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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DIÁRIO DE UMA VIRGEM / Jocelyn Bresson
DIÁRIO DE UMA VIRGEM / Jocelyn Bresson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

DIÁRIO DE UMA VIRGEM

 

- Quando o coração está em maré baixa, o mundo acaba por ser uma onda à deriva. Nessa tarde, Marguerite Remy passeou pelas ruas de Paris, de mãos dadas com a solidão. O acaso levou-a ao canal de San Martin, situado a dois quarteirões da Praça da Repú­blica, no noroeste da cidade. As comportas estão fechadas, a água não corre, este é um rio órfão de mar. Há doze pontes circulares que saltam languidamente sobre a água e formam, com os seus reflexos, um túnel imaginário por onde parece ir chegar um comboio. Tendo subido à terceira destas pontes, Marguerite observa como o vento desenha milhares de ondas sobre a superfície do canal. Aquele irrepa­rável fluir diz-lhe respeito. Também de alguma forma, a sua vida, o seu corpo se vão lenta e incessan­temente. A superfície do canal é como um espelho que a reflete, ampliada. Aquelas ondas inquietas são a sua pele, os reflexos desordenados os seus ossos, aquele ir e vir a sua alma. Marguerite não é feliz, e a água do canal de San Martin recorda-lhe que o tempo também passa para ela e que chegará o dia em que nada a poderá fazer sofrer. É que Marguerite quer morrer... Mas de momento é jovem e chora sobre as águas do alto daquela ponte. As suas lágri­mas caem sempre sobre as ondas.

De repente, começa a chover. A brisa deixa de fazer ondular a água, e os edifícios, o céu, as pontes e Marguerite deixa de refletir sobre a superfície do canal de San Martin. Chove. Chove, e em Paris os umbrais das portas só são acolhedores para os aman­tes. Chove. Chove mas Marguerite já não se importa de se molhar e ali se deixa ficar, permitindo que o céu, com magnífica ironia, a ajude a estar triste. As lágrimas e as gotas de chuva acariciam-lhe as faces para logo se perderem e desembocarem nesse rio órfão que é qualquer canal sem corrente. Chega um barco, as comportas abrem-se, algo muda, há sempre algo que muda, mas Marguerite já está cansada de que a data de cumprimento dos seus sonhos seja tão imprecisa: um dia.

A mãe morreu poucos dias depois de ela nascer. O pai, desesperado, parece ter morrido de desgosto. Marguerite cresceu sob os cuidados da tia Josefine, irmã de sua mãe. E fosse o sentimento de culpa que começou a formar-se quando soube como tinham morrido os pais, fosse o caráter autoritário da tia, o certo é que Marguerite cresceu como crescem as sombras ao entardecer: triste, calada e discreta.

Vivia com a tia num palacete de fim de século, cujo portão de ferro forjado e fachada de estilo colo­nial faziam com que muitos passeantes se detivessem, fascinados, perante aquele quadro. Ali cresceu Marguerite, afastada de tudo até que chegou a hora de ir para a escola. Mas já era demasiado tarde, pois a tia tinha-a educado de uma forma tão invulgar que ela não conseguiu ser uma criança como as outras.

Convém referir que a tia Josefine tinha sido aban­donada no altar no dia da boda. O noivo, jovem de boa família que sentia não estar preparado para o matrimônio, não se atrevera a fazer nada até ser demasiado tarde. Um telefonema para os pais de Josefine que esperavam, impacientes, nos degraus da igreja, deu-lhes a má noticia. Quase não se consegui­ram fazer ouvir, estavam a ligar da estação de Austerlitz e o comboio estava prestes a partir. A tia Josefine nunca se recompusera de tamanho golpe. Passavam os anos e ela não conseguia esquecer aquele homem. Odiava-o e amava-o. A recordação dele ocupou-lhe tantos hectares de coração que não lhe deixou nem um único centímetro disponível para voltar a gostar. Há amores que são como as legiões romanas que queimam e arrasam para que mais ninguém possa voltar àquelas terras. A tia Josefine foi um campo de cinzas, uma primavera de ausências, um ontem sem amanhã. Daquele misto de rancores e tristezas fer­mentou um vinho amargo que a embriagou de ódio em relação ao amor. Só a menção desse sentimento a punha indisposta.

E quando Marguerite chegou lá a casa, tão boni­ta, tão simples, tão alegre, tão indefesa... a tia Josefi­ne decidiu protegê-la contra essa paixão que tanta dor lhe tinha provocado. Não podia admitir que o amor viesse a fazer sofrer uma criatura tão inocente, não iria permitir que isso acontecesse outra vez. E assim encarou a educação da sobrinha como um dever familiar, um projeto a longo prazo que con­sistia em vaciná-la contra o cancro da paixão, fecha-la para o amor. E foi por esta razão que a tia Josefi­ne nunca contou a Marguerite histórias em que um príncipe salvava uma princesa e depois se casava com ela. Tão pouco a deixou brincar com outros meni­nos. Marguerite nunca ouviu nada acerca do amor. O mundo chegava-lhe filtrado pelos cuidados cons­tantes da tia. Mas a pequena Marguerite tinha nasci­do para amar e nada a ia afastar do seu destino.

Quando Marguerite começou a ir para a escola, o seu temperamento retraído e reservado, consequên­cia da educação recebida, impediu-a de se relacionar com as outras crianças, de forma que se habituou a viver com a única companhia dos seus pensamentos. Já dissemos que Marguerite nunca tinha ouvido falar de amor e, ao entrar em contato com o mundo, começou a ouvir falar daquele sentimento que achou tão misterioso e tão proibido que acabou por se transformar em verdadeira obsessão.

A tia Josefine tinha uma vasta biblioteca onde Marguerite nunca fora autorizada a entrar. Havia ali milhares de livros que ninguém abria há muitos anos. Milhares de histórias de amor que permane­ciam esquecidas naquela sala velha e poeirenta. Mas um dia, teria Marguerite cerca de doze anos, a tia Josefine entrara na biblioteca para recolher alguns documentos e, ao sair, deixara a chave na fechadura. E logo que apanhou a tia fora de casa, Marguerite entrou naquele misterioso compartimento cuja entrada sempre lhe fora vedada. Ficou maravilhada por ver tantos livros e, depois de dar duas ou três vol­tas à sala acariciando suavemente as lombadas daquelas caixas de Pandora, escolheu um livro ao acaso e começou a lê-lo. Que maravilhoso era o mundo de que falavam aquelas histórias! Quanto amor, quanta paixão, quanto sonho! Passaram duas ou três horas sem que ela se apercebesse. Quando ouviu abrir a porta da entrada, Marguerite guardou o livro e saiu a correr, fechando a aporta e guardan­do a chave no bolso. A tia Josefine não percebera nada e, como levou vários meses a entrar nova­mente na biblioteca, pensou que a chave original se havia extraviado e utilizou uma cópia. Naquela altu­ra, já Marguerite Remy, impulsionada por uma insa­ciável mistura de sensações, tinha lido centenas de livros.

Aquelas histórias eram o seu refúgio. No mundo real sentia-se exilada, ela não pertencia a este mundo mas àquele outro.

Mas uma vez fechado o livro, todo esse mundo desaparecia. Era como quando se acendiam as luzes no cinema. Tudo aquilo acabava. Nada daquilo era a sua vida, não passava de uma ficção, de um sonho, e havia que levantar-se e sair para a rua, para esse mundo em que cada segundo era um doloroso desencontro, um enorme choque entre a realidade e o desejo.

Já passaram muitos anos desde que Marguerite leu o primeiro romance, mas a vida continua igual. A timidez impede-a de se relacionar. A tia continua a viver por ela e ela vai-se deixando levar. A chave da biblioteca permitiu-lhe sobreviver àquele exílio, mas, por outro lado, a leitura de tantos romances em que o amor é tudo provocou-lhe um desejo desesperado de desfrutar os sublimes prazeres desse sentimento contra os quais a tia Josefine se empenhou em defen­dê-la.

Eis está Marguerite Remy, a chorar, numa das pontes do canal de San Martin. Tem vinte e quatro anos, é enfermeira no hospital da Salpetriere e só com os seus doentes é capaz de exteriorizar a ternu­ra que enche todo o seu ser. Os seus olhos verdes es­preitam, assustados, por entre as madeixas do cabe­lo. Os seus gestos e a sua postura ocultam a elegância e beleza com que a natureza a dotou. Os seus passos são curtos e rápidos, como se estivesse a fugir de alguma coisa. Tão pouco o vestuário a favorece. Desde miúda que a tia Josefine a obrigou a usar saias amplas e escuras, de tecido áspero e pesado. Acredi­tava que se ela andasse vestida daquela maneira esta­ria mais a salvo do amor. Com vinte e quatro anos, Marguerite ainda nãos se atrevera a mudar a forma de vestir.

Também, costumava ela dizer para si própria, mesmo que eu vista como a Dominique me acon­selha, ninguém vai querer-me.

Efetivamente, habituada a ser ignorada por toda a gente, Marguerite achava que era feia e que nunca encontraria o grande amor que as heroínas dos seus romances arranjavam sempre.

Dominique era a única amiga de Marguerite.

Conheciam-se desde a escola. Aquela tinha sido sem­pre uma amizade desequilibrada em que Dominique falava sem parar enquanto Marguerite se limitava a escutar, fascinada pela sua simpatia e formosura. Do­minique era para ela a única abertura através da qual Marguerite olhava para o mundo. Falava-lhe de rapa­zes, de raparigas, dos seus amores, dos seus ódios, dos seus receios, das suas ilusões... retalhos do mundo com os quais ela construía os seus sonhos noturnos. Mas os anos foram passando e, pouco a pouco, Mar­guerite Remy foi ficando para trás. Pouco a pouco, as suas esperanças foram-se esfumando. Pouco a pouco, foi-se retirando cada vez mais de cena...

Dominique, pelo contrário, aproveitou as mu­danças febris da adolescência, descobriu o seu corpo e o seu coração. Amou e esqueceu. Deu e recebeu. Entretanto, Marguerite Remy, com os olhos, com a mente, pensava que era injusto não haver amor para ela. Sentia que o mundo estava muito mal feito, que daria anos de vida por um só segundo de amor. Dizia isto a Dominique, que lhe respondia que ela devia fazer um esforço.

- Mas, Marguerite - dizia-lhe a amiga quando ainda acreditava que ela pudesse mudar - deixa lá a tua tia e faz o que te digo. Põe-te direita, deixa de andar curvada, veste como uma rapariga. Não vês que és bonita mas assim ninguém a percebe?

Mas ela ficava calada e punha-se a olhar para o chão, longe de tudo, encerrada numa prisão cujas barras eram feitas de medo e de vergonha. O passa­do tinha demasiado peso e Marguerite não podia ultrapassá-lo. A sua vontade não contava.

À medida que foram passando os anos, Domini­que deixou de insistir e acabou por considerá-la um caso perdido.

Mas regressemos onde estávamos. Dizíamos que Marguerite pensava que ninguém gostaria dela mesmo que se vestisse como Dominique. Na verda­de, quando Marguerite se referia a ninguém, queria dizer Jean Pierre. Jean Pierre era o amor platônico de Marguerite, a materialização dos seus desejos.

E Dominique também gostava dele. Já na escola passava a vida a falar dele com a pobre Marguerite que a escutava com o coração apertado. Aquilo du­rou muitos anos e Marguerite Remy foi-se habituan­do a dissimular porque nunca se atreveu a confessar o amor que sentia por Jean Pierre. Assim, sem o saber, Dominique martirizava a amiga com os seus projetos de conquista amorosa e as suas ilusões apaixonadas.

Quando a amiga lhe dizia que naquele dia Jean Pierre tinha olhado para ela, Marguerite ficava com vontade de morrer. Para ela nunca ele olharia, ela, a mosquinha morta, a menina vestida de freira.

Os anos foram passando e as nossas amigas dei­xaram de ser meninas. Dominique esqueceu Jean Pierre e começou a ter os seus amores. Contava tudo à amiga, que a ouvia com um aperto na alma. Por seu lado, Marguerite não se esquecera de Jean Pierre. De vez em quando tinha informações de que ele estava a estudar direito, mais atraente que nunca, mais diver­tido que nunca... O tempo continuou a agitar-se, tal como as águas do canal de San Martin. O tempo foi passando e Marguerite já era enfermeira no famoso hospital da Salpetrière. Dominique estava a acabar os estudos de arquitetura e um dia passou-se algo...

As duas amigas tinham combinado encontrar-se em San Michel para tomarem um refresco e conver­sar um pouco. Marguerite chegou com dez minutos de antecedência, nunca tinha compromissos que a atrasassem. Enquanto observava as pessoas a entra­rem e a saírem das livrarias começou a sentir algo estranho. Havia qualquer coisa no ar. Algo que a fazia sentir que tudo estava prestes a mudar. Foi quando viu Dominique chegar, de passo apressado, radiante, mais sorridente que nunca.

- Não vais acreditar, Marguerite - disse ela. - Sabes quem acabo de encontrar?

Ela disse que não. Dominique acrescentou que se cruzara na rua com Jean Pierre e que tinham troca­do números de telefone para ver se um daqueles dias se encontravam. E Marguerite, que continuava a gos­tar de Jean Pierre, desfazia-se por dentro. Aquilo era injusto, ela não poder ter nada, enquanto Domini­que ia tendo tudo, incluindo Jean Pierre. Era Domi­nique, que já havia sido amada, quem se ia encontrar com Jean Pierre.

- Não estás satisfeita, Marguerite? Vou encontrar-me com Jean Pierre. Faz tanto tempo...

E Marguerite dizia-lhe que sim, que estava muito contente e que oxalá tudo corresse bem. Convém dizer que Marguerite gostava muito da amiga e que tinha tentado ajudá-la centenas de vezes. Se tivesse suspeitado que ela também gostava de Jean Pierre teria mostrado mais tato.

- Olha, Marguerite - perguntou-lhe Dominique naquela mesma tarde. - Achas que este vestido me fica bem?

E a pobre Marguerite Remy, que esperava sentada na ponta da cama que a amiga mudasse de roupa, dizia-lhe que estava muito bem. Na verdade, Domi­nique era muito bonita. Tinha uma enorme cabelei­ra ruiva que lhe chegava ao meio das costas. Era ele­gante e tinha nos gestos uma graça natural que a tor­nava particularmente atraente.

- Estás maravilhosa, Dominique. De certeza que o Jean Pierre vai apaixonar-se por ti.

Depois destas palavras, a amiga abraçou-a dizen­do-lhe entre risos que talvez ela tivesse razão, que aquilo seria como que uma vingança da infância.

- Uma vingança boa, claro, porque o vou fazer muito feliz.

E Marguerite Remy abraçou a amiga com muita força. Separaram-se às sete da tarde na Praça da República. Marguerite dirigiu-se para o canal de San Martin, subiu a uma das pontes e começou a chorar, tal como contamos no início desta história.

 

Mas Marguerite tem um segredo. Todas as noites, desde há muitos anos, escreve um diário que guarda como se fosse um dos tesouros mais precio­sos do universo. Ninguém sabe da sua existência, nem sequer Dominique. A verdade é que se trata de um diário muito especial.

À medida que Marguerite Remy ia perdendo as esperanças de viver o amor, e quando já não lhe bas­tava a leitura dos romances que povoavam a biblio­teca da tia Josefine, verificou que necessitava de algo mais, de dirigir os seus próprios sonhos, de ser ela própria a protagonista daqueles romances impossí­veis. E assim começou apenas com dezesseis anos esse precioso diário onde não escrevia o que tinha acontecido nesse dia, mas o que gostaria que tivesse acontecido. Durante a hora que dedicava à redação do diário, a verdadeira Marguerite transformava-se noutra. Nessas páginas era bonita, divertida, alegre e para ali transcrevia amores intuídos através dos romances, dos filmes e das apaixonadas narrativas da sua amiga Dominique.

Todas as noites, quando começava a escrever, durante as primeiras linhas, Marguerite ainda era Marguerite. Mas, pouco a pouco, o milagre ocorria e ia-se apoderando dela a outra Marguerite ideal e, de caneta em punho, começava a desenhar freneticamente, palavra após palavra, página após página, beijo após beijo, contando o maravilhoso romance que poderia ter sido a sua vida.

No momento em que esta história começa, Mar­guerite já escreve há mais de sete anos. E já tem mais de trezentas páginas de sonhos naquele caderno que esconde no quarto, na última prateleira de um armá­rio, inatingível ao olhar da tia. Ali tinham dormido os seus sonhos durante anos, ali tinha dormido a sua outra vida, escondida entre os lençóis lavados que ninguém utiliza. Aquilo parecia uma ironia do desti­no, mas Marguerite Remy não parecia ter perce­bido isso.

