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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DIÁRIO DE UM ESCRITOR / Fiódor Dostoiévski
DIÁRIO DE UM ESCRITOR / Fiódor Dostoiévski

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

No dia 20 de dezembro, soube que tudo já havia sido decidido e que eu seria agora o redator-chefe de O cidadão1. Este acontecimento extraordinário, ao menos para mim (não pretendo ofender ninguém), deu-se, no entanto, com muita simplicidade. Exatamente no dia 20 de dezembro li um artigo em Notícias de Moscou2 sobre o matrimônio do imperador chinês, o que me causou forte impressão. Este evento magnífico, e evidentemente muito complexo, aconteceu também com simplicidade surpreendente: tudo nele fora previsto e determinado, até os últimos detalhes, mil anos antes, em quase duzentos volumes de cerimoniais. Ao comparar a grandiosidade do evento chinês com minha nomeação para redator-chefe, senti, de repente, um sentimento de ingratidão para com as instituições de meu país, mesmo tendo sido nomeado com tanta facilidade; e pensei que, para nós, para mim e para o príncipe Meschiérski,3 teria sido bem mais proveitoso editar O cidadão na China. Lá é tudo tão claro... No dia marcado, nós dois apareceríamos no local da direção geral dos negócios da imprensa. Depois de bater a testa no chão e de lambê-lo, ficaríamos postados com os dedos indicadores em riste e com as cabeças curvadas em sinal de respeito. O diretor geral dos negócios da imprensa, evidentemente, fingiria não estar prestando a mínima atenção, como se fôssemos umas moscas que entraram ali. Mas o terceiro auxiliar de seu terceiro secretário se levantaria e, com o diploma da nomeação nas mãos, leria, com voz imponente mas amável, as ordens determinadas pelo cerimonial. As ordens seriam tão claras e compreensíveis que escutá-las nos daria imenso prazer. Se, na China, eu fosse tolo e honesto o suficiente para, ao começar o trabalho de redação e ao reconhecer a fraqueza de minhas aptidões, sentir receios e remorsos, na hora provariam que sou duas vezes mais tolo por nutrir tais sentimentos. Que justamente desse momento em diante eu não precisaria mais de inteligência, mesmo se eu fosse dotado de alguma; ao contrário, seria imensuravelmente mais confiável se ela não existisse de vez. Sem dúvida, teria sido muito prazeroso ouvir isso. Ao concluir com estas belas palavras: “Vá, redator, de agora em diante o senhor pode comer seu arroz e tomar seu chá com a consciência tranquila”, o terceiro auxiliar do terceiro secretário me entregaria um belo diploma impresso em cetim vermelho e letras douradas; o príncipe Meschiérski providenciaria um suborno polpudo para ele, e, ao voltar para casa, nós dois logo editaríamos um número magnífico de O cidadão, como nunca poderia ter sido editado aqui. Na China, faríamos edições excepcionais.

 

 

 

 

Suspeito, no entanto, que, na China, o príncipe Meschiérski na certa faria uso de esperteza comigo, contratando-me para ser redator-chefe com a intenção de que eu o substituísse na direção geral dos negócios da imprensa toda vez que ele fosse convidado a receber uns golpes de bambu nas solas dos pés. Mas eu seria mais astuto: pararia na hora de imprimir o Bismarck4 e, em vez disso, eu mesmo começaria a escrever artigos excelentes – de maneira que eu só seria convidado ao bambu número sim, número não. Em compensação, eu aprenderia a escrever.

Na China eu escreveria tão bem; aqui é tudo muito mais difícil. Lá há mil anos está tudo previsto e calculado; aqui há mil anos está tudo de pernas para o ar. Lá, mesmo contra a vontade, o que eu escreveria seria compreensível, de sorte que nem sei quem iria me ler. Aqui, para ser lido, o mais eficaz é escrever de maneira incompreensível. Apenas em Notícias de Moscou os editoriais são escritos em uma coluna e meia e, pasmem, de maneira compreensível; mas também pertencem sempre a uma pena já conhecida. Em A voz5 os editoriais são escritos em oito, dez, doze ou até treze colunas. Reparem quantas colunas precisam ser gastas para se fazer respeitar aqui.

Aqui, falar com os outros é uma ciência, ou seja, ao menos à primeira vista é como na China – lá também existem certos métodos sucintos e puramente científicos. Antes, por exemplo, as palavras “não entendo nada de nada” mostravam apenas a tolice de quem as pronunciava; agora, ao contrário, conferem grande honra. Basta dizê-las com orgulho e peito aberto: “Eu não entendo de religião, não entendo nada da Rússia, não entendo absolutamente nada de arte”, para se colocar numa posição invejável. O que é, em particular, proveitoso quando realmente não se compreende nada.

Este método sucinto, contudo, não prova coisa alguma. Na realidade, entre nós, cada um desconfia da tolice alheia sem qualquer reflexão e sem se fazer a pergunta recíproca: “Não seria eu mesmo um tolo?” A situação é mais do que satisfatória, mas, no entanto, ninguém está satisfeito com ela – estão todos zangados. Em nosso tempo, a reflexão é também algo quase impossível: é cara. Na verdade, compram-se ideias prontas. Ideias estão à venda em qualquer canto; algumas são até dadas, mas essas acabam custando ainda mais; e tudo isso já começa a ser percebido. Resultado: nada se aproveita e a desordem permanece.

É possível dizer que somos uma China, só que sem a sua ordem. Mal começamos o que a China já está concluindo. Sem dúvida, chegaremos ao mesmo fim, mas quando? Para receber os mil tomos de cerimoniais e o direito definitivo de não pensar em nada, precisamos de pelo menos mil anos de reflexão. E, pelo visto, ninguém quer abreviar esse prazo, pois ninguém deseja refletir.

Também é verdade que, se ninguém deseja refletir, tudo parece mais fácil para o literato russo. Sim, realmente mais fácil; porém, uma desgraça atingirá o literato ou o editor de nosso tempo que procurar refletir sobre alguma coisa. E uma desgraça ainda maior atingirá quem procurar estudar e compreender as coisas por conta própria; mas a desgraça maior será daquele que disser isso com sinceridade e, se ele ainda der de dizer que já compreendeu alguma coisa e tentar expressar suas ideias, será imediatamente desprezado por todos. Só lhe restará arranjar algum sujeitinho conveniente, ou até mesmo contratá-lo, e conversar unicamente com ele, e até mesmo editar uma revista só para ele. Que situação detestável, pois seria o mesmo que falar consigo próprio e editar uma revista por prazer pessoal. Tenho fortes suspeitas de que O cidadão ainda precisará falar consigo próprio por muito tempo, e apenas por prazer. Só que, se levarmos em conta que falar sozinho, aos olhos da medicina, indica predisposição para a loucura, O cidadão deverá necessariamente falar com os cidadãos e aí é que está a sua desgraça.

Pois bem, vejam a que tipo de publicação me uni. Minha situação é indefinida em alto grau. Mas vou falar comigo mesmo e, por prazer, em forma de diário, e veremos no que vai dar. Sobre o que falarei? Sobre tudo o que me surpreender ou me fizer refletir. Se eu tiver um leitor e, Deus me livre, um oponente, imagino que será preciso conversar e saber com quem e como conversar. Vou me esforçar para aprender, pois em nosso meio, ou seja, na literatura, isso é o mais difícil. Além do mais, há oponentes de toda sorte: não se pode travar um diálogo com qualquer um. Contarei uma fábula que ouvi um dia desses. Dizem que é uma fábula antiga, de origem indiana, o que é confortador.

Certa vez, um porco brigou com um leão e o desafiou para um duelo. Ao voltar para casa, o porco pensou melhor e ficou com medo. A vara toda se reuniu – pensaram sobre o assunto e decidiram o seguinte:

– Olhe, porco, há um charco nos arredores; vá até lá e chafurde à vontade, e apareça desse jeito no local do duelo. Então verá.

E assim fez o porco. O leão apareceu, cheirou o porco, franziu a fuça e foi-se embora. Por muito tempo o porco se gabou, porque o leão se acovardou e fugiu do campo de batalha.

Esta é a fábula. É claro que aqui não há leões – pelo clima e, também, seria imponente demais. Mas, ponham no lugar do leão uma pessoa decente, como cada um deveria ser, e a moral será a mesma.

A propósito, quero contar outra história.

Certa vez, conversando com o finado Herzen,6 elogiei muito uma de suas obras – Da outra margem.7 Para minha grande satisfação, Mikhail Petróvitch Pogódin,8 na ocasião do encontro que teve com Herzen no estrangeiro, também escreveu de maneira muito elogiosa sobre este livro num artigo excelente e curioso. O livro foi escrito em forma de diálogo, entre Herzen e seu oponente.

– O que particularmente me agradou – notei de passagem – é que seu oponente é também sagaz. Convenhamos que, em muitos casos, ele o encostou na parede.

– Mas é nisso que consiste a graça – riu Herzen. – Vou também contar uma história. Uma vez, em Petersburgo, Belínski9 me levou a sua casa e me leu um artigo que escrevia com entusiasmo: “Diálogo entre o senhor A e o senhor B”. [Saiu numa coletânea de suas obras.] Neste artigo o senhor A, isto é, subentende-se, o próprio Belínski, é apresentado como alguém muito inteligente e o senhor B, seu crítico, como alguém inferior. Ao terminar a leitura, ele perguntou com expectativa febril:

– Então, que achou?

– É bom, e nota-se que o quanto você é inteligente, mas por que perderia seu tempo com um idiota desses?

Belínski jogou-se no sofá, com o rosto contra a almofada, e começou a gritar, rindo com todas as forças:

– Apunhalou-me! Apunhalou-me!

[O cidadão, no 1, 1º de janeiro de 1873, págs. 14 e 15]


O cidadão (Grajdanin), revista político-literária editada de 1872 a 1914, censurada entre 1879 e 1882 por discordâncias com as diretrizes do governo do tsar Alexandre II (1855–1881). Dostoiévski foi seu redator-chefe entre 1873 e 1874, por quinze meses. Na época que o escritor a editava, a revista circulava uma vez por semana, mas, ao longo do tempo, teve outras periodicidades e chegou até a sair diariamente.?

Notícias de Moscou (Moskóvskie Viédomosti), um dos mais duradouros periódicos russos. Foi editado de 1756 a 1918. Ligado à Universidade de Moscou, constituiu-se como um órgão governista e de tendência conservadora.?

O príncipe V.P. Meschiérski (1839–1914), fundador e editor de O cidadão, foi um influente jornalista de inclinações reacionárias. Opôs-se às reformas liberais de Alexandre II (inclusive, à abolição do regime de servidão), mas gozou dos favores e da ajuda financeira de seus sucessores.?

Um de nossos Bismarcks, romance do Príncipe Meschiérski publicado em O Cidadão entre 1873 e 1874.?

A voz (Golos), diário de tendências reformistas e liberais. Foi editado de 1863 a 1883, e teve constantes problemas com a censura.?

A.I. Herzen (1812–1870), pensador e escritor russo. Exilado na Europa Ocidental, onde permaneceria até a morte, participou das insurreições de Paris em 1848 e editou em Londres revistas de teor político radical, de circulação clandestina na Rússia. Apontado como o grande idealizador do “populismo russo”, defendeu o campesinato e o fim do regime de servidão.?

Da outra margem (S togo biérega), ensaios de Herzen publicados em 1850 em alemão e em 1855 em russo.?

M.P. Pogódin (1800–75), historiador e jornalista russo de tendência eslavófila.?

V.G.Belínski (1811–1848), influente polemista e crítico literário, responsável pela consagração de nomes como Púchkin, Gógol e Dostoiévski. Defensor da chamada “Escola Natural”, travou diversas polêmicas com escritores, renegando, por exemplo, as obras “fantásticas” de Dostoiévski e de Gógol por se afastarem da “realidade do povo russo”. Belínski conheceu Herzen em Moscou, em 1840, e exerceu sobre ele grande influência.?


Velhos conhecidos

A história sobre Belínski me fez lembrar de meu ingresso na literatura, só Deus sabe há quantos anos; uma época triste e decisiva para mim. Lembrei-me de Belínski exatamente como eu o conhecera e como ele, na época, me recebera. Agora, com frequência, velhos conhecidos me vêm à memória, decerto por me encontrar entre pessoas novas. Belínski foi a pessoa mais entusiasta que conheci na vida. Herzen era completamente diferente: um produto da nossa nobreza, antes de tudo um gentilhomme russe et citoyen du monde,1 um tipo que surgiu na Rússia e que não poderia ter surgido em nenhum outro lugar. Herzen não emigrou, não contribuiu para o princípio da emigração russa; não, ele já nasceu emigrado. Todos os seus semelhantes nasceram emigrados, mesmo que boa parte deles não tenha saído da Rússia. Nos últimos cento e cinquenta anos de vida da nobreza russa, com raras exceções, apodreceram as últimas raízes, enfraqueceram as últimas ligações com o solo russo e a realidade russa.2 Como se a própria história tivesse predestinado Herzen, como seu tipo mais notável, a expressar o rompimento entre o povo e a maioria das pessoas cultas de nossa classe. Nesse sentido, ele é um tipo histórico. Ao separarem-se do povo, naturalmente também perderam Deus. Os mais inquietos tornaram-se ateus; os indolentes e acomodados, indiferentes. Passaram a nutrir apenas desprezo pelo povo russo, mas imaginando e acreditando que o estimavam e lhe desejavam o melhor. Eles o estimavam de modo negativo, percebendo-o como certo povo ideal, isto é, como, segundo a opinião deles, o povo russo deveria ser. Para os representantes progressistas dessa maioria, este povo ideal involuntariamente encarnava a plebe parisiense de 1793.3 Naquela época, este era o ideal mais cativante de povo. Herzen só poderia ter-se tornado um socialista, e exatamente como um nobre russo, isto é, sem nenhuma necessidade e objetivo, mas apenas por “um fluxo lógico de ideias” e pelo vazio no coração que sentia em seu país. Ele recusou as bases da antiga sociedade, negou a família, mas foi, ao que parece, um bom pai e um bom marido. Negou a propriedade, mas, esperançoso, conseguiu ajeitar seus negócios e, quando no exterior, sentia prazer em sua vida assegurada. Criava revoluções e as incitava nos outros e, ao mesmo tempo, apreciava o conforto e a tranquilidade familiares. Era um artista, um pensador, um escritor brilhante, um homem tremendamente erudito, espirituoso, um interlocutor surpreendente (falava ainda melhor do que escrevia), com uma mente reflexiva notável. A reflexão, a capacidade de transformar seu sentimento mais profundo num objeto, de colocá-lo diante de si, consagrando-o ou, até mesmo, ridicularizando-o, encontrava-se, nele, desenvolvida em alto grau. Sem dúvida, foi uma pessoa extraordinária; mas fosse como fosse – escrevendo suas memórias, editando uma revista com Proudhon,4 indo às barricadas em Paris (o que fora tão comicamente descrito em suas memórias); sofrendo, alegrando-se, questionando; enviando um apelo aos revolucionários russos no ano de 63, para a satisfação dos poloneses,5 sem, com isso, acreditar nos poloneses e ciente de que eles iriam enganá-lo e de que seu apelo arruinaria centenas de jovens infelizes; reconhecendo isso depois, com uma ingenuidade sem precedentes, em um de seus artigos posteriores,6 sem nem mesmo se dar conta de que maneira se expunha com essa confissão – era, antes de tudo, em todo lugar e por toda a sua vida, um gentilhomme russe et citoyen du monde, pura e simplesmente um produto do antigo regime de servidão da gleba, pelo qual sentia aversão e do qual descendia, não apenas pelo pai, mas precisamente pelo rompimento com a terra natal e com os ideais dela. Belínski, ao contrário, não tinha nada de gentilhomme, ah, não! (Só Deus sabe de sua origem. Seu pai, ao que parece, foi um médico militar.)

Belínski, de um modo geral, não era uma pessoa reflexiva, mas precisamente um entusiasta sem reservas, sempre, por toda a sua vida. Meu primeiro romance, Gente pobre,7 deixou-o entusiasmado (depois de quase um ano, nós nos afastamos por motivos variados, porém insignificantes em todos os sentidos); mas, naquele momento, nos primeiros dias de nossa amizade, tendo se afeiçoado a mim com sinceridade, tentou converter-me na hora à sua crença, com uma pressa até ingênua. Em nada exagero a simpatia calorosa que ele sentia por mim, ao menos nos primeiros meses de nossa amizade. Já era um socialista apaixonado e logo me veio com o ateísmo. No que, em muitos momentos, a meu ver, mostrou-se notável – precisamente por sua intuição surpreendente e por sua habilidade extraordinária de absorver-se em profundidade nas ideias. O manifesto da Internacional, em um de seus apelos, uns dois anos antes, começara com esta declaração notável: “Antes de tudo, somos uma sociedade ateísta”,8 isto é, partira da questão principal; e foi da mesma maneira que Belínski começou. Mesmo valorizando, acima de tudo, a razão, a ciência e o realismo, ele compreendia ao mesmo tempo, de maneira mais profunda do que qualquer um, que, sozinhos, a razão, a ciência e o realismo são capazes de criar apenas um formigueiro, e não uma “harmonia” social, na qual o homem pode acomodar-se. Ele sabia que a base de todas as coisas estava na moralidade. Acreditava de modo insensato e sem nenhuma reflexão nas novas bases morais do socialismo (as quais, no entanto, não indicaram, desde então, nada além de perversões desprezíveis da natureza e do bom senso); aqui só havia empolgação. No entanto, como socialista, ele precisava, antes de qualquer coisa, destituir o cristianismo; ele sabia que a revolução deveria necessariamente partir do ateísmo. Precisava destituir a religião da qual saíram as bases morais da sociedade negada por ele. Negava a família, a propriedade e a responsabilidade moral do indivíduo de maneira radical. (Observo que, como Herzen, Belínski fora também bom pai e bom marido.) Sem dúvida, ele entendia que, ao negar a responsabilidade moral do indivíduo, estava negando a sua liberdade; mas acreditava com todo o seu ser (muito mais cegamente do que Herzen, que, ao que parece, no fim perdeu suas convicções) que o socialismo, não só não destrói a liberdade do indivíduo, mas, ao contrário, restabelece-a numa grandeza sem precedentes, no entanto, sobre bases novas e sólidas.

Restava, contudo, a figura radiante do próprio Cristo, contra a qual lutar era o mais difícil. Como socialista, ele precisava destruir a doutrina de Cristo, chamando-a de puro filantropismo, condenada pela ciência moderna e pelos princípios econômicos; mas, apesar de tudo, restava a face luminosa do Homem-Deus, sua moral inatingível, sua beleza fantástica e fora do comum. Mas, em seu entusiasmo obstinado e inabalável, Belínski não se deteve nem mesmo diante deste obstáculo intransponível, tal como havia-se detido Renan, que afirmara em seu livro tomado de descrença, Vie de Jésus,9 que Cristo, apesar de tudo, é o ideal da beleza humana, um tipo inatingível, que não pode ser reproduzido, nem no futuro.

– Pois saiba o senhor – deu um grito estridente certa noite, dirigindo-se a mim (às vezes, quando se excitava além da conta, ele gritava desse jeito)–, saiba que não é possível enumerar os pecados de um homem e depois sobrecarregá-lo de deveres e obrigá-lo a oferecer a outra face numa sociedade organizada de maneira tão vil, que, para ele, seria impossível não cometer delitos, quando é economicamente conduzido ao delito, e que seria absurdo e cruel exigir deste homem o que, conforme as leis da natureza, ele não seria capaz de realizar, mesmo se quisesse...

Nessa noite não estávamos sozinhos, estava presente um dos amigos10 de Belínski a quem este respeitava muito e, em muitos casos, a quem escutava, e também um jovem, um literato novato, que depois ganharia notoriedade na literatura.

– É até comovente olhar para ele – dirigindo-se a seu amigo e apontando para mim, Belínski interrompeu de repente suas exclamações furiosas –; toda vez que menciono Cristo, o rosto dele se transforma completamente, como se estivesse a ponto de chorar... Mas acredite em mim, homem ingênuo – lançou-se de novo contra mim –, acredite que, se o seu Cristo tivesse nascido em nosso tempo, ele seria o mais insignificante e comum dos homens; passaria despercebido diante da ciência moderna e dos propulsores modernos da humanidade.

– Nada disso! – o amigo de Belínski o acompanhava. [Lembro que estávamos sentados, enquanto Belínski andava de um lado para outro pelo aposento.] – Nada disso: se Cristo aparecesse agora, ele se uniria ao movimento e lhe tomaria o comando...

– Sim, claro – de repente concordou Belínski com uma pressa surpreendente. – Ele certamente se uniria aos socialistas e os seguiria.

Os tais “propulsores da humanidade”, aos quais Cristo estaria predestinado a unir-se, eram, então, todos franceses: antes de todos, George Sand, o hoje totalmente esquecido Cabet, Pierre Leroux11 e Proudhon, que naquela época apenas iniciava suas atividades. Pelo que sei, estes quatro eram, então, os mais estimados por Belínski. Já Fourier estava longe de ser respeitado. Passavam noites a fio na casa de Belínski discutindo sobre eles. Havia também um alemão por quem ele tinha especial predileção naquela época – Feuerbach. (Belínski, que em toda sua vida não fora capaz de aprender nenhuma língua estrangeira, pronunciava: Fierbakh.12) De Strauss13 se falava com veneração.

Com a fé apaixonada em suas próprias ideias, sem dúvida ele era o mais afortunado dos homens. Oh, em vão escreveram depois que, se Belínski tivesse vivido por mais tempo, ele teria se juntado aos eslavófilos.14 Ele nunca terminaria seus dias como um eslavófilo. Talvez Belínski acabasse como um emigrado, se tivesse vivido mais e se tivesse tido a sorte de emigrar, e então, com a fé ardente de outros tempos, que não admitia uma dúvida sequer, um velhote entusiasmado andaria pelos congressos da Alemanha e da Suíça, ou se uniria a uma madame Goegg15 qualquer na qualidade de ajudante, levando recados sobre alguma questão feminina.

Este homem tão afortunado, de consciência surpreendentemente tranquila, às vezes, no entanto, caía em profunda tristeza; mas num tipo particular de tristeza, que não nascia de dúvidas ou de desilusões, isso não, mas da indagação: “Por que não hoje, por que não amanhã?”. Era o homem mais ansioso de toda a Rússia. Certa vez eu o encontrei por volta das três da tarde perto da igreja Známenskaia. Ele me disse que tinha saído para dar um passeio e estava voltando para casa.

– Passo por aqui com frequência para dar uma olhada na obra [a estação da estrada de ferro Nikoláievski ainda estava sendo construída]. Enquanto estou aqui observando o trabalho, no mínimo conforto o coração – finalmente teremos ao menos uma estrada de ferro. O senhor não acreditaria no alívio que, às vezes, este pensamento me traz.

Palavras apaixonadas e bem colocadas; Belínski não era o tipo que se exibia. Partimos juntos. Lembro que ele me disse no caminho:

– Quando me enterrarem [ele sabia que sofria de tuberculose], só então vão cair em si e se dar conta de quem perderam.

No último ano de sua vida eu não o visitava mais. Ele já não me tolerava; mas eu tomava seus ensinamentos com entusiasmo. Passado apenas um ano, em Tobólsk, aguardando nosso destino numa prisão de transferência,16 as esposas dos dezembristas,17 implorando ao encarregado da prisão, conseguiram organizar um encontro secreto conosco no apartamento dele. Vimos essas grandes mártires, que voluntariamente haviam ido à Sibéria atrás de seus maridos. Abandonaram tudo: a nobreza, a riqueza, os conhecidos e os parentes, sacrificaram tudo em nome de um grande dever moral, do dever mais desinteressado que poderia existir. Sem terem culpa de nada, por longos vinte e cinco anos elas suportaram tudo o que seus maridos condenados suportaram. O encontro durou uma hora. Elas nos abençoaram em nosso novo caminho, fizeram o sinal da cruz e deram a cada um de nós um Evangelho18 – o único livro permitido na prisão. Durante os quatro anos de trabalhos forçados ele ficou sob meu travesseiro. Eu o lia e algumas vezes também o lia aos outros. Com o Evangelho ensinei um dos prisioneiros a ler. À minha volta estavam exatamente aqueles homens, que, conforme as convicções de Belínski, não poderiam não cometer crimes, quer dizer, eles tinham razão e eram apenas menos afortunados que os outros. Eu sabia que o povo russo também nos chamava de “infelizes”, ouvi essa palavra muitas vezes e de inúmeras bocas. Mas o que acontecia ali era completamente diferente do que Belínski falava e do que se ouve agora, por exemplo, em certas sentenças de nossos júris. Na palavra “infeliz”, nesta sentença do povo, ressoava outra ideia. Os quatro anos de trabalhos forçados foram uma longa escola, eu tive tempo para me convencer disso... Exatamente sobre isso eu gostaria de falar agora.

[O cidadão, no 1, 1º de janeiro de 1873, págs. 15 e 17]


Em francês, no original: “um fidalgo russo e um cidadão do mundo”. A expressão já tinha sido usada por Dostoiévski no romance Os demômios (1872).?

Dostoiévski defendia o enraizamento do intelectual nas tradições nacionais e populares russas, ideia que se resume no conceito de pótchvennitchestvo (de potchva, solo), que, surgido nos anos 1860, definiu uma tendência literária e filosófica russa.?

Os anos de 1792 a 1794 foram os de maior radicalismo da Revolução Francesa.?

Durante as Revoluções de 1848, Herzen editou e financiou com Proudhon em Paris A voz do povo (La Voix du peuple), jornal de tendência socialista utópica radical.?

Trata-se da Revolta de Janeiro (1863–64), insurreição polonesa contra o domínio russo exercido sobre o país desde o fim das Guerras Napoleônicas.?

Dostoiévski tem em vista o artigo “Aos oficiais russos na Polônia”, de 1862.?

Belínski, ao escrever uma crítica elogiosa, em 1846, a respeito do primeiro romance de Dostoiévski, Gente pobre (1846), tornou-o famoso nos meios literários russos.?

A frase citada por Dostoiévski, na verdade, vem de Aliança da democracia socialista (1871), de M.A. Bakúnin (1814–1876).?

Ernest Renan (1823–1892), historiador francês. Provocou polêmica nos meios católicos ao abordar o cristianismo sob uma perspectiva histórica, sobretudo em seu livro Vie de Jésus de 1863.?

Trata-se de V.P. Bótkin (1811–1869), escritor e crítico, conforme notas da edição russa (Fiódor Dostoiévski. Dnevnik Pissátelia: 1873. Tom 21. Pólnoe sobránie sotchiniénii v tridtsati tomákh. Instituto de Literatura Russa (Casa de Púchkin) da Academia Russa de Ciências. Leningrado: Naúka, 1980).?

George Sand, pseudônimo de Amandine Dupin (1804–1876), considerada uma das precursoras do feminismo; Étienne Cabet (1788–1856), filósofo e socialista utópico; Pierre Leroux (1797–1871), filósofo e político francês, partidário do socialismo republicano.?

Belínski estudara alemão, francês e inglês na universidade.?

David-Friedrich Strauss (1808–1874), teólogo e historiador alemão, então debatido por sua abordagem científica da história da religião cristã.?

“Eslavófilos” eram os intelectuais russos partidários de uma via nativa, eslava e tradicionalista para o país, em oposição aos “ocidentalistas”, defensores do modelo modernizador da Europa e dos Estados Unidos. A querela entre os dois grupos marcou profundamente as letras russas de meados do século XIX. Embora Dostoiévski não se enquadrasse em nenhum dos grupos, suas ideias, obviamente, guardavam semelhanças com o pensamento eslavófilo, sobretudo no papel messiânico que ambos atribuíam ao cristianismo russo.?

Marie Goegg-Poucholin (1826–1899), pioneira na luta pelo sufrágio feminino e pelos direitos das mulheres na Suíça.?

Em 1849, Dostoiévski, então com 28 anos de idade, foi sentenciado à morte com outros membros do Círculo de Petrachévski (1845–1849), acusado de conspirar contra o governo. Sua pena, contudo, foi comutada minutos antes da execução, e ele enviado à Sibéria para cumprir quatro anos de trabalhos forçados. A experiência marcou o escritor profundamente e foi por ele abordada em romances como O idiota (1869) e nos relatos de Recordações da casa dos mortos (1861). Depois de sair da prisão, ainda cumpriu cinco anos de serviço militar no Cazaquistão.?

“Dezembristas” foram os integrantes da insurreição de dezembro de 1825, na qual membros da alta nobreza militar russa se rebelaram contra a coroação do conservador Nicolau I (1825–1855). Sendo muitos deles condenados aos trabalhos forçados na Sibéria, suas esposas se estabeleceram em entrepostos penais e criaram grupos de auxílio aos prisioneiros.?

Trata-se do Novo Testamento. Conforme memórias de Anna Grigórievna Dostoiévskaia (1846–1918), a segunda esposa do escritor, o Novo Testamento nunca saía de cima da escrivaninha de seu marido.?


O meio

Parece-me que o sentimento comum aos membros do júri de todo o mundo, em especial aos nossos (além de outros, evidentemente), deve ser o sentimento de poder, ou melhor, o de poder absoluto. Um sentimento por vezes repulsivo, quer dizer, no caso de predominar sobre os outros. Mas, mesmo quando pouco evidente, mesmo quando reprimido por um mundo de outros sentimentos nobres, mesmo assim ele deve enraizar-se no íntimo de cada membro do júri, até do dotado da mais elevada consciência de seu dever cívico. Me parece que, de alguma maneira, isso provém das próprias leis da natureza; e por essa razão lembro que senti uma curiosidade tremenda nesse sentido logo que o novo tribunal (justiça) fora instituído entre nós. Em meus devaneios surgiam sessões nas quais participavam quase que exclusivamente, por exemplo, camponeses, os servos de ontem.1 O promotor, os advogados se dirigiam a eles com adulações e olhares furtivos, e nossos mujiques ficavam a matutar: “Veja como as coisas são agora: se eu quiser, posso absolver; senão, mando para a Sibéria”.

No entanto, o que mais admira agora não é o fato de punirem, mas o de absolverem continuamente. Claro que isso é também um uso do poder, até quase de forma extremada, mas numa direção única, talvez sentimental, e não compreensível, mas preconcebida em geral, praticamente em toda parte, como se todos estivessem em conluio. Uma “tendência” geral não é sujeita à dúvida. O problema é que a mania de inocentar a todo custo não se acha apenas entre os camponeses, nos humilhados e ofendidos de ontem, mas tomou conta completamente de todos os jurados russos, até mesmo dos da mais alta estirpe, nobres e professores universitários. A própria unanimidade é um assunto interessantíssimo para análise e nos leva a hipóteses variadas e, possivelmente, por vezes singulares.

Recentemente, em um de nossos jornais mais influentes, num pequeno artigo, muito honesto e despretensioso, uma hipótese foi levantada por alto: será que não estariam inclinados nossos jurados, homens que de repente, do nada, se descobriram dotados de tamanha força (como que caída do céu), depois de séculos de humilhação e brutalidade, não estariam eles inclinados a pregar uma peça no “poder”, em qualquer oportunidade, por brincadeira ou, por assim dizer, para confrontar o promotor com o passado, por exemplo? A hipótese não é nada má e também não está destituída de certa graça, mas, evidentemente, não se poderia explicar tudo com ela.

“É simplesmente muito penoso arruinar o destino de alguém, de uma pessoa como outra qualquer. O povo russo é muito piedoso,” resolveram alguns, como às vezes nos ocorre ouvir.

Mas, no entanto, sempre considerei, por exemplo, o povo da Inglaterra2 piedoso; e se ele não possui, por assim dizer, um coração mole, como é próprio do povo russo, possui ao menos humanidade, uma consciência e um sentimento vivo do dever cristão para com o próximo, e talvez até em altíssimo grau, talvez até uma convicção sólida e independente, talvez até mais sólida do que entre nós, levando em consideração a educação de lá e sua autonomia secular. Isso porque lá tamanho poder não lhes caiu “de repente do céu”. O tribunal em si foi inventado pelos próprios jurados, não foi tomado de empréstimo, foi consolidado ao longo de séculos, retirado da vida, e não recebido como uma dádiva.

Entretanto, lá o membro do júri entende que, ao ocupar um lugar na sala do tribunal, ele não é apenas um homem sensível de coração terno, mas é antes de tudo um cidadão. Ele até considera (tendo razão ou não) que o cumprimento do dever cívico é provavelmente superior a um ato pessoal de caridade. Recentemente correu todo o reino da Inglaterra um rumor sobre um júri que inocentou um ladrão evidentemente culpado. A agitação geral no país mostrou que, mesmo que lá tais sentenças também sejam possíveis, como acontece aqui, são acontecimentos raros, casos excepcionais que de imediato suscitam a indignação da opinião pública. Lá o jurado compreende que, antes de tudo, ele carrega nas mãos a bandeira de toda a Inglaterra, que já não é mais um indivíduo particular, mas que tem por obrigação representar em si a opinião do país. A capacidade de ser um cidadão é precisamente a capacidade de elevar-se até a opinião pública. Oh, lá o veredito “piedoso” também existe, lá o “meio que corrompe” também é levado em consideração (ao que parece, agora essa é nossa teoria predileta), mas até um limite determinado, até o permitido pelo bom senso e pelo grau de consciência da moral cristã (um grau, ao que parece, suficientemente elevado). Mas em compensação, e muito frequentemente, o membro do júri de lá, mesmo com dor no coração, pronuncia um veredito de culpa, compreendendo que, antes de mais nada, sua obrigação consiste principalmente em afirmar sua sentença perante todos os cidadãos, que na velha Inglaterra, em nome da qual qualquer um deles doaria o próprio sangue, o vício continua a ser chamado de vício e o crime de crime, e que as bases da moralidade do país são as mesmas, sólidas, não mudaram, estão como sempre estiveram.

– Mesmo supondo – uma voz me soa nos ouvidos – que suas bases sólidas [ou seja, as cristãs] sejam as mesmas, que de fato seja preciso antes de tudo ser um cidadão, segurar a bandeira e coisas do gênero, como o senhor não cansou de falar, mesmo o supondo, por enquanto sem discussão, pense bem, como vão surgir cidadãos aqui? Basta olhar um pouco para trás! Pois os direitos civis [e que direitos!] caíram sobre o povo como uma avalanche. E eles o esmagaram e, por enquanto, para o povo, esses direitos não passam de um fardo, um fardo!

– Claro, sua observação tem razão de ser – respondo com a cabeça baixa –, mas, no entanto, o povo russo...

– O povo russo? Permita-me – ouço soar outra voz –, os senhores dizem que dádivas caíram como uma avalanche e o esmagaram. Mas ele não apenas percebe quanto poder recebeu como uma dádiva, como também sente que o recebeu gratuitamente, ou seja, não se considera, por enquanto, merecedor dela. Note bem, isso não significa em absoluto que ele não mereça de fato essas dádivas ou que elas não sejam necessárias, ou que fosse cedo demais para concedê-las; é justamente o contrário: é o próprio povo que, em sua humilde consciência, não se considera merecedor de tais dádivas – e a consciência humilde, mas elevada, que o povo tem do próprio desmerecimento é precisamente a garantia de ser ele um merecedor. Mas, por enquanto, em sua humildade, o povo está desnorteado. Mas quem, aqui, perscrutou os recônditos do coração? Algum de nós poderia dizer que conhece plenamente o povo russo? Não, não se trata apenas de piedade e misericórdia, como o senhor quis dizer, fazendo troça. Aqui é o próprio poder que causa medo! Este terrível poder sobre o destino dos homens, sobre o destino de nossos irmãos, nos assusta, e, enquanto desenvolvemos a tal da cidadania, nós absolvemos. Absolvemos por medo. Na função de jurados, talvez pensemos: “Será que somos melhores que o acusado? Se nós, pessoas afortunadas, com a vida assegurada, nos achássemos na mesma situação, talvez fizéssemos algo até pior, e então o absolvemos”. Mas talvez isso seja bom, este coração piedoso. Pode ser a garantia futura de algum tipo de cristianismo elevado, de algo que o mundo até o momento ainda não conheceu!

“Esta é, em parte, a voz de um eslavófilo” – penso comigo. É um pensamento realmente confortador – a hipótese da resignação do povo diante do poder recebido gratuitamente, concedido por enquanto a um “não merecedor”, é, sem dúvida, mais apurada que a hipótese do desejo de “pregar uma peça no promotor”, apesar de esta ideia continuar me agradando por seu realismo (claro, tomando-a mais como um caso particular, como, por sinal, o próprio autor a apresentou) –, mas... mas, no entanto, o que mais me perturba é outra coisa: como de repente nosso povo passou a temer a própria compaixão? “Dizem que é muito doloroso condenar uma pessoa.” Mas o que é que há, esqueçam sua dor na consciência. A verdade está acima de suas dores.

Com efeito, se nos consideramos algumas vezes piores que o criminoso, confessamos a culpa de metade de seu crime. Se ele violou a lei que lhe foi estabelecida, nós mesmos somos culpados de ele estar agora à nossa frente. Pois, se fôssemos pessoas melhores, ele também seria e não estaria agora diante de nós...

– Mas, então, inocentá-lo?

Não, ao contrário: justamente agora é necessário falar a verdade e chamar a maldade de maldade; mas, em compensação, devemos assumir metade do peso da condenação. Entremos na sala do tribunal com a ideia de que somos também culpados. Esta dor na consciência, a qual agora todos tememos e com a qual vamos deixar a sala do tribunal, será o nosso castigo. Se esta dor for verdadeira e intensa, ela irá nos purificar e nos tornar pessoas melhores. Mudados para melhor, iremos regenerar o meio e modificá-lo também para melhor. Pois só assim é possível regenerá-lo. Mas simplesmente fugir da piedade e, para evitar seu próprio sofrimento, dar todos por inocentes – isso é fácil demais. Assim, pouco a pouco, vamos chegar à conclusão de que os crimes não existem em absoluto e de que tudo é “culpa do meio”. Nesse emaranhado, vamos até chegar a ponto de considerar o crime um dever, um protesto nobre contra o “meio”. “Com uma sociedade organizada de maneira tão vil, não é possível se ajustar a ela sem o protesto e o crime.” “Com uma sociedade organizada de maneira tão vil, não é possível resistir sem uma faca na mão.” É o que diz a teoria do meio, em oposição ao cristianismo, que, reconhecendo inteiramente a pressão do meio e manifestando misericórdia ao pecador, coloca, no entanto, a luta contra o meio como um dever moral do indivíduo, que sabe onde termina o meio e onde começa o dever.

Tornando o homem responsável, o cristianismo também reconhece sua liberdade. Tornando, ao contrário, o homem dependente de cada erro cometido pela organização social, a teoria do meio o leva a uma despersonalização completa, a um desprendimento completo de qualquer dever moral individual, de qualquer independência, leva-o à mais abjeta das escravidões que se pode imaginar. Desta maneira, se um homem não tiver dinheiro para o tabaco, matará alguém para obtê-lo. Ora, faça-me o favor: um homem instruído, que sente mais intensamente do que alguém de pouca instrução o sofrimento causado pela insatisfação de suas necessidades, precisa de dinheiro para satisfazê-las, então, se não há outra maneira de obtê-lo, por que não matar o menos instruído? Será que os senhores não prestaram atenção nos discursos dos advogados: “Realmente”, dizem, “a lei foi violada, realmente matar um homem de pouca instrução é crime, mas, senhores jurados, levem em consideração também...” etc. etc. Pois já ouvimos discursos quase semelhantes, e não apenas quase...

– O senhor, contudo – ouço uma voz cheia de sarcasmo –, o senhor, ao que parece, quer impor ao povo a recente filosofia do meio, mas como ela teria chegado até ele, voando? Pois, não raro, os doze jurados são todos mujiques, e cada qual considera pecado mortal comer carne durante a quaresma. O senhor já os estaria acusando de serem socialmente tendenciosos.

“Verdade, verdade, que interesse eles teriam pelo ‘meio’, quer dizer, considerando o povo como um todo”, penso eu, “mas, mesmo assim, as ideias estão no ar, toda ideia tem algo de penetrante...”

– Só faltava essa! – a voz cheia de sarcasmo solta uma gargalhada.

– E se nosso povo for dotado de uma vocação especial para a teoria do meio, até por sua própria natureza, por sua própria, digamos, vocação eslava? E se precisamente ele for a melhor matéria-prima da Europa para certos propagandistas?

A voz cheia de sarcasmo solta uma gargalhada ainda mais alta e algo teatral.

Não, em matéria de povo, por enquanto, isso não passa de um truque, e não de “filosofia do meio”. Aqui há um erro, um engano, um engano muito sedutor.

Este engano pode, de algum modo, ser explicado a título de exemplo.

Suponhamos que o povo chame os condenados de “infelizes” e lhes ofereça umas roscas e uns tostões. O que ele quer dizer com isso e, ao que parece, já há séculos? Justiça cristã ou justiça do “meio”? Exatamente aqui se encontra a pedra no caminho, exatamente aqui se esconde a alavanca à qual, com êxito, o propagandista do “meio” poderia se agarrar.

Existem ideias inexpressáveis, inconscientes, apenas sentidas intensamente – elas são inúmeras e é como se estivessem unidas à alma do homem. Estas ideias existem tanto num povo como um todo quanto na humanidade tomada em seu conjunto. Apenas enquanto elas se alojam na vida de um povo de maneira inconsciente, apenas enquanto são sentidas com força e exatidão, o povo pode viver uma vida vigorosa e ativa. No anseio de esclarecer essas ideias latentes está contida toda a energia de sua vida. Quanto mais inabalável o povo for na conservação dessas ideias, quanto menor sua capacidade de trair o sentimento original contido nelas, quanto menor sua inclinação para submeter-se às suas diversas e simuladas interpretações, mais poderoso, forte e feliz ele será. Chamar o crime de infelicidade e os criminosos de infelizes pertence ao conjunto de ideias latentes do povo russo – às ideias do povo russo.

Aqui está uma ideia puramente russa, que não foi notada em nenhum povo europeu. No Ocidente, agora ela é aclamada por filósofos e estudiosos. Mas nosso povo a aclamou bem antes de nossos filósofos e estudiosos. No entanto, daí não se conclui que ele não possa ter sido ludibriado por uma elaboração equivocada desta ideia feita por um estudioso qualquer, mesmo que de forma provisória e superficial. A compreensão definitiva e a última palavra ficarão, sem dúvida, sempre com o povo, mas de forma provisória pode dar-se de outra maneira.

Em suma, com a palavra “infelizes” é como se o povo dissesse: “Vocês pecaram e agora sofrem, mas nós também somos pecadores. Se estivéssemos em seu lugar, talvez fizéssemos algo pior. Se fôssemos pessoas melhores, vocês não estariam, talvez, na prisão. Com a punição dos seus crimes, vocês também carregam o peso da não observância geral da lei. Rezem por nós, assim como rezamos por vocês. Mas por enquanto, ‘infelizes’, tomem estes tostões, os damos para que saibam que vocês estão em nossos pensamentos e que não rompemos nossas ligações fraternas”.

Convenhamos, não há nada mais fácil do que adaptar a teoria do meio a essa visão: “A sociedade é ruim, por isso nós também somos ruins; mas somos afortunados, temos a vida assegurada, escapamos apenas por acaso do que vocês enfrentaram. Se tivéssemos de passar por isso, faríamos o mesmo que vocês. De quem é a culpa? A culpa é do meio. Pois então, só existe esta organização infame do meio social, os crimes não existem em absoluto”.

É precisamente nessa conclusão em forma de sofisma que consiste o truque de que falei.

Não, o povo russo não nega o crime e sabe que o criminoso é culpado. O povo apenas sabe que ele mesmo é culpado ao lado de cada criminoso. Mas, ao se acusar, mostra com isso que não acredita no “meio”; acredita, ao contrário, que o meio depende inteiramente dele, de sua penitência incansável e de seu aprimoramento moral. A energia, o trabalho e a luta – é isto que transforma o meio. Só o trabalho e a luta permitem alcançar a singularidade e o senso da própria dignidade. “Alcancemos isso e nos tornaremos pessoas melhores, aí então o meio também se modificará para melhor.” Eis a sensação intensa que o povo russo sente, de modo não manifesto, com a ideia da infelicidade do criminoso.

Imaginem agora se o próprio criminoso, ao ouvir que é um “infeliz”, passasse a se considerar apenas um infeliz, e não um criminoso. Então, nesse momento, o povo se afastaria deste simulacro de explicação, chamando esta de traição de sua fé e de sua verdade.

Eu poderia dar alguns exemplos, mas deixemos isso de lado por enquanto e digamos o seguinte.

O criminoso e aquele que tenciona cometer um crime são pessoas diferentes, mas pertencem a uma mesma categoria. O que aconteceria se um criminoso, ao premeditar um crime, dissesse a si mesmo: “O crime não existe!”? O povo ainda o chamaria de “infeliz”?

Talvez o chamasse; não, sem dúvida, ele o chamaria; o povo é piedoso; além do mais, não há nada mais infeliz do que aquele criminoso que deixou de considerar-se um criminoso: é um animal, uma criatura bestial. E que mal existe no fato de ele não entender que é um animal e de aniquilar a própria consciência? Ele é apenas duplamente infeliz. Duplamente infeliz, mas também duplamente criminoso. O povo teria piedade, mas não renunciaria à própria verdade. Ao chamar o criminoso de “infeliz”, o povo nunca deixou de considerá-lo um criminoso! Para nós, não poderia haver desgraça maior que o próprio povo concordar com o criminoso e lhe dizer: “Não, não é culpado, pois o ‘crime’ não existe!”.

Eis a nossa fé, nossa fé coletiva, gostaria de dizê-lo; a fé de todos que confiam e esperam. Acrescentarei ainda duas palavras.

Fui mandado para os trabalhos forçados e lá conheci criminosos, criminosos “convictos”. Repito, foi uma longa escola. Nenhum deles nunca deixou de considerar-se um criminoso. Em sua aparência, eram terríveis e cruéis. Os “valentões”, no entanto, eram apenas os tolos e os novatos, e eles eram motivo de chacota. Em sua maior parte, eram sombrios e pensativos. Dos crimes ninguém falava. Nunca ouvi deles uma queixa sequer. Sobre seus crimes era até proibido falar em voz alta. Se acontecia de alguém soltar uma palavra que fosse de desafio ou de estranheza, “toda a cadeia”, como uma única pessoa, atirava-se contra o intrometido. Sobre isto não era aceitável falar. Mas, digo com segurança, é provável que nenhum deles tenha escapado de um sofrimento espiritual longo e íntimo, dos mais purificadores e revigorantes. Eu os via solitários e pensativos, eu os via na igreja rezando antes da confissão; escutava suas palavras soltas e súbitas, suas exclamações; lembro-me bem de seus rostos: oh, acreditem, nenhum deles, no fundo, se considerava um inocente!

Não gostaria que minhas palavras soassem cruéis. Mas, mesmo assim, me atreverei a dizê-las. Falarei com franqueza: com uma pena severa, com a prisão e os trabalhos forçados, talvez seja possível salvar pelo menos a metade deles. Seria um alívio para eles, e não um peso3. A purificação pelo sofrimento é mais fácil, bem mais fácil, asseguro, do que o destino que os senhores, com suas absolvições contínuas no tribunal, preparam para muitos deles. Apenas instauram cinismo na alma de um homem, apontam-lhe uma questão tentadora e dão-lhe a chance de zombar dos senhores mesmos. Não acreditam? É a chance de ele zombar dos senhores, de seu tribunal, do tribunal de todo o país! Os senhores despejam na alma deste homem a descrença na justiça popular, na justiça divina; deixam-no desnorteado... Ele se afasta e pensa: “Ora, ora, então agora já não agem com dureza. Parece que criaram juízo. Estão com medo, talvez. Quer dizer, posso fazer a mesma coisa outra vez. Claro, do jeito que eu estava precisado, como ficaria sem o roubo?”.

Será possível que os senhores pensem que, dando a todos por inocentes ou considerando-os “dignos de toda a indulgência”, oferecem uma chance para eles se redimirem? Pois esperem sentados por sua redenção! Que problema há nisso? “Quer dizer, é provável que eu não seja culpado de nada” – é o que dirá cada um, no final das contas. Os senhores mesmos é que o levaram a essa conclusão. O principal é que a fé na lei e na justiça popular sairá abalada.

Há pouco tempo morei por alguns anos seguidos no estrangeiro.4 Quando saí da Rússia, o novo sistema judiciário tinha acabado de começar. Com que avidez eu lia em nossos jornais tudo o que se relacionava com os tribunais russos! No estrangeiro eu também olhava com amargura para nossos absenteístas e seus filhos, que desconheciam a língua nativa ou a haviam esquecido. Era evidente que metade deles, por força das circunstâncias, acabaria como emigrado. Sempre foi muito doloroso eu pensar nisso: quantas forças, quantas, e talvez de nossos melhores homens, enquanto nós mesmos necessitamos tanto delas! Às vezes, saindo de uma sala de leitura, por Deus, senhores, eu involuntariamente me reconciliava com o absenteísmo e seus absenteístas. Meu coração apertava. Ali se podia ler: absolveram uma esposa que havia assassinado o marido. Um crime provado com evidência; ela mesma o confessa: “Não, ela não é culpada”. Um jovem quebra uma caixa registradora e rouba o dinheiro. “Estava muito apaixonado”, dizem, “e precisava arranjar dinheiro para satisfazer à amante.” “Não, ele não é culpado.” Mesmo que todos esses casos tenham sido justificados por compaixão, por piedade, mesmo assim eu não entendia os motivos da absolvição, o que me atordoava. Dava-se a impressão de algo obscuro, quase ultrajante. Nesses instantes de crueldade, por vezes eu imaginava a Rússia como um atoleiro, um pântano, no qual alguém intentou construir um palácio.5 Do lado de fora, o solo parecia firme, plano, e, no entanto, era algo semelhante à superfície de uma gelatina – ao pisar nele, cai-se no fundo, no abismo. Eu me recriminava por minha fraqueza de ânimo; o que, apesar de tudo, me consolava, longe como eu estava, era a possibilidade de estar enganado, era o fato de eu, naquele momento, ser também um absenteísta, que não vê de perto, que não escuta com clareza...

Mas há tempos estou de volta ao país.

“Basta com isso; mas será que eles realmente têm piedade?” – essa é a questão! Não achem graça por eu dar tanta importância a ela. A “piedade” ao menos esclarece algo de algum modo, ao menos nos tira da escuridão; sem esta última explicação haveria apenas perplexidade, exatamente como as trevas onde vive um louco qualquer.

Um mujique espanca a esposa, tortura-a por anos a fio, ralha mais com ela do que com o cachorro. Em desespero, decidida a abreviar a própria vida, ela se dirige, quase enlouquecida, ao tribunal do vilarejo. Lá eles a mandam de volta para casa, resmungando com indiferença: “Vivam em harmonia”. Será que isso é piedade? São apenas palavras obtusas de um bêbado que acabou de acordar de uma bebedeira, que mal distingue o que está à sua frente, que acena com a mão de modo estúpido e vago para não o importunarem, cuja língua nem se mexe direito e a cabeça está embriagada de loucura.

No entanto, só muito recentemente tomaram conhecimento da história desta mulher. Foi noticiada em todos os jornais6 e talvez por isso ainda esteja fresca na memória de todos. De tantas surras que levou do marido, a mulher, pura e simplesmente, enforcou-se; o marido foi a julgamento e lá o consideraram digno de indulgência. Por muito tempo toda aquela situação me veio à lembrança, e ainda hoje me vem.

Eu imaginava a figura do marido: disseram que era de estatura alta, de compleição muito corpulenta, forte, loiro. Eu ainda acrescentaria – os cabelos eram ralos. O corpo era branco e rechonchudo, os movimentos lentos e imponentes, o olhar fixo; ele falava pouco e de forma espaçada – as palavras caíam como miçangas preciosas que, antes de qualquer outro, ele mesmo apreciava. As testemunhas fizeram ver que ele era dotado de um caráter cruel: apanhava uma galinha e a pendurava pelos pés, de cabeça para baixo, assim, por puro prazer, para se entreter: que traço extraordinário de caráter! Por anos a fio espancou a mulher com qualquer coisa que lhe vinha às mãos – cordas, varas. Tirava uma tábua do assoalho, enfiava as pernas da mulher no orifício e forçava a tábua de volta, então batia, batia. Acho que nem mesmo ele sabia por que batia nela, provavelmente pela mesma razão que pendurava a galinha. Também torturava a esposa de fome – ficava sem lhe dar pão por três dias seguidos. Colocava um naco de pão na prateleira, chamava-a e dizia: “Não se atreva a tocar neste pão, este pão é meu”, mais um traço excepcional de seu caráter! Com sua filhinha de dez anos, ela pedia esmola pela vizinhança: se ganhavam um pedaço de pão, comiam, senão, sentavam, famintas. Ele a obrigava a trabalhar, e ela fazia tudo sem esmorecer, resignada, aterrorizada, e no fim quase enlouqueceu. Imagino sua aparência: provavelmente uma mulher muito pequena, magra como um varapau. Às vezes acontece de homens grandes e corpulentos, com um corpo branco e rechonchudo, casarem-se com mulheres muito pequenas e magras (notei uma predileção por escolhas assim); é tão estranho vê-los juntos, parados ou andando. Parece-me que, se ela engravidasse dele no último momento, seria mais um traço característico e indispensável para completar o cenário; senão, seria como se algo estivesse faltando. Os senhores já viram um mujique fustigando a esposa? Eu já vi. Ele começa com uma corda ou um cinto. A vida de um camponês é desprovida de prazeres estéticos – música, teatro, revistas –; naturalmente, ele precisa de algo para preenchê-la. Depois de amarrar a esposa ou de prender as pernas dela no orifício do assoalho, nosso mujique começa o trabalho, provavelmente de um jeito metódico, tranquilo, até mesmo sonolento, com golpes cadenciados, sem escutar os gritos e as súplicas, ou melhor, escutando-os precisamente, escutando-os com deleite – senão, que prazer teria ele em fustigá-la? Os senhores sabem, as pessoas nascem em ambiências diferentes: será possível que não acreditem que esta mulher, em outro ambiente, poderia ser uma Beatriz ou uma Julieta de Shakespeare, ou uma Gretchen do Fausto? Não digo que ela o era – seria um tanto hilário afirmar isso –, mas em seu embrião, em sua alma, poderia existir algo nobre, possivelmente em nada inferior ao que há na nobreza: um coração amoroso, até mesmo elevado, um caráter repleto de autêntica beleza. Só a demora em dar cabo à própria vida já a reflete numa luz silenciosa, dócil, paciente, amorosa. Pois esta Beatriz ou Gretchen é fustigada, fustigada feito um gato! Os golpes desferidos se tornam mais frequentes, mais violentos, mais numerosos; ele começa a se entusiasmar, a tomar gosto. Fica totalmente embrutecido e reconhece isso com prazer. Os gritos bestiais da mártir o embriagam como vinho: “Vou lavar seus pés e beber desta água,” grita Beatriz com voz desumana, finalmente ela se cala, para de gritar, e apenas solta gemidos de maneira selvagem, e a respiração entrecortada a cada instante, os golpes mais e mais frequentes, mais sórdidos... De repente ele larga o cinto e, desnorteado, apanha uma vara ou um galho ou o que lhe cair à mão e, com três terríveis golpes derradeiros, quebra-o em suas costas! Ele se afasta, senta-se à mesa, suspira e se põe a beber kvás.7 A criancinha, a filha deles (ainda havia uma filha!), esconde-se trêmula num canto da estufa: havia escutado todos os gritos da mãe. Ele sai de casa. Ao amanhecer, a mãe volta a si, levanta-se soltando ais, dando gritos a cada movimento, e vai ordenhar a vaca, vai se arrastando em busca de água, ao trabalho.

