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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DEUSES HUMANOS / H. G. Wells
DEUSES HUMANOS / H. G. Wells

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Wells provavelmente tinha essas ideias em mente ao iniciar a elaboração de Deuses humanos (Men Like Gods, no original), publicado em 1923. A estrutura do livro e mesmo os termos e nomes empregados são uma reminiscência do pioneiro comentário político de Thomas More, publicado em 1516 com o título de Utopia,2 embora aluda igualmente à visão de Edward Bellamy em Daqui a cem anos,3 na qual temos uma comunidade futura ideal acessível ao protagonista, que entra em estado onírico para alcançá-la. Portanto, temos aqui um deslocamento temporal, não apenas espacial. Mas o tom é bem menos solene que na obra de Bellamy e mesmo em More, evidenciando a potencialidade satírica, disruptiva, sempre presente em Wells. Como usual nesse tipo de reflexão, Wells estabelece uma diferença entre os humanos futuros e a humanidade de seu tempo – entre os utopianos e os terráqueos, no caso. Também é importante notar que Wells pensa sua Utopia como um território contíguo ao nosso plano de realidade; não se trata de uma ilha em continentes distantes e exóticos, como em More, nem o futuro que se acredita ser redentor. Não, trata-se de uma outra realidade, semelhante mas única – e essa liberdade permite desdobramentos alegóricos instigantes. Já de saída, essa estranha definição da velha humanidade como “os terráqueos”, como se espécimes semelhantes a nós mesmos não fossem nada além de alienígenas em relação ao próprio mundo que nos cerca, o nosso mundo.
A passagem de uma dimensão para outra, em Deuses humanos, é inovadora em sua simplicidade. O protagonista, Sr. Barnstaple, ao tirar férias, derrapa na estrada que seguia e logo descobre que seu ponto de referência, o castelo de Windsor, desapareceu ao mesmo tempo que a própria estrada deixou de ser “um bloco compacto de pedregulho e terra coberto de asfalto, com uma superfície de brita, poeira e excremento de animais de uma estrada inglesa normal”, tornando-se uma maravilha feita de um tipo de vidro. Ou seja, a viagem de um universo para o outro, que costuma ser um momento visionário nesse tipo de obra, aqui se resolve de modo ao mesmo tempo trivial – nada de fato acontece com o veículo ou com a jornada de Barnstaple –, verossímil – uma passagem assim parece convincente, sem o uso de recursos fantasiosos – e extraordinária – pois ainda se trata de uma passagem para outro mundo, perceptível nos detalhes. O mesmo deslocamento sutil ocorre, por exemplo, com o “profeta da roda”, uma espécie de versão diferenciada de Jesus Cristo. Wells empregou uma tortura tão tremenda e infamante – o suplício da roda – como um equivalente da tortura tremenda que configura o cristianismo, a crucificação – uma permutação sofisticada, nada gratuita.

 

 

 

 

 


CAPÍTULO UM
SR. BARNSTAPLE TIRA FÉRIAS

Parte 1

O sr. Barnstaple se via na necessidade urgente de tirar férias. E ele não tinha ninguém com quem viajar e nenhum lugar para ir. Trabalhava demais. E estava cansado de casa.

Era um homem de sentimentos fortes, que adorava muito sua família, de modo que a conhecia de trás para frente, mas quando estava com esse ânimo esgotado, ela o entediava profundamente. Seus três filhos, que estavam crescendo, pareciam esticar a cada dia; sentavam-se nas cadeiras que ele estava prestes a se sentar; superavam-no em sua própria pianola; enchiam a casa de risadas roucas e estridentes diante de piadas que ninguém queria ouvir; se intrometiam no namoro dos velhos, que até então havia sido um de seus maiores consolos nesse vale; o derrotavam no tênis; brincavam de lutar na escadas e caíam degraus abaixo com grande estrondo. Deixavam seus chapéus por todo lado. Se atrasavam para o café da manhã. Iam para a cama toda noite com enorme balbúrdia. “Rá, rá, rá, rê, rê, rê, plaft!”, e a mãe parecia gostar. Custavam caro, desprezando alegremente o fato de que tudo havia aumentado de preço, exceto o poder de compra do sr. Barnstaple. E quando ele dizia algumas simples verdades sobre o sr. Lloyd George na hora da refeição, ou fazia a menor tentativa de elevar a conversa à mesa acima do tom das mais estúpidas caçoadas, a atenção deles se esvaía de forma ostensiva...

Pelo menos parecia ostensiva.

Ele queria muito fugir de sua família para algum lugar onde pudesse pensar nela em silêncio com orgulho e afeto. E não ser incomodado por ela...

Ele também queria se afastar por um tempo do sr. Peeve. As próprias ruas estavam se tornando um tormento para ele; ele não queria nunca mais ver um jornal ou uma placa de jornaleiro. Estava obcecado pelas apreensões de algum tipo de crise econômica e financeira que faria a Grande Guerra parecer uma simples catástrofe incidental. Isso porque era subeditor e um faz-tudo do Liberal, aquele conhecido veículo dos aspectos mais deprimentes do pensamento avançado, e o inabalável pessimismo do sr. Peeve, seu chefe, o afetava cada vez mais. Antigamente, era possível oferecer certa resistência ao sr. Peeve, caçoando furtivamente de sua carranca com os outros membros da equipe, mas agora não havia outros membros da equipe; eles haviam sido cortados pelo sr. Peeve, num clima de abatimento financeiro. Agora, praticamente ninguém escrevia para o Liberal, exceto o sr. Barnstaple e o sr. Peeve. Então o sr. Peeve exigia tudo a seu modo. Ele se sentava curvado na poltrona editorial, com as mãos no fundo do bolso da calça, lançando um olhar melancólico sobre tudo, às vezes por duas horas seguidas. A tendência natural do sr. Barnstaple era no sentido de uma esperança modesta e da crença no progresso, mas o sr. Peeve afirmava veementemente que a crença no progresso saíra de moda havia pelo menos seis anos e que restava ao Liberalismo a esperança maior de que o Dia do Juízo Final chegasse logo. E, tendo terminado o texto que a equipe, quando havia uma equipe, costumava chamar de seu semanário indigesto, o sr. Peeve partia e deixava o sr. Barnstaple a montar o resto do jornal para a semana seguinte.

Mesmo em tempos comuns, teria sido difícil viver com o sr. Peeve; mas os tempos não eram comuns; estavam cheios de ocorrências desagradáveis que tornavam suas previsões melancólicas bastante plausíveis. O grande bloqueio do carvão acontecia havia um mês e parecia prenunciar a ruína comercial da Inglaterra; toda manhã havia relatos de novas revoltas da Irlanda, ultrajes imperdoáveis e inesquecíveis; uma seca prolongada ameaçava as colheitas do mundo; a Liga das Nações, da qual o sr. Barnstaple esperara coisas tremendas nos grandes dias do Presidente Wilson, era uma futilidade melancólica e presunçosa; por todo lado havia conflitos, por todo lado havia insensatez; sete oitavos do mundo pareciam afundar em direção a uma desordem crônica e dissolução social. Mesmo sem o sr. Peeve teria sido difícil se manter otimista diante dos fatos.

De fato, o sr. Barnstaple estava deixando de ter esperanças, e para tipos como ele, esperança é o solvente essencial sem o qual a vida não pode ser digerida. Sua esperança sempre havia sido o liberalismo e o generoso esforço liberal, mas ele começava a achar que o liberalismo jamais faria nada além de se sentar curvado com as mãos no bolso, resmungando e implicando com as atividades de homens mais vulgares, porém mais enérgicos, cujas atividades iriam, inevitavelmente, acabar com o mundo.

Agora, dia e noite o sr. Barnstaple se preocupava com o mundo em geral. De noite até mais do que de dia, porque o sono o abandonava. Era assombrado pelo terrível desejo de publicar um número do Liberal somente seu; alterá-lo depois que o sr. Peeve tivesse saído, cortar todo o negócio maçante, a miserável e vazia zombaria a tudo que havia de errado, o regozijo com as coisas cruéis e infelizes, o exagero dos equívocos simples, naturais e humanos do sr. Lloyd George, os apelos a Lorde Grey, a Lorde Robert Cecil, a Lorde Landsdowne, ao Papa, à Rainha Anne ou ao Imperador Frederick Barbarossa (variava de semana a semana), para que se erguesse e dessem voz e forma às jovens aspirações de um mundo renascido e, em vez disso, preencher seu número com... Utopia! Dizer aos surpresos leitores do Liberal: Aqui estão as coisas que precisam ser feitas! Aqui estão as coisas que vamos fazer! Que golpe seria para o sr. Peeve no seu café da manhã de domingo! Por uma vez, espantado demais para secretar anormalmente, ele poderia até digerir sua refeição!

Mas isso era o mais tolo dos sonhos. Era preciso considerar os três jovens Barnstaples em casa e a necessidade de que tivessem um bom começo na vida. E por mais belo que fosse seu sonho, o sr. Barnstaple tinha uma convicção bem desagradável de que não era esperto o suficiente para levá-lo a cabo. Estragaria tudo de alguma forma...

Sua situação poderia piorar. O Liberal era um jornal sombrio, desestimulante e mesquinho, mas, no fim das contas, não era vil e perverso.

Ainda assim, mesmo que o sr. Barnstaple não tivesse esse surto desastroso, era imperativo que descansasse um pouco do sr. Peeve. Ele já o contradissera uma ou duas vezes. Uma discussão poderia acontecer a qualquer momento. E, evidentemente, o primeiro passo para se afastar do sr. Peeve era procurar um médico. Então o sr. Barnstaple foi ao médico.

– Meus nervos estão descontrolados – disse o sr. Barnstaple. – Eu me sinto terrivelmente neurastênico.

– O senhor está sofrendo de neurastenia – disse o médico.

– Não suporto meu trabalho diário.

– O senhor quer férias.

– Acha que preciso de uma mudança?

– Uma mudança tão completa quanto for possível.

– Pode recomendar algum lugar aonde eu possa ir?

– Aonde você quer ir?

– A nenhum lugar definido. Achei que o senhor poderia recomendar...

– Deixe que algum lugar o atraia... e vá para lá. Não faça nada forçado neste momento.

O sr. Barnstaple pagou ao médico a soma de um guinéu e, armado com essas instruções, se preparou para dar a notícia de sua doença e necessária ausência ao sr. Peeve assim que a ocasião se apresentasse.

Parte 2

Por um tempo, a perspectiva dessas férias foi apenas uma nova adição ao fardo já excessivo de preocupações do sr. Barnstaple. Decidir ir embora era se encontrar cara a cara com três problemas aparentemente intransponíveis: Como ir embora? Para onde? E como o sr. Barnstaple era uma dessas pessoas que se cansam muito rapidamente de sua própria companhia: Com quem? Um lampejo de maquinação furtiva penetrou na tristeza cândida que havia recentemente se tornado a expressão habitual do sr. Barnstaple. Mas, por outro lado, ninguém reparava muito nas expressões dele.

Uma coisa estava muito clara em sua mente. Nenhuma palavra sobre essas férias deveria ser pronunciada em casa. Se a sra. Barnstaple tomasse ciência disso, ele sabia exatamente o que iria acontecer. Ela se encarregaria da questão toda, com um ar de devoção competente. “Você precisa ter boas férias”, ela diria, e selecionaria um resort bem distante e caro em Cornwall, Escócia ou Brittany, compraria vários trajes, repensaria em inchar a bagagem com embrulhos inconvenientes no último momento e levaria as crianças. Provavelmente, ela tomaria providências para que um ou dois grupos de conhecidos fossem para o mesmo lugar, para “animar as coisas”. Se eles fossem, certamente levariam os piores lados de suas naturezas, criando o mais insuportável dos tédios. Não haveria conversa. Haveria muita risada irreal. Haveria jogos infindáveis... Não!

Mas como um homem pode sair de férias sem sua esposa saber? De alguma forma, uma mala precisaria ser feita e tirada de fininho de dentro da casa...

O traço mais esperançoso da posição do sr. Barnstaple, pelo ponto de vista do sr. Barnstaple, era que ele possuía um pequeno automóvel próprio. Era natural que seu carro tivesse uma grande participação em seus planos secretos. Parecia oferecer os modos mais fáceis de escapar; convertia a possível resposta para “Aonde?” de um lugar fixo e definido no que eu creio que os matemáticos chamam de locus; e havia algo tão amigável naquele monstrinho que oferecia de modo leve, mas bem perceptível, uma resposta à pergunta: com quem? Era um carro de dois lugares. Era conhecido na família como Banheirinha, Mostarda Colman e Perigo Amarelo. Como esses nomes sugerem, era um carro baixo, conversível, de uma cor amarela clara. O sr. Barnstaple o usava para ir de Sydenham ao escritório, porque fazia cinquenta quilômetros por galão e era muito mais barato do que uma passagem de temporada. Ficava no pátio, sob a janela do escritório durante o dia. Em Sydenham, ele ocupava um galpão do qual o sr. Barnstaple guardava a única chave. Até então, ele havia conseguido evitar que os meninos dirigissem e fizessem o carro em pedaços. Por vezes, a sra. Barnstaple o fazia levá-la por Sydenham para fazer compras, mas ela não gostava muito do carrinho, porque a expunha demais aos elementos e a deixava empoeirada e desgrenhada. Tanto por tudo que permitia quanto por tudo que impossibilitava, o carrinho era claramente indicado como o meio para as necessárias férias. E o sr. Barnstaple realmente gostava de dirigi-lo. Ele dirigia muito mal, mas com muito cuidado; e, apesar de às vezes parar e se recusar a seguir, o carro nunca havia ido para o leste quando o sr. Barnstaple virava a direção para o oeste, pelo menos até então, como a maioria das coisas em sua vida. E por isso dava a ele uma agradável sensação de domínio.

No final, o sr. Barnstaple tomou suas decisões com grande rapidez. A oportunidade de repente se abriu diante dele. Quinta-feira era seu dia na gráfica, e ele voltou para casa naquela noite sentindo-se terrivelmente esgotado. O tempo mantinha-se firmemente quente e seco. Não menos perturbador era que essa seca prenunciava escassez e miséria para metade do mundo. E Londres estava em plena temporada, elegante e sorridente; afinal, era no mínimo um ano mais tolo do que 1913, o grande ano do tango, o qual, à luz dos eventos subsequentes, o sr. Barnstaple havia considerado desde então como o ano mais tolo na história do mundo. O jornal Star tinha a cota usual de más notícias margeando informações sobre esportes e moda, que ocupavam o espaço central. Lutas se davam entre os russos e os poloneses, e também na Irlanda, na Ásia Menor, na fronteira da Índia e no leste da Sibéria. Houve três novos assassinatos horríveis. Os mineradores ainda estavam parados e os condutores ameaçavam com uma grande greve. Houvera apenas espaço de pé no trem de ida, e saíra vinte minutos atrasado.

Ele encontrou um bilhete de sua esposa avisando que os primos dela em Wimbledon haviam mandado um telegrama comunicando uma chance inesperada de assistir ao tênis lá com Mademoiselle Lenglen e todos os outros campeões, e que ela havia ido com os meninos e só voltaria tarde. Faria muito bem a eles assistir a um tênis de primeira classe, disse ela. Além disso, era a noite de folga dos empregados. Ele se importaria de ficar sozinho em casa por uma vez? Os empregados lhe deixariam um jantar frio antes de saírem.

O sr. Barnstaple leu o bilhete com resignação. Enquanto jantava, ele passou os olhos num panfleto que um amigo chinês lhe havia enviado para mostrar como os japoneses estavam deliberadamente destruindo o que restava da civilização e da educação na China.

Só quando se sentou fumando um cachimbo no jardinzinho dos fundos foi que percebeu o que estar sozinho em casa significava para ele.

Então, de repente ele ficou bem ativo. Ligou para o sr. Peeve, contou a ele o veredito do médico, explicou que os assuntos do Liberal estavam num estado particularmente estável e conseguiu suas férias. Foi para o quarto, juntou apressadamente as coisas para levar numa velha mala Gladstone cuja falta não seria notada imediatamente e a colocou na traseira do carro. Depois disso, gastou certo tempo escrevendo uma carta que endereçou à mulher e a colocou cuidadosamente no bolso da camisa.

Em seguida, ele trancou o galpão do carro e se acomodou numa espreguiçadeira no jardim com seu cachimbo e um bom livro reflexivo sobre a Falência da Europa, para parecer o mais inocente possível antes de sua família voltar.

Quando sua esposa voltou, ele disse como quem não quer nada que acreditava estar sofrendo de neurastenia e que havia marcado de ir para Londres de manhã para consultar um médico sobre o assunto.

A sra. Barnstaple queria escolher um médico para ele, mas ele se safou dizendo que tinha de considerar Peeve nessa questão e que Peeve estava bem decidido por um médico com quem ele já havia se consultado. E, quando a sra. Barnstaple disse que acreditava que todos precisavam de umas boas férias, ele apenas resmungou de maneira evasiva.

Dessa forma, o sr. Barnstaple pôde escapar da casa com toda a bagagem necessária para as férias de algumas semanas, sem criar nenhuma oposição intransponível. Seguiu na manhã seguinte em direção a Londres. O trânsito no caminho estava animado e abundante, mas nada de problemático, e o Perigo Amarelo corria de modo tão macio que quase merecia o nome de Esperança Dourada. Em Camberwell, ele virou na Camberwell New Road e seguiu para o correio no final da Vauxhall Bridge Road. Lá ele estacionou. Estava assustado, mas empolgado com o que estava fazendo. Foi ao correio e enviou um telegrama à mulher: “Dr. Pagan disse que preciso urgentemente de solidão e descanso então estou indo para a região dos Lagos me recuperar. Tenho mala e coisas. Enviando carta em seguida”.

Depois, ele saiu, tirou do bolso e postou a carta que havia escrito com tanto cuidado na noite anterior. Ele a rabiscara intencionalmente para sugerir neurastenia aguda. O dr. Pagan, ele explicou, havia ordenado férias imediatas e sugeriu que o sr. Barnstaple “seguisse para o norte”. Seria melhor suspender todas as cartas por alguns dias ou até uma semana ou mais. Ele não escreveria a não ser que algo desse errado. Nenhuma notícia seria uma boa notícia. “Fique tranquila, tudo ficará bem”. Assim que tivesse um endereço de correspondência, ele mandaria por telegrama, mas só coisas muito urgentes deveriam ser enviadas.

Depois disso, ele voltou ao banco do carro com tamanha sensação de liberdade como nunca havia sentido desde suas primeiras férias em seu primeiro colégio. Rumou para Great North Road, mas no congestionamento de Hyde Park Corner ele deixou que um policial o dirigisse em direção a Knightsbridge, e depois, na esquina onde a Barth Road bifurca na Oxford Road, uma van o bloqueou e o manteve na primeira via. Mas não importava muito. Qualquer caminho levava para Outro Lugar, e ele podia seguir para o norte depois.

Parte 3

O dia era um desses dias de sol claro característicos da grande seca de 1921. Não estava nada abafado. Na verdade, havia um frescor que se misturava ao ânimo do sr. Barnstaple, convencendo-o de que havia aventuras bem agradáveis diante dele. Sua esperança já havia voltado. Sabia que estava saindo de seu mundo, apesar de ainda não ter a menor ideia do quão completamente fora de seu mundo ele iria ficar. Já seria uma bela aventurazinha parar numa pousada e almoçar, e se ele se sentisse solitário no caminho, daria carona a alguém e conversaria. Seria bem fácil dar carona, porque, enquanto estivesse dando as costas para Sydenham e o escritório do Liberal, não importaria para qual direção seguiria.

Saindo de Slough, foi ultrapassado por um enorme carro cinza de passeio. Ele se assustou e desviou. O carro rodou ao lado dele sem fazer um som, e apesar de o seu velocímetro levemente impreciso indicar que ele estava a uns bons quarenta quilômetros por hora, ultrapassara-o num segundo. Notou que seus ocupantes eram três cavalheiros e uma dama. Estavam todos sentados eretos, olhando para trás, como se estivessem interessados em algo que os seguia. Passaram rápido demais para ele notar algo além de que a dama tinha uma beleza radiante, de uma maneira imediata e indiscutível, e que o cavalheiro mais próximo dele tinha um rosto peculiarmente travesso, apesar de idoso.

Antes que ele pudesse se recuperar dessa passagem exibicionista, um carro com o ruído de um dinossauro o alertou de que ele estava novamente sendo ultrapassado. Era assim que o sr. Barnstaple gostava de ser deixado para trás, por negociação. Ele desacelerou, abandonou qualquer disputa pela primazia da estrada e fez gestos encorajadores com a mão. Uma limusine grande e rápida se aproveitou de sua permissão para usar cerca de dez metros da estrada à direita dele. Carregava uma boa quantidade de bagagem, mas, exceto por um jovem de monóculo sentado ao lado do motorista, ele não viu nada dos passageiros. A limusine fez uma curva à frente passando o carro de passeio.

Nem mesmo uma banheira mecânica gosta de ser ultrapassada dessa forma arrogante numa manhã ensolarada em plena estrada. O sr. Barnstaple pisou fundo no acelerador e fez a curva a uns bons quinze quilômetros por hora acima de sua prática cautelosa. Encontrou a estrada vazia diante de si.

De fato, ele achou a estrada vazia demais. Estendia-se na frente dele por talvez meio quilômetro. À esquerda havia arbustos baixos, bem aparados, árvores dispersas, campos lisos, algumas cabanas pequenas ao fundo, álamos remotos e uma vista distante do Castelo de Windsor. À direita havia campos lisos, uma pequena pousada e um fundo de morros baixos cobertos de bosques. Um traço flagrante nessa paisagem tranquila era uma placa de anúncio de um hotel à beira do rio em Maidenhead. Diante dele havia um tipo de onda de calor no ar e dois ou três pequenos redemoinhos de poeira na estrada. E não havia sinal do carro cinza e nenhum sinal da limusine.

Levou uns bons dois segundos para o sr. Barnstaple processar todo o espanto desse fato. Nem à direita nem à esquerda havia uma saída possível pela qual os carros podiam ter sumido. E se eles já haviam chegado à próxima curva, deviam estar viajando à velocidade de trezentos ou quatrocentos quilômetros por hora!

Era um costume excelente do sr. Barnstaple desacelerar sempre que estava em dúvida. Ele desacelerou. Seguiu a um ritmo de talvez uns vinte quilômetros por hora, olhando boquiaberto a paisagem vazia, buscando alguma pista do misterioso desaparecimento. Curiosamente, ele não sentia que corria qualquer tipo de perigo.

Então, seu carro pareceu acertar algo e derrapou. Derrapou tão violentamente que, por um momento, o sr. Barnstaple ficou desnorteado. Não conseguiu se lembrar do que fazer quando um carro derrapava. Lembrou-se vagamente de algo sobre virar o carro na direção em que derrapava, mas, na empolgação do momento, não conseguiu entender em qual direção o carro disparava.

Mais tarde, ele se lembrou de que nesse ponto ouviu um som. Era exatamente o mesmo som, vindo como o clímax de uma pressão acumulada, agudo como o rompimento de uma corda de alaúde, que se ouve no fim – ou no começo – da insensibilidade sob o efeito de uma anestesia.

Parecia que havia rodado para os arbustos à direita, mas então viu a estrada diante dele novamente. Ele pisou no acelerador, então desacelerou e parou. Parou tomado por um profundo assombro.

Era uma estrada completamente diferente daquela em que ele estivera meio minuto antes. Os arbustos haviam mudado, as árvores também, o Castelo de Windsor havia desaparecido e – uma pequena compensação – a limusine grande estava visível novamente. Estava parada no acostamento, a cerca de duzentos metros de distância.


CAPÍTULO DOIS
A ESTRADA MARAVILHOSA

Parte 1

Por um tempo, a atenção do sr. Barnstaple ficou dividida de modo desigual entre a limusine, cujos passageiros agora estavam descendo, e o cenário ao seu redor. Esse segundo se mostrava de fato tão estranho e belo... Era como se as pessoas estivessem compartilhando da admiração e do espanto e, assim, pudessem ajudar a elucidar e aliviar a crescente e opressora perplexidade pela qual passavam, por isso que o pequeno grupo à frente ganhou alguma importância em sua consciência.

A estrada em si, em vez de ser um bloco compacto de pedregulho e terra coberto de asfalto, com uma superfície de brita, poeira e excremento de animais de uma estrada inglesa normal, era aparentemente feita de vidro, transparente como água parada em alguns pontos e, em outros, leitosa ou opalina, coberta de faixas de cores suaves ou reluzindo com nuvens de flocos dourados. Tinha talvez doze ou quinze metros de largura. De cada lado havia uma faixa de céspede, de uma grama mais fina do que o sr. Barnstaple jamais vira – e ele era um especialista e um cortador de grama atento. E, mais além, um largo canteiro de flores. No local em que o sr. Barnstaple estava, boquiaberto em seu carro, e talvez por trinta metros em cada direção, esse canteiro era uma massa de algum tipo desconhecido de miosótis azuis. Então, a cor era interrompida por um número crescente de estacas altas de um branco puro que finalmente expulsavam por completo o azul do canteiro. Do lado oposto, essas mesmas estacas se misturavam a grupos de plantas que ostentavam bolsas de sementes igualmente estranhas ao sr. Barnstaple, que variavam de uma série de azuis, malvas e roxos para um carmim intenso. Além dessa espuma de flores de cores gloriosas, estendiam-se campinas planas em que vacas cor de creme pastavam. Três bem próximas, talvez um pouco espantadas pela aparição repentina do sr. Barnstaple, ruminavam olhando-o com olhos benevolentes e especulativos. Tinham longos chifres e papadas, como o gado do sul da Europa e da Índia. Dessas criaturas benignas os olhos do sr. Barnstaple passaram para uma longa fileira de árvores com forma de chamas, uma colunata branca e dourada e um fundo de montanhas nevadas. Algumas nuvens altas e brancas deslizavam por um céu de azul ofuscante. O ar impressionava o sr. Barnstaple por ser incrivelmente claro e doce.

Exceto pelas vacas e o pequeno grupo de pessoas ao lado da limusine, o sr. Barnstaple não conseguia ver outros seres vivos. Os passageiros estavam parados e olhando ao redor. Um som de vozes queixosas chegou até ele.

Uma crepitação às suas costas chamou a atenção do sr. Barnstaple. Ao lado da estrada, na direção de onde ele possivelmente viera, erguiam-se as ruínas do que parecia ser uma casa de pedra demolida bem recentemente. Ao lado dela havia duas grandes macieiras recém-torcidas e dilaceradas, como se por alguma explosão, e do centro subia uma coluna de fumaça e aquele som de coisas pegando fogo. E as linhas retorcidas das macieiras destruídas ajudaram o sr. Barnstaple a perceber que algumas flores próximas à sua mão também estavam curvadas para um lado, como se pela passagem de uma violenta rajada de vento. No entanto, ele não ouvira nenhuma explosão nem sentira nenhum vento.

Ele olhou a cena por um tempo, então se virou como se buscasse uma explicação na limusine. Três das pessoas agora vinham pela estrada em direção a ele, guiadas por um cavalheiro alto, esguio e grisalho com chapéu de feltro e uma longa sobrecapa de viagem. Tinha um rosto pequeno virado para cima, com um narizinho que mal ultrapassava os aros de seus óculos dourados. O sr. Barnstaple voltou a dar partida e dirigiu lentamente para encontrá-los.

Assim que considerou que podia ser ouvido, ele parou e pôs a cabeça fora da janela do Perigo Amarelo para perguntar algo. Ao mesmo tempo, o cavalheiro alto e grisalho fez praticamente a mesma pergunta:

– Senhor, pode me dizer onde nós estamos?

Parte 2

– Cinco minutos atrás – disse o sr. Barnstaple –, eu teria dito que estávamos em Maidenhead Road. Perto de Slough.

– Exato! – disse o cavalheiro alto em tom sério e questionador. – Exato! E afirmo que não há o menor motivo para supor que não estejamos mais em Maidenhead Road.

O desafio do dialético ecoava em sua voz.

– Não parece Maidenhead Road – disse o sr. Barnstaple.

– Concordo! Mas devemos julgar pelas aparências ou pela continuidade direta de nossa experiência? A Maidenhead Road levou a isso, estava em continuidade com isso e, portanto, declaro que esta é a Maidenhead Road.

– Aquelas montanhas? – considerou o sr. Barnstaple.

– O Castelo de Windsor deve estar lá – disse o cavalheiro, animado, como se marcasse um ponto numa jogada.

– Estava há cinco minutos – disse o sr. Barnstaple.

– Então, obviamente, essas montanhas são algum tipo de camuflagem – disse o cavalheiro alto de modo triunfante –, e a coisa toda é, como se diz hoje em dia, uma armação.

– Parece extremamente bem armada – disse o sr. Barnstaple.

Houve uma pausa, durante a qual o sr. Barnstaple examinou os companheiros do cavalheiro. O cavalheiro alto ele conhecia muito bem. Vira-o muitas vezes em reuniões e jantares públicos. Era o sr. Cecil Burleigh, o grande líder Conservador. Não era apenas um político ilustre – era eminente como cavalheiro, filósofo e homem de inteligência universal. Atrás dele havia um jovem baixinho, troncudo, de meia-idade, desconhecido do sr. Barnstaple, cuja aparência hostil era ressaltada pelo monóculo. O terceiro membro do pequeno grupo também era uma figura familiar, mas por um tempo o sr. Barnstaple não conseguiu situá-lo. Tinha um rosto redondo, gorducho e bem barbeado, uma pessoa bem nutrida cujos trajes sugeriam um homem do alto clero ou um próspero padre católico romano.

O jovem de monóculo agora falava num tipo de falsete impotente:

– Eu fui para Taplow Court pela estrada há menos de um mês, e certamente não havia nada disso no caminho.

– Admito que haja dificuldades – disse o sr. Burleigh com entusiasmo. – Admito que haja dificuldades consideráveis. Ainda assim, arrisco pensar que minha suposição se mantém.

– Não acha que esta seja a Maidenhead Road? – perguntou o cavalheiro de monóculo ao sr. Barnstaple.

– Parece perfeito demais para ser uma armação – disse o sr. Barnstaple com leve obstinação.

– Mas, meu querido – protestou o sr. Burleigh –, esta estrada é famosa pelos vendedores de plantas, e às vezes eles fazem as mais impressionantes exibições! Como propaganda.

– Então, por que não vamos direto para Taplow Court agora? – perguntou o cavalheiro de monóculo.

– Porque – disse o sr. Burleigh, com um tom áspero, natural quando se tem de insistir num fato já claramente conhecido e ignorado com obstinação – Rupert insiste que estamos em outro mundo. E não quer continuar. Eis o porquê. Ele sempre teve imaginação demais. Acha que coisas que não existem podem existir. E agora ele se imagina em algum romance de ficção científica, completamente fora de nosso mundo. Em outra dimensão. Às vezes penso que teria sido melhor para nós se Rupert tivesse escrito romances em vez de vivê-los. Se o senhor, como seu secretário, acha que conseguirá levá-lo a Taplow a tempo para o almoço com o pessoal de Windsor...

O sr. Burleigh indicou com um gesto ideias para as quais ele achava as palavras inadequadas.

O sr. Barnstaple já havia notado uma figura movendo-se lenta e atentamente, com uma compleição arenosa e uma cartola cinza com uma faixa preta que os caricaturistas haviam popularizado, explorando o emaranhado de flores ao lado da limusine. Então, devia ser ninguém menos do que o conhecido Rupert Catskill, Secretário de Estado para a Guerra.

Pela primeira vez, o sr. Barnstaple se descobriu em total concordância com aquele político aventureiro. Era outro mundo. O sr. Barnstaple saiu do carro e se dirigiu ao sr. Burleigh.

– Acho que podemos ter muitas indicações de onde estamos, senhor, se examinarmos o prédio que está queimando aqui perto. Acho que acabei de ver uma figura deitada num barranco logo atrás. Se pudermos pegar um desses embusteiros...

Deixou a frase inacabada porque não acreditava, nem por um momento, que era tudo um embuste. O sr. Burleigh havia caído muito em seu conceito nos últimos cinco minutos.

Todos os homens viraram o rosto para as ruínas fumegantes.

– É extraordinário que não haja nenhuma alma à vista – observou o cavalheiro de monóculo, perscrutando o horizonte.

– Bem, eu não vejo nenhum mal em descobrir o que está queimando – disse o sr. Burleigh, e conduziu o grupo, com uma expressão inteligente e antecipatória, em direção à casa destruída entre as árvores destroçadas.

Mas, antes de ele dar uma dúzia de passos, a atenção do pequeno grupo foi atraída de volta à limusine por um grito alto de terror vindo da senhora que permanecia sentada lá dentro.

Parte 3

– Sério, isso é demais! – exclamou o sr. Burleigh com uma nota de exasperação genuína. – Certamente deve haver leis para evitar esse tipo de coisa.

– Escapou de algum circo itinerante – disse o cavalheiro de monóculo. – O que devemos fazer?

– Parece calmo – disse o sr. Barnstaple, mas sem nenhum impulso para testar sua teoria.

– Poderia facilmente assustar as pessoas de modo grave – disse o sr. Burleigh. E, levantando a voz, gritou: – Não se assuste, Stella! Provavelmente é manso e inofensivo. Não o irrite com essa sombrinha. Pode saltar em você. Stel-la!

“A coisa” era um grande e belo leopardo que havia saído suavemente das flores e sentado como um grande gato no meio da estrada de vidro, ao lado do carro grande. Piscava e movia a cabeça de um lado para o outro de forma rítmica, com uma expressão de interesse intrigado, enquanto a dama, de acordo com as melhores tradições em tais casos, abria e fechava sua sombrinha na direção dele o mais rápido que podia. O chofer havia se abrigado atrás do carro. O sr. Rupert Catskill permaneceu parado olhando, enfiado até o joelho nas flores, aparentemente tendo notado a existência da criatura apenas pelo mesmo grito que atraiu a atenção do sr. Burleigh e seus companheiros.

O sr. Catskill foi o primeiro a agir, e esse ato demonstrou sua coragem. Foi ao mesmo tempo discreto e destemido.

– Pare de agitar essa sombrinha, Lady Stella – disse ele. – Deixe comigo... Vou atrair a atenção dele.

Ele contornou o carro para ficar cara a cara com o animal. Então, por um momento permaneceu parado, como se estivesse se exibindo, uma pequena figura resoluta com uma casaca cinza e a cartola com a faixa preta. Estendeu a mão cautelosa, não muito bruscamente, com medo de assustar a criatura.

– Gatinho! – disse ele.

O leopardo, aliviado pelo fim da agitação da sombrinha de Lady Stella, olhou-o com interesse e curiosidade. Ele se aproximou. O leopardo estendeu o focinho e farejou.

– Se ao menos ele me deixar fazer carinho... – disse o sr. Catskil, e chegou à distância de um braço.

A fera fungou a mão estendida com uma expressão incrédula. Então, com um sobressalto que fez o sr. Catskill recuar vários passos, ela espirrou. Espirrou de novo com muito mais violência. Por um momento, lançou um olhar reprovador para o sr. Catskill e depois saltou agilmente sobre o canteiro de flores e seguiu na direção da colunata branca e dourada. As vacas que pastavam no campo contemplaram sua passagem sem o menor sinal de apreensão, notou o sr. Barnstaple.

O sr. Catskill permanecia num estado levemente empertigado no meio da estrada.

– Nenhum animal – observou ele – pode fazer frente ao olhar firme de um humano. Nenhum. É um enigma para o materialista... Vamos nos juntar ao sr. Cecil, Lady Stella? Ele parece ter encontrado algo interessante lá. O homem no carrinho amarelo pode saber onde ele está. Hum?

Ele ajudou a senhora a sair do carro e os dois foram atrás do grupo do sr. Barnstaple, que agora se aproximava da casa que queimava. O motorista, evidentemente não querendo ficar sozinho com a limusine naquele mundo de possibilidades incríveis, seguiu-os tão de perto quanto o respeito permitia.


CAPÍTULO TRÊS
O POVO LINDO

Parte 1

O incêndio na casinha não parecia estar avançando. A fumaça que vinha de lá era muito menor agora do que quando o sr. Barnstaple a observou pela primeira vez. Enquanto se aproximavam, encontraram uma boa quantidade de pedaços retorcidos de metal e cacos de vidro entre a alvenaria despedaçada. A impressão de um aparato científico explodido era bem forte. Então, quase simultaneamente, o grupo percebeu um corpo deitado na encosta gramada atrás das ruínas. Era o corpo de um homem no auge da vida, nu, exceto por um par de pulseiras, um colar e um cinturão, e sangue escorria de sua boca e narinas. Com certo temor, o sr. Barnstaple se ajoelhou ao lado da figura caída e apalpou seu coração. Ele nunca havia visto um rosto e um corpo tão belos.

– Morto – ele sussurrou.

– Olhem! – exclamou o homem de monóculo com voz estridente. – Outro!

Ele apontava para algo que estava escondido do sr. Barnstaple por um pedaço de muro. O sr. Barnstaple ficou de pé e subiu num monte de entulho para ver esse segundo achado. Era uma menina esguia, tão parcamente vestida quanto o homem. Havia, evidentemente, sido arremessada com enorme violência contra o muro e teve morte instantânea. Seu rosto não havia se deformado, apesar de seu crânio ter sido esmagado por trás; sua boca perfeita e olhos verdes estavam entreabertos, e sua expressão era de alguém que ainda tentava solucionar algum problema difícil, porém interessante. Não parecia nada morta, mas sim apenas distraída. Uma das mãos ainda agarrava um implemento de cobre com um cabo de vidro. A outra caía frouxamente.

Por alguns segundos, ninguém falou. Era como se todos temessem interromper a corrente dos pensamentos dela.

Então, o sr. Barnstaple ouviu a voz do cavalheiro que parecia um padre, bem suave atrás dele:

– Que forma perfeita! – disse ele.

– Admito que eu estava errado – ponderou o sr. Burleigh. – Estava errado... Essas pessoas não são da Terra. É evidente. E, portanto, não estamos na Terra. Não consigo imaginar o que aconteceu nem onde estamos. Diante de evidências suficientes, nunca hesitei em me retratar. Este mundo em que estamos não é nosso mundo. É algo... – Ele fez uma pausa. – É algo mesmo maravilhoso.

– E o grupo de Windsor – disse o sr. Catskill, sem nenhum pesar aparente – precisará almoçar sem nós.

– Mas então – disse o cavalheiro clérigo –, em que mundo estamos e como chegamos aqui?

– Ah! – disse o sr. Burleigh brandamente. – Você vai além da minha pobre capacidade de suposição. Estamos aqui em algum mundo que é singularmente como o nosso e singularmente diferente. Deve estar de algum modo relacionado com o nosso mundo, ou não poderíamos estar aqui. Mas como pode estar relacionado é um mistério insolúvel para mim, confesso. Talvez estejamos em outra dimensão do espaço. Mas minha pobre cabeça dá voltas ao pensar nessas dimensões. Estou... estou confuso, confuso.

– Einstein! – exclamou o cavalheiro de monóculo de forma sucinta e com evidente orgulho.

– Exatamente! – disse o sr. Burleigh. – Einstein poderia esclarecer para nós. Ou o velho e querido Haldane poderia tentar explicar e nos confundir com aquele adiposo hegelianismo dele. Mas não sou Haldane nem Einstein. Aqui estamos num mundo que, para os propósitos práticos, incluindo os propósitos dos nossos compromissos do fim de semana, não é lugar algum. Ou, se preferirem os gregos, estamos em Utopia. E como vejo que não há nenhuma saída aparente disso, suponho que o que temos de fazer como criaturas racionais seja aproveitar o melhor que pudermos. E observar nossas oportunidades. Certamente é um mundo muito bonito. A beleza é ainda maior do que o espanto. E há seres humanos aqui, com mentes. Julgo por todo esse material espalhado que é um mundo no qual a química experimental é praticada – praticada, de fato, até as últimas consequências, sob condições quase idílicas. Química e nudismo. Devo confessar que ver essas duas pessoas que aparentemente se materializaram aqui como deuses gregos ou como selvagens nus, parece-me uma questão puramente de gosto individual. Admito estar inclinado para o deus grego... e deusa.

– Exceto que é um pouco difícil de pensar em dois imortais mortos – gritou o cavalheiro de monóculo no tom de quem marca um ponto.

O sr. Burleigh estava prestes a responder, e, a julgar por sua expressão irritada, sua resposta seria de caráter disciplinatório. Mas, em vez disso, ele exclamou incisivo e se voltou para encarar dois recém-chegados. O grupo todo tomou consciência deles ao mesmo tempo. Dois perfeitos Apolos estavam sobre as ruínas e observavam nossos terráqueos com espanto no mínimo tão grande quanto o que haviam criado.

Um deles falou, e o sr. Barnstaple ficou atônito ao descobrir palavras compreensíveis reverberando em sua mente.

– Deuses vermelhos! – exclamou o utopiano. – O que são vocês? E como entraram em nosso mundo?

(Inglês! Teria sido muito menos espantoso se eles tivessem falado grego. Mas que eles falassem qualquer língua conhecida já era motivo para um assombro e incredulidade.)

Parte 2

O sr. Cecil Burleigh era o menos desconcertado do grupo.

– Agora – disse ele –, podemos esperar descobrir algo concreto, cara a cara com criaturas racionais e articuladas.

Ele pigarreou, agarrou as lapelas de sua longa sobrecapa com duas mãos nervosas e assumiu a tarefa de porta-voz.

– Cavalheiros, somos incapazes de explicar nossa presença aqui – disse ele. – Estamos tão intrigados quanto os senhores. Subitamente, vimo-nos em seu mundo, em vez do nosso.

– Vocês vêm de outro mundo?

– Exatamente. Um mundo bastante diferente. Nele, temos todos nossos lugares naturais e apropriados. Viajávamos em nosso mundo em... ah!... certos veículos, quando de repente nos vimos aqui. Intrusos, admito, mas posso assegurar-lhes que intrusos inocentes e sem premeditação.

– Sabem que Arden e Greenlake fracassaram em seu experimento e que estão mortos?

– Se Arden e Greenlake são os nomes desses belos jovens aqui, não sabemos de nada, exceto que os encontramos caídos como os veem, quando viemos da estrada para descobrir ou, de fato, investigar...

Ele pigarreou e deixou a frase em suspenso.

O utopiano, se pudermos por conveniência chamá-lo assim, que falou primeiro olhou para seu companheiro e pareceu questioná-lo em silêncio. Então, virou-se para os terráqueos novamente. Ele falou, e mais uma vez seu tom claro pareceu ecoar – assim pareceu ao sr. Barnstaple – não em seus ouvidos, mas em sua cabeça.

– É melhor que você e seus amigos não mexam nos destroços. Será melhor que voltem todos para a estrada. Venham comigo. Meu irmão aqui vai extinguir esse fogo e fazer o que precisa ser feito com nosso irmão e irmã. E depois este lugar será examinado por aqueles que entendem do trabalho que estava sendo feito aqui.

– Devemos nos entregar totalmente à sua hospitalidade – disse o sr. Burleigh. – Estamos inteiramente a seu dispor. Este encontro não foi nossa intenção, deixe-me repetir.

– Apesar de que certamente o teríamos procurado por isso se soubéssemos da possibilidade – disse o sr. Catskill, acenando para o mundo ao redor e olhando para o sr. Barnstaple para confirmar. – Achamos este seu mundo... muito atraente.

– À primeira vista – o cavalheiro de monóculo reforçou –, um mundo muito atraente.

Enquanto voltavam pelas flores densas para a estrada, atrás dos utopianos e do sr. Burleigh, o sr. Barnstaple descobriu Lady Stella farfalhando ao lado dele. Suas palavras, nesse cenário de pura maravilha, encheram-no de espanto por seu teor sereno e absurdamente ordinário.

– Já não nos encontramos antes em algum lugar... em um almoço ou algo assim, senhor... senhor?

Aquilo tudo não passava de um espetáculo? Ele a encarou confuso por um momento antes de responder:

– Barnstaple.

– Sr. Barnstaple?

A mente dele alinhou-se com a dela.

– Nunca tive o prazer, Lady Stella. Apesar de que, é claro, eu a conheço, conheço muito bem por suas fotografias nos jornais semanais.

– Ouviu o que o sr. Cecil acabou de dizer? Sobre isto ser Utopia?

– Ele disse que podíamos chamar de Utopia.

– É tão típico do sr. Cecil. Mas isto é Utopia? É mesmo Utopia? Eu sempre quis tanto estar em Utopia – a senhora continuou, sem esperar pela resposta do sr. Barnstaple à sua pergunta. – Que jovens esplêndidos esses dois utopianos parecem ser! Devem pertencer à aristocracia, estou certa, apesar de seus trajes... informais. Ou mesmo por causa disso...

O sr. Barnstaple teve um pensamento feliz.

– Também reconheci o sr. Burleigh e o sr. Rupert Catskill, Lady Stella, mas ficaria feliz se me dissesse quem é o jovem de monóculo e o clérigo. Estão logo atrás de nós.

Lady Stella comunicou a informação em meia-voz, de modo coquete e confidencial.

– O de monóculo – ela murmurou – é... vou soletrar: F.R.E.D.D.Y. M.U.S.H. Tem gosto. Bom gosto. É muito hábil em encontrar jovens poetas e todo esse tipo de coisa literária. E é secretário de Rupert. Se houver uma academia literária, dizem que com certeza ele estará lá. É terrivelmente crítico e sarcástico. Nós íamos a Taplow para um fim de semana lindamente literário, como nos velhos tempos. Isto é, tão logo o pessoal de Windsor tivesse partido... O sr. Goose iria, e Max Beerbohm, e todos esses aí. Mas hoje em dia sempre acontece alguma coisa. Sempre... o inesperado, de modo quase excessivo... Aquele de colarinho de padre – ela olhou para trás para verificar se estava ao alcance dos ouvidos do cavalheiro em questão – é o padre Amerton, terrivelmente franco em relação aos pecados da sociedade, esse tipo de coisa. É estranho, mas fora do púlpito ele costuma ser tímido e quieto, e um pouco desajeitado com garfos e facas. Paradoxal, não é?

– Claro! – exclamou o sr. Barnstaple. – Agora me lembro dele. Conhecia o rosto, mas não conseguia situá-lo. Muito obrigado, Lady Stella.

Parte 3

Havia algo muito reconfortante para o sr. Barnstaple em estar na companhia dessa gente famosa e extravagante, particularmente na companhia de Lady Stella. Ela era mesmo encorajadora; trazia tanto do querido velho mundo e estava muito bem preparada para subjugar esse novo mundo aos seus padrões na primeira oportunidade. Ela se defendia do maravilhamento e da beleza que ameaçava submergir o sr. Barnstaple. Encontrá-la e estar em sua companhia era em si uma pequena, porém considerável, aventura para um homem na posição dele, que ajudava a transpor o abismo de espanto entre a monotonia das experiências normais dele e aquele tão estimulante ar utopiano. Ela solidificava – se é que se pode usar a palavra em tal contexto –, decompunha o esplendor luminoso em torno dele, criando uma credibilidade completa que podia ser vista e comentada por ela e pelo sr. Burleigh e vista pelo monóculo avaliador do sr. Freddy Mush. Trazia-o para o âmbito das coisas que saem nos jornais. Sozinho em Utopia, o sr. Barnstaple teria ficado completamente intimidado, a ponto de ser mentalmente destruído. Essa divindade de bons modos e pele morena que agora trocava palavras com o sr. Burleigh tornava-se mentalmente acessível pela intervenção daquele grande homem.

No entanto, era com um resfôlego que a atenção do sr. Barnstaple passava das pessoas da limusine para esse mundo aparentemente nobre no qual ele havia caído. Que tipo de seres eram aqueles homens e mulheres que pertenciam a um mundo onde, ao que parecia, ervas daninhas haviam deixado de invadir e combater as flores e onde leopardos desprovidos de malícia felina olhavam os passantes com olhos amistosos?

Era espantoso que os dois primeiros habitantes que eles haviam encontrado naquele mundo de natureza subjugada estivessem mortos, vítimas, ao que parecia, de algum experimento arriscado. Mais espantoso ainda que os outros dois que se chamavam de irmãos dos mortos mostrassem tão pouca dor ou desespero com a tragédia. Não houve cena emotiva nenhuma, notou o sr. Barnstaple, nenhuma consternação ou choro. Estavam muito mais intrigados e interessados do que horrorizados ou perturbados.

O utopiano que permaneceu na ruína carregou o corpo da menina para colocá-lo ao lado de seu companheiro, e agora o sr. Barnstaple via que ele voltara para examinar de perto os destroços do experimento.

Mas agora outras daquelas pessoas vinham à cena. Havia aeronaves neste mundo, pois duas naves pequenas, rápidas e silenciosas como andorinhas, aterrissavam nos campos próximos. Um homem tinha vindo pela estrada num veículo pequeno de duas rodas e dois lugares, com as rodas uma atrás da outra, como numa bicicleta; era mais leve e belo do que qualquer automóvel terráqueo e, misteriosamente, conseguia ficar parado em duas rodas. Uma risada que veio da estrada chamou a atenção do sr. Barnstaple para um grupo desses utopianos que aparentemente acharam algo divertidamente ridículo no motor da limusine. A maioria dessa gente estava tão parcamente vestida e era tão bela quanto os dois cientistas mortos, mas um ou dois usavam grandes chapéus de palha, e uma mulher que parecia ser mais velha, de trinta anos ou mais, usava um roupão branco bordado com uma linha de vermelho intenso. Ela agora falava com o sr. Burleigh.

Apesar de estar a vários metros de distância, sua fala chegava à mente do sr. Barnstaple com nitidez.

– Ainda nem sabemos qual conexão sua vinda ao nosso mundo pode ter com a explosão que aconteceu aqui ou se de fato há alguma conexão. Queremos investigar essas duas coisas. Achamos que seria razoável levar vocês e todas as posses que trouxeram para um local conveniente, para uma conferência não muito longe daqui. Estamos providenciando máquinas para os levarem até lá. Então talvez possam comer. Não sei o que estão acostumados a comer.

– Um lanche – disse o sr. Burleigh, apreciando a ideia. – Um lanche certamente seria aceitável em breve. Na verdade, se não tivéssemos caído abruptamente do nosso mundo no seu, a essa hora estaríamos almoçando, almoçando na melhor das companhias.

Almoço e assombro, pensou o sr. Barnstaple. O homem é uma criatura que precisa comer, esteja assombrada ou não. O sr. Barnstaple percebeu que de fato já estava com fome e que o ar que respirava lhe abria o apetite.

A utopiana parecia ter tido uma nova ideia.

– Vocês comem várias vezes ao dia? Que tipo de coisa comem?

– Ah! Certamente não são vegetarianos! – exclamou o sr. Mush, fazendo um parêntese de protesto e derrubando o monóculo.

Estavam todos com fome. Dava para ver por seus rostos.

– Estamos acostumados a comer várias vezes por dia – disse o sr. Burleigh. – Talvez fosse bom se eu desse um breve resumo de nossa dieta. Pode haver diferenças. Começa, como regra, com uma simples xícara de chá e uma fatia fina de pão com manteiga trazida à cama. Então vem o café da manhã...

Ele prosseguiu com maestria o sumário de seu dia gastronômico, dando os detalhes claros e atrativos de um café da manhã: ovos a serem cozidos por quatro minutos e meio, nem mais nem menos, almoço com vinho leve, o chá como um evento mais social do que uma refeição séria, o jantar, com certo detalhe, e a ocasional ceia. Era uma daquelas declarações claras que teria agradado à Casa dos Comuns – leve, até alegre, e ainda assim com uma ponta de seriedade. A utopiana o observou com profundo interesse.

– Vocês todos comem dessa forma? – ela perguntou.

O sr. Burleigh correu os olhos pelo grupo.

– Não posso responder pelo senhor... senhor...?

– Barnstaple... Sim, como da mesma forma.

Por algum motivo, a utopiana sorriu para ele. Tinha belos olhos castanhos e, apesar de gostar que ela sorrisse, ele desejou que ela não tivesse sorrido daquela forma.

– E vocês dormem? – ela perguntou.

– De seis a dez horas, de acordo com as circunstâncias – disse o sr. Burleigh.

– E fazem amor?

A questão deixou os terráqueos perplexos e, até certo ponto, chocados. O que ela queria dizer, exatamente? Por alguns momentos, ninguém esboçou uma resposta. A mente do sr. Barnstaple estava tomada por um jorro de estranhas possibilidades.

Então o sr. Burleigh, com a fina inteligência e as rápidas evasivas de um líder moderno, tomou a dianteira.

– Não habitualmente, posso assegurar. Não habitualmente.

A mulher com roupão de bordas vermelhas pareceu pensar sobre isso por um breve momento. Depois, sorriu de leve.

– Devemos levá-los a um lugar onde possamos falar de todas essas coisas. Claramente vocês vêm de um mundo bem estranho. Nossos sábios precisam encontrar vocês e trocar ideias.

Parte 4

Às dez e meia daquela manhã, o sr. Barnstaple estivera dirigindo pela estrada principal através de Slough. E agora, à uma e meia da tarde, ele planava pela terra das maravilhas com seu próprio mundo já meio esquecido.

– Maravilhoso – ele repetia. – Maravilhoso. Eu sabia que tiraria boas férias. Mas isso... isso...!

Ele estava exultante, com a felicidade límpida de um sonho perfeito. Nunca antes havia saboreado os prazeres de um explorador em novas terras, nunca antes esperara vivenciar esses prazeres. Havia poucas semanas, tinha escrito um artigo para o Liberal lamentando “O Fim da Era da Exploração”, um artigo tão deprimente e desnorteado que havia agradado muito o sr. Peeve. Lembrava-se desse feito agora apenas com uma leve pontada de remorso.

O grupo de terráqueos havia sido distribuído em quatro pequenas aeronaves e, enquanto o sr. Barnstaple e seu companheiro, o padre Amerton, alçavam voo, o primeiro olhou para trás e viu os automóveis e a bagagem sendo levantados com espantosa facilidade por dois caminhões de construção leve. Cada caminhão estendia um par de braços reluzentes que levantava um automóvel como uma ama levanta um bebê.

Para os padrões contemporâneos de segurança terráquea, o aviador do sr. Barnstaple voava bem baixo. Havia momentos em que passava entre as árvores em vez de sobre elas, e isso, mesmo tendo sido inicialmente alarmante, permitia uma inspeção próxima da paisagem. Na primeira parte da jornada, consistia em um pasto com gado cor de creme pastando e áreas de vegetação vivamente colorida, de uma natureza que o sr. Barnstaple desconhecia. Entre esse cultivo, trilhas estreitas, que podiam ter sido feitas a pé ou de bicicleta, abriam caminho. Aqui e ali estendia-se uma estrada ladeada de flores e sombreada por árvores frutíferas.

Havia poucas casas e nenhuma cidade ou vilarejo. As casas variavam muito de tamanho, de pequenas construções isoladas, que o sr. Barnstaple achou que podiam ser elegantes casas de veraneio ou pequenos templos, a grupos de telhados e torres que lembravam casas grandes de campo ou sugeriam amplos estabelecimentos de agricultura ou laticínio. Aqui e ali pessoas trabalhavam nos campos ou iam e voltavam a pé ou em máquinas, mas o efeito geral era de uma terra extremamente subpopulada.

Ficou evidente que eles iriam cruzar a cadeia de montanhas nevadas que havia tão subitamente apagado da paisagem a distante vista do Castelo de Windsor.

Conforme eles se aproximavam dessas montanhas, amplas extensões de milharais dourados substituíram o pasto verde, e então o cultivo se tornou mais diversificado. Ele notou inconfundíveis vinhedos em morros ensolarados, e o número de trabalhadores visíveis e as habitações se multiplicaram. O pequeno esquadrão de aviões sobrevoou um amplo vale rumo a um desfiladeiro, de forma que o sr. Barnstaple pôde examinar o cenário das montanhas. Surgiram bosques de castanhas e finalmente pinheiros. Havia turbinas ciclópicas pelas montanhas e longos prédios baixos e cheios de janelas que poderiam servir a algum propósito industrial. Uma estrada muito bem nivelada, com viadutos extremamente arrojados, leves e bonitos subia em direção ao desfiladeiro. Achou que havia mais pessoas nas terras altas do que nos níveis abaixo; embora muito menos do que ele veria em qualquer campo comparável na Terra.

Dez minutos de um terreno escarpado e desolado, com os campos de neve de uma grande geleira de um lado, sobrevieram antes de descerem no vale elevado do Local de Conferência, onde logo desembarcaram. Era um tipo de curva na montanha, com terraços tão bem construídos que pareciam parte da substância geológica da própria montanha. Davam para um amplo lago artificial, retido por uma represa estupenda que subia das áreas mais baixas do vale. Em intervalos ao longo dessa represa havia grandes pilares de pedra que pareciam sugerir figuras sentadas. Ele avistou uma ampla planície à frente, que o lembrou a Planície Padana; e então, conforme ele descia, a linha reta da represa se elevou e escondeu essa vista mais distante.

Nesses terraços, e particularmente nos mais baixos, havia grupos e aglomerados de construções parecidas com flores, e ele distinguiu caminhos, degraus e tanques d’água, como se o lugar todo fosse um jardim.

Os aviões fizeram um pouso fácil numa área gramada. Bem perto havia um gracioso chalé, que partia da praia do lago e se estendia até a água, fornecendo um ancoradouro a uma flotilha de barcos com cores alegres...

Foi o padre Amerton que despertou a atenção do sr. Barnstaple para a ausência de vilarejos. Ele agora comentava que não havia igrejas à vista e que em nenhum lugar vira torres ou campanários. Mas o sr. Barnstaple achava que alguns dos prédios menores podiam ser templos ou santuários.

– A religião pode ter formas diferentes aqui – disse ele.

– E como são poucos os bebês ou crianças visíveis! – o padre Amerton observou. – Em nenhum canto vi uma mãe com um filho.

– Do outro lado das montanhas, havia um lugar que parecia um campo de jogos de uma grande escola. Havia crianças lá e uma ou duas pessoas mais velhas vestidas de branco.

– Eu vi isso. Mas estava pensando em bebês. Compare isso com o que se veria na Itália. As jovens mais belas e desejáveis – acrescentou o reverendo –, mais desejáveis, e nenhum sinal de maternidade!

O aviador, um loiro bronzeado com olhos bem azuis, ajudou-os a sair da máquina, e eles ficaram assistindo ao desembarque dos outros membros do grupo. O sr. Barnstaple admirou-se ao notar quão rápido estava se familiarizando com a cor e harmonia desse novo mundo; agora as coisas mais estranhas no espetáculo todo eram as figuras e roupas de seus colegas. O sr. Rupert Catskill com sua famosa cartola, o sr. Mush com seu monóculo absurdo, o peculiar corpo esguio do sr. Burleigh e os contornos quadrados do seu chofer vestido de couro – tudo isso lhe parecia mais incrível do que as graciosas formas utopianas ao redor dele.

O ar interessado e divertido do aviador aguçou a percepção do sr. Barnstaple da estranheza de seus companheiros. Então, veio-lhe uma onda de dúvida profunda.

– Creio que isso seja real mesmo – disse para o padre Amerton.

– Real mesmo? O que mais poderia ser?

– Acho que não estamos sonhando tudo isso.

– Seus sonhos e meus sonhos poderiam coincidir?

– Sim, mas há coisas bem impossíveis, coisas totalmente impossíveis.

– Como o quê, por exemplo?

– Bem, como essas pessoas estão falando conosco em inglês, inglês moderno?

– Não havia pensado nisso. É mesmo incrível. Eles não falam em inglês uns com os outros.

O sr. Barnstaple arregalou os olhos para o padre Amerton, percebendo pela primeira vez um fato ainda mais incrível.

– Eles não falam em nenhuma língua uns com os outros – ele disse. – E não havíamos notado até agora!


CAPÍTULO QUATRO
A SOMBRA DE EINSTEIN CAI SOBRE A HISTÓRIA, MAS PASSA DE LEVE

Parte 1

Exceto pelo fato espantoso de todos os utopianos terem aparentemente um domínio completo do inglês idiomático, a visão do sr. Barnstaple desse novo mundo desenvolvia-se com uma congruência que nenhum de seus sonhos jamais teve. Era tão coerente, tão ordenado, que cada vez menos parecia um mundo estranho e cada vez mais a chegada a um país estrangeiro, mas altamente civilizado.