Aquele diário era como a tábua a que se agarra o náufrago. Aquele diário era o prêmio de consolação de uma vida que tinha ficado à porta.

Marguerite suportava, a manhã recordando o prazer da noite anterior e deixava que a tarde desli­zasse lentamente à espera do seu momento de falsa verdade.

Nesse diário apareciam todas as pessoas que Mar­guerite conhecia, todas menos Jean Pierre. O amor que sentia por ele era tão esperançado, tão doloroso, que não era capaz de o incluir no seu sonho. Se Jean Pierre lhe vinha ao pensamento enquanto escrevia o diário, era obrigada a parar imediatamente. Voltava a sentir-se a Marguerite que nunca levantava os olhos do chão. Era essa a razão por que Jean Pierre nunca aparecia no seu diário. No entanto, naquelas trezen­tas páginas que acumulara estavam presentes Domi­nique, a tia, o mundo, enfim, ela própria.

Se, por exemplo, naquele dia em que, passeando com Dominique, se haviam cruzado com Paul Bourgeois, o rapaz loiro que estudava economia na Sorbonne, e a sua amiga, como sempre, tinha falado e rido com ele enquanto ela permanecia em segundo plano com a cabeça baixa, aquilo que Marguerite escrevia no seu diário era que, naquela tarde, quan­do se tinham encontrado com Paul Bourgeois, dera uma discreta cotovelada a Dominique e que esta, compreendendo as intenções dela, os deixara a sós. E então os dois tinham ido passear no Jardim das Plan­tas, que fica perto da estação de Austerlitz, e ali tinham assistido ao entardecer e falado um pouco de tudo. As flores da avenida central do Jardim das Plantas exalavam um perfume doce que os remeteu para um eloquente silêncio. No labirinto de plantas que há por detrás da escola de botânica, Marguerite aproveitara um momento em que Paul se curvara para apanhar uma flor. E ele procurara-a chamando-a, rindo, ameaçando ir-se embora e Marguerite esperava-o escondida atrás de um arbusto. No fim, Paul encontrava-a e as suas bocas uniam-se num enorme beijo em que as suas almas se perdiam e se encontravam no labirinto das suas bocas. Era isso o amor: um labirinto dentro de outro labirinto. Um perder-se estando perdido...

Quando ouviram o encarregado do jardim avisar que estava na hora de fechar o parque, trocaram o seu último beijo antes de saírem, de mão dada. E pas­searam pelas margens do Sena, beijando-se junto a cada árvore, encobertos por essa amiga fiel e pontual dos amantes que é a noite.

Também contava no seu diário que começara a ser mulher quando o seu corpo ainda era de menina. Uma espécie de fogo frio invadia-lhe os membros, rompia com os medos e abalançava-se sobre os seus gestos, as suas palavras e atos, arrastando tudo o que encontrava pelo caminho. Eram mais de mil e uma histórias que desde a mais tenra adolescência lhe haviam percorrido o corpo. Aos catorze anos, durante umas férias de Verão na Bretanha, um primo em segundo grau roubara-lhe a virgindade. O rapaz teria vinte e cinco anos e naquela quente tarde leva­ra-a à pesca. Ela ficara fascinada a vê-lo manobrar as canas e as redes, maravilhada pela concentração ausente com a qual o jovem parecia prescindir da presença dela.

Passado um bocado, aborrecida já com tanto silêncio e ante a indiferença, Marguerite Remy come­çara a atirar pedrinhas ao primo. Ele dizia-lhe que parasse ou ficaria zangado. Mas Marguerite conti­nuava. Os seus catorze anos não lhe saberiam indicar quando parar? Os que os seus catorze anos lhe sabiam dizer era que aquela concentração demons­trada pelo primo era um esforço desesperado que ele fazia para tentar distrair-se da paixão que sentia pelo corpo dela, paixão que ameaçava tornar-se mais forte e levá-lo a fazer amor com ela.

Ela continuou a lançar-lhe pedrinhas de modo que a concentração ausente de Jean François se viu transformada num ódio profundo que é o sentimen­to que costuma invadir os homens em relação ao que não podem ter. Num momento de raiva tentou dar-lhe uma bofetada e ela afastou-se com um movi­mento brusco. Marguerite Remy riu-se e começou a tocar-lhe com um pequeno ramo até que Jean François se levantou, agarrou com uma das mãos a face da prima e com a outra esbofeteou-a. Marguerite ficou ali, calada. Com as faces vermelhas e os olhos chorosos, olhando-o com ódio... mas depressa esse olhar se transformou em descaramento e provoca­ção. Cuspiu-lhe na cara e desatou a rir. Jean François sentia-se invadido simultaneamente por ira e desejo, e passados minutos o instinto animal tomou conta dele o que o fez lançar-se sobre a prima e rebolar com ela pelo chão, fazendo amor ali mesmo. Mar­guerite continuava a rir, feita num corpo entregue à luxúria e ao prazer.

Naquele Verão, Marguerite e Jean François tinham ido pescar todos os dias e faziam febrilmen­te amor.

E todas as noites Marguerite continuava a escre­ver mil histórias apaixonadas que decorriam em todos os recantos onde a sua imaginação chegava. Aquela colegial era o oposto completo de Margueri­te. Descarada, provocadora, alegre e enérgica, não perdia a mínima oportunidade de se lançar numa nova aventura. Parecia que Marguerite saía todas as manhãs à rua desejando que lhe ocorresse alguma coisa, ainda que má.

Atravessa-lhe a alma uma série de loucuras, his­tórias e paixões que tinha de saciar de qualquer forma. Sentia um curioso interesse pelo lado estético e literário das situações. Marguerite era capaz de se entregar a um homem unicamente pelo fato de a maneira ou o local onde o tivesse conhecido ter algo de romântico ou teatral.

Assim, desde os catorze anos que Marguerite não hesitava em chegar a casa tarde, vinda da escola, por­que se tinha cruzado com um homem de quarenta anos que metera conversa com ela e lhe começara a contar a sua vida. Viagens, triunfes, derrotas, amo­res, medos, enfim, tudo o que uma biografia tem para oferecer. E Marguerite Remy bebia-lhe as pala­vras e sentia que se tinha cruzado com a personagem de algum romance que, pelo seu caráter rebelde e aventureiro, se atrevera a saltar das páginas para a realidade.

E ali estava Marguerite, tão de carne e osso, tão segura de si, a desejar tanto ter uma vida emocionan­te, de filme... E sentia que aquele homem a podia ajudar a escrever um capítulo apaixonante que naquela noite pudesse narrar no seu diário. Escusa­do será dizer que aquele homem ficava surpreendi­do, quase assustado, quando Marguerite lhe agarrava na mão e o levava, quase à pressa, em silêncio, para um dos muitos recônditos hotéis do famoso bairro Pigalle. Zona obscura que parece começar a viver unicamente a partir do crepúsculo, em que os aman­tes clandestinos usufruem do prazer, defendidos pela bruma do anonimato e do veludo encarnado.

No quarto daquele hotel, Marguerite Remy entre­gara-se aos milhares de jogos que já gozara anterior­mente com colegas da escola. Mas aquele era diferen­te, aquele homem maduro e experiente sabia tratá-la com uma delicadeza violenta, com uma doçura áspera que a excitava cada vez mais. Não tinham tro­cado sequer os nomes e isso agradava a Marguerite, que o chamava “querido desconhecido” e se entrega­va a todas as suas fantasias com um olhar entre o submisso e o provocador. Foram mais de cinco horas as que passou ali fechada naquele quarto. Não se deram tréguas nem um único segundo. Aquele homem sabia que não voltaria a ter nos seus braços aquela adolescente de língua ávida. Sentia que fora o romantismo da situação, o misterioso da sua história que lhe tinha aberto as portas daquele paraíso de entregas selvagens.

Mas isto só acontecia na imaginação de Margue­rite, tudo isto não passava do produto dos seus sonhos naquela travessia do deserto que era a sua existência. Marguerite Remy nunca se rendia e todas as noites se entregava a novas fantasias que a dis­traíam da tristeza e abriam as portas desse outro mundo que lhe fugira das mãos, como cai a bola que atiram ao bebê que começou a caminhar. Nessas mil histórias que inventava cruzavam-se o romantismo adolescente com a sexualidade mais impudica e ani­mal. O anjo e o demônio beijavam-se na boca da­quela rapariga sedenta de sensações e de vida.

Outra noite, Marguerite escrevia como naquele domingo à tarde tinha ido passear sozinha pela conhecida Rua Muffetard. Essa rua está cheia de frutarias que estão abertas à noite e exala um odor intenso que embriaga de vitalidade os transeuntes. Os empregados das frutarias falam com os passeantes e oferecem-lhes, em exóticos idiomas, as suas mercadorias. As peças de fruta estão distribuídas em altas pirâmides que ameaçam constantemente ruir e vir pela rua abaixo. Marguerite passeara nessa rua com o andar lento de quem não vai a lugar nenhum, com o passo desorientado de quem não tem pressa. De repente, a sua atenção fixou-se num homem que, do alto de uma varanda, ia desenhando os transeun­tes. Ficou encantada com aquela visão. Ele estava ves­tido de branco e trabalhava com os olhos semicerrados. Marguerite deixou-se ficar parada no meio da rua, trespassada pelo olhar do pintor que parecia ter-se fixado nela. Talvez a tivesse tomado por mais um elemento do quadro que desenhava.

Passado pouco tempo, o homem de tez morena e olhar ausente fez-lhe um gesto como que a dizer: “Vem cá, vem cá.” Passados alguns segundos, Mar­guerite decidiu subir as escadas e entrar. A porta estava aberta. Os seus olhos, habituados à luz inten­sa que naquela tarde de domingo penetrava até nas sombras mais intensas, levaram alguns segundos a adaptar-se. A casa era fresca e Marguerite Remy lá foi, escadas acima, até ao primeiro andar onde uma porta se abriu e uma voz doce disse:

- Por aqui.

Que maravilhoso era tudo aquilo! Parecia um conto das mil e uma noites! Ela era a princesa. Ele era um homem selvagem e solitário que a seduzia, arrancando-a dos prazeres superficiais para a arras­tar até um paraíso onde vivem os fora-da-lei.

- Por aqui, sobe as escadas - voltou a dizer a voz misteriosa com sotaque estrangeiro. Até que Mar­guerite deparou cara a cara com o homem que dese­nhava. Ainda tinha o caderno numa mão e um lápis na outra. Perguntou-lhe se queria que a desenhasse ao que Marguerite respondeu, encantada, que sim.

Entrou na casa que era pequena mas muito aco­lhedora. Parecia o interior de uma tenda berbere. O chão estava coberto de tapetes e nas paredes havia vários panos africanos que, com os seus estampados coloridos, davam ao quarto a tonalidade de um cre­púsculo no deserto. Na verdade, o homem era muito moreno, com traços exóticos e mãos enormes. Esta­va descalço e movia-se silenciosamente.

- Senta-te aqui - disse ele, apontando um sofá coberto com almofadões.

Marguerite Remy obedeceu. Mas o sofá era muito baixo e ela não sabia como sentar-se, de modo que acabou por se esticar ao comprido, apoiando a cabe­ça numa mão, como uma Vénus, olhando de frente aquele homem, que, sentado no chão, tinha começa­do a desenhá-la. Marguerite sentia-se bem, gostava de olhar para aquele homem. O tecido fino da roupa branca colava-se ao corpo e deixava adivinhar braços musculosos, mas irritava-a o fato de ele não a olhar como mulher mas como se fosse um objeto. Os seus olhos atravessavam-na mas só pareciam deter-se nos perfis, nas sombras, nas cores, e não naquele corpo que prometia prazeres imensos.

O homem continuava a desenhar. Marguerite continuava irritada com aquela indiferença. No fundo de si sentia-se humilhada e esse sentimento excitava-a. Começou a mover-se lentamente, primei­ro em pequenas convulsões, depois em ondulações das ancas e do ventre. Puxou a blusa de forma a ficar com o umbigo a descoberto. O homem continuava impassível, desenhando-a como se fosse uma nature­za morta e Marguerite sentia-se cada vez mais irrita­da, cada vez mais excitada... o mundo inteiro tinha-se reduzido àquele homem e Marguerite sentiu que se não o possuísse morreria ali mesmo.

O homem parecia ter acabado o desenho.

- Posso ver? - perguntou Marguerite num fio de voz. Ele levantou-se e aproximou-se do sofá, sentou-se a seu lado e mostrou-lhe o desenho. Marguerite não conseguiu reprimir o seu espanto. Ele desenha­ra-a completamente nua. O homem nem lhe deu tempo para falar, a sua boca lançou-se sobre a dela com a mesma rapidez com que cai a árvore atingida por um raio. Marguerite ofereceu-lhe a boca, os seios, o umbigo e começou a acariciá-lo. Passados poucos segundos, todas as almofadas estavam espa­lhadas pelo chão. Pareciam vestígios de um naufrá­gio que ainda não terminara porque Marguerite estava agarrada àquele homem como se ele fosse a sua boia de salvação. O seu rosto estava empapado em suor, a respiração era ofegante e tinha os olhos congestionados com esse misto de dor e prazer que as adolescentes sentem a primeira vez que se entre­gam a um homem mais velho.

Tudo isto escrevia Marguerite Remy no seu diá­rio. E, ao apagar a luz, deixava-se ficar deitada sobre a cama, de olhos abertos e com a alma a sangrar por­que ao fechar o caderno ficava dentro de si aquela outra Marguerite que nunca chegaria a ser...

Contudo, antes de dormir, rezava e pedia a Deus que fizesse alguma coisa. Marguerite não perdia a esperança de que, um dia, ocorresse um milagre que lhe abrisse as portas da vida.

No entanto, quando acordava na manhã seguin­te, tudo continuava na mesma. Esse um dia não chegara e, entretanto, a sua timidez continuava a não lhe dar a oportunidade de conhecer o amor.

 

No dia seguinte ao encontro de Dominique com Jean Pierre, Marguerite pensava que não teria coragem de perguntar à amiga como tinham ocorrido as coisas. Tinha medo de desatar a chorar, e que a voz lhe começasse a tremer. Viu Dominique chegar com um sorriso lânguido, o que a fez entrar num deses­pero profundo. Mas como Marguerite estava mais do que habituada a fingir, conseguiu aguentar durante duas ou três horas as apaixonadas descrições que a amiga lhe fez daquilo a que chamava “o seu sonho”, a “sua pequena vingança de infância”.

Jean Pierre, contava-lhe Dominique, tinha com­preendido que ela já não era a miúda que o olhava de longe à hora do recreio com uma maçã na mão e na outra a mão dessa outra miúda em quem ninguém reparava e que se chamava Marguerite.

- Eu nem queria acreditar - continuava Domini­que, emocionada. - Quando cheguei meia hora atra­sada e o vi ali, tão pontual, tão bem arranjado, tão impaciente, compreendi que lhe tinha agradado e que agora era ele quem teria de suspirar por mim.

E Marguerite olhava-a com os olhos muito aber­tos como quando não se vê muito bem porque é noite.

- Passa-se alguma coisa? - perguntou Domini­que.

E Marguerite disse que não, que estava muito feliz por ela, que grande sorte tinha tido... e Domi­nique continuou a contar-lhe que nessa noite tinham ido jantar para os lados da Bastilha, e que já lhe contaria o resto...

Naquela noite, como sempre, Marguerite sentiu a necessidade imperiosa de se vingar do mundo escrevendo no diário tudo aquilo que o destino lhe recusava. Debruçada sobre a mesa, mordendo suave­mente a língua, Marguerite passou várias horas des­crevendo o maravilhoso encontro que tivera com um tal François, com quem mal tinha falado na rea­lidade, mas que lhe parecia atraente e interessante, pelo menos o suficiente para poder sonhar com ele e afastar da cabeça a dolorosa presença de Jean Pierre.

Os meses que durou o noivado entre Domini­que e Jean Pierre foram uma tortura para Margueri­te. O azar quis que ela fosse testemunha direta do lento homicídio da sua felicidade, espectadora de primeira fila do circo romano das suas esperanças.

Marguerite sofria em silêncio as pormenoriza­das descrições que a amiga lhe fazia dos passeios pelo Bosque de Bolonha, dos jantares em românticos res­taurantes de Montmartre e dos seus beijos apaixona­dos à noite, nos umbrais. Por que razão não podia ela ter Jean Pierre? Por que razão o mundo a tinha feito assim? Marguerite consumia-se no desespero.

No dia em que Dominique lhe anunciou o seu casamento, ela empalideceu. Estava com receio daquilo, mas a esperança engana-nos até ao último minuto, talvez para dar tempo a que a desgraça doa mais fundo e faça mais dano. Mas Dominique não viu mais que surpresa no rosto da amiga e, demasia­do ocupada com a sua felicidade, era incapaz de intuir o sofrimento da amiga.

