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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DIAS DE OURO / Jude Deveraux
DIAS DE OURO / Jude Deveraux

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

–Já a viste?
– Não, não a vi – respondeu Angus McTern pela que lhe parecia ser a centésima vez.
Tinha acabado de chegar das montanhas. Estava encharcado, cansado, com fome e sentia frio, mas, aparentemente, as pessoas só sabiam falar da requintada sobrinha inglesa de Neville Lawler, que estava de visita ao velho castelo para encarar os pobres escoceses com altivez.
– Devias vê-la – insistiu o jovem Tam, enquanto tentava acompanhar as largas passadas do primo.
Angus costumava sentir-se satisfeito com a presença de Tam, mas não seria o caso se toda a conversa dele andasse à volta da sobrinha de Lawler.
– Ela tem um cabelo semelhante ao ouro – prosseguiu o jovem num tom de voz trémulo. Acabava de entrar na adolescência e o que as raparigas diziam, faziam e pareciam significava tudo para ele. – Tem uns olhos tão azuis como um lago. E as roupas! Nunca vi roupas como aquelas. São tecidas pelos anjos e finalizadas por abelhas. Ela...
– Mas tu nunca viste muita coisa que te permita compará-la com o que quer que seja, pois não, rapaz? – retorquiu Angus e todos pararam surpreendidos para o olhar.
Encontravam-se no grande pátio de pedra que, noutros tempos, tinha pertencido à família McTern. O avô de Angus e de Tam fora o laird1, mas tratava-se de um velho indolente e sem escrúpulos que jogara e perdera tudo frente a um jovem inglês, Neville Lawler. Na época, Angus tinha apenas nove anos, vivia com a sua mãe viúva e fora a Angus que o clã havia recorrido. Nos dezasseis anos seguintes ele dera o melhor de si próprio para olhar pelos restantes McTern.
Contudo, por vezes, tal como nesse dia, parecia uma batalha perdida levar as pessoas a recordarem-se de que pertenciam aos outrora grandiosos McTern. Nas últimas semanas, elas só queriam falar da jovem inglesa, do seu cabelo, das roupas, de cada palavra que pronunciava e da maneira como o fazia.
– Estás com medo de que não goste de ti? – perguntou o velho Duncan, erguendo o rosto da foice que estava a afiar. – Com medo de que essa tua grande cara barbuda a assuste?

 


 


A tensão que tinha sido causada pela rispidez com que Angus se dirigira ao primo mais novo dissipou-se e ele deu um ligeiro abanão no ombro do rapaz para se desculpar. Tam não era culpado de nunca ter ido a nenhum lado ou feito o que quer que fosse. Só conhecia as montanhas da Escócia, as ovelhas e o gado, bem como os assaltos nos quais, por vezes, tinha de lutar pela própria vida.

– Uma mulher elegante como ela apanharia um susto de morte diante de um verdadeiro escocês – retorquiu Angus ao mesmo tempo que erguia as mãos como se fossem garras e fazia uma careta ao seu jovem primo.

Os que se encontravam no pátio descontraíram-se e voltaram a ocupar-se das respetivas tarefas. Davam importância à opinião de Angus.

Ele atravessou a antiga fortaleza de pedra que antes fora a morada da sua família e dirigiu-se aos estábulos. Uma vez que Neville Lawler dava mais importância aos cavalos do que às pessoas, os animais estavam sempre limpos, cuidados e o edifício estava mais quente do que a casa.

Sem fazer perguntas, Malcolm McTern, o tio de Angus, estendeu-lhe um pedaço de pão duro e espesso juntamente com uma caneca de cerveja.

– Perdemos muitos, rapaz? – inquiriu enquanto se dedicava novamente a escovar um dos cavalos de caça de Lawler.

– Três – respondeu Angus e sentou-se num dos bancos que estavam encostados contra a parede. – Fui atrás deles, mas não consegui apanhá-los.

Angus ocupava a maior parte do tempo a salvar as ovelhas e o gado de assaltantes. Enquanto comia, recostou-se à parede de pedra dos estábulos e, por momentos, fechou os olhos. Havia dois dias que não dormia e só desejava enrolar a sua manta de tartan2 à volta do corpo e dormir até o Sol nascer.

Quando um dos cavalos bateu com os cascos na parede, Angus desembainhou o punhal, antes mesmo de abrir os olhos.

– Nunca te sentes seguro, pois não, rapaz? – retorquiu Malcolm com uma gargalhada.

– Tão-pouco nenhum de nós – disse, bem-humorado.

Enquanto comia, sentiu que o calor se lhe apoderava do corpo. Ele era o único do clã que continuava a usar a manta de tartan à maneira antiga. Tratava-se de dois longos pedaços de pano feitos à mão, enrolados à volta do corpo, presos na cintura com um cinto de cabedal grosso e deixando a parte inferior das pernas a descoberto. A camisa branca tinha mangas compridas e era apertada no pescoço. Havia muitos anos que o kilt fora abolido e os que o usavam corriam o risco de prisão e de espancamento, mas o velho Lawler fechava os olhos ao que Angus fazia. Embora o homem fosse preguiçoso e ambicioso para lá de todas as definições, compreendia o orgulho masculino.

– Deixem-no usar essa maldita coisa – disse quando um visitante inglês comentou que Angus devia ser espancado.

– O facto de usarem as suas roupas tradicionais leva-os a pensar que são donos do próprio país. Ele causará problemas se não o humilhar um pouco.

– Caso o prive do orgulho, privo-o do desejo de cuidar do local – retorquiu Neville e sorriu a Angus por detrás das costas do homem.