Ao sair, ele diz com a voz metódica, morosa e imponente: “Não se atreva a comer este pão, este pão é meu”.

Por fim, tornou-se agradável pendurá-la pelos pés, como fazia com a galinha. Ele provavelmente pendurava a mulher e então se afastava, sentava-se, comia sua kacha,8 depois, de repente, pegava o cinto de novo e começava a bater na mulher suspensa... E a menina, trêmula, encolhida na estufa, como um animal selvagem, dava uma espiada furtiva na mãe pendurada e então se escondia novamente.

Ela se enforcou numa manhã de maio, provavelmente num dia claro de primavera. Na véspera a viram toda machucada e completamente fora de si. Antes de morrer, ela se dirigiu até o tribunal da província e ali balbuciaram: “Vivam em harmonia”.

Enquanto ela se enforcava, já agonizando, a menina gritou de seu canto: “Mamãe, por que está se enforcando?” Depois se aproximou timidamente, chamou a enforcada e, como um animalzinho selvagem, ficou a observá-la, e durante toda a manhã saiu várias vezes de seu canto para olhar a mãe, até o pai voltar para casa.

Eis que perante o tribunal, o homem imponente, rechonchudo e de olhar fixo nega tudo: “Vivíamos como uma só alma” – soltou as palavras espaçadas como miçangas preciosas. Os jurados se retiram e, depois de “breve deliberação”, anunciam a sentença: “É culpado, mas digno de indulgência”.

Notem que a menina testemunhou contra o pai. Ela contou tudo o que sabia e dizem que arrancou lágrimas dos presentes. Não fosse a tal “indulgência” dos jurados, o homem teria sido mandado para algum povoado na Sibéria. Mas, com a “indulgência”, vai passar apenas oito meses na prisão, então voltará para casa exigindo de volta a menina, que testemunhou contra ele e a favor da mãe. Terá de novo alguém para pendurar.

“Digno de indulgência!” Pois a sentença foi dada de antemão. Eles sabem bem o que aguarda esta criança. A quem, de que serve esta indulgência? Sentimo-nos como num turbilhão – algo nos agarra e rodopia, rodopia...

Esperem, contarei outra história.

Certa vez, ainda antes dos novos tribunais (porém não muito antes), li uma pequena notícia nos jornais: uma mãe com uma criança de um ano ou de catorze meses nos braços. Nesta idade nascem os primeiros dentinhos e as crianças não passam bem – choram e sofrem muito. A mãe ficou farta da criança – talvez tivesse muitos afazeres, mas agora só podia carregá-la nos braços e escutar seu choro dilacerante. A mãe ficou irada. Mas, por outro lado, será possível castigar uma criança tão pequena? É uma lástima que batam nela, o que ela pode compreender?9 Tão desamparada, depende dos outros em tudo... Além disso, não se consegue acalmar uma criança batendo nela: ela vai se desfazer em lágrimas, vai abraçá-lo com seus bracinhos, e até mesmo dar de beijá-lo, e vai chorar, chorar. No entanto, a mãe não bateu na criança: mas lá no quarto fervia água no samovar... Ela colocou a mão da criança sob a torneirinha do samovar e o abriu. Deixou a mãozinha debaixo de água fervente por uns dez segundos.

Um fato verídico, eu mesmo o li. Mas imaginem, senhores, se isso tivesse acontecido agora e se esta mulher fosse chamada ao tribunal. Os jurados se retirariam e, depois de “breve deliberação”, dariam a sentença: “Digna de toda a indulgência”.

Agora tentem imaginar isso; ao menos, convido as mães a fazê-lo. Na certa, ali estaria um advogado a tergiversar.

– Senhores jurados, é certo que este caso não pode ser considerado inteiramente humano, mas analisem a questão em conjunto, imaginem o meio, a situação. Esta mulher é pobre, faz sozinha todo o trabalho de casa, suporta todas as contrariedades. Ela não tem condições de contratar uma babá. É natural que, neste instante, quando a ira, vinda deste meio torturante, apodera-se dela, por assim dizer, senhores, é natural que ela coloque a mãozinha sob a torneira do samovar... então... e...

Oh, eu certamente sei de toda a serventia e grandeza da designação de um advogado, respeitado por todos. Mas algumas vezes não há como não olhar as coisas de um ponto de vista, concordo, leviano, mas também involuntário: pensando bem, a posição de um advogado é às vezes como a de um condenado, sempre tergiversando, esquivando-se, dizendo mentiras à própria consciência, às próprias convicções, a toda moral, a toda humanidade! Não, realmente não tomam dinheiro a troco de nada.

– Ora, por favor! – ouço de repente a voz cheia de sarcasmo de antes. – Tudo isso é um disparate, apenas fruto de sua imaginação. Nenhum jurado deu algum dia uma sentença como essa. Nunca dão de tergiversar. São apenas delírios de sua cabeça.

A esposa, pendurada pelos pés feito uma galinha, o “este pão é meu, não se atreva a comê-lo”, a menina, trêmula na estufa, que por meia hora ouviu os gritos da mãe, e o “mamãe, por que está se enforcando?” – isso tudo não seria o mesmo que a mão debaixo de água fervente?

“A ignorância, a estupidez, a compaixão, o meio” – insistia o advogado do mujique. Mas existem milhões de mujiques e nem todos penduram as esposas! Aqui, contudo, deve haver um limite... Por outro lado, mesmo um homem instruído pode pendurar a esposa de uma hora para outra. Basta, senhores advogados, de suas tergiversações sobre o meio.

[O cidadão, no 2, 8 de janeiro de 1873, págs. 32 e 36]


O fim da servidão na Rússia foi decretado em 1861, em meio às reformas promovidas pelo tsar Alexandre II.?

A reforma judiciária russa promovida na década de 1860, tema que muito interessou a Dostoiévski, usou vários elementos do Direito inglês.?

Nos relatos de Recordações da casa dos mortos (1861), Dostoiévski não defendia essa severidade.?

Perseguido por credores, Dostoiévski foi obrigado a passar uma longa temporada (1867 a 1871) com sua esposa fora da Rússia. O escritor já tinha empreendido longa viagem à Europa, em 1862, relatada no livro Notas de inverno sobre impressões de verão (1863).?

A imagem evoca a construção de São Petersburgo durante o reinado de Pedro, o Grande (1682–1725). Fascinado pelo império naval holandês, o tsar empreendeu uma série de guerras de conquista visando o acesso ao Mar Báltico, onde determinou a construção de uma nova capital. Sendo o terreno extremamente pantanoso, a empreitada exigiu inúmeras reconstruções, assim como a vida de milhares de servos.?

O processo se deu em 30 de setembro de 1872, em Morchánski, e envolveu o camponês N.A. Saiapin, conforme edição russa (Op.cit.).?

Bebida típica russa, obtida da infusão de levedura e pão de centeio torrado.?

Grãos cozidos (aveia, trigo-sarraceno, arroz, painço etc.) em água ou leite.?

Graças a este artigo, um grupo filantrópico de senhoras moscovitas passou a cuidar da criança, segundo notas russas (Op. cit.).?


Algo pessoal

Inúmeras vezes me pediram que eu escrevesse minhas memórias literárias. Não sei se as escreverei; além do mais, a memória anda fraca. Também, é triste recordar; de um modo geral, eu não gosto de fazê-lo. No entanto, alguns episódios de minha vida na literatura me surgem involuntariamente com uma nitidez impressionante, apesar da memória fraca. Aqui está, por exemplo, uma destas histórias.

Certa vez, numa manhã de primavera, fui visitar o finado Egor Petróvitch Kovalévski.1 Ele havia-se impressionado com meu romance Crime e Castigo, que saíra, então, em O Mensageiro Russo2. Elogiou o romance com entusiasmo e me transferiu impressões, de uma pessoa cujo nome não posso revelar, que me foram muito caras. Naquele momento, entraram, um atrás do outro, dois editores de revistas distintas. Uma destas revistas conseguiu, depois, um número de assinantes até hoje nunca alcançado por nenhuma de nossas publicações mensais, mas, naquela época, ela apenas começava. A outra, ao contrário, estava prestes a concluir sua existência, tendo tido um papel notável e influente na literatura e no público; mas ali, naquela manhã, o editor não sabia que sua publicação estava tão próxima do fim.3 Foi com este editor que passei para outro aposento, onde ficamos a sós.

Sem mencionar seu nome,4 direi apenas que nosso primeiro encontro foi extraordinariamente caloroso, dos mais incomuns; para mim, sempre memorável. Talvez ele também se recorde. Naquela época, ele ainda não era o editor da revista. Depois ocorreram muitos mal-entendidos. Após meu retorno da Sibéria, nos encontrávamos muito raramente, mas certa vez ele me disse, de passagem, palavras extremamente calorosas e, por qualquer motivo, me indicou alguns de seus poemas, os melhores que ele já havia escrito. Acrescentarei que, em sua aparência e em seus hábitos, ninguém poderia parecer-se menos com um poeta do que ele, sobretudo com os do tipo “sofredor”. Entretanto, ele foi um de nossos poetas mais apaixonados, sombrios e “sofredores”.

– Então, estamos sendo muito duros com o senhor – disse ele [quer dizer, em sua revista, em relação a Crime e Castigo].5

– Eu sei – disse eu.

– Mas sabe o motivo?

– Provavelmente, por uma questão de princípios.

– É por causa de Tchernychévski.6

Fiquei petrificado de surpresa:

– N.N.,7 que escreveu a crítica – continuou o editor –, me disse o seguinte: “O romance é bom, mas, como o autor, dois anos atrás, numa de suas novelas, teve o despudor de insultar um exilado infeliz e fez dele uma caricatura, vou criticar o romance”.

– Então tudo isso é pelo boato estúpido sobre O crocodilo? – ao compreender, eu gritei. – Mas será possível que o senhor acredite nisso? O senhor leu esta novela, O crocodilo?

– Não, não li.

– Pois tudo isto não passa de um boato, do tipo mais vulgar que se pode imaginar. É preciso ser dotado da inteligência e do faro poético de um Bulgárin8 para achar nas entrelinhas desta bagatela, desta novela cômica, tal alegoria “cívica”, ainda mais sobre Tchernychévski! Se o senhor soubesse como é tola e distorcida esta interpretação! Nunca, porém, vou me perdoar por não ter protestado contra esta calúnia infame dois anos atrás, logo que a lançaram!

Essa conversa com o editor da revista, há tempos extinta, aconteceu sete anos atrás, e até hoje eu não protestei contra esta “calúnia”: ou não a levava a sério, ou “estava sem tempo”. No entanto, esta vilania que me foi atribuída ficou na memória de algumas pessoas como um fato inquestionável, circulou nos meios literários, infiltrou-se no público e mais de uma vez me trouxe aborrecimentos. Chegou a hora de dizer ao menos uma palavra sobre isso, ainda mais sendo este um momento tão apropriado; mesmo que eu não possa provar nada, é preciso refutar esta calúnia, que também não pode ser provada em nenhum grau. Com meu longo silêncio e descuido, é como se, até hoje, eu tivesse aceito essa ideia.

Encontrei-me pela primeira vez com Nikolai Gavrílovitch Tchernychévski em 1859, não lembro onde nem como, no primeiro ano depois de minha volta da Sibéria. Eu topava com ele de vez em quando, mas bem raramente, e até conversávamos, mas bem pouco. Sempre, porém, apertávamos as mãos um do outro. Herzen me disse que Tchernychévski, por sua aparência e por seus modos, deixara nele uma impressão desagradável. Quanto a mim, a aparência e os modos de Tchernychévski me agradavam.

Certa manhã, encontrei na porta de minha casa, sobre a maçaneta, um dos mais notáveis manifestos que apareceram naqueles anos, e existiam, então, muitos deles. Tinha o nome de “À jovem geração”9. Era impossível imaginar algo mais absurdo e estúpido do que aquilo. O conteúdo era revoltante e escrito em uma forma tão ridícula que somente um inimigo de seus autores poderia tê-la inventado com o intuito de destruí-los. Senti-me terrivelmente aborrecido e passei o dia todo triste. Tudo isso era então ainda tão novo e tão próximo que era difícil analisar plenamente essas pessoas. Era difícil justamente porque não havia como acreditar que, sob toda aquela barafunda, se ocultava tamanha insignificância. Não falo do movimento daqueles anos em conjunto, mas apenas dos homens. Quanto ao movimento, foi um fenômeno difícil, mórbido, mas fatal do ponto de vista histórico, e que representaria uma página importante do período petersburguês de nossa história. E, ao que parece, esta página está longe de ser concluída.

E justo eu, que havia tempos estava em desacordo, na alma e no coração, tanto com essas pessoas quanto com o sentido de seu movimento, de repente, naquele instante, senti-me aborrecido e quase que constrangido por tamanha inabilidade: “Por que tudo neles parece tão estúpido e desajeitado?” E que me importa? Mas não era o fracasso deles o que eu lastimava. Propriamente, eu não conhecia nenhum dos que distribuíam os manifestos, e até hoje não os conheço; mas era daí que vinha minha tristeza, do fato de esse fenômeno não me parecer algo isolado – não era uma artimanha tola de alguns indivíduos em particular, pelos quais eu não tinha nenhum interesse. O fato que me afligia aqui era o nível de educação, o desenvolvimento intelectual e uma noção mínima de realidade; e me afligia terrivelmente. Mesmo morando em Petersburgo havia três anos e tendo observado outros fenômenos, o manifesto daquela manhã me deixou quase pasmo, era como uma revelação completamente nova e inesperada: até aquele dia eu jamais havia imaginado que tal insignificância pudesse existir! O que me assustava era justamente a dimensão dessa insignificância. Antes de anoitecer, surgiu-me a ideia de passar na casa de Tchernychévski. Até aquele dia, eu nunca havia feito uma visita a ele, nem mesmo havia pensado em fazê-lo, assim como nem ele, em relação a mim.

Lembro que era por volta das cinco da tarde. Encontrei Nikolái Gavrílovitch completamente sozinho, até os empregados não estavam em casa, e ele mesmo me abriu a porta. Recebeu-me com extrema cordialidade e me conduziu até seu gabinete.

– Nikolai Gavrílovitch, o que é isso? – disse eu, tirando o manifesto do bolso.

Ele o apanhou como se fosse algo inteiramente desconhecido e o leu. Eram apenas umas dez linhas.

– Qual é o problema? – perguntou, sorrindo de leve.

– Será possível que eles sejam tão tolos e ridículos? Será que não há meio de detê-los e de acabar com esta indecência?

Ele respondeu de forma extremamente convincente e altiva:

– Será possível que o senhor esteja supondo que eu seja solidário com eles e esteja pensando que eu possa ter participado da criação deste papelote?

– É justamente o que não suponho – respondi –, e acho até desnecessário tentar convencê-lo disso. Mas, em todo caso, é preciso detê-los, custe o que custar. Para eles, sua palavra tem muito valor; sem dúvida, eles respeitam sua opinião.

– Eu não conheço nenhum deles.

– Estou também convencido disso. Mas não é absolutamente necessário conhecê-los e conversar com eles pessoalmente. Basta que o senhor declare sua desaprovação em algum lugar, e isso chegará até eles.

– Pode também não surtir efeito. Além do mais, esses fenômenos, como fatos alheios, são inevitáveis.

– No entanto, prejudicam tudo e todos.10

Neste momento alguém, não lembro quem, tocou a campainha. Eu fui embora. Considero um dever observar que conversei de modo sincero com Tchernychévski e acreditei plenamente, como até hoje acredito, que ele não era “solidário” com esses panfletistas. Tive a impressão de que Nikolai Gavrílovitch não havia desgostado de minha visita; em alguns dias ele confirmou isso vindo me ver. Ficou quase uma hora em minha companhia e, confesso, poucas vezes na vida encontrei homem tão doce e cordial, de maneira que me surpreendi, então, com algumas opiniões a respeito de seu caráter supostamente cruel e insociável. Estava claro que ele queria me conhecer melhor, e lembro que esse fato me agradou. Ainda lhe fiz mais uma visita, e ele a retribuiu.11 Pouco tempo depois, devido a uma série de circunstâncias pessoais, eu me mudei para Moscou, onde morei por uns nove meses. Dessa maneira, a relação iniciada foi interrompida. Depois disso, ocorreram a prisão de Tchernychévski e seu exílio.12 Não soube nada a respeito de seu processo, e até hoje não sei.

Um ano e meio depois, tive a ideia de escrever um conto fantástico,13 uma espécie de imitação de “O Nariz”, de Gógol. Ainda não tinha experimentado o gênero fantástico. Foi uma brincadeira puramente literária, apenas para rir. Imaginei, na verdade, algumas situações cômicas que queria desenvolver. Mesmo que não mereça o esforço, contarei o enredo, para esclarecer o que depois concluíram dele. Em Petersburgo, certo alemão exibe na Passagem14 um crocodilo em troca de dinheiro. Um funcionário público petersburguês, às vésperas de uma viagem ao exterior, dirige-se com a jovem esposa e o inseparável amigo à Passagem, e, entre outras coisas, vão ver o crocodilo. O funcionário pertence à classe média, entre os dotados de alguma fortuna, ainda jovem, mas consumido pelo amor-próprio; enfim, um imbecil, como o inesquecível major Kovalióv,15 que perdera o próprio nariz. Nosso funcionário tem uma convicção cômica de seus grandes méritos; é semi-instruído, mas falta pouco para se considerar um gênio; em seu departamento, é tido como um homem insignificante e se sente continuamente ofendido com a falta de atenção de todos. Como uma forma de vingança, ele adestra e aterroriza o amigo inexpressivo, vangloriando-se por sua inteligência. O amigo o detesta, mas suporta tudo por desejar sua esposa em segredo. Na Passagem, enquanto a mulher, jovem e atraente, bem do tipo petersburguês, uma coquete tola da classe média, olha encantada para os macacos exibidos com o crocodilo, seu genial marido consegue de algum jeito irritar o bicho, até então sonolento e deitado num cepo: de repente o crocodilo abre sua boca enorme e o engole inteirinho, sem deixar nada de fora. Logo se verifica que nosso grande homem não sofreu sequer um arranhão; ao contrário, com a obstinação peculiar, de dentro do crocodilo, diz que está muito bem instalado. O amigo e a esposa se afastam para solicitar sua liberação às autoridades. Para libertar o grande homem, mostra-se absolutamente indispensável matar o crocodilo e cortá-lo ao meio; ainda por cima, é preciso, sem dúvida, recompensar o proprietário alemão e sua inseparável Mutter16 pela perda do animal. No começo, o alemão fica indignado e apavorado pela possibilidade de seu crocodilo, que havia engolido o ganz17 funcionário, morrer; mas logo pressente que um membro da administração petersburguesa que foi engolido e mantido vivo poderia render-lhe uma bela receita na Europa. Ele exige uma soma enorme de dinheiro pelo crocodilo e, além disso, uma patente de coronel russo. Por outro lado, as autoridades se acham em grande apuro, sendo este um caso demasiado novo para o ministério, até então sem precedentes. “Se ao menos tivéssemos qualquer pequeno precedente, poderíamos tomar providências, mas deste jeito é embaraçoso.” Também suspeitam que o funcionário teria entrado no crocodilo devido a certas tendências liberais proibidas. Neste meio-tempo, a esposa começa a intuir que sua situação de “praticamente viúva” não está desprovida de interesse. O marido engolido, por sua vez, diz de modo categórico a seu amigo que é imensuravelmente melhor estar no crocodilo do que em serviço, pois agora, mesmo contra a vontade, ele despertará a atenção de todos, o que jamais havia conseguido antes. Ele insiste com a esposa para que ela organize saraus, aonde ele e o crocodilo deveriam ser levados, numa caixa. Está convencido de que Petersburgo inteira iria correndo aos saraus, incluindo todos os altos dignitários do Estado, para presenciar o novo fenômeno. E é aqui que ele pretende sair em vantagem: “Irei proferir a verdade e ensiná-la; dar conselhos a um homem do Estado; demonstrar minhas qualidades diante de um ministro” – diz ele, já se considerando alguém fora deste mundo, com o direito de dar conselhos e de proferir sentenças. À pergunta prudente mas venenosa do amigo: “E se por força de qualquer processo imprevisto mas esperável, fosse digerido e transformado em algo não desejável?”, o grande homem responde que já havia pensado nisso, mas que irá se opor com indignação a esse fenômeno perfeitamente admissível conforme as leis da natureza. A esposa, no entanto, não concorda em organizar saraus com tal objetivo, apesar de não desgostar da ideia: “Como meu marido poderia ser levado até mim dentro de uma caixa?” – diz ela. Além do mais, a posição de praticamente viúva agrada-lhe cada vez mais. Ela toma gosto; fica cercada de simpatia. O chefe do marido passa a visitá-la e usa de todos os expedientes com ela... Aqui está a primeira parte deste conto burlesco, que não foi concluído18. Algum dia, sem falta, vou terminá-lo, embora eu já o tenha esquecido e tenha sido obrigado agora a relê-lo para recordá-lo.

Eis, no entanto, o que fizeram desta ninharia. Mal o conto apareceu na revista A Época19 (em 1865), A voz publicou um folhetim com uma estranha nota. Não me lembro dela literalmente e já passou tempo demais para tomar informações, mas a ideia era algo assim: “É inútil”, dizem, “para o autor de O crocodilo enveredar por este caminho; isso não lhe trará nem glória, nem as vantagens esperadas” etc. etc. Depois, umas palavras mordazes, das mais nebulosas e hostis. Eu as li por alto e não entendi patavina, só percebi que estavam cheias de veneno, mas não sabia por quê. A opinião nebulosa de um folhetim, por si só, não poderia, evidentemente, me prejudicar; de todo modo, qualquer um dos leitores seria incapaz de entendê-lo, assim como eu; mas de repente, passada uma semana, NNS.20 me disse: “O senhor sabe o que estão pensando? Estão persuadidos de que seu Crocodilo é uma alegoria, é a história do exílio de Tchernychésvki, e que o senhor tinha o intuito de expô-lo e de ridicularizá-lo”. Apesar de surpreso, não me preocupei tanto; por acaso não existem sempre todos os tipos de suposição? Esta opinião me pareceu isolada e arbitrária demais para seguir adiante, e eu considerei inteiramente desnecessário protestar. Nunca irei me perdoar, pois a opinião se fortaleceu e seguiu adiante. Calomniez, il en restera toujours quelque chose.21

Estou, contudo, até hoje convencido de que não houve calúnia em absoluto – afinal, por que razão, a troco de quê? Eu quase não criei inimizades no meio literário, ao menos, não sérias. Agora, nesta ocasião, é apenas pela segunda vez, em vinte e sete anos de atividades literárias, que falo sobre minha pessoa. Isto não passou de pura estupidez, uma estupidez sombria, cheia de cismas, cravada em alguma mente “tendenciosa”. Estou convencido de que esta mente cheia de ideias está até hoje plenamente persuadida de que não cometera um equívoco e de que eu havia, de qualquer modo, ridicularizado o infeliz Tchernychévski. Estou convencido também de que nenhuma de minhas explicações ou desculpas mudaria sua opinião em meu benefício, mesmo agora. Por isso é uma mente cheia de ideias. (Evidentemente, não me refiro a Andrei Aleksándrovitch,22 na qualidade de redator e editor de seu jornal; ele, como sempre, ficou de fora.)

No que se resume a alegoria? Ora, naturalmente, o crocodilo representaria em si a Sibéria; enquanto o funcionário público presunçoso e leviano, Tchernychévski. Ele acabou dentro um crocodilo e mesmo assim não deixou de nutrir esperanças de dar sermões a todo mundo. O amigo inexpressivo a quem o outro aterrorizava seriam todos os amigos próximos de Tchernychévski. A esposa do funcionário público, atraente mas tola, que se satisfazia com a situação de “praticamente viúva”, ela... Bem, este ponto é tão indecente que prefiro não me envolver e não continuar com a explicação da alegoria. (Contudo, ela ganhou força, e talvez justamente a última alusão tenha ganhado força; tenho provas incontestáveis.)

Quer dizer, sendo eu mesmo um ex-exilado e um ex-prisioneiro, supuseram que eu tivesse ficado satisfeito com o exílio de outro “infeliz” e que, além disso, tivesse escrito na ocasião um pasquim divertido. Mas onde estão as provas? Na alegoria? Tragam-me o que quiserem, Diário de um louco, a ode Deus, Iúri Miloslávski, as poesias de Fet, o que quiserem, e no mesmo instante darei mostras de que, nas primeiras dez linhas do que escolherem, precisamente aí, existe uma alegoria sobre a guerra franco-prussiana ou um pasquim contra o ator Gorbunóv, ou contra quem desejarem, contra quem preferirem.23 Os senhores se recordam de como antigamente, no fim dos anos 40, por exemplo, os censores examinavam os manuscritos e os cartazes: não havia sequer uma linha, nem sequer um ponto, que não fosse motivo de suspeita de algo, de uma alegoria qualquer. Que apontem ao menos um episódio da minha vida que me faça parecer um perverso, um caluniador insensível, alguém capaz de criar alegorias deste gênero.

Ao contrário, justamente a pressa e a imprudência de conclusões infundadas como essas revelam certa baixeza de espírito dos próprios acusadores, a grosseria e a falta de humanismo de seu ponto de vista. Mas a ingenuidade da suposição não é desculpável, ou é? É simplesmente possível ser ingenuamente sórdido.

Talvez eu sentisse ódio contra a pessoa de Tchernychévski? Exatamente para me antecipar a essa acusação, descrevi nossa breve mas cordial relação. Dirão que não é o bastante, que eu nutria um ódio secreto contra ele. Pois que apresentem os motivos para tal ódio, se forem capazes de encontrá-los. Eles não existiam em absoluto. Por outro lado, estou convencido de que o próprio Tchernychévski confirmaria a precisão de minha narrativa sobre nosso encontro se algum dia chegasse a lê-la. Queira Deus que ele tenha a oportunidade de fazê-lo. Tanto desejo isso, de forma calorosa e ardente, quanto, com toda a sinceridade, lamento sua infelicidade.

Mas quem sabe eu odiasse suas convicções?

Por que razão? Tchernychévski nunca me ofendeu com suas convicções. Pode-se respeitar imensamente um homem divergindo radicalmente de suas opiniões. Quanto a isto, no entanto, posso falar com certo fundamento; possuo até uma pequena prova. Em um dos últimos números da já extinta revista A época (se não propriamente no último) foi publicada uma longa crítica sobre o “célebre” romance de Tchernychévski Que fazer?. Este notável artigo pertence a uma pena muito conhecida.24 E o que há nele? Neste artigo, precisamente, fez-se justiça à inteligência e ao talento de Tchernychévski. Sobre o romance em si se falou até com muita simpatia. De seu intelecto notável ninguém jamais duvidou. Ali foram apenas levantadas certas particularidades e inclinações deste intelecto, mas a seriedade do artigo evidenciava o devido respeito do crítico pelos méritos do autor analisado. Agora, os senhores hão de convir: se eu tivesse ódio a suas convicções, certamente não teria permitido que publicassem na revista artigos falando de Tchenychévski com tanto respeito; já que na realidade eu, e ninguém mais, era o editor de A época.

Talvez, ao publicar uma alegoria venenosa, eu esperasse ganhar alguma coisa en haut lieu25? Mas quem poderia afirmar que eu, em algum momento, já bajulei alguém ou ganhei algo nesse sentido em qualquer lieu, quer dizer, que vendi minha pena? Acho que nem mesmo o próprio autor da suposição teve semelhante ideia, apesar de sua ingenuidade. Além disso, se tudo se resumisse apenas a esta acusação, jamais teria ganho força no mundo literário.

Quanto à possível acusação de eu ter feito uma alegoria caluniosa sobre certas circunstâncias familiares de Nikolai Gavrílovitch, reafirmo que prefiro nem tocar neste ponto em troca de minha “absolvição”, para não me envolver nisso...

Muito me desagrada ter falado nesta ocasião sobre minha pessoa. É o que significa escrever memórias literárias; e eu jamais as escreverei. Lamento ter, sem dúvida, entediado o leitor; mas escrevo um diário, em parte um diário com impressões pessoais; e recentemente me ocorreu uma reminiscência “literária” que me fez lembrar indiretamente desse caso esquecido a respeito de meu também esquecido Crocodilo.

Dia desses, uma das pessoas que mais respeito, cuja opinião valorizo imensamente, disse:

– Acabo de ler seu artigo sobre “O meio” e sobre as sentenças de nossos júris [O cidadão, n 2]. Estou plenamente de acordo, mas devo dizer que ele pode causar um estado desagradável de perplexidade. É possível pensar que o senhor defenda a abolição do tribunal com júri e uma nova interferência da tutela administrativa...

Fiquei amargamente surpreso. Era a voz de um homem absolutamente imparcial, que está longe de partidos literários e de “alegorias”.

– Será possível interpretar meu artigo desta maneira?! Depois disso, não se pode falar sobre mais nada. Com o fim do jugo da servidão, a situação econômica e moral do povo está terrível. Fatos incontestáveis e demasiadamente alarmantes são presenciados a cada instante. A decadência moral, a mesquinharia, os taberneiros jidy,26 o roubo e a bandidagem em plena luz do dia são fatos inquestionáveis e crescentes. Pois então? Será que, quando alguém, com o coração e o espírito aflitos, resolve pegar a pena e escrever a respeito, deve ser acusado de ser contra a libertação dos servos, de defender a volta ao regime de servidão?

– Em todo caso, é desejável que o povo tenha liberdade plena para se livrar sozinho de sua triste situação, sem tutelas ou reviravoltas.

– Isto é indispensável; é justamente o que penso! Mesmo com a decadência popular (eles mesmos, ao olhar às vezes para si próprios, dizem agora por aí: “Enfraquecemos, enfraquecemos!”), mesmo se acontecesse, digo eu, uma desgraça popular, verdadeira e incontestável, uma enorme degradação, um grande infortúnio, o povo se salvaria sozinho, ele se salvaria e nos salvaria, como inúmeras vezes já ocorreu, como sua própria história já testemunhou. Este é meu pensamento, sem tirar nem pôr, e basta de interferências!... No entanto, reparem como as palavras podem ser mal compreendidas e interpretadas!... Talvez ainda esbarremos em outra alegoria!

[O cidadão, no 3, 8 de janeiro de 1873, págs. 61 a 64]


E.P. Kovalévki (1809–1868), escritor e diplomata.?

O Mensageiro Russo (Rússkii viéstnik,), revista político-literária editada entre 1856 e 1906, de tendência inicialmente liberal e, depois de 1863, reacionária. Seu principal editor foi M.N. Katkóv (1818?-1887). Crime e castigo foi publicado nesta revista ao longo do ano de 1866.?

Trata-se, respectivamente, de O mensageiro da Europa (Viéstnik Evropy) – publicação político-literária de inclinações liberais editada de 1866 a 1918 –, e de O contemporâneo (Sovremiénnik) – revista fundada em 1836 por Aleksándr Púchkin (1799–1837) e editada até 1866, que teve, entre seus editores, figuras como Belínski.?

Dostoiévski se refere a N.A. Nekrássov (1821–78), poeta, escritor e editor de revistas como Anais da pátria e O contemporâneo. As relações entre eles foram instáveis: responsável pela publicação do primeiro romance de Dostoiévski, Gente pobre, Nekrássov se afastaria dele pouco tempo depois por questões editoriais e ideológicas. Reaproximaram-se quando da publicação de O adolescente, em 1875. O outro editor mencionado é M.M. Stassiulévitch (1826–1911).?

O autor do artigo, publicado na revista O contemporâneo em 1866, é G.Z. Elisséiev (1821–1891).?

N.G. Tchenychévski (1828–1889), jornalista e escritor radical. Seu romance Que fazer?, de 1862, escrito durante sua prisão na Sibéria, exerceu grande influência em revolucionários como Lênin, que publicou livro homônimo em 1902. Tchernychévski, à semelhança de Belínski, defendia uma arte submetida à realidade social e à sua transformação efetiva.?

Em latim, no original: nomen nescio, “nome ignorado”.?

F.V. Bulgárin (1789–1859), escritor, crítico e editor de origem polonesa. Teve uma carreira militar destacada e escreveu romances de aventura. Muitos epigramas de Púchkin, Lêrmontov, Nekrássov etc. foram baseados na figura de Bulgárin.?

Provável engano do autor. Conforme notas da edição russa (Op. cit.): “À jovem geração” foi escrito por N.V. Chelgunóv (1824–1891) e M.L. Mikháilov (1829–1865), amigos de Tchernychévski, em 1861, ano em que Dostoiévski quase não saiu de Petersburgo (adiante o autor menciona ter passado nove meses em Moscou). Suspeita-se tratar-se de “Jovem Rússia”, panfleto radical de cunho socialista redigido por P.G. Zaitchniévski (1842–1896) em 1862.?

Em suas memórias (1888), Tchernychévski traz uma versão diferente do encontro. Além de mencionar um empregado, o pedido de Dostoiévski teria sido mais genérico, o de salvar a Rússia de incendiários.?

Conforme edição russa (Op. cit.), Tchernychévski foi pedir autorização para publicar Recordações da casa morta numa coletânea idealizada por A.D. Putiata (1828–1899). Foi o próprio Tchernychévski que sugeriu esta obra de Dostoiévski, mas o detentor dos direitos de venda, A.F. Bazúnov, não permitiu a reimpressão.?

Tchernychévski só recebeu autorização para retornar a São Petersburgo em 1883, depois da morte de Dostoiévski.?

Trata-se de O crocodilo, de 1864.?

Galeria de lojas de São Petersburgo, localizada na Av. Niévski.?

Personagem principal do conto “O nariz” (1836) de N. Gógol. Nele, o major Kovalióv acorda sem o nariz, que ganha vida própria e se passa por um alto funcionário público.?

Em alemão, no original: “mãe”.?

Em alemão, no original: “inteiro”, “todo”.?

A obra permaneceu inacabada, mas Boris Schnaiderman observa que Dostoiévski “deixou rascunhos deste escrito que fazem supor uma continuação ainda mais desenfreada que a parte publicada pelo autor” (O crocodilo e Notas de inverno sobre impressões de versão, Ed. 34, 2000, p. 10).?

A revista A Época (Epokha), criada depois do fechamento, em 1863, de O tempo (Vriémia), era dirigida pelos irmãos Fiódor e Mikhail Dostoiévski. Foi fechada em 1865 por falta de recursos.?

Trata-se de N.N. Strákhov (1828–1896), filósofo e crítico russo, colaborador dos irmãos Dostoiévski em suas revistas. Foi por causa de um artigo seu, criticando a represália do exército russo à rebelião polonesa de 1863, que ocorreu o fechamento da revista O tempo.?

Calomniez, calomniez, il en restera toujours quelque chose, provérbio francês:“Caluniai, caluniai, e algo sempre restará”.?

A.A. Kraiévski (1810–1889), redator, jornalista e editor de Anais da pátria, fundador de A voz.]?

Diário de um louco, conto de Gógol; Deus, ode de G. Derjávin (1743–1816); Iúri Miloslávski, romance de M. Zagóskin (1789–1852); A. Fet (1820–1892), poeta; I. Gorbunóv (1831–1895), ator e escritor.?

O autor do artigo é N.I. Solovióv (1831–1874).?

Em francês, no original: “nas altas esferas”.?

Jid (plural: jidy), forma pejorativa para “judeu”.?


Vlás

Os senhores se recordam de Vlás?1 Volta e meia me pego a pensar nele.

O armiák,2 a gola sem atar,
A cabeça toda ao vento,
Cruza a vila com vagar
Tio Vlás, um velho cinzento.
O ícone de cobre ao peito:
Esmola ao templo de Deus...


Em outros tempos, para Vlás, como sabemos, simplesmente “Não havia Deus” e:

... de tantos os bofetões
Levou a mulher ao jazigo,
Só fez roubar e aos ladrões
de cavalos deu abrigo.

 

Até aos ladrões de cavalos, dá de nos assustar o poeta, com o tom de uma velhinha devota. Vejam só, que pecados! Então, um trovão ressoou. Vlás adoeceu e teve uma visão, depois da qual jurou que vagaria pelo mundo a recolher caridades para erigir uma igreja. Teve, nada mais nada menos, que uma visão do inferno:

Viu inteiro o fim do mundo,
Viu devassos no inferno:
Os torturam diabinhos,
Os mordem bruxas frementes.
Etíopes enegrecidos
Com olhos incandescentes.

[...]


Uns cravados em pértigas,
Uns lambem o chão quente...

 

Em suma, horrores tão inimagináveis que temos medo só de ler. “De tudo não se vai falar!”, continua o poeta:

Mulheres sábias, devotas,
Sabem melhor como contar.

 

Oh, poeta! (para nossa infelicidade, um poeta nosso, autêntico) se não tivesse se aproximado do povo com seus arroubos, nos quais:

Mulheres sábias, devotas,
Sabem melhor como contar.

 

Não nos teria insultado tanto com a conclusão de que, no final das contas, é por força dessas tolices de mulheres que

Surgem moradas de Deus
Na face de nossa terra.

 

Embora Vlás tenha vagado pelo mundo com uma sacola na mão por essas “tolices”, você soube compreender a gravidade de seus sofrimentos; apesar de tudo, foi afetado pela figura majestosa de Vlás. (Pois é um poeta; e não poderia ser diferente.)

A nobreza de sua alma
Inteira à mercê de Deus.

 

Diz você de modo tão magnífico. Quero acreditar, no entanto, que tenha inserido certa zombaria sem intenção, por temor à liberalidade, pois a força de resignação de Vlás, tão espantosa e até intimidadora, a necessidade de salvar-se, a sede ardente por sofrimentos afetaram você, um “homem universal” e um gentilhomme russo, a imagem majestosa do povo arrancou admiração e respeito de sua alma altamente liberal!

Vlás distribuiu seus bens,
E com os pés esfolados
Saiu juntando vinténs
Para erguer o lar sagrado.
Virou errante desde então
Faz pra lá de trinta anos,
Que as esmolas lhe dão pão –
E guardou os votos sem dano.

[...]


Seu pesar não tem cansaço
Alto e ereto e bronzeado,

 

Que formidável, como é bom!

Percorrendo passo a passo
Cada vila e povoado.3

[...]


A imagem e o livro à mão,
De tudo consigo a falar
E o seu grilhão de ferro
Soa baixo, no caminhar.

 

Formidável, formidável! É tão bom que parece não ter sido escrito por você, mas por outra pessoa, a mesma que depois, em seu lugar, zombaria em Sobre o Volga,4 em versos igualmente magníficos, das canções dos burlaki.5 Contudo, em Sobre o Volga, você não zombou tanto, talvez apenas um pouco: no Volga você se afeiçoou pelo que há de homem universal no burlák e realmente sofreu por ele, quer dizer, não por um burlák em particular, mas, por assim dizer, pelo burlák universal. Veja bem, amar o homem universal significa, talvez, desprezar, e por vezes até odiar, o homem real que está a seu lado. Por essa razão destaquei esses versos incomensuravelmente belos (tomados, perdão, como um todo) de seu poema burlesco.

A versão poética de Vlás me veio à lembrança, porque dias atrás ouvi um relato fantástico surpreendente a respeito de outro Vlás, ou melhor, a respeito de dois outros, ambos muito particulares, dos quais ninguém nunca ouvira falar. Um acontecimento verídico e notável em sua singularidade.

Na Rus,6 nos mosteiros, dizem que ainda hoje existe um tipo diferente de monge – há o monge confessor e, também, o conselheiro. Se isso é bom ou ruim, se esses monges são ou não necessários, não vem ao caso discutir agora, tampouco foi para isso que peguei minha pena. Mas, como vivemos na atualidade, não é possível enxotar o monge da história, já que é nele que ela se baseia. Os monges conselheiros, supostamente, são dotados, às vezes, de grande inteligência e instrução. Pelo menos, é o que relatam; nada sei sobre isso. Dizem que encontramos alguns com talento impressionante para como que perscrutar a alma humana e saber dominá-la. Algumas dessas figuras, pelo que dizem, são conhecidas por toda a Rússia, quer dizer, pelos que necessitam delas. Vamos supor que certo stárets7 viva na província de Kherson e que para, vê-lo, viajem pessoas de Petersburgo, de Arkhánguelsk, do Cáucaso e da Sibéria, algumas até a pé. Vão até ele, evidentemente, com a alma desesperada e abatida, já sem esperanças de cura, ou com um fardo tão terrível no coração que o pecador não consegue sequer falar sobre o assunto com o monge-confessor – não por medo ou desconfiança, mas simplesmente em completo desespero por sua salvação. Um dia ouve falar do tal monge-conselheiro e vai encontrá-lo.

– Veja – certo dia, numa conversa amigável, o stárets disse a sós a seu ouvinte –, faz vinte anos que escuto toda gente e, nesses vinte anos, o senhor não acreditaria quanto conheci das doenças mais secretas e complexas da alma humana; mas, mesmo depois de todos esses anos, às vezes, ao ouvir certos segredos, ainda me surpreendo estremecido e indignado. Você perde a paz de espírito necessária para poder oferecer conforto e se vê obrigado a reforçar em si a humildade e a serenidade...

E aqui ele contou um relato surpreendente, aquele que mencionei antes, sobre certos costumes do povo:

– Um dia vejo um mujique se arrastando de joelhos em minha direção. Ainda da minha janela pude ver como ele se arrastava pela terra. As primeiras palavras dirigidas a mim:

“Não há salvação, fui amaldiçoado! Não importa o que diga, serei sempre um amaldiçoado!”

– Eu o acalmei com dificuldade; percebi que o homem tinha-se arrastado em busca de sofrimento, de longe.

“Nós reunimos alguns rapazes da aldeia [ele começou a contar] e nos pusemos a discutir: Qual de nós seria capaz da maior ousadia de todas? Com meu orgulho, fui o primeiro a me apresentar. Um dos rapazes me puxou para o lado e me disse olho no olho:

– Você não é capaz de fazer o que diz. Está se gabando.

Comecei a jurar.

– Não, espere, jure, por sua salvação no outro mundo, que fará tudo o que eu indicar – diz ele.

Dei minha palavra.

– Logo a quaresma vai começar, e você deve jejuar. Quando for comungar, pegue a hóstia, mas não a engula! Ao sair da igreja, tire-a da boca e guarde-a. Depois direi o que fazer.

Assim fiz. Da igreja ele me levou direto a uma horta. Pegou uma pértiga, fincou-a na terra e disse:

– Ponha aqui!

Coloquei a hóstia na pértiga.

– Agora, traga uma espingarda – diz ele.

Eu a trouxe.

– Carregue.

– Carreguei-a.

– Levante-a e dispare.

– Levantei o braço e fiz pontaria.

Estava a ponto de disparar quando, de repente, me vi diante de uma cruz, e nela o Crucificado. Nesse instante, caí desacordado com a espingarda na mão.”

Isso havia acontecido alguns anos antes de sua visita ao stárets. O stárets, evidentemente, não revelou quem era este Vlás, de onde vinha e como se chamava, tampouco contou a penitência que lhe prescreveu. Talvez tenha sobrecarregado aquela alma de fardos terríveis, além das forças humanas, considerando que, quanto mais difícil fosse, melhor seria: “Ele mesmo se arrastou em busca de sofrimentos”. Não é verdade que, por um lado, este acontecimento é característico o suficiente, em suas inúmeras alusões, para merecer dois ou três minutos de reflexão? Sou de opinião que a última palavra será dada por eles, por estes diversos Vlasses, arrependidos ou não; eles irão nos dizer e nos mostrar um novo caminho e uma nova saída para nossas dificuldades aparentemente insolúveis. Não será Petersburgo que irá resolver o destino da Rússia em definitivo. É por isso que qualquer novo traço, por menor que seja, desta “nova gente” é digno de nossa atenção.

Em primeiro lugar, fiquei abismado – acima de tudo abismado – pelo próprio início do acontecido, isto é, com a possibilidade de tal discussão e de tal competição ocorrerem numa aldeia russa: “Qual de nós seria capaz da maior ousadia de todas?”. Um fato terrível e cheio de alusões e, para mim, inteiramente inopinado – e eu já vi muita gente, e do tipo mais singular. No entanto, observo também que o caráter aparentemente excepcional do fato em si atesta sua veracidade: quando dizem mentiras, para que todos acreditem, inventam algo bem mais banal e condizente com a vida corriqueira.

Depois, o lado propriamente médico do fato é notável. Em princípio, a alucinação é um fenômeno patológico, uma doença bastante rara. A possibilidade de uma alucinação súbita acometer uma pessoa inteiramente sã, ainda que extremamente agitada, talvez seja caso sem precedentes. Mas isto é assunto para a medicina, eu pouco o conheço.

Outra questão é o lado psicológico do fato. Surgem diante de nós dois tipos populares que, de modo extraordinário, retratam o povo russo como um todo. Antes de mais nada, é o esquecimento de qualquer medida, em tudo (e, notem, é algo quase sempre temporário e transitório, uma espécie de delírio). É o desejo de passar dos limites, o desejo de, com o coração desfalecido, ir até a beira de um precipício, de debruçar-se sobre ele, de olhar para o fundo e, em determinados casos, mas nada raros, de atirar-se nele de cabeça feito um atordoado. É o desejo de negação num homem, às vezes justamente no menos propenso a isso e no mais respeitoso, o desejo de negar tudo: o que lhe é mais sagrado, seu ideal mais pleno, as coisas sagradas do povo em sua plenitude – tudo o que antes ele respeitava tornou-se de repente um fardo insuportável. O que em particular me surpreende é a urgência, o ímpeto com que o homem russo se apressa às vezes a manifestar-se, em determinados momentos de sua vida ou da vida do povo, no que é bom ou no que é sórdido. Às vezes simplesmente ele não tem como se conter. A um amor, ao vinho, à orgia, ao amor-próprio, à inveja, a qualquer coisa o russo se entrega quase como um abnegado, pronto a romper com tudo, a renunciar a tudo, à família, aos costumes, a Deus. Um homem bom pode de repente se transformar num desordeiro e num delinquente repulsivo – basta que ele seja atingido por este turbilhão, por este torvelinho fatal de súbita e desenfreada autonegação e autodestruição, como é peculiar ao caráter do povo russo nos momentos decisivos de sua existência. Mas, em compensação, com a mesma força, com o mesmo ímpeto, com a mesma sede de autopreservação e arrependimento, o homem russo, assim como o povo em conjunto, salva-se sozinho, e geralmente quando está no fundo do abismo, isto é, quando não tem mais para onde ir. Mas particularmente característico é o fato de o impulso de volta, o impulso de regeneração e salvação de si, apresentar-se sempre com mais seriedade do que o assomo anterior, o assomo de negação e destruição de si. Quer dizer, este sempre acontece devido a uma espécie de covardia mesquinha; assim, para sua regeneração, o homem russo parte munido de um esforço enorme e sério, ao passo que o movimento de negação anterior o faz olhar para si mesmo com desprezo.

Penso que o desejo espiritual do povo russo mais importante, mais fundamental, é o desejo de sofrimento, permanente e insaciável, em tudo e em toda parte. Ao que parece, esta sede o contagiou desde que o mundo é mundo. Um jorro de sofrimentos atravessa toda a sua história, e jorra não apenas de desgraças e calamidades exteriores, mas da fonte de seu coração. O povo russo, mesmo na felicidade, possui infalivelmente um lado sofredor, senão, sua felicidade não estaria completa. Jamais, nem mesmo nos momentos mais triunfais de sua história, ele exibirá ar de soberba e de triunfo, mas apenas o ar compadecido de quem sofreu; ele suspira e atribui sua glória à graça divina. É como se o povo russo se deleitasse com seu próprio sofrimento. O que vale para o povo em conjunto, vale para seus indivíduos em particular, embora apenas genericamente. Reparem, por exemplo, nos vários tipos de desordeiros russos. Não é apenas uma orgia sem limites, que algumas vezes surpreende pela ousadia de seus propósitos e pela vilania da decadência da alma de um ser humano. Este desordeiro, antes de tudo, é um sofredor. A satisfação ingênua e triunfal, por si, absolutamente não existe no homem russo, nem mesmo no mais tolo. Tomem um bêbado russo e, por exemplo, um bêbado alemão: o bêbado russo é mais indecente do que o alemão,8 mas o bêbado alemão é, sem dúvida, mais tolo e patético do que o russo. Os alemães são fundamentalmente um povo orgulhoso e cheio de si. Num alemão bêbado, os traços fundamentais de seu povo crescem à medida que a cerveja é tomada. Um alemão bêbado é, sem dúvida, um homem feliz e que nunca chora; ele canta canções que o enaltecem e fica cheio de si. Volta para casa caindo de bêbado, mas cheio de si. O russo bêbado gosta de beber por desgosto e de chorar. Quando cai na farra, não celebra, apenas provoca desordens. Sem exceção, vai se lembrar de uma ofensa qualquer e passar um reproche no ofensor, com este presente ou não. Com atrevimento, ele na certa dá provas de que é praticamente um general, ralha amargamente se não acreditam e, para que acreditem, no final das contas, chama sempre por socorro. Mas, se ele é tão desordeiro, se chama por socorro, é porque, no íntimo de sua alma bêbada, está possivelmente convencido de que não é nenhum general, mas apenas um bêbado infame que fez sujeiras, abaixo de qualquer animal. O que achamos neste exemplo microscópico, achamos também em escala grande. O maior dos desordeiros, o mais belo em seu atrevimento e em seus vícios elegantes, até imitado pelos tolos, mesmo ele intui de algum modo, no íntimo de sua alma desordeira, que, no final das contas, não passa de um imprestável, e nada mais. Não está satisfeito consigo mesmo; um sentimento de censura cresce em seu peito, e ele vinga-se disso nos que estão à sua volta, se enfurece e avança sobre todos, e aqui chega ao limite, lutando contra o sofrimento que se acumula a cada instante no coração e, ao mesmo tempo, como que se inebriando disso com deleite. Se é capaz de rebelar-se contra sua humilhação, pune a si mesmo pela decadência do passado de um modo cruel – o que é até mais doloroso do que punir os outros –, numa fumaça de indecência, pelos suplícios secretos de sua insatisfação pessoal.

Quem levou os dois rapazes a tal disputa, “Qual de nós seria capaz da maior ousadia de todas?”, o que motivou a possibilidade de semelhante competição, nada disso é explicado, mas, sem dúvida, ambos sofreram – um ao aceitar o desafio, o outro ao propô-lo. É claro que aqui existia algum precedente: ou um ódio latente entre eles ou um ódio de infância, até mesmo inconsciente, que, de súbito, se revelou no instante da disputa e do desafio. A última suposição é a mais provável, assim como é também provável que, até aquele momento, eles fossem amigos e vivessem em harmonia, o que, com o passar do tempo, deve ter-se tornado intolerável; assim, no momento do desafio, a tensão do ódio mútuo e a inveja da vítima de seu Mefistófeles já eram descomunais.

– Nada temerei, farei tudo o que me indicar; que minha alma padeça, irei cobri-la de vergonha!

– Está se gabando, irá correr feito um rato para o subsolo, e eu irei rir de você; que minha alma padeça!

Seria possível escolher para a competição algo igualmente insolente, mas de outro gênero – um roubo, um assassinato, um ato violento público contra algum homem poderoso. Pois o rapaz jurou que estaria disposto a tudo, e seu tentador sabia que, dessa vez, o acordo era para valer e que o outro estaria de fato disposto a tudo.

Não. As “ousadias” mais terríveis pareciam demasiado banais ao tentador. Ele arquitetou uma ousadia sem precedentes, inconcebível, e em sua escolha se revelou toda a visão de mundo do povo.

Inconcebível? Mas, no entanto, o fato de ele ter feito precisamente esta escolha mostra que talvez já tivesse pensado nela. Talvez fizesse tempo, se não desde a infância, que este desejo se havia embrenhado em sua alma, perturbando-a com terror e, ao mesmo tempo, com um prazer aflitivo. O que ele arquitetara muito tempo antes – a espingarda, a horta – foi mantido como um segredo terrível – quanto a isso, praticamente não há dúvidas. Decerto ele não inventara tudo isso para que a coisa fosse executada, provavelmente não se atreveria, jamais sozinho. Aquela visão simplesmente lhe agradava, de vez em quando ela se infiltrava em seu íntimo, seduzia-o, e ele se entregava a ela timidamente e depois recuava, gelando de pavor. Um instante desta ousadia inconcebível, mesmo que tudo se acabe! E, certamente, ele acreditava que por isso iria padecer eternamente; mas “eu já estive no topo!...”

É possível não se ter consciência de muitas coisas e apenas senti-las. É possível muito saber de maneira inconsciente. Pois não é verdade que estamos diante de uma alma curiosa e, o que é mais importante, vinda de tal realidade? A questão toda está aí. Seria também interessante saber se o tentador se considerava mais culpado do que a vítima ou não. A julgar por seu aparente desenvolvimento intelectual, devemos supor que ele se considerava mais culpado ou, ao menos, igualmente culpado; de maneira que, ao provocar sua vítima a tal “ousadia”, provocava-se a si mesmo.

Dizem que o povo russo não conhece bem o Evangelho, que desconhece as regras fundamentais da fé cristã. Sem dúvida, mas, no entanto, ele conhece Cristo e o carrega em seu peito desde que o mundo é mundo. Quanto a isto, não há dúvida nenhuma. Mas como é possível haver uma compreensão genuína de Cristo sem o aprendizado de sua doutrina? Esta já é outra questão. No entanto, o conhecimento sincero de Cristo, sua compreensão genuína, existe plenamente. É passado de geração em geração, unindo-se aos corações dos homens. Talvez o único amor do povo russo seja o amor a Cristo, mas o povo ama esta imagem à sua maneira, ou seja, a ponto de sofrer. Orgulha-se acima de tudo do epíteto de pravoslávnyi,9 quer dizer, aquele que professa Cristo com mais verdade. Repito: é possível muito saber de maneira inconsciente.

Mas profanar algo tão sagrado para o povo, rompendo com sua terra inteira, destruir-se a si mesmo pela eternidade por apenas um minuto triunfal de recusa e soberba... este Mefistófeles russo não poderia ter imaginado nada mais ousado! Surpreende a possibilidade de tal intensidade de paixão, a possibilidade de sensações tão sombrias e complexas existirem na alma de um homem simples! E, reparem, tudo isso evoluiu até quase uma ideia consciente.