- Vais ajudar-me a tratar de tudo, está bem? - perguntou Dominique. - Vamos fazer tudo juntas.

Marguerite disse que sim, sorrindo, de longe. - Passa-se alguma coisa contigo? - perguntou Dominique.

- Nada, foi a surpresa - respondeu Marguerite. E, assim, viu-se obrigada a ajudar a amiga em todos os preparativos para o casamento. O vestido, a igreja, o bolo, os convites, e isto sem conseguir habi­tuar-se ao sofrimento. Todos os dias se lembrava de que Dominique e Jean Pierre eram noivos. Cada tarde voltava ao canal de San Martin e ali ficava sozi­nha, em silêncio, observando como o vento fazia ondular a água. Também a sua vida era um rio para­do, também ela ia desembocar ao nada.

Mas havia ainda algo pior que era quando Jean Pierre começara a acompanhar Dominique e Mar­guerite a concertos, passeios e filmes, de forma que Marguerite se via submetida à tortura de ver a sua amiga a namorar com Jean Pierre. Uma noite, no cinema, sentiu que os dois se beijavam e não pode conter as lágrimas. À saída, Dominique perguntou:

- Estiveste a chorar, Marguerite?

E ela disse que sim, que tinha chorado pois o final do filme fora demasiado triste e estava cansada, queria ir para casa...

Naquela noite, enquanto Marguerite passeava lentamente em direção a casa, Dominique dizia a Jean Pierre que estava um pouco preocupada com a amiga que, nos últimos dias, andara mais distante do que era normal, que tinha medo que ela fizesse algum disparate, e Jean Pierre, enquanto a escutava, perguntava-se onde estava o tão falado sexto sentido das mulheres, porque ele sabia o que se passava com Marguerite, ele conhecia a razão por que ela chorara no cinema, ele sabia que Marguerite o amava e sen­tia até um certo prazer em fazê-la sofrer. Era por este motivo que as acompanhava muitas vezes. Na pre­sença de Marguerite, Jean Pierre lançava olhares a Dominique, fazia-lhe mil carícias falsamente dissi­muladas. Ficava excitado de uma forma sádica ao ver os olhos chorosos de Marguerite. O prazer de Jean Pierre alimentava-se da grande dor daquela infeliz testemunha. De forma que os dias passavam daque­la maneira dolorosa, e se Marguerite Remy escapou ao suicídio mais do que uma vez foi por muito pouco e graças ao seu diário, ao qual começou a dedicar noites inteiras. Mas aquilo era só para sobre­viver. Na sua alma ia-se cavando um vazio que um dia teria de terminar. Como podia haver uma tão grande distância entre o que ela era e o que devia ser? A vida das pessoas costuma reunir vitórias e derro­tas, alegrias e tristezas, mas a de Marguerite era uma desgraça constante.

Aproximava-se o dia do casamento. Os prepara­tivos cada vez lhes ocupavam mais tempo. A tortura ficou cada vez mais intensa. A Primavera florescia, as ruas enchiam-se de gente, das esplanadas chegavam as conversas frívolas de que os parisienses tanto gos­tam, os parques estavam repletos de leitores e as pon­tes cheias de músicos ambulantes. Todos pareciam ter uma mão para agarrar, todos menos Marguerite.

 

O casamento de Dominique realizou-se em San Germain en Laye, uma povoação perto de Paris, de onde se avistavam ao longe as torres inacabadas de Notre Dame e a imaculada brancura do Sacré Coeur, uma basílica cujas cúpulas dão um ar oriental à coli­na de Montmartre. Há em Saint Germain um jardim enorme cujos limites se confundem como o bosque. Dominique e Jean Pierre não tinham olhado a meios na hora de preparar o casamento. Perto do miradouro havia um pequeno coreto onde uma orquestra com quinze músicos pertencente à orquestra da Ópera de Paris tocava as valsas mais conhecidas e as músicas mais românticas. À volta do coreto dança­vam vários pares, e a alguns metros de distância cen­tenas de pessoas conversavam animadamente. Estava ali a alta sociedade de Paris a comentar as últimas novidades, as últimas viagens que tinham feito, e cri­ticando severamente todos aqueles que lhes pudes­sem fazer sombra.

E ali, no meio daquele marasmo luxuoso e febril, encontrava-se Marguerite, em pé, sozinha, vestida de verde-claro, com um copo vazio numa mão e o cha­péu na outra. Parecia escutar atentamente a música, mas, na verdade, mais não fazia do que ouvir as palpitações do seu coração. Marguerite pensava que cada batida iria ser a última, mas todos os segundos se repetia o maldito milagre e uma nova contração enviava a todas as partes do seu corpo o sangue sufi­ciente para ela continuar a sofrer, o oxigênio sufi­ciente para continuar a arder de esperança.

O mundo estava mal feito. E já nada tinha ordem nem sentido.

O seu amor por Jean Pierre era a lei do universo, o parâmetro regulador do mundo e se este falhasse, o que restava?

Dominique estava ocupada em cumprimentar os convidados. Estava de mão dada com Jean Pierre e ambos sorriam com ar de felicidade. Marguerite conseguiu escapar-se da festa e foi até ao miradouro. Estava um belo dia. A indiferença da natureza doía-lhe. Por que razão o céu não chorava com ela, tal como acontecia nos romances? Mas Marguerite sabia muito bem que a realidade nada tinha a ver com os seus romances, muito menos com o seu diá­rio. No mundo real ela não encontrava um local habitável. Sentia que só nos braços de Jean Pierre poderia ter sido feliz, só com os seus beijos poderia ter respirado. Mas agora tudo era um vazio porque quando nos falta um só ser, se for aquele que ama­mos, o mundo inteiro fica despovoado.

- Marguerite - chamou Dominique de longe. - Que fazes aí? Vem dançar.

Marguerite nem vontade tinha de respirar, quan­to mais de dançar. Mas como sempre, obedeceu aos desejos dos outros e dirigiu-se para junto de Domi­nique com o passo derrotado de um cão que regres­sa a casa à hora da refeição.

- Anda rapariga, assim nunca te casamos - disse Dominique, rindo e agarrando-a pela mão. - Vou apresentar-te um rapaz muito interessante.

Mas Marguerite só pensava em Jean Pierre e não tinha vontade de conhecer ninguém. Além disso, sabia que ia ficar sem saber o que dizer, que mais uma vez o fantasma da tia Josefine a impediria de levantar os olhos e sorrir. O rapaz que Dominique lhe apresentou não só era feio como desinteressante. Martirizou-a durante vinte minutos com piadas a que só ele achava graça. Depois de uma eterna ago­nia social, o rapaz foi-se embora e Marguerite pode regressar ao miradouro para falar com a solidão.

Jean Pierre aproximou-se várias vezes para a cumprimentar. Bem, essa era a desculpa, porque o que Jean Pierre queria ver era as nuvens que tolda­vam o olhar de Marguerite. O que queria era forçá-la a sorrir, a dissimular uma dor forte que o excita­va e o fazia regressar à festa com forças renovadas.

 

Dominique e Jean Pierre fizeram uma longa via­gem de noivado por todo o Extremo Oriente. Mar­guerite ficou em Paris com a tia, os seus doentes, o seu canal de San Martin e a sua solidão. Quando já não resta nem um grão de esperança, só respira no nosso corpo uma impaciência aguda, a alma quer escapar-se. Sem esperança não há vida, sem esperan­ça os dias convertem-se num voo anulado.

Marguerite passeava por Paris com a imprevisibilidade dos peixes de aquário. Dos jardins das Tulherias ao parque Monceau, da majestosa Praça da Ópera ao bairro do Marais. Ignorava para onde se dirigia. Só sabia que queria escapar mas não conse­guia, a tristeza era sempre mais rápida que o esque­cimento. Era isso que procurava: o esquecimento. Poder escapar dessa teia de ausências que povoava todas as esquinas, todos os portais, todas as varandas da cidade por onde passeava. Todas as percepções que se entrelaçam desordenadamente nas ruas lança­vam Marguerite para o ponto de partida. Eterna par­tida, aquela, eterna tortura que participava do ciclo do castigo divino.

Numa calorosa tarde de Junho em que se passea­va perto do antigo mercado das Halles, Marguerite Remy deteve-se junto de um velho violinista cego que tocava uma bela melodia, que falava da tristeza melancólica do canto do cisne e também da magia crepuscular da fé religiosa. Aquela melodia pegou-se tanto a Marguerite que esta não conseguiu reprimir as lágrimas acumuladas durante aquelas duas sema­nas de solidão e desespero que se tinham seguido ao casamento de Dominique com Jean Pierre. Como tantas vezes o fizera, Marguerite procurou refúgio na Igreja de Saint Eustache.

Sentada na penumbra, Marguerite sentia-se a salvo nas igrejas. Sempre que podia refugiava-se nelas, tal como uma criança se refugia nos braços da mãe. A salvo do mundo, Marguerite rezava com fer­vor, pedindo a Deus que a ajudasse ou que a matas­se. Naquela tarde de domingo, falou com dureza para a imagem que tinha à sua frente. Pediu-lhe a morte, atirou-lhe à cara o fato de ter nascido, ameaçou com o suicídio se não a ajudasse e acabou a soluçar com o rosto entre as mãos, repetindo sem cessar:

- Porquê? Porquê? Porquê?

Efetivamente, os seres que sofrem vêm-se lança­dos contra as perguntas sem resposta. Convertem-se em metafísicos que procuram a causa primeira da sua dor, busca que remonta tão atrás na infinita cadeia de causas e efeitos que acaba por se confundir com a ori­gem do próprio universo. Porquê? Porquê? E como não encontram resposta dão golpes atrás de golpes contra esse muro sem saída que é o sofrimento.

Ao erguer os olhos, Marguerite Remy sentiu um arrepio. A imagem mirava-a com outro reflexo para além do das velas que as velhas acendiam em memó­ria dos seus mortos. Os olhos da imagem pareciam brilhar de uma forma estranha. Talvez as lágrimas a fizessem ver o que não existia e esfregou os olhos. Mas a imagem parecia continuar a olhá-la fixamen­te, parecia que queria dizer-lhe algo. Dizia-lhe: “Sai para a rua, tem fé, alguma coisa vai mudar.”

O desespero faz-nos ver indícios de mudança em todas as sombras. No íntimo de Marguerite nasceu um entusiasmo cego e desesperado que a fez acredi­tar que algo ia mudar, que algo a ia tirar daquela cruz.

Saiu da igreja com o coração cheio de esperança. E, absorta nos seus pensamentos, quase sem se dar conta, chegou à Praça do Panteão, na outra margem do Sena. Algo lhe confortava a alma, alguém lhe agarrava na mão e a conduzia para qualquer lado. Deus prometera-lhe que alguma coisa mudaria, Deus pedia-lhe fé. Nesse preciso momento, resolveu fechar os olhos e ter confiança em que, finalmente, alguma coisa ia acontecer. Só precisava de se deixar levar. Só precisava de se deixar cair.

 

Quando Marguerite voltou a abrir os olhos já não estava perto do Panteão nem sentia aquela ansiedade impaciente no estômago. Quando voltou a abrir os olhos estava numa sala branca e um médi­co olhava-a, sorridente.

- Bom dia, Marguerite - disse ele com doçura. -Tiveste muita sorte.

Mas Marguerite não sabia o que estava ali a fazer nem quem era aquele homem.

- Que estou aqui a fazer? - E o médico explicou-lhe que era possível que

levasse algumas horas a recordar o que se tinha pas­sado porque o golpe que fizera na cabeça ao ser atro­pelada no Boulevard Saint Germain poderia ter afetado a área frontal, que é onde ocorrem todas as ope­rações relacionadas com a memória. Respondia ao nome de Marguerite Remy porque o médico lhe dis­sera que era o seu, mas à parte isso nada ficara na alma de Marguerite. Nem os medos, nem as mágoas, nem a vontade de morrer, nada. De vez em quando aparecia uma estranha apresentando-se como a sua tia Josefine, mas, por muitos esforços que fizesse, a jovem não conseguia lembrar-se daquela mulher de aspecto severo que lhe disse que a sua amiga Domi­nique estava em viagem de núpcias. Tinham preferi­do não a informar para não lhes estragar a viagem. Para Marguerite aquilo não significava nada. Domi­nique, Jean Pierre, um casamento, uma viagem... Que lhe estava a contar aquela mulher vestida de negro?

A tia Josefine agarrava-lhe na mão e dizia-lhe com voz trêmula que devia recordar-se de que ela a educara como se fosse mãe dela, e Marguerite não conseguia deixar de sentir uma espécie de indiferen­ça perante aquela mulher que parecia uma persona­gem de ficção. Tinha esquecido tudo.

O médico visitava-a três ou quatro vezes por dia e perguntava-lhe sempre se já se começara a lembrar de alguma coisa. Chamava-se Fabrice, e apesar de ser muito jovem falava com a segurança de quem tem já muitos anos de experiência. Fabrice era alto, largo de ombros e a sua tez morena contrastava com a bata branca, dando-lhe um ar exótico. Marguerite sentia-se bem a seu lado e esperava com impaciência as suas visitas frequentes.

Fabrice era tão carinhoso que ela nunca chegou a sentir-se só durante as quase três semanas que per­maneceu no hospital. O nosso coração rende-se perante a constância, deixa-se levar pelas recorrên­cias. Fabrice conseguiu fazer do quarto do hospital um verdadeiro paraíso. Os dias passavam e Margue­rite sentia-se como se estivesse de férias à beira mar: distraída, alegre e expectante. Havia sempre flores, livros e outros presentes sobre a mesa-de-cabeceira onde habitualmente só se encontram termômetros e medicamentos.

Uma tarde, Fabrice sentou-se ao seu lado, agar­rou-lhe na mão e disse:

- Já sei que não te recordas de nada, Marguerite, mas vamos os dois fazer um esforço. Sabes falar. Isso quer dizer que na tua mente estão as palavras e con­ceitos que fazem parte da tua concepção do mundo, da tua educação e personalidade. Falemos sobre o que te dizem algumas palavras e tentemos retirar delas a tua forma de ver o mundo, pistas para recor­dar quem eras.

A Marguerite pareceu-lhe boa aquela ideia. Fez um gesto indicando que estava pronta para começar.

- Então, Marguerite, que é para ti o amor? Assim, sem pensar, diz o que te vier à cabeça.

Ela ficou calada durante alguns segundos. Não sabia que dizer. Por acaso ter-se-ia esquecido de um tema tão importante como era o amor? Sim, sabia o que era porque entendera a pergunta, mas... De repente, sentiu que algo a invadia, como que uma voz que vinha do fundo de si e começou a falar, pouco a pouco, de forma insegura, palavra a palavra, como acontecia quando estava a escrever o diário e começou a falar de sopetão. O amor só era amor se abarcasse o universo.

- Que queres dizer? - perguntou Fabrice.

- Quero dizer que quando se ama uma pessoa o que fazemos é assimilarmo-nos a nós mesmos por­que sentimos que sem essa pessoa não conseguimos viver. O nosso ser cresce, somos nós próprios e ao mesmo tempo somos também aquele que amamos. Mas o ser amado também ama outras pessoas, os seus amigos, os seus familiares, e como nós somos esse mesmo ser, amamos também essas outras pes­soas e, pouco a pouco, vai-se criando um fio mágico e invisível que nos une ao mundo inteiro, que nos faz sentir que amamos tudo e que todos nos amam.

Fabrice ficou calado ao ouvir aquelas palavras. Como era possível dizerem-se coisas tão bonitas? Que passado teria Marguerite Remy para dizer todas aquelas coisas acerca do amor?

- Mas o amor - continuou Marguerite - o amor pode chegar a ser tirano. O amor exige tudo e chega um momento em que quando não amamos dema­siado é porque não estamos a amar o suficiente. Tal­vez seja esta a razão por que muitos amores não são mais do que a memória de um desaparecimento, a confirmação de que o homem não é um deus. O amor costuma perder-se no caminho, mas a sua lin­guagem tem uma música tão doce que não somos nada exigentes com a letra. E está bem porque o amor dá sentido à nossa vida, ordena o mundo, sim­plifica o universo. O amor faz com que já não exis­tam quatro pontos cardinais, mas um só, a pessoa que amamos. O amor reduz todas as fronteiras que dividem o mundo.

Fabrice escutava-a, fascinado. Que vida tinha sido a de Marguerite? Que teria ela vivido para pen­sar tais coisas sobre o amor? E Marguerite sentia que estava possuída por uma voz. Seria o passado que a estava a invadir?

