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DEUSA DE TROIA - P. 2
Series & Trilogias Literarias
Capítulo Dezenove
Kat ouviu Jacky resmungando antes mesmo de abrir os olhos. Estava dizendo algo parecido com "Meu Jesus Cristinho" e "Isso não tem cabimento".
Sorriu. Se tivesse morrido e ido para o inferno, ao menos Jacky viera com ela outra vez.
Abriu os olhos.
- Ei... - resmungou. - Pensei que tomasse conta da língua ao menos quando estivesse de plantão.
Jacky se inclinou sobre ela no mesmo instante, tomando seu pulso, ao mesmo tempo que lhe limpava o rosto com um pano frio.
- Katrina, querida, você voltou!
- Se está me chamando de "querida" é porque a coisa está feia. Perdi uma perna ou algo assim?
- Ah, obrigada, meu Jesus Cristinho, é você mesma! - Jacky a beijou nos lábios sem cerimônia. - Nunca mais me deixe apavorada assim!
- Que diabo, Jacky? Não pedi para aquelas coisas nojentas me atacarem.
- Muito bem, quero que conte meus dedos... - Ela levantou três dedos, tal qual um árbitro de beisebol.
- Três dedos, como o Yoda. A propósito, se não fizer uma manicure em breve e cortar essas unhas, vai ficar ainda mais parecida com ele. - Kat deu um tapinha fraco
na mão da amiga. - Tenho que dormir com você para conseguir algo para beber?
- Felizmente, não, até porque está com um bafo e tanto! - Jacky virou-se para a mesa lateral e despejou a água de um cântaro em um copo. Em seguida, ajudou-a a beber.
- Não é de admirar. Caramba, estou me sentindo uma merda!
- Para uma mulher que ficou em coma por quatro dias, está me parecendo ótima!
- Quatro dias! - ela exclamou em meio a longos goles de água.
- Ei, vá com calma. Vai ficar enjoada se beber demais.
- Já estou enjoada.
- Pois vai se sentir pior. E pode vomitar.
Kat tomou mais um gole e, então, entregou o copo a Jacky, relutante, deitando-se no travesseiro.
- Quatro dias, Jacky? Por quê? A mãe de Aquiles me curou do veneno. Ou ao menos eu pensei que ela tivesse curado.
- E curou, mesmo. Ou melhor, Tétis fez o que pôde, apesar da sua "notável e frágil concha humana", como disse Atena. Mas teve que se recuperar por conta própria
depois.
- Atena estava aqui?
- Hum-hum. Todas as três vieram. Na verdade quatro, se contar a mãe de Aquiles, que já o acompanhava quando ele chegou ao acampamento, carregando-a semimorta, e
quase me matou de susto há quatro dias.
- Nossa. Agora estou me sentindo especial.
Jacky revirou os olhos.
- Você é "especial". - Jacky fez aspas no ar para destacar a palavra. - Tão especial que, quando formos para casa, vou pedir um ônibus da prefeitura para vir te
buscar.
- Espere um pouco... Se todas as deusas estavam aqui, por que elas não usaram seus poderes para me fazer acordar?
- Eu mencionei isso. E talvez não num tom muito educado.
- Você sendo curta e grossa com alguém?... Estou chocada. Imagino o que não deve ter falado para as pobres deusas!
- Acontece que, aparentemente, o monstro melequento que a pegou tinha mais poderes do que parecia. As deusas não conseguiram neutralizar todo o veneno. Seu corpo
também precisou combatê-lo por si só.
- Aposto que isso a deixou num mau humor daqueles. - Kat sorriu para sua melhor amiga.
- Um pouco. - Jacky pegou a mão dela e a apertou. - Estou tão feliz por não ter morrido nas minhas mãos!...
- Eu também. - Kat a apertou de volta. - Desculpe-me se a assustei.
- Tudo bem. Até porque decidi que está me devendo uns sapatos.
- Sapatos?
- Lembra-se daquele seu lindo par de escarpins de couro vermelho que eu cobiço faz tempo?
- ... Sei.
- Pois eu cansei de cobiçá-lo.
- Aff!, você é uma enfermeira perversa!
- Obrigada. Agora me diga que diabo a picou desse jeito.
- Não faço ideia. Em um momento eu estava andando pela praia, tentando encontrar Aquiles; no seguinte, vi algo na água e parei para olhar. Foi então que aquela coisa
cheia de tentáculos me agarrou e me picou, paralisando a minha perna. Fui sendo agarrada e picada seguidas vezes, até que apertei o botão de pânico e gritei para
Vênus. - Kat tocou o medalhão que ainda lhe pendia entre os seios e estremeceu. - Aquelas coisas não estavam para brincadeira. Ficavam ondulando, pareciam o rabo
de um rato, e havia literalmente centenas delas pulando em mim.
Jacky torceu o rosto como se tivesse acabado de chupar um limão.
- Jesus! Eram como caudas de rato? Que coisa nojenta!
- Sim, e elas já estavam me puxando para o fundo, querendo que eu servisse de alimento para o que parecia ser a mãe gigantesca delas, quando Aquiles se materializou,
foi dominado pela Fúria e acabou com elas. Em seguida, a mãe dele apareceu, tocou em mim e eu desmaiei. Fim. Mas Aquiles já não lhe contou tudo isso?
- Hum... não. Aquiles anda todo esquisito desde que a trouxe de volta. Mal trocou duas palavras conosco. Nem mesmo Pátroclo conseguiu conversar com ele. Na verdade,
Pátroclo também anda estressado, e creio que ele já esteja cansado de tentar fazer Aquiles se abrir e só ouvir grunhidos e rosnados.
- Jacky, não está infernizando a vida do rapaz, está?
- Claro que não. Pátroclo e eu estamos bem. Melhor do que bem. É por causa dessa maldita guerra de que ele não está participando e outras coisas de que tem ouvido
falar. Mas, enquanto Aquiles não lutar, Pátroclo também não vai lutar, portanto não estou dando a mínima para esse assunto. - Jacky fez um gesto de desdém. - De
qualquer forma, minha intuição feminina, que é bastante apurada, me diz que Aquiles está preocupado por você tê-lo visto se transformar na coisa, e que agora acha
que vai fugir correndo dele. É claro que é sensata o bastante para não fazer isso, o que eu tentei explicar a ele, mas Aquiles não me escuta. Na verdade, naquela
noite, acho que ele bebeu até cair.
- Talvez devesse ir buscá-lo para que eu possa explicar pessoalmente que eu não tenho juízo...
- Boa ideia - decidiu Jacky. E, em seguida, acrescentou: - Kat, ele se transformou com a tal Fúria, não foi?
- Sim - ela respondeu baixinho.
- E foi horrível. - Jacky não colocou a frase como uma pergunta, porém Kat acenou com a cabeça.
- Foi um horror. Não era mais ele. Seja lá o que for que toma conta de Aquiles, não é humano. Não pode ser.
- Mas Aquiles tinha voltado ao normal quando a trouxe de volta para o acampamento - Jacky observou.
- A mãe dele o chamou na hora, fez algo com a água e foi como se o mar levasse a Fúria embora.
- O que significa que essa coisa pode realmente ser controlada. Estou certa?
- Não está sempre certa?
Jacky soltou uma risada seca.
- Vou buscar o burro e mal-humorado do seu homem - decidiu, mas, antes de sair da tenda, tornou a olhar para Kat. - Prometa que vai tomar cuidado.
- Prometo.
- Você sabe que eu te amo.
- Eu também te amo, Jacky.
Jacky conseguiu sorrir - a despeito de sua preocupação - enquanto se abaixava e deixava a barraca.
Kat estava pensando como seu cabelo devia estar terrível, e tentou penteá-lo com os dedos, quando o corpanzil de Aquiles preencheu a entrada da tenda. Seu olhar
recaiu direto sobre ela, e Kat sorriu.
- Acho que preciso lhe agradecer por ter salvado a minha vida. Na realidade, a você e à sua mãe. - Quando ele não disse nada e apenas continuou a fitá-la, ela continuou,
num murmúrio: - Sua mãe é linda, por sinal. E também parece ótima pessoa, digo, deusa. Se ela ainda estiver aqui, eu adoraria conhecê-la formalmente. Depois que
eu me puser decente, claro.
- Está linda - ele afirmou.
- Deve estar com problemas na vista! Deveria deixar Jac..., quero dizer, Melia, examinar os seus olhos. Os modos dela deixam um pouco a desejar, mas Melia é excelente
enfermeira.
Os lábios de Aquiles se curvaram de leve.
- Melia é muito leal a você. E minha mãe voltou para as profundezas. Ela não pode ficar em terra firme por muito tempo. - Ele parou, prendeu as mãos às costas, em
seguida deixou os braços cairem ao lado do corpo para, então, como se não soubesse o que fazer com eles, correr a mão pelo cabelo. - Não precisa me agradecer por
ter salvado a sua vida. Não fui eu quem lutou contra aquelas criaturas.
Kat manteve o olhar fixo no dele.
- Eu sei disso. Mas foi você quem se apresentou para a luta. Além do mais, aposto que podia ter vencido aquelas coisas nojentas sem a Fúria.
- Não. Eu não poderia ter derrotado as criaturas sem a Fúria. - Aquiles falou devagar, como se quisesse ter certeza de que ela o compreenderia. - O veneno que quase
a matou teria me destruído. A Fúria é que me tornou imune a ele.
- Se é assim, fico contente por ela tê-lo dominado.
- Como pode dizer uma coisa dessas? Eu me transformei em um monstro. Um monstro que a teria estuprado e deixado morta.
- Mas que não fez nada disso. Você voltou. Conteve o monstro.
- Porque minha mãe, uma deusa do mar, interveio!
- Talvez - Kat concordou com bom-senso. - Mas talvez possa aprender a detê-lo também.
Não acredito que isso seja possível.
- Alguma vez acreditou que iria fazer amor com uma mulher sem que a Fúria o possuísse? - ela inquiriu.
- Não - Aquiles respondeu, hesitante. - Nunca.
- O que aconteceu entre nós não foi nenhum sonho. Sabe disso, não sabe?
- Sei.
- O que estou dizendo não faz sentido, então?
- Você é um oráculo da deusa Atena. Tem poderes que as outras mulheres não têm. Por isso pode me tocar e eu continuar sendo um homem.
Kat abriu a boca para afirmar que aquilo não passava de uma enorme bobagem, mas a fechou em seguida. Não podia dizer nada a ele.
De repente, se rebelou. Por que não? Nenhuma das deusas havia dito que ela não poderia fazer isso. Ninguém tinha dito que precisaria ocultar sua verdadeira identidade
de Aquiles. Precisava ludibriar apenas os integrantes do acampamento grego.
Por um instante, Kat desejou poder falar com Jacky primeiro, mas logo chegou à conclusão de que não precisava perguntar nada à melhor amiga. Jacky era a autenticidade
em pessoa. Dizia a verdade até mesmo quando não devia. Por isso mesmo ela, Kat, gostava tanto dela.
Além do mais, era uma estupidez esconder tudo de Aquiles. Se não confiava nele nem mesmo para revelar a própria identidade, não deviam ter tido relações sexuais.
Qualquer pessoa saberia disso.
- Aquiles, será que não pode chegar mais perto? Preciso falar com você a respeito dessa história de oráculo.
Ele atravessou o cortinado da cama com um misto de hesitação e ansiedade. Era óbvio que queria tocá-la, que precisava tocá-la. Tão óbvio quanto o fato de ele temer
ficar muito próximo e ser rejeitado.
Kat estendeu a mão e sorriu.
- Por que não se senta aqui a meu lado?
A única coisa que mudou na expressão velada de Aquiles foi o alívio em seus olhos. Ele obedeceu, cauteloso, e segurou a mão dela como se esta fosse uma borboleta.
Em seguida, surpreendeu-a, beijando seus dedos com delicadeza. Falou ainda olhando para eles e acariciando com o polegar o lugar em que beijara.
- Quando o monstro me deixou e eu a vi deitada lá, pensei que a havia perdido. - Ergueu o olhar, então, e Kat ficou chocada com a profundidade da tristeza em seus
olhos. - Acho que eu não suportaria perdê-la também.
Foi nesse momento que Kat parou de mentir para si mesma. Aquilo não era apenas uma missão. Aquiles não era um projeto que ela assumira, levada por outras pessoas.
De alguma forma, a despeito do tempo, dos mundos e da lógica, ele era o seu destino. Estava ligada a Aquiles como nunca tinha chegado perto de estar com qualquer
outro homem em seu próprio mundo. E não queria abandoná-lo.
E perceber isso foi tão libertador como assustador. Jacky iria matá-la. Definitivamente.
Precisou limpar a garganta antes de falar:
- Eu não sou quem pensa que sou.
- Não é Polixena?... Mas as servas a reconheceram como a princesa.
- Apenas escute. Deixe-me contar tudo e, se não acreditar em mim, a princípio, por achar que é loucura, lembre-se de como é insano você ser possuído por um monstro.
Aquiles franziu a testa.
- Eu vou me lembrar.
- Muito bem. A verdade é que este - Kat apontou para o próprio corpo - é o corpo de Polixena, princesa de Troia. Mas isto - ela fechou o punho e o colocou sobre
o coração -, a alma dentro deste corpo, não pertence à Polixena. Pelo menos não desde o dia em que Ulisses foi ao templo de Hera.
- Não compreendo.
- No dia em que vim para você, Polixena e sua serva, Melia, tinham sido assassinadas por soldados de Agamenon que invadiram o templo de Hera. No mesmo dia, em outro
tempo e em outro mundo, eu também morri em um acidente, junto com a minha melhor amiga. Vênus estava nos observando nesse instante, então pegou as nossas almas e
as colocou nos corpos de Polixena e Melia. - Kat se apressou em continuar antes que ele pudesse dizer qualquer coisa. - Não faz muito sentido para mim, também. A
parte que consigo compreender melhor é que as deusas me queriam aqui. - Ela parou quase a ponto de admitir que o objetivo era mantê-lo fora da guerra, de modo que
Troia pudesse vencê-la. Mas como poderia revelar isso a Aquiles? - Respirou fundo. - Elas queriam que eu viesse para cá por sua causa. Atena, Hera e Vênus, todas
acreditam que seu destino deve ser modificado. E elas acham que eu posso ajudá-lo com isso.
Enquanto ela falava, Aquiles foi se tornando cada vez mais rijo. Mas não puxou a mão da dela, tampouco desviou o olhar do seu.
- Quer dizer que vem de outro mundo?
- Não sei se exatamente de outro mundo, mas de outro tempo. Do futuro. - Ela esboçou um breve sorriso. - De um futuro muito distante, na verdade. Ao menos de dois
mil anos à frente deste tempo.
- E no seu futuro as pessoas me conhecem?
- Conhecem, sim.
Aquiles deixou cair a mão e se pôs de pé, dando as costas para ela.
- De que modo você ou as deusas acreditam que o meu destino possa ser mudado? Ele já aconteceu!
Kat pensou por alguns instantes e encontrou a resposta sem dificuldade.
- É pura ficção.
Ele se voltou para ela.
- Ficção? Como assim?
- No meu tempo, as histórias a seu respeito, e sobre a era em que viveu, são tidas como ficção. Como Mitologia, para ser mais específica. Histórias que não são verdadeiras,
que nunca aconteceram. Ou então que aconteceram, mas que foram exageradas ao longo dos anos. Quer um exemplo? No meu tempo, as pessoas acreditam que é imortal, invulnerável...
exceto pelo seu calcanhar. Dizem que foi atingido por uma flecha exatamente nesse ponto, e que isso foi a sua derrocada.
- No meu calcanhar? - Ele olhou para o pé, cuja aparência era mais do que normal.
- No seu calcanhar - ela repetiu. - Ficou tão famoso por isso que o feixe de fibras que corre atrás do tornozelo - Kat afastou as cobertas de cima da própria perna
e apontou para o tendão - é conhecido como "tendão de Aquiles" no meu mundo inteiro.
- Isso não faz sentido!
- Também acho. A menos que me diga que a única maneira de você morrer é mesmo ser atingido, esfaqueado - ou seja lá o que for - no calcanhar.
- Mas o calcanhar não é uma área vulnerável do corpo. Caso se rompa esse tendão, um homem poderia até ser derrotado porque perderia a utilidade de uma das pernas,
mas o ferimento por si só jamais iria matá-lo.
- O seu calcanhar não é invulnerável, portanto.
- Não.
- E você não é imortal.
- Claro que não.
- Muito bem. Agora escute esta... Diz a Mitologia que Troia foi derrotada por um cavalo oco e gigantesco, recheado de Gregos. Que eles invadiram a cidade se ocultando
na barriga desse falso cavalo.
- Está de galhofa.
- Nunca falei tão sério na vida.
- Mas um cavalo oco e gigante é uma parvoíce!
- Está acompanhando meu raciocínio? Você e a Guerra de Troia foram registrados na história, porém os fatos de sua vida e da guerra foram todos adulterados ou aumentados
com os mitos. O que realmente acontece com você poderia, portanto, ser muito diferente do que lhe foi destinado.
- E qual foi esse destino?
Kat não desviou o olhar dos olhos azuis e penetrantes.
- Você morre aqui, em Troia, neste último ano da guerra.
Capítulo Vinte
Kat imaginou que Aquiles fosse fazer mais perguntas sobre a própria morte, mas, em vez disso, ele apenas acenou com a cabeça breve e desinteressadamente. A única
coisa em que parecia interessado era nela.
- Vai me dizer o seu nome verdadeiro?
- Katrina Marie Campbell. Meus amigos me chamam de Kat.
- E você não é uma princesa?
Kat riu.
- Não. Nem de longe. Sou uma espécie de... médica de cabeça.
- Também é curandeira?
- Oh, Deus, não. Sou terapeuta. Alguém que aconselha as pessoas e as ajuda a equilibrar suas emoções. Minha especialidade é o aconselhamento de casais.
- Por isso sabia o feitiço necessário para me acalmar?
- Sim, mas não é um feitiço. Na verdade, não existe nenhuma mágica no que eu faço. Você pode até aprender a fazer sozinho. Chama-se hipnose. É apenas uma maneira
de relaxar e chegar ao seu subconsciente.
- A mente que sonha? Por isso, no início, eu acreditava que estava apenas sonhando que você me tocava!
Kat sentiu o rosto pegar fogo.
- Sim. Aliás, eu sinto muito por isso. Não tive a intenção de me aproveitar da situação. É que você é tão... másculo e, quando comecei a tocá-lo, não pediu que eu
parasse, então...
A risada de Aquiles soou alta, longa e desinibida.
- O que foi? - Kat franziu o cenho. Queria que ele risse e sorrisse mais, mas não dela!
Ele a beijou na mão mais uma vez.
- Eu não era tocado por uma mulher havia uma década, e ainda me pede desculpas por algo que considerei um milagre. É uma mulher estranha e mágica, Katrina Marie
Campbell.
- Pode me chamar de Kat - ela contrapôs. - E não foi ético o que eu fiz. Não quero que pense que é assim que eu me comporto normalmente.
A expressão divertida de Aquiles tornou-se sóbria.
- Está arrependida do que aconteceu conosco?
- Não, de maneira alguma. Só sinto não ter lhe contado tudo isso antes.
Ele sorriu.
- Eu não teria acreditado em você e decerto a teria mandado embora, pelo seu próprio bem. Não tem nada por que se desculpar, Kat, a menos que não queira a minha
devoção, a minha proteção e o meu amor. Porque eu gostaria de lhe dar essas três coisas, além de muito, muito mais.
Kat tomou ambas as mãos de Aquiles nas dela e o fitou bem no fundo dos olhos azuis.
- Eu não apenas aceito a sua devoção, a sua proteção e o seu amor, como também quero mais.
- Diga. Se estiver ao meu alcance, eu o farei.
- Quero que fique fora dessa guerra até termos a certeza de que consegue controlar a Fúria. E, mais do que isso, quero que fique bem longe de Heitor.
- A profecia diz que estou destinado a morrer depois que eu o matar.
Kat apertou as mãos dele com força.
- Então não o mate! Por que isso seria assim, tão difícil?
- Neste momento, não consigo imaginar o que poderia me levar a lutar com Heitor. - Aquiles soltou uma risada seca. - Não guardo nenhum rancor contra ele. Sei que
Heitor é um homem honrado, muito amado por sua família e pelos Troianos, e não costumo derrubar homens honrados, no auge de suas vidas, quando eles não me fizeram
nada.
- Que bom. Se é assim, está resolvido. Ficaremos juntos aqui, e eu irei ensiná-lo a desenvolver habilidades de auto-hipnose.
Aquiles lançou-lhe um olhar horrorizado.
- Não posso enfeitiçar a mim mesmo!
- Aquiles, quantas vezes tenho que explicar que não se trata de um feitiço? Não é nada mais do que respiração, concentração e relaxamento.
- Acredita mesmo que eu possa aprender a controlar a Fúria?
- Não sei se pode controlá-la - Kat contrapôs, honesta. - O que eu acredito é que posso ensiná-lo a impedir que ela o domine antes que seja necessário você controlá-la.
Aquiles se levantou e começou a andar de um lado para o outro, perto da cama.
- Se a Fúria não voltar a me possuir... - Suas palavras sumiram.
- ... Sua vida não vai girar mais em torno das guerras - Kat terminou por ele. - E seu destino será outro. É isso o que quer? - Ela sentiu o peito se apertar enquanto
aguardava pela resposta.
Aquiles parou e olhou para ela.
- Eu poderia voltar para o meu país, me casar, criar meus filhos, conhecer o amor e a paz, e deixar a guerra, a morte e o ódio para trás.
- Sim, poderia - Kat afirmou.
- Parece um sonho. O tipo de sonho que tive por duas noites seguidas com você.
- Não foram sonhos. Aquilo tudo era real.
- Se é assim, talvez o futuro que eu julgava impossível pode ser real também. Sim. É o que eu quero - ele falou com firmeza.
- Então vamos torná-lo real.
Aquiles voltou para o lado dela, na cama.
- Diz isso com tanta convicção... Como se pudesse mesmo se tornar realidade; como se o meu destino pudesse ser mudado. Quando olha para mim desse modo e fala dessa
maneira, eu quase acredito.
- Pois pode acreditar. E, mais importante do que isso, Aquiles: acredite em si mesmo - pediu Kat.
Ele se inclinou e a beijou suavemente nos lábios. Kat sentiu sua hesitação e soube que Aquiles temia cruzar a linha da intimidade entre eles, o que ela compreendia.
Não precisavam de outro ataque da Fúria, muito menos quando a fé de Aquiles em si mesmo, e em sua capacidade de lutar contra a besta, ainda se encontrava tão frágil.
Por sorte, nesse momento, o estômago dela resolveu soltar um enorme ronco, e Kat riu.
- Estou morrendo de fome!
- Outra vez - ele observou com seu leve sorriso. - Vou pedir que as servas...
- Ah, não! - ela interrompeu, já jogando as pernas para fora da beirada da cama. - Preciso me levantar, andar, tomar um banho!... - Aquiles fez menção de argumentar,
contudo Kat estendeu a mão para ele. - Poderia me ajudar nessas três coisas?
- Tudo o que estiver ao meu alcance - ele reafirmou, segurando sua mão e passando-a pelo braço.
Kat sorriu, sentindo-se surpreendentemente bem para uma mulher que fora envenenada, quase comida viva, e que ficara em coma por quatro dias.
No momento em que chegou ao banco do lado de fora da tenda, tinha as pernas bem mais firmes. Mesmo assim, sentou-se e deixou que Aquiles lhe providenciasse comida
e bebida.
Jacky se encontrava perto da fogueira com Pátroclo (o qual, aliás, parecia mais do que apaixonado), e ambos correram até ela.
- Como está se sentindo? Não está com tonturas, falta de ar, visão turva? Ainda sente alguma coisa paralisada ou formigando?
- Estou bem! Não, não, não e não. Quer fazer o favor de relaxar? Estou ót...
Antes que pudesse terminar a frase, contudo, Aetnia correu até ela e se atirou a seus pés, segurando seus tornozelos e chorando.
- Oh, minha senhora! Mil perdões! Por favor, desculpe! Eu não tinha ideia de que a estava colocando em perigo!
Kat trocou um olhar chocado com Jacky enquanto tentava se desvencilhar do abraço ardente e molhado da serva.
- Aetnia, não foi sua culpa. Estava apenas tentando me ajudar a encontrar Aquiles. Não podia adivinhar que eu ia deparar com aquelas criaturas do mar.
- Não! A culpa foi minha. Eu não devia tê-la escutado. Eu sinto tanto, princesa!... - A moça soluçou, desesperada.
Aquiles a segurou pelo braço e a fez ficar de pé.
- Não devia ter escutado a quem?
Aetnia gritou e se encolheu toda, estendendo a mão para Kat numa súplica.
- Princesa! Não deixe que ele me mate!
- Não seja boba, Aetnia! Aquiles não vai matá-la. - Ignorando o olhar sombrio do guerreiro, Kat o cutucou no braço, obrigando-o a soltar a moça. Pegou Aetnia pela
mão, então, e a fez sentar-se no banco, entre ela e uma carrancuda Jacky.
- Eu não afirmaria isso com tanta convicção, até descobrir o que ela teve a ver com esse ataque contra você - sugeriu Jacky.
Aetnia soltou um chiado, tal qual um camundongo, e chegou mais perto de Kat.
- Não deixe que a bruxa me enfeitice, princesa!
Jacky sibilou para ela e Aetnia gritou, ao mesmo tempo que Kat pensou ter ouvido Aquiles rosnar.
- Está bem! Agora chega! Tratem de se acalmar! - Kat segurou Aetnia pelo ombro, impedindo-a de praticamente subir em seu colo, e apontou para Jacky. - Ela não é
bruxa. - Fez um gesto na direção de Aquiles. - E ele não é nenhum monstro. Agora, respire fundo três vezes e explique, devagar e sem chorar feito uma histérica,
do que estava falando. Respire comigo, vamos. - Embora tivesse vontade de sacudir a mulher, Kat a fez respirar três vezes. - Está bem agora. Fale comigo. - Quando
os olhos da serva se desviaram, nervosos, para Aquiles e Jacky, ela a sacudiu pelos ombros. - Fale comigo, Aetnia!
O olhar da moça se voltou para ela.
- F-Foi... foi quando eu fui até o acampamento grego buscar seu chá.
Kat acenou com um gesto de cabeça, incentivando-a.
- Sim, eu me lembro. Foi muita gentileza sua conseguir o chá para mim. - Ela também se lembrou de que, pouco depois, Aetnia a enviara para aquela praia distante,
onde ela devia ter encontrado Aquiles, contudo manteve a expressão e a voz neutras. - O que aconteceu quando estava no acampamento grego?
- Eu vi Briseida. Ela estava conversando com um grupo de noivas de guerra no acampamento de Acalle. Ela... ela estava falando sobre você e... - Aetnia hesitou, olhando,
apavorada, para Jacky, que torcia os lábios.
- Briseida estava falando sobre Melia e eu - concluiu Kat, apertando os ombros da moça e obrigando-a a desviar a atenção de Jacky. - O que ela estava dizendo?
- E por que isso tem algo a ver com a princesa ter sido atacada? - Aquiles acrescentou, em uma voz que, obviamente, tentava manter razoável.
Kat sentiu Aetnia começar a tremer sob suas mãos.
- Basta falar para mim e tudo vai ficar bem - incentivou em voz baixa. - O que Briseida disse?
- Ela chamou Melia de bruxa. Disse que ela enfeitiçou Pátroclo e que podia até mesmo estar lhe ensinando feitiços.
Kat ouviu Pátroclo soltar uma risada seca, e Jacky teve um pequeno acesso de tosse.
- Isso foi tudo o que Briseida falou?
- Não. Ela ouviu quando pedi um pouco do chá especial de Acalle para a senhora, e afirmou que, se eu quisesse salvá-la do mal de Melia, deveria mandá-la para aquela
praia. Dessa forma, a mãe de Aquiles - Tétis, a deusa do mar - poderia contemplá-la com alguma imunidade contra bruxaria. Por isso eu disse a senhora que Aquiles
estava lá. Pensei que a estivesse ajudando! Por favor, acredite em mim! - suplicou Aetnia antes de se pôr a soluçar mais uma vez.
- Essa vadia lhe preparou uma armadilha! - exclamou Jacky, depois lançou um olhar de desprezo na direção de Aetnia. - Eu não quis dizer esta. Estou falando de Briseida.
- Então voltou a atenção para Pátroclo, que continuava ao lado de Aquiles, e ergueu as sobrancelhas. - Sabia que eu o tinha enfeitiçado, meu anjo?
Pátroclo sorriu.
- Claro que sabia, minha linda.
Jacky jogou-lhe uma série de beijinhos.
Kat os ignorou, concentrando-se em Aquiles, cuja expressão se tornara uma máscara ilegível.
- Nossa. Essa Briseida deve mesmo ser maluca por você. Quer me tirar do caminho a todo custo.
- Bobagem. Ela não me quer coisa nenhuma. Sente o mesmo que todas as outras em relação a mim - ele afirmou, a expressão suavizando por um instante. - Todas menos
você, princesa.
- E por acaso pode ter certeza disso, Aquiles? - interveio Jacky. - Não me leve a mal, mas não me parece um especialista a respeito do que as mulheres querem.
- Não seja maldosa! - ralhou Kat.
- Não estou sendo maldosa! Estou dizendo a verdade! Briseida pode ter sido apaixonada por Aquiles, e ele pode nem ter se dado conta disso! Não disse que ela a fulminou
com o olhar na tenda de Agamenon?
- Verdade - concordou Kat.
- Não é Briseida o problema. É Agamenon - afirmou Aquiles.
- Ahn? - Kat e Jacky indagaram em uníssono.
- Vá, Aetnia. Volte para a fogueira e prepare uma refeição para a princesa - Aquiles ordenou antes de continuar. A moça pulou do banco e saiu correndo, aos tropeços,
em direção ao fogo. - Briseida não a enviou para aquela praia e para o que ela acreditava que seria a sua morte porque me quer. Ela não tem poderes para invocar
criaturas do mar que realizem seus desejos.
- Mas Agamenon tem. Ele já fez isso antes - afirmou Pátroclo.
Aquiles concordou com um gesto de cabeça.
- Briseida foi apenas a porta-voz de Agamenon. Uma ferramenta que ele usou para colocar a princesa em uma posição vulnerável.
- Mas por quê? O que ele tem contra mim?
- Não é contra você. É contra mim - corrigiu Aquiles. - O rei e eu somos inimigos de longa data.
- É mais do que isso - opinou Pátroclo. - Agamenon está tentando obrigá-lo a voltar para a guerra.
- E por que ele acha que me matando faria Aquiles voltar a lutar? - inquiriu Kat.
- Não ouviu? Aquiles e eu fomos enfeitiçados por vocês duas. - O sorriso de Pátroclo foi tão jovial e atraente como de costume, porém Kat ficou surpresa com as olheiras
que notou sob seus olhos expressivos. Pátroclo também tinha perdido peso? Suas maçãs do rosto pareciam mais salientes.
- Então bastaria que vocês dois se vissem livres das bruxas, aqui, e voltariam correndo para a batalha - concluiu Jacky.
- Porque, de acordo com o raciocínio de Agamenon, vocês não têm nada mais importante na vida do que essa guerra - Kat completou, encontrando o olhar azul de Aquiles.
- A guerra é tudo o que tenho para viver na opinião da maioria das pessoas - ele murmurou.
- Eu não faço parte da maioria das pessoas - argumentou Kat.
Os lábios benfeitos do guerreiro se ergueram nos cantos.
- Algo pelo que estou me tornando profundamente grato.
Capítulo Vinte e Um
- O problema é que os homens de Agamenon estão sendo mortos - Pátroclo falou de súbito. - Gregos estão sendo mortos.
Aquiles voltou-se para o primo.
- Agamenon sabia do custo que haveria para o povo grego quando deixou nossas costas para atacar Troia sob o pretexto de estar raptando uma mulher infiel. Muitos
homens foram mortos durante os últimos nove anos.
- Era uma luta equilibrada enquanto ainda estávamos nela.
- Primo, não o estou impedindo de voltar aos campos de batalha. Você, assim como qualquer um dos meus homens, é livre para lutar contra os Gregos.
- Não! - Jacky exclamou, levantando-se e agarrando a mão de Pátroclo. - Não pode lutar sem seu primo, e Aquiles tem excelentes razões para não fazer isso. Agamenon,
esse sujeito que se diz um grande rei e líder, não passa de um mentiroso e um trapaceiro! Ele acabou de tentar matar a princesa para tirá-la do caminho. É como uma
prostituta velha e ardilosa! Não deixe que ele o influencie!
Kat observou Pátroclo acariciando o rosto de Jacky e ficou tocada diante da óbvia adoração nos olhos do jovem guerreiro, que sorriu para a sua melhor amiga.
- Não se preocupe, minha linda. Não pretendo lutar sem meu primo.
- Parece que Agamenon não o conhece muito bem se pensa que o caminho para tê-lo de volta é atacar alguém com quem você se importa - raciocinou Kat.
- Agamenon é um parvo - declarou Aquiles. - Sei reconhecer um tolo porque fui um quase a vida toda. O rei luta pela glória, pois acha que sua imortalidade será assegurada
pela espada, quando a verdadeira imortalidade só pode ser encontrada em nossos filhos e filhas. - Balançou a cabeça, parecendo várias décadas mais velho do que seus
vinte e nove anos, depois sorriu com tristeza para Pátroclo. - Melhor se lembrar disso, primo.
- Nós vamos nos lembrar - afirmou Pátroclo, pondo-se ao lado de Jacky para descansar a mão em seu ombro.
Kat esperava que Jacky fosse empalidecer e fazer algum comentário do tipo "ninguém aqui vai ter filhos", mas, em vez disso, ela sorriu para Pátroclo, parecendo a
mais feliz das criaturas.
- Então decidiu que não vai mais lutar, Aquiles - concluiu Kat. - Mesmo que Agamenon tenha mandado me atacar e que eu quase tenha morrido.
Aquiles tinha começado a relaxar, e seu imediato e férreo autocontrole ficou bastante evidente.
- Gostaria que eu me vingasse em seu nome?
- Não! Claro que não. Eu só queria saber se era essa a sua intenção.
- Minha intenção não se modificou.
- Ainda quer mudar seu destino? - ela quis saber.
- S-Seu jantar, senhora. - Aetnia, sem dúvida escutando o último comentário de Kat, quase derrubou a tigela com o ensopado que havia trazido.
- Deixe a comida e traga vinho para todos - Aquiles comandou com um grunhido.
Servil, Aetnia correu para atender ao pedido.
- Precisa parar de assustá-la assim! - ralhou Kat.
- Pois eu gostei. Assuste mesmo, Aquiles! - incitou Jacky.
- Por fora você é como uma espada, minha linda: afiada, forte e mortal. Mas, por dentro, é como um pêssego suculento, sempre pronta para o meu prazer... - elaborou
Pátroclo.
Kat ergueu as sobrancelhas quando, em vez de crucificá-lo pelo comentário piegas, Jacky riu, deliciada.
- Diz coisas tão lindas, meu anjo! - falou, inclinando a cabeça para trás a fim de receber um beijo.
Kat comeu o ensopado em silêncio enquanto Aetnia corria ao redor, na companhia de outra serva tão tímida quanto ela, distribuindo cálices para todos e enchendo-os
com vinho tinto. Suspirou, pensativa. Estava começando a se sentir bem melhor. A fraqueza parecia ter diminuído, assim como aquela sede insaciável e a sensação de
não pertencer àquele mundo, o que era no mínimo irônico. Claro que não pertencia àquele mundo. E nem Jacky. Mas ali estavam as duas, sentindo-se inegavelmente atraídas
por aqueles dois homens - os quais pareciam agora entranhados em seus destinos.
- Está se sentindo bem mesmo? - A pergunta contundente de Jacky, ainda que feita em voz baixa, a arrancou de sua introspecção.
- Estou meio confusa - admitiu. Aquiles e Pátroclo haviam se afastado em direção à fogueira a fim de apanhar uma bandeja de pão, azeitonas e queijo, e, por insistência
de Jacky, outro jarro de vinho tinto - sem chamar Aetnia para servi-los -, o que deixara as duas a sós por alguns momentos.
- Confusa sobre o quê? - Jacky perguntou.
Kat encontrou o olhar da amiga.
- Eu contei a Aquiles quem nós somos.
- E é isso o que a está incomodando? Eu já contei tudo a Pátroclo faz tempo!
- Você o quê?!
- Escute, eu fui obrigada a fazer o diabo por aqui quando o seu namoradinho a trouxe de volta para o acampamento semimorta. Eles queriam sangrá-la e esfregar mijo
de touro, ranho de porco e sabe-se lá mais o que no seu corpo. Como sou sua amiga, mandei todo o mundo se ferrar.
- E isso não acabou bem, claro.
- Não. Não até que expliquei a Pátroclo exatamente quem éramos e por que entendo mais sobre o tratamento de doentes e feridos do que esses charlatães ridículos e
assassinos do exército grego.
- E como ele reagiu?
Jacky sorriu.
- Com o mínimo de piração. Mas eu tive que prometer que iria fazer o desenho de um carro para ele.
- Um carro?
Jacky encolheu os ombros.
- Sabe como são os rapazes. Eu estava contando como eram as coisas no mundo moderno, uma coisa levou à outra e... puf! Agora ele quer um carro.
- Faria sentido se estivéssemos no meio do Além da Imaginação - ironizou Kat. - Você o ama mesmo, não?
- Infelizmente, acho que sim. E você ama Aquiles, certo?
- É provável.
- Ou seja, estamos fodidas - concluiu Jacky.
- Estamos - ela concordou.
- Pátroclo está ficando entediado longe da luta - revelou Jacky, os olhos se voltando na direção da fogueira, à procura do amante. - Eu até queria que os Gregos
perdessem essa guerra logo, mas as coisas estão muito diferentes agora. Não sei mais o que quero, e muito menos o que fazer.
- Sei bem o que está querendo dizer. Antes eles iam perder e nós seríamos transportadas de volta para a casa. Mas agora eu... - ela hesitou, confusa.
- Agora não tenho certeza se quero voltar - Jacky terminou por ela.
- Exatamente.
Ulisses sentiu-se velho. Seu ombro doía o tempo todo. Naquele dia, tinha sido ferido durante a batalha quando liderava uma leva de soldados contra as malditas muralhas
de Troia e acabara se colocando ao alcance de um arqueiro.
Havia tido sorte. A flecha lhe passara apenas de raspão pelo lado de fora da coxa e não chegara a entrar em seu corpo. Ainda assim, o ferimento era um doloroso incômodo,
o que o fez sentar-se, desanimado, em um velho tronco retorcido.
Distraído, apertou a faixa de linho ensanguentada que passara em torno da ferida na perna. Ao menos tinha aquele trecho de praia apenas para si.
Olhou para o mar embebido pela lua e levou o odre aos lábios.
- Parece cansado.
Ulisses fechou os olhos e deixou a voz macia acariciá-lo. Quando os abriu, a deusa se materializara à sua frente. Usava vestes claras, da cor da asa de uma pomba,
as quais combinavam perfeitamente com seus olhos incomuns. Não trouxera o capacete de guerra nem o escudo, tampouco carregava qualquer outro símbolo de seu poder.
Parecia uma virgem na flor da beleza e juventude.
Inclinou a cabeça.
- Sua presença me rejuvenesce, grande deusa.
Atena dispensou o elogio.
- Não tem dormido bem? Eu já disse que... - Deixou escapar uma exclamação ao perceber a faixa cheia de sangue em sua coxa. Então, como era típico da Deusa da Guerra,
tornou a assumir uma expressão severa. - Por que não me contou que tinha sido ferido?
- Uma flecha me pegou de raspão. Não foi nada - Ulisses afirmou.
- Sou sua deusa. Sou eu quem decido se é ou não é alguma coisa. - Ela avançou um passo e se ajoelhou a seu lado. - Deixe-me ver isto.
- Atena, não... Não devia... - Ulisses começou, segurando o cotovelo de Atena na tentativa de colocá-la de pé.
Ela o pressionou no peito com a mão.
- É o meu desejo ver o quanto meu guerreiro está ferido.
O toque fez o peito de Ulisses se apertar. Com um suspiro, ele soltou o braço delicado e relaxou, esticando a perna para que ela pudesse examinar a ferida. Quando
começou a tirar a bandagem ensanguentada, os dedos suaves da deusa o detiveram.
- Eu faço isso. Basta ficar quieto.
Ulisses permaneceu no lugar, imóvel, aspirando o perfume único de Atena. Ela estava tão perto que, quando se curvou sobre sua perna, o cabelo comprido e dourado
lhe roçou o corpo, deixando-o excitado, ofegante... e preocupado que ela se apercebesse disso. Será que Atena fazia ideia de quanto ele a amava?
Era claro que sim. Ela era sua deusa. Sabia de tudo.
- Isto pode estar infeccionando. Por que não limpou e enfaixou esta ferida como devia? - Atena o encarou com um leve vinco na testa lisa.
Ulisses começou a elaborar uma história sobre estar ocupado demais para isso, porém as palavras que saíram de sua boca foram muito diferentes das que sua mente planejara.
Na verdade, elas partiram de seu coração.
- Eu estava cansado demais para me preocupar com isso, deusa. No fundo, até queria que esse ferimento apodrecesse e me levasse. Então, ao menos, eu poderia descansar.
Os olhos cinzentos se estreitaram de um modo que qualquer pessoa enxergaria como raiva. Mas Ulisses conhecia todas as expressões de Atena, e o que viu foi o choque
que suas palavras causaram.
- Não vai morrer. Eu o proíbo! - A deusa colocou a mão na ferida com cuidado. Fechou os olhos, reunindo seus poderes. Em seguida, sussurrou:
Escuta, carne, da tua deusa o intento.
Ao meu comando, une sangue e pele neste momento!
A mão de Atena começou a brilhar, e Ulisses prendeu a respiração ao sentir seu poder brotar dentro dele. Era como um fogo ardente aquecendo seu sangue, e ele pôde
perceber a carne atendendo ao desejo sussurrado da deusa e curando a si própria.
Quando Atena tirou a mão dele e abriu os olhos, não havia mais nada em sua perna, a não ser uma leve cicatriz rosada.
- Veja só isto! - exclamou, maravilhado, sorrindo para os olhos cinzentos. - Eu disse que a sua presença sempre me rejuvenescia!
Atena abriu um de seus raros sorrisos.
- Homem teimoso. Será que nunca se cansa de me bajular?
- Assim o farei enquanto for seu, minha deusa.
- Então eu ficarei eternamente lisonjeada, pois sempre pertencerá a mim, Ulisses. Devagar, como se lutando contra si mesma, Atena pressionou a mão na coxa firme
de novo, porém, desta vez, seu toque não foi com intenção de cura. Ainda ajoelhada ao lado dele, ela o acariciou na pele. - Quanto tempo faz desde que apareci para
você pela primeira vez?
Ulisses não hesitou.
- Pouco mais de vinte e dois anos, deusa. Apareceu pela primeira vez para mim antes mesmo que eu tivesse barba.
- Era um menino encantador, que já demostrava sua inteligência e sabedoria, e que tinha um rosto muito lindo e doce. - A expressão sóbria da deusa suavizou-se com
um sorriso.
Ulisses pensou que seu coração fosse explodir no peito diante de tanta beleza. Nervoso, ergueu a mão para esfregar o restolho, torcendo para que ela não notasse
o quanto esta tremia.
- Ao contrário de agora, minha diva. Não existe mais aquele rosto macio de menino - afirmou, esperando que ela fosse concordar com ele, rir e reassumir a máscara
divina que ocultava seus sentimentos mais profundos, impedindo-a de demonstrar raiva ou paixão.
Em vez disso, Atena ergueu a mão para acariciá-lo na face, pegando-o desprevenido.
- Eu ainda vejo o menino - disse em uma voz tão baixa que ele teve de se esforçar para ouvi-la acima do coração que batia, ensurdecedor, em seu peito.
Olhou para sua mulher - sua deusa -, a quem ele amava desde que era um garoto inexperiente. Ela já aparecera para ele muitas vezes. Escolhera-o como seu guerreiro,
como o mortal a quem conceder mais bênçãos do que a todos os outros. Mas raramente o tocava, e nunca chegara perto de satisfazer o desejo secreto que ele nutria
por ela.
- O que foi, Atena? O que aconteceu?
A diva tirou a mão de seu rosto e se levantou, dando-lhe as costas.
- Por que haveria algo errado? Não posso tocá-lo apenas porque desejo isso?
Ele se levantou também, e se aproximou dela.
- É claro que pode me tocar. E por qualquer motivo que desejar! - Ulisses levantou a mão num impulso, querendo tomá-la nos braços, porém se conteve. Atena não era
mortal. Ele jamais deveria se esquecer disso.
- Sabia que até mesmo Aquiles encontrou o amor? - ela comentou, ainda de costas para ele.
- Ele a ama, não é mesmo?... Eu bem que me perguntei se ele iria se permitir isso.
- Não me parece surpreso. - Atena virou-se para encará-lo.
Ulisses sorriu e deu de ombros.
- Pelo visto, raramente o amor é previsível.
- Ama Penélope?
À menção do nome de sua esposa, o sorriso de Ulisses oscilou.
- Ela é minha mulher e mãe do meu filho. Eu a respeito e honro como tal.
Atena o tocou no rosto outra vez.
- Mas você a ama?
Quase sem ter consciência disso, Ulisses pressionou a face contra os dedos delicados.
- Ao meu modo.
- E o que isso quer dizer?
- Quer dizer que entreguei meu coração a outra há pouco mais de vinte e dois anos. Desde então, tenho tido muito pouco a doar a qualquer outra pessoa.
- Ah, meu Ulisses!... - Atena sussurrou.
Antes que ele pudesse mudar de ideia, Ulisses se inclinou e pressionou os lábios contra os dela. Quando suas bocas se encontraram, um choque de desejo cortou seu
corpo com tal intensidade que a dor se mesclou ao prazer. Ao senti-lo também, Atena deixou escapar uma exclamação e passou os braços em volta do pescoço forte, puxando-o
para ela e abrindo a boca a fim de aprofundar o beijo.
Ficaram ali durante muito tempo, as línguas se explorando, os corpos pressionados. De repente, Atena interrompeu o beijo, respirando com dificuldade. Tinha os lábios
perfeitos agora inchados e as faces cor-de-rosa graças à aspereza da barba de Ulisses. Olhou para ele, os olhos cinzentos enormes e repletos de diferentes emoções.
Entontecido, o guerreiro orou em silêncio para que aquele desejo e aceitação permanecessem entre eles.
- Vênus estava certa - Atena murmurou. - Devíamos ter nos tornado amantes anos atrás. -Sem sair dos braços fortes, a deusa fez um gesto na direção da praia ao redor
deles, e uma manta de cetim se materializou na areia. Deliberadamente, ela se afastou dele e, em seguida, abriu o broche ornamentado que segurava suas vestes acima
do ombro.
A seda prateada deslizou por seu corpo e se amontou a seus pés, fazendo Ulisses se lembrar mais uma vez das asas delicadas de uma pomba. Atena deu um passo para
fora do monte de tecido e deitou-se com graça, a pele macia luminosa e perfeita ao luar conforme se reclinava no cetim. Depois estendeu a mão para ele.
- Venha e dê-me a prova do amor que diz ter sentido por mim nestes tantos anos, meu Ulisses - falou num sussurro.
Ele deitou-se a seu lado, e se perdeu no corpo de sua amada. Sabia que ela jamais seria totalmente sua. Sabia que aquela poderia ser a única vez em que desfrutaria
seu toque mais íntimo, contudo entregou o corpo à deusa sem hesitação e com total abandono, assim como já tinha lhe entregado o coração havia tantos anos.
Aquilo teria de ser o suficiente, pensou mais tarde, enquanto ainda a segurava nos braços e suas lágrimas se mesclavam. De alguma forma, teria de ser o bastante.
Capítulo Vinte e Dois
- Eu estava errada - exclamou Vênus, irrompendo pelos aposentos particulares de Hera.
- Estava? Acredito que a palavra correta seja "estou", como em "Estou errada em perturbá-la em seus aposentos, minha rainha".
- Eu sei, eu sei. Eu não a teria incomodado se não acreditasse que se trata de uma emergência - explicou a deusa, fazendo surgir no ar um cálice de ambrosia.
- O que aconteceu? Não me diga que a pequena mortal no corpo de Polixena quase conseguiu ser morta novamente. Pelas barbas de Zeus! Essa Guerra de Troia fica mais
irritante a cada dia.
- Não, está tudo bem com Kat. É Atena.
Hera encontrava-se deitada em uma chaise longue dourada, com estofamento em veludo, mordiscando uvas mergulhadas em ambrosia e em açúcar, mas, diante da declaração
de Vênus, sentou-se, preocupada.
- O que foi? O que aconteceu com Atena?
- Ela fez sexo com Ulisses.
Hera piscou uma vez, duas, então balançou a cabeça como se tentando clarear as ideias.
- Creio que não ouvi muito bem. Pensei ter ouvido que Atena fez sexo com Ulisses.
- Foi exatamente o que eu disse. - Vênus sentou-se na chaise ao lado de Hera e fez surgir um cálice de ambrosia também para sua rainha. - Eu estava tomando conta
do acampamento grego. Afinal, não podemos correr o risco de ter outro atentado contra a vida de Kat.
- Claro, claro, precisa ser diligente. O que foi que viu?
- Sexo. Entre Ulisses e Atena. Na praia. - A deusa falou aos poucos, em meio a vários goles de ambrosia. - Atena fez surgir uma manta de cetim para eles!... Foi
muito romântico, apesar de escorregadio.