Sob a direção da mulher de olhos castanhos e roupão de bordas vermelhas, os terráqueos foram acomodados em seus aposentos perto do Local de Conferência, da forma mais confortável e hospitaleira possível. Cinco ou seis meninos e meninas se empenharam em iniciar os estrangeiros nos pequenos detalhes da domesticidade utopiana.

Os prédios separados nos quais eles foram alojados tinham todos um agradável quarto de vestir, e a cama, que tinha lençóis do mais fino linho e uma colcha bem leve, ficava numa galeria aberta – aberta demais, pensou Lady Stella, mas disse:

– Sente-se tanta segurança aqui.

A bagagem foi trazida e as malas foram identificadas como se eles estivessem em alguma hospitaleira mansão na Terra.

Mas Lady Stella teve de tirar dois jovens amistosos demais de seu apartamento antes que pudesse abrir a mala e tratar de recompor sua aparência.

Alguns minutos depois, certa agitação foi causada por um surto de risadas loucas e o som de uma discussão amigável, mas histérica, que veio dos aposentos de Lady Stella. A moça que havia permanecido com ela demonstrou um interesse bem feminino pelos pertences dela e encontrou uma camisola particularmente encantadora e diáfana. Por alguma razão obscura, essa delicada peça secreta divertiu extremamente a jovem utopiana, e foi com certa dificuldade que Lady Stella a impediu de vestir o traje e dançar com ele para todos verem.

– Então, vista você – a moça insistiu.

– Mas você não entende – exclamou Lady Stella. – É quase... sagrada! Ninguém pode ver... nunca!

– Mas por quê? – a utopiana perguntou, intrigada além da conta.

Lady Stella não conseguiu encontrar uma resposta.

A leve refeição que se seguiu foi totalmente satisfatória para os padrões terrestres. A ansiedade do sr. Freddy Mush foi completamente aplacada: havia frango frio e presunto e um patê de carne bem saboroso. Também havia pão de grãos bem grossos, mas muito palatável, manteiga pura, uma deliciosa salada, frutas, queijo do tipo Gruyere e um vinho branco leve que ganhou do sr. Burleigh o elogio: “Moselle nunca produziu nada melhor.”

– Acha nossa comida parecida com a sua? – perguntou a mulher do roupão de bordas vermelhas.

– De ótima qualidade – disse o sr. Mush com a boca cheia.

– Os alimentos mudaram muito pouco nos últimos três mil anos. As pessoas descobriram as melhores coisas para comer bem antes da Última Era de Confusão.

– É real demais para ser real – repetiu o sr. Barnstaple para si mesmo. – Real demais para ser real.

Ele olhou para seus colegas, extasiados, interessados e comendo com gosto.

Se não fosse pelo absurdo daqueles utopianos falando inglês com uma clareza que martelava em sua cabeça, o sr. Barnstaple não teria dúvida de sua realidade.

Nenhum empregado servia a mesa de pedra sem toalha; a mulher de túnica branca e vermelha e dois aviadores compartilhavam da refeição e os hóspedes serviam uns aos outros. O motorista do sr. Burleigh estava modestamente se retirando para outra mesa quando o grande estadista o tranquilizou:

– Sente-se aqui, Penk. Ao lado do sr. Mush.

Outros utopianos com olhos amistosos, mas que observavam atentamente os terráqueos, entraram na grande varanda cheia de pilares na qual a refeição era servida e sorriram, ficaram de pé por lá ou se sentaram. Não houve apresentações e foram poucas formalidades sociais.

– Tudo isso é muito reconfortante – disse o sr. Burleigh. – Muito reconfortante. Devo dizer que esses pêssegos superam os de Chatsworth. Isso é creme, meu querido Rupert, nessa jarrinha marrom na sua frente? Imaginei que sim. Se puder me passar, Rupert... Obrigado.

Parte 2

Vários dos utopianos se apresentaram aos terráqueos. Todas as vozes soavam singularmente parecidas para o sr. Barnstaple, e as palavras eram tão claras como se tivessem sido impressas. O nome da mulher de olhos castanhos era Lychnis. Um homem de barba, que talvez tivesse uns quarenta anos, pensou o sr. Barnstaple, era ou Urthred ou Adam ou Edom – o nome, apesar de pronunciado nitidamente, havia sido difícil de captar. Era como se houvesse uma falha na impressão. Urthred sugeria que ele era um etnólogo e historiador e que desejava aprender tudo o que pudesse sobre os modos de nosso mundo. Ele impressionou o sr. Barnstaple por ter a postura confiante de um investidor terráqueo ou de um grande proprietário de jornal, em vez do retraimento natural que um homem meramente estudioso teria em nosso mundo. Outro de seus anfitriões, Serpentine, também era um homem da ciência, para a surpresa do sr. Barnstaple, porque seu porte também era quase magistral. Ele se chamava de algo que o sr. Barnstaple não conseguiu captar. Primeiro soou como “mecânico atômico”; depois, de forma bem estranha, soou como “químico molecular”. E então o sr. Barnstaple ouviu o sr. Burleigh dizer para o sr. Mush:

– Ele disse fisioquímico, não foi?

– Acho que ele só se chamou de materialista – disse o sr. Mush.

– Achei que ele tinha dito que pesava coisas – disse Lady Stella.

– A entonação deles é peculiar – disse o sr. Burleigh. – Às vezes falam tão alto que até incomoda, há um tipo de intervalo no som...

Quando a refeição acabou, o grupo todo se retirou para outro prediozinho que era evidentemente planejado para aulas e discussões. Tinha uma abside semicircular, rodeada por uma série de quadros brancos, que evidentemente funcionavam às vezes como uma lousa de palestrante, já que havia lápis pretos e coloridos e panos para apagar num peitoril de mármore a uma altura conveniente abaixo dos quadros. O palestrante podia caminhar de um ponto para o outro desse semicírculo enquanto falava. Lychnis, Urthred, Serpentine e os terráqueos se sentaram num banco semicircular abaixo do patamar do palestrante, e havia acomodação para cerca de oitenta ou cem pessoas nos assentos diante deles. Todos estavam ocupados, e mais adiante havia uma série de grupos graciosos contra um fundo de arbustos, que pareciam de rododendro, entre os quais o sr. Barnstaple captou vislumbres de gramados que levavam às águas brilhantes do lago.

Eles conversariam sobre aquela irrupção extraordinária no mundo. Poderia haver algo mais razoável sobre o que conversar? Poderia haver algo mais fantasticamente impossível?

– Estranho que não haja andorinhas – disse o sr. Mush de repente ao ouvido do sr. Barnstaple. – Eu me pergunto por que não há andorinhas.

O sr. Barnstaple dirigiu a atenção ao céu vazio.

– Não há mosquitos nem moscas, talvez – ele sugeriu. Era estranho que ele não houvesse sentido falta das andorinhas antes.

– Psssiu! – disse Lady Stella. – Ele está começando.

Parte 3

A incrível conferência começou. Foi aberta pelo homem chamado Serpentine; ele ficou diante da plateia e parecia fazer um discurso. Seus lábios se moviam, suas mãos acompanhavam suas frases, sua expressão seguia suas palavras. E, no entanto, o sr. Barnstaple tinha uma dúvida muito sutil e indefensável se Serpentine de fato estava falando. Havia algo de estranho na coisa toda. Às vezes, o que era dito soava com uma peculiar ressonância em sua cabeça; às vezes, era indistinto e elusivo como um objeto visto através de águas turbulentas; às vezes, apesar de Serpentine mover suas belas mãos e olhar para seus ouvintes, havia intervalos de absoluto silêncio – como se, por breves hiatos, o sr. Barnstaple tivesse ficado surdo... Ainda assim, era um discurso; tinha uma unidade e mantinha a atenção do sr. Barnstaple.

Serpentine tinha os modos de alguém que está se esforçando muito para ser o mais simples possível diante de uma questão bem intrincada. Falava, por assim dizer, em proposições, com uma pausa entre cada uma.

– Há muito se sabe – ele começou – que o número possível de dimensões, como o número possível de qualquer coisa que pode ser enumerada, era ilimitado.

Sim, o sr. Barnstaple entendia isso, mas acabou sendo demais para o sr. Freddy Mush.

– Ah, Deus! – disse ele. – Dimensões! – e abaixou o monóculo, ficando desanimado e desatento.

– Para propósitos práticos – Serpentine continuou –, o universo particular, os sistemas particulares de eventos nos quais nos encontramos e do qual fazemos parte podiam ser vistos como localizados num espaço de três dimensões retilíneas e como uma translação em curso, translação que era de fato duração, através de uma quarta dimensão: o tempo. Tal sistema de eventos era necessariamente um sistema gravitacional.

– Ãh! – interrompeu o sr. Burleigh bruscamente. – Desculpe-me! Não concordo com isso.

Então, de alguma forma, ele estava acompanhando também.

– Qualquer universo que perdura deve necessariamente gravitar – Serpentine repetiu, como se estivesse declarando um fato evidente.

– Juro que não consigo entender isso – disse o sr. Burleigh após um momento de reflexão.

Serpentine o estudou por um instante.

– É assim – ele disse, e seguiu com seu discurso. – Nossas mentes – ele continuou – evoluíram segundo essa concepção prática das coisas, aceitaram-na como verdadeira, e foi só com grande esforço de análise contínua que fomos capazes de perceber que este universo no qual vivíamos não apenas era estendido, mas também levemente torcido e dobrado, formando um número de outras longas e insuspeitas dimensões espaciais. Estendeu-se além das três dimensões espaciais principais para essas outras, assim como uma fina folha de papel, que é praticamente bidimensional, estendeu-se não apenas em virtude de sua grossura, mas também de suas rugas e curvatura, formando uma terceira dimensão.

– Estou ficando surda? – perguntou Lady Stella, sussurrando alto. – Não consigo entender uma palavra de tudo isso.

– Nem eu – disse o padre Amerton.

O sr. Burleigh fez um gesto, apaziguando aqueles desafortunados, sem tirar os olhos do rosto de Serpentine. O sr. Barnstaple franziu as sobrancelhas, agarrou os joelhos, dobrou os dedos, persistiu desesperadamente.

Ele devia estar ouvindo – claro que estava ouvindo!

Serpentine prosseguiu, explicando que, assim como seria possível para qualquer número de universos praticamente bidimensionais estarem lado a lado, como folhas de papel num espaço tridimensional, no espaço multidimensional, sobre o qual a ineficiente mente humana ainda está lenta e dolorosamente adquirindo conhecimento, era possível para uma quantidade inumerável de universos praticamente tridimensionais estarem lado a lado e sofrerem um movimento quase paralelo através do tempo. O trabalho especulativo de Lonestone e Cephalus há muito havia dado a mais sólida base para a crença de que de fato existia um grande número desses universos de espaço e tempo, paralelos uns aos outros e parecidos uns com os outros, mas não exatamente iguais, assim como as folhas de um livro podem se parecer umas com as outras. Todos teriam duração, todos seriam sistemas gravitacionais...

(O sr. Burleigh balançou a cabeça para mostrar que ainda não concordava.)

– E que aqueles mais próximos iriam se parecer mais uns com os outros. Como eles agora, perto, tinham a oportunidade de aprender. Graças às tentativas ousadas desses dois gênios, Arden e Greenlake, usar o (inaudível) impulso do átomo para rodar uma porção do universo material utopiano naquela dimensão, a dimensão F, na qual havia muito se sabia que se estendia por, talvez, o comprimento do braço de um homem, rodar esse fragmento de matéria utopiana, assim como um portão gira em suas dobradiças, agora havia sido flagrantemente possível. O portão havia se fechado novamente, trazendo consigo um sopro de ar próximo, uma tempestade de poeira e, para o imenso espanto de Utopia, três grupos de visitantes de um mundo desconhecido.

– Três? – cochichou o sr. Barnstaple, desconfiado. – Ele disse três?

(Serpentine o ignorou.)

– Nossos irmãos foram mortos por alguma liberação inesperada de força, mas o experimento deles abriu um caminho que não precisará nunca mais ser fechado, das presentes limitações espaciais de Utopia para uma nova página vasta de mundos até então inimaginados. Ao nosso alcance, mesmo como Lonestone supôs eras atrás: mais perto de nós do que o sangue em nossos corações...

– Mais próximo de nós do que respirar e mais perto do que mãos e pés – o padre Amerton citou de forma errada, acordando de repente. – Mas sobre o que ele está falando? Não entendo.

“...descobrimos outro planeta, bem do tamanho do nosso, a julgar pela escala de seus habitantes, circulando ao redor de um sol como há em nossos céus, podemos supor; um planeta que traz vida e está sendo lentamente subjugado, assim como nosso próprio está sendo subjugado por vida inteligente, que evidentemente evoluiu sob condições quase exatamente paralelas às de nossa própria evolução. Esse universo irmão está, até onde podemos julgar pelas aparências, um pouco atrasado em relação ao nosso. Nossos visitantes usam algo muito parecido com as roupas e demonstram características físicas que lembram as de nossos ancestrais durante a Última Era de Confusão...

“Ainda não podemos supor que a história deles foi exatamente paralela à nossa. Duas partículas de matéria nunca são iguais, nem duas vibrações. Em todas as dimensões do ser, em todos os universos de Deus, nunca houve e nunca poderá haver uma repetição exata. Viemos a descobrir que isso é a única coisa impossível. Mesmo assim, esse mundo que chamam de Terra é manifestamente muito próximo e parecido com nosso universo...

“Estamos ansiosos em aprender com vocês, terráqueos, verificar nossa história, que ainda é conhecida de maneira muito imperfeita, por suas experiências, mostrar a vocês o que sabemos, descobrir o que é possível e desejável nessa troca e ajudar o povo do nosso planeta e do seu. Nós aqui somos meros iniciantes do conhecimento; não sabemos ainda quase nada sobre a imensidão de coisas que temos de aprender e fazer. De um milhão de maneiras semelhantes, nossos dois mundos talvez possam ensinar um ao outro e ajudar um ao outro...

“Possivelmente há traços de hereditariedade em seu planeta que deixaram de se desenvolver ou que morreram no nosso. Possivelmente, há elementos ou minerais num mundo que são raros ou ausentes no outro... A estrutura de seus átomos... (?)... nossos mundos podem se mesclar (?)... para um vigor comum...”

Ele passou a ser inaudível bem quando o sr. Barnstaple estava mais interessado e mais ansioso em seguir o que ele dizia. No entanto, um surdo julgaria que ele continuava a falar.

O sr. Barnstaple trocou olhares com o sr. Rupert Catskill, tão perturbado e intrigado quanto ele. O rosto do padre Amerton estava enterrado entre as mãos. Lady Stella e o sr. Musch cochichavam um para o outro; muitos haviam desistido de fingir que escutavam.

– Essa é nossa primeira impressão grosseira da aparição de vocês em nosso mundo e das possibilidades de interação – disse Serpentine, tornando-se abruptamente audível novamente. – Coloquei nossas ideias diante de vocês do modo mais objetivo que pude. Sugiro agora que um de vocês nos conte da maneira mais simples e clara que puderem o que concebem ser a verdade sobre seu mundo em relação ao nosso.


CAPÍTULO CINCO
O GOVERNO E HISTÓRIA DE UTOPIA

Parte 1

Houve uma pausa. Os terráqueos se entreolharam e os olhares pareceram convergir para o sr. Cecil Burleigh. O estadista fingiu não reparar nessa expectativa geral.

– Rupert – disse ele. – Poderia?

– Abstenho-me de comentar – disse o sr. Catskill. – padre Amerton, o senhor está acostumado a tratar de outros mundos.

– Não em sua presença, sr. Cecil. Não.

– Mas o que devo dizer a eles?

– O que pensa disso – disse o sr. Barnstaple.

– Exatamente – disse o sr. Catskill. – Conte a eles o que acha disso.

Ninguém mais pareceu ser digno de consideração. O sr. Burleigh se levantou lentamente e caminhou pensativo até o centro do semicírculo. Agarrou as lapelas do paletó e permaneceu por alguns instantes com o rosto abaixado, como se considerasse o que estava prestes a dizer.

– Sr. Serpentine – começou finalmente, erguendo uma expressão cândida e olhando o céu azul sobre o lago distante. – Senhoras e senhores...

Ele iria fazer um discurso! Como se estivesse numa festa no jardim da Primrose League ou em Genebra. Era um disparate e, contudo, o que mais ele poderia fazer?

– Devo confessar, senhor, que, apesar de eu não ser nada novato em falar em público, eu me encontro nesta ocasião de certa forma perdido. Seu discurso admirável, senhor, simples, direto, lúcido, compacto e elevando-se em certos pontos a uma eloquência sem afetações, estabeleceu-me um padrão a que eu não conseguiria fazer jus, e diante do qual, com toda modéstia, eu me dobro. O senhor pede que eu conte da maneira mais simples e clara possível os fatos como os concebemos sobre esse mundo irmão do qual viemos até os senhores com tão pouca premeditação. Até onde vai minha capacidade falha de compreender e discutir tais questões tão recônditas, não creio que eu possa de forma alguma aperfeiçoar ou suplementar sua maravilhosa exposição sobre os aspectos matemáticos do caso. O que nos contou incorpora os mais atuais e sofisticados pensamentos da ciência terrestre e até vai bem além de nossas ideias atuais. Em certos casos, como na relação de tempo e gravidade, eu me sinto na obrigação de dizer que não sigo com o senhor, mas isso é mais por uma incapacidade de compreender sua posição do que por qualquer divergência absoluta. Nos aspectos mais amplos do caso, não é preciso haver dificuldades entre nós. Aceitamos sua ideia principal sem reservas; isto é, que vivemos num universo paralelo ao seu, num planeta que é irmão deste; de fato, espantosamente como o seu, tendo consciência de todos os contrastes possíveis que encontramos aqui. Somos atraídos e fortemente inclinados a aceitar sua visão de que nosso sistema é, muito provavelmente, um pouco menos amadurecido e suavizado pelo toque do tempo do que o seu, atrasado talvez em algumas centenas ou milhares de anos em relação às suas experiências. Supondo isso, é inevitável, senhor, que haja certa humildade em nossa atitude em relação aos senhores. Como seus juniores, não nos cabe instruir, mas aprender. É nós que perguntamos: O que fizeram? O que almejaram? Em vez de expor a vocês com uma arrogância ingênua tudo o que ainda nos resta aprender e fazer...

– Não! – disse o sr. Barnstaple para si mesmo, mas sendo quase audível. – Isso é um sonho... Se fosse diferente...

Ele esfregou os nós dos dedos nos olhos e os abriu novamente, e lá ainda estava ele, sentado ao lado do sr. Mush em meio àquelas divindades olimpianas. E o sr. Burleigh, aquele educado cético, que nunca acreditava, nunca se espantava, estava curvando e falando, falando com a segurança de um homem que havia feito dez mil discursos. Ele não teria mais segurança de si mesmo e de sua plateia no Guildhall em Londres. E eles o compreendiam! O que era absurdo!

Não havia nada a fazer além de aceitar esse absurdo estupendo, sentar e ouvir. Às vezes, a mente do sr. Barnstaple se afastava completamente do que o sr. Burleigh dizia. Então, voltava e se agarrava desesperadamente a seu discurso. Dessa forma hesitante, parlamentar, suas mãos mexendo nos óculos ou agarrando as lapelas do paletó, o sr. Burleigh dava a Utopia um breve relato do mundo dos homens, buscando ser elementar, lúcido e razoável, contando a eles dos estados e impérios, de guerras e da Grande Guerra, da organização e desorganização econômica, de revoluções e bolchevismo, da terrível fome que começava na Rússia, das dificuldades de encontrar estadistas e oficiais honestos e de como os jornais não ajudavam, de todo o espetáculo sombrio e conturbado da vida humana. Serpentine havia usado o termo “Última Era de Confusão”, e o sr. Burleigh apoderara-se da frase e a aproveitava ao máximo...

Foi um grande improviso oratório. Deve ter durado uma hora, e os utopianos escutavam com rostos atentos e interessados, de tempos em tempos assentindo e reconhecendo uma declaração ou outra. O cérebro do sr. Barnstaple não parava de martelar: “Muito parecido conosco também durante a Era de Confusão.”

Finalmente, o sr. Burleigh chegou ao fim, com a firme deliberação de um velho parlamentar. Elogios. Ele fez uma reverência. Havia conseguido. O sr. Mush impressionou a todos com um aplauso vigoroso, compartilhado por mais ninguém.

A tensão na mente do sr. Barnstaple se tornara intolerável. Ele se ergueu de um salto.

Parte 2

De pé, fazia aqueles gestos conciliatórios e débeis que vêm tão naturalmente ao orador inexperiente.

– Senhoras e senhores. Utopianos, sr. Burleigh! Peço perdão por um momento. Há um pequeno problema. Urgente.

Por um breve intervalo, ele ficou sem palavras. Então, encontrou atenção e encorajamento nos olhos de Urthred.

– Há algo que não entendo. Algo incrível. Quero dizer, incompatível. A pequena fenda. Torna tudo uma fantasmagoria fantástica.

A inteligência nos olhos de Urthred era muito encorajadora. O sr. Barnstaple abandonou qualquer tentativa de se dirigir ao grupo como um todo e falou diretamente a Urthred.

– Vocês vivem em Utopia, centenas de milhares de anos avançados em relação a nós. Como é que são capazes de falar inglês contemporâneo, usar exatamente a mesma linguagem que nós? Eu pergunto, como é possível? É incrível. É um ruído. Torna vocês um sonho. E, no entanto, não é um sonho? Isso me faz sentir... quase louco.

Urthred sorriu com simpatia.

– Não falamos inglês.

O sr. Barnstaple sentiu o chão desaparecer debaixo de seus pés.

– Mas eu os escuto falando inglês – disse ele.

– Mesmo assim, não falamos – disse Urthred, sorrindo ainda mais. – Para fins comuns, não falamos nada.

Com seu cérebro renunciando a suas funções, o sr. Barnstaple manteve uma pose de atenção deferente.

– Eras atrás – Urthred continuou – nós certamente costumávamos falar línguas. Emitíamos sons e ouvíamos sons. As pessoas costumavam pensar, então escolhiam, arranjavam palavras e as proferiam. O ouvinte escutava, percebia e retraduzia os sons em ideias. Então, de alguma maneira que ainda não entendemos perfeitamente, as pessoas começaram a entender a ideia antes de ela ser revestida em palavras e proferida em sons. Começaram a ouvir em suas mentes, assim que o orador tinha arranjado as ideias e antes de colocá-las em palavras até mesmo em sua própria mente. Sabiam o que ele iria dizer antes que dissesse. Essa transmissão direta logo se tornou comum; foi descoberto que, com um pouco de esforço, as pessoas podiam se comunicar dessa forma até certo ponto; e a nova forma de comunicação se desenvolveu sistematicamente.

“Isso é o que fazemos agora habitualmente neste mundo. Pensamos diretamente uns para os outros. Determinamos transmitir o pensamento e é transmitido imediatamente, contanto que a distância não seja grande demais. Agora usamos sons neste mundo apenas para poesia e para o prazer e nos momentos de emoção ou para gritar ao longe, ou com animais, não para a transmissão de ideias da mente humana para outra mente irmã. Quando eu penso para você, o pensamento é refletido em sua mente, desde que encontre ideias correspondentes e palavras adequadas em sua mente. Meu pensamento se reveste de palavras em sua mente, palavras que vocês parecem ouvir – e naturalmente, em sua própria língua e com suas frases habituais. Muito provavelmente, os membros de seu grupo estão ouvindo o que estou dizendo a você cada um com suas próprias diferenças de vocabulário e sintaxe.”

O sr. Barnstaple pontuava esse discurso com acenos de cabeça incisivos e inteligentes, chegando às vezes à beira de interrompê-lo. Então, ele interrompeu.

– E é por isso que ocasionalmente – por exemplo, quando o sr. Serpentine fez sua maravilhosa explanação agora há pouco –, quando vocês partem para ideias das quais não temos nem sombra em nossas mentes, nós não escutamos nada.

– Existem tais intervalos? – perguntou Urthred.

– Muitos, temo, para todos nós – disse o sr. Burleigh.

– É como ter momentos de surdez – disse Lady Stella. – Momentos grandes.

O padre Amerton assentiu concordando.

– E é por isso que não ficou claro se você se chama Urthred ou Adam, e por isso que me peguei confundindo Arden e Greentrees e Forest em minha mente.

– Espero que agora vocês estejam mais confortáveis mentalmente – disse Urthred.

– Ah, bastante – disse o sr. Barnstaple. – Bastante. E, considerando tudo, é mesmo muito conveniente para nós que o método de transmissão seja esse. Do contrário, não vejo como poderíamos ter evitado semanas de incômodos linguísticos, aprender os princípios de nossas respectivas gramáticas, lógica, significados e assim por diante, coisas entediantes na maior parte, antes de podermos ter qualquer entendimento como o de agora.

– Um ótimo ponto de fato – disse o sr. Burleigh, virando-se para o sr. Barnstaple de uma forma bem amistosa. – Um ótimo ponto de fato. Eu nunca teria notado se não tivesse chamado minha atenção para isso. É bem extraordinário. Eu não havia notado nada dessa... dessa diferença. Devo confessar que fiquei ocupado com meus próprios pensamentos. Achei que eles falassem inglês. Dei como certo.

Parte 3

Parecia ao sr. Barnstaple que aquela maravilhosa experiência agora estava tão completa que não restava nada mais com que se espantar, exceto com sua absoluta credibilidade. Ele se sentou num prediozinho lindo, olhando para as flores daquela terra de sonhos e o lago iluminado pelo sol entre aquela estranha mistura de trajes ingleses de fim de semana e a nudez olimpiana que já havia deixado de impressioná-lo. Escutava e ocasionalmente participava da longa conversa informal que agora se desenrolava. Era uma discussão que lançava luz às mais incríveis e fundamentais diferenças de perspectiva moral e social. No entanto, tudo agora assumia uma realidade que tornava totalmente natural supor que ele iria logo para casa para escrever sobre isso no Liberal e contar à sua esposa, o tanto que achasse aconselhável no momento, os hábitos e costumes desse mundo até então desconhecido. Nem tinha noção das distâncias intervenientes. Sydenham podia ser logo na esquina.

Então, duas belas jovens prepararam chá num aparato entre os arbustos e levaram para eles. Chá! Era o que ele chamaria de chá oriental, muito delicado, servido em pequenas xícaras sem alças, à moda chinesa, mas era um chá real e bem refrescante.

As primeiras curiosidades dos terráqueos se voltaram sobre os métodos de governo. Isso talvez fosse natural na presença de dois estadistas, como o sr. Burleigh e o sr. Catskill.

– Que tipo de governo vocês têm? – perguntou o sr. Burleigh. – É uma monarquia ou uma autocracia ou democracia pura? Vocês separam o executivo do legislativo? E há um governo central para todo o seu planeta ou há vários centros de governo?

Com certa dificuldade, foi transmitido ao sr. Burleigh e seus companheiros que não havia nenhum governo central em Utopia.

– Mas certamente há alguém ou algo, algum conselho ou gabinete ou o que seja, em algum lugar, que toma as decisões finais em casos de ação coletiva para o bem-estar comum – disse o sr. Burleigh. – Algum cargo supremo e órgão de soberania deve haver, ao que me parece.

Não, os utopianos declararam. Não havia tal concentração de autoridade no mundo deles. No passado houvera, mas havia muito voltara ao conjunto geral da comunidade. Decisões em relação a um assunto particular eram tomadas pelas pessoas que sabiam mais sobre o assunto.

– Mas, supondo que seja uma decisão que tenha de ser respeitada de forma geral, uma regra que afete a saúde pública, por exemplo? Quem a imporia?

– Não precisaria ser imposta. Por que seria?

– Mas supondo que alguém se recuse a obedecer os regulamentos?

– Nós questionaríamos por que ele ou ela não obedeceu. Pode haver uma razão excepcional.

– Mas e se não houver?

– Nós investigaríamos sua saúde mental e moral.

– O médico da mente toma o lugar do policial – disse o sr. Burleigh.

– Eu preferiria o policial – disse o sr. Rupert Catskill.

– Não me surpreende – disse o sr. Burleigh, como quem diria: “Peguei você agora.”

– Então você quer dizer – ele continuou, dirigindo-se aos utopianos com uma expressão de grande inteligência – que seus assuntos são todos administrados por entidades especiais ou organizações, nem sei como chamá-las, sem qualquer coordenação de suas atividades?

– As atividades de nosso mundo são coordenadas para assegurar a liberdade geral – disse Urthred. – Temos algumas inteligências dirigidas à psicologia geral da raça e da interação de uma função coletiva sobre a outra.

– Bem, esse grupo de inteligências não é uma classe governante? – perguntou Burleigh.

– Não no sentido de exercer qualquer vontade arbitrária – disse Urthred. – Elas lidam com relações em geral, só isso. Mas não possuem um posto mais elevado, não prevalecem sobre essas questões mais do que um filósofo sobre um especialista científico.

– Isso é de fato uma república! – disse o sr. Burleigh. – Mas como funciona e como sucedeu eu não consigo imaginar. Seu estado provavelmente é altamente socialista.

– Vocês ainda vivem num mundo em que quase tudo, exceto o ar, as autoestradas, os altos-mares e as selvas, são de propriedade particular?

– Vivemos – disse o sr. Catskill. – São propriedades e são cobiçadas.

– Já passamos por esse estágio. Acabamos percebendo que a propriedade privada, exceto em coisas muito pessoais, era um incômodo intolerável para a humanidade. Nós nos livramos disso. Um artista ou um homem da ciência tem controle completo de todo o material de que precisa, nós todos temos nossas ferramentas e dispositivos e temos quartos e aposentos nossos, mas não há propriedade para comércio ou especulação. Toda essa propriedade combativa, essa propriedade de manobra, foi eliminada. Mas como nos livramos dela é uma longa história. Não foi feito em poucos anos. O exagero da propriedade privada foi um estágio totalmente natural e necessário no desenvolvimento da natureza humana. Acabou levando a resultados monstruosos e catastróficos, mas foi apenas através desses resultados que o homem aprendeu a necessidade e a natureza das limitações da propriedade privada.

O sr. Burleigh havia assumido uma atitude que era obviamente habitual para ele. Estava afundado na cadeira, com as longas pernas cruzadas na frente e os dedos de uma mão colocados com exatidão meticulosa contra os da outra.

– Devo confessar que estou muito interessado nessa peculiar forma de anarquismo que parece prevalecer aqui – disse ele. – A não ser que eu esteja compreendendo completamente errado, cada homem cuida de seus próprios assuntos como servidor do estado. Corrija-me se eu estiver errado, mas entendo que vocês têm muitas pessoas ocupadas na produção, distribuição e preparação da comida; suponho que atendam às necessidades do mundo, que as satisfaçam e que constituem uma lei em si na forma de fazê-lo. Realizam pesquisas, experimentos. Ninguém os coage, obriga, restringe ou impede.

– As pessoas falam com eles sobre isso – disse Urthred com um leve sorriso.

– Outros, ainda, produzem, fabricam e estudam metais para toda a humanidade e também constituem uma lei. E outros cuidam da habitabilidade de seu mundo, planejam e arranjam essas maravilhosas habitações, dizem quem deve usá-las e como elas devem ser usadas. E outros praticam ciência pura. E outros experimentam com possibilidades sensoriais e imaginativas, são artistas. E outros ensinam.

– São muito importantes – disse Lychnis.

– E todos fazem isso com harmonia e as devidas proporções. Sem uma legislação central ou executiva. Admito que isso tudo parece admirável, mas impossível. Nada desse tipo jamais foi sequer sugerido no mundo de que viemos.

– Algo do tipo já foi sugerido há muito tempo pelos Socialistas da Guilda – disse o sr. Barnstaple.

– Minha Nossa! – disse o sr. Burleigh. – Sei muito pouco sobre os Socialistas de Guilda. Quem são eles? Me diga.

O sr. Barnstaple tacitamente aceitou essa tarefa.

– A ideia é bem familiar para nossos jovens – disse ele. – Laski chama de Estado Pluralista, distinto do Estado monástico, no qual a soberania é concentrada. Até os chineses têm isso. Um professor de Pequim, o sr. S. C. Chang, escreveu um panfleto sobre o que chama de “Profissionalismo”. Eu li há poucas semanas. Ele mandou para a redação do Liberal. Ele aponta o quão indesejável e desnecessário é para a China passar por uma fase de política democrática seguindo o modelo ocidental. Quer que a China passe direto para uma independência colateral das classes funcionais, mandarins, industriais, trabalhadores agrícolas e assim por diante, muito como parecemos encontrar aqui. Embora isso envolva, é claro, uma revolução educacional. Decididamente, o germe do que você chama de anarquismo aqui, também está no ar de onde viemos.

– Minha Nossa! – disse o sr. Burleigh, parecendo mais inteligente e apreciativo do que nunca. – E é assim mesmo? Eu não fazia ideia!

Parte 4

A conversa continuou incoerente, e ainda assim a troca de ideias era rápida e eficiente. Ao que pareceu ao sr. Barnstaple, logo um esboço da história de Utopia, da Última Era de Confusão em diante, se moldou em sua mente.

Quanto mais aprendia sobre a Última Era de Confusão, mais parecia que se assemelhava ao momento presente da Terra. Naquela época, os utopianos usavam trajes abundantes e viviam em cidades bem à moda terrena. Uma feliz conspiração de acidentes, mais do que qualquer propósito definido, abriu a eles alguns séculos de oportunidades e expansões. Fases climáticas e mudanças políticas favoreceram a raça após um longo período de recorrente escassez, pestilência e guerras destrutivas. Pela primeira vez, os utopianos foram capazes de explorar o planeta todo em que viviam, e essas explorações submeteram grandes áreas virgens ao machado, à pá e ao arado. Houve um enorme aumento e riqueza real, lazer e liberdade. Muitos milhares de pessoas foram levados da pobreza normal da vida humana a posições na qual podiam pensar e agir com uma liberdade sem precedentes, se assim quisessem. Uns poucos, em número suficiente, fizeram isso. Começou um desenvolvimento vigoroso da busca científica e, por consequência, uma infinidade de invenções engenhosas produziu um grande aumento do poder humano prático.

Houvera manifestações prévias de inteligência científica em Utopia, mas nunca antes ocorreram em circunstâncias tão favoráveis ou duraram o suficiente para chegar a resultados práticos abundantes. Agora, em breves séculos, os utopianos, que até então haviam rastejado pelo planeta como formigas lentas ou viajado como parasitas em animais maiores e mais rápidos, viram-se capazes de voar rapidamente ou de se comunicar instantaneamente com qualquer outro ponto do planeta. Viram-se também em posse de poderes mecânicos numa escala além de toda experiência prévia, e não simplesmente de poder mecânico – a ciência fisiológica e depois psicológica seguiu no rastro da química e da física, e possibilidades extraordinárias de controle sobre seus próprios corpos e sobre sua vida social se abriram aos utopianos. Mas essas coisas finalmente vieram tão rápido e de forma tão confusa que só uma pequena minoria das pessoas percebeu as possibilidades, distintas das conquistas concretas, dessa expansão tremenda do conhecimento. O resto absorveu as novas invenções conforme surgiam, por acaso, com o mínimo ajuste possível de seus pensamentos e formas de viver às novas necessidades que essas novidades requeriam.

A primeira resposta da população de Utopia em geral à perspectiva de poder, lazer e liberdade aberta a ela foi a proliferação. Comportaram-se de forma tão insensata e mecânica quanto qualquer outra espécie animal ou vegetal. Procriaram até arruinar completamente as amplas oportunidades que haviam sido abertas. Gastaram os grandes presentes da ciência tão rapidamente quanto os conseguiram, numa mera multiplicação insensata da vida comum. Em dado momento da Última Era de Confusão, a população de Utopia havia escalado para mais de dois bilhões.

– Mas quanto é agora? – perguntou o sr. Burleigh.

Os utopianos lhe disseram que era de cerca de duzentos e cinquenta milhões, a população máxima que podia ter uma vida totalmente desenvolvida sobre a superfície de Utopia. Mas agora, com os recursos aumentando, a população também crescia.

Um resfôlego de horror veio do padre Amerton. Ele temia essa constatação há algum tempo. Atingia seus fundamentos morais.

– E vocês ousam regular o aumento! Vocês o controlam! Suas mulheres aceitam gerar crianças à medida que são necessárias, ou evitá-las!

– Claro – disse Urthred. – Por que não?

– Eu temia isso – disse o padre Amerton, e inclinou-se cobrindo o rosto com as mãos, murmurando. – Senti isso no ar! A fazenda de criação de humanos! Recusando-se a criar almas! Que perversidade! Oh, meu Deus!

O sr. Burleigh olhou a emoção do reverendo através de seus óculos com uma expressão levemente chocada. Ele detestava frases de efeito. Mas o padre Amerton defendia elementos conservadores muito valiosos da comunidade. O sr. Burleigh se virou para o utopiano novamente.

– Isso é extremamente interessante – disse ele. – No momento, nossa terra conseguiu manter uma população de pelo menos cinco vezes essa quantidade.

– Mas vinte milhões, mais ou menos, vão morrer de fome este inverno, vocês nos disseram há pouco, num lugar chamado Rússia. E apenas uma pequena proporção do resto está vivendo o que vocês chamariam de uma vida plena?

– Mesmo assim, o contraste é muito notável – disse o sr. Burleigh.

– É terrível! – disso o padre Amerton.

Os utopianos insistiram que a superpopulação do planeta na Última Era de Confusão foi o mal fundamental, de onde surgiram todos os outros que afligiram a raça. Uma enchente avassaladora de recém-chegados varreu o mundo e sufocou qualquer tentativa que uma minoria inteligente poderia fazer para educar uma proporção suficiente do povo, para responder às demandas dessas novas condições de vida, que ainda mudavam rapidamente. E a própria minoria inteligente não tinha a menor condição de controlar o destino racial. Essas grandes massas de população que, despejadas na existência, movidas por tradições danificadas e decadentes e receptivas às mais brutais sugestões, foram presas naturais e o esteio de qualquer aventureiro com a mente rude o suficiente e uma concepção de sucesso grosseira o suficiente para conquistá-los. O sistema econômico, reconstruído de qualquer jeito para atender às novas condições de produção e distribuição mecânicas, tornou-se cada vez mais uma exploração cruel e descarada da grande congestão de homens comuns pelos poucos e cobiçosos predadores. O homem comum, comum demais, foi jogado na miséria e na submissão do nascer à morte; foi seduzido e enganado, foi comprado, vendido e dominado por uma minoria insolente, mais audaz e, sem dúvida, mais enérgica, mas, em todos os outros aspectos, não mais inteligente. Urthred disse que era difícil para um utopiano hoje em dia expressar essa estupidez monstruosa, esse desperdício e vulgaridade que os homens ricos e poderosos da Última Era de Confusão alcançaram.

(“Não se dê ao trabalho”, disse Burleigh. “Infelizmente, nós sabemos... Sabemos. Sabemos bem demais.”)

Sobre essa massa populacional, infecta e excessiva, desastres por fim se abateram, como vespas sobre uma fruta podre. Foi o destino natural e inevitável. Uma guerra que afetou quase todo o planeta desconjuntou o frágil sistema financeiro e a maior parte do maquinário econômico para além de qualquer possibilidade de reparo. Guerras civis e tentativas mal-ajambradas de revolução social continuaram com a desorganização. Uma série de anos com clima ruim acentuou a escassez geral. Os especuladores, idiotas demais para perceberem o que havia acontecido, continuaram a trapacear e ludibriar o povo e sufocar qualquer reação dos homens honestos, como vespas continuando a comer mesmo depois que seus corpos foram cortados fora. O esforço para fazer se extinguiu da vida utopiana, triunfalmente superado pelo esforço para obter. A produção definhou a ponto de acabar. A riqueza acumulada acabou. Um opressor sistema de dívidas, um enxame de credores, moralmente incapazes de renúncia prestativa, esmagou todas as novas iniciativas.

A longa diástole dos assuntos utopianos, que havia começado com as grandes descobertas, passou para uma fase de rápida sístole. O prazer e a abundância que ainda restavam no mundo foram pilhados com ainda mais avidez pelos aventureiros das finanças e dos negócios especulativos. A ciência organizada fora havia muito comercializada e era “aplicada” principalmente a uma caça por patentes lucrativas e ao monopólio de bens necessários. A abandonada lâmpada da ciência pura perdeu a força, tremulou e pareceu que iria se apagar totalmente, deixando Utopia no começo de uma nova Era das Trevas, como aquela antes da era das descobertas começar...

– Parece um diagnóstico bem pessimista de nosso próprio panorama – disse o sr. Burleigh. – É extraordinariamente parecido. Como Dean Inge teria apreciado tudo isso!

– Para um infiel da sua laia, pareceria extremamente apreciável – disse o padre Amerton, de forma pouco coerente.

Esses comentários irritaram o sr. Barnstaple, que estava ansioso por ouvir mais.

– Então – ele disse a Urthred –, o que aconteceu?

Parte 5

O sr. Barnstaple percebeu que o que aconteceu foi uma mudança deliberada no pensamento utopiano. Um número crescente de pessoas começou a entender que, entre o poder fácil que a ciência e a organização haviam trazido ao alcance do homem, a velha concepção de vida social no estado, como uma luta limitada e legalizada de homens e mulheres para superarem uns aos outros, tornava-se perigosa demais para se suportar, assim como o terror crescente das armas modernas estava tornando a soberania independente das nações perigosa demais para suportar. Era preciso novas ideias e novas convenções da associação humana para que a história não terminasse em desastre e colapso.

Todas as sociedades eram baseadas em limitações por leis e tabus e convenções sobre a combatividade feroz e primordial do ancestral homem-macaco; esse antigo espírito de autoafirmação tinha agora de passar por novas restrições proporcionais aos novos poderes e perigos da raça. A ideia de competir por posses, como ideia que governava as relações, era como uma fornalha mal controlada, ameaçando consumir a máquina que antes abastecia. A ideia do serviço criativo tinha de vir como substituição. Para essa ideia, a mente e a vontade humanas tinham de ser transformadas para que a vida social fosse salva. Propostas que em antigas eras pareceram idealismo inspirado e exaltado começaram agora a ser reconhecidas não apenas como sóbria verdade psicológica, mas como uma verdade prática e urgentemente necessária. Ao explicar isso, Urthred se expressou de uma forma que lembrou ao sr. Barnstaple certas frases muito familiares; parecia estar dizendo que quem quisesse salvar sua vida teria de perdê-la e quem perdesse a vida ganharia o mundo.

Os pensamentos do padre Amerton também pareciam reagir da mesma forma, pois subitamente interrompeu:

– Mas isso que você está dizendo é uma citação!

Urthred admitiu que tinha uma citação em mente, uma passagem dos ensinamentos de um homem de grande poder poético, que vivera havia muito tempo, na época das palavras faladas.

Ele teria prosseguido, mas o padre Amerton estava excitado demais para permitir.

– Mas quem era esse professor? – perguntou ele. – Onde viveu? Como nasceu? Como morreu?

Um retrato apareceu na consciência do sr. Barnstaple, de uma solitária figura de rosto pálido, espancado e sangrando, cercado por guardas armados, em meio a uma multidão empurrando, puxando, castigada pelo sol, que tomava uma rua estreita de muros altos. Atrás, um instrumento horrendo era trazido, balançando ao ritmo da multidão...

– Ele também morreu na cruz neste mundo? – exclamou o padre Amerton. – Ele morreu na cruz?

Eles descobriram que esse profeta de Utopia morreu de forma bem dolorosa, mas não na cruz. Ele fora torturado de alguma forma, mas nem os utopianos nem aqueles terráqueos em particular tinham conhecimento suficiente das tecnicalidades da tortura para ter alguma ideia a respeito, mas que aparentemente ele fora preso a uma roda que girava lentamente e exposto até morrer. Era a punição abominável de uma raça cruel e conquistadora, imposta a ele porque sua doutrina de serviço universal havia alarmado os ricos e dominantes que não queriam servir. O sr. Barnstaple teve uma visão momentânea de uma figura retorcida naquela roda de tortura sob o sol escaldante. E – triunfo maravilhoso sobre a morte! – de um mundo capaz de tal feito descendera uma grande paz e beleza universal sobre ele!

Mas o padre Amerton pressionava com suas perguntas.

– Mas vocês não perceberam quem ele era? Este mundo não suspeitou?

Muitas pessoas acharam que aquele homem era um Deus. Mas ele se acostumara a se chamar apenas de filho de Deus ou filho do Homem.

O padre Amerton manteve-se firme.

– Mas vocês o adoram agora?

– Nós seguimos seus ensinamentos porque são maravilhosos e verdadeiros – disse Urthred.

– Mas adoram?

– Não.

– Mas ninguém o adora? Houve aqueles que o adoraram?

Houve aqueles que o adoraram. Houve aqueles que recuaram diante da severa magnificência de seus ensinamentos e que ainda assim tinham a incômoda sensação de que ele estava certo de uma maneira profunda. Então eles pregavam uma peça em suas próprias consciências desconfortáveis, tratando-o como um deus mágico, em vez de uma luz para suas almas. Entremearam a sua execução antigas tradições de reis sacrificiais. Em vez de recebê-lo franca e claramente e torná-lo uma parte de suas compreensões e vontades, fingiram ingeri-lo misticamente e torná-lo parte de seus corpos. Transformaram sua roda num símbolo milagroso e o confundiram com o equador, o sol, o eclíptico e, de fato, com tudo o que era redondo. Em casos de azar, doença ou tempo ruim, acreditava-se que seria muito útil para o fiel descrever um círculo no ar com o dedo indicador.

E como a memória desse professor era muito estimada pela multidão ignorante por sua gentileza e caridade, foi apropriada por tipos agressivos e astutos que se proclamavam paladinos e expoentes da roda, que se tornaram ricos e poderosos em seu nome, levaram pessoas a grandes guerras por sua causa e a usaram para encobrir e justificar inveja, ódio, tirania e desejos sombrios. Até que finalmente os homens disseram que, se aquele antigo profeta voltasse para Utopia, sua própria roda triunfante o teria esmagado e destruído novamente...

O padre Amerton parecia desatento a essa comunicação. Via de outro ângulo.

– Mas com certeza – disse ele –, ainda devem restar fiéis! Desprezados, talvez, mas que permanecem?

Não restava ninguém. O mundo todo seguiu aquele Mestre dos Mestres, mas ninguém o idolatrava. Em alguns prédios antigos e preservados, a roda ainda era vista entalhada, frequentemente com as elaborações decorativas mais fantásticas. E em museus e coleções havia uma infinidade de retratos, imagens, amuletos e coisas assim.

– Eu não entendo – disse o padre Amerton. – É terrível demais. Estou confuso. Não entendo.

Parte 6

Um homem loiro e esguio, com um rosto belo e delicado, cujo nome o sr. Barnstaple saberia depois ser Lion, tomou de Urthred o fardo de explicar e responder às perguntas dos terráqueos.

Ele era um dos coordenadores educacionais de Utopia. Deixou claro que a mudança na vida de Utopia não foi uma revolução repentina. Nenhum novo sistema de leis e costumes, nenhum novo método de cooperação econômica com base na ideia de serviço universal para o bem comum surgira abruptamente de maneira completa e acabada. Por um longo período, antes e durante a Última Era de Confusão, os alicerces desse novo estado foram plantados por uma multidão crescente de pesquisadores e trabalhadores, sem um plano estabelecido ou método preconcebido, mas através de uma cooperação inconsciente com o impulso comum de servir e uma comum lucidez e veracidade mental. Foi só perto do clímax da Última Era de Confusão em Utopia que a ciência psicológica começou a se desenvolver com certo vigor, comparável ao vigor do desenvolvimento da ciência física e geográfica durante os séculos anteriores. E a desordem social e econômica que estava limitando a ciência experimental e prejudicando o trabalho organizado das universidades estimulava buscas por processos de associação humana e tornava-as desesperadas e destemidas.

A impressão que o sr. Barnstaple teve não era de uma dessas mudanças violentas que nosso mundo aprendeu a chamar de revoluções, mas de um aumento de luz, um despertar de novas ideias, no qual as coisas da antiga ordem seguiram por um tempo com vigor cada vez menor, até que as pessoas começaram a fazer as novas coisas no lugar das velhas por uma questão de puro bom senso.

A nova ordem começou com discussões, livros e laboratórios psicológicos; o solo no qual ela crescia foi encontrado em escolas e faculdades. A velha ordem não compensava muito o professor de escola, mas seus membros dominantes estavam ocupados demais com a luta por riqueza e poder para prestar atenção em ensinamentos: restou a homens ou mulheres que pudessem refletir e trabalhar, sem muita esperança de recompensas tangíveis, moldar o novo mundo na mente dos jovens. E eles moldaram. Num mundo governado ostensivamente por políticos aventureiros, num mundo onde homens chegavam ao poder através de empreendimentos fracassados e maquinação financeira, já estava sendo ensinado e compreendido que a propriedade privada era um incômodo social e que o Estado não podia fazer seu trabalho devidamente, nem a educação poderia produzir seus devidos resultados, lado a lado com uma classe de ricos irresponsáveis. Porque, pela sua própria natureza, eles atacavam, corrompiam e impediam qualquer iniciativa do Estado; suas existências ostensivas distorciam e disfarçavam todos os valores da vida. Eles tinham de sumir para o bem da raça.

– Eles não lutaram? – perguntou o sr. Catskill belicosamente.

Eles lutaram de forma irregular, porém feroz. A luta por atrasar ou deter a chegada do estado científico universal, o estado educacional em Utopia, seguira como uma batalha consciente por quase cinco séculos. A luta contra ele foi a luta dos gananciosos, apaixonados, preconceituosos e solipsistas contra a cristalização de realidades concretas dessa nova ideia de associação para o serviço. Foi combatido onde quer que as ideias se espalhassem; foi combatido com demissões e ameaças, boicotes e tempestades de violência, com mentiras e falsas acusações, com processos e prisões, com linchamentos, humilhação, paus e pedras, bombas e armas.

Mas o serviço da nova ideia que havia sido lançado no mundo nunca fracassou; tomou os homens e mulheres de que necessitava com um poder premente. Antes de o estado científico ser estabelecido em Utopia, mais de um milhão de mártires foi morto por ele, e aqueles que sofreram males menores eram incontáveis. Um argumento após o outro triunfou na educação, nas leis sociais, no método econômico. Nenhuma data pôde ser fixada para a mudança. Veio um tempo em que Utopia percebeu que era dia e que a nova ordem das coisas havia substituído a antiga...

– Assim que deve ser – disse o sr. Barnstaple como se Utopia já não estivesse presente diante dele. – Assim que deve ser.

Uma pergunta estava sendo respondida. Toda criança utopiana era ensinada na plena medida das suas possibilidades e dirigida ao trabalho que fosse indicado por seus desejos e capacidade. Nasce bem. Nasce de pais com saúde perfeita; sua mãe decidiu ter a criança depois das devidas reflexão e preparação. Ela cresce sob condições totalmente saudáveis; seus impulsos naturais para brincar e aprender são satisfeitos pelos métodos educacionais mais sutis; mãos, olhos e membros recebem toda oportunidade de treinamento e crescimento; ela aprende a desenhar, escrever, expressar-se, usar uma grande variedade de símbolos para amparar e estender seu pensamento. Bondade e civilidade se tornam hábitos enraizados, porque todos ao seu redor são bondosos e civilizados. E o crescimento de sua imaginação é particularmente observado e encorajado. Ela aprende a maravilhosa história de seu mundo e sua raça, como o homem lutou e ainda luta para além de sua estreiteza animal e egoísmo em direção a um império sobre o ser que ainda é compreendido através de densos véus de ignorância. Todos os desejos são belos; ela aprende pela poesia, pelo exemplo e o amor daqueles a seu redor a perder sua preocupação consigo mesma no amor; suas paixões sexuais são votadas contra seu egoísmo, sua curiosidade floresce tornando-se paixão científica, sua combatividade é guiada a enfrentar a desordem, seu orgulho e ambição inerentes são dirigidos a compartilhar honradamente a conquista comum. A criança segue para o trabalho que a atrai e escolhe o que irá fazer.

Se o indivíduo for indolente, não há grande perda, há muito para todos em Utopia, mas então ele não vai encontrar quem o ame nem terá filhos, porque ninguém em Utopia ama aqueles que não têm energia nem distinção. Há muito orgulho do companheiro no amor utopiano. E não há “sociedade” rica e ociosa em Utopia, nem jogos e shows para o simples expectador. Não há nada para o mero expectador. De fato, é um mundo agradável para férias, mas não para aqueles que nunca fazem nada.

Por séculos, a ciência de Utopia foi capaz de discriminar entre um nascimento e outro, e quase todo utopiano vivo teria sido considerado um espírito criativo enérgico nos antigos tempos. Poucos são tolos e ninguém de fato é deficiente em Utopia; as cepas, as pessoas com inclinações letárgicas ou imaginações fracas, basicamente acabaram; o tipo melancólico pediu demissão e se foi; as personalidades malignas e rancorosas estão desaparecendo. A vasta maioria dos utopianos é ativa, inventiva, otimista, receptiva e bem-humorada.

– E vocês não têm nem um parlamento? – perguntou o sr. Burleigh, ainda incrédulo.

Utopia não tem parlamento, nem políticos, nem riqueza particular, nem competição nos negócios, nem polícia ou prisão, nem lunáticos, nem deficientes e aleijados, e não tem nada dessas coisas porque tem escolas e professores que são tudo o que escolas e professores podem ser. Política, comércio e competição são métodos de adaptação de uma sociedade grosseira. Tais métodos de adaptação foram deixados de lado em Utopia por mais de mil anos. Não há regra nem governo necessários para os utopianos adultos, porque todas as regras e governo de que precisam, eles tiveram na infância e juventude.

Lion disse:

– Nossa educação é nosso governo.


CAPÍTULO SEIS
ALGUMAS CRÍTICAS DOS TERRÁQUEOS

Parte 1

Algumas vezes durante aquela tarde e noite memoráveis, pareceu ao sr. Barnstaple que ele estava envolvido em nada mais notável do que um diálogo extraordinário sobre governo e história, um diálogo que de alguma forma inexplicável havia se tornado espetacular; era como se estivesse acontecendo apenas em sua mente; e então a realidade absoluta de sua aventura voltava a ele com força avassaladora e seu interesse intelectual diluía-se em falta de atenção devido à estranheza espantosa de sua situação. Nessas fases, seu olhar ia de um rosto a outro dos utopianos que o cercavam, pousando por algum tempo em algum detalhe requintado da arquitetura do prédio e então voltando para essas formas divinamente graciosas.

Então, incrédulo, ele voltava a seus colegas terráqueos.

Nenhum desses rostos utopianos deixava de ser tão cândido, sincero e belo como os rostos angelicais de pinturas italianas. Uma mulher era estranhamente parecida com a Sibila Délfica de Michelangelo. Eles se sentavam com atitude tranquila, homens e mulheres juntos, na maior parte concentrados na discussão, mas de tempos em tempos o sr. Barnstaple descobria o exame direto de um par de olhos amistosos ou encontrava algum rosto utopiano atento aos trajes de Lady Stella ou ao monóculo do sr. Mush.

A primeira impressão do sr. Barnstaple fora de que os utopianos eram todos jovens; agora, ele percebia que muitos daqueles rostos tinham um aspecto de maturidade vigorosa. Nenhum mostrava marcas distintas de idade como neste mundo, mas tanto Urthred quanto Lion tinham rugas de experiência ao redor dos olhos, lábios e testa.

O efeito dessa gente sobre o sr. Barnstaple misturava estupefação e familiaridade da forma mais estranha. Ele tinha a sensação de que sempre soubera que tal raça poderia existir e que esse conhecimento fornecera um padrão implícito para milhares de julgamentos sobre as questões humanas, e ao mesmo tempo ele ficava abismado, ou até mesmo incrédulo, ao se achar no mesmo mundo que eles. Eram ao mesmo tempo normais e maravilhosos em comparação a ele mesmo e seus colegas, que eram, por sua vez, ao mesmo tempo estranhos e completamente triviais.

E ao lado do forte desejo de se tornar amigo e íntimo desse povo belo e gracioso, de se entregar e se juntar a eles por meio de serviços e atos recíprocos, havia um receio e medo deles que o fazia recuar e estremecer ao seu toque. Desejava tanto que eles o reconhecessem pessoalmente como colega e companheiro que a noção de sua própria falta de graça e de dignidade o oprimia. Queria se curvar diante deles. Sob toda a luz e graciosidade das coisas ao seu redor, havia a premonição intolerável de sua derradeira rejeição por esse novo mundo.

Tão forte era a impressão que os utopianos causavam ao sr. Barnstaple, tão totalmente ele se rendia à aceitação da graça e esplendor físico deles, que por um tempo ele não deu nenhuma atenção ao fato de que sua reação diferia muito daquela de seus colegas terráqueos. A indiferença dos utopianos pela estranheza, bizarrice e crueldade da vida terrena normal o deixou pronto para uma aprovação acrítica de suas instituições e modos de vida.

Foi o comportamento do padre Amerton que o despertou pela primeira vez para o fato de que era possível desaprovar severamente esse povo maravilhoso e demonstrar uma hostilidade considerável em relação a eles. Inicialmente, o padre Amerton manteve uma expressão de espanto e admiração; mostrara-se disposto a deixar a iniciativa para qualquer um que a aceitasse e não disse uma palavra até que a beleza nua de Greenlake o surpreendesse gerando uma expressão de apreciação nada clerical. Mas, durante a jornada até o lago e a refeição e os arranjos para a abertura da conferência, houve uma reação, e esse espanto inicialmente ingênuo e deferente deu lugar a uma atitude de resistência e hostilidade. Era como se esse novo mundo, que começou sendo um espetáculo, tivesse assumido um aspecto de proposição, que ele sentia que tinha de aceitar ou refutar. Talvez o hábito mental de um censor público fosse forte demais e ele não conseguisse se sentir normal novamente até começar a condenar. Talvez ele estivesse de fato chocado e perturbado pela nudez virtual daqueles corpos adoráveis em torno dele. Mas ele começou a dar grunhidos e tosses estranhos, murmurar consigo mesmo e demonstrar uma incapacidade crescente de ficar parado.

Ele interrompeu pela primeira vez quando a questão da população foi levantada. Por um tempo, sua inteligência prevaleceu sobre sua agitação emocional quando o profeta da roda foi discutido, mas então suas preocupações somadas voltaram a dominá-lo.

– Preciso falar uma coisa – o sr. Barnstaple o ouviu murmurar. – Preciso falar. – Ele então começou a fazer perguntas. – Há algumas coisas que preciso esclarecer – disse ele. – Quero saber em qual estado moral está essa assim chamada Utopia. Com licença!

Ele se levantou. Agitou as mãos, incapaz por um momento de começar. Então, foi até o fim da fileira de assentos e se postou de modo que suas mãos pudessem descansar atrás de um assento. Passou os dedos pelo cabelo e pareceu estar inspirando profundamente. Uma animação incomum surgiu em seu rosto, que se avermelhou e começou a brilhar. Uma suspeita terrível cruzou a mente do sr. Barnstaple, de que ele devia ficar assim quando começava seus sermões semanais, aquelas denúncias destemidas de quase tudo na igreja de São Barnabé no oeste. A suspeita se aprofundou numa certeza mais terrível.

– Amigos, irmãos desse novo mundo, tenho certas coisas a dizer que não posso mais protelar. Quero fazer algumas perguntas do fundo da alma. Quero lidar objetivamente com algumas questões muito simples e objetivas, mas muito fundamentais. Quero colocar as coisas de maneira franca, de homem para homem, sem ser hipócrita sobre coisas urgentes e delicadas. Deixe-me dizer sem papas na língua. Quero perguntar se nesse assim chamado estado de Utopia vocês ainda têm, respeitam e honram a coisa mais sagrada da vida social. Vocês respeitam os laços do matrimônio?

Ele fez uma pausa. E nessa pausa a resposta utopiana veio através do sr. Barnstaple:

– Em Utopia não há laços.