Partindo do princípio de que Neville Lawler não tinha mais nada de bom, a verdade é que sabia bastante sobre autopreservação. Sabia que Angus McTern cuidava do castelo, da propriedade e dos habitantes e, por conseguinte, não estava disposto a irritar o alto e jovem indivíduo.

– Vai para casa, rapaz – disse Malcolm. – Eu trato dos cava-los. Dorme um bocado.

– Para casa? – surpreendeu-se Angus. – Como posso fazê-lo? Deito-me e tenho um bando de pirralhos a trepar por mim. O mais velho merecia umas boas palmadas no rabo. Da última vez que lá dormi, enfiou-me paus no meio da barba. Disse que as galinhas a podiam usar como ninho.

Malcolm teve de tossir para disfarçar o riso. Angus vivia com a irmã, o marido dela e a sua família, sempre a crescer. Era, por direito, a casa de Angus, mas ele era incapaz de expulsar a irmã.

– Nesse caso, vai descansar para a minha cama – sugeriu Malcolm. – Não precisarei dela durante umas boas horas.

Angus deitou-lhe um olhar tão agradecido que Malcolm quase corou. Desde a morte do pai de Angus, quando este ainda era um miúdo, que Malcolm se tornara a pessoa mais próxima dele. Malcolm era o filho mais novo do laird que havia perdido as terras a jogar com o inglês Lawler e Angus e Tam eram filhos dos irmãos mais velhos de Malcolm. Ele nunca casara, afirmando que já tinha muito trabalho a cuidar dos filhos dos seus falecidos irmãos para que ele próprio os fizesse.

– Queres que te acorde quando ela sair para o seu passeio a cavalo? – perguntou Malcolm.

– Quem?

– Ora, rapaz! Decerto que já ouviste falar da sobrinha – respondeu Malcolm.

– Não tenho ouvido falar de outra coisa! Na noite passada quase esperei que os assaltantes voltassem atrás e devolvessem o gado que haviam roubado para saber dela. Julguei que iam perguntar-me se ela usava um vestido azul ou um cor-de-rosa.

– Estás para aí a rir porque ainda não lhe puseste os olhos em cima.

Angus abriu a boca num bocejo capaz de deslocar-lhe o maxilar.

– Nem quero. Tenho a certeza de que é uma moça bonita, mas o que é que isso me interessa? Não tardará a voltar para o sul e a viver numa casa maravilhosa, em Londres. De qualquer maneira, ignoro porque quis ela vir até este enorme monte de pedra. Para troçar de nós?

– Talvez – anuiu Malcolm –, mas, até este momento, apenas tem sorrido a toda a gente.

– Oh, mas que generosa! – comentou Angus, ao mesmo tempo que se levantava e se espreguiçava. – E esses sorrisos levam as pessoas a fazer o que ela deseja? «Sim, milady. Não, milady», é o que todos lhe dizem. «Permita-me levar o seu leque, milady.» «Por favor, permita-me despejar-lhe o bacio.»

Malcolm sorriu com a imitação de Angus, mas ele não deu o braço a torcer.

– Sinto pena da rapariga. Os seus olhos refletem uma tristeza impossível de ignorar. Morag disse que o velho Neville é o único familiar que lhe resta.

– Mas ela tem dinheiro, não tem? Vão comprar-lhe um marido rico que lhe fará um rancho de filhos e a tornará feliz. Não, não quero ouvir falar mais dela. Não tardarei a vê-la, ou talvez tenha sorte e ela regresse a Londres, antes que lhe veja os angélicos... – Esboçou um gesto de rejeição. – Basta de falar em anjos. Vou dormir. Se amanhã não estiver acordado por esta hora, verifica se estou morto ou não.

Malcolm emitiu um grunhido. Angus estaria indubitavelmente a pé dali a algumas horas, desejando ocupar-se com alguma coisa. Não era homem para ficar deitado.

Quando Angus se dirigiu ao quarto que ficava no fundo dos estábulos, pousou os olhos no cavalo que a sobrinha de Lawler tinha trazido com ela de Londres. Era cor de cinza, com grandes manchas de um cinzento mais escuro e, nesse momento, erguia as patas impacientemente, ansioso por sair dali e correr. Tinham-lhe dito que a sobrinha dava um enorme passeio diariamente, sempre acompanhada por um escudeiro, um homem que cavalgava à distância, atrás dela. Angus ouvira dizer vezes sem conta que a jovem era uma exímia amazona.

A cama de Malcolm com os seus lençóis ásperos e a manta de tartan proporcionou-lhe uma visão acolhedora e, ao deitar-se, Angus pensou que gostaria de ver a jovem a cavalgar como ele se vira obrigado a fazê-lo nas duas noites anteriores. O pobre pónei abria caminho por entre rochas e arbustos enquanto Angus perseguia os ladrões de gado. Contudo, os assaltantes levavam um avanço demasiado e as suas montadas estavam frescas, por isso, perdera-os no meio das colinas.

Ao pegar no sono, sorriu ante o pensamento da delicada jovenzinha inglesa a lutar pela sua preciosa vida.

Quando acordou, todos os nervos do seu corpo estavam retesados. Um som invulgar tinha-o despertado e não sabia do que se tratava. Passara metade da sua vida nos estábulos e conhecia todos os sons, mas aquele era fora do normal. Os ladrões de gado não teriam decerto ousado aproximar-se tão perto da casa, ou teriam?

Angus manteve-se quieto, sem se mexer, nem sequer abriu os olhos na eventualidade de alguém se encontrar junto à porta aberta, e pôs-se à escuta. O ruído vinha da divisória próxima do quarto de Malcolm, o compartimento onde se encontrava a bela égua da sobrinha de Lawler. Aquele animal que ele desconhecia estaria a fazer alguma coisa? Não. Ouviu um respirar e depois um suspiro involuntário que levou Angus a abanar a cabeça. Shamus. Fosse qual fosse a origem do som, provinha de Shamus.