- Assistiu a tudo, mesmo sabendo quem eles eram?
- Claro que não! - Vênus bebeu o vinho, sem fitar Hera nos olhos. - Embora eu possa afirmar que, pelo pouco que vi, Ulisses parecia bem entusiasmado.
- Que bom para Atena. Ela tem estado séria demais há muito tempo. - Hera ergueu uma sobrancelha fina para Vênus. - Era sobre isso que estava errada? Fico surpresa.
Quantas vezes a ouvi dizendo a Atena que ela precisava ter mais orgasmos, que precisava se soltar, que precisava disso, daquilo... Agora que ela conseguiu um pouco
de tudo, acha que é um problema? Não está fazendo muito sentido, Deusa do Amor.
- Eu queria que ela fizesse tudo isso com Ulisses antes que houvéssemos decidido entrar na Guerra de Troia do lado dos Troianos. Depois do que aconteceu na praia
esta noite, acha que Atena vai permitir que Ulisses e seus homens sejam abatidos?
- Ah, não vai mesmo.
- É justamente esse o problema. Tiramos Aquiles do caminho e criamos situações para levar a guerra ao fim. Agora vem a própria Deusa da Guerra, grudada no traseiro
firme de Ulisses! Mesmo que ela apenas manipule as coisas, sem entrar no combate, vai mais do que compensar a ausência de Aquiles!
- Talvez deva ter uma conversa com a sua mortal. Se enviarmos Aquiles de volta para a frente de batalha com a ajuda de Atena, imagino que essa guerra teria fim em
um instante. E era isso o que nós queríamos - Hera lembrou, soltando um pesado suspiro. - Ainda que a perspectiva de ver aquele miserável do Agamenon saindo vitorioso
me exaspere.
- Talvez eu possa... - começou Vênus.
- Possa o quê?
- Também andei observando Aquiles e Katrina. Eles estão completamente apaixonados - afirmou Vênus.
- E isso é importante para mim porque...?
- Porque se Kat o ama, não vai permitir que ele vá direto para a morte. Não se lembra daquela pequena profecia sobre a qual Aquiles é morto diante das muralhas de
Troia depois de matar Heitor?
- Sua mortal moderna é apenas uma peça neste jogo. Não vou permitir que ela fique no caminho - decidiu Hera.
- Hera, você já lidou com os mortais modernos, e sei que vai a Tulsa visitar seu filho de vez em quando. Não quero ofendê-la, mas, mesmo após toda essa sua interação
com os mortais modernos, parece que não consegue compreendê-los. Eles não nos veneram ou temem como os antigos.
- Pois deveriam! - Hera explodiu. Depois respirou fundo e se controlou. - Sabe que eu não gosto de ser cruel, então vamos esperar mais um pouco e ver o que acontece.
Mas se Atena pender para o lado da Grécia, não teremos escolha a não ser ajudar o Exército a vencer com os nossos poderes. Não vou me arriscar a criar inimizades
com a Deusa da Guerra.
- Dizem que o Amor é mais forte do que a Guerra - lembrou Vênus com uma severidade incomum na voz.
Hera tocou o braço da diva.
- Eu não quis dizer que Atena é mais importante para mim do que você. Mas por acaso o Amor iria querer causar um conflito entre os deuses por conta de uma mortal
moderna?
- Não é disso que estou sendo acusada no mundo antigo? De uma luta que supostamente causei entre Gregos e Troianos por conta de uma mortal?
- Sim, e como se sente a respeito? - Hera perguntou, astuta.
- Tenho horror em pensar que essa guerra seja atribuída a mim - confessou Vênus.
- Se é assim, imagino que não iria gostar se algo semelhante acontecesse no Monte Olimpo.
- Não, não gostaria. - Vênus suspirou. - É melhor esperarmos para ver o que acontece.
- E se Atena ajudar Ulisses?
- Para isso, Aquiles teria de entrar na batalha outra vez - lembrou Vênus.
- Muito bem. Então estamos decididas - resolveu Hera.
- Infelizmente.
Vênus tomou um gole de ambrosia, pensando em como Aquiles ficara perturbado nos quatro dias em que Kat permanecera inconsciente.
Bem, ao menos ele havia conhecido o amor, por mais breve que isso tivesse sido.
- Aquiles, tudo o que eu disse foi que queria um banho de imersão com perfume de rosas, e não mais desses de tigela. Está me levando para fora do acampamento por
causa disso? - Kat perguntou, fazendo piada.
- Eu não disse que lhe daria qualquer coisa que você desejasse se isso estivesse ao meu alcance? - Ele a tocou no braço que ela apoiava no dele.
Kat sorriu. Aquiles vinha fazendo aquilo com mais frequência: tocá-la com breves e suaves carícias. Não se estendia no toque, contudo; tampouco a beijava. Era como
se estivesse tentando se acostumar com ela aos poucos, vencendo pequenas etapas que não despertassem a Fúria.
Sentiu seu olhar e ergueu o dela, vendo que ele a observava, atento.
- Diga-me se estamos indo longe demais. Não quero que se canse.
Eles tinham caminhado pela praia, para longe do acampamento, por algum tempo, depois haviam rumado mais para o interior, seguindo um caminho de cabras. Não fora
uma caminhada muito breve, porém esta não chegara a ser exaustiva.
- Como eu disse a Jacky, parece que dormi por décadas. Estou ótima - Kat declarou com firmeza.
Não que ela não tivesse ficado assustada com o quanto a conversa e a refeição da noite anterior a deixaram esgotada. Planejara outra pequena sessão de hipnose com
Aquiles, mas apagara no momento em que colocara a cabeça no travesseiro. E, pior, dormira até o início da tarde.
Estava se sentindo bem no momento, mas aquilo tudo a deixara assustada. Já havia morrido uma vez. Qual era o limite? E se também perdesse aquele corpo? Vênus iria
salvá-la? E, se a deusa o fizesse, que tipo de corpo poderia obter? Já se apegara àquele, e não queria nem pensar no que poderia acontecer se...
- Está preocupada com alguma coisa? - Aquiles interrompeu seu debate mental.
- Eu estava pensando sobre mortalidade.
- Está aí um assunto em que tenho pensado muito pouco - observou ele.
- Verdade? Pensei que, depois de ter escolhido morrer moço, vivia contando os anos e pensando nisso o tempo todo.
Aquiles soltou uma risada autodepreciativa.
- Quando eu era moço, raramente usava a cabeça. E se usava era apenas para pensar na batalha seguinte ou em uma nova oportunidade para obter a glória.
- Ei, não é nenhum velho, com vinte e nove anos! Ainda é muito moço.
- Não sou moço há mais de uma década.
Kat o fitou, sabendo que as cicatrizes profundas que haviam marcado seu rosto tão cedo também tinham se instalado em sua alma.
- Talvez parte disso possa ser revertida - afirmou.
Ao notar a direção de seu olhar, Aquiles curvou os lábios.
- Sua amiga é uma excelente curandeira, mas nem mesmo ela pode reverter este tipo de coisa. - Aquiles apontou para as próprias cicatrizes.
Kat sorriu.
- Isso foi uma piada? E pensar que o céu não desabou, e você nem mesmo foi atingido por um raio!
- É a sua má influência sobre mim.
- Não vai dizer que eu o enfeiticei também? Lembre-se, Jacky é uma bruxa, eu sou uma bruxa... Há bruxas para todos os lados.
- Tem razão. Você me enfeitiçou. - Ele a surpreendeu, puxando-a para si e abraçando-a com força. - E aqui estamos nós. Segurou-a pelos ombros e a fez se virar.
- Aquiles! É lindo! - Kat exclamou diante do oásis. Salgueiros rodeavam uma bacia formada por calcário cor de manteiga. Um córrego desaguava na piscina natural,
alimentando-a com água; em seguida, escorria, borbulhante, para o outro lado. O lugar era pequeno, porém do tamanho ideal para quem quisesse tomar um banho com conforto.
Diante do oásis havia um pequeno templo que lembrava um gazebo, só que feito de mármore com colunas graciosas e um teto abobadado. No meio do templo, uma manta fora
estendida e uma cesta fora colocada sobre ela.
- O que é tudo isso? - Kat perguntou, caminhando ao redor da piscina até o templo.
- É um santuário dedicado a Vênus. Eu o descobri anos atrás. Foi abandonado por causa da guerra. Já vim aqui muitas vezes para pensar. Para fugir um pouco.
Kat olhou para ele, surpresa, e notou que Aquiles parecia envergonhado.
- Não há nada de errado nisso. Todo mundo precisa ficar um pouco sozinho.
- Sim, mas Aquiles, o terror das donzelas e a Fúria no campo de batalha, não é qualquer pessoa. Se meus homens soubessem que encontrei consolo em um santuário dedicado
à Deusa do Amor... - Ele riu, sem graça, e balançou a cabeça - ... provavelmente iriam acreditar que enlouqueci de vez.
- Mas eles parecem ter se acostumado a me ver na sua companhia. Não é verdade?
Aquiles deu de ombros.
- Neste momento eles estão preocupados demais até mesmo para ficar chocados por estar aquecendo a minha cama.
- Eles querem lutar - concluiu Kat com um aperto no estômago.
- Querem.
- E o que você quer?
- Já me conhece o bastante. Sabe que não desejo nada além de voltar para Phthia e encontrar a paz... - Aquiles fez uma pausa, encontrando seus olhos antes de completar:
- ... e o amor.
- Já encontrou o amor - Kat afirmou baixinho.
Aquiles cobriu a distância que os separava, juntando-se a ela no centro do santuário de Vênus, e a segurou pela mão.
- Encontrei? Mesmo sem sabermos se a Fúria pode ser derrotada?
- Sim, encontrou. E a Fúria pode ser derrotada, tenho certeza. - Lenta e deliberadamente, Kat se pôs na ponta dos pés, enquanto o puxava para si e o beijava com
delicadeza. Preocupada, não alongou ou aprofundou o beijo, mas também não fez menção de recuar. O beijo era sua promessa de que o futuro com que ele sonhava poderia
ser real, contudo não queria fazer nenhum tipo de pressão sobre Aquiles. Sorrindo, ela olhou para a cesta. - Se este santuário está abandonado há anos, como isto
veio parar aqui?
- Seu desejo de tomar banho fez com que eu me lembrasse deste lugar. Enquanto dormia, esta manhã, eu trouxe as coisas para cá. Imaginei que fosse gostar de passar
algum tempo a sós comigo. - Ele disse as palavras com sua habitual confiança, contudo Kat pôde ver a ponta de insegurança em seus olhos. Qualquer sinal de medo ou
hesitação da parte dela o faria desmoronar.
- Pois acertou em cheio. Foi uma ideia maravilhosa.
Aquiles sorriu e curvou-se com uma formalidade exagerada.
- Seu banho a espera, princesa, e depois vamos jantar o que Aetnia preparou sob minha apavorante pressão.
Kat balançou a cabeça.
- Se foi assim, na certa ela preparou um par de sanduíches de arsênico com um cozido de vidro moído para acompanhar. - Olhou para a piscina de águas claras, então,
e sentiu a garganta seca. - Tem certeza de que não há nenhuma criatura nojenta aí, esperando para me comer?
- A palavra de uma deusa do mar iria tranquilizá-la?
Alarmada, Kat olhou ao redor do oásis arborizado.
- Sua mãe está aqui?
- Ela veio comigo esta manhã e certificou-se de que o local era seguro.
- Preciso parar de dormir tanto. Estou perdendo muita coisa! - Kat avançou um passo para mais perto da água. Esta parecia mesmo não oferecer nenhum perigo e era
muito, muito convidativa.
E seria tão bom ficar completamente limpa!...
Aquiles limpou a garganta, e seus olhares se encontraram.
- Vou ficar aqui, de costas, enquanto se banha. Basta me chamar e estarei a seu lado em um instante.
- Não seria melhor se ficasse de olho em mim? E se alguma coisa me agarrar e eu não conseguir chamá-lo? - Kat observou as diferentes emoções que desfilaram no rosto
moreno: desejo, preocupação, necessidade... Quando percebeu que o medo estava vencendo Aquiles, apressou-se em dizer: - Por que a Fúria não o domina quando discute
com Agamenon? Ele não o tira do sério?
Aquiles pareceu surpreso com a pergunta, porém respondeu no mesmo momento.
- É claro que tira. Aquele velho bastardo nunca me poupa de suas idiotices.
- Então por que não é possuído pela Fúria? - ela indagou outra vez.
Ele deu de ombros.
- Acho que é porque já me acostumei com o que ele me faz sentir. Digo a mim mesmo que é só Agamenon. Sem contar que não tenho permissão para lutar com o rei.
- Se é assim, por que não diz a si mesmo que sou apenas Katrina, a mulher que deseja? Afinal é assim que eu faço você se sentir, e também não pode lutar comigo.
Uma chama de esperança brotou e depois morreu nos olhos de Aquiles. Ele tornou a balançar a cabeça.
- Não. Não é a mesma coisa.
- Pode ser, se acreditar que é.
- Não. Não vou correr esse risco.
- Pois eu vou. Escute... Sente uma espécie de aviso antes que a Fúria o domine, não sente?
- Mais ou menos - ele admitiu, relutante.
- Certo. É muito simples. Fique sentado aí, bem à vontade. Há vinho na cesta?
- Sim.
- Pois beba e relaxe enquanto tomo banho. Mas fique de olho em mim para ter certeza de que nada vai me atacar. - Kat levantou a mão quando ele abriu a boca para
protestar. - Sim, eu sei. Jacky já disse que não falo coisa com coisa. Não devia acreditar em tudo o que ela fala.
Os lábios de Aquiles se curvaram num sorriso.
- Neste momento, por exemplo, suas observações me parecem muito perspicazes.
Kat franziu a testa, fingindo-se séria.
- Que seja, mas nem pense em dizer isso a ela! Fique quietinho aí. Vou tomar banho e tudo vai ficar bem.
- E se não ficar?
- Se começar a se transformar, uso o meu botão de pânico. - Ela levantou o medalhão que ainda trazia pendurado ao pescoço.
Aquiles continuou inseguro.
- Vênus pode estar ocupada.
- Não. Ela me deu sua palavra. Além do mais, é uma deusa um tanto quanto intrometida. Vai estar aqui, nem que seja apenas para ter uma boa fofoca para contar depois.
- Kat caminhou de volta para ele e colocou a mão em seu braço. - O negócio é o seguinte: precisa acreditar em si mesmo e em sua capacidade de me manter segura, tanto
quanto eu acredito.
- Acredita que eu possa mantê-la em segurança?
Kat sorriu para o rosto marcado por cicatrizes.
- Claro que acredito. Foi você quem me manteve segura até agora. - Beijou-o suavemente, em seguida rumou com determinação para o banho que a esperava, cruzando os
dedos e enviando uma prece silenciosa a Vênus: Se pretende nos espionar, talvez agora seja um bom momento!
Capítulo Vinte e Três
Em que diabo ela havia pensado?
Kat tentou não hesitar demais enquanto decidia, aflita, qual a melhor forma de tirar a roupa sem parecer muito provocante, e ainda não parecer apavorada até o último
fio de cabelo diante do que aquela água podia esconder.
Esconder?...
Olhou a pequena piscina transparente. Onde estavam as algas e aquela boa dose de poluição quando se precisava delas?
Ande logo com isso, Katrina, ordenou a si própria, livrando-se da leve veste de seda verde que substituíra a azul, destruída por aquelas criaturas marinhas horrorosas.
A túnica de baixo, por sua vez, era feita de uma leve camada de seda branca, e ela a deixou cair em torno dos pés. Até então, não pensara que nenhuma calcinha ou
sutiã tinha vindo com as roupas. Lembre-se apenas de que tem de ficar feliz por ele estar olhando para este corpo jovem e durinho, ao contrário do seu antigo, que
já estava chegando aos quarenta, precisando perder uns cinco quilos e meio. E também de uma boa dose de malhação para aquela bunda flácida.
Tentou manter uma postura régia enquanto entrava nua na piscina natural, e se preparou para congelar. Ao primeiro toque da água tépida, entretanto, sentiu um arrepio
de prazer e, com um suspiro feliz, submergiu. Só depois olhou para Aquiles.
- Ei! Não está gelada!
Ele havia feito o que ela sugerira. Estava sentado sobre a manta, numa postura quase relaxada: recostado num dos pilares de mármore e com um odre aberto no colo.
Parecia um pouco tenso, mas diferente do normal.
- É muito rasa para estar gelada, pelo menos nesta época do ano. O sol a aquece, e os salgueiros lhe proporcionam sombra, o que mantém a água numa temperatura perfeita.
- Enquanto Aquiles falava, Kat percebeu que ele mantinha o olhar fixo no dela, não permitindo que os olhos passeassem por seu corpo, o qual a água pouco fazia para
esconder. - Quando descobri este santuário, imaginei que essa piscina natural deve ter sido a causa de ele ter sido construído e dedicado a Vênus. - Aquiles sorriu,
meio tímido. - Parece-me um lugar perfeito para que uma deusa tome banho.
Kat sorriu de volta.
- Ora, ora, Aquiles, eu não sabia que era um romântico inveterado!
Ele soltou uma risada seca.
- Eu não sou romântico.
- Você deixou uma flor no meu travesseiro! Para mim isso é a prova cabal do seu romantismo.
Ele tomou um longo gole de vinho.
- Como sabe que fui eu quem a pus lá?
- Ah, sim. Deve ter sido Aetnia, então. Ou talvez Briseida. Ambas adoram frequentar a sua tenda.
Aquiles bufou de novo e tentou, sem sucesso, encobrir o riso.
- A prova número dois foi essa cesta de piquenique cheia de guloseimas para mim - insistiu Kat.
- Esta cesta? - Ele colocou a mão dentro dela e tirou um pedaço de queijo envolto em uma espécie de pão sírio. Deu uma mordida grande no sanduíche e completou com
a boca cheia: - Esta cesta é para mim, não para você.
- Claro que é para mim! - ela protestou, enquanto esfregava a sola do pé em um punhado de areia. - E a prova número três do seu romantismo foi essa manta.
- E por que isso é romântico?
- Porque não quer que eu suje a minha pele delicada... - Kat levantou o outro pé, cuja planta continuava suja, e agitou os dedos em sua direção.
A risada de Aquiles soou fácil desta vez, e ela concluiu que era o som mais maravilhoso que já tinha ouvido.
- A manta também é para mim - ele observou.
- Ah, claro. Sei bem como está obcecado por conforto e relaxamento...
Aquiles exagerou em um longo espreguiçar, e foi a vez de Kat cair na risada.
- Falando em conforto, há tempos estou querendo lhe dizer como gosto das tapeçarias da sua tenda. Elas retratam algum lugar em especial ou apenas um cenário qualquer?
- São todas de Phthia. Eu me sinto mais em casa cercado por elas.
- Phthia deve ser muito bonita - murmurou Kat, esfregando o cabelo e desejando estar com seu shampoo e condicionador favoritos.
O breve sorriso de Aquiles foi melancólico.
- E é, de fato. Eu gostaria de levá-la até lá algum dia.
- Eu adoraria ir. - Ela fez uma pausa e, em seguida, decidiu perguntar: - Aquiles, por que não reúne os seus Mirmidões e simplesmente vai embora daqui? Já se retirou
da guerra e rompeu com Agamenon. Por que ficar?
- Já pensei nisso. Se isso envolvesse apenas a mim, ou até mesmo só nós dois, eu o faria. Mas os meus homens são Gregos. Phthia é uma parte da Grécia. Seria muito
ruim para eles e suas famílias se retornassem antes do final da guerra. - Ele balançou a cabeça. - Não. Vamos ficar até o fim. Lutando ou não.
- O que vai fazer se os Gregos perderem?
- Vou voltar para casa.
- E se eles ganharem?
Os lábios de Aquiles se contraíram.
- Vou fazer a mesma coisa.
- Então importa quem vai ganhar ou perder?
- Importa. Eu não quero que os Gregos pereçam, mesmo que Agamenon e Menelau sejam os responsáveis por isso. Sou responsável apenas pela morte dos meus próprios homens.
Espero não perder mais nenhum dos Mirmidões. - Ele fez uma pausa antes de continuar. - Eu não devia ter vindo a Troia. Só fiz isso porque acreditava que meu destino
não poderia ser mudado, e porque Ulisses me pediu.
- E agora acredita que sua sina possa ser mudada. - Kat não fez da frase uma pergunta, contudo ele concordou com um gesto de cabeça.
- Agora acredito em muitas coisas nas quais eu não acreditava há poucos dias.
Ela sorriu e, em seguida, submergiu na água. Quando reapareceu na superfície, assoprando e sacudindo o cabelo, Aquiles parecia relaxado e feliz.
Estudou-o com cuidado por um momento, em seguida decidiu que já era hora de sair da água, e de seu relacionamento avançar mais um passo.
- Ainda me deseja, Aquiles?
Ele piscou, obviamente surpreso com a pergunta.
- Claro que sim.
- Mas aí está você, todo descontraído e conversando comigo. E eu aqui, nua em pelo.
Aquiles ergueu as sobrancelhas.
- Isso é verdade.
- E, se não estou enganada, nenhuma Fúria está em andamento; tampouco prestes a acontecer.
- Não há como se enganar a respeito disso. Não, a Fúria não está me dominando.
- Não está nem perto de acontecer?
- Nem perto.
- Então acha que eu posso sair desta piscina e me aproximar de você?
Kat o viu engolir em seco.
- Nua? - Aquiles quis saber.
Ela sorriu.
- Na verdade, eu estava pensando em lhe pedir que me desse a manta até eu me secar.
- Ah, sim. Claro. - Ele pareceu envergonhado, o que Kat considerou um enorme avanço em relação àquela sua expressão pétrea e neutra, ou aos olhos vermelhos de quando
ele ficava louco.
Quando Aquiles não fez nenhum movimento, insistiu:
- Poderia me trazer a coberta?
Raramente Kat o vira sem graça. Mesmo em repouso, Aquiles apresentava a postura de um guerreiro, mas, quando ele se levantou e apanhou a manta, parecia um elefante
em uma loja de cristais de tão desajeitado, e ela teve de morder a lateral da bochecha para não rir.
Com um suspiro, ergueu-se acima da superfície e caminhou para fora da água. O olhar de Aquiles não deixou o seu em nenhum momento; nem mesmo quando ele abriu a coberta
e ela se aproximou, nua e pingando, de seus braços.
Kat sentiu um tremor percorrer o corpo conforme estes se fecharam em torno dela. Recuou e sorriu para Aquiles como se ele a visse nua todos os dias. O conflito em
seu semblante era evidente, contudo. Não havia sinal da Fúria, porém Aquiles já não parecia tão relaxado.
Ela prendeu a respiração. Com o nível de relaxamento dele diminuindo, e o de estresse aumentando, estava, literalmente, flertando com o perigo.
- Conte-me alguma história - pediu, apressada.
O rosto moreno transformou-se em um ponto de interrogação.
- História?
- Sim. - Kat o puxou com a mão que não estava segurando a manta na direção do santuário onde a cesta de piquenique aguardava. - Conte-me uma história sobre a sua
infância enquanto comemos. Alguma coisa que tenha acontecido em Phthia. - Lançou-lhe um olhar malicioso por sobre o ombro. - Algo proibido, por exemplo.
Ele deixou escapar outra risada seca.
- E se eu era o filho perfeito e não fazia nada proibido?
- Então vou comer a cesta em vez do almoço que obrigou a pobre Aetnia a preparar. - Kat sentou-se ao lado do cesto, arrumando a manta ao redor do corpo, e torceu
o cabelo molhado antes de olhar o que havia para comer. - Hum! Queijo, carne, azeitonas e vinho! Meus grupos favoritos de alimentos: gordura, álcool e sal. - Aquiles
tinha se acomodado a seu lado, recostando-se no pilar outra vez e fazendo um esforço sobre-humano para relaxar e não olhar para seus ombros nus. Divertida, ela lhe
entregou um pouco de pão e carne. - Ainda bem que este meu corpo é tão jovem. Há menos chance de esse queijo todo ir direto para o meu traseiro. Ao menos não tão
depressa.
- No seu tempo você não era moça?
Kat o fitou por cima da comida. Aquiles não parecia chocado ou aborrecido com a ideia de ela ser mais velha; apenas curioso.
- No meu tempo sou quase dez anos mais velha do que você - admitiu sorrindo.
Ele pareceu chocado.
- Deixou seu marido e filhos para vir para cá?
- Ah, Deus, não! Nunca fui casada e não tenho filhos.
- Fez algum voto de castidade para uma deusa?
- Hera e Atena ficaram meio confusas a respeito disso, também. No mundo moderno mortal as mulheres não se casam tão cedo. Pelo menos não as mais cultas e que têm
dentes na boca... Na verdade, algumas de nós nem chegam a se casar ou a ter filhos. Não somos mais obrigadas a isso.
- E o que fazem da vida?
O sorriso de Kat foi longo e lento.
- Exatamente o que queremos fazer.
- Mas então são como os homens! - Aquiles exclamou, como se apenas naquele momento houvesse compreendido.
- Do seu ponto de vista, creio que isso possa ser verdade. - Ela ergueu uma sobrancelha. - E, caso esteja se perguntando, não tenho nenhuma intenção de mudar as
coisas, mesmo depois que vim para este mundo.
Ele a observou, atento.
- Quer dizer que nunca vai querer se casar, nem ter filhos?
Kat ignorou o incômodo que a pergunta lhe causou.
- Não necessariamente. O que significa que, se eu me casar ou tiver filhos, será porque eu quero, e não porque é o que se espera de mim.
- ... Concordo.
- Que bom. Agora quero ouvir alguma história do tempo em que era menino.
- Uma história proibida.
- Claro! São as melhores.
- Está bem. - Aquiles se acomodou melhor contra o pilar e cruzou as pernas na altura do tornozelo, bebericando do odre enquanto Kat remexia na cesta de piquenique.
- Quando eu era menino, achava que jamais poderia me afogar.
- Faz sentido. Afinal sua mãe é uma deusa do mar.
- Teria feito mais sentido se eu também fosse imortal. Mas eu não era, mesmo agindo como se fosse. - Ele balançou a cabeça ao se lembrar. - Costumava deixar minhas
amas loucas e, quando cresci um pouco mais, eram os meus tutores quem eu tirava do sério. Sempre me arrisquei demais, nadando para o meio do oceano, sendo apanhado
em ressacas e mal escapando delas. Fiz muitas coisas ridículas e irresponsáveis. Abusei tanto que meu pai me proibiu de entrar no mar.
- Aposto que sua mãe não gostou nada da ideia.
Ele riu.
- Não, mesmo. Mas ela também não queria que seu único filho morresse em um acidente ainda criança, causado única e exclusivamente por sua irresponsabilidade. Então
os dois se uniram e planejaram me dar uma lição.
- Hum... Isso não está me soando bem. - Kat fez um gesto para que ele lhe passasse o odre.
- Eu não devia ter nem doze anos de idade, e Pátroclo estava com no máximo sete na época. Ele vivia atrás de mim, o que me incomodava sobremaneira, mas, naquele
dia em particular, meu primo me contou que havia descoberto um barco abandonado em uma enseada, e que iria me levar até lá.
- E, uma vez que imaginava ser um deus do mar, um barco era perfeito para você - concluiu Kat.
- É óbvio que está raciocinando como meus pais. E, sim, insisti para que Pátroclo me levasse até o tal barco. No caminho para a praia, o tempo mudou depressa, como
costuma acontecer em Phthia. Uma rajada de vento muito forte começou a soprar, e até vi pescadores retornando para a costa. Cheguei a zombar deles, chamando-os de
covardes. Depois disso, Pátroclo e eu decidimos zarpar.
- Pátroclo estava mancomunado com seus pais?
- Não, eles apenas o usaram como instrumento. Meu primo foi comigo para o mar porque me acompanharia a qualquer lugar.
Kat observou o rosto moreno de Aquiles suavizar enquanto ele falava do primo.
- Você o ama muito, não é?
- Ele é como um irmão ou um filho para mim - admitiu Aquiles. - Pois, então... Nós dois navegamos para a tempestade. Já estávamos em alto-mar, e correndo um enorme
risco, quando uma onda nos atingiu e eu fui lançado para fora do barco. Pátroclo gritou por mim e tentou me jogar uma corda, mas as ondas estavam extraordinariamente
violentas. - Os lábios benfeitos de Aquiles se inclinaram para cima.
- Você disse "extraordinariamente"? Quero dizer, como se uma deusa do mar as estivesse agitando?
- Isso mesmo. Fui tolo, imprudente, mas não era idiota, e não demorou muito tempo para que percebesse que estava me afogando. Lembro-me de tentar invocar minha mãe,
mas as ondas sufocavam os meus gritos. Não posso precisar o quanto engoli de água do mar antes que aqueles golfinhos aparecessem; mas foi o suficiente para que eu
ficasse em pânico.
- Espere um pouco. Disse "golfinhos"?
Ele riu e assentiu com um gesto de cabeça.
- Golfinhos. Eles me cutucaram com os focinhos, nadando ao meu redor e me mantendo na superfície, como se estivessem brincando com um melão, até me levarem para
a praia.
- Foram eles que o salvaram?
- Sem dúvida. Eles me trouxeram em segurança para a principal praia de Phthia, que se encontrava cheia de pescadores e varinas, e também para junto de meus pais,
que, no momento, estavam dando um passeio pelas docas na companhia de grande parte da corte. Estavam todos ali quando fui jogado para fora da água por um cardume
de golfinhos, meio afogado e completamente nu.
- Nu? - Kat começou a rir.
- Nu. - Aquiles concordou. - De alguma forma, enquanto os bichos me cutucavam e me jogavam de um lado para o outro, conseguiram tirar toda a minha roupa; até mesmo
as minhas sandálias.
- Deve ter sido uma cena e tanto! - Kat comentou enquanto tentava controlar o riso.
- Sem dúvida. Falaram sobre isso por anos a fio. Algumas das senhoras do povoado ainda gargalham ao se lembrar.
- E isso teve o efeito desejado em você?
- Quer saber se isso pôs algum juízo na minha cabeça? - Aquiles ergueu um ombro. - Sim e não. Percebi que poderia me afogar e imagino que tenha ficado mais cuidadoso
depois disso. Ou ao menos minhas declarações se tornaram menos arrogantes. A coisa funcionou mais em Pátroclo. Até hoje ele detesta barcos e fica verde só de pensar
em velejar. - Aquiles riu e pegou o odre das mãos dela. - Essa é a minha história de infância proibida, mileide.
Kat riu e aplaudiu quando ele tomou um longo gole de vinho. Ao entregá-lo de volta para ela, Aquiles se inclinou e a beijou nos lábios.
Kat fechou os olhos e se apoiou nele. Não de forma agressiva, apenas de um modo delicado e convidativo, deixando-o definir o ritmo. Quando finalmente se separaram,
ambos arfavam, contudo Kat não viu nenhum sinal da Fúria nos olhos azuis.
- Posso hipnotizá-lo outra vez, se quiser - sussurrou.
- Eu sei que pode. - Ele a tocou no rosto e deixou a mão deslizar, acariciando a curva de um ombro nu. - E eu vou permitir que faça isso, se achar que deve.
- Mas? - ela perguntou.
- Mas eu gostaria de fazer amor com você sem nenhum feitiço. Quero experimentar tudo, e não apenas como um sonho maravilhoso. Vai me deixar fazer isso, Katrina?
Capítulo Vinte e Quatro
Aquiles estudou os expressivos olhos castanhos de Kat enquanto aguardava por sua resposta. Pôde perceber sua própria respiração e batimentos cardíacos se acelerando,
porém ambos sempre se elevavam quando ele treinava, e nem por isso a Fúria o possuía.
Não preciso dela agora... Não preciso dela agora, repetiu para si mesmo em silêncio.
- Sim, Aquiles. Faça amor comigo!
As palavras o aguilhoaram.
- Não está com medo? - ele indagou, perplexo.
- Claro que não. Enquanto você estiver comigo, estou segura.
Ele a puxou para si e a abraçou com força, inalando o perfume dos cabelos úmidos e sentindo a leve umidade de sua pele. Por todos os deuses!, não trairia a confiança
de Kat! Não era mais nenhum adolescente. Aquilo não iria terminar como terminara seu primeiro amor.
Beijou-a, lembrando a si próprio de fazê-lo lentamente e manter o controle. Kat abriu a boca, e sua língua encontrou a dela numa doce exploração. Braços delicados
o envolveram pelos ombros, e ela se inclinou para ele, fazendo com que a manta deslizasse por seu corpo.
Então congelou no meio do beijo.
Num gesto lento e deliberado, Aquiles recuou de leve, de modo a apreciar o corpo nu. Quieto e sem dizer nada, olhou para ela e, em seguida, estendeu as mãos e a
tocou numa longa carícia desde o pescoço, passando pelos seios, pela curva da cintura, até os quadris e coxas. Em seguida seus olhos se encontraram outra vez.
- Você é maravilhosa - falou com reverência.
Kat sorriu, e ele viu o futuro em seus olhos. O seu futuro. Aquele com que tinha parado de sonhar, em que deixara de acreditar. Ela o trouxera de volta como uma
possibilidade real.
Respirou fundo. Não sabia o que havia feito de tão bom para que as deusas o abençoassem com uma mulher tão milagrosa. Mesmo assim, prometeu-lhes em pensamento que,
se elas o contemplassem com uma nova vida ao lado de Kat, de seus filhos, e dos filhos de seus filhos, iria louvá-las para todo o sempre.
Deslizou as mãos pela cintura delgada e a tomou nos braços outra vez, beijando-a com paixão e permitindo que os dedos percorressem a maciez de suas costas até as
nádegas perfeitas. Segurou-as, pressionando-a com mais firmeza contra a ereção que pulsava entre as suas pernas. Kat moveu os quadris em resposta, e uma lembrança
erótica de seu primeiro encontro lhe invadiu a mente. Excitado, ele se lembrou do corpo quente e úmido deslizando para cima e para baixo em seu membro...
Uma onda de desejo o assolou, quase afogando-o com sua intensidade, e ele lutou para se controlar conforme pressentiu o calor da Fúria se insinuar em sua pele aquecida
pela luxúria.
- Abra os olhos, Aquiles! Olhe para mim!
A voz doce de Kat foi como um bálsamo contra o fogo que ameaçava conflagrar em seus pensamentos.
Ofegante, ele obedeceu e encontrou seu olhar. A Fúria o ameaçava. Podia sentir sua sombra à espreita, pronta para possuí-lo, para sufocar e reprimir toda a sua humanidade.
No entanto, Kat não demonstrava medo. Seu sorriso continuava confiante. Não saiu de seus braços, tampouco abriu o medalhão a fim de pedir socorro à deusa.
- Não vai me deixar - ela murmurou com voz calma e melodiosa. - Vai ficar aqui comigo e me manter segura.
- Sim - ele sussurrou de volta, beijando-a de leve. - Vou mantê-la em segurança - afirmou, buscando a própria essência, aquela parte de si mesmo que era a sede de
seu espírito, e se concentrou nela. - Esta paixão é diferente da que preciso para a guerra...
Não havia se dado conta de que tinha dito as palavras em voz alta, até Kat responder:
- É isso mesmo. O seu amor por mim não precisa destruir nada.
- Ao contrário. Quer apenas construir - ele completou, comovido.
Fitando-a nos olhos, mudou de posição de modo a deixá-la por baixo do corpo. Ergueu-se sobre um cotovelo e continuou com o olhar fixo no dela conforme lhe segurava
um seio e acariciava o mamilo endurecido com a palma calejada. Os lábios carnudos de Kat se apartaram, e sua respiração se acelerou. Quando a mão dele se moveu para
a fenda úmida entre suas pernas, Kat gemeu e arqueou os quadris. Ofegante, colocou a mão sobre a dele, guiando-o, ensinando-o a lhe dar prazer. Nem mesmo quando
seu corpo sacudiu, tomado pelo êxtase, desviou o olhar do dele.
Antes que os tremores do clímax de Kat cessassem, Aquiles ergueu o corpo e, devagar, mergulhou o membro túrgido em seu âmago quente e macio.
- Fique comigo, Aquiles! Não me deixe! - Kat pediu num sussurro.
- Eu nunca vou deixar você! - ele prometeu, a voz profunda e rouca com o esforço que fazia para manter o controle. Levantou os quadris, deslizando quase para fora
dela, e então tornou a investir, desta vez com mais firmeza.
- Aquiles! - Kat exclamou, entontecida de prazer com as seguidas estocadas.
Ele continuou arremetendo contra ela, como se querendo possuir não apenas seu corpo, mas também sua alma.
- Aquiles! - Kat gemeu mais uma vez, ancorando-o não só a ela, mas também à sua sanidade e à sua humanidade.
Quando ele finalmente atingiu o orgasmo, foi o nome dela que brotou em seus lábios. Era a imagem dela que preenchia seus olhos. A alma de Kat era dele.
Aquiles e Kat retornaram ao acampamento dos Mirmidões quando o sol já se punha. Andando de mãos dadas e conversando, despreocupados, alcançaram a área iluminada
pela fogueira. Divertida, Kat viu Aetnia arregalar os olhos quando ele jogou a cesta vazia a seus pés e disse "obrigado".
- Estava tudo muito bom, Aetnia - completou em seguida e, enquanto todos o fitavam, boquiabertos, beijou Kat profundamente. - Eu já volto. Vou conversar com Pátroclo
- explicou. Depois se afastou, parecendo muito satisfeito consigo.
- Esperem aí. Aquiles disse "obrigado"? - Jacky se levantou de um salto de onde descansava ao lado do fogo.
- Não sei por que boas maneiras a surpreendem tanto! - contrapôs Kat, acomodando-se a seu lado. - Nossa. Acho que preciso de um cálice de...
- Vinho, princesa?
Ela ergueu a cabeça e sorriu, aceitando a taça que a serva lhe oferecia.
- Aetnia, você é uma verdadeira vidente!
- Eu também vou tomar mais um pouco - decidiu Jacky.
Aetnia hesitou e olhou para Kat, que acenou com a cabeça. Só então a criada encheu o cálice de Jacky com a mão meio trêmula.
- Muitíssimo obrigada, Aetnia - agradeceu Jacky com exagero.
- Não seja desagradável! - Kat sussurrou.
- Buuu! - Jacky bateu os pés diante da serva, e esta disparou para o outro lado da fogueira.
- Tem de provocá-la?! - Kat ralhou, exasperada.
- Para sua informação, ela é uma peste quando você não está por perto. Essa história de "princesa isso", "princesa aquilo" é tudo teatro! Quando não está aqui, Aetnia
só fica espalhando boatos entre aquelas mulheres que vivem nos olhando atravessado. Essa praga está aprontando alguma coisa! Não duvido de que eu seja obrigada a
chutar aquela bunda seca e branquela qualquer hora dessas!
- Jacky, por favor... Lembre-se de que agora a sua bunda também é branca e magra!
- Sim, por isso mesmo estou comendo tanto. Estou determinada a mudar essa situação.
- Ah... Faça o que quiser.
- Às bundas grandes! - Jacky saudou, erguendo a taça.
- À sua futura bunda grande - corrigiu Kat, batendo o cálice no da amiga.
Jacky tomou um longo gole da bebida, depois ergueu uma sobrancelha para Kat.
- Muito bem... Detalhes.
Kat chegou mais perto dela e baixou a voz:
- Fizemos sexo.
- Meu bom Deus... Derrubou o sujeito outra vez? Quero dizer, literalmente?
- Não. Aquiles continuou no total controle de todas as suas faculdades mentais.
- Não ficou inconsciente, pensando que estava sonhando?
- Não.
- Está me dizendo que ambos sabiam que estavam trepando, ao contrário daquelas duas noites em que praticamente cometeu estupro?
- Eu já disse que não estuprei ninguém!
- Estou pouco me lixando para a sua semântica. Responda logo à pergunta.
- Sim. Estávamos ambos conscientes de estarmos trepando.
- Se está rindo feito uma idiota, é porque a coisa foi boa.
- Foi ótima! - garantiu Kat.
- E ele controlou a Fúria?
- Bem, na verdade, Aquiles controlou a si mesmo para que a Fúria não o possuísse.
Jacky tomou um gole do vinho e olhou para o fogo em silêncio.
- O que foi? - Kat indagou.
- Estou meio preocupada por ele não controlar essa coisa.
- Mas que diferença isso faz? Ele se controlou para que a coisa não o possuísse. Não é esse o objetivo?
- Sei não. Se ele for possuído, e se você não estiver por perto, imagino que faça uma grande diferença.
- Talvez não. Quando esta guerra acabar, Aquiles vai voltar para casa e terá uma vida sossegada. Se ele nunca mais entrar em uma batalha, talvez a Fúria não volte
a dominá-lo.
- Em outras palavras, sua teoria é a de que ele precisa apenas ignorar a Fúria, e esta irá embora.
- Não. Não exatamente.
Jacky revirou os olhos, e Kat franziu a testa para a amiga.
- Está bem. Talvez.
- Bem, esperemos que a sua teoria seja mais bem-sucedida com a Fúria do que é com uma gravidez, por exemplo.
- Aquiles vai ficar bem - Kat falou com convicção.
Ambas olharam para o fogo e bebericaram o vinho.
- Vai ficar com ele, não é? - Jacky perguntou por fim.
- Sim. - Kat observou a melhor amiga, pensativa. - E quanto a você? O que vai fazer?
Jacky suspirou.
- Infelizmente, parece que vou passar o resto da minha vida branca.
Rindo, Kat colocou o braço em torno dela.
- Podia pegar uma corzinha... Iria se sentir melhor?
- Claro que não! Não vou ser uma dessas branquelas que ficam se bronzeando para depois ficar parecendo carne-seca aos quarenta anos! Tenho muito bom-senso para isso.
Quantas vezes eu mesma gritei para que tirasse o traseiro do sol?
- Vezes demais para eu contar.
- Pois então. Sou sensata demais em relação a essas coisas - Jacky afirmou. - Sabe do que essas babacas torrando ao sol me fazem lembrar?
- De perus se afogando na chuva porque são estúpidos demais para sair dela ou engolir a água! - Kat respondeu de pronto.
- Como sabe disso?!
- Jacky... Cansou de dizer que eu parecia um peru me afogando na chuva!
- Isso porque também precisava tirar essa sua bunda branca do sol.
Kat estreitou os olhos para fitá-la.
- O que foi? - indagou a outra moça.
- Suas bochechas estão cor-de-rosa demais para o meu gosto. Como se tivesse se bronzeado!
- Ah, merda! Eu só quis pegar um pouco de cor.
- É assim que começam os transtornos obsessivos - apontou Kat, presunçosa.
As duas se entreolharam e depois caíram na risada.
Quando controlaram o riso, Kat enxugou os olhos e examinou a clareira iluminada pelo fogo e ainda frequentada pelo grupo habitual de noivas de guerra - o qual havia
se acomodado o mais distante que podia dela e de Jacky.
- Por que Aquiles e Pátroclo estão demorando tanto?
- Tomara Aquiles esteja metendo um pouco de juízo naquela cabeça-dura do primo dele.
- Por quê? O que está acontecendo? - Kat quis saber.
- Pátroclo está reagindo muito mal a essa história de ficar fora da guerra. Parece que Ulisses bancou o Superman hoje. Estava imbatível e fez seus homens darem tudo
na luta. Dizem que eles podem até vencer se continuarem assim.
- Os Gregos, quer dizer?
- Hã-hã.
- Isso é bom... Acho. Afinal, as deusas só queriam o fim da guerra. Se Ulisses de repente se tornar invencível, isso porá fim à Guerra de Troia. Por que Pátroclo
está tão incomodado?
- Porque quer que Aquiles e o restante dos Mirmidões se juntem ao Exército. Diz que a vitória seria certa se isso acontecesse.
- Oh, Deus!... - Kat murmurou.
- "Oh, Deus!" mesmo.
- Acha que eu deveria incitar Aquiles a lutar? - Kat sentiu o estômago se contrair enquanto esperava pela resposta da amiga.
- Mas seu namoradinho não pode morrer se continuar lutando?
Ela assentiu com um gesto de cabeça.
- Não me lembro muito bem do restante daquela droga de Ilíada, mas esse fato é muito difícil de esquecer: Aquiles morre na Guerra de Troia.
- Então, não! - Jacky falou com firmeza. - Não o deixe lutar. Acabou de encontrá-lo e precisou vir de outro mundo para ficar com ele. É cedo demais para perdê-lo.
Assim como sei que é cedo demais para eu perder Pátroclo. Não quero que aquele tonto volte para a guerra.
- Se é assim, vou me ater ao plano original e fazer o que eu puder para manter Aquiles fora dessa luta.
- Parece o melhor a fazer, mesmo.
- Vamos brindar a isso.
- Parece uma boa ideia.
Elas tocaram os cálices mais uma vez e sentaram-se para esperar por seus homens.
- Pelos testículos peludos dos sátiros, você estava certa! - Vênus caminhou de um lado para o outro da câmara interna do templo de Hera, no Monte Olimpo.
O oráculo da Rainha dos Deuses girava com imagens de Ulisses comandando os Gregos em vitória após a outra contra os Troianos.
- Atena o presenteou com algo além de seus fluidos divinos. O homem está imbatível!
- O que foi que eu disse? Ela nunca tem amantes e agora está encantada com seu brinquedinho humano - comentou Hera, franzindo a testa para o oráculo.
- Isso só prova o que venho dizendo há eras. Atena é muito reprimida, precisa se soltar um pouco! Devia mais era estar se encontrando com Ulisses na praia há anos!
Desse modo, isso não teria sido uma experiência emocional tão violenta para ela. - Vênus suspirou, dramática.
- Isso significa que não haverá conversa com ela, você sabe.
- Então estávamos certas. O que vamos fazer? Essa guerra precisa acabar. Agora!
- Odeio dizer isso, mas acho que devemos apoiar os Gregos. Vamos acabar logo com essa coisa - decidiu Vênus, franzindo o cenho diante do oráculo.
- Vai mandar sua mortal moderna persuadir Aquiles a voltar com os Mirmidões para a batalha?
Vênus hesitou, não querendo contrariar sua rainha.
- Está decidido, Vênus! Precisa se certificar de que Aquiles retorne para a guerra com os Mirmidões.
- Acho que tem razão - a deusa concordou, relutante.
- É claro que tenho. Está resolvido. Agora vamos cuidar para que tudo isso aconteça depressa, antes que Zeus fique sabendo de alguma coisa. O dever dele é permanecer
neutro, motivo pelo qual também deveríamos ficar de fora disso - observou Hera.
- Mas todos sabem que Zeus tende a apoiar os Troianos, principalmente o velho Príamo - Vênus lembrou.
- Eu sei, eu sei... Zeus começou a coisa toda, ficando do lado de Laomedonte contra Poseidon anos atrás, embora nunca devesse ter apoiado um mortal contra o Deus
do Mar. Acontece que aqueles dois estão sempre discutindo sobre alguma coisa, e Zeus é muito rancoroso. Eu gostaria muito que ele...
- Hera! Esposa! Onde está você? - A voz do deus trovejou pelo Olimpo.
Hera deu um pulo, culpada, e Vênus revirou os olhos.
- Ele é tão rude!... Não devia ficar berrando para todo o Olimpo ouvir.
- Acha que eu não sei disso? - Hera correu para o oráculo e fez um gesto para que este ocultasse as cenas que aconteciam em Troia. - E, quando preciso dele, acha
que consigo encontrá-lo? Claro que não. Mas basta Zeus precisar de alguma coisinha e já fica me chamando aos gritos!
- Talvez eu devesse ter uma conversa com ele - Vênus se ofereceu, amável. - O Amor tem direitos que outros imortais não têm. Nem mesmo o Rei do Olimpo deve se privar
de um pequeno conselho amoroso.
- Não, não, obrigada. Melhor não. Nosso casamento vai muito bem.
Vênus torceu os lábios, parecendo duvidar.
- De qualquer forma, querida, preciso que o mantenha ocupado enquanto opero a minha magia lá embaixo. - Fez um gesto na direção do oráculo agora apagado.
- Hera! - Desta vez, a voz de Zeus soou bem mais próxima.
- Já estou indo!... Pode ir, Vênus. Eu cuido das coisas por aqui - garantiu a Rainha do Olimpo.
- Isto vai dar uma ajuda. - A outra deusa moveu os dedos na direção de Hera, banhando-a com um pó cintilante que impregnou sua pele.
- O que... - Hera começou, então ofegou ao sentir o corpo arrepiar e os mamilos enrijecer.
- Apenas um presentinho do Amor para sua rainha. - Vênus piscou para ela e, em seguida, desapareceu.
Com o corpo formigando, Hera correu para fora da câmara e acabou trombando com o corpo sólido do marido.
- Zeus! Por que estava se esgueirando?!
- Esgueirando! O Governante Supremo dos Deuses não precisa se esgueirar! E quanto a você? Por que estava correndo, toda aflita? - ele exigiu, olhando por cima de
seu ombro delicado para a câmara interna que ela acabara de deixar.
- Eu não estava correndo, e muito menos estava aflita. Só queria ir ao seu encontro, como qualquer esposa atenciosa faria.
Zeus apenas bufou, exasperado.
- Por que estava berrando por mim e perturbando o Olimpo inteiro? - Hera ralhou.
- Eu não conseguia encontrá-la. Não estava em nossa sala do trono, nem nos jardins onde costuma caminhar a esta hora do dia. Por isso a chamei. Mas não estava berrando
- ele afirmou com petulância.
- É claro que não - ela ironizou, mudando de humor e sorrindo conforme dispensava o comentário. - O que deseja de mim, meu senhor?
- Eu a tenho visto tão pouco ultimamente que imaginei que fosse gostar de me acompanhar em uma visita ao mundo antigo.