- Às vezes - continuou ela - pergunto-me por que se ama sem razão e se esquece sem motivo. Não sei, parece que o amor tem um prazo de validade e que os homens não tiveram a coragem de pôr nomes diferentes a esses sentimentos que acontecem depois de deixarmos de amar. O amor é caprichoso, cai-nos das mãos com tanta facilidade que, às vezes, nos per­guntamos se não estamos a ser objeto de uma brin­cadeira de mau gosto, se um escritor não nos está a fazer sentir o que lhe convém para que o seu roman­ce não fique parado num sentimento que vive tanto do presente que não aceita outras aventuras que não sejam o prazer e a felicidade. Mas já devo estar a aborrecê-lo.

Fabrice disse que não, que estava a gostar muito de escutar.

- E agora, Marguerite - continuou - diz-me o que pensas do acaso.

- Que difícil, doutor! Não sei se vou conseguir dizer-lhe alguma coisa... - Após alguns instantes de dúvida, prosseguiu: - Deixe-me começar com um exemplo: nunca se viu um cão trazer uma pedra diferente daquela que o dono lhe lançou. O que não era mais do que uma pedra, o fato ocasional de ter sido escolhida pelo dono deu-lhe outro sentido e outro valor, e há cães que morreram para a recupe­rar. Algo de semelhante se deve passar também com a amizade e o amor, aquele que não era nada para nós, aquele que poderia ter morrido sem nos darmos conta torna-se imprescindível. O acaso lança as pes­soas e estas, tal como as pedras do cão, tornam-se únicas para nós e procuramo-las, só a elas, porque não existem outras pessoas no mundo para além das que o acaso nos mandou.

- Tudo isso é muito bonito - contestou Fabrice, emocionado, pensando que era uma sorte que o acaso o tivesse mandado para ela. - E já que não te lembras de quem és, gostaria que me falasses sobre o que crês que as pessoas sabem de si mesmas.

Marguerite Remy deixou-se ficar calada. Era evi­dente que o médico estava a tentar fazê-la refletir sobre a sua própria personalidade para ver se acionava algum mecanismo que a fizesse recordar.

- Penso, por exemplo, que quando Jean fala com Pierre, Jean é três pessoas: o que é, o que quer ser e o que representa para Jean. O mesmo acontece com Pierre, de forma que é normal que ocorram mil con­fusões entre os homens. Mas a tudo isto junta-se uma quarta pessoa: aquele que fomos, que já não somos, mas do qual ainda não nos livrámos por completo. Tal como a serpente arrasta a pele velha, também nós arrastamos o que fomos durante meses e até anos ou durante toda a vida. Um ancião, por exemplo, não é um ancião mas um jovem dentro da pele de um ancião. Permanecem sempre conosco parte desses seres que deixamos de ser: da criança, do adolescente, do jovem, e às vezes fazemos confusão porque pensamos como pensa o jovem e atuamos como atua o adulto que somos. Enfim, todas as contradições e medos que nos atravessam devem resultar dessa espécie de guerra civil entre os passa­dos que sobrevivem em nós e o presente do que somos... - Marguerite calou-se e depois, com um sorriso, perguntou:

- Gostou, doutor?

- É muito interessante o que dizes - respondeu Fabrice. - Continua, por favor.

- A falar de quê? - perguntou Marguerite.

- Do que pensas da vida. Assim, no geral...

- Acho que a vida é algo em que não se pensa. Quando cai uma pedra, esta não se dedica a fazer cál­culos que confirmem as leis da gravidade. A pedra cai em silêncio, concentrada no seu destino. A vida é o que se passa enquanto estamos a pensar que a vida é o que é, sabe? A vida deve ser a ação feita homem. A vida não nos pede autorização para continuar, nem tão pouco para a invadirmos. Devemos fazer como a pedra, devemos deixar-nos cair sem pensar demasiado no que se está a passar. Só assim se consegue viver mais ou menos feliz.

- E o passado, Marguerite? - perguntou Fabrice. - Que pensas do passado?

- O passado é como a roupa suja, não deve mis­turar-se com a limpa. As recordações são o suor da existência. Recordar é não saber passar a página. Corremos sempre o perigo de que o passado se torne forte e se converta em presente. Devemos ter sempre receio de um golpe de estado do passado. Há que fugir dele, há que evitar que o nosso presente se transforme num apêndice do passado, há que evitar que a nossa vida seja um eco das nossas desgraças, ou as cinzas já consumidas da nossa felicidade. Viver é vibrar.

- Ou seja - disse Fabrice - há que saber esquecer.

- Exatamente - concordou Marguerite. - É pre­ciso saber esquecer. A lei da gravidade do tempo é o esquecimento, sabe? Ainda que na verdade só se con­siga esquecer com base nas recordações.

- Que queres dizer? - perguntou Fabrice, descon­certado com aquela contradição.

- Quero dizer que o esquecimento é um rio de corrente tão lenta que não se sabe se as suas águas avançam ou retrocedem e que é preciso remar. Esquecer é drenar o presente, encerrar a memória. Bem, acho que estou a dizer disparates.

- Não estás nada, Marguerite - respondeu Fabri­ce. - Continua, por favor.

Continuaram a conversa até à noite. Quando aca­baram aquele curioso questionário, Fabrice perguntou-lhe se durante aquela conversa ela tinha conse­guido recordar algo. Marguerite disse-lhe que não.

- Bem - suspirou Fabrice, com pena. - Teremos de aguardar um pouco. Do que tenho a certeza é que tens uma sensibilidade incrível e um talento literário invejável.

Passaram-se mais duas semanas e Marguerite continuava sem se lembrar de nada. Mas Fabrice continuava a mostrar-se terno e tão cuidadoso com ela que Marguerite se sentia bem ali. A tudo isto acrescia o fato de ter esquecido tudo, a sua persona­lidade retraída, os seus modos, as suas inseguranças, o seu amor por Jean Pierre e por isso podia começar do zero, liberta de todo aquele passado que antes não lhe dera oportunidade de mudar. Tinha nascido novamente e agora, sem o saber, era-lhe dada uma segunda oportunidade, que duraria o tempo em que se mantivesse sem memória.

Um dia, quando as feridas e contusões provoca­das pelo acidente já estavam cicatrizadas, o médico disse-lhe que lhe daria alta dali a dois dias, mas que lhe recomendava que ficasse mais uma semana no hospital onde teria melhor atendimento. Marguerite disse-lhe que não duvidava mas que estava com von­tade de regressar a casa para ver se conseguia recor­dar. Não há lugar mais propício para recordar do que o quarto onde sempre vivemos.

- Do que estou certa, doutor - disse Marguerite com voz meiga - é que a si não o vou esquecer nem que tenha mil acidentes. Obrigada por me ter trata­do tão bem e espero que nos voltemos a ver.

Se Dominique a tivesse ouvido falar daquela maneira não teria acreditado. Na verdade, Margueri­te não parecia a mesma.

No dia em que a tia Josefine a veio buscar, Mar­guerite ficou muito surpreendida por ver a roupa que aquela que dizia ser sua tia lhe tinha levado. Não estava a perceber nada. Que era aquilo? Mas não quis discutir nem perguntar, agora o seu passado era um mistério para ir decifrando aos poucos. O passado chegaria a seu tempo, disso tinha a certeza. Contudo, ao despedir-se de Fabrice, perguntou-lhe:

- E a minha memória, doutor?

-A tua memória - respondeu Fabrice com sem­blante sério - é algo que talvez necessite de tempo e repouso.

- Mas - interrompeu Marguerite - pode ser que nunca chegue a recuperá-la?

- Tudo é possível, Marguerite - disse o médico. -Já se viram casos desses. Mas não quero assustar-te. O normal é que daqui a um mês ou um ano recupe­res pelo menos oitenta por cento da memória.

Ao ouvir aquelas palavras, Marguerite ficou cala­da. Passara-lhe algo pela mente, algo que não conse­guira reter.

- Passa-se alguma coisa? Estás bem? - perguntou Fabrice.

- Sim - respondeu ela, inquieta. - Só estava a pen­sar que se por acaso antes do acidente eu fosse uma pessoa infeliz, mais valia não recuperar a memória.

E o médico desatou a rir.

- Tens razão, mas custe o que custar, o melhor é sermos nós mesmos. A verdadeira identidade com­pensa todas as infelicidades do mundo.

Marguerite Remy assentiu, pouco convencida.

 

A primeira coisa que fez quando chegou a casa foi observar todos os recantos do quarto. Nada, não havia ali nada que a fizesse recordar. Algumas fotos em que mal se reconhecia, um monte de roupa que parecia ser do século passado.

“Eu não podia andar vestida desta maneira”, dizia para si própria, enquanto colocava sobre a cama as compridas saias negras e os casacos de lã. Deviam estar enganados, aquele devia ser o quarto da tia Josefine. Estava desorientada, havia ali qual­quer coisa que não encaixava. Passados alguns minu­tos de silêncio, Marguerite encontrou uma pequena chave no bolso de um dos casacos.

De onde seria aquela chave? Abriria alguma porta que desse para o seu passado? No seu quarto não existia nenhuma fechadura assim e Marguerite saiu à procura de alguma porta fechada, de algum cofre, de alguma caixa susceptível de guardar algo com inte­resse. A tia Josefine saíra para fazer umas compras. Marguerite estava muito desorientada, a casa era enorme e ela não reconhecia os compartimentos. Entrou em quartos, salas de jantar, cozinhas e quar­tos de banho mas não havia nenhuma porta fechada. Quando já estava prestes a dar por inútil aquela busca, encontrou numa das paredes do primeiro andar uma porta camuflada pelo papel de parede florido. Estava fechada à chave. Talvez nesse compartimento esquecido encontrasse o que procurava. Mas o que procurava ela? Não o sabia, mas parecia que uma sombra atravessava o esquecimento para lhe agarrar na mão e levá-la até ali. Meteu a chave na fechadura, fê-la girar e a porta abriu-se. Marguerite entrou numa enorme biblioteca. Sentiu uma certa opressão no peito mas continuou sem se lembrar de nada. Deu algumas voltas à sala, acariciando os livros: Madame Bovary, Lacerteux, Thèrese Raquin, Uma Vida, Anna Karenina...

Marguerite sabia que tinha lido aqueles roman­ces. Quando? Porquê? Que fazia aquela chave no bolso do seu casaco? Por que razão era aquela a única porta fechada em toda a casa? Regressou ao quarto, decepcionada. O passado recusava-se a regressar, mas... Por acaso precisava dele para alguma coisa? Talvez assim, sem passado, fosse melhor. De repente, uma sombra voltou a atravessar-lhe o espírito.

No alto do armário.

Era uma voz que lhe falava de dentro. Algo nela estava a recordar. No alto do armário.

Marguerite levantou-se da cama e dirigiu-se ao armário de onde tinha retirado aquelas saias que ainda não acreditava serem suas. Pôs-se na ponta dos pés e tateou a última prateleira. Nada, ali não havia nada. Então, sem saber como, enfiou a mão por entre os lençóis dobrados e encontrou um caderno espes­so de capa dura. Estava quase todo escrito. Só as últi­mas páginas se encontravam em branco. Marguerite sentou-se na cama e começou a ler: Chamo-me Mar­guerite...

Quase não percebia a letra, não podia ter sido ela a escrever tudo aquilo. Fez um esforço e continuou. O estilo era o de uma adolescente, mas naquelas linhas batia um coração jovem e cheio de vida que tinha muito a ver com aquela voz que a invadira quando respondera às perguntas que Fabrice lhe fizera dias antes.

“Chamo-me Marguerite, tenho dezesseis anos, vivo em Paris, no Quai de Jemmapes. Do meu quarto avista-se o canal de San Martin. Gosto de fazer e desfazer malas, pois, mesmo que não parta, faz-me sentir livre. Gosto do mar no Inverno, da montanha no Verão, de dormir à noite e de viver durante o dia. Gosto da desordem das gotas da chuva, de ouvir um riso ao longe, de patinar quan­do neva, de beijar as pálpebras de quem amo e de amar quem me ama. Gosto de rapazes que saibam beijar. Gosto de tomar banho nua no mar, de dor­mir ao sol e sofro de uma forte bulimia em relação a morangos. Gosto do meu corpo e são raros os dias em que não me miro ao espelho durante mais de meia hora. Gosto de mudar o auscultador de mão quando falo ao telefone com alguém, de dormir despida, gosto de chupar os cubos de gelo que ficam no copo depois de beber limonada, gosto de Paris.

Não gosto de sonhar acordada porque isso é perder tempo que se pode gastar a converter os sonhos em realidade. Não gosto de esperar, não gosto de pedir, não gosto de cães com coleiras nem de canários que não tentam sair das suas gaiolas, nem de gatos que voltem a casa nem que seja só para comer. Mesmo que chova. Não gosto de flores secas nem de rosas em água, não gosto de saias compridas nem de blusas negras. Não gosto de pes­soas que se queixam nem de peixes de aquário, nem de folhas quadriculadas. Marguerite levantou os olhos. Continuava sem recordar nada, mas era evidente que fora ela quem escrevera aquelas linhas, era evidente que era ela quem amava e odiava tudo aquilo. Continuava sem se lembrar mas sentia que fora ela quem escrevera aque­le diário. Marguerite continuou a ler, impaciente.

A minha tia Josefine trata de mim desde a morte dos meus pais. A pobre tem tentado pôr-me a salvo dos homens, diz que são maus, mas não sabe que são eles que deveriam fugir de mim e que, em todo o caso, se são maus, eu gosto deles assim. Sei como comportar-me, onde ir, quando parar, que dizer, quando calar... Para não desgostar a minha tia faço-lhe crer que sou como ela gostaria: tímida, desconfiada, calada. A verdade é que não me custa nada. Saio de casa com a roupa que ela quer que eu vista, umas horríveis saias compridas e blusas de gola alta, tudo em cores escuras, como se fosse uma freira. Mas num lavabo qualquer troco de roupa e visto o que quero. Faço o mesmo antes de regressar a casa. Até agora tenho tido muita sorte e nunca encontrei ninguém conhecido na rua. Bem, um dia cruzei-me com uma pessoa mas ela não me reconheceu. Que sorte! Gosto desta vida dupla, como nos filmes. Marguerite começava a entender. Aquela roupa era a que a tia Josefine a obrigava a vestir. Sim, aque­le era o seu quarto, a sua casa e o que estava escrito no diário, a sua vida. Mas, perguntou-se subitamen­te, onde estará a minha verdadeira roupa? E pensou que talvez o diário lhe desse alguma pista sobre isso. Continuou a ler:

Estou apaixonada por Paris. É uma cidade que não aceita meias tintas. Nas suas ruas, nos seus jardins, ou se é feliz até à dor, ou se é desgraçado até ao prazer. Eu sempre fui muito feliz. Adoro ler os romances que a tia Josefine tem guardados na biblioteca. Embora ela feche sempre a porta à chave, há muito tempo que arranjei uma cópia e quando ela não está em casa ponho-me a ler como uma louca. Gosto muito de ler, mas agora estou preparada para viver. Cada vez que me sento com um livro na mão sinto que estou a perder tempo, que é melhor viver tudo aquilo do que lê-lo. Estou farta de me passear à beira da piscina, agora quero atirar-me à água. O que faço é experimentar na minha própria pele cada uma das histórias que leio. E a verdade é que não me saio nada mal.

Quando era mais nova gostava de falar com a minha amiga Dominique sobre como iria ser a nossa vida. Que impacientes éramos! Se pudésse­mos, teríamos saltado vários anos para chegar a essa época mágica em que o amor começa a tomar forma. Essa é a época que agora vivo. Essa é a época que quero conservar para sempre neste diá­rio. Não quero que me escape nada: formas, odo­res, texturas, palavras, pensamentos, enfim, quero que tudo passe para este caderno, para eu poder recordar sempre que me apetecer. Eu sei que a minha vida vão ser estes anos, o antes foi uma espera, o depois será uma nostalgia. Sou o que sou agora. Um bater de coração. Dez litros de sangue novo. Depois, quando tudo passar, não serei mais do que um bater de coração que se vai, um pouco de sangue velho e sem oxigênio que procura reno­var-se. Este caderno será o coração que bombeará o órgão para me encher novamente de oxigênio, nem que seja só por umas horas...” Marguerite parou de ler. Estava emocionada. Como podia ter escrito aquilo? Que bonito era, que feliz devia ter sido, tão cheia de vida. Começou a sen­tir pressa em recordar tudo aquilo, em ser novamen­te aquela Marguerite forte e alegre que vivia intensa e perigosamente. Continuou a ler com avidez.

Escrever isto é outra coisa, é como sublinhar os melhores bocados da vida que se está a escrever.

É como ser a atriz de um filme e participar na redação do guião que se tem de representar. Tam­bém gosto muito de escrever poemas, não sei se serão muito bons mas exprimem tudo o que sou e isso basta-me:

Só as manhãs de domingo são capazes de ordenar o mundo.