Fatigado e a praguejar intimamente, Angus saiu da cama, dirigiu-se à fileira de cavilhas pregadas na parede e afastou uma delas. Só ele e Malcolm conheciam o engenhoso dispositivo que o tio havia feito para poder observar a maior parte dos estábulos sem ser visto. «Fedelhos preguiçosos», dissera a Angus. «Quando pensam que não os vejo, apanho-os a fazer todo o tipo de coisas que nada têm a ver com o trabalho.»

Angus espreitou pelo buraco e viu Shamus – o alto, estúpido e mesquinho Shamus – a fazer algo à cilha da sela da jovem e apeteceu-lhe soltar um rugido. O homem não tinha os cinco alqueires bem medidos? Estaria a pregar um dos seus cruéis truques à sobrinha de Lawler? Embora Shamus fosse, sem dúvida, um tirano e gostasse de atormentar os mais fracos, costumava possuir bom senso bastante para não perseguir quem tinha um protetor, o que aprendera assim que Angus se tornara mais alto e quase tão corpulento como Shamus, mais velho do que ele.

No entanto, ali estava ele a afrouxar a sela da jovem. Qual era a sua intenção? Se Angus bem conhecia Shamus, o objetivo era embaraçá-la e humilhá-la, para fazer com que as pessoas troçassem dela.

– Não nos faltava mais nada – disse Angus enquanto tapava o orifício e encostava a cabeça à parede. Na maior parte do tempo Lawler era um patrão de trato fácil, mas também imprevisível. Um homem podia acidentalmente deitar fogo a um vagão e Lawler desatar a rir, mas num outro dia em que um homem partisse uma rédea, Lawler mandava chicoteá-lo. Por vezes, Angus tinha a sensação de que passava metade da vida a discutir com Lawler para salvar a pele a alguém. Quanto ao próprio Angus, Lawler nunca se atrevera a tocar-lhe.

Angus, que ainda continuava cansado – pelos seus cálculos apenas tinha dormido uns minutos – olhou para a cama e sentiu desejo de voltar a deitar-se. O que lhe interessava que troçassem da jovem? Podia ser bom, para todos, se ela passasse a ser encarada como humana. Do outro lado da parede, ouviu Shamus a conduzir a égua para fora da divisória, e também aquele horroroso grunhido de satisfação que o homem emitia ao antecipar qual seria a consequência da sua travessura.

– Não é da minha conta – disse Angus para si mesmo e voltou para a cama.

Fechou os olhos e deixou que o corpo relaxasse. À semelhança de todos os escoceses, orgulhava-se de ser capaz de pegar no sono a qualquer hora e em qualquer lugar. Enquanto outros tinham de andar com cobertores, Angus limitava-se a desapertar o cinto, enrolar-se na sua manta de tartan e a adormecer, o que era mais um motivo por que os ingleses haviam proibido o uso da peça de vestuário. «Nem sequer têm de fazer as malas quando fogem», diziam. «Levam as camas às costas.»

– Sim – sussurrou Angus e soube-lhe bem tapar-se com a manta e deixar-se levar pelo sono.

Dez minutos depois, continuava acordado. Caso Shamus humilhasse ou, pior ainda, magoasse a sobrinha de Lawler, pagariam todos um preço elevado. Shamus deveria saber isso, mas nunca fora conhecido pela sua inteligência, apenas pelos seus músculos.

Angus levantou-se da cama a resmungar. Nunca teria paz na vida? Nunca chegaria a altura em que não fosse obrigado a resolver todos os problemas do que era outrora a propriedade dos McTern? Por ascendência, Angus era o laird, mas, visto que a terra deixara de pertencer à sua família, para que servia o título?

Dirigiu-se ao pátio com a sensação de que lhe doíam todos os músculos.

– Vieste vê-la, não é verdade? – perguntaram os homens, uns atrás dos outros.

– Não, não vim vê-la– respondeu Angus meia dúzia de vezes. – Quero ver o cavalo dela.

– Também eu – retorquiu um dos homens.

Angus revirou os olhos e desejou ter mais cabelo e mais barba que lhe tapassem o rosto. Se continuassem a pressioná-lo, faria com que soubessem o que pensava da obsessão deles por aquela jovem inglesa. Havia alguns meses que não provavam o temperamento de Angus e talvez tivesse chegado a altura devida.

O jovem Tam segurava o cavalo da rapariga, com um ar de quem vivia o momento mais orgulhoso da sua existência. «Segurar o cavalo de uma rapariga», pensou Angus. Onde fora parar o treino que dera àquele jovem? Onde estavam todas as histórias que tinha ouvido sobre o orgulho dos escoceses? Tudo esquecido num momento ante a visão de uma rapariga bonita.

– Eu vou ajudá-la a montar – disse Tam quando viu Angus a aproximar-se, com o ar de quem estava disposto a lutar por esse direito.

– E podes fazê-lo – replicou Angus num tom paciente. – Apenas quero verificar a cilha. Vi...

Interrompeu-se porque um raro silêncio dominava o local. A zona à volta do velho castelo em ruínas enchia-se habitualmente com o ruído de pessoas a trabalhar e de animais. O aço golpeava o ferro, a madeira era esculpida e cortada, baldes revestidos de couro batiam nas pedras. Ouvia-se sempre uma cacafonia de sons. Até à noite havia sempre tantas pessoas no pátio que Angus tinha dificuldade em aguentar o barulho. Ele gostava de lugares abertos e do sossego das montanhas.