Mas o padre Amerton não estava fazendo perguntas com nenhum desejo de respostas; fazia perguntas como no púlpito.

– Quero saber – ele rugia – se essa união sagrada revelada para nossos primeiros pais no Jardim do Éden permanece aqui, se essa associação santificada e vitalícia de um homem e uma mulher, na riqueza e na pobreza, excluindo todo outro tipo de intimidade, é a regra de suas vidas. Quero saber...

– Mas ele não quer saber – interveio um utopiano.

– ...se essa pureza protegida e guardada a dois...

O sr. Burleigh levantou a longa mão branca:

– Padre Amerton – ele protestou –, por favor...

A mão do sr. Burleigh era uma mão potente, que ainda podia tomar precedência. Poucas coisas sob o céu podiam deter o padre Amerton quando irrompia numa de suas tempestades de alma, mas a mão do sr. Burleigh era uma delas.

– ...seguiu outra dádiva ainda mais preciosa e foi deixada de lado e completamente rejeitada pelos homens aqui? O que foi, sr. Burleigh?

– Gostaria que não insistisse neste assunto no momento, padre Amerton. Até termos descoberto um pouco mais. As instituições são claramente bem diferentes aqui. Até a instituição do casamento pode ser diferente.

O padre baixou o rosto.

– Sr. Burleigh – ele disse. – Eu preciso. Se minhas suspeitas estão corretas, quero desnudar este mundo agora mesmo de sua pretensão louca quanto a um tipo de saúde e virtude.

– Não há muito o que desnudar – disse o chofer do sr. Burleigh, numa tirada bem audível.

Certa irritação se tornou evidente na voz do sr. Burleigh.

– Então, faça perguntas – disse ele. – Faça perguntas. Não pregue, por favor. Eles não querem que preguemos.

– Já fiz minha pergunta – disse o padre Amerton emburrado, com um olhar retórico a Urthred, e permaneceu de pé.

A resposta veio clara e explícita. Em Utopia não havia pressão para homens e mulheres formarem pares indissolúveis. Para a maioria dos utopianos, isso seria inconveniente. Com frequência, homens e mulheres cujo trabalho os unia se tornavam amantes e se mantinham bem unidos, como Arden e Greenlake. Mas eles não tinham obrigação nenhuma.

Nem sempre foi tão livre assim. Nos antigos tempos, lotados e conflituosos, e especialmente entre os trabalhadores da agricultura e os empregados de Utopia, homens e mulheres que eram amantes se uniam para a vida toda segundo severas leis. Moravam juntos numa pequena casa que a mulher mantinha em ordem para o homem, ela era sua empregada e gerava para ele quantos filhos fosse possível, enquanto ele conseguia comida para eles. As crianças eram desejáveis porque logo se tornavam úteis na terra ou recebendo salários. Mas as necessidades que haviam subjugado as mulheres àquele tipo de combinação haviam passado.

As pessoas se juntavam com seus pares escolhidos, mas faziam isso por uma necessidade interna, e não por uma compulsão externa.

O padre Amerton escutou tudo com impaciência não dissimulada. Então, deu um salto.

– Então eu estava certo! Vocês aboliram a família? – Seu dedo apontava para Urthred, quase como uma acusação pessoal.

Não. Utopia não havia abolido a família. Havia aumentado e glorificado a família até ela compreender o mundo todo. Havia muitos anos, aquele profeta da roda, que o padre Amerton parecia respeitar, pregara essa mesma expansão da antiga estreiteza do lar. Enquanto ele pregava, haviam lhe dito que sua mãe e seus irmãos estavam de fora e precisavam de sua atenção. Mas ele não foi até eles. Virou-se para a multidão que ouvia suas palavras:

– Estes são minha mãe e meus irmãos!

O padre Amerton bateu com força nas costas do assento diante dele, assustando a todos.

– Um sofisma – ele exclamou. – Um sofisma! Satã também pode citar as escrituras.

Para o sr. Barnstaple, estava claro que o padre Amerton não estava em total controle de si mesmo. Estava assustado com o que fazia, e ainda assim impelido a fazê-lo. Estava agitado demais para pensar com clareza ou controlar devidamente sua voz, então gritava e esbravejada da forma mais louca. “Perdia as estribeiras” e confiava nos hábitos do púlpito de São Barnabé para passar por aquilo.

– Vejo agora como se posicionam. Vejo bem demais como se posicionam. Desde o início eu imaginei como eram as coisas com vocês. Eu esperei... esperei para estar completamente certo antes de dar meu testemunho. Mas tudo fala por si só: a desavergonhice de seus trajes, a liberdade desenfreada de seus modos! Jovens, de ambos os sexos, sorrindo, dando as mãos, quase se acariciando, quando desviar os olhos... Desviar os olhos é o tributo mínimo que poderiam prestar ao recato! E essa conversa vil sobre amantes sem laços ou bênçãos, sem regras ou restrições. O que isso significa? Aonde leva? Não pensem que porque sou um padre, um homem puro e virginal, apesar das grandes tentações, não pensem que eu não entendo! Eu não tenho visões de lugares secretos do coração? Os pecadores feridos, os despedaçados não vêm até mim com suas lastimáveis confissões? E vou dizer claramente para onde vão e onde estão! Essa dita liberdade sua é nada além de permissividade. Sua dita Utopia, vejo claramente, é nada além de um inferno de indulgências desenfreadas! Indulgências desenfreadas!

O sr. Burleigh ergueu a mão em protesto, mas a eloquência do padre Amerton passou por cima da obstrução. Ele batia nas costas do assento diante de si.

– Vou dar meu testemunho – gritou. – Vou dar meu testemunho. Não serei leniente quanto a isso. Eu me recuso a suavizar a questão. Vocês estão todos vivendo em promiscuidade! Essa é a palavra. Promiscuidade animal! Promiscuidade bestial!

O sr. Burleigh ergueu-se de um salto. Agitava as duas mãos e fazia sinal para o Boanerges de Londres se sentar.

– Não, não! – exclamou. – Precisa parar, sr. Amerton. Sério, precisa parar com isso. Está os insultando. O senhor não entende. Sente-se, por favor. Eu insisto.

– Sente-se e fique em paz – disse uma voz bem clara. – Ou será levado daqui.

Algo fez o padre Amerton notar uma figura parada ao seu lado. Encontrou os olhos de um rapaz ágil que examinava seu físico como um pintor de retratos examinaria um novo modelo. Não havia ameaça em sua postura – ele estava imóvel e, ainda assim, sua aparência tinha um aspecto extraordinário de imaterialidade para o padre Amerton. A grande voz de pregador morreu em sua garganta.

A voz branda do sr. Burleigh se ergueu para evitar o conflito:

– Sr. Serpentine, apelo ao senhor e me desculpo. Ele não é totalmente responsável. Nós lamentamos a interrupção, o incidente. Rogo para que não o leve daqui, seja o que for que isso signifique. Responderei pessoalmente pelo bom comportamento dele... Sente-se, sr. Amerton, por favor; agora, ou vou lavar minhas mãos sobre esse assunto.

O padre Amerton hesitou.

– Meu tempo virá – ele disse, e então olhou nos olhos do jovem por um momento e voltou ao seu assento.

Urthred falou baixo e com clareza:

– Vocês, terráqueos, são hóspedes difíceis de receber. Isso não é tudo... É evidente que a mente desse homem está muito suja. Sua imaginação sexual está evidentemente inflamada e doente. Está zangado e ansioso em insultar e ferir. E seus ruídos são terríveis. Amanhã ele deve ser examinado e cuidarão dele.

– Como? – disse o padre Amerton, seu rosto redondo de repente ficando cinza. – O que quer dizer... cuidar de mim?

– Por favor, não fale – disse o sr. Burleigh. – Por favor, não fale mais. Já provocou estragos o suficiente...

Por enquanto o incidente parecia haver terminado, mas deixou uma estranha pontada de medo no coração do sr. Barnstaple. Aqueles utopianos eram muito gentis e graciosos de fato, mas por um momento a mão do poder pareceu pairar sobre o grupo de terráqueos. A luz do sol e a beleza estavam por todo lado, ainda assim, os visitantes eram estranhos indefesos num mundo desconhecido. Os rostos dos utopianos eram bondosos e seus olhos eram curiosos e de certa forma amistosos, mas muito mais observadores do que amistosos. Era como se eles olhassem através de um abismo intransponível de diferença.

Em meio àquela agonia, o sr. Barnstaple encontrou os olhos castanhos de Lychnis, e eram mais bondosos do que os dos outros utopianos. Ela, pelo menos, compreendia o medo que o assaltara e estava disposta a confortá-lo e ser sua amiga. O sr. Barnstaple olhou para ela, sentindo-se por um momento como um cachorrinho perdido que se aproxima de um grupo de amabilidade duvidosa e recebe um olhar amistoso e uma saudação.

Parte 2

Outra mente que também resistia ativamente a Utopia era a do sr. Freddy Mush. Ele não tinha de fato nenhuma rixa com a religião e a moral ou a organização social de Utopia. Havia muito aprendera que um cavalheiro com sérias pretensões estéticas não tem interesse algum em tais questões. Suas percepções eram supostamente sofisticadas demais para eles. Mas deixou claro que havia algo muito antigo e belo chamado “O Equilíbrio da Natureza” que os métodos científicos de Utopia haviam destruído. O que esse Equilíbrio era, e como funcionava na Terra, nem os utopianos nem o sr. Barnstaple foram capazes de compreender com clareza. Interrogado, o sr. Mush ficou rosa e irrequieto e seu monóculo refulgiu na defensiva.

– Eu defendo as andorinhas – ele repetiu. – Se não conseguem ver meu ponto, não sei o que mais dizer.

Ele começou com o fato e voltou à questão de que não havia andorinhas à vista em Utopia, e não havia andorinhas em Utopia porque não havia nem moscas, nem mosquitos. Houvera uma enorme redução deliberada dos insetos em Utopia, e isso havia afetado seriamente todo tipo de criatura que era direta ou indiretamente dependente da vida dos insetos. Assim que o novo estado das coisas foi estabelecido em Utopia e o estado educacional passou a funcionar, a atenção da comunidade utopiana se dirigiu à ideia havia muito apreciada de um extermínio sistemático de espécies enfadonhas e desordeiras. Foi feita uma pesquisa cuidadosa sobre os danos e a possibilidade de eliminar a mosca doméstica, por exemplo, vespas e marimbondos, várias espécies de ratos e camundongos, coelhos, urtigas. Dez mil espécies, de germes de doenças a rinocerontes e hienas, foram submetidas aos testes. Toda espécie encontrada recebeu um defensor. A cada um foi perguntado: que bem faz? Que mal faz? Como pode ser extirpada? O que mais pode ser extinto junto com ela? Vale a pena varrê-la da existência? Ou pode ser diminuída e controlada? E mesmo quando o veredito de morte era final e completo, Utopia se pôs a realizar o extermínio com muito cuidado. Uma reserva de cada espécie condenada seria mantida, e em muitos casos ainda era mantida, em isolamento seguro.

A maior parte das febres contagiosas foi completamente eliminada; algumas sumiram com facilidade; algumas só foram afastadas da vida humana com uma guerra declarada e submetendo a população toda a uma disciplina. Muitos parasitas internos e externos do homem e dos animais também foram eliminados completamente. E mais, houve uma grande limpeza de insetos nocivos do mundo, de ervas daninhas a pragas e feras hostis. O mosquito, a mosca doméstica, a varejeira e, de fato, uma grande quantidade de moscas se foi; foram afastadas da vida por campanhas envolvendo um imenso esforço que se estendeu por muitas gerações. Foi infinitamente mais fácil se livrar de grandes incômodos, como a hiena e o lobo, do que abolir pestes menores. O ataque contra as moscas envolveu uma reconstrução virtual de grande parte das casas de Utopia e uma limpeza minuciosa ao redor de todo o planeta.

A pergunta sobre o que mais desapareceria se certa espécie fosse extinta foi uma das mais sutis que Utopia teve de encarar. Certos insetos, por exemplo, eram larvas destrutivas no primeiro estágio da vida, perigosas como lagartas ou pupas, e então se tornavam belos por si mesmos ou necessários para a polinização de flores úteis ou lindas. Outros eram nocivos, mas alimento necessário e insubstituível para criaturas agradáveis e desejáveis. Não era verdade que as andorinhas haviam sumido de Utopia, mas haviam se tornado extremamente raras; e também raros eram os pássaros insetívoros; o bem-te-vi, por exemplo, esse arlequim do ar. Mas não foram completamente extintos; o extermínio de insetos não chegou a esse grau; espécies suficientes permaneceram para tornar alguns pontos ainda habitáveis para esses maravilhosos pássaros.

Da mesma forma, muitas plantas agressivas eram uma fonte conveniente de substâncias químicas que ainda eram caras ou difíceis de se produzir sinteticamente, e então mantiveram um posto restrito em vida. Plantas e flores, sempre mais simples e mais plásticas nas mãos de criadores e cruzadores do que os animais, mudaram muito em Utopia. Os terráqueos encontrariam centenas de tipos de folhas e de flores perfumadas e graciosas que eram totalmente estranhas a eles. O sr. Barnstaple descobriu que as plantas haviam sido cultivadas para criar novas e inauditas secreções, ceras, gomas e óleos essenciais, da mais desejável qualidade.

Houve a domesticação e o amansamento de grandes animais; os carnívoros maiores, escovados e limpos, reduzidos a uma dieta de leite, emasculados no espírito e totalmente inofensivos, eram animais de estimação e ornamentos em Utopia. O elefante, quase extinto, aumentou em número novamente, e Utopia salvou suas girafas. O urso pardo sempre foi inclinado aos doces e ao vegetarianismo, e aumentou muito de inteligência. O cachorro deixara de latir e era comparativamente raro. Cachorros de competição ou pequenos animais de estimação não eram usados.

Cavalos o sr. Barnstaple não viu, mas, como era um tipo urbano muito moderno, não sentiu muita falta e não fez perguntas sobre eles enquanto esteve em Utopia. Nunca descobriu se eles se tornaram extintos ou não.

Quando ouviu na primeira tarde naquele mundo sobre essa revisão e edição, esse cultivo e extermínio de reinos da natureza pelo ser humano, pareceu-lhe a fase mais natural e necessária na história humana. Afinal, ele pensou consigo mesmo, era uma boa invenção dizer que o homem foi criado como jardineiro.

E agora o homem estava arrancando ervas daninhas e cultivando sua própria estirpe...

Os utopianos falaram de princípios eugênicos, de uma nova e segura decisão na escolha dos pais, de aumentar a certeza na ciência da hereditariedade; e, conforme o sr. Barnstaple contrastava a beleza firme e clara de rostos e membros que cada utopiano exibia com os traços descuidados e as desproporções do corpo de seus colegas terrenos, ele percebia que, já com uns três mil anos de vantagem, esses utopianos ultrapassavam o homem em direção a uma humanidade mais nobre. Estavam se tornando uma espécie diferente.

Parte 3

Eles eram uma espécie diferente.

Conforme as perguntas, explicações e conversas daquela tarde continuavam, tornou-se cada vez mais evidente para o sr. Barnstaple que a diferença de seus corpos não era nada em comparação à diferença de suas mentes. Inatamente melhores, para começar, as mentes desses filhos da luz haviam crescido sem os danos de grandes fricções, dissimulações, ambiguidades e ignorância que danificavam a mente em crescimento de um terráqueo. Eles eram claros, francos e diretos. Nunca desenvolveram aquela desconfiança defensiva do professor, aquela resistência à instrução, que é a resposta natural ao ensinamento e quase uma agressão. Eram lindamente inocentes em suas comunicações. As ironias, subterfúgios, falsidades, vaidades e pretensões das conversas terrenas pareciam desconhecidos a eles. O sr. Barnstaple achou essa nudez mental tão doce e refrescante quanto o ar da montanha que ele respirava. Impressionava-o que pudessem ser tão pacientes e lúcidos com seres tão subdesenvolvidos.

Subdesenvolvido era a palavra que ele adotava em sua mente. Sentia que ele mesmo era o mais subdesenvolvido de todos; tinha medo desses utopianos; esnobe e abjeto para eles, ele era como um bronco sem modos numa sala de estar, e sentia uma vergonha amarga de sua própria abjeção. Todos os outros terráqueos, exceto o sr. Burleigh e Lady Stella, demonstraram o rancor defensivo de criaturas conscientemente inferiores lutando contra essa consciência.

Como o padre Amerton, o chofer do sr. Burleigh estava evidentemente muito chocado e incomodado pela nudez dos utopianos; seus sentimentos se expressavam por gestos, caretas e um comentário sarcástico ocasional, como “Não pode ser!” ou “Que coisa!”. Isso ele dirigia principalmente ao sr. Barnstaple, por quem, como dono de um carro muito pequeno e velho, ele evidentemente mesclava sentimentos de profundo menosprezo e irmandade social. Ele também dirigia a atenção do sr. Barnstaple para qualquer coisa que considerasse notável na aparência ou no gesto, através de um olhar peculiar e uma careta combinados com sobrancelhas erguidas. Tinha um jeito de apontar com a boca e o nariz que o sr. Barnstaple teria considerado divertido sob circunstâncias normais.

Lady Stella, que inicialmente pareceu ao sr. Barnstaple uma grande dama do tipo moderno, agora começava a parecer na defensiva e se tornar pudica demais. O sr. Burleigh, contudo, retinha uma certa superioridade aristocrática. Fora um grande homem na Terra por toda a sua vida, e era evidente que ele não via motivo pelo qual não devesse ser aceito como um grande homem em Utopia. Na Terra, ele havia feito pouco e fora inteligentemente receptivo aos resultados mais felizes. Com sua mente alerta e questionadora, livre de todas as persuasões, convicções ou desejos revolucionários, assumiu com grande tranquilidade a postura de uma pessoa distinta, inspecionando de maneira simpática, mas totalmente descomprometida, as instituições de um estado alienígena. “Diga-me”: essa frase envolvente permeava sua conversa.

A noite se aproximava; o céu claro de Utopia brilhava com um pôr do sol dourado, e um volume enorme de nuvens sobre o lago passava de rosa para um roxo escuro quando o sr. Rupert Catskill chamou a atenção do sr. Barnstaple. Estava aflito em seu assento.

– Tenho algo a dizer. Tenho algo a dizer.

Então, saltou e caminhou para o centro do semicírculo onde o sr. Burleigh havia falado no começo da tarde.

– Sr. Serpentine – disse ele. – Sr. Burleigh. Há algumas coisas que eu ficaria feliz em dizer se me der a oportunidade de dizê-las.

Parte 4

Ele tirou a cartola, voltou, colocou-a em seu assento e retornou ao centro da abside. Jogou para trás a cauda da casaca, pôs as mãos na cintura, avançou a cabeça, olhou a plateia por um momento com uma expressão meio de astúcia, meio de desafio, murmurou algo inaudível e começou.

Sua abertura não impressionou. Havia um leve entrave em sua fala, algo parecido com um cecear, contra o qual sua voz batia guturalmente. Suas primeiras frases pareceram ser despejadas por esforços inconstantes. Então se tornou evidente para o sr. Barnstaple que o sr. Catskill estava expressando um ponto de vista bem definitivo e oferecia uma razoável e inteligível visão de Utopia. O sr. Barnstaple discordava daquela crítica, de fato, discordava violentamente, mas tinha de reconhecer que expressava uma atitude mental compreensível.

O sr. Catskill começou com a admissão arrebatadora da beleza e ordem de Utopia. Ele elogiou a “saúde reluzente” que ele via “em cada rosto”, a riqueza, a tranquilidade e o conforto da vida utopiana. Eles haviam “domesticado as forças da natureza e as subjugado totalmente para um único fim: o conforto material da raça”.

– Mas e Arden e Greenlake? – murmurou o sr. Barnstaple.

O sr. Catskill não ouviu ou acatou interrupção.

– O seu efeito, senhor orador, sr. Serpentine, devo dizer que o primeiro efeito sobre uma mente terrena é assustador. É de se espantar – ele olhou para o sr. Burleigh e o sr. Barnstaple –, é de se espantar que a admiração tenha tirado algum de nós do prumo? É de se espantar que por um tempo a beleza quase mágica de vocês nos encantou de forma a esquecermos muito do que há em nossa própria natureza – esquecer impulsos profundos e misteriosos, desejos, necessidades, de forma que estávamos prontos a dizer: “Aqui finalmente está a Terra de Lótus. Vamos morar aqui, vamos nos adaptar a esse esplendor planejado e ordenado e viver nossas vidas aqui até a morte”. Eu também, senhor... sr. Serpentine, eu também sucumbi a essa mágica por um tempo. Mas só por um tempo. Eu já me encontro cheio de questionamentos...

Sua mente brilhante e impetuosa apoderou-se do fato de que cada fase na limpeza de Utopia de suas pestes, parasitas e doenças foi acompanhada pela possibilidade de limitações colaterais e perdas; ou talvez fosse mais justo dizer que o fato havia se apoderado de sua mente. Ignorou a deliberação e precauções que acompanharam cada passo do processo de criar um mundo saudável, seguro e íntegro para a atividade humana. Supôs que tivesse havido perdas com cada ganho, exagerou essas perdas e passou levianamente para a metáfora inevitável de jogar o bebê junto com a água; inevitável, isto é, para um parlamentar britânico. Declarou que os utopianos levavam uma vida de extrema facilidade, segurança e, “se me permitem dizer, indulgência” (“Eles trabalham”, disse o sr. Barnstaple), mas com mil incômodos e desacordos extintos não se extinguiu também algo maior e mais precioso? A vida na Terra era insegura, ele admitia, cheia de dores e ansiedades e angústia, mas também, por isso mesmo, tinha momentos de intensidade, esperança, surpresas agradáveis, fugas, conquistas, tudo isso que a vida ordenada de Utopia não podia oferecer.

– Vocês se afastaram do conflito e do incômodo. Também não se afastaram da realidade vibrante da vida?

Ele prosseguiu louvando a vida terrena. Exaltou a vitalidade da vida na Terra como se não houvesse sinais de vitalidade no esplendor ao redor dele. Falou do “rugir de nossas cidades lotadas”, da “ânsia de nossos milhões de seres efervescentes”, das “amplas marés de comércio e do empenho industrial e bélico”, que “balançavam e oscilavam nos refúgios e recônditos de nossa raça”.

Ele tinha o dom para frases plausíveis e o toque imaginativo que favorece a eloquência. O sr. Barnstaple esqueceu aquela leve trava e a voz pesada que dizia essas coisas. O sr. Catskill admitiu corajosamente todos os males e perigos terrenos que o sr. Burleigh havia relatado. Tudo o que o sr. Burleigh havia dito era verdade. Tudo o que ele dissera de fato era pouco perto da verdade. Nós conhecíamos a fome e a peste. Sofríamos de milhares de doenças que Utopia havia eliminado. Éramos afligidos por milhões de enfermidades que Utopia conhecia apenas pelas antigas tradições.

– Os ratos roem e as moscas de verão perseguem e enlouquecem. Às vezes, a vida fede. Eu admito, senhor, eu admito. Nós afundamos, abaixo de suas experiências mais extremas, no desconforto e na miséria, na ansiedade e angústia da alma e do corpo, na amargura, terror e desespero. Sim. Mas também não vamos mais alto? Eu os desafio com essa pergunta. O que vocês podem saber nessa segurança imensa contra a intensidade, a frenética intensidade aterrorizada de muitos de nossos esforços? O que podem saber sobre alívios, interlúdios e fugas? Pense nas nossas muitas felicidades além de sua compreensão! O que sabem aqui do doce início de uma convalescência? De sair de um cenário desagradável para as férias? De correr grandes riscos ao corpo ou à fortuna e ter sucesso? De ganhar uma aposta apesar de todas as improbabilidades? De sair da prisão? E, senhor, foi dito que há em nosso mundo quem descubra fascínio até na dor. E porque nossa vida é mais horrenda, senhor, tem e deve ter momentos infinitamente mais belos do que os seus. É titânica, senhor, enquanto aqui é meramente organizada. E somos acostumados a ela e fortificados por ela. Somos temperados até adquirirmos um gume mais afiado. Esse é o ponto aonde eu queria chegar. Peça que abandonemos nossa desordem terrena, nossas misérias e angústias, nossas altas taxas de mortalidade e nossas terríveis doenças, e na primeira pergunta todo homem e mulher no mundo diria: “Sim! De bom grado!”. Na primeira pergunta, senhor.

O sr. Catskill prendeu a plateia por um momento com o dedo erguido.

– Então devemos começar a pensar. Devemos perguntar, como disseram que seus naturalistas se perguntaram sobre as moscas e pequenas pragas prejudiciais. Deveríamos perguntar: “O que se extingue junto? Qual é o preço?”. E quando aprendermos que o preço é abrir mão da intensidade da vida, daquela energia atormentada, daquela tenacidade difícil e experiente, daquela força como a do rato e a do lobo que nossa luta perpétua engendra, nós hesitaremos. Nós hesitaremos. No final, senhor, eu acredito, eu espero e acredito, de fato eu rezo e acredito que diríamos: “Não!”. Nós diríamos não.

O sr. Catskill estava agora num estado de grande exaltação cerebral. Fazia pequenos gestos agitando os punhos fechados. Sua voz se erguia, diminuía e trovejava; ele cambaleou e se virou, buscando a aprovação de seus colegas terráqueos, jogava sorrisos furtivos ao sr. Burleigh.

Essa ideia de que nosso pobre mundo, discordante, covarde, jogado ao acaso era de fato um sistema feroz e coeso de poderosas reações, em contraste com a serenidade de uma bem acabada Utopia, havia tomado posse completa de sua mente.

– Nunca antes, senhor, eu havia percebido, como percebo agora, os elevados destinos, terríveis e aventureiros, da nossa raça terrena. Olho para essa sua Terra Dourada, essa terra divina e aperfeiçoada da qual todo o conflito foi banido...

O sr. Barnstaple captou um leve sorriso no rosto da mulher que o lembrava a Sibila Délfica.

– ...e eu admito e admiro sua ordem e beleza como um peregrino resoluto e empoeirado poderia pausar, em sua exaltada e misteriosa busca, e admitir e admirar a ordem e beleza dos prazerosos jardins de um próspero sibarita. E, como esse peregrino, eu poderia questionar a sabedoria de sua forma de viver, senhor. Porque entendo que agora é provado que a vida, e toda a energia e beleza da vida, é obtida pela luta, competição e conflito; somos moldados e tecidos pelas provações, assim como os senhores foram. E, no entanto, os senhores sonham aqui que eliminaram para sempre os conflitos. Entendo que sua organização econômica é alguma forma de socialismo; vocês aboliram a competição em todos os assuntos da paz. Sua organização política é de uma unidade universal; você cortaram completamente a ameaça estimulante e enobrecedora e a purificadora e aterrorizante experiência da guerra. Tudo é ordenado e fornecido. Tudo é seguro. Tudo é seguro, senhor. Exceto por uma coisa...

“Dói em mim perturbar sua tranquilidade, senhor, mas preciso proferir o nome dessa coisa esquecida: a degeneração! O que há aqui para evitar a degeneração? Você estão evitando a degeneração?

“Que penalidades ainda existem para a indolência? Quais as recompensas para energia e esforço excepcionais? O que há aqui para manter os homens produtivos e alertas, quando não há nenhum perigo ou perda pessoal, mas apenas algum perigo remoto e dano para a comunidade? Por um tempo, um tipo de inércia pode mantê-los avançando. Parecem estar obtendo sucesso. Admito, vocês parecem estar obtendo sucesso na vida. Glória outonal! Esplendor do ocaso! Enquanto que, em universos paralelos ao seu, raças paralelas ainda labutam, ainda sofrem, ainda competem e eliminam e reúnem força e energia!”

O sr. Catskill fez um floreio com a mão para os utopianos num triunfo retórico.

– Não quero que pense, senhor, que essas críticas ao seu mundo são feitas de forma hostil. São oferecidas com o espírito mais amigável e prestativo. Sou o esqueleto, mas o esqueleto mais amável e compungido em seu banquete. Faço minhas perguntas incisivas e desagradáveis porque preciso. É realmente um caminho sábio o que vocês escolheram? Vocês têm doçura, luz e lazer. É verdade. Mas se há toda essa infinidade de universos dos quais nos falaram, sr. Serpentine, de forma tão clara e iluminadora, e se um deles de repente pode se abrir para outro como o nosso fez com o seu, eu pergunto com sinceridade quão seguros são essa doçura, essa leveza e esse lazer. Falamos aqui, separados de inúmeros mundos por uma divisão que não sabemos até que ponto é tênue. E pensando isso, senhor, me parece que, enquanto estou aqui na grande calma dourada deste local, eu quase posso ouvir o atropelo de miríades famintas, tão ferozes e persistentes quanto ratos ou lobos, os rugidos de raças acostumadas a toda dor e crueldade, a ameaça de heroísmos terríveis e agressões impiedosas...

Ele terminou o discurso abruptamente. Sorriu de leve; e pareceu ao sr. Barnstaple que ele havia triunfado sobre Utopia. Ele permaneceu com as mãos na cintura e, como se curvasse o corpo por aquele método, fez uma reverência rígida.

– Senhor – ele disse com aquele leve ceceio, de olho no sr. Burleigh. – Eu disse o que tinha a dizer.

Ele se virou e olhou para o sr. Barnstaple por um momento, com o rosto retorcido, quase parecendo piscar. Balançou a cabeça, como se tivesse acertado seu alvo, voltou a se mover e retornou para seu devido lugar.

Parte 5

Não foi tanto uma resposta ao sr. Catskill. Urthred se sentou, com os cotovelos no joelho e o queixo em uma das mãos, e pensou alto sobre ele.

– O vigor da roda do rato – ele refletiu –, a busca incessante do lobo, a persistência mecânica da vespa, da mosca e dos germes se foram de nosso mundo. Isso é verdade. Nós obliteramos essa parte das forças devoradoras da vida. E não perdemos nada que valesse a pena. Dor, sujeira, indignidade para com nós mesmos ou para quaisquer criaturas foram embora ou vão. Mas não é verdade que a competição se foi de nosso mundo. Por que ele diz isso? Todos aqui trabalham dando o máximo de si, para servir e distinguir. Ninguém se esquiva do trabalho ou do dever como os homens faziam na Era de Confusão, quando os maus e cobiçosos viviam e procriavam no luxo, valendo-se do descuido de tipos mais generosos. Por que ele diz que degeneramos? Já explicamos isso. Os indolentes e inferiores não procriam aqui. E por que ele nos ameaça imaginando invasões de outros mundos mais ferozes e bárbaros? Somos nós que podemos abrir e fechar portas para outros universos. Porque sabemos. Podemos ir até eles. Quando soubermos o suficiente, nós o faremos, mas eles não podem vir até nós. Apenas o conhecimento pode nos tirar das jaulas da vida... Qual é o problema com a mente desse homem?

“Os terráqueos estão apenas no começo da ciência. Para todos os fins práticos, ainda estão na fase do medo e dos tabus que também houve no desenvolvimento de Utopia antes da confiança e do entendimento. Fase contra a qual nosso próprio mundo lutou durante a Última Era de Confusão. As mentes desses terráqueos estão cheias de medo e proibições e, apesar de ter ocorrido a eles que podem controlar seu universo, a ideia ainda é terrível demais para a encararem. Afastam a mente dela. Ainda querem continuar pensando, como seus pais antes deles, que o universo está sendo administrado para eles melhor do que eles podem controlá-lo por si mesmos. Porque, sendo assim, estão livres para obedecer a seus próprios motivos violentos e individuais. Deixem as coisas para Deus, eles exclamam, ou deixem para a Competição.”

– A evolução era nossa palavra santa – disse o sr. Barnstaple, profundamente interessado.

– É tudo a mesma coisa: Deus, ou Evolução, ou o que queiram, desde que signifique um Poder além do de vocês, que os exime do dever. Utopia diz: “Não largue as coisas. Apodere-se delas”. Mas esses terráqueos ainda carecem do hábito de olhar para a realidade desnuda. Esse homem com uma coleira de linho branco no pescoço tem medo até de olhar para os homens e as mulheres da forma que são. Está repulsivamente excitado com o corpo humano comum. Esse homem com uma lente de vidro diante do olho se esforça para acreditar que há uma sábia Mãe Natureza por trás das aparências, mantendo o Equilíbrio. Foi fantástico ouvir sobre esse Equilíbrio da Natureza. Ele, com dois olhos e uma lente, não pode enxergar melhor do que isso? Esse último homem que falou de forma tão impressionante acha que essa velha Natureza é uma fonte ilimitada de energia e vontade, se apenas nos submetermos às suas loucuras e crueldades e imitarmos seu temperamento mais selvagem, se apenas empurrarmos e matarmos e roubarmos uns dos outros... Ele também prega o velho fatalismo e crê ser o ensinamento da ciência...

“Esses terráqueos ainda não ousam ver o que é nossa Mãe Natureza. No fundo de suas mentes ainda há o desejo de se entregarem a ela. Não veem que, exceto por nossos olhos e vontade, ela é cega e sem propósito. Ela não é terrível, ela é horrenda. Não se importa com nossos padrões nem com padrão de excelência nenhum. Ela nos fez por acidente; todos os seus filhos são bastardos, indesejados; ela os acalenta ou os expõe, acaricia, atormenta ou mata de fome sem critério algum. Ela não presta atenção, não se importa. Ela nos eleva até o poder e a inteligência ou nos rebaixa até a fraqueza do coelho ou a imundície gosmenta de milhares de suas invenções parasitárias. Deve haver bondade nela, porque fez tudo o que há de bom em nós; mas também há um mal infinito. Vocês, terráqueos, não veem a sujeira dela, a crueldade, a indignidade insana de muito da sua obra?”

– Pfff! Pior do que “a Natureza de garras e presas sangrentas” – murmurou o sr. Freddy Mush.

– Essas coisas são óbvias – refletiu Urthred. – Se eles ousassem ver. Metade das espécies vivas de nosso planeta, metade e mais da metade de todas as coisas vivas, eram feias ou agressivas, inúteis, miseráveis, desgraçadas, com doenças complexas, mal adaptadas para as condições sempre mutantes da Natureza, quando tentamos controlar pela primeira vez essa velha megera, nossa Mãe. Conseguimos, depois de séculos de luta, suprimir seus caprichos mais perversos, e a lavamos, penteamos e ensinamos a respeitar e ouvir o último filho de sua devassidão: o homem. Com o homem vieram o Logos, a Palavra e a Vontade para nosso universo, para observá-lo e temê-lo, aprender e deixar de temê-lo, conhecê-lo, compreendê-lo e dominá-lo. Para que nós de Utopia não fôssemos mais os filhos açoitados e famintos da Natureza, mas seus filhos adolescentes e livres. Nós nos apoderamos da propriedade da Velha Senhora. A cada dia aprendemos um pouco mais sobre como dominar este pequeno planeta. A cada dia nossos pensamentos partem com mais certeza para nossa herança: as estrelas. E as profundezas além e abaixo das estrelas.

– Vocês chegaram às estrelas? – questionou o sr. Barnstaple.

– Ainda não. Nem mesmo a outros planetas. Mas é óbvio que está chegando a hora em que essas grandes distâncias vão deixar de nos restringir.

Ele fez uma pausa.

– Muitos de nós terão de ir aos confins do espaço... E nunca retornar... Dando suas vidas... E, nesses novos espaços, incontáveis e bravos homens...

Urthred se virou para o sr. Catskill.

– Achamos seus pensamentos francamente expressados particularmente interessantes hoje. Você nos ajudou a entender o passado de nosso próprio mundo. Você nos ajuda a lidar com um problema urgente que já vamos explicar a vocês. Há pensamentos e ideias como os seus em nossa antiga literatura de dois ou três mil anos atrás – a mesma pregação de violência egoísta como se fosse uma virtude. Mesmo naquela época, homens inteligentes sabiam que era errado, e você também saberia que é errado se não estivesse preso a opiniões erradas teimosamente. Mas é óbvio, pelos seus modos e postura, que você de fato tem ideias muito teimosas.

“Deve perceber que não é uma pessoa muito bonita, e provavelmente não é muito bonito em seus prazeres e ações. Mas tem energia abundante, então é natural se voltar para as emoções do risco e da fuga e achar que a melhor coisa na vida é a sensação de conflito e vitória. Além disso, na confusão econômica de um mundo como o seu, há uma quantidade intolerável de trabalho que precisa ser feito, trabalho tão desagradável que torna todas as pessoas de espírito tão ansioso para se afastar dele o máximo possível e se isentar dele por conta de nobreza, privilégio ou sorte na vida. As pessoas do seu mundo com certeza se convencem com facilidade de que estão justificadamente isentas, e você tem essa convicção. Vocês vivem num mundo de classes. Sua mente mal treinada nunca teve necessidade de inventar suas próprias desculpas; a classe na qual nasceram já tinha todas as desculpas prontas. Dessa forma, vocês se apossam do melhor de tudo sem escrúpulos e se aventuram na vida às custas de outras pessoas, com uma mente treinada, por suas circunstâncias, a resistir à ideia de que há algum modo possível de vida humana que possa ser constante e disciplinado e, ao mesmo tempo, vigoroso e feliz. Você combateu essa visão a vida toda, como se fosse sua inimiga pessoal. É sua inimiga pessoal; condena totalmente seu estilo de vida e o amaldiçoa totalmente por suas aventuras.

“Confrontado agora com um belo modo de viver, ordenado e conquistado, você ainda resiste; você resiste a escapar do desalento; argumenta que este nosso mundo não é romântico, que lhe falta intensidade, que é decadente e fraco. Agora, em matéria de força física, pegue a mão desse jovem que está sentado ao seu lado.”

O sr. Catskill olhou para a mão estendida e balançou a cabeça consciente.

– Continue falando – disse ele.

– Ainda assim, quando digo que nem nossas vontades, nem nossos corpos são tão fracos quanto os seus, sua mente resiste obstinadamente. Você não acredita. Se por um momento sua mente admite, em seguida recua para o sistema de crenças que protege sua autoestima. Apenas um de vocês aceita nosso mundo, e só faz isso mais porque está cansado do mundo de vocês, do que desejoso do nosso. Acho que deve ser assim mesmo. Suas mentes são da Era de Confusão, treinadas para o conflito, treinadas para a insegurança e a busca secreta do ego. Foi desse modo que a natureza e seu estado os ensinou a viver, então suas necessidades permanecem até a morte. Tais lições serão aprendidas apenas em dez mil gerações, pela lenta educação de três mil anos.

“E estamos intrigados com a pergunta: o que devemos fazer com vocês? Vamos nos esforçar ao máximo para lidar de forma justa e amistosa com vocês, se respeitarem nossas leis e costumes.

“Mas será muito difícil para vocês, sabemos. Não percebem ainda o quanto seus hábitos e preconceitos vão tornar tudo difícil para vocês. Até agora seu grupo se comportou de modo muito razoável e adequado nos atos, se não nos pensamentos. Mas tivemos hoje outra experiência muito mais trágica com terráqueos. Sua fala sobre mundos bárbaros e ferozes invadindo o nosso teve um grotesco paralelo com a realidade hoje. É verdade: há algo feroz, predatório e perigoso nos homens da Terra. Vocês não são os únicos terráqueos que vieram para Utopia por esse portão que se abriu por um momento hoje. Há outros...”

– É claro! – disse o sr. Barnstaple. – Eu deveria ter imaginado! Aquele terceiro grupo!

– Há outra dessas suas estranhas máquinas locomotoras em Utopia.

– O carro cinza! – disse o sr. Barnstaple para o sr. Burleigh. – Não estava nem a cem metros à frente de vocês.

– Correu atrás de nós desde Hounslow – disse o motorista do sr. Burleigh. – Uma máquina bem possante.

O sr. Burleigh se virou para o sr. Freddy Mush.

– Acho que você disse que reconheceu alguém?

– Lorde Barralonga, senhor, estou quase certo, e acho que a srta. Greeta Grey.

– Havia outros dois homens – disse o sr. Barnstaple.

– Eles vão complicar as coisas – disse o sr. Burleigh.

– Eles complicam as coisas, sim – disse Urthred. – Mataram um homem.

– Um utopiano?

– Essas outras pessoas, esses cinco, cujos nomes vocês parecem conhecer, entraram em Utopia na frente de seus dois veículos. Em vez de parar, como vocês fizeram, quando se encontraram numa nova estrada estranha, eles aceleraram consideravelmente. Passaram por alguns homens e mulheres e fizeram extraordinários gestos para eles e ruídos abomináveis através de um instrumento especialmente criado para esse propósito. Mais à frente encontraram um guepardo prateado e avançaram sobre ele e o atropelaram, quebrando sua espinha. Não parecem ter parado para ver o que aconteceu com ele. Um jovem chamado Gold foi à estrada pedindo que parassem. Mas a máquina deles é feita da forma mais fantástica, muito complexa e muito tola. É incapaz de parar na mesma hora. Não é guiada por um único motor completamente controlado. Apresenta um complicado conflito interno. Tem um tipo de motor que o move para frente por uma marcha dentada complexa no eixo das rodas traseiras e tem vários mecanismos desajeitados de parada através de fricção em certos pontos. Aparentemente, você pode dirigir na mais alta velocidade e ao mesmo tempo bloquear as rodas para evitar que rodem. Quando esse jovem se postou diante deles, foram incapazes de parar. Podem ter tentado. Disseram que sim. A máquina derrapou perigosamente e o acertou com a lateral.

– E o matou?

– E o matou instantaneamente. Seu corpo foi terrivelmente ferido... Mas eles não pararam nem por isso. Desaceleraram e conversaram rapidamente e, vendo que pessoas estavam vindo, colocaram a máquina novamente em movimento e partiram. Pareciam ter sido tomados por um pânico de serem pegos e punidos. Seus motivos são muito difíceis de entender. De toda forma, eles prosseguiram. Rodaram por nosso país por algumas horas. Uma aeronave foi enviada no mesmo instante para segui-los e outra para limpar a estrada na frente deles. Foi muito difícil limpar a estrada, porque nem nossa gente nem nossos animais entendem tais veículos nem tal comportamento. De tarde eles chegaram às montanhas e, evidentemente, acharam nossas estradas muito lisas e difíceis para sua máquina. Fazia ruídos extraordinários, como se estivesse rangendo dentes, e emitiu um vapor azul com um cheiro horrível. Numa curva onde deveriam ter parado, eles deslizaram e capotaram, rolando por um penhasco e caindo num córrego de uma altura talvez de dois homens.

– E morreram? – perguntou o sr. Burleigh, com o que pareceu ao sr. Barnstaple um toque de ansiedade na voz.

– Nenhum deles.

– Oh! – disse o sr. Burleigh. – Então, o que aconteceu?

– Um deles quebrou o braço e outro sofreu um corte feio no rosto. Os outros dois homens e a mulher não foram atingidos, exceto pelo susto e pelo choque. Quando nosso povo foi até eles, os quatro homens ergueram as mãos sobre as cabeças. Aparentemente, temiam serem mortos imediatamente e fizeram isso apelando por misericórdia.

– E o que vão fazer com eles?

– Estamos trazendo-os para cá. Achamos melhor manter todos os terráqueos juntos. No momento, não conseguimos imaginar o que deve ser feito com vocês. Queremos aprender com vocês e manter a amizade, se possível. Foi sugerido que vocês voltem ao seu mundo. No final, pode ser a melhor coisa a se fazer. Mas no momento não sabemos o suficiente para fazer isso com certeza. Arden e Greenlake, quando fizeram a tentativa de girar uma parte da nossa matéria através da dimensão F, acreditaram que a girariam num espaço vazio naquela dimensão. O fato de que vocês estavam lá e foram pegos em nosso universo é a coisa mais inesperada que aconteceu em Utopia em mil anos.


CAPÍTULO SETE
A VINDA DO GRUPO DE LORDE BARRALONGA

Parte 1

A conferência foi interrompida com esse anúncio, mas Lorde Barralonga e seu grupo não foram trazidos aos Jardins de Conferências até bem depois do escurecer. Nenhuma tentativa foi feita para restringir ou controlar os movimentos dos terráqueos. O sr. Burleigh caminhou pelo lago com Lady Stella e o psicólogo, cujo nome era Lion, fazendo e respondendo perguntas. O chofer do sr. Burleigh vagou desconsoladamente, mantendo-se ao alcance de seu patrão. O sr. Rupert Catskill pegou o sr. Mush pelo braço como que para dar instruções a ele.

O sr. Barnstaple queria andar sozinho para refletir e absorver as descobertas impressionantes daquela tarde e para se acostumar com a maravilha desse mundo tão belo e, agora no crepúsculo, tão misterioso também, com suas árvores e flores se tornando notas fracas e disformes de palidez e negritude, e com as formas claras e graciosas de seus prédios borrando-se numa indistinção crepuscular.

O caráter terráqueo de seus companheiros se interpunha entre ele e esse mundo, no qual, do contrário, ele poderia ter sido aceito e absorvido. Estava nele, mas apenas como um intruso estranho e discordante. No entanto, ele já o amava e o desejava e estava ansioso para fazer parte dele. Tinha uma sensação vaga, mas muito poderosa, de que, se ele pudesse se afastar de seus colegas, se de alguma forma pudesse descartar suas roupas terráqueas e tudo que o marcava como terráqueo e o ligava à Terra, ele se tornaria um nativo de Utopia, pelo próprio ato desse descarte; então, essa sensação atormentadora, essa estranheza perturbadora iria desaparecer de sua mente. Ele subitamente seria um utopiano por natureza e realidade, e seria a Terra que se tornaria um sonho incrível, um sonho que por fim desapareceria completamente de sua mente.

Porém, por algum tempo, a necessidade que o padre Amerton tinha de um ouvinte impedia esse distanciamento dos pensamentos e coisas terrenas. Ele se manteve perto do sr. Barnstaple e emitia um fluxo de perguntas e comentários que jogavam sobre essa cena utopiana o aspecto de alguma exposição em Earl’s Court que os dois visitavam e criticavam. Era evidentemente tão provisório, discutível e irreal para o sr. Barnstaple que ele sentia que não ficaria espantado se uma fenda na paisagem de repente deixasse entrar o estrondo da estação de trem de Earl’s Court ou um vislumbre da convencional torre gótica de São Barnabé no Oeste.

Inicialmente, a mente do padre Amerton ocupou-se principalmente com o fato de que no dia seguinte eles “cuidariam dele” graças à cena na conferência.

– Como eles vão cuidar de mim? – disse pela quarta vez.

– Perdão, como disse? – perguntou o sr. Barnstaple. Toda vez que o sr. Amerton começava a falar, o sr. Barnstaple dizia “Perdão, como disse?” para comunicar que ele estava interrompendo uma linha de raciocínio. Mas toda vez que o sr. Barnstaple dizia “Perdão, como disse?”, o padre Amerton apenas observava:

– O senhor precisa consultar alguém sobre sua audição – e então continuava com o que tinha a dizer. – Como vão cuidar de mim? – perguntava para o sr. Barnstaple no crepúsculo que os cercava. – Como vão cuidar de mim?

– Ah! Algum tipo de psicanálise ou algo assim – disse o sr. Barnstaple.

– É preciso dois para jogar esse jogo – disse o padre Amerton, mas, pareceu ao sr. Barnstaple, com um leve toque de alívio. – O que quer que eles me perguntem, o que quer que sugiram, eu não vou ceder, vou dar meu testemunho.

– Não tenho dúvida de que eles vão achar difícil contê-lo – disse o sr. Barnstaple com amargura.

Por um tempo, eles caminharam em silêncio entre os arbustos altos e perfumados, de flores brancas. Às vezes, o sr. Barnstaple acelerava ou diminuía o passo com a ideia de aumentar sua distância do padre Amerton, mas o padre Amerton respondia a esses esforços de maneira mecânica.

– Promiscuidade – ele recomeçou. – Que outra palavra eu poderia ter usado?

– Eu realmente peço perdão – disse o sr. Barnstaple.

– Que outra palavra eu poderia ter usado além de “promiscuidade”? O que mais se pode esperar, com gente correndo por aí nessa incrível falta de roupas, além da moral de uma jaula de macacos? Eles admitem que praticamente desconhecem nossa instituição do casamento!

– É um mundo diferente – disse o sr. Barnstaple, irritado. – Um mundo diferente.

– As Leis da Moralidade valem para qualquer mundo concebível.

– Mas, e num mundo em que as pessoas se multiplicam por fissão e não há sexo?

– A moralidade seria muito mais simples, mas seria a mesma moralidade.

Nesse momento, o sr. Barnstaple pediu perdão por não ouvir outra vez.

– Eu dizia que este é um mundo perdido.

– Não parece perdido – disse o sr. Barnstaple.

– Eles rejeitaram e esqueceram a Salvação.

Mas o sr. Barnstaple colocou as mãos nos bolsos e começou a assobiar a barcarola de “Os Contos de Hoffman”, bem suave para si mesmo. O padre Amerton nunca o deixaria em paz? Nada podia ser feito com o padre Amerton? Nos velhos espetáculos de Earl’s Court, costumava haver cestos de arame para papel, pontas de cigarro e lixo em geral. Se alguém ao menos pudesse jogar o padre Amerton num desses receptáculos!

– A salvação lhes foi oferecida e eles a rejeitaram e a esqueceram. E é por isso que fomos enviados para eles. Fomos enviados a eles para lembrá-los da Única Coisa que Importa, aquela Única Coisa Esquecida. Mais uma vez temos de erguer o símbolo de cura como Moisés ergueu no Deserto. Nossa missão não é fácil. Fomos enviados a esse Inferno de materialismo sensual...

– Oh, Deus! – disse o sr. Barnstaple, e voltou à barcarola... – Desculpe, como disse? – ele exclamou novamente.

– Onde está a Estrela Polar? O que aconteceu com a Grande Carruagem?

O sr. Barnstaple olhou para cima.

Ainda não havia pensado nas estrelas, e ele olhou, preparado para nesse novo universo ver as mais estranhas constelações. Mas, assim como a vida e o tamanho do planeta, elas estavam num paralelo próximo com as da Terra, e então ele contemplou sobre ele uma abóboda estrelada de formas familiares. E, assim como o mundo utopiano não era totalmente paralelo ao seu próprio universo, achou que essas constelações pareciam estar um pouco fora do padrão. Achou que Orion estava mais esparramada e com uma grande nébula desconhecida num canto; e era verdade, a Grande Carruagem estava achatada e apontava para um grande vazio no céu.

– A Estrela Polar desapareceu! As estrelas apontadoras, a Carruagem está torta! É simbólico – disse o padre Amerton.

Era óbvio que seria simbólico. O sr. Barnstaple percebeu que uma nova tempestade de eloquência do padre Amerton era iminente. Ele sentia que aquele incômodo devia ser aplacado a qualquer custo.

Parte 2

Na Terra o sr. Barnstaple havia sido uma vítima passiva de chatos de todos os tipos, tendo uma consideração delicada e dolorosa com as limitações que tornavam a pressão insensível deles possível. Mas o ar livre de Utopia já havia subido para sua cabeça e liberado iniciativas que sua atenção excessivamente deferente aos outros havia até então contido. Ele já havia aguentado demais o padre Amerton; era necessário desativar o padre, e agora ele tratou de fazê-lo de forma tão direta que surpreendeu a si próprio.

– Padre Amerton – disse ele –, tenho uma confissão a fazer ao senhor.

– Ah! – exclamou o padre Amerton. – Por favor, qualquer coisa.

– O senhor tem caminhado comigo e gritado em meus ouvidos até eu me sentir fortemente inclinado a matá-lo.

– Se o que eu disse calou fundo...

– Não calou fundo nada. Está sendo uma tagarelice cansativa, tola e ensurdecedora em meus ouvidos. Isso me extenuou de forma indescritível. Impede que eu me ocupe das coisas maravilhosas ao nosso redor. Entendo exatamente o que quer dizer quando fala que não há Estrela Polar aqui e que isso é simbólico. Antes de o senhor começar, aprecio o símbolo, ainda que seja um símbolo bem óbvio, fraco e impreciso. Mas o senhor é um desses espíritos obstinados que, apesar de todas as evidências, acreditam que os morros eternos ainda são eternos e que as estrelas fixas são fixas para sempre. Quero que entenda que não tenho solidariedade nenhuma com toda essa conversa. O senhor parece incorporar tudo o que há de errado, feio e impossível nos ensinamentos católicos. Concordo com esses utopianos de que há algo errado com sua mente em relação ao sexo, provavelmente um toque perverso devido a algo no início da vida, e por isso o senhor continua dizendo e insinuando que a vida sexual aqui é terrível e ultrajante. E sou igualmente hostil ao senhor, exasperado e aborrecido com o senhor quando fala de religião. O senhor torna a religião repulsiva, assim como torna o sexo repulsivo. O senhor é um padre sujo. O que chama de cristianismo é uma superstição sombria e feia, uma mera desculpa para maldade e perseguição. É um ultraje para com Cristo. Se o senhor é cristão, então eu me declaro apaixonadamente não cristão. Mas há outros significados de cristianismo diferentes do que o senhor lhe atribui, e em outro sentido essa Utopia aqui é cristã além de todos os sonhos. Completamente além de sua compreensão. Nós chegamos a este mundo glorioso que, comparado ao nosso mundo, é como uma taça de cristal comparada a uma lata amassada, e o senhor tem o atrevimento insuportável de dizer que fomos enviados como missionários para ensiná-los... Deus sabe o quê!

– Deus sabe, sim, o quê – disse o padre Amerton meio chocado, mas se recuperando impetuosamente.

– Oh! – exclamou o sr. Barnstaple, e por um momento ficou sem fala.

– Escute-me, meu amigo – disse o padre Amerton, pegando-o pela manga.

– Nem morto! – exclamou o sr. Barnstaple, recuando. – Veja! Além deste panorama, lá longe, na margem do lago, aquelas figuras escuras são o sr. Burleigh, o sr. Mush e Lady Stella. Eles o trouxeram aqui. Eles pertencem ao seu grupo e o senhor pertence a eles. Se não quisessem sua companhia, o senhor não estaria no carro deles. Vá para eles. Não quero mais ficar com o senhor. Eu o recuso e rejeito. Esse é o seu caminho. Este, por esse prediozinho, é o meu. Não me siga, ou vou botar as mãos no senhor e fazer com que os utopianos interfiram... Perdoe minha franqueza, padre Amerton, mas afaste-se de mim! Afaste-se de mim!

O sr. Barnstaple se virou e, vendo que o padre Amerton permanecia hesitando em seguir seu rumo, correu dele.

Fugiu por um beco por trás de arbustos altos, virou bruscamente para a direita e então para a esquerda, passou sobre uma ponte alta que se bifurcava diante de uma cachoeira que borrifou água em seu rosto, desviou de dois casais de namorados que sussurravam suavemente no escuro, correu em zigue-zague por um gramado salpicado de flores e finalmente se jogou sem fôlego nos degraus que levavam a um terraço que dava para o lago e as montanhas e que, na luz fraca, parecia ser adornado por figuras de pedra de animais e homens vigilantes.

– Misericordiosas estrelas! – exclamou o sr. Barnstaple. – Finalmente estou só.

Ele se sentou nesses degraus por um longo tempo com os olhos na cena diante dele, absorvendo a satisfatória percepção de que, por um breve intervalo, pelo menos, sem presença terrena para intervir, ele e Utopia estavam face a face.

Parte 3

Ele não podia chamar aquele mundo do mundo dos seus sonhos porque nunca havia ousado sonhar com um mundo tão profundamente moldado segundo os desejos e imaginações de seu coração. Mas com certeza era aquele mundo, ou um mundo muito parecido com ele, que residia nas profundezas dos pensamentos e sonhos de milhares de homens e mulheres sãos e atormentados no mundo em desordem do qual ele viera. Não era um mundo de paz inócua, não era um mundo dourado, decadente e indulgente, como o sr. Catskill tentou imaginar; era um mundo, o sr. Barnstaple percebia, intensamente combativo, conquistando e a conquistar, prevalecendo sobre a obstinação da força e da matéria, sobre a separação inerte do espaço vazio e todos os mistérios antagonistas do ser.

No passado em Utopia, obscurecida pelos feitos superficiais de estadistas, como Burleigh e Catskill, e a competição de negociantes e exploradores tão vis e vulgares, como seus colegas terrenos, o trabalho de pensadores e professores silenciosos e pacientes prosseguiu e os alicerces que sustentaram essas atividades serenas e intensas foram erguidos. Quão poucos desses pioneiros chegaram a sentir mais do que um transitório brilho da beleza íntegra do mundo que suas vidas tornaram possível!

E, no entanto, mesmo no ódio, turbulência e angústia dos Dias de Confusão, devia ter havido o suficiente das maravilhosas e gloriosas possibilidades da vida. Sobre as mais imundas favelas, o ocaso apelava para a imaginação do homem, e das cordilheiras, através de grandes vales, de penhascos e encostas e dos incertos e terríveis esplendores do mar, os homens devem ter vislumbrado a concebível e alcançável magnificência do ser. Cada pétala de flor, cada folha iluminada pelo sol, a vitalidade das coisas jovens, os momentos felizes da mente humana transcendendo a si mesma na arte, tudo isso deve ter sido material para esperança, incentivo ao esforço. E agora, finalmente, este mundo!

O sr. Barnstaple levantou as mãos como alguém que venera a amistosa infinidade de estrelas sobre ele.

– Eu vi – ele sussurrou. – Eu vi.

Pequenas luzes e suaves brilhos apareciam aqui e ali sobre aquele grande parque de prédios delicados como flores e jardins que desciam em direção ao lago. Uma aeronave circulando, uma estrela, zumbia suavemente no alto.

Uma garota esguia passou por ele descendo os degraus e fez uma pausa ao avistá-lo.

– Você é um dos terráqueos? – veio a pergunta, e um raio de luz suave brilhou momentaneamente sobre o sr. Barnstaple do bracelete no braço dela.

– Cheguei hoje – disse o sr. Barnstaple, olhando-a.

– Você é o homem que veio sozinho naquela pequena máquina de lata, com colchões de borracha sobre as rodas, bem enferrujada debaixo e pintada de amarelo. Eu estava dando uma olhada nela.

– É um carrinho nada mau – disse o sr. Barnstaple.

– No começo, achamos que o padre tinha vindo com você.

– Ele não é meu amigo.

– Havia padres assim em Utopia muitos anos atrás. Eles causaram muito mal entre o povo.

– Ele estava com o outro grupo – disse o sr. Barnstaple. – Para a festa de fim de semana deles, acho, um grande erro.

Ela se sentou um degrau ou dois acima dele.

– É maravilhoso que você tenha vindo aqui de seu mundo para o nosso. Acha nosso mundo muito maravilhoso? Acho que muitas coisas que parecem comuns para mim, porque nasci aqui, devam parecer maravilhosas para você.

– Você não é muito velha?

– Tenho onze anos. Estou aprendendo a história das Eras de Confusão, e eles dizem que seu mundo ainda está numa Era de Confusão. É como se vocês tivessem vindo para nós do passado, da história. Eu estava na Conferência e observei seu rosto. Você ama este nosso mundo – pelo menos, ama muito mais do que seu povo.

– Quero viver o resto da minha vida aqui.

– Eu me pergunto se isso é possível.

– Por que não seria possível? Será mais fácil do que me mandar de volta. Eu não atrapalharei muito. Devo permanecer aqui apenas uns vinte ou trinta anos no máximo, e vou aprender tudo o que puder e fazer tudo o que mandarem.

– Mas não tem trabalho a fazer em seu próprio mundo?

O sr. Barnstaple não respondeu a isso. Pareceu não ouvir. Foi a menina quem acabou quebrando o silêncio.

– Dizem que quando nós, utopianos, somos jovens, antes de nossas mentes e personalidades estarem totalmente formadas e amadurecidas, somos muito parecidos com os homens e mulheres da Era de Confusão. Somos mais egoístas, eles nos dizem; a vida diante de nós ainda é tão desconhecida que somos aventureiros e românticos. Acho que ainda sou egoísta... e aventureira. E ainda me parece que, apesar das muitas coisas terríveis e medonhas, muito devia ser empolgante e desejável no passado, que era tão parecido com seu presente. Como deve ter sido ser um general entrando numa cidade conquistada? Ou um príncipe sendo coroado? Ou ser rico e poder impressionar as pessoas com atos de poder e benevolência? Ou ser um mártir levado à morte por alguma causa esplêndida e incompreendida?