Mas a ordem de que falo não é a das casas, é mais profunda:

Não há nada mais belo que uma cama por fazer, Não há nada mais limpo do que o corpo ao amanhecer,

Os relógios impacientam-se por esperar, Chora-se por se ter rido, ri-se porque se quer chorar, Nasce-se na morte de começar a viver Porque aqui só se vive se se tem por quem morrer, Mas passam as horas e não te ouço chamar, Só o amor e as tardes de domingo São capazes de fazer-me chorar.

Marguerite voltou a levantar os olhos. Olhou à sua volta e disse, com os olhos cheios de lágrimas: - Já sei quem sou!

Mas, na verdade, o que queria dizer é que já sabia quem tinha sido porque continuava a não se lembrar de nada. Sim, tinha sido ela a escrever aquilo quando era ela mesma, isso era óbvio. Aquela era a sua casa, aquela era a sua vida, mas apesar de todas aquelas evidências faltava algo para que aquele reconhecimento fosse total. A recordação vinha-lhe de fora, desde o olhar, desde a leitura daquele diário, da voz dos outros. Era como se estivesse a aprender uma lição. Necessitava de se sentir ela mesma por dentro e uma impaciência aguda arranhava-lhe o ventre. Sentia-se como a espectadora de um filme e queria sair de cena. Aquele diário era como um romance, tudo lhe pare­cia demasiado maravilhoso para ser real.

Sim, sabia quem tinha sido mas ainda não o era e isso doía-lhe. Levantou-se e dirigiu-se para a casa de banho. Mirou-se ao espelho. Na verdade, era muito bonita. Os seus olhos verdes davam a impressão de se fundir com o mar. Os lábios eram grossos mas muito bem desenhados. Duas covinhas marcavam-lhe as faces. As pestanas eram compridas e o nariz, peque­no. Sim, era muito bonita e merecia tudo aquilo que contava no diário. Sabia quem era, devia começar a sê-lo de novo. Voltou a esticar-se na cama, abriu o diário ao acaso e continuou a ler:

[...] O sexo é a poesia do sentidos. Para mim, tudo o que me proporcione prazer físico é sexo. Para mim, a comida é sexo, a música é sexo, dor­mir é sexo, e passo os dias num estado de perma­nente excitação que me deixa esgotada mas feliz. O sexo propriamente dito converteu-se para mim numa arte. É necessário fazer um esforço para tor­nar o sexo numa obra de arte total. Poderia escre­ver toda uma poética do sexo em que falaria por extenso sobre como se escrevem poemas com o corpo. Dedicaria um capítulo inteiro a todos o lugares onde gosto de fazer amor. Seria uma espé­cie de atlas amoroso no qual falaria de quais são as cabinas telefônicas mais adequadas para gozar, da sua disposição, sem esquecer um minucioso estudo acerca dos umbrais, da sua textura e iluminação, das horas em que são mais seguros. Mais à frente falaria dos diferentes tipos de solos, da velocidade dos ascensores, do ângulo adequado dos assentos dos automóveis, das praias com areia fina e de muitos outros lugares que ainda me falta experi­mentar.

Noutro capítulo falaria dos sentidos. Diria que o corpo é como um metrónomo e que é muito importante fazer amor num local sonoro adequa­do. O ritmo do mar, por exemplo, acompanha muito bem o início do ato e se fizer amor à beira-mar é preciso primeiro prestar atenção ao rebentar das ondas, mas depois há que saber pro­curar outro ritmo que nos acompanhe, como a res­piração da pessoa a quem estamos a amar. E tam­bém falaria dos diferentes tipos de chuva, de como abrir e fechar a janela do quarto segundo o tipo de rua para onde dá, de quais as músicas de que mais gosto e quais são os gemidos que mais me excitam.

O capítulo mais extenso do meu livro seria aquele em que falaria do que há a fazer com o corpo. Falaria das vantagens e desvantagens de fechar os olhos, de como não se acaricia só com as mãos, falaria sobre como fazer para que o mundo inteiro fique reduzido a uns quantos centímetros de pele.

Saltou algumas páginas e continuou a ler:

Philippe é como um miúdo, não percebe que um corpo é a mais melodiosa de todas as melodias só que é preciso saber escutá-lo. A maior parte dos homens não sabe tocar esse delicioso instrumento de prazer que é corpo feminino. É preciso conhecer-Ihe as cordas, estudar a fundo o seu teclado capri­choso, e tudo isso exige uma capacidade de obser­vação que Philippe, entre tantos outros, não possuí. Imagino-o a falar com os amigos acerca do amor e do prazer com a mesma inconsistência com que os escravos falam de liberdade. Pobrezinho, se ele sou­besse que me é insuficiente e até incômodo, não falaria tanto e preocupar-se-ia mais em saber se estou satisfeita com ele. Enfim, acho que amanhã abandonarei o passado, não concebo relações como uma carga que se tem de arrastar quando não cumpriram o que prometiam, ou quando deixa­ram de ser o que eram ao princípio. Tocaram à campainha. Marguerite sobressaltou-se. Guardou o diário onde o tinha encontrado e foi abrir. Devia ser a tia Josefine que saíra para fazer algumas compras. Mas não era. Ao abrir a porta, Marguerite Remy deparou com uma rapariga jovem, muito bonita, de cabelo ruivo que lhe disse: - Olá, Marguerite. Sou a Dominique. Ou seja, aquela mulher devia ser a sua amiga do peito, aquela que tinha compartilhado quase todos os seus segredos. Que estranho era não a reconhecer!

E Dominique, que não sabia o que dizer, aguarda­va que lhe desse um beijo e a mandasse entrar. Mexia nervosamente as mãos e olhava-a com olhos inquisidores, como se estivesse a perguntar se na ver­dade ela não se lembrava dela. Marguerite pensou que Dominique era como que uma embaixadora do passado.

- Ah, sim. Entra, entra.

A verdade é que nenhuma das duas sabia bem o que fazer. Para Marguerite, aquela pessoa era uma estranha. Contudo, fez um esforço e deu-lhe um abraço. Foi nessa altura que Dominique começou a chorar e a dizer-lhe que ninguém lhe tinha contado nada e que, logo que soubera, cancelara o resto da viagem de núpcias para regressar e ajudá-la em tudo o que pudesse.

- Estou bem, estou bem - disse Marguerite, fria­mente. Incomodava-a o tom protetor de Domini­que. Tratava-a como se ela fosse uma miúda que necessitasse de alguém para lhe resolver os proble­mas. O que se passava era que Dominique pensava, aliás como todas as pessoas que conheciam Margue­rite Remy, que esta se tinha tentado suicidar, que aquela introversão a conduzira a uma desesperada solidão para a qual não achara outro remédio senão atirar-se para debaixo de um automóvel cm pleno Boulevard Saint Germain. Depois de ter falado com a tia Josefine, Dominique e ela tinham combinado fazer o possível para que Marguerite não recuperasse a memória. Tinham medo de que ela voltasse a tentar matar-se.

Era por esta razão que havia uns três ou quatro dias que a tia Josefine deixara de lhe explicar coisas do passado. Agora, o ontem estava definitivamente esquecido e a tia Josefine respondia com evasivas a todas as perguntas de Marguerite.

Depois daquele abraço, Dominique acalmou um pouco. Marguerite não entendia nada, sentia-se pouco à vontade, não gostava de gente piegas, já o dizia no diário: “O pranto tira-nos as forças necessá­rias para enfrentarmos as desgraças.”

- E então? - perguntou Marguerite. - Como foi a tua viagem pelo Extremo Oriente?

E Dominique, aliviada por ver que Marguerite não lhe fazia perguntas sobre o passado, começou a contar mil pormenores, a fazer a descrição de milha­res de lugares, mas sentia-se mal pois não sabia com quem estava a falar e mais de uma vez se calou sem saber o que dizer, o que fazer...

Marguerite não entendia a razão por que Domi­nique lhe falava daquela maneira. Parecia que tinha sido ela a perder a memória e a não a reconhecer.

- E o teu marido? - perguntou-lhe.

- O Jean Pierre? Está muito bem. Atarefado a arranjar a nossa nova casa de Saint Germain en Laye. Vamos viver ali, sabes? É uma aldeia magnífica e podes desfrutar de todas as vantagens de Paris e de todo o sossego do campo. O Jean Pierre pede descul­pa por não ter podido vir.

Marguerite não se lembrava nada do tal Jean Pierre. Pensou que talvez nas últimas páginas do seu diário houvesse algumas referências a ele. Mas naquele momento divertia-se a ver os esforços de Dominique para ser natural.

- Dominique - disse-lhe - tem calma, não este­jas nervosa, eu posso não me lembrar de nada mas sou a mesma de sempre. Trata-me como costumavas mas não como se eu fosse uma garota ou uma doen­te que precisa de proteção.

Dominique ficou atônita quando ouviu isto. Nunca vira Marguerite tão segura de si. Até os seus gestos tinham uma elegância invulgar e o seu corpo já não estava curvado, mas mostrava todo o seu esplendor, cabeça erguida e olhar vivo e penetrante. Estava mais bela que nunca.

- Porque me olhas dessa maneira, Dominique? Por acaso não sou a mesma?

Dominique apressou-se a dizer que sim, que era a mesma. Marguerite estava desconcertada. Que se passava com Dominique? E o que se estava a passar com a amiga era inconfessável. Dominique não podia dizer-lhe que ela já não era mesma. Não, não podia dizer-lhe, senão Marguerite ia perguntar-lhe como era antes e ela seria obrigada a falar da timi­dez, da tristeza, da fealdade e talvez então Margueri­te recordasse esse passado e tudo andaria para trás.

- Sim - disse-lhe. - Claro que és a mesma, o que se passa é que estou muito emocionada por te ver.

Dominique afastou o cabelo do rosto com um gesto nervoso e continuou:

- Jean Pierre e eu pensámos que talvez fosse bom vires passar uma temporada conosco a Saint Ger­main en Laye. A nossa casa é muito grande e tem um belo jardim. Podemos passar o Verão juntas.

- Não sei - respondeu Marguerite. - Preciso de pensar, mas obrigada pela tua oferta.

- Anda lá - insistiu Dominique. - Aqui vais abor­recer-te.

Marguerite olhou-a com alguma irritação:

- Por que haveria de aborrecer-me aqui? - per­guntou. - Por acaso não tenho amigos em Paris?

E Dominique ficou sem saber onde se meter. Como podia ter sido tão desajeitada e falado na soli­dão em que sempre vivera Marguerite?

- Sim, sim - respondeu-lhe. - Claro que tens amigos e muitos, mas lembra-te que é Verão e mui­tos deles devem estar de férias. E, além disso, eu gos­taria muito da tua companhia. E também, talvez o fato de falares comigo te ajude a recordar.

Marguerite assentiu, pensativa. Não acreditava que Dominique pudesse ajudá-la muito se conti­nuasse a mostrar-se tão nervosa na sua presença. Naquele momento, a tia Josefine entrou na sala.

- Como estão as minhas meninas?

E deu um enorme abraço a Dominique e outro a Marguerite. Depois de responder às habituais per­guntas sobre a lua-de-mel, Dominique disse à tia Josefine que convidara Marguerite para ir passar uns tempos com eles.

- Ah! - exclamou a tia Josefine. - Que boa ideia. Que dizes a isso, Marguerite?

A verdade é que a tia Josefine, Jean Pierre e Domi­nique já tinham combinado tudo anteriormente. A cena resultou um pouco forçada e Marguerite conti­nuava sem entender o que se estava a passar.

- Anda - voltou a insistir Dominique. - Vamos passar o Verão juntas.

- De acordo - acedeu Marguerite. - Dá-me um dia e estarei lá.

- Ótimo! - exclamaram Dominique e a tia Jose­fine ao mesmo tempo. As pobres queriam proteger Marguerite em relação ao passado, custasse o que custasse. Não sabiam quanto tempo podia durar aquela trégua, mas o medo de uma nova tentativa de suicídio fazia-as tomar medidas desesperadas.

Logo que ficou sozinha, Marguerite pôs-se à pro­cura das roupas que vestia às escondidas da tia Jose­fine. Onde poderiam estar escondidas? Procurou em todo o lado mas não encontrou nada. Não podia continuar a vestir daquela maneira, precisava de roupa para passar o Verão em casa de Dominique. Decidiu ir às compras nessa tarde.

Na gaveta da cômoda estava a caderneta bancária. Ela não recordava nada da sua vida, não recordava nada da herança que lhe tinham deixado os pais, nem que sempre fora poupada graças aos excessivos cuidados da tia. A soma que tinha no banco chegou a parecer-lhe exagerada.

Ainda bem, ao menos era rica. Parecia o despertar de um sonho. Não se podia ter tudo. Que azar aquele de se ter esquecido de si mesma quando era feliz.

Mas sacudiu a cabeça e a alma. Não servia de nada lamentar-se, ela própria o dizia no seu diário. Havia que olhar em frente. Foi para a rua na disposi­ção de comprar tudo o que fosse necessário para se sentir bem na sua pele.

 

Quando Dominique viu Marguerite sair do táxi que a levara até à sua nova casa em Saint Germain en Laye, onde vivia com o seu marido havia apenas três dias, ficou sem fala. Nunca vira a amiga vestida daquela maneira. Estava radiante com aquele vestido de alças que lhe realçava as curvas do corpo.

- Gostas? - perguntou Marguerite. - Estou bem? - Dominique disse-lhe que estava maravilhosa e chegou a pensar que Marguerite tivera muita sorte em se esquecer de quem era. Talvez não fosse ela mesma, mas o importante era ser feliz e parecia tão alegre que Dominique decidiu evitar a todo o custo que o passado voltasse a habitar a mente da sua amiga. Marguerite vinha carregada de malas, e Dominique chamou Jean Pierre para as ajudar.

Escusado será dizer que Jean Pierre ficou sem palavras ao ver Marguerite. Dominique já estava à espera que Jean Pierre ficasse surpreendido ao vê-la, mas não pôde evitar sentir ciúmes. Parecia não ter sido muito boa ideia ter, convidado Marguerite para passar o Verão com eles. Mas tinha era que tirar aquelas estúpidas ideias da cabeça. Jean Pierre acaba­va de casar com ela e adorava-a, e Marguerite era a sua melhor amiga. Não se ia passar nada. O mais importante agora era ajudar Marguerite.

É fácil imaginar o que se passava no íntimo de Jean Paul. A verdade é que não conseguia acreditar que aquela fosse Marguerite. Estava à espera de en­contrar a rapariga calada e tímida que tanto lhe agra­dava martirizar durante os meses prévios ao seu casamento e tinha pensado continuar a fazê-lo du­rante os meses em que ela ficasse em casa deles. Jean Pierre esperava encontrar uma rapariga curvada, sem atrativos, a olhar para o chão, sobre a qual todos sabiam que tentara suicidar-se lançando-se para debaixo de um automóvel no Boulevard Saint Germain. E, além disso, Jean Paul estava convencido de que ela o fizera por causa dele, coisa que o enche­ra de um orgulho sinistro que durante os últimos dias o fizera amar ainda mais Dominique do que durante toda a viagem de núpcias pelo Extremo Oriente. Jean Pierre sentia um amor parasitário, um desejo que só se alimentava da visão da dor alheia ante a sua felicidade. Mas agora Jean Pierre deparava com outra pessoa diferente. Aquela não era a Mar­guerite que tinha chorado no cinema, na tarde em que ele beijara intencionalmente a sua futura esposa.

Aquela era outra pessoa, outra mulher.

- Deves ser o Jean Pierre - disse-lhe Marguerite, com um sorriso amável, entregando-lhe as malas.

- Sim, sim, como estás? - respondeu Jean Pierre, surpreendido por aquela segurança de gesto e voz. Efetivamente, Marguerite não era a mesma, algo mudara e não só na aparência física.

- Entra, entra - disse Dominique. - Vou mostrar-te a casa. É maravilhosa.

Na verdade, a casa não só era enorme como tam­bém possuía a elegância típica de algumas mansões francesas. Uma sala de jantar com dois níveis dava acesso direto através de uma vidraça a um jardim traseiro que deveria ter cerca de três mil metros qua­drados. Ao longe viam-se uns alamos que deveriam ter pelo menos cem anos, e todo o recinto estava rodeado por um muro suficientemente alto para garantir a absoluta intimidade quando os habitantes quisessem utilizar a piscina que rodeava toda a casa, como um fosso de um castelo. Acedia-se a diversas portas da casa por várias pequenas pontes que da­vam à mansão um ar feudal.

A parte da frente tinha uma entrada colonial com duas colunas brancas e uma escadaria por onde agora Jean Pierre transportava as malas de Margue­rite. No primeiro andar, além da sala de jantar, havia cinco enormes quartos, uma cozinha envidraçada que dava para o jardim das traseiras e uma enorme biblioteca cujos livros ainda estavam metidos em cai­xotes, mas que prometia vir a ser um sereno refugio contra o bulício do mundo exterior. Uma grande escadaria de mármore conduzia ao segundo andar onde outros cinco compartimentos perfeitamente mobilados pareciam suspirar por ser habitados por Marguerite.