Ergueu os olhos. Ela encontrava-se a uns escassos metros e Angus susteve a respiração. Era mais do que bonita. Era bonita de uma forma que jamais tinha sonhado que alguém pudesse ser. Era pequena e o alto da sua cabeça apenas chegava ao ombro de Angus; tinha um vestido preto, com um corpete justo, e uma jaqueta vermelha por cima. O rosto era oval com profundos olhos azuis, um narizinho reto e uma boquinha perfeita com a cor de framboesas de verão. A pele era tão fina como o melhor leite de vaca e tinha um cabelo farto e louro-escuro. Usava-o apanhado, mas com longos cachos sobre os ombros, envoltos em fitas vermelhas atadas em baixo. Na cabeça tinha um chapelinho preto com um fino véu que quase lhe chegava aos olhos.

Angus fitou-a, incapaz de falar. Nunca tinha visto ou imaginado alguém como ela.

– Desculpe – disse ela num tom suave e agradável. – Preciso chegar ao meu cavalo.

Angus só conseguiu assentir com a cabeça e afastar-se para lhe dar passagem. Quando ela se aproximou, sentiu-lhe o cheiro. Usaria perfume ou tratava-se da sua própria fragrância? Fechou os olhos durante um segundo e inalou. Todos tinham razão ao colocá-la e aos anjos num mesmo plano.

Servindo-se do ombro para afastar Angus, Tam uniu as mãos e deixou que a jovem apoiasse os pezinhos nas mesmas enquanto subia para a montada. Mal ela se instalou na sela, a égua levantou os cascos dianteiros, mas a jovem parecia estar acostumada à sua atitude e dominou-a facilmente.

– Quieta, Marmy – ordenou à égua. – Acalma-te. Já vamos. Não me apresses.

Quando ela pegou nas rédeas, Tam afastou-se, mas Angus limitou-se a olhá-la.

– Se não se afastar, vai magoar-se – disse-lhe, com uma expressão trocista.

Contudo, Angus ficou parado, ofegante, incapaz de qualquer movimento.

No segundo seguinte, a cilha do cavalo escorregou, levando a sela atrás. Deslizou à volta do cavalo, projetando a jovem para a esquerda, na direção de Angus. Ela soltou um gritinho e tentou aguentar-se, mas com a sela a cair para um dos lados, não tinha nada a que se segurar.

As situações de emergência eram algo a que Angus estava habituado e com que sabia lidar. O som de pânico da jovem arrancou-o ao torpor e reagiu de imediato. Agarrou nas rédeas e puxou-as com força para dominar a montada. Sem largar as rédeas, tentou apanhar a jovem, mas ela escorregou para o lado contrário e caiu em cima das pedras.

Quando ela aterrou no chão, Tam já tinha acorrido para ajudar com o cavalo empinado, fazendo-o avançar para que Angus e a jovem não ficassem separados. Baixou-se e ajudou-a a pôr-se em pé.

– Não me toque! – disse ela, ao mesmo tempo que se levantava sozinha e sacudia a poeira da roupa, fitando-o com um olhar fulminante. – Foi você quem fez isto! Não sei quem é, mas sei que o fez!

Angus queria defender-se, mas o seu orgulho não lho permitiu. O que poderia dizer? Que tinha visto um homem do clã a sabotar-lhe a sela e que ele, Angus, tentara salvá-la? Ou deveria admitir que lhe cabia ter verificado a cilha antes de ela montar, mas que ficara tão ofuscado com a sua beleza que se esquecera por completo da sela? Preferia ser flagelado do que fazer essas confissões.

– Sou o McTern dos McTern – disse por fim, endireitando os ombros e baixando os olhos para ela.

– Oh, percebo! – exclamou a jovem, corada de raiva. – O meu tio roubou-lhe as suas terras e agora vinga-se em mim.

Fitou-o de alto a baixo, esboçando um esgar frente ao seu cabelo revolto e à barba farta, baixando depois os olhos para o kilt.

– Usa essa saia como protesto contra o meu tio? Informe-me se quiser que lhe empreste uma das minhas. Estão muito mais limpas do que as suas.

Com aquelas palavras, virou-lhe as costas e regressou ao velho castelo.

Por um momento, reinou um silêncio total no pátio. Era como se as próprias aves tivessem deixado de cantar e, em seguida, ecoou um enorme e sonoro grito e todos desataram a rir. Homens, mulheres, crianças e até mesmo um par de cabras amarrado à parede romperam num riso estridente.

Angus manteve-se de pé no meio de todo aquele alarido e o pouco do seu rosto que podia ver-se estava corado de vergonha. Virou as costas dirigiu-se aos estábulos e, ao longo do caminho, ouviu os comentários que renovaram as sonoras gargalhadas. «Ele não queria vê-la.» «Ninguém podia dizer-lhe nada.» «Viram como ele a olhou? Até podiam cortar-lhe um dos pés, que não daria por nada.» Angus chegou mesmo a ouvir os chistes das mulheres. «Agora perdeu a arrogância. Não dança comigo, mas ela também não dançará com ele. Tem o que merece.»

Era como se, num minuto, tivesse passado de senhor do reino a bobo.

Passou junto às cavalariças e atravessou o portão do alto muro à volta do castelo, dirigindo-se à sua cabana. Desejava explicar-se a alguém, contar a sua versão do que tinha acontecido. Fora Shamus quem afrouxara a cilha da montada dela e Angus quase a apertara, mas a jovem assustara-o de tal forma que não o conseguira. Sim, era mesmo essa a palavra. Ela assustara-o. Ao vê-la com aquele chapelinho idiota e o casaco brilhante com os botões enormes, sentira-se tão chocado com aquela imbecilidade que ficara sem palavras. E aquelas fitas no cabelo! Alguém tinha visto tamanha estupidez? As suas roupas eram tão absurdas que ela não suportaria dez minutos nas montanhas. Sim, era isso o que diria que tinha pensado. Fixara de tal maneira a inutilidade do vestuário dela que não conseguira falar.