Hera refletiu que precisava mesmo passar mais tempo com o marido, ao menos até que aquela maldita guerra terminasse.
- Como de costume, tem toda a razão, meu amor - concordou com doçura. - Tenho estado muito ocupada com minhas funções divinas.
Zeus deixou escapar um grunhido satisfeito.
- Muito bem. Então está decidido. Vai me acompanhar até Troia. Ouvi dizer que os Gregos fizeram um avanço repentino na guerra. Tão repentino que há rumores de que
houve interferência divina, embora eu tenha proibido os olímpicos de desempenhar qualquer papel ativo na batalha. - Ele estendeu o braço para ela. - Vamos até lá
agora mesmo. Talvez você e eu possamos ter um almoço íntimo na praia depois de eu me certificar de que ninguém andou me desobedecendo.
O estômago de Hera se contraiu com o pânico, e ela tratou de reprimi-lo. Aproveitando-se da nuvem de luxúria com que Vênus lhe polvilhara a pele, aceitou o braço
do marido e sorriu para Zeus com malícia, roçando o mamilo contra o bíceps musculoso.
- Pensei que tivesse chamado por mim, querido...
- E chamei - ele confirmou, tentando não se deixar abalar pela sedução escancarada e incomum da esposa. - Imaginei que deveríamos ir a Troia juntos, formando uma
frente.
- Ah. - Hera fez um beicinho com os lábios rosados e carnudos, e lançou um olhar para o lado. - E eu pensei que me queria para algo mais íntimo do que viajar a trabalho.
- Bem, é claro que quero, mas, como eu disse... - Zeus começou, e depois parou de falar quando a esposa levantou-lhe a mão e levou seu dedo indicador para dentro
do ninho quente e macio da boca, chupando-o profundamente antes de lavá-lo com a ponta da língua. - Ah, mulher!... - ele gemeu quando, com a outra mão, Hera segurou
o membro já endurecido entre suas pernas. - Tenho sentido a sua falta, e você sabe como me agradar!
- Eu apenas comecei a fazer isso, meu amo...
Ao ver sua necessidade de viajar para Troia substituída por outra, mais imediata, Zeus puxou a esposa para os braços e, com um movimento firme, transportou-os para
o quarto onde esta não se fartou de agradá-lo cada vez mais.
Capítulo Vinte e Cinco
- Pátroclo, por que não consegue entender? - insistiu Aquiles. Ele havia encontrado o primo na volta do acampamento grego, e os dois agora caminhavam lado a lado
pela praia enquanto conversavam. - Tenho uma chance de mudar o meu destino, e pretendo aproveitá-la.
- Eu compreendo. - Pátroclo parou e o encarou. - E também quero que seu destino seja outro. Mas isso não significa que não possa liderar nossos homens na batalha.
Só precisa ficar longe de Heitor. Apenas se o matasse estaria fadado a morrer.
Aquiles balançou a cabeça.
- Uma batalha é um verdadeiro caos. Dizer que bastaria eu me manter distante de um dos guerreiros de Troia serviria se eu não estivesse possuído pela Fúria, em meio
à fumaça, ao sangue e à confusão da guerra.
- Posso ajudar você. Todos os Mirmidões irão ajudá-lo e se certificar de que fique longe de Heitor.
Aquiles sorriu e esmurrou o primo leve.
- Se pretendem tomar conta de mim, como querem que eu os lidere na batalha?
Pátroclo se afastou dele.
- Isto não é nenhuma brincadeira.
- Acha que estou brincando com o meu destino?
- Não. - O rapaz suspirou e passou a mão pelo cabelo, frustrado. - Também levo essa profecia a sério, mas a última coisa que desejo é a sua morte, primo.
- Pois já devia ter se acostumado a ela. - Pátroclo começou a protestar, contudo Aquiles o interrompeu. - Eu também já havia me acostumado. Estava preparado para
morrer antes de completar trinta verões, às portas de Troia, depois que matasse Heitor... E a ter meu nome reconhecido por séculos. Foi a escolha que fiz. Quando
eu era jovem, a glória e a imortalidade do meu nome eram tudo o que eu desejava. Mas depois amadureci e compreendi a natureza do que tinha escolhido. Foi quando
eu soube o que era arrependimento. O problema era que meu destino já era uma pedra rolando montanha abaixo. A única coisa que eu poderia fazer era deixá-lo acontecer.
Mas então ela veio e tudo começou a mudar.
- Sim! É exatamente esse o meu ponto. Tudo mudou agora. As deusas arrancaram as almas de Katrina e Jacqueline de outro mundo, de outro tempo, e as trouxeram aqui
para mudar as coisas. Como poderiam permitir que perecesse?
- Talvez se eu fosse tolo o suficiente para ignorar tudo o que elas me proporcionaram e voltasse para a batalha.
- Aquiles, você me disse que conseguiu impedir que a Fúria o possuísse hoje. Pode ter sido um presente das deusas. Será que elas não pretendem que use isso na batalha?
Que tenha a capacidade de lutar e nos liderar sem se perder para a Fúria?
- Meu presente é Katrina. Foi ela quem me permitiu enfrentar a Fúria. E Kat não iria para a frente de batalha comigo. Jamais. - Aquiles colocou a mão no ombro do
primo. - Eu a amo. Desejo passar o resto da minha vida com ela, e não apenas mais alguns dias.
- Eu também amo Jacqueline! - Pátroclo gritou, exasperado. - Mas nem por isso desisti de lutar pela glória da Grécia.
- Não estaria lutando pela glória da Grécia. Estaria lutando pela glória de Agamenon.
- Não é deste modo que a história vai se lembrar desta guerra - declarou Pátroclo.
- A história que se dane! Já estou farto de pensar no que vai ser ditou ou não a meu respeito no futuro.
- Os homens precisam da sua ajuda, Aquiles. Pode salvar vidas!
- Já salvei muitas - ele falou por entre os dentes enquanto mirava o mar iluminado pela lua. - Agamenon se cansou de me usar para lutar em suas batalhas. Pela primeira
vez estou escolhendo salvar a minha própria vida. Pela primeira vez tenho a chance de contar com um futuro com o qual eu apenas sonhava. Não vou jogá-la fora. Não
por Agamenon e sua ganância.
- Não é assim que eu vejo - insistiu Pátroclo. - Eu não estaria lutando por Agamenon. Eu estaria lutando pela Grécia.
- Se é tolo o bastante para arriscar sua vida e jogar fora o amor que lhe foi concedido, então lute. Não sou eu quem irá impedi-lo - decidiu Aquiles, virando-se
e começando a caminhar para longe, na praia.
- Os homens não vão aceitar a minha liderança! - Pátroclo gritou às suas costas. - Eles só iriam seguir os seus comandos. Eu não sou Aquiles!
- Pois eu gostaria que fosse! - ele falou por cima do ombro. - Eu ficaria bem feliz em viver sua vida longa e frutífera enquanto estivesse entrando no campo de batalha
com essa sua teimosia e ansiando por uma morte gloriosa!
Pátroclo observou o primo se afastar, depois apanhou uma concha e, com um grito de frustração, arremessou-a no mar.
- E ele ainda me chama de teimoso! - resmungou para si mesmo enquanto andava de um lado para o outro na beira da praia. - Não sei nem por que está sempre preocupado
em usar aquele elmo de ouro. Nenhuma espada poderia atravessar aquela cabeça-dura! - O jovem guerreiro quis urrar de ódio. Como era possível que Aquiles não enxergasse?
Liderar os Gregos em mais uma batalha - a batalha final da Guerra de Troia - não o levaria à morte. As deusas tinham mudado as coisas. Elas decerto não iriam permitir
que todos os seus esforços fossem desperdiçados.
E ele, Pátroclo, sentia-se muito grato. Não apenas porque agora acreditava que o primo fosse sobreviver, mas também porque havia encontrado a mulher dos seus sonhos.
Não estava ignorando Jacqueline por querer lutar. Estava apenas zelando pela própria honra. De qualquer maneira, ela estaria lá, esperando por ele. E, depois de
tudo, Jacky iria cuidar de suas feridas, recebê-lo em seu corpo macio e curá-lo.
O problema era que não haveria nenhuma batalha final e honrosa. Se Aquiles não estivesse lá para liderar os Mirmidões, estes não iriam lutar e, mesmo com o repentino
destaque de Ulisses no campo de batalha, aquela guerra continuaria a se arrastar indefinidamente.
- Ah, se eu pudesse ser Aquiles!... Nem que fosse apenas por um dia! - murmurou Pátroclo.
- Quer saber, querido? Não é má ideia - conjeturou Vênus após se materializar em uma nuvem de fumaça brilhante a seu lado.
- Deusa! - exclamou Pátroclo, e caiu de joelhos, inclinando a cabeça.
- Levante-se, Pátroclo. Deixe-me olhar para você.
- Como, minha senhora? - ele perguntou, confuso. No entanto se pôs de pé, assim como Vênus havia ordenado.
- Deixe-me ver... - Ela caminhou num círculo lento ao redor do atordoado guerreiro. - Têm quase a mesma altura e constituição física. É óbvio que são parentes. Aquiles
é mais encorpado, claro. E você é bem mais loiro do que ele. Mas, sob a armadura, isso não será tão perceptível. Além do mais, posso usar um pouco de magia aqui,
outro acolá... Basta que use o elmo do seu primo, o restante de sua armadura, e ninguém será capaz de notar a diferença. Ainda mais no calor da batalha.
- Não compreendo, senhora. - Mesmo enquanto proferia as palavras, no entanto, Pátroclo soube que a Deusa do Amor estava fazendo planos, e seu coração disparou, ansioso.
- Não mesmo, querido? Acabou de dizer que gostaria de ser Aquiles para liderar o ataque final dos Gregos contra os Troianos. Pois acredito que eu possa lhe conceder
esse desejo. Se for realmente isso o que quer... É isso o que deseja, jovem Pátroclo?
Pátroclo quis gritar de alegria e aceitar de imediato a oferta da deusa, porém os Olímpicos eram muitas vezes caprichosos, e seus caprichos poderiam ser perigosos
e mortais.
- Por que deseja me ajudar, Afrodite?
A deusa franziu a testa, e o ar ao redor deles se aqueceu, fustigando a pele de Pátroclo.
- Será possível que vocês, Gregos, nunca se lembram de que prefiro ser chamada de Vênus?
Pátroclo inclinou a cabeça.
- Perdão, grande deusa! Eu não quis ofendê-la.
Vênus respirou fundo, a brisa quente cessou, e o agradável frescor da noite voltou à beira-mar. - Claro que não, querido. Eu não devia ser tão sensível, mas tenho
estado sob um terrível estresse nestes últimos tempos. Esta guerra está me dando nos nervos, o que nos traz de volta à razão desta minha pequena visita e à sua pergunta.
Eu gostaria de ajudá-lo porque a Guerra de Troia já foi longe demais. Nós queremos que ela acabe, e pode nos ajudar para que isso aconteça.
- "Nós"? Quer dizer que os deuses estão realmente envolvidos na luta?
- Na verdade, as deusas é que estão envolvidas na guerra.
Pátroclo arregalou os olhos ao compreender tudo.
- Atena está ajudando Ulisses!
- Entre outras coisas - Vênus murmurou e, em seguida, limpou a garganta. - E sim, eu estarei ajudando você.
- Sinto-me honrado, grande deusa. Mas por que eu? Nunca fui fiel à senhora. - Ele sorriu, meio tímido. - A verdade é que, até pouco tempo atrás, eu não sabia quase
nada do amor.
Vênus o tocou no rosto, e Pátroclo sentiu uma onda quente de amor e felicidade percorrer o corpo.
- Mas o encontrou, não encontrou?
Ele assentiu, incapaz de falar.
- Por isso mesmo eu o escolhi. O amor recém-descoberto é a mais poderosa das emoções. Detém uma magia muito especial. Já o vi afastar a morte, curar almas e frustrar
o destino. Usarei a magia do amor recém-descoberto e também a sua semelhança física com o seu primo. Essas duas coisas juntas e abençoadas por mim irão permitir
que se faça passar por Aquiles apenas por tempo suficiente para que lidere os Mirmidões e o exército grego contra os Troianos. Vai ordenar o ataque quando as muralhas
forem violadas.
Pátroclo estremeceu com excitação e seus olhos cintilaram.
- Eu o farei! Farei isso pela Grécia e pela senhora.
Vênus inclinou a cabeça em reconhecimento diante da promessa.
- Fico feliz em ouvir isso. Agora, tudo o que precisa é da famosa armadura de Aquiles e da minha bênção logo após o amanhecer.
- Meu primo guarda a armadura em sua tenda. Como eu...
- Deixe isso comigo. O Amor irá manter Aquiles ocupado - garantiu Vênus.
- Mas e quanto aos Mirmidões? Como faço para reuni-los sem alertar Aquiles?
- Basta espalhar entre as tendas, esta noite, que ele convocou um treinamento especial para amanhã, e todos virão para cá pouco depois do amanhecer. - Vênus fez
um gesto ao redor, apontando a praia onde estavam: bem no meio do caminho entre o acampamento grego e o dos Mirmidões. - Deixe implícito que Aquiles se encontra
inquieto. Os homens já se encontram surpresos com sua decisão de se retirar da luta. Não demorará a convencê-los de que ele retomou seus antigos hábitos.
Pátroclo concordou com um gesto de cabeça, pensativo.
- É verdade. E se o Amor mantiver Aquiles ocupado em sua tenda, ele não vai ouvir falar do treinamento que supostamente teria organizado. - Sorriu de leve. - Meu
primo vai ficar furioso quando descobrir que foi enganado.
O sorriso de Vênus quase o cegou com sua beleza.
- Até lá esta guerra estará terminada e os Gregos terão saído dela vitoriosos. Aquiles estará alegre e ocupado demais, fazendo planos para voltar a Phthia, para
ficar zangado com você.
- É brilhante, senhora! - elogiou Pátroclo com um floreio, curvando-se.
A deusa piscou os longos cílios, toda coquete.
- Claro que sou, querido.
- E quanto aos Gregos? Diremos a eles que Aquiles é que está no comando?
Vênus levantou uma sobrancelha fina.
- Acredito que Ulisses possa nos ajudar a espalhar esse boato.
- Então está decidido.
- Isso mesmo. Ao amanhecer, estarei à sua espera, atrás da sua tenda. - Vênus fez uma pausa ao se lembrar de mais um detalhe. - Precisa tirar Jacqueline do caminho.
Ela é uma mulher moderna e não ficará de braços cruzados enquanto estiver liderando os Gregos na batalha.
Pátroclo assentiu e riu baixinho.
- Jacqueline jamais ficaria de braços cruzados. Ela tem o corpo de uma jovem donzela e o coração de uma guerreira. É uma mulher muito incomum.
- Tem razão, ainda que não tenha conhecido muitas mortais modernas. De qualquer forma, isso será um problema para nós. Ela é obcecada por você e não... - As palavras
de Vênus sumiram quando ela começou a sorrir.
- O que foi, minha deusa?
- Jacky está tão louca por você que deseja muito lhe agradar. Pois acorde-a antes do amanhecer. - Ela sorriu sugestivamente. - Faça-a despertar de uma vez e, em
seguida, diga-lhe que está morrendo de vontade de comer aqueles mariscos frescos que o mar revela na maré baixa.
- Na maré baixa? - ele indagou, sem compreender.
Vênus suspirou.
- A maré baixa acontece quase no meio da noite. Peça a Jacky que vá colher amêijoas enquanto treina com os homens. Ela deixará a tenda durante a madrugada e estará
fora do caminho.
- Tem certeza de que ela faria isso por mim?
- Dê-lhe prazer primeiro, demonstre seu amor por ela, e Jacky irá atrás dos moluscos sem pestanejar. As mortais modernas são muito lógicas. Se fizer algo de bom
para ela, Jacky há de querer retribuir.
Pátroclo sorriu.
- É assim, tão simples?
- Será depois de uma pitada ou duas da minha magia. Agora vá ficar com sua mulher, valente Pátroclo, e amanhã estará preparado para a glória! - Vênus bateu palmas
e desapareceu em uma nuvem cintilante de fumaça.
Sorrindo até as orelhas, Pátroclo correu pela praia, determinado a levar Jacqueline para a tenda e passar o restante da noite fazendo amor.
Não foi difícil encontrar Atena e Ulisses. Nem seria preciso possuir a magia divina do Amor encarnado para reconhecer os gemidos e suspiros da paixão que estes compartilhavam.
Por consideração, Vênus se materializou numa curva da praia, em meio a um bosque de árvores altas e, em silêncio, aproximou-se dos amantes. Atena se encontrava deitada
sobre uma manta de cetim, usando apenas um robe prata transparente. Já Ulisses, completamente nu e - Vênus registou com satisfação - mais bem dotado do que ela imaginava,
beijava o arco do pé da deusa.
Tomara Atena tivesse pedido às ninfas da floresta que lhe fizessem uma pedicure completa!, pensou Vênus, decidida a conversar com a outra mais tarde sobre aquele
tipo de coisa.
Limpou a garganta.
Ulisses agarrou a espada e, num movimento rápido, girou o corpo, agachando-se na defensiva diante de Atena.
Vênus levantou uma sobrancelha.
- Como é protetor, meu querido!...
Atena se pôs de pé em um instante, postando-se entre Ulisses e Vênus.
- Como ousa me interromper? Não tem o direito de...
- Blá, blá, blá... - Vênus revirou os olhos. - Reserve essa sua arrogância para os mortais, Atena. Até porque não vou interrompê-los por muito tempo. Tenho apenas
que dar um recado a Ulisses.
Os olhos da Deusa da Guerra se estreitaram.
- O que quer com ele?
O sorriso da Deusa do Amor foi lento e sábio.
- Ciúme? Que divertido. Ridículo, mas divertido. Fique tranquila. Não tenho nenhuma intenção de seduzir o seu amante. Ulisses, querido... - Vênus desviou os olhos
de Atena, que continuava a fulminá-la com o olhar, e o guerreiro deu um passo para mais perto de sua deusa, o que lhe proporcionou uma agradável vista frontal de
toda a sua glória. - Ah, aí está você... Muito bem de saúde, por sinal.
- O recado! - Atena falou por entre os dentes.
Vênus suspirou.
- Claro. É só que Aquiles vai liderar os Mirmidões na batalha de amanhã, logo após o amanhecer.
Ulisses cerrou os punhos e abriu um sorriso.
- Eu sabia que ele ia ceder! - exclamou. Em seguida, virou-se para Atena e se pôs sobre um joelho.
- Amanhã, minha deusa, meu amor, os Gregos lhe presentearão com a vitória sobre os Troianos.
- Que interessante - Atenas respondeu, porém seus olhos não deixaram a Deusa do Amor um só momento. - E por que isso estaria acontecendo?
- Se não tivesse andado tão preocupada, saberia o motivo. - Vênus fez um gesto para que elas se afastassem alguns metros. - Será que podemos ter uma conversa em
particular?
Ainda franzindo a testa para a outra diva, Atena virou-se para Ulisses.
- Eu já volto - resmungou, e seguiu com Vênus praia abaixo. - Explique-se! - exigiu, tão logo se encontravam distantes do campo de audição do guerreiro.
- Em primeiro lugar, devo repetir: devia tê-lo tomado como amante eras atrás!
- Minha vida amorosa não está aberta a discussões.
- Querida, eu não estou discutindo a sua vida amorosa, apenas a ausência dela até agora. De qualquer modo, a coisa toda é muito simples: tem ajudado Ulisses, o que
basicamente tornou a presença de Aquiles no campo de batalha dispensável.
Atena respirou fundo, preparando-se para elaborar uma desculpa, porém Vênus ergueu a mão, silenciando-a.
- Poupe-me! Foi bom para você. - Lançou um olhar por cima do ombro da deusa para o local onde Ulisses a aguardava. - Na verdade, foi ótimo... Mas acabou prejudicando
o nosso pequeno plano.
- Eu sei - Atena admitiu.
- Por isso mesmo, Hera e eu fizemos algumas alterações nele. Os Gregos podem muito bem vencer agora. Não importa para nós, contanto que essa guerra tenha fim.
- Eu me importo - declarou Atena.
- Imagino. De qualquer forma, isso tudo ficar duas vezes melhor para o seu lado. Os Gregos vencem, seu amante é Grego... E todos viverão felizes para sempre. Ei,
talvez possa manipular as coisas, de modo que Ulisses demore outra década para voltar para casa! Assim poderia tê-lo só para si por muito mais tempo.
Os olhos cinzentos de Atena se estreitaram de novo.
- Eu já disse que não estamos discutindo a minha vida amorosa.
- Pelas nádegas molhadas de Poseidon, você é muito aborrecida! - exclamou Vênus. Em seguida, lembrando-se de onde estava, lançou um olhar nervoso na direção do mar.
- Desculpe-me, querido. Sabe que eu disse isso com amor.
- Quer fazer o favor de manter o foco? E quanto a Aquiles e seu destino? Isso significa que ele vai morrer amanhã? - Atena quis saber.
- Ah, não se preocupe com isso. Aquiles estará dormindo, bem seguro, em sua cama. Será Pátroclo, ajudado por um pouco da minha magia, quem irá liderar os Gregos.
Mas não compartilhe essa informação com o seu namorado!
- Ele não é meu nam... - Atena começou a vociferar.
- Não importa! Só não conte a ele. Eu a verei amanhã, assim que essa coisa toda terminar. A menos que esteja ocupada outra vez...
Vênus jogou um beijo para Ulisses e, em seguida, desapareceu.
Capítulo Vinte e Seis
As enormes tendas de Agamenon vibravam com festa. Naturalmente, a maior parte dos farristas era de contemporâneos do rei - homens muito velhos ou então de posição
proeminente demais para ir a combate, ainda que não se pudesse dizer isso diante de seus brindes e discursos.
Também havia mulheres a rodo. Jovens e submissas noivas de guerra que, se não ansiosas por agradar, ao menos pareciam dispostas a fingir que sim diante das vantagens
que uma noite como aquela poderia lhes proporcionar.
Briseida odiava todos eles. Cada um daqueles bodes velhos no cio, com seus testículos murchos. Mesmo assim, lançava discretos sorrisos àqueles que considerava menos
repulsivos. Agamenon poderia se cansar dela a qualquer momento e, se isso acontecesse, ela poderia se valer de algum daqueles futuros cadáveres até que houvesse
algum guerreiro disposto a lutar por ela contra seus camaradas.
O que ela não daria para pertencer a alguém tão viril como o dourado Aquiles!... Suas cicatrizes nunca a haviam incomodado, e a Fúria sempre a animara mais do que
assustara. Entretanto, quando pertencera a ele, Aquiles não costumava nem mesmo olhar em sua direção, a menos que quisesse vinho ou comida. Desde que ele dera permissão
para que Agamenon a levasse, ela vinha se amaldiçoando por não ter sido mais ousada ao ter uma chance com ele. Devia ter ido para sua cama sem ser convidada. Devia
ter pensado em enfeitiçá-lo, como fizera Polixena.
- Briseida! Mais vinho! - Agamenon ordenou, esticando-se de onde estava, sentado em seu trono de ouro, para lhe agarrar um peito e apertar dele a ponta, apenas para
a delícia dos generais que a tudo assistiam.
Briseida quis cerrar os dentes e sibilar como uma víbora, mas, em vez disso, arqueou as costas num gesto sensual e falou com voz rouca:
- Qualquer coisa que desejar, meu senhor. - Então apanhou o enorme jarro de vinho e desfilou diante dos outros homens, acariciando o lado liso da cerâmica sugestivamente
enquanto lhes permitia apreciar seus jovens mamilos intumescidos e fantasiar sobre tudo o que quisessem.
Assim que saiu da tenda, desistiu do caminhar sensual e passou a se mover com o silêncio de um gato - habilidade que tinha aperfeiçoado quando ainda era apenas uma
criança. E claro que aqueles guerreiros idiotas que se amontoavam ao redor dos barris de vinho não se deram conta de sua aproximação.
Ao ouvir o nome dele, Briseida congelou em meio às sombras.
- Aquiles?! Tem certeza? - indagou um baixinho de aparência rude.
- Ouvi o próprio Ulisses falando. Deve ser verdade! - Foi a resposta de um soldado alto e cheio de marcas.
- Com Aquiles e seus Mirmidões liderando o ataque, irmãos, a vitória será nossa, amanhã!
- Eu não acreditava que ele fosse lutar de novo. Ouvi dizer que a princesa de Troia havia lhe lançado um feitiço - comentou outro homem.
- Ela lançou um feitiço apenas aqui - respondeu o homem baixo, agarrando os genitais e projetando os quadris -, e não aqui. - Com a outra mão, ele levantou a espada
e a fez girar em arco ao redor da cabeça.
Todos os homens riram, e Briseida saiu das sombras.
- Agamenon deseja mais vinho. Encha isto - falou, fria, estendendo o jarro.
O baixinho o apanhou.
- Vou enchê-lo para você... - Seu olhar persistente dizia que ele gostaria de enchê-la assim como faria com o jarro; contudo Briseida sabia que, enquanto ela fosse
o prêmio de guerra de Agamenon, nenhum homem falaria abertamente de sua luxúria. O rei poderia fazer o que quisesse com ela, mas não seus homens.
O homenzinho entregou-lhe o jarro de volta, os olhos fixos nos mamilos eretos por baixo das vestes transparentes.
- Qual é o seu nome? - Briseida quis saber.
Ele sorriu, exibindo os dentes podres.
- Aentoclus, senhora.
- Pois muito bem, Aentoclus. Se olhar de novo na minha direção, direi a Agamenon que tentou me violentar e pedirei ao meu amante, o seu rei, que me traga seus testículos
como compensação.
Enquanto o guerreiro perdia a cor, Briseida sorriu e foi embora, segurando o jarro com cuidado para não derrubar vinho nas vestes.
Voltou para o lado de Agamenon, desta vez ignorando os olhares lascivos dos generais. Encheu seu cálice e inclinou-se para o rei, sussurrando-lhe ao ouvido:
- Tenho notícias sobre Aquiles.
Os olhos perspicazes do monarca se desviaram para os dela, e o que ele viu neles o fez bater palmas e ordenar:
- Mais música e dança!
A música explodiu no ambiente enquanto adolescentes vestidas apenas com correntes de ouro ondularam através da tenda, desviando a atenção dos homens.
- O que ouviu? - ele perguntou com calma.
- Aquiles e os Mirmidões vão liderar o ataque amanhã - Briseida sussurrou, acariciando-lhe o ouvido, e sentiu o choque que atravessou o corpo de Agamenon.
- Tem certeza?
- O próprio Ulisses se encarregou de espalhar a notícia.
- Se isso for verdade - ele passou o braço ao redor de sua cintura -, você é uma joia rara, minha querida.
- E sempre sua, meu amo. Sempre sua. - Briseida sorriu, presunçosa, e se aninhou junto dele, deslizando a mão macia de modo a acariciá-lo no interior da coxa. Não,
Agamenon não se cansaria dela. Não importava o que ela tivesse de fazer: continuaria a ser a noiva de guerra do rei mesmo quando eles voltassem para a Grécia.
- Kalchas! - Agamenon levantou a voz acima da batida sensual dos tambores.
- Aqui, meu senhor. - O velho profeta pareceu materializar-se do nada.
Ele é como uma névoa venenosa, Briseida pensou, alimentando seu desgosto por aquele velho nojento que vivia se esgueirando. Ele era um dos homens favoritos do rei,
e ela, esperta demais para se mostrar sua inimiga.
- Vá chamar Ajax para mim.
- Ajax, senhor?
Briseida notou que os generais que tinham ouvido o comando de Agamenon também ficaram confusos. Ajax era brilhante no campo de batalha. Fora deste, mal conseguia
concatenar as ideias. O homem era, literalmente, tão grande, forte e estúpido como um boi.
- Sim, Ajax. Eu tive um sonho ontem à noite em que ele era fundamental para uma grande vitória amanhã. Quero contar-lhe a respeito desse sonho e da recompensa que
pretendo lhe dar por seus feitos heroicos.
- Sim, senhor. - Kalchas curvou-se e correu para fora da tenda.
Os generais que a tudo haviam escutado sorriram e sinalizaram sua concordância. Sonhos eram enviados pelos deuses, e ver seu rei se baseando em um deles para agir
era algo a que jamais se oporiam.
Mas Briseida sabia: Agamenon estava mentindo. A única coisa com a qual ele sonhara na noite anterior fora com suas pernas abertas. Ele mesmo lhe revelara isso naquela
manhã quando, ao acordar, pusera o rosto entre suas coxas.
Acariciou seu ouvido outra vez enquanto sussurrava:
- O que pretende fazer, amo?
Em um movimento rápido, Agamenon a puxou para o colo de modo que ela montasse em sua ereção e ele pudesse empurrá-la intimamente entre suas pernas. Briseida inclinou-se
sobre ele e, escondido por seus longos cabelos, o rei revelou:
- Se Aquiles lutar contra os Troianos amanhã, será sua última batalha; e também o dia em que seremos vitoriosos. Espero há quase dez verões que a maldita profecia
de sua morte se concretize, e não vou esperar mais.
- Mas ouvi de minhas fontes, no acampamento dos Mirmidões, que Polixena parece estar frustrando a profecia! Talvez isso seja verdade. Sabe que nem mesmo os asseclas
de Poseidon poderiam matá-la.
Agamenon mordeu-lhe o pescoço.
- Tudo o que Aquiles precisa fazer é matar Heitor, e sua morte virá em seguida - sussurrou, malévolo. - Foi Zeus quem decidiu assim. Nem mesmo um oráculo protegido
por uma deusa pode mudar isso. Polixena o tem mantido fora do campo de batalha e, portanto, distante de Heitor. Mas talvez a arrogância de Aquiles o tenha levado
a acreditar que seu oráculo, de alguma forma, vá protegê-lo no campo de batalha. Meu trabalho será apenas garantir que o caminho de Heitor até Aquiles esteja aberto.
O destino fará o restante.
Briseida riu com voz rouca.
- É mesmo brilhante, querido - falou com um gemido, ondulando o corpo contra o membro túrgido de olhos fechados e fingindo que cavalgava o corpo jovem e forte de
um guerreiro.
- Esse feitiço não pode ser assim, tão simples - comentou Aquiles.
- Eu já disse que não é magia, é auto-hipnose. E, sim, ela é muito simples... e complexa ao mesmo tempo - admitiu Kate. - A nossa mente é incrível. Pode fazer uma
pessoa acreditar que está doente ou, melhor ainda, fazê-la acreditar que está bem quando deveria estar doente. Já testemunhei verdadeiros milagres nesses dez anos
de prática.
- E essa auto-hipnose, que não é feitiço, mas se parece muito com um, pode me ajudar a manter a Fúria sob controle - ele concluiu, pegando uma mecha grossa do cabelo
de Kat, enrolando-a no dedo e depois levando-a aos lábios. - Isto é como uma pele de zibelina. Eu nunca vou me cansar de tocá-lo.
- Eu dei sorte - sussurrou Kat, inclinando a cabeça para que Aquiles pudesse acariciar os fios com mais facilidade. - Polixena tinha um cabelo maravilhoso.
Aquiles sorriu.
- Eu me esqueço de que este corpo nem sempre foi seu. Qual era a cor do seu cabelo antes?
- Era loiro. Não tão comprido assim, mas também era bom.
- Seria linda de qualquer forma para mim - ele afirmou, beijando-a nos lábios de leve.
- Que bonitinho... Mas não vai conseguir mudar de assunto tão fácil. Sim, a auto-hipnose, que não é um feitiço coisa nenhuma, pode ajudá-lo a controlar seu corpo
e suas emoções, de modo que consiga se manter relaxado o suficiente para evitar os gatilhos que despertam a Fúria. Não importa o que esteja acontecendo com você.
- Quer dizer, então, que o nosso filho não vai me despertar a Fúria acidentalmente ao acreditar que não pode se afogar por ser neto de uma deusa do mar... - elaborou
Aquiles, fitando-a nos olhos.
Refém das profundezas azuis da alma daquele homem incrível, Kat vislumbrou um futuro em que o amava e vivia a seu lado. Queria, sim, ser a mãe de seus filhos. Assim
como queria netos ou qualquer que fosse o equivalente, no antigo e mágico mundo grego, para a família tradicional. Em uma casa com cerquinha branca, de preferência.
E ainda queria um cachorro. Queria tudo.
- E se for "a nossa filha"?...
Aquiles piscou, pois não tinha considerado essa possibilidade. Depois soltou uma risada seca, e seus lábios se curvaram no esboço de um sorriso.
- Acho que vou ter de aprimorar a minha prática de auto-hipnose. Ou talvez não praticá-la de modo algum. Afinal, ser dominado pela Fúria seria uma coisa boa ou ruim
quando algum pretendente tentasse tirar a minha filha de mim?
Kat sorriu.
- Creio que o controle ainda é a chave nesse caso. Se ele for um sujeito todo largado, daqueles que veste calças de emo e usa delineador, deixamos a Fúria tomar
conta. Mas se for um bom menino, só precisa rosnar e assustá-lo um pouco.
Aquiles franziu a testa, confuso, e Kat caiu na risada.
- Em resumo, você só devora os pretendentes de que não gostarmos, que tal?
Ele continuou de testa franzida.Capítulo Dezenove
Kat ouviu Jacky resmungando antes mesmo de abrir os olhos. Estava dizendo algo parecido com "Meu Jesus Cristinho" e "Isso não tem cabimento".
Sorriu. Se tivesse morrido e ido para o inferno, ao menos Jacky viera com ela outra vez.
Abriu os olhos.
- Ei... - resmungou. - Pensei que tomasse conta da língua ao menos quando estivesse de plantão.
Jacky se inclinou sobre ela no mesmo instante, tomando seu pulso, ao mesmo tempo que lhe limpava o rosto com um pano frio.
- Katrina, querida, você voltou!
- Se está me chamando de "querida" é porque a coisa está feia. Perdi uma perna ou algo assim?
- Ah, obrigada, meu Jesus Cristinho, é você mesma! - Jacky a beijou nos lábios sem cerimônia. - Nunca mais me deixe apavorada assim!
- Que diabo, Jacky? Não pedi para aquelas coisas nojentas me atacarem.
- Muito bem, quero que conte meus dedos... - Ela levantou três dedos, tal qual um árbitro de beisebol.
- Três dedos, como o Yoda. A propósito, se não fizer uma manicure em breve e cortar essas unhas, vai ficar ainda mais parecida com ele. - Kat deu um tapinha fraco
na mão da amiga. - Tenho que dormir com você para conseguir algo para beber?
- Felizmente, não, até porque está com um bafo e tanto! - Jacky virou-se para a mesa lateral e despejou a água de um cântaro em um copo. Em seguida, ajudou-a a beber.
- Não é de admirar. Caramba, estou me sentindo uma merda!
- Para uma mulher que ficou em coma por quatro dias, está me parecendo ótima!
- Quatro dias! - ela exclamou em meio a longos goles de água.
- Ei, vá com calma. Vai ficar enjoada se beber demais.
- Já estou enjoada.
- Pois vai se sentir pior. E pode vomitar.
Kat tomou mais um gole e, então, entregou o copo a Jacky, relutante, deitando-se no travesseiro.
- Quatro dias, Jacky? Por quê? A mãe de Aquiles me curou do veneno. Ou ao menos eu pensei que ela tivesse curado.
- E curou, mesmo. Ou melhor, Tétis fez o que pôde, apesar da sua "notável e frágil concha humana", como disse Atena. Mas teve que se recuperar por conta própria
depois.
- Atena estava aqui?
- Hum-hum. Todas as três vieram. Na verdade quatro, se contar a mãe de Aquiles, que já o acompanhava quando ele chegou ao acampamento, carregando-a semimorta, e
quase me matou de susto há quatro dias.
- Nossa. Agora estou me sentindo especial.
Jacky revirou os olhos.
- Você é "especial". - Jacky fez aspas no ar para destacar a palavra. - Tão especial que, quando formos para casa, vou pedir um ônibus da prefeitura para vir te
buscar.
- Espere um pouco... Se todas as deusas estavam aqui, por que elas não usaram seus poderes para me fazer acordar?
- Eu mencionei isso. E talvez não num tom muito educado.
- Você sendo curta e grossa com alguém?... Estou chocada. Imagino o que não deve ter falado para as pobres deusas!
- Acontece que, aparentemente, o monstro melequento que a pegou tinha mais poderes do que parecia. As deusas não conseguiram neutralizar todo o veneno. Seu corpo
também precisou combatê-lo por si só.
- Aposto que isso a deixou num mau humor daqueles. - Kat sorriu para sua melhor amiga.
- Um pouco. - Jacky pegou a mão dela e a apertou. - Estou tão feliz por não ter morrido nas minhas mãos!...
- Eu também. - Kat a apertou de volta. - Desculpe-me se a assustei.
- Tudo bem. Até porque decidi que está me devendo uns sapatos.
- Sapatos?
- Lembra-se daquele seu lindo par de escarpins de couro vermelho que eu cobiço faz tempo?
- ... Sei.
- Pois eu cansei de cobiçá-lo.
- Aff!, você é uma enfermeira perversa!
- Obrigada. Agora me diga que diabo a picou desse jeito.
- Não faço ideia. Em um momento eu estava andando pela praia, tentando encontrar Aquiles; no seguinte, vi algo na água e parei para olhar. Foi então que aquela coisa
cheia de tentáculos me agarrou e me picou, paralisando a minha perna. Fui sendo agarrada e picada seguidas vezes, até que apertei o botão de pânico e gritei para
Vênus. - Kat tocou o medalhão que ainda lhe pendia entre os seios e estremeceu. - Aquelas coisas não estavam para brincadeira. Ficavam ondulando, pareciam o rabo
de um rato, e havia literalmente centenas delas pulando em mim.
Jacky torceu o rosto como se tivesse acabado de chupar um limão.
- Jesus! Eram como caudas de rato? Que coisa nojenta!
- Sim, e elas já estavam me puxando para o fundo, querendo que eu servisse de alimento para o que parecia ser a mãe gigantesca delas, quando Aquiles se materializou,
foi dominado pela Fúria e acabou com elas. Em seguida, a mãe dele apareceu, tocou em mim e eu desmaiei. Fim. Mas Aquiles já não lhe contou tudo isso?
- Hum... não. Aquiles anda todo esquisito desde que a trouxe de volta. Mal trocou duas palavras conosco. Nem mesmo Pátroclo conseguiu conversar com ele. Na verdade,
Pátroclo também anda estressado, e creio que ele já esteja cansado de tentar fazer Aquiles se abrir e só ouvir grunhidos e rosnados.
- Jacky, não está infernizando a vida do rapaz, está?
- Claro que não. Pátroclo e eu estamos bem. Melhor do que bem. É por causa dessa maldita guerra de que ele não está participando e outras coisas de que tem ouvido
falar. Mas, enquanto Aquiles não lutar, Pátroclo também não vai lutar, portanto não estou dando a mínima para esse assunto. - Jacky fez um gesto de desdém. - De
qualquer forma, minha intuição feminina, que é bastante apurada, me diz que Aquiles está preocupado por você tê-lo visto se transformar na coisa, e que agora acha
que vai fugir correndo dele. É claro que é sensata o bastante para não fazer isso, o que eu tentei explicar a ele, mas Aquiles não me escuta. Na verdade, naquela
noite, acho que ele bebeu até cair.
- Talvez devesse ir buscá-lo para que eu possa explicar pessoalmente que eu não tenho juízo...
- Boa ideia - decidiu Jacky. E, em seguida, acrescentou: - Kat, ele se transformou com a tal Fúria, não foi?
- Sim - ela respondeu baixinho.
- E foi horrível. - Jacky não colocou a frase como uma pergunta, porém Kat acenou com a cabeça.
- Foi um horror. Não era mais ele. Seja lá o que for que toma conta de Aquiles, não é humano. Não pode ser.
- Mas Aquiles tinha voltado ao normal quando a trouxe de volta para o acampamento - Jacky observou.
- A mãe dele o chamou na hora, fez algo com a água e foi como se o mar levasse a Fúria embora.
- O que significa que essa coisa pode realmente ser controlada. Estou certa?
- Não está sempre certa?
Jacky soltou uma risada seca.
- Vou buscar o burro e mal-humorado do seu homem - decidiu, mas, antes de sair da tenda, tornou a olhar para Kat. - Prometa que vai tomar cuidado.
- Prometo.
- Você sabe que eu te amo.
- Eu também te amo, Jacky.
Jacky conseguiu sorrir - a despeito de sua preocupação - enquanto se abaixava e deixava a barraca.
Kat estava pensando como seu cabelo devia estar terrível, e tentou penteá-lo com os dedos, quando o corpanzil de Aquiles preencheu a entrada da tenda. Seu olhar
recaiu direto sobre ela, e Kat sorriu.
- Acho que preciso lhe agradecer por ter salvado a minha vida. Na realidade, a você e à sua mãe. - Quando ele não disse nada e apenas continuou a fitá-la, ela continuou,
num murmúrio: - Sua mãe é linda, por sinal. E também parece ótima pessoa, digo, deusa. Se ela ainda estiver aqui, eu adoraria conhecê-la formalmente. Depois que
eu me puser decente, claro.
- Está linda - ele afirmou.
- Deve estar com problemas na vista! Deveria deixar Jac..., quero dizer, Melia, examinar os seus olhos. Os modos dela deixam um pouco a desejar, mas Melia é excelente
enfermeira.
Os lábios de Aquiles se curvaram de leve.
- Melia é muito leal a você. E minha mãe voltou para as profundezas. Ela não pode ficar em terra firme por muito tempo. - Ele parou, prendeu as mãos às costas, em
seguida deixou os braços cairem ao lado do corpo para, então, como se não soubesse o que fazer com eles, correr a mão pelo cabelo. - Não precisa me agradecer por
ter salvado a sua vida. Não fui eu quem lutou contra aquelas criaturas.
Kat manteve o olhar fixo no dele.
- Eu sei disso. Mas foi você quem se apresentou para a luta. Além do mais, aposto que podia ter vencido aquelas coisas nojentas sem a Fúria.
- Não. Eu não poderia ter derrotado as criaturas sem a Fúria. - Aquiles falou devagar, como se quisesse ter certeza de que ela o compreenderia. - O veneno que quase
a matou teria me destruído. A Fúria é que me tornou imune a ele.
- Se é assim, fico contente por ela tê-lo dominado.
- Como pode dizer uma coisa dessas? Eu me transformei em um monstro. Um monstro que a teria estuprado e deixado morta.
- Mas que não fez nada disso. Você voltou. Conteve o monstro.
- Porque minha mãe, uma deusa do mar, interveio!
- Talvez - Kat concordou com bom-senso. - Mas talvez possa aprender a detê-lo também.
Não acredito que isso seja possível.
- Alguma vez acreditou que iria fazer amor com uma mulher sem que a Fúria o possuísse? - ela inquiriu.
- Não - Aquiles respondeu, hesitante. - Nunca.
- O que aconteceu entre nós não foi nenhum sonho. Sabe disso, não sabe?
- Sei.
- O que estou dizendo não faz sentido, então?
- Você é um oráculo da deusa Atena. Tem poderes que as outras mulheres não têm. Por isso pode me tocar e eu continuar sendo um homem.
Kat abriu a boca para afirmar que aquilo não passava de uma enorme bobagem, mas a fechou em seguida. Não podia dizer nada a ele.
De repente, se rebelou. Por que não? Nenhuma das deusas havia dito que ela não poderia fazer isso. Ninguém tinha dito que precisaria ocultar sua verdadeira identidade
de Aquiles. Precisava ludibriar apenas os integrantes do acampamento grego.
Por um instante, Kat desejou poder falar com Jacky primeiro, mas logo chegou à conclusão de que não precisava perguntar nada à melhor amiga. Jacky era a autenticidade
em pessoa. Dizia a verdade até mesmo quando não devia. Por isso mesmo ela, Kat, gostava tanto dela.
Além do mais, era uma estupidez esconder tudo de Aquiles. Se não confiava nele nem mesmo para revelar a própria identidade, não deviam ter tido relações sexuais.
Qualquer pessoa saberia disso.
- Aquiles, será que não pode chegar mais perto? Preciso falar com você a respeito dessa história de oráculo.
Ele atravessou o cortinado da cama com um misto de hesitação e ansiedade. Era óbvio que queria tocá-la, que precisava tocá-la. Tão óbvio quanto o fato de ele temer
ficar muito próximo e ser rejeitado.
Kat estendeu a mão e sorriu.
- Por que não se senta aqui a meu lado?
A única coisa que mudou na expressão velada de Aquiles foi o alívio em seus olhos. Ele obedeceu, cauteloso, e segurou a mão dela como se esta fosse uma borboleta.
Em seguida, surpreendeu-a, beijando seus dedos com delicadeza. Falou ainda olhando para eles e acariciando com o polegar o lugar em que beijara.
- Quando o monstro me deixou e eu a vi deitada lá, pensei que a havia perdido. - Ergueu o olhar, então, e Kat ficou chocada com a profundidade da tristeza em seus
olhos. - Acho que eu não suportaria perdê-la também.
Foi nesse momento que Kat parou de mentir para si mesma. Aquilo não era apenas uma missão. Aquiles não era um projeto que ela assumira, levada por outras pessoas.
De alguma forma, a despeito do tempo, dos mundos e da lógica, ele era o seu destino. Estava ligada a Aquiles como nunca tinha chegado perto de estar com qualquer
outro homem em seu próprio mundo. E não queria abandoná-lo.
E perceber isso foi tão libertador como assustador. Jacky iria matá-la. Definitivamente.
Precisou limpar a garganta antes de falar:
- Eu não sou quem pensa que sou.
- Não é Polixena?... Mas as servas a reconheceram como a princesa.
- Apenas escute. Deixe-me contar tudo e, se não acreditar em mim, a princípio, por achar que é loucura, lembre-se de como é insano você ser possuído por um monstro.
Aquiles franziu a testa.
- Eu vou me lembrar.
- Muito bem. A verdade é que este - Kat apontou para o próprio corpo - é o corpo de Polixena, princesa de Troia. Mas isto - ela fechou o punho e o colocou sobre
o coração -, a alma dentro deste corpo, não pertence à Polixena. Pelo menos não desde o dia em que Ulisses foi ao templo de Hera.
- Não compreendo.
- No dia em que vim para você, Polixena e sua serva, Melia, tinham sido assassinadas por soldados de Agamenon que invadiram o templo de Hera. No mesmo dia, em outro
tempo e em outro mundo, eu também morri em um acidente, junto com a minha melhor amiga. Vênus estava nos observando nesse instante, então pegou as nossas almas e
as colocou nos corpos de Polixena e Melia. - Kat se apressou em continuar antes que ele pudesse dizer qualquer coisa. - Não faz muito sentido para mim, também. A
parte que consigo compreender melhor é que as deusas me queriam aqui. - Ela parou quase a ponto de admitir que o objetivo era mantê-lo fora da guerra, de modo que
Troia pudesse vencê-la. Mas como poderia revelar isso a Aquiles? - Respirou fundo. - Elas queriam que eu viesse para cá por sua causa. Atena, Hera e Vênus, todas
acreditam que seu destino deve ser modificado. E elas acham que eu posso ajudá-lo com isso.
Enquanto ela falava, Aquiles foi se tornando cada vez mais rijo. Mas não puxou a mão da dela, tampouco desviou o olhar do seu.
- Quer dizer que vem de outro mundo?
- Não sei se exatamente de outro mundo, mas de outro tempo. Do futuro. - Ela esboçou um breve sorriso. - De um futuro muito distante, na verdade. Ao menos de dois
mil anos à frente deste tempo.
- E no seu futuro as pessoas me conhecem?
- Conhecem, sim.
Aquiles deixou cair a mão e se pôs de pé, dando as costas para ela.
- De que modo você ou as deusas acreditam que o meu destino possa ser mudado? Ele já aconteceu!
Kat pensou por alguns instantes e encontrou a resposta sem dificuldade.
- É pura ficção.
Ele se voltou para ela.
- Ficção? Como assim?
- No meu tempo, as histórias a seu respeito, e sobre a era em que viveu, são tidas como ficção. Como Mitologia, para ser mais específica. Histórias que não são verdadeiras,
que nunca aconteceram. Ou então que aconteceram, mas que foram exageradas ao longo dos anos. Quer um exemplo? No meu tempo, as pessoas acreditam que é imortal, invulnerável...
exceto pelo seu calcanhar. Dizem que foi atingido por uma flecha exatamente nesse ponto, e que isso foi a sua derrocada.
- No meu calcanhar? - Ele olhou para o pé, cuja aparência era mais do que normal.
- No seu calcanhar - ela repetiu. - Ficou tão famoso por isso que o feixe de fibras que corre atrás do tornozelo - Kat afastou as cobertas de cima da própria perna
e apontou para o tendão - é conhecido como "tendão de Aquiles" no meu mundo inteiro.
- Isso não faz sentido!
- Também acho. A menos que me diga que a única maneira de você morrer é mesmo ser atingido, esfaqueado - ou seja lá o que for - no calcanhar.
- Mas o calcanhar não é uma área vulnerável do corpo. Caso se rompa esse tendão, um homem poderia até ser derrotado porque perderia a utilidade de uma das pernas,
mas o ferimento por si só jamais iria matá-lo.
- O seu calcanhar não é invulnerável, portanto.
- Não.
- E você não é imortal.
- Claro que não.
- Muito bem. Agora escute esta... Diz a Mitologia que Troia foi derrotada por um cavalo oco e gigantesco, recheado de Gregos. Que eles invadiram a cidade se ocultando
na barriga desse falso cavalo.
- Está de galhofa.
- Nunca falei tão sério na vida.
- Mas um cavalo oco e gigante é uma parvoíce!