– Essas coisas soam melhor em histórias e na História do que na realidade – disse o sr. Barnstaple, depois da devida consideração. – Ouviu o sr. Rupert Catskill, o último dos terráqueos a fazer um discurso?

– Ele tinha um pensamento romântico, mas não parecia romântico.

– Ele viveu de forma muito romântica. Lutou bravamente em guerras. Foi prisioneiro e escapou milagrosamente da prisão. Sua imaginação violenta causou a morte de milhares de pessoas. E logo vamos ver outro aventureiro romântico nesse Lorde Barralonga que estão trazendo aqui. É imensamente rico e tenta impressionar as pessoas com sua riqueza, assim como você sonhou em impressionar as pessoas.

– Não estão impressionadas?

– Romance não é realidade – disse o sr. Barnstaple. – Ele é um de vários ricos corruptos e decadentes que são um fardo para si mesmos e um incômodo intolerável para o resto de nosso mundo. Querem fazer coisas vulgares e espalhafatosas. Esse homem Barralonga era assistente de um fotógrafo e meio que um ator quando certa invenção chamada cinema veio ao nosso mundo. Ele se tornou um grande investidor no negócio de exibir esses filmes, em parte por acidente, em parte pelas trapaças sem escrúpulos de vários inventores. Então ele se lançou em especulações no transporte marinho e num negócio que temos em nosso mundo de carne congelada trazida de grandes distâncias. Tornou a comida cara para muita gente e impossível para outras, e assim ficou rico. Porque em nosso mundo os homens enriquecem mais atravancando do que ajudando. E, tendo se tornado ignobilmente rico, certos políticos, para os quais ele prestou alguns serviços oportunos, enobreceram-no com o título de Lorde. Entende o que estou dizendo? A sua Era de Confusão era tão parecida com a nossa? Você não sabia que era tão feia. Desculpe-me se eu a desiludo sobre a Era de Confusão e suas possibilidades românticas. Mas acabei de sair da poeira, da desordem e do barulho de sua indisciplina, de limitações, crueldades e sofrimentos, da exaustão na qual a esperança morre... Talvez, se meu mundo a atrai, você possa ainda ter uma oportunidade de se aventurar saindo daqui e entrando em suas desordens... Isso seria uma aventura de fato... Quem sabe o que pode acontecer entre nossos mundos? Mas não vai gostar de lá, temo eu. Não pode imaginar quão sujo nosso mundo é... Sujeira e doenças, isso está à margem de qualquer romance...

Um silêncio se estabeleceu entre eles; ele seguiu seus próprios pensamentos e a menina se sentou e refletiu sobre ele.

Depois de um tempo, ele falou novamente:

– Devo contar no que eu pensava quando você falou comigo?

– Claro!

– Seu mundo é a consumação de um milhão de antigos sonhos. É maravilhoso! É uma maravilha, sublime como o céu. Mas é uma grande dor para mim que dois queridos amigos meus não possam estar aqui comigo para ver o que estou vendo. É estranha a força com a qual eu penso neles. Um passou agora para outros universos, infelizmente, mas o outro ainda está no meu mundo. Você é uma estudante, minha querida. Todos no seu mundo são estudantes, suponho, mas em nosso mundo os estudantes são uma classe à parte. Nós três éramos muitos felizes juntos porque éramos estudantes e ainda não pegos na engrenagem do trabalho sem sentido, e não éramos menos felizes por sermos miseravelmente pobres e com frequência passarmos fome juntos. Costumávamos conversar e debater uns com os outros e, na nossa sociedade de debates estudantis, discutir as desordens de nosso mundo e como algum dia elas poderiam ser vencidas. Houve na sua Era de Confusão esse tipo de vida estudantil ávida, esperançosa, assolada pela pobreza?

– Continue – disse a menina, com os olhos atentos no vago perfil dele. – Nos antigos romances, li sobre esse mundo estudantil faminto e sonhador.

– Nós três concordávamos que a necessidade suprema de nosso mundo era a educação. Concordávamos que era o serviço mais elevado que podíamos prestar. Todos tratamos disso de diferentes maneiras; eu fui o menos útil dos três. Meus amigos e eu nos afastamos um pouco. Eles editavam um grande periódico mensal que ajudava a manter unido o mundo da ciência, e meu amigo, servindo uma editora cuidadosa e rigorosa, editou livros escolares para eles, dirigia um jornal educativo e também inspecionava escolas para nossa universidade. Era muito desatento com pagamentos e lucros para viver minimamente confortável, apesar de essas editoras lucrarem muito com o trabalho dele; sua vida toda foi um serviço contínuo em prol do ensino; não chegou a tirar um mês de férias em toda sua vida. Enquanto viveu, não dei muita importância ao trabalho que ele fazia, mas, desde que morreu, ouvi os professores cujas escolas ele inspecionou, e escritores que ele aconselhou, falarem da incessante e alta qualidade de seu trabalho, e da paciência e solidariedade no que ele fazia. É sobre vidas como a dele que essa Utopia na qual sua doce vida começa é fundada; sobre tais vidas nosso mundo na Terra construirá sua Utopia. Mas a vida desse meu amigo terminou abruptamente, de uma forma que partiu meu coração. Ele trabalhou duro demais, por tempo demais, durante uma crise na qual não era conveniente que ele tirasse férias. Seu sistema nervoso teve um colapso de uma hora para outra; de maneira chocante, sua mente cedeu, ele passou para uma fase de melancolia aguda e... morreu. Porque é verdade, a velha Natureza não tem nem justiça nem piedade. Isso aconteceu há poucas semanas. Aquele meu outro velho amigo e eu, com a esposa dele, que foi sua ajudante incansável, fomos os mais enlutados do velório. Hoje, a memória disso volta a mim com uma vivacidade extraordinária. Não sei como vocês lidam com os mortos aqui, mas no nosso mundo eles são, em sua maioria, enterrados na terra.

– Somos cremados – disse a menina.

– Aqueles de mente liberal também são cremados em nosso mundo. Nosso amigo foi cremado, e nós todos participamos de uma cerimônia de acordo com os ritos de nossa antiga religião, na qual não mais acreditávamos, e vimos seu caixão, coberto com coroas de flores, deslizar diante de nós, para fora de nossa vista, pelos portões que levavam à fornalha do crematório e, enquanto seguia, levando comigo tanto da minha juventude, vi que meu outro querido amigo soluçava, e eu também estava devastado a ponto de chorar pensando que uma vida tão valiosa, dedicada e trabalhadora terminaria, como parecia, de forma tão miserável e ingrata. O padre leu um longo e controvertido discurso de um teólogo chamado Paulo, cheio de maus argumentos por analogia e asserções fracas. Eu queria que, em vez das ideias desse engenhoso ultrapassado, nós pudéssemos ter um discurso sobre a real nobreza de nosso amigo, sobre o orgulho e a intensidade de seu trabalho e sobre seu desprezo por atos mercenários. Durante toda a vida ele trabalhou com dedicação extrema por um mundo como este e, no entanto, duvido que tenha tido alguma realização mais clara e mais nobre da humanidade do que a de que sua vida de esforços e o esforço de outras vidas como a dele estavam se tornando uma certeza em dias futuros. Ele vivia de fé. Ele vivia demais de fé. Não houve sol o suficiente em sua vida. Se eu pudesse tê-lo aqui agora, e aquele outro querido amigo que chorou por ele tão amargamente; se eu pudesse tê-los ambos aqui; se eu pudesse dar o meu lugar aqui a eles, para que pudessem ver, como eu vejo, a real grandeza de suas vidas refletidas nessas grandiosas consequências de vidas como as deles, então... então eu poderia aproveitar de fato Utopia... Mas agora eu sinto como se tivesse pegado as economias de meu amigo e as estivesse gastando comigo mesmo...

O sr. Barnstaple de repente se lembrou da juventude de sua ouvinte.

– Perdoe-me, querida criança, por me deixar levar dessa forma. Mas sua voz era bondosa.

A resposta da menina foi se inclinar e tocar a mão estendida dele com seus lábios suaves.

Então, de repente, ela se ergueu de um salto.

– Olhe aquela luz – ela disse – entre as estrelas!

O sr. Barnstaple observou ao lado dela.

– É a aeronave trazendo o Lorde Barralonga e seu grupo; Lorde Barralonga, que matou um homem hoje! Ele é um homem muito grande e forte... ingovernável e maravilhoso?

O sr. Barnstaple, tomado por uma súbita dúvida, olhou abruptamente para o doce rosto erguido para ele.

– Eu nunca o vi. Mas creio que seja um homem relativamente jovem, careca e baixinho, que sofre gravemente de problemas no fígado e rins. Isso impediu a dissipação de suas energias em esportes e prazeres da juventude e permitiu que se concentrasse na aquisição de propriedades. Assim ele foi capaz de comprar esse título de nobreza que toca sua imaginação. Venha comigo vê-lo.

A menina ficou parada e fitou os olhos dele. Tinha onze anos de idade e era da altura dele.

– Mas não havia romance nenhum no passado?

– Apenas nos corações dos jovens. E morreu.

– Mas não há romance?

– Romance infinito, e tudo por vir. Virá para você.

Parte 4

A vinda de Lorde Barralonga e seu grupo foi algo como um anticlímax no dia maravilhoso do sr. Barnstaple. Estava cansado e, de forma irracional, ressentia a invasão de Utopia por essa gente.

Os dois grupos de terráqueos foram reunidos num hall bem iluminado perto do gramado onde a aeronave de Barralonga havia pousado. Os recém-chegados vieram juntos num grupo, piscando, cansados da viagem e aborrecidos. Mas era evidente que ficaram muito aliviados em encontrar outros terráqueos naquela experiência que, para eles, ainda era intensamente intrigante – pois não haviam tido nada comparado com a calma e lúcida discussão no Local de Conferências. A chegada àquele estranho mundo ainda era um enigma incompreensível para eles.

Lorde Barralonga era o dono do rosto de gnomo que espiara o sr. Barnstaple quando o grande carro cinza passou por ele em Maidenhead Road. Seu crânio era muito baixo, amplamente acima das sobrancelhas, lembrando ao sr. Barnstaple a tampa de uma garrafa de vidro. Parecia cansado e com calor; estava consideravelmente desgrenhado, como se tivesse lutado, e um braço estava numa tipoia; seus pequenos olhos castanhos estavam alertas e receosos como os de um moleque levado pego por um policial. Bem perto dele, como um espírito familiar, estava um chofer baixo, quase como um jóquei, que ele chamava de “Ridley”. O rosto de Ridley também expressava a determinação severa de um homem numa posição difícil não querendo se entregar de maneira nenhuma. Sua bochecha e orelha esquerdas haviam sido cortadas na batida do automóvel e estavam generosamente cobertas de curativos. A srta. Greeta Grey, a dama do grupo, era uma beldade loira usando um terninho de flanela branca feito sob medida. Estava extraordinariamente serena, apesar das circunstâncias na qual se encontrava; era como se não percebesse nada da estranheza deles. Ela se portava com a altivez habitual de uma mulher bonita, quase profissionalmente exposta ao risco de investidas impróprias. Em qualquer lugar.

As outras duas pessoas do grupo eram um americano de rosto cinza, vestido de cinza, também muito receoso, que era Hunker, o rei do cinema, como o sr. Barnstaple ficou sabendo pelo sr. Mush, e um francês de aspecto amarrotado – um homem moreno, elegantemente vestido, com um domínio imperfeito do inglês, que mais parecia ter caído no grupo de Lorde Barralonga do que pertencer a ele propriamente. Saltou à mente do sr. Barnstaple a conclusão, e nada ocorreu depois para mudar sua opinião de que algum interesse no cinema havia trazido aquele cavalheiro ao alcance da hospitalidade do Lorde Barralonga e que ele havia sido apanhado, como um estrangeiro podia tão facilmente ser apanhado, na obrigação de fazer uma expedição de fim de semana totalmente incompatível com ele.

Enquanto Lorde Barralonga e o sr. Hunker se adiantaram para cumprimentar o sr. Burleigh e o sr. Catskill, o francês se dirigiu ao sr. Barnstaple perguntando se ele falava francês.

– Não consigo entender – disse ele. – Tínhamos de ir para Viltshire... Wiltshire, e então aconteceu uma coisa terrível após a outra. Aonde chegamos e que tipo de gente é essa que fala o mais excelente francês? Isso é uma piada do Lorde Barralonga, ou um sonho, ou o que aconteceu conosco?

O sr. Barnstaple tentou dar alguma explicação.

– Outra dimensão – disse o francês –, outro mundo. Muito bem. Mas tenho meus negócios para cuidar em Londres. Não precisava ser levado dessa forma de volta para a França, algum tipo de França, alguma outra França em algum outro mundo. Essa piada foi longe demais.

O sr. Barnstaple tentou explicar melhor. Estava claro pelo rosto intrigado do interlocutor que as frases que ele usava eram difíceis demais. Ele se virou desamparado para Lady Stella e a encontrou pronta para assumir a tarefa.

– Essa moça – disse ele – vai poder esclarecer as coisas para o senhor. Lady Stella, este é o monsieur...

– Emile Dupont – disse o francês com uma reverência. – Sou o que vocês chamam de jornalista e publicitário. Estou interessado na indústria cinematográfica do ponto de vista da educação e propaganda. É por isso que estou aqui com Sua Senhoria Barralonga.

Conversar em francês era a maior conquista de Lady Stella. Ela entregou-se ao encargo prontamente. Assumiu a elucidação do sr. Dupont e apenas a interrompeu para contar à srta. Greeta Grey como era agradável era ter outra mulher com ela naquele estranho mundo.

Aliviado do sr. Dupont, o sr. Barnstaple recuou e inspecionou o pequeno grupo de terráqueos no centro do hall e o círculo de utopianos altos e observadores ao redor deles e bastante afastados deles. O sr. Burleigh era cordial de uma forma distante com o Lorde Barralonga, e o sr. Hunker dizia que grande prazer era para ele encontrar o “principal estadista da Bretanha”. O sr. Catskill postou-se da maneira mais amistosa ao lado de Barralonga; eles se conheciam bem; e o padre Amerton trocou comentários com o sr. Mush. Ridley e Penk, após alguns momentos de consideração austera, separaram-se para discutir as tecnicalidades da experiência do dia em tons velados. Ninguém prestou atenção no sr. Barnstaple.

Era como um encontro numa estação de trem. Era como uma recepção. Era totalmente incrível e absolutamente trivial. Ele estava receoso. Estava saturado e exausto de pensamentos.

– Ah, vou para a cama! – ele bocejou de repente. – Vou para minha caminha.

Ele abriu caminho pelos utopianos de olhos amistosos até a calma luz das estrelas. Balançou a cabeça para a estranha nébula no canto de Orion como um pai cansado balançaria a cabeça para um filho impertinente. Reconsideraria de manhã. Cambaleou sonolento pelos jardins para seu retiro particular.

Tirou as roupas e foi dormir tão imediata e profundamente quanto uma criança cansada.


CAPÍTULO OITO
MANHÃ CEDO EM UTOPIA

Parte 1

O sr. Barnstaple acordou lentamente de um sono profundo.

Tinha uma vaga sensação de um sonho delicioso se esvaindo dele. Tentou manter o sonho e não abrir os olhos. Era sobre um grandioso mundo com gente bonita, que havia se livrado de milhares de problemas terrenos. Mas ele se dissolveu e desapareceu de sua mente. Não era frequente naquele tempo os sonhos retornarem ao sr. Barnstaple. Ele continuou deitado, imóvel, os olhos fechados, despertando com relutância para os afazeres diários.

Os receios e preocupações dos últimos quinze dias voltaram a dominá-lo. Conseguiria tirar férias sozinho? Então, lembrou-se de que já tinha colocado sua valise no Perigo Amarelo. Mas com certeza não foi na noite passada; fora na noite anterior, e ele dera partida... lembrou-se, então, de dar partida e a emoção de passar pelo portão antes de a sra. Barnstaple suspeitar de qualquer coisa. Abriu os olhos e os fixou num teto branco, tentando se lembrar da jornada. Lembrou-se de virar na Camberwell New Road e da empolgação da manhã. Da ponte Vauxhall e do terrível emaranhado do trânsito em Hyde Park Corner. Ele sempre dizia que no oeste de Londres era muito mais difícil para dirigir do que no leste. Então... ele foi para Uxbridge? Não. Ele se lembrou da estrada para Slough, então veio um branco em sua mente.

Que teto bom era aquele! Nem uma mancha ou rachadura!

Mas como ele havia passado o resto do dia? Devia ter ido a algum lugar, porque lá estava ele, numa cama bastante confortável, uma cama excelente. Com um tordo cantando. Ele sempre dissera que um bom tordo superava de longe um rouxinol, mas aquele tordo era um Caruso perfeito. E outro respondia! Em julho! Pangbourne e Caversham eram lugares maravilhosos para rouxinóis. Em junho. Mas era julho... e tordos... Por esses pensamentos fantasmas sonolentos veio a figura do sr. Rupert Catskill, de mãos na cintura, rosto e cabeça projetados para frente, falando, dizendo coisas impressionantes. Para uma figura nua, sentada com o rosto grave e atento. E outras figuras. Uma com o da Sibila de Delfos. O sr. Barnstaple começou a se lembrar de que, de alguma maneira, ele havia se misturado com um grupo de fim de semana em Taplow Court. Então, aquele discurso fora dado em Taplow Court? Em Taplow Court se usam roupas. Mas talvez a aristocracia, quando isolada em sua privacidade...?

Utopia? Mas era possível?

O sr. Barnstaple se sentou na cama num estado de profundo assombro.

– Impossível! – ele disse.

Estava deitado numa pequena galeria parcialmente aberta para o céu. Entre os finos pilares de vidro soprado, viu uma cadeia de montanhas cobertas de neve e, no primeiro plano, um grande conjunto de estacas altas exibindo flores de um vermelho vivo. O pássaro ainda cantava, um tordo glorioso num mundo glorioso. Agora ele se lembrava de tudo. Agora tudo estava claro. A derrapada repentina do carro, o som como de uma corda de violino partindo e... Utopia! Agora lhe voltava tudo, da visão da doce Greenlake morta até a vinda do Lorde Barralonga sob estranhas estrelas desconhecidas. Não era sonho. Olhou para sua mão sobre a coberta tão delicada. Sentiu o queixo áspero. Era um mundo real o suficiente para se barbear e certamente pronto para o café da manhã. Muito pronto, porque havia perdido o jantar. E, como uma resposta a seus pensamentos, uma menina sorridente apareceu, subindo os degraus até onde ele dormia e trazendo uma pequena bandeja. Afinal, havia muito mérito no sr. Burleigh. Graças a sua rápida habilidade política é que o sr. Barnstaple recebia sua xícara de chá.

– Bom dia – disse o sr. Barnstaple.

– Por que não? – disse a jovem utopiana, e serviu o chá, sorriu para ele maternalmente e partiu.

– Por que não um bom dia, creio eu – disse o sr. Barnstaple, e refletiu por um momento, o queixo sobre os joelhos, e então voltou a atenção ao pão com manteiga e chá.

Parte 2

O pequeno vestiário onde ele encontrou as roupas, assim como as havia deixado na noite anterior, era ao mesmo tempo extraordinariamente simples e extraordinariamente interessante para o sr. Barnstaple. Circulou por ele cantarolando enquanto o examinava.

A banheira era muito mais rasa do que uma banheira normal da Terra; aparentemente, os utopianos não costumavam se deitar e ficar de molho. E as formas de tudo eram diferentes, mais simples e mais graciosas. Na Terra, ele considerava que a arte era, em grande parte, engenho. O artista tinha uma seleção limitada de materiais duros e certas necessidades, e seu trabalho era uma sábia conciliação da dureza, da necessidade e da idiossincrasia da substância às pré-concepções estéticas da mente humana. Que maravilha, por exemplo, era o carpinteiro terreno lidando sabiamente com o grão e a textura característicos de uma madeira ou outra. Mas aqui o artista tinha um controle ilimitado do material, e esse elemento de engenhosa adaptação havia saído de seu trabalho. Seus dados eram a mente e o corpo humanos. Tudo naquele quartinho era perfeitamente conveniente, sem obstruções, e difícil de ser mal utilizado. Se você espirrasse água demais, uma inteligente borda externa resolvia as coisas.

Numa bandeja ao lado da banheira havia uma esponja grande e bonita. Então ou os utopianos ainda colhiam esponjas no mar ou as cultivavam ou as treinavam (quem saberia dizer?) a nascer por livre vontade.

Enquanto ele arrumava suas coisas para o banho, um copo foi empurrado de uma prateleira de vidro, caindo no chão sem quebrar. Com espírito investigativo, o sr. Barnstaple o derrubou novamente, e não quebrou.

Inicialmente, não conseguiu encontrar torneiras, apesar de haver uma grande pia além da banheira. Então, percebeu vários botões nas paredes, com marcas escuras que poderiam ser a escrita utopiana. Ele experimentou. Viu água muito quente e depois água muito fria enchendo a banheira, uma fonte de água quente provavelmente com sabão e outros fluidos – um com aroma de pinho e outro com um leve odor de cloro. Os caracteres utopianos naqueles botões o deixaram intrigado por um tempo; era a primeira escrita que ele via; pareciam ser palavras, mas, se representavam sons ou eram hieróglifos extremamente simplificados, ele não podia determinar. Então, sua mente tangenciou para outra direção, porque o único metal aparente naquele vestiário era ouro. Notou que havia uma quantidade extraordinária de ouro no cômodo. Estava montado e incrustado em ouro. As suaves linhas amarelas reluziam e brilhavam. O ouro era, evidentemente, barato em Utopia. Talvez eles soubessem como fazê-lo.

Ele tratou de se ocupar de sua toalete. Não havia espelho no cômodo, mas, quando testou o que achou ser o puxador da porta de um armário, acabou abrindo um espelho triplo de corpo inteiro. Mais tarde, ele descobriria que não havia espelhos à mostra em Utopia; aprenderia que os utopianos achavam indecente serem lembrados de si mesmos daquele modo. O método utopiano era de se examinar, ver se estava tudo certo, e depois esquecer disso pelo resto do dia. Examinou a si mesmo, de pijama e barba por fazer, com extremo desdém. Por que cidadãos respeitáveis escolhem pijamas de listras rosas tão feios? Quando tirou sua lixa de unha, escova de dente, pincel de barbear e sua luva de banho, pareciam ser de um material rude e vulgar. Sua escova de dente era um instrumento particularmente ignóbil. Desejou ter comprado uma nova na drogaria perto da Victoria Station.

E que coisas esquisitas e horrorosas eram suas roupas!

Teve a ideia fantástica de adotar o padrão utopiano de vestimenta, mas refletir por um momento diante do espelho o conteve. Então se lembrou de que havia colocado na mala uma camisa polo e calça de flanela. E se ele usasse aquilo, sem pino no colarinho e gravata, e saísse descalço?

Examinou seus pés. Para os padrões de pés na Terra, não eram feios. Mas na Terra haviam sido desperdiçados.

Parte 3

Um sr. Barnstaple particularmente limpo e radiante, vestido de branco, com pescoço e pés à mostra, emergiu no amanhecer utopiano. Ele sorriu, espreguiçou os braços e respirou fundo o ar doce. Então, de repente seu rosto se tornou duro e resoluto.

De outra casinha, a menos de duzentos metros dali, o padre Amerton saía. Intuitivamente, o sr. Barnstaple percebeu que queria ou perdoar ou ser perdoado pela discussão da noite anterior. Seria uma questão de acaso se ele escolheria o papel de ofensor ou de vítima; o que estava certo é que ele jogaria uma enfadonha bagunça emocional de uma relação pessoal sobre o cenário luminoso e cristalino. Um pouco para a direita do sr. Barnstaple, diante dele, e havia degraus amplos que levavam ao lago. Três passadas e ele desceu os degraus, dois de cada vez. Podia ter sido sua imaginação frenética, mas pareceu-lhe ouvir a voz do padre Amerton – “Sr. Barn...staple” – perseguindo-o.

O sr. Barnstaple acelerou e cruzou uma ponte sobre uma vala de avalanche, uma ponte com enorme alvenaria nos fundos e no telhado e com delicados pilares de vidro prismático em direção ao lago. A luz do sol entrelaçada a esses pilares espalhava borrões de luz vermelha, azul e dourada. Então, num canto gramado, com alegres gencianas azuis, ele escapou por pouco de uma trombada com o sr. Rupert Catskill.

O sr. Catskill usava o mesmo traje do dia anterior, exceto pela cartola cinza. Caminhava com as mãos cruzadas atrás de si.

– Olá! – disse ele. – Qual é a pressa? Parece que somos as primeiras pessoas acordadas.

– Vi o padre Amerton.

– Isso explica tudo. Ficou com medo de ficar preso num sermão, oração matinal, ou como quer que ele chame. Sábio da sua parte correr. Ele rezará pelo grupo todo. Eu também.

Ele não esperou por nenhum encorajamento do sr. Barnstaple, mas seguiu falando.

– Dormiu bem? O que achou da resposta do velho ao meu discurso, hein? Clichês evasivos. Na dúvida, culpe o advogado de acusação. Não concordamos com ele porque temos mau coração.

– De que velho fala?

– Do digníssimo cavalheiro que falou depois de mim.

– Urthred! Mas ele não tem nem quarenta.

– Tem setenta e três. Ele nos disse depois. Eles têm vida longa aqui, é algo demorado. Nossas vidas são uma febre agitada e espasmódica do ponto de vista deles. Mas como Tennyson disse: “Melhor cinquenta anos de Europa do que um ciclo de Catai”. Hum? Ele fugiu dos meus argumentos. Esta é a Terra de Lótus, a Terra do Ocaso; não nos agradecerão por perturbar seu sono.

– Duvido que seja um sono.

– Talvez o bichinho do socialismo tenha mordido o senhor também. Sim, vejo que mordeu! Acredite, essa é a demonstração de decadência mais completa que seria possível imaginar. Completa. E perturbaremos seu sono, não duvide. Você verá, a natureza está do nosso lado, de uma forma que ninguém pensou ainda.

– Mas não vejo decadência – disse o sr. Barnstaple.

– Cego é quem não quer ver. Está em todo lugar. A grande pseudossaúde deles. Como gado engordado. E o tratamento que deram a Barralonga. Eles não sabem como tratá-lo. Nem sequer o prenderam. Não prendem ninguém há mil anos. Ele passeia pela terra deles, matando, destruindo, assustando e perturbando, e eles ficam embasbacados, senhor, simplesmente embasbacados. É como um cão furioso correndo num mundo cheio de ovelhas. Se não tivesse capotado, creio que estaria agora comemorando, bufando e correndo por aí, matando gente. Perderam o instinto de defesa social.

– Eu me pergunto se é assim.

– Uma ótima atitude mental, se usada com moderação. Mas quando parar de se maravilhar, começará a ver que estou certo. Hum? Ah! Lá no terraço! Não é o Lorde Barralonga e seu amigo francês? É, sim. Respirando o ar da manhã. Com sua permissão, acho que vou ter uma palavrinha com eles. De que lado o senhor disse que o padre Amerton estava? Não quero perturbar sua devoção. Por ali? Então vou pela direita...

Ele lançou um esgar amável sobre o ombro.

Parte 4

O sr. Barnstaple encontrou dois jardineiros utopianos. Tinham dois carrinhos de mão, prateados leves, e estavam cortando madeira velha e partes murchas de uma fileira de arbustos que se estendia por uma protuberância irregular de pedra e transbordava de rosas carmim e vermelho vivo. Esses jardineiros usavam grandes luvas de couro e aventais de pele curtida e carregavam ganchos e facas.

O sr. Barnstaple nunca havia visto rosas como as de que eles cuidavam ali; sua fragrância enchia o ar. Ele não sabia que rosas duplas podiam nascer nas montanhas; vira na Suíça exemplares únicos de um vermelho vivo, mas não monstros de pétalas grandes como aquelas. Ofuscavam suas folhas. Seus caules eram longos e espinhosos, marcados de vermelho, que se torciam amplamente e subiam pelas rochas sobre as quais cresciam. Suas grandes pétalas caíam como neve vermelha, como mariposas e sangue sobre o solo suave que protegiam entre as rochas marrons.

– Vocês são os primeiros utopianos que eu vejo trabalhando – disse ele.

– Esse não é o nosso trabalho – sorriu o mais próximo dos dois, um jovem loiro, sardento e de olhos azuis. – Mas, como somos a favor dessas rosas, temos de mantê-las em ordem.

– São suas rosas?

– Muita gente acha que essas rosas duplas da montanha dão muito trabalho e são um incômodo, com seus espinhos e galhos extensos, e muitos acham que só as rosas únicas devem ser cultivadas nesses locais altos, e que esse adorável tipo deveria ser deixado para morrer. Você é a favor das rosas?

– Rosas como essas? – disse o sr. Barnstaple. – Completamente.

– Ótimo! Então apenas me traga meu carrinho mais próximo para essas podas. Somos responsáveis pelo bom comportamento desses arbustos, descendo lá, quase até a água.

– E precisam cuidar delas vocês mesmos?

– Quem mais?

– Mas não poderiam pagar alguém para cuidar para vocês?

– Oh, velha relíquia do antigo passado! – o jovem respondeu. – Oh, fóssil ignorante de um universo bárbaro! Não percebe que não há classe trabalhadora em Utopia? Acabou uns mil e quinhentos anos trás. A escravidão remunerada, a exploração e tudo o mais acabaram. Nós lemos sobre isso em livros. Quem ama as rosas, deve cuidar delas.

– Mas seu trabalho...

– Não é por salário. Não é porque outros amam ou desejam algo e são preguiçosos demais para servi-lo ou obtê-lo. Nós trabalhamos, parte do cérebro, parte da vontade, de Utopia.

– Posso perguntar no quê?

– Eu exploro o interior de nosso planeta. Estudo química de alta pressão. E meu amigo...

Ele interrogou o amigo, cujo rosto moreno e olhos castanhos apareceram de repente em meio às flores.

– Eu faço comida.

– É cozinheiro?

– Mais ou menos. No momento estou cuidando de sua dieta terráquea. É muito interessante e curiosa, mas acho que bem destrutiva. Eu planejo suas refeições... Vejo que parece ansioso, mas cuidei de seu café da manhã noite passada. – Olhou para um minúsculo relógio de pulso sob a luva de jardinagem. – Vai estar pronto em cerca de uma hora. Como foi o primeiro chá?

– Excelente – disse o sr. Barnstaple.

– Que bom – disse o jovem moreno. – Eu dei meu melhor. Espero que o café da manhã seja tão satisfatório quanto. Tive de voar duzentos quilômetros atrás de um porco noite passada, e o matei e cortei eu mesmo e descobri como defumá-lo. Comer bacon saiu de moda em Utopia. Espero que ache minhas fatias satisfatórias.

– Parece uma defumação muito rápida para um toicinho – disse o sr. Barnstaple. – Podíamos ficar sem.

– Seu orador foi tão enfático em relação a isso.

O loiro se desvencilhou dos arbustos e empurrou seu carrinho para longe. O sr. Barnstaple desejou “bom dia” ao jovem moreno.

– Por que não seria bom? – perguntou o jovem.

Parte 5

Ele viu Ridley e Penk se aproximando dele. O rosto e a orelha de Ridley ainda estavam adornados com curativos e sua expressão era nervosa e ansiosa. Penk vinha um pouco atrás, levando as mãos à lateral do rosto. Ambos usavam trajes profissionais, bonés brancos, casacos de couro de corte quadrado e perneiras pretas; não haviam feito concessões à informalidade utopiana.

Ridley começou a falar assim que considerou que o sr. Barnstaple podia ouvi-lo.

– Por acaso o senhor não sabe onde esses sujeitos decadentes deixaram nosso carro?

– Achei que seu carro estivesse todo quebrado.

– Não um Rolls-Royce... não assim. O para-brisa, os para-lamas e o estribo talvez. Nós capotamos de lado. Quero dar uma olhada nele. E não desliguei a gasolina. O carburador estava vazando um pouco. Culpa minha. Não fui cuidadoso o suficiente com o filtro. Se acabar o combustível, onde conseguirei mais neste maldito Elísio? Não vi placa em nenhum lugar. Sei que, se eu não colocar aquele carro para funcionar antes que o Lorde Barralonga o peça, vamos ter encrenca.

O sr. Barnstaple não fazia ideia de onde os carros estavam.

– O senhor mesmo não tem um carro? – disse Ridley com reprovação.

– Eu tenho. Mas nem pensei nisso desde que saí dele.

– Dono e motorista – disse Ridley amargamente.

– Seja como for, não posso ajudar a achar seus carros. Perguntaram a algum dos utopianos?

– Eu não. Não gostamos do estilo deles – disse Ridley.

– Eles lhe dirão.

– E vão ficar vigiando o que seja que fizermos com nossos carros. Não têm a chance de ver um Rolls-Royce todos os dias. Logo vão pedir para dar uma volta. Não gosto deste lugar e não gosto dessa gente. São esquisitos. Não são decentes. O patrão diz que são um bando de degenerados, e me parece que ele está certo. Não sou puritano, mas isso de ficar por aí sem roupa é um pouco demais para mim. Queria saber onde eles enfiaram esses carros.

O sr. Barnstaple observava Penk.

– Você não machucou seu rosto? – perguntou.

– Não foi nada de mais – disse Penk. – Acho melhor continuarmos em frente.

Ridley olhou para Penk, e depois para o sr. Barnstaple.

– Ele teve uma pequena contusão – ele comentou, um leve sorriso rompendo seu azedume.

– Melhor seguirmos em frente se quisermos achar esses carros – disse Penk.

Um sorriso de intenso prazer apareceu no rosto de Ridley.

– Ele levou uma trombada.

– Ah, pare com isso! – disse Penk.

Mas a piada era boa demais.

– Uma dessas meninas o acertou.

– O que quer dizer? – perguntou o sr. Barnstaple. – Você não andou tomando liberdades...?

– Não tomei – disse Penk. – Mas, como o sr. Ridley fez questão de tocar nesse assunto, creio que preciso contar o que aconteceu. Só ilustra as incertezas de estar entre esses selvagens meio loucos como nós estamos.

Ridley sorriu e piscou para o sr. Barnstaple.

– Ela deu um belo cascudo nele. Derrubou-o no chão. Ele tocou no ombro dela e... bam! Foi ao chão. Nunca vi nada igual.

– Que infelicidade – disse o sr. Barnstaple.

– Aconteceu tudo num segundo.

– Que pena que tenha acontecido.

– Não se engane, senhor, e não vá saindo por aí com ideias erradas – disse Penk. – Não quero que a história se espalhe. Pode me prejudicar um bocado com o sr. Burleigh. Pena que o sr. Ridley não conseguiu segurar a língua. O que a provocou eu não sei. Ela entrou no meu quarto quando eu me levantava e ela não estava exatamente vestida, parecia meio safadinha, na minha opinião, e, bem, pensei em dizer algo para ela, algo, bem, meio que uma piada, por assim dizer. Não se pode controlar sempre nosso pensamento, não é? Homem é homem. Se esperam que um homem tenha pensamentos civilizados diante de uma garota sem um fio de roupa, por assim dizer... bem! Não sei. Eu realmente não sei. É contra a natureza. Mas eu nunca disse nada, o que quer que eu tenha pensado. O sr. Ridley aqui é testemunha. Nunca disse uma palavra para ela. Nem tinha aberto a boca quando ela me acertou. Me derrubou como um pino de boliche. Nem pareceu brava com isso. Um gancho de lado. Foi principalmente a surpresa que me derrubou.

– Mas Ridley disse que você a tocou.

– Coloquei a mão em seu ombro, talvez, de um jeito paternal. Enquanto ela se virava para sair, sem estar certo se ia falar com ela, admito. E aí está! Se eu arrumar encrenca porque me bateram...

Penk expressou seu desespero com um gesto eloquente.

O sr. Barnstaple refletiu.

– Não vou criar problemas – ele disse. – Mas, mesmo assim, acho que devemos todos tomar muito cuidado com esses utopianos. Os modos deles não são os nossos.

– Graças a Deus! – disse Ridley. – Quanto antes eu sair deste mundo de volta à Velha Inglaterra, melhor.

Ele se virou para partir.

– O senhor devia ouvir o patrão – disse Ridley por sobre o ombro. – Ele diz que não passa de um mundo de degenerados, degenerados podres, na verdade, se me dá licença: um bando de degenerados f#@*!$#. Hã? É isso que eles são.

– O braço da moça não parece estar muito degenerado – disse o sr. Barnstaple, suportando bravamente o choque pelo palavrão.

– Não? – disse Ridley com amargor. – É o que o senhor acha. Ora! Se há um sinal mais certo de degeneração é quando as mulheres começam a bater nos homens. É contra o instinto. Em qualquer mundo decente uma coisa dessas não teria acontecido! De jeito nenhum!

– De jeito nenhum – ecoou Penk.

– Em nosso mundo, uma garota dessas levaria uma lição na hora. Na hora, sabe?

Mas o olhar errante do sr. Barnstaple de repente descobriu o padre Amerton se aproximando muito rapidamente por um amplo gramado e chamando atenção com gestos. O sr. Barnstaple percebeu que tinha de agir imediatamente.

– Lá está alguém que certamente pode ajudá-los a encontrar seus carros, se ele quiser. É um homem muito prestativo, o padre Amerton. E a visão que ele tem das mulheres é parecida com a de vocês. Vão se entender bem. Falem com ele e expliquem o caso de maneira clara e simples.

Ele seguiu com passo ligeiro para a beira do lago.

Não devia estar longe da casinha de verão que se estendia sobre a água e na qual os barcos coloridos estavam atracados. Se ele entrasse num deles e se afastasse sobre o lago, colocaria o padre Amerton numa séria desvantagem. Mesmo se aquele bom homem o seguisse. Não se pode fazer uma cena emocional muito eloquente quando se está remando com força atrás de outro barco.

Parte 6

Enquanto o sr. Barnstaple desamarrava a canoa branca com um grande olho azul pintado na proa, que ele havia escolhido, Lady Stella apareceu no embarcadouro. Saiu do pavilhão que se projetava sobre a água, e algo em seus rápidos movimentos sugeriu ao sr. Barnstaple que ela estivera se escondendo lá. Ela olhou ao redor e falou ansiosa:

– Vai sair remando pelo lago, sr. Barnstaple? Posso ir?

Ele notou que ela estava trajada num meio-termo entre o estilo terráqueo e o utopiano. Vestia o que podia ser um robe creme muito simples ou um roupão de banho muito sofisticado; deixava seus belos braços esguios nus e livres, exceto por um bracelete âmbar e dourado, e em seus pés nus – eram pés extraordinariamente formosos – ela usava sandálias. Sua cabeça estava exposta, e seu cabelo preto arrumado de modo bem simples, com uma tiara preta e dourada ao redor de seu rosto inteligente. O sr. Barnstaple era ignorante sobre trajes femininos, mas apreciava o fato de que ela havia sido esperta em captar o espírito utopiano.

Ele a ajudou a entrar na canoa.

– Vamos remar para bem longe – ela disse com outro olhar por sobre o ombro, e se sentou.

Durante algum tempo, o sr. Barnstaple remou direto para frente, de modo que não tinha nada diante dele além de água e céu iluminados pelo sol, as montanhas baixas que cercavam o lago em direção à grande planície, os enormes pilares da represa distante e Lady Stella. Ela fingia estar impressionada com a beleza do jardim de conferências, com suas casas e terraços, mas ele podia ver que ela não estava realmente olhando para a cena como um todo, mas buscando inquietamente algum objeto ou pessoa em particular.

Ela se esforçou para conversar, sobre como a manhã estava agradável e sobre como os pássaros cantavam – “em julho”.

– Mas aqui não é necessariamente julho – disse o sr. Barnstaple.

– Que idiota da minha parte! Claro que não.

– Parece ser um belo mês de maio.

– Deve ser muito cedo – ela disse. – Esqueci de dar corda no relógio.

– Estranhamente, parece que estamos na mesma hora em nossos dois mundos – disse o sr. Barnstaple. – Meu relógio de pulso diz que são sete.

– Não – disse Lady Stella, respondendo a seus próprios pensamentos e fitando os jardins distantes. – Aquela é uma menina utopiana. Encontrou alguém do nosso grupo esta manhã?

O sr. Barnstaple virou a canoa para que pudesse olhar o litoral. De lá eles podiam ver como os imensos terraços e muros de avalanche e valas se misturavam e se entrelaçavam perfeitamente com os montes e penhascos das montanhas atrás deles. Os arbustos davam lugar a bosques de pinheiros, as torrentes e cascatas vindas do campo nevado acima eram apanhadas e distribuídas pelas ladeiras esmeralda e pelos jardins do Parque de Conferências. Os terraços que retinham o solo e sustentavam a estrutura toda estendiam-se dos dois lados até uma grande distância e continuavam subindo pela montanha; eram construídos com um material formado por uma ampla variedade de cores, de um vermelho profundo a um branco com veios roxos e eram modificados por grandes arcos sobre torrentes e ravinas rochosas, por enormes aberturas redondas que jorravam água e por cascatas de degraus. Os prédios do local eram distribuídos sobre esses terraços e sobre as ladeiras gramadas que continham, sozinhos ou em grupos, prédios roxos, azuis e brancos como luz e delicados como as flores alpinas ao redor deles. Por alguns momentos o sr. Barnstaple ficou em silêncio diante dessa cena, então ele respondeu à pergunta de Lady Stella.

– Encontrei o sr. Rupert Catskill e os dois motoristas – disse ele –, e vi o padre Amerton, o Lorde Barralonga e o sr. Dupont ao longe. Não vi o sr. Mush ou o sr. Burleigh.

– O sr. Cecil não vai sair por horas ainda. Vai ficar deitado até umas dez ou onze. Ele sempre descansa bem de manhã, quando há algum grande esforço mental diante dele. – A moça hesitou, e então falou: – Creio que não tenha visto a srta. Greeta Grey.

– Não – disse o sr. Barnstaple. – Eu não estava procurando nossa gente. Só estava passeando por aí, evitando alguém.

– O censor de modos e costumes?

– Sim... Na verdade, foi por isso na verdade que peguei esta canoa.

A moça refletiu e decidiu fazer uma confidência.

– Eu também estava fugindo de alguém.

– Não do padre?

– Da srta. Grey!

Lady Stella aparentemente saiu pela tangente.

– Este será um mundo bem difícil de se ficar. Essas pessoas têm um gosto muito delicado. Podemos ofendê-las facilmente.

– São inteligentes o suficiente para entenderem.

– As pessoas que entendem necessariamente perdoam? Eu sempre duvidei desse provérbio.

O sr. Barnstaple não queria que a conversa se esvaísse em generalizações, então ele remou e não disse mais nada.

– Sabe, a srta. Grey costumava interpretar Friné num teatro de revista.

– Acho que me lembro de algo assim. Houve um rebuliço nos jornais.

– Isso talvez a tenha influenciado.

Três longas remadas.

– Mas esta manhã ela veio até mim e me disse que iria usar um traje utopiano completo.

– Que significava?

– Só um pouco de ruge e pó no rosto. Não cai nada bem nela, sr. Barnstaple. É uma gafe. É indecente. Mas ela está correndo pelos jardins... Pode encontrar qualquer um. Sorte que o sr. Cecil não se levantou. Se ela encontrar o padre Amerton... Mas é melhor não pensar nisso. Veja, sr. Barnstaple, esses utopianos e seus corpos bronzeados e tudo o mais fazem parte do retrato. Eles não me envergonham. Mas a srta. Grey... uma mulher civilizada da Terra tirando as roupas... parece tirada das suas roupas. Exposta. Um tipo de branco alvejado. Aquela boa mulher que parece nos rondar, Lychnis, quando ela me aconselhou sobre o que vestir, por nenhum momento sugeriu algo assim... Mas, é claro, não conheço a srta. Grey o suficiente para falar com ela e, além disso, nunca se sabe como uma mulher desse tipo vai aceitar um conselho...

O sr. Barnstaple encarou a praia. Não viu nada da excessivamente visível srta. Greeta Grey. Então, ele teve uma convicção.

– Lychnis vai cuidar dela – disse ele.

– Espero que sim. Talvez se ficarmos aqui por um tempo...

– Vão cuidar dela – disse o sr. Barnstaple. – Mas acho que o grupo da srta. Grey e do Lorde Barralonga vai criar problemas em geral para nós. Queria que eles não tivessem passado para cá conosco.

– O sr. Cecil acha isso – disse Lady Stella.

– Naturalmente, vamos ser todos colocados juntos e julgados em conjunto.

– Naturalmente – Lady Stella ecoou.

Ela não disse mais nada por um tempo. Mas era evidente que tinha mais a dizer. O sr. Barnstaple remou lentamente.

– Sr. Barnstaple – disse ela então.

O sr. Barnstaple parou de remar.

– Sr. Barnstaple... o senhor está com medo?

O sr. Barnstaple refletiu.

– Tenho estado maravilhado demais para ter medo.

Lady Stella decidiu confessar.

– Eu tenho medo. Não tinha no começo. Tudo parecia correr de modo tão fácil e simples. Mas de noite eu acordei terrivelmente aflita.

– Não – considerou o sr. Barnstaple. – Não. Ainda não me pegou desse jeito... ainda. Talvez irá.

Lady Stella inclinou-se e falou confidencialmente, observando o efeito de suas palavras no sr. Barnstaple.

– Esses utopianos... No começo achei que eram seres humanos simples e saudáveis, artísticos e inocentes. Mas não são, sr. Barnstaple. Há algo duro e complicado neles, algo que vai além de nós e que não entendemos. E não se importam conosco. Olham para nós com olhos insensíveis. Lychnis é simpática, mas a maioria dos outros não é nem um pouco gentil. E acho que nos acham inconvenientes.

O sr. Barnstaple refletiu por um instante.

– Talvez achem. Estive tão ocupado com minha admiração... tanto de tudo isso é lindo além de qualquer sonho, que eu não pensei muito em como os afetamos. Mas, sim, eles parecem estar ocupados com outras coisas e não muito atentos a nós. Exceto aqueles que evidentemente foram designados para nos observar e estudar. E a corrida impetuosa do Lorde Barralonga através do país certamente deve ter sido inconveniente.

– Ele matou um homem.

– Eu sei.

Eles permaneceram pensativos em silêncio por alguns momentos.

– E há outras coisas – Lady Stella continuou. – Eles pensam muito diferente da nossa maneira de pensar... Noite passada o senhor não estava conosco no lago quando o sr. Cecil perguntou-lhes sobre sua filosofia. Ele lhes falou sobre Hegel, Bergson e Lorde Haldane e seu próprio ceticismo maravilhoso. Ele se abriu de modo incomum. Foi muito interessante para mim. Mas eu observava Urthred e Lion e no meio de tudo eu vi, estou convencida, de que falavam um com o outro daquela forma silenciosa que eles têm sobre algo bastante diferente. Estavam apenas fingindo atenção. E quando Freddy Mush tentou chamar o interesse deles para a poesia neogeorgiana e o efeito da guerra sobre a literatura, e como esperava que houvesse algo que chegasse perto da beleza da Ilíada em Utopia, apesar de confessar que não acreditava que tivessem, eles nem sequer fingiram escutar. Não lhe deram nenhuma resposta... Nossas mentes não importam para eles.

– Nesses assuntos, eles estão três mil anos à nossa frente. Mas podemos ser interessantes como aprendizes.

– Como teria sido interessante passear com um hottentote por Londres, explicando coisas para ele, depois de ter terminado de se divertir com sua ignorância? Talvez sim. Mas não acho que eles nos queiram muito por aqui e não acho que gostem muito de nós e não sei o que eles podem fazer conosco se dermos muito trabalho. Por isso tenho medo.

Ela seguiu por outro caminho.

– De noite, lembrei-me dos macacos de minha irmã, sra. Kelling. É uma mania dela. Eles correm pelos jardins, entram em casa e os pobrezinhos estão sempre metidos em encrenca. Não sabem bem o que podem e o que não podem fazer; todos parecem terrivelmente preocupados e levam tapas e são levados para a porta e jogados para fora, essas coisas. Estragam as coisas e deixam os hóspedes dela inquietos. Nunca se sabe o que um macaco vai fazer. E todos odeiam tê-los por perto, exceto minha irmã. E ela fica dando bronca neles: “Desça daí, Jacko! Largue isso, Sadie!”.

O sr. Barnstaple riu.

– Não vai ser tão ruim assim conosco, Lady Stella. Não somos macacos.

Ela riu também.

– Talvez não. Mas mesmo assim, de noite, eu senti que poderia ser. Somos criaturas inferiores, é preciso admitir.

Ela juntou as sobrancelhas. Seu belo rosto expressou um grande esforço intelectual.

– Percebe como estamos cortados de tudo? Talvez o senhor ache bobagem da minha parte, sr. Barnstaple, mas noite passada, antes de ir para a cama, eu me sentei para escrever uma carta à minha irmã e contar a ela sobre tudo que aconteceu enquanto estava fresco na minha cabeça. E, de repente, percebi que seria como se estivesse escrevendo para Júlio César.

O sr. Barnstaple não havia pensado nisso.

– Isso é algo que não consigo tirar da cabeça, sr. Barnstaple: não há cartas, telegramas, jornais, não há Bradshaw em Utopia. Todas as coisas que importam para nós, todas as pessoas para quem vivemos. Tudo cortado! Não sei por quanto tempo, mas completamente cortado. Quanto tempo eles vão nos manter aqui?

O sr. Barnstaple pareceu considerar a questão.

– Tem certeza de que nos mandarão de volta? – a moça perguntou.

– Parece haver certa dúvida. Mas são pessoas espantosamente sábias.

– Parece que foi tão fácil vir aqui, como virar uma esquina, mas claro, propriamente falando, estamos fora do tempo e do espaço... Mais fora ainda do que os mortos... O Polo Norte ou a África Central estão em um universo mais perto do nosso país do que nós... É difícil compreender isso. Neste sol parece tudo tão claro e familiar... Contudo, noite passada houve momentos em que eu queria gritar...

Ela parou de repente e inspecionou a praia. Então, deliberadamente, cheirou o ar.

O sr. Barnstaple percebeu um cheiro peculiarmente forte e apetitoso se estendendo pela água até ele.

– Sim – disse ele.

– É bacon do café da manhã! – gritou Lady Stella, animada.

– Exatamente como o sr. Burleigh explicou a eles – disse o sr. Barnstaple mecanicamente, virando a canoa para a praia.

– Bacon no café da manhã! É a coisa mais reconfortante que já aconteceu... Talvez, afinal, tenha sido tolice minha sentir medo. E lá estão eles fazendo sinal para nós! – Ela acenou com o braço. – Greeta, túnica branca, como o senhor previu. E o sr. Mush com um tipo de toga conversando com ela... Onde ele arrumou essa toga?

Um leve som de vozes os alcançou.

– Estou indo! – gritou Lady Stella. – Espero não ter sido pessimista – ela disse. – Mas me senti péssima durante a noite.

 

 

CAPÍTULO UM
A EPIDEMIA

Parte 1

A sombra da grande epidemia em Utopia caiu sobre nosso pequeno grupo de terráqueos no segundo dia depois de sua súbita chegada. Por mais de vinte séculos, os utopianos haviam sido completamente livres de doenças contagiosas e infecciosas de todos os tipos. Não apenas as febres epidêmicas mais graves e todos os tipos de doenças de pele haviam sumido das vidas dos animais e homens, mas todas as pequenas infecções, como gripes, tosses, resfriados e afins também foram dominadas e eliminadas. Por isolamento, pelo controle de portadores, os germes fatais foram isolados e exterminados.

E seguiu-se a isso uma mudança correspondente na fisiologia utopiana. Secreções e reações que haviam dado ao corpo resistência a infecções diminuíram; a energia que as produzia foi canalizada para outras funções mais úteis. A fisiologia utopiana, livre dessas necessidades meramente defensivas, havia se simplificado e se tornado mais direta e eficiente. Essa eliminação de infecções era uma história tão antiga em Utopia que apenas os especialistas em história das patologias entendiam qualquer coisa das misérias que a humanidade havia sofrido por causa disso, e até esses especialistas não pareciam ter ideia alguma do quanto a raça havia perdido sua antiga resistência a infecções. A primeira pessoa a pensar nesse poder de resistência perdido parece ter sido o sr. Rupert Catskill. O sr. Barnstaple lembrou-se de que, quando haviam se encontrado na primeira manhã de sua estadia nos Jardins da Conferência, ele sugerira que, de alguma forma inexplicável, a Natureza estava do lado dos terráqueos.

Se torná-los um incômodo era estar do lado deles, então certamente a Natureza estava do lado deles. Na noite do segundo dia depois de terem chegado, quase todos que haviam tido contato com os terráqueos, com exceção de Lychnis, Serpentine e três ou quatro outros utopianos que haviam retido algo de suas antitoxinas ancestrais, estavam com tosse e febre, dor de garganta, dor nos ossos, dor de cabeça e tamanha depressão física e mental como Utopia não via há séculos. O primeiro habitante de Utopia a morrer foi aquele leopardo que farejara o sr. Rupert Catskill logo que ele chegou. Foi encontrado inexplicavelmente morto na segunda manhã depois do encontro. Na tarde do mesmo dia, uma das meninas que havia ajudado Lady Stella a desfazer as malas ficou doente repentinamente e morreu...

Utopia estava ainda menos preparada para a chegada desses germes causadores de doenças do que para a vinda dos terráqueos que os trouxeram. A monstruosa quantidade de hospitais, médicos, drogarias e assim por diante que existira na Última Era de Confusão havia muito saíra da memória deles; havia um serviço de cirurgia para acidentes e uma vigilância da saúde dos jovens era mantida, e havia locais de repouso nos quais os extremamente velhos eram assistidos, mas não restava quase nada da organização higiênica com que no passado haviam lutado contra as doenças. Abruptamente, a inteligência utopiana teve de lidar novamente com um emaranhado de problemas há muito tempo resolvidos e deixados de lado, improvisar aparatos esquecidos e organizações para tratamento e desinfecção, e voltar a todas as disciplinas da guerra contra doenças que haviam marcado época na história vinte séculos atrás. Em determinado aspecto, de fato essa guerra havia deixado Utopia com certas vantagens permanentes. Quase todos os insetos portadores de doenças haviam sido exterminados, e os ratos e camundongos e os tipos de pássaros que faziam sujeira haviam deixado de ser parte do problema de saneamento. Isso estabeleceu limites bem definidos para a proliferação de novas infecções e para a natureza das infecções que podiam ser espalhadas. Permitiu que os terráqueos transmitissem apenas as moléstias que podiam ser contraídas pela respiração ou contato físico. Apesar de nenhum deles estar doente, tornou-se claro que alguém entre eles havia trazido males latentes ao universo utopiano e três ou quatro haviam liberado uma influenza há muito suprimida. Como eles mesmos eram resistentes o suficiente para não sofrerem, permaneceram o foco dessas duas epidemias, enquanto suas vítimas tossiam, espirravam e as espalhavam pelo planeta utopiano. Somente na tarde do segundo dia após a chegada que Utopia percebeu o que havia acontecido, e se preparou para lidar com essa recaída em preocupações bárbaras.

Parte 2

O sr. Barnstaple foi provavelmente o último dos terráqueos a saber da epidemia. Estava afastado do resto do grupo numa expedição solitária.

Logo ficou claro para ele que os utopianos não pretendiam dedicar tempo e energia consideráveis à instrução de seus visitantes terráqueos. Depois da explicação na tarde da chegada, não houve mais tentativas de ensinar os visitantes sobre a constituição e os métodos de Utopia, só houve um breve questionamento do estado das coisas na Terra. Os terráqueos foram deixados juntos para conversarem entre si. Vários utopianos evidentemente foram encarregados de seu conforto e bem-estar, mas eles não pareciam pensar que suas funções se estendiam à instrução. O sr. Barnstaple descobriu que muitas coisas o irritavam nas ideias e nos comentários de seus colegas e, portanto, obedeceu sua inclinação natural a explorar Utopia por si mesmo. Havia algo mais que atiçava sua imaginação na vasta planície abaixo do lago, que ele havia vislumbrado antes de sua aeronave descer no vale da Conferência, e na segunda manhã ele pegou um barquinho e remou através do lago para examinar a represa que retinha suas águas e ter uma visão da grande planície do parapeito da represa.

O lago era muito mais vasto do que ele havia pensado e a represa, muito mais ampla. A água era cristalina e muito fria, e havia poucos peixes nela. Ele saíra logo após o café da manhã, mas era quase meio-dia quando alcançou o parapeito da grande represa e pôde olhar o vale mais abaixo da grande planície.

A represa fora construída com enormes blocos de rocha com veios vermelhos e dourados, mas degraus espaçados davam acesso à rodovia ao longo de seu cume. As grandes figuras sentadas que se debruçavam sobre a planície distante haviam sido colocadas lá, ao que parecia, num espírito de despreocupação artística. Pareciam observar ou pensar, vastas formas rudes, meio montanhosas, meio humanas. O sr. Barnstaple calculou que tivessem uns 70 metros de altura; caminhando entre duas delas e depois contando seu número, chegou à conclusão de que a represa tinha entre dez e treze quilômetros de comprimento. No lado mais distante, ela descia por talvez uns cento e cinquenta metros, e era sustentada por uma série de enormes pilares, que entravam quase imperceptivelmente na rocha nativa. Nos vãos entre esses pilares zumbiam grandes baterias de turbinas hidráulicas, então, com a primeira tarefa feita, a água descia espumando e se juntava em outro lago amplo retido por uma segunda represa grande, a uns três quilômetros de distância e talvez uns trezentos metros mais baixa. Bem ao longe havia um terceiro lago e uma terceira represa, e depois a planície. Apenas três ou quatro utopianos diminutos eram visíveis entre essa estrutura monumental.

O sr. Barnstaple permaneceu à sombra de um Colosso pensativo, ele o menor dos objetos, e perscrutou as coisas mais próximas nos níveis enevoados da planície além.

Que tipo de vida acontecia lá? O relacionamento da planície com a montanha lembrava muito os alpes e a grande planície do norte da Itália, na qual ele havia caminhado no clímax de muitas férias de verão em sua juventude. Na Itália, ele sabia que aqueles níveis distantes seriam cobertos por vilarejos e cidadezinhas, e campos cuidadosamente irrigados e cultivados. Uma população densa estaria trabalhando com a diligência de formigas na produção de alimentos para um número crescente de pessoas, até que as consequências inevitáveis da superpopulação, de doenças e da pestilência estabelecessem um tipo de Equilíbrio entre a área de terra e o número de famílias cutucando-a em busca de alimentos. Como um trabalhador pode cultivar mais alimentos do que pode consumir, e mulheres virtuosas podem ter mais filhos do que a terra pode empregar, um excedente de população sem terra se reuniria em cidades e vilarejos superpovoados, ocupados com operações legais e financeiras contra os agricultores ou na manufatura de artigos passíveis de venda.

Noventa e nove por cento dessa população ficaria concentrada, desde a infância até a velhice, na difícil tarefa que é conhecida como “ganhar a vida”. Nesse meio, sustentado por uma pretensão de expiação mágica, se ergueriam templos e santuários, sustentando uma gama de padres, monges e freiras parasitas. Comer e procriar, a simples rotina da vida comum desde que as sociedades humanas começaram, complicações para obter alimentos, elaborações da ganância e um tributo pago ao medo; tal seria o espetáculo que qualquer extensão quente e fértil de terra ainda exibiria. Haveria toques de risada e humor ali, breves interlúdios de férias, flashes de juventude antes de sua extinção na labuta adulta; mas um trabalho forçado, o despeito e o ódio pela superpopulação e a eterna incerteza em relação à indigência dominariam a cena. A decrepitude chegaria aos sessenta; as mulheres estariam velhas e gastas aos quarenta. Mas aquela planície utopiana abaixo, iluminada pelo sol e fértil, vivia sob outra lei. Lá, aquela vida comum da humanidade, suas antigas tradições, suas velhas piadas e histórias repetidas geração após geração, seus festivais sazonais, seus medos devotos e indulgências espasmódicas, sua limitada, porém incessante e patética, esperança infantil e sua abundante miséria e trágica futilidade, haviam chegado ao fim. Eles haviam abandonado para sempre aquele mundo mais antigo. Aquela maré alta da vida comum havia recuado e desaparecido enquanto o solo ainda era produtivo e o sol ainda brilhava.

