, e passou a vigiar não somente as estradas e caminhos dos mortais, como também a proteger o percurso entre os sonhos e a realidade, entre o corpóreo e o etéreo.

Seu domínio era o lugar onde todos os sonhos, e também a magia por eles criada, se originava. Assim, a Deusa da Noite foi denominada Deusa da Magia, e também Deusa das Feras e da Lua Negra.

Sempre vigilante, Hécate convocou uma antiga e monstruosa fera para servi-la. De bom grado, esta jurou ser a guardiã da Deusa e obedecer-lhe às ordens. A criatura era a fusão perfeita entre homem e fera; filho do Titã Cronos, era um ser como nenhum outro. E, como recompensa por sua lealdade, Hécate o presenteou com o coração e a alma de um homem. Embora sua aparência fosse monstruosa, a deusa sentiu-se segura ao lhe confiar a proteção da fronteira dos caminhos que conduzem ao mundo mágico.

Este lugar foi batizado de Reino das Rosas, e aquelas que ali serviam a deusa foram chamadas de Sacerdotisas do Sangue. Durante séculos, o Guardião permaneceu fiel, seguindo os ditames de sua missão sagrada, pois era tão honrado quanto influente, e tão sábio quanto poderoso. Até um dia de Beltane 1. ...

O Guardião conhecia o seu dever. Mas, Céus! , até mesmo um protetor podia se cansar... E não cometera nenhum deslize por crueldade ou ganância. Seu único erro fora amar sem reservas. Mas ele quebrara a confiança de sua deusa e, em um rompante de raiva, Hécate lançara um feitiço sobre ele e sobre o Reino das Rosas: o reino não teria mais nenhuma Alta Sacerdotisa, e o Guardião dormiria eternamente, a menos que fosse despertado por uma mulher que carregasse o sangue mágico das Sacerdotisas de Hécate e fosse sábia o suficiente para enxergar a verdade, e compassível o bastante para passar por cima dela...

E, assim, o Reino das Rosas se desesperou, e o Guardião adormeceu enquanto sua deusa esperava.


Parte 1

Capítulo 1

— Andei tendo aqueles sonhos de novo.

Nelly se ajeitou na cadeira e deu a Mikki um de seus olhares mais clínicos.

— Gostaria de me contar sobre eles? – Nelly perguntou.

Mikki desviou o olhar da amiga. Será que ela gostaria de compartilhá-lo? Descruzou e tornou a cruzar as pernas longas, passou a mão nervosamente pelos cabelos e tentou se acomodar na poltrona.

— Antes de eu responder a essa pergunta, quero que responda a uma minha.

— É justo — concordou Nelly.

— Se eu lhe contar os meus sonhos, como vai ouvi-los? Como minha amiga ou como minha psiquiatra?

A médica riu.

— Por favor, Mikki! Estamos em uma lanchonete, não em meu consultório! Você não está pagando cento e vinte dólares por hora para eu ficar sentada aqui com você. E não vamos nos esquecer: — Ela se inclinou para a frente e exagerou no sussurro. — É minha amiga há anos, mas nunca foi minha paciente!

— É verdade. Mas não por falta de assunto.

— Ah, sem dúvida — Nelly concordou com sarcasmo. — E então? Vai me contar sobre os sonhos, ou terei de usar meus truques de psiquiatra para dissuadi-la?

— Tudo menos isso! — Mikki levantou as mãos como para se defender de um ataque. Encolheu os ombros. — Eles são iguais aos outros.

Nelly ergueu as sobrancelhas significativamente.

— Está bem! — Mikki suspirou e revirou os olhos. — Talvez tenham mudado um pouco.

— Consegue ver o rosto dele agora? — a outra moça perguntou, gentil.

— Quase. — Mikki fixou o olhar em um ponto qualquer da aconchegante lareira de tijolos. — Na verdade, acho até que vi seu rosto desta vez, mas...

— Mas?