- Tu é que escolhes - disse-lhe Dominique. - Jean Pierre e eu dormimos lá em baixo e acho melhor que o teu quarto seja cá em cima. Assim terás mais priva­cidade. Que te parece? Todo este piso será pratica­mente teu.

Marguerite olhou-a, reconhecida, e depois de uma inspeção sumária escolheu um dos quartos que dava para um jardim. Na varanda havia uma mesa de vidro e cadeiras, e a vista sobre Paris era espetacular. No centro do quarto estava uma enor­me cama. Nas paredes havia quadros de cores cau­das. Perto da janela estava uma secretária de ébano feita à mão, segundo explicou Dominique.

- É uma maravilha! - exclamou Marguerite, en­quanto abraçava a amiga. - Como nos vamos diver­tir! Para que é preciso recuperar a memória quando o presente é tão agradável? O meu passado não pode ser melhor que tudo isto, não é verdade?

Dominique ficou pálida, sem saber o que dizer, e só quando Marguerite comentou que estava a brin­car é que ela deu uma risada nervosa, após a qual se ausentou com a desculpa de deixar Marguerite à vontade. Antes de sair, disse-lhe:

- Jantamos às oito e meia.

- De acordo - disse Marguerite. - Às oito e meia.

Pôs-se a cantarolar alegremente enquanto dispu­nha sobre a cama os mil e um vestidos e sapatos, os mil e um colares que na tarde anterior tinha compra­do. Dominique continuava surpreendida com aque­la vitalidade totalmente inesperada que se despren­dia dos gestos e palavras de Marguerite. Por um lado, alegrava-se por ela, era sua amiga e desejava-lhe o melhor, e o que se estava a passar era o melhor que lhe podia ter acontecido. Era como se a tivessem tro­cado pela Marguerite que teria sido se, este fosse o melhor dos mundos. No entanto, Dominique tinha pena que Marguerite tivesse deixado de ser ela mesma. Não sabia se era melhor ser infeliz sendo-se genuíno, do que feliz perdendo a identidade própria. Aquilo era sem dúvida um meio suicídio. Oxalá aquele engano durasse muito tempo, oxalá durasse sempre.

Enquanto Dominique se entregava a estes pensa­mentos, Marguerite estendeu-se em cima da cama e reatou a leitura do seu diário:

Hoje foi o dia dos meus anos. Vinte e dois. Como o tempo passa! Parece que foi ontem que comecei este diário. A verdade é que não me posso queixar, o balanço do que vivi até agora não podia ser mais positivo. Mas não me vou deixar levar por essa alegria de estar triste que é a melancolia. René veio buscar-me ao trabalho, todo jeitoso. Fomos jantar a um restaurante e passei uma das noites mais belas da minha vida. Contudo, não quero apaixonar-me, pelo menos agora. Não sei, acho que sou jovem e, além disso, quando o amor se transforma num compromisso parece que deixa­mos de olhar o presente para passar a olhar o futu­ro. Que te vou querer para sempre. Que vamos casar-nos, que é preciso ir pensando no dia de amanhã, e de repente esquecemo-nos do presente que é a única terra onde floresce o amor. René é fantástico mas tem um defeito que é não me que­rer só como mulher mas como sua mulher. Parece um disparate, mas sinto-me deslocada e... A Marguerite parecia-lhe incrível não se recordar daquilo. Pareceu-lhe ouvir alguém subir as escadas e fechou o diário, meteu-o debaixo da cama e ficou à espera. Nada. Tinha sido falso alarme. Voltou a pegar no diário, ansiosa por continuar a viajar através do seu passado e, como não tinha marcado a página que estivera a ler, abriu o caderno ao acaso:

Afinal não foi assim tão difícil enganar a tia Josefine. A pobre acreditou que eu ia passar o fim-de-semana a La Rochelle com Dominique. Foi uma das viagens mais belas da minha vida. Pascal levou-me até uma casita que tem em Cherbourg. Não parou de chover durante todo o fim-de-sema­na, mas não nos importámos pois não tínhamos pensado sair de casa. Na noite de sábado para domingo houve uma tempestade terrível. Deu-me na cabeça e pedi a Pascal para irmos até à praia fazer amor, junto ao mar. Ele disse que eu estava maluca, mas insisti tanto que ele acabou por ceder. Fazia tanto vento que até nos custava respirar, a boca enchia-se de água e a chuva caía com tanta força que me magoava os seios. O mar rugia nas nossas costas e parecia que as ondas nos iam levar. Que sensação de liberdade! Pus-me em cima de Pascal, a cortina de água que caía mal me dei­xava ver-lhe o rosto, parecia que estava a fazer amor com apropria natureza, parecia que estava a cavalgar sobre as nuvens, parecia que me entravam pelo corpo as ondas do mar, parecia que o vento me empurrava para baixo afim de me amar mais pro­fundamente. Acho que Pascal estava assustado, mas eu não queria parar, nunca sentira nada igual e queria que durasse uma eternidade. Quando tudo acabou, deixei-me ficar ali, extenuada, caída sobre Pascal, abraçada ao seu peito, mirando-me na água que lhe enchia a boca, bebendo a chuva que lhe cata sobre os lábios. Devo ter adormecido porque quando abri os olhos estava deitada na cama. Pascal tinha-me levado ao colo. E assim acabava o que Marguerite Remy tinha escrito a 26 de Junho à meia-noite e quarenta e qua­tro. Como era possível não se recordar de uma noite assim? Onde estaria Pascal? Que lhe teria aconteci­do? Por que razão não a tinha ido visitar ao hospital? E Jean François? E Philippe? Aquelas histórias deviam ter acabado mal para não ter sabido nada deles durante as semanas em que estivera internada. E, além disso, porque é que a tia Josefine não lhe tinha falado neles? Bem, isso era explicável, aqueles amores deviam ter sido clandestinos, e a tia pensava que a querida sobrinha continuava a ser a menina que ela tentara educar. Talvez conseguisse falar a sós com Dominique sobre o assunto. Com certeza que ela lhe poderia dar alguns esclarecimentos. Mas tinha de continuar a ler, precisava de saber mais sobre si própria. Voltou a abrir o diário ao acaso.

Armand voltou a telefonar-me. Diz que não pode viver sem mim, que se vai suicidar. Ele sabe perfeitamente que é demasiado covarde e que, mal ou bem, vai continuar a viver. Além disso, eu não tenho de sacrificar a minha vida por uma pessoa que não amo. Aceitá-lo só por medo que se mate supõe aceitar a minha própria morte. Talvez con­seguisse respirar mas estaria morta. Já não faz sen­tido falar mais disto. Adeus, Armand. Ponto final.

Acho que este ano irei com Dominique a Cannes. Tenho lá uma casita que os meus pais me dei­xaram e à qual a tia Josefine nunca quis voltar. Bem, não preciso de lhe dizer nada. Diremos que vamos a qualquer outro lugar. Depois veremos, ainda precisamos de fazer planos. Dominique diz que o Sebastian pergunta muito por mim. Marguerite deixou-se adormecer sobre a cama. Tantas novidades, tantas emoções tinham-na deixa­do extenuada. A sua mente estava a viver anos em minutos. Nos seus sonhos misturavam-se as mil his­tórias que andara a ler naqueles últimos dias. Mas o que lhe vinha à cabeça eram vozes e não imagens. Vozes que repetiam de forma caótica aquele passado de impostura, um passado imaginário que milagro­samente tinha nascida na realidade, um passado mágico que encarnara no seu próprio ser. A tia Jose­fine, Jean François, Dominique, Philippe, Armand, Sebastian, a noite de paixão sob a tempestade, o artista desconhecido que a amara no seu estúdio da Rua Muffetard, o homem de passado fascinante que fizera enlouquecer naquele hotel do bairro de Pigalle, enfim, a sua radiosa vitalidade, todas essas menti­ras se conjugavam nos seus sonhos e iam-se instalan­do na sua alma, unindo-se como as peças de um que­bra-cabeças, dando consistência a essa personalidade que pela primeira vez via a luz do mundo. O sonho dentro do sonho, o romance dentro do romance, o milagre de ser e não ser ao mesmo tempo...

Às oito e três quartos, quinze minutos mais tarde que a hora prevista, Marguerite entrou na sala de jantar, surpreendendo novamente os seus anfitriões. Vestira uma saia curta que mostrava umas pernas bem torneadas e uma blusa justa que lhe realçava descaradamente os seios que, devido à postura cur­vada com que antes Marguerite se defendia incons­cientemente das agressões do mundo que a tia Jose­fine lhe ensinara a temer, sempre ocultara.

Acabara de sair do banho e optara por não secar o cabelo, de modo que algumas gotas de água lhe manchavam a blusa. Essa mistura de elegância e pro­vocação pareceu encantadora a Dominique que caminhou para ela de braços abertos, dizendo:

- Que bonita estás! Que bonita estás!

Jean Pierre, por seu lado, sentiu um arrepio ao ver Marguerite entrar na sala de jantar. O contraste que havia entre a lembrança que tinha dela e a visão daquele anjo sugestivo e descarado excitou os seus instintos mais animais, e começou a desenhar-se nele o desejo de repetir o jogo de amar fazendo sofrer. De amar Marguerite torturando Dominique.

- Ainda bem que convidámos uns amigos para jantar - disse Dominique. - Vamos poder mostrar que temos hospedada em nossa casa a mulher mais bonita de Paris.

E abraçou Marguerite com uma alegria sincera. Agora sentia que a amizade podia ser de igual para igual, e não precisaria de fazer nem de mãe nem de irmã mais velha. Também Marguerite se sentia muito feliz, mas havia algo que a preocupava. Quan­do vira Jean Pierre, o seu coração dera um salto e sentira uma pressão no peito. Quem era aquele homem? Por que razão não falava dele no seu diário? Conhecia-o há pouco tempo? Com certeza que sim... mas era como se o conhecesse há muito, como se se apoderasse dela um déjà vu.

Ali havia algum mistério que Marguerite não con­seguia decifrar. Jean Pierre fora a única pessoa que lhe provocara o choque que Fabrice tentara com os seus interrogatórios. O marido de Dominique era largo de ombros, de tez morena. Tinha as mãos grandes e quando a agarrara pela cintura para lhe dar dois bei­jos, ela fora invadida por uma onda de prazer.

Pouco depois da sua entrada triunfal na sala de jantar tocou a campainha da porta.

- Os convidados! - exclamou Dominique. - Vem, Marguerite, ajuda-me a recebê-los.

Os recém-chegados eram dois dos três convida­dos para jantar. Tratava-se de um casal muito rico que passava o tempo a viajar pelo mundo e que era famoso em Paris por ter conversas tão picantes quanto divertidas. Ela chamava-se Eugenie, ele, Martino. Deviam ter cerca de quarenta anos mas pare­ciam mais jovens. Nos seus gestos podia sentir-se a segurança de quem sabe e já viveu. Na sua vida ante­rior. Marguerite vira-os uma ou duas vezes, mas claro que não se lembrava de nada. O casal, posto a par de tudo por Dominique, apresentou-se a Mar­guerite como se fosse a primeira vez que a viam e, de qualquer maneira, era essa a impressão que tinham perante aquela juvenil formosura.

- Entrem, entrem - disse Dominique.

Enquanto Marguerite ajudava Jean Pierre a pre­parar as bebidas, a anfitriã foi mostrar a casa aos convidados. Passados uns minutos de silêncio, Mar­guerite começou a falar.

- Ouve, Jean Pierre. Desculpa a pergunta, mas não nos conhecíamos já?

Jean Pierre hesitou durante alguns segundos e Marguerite não lhe deu tempo a explicar-se.

- Sei que posso parecer maluca, a Dominique disse-me que estive no vosso casamento. Tu também lá estavas, não é verdade?

Desatou a rir de uma forma pouco delicada que fez Jean Pierre sentir-se como se estivesse no pátio do colégio, disposto a amar como um adolescente, e a dormir aquela noite com o nome dela nos lábios.

Quando Dominique e os convidados regressaram sentaram-se num dos terraços do jardim e começa­ram a falar animadamente. Marguerite Remy conti­nuava a surpreendê-los. A sua conversa era agradável e inteligente. As suas opiniões atrevidas acerca dos grandes temas que preocupam o ser humano com­petiam com as de Eugenie e Martino.

A vitalidade das suas ideias contrastava forte­mente com o caráter submisso da velha Marguerite.

- Com certeza que - dizia Marguerite - somos tanto o que fazemos como o que não fazemos. Por isso não faz sentido perguntar o que teria sido a nossa vida se, porque se esse se tivesse acontecido a vida não seria a nossa vida.

E Dominique pensava que se Marguerite soubes­se que o que estava a dizer se aplicava exatamente a ela, não falaria com tanta segurança. A conversa virou-se para o omnipresente tema do amor.

- O amor? - comentou Marguerite. - O amor não é mais do que a espuma do sexo.

- Olha só! - disse Martino, divertido. - Se é isso que pensas do amor, então que pensas do casamento?

- O casamento é a celulite do amor.

Todos se riram. Jean Pierre, que não queria ficar para trás, tomou a palavra:

- Dizem que, na verdade, foi o homem quem inventou a mulher.

Ao que Marguerite respondeu, com um sorriso:

- Caro Jean Pierre, talento para falar, quem o não tem? É normal. O que é preciso é cultivar o talento de saber calar.

Marguerite estava realmente fantástica, e Jean Pierre fora totalmente derrotado pela aguda inteli­gência dela.

- O amor - continuava Marguerite - parece-se com um jardim ao fim do qual chegaríamos em dois ou três passos se o caminho que o atravessa não se visse cruzado por mil veredas que vão e vêm capri­chosamente, cheias de perfumes e flores. O amor é a arte de nos perdermos na nossa própria casa.

Todos se riram do que Marguerite dizia e ela, ani­mada pelo êxito, prosseguia com mais mil ideias bri­lhantes e provocadoras.

- O tamanho das estátuas diminui quando nos afastamos delas, o dos homens, quando nos aproxi­mamos.

- Bem - comentou Martino que achou ser altura de mostrar o poder de resposta por que era conheci­do em toda a cidade de Paris. - Das mulheres tam­bém se podem dizer muitas coisas.

- Vais falar de como podemos ser infiéis? - per­guntou Dominique, divertida.

- Precisamente - respondeu Martino. - Dizem que no século II a. C, durante o cerco a Cartago, as mulheres comiam cães. Os homens dessa cidade acreditavam que essa dieta lhes inculcaria princípios de fidelidade, mas não foi assim. O que estas mulhe­res fizeram foi começar a pedir coleiras.

Todos desataram a rir.

- Devemos ter em conta - disse Marguerite - que o homem é o que tem o sistema nervoso mais frágil de todo o reino animal, de forma que é natural que tente por todos os meios acabar com uma raça superior.

- Estás a referir-te às mulheres? - perguntou Jean Pierre.

- Não, querido. Estou a referir-me aos cães.

As gargalhadas voltaram a ouvir-se. Nesse mo­mento soou a campainha.

-Ah! - exclamou Dominique. - O convidado que faltava.

- Quem é? - perguntou Marguerite.

- Isso... - respondeu misteriosamente a anfitriã. - Já vais ver.

Ao que Marguerite respondeu que achava muito bem que não lhe quisessem dizer quem era o último convidado que acabava de chegar porque com um pouco de mistério se pode construir uma paixão. E, novamente, todos desataram a rir.

Quando Dominique regressou à sala, o convida­do que trazia consigo era Fabrice, o médico que tinha tratado de Marguerite após o acidente. A sua presença não era mera casualidade. Dominique tinha-lhe telefonado para lhe agradecer os cuidados que tivera com Marguerite.

Fabrice ficou surpreendido ao ver Marguerite vestida daquela maneira. Estava habituado a vê-la deitada na cama com o corpo tapado até ao pescoço por um lençol. Além disso, no dia em que saíra do hospital Marguerite ia vestida coma roupa que a tia Josefine lhe levara.

- Olá, Marguerite - disse Fabrice com um sorriso simpático. - Folgo muito em ver-te tão recuperada.

- Não acredite muito nisso, doutor - respondeu Marguerite, com um sorriso travesso. - A verdade é que continuo sem me lembrar de nada. E se antes era tão feliz como agora, então tenho muita pressa de me recordar desses tempos.

Fabrice respondeu com um silêncio mais ou menos dissimulado. Dominique pusera-o ao corren­te dos seus receios e também era esta a razão por que o havia convidado. Claro que a doce sensibilidade que Marguerite demonstrara durante as conversas no hospital o tinham fascinado de tal forma que fica­ra com vontade de a rever, custasse o que custasse. Vendo-a agora tão sedutora, essa vaga inclinação tor­nara-se num sentimento de desejo que era um claro prelúdio de amor.