Foi com algum espanto que o sr. Barnstaple percebeu a extinção total da vida comum numa curta passagem dos séculos, a bravura e o terror com os quais a mente humana havia tomado controle da vida e do destino da raça, de sua alma, corpo e destino. Ele mesmo sabia, sendo uma criatura em transição, tão submerso nos hábitos antigos, tão simpático à ideia do novo, que já haviam surgido na Terra, embora escassamente. Havia muito ele sabia quão intensamente ele odiava e desprezava o fedor da vida rural, que era nosso passado; percebeu agora, pela primeira vez, o quão profundamente temia a austera vida utopiana que se estendia diante de nós. Aquele mundo para o qual ele olhava parecia-lhe muito limpo e apavorante. O que eles faziam naquelas planícies distantes? Que vida diária eles tinham ali?

Ele sabia o suficiente de Utopia agora para entender que a terra toda seria como um jardim, com toda a tendência natural à beleza capturada e desenvolvida e toda a feiura inata corrigida e superada. Aquelas pessoas eram capazes de trabalhar e lutar pela beleza, ele sabia, porque aqueles dois criadores de rosas o haviam ensinado. E indo e vindo, pessoas encarregadas da comida e das habitações, e aqueles que ordenavam a vida em geral mantinham a máquina econômica funcionando tão perfeitamente que não se ouvia nada da dissonância, dos rangidos e das rupturas internas que constituem a melodia dominante em nossos assuntos terrenos. As eras das disputas econômicas e dos experimentos haviam terminado; a forma certa de fazer as coisas havia sido encontrada. E a população daquela Utopia, que havia encolhido de uma só vez para apenas duzentos milhões, agora crescia novamente para acompanhar o aumento constante de recursos humanos. Tendo se liberado de mil males que outrora teriam crescido sem parar, a raça podia, de fato, crescer.

E lá, sob a névoa azul da grande planície, quase todos que não se ocupavam do trabalho com comida e arquitetura, saúde, educação e a correlação de atividades, estavam ocupados com o trabalho criativo, constantemente explorando o mundo externo ou o mundo interno, através da pesquisa científica e da criação artística. Estavam continuamente aumentado seu poder coletivo sobre a vida ou sobre o valor percebido da vida.

O sr. Barnstaple estava acostumado a pensar em nosso mundo como um louco ímpeto de invenções e conhecimento, mas todo o progresso da Terra em cem anos não poderia se comparar com o avanço dessas milhões de inteligências associadas em um único ano, sabia ele. O conhecimento avançava ali e as trevas passaram como a sombra de uma nuvem passa num dia de vento. Lá embaixo eles testavam os minerais que existiam no coração do planeta, tecendo uma teia para capturar o sol e as estrelas. A vida marchava ali, e era aterrorizante pensar com que ritmo. Aterrorizante porque, no fundo da mente do sr. Barnstaple, como no fundo de tantas mentes inteligentes em nosso mundo, havia a crença de que logo tudo seria descoberto e que o processo científico chegaria ao fim. E que então seríamos felizes para sempre.

Ele não estava de fato aclimatado com o progresso. Sempre pensara na Utopia como uma tranquilidade com tudo estabelecido para sempre. Mesmo naquele dia parecia tranquila sob aquela névoa, mas ele sabia que aquela quietude era a constância de uma torrente, que parece quase imóvel em seu movimento silencioso até uma bolha, uma espuma, algum galho ou folha passar por ela revelando sua velocidade.

E qual era a sensação de morar em Utopia? A vida das pessoas devia ser como a vida de artistas ou cientistas muito bem-sucedidos, uma descoberta contínua e revigorante de novas coisas, uma aventura constante para o desconhecido e o não provado. Como recreação, viajavam pelo planeta, e havia muito amor, risos e amizade em Utopia e uma vida social abundante, fácil e informal. Jogos que não envolviam exercício físico, substitutos dos menos capazes da pesquisa e esforço mental, haviam sumido completamente da vida, mas muitos jogos ativos eram exercitados em prol da diversão e do vigor físico... Devia ser uma boa vida para aqueles que haviam sido educados para vivê-la. De fato, uma vida de fazer inveja.

E, permeando tudo, devia ser a noção de felicidade que importava; seguia até consequências infinitas. E eles amavam sem dúvida – de maneira sutil e deliciosa –, mas talvez um pouco severamente. Talvez naquelas planícies distantes não houvesse muita piedade nem ternura. Seres inteligentes e adoráveis eles eram, de forma alguma patéticos. Não havia necessidade para aquelas qualidades...

Ainda assim, a mulher Lychnis parecia bondosa...

Eles mantinham a fé ou precisavam manter a fé como os amantes terrenos faziam? Como era o amor em Utopia? Os amantes ainda sussurravam ao crepúsculo... Qual era a essência do amor? Uma preferência, um doce orgulho, um delicioso presente conquistado, a mais primorosa segurança do corpo e da mente.

Como seria amar e ser amado por uma daquelas mulheres utopianas? Ter aquele rosto radiante próximo ao seu, ser despertado para a vida por seu beijo?

O sr. Barnstaple estava sentado com sua calça de flanela, descalço, à sombra de um Colosso de pedra. Ele se sentia como um minúsculo inseto perdido e empoleirado sobre a grande represa. Parecia-lhe impossível que aquela triunfante raça utopiana recuasse novamente de seu magnífico ataque sobre o domínio de todas as coisas. Aquele mundo havia escalado alto e tremendamente, e ainda estava escalando. Com certeza agora estava seguro devido a suas realizações. Ainda sim, toda sua segurança estupenda e domínio da natureza haviam ocorrido no curto espaço de três mil anos...

A raça não poderia ter se alterado fundamentalmente nesse breve intervalo. Essencialmente, ainda era uma raça da idade da pedra. Não estava nem a vinte mil anos do tempo em que não sabia nada sobre os metais, e não sabia ler nem escrever. No fundo de sua natureza, contidas e encruadas, ainda havia sementes de raiva, medo e divergência. Ainda devia haver muitos espíritos inquietos e insubordinados em Utopia. A eugenia mal havia começado ali. Ele se lembrou do doce rosto atento da jovem que conversara com ele sob as estrelas na noite de sua chegada e do toque de avidez romântica em sua voz quando perguntou se o Lorde Barralonga não era um homem muito vigoroso e cruel.

O espírito romântico ainda perturbava imaginações ali? Possivelmente, apenas imaginações adolescentes.

Não seria ainda possível algum grande choque ou alguma fase de confusão naquela imensa ordem? Seu sistema de educação não poderia se tornar enfadonho por sua obrigação de disciplina e sucumbir ao espírito experimental? O imprevisto não poderia ainda estar à espreita dessa raça? Suponha-se que houvesse um fator contagioso no fervor religioso do padre Amerton ou na busca incurável de Rupert Catskill por empreitadas fantásticas!

Não! Era inconcebível. O êxito daquele mundo era calmo e garantido demais.

O sr. Barnstaple ergueu-se e desceu os degraus da grande represa até onde, bem abaixo, seu pequeno esquife flutuava como uma minúscula pétala de flor sobre a água clara.

Parte 3

Ele percebeu uma comoção considerável nos locais de Conferência.

Havia mais de trinta aeronaves circulando no ar e descendo e ascendendo do parque, e um grande número de veículos grandes e brancos iam e vinham pela estrada da passagem. As pessoas também pareciam se mover rapidamente entre as casas, mas ele estava distante demais para distinguir o que elas faziam. Observou por algum tempo e então subiu em seu barquinho.

Ele não conseguia ver o que estava acontecendo enquanto voltava pelo lago, porque estava de costas para as ladeiras, mas, quando uma aeronave desceu até bem perto dele, viu seu ocupante olhar para ele enquanto remava. E quando descansou de remar e olhou em volta, viu o que achou ser uma liteira carregada por dois homens.

Ao se aproximar da margem, um barco saiu para encontrá-lo. Ficou atônito ao ver que seus ocupantes usavam o que pareciam ser capacetes de vidro com visores brancos e pontudos. Ficou enormemente surpreso e confuso. Quando eles se aproximaram, a mensagem ressoou em sua mente:

– Quarentena. Você tem de ficar em quarentena. Vocês, terráqueos, começaram uma epidemia e é necessário colocá-los em quarentena.

Então aqueles capacetes de vidro deviam ser um tipo de máscara de gás!

Quando eles passaram ao lado dele, viu que eram mesmo. Eram feitos de um material altamente flexível e completamente translúcido...

Parte 4

O sr. Barnstaple foi conduzido ao longo de algumas galerias de dormitórios, onde os utopianos estavam deitados em camas, enquanto outros, com máscaras de gás, cuidavam deles. Ele descobriu que todos os terráqueos e seus pertences, exceto os carros, haviam sido reunidos no salão da conferência do primeiro dia. Disseram que o grupo todo seria removido para um novo local, onde seriam isolados e tratados.

Os únicos utopianos com o grupo eram dois que usavam máscaras de gás e recostavam no pórtico aberto numa atitude desagradável que sugeria sentinelas ou guardas.

Os terráqueos sentavam-se em pequenos grupos entre os assentos, exceto pelo sr. Rupert Catskill, que caminhava de um lado para o outro da abside, falando. Estava sem chapéu, corado e nervoso, com o cabelo bagunçado.

– Previ que isso ia acontecer desde o início – ele repetia. – Não disse que a Natureza estava do nosso lado? Não disse?

O sr. Burleigh estava chocado e irritado.

– Por tudo que é sagrado, não consigo ver a lógica disso – ele declarou. – Aqui estamos, as únicas pessoas perfeitamente imunes, e nós que temos de ser isolados.

– Eles disseram que pegaram coisas de nós – disse Lady Stella.

– Muito bem – disse o sr. Burleigh, enfatizando seu argumento com a longa mão branca. – Muito bem, então eles que sejam isolados! Isso é... coisa da China; está tudo de pernas para o ar. Estou decepcionado com eles.

– Acho que é o mundo deles – disse o sr. Hunker –, e precisamos fazer as coisas da forma deles.

O sr. Catskill se concentrou no Lorde Barralonga e nos dois motoristas.

– Eu aceito esse tratamento. Eu aceito.

– Qual é sua ideia, Rupert? – disse o Lorde. – Nós perdemos nossa liberdade de ação.

– De forma alguma – disse o sr. Catskill. – De forma alguma. Nós a ganhamos. Nós seremos isolados. Seremos colocados sozinhos em alguma ilha ou montanha. Tudo muito bem. Tudo muito bem. Este é só o começo de nossas aventuras. Veremos o que acontece.

– Mas como?

– Espere um pouco. Até podermos conversar mais à vontade... Essas são medidas de pânico. Essa pestilência está em seu estado inicial. Este é apenas o começo. Confiem em mim.

O sr. Barnstaple se sentou mal-humorado ao lado de sua valise, evitando o olhar desafiador do sr. Catskill.


CAPÍTULO DOIS
O CASTELO NO PENHASCO

Parte 1

O lugar de quarentena para onde os terráqueos foram levados devia estar a uma distância considerável do lugar da Conferência, porque eles viajaram seis horas, e o tempo todo voavam alto e muito rápido. Viajaram todos juntos numa aeronave; era espaçosa e confortável, e poderia conter talvez quatro vezes mais passageiros. Foram acompanhados por cerca de trinta utopianos com máscaras de gás, entre os quais duas mulheres. Os aviadores usavam trajes feitos de uma substância branca felpuda que despertou interesse e inveja tanto da srta. Grey quanto de Lady Stella. A aeronave passou pelo vale e sobre a grande planície, cruzando um mar estreito e outra terra com uma costa rochosa e densas florestas e uma grande área de mar vazio. Quase não havia barcos neste mar; pareceu ao sr. Barnstaple que nenhum oceano terreno seria tão pouco povoado; apenas uma ou duas vezes ele viu embarcações muito grandes passando, bem diferentes de qualquer barco da Terra; pareciam mais enormes jangadas ou plataformas do que barcos, e uma ou duas vezes ele viu o que era evidentemente um navio de carga, com mastros e velas. E o espaço aéreo era igualmente pouco frequentado. Depois de perderem contato com a terra, ele viu apenas três aeronaves até pousarem.

Cruzaram um encantador cinturão costeiro muito pouco habitado e sobrevoaram o que era evidentemente uma área deserta e árida, entregue à mineração e vastas operações de engenharia. Bem ao longe havia montanhas nevadas muito altas, mas a nave desceu antes de chegarem até elas. Por algum tempo, os terráqueos voaram sobre enormes montes de escória acumulada, grandes montanhas delas, que pareciam derivarem de uma enorme escavação que se assemelhava a um poço, descendo até uma profundeza desconhecida na terra. Um estrondo tremendo de maquinário saía desse poço, com muita fumaça. Lá havia multidões de trabalhadores, e pareciam viver em acampamentos entre os detritos. Evidentemente, esses trabalhadores iam para esse lugar apenas por períodos curtos de trabalho; não havia sinais de casas. A nave dos terráqueos contornou essa região e sobrevoou um deserto rochoso quase sem árvores, rasgado profundamente por desfiladeiros profundos semelhantes a cânions. Viam-se poucas pessoas, mas havia sinais abundantes de atividade de engenharia. Cada corrente, cada catarata acionava uma turbina, e grandes cabos partiam dos penhascos dos desfiladeiros e estendiam-se por espaços desertos. Nas áreas mais abertas, havia bosques de pinheiros e uma vegetação bastante abundante.

O rochedo alto que era o destino deles se projetava, um promontório quase completamente isolado, na bifurcação entre dois cânions convergentes. Elevava-se a uma altura de talvez 700 metros sobre os rios que espumavam abaixo, uma grande massa de rochas esverdeadas e púrpuras, irregulares e fendidas profundamente por planos interligados e veios brancos e cristalinos. O desfiladeiro de um lado era muito mais íngreme do que do outro; era tão saliente a ponto de ser escuro como um túnel, e ali, a uns trinta metros do cume, uma ponte metálica esguia havia sido construída sobre o golfo. Alguns metros acima havia projeções que poderiam ter sido os restos de uma ponte anterior de pedra. Atrás, o rochedo descia íngreme por centenas de metros até uma longa encosta coberta com vegetação esparsa, que subia novamente até o conjunto principal de montanhas, uma parede de penhascos com topo plano.

Foi nessa encosta que essa nave desceu ao lado de três ou quatro máquinas menores. O penhasco era cercado de ruínas altas de um antigo castelo, com um muro em círculo dentro do qual havia várias construções que passaram a abrigar recentemente um grupo de estudantes de química. Suas pesquisas, sobre uma questão da estrutura atômica totalmente incompreensível para o sr. Barnstaple, haviam terminado e o lugar estava desocupado. O laboratório ainda estava estocado com aparatos e materiais; e água e energia eram fornecidas das alturas, vindas através de canos e cabos. Havia também uma quantidade abundante de provisões. Um grupo de utopianos diligentemente adaptava o local ao seu novo propósito de isolamento e desinfecção quando os terráqueos chegaram.

Serpentine apareceu na companhia de um homem com máscara de gás cujo nome era Cedar. Ele era um citologista e estava encarregado dos arranjos para esse sanatório improvisado.

Serpentine explicou que ele mesmo havia voado para o rochedo de antemão, porque ele conhecia o equipamento do local e a pesquisa que havia sido feita ali, e porque seu conhecimento dos terráqueos e sua relativa imunidade a infecções o tornavam apto a agir como um intermediário entre eles e os médicos que agora iriam se encarregar do caso. Ele deu essas explicações ao sr. Burleigh, ao sr. Barnstaple, ao Lorde Barralonga e ao sr. Hunker. Os outros terráqueos permaneceram em pequenos grupos ao lado da nave de onde haviam descido, observando o topo acastelado do rochedo, os arbustos espinhosos da terra desolada ao redor deles e os imponentes penhascos dos cânions adjacentes, todos com expressões desfavoráveis.

O sr. Catskill havia se afastado quase até a beira do grande cânion e estava parado com as mãos atrás das costas numa atitude quase napoleônica, perdido em pensamentos, olhando aquelas profundezas obscuras. O rugido de águas invisíveis abaixo, às vezes alto, às vezes quase inaudível, estremecia o ar.

A srta. Greeta Grey de repente tirou uma câmera Kodak; ela lembrara-se de sua existência quando fez as malas para essa última jornada, e tirou uma foto de todo o grupo.

Cedar disse que iria explicar o método de tratamento que propunha seguir, e Lorde Barralonga chamou “Rupert!” para trazer o sr. Catskill ao grupo de ouvintes de Cedar.

Cedar foi tão explícito e conciso quanto Urthred havia sido. Era evidente, disse ele, que os terráqueos eram portadores de uma variedade de organismos contagiosos, que eram mantidos sob controle em seus corpos por substâncias imunizadoras, mas contra os quais os utopianos não tinham defesas e podiam esperar conseguir imunidade apenas depois de uma dolorosa e desastrosa epidemia. A única forma de evitar que essa epidemia devastasse todo o planeta era primeiramente reunir todos e curar todos os casos afetados, o que estava sendo feito, convertendo o Parque de Conferências num grande hospital, e em seguida levar os terráqueos e isolá-los completamente dos utopianos até que suas infecções fossem eliminadas. Era algo pouco hospitaleiro para se fazer com os terráqueos, ele confessou, mas parecia ser a única coisa possível a se fazer, trazê-los a esse ar desértico peculiarmente alto e seco e lá desenvolver métodos para a completa limpeza física. Se isso fosse possível, seria feito, e então os terráqueos estariam novamente livres para ir e vir como desejassem em Utopia.

– Mas supondo que não seja possível? – perguntou o sr. Catskill abruptamente.

– Acho que será.

– Mas e se fracassarem?

Cedar sorriu para Serpentine.

– A pesquisa física está assumindo o trabalho que Arden e Greenlake realizavam, e não vai demorar para sermos capazes de repetir o experimento. E então revertê-lo.

– Conosco como material bruto?

– Não até termos uma certeza razoável de uma aterrissagem segura para vocês.

– Quer dizer – disse o sr. Mush, que havia se juntado ao círculo ao redor de Cedar e Serpentine – que vão nos mandar de volta?

– Se não pudermos mantê-los – disse Cedar, sorrindo.

– Que perspectiva encantadora! – disse o sr. Mush, contrariado. – Ser jogado através do espaço num canhão. Experimentalmente.

– E posso perguntar – veio a voz do padre Amerton –, posso perguntar a natureza desse... tratamento de vocês, esses experimentos dos quais seremos cobaias, por assim dizer? É algo da natureza de vacinas?

– Injeções – explicou o sr. Barnstaple.

– Eu ainda não decidi – disse Cedar. – O problema suscita perguntas que este mundo esqueceu há eras.

– Devo dizer imediatamente que sou resolutamente contra vacinações – disse o padre Amerton. – Completamente. A vacina é um ultraje para a natureza. Se eu tinha qualquer dúvida antes de vir para este mundo de... de perversão, não tenho dúvidas agora. Dúvida nenhuma! Se Deus quisesse que tivéssemos esses soros e fermentos em nosso corpo, teria providenciado formas mais naturais e dignas de consegui-los do que com uma seringa.

Cedar não discutiu o argumento. Seguiu se desculpando. Por algum tempo, pediria que os terráqueos se mantivessem dentro de certos limites, que se confinassem ao rochedo e às encostas abaixo, até as montanhas. Além disso, era impossível que jovens os ajudassem, como havia sido feito até então. Precisariam cozinhar para si mesmos e se cuidar de maneira geral. Encontrariam todos os utensílios no topo do rochedo, e ele e Serpentine dariam todas as explicações que fossem necessárias. Encontrariam fartas provisões para eles.

– Então ficaremos sozinhos aqui? – perguntou o sr. Catskill.

– Por um tempo. Quando tivermos esclarecido nossos problemas, voltaremos e contaremos o que pretendemos fazer.

– Ótimo – disse o sr. Catskill. – Ótimo.

– Queria não ter mandado minha empregada de trem – disse Lady Stella.

– Cheguei ao meu último colarinho limpo – disse o sr. Dupont com expressão divertida. – Não tem sido piada esse fim de semana com o Lorde Barralonga.

Lorde Barralonga de repente se virou para seu criado particular.

– Creio que Ridley tem as qualidades de um ótimo cozinheiro.

– Não me importo em tentar – disse Ridley. – Já fiz muita coisa, e uma época eu costumava cuidar de uma locomotiva.

– Um homem que pode manter essas coisas em ordem pode fazer tudo – disse o sr. Penk com emoção incomum. – Não tenho objeção em ser útil temporariamente junto com o sr. Ridley. Comecei minha carreira na cozinha e não tenho vergonha de admitir.

– Se esse cavalheiro puder nos mostrar os apetrechos – disse o sr. Ridley, apontando para Serpentine.

– Exatamente – disse o sr. Penk.

– E se todos nós lhes dermos o mínimo de trabalho possível – disse a srta. Greeta bravamente.

– Acho que conseguiremos lidar com isso – disse o sr. Burleigh para Cedar. – Se para começar vocês puderem nos dar um pouco de conselho e ajuda.

Parte 2

Cedar e Serpentine permaneceram com os terráqueos no Rochedo da Quarentena até o final daquela tarde. Ajudaram a preparar o jantar e o serviram no pátio do castelo. Partiram com a promessa de voltarem no dia seguinte, e os terráqueos os viram subirem aos céus em suas naves.

O sr. Barnstaple ficou surpreso ao se sentir aflito com a partida deles. Tinha a sensação de que o mal estava fermentando entre seus colegas e que a saída desses utopianos removia um controle sobre essa maldade. Ajudara Lady Stella a preparar uma omelete; teve de levar de volta um prato e uma frigideira para a cozinha depois de servido, de modo que foi o último a sentar-se à mesa de jantar. Encontrou a maldade que temia já em curso.

O sr. Catskill já havia terminado seu jantar e estava com o pé sobre um banco, discursando para o resto do grupo.

– Pergunto aos senhores, damas e cavalheiros: o destino não está evidente na aventura de hoje? Não é à toa que este lugar foi uma fortaleza antigamente. Voltará a ser uma fortaleza. Uma fortaleza... numa aventura diante da qual as histórias de Cortez e Pizarro empalidecerão com seus incêndios inúteis!

– Meu querido Rupert! – exclamou o sr. Burleigh. – O que você tem em mente?

O sr. Catskill acenou dramaticamente com dois dedos.

– A conquista de um mundo!

– Meu bom Deus! – exclamou o sr. Barnstaple. – Está louco?

– Como Clive – disse o sr. Catskill –, ou o Sultão Baber, quando marchou para Panipat.

– É uma ideia ousada – disse o sr. Hunker, que parecia ter a mente já preparada para tais sugestões –, mas estou inclinado a escutá-la. Até onde entendo, a alternativa seria se deixar esfregar e lavar por dentro e por fora e então ser disparado de volta para o nosso próprio mundo, com a chance de acertar algo duro no caminho. Diga a eles, sr. Catskill.

– Diga a eles – disse Lorde Barralonga, que também parecia preparado. – É uma aposta, eu admito. Mas há situações em que é preciso apostar... ou ser alvo de uma aposta. Sou pela voz ativa.

– É uma aposta, certamente – disse o sr. Catskill. – Mas nesta estreita península, neste quilômetro quadrado de território, o destino de dois universos, senhor, espera por uma decisão. Não é momento para os corações sensíveis e para o toque paralisante da discrição. Planejar rapidamente, agir rapidamente...

– Isso é simplesmente emocionante! – exclamou a srta. Greeta Grey apertando as mãos sobre os joelhos e sorrindo radiantemente para o sr. Mush.

– Essa gente – o sr. Barnstaple interrompeu – está três mil anos à frente de nós. Somos como um bando de ciganos num espetáculo itinerante em Earl’s Court planejando a conquista de Londres.

Com as mãos na cintura, o sr. Catskill se virou com extraordinário bom humor para o sr. Barnstaple.

– Três mil anos distante de nós... sim! Três mil anos distantes de nós, não! É onde eu e você discordamos. Você diz que esse povo é formado por super-homens. Hum, super-homens... Eu digo que são homens degenerados. Deixe-me chamar sua atenção para os motivos da minha crença – apesar da beleza deles, das consideráveis conquistas materiais e intelectuais e assim por diante. Um povo ideal, admito... Mas, e então? Meu argumento é que eles chegaram a um ápice e passaram dele, prosseguem por inércia e perderam o poder não apenas de resistir a doenças – essa fraqueza que veremos se desenvolver cada vez mais –, mas também de cuidar de emergências estranhas e perturbadoras. Eles são gentis. Gentis demais. São ineficazes. Não sabem o que fazer. Aqui está o padre Amerton. Ele perturbou aquela primeira reunião da maneira mais ofensiva. (O senhor sabe que fez isso, padre Amerton. Não o estou culpando. O senhor é moralmente sensível. E houve coisas que o ultrajaram.) Ele foi ameaçado, como um menino é ameaçado por uma velhinha frágil. Algo era para ser feito com ele. Algo foi feito com ele?

– Um homem e uma mulher vieram falar comigo – disse o padre Amerton.

– E o que o senhor fez?

– Simplesmente os confrontei. Ergui a voz e os confrontei.

– E o que eles disseram?

– O que poderiam dizer?

– Todos nós achamos que coisas tremendas seriam feitas com o pobre padre Amerton. Bem, agora considerem um caso mais grave. Nosso amigo Lorde Barralonga correu feito louco com seu carro e matou um homem. Hum. Até mesmo em nosso mundo eles teriam cassado sua carta, sabe. E multado seu chofer. Mas aqui? O fato mal foi mencionado desde então. Por quê? Porque eles não sabem o que dizer ou fazer em relação a isso. E agora nos colocaram aqui e imploraram para que fôssemos bonzinhos. Até estarem prontos para vir e tentar experimentos em nós, injetar coisas em nós e sabe-se lá o quê mais. E se nos submetermos, senhor, se nos submetermos, perdemos um de nossos maiores poderes contra essa gente, nosso poder de ao mesmo tempo resistir e transmitir doenças. Além disso, não sei quais poderes de iniciativa podem estar associados com essa resistência fisiológica que querem nos roubar. Eles podem brincar com nossas glândulas endócrinas. Mas a ciência nos diz que essas próprias glândulas segregam nossas personalidades. Mentalmente, moralmente, nós seremos dissolvidos. Se nos submetermos, senhor, se nos submetermos. Mas supondo que não nos submetamos, e então?

– Bem – disse Lorde Barralonga –, e então?

– Eles não saberão o que fazer. Não sejam enganados por demonstrações externas de beleza e prosperidade. Essas pessoas vivem como os antigos peruanos viviam no tempo de Pizarro, num sonho inquietante. Beberam o trago debilitante do socialismo e, como no antigo Peru, não resta mais nem saúde nem força de vontade neles. Um punhado de homens e mulheres resolutos que pode ousar, e não apenas ousar, mas triunfar diante de tal mundo. E assim exponho meus planos para os senhores.

– Quer dizer atacar este planeta utopiano inteiro? – disse o sr. Hunker.

– Está pensando grande – disse o Lorde Barralonga.

– Pretendo, senhor, assegurar os direitos de uma forma mais vigorosa de vida social sobre uma forma menos vigorosa. Aqui estamos nós, numa fortaleza. É uma verdadeira fortaleza e bem defensável. Enquanto os senhores desfaziam as malas, Barralonga, Hunker e eu estivemos vendo isso. Há um poço coberto, então, se a necessidade chegar, podemos pegar água do cânion abaixo. A rocha é escavada formando câmaras e abrigos; o muro do lado da terra é sólido e alto, liso, então não pode ser escalado. Essa grande arcada pode ser facilmente barricada quando for necessário. Degraus descem pela rocha até aquela pequena ponte, que pode ser cortada, se for o caso. Ainda não exploramos todas as escavações. No sr. Hunker temos um químico; ele era químico antes de o cinema chamá-lo como seu mestre, e ele diz que há vários materiais no laboratório para se construir bombas. Sei que este grupo pode juntar cinco revólveres com munição. Eu nem ousava ter essa esperança. Podemos ter comida para vários dias.

– Ah! Isso é ridículo! – exclamou o sr. Barnstaple erguendo-se e então se sentando novamente. – É um absurdo! Nós nos voltarmos contra esse povo amigo! E eles podem fazer este pequeno promontório em pedacinhos quando quiserem.

– Ah! – disse o sr. Catskill, e o interrompeu erguendo o dedo. – Pensamos nisso. Mas podemos seguir o exemplo de Cortez, que, no próprio centro do México, manteve Montezuma como seu prisioneiro e refém. Nós também teremos nosso refém. Antes de levantarmos um dedo... Primeiro, nosso refém...

– Bombas aéreas!

– Existe tal coisa em Utopia? Ou tal ideia? E, repito, teremos nosso refém.

– Alguém importante – disse o sr. Hunker.

– Cedar e Serpentine são ambos importantes – disse o sr. Burleigh, num tom de observação desinteressada.

– Mas certamente o senhor não aprova esse sonho infantil de pirataria! – exclamou o sr. Barnstaple, sinceramente chocado.

– Sonho infantil! – exclamou o padre Amerton. – De um ministro de gabinete, um nobre e um grande empreendedor!

– Meu querido senhor – disse o sr. Burleigh –, estamos, afinal, só avaliando eventualidades. Não vejo por que motivo não debater essas possibilidades. Apesar de eu rogar aos céus para que nunca tenhamos de realizá-las. Como estava dizendo, Rupert...?

– Temos de nos estabelecer aqui e garantir nossa independência e fazer com que esses utopianos... nos sintam.

– Isso, isso! – disse o sr. Ridley cordialmente. – Tem um ou dois que eu gostaria de fazer sentir pessoalmente.

– Temos de transformar esta prisão num capitólio, a primeira base da humanidade neste mundo. É como colocar o pé numa porta relutante que nunca mais deverá se fechar para a nossa raça.

– Está fechada – disse o sr. Barnstaple. – Não fosse pela misericórdia desses utopianos, nós nunca mais veríamos nosso mundo de novo. E, mesmo com a misericórdia deles, é algo duvidoso.

– Isso tem me mantido acordado de noite – disse o sr. Hunker.

– É uma ideia que deve ter ocorrido a todos nós – disse o sr. Burleigh.

– E é uma ideia tão monumental e desagradável que ninguém quis falar dela – disse Lorde Barralonga.

– Não tinha pensado nisso até agora – disse Penk. Está realmente dizendo, senhor, que não podemos voltar?

– As coisas serão como tiverem de ser – disse o sr. Burleigh. – É por isso que estou ansioso para ouvir as ideias do sr. Catskill.

O sr. Catskill colocou as mãos na cintura e seus modos se tornaram solenes.

– Desta vez eu concordo com o sr. Barnaby. Creio que há poucas chances de voltarmos a ver nossas queridas cidades.

– Eu senti isso – disse Lady Stella com lábios pálidos. – Eu sabia disso já há dois dias.

– Então, vejam, meu final de semana se estenderá por uma eternidade! – disse o sr. Dupont, e por um tempo ninguém disse outra palavra.

– É como se... Ora! Como se estivéssemos mortos! – Penk disse finalmente.

– Mas eu preciso voltar – a srta. Greeta Grey irrompeu abruptamente, como alguém que descarta uma ideia idiota. – É um absurdo. Tenho de ir para Alhambra no dia dois de setembro. É imperativo. Viemos facilmente; é ridículo dizer que não podemos voltar da mesma forma.

Lorde Barralonga olhou para ela com malignidade afetuosa.

– Pode esperar – ele disse.

– Mas eu preciso! – ela exclamou.

– Há coisas como impossibilidades; mesmo para a srta. Greeta Grey.

– Alugue um avião especial! – ela disse. – Qualquer coisa.

Ele a olhou com um sorriso travesso e balançou a cabeça.

– Meu querido – ela disse –, você só me viu no clima de férias até agora. Meu trabalho é sério.

– Minha querida, essa sua Alhambra está tão distante de nós agora como a Corte do Rei Nabucodonosor... Não pode ser.

– Mas eu preciso – ela disse em sua forma majestosa. – E isso é tudo.

Parte 3

O sr. Barnstaple se levantou da mesa e se afastou até onde uma fenda no muro do castelo se abria para a natureza escura lá fora. Sentou-se ali. Seu olhar passou do pequeno grupo conversando ao redor da mesa de jantar para o pico dos penhascos, iluminado pelo sol do outro lado do cânion, e para as encostas das montanhas selvagens e solitárias abaixo do promontório. Naquele mundo ele talvez tivesse de viver o resto de seus dias.

E esses dias poderiam não ser muito numerosos se o sr. Catskill cumprisse seu plano. Sydenham, sua esposa e os meninos de fato estavam tão distantes “como a corte do Rei Nabucodonosor”.

Ele quase não havia pensado em sua família desde que postara a carta em Victoria. Agora ele sentia uma estranha ponta de desejo de enviar a eles alguma palavra ou sinal – se ao menos pudesse. Estranho que eles nunca mais saberiam dele! Como se virariam sem ele? Haveria dificuldades quanto à conta no banco? Ou com o dinheiro do seguro? Ele sempre tencionara ter uma conta conjunta com sua esposa no banco, e nunca gostara muito da ideia. Conta conjunta... uma coisa que todo homem deveria fazer... Sua atenção voltou para o sr. Catskill revelando seus planos.

– Temos de nos preparar para o que pode ser uma estadia prolongada, bem prolongada aqui. Não nos enganemos nesse aspecto. Pode durar anos; pode durar gerações.

Penk ficou impressionado.

– Não consigo entender – disse ele. – Como pode durar gerações?

– Vou chegar lá – disse o sr. Catskill.

– Infelizmente – disse o sr. Penk, e se tornou profundamente contido e pensativo olhando para Lady Stella.

– Precisamos permanecer uma pequena comunidade isolada neste mundo até dominá-lo, como os romanos dominaram os gregos, até dominarmos a ciência deles e a submetermos a nossos propósitos. Isso pode significar uma longa luta. Pode significar uma luta muito longa mesmo. E, enquanto isso, devemos nos manter como comunidade; precisamos nos considerar uma colônia, uma guarnição, até chegar o dia da reunião. Precisamos fazer nossos reféns, senhor, e não apenas reféns. Pode ser necessário para os nossos propósitos e, se for necessário para os nossos propósitos, que seja, pegá-los jovens, antes que essa suposta educação deles os desqualifique para nossos propósitos, treiná-los nas grandes tradições de nosso Império e raça.

O sr. Hunker parecia a ponto de dizer algo, mas se conteve.

O sr. Dupont se levantou repentinamente da mesa, caminhou quatro passos, voltou e ficou parado, observando o sr. Catskill.

– Gerações? – disse o sr. Penk.

– Sim – disse o sr. Catskill. – Gerações. Porque aqui somos estrangeiros, estrangeiros, como aquele outro pequeno grupo de aventureiros que estabeleceu sua cidadela vinte e cinco séculos atrás sobre o Capitólio ao lado do Tibre. Este é nosso Capitólio. Um Capitólo maior, de uma Roma maior, num mundo mais vasto. E como aquele grupo de aventureiros romanos, nós também talvez tenhamos que reforçar nossos escassos números às custas dos sabinos ao nosso redor, e tomar para nós servos, ajudantes e... parceiras! Nenhum sacrifício é grande demais para as altas possibilidades desta aventura.

O sr. Dupont parecia estar se preparando para o sacrifício.

– Devidamente casados – acrescentou o padre Amerton.

– Devidamente casados – disse o sr. Catskill num parêntese. – Então, senhor, vamos resistir aqui e dominar esta área desértica e espalhar nosso prestígio e nossa influência e nosso espírito sobre o corpo inerte deste decadente mundo utopiano. Até finalmente sermos capazes de dominar o segredo que Arden e Greenlake estavam buscando e recuperar o caminho para o nosso povo, abrindo-se às milhões de pessoas do nosso Império...

Parte 4

– Só um momento – disse o sr. Hunker. – Só um momento! Quanto a esse Império...

– Exatamente – disse o sr. Dupont, trazido abruptamente de volta de algum sonho romântico. – Quanto a seu Império...!

O sr. Catskill os observou de forma pensativa e defensiva.

– Quando digo Império, quero dizer da forma mais geral.

– Exatamente – retrucou o sr. Dupont.

– Eu pensava em nossa... civilização atlântica.

– Antes que fale da unidade anglo-saxã e da raça anglófona – disse o sr. Dupont, com um tom amargo crescendo em sua voz –, permita-me lembrá-lo, senhor, de um fato muito importante que parece estar desprezando. A língua de Utopia, senhor, é o francês. Quero lembrá-lo disso. Quero que tenha isso em mente. Não vou enfatizar agora os sacrifícios e martírios que a França suportou pela causa da civilização...

O sr. Burleigh interrompeu.

– Um equívoco bem natural. Mas, se me perdoa a correção, a língua de Utopia não é o francês.

Claro, o sr. Barnstaple refletiu, o sr. Dupont não ouvira a explicação sobre as dificuldades linguísticas.

– Senhor, permita-me acreditar na evidência de meus próprios ouvidos – o francês respondeu com digna polidez. – Posso assegurar-lhe, esses utopianos falam francês e nada além de francês, e é um francês excelente.

– Eles não falam língua alguma – disse o sr. Burleigh.

– Nem mesmo inglês? – zombou o sr. Dupont.

– Nem mesmo inglês.

– Nem a Liga das Nações, talvez? Mas, bah! Por que discuto? Eles falam francês. Nem mesmo Bosch iria negar. Só mesmo um inglês...

Uma bela disputa, pensou o sr. Barnstaple. Não havia nenhum utopiano presente para desiludir o sr. Dupont, e ele persistiu em sua crença. Com um misto de pena, escárnio e raiva, o sr. Barnstaple escutou esse pequeno grupo de seres humanos perdidos, ao crepúsculo de um mundo vasto, estranho e possivelmente hostil, tornando-se cada vez mais ferozes e entusiasmados na disputa por qual das três nações “dominariam” Utopia, com alegações baseadas totalmente em ganância e equívocos. Suas vozes aumentavam, chegando a gritos, e diminuíam até uma intensidade apaixonada, enquanto seus hábitos vitalícios de egoísmo nacional de uma vida toda se reafirmavam. O sr. Hunker não queria saber nada de nenhum “Império”; o sr. Dupont não queria ouvir nada além da suprema alegação da França. O sr. Catskill se desdobrava em dois. Para o sr. Barnstaple, esse conflito de reivindicações patrióticas parecia uma briga de cães num navio afundando. Mas, finalmente, o sr. Catskill, persistente e engenhoso, ganhou a dianteira contra seus dois antagonistas.

De pé na ponta da mesa, explicou que usou a palavra Império de maneira vaga, desculpou-se por tê-la usado, explicou que, quando disse Império, tinha toda a civilização ocidental em mente.

– Quando eu falei isso – ele disse, virando-se para o sr. Hunker –, queria dizer uma irmandade comum baseada na compreensão. – Encarou o sr. Dupont. – Eu me referia à nossa testada e imperecível Entente.

– Pelo menos não há russos aqui – disse o sr. Dupont. – E nenhum alemão.

– Verdade – disse Lorde Barralonga. – Começamos à frente dos hunos aqui, e podemos nos manter dessa forma.

– E presumo – disse o sr. Hunker – que os japoneses estão barrados.

– Não há motivo para não começarmos do zero, barrando todas as cores – refletiu Lorde Barralonga. – Este me parece um Mundo do Homem Branco.

– Ao mesmo tempo – disse o sr. Dupont, frio e insistente –, perdoem-me se peço uma definição mais clara de nossa presente e alguma garantia, alguma garantia efetiva de que os imensos sacrifícios que a França fez e ainda faz pela causa da vida civilizada receberão o devido reconhecimento e a devida recompensa nesta aventura... Peço apenas justiça – disse o sr. Dupont.

Parte 5

A indignação tornou o sr. Barnstaple destemido. Desceu de seu posto no muro e foi até a mesa.

– Vocês estão loucos – disse ele – ou eu que estou? Essa rixa sobre bandeiras e países, direitos e créditos, é uma idiotice inútil. Não percebem nem agora em que posição estamos?

O fôlego o deixou por um momento; então, ele prosseguiu.

– Vocês são incapazes de pensar nos assuntos humanos, exceto em termos de bandeiras, disputas, conquistas e roubo? Não conseguem perceber a proporção das coisas e a qualidade deste mundo em que caímos? Como eu já disse, somos como um grupo de selvagens num espetáculo em Earl’s Court, planejando a dominação de Londres. Somos como canibais suprimidos no coração de uma grande cidade, sonhando em reavivar nossas imundícies antigas e esquecidas. Quais são nossas chances nesta luta fantástica?

O sr. Ridley respondeu em tom de reprovação:

– Está esquecendo tudo o que você já ouviu. Tudo. Metade da população deles está tomada por gripes e moléstias. E não há nenhuma vontade saudável de lutar em Utopia.

– Precisamente – disse o sr. Catskill.

– Bem, supondo que vocês tenham chances. Se isso torna seus planos mais promissores, também os torna mais terríveis. Aqui fomos alçados dos problemas de nosso tempo para uma visão, para a realidade de uma civilização que nosso mundo pode apenas sonhar em alcançar em dezenas de séculos! Este é um mundo em paz, esplêndido, feliz, cheio de sabedoria e esperança! Se nossa força pífia e astúcia vil puderem forjá-lo, nós o arruinaremos! Estamos propondo destruir um mundo! Eu digo que não é uma aventura. É um crime. É uma abominação. Não vou fazer parte disso. Sou contra essa tentativa.

O padre Amerton quis falar, mas o sr. Burleigh o impediu com um gesto.

– O que sugere que façamos? – perguntou o sr. Burleigh.

– Que nos submetamos à ciência deles. Que aprendamos o que pudermos com eles. Em pouco tempo, podemos ser curados de nossos venenos inerentes e poderemos ter permissão de voltar deste deserto remoto feito de minas, turbinas e rochas para aqueles jardins de habitações que mal vimos ainda. Lá poderemos aprender algo sobre civilização... No final, talvez até possamos voltar ao nosso mundo desordenado com conhecimentos, com esperança e com ajuda – missionários de uma nova ordem.

– Mas por quê? – começou o padre Amerton.

Novamente, o sr. Burleigh tomou a palavra.

– Tudo o que o senhor diz – observou ele – se apoia em suposições não comprovadas. Escolheu ver Utopia com lentes cor-de-rosa. Nós somos – ele contou – onze contra um e vemos as coisas sem essas pressuposições favoráveis.

– E posso perguntar, senhor – disse o padre Amerton, erguendo-se de um salto e acertando a mesa com um golpe que fez todos os copos chacoalharem. – Posso perguntar quem é o senhor para se eleger juiz e censor da opinião geral da humanidade? Pois eu digo, senhor, que aqui neste estranho, solitário e perverso mundo, nós aqui, nós doze, representamos a humanidade. Somos a guarda avançada, os pioneiros no novo mundo que Deus nos deu, assim como deu Canaã a Israel. Seus escolhidos, três mil anos atrás. Quem é o senhor...

– Exatamente – disse Penk. – Quem é o senhor?

E o sr. Ridley reforçou a indagação com um grito.

– Quem diabos é você?

O sr. Barnstaple não tinha habilidade política para enfrentar um ataque tão direto. Permaneceu parado. Incrivelmente, Lady Stella foi em seu socorro.

– Isso não é justo, padre Amerton – disse ela. – Quem quer que seja o sr. Barnstaple, ele tem todo o direito de expressar sua opinião.

– E a tendo expressado – disse o sr. Catskill, que estivera caminhando de um lado para o outro do lado oposto da mesa onde estava o sr. Barnstaple. – Tendo a expressado, permita que prossigamos com o assunto em questão. Suponho que era inevitável encontrarmos um objetor consciente entre nós, mesmo em Utopia. O resto de nós, pelo que entendo, tem a mesma opinião sobre a situação.

– Temos – disse o sr. Mush, olhando para o sr. Barnstaple com uma expressão malévola.

– Muito bem. Então creio que devemos seguir os precedentes estabelecidos para esses casos. Não vamos pedir que o sr... sr. Barnstaple compartilhe os perigos e as honras de um combatente. Só pedimos que realize um trabalho civil de natureza útil...

O sr. Barnstaple ergueu a mão.

– Não – disse ele. – Não me disponho a ser útil. Não reconheço a analogia dessa situação com a necessidade de uma Grande Guerra e, de qualquer forma, sou inteiramente contra esse projeto, um banditismo contra uma civilização. Não pode dizer que me objeto conscientemente a lutar, porque não me oponho a lutar por uma causa justa. Mas essa aventura de vocês não é uma causa justa... Eu imploro, sr. Burleigh, ao senhor, que não é apenas um político, mas um homem culto e um filósofo, que reconsidere o que está sendo incitado: atos de violência e maldade dos quais não poderemos recuar!

– Sr. Barnstaple – disse o sr. Burleigh com grave dignidade e um certo tom de reprovação em sua voz –, eu já considerei. Mas acho que posso me atrever a dizer que sou um homem de alguma experiência, alguma experiência tradicional em assuntos humanos. Posso não concordar totalmente com meu amigo, o sr. Catskill. Não! Vou além e digo que em muitos aspectos não concordo com ele. Se eu fosse o autocrata aqui, diria que temos de oferecer resistência a esses utopianos, pelo nosso amor-próprio, mas não a resistência violenta e agressiva que ele cogita. Acho que poderíamos ser bem mais sutis, mais elaborados e ter bem mais sucesso do que o sr. Catskill teria. Mas essa é a minha opinião. Nem o sr. Hunker, nem o Lorde Barralonga, nem o sr. Mush ou o sr. Dupont compartilham dela. Nem o senhor... Nossos amigos, os... ahn... os engenheiros técnicos daqui compartilham dela. E o que eu percebo ser imperativo para o nosso pequeno grupo de terráqueos, perdido aqui neste estranho universo, é unidade de ação. Seja o que for que aconteça, as divergências não podem nos trair. Devemos nos manter juntos e agir juntos como um só corpo. Discutam se quiserem, quando houver tempo para discussão, mas no final decidam. E, tendo decidido, respeitem lealmente a decisão. Sobre a necessidade de manter um refém ou dois, eu não tenho a menor dúvida. O sr. Catskill está certo.

O sr. Barnstaple era um mal debatedor.

– Mas esses utopianos são tão humanos quanto nós – ele disse. – Tudo o que há de mais são e civilizado em nós mesmos está neles.

O sr. Ridley interrompeu numa voz propositadamente áspera:

– Ah, meu Deus! Não podemos ficar tagarelando aqui para sempre. O sol está se pondo e o sr... esse cavalheiro já disse o que devia, mais do que devia. Precisamos tomar nossas posições e saber o que é esperado de nós antes da noite. Posso propor que elejamos o sr. Catskill nosso capitão com plenos poderes militares?

– Eu apoio – disse o sr. Burleigh com humildade grave.

– Talvez o sr. Dupont possa agir comigo como capitão associado – disse o sr. Catskill –, representando nosso glorioso aliado, seu próprio grande país.

– Na ausência de um representante mais digno – concordou o sr. Dupont –, e para cuidar que os interesses dos franceses sejam devidamente respeitados.

– E se o sr. Hunker agisse como meu tenente? Lorde Barralonga será nosso intendente e o padre Amerton nosso capelão e censor. O sr. Burleigh, nem é preciso dizer, será nosso chefe civil.

O sr. Hunker tossiu. Franziu a testa com a expressão de alguém que daria uma explicação difícil.

– Não serei exatamente tenente – ele disse. – Não assumirei um posto oficial. Tenho uma certa aversão por... por embaraços estrangeiros. Serei um espectador que auxilia. Mas acho que verão que podem contar comigo, cavalheiros, quando a ajuda for necessária.

O sr. Catskill se sentou na cabeceira da mesa e indicou a cadeira ao seu lado para o sr. Dupont. A srta. Greeta Grey se sentou do outro lado, entre ele e o sr. Hunker. O sr. Burleigh permaneceu em seu lugar, a uma cadeira do sr. Hunker. O resto se colocou ao redor do Capitão, exceto por Lady Stella e o sr. Barnstaple.

Quase de forma ostensiva, o sr. Barnstaple virou as costas para o novo comando. Viu que Lady Stella continuava sentada bem longe, olhando desconfiada para o pequeno grupo de pessoas na ponta. Então, seu olhar se dirigiu para o pico desolado de montanha além.

Ela estremeceu violentamente e se ergueu.

– Vai bem-fazer muito frio aqui depois do pôr do sol – ela disse, sem ninguém se importar. – Vou tirar um agasalho da mala.

Ela caminhou lentamente para seus aposentos e não reapareceu.

Parte 6

O sr. Barnstaple não queria parecer ouvir o Conselho de Guerra. Andou para o muro do velho castelo, subiu um lance de escadas de pedra e passou pelo baluarte até chegar ao cume do promontório. Lá, o som das águas batendo e correndo nos dois cânions convergentes era bem alto.

Ainda havia uma borda de rocha iluminada pelo sol na face da montanha atrás dele, mas o resto do mundo agora estava numa crescente sombra azul, e uma névoa branca e lanosa se formava nos cânions abaixo, escondendo as correntes ruidosas. Erguia-se quase até o nível da pequena ponte que cruzava o cânion mais estreito e até uma trilha cercada do cume até o outro lado. Pela primeira vez desde que chegara a Utopia, o sr. Barnstaple sentiu um certo frio no ar. E uma solidão que parecia uma dor.

Sobre o mais largo dos cânions que se encontravam, acontecia algum trabalho de engenharia, e flashes periódicos iluminavam a névoa oscilante. Bem ao longe sobre as montanhas, uma aeronave solitária, que voava bem alto, refletia os raios de sol de tempos em tempos e lançava para o chão flashes de uma luz dourada ofuscante, e então, fazendo uma curva, desapareceu novamente no azul profundo.

Ele olhou para o grande pátio do antigo castelo abaixo dele. Os prédios modernos à luz do crepúsculo pareciam pavilhões fantasmagóricos em meio à alvenaria arcaica. Alguém havia trazido um lampião, e o Capitão Rupert Catskill, o novo Cortez, escrevia ordens enquanto seu comando o cercava.

A luz brilhava no rosto, ombros e braços da srta. Greeta Grey; ela espiava sobre o braço do capitão para ver o que ele escrevia. E, enquanto o sr. Barnstaple a olhava, ela ergueu a mão repentinamente para esconder um bocejo involuntário.


CAPÍTULO TRÊS
O SR. BARNSTAPLE COMO TRAIDOR DA HUMANIDADE

Parte 1

O sr. Barnstaple passou grande parte da noite sentado em sua cama, remoendo os incalculáveis elementos da situação na qual se encontrava.

O que ele poderia fazer? O que ele deveria fazer? Com quem estava sua lealdade? As sombrias tradições e infecções da Terra haviam transformado aquele encontro maravilhoso num antagonismo feio e perigoso, rápido demais para ele adaptar sua mente à nova situação. Diante dele, agora apenas duas possibilidades pareciam abertas. Ou os utopianos provariam ser mais fortes e sábios e ele e seus colegas piratas seriam esmagados e mortos como vermes, ou as ambições desesperadas do sr. Catskill seriam concretizadas e eles se tornariam uma ferida se espalhando sobre o belo corpo daquela nobre civilização, um bando de ladrões e destruidores, arrastando Utopia ano após ano e era após era de volta às condições terrestres. Parecia haver apenas uma escapatória para o dilema: fugir da fortaleza dos utopianos, revelar todo o esquema dos terráqueos a eles e deixar a si e seus colegas à mercê deles. Mas isso tinha de ser feito logo, antes de os reféns serem tomados e o derramamento de sangue começar.

Mas, em primeiro lugar, poderia ser muito difícil se afastar do grupo de terráqueos. O sr. Catskill já devia ter organizado vigias e sentinelas, e a posição peculiar do penhasco expunha cada via de escape. E, em segundo lugar, o sr. Barnstaple tinha um hábito arraigado e vitalício que o predispunha contra a delação e a ação discordante. Seu treinamento escolar o havia moldado para a subserviência a qualquer grupo ou gangue na qual ele se encontrasse; sua classe, seus arredores, sua casa, sua escola, seu clube, seu grupo e assim por diante. Mesmo assim, sua inteligência e curiosidade sem limites sempre se opuseram a essas estreitas conspirações contra o mundo em geral. Seu espírito o havia tornado um rebelde desconfortável durante toda sua existência terrena. Detestava partidos e líderes políticos, desprezava e rejeitava o nacionalismo e o imperialismo e todas aquelas lealdades vulgares associadas a eles; o conquistador agressivo, o capitalista ganancioso, o homem de negócios impositivo, ele os detestava como detestava vespas, ratos, hienas, tubarões, pulgas, urtigas e assim por diante; a vida toda ele havia sido um cidadão de Utopia exilado na Terra. À sua moda, ele havia buscado servir Utopia. Por que não servir Utopia agora? Se seu grupo era pequeno e desesperado, isso não era motivo para ele servir coisas que odiava. Se era um grupo desesperado, também era um grupo maligno. Não havia motivo para o liberalismo degenerar até uma paixão mórbida por minorias...

Apenas duas pessoas entre os terráqueos, Lady Stella e o sr. Burleigh, inspiravam-lhe alguma simpatia. E ele tinha suas dúvidas sobre o sr. Burleigh, que era uma dessas pessoas estranhas que pareciam entender tudo e não sentir nada. Dava ao sr. Barnstaple a impressão de ser inteligentemente irresponsável. Aquilo não era mais maligno do que ser um aventureiro sem inteligência como Hunker ou Barralonga?

A mente do sr. Barnstaple retornou de uma longa excursão no reino da ética para a realidade ao redor dele. No dia seguinte ele examinaria sua posição e faria seus planos, e talvez escapasse ao anoitecer.

Era totalmente típico dele adiar suas ações daquele modo pela maior parte do dia. Sua vida havia sido feita de ações adiadas quase desde o início.

Parte 2

Mas os acontecimentos não podiam esperar pelo sr. Barnstaple.

Ele foi chamado ao amanhecer por Penk, que disse que dali em diante a guarnição seria acordada todas as manhãs por uma sirene elétrica que ele e Ridley haviam criado. Enquanto Penk falava, o uivo devastador de sua invenção inaugurou a nova era. Ele estendeu ao sr. Barnstaple um pedaço de papel tirado de um caderno, no qual o sr. Catskill havia escrito:

“Não combatente Barnany. Ajudar Ridley a preparar o café da manhã, almoço e jantar; horários e cardápio na parede do refeitório; tirar a mesa e lavar a louça; no restante do tempo, estar à disposição do tenente Hunker, no laboratório de química, para fazer experiências e fabricar bombas. Manter o laboratório limpo.”

– Esse é o seu trabalho – disse Penk. – Ridley está esperando por você.

– Bem – disse o sr. Barnstaple, e levantou-se. Não adiantava precipitar uma discussão se ele quisesse fugir. Então, ele foi até o ferido e enfaixado Ridley, e eles produziram uma boa imitação de uma cozinha militar britânica daquele grande ano brutal, 1914.

Todos estavam presentes para o café da manhã às seis e meia, graças a um segundo solo da sirene. Os homens foram enfileirados e inspecionados pelo sr. Catskil, com o sr. Dupont ao lado dele; o sr. Hunker estava paralelo aos dois, a alguns metros de distância; todos os outros homens se sujeitaram, exceto o sr. Burleigh, que era o comandante civil em Utopia e estava, nessa capacidade, na cama, e o sr. Barnstaple era o não combatente.

A srta. Greeta Grey e Lady Stella estavam sentadas num canto ensolarado do pátio, costurando uma bandeira. Seria uma bandeira azul com uma estrela branca, um padrão suficientemente diferente de qualquer outra bandeira nacional existente para evitar ferir as susceptibilidades patrióticas de qualquer um do grupo. Representaria a Liga das Nações Terrenas.

Depois da inspeção, a pequena guarnição se dispersou rumo a seus diversos postos e deveres, o sr. Dupont assumiu o comando e o sr. Catskill, que havia ficado de vigia a noite toda, foi se deitar. Ele tinha o dom napoleônico de dormir por cerca de uma hora a qualquer momento do dia.

O sr. Penk subiu ao topo do castelo, onde a sirene estava instalada, para ficar de vigia.

Havia alguns momentos a serem aproveitados entre a hora em que o sr. Barnstaple tivesse acabado de trabalhar com Ridley e a hora em que Hunker descobriria que seu ajudante estava disponível, e ele dedicou esse tempo à inspeção do muro do castelo no lado das encostas. Enquanto estava no antigo baluarte avaliando suas chances de escapar ao anoitecer, uma aeronave apareceu acima do penhasco e pousou na encosta mais próxima. Dois utopianos desceram, conversaram com o piloto por algum tempo e então viraram o rosto em direção à fortaleza dos terráqueos.

Um único toque da sirene trouxe o sr. Catskill à muralha ao lado do sr. Barnstaple. Ele sacou um binóculo e examinou as figuras que se aproximavam.

– Serpentine e Cedar – ele disse, abaixando o binóculo. – E vêm sozinhos. Isso é bom.

Ele se virou e fez um sinal com a mão para Penk, que respondeu com dois toques curtos de sua sirene. Era o sinal para uma assembleia geral.

Abaixo, no pátio, apareceu o resto da força aliada, e o sr. Hunker uniu-se a ela com uma razoável imitação de disciplina.

O sr. Catskill passou pelo sr. Barnstaple sem notá-lo, juntou-se ao sr. Dupont, ao sr. Hunker e a seus subordinados e passou a instruí-los sobre seus planos para a crise iminente. O sr. Barnstaple não conseguia ouvir o que estava sendo dito. Ele notou com desaprovação sardônica que cada homem batia os calcanhares e fazia continência cada vez que o sr. Catskill terminava de falar com ele. Então, a uma palavra de comando, eles se dispersaram rumo a seus postos.

Havia um lance de escadas parcialmente destruído que descia do nível do pátio através de uma grande arcada no muro e que dava acesso às encostas abaixo. Ridley e Mush desceram pelo lado direito desses degraus e se postaram debaixo de uma laje que se projetava para ficarem escondidos de qualquer um que viesse de baixo. O padre Amerton e o sr. Hunker se esconderam de forma similar do lado esquerdo. O sr. Barnstaple notou que o padre Amerton estava com um rolo de corda, e então seu olhar errante descobriu o sr. Mush fitando uma pistola em sua mão e depois devolvendo-a a seu bolso. Lorde Barralonga posicionou-se alguns degraus acima do sr. Mush e tirou um revólver, que segurou com sua mão eficiente. O sr. Catskill permaneceu no topo da escada. Também segurava um revólver. Ele se virou para a cidadela, considerando o caso de Penk por um momento, e então fez sinal para que ele se juntasse aos outros. O sr. Dupont, armado com uma robusta perna de mesa, colocou-se ao lado direito do sr. Catskill.

Por algum tempo, o sr. Barnstaple observou essas posições sem perceber seu significado. Então, seu olhar passou das figuras agachadas dentro do castelo para os dois utopianos desavisados vindo em direção a eles, e ele se deu conta de que, em alguns minutos, Serpentine e Cedar estariam se debatendo nas mãos de seus captores...

Ele percebeu que tinha de agir. E sua vida havia sido contemplativa, crítica, sem o hábito de tomar decisões.

E notou que tremia violentamente.

Parte 3

Ele ainda desejava alguma intervenção mediadora, mesmo naqueles últimos momentos fatais. Ergueu o braço e gritou “Oi!”, tanto para os terráqueos abaixo quanto para os utopianos adiante. Ninguém notou nem seu gesto, nem seu fraco grito.

Então, sua vontade pareceu romper um emaranhado de obstáculos e chegar a uma simples ideia. Serpentine e Cedar não deviam ser capturados. Ficou impressionado e indignado com sua própria hesitação. Claro que eles não deviam ser capturados! Aquela tolice devia ser interrompida imediatamente. Em quatro passadas, ele estava no muro sobre a arcada e agora gritou alto e claro.