- Está acompanhando meu raciocínio? Você e a Guerra de Troia foram registrados na história, porém os fatos de sua vida e da guerra foram todos adulterados ou aumentados
com os mitos. O que realmente acontece com você poderia, portanto, ser muito diferente do que lhe foi destinado.
- E qual foi esse destino?
Kat não desviou o olhar dos olhos azuis e penetrantes.
- Você morre aqui, em Troia, neste último ano da guerra.
Capítulo Vinte
Kat imaginou que Aquiles fosse fazer mais perguntas sobre a própria morte, mas, em vez disso, ele apenas acenou com a cabeça breve e desinteressadamente. A única
coisa em que parecia interessado era nela.
- Vai me dizer o seu nome verdadeiro?
- Katrina Marie Campbell. Meus amigos me chamam de Kat.
- E você não é uma princesa?
Kat riu.
- Não. Nem de longe. Sou uma espécie de... médica de cabeça.
- Também é curandeira?
- Oh, Deus, não. Sou terapeuta. Alguém que aconselha as pessoas e as ajuda a equilibrar suas emoções. Minha especialidade é o aconselhamento de casais.
- Por isso sabia o feitiço necessário para me acalmar?
- Sim, mas não é um feitiço. Na verdade, não existe nenhuma mágica no que eu faço. Você pode até aprender a fazer sozinho. Chama-se hipnose. É apenas uma maneira
de relaxar e chegar ao seu subconsciente.
- A mente que sonha? Por isso, no início, eu acreditava que estava apenas sonhando que você me tocava!
Kat sentiu o rosto pegar fogo.
- Sim. Aliás, eu sinto muito por isso. Não tive a intenção de me aproveitar da situação. É que você é tão... másculo e, quando comecei a tocá-lo, não pediu que eu
parasse, então...
A risada de Aquiles soou alta, longa e desinibida.
- O que foi? - Kat franziu o cenho. Queria que ele risse e sorrisse mais, mas não dela!
Ele a beijou na mão mais uma vez.
- Eu não era tocado por uma mulher havia uma década, e ainda me pede desculpas por algo que considerei um milagre. É uma mulher estranha e mágica, Katrina Marie
Campbell.
- Pode me chamar de Kat - ela contrapôs. - E não foi ético o que eu fiz. Não quero que pense que é assim que eu me comporto normalmente.
A expressão divertida de Aquiles tornou-se sóbria.
- Está arrependida do que aconteceu conosco?
- Não, de maneira alguma. Só sinto não ter lhe contado tudo isso antes.
Ele sorriu.
- Eu não teria acreditado em você e decerto a teria mandado embora, pelo seu próprio bem. Não tem nada por que se desculpar, Kat, a menos que não queira a minha
devoção, a minha proteção e o meu amor. Porque eu gostaria de lhe dar essas três coisas, além de muito, muito mais.
Kat tomou ambas as mãos de Aquiles nas dela e o fitou bem no fundo dos olhos azuis.
- Eu não apenas aceito a sua devoção, a sua proteção e o seu amor, como também quero mais.
- Diga. Se estiver ao meu alcance, eu o farei.
- Quero que fique fora dessa guerra até termos a certeza de que consegue controlar a Fúria. E, mais do que isso, quero que fique bem longe de Heitor.
- A profecia diz que estou destinado a morrer depois que eu o matar.
Kat apertou as mãos dele com força.
- Então não o mate! Por que isso seria assim, tão difícil?
- Neste momento, não consigo imaginar o que poderia me levar a lutar com Heitor. - Aquiles soltou uma risada seca. - Não guardo nenhum rancor contra ele. Sei que
Heitor é um homem honrado, muito amado por sua família e pelos Troianos, e não costumo derrubar homens honrados, no auge de suas vidas, quando eles não me fizeram
nada.
- Que bom. Se é assim, está resolvido. Ficaremos juntos aqui, e eu irei ensiná-lo a desenvolver habilidades de auto-hipnose.
Aquiles lançou-lhe um olhar horrorizado.
- Não posso enfeitiçar a mim mesmo!
- Aquiles, quantas vezes tenho que explicar que não se trata de um feitiço? Não é nada mais do que respiração, concentração e relaxamento.
- Acredita mesmo que eu possa aprender a controlar a Fúria?
- Não sei se pode controlá-la - Kat contrapôs, honesta. - O que eu acredito é que posso ensiná-lo a impedir que ela o domine antes que seja necessário você controlá-la.
Aquiles se levantou e começou a andar de um lado para o outro, perto da cama.
- Se a Fúria não voltar a me possuir... - Suas palavras sumiram.
- ... Sua vida não vai girar mais em torno das guerras - Kat terminou por ele. - E seu destino será outro. É isso o que quer? - Ela sentiu o peito se apertar enquanto
aguardava pela resposta.
Aquiles parou e olhou para ela.
- Eu poderia voltar para o meu país, me casar, criar meus filhos, conhecer o amor e a paz, e deixar a guerra, a morte e o ódio para trás.
- Sim, poderia - Kat afirmou.
- Parece um sonho. O tipo de sonho que tive por duas noites seguidas com você.
- Não foram sonhos. Aquilo tudo era real.
- Se é assim, talvez o futuro que eu julgava impossível pode ser real também. Sim. É o que eu quero - ele falou com firmeza.
- Então vamos torná-lo real.
Aquiles voltou para o lado dela, na cama.
- Diz isso com tanta convicção... Como se pudesse mesmo se tornar realidade; como se o meu destino pudesse ser mudado. Quando olha para mim desse modo e fala dessa
maneira, eu quase acredito.
- Pois pode acreditar. E, mais importante do que isso, Aquiles: acredite em si mesmo - pediu Kat.
Ele se inclinou e a beijou suavemente nos lábios. Kat sentiu sua hesitação e soube que Aquiles temia cruzar a linha da intimidade entre eles, o que ela compreendia.
Não precisavam de outro ataque da Fúria, muito menos quando a fé de Aquiles em si mesmo, e em sua capacidade de lutar contra a besta, ainda se encontrava tão frágil.
Por sorte, nesse momento, o estômago dela resolveu soltar um enorme ronco, e Kat riu.
- Estou morrendo de fome!
- Outra vez - ele observou com seu leve sorriso. - Vou pedir que as servas...
- Ah, não! - ela interrompeu, já jogando as pernas para fora da beirada da cama. - Preciso me levantar, andar, tomar um banho!... - Aquiles fez menção de argumentar,
contudo Kat estendeu a mão para ele. - Poderia me ajudar nessas três coisas?
- Tudo o que estiver ao meu alcance - ele reafirmou, segurando sua mão e passando-a pelo braço.
Kat sorriu, sentindo-se surpreendentemente bem para uma mulher que fora envenenada, quase comida viva, e que ficara em coma por quatro dias.
No momento em que chegou ao banco do lado de fora da tenda, tinha as pernas bem mais firmes. Mesmo assim, sentou-se e deixou que Aquiles lhe providenciasse comida
e bebida.
Jacky se encontrava perto da fogueira com Pátroclo (o qual, aliás, parecia mais do que apaixonado), e ambos correram até ela.
- Como está se sentindo? Não está com tonturas, falta de ar, visão turva? Ainda sente alguma coisa paralisada ou formigando?
- Estou bem! Não, não, não e não. Quer fazer o favor de relaxar? Estou ót...
Antes que pudesse terminar a frase, contudo, Aetnia correu até ela e se atirou a seus pés, segurando seus tornozelos e chorando.
- Oh, minha senhora! Mil perdões! Por favor, desculpe! Eu não tinha ideia de que a estava colocando em perigo!
Kat trocou um olhar chocado com Jacky enquanto tentava se desvencilhar do abraço ardente e molhado da serva.
- Aetnia, não foi sua culpa. Estava apenas tentando me ajudar a encontrar Aquiles. Não podia adivinhar que eu ia deparar com aquelas criaturas do mar.
- Não! A culpa foi minha. Eu não devia tê-la escutado. Eu sinto tanto, princesa!... - A moça soluçou, desesperada.
Aquiles a segurou pelo braço e a fez ficar de pé.
- Não devia ter escutado a quem?
Aetnia gritou e se encolheu toda, estendendo a mão para Kat numa súplica.
- Princesa! Não deixe que ele me mate!
- Não seja boba, Aetnia! Aquiles não vai matá-la. - Ignorando o olhar sombrio do guerreiro, Kat o cutucou no braço, obrigando-o a soltar a moça. Pegou Aetnia pela
mão, então, e a fez sentar-se no banco, entre ela e uma carrancuda Jacky.
- Eu não afirmaria isso com tanta convicção, até descobrir o que ela teve a ver com esse ataque contra você - sugeriu Jacky.
Aetnia soltou um chiado, tal qual um camundongo, e chegou mais perto de Kat.
- Não deixe que a bruxa me enfeitice, princesa!
Jacky sibilou para ela e Aetnia gritou, ao mesmo tempo que Kat pensou ter ouvido Aquiles rosnar.
- Está bem! Agora chega! Tratem de se acalmar! - Kat segurou Aetnia pelo ombro, impedindo-a de praticamente subir em seu colo, e apontou para Jacky. - Ela não é
bruxa. - Fez um gesto na direção de Aquiles. - E ele não é nenhum monstro. Agora, respire fundo três vezes e explique, devagar e sem chorar feito uma histérica,
do que estava falando. Respire comigo, vamos. - Embora tivesse vontade de sacudir a mulher, Kat a fez respirar três vezes. - Está bem agora. Fale comigo. - Quando
os olhos da serva se desviaram, nervosos, para Aquiles e Jacky, ela a sacudiu pelos ombros. - Fale comigo, Aetnia!
O olhar da moça se voltou para ela.
- F-Foi... foi quando eu fui até o acampamento grego buscar seu chá.
Kat acenou com um gesto de cabeça, incentivando-a.
- Sim, eu me lembro. Foi muita gentileza sua conseguir o chá para mim. - Ela também se lembrou de que, pouco depois, Aetnia a enviara para aquela praia distante,
onde ela devia ter encontrado Aquiles, contudo manteve a expressão e a voz neutras. - O que aconteceu quando estava no acampamento grego?
- Eu vi Briseida. Ela estava conversando com um grupo de noivas de guerra no acampamento de Acalle. Ela... ela estava falando sobre você e... - Aetnia hesitou, olhando,
apavorada, para Jacky, que torcia os lábios.
- Briseida estava falando sobre Melia e eu - concluiu Kat, apertando os ombros da moça e obrigando-a a desviar a atenção de Jacky. - O que ela estava dizendo?
- E por que isso tem algo a ver com a princesa ter sido atacada? - Aquiles acrescentou, em uma voz que, obviamente, tentava manter razoável.
Kat sentiu Aetnia começar a tremer sob suas mãos.
- Basta falar para mim e tudo vai ficar bem - incentivou em voz baixa. - O que Briseida disse?
- Ela chamou Melia de bruxa. Disse que ela enfeitiçou Pátroclo e que podia até mesmo estar lhe ensinando feitiços.
Kat ouviu Pátroclo soltar uma risada seca, e Jacky teve um pequeno acesso de tosse.
- Isso foi tudo o que Briseida falou?
- Não. Ela ouviu quando pedi um pouco do chá especial de Acalle para a senhora, e afirmou que, se eu quisesse salvá-la do mal de Melia, deveria mandá-la para aquela
praia. Dessa forma, a mãe de Aquiles - Tétis, a deusa do mar - poderia contemplá-la com alguma imunidade contra bruxaria. Por isso eu disse a senhora que Aquiles
estava lá. Pensei que a estivesse ajudando! Por favor, acredite em mim! - suplicou Aetnia antes de se pôr a soluçar mais uma vez.
- Essa vadia lhe preparou uma armadilha! - exclamou Jacky, depois lançou um olhar de desprezo na direção de Aetnia. - Eu não quis dizer esta. Estou falando de Briseida.
- Então voltou a atenção para Pátroclo, que continuava ao lado de Aquiles, e ergueu as sobrancelhas. - Sabia que eu o tinha enfeitiçado, meu anjo?
Pátroclo sorriu.
- Claro que sabia, minha linda.
Jacky jogou-lhe uma série de beijinhos.
Kat os ignorou, concentrando-se em Aquiles, cuja expressão se tornara uma máscara ilegível.
- Nossa. Essa Briseida deve mesmo ser maluca por você. Quer me tirar do caminho a todo custo.
- Bobagem. Ela não me quer coisa nenhuma. Sente o mesmo que todas as outras em relação a mim - ele afirmou, a expressão suavizando por um instante. - Todas menos
você, princesa.
- E por acaso pode ter certeza disso, Aquiles? - interveio Jacky. - Não me leve a mal, mas não me parece um especialista a respeito do que as mulheres querem.
- Não seja maldosa! - ralhou Kat.
- Não estou sendo maldosa! Estou dizendo a verdade! Briseida pode ter sido apaixonada por Aquiles, e ele pode nem ter se dado conta disso! Não disse que ela a fulminou
com o olhar na tenda de Agamenon?
- Verdade - concordou Kat.
- Não é Briseida o problema. É Agamenon - afirmou Aquiles.
- Ahn? - Kat e Jacky indagaram em uníssono.
- Vá, Aetnia. Volte para a fogueira e prepare uma refeição para a princesa - Aquiles ordenou antes de continuar. A moça pulou do banco e saiu correndo, aos tropeços,
em direção ao fogo. - Briseida não a enviou para aquela praia e para o que ela acreditava que seria a sua morte porque me quer. Ela não tem poderes para invocar
criaturas do mar que realizem seus desejos.
- Mas Agamenon tem. Ele já fez isso antes - afirmou Pátroclo.
Aquiles concordou com um gesto de cabeça.
- Briseida foi apenas a porta-voz de Agamenon. Uma ferramenta que ele usou para colocar a princesa em uma posição vulnerável.
- Mas por quê? O que ele tem contra mim?
- Não é contra você. É contra mim - corrigiu Aquiles. - O rei e eu somos inimigos de longa data.
- É mais do que isso - opinou Pátroclo. - Agamenon está tentando obrigá-lo a voltar para a guerra.
- E por que ele acha que me matando faria Aquiles voltar a lutar? - inquiriu Kat.
- Não ouviu? Aquiles e eu fomos enfeitiçados por vocês duas. - O sorriso de Pátroclo foi tão jovial e atraente como de costume, porém Kat ficou surpresa com as olheiras
que notou sob seus olhos expressivos. Pátroclo também tinha perdido peso? Suas maçãs do rosto pareciam mais salientes.
- Então bastaria que vocês dois se vissem livres das bruxas, aqui, e voltariam correndo para a batalha - concluiu Jacky.
- Porque, de acordo com o raciocínio de Agamenon, vocês não têm nada mais importante na vida do que essa guerra - Kat completou, encontrando o olhar azul de Aquiles.
- A guerra é tudo o que tenho para viver na opinião da maioria das pessoas - ele murmurou.
- Eu não faço parte da maioria das pessoas - argumentou Kat.
Os lábios benfeitos do guerreiro se ergueram nos cantos.
- Algo pelo que estou me tornando profundamente grato.
Capítulo Vinte e Um
- O problema é que os homens de Agamenon estão sendo mortos - Pátroclo falou de súbito. - Gregos estão sendo mortos.
Aquiles voltou-se para o primo.
- Agamenon sabia do custo que haveria para o povo grego quando deixou nossas costas para atacar Troia sob o pretexto de estar raptando uma mulher infiel. Muitos
homens foram mortos durante os últimos nove anos.
- Era uma luta equilibrada enquanto ainda estávamos nela.
- Primo, não o estou impedindo de voltar aos campos de batalha. Você, assim como qualquer um dos meus homens, é livre para lutar contra os Gregos.
- Não! - Jacky exclamou, levantando-se e agarrando a mão de Pátroclo. - Não pode lutar sem seu primo, e Aquiles tem excelentes razões para não fazer isso. Agamenon,
esse sujeito que se diz um grande rei e líder, não passa de um mentiroso e um trapaceiro! Ele acabou de tentar matar a princesa para tirá-la do caminho. É como uma
prostituta velha e ardilosa! Não deixe que ele o influencie!
Kat observou Pátroclo acariciando o rosto de Jacky e ficou tocada diante da óbvia adoração nos olhos do jovem guerreiro, que sorriu para a sua melhor amiga.
- Não se preocupe, minha linda. Não pretendo lutar sem meu primo.
- Parece que Agamenon não o conhece muito bem se pensa que o caminho para tê-lo de volta é atacar alguém com quem você se importa - raciocinou Kat.
- Agamenon é um parvo - declarou Aquiles. - Sei reconhecer um tolo porque fui um quase a vida toda. O rei luta pela glória, pois acha que sua imortalidade será assegurada
pela espada, quando a verdadeira imortalidade só pode ser encontrada em nossos filhos e filhas. - Balançou a cabeça, parecendo várias décadas mais velho do que seus
vinte e nove anos, depois sorriu com tristeza para Pátroclo. - Melhor se lembrar disso, primo.
- Nós vamos nos lembrar - afirmou Pátroclo, pondo-se ao lado de Jacky para descansar a mão em seu ombro.
Kat esperava que Jacky fosse empalidecer e fazer algum comentário do tipo "ninguém aqui vai ter filhos", mas, em vez disso, ela sorriu para Pátroclo, parecendo a
mais feliz das criaturas.
- Então decidiu que não vai mais lutar, Aquiles - concluiu Kat. - Mesmo que Agamenon tenha mandado me atacar e que eu quase tenha morrido.
Aquiles tinha começado a relaxar, e seu imediato e férreo autocontrole ficou bastante evidente.
- Gostaria que eu me vingasse em seu nome?
- Não! Claro que não. Eu só queria saber se era essa a sua intenção.
- Minha intenção não se modificou.
- Ainda quer mudar seu destino? - ela quis saber.
- S-Seu jantar, senhora. - Aetnia, sem dúvida escutando o último comentário de Kat, quase derrubou a tigela com o ensopado que havia trazido.
- Deixe a comida e traga vinho para todos - Aquiles comandou com um grunhido.
Servil, Aetnia correu para atender ao pedido.
- Precisa parar de assustá-la assim! - ralhou Kat.
- Pois eu gostei. Assuste mesmo, Aquiles! - incitou Jacky.
- Por fora você é como uma espada, minha linda: afiada, forte e mortal. Mas, por dentro, é como um pêssego suculento, sempre pronta para o meu prazer... - elaborou
Pátroclo.
Kat ergueu as sobrancelhas quando, em vez de crucificá-lo pelo comentário piegas, Jacky riu, deliciada.
- Diz coisas tão lindas, meu anjo! - falou, inclinando a cabeça para trás a fim de receber um beijo.
Kat comeu o ensopado em silêncio enquanto Aetnia corria ao redor, na companhia de outra serva tão tímida quanto ela, distribuindo cálices para todos e enchendo-os
com vinho tinto. Suspirou, pensativa. Estava começando a se sentir bem melhor. A fraqueza parecia ter diminuído, assim como aquela sede insaciável e a sensação de
não pertencer àquele mundo, o que era no mínimo irônico. Claro que não pertencia àquele mundo. E nem Jacky. Mas ali estavam as duas, sentindo-se inegavelmente atraídas
por aqueles dois homens - os quais pareciam agora entranhados em seus destinos.
- Está se sentindo bem mesmo? - A pergunta contundente de Jacky, ainda que feita em voz baixa, a arrancou de sua introspecção.
- Estou meio confusa - admitiu. Aquiles e Pátroclo haviam se afastado em direção à fogueira a fim de apanhar uma bandeja de pão, azeitonas e queijo, e, por insistência
de Jacky, outro jarro de vinho tinto - sem chamar Aetnia para servi-los -, o que deixara as duas a sós por alguns momentos.
- Confusa sobre o quê? - Jacky perguntou.
Kat encontrou o olhar da amiga.
- Eu contei a Aquiles quem nós somos.
- E é isso o que a está incomodando? Eu já contei tudo a Pátroclo faz tempo!
- Você o quê?!
- Escute, eu fui obrigada a fazer o diabo por aqui quando o seu namoradinho a trouxe de volta para o acampamento semimorta. Eles queriam sangrá-la e esfregar mijo
de touro, ranho de porco e sabe-se lá mais o que no seu corpo. Como sou sua amiga, mandei todo o mundo se ferrar.
- E isso não acabou bem, claro.
- Não. Não até que expliquei a Pátroclo exatamente quem éramos e por que entendo mais sobre o tratamento de doentes e feridos do que esses charlatães ridículos e
assassinos do exército grego.
- E como ele reagiu?
Jacky sorriu.
- Com o mínimo de piração. Mas eu tive que prometer que iria fazer o desenho de um carro para ele.
- Um carro?
Jacky encolheu os ombros.
- Sabe como são os rapazes. Eu estava contando como eram as coisas no mundo moderno, uma coisa levou à outra e... puf! Agora ele quer um carro.
- Faria sentido se estivéssemos no meio do Além da Imaginação - ironizou Kat. - Você o ama mesmo, não?
- Infelizmente, acho que sim. E você ama Aquiles, certo?
- É provável.
- Ou seja, estamos fodidas - concluiu Jacky.
- Estamos - ela concordou.
- Pátroclo está ficando entediado longe da luta - revelou Jacky, os olhos se voltando na direção da fogueira, à procura do amante. - Eu até queria que os Gregos
perdessem essa guerra logo, mas as coisas estão muito diferentes agora. Não sei mais o que quero, e muito menos o que fazer.
- Sei bem o que está querendo dizer. Antes eles iam perder e nós seríamos transportadas de volta para a casa. Mas agora eu... - ela hesitou, confusa.
- Agora não tenho certeza se quero voltar - Jacky terminou por ela.
- Exatamente.
Ulisses sentiu-se velho. Seu ombro doía o tempo todo. Naquele dia, tinha sido ferido durante a batalha quando liderava uma leva de soldados contra as malditas muralhas
de Troia e acabara se colocando ao alcance de um arqueiro.
Havia tido sorte. A flecha lhe passara apenas de raspão pelo lado de fora da coxa e não chegara a entrar em seu corpo. Ainda assim, o ferimento era um doloroso incômodo,
o que o fez sentar-se, desanimado, em um velho tronco retorcido.
Distraído, apertou a faixa de linho ensanguentada que passara em torno da ferida na perna. Ao menos tinha aquele trecho de praia apenas para si.
Olhou para o mar embebido pela lua e levou o odre aos lábios.
- Parece cansado.
Ulisses fechou os olhos e deixou a voz macia acariciá-lo. Quando os abriu, a deusa se materializara à sua frente. Usava vestes claras, da cor da asa de uma pomba,
as quais combinavam perfeitamente com seus olhos incomuns. Não trouxera o capacete de guerra nem o escudo, tampouco carregava qualquer outro símbolo de seu poder.
Parecia uma virgem na flor da beleza e juventude.
Inclinou a cabeça.
- Sua presença me rejuvenesce, grande deusa.
Atena dispensou o elogio.
- Não tem dormido bem? Eu já disse que... - Deixou escapar uma exclamação ao perceber a faixa cheia de sangue em sua coxa. Então, como era típico da Deusa da Guerra,
tornou a assumir uma expressão severa. - Por que não me contou que tinha sido ferido?
- Uma flecha me pegou de raspão. Não foi nada - Ulisses afirmou.
- Sou sua deusa. Sou eu quem decido se é ou não é alguma coisa. - Ela avançou um passo e se ajoelhou a seu lado. - Deixe-me ver isto.
- Atena, não... Não devia... - Ulisses começou, segurando o cotovelo de Atena na tentativa de colocá-la de pé.
Ela o pressionou no peito com a mão.
- É o meu desejo ver o quanto meu guerreiro está ferido.
O toque fez o peito de Ulisses se apertar. Com um suspiro, ele soltou o braço delicado e relaxou, esticando a perna para que ela pudesse examinar a ferida. Quando
começou a tirar a bandagem ensanguentada, os dedos suaves da deusa o detiveram.
- Eu faço isso. Basta ficar quieto.
Ulisses permaneceu no lugar, imóvel, aspirando o perfume único de Atena. Ela estava tão perto que, quando se curvou sobre sua perna, o cabelo comprido e dourado
lhe roçou o corpo, deixando-o excitado, ofegante... e preocupado que ela se apercebesse disso. Será que Atena fazia ideia de quanto ele a amava?
Era claro que sim. Ela era sua deusa. Sabia de tudo.
- Isto pode estar infeccionando. Por que não limpou e enfaixou esta ferida como devia? - Atena o encarou com um leve vinco na testa lisa.
Ulisses começou a elaborar uma história sobre estar ocupado demais para isso, porém as palavras que saíram de sua boca foram muito diferentes das que sua mente planejara.
Na verdade, elas partiram de seu coração.
- Eu estava cansado demais para me preocupar com isso, deusa. No fundo, até queria que esse ferimento apodrecesse e me levasse. Então, ao menos, eu poderia descansar.
Os olhos cinzentos se estreitaram de um modo que qualquer pessoa enxergaria como raiva. Mas Ulisses conhecia todas as expressões de Atena, e o que viu foi o choque
que suas palavras causaram.
- Não vai morrer. Eu o proíbo! - A deusa colocou a mão na ferida com cuidado. Fechou os olhos, reunindo seus poderes. Em seguida, sussurrou:
Escuta, carne, da tua deusa o intento.
Ao meu comando, une sangue e pele neste momento!
A mão de Atena começou a brilhar, e Ulisses prendeu a respiração ao sentir seu poder brotar dentro dele. Era como um fogo ardente aquecendo seu sangue, e ele pôde
perceber a carne atendendo ao desejo sussurrado da deusa e curando a si própria.
Quando Atena tirou a mão dele e abriu os olhos, não havia mais nada em sua perna, a não ser uma leve cicatriz rosada.
- Veja só isto! - exclamou, maravilhado, sorrindo para os olhos cinzentos. - Eu disse que a sua presença sempre me rejuvenescia!
Atena abriu um de seus raros sorrisos.
- Homem teimoso. Será que nunca se cansa de me bajular?
- Assim o farei enquanto for seu, minha deusa.
- Então eu ficarei eternamente lisonjeada, pois sempre pertencerá a mim, Ulisses. Devagar, como se lutando contra si mesma, Atena pressionou a mão na coxa firme
de novo, porém, desta vez, seu toque não foi com intenção de cura. Ainda ajoelhada ao lado dele, ela o acariciou na pele. - Quanto tempo faz desde que apareci para
você pela primeira vez?
Ulisses não hesitou.
- Pouco mais de vinte e dois anos, deusa. Apareceu pela primeira vez para mim antes mesmo que eu tivesse barba.
- Era um menino encantador, que já demostrava sua inteligência e sabedoria, e que tinha um rosto muito lindo e doce. - A expressão sóbria da deusa suavizou-se com
um sorriso.
Ulisses pensou que seu coração fosse explodir no peito diante de tanta beleza. Nervoso, ergueu a mão para esfregar o restolho, torcendo para que ela não notasse
o quanto esta tremia.
- Ao contrário de agora, minha diva. Não existe mais aquele rosto macio de menino - afirmou, esperando que ela fosse concordar com ele, rir e reassumir a máscara
divina que ocultava seus sentimentos mais profundos, impedindo-a de demonstrar raiva ou paixão.
Em vez disso, Atena ergueu a mão para acariciá-lo na face, pegando-o desprevenido.
- Eu ainda vejo o menino - disse em uma voz tão baixa que ele teve de se esforçar para ouvi-la acima do coração que batia, ensurdecedor, em seu peito.
Olhou para sua mulher - sua deusa -, a quem ele amava desde que era um garoto inexperiente. Ela já aparecera para ele muitas vezes. Escolhera-o como seu guerreiro,
como o mortal a quem conceder mais bênçãos do que a todos os outros. Mas raramente o tocava, e nunca chegara perto de satisfazer o desejo secreto que ele nutria
por ela.
- O que foi, Atena? O que aconteceu?
A diva tirou a mão de seu rosto e se levantou, dando-lhe as costas.
- Por que haveria algo errado? Não posso tocá-lo apenas porque desejo isso?
Ele se levantou também, e se aproximou dela.
- É claro que pode me tocar. E por qualquer motivo que desejar! - Ulisses levantou a mão num impulso, querendo tomá-la nos braços, porém se conteve. Atena não era
mortal. Ele jamais deveria se esquecer disso.
- Sabia que até mesmo Aquiles encontrou o amor? - ela comentou, ainda de costas para ele.
- Ele a ama, não é mesmo?... Eu bem que me perguntei se ele iria se permitir isso.
- Não me parece surpreso. - Atena virou-se para encará-lo.
Ulisses sorriu e deu de ombros.
- Pelo visto, raramente o amor é previsível.
- Ama Penélope?
À menção do nome de sua esposa, o sorriso de Ulisses oscilou.
- Ela é minha mulher e mãe do meu filho. Eu a respeito e honro como tal.
Atena o tocou no rosto outra vez.
- Mas você a ama?
Quase sem ter consciência disso, Ulisses pressionou a face contra os dedos delicados.
- Ao meu modo.
- E o que isso quer dizer?
- Quer dizer que entreguei meu coração a outra há pouco mais de vinte e dois anos. Desde então, tenho tido muito pouco a doar a qualquer outra pessoa.
- Ah, meu Ulisses!... - Atena sussurrou.
Antes que ele pudesse mudar de ideia, Ulisses se inclinou e pressionou os lábios contra os dela. Quando suas bocas se encontraram, um choque de desejo cortou seu
corpo com tal intensidade que a dor se mesclou ao prazer. Ao senti-lo também, Atena deixou escapar uma exclamação e passou os braços em volta do pescoço forte, puxando-o
para ela e abrindo a boca a fim de aprofundar o beijo.
Ficaram ali durante muito tempo, as línguas se explorando, os corpos pressionados. De repente, Atena interrompeu o beijo, respirando com dificuldade. Tinha os lábios
perfeitos agora inchados e as faces cor-de-rosa graças à aspereza da barba de Ulisses. Olhou para ele, os olhos cinzentos enormes e repletos de diferentes emoções.
Entontecido, o guerreiro orou em silêncio para que aquele desejo e aceitação permanecessem entre eles.
- Vênus estava certa - Atena murmurou. - Devíamos ter nos tornado amantes anos atrás. -Sem sair dos braços fortes, a deusa fez um gesto na direção da praia ao redor
deles, e uma manta de cetim se materializou na areia. Deliberadamente, ela se afastou dele e, em seguida, abriu o broche ornamentado que segurava suas vestes acima
do ombro.
A seda prateada deslizou por seu corpo e se amontou a seus pés, fazendo Ulisses se lembrar mais uma vez das asas delicadas de uma pomba. Atena deu um passo para
fora do monte de tecido e deitou-se com graça, a pele macia luminosa e perfeita ao luar conforme se reclinava no cetim. Depois estendeu a mão para ele.
- Venha e dê-me a prova do amor que diz ter sentido por mim nestes tantos anos, meu Ulisses - falou num sussurro.
Ele deitou-se a seu lado, e se perdeu no corpo de sua amada. Sabia que ela jamais seria totalmente sua. Sabia que aquela poderia ser a única vez em que desfrutaria
seu toque mais íntimo, contudo entregou o corpo à deusa sem hesitação e com total abandono, assim como já tinha lhe entregado o coração havia tantos anos.
Aquilo teria de ser o suficiente, pensou mais tarde, enquanto ainda a segurava nos braços e suas lágrimas se mesclavam. De alguma forma, teria de ser o bastante.
Capítulo Vinte e Dois
- Eu estava errada - exclamou Vênus, irrompendo pelos aposentos particulares de Hera.
- Estava? Acredito que a palavra correta seja "estou", como em "Estou errada em perturbá-la em seus aposentos, minha rainha".
- Eu sei, eu sei. Eu não a teria incomodado se não acreditasse que se trata de uma emergência - explicou a deusa, fazendo surgir no ar um cálice de ambrosia.
- O que aconteceu? Não me diga que a pequena mortal no corpo de Polixena quase conseguiu ser morta novamente. Pelas barbas de Zeus! Essa Guerra de Troia fica mais
irritante a cada dia.
- Não, está tudo bem com Kat. É Atena.
Hera encontrava-se deitada em uma chaise longue dourada, com estofamento em veludo, mordiscando uvas mergulhadas em ambrosia e em açúcar, mas, diante da declaração
de Vênus, sentou-se, preocupada.
- O que foi? O que aconteceu com Atena?
- Ela fez sexo com Ulisses.
Hera piscou uma vez, duas, então balançou a cabeça como se tentando clarear as ideias.
- Creio que não ouvi muito bem. Pensei ter ouvido que Atena fez sexo com Ulisses.
- Foi exatamente o que eu disse. - Vênus sentou-se na chaise ao lado de Hera e fez surgir um cálice de ambrosia também para sua rainha. - Eu estava tomando conta
do acampamento grego. Afinal, não podemos correr o risco de ter outro atentado contra a vida de Kat.
- Claro, claro, precisa ser diligente. O que foi que viu?
- Sexo. Entre Ulisses e Atena. Na praia. - A deusa falou aos poucos, em meio a vários goles de ambrosia. - Atena fez surgir uma manta de cetim para eles!... Foi
muito romântico, apesar de escorregadio.
- Assistiu a tudo, mesmo sabendo quem eles eram?
- Claro que não! - Vênus bebeu o vinho, sem fitar Hera nos olhos. - Embora eu possa afirmar que, pelo pouco que vi, Ulisses parecia bem entusiasmado.
- Que bom para Atena. Ela tem estado séria demais há muito tempo. - Hera ergueu uma sobrancelha fina para Vênus. - Era sobre isso que estava errada? Fico surpresa.
Quantas vezes a ouvi dizendo a Atena que ela precisava ter mais orgasmos, que precisava se soltar, que precisava disso, daquilo... Agora que ela conseguiu um pouco
de tudo, acha que é um problema? Não está fazendo muito sentido, Deusa do Amor.
- Eu queria que ela fizesse tudo isso com Ulisses antes que houvéssemos decidido entrar na Guerra de Troia do lado dos Troianos. Depois do que aconteceu na praia
esta noite, acha que Atena vai permitir que Ulisses e seus homens sejam abatidos?
- Ah, não vai mesmo.
- É justamente esse o problema. Tiramos Aquiles do caminho e criamos situações para levar a guerra ao fim. Agora vem a própria Deusa da Guerra, grudada no traseiro
firme de Ulisses! Mesmo que ela apenas manipule as coisas, sem entrar no combate, vai mais do que compensar a ausência de Aquiles!
- Talvez deva ter uma conversa com a sua mortal. Se enviarmos Aquiles de volta para a frente de batalha com a ajuda de Atena, imagino que essa guerra teria fim em
um instante. E era isso o que nós queríamos - Hera lembrou, soltando um pesado suspiro. - Ainda que a perspectiva de ver aquele miserável do Agamenon saindo vitorioso
me exaspere.
- Talvez eu possa... - começou Vênus.
- Possa o quê?
- Também andei observando Aquiles e Katrina. Eles estão completamente apaixonados - afirmou Vênus.
- E isso é importante para mim porque...?
- Porque se Kat o ama, não vai permitir que ele vá direto para a morte. Não se lembra daquela pequena profecia sobre a qual Aquiles é morto diante das muralhas de
Troia depois de matar Heitor?
- Sua mortal moderna é apenas uma peça neste jogo. Não vou permitir que ela fique no caminho - decidiu Hera.
- Hera, você já lidou com os mortais modernos, e sei que vai a Tulsa visitar seu filho de vez em quando. Não quero ofendê-la, mas, mesmo após toda essa sua interação
com os mortais modernos, parece que não consegue compreendê-los. Eles não nos veneram ou temem como os antigos.
- Pois deveriam! - Hera explodiu. Depois respirou fundo e se controlou. - Sabe que eu não gosto de ser cruel, então vamos esperar mais um pouco e ver o que acontece.
Mas se Atena pender para o lado da Grécia, não teremos escolha a não ser ajudar o Exército a vencer com os nossos poderes. Não vou me arriscar a criar inimizades
com a Deusa da Guerra.
- Dizem que o Amor é mais forte do que a Guerra - lembrou Vênus com uma severidade incomum na voz.
Hera tocou o braço da diva.
- Eu não quis dizer que Atena é mais importante para mim do que você. Mas por acaso o Amor iria querer causar um conflito entre os deuses por conta de uma mortal
moderna?
- Não é disso que estou sendo acusada no mundo antigo? De uma luta que supostamente causei entre Gregos e Troianos por conta de uma mortal?
- Sim, e como se sente a respeito? - Hera perguntou, astuta.
- Tenho horror em pensar que essa guerra seja atribuída a mim - confessou Vênus.
- Se é assim, imagino que não iria gostar se algo semelhante acontecesse no Monte Olimpo.
- Não, não gostaria. - Vênus suspirou. - É melhor esperarmos para ver o que acontece.
- E se Atena ajudar Ulisses?
- Para isso, Aquiles teria de entrar na batalha outra vez - lembrou Vênus.
- Muito bem. Então estamos decididas - resolveu Hera.
- Infelizmente.
Vênus tomou um gole de ambrosia, pensando em como Aquiles ficara perturbado nos quatro dias em que Kat permanecera inconsciente.
Bem, ao menos ele havia conhecido o amor, por mais breve que isso tivesse sido.
- Aquiles, tudo o que eu disse foi que queria um banho de imersão com perfume de rosas, e não mais desses de tigela. Está me levando para fora do acampamento por
causa disso? - Kat perguntou, fazendo piada.
- Eu não disse que lhe daria qualquer coisa que você desejasse se isso estivesse ao meu alcance? - Ele a tocou no braço que ela apoiava no dele.
Kat sorriu. Aquiles vinha fazendo aquilo com mais frequência: tocá-la com breves e suaves carícias. Não se estendia no toque, contudo; tampouco a beijava. Era como
se estivesse tentando se acostumar com ela aos poucos, vencendo pequenas etapas que não despertassem a Fúria.
Sentiu seu olhar e ergueu o dela, vendo que ele a observava, atento.
- Diga-me se estamos indo longe demais. Não quero que se canse.
Eles tinham caminhado pela praia, para longe do acampamento, por algum tempo, depois haviam rumado mais para o interior, seguindo um caminho de cabras. Não fora
uma caminhada muito breve, porém esta não chegara a ser exaustiva.
- Como eu disse a Jacky, parece que dormi por décadas. Estou ótima - Kat declarou com firmeza.
Não que ela não tivesse ficado assustada com o quanto a conversa e a refeição da noite anterior a deixaram esgotada. Planejara outra pequena sessão de hipnose com
Aquiles, mas apagara no momento em que colocara a cabeça no travesseiro. E, pior, dormira até o início da tarde.
Estava se sentindo bem no momento, mas aquilo tudo a deixara assustada. Já havia morrido uma vez. Qual era o limite? E se também perdesse aquele corpo? Vênus iria
salvá-la? E, se a deusa o fizesse, que tipo de corpo poderia obter? Já se apegara àquele, e não queria nem pensar no que poderia acontecer se...
- Está preocupada com alguma coisa? - Aquiles interrompeu seu debate mental.
- Eu estava pensando sobre mortalidade.
- Está aí um assunto em que tenho pensado muito pouco - observou ele.
- Verdade? Pensei que, depois de ter escolhido morrer moço, vivia contando os anos e pensando nisso o tempo todo.
Aquiles soltou uma risada autodepreciativa.
- Quando eu era moço, raramente usava a cabeça. E se usava era apenas para pensar na batalha seguinte ou em uma nova oportunidade para obter a glória.
- Ei, não é nenhum velho, com vinte e nove anos! Ainda é muito moço.
- Não sou moço há mais de uma década.
Kat o fitou, sabendo que as cicatrizes profundas que haviam marcado seu rosto tão cedo também tinham se instalado em sua alma.
- Talvez parte disso possa ser revertida - afirmou.
Ao notar a direção de seu olhar, Aquiles curvou os lábios.
- Sua amiga é uma excelente curandeira, mas nem mesmo ela pode reverter este tipo de coisa. - Aquiles apontou para as próprias cicatrizes.
Kat sorriu.
- Isso foi uma piada? E pensar que o céu não desabou, e você nem mesmo foi atingido por um raio!
- É a sua má influência sobre mim.
- Não vai dizer que eu o enfeiticei também? Lembre-se, Jacky é uma bruxa, eu sou uma bruxa... Há bruxas para todos os lados.
- Tem razão. Você me enfeitiçou. - Ele a surpreendeu, puxando-a para si e abraçando-a com força. - E aqui estamos nós. Segurou-a pelos ombros e a fez se virar.
- Aquiles! É lindo! - Kat exclamou diante do oásis. Salgueiros rodeavam uma bacia formada por calcário cor de manteiga. Um córrego desaguava na piscina natural,
alimentando-a com água; em seguida, escorria, borbulhante, para o outro lado. O lugar era pequeno, porém do tamanho ideal para quem quisesse tomar um banho com conforto.
Diante do oásis havia um pequeno templo que lembrava um gazebo, só que feito de mármore com colunas graciosas e um teto abobadado. No meio do templo, uma manta fora
estendida e uma cesta fora colocada sobre ela.
- O que é tudo isso? - Kat perguntou, caminhando ao redor da piscina até o templo.
- É um santuário dedicado a Vênus. Eu o descobri anos atrás. Foi abandonado por causa da guerra. Já vim aqui muitas vezes para pensar. Para fugir um pouco.
Kat olhou para ele, surpresa, e notou que Aquiles parecia envergonhado.
- Não há nada de errado nisso. Todo mundo precisa ficar um pouco sozinho.
- Sim, mas Aquiles, o terror das donzelas e a Fúria no campo de batalha, não é qualquer pessoa. Se meus homens soubessem que encontrei consolo em um santuário dedicado
à Deusa do Amor... - Ele riu, sem graça, e balançou a cabeça - ... provavelmente iriam acreditar que enlouqueci de vez.
- Mas eles parecem ter se acostumado a me ver na sua companhia. Não é verdade?
Aquiles deu de ombros.
- Neste momento eles estão preocupados demais até mesmo para ficar chocados por estar aquecendo a minha cama.
- Eles querem lutar - concluiu Kat com um aperto no estômago.
- Querem.
- E o que você quer?
- Já me conhece o bastante. Sabe que não desejo nada além de voltar para Phthia e encontrar a paz... - Aquiles fez uma pausa, encontrando seus olhos antes de completar:
- ... e o amor.
- Já encontrou o amor - Kat afirmou baixinho.
Aquiles cobriu a distância que os separava, juntando-se a ela no centro do santuário de Vênus, e a segurou pela mão.
- Encontrei? Mesmo sem sabermos se a Fúria pode ser derrotada?
- Sim, encontrou. E a Fúria pode ser derrotada, tenho certeza. - Lenta e deliberadamente, Kat se pôs na ponta dos pés, enquanto o puxava para si e o beijava com
delicadeza. Preocupada, não alongou ou aprofundou o beijo, mas também não fez menção de recuar. O beijo era sua promessa de que o futuro com que ele sonhava poderia
ser real, contudo não queria fazer nenhum tipo de pressão sobre Aquiles. Sorrindo, ela olhou para a cesta. - Se este santuário está abandonado há anos, como isto
veio parar aqui?
- Seu desejo de tomar banho fez com que eu me lembrasse deste lugar. Enquanto dormia, esta manhã, eu trouxe as coisas para cá. Imaginei que fosse gostar de passar
algum tempo a sós comigo. - Ele disse as palavras com sua habitual confiança, contudo Kat pôde ver a ponta de insegurança em seus olhos. Qualquer sinal de medo ou
hesitação da parte dela o faria desmoronar.
- Pois acertou em cheio. Foi uma ideia maravilhosa.
Aquiles sorriu e curvou-se com uma formalidade exagerada.
- Seu banho a espera, princesa, e depois vamos jantar o que Aetnia preparou sob minha apavorante pressão.
Kat balançou a cabeça.
- Se foi assim, na certa ela preparou um par de sanduíches de arsênico com um cozido de vidro moído para acompanhar. - Olhou para a piscina de águas claras, então,
e sentiu a garganta seca. - Tem certeza de que não há nenhuma criatura nojenta aí, esperando para me comer?
- A palavra de uma deusa do mar iria tranquilizá-la?
Alarmada, Kat olhou ao redor do oásis arborizado.
- Sua mãe está aqui?
- Ela veio comigo esta manhã e certificou-se de que o local era seguro.
- Preciso parar de dormir tanto. Estou perdendo muita coisa! - Kat avançou um passo para mais perto da água. Esta parecia mesmo não oferecer nenhum perigo e era
muito, muito convidativa.
E seria tão bom ficar completamente limpa!...
Aquiles limpou a garganta, e seus olhares se encontraram.
- Vou ficar aqui, de costas, enquanto se banha. Basta me chamar e estarei a seu lado em um instante.
- Não seria melhor se ficasse de olho em mim? E se alguma coisa me agarrar e eu não conseguir chamá-lo? - Kat observou as diferentes emoções que desfilaram no rosto
moreno: desejo, preocupação, necessidade... Quando percebeu que o medo estava vencendo Aquiles, apressou-se em dizer: - Por que a Fúria não o domina quando discute
com Agamenon? Ele não o tira do sério?
Aquiles pareceu surpreso com a pergunta, porém respondeu no mesmo momento.
- É claro que tira. Aquele velho bastardo nunca me poupa de suas idiotices.
- Então por que não é possuído pela Fúria? - ela indagou outra vez.
Ele deu de ombros.
- Acho que é porque já me acostumei com o que ele me faz sentir. Digo a mim mesmo que é só Agamenon. Sem contar que não tenho permissão para lutar com o rei.
- Se é assim, por que não diz a si mesmo que sou apenas Katrina, a mulher que deseja? Afinal é assim que eu faço você se sentir, e também não pode lutar comigo.
Uma chama de esperança brotou e depois morreu nos olhos de Aquiles. Ele tornou a balançar a cabeça.
- Não. Não é a mesma coisa.
- Pode ser, se acreditar que é.
- Não. Não vou correr esse risco.
- Pois eu vou. Escute... Sente uma espécie de aviso antes que a Fúria o domine, não sente?
- Mais ou menos - ele admitiu, relutante.
- Certo. É muito simples. Fique sentado aí, bem à vontade. Há vinho na cesta?
- Sim.
- Pois beba e relaxe enquanto tomo banho. Mas fique de olho em mim para ter certeza de que nada vai me atacar. - Kat levantou a mão quando ele abriu a boca para
protestar. - Sim, eu sei. Jacky já disse que não falo coisa com coisa. Não devia acreditar em tudo o que ela fala.
Os lábios de Aquiles se curvaram num sorriso.
- Neste momento, por exemplo, suas observações me parecem muito perspicazes.
Kat franziu a testa, fingindo-se séria.
- Que seja, mas nem pense em dizer isso a ela! Fique quietinho aí. Vou tomar banho e tudo vai ficar bem.
- E se não ficar?
- Se começar a se transformar, uso o meu botão de pânico. - Ela levantou o medalhão que ainda trazia pendurado ao pescoço.
Aquiles continuou inseguro.
- Vênus pode estar ocupada.
- Não. Ela me deu sua palavra. Além do mais, é uma deusa um tanto quanto intrometida. Vai estar aqui, nem que seja apenas para ter uma boa fofoca para contar depois.
- Kat caminhou de volta para ele e colocou a mão em seu braço. - O negócio é o seguinte: precisa acreditar em si mesmo e em sua capacidade de me manter segura, tanto
quanto eu acredito.
- Acredita que eu possa mantê-la em segurança?
Kat sorriu para o rosto marcado por cicatrizes.
- Claro que acredito. Foi você quem me manteve segura até agora. - Beijou-o suavemente, em seguida rumou com determinação para o banho que a esperava, cruzando os
dedos e enviando uma prece silenciosa a Vênus: Se pretende nos espionar, talvez agora seja um bom momento!
Capítulo Vinte e Três
Em que diabo ela havia pensado?
Kat tentou não hesitar demais enquanto decidia, aflita, qual a melhor forma de tirar a roupa sem parecer muito provocante, e ainda não parecer apavorada até o último
fio de cabelo diante do que aquela água podia esconder.
Esconder?...
Olhou a pequena piscina transparente. Onde estavam as algas e aquela boa dose de poluição quando se precisava delas?
Ande logo com isso, Katrina, ordenou a si própria, livrando-se da leve veste de seda verde que substituíra a azul, destruída por aquelas criaturas marinhas horrorosas.
A túnica de baixo, por sua vez, era feita de uma leve camada de seda branca, e ela a deixou cair em torno dos pés. Até então, não pensara que nenhuma calcinha ou
sutiã tinha vindo com as roupas. Lembre-se apenas de que tem de ficar feliz por ele estar olhando para este corpo jovem e durinho, ao contrário do seu antigo, que
já estava chegando aos quarenta, precisando perder uns cinco quilos e meio. E também de uma boa dose de malhação para aquela bunda flácida.
Tentou manter uma postura régia enquanto entrava nua na piscina natural, e se preparou para congelar. Ao primeiro toque da água tépida, entretanto, sentiu um arrepio
de prazer e, com um suspiro feliz, submergiu. Só depois olhou para Aquiles.
- Ei! Não está gelada!
Ele havia feito o que ela sugerira. Estava sentado sobre a manta, numa postura quase relaxada: recostado num dos pilares de mármore e com um odre aberto no colo.
Parecia um pouco tenso, mas diferente do normal.
- É muito rasa para estar gelada, pelo menos nesta época do ano. O sol a aquece, e os salgueiros lhe proporcionam sombra, o que mantém a água numa temperatura perfeita.