Marguerite continuou a ser a rainha da noite. Todos os olhares repousavam nela. O desejo e a ad­miração eram partilhados tanto pelos homens como pelas mulheres. A tudo isto juntava-se o fato de ela estar a exceder todas as expectativas previsíveis. Mar­guerite parecia estar a romper a barreira psicológica que faz pensar a todos os seres humanos que o futu­ro se vai parecer com o passado.

Finalizado o jantar, dirigiram-se para o jardim. Já era noite, de forma que acenderam as luzes da pisci­na. Sentados a uma mesa, continuaram a conversar amigavelmente, enquanto cada um tomava a sua bebida. Marguerite escolheu vinho branco.

- Bem gelado, por favor.

Estavam todos já um pouco bêbados e a conversa começou a tomar a lentidão típica de quando se vai já no terceiro copo. Marguerite Remy era a única que continuava a falar com a mesma lucidez do início. Continuava a dizer piadas. Agora falava do sexo fe­minino. Dizia que todas as mulheres são a mesma e que só havia variedade nas circunstâncias.

- Por exemplo - continuava ela - todas as mu­lheres amam os ramos mas muito poucas amam as flores. Sem esquecer que todas as mulheres se sentem roubadas pelo amor que um homem possa sentir por outra mulher. Sim, sim, não se riam. Há muitos homens a quem a mulheres não querem por querer, querem com todo amor do mundo.

Naquelas palavras havia uma profunda sabedoria que ninguém pensara que Marguerite possuía. Do­minique nem queria acreditar no que estava a ouvir. Aquela princesa era a sua amiga?

- Por que não tomamos banho? - perguntou, de repente, Marguerite. - Venham, não tenham vergo­nha. Eugenie, eu trouxe dois biquínis novos e o Jean Pierre poderá emprestar uns calções ao Martino e ao Fabrice. E tu, Dominique, mostra-nos esse belo corpo que tens.

Todos ficaram boquiabertos perante a proposta.

- Que se passa convosco? - perguntou Margueri­te. - Por acaso estão com vergonha?

E dirigiu-se a Dominique.

- Por favor, Dominique, vamos tomar banho, está tanto calor e tu e eu já estamos habituadas a estas loucuras, não é verdade?

Dominique não se atreveu a contradizer Margue­rite. E todos acabaram por aceitar a sua proposta.

Quando aquela que estava a ser a rainha da festa apareceu junto à piscina fez-se silêncio. O biquíni, sem deixar de ser elegante, realçava-lhe todas as exuberâncias do corpo. O umbigo parecia o sol poente. Aquele pequeno orifício parecia ser o centro do mundo, o interior de poço dentro do qual se junta­vam todos os elementos da natureza. Os seus braços compridos apoiavam-se nas ancas parecendo acari­ciá-las, quase sem querer. As pernas, esguias e bem torneadas eram como duas colunas de mármore. Toda ela era um grito animal, um templo em cha­mas, um desafio aos deuses.

Passaram o resto da noite a tomar banho e jogan­do os mil jogos que Marguerite inventou e dirigiu com a mesma energia que mostrara durante a con­versa. Ao amanhecer, Eugenie e Martino levantaram-se. Tinham de regressar a casa e agradeciam aquela fantástica noite em que se tinham divertido como nunca e desfrutado de mais loucuras do que nas infi­nitas viagens que passavam a vida a fazer.

Fabrice também aproveitou para se despedir. Ao estender a mão a Marguerite, o seu corpo foi percor­rido por um arrepio. Tinha-se apaixonado por aque­la mulher. O seu corpo, a sua inteligência, o seu pas­sado misterioso fascinavam-no. Teve de fazer um enorme esforço para não a beijar na boca à despedi­da. Depois dos convidados saírem, Dominique e Jean Pierre deram boa-noite a Marguerite e foram para o quarto. Antes de adormecer, já enfiada na cama, Marguerite ouviu Jean Pierre gemer. Fê-lo muito alto e o que ela ignorava era que o fazia de propósito, porque para ele tudo estava como antes, só mudava o prazer acrescentado de que em breve a situação se alteraria. De que em breve seria Domini­que a escutar como ele fazia amor com Marguerite, de que brevemente seria a sua própria mulher a sofrer. E aquela ideia excitava-o mais do que qual­quer das outras perversões anteriores.

Os gemidos cortavam o silêncio da aurora e Mar­guerite escutava com todos os poros do seu corpo como Jean Pierre gozava até à dor. O sol começava a nascer sob as cortinas, estava calor, tinha o corpo ainda húmido dos mergulhos e das brincadeiras na piscina. Além disso, Marguerite sentia-se excitada por se ter roçado toda a noite contra Jean Pierre, Fabrice e Martino.

Talvez a sua mente não recordasse o passado, mas o seu corpo exigia compensação de todos aqueles anos de fome. Afastou os lençóis com um gesto ansioso. Despiu lentamente as cuecas e começou a mover as ancas e o ventre ao ritmo dos gemidos de Jean Pierre. Que prazer sentir a nudez do seu corpo acariciada por nada. A mesma falta de mãos que a tocassem, o mesmo vazio que a queimava por dentro tinham algo de prazer que fazia aumentar a sua excitação. Jean Pierre continuava a gemer sobre Domini­que. Marguerite estava imóvel, atenta, sem se tocar, agarrada com força aos lençóis, reparando que a excitação ameaçava rebentar-lhe a pele e sair em bor­botões.

De repente, quando Marguerite pensava que já não aguentava mais, toda a pressão que acumulara na garganta se soltou num gemido tão agudo como lento. Os lençóis estavam húmidos. Os gemidos de Jean Pierre tinham parado. Tê-la-iam ouvido?

Marguerite sorriu na escuridão, fechou os olhos e deixou-se ir à deriva dos sentidos até que adormeceu profundamente.

Quando acordou já estava a anoitecer. Vestiu uns calções azuis e uma camisa branca sem mangas. A excitação da noite anterior continuava a morder-lhe a pele. Ao descer as escadas, sentiu o tecido da cami­sa roçar-lhe os mamilos e teve de se apoiar no corrimão para não cair. As pernas tremeram-lhe. Uma gota de suor desceu-lhe pelo rosto.

- Está alguém? - perguntou Marguerite enquan­to entrava na cozinha. Ninguém. Foi até ao jardim. Dominique saíra para fazer compras. Jean Pierre tomava banho na piscina.

- Bom dia - disse Marguerite.

- Bom dia - respondeu-lhe Jean Pierre, dando uma volta na água. - Queria dizer-te que ontem estiveste fantástica.

Marguerite olhou-o com um sorriso cúmplice, como se lhe estivesse a perguntar a que se referia ele. A felicidade das últimas horas tinha-a feito esquecer a angústia que lhe provocava o fato de não se lem­brar de quem era. O paraíso devia ser algo parecido com aquilo. Um presente sem passado. Um horizon­te sem crepúsculos. Uma grande aurora. Uma eterna primeira página.

- Não tomas banho? - perguntou-lhe Jean Pierre.

- Não, obrigada - respondeu Marguerite. - A Dominique disse que vinha buscar-me às sete e já está quase na hora.

- Ah, não sabia.

Ao que Marguerite respondeu, sorrindo:

- Vamos às compras, não me parece que também estejas interessado.

Nesse momento tocou o telefone dentro de casa.

- Podes atender, por favor? - pediu Jean Paul.

- Claro que sim - respondeu Marguerite, dirigin­do-se para casa, deixando atrás de si um rasto de desejo.

Passados minutos, Jean Pierre saiu da piscina.

- Estou?

E do outro lado da linha uma voz suave e algo nervosa perguntou:

- Marguerite?

- Sim, sou eu, Fabrice. Como estás?

Quem estava do outro lado era Fabrice, que não conseguira deixar de pensar nela e não resistira ao desejo de lhe telefonar.

- Queria saber se esta noite queres ir ao teatro comigo. Tenho bilhetes para a Comédie Française que vai representar uma tradução em verso de La vida es un sueno, de Calderón.

- Oh, Fabrice! - exclamou Marguerite com genuína alegria. - Que bom teres pensado em mim. Claro que quero ir. Mas tens a certeza de que não é para me fazeres mais uma das tuas entrevistas? - e desatou a rir.

-Vou buscar-te às oito — disse Fabrice.

- Estarei pronta. Até logo.

 

Mal tinha pousado o telefone quando sentiu as mãos de Jean Pierre pousarem suavemente sobre os seus ombros. Foi invadida por um misto de pra­zer e repulsa.

- Quem era? - perguntou ele.

- Era o Fabrice. Esta noite vamos ao teatro - disse ela sem se mexer e reparando que as mãos de Jean Pierre se contraíam lentamente.

Ela deixou-se ficar ali, quieta, de costas para Jean Pierre, sentindo aquelas mãos grandes acariciando-lhe a pele com os polegares. Ele ia-se chegando, pouco a pouco, sentia-lhe a respiração na nuca...

- Então? - disse ela com a voz impaciente de quem começa a perder o autocontrolo.

- Marguerite - continuou Jean Pierre. – Talvez não te recordes que antes do acidente nos amáva­mos. Sei que quando chegaste sentiste algo de estra­nho. Não é possível que não te lembres como fazía­mos amor no meu apartamento. Tu gostavas de te pôr de costas para mim, assim como estamos agora, para poderes ver pela janela as pessoas a passarem, aborrecidas e infelizes, enquanto tu gozavas o prazer que eu te dava.

Marguerite não se lembrava de nada, mas a ver­dade é que sentira algo estranho quando vira Jean Pierre depois do acidente. E também era verdade que sentia uma atração irresistível por esse homem que estava a acariciar-lhe os ombros. Era verdade que uma força incontrolável a lançava contra aque­le homem cujas mãos tinham começado a descer lentamente dos ombros para o antebraço. Margue­rite fechou os olhos e deixou a cabeça pender para trás. Reparou que o membro ereto dele lhe acari­ciava levemente as coxas sob os calções. Ele beijou--lhe o pescoço e ela soltou um gemido fundo.

- Pensaste em mim ontem à noite? - perguntou Jean Pierre.

E ela dizia-lhe que sim enquanto se movia ritmicamente, acariciando com as costas o peito de Jean Pierre, lançando-se levemente contra o seu ventre, contra a sua cintura...

Mas, subitamente, Marguerite endireitou-se e disse-lhe com brusquidão:

- Como é que podíamos estar apaixonados se tu te casaste com a Dominique?

Jean Pierre ficou sem saber o que responder, esta­va cego de excitação. Disse-lhe que essa era uma his­tória muito comprida que não convinha desenterrar naquele momento, e as suas mãos continuaram a avançar até lhe agarrarem os seios, mas Marguerite afastou-o bruscamente e disse-lhe que Dominique era a esposa dele e a sua melhor amiga, e que, mesmo não se lembrando de nada do que se tinha passado, sabia que ele casara havia dois meses e não tinha o direito de a enganar.

Nesse preciso momento abriu-se a porta da casa. Jean Pierre enfiou-se no quarto e Marguerite comu­nicou a Dominique que não podia ir com ela pois Fabrice convidara-a para ir ao teatro.

- Que bom - respondeu a amiga. - Eu já sabia que ele tinha gostado de ti. Na verdade, ontem parecias uma princesa.

- E hoje? - perguntou Marguerite, maliciosa.

- Hoje, uma imperatriz. E onde está Jean Pierre?

- Deve estar no quarto, acabou de sair da piscina. - Dominique confessou-lhe em voz baixa que, já que ela ia ao teatro, aproveitaria para ter um jantar romântico com ele. Marguerite sentiu um misto de ciúmes, pena e consciência pesada.

- Bem - disse ela. - Vou mudar de roupa.

Ainda não estava pronta quando soou a campai­nha. Ouviu a voz de Fabrice saudar Dominique à entrada. Pensou que ele era um homem muito atraente e que, além disso, tinha tratado dela no hos­pital com a maior devoção.

Durante as entrevistas mostrara uma sensibilida­de superior que a tinha encantado, e uma delicadeza feminina que a fazia sentir-se em casa sempre que estava a seu lado. No entanto, ainda estava sob a influência da excitação provocada por Jean Pierre e nenhum sentimento desta natureza aceita dois donos. Talvez mais tarde, pensou, compondo o vestido de noite que havia comprado dois dias antes.

Contudo, havia algo que a preocupava. Era verda­de que Jean Pierre e ela se tinham amado? Que aque­le homem a atraía, isso era evidente, mas não conse­guia imaginar como é que ele teria passado para os braços de Dominique. Seria que Jean Pierre a estava a enganar? Estaria ele a inventar um passado que a levasse a fazer amor com ele? Isso era algo que teria de descobrir. Deveria odiar Dominique ou Jean Pier­re? Quem a teria feito sofrer no passado? Quem a tinha conduzido até àquela encruzilhada de cami­nhos em que qualquer escolha a atirava para o preci­pício? Talvez o mais fácil fosse entregar-se a Fabrice ou ir-se embora. Não sabia se conseguiria resistir ao próximo ataque de Jean Pierre.

O teatro Comédie Française fica ao lado do Palais Royal, em pleno centro de Paris. Estão ligados atra­vés de uma praça quadrada e um dos lados dá para o Museu do Louvre, na margem direita do Sena. A Comédie Française é um teatro com mais de quatro séculos, que tem acolhido nos seus palcos os atores mais famosos de França. Fabrice conseguira arranjar ótimos lugares: plateia, quinta fila, coxia.

Um candeeiro espetacular com mais de cinco mil lâmpadas ilumina uma sala circular cujos assen­tos são de madeira trabalhada e veludo vermelho. Todas as talhas que adornam o teatro estão pintadas de dourado, de modo que os olhos que vêm do exte­rior têm de pestanejar várias vezes até se habituarem àquele esplendor.

Marguerite Remy vestira um vestido de noite ver­melho que competia com o de todas as outras mulheres candidatas a serem a rainha da noite. Por onde passa Marguerite faz-se silêncio. Um silêncio de inveja e desejo, um silêncio que cai sobre ela como se fosse um tapete real que se estendesse a seus pés.

Fabrice ia vestido de fato negro e levava Margueri­te pelo braço como se ela fosse uma escultura de vidro que está prestes a quebrar-se. Quando se sentaram, as luzes apagaram-se. Sobre o cenário começa o primei­ro monólogo com que abre A Vida É Um Sonho. Fabrice, antes de se deixar levar pela magia da obra, fecha os olhos e sente o perfume de Marguerite.

A obra conta a história de um homem, Segismundo, que está prisioneiro numa torre. Não sabe quem é nem conhece a razão por que está preso. O que aconteceu foi que, antes de nascer, um astrólogo anunciou a seu pai Basílio, rei da Polônia, que o filho o mataria e reinaria como um tirano. Basílio acredi­ta e manda enclausurar o filho na torre onde este chora a sua desgraça.

Mas os anos passam e o rei da Polônia decide pôr o filho à prova. Se acreditou no destino que o astrólogo previu, também quer acreditar na liberdade dos homens. E, assim, Segismundo é submetido a uma prova que consiste em dar-lhe um narcótico que o faça dormir profundamente para que, enquanto está inconsciente, seja transferido para o palácio onde acordará já na qualidade de príncipe. Se, ao acordar, o seu comportamento for o adequado, isso significa o seu triunfo sobre o destino. Se, como previu o astrólogo, o seu comportamento for o de um tirano, será o destino a vencer Segismundo. No primeiro caso será rei, no segundo regressará às masmorras. Ao despertar, Segismundo não entende nada:

Dizer que é um sonho é engano, Sei bem que estou acordado Sou ou não sou Segismundo? Ó céus, tirai-me de enganos.

Marguerite sente uma pressão no peito. Então a sua história não se parece com a de Segismundo? Estará ela a viver um despertar ou um sonho?

Marguerite agarra na mão de Fabrice. Necessita de apoio, sente que desfalece. Fabrice entende o que ela está a sentir e exerce uma leve pressão com os dedos na mão da jovem. A peça continua. Segismun­do reage violentamente. Sente ódio por um pai que o tratou com tanta crueldade, mata um criado, tenta violar uma mulher. Sempre sem fazer caso dos con­selhos e advertências.

Que não seja por te veres já dono de todos que te tornes cruel, talvez seja um sonho.

Voltam a adormecê-lo e a encerrá-lo na torre para que, quando acordar, pense que foi um sonho.

Porventura sou eu?

Sou eu, que preso e encarcerado

Me vejo em tal estado?

Vós não sois o meu sepulcro, torre. Sim?

Valha-me Deus

Que tantas coisas sonhei.