– Perigo! Perigo! – e novamente: – Perigo!

Ouviu o grito de surpresa de Catskill, e então uma bala de pistola passou zunindo perto dele.

Serpentine parou na mesma hora e olhou para cima, tocou o braço de Cedar e apontou.

– Esses terráqueos querem prendê-los. Não venha aqui! Perigo! – gritou o sr. Barnstaple acenando com os braços, e “bam, bam, bam”, o sr. Catskill experimentou as decepções de atirar com um revólver.

Serpentine e Cedar estavam voltando, mas lenta e hesitantemente. Por um momento, o sr. Catskill não soube o que fazer. Então, ele se lançou pela escada gritando:

– Atrás deles! Detenham-nos! Vamos!

– Recuem! – gritou o sr. Barnstaple para os utopianos. – Recuem! Rápido! Rápido!

Ele ouviu um estrondo de passadas abaixo dele, e então os oito homens que constituíam a força de combate dos terráqueos em Utopia emergiram de sob a arcada correndo atrás dos dois atônitos utopianos. O sr. Mush liderava, com Ridley no seu encalço; ele apontava o revólver e gritava. Em seguida vinha o sr. Dupont, zeloso e ativo. O padre Amerton vinha na retaguarda com a corda.

– Voltem! – gritou o sr. Barnstaple, com sua voz falhando.

Então, ele parou de gritar e observou, com as mãos apertadas.

O piloto corria pela encosta, deixando sua máquina para ajudar Serpentine e Cedar. E acima, inesperadamente, outras duas aeronaves apareceram.

Os dois utopianos desdenharam de se apressar e, em poucos segundos, seus perseguidores os alcançaram. Hunker, Ridley e Mush lideravam o ataque. O sr. Dupont, brandindo a perna de mesa, estava ao lado deles, mas correndo para a direita, como se pretendesse se postar entre eles e o aviador. O sr. Catskill e Penk estavam um pouco atrás dos três; Barralonga, que estava armado, estava talvez a uns dez metros de distância; e o padre Amerton havia parado para enrolar sua corda de forma mais conveniente.

Pareceu haver um momento de negociação; então, Serpentine se moveu rapidamente como que para dominar Hunker. Uma pistola estalou, então outra disparou rapidamente, três vezes.

– Meu Deus! – exclamou o sr. Barnstaple. – Meu Deus! – vendo Serpentine levantar os braços e cair para trás; então, Cedar agarrou e levantou Mush e o arremessou sobre o sr. Catskill e Penk, derrubando os dois, que se tornaram uma massa indistinguível. Com um grito selvagem, o sr. Dupont avançou para Cedar, mas não rápido o bastante. Seu bastão acertou o ar enquanto Cedar se desviava do golpe, e então o utopiano se abaixou, pegou-o por uma perna, derrubou-o, levantou-o e o girou no ar como se fosse um coelho, acertando em cheio o sr. Hunker.

Lorde Barralonga recuou alguns passos e começou a atirar no piloto que se aproximava.

A confusão de braços e pernas no chão se tornou três pessoas separadas novamente. Gritando ordens, o sr. Catskill investiu contra Cedar, seguido por Penk e Mush e, um momento depois, por Hunker e Dupont. Agarraram Cedar como cães de caça agarram um porco selvagem. Repetidas vezes, ele os arremessou para longe. O padre Amerton os cercava inutilmente segurando sua corda.

Por alguns momentos, a atenção do sr. Barnstaple se concentrou nessa tentativa vacilante e cambaleante de dominar Cedar; então, notou outros utopianos correndo encosta abaixo para se juntarem à refrega... As outras duas aeronaves haviam pousado.

O sr. Catskill percebeu a chegada desses reforços quase ao mesmo tempo que o sr. Barnstaple. Seus gritos de “Recuem! De volta ao castelo!” chegaram aos ouvidos do sr. Barnstaple. Os terráqueos se afastaram da figura alta e desgrenhada, hesitaram e começaram a andar e depois correr para o castelo.

Então, Ridley se virou e deliberadamente atirou em Cedar, que apertou o peito e caiu em posição sentada.

Os terráqueos se retiraram até o pé da escada que levava ao castelo, passando pela arcada, e ficaram lá, um grupo desordenado, ferido e ofegante. A cinquenta metros de distância, Serpentine estava imóvel, o piloto em quem Barralonga havia atirado se contorcia e gemia e Cedar sentava-se com sangue no peito, tentando sentir as costas. Cinco outros utopianos chegaram correndo para ajudá-los.

– Que tiroteio todo foi esse? – perguntou Lady Stella, surgindo de repente ao lado do sr. Barnstaple.

– Eles pegaram os reféns? – perguntou a srta. Greeta Grey.

– Pelo amor de Deus! – disse o sr. Burleigh, que chegara ao muro a poucos metros deles. – Isso nunca poderia ter acontecido. Como se deu esse... fracasso, Lady Stella?

– Eu os alertei – disse o sr. Barnstaple.

– Você... os alertou? – questionou o sr. Burleigh, incrédulo.

– Uma traição que eu não havia calculado – veio a voz raivosa do sr. Catskill, deixando a arcada e subindo.

Parte 4

Por alguns momentos, o sr. Barnstaple não tentou escapar do perigo que se acercava dele. Sempre vivera uma vida muito segura e, como ocorria com indivíduos altamente civilizados, seu poder de apreender perigos pessoais estava muito atrofiado. Era um espectador, por temperamento e treinamento. Agora era como se olhasse a si mesmo, a figura central de uma grande e irremediável tragédia. A ideia de fugir lhe veio tardiamente, de modo relutante e compungido.

– Fuzilado como um traidor – disse em voz alta. – Fuzilado como um traidor.

Havia aquela ponte no desfiladeiro estreito. Ainda podia passar por ela, se fosse imediatamente. Se fosse rápido, mais rápido do que eles. Era inteligente demais para sair correndo; isso certamente colocaria os outros no seu encalço. Caminhou pelo muro vagarosamente, passando pelo sr. Burleigh, ele mesmo civilizado demais para intervir. Apressando o passo, ele ganhou os degraus que levavam à fortaleza. Então, parou por um momento, avaliando a situação. Catskill estava ocupado distribuindo sentinelas no portão. Talvez ainda não tivesse pensado na pequena ponte e imaginava que o sr. Barnstaple estaria a seu dispor a qualquer hora que ele quisesse. Subindo a encosta, os utopianos carregavam os homens mortos ou feridos.

O sr. Barnstaple subiu os degraus como que mergulhado em pensamentos e permaneceu na fortaleza por alguns segundos, as mãos nos bolsos da calça, como se examinasse a vista. Então, ele se virou para a escadaria em espiral, que descia para algum tipo de guarita abaixo. Assim que se certificou de que estava fora de vista, começou a pensar e se mover muito rapidamente.

A guarita era intrigante. Tinha cinco portas e todas podiam levar para a escadaria, exceto aquela pela qual ele havia acabado de entrar. Contra uma delas, no entanto, havia uma pilha de malas bem arrumadas. Com isso, restavam-lhe três para ele escolher. Correu de uma porta para outra, deixando cada uma aberta. Em cada caso, degraus de pedra levavam a um patamar. Hesitou diante da terceira e notou que um vento frio entrava por ela. Com certeza, aquilo significava que descia pela face do penhasco, ou de onde viria o ar? Com certeza era isso!

Ele deveria fechar as portas que havia aberto? Não! Deixaria todas abertas.

Ouviu um estrondo enquanto descia a escadaria da fortaleza. Suave e rapidamente, desceu os degraus e se deteve por um segundo no patamar do canto. Foi compelido a parar e escutar o movimento de seus perseguidores.

– Esta é a porta para a ponte, senhor! – ouviu Ridley gritar. Depois, ouviu Catskill dizer:

– A Rocha Tarpeia.

E então Barralonga:

– Exatamente! Para que gastar um cartucho? Tem certeza de que esta leva à ponte, Ridley?

Os passos tamborilaram através da guarita e desceram por outra das escadas.

– Um momento de alívio! – sussurrou o sr. Barnstaple, e então parou boquiaberto.

Ele estava preso! A escadaria onde eles estavam era a escada para a ponte!

Eles desceriam até a ponte e, logo que chegassem nela, veriam que ele não estava lá, nem nos degraus do lado oposto do desfiladeiro e que, portanto, não podia ter escapado. Certamente, eles barrariam aquele caminho, fosse fechando cada porta ou, se não conseguissem bloqueá-las, colocando uma sentinela, e então voltariam para caçá-lo tranquilamente.

O que Catskill havia dito? A Rocha Tarpeia?

Horrível!

Eles não podiam capturá-lo vivo...

Ele deveria lutar como um rato encurralado e obrigá-los a atirar nele...

Continuou a descer a escadaria, que se tornou muito escura e depois clareou novamente. Terminou em um grande porão simples, que outrora poderia ter sido uma sala de armas ou armazém. Era razoavelmente iluminado por duas janelas sem lustro cortadas na rocha. Agora continha um estoque de provisões. De um lado havia um conjunto de garrafas parecidas com cantis, que eram usadas para vinho em Utopia; do outro lado, havia uma miscelânea de caixas para empacotar e cubos enrolados em folhas douradas. Ele levantou uma das garrafas de vidro pelo gargalo. Funcionaria como uma arma. E se ele fizesse um tipo de barreira com as caixas na entrada e ficasse ao lado dela, poderia acertar seus perseguidores quando entrassem! Vidro e vinho iriam se esparramar sobre seus crânios... Levaria tempo para fazer a barreira... Ele escolheu e carregou três das garrafas maiores para a porta, onde estariam ao alcance dele. Então, ele teve uma inspiração e olhou para a janela.

Encostou o ouvido na porta da escadaria. Nenhum som vinha de cima. Foi para a janela, deitou-se no vão profundo e rastejou até poder ver o exterior, para cima e para baixo. O penhasco abaixo despencava, escarpado; ele poderia ter se espatifado na correnteza feroz a uns quinhentos metros abaixo. O rochedo ali era feito de camadas quase verticais que se projetavam e recuavam; um grande contraforte escondia quase toda a ponte, exceto o trecho mais distante, que parecia estar a vinte ou trinta metros abaixo da abertura de onde o sr. Barnstaple olhava. O sr. Catskill apareceu sobre a ponte, muito pequeno e distante, examinando a escadaria rochosa além dela. O sr. Barnstaple recuou rapidamente a cabeça. Então, espiou de novo muito discretamente. O sr. Catskill não estava mais à vista. Estava voltando.

Ao trabalho! Não havia muito tempo.

Em sua juventude, antes de a Grande Guerra tornar as viagens raras e desconfortáveis, o sr. Barnstaple fizera algumas escaladas na Suíça e também teve alguma experiência em Cumberland e Gales. Examinou agora as rochas próximas dele com uma perícia inteligente. Eram cortadas por planos quase horizontais, nos quais houvera uma considerável infiltração, principalmente de um material branco e cristalino. Aquilo, que ele julgava ser calcita, havia se desgastado mais rapidamente do que o material geral da rocha, deixando uma série de fendas irregulares horizontais. Com sorte, seria possível subir pela face do penhasco, virar no contraforte e chegar à ponte.

E então lhe veio uma ideia ainda mais promissora. Ele poderia facilmente passar pela face do penhasco até a primeira reentrância, se apertar lá e permanecer até que os terráqueos tivessem vasculhado o porão. Depois que a busca acabasse, ele poderia voltar ao porão. Mesmo que olhassem pela janela, eles não o veriam. E mesmo que deixasse marcas de dedos ou algo assim no vão, eles provavelmente concluiriam que ele ou havia pulado ou caído do penhasco. Mas no começo poderia ser lento cruzar a face do penhasco... E isso o afastaria de suas armas, as garrafas...

Mas a ideia de se esconder na reentrância havia se apoderado de sua imaginação. Cuidadosamente, ele saiu pela janela, encontrou um corrimão, pisou no beiral e começou a seguir em direção ao nicho.

Contudo, houve dificuldades inesperadas, uma fenda de quase cinco metros no corrimão – sem nada. Ele teve de se achatar contra a rocha e fincar os pés, e por um tempo permaneceu parado naquela posição.

Mais à frente, encontrou um trecho apodrecido do mineral venoso, que se partiu sob ele de forma aterradora, mas, felizmente, ele se agarrou pelos dedos e firmou o outro pé. Os cristais soltos deslizaram pela rocha por um momento e depois não fizeram mais som algum. Haviam caído no vazio. Por algum tempo, ele ficou paralisado.

– Não estou em boa forma – sussurrou o sr. Barnstaple. – Não estou em boa forma.

Ele se agarrou, imóvel, e rezou.

Com esforço, retomou a travessia.

Estava bem na ponta da reentrância quando um leve ruído atraiu seu olhar para a janela de onde havia emergido. O rosto de Ridley se projetou para fora dela lenta e cuidadosamente, seu olho vermelho e feroz entre os curativos brancos.

Parte 5

Ele não viu o sr. Barnstaple de início.

– Diacho! – ele disse quando viu, e recuou a cabeça rapidamente.

Ouviu vozes dizendo palavras indistintas.

Algum instinto inapropriado manteve o sr. Barnstaple ainda mais imóvel, apesar de que poderia ter se escondido na reentrância facilmente antes de o sr. Catskill espiar para fora empunhando o revólver.

Por alguns momentos, eles se encararam em silêncio.

– Volte ou eu atiro – disse o sr. Catskill, sem convicção.

– Atire! – disse o sr. Barnstaple após um momento de reflexão.

O sr. Catskill inclinou a cabeça para fora e olhou as profundezas azuis do cânion.

– Não é necessário – ele respondeu. – Precisamos economizar cartuchos.

– Você não tem coragem – disse o sr. Barnstaple.

– Não é bem isso – disse o sr. Catskill.

– Não – disse o sr. Barnstaple. – Não é. Você é fundamentalmente um homem civilizado.

O sr. Catskill franziu a testa para ele sem hostilidade.

– Você tem uma ótima imaginação – o sr. Barnstaple refletiu. – O problema é ter sido terrivelmente educado. Qual é seu problema? Você leu Kipling. O Império, os anglo-saxões, escoteiros e detetives povoam sua mente. Se eu tivesse estudado em Eton, poderia ser como você, creio eu.

– Harrow – corrigiu o sr. Catskill.

– Uma escola pública completamente bestial. Um lugar suburbano onde os meninos usam chinós e chapéus de palha. Eu devia ter dito Harrow. Mas é estranho que eu não lhe tenha rancor. Se tivesse recebido ideias decentes, você poderia ter sido bem diferente do que é. Se eu tivesse sido seu professor... Mas é tarde demais agora.

– É mesmo – disse Rupert Catskill com um sorriso cordial, e voltou os olhos para o cânion abaixo.

O sr. Barnstaple começou a tatear em busca do beiral com o pé.

– Ainda não vá – disse o sr. Catskill. – Não vou atirar.

Uma voz vinda de dentro, provavelmente de Lorde Barralonga, disse algo sobre jogar uma pedra no sr. Barnstaple. Outra pessoa, provavelmente Ridley, aprovou ferozmente.

– Não sem o devido julgamento – disse o sr. Catskill sobre o ombro. Seu rosto era inescrutável, mas uma ideia fantástica começou a percorrer a mente do sr. Barnstaple: a de que o sr. Catskill não o queria morto. Ele havia refletido e agora queria que ele escapasse – que fosse até os utopianos e talvez conseguisse algum acordo com eles.

– Pretendemos julgá-lo, senhor – disse o sr. Catskill. – Pretendemos julgá-lo. Convocamos sua presença. – O sr. Catskill umedeceu os lábios e ponderou. – A corte se reunirá quase imediatamente. – Com seus pequenos olhos castanhos, ele estimou rapidamente as chances do sr. Barnstaple. Virou o pescoço para a ponte. – Não vamos perder tempo com procedimentos – disse. – E tenho poucas dúvidas de seu veredicto. Vamos condená-lo à morte. Então, é isso, senhor. Duvido que gastemos mais que um quarto de hora até que seu destino seja legalmente selado. – Ele olhou para cima, tentando ver o topo do penhasco. – Provavelmente, vamos apedrejá-lo – ele disse.

– Moriturus te saluo – disse o sr. Barnstaple, com ar de ter dito algo espirituoso. – Se me der licença, vou procurar uma posição mais confortável.

O sr. Catskill continuou olhando-o atentamente.

– Eu nunca quis o seu mal – disse o sr. Barnstaple. – Se eu tivesse sido seu professor, tudo poderia ter sido diferente. Obrigado pelo quarto de hora a mais que me deu. E se por acaso...

– Exatamente – disse o sr. Catskill.

Eles se entendiam.

Quando o sr. Barnstaple se voltou para dentro da reentrância, o sr. Catskill ainda olhava para fora e era possível ouvir baixinho Lorde Barralonga defendendo o imediato apedrejamento.

Parte 6

É impossível descobrir os caminhos da mente humana. Do desespero, o ânimo do sr. Barnstaple passara para a euforia. Seu horror inicial e doentio de escalar aquela altura imensa deu lugar agora a uma segurança quase infantil. Sua sensação de morte iminente se fora. Ele apreciava aquela aventura, de fato a estava desfrutando, com um total desprezo por como iria terminar.

Ele avançou num bom ritmo até o ângulo do contraforte, apesar de seus braços começarem a doer muito, e então sofreu um choque. Teve uma visão completa da ponte e da garganta estreita. O beiral por onde ele seguia não chegava até a ponte. Passava uns bons dez metros abaixo dela. E, o que era pior, entre ele e a ponte havia duas ravinas e chaminés de profundidade incerta. Com essa descoberta, ele se arrependeu pela primeira vez de não ter ficado no porão e lutado lá.

Permaneceu indeciso por alguns minutos, com a dor em seus braços aumentando.

Foi tirado de sua inércia pelo que ele pensou inicialmente ser a sombra de um pássaro voando rapidamente sobre a rocha. Logo a ave retornou. Ele esperava não ser atacado por pássaros. Havia lido uma história... mas já não importava.

Então, ouviu um estalo e olhou para cima. Viu uma pedra que acabara de atingir uma saliência sobre ele explodir em fragmentos. A partir desse incidente, primeiramente, ele concluiu que a corte havia chegado a um veredito negativo antes do tempo que lhe fora dado pelo sr. Catskill e, depois, que ele era visível de cima. Retomou sua travessia em direção ao abrigo da ravina com energia febril.

A ravina era melhor do que ele esperava – uma chaminé, difícil de subir, ele pensou, mas muito possível de descer. Era completamente inclinada. E, talvez a uns trinta metros abaixo, havia um tipo de degrau que formava uma reentrância bastante ampla, protegida por cima e espaçosa o suficiente para um homem se estender nela, se quisesse. Os braços do sr. Barnstaple poderiam descansar, e sem perder tempo ele desceu até ela e se entregou à deliciosa sensação de não se segurar em nada. Ele estava fora da vista e fora do alcance de seus perseguidores terráqueos.

Nos fundos da reentrância havia um filete d’água. Ele bebeu e começou a pensar em comida e a se arrepender de não ter alguma provisão do estoque no porão. Poderia ter aberto um dos cubos envoltos em folhas de ouro ou posto no bolso uma pequena garrafa de vinho. Vinho seria muito reconfortante naquele momento. Mas não adiantava pensar nisso. Permaneceu por um longo tempo, pelo que lhe pareceu, sobre sua preciosa plataforma, examinando a chaminé abaixo muito cuidadosamente. Parecia muito possível descer até embaixo. As laterais eram bem lisas, mas pareciam próximas o suficiente para ele descer apoiando as costas de um lado e os pés do outro.

Ele olhou para o relógio de pulso. Ainda não eram nove da manhã, era cerca de dez para as nove. Havia sido chamado por Ridley antes das cinco e meia. Às seis e meia ele servia o café da manhã no pátio. Serpentine e Cedar deviam ter aparecido por volta das oito. Em cerca de dez minutos Serpentine havia sido assassinado. Então, começou a fuga e a perseguição. Como as coisas haviam acontecido rapidamente!

Ele tinha o dia todo diante dele. Continuaria sua descida às nove e meia. Até lá, iria descansar... Era absurdo já sentir fome...

Voltou a descer antes das nove e meia. Talvez por uns trinta metros foi fácil. Então, em graus imperceptíveis, a ravina se alargou. Ele só percebeu quando começou a escorregar. Escorregou, debatendo-se furiosamente, por talvez sete metros e depois despencou mais uns três metros, e acertou uma rocha, sendo amparado por uma segunda plataforma, muito maior do que a de cima. Caiu com um baque forte e rolou – felizmente, rolou para dentro. Estava contundido, mas não ferido seriamente.

– Que sorte – ele disse. – Que sorte estou tendo.

Descansou por algum tempo. Então, confiante de que as coisas ficariam bem, preparou-se para inspecionar o estágio seguinte de sua descida. Foi com um tipo de incredulidade que ele descobriu que a chaminé abaixo daquela plataforma era absolutamente impossível de se descer. Era apenas uma rocha lisa e reta de cada lado, de pelo menos vinte metros de profundidade e dois metros de largura. Era melhor ele se jogar de uma vez do que tentar descer por ela. Então, viu que era igualmente impossível refazer seus passos. Ele não podia acreditar; parecia idiotice demais. Riu como riria se encontrasse a própria mãe recusando-se a reconhecê-lo após um dia de ausência.

Então, abruptamente, ele parou de rir.

Repetiu seu exame ponto a ponto. Tocou as rochas lisas ao redor dele.

– Mas isso é absurdo – ele disse, começando a suar frio. Não havia como sair daquele canto no qual ele tão trabalhosa e dolorosamente entrara. Não podia seguir em frente nem voltar atrás. Estava preso. Sua sorte havia acabado.

Parte 7

Ao meio-dia, segundo seu relógio de pulso, o sr. Barnstaple estava sentado na reentrância como um inválido esgotado que sofre de alguma doença incurável pode se sentar numa poltrona durante um alívio temporário de sua dor, sem nada para fazer e sem esperança. Não havia nem uma chance em dez mil de que algo acontecesse para libertá-lo da armadilha em que havia se metido. Havia um filete d’água atrás, mas nenhuma comida, nem mesmo uma folha de grama para mordiscar. A não ser que decidisse se jogar no desfiladeiro, ele iria morrer de fome... Talvez fosse frio de noite, mas não frio o suficiente para matá-lo.

Era àquele fim que ele chegava, do atormentado jornalismo de Londres e das domesticidades de Sydenham.

Que jornada estranha ele e o Perigo Amarelo haviam feito! Camberwell, Victoria, Hounslow, Slough, Utopia, o paraíso da montanha, uma centena de vislumbres fascinantes e tentadores de um mundo em que havia felicidade e ordem reais, aquela longa viagem de avião por meio mundo...

E agora a morte.

A ideia de abreviar seu sofrimento com um salto não o atraía. Ele ficaria lá e sofreria o que haveria de sofrer antes do fim. E a trezentos metros de distância estavam seus companheiros terráqueos, também aguardando seu destino... Era espantoso. Era prosaico...

Afinal, àquilo ou a algo parecido com aquilo a maior parte da humanidade haveria de chegar.

Cedo ou tarde, as pessoas tinham de viver e sofrer, tinham de pensar, pensar febrilmente e depois fracamente, finalmente cessar de pensar.

De modo geral, ele pensou, era preferível morrer daquela forma do que ter uma morte repentina, valia a pena olhar o rosto da morte por algum tempo, ter um momento para escrever finis em sua mente, pensar sobre a vida e sobre o que se viveu certo desapego, uma independência, que só a total incapacidade de alterar o que fosse dela agora poderia oferecer.

Naquele momento, sua mente estava clara e calma; uma serenidade melancólica como um céu limpo de inverno se apoderou dele. Havia sofrimento à frente, ele sabia, mas não acreditava que seria um sofrimento intolerável. Se acabasse sendo intolerável, o cânion poderia tragá-lo. Naquele aspecto, aquele abrigo na rocha era uma morte melhor do que muitas, um leito de morte mais conveniente. O leito de um doente apresentava uma ampla margem de dor, exibida para seu minucioso exame. Mas morrer de fome não era tão terrível, ele havia lido: haveria fome e dor, mais angustiantes no terceiro dia, e depois a pessoa enfraquecia e não sentia tanto. Não seria como a tortura de muitos casos de câncer ou a agonia de meningite; não seria nada tão ruim assim. Seria solitário. Mas se é menos solitário morrendo em casa? Eles vêm e dizem: “Pronto! Pronto!” e fazem pequenos serviços, mas há outros intercâmbios? Você segue solitário em seu caminho, com a fala, o movimento e o desejo de falar ou de se mover indo embora, e as vozes deles desvanecem... Em qualquer lugar, a morte é um ato muito solitário, um afastamento...

Um homem mais novo provavelmente acharia aquela solidão no abismo terrível demais, mas o sr. Barnstaple já havia superado as ilusões mais intensas da companhia. Gostaria de falar pela última vez com seus filhos e deixar sua esposa com a mente sossegada, mas mesmo esses desejos talvez fossem mais sentimentais do que reais. Quando se tratasse de falar com os meninos, ele provavelmente ficaria tímido. Como eles agora tinham adquirido personalidades próprias e passado pela adolescência, ele sentia cada vez mais que conversar intimamente com os filhos era uma invasão do direito deles de crescer seguindo os próprios caminhos. E eles também eram tímidos com ele, sentia, de forma defensiva. Talvez mais tarde os filhos voltassem ao pai – era um momento que ele jamais conheceria agora. Mas queria que eles pudessem saber o que acontecera com ele. Isso o perturbava. Saberem o redimiria aos olhos deles, talvez fizesse bem para o caráter deles, se não pensassem – como era quase certo que pensassem – que ele havia fugido deles, ou caducado, ou até andado com más companhias que lhe deram fim. Como estava sendo, eles poderiam se preocupar e se envergonhar sem necessidade ou ter o trabalho de tentar descobrir onde ele estava, e isso seria uma pena.

Morrer era preciso. Muitos homens haviam morrido como ele morreria, caídos em lugares estranhos, perdidos em cavernas escuras, abandonados em ilhas desertas, desaparecidos na selva australiana, aprisionados e deixados a perecer. Era bom morrer sem grandes angústias ou insultos. Pensou na miríade de homens que haviam sido crucificados pelos romanos – foram oito mil ou dez mil deles no exército de Espártaco que eles mataram daquela maneira ao longo da Via Ápia? De negros acorrentados até morrerem de fome e na infinita variedade de tais mortes. Tais coisas eram chocantes para a imaginação jovem, e mais temíveis em pensamento do que na realidade. Era tudo uma questão de um pouco mais de dor ou um pouco menos de dor, mas Deus não permitia nenhum desperdício da dor. Cruz, roda, cadeira elétrica ou leito de sofrimento, uma coisa era certa: você morria e acabou.

Era agradável descobrir que se podia pensar bravamente sobre essas coisas. Era bom estar preso e descobrir que não estava desesperado. E o sr. Barnstaple ficou surpreso em perceber o quão pouco ele se importava, agora que encarava a situação de frente, se era imortal ou não. Ele estava preparado para descobrir que era imortal ou pelo menos que não terminaria com a morte, no todo ou em parte. Era ridículo ser dogmático e dizer que uma parte, uma impressão de sua consciência e até de sua vontade de viver não continuaria de alguma forma. Mas achava impossível imaginar como isso poderia se dar. Era inimaginável. Não era para ser previsto. Ele não tinha medo daquela continuação. Não pensava nem temia a possibilidade de punição ou crueldade. O universo por vezes lhe parecera ter sido criado de forma muito negligente, mas ele nunca acreditara que fosse obra de um imbecil maligno. Parecia-lhe imensamente negligente, mas não tão preponderantemente cruel. Ele havia sido como fora, fraco e limitado, às vezes tolo, mas a punição por esses defeitos jazia nos defeitos em si.

Parou de pensar na própria morte. Começou a pensar na vida em geral, sua presente baixeza, sua valente aspiração. Ele se viu lamentando amargamente não poder ver mais daquele mundo utopiano, que era, em tantos aspectos, um indício tão próximo daquilo que nosso mundo poderia se tornar. Havia sido muito animador ver os sonhos e os ideais humanos justificados por terem sido realizados, mas era angustiante ter aquela visão roubada enquanto ainda estava só começando a examiná-la. Ele se viu fazendo perguntas sem respostas para ele – sobre economia, amor e luta. De toda forma, estava feliz por ter visto o tanto que vira. Era bom ter sido expurgado por aquela visão e inteiramente removido da triste desesperança do sr. Peeve, ter posto a vida em perspectiva novamente.

As paixões, os conflitos e os desconfortos do ano 1921 d.C. eram os desconfortos da febre de um mundo não imunizado. A Era de Confusão da Terra também iria se resolver em seu próprio tempo, graças a uma certa virtude obscura e indômita no sangue do ser humano. Agachado num buraco de um rochedo do grande penhasco, com invencíveis alturas e profundezas ao redor dele, com frio, fome e desconforto, aquele pensamento era um conforto profundo para a mente estranhamente constituída do sr. Barnstaple.

Mas quão miseravelmente ele e seus companheiros fracassaram em aproveitar as grandes ocasiões de Utopia! Ninguém ergueu uma mão eficaz para conter a imaginação pueril do sr. Catskill e a mera agressividade brutal de seus colegas. Como o padre Amerton seguira invencível no papel de esbravejar, perseguir, odiar. Quão pateticamente fraco e desonesto fora o sr. Burleigh – e ele mesmo foi pouco melhor! Sempre desaprovando e fazendo uma oposição ineficiente. Que beldade burra era aquela Greeta Grey receptiva, cobiçosa, impenetrável a qualquer ideia que não fosse a do que era devido a ela como uma fêmea submissa! Lady Stella era de melhor safra, mas não servia para nada. As mulheres, pensou ele, não haviam sido bem representadas naquela expedição ditada pelo acaso, apenas uma esbanjadora e outra inútil. Aquela era uma amostra justa das mulheres da Terra?

Todo o proveito que aqueles terráqueos tiraram de Utopia foi o de devolvê-la o mais rápido possível às agressões, subjugações, crueldades e desordens da Era de Confusão à qual pertenciam. Serpentine e Cedar, o homem de poder científico e o homem da cura, os terráqueos haviam tentado tomá-los como reféns da desordem e, não obtendo sucesso, mataram ou tentaram matá-los.

Haviam tentado levar Utopia de volta ao estado da Terra, e, de fato, somente pela estupidez, malícia e fraqueza dos homens, a Terra não era agora Utopia. A velha Terra seria Utopia agora, um jardim e uma glória, o Paraíso na Terra, se não tivesse sido tornada poeira e ruína por seus Catskills, Hunkers, Barralongas, Ridleys, Duponts e sua laia. Nada se opunha à sua estupidez atropelada, ao que parecia, no mundo todo naquele momento, a não ser as lamúrias dos Peeves, a desaprovação complacente dos Burleighs e a ineficácia imensurável de seu próprio protesto. E alguns poucos escritores e professores que produziram resultados até então indetectáveis.

Mais uma vez, o sr. Barnstaple se pegou pensando em seu velho amigo, o inspetor de escola e escritor de livros didáticos, que trabalhara com tanta perseverança e definhara e morrera de forma tão penosa. Ele trabalhara por Utopia por toda a vida. Haveria ainda centenas ou milhares de utopianos assim na Terra? Que mágica os sustentava?

– Quem dera eu pudesse mandar alguma mensagem a eles – disse o sr. Barnstaple –, para encorajá-los.

Porque era verdade, embora ele mesmo tivesse de morrer de fome como um animal caído num poço, mesmo assim Utopia triunfava e continuaria triunfando. Os gananciosos e guerreadores, os perseguidores e patriotas, os linchadores e sabotadores e todo o refugo da cega violência humana se reunia para a derrota final. Mesmo em suas vidas, eles não conheciam a felicidade, moviam-se de empolgação a empolgação e da satisfação à exaustão. Seus empreendimentos e sucessos, suas guerras e glórias, flamejam e morrem. Apenas o que é verdadeiro cresce, a verdade, a ideia clara, ano após ano e era após era, lenta e invencível, como um diamante cresce entre a escuridão e a pressão da terra, ou como o dia nasce entre as luzes tremeluzentes de alguma orgia tardia.

Qual seria o fim daquelas pobres pessoas lá em cima? Sua posse da vida era ainda mais precária do que a dele próprio, porque ele podia se deitar e passar fome ali lentamente por semanas, antes de sua mente ter o último lampejo. Mas eles haviam se oposto abertamente à força e sabedoria de Utopia, e naquele momento mesmo o poder ordenado daquele mundo devia estar encurralando-os. Ele ainda sentia um leve remorso irracional por ter traído a emboscada de Catskill. Sorria agora da convicção apaixonada que sentiu naquele momento, de que, se Catskill conseguisse capturar seus reféns, a Terra iria prevalecer sobre Utopia. Aquela convicção o motivara a correr para a ação. Seus gritos fracos pareceram ser tudo o que restara para impedir aquele desastre monstruoso. Mas, supondo que ele não estivesse lá, ou supondo que ele tivesse obedecido o instinto de camaradagem persistente que o incitava a lutar com os outros, como teria sido?

Quando ele se lembrou da visão de Cedar arremessando Mush como alguém poderia arremessar um cãozinho de estimação e da altura e do físico de Serpentine, duvidou que mesmo nas escadas da arcada teria sido possível para os terráqueos subjugar aqueles dois. Os revólveres teriam sido usados como haviam sido usados na encosta, e Catskill não teria obtido reféns, mas apenas dois homens mortos.

Que tolice indizível havia sido todo o esquema de Catskill! Mas não era mais tolo do que o comportamento de Catskill, Burleigh e o resto dos estadistas havia sido na Terra durante os últimos anos. Por vezes, durante a agonia mundial da Grande Guerra, pareceu que Utopia se aproximou da Terra. As nuvens escuras e a fumaça daqueles anos sombrios haviam se aberto com a luz de estranhas esperanças, com a promessa de um mundo renascido. Mas os nacionalistas, investidores, padres e patriotas haviam invalidado todas essas esperanças. Haviam confiado em velhos venenos e infecções nas resistências fracas do espírito civilizado. Haviam contado suas armas, armado emboscadas e mantido suas mulheres ocupadas costurando bandeiras de discórdia...

Por algum tempo, eles mataram a esperança, mas só por um tempo. Para a Esperança, a redentora da humanidade, há uma ressurreição perpétua.

– Utopia vai vencer – disse o sr. Barnstaple, e por algum tempo se atentou a um som que havia escutado antes, porém, sem prestar atenção, uma pulsação nas rochas ao redor dele, como uma grande máquina funcionando. Aumentou e depois baixou até se tornar imperceptível novamente.

Seus pensamentos voltaram a seus colegas de outrora. Esperava que eles não estivessem miseráveis ou temerosos demais lá em cima. Desejava especialmente que algo acontecesse para sustentar a coragem de Lady Stella. Ele se preocupava de maneira afetuosa. Quanto ao resto, não importava se permanecessem ativos e combativos até o final. Possivelmente, estavam todos trabalhando em algum esquema de defesa absurdo e loucamente otimista de Catskill. Exceto o sr. Burleigh, que estaria descansando, convencido de que para ele, pelo menos, haveria uma saída honrosa. E provavelmente não com muito medo de que não houvesse. Amerton e, possivelmente, Mush podiam tentar um renascimento religioso, que irritaria um pouco os outros, ou possivelmente até fornecer um ópio mental para Lady Stella e a srta. Greeta Grey. E, para Penk, havia vinho no porão...

Eles seguiriam as leis de seus seres, fariam as coisas que suas naturezas e hábitos iriam requerer deles. O que mais era possível?

O sr. Barnstaple mergulhou num abismo metafísico...

Pegou-se olhando para o relógio de pulso. Era meio-dia e vinte. Ele olhava cada vez mais frequentemente para o relógio ou o tempo andava mais devagar... Deveria dar corda ou deixar o relógio morrer? Já sentia muita fome. Não podia ser fome de verdade ainda; sua imaginação devia estar fugindo do controle.


CAPÍTULO QUATRO
O FIM DA QUARENTENA NO ROCHEDO

Parte 1

O sr. Barnstaple acordou lenta e relutantemente de um sonho sobre culinária. Ele era Soyer, o festejado chef do Reform Club, e inventava e provava novos pratos. Mas, ao modo prazenteiro do mundo dos sonhos, ele não era apenas Soyer, mas ao mesmo tempo um biólogo utopiano muito inteligente e também Deus Todo-Poderoso, de modo que ele podia fazer não apenas novos pratos, mas também novos vegetais e carnes para acrescer a eles. Estava particularmente interessado num novo tipo de ave, a raça Chateaubriand, que combinava o caráter nutritivo de uma excelente carne vermelha com o tamanho e a delicadeza de um peito de frango. E queria rechear com uma mistura de pimentão, cebola e cogumelo – embora o cogumelo não fosse bem o ingrediente certo. Ele provara os cogumelos, e precisavam de uma pequena modificação. E no sonho chegou um assistente de cozinheiro, vários assistentes de cozinheiro, todos nus como utopianos, trazendo carnes de ave da despensa e dizendo que não estavam boas, haviam “subido” e subiriam mais ainda. Para ilustrar essa ideia, os assistentes levantaram as carnes sobre a cabeça e começaram a subir pelas paredes da cozinha, que eram rochosas e, para uma cozinha, bastante próximas umas das outras. Suas formas se tornaram obscuras. Foram projetadas, como silhuetas negras, contra o vapor luminoso que subia de um caldeirão de sopa fervente. Era uma sopa fervente e, no entanto, era sopa fria e vapor frio.

O sr. Barnstaple acordara.

No lugar do vapor luminoso, havia uma neblina, uma neblina clara e iluminada pelo luar, tomando o desfiladeiro. Contra ela, a figura dos dois utopianos era uma silhueta escura.

O que... utopianos?

Sua mente lutou entre o sonho e o despertar. Começou a se levantar, rigidamente atento. Eles avançavam com gestos calmos, alheios à presença dele, tão próximo a eles. Já tinham fixado uma escada de corda fina em algum ponto acima, mas como haviam conseguido fazer aquilo, ele não sabia. Um deles ainda estava na plataforma, o outro balançava sobre ele, em cima do penhasco, agarrado à corda e com os pés contra a rocha. A cabeça de uma terceira figura apareceu sobre a borda da plataforma. Balançava de um lado para outro. Ele evidentemente subia por uma segunda escada de corda. Algum tipo de discussão se dava. O sr. Barnstaple teve a impressão de que o último a chegar achava que ele e seus companheiros haviam subido o suficiente, mas que o homem mais acima insistia que eles subissem mais. Em pouco tempo, o assunto foi resolvido.

O utopiano mais ao alto se tornou muito ativo, avançou para cima, balançou e desapareceu do campo de visão do sr. Barnstaple aos solavancos. Seus colegas o seguiram, e um após outro sumiram de vista, não deixando nada visível além da escada de corda balançando febrilmente e outra corda que parecia estar arrastando o rochedo acima com eles.

Os músculos tensos do sr. Barnstaple relaxaram. Ele bocejou silenciosamente, alongou seus membros doloridos e se ergueu com bastante cuidado. Espiou o alto do penhasco. Os utopianos pareciam ter chegado à plataforma acima e estavam ocupados lá. A corda frouxa se retesou. Estavam puxando algo de baixo. Era um pacote grande, possivelmente com ferramentas, armas ou material envolto em algo que amortecia os impactos contra a rocha. Surgiu no campo de visão, girando por um momento, e então foi içado para cima quando os utopianos deram outro puxão na corda. Seguiu-se um período de silêncio.

Ele ouviu um clangor metálico, e então – bang, bang – um martelar monótono e intermitente. Em seguida, saltou para trás, quando a ponta de uma corda fina, aparentemente presa a uma polia, caiu passando por ele. Os sons de cima agora pareciam com polimentos de uma lima, e então alguns pedaços de rocha passaram por ele caindo no vazio.

Parte 2

Ele não sabia o que fazer. Tinha medo de chamar os utopianos e revelar sua presença a eles. Após o assassinato de Serpentine, ele tinha muitas dúvidas de como um utopiano iria se comportar com um terráqueo encontrado escondido num canto escuro.

Examinou a escada de corda que havia trazido os utopianos até seu nível. Era presa por uma longa estaca, cuja ponta estava enterrada na rocha ao lado do desfiladeiro. Possivelmente, a estaca havia sido disparada na rocha a partir de baixo enquanto ele dormia. A escada era feita de cordas retas e anéis em intervalos de talvez meio metro. Era de um material tão leve que ele teria duvidado de sua capacidade de sustentar um homem se os utopianos não estivessem subindo nela. Ocorreu a ele que podia descer por ela agora e correr o risco com qualquer utopiano que pudesse estar lá embaixo. Não podia muito bem chamar a atenção daqueles três utopianos acima dele, exceto por alguma ação repentina e brusca que poderia provocar reações súbitas e desagradáveis; mas, se ele aparecesse primeiro descendo lentamente de cima, qualquer utopiano abaixo teria tempo de notar e considerar o fato da sua proximidade antes de lidar com ele. Além disso, estava muito ansioso para descer daquela terrível plataforma.

Agarrou um anel, estendeu uma perna sobre a borda da plataforma, prestou atenção por alguns momentos nos pequenos ruídos dos três trabalhadores acima dele, e então começou a descer.

Era uma descida enorme. Na mesma hora, ele se arrependeu de não ter contado os anéis da escada. Já devia ter descido centenas. E, ainda assim, quando inclinava o pescoço para olhar para baixo, o golfo escuro parecia não ter fim. Havia escurecido bastante. O luar não penetrava muito no cânion, e o tênue reflexo das névoas finas acima era tudo o que havia para romper a escuridão. E até mais acima o luar parecia estar morrendo.

Num momento estava próximo da rocha, no outro ela se afastava e a escada de corda parecia se pendurar sobre o espaço sem fundo e sem luz. Precisava tatear em busca de cada anel, e seus pés descalços e mãos já estavam doloridos e lanhados. E uma nova ideia perturbadora veio à sua mente: que algum utopiano podia estar naquele momento subindo pela escada. Mas ele perceberia, porque a corda iria se retesar, e tremeria e ele poderia gritar: “Sou um terráqueo descendo. Sou um terráqueo inofensivo”.

Começou a gritar essas palavras experimentalmente. A garganta ecoou e nenhum som veio em resposta.

Ficou em silêncio novamente, descendo sombriamente e tão constantemente quanto possível, porque agora um desejo intenso de sair daquela corda infernal e descansar suas mãos e pés queimados dominava qualquer outra intenção.

Clang, clang, e um clarão de luz verde.

Ele se enrijeceu e espiou as profundezas do cânion. A luz verde veio novamente. Revelava a profundidade do abismo, mesmo que ainda lhe parecesse uma distância imensa abaixo dele. E no alto da garganta... algo; ele não pôde entender o que era durante aquela revelação momentânea. Inicialmente, pensou ser uma enorme serpente se contorcendo e descendo a garganta; então, concluiu que devia ser um grande cabo que era puxado por um grupo de utopianos. Mas como as três ou quatro figuras que ele vira indistintamente podiam baixar aquele cabo colossal ele não conseguia imaginar. A cabeça da serpente parecia levantar-se de maneira oblíqua pelo penhasco. Talvez estivesse sendo arrastada por cordas que ele não havia visto. Esperou por um terceiro clarão, mas não veio. Prestou atenção. Não ouviu nada, a não ser uma pulsação que já havia notado antes, como o pulsar de um motor muito macio.

Ele retomou a descida.

Quando finalmente chegou a um local onde podia ficar de pé, foi pego de surpresa. A corda descia mais alguns metros e acabava. Ele balançava cada vez mais e, quando começou a pensar que a corda estava terminando, percebeu um leve indício de que havia uma galeria quase horizontal cortada na face da rocha. Estendeu um pé e sentiu uma borda, oscilou para longe dela. Estava agora tão esgotado que por algum tempo não conseguiu soltar a escada de corda e se apoiar na plataforma. Finalmente, percebeu como podia ser feito. Soltou os pés e deu um empurrão, se afastando da pedra. Balançou de volta até uma posição conveniente para conseguir um apoio. Repetiu a manobra duas vezes, então sentiu confiança suficiente para soltar a escada e passar para a plataforma. A escada balançou para longe dele na escuridão e depois veio de volta para cutucá-lo no ombro, assustando-o.

A galeria em que ele se encontrava parecia seguir um grande veio de material cristalino ao longo da face do penhasco. Sulcos altos como homens penetravam a rocha. Ele espiou e tateou pela galeria por um tempo. Manifestamente, se aquilo era uma mina, haveria algum modo de subir a ela e descer de lá até o desfiladeiro. O som da torrente era bem mais alto agora, e ele avaliou que havia descido talvez dois terços do penhasco. Sentiu-se inclinado a esperar pelo dia. O disco iluminado de seu relógio de pulso dizia que eram quatro da manhã. Não demoraria muito para amanhecer. Encontrou uma superfície confortável na rocha para apoiar as costas e se abaixou.

A manhã pareceu nascer muito rápido, mas, na verdade, ele havia cochilado no intervalo. Quando olhou para o relógio novamente, eram cinco e meia.

Ele foi até a beirada da galeria e espiou o desfiladeiro, até onde vira o cabo. Tudo estava pálido, tênue e muito preto e branco, mas perfeitamente claro. As paredes do cânion pareciam subir para sempre e finalmente desaparecer entre as nuvens. Teve um vislumbre de um utopiano abaixo, que foi escondido na mesma hora pela curva do desfiladeiro. Imaginou que o grande cabo havia sido levado tão próximo do Penhasco da Quarentena que se tornara invisível para ele.

Não conseguiu encontrar degraus descendo da galeria, mas a trinta ou quarenta metros havia cinco ou seis cabos descendo a um ângulo íngreme a partir da galeria para o lado oposto do desfiladeiro. Pareciam muito escuros e distintos. Foi até eles. Cada um era um cabo de transporte no qual corria um vagonete com um grande gancho embaixo. Três dos cabos estavam vazios, mas em dois o vagonete estava preso. O sr. Barnstaple examinou os vagonetes e viu que uma lingueta os segurava. Ergueu uma das linguetas e o vagonete correu imediatamente, quase derrubando-o no golfo. Ele se salvou agarrando-se ao cabo. Viu o vagonete deslizar como um pássaro até um trecho de praia amplo e arenoso do outro lado da torrente e parar lá. Parecia seguro. Tremendo, ele se virou para o vagonete restante.

Seus nervos e força de vontade estavam tão exaustos agora que levou um bom tempo para que ele pudesse se convencer a confiar no gancho do vagonete restante e soltar a lingueta. Então, suave e rapidamente, deslizou através do desfiladeiro até a praia abaixo. Havia grandes montes de mineral cristalino nessa praia e um cabo – evidentemente, para erguê-lo – descia das névoas acima de algum guindaste invisível, mas nenhum utopiano estava à vista. Ele soltou o gancho e caiu de pé com segurança. A praia se alargava córrego abaixo e ele caminhou por ela perto da margem.

A luz se tornava mais forte conforme ele seguia. O mundo cessou de ser um mundo cinza e preto; cores voltaram ao mundo. Tudo estava pesadamente coberto de orvalho. E ele estava faminto e quase intoleravelmente exausto. A areia mudou de natureza e se tornou fofa e pesada para os pés. Sentiu que não podia mais andar. Devia esperar por ajuda. Sentou-se numa rocha e olhou para o Penhasco da Quarentena erguendo-se acima.

Parte 3

O promontório erguia-se íngreme e alto, como a proa de um navio gigantesco, por trás dos dois cânions de um azul profundo; alguns tufos e camadas de neblina ainda escondiam do sr. Barnstaple o topo e a pequena ponte que cruzava o desfiladeiro mais estreito. O céu entre as faixas de neblina agora era de um azul intenso. E, enquanto ele olhava, a neblina se espalhou e se dissolveu, os raios de sol nascente batiam no velho castelo produzindo um dourado ofuscante e a fortaleza dos terráqueos se mostrou clara e plena.

A ponte e o castelo estavam muito remotos, e toda aquela parte do penhasco era como um pequeno chapéu sobre a figura de um soldado ereto. Abaixo do nível da ponte, por volta da altura na qual os três utopianos haviam trabalhado ou ainda estavam trabalhando, estendia-se algo escuro, uma faixa parecida com uma corda. Concluiu que aquele devia ser o cabo que ele vira iluminado pelos clarões verdes à noite. Então, notou uma estranha massa na crista do mais aberto dos dois desfiladeiros. Era uma enorme bobina vertical, uma bobina achatada como um disco, que aparecera na borda do precipício na frente do Penhasco da Quarentena. Menos claramente visível devido a um volume rochoso que se projetava, havia uma bobina semelhante no cânion mais estreito, perto dos degraus que subiam da pequena ponte. Dois ou três utopianos, que pareciam muito pequenos por estarem muito altos e agachados, porque estavam tão diminuídos, moviam-se pela beira do abismo manuseando algo que aparentemente tinha a ver com aquelas bobinas.

O sr. Barnstaple observou essas operações com a mesma incompreensão de um selvagem que nunca ouvira um tiro observaria uma arma sendo carregada.

Veio um som familiar, muito tênue e distante. Era a sirene do Castelo da Quarentena soando o toque de despertar. E, quase simultaneamente, a pequena figura napoleônica do sr. Rupert Catskill emergiu contra o céu azul. Penk, erguendo a cabeça e os ombros, surgiu e parou, pondo-se em sentido atrás dele. O capitão dos terráqueos sacou seus binóculos e examinou as bobinas.

– O que será que ele acha delas? – disse o sr. Barnstaple.

O sr. Catskill virou-se e deu alguma instrução a Penk, que bateu continência e desapareceu.

Um estalo vindo do desfiladeiro mais próximo chamou sua atenção de volta para a pequena ponte. Havia sumido. Olhou para baixo e a avistou a alguns metros na água. Viu a água batendo nela e a armação de metal se deformar, descer dois degraus e permanecer imóvel e, momentos depois, o estrondo da queda chegou a seus ouvidos.

– Quem será que fez isso? – perguntou o sr. Barnstaple, e o sr. Catskill respondeu sua pergunta andando rapidamente até o canto do castelo e olhando para baixo. Estava claramente surpreso. Claramente, portanto, os utopianos haviam cortado a ponte.

O sr. Catskill foi quase imediatamente acompanhado pelo sr. Hunker e Lorde Barralonga. Os gestos deles sugeriam uma discussão animada.

A luz do sol avançava em graus imperceptíveis pela frente do Penhasco da Quarentena. Agora chegou ao cabo que circulava o topo, que reluzia na luz, com um brilho de cobre.

Os três utopianos que haviam despertado o sr. Barnstaple de noite se tornaram visíveis descendo a escada de corda muito rapidamente. E mais uma vez o sr. Barnstaple tomou consciência daquele zumbido que ouvira constantemente durante a noite, mas agora estava muito mais alto e soava por todo lado ao redor dele, no ar, na água, nas rochas e em seus ossos.

Abruptamente, algo preto e com o formato de uma lança apareceu ao lado do pequeno grupo de terráqueos acima. Pareceu saltar ao lado deles, fez uma pausa e saltou novamente, até a metade da altura de um homem, e saltou de novo. Era uma bandeira sendo içada, que o sr. Barnstaple até então não havia observado. Chegou ao topo do mastro e pendeu, frouxa.

Então, uma corrente de ar a atingiu. Agitou-se por um momento, mostrou uma estrela branca sobre um fundo azul e baixou novamente.

Era a bandeira da Terra – a bandeira da cruzada para restabelecer as bênçãos da competição, do conflito e da guerra em Utopia. Abaixo dela apareceu a cabeça do sr. Burleigh, examinando as bobinas utopianas através dos binóculos.

Parte 4

A pulsação e o zumbido nos ouvidos do sr. Barnstaple aumentaram rapidamente e se elevaram a uma intensidade aguda e extrema. De repente, grandes clarões de luz violeta saltaram de bobina em bobina, passando através do Castelo da Quarentena como se ele não estivesse lá.

Um momento depois, voltou a estar.

A bandeira agitou-se loucamente e foi arrancada do mastro. O sr. Burleigh perdeu o chapéu. Metade do corpo do sr. Catskill se tornou visível, lutando com as pontas de sua casaca, que haviam sido sopradas para cima e envolvido sua cabeça. Ao mesmo tempo, o sr. Barnstaple viu o castelo rodando na parte mais baixa do penhasco, exatamente como se algum gigante invisível tivesse levantado a parte superior do promontório e o estivesse torcendo.

Então, desapareceu.

Quando isso aconteceu, uma grande coluna de poeira subiu e ocupou seu lugar; as águas do desfiladeiro subiram criando fontes altas e se pulverizaram, e um baque ensurdecedor atingiu os ouvidos do sr. Barnstaple. Uma força aérea o ergueu e atirou a uma distância de uma dúzia de metros, e ele caiu entre uma chuva de poeira, pedras e água. Ficou ferido e caído atordoado.

– Meu Deus! – ele exclamou. – Meu Deus – e se esforçou para se ajoelhar, sentindo-se violentamente enjoado.

Vislumbrou do topo do Penhasco da Quarentena, truncado tão perfeitamente como se tivesse sido cortado com uma faca afiada. E então a fadiga e a exaustão o venceram e ele se estendeu no chão, sem sentidos.

 

 

CAPÍTULO UM
OS TRANQUILOS MONTES AO LADO DO RIO

Parte 1

– Deus fez mais universos do que há páginas em todas as bibliotecas da Terra; o homem pode aprender e crescer para sempre entre a multidão dos Seus mundos.

O sr. Barnstaple teve a sensação de flutuar de estrela em estrela e de plano em plano, por uma variedade incessante de existências maravilhosas. Ultrapassou o limite do ser; vagou através de eras pelas faces de penhascos imensuráveis; viajou de eternidade a eternidade num fluxo de inúmeras estrelinhas. Finalmente, veio-lhe uma fase de profundo descanso. Havia um céu de nuvens alinhadas, aquecidas pela luz de um sol poente e um horizonte de montes que ondulavam suavemente, gramados dourados em seus topos, com bosques roxos e escuros e arbustos e áreas de um amarelo pálido como milho maduro sobre suas encostas encapeladas. Aqui e ali havia construções e terraços abobadados, jardins floridos e pequenas vilas e grandes tanques de água reluzente.

Havia muitas árvores, como eucaliptos, só que com folhas mais escuras, sobre as encostas logo abaixo e ao redor dele; e a terra toda descia finalmente para um vale muito amplo ao longo do qual um rio brilhante serpenteava lentamente em grandes curvas semicirculares, visível até se tornar invisível na névoa do crepúsculo.

Um leve movimento atraiu seu olhar, e descobriu Lychnis sentada ao lado dele. Ela sorriu para ele e levou o dedo aos lábios. Ele sentiu um vago desejo de falar com ela, e sorriu levemente, movendo a cabeça. Ela se levantou e se afastou dele, passando pela cabeceira de sua cama. Ele estava fraco e apático demais para levantar a cabeça e ver aonde ela havia ido. Mas viu que ela estivera sentada a uma mesa branca sobre a qual havia um vaso prateado cheio de flores de um azul intenso, e a cor das flores o dominou e desviou seu primeiro leve impulso de curiosidade.

Ele se perguntou se as cores eram realmente mais brilhantes no mundo utopiano ou se algo no ar vivificava e aclarava sua percepção.

Além da mesa, estavam os pilares brancos da arcada. Um galho das árvores parecidas com eucaliptos, com folhas de um bronze escuro, chegava muito perto.

E havia música. Era um som muito tênue, que gotejava e corria, uma mera corrente discreta de notinhas claras à margem da sua consciência, a canção de algum Debussy vinda de um conto de fadas.

Paz...

Parte 2

Ele estava desperto novamente.

Havia sido derrubado e anestesiado de alguma forma grande e violenta demais para sua mente entender ainda.

Então, pessoas o haviam cercado, conversando sobre ele. Ele se lembrava dos pés delas. Devia estar deitado de bruços, com o rosto bem colado ao chão. Então, eles o viraram, e a luz do sol nascente cegou seus olhos.

Duas deusas gentis haviam dado a ele algum tônico restaurador num desfiladeiro ao pé de penhascos altos. Fora carregado como uma criança nos braços de uma mulher. Depois disso, havia lembranças turvas e dissolvidas de uma longa jornada, um longo voo pelo ar. Havia algo próximo a isso, uma visão de um enorme maquinário complicado que não se ligava a nada. Por algum tempo, sua mente se ateve a essa imagem de forma interrogativa, e então a abandonou, fatigado. Ouvira vozes consultando, a picada de uma injeção e algum gás que ele tivera de inalar. E sono – ou sonos, períodos de sono intercalados por sonhos...

Agora, quanto àquele desfiladeiro; como ele havia chegado lá?

O desfiladeiro – a outra luz, uma luz esverdeada – com utopianos que se esforçavam com um grande cabo.

De repente, veio-lhe muito claramente a visão do promontório do Penhasco da Quarentena erguendo-se contra o brilhante céu azul da manhã, e então o topo dele girando, com suas bandeiras esvoaçantes e figuras desgrenhadas passando lentamente, como um grande navio passando por uma doca, com suas bandeiras e passageiros rumo ao invisível e ao desconhecido. Toda a maravilha de sua grande aventura voltou à mente do sr. Barnstaple.

Parte 3

Ele se sentou em estado de interrogação, e Lychnis reapareceu ao seu lado.

Ela se sentou na cama, próxima a ele, afofou travesseiros atrás deles e o convenceu a se recostar neles. Comunicou que ele fora curado de alguma doença e não mais contagiosa, mas que ainda estava muito fraco. De qual doença?, ele se perguntou. Mais do passado imediato tornou-se claro para ele.

– Houve uma epidemia – ele disse. – Um tipo de epidemia mista, de todas as nossas doenças.

Ela sorriu, reconfortando-o. Havia acabado. A ciência e a organização de Utopia haviam pegado o perigo pelos chifres e o banido. Lychnis, no entanto, não tivera nada a ver com o trabalho preventivo e de limpeza que acabara com a carreira daqueles micróbios invasivos tão rapidamente; seu trabalho fora ajudar e cuidar dos doentes. Algo fez o sr. Barnstaple notar que ela lamentava vagamente que aquele trabalho piedoso não era mais necessário. Olhou para os belos olhos bondosos dela e encontrou sua solicitude afetuosa. Ela não lamentava que Utopia estivesse curada novamente; aquilo era incrível; mas lhe parecia que ela lamentava não poder mais prestar ajuda e que estava feliz que pelo menos ele precisava de assistência.

– O que se deu com as pessoas na rocha? – ele perguntou. – O que se deu com os outros terráqueos?

Ela não sabia. Haviam sido expulsos de Utopia, ela achava.

– De volta à Terra?

Ela não achava que eles tivessem voltado à Terra. Talvez tivessem ido para outro universo. Mas ela não sabia. Estava entre os que não tinham aptidão para a matemática, e as ciências fisioquímicas e as teorias complexas das dimensões, que interessavam tantas pessoas em Utopia, estavam fora de seu círculo de ideias. Acreditava que o topo do Penhasco da Quarentena havia sido removido completamente do universo utopiano. Um grande número de pessoas agora estava muito interessado naquele trabalho experimental sobre as dimensões inexploradas nas quais processos físicos podiam sofrer uma oscilação, mas essas questões a aterrorizavam. A mente dela recuava disso como se recua da beira de um penhasco. Não queria pensar para onde os terráqueos haviam ido, em que profundidades haviam sido jogados, quais imensidões haviam visto e onde haviam caído. Tais pensamentos abriam golfos escuros abaixo de seus pés, onde ela achava que tudo era fixo e seguro. Era uma conservadora em Utopia. Amava a vida como era e como havia sido. Assumira os cuidados com o sr. Barnstaple quando descobriu que ele havia escapado do destino dos outros terráqueos e não havia se preocupado muito com as particularidades daquele destino. Ela evitava pensar nisso.

– Mas onde eles estão? Para onde foram?

Ela não sabia.