- Enquanto Aquiles falava, Kat percebeu que ele mantinha o olhar fixo no dela, não permitindo que os olhos passeassem por seu corpo, o qual a água pouco fazia para
esconder. - Quando descobri este santuário, imaginei que essa piscina natural deve ter sido a causa de ele ter sido construído e dedicado a Vênus. - Aquiles sorriu,
meio tímido. - Parece-me um lugar perfeito para que uma deusa tome banho.
Kat sorriu de volta.
- Ora, ora, Aquiles, eu não sabia que era um romântico inveterado!
Ele soltou uma risada seca.
- Eu não sou romântico.
- Você deixou uma flor no meu travesseiro! Para mim isso é a prova cabal do seu romantismo.
Ele tomou um longo gole de vinho.
- Como sabe que fui eu quem a pus lá?
- Ah, sim. Deve ter sido Aetnia, então. Ou talvez Briseida. Ambas adoram frequentar a sua tenda.
Aquiles bufou de novo e tentou, sem sucesso, encobrir o riso.
- A prova número dois foi essa cesta de piquenique cheia de guloseimas para mim - insistiu Kat.
- Esta cesta? - Ele colocou a mão dentro dela e tirou um pedaço de queijo envolto em uma espécie de pão sírio. Deu uma mordida grande no sanduíche e completou com
a boca cheia: - Esta cesta é para mim, não para você.
- Claro que é para mim! - ela protestou, enquanto esfregava a sola do pé em um punhado de areia. - E a prova número três do seu romantismo foi essa manta.
- E por que isso é romântico?
- Porque não quer que eu suje a minha pele delicada... - Kat levantou o outro pé, cuja planta continuava suja, e agitou os dedos em sua direção.
A risada de Aquiles soou fácil desta vez, e ela concluiu que era o som mais maravilhoso que já tinha ouvido.
- A manta também é para mim - ele observou.
- Ah, claro. Sei bem como está obcecado por conforto e relaxamento...
Aquiles exagerou em um longo espreguiçar, e foi a vez de Kat cair na risada.
- Falando em conforto, há tempos estou querendo lhe dizer como gosto das tapeçarias da sua tenda. Elas retratam algum lugar em especial ou apenas um cenário qualquer?
- São todas de Phthia. Eu me sinto mais em casa cercado por elas.
- Phthia deve ser muito bonita - murmurou Kat, esfregando o cabelo e desejando estar com seu shampoo e condicionador favoritos.
O breve sorriso de Aquiles foi melancólico.
- E é, de fato. Eu gostaria de levá-la até lá algum dia.
- Eu adoraria ir. - Ela fez uma pausa e, em seguida, decidiu perguntar: - Aquiles, por que não reúne os seus Mirmidões e simplesmente vai embora daqui? Já se retirou
da guerra e rompeu com Agamenon. Por que ficar?
- Já pensei nisso. Se isso envolvesse apenas a mim, ou até mesmo só nós dois, eu o faria. Mas os meus homens são Gregos. Phthia é uma parte da Grécia. Seria muito
ruim para eles e suas famílias se retornassem antes do final da guerra. - Ele balançou a cabeça. - Não. Vamos ficar até o fim. Lutando ou não.
- O que vai fazer se os Gregos perderem?
- Vou voltar para casa.
- E se eles ganharem?
Os lábios de Aquiles se contraíram.
- Vou fazer a mesma coisa.
- Então importa quem vai ganhar ou perder?
- Importa. Eu não quero que os Gregos pereçam, mesmo que Agamenon e Menelau sejam os responsáveis por isso. Sou responsável apenas pela morte dos meus próprios homens.
Espero não perder mais nenhum dos Mirmidões. - Ele fez uma pausa antes de continuar. - Eu não devia ter vindo a Troia. Só fiz isso porque acreditava que meu destino
não poderia ser mudado, e porque Ulisses me pediu.
- E agora acredita que sua sina possa ser mudada. - Kat não fez da frase uma pergunta, contudo ele concordou com um gesto de cabeça.
- Agora acredito em muitas coisas nas quais eu não acreditava há poucos dias.
Ela sorriu e, em seguida, submergiu na água. Quando reapareceu na superfície, assoprando e sacudindo o cabelo, Aquiles parecia relaxado e feliz.
Estudou-o com cuidado por um momento, em seguida decidiu que já era hora de sair da água, e de seu relacionamento avançar mais um passo.
- Ainda me deseja, Aquiles?
Ele piscou, obviamente surpreso com a pergunta.
- Claro que sim.
- Mas aí está você, todo descontraído e conversando comigo. E eu aqui, nua em pelo.
Aquiles ergueu as sobrancelhas.
- Isso é verdade.
- E, se não estou enganada, nenhuma Fúria está em andamento; tampouco prestes a acontecer.
- Não há como se enganar a respeito disso. Não, a Fúria não está me dominando.
- Não está nem perto de acontecer?
- Nem perto.
- Então acha que eu posso sair desta piscina e me aproximar de você?
Kat o viu engolir em seco.
- Nua? - Aquiles quis saber.
Ela sorriu.
- Na verdade, eu estava pensando em lhe pedir que me desse a manta até eu me secar.
- Ah, sim. Claro. - Ele pareceu envergonhado, o que Kat considerou um enorme avanço em relação àquela sua expressão pétrea e neutra, ou aos olhos vermelhos de quando
ele ficava louco.
Quando Aquiles não fez nenhum movimento, insistiu:
- Poderia me trazer a coberta?
Raramente Kat o vira sem graça. Mesmo em repouso, Aquiles apresentava a postura de um guerreiro, mas, quando ele se levantou e apanhou a manta, parecia um elefante
em uma loja de cristais de tão desajeitado, e ela teve de morder a lateral da bochecha para não rir.
Com um suspiro, ergueu-se acima da superfície e caminhou para fora da água. O olhar de Aquiles não deixou o seu em nenhum momento; nem mesmo quando ele abriu a coberta
e ela se aproximou, nua e pingando, de seus braços.
Kat sentiu um tremor percorrer o corpo conforme estes se fecharam em torno dela. Recuou e sorriu para Aquiles como se ele a visse nua todos os dias. O conflito em
seu semblante era evidente, contudo. Não havia sinal da Fúria, porém Aquiles já não parecia tão relaxado.
Ela prendeu a respiração. Com o nível de relaxamento dele diminuindo, e o de estresse aumentando, estava, literalmente, flertando com o perigo.
- Conte-me alguma história - pediu, apressada.
O rosto moreno transformou-se em um ponto de interrogação.
- História?
- Sim. - Kat o puxou com a mão que não estava segurando a manta na direção do santuário onde a cesta de piquenique aguardava. - Conte-me uma história sobre a sua
infância enquanto comemos. Alguma coisa que tenha acontecido em Phthia. - Lançou-lhe um olhar malicioso por sobre o ombro. - Algo proibido, por exemplo.
Ele deixou escapar outra risada seca.
- E se eu era o filho perfeito e não fazia nada proibido?
- Então vou comer a cesta em vez do almoço que obrigou a pobre Aetnia a preparar. - Kat sentou-se ao lado do cesto, arrumando a manta ao redor do corpo, e torceu
o cabelo molhado antes de olhar o que havia para comer. - Hum! Queijo, carne, azeitonas e vinho! Meus grupos favoritos de alimentos: gordura, álcool e sal. - Aquiles
tinha se acomodado a seu lado, recostando-se no pilar outra vez e fazendo um esforço sobre-humano para relaxar e não olhar para seus ombros nus. Divertida, ela lhe
entregou um pouco de pão e carne. - Ainda bem que este meu corpo é tão jovem. Há menos chance de esse queijo todo ir direto para o meu traseiro. Ao menos não tão
depressa.
- No seu tempo você não era moça?
Kat o fitou por cima da comida. Aquiles não parecia chocado ou aborrecido com a ideia de ela ser mais velha; apenas curioso.
- No meu tempo sou quase dez anos mais velha do que você - admitiu sorrindo.
Ele pareceu chocado.
- Deixou seu marido e filhos para vir para cá?
- Ah, Deus, não! Nunca fui casada e não tenho filhos.
- Fez algum voto de castidade para uma deusa?
- Hera e Atena ficaram meio confusas a respeito disso, também. No mundo moderno mortal as mulheres não se casam tão cedo. Pelo menos não as mais cultas e que têm
dentes na boca... Na verdade, algumas de nós nem chegam a se casar ou a ter filhos. Não somos mais obrigadas a isso.
- E o que fazem da vida?
O sorriso de Kat foi longo e lento.
- Exatamente o que queremos fazer.
- Mas então são como os homens! - Aquiles exclamou, como se apenas naquele momento houvesse compreendido.
- Do seu ponto de vista, creio que isso possa ser verdade. - Ela ergueu uma sobrancelha. - E, caso esteja se perguntando, não tenho nenhuma intenção de mudar as
coisas, mesmo depois que vim para este mundo.
Ele a observou, atento.
- Quer dizer que nunca vai querer se casar, nem ter filhos?
Kat ignorou o incômodo que a pergunta lhe causou.
- Não necessariamente. O que significa que, se eu me casar ou tiver filhos, será porque eu quero, e não porque é o que se espera de mim.
- ... Concordo.
- Que bom. Agora quero ouvir alguma história do tempo em que era menino.
- Uma história proibida.
- Claro! São as melhores.
- Está bem. - Aquiles se acomodou melhor contra o pilar e cruzou as pernas na altura do tornozelo, bebericando do odre enquanto Kat remexia na cesta de piquenique.
- Quando eu era menino, achava que jamais poderia me afogar.
- Faz sentido. Afinal sua mãe é uma deusa do mar.
- Teria feito mais sentido se eu também fosse imortal. Mas eu não era, mesmo agindo como se fosse. - Ele balançou a cabeça ao se lembrar. - Costumava deixar minhas
amas loucas e, quando cresci um pouco mais, eram os meus tutores quem eu tirava do sério. Sempre me arrisquei demais, nadando para o meio do oceano, sendo apanhado
em ressacas e mal escapando delas. Fiz muitas coisas ridículas e irresponsáveis. Abusei tanto que meu pai me proibiu de entrar no mar.
- Aposto que sua mãe não gostou nada da ideia.
Ele riu.
- Não, mesmo. Mas ela também não queria que seu único filho morresse em um acidente ainda criança, causado única e exclusivamente por sua irresponsabilidade. Então
os dois se uniram e planejaram me dar uma lição.
- Hum... Isso não está me soando bem. - Kat fez um gesto para que ele lhe passasse o odre.
- Eu não devia ter nem doze anos de idade, e Pátroclo estava com no máximo sete na época. Ele vivia atrás de mim, o que me incomodava sobremaneira, mas, naquele
dia em particular, meu primo me contou que havia descoberto um barco abandonado em uma enseada, e que iria me levar até lá.
- E, uma vez que imaginava ser um deus do mar, um barco era perfeito para você - concluiu Kat.
- É óbvio que está raciocinando como meus pais. E, sim, insisti para que Pátroclo me levasse até o tal barco. No caminho para a praia, o tempo mudou depressa, como
costuma acontecer em Phthia. Uma rajada de vento muito forte começou a soprar, e até vi pescadores retornando para a costa. Cheguei a zombar deles, chamando-os de
covardes. Depois disso, Pátroclo e eu decidimos zarpar.
- Pátroclo estava mancomunado com seus pais?
- Não, eles apenas o usaram como instrumento. Meu primo foi comigo para o mar porque me acompanharia a qualquer lugar.
Kat observou o rosto moreno de Aquiles suavizar enquanto ele falava do primo.
- Você o ama muito, não é?
- Ele é como um irmão ou um filho para mim - admitiu Aquiles. - Pois, então... Nós dois navegamos para a tempestade. Já estávamos em alto-mar, e correndo um enorme
risco, quando uma onda nos atingiu e eu fui lançado para fora do barco. Pátroclo gritou por mim e tentou me jogar uma corda, mas as ondas estavam extraordinariamente
violentas. - Os lábios benfeitos de Aquiles se inclinaram para cima.
- Você disse "extraordinariamente"? Quero dizer, como se uma deusa do mar as estivesse agitando?
- Isso mesmo. Fui tolo, imprudente, mas não era idiota, e não demorou muito tempo para que percebesse que estava me afogando. Lembro-me de tentar invocar minha mãe,
mas as ondas sufocavam os meus gritos. Não posso precisar o quanto engoli de água do mar antes que aqueles golfinhos aparecessem; mas foi o suficiente para que eu
ficasse em pânico.
- Espere um pouco. Disse "golfinhos"?
Ele riu e assentiu com um gesto de cabeça.
- Golfinhos. Eles me cutucaram com os focinhos, nadando ao meu redor e me mantendo na superfície, como se estivessem brincando com um melão, até me levarem para
a praia.
- Foram eles que o salvaram?
- Sem dúvida. Eles me trouxeram em segurança para a principal praia de Phthia, que se encontrava cheia de pescadores e varinas, e também para junto de meus pais,
que, no momento, estavam dando um passeio pelas docas na companhia de grande parte da corte. Estavam todos ali quando fui jogado para fora da água por um cardume
de golfinhos, meio afogado e completamente nu.
- Nu? - Kat começou a rir.
- Nu. - Aquiles concordou. - De alguma forma, enquanto os bichos me cutucavam e me jogavam de um lado para o outro, conseguiram tirar toda a minha roupa; até mesmo
as minhas sandálias.
- Deve ter sido uma cena e tanto! - Kat comentou enquanto tentava controlar o riso.
- Sem dúvida. Falaram sobre isso por anos a fio. Algumas das senhoras do povoado ainda gargalham ao se lembrar.
- E isso teve o efeito desejado em você?
- Quer saber se isso pôs algum juízo na minha cabeça? - Aquiles ergueu um ombro. - Sim e não. Percebi que poderia me afogar e imagino que tenha ficado mais cuidadoso
depois disso. Ou ao menos minhas declarações se tornaram menos arrogantes. A coisa funcionou mais em Pátroclo. Até hoje ele detesta barcos e fica verde só de pensar
em velejar. - Aquiles riu e pegou o odre das mãos dela. - Essa é a minha história de infância proibida, mileide.
Kat riu e aplaudiu quando ele tomou um longo gole de vinho. Ao entregá-lo de volta para ela, Aquiles se inclinou e a beijou nos lábios.
Kat fechou os olhos e se apoiou nele. Não de forma agressiva, apenas de um modo delicado e convidativo, deixando-o definir o ritmo. Quando finalmente se separaram,
ambos arfavam, contudo Kat não viu nenhum sinal da Fúria nos olhos azuis.
- Posso hipnotizá-lo outra vez, se quiser - sussurrou.
- Eu sei que pode. - Ele a tocou no rosto e deixou a mão deslizar, acariciando a curva de um ombro nu. - E eu vou permitir que faça isso, se achar que deve.
- Mas? - ela perguntou.
- Mas eu gostaria de fazer amor com você sem nenhum feitiço. Quero experimentar tudo, e não apenas como um sonho maravilhoso. Vai me deixar fazer isso, Katrina?
Capítulo Vinte e Quatro
Aquiles estudou os expressivos olhos castanhos de Kat enquanto aguardava por sua resposta. Pôde perceber sua própria respiração e batimentos cardíacos se acelerando,
porém ambos sempre se elevavam quando ele treinava, e nem por isso a Fúria o possuía.
Não preciso dela agora... Não preciso dela agora, repetiu para si mesmo em silêncio.
- Sim, Aquiles. Faça amor comigo!
As palavras o aguilhoaram.
- Não está com medo? - ele indagou, perplexo.
- Claro que não. Enquanto você estiver comigo, estou segura.
Ele a puxou para si e a abraçou com força, inalando o perfume dos cabelos úmidos e sentindo a leve umidade de sua pele. Por todos os deuses!, não trairia a confiança
de Kat! Não era mais nenhum adolescente. Aquilo não iria terminar como terminara seu primeiro amor.
Beijou-a, lembrando a si próprio de fazê-lo lentamente e manter o controle. Kat abriu a boca, e sua língua encontrou a dela numa doce exploração. Braços delicados
o envolveram pelos ombros, e ela se inclinou para ele, fazendo com que a manta deslizasse por seu corpo.
Então congelou no meio do beijo.
Num gesto lento e deliberado, Aquiles recuou de leve, de modo a apreciar o corpo nu. Quieto e sem dizer nada, olhou para ela e, em seguida, estendeu as mãos e a
tocou numa longa carícia desde o pescoço, passando pelos seios, pela curva da cintura, até os quadris e coxas. Em seguida seus olhos se encontraram outra vez.
- Você é maravilhosa - falou com reverência.
Kat sorriu, e ele viu o futuro em seus olhos. O seu futuro. Aquele com que tinha parado de sonhar, em que deixara de acreditar. Ela o trouxera de volta como uma
possibilidade real.
Respirou fundo. Não sabia o que havia feito de tão bom para que as deusas o abençoassem com uma mulher tão milagrosa. Mesmo assim, prometeu-lhes em pensamento que,
se elas o contemplassem com uma nova vida ao lado de Kat, de seus filhos, e dos filhos de seus filhos, iria louvá-las para todo o sempre.
Deslizou as mãos pela cintura delgada e a tomou nos braços outra vez, beijando-a com paixão e permitindo que os dedos percorressem a maciez de suas costas até as
nádegas perfeitas. Segurou-as, pressionando-a com mais firmeza contra a ereção que pulsava entre as suas pernas. Kat moveu os quadris em resposta, e uma lembrança
erótica de seu primeiro encontro lhe invadiu a mente. Excitado, ele se lembrou do corpo quente e úmido deslizando para cima e para baixo em seu membro...
Uma onda de desejo o assolou, quase afogando-o com sua intensidade, e ele lutou para se controlar conforme pressentiu o calor da Fúria se insinuar em sua pele aquecida
pela luxúria.
- Abra os olhos, Aquiles! Olhe para mim!
A voz doce de Kat foi como um bálsamo contra o fogo que ameaçava conflagrar em seus pensamentos.
Ofegante, ele obedeceu e encontrou seu olhar. A Fúria o ameaçava. Podia sentir sua sombra à espreita, pronta para possuí-lo, para sufocar e reprimir toda a sua humanidade.
No entanto, Kat não demonstrava medo. Seu sorriso continuava confiante. Não saiu de seus braços, tampouco abriu o medalhão a fim de pedir socorro à deusa.
- Não vai me deixar - ela murmurou com voz calma e melodiosa. - Vai ficar aqui comigo e me manter segura.
- Sim - ele sussurrou de volta, beijando-a de leve. - Vou mantê-la em segurança - afirmou, buscando a própria essência, aquela parte de si mesmo que era a sede de
seu espírito, e se concentrou nela. - Esta paixão é diferente da que preciso para a guerra...
Não havia se dado conta de que tinha dito as palavras em voz alta, até Kat responder:
- É isso mesmo. O seu amor por mim não precisa destruir nada.
- Ao contrário. Quer apenas construir - ele completou, comovido.
Fitando-a nos olhos, mudou de posição de modo a deixá-la por baixo do corpo. Ergueu-se sobre um cotovelo e continuou com o olhar fixo no dela conforme lhe segurava
um seio e acariciava o mamilo endurecido com a palma calejada. Os lábios carnudos de Kat se apartaram, e sua respiração se acelerou. Quando a mão dele se moveu para
a fenda úmida entre suas pernas, Kat gemeu e arqueou os quadris. Ofegante, colocou a mão sobre a dele, guiando-o, ensinando-o a lhe dar prazer. Nem mesmo quando
seu corpo sacudiu, tomado pelo êxtase, desviou o olhar do dele.
Antes que os tremores do clímax de Kat cessassem, Aquiles ergueu o corpo e, devagar, mergulhou o membro túrgido em seu âmago quente e macio.
- Fique comigo, Aquiles! Não me deixe! - Kat pediu num sussurro.
- Eu nunca vou deixar você! - ele prometeu, a voz profunda e rouca com o esforço que fazia para manter o controle. Levantou os quadris, deslizando quase para fora
dela, e então tornou a investir, desta vez com mais firmeza.
- Aquiles! - Kat exclamou, entontecida de prazer com as seguidas estocadas.
Ele continuou arremetendo contra ela, como se querendo possuir não apenas seu corpo, mas também sua alma.
- Aquiles! - Kat gemeu mais uma vez, ancorando-o não só a ela, mas também à sua sanidade e à sua humanidade.
Quando ele finalmente atingiu o orgasmo, foi o nome dela que brotou em seus lábios. Era a imagem dela que preenchia seus olhos. A alma de Kat era dele.
Aquiles e Kat retornaram ao acampamento dos Mirmidões quando o sol já se punha. Andando de mãos dadas e conversando, despreocupados, alcançaram a área iluminada
pela fogueira. Divertida, Kat viu Aetnia arregalar os olhos quando ele jogou a cesta vazia a seus pés e disse "obrigado".
- Estava tudo muito bom, Aetnia - completou em seguida e, enquanto todos o fitavam, boquiabertos, beijou Kat profundamente. - Eu já volto. Vou conversar com Pátroclo
- explicou. Depois se afastou, parecendo muito satisfeito consigo.
- Esperem aí. Aquiles disse "obrigado"? - Jacky se levantou de um salto de onde descansava ao lado do fogo.
- Não sei por que boas maneiras a surpreendem tanto! - contrapôs Kat, acomodando-se a seu lado. - Nossa. Acho que preciso de um cálice de...
- Vinho, princesa?
Ela ergueu a cabeça e sorriu, aceitando a taça que a serva lhe oferecia.
- Aetnia, você é uma verdadeira vidente!
- Eu também vou tomar mais um pouco - decidiu Jacky.
Aetnia hesitou e olhou para Kat, que acenou com a cabeça. Só então a criada encheu o cálice de Jacky com a mão meio trêmula.
- Muitíssimo obrigada, Aetnia - agradeceu Jacky com exagero.
- Não seja desagradável! - Kat sussurrou.
- Buuu! - Jacky bateu os pés diante da serva, e esta disparou para o outro lado da fogueira.
- Tem de provocá-la?! - Kat ralhou, exasperada.
- Para sua informação, ela é uma peste quando você não está por perto. Essa história de "princesa isso", "princesa aquilo" é tudo teatro! Quando não está aqui, Aetnia
só fica espalhando boatos entre aquelas mulheres que vivem nos olhando atravessado. Essa praga está aprontando alguma coisa! Não duvido de que eu seja obrigada a
chutar aquela bunda seca e branquela qualquer hora dessas!
- Jacky, por favor... Lembre-se de que agora a sua bunda também é branca e magra!
- Sim, por isso mesmo estou comendo tanto. Estou determinada a mudar essa situação.
- Ah... Faça o que quiser.
- Às bundas grandes! - Jacky saudou, erguendo a taça.
- À sua futura bunda grande - corrigiu Kat, batendo o cálice no da amiga.
Jacky tomou um longo gole da bebida, depois ergueu uma sobrancelha para Kat.
- Muito bem... Detalhes.
Kat chegou mais perto dela e baixou a voz:
- Fizemos sexo.
- Meu bom Deus... Derrubou o sujeito outra vez? Quero dizer, literalmente?
- Não. Aquiles continuou no total controle de todas as suas faculdades mentais.
- Não ficou inconsciente, pensando que estava sonhando?
- Não.
- Está me dizendo que ambos sabiam que estavam trepando, ao contrário daquelas duas noites em que praticamente cometeu estupro?
- Eu já disse que não estuprei ninguém!
- Estou pouco me lixando para a sua semântica. Responda logo à pergunta.
- Sim. Estávamos ambos conscientes de estarmos trepando.
- Se está rindo feito uma idiota, é porque a coisa foi boa.
- Foi ótima! - garantiu Kat.
- E ele controlou a Fúria?
- Bem, na verdade, Aquiles controlou a si mesmo para que a Fúria não o possuísse.
Jacky tomou um gole do vinho e olhou para o fogo em silêncio.
- O que foi? - Kat indagou.
- Estou meio preocupada por ele não controlar essa coisa.
- Mas que diferença isso faz? Ele se controlou para que a coisa não o possuísse. Não é esse o objetivo?
- Sei não. Se ele for possuído, e se você não estiver por perto, imagino que faça uma grande diferença.
- Talvez não. Quando esta guerra acabar, Aquiles vai voltar para casa e terá uma vida sossegada. Se ele nunca mais entrar em uma batalha, talvez a Fúria não volte
a dominá-lo.
- Em outras palavras, sua teoria é a de que ele precisa apenas ignorar a Fúria, e esta irá embora.
- Não. Não exatamente.
Jacky revirou os olhos, e Kat franziu a testa para a amiga.
- Está bem. Talvez.
- Bem, esperemos que a sua teoria seja mais bem-sucedida com a Fúria do que é com uma gravidez, por exemplo.
- Aquiles vai ficar bem - Kat falou com convicção.
Ambas olharam para o fogo e bebericaram o vinho.
- Vai ficar com ele, não é? - Jacky perguntou por fim.
- Sim. - Kat observou a melhor amiga, pensativa. - E quanto a você? O que vai fazer?
Jacky suspirou.
- Infelizmente, parece que vou passar o resto da minha vida branca.
Rindo, Kat colocou o braço em torno dela.
- Podia pegar uma corzinha... Iria se sentir melhor?
- Claro que não! Não vou ser uma dessas branquelas que ficam se bronzeando para depois ficar parecendo carne-seca aos quarenta anos! Tenho muito bom-senso para isso.
Quantas vezes eu mesma gritei para que tirasse o traseiro do sol?
- Vezes demais para eu contar.
- Pois então. Sou sensata demais em relação a essas coisas - Jacky afirmou. - Sabe do que essas babacas torrando ao sol me fazem lembrar?
- De perus se afogando na chuva porque são estúpidos demais para sair dela ou engolir a água! - Kat respondeu de pronto.
- Como sabe disso?!
- Jacky... Cansou de dizer que eu parecia um peru me afogando na chuva!
- Isso porque também precisava tirar essa sua bunda branca do sol.
Kat estreitou os olhos para fitá-la.
- O que foi? - indagou a outra moça.
- Suas bochechas estão cor-de-rosa demais para o meu gosto. Como se tivesse se bronzeado!
- Ah, merda! Eu só quis pegar um pouco de cor.
- É assim que começam os transtornos obsessivos - apontou Kat, presunçosa.
As duas se entreolharam e depois caíram na risada.
Quando controlaram o riso, Kat enxugou os olhos e examinou a clareira iluminada pelo fogo e ainda frequentada pelo grupo habitual de noivas de guerra - o qual havia
se acomodado o mais distante que podia dela e de Jacky.
- Por que Aquiles e Pátroclo estão demorando tanto?
- Tomara Aquiles esteja metendo um pouco de juízo naquela cabeça-dura do primo dele.
- Por quê? O que está acontecendo? - Kat quis saber.
- Pátroclo está reagindo muito mal a essa história de ficar fora da guerra. Parece que Ulisses bancou o Superman hoje. Estava imbatível e fez seus homens darem tudo
na luta. Dizem que eles podem até vencer se continuarem assim.
- Os Gregos, quer dizer?
- Hã-hã.
- Isso é bom... Acho. Afinal, as deusas só queriam o fim da guerra. Se Ulisses de repente se tornar invencível, isso porá fim à Guerra de Troia. Por que Pátroclo
está tão incomodado?
- Porque quer que Aquiles e o restante dos Mirmidões se juntem ao Exército. Diz que a vitória seria certa se isso acontecesse.
- Oh, Deus!... - Kat murmurou.
- "Oh, Deus!" mesmo.
- Acha que eu deveria incitar Aquiles a lutar? - Kat sentiu o estômago se contrair enquanto esperava pela resposta da amiga.
- Mas seu namoradinho não pode morrer se continuar lutando?
Ela assentiu com um gesto de cabeça.
- Não me lembro muito bem do restante daquela droga de Ilíada, mas esse fato é muito difícil de esquecer: Aquiles morre na Guerra de Troia.
- Então, não! - Jacky falou com firmeza. - Não o deixe lutar. Acabou de encontrá-lo e precisou vir de outro mundo para ficar com ele. É cedo demais para perdê-lo.
Assim como sei que é cedo demais para eu perder Pátroclo. Não quero que aquele tonto volte para a guerra.
- Se é assim, vou me ater ao plano original e fazer o que eu puder para manter Aquiles fora dessa luta.
- Parece o melhor a fazer, mesmo.
- Vamos brindar a isso.
- Parece uma boa ideia.
Elas tocaram os cálices mais uma vez e sentaram-se para esperar por seus homens.
- Pelos testículos peludos dos sátiros, você estava certa! - Vênus caminhou de um lado para o outro da câmara interna do templo de Hera, no Monte Olimpo.
O oráculo da Rainha dos Deuses girava com imagens de Ulisses comandando os Gregos em vitória após a outra contra os Troianos.
- Atena o presenteou com algo além de seus fluidos divinos. O homem está imbatível!
- O que foi que eu disse? Ela nunca tem amantes e agora está encantada com seu brinquedinho humano - comentou Hera, franzindo a testa para o oráculo.
- Isso só prova o que venho dizendo há eras. Atena é muito reprimida, precisa se soltar um pouco! Devia mais era estar se encontrando com Ulisses na praia há anos!
Desse modo, isso não teria sido uma experiência emocional tão violenta para ela. - Vênus suspirou, dramática.
- Isso significa que não haverá conversa com ela, você sabe.
- Então estávamos certas. O que vamos fazer? Essa guerra precisa acabar. Agora!
- Odeio dizer isso, mas acho que devemos apoiar os Gregos. Vamos acabar logo com essa coisa - decidiu Vênus, franzindo o cenho diante do oráculo.
- Vai mandar sua mortal moderna persuadir Aquiles a voltar com os Mirmidões para a batalha?
Vênus hesitou, não querendo contrariar sua rainha.
- Está decidido, Vênus! Precisa se certificar de que Aquiles retorne para a guerra com os Mirmidões.
- Acho que tem razão - a deusa concordou, relutante.
- É claro que tenho. Está resolvido. Agora vamos cuidar para que tudo isso aconteça depressa, antes que Zeus fique sabendo de alguma coisa. O dever dele é permanecer
neutro, motivo pelo qual também deveríamos ficar de fora disso - observou Hera.
- Mas todos sabem que Zeus tende a apoiar os Troianos, principalmente o velho Príamo - Vênus lembrou.
- Eu sei, eu sei... Zeus começou a coisa toda, ficando do lado de Laomedonte contra Poseidon anos atrás, embora nunca devesse ter apoiado um mortal contra o Deus
do Mar. Acontece que aqueles dois estão sempre discutindo sobre alguma coisa, e Zeus é muito rancoroso. Eu gostaria muito que ele...
- Hera! Esposa! Onde está você? - A voz do deus trovejou pelo Olimpo.
Hera deu um pulo, culpada, e Vênus revirou os olhos.
- Ele é tão rude!... Não devia ficar berrando para todo o Olimpo ouvir.
- Acha que eu não sei disso? - Hera correu para o oráculo e fez um gesto para que este ocultasse as cenas que aconteciam em Troia. - E, quando preciso dele, acha
que consigo encontrá-lo? Claro que não. Mas basta Zeus precisar de alguma coisinha e já fica me chamando aos gritos!
- Talvez eu devesse ter uma conversa com ele - Vênus se ofereceu, amável. - O Amor tem direitos que outros imortais não têm. Nem mesmo o Rei do Olimpo deve se privar
de um pequeno conselho amoroso.
- Não, não, obrigada. Melhor não. Nosso casamento vai muito bem.
Vênus torceu os lábios, parecendo duvidar.
- De qualquer forma, querida, preciso que o mantenha ocupado enquanto opero a minha magia lá embaixo. - Fez um gesto na direção do oráculo agora apagado.
- Hera! - Desta vez, a voz de Zeus soou bem mais próxima.
- Já estou indo!... Pode ir, Vênus. Eu cuido das coisas por aqui - garantiu a Rainha do Olimpo.
- Isto vai dar uma ajuda. - A outra deusa moveu os dedos na direção de Hera, banhando-a com um pó cintilante que impregnou sua pele.
- O que... - Hera começou, então ofegou ao sentir o corpo arrepiar e os mamilos enrijecer.
- Apenas um presentinho do Amor para sua rainha. - Vênus piscou para ela e, em seguida, desapareceu.
Com o corpo formigando, Hera correu para fora da câmara e acabou trombando com o corpo sólido do marido.
- Zeus! Por que estava se esgueirando?!
- Esgueirando! O Governante Supremo dos Deuses não precisa se esgueirar! E quanto a você? Por que estava correndo, toda aflita? - ele exigiu, olhando por cima de
seu ombro delicado para a câmara interna que ela acabara de deixar.
- Eu não estava correndo, e muito menos estava aflita. Só queria ir ao seu encontro, como qualquer esposa atenciosa faria.
Zeus apenas bufou, exasperado.
- Por que estava berrando por mim e perturbando o Olimpo inteiro? - Hera ralhou.
- Eu não conseguia encontrá-la. Não estava em nossa sala do trono, nem nos jardins onde costuma caminhar a esta hora do dia. Por isso a chamei. Mas não estava berrando
- ele afirmou com petulância.
- É claro que não - ela ironizou, mudando de humor e sorrindo conforme dispensava o comentário. - O que deseja de mim, meu senhor?
- Eu a tenho visto tão pouco ultimamente que imaginei que fosse gostar de me acompanhar em uma visita ao mundo antigo.
Hera refletiu que precisava mesmo passar mais tempo com o marido, ao menos até que aquela maldita guerra terminasse.
- Como de costume, tem toda a razão, meu amor - concordou com doçura. - Tenho estado muito ocupada com minhas funções divinas.
Zeus deixou escapar um grunhido satisfeito.
- Muito bem. Então está decidido. Vai me acompanhar até Troia. Ouvi dizer que os Gregos fizeram um avanço repentino na guerra. Tão repentino que há rumores de que
houve interferência divina, embora eu tenha proibido os olímpicos de desempenhar qualquer papel ativo na batalha. - Ele estendeu o braço para ela. - Vamos até lá
agora mesmo. Talvez você e eu possamos ter um almoço íntimo na praia depois de eu me certificar de que ninguém andou me desobedecendo.
O estômago de Hera se contraiu com o pânico, e ela tratou de reprimi-lo. Aproveitando-se da nuvem de luxúria com que Vênus lhe polvilhara a pele, aceitou o braço
do marido e sorriu para Zeus com malícia, roçando o mamilo contra o bíceps musculoso.
- Pensei que tivesse chamado por mim, querido...
- E chamei - ele confirmou, tentando não se deixar abalar pela sedução escancarada e incomum da esposa. - Imaginei que deveríamos ir a Troia juntos, formando uma
frente.
- Ah. - Hera fez um beicinho com os lábios rosados e carnudos, e lançou um olhar para o lado. - E eu pensei que me queria para algo mais íntimo do que viajar a trabalho.
- Bem, é claro que quero, mas, como eu disse... - Zeus começou, e depois parou de falar quando a esposa levantou-lhe a mão e levou seu dedo indicador para dentro
do ninho quente e macio da boca, chupando-o profundamente antes de lavá-lo com a ponta da língua. - Ah, mulher!... - ele gemeu quando, com a outra mão, Hera segurou
o membro já endurecido entre suas pernas. - Tenho sentido a sua falta, e você sabe como me agradar!
- Eu apenas comecei a fazer isso, meu amo...
Ao ver sua necessidade de viajar para Troia substituída por outra, mais imediata, Zeus puxou a esposa para os braços e, com um movimento firme, transportou-os para
o quarto onde esta não se fartou de agradá-lo cada vez mais.
Capítulo Vinte e Cinco
- Pátroclo, por que não consegue entender? - insistiu Aquiles. Ele havia encontrado o primo na volta do acampamento grego, e os dois agora caminhavam lado a lado
pela praia enquanto conversavam. - Tenho uma chance de mudar o meu destino, e pretendo aproveitá-la.
- Eu compreendo. - Pátroclo parou e o encarou. - E também quero que seu destino seja outro. Mas isso não significa que não possa liderar nossos homens na batalha.
Só precisa ficar longe de Heitor. Apenas se o matasse estaria fadado a morrer.
Aquiles balançou a cabeça.
- Uma batalha é um verdadeiro caos. Dizer que bastaria eu me manter distante de um dos guerreiros de Troia serviria se eu não estivesse possuído pela Fúria, em meio
à fumaça, ao sangue e à confusão da guerra.
- Posso ajudar você. Todos os Mirmidões irão ajudá-lo e se certificar de que fique longe de Heitor.
Aquiles sorriu e esmurrou o primo leve.
- Se pretendem tomar conta de mim, como querem que eu os lidere na batalha?
Pátroclo se afastou dele.
- Isto não é nenhuma brincadeira.
- Acha que estou brincando com o meu destino?
- Não. - O rapaz suspirou e passou a mão pelo cabelo, frustrado. - Também levo essa profecia a sério, mas a última coisa que desejo é a sua morte, primo.
- Pois já devia ter se acostumado a ela. - Pátroclo começou a protestar, contudo Aquiles o interrompeu. - Eu também já havia me acostumado. Estava preparado para
morrer antes de completar trinta verões, às portas de Troia, depois que matasse Heitor... E a ter meu nome reconhecido por séculos. Foi a escolha que fiz. Quando
eu era jovem, a glória e a imortalidade do meu nome eram tudo o que eu desejava. Mas depois amadureci e compreendi a natureza do que tinha escolhido. Foi quando
eu soube o que era arrependimento. O problema era que meu destino já era uma pedra rolando montanha abaixo. A única coisa que eu poderia fazer era deixá-lo acontecer.
Mas então ela veio e tudo começou a mudar.
- Sim! É exatamente esse o meu ponto. Tudo mudou agora. As deusas arrancaram as almas de Katrina e Jacqueline de outro mundo, de outro tempo, e as trouxeram aqui
para mudar as coisas. Como poderiam permitir que perecesse?
- Talvez se eu fosse tolo o suficiente para ignorar tudo o que elas me proporcionaram e voltasse para a batalha.
- Aquiles, você me disse que conseguiu impedir que a Fúria o possuísse hoje. Pode ter sido um presente das deusas. Será que elas não pretendem que use isso na batalha?
Que tenha a capacidade de lutar e nos liderar sem se perder para a Fúria?
- Meu presente é Katrina. Foi ela quem me permitiu enfrentar a Fúria. E Kat não iria para a frente de batalha comigo. Jamais. - Aquiles colocou a mão no ombro do
primo. - Eu a amo. Desejo passar o resto da minha vida com ela, e não apenas mais alguns dias.
- Eu também amo Jacqueline! - Pátroclo gritou, exasperado. - Mas nem por isso desisti de lutar pela glória da Grécia.
- Não estaria lutando pela glória da Grécia. Estaria lutando pela glória de Agamenon.
- Não é deste modo que a história vai se lembrar desta guerra - declarou Pátroclo.
- A história que se dane! Já estou farto de pensar no que vai ser ditou ou não a meu respeito no futuro.
- Os homens precisam da sua ajuda, Aquiles. Pode salvar vidas!
- Já salvei muitas - ele falou por entre os dentes enquanto mirava o mar iluminado pela lua. - Agamenon se cansou de me usar para lutar em suas batalhas. Pela primeira
vez estou escolhendo salvar a minha própria vida. Pela primeira vez tenho a chance de contar com um futuro com o qual eu apenas sonhava. Não vou jogá-la fora. Não
por Agamenon e sua ganância.
- Não é assim que eu vejo - insistiu Pátroclo. - Eu não estaria lutando por Agamenon. Eu estaria lutando pela Grécia.
- Se é tolo o bastante para arriscar sua vida e jogar fora o amor que lhe foi concedido, então lute. Não sou eu quem irá impedi-lo - decidiu Aquiles, virando-se
e começando a caminhar para longe, na praia.
- Os homens não vão aceitar a minha liderança! - Pátroclo gritou às suas costas. - Eles só iriam seguir os seus comandos. Eu não sou Aquiles!
- Pois eu gostaria que fosse! - ele falou por cima do ombro. - Eu ficaria bem feliz em viver sua vida longa e frutífera enquanto estivesse entrando no campo de batalha
com essa sua teimosia e ansiando por uma morte gloriosa!
Pátroclo observou o primo se afastar, depois apanhou uma concha e, com um grito de frustração, arremessou-a no mar.
- E ele ainda me chama de teimoso! - resmungou para si mesmo enquanto andava de um lado para o outro na beira da praia. - Não sei nem por que está sempre preocupado
em usar aquele elmo de ouro. Nenhuma espada poderia atravessar aquela cabeça-dura! - O jovem guerreiro quis urrar de ódio. Como era possível que Aquiles não enxergasse?
Liderar os Gregos em mais uma batalha - a batalha final da Guerra de Troia - não o levaria à morte. As deusas tinham mudado as coisas. Elas decerto não iriam permitir
que todos os seus esforços fossem desperdiçados.
E ele, Pátroclo, sentia-se muito grato. Não apenas porque agora acreditava que o primo fosse sobreviver, mas também porque havia encontrado a mulher dos seus sonhos.
Não estava ignorando Jacqueline por querer lutar. Estava apenas zelando pela própria honra. De qualquer maneira, ela estaria lá, esperando por ele. E, depois de
tudo, Jacky iria cuidar de suas feridas, recebê-lo em seu corpo macio e curá-lo.
O problema era que não haveria nenhuma batalha final e honrosa. Se Aquiles não estivesse lá para liderar os Mirmidões, estes não iriam lutar e, mesmo com o repentino
destaque de Ulisses no campo de batalha, aquela guerra continuaria a se arrastar indefinidamente.
- Ah, se eu pudesse ser Aquiles!... Nem que fosse apenas por um dia! - murmurou Pátroclo.
- Quer saber, querido? Não é má ideia - conjeturou Vênus após se materializar em uma nuvem de fumaça brilhante a seu lado.
- Deusa! - exclamou Pátroclo, e caiu de joelhos, inclinando a cabeça.
- Levante-se, Pátroclo. Deixe-me olhar para você.
- Como, minha senhora? - ele perguntou, confuso. No entanto se pôs de pé, assim como Vênus havia ordenado.
- Deixe-me ver... - Ela caminhou num círculo lento ao redor do atordoado guerreiro. - Têm quase a mesma altura e constituição física. É óbvio que são parentes. Aquiles
é mais encorpado, claro. E você é bem mais loiro do que ele. Mas, sob a armadura, isso não será tão perceptível. Além do mais, posso usar um pouco de magia aqui,
outro acolá... Basta que use o elmo do seu primo, o restante de sua armadura, e ninguém será capaz de notar a diferença. Ainda mais no calor da batalha.
- Não compreendo, senhora. - Mesmo enquanto proferia as palavras, no entanto, Pátroclo soube que a Deusa do Amor estava fazendo planos, e seu coração disparou, ansioso.
- Não mesmo, querido? Acabou de dizer que gostaria de ser Aquiles para liderar o ataque final dos Gregos contra os Troianos. Pois acredito que eu possa lhe conceder
esse desejo. Se for realmente isso o que quer... É isso o que deseja, jovem Pátroclo?
Pátroclo quis gritar de alegria e aceitar de imediato a oferta da deusa, porém os Olímpicos eram muitas vezes caprichosos, e seus caprichos poderiam ser perigosos
e mortais.
- Por que deseja me ajudar, Afrodite?
A deusa franziu a testa, e o ar ao redor deles se aqueceu, fustigando a pele de Pátroclo.
- Será possível que vocês, Gregos, nunca se lembram de que prefiro ser chamada de Vênus?
Pátroclo inclinou a cabeça.
- Perdão, grande deusa! Eu não quis ofendê-la.
Vênus respirou fundo, a brisa quente cessou, e o agradável frescor da noite voltou à beira-mar. - Claro que não, querido. Eu não devia ser tão sensível, mas tenho
estado sob um terrível estresse nestes últimos tempos. Esta guerra está me dando nos nervos, o que nos traz de volta à razão desta minha pequena visita e à sua pergunta.
Eu gostaria de ajudá-lo porque a Guerra de Troia já foi longe demais. Nós queremos que ela acabe, e pode nos ajudar para que isso aconteça.
- "Nós"? Quer dizer que os deuses estão realmente envolvidos na luta?
- Na verdade, as deusas é que estão envolvidas na guerra.
Pátroclo arregalou os olhos ao compreender tudo.
- Atena está ajudando Ulisses!
- Entre outras coisas - Vênus murmurou e, em seguida, limpou a garganta. - E sim, eu estarei ajudando você.
- Sinto-me honrado, grande deusa. Mas por que eu? Nunca fui fiel à senhora. - Ele sorriu, meio tímido. - A verdade é que, até pouco tempo atrás, eu não sabia quase
nada do amor.
Vênus o tocou no rosto, e Pátroclo sentiu uma onda quente de amor e felicidade percorrer o corpo.
- Mas o encontrou, não encontrou?
Ele assentiu, incapaz de falar.
- Por isso mesmo eu o escolhi. O amor recém-descoberto é a mais poderosa das emoções. Detém uma magia muito especial. Já o vi afastar a morte, curar almas e frustrar
o destino. Usarei a magia do amor recém-descoberto e também a sua semelhança física com o seu primo. Essas duas coisas juntas e abençoadas por mim irão permitir
que se faça passar por Aquiles apenas por tempo suficiente para que lidere os Mirmidões e o exército grego contra os Troianos. Vai ordenar o ataque quando as muralhas
forem violadas.
Pátroclo estremeceu com excitação e seus olhos cintilaram.
- Eu o farei! Farei isso pela Grécia e pela senhora.
Vênus inclinou a cabeça em reconhecimento diante da promessa.
- Fico feliz em ouvir isso. Agora, tudo o que precisa é da famosa armadura de Aquiles e da minha bênção logo após o amanhecer.
- Meu primo guarda a armadura em sua tenda. Como eu...
- Deixe isso comigo. O Amor irá manter Aquiles ocupado - garantiu Vênus.
- Mas e quanto aos Mirmidões? Como faço para reuni-los sem alertar Aquiles?
- Basta espalhar entre as tendas, esta noite, que ele convocou um treinamento especial para amanhã, e todos virão para cá pouco depois do amanhecer. - Vênus fez
um gesto ao redor, apontando a praia onde estavam: bem no meio do caminho entre o acampamento grego e o dos Mirmidões. - Deixe implícito que Aquiles se encontra
inquieto. Os homens já se encontram surpresos com sua decisão de se retirar da luta. Não demorará a convencê-los de que ele retomou seus antigos hábitos.
Pátroclo concordou com um gesto de cabeça, pensativo.
- É verdade. E se o Amor mantiver Aquiles ocupado em sua tenda, ele não vai ouvir falar do treinamento que supostamente teria organizado. - Sorriu de leve. - Meu
primo vai ficar furioso quando descobrir que foi enganado.
O sorriso de Vênus quase o cegou com sua beleza.
- Até lá esta guerra estará terminada e os Gregos terão saído dela vitoriosos. Aquiles estará alegre e ocupado demais, fazendo planos para voltar a Phthia, para
ficar zangado com você.
- É brilhante, senhora! - elogiou Pátroclo com um floreio, curvando-se.
A deusa piscou os longos cílios, toda coquete.
- Claro que sou, querido.
- E quanto aos Gregos? Diremos a eles que Aquiles é que está no comando?
Vênus levantou uma sobrancelha fina.
- Acredito que Ulisses possa nos ajudar a espalhar esse boato.
- Então está decidido.
- Isso mesmo. Ao amanhecer, estarei à sua espera, atrás da sua tenda. - Vênus fez uma pausa ao se lembrar de mais um detalhe. - Precisa tirar Jacqueline do caminho.
Ela é uma mulher moderna e não ficará de braços cruzados enquanto estiver liderando os Gregos na batalha.
Pátroclo assentiu e riu baixinho.
- Jacqueline jamais ficaria de braços cruzados. Ela tem o corpo de uma jovem donzela e o coração de uma guerreira. É uma mulher muito incomum.
- Tem razão, ainda que não tenha conhecido muitas mortais modernas. De qualquer forma, isso será um problema para nós. Ela é obcecada por você e não... - As palavras
de Vênus sumiram quando ela começou a sorrir.
- O que foi, minha deusa?
- Jacky está tão louca por você que deseja muito lhe agradar. Pois acorde-a antes do amanhecer. - Ela sorriu sugestivamente. - Faça-a despertar de uma vez e, em
seguida, diga-lhe que está morrendo de vontade de comer aqueles mariscos frescos que o mar revela na maré baixa.
- Na maré baixa? - ele indagou, sem compreender.
Vênus suspirou.
- A maré baixa acontece quase no meio da noite. Peça a Jacky que vá colher amêijoas enquanto treina com os homens. Ela deixará a tenda durante a madrugada e estará
fora do caminho.
- Tem certeza de que ela faria isso por mim?
- Dê-lhe prazer primeiro, demonstre seu amor por ela, e Jacky irá atrás dos moluscos sem pestanejar. As mortais modernas são muito lógicas. Se fizer algo de bom
para ela, Jacky há de querer retribuir.
Pátroclo sorriu.
- É assim, tão simples?
- Será depois de uma pitada ou duas da minha magia. Agora vá ficar com sua mulher, valente Pátroclo, e amanhã estará preparado para a glória! - Vênus bateu palmas
e desapareceu em uma nuvem cintilante de fumaça.
Sorrindo até as orelhas, Pátroclo correu pela praia, determinado a levar Jacqueline para a tenda e passar o restante da noite fazendo amor.
Não foi difícil encontrar Atena e Ulisses. Nem seria preciso possuir a magia divina do Amor encarnado para reconhecer os gemidos e suspiros da paixão que estes compartilhavam.
Por consideração, Vênus se materializou numa curva da praia, em meio a um bosque de árvores altas e, em silêncio, aproximou-se dos amantes. Atena se encontrava deitada
sobre uma manta de cetim, usando apenas um robe prata transparente. Já Ulisses, completamente nu e - Vênus registou com satisfação - mais bem dotado do que ela imaginava,
beijava o arco do pé da deusa.