A vítima, no entanto, não se entrega, não se submete, não se acovarda. Pelo menos, faz que não se acovarda. O rapaz aceita o desafio. Passam-se dias e ele não muda de opinião. E o que se aproxima já não é delírio, é a coisa em si: ele vai à igreja, ouve as palavras de Cristo todo santo dia, não recua. Existem casos de assassinos terríveis que não se perturbam nem mesmo diante da vítima que mataram. Um destes assassinos, manifesto e pego em flagrante, ficou sem confessar até o fim e continuou a contar mentiras ao juiz de instrução. Quando o juiz se levantou e ordenou que levassem o sujeito à prisão, este, com ar comovido, pediu que, por compaixão, o deixassem despedir-se da vítima ali deitada (sua ex-amante, que ele matara por ciúme). Curvou-se, beijou-a com comoção, começou a chorar e, ainda de joelhos, com a mão estendida, disse mais uma vez perante ela que não era culpado. Gostaria apenas de notar até que ponto bestial a insensibilidade de um homem pode chegar.

Mas, em nosso caso, não se tratava, no fundo, de insensibilidade. Além disso, havia algo muito particular – um pavor místico, a força mais colossal que pode acometer a alma de uma pessoa. Sem dúvida, ele estava presente, pelo menos a julgar pelo desenlace do acontecido. Mas a alma valente do rapaz ainda foi capaz de lutar contra este pavor; ele deu provas disso. Teria sido valentia ou o mais alto grau de covardia? Na certa, uma e outra coisa, um convívio de contrários. No entanto, este pavor místico não apenas não interrompeu a luta como ainda a prolongou e, provavelmente, contribuiu para a condução do desfecho, justamente por expulsar do peito do pecador qualquer sentimento de compaixão; e, quanto mais reprimido era, mais impossibilitado este sentimento se tornava. A sensação de pavor é um sentimento cruel, que seca e petrifica toda compaixão ou sentimento elevado dos corações dos homens. É por esta razão que o criminoso suportou aquele momento diante do cálice da comunhão, embora talvez estivesse paralisado de temor até a exaustão. Penso ainda que o ódio mútuo entre a vítima e seu torturador tenha desaparecido completamente naqueles dias. Envolvido em assomos, aquele poderia, com uma fúria doentia, odiar-se a si próprio, os circunvizinhos, os que rezam na igreja, poderia odiar qualquer um, menos o seu Mefistófeles. Ambos sentiam que precisavam um do outro para, em conjunto, pôr um ponto-final na questão. Cada qual, provavelmente, julgava-se incapaz de concluí-la sozinho. A troco de que persistiram, a troco de que tomaram para si tantos suplícios? Eles, porém, já não podiam romper aquela aliança. Caso o acordo fosse violado, o ódio entre eles, na hora reinflamado, seria dez vezes mais intenso do que antes, e, provavelmente, acabaria em homicídio: o mártir mataria seu torturador.

Que seja. Mesmo isso nada seria diante do pavor suportado pela vítima. É aí que está – no fundo da alma, de um e de outro, devia existir obrigatoriamente uma espécie de prazer diabólico pela própria ruína, uma necessidade, de prender o fôlego, de inclinar-se ao precipício e mirá-lo no fundo, com uma satisfação espantosa por sua própria ousadia. Seria praticamente impossível levar o assunto até o fim sem estes sentimentos excitantes e apaixonados. Desde a competição pela maior “ousadia” até o desespero perante o stárets, não se tratava apenas de uns rapazes travessos, de uns garotos estúpidos e tolos.

Reparem ainda que o tentador não revelou todo o segredo à vítima; ao sair da igreja, ela ainda não sabia o que teria de fazer com o alimento sagrado e só o soube no instante em que o outro o mandou trazer uma espingarda. Os numerosos dias de incerteza mística só evidenciam novamente a terrível obstinação do pecador. Por outro lado, o Mefistófeles da aldeia mostra-se um grande psicólogo.

No entanto, será que talvez, ao chegar à horta, ambos tivessem perdido a noção de si? Contudo, o rapaz lembrava como carregara a arma e como fizera pontaria. Será que, mesmo em sã consciência, estivesse agindo apenas de modo mecânico, como às vezes acontece em estado de pavor? Não acredito nisso: se ele tivesse se transformado tão somente numa máquina, que continua a agir apenas por inércia, na certa, depois, não teria tido visões, simplesmente teria caído sem sentidos logo que o estoque de inércia se houvesse esgotado, e não antes, só depois do tiro. Não, o mais provável é que sua consciência tenha se preservado, o tempo todo, com uma nitidez extraordinária, apesar do medo de morte que crescia progressivamente a cada instante. Insisto, se a vítima suportou a pressão do medo, que crescia progressivamente, sem dúvida era dotada de enorme força espiritual.

Atentemos ao fato de o carregamento de uma espingarda ser, em todo caso, uma operação que exige certa atenção. O mais difícil e o mais intolerável num momento como este é, a meu ver, a capacidade de desprender-se de ideias deprimentes, do medo. Em geral, as pessoas tomadas pelo medo em seu último grau já não conseguem retirar sua concentração dele e do objeto ou da ideia que as atingiu: elas ficam como que fincadas à frente deles e, para seu horror, olham para eles nos olhos como se estivessem enfeitiçadas. Mas o jovem havia carregado a espingarda com atenção, isso ele lembrava; lembrava que depois havia feito pontaria; lembrava-se de tudo até o último momento. Pode ser também que o processo de carregar a espingarda tenha sido para ele um alívio, uma saída para sua alma atormentada, e que ele tenha ficado feliz, ao menos por um instante, em poder se concentrar inicialmente em qualquer objeto exterior. Assim acontece na guilhotina com os decapitados. Du Barry10 gritara para o carrasco: “Encore un moment, monsieur le bourreau, encore un moment!”11 Ela sofreria vinte vezes mais nesse minuto de graça se este lhe fosse cedido, mas, mesmo assim, gritara e suplicara por ele. Se supusermos que o carregamento da espingarda significou, para nosso pecador, mais ou menos o que significara “encore un moment” para Du Barry, certamente, depois de tal momento, ele não poderia voltar-se de novo para seu pavor, do qual uma vez se desprendera, e continuar o que queria fazer: apontar e atirar. Mesmo com a consciência e a vontade intactas, suas mãos simplesmente ficariam paralisadas e parariam de lhe obedecer, e a espingarda cairia.

Eis que, no último momento, toda a mentira, toda a vilania de sua conduta, toda a covardia, tomada em sua força, toda a vergonha de sua decadência, tudo isso, de súbito, num segundo, foi-lhe arrancado do peito e postou-se diante dele com uma acusação aterradora. Uma visão extraordinária lhe surgiu... e tudo se acabou.

Certamente a justiça ressoou em seu coração. Por que ressoou de modo inconsciente, sem naquele mesmo instante elucidar seu intelecto e sua consciência, por que surgiu uma imagem quase que alheia, como um fato independente de sua alma? Aqui há uma enorme questão psicológica e uma obra de Deus. Para ele, para o criminoso, sem dúvida, tratava-se de uma obra de Deus. Vlás saiu vagando pelo mundo em busca de sofrimentos.

Mas e o outro Vlás, o que restou, o tentador? A lenda não diz se ele se arrastou atrás de penitências, nada menciona a seu respeito. Pode ter-se arrastado, assim como pode ter permanecido na aldeia e estar morando lá até hoje, bebendo de novo e aprontando nos dias de feriado: pois ele não teve uma visão. Mas será que foi assim? Seria desejável conhecer sua história, nem que seja pela informação em si, pelo estudo.

Seria desejável também por outra razão: se por acaso ele realmente fosse um verdadeiro niilista de aldeia, um contestador e um pensador primitivo, um homem sem fé que escolheu o objeto da competição por pura zombaria e arrogância, que não sofreu nem se abalou com sua vítima, como supomos em nosso estudo, que acompanhou as tremedeiras e as convulsões dela com uma curiosidade fria, que necessita unicamente do sofrimento alheio, da humilhação de outro ser humano, será que, sabe lá o diabo, não serviria ele para alguma observação científica?

Se tais traços existem até mesmo no caráter do povo (nos dias de hoje, é possível admitir qualquer coisa), e ainda mais em nossa aldeia, isso é uma verdadeira revelação, até um tanto inesperada. Nestes traços há algo de que ninguém nunca ouvira falar. O tentador do Sr. Ostróvski,12 em sua comédia formidável Não viva como mais desejaria,13 saiu-se relativamente mal. Pena que a respeito disso não seja possível saber nada de fidedigno.

O interesse pela história que narrei – se é que existe – resume-se certamente no fato de ser ela verídica. Mas olhar de vez em quando para o íntimo de um Vlás da atualidade não é perda de tempo. O Vlás atual está em rápida transformação. Desde aquele 19 de fevereiro,14 ele, nas camadas inferiores, sente algo em ebulição que reverbera aqui em cima. O bogatyr15 despertou e ajeita os ombros; quer, talvez, cair na farra, passar dos limites. Dizem que já está fazendo isso. Contam e noticiam horrores: embriaguez, roubos, crianças e mães alcoolizadas, cinismo, miséria, desonestidade, ateísmo. Algumas pessoas sérias mas um tanto apressadas julgam, baseadas nos fatos, que, se a “farra” continuar por mais uma década, será impossível prever as consequências, ao menos do ponto de vista econômico. Mas nos lembraremos de “Vlás” e nos acalmaremos: no último instante, se houver alguma falsidade, esta irá saltar do coração do povo e se postar diante dele com uma acusação de força incomum. Vlás irá despertar e tomar para si a causa divina. Em todo caso, se ele realmente chegar ao infortúnio, irá salvar-se. Irá salvar-se e nos salvar, pois, mais uma vez, a verdade e a redenção irão brilhar de baixo (talvez de modo inteiramente inesperado para nossos liberais, e disso sairá muito de cômico). Já existem indícios do inesperado; surgem agora fatos... No entanto, podemos discutir sobre isto depois. Em todo caso, nossa inconsistência enquanto “pintinhos do ninho de Pedro”,16 no atual momento, é incontestável. Com o 19 de fevereiro, finalizou-se de fato o período pedrista da história russa, de maneira que há tempos entramos numa fase de plena incerteza.

[O cidadão, no 4, 22 de janeiro de 1873, págs. 96 a 100]


Poema de Nekrássov de 1855. A ideia da purificação, presente em Vlás, é um tema muito caro a Dostoiévski e surge em várias de suas obras.?

Armiák, espécie de sobretudo sem botões, feito de tecido grosseiro. Era usado pelos camponeses.?

O verso aparece no romance de Dostoiévski O adolescente (1875).?

“Sobre o Rio Volga”, poema de Nekrássov de 1860.?

O burlák (plural burlaki), tipo lendário que sirgava as embarcações (séc. XVI – XIX). As corporações (artéli) de burlaki, surgidas na Rússia no séc. XVII, eram divididas em Vodoliv, Diádia, Chichka e Kósnyi (hierarquia mais baixa). No início do séc. XIX, a cidade de Rýbinsk, na confluência dos rios Volga, Cheksná e Tcheriómukha, era conhecida como a “capital dos burlaki”.?

Termo referente à velha Rússia. Rus era o nome do principado medieval tido como origem comum à Rússia, à Bielorrússia e à Ucrânia.?

Ancião e guia espiritual típico do cristianismo ortodoxo russo, representado por Dostoiévski na figura de Zóssima em Os irmãos Karamázov (1880).?

Na literatura russa, o alemão surge frequentemente como antítese nacional.?

Versão russa para “ortodoxo” (do grego, orto, “reto”, “direito” + doxa, “reputação”, “opinião”). Outra explicação para a origem da palavra é fundamentada na filosofia cristã russa: o universo seria constituído de Iav’ (mundo onde vivemos), Nav’ (mundo intermediário, entre o mundo onde vivemos e o mundo de Deus), Slav’ (mundo de Deus, a glória), Prav’ (mundo dos cânones) – não há inferno (ad) na Rus. Pravoslávie (pravoslávnyi, adjetivo), portanto, seria a junção de prav’e slav’, ou seja, a glorificação dos ensinamentos. O termo foi adotado no séc, XVII, em meio às reformas do patriarca Níkon. (As outras ocorrências da palavra foram traduzidas por “ortodoxo”.)?

Madame du Barry (1743–1793), amante de Luís XV, guilhotinada durante a Revolução Francesa.?

Em francês, no original: “Mais um minuto, senhor carrasco, mais um minuto”.?

A.N. Ostróvski (1823–1886), dramaturgo fundamental ao desenvolvimento do teatro russo.?

Não viva como mais desejaria (1854), comédia de inspiração popular.?

19 de fevereiro (3 de março no calendário gregoriano) de 1861 é a data da abolição da servidão na Rússia.?

Guerreiro de forças ou habilidades descomunais, personagem da tradição pagã eslava.?

A expressão “pintinhos do ninho de Pedro”, que surge no poema de Púchkin “Poltava” (1828–1829), referia-se aos correligionários de Pedro, o Grande.?


Bobók

Desta vez publico as “Notas de um sujeito”. Não sou eu; é pessoa inteiramente diferente. Penso que nada mais é necessário como prefácio.


Notas de um sujeito

Anteontem Semión Ardaliónovitch foi logo dizendo:

– Ivan Ivánovitch, diz, por favor, vou encontrar-te sóbrio algum dia?

Que exigência estranha. Não levo a mal, sou um homem tímido; mas, veja só, até por louco me tomaram. Um pintor desenhou meu retrato por mero acaso: “Apesar de tudo, és um literato,” diz ele. Acabei cedendo e ele expôs o quadro. Então leio: “Espia uma fisionomia doentia, à beira da loucura”.

Que seja, mas como, no entanto, vai se dizer algo tão direto na imprensa? Tudo precisa ser nobre na imprensa, os ideais são precisos, mas aqui...

Diz ao menos indiretamente, tu tens estilo para isso. Não, indiretamente ele já não quer. O humor e o bom estilo estão desaparecendo hoje em dia, e até se admitem palavrões em lugar de expressões espirituosas. Não levo a mal: Deus sabe que não sou o tipo de literato pelo qual se perde a cabeça. Escrevi uma novela – não publicaram. Escrevi um folhetim – recusaram. Andei com folhetins debaixo do braço por inúmeras redações, e em toda parte não quiseram saber deles: “Falta sal,” dizem.

– Que espécie de sal – pergunto eu por zombaria –, o ático1?

Nem isso entendem. O que mais faço é traduzir do francês para livreiros. Escrevo anúncios para comerciantes: “Uma raridade! Andam dizendo que o chá é vermelhinho, e de plantação própria...”. Pelo panegírico ao excelentíssimo finado Piótr Matvéievitch ganhei uma bolada. Por encomenda de um livreiro, redigi A arte de satisfazer às mulheres. Já publiquei em minha vida uma meia dúzia de livrinhos como este. Quero reunir des bons mots2 de Voltaire, mas tenho receio de que isso pareça insosso aos nossos leitores. Quem precisa de Voltaire agora? É a época dos patetas, e não dos Voltaires! Ficam se dando socos uns nos outros, até cair o último dente! Pois bem, aqui está toda a minha atividade literária. Isso se não contar as cartas que envio gratuitamente às redações, e com minha assinatura completa. Sem exceção, ofereço conselhos e sermões, faço críticas e indico o melhor caminho. Na semana passada, enviei a quadragésima carta em dois anos a uma redação; gastei quatro rublos só em selos postais. Tenho um gênio ruim, aí é que está.

Creio que o pintor não desenhou meu retrato em nome da literatura, mas por causa das minhas duas verrugas simétricas na testa: é um fenômeno, diz ele. Não têm ideias, então agora se viram com fenômenos. Mas como minhas verrugas saíram bem em seu retrato, até parecem vivas! É o que chamam de realismo.

A propósito de loucura, muitos entre os nossos literatos foram registrados como loucos no ano passado. E com um estilo e tanto: “Dizem que era um talento genuíno e, no final das contas, revelou-se... Porém, há tempos deveríamos ter adivinhado...”.3 Isso foi tão astuto; de maneira que, do ponto de vista da arte pela arte, isso pode até ser elogiado. E com essa se saíram ainda mais inteligentes. Pois é, loucos sabem nos tornar, mas até agora não deixaram ninguém mais inteligente.

O mais inteligente, a meu ver, é aquele que ao menos uma vez por mês se chama de imbecil – uma habilidade da qual não se tem notícia agora! Antes, em último caso, o imbecil tomava consciência da própria imbecilidade ao menos uma vez por ano, mas, agora, jamais. A coisa ficou tão confusa que não se pode mais distinguir o imbecil do inteligente. E fizeram de caso pensado.

Recordo-me de um dito espanhol muito espirituoso, do tempo em que os franceses, dois séculos e meio atrás, construíram seu primeiro hospício: “Trancafiaram todos os imbecis em uma casa reservada para se convencerem de que eles mesmos eram inteligentes”. Mas uma coisa é certa: trancafiar alguém no hospício não é prova de inteligência. “Kenlouqueceu, significa que agora somos inteligentes.” Não, ainda não significa isso.

Ah, com os diabos... eu e minha cabeça em trapalhadas: queixas e mais queixas. Até a criada dei de amolar. Ontem um amigo deu uma chegadinha aqui e disse: “Teu estilo está mudando, está entrecortado,” diz. “Cortas aqui, cortas ali – aqui vem uma oração intercalada, depois dela vem outra intercalada, depois acrescentas algo nos parênteses, depois voltas a cortar e a cortar...”

Meu amigo tem razão. Algo estranho está acontecendo comigo. O caráter está mudando, a cabeça anda doendo. Começo a ver e a ouvir algumas coisas esquisitas. Não são exatamente vozes, mas como se alguém estivesse bem perto: “Bobók, bobók, bobók!”

O que será este bobók? Preciso me distrair um pouco.

Andei me distraindo e acabei num funeral. Um parente distante. No entanto, um conselheiro do colegiado.4 Uma viúva e cinco filhas, todas solteiras. Só os sapatos quanto é que não vão custar?! Antes o finado punha comida na mesa, mas, agora, com uma pensão tão pequena... Vão meter o rabo entre as pernas. Lá eu era recebido sempre com frieza. Não fosse caso tão excepcional, eu nem teria ido. Acompanhei o caixão até o cemitério entre os outros convidados; afastavam-se de mim e se faziam de orgulhosos. A casaca do meu uniforme estava mesmo um horror. Havia coisa de vinte e cinco anos, penso eu, que não ia ao cemitério: mas que lugarzinho!

Em primeiro lugar, o odor. Topei de cara com uns quinze mortos. Havia mantos mortuários de todos os preços, e até dois catafalcos: um para um general, o outro para uma fidalga. Muitos rostos aflitos, muitos lamentos fingidos, e também muita alegria sincera. O sacerdote não podia se queixar: uma bela receita. Mas o odor, o odor. Eu é que não queria ser sacerdote ali.

Observava os rostos dos mortos com cuidado, sem confiar em minha impressionabilidade. Havia expressões suaves e também desagradáveis. De um modo geral, sorrisos não são bons, e alguns não são nada bons. Não gosto disso, me dá pesadelos.

Durante a missa saí da igreja para tomar ar; o dia estava cinzento mas seco. E fazia frio; afinal de contas, já era outubro. Andei por entre as sepulturas. Várias categorias. A terceira categoria vale trinta rublos: decente e a um preço até razoável. As duas primeiras ficam dentro da igreja, no átrio, mas estas custam o olho da cara. Uma meia dúzia de pessoas de terceira categoria estava sendo enterrada de uma vez só, incluindo o general e a fidalga.

Dei uma espiada dentro das sepulturas: medonho – havia água lá, e que espécie de água! Toda verde e... era uma coisa! A cada instante o coveiro vinha tirar a água com um caldeiro. Ainda durante a cerimônia saí para dar uma volta do outro lado dos portões. Ali pertinho, agora, há um asilo de velhos; um pouco adiante, um restaurante. O restaurante é até que mais ou menos, passável: dá para beliscar e também para almoçar. Estava apinhado de pessoas e algumas tinham vindo acompanhar o funeral. Percebi muita alegria, uma animação sincera. Belisquei algo e tomei uns goles.

Depois, ajudei, com minhas próprias mãos, a carregar o caixão da igreja até a sepultura. Por que será que os mortos no caixão ficam tão pesados? Dizem que, devido a algum tipo de inércia, é como se o corpo já não se controlasse sozinho... ou qualquer outro absurdo do gênero, o que contradiz a mecânica e o bom senso. Não gosto quando sujeitos que só têm instrução básica se metem a resolver coisas de especialistas; mas aqui acontece o tempo todo. Os civis adoram palpitar sobre assuntos militares e até sobre questões de estado-maior, já os formados em engenharia preferem palpitar sobre filosofia e política econômica.

Não fui à missa de réquiem. Sou orgulhoso; afinal, se lá sou recebido só em caso de necessidade excepcional, para que me arrastar até seus almoços, mesmo se fúnebres? Só não entendo a troco de que fiquei no cemitério, sentei ao lado de uma estátua e me pus propriamente a meditar.

Comecei com a exposição que vi em Moscou e terminei com a questão da surpresa, pensando no tema de um modo geral. Eis a que conclusões cheguei quanto à surpresa:

“Surpreender-se com tudo é, na certa, uma tolice, enquanto não se surpreender com nada é coisa bem mais fina e, sabe-se lá por que, considerado de bom-tom. No entanto, é pouco provável que no fundo seja assim. Na minha opinião, não se surpreender com nada é bem mais tolo do que surpreender-se com tudo. Além do mais: não se surpreender com nada é praticamente o mesmo que não respeitar nada. O homem tolo é incapaz de respeitar.”

– Antes de tudo, desejo respeitar. Tenho “sede” de respeitar – um conhecido me disse um dia desses.

Ter sede de respeitar! Meu Deus, pensei eu, o que iria acontecer se tu te atrevesses a publicar uma coisa dessas agora!

Nesse momento, caí no sono. Não gosto de ler epitáfios; é sempre a mesma coisa. Numa lápide a meu lado havia um sanduíche comido pela metade: fato estúpido e inoportuno. Atirei-o ao chão, já que não era propriamente um pão, mas um sanduíche. Mas parece que esmigalhar o pão em cima da terra não é pecado, em cima do assoalho é que é pecado. A verificar no almanaque de Suvórin.5

É preciso supor que eu tenha ficado um bom tempo ali sentado, até tempo demais; quer dizer, dei até uma encostadinha numa pedra comprida em forma de caixão de mármore. E como foi acontecer de eu começar do nada a ouvir várias coisas? No começo, não dei atenção e até tratei o caso com desprezo. Só que a conversa, no entanto, continuou. Escuto sons surdos, como de bocas abafadas com travesseiros, e, apesar disso, sons nítidos e muito próximos. Voltei a mim, sentei-me e comecei a ouvir, atento.

– Excelência, isto é simplesmente inadmissível. Chamastes copas e eu fiz a jogada, e de repente viestes com este sete de ouros. É preciso combinar melhor sobre estes ouros.

– Então, é um jogo combinado? Que graça tem isso?

– Impossível, Excelência, sem garantias não há como. É preciso sem falta de um morto6 e de umas cartas na moita.

– Mas aqui não se conseguem mortos.

Veja só, que palavras insolentes! Que estranho e inesperado. Uma voz tão sólida e convincente, e a outra quase melosa; se eu mesmo não tivesse ouvido, não teria acreditado. Ao réquiem parece que não fui. Mas como é que vão jogar préférence ali, e que diabo de general é este? Que o som vinha de debaixo do túmulo, disso não havia dúvidas. Curvei-me e li o epitáfio na estátua:

“Aqui jaz o corpo do major-general Pervoiédov... cavaleiro com tais e tais condecorações.” Hum... “Falecido no mês de agosto deste ano de... cinquenta e sete... Descansai em paz, queridos restos mortais, até a manhã radiante!”7

Hum, com os diabos, era mesmo um general! Na outra sepultura, de onde vinha a voz bajuladora, ainda não havia estátua, apenas uma lápide; na certa, um novato. A julgar pela voz, algum conselheiro da corte.8

– Oh-oh-oh-oh! – uma voz inteiramente desconhecida se fez ouvir, a umas cinco braças9 do lugar do general e dentro de um túmulo novo em folha, uma voz masculina, com marcas do povo, mas frouxa nos trejeitos comoventes e devotos.

– Oh-oh-oh-oh!

– Ah, ele soluça de novo! – ecoou de repente a voz antipática e arrogante de uma mulher irritadinha e, pelo jeito, da alta sociedade. – É um castigo para mim ficar ao lado deste vendeiro!

– Não solucei coisa nenhuma, nem consumi alimento nenhum, isso é apenas a minha natureza. Vindes sempre com vossos caprichos e não podeis sossegar.

– Mas a troco de que viestes vos deitar aqui?

– Foram eles que me deitaram, a esposa e as crianças, não me meti aqui sozinho. O mistério da morte! Não deitaria ao vosso lado por nada, por ouro nenhum; mas, a julgar pelo preço, estou aqui à custa de meu próprio capital. Pois, para a nossa covinha de terceira categoria, sempre é possível contribuir.

– Juntou dinheiro; por acaso enganavas na conta?

– Como poderia vos enganar se praticamente desde janeiro não houve nenhum acerto de contas de vossa parte? Temos uma continha esperando por vós lá na venda.

– Mas que tolice; na minha opinião, é uma tolice ir atrás de dívidas aqui! Andai lá pra cima. Perguntai a minha sobrinha, é ela que é a herdeira.

– Agora onde eu poderia perguntar, aonde poderia ir? Ambos chegamos ao limite e, diante da justiça divina, somos iguais em pecados.

– Em pecados! – arremedou a finada com desprezo. – E não vos atrevais a falar comigo!

– Oh-oh-oh-oh!

– No entanto, o vendeiro obedece, Excelência.

– E por que não deveria obedecer?

– Mas todos sabem, Excelência, que aqui existe um novo regulamento.

– Que novo regulamento é este?

– Pois nós, como dizer, estamos mortos, Excelência.

– Ah, sim?! Mas, mesmo assim, é o regulamento...

Pois que favor foram nos prestar! Que palavras de consolo! Se ali já se chegou a este ponto, o que dizer do andar de cima? Vejam como são as coisas! No entanto, continuei a escutá-los, apesar da indignação exorbitante que sentia.

– Não, eu queria viver mais! Não... eu, sabeis... eu queria viver mais! – ouviu-se de repente uma voz nova, em um intervalo entre o general e a mulher irritadinha.

– Estais ouvindo, Excelência? Lá vem ele de novo com a mesma ladainha. Fica quietinho por três dias e de repente: “Eu queria viver mais, não, eu queria viver mais!” E, sabeis, vem com um apetite, hi-hi!

– E com leviandade.

– É que ele fica impressionado, Excelência, e, sabeis, já adormeceu, quase que completamente, pois está aqui desde abril, e de repente: “Eu queria viver mais!”.

– Meio entediante aqui, no entanto – disse Sua Excelência.

– Bem entediante, Excelência, quem sabe provocamos a Avdótia Ignátevna de novo, hi-hi?

– Não, peço dispensa. Não suporto essa chorona desafiadora.

– Mas eu, ao contrário, não suporto nenhum dos dois – respondeu a chorona de um jeito enojado. – Sois os mais entediantes e não sabeis contar nada com imaginação. E quanto a vós, Vossa Excelência, não deis uma de arrogante, por favor, pois conheço uma historinha sobre como, numa manhã, fostes enxotado a vassouradas por um lacaio de debaixo de uma cama de casal.

– Que mulherzinha desagradável! – resmungou o general entredentes.

– Ah, mãezinha, Avdótia Ignátevna – o vendeiro, de súbito, berrou de novo –, minha senhorinha, diz, sem rancores, preciso passar por estas provações, ou algo diferente está surgindo?...

– Ah, lá vem ele de novo com este lenga-lenga, parece que eu estava pressentindo, porque dá para sentir o odor que sai dele, e que odor! é que ele está se mexendo!

– Não estou me mexendo, mãezinha, e não existe nenhum odor especial saindo de mim, porque ainda me conservo em meu corpo intacto, do jeito que ele era, enquanto vós, senhorinha, já começastes a vos desfazer, porque o cheiro anda realmente insuportável por aqui, mesmo para os padrões locais. Só me calo por cortesia.

– Ah, que ofensor indecente! É dele que vem este fedor, mas joga a culpa em mim.

– Oh-oh-oh! Que pelo menos essa quarentena10 passasse logo: terei de ouvir as vozes chorosas, os lamentos da esposa e o pranto suave dos filhinhos!...

– Então é por isso que ele chora: irão se empanturrar de kutiá11 e dar no pé. Ah, se pelo menos alguém acordasse!

– Avdótia Ignátevna – começou a falar o funcionário bajulador –, esperai um pouquinho, os novatos já vão começar a falar.

– Há jovens aqui?

– Jovens também, Avdótia Ignátevna. Até mocinhos.

– Ah, bem a calhar!

– Pois então, ainda não começaram? – Sua Excelência quis se inteirar.

– Até anteontem não tinham acordado, Excelência, mas vós sabeis muito bem que algumas vezes ficam calados uma semana inteira. Ainda bem que deram de trazer os de ontem, de anteontem e de hoje de uma vez. Pois quase todos aqui em volta, até umas dez braças, são do ano passado.

– Sim, interessante.

– Então, Excelência, hoje enterraram o conselheiro secreto12 efetivo, o Tarassiévitch. Reconheci as vozes. Conheço o sobrinho dele, ele é quem desceu o caixão agora pouco.

– Hum, ele está aqui?

– A uns cinco passos de vós, Excelência, à esquerda. Quase aos vossos pés... Pois então, Excelência, poderíeis conhecê-lo.

– Hum, não... não devo dar o primeiro passo.

– Ele mesmo dará, Excelência. Ficará até lisonjeado, confiai a tarefa a mim, Excelência, e eu...

– Ah, ah... ah, o que está acontecendo comigo? – pôs-se a ofegar a voz assustada de um novato.

– Um novato, Vossa Excelência, um novato, graças a Deus, e como foi rápido! Às vezes ficam a semana toda sem falar.

– Ah, ao que parece, é um jovenzinho! – gritou Avdótia Ignátevna.

– Eu... eu... eu perdi a vida por uma complicação, e de modo assim tão repentino! – o jovem balbuciou de novo. – Ainda ontem Schultz me disse: houve uma complicação com o senhor, e de repente de manhã caio duro. Ah! Ah!

– Bem, não há nada a ser feito, meu jovem – disse o general mostrando evidente e sincera alegria pela presença do novato –, é preciso vos consolar! Bem-vindo ao nosso, por assim dizer, Vale de Josafá.13 Somos pessoas boas, ireis nos conhecer e nos dar o devido valor. Major-general Vassíli Vassílev14 Pervoiédov, ao vosso dispor.

– Ah, não! Não, não, de jeito nenhum! Estou numa consulta com Schultz; tive uma complicação, sabeis, primeiro pegou o peito, tosse, depois apanhei um resfriado: peito e gripe... e de repente, de forma totalmente inesperada... a coisa é que foi totalmente inesperado.

– Estais dizendo que primeiro foi o peito – o funcionário intrometeu-se de leve, querendo incentivar o novato.

– Sim, sim, peito, escarro, mas depois, de repente, nada de escarro ou peito, já nem posso respirar... e sabeis...

– Sei, sei. Mas, se era o peito, seria melhor ter procurado logo o Eck, e não o Schultz.

– Mas eu, sabeis, estava planejando ir ao Bótkin15... mas de repente...

– Mas o Bótkin arranca os olhos de vós – disse o general.

– Ah, não, não arranca nada; ouvi dizer que é tão atencioso e que prevê tudo.

– Sua Excelência se referia ao preço – corrigiu o funcionário.

– Ah, nada disso, três rublos ao todo, e ele examina direito, passa a receita... e eu queria ir sem falta, porque me disseram... Mas então, senhores, devo ir ao Eck ou ao Bóktin?

– O quê? Aonde? – soltando uma gargalhada agradável, o cadáver do general começou a balançar. O funcionário o acompanhou em falsete.

– Que mocinho encantador, encantador, tão cheio de vida, como eu te amo! – gritou Avdótia Ignátevna com entusiasmo. – Ah, se colocassem um igualzinho a esse do meu lado!

Não, isto eu já não posso admitir! E isto é o morto de hoje em dia! No entanto, escutemos mais, sem apressar as conclusões. Esse novato fedelho – me lembro dele agorinha em seu caixão com uma expressão de pintinho assustado, a mais repulsiva do mundo! Contudo, vejamos o que vem adiante.

Só que adiante aconteceu tal pandemônio que não consegui reter tudo na memória, pois muitos acordaram de uma vez só: um funcionário despertou, um daqueles conselheiros de Estado16, e de imediato, incontinente, começou a discutir com o general sobre o projeto de uma nova subcomissão de um ministério qualquer e sobre a possibilidade, combinada à subcomissão, da transferência dos altos funcionários públicos, o que entreteve o general imensamente. Confesso que eu mesmo soube de muitas novidades, de maneira que me surpreendi com os caminhos pelos quais às vezes, em nossa capital, descobrimos as novidades administrativas. Depois um engenheiro despertou, mas não completamente, e por um bom tempo balbuciou um total disparate, de maneira que nossos amigos não o importunaram, dando-lhe tempo para recobrar-se. Finalmente, a grande fidalga enterrada de manhã debaixo do catafalco deu sinais de animação tumulária. Lebeziátnikov (revelou-se que o nome de família do conselheiro da corte bajulador e tão detestável, colocado ao lado do general Pervoiédov, era Lebeziátnikov) estava muito agitado e surpreso com o fato de todos terem despertado tão rápido dessa vez. Confesso que também me surpreendi; porém, alguns deles tinham sido enterrados dois dias antes, como, por exemplo, uma moça bem novinha, por volta de dezesseis anos, toda cheia de risadinhas... risadinhas abomináveis e lascivas.

– Excelência, Excelência, o conselheiro secreto Tarassiévitch está acordando! – disse de repente Lebeziátnikov com pressa incomum.

– Ah? O quê? – o conselheiro secreto, que subitamente despertou, mastigava as palavras com voz enojada e sibilante. Em sua voz havia algo de caprichoso e imperativo. Eu escutava com curiosidade, pois tinha ouvido falar algo desse Tarassiévitch nos últimos dias, algo tremendamente escandaloso e inquietante.

– Sou eu, Excelência, por enquanto, apenas eu.

– O que me pedis e o que desejais de mim?

– Unicamente me informar da saúde de Vossa Excelência; aqui, por falta de hábito, cada qual, sendo a primeira vez, sente-se meio no aperto... O general Pervoiédov deseja ter a honra de conhecer Vossa Excelência e espera...

– Nunca ouvi falar.

– Perdoai-me, Vossa Excelência, é o general Pervoiédov, Vassíli Vassílevitch...

– Sois o general Pervoiédov?

– Não, Vossa Excelência, sou apenas o conselheiro da corte Lebeziátnikov, ao vosso dispor, mas o general Pervoiédov...

– Que tolice! Peço que me deixe em paz.

– Deixai-o em paz – finalmente, o próprio general Pervoiédov, com dignidade, interrompeu a precipitação torpe de seu cliente tumulário.

– Ainda não acordou, Excelência, é preciso não perder isso de vista; é que não tem o hábito: vai despertar e o receber de outra maneira...

– Deixai-o em paz – repetiu o general.

– Vassíli Vassílevitch! Sois vós, Excelência! – de repente, ao lado da própria Avdótia Ignátevna, uma voz inteiramente desconhecida soltou um grito alto e cheio de entusiasmo, uma voz aristocrática e atrevida, com um acento lânguido, bem à moda, e escandindo as palavras de maneira descarada. – Faz duas horas que vos observo, faz três dias que estou aqui deitado; vos lembrais de mim, Vassíli Vassílevitch? Kliniévitch. Costumávamos nos encontrar na casa dos Volokónski, onde, não sei por que, vos admitiam.

– Como pode, conde Piótr Petróvitch... será que vós... com tão pouca idade... Como lamento!

– Também lamento, mas para mim tanto faz; desejo usufruir de tudo em todos os lugares. E não sou conde, mas barão, apenas barão. Somos uns pequenos barões sarnentos, oriundos dos lacaios, mas, nem sei por que, não dou a mínima. Sou apenas um patife da pseudoalta sociedade e me considero um “simpático polisson”.17 Meu pai não passava de um generalzinho e minha mãe, em outros tempos, era admitida en haut lieu. Com o jid Sieffel, no ano passado, fiz circular cinquenta mil em notas falsas e depois o delatei, mas o dinheiro todo Iulka Charpentier de Lusignan levou consigo para Bordeaux. Imaginais, eu estava praticamente noivo de Schevalévskaia, que nem saiu do instituto de moças, três meses para completar dezesseis; noventa mil de dote dão por ela. Avdótia Ignátevna, lembrais como, uns quinze anos atrás, quando eu ainda era um pajem de catorze anos, me pervertestes?...

– Ah, então és tu, patife, ao menos Deus mandou-te a nós, porque por aqui...

– Suspeitastes à toa de vosso vizinho negociante por causa do mau cheiro... Fiquei em silêncio, rindo. O cheiro vinha de mim; fui enterrado num caixão lacrado.

– Ah, que deplorável! Só que ainda assim estou feliz; não acreditaríeis, Kliniévitch, não acreditaríeis como aqui estão em falta vida e originalidade.

– Pois não, pois não, tenciono incluir algo de original aqui. Vossa Excelência, não vós, Pervoiédov, o outro, Vossa Excelência, o Senhor Tarassiévitch, o conselheiro secreto! Respondei! É o Kliniévitch, aquele que vos levou à casa de mademoiselle Furie durante a quaresma, estais me ouvindo?

– Estou ouvindo, Kliniévitch, e com muita satisfação, acredite...

– Não acredito em coisa alguma, e também não dou a mínima. Eu, meu querido velhote, queria enchê-lo de beijos, mas, graças a Deus, não posso. Sabeis o que este grand-père18 inventou? Faz três ou quatro dias que morreu e, imaginais, deixou um rombo de quatrocentos mil rublos em cofres públicos! Uma quantia destinada a viúvas e órfãos, mas que, por algum motivo, ele administrava sozinho, de maneira que, por uns oito anos até sua morte, ficou sem inspeção. Imagino a cara de tacho de todos e o que andam falando dele! Não é este um pensamento delicioso? Passei admirado o último ano inteiro: como um velhote de setenta anos, com as dores da gota nos pés e nas mãos, conservou tanto vigor para fazer esta perversão, pois aqui está a resposta da charada! Estas viúvas e estes órfãos... na certa, bastava meio pensamento sobre eles para tirá-lo do sério!... Eu já sabia de tudo havia tempos, e só eu sabia, Charpentier tinha me contado, e, tão logo soube, durante a semana santa, pressionei-o amigavelmente: “Passa vinte e cinco mil pra cá, senão, amanhã haverá inspeção”; pois então, imaginais, naquele momento ele só conseguiu reunir treze mil, de maneira que, pelo visto, esticou as canelas em hora apropriada. Grand-père, grand-pére, estais ouvindo?

– Cher Kliniévitch, estou plenamente de acordo, e em vão... vos soltais em tais pormenores. Na vida já existem tantos sofrimentos, tantos suplícios, e tão poucas compensações... e eu tive o desejo de finalmente sossegar e, pelo que sei, espero poder usufruir de tudo aqui...

– Aposto que já farejastes a presença de Catiche Beriéstova!

– Quê?... Qual Catiche? – a voz do velho pôs-se a tremer, despudorada.

– Ahá, qual Catiche? Está bem ali, à esquerda, a uns cinco passos de mim e a uns dez de vós. Há cinco dias está aqui, e se soubésseis, grand-père, que canalha ela é... de um bom lar, instruída, e um monstro, um monstro da pior espécie! Eu lá em cima não a mostrava a ninguém, só eu a conhecia... Catiche, responde!

– Hi, hi, hi! – uma voz rachada de menina respondeu, mas soando como uma agulhada. – Hi-hi-hi!

– A lou-ri-nha? – grand-père balbuciou em três tempos sincopados.

– Hi-hi-hi!

– Eu... eu faz muito tempo já – o velho balbuciou, ofegante – que ando sonhando com uma lourinha... de uns quinze aninhos... e justamente neste ambiente...

– Ah, que monstro! – exclamou Avdótia Ignátevna.

– Já basta! – decidiu Kliniévitch – vejo que aqui a matéria-prima é de primeira. Vamos nos arranjar melhor sem demora. O principal é passarmos o tempo que nos resta com alegria; mas que tempo? Ei, vós aí, funcionário de sei lá o quê, Lebeziátnikov ou algo assim, ouvi vos chamarem por este nome!

– Lebeziátnikov, conselheiro da corte, Semión Evsiéitch, ao vosso dispor e com muita, muita, muita satisfação.

– Não dou a mínima para vossa satisfação, mas parece que é vós quem sabeis de tudo aqui. Dizei, em primeiro lugar (desde ontem estou pasmo com esta ideia), como podemos falar? Pois estamos mortos e, no entanto, falamos e aparentemente nos mexemos, mas, no entanto, nem falamos nem nos mexemos. Qual é o truque?

– Barão, caso desejais, Platón Nikoláievitch poderia explicar melhor do que eu.

– Quem é este Platón Nikoláievitch? Vamos aos fatos, sem lenga-lenga.

– Platón Nikoláievitch é nosso filósofo local, naturalista e magistrado. Publicou alguns livros de filosofia, mas faz três meses que está completamente adormecido, de maneira que agora já não é possível reanimá-lo. Uma vez por semana ele balbucia umas palavras sem sentido.

– Aos fatos, aos fatos!...

– Ele explica tudo pelo fato mais simples, simplesmente porque lá em cima, quando estávamos vivos, considerávamos erroneamente a morte de lá como a de cá. Aqui é como se o corpo revivesse mais uma vez, tudo o que restou de vida se concentra, mas apenas na consciência. Isso... não consigo me expressar... é como se a vida se prolongasse numa espécie de inércia. Tudo se concentra, na opinião dele, num canto da consciência e se prolonga por dois ou três meses... às vezes até por seis meses... Por exemplo, entre nós há um que já quase se decompôs inteiro, mas, uma vez a cada seis semanas, dá de sussurrar uma palavrinha, certamente sem sentido, sobre um tal bobók: “Bobók, bobók” – pois então, quer dizer que ainda se pode vislumbrar nele uma pequena centelha de vida...

– Uma bela tolice! Ah, claro, pois, se não tenho olfato, como sinto fedor?

– Bem... he-he... Aqui nosso filósofo caiu em um ponto nebuloso. Precisamente sobre o olfato ele notou que o fedor que se sente é, como dizer, moral – he-he! Como um fedor da alma, como se, nesses dois ou três meses, houvesse tempo para aperceber-se de si... isto seria, por assim dizer, a última misericórdia... Só que a mim, barão, tudo isso parece um delírio místico, embora perfeitamente perdoável na situação dele.

– Basta, estou certo de que adiante só vêm mais absurdos. O principal é: dois ou três meses de vida e no fim – bobók. Proponho passarmos estes dois meses da maneira mais agradável possível e, para isso, devemos nos arranjar em outras bases. Senhores! Proponho perdermos a vergonha de tudo!

– Ah, vamos, vamos perder a vergonha! – ouviram-se muitas vozes e, estranhamente, até vozes inteiramente novas, quer dizer, que, nesse meio-tempo, tinham acabado de despertar. Com extraordinária presteza, um engenheiro já bem desperto ressoou com voz de baixo o seu consentimento. A mocinha Catiche, alegre, dava risadinhas.

– Ah, como eu queria perder a vergonha! – exclamou Avdótia Ignátevna, admirada.

– Estais ouvindo, já que a própria Avdótia Ignátevna deseja perder a vergonha...

– Pois não, pois não, Kliniévitch, eu me envergonhava, apesar de tudo, lá eu vivia envergonhada, mas aqui sinto um desejo terrível, terrível de perder a vergonha de tudo!

– Compreendo, Kliniévitch – disse o engenheiro com a voz de baixo –, que estais propondo organizar, por assim dizer, a vida local em princípios novos e até sensatos.

– Ora, não dou a mínima! Quanto a isso, esperemos por Kudeiárov, ontem mesmo o trouxeram para cá. Vai acordar e nos explicar tudo. Que homem, um gigante! Amanhã, parece, vão trazer mais um naturalista, seguramente um oficial, e, se não me engano, dentro de três ou quatro dias, um autor de folhetins e, parece, com seu redator-chefe. Pensando bem, aos diabos com eles – vamos reunir nossa turma e tudo entre nós vai se arranjar naturalmente. Mas, por enquanto, quero que não conteis mentiras. É só o que quero, porque isso é o mais importante. Não se pode viver na Terra sem mentir, pois vida e mentira são sinônimos; mas aqui, para dar umas risadas, não vamos mentir. Com os diabos, então o túmulo há de significar alguma coisa! Contemos nossas histórias em alto e bom som, já sem vergonha de nada. Antes de qualquer um, eu mesmo as contarei. Sabeis, sou do tipo lascivo. Lá em cima estava tudo atado por cordas apodrecidas. Abaixo as cordas, vivamos estes dois meses na mais despudorada verdade! Vamos nos despir e nos deixar à mostra!

– Nos despir, nos despir! – todas as vozes puseram-se a gritar.

– Tenho um desejo terrível de me despir! – Avdótia Ignátevna deu gritinhos.

– Ah... ah... Ah, vejo que vou me divertir por aqui; eu não quis ir ao Eck!

– Não, eu queria viver mais, não, sabeis, eu queria viver mais!

– Hi-hi-hi! – Catiche dava risadinhas.

– O principal é que ninguém pode nos proibir, nem mesmo Pervoiédov; vejo como está se enfurecendo, mas, que importa, com a mão ele não pode me alcançar. Grand-père, estais de acordo?

– Estou plenamente, plenamente de acordo e com enorme satisfação, mas que Catiche seja a primeira a contar sua bi-o-grafia.

– Protesto, protesto com todas as forças – disse o general Pervoiédov de modo categórico.

– Excelência! – numa agitação apressada e em voz baixa, o patife Lebeziátnikov balbuciava e tentava persuadi-lo –, Excelência, mas, para nós, seria até mais proveitoso se déssemos o consentimento. Aqui, sabeis, temos essa mocinha... e, finalmente, todas essas coisinhas diferentes...

– A mocinha ainda vai, mas...

– Mais proveitoso, Excelência, por Deus, seria mais proveitoso! Mesmo que só para ter uma pequena amostra, mesmo que só para degustar...

– Nem sob meu túmulo dão sossego!

– Em primeiro lugar, general, sob vosso túmulo, jogais préférence, e, em segundo, não damos a mí-ni-ma para vós – escandiu Kliniévitch.

– Meu caro senhor, peço, no entanto, para manterdes a compostura.

– O quê? Pois jamais me alcançará, daqui posso zombar de vós como fazia com o poodle da Iulka. E, em primeiro lugar, senhores, que espécie de general ele é aqui? Lá ele podia ser um general, mas aqui não é nada!

– Não, não sou um nada... aqui também...

– Aqui estais apodrecendo no caixão, de vós só restarão os seis botões de cobre.

– Bravo, Kliniévitch, há-há-há! – vozes começaram a berrar.

– Eu servia ao meu soberano... eu tenho uma espada...

– Vossa espada só serve para furar ratinhos; além do mais, nunca a tirastes da bainha.

– Não faz diferença; eu era uma peça de um todo.

– Há peças de todo tipo num todo.

– Bravo, Kliniévitch, bravo, há-há-há!

– Não entendo o que significa uma espada – exclamou o engenheiro.

– Fugiremos de baratas feito ratos, seremos reduzidos a pó! – gritou de longe uma voz que me era desconhecida, engasgando literalmente com a excitação.

– A espada, meu senhor, é a honra! – o general quis soltar um grito, mas apenas eu o escutei. Levantou-se um berreiro longo e desenfreado, uma revolta, um escarcéu, e só se podiam discernir os gritos impacientes, quase histéricos, de Avdótia Ignátevna.

– Mais depressa, mais depressa! Ah, quando é que começaremos a perder a vergonha de tudo?

– Oh-oh-oh! Realmente a alma passa por provações! – fez-se ouvir a voz do povo simples, e...

E aqui, subitamente, soltei um espirro. Foi repentino e involuntário, mas de efeito surpreendente: tudo ficou em silêncio, exatamente como num cemitério, tudo desapareceu como um sonho. Um verdadeiro silêncio tumulário. Não creio que tivessem ficado com vergonha por minha causa: já haviam decidido não se envergonhar de nada! Aguardei uns cinco minutos, mas nem sequer uma palavra, nenhum ruído... Seria também impossível supor que temessem uma denúncia à polícia; afinal, o que a polícia poderia ter feito nesse caso? Chego involuntariamente à conclusão de que, apesar de tudo, eles escondem um segredo de um mortal, de que o ocultam escrupulosamente de todos os mortais.

“Mas,” pensei eu, “meus queridos, ainda lhes farei uma visitinha,” e com essas palavras deixei o cemitério.

Não, isso eu já não posso admitir; não, definitivamente não! Bobók não me afeta (vejam onde este bobók foi parar!).

A perversão num lugar como esse, a perversão das últimas esperanças, a perversão de cadáveres frouxos em decomposição que não poupam nem ao menos os últimos instantes de consciência! Esses instantes lhes foram dados, lhes foram doados... E o principal, o principal, num lugar como esse! Não, isso eu não posso admitir...

Vou visitar as outras categorias, vou me pôr a escutar em todas as partes. Aí é que está, para formar uma opinião, é necessário escutar todos os lugares, e não apenas um. Quem sabe encontro algum conforto.

Mas, com certeza, voltarei até eles. Prometeram biografias e muitas anedotas. Fu! Mas voltarei, voltarei sem falta; é uma questão de consciência!

Levarei isso tudo ao Cidadão, lá saiu também o retrato de um redator-chefe. Vai que publicam.

[O cidadão, no 6, 5 de fevereiro de 1873, págs. 162 a 166]

 

A expressão “sal ático” traz a ideia de um chiste elegante, no estilo refinado dos atenienses clássicos.?

Do francês, “palavras espirituosas”, “tiradas”. No original, foi grafado pela pronúncia: “bonmo”.?

Trata-se de uma resposta de Dostoiévski a uma crítica feita sobre Os demônios, publicada em Informativos da bolsa (Birjevye viédomosti) em 24 março de 1872, na qual o conteúdo do romance é comparado com os devaneios de Popríschin, personagem de Diário de um louco (1835, Gógol), como pontua a edição russa (Op. cit.).?

Conselheiro do colegiado, título civil de 6ª classe. O funcionalismo público se estruturava em ordem decrescente, sendo o primeiro grau o mais alto e o décimo-quarto o mais baixo.?

Trata-se do “Almanaque russo para o ano de 1872”, editado por A.S. Suvórin (1834–1912).?

No original, há um jogo de palavras. Bolván, que significa “bobo” (sentido figurado), é o jogador “ausente” no preférénce – jogo de 32 cartas do séc. XIX. A função se assemelha à do “morto” no bridge: recorre-se ao bolván quando não há número suficiente de jogadores. Ele não tem voz ativa no jogo e suas cartas permanecem fechadas até que um dos jogadores passe a vez.?

Epitáfio do escritor e historiador N.M. Karamzin (1766–1826). Dostoiévski usou a mesma inscrição na lápide de sua mãe, como observa a edição russa (Op.cit.).?

Conselheiro da corte, título civil de 7ª classe.?

A braça russa, sájen, equivale a 2,134 metros.?

No cristianismo ortodoxo, as missas dos mortos se realizam no 9º e no 40º dia, no 3º e 6º mês, e um ano depois do falecimento.?

Kutiá, prato servido nos funerais e nas exéquias. É feito de arroz ou de algum outro grão cozido com mel ou uva-passa.?

Conselheiro secreto, título civil de 2ª classe.?

O vale de Josafá, no livro do profeta Joel, é onde Deus julgará a humanidade no fim dos tempos.?

Vassílev, “filho de Vassíli”, é usado como patronímico no linguajar religioso. O patronímico usual, nesse caso, é Vassílevitch.?

V.E. Eck (1818–1875) e S.P. Bótkin (1832–1889) eram médicos conhecidos em Petersburgo, citados no Almanaque de Suvórin.?

Conselheiro de Estado, título civil de 5ª classe.?

Em francês, no original: “brincalhão”, “brejeiro”, “traquinas”.?

Em francês, no original: “avô”.?


Um ar perturbador

Li algumas coisas da literatura atual e sinto que O cidadão tem o dever de mencioná-las em suas páginas. Mas que espécie de crítico sou eu? Eu realmente queria escrever um artigo crítico, mas, pelo visto, não posso dizer mais do que algo “a propósito”. Ao todo, li: O anjo selado do Sr. Leskóv, um poema de Nekrássov e um artigo do Sr. Schedrin. Também li artigos do Sr. Skabitchiévski e de NM.1 em Anais da Pátria.2 Ambos os artigos, em certo sentido, foram, para mim, reveladores: um dia, sem falta, falaremos sobre eles. Mas, agora, começarei pelo início, quer dizer, pela ordem em que os li, precisamente por O anjo selado.

Este conto do Sr. Leskóv saiu em O mensageiro russo. É sabido que esta obra agradou a muitos aqui em Petersburgo e que muitos a leram. Realmente, ela merece: é característica e interessante. Esta novela, narrada por um ex-raskólnik3 numa estação ferroviária na noite de Natal, conta como todos eles, os raskólniki, cerca de cento e cinquenta homens, converteram-se de uma vez à ortodoxia devido a um milagre. Esta artiel4 de trabalhadores estava construindo uma ponte numa grande cidade russa e por uns três anos ficou instalada nuns barracões isolados à margem de um rio. Eles tinham sua própria capela, na qual havia muitas imagens antigas, consagradas ainda antes da época do patriarca Níkon.5 De modo muito divertido, é narrado como um senhor, um funcionário público não de todo insignificante, tentou extorquir da artiel um suborno de uns quinze mil rublos. Acompanhado de força policial, ele chegou de repente à capela e exigiu como resgate cem rublos por ícone. Os operários não tinham como pagar. Então, o funcionário apreendeu as imagens. Fizeram uns furos nelas, enfiaram-nas, como roscas, numas hastes de ferro e as levaram a um porão. Mas ali havia um ícone antigo de um anjo especialmente respeitado, considerado milagroso pelo grupo. Para vencer, insultar e vingar-se, o funcionário, irritado com a teimosia dos raskólniki em não lhe pagar, pegou um lacre à vista de todos os presentes, gotejou-o sobre a face da imagem e ali aplicou o selo do Estado. Ao ver a face selada do anjo, o bispo local proferiu: “Um ar perturbador” – e deu ordens para que o ícone profanado fosse colocado na catedral, na janela. O Sr. Leskóv nos assegura que as palavras do bispo e a ordem para levar o ícone profanado à catedral, e não ao porão, aparentemente agradaram muito aos raskólniki.