Transmitiu a ele, de forma vacilante e imperfeita, suas próprias vacilantes e contrariadas ideias sobre as novas descobertas que inflamavam a imaginação utopiana. O momento crucial havia sido o experimento em que Arden e Greenlake haviam trazido os terráqueos para Utopia. Aquilo fora a primeira ruptura das barreiras até então invencíveis que haviam mantido seu universo em três dimensões espaciais. Aquilo abrira aqueles abismos. Aquele fora o momento de libertação para todas as novas pesquisas que agora dominavam Utopia. Havia sido a primeira conquista de resultados práticos numa rede intrincada de teoria e dedução. A mente do sr. Barnstaple recordou as descobertas mais humildes da Terra, a captura do raio na pipa de Franklin e Galvani, com suas pernas de sapo dançando, intrigado com o milagre que colocou a eletricidade a serviço do homem. Mas levara um século e meio para que a eletricidade fizesse qualquer mudança sensível na vida humana, porque os trabalhadores terrenos eram tão poucos e o modo de ser do mundo tão obstrutivo, lento e rancoroso.

Em Utopia, fazer uma nova descoberta era causar uma conflagração intelectual. Centenas de milhares de pesquisadores em cooperação livre e aberta agora trabalhavam nas trilhas frutíferas que Arden e Greenlake haviam aberto. Todos os dias, todas as horas agora, novas possibilidades até então fantásticas de relacionamento interespacial tornavam-se claras para os utopianos.

O sr. Barnstaple esfregou a cabeça e os olhos com ambas as mãos e depois se recostou, contemplando o grande vale abaixo dele, que se tornava lentamente dourado enquanto o sol se punha. Sentiu-se o mais seguro e estável dos seres, no próprio centro de uma esfera de serenidade reluzente. E esse efeito de imensa tranquilidade era uma ilusão; aquela quieta paz noturna era tecida de incríveis bilhões de átomos em rápida colisão.

Toda a paz e fixidez que o homem já havia conhecido ou jamais conheceria não passavam da superfície lisa de uma torrente que se precipita com incrível velocidade de catarata a catarata. Foi-se o tempo em que homens podiam falar de montanhas eternas. Hoje um menino aprendia na escola que elas se dissolvem no gelo, no vento e na chuva e escorrem para o mar, dia a dia, hora a hora. Foi-se o tempo em que o homem podia falar de Terra Firma e sentir a terra fixa, adamantina sob seus pés. Agora ele sabia que ela girava pelo espaço, turbilhonando ao redor de um sol ofuscante por entre um fluxo de estrelas. E essa bela cortina de aparências diante dos olhos do sr. Barnstaple, esse resplendor imóvel e uniforme do crepúsculo e o grande tecido do espaço estrelado que se pendia por trás do azul – aquilo também agora seria perfurado, rompido e feito em pedaços...

Os dedos estendidos da sua mente fecharam-se sobre as coisas que mais o preocupavam.

– Mas onde está meu povo? – ele perguntou. – Onde estão seus corpos? Será possível que ainda estejam vivos?

Ela não sabia dizer.

Ele continuou pensando... Era natural que ele ficasse sob os cuidados de uma mulher de mentalidade retrógada. Os mentalmente ativos ali não tinham mais utilidade para ele em suas vidas do que os mentalmente ativos na Terra têm para animais de estimação. Ela não queria nem pensar nessas relações espaciais; o assunto era difícil demais para ela; era um dos fracassos educacionais de Utopia. Sentava-se ao lado dele com uma doçura e tranquilidade divinas em seu rosto, e ele sentia que seu próprio julgamento em relação a ela era uma traição. Ainda assim, ele queria desesperadamente saber as respostas para suas perguntas.

Supunha que o topo do Penhasco da Quarentena tivesse sido torcido e atirado no espaço sideral. Era improvável que os terráqueos chegassem a um planeta conveniente outra vez. Provavelmente, haviam sido jogados no vazio, no espaço interestelar de algum universo desconhecido...

O que aconteceria então? Eles congelariam. O ar instantaneamente se derramaria para fora deles. A própria gravidade deles os achataria, esmagaria, desmoronaria! Pelo menos, eles não teriam tempo de sofrer. Levariam um susto, como alguém arremessado em água gelada...

Ele contemplou essas possibilidades.

– Arremessados! – ele disse em voz alta. – Como uma gaiola de ratos atirada de um navio!

– Não entendo – disse Lychnis, virando-se para ele.

Ele apelou a ela.

– E agora... me diga. O que vai ser de mim?

Parte 4

Por um tempo, Lychnis não lhe ofereceu resposta. Permaneceu com os olhos suaves voltados para a névoa azul na qual o grande vale do rio agora havia se dissolvido. Então, ela se virou para ele com uma pergunta:

– Quer ficar neste mundo?

– Com certeza qualquer terráqueo iria querer ficar neste mundo. Meu corpo foi purificado. Por que eu não ficaria?

– Parece um bom mundo para você?

– Adorável, cheio de ordem, saúde, energia e beleza; tem todas as coisas boas que meu mundo anseia e procura.

– E ainda assim nosso mundo não está satisfeito.

– Eu ficaria satisfeito.

– Você ainda está fraco e cansado.

– Neste ar, eu poderia me tornar forte e vigoroso. Poderia quase rejuvenescer neste mundo. Em anos, como vocês os contam aqui, ainda sou um homem jovem.

Novamente, ela silenciou por um momento. O forte cenário agora se enchia de um azul indistinguível e, além das silhuetas negras das árvores na encosta do morro, apenas o horizonte das montanhas era visível contra o verde amarelado e o amarelo pálido do céu noturno. O sr. Barnstaple nunca vira um anoitecer tão sereno. Mas as palavras dela negavam aquela paz:

– Aqui – disse ela – não há descanso. Todos os dias homens e mulheres acordam e dizem: “Que coisa nova faremos hoje? O que vamos mudar?”.

– Eles transformaram um planeta selvagem, com doenças e desordem, numa esfera de beleza e segurança. Fizeram a selva das motivações humanas conter união, conhecimento e poder.

– E a pesquisa nunca termina, e a curiosidade e o desejo de mais e mais poder consomem nosso mundo.

– Um apetite saudável. Estou cansado agora, tão fraco, esgotado e mole como se tivesse acabado de nascer; mas logo, quando eu ficar mais forte, eu também talvez compartilhe dessa curiosidade e tome parte dessas grandes descobertas que agora cercam Utopia. Quem sabe?

Ele sorriu para os olhos bondosos dela.

– Você terá muito a aprender – ela disse. Pareceu medir seu próprio fracasso ao dizer essas palavras.

Alguma noção das profundas diferenças que três mil anos de progresso podiam ter feito nas ideias e modos de pensar fundamentais da raça despontou na mente do sr. Barnstaple. Ele se lembrou de que em Utopia se ouviam apenas as coisas que podia entender e que tudo que não encontrava lugar em seu círculo terrestre de ideias era inaudível à sua mente. Os abismos de compreensão podiam ser maiores e mais profundos do que ele supunha. Um negro da Gold Coast, totalmente analfabeto, tentando dominar a termoeletricidade, teria diante de si uma tarefa muito mais grata.

– Afinal, não são as novas descobertas que eu quero entender – ele disse –, muito provavelmente estão completamente fora do meu alcance; é essa vida diária bela e perfeita, essa vida, dos sonhos de minha própria época que se realizaram, que eu quero. Só quero estar vivo aqui. É o suficiente para mim.

– Você ainda está fraco e cansado – disse Lychnis. – Quando estiver mais forte, poderá encarar outras ideias.

– Mas quais outras ideias?

– Sua mente pode se voltar de novo para seu próprio mundo e sua própria vida.

– Voltar à Terra!

Lychnis olhou para o crepúsculo novamente por algum tempo antes de se virar para ele dizendo:

– Você nasceu e foi criado como um terráqueo. O que mais pode ser?

– O que mais posso ser? – A mente do sr. Barnstaple se demorou na pergunta, e ele se deitou, sentindo mais do que pensando nas implicações dela, enquanto as pequenas luzes de Utopia pontilhavam o azul trevoso abaixo e corriam formando correntes e grupos, se aglutinando em áreas nebulosas.

Ele resistiu à verdade por trás das palavras dela. Aquele glorioso mundo de Utopia, perfeito e seguro, preparado para tremendas aventuras entre universos inexplorados, era um mundo de gigantes gentis e uma beleza incomparável, um mundo de iniciativas no qual um pobre terráqueo de ideias turvas e vontade fraca não poderia ajudar e do qual não poderia compartilhar. Haviam saqueado seu planeta como se esvazia uma bolsa; lançavam seus poderes entre as estrelas... Eram bondosos. Eram muito bondosos... Mas eram diferentes...


CAPÍTULO DOIS
UM VAGABUNDO NUM MUNDO VIVO

Parte 1

Em poucos dias, o sr. Barnstaple havia recuperado força física e mental. Não mais estava de cama numa arcada, repleto de autopiedade e da beleza de um mundo subjugado; ele se movia livremente e logo caminhava grandes distâncias pelo interior de Utopia, buscando conhecer pessoas e aprendendo cada vez mais sobre aquela terra maravilhosa de desejos humanos conquistados.

Pois era aquilo que mais o impressionava. Quase todos os grandes males da vida humana haviam sido vencidos; guerra, pestes e doenças, fome e pobreza haviam sido varridos para fora da experiência humana. O sonho de artistas, de corpos perfeitos e lindos e de um mundo transfigurado em harmonia e beleza havia sido realizado; o espírito da ordem e da organização triunfou. Cada aspecto da vida humana havia sido mudado por essas conquistas.

O clima daquele Vale do Descanso era ameno e ensolarado como o clima do sul da Europa, mas quase tudo característico dos cenários italianos ou espanhóis havia sumido. Ali não havia velhas encurvadas carregando fardos, não havia a importunação de mendigos, nenhum mendigo perseguindo e tagarelando, nenhum trabalhador esfarrapado à beira da estrada. A insignificante terraplanagem, os perturbadores acúmulos de cultivo manual, as oliveiras retorcidas, os vinhedos invadidos, as pequenas lavouras de grãos e frutas, e a irrigação litigiosa daquelas condições primitivas deram lugar a abrangentes esquemas de conservação, a um amplo e sutil manejo das encostas, do solo e do sol. Não havia cabras e ovelhas mirradas, cuidadas por crianças, espalhadas entre pedras, nem gado acorrentado comendo suas porções limitadas de ervas. Não havia casebres à beira do caminho, nenhum tempo com imagens torturadas, derramando sangue, nenhum de vira-lata esquecido e afugentado, nem animais suados, suando e ofegando entre cestas sobrecarregadas nos lugares mais íngremes de ruas de pedra esburacadas e cobertas de esterco. Em vez disso, grandes vias lisas e indestrutíveis cortavam a terra em gradientes suaves, saltando desfiladeiros e cruzando vales sobre viadutos de arcos amplos, penetrando passagens semelhantes a catedrais através dos montes, eliminando bastiões para ordenar algum esplendor especial da terra. Ali havia locais de descanso e abrigos, escadarias levando a agradáveis pérgulas e casas de veraneio, onde amigos podiam conversar e amantes se abrigar e desfrutar. Lá havia pomares e avenidas com árvores como ele nunca havia visto antes. Pois na Terra ainda quase não havia árvores completamente crescidas e saudáveis, quase todas as nossas árvores estão furadas e consumidas por parasitas, podres e tumorosas por culpa dos fungos, mais retorcidas, defeituosas e doentes do que a própria humanidade.

A paisagem havia absorvido o desenho paciente de vinte e cinco séculos. Num lugar, o sr. Barnstaple encontrou grandes obras em andamento; uma ponte estava sendo substituída, não porque estava gasta, mas porque alguém havia criado um modelo mais forte e encantador.

Por algum tempo ele não observou a ausência de comunicação telefônica ou telegráfica; os postes e fios que marcam áreas modernas haviam desaparecido. As razões para essa diferença ele saberia depois. Nem sentiu falta das ferrovias de começo, das estações de trem e das estalagens. Percebeu que os prédios frequentes deviam ter funções específicas, que as pessoas entravam e saíam deles com uma aparência de interesse e preocupação, que de algum deles parecia vir um barulho e zumbido de atividades; obras de vários tipos deviam estar em andamento; mas suas ideias sobre a organização mecânica daquele novo mundo eram vagas e hesitantes demais para que tentasse fixar algum significado a um tipo ou outro de lugar. Andava boquiaberto como um selvagem num jardim.

Ele nunca chegou a cidades nem as viu. O motivo para acúmulos apertados de seres humanos havia basicamente desaparecido. Em certos lugares, ele soube, havia reuniões de pessoas para estudos, estímulo mútuo ou outras trocas convenientes em grandes séries de prédios interligados; mas ele nunca visitou nenhum desses centros.

E por esse mundo andava o povo alto de Utopia, belo e magnífico, sorrindo ou fazendo gestos amistosos enquanto passavam por ele, mas dando pouca abertura para perguntas ou intercâmbios. Viajavam velozmente em máquinas pelas rodovias ou caminhavam, e de vez em quando a sombra de uma aeronave planando passava sobre ele. Sentia uma certa reverência por aquelas pessoas e se achava uma criatura estranha quando encontrava seus olhares. Pois, como os deuses da Grécia e de Roma, a humanidade deles era limpa e perfeita, e lhe parecia que eram deuses. Até as grandes feras domesticadas que andavam livremente por aquele mundo tinham uma certa divindade que impedia que o sr. Barnstaple expressasse sua amizade.

Parte 2

Logo ele encontrou uma companhia para suas andanças, um menino de treze anos, primo de Lychnis, chamado Crystal. Era um jovem de cabelos cacheados e olhos castanhos como os dela, que estudava história num estágio de férias de sua formação.

Até onde o sr. Barnstaple pôde entender, a parte mais séria de seu treinamento intelectual era em matemática relacionada com as ciências físicas e químicas, mas tudo isso estava além do alcance das ideias terráqueas. Muito do seu trabalho parecia ser feito em cooperação com outros meninos, seria o que chamamos de pesquisa na Terra. Tampouco o sr. Barnstaple conseguia dominar o caráter de outro tipo de estudo, que parecia se voltar para o refinamento da expressão. Mas a história os uniu. O menino estava aprendendo sobre o crescimento do sistema social de Utopia a partir dos esforços e experiências da Eras de Confusão. Sua imaginação estava estimulada por lutas trágicas sobre as quais a ordem atual de Utopia se fundava. Ele tinha uma centena de perguntas para o sr. Barnstaple e estava cheio de informações explícitas que estavam destinadas a logo serem absorvidas e se tornarem parte dos alicerces de sua mente adulta. O sr. Barnstaple era como um livro para ele. E ele era como um guia para o sr. Barnstaple. Eles andavam juntos, conversando em pé de completa igualdade, aquele terráqueo bastante inteligente e aquele mocinho utopiano, talvez uma polegada mais alto que ele quando estavam lado a lado.

O menino tinha os fatos gerais da história utopiana na ponta da língua. Ele sabia explicar e gostava de explicar como a paz e a beleza de Utopia ainda eram artificiais e protegidas. Dizia que, em essência, os utopianos eram, em grande parte, como seus ancestrais haviam sido no começo da nova idade da pedra, quinze ou vinte mil anos atrás. Ainda eram, em sua maioria, o que os terráqueos haviam sido no período correspondente. Desde então, houvera apenas seiscentas ou setecentas gerações e nenhum tempo para mudanças muito fundamentais na raça. Não houvera nem uma miscigenação geral de raças. Em Utopia, assim como na Terra, houvera pessoas escuras e morenas, e permaneciam distintas. As várias raças interagiam socialmente, mas não procriavam muito entre elas; em vez disso, purificavam e intensificavam suas belezas e dons raciais. Com frequência, havia amor apaixonado entre pessoas de raças contrastantes, mas raramente esse amor resultava em procriação. Houvera uma certa eliminação deliberada de tipos feios, malignos, estreitos, estúpidos e soturnos durante os doze anos anteriores; mas, exceto pela realização completa de suas possibilidades latentes, o homem comum em Utopia era muito pouco diferente das enérgicas e capazes pessoas comuns do fim da idade da pedra ou começo da comunidade de bronze. Eram infinitamente mais bem nutridos, treinados e educados, e sua condição mental e física era limpa e adequada, mas eram da mesma natureza de carne e osso que nós somos.

– Mas – disse o sr. Barnstaple, e se debateu com a ideia por algum tempo. – Está me dizendo que metade dos bebês nascidos na Terra hoje pode crescer e se tornar deuses como essas pessoas que encontro?

– Se tiverem nosso ar, nossa atmosfera.

– Se tiverem sua herança.

– Se tiverem nossa liberdade.

No passado de Utopia, na Era de Confusão, o sr. Barnstaple tinha de se lembrar, todos haviam crescido com vontade deficiente ou cerceada entravadas por restrições vãs ou enganadas por ilusões plausíveis. Utopia ainda tinha em mente que a natureza humana era fundamentalmente animal e selvagem, e tinha de ser adaptada às necessidades sociais, mas Utopia havia aprendido os melhores métodos de adaptação – após infinitos fracassos causados por compulsão, crueldade e enganação.

– Na Terra, nós domesticamos os animais com ferro quente e nossos companheiros humanos com violência e fraude – disse o sr. Barnstaple, e descreveu as escolas e os livros, os jornais e as discussões públicas do começo do século vinte para seu companheiro incrédulo. – Você não imagina como até as pessoas decentes da Terra são derrotadas e temerosas. Você estuda a Era de Confusão em suas histórias, mas não conhece a realidade de uma atmosfera mental má, uma atmosfera de leis fracas, ódios e superstições. Quando a noite cai na Terra, há sempre centenas de milhares de pessoas que dormem, deitam-se insones, temendo um agressor, temendo uma competição cruel, temendo não ganhar a vida, com alguma doença que não conseguem compreender, aflitas com alguma briga irracional, enlouquecidas por algum instinto frustrado ou algum desejo suprimido e pervertido...

Crystal admitiu que era difícil agora pensar na Era de Confusão em termos de sofrimento. Muito do sofrimento do dia a dia na Terra agora era inconcebível. Muito lentamente, Utopia desenvolvera sua atual harmonia no campo das leis, costumes e educação. O homem não era mais incapaz e coagido; reconhecia-se que ele era fundamentalmente um animal, e que seu cotidiano devia seguir um ciclo de apetites satisfeitos e instintos libertados. A textura diária da vida utopiana era tecida com várias comidas e bebidas interessantes, com exercícios e trabalhos livres e divertidos, com bom sono e com o interesse e a felicidade de fazer amor sem medo e sem mágoas. A inibição era mínima. Mas o poder da educação utopiana começava depois que o animal estivesse satisfeito e fora do caminho. A joia na fronte do réptil que havia tirado Utopia das confusões da vida humana era a curiosidade, o impulso de brincar, prolongados e expandidos na vida adulta, e se convertendo num apetite insaciável por conhecimento e uma urgência criativa habitual. Todos os utopianos se tornaram como crianças, aprendizes e fazedores.

Era estranho ouvir aquele menino falando de modo tão simples e claro sobre o processo educacional ao qual estava sendo sujeito e, particularmente, descobrir que podia falar tão francamente sobre o amor.

Uma timidez terrena quase impediu que o sr. Barnstaple perguntasse:

– Mas você... você já fez amor?

– Tive curiosidade – disse o menino, evidentemente dizendo o que haviam lhe ensinado a dizer. – Mas não é necessário nem conveniente fazer amor muito cedo na vida nem deixar o desejo tomar conta. Enfraquece a juventude deixar-se possuir cedo demais pelo desejo – que, frequentemente, nunca mais vai embora. Estraga e prejudica a imaginação. Quero fazer um bom trabalho, como meu pai fez antes de mim.

O sr. Barnstaple olhou para o belo perfil jovem ao seu lado e, de repente, perturbou-se ao se lembrar de uma certa sala número quatro na escola e de algumas fases reprováveis de sua adolescência, o quarto secreto e abafado, o fato excitante e condenável. Ele se sentiu um terráqueo mais bestial do que nunca.

– Oh! – ele suspirou. – Mas esse mundo seu é tão limpo como a luz das estrelas e tão doce como água gelada num dia seco.

– Eu amo muitas pessoas – disse o menino –, mas não com paixão. Algum dia isso virá. Mas não se deve ter muita avidez ou ansiedade por encontrar uma paixão, ou pode-se cair num faz de conta e criar ou acabar numa farsa... Não há pressa. Ninguém vai me impedir quando a hora chegar. Todas as boas coisas chegam no tempo certo neste mundo.

Mas para o trabalho não há espera; o trabalho de uma pessoa, já que só diz respeito a ela mesma, ela vai atrás. Crystal pensava muito no trabalho que deveria fazer. O sr. Barnstaple teve a impressão de que o trabalho, no sentido de um labor desagradável, havia praticamente desaparecido em Utopia. No entanto, em Utopia, todos trabalhavam. Todos realizavam trabalhos que se adequavam às suas aptidões naturais e estimulavam a imaginação do trabalhador. Todos trabalhavam alegre e avidamente, como as pessoas que chamamos de gênios fazem na Terra.

De repente, o sr. Barnstaple se pegou falando a Crystal sobre a felicidade de um verdadeiro artista, do verdadeiro trabalho científico, do homem original mesmo na Terra como era então. Eles também, como os utopianos, realizavam trabalhos que diziam respeito a si mesmos e à sua própria natureza para grandes fins. De todos os terráqueos, eles eram os mais invejáveis.

– Se tais homens não são felizes na Terra – disse o sr. Barnstaple –, é porque eles são tocados pela vulgaridade e ainda buscam os sucessos, honras e satisfações conspurcados do homem vulgar, ainda se sentiam desprezados e limitados, de um modo que não devia mais lhes concernir. Mas para aquele que viu o sol brilhar em Utopia, com certeza as maiores honra e glória da Terra não podiam ter mais significado e ser mais desejáveis do que o escarro cortês de um comandante e um colar de contas bárbaras.

Parte 3

Crystal ainda estava na idade de sentir orgulho de seu saber. Mostrou ao sr. Barnstaple seus livros e lhe falou sobre seus professores e exercícios.

Utopia ainda fazia uso de livros impressos; livros ainda eram o modo mais simples e claro de levar informações a uma mente tranquila.

Os livros de Crystal eram muito bonitos, feitos com papel artesanal e encadernados com um couro flexível que sua mãe havia produzido para ele com muito esmero. Os caracteres eram de uma escrita fonética que o sr. Barnstaple não conseguia entender. Lembrava-lhe o árabe; e frequentemente desenhos, mapas e diagramas eram intercalados. Crystal era orientado em suas leituras de férias por um professor para quem ele preparava um tipo de relatório de exercícios e complementava as leituras com visitas a museus; mas não havia nenhum museu educacional conveniente no Vale da Paz para o sr. Barnstaple visitar.

Crystal já havia passado pelo estágio inicial da educação, que, como ele contou, era realizado em grandes propriedades pedagógicas destinadas totalmente à vida das crianças. A educação até os onze ou doze anos parecia ser muito mais cuidadosamente supervisionada, protegida e bem-cuidada em Utopia do que na Terra. Choques para a imaginação, medo e sugestões malignas eram repelidos com tanto cuidado quanto eram repelidos as infecções e desastres físicos; aos oito ou nove anos as bases de uma personalidade utopiana estavam seguramente estabelecidas: hábitos de higiene, de franqueza e honestidade e solicitude, confiança no mundo, coragem e uma sensação de pertencimento ao propósito maior da raça.

Só depois dos nove ou dez anos a criança saía do jardim de onde começara seu desenvolvimento e começava a ver como era a vida ordinária no mundo. Até essa idade, o cuidado com as crianças ficava, em grande parte, nas mãos de babás e professores, mas, depois dessa idade, os pais se tornavam mais presentes do que haviam sido na vida da criança. Sempre foi costume que os pais da criança estivessem próximos e a vissem na primeira infância, mas assim como os pais terrenos tendiam a se separar dos filhos quando estes partiam para a escola ou para o trabalho, os pais e mães em Utopia se tornavam mais próximos deles. Havia uma ideia em Utopia que entre os pais e a criança havia uma simpatia temperamental necessária; as crianças ansiavam pela amizade e companhia de seus pais e os pais ansiavam pelo interesse da adolescência de seus filhos e, apesar de um pai ou mãe não ter praticamente poder nenhum sobre um filho ou filha, eles assumiam a postura natural de defender, aconselhar e serem amigos compreensivos.

A amizade era ainda mais franca e íntima devido a essa ausência de poder e mais fácil porque, em termos de idade, os utopianos eram muito mais jovens e abertos do que os terráqueos. Ao que parecia, Crystal nutria uma grande paixão por sua mãe. Tinha muito orgulho do pai, que era um maravilhoso pintor e designer; mas era a mãe que possuía o coração do menino.

Em sua segunda caminhada com o sr. Barnstaple, ele disse que receberia notícias da mãe, e o sr. Barnstaple viu o equivalente a uma correspondência em Utopia. Crystal carregava um pequeno maço de fios e hastes e, ao chegar a um local onde havia um pilar no meio de um gramado, ele estendeu essa engenhoca como uma longa cama de gato e prendeu um pequeno pino no pilar com uma chave que levava em uma correntinha dourada no pescoço. Então pegou um gancho preso ao aparato, falou, esperou e logo escutou uma voz.

Era uma voz feminina muito agradável; falou com Crystal por algum tempo sem interrupção; então, Crystal também falou e depois houve outras vozes; a algumas Crystal respondeu e outras ele ouviu sem dizer nada. Então, reuniu seu aparato novamente.

O sr. Barnstaple descobriu que aquilo era o equivalente utopiano à carta e ao telefone. Porque em Utopia, exceto por acerto prévio, as pessoas não conversavam ao telefone. Uma mensagem era enviada à estação do distrito na qual se sabia que estava o destinatário, e lá ficava até ele decidir abrir suas mensagens acumuladas. E qualquer uma podia ser repetida. Então, ele falava com os remetentes e enviava quaisquer mensagens que desejasse. A transmissão era sem fio. Os pequenos pilares forneciam energia elétrica para a transmissão ou qualquer outro propósito dos utopianos. Por exemplo, os jardineiros recorriam a eles para usar seus cortadores de grama, escavadores, ancinhos e rolos.

Crystal apontou para um local distante, do outro lado do vale, onde ficava a estação distrital onde essa correspondência era recebida e distribuída. Apenas poucas pessoas trabalhavam lá; quase todas as conexões eram automáticas. As mensagens iam e vinham de qualquer parte do planeta.

Isso suscitou no sr. Barnstaple uma longa sequência de perguntas.

Soube pela primeira vez que a organização de transmissão de mensagens de Utopia tinha total conhecimento do paradeiro de cada pessoa no planeta. Tinha registro de cada indivíduo e sabia a qual posto de mensagem ele pertencia. Todos eram indexados e registrados.

Para o sr. Barnstaple, acostumado com as cruezas e desonestidades dos governos terráqueos, foi uma descoberta quase aterrorizante.

– Na Terra, seria um meio para chantagens e tiranias infinitas – disse ele. – Todos estariam abertos à espionagem. Havia um sujeito na Scotland Yard. Se ele pertencesse ao seu departamento de comunicações, teria tornado a vida em Utopia intolerável em uma semana. Não pode imaginar que incômodo ele era.

O sr. Barnstaple teve de explicar para Crystal o que era chantagem. Crystal disse que também era assim em Utopia. Tal como na Terra, em Utopia havia a mesma disposição natural a usar conhecimento e poder para a desvantagem dos outros e o mesmo receio de que fatos pessoais fossem conhecidos. Na idade da pedra em Utopia, os homens mantinham seus verdadeiros nomes em segredo e só podiam ser chamados por apelidos. Temiam malefícios mágicos.

– Alguns selvagens ainda fazem isso na Terra – disse o sr. Barnstaple.

Apenas muito lentamente os utopianos vieram a confiar em médicos e dentistas e só bem lentamente médicos e dentistas se tornaram dignos de confiança. Demorou vários séculos para que os grandes abusos de poder e confiança necessários para uma organização social moderna fossem eficientemente corrigidos.

Cada jovem utopiano tinha de aprender os Cinco Princípios da Liberdade, sem os quais a civilização era impossível. O primeiro era o Princípio da Privacidade, ou seja, todos os fatos individuais eram privados entre o cidadão e a organização pública à qual ele os confiava e só podiam ser usados para sua conveniência e com sua sanção. Claro, todos os fatos estavam disponíveis para usos estatísticos, mas não como fatos individuais pessoais. E o segundo princípio era o Princípio da Livre Movimentação. Um cidadão, depois da devida liberação de suas obrigações públicas, podia ir, sem permissão ou explicação, para qualquer parte do planeta utopiano. Todos os meios de transporte estavam a seu dispor gratuitamente. Todos os utopianos podiam mudar de paisagem, clima e atmosfera social conforme quisessem. O terceiro princípio era o Princípio do Conhecimento Ilimitado. Tudo o que era conhecido em Utopia, exceto fatos pessoais individuais sobre pessoas vivas, estava registrado e era facilmente acessível por uma série perfeita de índices, bibliotecas, museus e centrais de informação. O que for que o utopiano desejasse saber, ele podia saber com total clareza, exatidão e facilidade, dependendo apenas de seu poder de conhecimento e de seu empenho. Nada era escondido dele e nada era deturpado para ele. E com aquilo o sr. Barnstaple chegou ao quarto Princípio da Liberdade, que era a Mentira é o Mais Grave dos Crimes.

A definição de Crystal da mentira era abrangente: a exposição inexata de fatos, até a supressão de um fato material era mentira.

– Onde há mentira, não pode haver liberdade.

Essa ideia impressionou o sr. Barnstaple fortemente. Parecia ao mesmo tempo totalmente nova para ele e algo que ele inconscientemente sempre considerou. Ele entendia que metade da diferença entre Utopia e nosso mundo estava nisso – que nossa atmosfera estava densa e contaminada com mentiras e fraudes.

– Pensando bem... – disse o sr. Barnstaple, e começou a discorrer para Crystal todas as falsidades da vida humana. As suposições fundamentais das associações terráqueas ainda eram, em grande parte, mentiras, suposições falsas de que diferenças de bandeiras e nacionalidades eram necessárias e inevitáveis, pretensas funções do poder da monarquia, imposturas no aprendizado organizado, dogmas morais e religiosos e embustes. E era preciso conviver com aquilo; era-se parte daquilo. Você era restringido, taxado, afligido e morto por essas realidades insanas. – Mentir é o Crime Principal! Como aquilo era simples! Como era verdadeiro e necessário! Aquele dogma era a distinção fundamental entre o estado mundial científico e todos os outros estados anteriores.

E a partir disso o sr. Barnstaple se lançou num longo e veemente discurso contra as supressões e as falsificações dos jornais terráqueos.

Era uma questão muito cara a ele. Os jornais de Londres haviam deixado de ser veículos imparciais de notícias; eles omitiam, mutilavam, adulteravam. Não eram melhores que panfletos de propaganda. Panfleto! Natureza, dentro de seu campo, era brilhantemente precisa e completa, mas era um jornal puramente científico, não lidava com notícias do dia a dia. A imprensa, afirmou, era o único sal possível da vida contemporânea, e se esse sal perdesse seu sabor...

O pobre homem se viu discursando como se estivesse de volta à mesa do café da manhã em Sydenham depois de um péssimo jornal matinal.

– Houve um tempo em que Utopia estava na mesma confusão – disse Crystal, consolando-o. – Mas há um provérbio: “A verdade volta para onde já visitou”. Não precisa se preocupar tanto. Algum dia, até mesmo sua imprensa pode se tornar mais clara.

– Como vocês lidam com os jornais e a críticas? – perguntou o sr. Barnstaple.

Crystal explicou que havia uma completa distinção entre notícia e discussão em Utopia. Havia casas – uma estava à vista – que eram usadas como salas de leitura. As pessoas iam a esses lugares para saber as notícias. Para lá iam os relatos sobre tudo o que estava acontecendo no planeta – coisas encontradas, coisas descobertas, coisas feitas. Os relatos eram feitos conforme o necessário; não havia contratos de publicidade exigindo o mesmo volume de notícias todos os dias. Por algum tempo, disse Crystal, os relatos sobre os terráqueos haviam sido muito completos e divertidos, mas ele não os lia havia muitos dias, devido ao interesse em história que o caso dos terráqueos havia despertado nele. Sempre havia notícias de novas descobertas científicas que mexiam com a imaginação. Um tema frequente de interesse e empolgação era a apresentação de um amplo projeto de pesquisa. A nova investigação espacial que havia matado Arden e Greenlake estava gerando muitas notícias. E quando as pessoas morriam em Utopia, era costume contar a história de suas vidas. Crystal prometeu levar o sr. Barnstaple a um local de notícias e diverti-lo lendo algumas das descrições utopianas da vida na Terra, derivadas dos terráqueos, e o sr. Barnstaple pediu que, quando fizessem isso, ele também ouvisse sobre Arden e Greenlake, que haviam sido não apenas grandes descobridores, mas grandes amantes, e sobre Serpentine e Cedar, por quem nutria uma intensa admiração. As notícias utopianas careciam, é claro, do forte tempero dos jornais terráqueos; os assassinatos intrigantes e contrafações divertidas, as consequências divertidas e excitantes da ignorância e dos disparates sexuais, os casos de difamação e fraudes detectadas, as grandes procissões da realeza em meio ao tráfego geral e as flutuações românticas da bolsa de valores e dos esportes. Mas onde as notícias utopianas careciam de vivacidade, a vivacidade das discussões compensava essa falta. Porque o quinto Princípio da Liberdade em Utopia era Livres Discussão e Crítica.

Qualquer utopiano podia discutir e criticar qualquer coisa no universo, desde que não mentisse, direta ou indiretamente; podia ser tão respeitoso ou desrespeitoso quanto quisesse; podia propor qualquer coisa, por mais subversiva que fosse. Podia partir para a poesia ou para a ficção, como decidisse. Podia se expressar em qualquer forma literária que preferisse, por desenho, caricatura, como lhe aprouvesse. Devia se abster somente da mentira; essa era a única regra rígida. Ele podia imprimir e distribuir o que tinha a dizer nas salas de notícias. Lá era lido ou desprezado conforme os visitantes aprovassem ou não. Com frequência, se gostassem do que haviam lido, levavam uma cópia consigo. Crystal tinha entre seus livros alguns novos, de ficção fantástica, sobre a exploração do espaço; histórias imaginativas que os meninos estavam lendo com avidez; eram brochuras de trinta ou quarenta páginas impressas num bonito papel que, segundo ele, era feito diretamente de linho e certos juncos. Os bibliotecários anotavam quais livros e jornais eram lidos e levados, e estes eram substituídos por novas cópias. As pilhas não lidas eram logo reduzidas a uma ou duas cópias e o resto voltava às indústrias de reciclagem. Mas muitos poetas, filósofos e contadores de histórias cuja imaginação não obteve grande popularidade eram mesmo assim apreciados, e sua memória mantida viva por poucos admiradores dedicados.

Parte 4

– Algo não está claro na minha mente – disse o sr. Barnstaple. – Não vi moedas e nada parecido com dinheiro neste mundo. Pelas aparências externas, poderia ser um Comunismo, como imaginado num livro que valorizávamos na Terra, um livro chamado Notícias de Lugar Nenhum, de um terráqueo chamado William Morris. Era um livro impossível e cordial. Nesse sonho, todos trabalhavam pelo prazer de trabalhar e recebiam o que precisavam. Mas nunca acreditei no Comunismo porque reconheço – como aqui em Utopia vocês parecem reconhecer – a ferocidade e a ganância naturais do homem não instruído. Há prazer na criação para o uso alheio, mas não há prazer natural no serviço não recompensado. O senso de justiça para si mesmo é maior no homem do que seu senso de servir os outros. De alguma forma, aqui vocês devem contrabalançar o trabalho que uma pessoa faz para Utopia com o que ela destrói ou consome. Como fazem isso?

Crystal refletiu.

– Havia comunistas em Utopia na Última Era de Confusão. Em algumas partes de nosso planeta, eles tentaram abolir o dinheiro de forma repentina e violenta e causaram uma grande confusão econômica, carência e miséria. Passar direto para o Comunismo foi um fracasso muito trágico. E, no entanto, hoje Utopia é praticamente comunista. E, exceto por curiosidade, nunca tive uma moeda nas mãos em minha vida.

Em Utopia, assim como na Terra, ele explicou, o dinheiro surgiu como uma grande descoberta, como um método de liberdade. Até então, antes da invenção do dinheiro, todo serviço entre os homens havia se dado através de servidão ou escambo. A vida era de escravidão e escolhas limitadas. Mas o dinheiro abriu a possibilidade de dar ao trabalhador a liberdade de escolha ao ser recompensado. Utopia levou mais de três mil anos para perceber essa possibilidade. A ideia do dinheiro abundava em armadilhas e era facilmente corruptível; Utopia abriu caminho até a lucidez econômica através de longos séculos de crédito e débito, dinheiro falso e desvalorizado, usura extravagante e todas as possibilidades de abuso especulativo. Em questão de dinheiro, mais do que em qualquer outra preocupação humana, a esperteza humana havia se preparado mais vil e traiçoeiramente para explorar as necessidades humanas. Utopia outrora portara, como a Terra porta agora, uma carga de almas parasitárias, especuladores, obstrutores, apostadores e agiotas insistentes, tirando todo tipo de vantagem possível da fraqueza do sistema monetário; precisaram de séculos de limpeza econômica. Foi só quando Utopia alcançou o começo da unidade política mundial e quando obteve estatísticas completas o bastante dos recursos e da produção mundial que a sociedade humana pôde enfim dar ao trabalhador individual a garantia de uma moeda estável, uma moeda que significaria para ele hoje ou amanhã, ou a qualquer momento, a certeza de uma quantidade estabelecida de valores elementares. E com o planeta todo em paz e uma estabilidade social crescente, os juros, que são a medida do perigo e da incerteza, diminuíram até chegar a nada. Os bancos se tornaram forçosamente um serviço público, porque não ofereciam mais lucros para o banqueiro individual.

– Classes rentistas não são um elemento permanente em qualquer comunidade – Crystal explicou. – Marcam uma fase de transição entre um período de insegurança e juros altos e um período de completa segurança e juros nenhum. É um fenômeno do amanhecer.

O sr. Barnstaple digeriu essa declaração após um intervalo de incredulidade. Com algumas perguntas, ele concluiu que os jovens utopianos realmente tinham alguma ideia do que era viver de renda, quais poderiam ser suas limitações morais e imaginativas e o papel que isso podia ter tido no desenvolvimento intelectual do mundo ao fornecer uma classe de mentes independentes.

– A vida não tolera classes independentes – disse Crystal, evidentemente repetindo um axioma. – Ou você ganha salário ou rouba... Nós nos livramos do roubo.

O jovem, ainda falando do que aprendeu, explicou como se deu o desuso gradual do dinheiro. Foi resultado de uma organização geral e progressiva do sistema econômico, a substituição de iniciativas competitivas por iniciativas coletivas e do varejo pelo atacado. Houve uma época em Utopia em que o dinheiro mudava de mãos a cada pequena transação e serviço. O cidadão pagava se quisesse um jornal, ou fósforos, ou um buquê de flores, ou uma passagem para se locomover pelas ruas. Todos andavam pelo mundo com os bolsos cheios de moedinhas, pagando a cada reles situação. Então, conforme a ciência econômica se tornou mais estável e exata, os métodos de assinatura e associação se estenderam. As pessoas puderam comprar passes que lhes permitiam utilizar todos os meios de transporte por um ano ou por dez anos ou pela vida toda. O Estado aprendeu com associações e hotéis a fornecer fósforos, jornais, itens de papelaria e transporte por um valor anual fixo. O mesmo sistema inclusivo se espalhou de coisas pequenas e incidentais para questões grandes e essenciais, habitação, alimentação e até vestimenta. O sistema postal estatal sabia onde cada cidadão utopiano estava, e assim foi capaz, em associação com o sistema bancário público, de garantir seu crédito em qualquer parte do mundo. As pessoas deixaram de receber dinheiro pelo seu trabalho; os vários departamentos de serviços e de atividades econômicas, educacionais e científicas depositavam os ganhos do indivíduo no banco público e debitariam desse valor, com suas taxas costumeiras, para pagar por todos os serviços normais da vida.

– Algo parecido está acontecendo na Terra agora – disse o sr. Barnstaple. – Usamos dinheiro como último recurso, mas uma grande parte dos nossos negócios já é uma questão contabilística.

Séculos de unidade e energia haviam dado a Utopia o controle completo de muitas fontes de energia natural do planeta, e essa era a herança de cada criança nascida desde então. Recebia, ao nascer, um crédito suficiente para sua educação e sustento até os vinte e quatro ou vinte e cinco anos, então se esperava que escolhesse alguma ocupação para reabastecer sua conta.

– Mas e se não escolher? – perguntou o sr. Barnstaple.

– Todos escolhem.

– Mas e se não?

– Seria infeliz e desconfortável. Eu nunca soube de um caso assim. Acho que seria discutido. Os psicólogos poderiam examiná-lo... Mas é preciso fazer algo.

– Mas supondo que Utopia não tenha trabalho para ele?

Crystal não conseguia imaginar isso.

– Sempre há algo a se fazer.

– Mas em Utopia, nos velhos tempos, já houve desemprego?

– Isso foi parte da Confusão. Houve um tipo de hipertrofia da dívida; tornou-se uma paralisia. Ora, quando havia desemprego, ao mesmo tempo faltavam casas, comida e roupas. Havia desemprego e escassez ao mesmo tempo. Isso é incrível.

– Todos ganham o mesmo valor?

– Pessoas enérgicas e criativas geralmente recebem grandes bolsas, se parecem precisar da ajuda dos outros, ou domínio de recursos naturais... E artistas às vezes enriquecem se suas obras forem muito desejadas.

– Uma correntinha de ouro como a sua, teve de comprar?

– Do fabricante em sua loja. Minha mãe comprou.

– Então há lojas?

– Você verá algumas. Lugares aonde as pessoas vão para ver coisas novas e atraentes.

– E se um artista enriquecer, o que pode fazer com seu dinheiro?

– Pode dedicar tempo e materiais para fazer algo extremamente belo para deixar ao mundo. Ou juntar e ajudar na obra de outros artistas. Ou fazer o que lhe agrade para ensinar e refinar a noção de beleza em Utopia. Ou apenas não fazer nada... Utopia pode se dar a esse luxo, se ele puder.

Parte 5

– Cedar e Lion – disse o sr. Barnstaple – explicaram para nós como seu governo foi dividido e disperso entre as pessoas que têm conhecimentos especiais dos assuntos envolvidos. O Equilíbrio entre interesses, nós deduzimos, era mantido por aqueles que estudavam a psicologia geral e a organização educacional de Utopia. No começo, foi muito estranho para nossas mentes terrenas que não houvesse em nenhum lugar uma pretensa onisciência e uma onipotência prática, ou seja, algo soberano, uma pessoa ou assembleia cuja palavra fosse final. O sr. Burleigh e o sr. Catskill pensavam que tal coisa era absolutamente necessária, assim como eu, com menos certeza. “Quem vai decidir?”, era a pergunta deles. Eles esperavam ser levados para ver o Presidente ou o Conselho Supremo de Utopia. Suponho que deve ser a coisa mais natural para vocês que não haja nada do tipo, e que uma questão deva ser entregue simples e naturalmente ao homem que sabe mais a respeito.

– Sujeito à crítica livre – disse Crystal.

– Sujeito ao mesmo processo que o tornou eminente e responsável. Mas as pessoas não se promovem aqui nem por vaidade? E as pessoas não são promovidas na frente dos melhores só por despeito?

– Há muito despeito e vaidade em toda alma utopiana – disse Crystal. – Mas as pessoas falam muito abertamente e a crítica é muito questionadora e livre. Assim aprendemos a sondar nossos motivos antes de elogiarmos ou questionarmos.

– O que vocês dizem e fazem aqui mostra claramente seu verdadeiro valor – disse o sr. Barnstaple. – Não se pode cobrir de lama no ruído e na ignorância, sem ser questionado, ou fazer uma falsa alegação em meio à desordem.

– Há alguns anos houve um homem, um artista, que criou muita polêmica em torno da obra do meu pai. Muitas vezes a crítica artística é muito cruel aqui, mas ele foi cruel além da conta. Ele ridicularizou meu pai e o agrediu incessantemente. Ele o seguiu de um lugar a outro. Tentou evitar que ele conseguisse material. Foi muito ineficaz. Algumas pessoas o ouviram, mas de modo geral foi ignorado... – O menino parou bruscamente.

– E então?

– Ele se matou. Não pôde escapar de sua própria tolice. Todos sabiam o que ele havia feito e dito...

– Mas no passado houve reis, conselhos e conferências em Utopia – disse o sr. Barnstaple, voltando ao ponto principal.

– Meus livros me ensinam que nosso estado não poderia ter crescido de outra forma. Nós precisáramos ter esses negociadores das relações humanas, políticos e advogados, como um estágio necessário no desenvolvimento político e social. Assim como precisáramos ter soldados e policiais para salvar as pessoas da violência mútua. Foi só muito lentamente que políticos e advogados vieram a admitir a necessidade de um conhecimento especial para as coisas que tinham de fazer. Políticos criavam limites sem nenhum conhecimento de etnologia ou geografia econômica, e os advogados decidiam sobre ações e propósitos sem o conhecimento mais básico de psicologia. Produziam os arranjos mais pretensiosos e chegavam a acordos absurdos e impraticáveis da maneira mais grave.

– Como a personagem de Tristram Shandy, que se pôs a estabelecer a paz mundial em Versalhes – disse o sr. Barnstaple.

Crystal parecia intrigado.

– Uma alusão complicada a um assunto puramente terráqueo – disse o sr. Barnstaple. – Essa completa distribuição política e da lei entre pessoas com conhecimento é uma das coisas mais interessantes para mim neste mundo. Tal distribuição está começando na Terra. As pessoas que entendem de saúde mundial, por exemplo, são taxativas contra métodos políticos e legais, assim como muitos dos nossos melhores economistas. E a maioria das pessoas nunca pisaria num tribunal nem sonharia em fazer isso em relação a seus assuntos próprios do nascimento à morte. Qual foi o destino de seus políticos e advogados? Houve uma luta?

– Conforme a clareza aumentou e a inteligência se difundiu, ficou cada vez mais evidente que eles eram desnecessários. Finalmente eles se reuniram apenas para nomear homens de conhecimento como assessores e, após algum tempo, até essas indicações se tornaram conclusões óbvias. Suas atividades se fundiram ao conjunto geral de crítica e discussão. Em alguns lugares ainda há antigos prédios que costumavam ser câmaras e tribunais. O último político a ser eleito para uma assembleia legislativa morreu em Utopia há cerca de mil anos. Ele era um senhor excêntrico e tagarela; era o único candidato, um homem votou nele, e ele insistia em se reunir em assembleia solitária e em ter todos os seus discursos e procedimentos taquigrafados. Meninos e meninas que aprendiam estenografia costumavam se apresentar a ele. Finalmente, foi tratado como um doente mental.

– E o último juiz?

– Não aprendi sobre o último juiz – disse Crystal. – Preciso perguntar ao meu professor. Acho que houve um, mas ninguém deve ter pedido para ele julgar nada. Então, provavelmente, ele conseguiu algo mais respeitável para fazer.

Parte 6

– Começo a apreender a vida diária deste mundo – disse o sr. Barnstaple. – É uma vida de semideuses, muito livre, fortemente individualizada, cada um seguindo uma inclinação individual, cada um contribuindo para grandes fins raciais. Não é apenas nua de maneira limpa, doce e linda, mas cheia de dignidade pessoal. Entendo como um comunismo na prática, planejado e conduzido por longos séculos de educação, disciplina e preparação coletiva. Nunca havia pensado que o socialismo podia exaltar e enobrecer o indivíduo e o individualismo degradá-lo, mas agora vejo claramente que aqui isso foi provado. Neste mundo afortunado – e de fato é a coroação de toda sua saúde e felicidade – não há a Multidão. O velho mundo, o mundo ao qual eu pertenço, era, e em meu universo infelizmente ainda é, o mundo da Multidão, o mundo dessa detestável massa rastejante de seres humanos amorfos e infectados. Você nunca viu a Multidão, Crystal; e em toda sua vida feliz nunca verá. Nunca viu uma Multidão indo a uma partida de futebol ou a uma corrida ou a uma tourada ou a uma execução pública ou outros prazeres coletivos; nunca viu a Multidão se apertar num espaço estreito ou gritar ou vaiar numa crise. Nunca a viu se arrastando lentamente pelas ruas para ver, boquiaberta, um rei, ou clamar por uma guerra ou clamar igualmente pela paz. E nunca viu a Multidão, tomada por um ataque de pânico, passar de Multidão para Máfia e começar a destruir e perseguir. Todas as comemorações da Multidão sumiram deste mundo, todos os deuses da Multidão. Não há turfa aqui, não há esportes, nem manifestações em prol da guerra, nem coroações e funerais públicos, nem grandes espetáculos, apenas seus pequenos teatros... Feliz é você, Crystal! Que nunca verá uma Multidão!

– Mas eu vi Multidões – disse Crystal.

– Onde?

– Vi filmes sobre Multidões, feitos trinta ou mais séculos atrás. São mostrados em nossos museus de história. Vi Multidões correndo por ladeiras após uma grande corrida, fotografadas de um avião, e Multidões protestando em alguma praça pública e sendo dispersada pela polícia. Um enxame de milhares e milhares de pessoas. Mas é verdade o que diz. Não há mais Multidões em Utopia. Multidões e a mentalidade delas se foram para sempre.

Parte 7

Após alguns dias, quando Crystal teve de retornar a seus estudos de matemática, sua partida deixou o sr. Barnstaple muito solitário. Ele não encontrou outra companhia. Lychnis parecia sempre a seu lado e pronta para estar com ele, mas sua falta de interesses intelectuais, tão notáveis naquele mundo de vastas atividades mentais, afastava-o dela. Outros utopianos iam e vinham, amistosos, amáveis, divertidos, educados, mas concentrados em seus próprios assuntos. Faziam perguntas com curiosidade, respondiam talvez uma pergunta ou outra dele e partiam com ar de que estavam sendo chamados.

Ele começou a perceber que Lychnis era um dos fracassos de Utopia. Era um tipo romântico remanescente e guardava uma grande tristeza no coração. Tivera dois filhos que amara de paixão. Eram adoravelmente destemidos e, por um orgulho tolo, ela os mandou nadar no mar, foram pegos por uma correnteza e se afogaram. O pai também se afogou na tentativa de salvá-los, e Lychnis quase teve o mesmo destino. Ela foi salva. Mas sua vida emocional parou naquele momento, ela ficara presa a uma atitude e permaneceu nela. A tragédia a possuiu. Virou as costas para o riso e a felicidade e buscou o sofrimento. Redescobriu a paixão esquecida da pena, primeiro pena de si mesma e depois um desejo de ter pena dos outros. Ela não teve mais interesse em pessoas vigorosas e completas, sua mente se concentrou no consolo que encontrava em aliviar a dor e o sofrimento dos outros. Buscava sua cura os curando. Não queria falar com o sr. Barnstaple sobre as belezas de Utopia; queria que ele lhe falasse das infelicidades da Terra e de suas próprias infelicidades. Com isso, ela podia se solidarizar. Mas ele não lhe falhou de suas próprias infelicidades porque não tinha nenhuma, tal era seu temperamento, apenas exasperações e arrependimentos.

Ele percebia que ela sonhava em poder ir para a Terra e oferecer sua beleza e ternura aos doentes e pobres. Seu coração se compadecia com o espetáculo de sofrimento e da fraqueza humana. Compadecia-se com avidez e desejo...

Antes de ele detectar a inclinação mental dela, contou-lhe muitas coisas sobre doença e pobreza. Mas ele falou dessas questões não com pena, e sim com indignação, como coisas que não deveriam acontecer. E quando percebeu como ela se deliciava com essas coisas, falou delas de forma dura e animada, como coisas que logo seriam afastadas.

– Mas ainda assim eles terão sofrido... – disse ela.

Como estava sempre por perto, preencheu para ele talvez mais do que seu espaço legítimo no espetáculo utopiano. Ela jazia através dele como uma sombra. Ele pensava muito frequentemente nela e na pena e ressentimento contra a vida e o vigor que ele incorporava. Num mundo de medo, fraqueza, infecção, escuridão e confusão, a pena, o ato de caridade, as esmolas, o abrigo e a façanha da pura devoção podiam, de fato, se mostrar como presenças doces e amáveis; mas naquele mundo saudável e de iniciativas destemidas, a pena se traía como um desejo perverso. Crystal, o jovem utopiano, era tão duro como seu nome. Quando um dia escorregou numa pedra e torceu o tornozelo, ele mancou, mas deu risada. Quando o sr. Barnstaple ficou ofegante numa escadaria íngreme, Crystal foi mais educado do que solidário. Então, Lychnis não encontrou nenhum aliado na dedicação de sua vida ao sofrimento; não conseguia conquistar a solidariedade nem mesmo do sr. Barnstaple. Ele percebia que, de fato, no que dizia respeito ao temperamento, ele era mais utopiano do que ela. Para ele, assim como para Utopia, parecia uma ocasião mais de alegria do que de tristeza que seu marido e filhos tivessem encontrado a morte de maneira destemida. Eles haviam morrido, morrido com coragem; as águas ainda reluziam e o sol ainda brilhava. Mas a perda dela havia revelado uma mácula racial implícita nela, algo muito antigo na espécie, algo que Utopia ainda estava apagando muito lentamente, a disposição sombria para o sacrifício, que se curva e responde às sombras. Era estranho e talvez inevitável que o sr. Barnstaple encontrasse novamente em Utopia aquele espírito que a Terra conhecia tão bem – o espírito que se afasta do Reino dos Céus para venerar os espinhos e pregos, que se delicia em representar seu Deus não como a Ressurreição e a Vida, mas como um lastimável e derrotado cadáver.

Ela falava dos filhos dele como se o invejasse porque perdera os seus, mas tudo o que ela dizia o lembrava das desvantagens educacionais e perspectivas limitadas de seus filhos e de como suas vidas seriam melhores, mais robustas e felizes em Utopia. Ele arrisca afogá-los uma dúzia de vezes para salvá-los de serem balconistas e funcionários de outros homens. Mesmo pelos padrões da Terra, ele sentia agora que não havia dado seu melhor a eles; ele havia deixado muitas coisas se desviarem na vida deles e na vida dele mesmo e de sua esposa, que agora sentia que devia ter controlado. Se pudesse voltar no tempo, sentia que tomaria providências para que seus filhos se interessassem mais por política e ciência e não mergulhassem tão completamente nas trivialidades da vida suburbana: em jogos de tênis, teatro amador, flertes banais e assim por diante. No fundo, eram bons meninos, ele sentia, mas havia deixado a mãe deles agir demais sozinha, em vez de combatê-la, em nome de suas próprias ideias. Eles viviam trivialmente à sombra de uma grande catástrofe, e sem nenhuma segurança contra outra; viviam num mundo de desperdício banal e miserável insuficiência. E a vida dele também havia sido... um desperdício banal.

Sua vida em Sydenham começou a assombrá-lo.

– Eu criticava tudo, mas não alterava nada – disse ele. – Fui tão ruim quanto Peeve. Fui mais útil naquele mundo do que sou neste? Mas na Terra somos todos desperdícios...

Ele evitou Lychnis por um ou dois dias e vagou sozinho pelo vale. Entrou numa grande sala de leitura e folheou livros que não conseguia ler; sofreu ao entrar num ateliê e observar um artista tornar uma menina nua feita de ouro mais linda do que qualquer estátua da Terra, e então derretê-la novamente, insatisfeito; lá ele encontrou homens construindo e lá havia trabalho nos campos; lá havia um grande poço na encosta e algo fundo no morro que piscava e cintilava estranhamente; eles não o deixaram entrar lá; viu milhares de coisas que não conseguiu entender. Começou a se sentir talvez como um cachorro muito inteligente devia se sentir às vezes no mundo dos homens, só que não tinha dono e nenhum instinto para lhe dar consolo na abjeção canina. Os utopianos cuidavam de suas vidas durante o dia, passavam sorrindo por ele e o enchiam de uma inveja intolerável. Sabiam o que fazer. Pertenciam ao lugar. Andavam em duplas e trios de noite, conversando e às vezes cantando juntos. Namorados passavam por ele, com seus doces rostos sorridentes colados, e a solidão dele se tornou uma agonia de desejos sem esperança.

Porque, apesar de lutar arduamente para que permanecesse sob o limite de sua consciência, o sr. Barnstaple desejava imensamente amar e ser amado em Utopia. A percepção de que nenhuma daquelas pessoas poderia jamais conceber tal intimidade de corpo e espírito com ele era uma humilhação mais profunda até do que sua inutilidade. A beleza das meninas e mulheres utopianas que olhavam para ele com curiosidade ou passavam por ele com uma serena indiferença esmagava seu amor-próprio e tornava o mundo utopiano totalmente intolerável para ele. Silenciosamente, de maneira inconsciente, aquelas deusas utopianas faziam com que ele sentisse um completo rebaixamento de casta e inferioridade de raça. Ele não podia evitar pensar no amor onde todos pareciam ter um amante, e naquele mundo utopiano o amor por ele era algo grotesco e inconcebível...

Então, certa noite, enquanto estava deitado na cama, extremamente perturbado por esses pensamentos, uma ideia lhe surgiu, pela qual lhe parecia que poderia restaurar seu amor-próprio e conquistar um tipo de cidadania em Utopia.

Para que pudessem falar e lembrar dele com interesse e simpatia.


CAPÍTULO TRÊS
O SERVIÇO DO TERRÁQUEO

Parte 1

O homem com quem o sr. Barnstaple foi falar, depois das devidas consultas, chamava-se Sungold. Provavelmente era muito velho, porque havia rugas ao redor de seus olhos e em sua bela testa. Era um homem corado, com uma barba castanha salpicada de branco, e seus olhos eram castanhos e sagazes sob sobrancelhas espessas. Seu cabelo havia rareado, mas pouco, e caía para trás como uma crina, mas perdera sua cor de cobre. Estava sentado a uma mesa com papéis diante de si, fazendo anotações. Sorriu para o sr. Barnstaple, porque o estava esperando, e indicou um assento para ele com sua mão forte e sardenta. Então, sorriu e esperou que o sr. Barnstaple começasse.

– Este mundo é um triunfo do desejo por ordem e beleza na mente dos homens – disse o sr. Barnstaple. – Mas não tolera uma alma inútil. Todos são felizes sendo ativos. Todos menos eu... Não pertenço a lugar nenhum. Não tenho nada para fazer. E ninguém se relaciona comigo.

Sungold moveu levemente a cabeça para mostrar que entendia.

– É difícil para um terráqueo, com uma falta terrena de treinamento, encaixar-se em qualquer lugar aqui. Em qualquer trabalho usual ou qualquer relacionamento usual. Nós somos... estrangeiros... Mas é ainda mais difícil não ter lugar algum. No novo trabalho, sobre o qual ouvi que o senhor sabe mais do que qualquer um e é, de fato, o centro e regulador, ocorreu-me que posso ser de alguma utilidade, que posso, de fato, ser tão bom quanto um utopiano... Se for assim, quero ser útil. O senhor pode querer alguém para arriscar a vida, assumir o perigo de ir a um local estranho, alguém que deseja servir Utopia, e que não precisa ter habilidade ou conhecimento nem ser uma pessoa bonita ou capaz?

O sr. Barnstaple parou abruptamente.

Sungold expressou total compreensão de tudo o que estava na mente do sr. Barnstaple.

O sr. Barnstaple esperou interrogativamente enquanto Sungold pensava.

As palavras e frases começaram a seguir uma sequência na mente do sr. Barnstaple.