E enquanto escuta aquelas palavras, Marguerite sente uma cascata de imagens, de vozes, de sensações e não sabe se é a sua mente que fala, ou se essas pala­vras são pronunciadas pelos atores. Será ela uma protagonista? Estará a ser vítima de algum gênio ma­ligno? De um argumento literário? Estará sendo víti­ma de si mesma?

- Vamos - disse-lhe Fabrice ao ouvido, vendo-a tão agitada.

Marguerite levantou-se mecanicamente e seguiu-o. Caminharam em silêncio, de braço dado, até à margem do Sena. Passados minutos, Fabrice disse:

- Desculpa, Marguerite, nunca pensei que te pudesse afetar tanto.

- Não te preocupes - respondeu ela. - Estou bem.

- Mas recordaste alguma coisa?

- Nada de concreto, sabes? Imagens, vozes, algu­mas sensações mas continuo sem saber quem era.

- Já pensaste - perguntou Fabrice - que pode não te agradar esse passado que ainda não recordas?

- Talvez - respondeu Marguerite. - A verdade é que ninguém me fala dele. Dominique parece empe­nhada em ter-me fechada em casa, afastada do mundo, tenho a sensação de que me oculta alguma coisa. Mas eu, ainda que não consiga recordar, sei quem era.

- Como é possível que o saibas sem recordar? -perguntou Fabrice, intrigado.

- Sei, porque antes do acidente escrevi um diário cuja existência ninguém conhece. Um diário onde está descrito tudo o que eu era.

- Tudo o que eras? - perguntou Fabrice, olhando-a fixamente.

- Sim. Estás surpreendido? - respondeu Margue­rite. - Para mim também é estranho, é como se cada noite lesse um papel teatral que tenho que decorar e representar. Talvez seja por isso que vacilo e me en­gano. Falo como falava, digo o que dizia, visto-me como me vestia, mas isso ainda não me sai da alma, ainda não sou mais que uma sombra do que fui, uma pálida cópia que deseja ser o original. Mas tudo virá, não é?

Após estas palavras, Fabrice manteve-se calado. Não percebia nada. Que se passava com Marguerite? Que era esse diário de que ela falava? Como era pos­sível que nele estivesse escrito um passado completa­mente diferente daquele que Dominique lhe descre­vera? Teria Dominique mentido?

Mas não, a tia Josefine estivera no hospital, Fabri­ce vira Marguerite ir-se embora vestida com aquelas roupas escuras. Que se estava a passar? Que mistério era aquele?

Marguerite interrompeu-lhe os pensamentos.

- Fabrice?

- Sim?

- Em que pensas?

- Não estava a pensar, Marguerite - respondeu ele. - Só estava a sentir.

- O quê?

- Sentia que também eu podia estar num sonho. Que talvez tu me tenhas arrastado no teu despertar para um mundo fantástico de cuja existência nunca cheguei a suspeitar. Habituado como estava a enfren­tar diariamente a dor e a desgraça, a vida parecia-me o prelúdio da morte, o mundo uma enorme sala de espera em que todos passeiam aborrecidos, mais ou menos conscientes de que talvez sejam eles os próxi­mos a serem chamados. Mas, quando te conheci, tudo mudou. Passei mais de duas semanas a ver-te dormir na cama do hospital. Parecias sorrir, parecia que te tinham tirado um grande peso de cima. Eu gostava de olhar para ti, agarrava-te na mão e falava contigo. Estou certo que nunca recordarás, por isso vou te dizer. Agarrava-te na mão e pedia-te que acordasses daquele coma, que despertasses e me despertasses a mim. Um dia, começaste a mexer a cabe­ça. Eu, como sempre, estava ali, a teu lado, olhando-te, rezando para que abrisses os olhos. Os teus lábios começaram a mover-se, falavas de um milagre, dizias que ele te tinha feito a vontade, como se falasses de Deus, não sei. Já gostava de ti nessa altura, Margue­rite, já te amava antes de teres voltado a nascer. Naquele dia, abriste os olhos e olhaste-me pela pri­meira vez e percebi que não me tinha enganado, compreendi que só tu conseguirias tornar este mundo suportável. Quando abriste os olhos, Mar­guerite - prosseguiu Fabrice, ardentemente -, senti que a história recomeçava, tinhas provocado uma nova gênese, Deus dava ao universo uma oportuni­dade para que se convertesse no melhor dos mun­dos. Tu já o tinhas dito, aquilo era um milagre.

Marguerite ouvia-o com atenção. O Sena seguia o seu imparável curso. Paris gritava ao longe, Paris bri­lhava ao longe. Mas Fabrice criara uma fronteira de palavras, um planeta à parte, um aquário no fundo do oceano.

- Nas duas semanas que se seguiram ao teu des­pertar, fui o homem mais feliz do mundo. Não reparaste que ia ver-te quatro ou cinco vezes por dia? Não viste que inventava mil desculpas para estar contigo? Mil provas inúteis, mil entrevistas que me permiti­ram conhecer-te melhor. Que bela eras! Só conhecia o teu rosto magoado. Do teu corpo só intuía o perfil que os lençóis deixavam transparecer. Mas a tua pre­sença fascinava-me, e quando começaste a falar, esse mundo que tinhas criado ia tomando forma. Cada uma das tuas palavras era divina, uma ordem supe­rior que construía esse mundo perfeito pelo qual sempre havia suspirado. Cada olhar, cada gesto, cada palavra, confirmavam todos os meus sonhos.

- Fabrice - disse Marguerite. Mas Fabrice colo­cou-lhe o indicador sobre os lábios.

- Deixa-me terminar. Faz apenas cinco dias que saíste do hospital. Dominique veio ter comigo para saber de ti. Eu mostrei tanto interesse que ela perce­beu que eu te amava e convidou-me para jantar na­quela noite. Ali acabei por ter a confirmação do meu amor. Já não estavas prostrada na cama de um hos­pital nem caminhavas ajudada pela tua tia. Ontem misturavam-se em ti a inocência agressiva de uma adolescente com a perversão ingênua de uma mulher madura. De amar-te como um ser etéreo e divino que me tinha concedido o dom de acreditar no mundo, passei a amar-te como se ama uma mulher. Queria agarrar-te com as mãos até te doer a pele, queria beber-te toda, encher-me de ti. Ontem à noite, despertou em mim uma violência animal que estava latente no mais profundo do meu ser. Nunca tinha sentido nada assim. Nunca nenhuma mulher me pusera naquele estado e foi então que compreen­di que nunca tinha amado. Eu não sei quem és, nem sequer sei quem foste, mas hoje, vendo como ficavas agitada com a peça, tomei uma decisão: quero amar-te tal como és, resulte o que resultar desta estranha viagem ao mundo do podia ter sido. Continua à pro­cura, Marguerite, continua à procura de ti e não receies encontrar-te porque há algo que, apesar de tudo, nunca mudará. - E, dito isto, beijou-a.

Marguerite fechou os olhos. Beijou e deixou-se beijar. As mãos de Fabrice acariciavam-na com tanta força que o vestido ameaçava rasgar-se. Os dedos agarravam-se à pele como se quisesse arrancar-lhe um pedaço. Marguerite gostava daquela sensação e unia-se a Fabrice com todas as suas forças. De repente, quase de forma instintiva, levantou uma mão e, tal como havia lido no seu diário, colocou-a sobre o colo de Fabrice. Notou que este se agitava suavemente em mil apaixonadas convulsões. Mar­guerite parecia derreter-se. Sentia que se estava a der­reter no colo de Fabrice.

- Vem, daqui podem ver-nos - disse ele e levou-a para debaixo de uma das pontes do Sena onde con­tinuaram a beijar-se abrigados pelo suspiro que o rio emite ao correr. Aquela água não estava parada como a do canal. Aquela água tinha vida. Aquela água cor­ria sempre para a frente e não precisava do vento para se mover, possuía a sua própria força.

De vez em quando passava um barco cheio de turistas sob os arcos da ponte. Os faróis iluminavam os dois amantes, mas eles não se importavam de serem vistos pelos turistas. Continuavam a beijar-se como se o mundo fosse acabar, e a amar-se, apertan­do a carne como se procurassem algo para morder.

- Onde vives? - perguntou Marguerite, com os lábios muito vermelhos.

- Aqui perto - respondeu Fabrice. - Em pleno Quartier Latin.

Marguerite não disse nada, levantou-se, arranjou o vestido e agarrou Fabrice pela mão. Este conduziu-a com o passo rápido e nervoso do animal que saíra do seu interior. A casa de Fabrice ficava ali muito perto da ponte sob a qual tinham excitado tantos turistas. O membro de Fabrice não tivera tempo de se descontrair de modo que, na entrada do edifício, numa esquina blindada pela penumbra, Fabrice penetrou Marguerite. Uma dor aguda e forte fê-la gemer com intensidade. Fabrice, que ignorava o esta­do sexual de Marguerite, tinha-a penetrado com força. Não podia imaginar que aquele corpo perfeito e provocador e aquela alma tão doce como apaixona­da pudessem ter chegado até àquele momento sem ter gozado os prazeres superiores do sexo. Por isso, Fabrice pensou que aquele grito de dor era um gemi­do de prazer e continuou a amá-la cada vez com mais força, mais e mais rapidamente.

No interior de Marguerite misturavam-se sensa­ções de prazer, dor e surpresa. Como podia doer-lhe tanto? Então o diário não contava que ela perdera a virgindade muito cedo? Por acaso, o diário não dizia que o sexo era para ela a água e o oxigênio? Pouco a pouco, a dor foi desaparecendo, substituída pelo pra­zer. Marguerite, toda ela era um único nervo que recebia milhares de estímulos contraditórios com os quais se formava uma massa heterogênea de sensa­ções que a transportavam a outras esferas sensitivas. Numa mesma zona, o prazer e a dor confundiam-se com tanta força que Marguerite não sabia se havia de rir ou chorar, de continuar ou parar, de beijar ou morrer... E Fabrice continuava a trabalhar na penumbra, cada vez mais excitado com os ambíguos gemidos de Marguerite.

Quando, seguido por Marguerite, Fabrice entrou em casa e acendeu as luzes não pode evitar reparar na mancha de sangue no vestido de Marguerite.

- Eras virgem? - perguntou, entre o surpreendi­do e o assustado.

E Marguerite ficou calada, a olhar, horrorizada, o vestido.

- Mas no meu diário ... - balbuciou Marguerite. - No meu diário...

E antes que Fabrice pudesse detê-la, desatou a correr escadas abaixo para se perder na noite e ser uma mais das misteriosas sombras que de madruga­da povoam as ruas de Paris.

- Marguerite! - gritou Fabrice, do terceiro andar.

Mas ela não respondeu. Precisava de estar só, pre­cisava de submergir na sua mente, interrogar o ontem, encontrar a sua verdadeira identidade. Só assim conseguiria ser feliz. O engano é efêmero, regressa-se sempre ao sonho e então o despertar é mais doloroso.

- Marguerite! - ouvia a voz de Fabrice ao longe. Mas continuou a correr.

Chegou à Pont des Arts, uma ponte de madeira de onde se vê o Sena dividir-se em dois para rodear a lie de La Cite, a ilha onde se encontra Notre Dame, os Jardins de Saint Louis, assim como muitos outros locais mágicos. Naquele lugar, as águas do rio pare­ciam hesitar, sem saber se deveriam ir para a esquer­da ou para a direita. Nos dias em que o rio está agi­tado, a água faz remoinhos no centro da bifurcação, parecendo que está a pedir um tempo para decidir o rumo a tomar. Mas o rio nunca para, a água, na sua corrida, nunca está clara. Marguerite sente que há algo dentro dela que também flui daquela forma duvidosa. Uma machadada separou-a da corrente do rio que a arrastava e agora tem de avançar com força por um dos caminhos que a vida lhe pôs à frente.

Marguerite está desorientada, não sabe quem é, é sol e, ao mesmo tempo, o rosto oculto da lua, ela própria é a máscara que ri e a que chora. O seu corpo será o seu corpo? As suas palavras serão as suas pala­vras? Os seus gestos serão os seus gestos? Os seus pensamentos serão os seus pensamentos? Sente um medo agudo no estômago. Acaso quererá recordar? Não estará a esquecer voluntariamente? Nada era verdade. Nada era mentira. Marguerite sentia que o mundo perdia consistência, que o chão se abria sob os seus pés.

Paris continua a agitar-se lá ao longe, indiferente a Marguerite. Paris é um animal com instintos pró­prios, um organismo com os seus próprios movi­mentos. Paris respira através da gente que vai e vem pelas ruas, agita-se através dos carros que desespe­ram nos semáforos vermelhos, perde-se nos vaga­bundos que desaparecem nas esquinas. Paris olha através das suas luzes, Paris toca através dos seus solos, Paris lava-se através da sua chuva, mas, esta noite, Paris não se preocupa com a dor de Margueri­te, não detém os seus gestos para lhe acompanhar a dor. O mundo sabe quem é, só Marguerite se agita sobre uma dúvida, sem saber para que lado se há-de deixar cair.

Deve enfrentar-se a si própria. Recordar? Não recordar? Essa é a questão, é esse o delta que a levará a um outro mar. Não saber quem é sendo feliz? Sabê-lo, arriscando-se a regressar a uma existência infeliz da qual todos parecem querer defendê-la? Voltar? Não voltar? Marguerite está como que de viagem por outro ser e algo a impede de regressar. Sente que a sua alma se despedaça, lenta e dolorosamente. Não se pode viver entre duas águas, não se pode viver ignorando-se a si mesmo.

E Marguerite chora. As lágrimas caem ao rio que as leva na sua eterna e irreparável fuga. Marguerite continua a chorar. E deve estar muito longe da pri­meira lágrima que verteu, já deve ter passado a lie de La Cite, já deve ter chegado a esse ponto em que as águas do rio voltam a unir-se. Talvez haja uma pos­sibilidade. Marguerite sente amanhecer a esperança de juntar realidade e desejo.

Mas se é ela quem esquece por força de vontade, também por força da vontade deverá recordar. E se não é ela que esquece, tem de encontrar uma porta que lhe dê acesso ao passado. A alma de Marguerite sofre a guerra civil do que não se atreve a decidir, a impaciência do suicida que não se atreve a saltar.

As lágrimas continuam a alimentar o rio e Mar­guerite vê-as desfazerem-se em mil pedaços antes de se entregarem à corrente. A sua alma também se está a desfazer.

Marguerite continua debruçada sobre a ponte, as lágrimas queimam-lhe o rosto, os seus olhos desti­lam desorientação. Começa a chover. O Sena salta em mil pedaços, como um espelho que se parte. As gotas da chuva misturam-se com as lágrimas de Marguerite e, nesse momento, a jovem sente que é como se já tivesse vivido algo semelhante. E vem-lhe à ideia o canal de San Martin e recorda-se a chorar de uma das suas pontes e da sua roupa preta e do amor tímido e desesperado que sentia por Jean Pierre e recorda-se de tudo. Essa era ela?

E Marguerite tem vontade de morrer. Está com medo de regressar a essa prisão de carne e silêncio. A nova Marguerite enfrenta a velha, mas já não é pos­sível enterrá-la outra vez. E recorda a imagem da Igreja de Saint Eustache e o acidente... e o diário. Tudo o que lera era falso, tudo o que lera não passa­va da descrição dos seus sonhos que só tinham acon­tecido na sua cabeça. Tinha vivido enganada, mas vivera os seus sonhos.

Que fazer? Saltar? Por qual das correntes haveria de se deixar levar?

- Marguerite! - sussurrou Fabrice ao seu ouvido, pondo-lhe as mãos sobre os ombros.

E, ao sentir a pressão das mãos de Fabrice, Mar­guerite recordou a conversa que tivera na tarde ante­rior com Jean Pierre. Já se lembrava de quem ele era e agora sabia que ele, lhe tinha mentido dizendo-lhe que se tinham amado. Sim, ela amara-o. Ela amara-o e sofrerá em silêncio as mil torturas a que ele a submetera, mas agora estava acabado. Não lhe resta­va no coração nada desse amor desesperado, tudo o que sentia agora era uma enorme sensação de repul­sa. Mas, e Dominique? Devia avisá-la antes que o marido a pudesse magoar.

E ali estava Fabrice a acariciar-lhe os ombros e dizendo-lhe que a amava. E ela sabia que era verda­de porque ele já a amava quando ela não passava de um corpo adormecido. Marguerite sentia-se bem com ele, talvez fosse possível reter aquele sonho sem se esquecer de si mesma, talvez aquela viagem às ter­ras do esquecimento lhe tivesse servido para trazer ao de cima essa outra Marguerite a quem nunca tinha dado a oportunidade de existir. Fabrice agar­rou-lhe amorosamente nas mãos. As suas sombras confundiram-se de novo com a noite, e uma vez mais duas bocas se uniram em Paris.

 

                                                                                Jocelyn Bresson  

 

                      

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