Quando chegou à cabana, sentia-se um pouco melhor. Tinha uma história para contrapor ao que todos pareciam pensar que acontecera.

Contudo, quando chegou a pouca distância da porta, a irmã, Kenna, saiu ao seu encontro com um sorriso. Tinha um filho com o rosto sujo agarrado às saias, um outro na cintura e um terceiro na barriga e mostrava um largo sorriso.

Atrás dela, o marido pôs a cabeça fora da porta. Ainda estava corado por causa da rapidez com que devia ter corrido para chegar à cabana antes de Angus.

– Foste tu que fizeste aquilo? – perguntou. – Soltaste a cilha para que ela caísse?

Era mais do que Angus conseguia aguentar.

– Jamais seria capaz de magoar uma mulher – respondeu num tom chocado. – Como pudeste pensar isso a meu respeito?

A irmã não disse nada, mas continuou a rir.

Angus não despregava os olhos de ambos. O que fizera alguma vez para os levar a pensar que era capaz de uma coisa tão vil? Não estava disposto a honrar a acusação do cunhado com uma resposta. Virou as costas e começou a afastar-se.

Só abrandou o passo quando ouviu a voz da irmã a chamá-lo.

– Tem pena de mim, Angus. A minha barriga não permite que te acompanhe.

Angus parou e fitou-a.

– Não tenho nada a dizer-te.

Quando acertou o passo com o dele, a irmã pousou-lhe a mão no ombro.

– Ou nos sentamos e descansamos ou vais ter de trazer esta criança ao mundo sozinho.

Ante aquelas palavras, Angus sentou-se numa pedra e Kenna sentou-se ao lado dele, tentando recuperar o fôlego e passando as mãos pela enorme barriga para a acalmar.

– Ele não foi mal-intencionado – comentou.

– O teu marido ou o Shamus?

– Foi, portanto, o Shamus que soltou a cilha. Já calculava.

– És a única. Os outros acham que fui eu o culpado.

– Não, não acham – disse ela.

– O teu marido...

– Sente uns ciúmes doidos de ti – retorquiu Kenna. – E sabe-lo bem.

– Mas por que razão? Tem uma casa, uma família, a melhor mulher do mundo.

– A casa não lhe pertence e só parece ser bom a fazer filhos. És tu quem dirige tudo.

– Sim, sou eu de quem troçam.

– Oh, Angus! – exclamou a irmã, encostando-se a ele. – Olha bem para ti. Tens sido um homem desde que eras miúdo e o nosso pai foi morto. Aos doze anos, tinhas recuperado tudo o que o nosso avô perdera ao jogo. As pessoas sempre te admiraram. Não há uma única rapariga num raio de cem quilómetros que não te queira, que não te implore.

– Duvido – replicou Angus, mas num tom mais brando.

– Não sejas tão mesquinho a ponto de te ressentires que as pessoas tenham oportunidade de troçarem de ti. Porque não te ris com elas?

– Elas pensam...

– Que fizeste com que a rapariga caísse do cavalo? Achas mesmo que alguém pensa isso a teu respeito?

– O teu marido... – Angus interrompeu-se, pois sabia perfeitamente que o cunhado não acreditava que tivesse sido ele a soltar a cilha do cavalo de alguém. Se Angus quisesse magoar fosse quem fosse, fá-lo-ia frente a frente.

– Gavin e todos os outros sabem, ou presumem, quem fez aquilo à pobre rapariga. Quanto ao que ela te disse... – Kenna sorriu. – Se ela tivesse dito o mesmo a qualquer outra pessoa, morrerias de riso. Gostava que lhe tivesses dito que tens uma irmã que adorava que ela lhe emprestasse as suas roupas.

– Gostavas de ter um vestido de seda? – perguntou num tom meigo.

A irmã era mais velha cinco anos e a pessoa que Angus mais amava no mundo. Para dizer a verdade, tinha mais do que algum ciúme em relação ao marido. Desde o casamento de Kenna que Angus se sentia como se estivesse sozinho.

– Se eu gostava de ter um vestido de seda? Daria uma criança por um.

– Se todas as que dás à luz forem tão más como o teu mais velho – riu Angus –, terias de trocar seis por um pano de seda.

– Ele é exatamente como tu quando tinhas a sua idade.

– Nem pensar!

– Pior ainda – riu a irmã. – E é a tua cara sem tirar nem pôr. Ou, pelo menos, é o que penso, pois há muito tempo que não te vejo o rosto – acrescentou, erguendo a mão e tocando-lhe na enorme barba. – Porque não deixas que ta corte?

Angus afastou-lhe a mão, beijando-lhe a palma.

– Mantém-me quente e é disso que preciso.

– Se casasses...

– Por favor, não comeces de novo com isso – pediu com uma tal tristeza na voz que ela cedeu.

– Muito bem – concordou. Levantou-se e Angus empurrou-lhe as costas para a ajudar. – Vou deixar-te em paz se prometeres não te enraiveceres com o riso de uma jovem. Ela venceu-te com a melhor arma de uma mulher, a língua.

– Há outros usos para a língua de uma mulher – retorquiu Angus, com um brilho nos olhos.

Kenna empinou a enorme barriga.

– Julgas que não conheço todos os usos da língua de uma mulher... E da de um homem?

– Não me fales assim! – censurou Angus, tapando os ouvidos. – És minha irmã!