Sungold perguntou se o sr. Barnstaple entendia a extensão ou as limitações das grandes descobertas que então eram feitas em Utopia. Disse que Utopia estava passando por uma fase de intensa exaltação intelectual. Novos poderes e possibilidades cativavam a imaginação da raça e, de fato, era inconcebível que um terráqueo perplexo e impossível refratário a ensinamentos não se sentisse angustiado e desconfortável entre as vastas atividades estranhas que agora começavam. Até muitos do seu próprio povo, os utopianos mais retrógados, estavam perturbados. Por séculos, filósofos e experimentalistas utopianos vinham criticando, revisando e reconstruindo suas antigas ideias instintivas e tradicionais do tempo e espaço, de forma e substância, e agora, muito rapidamente, as novas formas de pensar se tornavam claras e simples e frutificavam aplicações práticas surpreendentes. As limitações de espaço que haviam parecido intransponíveis estavam sendo derrubadas, de um modo estranho e perturbador, mas eram derrubadas. Agora era teoricamente possível, tornava-se rapidamente possível, na prática, passar do planeta Utopia, ao qual a raça até então estivera confinada, para outros pontos de seu universo de origem, ou seja, planetas remotos e estrelas distantes... Aquela era a essência da situação atual.

– Não consigo imaginar isso – disse o sr. Barnstaple.

– Não consegue imaginar – Sungold concordou, cordialmente. – Mas é assim. Cem anos atrás era inconcebível aqui.

– Vocês chegam lá por alguma porta dos fundos em outra dimensão? – perguntou o sr. Barnstaple.

Sungold considerou esse palpite. Era uma imagem grotesca, ele disse, mas do ponto de vista de um terráqueo, servia. Captava algo da realidade. Mas era muito mais maravilhoso...

– Uma nova e espantosa fase começou para a vida aqui. Aprendemos há muito tempo os segredos principais da felicidade sobre este planeta. A vida é boa neste mundo. Acha boa? Por milhares de anos ainda será nosso chão firme e nosso lar. Mas o vento de novas aventuras sopra em nossa vida. Este mundo todo está no espírito de levantar acampamento no inverno quando a primavera se aproxima.

Ele se inclinou sobre seus papéis em direção ao sr. Barnstaple, ergueu um dedo e falou palavras audíveis como para tornar o sentido mais claro. Pareceu ao sr. Barnstaple que cada palavra traduzia a si mesma para o inglês enquanto ele falava. Em todo caso, o sr. Barnstaple compreendeu.

– A colisão de nosso planeta Utopia com seu planeta Terra foi um acidente muito curioso, mas sem importância nesta história. Quero que entenda isso. Seu universo e o nosso são dois entre um grande número de universos gravitacionais e temporais, que transladam juntos através da inexaurível infinidade de Deus. São similares em tudo, mas não são idênticos em nada. Seu planeta e o nosso por acaso estão lado a lado, por assim dizer, mas não estão viajando no mesmo ritmo nem numa direção estritamente paralela. Vão se afastar novamente e seguir seus diversos destinos. Quando Arden e Greenlake fizeram seu experimento, as chances de acertarem algo em seu universo eram infinitamente remotas. Não haviam pensado nisso, estavam apenas rodando parte de nossa matéria para fora e depois de volta para nosso universo. Vocês caíram aqui, o que foi tão surpreendente para nós quanto para vocês. A importância das nossas descobertas para nós reside em nosso próprio universo, não no seu. Não queremos ir ao seu universo nem que mais do seu mundo venha ao nosso. Vocês são parecidos demais conosco e são sombrios, atormentados e infectados demais; são contagiosos demais, e nós, nós não podemos ajudá-los ainda porque não somos deuses, mas homens.

O sr. Barnstaple assentiu com um gesto de cabeça.

– O que os utopianos poderiam fazer com os homens da Terra? Não temos nenhum instinto forte de ensinar ou dominar outros adultos. Isso foi extirpado de nós por longos séculos de igualdade e cooperação livre. E vocês seriam numerosos demais para que os ensinássemos e boa parte da sua população já teria crescido e criado maus hábitos. Suas ações estúpidas nos atrapalhariam, suas disputas, invejas e tradições, suas bandeiras e religiões e todos os seus rancores e supressões nos entravariam em tudo que quiséssemos fazer. Seríamos impacientes com vocês, injustos, opressores. Vocês são parecidos demais conosco para sermos pacientes com seus defeitos. Seria difícil lembrar-se constantemente de como foram malcriados. Em Utopia, descobrimos há muito tempo que nenhuma raça de seres humanos era suficientemente boa, sutil e poderosa para pensar e agir por nenhuma outra raça. Talvez vocês já estejam descobrindo a mesma coisa na Terra, à medida que suas raças entram num contato mais próximo. E isso seria muito mais verdade entre Utopia e a Terra. Pelo que sei de seu povo, e de sua ignorância e obstinação, fica claro que nosso povo iria desprezar vocês; e o desdém é a causa de todas as injustiças. Poderíamos terminar exterminando vocês... Mas por que tornaríamos isso possível? Precisamos deixá-los em paz. Não podemos confiar em nós mesmos no que diz respeito a vocês... Acredite, esse é o único caminho razoável para nós.

O sr. Barnstaple assentiu silenciosamente.

– Você e eu, dois indivíduos, podemos ser amigos e nos entendermos.

– O que você diz é verdade – disse o sr. Barnstaple. – É verdade. Mas me dói que seja verdade... Muito... Mesmo assim, entendo que pelo menos eu poderia ser de alguma utilidade em Utopia?

– Você pode.

– Como?

– Voltando ao seu próprio mundo.

O sr. Barnstaple pensou por alguns momentos. Era o que ele temia. Mas ele havia se oferecido.

– Farei isso.

– Devo dizer que, ao tentar voltar, há um risco. Você pode ser morto.

– Devo aceitar o risco.

– Queremos verificar todos os dados que temos das relações de nosso universo com o seu. Queremos reverter o experimento de Arden e Greenlake e ver se conseguimos devolver um ser vivo para seu mundo. Estamos quase certos agora de que podemos fazer isso. E esse ser humano deve se importar o suficiente conosco e com seu próprio mundo para voltar e nos dar um sinal de que chegou lá.

O sr. Barnstaple falou roucamente.

– Posso fazer isso.

– Podemos devolvê-lo àquela sua máquina e às roupas que usava. Pode voltar a ser exatamente como era quando deixou seu mundo.

– Exato. Eu entendo.

– E como seu mundo é vil e litigioso, embora tenha cérebros estranhamente capazes, aqui e ali, não queremos que o seu povo saiba de nós; vivendo tão próximos de vocês – pois estaremos perto de vocês por mais alguns século pelo menos –, não queremos que saibam por medo de que venham até aqui na mesma hora, liderados por algum gênio tolo da ciência, que venham em bandos gananciosos, tolos, reprodutivos, martelando em nossas portas, ameaçando nossas vidas e destruindo nossas elevadas aventuras, de modo que tenham de ser esmagados e mortos como uma invasão de ratos ou parasitas.

– Sim – disse o sr. Barnstaple. – Antes que os homens possam vir a Utopia, precisam aprender o caminho daqui. Entendo que Utopia é apenas lar para aqueles que aprenderam o caminho. – Ele fez uma pausa e respondeu alguns de seus próprios pensamentos. – Quando eu voltar – disse ele –, devo começar a esquecer Utopia?

Sungold sorriu e não disse nada.

– Até o fim dos meus dias, a nostalgia de Utopia irá me afligir.

– E sustentá-lo.

– Retomarei minha vida terrena do ponto onde a deixei, mas... na Terra... eu serei um utopiano. Porque sinto que tendo oferecido meus serviços e, tendo sido aceitos, não sou mais um pária em Utopia. Eu pertenço a este lugar...

– Lembre-se de que você pode morrer. Pode morrer no teste.

– Se tiver que ser.

– Bem... irmão!

Sungold estendeu a mão enorme e amiga e apertou a do sr. Barnstaple, sorrindo com seus olhos profundos.

– Depois que tiver voltado e nos dado seu sinal, vários dos outros terráqueos também poderão ser mandados de volta.

O sr. Barnstaple se empertigou.

– Mas...! – Ele perdeu o ar. Sua voz se elevou devido ao espanto. – Achei que eles haviam sido mandados ao espaço vazio de algum outro universo e totalmente destruídos!

– Vários morreram. Eles mesmos se mataram descendo atropeladamente pela lateral da velha fortaleza, na escuridão, enquanto o penhasco rodava. Os homens vestidos de couro. O homem que você chama de Long Barrow...

– Barralonga?

– Sim. E o homem que deu de ombros e disse: “O que se pode fazer?”. Os outros voltaram quando a rotação terminou no final do dia – asfixiados e congelados, mas não mortos. Foram devolvidos à vida, e nos intriga agora como nos livrar deles... Não têm utilidade alguma neste mundo. Eles nos sobrecarregam.

– Isso é claro demais – disse o sr. Barnstaple.

– O homem que você chama de Burleigh parece ser de alguma importância em seus assuntos terrenos. Nós vasculhamos sua mente. Seus poderes de crença são muito estreitos. Acredita em muito pouco, a não ser na vida de um cavalheiro abastado e culto e que tem uma posição de distinção modesta nos conselhos de um grande império fictício. É duvidoso que acredite na realidade de qualquer parte dessa experiência. De todo modo, garantiremos que ele pense que foi tudo um sonho da imaginação. Vai considerá-lo fantástico demais para contá-lo às pessoas, porque é óbvio que ele já tem muito medo de sua imaginação. Estará de volta ao seu mundo alguns dias depois de você chegar lá e seguirá para a casa dele sem impedimentos. Irá logo depois de você. Você o verá reaparecer na vida política. Talvez com um pouco mais de sabedoria.

– É bem capaz de que seja assim – disse o sr. Barnstaple.

– E... quais são os sons do nome dele? Rupert Catskill: ele também vai voltar. Seu mundo sentiria falta dele.

– Nada o tornará mais sábio – disse o sr. Barnstaple com convicção.

– Lady Stella também irá.

– Alegro-me que ela tenha escapado. Ela não dirá nada sobre Utopia. É muito discreta.

– O padre é louco. Seu comportamento se tornou ofensivo, obsceno e ele está detido.

– O que ele fez?

– Ele fez vários aventais de seda preta e partiu com eles para atacar nossos jovens de maneira indigna.

– Pode mandá-lo de volta – disse o sr. Barnstaple, refletindo.

– Mas seu mundo vai permitir esse tipo de coisa?

– Nós chamamos esse tipo de coisa de Puritanismo – disse o sr. Barnstaple. – Mas, é claro, se quiser mantê-lo...

– Ele voltará – disse Sungold.

– Com os outros vocês podem ficar – disse o sr. Barnstaple. – Na verdade, terão de ficar com eles. Ninguém na Terra vai se preocupar muito com eles. Em nosso mundo há tanta gente que alguns sempre se perdem. Como está, devolver até os poucos que vocês pretendem pode chamar atenção. O povo local pode começar a notar todos esses errantes chegando do nada e perguntando o caminho para casa na Maidenhead Road. Podem ceder sob perguntas... Não podem mandar mais ninguém. Instalem o resto numa ilha. Ou algo assim. Queria poder aconselhá-lo a ficar com o padre também. Mas muita gente sentiria falta dele. Sofreriam de Puritanismo reprimido e começariam a se comportar de modo estranho. O púlpito de São Barbané satisfaz ânsias reconhecidas. E será bem fácil persuadi-lo de que Utopia é um sonho e uma ilusão. Todos os padres pensam isso naturalmente de todas as utopias. Ele vai pensar na experiência, isso se ele pensar, como – como ele chamaria? – um “pesadelo moral”.

Parte 2

A conversa havia terminado, mas o sr. Barnstaple relutava em partir. Olhou Sungold nos olhos e encontrou certa bondade neles.

– Você me disse tudo o que eu tenho de fazer – ele disse – e já é hora de eu partir, pois um momento da sua vida é mais precioso do que um dia da minha. No entanto, como devo partir tão em breve e tão obedientemente deste mundo vasto e esplêndido de volta à minha desordem nativa, eu peço de coração que se abra um pouco, se puder, e me fale de maneira simples e clara dos grandes dias e grandes conquistas que agora estão começando em seu planeta. O senhor disse que são capazes agora de sair de Utopia rumo a partes remotas do universo. Isso me deixa perplexo. Provavelmente, não estou preparado para entender essa ideia, mas é muito importante para mim. Tem sido uma crença em nosso mundo que finalmente a vida acabará porque nosso sol e planetas estão esfriando e não parece haver esperança de fuga do pequeno planeta em que surgimos. Nascemos com ele e devemos morrer com ele. Isso roubou esperança e energia de muitos de nós. Por que devemos trabalhar para o progresso num mundo que irá congelar e morrer?

Sungold riu.

– Seus filósofos se precipitaram demais.

Ele se estendeu na mesa em direção a seu ouvinte e olhou para seu rosto com seriedade.

– A ciência na Terra existe desde quando?

– Uns duzentos... trezentos anos.

Sungold mostrou dois dedos.

– E homens? Quantos homens?

– Algumas centenas que importavam a cada geração.

– Nós prosseguimos há três mil anos, e cem milhões de bons cérebros foram prensados como uvas na vinícola da ciência. E sabemos hoje... como sabemos pouco. Nunca há uma observação feita sem que observações sejam perdidas; nunca há uma medida, mas uma verdade travessa que zomba de nós e nos escapa na margem de erro. Sei algo sobre em que ponto seus cientistas estão, todo o poder aos pobres selvagens! Porque estudei os princípios da nossa ciência no longo passado de Utopia. Como posso expressar nossas distâncias? Desde aquele tempos nós examinamos, experimentamos, testamos e voltamos a testar uma série de novas formas de pensar sobre o espaço, do qual o tempo é apenas uma forma especializada. Temos formas de expressão que não podemos passar a vocês, de modo que coisas que costumavam ser difíceis e paradoxais para nós, e que provavelmente parecem irremediavelmente difíceis e paradoxais para vocês, perderam toda a dificuldade em nossas mentes. É difícil expressar para você. Nós pensamos em termos de um espaço no qual o sistema de espaço e tempo, nos termos em que vocês pensam, é apenas um caso especializado. No que diz respeito a nossos sentimentos, instintos e hábitos diários, nós também vivemos em outro sistema como o de vocês, mas não no que diz respeito ao nosso conhecimento, não no que diz respeito aos nossos poderes. Nossas mentes superaram nossas vidas, como as suas superarão. Ainda somos de carne e osso, ainda temos esperanças e desejos, nós vamos e voltamos, olhamos para cima e para baixo, mas as coisas que pareciam remotas foram trazidas para perto, coisas que eram inacessíveis se curvaram, coisas que eram intransponíveis estão em nossas mãos.

– E vocês não acham que sua raça, ou a nossa, precisa um dia acabar?

– Acabar?! Nós mal começamos!

O velho falava muito seriamente. Inconscientemente, parodiava Newton.

– Somos como crianças que foram levadas à praia de um oceano ilimitado. Todo o conhecimento que acumulamos nas poucas gerações desde que começamos a acumular conhecimento é como um punhado de pedrinhas recolhidas nessa praia de um mar sem limites. Diante de nós estende-se o conhecimento, infinito, e podemos tomá-lo e tomá-lo e, ao tomá-lo, crescemos. Crescemos em poder, crescemos em coragem. Renovamos nossa juventude. Pois, escute o que eu digo, nossos mundos rejuvenescem. As antigas gerações de macacos e sub-homens que nos antecederam tinham mentes velhas; sua sabedoria estreita e relutante era um mísero lucro, acumulado, obsoleto e amargo de inúmeras vidas. Temiam novidades; tão amargamente valorizavam o antigo, amargamente conquistado. Mas aprender é, afinal, tornar-se jovem novamente, ser liberto, começar de novo. Comparado com o nosso, o seu é um mundo de almas incrustadas, incapazes de aprender, de tradições enfadonhas e inflexíveis, de ódio, injúria e tais coisas inesquecíveis. Mas um dia vocês também vão se tornar como crianças novamente, e serão vocês que encontrarão o caminho até nós; estaremos esperando por vocês. Dois universos se encontrarão e se unirão para gerar um universo ainda maior... Vocês, terráqueos, nem começaram a perceber o significado da vida. Nem nós, utopianos... talvez um pouco mais. A vida ainda é apenas uma promessa, ainda aguarda nascer, a partir de pobres agitações na poeira, enquanto nós...

– Algum dia, aqui e em todos os lugares, a vida da qual eu e você somos apenas átomos e turbilhões antecipatórios vai despertar, de fato, única, completa e maravilhosa, como uma criança despertando para a vida consciente. Abrirá seus olhos sonolentos, se espreguiçará e sorrirá, olhando para a face do mistério de Deus, como alguém encontra o sol da manhã. Então estaremos lá, tudo o que importa de nós, você e eu...

– E não será mais do que um começo, não mais do que um começo...


CAPÍTULO QUATRO
O RETORNO DO TERRÁQUEO

Parte 1

Logo chegou a manhã em que o sr. Barnstaple olharia pela última vez para os belos montes de Utopia e enfrentaria o grande experimento ao qual ele havia se entregado. Relutara em dormir e dormira pouco naquela noite, e no começo da manhã estava fora, usando pela última vez as sandálias e a leve túnica branca que haviam se tornado seu traje utopiano. Logo teria de se meter em meias, botas, calças e colarinhos, o mais estranho dos trajes. Sentia que iriam sufocá-lo, e estendeu os braços nus para o céu, bocejou e encheu os pulmões de ar. O vale abaixo ainda dormia sob uma fina coberta de névoa; ele virou o rosto para cima, para o quanto antes encontrar o sol.

Nunca antes ele andara entre as flores utopianas tão cedo de manhã. Era interessante ver como algumas das grandes trombetas ainda pendiam, dormindo, e quantas das flores maiores estavam dobradas e penduradas. Muitas folhas também estavam enroladas, tão vulneráveis como mariposas recém-saídas do casulo. As aranhas diáfanas haviam estado ocupadas e tudo estava úmido de orvalho. Um grande tigre se aproximou dele subitamente, saindo de um caminho lateral, e o encarou por alguns momentos com seus olhos redondos e amarelos. Talvez estivesse tentando se lembrar dos instintos esquecidos de sua espécie.

Subindo a estrada, ele passou sob uma arcada de um vermelho vivo e subiu um lance de escadas de pedra que prometia levá-lo mais rápido ao topo.

Vários pássaros amistosos, de cores muito alegres, voaram ao redor dele por algum tempo e um deles se empoleirou impudentemente em seu ombro, mas, quando ergueu a mão para acariciá-lo, ele se esquivou e voou para longe. Ele ainda subia a escada quando o sol surgiu. Era como se a colina tirasse um véu cinza e azul e mostrasse a beleza dourada de seu corpo.

O sr. Barnstaple chegou até um patamar na escadaria e parou. Demorou-se, imóvel, vendo a aurora vasculhar e ressuscitar as profundezas taciturnas do vale abaixo.

Bem ao longe, como uma flecha disparada do leste para o oeste, surgiu uma linha de brilho ofuscante no mar.

Parte 2

– Serenidade – ele murmurou. – Beleza. Todas obras do homem em perfeita harmonia... mentes trazidas à harmonia...

Seguindo seus hábitos jornalísticos, ele experimentou frases.

– Uma paz energética... confusões dispersas... Um mundo de espíritos cristalinos...

Qual era a utilidade das palavras?

Por algum tempo ele permaneceu imóvel, os ouvidos atentos, pois de algum morro acima uma cotovia alçara voo, emitindo doces notas. Tentou ver aquela pequena mancha musical e foi cegado pelo azul ofuscante do céu.

Logo depois, a cotovia desceu e cessou de cantar. Utopia estava em silêncio, exceto por uma explosão de risos infantis em algum lugar morro abaixo.

Ocorreu ao sr. Barnstaple como o ar utopiano era calmo se comparado à atormentada atmosfera da Terra. Lá não havia latidos e uivos de cães cansados ou irritados, nenhum zurro, berro, guincho e gritos aflitivos de animais inquietos, nenhum ruído de fazendas, nenhum grito de raiva, nenhum ganido ou tosse, nenhuma martelada, batida, serragem, trituração, nenhum barulho mecânico, assobio, buzina e afins, nenhum estrondo de trens distantes, rugidos de automóveis ou outros mecanismos mal planejados; os cansativos e terríveis ruídos de tantas criaturas desagradáveis não mais se ouviam. Em Utopia, o ouvido, assim como o olho, estava em paz. O ar que um dia fora um lamaçal de ruídos abafados agora era... um silêncio purificado. Os sons que se ouviam eram como uma bela impressão sobre uma generosa folha de papel fino.

Seus olhos voltaram para a paisagem abaixo quando os últimos vestígios lanosos de neblina se dissolviam. Caixas d’água, estradas, pontes, prédios, aterros, colunatas, bosques, jardins, canais, cascatas e fontes se tornavam intensamente claros, emoldurados por um ramo de folhagem escura de uma árvore de tronco branco que se firmava entre as rochas ao lado dele.

Três mil anos atrás este era um mundo como o nosso... Pense nisso... numa centena de gerações... em três mil anos nós podemos tornar nossa pobre Terra desperdiçada, selvas e desertos, lixões e favelas, em outro céu assim, de beleza e poder...

Os mundos são similares, mas não iguais...

Se eu pudesse contar a eles o que vi...

Suponha que todos os homens pudessem ter esta visão de Utopia...

Eles não acreditariam se eu lhes contasse. Não...

Eles iriam zurrar como burros para mim, ladrar como cães! Não querem nenhum mundo fora seu próprio mundo. Dói-lhes pensar em qualquer mundo que não seja o deles. Nada pode ser feito que já não tenha sido feito. Pensar de outra forma seria uma humilhação... Morte, tortura, futilidade... qualquer coisa, menos humilhação! Sendo assim, precisam sentar entre suas ervas e excrementos, se coçando e assentindo sabiamente uns para os outros, torcendo por uma boa briga de cães e para tripudiarem sobre dor e esforço de que não compartilham, certos de que a humanidade fedeu, fede e sempre irá feder, de que esse fedor é muito agradável e de que não há nada de novo sob o sol...

Seus pensamentos foram distraídos por duas meninas que subiram a escada correndo, uma após a outra. Uma delas era morena como o anoitecer e suas mãos estavam cheias de flores azuis; a outra, que a seguia, era um ano ou dois mais nova e tinha cabelos dourados. Estavam cheias da empolgação sem limites de animaizinhos brincando. A primeira prestava tanta atenção à outra que descobriu o sr. Barnstaple com um gritinho de surpresa quando chegou ao patamar dele. Ela lhe lançou um olhar rápido e questionador, fez uma travessura insolente, jogou duas flores azuis no rosto dele e partiu subindo os degraus. Sua companheira, disposta a alcançá-la, passou correndo por ele logo atrás. Elas esvoaçaram escada acima como duas borboletas amarela e rosa; pararam mais acima e juntaram-se para uma consulta momentânea sobre o estranho, acenaram para ele e sumiram.

O sr. Barnstaple retribuiu a saudação, que o animou.

Parte 3

O mirante para o qual Lychnis havia dirigido o sr. Barnstaple destacava-se na serra entre o grande vale no qual ele passara os últimos dias e um vale selvagem e íngreme através do qual descia um riacho destinado, após algumas centenas de quilômetros sinuosos, a chegar ao rio da planície. O mirante ficava no topo de um penhasco, e havia sido construído sobre grandes suportes, de modo que se inclinava sobre uma curva no riacho abaixo; de um lado havia um cenário montanhoso e uma profusão rica e pitoresca de vegetação verde nas profundezas; do outro lado se estendiam os amplos espaços ajardinados de uma paisagem perfeita. Por algum tempo, o sr. Barnstaple examinou o vale que olhava pela primeira vez. Cerca de duzentos metros abaixo uma abetarda pairava, e o sr. Barnstaple imaginou que podia jogar uma pedra entre suas asas abertas.

Achou que muitas das árvores abaixo deviam ser frutíferas, mas estavam distantes demais para que ele visse com precisão. Aqui e ali podia distinguir uma trilha subindo tortuosamente entre as árvores e as rochas, e entre as superfícies verdes havia pequenos pavilhões onde ele sabia que um viajante podia descansar e fazer um lanche, com chá e biscoitos, e possivelmente encontrar um sofá e um livro. Ele sabia que o mundo todo estava cheio dessas casas de veraneio e abrigos agradáveis...

Após algum tempo, ele voltou ao outro lado do mirante e contemplou o grande vale que seguia em direção ao mar. A palavra Pisgah pairava em sua mente, pois, de fato, abaixo dele estava a Terra Prometida de desejos humanos. Lá, finalmente, estabelecidos e seguros, estavam a paz, o poder, a saúde, as atividades felizes, os dias longos e a beleza. Tudo o que buscamos se encontrava ali, e todos os sonhos eram realizados.

Quanto tempo levaria, quantos séculos ou milênios até que um homem pudesse subir a um lugar alto na Terra e também ver a humanidade triunfante e perfeita e para sempre em paz?

Ele apoiou os braços dobrados no parapeito e refletiu profundamente.

Não havia conhecimento nessa Utopia cujos germes a Terra já não tivesse, não havia poder usado ali que os terráqueos não pudessem usar. Lá, fora a ignorância, as trevas, a maldade e a malícia que eram permitidas, era a atual Terra...

Fora por um mundo como Utopia que o sr. Barnstaple aspirara debilmente durante toda sua vida. Se o experimento diante dele tivesse sucesso, se logo ele se visse vivo novamente na Terra, ainda seria para Utopia que sua vida seria dirigida. E ele não estaria sozinho. Na Terra devia haver milhares, dezenas de milhares, talvez centenas de milhares de pessoas que se esforçavam, com pensamentos e atos, para encontrar um escape para si mesmas e seus filhos da desordem e da indignidade da Era de Confusão, centenas de milhares que queriam pôr um fim nas guerras e desperdícios, para curar, educar e restaurar, para erguer o estandarte de Utopia sobre as trapaças e divisões que devastavam a humanidade.

– Sim, mas fracassamos – disse o sr. Barnstaple andando, inquieto, de um lado para o outro. – Dezenas e centenas de milhares de homens e mulheres! E realizamos tão pouco! Talvez todos os jovens tenham tido pelo menos algum sonho de servir e melhorar o mundo. E estamos espalhados e desperdiçados, e as coisas velhas e as coisas imundas, costumes, ilusões, hábitos, traições toleradas, imediatismos baixos triunfam sobre nós!

Ele voltou ao parapeito e apoiou um pé num assento, o cotovelo no joelho e o queixo nas mãos, admirando a beleza daquele mundo que ele muito em breve deixaria...

– Nós poderíamos fazê-lo.

E, de repente, tornou-se claro para o sr. Barnstaple que agora ele pertencia de corpo e alma à Revolução, à Grande Revolução que está em curso na Terra; que marcha e que nunca desistirá nem descansará até que a Velha Terra fosse uma só cidade e Utopia fosse erigida nela. Sabia claramente que aquela Revolução era a vida e que todos os outros modos de vida eram um tráfico da vida pela morte. E quando isso se cristalizou em sua mente, ele soube instantaneamente que em breve se cristalizaria na mente de incontáveis outros daquelas centenas de milhares de homens e mulheres na Terra cujas mentes estão voltadas para Utopia.

Ele ergueu e começou a andar de um lado para o outro.

– Vamos fazê-lo – disse ele.

O pensamento na Terra mal havia despertado para a tarefa e as possibilidades que se ofereciam para a humanidade. Toda a história humana até então não passara da agitação de um dormente, um amontoado de descontentamentos, uma rebelião contra as limitações da vida, o protesto ininteligível de imaginações frustradas. Todos os conflitos, revoluções e insurreições que já haviam acontecido na Terra não eram nada além de prelúdios da revolução ainda por vir. O sr. Barnstaple percebeu que, quando começara aquelas férias fantásticas, seu ânimo era de depressão; assuntos terrenos lhe pareciam profundamente confusos e sem esperança; mas agora, tendo alcançado o ponto de vista de Utopia e com sua saúde renovada, ele podia ver claramente como os homens na Terra percebiam seu caminho agora, fracasso após fracasso, rumo ao impulso inaugural da revolução final. Ele podia ver como os homens em sua própria época vinham lutando contra essas limitações, tais como as mentiras da monarquia, as mentiras da religião dogmática, as mentiras da moralidade dogmática, rumo ao respeito próprio e à limpeza de mente e corpo. Agora lutavam também pela caridade internacional e pela libertação da vida econômica de uma rede de pretextos, desonestidades e imposturas. Havia confusão em todas as lutas; retiradas e derrotas; mas o efeito total visto das alturas calmas de Utopia era de um avanço constante...

Havia erros, havia reveses, porque as forças da revolução ainda operavam no crepúsculo. O grande esforço e o grande fracasso do movimento socialista em criar um novo estado no mundo eram contemporâneos com a vida do sr. Barnstaple; o socialismo havia sido o evangelho de sua juventude; ele havia compartilhado de suas esperanças, suas dúvidas, seus amargos conflitos internos. Vira o movimento perder doçura e ganhar força na estreiteza da fórmula marxista. Vira-o sacrificar seu poder construtivo em prol da intensidade militante. Na Rússia, ele notara sua habilidade em derrubar e sua incapacidade de planejar ou construir. Como todo espírito liberal no mundo, ele havia compartilhado do arrefecimento da presunção e do fracasso bolchevique, e por um tempo lhe pareceu que essa falência aberta de um grande impulso criativo era nada menos do que uma vitória da reação, que reanimara as farsas, as imposturas, as corrupções, as anarquias e ascendências tradicionais que restringiam e travavam a vida humana... Mas agora, da perspectiva elevada de Utopia, ele via claramente que a Fênix da Revolução ardia e se reduzia às cinzas apenas para nascer novamente. Enquanto a corda apertava o pescoço do Professor, jovens liam seus ensinamentos. Revoluções surgiam e morriam, e a Grande Revolução avançava incessante e inevitavelmente.

O momento estava próximo e, na vida que lhe restava, ele mesmo podia ajudar a antecipá-lo, quando as forças da última e verdadeira revolução não operariam no crepúsculo, mas sim no amanhecer, quando milhares de homens e mulheres então separados e desorganizados e mutuamente antagônicos se uniriam pelo crescimento da visão comum de um mundo desejado. Os marxistas haviam desperdiçado as forças de revolução por cinquenta anos; não tinham visão, apenas condenação das coisas estabelecidas. Haviam alienado todos os cientistas e homens capazes com a pomposa afetação do científico que seria ciência; haviam-nos aterrorizado com sua ortodoxia intolerante; sua ilusão de que todas as ideias eram geradas por circunstâncias materiais os fizeram negligenciar a educação e a crítica. Haviam tentado construir uma unidade social sobre o ódio e rejeitado todas as outras forças renovadoras em prol do rancor de uma guerra de classes. Mas agora, em seus dias de dúvida e exaustão, a visão retornava ao Socialismo, e o triste espetáculo da ditadura do proletariado dava lugar mais uma vez à Utopia, à exigência de um mundo justo, digno e pacífico, cujos recursos seriam poupados e explorados para o bem comum, com cada cidadão livre não apenas da servidão, mas da ignorância, e suas energias excedentes dirigidas sempre para o aumento do conhecimento e da beleza. A adoção daquela visão por mais e mais mentes era algo que não podia mais ser evitado. A Terra trilharia o caminho que Utopia havia trilhado. Também combinaria leis, deveres e educação em prol de uma sanidade maior que o homem jamais conhecera. Os homens logo ririam das coisas que haviam temido e rechaçariam as imposturas que os haviam intimidado e as absurdidades que haviam atormentado e obstruído suas vidas. E quando essa grande revolução fosse conquistada e a Terra fosse exposta à luz do dia, o fardo da miséria humana seria aliviado e a coragem extirparia a tristeza dos corações dos homens. A Terra, que naquele momento não passava de uma selva, às vezes horrível e na melhor das hipóteses pitoresca, uma selva entremeada de buscas débeis por alimento, barracos, favelas e lixões; a Terra também se tornaria rica em beleza e justiça, assim como aquela terra era justa. Os filhos da Terra também, purificados das doenças, compassivos, fortes e belos, caminhariam orgulhosos por seu planeta conquistado e exaltariam a ousadia de seu feito.

– Basta força de vontade – disse o sr. Barnstaple. – Basta apenas força de vontade...

Parte 4

De algum local distante veio o som doce de um sino anunciando a hora. O momento do serviço ao qual ele se oferecera estava se aproximando. Ele deveria descer e ser levado ao local onde o experimento seria feito.

Lançou um último olhar ao pequeno vale e retornou ao panorama vasto do grande vale, com seus lagos, tanques e terraços, seus bosques e pavilhões, seus prédios agitados e viadutos altos, suas amplas encostas cultivadas e iluminadas pelo sol, seu conforto generoso e universal.

– Adeus, Utopia – disse ele, e espantou-se ao notar a força das emoções que agitavam seu coração. – Sonho precioso de esperança e amor, adeus!

Estacou, tomado por uma privação profunda demais para ser vazada em lágrimas.

Parecia-lhe que a alma de Utopia inclinava-se sobre ele como uma deusa, amistosa, adorável... e inacessível.

Sua própria mente estacou.

– Nunca – ele finalmente sussurrou – para mim... Exceto servir... Não...

Ato contínuo, começou a descer os degraus do mirante. Por algum tempo, não notou muito do que estava imediatamente ao seu redor. Então, o aroma de rosas arrebatou sua atenção e ele se viu descendo uma pérgula oblíqua coberta de grandes rosas brancas e invadida por agitados passarinhos verdes. Parou de súbito e contemplou as folhas, saturadas de luz contra o céu. Estendeu as mãos para uma flor e a aproximou do rosto até tocá-lo.

Parte 5

Levaram o sr. Barnstaple de avião de volta ao ponto da estrada de vidro onde ele chegara em Utopia. Foram com ele Lychnis e Crystal, que estava curioso em ver o que seria feito.

Um grupo de vinte ou trinta pessoas, incluindo Sungold, esperava por ele. O laboratório destruído de Arden e Greenlake havia sido substituído por prédios novos, e havia outras edificações, do outro lado da estrada, mas o sr. Barnstaple pôde reconhecer claramente o local onde o sr. Catskill havia se deparado com o leopardo e onde o sr. Burleigh o abordara. Vários novos tipos de flores agora haviam desabrochado, mas as flores azuis que o haviam encantado em sua chegada ainda predominavam. Seu velho carro, o Perigo Amarelo, parecendo agora a lata velha mais desengonçada concebível, estava na estrada. Ele foi examiná-lo. Parecia estar em perfeita ordem. Havia sido cuidadosamente lubrificado e o tanque estava cheio.

Num pequeno pavilhão, encontrou sua mala e todas as suas roupas terrenas. Estavam muito limpas e haviam sido passadas e dobradas, então ele as vestiu. Sua camisa parecia apertada no peito e o colarinho estava decididamente apertado, e seu casaco pegava um pouco sob os braços. Talvez as roupas tivessem encolhido quando foram desinfetadas. Ele fez a mala, e Crystal a colocou no carro para ele.

Sungold explicou com simplicidade o que o sr. Barnstaple tinha de fazer. Do outro lado da rua, perto do laboratório restaurado, estendia-se uma linha fina como uma teia de aranha.

– Leve seu carro até lá e pare – ele disse. – É tudo o que precisa fazer. Então, pegue esta flor vermelha e a coloque exatamente onde as marcas de pneu mostrarem que você entrou em seu próprio mundo.

O sr. Barnstaple foi deixado ao lado do carro. Os utopianos recuaram vinte ou trinta metros e formaram um círculo ao redor dele. Por alguns momentos, ninguém se mexeu.

Parte 6

O sr. Barnstaple entrou no carro, deu partida no motor, deixou-o vibrar por um minuto e então engatou a marcha. O carro amarelo começou a avançar para a linha fina. Fez um gesto com uma das mãos, ao qual Lychnis respondeu. Sungold e os outros utopianos também fizeram acenos amistosos. Mas Crystal observava atentamente demais para fazer qualquer gesto.

– Adeus, Crystal! – exclamou o sr. Barnstaple, e o garoto respondeu com um sobressalto.

O sr. Barnstaple acelerou, cerrou os dentes e, apesar da vontade de manter os olhos abertos, fechou-os quando tocou a linha fina. Veio-lhe novamente aquela sensação de tensão insuportável e aquele som como o de uma corda musical se rompendo. Sentiu um impulso irresistível de parar, de voltar atrás. Tirou o pé do acelerador, e o carro pareceu cair cerca de meio metro, e parou tão pesada e repentinamente que ele foi jogado contra o volante. A opressão diminuiu. Ele abriu os olhos e olhou ao redor.

O carro estava num campo onde o feno havia sido cortado recentemente. Ele estava inclinado para um lado por causa de uma ondulação na terra. Uma cerca-viva, onde havia um portão preto aberto, separava o campo de feno da estrada. Perto, havia uma placa com um anúncio de algum hotel de Maidenhead. Do outro lado da estrada, havia campos planos contra um fundo de morros baixos e arborizados. Adiante, à esquerda, havia uma pequena estalagem. Virou a cabeça e viu o Castelo de Windsor a uma distância remota erguendo-se sobre prados cobertos de álamos. Não era, como utopianos haviam prometido, o ponto exato de sua partida da Terra, mas certamente ficava a menos de cem metros dele.

Ele permaneceu imóvel por alguns momentos, ensaiando mentalmente o que tinha de fazer. Então, deu partida novamente no Perigo Amarelo e dirigiu até chegar perto do portão preto.

Ele saiu e parou com a flor vermelha na mão. Tinha de voltar ao ponto exato em que havia voltado àquele universo e colocar a flor no chão. Seria bem fácil determinar esse ponto pela marca que o carro fez na grama. Mas ele sentiu uma relutância extraordinária em obedecer essas instruções. Queria ficar com a flor. Era a última coisa, a única coisa, que ele tinha daquele mundo dourado. Ela e o doce sabor em suas mãos.

Era extraordinário que tivesse trazido apenas aquilo consigo. Por que não trouxera muitas flores? Por que eles não haviam lhe dado nada, nem uma coisinha, de toda aquela fartura de beleza? Queria muito ficar com aquela flor. Foi tentado a substituí-la por um ramo de madressilva de um arbusto próximo. Mas então se lembrou de que seria uma matéria infectada para eles. Devia fazer como haviam mandado. Voltou seguindo a trilha de seu carro até seu começo, hesitou por um momento, tirou uma única pétala da flor grande e reluzente e então pousou o resto cuidadosamente no centro do rastro. Guardou a pétala no bolso. Então, com o coração pesado, voltou lentamente para o carro e parou ao lado dele, admirando aquela estrela de um vermelho quase luminoso.

Sua dor e emoção eram grandes. Lamentava amargamente agora ter deixado Utopia.

Era evidente que a grande seca ainda prosseguia, porque o campo e os arbustos estavam mais ressequidos e marrons do que ele jamais vira num campo inglês. Ao longo da estrada havia uma fina nuvem de poeira que os carros que passavam renovavam sem cessar. Aquele velho mundo lhe parecia cheio de vistas desagradáveis, sons e odores já semiesquecidos. Havia a buzina de carros distantes, o rugido de um trem, uma vaca sedenta mugindo seu desconforto; a poeira que lhe irritava as narinas e o cheiro do suor do asfalto; havia arame farpado na cerca-viva próxima e no alto do portão preto e esterco de cavalo e restos de papel sujo aos seus pés. O adorável mundo do qual ele fora extraído agora se reduzira a um ponto escarlate e brilhante.

Algo apareceu muito rapidamente. Foi como se uma mão tivesse aparecido por um momento e levado a flor. Num instante, ela desapareceu. Um pequeno redemoinho de poeira se formou, flutuou por um momento e desvaneceu.

Era o fim.

Lembrando do trânsito na estrada principal, o sr. Barnstaple se abaixou para esconder o rosto dos passantes. Por alguns minutos, foi incapaz de recuperar o autocontrole. Permaneceu com o braço cobrindo o rosto, encostado no capô marrom e gasto de seu carro...

Finalmente, esse sopro de tristeza terminou e ele conseguiu entrar no carro novamente, dar partida e entrar na estrada principal.

Virou para leste ao acaso. Deixou o portão preto aberto atrás de si. Avançava muito lentamente, pois ainda não sabia para onde ir. Começou a pensar que, provavelmente, naquele seu velho mundo, ele estivesse sendo procurado como uma pessoa que desaparecera misteriosamente. Alguém podia encontrá-lo, e ele se tornaria foco de milhares de perguntas impossíveis. Isso seria muito cansativo e desagradável. Não havia pensado naquilo em Utopia. Lá parecera muito possível que ele pudesse voltar para a Terra sem ser notado. Agora, na Terra, aquela confiança parecia tola. Viu à sua frente a placa de uma modesta casa de chá. Ocorreu-lhe que poderia parar lá, pegar um jornal, fazer uma ou duas perguntas discretas e descobrir o que andara acontecendo com o mundo e se de fato haviam dado por sua falta.

Encontrou uma mesa já posta para o chá sob a janela. No centro da sala, uma mesa maior exibia uma aspidistra num grande vaso verde grande e uma variedade de jornais, principalmente jornais ilustrados antigos. Mas havia também um exemplar do Daily Express daquela manhã.

Ele o pegou avidamente, temendo encontrá-lo cheio de notícias do desaparecimento misterioso do sr. Burleigh, de Lorde Barralonga, do sr. Rupert Catskill, do sr. Hunker, do padre Amerton e de Lady Stella, sem mencionar os menos conhecidos... Gradualmente, enquanto virava as páginas, seus temores acabaram. Não havia uma palavra sobre nenhum deles!

– Mas, com certeza, os amigos deles devem ter dado pela falta! – ele protestou consigo mesmo, agora se agarrando a essa ideia.

Leu o jornal todo. Só encontrou menção a um nome, e era o último que esperava encontrar: o sr. Freddy Mush. O Prêmio Princesa de Modena-Frascati (nascida Higgisbotto) de Literatura Inglesa fora dado a ninguém em particular pelo sr. Graceful Glow, devido à “ausência inevitável do sr. Freddy Mush, que está no exterior”.

O problema de por que não houvera nenhum rebuliço em relação aos outros abriu um vasto campo de especulações mundanas para o sr. Barnstaple, no qual ele vagou por algum tempo. Sua mente voltou àquela flor vermelha e brilhante depositada entre a grama cortada no campo segado e à mão que pareceu levá-la. Com aquilo, a porta que fora aberta tão maravilhosamente entre aquele estranho e belo mundo e o seu se fechara novamente.

O sr. Barnstaple se encheu de admiração. Aquele querido mundo honesto e saudável estava além das fronteiras mais distantes do nosso espaço, completamente inacessível para ele dali por diante e, contudo, como haviam dito a ele, era apenas um de incontáveis universos que se moviam juntos no tempo, que tocavam um ao outro para sempre, como as folhas de um livro. E todos eles não eram nada na infinita profusão de sistemas e dimensões que os cercavam.

– Se eu pudesse apenas estender o braço para fora dos limites fixados para este universo – um dos utopianos lhe havia dito –, eu atingiria mil outros...

Uma garçonete com uma chaleira o chamou de volta às coisas mundanas.

A refeição servida a ele parecia insossa e suja. Bebeu a estranha infusão porque estava com sede, mas mal comeu um bocado.

Em seguida, ele por acaso colocou a mão no bolso e tocou algo macio. Sacou a pétala que havia tirado da flor vermelha. Havia perdido seu fulgor vermelho e, enquanto a segurava no ar abafado do salão, pareceu se contorcer enquanto murchava e escurecia; seu delicado aroma deu lugar a um odor enjoativo.

– Obviamente – disse ele. – Eu devia ter esperado por isso.

Soltou a pétala decadente no prato, então a pegou novamente e a colocou na terra do vaso da aspidistra.

Pegou novamente o Daily Express e o folheou, tentando recuperar a noção dos assuntos daquele mundo.

Parte 7

Por um longo tempo, o sr. Barnstaple refletiu sobre o Daily Express na casa de chá de Colnebrook. Seus pensamentos foram longe, e logo o jornal escorregou para o chão sem que ele notasse. Ele se levantou com um suspiro e pediu a conta. Ao pagar, ele se surpreendeu sua carteira ainda cheia de notas.

Estas foram as férias mais baratas que já tive, pensou ele. Não gastei dinheiro nenhum. Perguntou onde eram os correios, pois tinha um telegrama a enviar.

Duas horas depois, ele parou na frente do portão de sua pequena morada em Sydenham. Abriu-o – o pauzinho com que costumava fazê-lo estava no seu lugar de sempre, conduziu o Perigo Amarelo com a destreza do hábito e passou pelo canteiro curvo até a porta do barracão. A sra. Barnstaple apareceu na varanda.

– Alfred! Você finalmente voltou?

– Sim, voltei. Recebeu meu telegrama?

– Dez minutos atrás. Onde você andou esse tempo todo? Faz mais de um mês.

– Ah! Só vagabundeando e sonhando. Eu me diverti muito.

– Devia ter escrito. Realmente devia ter escrito... Você escreveu, Alfred...

– Eu não quis me preocupar com isso. O médico disse para eu não me preocupar. Eu lhe disse. Tem chá? Onde estão os meninos?

– Os meninos saíram. Deixe-me fazer um chá novo.

Ela o fez e foi se sentar na cadeira de madeira na frente dele à mesa de chá.

– Fico feliz que tenha voltado. Mas eu poderia repreendê-lo. Você está maravilhosamente bem – disse ela. – Nunca vi sua pele tão limpa e morena.

– Tomei bons ares esse tempo todo.

– Foi até os lagos?

– Não exatamente. Mas encontrei ar bom por toda parte. Um ar saudável.

– Não se perdeu?

– Nunca.

– Imaginei você se perdendo... perdendo a memória. Essas coisas acontecem. Não perdeu?

– Minha memória está tão clara como o dia.

– Mas para onde você foi?

– Eu só perambulei e sonhei. Perdido em devaneios. Muitas vezes, eu nem perguntava o nome do lugar onde ficava. Parava num lugar, depois em outro. Nunca perguntei os nomes. Deixei minha mente passiva. Bem passiva. Foi um descanso tremendo... de tudo. Mal pensei em política, dinheiro ou questões sociais – pelo menos, o tipo de questão que chamamos de sociais – e nem quaisquer dessas preocupações desde que comecei... Este é o Liberal desta semana?

Ele o pegou, virou as páginas e, finalmente, jogou-o no sofá.

– Pobre velho Peeve – disse ele. – Claro que preciso deixar aquele jornal. É como papel de parede sobre uma parede úmida. Apenas manchas, marcas e falhas... Causa-me reumatismo mental.

A sra. Barnstaple olhou para ele, desconfiada.

– Mas sempre achei que o Liberal era um trabalho tão estável.

– Não quero um trabalho estável. Posso fazer melhor. Há outro trabalho diante de mim... Não se preocupe. Posso cuidar bem das coisas depois desse descanso... Como estão os meninos?

– Estou um pouco preocupada com Frankie.

O sr. Barnstaple pegou o Times. Um anúncio estranho na coluna Agony chamara sua atenção. Dizia: “Cecil, sua ausência provoca comentários. Gostaria de saber o que quer que digamos às pessoas. Escreva o endereço escocês. Di. doente de preocupação. Todas as instruções serão seguidas”.

– Desculpe, o que dizia, querida? – disse ele, deixando o jornal de lado.

– Eu dizia que ele não parece estar se ajustando no trabalho. Não gosta de lá. Queria que você tivesse uma boa conversa com ele. Está aflito porque não sabe o suficiente. Diz que quer estudar ciências na Politécnica e continuar aprendendo.

– Bem, ele pode fazer isso. Garoto sensato! Não achei que ele tivesse esse interesse. Eu queria conversar com ele. Mas agora estamos de acordo. Certamente, ele deve estudar ciências.

– Mas o menino precisa ganhar a vida.

– Isso virá com o tempo. Se ele quer estudar ciências, deve estudar.

O sr. Barnstaple falou num tom que era completamente novo para a sra. Barnstaple, um tom de determinação imediata, tranquila e segura. Surpreendeu-a ainda mais que ele usasse esse tom sem parecer consciente de que havia usado.

Ele mordeu seu pedaço de pão com manteiga, e ela viu que algo no gosto o surpreendeu e desagradou. Ele olhou desconfiado para o resto da fatia em sua mão.

– Claro – disse ele. – Manteiga de Londres. De três dias atrás. Deixada por aí. Engraçado como o paladar de uma pessoa se altera rápido.

Ele pegou o Times de novo e passou os olhos pela coluna.

– Este mundo é realmente muito infantil. Muito. Eu havia me esquecido. Planos bolchevistas imaginários. Proclamações do Sinn Fein. O príncipe da Polônia. Mentiras óbvias sobre os chineses. Mentiras óbvias sobre o Egito. Pessoas zombando de Wickham Steed. Um artigo hipócrita sobre o Domingo da Santíssima Trindade. O assassinato de Hitchin... Hum, esse foi bem sórdido... O Rembrandt de Pomfort... Seguro... Carta de um nobre indignado sobre o imposto de transmissão de herança... Esportes tediosos. Canoagem. Tênis. Críquete estudantil. A queda de Harrow! Como se essas coisas tivessem a menor importância! Que idiotice tudo isso! É como voltar às brigas dos criados e à tagarelice das crianças.

Viu que a sra. Barnstaple o observava atentamente.

– Não vejo um jornal do dia em que parti até esta manhã – explicou.

Largou o jornal e se ergueu. Por alguns minutos, a sra. Barnstaple ficara em dúvida se era vítima de uma alucinação absurda. Agora ela percebia que estava diante do fato mais incrível que jamais havia observado.

– Sim – disse ela. – É mesmo. Não se mexa! Fique como está. Sei que parece ridículo, Alfred, mas você está mais alto. Não é só por não estar mais curvado. Você cresceu! Oh, uns cinco ou sete centímetros!

O sr. Barnstaple olhou para ela e então esticou o braço. Certamente, seu pulso estava estranhamente longo. Tentou notar se suas calças também pareciam ter ficado pequenas para ele.

A sra. Barnstaple aproximou-se quase respeitosamente. Parou ao lado do marido e encostou o ombro em seu braço.

– Seu ombro ficava exatamente na altura do meu – disse ela. – Veja como está agora!

Ela ergueu os olhos para ele. Como se estivesse realmente muito feliz mesmo por tê-lo de volta.

Mas o sr. Barnstaple continuou perdido em pensamentos.

– Deve ter sido o frescor extraordinário do ar. Eu estava cercado de um ar maravilhoso... Maravilhoso! Mas na minha idade? Crescer? E sinto-me como se tivesse crescido por dentro e por fora, corpo e mente.

A sra. Barnstaple começou a juntar a louça para tirar a mesa.

– Você parece ter evitado grandes cidades.

– Evitei.

– E preferido as estradas rurais.

– Praticamente... Foi uma nova terra para mim... Bonita... Maravilhosa...

Sua esposa ainda o observava.

– Precisa me levar lá algum dia – disse ela. – Posso ver que lhe fez maravilhas.

 

 

POR ALCEBÍADES DINIZ

Graduado em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP), com mestrado, doutorado e pós-doutorado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas, com estágio na Brunel University, em Londres. Trabalha com questões de literatura, discurso e ficção, tendo experiência como docente, supervisor técnico, pesquisador e tradutor – tanto de textos técnicos quanto de obras literárias, como O dia do gafanhoto e outros textos, de Nathanael West, e O dorminhoco e A guerra no ar, de H.G. Wells. Também criou roteiros, animações, contos e interfaces de jogos. O núcleo de suas pesquisas gira em torno da Literatura Fantástica e dos deslocamentos provocados pelo exílio e seus efeitos na narrativa e na linguagem.


É sabido que Herbert George Wells foi um escritor bem-sucedido, reconhecido em sua época, indicado ao menos quatro vezes ao Nobel. Mas os anos de formação desse autor, nascido em 1866, estão longe de ser um mar de rosas.

Vindo de uma família de humildes empregados domésticos – um jardineiro e uma criada –, Wells tornou-se professor com muito esforço, recebendo rendimentos tão baixos que muitas vezes eram insuficientes para sua alimentação. A divisão social entre nobres e servos na Inglaterra, que logo se converteu em um peso suplementar à divisão de classes, fez com que o jovem Wells nunca pudesse cursar uma universidade como Cambridge ou Oxford. Assim, tornou-se autodidata, buscando cursos livres, seminários, debates públicos. Muitos desses eventos eram ministrados por cientistas reconhecidos, que posteriormente viriam a ser ganhadores do Nobel e de outros prêmios importantes, entre eles, o físico Ernest Rutherford. Essas ocasiões se transformavam em arenas públicas para a discussão de problemas espinhosos da Ciência: a validade da concepção evolucionista de Darwin, o modelo atômico moderno, os primeiros passos da antropologia. Wells, como seria de se imaginar, era um entusiasta dessa esfera de conhecimento e debate.

Nesse sentido, não é surpresa que uma boa parte de sua visão sobre religião e ciência tenha se formado a partir das intervenções de Thomas Henry Huxley. O avô do escritor Aldous Huxley, autor de Admirável mundo novo, foi um dos defensores mais ferozes da teoria da evolução. Apesar disso, e embora fosse crítico da religião, Huxley evitava uma postura de negação completa; dizia-se não um ateu, mas um agnóstico. Mais do que isso, para Huxley o importante não era tanto o completo desencanto do mundo, o fim do sobrenatural, mas sim o estabelecimento de certa liberdade necessária para o conhecimento.1

Wells provavelmente tinha essas ideias em mente ao iniciar a elaboração de Deuses humanos (Men Like Gods, no original), publicado em 1923. A estrutura do livro e mesmo os termos e nomes empregados são uma reminiscência do pioneiro comentário político de Thomas More, publicado em 1516 com o título de Utopia,2 embora aluda igualmente à visão de Edward Bellamy em Daqui a cem anos,3 na qual temos uma comunidade futura ideal acessível ao protagonista, que entra em estado onírico para alcançá-la. Portanto, temos aqui um deslocamento temporal, não apenas espacial. Mas o tom é bem menos solene que na obra de Bellamy e mesmo em More, evidenciando a potencialidade satírica, disruptiva, sempre presente em Wells. Como usual nesse tipo de reflexão, Wells estabelece uma diferença entre os humanos futuros e a humanidade de seu tempo – entre os utopianos e os terráqueos, no caso. Também é importante notar que Wells pensa sua Utopia como um território contíguo ao nosso plano de realidade; não se trata de uma ilha em continentes distantes e exóticos, como em More, nem o futuro que se acredita ser redentor. Não, trata-se de uma outra realidade, semelhante mas única – e essa liberdade permite desdobramentos alegóricos instigantes. Já de saída, essa estranha definição da velha humanidade como “os terráqueos”, como se espécimes semelhantes a nós mesmos não fossem nada além de alienígenas em relação ao próprio mundo que nos cerca, o nosso mundo.

A passagem de uma dimensão para outra, em Deuses humanos, é inovadora em sua simplicidade. O protagonista, Sr. Barnstaple, ao tirar férias, derrapa na estrada que seguia e logo descobre que seu ponto de referência, o castelo de Windsor, desapareceu ao mesmo tempo que a própria estrada deixou de ser “um bloco compacto de pedregulho e terra coberto de asfalto, com uma superfície de brita, poeira e excremento de animais de uma estrada inglesa normal”, tornando-se uma maravilha feita de um tipo de vidro. Ou seja, a viagem de um universo para o outro, que costuma ser um momento visionário nesse tipo de obra, aqui se resolve de modo ao mesmo tempo trivial – nada de fato acontece com o veículo ou com a jornada de Barnstaple –, verossímil – uma passagem assim parece convincente, sem o uso de recursos fantasiosos – e extraordinária – pois ainda se trata de uma passagem para outro mundo, perceptível nos detalhes. O mesmo deslocamento sutil ocorre, por exemplo, com o “profeta da roda”, uma espécie de versão diferenciada de Jesus Cristo. Wells empregou uma tortura tão tremenda e infamante – o suplício da roda – como um equivalente da tortura tremenda que configura o cristianismo, a crucificação – uma permutação sofisticada, nada gratuita.

Após a primeira etapa de “romances científicos”, Wells iniciou suas “fantasias possíveis”, interessando-se cada vez mais no homem comum e em suas reações. Muito do que foi retratado pelo autor tem como base suas próprias experiências na infância e na adolescência. Ele buscava o homem comum, abandonando seus heróis iniciais, ainda um pouco românticos – figuras arquetípicas como o cientista, o marinheiro, o explorador, o viajante. É bem verdade que já no conto “Couraçados terrestres” (“The Land Ironclads”)4 homens com pinta de burocratas derrotam experientes guerreiros usando uma máquina simples de se operar, mas mortal em suas consequências. No entanto, essa busca pelo homem comum é exacerbada a partir dos anos de 1910, embora nem sempre tenha sido compreendida. De fato, há dois grandes equívocos relacionados a Wells, em geral reproduzidos por seus comentaristas e entusiastas, como Anthony Burgess ou George Orwell. O primeiro: que Wells era um otimista, um indivíduo forjado no século 19, cuja visão, apesar de seu aspecto crítico, ainda seria amena e idealista. O segundo: que apenas os romances iniciais de Wells, aquilo que publicou entre 1895 e 1905, têm valor, sendo o restante panfleto humanitário. Desnecessário dizer que ambas as visões são redutoras e inexatas. A amplitude satírica de sua visão, conjugada com a reflexão política, tornou suas narrativas maduras mais próximas do leitor atual.

Assim é Deuses humanos, uma espetacular mistura de elementos diversos, harmonizados pela ironia, pela paródia, pela sátira política. Há, no livro, uma retomada da utopia original; uma sátira a romances utópicos como Notícias de lugar nenhum, de William Morris;5 uma narrativa que se passa em uma dimensão alternativa (antecipando um amplo filão da ficção científica); um contraste entre o potencial humano em se tornar divino e as possibilidades sempre vivas de nossa abismal derrocada; um ensaio em formato narrativo a respeito de uma nova sociedade possível; uma história sobre tomada de consciência e mudança no sentido da vida. Pois, de fato, há algo como uma esperança angustiada ao final de Deuses humanos.

Mas mesmo toda esperança – bem como toda ironia e toda sátira – possui seus próprios limites, suas profundas contradições. Wells não estava imune a tais problemas. A visão política do autor era menos servil do que a de Jonathan Swift – o grande satirista inglês do século 18, aparentemente um oportunista entre as grandes correntes políticas, que, de maneira alternativa, satirizava, sendo até um tipo de adulador dos nobres à sua época6 – mas não menos equivocada. Wells acreditava em uma sociedade futura unificada, sem nações individuais, organizada em um tipo de comunismo tecnocrático no qual o comando estaria nas mãos de uma elite de técnicos. Uma encarnação moderna da velha organização política da Nova Atenas de Platão em sua República, substituindo o rei-filósofo por uma elite de inventores e cientistas – ou seja, uma visão bem pouco democrática, se levarmos em conta a noção de democracia representativa. Algo dessa sociedade está presente em todas as utopias de Wells, incluindo a que é descrita em Deuses humanos, embora o próprio autor já tivesse satirizado essa opção política autoritária em A guerra dos mundos, de 1898, na fala do artilheiro nos subterrâneos. Evidentemente, Wells também possuía a visão do europeu de seu tempo a respeito das questões raciais e neoimperialistas, embora no geral pareçam a ele irrelevantes – quando muito, são tratadas de maneira secundária em suas obras. E, claro, algumas das visões científicas dele eram ultrapassadas – a obsessão com o resfriamento da Terra, que já aparece em seu primeiro romance, de 1895, A máquina do tempo, é um bom exemplo. Mas, apesar de seus enganos e de sua própria verve satírica, Wells ainda esperava que o engenho humano triunfasse no final da história.

Só que não foi isso o que testemunhou em seus últimos anos, já bastante doente, quando produzia então ensaios breves, logo publicados em opúsculos e revistas. Em 1941, contemplou, estarrecido e desolado, a destruição de sua Londres natal pela Blitzkrieg aérea nazista. Os escombros da cidade tornaram-se os túmulos de tantos Barnstaples, cuja esperança em mudar o mundo não teve qualquer valia – a falha trágica da esperança nutrida por Wells. Por fim, fixou seu epitáfio: “Eu avisei, seus tolos amaldiçoados.” De fato, os alarmes e as esperanças de Wells ainda persistem na atualidade, tantos anos desde sua morte, em 1946. E ainda valem tanto como premonição quanto como uma possibilidade feliz.

 

 

                                                                  H. G. Wells

 

 

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