Depois, começou uma história confusa e animada sobre como este “Anjo” foi roubado da catedral. Um inglês que tinha relações com os raskólniki, um fidalgo e, ao que parece, o empreiteiro da ponte em construção, afeiçoou-se a eles e, pela singeleza deles, decidiu ajudá-los. No conto se destacam particularmente as conversas dos raskólniki com o inglês sobre a pintura dos ícones. Este ponto é realmente bom, é a melhor parte da obra. Tudo termina quando, finalmente, durante a missa noturna, o ícone é roubado da catedral: tiraram o selo do anjo e o substituíram por um ícone novo, ainda não consagrado, que a esposa do inglês cuidou de “selar” tal qual o primeiro. E, no momento crítico, deu-se o milagre: viram uma luz saindo do novo ícone selado (na verdade, apenas um homem a viu), e, quando trouxeram o ícone, descobriu-se que ele havia sido desselado, quer dizer, estava sem o lacre na face. O raskólnik que o trouxe ficou tão surpreso que na hora se dirigiu à catedral para ver o bispo e confessou-lhe tudo, e, diante disso, o monsenhor o perdoou e disse: “Que isso lhe faça considerar onde a fé é mais eficiente: os senhores,” diz ele, “tiraram o selo de seu anjo por meio de trapaça, mas o nosso anjo tirou o selo sozinho e trouxe você até aqui”.

Os raskólniki ficaram tão surpresos com o milagre que todos eles, em bloco, cento e cinquenta homens ou perto disso, converteram-se à ortodoxia.

Mas aqui o autor se perdeu e finalizou a novela de maneira um tanto desajeitada (o Sr. Leskóv é bem capaz de cometer tais deslizes; basta nos lembrarmos do fim do diácono Aquiles em Gente da catedral6). Pelo visto, ele ficou com medo de ser acusado de ter uma queda para superstições e foi logo explicando o milagre. Foi o próprio narrador, isto é, o mujique, o ex-raskólnik, que confessou “com alegria” como eles descobriram, no dia seguinte ao da conversão do grupo à ortodoxia, por que o anjo estava sem o selo. A inglesa não se atrevera a pingar o lacre sobre a face do anjo, mesmo este não sendo um ícone consagrado, então colou o lacre num papel e o guardou num canto da cercadura. No caminho, o papel, claro, escorregou, e o anjo ficou sem o lacre. Dessa maneira, em parte não está claro por que os raskólniki continuaram ortodoxos mesmo depois da explicação do milagre. Por comoção e pela bondade do bispo que os havia perdoado? Mas, levando em consideração a solidez e a pureza de suas antigas crenças, a humilhação da imagem que lhes era sagrada e a profanação do que era sagrado em seus próprios sentimentos e, finalmente, levando em consideração o caráter de nosso raskol,7 seria difícil explicar a conversão dos raskólniki apenas por comoção – e, afinal, comoção por quem, pelo quê? Apenas em agradecimento ao perdão do bispo? Se eles compreenderam – até melhor do que as outras pessoas – o que deveria significar de fato o poder do bispo na igreja, não poderiam ter-se comovido com esta igreja, uma igreja na qual, depois do sacrilégio arbitrário, publicamente exposto e sem precedentes, que se permitiu um funcionário corrupto, o que tocou tanto os raskólniki quanto todos os ortodoxos, o bispo limitou-se a dizer suspirando: “Um ar perturbador!”, sem forças para deter nem sequer os atos bestiais e ofensivos contra a igreja cometidos por um funcionário de segunda categoria.

E, de um modo geral, a novela do Sr. Leskóv, nesse sentido, deixou-me uma impressão mórbida e certa desconfiança sobre a veracidade da descrição. Por certo, ela foi muito bem narrada e merece não poucos elogios, mas uma pergunta se coloca: será possível que tudo isso seja verdade? Será que isso poderia ter acontecido entre nós? É aí que está, pois, pelo que dizem, o conto foi baseado num fato verídico.8 Imaginemos apenas o seguinte caso: suponhamos, que, num lugar qualquer, nos dias de hoje, numa igreja ortodoxa, haja um ícone antigo e milagroso, em toda parte venerado pelos ortodoxos. Imaginemos ainda que um grupo de raskólniki, em bloco, roube o ícone da catedral, propriamente para ter este antigo objeto sagrado em seu oratório. Tudo isso, claro, poderia acontecer. Imaginemos, então, que, uns dez anos mais tarde, um funcionário público qualquer descubra este ícone e, em busca de uma propina polpuda, o negocie com os raskólniki; que estes não tenham condições de dar tal quantia e que o funcionário pegue um lacre, o goteje sobre a face da relíquia e ali aplique o selo do Estado. Será possível que, apenas pelo fato de ter ficado algum tempo nas mãos dos raskólniki, o ícone tenha perdido seu caráter sagrado? Mas o “Anjo” do qual fala o Sr. Leskóv era também, em tempos remotos, um ícone ortodoxo consagrado, venerado ainda antes do raskol por todos os ortodoxos. E será que, diante disso, o bispo local não poderia e não teria o direito de levantar ao menos um dedo em defesa da relíquia, em vez de tão somente pronunciar entre suspiros: “Um ar perturbador”? À nossa gente instruída minhas questões inquietantes podem parecer insignificantes e supersticiosas; mas estou convencido de que a ofensa contra os sentimentos do povo, em tudo o que lhe é sagrado, é uma violência terrível, uma desumanidade sem precedentes. Será possível que não tenha passado pela cabeça dos raskólniki algo assim: “Como este prelado ortodoxo defenderia a igreja se o ofensor fosse alguém ainda mais importante?” Poderiam continuar tendo respeito por esta igreja, na qual o poder superior eclesiástico, como descrito na novela, é dotado de tão pouca autoridade? Como explicar a atitude do bispo se não por sua falta de autoridade? Será que por sua indiferença e indolência e pela suposição inconcebível de que ele, ao desprezar os deveres de seu título, teria se tornado um funcionário do governo? Então, se tal disparate entrasse na mente de seus filhos espirituais, seria ainda pior: sua prole ortodoxa perderia gradualmente toda a disposição para a questão da fé, para a comoção e para a lealdade à igreja; e os raskólniki olhariam para esta igreja com desprezo. Um pastor não deve significar alguma coisa? Será que os raskólniki não compreendem isso?

Pois bem, esses são os pensamentos que me vêm à mente depois da leitura deste conto formidável do Sr. Leskóv; de sorte que, volto a insistir, somos inclinados a considerar esta obra, em certos detalhes, quase inverossímil. No entanto, num dos últimos números de A voz, li a seguinte notícia:

Um dos sacerdotes rurais da província de Orlóv escreveu no jornal A atualidade:9

Tendo me ocupado com a alfabetização dos filhos dos meus paroquianos praticamente desde a abolição do regime de servidão, deixei esta obrigação quando nosso ziêmstvo10 da infância tomou o privilégio para si, com o desejo de que os preceptores não tivessem nenhuma outra ocupação além dela. Mas, no início do ano letivo atual, 1872–73, revelou-se que não havia professores públicos suficientes em nosso distrito. Como eu não queria que a escola de minha aldeia fechasse, resolvi manifestar minha vontade de ocupar o cargo de preceptor e me dirigi ao conselho escolar com um requerimento para que fosse designado para a função. O conselho respondeu que “eu só seria designado para o cargo de preceptor se a sociedade manifestasse sua anuência”. A sociedade consentiu e redigiu um parecer a respeito. Dirigi-me, então, à administração do vólost11 para o reconhecimento do parecer, como exigia o conselho escolar. A administração, chefiada por M.S., um escrivão ignorante, e por um dirigente totalmente submisso a ele, não quis reconhecer a sentença alegando que não eu teria tempo para ensinar, mas, no fundo, guiava-se por outros motivos. Dirigi-me ao juiz de paz. O juiz Patirou-me na cara estas palavras impressionantes: “O governo, de um modo geral, não está disposto a deixar a educação do povo nas mãos do clero”. “Por que isso?” pergunto. “Porque o clero ensina superstições,” responde o juiz.

Então, essa notícia agradou aos senhores? Ela quase restabelece, claro que indiretamente, a veracidade do conto do Sr. Leskóv, da qual duvidamos e continuamos a duvidar de modo obstinado. Aqui o importante não é o fato de um juiz como esse existir: que importa se um tolo qualquer dá de dizer tolices por aí? E o que temos nós com as convicções dele? Aqui, o principal é que ele o disse com tamanha franqueza e autoridade, de modo tão arbitrário e sem cerimônias. Ele expressou sua sábia convicção diretamente e sem rodeios, na cara, e, além disso, teve a petulância de impor tal convicção ao governo, falando em nome dele.

Será que alguém com dez vezes mais poder do que esse mero juiz de paz ou mesmo, por exemplo, um pastor luterano qualquer de alguma região do Báltico teria coragem de dizer algo assim? Meu Deus, que alvoroço este pastor não provocaria, quantos gritos, de fato, não se levantariam?! Entre nós, um sacerdote denuncia humildemente o juiz petulante através da imprensa. E me surge um pensamento: se esta figura fosse alguém superior a um juiz de paz (o que é bem plausível, porque aqui tudo é possível), talvez o bondoso pastor não o denunciasse em absoluto, sabendo que disso resultaria apenas “um ar perturbador”, e nada mais. E, também, não podemos exigir dele a energia dos primeiros séculos do cristianismo, mesmo que isso fosse desejável. Somos inclinados, de um modo geral, a acusar nosso clero de indiferença para com a questão sagrada; mas como ele agiria em outras circunstâncias? A ajuda do clero, entretanto, nunca foi tão necessária e urgente para o povo como agora. Vivemos, talvez, o momento mais confuso, mais incômodo, mais transitório e mais fatídico de toda a história do povo russo.

Recentemente um fenômeno muito estranho aconteceu num canto da Rússia: protestantismo alemão entre ortodoxos – uma nova seita dos chtundisty.12 O cidadão já deu informações sobre ela oportunamente. O fenômeno é quase monstruoso, mas nele se percebe algo de profético.

Na província de Kherson, certo pastor Boneketberg apiedou-se do bom coração do povo russo local ao ver a ignorância e o abandono espiritual em que esse vivia e passou a pregar-lhe a fé cristã, mas baseando-se na ortodoxia e tentando convencê-lo a não renunciar a ela. Mas a coisa saiu diferente: a pregação obteve tanto sucesso que os novos cristãos, sem demora, começaram a desligar-se da ortodoxia, colocando isso como condição primordial e obrigatória; eles deram as costas aos ritos e aos ícones, passaram a reunir-se à maneira dos luteranos e a cantar os salmos conforme o livro deles – alguns até aprenderam a língua alemã. A seita se espalha com uma rapidez notável, chegando a outros distritos e províncias. Os sectários mudam seu modo de viver, já não caem na bebedeira. Eles, por exemplo, raciocinam desta maneira:

– Com eles [quer dizer, com os alemães, com os chtundisty luteranos], com eles tudo vai bem, vivem de forma honesta e agradável, porque não é preciso fazer jejum...

Que lógica miserável, mas, seja como for, há algum sentido nisso, principalmente se olharmos para o jejum apenas como um rito. E de onde um pobre coitado poderia saber do objetivo redentor e profundo do jejum? Claro, em toda a sua crença anterior, ele o compreendia apenas como um rito.

Quer dizer que foi contra o rito em si que protestou.

Devemos admitir que isso é compreensível. Mas por que ele resolveu protestar de forma tão repentina? O que o impulsionou a isso?

A causa é, talvez, muito genérica – é a que fez brotar uma nova centelha de vida nele desde aquele 19 de fevereiro.13 Ele pode ter tropeçado e caído ao dar os primeiros passos no novo caminho, mas precisava necessariamente despertar e, já desperto, de súbito percebeu o quanto era “lastimável, e pobre, e cego, e miserável, e nu”.14 O principal é seu desejo de verdade, aconteça o que acontecer, a ponto de sacrificar tudo o que lhe era sagrado até então. Porque nenhuma libertinagem, nenhuma pressão, nenhuma humilhação destruirá, matará e arrancará a sede de verdade do coração do nosso povo, pois, para ele, esta é a sede mais valiosa que existe. Ele pode decair de forma terrível; mas, no momento de sua mais completa desordem, vai sempre lembrar que não passa de um desordeiro, e que em algum lugar existe uma verdade maior e que esta verdade está acima de tudo.

Eis o fenômeno. Talvez, por enquanto, seja um fenômeno isolado, marginal, mas é pouco provável que seja casual. Ele pode enfraquecer e paralisar no início, assim como pode se transformar numa espécie de ritual, como a maior parte das seitas russas, principalmente quando ignoradas. Mas, seja como for, este fenômeno, insisto, pode conter algo de profético. Nos dias de hoje, quando o futuro inteiro se apresenta de maneira tão enigmática, até em profecias, às vezes, é admissível acreditar.

Então, e se algo semelhante se desenrolar por toda a Rus? Não exatamente o mesmo, não os chtundisty (especialmente porque, pelo que dizem, já foram tomadas as devidas medidas a respeito), mas algo semelhante? Se de repente o povo disser a si mesmo, ao chegar ao limite da própria desordem, ao divisar a própria miséria: “Não quero esta desordem, não quero a vodca, quero a verdade e o temor divino, a verdade essencial, a verdade antes de qualquer coisa”.

Um povo sequioso da verdade é, decerto, um fenômeno consolador. No entanto, no lugar da verdade, pode surgir uma mentira extraordinária, como a dos chtundisty.

Mas, na realidade, que espécie de protestante o nosso povo poderia ser, que espécie de alemão? E que serventia o idioma alemão teria para o povo, será que para cantar os salmos? E tudo, tudo o que procura não estaria contido na ortodoxia? Não é apenas nela que estariam a verdade e a salvação do povo russo, ao longo dos séculos e para toda a humanidade? E a face divina de Cristo, em toda a sua pureza, não teria se conservado apenas na ortodoxia? Talvez o principal desígnio predestinado ao povo russo, diante de toda a humanidade, consista simplesmente em preservar consigo a imagem divina de Cristo em toda a sua pureza e, quando chegar a hora, mostrá-la ao mundo, que se perdeu em seus caminhos!

Sim, mas, enquanto isso não se realiza, aquele pastor levantou-se bem cedo, com os primeiros passarinhos, e foi até o povo para dizer-lhe a verdade, a verdade ortodoxa, sendo ele um homem cheio de escrúpulos. Mas o povo foi atrás dele, e não da ortodoxia, e não apenas por gratidão, mas porque foi por meio desse homem que enxergou a verdade pela primeira vez. E é daí que resultou o “com ele tudo vai bem, porque não é preciso fazer jejum”. Uma conclusão até bastante compreensível, já que tudo envolvia uma pessoa em particular.

Aliás, e quanto aos nossos sacerdotes? O que se ouve dizer sobre eles?

Dizem que nossos sacerdotes também já estão despertando. E que o nosso clero há tempos começou a dar mostras de vida. Lemos, comovidos, os sermões dos monsenhores feitos para suas igrejas sobre a propagação da doutrina e sobre uma vida digna. Nossos pastores, de acordo com todas as notícias, põem-se, decididamente, a criar sermões e preparam-se para proferi-los.

Será que chegarão a tempo? Será que irão despertar com os primeiros passarinhos? Apesar de tudo, aquele pastor luterano é um pássaro de outra espécie, migratório, e também está amparado de outra maneira. Seu serviço é completamente diferente, seus superiores são diferentes etc. Isso é verdade, mas nosso sacerdote, na realidade, não é um funcionário público! Não seria ele um pregador da única e grande Verdade, cujo papel é renovar o mundo?

Aquele pastor luterano se antecipou a ele, é fato: mas o que cabia ao nosso sacerdote fazer, por exemplo, no caso dos chtundisty? Estamos todos inclinados a acusar nossos sacerdotes, mas examinemos melhor a questão: será que deveríamos simplesmente fazer uma denúncia às autoridades? Ah, claro que não, há muitos bons pastores aqui, talvez até mais do que imaginamos ou até mais do que merecemos. Mas, afinal de contas, o que deveriam pregar nesse caso? (às vezes essa ideia me surge como se eu fosse um homem laico, um desconhecedor da causa). A superioridade da ortodoxia sobre o luteranismo? Mas os mujiques são pessoas incultas: não entenderiam nada e é bem provável que não se convencessem. O bom comportamento e os bons costumes, tomados em linhas gerais, sem entrar em detalhes? Mais que “bons costumes” seriam esses se o povo passa o dia todo embriagado? Seria a abstinência da vodca, para exterminar o mal pela raiz? Sem dúvida, sim, mas também sem entrar em detalhes, pois... pois, apesar de tudo, é preciso levar em consideração a grandeza da Rússia enquanto grande potência, uma potência que nos custa tão caro... Senão, de certo modo, seria praticamente o mesmo que o “ar perturbador”. Resta, dessa maneira, dizer ao povo que beba apenas um pouco menos...

Mas, para aquele pastor luterano, que importa a grandeza da Rússia enquanto grande potência europeia? Ele não teme nenhum “ar perturbador”, sua tarefa é inteiramente outra. E é por isso que tudo acabou em suas mãos.

[O cidadão, no 8, 19 de fevereiro de 1873, págs. 224 a 226]


N.S. Leskóv (1831–1895), escritor e jornalista; N. Schedrin, pseudônimo de M.E. Saltykóv (1826–1889), satirista e redator de Anais da pátria; A.M. Skabitchiévski (1838–1911), crítico literário de tendências liberais; N.M. Mikhailóvski (1842–1904), jornalista e crítico literário, colaborador de Anais da Pátria.?

Anais da pátria (Otiétchestvennye zapíski), revista literária editada de 1818 a 1884 em São Petersburgo. Inicialmente de tendência liberal-ocidentalista, derivou para o reacionarismo até passar, em 1868, para as mãos de Nekrássov e Schedrin, que lhe deram uma feição radical. Foi interrompida por ordem do Estado devido ao envolvimento com grupos revolucionários.?

O termo raskólnik (de raskol, “cisão”, “cisma”, “divisão”), oficialmente adotado pela igreja ortodoxa em 1905, alude aos “velhos crentes” (staroobriádtchestvo) que romperam com a Igreja Ortodoxa Russa devido às reformas do patriarca Níkon (1605–1681). Os “velhos crentes”, com o tempo, passaram a ser tolerados pela igreja e existem até hoje. Vale observar que o termo raskol surge no sobrenome de Rodion Románovitch Raskólnikov, a personagem principal de Crime e castigo (1866).?

Espécie de cooperativa, grupo de operários da mesma profissão.?

Sétimo Patriarca de Moscou e de toda a Rus, responsável pelas reformas da Igreja Ortodoxa Russa no século XVII (1653–56) sob o reinado do tsar Aleksei Mikháilovitch (1645–1676). A reforma pretendia unificar as duas igrejas ortodoxas (grega e moscovita) e levou ao cisma dos “velhos crentes”.?

Gente da catedral (1872), romance sobre as relações entre religião e justiça social.?

Refere-se ao cisma da Igreja Ortodoxa Russa no séc. XVII.?

Leskóv nunca afirmou tratar-se de um caso verídico.?

A atualidade (Sovremiénnost), jornal político-literário editado de 1871 a 1881 com a revista O peregrino (Stránnik), dedicado a temas religiosos e eclesiásticos. Seu principal redator foi o bispo V.V. Gretchulévitch (1822–1885).?

Ziêmstvo, conselho autônomo de província que tratava se assuntos variados, como educação, saúde, agricultura etc., instituído em 1864 pelo governo de Alexandre II.?

Vólost, unidade administrativa, subdivisão do conselho (uiézd).?

Seguidores do chtundizm (do alemão Stunde, “hora”), movimento popular no século XIX entre os camponeses do Sul da Rússia e de regiões da atual Ucrânia.?

Ver nota 14 do capítuloVlás.?

Passagem do Apocalipse (3: 14–22) citada de forma imprecisa. Dostoiévski tinha especial predileção pelo livro da Revelação.?


Meia carta de «um sujeito»

Publicarei abaixo uma carta, melhor dizendo, meia carta “de um sujeito” que foi enviada à redação de O cidadão, já que não seria possível imprimi-la na íntegra. É o mesmo “sujeito” que apareceu na revista falando a propósito de uns “tumulozinhos”. Confesso que a publicarei apenas para me ver livre dele. A redação está literalmente atolada em seus artigos. Em primeiro lugar, este “sujeito” coloca-se de modo obstinado como meu defensor contra meus “inimigos” literários. Ele já escreveu em meu lugar e a meu favor três “anticríticas”, duas “notas”, três “notas de passagem”, um “a propósito”, e, finalmente, “um guia de bom comportamento”. Nesta última e polêmica obra, sob a aparência de um sermão feito contra meus “inimigos”, é a mim que ataca, e ataca usando um tom que, em matéria de energia e fúria, ainda não encontrei outro igual, nem mesmo entre meus “inimigos”. Ele deseja que eu publique tudo! De modo resoluto, disse-lhe que, em primeiro lugar, esses “meus inimigos” não existem, que não passam de fantasmas; em segundo, que o tempo para isso já passou, pois todo aquele alvoroço dos jornalistas1 – que ressoou desde que o primeiro número de O cidadão surgiu, neste mesmo ano de 1873, com um furor literário inimaginável, de maneira descarada e com métodos de ataque simplistas – agora, umas duas semanas atrás, ou talvez até três, cessou de modo repentino e sem motivo, da mesma maneira que havia começado, sem mais nem menos. Finalmente, disse-lhe que, se eu resolvesse responder a alguém, poderia fazê-lo sozinho, sem a ajuda dele.

Ele se zangou e, indisposto comigo, foi-se embora. Fiquei até contente com isso. Um homem doentio... Num de seus artigos, que já publicamos aqui, ele havia descrito, em parte, certos traços de sua biografia: um homem amargurado, que diariamente “causa amargura” a si próprio. Mas o que particularmente me espanta é a força desmedida da “energia cívica”2 deste colaborador. Imaginem que ele, logo nas primeiras palavras, confidenciou-me que não exigia nenhum honorário, por menor que este fosse, pois escrevia unicamente em função de seu “dever cívico”. Até confessou com orgulho, mas com uma sinceridade que lhe é prejudicial, que não escrevia absolutamente para me defender, mas apenas para, aproveitando o ensejo, expressar suas próprias ideias, já que estas não eram aceitas por nenhuma redação. Simplesmente e sem cerimônias, ele nutria uma esperança doce, mesmo que vã, de demarcar para si um cantinho fixo em nossa revista, obtendo a possibilidade de expor suas ideias em caráter permanente. E que ideias são estas? Ele escreve sobre tudo, sobre tudo opina com amargura, raiva, veneno e uma “lágrima de comoção”. “Noventa por cento para o veneno, um por cento para a lágrima de comoção!” como ele mesmo escreve num de seus manuscritos. Basta aparecer uma nova revista ou um novo jornal para, no ato, ele ir lá e começar a pregar sermões e a oferecer conselhos. É absolutamente verídica a história de que ele chegou a enviar a um jornal quase quarenta cartas com instruções, quer dizer, como editar, como se portar, sobre o que escrever e a que dirigir a atenção. Em nossa redação, em dois meses e meio, acumularam-se vinte e oito cartas de sua autoria. Ele sempre põe em tudo a sua assinatura completa, de modo que em toda parte o conhecem, e, além do mais, gasta seus últimos copeques nas taxas da remessa postal e ainda coloca selos novos dentro dos envelopes, imaginando que assim conseguirá o que quer, ou seja, iniciar uma correspondência cívica com as redações. O que me deixa abismado é que de modo nenhum pude descobrir, mesmo em suas vinte e oito cartas, quais são suas inclinações e o que propriamente pretende. Uma confusão só... Com os métodos grosseiros, com o cinismo de seu nariz avermelhado e o “cheiro desagradável” de suas palavras delirantes e de suas botas esfarrapadas, surge uma espécie de sede velada de ternura, de algo ideal, de um tipo de crença na beleza, de Sehnsucht3 de algo, por alguma razão, perdido, e tudo isso se revela nele de um modo profundamente repulsivo. E, em suma, estou farto dele. É verdade que diz grosserias publicamente sem exigir dinheiro em troca, então, em parte, não deixa de ser um homem nobre; pois que Deus fique com ele e com sua nobreza! Não mais de três dias depois de nossa briga, ele apareceu aqui de novo com sua “última tentativa” e trouxe consigo a “Carta de ‘um sujeito’”. Que se há de fazer? Já que eu a peguei, agora devo publicá-la.

A primeira metade da carta, definitivamente, é impublicável. São apenas investidas pessoais e ofensas contra quase todas as editoras de Petersburgo e de Moscou, e aqui ele ultrapassou todos os limites. Nenhuma das editoras que repreendeu poderia ter chegado tão longe quanto o cinismo das ofensas dele. E o pior é que ele as condena justamente pelo cinismo e pelo mau tom das polêmicas. Eu simplesmente cortei toda a primeira parte da carta com uma tesoura e a devolvi assim. Só publico a parte final, porque aqui, por assim dizer, o tema é genérico: uma advertência a um folhetinista imaginário – uma advertência que, por sua abrangência, é útil para os folhetinistas de todos os tempos e povos. O estilo é elevado, sendo que a força dele só se iguala à ingenuidade das ideias expostas. Dirigindo-se ao folhetinista em tom aconselhador, o autor o trata por “tu, como nas odes de tempos longínquos”. Ele não queria de jeito nenhum que eu começasse o texto depois de um ponto-final, e insistiu para que a publicação da meia carta começasse por uma meia frase, exatamente como foi cortada pela tesoura: que seja, diz ele, assim irão ver como fui desfigurado! E também saiu em defesa do título: eu queria, de todo modo, que fosse “A carta ‘de um sujeito’”, mas ele exigiu forçosamente o título “Meia carta de ‘um sujeito’”.

Pois bem, aqui está a meia carta:


Meia carta de “um sujeito”

e será que a palavra “porco”4 contém em si um sentido tão mágico e sedutor que tu, sem demora, o tomas forçosamente para ti? Há tempos comecei a notar que na literatura russa esta palavrinha ganha continuamente um sentido singular e até um quê místico. Mesmo o vovô Krylóv,5 ao compreender isso, passou a fazer uso do “porco” em suas apologias com especial afeição. Tão logo o leitor literato, lendo em voz baixa em seu recolhimento, depara-se com esta palavra simbólica, estremece e no ato se põe a refletir: “Seria eu? Será que escreve sobre mim?”. Admito que a palavrinha tem energia, mas para que subentender necessariamente a ti mesmo, e apenas a ti mesmo? Existem outros além de ti. Será que tu terias motivos escusos para isso? Afinal, como explicar tal desconfiança de outra sorte?6

Em segundo lugar, estou de olho em ti, meu amigo folhetinista, e reparo o quanto és descuidado no planejamento de teus artigos. Tuas colunas estão tão entulhadas de generais, acionistas e príncipes que necessitam de tua pessoa e de tuas palavras afiadas que, ao lê-las, sou forçado a concluir que, por trás de tanta abundância, não há ninguém. Aqui estás tu numa importante reunião de conselho: dizes un bon mot7 com ar arrogante e negligente, mas, com isso, emites um raio de iluminação, e o conselho, incontinente e a toda a pressa, torna-se mais esmerado. Ali, tu ridicularizas de frente um príncipe abastado, e por essa razão ele, no ato, convida-te para um almoço, mas tu passas reto por ele com dignidade e recusas o almoço com modos de um liberal. Lá, numa conversa íntima de salão, tu, por brincadeira, revelas a um milorde forasteiro a base secreta da Rússia: ele fica tão horrorizado e admirado que telegrafa às pressas a Londres e, no dia seguinte, o ministério da Rainha Vitória vai abaixo. Ali na Niévski,8 em teu passeio das duas às quatro, tu solucionas uma questão de Estado para três ministros que, mesmo reformados, vieram correndo atrás de ti; tu dás de cara com um capitão da guarda que havia perdido tudo no jogo e soltas logo duzentos rublos de empréstimo; na companhia dele segues até a casa de Fifine para participar de um ato nobre (seria isso mesmo?) de indignação... Em resumo, tu estás aqui, tu estás ali, tu estás em toda parte; estás disseminado pela sociedade, és por todos requisitado; devoras trufas, comes bombons, passeias de carruagem; és amigo dos criados da taberna do Pálkin9 – em suma, nada acontece sem ti. É tão elevada a tua posição que nela se revela, enfim, algo suspeito. Pode ser que um leitor pacato de província te considere realmente alguém que fora privado de uma condecoração ou, ao menos, um ministro reformado que, por meio da imprensa livre mas oposicionista, deseja retornar ao velho mister. Mas um vivente calejado das duas capitais sabe algo mais: sabe que tu não passas de um escrevinhador contratado por um empresário teatral e editor;10 foste contratado e és obrigado a defendê-lo. É ele (e ninguém mais) que te atiça a ir contra qualquer um que lhe dê na veneta.

Pois bem, esta tua cólera, este teu arrebatamento, estes teus latidos... é tudo em troca de um ordenado, é tudo instigado pela mão de outro homem. Bom seria se tu saísses em tua própria defesa! Ao contrário, o que mais me surpreende em ti é que tu realmente perdes a cabeça, sobrecarregas o coração como se fosse por teu quinhão, brigas com o folhetinista rival como se brigasses por tua ideia predileta, por uma convicção que é a ti mesmo preciosa. No entanto, no fundo tu mesmo sabes que não tens ideias próprias, muito menos convicções. Ou será que, depois de anos a fio deste estado febril e de tão exaltado por teu sucesso sarnento, tu, enfim, tenhas caído na fantasia de que tens ideias, de que és capaz de ter convicções? Então, depois disso, como esperas contar com o meu respeito?

Em outros tempos, tu eras um jovem tão honesto e agradável... Oh, lembras-te daquele poema de Púchkin, o do persa, se não me engano: um ancião venerado conversa com um jovem que deseja muito travar uma batalha:

Temo que em lutas e feitos
Para sempre deixe à parte
A timidez nos trejeitos,
A ternura sem alarde.11

Infelizmente, já faz tempo que tu deixaste tudo isso para trás! Olha tu mesmo, repara em como discutes com teu folhetinista inimigo, vê até onde vós chegastes com esta briga! Pois vós não sois em absoluto tão infames como andastes pintando um ao outro. Recorda que as crianças, na tenra infância, batem-se sobretudo por ainda não terem aprendido a expressar os pensamentos de modo racional. Mas tu, uma criança grisalha, por não ser dotado de pensamentos, atiras todas as palavras de uma vez em teus insultos – um método ruim!12 Justamente por não possuir convicções e um saber verdadeiro, tu te esforças em aprofundar-te na vida particular do teu rival; com avidez tu ficas sabendo das faltas dele, e então tu distorces tudo e tornas isso público. Não sentes pena da esposa nem dos filhos dele. Tomando um ao outro por morto, vós escreveis, reciprocamente, um necrológio em forma de pasquim. Diz, afinal, quem acreditará em ti? Ao ler teu artigo, salpicado de saliva e tinta, sou forçosamente inclinado a acreditar que tu não és inocente, que em teu folhetim há uma mensagem velada particular, que vós, na certa, tivestes uma briga, talvez numa datcha, e que não podeis esquecê-la. Sou forçado, enfim, a tomar o partido do teu rival, tu não conseguiste o efeito que pretendias. E, afinal, o que tinhas em mente?

Que inabilidade infantil! Insultando o teu rival, tu concluis o artigo com as seguintes palavras: “Já vejo o senhor, N.N., correndo pelo quarto fora de si após ler estas linhas; arrancando os cabelos; gritando à esposa, que entra correndo assustada; enxotando as crianças; socando a parede com os dentes a ranger, tamanha fúria impotente...”.

Meu amigo, um sofredor ingênuo, mas delirante, de uma cólera fictícia e afetada em benefício de um empresário teatral, ah, meu amigo folhetinista! Diz-me: depois de ler tais linhas no teu folhetim, escritas supostamente contra o teu rival, será que eu não deveria presumir que eras tu, tu mesmo, e não o teu rival, que corrias pelo quarto; arrancavas os cabelos; batias no lacaio que entrava correndo assustado, se é que tu tens um e que, depois daquele 19 de fevereiro,13 ele ainda não perdeu a inocência primeva; e, com ganidos e rangidos, tu te lançaste contra a parede e a socaste até ver sangue nos punhos?! Pois quem acreditaria que tais linhas poderiam ser enviadas a um rival sem que antes o autor arrebentasse os próprios punhos? Desse modo, tu trais a ti mesmo.

Acorda e toma vergonha. Assim, vais obter o condão de escrever folhetins – eis o proveito.

Sugiro uma alegoria. Um dia tu publicas num letreiro a notícia de que na próxima semana, na quinta ou na sexta (enfim, tu mesmo imagina o dia sobre o qual escreves no teu folhetim), no teatro Berg,14 ou em local arranjado especialmente para isto, tu te exibirás nu, incluindo os pormenores. Estou certo de que haveria apreciadores; tais espetáculos atraem particularmente a sociedade atual. Estou certo de que até mesmo uma multidão se reuniria, mas a troco de que, será que por respeitar-te? Afinal, qual seria o teu triunfo?

Agora raciocina se fores capaz: teus folhetins não representariam a mesma coisa? Tu não apareces toda semana, em dado dia, nu e com todos os pormenores à mostra diante do público? E a troco de que, a troco de que tu te esforças tanto?

O mais hilário de tudo é que o público inteiro conhece o segredo de vossa guerrinha; sabe mas prefere não saber, passa reto por vós com indiferença; já vós perdeis as estribeiras e pensais que todos têm interesse em vós. Que homem ingênuo! O público está cansado de saber que o empresário, o dono de um jornal da capital, assustado por fundarem outro jornal tendo o dele como modelo, disse consigo, agarrando-se ao bolso: “Este novo jornaleco pode me arrancar dois mil ou até dois mil e quinhentos assinantes. Contratarei um totó15e o atiçarei a latir para o rival”. Pois tu és um totó!

O empresário está satisfeito contigo; ele acaricia as suíças e, depois de fazer seu desjejum, pensa com um sorriso no rosto: “Veja só como o aticei!”.

Tu te lembras de Antropka16 de Turguêniev? Esta obra do escritor mais estimado do público é realmente genial. Antropka é um garoto de província, ou melhor, é o irmão de outro garoto de província; pois Antropka (o outro, suponhamos, é chamado Nefiod17, numa noite escura de verão, fugiu de sua isbá por causa de uma travessura que fizera. O pai, severo, mandou o filho mais velho trazer o irmãozinho travesso de volta para casa. À beira de uma ribanceira, ressoam uns gritos de partir o coração:

– Antropka! Antropka!

Por muito tempo o menino travesso culpado ficou sem dar sinais de vida, mas, finalmente, “como que de outro mundo”, soa uma vozinha tremida e acanhada, vinda da outra margem da ribanceira:

– Quê-ê?

– O papaizinho quer te dar uma so-o-va! – com uma alegria precipitada e raivosa, o irmãozinho mais velho ecoa em seguida.

A voz “do outro mundo”, naturalmente, silencia. Mas, com uma agonia, com uma exasperação impotente, arranhando o peito, ainda ressoam na escuridão da noite os gritos infindáveis e débeis:

– Antropka-a! Antropka-a-a!

Esse clamor genial que chamava por Antropka – e, o principal, um clamor impotente, mas de uma agonia raivosa –, pode ressoar não só entre garotos de província, como também entre adultos que já conquistaram uma respeitável cabeleira grisalha, os partícipes das reformas atuais mas desnorteadas da sociedade. Por acaso esses Antropkas não te fazem lembrar de algo aqui, na capital? Não notas um quê de antropka entre estes dois empresários de semanários da cidade? Tu e teu rival não fostes ambos enviados por vossos donos ao encontro dos Antropkas? Os Antropkas não seriam os supostos novos assinantes que poderiam acreditar em vossa inocência? Vós dois sabeis muito bem que toda a vossa fúria, vossa agonia e vosso esforço não darão em nada, que Antropka não responderá ao vosso chamado, que vós não tirareis um do outro sequer um assinante, e que cada qual, mesmo sem isso, terá o suficiente; mas já vos envolvestes tanto neste jogo e vos agrada tanto a excitação impotente de escrever, que sai arranhando das entranhas até sangrar, que já não podeis vos conter! Então, em certos dias da semana, na escuridão da noite, a que sufoca nossa literatura, gritos ressoam com agonia e raiva: “Antropka! Antropka!” E nós ouvimos.

Permita-me trazer outra alegoria.

Imagina que tenhas recebido um convite de um círculo social honrado, pois suponho que frequentes círculos sociais honrados. Tu foste para uma festa de gala de um conselheiro de Estado no dia do seu santo18. As visitas já tinham sido previamente advertidas pelo dono da casa de teu espírito original. Tu entras com decoro, bem-arranjado, fazes o rapapé à anfitriã e lhe dizes galanteios. Sentes com prazer que estás sendo observado e te preparas para sobressair. Mas, de repente: que horror! Notas no canto da sala teu rival literário, que havia chegado antes de ti – até esse último minuto, tu nem poderias imaginar que ele fosse conhecido em tal meio. Teu rosto muda de cor; mas o anfitrião, atribuindo isso a uma indisposição momentânea, apressa-se, por pura ingenuidade, a apresentar-te a teu inimigo. Vós soltais algo como um mugido e, no ato, dais as costas um ao outro. O dono da casa fica embaraçado, mas logo se anima, imaginando que era apenas uma nova forma de recepção entre os literatos e que a ele isso era desconhecido em razão de seu ofício. Enquanto isso, apressam-se para o jogo de cartas, e a dona da casa, com sua peculiar gentileza, convida-te para uma partida de ieralách.19 Para livrar-te do teu rival, tu aceitas as cartas com alegria; mas te espera mais um horror: acontece que vós dois estais na mesma mesa. Já é tarde para recusar, pois a causa de tudo são duas damas da alta sociedade, desinibidas e amáveis, as vossas parceiras. As duas sentam-se, afobadas, e em volta delas se reúnem umas parentas e conhecidas; sequiosas por ouvir os dois literatos, todas espiam os vossos lábios, todas capturam as vossas primeiras palavras, sem tirar os olhos de vós. Teu rival dirige-se a uma senhora com tranquilidade e diz: “Creio que a repartição está por vossa conta, minha cara”. Todas abrem um sorriso, todas se entreolham, a palavrinha espirituosa teve efeito, e a inveja oprime teu coração. Mas a distribuição das cartas continua. Tu ergues as tuas: só nanicas – três, dois, seis – e a mais alta – um valete. Teus dentes rangem, e teu rival sorri. Ele, sim, soube receber as cartas e, com orgulho, sai logo anunciando a coroa. Teus olhos toldam. Tu agarras um pesado castiçal de bronze da família, que é o orgulho do dono da casa e que é guardado o ano inteiro no armário da esposa e exposto unicamente nos dias de santo, tu o agarras e o atiras impetuosamente à testa do teu rival. Gritos e perplexidade! Todos se erguem de um salto, mas vós já vos engalfinhais um com o outro e, espumando de raiva, agarrais os cabelos um do outro.20 Pois, a julgar pela tua impaciência literária e pela tua incapacidade em conter a ti mesmo, tenho o direito de deduzir que és impaciente em reuniões privadas. Tua parceira, uma jovem senhora que esperava tanto de teu espírito original, com um grito se refugia nas asas do marido, um importante tenente-coronel da engenharia. Este diz, apontando para vós dois, que, a esta altura, espiralais os cabelos um do outro: “Eu a avisei, queridinha, o que se pode esperar da literatura atual?!” Mas já vos arrastam até a escada e vos põem para fora aos empurrões. O aniversariante, sentindo-se culpado diante da sociedade reunida, desculpa-se com todos, aconselhando a esquecer a literatura russa e continuar o ieralách. Tu te privaste de uma festa de gala, de minutos agradáveis, embora inocentes, com uma dama de Petersburgo e de um jantar. Mas, para vós dois, nada disso importa: vós pegais cada qual uma carruagem ligeira e percorreis as ruas fedorentas de Petersburgo, em direção aos próprios apartamentos, para, sem demora, redigir um folhetim. Tu apressas o cocheiro, invejando, por um momento, a sua inocência, mas só consegues pensar no teu artigo. Tu chegas correndo, apanhas a pena e contas tudo o que acontecera a ti na casa do conselheiro, tintim por tintim, nos mínimos detalhes!

Censuras o aniversariante, censuras a esposa dele, as iguarias que serviram, te revoltas contra o costume do dia de santo, contra o tenente-coronel da engenharia, contra a dama, tua parceira, e, finalmente, chegas a teu rival. Agora, sim, vais até os últimos detalhes, conforme a conhecida moda atual de expor intimidades. Descreves como ele bateu em ti e como tu bateste nele, e dás a palavra de que baterás novamente, assim como ele em relação a ti. Queres incluir no artigo a mecha que arrancaste do seu cabelo. No entanto, já amanheceu... Corres pelo aposento e esperas a hora de ir à redação. Apareces diante do redator, que, de súbito, anuncia com ar tranquilo que se reconciliou ainda ontem com o empresário rival, o qual cancelara o semanário e lhe dera os assinantes, e eles, numa garrafa de champanhe, brindaram à paz no Dussot.21 Depois, ele agradece a ti pelos serviços prestados e declara que tu não és mais necessário. Diz-me, que tipo de situação é a tua?!

Não há nada que eu mais deteste do que os últimos dias de máslenitsa,22 quando o populacho se embebeda até o último grau de sua indecência. Os focinhos abobalhados dos bêbados, em roupões e sobrecasacas esfarrapados, aglomeram-se nas tabernas. Então topamos com dois fulanos parados na rua: o primeiro tenta convencer o outro de que é um general, e o outro responde: “Mentira!”. O primeiro se zanga e profere uns insultos, mas o outro diz: “Mentira!”. O primeiro se zanga ainda mais, mas o outro diz de novo: “Men-ti-ra!”, e isso se repete umas duzentas vezes! Ambos sentem propriamente a beleza da repetição inoperante e infindável de uma única e mesma palavra, atolando-se, por assim dizer, na impotência prazerosa de sua humilhação.

Ao ler teus folhetins, eu involuntariamente me imagino numa espécie de máslenitsa sem-fim, ébria e desvairada, em que se perpetua a nossa literatura. Afinal, entre vós não acontece a mesma coisa que entre os dois bêbados desvairados de roupões, parados numa encruzilhada? Teu rival, por acaso, não tenta convencê-lo, em cada um de seus artigos, de que é um general, e tu não respondes a ele como um homem vestido de roupão, parado numa encruzilhada: “Men-ti-ra!”? E tudo isso se repete incontáveis vezes, sem que vós tenhais a menor desconfiança do quanto, no final das contas, isso é tedioso. Eu vos imagino, enlouquecidos e embriagados, exatamente no último dia (o dia do perdão!) de máslenitsa; eu vos imagino largados debaixo das janelas de vossas redações, remexendo na neve suja e escura da capital, gritando um para o outro, com todas as forças, numa voz rouca:

– Socorro! Socor-ro! So-cor-ro!

Mas eu me calo e apresso o passo...

Um observador silencioso.

N.B.: “Um observador silencioso” é o pseudônimo de “um sujeito”, eu havia me esquecido de adverti-los.

[O cidadão, no 10, 5 de março de 1873, págs. 285 a 289]

 

Dostoiévski foi muito criticado quando se tornou colaborador de O cidadão, devido ao caráter notoriamente reacionário da revista e de seu fundador e editor, Meschiérski. Ver nota 3 da Introdução.?

Termo muito usado, ironicamente, na imprensa russa nos anos 1860, assim como sua variante: “pesar cívico”, anota a edição russa (Op. cit.).?

Em alemão, no original: “saudade”, “nostalgia”, “anseio”. Título de poema de Schiller.?

Resposta ao folhetim “Bizarrices sociais e literárias”, publicado na revista A voz em 1873. O artigo criticava duramente o aparecimento da revista O cidadão.?

I.A. Krylóv (1769–1844), editor, poeta e escritor; consagrou-se na literatura russa com suas fábulas, muitas das quais baseadas em motivos de La Fontaine (1621–1695).?

[Nota do autor] Sem dúvida, isso foi um exagero, mas, em parte, está correto. Aqui propriamente há uma alusão ao fato de, no primeiro número de O cidadão, eu ter tido a infelicidade de trazer uma fábula indiana muito antiga sobre o duelo entre um leão e um porco, sendo que, habilmente, afastei qualquer possibilidade de suporem que eu, de forma pouco modesta, tenha relacionado o “leão” com a minha pessoa. E o que se deu? Realmente, muitos expressaram uma desconfiança excessiva e apressada. Foi quase um fenômeno: chegou à redação a carta de um assinante de um dos confins da Rússia; o assinante, de modo petulante e entusiasmado, repreendeu a redação dizendo que na palavra “porco” estavam forçosamente subentendidos os leitores – uma suposição tão absurda que nem mesmo os cronistas de fora de Petersburgo ousaram repeti-la em suas acusações... e isso já pôs tudo nos eixos. Red.?

Ver nota 2 do capítulo Bobók.?

Avenida Niévski, via principal e mais antiga de São Petersburgo.?

A taverna de K.P. Pálkin (?-1886), na esquina da Avenida Niévski e da Litiéinyi, era muito frequentada por escritores, incluindo o próprio Dostoiévski.?

Alusão a Kraiévski, fundador de A voz. Ver nota 5 da Introdução.?

Trata-se do poema “De Hafiz” (1829), de Púchkin. Tem-se em vista o poeta persa Hafez (1325/26–1389/90), leitura obrigatória da literatura iraniana. Na Europa, foi muito apreciado por Nietzsche e Goethe.?

Alusão à discussão polêmica entre dois literatos: V.P. Burenin (1841–1926), pela revista Boletins de São Petersburgo (Sankt-Peterbúrgskie viédomosti), e N.K. Mikhailóvski (1842–1904), por Anais de Pátria, como aponta a edição russa (Op.cit.)?

Ver nota 14 do capítulo Vlás.?

Teatro de variedades de São Petersburgo, conhecido pelos números franceses.?

No original, kudlachka – apelido comum dado aos cachorros.?

Personagem que finaliza o conto “Os cantores”, de Turguêniev, em seu livro Memórias de um caçador (1852).?

No conto, o nome do garoto que grita por Antropka não é citado, mas o narrador brinca com a etimologia grega dos termos – Antropka é apelido de Evtrópi, eutropos (com bons modos); Nefiod, apelido de Mefódi, de methodius (metódico).?

Na Rússia, as pessoas comemoram o dia do santo de quem têm o nome.?

Ieralách, jogo de cartas parecido com o preférénce, mas jogado idealmente em quatro pessoas e com cinquenta e duas cartas.?

[Nota do autor] A redação considera esta cena um pouco exagerada.?

Restaurante em São Petersburgo, então na moda entre a alta sociedade.?

Máslenitsa é a festa popular da entrada da primavera, tendo como símbolo a panqueca (blin) devido à forma arredondada, evocando o sol. Análoga ao Carnaval, os dias de máslenitsa antecedem a Quaresma (o “Grande Jejum” na ortodoxia, de 47 dias), sendo os últimos para se comer carne e laticínios até a Páscoa.?


A propósito de uma exposição

Passei por uma exposição.1 Uma quantidade considerável de quadros de pintores russos será levada à Exposição Mundial de Viena. Não será a primeira vez; e os pintores russos contemporâneos começam a ser conhecidos na Europa. Apesar disso, um pensamento me vem à mente: será que nossos pintores podem ser compreendidos lá, e sob qual ponto de vista eles serão apreciados? Na minha opinião, se uma comédia do Sr. Ostróvski fosse traduzida, digamos Entre a gente tudo se acerta,2 ou outra qualquer, se fosse traduzida da melhor forma possível, para o alemão ou para o francês, e se a encenassem em algum palco da Europa, eu, sinceramente, não sei no que isso daria. Eles, naturalmente, compreenderiam alguma coisa e talvez até achassem algum divertimento nisso, mas ao menos três quartos da comédia permaneceriam inteiramente inacessíveis ao entendimento de um europeu. Recordo o quão terrivelmente curioso fiquei, em minha juventude, com a notícia de que o Sr. Viardot3 (marido de uma famosa cantora que, na época, apresentava-se aqui com uma companhia de ópera italiana), um francês que não sabia sequer uma palavra de russo, estava traduzindo o nosso Gógol sob orientação do Sr. Turguêniev. O Sr. Viardot, certamente, possuía talento crítico e artístico, além de sensibilidade para entender poesias de outras nacionalidades, coisa que ele provou com a formidável tradução de Dom Quixote para o francês. Já o Sr. Turguêniev, naturalmente, compreendia Gógol em todas as suas sutilezas – como todas as pessoas daquele tempo, suponho que o sr. Turguêniev o amasse com ardor e, acima de tudo, ele próprio era um poeta, embora, naquela época, ainda não tivesse começado suas atividades literárias. (N.B.: Ele havia escrito apenas alguns poemas, não lembro quais, e, além disso, a novela Os três retratos, esta uma obra já considerável). Desse modo, algo poderia sair dali. Observo ainda que o Sr. Turguêniev provavelmente conhece a língua francesa com perfeição. Mas o que se deu? A tradução saiu tão estranha que nem mesmo eu, que já pressentia que era impossível traduzir Gógol para o francês,4 esperava absolutamente um resultado como esse. Ainda é possível conseguir essa tradução – então vejam os senhores mesmos do que se trata. Gógol, literalmente, desapareceu. Todo o humor, toda a comicidade, todos os detalhes particulares e os principais desfechos - que ainda hoje, ao voltarem casualmente à minha memória, a sós (normalmente nos momentos não literários da vida), enchem-me mentalmente de um riso irresistível -, tudo isso se perdeu como se nunca tivesse existido. A julgar por esta tradução, eu não consigo atinar o que, naquele momento, os franceses poderiam ter concluído de Gógol. A dama de espadas e A filha do capitão,5 traduzidos para o francês na mesma época, sem dúvida, perderam metade do que são, mas ali era possível captar bem mais do que no caso de Gógol. Em resumo: o mais característico, o essencialmente nacional (isto é, o verdadeiramente artístico), a meu ver, é incompreensível para a Europa. Traduzam a novela Rúdin,6 de Turguêniev, para qualquer língua europeia que queiram (menciono o Sr. Turguêniev por ser ele o escritor russo mais traduzido e a novela Rúdin porque, entre todas as obras do autor, é ela a que mais se aproxima de algo do caráter alemão) e, mesmo assim, ela não será compreendida. Não chegarão nem a desconfiar da questão essencial. Do mesmíssimo modo, não compreenderão Memórias de um caçador, assim como Púchkin e Gógol. De sorte que nossos maiores talentos talvez estejam condenados, assim me parece, a permanecerem por muito tempo desconhecidos pela Europa; é até possível dizer que, quanto maior e mais original for o talento do escritor, mais inacessível ele será. Contudo, estou certo de que entendemos Dickens7 em russo quase tão bem quanto os ingleses, provavelmente todos os matizes, amando-o não menos do que seus compatriotas. No entanto, como Dickens é típico, original e nacional! E a que conclusão podemos chegar? Seria um dom particular dos russos, em comparação aos europeus, entender outras nacionalidades? Pode até ser que exista algum dom especial (como o dom de falar línguas estrangeiras, que é realmente mais forte entre nós do que entre os europeus) e, se ele de fato existe, é algo extraordinariamente significativo e promete muito no futuro, promete muito aos russos, apesar de eu não estar seguro de que seja um dom plenamente positivo, de que não haja algo de ruim nisso... É inquestionável (muitos dirão) o fato de os europeus não conhecerem muito bem a Rússia, a vida russa, por não terem tido, até agora, necessidade de conhecê-la em profundidade. É verdade: na Europa, até hoje, realmente não se revelou nenhuma necessidade de nos conhecer de modo minucioso. Mas, mesmo assim, parece também inquestionável que, para um europeu, qualquer que seja a sua nacionalidade, é sempre mais fácil aprender outra língua europeia e aprofundar-se no íntimo de qualquer outra nação europeia do que aprender o idioma russo e entender a essência russa. Até os estrangeiros que nos estudaram com algum propósito (houve casos assim), e o fizeram à custa de muito esforço, sem dúvida saíram daqui, apesar de terem adquirido um bom conhecimento, sem entender a fundo várias questões e continuarão, pode-se dizer, por muito tempo sem entendê-las, aos menos as gerações atuais e as subsequentes. Tudo isso faz alusão, possivelmente, a uma posição de isolamento ainda longa e penosa que o nosso povo terá de ocupar em relação à linhagem europeia; os equívocos dos europeus no juízo que fazem da Rússia irão perdurar por um bom tempo, com sua evidente inclinação para nos julgar sempre pelo pior lado; e talvez seja isso que explique esta hostilidade permanente e generalizada da Europa contra nós, uma hostilidade baseada numa sensação intensa e instantânea de repugnância; esta aversão da Europa por nós como se fôssemos algo muito repulsivo; esta espécie de medo supersticioso de nós; a velha e conhecida sentença que nos fora lançada: não somos europeus... Evidentemente, ficamos ofendidos com isso e, com todas as forças, esforçamo-nos para provar que somos europeus...

Não digo, claro, que os europeus não possam entender, por exemplo, nossos paisagistas: as paisagens da Crimeia, do Cáucaso e até de nossas estepes irão, decerto, despertar curiosidade. Mas, em compensação, creio que a paisagem russa, a nacional por excelência, ou seja, a do norte e da faixa central da Rússia europeia, não produzirá um grande efeito em Viena. No entanto, “esta natureza indigente”,8 cujo traço característico consiste, por assim dizer, em sua descaracterização, nos é muito cara e querida. Mas o que em comum os alemães poderiam ter com esse sentimento? Reparem, por exemplo, nas duas bétulas da paisagem do Sr. Kuíndji (A vista de Valaam):9 no primeiro plano, um pântano e vegetação pantanosa; ao fundo, uma floresta, de onde surge não exatamente uma nuvem de chuva, mas uma bruma, uma névoa, e é como se essa névoa passasse por entre nós completamente; e no centro, entre nós e a floresta, duas bétulas brancas, luminosas e inabaláveis – o ponto mais forte do quadro. Mas o que há de especial nisso? Aqui há algo típico, e como é formidável! Talvez eu esteja enganado, mas este quadro não agradaria a um alemão.