— Eu estava tão preocupada que não consegui me concentrar nele — ela elaborou, apressada.

— Preocupada?

Mikki parou de olhar para a lareira e encontrou os olhos da amiga.

— Preocupada em ter o sonho mais erótico da minha vida! Não dei a mínima para o rosto dele.

— Ora, ora, ora — Nelly comentou surpresa. — Não me lembro de ter falado em sexo nos outros sonhos. Agora estou realmente interessada nessa história.

— Isso porque eles não... ou talvez eu... Ah, não sei. Por alguma razão, os sonhos estão mudando. — Ela se esforçou para descrever o que estava acontecendo. — Estou dizendo, Nelly, os sonhos estão ficando cada v ez mais reais.

O brilho de diversão deixou os olhos escuros da outra moça, substituído pela preocupação.

— Diga-me, querida. O que está acontecendo?

— Quanto mais realistas ficam esses sonhos, menos a minha vida parece real.

— Conte-me sobre esse último, então.

Em vez de responder de imediato, Mikki rodou uma mecha do cabelo cor de cobre no dedo e sorveu um gole do cappuccino . Ela e Nelly eram amigas fazia anos. Tinham se conhecido no hospital onde ambas trabalhavam, e haviam se tornado confidentes no mesmo instante.

Na aparência, possuíam pouca coisa em comum. Nelly era morena e esguia, de uma beleza exótica, herança do sangue haitiano da mãe. E devia ser ao menos uns vinte centímetros mais alta do que ela, calculou Mikki. Ao contrário dela que, além de clara, era cheia de curvas e um tanto comum.

A despeito de suas diferenças, contudo, não existia nenhum tipo de ciúme entre elas. E, desde que tinham se conhecido, apreciavam uma a outra por suas singularidades. Era uma amizade sólida, baseada na confiança e no respeito mútuo. E Mikki não fazia ideia do motivo pelo qual se encontrava tão hesitante em contar seus sonhos a Nelly. Principalmente o último.

— Mikki?

— Não sei por onde começar — mentiu.

Nelly esboçou um sorriso e tomou um gole do cappuccino , e mordiscou um biscoito de chocolate.

— Leve o tempo que quiser. Todos os bons psiquiatras têm uma coisa em comum...

— Eu sei, eu sei. Vocês são pacientes até demais!

— Isso mesmo.

Mikki brincou com a caneca de café. Precisava exorcizar aquele sonho de uma vez. Aquilo estava ficando estranho demais. Era como se houvesse sido hipnotizada... ou seduzida.

Continuou, entretanto, sem falar nada. Não apenas porque tinha dúvidas quanto a revelar os detalhes do sonho em voz alta, como também porque parte dela temia que a amiga, uma excelente psiquiatra, fosse proferir alguma palavra mágica que a curasse . Não tinha certeza se queria aquilo.

— Ei, sou eu! — Nelly incitou suavemente. Ela deu-lhe um sorriso apertado e respirou fundo.

— Está bem. Esse começou igual aos outros. — Cutucou o esmalte da unha, nervosa.

— Quer dizer na cama de dossel?

— Na mesma cama de dossel enorme, no quarto enorme — ela reforçou. — O lugar era o mesmo, só que não estava tão escuro como antes. Desta vez a luz entrava por uma parede inteira de janelas. — Mikki buscou a palavra. — Eram painéis de vidro verticais... Sabe o que eu quero dizer?
Nelly assentiu.

— Janelas quadriculadas?

— Quase isso. Bem, independente de como elas são chamadas, eu as notei, desta vez, porque deixavam entrar alguma luz. — Seu olhar continuou preso às chamas que queimavam, alegres, enquanto revivia o sonho. — Era uma luz suave, rosada, como a do amanhecer... Enfim, eu despertei — continuou, deixando escapar uma risadinha nervosa. — Foi estranho ter sido acordada de um sonho em outro sonho, mas eu acordei. Estava de bruços e sentia alguém escovando os meus cabelos. Uma delícia. E, fosse quem fosse, usava uma daquelas escovas grandes, de cerdas m acias. — Sorriu para a amiga. — Você sabe... Não há coisa mais gostosa do que alguém lhe escovando os cabelos.