– Está bem! – disse ela, sorrindo. – Continua a pensar que a tua irmã ainda é virgem, mas, por favor, não te deixes enraivecer com essa jovem.

– Não o farei – respondeu ele. – Agora, volta para junto do teu marido.

– E tu?

– Vou enfiar-me debaixo de uma rocha e dormir durante um ou dois dias.

– Ótimo! Talvez a urze te adoce o temperamento para que, quando uma rapariga te fizer uma observação, respondas na mesma moeda.

– Na mesma moeda – repetiu. – Não me esquecerei. E, agora, vai-te embora, antes que tenha de te servir de parteira.

1 Laird – A palavra, que se pronuncia [lerd], é uma corruptela de «lorde» nos dialetos do Norte da Escócia e refere-se a um proprietário de vastas terras. (N. da T.)

2 Tipo de tecido de lã, em xadrez, cujos padrões e cores são próprios de um determinado clã escocês. (N. da T.)


2

Angus conseguiu não pôr os olhos na sobrinha de Lawler durante toda a semana. Seguiu o conselho da irmã e fingiu troçar de si próprio juntamente com os outros, mas, quando virava as costas, o sorriso desaparecia-lhe dos lábios.

No começo tentou defender-se, mas isso apenas fazia com que as pessoas se rissem mais. Era como se tivessem esperado uma vida inteira para encontrarem algum motivo para troçar dele e estivessem a recuperar o tempo perdido.

Contudo, Angus sentia-se contente por ninguém – à exceção do cunhado – insinuar que fora ele a afrouxar a cilha e a fazer com que a jovem caísse. Ninguém o dizia, mas todos conheciam o culpado.

Angus só conseguiu estar a sós com Shamus três dias depois do incidente. Nessa altura, já tivera de responder mil vezes às mesmas perguntas. «Sim, sim», dissera sempre, esforçando-se por sorrir. «Fiquei petrificado com a beleza da rapariga.» «Não, nunca tinha visto nada parecido com ela, até então.» «Sim, tenho a certeza de que os anjos sorriram, quando ela nasceu.» «Oh, sim, o que ela disse foi muito inteligente. Nunca conheci uma rapariga tão esperta.»

De cada vez que Angus pisava o pátio, a cena repetia-se. Todos queriam falar com ele apenas sobre a forma como fitara a rapariga, à exceção do seu jovem primo Tam que não dirigia a palavra a Angus. Tentou por duas vezes que Tam fosse à caça com ele, mas o rapaz negou-se.

– Ela depende de mim para lhe segurar a égua e, portanto, monto um pónei e sigo-a. Sou um dos poucos homens em quem confia. Foi o que me disse e chamou-me homem.

Ao pronunciar as palavras, olhou Angus de uma maneira reveladora de que haviam deixado de ser amigos.

Quando Angus conseguiu apanhar Shamus por perto, sentiu vontade de lhe esmurrar a cara. Agarrou-o pelo colarinho enquanto ele estava numa das divisórias dos cavalos, encostou-o contra a parede e ameaçou-o com o punho. Contudo, Shamus não receava a dor, pois era algo com que havia convivido durante toda a vida. Quando eram miúdos, todos sabiam que tinham de ficar escondidos sempre que Shamus aparecia com um olho negro. O pai voltara a espancar o rapaz, porém, o pai tinha morrido e já não havia razão para que Shamus fizesse aos outros o que ele próprio havia sofrido, mas os velhos hábitos não desaparecem facilmente.

– Avança – incitou Shamus.

Não era tão alto como Angus, mas era mais velho e mais corpulento. Quando uma carroça de bois ficava enterrada na lama, era a robustez de Shamus que ajudava a puxá-la para fora.

Angus baixou o punho.

– Endoideceste para fazer aquilo à sobrinha de Lawler? Ela não deve ter contado o que aconteceu ou o tio teria chicoteado alguém. Há quanto tempo é que não te arrancam a pele das costas?

– Não há muito – respondeu Shamus com um encolher de ombros. – Um ou dois anos, mas sei que ele não faria nada. Odeia-a.

– Quem é que a odeia? – perguntou Angus.

– Lawler odeia a sobrinha.

Por um momento, Angus ficou sem fala. Como podia um homem odiar a própria sobrinha? Apesar de se queixar dos filhos da irmã, daria a vida por eles, embora fossem uns diabinhos.

– Estás a mentir.

– Se é o que achas, devias ouvir o que dizem por aí.

– Devia ser como tu e sentar-me no escuro a espiar as pessoas?

– Sei coisas, como o facto de o Lawler não a suportar.

– Nesse caso, devia mandá-la de volta para Londres, para que possa estar junto dos da sua espécie – retorquiu Angus, referindo-se à jovem como se ela fosse uma extraterrestre.

– Angus!

Ouviu a voz de Malcolm e, quando se voltou na direção dele, Shamus escapou-se. Para alguém com a sua corpulência, era capaz de se mover rapidamente quando necessário.

Depois disso, Angus deixou de ficar perturbado com o constante relato de todos sobre o dia em que fora humilhado pela jovem e passou a ficar à escuta. Se todos viviam sob o domínio e às expensas de um homem, impunha-se saber quais eram as suas intenções.

Todos conheciam a história ou, pelo menos, uma parte. Quando Lawler tinha a idade de Angus, ganhara ao laird de McTern, mediante o corte de um baralho de cartas, o castelo e as terras que o rodeavam. Mas o que ninguém sabia era que, visto Lawler ser o terceiro filho de um homem com poucas posses, não lhe cabia qualquer herança. O pai dissera-lhe que se optasse pelo clero lhe encontraria uma igreja onde pregar. Contudo, o que Lawler menos desejava na vida era divulgar o evangelho.