Quanto à pintura histórica, nem há o que dizer – há tempos não nos destacamos pela pintura puramente histórica e, dessa maneira, não surpreenderemos os europeus; mesmo nossas telas de batalhas não provocarão muito interesse, até a migração dos circassianos10 (uma enorme tela variegada, talvez dotada de grandes méritos, não tenho como julgar) não produzirá, a meu ver, uma grande impressão no estrangeiro. Já quanto à pintura de gênero,11 à nossa pintura de gênero, o que os europeus poderiam compreender dela? Só que, entre nós, ela já impera há anos e quase que exclusivamente; se temos algo de que nos orgulhar e para mostrar ao mundo é, sem dúvida, a nossa pintura de gênero. Vejam, por exemplo, o pequeno quadro (de Makóvski12) “Os amantes do canto do rouxinol”, assim me parece, não sei ao certo como se chama. Reparem nele: o aposento de um pequeno-burguês, ou de um soldado reformado, que negocia passarinhos de canto e, provavelmente, também os caça. Podem ser vistas algumas gaiolas, banquinhos, uma mesa com um samovar em cima e, ao redor do samovar, os visitantes sentados: dois comerciantes ou vendeiros, os amantes do canto do rouxinol. O rouxinol se acha numa gaiola pendurada na janela e, certamente, está assobiando e chilreando sonoramente, para o deleite dos visitantes. Os dois, pelo visto, são homens sérios, dois vendeiros e negociantes severos, de idade avançada e, na certa, cruéis na vida familiar (como de hábito, todo este “reino sombrio”13 é impreterivelmente constituído de homens cruéis que se conduzem sem comedimento na vida pessoal), e, no entanto, os dois estão visivelmente tomados de deleite – do deleite mais inocente, quase afetuoso. Então aqui acontece algo tão tocante que beira a estupidez. O comerciante que está sentado ao pé da janela abaixa um pouco a cabeça, ergue uma mão e, conservando-a no ar, põe-se a escutar atentamente e se desfaz num sorriso abobalhado – acaba de ouvir um gorjeio... Parece que quer agarrar algo com a mão, que tem medo de perder alguma coisa. O outro homem sentado à mesa, tomando chá, está praticamente de costas para nós, mas sabemos que ele “padece” tanto quanto seu companheiro. Na frente deles, encontra-se o anfitrião, que os havia convidado para ouvir o rouxinol e, evidentemente, para vendê-lo a eles. Um sujeito alto e seco de uns quarenta e poucos anos, usando um traje informal e caseiro (aqui não há lugar para cerimônias!); ele fala algo aos comerciantes e, como se percebe, fala com autoridade. Diante desses vendeiros, o dono da casa, pela sua posição social, quer dizer, pelo bolso, é evidentemente alguém insignificante, mas agora ele possui um rouxinol, e um ótimo rouxinol, e por isso ele os olha com orgulho (como se ele mesmo cantasse), e até se dirige a eles com certo atrevimento e severidade (“isso não é permitido...”)... Curiosamente, os vendeiros estão necessariamente sentados, ponderando que não poderia ser diferente, que o dono da casa os repreendia de leve, pois “seu rouxinol é danado de bom!”. Terminam de tomar o chá e começam a regatear... Então, nos perguntamos: será que um alemão ou um jid vienense seriam capazes de compreender este quadro (dizem que Viena, como Odessa, está repleta de jidy)? Talvez alguém os faça entender que o comerciante russo mediano possui duas paixões: o trotador e o rouxinol, e que, por essa razão, o quadro é incrivelmente engraçado, mas adiantaria? É um conhecimento puramente abstrato – para um alemão, seria muito difícil sentir por que isso é tão engraçado. Quanto a nós, olhamos para o quadro e sorrimos e, depois, ao nos reportarmos a ele, sentimos, sem saber por que, vontade de sorrir com alegria novamente. Podem rir de mim à vontade, mas, nessas pequenas telas, a meu ver, revela-se amor pela humanidade, não pela russa em particular, mas pela humanidade de um modo geral. Inseri esse quadro apenas como um exemplo. Mas o que mais entristece é que nós compreenderíamos um quadro alemão desse mesmo estilo, baseado nos costumes alemães, exatamente como eles próprios o compreendem, e até seríamos capazes de apreciá-lo, quase com os mesmos sentimentos dos alemães, enquanto eles nunca irão nos compreender. No entanto, para nós, talvez isso seja mais vantajoso.

Já nesta tela, numa cabine de navio da Estônia ou da Livônia,14 acontece um carteado, o que, claro, é compreensível a todos, especialmente a figura do garoto que toma parte no jogo; além disso, todo mundo sabe jogar as cartas e predizer o futuro, de modo que “Dez de espadas” (assim esse quadro foi chamado) também será totalmente assimilado; mas não creio que possam compreender, por exemplo, “Os caçadores”, de Peróv.15 Menciono intencionalmente um dos quadros mais notórios da pintura de gênero nacional. A tela é conhecida por todos há tempos: “Os caçadores no descanso” - o primeiro inventa histórias com entusiasmo e de caso pensado; o segundo o escuta e acredita piamente em tudo; e o terceiro não acredita em nada, encosta-se ali mesmo e cai na risada... Que cena fascinante! Claro, assim tão bem explicado, até os alemães entenderão, mas eles serão incapazes de compreender que se trata de um mentiroso russo que mente à moda russa. Quase conseguimos ouvi-lo, sabemos sobre o que ele fala, conhecemos o rumo de sua mentira, seu estilo e seus sentimentos. Estou certo de que, se o Sr. Peróv retratasse (e ele provavelmente faria isto) caçadores franceses ou alemães (claro, de outra maneira e com outras fisionomias), nós, russos, entenderíamos as mentiras alemãs e as francesas em todas as suas sutilezas, com todas as distinções nacionais, o estilo, o tema da mentira – adivinharíamos tudo com um rápido olhar. Mas um alemão, por mais que se esforce, não assimilará a nossa mentira. Certamente, não será uma grande perda para ele, e, mais uma vez, isso talvez seja mais vantajoso para nós; mas, em compensação, o alemão não compreenderá o quadro inteiramente e, assim, não o apreciará como se deve; e é pena, pois iremos ao estrangeiro para sermos apreciados.

Não sei como “Os salmistas”,16 de Makóvski, será recebido em Viena. A meu ver, já não se trata de uma pintura de gênero, mas de uma pintura histórica. Apenas uma brincadeira, claro; mas olhemos para o quadro com cuidado: basicamente são cantores, de certo modo um coro oficial, executando um concerto litúrgico. Todos estes senhores usam trajes oficiais e têm os queixos escanhoados. Reparem, por exemplo, no senhor de suíças: é evidente que ele, por assim dizer, está travestido em um traje que não se harmoniza com sua pessoa e que ele usa apenas por dever do ofício. É verdade que todos os cantores só vestem tais trajes durante o ofício e que é assim desde longa data, desde tempos patriarcais, mas aqui o uso da veste salta particularmente aos olhos. Nós nos habituamos a ver tal funcionário bem-apessoado apenas em seu uniforme corriqueiro na repartição: um homenzinho de classe média, de cabelos bem aparados, modesto e respeitável. Ele pronuncia algo como o famoso “Estou ofendido!”,17 mas, se prestarmos bem atenção, até esse “Estou ofendido!” se torna algo oficial. Nada seria mais hilário do que imaginar que esse homem absolutamente leal e tornado pacífico pelo serviço pudesse estar “ofendido”! Não olhem para esses cantores, virem-se e apenas os escutem, e terão algo fascinante; mas, se olharem para essas figuras, terão a impressão de que os salmos só podem ser cantados assim... de que aqui existe algo completamente diferente...

Receio terrivelmente a “tendência” quando ela se apodera de um jovem pintor, especialmente no começo de sua carreira. E por que acham que tenho receio disso em particular? É que justamente o alvo da tendência não será atingido. Será que certo crítico amável que li recentemente, mas cujo nome prefiro não revelar agora, será que ele acreditaria que uma obra de arte sem uma tendência prefixada, executada unicamente por necessidades artísticas, inclusive, com um enredo totalmente alienado, que em nada remeta a qualquer “tendência”, será que este crítico acreditaria que esta obra se revelará muito mais fecunda para os alvos do jovem artista do que, por exemplo, qualquer “Canção da camisa”18 (não a de Hood, mas a de nossos escritores), mesmo podendo ser vista como aquilo que chamam de “satisfação de uma curiosidade vã”? Se nem os homens letrados, ao que parece, intuíram isso, o que deve passar pelas cabeças e pelos corações de nossos jovens poetas e pintores? Que confusão de ideias e de sentimentos prefixados? Para satisfazer às pressões da sociedade, o jovem poeta reprime a necessidade natural de exprimir-se por meio de imagens próprias, tem medo de que as considerem uma “curiosidade vã”, reprime, apaga as imagens que clamam por sair de sua alma, não dá atenção a elas, não as desenvolve, mas, em lugar disso, em convulsões doentias, arranca de si um tema que satisfaça a opinião pública, uniformizada e liberal. Que erro tremendamente simplista e ingênuo, que erro grotesco! Um dos piores equívocos do jovem poeta consiste em considerar o desmascaramento do vício (ou do que o liberalismo toma por vício) e a incitação ao ódio e à vingança como o único caminho possível para atingir seu alvo. No entanto, para um talento forte, até desse caminho estreito é possível escapar, sem, com isso, anular-se no começo de sua vida artística; ele se valerá de uma regra de ouro: a palavra dita é de prata, mas a não dita é de ouro. Há talentos tão valiosos, grandes promessas, que acabaram consumidos por essa tendência, a qual os coloca definitivamente num tipo de uniforme. Li os dois últimos poemas de Nekrássov19 e, decididamente, nosso respeitável poeta se uniformizou. Claro, até mesmo nesses poemas existe algo de bom, que remete ao antigo talento do Sr. Nekrássov. Mas que fazer? O enredo é uniformizado, o método é uniformizado; há uniformidade de ideias, de estilo, de espontaneidade... pois é, a uniformidade se acha até mesmo na espontaneidade do poema. Será que o senhor, um poeta venerado, não saberia que nenhuma mulher, mesmo as dotadas dos melhores sentimentos patrióticos, que se esforçou tanto para encontrar-se com o marido infeliz, que percorreu seis mil verstas20 numa telega, “que conheceu os encantos da telega”, que desceu voando, como o senhor mesmo afirma, “do alto de um pico de Altai” (o que já é em si algo impossível), será que o venerado poeta não saberia que essa mulher jamais beijaria primeiro os grilhões de seu homem amado, mas que forçosamente o beijaria antes, e só depois os seus grilhões,21 isso se nela despertasse, de modo intenso e repentino, um ímpeto generoso de patriotismo; e, decididamente, qualquer mulher agiria dessa maneira. Claro que minha observação é uma ninharia que nem merecia ser mencionada, porque esse poema deve ter sido escrito apenas, por exemplo, para que o autor se desvencilhasse do compromisso de entregar algo no dia primeiro de janeiro... No entanto, o Sr. Nekrássov já é um nome literário consagrado, um talento praticamente consumado, que conta com tantos poemas formidáveis. É o poeta do sofrimento, quase digno deste epíteto. Mas, quanto aos novatos, é pena: não é qualquer poeta que possui um talento forte o suficiente que o impeça de sujeitar-se a uma ideia uniformizada no começo de sua carreira, isto é, que o resguarde da penúria literária e da morte artística. Que fazer? O uniforme é tão belo, com cada bordado, e tão brilhante... E como é vantajoso! Quer dizer, agora ele é particularmente vantajoso.

Logo que li sobre os burlaki22 do Sr. Riépin23 nos jornais, fiquei alarmado. O tema em si é temível: costumamos considerar os burlaki os mais aptos a representar a conhecida ideia de uma dívida impagável das classes superiores para com o povo. Eu estava preparado para encontrá-los uniformizados, com os conhecidos rótulos grudados em suas testas. E o que se deu? Para a minha satisfação, verificou-se que todo o meu medo foi em vão: estes são os verdadeiros burlaki, e nada mais. Nenhum deles aparece gritando no quadro para o público: “Olhe como sou infeliz, veja até que ponto chegou sua dívida com o povo!”. Só por isso é possível atribuir um grande mérito ao pintor. Figuras extraordinárias que nos são conhecidas: os dois burlaki da frente parecem quase sorrir, ao menos, absolutamente não estão chorando ou pensando em sua posição social. Um soldadinho usa da astúcia e engana a todos – quer encher o cachimbo. Um garoto se faz de sério, grita, quase briga – uma figura surpreendente, se não a melhor do quadro, pois revela, por definição, o que há por trás dos burlaki. Um pequeno mujique cabisbaixo, cujo rosto quase não se vê, arrastando-se de forma singular. Impossível imaginar que a ideia da dívida política, econômica e social das classes superiores para com o povo poderia ter passado alguma vez pela cabeça miserável e cabisbaixa desse mujique embrutecido por sua eterna desgraça... e será que o senhor, meu caro crítico, não sabe que a inocência humilde do pensamento desse mujique pode atingir o alvo de modo imensuravelmente melhor do que o senhor imagina, do que seus alvos tendenciosos e liberais? Qualquer outro observador sairá com o coração inflamado e tomado de amor (sim, e que amor!) por esse mujique, por esse rapazola ou por esse soldado trapaceiro e infame! Pois não há como não amar essas criaturas indefesas, não há como sair da exposição sem se afeiçoar a elas. Não há como não pensar que existe uma dívida, que realmente existe uma dívida para com o povo... Esta “confraria” de burlaki irá aparecer em nossos sonhos, depois de quinze anos ainda voltará à nossa lembrança! Se eles não fossem tão espontâneos, inocentes e singelos, não iriam produzir uma impressão como essa nem iriam compor uma tela como essa. Isso, sim, é quase uma pintura! Além do mais, como todos esses colarinhos de uniformes são detestáveis, mesmos os bordados em ouro! No entanto, de que adianta discorrer sobre isso? Afinal, não é possível descrever um quadro, é muito difícil expressá-lo por meio de palavras. Direi apenas o seguinte: são figuras gogolianas. O termo é elevado, mas não quero dizer com isso que o Sr. Riépin, em sua forma artística, seja um Gógol. Nossa pintura de gênero ainda não chegou à altura de um Gógol ou de um Dickens.

Pode-se notar certo exagero na arte do Sr. Riépin: precisamente nos trajes daquelas duas primeiras figuras. Tais farrapos nem teriam como existir. A camisa, por exemplo, só pode ter caído por descuido numa tina na qual um naco de carne fora cortada com um cutelo. Sem dúvida, os burlaki não primam pelas vestimentas. Todos conhecemos algo a respeito deste povo: em casa, no fim do inverno, como ao menos uma vez nos contaram, eles se alimentam de cascas de árvores24 e, na primavera, alguns arrastam os barcos em troca de apenas um prato de kacha, sem basicamente terem combinado nada com o dono. Desde os primeiros tempos, houve casos de burlaki que morreram diante de um prato de kacha: desabavam de fome no prato, engasgavam e “explodiam”. Dizem que os médicos abriam esses corpos e os encontravam com kacha até a garganta. Vejam só como é a vida de alguns desses sujeitos. Mas, assim mesmo, a palavra não dita é de ouro; além do mais, não é possível vestir uma camisa dessas – uma vez tirada do corpo, nem há como colocá-la de volta. Por outro lado, em comparação com os méritos do quadro e com a independência do intento, este minúsculo exagero nos trajes é desimportante.

Pena que eu não conheça nada sobre o Sr. Riépin. Tenho curiosidade em saber se é um homem jovem ou não. Como eu gostaria que ele fosse um jovenzinho,25 um pintor novato. Um pouco antes, fiz a ressalva de que ele não é um Gógol. Pois é, Sr. Répin, para chegar até Gógol, o senhor ainda tem muito a crescer, então não fique tão envaidecido com seu merecido sucesso. Nossa pintura de gênero está num bom caminho, mas ainda falta algo para que ela se abra ou se amplie. O próprio Dickens não faz nada além de uma pintura de gênero, mas ele criou Pickwick, Oliver Twist e o avô e a netinha de A loja de antiguidades;26 não, para a pintura de gênero russa, isso ainda está muito distante; ela ainda se limita a “caçadores” e “rouxinóis”. Em Dickens, não faltam “caçadores” e “rouxinóis”, mas estes ocupam papel secundário. Penso até que, para a pintura de gênero da nossa atual conjuntura artística, a julgar por alguns indícios, Pickwick e a netinha surgem como uma espécie de idealização e, conforme notei em conversas com alguns de nossos maiores pintores, a idealização é temida como algum tipo de força impura. Um nobre temor, sem dúvida, mas preconceituoso e injusto. Nossos pintores precisam de mais ousadia, de ideias mais independentes e, talvez, de uma formação melhor. É também por esse motivo, creio eu, que nossa pintura histórica padece tanto, que, de certa maneira, desapareceu. Aparentemente, nossos pintores contemporâneos parecem temer a pintura histórica, adotando a pintura de gênero como se ela fosse a única saída legítima para seu talento. Tenho a impressão de que o pintor pressente a necessidade (de acordo com seu entendimento) de “idealizar” a pintura histórica, ou seja, a necessidade de falsear a realidade. “É necessário retratar a realidade tal e qual ela é”, dizem eles, só que esta realidade não existe de modo absoluto e nunca existiu, pois a essência das coisas é inacessível ao homem – ele assimila a natureza conforme esta se reflete em suas ideias, passando por seus sentimentos –; desse modo, é preciso deixar que as ideias sigam a sua marcha e não ter medo de idealizações. Um retratista, por exemplo, põe um sujeito plantado à sua frente para fazer seu retrato, prepara-se, observa-o. Por que faz isso? Porque ele sabe que, na realidade, um homem nem sempre se parece consigo mesmo, e por isso o artista tenta descobrir “a ideia principal de sua fisionomia”, o momento em que o sujeito mais se aproxima de si. É na habilidade de encontrar e capturar esse momento que consiste o talento do retratista. Quer dizer, o que este pintor pode fazer além de se fiar mais na sua ideia (em seu ideal) do que na realidade imediata? O ideal também é uma realidade, tão perfeita quanto a realidade corrente. Mas é como se muitos aqui não soubessem disso. Vejam, por exemplo, o caso de “O hino dos pitagóricos”, de Brónnikov:27 qualquer outro seguidor da pintura de gênero (mesmo entre os mais talentosos) deve ter-se surpreendido com a possibilidade de um pintor contemporâneo ter usado um tema como esse. Contudo, tais temas (quase fantásticos) são tão reais e necessários para a arte e o homem quanto a realidade corrente.

O que é, em essência, a pintura de gênero? É a arte de representação da realidade atual, em curso, pela qual o pintor passou pessoalmente e que viu com os próprios olhos, em oposição, por exemplo, à realidade histórica, que não pode ser vista pelos próprios olhos do artista e que não é representada em andamento, mas depois de acabada. (N.B.: aqui foi dito: “viu com os próprios olhos”, mas Dickens nunca viu Pickwick com os próprios olhos – ele o percebeu na realidade multifacetada que observou, criou essa fisionomia e a apresentou como o resultado de suas observações. Desse modo, este rosto parece tão real que é como se ele realmente tivesse existido, apesar de Dickens ter-se valido apenas de um ideal da realidade.) Enquanto isso, entre nós, acontece justamente uma confusão com a noção de realidade. A realidade histórica na arte, por exemplo, certamente não é a realidade corrente (pintura de gênero), justamente porque a primeira é acabada, não está em curso. Perguntem a qualquer psicólogo que queiram, e ele dirá que, ao se imaginar um acontecimento histórico do passado, especialmente de um passado remoto, já concluído (pois viver sem representar o passado é impossível), esse acontecimento necessariamente se apresentará de um modo acabado, quer dizer, acrescido de tudo o que se desenrolou depois, do que ainda não havia acontecido no dado momento histórico, ao qual o pintor se reporta tentando privilegiar um rosto ou um acontecimento. É por isso que um pintor não pode representar a essência de um acontecimento histórico exatamente como este se realizou na realidade. Dessa maneira, um medo quase supersticioso envolve o pintor, um medo de que talvez seja obrigado a “idealizar”, o que, no seu entendimento, significa falsear. Para evitar as falhas da imaginação, ele resolve misturar as duas realidades (há casos assim), a histórica e a corrente; dessa mistura antinatural surge uma mentira maior do que qualquer outra. A meu ver, esse erro terrível pode ser observado em alguns quadros do Sr. Gué. Em sua “Santa ceia”,28 por exemplo, que um dia causou tanto estardalhaço, ele criou uma pintura de gênero completa. Reparem com atenção: uma briga ordinária entre pessoas absolutamente ordinárias. E Cristo surge sentado, mas será que é de fato Cristo? Talvez não seja o Cristo que conhecemos, mas apenas um jovem muito bondoso, amargurado com a briga que teve com Judas, que aparece de pé, pronto para delatá-lo. Os amigos atiram-se ao Mestre para consolá-lo, mas nos perguntamos: onde Ele está, considerando os dezoito séculos seguintes de cristianismo? Como de uma briga ordinária entre pessoas ordinárias que se reuniram para jantar, conforme retratou o Sr. Gué, pode ter surgido algo tão extraordinário?

Nada absolutamente foi explicado, aqui não existe verdade enquanto pintura histórica, tampouco enquanto pintura de gênero, tudo aqui é falso.

Não importa de qual ponto de vista julgamos o quadro, este acontecimento não poderia ter ocorrido dessa maneira: aqui tudo se dá de forma desmedida e discordante em relação ao futuro. Ticiano teria, ao menos, dado ao Mestre o rosto que pintou em sua conhecida tela “O Cristo da moeda”, então, no ato, muita coisa se esclareceria. No quadro do Sr. Gué, tratava-se apenas de uma briga entre boas pessoas, houve um falseamento e uma ideia preconcebida, e todo falseamento é uma mentira e, em hipótese nenhuma, realismo. E o Sr. Gué corria atrás do realismo.

Acabei me esquecendo da exposição. Pensando bem... que espécie de repórter me saí! Queria apenas tecer algumas considerações “a propósito”. No entanto, nossa redação compromete-se a publicar um relatório detalhado sobre os quadros de nossos pintores que estão sendo levados à Exposição de Viena, ou melhor, vamos tentar abordá-los estando eles já na exposição, relatando as impressões dos estrangeiros ali reunidos.

[O cidadão, no 13, 26 de março de 1873, págs. 423 a 426]


A exposição de quadros e esculturas a que se refere Dostoiévski foi inaugurada em março de 1873 na Academia dos Pintores, em Petersburgo, com trabalhos de mais de cem artistas.?

Também traduzida como Um caso de família, é uma comédia em quatro atos, escrita em 1849. Proibida pela censura, foi recebida com júbilo pelos escritores da época.?

Trata-se de Louis Viardot (1800–1883), escritor, tradutor, crítico e diretor do Théâtre-Italien de Paris, casado com a cantora lírica Pauline Viardot (1821–1910). Turguêniev conheceu Pauline em sua apresentação em São Petersburgo, em 1843, e logo se apaixonou. Manteve com o casal uma intensa amizade, passando com ele longas temporadas em Paris e traduzindo, com Louis Viardot, obras suas e de outros escritores russos.?

A tradução de Viardot saiu em Paris em 1845 com o título Nouvelles russes, traduction française publiée par Louis Viardot. Ed. Paulin.?

Obras em prosa de Púchkin: A dama de espadas (1834) foi traduzida para o francês pela primeira vez em 1843 e, em 1849, ganhou a versão de Prosper Mérimée; A filha do capitão (1836) foi traduzida por Louis Viardot e Iván Turguêniev em 1853.?

Rúdin, romance de estreia de Iván Turguêniev, publicado em 1856.?

Charles Dickens (1812–1870) teve grande popularidade na Rússia, sobretudo durante os anos 1840.?

Primeira estrofe do poema “Um pobre povoado” de F.I. Tiútchev (1803–1873).?

A.I. Kuíndji (1841–1910), paisagista russo de origem grega. Na verdade, o quadro ao qual se refere Dostoiévski se chama “Na ilha de Valaam”(1873).?

O quadro citado é de P.N. Gruzínski (1837–1892), “Fuga dos montanheses de uma aldeia do Cáucaso diante da aproximação das tropas russas” (1872).?

A pintura de gênero retrata a vida cotidiana, os espaços privados, os ofícios e os costumes. Surgiu nos Países Baixos no século XVII e se difundiu pelo mundo.?

K.E. Makóvski (1839–1915), pintor russo. Embora ligado à dissidência engajada dos Itinerantes (Peredvíjniki), consagrou-se como retratista e pintor de temas históricos. Os amantes do canto do rouxinol (1873).?

Expressão de N.A. Dobroliúbov (1836–1861), crítico e revolucionário.?

Trata-se do quadro “Ás de paus numa cabine de Aland”, do pintor de gênero finlandês K.E. Jansson (1846–1874).?

V.G. Peróv (1833/1834–1882), pintor russo. Foi membro-fundador da Sociedade dos Itinerantes, grupo de pintores antiacadêmico e de inspiração populista que atuou de 1870 até 1923.?

Trata-se do quadro “Os salmistas da corte no coro” (1870).?

Expressão usada continuamente pelo diácono Aquiles em Gente da catedral (1872), de Leskóv.?

Poema de Thomas Hood (1799–1845), criticando as condições de trabalho na Inglaterra industrial.?

Trata-se dos poemas “A princesa Trubetskaia” (1872) e “A princesa M.N. Volkónskaia” (1873), publicados juntos com o título “Mulheres russas”. Iekaterina Trubetskaia (1800–1854) e Maria Volkónskaia (1806–1863) eram esposas dos dezembristas S.P. Trubetskói (1790–1860) e S.G. Volkónski (1788–1865). Depois que seus maridos foram presos e mandados à Sibéria, ambas largaram tudo para segui-los. Ver nota 17 do capítulo Velhos conhecidos.?

Aportuguesamento de verstá, medida russa equivalente a 1,067km.?

O episódio dos grilhões usado por Nekrássov em seu poema é verídico e aparece nas memórias de Maria Volkónskaia publicadas em 1904, conforme pontua edição russa (Op.cit.).?

Rebocador: ver nota 5 do capítulo Vlás.?

I.E. Riépin (1844–1930) foi um dos mais notórios pintores russos de cunho realista. O quadro em questão é “Burlaki no Volga”. Na tela, que se tornou bastante conhecida, surgem os burlaki, em trajes simples e populares, arrastando, com sirgas, uma embarcação para a margem do rio.?

Durante o frio rigoroso, os burlaki não podiam trabalhar.?

Riépin tinha 29 anos quando este artigo foi publicado.?

Pickwick é o herói de As aventuras do Sr. Pickwick, de 1836, primeiro romance de Dickens. Oliver Twist foi escrito um ano depois; já a pequena Nell, de A loja de antiguidades, surge em 1840.?

“O hino dos pitagóricos ao nascer do sol” (1869), de F.A. Brónnikov (1827–1902), pintor consagrado por seus motivos históricos.?

N.N. Gué (1831–1884), desenhista, escultor e pintor de motivos históricos e religiosos.?


Mascarado

Em O mundo russo1 (no. 103) apareceu uma nota ofensiva dirigida a mim. Não respondo a artigos ofensivos, mas a este responderei por certas razões – razões estas que serão esclarecidas ao longo da resposta.

Em primeiro lugar, o fato é que meu ofensor é uma personalidade eclesiástica – do lado que eu menos esperava um ataque. A “nota” foi assinada por “Sac. P. Kastórski”. O que será “Sac.”? Sacerdote? O que poderia significar essa abreviação além de “sacerdote”? Ainda mais em se tratando de um assunto da igreja. Nos números 15 e 16 de O cidadão foi publicada a novela O subdiácono, do Sr. Nedólin. A questão toda é sobre ela.

Aqui está a “nota”:


Ideias celibatárias sobre um monge casado2

Ultimamente, nossos novelistas e romancistas têm escolhido com muita frequência os heróis de suas narrativas entre sacerdotes e clérigos; estes costumam aparecer, por assim dizer, na qualidade de um inciso, de uma figura acessória. É formidável que eles sejam retratados: há muitas fisionomias típicas na vida clerical, e por que não retratá-las em seus lados bons e ruins? O recente êxito de Memórias de um vigário,3 publicada em Anais da pátria e, depois, o êxito ainda maior de Gente da catedral, em O mensageiro russo, mostram como as cenas cotidianas de nosso clero podem suscitar interesse na sociedade. Ambas as obras representavam pessoas do clero sob vários pontos de vista, e ambas foram recebidas com atenção e prazer. E por quê? Porque foram bem escritas, com arte e conhecimento de causa. Mas algo bem diferente acontece quando – pelo gosto de imitar ou por outro motivo qualquer, como, por exemplo, presunção ou leviandade – este assunto é abordado por pessoas que não possuem nenhuma informação sobre ele. Elas apenas se confundem e lesam a questão, criando perspectivas errôneas, e por isso não é possível passar por cima de tais incidentes nocivos envolvendo a caricaturização de nosso clero; depois de um sacristão ter chamado recentemente nossa atenção, em O mundo russo, para a ignorância do escritor Dostoiévski a respeito dos salmistas, não posso me calar diante de outra ignorância, ainda mais grosseira, patética e imperdoável, que se denunciou na mesma revista O cidadão, pela qual responde o mesmo redator-chefe, o Sr. Dostoiévski.

Paremos, por ora, nesse ponto. O que será que ele quis dizer com “depois de um sacristão ter chamado recentemente nossa atenção, em O mundo russo, para a ignorância do escritor Dostoiévski”? Ainda não li o artigo. (Mais uma vez O mundo russo!) Tento localizar (no. 87) – sim, de fato há uma acusação assinada por “Um sacristão”. Vejamos do que se trata:


Sobre a libré do corista (Carta à redação)4

Na edição no. 13 da revista O cidadão (26 de março), deparei-me com um artigo do Sr. Dostoiévski a propósito da exposição da Academia de Pintura. Ao discorrer sobre os salmistas retratados pelo pintor Makóvski, o Sr. Dostoiévski escreveu o seguinte:

Todos estes senhores usam trajes oficiais e têm os queixos escanhoados. É verdade que todos os cantores só vestem tais trajes durante o ofício, que desde longa data vestem tais trajes e que é assim desde longa data, desde tempos patriarcais...

Interrompo por um minuto: em primeiro lugar, eu não escrevi uma tolice dessas. No meu artigo, está assim: “É verdade que todos os cantores só vestem tais trajes durante o ofício e que é assim desde longa data, desde tempos patriarcais...” – o que é totalmente diferente.

Continuemos com a citação:

Isto não tem fundamento: os cantores da igreja russa não vestem desde longa data ou desde tempos patriarcais tais trajes que hoje são vistos nos salmistas retratados pelo Sr. Makóvski. Esta libré é uma cópia tardia, tomada do Ocidente, ou, propriamente, da Polônia; e não são poucas as pessoas, dentre a respeitável hierarquia da nossa igreja, que consideram esta mascarada de librés algo descabido, e os cantores que constituem os coros usam simples sobrecasacas pretas, o que, certamente, é muito mais discreto e decente do que o kontusz5 polonês. Desde longa data, desde tempos patriarcais, os cantores cantavam em pé usando compridos aziámy6 pretos e, invariavelmente, tinham um rosário de couro nas mãos; assim como ainda hoje cantam de pé nas igrejas adeptas ao rito antigo e nos oratórios dos raskólniki.7

N.B: Ao que parece, nas nossas igrejas ortodoxas atuais, os coristas cantam sentados. É sempre útil escutar um homem versado.

Receando [e com motivo!] que, através da palavra profana do Sr. Dostoiévski, se fortaleça a opinião infundada a respeito destas librés [será que haverá um terremoto por isso?], que há tempos deveriam ter sido substituídas pelo costume russo, tenho a honra de pedir à redação de O mundo russo que reserve um espaço para estas breves linhas.

Um sacristão

Eis a nota do Sacristão à qual o Sac. Kastórski se referia. Antes de continuarmos com Kastórski, terminemos com o sacristão.

Por que o senhor ficou tão ofendido, Sr. Sacristão? O senhor assinala um erro e dá lições, mas é o senhor mesmo que comete um erro. O senhor diz: “Isto não tem fundamento: os cantores da igreja russa não vestem desde longa data ou desde tempos patriarcais tais trajes...”. Como assim? Por que “isto não tem fundamento”? Por que é proibido dizer “desde longa data” e “desde tempos patriarcais”? Será que os cantores começaram a se vestir assim ontem? Não foi ao menos no tempo de nossos ta-ta-ta-tataravôs? Com o cenho franzido de um grande historiador, o senhor aparece para nos corrigir, no entanto, não diz nada com nada. Ficamos esperando que o grande historiador determine com exatidão o período, o ano e, provavelmente, até o dia em que o clero usou esses trajes pela primeira vez, e o senhor, depois de tanto alardear, nos dá esta suposição inexpressiva: “Tomamos dos poloneses”, e nada mais! E não parou de chiar e chiar!

Diga-me a sua opinião, Sr. Sacristão: quanto à influência polonesa, que se reflete concomitantemente entre nós em muitos lugares, incluindo no clero, será que ela se revelou há tempos ou surgiu apenas anteontem? Então, por que, com um pouco de bom senso, não se pode dizer “que é assim desde longa data, desde tempos patriarcais”? E isso não apenas remonta a tempos patriarcais, na verdade, praticamente coincide com a época do patriarcado.

Estes trajes (ou semelhantes) apareceram desde a época de Pedro, o Grande, sendo assim, quase coincidiram com o período do patriarcado,8 foi por um triz. Será que isso é tão recente? Não se pode mais falar “desde longa data”? Ou desde “tempos patriarcais”? Se eu não determinei com precisão histórica quando exatamente os coristas começaram a usar esses trajes, é porque eu não nutria essa intenção, não tinha tal objetivo em mente, mas queria apenas exprimir que isso se deu há muito tempo, há tanto tempo que é possível usar a expressão “desde longa data”, o que qualquer leitor compreenderá. Não me referia à época de Dmítri Donskói ou à de Iarosláv.9 Só quis dizer que “faz muito tempo”, e nada mais.

Mas basta desse sábio Sacristão. Sobressaltou-se, agitou-se, e não deu em nada. Ao menos, esse se expressou com cortesia: “Receando que,” diz ele, “através da palavra profana do Sr. Dostoiévski,” e por aí vai. Mas o Sac. Kastórski ultrapassa, de uma vez, os limites estabelecidos pelo Sacristão. Que homem sagaz!... A “ignorância do escritor Dostoiévski a respeito dos salmistas”... “... não posso me calar diante de outra ignorância, ainda mais grosseira, patética e imperdoável, que se denunciou na mesma revista O cidadão, pela qual responde o mesmo redator-chefe, o Sr. Dostoiévski.”

Quando pensamos nos crimes terríveis que este Dostoiévski cometeu, como seria possível perdoá-lo?! Uma figura eclesiástica, que, ao que parece, deveria ser a própria expressão do amor, mas que é incapaz de perdoar!... No entanto, que espécie de “ignorância” é essa? Qual é a questão aqui? Não há nada a fazer além de oferecer aos leitores todas as palavras de Kastórski. Por que servir “o doce aos poucos”? Quanto mais, melhor – é o que penso.

No número 15/16 da revista O cidadão, que saiu nesse último 16 de abril, foi publicado O subdiácono. Uma história contada entre amigos, do Sr. Nedólin. Este conto possui uma base inverídica e simulada: nele se apresenta um subdiácono vozeador que apanha da esposa; esta bate nele com tamanha crueldade e frequência que o subdiácono, depois de tanto apanhar, vai para o mosteiro, onde “se entrega a Deus e deixa os pensamentos mundanos para trás”. Ele se enclausura entre os muros do mosteiro, e sua ex-esposa fica postada do lado de fora. E o subdiácono canta o arranjo de um salmo:

E o Santo, ó Deus, teu eleito!
Co’a espada à mão, põe-se a lutar,
Leva Tuas ordens no peito,
Ao gigante irá se lançar.10

E a esposa abandonada, que “se põe atrás da cerca do mosteiro e, encostando a cabeça apaixonada no muro, cai em prantos”, tenta atrair o marido, já incorporado ao monastério, dizendo que “será sua escrava e seu cachorro”. Mas o marido de lá não sai e lá ficará até morrer.

Que invencionice lastimável, inverossímil e patética! Quem é esse Sr. Nedólin não sabemos, mas, sem dúvida, esse homem desconhece completamente a legislação russa e a vida russa, desconhece-as a ponto de supor que na Rússia um homem casado possa ser incorporado ao monastério e lá permanecer; mas como poderia não saber disso o redator-chefe, o Sr. Dostoiévski, que recentemente afirmou de modo tão prolixo que é um grande cristão e, além disso, um ortodoxo que crê à maneira ortodoxa nos milagres mais extravagantes? Ou será que, talvez, ele esteja atribuindo a admissão de um homem casado no mosteiro a um milagre, daí a situação seria outra; no entanto, mesmo alguém pouco conhecedor das leis e dos regulamentos da igreja pode facilmente convencer o Sr. Dostoiévski de que, entre nós, até tal milagre é impossível, pois ele é severamente proibido e punido por leis categóricas, que uma autoridade monástica não pode violar, ou seja, não pode admitir no mosteiro um homem que possui uma esposa viva.

A fábula do conto O subdiácono, mesmo sendo extremamente pobre e composta sem arte, poderia ter ganho algum mérito se a ela fosse dado um desenlace verossímil, mas isso só seria inteiramente possível para um escritor ou para um redator-chefe que conheça, mesmo que apenas um pouco, os costumes do meio retratado. O conto, por exemplo, poderia ter-se conduzido a uma situação dramática bastante conhecida, na qual o subdiácono, para esconder-se da esposa impertinente, tentaria escapar indo a diversos mosteiros – de um deles ele seria expulso pelas autoridades, pois é um homem casado, e nos outros a própria esposa o exigiria de volta e, provavelmente, voltaria a bater nele... Então, não achando nenhum lugar em seu país para se resguardar da esposa e, ao mesmo tempo, aspirando à vida monástica, o infeliz subdiácono poderia, por exemplo, ir para Athos, onde, sob a jurisdição mulçumana de um sultão turco, a igreja ortodoxa, em muitos aspectos, funciona de modo mais independente do que na Rússia. Lá, como é de conhecimento de todos, os mosteiros, às vezes, admitem até mesmo homens casados à procura de uma vida monástica, e lá o subdiácono russo implacavelmente espancado pela esposa poderia refugiar-se, rezar e cantar, mas apenas qualquer coisa menos aquele arranjo em verso que cantou em O cidadão, porque, em primeiro lugar, como é consideravelmente conhecido, este arranjo não goza de muito interesse dentre as pessoas da classe eclesiástica; em segundo, ele não é adequado para voz e não é cantado; e, em terceiro, entre os muros dos mosteiros ortodoxos não é autorizado cantar arranjos de versos laicos, e nenhum morador de um mosteiro teria coragem de cometer essa falta, para não perturbar o silêncio próprio desse local.

Sac. P. Kastórski

Agora responderemos a isso tudo, ponto a ponto; e, em primeiro lugar, acalmaremos o impressionável sacerdote Kastórski no tópico mais importante, isto é, explicando que O subdiácono não é absolutamente uma novela de costumes. Seu respeitável autor, o Sr. Nedólin (não é um pseudônimo), que passou parte de sua vida em cargo público bastante ativo, não tinha em vista, no presente caso, os costumes da igreja. Seu herói, o subdiácono, sem qualquer prejuízo para si ou para o conto, poderia ser muito bem, por exemplo, um funcionário do correio, e, se ele permaneceu como um subdiácono, é unicamente porque se trata de um acontecimento verídico. A anedota desse poema11 é excepcional, quase fantástica. O senhor sabia, sacerdote Kastórski, que os acontecimentos verídicos, descritos com toda a excepcionalidade de sua casualidade, quase sempre carregam em si um caráter fantástico, quase inverossímil? A tarefa da arte não envolve o caráter casual do cotidiano, mas a vida geral, captada com perspicácia e retirada fielmente da multiplicidade de fenômenos correspondentes. No conto do Sr. Nedólin, um fenômeno totalmente diferente do espírito humano foi universalizado. Se ele, ao contrário, tivesse tido a pretensão de criar um retrato de costumes, então, sob esse ponto de vista e apenas com sua breve anedota, ele teria caído inevitavelmente na esfera do excepcional. Há pouco, quer dizer, há alguns meses, um monge estúpido e perverso de um de nossos mais notáveis mosteiros matou, a pancadas violentas, um garoto de dez anos numa escola, e diante de testemunhas. Não seria, à primeira vista, um acontecimento fantástico? Entretanto, ele nos parece absolutamente verídico. Mas, se alguém der de descrevê-lo, na hora gritarão que é algo inverossímil, excepcional, que foi retratado com algum objetivo premeditado – e terão razão se julgarmos do ponto de vista da fidelidade do retrato da vida costumeira de nossos mosteiros. Não é possível ser fiel à realidade com uma única anedota; e até hoje, em nossos mosteiros, encontra-se uma existência angelical, para a graça de Deus e da igreja, e o caso do monge perverso será sempre excepcional. Mas, para um narrador, para um poeta, podem existir outros objetivos além do aspecto cotidiano da vida; há complexidades gerais, perenes e, ao que parece, inexploradas na alma e no caráter do ser humano. Mas, para o senhor, se está escrito “subdiácono”, isso forçosamente implica a descrição de um modo de vida em particular; e, sendo uma descrição de costumes, isso também forçosamente implica escritores qualificados e patenteados para retratá-la, e que ninguém mais se atreva, como costumam dizer, a meter a foice em seara alheia; este é o nosso espaço, o nosso campo de exploração, o nosso ganha-pão. E não foi isso que o deixou tão agitado, Sacerdote Kastórski? Perdoe-me, mas é possível escrever a palavra “subdiácono” sem qualquer intenção de apropriar-se de algo do Sr. Leskóv. E, por isso, sossegue.

Depois de sossegar, peço que o senhor preste atenção no título de seu polêmico artigo: “Ideias celibatárias12 sobre um monge casado”.

E, de passagem, pergunto: o que as “celibatárias” vieram fazer aqui? Que mudaria se as ideias fossem casadas? E por acaso existem ideias celibatárias e ideias casadas? Mas o senhor não é um literato, e tudo isso é uma ninharia; o senhor é o impressionável sacerdote Kastórski, do qual não se pode exigir estilo, especialmente em tal situação. A questão principal é a seguinte: quem disse que o nosso subdiácono tornou-se monge? Onde, em toda a novela do Sr. Nedólin, o senhor encontrou a informação de que ele vestiu o hábito? No entanto, este dado é muito importante: ao intitular o artigo dessa maneira, o senhor leva o leitor que desconhece a novela do Sr. Nedólin diretamente à perplexidade: “Sim, realmente,” pensará ele, “um subdiácono casado não poderia tornar-se um monge! E como O cidadão não saberia disso?”. Assim, conduzindo o olhar do leitor à palavra “monge”, o senhor, triunfante, solta no meio do seu artigo:

Que invencionice lastimável, inverossímil e patética! ... como poderia não saber disso o redator-chefe, o Sr. Dostoiévski ...

Entretanto, o senhor simplesmente falseou os fatos, e eu, sem dificuldade, pego sua trapaça em flagrante. O senhor se equivocou um pouco, meu padre, fez as contas sem o dono. Um homem casado não pode vestir o hábito, fato; mas por que “uma autoridade monástica ... não pode admitir no mosteiro um homem que possui uma esposa viva”, como o senhor afirma com tanta veemência? De onde tirou essa novidade? Alguém, por exemplo, tem o desejo de estabelecer-se num mosteiro (onde acharia um alojamento confortável), é casado e sua esposa encontra-se em alguma parte da capital ou no estrangeiro, então, por ser casado, vão expulsá-lo de lá? Será mesmo? Não conhece o assunto, meu padre, e ainda se diz um clérigo. Eu até poderia apontar alguns indivíduos conhecidos por toda a sociedade de Petersburgo, ainda hoje memoráveis, que acabaram fixando moradia em mosteiros, para passar o resto de seus dias, e que já moram lá há tempos, e, no entanto, são casados e suas esposas continuam vivas. Tudo se deu de comum acordo. E foi exatamente assim que o subdiácono do Sr. Nedólin fixou moradia num mosteiro. Elimine a suposta iniciação monástica, criada pelo senhor com algum propósito e que não se acha em nenhum ponto da novela do Sr. Nedólin, e na hora tudo se esclarecerá. Aqui foi mais do que “de comum acordo”; tudo se deu com permissão direta das autoridades. Saiba, meu padre, que a respeito disso tenho meios para sossegar sua consciência em alto grau. Suponha que eu tenha tomado informações e veja as notícias que recebi:

Em primeiro lugar, quando o subdiácono e artista, ainda meio ano antes de seu ingresso no mosteiro, revelou pela primeira vez, ao despedir-se de seu proprietário rural, que pretendia morar no mosteiro, já sabia bem o que dizia. Isso porque ele já havia informado de sua intenção o pai Ioann, superior do mosteiro, que gostava muito dele, ou melhor, sendo um grande aficionado de música, gostava principalmente de seu canto, e protegia Sofron com todas as forças, chegando a atraí-lo para morar no mosteiro. O subdiácono ainda titubeou um pouco diante da proposta do proprietário rural de ir para o estrangeiro com ele, esperando, por essa razão, ainda meio ano, mas, quando sua paciência se esgotou, ele partiu para o mosteiro. Não foi nada difícil arranjar tudo: o pai Ioann era amigo íntimo do superior da diocese, e, depois de essas duas figuras entrarem em acordo, não era preciso de mais nenhum pretexto. Mas, pelo visto, mesmo assim acharam um: o subdiácono teria sido, por assim dizer, “enviado em missão”. Quanto à promessa do subdiácono de “entregar-se a Deus” (o que deixou o senhor especialmente contrariado), foi algo totalmente voluntário, uma decisão interior, não oficial, uma questão de consciência, algo que ele mesmo se concedeu. Além disso, no conto do Sr. Nedólin existe uma indicação muito clara de que o subdiácono apenas residia no mosteiro, de que não vestiu o hábito de forma nenhuma, como o senhor, meu padre, deu de inventar com tamanha descerimônia. Justamente: depois de seu regresso, o proprietário rural ainda tentou convencer Sofron a sair do convento e a ir para o estrangeiro com ele, e, no primeiro dia de negociações, o subdiácono chegou a hesitar. Será que isso poderia ter acontecido se Sofron tivesse tomado o hábito? Finalmente, não se disfarçou o fato de que ele era um artista sem igual, ao menos dotado de um talento sem igual, e desse modo ele se revelou desde o início da novela. Sendo assim, a predileção do pai Ioann por ele é compreensível, já que o sacerdote era um aficionado ardoroso de música...

“Mas nada disso foi explicado na novela!” gritará o senhor num ataque de cólera. Não, em parte foi explicado; muita coisa pode ser deduzida do conto, apesar de ele ser sucinto e de rápida leitura. Mas, é preciso admitir, nem tudo foi explicado – e para que explicar? A história toda é plausível; basta que se elimine a suposta iniciação monástica e tudo se tornará verossímil. Sim, o conto do Sr. Nedólin é um pouco lacônico, mas, sabe, meu caro, mesmo que o senhor não seja um homem das letras, como já nos provou, vou lhe dizer com franqueza que muitos romances e novelas atuais sairiam ganhando se fossem abreviados. Qual é o sentido de um autor nos arrastar por trinta folhas e, de repente, na trigésima folha, sem mais nem menos, largando sua história de Petersburgo ou de Moscou, nos levar para algum canto da Moldávia-Valáquia,13 com o único objetivo de contar como um bando de corvos e corujas voou de um telhado moldavo-valaquiano, e depois, ao contar isso, de novo sem mais nem menos, largar os corvos e a Moldávia-Valáquia, como se eles nunca tivessem existido, sem voltar a eles nem uma única vez em todo o restante do conto;14 de maneira que o leitor, por fim, cai em completa perplexidade? Os escritores fazem isso a troco de uns trocados, para terem mais páginas escritas! O Sr. Nedólin escreveu de outra forma e, provavelmente, fez bem.

“Mas e a esposa, a esposa?!” exclama o senhor revirando os olhos. “Como ela teria permitido isso sem se queixar, por que ela não o ‘exigiu de volta’ conforme a lei, à força?!” E foi justamente esse ponto feminino que o fez recuar, meu padre. O senhor se entreteve tanto no artigo que até se pôs a criar um romance, no qual a esposa, por fim, fez com que o subdiácono retornasse de um mosteiro, voltando a espancá-lo, então este “escapou” indo a outro mosteiro, mas ali o mandaram de volta para casa, e, finalmente, ele acabou em Athos, onde conseguiu sossegar sob a jurisdição “mulçumana” de um sultão (vejam só, eu que sempre imaginei que sultões fossem cristãos!).

Brincadeiras à parte; saiba, meu padre, que, embora o senhor, ao menos em função do seu título, devesse conhecer um pouco o coração humano, não o conhece em absoluto. Apesar de não passar de um escrevinhador, se o senhor pegasse uma pena e de fato se pusesse a descrever um aspecto da vida cotidiana do clero, talvez o fizesse de modo mais preciso do que o Sr. Nedólin; mas, quanto ao coração humano, o Sr. Nedólin sabe melhor. Uma mulher que passa dias a fio chorando atrás dos muros do mosteiro não vai mandar petições e exigir nada à força. E basta de violência! Com o senhor, é pancada atrás de pancada; com o ímpeto fervoroso de um escritor, o senhor continua o romance, e lá vem mais pancada. Não, já chega de pancadaria! O senhor se recorda, meu padre, de como na última cena de O casamento,15 de Gógol, depois de Podkolióssin ter saltado pela janela, Kotchkarióv grita: “Tragam-no de volta, tragam-no!” imaginando que o noivo que havia pulado a janela ainda estivesse em condições de casar. O senhor raciocina exatamente igual. Kotchkarióv é detido pelas palavras da casamenteira: “Ah, não conhece os assuntos matrimoniais; bom seria se tivesse saído pela porta; mas, já que resolveu saltar pela janela, fique com meus respeitos”. Enobreça o caso de Podkolióssin e na hora ele coincidirá com a situação da pobre e abandonada esposa do subdiácono. Não, meu caro, a pancadaria terminou! Esta mulher de caráter excepcional, uma criatura apaixonante e forte, muito superior, diga-se de passagem, em matéria de força espiritual, ao artista, seu marido, esta mulher, sob influência do meio, por hábito ou por falta de instrução, poderia de fato ter começado a espancá-lo. A um homem sensato e sensível agradaria precisamente este realismo dos acontecimentos, e o Sr. Nedólin, não atenuando a realidade, conduziu-se de maneira magistral. Mulheres dotadas de espírito e caráter forte, especialmente quando apaixonadas, não conseguem amar se não de modo despótico, e até têm uma queda especial para homens fracos, de personalidade infantil, como o subdiácono artista. E por que ela se afeiçoou tanto a ele? Será que ela mesma sabe por quê?! Ele se desfaz em prantos, e ela não consegue apreciar essas lágrimas, mas, ao mesmo tempo que ela sofre, delicia-se lascivamente com elas. É ciumenta: “Não se atreva a cantar na frente dos senhores!”. Parece querer engoli-lo vivo de amor. Mas ele fugiu dela, o que ela jamais acreditaria que ele fizesse! Era orgulhosa e presunçosa, sabia que era uma bela mulher, e, uma curiosa questão psicológica, o tempo todo, acreditem, esteve convicta de que ele a amava perdidamente, assim como ela o amava, de que ele não poderia viver sem ela, apesar das sovas! É no que consistia toda a sua fé, ela não tinha a menor dúvida quanto a isso; e, de repente, tudo lhe foi revelado: esta criança, este artista, não a amava nem um pouco, já fazia tempo que ele havia deixado de amá-la, ou talvez nunca tivesse chegado a amá-la! De repente, ela se resignou, caiu em desânimo, abateu-se, mas, mesmo assim, não tinha forças para desistir, amava-o feito louca, ainda mais do que antes. Mas este caráter forte, nobre e singular, de repente, cresce sem limites sobre seu antigo modo de vida, e até sobre seu meio. Não, agora ela já não o exige de volta à força. À força, ela não o queria de jeito nenhum; ela continuou imensamente orgulhosa, mas já era outra sorte de orgulho, um orgulho enobrecido: ela preferia morrer de desgosto ali mesmo, sobre a grama ao lado dos muros do mosteiro, a usar de violência, a escrever petições, a provar seus direitos. Ah, meu padre, é nisso que consiste a novela, e não absolutamente no aspecto cotidiano da vida clerical! Não, meu caro, esta história minúscula é muito mais significativa do que lhe parece, muito mais profunda. Digo outra vez, o senhor nunca escreverá algo assim, nem mesmo chegará a compreender a questão. Sua alma é em parte como a de Kotchkarióv (em termos literários; evidentemente, não irei além disso, aqui), como eu tive a honra de observar...

Quanto à sua escritura e à sua noção de arte, estritamente a respeito disso, é possível, penso eu, incluir aqui um conhecido epigrama de Púchkin:

Um dia o sapateiro olhou um quadro,
E no sapato ele apontou um defeito;
O pintor pincelou e o pôs melhorado.
“Olha,” com as mãos na anca, o sapateiro
insistia: “O rosto saiu retorcido...
E o peito não está por demais à mostra?”
Mas Apeles interrompeu, enfurecido:
“Julga, amigo, mas não julga além da bota!”

O senhor, meu padre, é exatamente igual a esse sapateiro, mas com uma diferença: não foi capaz nem mesmo de apontar ao Sr. Nedólin o defeito no sapato, o que espero já ter provado solidamente. E com a adulteração dos fatos não conseguirá nada. Veja bem, para se entender alguma coisa da alma humana e “julgar além da bota”, é preciso de um pouco mais de evolução em outra direção; e de um pouco menos desse cinismo, desse materialismo “espiritual”, menos desse desprezo pelas pessoas, desse desrespeito, dessa indiferença. Menos dessa cobiça feroz, e mais fé, esperança, amor. Olhe, por exemplo, com que cinismo grosseiro o senhor se dirigiu à minha pessoa, com que indecência, totalmente imprópria ao seu título, o senhor fala dos milagres. Eu não queria acreditar nos meus olhos quando li o que dizia a meu respeito:

[...] mas como poderia não saber disso o redator-chefe, o Sr. Dostoiévski, que recentemente afirmou de modo tão prolixo que é um grande cristão e, além disso, um ortodoxo que crê à maneira ortodoxa nos milagres mais extravagantes? Ou será que, talvez, ele esteja atribuindo a admissão de um homem casado no mosteiro a um milagre – daí, a situação seria outra [...].

Primeiramente, meu padre, aqui o senhor também deu asas à imaginação (mas que paixão tem por invencionices!). Jamais, e em lugar nenhum, declarei nada pessoalmente a respeito de minha crença em milagres. Tudo isso é pura invenção sua, e eu o desafio a prová-lo: onde achou essa informação? Permita-me ainda mais: se eu, F. Dostoiévski, tivesse feito tal declaração (o que não se deu), acredite, eu não renunciaria às minhas palavras, nem por nenhum tipo de escrúpulo liberal nem por medo de qualquer Kastórski. Pura e simplesmente, nada semelhante aconteceu, e apenas constato o fato. E, mesmo se tivesse acontecido, o que lhe diria respeito minha crença em milagres? E o que os milagres têm com o assunto? E o que quer dizer com milagres extravagantes e não extravagantes? E como o senhor ajusta essas distinções? Em suma, só quero que me deixe em paz – seja ao menos pelo fato de que importunar-me com isso não é condizente com sua posição, mesmo com sua ilustração moderna. Uma figura do clero, e tão irascível! Que vergonha, Sr. Kastórski.