— Concordo, mas ter o cabelo escovado não é assim tão sexy .

— Ei, já faz algum tempo, mas sei muito bem que escovar os cabelos não tem a ver com sexo! Não cheguei nessa parte ainda... Só estou contando como fiquei relaxada e feliz por conta disso — explicou Mikki, lançando a Nelly um olhar impaciente.

— Desculpe interromper. Basta fingir que não estou aqui.

— Isso é coisa de psiquiatra?

— Não. Só estou querendo ouvir a parte do sexo, caramba!

Mikki riu.

— Nesse caso, terei prazer em continuar. Vamos ver... Eu estava tão relaxada que me sentia flutuando. Foi bizarro. Senti a alma leve, como se esta estivesse deixando meu corpo... Então tudo começou a ficar muito louco.

— Como assim, “muito louco”?

— Bem, senti uma lufada de vento. Foi como se ela houvesse me pegado e me levado para algum lugar, mas não o meu corpo; apenas o meu espírito. A sensação foi de... purificação. Isso me assustou, e eu abri os olhos. Estava de volta no meu corpo, só que no meio do roseiral mais incrível que já tinha visto ou imaginado na vida. — Sua voz perdeu qualquer indício de dúvida quando passou a descrever a cena. — Foi de tirar o fôlego. Estava cercada por rosas! E das minhas favoritas: Prazer em Dobro, Chrysler Imperial, Cary Grant, Prata Esterlina... — Ela suspirou, feliz.

— Nenhuma rosa Mikado?

A pergunta de Nelly a trouxe de volta à realidade.

— Não, não vi nenhuma rosa homônima minha. — Aprumou-se, lançando à amiga um olhar irritado. — E não acho que isso esteja acontecendo porque minha mãe decidiu me dar o nome de sua rosa favorita.

Nelly fez um gesto conciliatório com a mão.

— Mikki — falou, pronunciando o apelido de forma clara, como se quisesse apagar o nome “Mikado” do ar —, precisa admitir que o fato de essas rosas aparecerem em todos os seus sonhos é muito estranho.

— Por quê? Sou voluntária no Roseiral Municipal e cultivo minhas próprias rosas. Por que uma parte integrante da minha vida não deveria figurar nos meus sonhos?

— Está certa. As rosas são uma parte importante da sua vida, assim como eram na de sua mãe e...

— ... na da minha avó. E na da minha bisavó.

Nelly sorriu, aquiescendo.

— Sabe que eu acho esse seu hobby encantador e morro de ciúme da sua capacidade de cultivar aquelas rosas maravilhosas.

— Sinto muito. Eu não devia ter sido tão indelicada. Acho que é a falta de sono.

— Não tem dormido direito? — A preocupação sombreou a expressão de Nelly.

— Não, não... — Mikki negou rapidamente. — Apenas ando levando muito trabalho para casa e ficando acordada até tarde. Por favor, não me pergunte mais nada sobre isso! , pensou, lançando um olhar tenso na direção da amiga enquanto mexia o capuccino e tomava um gole. Nelly não precisava saber que sua exaustão nada tinha a ver com falta de sono ou muito trabalho.

Tudo o que desejava era escapar daquele mundo de sonhos e dormir. O pior era que, apesar de nunca mais ter se sentido completamente descansada depois de ter ingressado naquele mundo de fantasias, ainda se via compelida a retornar para ele todas as noites.

— Mikki?

— Onde eu estava mesmo? — Ela se atrapalhou.

— No belo jardim de rosas.

— Ah, sim...

— E as coisas estavam ficando muito loucas.