Tomara Atena tivesse pedido às ninfas da floresta que lhe fizessem uma pedicure completa!, pensou Vênus, decidida a conversar com a outra mais tarde sobre aquele
tipo de coisa.
Limpou a garganta.
Ulisses agarrou a espada e, num movimento rápido, girou o corpo, agachando-se na defensiva diante de Atena.
Vênus levantou uma sobrancelha.
- Como é protetor, meu querido!...
Atena se pôs de pé em um instante, postando-se entre Ulisses e Vênus.
- Como ousa me interromper? Não tem o direito de...
- Blá, blá, blá... - Vênus revirou os olhos. - Reserve essa sua arrogância para os mortais, Atena. Até porque não vou interrompê-los por muito tempo. Tenho apenas
que dar um recado a Ulisses.
Os olhos da Deusa da Guerra se estreitaram.
- O que quer com ele?
O sorriso da Deusa do Amor foi lento e sábio.
- Ciúme? Que divertido. Ridículo, mas divertido. Fique tranquila. Não tenho nenhuma intenção de seduzir o seu amante. Ulisses, querido... - Vênus desviou os olhos
de Atena, que continuava a fulminá-la com o olhar, e o guerreiro deu um passo para mais perto de sua deusa, o que lhe proporcionou uma agradável vista frontal de
toda a sua glória. - Ah, aí está você... Muito bem de saúde, por sinal.
- O recado! - Atena falou por entre os dentes.
Vênus suspirou.
- Claro. É só que Aquiles vai liderar os Mirmidões na batalha de amanhã, logo após o amanhecer.
Ulisses cerrou os punhos e abriu um sorriso.
- Eu sabia que ele ia ceder! - exclamou. Em seguida, virou-se para Atena e se pôs sobre um joelho.
- Amanhã, minha deusa, meu amor, os Gregos lhe presentearão com a vitória sobre os Troianos.
- Que interessante - Atenas respondeu, porém seus olhos não deixaram a Deusa do Amor um só momento. - E por que isso estaria acontecendo?
- Se não tivesse andado tão preocupada, saberia o motivo. - Vênus fez um gesto para que elas se afastassem alguns metros. - Será que podemos ter uma conversa em
particular?
Ainda franzindo a testa para a outra diva, Atena virou-se para Ulisses.
- Eu já volto - resmungou, e seguiu com Vênus praia abaixo. - Explique-se! - exigiu, tão logo se encontravam distantes do campo de audição do guerreiro.
- Em primeiro lugar, devo repetir: devia tê-lo tomado como amante eras atrás!
- Minha vida amorosa não está aberta a discussões.
- Querida, eu não estou discutindo a sua vida amorosa, apenas a ausência dela até agora. De qualquer modo, a coisa toda é muito simples: tem ajudado Ulisses, o que
basicamente tornou a presença de Aquiles no campo de batalha dispensável.
Atena respirou fundo, preparando-se para elaborar uma desculpa, porém Vênus ergueu a mão, silenciando-a.
- Poupe-me! Foi bom para você. - Lançou um olhar por cima do ombro da deusa para o local onde Ulisses a aguardava. - Na verdade, foi ótimo... Mas acabou prejudicando
o nosso pequeno plano.
- Eu sei - Atena admitiu.
- Por isso mesmo, Hera e eu fizemos algumas alterações nele. Os Gregos podem muito bem vencer agora. Não importa para nós, contanto que essa guerra tenha fim.
- Eu me importo - declarou Atena.
- Imagino. De qualquer forma, isso tudo ficar duas vezes melhor para o seu lado. Os Gregos vencem, seu amante é Grego... E todos viverão felizes para sempre. Ei,
talvez possa manipular as coisas, de modo que Ulisses demore outra década para voltar para casa! Assim poderia tê-lo só para si por muito mais tempo.
Os olhos cinzentos de Atena se estreitaram de novo.
- Eu já disse que não estamos discutindo a minha vida amorosa.
- Pelas nádegas molhadas de Poseidon, você é muito aborrecida! - exclamou Vênus. Em seguida, lembrando-se de onde estava, lançou um olhar nervoso na direção do mar.
- Desculpe-me, querido. Sabe que eu disse isso com amor.
- Quer fazer o favor de manter o foco? E quanto a Aquiles e seu destino? Isso significa que ele vai morrer amanhã? - Atena quis saber.
- Ah, não se preocupe com isso. Aquiles estará dormindo, bem seguro, em sua cama. Será Pátroclo, ajudado por um pouco da minha magia, quem irá liderar os Gregos.
Mas não compartilhe essa informação com o seu namorado!
- Ele não é meu nam... - Atena começou a vociferar.
- Não importa! Só não conte a ele. Eu a verei amanhã, assim que essa coisa toda terminar. A menos que esteja ocupada outra vez...
Vênus jogou um beijo para Ulisses e, em seguida, desapareceu.
Capítulo Vinte e Seis
As enormes tendas de Agamenon vibravam com festa. Naturalmente, a maior parte dos farristas era de contemporâneos do rei - homens muito velhos ou então de posição
proeminente demais para ir a combate, ainda que não se pudesse dizer isso diante de seus brindes e discursos.
Também havia mulheres a rodo. Jovens e submissas noivas de guerra que, se não ansiosas por agradar, ao menos pareciam dispostas a fingir que sim diante das vantagens
que uma noite como aquela poderia lhes proporcionar.
Briseida odiava todos eles. Cada um daqueles bodes velhos no cio, com seus testículos murchos. Mesmo assim, lançava discretos sorrisos àqueles que considerava menos
repulsivos. Agamenon poderia se cansar dela a qualquer momento e, se isso acontecesse, ela poderia se valer de algum daqueles futuros cadáveres até que houvesse
algum guerreiro disposto a lutar por ela contra seus camaradas.
O que ela não daria para pertencer a alguém tão viril como o dourado Aquiles!... Suas cicatrizes nunca a haviam incomodado, e a Fúria sempre a animara mais do que
assustara. Entretanto, quando pertencera a ele, Aquiles não costumava nem mesmo olhar em sua direção, a menos que quisesse vinho ou comida. Desde que ele dera permissão
para que Agamenon a levasse, ela vinha se amaldiçoando por não ter sido mais ousada ao ter uma chance com ele. Devia ter ido para sua cama sem ser convidada. Devia
ter pensado em enfeitiçá-lo, como fizera Polixena.
- Briseida! Mais vinho! - Agamenon ordenou, esticando-se de onde estava, sentado em seu trono de ouro, para lhe agarrar um peito e apertar dele a ponta, apenas para
a delícia dos generais que a tudo assistiam.
Briseida quis cerrar os dentes e sibilar como uma víbora, mas, em vez disso, arqueou as costas num gesto sensual e falou com voz rouca:
- Qualquer coisa que desejar, meu senhor. - Então apanhou o enorme jarro de vinho e desfilou diante dos outros homens, acariciando o lado liso da cerâmica sugestivamente
enquanto lhes permitia apreciar seus jovens mamilos intumescidos e fantasiar sobre tudo o que quisessem.
Assim que saiu da tenda, desistiu do caminhar sensual e passou a se mover com o silêncio de um gato - habilidade que tinha aperfeiçoado quando ainda era apenas uma
criança. E claro que aqueles guerreiros idiotas que se amontoavam ao redor dos barris de vinho não se deram conta de sua aproximação.
Ao ouvir o nome dele, Briseida congelou em meio às sombras.
- Aquiles?! Tem certeza? - indagou um baixinho de aparência rude.
- Ouvi o próprio Ulisses falando. Deve ser verdade! - Foi a resposta de um soldado alto e cheio de marcas.
- Com Aquiles e seus Mirmidões liderando o ataque, irmãos, a vitória será nossa, amanhã!
- Eu não acreditava que ele fosse lutar de novo. Ouvi dizer que a princesa de Troia havia lhe lançado um feitiço - comentou outro homem.
- Ela lançou um feitiço apenas aqui - respondeu o homem baixo, agarrando os genitais e projetando os quadris -, e não aqui. - Com a outra mão, ele levantou a espada
e a fez girar em arco ao redor da cabeça.
Todos os homens riram, e Briseida saiu das sombras.
- Agamenon deseja mais vinho. Encha isto - falou, fria, estendendo o jarro.
O baixinho o apanhou.
- Vou enchê-lo para você... - Seu olhar persistente dizia que ele gostaria de enchê-la assim como faria com o jarro; contudo Briseida sabia que, enquanto ela fosse
o prêmio de guerra de Agamenon, nenhum homem falaria abertamente de sua luxúria. O rei poderia fazer o que quisesse com ela, mas não seus homens.
O homenzinho entregou-lhe o jarro de volta, os olhos fixos nos mamilos eretos por baixo das vestes transparentes.
- Qual é o seu nome? - Briseida quis saber.
Ele sorriu, exibindo os dentes podres.
- Aentoclus, senhora.
- Pois muito bem, Aentoclus. Se olhar de novo na minha direção, direi a Agamenon que tentou me violentar e pedirei ao meu amante, o seu rei, que me traga seus testículos
como compensação.
Enquanto o guerreiro perdia a cor, Briseida sorriu e foi embora, segurando o jarro com cuidado para não derrubar vinho nas vestes.
Voltou para o lado de Agamenon, desta vez ignorando os olhares lascivos dos generais. Encheu seu cálice e inclinou-se para o rei, sussurrando-lhe ao ouvido:
- Tenho notícias sobre Aquiles.
Os olhos perspicazes do monarca se desviaram para os dela, e o que ele viu neles o fez bater palmas e ordenar:
- Mais música e dança!
A música explodiu no ambiente enquanto adolescentes vestidas apenas com correntes de ouro ondularam através da tenda, desviando a atenção dos homens.
- O que ouviu? - ele perguntou com calma.
- Aquiles e os Mirmidões vão liderar o ataque amanhã - Briseida sussurrou, acariciando-lhe o ouvido, e sentiu o choque que atravessou o corpo de Agamenon.
- Tem certeza?
- O próprio Ulisses se encarregou de espalhar a notícia.
- Se isso for verdade - ele passou o braço ao redor de sua cintura -, você é uma joia rara, minha querida.
- E sempre sua, meu amo. Sempre sua. - Briseida sorriu, presunçosa, e se aninhou junto dele, deslizando a mão macia de modo a acariciá-lo no interior da coxa. Não,
Agamenon não se cansaria dela. Não importava o que ela tivesse de fazer: continuaria a ser a noiva de guerra do rei mesmo quando eles voltassem para a Grécia.
- Kalchas! - Agamenon levantou a voz acima da batida sensual dos tambores.
- Aqui, meu senhor. - O velho profeta pareceu materializar-se do nada.
Ele é como uma névoa venenosa, Briseida pensou, alimentando seu desgosto por aquele velho nojento que vivia se esgueirando. Ele era um dos homens favoritos do rei,
e ela, esperta demais para se mostrar sua inimiga.
- Vá chamar Ajax para mim.
- Ajax, senhor?
Briseida notou que os generais que tinham ouvido o comando de Agamenon também ficaram confusos. Ajax era brilhante no campo de batalha. Fora deste, mal conseguia
concatenar as ideias. O homem era, literalmente, tão grande, forte e estúpido como um boi.
- Sim, Ajax. Eu tive um sonho ontem à noite em que ele era fundamental para uma grande vitória amanhã. Quero contar-lhe a respeito desse sonho e da recompensa que
pretendo lhe dar por seus feitos heroicos.
- Sim, senhor. - Kalchas curvou-se e correu para fora da tenda.
Os generais que a tudo haviam escutado sorriram e sinalizaram sua concordância. Sonhos eram enviados pelos deuses, e ver seu rei se baseando em um deles para agir
era algo a que jamais se oporiam.
Mas Briseida sabia: Agamenon estava mentindo. A única coisa com a qual ele sonhara na noite anterior fora com suas pernas abertas. Ele mesmo lhe revelara isso naquela
manhã quando, ao acordar, pusera o rosto entre suas coxas.
Acariciou seu ouvido outra vez enquanto sussurrava:
- O que pretende fazer, amo?
Em um movimento rápido, Agamenon a puxou para o colo de modo que ela montasse em sua ereção e ele pudesse empurrá-la intimamente entre suas pernas. Briseida inclinou-se
sobre ele e, escondido por seus longos cabelos, o rei revelou:
- Se Aquiles lutar contra os Troianos amanhã, será sua última batalha; e também o dia em que seremos vitoriosos. Espero há quase dez verões que a maldita profecia
de sua morte se concretize, e não vou esperar mais.
- Mas ouvi de minhas fontes, no acampamento dos Mirmidões, que Polixena parece estar frustrando a profecia! Talvez isso seja verdade. Sabe que nem mesmo os asseclas
de Poseidon poderiam matá-la.
Agamenon mordeu-lhe o pescoço.
- Tudo o que Aquiles precisa fazer é matar Heitor, e sua morte virá em seguida - sussurrou, malévolo. - Foi Zeus quem decidiu assim. Nem mesmo um oráculo protegido
por uma deusa pode mudar isso. Polixena o tem mantido fora do campo de batalha e, portanto, distante de Heitor. Mas talvez a arrogância de Aquiles o tenha levado
a acreditar que seu oráculo, de alguma forma, vá protegê-lo no campo de batalha. Meu trabalho será apenas garantir que o caminho de Heitor até Aquiles esteja aberto.
O destino fará o restante.
Briseida riu com voz rouca.
- É mesmo brilhante, querido - falou com um gemido, ondulando o corpo contra o membro túrgido de olhos fechados e fingindo que cavalgava o corpo jovem e forte de
um guerreiro.
- Esse feitiço não pode ser assim, tão simples - comentou Aquiles.
- Eu já disse que não é magia, é auto-hipnose. E, sim, ela é muito simples... e complexa ao mesmo tempo - admitiu Kate. - A nossa mente é incrível. Pode fazer uma
pessoa acreditar que está doente ou, melhor ainda, fazê-la acreditar que está bem quando deveria estar doente. Já testemunhei verdadeiros milagres nesses dez anos
de prática.
- E essa auto-hipnose, que não é feitiço, mas se parece muito com um, pode me ajudar a manter a Fúria sob controle - ele concluiu, pegando uma mecha grossa do cabelo
de Kat, enrolando-a no dedo e depois levando-a aos lábios. - Isto é como uma pele de zibelina. Eu nunca vou me cansar de tocá-lo.
- Eu dei sorte - sussurrou Kat, inclinando a cabeça para que Aquiles pudesse acariciar os fios com mais facilidade. - Polixena tinha um cabelo maravilhoso.
Aquiles sorriu.
- Eu me esqueço de que este corpo nem sempre foi seu. Qual era a cor do seu cabelo antes?
- Era loiro. Não tão comprido assim, mas também era bom.
- Seria linda de qualquer forma para mim - ele afirmou, beijando-a nos lábios de leve.
- Que bonitinho... Mas não vai conseguir mudar de assunto tão fácil. Sim, a auto-hipnose, que não é um feitiço coisa nenhuma, pode ajudá-lo a controlar seu corpo
e suas emoções, de modo que consiga se manter relaxado o suficiente para evitar os gatilhos que despertam a Fúria. Não importa o que esteja acontecendo com você.
- Quer dizer, então, que o nosso filho não vai me despertar a Fúria acidentalmente ao acreditar que não pode se afogar por ser neto de uma deusa do mar... - elaborou
Aquiles, fitando-a nos olhos.
Refém das profundezas azuis da alma daquele homem incrível, Kat vislumbrou um futuro em que o amava e vivia a seu lado. Queria, sim, ser a mãe de seus filhos. Assim
como queria netos ou qualquer que fosse o equivalente, no antigo e mágico mundo grego, para a família tradicional. Em uma casa com cerquinha branca, de preferência.
E ainda queria um cachorro. Queria tudo.
- E se for "a nossa filha"?...
Aquiles piscou, pois não tinha considerado essa possibilidade. Depois soltou uma risada seca, e seus lábios se curvaram no esboço de um sorriso.
- Acho que vou ter de aprimorar a minha prática de auto-hipnose. Ou talvez não praticá-la de modo algum. Afinal, ser dominado pela Fúria seria uma coisa boa ou ruim
quando algum pretendente tentasse tirar a minha filha de mim?
Kat sorriu.
- Creio que o controle ainda é a chave nesse caso. Se ele for um sujeito todo largado, daqueles que veste calças de emo e usa delineador, deixamos a Fúria tomar
conta. Mas se for um bom menino, só precisa rosnar e assustá-lo um pouco.
Aquiles franziu a testa, confuso, e Kat caiu na risada.
- Em resumo, você só devora os pretendentes de que não gostarmos, que tal?
Ele continuou de testa franzida.Capítulo Dezenove
Kat ouviu Jacky resmungando antes mesmo de abrir os olhos. Estava dizendo algo parecido com "Meu Jesus Cristinho" e "Isso não tem cabimento".
Sorriu. Se tivesse morrido e ido para o inferno, ao menos Jacky viera com ela outra vez.
Abriu os olhos.
- Ei... - resmungou. - Pensei que tomasse conta da língua ao menos quando estivesse de plantão.
Jacky se inclinou sobre ela no mesmo instante, tomando seu pulso, ao mesmo tempo que lhe limpava o rosto com um pano frio.
- Katrina, querida, você voltou!
- Se está me chamando de "querida" é porque a coisa está feia. Perdi uma perna ou algo assim?
- Ah, obrigada, meu Jesus Cristinho, é você mesma! - Jacky a beijou nos lábios sem cerimônia. - Nunca mais me deixe apavorada assim!
- Que diabo, Jacky? Não pedi para aquelas coisas nojentas me atacarem.
- Muito bem, quero que conte meus dedos... - Ela levantou três dedos, tal qual um árbitro de beisebol.
- Três dedos, como o Yoda. A propósito, se não fizer uma manicure em breve e cortar essas unhas, vai ficar ainda mais parecida com ele. - Kat deu um tapinha fraco
na mão da amiga. - Tenho que dormir com você para conseguir algo para beber?
- Felizmente, não, até porque está com um bafo e tanto! - Jacky virou-se para a mesa lateral e despejou a água de um cântaro em um copo. Em seguida, ajudou-a a beber.
- Não é de admirar. Caramba, estou me sentindo uma merda!
- Para uma mulher que ficou em coma por quatro dias, está me parecendo ótima!
- Quatro dias! - ela exclamou em meio a longos goles de água.
- Ei, vá com calma. Vai ficar enjoada se beber demais.
- Já estou enjoada.
- Pois vai se sentir pior. E pode vomitar.
Kat tomou mais um gole e, então, entregou o copo a Jacky, relutante, deitando-se no travesseiro.
- Quatro dias, Jacky? Por quê? A mãe de Aquiles me curou do veneno. Ou ao menos eu pensei que ela tivesse curado.
- E curou, mesmo. Ou melhor, Tétis fez o que pôde, apesar da sua "notável e frágil concha humana", como disse Atena. Mas teve que se recuperar por conta própria
depois.
- Atena estava aqui?
- Hum-hum. Todas as três vieram. Na verdade quatro, se contar a mãe de Aquiles, que já o acompanhava quando ele chegou ao acampamento, carregando-a semimorta, e
quase me matou de susto há quatro dias.
- Nossa. Agora estou me sentindo especial.
Jacky revirou os olhos.
- Você é "especial". - Jacky fez aspas no ar para destacar a palavra. - Tão especial que, quando formos para casa, vou pedir um ônibus da prefeitura para vir te
buscar.
- Espere um pouco... Se todas as deusas estavam aqui, por que elas não usaram seus poderes para me fazer acordar?
- Eu mencionei isso. E talvez não num tom muito educado.
- Você sendo curta e grossa com alguém?... Estou chocada. Imagino o que não deve ter falado para as pobres deusas!
- Acontece que, aparentemente, o monstro melequento que a pegou tinha mais poderes do que parecia. As deusas não conseguiram neutralizar todo o veneno. Seu corpo
também precisou combatê-lo por si só.
- Aposto que isso a deixou num mau humor daqueles. - Kat sorriu para sua melhor amiga.
- Um pouco. - Jacky pegou a mão dela e a apertou. - Estou tão feliz por não ter morrido nas minhas mãos!...
- Eu também. - Kat a apertou de volta. - Desculpe-me se a assustei.
- Tudo bem. Até porque decidi que está me devendo uns sapatos.
- Sapatos?
- Lembra-se daquele seu lindo par de escarpins de couro vermelho que eu cobiço faz tempo?
- ... Sei.
- Pois eu cansei de cobiçá-lo.
- Aff!, você é uma enfermeira perversa!
- Obrigada. Agora me diga que diabo a picou desse jeito.
- Não faço ideia. Em um momento eu estava andando pela praia, tentando encontrar Aquiles; no seguinte, vi algo na água e parei para olhar. Foi então que aquela coisa
cheia de tentáculos me agarrou e me picou, paralisando a minha perna. Fui sendo agarrada e picada seguidas vezes, até que apertei o botão de pânico e gritei para
Vênus. - Kat tocou o medalhão que ainda lhe pendia entre os seios e estremeceu. - Aquelas coisas não estavam para brincadeira. Ficavam ondulando, pareciam o rabo
de um rato, e havia literalmente centenas delas pulando em mim.
Jacky torceu o rosto como se tivesse acabado de chupar um limão.
- Jesus! Eram como caudas de rato? Que coisa nojenta!
- Sim, e elas já estavam me puxando para o fundo, querendo que eu servisse de alimento para o que parecia ser a mãe gigantesca delas, quando Aquiles se materializou,
foi dominado pela Fúria e acabou com elas. Em seguida, a mãe dele apareceu, tocou em mim e eu desmaiei. Fim. Mas Aquiles já não lhe contou tudo isso?
- Hum... não. Aquiles anda todo esquisito desde que a trouxe de volta. Mal trocou duas palavras conosco. Nem mesmo Pátroclo conseguiu conversar com ele. Na verdade,
Pátroclo também anda estressado, e creio que ele já esteja cansado de tentar fazer Aquiles se abrir e só ouvir grunhidos e rosnados.
- Jacky, não está infernizando a vida do rapaz, está?
- Claro que não. Pátroclo e eu estamos bem. Melhor do que bem. É por causa dessa maldita guerra de que ele não está participando e outras coisas de que tem ouvido
falar. Mas, enquanto Aquiles não lutar, Pátroclo também não vai lutar, portanto não estou dando a mínima para esse assunto. - Jacky fez um gesto de desdém. - De
qualquer forma, minha intuição feminina, que é bastante apurada, me diz que Aquiles está preocupado por você tê-lo visto se transformar na coisa, e que agora acha
que vai fugir correndo dele. É claro que é sensata o bastante para não fazer isso, o que eu tentei explicar a ele, mas Aquiles não me escuta. Na verdade, naquela
noite, acho que ele bebeu até cair.
- Talvez devesse ir buscá-lo para que eu possa explicar pessoalmente que eu não tenho juízo...
- Boa ideia - decidiu Jacky. E, em seguida, acrescentou: - Kat, ele se transformou com a tal Fúria, não foi?
- Sim - ela respondeu baixinho.
- E foi horrível. - Jacky não colocou a frase como uma pergunta, porém Kat acenou com a cabeça.
- Foi um horror. Não era mais ele. Seja lá o que for que toma conta de Aquiles, não é humano. Não pode ser.
- Mas Aquiles tinha voltado ao normal quando a trouxe de volta para o acampamento - Jacky observou.
- A mãe dele o chamou na hora, fez algo com a água e foi como se o mar levasse a Fúria embora.
- O que significa que essa coisa pode realmente ser controlada. Estou certa?
- Não está sempre certa?
Jacky soltou uma risada seca.
- Vou buscar o burro e mal-humorado do seu homem - decidiu, mas, antes de sair da tenda, tornou a olhar para Kat. - Prometa que vai tomar cuidado.
- Prometo.
- Você sabe que eu te amo.
- Eu também te amo, Jacky.
Jacky conseguiu sorrir - a despeito de sua preocupação - enquanto se abaixava e deixava a barraca.
Kat estava pensando como seu cabelo devia estar terrível, e tentou penteá-lo com os dedos, quando o corpanzil de Aquiles preencheu a entrada da tenda. Seu olhar
recaiu direto sobre ela, e Kat sorriu.
- Acho que preciso lhe agradecer por ter salvado a minha vida. Na realidade, a você e à sua mãe. - Quando ele não disse nada e apenas continuou a fitá-la, ela continuou,
num murmúrio: - Sua mãe é linda, por sinal. E também parece ótima pessoa, digo, deusa. Se ela ainda estiver aqui, eu adoraria conhecê-la formalmente. Depois que
eu me puser decente, claro.
- Está linda - ele afirmou.
- Deve estar com problemas na vista! Deveria deixar Jac..., quero dizer, Melia, examinar os seus olhos. Os modos dela deixam um pouco a desejar, mas Melia é excelente
enfermeira.
Os lábios de Aquiles se curvaram de leve.
- Melia é muito leal a você. E minha mãe voltou para as profundezas. Ela não pode ficar em terra firme por muito tempo. - Ele parou, prendeu as mãos às costas, em
seguida deixou os braços cairem ao lado do corpo para, então, como se não soubesse o que fazer com eles, correr a mão pelo cabelo. - Não precisa me agradecer por
ter salvado a sua vida. Não fui eu quem lutou contra aquelas criaturas.
Kat manteve o olhar fixo no dele.
- Eu sei disso. Mas foi você quem se apresentou para a luta. Além do mais, aposto que podia ter vencido aquelas coisas nojentas sem a Fúria.
- Não. Eu não poderia ter derrotado as criaturas sem a Fúria. - Aquiles falou devagar, como se quisesse ter certeza de que ela o compreenderia. - O veneno que quase
a matou teria me destruído. A Fúria é que me tornou imune a ele.
- Se é assim, fico contente por ela tê-lo dominado.
- Como pode dizer uma coisa dessas? Eu me transformei em um monstro. Um monstro que a teria estuprado e deixado morta.
- Mas que não fez nada disso. Você voltou. Conteve o monstro.
- Porque minha mãe, uma deusa do mar, interveio!
- Talvez - Kat concordou com bom-senso. - Mas talvez possa aprender a detê-lo também.
Não acredito que isso seja possível.
- Alguma vez acreditou que iria fazer amor com uma mulher sem que a Fúria o possuísse? - ela inquiriu.
- Não - Aquiles respondeu, hesitante. - Nunca.
- O que aconteceu entre nós não foi nenhum sonho. Sabe disso, não sabe?
- Sei.
- O que estou dizendo não faz sentido, então?
- Você é um oráculo da deusa Atena. Tem poderes que as outras mulheres não têm. Por isso pode me tocar e eu continuar sendo um homem.
Kat abriu a boca para afirmar que aquilo não passava de uma enorme bobagem, mas a fechou em seguida. Não podia dizer nada a ele.
De repente, se rebelou. Por que não? Nenhuma das deusas havia dito que ela não poderia fazer isso. Ninguém tinha dito que precisaria ocultar sua verdadeira identidade
de Aquiles. Precisava ludibriar apenas os integrantes do acampamento grego.
Por um instante, Kat desejou poder falar com Jacky primeiro, mas logo chegou à conclusão de que não precisava perguntar nada à melhor amiga. Jacky era a autenticidade
em pessoa. Dizia a verdade até mesmo quando não devia. Por isso mesmo ela, Kat, gostava tanto dela.
Além do mais, era uma estupidez esconder tudo de Aquiles. Se não confiava nele nem mesmo para revelar a própria identidade, não deviam ter tido relações sexuais.
Qualquer pessoa saberia disso.
- Aquiles, será que não pode chegar mais perto? Preciso falar com você a respeito dessa história de oráculo.
Ele atravessou o cortinado da cama com um misto de hesitação e ansiedade. Era óbvio que queria tocá-la, que precisava tocá-la. Tão óbvio quanto o fato de ele temer
ficar muito próximo e ser rejeitado.
Kat estendeu a mão e sorriu.
- Por que não se senta aqui a meu lado?
A única coisa que mudou na expressão velada de Aquiles foi o alívio em seus olhos. Ele obedeceu, cauteloso, e segurou a mão dela como se esta fosse uma borboleta.
Em seguida, surpreendeu-a, beijando seus dedos com delicadeza. Falou ainda olhando para eles e acariciando com o polegar o lugar em que beijara.
- Quando o monstro me deixou e eu a vi deitada lá, pensei que a havia perdido. - Ergueu o olhar, então, e Kat ficou chocada com a profundidade da tristeza em seus
olhos. - Acho que eu não suportaria perdê-la também.
Foi nesse momento que Kat parou de mentir para si mesma. Aquilo não era apenas uma missão. Aquiles não era um projeto que ela assumira, levada por outras pessoas.
De alguma forma, a despeito do tempo, dos mundos e da lógica, ele era o seu destino. Estava ligada a Aquiles como nunca tinha chegado perto de estar com qualquer
outro homem em seu próprio mundo. E não queria abandoná-lo.
E perceber isso foi tão libertador como assustador. Jacky iria matá-la. Definitivamente.
Precisou limpar a garganta antes de falar:
- Eu não sou quem pensa que sou.
- Não é Polixena?... Mas as servas a reconheceram como a princesa.
- Apenas escute. Deixe-me contar tudo e, se não acreditar em mim, a princípio, por achar que é loucura, lembre-se de como é insano você ser possuído por um monstro.
Aquiles franziu a testa.
- Eu vou me lembrar.
- Muito bem. A verdade é que este - Kat apontou para o próprio corpo - é o corpo de Polixena, princesa de Troia. Mas isto - ela fechou o punho e o colocou sobre
o coração -, a alma dentro deste corpo, não pertence à Polixena. Pelo menos não desde o dia em que Ulisses foi ao templo de Hera.
- Não compreendo.
- No dia em que vim para você, Polixena e sua serva, Melia, tinham sido assassinadas por soldados de Agamenon que invadiram o templo de Hera. No mesmo dia, em outro
tempo e em outro mundo, eu também morri em um acidente, junto com a minha melhor amiga. Vênus estava nos observando nesse instante, então pegou as nossas almas e
as colocou nos corpos de Polixena e Melia. - Kat se apressou em continuar antes que ele pudesse dizer qualquer coisa. - Não faz muito sentido para mim, também. A
parte que consigo compreender melhor é que as deusas me queriam aqui. - Ela parou quase a ponto de admitir que o objetivo era mantê-lo fora da guerra, de modo que
Troia pudesse vencê-la. Mas como poderia revelar isso a Aquiles? - Respirou fundo. - Elas queriam que eu viesse para cá por sua causa. Atena, Hera e Vênus, todas
acreditam que seu destino deve ser modificado. E elas acham que eu posso ajudá-lo com isso.
Enquanto ela falava, Aquiles foi se tornando cada vez mais rijo. Mas não puxou a mão da dela, tampouco desviou o olhar do seu.
- Quer dizer que vem de outro mundo?
- Não sei se exatamente de outro mundo, mas de outro tempo. Do futuro. - Ela esboçou um breve sorriso. - De um futuro muito distante, na verdade. Ao menos de dois
mil anos à frente deste tempo.
- E no seu futuro as pessoas me conhecem?
- Conhecem, sim.
Aquiles deixou cair a mão e se pôs de pé, dando as costas para ela.
- De que modo você ou as deusas acreditam que o meu destino possa ser mudado? Ele já aconteceu!
Kat pensou por alguns instantes e encontrou a resposta sem dificuldade.
- É pura ficção.
Ele se voltou para ela.
- Ficção? Como assim?
- No meu tempo, as histórias a seu respeito, e sobre a era em que viveu, são tidas como ficção. Como Mitologia, para ser mais específica. Histórias que não são verdadeiras,
que nunca aconteceram. Ou então que aconteceram, mas que foram exageradas ao longo dos anos. Quer um exemplo? No meu tempo, as pessoas acreditam que é imortal, invulnerável...
exceto pelo seu calcanhar. Dizem que foi atingido por uma flecha exatamente nesse ponto, e que isso foi a sua derrocada.
- No meu calcanhar? - Ele olhou para o pé, cuja aparência era mais do que normal.
- No seu calcanhar - ela repetiu. - Ficou tão famoso por isso que o feixe de fibras que corre atrás do tornozelo - Kat afastou as cobertas de cima da própria perna
e apontou para o tendão - é conhecido como "tendão de Aquiles" no meu mundo inteiro.
- Isso não faz sentido!
- Também acho. A menos que me diga que a única maneira de você morrer é mesmo ser atingido, esfaqueado - ou seja lá o que for - no calcanhar.
- Mas o calcanhar não é uma área vulnerável do corpo. Caso se rompa esse tendão, um homem poderia até ser derrotado porque perderia a utilidade de uma das pernas,
mas o ferimento por si só jamais iria matá-lo.
- O seu calcanhar não é invulnerável, portanto.
- Não.
- E você não é imortal.
- Claro que não.
- Muito bem. Agora escute esta... Diz a Mitologia que Troia foi derrotada por um cavalo oco e gigantesco, recheado de Gregos. Que eles invadiram a cidade se ocultando
na barriga desse falso cavalo.
- Está de galhofa.
- Nunca falei tão sério na vida.
- Mas um cavalo oco e gigante é uma parvoíce!
- Está acompanhando meu raciocínio? Você e a Guerra de Troia foram registrados na história, porém os fatos de sua vida e da guerra foram todos adulterados ou aumentados
com os mitos. O que realmente acontece com você poderia, portanto, ser muito diferente do que lhe foi destinado.
- E qual foi esse destino?
Kat não desviou o olhar dos olhos azuis e penetrantes.
- Você morre aqui, em Troia, neste último ano da guerra.
Capítulo Vinte
Kat imaginou que Aquiles fosse fazer mais perguntas sobre a própria morte, mas, em vez disso, ele apenas acenou com a cabeça breve e desinteressadamente. A única
coisa em que parecia interessado era nela.
- Vai me dizer o seu nome verdadeiro?
- Katrina Marie Campbell. Meus amigos me chamam de Kat.
- E você não é uma princesa?
Kat riu.
- Não. Nem de longe. Sou uma espécie de... médica de cabeça.
- Também é curandeira?
- Oh, Deus, não. Sou terapeuta. Alguém que aconselha as pessoas e as ajuda a equilibrar suas emoções. Minha especialidade é o aconselhamento de casais.
- Por isso sabia o feitiço necessário para me acalmar?
- Sim, mas não é um feitiço. Na verdade, não existe nenhuma mágica no que eu faço. Você pode até aprender a fazer sozinho. Chama-se hipnose. É apenas uma maneira
de relaxar e chegar ao seu subconsciente.
- A mente que sonha? Por isso, no início, eu acreditava que estava apenas sonhando que você me tocava!
Kat sentiu o rosto pegar fogo.
- Sim. Aliás, eu sinto muito por isso. Não tive a intenção de me aproveitar da situação. É que você é tão... másculo e, quando comecei a tocá-lo, não pediu que eu
parasse, então...
A risada de Aquiles soou alta, longa e desinibida.
- O que foi? - Kat franziu o cenho. Queria que ele risse e sorrisse mais, mas não dela!
Ele a beijou na mão mais uma vez.
- Eu não era tocado por uma mulher havia uma década, e ainda me pede desculpas por algo que considerei um milagre. É uma mulher estranha e mágica, Katrina Marie
Campbell.
- Pode me chamar de Kat - ela contrapôs. - E não foi ético o que eu fiz. Não quero que pense que é assim que eu me comporto normalmente.
A expressão divertida de Aquiles tornou-se sóbria.
- Está arrependida do que aconteceu conosco?
- Não, de maneira alguma. Só sinto não ter lhe contado tudo isso antes.
Ele sorriu.
- Eu não teria acreditado em você e decerto a teria mandado embora, pelo seu próprio bem. Não tem nada por que se desculpar, Kat, a menos que não queira a minha
devoção, a minha proteção e o meu amor. Porque eu gostaria de lhe dar essas três coisas, além de muito, muito mais.
Kat tomou ambas as mãos de Aquiles nas dela e o fitou bem no fundo dos olhos azuis.
- Eu não apenas aceito a sua devoção, a sua proteção e o seu amor, como também quero mais.
- Diga. Se estiver ao meu alcance, eu o farei.
- Quero que fique fora dessa guerra até termos a certeza de que consegue controlar a Fúria. E, mais do que isso, quero que fique bem longe de Heitor.
- A profecia diz que estou destinado a morrer depois que eu o matar.
Kat apertou as mãos dele com força.
- Então não o mate! Por que isso seria assim, tão difícil?
- Neste momento, não consigo imaginar o que poderia me levar a lutar com Heitor. - Aquiles soltou uma risada seca. - Não guardo nenhum rancor contra ele. Sei que
Heitor é um homem honrado, muito amado por sua família e pelos Troianos, e não costumo derrubar homens honrados, no auge de suas vidas, quando eles não me fizeram
nada.
- Que bom. Se é assim, está resolvido. Ficaremos juntos aqui, e eu irei ensiná-lo a desenvolver habilidades de auto-hipnose.
Aquiles lançou-lhe um olhar horrorizado.
- Não posso enfeitiçar a mim mesmo!
- Aquiles, quantas vezes tenho que explicar que não se trata de um feitiço? Não é nada mais do que respiração, concentração e relaxamento.
- Acredita mesmo que eu possa aprender a controlar a Fúria?
- Não sei se pode controlá-la - Kat contrapôs, honesta. - O que eu acredito é que posso ensiná-lo a impedir que ela o domine antes que seja necessário você controlá-la.
Aquiles se levantou e começou a andar de um lado para o outro, perto da cama.
- Se a Fúria não voltar a me possuir... - Suas palavras sumiram.
- ... Sua vida não vai girar mais em torno das guerras - Kat terminou por ele. - E seu destino será outro. É isso o que quer? - Ela sentiu o peito se apertar enquanto
aguardava pela resposta.
Aquiles parou e olhou para ela.
- Eu poderia voltar para o meu país, me casar, criar meus filhos, conhecer o amor e a paz, e deixar a guerra, a morte e o ódio para trás.
- Sim, poderia - Kat afirmou.
- Parece um sonho. O tipo de sonho que tive por duas noites seguidas com você.
- Não foram sonhos. Aquilo tudo era real.
- Se é assim, talvez o futuro que eu julgava impossível pode ser real também. Sim. É o que eu quero - ele falou com firmeza.
- Então vamos torná-lo real.
Aquiles voltou para o lado dela, na cama.
- Diz isso com tanta convicção... Como se pudesse mesmo se tornar realidade; como se o meu destino pudesse ser mudado. Quando olha para mim desse modo e fala dessa
maneira, eu quase acredito.
- Pois pode acreditar. E, mais importante do que isso, Aquiles: acredite em si mesmo - pediu Kat.
Ele se inclinou e a beijou suavemente nos lábios. Kat sentiu sua hesitação e soube que Aquiles temia cruzar a linha da intimidade entre eles, o que ela compreendia.
Não precisavam de outro ataque da Fúria, muito menos quando a fé de Aquiles em si mesmo, e em sua capacidade de lutar contra a besta, ainda se encontrava tão frágil.
Por sorte, nesse momento, o estômago dela resolveu soltar um enorme ronco, e Kat riu.
- Estou morrendo de fome!
- Outra vez - ele observou com seu leve sorriso. - Vou pedir que as servas...
- Ah, não! - ela interrompeu, já jogando as pernas para fora da beirada da cama. - Preciso me levantar, andar, tomar um banho!... - Aquiles fez menção de argumentar,
contudo Kat estendeu a mão para ele. - Poderia me ajudar nessas três coisas?
- Tudo o que estiver ao meu alcance - ele reafirmou, segurando sua mão e passando-a pelo braço.
Kat sorriu, sentindo-se surpreendentemente bem para uma mulher que fora envenenada, quase comida viva, e que ficara em coma por quatro dias.
No momento em que chegou ao banco do lado de fora da tenda, tinha as pernas bem mais firmes. Mesmo assim, sentou-se e deixou que Aquiles lhe providenciasse comida
e bebida.
Jacky se encontrava perto da fogueira com Pátroclo (o qual, aliás, parecia mais do que apaixonado), e ambos correram até ela.
- Como está se sentindo? Não está com tonturas, falta de ar, visão turva? Ainda sente alguma coisa paralisada ou formigando?
- Estou bem! Não, não, não e não. Quer fazer o favor de relaxar? Estou ót...
Antes que pudesse terminar a frase, contudo, Aetnia correu até ela e se atirou a seus pés, segurando seus tornozelos e chorando.
- Oh, minha senhora! Mil perdões! Por favor, desculpe! Eu não tinha ideia de que a estava colocando em perigo!
Kat trocou um olhar chocado com Jacky enquanto tentava se desvencilhar do abraço ardente e molhado da serva.
- Aetnia, não foi sua culpa. Estava apenas tentando me ajudar a encontrar Aquiles. Não podia adivinhar que eu ia deparar com aquelas criaturas do mar.
- Não! A culpa foi minha. Eu não devia tê-la escutado. Eu sinto tanto, princesa!... - A moça soluçou, desesperada.
Aquiles a segurou pelo braço e a fez ficar de pé.
- Não devia ter escutado a quem?
Aetnia gritou e se encolheu toda, estendendo a mão para Kat numa súplica.
- Princesa! Não deixe que ele me mate!
- Não seja boba, Aetnia! Aquiles não vai matá-la. - Ignorando o olhar sombrio do guerreiro, Kat o cutucou no braço, obrigando-o a soltar a moça. Pegou Aetnia pela
mão, então, e a fez sentar-se no banco, entre ela e uma carrancuda Jacky.
- Eu não afirmaria isso com tanta convicção, até descobrir o que ela teve a ver com esse ataque contra você - sugeriu Jacky.
Aetnia soltou um chiado, tal qual um camundongo, e chegou mais perto de Kat.
- Não deixe que a bruxa me enfeitice, princesa!
Jacky sibilou para ela e Aetnia gritou, ao mesmo tempo que Kat pensou ter ouvido Aquiles rosnar.
- Está bem! Agora chega! Tratem de se acalmar! - Kat segurou Aetnia pelo ombro, impedindo-a de praticamente subir em seu colo, e apontou para Jacky. - Ela não é
bruxa. - Fez um gesto na direção de Aquiles. - E ele não é nenhum monstro. Agora, respire fundo três vezes e explique, devagar e sem chorar feito uma histérica,
do que estava falando. Respire comigo, vamos. - Embora tivesse vontade de sacudir a mulher, Kat a fez respirar três vezes. - Está bem agora. Fale comigo. - Quando
os olhos da serva se desviaram, nervosos, para Aquiles e Jacky, ela a sacudiu pelos ombros. - Fale comigo, Aetnia!
O olhar da moça se voltou para ela.
- F-Foi... foi quando eu fui até o acampamento grego buscar seu chá.
Kat acenou com um gesto de cabeça, incentivando-a.
- Sim, eu me lembro. Foi muita gentileza sua conseguir o chá para mim. - Ela também se lembrou de que, pouco depois, Aetnia a enviara para aquela praia distante,
onde ela devia ter encontrado Aquiles, contudo manteve a expressão e a voz neutras. - O que aconteceu quando estava no acampamento grego?
- Eu vi Briseida. Ela estava conversando com um grupo de noivas de guerra no acampamento de Acalle. Ela... ela estava falando sobre você e... - Aetnia hesitou, olhando,
apavorada, para Jacky, que torcia os lábios.
- Briseida estava falando sobre Melia e eu - concluiu Kat, apertando os ombros da moça e obrigando-a a desviar a atenção de Jacky. - O que ela estava dizendo?
- E por que isso tem algo a ver com a princesa ter sido atacada? - Aquiles acrescentou, em uma voz que, obviamente, tentava manter razoável.
Kat sentiu Aetnia começar a tremer sob suas mãos.
- Basta falar para mim e tudo vai ficar bem - incentivou em voz baixa. - O que Briseida disse?
- Ela chamou Melia de bruxa. Disse que ela enfeitiçou Pátroclo e que podia até mesmo estar lhe ensinando feitiços.
Kat ouviu Pátroclo soltar uma risada seca, e Jacky teve um pequeno acesso de tosse.
- Isso foi tudo o que Briseida falou?
- Não. Ela ouviu quando pedi um pouco do chá especial de Acalle para a senhora, e afirmou que, se eu quisesse salvá-la do mal de Melia, deveria mandá-la para aquela
praia. Dessa forma, a mãe de Aquiles - Tétis, a deusa do mar - poderia contemplá-la com alguma imunidade contra bruxaria. Por isso eu disse a senhora que Aquiles
estava lá. Pensei que a estivesse ajudando! Por favor, acredite em mim! - suplicou Aetnia antes de se pôr a soluçar mais uma vez.
- Essa vadia lhe preparou uma armadilha! - exclamou Jacky, depois lançou um olhar de desprezo na direção de Aetnia. - Eu não quis dizer esta. Estou falando de Briseida.
- Então voltou a atenção para Pátroclo, que continuava ao lado de Aquiles, e ergueu as sobrancelhas. - Sabia que eu o tinha enfeitiçado, meu anjo?
Pátroclo sorriu.
- Claro que sabia, minha linda.
Jacky jogou-lhe uma série de beijinhos.
Kat os ignorou, concentrando-se em Aquiles, cuja expressão se tornara uma máscara ilegível.
- Nossa. Essa Briseida deve mesmo ser maluca por você. Quer me tirar do caminho a todo custo.
- Bobagem. Ela não me quer coisa nenhuma. Sente o mesmo que todas as outras em relação a mim - ele afirmou, a expressão suavizando por um instante. - Todas menos
você, princesa.
- E por acaso pode ter certeza disso, Aquiles? - interveio Jacky. - Não me leve a mal, mas não me parece um especialista a respeito do que as mulheres querem.
- Não seja maldosa! - ralhou Kat.
- Não estou sendo maldosa! Estou dizendo a verdade! Briseida pode ter sido apaixonada por Aquiles, e ele pode nem ter se dado conta disso! Não disse que ela a fulminou
com o olhar na tenda de Agamenon?
- Verdade - concordou Kat.
- Não é Briseida o problema. É Agamenon - afirmou Aquiles.
- Ahn? - Kat e Jacky indagaram em uníssono.
- Vá, Aetnia. Volte para a fogueira e prepare uma refeição para a princesa - Aquiles ordenou antes de continuar. A moça pulou do banco e saiu correndo, aos tropeços,
em direção ao fogo. - Briseida não a enviou para aquela praia e para o que ela acreditava que seria a sua morte porque me quer. Ela não tem poderes para invocar
criaturas do mar que realizem seus desejos.
- Mas Agamenon tem. Ele já fez isso antes - afirmou Pátroclo.
Aquiles concordou com um gesto de cabeça.
- Briseida foi apenas a porta-voz de Agamenon. Uma ferramenta que ele usou para colocar a princesa em uma posição vulnerável.
- Mas por quê? O que ele tem contra mim?
- Não é contra você. É contra mim - corrigiu Aquiles. - O rei e eu somos inimigos de longa data.
- É mais do que isso - opinou Pátroclo. - Agamenon está tentando obrigá-lo a voltar para a guerra.
- E por que ele acha que me matando faria Aquiles voltar a lutar? - inquiriu Kat.
- Não ouviu? Aquiles e eu fomos enfeitiçados por vocês duas. - O sorriso de Pátroclo foi tão jovial e atraente como de costume, porém Kat ficou surpresa com as olheiras
que notou sob seus olhos expressivos. Pátroclo também tinha perdido peso? Suas maçãs do rosto pareciam mais salientes.
- Então bastaria que vocês dois se vissem livres das bruxas, aqui, e voltariam correndo para a batalha - concluiu Jacky.
- Porque, de acordo com o raciocínio de Agamenon, vocês não têm nada mais importante na vida do que essa guerra - Kat completou, encontrando o olhar azul de Aquiles.
- A guerra é tudo o que tenho para viver na opinião da maioria das pessoas - ele murmurou.
- Eu não faço parte da maioria das pessoas - argumentou Kat.
Os lábios benfeitos do guerreiro se ergueram nos cantos.
- Algo pelo que estou me tornando profundamente grato.
Capítulo Vinte e Um
- O problema é que os homens de Agamenon estão sendo mortos - Pátroclo falou de súbito. - Gregos estão sendo mortos.
Aquiles voltou-se para o primo.
- Agamenon sabia do custo que haveria para o povo grego quando deixou nossas costas para atacar Troia sob o pretexto de estar raptando uma mulher infiel. Muitos
homens foram mortos durante os últimos nove anos.
- Era uma luta equilibrada enquanto ainda estávamos nela.
- Primo, não o estou impedindo de voltar aos campos de batalha. Você, assim como qualquer um dos meus homens, é livre para lutar contra os Gregos.
- Não! - Jacky exclamou, levantando-se e agarrando a mão de Pátroclo. - Não pode lutar sem seu primo, e Aquiles tem excelentes razões para não fazer isso. Agamenon,
esse sujeito que se diz um grande rei e líder, não passa de um mentiroso e um trapaceiro! Ele acabou de tentar matar a princesa para tirá-la do caminho. É como uma
prostituta velha e ardilosa! Não deixe que ele o influencie!
Kat observou Pátroclo acariciando o rosto de Jacky e ficou tocada diante da óbvia adoração nos olhos do jovem guerreiro, que sorriu para a sua melhor amiga.
- Não se preocupe, minha linda. Não pretendo lutar sem meu primo.
- Parece que Agamenon não o conhece muito bem se pensa que o caminho para tê-lo de volta é atacar alguém com quem você se importa - raciocinou Kat.