E sabe o que: o senhor não é o Kastósrki coisíssima nenhuma, muito menos o sacerdote Kastórski, tudo isso é uma embromação e um disparate. O senhor é um mascarado, exatamente como nas festas natalinas. E sabe do que mais? Nem por um minuto me deixei enganar; na hora reconheci um mascarado e com prazer imputo essa descoberta a mim mesmo, pois vejo daqui seu nariz comprido: o senhor estava plenamente seguro de que eu tomaria como verdadeira essa máscara de bufão, obra de um pintor de fachadas. Saiba ainda que, se eu lhe respondi com tamanha desenvoltura, foi apenas por ter de imediato reconhecido no senhor um mascarado. Se o senhor fosse um sacerdote de verdade, eu, apesar de sua grosseria, que no fim de seu artigo chega a uma espécie de relincho vitorioso de seminarista, apesar de tudo, eu responderia “com compostura”, não em respeito à sua pessoa, mas em respeito ao seu título elevado, à ideia elevada que está contida nele. Mas, como o senhor não passa de um mascarado, levará um castigo. Começarei a castigá-lo explicando como eu o reconheci (entre nós, já adiantei exatamente quem se esconde por trás da máscara; mas não divulgarei o nome, vou guardá-lo algum tempo comigo), e, para o senhor, claro, será uma lástima...

– Mas, se já havia adivinhado, por que respondeu como se falasse a um sacerdote – o senhor questionará –, a troco de que escreveu tanto de antemão?

– A gente é recebida conforme o traje – respondo eu –, e, se escrevi algo desagradável ao “Sacerdote”, que isso fique na consciência do senhor que inventou essa história e fez uso do subterfúgio indecente de mascarar-se de sacerdote. Sim, um subterfúgio indecente, e ele mesmo o intuiu. Além do mais, tentou preservar-se quanto pôde. Ele não assinou “Sacerdote P. Kastórski”, mas usou uma abreviação: “Sac. P. Kastórski”! Apesar de tudo, se ele fosse seriamente denunciado, Sac. não é o mesmo que sacerdote. Sempre se pode dizer que ele se supunha um “sacerdotalista”, um amante do sacerdócio, ou algo do gênero.

Eu o reconheci, Sr. Mascarado, pelo estilo. Entenda, se puder, a questão principal: os críticos de hoje, provavelmente, também tecem elogios a alguns escritores-artistas contemporâneos, e o público fica até satisfeito com isso (afinal, o que ele teria para ler?). Mas faz muito tempo que a nossa crítica se degradou, assim como nossos artistas, que, em sua maioria, parecem pintores de fachadas, e não de quadros. Não todos, claro. Existem alguns com talento, mas, na maior parte, são impostores. Em primeiro lugar, Sr. Mascarado, no senhor tudo é exagerado. Será que não sabe o que significa falar por essências? Não sabe? Pois eu explicarei agora mesmo. Um escritor-artista atual, que cria tipos e reserva para si alguma especialidade literária (digamos, representar os comerciantes, os camponeses etc.), geralmente passa a vida com um lápis e uma caderneta na mão, surpreende as conversas e anota as palavras características, e no fim acaba juntando algumas centenas de palavrinhas características. Depois, o escritor começa a escrever um romance e, logo que um comerciante ou um clérigo se põem a falar em suas páginas, escolhe uma linguagem usando as anotações do caderninho. Os leitores caem na risada e fazem elogios, e tudo parece tão exato: escrito, palavra por palavra, com naturalidade, mas acontece que isso é pior do que a mentira, justamente porque o comerciante ou o soldado no romance falam por essências, quer dizer, como nem um nem outro jamais falaria naturalmente. Por exemplo, em estado natural, só depois de dez frases, será dita uma da qual o escritor tomará nota. A décima-primeira frase é característica e disforme, enquanto as dez primeiras são comuns, como as de qualquer pessoa. Mas na obra de um escritor-tipificador, a personagem só se expressa em traços característicos, conforme as anotações do seu caderno – e daí sai uma inverdade. Um tipo criado fala como num livro. O público pode elogiar, mas um literato velho e calejado não se deixará embromar.

E, na maior parte, é o trabalho de um pintor de fachadas, de um caiador. Entretanto, o “artista” considera-se, no final das contas, um Rafael; e não há como fazê-lo mudar de opinião! Tomar notas das tais palavrinhas é bom e útil e, sem isso, não se pode passar; mas não se deve utilizá-las de modo completamente mecânico. De fato, existem nuances até entre os “artistas de anotações”; apesar de tudo, um é sempre mais talentoso que outro, justamente porque o primeiro usa as palavras anotadas com cautela, conforme a época, o local e o desenvolvimento da personagem, e guardando certa proporção. Mas, de todo modo, do essencialismo não consegue escapar. Faz muito tempo que deixou de ser hábito de nossos artistas observar a regra preciosa de que a palavra dita é de prata, mas a não dita é de ouro. Falta de fé. O senso de medida praticamente desapareceu. Tomemos ainda, por fim, o fato de que nossos artistas (enquanto procedendo por clichês) começam a notar nitidamente os fenômenos da realidade, a prestar atenção em suas características, mas elaboram um tipo artístico já quando ele está prestes a cair e a desaparecer, degenerando-se em outro, conforme o andamento da época e a sua evolução, de modo que, quase sempre, o antigo nos é servido à mesa como novo. E eles mesmos acreditam que é algo novo, não transitório. No entanto, para o escritor-artista, semelhante observação é demasiado sutil; é provável que ele não a compreenda. Mesmo assim, direi que somente um escritor genial ou um talento muito intenso é capaz de reconhecer um tipo de seu tempo e de apresentá-lo a tempo; ao passo que a camada ordinária fica apenas nos calcanhares dele, quase que como escrava, trabalhando num modelo pronto.

Por exemplo, eu jamais encontrei um sacerdote, mesmo o mais altamente instruído, sem absolutamente quaisquer particularidades na fala que o relacionassem com seu meio e sua classe. Sempre há algum traço, mesmo que ínfimo. Entretanto, se a conversa fosse literalmente taquigrafada e depois publicada, talvez nenhuma particularidade desse sacerdote altamente instruído, há muito tempo membro da sociedade eclesiástica, fosse notada. Para o nosso “artista”, naturalmente, isso não é o bastante, e o público também já foi habituado a outra linguagem. Por exemplo, o povo simples das novelas de Púchkin, na opinião da maioria dos leitores, seguramente não fala de forma tão apropriada como nas obras do escritor Grigoróvitch, que passou a vida descrevendo os mujiques. Penso que essa é também a opinião de muitos artistas. Nosso “escritor-artista” não suportaria um sacerdote, por exemplo, que tivesse na fala poucos traços particulares, condicionados à classe e ao meio, e por isso não o colocaria em sua novela, mas, no lugar desse, usaria alguém mais característico. Dessa maneira, obriga-se um sacerdote de hoje, que vive sob determinadas circunstâncias e em determinado meio, a falar, às vezes, como um sacerdote do início do século, que viveu sob outras circunstâncias e em outro meio.

O sacerdote Kastórski começa como qualquer pessoa; por algum tempo quase nem nos lembramos de qual meio é oriundo.

Enquanto ele elogia o caráter artístico do escritor Leskóv, fala como qualquer pessoa, sem qualquer caracterização, nas palavras e nos pensamentos, que revele sua classe. Mas isso é necessário para o autor: é necessário manter-se encoberto para que o elogio literário soe mais sério, e a reprimenda ao Sr. Nedólin mais severa, já que uma frase mais patética e característica violaria o rigor da abordagem. Mas, de repente, ao perceber que o leitor pode não acreditar que se trata de um sacerdote escrevendo, o autor se assusta e lança-se de vez à tipificação, e sai logo com uma montanha inteira de tipicidades. A cada palavra, algo típico! Nessa confusão, naturalmente, revela-se uma tipificação falsa e desproporcional.

O principal indício de uma pessoa sem instrução que, por algum motivo, é obrigada a falar numa língua e numa concepção de outro meio é certa imprecisão no uso das palavras, cujo significado, suponhamos, ela até conhece, mas não todas as nuances de sua utilização na esfera da compreensão da outra classe. “... por isso não é possível passar por cima de tais incidentes nocivos...”, “... ignorância ... que se denunciou na mesma revista...”, “... nele se apresenta um subdiácono vozeador...” etc. O último termo, vozeador, já é por demais grosseiro; assim, o Sac. Kastórski, tentando mostrar conhecimento sobre essa pessoa, um cantor dotado de voz extraordinária, tenta expressar-se com a palavra “vozeador”. O autor-especialista esqueceu que, embora hoje em dia, decerto, se encontrem pessoas pouco instruídas no meio clerical, são extremamente poucas as que não chegam a entender o significado das palavras. Isso pode servir a um romance, Sr. Mascarado, mas não sustenta a realidade. Tal expressão equivocada só seria condizente com um sacristão, mas nunca com um sacerdote. Não vou no encalço de todas as suas expressões, mas, volto a insistir, há uma infinidade delas, tremendamente grosseiras, retiradas de sua caderneta. Mas o pior de tudo é como o autor-tipificador (quando falamos sobre o autor-artista, podemos visualizar um autor-artesão; o termo tipificador define um ofício, um mister) mostrou seu tipo sob um aspecto moral nada atraente. Apesar de tudo, era necessário ter apresentado o Sac. Kastórski como um homem digno, virtuoso, daí a tipicidade não teria atrapalhado em nada. Mas o tipificador colocou-se sozinho numa difícil situação, da qual ele não conseguiu escapar: ele precisava necessariamente insultar seu autor-cúmplice, zombar dele, e, mascarando-se pela segunda vez, devia também forçosamente impor a ele seus belos ímpetos. No que diz respeito aos milagres, o tipificador não se conteve de todo. Criou-se uma terrível estupidez: um clérigo que ridiculariza os milagres e ainda os divide entre extravagantes e não extravagantes! Isso não é nada bom, Sr. Tipificador.

Penso até que o “Sacristão” também é obra dessa mesma pena, pois, no fim, ele se mostra com a ingenuidade de um artesão desajeitado, justamente em seus “receios”, que em nada primam pela razão. Em suma, senhores, toda esta pintura de fachada, suponhamos, ainda pode ser aceita nas novelas, mas, digo outra vez, não resiste ao choque com a realidade, sendo desmascarada no ato. Enganar um velho literato, senhores-artistas, não é para o seu bico.

O que seria isso tudo? Uma brincadeira? Ah, não, não há nada de brincadeira aqui. Isso, por assim dizer, é o darwinismo, é a luta pela sobrevivência. Não se atreva a meter a foice em seara alheia, não é o que dizem? E como o Sr. Nedólin poderia prejudicá-los? Asseguro que ele não tinha nenhuma pretensão de descrever os costumes do clero, fiquem absolutamente tranquilos. De fato, por um instante, fui desnorteado por uma estranha circunstância: se o tipificador mascarado atacou o Sr. Nedólin, deveria, por oposição, ao censurá-lo, enaltecer-se a si mesmo. (Quanto a isso, essas pessoas não têm a menor dignidade: de modo totalmente despudorado, estão sempre prontas para tecer elogios a sua própria pessoa e publicá-los.) Entretanto, para minha grande surpresa, o tipificador tece elogios ao talentoso Sr. Leskóv, e não a si mesmo. Aqui existe algo de estranho, que, muito provavelmente, ainda se esclarecerá. Mas o mascarado não levanta nem sombra de dúvida.

E o que O mundo russo tem com tudo isso? Decididamente, não sei. Não tenho e nunca tive ou pretendi ter relações com O mundo russo. Só Deus sabe por que as pessoas se sobressaltam.

[O cidadão, no 18, 30 de abril de 1873, págs. 533 a 538]

 

O mundo russo (Rússki mir), revista econômica e político-literária de tendências nacionalistas, editada entre 1871 e 1880. Opunha-se ao liberalismo e ao cosmopolitismo, atacando o Ocidente como fonte de corrupção.?

Esse artigo, de abril de 1873, foi escrito na verdade por Leskóv, sob o pseudônimo de Sac. Kastórski. Dostoiévski e Leskóv tinham concepções artísticas e filosóficas conflitantes, e essas diferenças se tornaram mais aparentes depois de 1860. Neste artigo, Dostoiévski expõe sua noção de “realismo”, contraposta à dos escritores “realistas” de 1870, em que se inseria Leskóv, e que propunham uma aproximação do povo russo por meio de pesquisas quase etnográficas. Apesar das polêmicas, Dostoiévski e Leskóv se respeitavam muito.?

Memórias de um vigário (1870), romance de M.A. Vilínskaia (1833–1907), escritora, poetisa, tradutora e folclorista de origem ucraniana, amiga próxima de Turguêniev, Herzen, e outros. Escrevia sob seu pseudônimo de Markó Vovtchók.?

O artigo “Sobre a libré do corista” também foi escrito por Leskóv, em abril de 1873, sob o pseudônimo de “um sacristão”.?

Kontusz, espécie de roupão polonês em estilo oriental, normalmente de cores vivas, decorado de botões e com mangas longas e largas.?

Aziám (plural aziámy), antigo traje camponês russo, espécie de roupão de lã rústica.?

Ver nota 3 do capítulo Um ar perturbador.?

A época do patriarcado se iniciou no século XV e perdurou até 1721, quando Pedro, o Grande (1672–1725), aboliu esse sistema, submetendo a Igreja ao Estado. Em 1917, o patriarcado volta a ser a organização oficial da igreja russa ortodoxa e o patriarca sua figura mais elevada.?

Referências fundamentais à formação da Rússia: Iarosláv, o Sábio (978–1054), príncipe de Kiev, e Dmítri Donskói (1350–1389), príncipe moscovita.?

Trecho do poema “Imitação do Salmo 14”, de N.M. Iazýkov (1803–1847), poeta romântico russo.?

Em russo, o termo “poema” pode ser aplicado a textos em prosa, apesar de ser normalmente usado para designar poemas longos, quase sempre épicos (para poemas curtos, costumam usar “stikh”).?

No original, kholostói: “solteiro”, “celibatário”, e também “sem carga”, “inútil”, “ineficiente”.?

Reinado conjunto da Moldávia e Valáquia (na atual Romênia), que existiu entre 1861 e 1881.?

Alusão ao romance Na ponta da faca (1871), de Leskóv.?

Comédia de Gógol, escrita em 1835 (citada imprecisamente por Dostoiévski).?


Devaneios e delírios

No último número de O cidadão, voltamos a falar sobre alcoolismo, ou melhor, sobre a possibilidade de cura dessa chaga popular, sobre nossas esperanças, sobre nossa fé num futuro próximo melhor. No entanto, há tempos que a tristeza e a dúvida invadiram-me o peito. Decerto, em vista de questões tão importantes em curso (e todos aqui têm o aspecto de importantes homens de negócios), não há tempo e é até tolice pensar no que acontecerá daqui a dez anos ou no fim do século, quer dizer, quando já não estaremos aqui. O lema do verdadeiro homem atuante de nosso tempo é après moi le dèluge.1 Mas, às pessoas ociosas, pouco práticas e sem ocupação, é de fato perdoável devanear a posteridade de vez em quando, isso se forem capazes de devanear. Popríschin (Diário de um louco,2 de Gógol) devaneava sobre assuntos espanhóis: “... todos esses acontecimentos me marcaram e me abalaram tanto que eu...” etc., escrevia ele quarenta anos atrás. Reconheço que às vezes muitas coisas me deixam abalado e, realmente, ando desanimado com meus devaneios. Por exemplo, por dias devaneei na situação da Rússia como a de uma grande potência europeia, e o que não me passou pela cabeça sobre este triste tema?!

Consideremos apenas que, custe o que custar e o quanto antes, precisamos nos tornar uma grande potência europeia. Suponhamos, contudo, já sermos uma grande potência, apenas quero dizer que isso tem nos custado muito – muito mais do que às outras grandes potências, o que é um péssimo sinal. De modo que nossa situação, a meu ver, se revela antinatural. Apresso-me, no entanto, a fazer uma ressalva: julgo unicamente sob o ponto de vista ocidentalista, e é apenas sob esse ponto de vista que isso se revela dessa maneira. Já coisa bem diferente é o ponto de vista nacionalista e, por assim dizer, um pouco eslavófilo; aqui, como é sabido, há uma crença numa espécie de força interior e genuína do povo, em certos princípios populares, absolutamente únicos e originais, que, sendo inerentes ao povo, o salvam e o sustentam. No entanto, os artigos do Sr. Pýpin3 me fizeram voltar a mim. Evidentemente, eu desejo e continuarei desejando como antes, com todas as minhas forças, que esses princípios preciosos, sólidos e independentes, inerentes ao povo russo, existam de fato; mas os senhores hão de convir também que esses princípios, que o próprio Sr. Pýpin não vê, não escuta e não nota, estão ocultos, esconderam-se e não querem ser encontrados de jeito nenhum. Por isso, a contragosto, só me resta satisfazer-me sem os princípios que tanto confortam a alma. Parece-me que, por enquanto, estamos apenas nos moldando à posição de grande potência, esforçando-nos ao máximo para que os vizinhos não percebam logo essa situação. Nesse aspecto, a ignorância europeia generalizada em tudo o que tange à Rússia pode nos ser de grande ajuda. Pelo menos, esta ignorância, que até hoje não foi desmentida, é uma circunstância que não devemos lamentar em nada; pelo contrário, para nós, não seria nada vantajoso se nossos vizinhos nos olhassem mais de perto e intimamente. O fato de eles não terem compreendido nada a nosso respeito constitui uma força poderosa. Só que é aí que está o problema: infelizmente, agora, ao que parece, eles começam a nos entender melhor do que antes, o que é muito perigoso.

Um vizinho gigantesco vem nos estudando de modo incansável e, ao que parece, já nos conhece inteiramente. Sem entrar em detalhes, tomem, senhores, as coisas mais evidentes, as que saltam aos olhos. Tomem o nosso espaço e as nossas fronteiras (povoadas por minorias étnicas e por estrangeiros, que, ano após ano, fortalecem cada vez mais a própria individualidade étnica e, em parte, os elementos das terras vizinhas); então ponderem: em quais pontos somos estrategicamente vulneráveis? Precisamos de tropas muito maiores que as de nossos vizinhos para defender tudo isto (na mera opinião de um civil). Tomem ainda o fato de hoje combaterem não tanto com armas quanto com ideias, e os senhores hão de convir que essa última circunstância nos é particularmente desvantajosa.

Nos tempos atuais, praticamente a cada década, ou até com mais frequência, os armamentos se modificam. Daqui a uns quinze anos, talvez já não se atire com o rifle, mas com uma espécie de raio, de jato elétrico incendiário vindo de uma máquina qualquer. Digam: o que nós podemos criar nesse sentido para ter uma surpresa de reserva contra nossos vizinhos? E, se daqui a uns quinze anos, para qualquer eventualidade, cada grande potência passasse a conservar, em sigilo, uma dessas surpresas? Lamentavelmente, podemos apenas copiar ou comprar armamentos de fora, e, quando muito, consertá-los. Para criar tais máquinas, é preciso de uma ciência independente, não comprada; de uma ciência própria, não imitada; de uma ciência enraizada e livre. Ainda não temos uma ciência como essa, nem sequer temos uma comprada. Tomem ainda, senhores, as nossas estradas de ferro, considerem as nossas extensões e as nossa pobreza, comparem as nossas capitais com as capitais de outras grandes potências; então ponderem: quanto nos custará construir a rede ferroviária que nos é indispensável na qualidade de grande potência? Notem ainda: entre as outras potências, as vias férreas foram construídas há muito tempo e gradualmente, enquanto somos obrigados a nivelar nossa situação às pressas; lá as fronteiras são reduzidas, enquanto as nossas são quase todas transoceânicas. Já começamos a sentir duramente o quanto nos custou apenas ter iniciado a construção de nossa rede ferroviária, como isso foi marcado por um desvio pesado de capital, nem que seja de nossa pobre agricultura ou de qualquer outra indústria. Aqui não se trata tanto da soma de dinheiro quanto do nível de esforço da nação. No entanto, essa conta não terá fim se calcularmos, ponto a ponto, nossas necessidades e nossas carências. Tomem, por fim, a educação, quer dizer, a ciência, e notem o quanto ainda precisamos fazer para nos nivelarmos aos outros. Pelo meu reles raciocínio, deveríamos gastar anualmente na educação pelo menos o mesmo que gastamos no exército, isso se quisermos alcançar qualquer uma das grandes potências, mas sempre levando em consideração que perdemos muito tempo, que não temos tanto dinheiro e que, no final das contas, isso será somente uma sacudida, e não um processo normal, será, por assim dizer, um empurrão, e não uma instrução de fato.

Tudo isso é um devaneio meu, evidentemente, mas... repito, às vezes devaneamos nessas coisas involuntariamente, e por isso continuo a devanear. Notem que avalio tudo em função do dinheiro, mas será o cálculo adequado? Nem tudo é comprado com dinheiro, como qualquer negociante ignorante de uma comédia do Sr. Ostróvski seria capaz de concluir. Com dinheiro, por exemplo, escolas são construídas, mas não se fazem professores de uma hora para outra. O professor é uma peça fina; um professor do povo, da nação, forma-se ao longo de séculos, mantém-se por tradições populares, por uma experiência incalculável. Suponhamos, no entanto, que com dinheiro seja possível produzir não só professores, mas até cientistas; e então? De qualquer modo, não se produzem pessoas. De que adianta ser um erudito se não compreende o processo? Ele pode ter aprendido a pedagogia e até lecioná-la perfeitamente bem em sua cátedra, mas, mesmo assim, não se tornará um pedagogo. Pessoas, pessoas... eis o que há de mais valioso. Pessoas são mais caras que o dinheiro. Pessoas não são compradas na feira, por dinheiro nenhum, porque pessoas não são vendidas e compradas, são, mais uma vez, formadas ao longo de séculos; mas, para isso, é preciso de tempo, e vinte e cinco ou trinta anos não são o bastante, mesmo aqui, onde, há uma eternidade, os séculos não significam nada. Um homem de ideias e das ciências independente, um homem atuante que age com autonomia, só se forma através de uma longa vida de independência da nação, à custa de um trabalho secular e de muito sofrimento; em resumo, forma-se através de toda a história de um país. Bem, nos últimos dois séculos, a nossa história não foi independente de todo. Só que é absolutamente impossível acelerar artificialmente os momentos históricos, necessários e permanentes da vida de um povo. Presenciamos um exemplo disso aqui mesmo que até hoje perdura: ainda há dois séculos4 quisemos nos apressar e antecipar tudo, mas, em lugar disso, estagnamos – apesar de todas as exclamações solenes de nossos ocidentalistas, com toda a certeza estagnamos. Nossos ocidentalistas são aqueles que, com uma alegria maldosa e ar triunfal, trombeteiam em todas as cornetas que não temos ciência, bom senso, paciência ou destreza; que só nos foi concedido o direito de nos arrastarmos atrás da Europa, de a imitarmos em tudo servilmente; e que, tendo em vista a tutela europeia, mesmo pensar em nossa independência seria um crime. E, se amanhã alguém abrir a boca para colocar em dúvida a força inquestionavelmente salutar da mudança ocorrida entre nós, no ato começarão a gritar, em uníssono, que todos os nossos sonhos de autonomia do povo não passam de kvás, kvás e kvás,5 que, há dois séculos, de uma turba de bárbaros nos transformamos num povo europeu, educado e feliz, e que devemos nos lembrar disso com gratidão até o túmulo.

Mas deixemos os ocidentalistas de lado e suponhamos que tudo possa ser feito com dinheiro, até mesmo comprar o tempo ou reproduzir a originalidade da vida a todo vapor, e então nos perguntamos: onde conseguir tanto dinheiro? Quase metade do nosso orçamento atual é custeada pela vodca, ou seja, pelo atual estado de embriaguez e de depravação do povo, quer dizer, pelo futuro do povo. Por assim dizer, pagamos com o nosso futuro o orçamento imponente de uma grande potência europeia. Cortamos a árvore pela raiz para obter o fruto mais depressa. E quem decidiu isso? Isso aconteceu involuntariamente, por si só, conforme o andamento rigoroso dos acontecimentos históricos. Liberto pela grande declaração do monarca, nosso povo, inexperiente em sua nova vida e ainda sem poder viver de modo genuíno, começou a dar seus primeiros passos no novo caminho: uma ruptura gigantesca e extraordinária, quase repentina, e, por sua integridade e caráter, quase nunca vista na história. Esses primeiros passos, já próprios, de um bogatyr6 liberto, rumo ao novo caminho, exigiam um grande risco e muitas precauções; e, no entanto, com o que o nosso povo se deparou? Com a instabilidade das camadas superiores da sociedade, enraizada por séculos na alienação da nossa intelligentsia (eis o ponto principal) e, para arrematar, com a mesquinhez e os jidy. O povo começou a farrear e a beber – no início com alegria, depois por hábito. Será que lhe mostraram algo melhor do que a mesquinharia? Será que tentaram entretê-lo, será que lhe ensinaram alguma coisa? Ultimamente, em algumas localidades, até em muitas delas, abrem-se tabernas não para centenas de moradores, mas para dezenas, e para poucas dezenas. Há localidades em que, para cada meia centena de pessoas, existe uma taberna, e até para menos. O cidadão já noticiou, em artigo especial, o orçamento detalhado de uma de nossas tabernas atuais: é impossível supor que possam sobreviver unicamente com a venda de bebidas alcoólicas. E como cobrem os gastos? Com a depravação do povo, o roubo, a receptação, a usura, o banditismo, a destruição da família, a desonra popular, é assim que cobrem os gastos!

As mães e as crianças bebem, as igrejas estão desertas, os pais vivem de rapina; a mão de bronze de Ivan Sussánin7 foi serrada e levada a uma taberna, e a taberna a aceitou! Questionem a medicina: que tipo de geração pode nascer desses beberrões? Que seja, que seja (entrego a Deus!), que seja apenas um sonho pessimista, cujo infortúnio foi dez vezes ampliado! Temos fé e queremos tê-la, mas... se nos próximos dez ou quinze anos a inclinação do povo para a bebida (que, apesar de tudo, é incontestável) não diminuir, se ela se mantiver e, consequentemente, ainda se desenvolver, esse devaneio não se justificaria? Para nós, é indispensável possuir um orçamento de uma grande potência, e por isso é preciso de muito e muito dinheiro; então questionamos: quem irá contribuir depois de quinze anos se a ordem atual persistir? O trabalho, a indústria? Claro, um orçamento correto deveria ser garantido pelo trabalho e pela indústria. Mas como esse trabalho seria produzido diante de tais tabernas? Não há outro meio de surgir capital verdadeiro e adequado num país se não com base no bem-estar geral do trabalhador, do contrário, só será criado capital entre os jidy e os kulaki.8 Assim será se as coisas continuarem dessa maneira, se o próprio povo não voltar a si e se a intellingentsia não o ajudar. Se não voltar a si, num curtíssimo prazo, o povo inteiro cairá inteiramente nas mãos de toda a espécie de jid, e, a essa altura, nenhuma comunidade9 o salvará: restarão apenas solidários miseráveis, endividados e escravizados por toda a comunidade; e, no lugar deles, os jidy e os kulaki irão custear o orçamento. Surgirão pequeno-burgueses infames e libertinos, e uma quantidade sem-fim de miseráveis escravizados – eis a cena que se delineará! Os jidy irão beber o sangue do povo e se alimentar de sua depravação e humilhação, mas, como irão sustentar o orçamento, será preciso apoiá-los. Que sonho ruim, que pesadelo, mas, graças a Deus, é apenas um devaneio! Um devaneio do conselheiro titular Popríschin, concordo. Nada disso, porém, se cumprirá! Não foi só uma vez que o povo viu-se obrigado a salvar-se. Ele achará em si a força protetora que sempre achou; encontrará em si os princípios protetores e salvadores que a nossa intellingentsia jamais encontrará nela mesma. Ele, por si só, deixará de desejar a taberna, e, em vez disso, desejará o trabalho e a ordem, desejará a honra, e não a taberna!...

E, graças a Deus, parece que tudo isso está se confirmando, aos menos, há indícios; já mencionamos aqui as sociedades de abstinência. É verdade que elas mal começaram – as tentativas são fracas, quase imperceptíveis –, mas que não atrapalhem seu desenvolvimento com o uso de certos pretextos! Pelo contrário, deem apoio! Ah, se elas recebessem apoio de nossas mentes mais progressistas, de nossos literatos, de nossos socialistas, de nosso clero e de todos, de todos aqueles que se exaurem escrevendo mensalmente na imprensa sob o peso de uma dívida com o povo... Se recebessem apoio do professor escolar que surge agora... Sei que não sou um homem prático (agora, depois do conhecido discurso do Sr. Spassóvitch,10 confessá-lo chega a ser lisonjeiro), mas, imaginem os senhores, veio-me à mente a ideia de que até o mais pobre dos professores escolares poderia fazer muita coisa apenas com sua própria iniciativa, apenas com o desejo de realizar! E tudo consiste nisso, na importância de um indivíduo, de seu caráter; o importante é o homem atuante que é realmente capaz de desejar. Agora, entre nós, na maior parte das vezes, para ocupar o lugar de professor, aparecem jovens que, mesmo dotados de boas intenções, desconhecem o povo e são desconfiados e cheios de cismas; depois dos primeiros esforços, por vezes calorosos e nobres, eles ficam logo fatigados, encaram tudo de modo sombrio, passam a considerar o seu lugar uma transição para outro melhor e, depois, caem numa bebedeira definitiva ou, por dez rublos a mais, largam tudo e vão para qualquer canto, até para a América, “para experimentar um trabalho livre num Estado livre”. Isso já aconteceu e, pelo que dizem, continua acontecendo. Lá, na América, um empresário infame qualquer os extenua num trabalho manual grosseiro, engana-os na conta e até chega a surrá-los, e, a cada surra, eles exclamam consigo, tomados de comoção: “Meu Deus, como no meu país essas surras são retrógradas e abomináveis e como aqui, ao contrário, são nobres, agradáveis e liberais!”. E por muito tempo assim lhes parecerá; não mudarão de convicção por uma ninharia dessas! Mas deixemo-los na América; e eu continuarei com a minha ideia. Só para recordar, a ideia diz que até o mais insignificante dos professores de aldeia poderia, se quisesse, tomar o lugar dianteiro, tomar toda a iniciativa de livrar o povo de sua paixão bárbara pela bebida. A respeito disso, tenho até um enredo para uma novela e arriscarei, talvez, contá-lo ao leitor antes mesmo de escrevê-la...

[O cidadão, no 21, 21 de maio de 1873, págs. 606 a 608]


Em francês, no original: “depois de mim, o dilúvio”. Frase atribuída a Luís XV (1710–1774).?

Diário de um louco, conto de Gógol escrito em 1835. Nele, a personagem Popríschin vai perdendo progressivamente a razão, até que, influenciado pela leitura de jornais, acredita ser o rei da Espanha.?

A.N. Pýpin (1833–1904), crítico literário, colaborador das revistas O contemporâneo e Anais da Pátria. Era primo de Tchernychévski. Ver nota 6 do capítulo Algo pessoal.?

Dostoiévki se refere às transformações desencadeadas pelo reinado de Pedro, o Grande, visando à europeização e à modernização da sociedade e do Estado russos. Tal projeto teve com símbolo a construção de São Petersburgo.?

Ver nota 7 do capítulo O meio.?

Ver nota 15 do capítulo Vlás.?

O camponês Sussánin (? -1613) é um herói lendário russo que, segundo a tradição, salvou a vida de Mikhail Fiódorovitch (1596–1645), o primeiro tsar da dinastia Románov. Conforme uma das versões, Sussánin, da aldeia de Kostromá, teria guiado os poloneses que perseguiam o tsar por um caminho tortuoso para despistá-los, sendo por isso morto. Dostoiévski se refere a uma notícia publicada em 15 de janeiro de 1873 em O cidadão, sobre o furto da mão da estátua de Sussánin ocorrido na aldeia de Kostromá, observa a edição russa (Op.cit.).?

Kulák (plural kulaki), em russo, camponês enriquecido. Jid (plural: jidy), palavra pejorativa para “judeu”.?

No original, obschina, comunidade autônoma de camponeses.?

V.D. Spassóvitch (1829–1906), advogado, escritor e historiador, famoso por seus discursos, por suas convicções liberais e por seu domínio da retórica jurídica. A menção irônica se refere à defesa que Spassóvitch fez do escritor A.I. Palm (1822–1885), justificando os desvios de dinheiro público de seu cliente por se tratar de um homem “não prático”.?


A propósito de um novo drama

Este é um novo drama, o drama do Sr. Kichénski, Beber pra danar boa coisa não dá,1 do qual resolvemos publicar, neste 25º número de O cidadão, os três últimos atos de uma vez, mesmo que eles ocupem quase metade da revista. É que não queríamos que as impressões fossem parceladas, e talvez os leitores concordem que o drama merece particular atenção. Ele foi escrito para um teatro popular, e escrito com conhecimento de causa, clareza e inquestionável talento, o que é o principal, especialmente agora, quando novos talentos são tão raros.

Todas as personagens são pessoas do cotidiano de uma fábrica, de uma “aldeia fabril”, excepcionalmente variadas e solidamente caracterizadas. O enredo é evidente, e não vamos contá-lo em detalhes. Trata-se de uma reflexão séria e profunda. Essencialmente uma tragédia, seu fatum2 é a vodca – a vodca tudo interliga, invade, orienta e arruína. De fato, o autor, como um verdadeiro artista, não podia deixar de trazer uma visão ampla do mundo retratado por ele, apesar de o tema já ter sido anunciado no título da peça – Beber pra danar boa coisa não dá. Além disso, aqui está refletido o grande abalo econômico e moral sentido depois da enorme reforma promovida pelo atual reinado. O mundo anterior, a ordem anterior – que era muito ruim, mas, ainda assim, uma ordem – desapareceu irremediavelmente. Mas algo estranho acontece: os aspectos morais obscuros da antiga ordem – egoísmo, cinismo, servidão, falta de união, venalidade – não somente não desapareceram com a abolição do regime de servidão, como se fortaleceram, se desenvolveram e se multiplicaram; enquanto quase nada restou dos aspectos morais positivos da vida anterior, que, apesar de tudo, existiam. Tudo isso também se reflete no quadro do Sr. Kichénski, pelo menos da maneira como o entendemos. Aqui tudo é transitório, tudo é instável, e, infelizmente, não há nem alusões a um futuro melhor.

O autor, de modo enérgico, aponta para a educação como a salvação, como sendo a única saída; mas, por enquanto, a vodca apoderou-se de tudo, envenenou tudo e tornou tudo pior; aprisionou e escravizou o povo. O que pinta o Sr. Kichénski é o quadro sombrio e terrível deste novo tipo de escravidão, no qual o camponês russo subitamente caiu ao sair de sua antiga servidão.

Aqui há tipos de duas categorias – pessoas obsoletas e pessoas novas, as da jovem geração.

O autor conhece a nova geração. Esses tipos, seus prediletos, apontados como a esperança do futuro, o ponto luminoso do quadro sombrio, saíram-se bastante bem (o que é muito estranho, visto que os tipos “positivos”, em sua maioria, não são retratados com êxito pelos nossos poetas). Pelo menos, Maria saiu irrepreensível. Ivan, o noivo dela, já não saiu tão bem, apesar de ter sido retratado com fidelidade. Um rapaz jovem, bonito, corajoso, instruído, que viu e conheceu muitas coisas novas, bondoso e honesto. Seu maior defeito vem do fato de o autor ter se afeiçoado demais a ele, de tê-lo apresentado com traços demasiado positivos. Se ele o tivesse tratado de maneira um pouco mais negativa, a impressão do leitor teria sido mais favorável ao herói predileto do artista. De fato, como artista refinado, o autor não evitou os traços de caráter menos vantajosos de seu Ivan. Ivan possui muita energia e capacidade intelectual, mas é jovem e arrogante. Magnânimo, acredita na verdade e num caminho justo, mas mistura a verdade com os homens e, de maneira injusta, exige deles o impossível. Por exemplo, ele conhece algumas leis, de modo que o escrivão Levanid Ignátitch tem certo receio de atacá-lo de frente; só que Ivan acredita no próprio conhecimento com tanta ingenuidade que fica desarmado ante a maldade – não apenas não compreende o perigo, como nem o pressupõe. Tudo isso é tão natural e daria algo tão formidável, pois é assim que a personagem deve ser. Além disso, o autor não deixou escapar uma quantidade imensa de detalhes muito simpáticos: ao compreender toda a vilania dos canalhas (ainda por cima, hostis a ele), Vânia,3 um jovem forte e cheio de frescor, a quem tudo ainda parece encantar, não os despreza como deveria – diverte-se com eles, canta canções. Este traço juvenil atrai tremendamente o leitor. Mas, insistimos, o autor se afeiçoou demais a seu herói e, em nenhum momento, decidiu olhar para ele de cima. E isso nos parece pouco para revelar, com fidelidade, todas as características dessa figura; decididamente é necessário iluminá-la com uma visada artística mais apropriada. Para um verdadeiro artista, não há possibilidade de ficar no mesmo nível da personagem retratada, satisfazendo-se apenas com sua verdade realista: isso não causará uma impressão da verdade. Com uma gota, uma gotinha apenas de ironia do autor sobre a autoconfiança e a arrogância juvenil do herói, este se tornará mais encantador para o leitor. Ou então o leitor vai achar que o autor quis representar seu herói assim mesmo, absolutamente ignaro de todas as desgraças que desabariam sobre ele.

As demais personagens da jovem geração – indivíduos perdidos praticamente desde a infância, a “geração sacrificada” –, revelaram-se ainda mais exatas do que os tipos “positivos”. Essas se dividem em duas categorias: inocentes e culpados. Há, por exemplo, uma menina (Matriocha) que é uma criatura sacrificada e infeliz, e, o pior de tudo, sentimos que ela não é a única da sua espécie, que destas criaturas “infelizes” há aos montes na Rus, as aldeias estão repletas, um abismo sem-fim. A fidelidade dessa imagem obriga qualquer pessoa com coração e com um olhar consciente do futuro a horrorizar-se. Essa geração surge já depois da reforma. Desde a primeira infância, a menina encontrou uma família desmoralizada e cínica, numa bebedeira generalizada, e, depois, caiu diretamente na fábrica. Pobre menina! Ela se entrega à devassidão talvez desde os doze anos de idade, quase sem consciência de que é uma devassa. Num Natal, ela volta da fábrica para passar alguns dias na aldeia e fica sinceramente surpresa com o fato de sua velha amiga, uma moça da aldeia chamada Macha,4 preferir a honra aos ornamentos: “Eta, Stepan Zakhárytch, a gente logo vê a ignorância!” diz ela. “Grande coisa um comerciante ou um sinhô brincar com uma moça,” diz com plena convicção da realidade e de sua verdade. E, tendo-se apiedado de Macha e dos aldeões depois de a amiga ter repelido o comerciante velhaco, Matriocha diz a Stepan sem rodeios: “Que vontade de puxar conversa com este povo! Uns fanhosos! Outra, no lugar dela, saía rindo! Ia seduzir e aceitar, ia tirar proveito e deixar o irmão contente!”. E, finalmente, quando esta infeliz põe um sonífero no copo de Macha, tendo o comerciante combinado violar a pobre e honesta amiga inconsciente, quando, para ver se a vítima já havia adormecido, a infeliz sobe na estufa, não apenas o faz sem consciência do mal, mas plenamente convencida de que concedia à Macha, à sua velha amiga, uma coisa boa, um favor pelo qual ela ainda lhe seria grata. No quinto ato, durante a última e terrível catástrofe, nada perturba Matriocha, nem o desespero de Macha, do pai e do noivo, nem o assassinato prestes a acontecer: era uma moça absolutamente sem coração – e onde ela poderia arranjar um? Ela encolhe os ombros e diz sua palavra favorita: “ignorância!”. O autor evocou essa exclamação, esboçando o traço artístico extremo dessa personagem. Que destino trágico! Um ser humano transformado num verme podre, plenamente satisfeito consigo e com seu lastimável horizonte.

Aqui existe a questão do meio, existe a questão do fatum; essa infeliz não tem culpa, e os senhores o compreendem; mas há outra personagem, a mais completa do drama: um jovem operário da fábrica, mirrado, macilento e libertino, o irmão de Macha, que depois a venderá ao comerciante por trezentos rublos e um casaco de veludo – ah, sim, esse é um tipo da geração “sacrificada” da categoria dos culpados. Aqui já não se trata apenas do meio. É verdade que as condições são as mesmas, assim como o meio é o mesmo: alcoolismo, a família desagregada e a fábrica. Mas, à diferença de Matriocha, esse acredita sem nenhuma ingenuidade na depravação. Ele não é um infame ingênuo como ela e, com paixão, imprime à infâmia uma marca pessoal. Sabe o que significa a depravação e o que significa a decência, mas, com consciência, adora a depravação e despreza a honestidade. De modo deliberado, renega a antiga ordem familiar e os costumes; de fato, é tolo e inexpressivo, mas nele existe uma espécie de entusiasmo pela libertinagem e pelo tipo mais infame e cínico de materialismo. Já não é apenas um vermezinho como Matriocha, tão pequena e ressequida. Ele é membro da skhodka do mir5 da aldeia, mas, como é perceptível, já não é capaz de entendê-la, assim como não é capaz de entender que não pertence mais a “esse mundo”, que com ele rompeu em definitivo. Sem qualquer remorso, vende a irmã e, na manhã seguinte, aparece na isbá do pai, no palco do desespero, usando o casaco de veludo e segurando um novo acordeão. Existe só uma coisa que ele acredita onipotente: a vodca. Com modos rudes mas precisos, diante de quem for, ele enche os copos de vodca – amarga para os homens e doce para as mulheres –, seguro de que tudo será feito à sua maneira e de que a vodca pode tudo. Em sua caracterização, numa ironia completa, o absoluto cinismo convive com a necessidade dos velhos modos cordiais, da tradicional cortesia aldeã. Ao chegar à aldeia e antes de ir ver sua mãe, ele se mete numa taberna e lhe compra cordialmente uma vodca doce. Quando ele e Matriocha atraem a mãe para a taberna, para que, com mais liberdade, possam conseguir dela permissão para a venda de sua própria filha ao comerciante e para a violação da moça, aquele, cordialmente, antes de qualquer coisa, enche um copo de vodca e, indicando um lugar, diz: “Faz favô, mãinha,” e essa fica muito satisfeita com a “cortesia”. Depois de lerem o primeiro ato da peça, algumas pessoas censuraram nosso autor por ele ter usado a linguagem dos camponeses em estado demasiado natural, afirmando que ela poderia ter sido mais literária. Essa naturalidade na linguagem também nos incomodou; tudo deve ser artístico. Mas, lendo o drama com atenção e pela segunda vez, os senhores irão forçosamente concordar que seria impossível modificar a linguagem, pelos menos em alguns trechos, sem enfraquecer a caracterização. Esse “faz favô, mãinha” não poderia ter sido mudado: não sairia tão infame. E reparem que o filho tem tanto respeito por essa “mãinha” tola, desagradável e velha quanto pela sola de seu sapato.

Vejam as palavras trágicas do pai desta família, um velho dado a bebidas, sobre a “geração sacrificada”:

(Toma um cálice de vodca). Meus amigos beberrões, pensem bem: esse operário passa a semana toda sentado atrás dum tear, as mãos e os pés ficam dormentes, e na cabeça parece que entrou uma névoa! E parece que todo mundo endoideceu! E ninguém tem aspecto de gente viva lá, não! Em casa, o ar é de sufocar, as paredes mofadas – não dá nem pra olhar! O sol não se mostra num lugar desses. Só nos dias de feriado! Daí, amigos, chega então o feriado: o vovô aqui vai lendo a bíblia, e o outro vai até o campo pra ver o trigo crescer, ou até o bosque, ou atrás de abelhas, ou vai falar com a vizinhança, quer dizer, sobre o ziêmstvo,6 a skhodka ou o preço do trigo – digam, pra onde é que um operário pode ir? O que é que ele tem pra falar? Pois, pra ele, tá tudo medido, tá tudo pesado. Será que ele vai falar sobre a multa que tomou sem saber por quê? Ou sobre as provisões podres que vendem pra ele? Ou será que é sobre os dois rublos e cinquenta de chá que levam dele no lugar de um? Ou vai falar que não deixam atravessar os portões, só pra ele ter que comprar as provisões ali e também pra ter mais indecências? Será que é sobre isso?! Quer dizer, ele só conhece o caminho do botequim! E pra falar só tem vodca e indecências.

É isso mesmo!

Pensem, amigos, a gente também quer uma folguinha! E juventude! Então a gente entra numa roda de dança,7 muita canção e risadinha – daí chega um policial e dispersa todo mundo! Todos, juntados num bando, se mandam pro botequim, pra taberna! E lá vêm os mexericos, falam sobre as moças, sobre quem consegue beber mais! Mas espiem o que é que fazem nas fábricas! Mocinhas de 12 anos andam atrás de amantes! Os garotos que enrolam os carretéis bebem vodca feito água! Na fábrica fazem obscenidades e malcriações sem parar – é o inferno! As crianças pegam tudo dos adultos! Para a desgraça dos nossos filhos, nós mesmos é que mandamos todos eles pra lá! Será que ali a gente acha pelo menos uma moça sem ser uma depravada ou um rapaz sem ser um bêbado?

Mas a cena mais característica deste drama popular está no terceiro ato, o encontro da skhodka do mir. Uma ideia forte está colocada neste episódio do drama. A skhodka é tudo o que restou de sólido e de fundamental da organização popular russa, é sua principal ligação com a tradição e sua principal esperança no futuro – e, no entanto, esse mesmo conselho já traz em si o início de sua desagregação, seu conteúdo está doente. Os senhores percebem que muita coisa não passa de aparência, que seu espírito, sua verdade secular, estremeceu – estremeceu com as pessoas que vacilaram.

Nesta assembleia, aceitou-se uma mentira escandalosa: contrariamente ao costume e à lei, o filho único de uma viúva (Ivan, o herói do drama) é mandado para o serviço militar no lugar de um dos três filhos de uma família abastada,8 e, para piorar, isso é feito de modo consciente, em troca de vodca e de dinheiro, com um desrespeito deliberado pela verdade e pelos costumes. Aqui nem se trata tanto do suborno; o suborno não é necessariamente tão grave, ele pode ser um crime isolado e corrigível. Não, aqui quase tudo acontece precisamente em função de um desrespeito deliberado por si próprio, pela própria justiça e, dessa maneira, pela própria organização da vida. Contrariando as tradições e a antiga ordem, o cinismo de cara transparece na permissão para cair na bebedeira dada no início da reunião: “é de pileque que se julga melhor,” os líderes da assembleia fazem troça. Metade dos cidadãos ali reunidos, há muito tempo, não acredita mais na força de decisão do mir e, consequentemente, em sua necessidade; praticamente o considera uma formalidade inútil, que sempre pode ser contornada. Contorná-la é possível e até necessário, mesmo em detrimento da verdade e em prol do primeiro lucro que vier. Pouco tempo se passa e sentimos que esses novos sabichões consideram essa cerimônia uma grande tolice, um fardo inútil, porque a sentença da skhodka, a respeito do que for, sempre será conforme o desejo do explorador rico e poderoso que comanda de fato a assembleia. Então, em vez de uma formalidade vazia, o melhor é passar logo para o domínio desse explorador. Ainda por cima, ele oferece vodca a todo mundo. Notem bem que a maioria dos membros autônomos nem conjectura que sua decisão possa ser pronunciada a despeito da vontade desse homem tão poderoso; todos “afrouxaram”; seus corações se entupiram de gordura; estão atrás de guloseimas, de vantagens materiais. São todos escravos, em essência, e não podem nem imaginar como é possível resolver as coisas por meio da verdade, e não em benefício próprio. A nova geração está presente e olha para os negócios dos pais não apenas com desrespeito e zombaria, mas como se tudo aquilo fosse uma asneira obsoleta, uma formalidade tola e desnecessária que só se sustenta pela teimosia de dois ou três velhos estúpidos, que, além do mais, sempre podem ser comprados. É assim que Stepan se mantém e se comporta na assembleia, um rapaz seco, insignificante, que gastou tudo o que tinha em bebida e que, depois, acabará vendendo a própria irmã. O autor obteve êxito em todos os episódios da skhodka do mir da aldeia. Principalmente no caso de Stepan, que não apenas está quase certo de que não entende absolutamente nada da skhodka, como também considera desnecessário tentar entender alguma coisa. Ele não tem como não perceber que a assembleia é permissiva em relação à influência externa do comerciante que pretende arruinar Vanka9 e tirar deste a jovem noiva. A comunidade bebeu a vodca do comerciante-fabricante e permitiu que seu caixeiro falasse, em alto e bom som, que, sem esse fabricante, que oferece pão em troca de trabalho, “todo nosso vólost mendigaria nos átrios das igrejas, e, se derem sentenças conforme sua vontade, nosso honrado comerciante vai perdoar muitas multas do povo”. A coisa toda, naturalmente, resolve-se a favor do comerciante, enquanto Vanka é mandado para o serviço militar.

Na assembleia (variegada de personagens e de traços característicos), aparecem duas figuras quase trágicas; Naum Egórytch, um velho que há vinte anos ocupa o primeiro lugar da assembleia e a dirige, e Stepanida, a mãe de Ivan. Naum Egórytch é um velho sensato, sólido, honesto, de alma elevada. Pondera as sentenças da skhodka do mir de sua aldeia de um ponto de vista superior. Para ele, não se trata simplesmente de uma assembleia de pequenos proprietários rurais de uma aldeia qualquer; não, com seus sentimentos, ele elevou-se a uma compreensão mais ampla: qualquer sentença, mesmo que dada pela skhodka de sua aldeia, é, a seu ver, parte da sentença de todos os camponeses da Rússia, que só se conservam em pé por meio do mir e de suas sentenças. Mas, infelizmente, ele é sensato demais para não ver o avanço da instabilidade do seu mir e para onde, de uns tempos para cá, esse vem se arrastando. Na verdade, os crimes, claro, já existiam nas antigas assembleias, e também há vinte anos; só que o desrespeito dos próprios membros pela assembleia, o desrespeito pela própria causa, nunca existiu, ao menos isso não tinha sido erigido em princípio. Faziam vilanias, mas sabiam que eram vilanias e que também existe o bem; agora já não acreditam no bem, tampouco em sua necessidade. Mas Naum, como um dos últimos moicanos, continua a acreditar na verdade da skhodka do mir de sua aldeia, de qualquer maneira, quase involuntariamente – e é aí que está sua tragédia. É um formalista e, ao sentir que o conteúdo está desaparecendo, ele se segura com mais força na forma. Ao perceber que os membros do mir estão embriagados, pede que adiem a reunião, mas logo começam a gritar que “é de pileque que se julga melhor,” e ele se submete: “O mir decidiu e contra ele não se pode ir”. Ele compreende muito bem e com sofrimento que, no fundo, é Levanid Ignátitch, o escrivão contratado pelos comerciantes, quem decide tudo na assembleia e que é o caixeiro dos comerciantes quem resolve o que a assembleia deve decidir, e assim ela decidirá. Mas o velho, por algum tempo e involuntariamente, ainda se engana: expulsa Levanid do primeiro lugar da reunião e, como presidente da assembleia, passa um sermão no caixeiro por suas palavras pouco cordiais contra a comunidade.

Algumas vozes sinceras se levantam em defesa de Vanka, elogiam-no, dizem que é um bom rapaz, sensato, necessário para a comunidade, que alguém como ele deve ser preservado, e, de repente, ali no meio, ressoa a voz de uma velha, de uma mente inebriada: “Bem, ele é melhor que qualquer um – que vá para os recrutas!”. Isso já é uma caçoada deliberada da verdade, uma ostentação da mentira, um jogo... O juiz zomba de si próprio, e num assunto que envolve o destino de um homem! Naum escuta e, evidentemente, compreende que seu “mundo” está morrendo. Neste ponto, surge a mãe de Ivan. Uma mulher ainda jovem, forte, orgulhosa. Já faz tempo que se tornara uma jovem viúva. E, na condição de uma viúva, foi perseguida e ultrajada pela comunidade. Mas ela suportou tudo, ajeitou sua casinha e, para sua alegria e consolo, criou seu único e querido filho, Vânia; e, de repente, ela vê como o mir lhe arranca a última esperança, a última satisfação – o filho. Naum Egórytch, pressentindo uma decisão sob efeito da embriaguez e da desordem, diz depressa a Stepanida: “Não tem jeito! A força é toda do mir! Suplique, Stepanida, suplique!”. Mas ela não quer suplicar. Insubmissa, repreende a comunidade pelas inverdades, pelo suborno, pela decisão inebriada, por invejarem Vânia. “Stepanida, desse jeito você provoca mais ódio neles!” exclama Naum, alarmado. “Você que pensa, Naum Egórytch,” responde Stepanida, “se eu visse aqui alguma lei ou consciência – mas aqui só dá é vodca! Se eu visse que dava pra implorar, eu ia esfolar meus joelhos nesta terra úmida, ia lavar o chão da isbá com minhas lágrimas, ia rachar minha cabeça de tanto fazer reverência pro mir! Aqui nem suplicando, nem implorando! Será que não vê que é tudo tramado, arranjado?! Esses corvos vão acabar com meu falcão iluminado, vão matar a bicadas! Pela vodca, vocês eram capazes de vender a alma – é pra vodca que rezam! Quem mais deu comprou todo mundo. Veja, Vânia, você ofendeu o comerciante, mas vocês sabiam que este comerciante beberrão deu de fazer calúnia contra a noiva do Vániuchka? Claro que sabiam, nada escapa de vocês! A vodca do comerciante é danada de boa, não é?! Vocês são uns pulhas, uns sanguessugas, e ainda me culpam porque dei um teto pra um órfão sem lar. Ah, pois não vai ser assim como querem! Não vai, não! O juiz de paz conhece Vânia e vai defender meu filho! (sai depressa)”

Esta mulher orgulhosa é uma das personagens mais bem-sucedidas do nosso poeta. Como queiram, senhores, mas essa passagem é muito forte. Claro, é uma aldeia russa e a personagem uma mulher simplória que mal sabe falar direito, mas, por Deus, este monólogo sobre os joelhos esfolados, “Se eu visse que dava pra implorar...”, vale mais do que inúmeros trechos elevados de outras tragédias do gênero. Aqui não há frases clássicas, nem uma linguagem apurada, nem véus brancos, nem os olhos negros ardentes de Rachel,10 mas, asseguro, se tivéssemos uma Rachel, iríamos estremecer no teatro com a cena da maldição da mãe contra o tribunal da comunidade, com sua verdade nua e crua. A cena termina com um movimento significativo – a fuga para o “juiz de paz” em busca de justiça, com uma queixa contra a decisão do mir, o que é uma pesada profecia.