Ao propor ao velho e bêbado escocês que apostassem o seu castelo e as terras num jogo de cartas, Lawler tinha mentido e dito que era dono de uma propriedade em York. Se tivesse perdido a jogada, não teria como pagar a dívida, mas não perdera.

No dia seguinte, Lawler dirigiu-se a cavalo para norte, a fim de ver o que ganhara e, embora se tratasse de uma pequena propriedade, convinha-lhe. Tudo o que desejava na vida era caçar, pescar e jogar às cartas e por conseguinte a velha propriedade e os terrenos bastavam-lhe. Não tardou a descobrir que os McTern ainda consideravam o lugar como se lhes pertencesse e portanto faziam o trabalho e os escassos lucros iam parar a Lawler. De vez em quando, um dos escoceses fazia algo que ele considerava intolerável e mandava amarrar o homem a um poste para ser chicoteado, mas nunca enforcara ninguém.

Os anos passaram e Angus, o jovem que devia ter herdado a propriedade, cresceu. Lawler entregou-lhe a gestão das terras, pois ele parecia gostar da responsabilidade e adorar o trabalho tanto quanto Lawler o odiava.

Durante dias, Angus passou a ouvir mais e a impedir que a raiva lhe tapasse os ouvidos quanto ao que se passava à sua volta. Se Lawler não gostava da jovem, qual era o motivo? Ninguém parecia saber. Morag, que trabalhava no interior do castelo, afirmou que tinha ouvido muitas vezes Lawler a gritar com a rapariga, mas tudo se passava sempre à porta fechada, no interior das paredes de pedra e, por mais que pusesse o ouvido à escuta, nunca percebia o que diziam.

– Pobrezinha! Como é que alguém pode gritar com um anjo daqueles? – perguntou Morag, fazendo Angus rolar os olhos.

Angus não se via em parte alguma sempre que a sobrinha de Lawler ia andar a cavalo e todos notaram o facto. A égua parecia saber quando ela ia aparecer, pois começava a andar de um lado para o outro na divisória e assim que a égua erguia a pata da frente, Angus parecia evaporar-se. Enrolava-se na manta e dirigia-se às montanhas para se manter afastado dela.

Essa atitude provocava obviamente mais risos, mas Angus não confiava o suficiente em si próprio para a olhar sem perder o controlo. Imaginava que ficaria paralisado ou... não sabia o que faria se as pessoas voltassem a rir-se à sua custa.

No oitavo dia após Angus ter visto a sobrinha de Lawler, Malcolm entrou nos estábulos muito nervoso.

– Tens de ir atrás dela.

– De quem? – perguntou Angus.

Passara a noite toda nas montanhas e só tinha acordado havia uns minutos.

– Dela. Da sobrinha de Lawler. Tens de ir atrás dela.

– Preferia enfrentar sozinho todo o clã de Campbell do que segui-la. Além de que ela sabe cuidar de si.

– Não – retorquiu Malcom. – Ela saiu com o Shamus.

Angus parou uns momentos com um arreio nas mãos, mas depois pendurou-o numa cavilha da parede e continuou a andar.

– Porque faria tal coisa? Gosta dele?

– Não, seu estúpido. Foi andar a cavalo com ele a servir de guia, de protetor. O Tam está em casa doente, a vomitar as tripas, e ela percorreu o pátio com o olhar e disse que levaria Shamus na sua companhia. O que se podia fazer? Dizer-lhe que Shamus não era de confiança? Ele espancaria quem tivesse essa coragem.

– Ela é sobrinha de Lawler e Shamus teria receio de lhe fazer mal.

– Nesse caso, porque lhe afrouxou a cilha e a fez cair? Ela podia ter partido o pescoço.

– Não correrá perigo – garantiu Angus, franzindo o sobrolho. – O Shamus nunca magoa uma pessoa para além do que ela pode aguentar.

– Queres dizer que nunca mata ninguém. Sabes o que pode fazer a uma mulher se a apanhar sozinha? Angus, ele é três vezes maior que ela.

– Pede a outra pessoa que vá – disse Angus. – O Duncan ou... Já sei, diz ao meu cunhado Gavin que os siga. Terá mais alguma coisa para fazer, além de se deitar com a minha irmã.

– Ela ficará irritada se vir mais alguém por perto e, caso seja o Shamus a ver alguém, espancá-lo-á.

– Queres, então, que seja eu a correr o risco de levar com um pau por causa de uma rapariga que pensa o pior a meu respeito?

– Sim – respondeu Malcolm, sem delongas. – Podes montar um pónei e desaparecer nas montanhas. Podes observar sem seres visto. Mais ninguém conseguirá isso. E, se vires o Shamus a fazer algo que não deva, podes detê-lo.

– E como o faria? Pedindo-lhe que parasse? Talvez lhe deva pedir por favor.

Malcolm tinha menos trinta centímetros do que Angus e o dobro da sua idade, mas fitou-o de olhos semicerrados.

– Já te esmurrei as orelhas e posso voltar a fazê-lo.

A afirmação era tão absurda que Angus não conseguiu suster o riso.

– Está bem, mas vou manter-me afastado dela. Não acredito que o Shamus lhe faça mal. E devias mandar alguém prevenir o Tam para que não beba tudo o que o Shamus lhe der.

– Já o fiz esta manhã – replicou Malcom com uma expressão grave.

Angus deixou de sorrir. Pronunciara as palavras num tom de brincadeira ao sugerir que Shamus tinha envenenado o jovem Tam, mas talvez isso fosse verdade.

– Vou levar o Tarka – disse Angus, referindo-se ao seu pónei favorito que conseguiria percorrer facilmente o terreno rochoso e manter-se-ia longe do trilho que a jovem provavelmente percorreria com a sua elegante montada citadina.