— Isso mesmo. — Mikki voltou a olhar para a lareira. — Por algum tempo, eu apenas caminhei entre as rosas, tocando cada uma delas e apreciando sua beleza. Havia acertado no palpite: era de manhã cedo, o ar estava fresco e as flores ainda se encontravam respingadas com orvalho; como se tudo tivesse acabado de ser lavado. O jardim era circular, e as rosas e seus canteiros formavam uma espécie de labirinto. Fiquei andando por ali, apenas me divertindo.

Seu sorriso oscilou, e ela fez uma pausa antes de iniciar a parte seguinte do sonho. Pôde sentir as faces ganhando cor e desviou o olhar para encontrar o olhar curioso da amiga.

— Não me diga que está envergonhada! — provocou Nelly.

— Mais ou menos. — Mikki esboçou um breve sorriso.

— Mikki, você e eu fizemos depilação à brasileira juntas, esqueceu? E na mesma sala! Supere logo essa coisa e me dê mais detalhes. Se mesmo assim falhar, lembre-se... — Nelly deu mais uma mordida no biscoito e continuou com a boca cheia: —... Sou uma profissional.

— Prefiro não me lembrar — murmurou Mikki antes de respirar fundo. — Pois, então. Estou no roseiral e, de repente, sinto a presença dele . Eu não conseguia vê-lo, mas sabia que ele estava atrás de mim. — Umedeceu os lábios e, inconscientemente, levou a mão à garganta, os dedos acariciando a pele sensível na base do pescoço enquanto falava. — Comecei a andar
mais rápido porque, a princípio, senti que deveria me manter distante... Mas logo tudo mudou. Eu podia ouvi-lo atrás de mim conforme ele ia se aproximando. E ele não estava tentando se esconder. Seus ruídos eram assustadores, quase selvagens. Era como se eu estivesse sendo caçada por uma fera.

Tentou fazer a respiração voltar ao normal, embora sentisse o corpo formigar com uma onda de calor. Surpresa, percebeu uma gota de suor escorrendo entre os seios.

— Estava com medo? — Nelly perguntou.

— Não. Nem um pouco. Na verdade, estava excitada — ela respondeu tão baixo que a amiga se inclinou a fim de escutá-la melhor. — Eu queria que ele me pegasse. Quando eu corria, era só para provocá-lo; e eu queria muito fazer isso.

— Nossa! — a outra moça exclamou com um suspiro.

— Eu avisei... E o sonho fica ainda melhor.

— Oba. — Nelly mastigou outro biscoito.

— Eu corria nua e ria. O vento parecia meu amante conforme soprava no meu corpo. Eu me deliciava com cada gemido, cada rosnado, cada grunhido feito pela coisa que me perseguia. E queria ser apanhada, mas não até que ele estivesse muito, muito ansioso por me agarrar.

— Pelo amor de Deus, não pare por aí! Ele pegou você ou não?

Mikki tornou-se introspectiva, e seus olhos se voltaram para o fogo mais uma vez.

— Sim e não. Como eu disse, eu estava correndo, e ele me perseguia. Cheguei a um canto do labirinto e me virei... — Seus lábios se apertaram e em seguida se curvaram em um sorriso travesso. — Então tropecei e caí em um buraco. Quando bati no fundo, devia ter me machucado, mas minha queda foi amortecida por pétalas. Eu tinha caído em um poço cheio de pétalas de rosa! E devia haver milhares delas lá. Seu perfume preenchia o ar, e elas acariciaram o meu corpo. Cada centímetro da minha pele ganhou vida em meio a tanta suavidade... E depois as mãos dele substituíram as rosas. — Respirou fundo. — Não eram macias. Eram ásperas, fortes e exigentes. O contraste entre as duas sensações foi incrível. Ele acariciou o meu corpo nu, desde os meus seios, passando pela minha barriga e coxas... Exatamente como eu gostaria que me tocasse. Foi como se ele tivesse entrado nas minhas fantasias e conhecesse todos os meus desejos secretos.