É quase escusado apontar as melhores cenas desta obra. Mas não posso deixar de compartilhar minhas impressões e direi sem rodeios: poucas vezes li algo tão forte e trágico quanto o fim do quarto ato desta peça.

A vítima, vendida pela mãe e pelo irmão ao comerciante, já entorpecida de veneno, dormiu desfalecida sobre a estufa.11 Matriocha, uma criminosa inocente, sobe na estufa para dar uma espiada e, quase com alegria, quase convencida de que agora ela tornaria Macha feliz, avisa ao comerciante: “Está pronta! Não mexe, nem se cortar em pedacinhos!” O escrivão Levanid, o companheiro do comerciante, levanta e sai: “Que vidão os comerciantes levam!” diz ele, invejoso. E o comerciante, antes de subir na estufa atrás de sua vítima, é tomado de uma espécie de ímpeto poético: “Porque agora somos a força!” exclama ele lascivamente profético. “Basta a gente querer pra fazer! O que dá na veneta um comerciante faz, porque é uma força!” “É uma força – num tem nada pra discutir aqui!” faz coro o irmão da vítima. Depois, os demais se retiram da isbá, o imprestável sobe na estufa, aproximando-se de Macha, e a mãe bêbada, que havia vendido sua filha inocente, a noiva do infeliz Vânia, cai sem sentidos, ali mesmo no chão, e adormece aos pés do pai bêbado e desacordado, do pai desta família feliz...! Beber pra danar boa coisa não dá!

Não mostrarei todos os traços, com verdades surpreendentes, destes retratos terríveis, dos criminosos que quase não entendem seu crime e dos que entendem, mas já não têm o direito de amaldiçoá-lo, como, por exemplo, o pai bêbado dessa família, ao qual a filha lança tragicamente um olhar de acusação e uma maldição... Há traços observados com excepcional sensibilidade: ao acordar, Macha, nos primeiros instantes, pretende se matar, no entanto, veste o sarafan12 de seda que lhe foi deixado, na casa de sua mãe, pelo comerciante, mas o veste por maldade, para martirizar-se, para torturar-se ainda mais: pois bem, diz ela, virei uma devassa! Reparem na conversa da “inocente” mãe com a “inocente” Matriocha, no dia seguinte ao da desgraça:

(Entrando). Olá, tia Arina! O que está acontecendo? Confesso que ontem deu até medo de aparecer aqui!

Ah, minha menina, que desespero que passei! Que horror! Quando de manhazinha ela deu por si, pegou uma faca e por pouco não esfaqueou a gente e, depois, ela mesma! Só a muito custo é que deu pra segurar! Stiopka agora não tira os olhos dela!

Ele me contou!

Daí, lá pra noitinha, sabe, ela sossegou – agora ficou parecendo uma pedra! Deus, ela me diz assim, me castigou por causa da Matriocha, agora, ela diz, eu sou igualzinha a ela! Hoje dei pra ela o sarafan que o Silánti Saviélitch comprou de você, e ela vestiu – agora virei a Matriocha e devo vestir o sarafán, diz ela! E é assim!

Onde ela está agora?

Ah, minha menina, ela vai pro galpão, se mete no meio da palha e fica lá deitada de bruços!

Vai acabar se matando na afobação!

Mas a vítima não se suicidou: “me apavorei,” diz ela mesma depois. Nosso poeta é dotado de conhecimento psicológico do povo. Depois de ausentar-se da cidade por um dia para ir atrás do juiz de paz, Vânia subitamente aparece. O poeta não poupou seu herói da realidade: num primeiro momento, Ivan, tomado de uma fúria bestial, acusa apenas Macha, ele é injusto e detestável, mas, compreendendo, enfim, o que havia acontecido, praticamente propõe casamento a Macha, mesmo assim. Mas o autor sabe muito bem que, para os costumes do povo, isso é quase inconcebível, que precisaria ser um acordo limpo. Uma moça desonrada, mesmo tendo sido enganada, mesmo sem culpa, é considerada, apesar de tudo, uma impura, se não completamente desonesta. Além disso, a própria Macha é orgulhosa: “Não se suje por minha causa, Vânia!” grita ela. “Vá embora!” “Adeus, Vânia!” e ainda, no último monólogo, ela se aproxima depressa da mesa, enche o copo de vodca, acompanha todos com um olhar ardente e grita com desespero e maldade: “Então, estão tristes por quê? Fiquem alegres, é obra de vocês! Mãezinha! Paizinho! Vamos beber, vamos cair na farra! Agora, paizinho, você não vai mais vadiar sozinho pelos botequins! Vai com a sua filha! Mãezinha, era chato beber sozinha, agora somos duas, vai beber com a sua filha! Entornem o vinho! Afoguem a minha mágoa, a minha consciência!”.

E ela leva o copo aos lábios. E assim o drama finaliza.

Não digo que aqui não haja absolutamente erros; mas nesta obra há tantos méritos verdadeiros que os erros tornam-se quase insignificantes. Por exemplo, o tom de Macha no monólogo do quarto ato, que ela encerra num estado de alma encantador e sublime, “Agora tudo ficou tão leve!”, é demasiado melódico. É verdade que isso quase não constitui um monólogo, mas um pensamento, um sentimento – do tipo de pensamento e de sentimento que inspiram os russos com coração e poesia que compõem nossas canções populares. É por essa razão que o pensamento de Macha, em essência autêntico e natural, poderia ser, em sua forma, um pouco lírico. Mas a arte possui seus limites e suas regras, e o monólogo poderia ter sido mais breve. Além disso, talvez o tom de Macha no fim do drama, já depois da catástrofe, não esteja totalmente adequado: melhor seria se ela falasse um pouquinho menos. As palavras terríveis do pai também se destacariam mais se fossem menos melódicas e mais curtas. Mas isso é reparável, o autor pode consertá-lo tranquilamente na segunda edição, e, insisto, em comparação com os méritos indiscutíveis da obra, tudo isso é detalhe. Seria interessante ainda se o autor retirasse de vez do fim do drama o aparecimento do bondoso e velho fabricante, que basicamente explica a nossa “dívida para com o povo”. Seu aparecimento é ainda mais absurdo por ser o mesmo fabricante que escravizou todas as pessoas da redondeza, atormentou-as com multas arbitrárias e as alimentou de comida estragada. Finalmente, o próprio dono da casa, Zakhar, saiu algo impreciso. Há algo de falso, algo incompreensível e forçado na explicação do motivo que o levou a beber, sendo que o assunto poderia ter sido abordado de modo bem mais simples e natural.

No entanto, esta é apenas a minha opinião, posso estar errado quanto a isso, mas, quanto aos méritos sólidos desta obra tão séria, tenho certeza de que não me enganei. Para mim, é muito prazeroso compartilhar minhas impressões com os leitores. Nada tão sólido apareceu em nossa literatura, pelo menos, não nos últimos tempos ou, talvez, desde longo tempo...

[O cidadão, no 25, 18 de junho de 1873, págs. 705 a 706]


Provérbio russo. D.D. Kichénski (1834–1881), dramaturgo e jornalista.?

Em latim, no original: “destino”.?

Diminutivo de Ivan.?

Macha é apelido de Maria, já Matriocha, assim como seu diminutivo (Matriochka), de Matriona.?

Skhodka, espécie de conselho permanente de camponeses de uma ou mais aldeias, em que se discutiam problemas relativos à agricultura e ao comércio; mir, comunidade autônoma de camponeses, existente desde o regime de servidão da gleba. Mir também significa “mundo” (além de “paz”), variação linguística aproveitada pelo escritor no texto.?

Ver nota 10 do capítulo Um ar perturbador.?

No original, khorovód, antiga dança popular de roda.?

Até 1874, os filhos únicos, tidos como arrimos da família, não podiam ser recrutados.?

Apelido de Ivan.?

Élisa Rachel, atriz francesa, judia, de origem suíça (1821–1858).?

No original, petch. Trata-se de uma grande estrutura que, além de abrigar o forno, serve de cama durante o inverno.?

Sarafan, vestido sem mangas usado por camponesas.?


Pequenos retratos

Verão, férias; poeira e calor, calor e poeira. É difícil permanecer na cidade. Todos viajaram. Alguns dias atrás, pus-me a reler os manuscritos que se acumularam na redação... Mas os manuscritos ficam para depois, apesar de eu ter algo a dizer a respeito. O desejo agora é de ar, de querer ser livre; mas, em vez de ar e liberdade, vagueia-se sozinho, sem rumo, pelas ruas atulhadas de areia e cal, com a sensação de ter sido injustiçado por alguém – de fato, a sensação é bem semelhante. É sabido que metade da mágoa se esvai quando se arranja alguém para assumir a culpa, e que tudo fica mais aborrecido quando não há decididamente ninguém para culpar...

Num dia desses, eu atravessava a Niévski, do lado ensolarado para o sombreado. Todo mundo sabe que é preciso atravessar a Avenida Niévski sempre com cautela, senão basta um instante e se é esmagado – você bordeja, observa, acha o melhor momento para partir para o caminho perigoso, espera que se desentulhem, nem que seja um pouco, as duas ou três fileiras de carruagens, que correm uma atrás da outra. No inverno, por exemplo, dois ou três dias antes do Natal, atravessar a rua torna-se particularmente interessante: você se arrisca a sério, principalmente quando a névoa branca gelada da alvorada cai sobre a cidade, de maneira que quase não se distingue um transeunte a três passos de distância. Então, de algum jeito, você se esquiva das primeiras fileiras de carruagens e de cocheiros, que correm rumo à ponte da Polícia,1 e alegra-se por não temê-los mais, e o tropel, e o estrondo, e os gritos roucos dos cocheiros ficam para trás; mas não há tempo para alegrar-se: você só percorreu metade da perigosa travessia, e adiante – mais risco e plena incerteza. Você olha ao redor, ligeiro e inquieto, e inventa depressa uma forma de esquivar-se agora da segunda fileira de carruagens, que correm para os lados da Ponte Ánitchkov.2 E você sente que já não há tempo para pensar, ainda mais com esta névoa infernal; o tropel e os gritos são audíveis, mas não se vê nada além de uma braça de distância. E subitamente, de dentro da névoa ressoam, neste instante, sons rápidos, frequentes, cada vez mais próximos e inabaláveis, terríveis e sinistros, parecidos com os sons produzidos por seis ou sete homens picando repolhos com um cutelo dentro de uma tina. “Onde se meter? Para a frente ou para trás? Conseguirei ou não?” E ainda bem que você ficou: da névoa, a um passo de si, irrompe o focinho cinza de um trotador ofegante, correndo, furioso, na velocidade de um trem expresso – a baba no bridão, o arco3 um pouco afastado, as rédeas estendidas, as pernas belas e fortes, medindo uma braça cada, com sua passada ligeira, regular e firme. Num instante, o grito desesperado do cocheiro – e tudo aparece e passa voando de uma névoa a outra, o tropel, a picadura, os gritos, e então tudo desaparece outra vez, como uma visão. Uma autêntica visão petersburguesa! Você faz o sinal da cruz e, já quase ignorando a segunda fileira de carruagens, que tanto o amedrontava um minuto atrás, alcança depressa a calçada tão almejada, ainda tremendo todo das sensações que suportou e, o mais curioso, sentindo também, sem saber por que, uma espécie de prazer, e não absolutamente por ter evitado o perigo, mas justamente por ter se submetido a ele. Um prazer retrógrado, nem se discute, e, além do mais, inútil ao nosso tempo; o melhor seria, ao contrário, protestar contra isso, e não sentir satisfação, já que o trotador não é em nada um liberal, evocando um hussardo ou um mercador que caiu na farra, quer dizer, evocando a desigualdade, a insolência, la tyrannie,4 etc. Sei de tudo isso e não discuto, pois agora quero apenas concluir a questão. Pois bem, faz alguns dias, eu atravessava a Avenida Niévski com a costumeira precaução invernal, e, de súbito, recobrando-me de um pensamento, detive-me, surpreso, bem no meio da travessia: não havia ninguém, nenhuma carruagem, nem mesmo charretes tinindo! O lugar estava vazio, até cinquenta braças de ambos os lados – nem se eu parasse ali para discutir toda a literatura russa com um amigo haveria algum perigo! Foi até decepcionante. Quando isso poderia acontecer?

A poeira e o calor, os odores surpreendentes, o calçamento escavado, as casas em reconstrução. Cada vez mais, as velhas fachadas são reformadas e se tornam novas, em benefício da elegância e do estilo. A arquitetura de nossos dias sempre me impressiona. Em geral, a arquitetura de Petersburgo é excepcionalmente característica e original e sempre me deixa pasmo: justamente por expressar toda a sua descaracterização e impessoalidade ao longo de sua existência. O característico, o particular, no sentido positivo do termo, é a possibilidade de ainda encontrar casinhas de madeira apodrecidas nas ruas mais suntuosas da cidade, ao lado de construções colossais, deixando-nos perplexos como ao ver um amontoado de lenha perto de um palazzo5 de mármore. No que diz respeito aos palazzi, é exatamente neles que se reflete toda a descaracterização de uma ideia, toda a essência negativa do período petersburguês, do início ao fim. Neste sentido, não existe cidade igual; em termos arquitetônicos, ela é o reflexo de todas as arquiteturas do mundo, de todos os períodos e de todas as modas; tudo foi gradativamente tomado de empréstimo e, à sua maneira, desfigurado. Nestes edifícios, como num livro, os senhores podem ver todos os sedimentos das pequenas e grandes ideias vindas, de forma regular ou repentina, da Europa e que, aos poucos, se apoderam de nós e nos aprisionam. Vejam a arquitetura descaracterizada das igrejas do século passado, vejam uma imitação lastimável do estilo romano feita no início do nosso século, vejam ainda a época da Renascença e uma espécie de estilo bizantino antigo, redescoberto pelo arquiteto Ton6 no último reinado. Depois, alguns edifícios – hospitais, institutos e até palácios dos primeiros anos e da primeira década de nosso século – no estilo da época de Napoleão I, isto é, gigantesco, pseudomajestoso e incrivelmente enfadonho, algo forçado e idealizado intencionalmente, com as abelhas7 do manto de Napoleão, para expressar a majestade de uma era então reinaugurada e de uma dinastia sem precedentes que ambicionava ser eterna. Mais adiante, as casas, ou praticamente palácios, de algumas de nossas famílias nobres, mas construções bem posteriores às famílias. São casas à moda dos palazzi italianos ou em estilo francês, mas não inteiramente puro, da época pré-revolucionária. Ali, nos verdadeiros palazzi venezianos ou romanos, gerações inteiras de antigas famílias, uma atrás da outra, terminaram ou terminarão seus dias ao longo dos séculos. Já aqui ergueram os palazzi apenas no último reinado, mas, ao que parece, com pretensões seculares: a ordem estabelecida parecia por demais sólida e alentadora naquela época, e o surgimento destes palazzi foi como a expressão de toda a crença nessa ordem: também pretendiam viver por séculos. No entanto, tudo isso aconteceu quase às vésperas da Guerra da Crimeia8 e depois da libertação dos camponeses... Eu ficaria muito triste se algum dia encontrasse nestes palazzi a tabuleta de uma taberna com um jardim recreativo ou de um albergue francês para viajantes. E, finalmente, vejam a arquitetura de um imenso hotel em estilo moderno: aqui já temos o empreendedorismo, o americanismo, centenas de apartamentos, um enorme projeto industrial – é notável termos estradas de ferro e nos tornarmos, de repente, homens empreendedores. E agora... agora realmente não sabem nem mesmo como definir nossa arquitetura. Sem dúvida, aqui há uma espécie de confusão, mas em consonância com a confusão do momento atual. Há uma multidão de edifícios de aluguel excepcionalmente altos (antes de qualquer coisa, altos), de paredes excepcionalmente finas, conforme dizem, construídas com parcimônia, mas com fachadas de admirável arquitetura: há Rastrelli,9 o rococó tardio, as janelas e os balcões em estilo veneziano antigo, os indispensáveis oeils-de-boeuf10 e os indispensáveis cinco andares,11 e tudo isso numa mesma fachada. “Irmão, coloque uma janela veneziana sem falta, porque não sou inferior a nenhum daqueles doges miseráveis; mas não deixe de fazer os cinco andares para eu pôr para alugar; uma janela é só uma janela, já sem os andares não se pode passar; não posso me privar de capital por causa de umas frescurinhas.” No entanto, não sou nenhum folhetinista petersburguês e nem sequer falava sobre isso. Comecei com os manuscritos da redação, mas acabei me metendo em alçada alheia.


2

Poeira e calor. Dizem que, para os que ficaram em Petersburgo, foram abertos vários parques e estabelecimentos recreativos, onde é possível “tomar ar fresco”. Não sei se há o que respirar ali, mas, também, não fui a lugar nenhum. Estar em Petersburgo é melhor, é mais sufocante e mais triste. É possível caminhar, contemplar tudo, inteiramente só, o que é bem melhor do que o ar fresco dos parques recreativos. Além do mais, na cidade também abriram de repente uma grande quantidade de jardins, nos lugares mais inimagináveis. Agora se pode encontrar quase em toda rua, ao passar por um portão qualquer, a inscrição, às vezes encoberta de cal e de tijolos: “Entrada para o jardim da taberna”. Lá no pátio, em algum lugar diante de uma velha edícula, uns quarenta anos atrás, havia um jardinzinho cercado, de uns dez passos de comprimento e de uns cinco de largura; pois bem, é isso que hoje é o “jardim da taberna”. Digam, senhores, por que Petersburgo é muito mais triste aos domingos do que nos dias de semana? Pela vodca? Pela bebedeira? Por causa dos bêbados largados que dormem na Avenida Niévski em plena luz... da noite,12 como eu mesmo já presenciei? Não acredito. Os operários farristas não me incomodam; morando em Petersburgo, eu me habituei completamente a eles, apesar de não suportá-los antes, chegando até a detestá-los. Nos feriados, andam bêbados, às vezes em turbas; pisam e esbarram nas pessoas – não pela desordem em si, mas porque, para um bêbado, é impossível não pisar e esbarrar nas pessoas –; dizem obscenidades em voz alta, apesar de multidões inteiras de crianças e mulheres passarem por eles – não pela insolência em si, mas porque, para um bêbado, é também impossível usar outra linguagem além da obscena. E esta é de fato uma linguagem, um idioma inteiro, há pouco me convenci disso; é justamente a linguagem mais confortável e original, a mais apropriada para um bêbado ou mesmo para alguém em estado de leve embriaguez, de modo que ela não tinha como não existir e, se ela não existisse de todo, il faudrait l’inventer.13 Não estou brincando, em absoluto. Pensem. É sabido que, em estado de embriaguez, a língua, antes de qualquer coisa, fica presa e mal se mexe na boca, enquanto a afluência de ideias e de sentimentos de um embriagado, de alguém que não esteja caindo de bêbado, torna-se dez vezes maior. Por isso, naturalmente, foi necessário achar uma linguagem que pudesse atender a essas duas condições contraditórias. Essa linguagem foi descoberta e adotada em toda a Rus desde longa data. Pura e simplesmente, trata-se de um substantivo não dicionarizado, de modo que todo este idioma consiste numa só palavra, muito fácil de pronunciar. Um dia, num domingo, já perto de anoitecer, fui obrigado a dar uns quinze passos com uma turma de meia dúzia de artesãos bêbados e, nesse momento, convenci-me de que é possível expressar quaisquer pensamentos, quaisquer sensações e até mesmo as reflexões mais profundas apenas com o uso deste substantivo, que, além de tudo, não é polissilábico. Então, um rapaz pronuncia, intenso e enérgico, o tal substantivo para expressar uma negação, cheia de desdém, a algo que havia sido discutido antes. Em resposta, o segundo rapaz repete o mesmo substantivo, mas usando outro tom e sentido – o de dúvida quanto à veracidade da negação do primeiro. O terceiro rapaz, indignado contra o primeiro, intromete-se na conversa, intenso e excitado, e grita para ele aquele mesmo substantivo, mas já com um tom de repreensão e injúria. O segundo rapaz se intromete de novo, indignado contra o terceiro, contra o ofensor, e o interrompe como se dissesse algo assim: “Por que foi meter o bedelho aqui? A gente estava discutindo com tranquilidade, e de repente surge você do nada e começa a xingar o Filka!”. E ele expressa todo esse pensamento com aquela mesma palavra proibida, com aquele mesmo nome monossilábico de certo objeto, talvez apenas erguendo o braço e tomando o terceiro rapaz pelo ombro. Mas, de repente, um quarto rapaz, o mais jovenzinho do grupo, até agora em silêncio, provavelmente depois de descobrir uma solução para o problema que originou toda a discussão, levanta a mão em êxtase e grita... talvez “eureca”? É o que senhores acham? “Descobri, descobri!”? Não, nada de “eureca” ou de “descobri”; ele apenas repetiu aquele mesmo substantivo não dicionarizado, apenas uma palavra, mas com entusiasmo e num ganido bem alto e, pelo visto, alto demais, pois, para o sexto rapaz, o carrancudo e o mais velho, isso não soou nada bem, e ele, num relance, refreou aquele entusiasmo infantil, voltando-se para do rapazinho e repetindo num tom grave, moralizador e carrancudo... o mesmo substantivo que não pode ser dito diante das damas e que, contudo, trazia um significado claro e preciso: “Pra que está berrando, gastando a garganta desse jeito?!”. Assim, sem pronunciar nenhum outro termo, eles repetiram sua palavrinha predileta seis vezes seguidas, uma atrás da outra, e compreenderam plenamente um ao outro. Esse fato foi testemunhado por mim. “Perdoem-me!” comecei a gritar para eles de repente, sem mais nem menos (eu estava bem no meio do grupo). – Demos apenas dez passos, e os senhores repetiram... [o tal nome] seis vezes! É uma indecência! Será que não têm vergonha?

Todos de repente fixaram os olhos em mim, como se olhassem para algo totalmente inesperado, mas, num instante, aquietaram; pensei que fossem me xingar, mas não xingaram, e apenas o rapazinho, depois de dar uns dez passos, virou-se para mim e, sem deter a caminhada, gritou:

– Mas não foi você mesmo que disse pela sétima vez, já que tinha contado seis?

Ouviu-se uma explosão de gargalhadas, e o grupo passou andando, sem se incomodar mais com a minha presença.


3

Não, não é sobre esses farristas que falo, não é por causa deles que fico especialmente triste aos domingos. Há pouco tempo, descobri, para minha grande surpresa, que em Petersburgo existem camponeses, pequeno-burgueses e artesãos perfeitamente sóbrios, que não “consomem” absolutamente nada, nem mesmo aos domingos, mas, no fundo, não foi isso que me surpreendeu, mas o fato de eles, ao que parece, serem muito mais numerosos do que até hoje eu supunha. Pois bem, olhar para eles me entristece ainda mais do que para os farristas bêbados, e não por compaixão, não há nenhum motivo para sentir compaixão aqui; e um estranho pensamento me vem à mente... Aos domingos, à noitinha (nos dias de semana, eles nunca são vistos) muitos deles, ocupados com o trabalho durante a semana, saem de casa totalmente sóbrios. Saem justamente para passear. Notei que eles nunca passam pela Avenida Niévski, mas, na maioria das vezes, caminham perto de suas casas ou voltam “cheios de ar fresco”, com suas famílias, de uma visita qualquer. (Ao que parece, também há muitos artesãos de família em Petersburgo). Eles caminham com compostura e com os rostos terrivelmente sérios, como se não estivessem passeando, conversam muito pouco um com o outro, sobretudo maridos e esposas, estes ficam quase completamente calados, mas todos usam invariavelmente os trajes de domingo. As roupas são ruins e gastas, as das mulheres variegadas, mas todas escovadas e lavadas para o dia de feriado, talvez especialmente para esse momento. Alguns usam roupas russas, mas a maior parte veste trajes alemães e tem a barba feita. O que mais aborrece é que, pelo visto, eles consideram de fato e seriamente que, com esses passeios, proporcionam-se um prazer dominical indiscutível. Mas que prazer pode haver nesta rua larga, desfolhada e poeirenta, poeirenta mesmo depois do pôr do sol? É assim, e tudo isso lhes parece um paraíso; quer dizer, cada um vê o paraíso onde quer.

Muito frequentemente, estão com crianças. Há também muitas crianças em Petersburgo, e dizem que elas andam morrendo em quantidade assustadora. Conforme notei, são quase sempre pequenas, da primeira infância, ainda andam a muito custo ou nem mesmo começaram a andar; o motivo de haver tão poucas crianças mais velhas aqui não estaria no fato de morrerem cedo, de não sobreviverem? Então, noto na multidão um artesão solitário, mas com uma criança, um menino – ambos solitários, ambos com uma aparência incrivelmente solitária. O artesão tinha uns trinta anos, o rosto chupado e doente. Aprumou-se para o feriado: uma sobrecasaca alemã com a costura puída, os botões gastos e o colarinho seriamente ensebado, e uma calça “de ocasião” de terceira mão, comprada no mercado de artigos usados; mas tudo, na medida do possível, limpo. Peitilho de chita engomado, chapéu alto e muito amarrotado, barba feita. Talvez trabalhe numa serralheria ou faça serviços numa tipografia. A expressão do rosto entre o sombrio e o carrancudo, meditativa, dura, quase raivosa. Ele segurava a criança pela mão e ela se agitava atrás dele, movendo-se de qualquer jeito. Esse menino de dois anos e pouco era tão fraco, tão pálido, mas vestia um pequeno kaftan,14 botinhas com uma guarnição vermelha e um chapéu com uma peninha de pavão. Ele estava cansado, o pai lhe disse alguma coisa, e talvez apenas tenha dito, mas soou como um grito. O menino se calou. Mas, depois de uns cinco passos, o pai se curvou, levantou a criança com cuidado, pegou-a nos braços e a carregou. Como de hábito e com confiança, o menino aconchegou-se ao pai abraçando-lhe o pescoço com a mãozinha direita e, com a admiração própria de uma criança, começou a olhar fixamente para mim: por que, dizia com os olhos, eu os seguia e os encarava desse jeito? Tentei um aceno com a cabeça e sorri, mas ele franziu as pequenas sobrancelhas e se agarrou com mais força ao pescoço do pai. Devem ser grandes amigos.

Ao caminhar pelas ruas, gosto de observar certos transeuntes, totalmente desconhecidos, examinar seus rostos e tentar adivinhar quem são eles, como vivem, o que fazem da vida e o que em especial lhes interessa nesse instante. Quanto ao artesão com a criança, passou-me, então, pela cabeça que ele havia perdido a esposa há apenas um mês e, não sei por que, forçosamente de tísica. Por enquanto, quem cuida do orfãozinho (o pai passa a semana na oficina) é a velhota do porão do prédio onde eles alugam um quartinho, ou talvez apenas um canto. Mas aqui, no domingo, o viúvo e o filho foram a algum lugar distante, nas redondezas de Výborgski,15 visitar a única parenta que lhes restou, provavelmente a irmã da finada esposa, à casa da qual antes também não iam com muita frequência – ela é casada com um suboficial de galão no uniforme e mora, forçosamente, num edifício público imenso, também no subsolo, mas num espaço à parte. Ela pode até ter suspirado pela finada, mas não em demasia; já o viúvo, por certo, não deu muitos suspiros durante a visita, mas ficou o tempo todo carrancudo e falou pouco e pausadamente, desviando a conversa forçosamente para algum assunto específico do trabalho, mas logo parou de falar sobre isso também. É provável que tenham colocado o samovar e tomado chá mordiscando açúcar.16 O menino ficou o tempo todo sentado num banco no canto do aposento, franzindo o cenho e esquivando-se, e, no fim, acabou cochilando. A tia e seu marido quase não prestavam atenção nele, mas, finalmente, deram-lhe leite e pão, no que o suboficial, que até então não havia dado a menor atenção à criança, fez-lhe um gracejo, algo parecido com um afago, mas que saiu um tanto áspero e embaraçoso, e ele mesmo (só ele, no entanto) riu disso, enquanto o viúvo, ao contrário, nesse mesmo instante, gritou algo com severidade para o menino, que, devido a isso, na hora teve vontade de dizer um “ah”, mas o pai, já sem gritaria e com uma aparência séria, levou-o para fora do quarto por um instante... Despediram-se com o mesmo tom taciturno e cerimonioso da conversa, observando a cortesia e o decoro. O pai tomou o menino nos braços e levou-o para casa, de Výborgski para a Rua Litiéinaia.17 No dia seguinte, iria de novo à oficina e o menino à casa da velhota. Assim, em longas caminhadas, deparamos com esses pequenos retratos insignificantes e inventamos algo para nossa própria distração. Não há nenhum sentido nisso, “não se pode extrair nada de edificante”. É daí que vem a melancolia dos domingos, das férias, das ruas sombrias e cheias de poeira de Petersburgo. Nunca passou pela cabeça dos senhores que as ruas petersburguesas são sombrias? Pois, para mim, esta é uma das cidades mais sombrias do mundo!

É verdade que, também nos dias de semana, muitos saem com suas crianças, mas, aos domingos e à noitinha, a quantidade delas é quase dez vezes maior. E como são magrinhas, pálidas, caquéticas e anêmicas, como seus rostinhos são taciturnos, sobretudo os dos bebês que ainda precisam de colo, e as crianças que já andam têm as perninhas curvadas e, ao caminhar, balançam a valer de um lado para outro. Quase todas, porém, são escrupulosamente vestidas. Mas, por Deus, uma criança é como uma flor, uma folha atada a uma árvore na primavera: ela precisa de luz, de ar, de liberdade, de alimentos frescos, mas, em lugar disso, um porão abafado cheirando a kvás ou a repolho, um fedor medonho durante a noite, uma dieta insalubre, baratas e pulgas, umidade, paredes mofadas, e um pátio cheio de poeira, tijolo e cal.

Mas todos eles amam suas crianças pálidas e caquéticas. Vejo uma menininha de três anos, engraçadinha, com um vestido leve, correndo até a mãe, que está sentada perto do portão em companhia de muitos moradores do edifício, reunidos ali para papear por uma horinha ou mais. A mãe conversava, mas sem tirar os olhos da filha, que brincava a uns dez passos dali. A menina se abaixou para apanhar uma pedrinha e, por descuido, pisou na barra do vestido e não conseguiu endireitar-se de jeito nenhum, tentou umas duas vezes, caiu e começou a chorar. A mãe soergueu-se em seu socorro, mas eu já havia levantado a menina. Ela se endireitou, lançou-me um olhar rápido e curioso, ainda com lágrimas nos olhos, e de repente, por susto e por timidez, atirou-se à mãe. Eu me aproximei e cordialmente me informei da idade da menina; a mãe me respondeu de um modo afável, mas muito contido. Eu disse que tinha uma filha da mesma idade,18 mas, dessa vez, não veio uma resposta: “Pode ser que você seja um bom homem,” a mãe olhava para mim em silêncio, “mas a troco de que está aqui parado, deveria tomar seu rumo”. Todo mundo que conversava se calou e parecia pensar o mesmo. Dei um toque no meu chapéu e saí andando.

Numa esquina agitada, outra menina, até então levada pela mão por sua mãe, desprendeu-se dela. Na verdade, a mulher de repente viu, a uns quinze passos de si, a amiga que veio visitá-la, e, esperando que a criança conhecesse o caminho, largou sua mãozinha e pôs-se a correr ao encontro da visita, mas a menina, ao perceber-se sozinha, assustou-se e começou a gritar, dirigindo-se, em lágrimas, para sua mãe.

Um cidadão que passava ali, grisalho e de barba, totalmente desconhecido, deteve a mulher desconhecida que corria pela rua, agarrando-a pela mão:

– Por que está correndo? Olhe, a criança está gritando atrás da senhora; assim não se faz, ela pode ficar assustada.

A mulher quis retrucar algo com desembaraço, mas não o fez, caiu em si; sem qualquer irritação ou impaciência, pegou nas mãos da criança, que a havia alcançado, e pôs-se a andar na direção da amiga de modo solene. O homem, severo, esperou até o fim e só então seguiu seu caminho.

São retratos insignificantes, tão insignificantes que sinto até vergonha de inseri-los no Diário. De agora em diante, vou me esforçar para ser mais sério.

[O cidadão, no 29, 16 de julho de 1873, págs. 806 a 809]

 

Também conhecida como Ponte Verde (Zeliónyi). Cruza a Avenida Niévski na altura do Rio Moika, nas proximidades do Palácio de Inverno (Hermitage).?

Ponte que cruza a Avenida Niévski na altura do Rio Fontanka. É ornada por duas esculturas de cavalos subjugados pela força humana.?

No original, dugá. Elemento em forma de arco usado na Rússia para a tração das carruagens.?

Em francês, no original: “a tirania”.?

Do italiano, “palácio”, russificado no original.?

A.A. Ton (1790–1858), arquiteto, litógrafo e professor da Academia Imperial das Artes.?

Napoleão mandou costurar abelhas em seu manto real, a exemplo dos insetos encontrados na tumba do rei dos francos, Childerico IA abelha tornou-se símbolo do Império de Napoleão, tomando lugar da tradicional flor-de-lis.?

Guerra da Crimeia (1853–1856). Episódio traumático do Império Russo, que se opôs à Aliança Anglo-Franco-Sarda e ao Império Otomano. A derrota russa implicou a perda de parte da Bessarábia e da embocadura do Rio Danúbio, a extinção da frota do Mar Negro e o fim de suas pretensões imperiais sobre Constantinopla.?

F.B. Rastrelli (1700–1771), arquiteto italiano de grande renome na Rússia. Seus projetos, como o Palácio de Inverno (São Petersburgo) e o Palácio de Verão (Tsárskoie Seló), foram marcados pela opulência e pelo estilo barroco, que caíram em desuso no reinado de Catarina II (1762–1796).?

Oeil-de-boeuf (“olho de boi”, em francês, russificado no original), pequenas janelas ovais ou circulares, típicas do barroco francês, encontradas normalmente nas partes mais altas das edificações.?

Na Rússia, conta-se o térreo como o primeiro andar.?

Em São Petersburgo, durante o pico do verão, o sol não se põe completamente, tornando as noites mais claras. O fenômeno é chamado de “Noites brancas” e acontece em diversas cidades do norte da Rússia e da Europa.?

No original, em francês: “seria preciso inventá-la”. De uma frase de Voltaire: “Si Dieu n’existait pas, il faudrait l’inventer”, “se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo”.?

Antiga vestimenta russa masculina, espécie de bata comprida.?

Bairro suburbano de São Petersburgo; na época, uma das regiões mais periféricas da cidade.?

Em vez de adicionar o açúcar ao chá, costumava-se, na Rússia, mordiscá-lo em torrões.?

Atual Avenida Litiéinaia, próxima ao Rio Fontanka, no centro da cidade.?

Trata-se de sua segunda filha, Liubóv Dostoiévskaia (1869–1926).?


Ao mestre

Devido a meus três pequenos retratos (O cidadão, no. 29), um folhetinista moscovita1 fez-me uma crítica na revista petersburguesa A voz (no. 210), parece que por uma questão de bons costumes, já que, no retrato no. 2, ao comentar a linguagem detestável do nosso povo quando embriagado, mencionei, claro que sem nomeá-lo diretamente, certo objeto indecente... “Nunca imaginei até que ponto poderiam chegar as palavras de um folhetinista sem um material conveniente em mãos,” assim fala meu acusador moscovita. Pois bem, conclui-se daí que eu me vali do objeto indecente apenas para animar meu folhetim, para torná-lo suculento, para apimentá-lo...

Tudo isso me deixa triste; e eu que pensei que a conclusão sobre meu artigo seria exatamente contrária, ou seja, a de que extraí tão pouco de material tão vasto. Pensei que o título me salvaria: pequenos retratos, e não grandes – não se exige tanto dos pequenos. Apenas esbocei alguns pensamentos tristes sobre o passatempo dominical da gente operária de Petersburgo. A pobreza de sua alegria, de seu divertimento, a pobreza de sua vida espiritual, os porões onde crescem as crianças pálidas e escrofulosas, a rua petersburguesa tediosa, larga e esticada como uma corda que é palco de seus passeios, aquele jovem artesão viúvo com uma criança nos braços (um retrato autêntico) – tudo isso me pareceu material suficiente para um artigo, de modo que, insisto, poderiam ter me repreendido justamente no sentido contrário, quer dizer, por eu ter feito tão pouco de material tão rico. O que me consolou foi a alusão que fiz em minha conclusão principal, isto é, que, na maior parte do povo russo, até mesmo nos porões petersburgueses, até mesmo no ambiente de maior escassez espiritual, existe uma tendência à virtude, a alguma honestidade, ao verdadeiro respeito por si próprio; que o amor pela família e pelas crianças está preservado. O que me deixou particularmente admirado foi o fato de amarem tão sinceramente seus filhos doentes, até mesmo com ternura; alegrei-me, em particular, com o pensamento de que as desordens e os excessos da vida familiar do povo, mesmo numa ambiência como a de Petersburgo, são, por enquanto, exceções, embora estas possam ser bastante numerosas, e pensei em compartilhar essa recente impressão com os leitores. Calhou de eu ler, antes disso, um artigo2 com a análise franca de um livro publicado em caráter oficial, feita por um homem, sem dúvida, inteligente, que se dedica precisamente à seguinte problemática: se a reforma foi útil ou não para o povo é, no fundo, uma questão vazia, pois, mesmo se a reforma se mostrasse inútil para o povo, não faria diferença, mesmo se tudo fracassasse, ela teria que acontecer (e nisso talvez haja muito de verdade, mas na base do pereat mundus,3 apesar do caráter dessa expressão). E, por fim, no que diz respeito especificamente ao povo, aos camponeses, o folhetinista afirmou sem rodeios: “é fato que o nosso povo, propriamente, não merecia a reforma”, “e se, antes da reforma, coroamos, tanto na literatura quanto na imprensa, os camponeses com rosas e louros, por meio dos senhores Markó Vovtchók e Grigoróvitch,4 sabemos muito bem que coroamos apenas umas cabeças piolhentas... Mas, naquela época, isso foi necessário para animar o assunto” etc. etc. Aqui está a essência da ideia (minha reprodução não é literal) expressa no folhetim com tanta franqueza, sem a menor cerimônia. Confesso que essa ideia tão franca, sua crueza, praticamente pela primeira vez revelada com tamanho deleite, levou-me, então, a um estado de espírito curioso, e lembro que, naquele momento, cheguei à conclusão de que nós, por exemplo, em O cidadão, mesmo compartilhando da primeira parte da ideia, isto é, da necessidade da reforma, embora contrariando suas consequências, jamais compartilharemos da segunda parte desse pensamento funesto e estamos firmemente convencidos de que mesmo as cabeças piolhentas são merecedoras da reforma e, além disso, de que em nada são inferiores a ela. Penso que tal convicção pode definir com precisão um dos aspectos característicos de nossa linha editorial; e é por isso que menciono isso agora.

Em relação ao meu artigo... Aliás, o folhetinista moscovita, meu companheiro de pena, pensa, sabe-se lá o motivo, que me envergonho do epíteto de folhetinista e afirma, em francês, que sou “plus feuilletoniste que Jules Janis, plus catholique que le pape”.5 Esse francês de Moscou, na certa, foi usado aqui para que pensassem que ele é um autor de bom-tom, mas, mesmo assim, não entendo para que me foi atribuído um mister da religião católica e no que o pobre do papa era necessário? Quanto a mim, apenas declarei que não sou um folhetinista “petersburguês”, e com isso apenas quis dizer, para qualquer eventualidade, que, em meu “Diário”, não escrevo nem pretendo escrever propriamente sobre a vida de Petersburgo, quer dizer, não há como exigir de mim relatos detalhados sobre a vida desta cidade quando só me ponho a falar dela se isso se mostra necessário. Mas, se meu mestre moscovita deseja obrigatoriamente chamar meu “Diário” de folhetim, que seja; fico muito satisfeito.

Meu mestre moscovita afirma que meu folhetim causou furor em Moscou – “nas fileiras de lojas e no Zariadie”,6 um folhetim feito para o Gostínyi dvor,7 como ele qualificou. Fico satisfeito por ter proporcionado tanto prazer aos leitores dessas regiões da antiga capital. No entanto, o veneno vem da ideia de que eu, supostamente, tenha buscado esse efeito de caso pensado; na falta de leitores nobres, saí à procura de leitores no Zariadie e, com esse objetivo, comecei a falar “sobre aquilo”,8 isto é, sou “o mais engenhoso dos folhetinistas”...

Mas não entra na minha cabeça [escreve meu mestre ao descrever o efeito do meu folhetim em Moscou], não entra na minha cabeça que, por causa de uma coisa dessas, a procura por O cidadão tenha sido tão grande,” espanta-se um dos entregadores de jornal diante da minha pergunta sobre o interesse pela revista. Quando eu expliquei do que se tratava, o entregador correu até Mecklenburg e Jivarióv, que estocavam jornais, para apanhar os exemplares restantes, mas as revistas já tinham sido vendidas: “Não param de chegar pedidos das fileiras de lojas e do Zariadie...” “O fato é que chegou ao Gostínyi dvor a informação de que publicaram na revista O cidadão um artigo inteiro sobre aquilo, então os frequentadores da galeria, em vez de comprarem a Entretenimento,9 lançam-se sobre O cidadão.”

Mas essa notícia não é nada má, acredite; o senhor me constrange em vão diante dos leitores do Gostínyi dvor. Ao contrário, eu gostaria muito de ganhar a simpatia deles, pois não os julgo absolutamente de forma tão negativa como o senhor. Veja bem, é claro que eles compraram a revista para rir e pelo escândalo que se deu. Todo mundo é atraído por um escândalo, é da natureza humana, principalmente na Rússia (veja o caso do senhor, por exemplo): de maneira que, por esse motivo, não se pode criticar exclusivamente, penso eu, os frequentadores do Gostínyi dvor. Quanto à diversão e ao riso, existem vários tipos de diversão e vários tipos de riso, até entre os casos mais picantes. Meu mestre criou uma calúnia, no entanto. Depois acrescentou: “Estou certo de que a pena do autor dos ‘retratos daquilo’ foi guiada pelas melhores intenções enquanto ele escrevia seu folhetim para o Gostínyi dvor’’, ou seja, o mestre me honra ao admitir que, ao aludir àquilo, não tive o intuito imediato e principal de depravar o povo. Ao menos por isso somos gratos; como o autor escreve em A voz, é provável que essa ressalva generosa não tenha sido gratuita, pois sei, por experiência própria, que, a Andrei Aleksándrovitch,10 não custa nada me acusar de qualquer coisa, até de possuir intuitos depravados contra o povo e a sociedade russa. (Ele já chegou a me acusar de defender o regime de servidão.) Andrei Aleksándrovitch também se revela, por trás da pena do senhor, numa hipótese inversa surpreendente...: “e se os tais ‘retratos’ não ajudarem em nada a correção dos operários farristas...” diz o senhor. Tal hipótese só pode ter saído da mente de Andrei Aleksándrovitch! Assim, passou-lhe pela cabeça que escrevi o artigo com o objetivo direto e imediato de corrigir nosso operário xingador! Mas os operários que descrevi em meu artigo nunca ouviram falar de mim ou do senhor, muito menos de Andrei Aleksándrovitch!

Não, o que escrevi sobre aquele “substantivo”, “que não se pronuncia sem constrangimento diante das damas”, “o mais usado entre bêbados”, tinha outro sentido – insisto na ideia de que tive um objetivo bastante sério e perdoável e vou prová-lo. Meu intuito era revelar a pureza do povo russo, mostrar que o povo embriagado (em estado sóbrio, ele fala obscenidades com muito menos frequência), se diz obscenidades, não o faz por amor à palavra indecente, não o faz pelo prazer de dizer obscenidades, mas simplesmente por um costume desprezível que se tornou quase uma necessidade, de sorte que até as ideias mais distantes das sensações e dos pensamentos obscenos são expressas em palavras obscenas. Adiante, apontei para o fato de que o motivo principal deste costume obsceno está na própria embriaguez. Quanto à minha hipótese da necessidade de usar palavras curtas, confortáveis e expressivas em estado de embriaguez, quando a língua mal se mexe na boca e há, ao mesmo tempo, um desejo forte de falar, quanto a essa hipótese, o senhor pode pensar o que quiser; de todo modo, valia a pena mostrar que nosso povo é puro mesmo dizendo obscenidades. Atrevo-me até a afirmar que, do ponto de vista estético e intelectual, as camadas mais desenvolvidas da nossa sociedade são incomparavelmente mais libertinas, nesse sentido, do que o povo simples, ordinário e tão pouco desenvolvido. Numa roda de homens, até nos círculos mais elevados, pode acontecer, depois de um jantar, algumas vezes até a velhinhos grisalhos e condecorados, já depois de terem trocado opiniões sobre todas as matérias importantes, até sobre assuntos de governo, pode acontecer de passarem, pouco a pouco, para temas esteticamente impetuosos. Por sua vez, esses temas impetuosos logo se transformam em depravação, em palavras indecentes, em maus pensamentos, e nada parecido com isso poderia se apresentar à imaginação popular. Isso acontece com muita frequência e em todos os matizes desse círculo de pessoas tão superiores ao povo. Homens conhecidos pelas maiores virtudes e ideais, beatos e até os poetas mais românticos participam dessas conversas com avidez. O mais grave é que alguns desses homens respeitáveis, com toda a certeza, são capazes de tomar as mais belas atitudes. O que lhes agrada é a obscenidade e o refinamento da obscenidade, não tanto a palavra indecente em si quanto à ideia contida nela; agrada-lhes a baixeza da degradação, justamente o fedor, assim como o queijo de Limburgo11 (que o povo desconhece) agrada a um gastrônomo refinado; aqui existe precisamente a necessidade de alastrar e de farejar esse fedor, de deleitar-se com ele. Caem na risada, falam com arrogância da obscenidade, mas é evidente que ela lhes agrada, que não se contentariam sem ela, mesmo que venha apenas em palavras. Já o riso do povo é totalmente diferente, até mesmo em se tratando de tais temas. Estou certo de que no Zariadie não riem pela obscenidade em si, nem por amor àquilo ou à arte, mas riem com um riso de grande simplicidade, não libertino, saudável, embora rude – um riso bem diferente do riso de certos propagadores da nossa sociedade ou da nossa literatura. O povo diz obscenidades à toa e, não raro, falando de outra coisa. Nosso povo não é depravado, é até muito puro, apesar de ele ser, incontestavelmente, o povo que mais diz obscenidades do mundo – e realmente vale a pena refletir um pouco sobre essa contradição.

Meu mestre moscovita conclui o artigo sobre mim com um orgulho desmedido, quase satânico:

Aproveitarei o exemplo do respeitável colega [ou seja, eu mesmo] – diz ele – e, quando eu precisar escrever um folhetim e não tiver nenhum material, também tentarei me dedicar aos “retratos” [que desdém!]; no entanto, por ora, não tenho necessidade de recorrer à lição que me foi passada [ou seja, um homem tão inteligente que, mesmo sem “aquilo”, tem sempre muitas ideias], pois, apesar de nós, em Moscou, também termos “calor e poeira”, “poeira e calor” [as palavras iniciais do meu artigo, para me constranger um pouco mais], nesta poeira [ahá! agora, sim, é que vai começar, agora é que ele vai nos mostrar o que uma cabeça inteligente de um folhetinista moscovita é capaz de extrair até mesmo “desta poeira”, em comparação com os folhetinistas petersburgueses], nesta poeira e de debaixo deste calor [o que quer dizer “de debaixo deste calor”?], é possível, com a devida atenção, perceber [escutem! escutem!] que o pulso vital de nossa Moscou Pedra Branca,12 que enfraquece significativamente no verão, começa, por assim dizer, a animar-se e, animando-se cada vez mais, chega aos meses de inverno com tal intensidade que o pulso da vida moscovita não pode ir além.

Eis o pensamento! Vejam o que temos em Moscou! E, para mim, foi uma verdadeira aula! Mas sabe o que, mestre?! Parece-me que o senhor, de caso pensando, aproveitou o que escrevi sobre aquilo justamente para tornar seu folhetim mais interessante (ou para que tanta intensidade?!), será que não invejou meu sucesso no Zariadie? É bem possível. Senão, não teria remoído e espalhado tanto aquilo, não teria falado tantas vezes dele, e, não contente em falar e espalhar, até o cheirou...

... apesar de tudo, já somos bem crescidinhos para, ao menos, perceber quando nos servem algo que nos ofende o nariz, e somos capazes de avaliá-lo desconsiderando as intenções do autor...

Então, isso está cheirando a quê?

[O cidadão, no 32, 6 de agosto de 1873, págs. 877 a 879]


O artigo não foi assinado.?

Trata-se do artigo, como nota edição russa (Op. cit.), “Ensaios e retratos semanais” (jun/1873) de Suvórin, editor e jornalista. Publicou algumas coleções de livros a preços populares, além dos almanaques: Almanaque russo, Toda Rússia (Vsiá Rossia) e Toda Petersburgo (Viés Peterburg). De liberal, virou monarquista e ortodoxo, o que o aproximou de Dostoiévski alguns anos depois.?

Em latim, no original. Da frase fiat iustitia, et pereat mundus, “faça-se justiça, ainda que pereça o mundo”, atribuída a Fernando I de Habsburgo (1503–1564), imperador do Sacro Império Romano-Germânico.?

Markó Vovtchók: Ver nota 2 do capítulo Mascarado; D.V. Grigoróvitch (1822–1899), escritor, colega de Dostoiévski na Escola Real de Engenharia de São Petersburgo.?

Em francês, no original: “Mais folhetinista que Jules Janin, mais católico que o Papa”. Paráfrase da expressão: “Plus royaliste que le roi, plus catholique que le pape”, “mais realista que o rei, mais católico que o papa”.?

No original, há um jogo de palavras entre “riad” (“fileira”) e Zariadie, bairro de Moscou nos arredores do Kremlin, onde, então, havia basicamente lojas. Seu nome original era Nijnie torgóvye riady, “fileiras de lojas de baixo”.?

Gostínyi dvor (“pátio dos visitantes”), expressão comum para galerias com lojas.?

Refere-se ao substantivo não dicionarizado citado no capítulo anterior.?

Entretenimento (Razvletchiénie), periódico semanal humorístico-literário, famoso por suas caricaturas, editado em Moscou de 1859 a 1918. Foi nele que A.P. Tchékhov (1860–1904) publicou seus primeiros textos.?

Trata-se de A.A. Kraiévski. Ver nota 22 do capítulo Algo pessoal.?

O queijo Limburgo (ou Limburger), fabricado nos Países Baixos, é conhecido por seu cheiro forte.?

Antiga forma de se referir a Moscou. Alusão aos muros e às torres de pedra branca do Kremlin que, no século XIV, substituíram os de madeira.?


Algo sobre a mentira

Por que todos nós mentimos, todos sem exceção? Estou certo de que logo alguém vai me conter e começar a gritar: “Que bobagem, nem todo mundo mente! O senhor está sem assunto, então inventa um para impressionar”. Já fui repreendido por ser insensato; mas o fato é que estou realmente convencido da universalidade de nosso hábito de mentir. Você vive cinquenta anos com uma ideia, enxerga-a, apalpa-a, e, de repente, ela se revela de tal maneira que é como se, até esse momento, ela lhe fosse totalmente desconhecida. Há algum tempo, me ocorreu a ideia de que entre nós, na Rússia, nos meios da intelligentsia, não poderia existir absolutamente ninguém que não mentisse. Isso porque aqui até as pessoas mais honradas são capazes de mentir. Estou convencido de que em outras nações, na grande maioria, apenas os canalhas mentem; mentem por vantagens práticas, isto é, estritamente por finalidades criminosas. Pois bem, entre nós, as pessoas mais respeitáveis e com os intuitos mais respeitáveis podem mentir de maneira completamente gratuita. Aqui, na grande maioria, mentem por gentileza. Há o desejo de produzir uma impressão estética no ouvinte, de causar prazer, então mentem, até mesmo, por assim dizer, sacrificando-se àquele que o escuta. Qualquer um que se ponha a recordar: já não lhe aconteceu de aumentar em umas vinte vezes, por exemplo, a quantidade de verstas percorrida por hora pelos cavalos que um dia o transportaram quando essa mentira se mostrou necessária para reforçar uma impressão de satisfação no ouvinte? E será que o ouvinte não ficou sinceramente alegre a ponto de começar na hora a dizer que conhecia uma troika que, numa aposta, deixou um trem de ferro para trás etc. etc.? E os cães de caça, ou como lhe colocaram dentes em Paris, ou como foi curado pelo Bótkin?1 Será que nenhum dos senhores já não saiu contando coisas extraordinárias de sua doença? E, mesmo acreditando em si mesmo depois da metade da história (pois todo mundo começa a acreditar em si mesmo depois da metade da história), ao deitar-se de noite e ao relembrar com prazer como seu ouvinte ficou agradavelmente surpreso, o senhor, de súbito, se conteve e disse sem pensar: “Mas como menti!”. No entanto, esse exemplo é fraco, pois não há nada mais agradável que falar sobre sua doença quando se acha um ouvinte para isso; basta começar e será impossível não mentir; isso até cura o doente. Mas, voltando para o estrangeiro, será que o senhor já não contou milhares de coisas que viu com “os próprios olhos”... não, vou retirar este exemplo também: não exagerar em nada o “estrangeiro” é impossível para um russo que retornou de lá; do contrário, de nada valeria ter viajado. Mas, por exemplo, as ciências naturais! Será que o senhor nunca discorreu sobre as ciências naturais ou sobre as falências e fugas para o exterior de vários jidy de Petersburgo e de outras localidades, sem compreender absolutamente nada desses jidy e sem conhecer patavina sobre as ciências naturais? Permita-me, não foi o senhor que contou uma história, como se a tivesse vivido, ao mesmo homem que lhe contara em relação a ele mesmo? Será que já esqueceu como, no meio da narrativa, lembrou-se disso de repente e caiu em si, o que foi claramente confirmado pelo olhar sofredor de seu ouvinte, fixo obstinadamente no senhor (pois, nesses casos, por algum motivo, olham-se nos olhos um do outro de forma muito mais obstinada)? Lembra como, apesar de tudo, já tendo perdido todo o humor, o senhor, com a coragem digna de uma grande causa, continuou a balbuciar sua novela e, terminando-a depressa com cortesias, apertos de mãos e sorrisinhos nervosos e apressados, separou-se de seu ouvinte; como o senhor, de modo inesperado, sem mais nem menos, foi tomado pelo ímpeto de uma última convulsão e gritou já da escada, por onde o outro descia correndo, alguma pergunta sobre a saúde da tia dele, e como ele não se virou, tampouco respondeu, o que, em sua memória, ficou guardado como o ponto mais doloroso de toda a história sucedida? Em suma, se alguém responder não a tudo isso, ou seja, que nunca contou histórias, que nunca tocou no nome de Bótkin, que nunca disse mentiras sobre os jidy, que nunca gritou da escada para saber da saúde da tia de alguém, que nunca nada de semelhante lhe aconteceu, simplesmente não acreditarei. Sei que o mentiroso russo quase sempre mente sem dar-se conta, de modo que isso pode passar completamente despercebido. O que então acontece é o seguinte: logo que uma pessoa diz alguma mentira com êxito, fica tão entusiasmada que inclui essa história no rol de fatos inquestionáveis de sua vida; age de forma plenamente consciente, porque ela mesma acredita plenamente nisso, e seria até antinatural se não acreditasse na maioria das vezes.