- Agamenon é um parvo - declarou Aquiles. - Sei reconhecer um tolo porque fui um quase a vida toda. O rei luta pela glória, pois acha que sua imortalidade será assegurada
pela espada, quando a verdadeira imortalidade só pode ser encontrada em nossos filhos e filhas. - Balançou a cabeça, parecendo várias décadas mais velho do que seus
vinte e nove anos, depois sorriu com tristeza para Pátroclo. - Melhor se lembrar disso, primo.
- Nós vamos nos lembrar - afirmou Pátroclo, pondo-se ao lado de Jacky para descansar a mão em seu ombro.
Kat esperava que Jacky fosse empalidecer e fazer algum comentário do tipo "ninguém aqui vai ter filhos", mas, em vez disso, ela sorriu para Pátroclo, parecendo a
mais feliz das criaturas.
- Então decidiu que não vai mais lutar, Aquiles - concluiu Kat. - Mesmo que Agamenon tenha mandado me atacar e que eu quase tenha morrido.
Aquiles tinha começado a relaxar, e seu imediato e férreo autocontrole ficou bastante evidente.
- Gostaria que eu me vingasse em seu nome?
- Não! Claro que não. Eu só queria saber se era essa a sua intenção.
- Minha intenção não se modificou.
- Ainda quer mudar seu destino? - ela quis saber.
- S-Seu jantar, senhora. - Aetnia, sem dúvida escutando o último comentário de Kat, quase derrubou a tigela com o ensopado que havia trazido.
- Deixe a comida e traga vinho para todos - Aquiles comandou com um grunhido.
Servil, Aetnia correu para atender ao pedido.
- Precisa parar de assustá-la assim! - ralhou Kat.
- Pois eu gostei. Assuste mesmo, Aquiles! - incitou Jacky.
- Por fora você é como uma espada, minha linda: afiada, forte e mortal. Mas, por dentro, é como um pêssego suculento, sempre pronta para o meu prazer... - elaborou
Pátroclo.
Kat ergueu as sobrancelhas quando, em vez de crucificá-lo pelo comentário piegas, Jacky riu, deliciada.
- Diz coisas tão lindas, meu anjo! - falou, inclinando a cabeça para trás a fim de receber um beijo.
Kat comeu o ensopado em silêncio enquanto Aetnia corria ao redor, na companhia de outra serva tão tímida quanto ela, distribuindo cálices para todos e enchendo-os
com vinho tinto. Suspirou, pensativa. Estava começando a se sentir bem melhor. A fraqueza parecia ter diminuído, assim como aquela sede insaciável e a sensação de
não pertencer àquele mundo, o que era no mínimo irônico. Claro que não pertencia àquele mundo. E nem Jacky. Mas ali estavam as duas, sentindo-se inegavelmente atraídas
por aqueles dois homens - os quais pareciam agora entranhados em seus destinos.
- Está se sentindo bem mesmo? - A pergunta contundente de Jacky, ainda que feita em voz baixa, a arrancou de sua introspecção.
- Estou meio confusa - admitiu. Aquiles e Pátroclo haviam se afastado em direção à fogueira a fim de apanhar uma bandeja de pão, azeitonas e queijo, e, por insistência
de Jacky, outro jarro de vinho tinto - sem chamar Aetnia para servi-los -, o que deixara as duas a sós por alguns momentos.
- Confusa sobre o quê? - Jacky perguntou.
Kat encontrou o olhar da amiga.
- Eu contei a Aquiles quem nós somos.
- E é isso o que a está incomodando? Eu já contei tudo a Pátroclo faz tempo!
- Você o quê?!
- Escute, eu fui obrigada a fazer o diabo por aqui quando o seu namoradinho a trouxe de volta para o acampamento semimorta. Eles queriam sangrá-la e esfregar mijo
de touro, ranho de porco e sabe-se lá mais o que no seu corpo. Como sou sua amiga, mandei todo o mundo se ferrar.
- E isso não acabou bem, claro.
- Não. Não até que expliquei a Pátroclo exatamente quem éramos e por que entendo mais sobre o tratamento de doentes e feridos do que esses charlatães ridículos e
assassinos do exército grego.
- E como ele reagiu?
Jacky sorriu.
- Com o mínimo de piração. Mas eu tive que prometer que iria fazer o desenho de um carro para ele.
- Um carro?
Jacky encolheu os ombros.
- Sabe como são os rapazes. Eu estava contando como eram as coisas no mundo moderno, uma coisa levou à outra e... puf! Agora ele quer um carro.
- Faria sentido se estivéssemos no meio do Além da Imaginação - ironizou Kat. - Você o ama mesmo, não?
- Infelizmente, acho que sim. E você ama Aquiles, certo?
- É provável.
- Ou seja, estamos fodidas - concluiu Jacky.
- Estamos - ela concordou.
- Pátroclo está ficando entediado longe da luta - revelou Jacky, os olhos se voltando na direção da fogueira, à procura do amante. - Eu até queria que os Gregos
perdessem essa guerra logo, mas as coisas estão muito diferentes agora. Não sei mais o que quero, e muito menos o que fazer.
- Sei bem o que está querendo dizer. Antes eles iam perder e nós seríamos transportadas de volta para a casa. Mas agora eu... - ela hesitou, confusa.
- Agora não tenho certeza se quero voltar - Jacky terminou por ela.
- Exatamente.
Ulisses sentiu-se velho. Seu ombro doía o tempo todo. Naquele dia, tinha sido ferido durante a batalha quando liderava uma leva de soldados contra as malditas muralhas
de Troia e acabara se colocando ao alcance de um arqueiro.
Havia tido sorte. A flecha lhe passara apenas de raspão pelo lado de fora da coxa e não chegara a entrar em seu corpo. Ainda assim, o ferimento era um doloroso incômodo,
o que o fez sentar-se, desanimado, em um velho tronco retorcido.
Distraído, apertou a faixa de linho ensanguentada que passara em torno da ferida na perna. Ao menos tinha aquele trecho de praia apenas para si.
Olhou para o mar embebido pela lua e levou o odre aos lábios.
- Parece cansado.
Ulisses fechou os olhos e deixou a voz macia acariciá-lo. Quando os abriu, a deusa se materializara à sua frente. Usava vestes claras, da cor da asa de uma pomba,
as quais combinavam perfeitamente com seus olhos incomuns. Não trouxera o capacete de guerra nem o escudo, tampouco carregava qualquer outro símbolo de seu poder.
Parecia uma virgem na flor da beleza e juventude.
Inclinou a cabeça.
- Sua presença me rejuvenesce, grande deusa.
Atena dispensou o elogio.
- Não tem dormido bem? Eu já disse que... - Deixou escapar uma exclamação ao perceber a faixa cheia de sangue em sua coxa. Então, como era típico da Deusa da Guerra,
tornou a assumir uma expressão severa. - Por que não me contou que tinha sido ferido?
- Uma flecha me pegou de raspão. Não foi nada - Ulisses afirmou.
- Sou sua deusa. Sou eu quem decido se é ou não é alguma coisa. - Ela avançou um passo e se ajoelhou a seu lado. - Deixe-me ver isto.
- Atena, não... Não devia... - Ulisses começou, segurando o cotovelo de Atena na tentativa de colocá-la de pé.
Ela o pressionou no peito com a mão.
- É o meu desejo ver o quanto meu guerreiro está ferido.
O toque fez o peito de Ulisses se apertar. Com um suspiro, ele soltou o braço delicado e relaxou, esticando a perna para que ela pudesse examinar a ferida. Quando
começou a tirar a bandagem ensanguentada, os dedos suaves da deusa o detiveram.
- Eu faço isso. Basta ficar quieto.
Ulisses permaneceu no lugar, imóvel, aspirando o perfume único de Atena. Ela estava tão perto que, quando se curvou sobre sua perna, o cabelo comprido e dourado
lhe roçou o corpo, deixando-o excitado, ofegante... e preocupado que ela se apercebesse disso. Será que Atena fazia ideia de quanto ele a amava?
Era claro que sim. Ela era sua deusa. Sabia de tudo.
- Isto pode estar infeccionando. Por que não limpou e enfaixou esta ferida como devia? - Atena o encarou com um leve vinco na testa lisa.
Ulisses começou a elaborar uma história sobre estar ocupado demais para isso, porém as palavras que saíram de sua boca foram muito diferentes das que sua mente planejara.
Na verdade, elas partiram de seu coração.
- Eu estava cansado demais para me preocupar com isso, deusa. No fundo, até queria que esse ferimento apodrecesse e me levasse. Então, ao menos, eu poderia descansar.
Os olhos cinzentos se estreitaram de um modo que qualquer pessoa enxergaria como raiva. Mas Ulisses conhecia todas as expressões de Atena, e o que viu foi o choque
que suas palavras causaram.
- Não vai morrer. Eu o proíbo! - A deusa colocou a mão na ferida com cuidado. Fechou os olhos, reunindo seus poderes. Em seguida, sussurrou:
Escuta, carne, da tua deusa o intento.
Ao meu comando, une sangue e pele neste momento!
A mão de Atena começou a brilhar, e Ulisses prendeu a respiração ao sentir seu poder brotar dentro dele. Era como um fogo ardente aquecendo seu sangue, e ele pôde
perceber a carne atendendo ao desejo sussurrado da deusa e curando a si própria.
Quando Atena tirou a mão dele e abriu os olhos, não havia mais nada em sua perna, a não ser uma leve cicatriz rosada.
- Veja só isto! - exclamou, maravilhado, sorrindo para os olhos cinzentos. - Eu disse que a sua presença sempre me rejuvenescia!
Atena abriu um de seus raros sorrisos.
- Homem teimoso. Será que nunca se cansa de me bajular?
- Assim o farei enquanto for seu, minha deusa.
- Então eu ficarei eternamente lisonjeada, pois sempre pertencerá a mim, Ulisses. Devagar, como se lutando contra si mesma, Atena pressionou a mão na coxa firme
de novo, porém, desta vez, seu toque não foi com intenção de cura. Ainda ajoelhada ao lado dele, ela o acariciou na pele. - Quanto tempo faz desde que apareci para
você pela primeira vez?
Ulisses não hesitou.
- Pouco mais de vinte e dois anos, deusa. Apareceu pela primeira vez para mim antes mesmo que eu tivesse barba.
- Era um menino encantador, que já demostrava sua inteligência e sabedoria, e que tinha um rosto muito lindo e doce. - A expressão sóbria da deusa suavizou-se com
um sorriso.
Ulisses pensou que seu coração fosse explodir no peito diante de tanta beleza. Nervoso, ergueu a mão para esfregar o restolho, torcendo para que ela não notasse
o quanto esta tremia.
- Ao contrário de agora, minha diva. Não existe mais aquele rosto macio de menino - afirmou, esperando que ela fosse concordar com ele, rir e reassumir a máscara
divina que ocultava seus sentimentos mais profundos, impedindo-a de demonstrar raiva ou paixão.
Em vez disso, Atena ergueu a mão para acariciá-lo na face, pegando-o desprevenido.
- Eu ainda vejo o menino - disse em uma voz tão baixa que ele teve de se esforçar para ouvi-la acima do coração que batia, ensurdecedor, em seu peito.
Olhou para sua mulher - sua deusa -, a quem ele amava desde que era um garoto inexperiente. Ela já aparecera para ele muitas vezes. Escolhera-o como seu guerreiro,
como o mortal a quem conceder mais bênçãos do que a todos os outros. Mas raramente o tocava, e nunca chegara perto de satisfazer o desejo secreto que ele nutria
por ela.
- O que foi, Atena? O que aconteceu?
A diva tirou a mão de seu rosto e se levantou, dando-lhe as costas.
- Por que haveria algo errado? Não posso tocá-lo apenas porque desejo isso?
Ele se levantou também, e se aproximou dela.
- É claro que pode me tocar. E por qualquer motivo que desejar! - Ulisses levantou a mão num impulso, querendo tomá-la nos braços, porém se conteve. Atena não era
mortal. Ele jamais deveria se esquecer disso.
- Sabia que até mesmo Aquiles encontrou o amor? - ela comentou, ainda de costas para ele.
- Ele a ama, não é mesmo?... Eu bem que me perguntei se ele iria se permitir isso.
- Não me parece surpreso. - Atena virou-se para encará-lo.
Ulisses sorriu e deu de ombros.
- Pelo visto, raramente o amor é previsível.
- Ama Penélope?
À menção do nome de sua esposa, o sorriso de Ulisses oscilou.
- Ela é minha mulher e mãe do meu filho. Eu a respeito e honro como tal.
Atena o tocou no rosto outra vez.
- Mas você a ama?
Quase sem ter consciência disso, Ulisses pressionou a face contra os dedos delicados.
- Ao meu modo.
- E o que isso quer dizer?
- Quer dizer que entreguei meu coração a outra há pouco mais de vinte e dois anos. Desde então, tenho tido muito pouco a doar a qualquer outra pessoa.
- Ah, meu Ulisses!... - Atena sussurrou.
Antes que ele pudesse mudar de ideia, Ulisses se inclinou e pressionou os lábios contra os dela. Quando suas bocas se encontraram, um choque de desejo cortou seu
corpo com tal intensidade que a dor se mesclou ao prazer. Ao senti-lo também, Atena deixou escapar uma exclamação e passou os braços em volta do pescoço forte, puxando-o
para ela e abrindo a boca a fim de aprofundar o beijo.
Ficaram ali durante muito tempo, as línguas se explorando, os corpos pressionados. De repente, Atena interrompeu o beijo, respirando com dificuldade. Tinha os lábios
perfeitos agora inchados e as faces cor-de-rosa graças à aspereza da barba de Ulisses. Olhou para ele, os olhos cinzentos enormes e repletos de diferentes emoções.
Entontecido, o guerreiro orou em silêncio para que aquele desejo e aceitação permanecessem entre eles.
- Vênus estava certa - Atena murmurou. - Devíamos ter nos tornado amantes anos atrás. -Sem sair dos braços fortes, a deusa fez um gesto na direção da praia ao redor
deles, e uma manta de cetim se materializou na areia. Deliberadamente, ela se afastou dele e, em seguida, abriu o broche ornamentado que segurava suas vestes acima
do ombro.
A seda prateada deslizou por seu corpo e se amontou a seus pés, fazendo Ulisses se lembrar mais uma vez das asas delicadas de uma pomba. Atena deu um passo para
fora do monte de tecido e deitou-se com graça, a pele macia luminosa e perfeita ao luar conforme se reclinava no cetim. Depois estendeu a mão para ele.
- Venha e dê-me a prova do amor que diz ter sentido por mim nestes tantos anos, meu Ulisses - falou num sussurro.
Ele deitou-se a seu lado, e se perdeu no corpo de sua amada. Sabia que ela jamais seria totalmente sua. Sabia que aquela poderia ser a única vez em que desfrutaria
seu toque mais íntimo, contudo entregou o corpo à deusa sem hesitação e com total abandono, assim como já tinha lhe entregado o coração havia tantos anos.
Aquilo teria de ser o suficiente, pensou mais tarde, enquanto ainda a segurava nos braços e suas lágrimas se mesclavam. De alguma forma, teria de ser o bastante.
Capítulo Vinte e Dois
- Eu estava errada - exclamou Vênus, irrompendo pelos aposentos particulares de Hera.
- Estava? Acredito que a palavra correta seja "estou", como em "Estou errada em perturbá-la em seus aposentos, minha rainha".
- Eu sei, eu sei. Eu não a teria incomodado se não acreditasse que se trata de uma emergência - explicou a deusa, fazendo surgir no ar um cálice de ambrosia.
- O que aconteceu? Não me diga que a pequena mortal no corpo de Polixena quase conseguiu ser morta novamente. Pelas barbas de Zeus! Essa Guerra de Troia fica mais
irritante a cada dia.
- Não, está tudo bem com Kat. É Atena.
Hera encontrava-se deitada em uma chaise longue dourada, com estofamento em veludo, mordiscando uvas mergulhadas em ambrosia e em açúcar, mas, diante da declaração
de Vênus, sentou-se, preocupada.
- O que foi? O que aconteceu com Atena?
- Ela fez sexo com Ulisses.
Hera piscou uma vez, duas, então balançou a cabeça como se tentando clarear as ideias.
- Creio que não ouvi muito bem. Pensei ter ouvido que Atena fez sexo com Ulisses.
- Foi exatamente o que eu disse. - Vênus sentou-se na chaise ao lado de Hera e fez surgir um cálice de ambrosia também para sua rainha. - Eu estava tomando conta
do acampamento grego. Afinal, não podemos correr o risco de ter outro atentado contra a vida de Kat.
- Claro, claro, precisa ser diligente. O que foi que viu?
- Sexo. Entre Ulisses e Atena. Na praia. - A deusa falou aos poucos, em meio a vários goles de ambrosia. - Atena fez surgir uma manta de cetim para eles!... Foi
muito romântico, apesar de escorregadio.
- Assistiu a tudo, mesmo sabendo quem eles eram?
- Claro que não! - Vênus bebeu o vinho, sem fitar Hera nos olhos. - Embora eu possa afirmar que, pelo pouco que vi, Ulisses parecia bem entusiasmado.
- Que bom para Atena. Ela tem estado séria demais há muito tempo. - Hera ergueu uma sobrancelha fina para Vênus. - Era sobre isso que estava errada? Fico surpresa.
Quantas vezes a ouvi dizendo a Atena que ela precisava ter mais orgasmos, que precisava se soltar, que precisava disso, daquilo... Agora que ela conseguiu um pouco
de tudo, acha que é um problema? Não está fazendo muito sentido, Deusa do Amor.
- Eu queria que ela fizesse tudo isso com Ulisses antes que houvéssemos decidido entrar na Guerra de Troia do lado dos Troianos. Depois do que aconteceu na praia
esta noite, acha que Atena vai permitir que Ulisses e seus homens sejam abatidos?
- Ah, não vai mesmo.
- É justamente esse o problema. Tiramos Aquiles do caminho e criamos situações para levar a guerra ao fim. Agora vem a própria Deusa da Guerra, grudada no traseiro
firme de Ulisses! Mesmo que ela apenas manipule as coisas, sem entrar no combate, vai mais do que compensar a ausência de Aquiles!
- Talvez deva ter uma conversa com a sua mortal. Se enviarmos Aquiles de volta para a frente de batalha com a ajuda de Atena, imagino que essa guerra teria fim em
um instante. E era isso o que nós queríamos - Hera lembrou, soltando um pesado suspiro. - Ainda que a perspectiva de ver aquele miserável do Agamenon saindo vitorioso
me exaspere.
- Talvez eu possa... - começou Vênus.
- Possa o quê?
- Também andei observando Aquiles e Katrina. Eles estão completamente apaixonados - afirmou Vênus.
- E isso é importante para mim porque...?
- Porque se Kat o ama, não vai permitir que ele vá direto para a morte. Não se lembra daquela pequena profecia sobre a qual Aquiles é morto diante das muralhas de
Troia depois de matar Heitor?
- Sua mortal moderna é apenas uma peça neste jogo. Não vou permitir que ela fique no caminho - decidiu Hera.
- Hera, você já lidou com os mortais modernos, e sei que vai a Tulsa visitar seu filho de vez em quando. Não quero ofendê-la, mas, mesmo após toda essa sua interação
com os mortais modernos, parece que não consegue compreendê-los. Eles não nos veneram ou temem como os antigos.
- Pois deveriam! - Hera explodiu. Depois respirou fundo e se controlou. - Sabe que eu não gosto de ser cruel, então vamos esperar mais um pouco e ver o que acontece.
Mas se Atena pender para o lado da Grécia, não teremos escolha a não ser ajudar o Exército a vencer com os nossos poderes. Não vou me arriscar a criar inimizades
com a Deusa da Guerra.
- Dizem que o Amor é mais forte do que a Guerra - lembrou Vênus com uma severidade incomum na voz.
Hera tocou o braço da diva.
- Eu não quis dizer que Atena é mais importante para mim do que você. Mas por acaso o Amor iria querer causar um conflito entre os deuses por conta de uma mortal
moderna?
- Não é disso que estou sendo acusada no mundo antigo? De uma luta que supostamente causei entre Gregos e Troianos por conta de uma mortal?
- Sim, e como se sente a respeito? - Hera perguntou, astuta.
- Tenho horror em pensar que essa guerra seja atribuída a mim - confessou Vênus.
- Se é assim, imagino que não iria gostar se algo semelhante acontecesse no Monte Olimpo.
- Não, não gostaria. - Vênus suspirou. - É melhor esperarmos para ver o que acontece.
- E se Atena ajudar Ulisses?
- Para isso, Aquiles teria de entrar na batalha outra vez - lembrou Vênus.
- Muito bem. Então estamos decididas - resolveu Hera.
- Infelizmente.
Vênus tomou um gole de ambrosia, pensando em como Aquiles ficara perturbado nos quatro dias em que Kat permanecera inconsciente.
Bem, ao menos ele havia conhecido o amor, por mais breve que isso tivesse sido.
- Aquiles, tudo o que eu disse foi que queria um banho de imersão com perfume de rosas, e não mais desses de tigela. Está me levando para fora do acampamento por
causa disso? - Kat perguntou, fazendo piada.
- Eu não disse que lhe daria qualquer coisa que você desejasse se isso estivesse ao meu alcance? - Ele a tocou no braço que ela apoiava no dele.
Kat sorriu. Aquiles vinha fazendo aquilo com mais frequência: tocá-la com breves e suaves carícias. Não se estendia no toque, contudo; tampouco a beijava. Era como
se estivesse tentando se acostumar com ela aos poucos, vencendo pequenas etapas que não despertassem a Fúria.
Sentiu seu olhar e ergueu o dela, vendo que ele a observava, atento.
- Diga-me se estamos indo longe demais. Não quero que se canse.
Eles tinham caminhado pela praia, para longe do acampamento, por algum tempo, depois haviam rumado mais para o interior, seguindo um caminho de cabras. Não fora
uma caminhada muito breve, porém esta não chegara a ser exaustiva.
- Como eu disse a Jacky, parece que dormi por décadas. Estou ótima - Kat declarou com firmeza.
Não que ela não tivesse ficado assustada com o quanto a conversa e a refeição da noite anterior a deixaram esgotada. Planejara outra pequena sessão de hipnose com
Aquiles, mas apagara no momento em que colocara a cabeça no travesseiro. E, pior, dormira até o início da tarde.
Estava se sentindo bem no momento, mas aquilo tudo a deixara assustada. Já havia morrido uma vez. Qual era o limite? E se também perdesse aquele corpo? Vênus iria
salvá-la? E, se a deusa o fizesse, que tipo de corpo poderia obter? Já se apegara àquele, e não queria nem pensar no que poderia acontecer se...
- Está preocupada com alguma coisa? - Aquiles interrompeu seu debate mental.
- Eu estava pensando sobre mortalidade.
- Está aí um assunto em que tenho pensado muito pouco - observou ele.
- Verdade? Pensei que, depois de ter escolhido morrer moço, vivia contando os anos e pensando nisso o tempo todo.
Aquiles soltou uma risada autodepreciativa.
- Quando eu era moço, raramente usava a cabeça. E se usava era apenas para pensar na batalha seguinte ou em uma nova oportunidade para obter a glória.
- Ei, não é nenhum velho, com vinte e nove anos! Ainda é muito moço.
- Não sou moço há mais de uma década.
Kat o fitou, sabendo que as cicatrizes profundas que haviam marcado seu rosto tão cedo também tinham se instalado em sua alma.
- Talvez parte disso possa ser revertida - afirmou.
Ao notar a direção de seu olhar, Aquiles curvou os lábios.
- Sua amiga é uma excelente curandeira, mas nem mesmo ela pode reverter este tipo de coisa. - Aquiles apontou para as próprias cicatrizes.
Kat sorriu.
- Isso foi uma piada? E pensar que o céu não desabou, e você nem mesmo foi atingido por um raio!
- É a sua má influência sobre mim.
- Não vai dizer que eu o enfeiticei também? Lembre-se, Jacky é uma bruxa, eu sou uma bruxa... Há bruxas para todos os lados.
- Tem razão. Você me enfeitiçou. - Ele a surpreendeu, puxando-a para si e abraçando-a com força. - E aqui estamos nós. Segurou-a pelos ombros e a fez se virar.
- Aquiles! É lindo! - Kat exclamou diante do oásis. Salgueiros rodeavam uma bacia formada por calcário cor de manteiga. Um córrego desaguava na piscina natural,
alimentando-a com água; em seguida, escorria, borbulhante, para o outro lado. O lugar era pequeno, porém do tamanho ideal para quem quisesse tomar um banho com conforto.
Diante do oásis havia um pequeno templo que lembrava um gazebo, só que feito de mármore com colunas graciosas e um teto abobadado. No meio do templo, uma manta fora
estendida e uma cesta fora colocada sobre ela.
- O que é tudo isso? - Kat perguntou, caminhando ao redor da piscina até o templo.
- É um santuário dedicado a Vênus. Eu o descobri anos atrás. Foi abandonado por causa da guerra. Já vim aqui muitas vezes para pensar. Para fugir um pouco.
Kat olhou para ele, surpresa, e notou que Aquiles parecia envergonhado.
- Não há nada de errado nisso. Todo mundo precisa ficar um pouco sozinho.
- Sim, mas Aquiles, o terror das donzelas e a Fúria no campo de batalha, não é qualquer pessoa. Se meus homens soubessem que encontrei consolo em um santuário dedicado
à Deusa do Amor... - Ele riu, sem graça, e balançou a cabeça - ... provavelmente iriam acreditar que enlouqueci de vez.
- Mas eles parecem ter se acostumado a me ver na sua companhia. Não é verdade?
Aquiles deu de ombros.
- Neste momento eles estão preocupados demais até mesmo para ficar chocados por estar aquecendo a minha cama.
- Eles querem lutar - concluiu Kat com um aperto no estômago.
- Querem.
- E o que você quer?
- Já me conhece o bastante. Sabe que não desejo nada além de voltar para Phthia e encontrar a paz... - Aquiles fez uma pausa, encontrando seus olhos antes de completar:
- ... e o amor.
- Já encontrou o amor - Kat afirmou baixinho.
Aquiles cobriu a distância que os separava, juntando-se a ela no centro do santuário de Vênus, e a segurou pela mão.
- Encontrei? Mesmo sem sabermos se a Fúria pode ser derrotada?
- Sim, encontrou. E a Fúria pode ser derrotada, tenho certeza. - Lenta e deliberadamente, Kat se pôs na ponta dos pés, enquanto o puxava para si e o beijava com
delicadeza. Preocupada, não alongou ou aprofundou o beijo, mas também não fez menção de recuar. O beijo era sua promessa de que o futuro com que ele sonhava poderia
ser real, contudo não queria fazer nenhum tipo de pressão sobre Aquiles. Sorrindo, ela olhou para a cesta. - Se este santuário está abandonado há anos, como isto
veio parar aqui?
- Seu desejo de tomar banho fez com que eu me lembrasse deste lugar. Enquanto dormia, esta manhã, eu trouxe as coisas para cá. Imaginei que fosse gostar de passar
algum tempo a sós comigo. - Ele disse as palavras com sua habitual confiança, contudo Kat pôde ver a ponta de insegurança em seus olhos. Qualquer sinal de medo ou
hesitação da parte dela o faria desmoronar.
- Pois acertou em cheio. Foi uma ideia maravilhosa.
Aquiles sorriu e curvou-se com uma formalidade exagerada.
- Seu banho a espera, princesa, e depois vamos jantar o que Aetnia preparou sob minha apavorante pressão.
Kat balançou a cabeça.
- Se foi assim, na certa ela preparou um par de sanduíches de arsênico com um cozido de vidro moído para acompanhar. - Olhou para a piscina de águas claras, então,
e sentiu a garganta seca. - Tem certeza de que não há nenhuma criatura nojenta aí, esperando para me comer?
- A palavra de uma deusa do mar iria tranquilizá-la?
Alarmada, Kat olhou ao redor do oásis arborizado.
- Sua mãe está aqui?
- Ela veio comigo esta manhã e certificou-se de que o local era seguro.
- Preciso parar de dormir tanto. Estou perdendo muita coisa! - Kat avançou um passo para mais perto da água. Esta parecia mesmo não oferecer nenhum perigo e era
muito, muito convidativa.
E seria tão bom ficar completamente limpa!...
Aquiles limpou a garganta, e seus olhares se encontraram.
- Vou ficar aqui, de costas, enquanto se banha. Basta me chamar e estarei a seu lado em um instante.
- Não seria melhor se ficasse de olho em mim? E se alguma coisa me agarrar e eu não conseguir chamá-lo? - Kat observou as diferentes emoções que desfilaram no rosto
moreno: desejo, preocupação, necessidade... Quando percebeu que o medo estava vencendo Aquiles, apressou-se em dizer: - Por que a Fúria não o domina quando discute
com Agamenon? Ele não o tira do sério?
Aquiles pareceu surpreso com a pergunta, porém respondeu no mesmo momento.
- É claro que tira. Aquele velho bastardo nunca me poupa de suas idiotices.
- Então por que não é possuído pela Fúria? - ela indagou outra vez.
Ele deu de ombros.
- Acho que é porque já me acostumei com o que ele me faz sentir. Digo a mim mesmo que é só Agamenon. Sem contar que não tenho permissão para lutar com o rei.
- Se é assim, por que não diz a si mesmo que sou apenas Katrina, a mulher que deseja? Afinal é assim que eu faço você se sentir, e também não pode lutar comigo.
Uma chama de esperança brotou e depois morreu nos olhos de Aquiles. Ele tornou a balançar a cabeça.
- Não. Não é a mesma coisa.
- Pode ser, se acreditar que é.
- Não. Não vou correr esse risco.
- Pois eu vou. Escute... Sente uma espécie de aviso antes que a Fúria o domine, não sente?
- Mais ou menos - ele admitiu, relutante.
- Certo. É muito simples. Fique sentado aí, bem à vontade. Há vinho na cesta?
- Sim.
- Pois beba e relaxe enquanto tomo banho. Mas fique de olho em mim para ter certeza de que nada vai me atacar. - Kat levantou a mão quando ele abriu a boca para
protestar. - Sim, eu sei. Jacky já disse que não falo coisa com coisa. Não devia acreditar em tudo o que ela fala.
Os lábios de Aquiles se curvaram num sorriso.
- Neste momento, por exemplo, suas observações me parecem muito perspicazes.
Kat franziu a testa, fingindo-se séria.
- Que seja, mas nem pense em dizer isso a ela! Fique quietinho aí. Vou tomar banho e tudo vai ficar bem.
- E se não ficar?
- Se começar a se transformar, uso o meu botão de pânico. - Ela levantou o medalhão que ainda trazia pendurado ao pescoço.
Aquiles continuou inseguro.
- Vênus pode estar ocupada.
- Não. Ela me deu sua palavra. Além do mais, é uma deusa um tanto quanto intrometida. Vai estar aqui, nem que seja apenas para ter uma boa fofoca para contar depois.
- Kat caminhou de volta para ele e colocou a mão em seu braço. - O negócio é o seguinte: precisa acreditar em si mesmo e em sua capacidade de me manter segura, tanto
quanto eu acredito.
- Acredita que eu possa mantê-la em segurança?
Kat sorriu para o rosto marcado por cicatrizes.
- Claro que acredito. Foi você quem me manteve segura até agora. - Beijou-o suavemente, em seguida rumou com determinação para o banho que a esperava, cruzando os
dedos e enviando uma prece silenciosa a Vênus: Se pretende nos espionar, talvez agora seja um bom momento!
Capítulo Vinte e Três
Em que diabo ela havia pensado?
Kat tentou não hesitar demais enquanto decidia, aflita, qual a melhor forma de tirar a roupa sem parecer muito provocante, e ainda não parecer apavorada até o último
fio de cabelo diante do que aquela água podia esconder.
Esconder?...
Olhou a pequena piscina transparente. Onde estavam as algas e aquela boa dose de poluição quando se precisava delas?
Ande logo com isso, Katrina, ordenou a si própria, livrando-se da leve veste de seda verde que substituíra a azul, destruída por aquelas criaturas marinhas horrorosas.
A túnica de baixo, por sua vez, era feita de uma leve camada de seda branca, e ela a deixou cair em torno dos pés. Até então, não pensara que nenhuma calcinha ou
sutiã tinha vindo com as roupas. Lembre-se apenas de que tem de ficar feliz por ele estar olhando para este corpo jovem e durinho, ao contrário do seu antigo, que
já estava chegando aos quarenta, precisando perder uns cinco quilos e meio. E também de uma boa dose de malhação para aquela bunda flácida.
Tentou manter uma postura régia enquanto entrava nua na piscina natural, e se preparou para congelar. Ao primeiro toque da água tépida, entretanto, sentiu um arrepio
de prazer e, com um suspiro feliz, submergiu. Só depois olhou para Aquiles.
- Ei! Não está gelada!
Ele havia feito o que ela sugerira. Estava sentado sobre a manta, numa postura quase relaxada: recostado num dos pilares de mármore e com um odre aberto no colo.
Parecia um pouco tenso, mas diferente do normal.
- É muito rasa para estar gelada, pelo menos nesta época do ano. O sol a aquece, e os salgueiros lhe proporcionam sombra, o que mantém a água numa temperatura perfeita.
- Enquanto Aquiles falava, Kat percebeu que ele mantinha o olhar fixo no dela, não permitindo que os olhos passeassem por seu corpo, o qual a água pouco fazia para
esconder. - Quando descobri este santuário, imaginei que essa piscina natural deve ter sido a causa de ele ter sido construído e dedicado a Vênus. - Aquiles sorriu,
meio tímido. - Parece-me um lugar perfeito para que uma deusa tome banho.
Kat sorriu de volta.
- Ora, ora, Aquiles, eu não sabia que era um romântico inveterado!
Ele soltou uma risada seca.
- Eu não sou romântico.
- Você deixou uma flor no meu travesseiro! Para mim isso é a prova cabal do seu romantismo.
Ele tomou um longo gole de vinho.
- Como sabe que fui eu quem a pus lá?
- Ah, sim. Deve ter sido Aetnia, então. Ou talvez Briseida. Ambas adoram frequentar a sua tenda.
Aquiles bufou de novo e tentou, sem sucesso, encobrir o riso.
- A prova número dois foi essa cesta de piquenique cheia de guloseimas para mim - insistiu Kat.
- Esta cesta? - Ele colocou a mão dentro dela e tirou um pedaço de queijo envolto em uma espécie de pão sírio. Deu uma mordida grande no sanduíche e completou com
a boca cheia: - Esta cesta é para mim, não para você.
- Claro que é para mim! - ela protestou, enquanto esfregava a sola do pé em um punhado de areia. - E a prova número três do seu romantismo foi essa manta.
- E por que isso é romântico?
- Porque não quer que eu suje a minha pele delicada... - Kat levantou o outro pé, cuja planta continuava suja, e agitou os dedos em sua direção.
A risada de Aquiles soou fácil desta vez, e ela concluiu que era o som mais maravilhoso que já tinha ouvido.
- A manta também é para mim - ele observou.
- Ah, claro. Sei bem como está obcecado por conforto e relaxamento...
Aquiles exagerou em um longo espreguiçar, e foi a vez de Kat cair na risada.
- Falando em conforto, há tempos estou querendo lhe dizer como gosto das tapeçarias da sua tenda. Elas retratam algum lugar em especial ou apenas um cenário qualquer?
- São todas de Phthia. Eu me sinto mais em casa cercado por elas.
- Phthia deve ser muito bonita - murmurou Kat, esfregando o cabelo e desejando estar com seu shampoo e condicionador favoritos.
O breve sorriso de Aquiles foi melancólico.
- E é, de fato. Eu gostaria de levá-la até lá algum dia.
- Eu adoraria ir. - Ela fez uma pausa e, em seguida, decidiu perguntar: - Aquiles, por que não reúne os seus Mirmidões e simplesmente vai embora daqui? Já se retirou
da guerra e rompeu com Agamenon. Por que ficar?
- Já pensei nisso. Se isso envolvesse apenas a mim, ou até mesmo só nós dois, eu o faria. Mas os meus homens são Gregos. Phthia é uma parte da Grécia. Seria muito
ruim para eles e suas famílias se retornassem antes do final da guerra. - Ele balançou a cabeça. - Não. Vamos ficar até o fim. Lutando ou não.
- O que vai fazer se os Gregos perderem?
- Vou voltar para casa.
- E se eles ganharem?
Os lábios de Aquiles se contraíram.
- Vou fazer a mesma coisa.
- Então importa quem vai ganhar ou perder?
- Importa. Eu não quero que os Gregos pereçam, mesmo que Agamenon e Menelau sejam os responsáveis por isso. Sou responsável apenas pela morte dos meus próprios homens.
Espero não perder mais nenhum dos Mirmidões. - Ele fez uma pausa antes de continuar. - Eu não devia ter vindo a Troia. Só fiz isso porque acreditava que meu destino
não poderia ser mudado, e porque Ulisses me pediu.
- E agora acredita que sua sina possa ser mudada. - Kat não fez da frase uma pergunta, contudo ele concordou com um gesto de cabeça.
- Agora acredito em muitas coisas nas quais eu não acreditava há poucos dias.
Ela sorriu e, em seguida, submergiu na água. Quando reapareceu na superfície, assoprando e sacudindo o cabelo, Aquiles parecia relaxado e feliz.
Estudou-o com cuidado por um momento, em seguida decidiu que já era hora de sair da água, e de seu relacionamento avançar mais um passo.
- Ainda me deseja, Aquiles?
Ele piscou, obviamente surpreso com a pergunta.
- Claro que sim.
- Mas aí está você, todo descontraído e conversando comigo. E eu aqui, nua em pelo.
Aquiles ergueu as sobrancelhas.
- Isso é verdade.
- E, se não estou enganada, nenhuma Fúria está em andamento; tampouco prestes a acontecer.
- Não há como se enganar a respeito disso. Não, a Fúria não está me dominando.
- Não está nem perto de acontecer?
- Nem perto.
- Então acha que eu posso sair desta piscina e me aproximar de você?
Kat o viu engolir em seco.
- Nua? - Aquiles quis saber.
Ela sorriu.
- Na verdade, eu estava pensando em lhe pedir que me desse a manta até eu me secar.
- Ah, sim. Claro. - Ele pareceu envergonhado, o que Kat considerou um enorme avanço em relação àquela sua expressão pétrea e neutra, ou aos olhos vermelhos de quando
ele ficava louco.
Quando Aquiles não fez nenhum movimento, insistiu:
- Poderia me trazer a coberta?
Raramente Kat o vira sem graça. Mesmo em repouso, Aquiles apresentava a postura de um guerreiro, mas, quando ele se levantou e apanhou a manta, parecia um elefante
em uma loja de cristais de tão desajeitado, e ela teve de morder a lateral da bochecha para não rir.
Com um suspiro, ergueu-se acima da superfície e caminhou para fora da água. O olhar de Aquiles não deixou o seu em nenhum momento; nem mesmo quando ele abriu a coberta
e ela se aproximou, nua e pingando, de seus braços.
Kat sentiu um tremor percorrer o corpo conforme estes se fecharam em torno dela. Recuou e sorriu para Aquiles como se ele a visse nua todos os dias. O conflito em
seu semblante era evidente, contudo. Não havia sinal da Fúria, porém Aquiles já não parecia tão relaxado.
Ela prendeu a respiração. Com o nível de relaxamento dele diminuindo, e o de estresse aumentando, estava, literalmente, flertando com o perigo.
- Conte-me alguma história - pediu, apressada.
O rosto moreno transformou-se em um ponto de interrogação.
- História?
- Sim. - Kat o puxou com a mão que não estava segurando a manta na direção do santuário onde a cesta de piquenique aguardava. - Conte-me uma história sobre a sua
infância enquanto comemos. Alguma coisa que tenha acontecido em Phthia. - Lançou-lhe um olhar malicioso por sobre o ombro. - Algo proibido, por exemplo.
Ele deixou escapar outra risada seca.
- E se eu era o filho perfeito e não fazia nada proibido?
- Então vou comer a cesta em vez do almoço que obrigou a pobre Aetnia a preparar. - Kat sentou-se ao lado do cesto, arrumando a manta ao redor do corpo, e torceu
o cabelo molhado antes de olhar o que havia para comer. - Hum! Queijo, carne, azeitonas e vinho! Meus grupos favoritos de alimentos: gordura, álcool e sal. - Aquiles
tinha se acomodado a seu lado, recostando-se no pilar outra vez e fazendo um esforço sobre-humano para relaxar e não olhar para seus ombros nus. Divertida, ela lhe
entregou um pouco de pão e carne. - Ainda bem que este meu corpo é tão jovem. Há menos chance de esse queijo todo ir direto para o meu traseiro. Ao menos não tão
depressa.
- No seu tempo você não era moça?
Kat o fitou por cima da comida. Aquiles não parecia chocado ou aborrecido com a ideia de ela ser mais velha; apenas curioso.
- No meu tempo sou quase dez anos mais velha do que você - admitiu sorrindo.
Ele pareceu chocado.
- Deixou seu marido e filhos para vir para cá?
- Ah, Deus, não! Nunca fui casada e não tenho filhos.
- Fez algum voto de castidade para uma deusa?
- Hera e Atena ficaram meio confusas a respeito disso, também. No mundo moderno mortal as mulheres não se casam tão cedo. Pelo menos não as mais cultas e que têm
dentes na boca... Na verdade, algumas de nós nem chegam a se casar ou a ter filhos. Não somos mais obrigadas a isso.
- E o que fazem da vida?
O sorriso de Kat foi longo e lento.
- Exatamente o que queremos fazer.
- Mas então são como os homens! - Aquiles exclamou, como se apenas naquele momento houvesse compreendido.
- Do seu ponto de vista, creio que isso possa ser verdade. - Ela ergueu uma sobrancelha. - E, caso esteja se perguntando, não tenho nenhuma intenção de mudar as
coisas, mesmo depois que vim para este mundo.
Ele a observou, atento.
- Quer dizer que nunca vai querer se casar, nem ter filhos?
Kat ignorou o incômodo que a pergunta lhe causou.
- Não necessariamente. O que significa que, se eu me casar ou tiver filhos, será porque eu quero, e não porque é o que se espera de mim.
- ... Concordo.
- Que bom. Agora quero ouvir alguma história do tempo em que era menino.
- Uma história proibida.
- Claro! São as melhores.
- Está bem. - Aquiles se acomodou melhor contra o pilar e cruzou as pernas na altura do tornozelo, bebericando do odre enquanto Kat remexia na cesta de piquenique.
- Quando eu era menino, achava que jamais poderia me afogar.
- Faz sentido. Afinal sua mãe é uma deusa do mar.
- Teria feito mais sentido se eu também fosse imortal. Mas eu não era, mesmo agindo como se fosse. - Ele balançou a cabeça ao se lembrar. - Costumava deixar minhas
amas loucas e, quando cresci um pouco mais, eram os meus tutores quem eu tirava do sério. Sempre me arrisquei demais, nadando para o meio do oceano, sendo apanhado
em ressacas e mal escapando delas. Fiz muitas coisas ridículas e irresponsáveis. Abusei tanto que meu pai me proibiu de entrar no mar.
- Aposto que sua mãe não gostou nada da ideia.
Ele riu.
- Não, mesmo. Mas ela também não queria que seu único filho morresse em um acidente ainda criança, causado única e exclusivamente por sua irresponsabilidade. Então
os dois se uniram e planejaram me dar uma lição.
- Hum... Isso não está me soando bem. - Kat fez um gesto para que ele lhe passasse o odre.
- Eu não devia ter nem doze anos de idade, e Pátroclo estava com no máximo sete na época. Ele vivia atrás de mim, o que me incomodava sobremaneira, mas, naquele
dia em particular, meu primo me contou que havia descoberto um barco abandonado em uma enseada, e que iria me levar até lá.
- E, uma vez que imaginava ser um deus do mar, um barco era perfeito para você - concluiu Kat.
- É óbvio que está raciocinando como meus pais. E, sim, insisti para que Pátroclo me levasse até o tal barco. No caminho para a praia, o tempo mudou depressa, como
costuma acontecer em Phthia. Uma rajada de vento muito forte começou a soprar, e até vi pescadores retornando para a costa. Cheguei a zombar deles, chamando-os de
covardes. Depois disso, Pátroclo e eu decidimos zarpar.
- Pátroclo estava mancomunado com seus pais?
- Não, eles apenas o usaram como instrumento. Meu primo foi comigo para o mar porque me acompanharia a qualquer lugar.
Kat observou o rosto moreno de Aquiles suavizar enquanto ele falava do primo.
- Você o ama muito, não é?
- Ele é como um irmão ou um filho para mim - admitiu Aquiles. - Pois, então... Nós dois navegamos para a tempestade. Já estávamos em alto-mar, e correndo um enorme
risco, quando uma onda nos atingiu e eu fui lançado para fora do barco. Pátroclo gritou por mim e tentou me jogar uma corda, mas as ondas estavam extraordinariamente
violentas. - Os lábios benfeitos de Aquiles se inclinaram para cima.
- Você disse "extraordinariamente"? Quero dizer, como se uma deusa do mar as estivesse agitando?
- Isso mesmo. Fui tolo, imprudente, mas não era idiota, e não demorou muito tempo para que percebesse que estava me afogando. Lembro-me de tentar invocar minha mãe,
mas as ondas sufocavam os meus gritos. Não posso precisar o quanto engoli de água do mar antes que aqueles golfinhos aparecessem; mas foi o suficiente para que eu
ficasse em pânico.
- Espere um pouco. Disse "golfinhos"?
Ele riu e assentiu com um gesto de cabeça.
- Golfinhos. Eles me cutucaram com os focinhos, nadando ao meu redor e me mantendo na superfície, como se estivessem brincando com um melão, até me levarem para
a praia.
- Foram eles que o salvaram?
- Sem dúvida. Eles me trouxeram em segurança para a principal praia de Phthia, que se encontrava cheia de pescadores e varinas, e também para junto de meus pais,
que, no momento, estavam dando um passeio pelas docas na companhia de grande parte da corte. Estavam todos ali quando fui jogado para fora da água por um cardume
de golfinhos, meio afogado e completamente nu.
- Nu? - Kat começou a rir.
- Nu. - Aquiles concordou. - De alguma forma, enquanto os bichos me cutucavam e me jogavam de um lado para o outro, conseguiram tirar toda a minha roupa; até mesmo
as minhas sandálias.
- Deve ter sido uma cena e tanto! - Kat comentou enquanto tentava controlar o riso.
- Sem dúvida. Falaram sobre isso por anos a fio. Algumas das senhoras do povoado ainda gargalham ao se lembrar.
- E isso teve o efeito desejado em você?
- Quer saber se isso pôs algum juízo na minha cabeça? - Aquiles ergueu um ombro. - Sim e não. Percebi que poderia me afogar e imagino que tenha ficado mais cuidadoso
depois disso. Ou ao menos minhas declarações se tornaram menos arrogantes. A coisa funcionou mais em Pátroclo. Até hoje ele detesta barcos e fica verde só de pensar
em velejar. - Aquiles riu e pegou o odre das mãos dela. - Essa é a minha história de infância proibida, mileide.
Kat riu e aplaudiu quando ele tomou um longo gole de vinho. Ao entregá-lo de volta para ela, Aquiles se inclinou e a beijou nos lábios.
Kat fechou os olhos e se apoiou nele. Não de forma agressiva, apenas de um modo delicado e convidativo, deixando-o definir o ritmo. Quando finalmente se separaram,
ambos arfavam, contudo Kat não viu nenhum sinal da Fúria nos olhos azuis.
- Posso hipnotizá-lo outra vez, se quiser - sussurrou.
- Eu sei que pode. - Ele a tocou no rosto e deixou a mão deslizar, acariciando a curva de um ombro nu. - E eu vou permitir que faça isso, se achar que deve.
- Mas? - ela perguntou.
- Mas eu gostaria de fazer amor com você sem nenhum feitiço. Quero experimentar tudo, e não apenas como um sonho maravilhoso. Vai me deixar fazer isso, Katrina?
Capítulo Vinte e Quatro
Aquiles estudou os expressivos olhos castanhos de Kat enquanto aguardava por sua resposta. Pôde perceber sua própria respiração e batimentos cardíacos se acelerando,
porém ambos sempre se elevavam quando ele treinava, e nem por isso a Fúria o possuía.
Não preciso dela agora... Não preciso dela agora, repetiu para si mesmo em silêncio.
- Sim, Aquiles. Faça amor comigo!
As palavras o aguilhoaram.
- Não está com medo? - ele indagou, perplexo.
- Claro que não. Enquanto você estiver comigo, estou segura.
Ele a puxou para si e a abraçou com força, inalando o perfume dos cabelos úmidos e sentindo a leve umidade de sua pele. Por todos os deuses!, não trairia a confiança
de Kat! Não era mais nenhum adolescente. Aquilo não iria terminar como terminara seu primeiro amor.
Beijou-a, lembrando a si próprio de fazê-lo lentamente e manter o controle. Kat abriu a boca, e sua língua encontrou a dela numa doce exploração. Braços delicados
o envolveram pelos ombros, e ela se inclinou para ele, fazendo com que a manta deslizasse por seu corpo.
Então congelou no meio do beijo.
Num gesto lento e deliberado, Aquiles recuou de leve, de modo a apreciar o corpo nu. Quieto e sem dizer nada, olhou para ela e, em seguida, estendeu as mãos e a
tocou numa longa carícia desde o pescoço, passando pelos seios, pela curva da cintura, até os quadris e coxas. Em seguida seus olhos se encontraram outra vez.
- Você é maravilhosa - falou com reverência.
Kat sorriu, e ele viu o futuro em seus olhos. O seu futuro. Aquele com que tinha parado de sonhar, em que deixara de acreditar. Ela o trouxera de volta como uma
possibilidade real.