Mikki fez uma pausa para afastar um de fio de cabelo do rosto. Sentiu a mão tremer, mas, não querendo que Nelly notasse, apressou-se em continuar com a narrativa.

— Estava mais escuro no poço do que no jardim, e minha visão parecia meio turva, quase como se o perfume das pétalas esmagadas houvesse criado uma névoa. Eu não podia vê-lo, mas, onde quer que ele me tocasse eu pegava fogo. Antes disso, em todos os meus sonhos, podia sentir sua presença como se ele fosse um ser irreal, um fantasma ou uma sombra. Eu pressentia sua presença, mas até então ele nunca havia me perseguido ou posto a mão em mim. E eu jamais o tinha tocado também. Mas, naquele poço de rosas, tudo mudou. Podia sentir suas mãos na minha pele e também podia acariciá-lo... A certa altura, eu o puxei para mim, e ele... — Mikki engoliu em seco e fechou os olhos com a lembrança. — Ele era forte e incrivelmente grande. Corri as mãos por seus ombros e braços e percebi que seus músculos eram como pedra. Foi quando senti algo diferente.

Engoliu, tentando aplacar a súbita secura na garganta. Deveria contar a Nelly? Deveria revelar aquilo a alguém?

Enquanto se lembrava, foi quase como se estivesse lá outra vez; naquele poço de sensações e fragrâncias. Suas mãos tinham se deslocado até uma massa espessa de cabelo. Tivera a intenção de segurá-lo pelo rosto, de abrir os olhos e vê-lo enfim.

Mas encontrara os chifres. A criatura que acariciava seu corpo, levando-o a uma excitação que nunca experimentara na vida possuía chifres! Não. Não podia contar aquilo a Nelly. Era absurdo demais. Sua amiga iria achar que estava ficando maluca.

— Ele usava um traje esquisito — murmurou em vez disso, nervosa. — Uma espécie de armadura cobrindo o peito, não sei. E foi incrivelmente erótico: aqueles músculos rijos cobertos pelo couro... Eu o senti e acariciei, então ele mergulhou o rosto nos meus cabelos, aqui. — Fechando os olhos, puxou uma massa de cachos avermelhados para a frente e afundou a mão neles, perto da orelha direita. — A partir desse ponto foi fácil eu escutar cada som que ele fazia. Quando eu o afagava, ele gemia ao meu ouvido; só que não era bem um gemido. Ao menos não o gemido de um ser humano... Era um rosnado baixo e profundo, que não parava nunca. — Ela franziu o cenho. — Isso devia ter me assustado. Eu devia ter gritado e lutado ou, no mínimo, ficado petrificada, paralisada de medo. Mas não queria ficar longe dele. E aquele som terrível, animalesco e maravilhoso me excitou ainda mais. Senti que iria morrer se não pudesse tê-lo por inteiro. Quando arqueei o corpo, consegui sentir sua ereção, e ele começou a se esfregar em mim... — Engoliu de novo. — Foi então que falou, e sua voz soou diferente de tudo o que já ouvi: uma voz meio de homem, meio de bicho. E era tão profunda que foi quase como se eu pudesse escutá-la também com a mente.

— E o que ele disse? — Nelly incitou, meio sem fôlego, quando ela parou de falar.

— Murmurou em meu ouvido algo como: “Nós não podemos. Eu não posso. Isto não pode acontecer!”. Mas eu não parei. Sentia o desejo dele nas palavras tanto quanto no que tinha no meio das pernas... Implorei a ele que não parasse enquanto me agarrava àquela armadura. Queria arrancá-la; eu o queria nu contra mim... Mas era tarde demais. Eu já estava gozando, e tudo o que podia fazer era colocar as pernas em volta dele conforme o meu corpo explodia. — Mikki respirou fundo. — Foi o orgasmo que me acordou.

 

 

                                                   P. C. Cast          

 

 

 

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