“Ah, que bobagem!” irão dizer de novo. “Uma mentira inocente, uma ninharia, nada do outro mundo.” Que seja. Concordo que tudo isso é muito inocente e que evoca qualidades nobres do caráter, como o sentimento de gratidão. Porque, se alguém o ouvia enquanto mentia, não se pode privá-lo de mentir também, mesmo que seja em agradecimento.

Uma reciprocidade delicada na mentira é praticamente o requisito básico da sociedade russa – de todas as nossas assembleias, saraus, clubes, sociedades científicas etc. Na verdade, só alguém realmente estúpido intercede nesses casos em favor da verdade e começa, de repente, a duvidar da quantidade de verstas percorrida pelo senhor ou dos milagres que Bótkin lhe fez. Mas são apenas pessoas sem coração e hemorroidais, que, sem demora, conduzem-se sozinhas a um castigo, surpreendendo-se depois com o fato de ele ter sido aplicado. Pessoas sem talento. No entanto, toda esta mentira, embora inocente, alude a traços fundamentais e importantes dos russos, a ponto de o maravilhoso quase sobressair. Por exemplo, 1) à ideia de que nós, russos, antes de qualquer coisa, tememos a verdade; quer dizer, não a tememos propriamente, se preferirem, mas sempre a consideramos muito tediosa e prosaica, não poética o suficiente, demasiado ordinária, e, assim, evitando-a sem exceção, fizemos com que ela se tornasse, por fim, uma das coisas mais raras e extraordinárias do mundo russo (não falo sobre a publicação com esse nome).2 Dessa maneira, entre nós, perdeu-se totalmente o axioma de que a verdade é a coisa mais poética que existe, especialmente em seu estado mais puro; ou de que a verdade é mais fantástica do que qualquer mentira e ostentação que nosso intelecto passivo possa criar. Na Rússia, a verdade quase sempre é dotada de um caráter inteiramente fantástico. Na realidade, as pessoas agem de tal modo que todas as mentiras que a razão humana diz e rediz a si própria são mais compreensíveis do que a verdade, e isso acontece no mundo inteiro. A verdade foi posta na mesa diante dos homens há centenas de anos, mas eles não se servem dela, e perseguem o inventado, porque o que eles consideram fantástico e utópico é justamente a verdade.

Em segundo lugar, a mentira russa generalizada faz alusão ao fato de termos vergonha de nós mesmos. De fato, cada um de nós quase carrega uma vergonha inata de si e de sua própria personalidade; quando em sociedade, todo russo esforça-se, no ato e a todo custo, para mostrar-se obrigatoriamente diferente do que é na realidade, cada qual se apressa em adotar uma personalidade completamente diferente da sua.

Herzen já dizia que os russos no estrangeiro não sabem de modo nenhum se portar em público: falam alto quando estão todos em silêncio e, quando é preciso falar, não são capazes de usar palavras decentes e espontâneas. E é verdade: logo alguma esquisitice, uma mentira, uma convulsão aflitiva; logo a necessidade de envergonhar-se de tudo o que é na realidade, de esconder e ajeitar seu rosto, um rosto dado ao homem russo por Deus, e de mostrar-se algo diferente, com a feição mais estrangeira e menos russa possível. Tudo isso vem da convicção plena e profunda de que toda fisionomia russa é, de qualquer modo, insignificante e cômica, chegando a constranger; de que, caso ela adote um rosto francês ou um inglês, em suma, um rosto que não seja o seu, será bem mais respeitada; e de que, sob essa aparência, não terá como ser reconhecida. Com isso, noto algo muito característico: toda essa vergonha imprestável de si próprio e toda essa autonegação infame, na maioria dos casos, é inconsciente, algo compulsivo e insuperável; mas, em sã consciência, os russos, mesmo sendo os que mais sofrem de autonegação, não aceitam tão depressa a própria insignificância e, dessa maneira, exigem sem falta respeito: “Sou praticamente um inglês,” raciocina o russo, “quer dizer, é preciso me respeitar, porque todos os ingleses são respeitados”. Duzentos anos foram necessários para produzir esse tipo fundamental de nossa sociedade, sob um princípio obrigatório apontado há duzentos anos: jamais e por nada seja você mesmo; tome outro rosto e cuspa no seu; sempre se envergonhe de si e jamais se pareça consigo – e os resultados foram os mais abrangentes. Não há nenhum alemão, nenhum francês, não há no mundo nenhum inglês que, ao se reunir com outros homens, se envergonhe do próprio rosto, caso esteja sinceramente convencido de não ter feito nada de errado. O russo sabe muito bem que não existe nenhum inglês assim; e um russo educado sabe, além disso, que, não ter vergonha do próprio rosto, seja onde for, constitui o ponto principal e essencial da própria dignidade. E é por isso que ele também, sem demora, deseja se assemelhar a um francês ou inglês, de modo que seja logo tomado por um daqueles que, nunca e em lugar nenhum, se envergonha da própria face.

“Banalidades, velharias, mil vezes já ouvidas,” dirão de novo. Que seja, mas existe algo ainda mais característico. Existe um ponto com o qual qualquer homem russo da classe da intelligentsia, ao estar em sociedade e em público, é terrivelmente exigente e ao qual não pode renunciar de modo algum. (Coisa diferente acontece quando ele está em casa, a sós.) Este ponto é a inteligência, o desejo de mostrar-se mais inteligente do que é; no entanto, como é notável, não é absolutamente um desejo de mostrar-se o mais inteligente de todos ou de quem quer que seja, mas apenas o desejo de não ser mais tolo que ninguém. “Reconheça que não sou mais tolo que ninguém e reconhecerei que você também não é.” Aqui, de novo, há uma espécie de gratidão recíproca. Diante de uma autoridade europeia, por exemplo, um homem russo, como é sabido, faz reverências com alegria e de modo apressado, sem se permitir fazer qualquer reflexão a respeito, e até desgosta, em tais ocasiões, de refletir. Ah, mas coisa bem diferente acontece quando um homem genial cai do pedestal ou simplesmente sai de moda: não haverá ninguém mais severo com ele do que um intelligent russo, não há limite à arrogância deste, ao seu desprezo, à sua zombaria. Depois, ficamos ingenuamente pasmos ao saber, de alguma maneira, que na Europa ainda continuam a olhar com respeito para aquele que entre nós caiu do pedestal e a estimá-lo por seus méritos. Em compensação, aquele mesmo russo que faz reverências ao gênio em voga, sem qualquer reflexão, jamais e por nada se reconhecerá como alguém mais tolo do que o homem que acabou de reverenciar, mesmo se esse for um europeu. “E Goethe, e Liebig,3 e Bismarck, temos de convir... mas, em todo caso, eu também” – essa ideia se revela sem falta a um russo, mesmo ao mais insignificante, basta levá-lo a isso. E não é bem uma revelação, pois quase não há consciência disso, mas é como se algo arrastasse o homem russo nessa direção. Trata-se de uma sensação ininterrupta de amor-próprio vazio e oscilante, em nada justificada. Em resumo, um russo das classes mais elevadas, jamais e em nenhuma hipótese, e nem sei se poderia haver exceções, chegará provavelmente à mais elevada manifestação de dignidade humana, ou seja, a reconhecer-se mais tolo do que alguém quando este alguém é realmente mais inteligente. Não achem tanta graça em meu “paradoxo”. O rival de Liebig, provavelmente, nem terminou o curso ginasial e, certamente, se lhe disserem se tratar de Liebig em pessoa, não irá competir pela primazia. Ele se calará, mas, no final das contas, algo o arrastará a isso, mesmo diante de Liebig... Outro caso seria se, por exemplo, ele topasse com Liebig num vagão de trem sem saber que se trata de Liebig. E, se lá entabulassem uma discussão sobre química e o nosso senhor russo tivesse a oportunidade de juntar-se a ela, sem dúvida, ele sustentaria um debate científico completo, mesmo que, no campo da química, só conhecesse o termo “química”. Claro que ele deixaria Liebig pasmo, mas quem sabe, aos olhos dos ouvintes, saísse vencedor. Pois, para um homem russo, o atrevimento no uso da linguagem científica quase não tem limites. Justamente aqui acontece um fenômeno que só existe na alma dos homens da intelligentsia russa: basta estar em público e essa alma não só não terá dúvidas de sua inteligência, como também de sua perfeita erudição, tão logo esta seja colocada em questão. Quanto à inteligência, ainda se pode entender; mas, quanto à erudição, cada qual, pelo visto, deveria possuir informações mais precisas sobre a sua...

Certamente, tudo isso se dá em público, quando o homem está rodeado de estranhos. Já em casa, na companhia de si próprio... Pois bem, em casa, consigo mesmo, nenhum russo manifesta preocupações com sua instrução ou erudição, isso nem é colocado em questão... E, caso seja colocado, o mais provável é que, em seu lar, ele decida tudo em seu benefício, ainda que possua informações precisas acerca de sua real erudição.

Há pouco tempo, eu mesmo ouvi, sentado num vagão, um tratado inteiro sobre as línguas clássicas, ao longo das duas horas da viagem. Um falava, os demais escutavam. Esse senhor, não conhecido por nenhum dos passageiros, bem-apessoado, de idade madura, contido e de ares aristocráticos, pronunciava as palavras de um jeito convincente e sem pressa. Atraiu a atenção de todos. Desde suas primeiras palavras, era evidente que ele não apenas falava pela primeira vez sobre esse tema, como, provavelmente, também pela primeira vez pensava nisso, de modo que tudo não passou de uma improvisação notável. Ele negava completamente a educação clássica e chamava sua introdução em nossas escolas de “uma tolice histórica e fatal”, porém, esta foi a única palavra ríspida que ele se permitiu; o tom adotado era elevado demais para conseguir se excitar apenas por desprezo ao fato. As bases nas quais ele se apoiava eram as mais elementares, convenientes apenas para um aluno de treze anos, quase as mesmas bases nas quais se fundamentam, ainda hoje, alguns de nossos jornais que lutam contra as línguas clássicas e dizem, por exemplo: “como todas as obras em latim já foram traduzidas, o latim não é mais necessário,” etc. etc., algo do gênero. Em nosso vagão, ele produziu um grande efeito; muitos, ao se despedirem, agradeceram o prazer que ele lhes proporcionou, especialmente as mulheres. Estou certo de que ele saiu de lá com um enorme respeito por si próprio.

As conversas em público (seja nos vagões de trens ou em outro lugar qualquer) mudaram muito em comparação com os anos anteriores; hoje em dia, todos estão sequiosos por ouvir, por mestres, em relação a todos os temas gerais e sociais. De fato, entre nós, agora é terrivelmente difícil entabular uma conversa em público; no início, ficam todos reticentes, até decidirem falar, daí, quando se põem a falar, fazem-no, algumas vezes, de modo tão exaltado que quase é necessário segurá-los pelas mãos. Já as discussões mais comedidas e sólidas, por assim dizer, mais elevadas e reservadas, giram principalmente em torno de temas da bolsa ou do governo, mas sempre julgados sob um ponto de vista confidencial e invertido, com conhecimento dos segredos e dos fundamentos mais elevados, desconhecidos do público comum. O público comum ouve de modo pacífico e respeitoso, ao passo que os tagarelas saem vitoriosos em sua postura. Sem dúvida, poucos acreditam um no noutro, mas, ao se despedirem, quase sempre saem mutuamente satisfeitos, e até um pouco gratos. A arte de usufruir de nossa via férrea com prazer e alegria consiste na habilidade de deixar os outros mentirem e em acreditar neles o quanto puder; então, caso o senhor se sinta tentado, também irão deixá-lo dizer umas mentirinhas de efeito; há, portanto, uma vantagem recíproca. Mas, como eu já disse, existem temas gerais, palpitantes e vitais para discussões, nos quais todo o público está envolvido, e não servem apenas para passar o tempo agradavelmente; repito, estão todos sequiosos por aprender, por esclarecer as dificuldades atuais, procuram respostas, desejam um mestre, especialmente as mulheres, em particular as mães de família. O impressionante é que, mesmo com toda essa sede curiosa e tão alusiva de conselheiros e orientadores, mesmo com toda essa aspiração nobre, as pessoas contentam-se facilmente, às vezes de maneira até inesperada, acreditam em tudo, estão extremamente mal preparadas e equipadas, muito pior do que o senhor poderia supor em sua fantasia mais convincente alguns anos atrás, quando era bem mais difícil tirar alguma conclusão sobre a sociedade russa, se compararmos com os dias atuais, em que há mais fatos e informações. Com efeito, pode-se dizer que todo tagarela com maneiras pouco decentes (infelizmente, nosso público, ainda hoje, tem uma fraqueza preconceituosa com as maneiras decentes, apesar de a educação estar cada vez mais acessível nos folhetins) vai sair por cima e convencer seus ouvintes de qualquer coisa, receber os agradecimentos e ir embora com um profundo respeito por si próprio. Sem dúvida, com a condição imprescindível de ser um liberal, sobre isso nem se discute. Em outra ocasião, também num vagão e também há pouco tempo, ocorreu-me ouvir um tratado inteiro sobre o ateísmo. O orador, um engenheiro de aparência mundana, mas com ar taciturno, motivado pela sede doentia de um ouvinte, começou pelos mosteiros. Quanto a essa questão, ele revelou não saber nada desde a primeira palavra: tomou a existência dos mosteiros como algo inseparável dos dogmas da fé e supôs que os mosteiros se mantivessem com recursos públicos e que custassem muito ao tesouro, e, esquecendo que os monges formam uma associação absolutamente livre de pessoas, assim como qualquer outra, exigiu, em nome do liberalismo, sua destruição, como se fossem uma tirania qualquer. Concluiu versando sobre o ateísmo absoluto e ilimitado, baseando-se nas ciências naturais e na matemática. Ele falou com uma frequência absurda sobre as ciências naturais e a matemática, mas não trouxe nenhum fato concreto dessas ciências ao longo de toda a sua dissertação. De novo, apenas ele falava, os demais escutavam: “Ensinarei o meu filho a ser um homem honesto, e é tudo,” em sua conclusão, decidiu, com uma confiança plena e evidente, que as boas atitudes, a moralidade e a honestidade são algo dado e absoluto, que independe de qualquer coisa e que, sempre quando necessário, pode-se achar no próprio bolso, sem esforço, sem hesitação, sem perplexidade. Esse senhor obteve também um êxito extraordinário. Ali se encontravam oficiais, velhos, mulheres e adolescentes. Na despedida, agradeceram de modo acalorado o prazer que lhes proporcionou, sendo que uma mulher, mãe de família, elegantemente trajada e bastante atraente, disse alto e com uma risadinha encantadora que agora ela estava plenamente convencida de que sua alma era constituída “apenas de vapor”. Provavelmente, esse senhor também partiu com um sentimento extraordinário de respeito por si próprio.

Pois é justamente este respeito por si que me deixa perplexo. É claro que existem tolos e tagarelas no mundo, e não há nada de surpreendente nisso; mas esse senhor, a olhos vistos, não era nenhum tolo. Possivelmente, também não era um canalha ou um vigarista; é até bem provável que fosse um homem honesto e um bom pai. Ele somente não entendia absolutamente nada das questões que se pôs a resolver. Será que não passará pela sua cabeça, depois de uma hora, um dia, um mês: “Muito bem, meu amigo, Iván Vassílevitch (ou quem quer que seja), você discutiu sem saber absolutamente nada sobre o assunto que tratava. E sabe disso melhor do que ninguém. Você se referiu às ciências naturais e à matemática, porém, sabe muito bem, e melhor do que do qualquer um, que você esqueceu faz muito tempo sua matemática escassa, aprendida numa escola especial, que nem mesmo lá a conhecia direito, e que das ciências naturais nunca teve a mínima noção. E como é que soltou a língua desse jeito? Como saiu dando lições? Você compreende bem que mentiu o tempo todo e, no entanto, até hoje se orgulha de si; mas como não tem vergonha?”.

Estou convencido de que ele pode ter feito todas essas perguntas a si, apesar de estar provavelmente ocupado com “seus negócios” e de não ter tempo para questões vazias. Estou até plenamente convencido de que elas, mesmo que de passagem, vieram-lhe à consciência. Mas ele não teve vergonha, não teve escrúpulos! Essa conhecida falta de escrúpulos do intelligent russo, para mim, é um fenômeno decisivo. E daí se, entre nós, ela é comum, se está em toda parte, se já se habituaram a ela, se já se familiarizam com ela; mesmo assim, continua sendo um fato surpreendente e insólito. Ela testemunha certa indiferença no julgamento de cada homem diante de sua própria consciência, ou, o que dá na mesma, testemunha um desrespeito extraordinário por si próprio; chega-se, assim, ao desespero e perde-se qualquer esperança de surgir algo independente e salutar na nação, mesmo no futuro, por meio de tais homens e de tal sociedade. O público, quer dizer, o aspecto exterior, o aspecto europeu, a lei dada de uma vez por todas pela Europa, enfim, esse público causa em qualquer homem russo um efeito deprimente: socialmente, ele é um europeu, um cidadão, um cavaleiro, um republicano, com consciência e opinião própria solidamente estabelecida. Já em casa, consigo mesmo: “Ah, que diabo de opinião, tomara que o fustiguem!”. O tenente Pirogóv, que há quarenta anos levou uma surra do serralheiro Schiller4 na Rua Bolchaia Meschánskaia,5 foi uma profecia medonha, uma profecia de um gênio que previu um futuro terrível, pois os Pirogóvs se mostram muito numerosos, são tantos que nem é possível fustigá-los. Os senhores lembram que o tenente, já depois do acontecido, comeu um pastel folhado e, naquela mesma noite, destacou-se na mazurca no aniversário de um eminente funcionário público? O que os senhores acham: enquanto ele se requebrava na mazurca, girando e dando passinhos, ao lado dos membros recentemente ultrajados, será que pensava que só fazia duas horas que tinha sido fustigado? Claro que pensava! Estaria envergonhado? Claro que não! No dia seguinte, ao despertar pela manhã, é provável que tenha dito consigo: “Ah, diabo, se ninguém sabe de nada, será que vale a pena fazer algo?!...” Esse “vale a pena fazer algo”, certamente, por um lado, alude à capacidade de moldar-se a qualquer situação, mas, ao mesmo tempo, alude à vastidão da natureza russa que, diante de tais qualidades, empalidece e extingue até aquilo que é infinito. Dois séculos sem o hábito de ter o mínimo de autonomia de caráter e dando cuspinhadas no próprio rosto lançaram a consciência russa a essa falta de limites fatal, da qual... ora, o que mais se pode esperar, o que os senhores acham?

Estou certo de que o tenente estava em condições de alcançar esses pilares ou até essa falta de limites, de que, talvez naquela mesma noite, tenha feito uma declaração de amor e uma proposta formal ao seu par na mazurca, à filha mais velha do anfitrião. Infinitamente trágica é a imagem desta senhorita, borboleteando pelo salão com esse rapagão num bailado encantador, sem saber que seu cavalheiro tinha sido fustigado uma hora antes e que, para ele, isso tanto fazia. Pois bem, o que os senhores acham: se ela ficasse sabendo e a proposta fosse feita de qualquer jeito, ela se casaria com ele (evidentemente, com a condição de que ninguém mais soubesse do acontecido)? Infelizmente, casaria com toda a certeza!

De todo modo, ao que parece, é possível excluir grande parte de nossas mulheres da lista de Pirogóvs e, em geral, de toda a “falta de limites”. Na mulher russa, cada vez mais se revelam a sinceridade, a persistência, a seriedade e a honradez, a busca de verdade e de sacrifício; além do mais, tudo isso é sempre mais elevado na mulher russa do que no homem russo. Esse fato é inquestionável, apesar de todos os desvios atuais. As mulheres mentem menos, muitas delas não mentem em absoluto, ao passo que achar homens que não mentem é quase impossível – falo do momento atual da nossa sociedade. A mulher é mais persistente, mais paciente nos negócios; é mais séria do que o homem, ela quer uma ocupação para se dedicar, e não apenas para ostentar. Será que não é daí que podemos esperar uma grande ajuda?

[O cidadão, no 35, 27 de agosto de 1873, págs. 955 a 958]


Ver nota 15 do capítulo Bobók.?

Trata-se da revista O mundo russo. Ver nota 1 do capítulo Mascarado.?

Justus von Liebig (1803–1873), químico e inventor alemão, autor de pesquisas fundamentais na Química Orgânica.?

Pirogóv e Schiller são personagens de Avenida Niévski (1835), de Nikolai Gógol. No conto, o tenente Pirógov leva uma surra de Schiller, um artesão alemão, por cortejar sua mulher.?

Atual Rua Kazánskaia. Começa na Catedral de Nossa Senhora de Kazan, região central de Petersburgo.?


Um dos enganos da atualidade

Alguns de nossos críticos notaram que eu, em meu último romance, Os demônios, me utilizei do enredo do famoso caso de Netcháiev;1 mas, de imediato, disseram que na minha obra não há propriamente os retratos ou a reprodução literal da história de Netcháiev; que dela aproveitei apenas o fenômeno em si e que somente tentei mostrar a possibilidade de algo análogo existir em nossa sociedade, ou seja, no sentido de um fenômeno social, sem o aspecto anedótico, sem ter em vista descrever um caso particular de Moscou. Tudo isso, digo por mim, é absolutamente legítimo. Em meu romance, não me refiro nem ao famoso Netchaiév nem à sua vítima, Ivanóv. O rosto do meu Netcháiev, decerto, não se assemelha ao rosto do verdadeiro Netcháiev. Eu pretendia levantar uma questão e, da maneira mais clara possível, dar uma resposta a ela na forma de um romance: como é possível explicar o surgimento dos Netchaiévs, e não de um Netcháiev em particular, em nossa sociedade transitória e surpreendente, como é possível explicar, por fim, a reunião de netchaievistas em volta dos Netcháievs?

Há pouco tempo, mas já faz mais de um mês, li algumas linhas curiosas em O mundo russo, que seguem aqui:

... a nosso ver, o caso de Netcháiev pode nos convencer de que a juventude estudantil não se envolve em semelhantes loucuras. Um fanático idiota, do tipo de Netcháiev, só poderia encontrar prosélitos num meio de jovens ociosos, mal-educados e que não são capazes de aprender nada.

E adiante:

... além do mais, há alguns dias, o ministro da educação popular (em Kiev) declarou2 que, depois de inspecionar estabelecimentos de ensino em sete distritos, pode afirmar que nos últimos anos a juventude tem se dedicado às ciências com muito mais severidade e que ela trabalha de modo cada vez mais sólido.

As linhas em si, ou seja, julgadas isoladamente, são bastante insignificantes (espero que o autor me perdoe). Mas nelas há um artifício insólito e uma velha mentira mais do que batida. A ideia principal e absoluta é a de que, quando os Netcháievs aparecem por vezes entre nós, são, forçosamente, idiotas e fanáticos, e, quando acham prosélitos, estes, forçosamente, vêm de um meio de jovens ociosos, mal-educados e que não são capazes de aprender nada. Não sei exatamente o que o autor desse pequeno artigo em O mundo russo queria provar com esse artifício insólito: será que ele pretendia lisonjear a juventude estudantil? Ou, ao contrário, numa manobra astuta e, por assim dizer, com ar afável, pensou em enganá-la um pouco, mas com as intenções mais respeitáveis, isto é, em benefício da própria mocidade? Assim, para atingir seus objetivos, o autor teria usado um método bastante conhecido entre governantas e babás no trato de suas crianças: pois bem, dizem elas, meus queridos, aqueles bagunceiros maus, que gritam e batem, vão ser castigados sem falta por serem tão “mal-educados”, já vocês, tão queridinhos, tão comportados e elogiados, que sabem sentar direito à mesa e sem balançar os pés, vão ganhar guloseimas. Ou, será que, por fim, o autor, pura e simplesmente, queria “defender” nossos estudantes do governo e, para isso, usou um método que ele mesmo, possivelmente, considera extraordinariamente astuto e refinado?

Direi sem rodeios: ainda que eu tenha levantado todas essas questões, as intenções pessoais do autor desse pequeno artigo de O mundo russo não suscitaram em mim a menor curiosidade. E até acrescento, como uma última ressalva, que estou inclinado a considerar a mentira e o artifício velho e batido expressos em O mundo russo algo não premeditado e acidental, ou seja, o próprio autor acreditou plenamente em suas palavras e tomou-as por verdadeiras com grande simplicidade, a qual, em qualquer outra ocasião, seria louvável e até comovente por sua fragilidade. Mas, além disso, a mentira tomada por verdade tem sempre um aspecto por demais perigoso (mesmo tendo aparecido em O mundo russo); salta aos olhos também o fato de ela nunca ter surgido de maneira tão despudorada, precisa e singela como nesse artigo. Efetivamente, obrigue um homem a rezar a Deus e ele machucará a testa.3 Nesse sentido, é curioso examinar essa mentira e, na medida do possível, pô-la às claras, pois ainda podemos defrontar-nos com outra sinceridade tão singela quanto essa!

Desde os tempos imemoriais do pseudoliberalismo, nossa imprensa adota a regra de “defender a juventude”, mas defendê-la contra quem ou contra o quê? Isso, às vezes, permanece na escuridão do desconhecido e, dessa maneira, esta regra não raro assume um aspecto incoerente e até cômico, especialmente nos ataques contra os outros órgãos da imprensa, indo pela seguinte direção: “somos mais liberais,” dizem eles, “enquanto os senhores atacam a juventude, quer dizer, são mais retrógrados”. Abro um parêntese para dizer que, nesse mesmo artigo de O mundo russo, há uma acusação clara à revista O cidadão, já que aqui, supostamente, os estudantes de Petersburgo, Moscou e Khárkov são sempre condenados. Nem preciso dizer que o autor do artigo sabe muito bem que, em nossa publicação, nunca houve e não há nada semelhante a essa condenação incessante e extensiva a toda a juventude, e eu só peço uma explicação ao nosso acusador: o que significa fazer acusações extensivas à juventude como um todo? Simplesmente não entendo isso! Decerto significa que, por algum motivo, não amamos a juventude inteira, ou melhor, não a juventude inteira, mas determinada faixa etária de nossos jovens. Mas que confusão é essa?! Quem pode acreditar numa acusação dessas?! É claro que tanto a acusação quanto a defesa foram feitas sem muita consciência, sem muita reflexão. Pois, para eles, só vale refletir assim: “Provei que eu mesmo sou um liberal que elogia a juventude e que critica os que não a elogiam, e isso já é suficiente para uma assinatura, e uma preocupação a menos!”. Exatamente uma preocupação a menos, pois só o pior inimigo da nossa juventude poderia defendê-la dessa maneira e se valer de um artifício tão surpreendente como no que o autor simplório deste artiguinho de O mundo russo incorreu (por descuido, estou agora mais convencido do que nunca).

O importante nisso tudo é entender que esse método não é apenas uma invencionice de O mundo russo, mas um procedimento comum a vários órgãos de nossa imprensa pseudoliberal, só que, neste caso, provavelmente, já não usado com tanta simplicidade. A essência dele, em primeiro lugar, consiste no louvor obstinado à juventude, em toda e qualquer circunstância, e em ataques grosseiros contra todos aqueles que se permitem, de modo eventual, tratá-la criticamente. Esse método se baseia na suposição ridícula de que a juventude tem tanto a amadurecer e gosta tanto de lisonjas que não atinará com a coisa toda e tomará tudo por verdadeiro. E, de fato, conseguiram fazer com que muitos jovens (acreditamos, com convicção, que nem de longe todos) passassem a gostar do elogio ordinário e a exigir lisonjas, sempre prontos para acusar qualquer um, sem distinção, que não aprove continuamente cada passo que eles dão, sobretudo em certas ocasiões. No entanto, por enquanto, o mal é apenas provisório; as perspectivas juvenis mudam com a experiência e a idade. Mas ainda existe outro lado desta mentira, que gera um mal imediato e objetivo.

Este outro lado do método de “defesa da nossa juventude diante da sociedade e diante do governo” consiste na simples negação dos fatos, por vezes de modo grosseiro e insolente: não, tal fato não existiu e não poderia ter existido; quem diz que ele existiu está, dessa maneira, caluniando a juventude, quer dizer, é um inimigo da nossa juventude!

Eis o método. Repito, nem mesmo o pior inimigo da juventude russa inventaria nada mais nocivo aos verdadeiros interesses dela. Preciso prová-lo sem falta.

Com a negação dos fatos a qualquer custo, é possível atingir resultados surpreendentes.

O que provarão com isso, senhores, e no que aliviarão o caso se começarem a afirmar (e, principalmente, só Deus sabe para quê) que a juventude “seduzida”, ou seja, aquela que se deixar seduzir (que seja até por Netcháiev) é necessariamente formada apenas pelos “mal-educados e ociosos”, pelos que não são capazes de aprender nada, em resumo, por vagabundos com as piores inclinações? Dessa forma, isolando o caso, tirando-o da esfera dos estudantes e reduzindo-o necessariamente aos “ociosos mal-educados”, o senhor acusa de antemão esses infelizes e os rejeita de modo categórico: “Vocês mesmos têm culpa, seus bagunceiros preguiçosos que nunca souberam se comportar à mesa”. Isolando o caso e privando-o do direito de ser examinado como um todo (é nisso que consiste a única defesa possível desses infelizes “depravados”!), o senhor não apenas como que assina uma condenação definitiva, mas os afasta da possibilidade de compaixão, pois afirma sem rodeios que seus erros foram resultado unicamente de suas qualidades abomináveis, e que esses jovens, mesmo sem terem cometido nenhum crime, devem sentir desprezo e aversão por si.

Por outro lado, e se de repente, num caso qualquer, não estiverem envolvidos absolutamente os mal-educados, os bagunceiros, os que balançam os pés debaixo da mesa, os preguiçosos, mas, ao contrário, se estiverem envolvidos jovens aplicados, entusiasmados, estudiosos e até de bom coração, e apenas mal orientados? (Entenda esta palavra: “orientado”. Onde, em qual parte da Europa, o senhor poderá achar tanta instabilidade em toda espécie de orientação quanto aqui e no momento atual?!) Ora, conforme a sua teoria dos “preguiçosos e mal-educados”, os novos “infelizes” serão, então, três vezes mais culpados: “A eles foram oferecidas todas as condições, passaram por todas as ciências, trabalharam com afinco – não, eles não têm justificativa! Merecem três vezes menos compaixão do que os ‘ociosos mal-educados’!” Veja o resultado direto de sua teoria.

Permitam-me (falo a todos, e não só ao colega de O mundo russo): com base na “negação dos fatos”, os senhores afirmam que os Netcháievs são necessariamente idiotas, “idiotas fanáticos”. De novo, seria assim mesmo? Seria justo? No caso em questão, evito o Netcháiev, e falo dos “Netcháievs”, no plural. Sim, dos Netcháievs podem sair criaturas bastante sombrias, bastante tristes e destroçadas, com uma sede de intriga e poder muito complexa em sua origem, com uma necessidade apaixonada e precocemente doentia de exibir sua personalidade, mas por que seriam “idiotas”? Ao contrário, até os verdadeiros monstros entre eles podem ser muito educados, astutos e até cultos. Ou os senhores acham que o conhecimento, as “ciências”, as lições escolares (ainda que fossem universitárias) formam em definitivo a alma de um jovem e que este, ao receber seu diploma, adquire automaticamente um talismã inquebrantável que lhe permitirá, de uma vez por todas, reconhecer a verdade e fugir das tentações, das paixões e dos vícios? Dessa maneira, todos os jovens que terminam o curso de ciências se tornariam no ato, conforme a opinião dos senhores, multidões de pequenos papas, não passíveis de pecar.

E por que os senhores supõem que os Netcháievs sejam obrigatoriamente fanáticos? Com muita frequência, são simplesmente vigaristas. “Sou um vigarista, e não um socialista,” assim fala um dos Netcháievs, digamos, do meu romance Os demônios, mas lhes asseguro que ele poderia dizê-lo também na realidade. Esses vigaristas são muito astutos e estudiosos precisamente do lado magnânimo da alma dos homens, mais frequentemente da alma dos jovens, de modo que são capazes de tocá-la como um instrumento musical.4 E será que os senhores acreditam de fato que os prosélitos, que poderiam ser recrutados por um Netcháiev qualquer, são obrigatoriamente constituídos apenas de vagabundos? Não creio, nem todos são assim; eu mesmo sou um velho “netchaievista”, eu também estive no cadafalso, condenado à morte, e lhes asseguro que estava em companhia de pessoas instruídas. Praticamente todos desse grupo haviam concluído cursos nos melhores estabelecimentos de ensino. Alguns, depois, quando tudo já havia passado, destacaram-se por conhecimentos especializados e obras formidáveis. Não, nem sempre os “netchaievistas” são preguiçosos e incapazes de aprender qualquer coisa.

Sei que os senhores, sem dúvida, vão retrucar dizendo que não sou em absoluto um dos “netchaievistas”, mas apenas um dos “petrachevskistas”.5 Que seja um dos “petrachevskistas” (apesar de, a meu ver, essa denominação ser incorreta; pois um número grande de perfeitos petrachevskistas saiu absolutamente incólume e despreocupado, em comparação com quem esteve no cadafalso. É verdade que esses nunca conheceram Petrachévski pessoalmente, mas a questão, em toda essa história tão remota, não se resume a Petrachévski. Era só o queria notar).

Pois bem, que eu seja um dos “petrachevskistas”. E por que os senhores não consideram a hipótese de que os “petrachevskistas” poderiam ter-se tornado “netchaievistas”, ou seja, poderiam ter seguido o caminho de Netcháiev se a situação se convertesse a isso? Claro, naquela época, era impossível imaginar que a situação poderia se converter a isso. Eram outros tempos. Mas permitam-me dizer algo no que me diz respeito: provavelmente eu jamais poderia ter me transformado num Netcháiev, mas num netchaievista não garanto, talvez até pudesse... nos idos da juventude.

Pus-me a falar de mim para ter o direito de falar dos outros. No entanto, continuarei a falar apenas de mim, e, se eu chegar a mencionar alguém, será de modo geral, impessoal e num sentido completamente abstrato. A questão dos petrachevskistas é tão remota, parte de uma história tão antiga, que, provavelmente, não fará mal nenhum recordá-la, ainda que adotando uma direção tão abstrata e efêmera.

Não havia nenhum “monstro” e “vigarista” entre nós, os petrachevskistas (tanto faz se falamos dos que acabaram no cadafalso ou dos que saíram incólumes). Penso que ninguém refutará essa afirmação. Quanto ao fato de haver pessoas instruídas entre nós, como já observei, provavelmente também ninguém irá contestar. Só que poucos de nós, sem dúvida, teriam conseguido resistir ao conhecido ciclo de ideias e conceitos tão fortemente enraizado na sociedade juvenil da época. Fomos contaminados pelas ideias do socialismo teórico de então. Ainda não existia socialismo político na Europa naquela época, inclusive, os mentores europeus do socialismo até o repudiavam.

Louis Blanc,6 em vão esbofeteado e arrastado pelos cabelos (como de propósito, longos e pretos) por seus companheiros da Assembleia Nacional, deputados de tendência direitista, foi salvo dessas garras por Arago7 (um astrônomo, membro do governo, já morto) naquela infeliz manhã de maio de 1848, quando irrompeu, na câmara, uma turba de trabalhadores impacientes e esfomeados. O pobre Louis Blanc, que por algum tempo foi membro do governo provisório, não os incitou em absoluto: ele apenas fazia discursos, no Palácio de Luxemburgo, sobre os “direitos trabalhistas” a esses homens miseráveis e esfomeados, que, devido à Revolução e à República, perderam seus empregos em bloco. Realmente, embora sendo um membro do governo, seus discursos, nesse sentido, eram por demais apolíticos e, certamente, ridículos. A propósito, a revista de Considerant,8 assim como os artigos e as brochuras de Proudhon, pretendia difundir entre os mesmos trabalhadores esfomeados, sem um tostão no bolso, a aversão profunda pelo direito à propriedade hereditária. Sem dúvida, de tudo isso (quer dizer, da impaciência de homens esfomeados, estimulados pelas teorias de felicidade futura) resultou, posteriormente, o socialismo político, cuja essência, apesar de todos os objetivos anunciados, consiste, por enquanto, apenas no desejo das classes necessitadas de saquear todos os proprietários como um todo, e, depois, que “seja o que for” (pois, na realidade, nada foi resolvido ainda, não se sabe que lugar tomará a sociedade futura, a única coisa que se sabe é que a atual fracassou, e, por ora, essa é a única fórmula do socialismo político). Mas, naquele tempo, o assunto ainda era visto sob uma luz cor-de-rosa e uma moral celestial. É realmente verdade que o socialismo incipiente era, então, comparado, até por alguns de seus mentores, com o cristianismo: o socialismo era considerado uma reparação e uma melhoria do cristianismo, sendo aquele mais consonante com o século e com a civilização atuais. Todas essas novas ideias de então nos agradaram terrivelmente em Petersburgo, pareciam ser santas e morais em alto grau e, principalmente, humanitárias, a futura lei de toda a humanidade, sem exceção. Bem antes da revolução parisiense de 1848, já estávamos envolvidos pela força encantadora dessas ideias. Já em 1846 Belínski revelara-me toda a verdade sobre este “mundo renovado” por vir e toda a santidade da futura sociedade comunista. As convicções acerca da imoralidade das bases (as bases cristãs) da sociedade moderna, acerca da imoralidade da religião, da família e do direito à propriedade; as ideias sobre a aniquilação das nacionalidades em nome de uma fraternidade universal, sobre o desprezo à pátria e aos entraves ao desenvolvimento mundial etc. etc. – tudo isso eram influências que não poderiam ser ignoradas por nós e que, ao contrário, conquistavam nossas mentes e nossos corações em nome de algum tipo de magnanimidade. Em todo caso, o tema parecia ser grandioso, situado num nível bem superior ao das ideias dominantes na época – e era isso que nos seduzia. Todos aqueles dentre nós, ou seja, não apenas dentre os petrachevskistas, mas todos aqueles dentre os contaminados que depois rejeitaram radicalmente todo esse mal delirante, toda essa escuridão e todo esse horror preparados para a humanidade sob a aparência de uma renovação e uma ressurreição, ainda não conheciam, naquela época, as causas dessa doença, e por isso ainda não podiam lutar contra ela. Pois bem, mas por que os senhores acham que um assassinato à moda de Netcháiev poderia deter não todos, mas pelo menos alguns de nós, naqueles dias tão inflamados, no meio de ensinamentos que arrebatavam a alma e de acontecimentos europeus tão formidáveis, os quais, esquecendo totalmente o nosso país, acompanhávamos com uma tensão febril?

O assassinato monstruoso e abominável de Ivanóv em Moscou, sem sombra de dúvida, foi apresentado pelo seu assassino, Netcháiev, às suas vítimas, os “netchaievistas”, como um ato político e útil para o futuro “da grande causa universal”. De outro modo não seria possível entender como alguns jovens (fossem quem fossem) puderam concordar com esse assassinato tenebroso. Mais uma vez, em meu romance Os demônios, tentei retratar os motivos distintos e variados que podem levar até os homens mais ternos e de coração puro a cometer um crime tão monstruoso. É nisso que consiste todo o horror que pode sujeitar um homem a realizar o ato mais indecente e abominável, mesmo, às vezes, não sendo nenhum canalha! E isso não acontece apenas entre nós, mas em toda parte, desde que o mundo é mundo, nos momentos de transição, nos momentos de abalo na vida das pessoas, de dúvidas e negações, de ceticismo e instabilidade nas convicções fundamentais da sociedade. Mas, na Rússia, isso é mais plausível do que em qualquer outro lugar, principalmente agora; e é esse o traço mais doentio e aflitivo da nossa atualidade. A possibilidade de um indivíduo, não se considerando um canalha e, algumas vezes, não o sendo de fato, cometer uma vilania clara e indiscutível é nossa desgraça contemporânea!

Que tipo de proteção especial da juventude é essa, em comparação às outras idades, que faz com que os senhores, seus defensores, exijam dela, tão logo ela trabalhe e estude com afinco, uma firmeza e uma maturidade nas convicções que nem seus pais têm, e agora menos do que nunca? Os jovens das classes da nossa intelligentsia são criados dentro de suas famílias, nas quais hoje, com frequência, encontram-se o descontentamento, a impaciência, a rudeza da ignorância (mesmo em se tratando da intelligentsia); a educação verdadeira, quase em toda parte, é substituída simplesmente pela negação insolente que ecoa de uma voz estrangeira; os desejos materiais se sobrepõem a qualquer ideia elevada; as crianças são educadas sem base, fora da verdade natural, com desrespeito ou indiferença pelo país e com um desprezo zombeteiro pelo povo, o que tem sido especialmente difundido nos últimos tempos – não seria daqui, dessa fonte, que nossos jovens irão extrair a verdade e o direcionamento exato de seus primeiros passos na vida? Eis a origem do mal: a traição; a permissividade de ideias; a repressão secular do nacional projetada em si sem qualquer discernimento; a compreensão da dignidade do europeu forçosamente condicionada ao desrespeito por si próprio, ao desrespeito pelo homem russo!

Mas os senhores, ao que parece, não acreditaram nessas observações um tanto genéricas. “A educação, a dedicação,” batem sempre na mesma tecla, “os ociosos mal-educados,” repetem sem parar. Reparem que todos esses novos mestres supremos europeus, nossa luz e nossa esperança, cada Mill, Darwin e Strauss, às vezes olham, surpresos, para as obrigações morais do homem moderno. Entretanto, não são preguiçosos incapazes de aprender qualquer coisa, não são bagunceiros que balançam os pés debaixo da mesa. Os senhores vão cair na risada e indagar: por que me veio na veneta citar exatamente esses nomes? Porque, ao falar da juventude da intelligentsia, entusiasmada e estudiosa, é difícil imaginar que esses nomes, por exemplo, lhe escapem nos primeiros passos na vida. Será que algum jovem russo pode ficar indiferente à influência desses líderes do pensamento progressista europeu e de outros análogos, especialmente quanto ao aspecto russo desses ensinamentos? Queiram desculpar estas palavras ridículas, “aspecto russo desses ensinamentos”, mas é que esse aspecto realmente existe. Ele se resume na conclusão de que esses ensinamentos são como axiomas indeléveis, uma conclusão tirada apenas na Rússia; na Europa, nem a possibilidade dessa ideia é cogitada. Irão me dizer, provavelmente, que esses senhores não ensinam absolutamente maldades, que, por exemplo, mesmo que Strauss odeie Cristo e que tenha como missão ridicularizar e insultar o cristianismo, ele idolatra a humanidade como um todo e seu ensinamento não poderia ser mais elevado e nobre. É bem provável que tudo seja assim e que os objetivos dos líderes atuais do pensamento progressista europeu sejam humanitários e grandiosos. Mas, em compensação, há algo que me parece indubitável: deem a todos esses mestres supremos modernos a possibilidade cabal de destruir a antiga sociedade e de construí-la de novo e isso resultará em caos e escuridão, em algo tão grosseiro, cego e desumano que todo este edifício irá ruir, sob as maldições da humanidade, antes mesmo de ser concluído. Uma vez rejeitado Cristo, a mente humana pode alcançar resultados espantosos. Isso, sim, é um axioma. A Europa, pelo menos entre os maiores representantes de seu pensamento, rejeita Cristo, e nós, como é sabido, temos a obrigação de imitá-la.

Existem momentos históricos na vida dos homens em que uma maldade manifesta, insolente e grosseira pode ser considerada uma grandeza da alma, praticamente um ato de coragem nobre da humanidade, capaz de romper grilhões. Será que é preciso dar exemplos, será que esses não são milhares, dezenas, centenas de milhares?... Esse tema, certamente, é complexo e vasto demais para ser tratado num folhetim, mas, apesar de tudo, penso eu, também é possível, com efeito, admitir minha hipótese: mesmo um menino simples e honesto, mesmo um bom estudante, pode, vez ou outra, transformar-se num netchaievista... quer dizer, se ele, mais uma vez, der de cara com um Netcháiev, isso é sine qua non...

Nós, os petrachevskistas, fomos ao cadafalso e ouvimos nossa sentença sem o menor arrependimento. Sem dúvida, não posso depor por todos, mas penso que não cometerei um engano ao dizer que, naquele momento, naquele instante, se não todos, pelo menos a grande maioria de nós teria considerado uma desonra abdicar de suas convicções. Esse acontecimento é tão distante que já é possível levantar uma questão: será que a obstinação e a ausência de arrependimento estavam relacionadas apenas com pessoas de má índole, mal-educadas e desordeiras? Não, não éramos uns desordeiros, éramos talvez até bons rapazes. A sentença de pena de morte por fuzilamento, informada a todos previamente, não foi lida de modo nenhum como uma brincadeira – quase todos os condenados estavam certos de que ela seria cumprida, e suportaram pelo menos dez minutos terríveis, incomensuravelmente medonhos, à espera da morte. Nos últimos minutos, alguns de nós (sei disso positivamente), aprofundando-se em si instintivamente e passando a limpo, num átimo, toda a sua vida ainda tão jovem, por certo se arrependeram de algumas coisas graves que fizeram (daquelas que, por toda a vida, são mantidas em segredo na consciência de uma pessoa); mas o que nos levou a sermos julgados, aqueles pensamentos, aquelas opiniões que dominavam a alma, pareciam algo que dispensa arrependimentos e, mais do que isso, algo que nos purifica, um martírio com o qual muitos de nossos erros seriam perdoados! E assim tudo permaneceu por muito tempo. Nem os anos de exílio, nem os sofrimentos nos reprimiram. Nada nos reprimiu, ao contrário, nossas convicções ampararam nosso espírito com a consciência de dever cumprido. Não, foi outra coisa que modificou nosso ponto de vista, nossas convicções e nossos corações (claro, só me permito falar daqueles cuja mudança de convicções já é pública ou dos que, de alguma maneira, expressaram isso). Essa “outra coisa” foi um contato direto com o povo, uma ligação fraternal com ele, uma infelicidade comum; a ideia de haver-se transformado nele, de ser comparável e até igualável a ele em seu estágio mais inferior.

Volto a insistir, isso não aconteceu tão depressa, mas de forma gradativa e depois de um longo tempo. Não foi o orgulho nem o amor-próprio que me impediu de perceber tudo isso antes. No entanto, talvez eu tenha sido um daqueles (de novo, falo de mim mesmo) que mais teve facilidade para retornar às raízes populares, ao conhecimento da alma russa, à aceitação do espírito do povo. Vim de uma família russa muito devota. Desde que me conheço por gente, recordo o amor dos meus para comigo. Em nossa família, conhecíamos o Evangelho praticamente desde a primeira infância. Com apenas dez anos, eu já conhecia todos os episódios principais da história russa de Karamzin, os quais meu pai nos lia de noite. Cada visita ao Kremlin e às catedrais moscovitas eram, para mim, algo solene. Talvez os outros não tenham esse gênero de recordação, como no meu caso. Com muita frequência penso e me questiono: quais impressões, de um modo geral, a juventude de agora pode trazer de sua infância? Se até para mim, que, naturalmente, não pude me omitir em relação ao novo cenário fatal ao qual a desgraça nos lançou e que não pude tratar do surgimento, diante da minha pessoa, do espírito popular com um ar arrogante e superficialidade, se até para mim foi tão difícil, quero dizer, convencer-me da falsidade e da inverdade de quase tudo o que era antes, entre nós, considerado luz e verdade, como será com os que tiveram um rompimento mais profundo com o povo, um rompimento hereditário, legado ainda por seus pais e avós?...

Seria muito difícil contar a história da transformação das minhas convicções, além do mais, isso talvez não seja tão interessante, tampouco combina muito com um folhetim

Senhores defensores de nossos jovens, tomem, por fim, o meio, a sociedade na qual a juventude se desenvolve e se questionem: poderia existir, em nosso tempo, algo mais vulnerável a “certas influências” do que ela?

Antes de tudo, levantem a seguinte questão: se os próprios pais desses jovens não são melhores nem mais saudáveis em suas convicções; se essas crianças, desde a primeira infância, só encontraram em suas famílias cinismo, arrogância e (em grande parte) negação indiferente; se a palavra “pátria” era, sem exceção, pronunciada diante deles com um matiz de zombaria e, se fosse algo referente à Rússia, todos esses educadores se referiam a isso com desprezo ou indiferença; se mesmo os pais e os educadores mais generosos só lhe repetiam as ideias “humanitárias”; se ainda na infância suas babás eram dispensadas só por ler a “Ave Maria” sobre seus bercinhos; então, digam-me: o que se pode exigir dessas crianças, e, ao sair em sua defesa (se isso se mostrar necessário), seria humano limitar-se à negação do fato?

Recentemente, encontrei o seguinte entrefilet9 nos jornais:

O Jornal Kama-Volga informa que, alguns dias atrás, três estudantes, do 2º e 3º anos do ginásio de Kazan, foram convocados para prestar esclarecimentos sobre a acusação de um crime que possui ligação com sua suposta fuga para a América. (Notícias de São Petersburgo, de 13 de novembro).

Há vinte anos, a notícia de alguns ginasianos do 3º ano em fuga para a América teria me parecido um absurdo. Mas, agora, esse acontecimento já não me parece um absurdo, é algo, ao contrário, compreensível – vejo nesse acontecimento e nessa fuga uma justificativa!

Justificativa! Meu Deus, será possível falar assim?!

Sei que não são os primeiros ginasianos a fazer isso, que outros já fugiram, e esses o fizeram porque seus pais e irmãos mais velhos haviam fugido antes. Os senhores se recordam do conto de Kiélssiev,10 no qual um pobre oficial foge a pé através de Torneo e Estocolmo para ir ao encontro de Herzen em Londres, onde este lhe arranja um emprego de compositor em sua tipografia? Lembram-se da narrativa do próprio Herzen11 sobre o mesmo cadete, que, ao que parece, foi até as ilhas Filipinas organizar uma comuna e a quem aquele deixou 20.000 francos para os futuros emigrantes? Entretanto, essa já é uma velha história! Desde então, foram para a América conhecer o “trabalho livre num Estado livre” velhos, pais, irmãos, moças, oficiais da Guarda... só faltaram alguns seminaristas. Será possível culpar essas crianças, esses três ginasianos, se suas cabecinhas fracas foram dominadas pelas “grandes ideias” do “trabalho livre num Estado livre”, da comuna e do homem europeu universal, será possível culpá-los se toda essa bobagem lhes parece religião, se o absenteísmo e a traição à pátria lhes parecem uma virtude? E, se alguém os culpar, em que grau isso pode ser feito? – eis a questão que se coloca.

O autor do artigo de O mundo russo, para reforçar a ideia de que em “semelhantes loucuras” se envolvem apenas os preguiçosos e os mal-educados que vivem no ócio, apresenta as palavras já conhecidas e consoladoras do ministro da educação popular, recentemente pronunciadas em Kiev, sobre a oportunidade que ele teve, depois de inspecionar estabelecimentos de ensino em sete distritos, de convencer-se de que nos últimos anos a juventude tem se dedicado às ciências com muito mais severidade e que ela trabalha de modo cada vez mais sólido.

Sim, decerto são palavras consoladoras, e talvez nossa única esperança. Praticamente todo o nosso futuro está na reforma de ensino do atual reinado, e nós sabemos disso. Mas o próprio ministro da educação, como me vem à lembrança, disse no mesmo discurso que o resultado definitivo da reforma ainda tomará muito tempo. Sempre acreditamos que nossa juventude é extremamente capaz de levar as ciências a sério. Só que, por enquanto, há uma névoa de ideias enganosas à nossa volta; tantas miragens e tantos preconceitos ainda nos cercam, assim como cercam nossa juventude; e toda nossa realidade social, a realidade dos pais e das mães desta juventude adota aspectos cada vez mais estranhos e que os fazem involuntariamente procurar os meios mais diversos para sair de tal estado de perplexidade. Um desses meios é tornar-se uma pessoa menos insensível, não se constranger, ao menos às vezes, quando alguém o chamar de cidadão, e... ao menos às vezes, dizer a verdade, mesmo se ela não for, a seu ver, suficientemente liberal.

[O cidadão, no 50, 10 de dezembro de 1873, págs. 1349 a 1353]


Serguei Netcháiev (1847–1882), líder do grupo revolucionário radical Naródnaia rasprava (Represália popular) que, no dia 21 de novembro de 1869, assassinou o estudante Ivan Ivanóv, ex-integrante do grupo. O julgamento dos integrantes da organização se deu em 1871. O acontecimento foi um escândalo, noticiado intensamente pelos jornais da época e acompanhado de perto por Dostoiévski, que, inspirado no fato, escreveria o romance Os demônios (1872).?

Trata-se do discurso proferido pelo ministro D.A. Tolstói (1823–1889) em 21 de outubro de 1873.?

Na ortodoxia, costuma-se rezar curvando-se diversas vezes até o chão.?

Alusão a Hamlet, de Shakespeare (ato 3, cena 2).?

Referência ao Círculo de Petrachévski (1845–1849), do qual Dostoiévski participou entre 1846 e 1849, ao lado de escritores como M.E. Saltykóv-Schedrin (1826–1889). Na casa de Mikhail Petrachévski (1821–1866), reuniam-se para discutir questões literárias e políticas, sobretudo o autoritarismo do reinado do tsar Nicolau I. Em 1849, Petrachévski foi preso e condenado à morte, assim como os outros integrantes do grupo, incluindo Dostoiévski. Já no cadafalso, tiveram a pena comutada. Ver nota 16 do capítulo Velhos conhecidos.?

Louis Blanc (1811–1882), político francês. Teve participação ativa na Revolução de 1848.?

François Jean Dominique Arago (1786–1853), físico e político francês. Chegou a ser primeiro-ministro em 1848.?

Victor Considerant (1808–1893), político francês, redator de diversas revistas. Também foi ativo nos eventos de 1848 e chegou a participar da 1ª Internacional.?

Em francês, no original: “pequena notícia de jornal”.?

V.I. Kiélssiev (1835–1872), emigrante e revolucionário russo, jornalista, tradutor e colaborador de Herzen.?

Tem-se em vista o livro Passado e pensamentos (1868).

 

 

                                                                  Fiódor Dostoiévski

 

 

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