Respirou fundo. Não sabia o que havia feito de tão bom para que as deusas o abençoassem com uma mulher tão milagrosa. Mesmo assim, prometeu-lhes em pensamento que,
se elas o contemplassem com uma nova vida ao lado de Kat, de seus filhos, e dos filhos de seus filhos, iria louvá-las para todo o sempre.
Deslizou as mãos pela cintura delgada e a tomou nos braços outra vez, beijando-a com paixão e permitindo que os dedos percorressem a maciez de suas costas até as
nádegas perfeitas. Segurou-as, pressionando-a com mais firmeza contra a ereção que pulsava entre as suas pernas. Kat moveu os quadris em resposta, e uma lembrança
erótica de seu primeiro encontro lhe invadiu a mente. Excitado, ele se lembrou do corpo quente e úmido deslizando para cima e para baixo em seu membro...
Uma onda de desejo o assolou, quase afogando-o com sua intensidade, e ele lutou para se controlar conforme pressentiu o calor da Fúria se insinuar em sua pele aquecida
pela luxúria.
- Abra os olhos, Aquiles! Olhe para mim!
A voz doce de Kat foi como um bálsamo contra o fogo que ameaçava conflagrar em seus pensamentos.
Ofegante, ele obedeceu e encontrou seu olhar. A Fúria o ameaçava. Podia sentir sua sombra à espreita, pronta para possuí-lo, para sufocar e reprimir toda a sua humanidade.
No entanto, Kat não demonstrava medo. Seu sorriso continuava confiante. Não saiu de seus braços, tampouco abriu o medalhão a fim de pedir socorro à deusa.
- Não vai me deixar - ela murmurou com voz calma e melodiosa. - Vai ficar aqui comigo e me manter segura.
- Sim - ele sussurrou de volta, beijando-a de leve. - Vou mantê-la em segurança - afirmou, buscando a própria essência, aquela parte de si mesmo que era a sede de
seu espírito, e se concentrou nela. - Esta paixão é diferente da que preciso para a guerra...
Não havia se dado conta de que tinha dito as palavras em voz alta, até Kat responder:
- É isso mesmo. O seu amor por mim não precisa destruir nada.
- Ao contrário. Quer apenas construir - ele completou, comovido.
Fitando-a nos olhos, mudou de posição de modo a deixá-la por baixo do corpo. Ergueu-se sobre um cotovelo e continuou com o olhar fixo no dela conforme lhe segurava
um seio e acariciava o mamilo endurecido com a palma calejada. Os lábios carnudos de Kat se apartaram, e sua respiração se acelerou. Quando a mão dele se moveu para
a fenda úmida entre suas pernas, Kat gemeu e arqueou os quadris. Ofegante, colocou a mão sobre a dele, guiando-o, ensinando-o a lhe dar prazer. Nem mesmo quando
seu corpo sacudiu, tomado pelo êxtase, desviou o olhar do dele.
Antes que os tremores do clímax de Kat cessassem, Aquiles ergueu o corpo e, devagar, mergulhou o membro túrgido em seu âmago quente e macio.
- Fique comigo, Aquiles! Não me deixe! - Kat pediu num sussurro.
- Eu nunca vou deixar você! - ele prometeu, a voz profunda e rouca com o esforço que fazia para manter o controle. Levantou os quadris, deslizando quase para fora
dela, e então tornou a investir, desta vez com mais firmeza.
- Aquiles! - Kat exclamou, entontecida de prazer com as seguidas estocadas.
Ele continuou arremetendo contra ela, como se querendo possuir não apenas seu corpo, mas também sua alma.
- Aquiles! - Kat gemeu mais uma vez, ancorando-o não só a ela, mas também à sua sanidade e à sua humanidade.
Quando ele finalmente atingiu o orgasmo, foi o nome dela que brotou em seus lábios. Era a imagem dela que preenchia seus olhos. A alma de Kat era dele.
Aquiles e Kat retornaram ao acampamento dos Mirmidões quando o sol já se punha. Andando de mãos dadas e conversando, despreocupados, alcançaram a área iluminada
pela fogueira. Divertida, Kat viu Aetnia arregalar os olhos quando ele jogou a cesta vazia a seus pés e disse "obrigado".
- Estava tudo muito bom, Aetnia - completou em seguida e, enquanto todos o fitavam, boquiabertos, beijou Kat profundamente. - Eu já volto. Vou conversar com Pátroclo
- explicou. Depois se afastou, parecendo muito satisfeito consigo.
- Esperem aí. Aquiles disse "obrigado"? - Jacky se levantou de um salto de onde descansava ao lado do fogo.
- Não sei por que boas maneiras a surpreendem tanto! - contrapôs Kat, acomodando-se a seu lado. - Nossa. Acho que preciso de um cálice de...
- Vinho, princesa?
Ela ergueu a cabeça e sorriu, aceitando a taça que a serva lhe oferecia.
- Aetnia, você é uma verdadeira vidente!
- Eu também vou tomar mais um pouco - decidiu Jacky.
Aetnia hesitou e olhou para Kat, que acenou com a cabeça. Só então a criada encheu o cálice de Jacky com a mão meio trêmula.
- Muitíssimo obrigada, Aetnia - agradeceu Jacky com exagero.
- Não seja desagradável! - Kat sussurrou.
- Buuu! - Jacky bateu os pés diante da serva, e esta disparou para o outro lado da fogueira.
- Tem de provocá-la?! - Kat ralhou, exasperada.
- Para sua informação, ela é uma peste quando você não está por perto. Essa história de "princesa isso", "princesa aquilo" é tudo teatro! Quando não está aqui, Aetnia
só fica espalhando boatos entre aquelas mulheres que vivem nos olhando atravessado. Essa praga está aprontando alguma coisa! Não duvido de que eu seja obrigada a
chutar aquela bunda seca e branquela qualquer hora dessas!
- Jacky, por favor... Lembre-se de que agora a sua bunda também é branca e magra!
- Sim, por isso mesmo estou comendo tanto. Estou determinada a mudar essa situação.
- Ah... Faça o que quiser.
- Às bundas grandes! - Jacky saudou, erguendo a taça.
- À sua futura bunda grande - corrigiu Kat, batendo o cálice no da amiga.
Jacky tomou um longo gole da bebida, depois ergueu uma sobrancelha para Kat.
- Muito bem... Detalhes.
Kat chegou mais perto dela e baixou a voz:
- Fizemos sexo.
- Meu bom Deus... Derrubou o sujeito outra vez? Quero dizer, literalmente?
- Não. Aquiles continuou no total controle de todas as suas faculdades mentais.
- Não ficou inconsciente, pensando que estava sonhando?
- Não.
- Está me dizendo que ambos sabiam que estavam trepando, ao contrário daquelas duas noites em que praticamente cometeu estupro?
- Eu já disse que não estuprei ninguém!
- Estou pouco me lixando para a sua semântica. Responda logo à pergunta.
- Sim. Estávamos ambos conscientes de estarmos trepando.
- Se está rindo feito uma idiota, é porque a coisa foi boa.
- Foi ótima! - garantiu Kat.
- E ele controlou a Fúria?
- Bem, na verdade, Aquiles controlou a si mesmo para que a Fúria não o possuísse.
Jacky tomou um gole do vinho e olhou para o fogo em silêncio.
- O que foi? - Kat indagou.
- Estou meio preocupada por ele não controlar essa coisa.
- Mas que diferença isso faz? Ele se controlou para que a coisa não o possuísse. Não é esse o objetivo?
- Sei não. Se ele for possuído, e se você não estiver por perto, imagino que faça uma grande diferença.
- Talvez não. Quando esta guerra acabar, Aquiles vai voltar para casa e terá uma vida sossegada. Se ele nunca mais entrar em uma batalha, talvez a Fúria não volte
a dominá-lo.
- Em outras palavras, sua teoria é a de que ele precisa apenas ignorar a Fúria, e esta irá embora.
- Não. Não exatamente.
Jacky revirou os olhos, e Kat franziu a testa para a amiga.
- Está bem. Talvez.
- Bem, esperemos que a sua teoria seja mais bem-sucedida com a Fúria do que é com uma gravidez, por exemplo.
- Aquiles vai ficar bem - Kat falou com convicção.
Ambas olharam para o fogo e bebericaram o vinho.
- Vai ficar com ele, não é? - Jacky perguntou por fim.
- Sim. - Kat observou a melhor amiga, pensativa. - E quanto a você? O que vai fazer?
Jacky suspirou.
- Infelizmente, parece que vou passar o resto da minha vida branca.
Rindo, Kat colocou o braço em torno dela.
- Podia pegar uma corzinha... Iria se sentir melhor?
- Claro que não! Não vou ser uma dessas branquelas que ficam se bronzeando para depois ficar parecendo carne-seca aos quarenta anos! Tenho muito bom-senso para isso.
Quantas vezes eu mesma gritei para que tirasse o traseiro do sol?
- Vezes demais para eu contar.
- Pois então. Sou sensata demais em relação a essas coisas - Jacky afirmou. - Sabe do que essas babacas torrando ao sol me fazem lembrar?
- De perus se afogando na chuva porque são estúpidos demais para sair dela ou engolir a água! - Kat respondeu de pronto.
- Como sabe disso?!
- Jacky... Cansou de dizer que eu parecia um peru me afogando na chuva!
- Isso porque também precisava tirar essa sua bunda branca do sol.
Kat estreitou os olhos para fitá-la.
- O que foi? - indagou a outra moça.
- Suas bochechas estão cor-de-rosa demais para o meu gosto. Como se tivesse se bronzeado!
- Ah, merda! Eu só quis pegar um pouco de cor.
- É assim que começam os transtornos obsessivos - apontou Kat, presunçosa.
As duas se entreolharam e depois caíram na risada.
Quando controlaram o riso, Kat enxugou os olhos e examinou a clareira iluminada pelo fogo e ainda frequentada pelo grupo habitual de noivas de guerra - o qual havia
se acomodado o mais distante que podia dela e de Jacky.
- Por que Aquiles e Pátroclo estão demorando tanto?
- Tomara Aquiles esteja metendo um pouco de juízo naquela cabeça-dura do primo dele.
- Por quê? O que está acontecendo? - Kat quis saber.
- Pátroclo está reagindo muito mal a essa história de ficar fora da guerra. Parece que Ulisses bancou o Superman hoje. Estava imbatível e fez seus homens darem tudo
na luta. Dizem que eles podem até vencer se continuarem assim.
- Os Gregos, quer dizer?
- Hã-hã.
- Isso é bom... Acho. Afinal, as deusas só queriam o fim da guerra. Se Ulisses de repente se tornar invencível, isso porá fim à Guerra de Troia. Por que Pátroclo
está tão incomodado?
- Porque quer que Aquiles e o restante dos Mirmidões se juntem ao Exército. Diz que a vitória seria certa se isso acontecesse.
- Oh, Deus!... - Kat murmurou.
- "Oh, Deus!" mesmo.
- Acha que eu deveria incitar Aquiles a lutar? - Kat sentiu o estômago se contrair enquanto esperava pela resposta da amiga.
- Mas seu namoradinho não pode morrer se continuar lutando?
Ela assentiu com um gesto de cabeça.
- Não me lembro muito bem do restante daquela droga de Ilíada, mas esse fato é muito difícil de esquecer: Aquiles morre na Guerra de Troia.
- Então, não! - Jacky falou com firmeza. - Não o deixe lutar. Acabou de encontrá-lo e precisou vir de outro mundo para ficar com ele. É cedo demais para perdê-lo.
Assim como sei que é cedo demais para eu perder Pátroclo. Não quero que aquele tonto volte para a guerra.
- Se é assim, vou me ater ao plano original e fazer o que eu puder para manter Aquiles fora dessa luta.
- Parece o melhor a fazer, mesmo.
- Vamos brindar a isso.
- Parece uma boa ideia.
Elas tocaram os cálices mais uma vez e sentaram-se para esperar por seus homens.
- Pelos testículos peludos dos sátiros, você estava certa! - Vênus caminhou de um lado para o outro da câmara interna do templo de Hera, no Monte Olimpo.
O oráculo da Rainha dos Deuses girava com imagens de Ulisses comandando os Gregos em vitória após a outra contra os Troianos.
- Atena o presenteou com algo além de seus fluidos divinos. O homem está imbatível!
- O que foi que eu disse? Ela nunca tem amantes e agora está encantada com seu brinquedinho humano - comentou Hera, franzindo a testa para o oráculo.
- Isso só prova o que venho dizendo há eras. Atena é muito reprimida, precisa se soltar um pouco! Devia mais era estar se encontrando com Ulisses na praia há anos!
Desse modo, isso não teria sido uma experiência emocional tão violenta para ela. - Vênus suspirou, dramática.
- Isso significa que não haverá conversa com ela, você sabe.
- Então estávamos certas. O que vamos fazer? Essa guerra precisa acabar. Agora!
- Odeio dizer isso, mas acho que devemos apoiar os Gregos. Vamos acabar logo com essa coisa - decidiu Vênus, franzindo o cenho diante do oráculo.
- Vai mandar sua mortal moderna persuadir Aquiles a voltar com os Mirmidões para a batalha?
Vênus hesitou, não querendo contrariar sua rainha.
- Está decidido, Vênus! Precisa se certificar de que Aquiles retorne para a guerra com os Mirmidões.
- Acho que tem razão - a deusa concordou, relutante.
- É claro que tenho. Está resolvido. Agora vamos cuidar para que tudo isso aconteça depressa, antes que Zeus fique sabendo de alguma coisa. O dever dele é permanecer
neutro, motivo pelo qual também deveríamos ficar de fora disso - observou Hera.
- Mas todos sabem que Zeus tende a apoiar os Troianos, principalmente o velho Príamo - Vênus lembrou.
- Eu sei, eu sei... Zeus começou a coisa toda, ficando do lado de Laomedonte contra Poseidon anos atrás, embora nunca devesse ter apoiado um mortal contra o Deus
do Mar. Acontece que aqueles dois estão sempre discutindo sobre alguma coisa, e Zeus é muito rancoroso. Eu gostaria muito que ele...
- Hera! Esposa! Onde está você? - A voz do deus trovejou pelo Olimpo.
Hera deu um pulo, culpada, e Vênus revirou os olhos.
- Ele é tão rude!... Não devia ficar berrando para todo o Olimpo ouvir.
- Acha que eu não sei disso? - Hera correu para o oráculo e fez um gesto para que este ocultasse as cenas que aconteciam em Troia. - E, quando preciso dele, acha
que consigo encontrá-lo? Claro que não. Mas basta Zeus precisar de alguma coisinha e já fica me chamando aos gritos!
- Talvez eu devesse ter uma conversa com ele - Vênus se ofereceu, amável. - O Amor tem direitos que outros imortais não têm. Nem mesmo o Rei do Olimpo deve se privar
de um pequeno conselho amoroso.
- Não, não, obrigada. Melhor não. Nosso casamento vai muito bem.
Vênus torceu os lábios, parecendo duvidar.
- De qualquer forma, querida, preciso que o mantenha ocupado enquanto opero a minha magia lá embaixo. - Fez um gesto na direção do oráculo agora apagado.
- Hera! - Desta vez, a voz de Zeus soou bem mais próxima.
- Já estou indo!... Pode ir, Vênus. Eu cuido das coisas por aqui - garantiu a Rainha do Olimpo.
- Isto vai dar uma ajuda. - A outra deusa moveu os dedos na direção de Hera, banhando-a com um pó cintilante que impregnou sua pele.
- O que... - Hera começou, então ofegou ao sentir o corpo arrepiar e os mamilos enrijecer.
- Apenas um presentinho do Amor para sua rainha. - Vênus piscou para ela e, em seguida, desapareceu.
Com o corpo formigando, Hera correu para fora da câmara e acabou trombando com o corpo sólido do marido.
- Zeus! Por que estava se esgueirando?!
- Esgueirando! O Governante Supremo dos Deuses não precisa se esgueirar! E quanto a você? Por que estava correndo, toda aflita? - ele exigiu, olhando por cima de
seu ombro delicado para a câmara interna que ela acabara de deixar.
- Eu não estava correndo, e muito menos estava aflita. Só queria ir ao seu encontro, como qualquer esposa atenciosa faria.
Zeus apenas bufou, exasperado.
- Por que estava berrando por mim e perturbando o Olimpo inteiro? - Hera ralhou.
- Eu não conseguia encontrá-la. Não estava em nossa sala do trono, nem nos jardins onde costuma caminhar a esta hora do dia. Por isso a chamei. Mas não estava berrando
- ele afirmou com petulância.
- É claro que não - ela ironizou, mudando de humor e sorrindo conforme dispensava o comentário. - O que deseja de mim, meu senhor?
- Eu a tenho visto tão pouco ultimamente que imaginei que fosse gostar de me acompanhar em uma visita ao mundo antigo.
Hera refletiu que precisava mesmo passar mais tempo com o marido, ao menos até que aquela maldita guerra terminasse.
- Como de costume, tem toda a razão, meu amor - concordou com doçura. - Tenho estado muito ocupada com minhas funções divinas.
Zeus deixou escapar um grunhido satisfeito.
- Muito bem. Então está decidido. Vai me acompanhar até Troia. Ouvi dizer que os Gregos fizeram um avanço repentino na guerra. Tão repentino que há rumores de que
houve interferência divina, embora eu tenha proibido os olímpicos de desempenhar qualquer papel ativo na batalha. - Ele estendeu o braço para ela. - Vamos até lá
agora mesmo. Talvez você e eu possamos ter um almoço íntimo na praia depois de eu me certificar de que ninguém andou me desobedecendo.
O estômago de Hera se contraiu com o pânico, e ela tratou de reprimi-lo. Aproveitando-se da nuvem de luxúria com que Vênus lhe polvilhara a pele, aceitou o braço
do marido e sorriu para Zeus com malícia, roçando o mamilo contra o bíceps musculoso.
- Pensei que tivesse chamado por mim, querido...
- E chamei - ele confirmou, tentando não se deixar abalar pela sedução escancarada e incomum da esposa. - Imaginei que deveríamos ir a Troia juntos, formando uma
frente.
- Ah. - Hera fez um beicinho com os lábios rosados e carnudos, e lançou um olhar para o lado. - E eu pensei que me queria para algo mais íntimo do que viajar a trabalho.
- Bem, é claro que quero, mas, como eu disse... - Zeus começou, e depois parou de falar quando a esposa levantou-lhe a mão e levou seu dedo indicador para dentro
do ninho quente e macio da boca, chupando-o profundamente antes de lavá-lo com a ponta da língua. - Ah, mulher!... - ele gemeu quando, com a outra mão, Hera segurou
o membro já endurecido entre suas pernas. - Tenho sentido a sua falta, e você sabe como me agradar!
- Eu apenas comecei a fazer isso, meu amo...
Ao ver sua necessidade de viajar para Troia substituída por outra, mais imediata, Zeus puxou a esposa para os braços e, com um movimento firme, transportou-os para
o quarto onde esta não se fartou de agradá-lo cada vez mais.
Capítulo Vinte e Cinco
- Pátroclo, por que não consegue entender? - insistiu Aquiles. Ele havia encontrado o primo na volta do acampamento grego, e os dois agora caminhavam lado a lado
pela praia enquanto conversavam. - Tenho uma chance de mudar o meu destino, e pretendo aproveitá-la.
- Eu compreendo. - Pátroclo parou e o encarou. - E também quero que seu destino seja outro. Mas isso não significa que não possa liderar nossos homens na batalha.
Só precisa ficar longe de Heitor. Apenas se o matasse estaria fadado a morrer.
Aquiles balançou a cabeça.
- Uma batalha é um verdadeiro caos. Dizer que bastaria eu me manter distante de um dos guerreiros de Troia serviria se eu não estivesse possuído pela Fúria, em meio
à fumaça, ao sangue e à confusão da guerra.
- Posso ajudar você. Todos os Mirmidões irão ajudá-lo e se certificar de que fique longe de Heitor.
Aquiles sorriu e esmurrou o primo leve.
- Se pretendem tomar conta de mim, como querem que eu os lidere na batalha?
Pátroclo se afastou dele.
- Isto não é nenhuma brincadeira.
- Acha que estou brincando com o meu destino?
- Não. - O rapaz suspirou e passou a mão pelo cabelo, frustrado. - Também levo essa profecia a sério, mas a última coisa que desejo é a sua morte, primo.
- Pois já devia ter se acostumado a ela. - Pátroclo começou a protestar, contudo Aquiles o interrompeu. - Eu também já havia me acostumado. Estava preparado para
morrer antes de completar trinta verões, às portas de Troia, depois que matasse Heitor... E a ter meu nome reconhecido por séculos. Foi a escolha que fiz. Quando
eu era jovem, a glória e a imortalidade do meu nome eram tudo o que eu desejava. Mas depois amadureci e compreendi a natureza do que tinha escolhido. Foi quando
eu soube o que era arrependimento. O problema era que meu destino já era uma pedra rolando montanha abaixo. A única coisa que eu poderia fazer era deixá-lo acontecer.
Mas então ela veio e tudo começou a mudar.
- Sim! É exatamente esse o meu ponto. Tudo mudou agora. As deusas arrancaram as almas de Katrina e Jacqueline de outro mundo, de outro tempo, e as trouxeram aqui
para mudar as coisas. Como poderiam permitir que perecesse?
- Talvez se eu fosse tolo o suficiente para ignorar tudo o que elas me proporcionaram e voltasse para a batalha.
- Aquiles, você me disse que conseguiu impedir que a Fúria o possuísse hoje. Pode ter sido um presente das deusas. Será que elas não pretendem que use isso na batalha?
Que tenha a capacidade de lutar e nos liderar sem se perder para a Fúria?
- Meu presente é Katrina. Foi ela quem me permitiu enfrentar a Fúria. E Kat não iria para a frente de batalha comigo. Jamais. - Aquiles colocou a mão no ombro do
primo. - Eu a amo. Desejo passar o resto da minha vida com ela, e não apenas mais alguns dias.
- Eu também amo Jacqueline! - Pátroclo gritou, exasperado. - Mas nem por isso desisti de lutar pela glória da Grécia.
- Não estaria lutando pela glória da Grécia. Estaria lutando pela glória de Agamenon.
- Não é deste modo que a história vai se lembrar desta guerra - declarou Pátroclo.
- A história que se dane! Já estou farto de pensar no que vai ser ditou ou não a meu respeito no futuro.
- Os homens precisam da sua ajuda, Aquiles. Pode salvar vidas!
- Já salvei muitas - ele falou por entre os dentes enquanto mirava o mar iluminado pela lua. - Agamenon se cansou de me usar para lutar em suas batalhas. Pela primeira
vez estou escolhendo salvar a minha própria vida. Pela primeira vez tenho a chance de contar com um futuro com o qual eu apenas sonhava. Não vou jogá-la fora. Não
por Agamenon e sua ganância.
- Não é assim que eu vejo - insistiu Pátroclo. - Eu não estaria lutando por Agamenon. Eu estaria lutando pela Grécia.
- Se é tolo o bastante para arriscar sua vida e jogar fora o amor que lhe foi concedido, então lute. Não sou eu quem irá impedi-lo - decidiu Aquiles, virando-se
e começando a caminhar para longe, na praia.
- Os homens não vão aceitar a minha liderança! - Pátroclo gritou às suas costas. - Eles só iriam seguir os seus comandos. Eu não sou Aquiles!
- Pois eu gostaria que fosse! - ele falou por cima do ombro. - Eu ficaria bem feliz em viver sua vida longa e frutífera enquanto estivesse entrando no campo de batalha
com essa sua teimosia e ansiando por uma morte gloriosa!
Pátroclo observou o primo se afastar, depois apanhou uma concha e, com um grito de frustração, arremessou-a no mar.
- E ele ainda me chama de teimoso! - resmungou para si mesmo enquanto andava de um lado para o outro na beira da praia. - Não sei nem por que está sempre preocupado
em usar aquele elmo de ouro. Nenhuma espada poderia atravessar aquela cabeça-dura! - O jovem guerreiro quis urrar de ódio. Como era possível que Aquiles não enxergasse?
Liderar os Gregos em mais uma batalha - a batalha final da Guerra de Troia - não o levaria à morte. As deusas tinham mudado as coisas. Elas decerto não iriam permitir
que todos os seus esforços fossem desperdiçados.
E ele, Pátroclo, sentia-se muito grato. Não apenas porque agora acreditava que o primo fosse sobreviver, mas também porque havia encontrado a mulher dos seus sonhos.
Não estava ignorando Jacqueline por querer lutar. Estava apenas zelando pela própria honra. De qualquer maneira, ela estaria lá, esperando por ele. E, depois de
tudo, Jacky iria cuidar de suas feridas, recebê-lo em seu corpo macio e curá-lo.
O problema era que não haveria nenhuma batalha final e honrosa. Se Aquiles não estivesse lá para liderar os Mirmidões, estes não iriam lutar e, mesmo com o repentino
destaque de Ulisses no campo de batalha, aquela guerra continuaria a se arrastar indefinidamente.
- Ah, se eu pudesse ser Aquiles!... Nem que fosse apenas por um dia! - murmurou Pátroclo.
- Quer saber, querido? Não é má ideia - conjeturou Vênus após se materializar em uma nuvem de fumaça brilhante a seu lado.
- Deusa! - exclamou Pátroclo, e caiu de joelhos, inclinando a cabeça.
- Levante-se, Pátroclo. Deixe-me olhar para você.
- Como, minha senhora? - ele perguntou, confuso. No entanto se pôs de pé, assim como Vênus havia ordenado.
- Deixe-me ver... - Ela caminhou num círculo lento ao redor do atordoado guerreiro. - Têm quase a mesma altura e constituição física. É óbvio que são parentes. Aquiles
é mais encorpado, claro. E você é bem mais loiro do que ele. Mas, sob a armadura, isso não será tão perceptível. Além do mais, posso usar um pouco de magia aqui,
outro acolá... Basta que use o elmo do seu primo, o restante de sua armadura, e ninguém será capaz de notar a diferença. Ainda mais no calor da batalha.
- Não compreendo, senhora. - Mesmo enquanto proferia as palavras, no entanto, Pátroclo soube que a Deusa do Amor estava fazendo planos, e seu coração disparou, ansioso.
- Não mesmo, querido? Acabou de dizer que gostaria de ser Aquiles para liderar o ataque final dos Gregos contra os Troianos. Pois acredito que eu possa lhe conceder
esse desejo. Se for realmente isso o que quer... É isso o que deseja, jovem Pátroclo?
Pátroclo quis gritar de alegria e aceitar de imediato a oferta da deusa, porém os Olímpicos eram muitas vezes caprichosos, e seus caprichos poderiam ser perigosos
e mortais.
- Por que deseja me ajudar, Afrodite?
A deusa franziu a testa, e o ar ao redor deles se aqueceu, fustigando a pele de Pátroclo.
- Será possível que vocês, Gregos, nunca se lembram de que prefiro ser chamada de Vênus?
Pátroclo inclinou a cabeça.
- Perdão, grande deusa! Eu não quis ofendê-la.
Vênus respirou fundo, a brisa quente cessou, e o agradável frescor da noite voltou à beira-mar. - Claro que não, querido. Eu não devia ser tão sensível, mas tenho
estado sob um terrível estresse nestes últimos tempos. Esta guerra está me dando nos nervos, o que nos traz de volta à razão desta minha pequena visita e à sua pergunta.
Eu gostaria de ajudá-lo porque a Guerra de Troia já foi longe demais. Nós queremos que ela acabe, e pode nos ajudar para que isso aconteça.
- "Nós"? Quer dizer que os deuses estão realmente envolvidos na luta?
- Na verdade, as deusas é que estão envolvidas na guerra.
Pátroclo arregalou os olhos ao compreender tudo.
- Atena está ajudando Ulisses!
- Entre outras coisas - Vênus murmurou e, em seguida, limpou a garganta. - E sim, eu estarei ajudando você.
- Sinto-me honrado, grande deusa. Mas por que eu? Nunca fui fiel à senhora. - Ele sorriu, meio tímido. - A verdade é que, até pouco tempo atrás, eu não sabia quase
nada do amor.
Vênus o tocou no rosto, e Pátroclo sentiu uma onda quente de amor e felicidade percorrer o corpo.
- Mas o encontrou, não encontrou?
Ele assentiu, incapaz de falar.
- Por isso mesmo eu o escolhi. O amor recém-descoberto é a mais poderosa das emoções. Detém uma magia muito especial. Já o vi afastar a morte, curar almas e frustrar
o destino. Usarei a magia do amor recém-descoberto e também a sua semelhança física com o seu primo. Essas duas coisas juntas e abençoadas por mim irão permitir
que se faça passar por Aquiles apenas por tempo suficiente para que lidere os Mirmidões e o exército grego contra os Troianos. Vai ordenar o ataque quando as muralhas
forem violadas.
Pátroclo estremeceu com excitação e seus olhos cintilaram.
- Eu o farei! Farei isso pela Grécia e pela senhora.
Vênus inclinou a cabeça em reconhecimento diante da promessa.
- Fico feliz em ouvir isso. Agora, tudo o que precisa é da famosa armadura de Aquiles e da minha bênção logo após o amanhecer.
- Meu primo guarda a armadura em sua tenda. Como eu...
- Deixe isso comigo. O Amor irá manter Aquiles ocupado - garantiu Vênus.
- Mas e quanto aos Mirmidões? Como faço para reuni-los sem alertar Aquiles?
- Basta espalhar entre as tendas, esta noite, que ele convocou um treinamento especial para amanhã, e todos virão para cá pouco depois do amanhecer. - Vênus fez
um gesto ao redor, apontando a praia onde estavam: bem no meio do caminho entre o acampamento grego e o dos Mirmidões. - Deixe implícito que Aquiles se encontra
inquieto. Os homens já se encontram surpresos com sua decisão de se retirar da luta. Não demorará a convencê-los de que ele retomou seus antigos hábitos.
Pátroclo concordou com um gesto de cabeça, pensativo.
- É verdade. E se o Amor mantiver Aquiles ocupado em sua tenda, ele não vai ouvir falar do treinamento que supostamente teria organizado. - Sorriu de leve. - Meu
primo vai ficar furioso quando descobrir que foi enganado.
O sorriso de Vênus quase o cegou com sua beleza.
- Até lá esta guerra estará terminada e os Gregos terão saído dela vitoriosos. Aquiles estará alegre e ocupado demais, fazendo planos para voltar a Phthia, para
ficar zangado com você.
- É brilhante, senhora! - elogiou Pátroclo com um floreio, curvando-se.
A deusa piscou os longos cílios, toda coquete.
- Claro que sou, querido.
- E quanto aos Gregos? Diremos a eles que Aquiles é que está no comando?
Vênus levantou uma sobrancelha fina.
- Acredito que Ulisses possa nos ajudar a espalhar esse boato.
- Então está decidido.
- Isso mesmo. Ao amanhecer, estarei à sua espera, atrás da sua tenda. - Vênus fez uma pausa ao se lembrar de mais um detalhe. - Precisa tirar Jacqueline do caminho.
Ela é uma mulher moderna e não ficará de braços cruzados enquanto estiver liderando os Gregos na batalha.
Pátroclo assentiu e riu baixinho.
- Jacqueline jamais ficaria de braços cruzados. Ela tem o corpo de uma jovem donzela e o coração de uma guerreira. É uma mulher muito incomum.
- Tem razão, ainda que não tenha conhecido muitas mortais modernas. De qualquer forma, isso será um problema para nós. Ela é obcecada por você e não... - As palavras
de Vênus sumiram quando ela começou a sorrir.
- O que foi, minha deusa?
- Jacky está tão louca por você que deseja muito lhe agradar. Pois acorde-a antes do amanhecer. - Ela sorriu sugestivamente. - Faça-a despertar de uma vez e, em
seguida, diga-lhe que está morrendo de vontade de comer aqueles mariscos frescos que o mar revela na maré baixa.
- Na maré baixa? - ele indagou, sem compreender.
Vênus suspirou.
- A maré baixa acontece quase no meio da noite. Peça a Jacky que vá colher amêijoas enquanto treina com os homens. Ela deixará a tenda durante a madrugada e estará
fora do caminho.
- Tem certeza de que ela faria isso por mim?
- Dê-lhe prazer primeiro, demonstre seu amor por ela, e Jacky irá atrás dos moluscos sem pestanejar. As mortais modernas são muito lógicas. Se fizer algo de bom
para ela, Jacky há de querer retribuir.
Pátroclo sorriu.
- É assim, tão simples?
- Será depois de uma pitada ou duas da minha magia. Agora vá ficar com sua mulher, valente Pátroclo, e amanhã estará preparado para a glória! - Vênus bateu palmas
e desapareceu em uma nuvem cintilante de fumaça.
Sorrindo até as orelhas, Pátroclo correu pela praia, determinado a levar Jacqueline para a tenda e passar o restante da noite fazendo amor.
Não foi difícil encontrar Atena e Ulisses. Nem seria preciso possuir a magia divina do Amor encarnado para reconhecer os gemidos e suspiros da paixão que estes compartilhavam.
Por consideração, Vênus se materializou numa curva da praia, em meio a um bosque de árvores altas e, em silêncio, aproximou-se dos amantes. Atena se encontrava deitada
sobre uma manta de cetim, usando apenas um robe prata transparente. Já Ulisses, completamente nu e - Vênus registou com satisfação - mais bem dotado do que ela imaginava,
beijava o arco do pé da deusa.
Tomara Atena tivesse pedido às ninfas da floresta que lhe fizessem uma pedicure completa!, pensou Vênus, decidida a conversar com a outra mais tarde sobre aquele
tipo de coisa.
Limpou a garganta.
Ulisses agarrou a espada e, num movimento rápido, girou o corpo, agachando-se na defensiva diante de Atena.
Vênus levantou uma sobrancelha.
- Como é protetor, meu querido!...
Atena se pôs de pé em um instante, postando-se entre Ulisses e Vênus.
- Como ousa me interromper? Não tem o direito de...
- Blá, blá, blá... - Vênus revirou os olhos. - Reserve essa sua arrogância para os mortais, Atena. Até porque não vou interrompê-los por muito tempo. Tenho apenas
que dar um recado a Ulisses.
Os olhos da Deusa da Guerra se estreitaram.
- O que quer com ele?
O sorriso da Deusa do Amor foi lento e sábio.
- Ciúme? Que divertido. Ridículo, mas divertido. Fique tranquila. Não tenho nenhuma intenção de seduzir o seu amante. Ulisses, querido... - Vênus desviou os olhos
de Atena, que continuava a fulminá-la com o olhar, e o guerreiro deu um passo para mais perto de sua deusa, o que lhe proporcionou uma agradável vista frontal de
toda a sua glória. - Ah, aí está você... Muito bem de saúde, por sinal.
- O recado! - Atena falou por entre os dentes.
Vênus suspirou.
- Claro. É só que Aquiles vai liderar os Mirmidões na batalha de amanhã, logo após o amanhecer.
Ulisses cerrou os punhos e abriu um sorriso.
- Eu sabia que ele ia ceder! - exclamou. Em seguida, virou-se para Atena e se pôs sobre um joelho.
- Amanhã, minha deusa, meu amor, os Gregos lhe presentearão com a vitória sobre os Troianos.
- Que interessante - Atenas respondeu, porém seus olhos não deixaram a Deusa do Amor um só momento. - E por que isso estaria acontecendo?
- Se não tivesse andado tão preocupada, saberia o motivo. - Vênus fez um gesto para que elas se afastassem alguns metros. - Será que podemos ter uma conversa em
particular?
Ainda franzindo a testa para a outra diva, Atena virou-se para Ulisses.
- Eu já volto - resmungou, e seguiu com Vênus praia abaixo. - Explique-se! - exigiu, tão logo se encontravam distantes do campo de audição do guerreiro.
- Em primeiro lugar, devo repetir: devia tê-lo tomado como amante eras atrás!
- Minha vida amorosa não está aberta a discussões.
- Querida, eu não estou discutindo a sua vida amorosa, apenas a ausência dela até agora. De qualquer modo, a coisa toda é muito simples: tem ajudado Ulisses, o que
basicamente tornou a presença de Aquiles no campo de batalha dispensável.
Atena respirou fundo, preparando-se para elaborar uma desculpa, porém Vênus ergueu a mão, silenciando-a.
- Poupe-me! Foi bom para você. - Lançou um olhar por cima do ombro da deusa para o local onde Ulisses a aguardava. - Na verdade, foi ótimo... Mas acabou prejudicando
o nosso pequeno plano.
- Eu sei - Atena admitiu.
- Por isso mesmo, Hera e eu fizemos algumas alterações nele. Os Gregos podem muito bem vencer agora. Não importa para nós, contanto que essa guerra tenha fim.
- Eu me importo - declarou Atena.
- Imagino. De qualquer forma, isso tudo ficar duas vezes melhor para o seu lado. Os Gregos vencem, seu amante é Grego... E todos viverão felizes para sempre. Ei,
talvez possa manipular as coisas, de modo que Ulisses demore outra década para voltar para casa! Assim poderia tê-lo só para si por muito mais tempo.
Os olhos cinzentos de Atena se estreitaram de novo.
- Eu já disse que não estamos discutindo a minha vida amorosa.
- Pelas nádegas molhadas de Poseidon, você é muito aborrecida! - exclamou Vênus. Em seguida, lembrando-se de onde estava, lançou um olhar nervoso na direção do mar.
- Desculpe-me, querido. Sabe que eu disse isso com amor.
- Quer fazer o favor de manter o foco? E quanto a Aquiles e seu destino? Isso significa que ele vai morrer amanhã? - Atena quis saber.
- Ah, não se preocupe com isso. Aquiles estará dormindo, bem seguro, em sua cama. Será Pátroclo, ajudado por um pouco da minha magia, quem irá liderar os Gregos.
Mas não compartilhe essa informação com o seu namorado!
- Ele não é meu nam... - Atena começou a vociferar.
- Não importa! Só não conte a ele. Eu a verei amanhã, assim que essa coisa toda terminar. A menos que esteja ocupada outra vez...
Vênus jogou um beijo para Ulisses e, em seguida, desapareceu.
Capítulo Vinte e Seis
As enormes tendas de Agamenon vibravam com festa. Naturalmente, a maior parte dos farristas era de contemporâneos do rei - homens muito velhos ou então de posição
proeminente demais para ir a combate, ainda que não se pudesse dizer isso diante de seus brindes e discursos.
Também havia mulheres a rodo. Jovens e submissas noivas de guerra que, se não ansiosas por agradar, ao menos pareciam dispostas a fingir que sim diante das vantagens
que uma noite como aquela poderia lhes proporcionar.
Briseida odiava todos eles. Cada um daqueles bodes velhos no cio, com seus testículos murchos. Mesmo assim, lançava discretos sorrisos àqueles que considerava menos
repulsivos. Agamenon poderia se cansar dela a qualquer momento e, se isso acontecesse, ela poderia se valer de algum daqueles futuros cadáveres até que houvesse
algum guerreiro disposto a lutar por ela contra seus camaradas.
O que ela não daria para pertencer a alguém tão viril como o dourado Aquiles!... Suas cicatrizes nunca a haviam incomodado, e a Fúria sempre a animara mais do que
assustara. Entretanto, quando pertencera a ele, Aquiles não costumava nem mesmo olhar em sua direção, a menos que quisesse vinho ou comida. Desde que ele dera permissão
para que Agamenon a levasse, ela vinha se amaldiçoando por não ter sido mais ousada ao ter uma chance com ele. Devia ter ido para sua cama sem ser convidada. Devia
ter pensado em enfeitiçá-lo, como fizera Polixena.
- Briseida! Mais vinho! - Agamenon ordenou, esticando-se de onde estava, sentado em seu trono de ouro, para lhe agarrar um peito e apertar dele a ponta, apenas para
a delícia dos generais que a tudo assistiam.
Briseida quis cerrar os dentes e sibilar como uma víbora, mas, em vez disso, arqueou as costas num gesto sensual e falou com voz rouca:
- Qualquer coisa que desejar, meu senhor. - Então apanhou o enorme jarro de vinho e desfilou diante dos outros homens, acariciando o lado liso da cerâmica sugestivamente
enquanto lhes permitia apreciar seus jovens mamilos intumescidos e fantasiar sobre tudo o que quisessem.
Assim que saiu da tenda, desistiu do caminhar sensual e passou a se mover com o silêncio de um gato - habilidade que tinha aperfeiçoado quando ainda era apenas uma
criança. E claro que aqueles guerreiros idiotas que se amontoavam ao redor dos barris de vinho não se deram conta de sua aproximação.
Ao ouvir o nome dele, Briseida congelou em meio às sombras.
- Aquiles?! Tem certeza? - indagou um baixinho de aparência rude.
- Ouvi o próprio Ulisses falando. Deve ser verdade! - Foi a resposta de um soldado alto e cheio de marcas.
- Com Aquiles e seus Mirmidões liderando o ataque, irmãos, a vitória será nossa, amanhã!
- Eu não acreditava que ele fosse lutar de novo. Ouvi dizer que a princesa de Troia havia lhe lançado um feitiço - comentou outro homem.
- Ela lançou um feitiço apenas aqui - respondeu o homem baixo, agarrando os genitais e projetando os quadris -, e não aqui. - Com a outra mão, ele levantou a espada
e a fez girar em arco ao redor da cabeça.
Todos os homens riram, e Briseida saiu das sombras.
- Agamenon deseja mais vinho. Encha isto - falou, fria, estendendo o jarro.
O baixinho o apanhou.
- Vou enchê-lo para você... - Seu olhar persistente dizia que ele gostaria de enchê-la assim como faria com o jarro; contudo Briseida sabia que, enquanto ela fosse
o prêmio de guerra de Agamenon, nenhum homem falaria abertamente de sua luxúria. O rei poderia fazer o que quisesse com ela, mas não seus homens.
O homenzinho entregou-lhe o jarro de volta, os olhos fixos nos mamilos eretos por baixo das vestes transparentes.
- Qual é o seu nome? - Briseida quis saber.
Ele sorriu, exibindo os dentes podres.
- Aentoclus, senhora.
- Pois muito bem, Aentoclus. Se olhar de novo na minha direção, direi a Agamenon que tentou me violentar e pedirei ao meu amante, o seu rei, que me traga seus testículos
como compensação.
Enquanto o guerreiro perdia a cor, Briseida sorriu e foi embora, segurando o jarro com cuidado para não derrubar vinho nas vestes.
Voltou para o lado de Agamenon, desta vez ignorando os olhares lascivos dos generais. Encheu seu cálice e inclinou-se para o rei, sussurrando-lhe ao ouvido:
- Tenho notícias sobre Aquiles.
Os olhos perspicazes do monarca se desviaram para os dela, e o que ele viu neles o fez bater palmas e ordenar:
- Mais música e dança!
A música explodiu no ambiente enquanto adolescentes vestidas apenas com correntes de ouro ondularam através da tenda, desviando a atenção dos homens.
- O que ouviu? - ele perguntou com calma.
- Aquiles e os Mirmidões vão liderar o ataque amanhã - Briseida sussurrou, acariciando-lhe o ouvido, e sentiu o choque que atravessou o corpo de Agamenon.
- Tem certeza?
- O próprio Ulisses se encarregou de espalhar a notícia.
- Se isso for verdade - ele passou o braço ao redor de sua cintura -, você é uma joia rara, minha querida.
- E sempre sua, meu amo. Sempre sua. - Briseida sorriu, presunçosa, e se aninhou junto dele, deslizando a mão macia de modo a acariciá-lo no interior da coxa. Não,
Agamenon não se cansaria dela. Não importava o que ela tivesse de fazer: continuaria a ser a noiva de guerra do rei mesmo quando eles voltassem para a Grécia.
- Kalchas! - Agamenon levantou a voz acima da batida sensual dos tambores.
- Aqui, meu senhor. - O velho profeta pareceu materializar-se do nada.
Ele é como uma névoa venenosa, Briseida pensou, alimentando seu desgosto por aquele velho nojento que vivia se esgueirando. Ele era um dos homens favoritos do rei,
e ela, esperta demais para se mostrar sua inimiga.
- Vá chamar Ajax para mim.
- Ajax, senhor?
Briseida notou que os generais que tinham ouvido o comando de Agamenon também ficaram confusos. Ajax era brilhante no campo de batalha. Fora deste, mal conseguia
concatenar as ideias. O homem era, literalmente, tão grande, forte e estúpido como um boi.
- Sim, Ajax. Eu tive um sonho ontem à noite em que ele era fundamental para uma grande vitória amanhã. Quero contar-lhe a respeito desse sonho e da recompensa que
pretendo lhe dar por seus feitos heroicos.
- Sim, senhor. - Kalchas curvou-se e correu para fora da tenda.
Os generais que a tudo haviam escutado sorriram e sinalizaram sua concordância. Sonhos eram enviados pelos deuses, e ver seu rei se baseando em um deles para agir
era algo a que jamais se oporiam.
Mas Briseida sabia: Agamenon estava mentindo. A única coisa com a qual ele sonhara na noite anterior fora com suas pernas abertas. Ele mesmo lhe revelara isso naquela
manhã quando, ao acordar, pusera o rosto entre suas coxas.
Acariciou seu ouvido outra vez enquanto sussurrava:
- O que pretende fazer, amo?
Em um movimento rápido, Agamenon a puxou para o colo de modo que ela montasse em sua ereção e ele pudesse empurrá-la intimamente entre suas pernas. Briseida inclinou-se
sobre ele e, escondido por seus longos cabelos, o rei revelou:
- Se Aquiles lutar contra os Troianos amanhã, será sua última batalha; e também o dia em que seremos vitoriosos. Espero há quase dez verões que a maldita profecia
de sua morte se concretize, e não vou esperar mais.
- Mas ouvi de minhas fontes, no acampamento dos Mirmidões, que Polixena parece estar frustrando a profecia! Talvez isso seja verdade. Sabe que nem mesmo os asseclas
de Poseidon poderiam matá-la.
Agamenon mordeu-lhe o pescoço.
- Tudo o que Aquiles precisa fazer é matar Heitor, e sua morte virá em seguida - sussurrou, malévolo. - Foi Zeus quem decidiu assim. Nem mesmo um oráculo protegido
por uma deusa pode mudar isso. Polixena o tem mantido fora do campo de batalha e, portanto, distante de Heitor. Mas talvez a arrogância de Aquiles o tenha levado
a acreditar que seu oráculo, de alguma forma, vá protegê-lo no campo de batalha. Meu trabalho será apenas garantir que o caminho de Heitor até Aquiles esteja aberto.
O destino fará o restante.
Briseida riu com voz rouca.
- É mesmo brilhante, querido - falou com um gemido, ondulando o corpo contra o membro túrgido de olhos fechados e fingindo que cavalgava o corpo jovem e forte de
um guerreiro.
- Esse feitiço não pode ser assim, tão simples - comentou Aquiles.
- Eu já disse que não é magia, é auto-hipnose. E, sim, ela é muito simples... e complexa ao mesmo tempo - admitiu Kate. - A nossa mente é incrível. Pode fazer uma
pessoa acreditar que está doente ou, melhor ainda, fazê-la acreditar que está bem quando deveria estar doente. Já testemunhei verdadeiros milagres nesses dez anos
de prática.
- E essa auto-hipnose, que não é feitiço, mas se parece muito com um, pode me ajudar a manter a Fúria sob controle - ele concluiu, pegando uma mecha grossa do cabelo
de Kat, enrolando-a no dedo e depois levando-a aos lábios. - Isto é como uma pele de zibelina. Eu nunca vou me cansar de tocá-lo.
- Eu dei sorte - sussurrou Kat, inclinando a cabeça para que Aquiles pudesse acariciar os fios com mais facilidade. - Polixena tinha um cabelo maravilhoso.
Aquiles sorriu.
- Eu me esqueço de que este corpo nem sempre foi seu. Qual era a cor do seu cabelo antes?
- Era loiro. Não tão comprido assim, mas também era bom.
- Seria linda de qualquer forma para mim - ele afirmou, beijando-a nos lábios de leve.
- Que bonitinho... Mas não vai conseguir mudar de assunto tão fácil. Sim, a auto-hipnose, que não é um feitiço coisa nenhuma, pode ajudá-lo a controlar seu corpo
e suas emoções, de modo que consiga se manter relaxado o suficiente para evitar os gatilhos que despertam a Fúria. Não importa o que esteja acontecendo com você.
- Quer dizer, então, que o nosso filho não vai me despertar a Fúria acidentalmente ao acreditar que não pode se afogar por ser neto de uma deusa do mar... - elaborou
Aquiles, fitando-a nos olhos.
Refém das profundezas azuis da alma daquele homem incrível, Kat vislumbrou um futuro em que o amava e vivia a seu lado. Queria, sim, ser a mãe de seus filhos. Assim
como queria netos ou qualquer que fosse o equivalente, no antigo e mágico mundo grego, para a família tradicional. Em uma casa com cerquinha branca, de preferência.
E ainda queria um cachorro. Queria tudo.
- E se for "a nossa filha"?...
Aquiles piscou, pois não tinha considerado essa possibilidade. Depois soltou uma risada seca, e seus lábios se curvaram no esboço de um sorriso.
- Acho que vou ter de aprimorar a minha prática de auto-hipnose. Ou talvez não praticá-la de modo algum. Afinal, ser dominado pela Fúria seria uma coisa boa ou ruim
quando algum pretendente tentasse tirar a minha filha de mim?
Kat sorriu.
- Creio que o controle ainda é a chave nesse caso. Se ele for um sujeito todo largado, daqueles que veste calças de emo e usa delineador, deixamos a Fúria tomar
conta. Mas se for um bom menino, só precisa rosnar e assustá-lo um pouco.
Aquiles franziu a testa, confuso, e Kat caiu na risada.
- Em resumo, você só devora os pretendentes de que não gostarmos, que tal?
Ele continuou de testa franzida.
P. C. Cast
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