Angus não demorou muito tempo a descobri-los. Ela seguia na frente, empertigada, de olhos postos no caminho regular e plano, e com um ar despreocupado. Atrás dela, Shamus montava um dos possantes cavalos de caça de Lawler com um ar aborrecido e meio adormecido. Não parecia minimamente interessado na jovem que cavalgava à sua frente.

Angus pensou em virar as costas e regressar. Se ela o visse, nem queria pensar no que lhe passaria pela cabeça. Que estava a segui-la? Manteve-se escondido no meio das rochas, sem lhes perder o trilho, como se fossem ladrões de gado, mas não notou nada de suspeito. Talvez alguém tivesse dito a Shamus que era do seu melhor interesse não fazer nada que a jovem pudesse contar ao tio. Talvez o tivessem julgado mal ao pensar que dera alguma coisa a beber a Tam para que passasse mal. Talvez...

Angus prestou mais atenção ao ver que a jovem parava e virava a cabeça, fazendo sinal a Shamus para que se aproximasse e a ajudasse a descer. Era difícil a uma mulher subir para a grande sela que se montava de lado e era ainda mais difícil descer sem ajuda.

Angus pensou que, caso Shamus pensasse fazer alguma coisa, aquele era o momento indicado. Desceu do pónei e moveu-se por entre as rochas, com o propósito de os observar. Ao perceber que, se Shamus tentasse fazer qualquer coisa à jovem, ele estava demasiado longe para o impedir, avançou furtivamente pela erva a fim de se aproximar mais. Rastejou, com os ramos duros e as rochas a rasparem-lhe as pernas nuas, mas era assim que, por vezes, perseguia um veado e por isso sabia mover-se sem ruído.

– Obrigada – ouviu-a agradecer quando Shamus a ajudou a desmontar. – Quero andar um pouco.

Agindo como um bom criado, Shamus assentiu com a cabeça e a jovem começou a andar, deixando as rédeas do cavalo ao seu cuidado. Não sabia bem porquê, mas Angus achou que o comportamento dela parecia suspeito. Era quase como se pretendesse escapar-se para qualquer lado e não quisesse ser vista. Iria encontrar-se com alguém? Era esse o motivo por que deixara o acompanhante com os dois cavalos e seguia caminho sozinha?

Angus tinha a certeza de que descobrira o motivo por detrás das discussões com o tio. Provavelmente, Lawler sabia que ela se encontrava em segredo com alguém e sentia-se irritado por essa razão.

Angus esgueirou-se por entre os arbustos a rastejar, como uma serpente, sem se mover com demasiada rapidez para não assustar um bando de aves e assim revelar que estava a segui-los. Não podia ser alguém do clã McTern, caso contrário ele saberia.

Por outro lado, desde que ela chegara, ninguém o tinha tratado como faziam dantes. Desde que ela o expusera à troça, ninguém viera dar-lhe conta das suas preocupações, nem relatar algo de que suspeitavam.

Moveu-se com lentidão e, ao trepar para uma pequena elevação, avistou o seu ridículo chapelinho. Nesse momento, ela inclinou-se e Angus teve a certeza de avistar mais alguém. Havia um lampejo de qualquer coisa branca... a camisa de um homem? Em seguida, avistou os braços dela a moverem-se. Tratava-se de um encontro amoroso e não era de admirar que Lawler se sentisse irritado com ela.

No instante seguinte, Angus ergueu-se. Estava a uns meros centímetros de distância dela e planeava usar a surpresa para confrontar o seu comportamento ilícito.

Agiu rapidamente. Ergueu-se acima dela e disse:

– Apanhei-os!

Porém, apenas a viu sentada num terreno de urze, com um pequeno bloco de esboços numa das mãos a desenhar um bando de codornizes, que fugiu de imediato ante a visão e o som de Angus.

– Você! – exclamou, levantando-se para o enfrentar. – Sua grande, feia e barbuda besta! Esteve a espiar-me! Shamus! – gritou. – Ajude-me.

Angus não pensou duas vezes, limitou-se a virar as costas e a correr para junto do pónei, com a cabeça a estalar devido à troça que se seguiria. Não aguentaria tal coisa! Poderia viver cem ou mil anos e seria aquela a recordação que ficaria dele. Seria conhecido como o homem que se esgueirara por entre os arbustos para espiar uma jovem inglesa enquanto ela desenhava esboços de aves.

Angus apressou-se a saltar para cima do pónei e regressou ao castelo o mais rapidamente possível. Talvez fosse preferível ir-se embora durante algum tempo, talvez um ano. Tinha algum dinheiro escondido nos estábulos. Pegaria nele e...

Percorrera já metade do caminho quando se deu conta de que ela também montara a cavalo e perseguia-o. A sua pujante égua venceria o pónei numa corrida em terreno plano, mas Angus conhecia caminhos secretos para conseguir chegar antes dela. Ao serpentear por atalhos cavados pelos alces, avistava-a de vez em quando mais abaixo e não pôde deixar de se surpreender com a velocidade a que ela cavalgava. Não tinha optado por tomar o trilho plano de volta, descia por uma estrada que fora construída havia muito tempo e Angus interrogou-se como a descobrira. Teria sido Tam a ensinar-lhe aquele caminho?

Arregalou os olhos de espanto ao vê-la saltar com a égua por cima de uma velha sebe e, um minuto depois, por cima de uma vala. Sabia mesmo cavalgar, independentemente de tudo o que pudesse dizer-se a seu respeito.

Angus estava tão maravilhado a observá-la que quase se esqueceu da necessidade de se apressar. Todavia, conduziu o pónei ao lado de um rio e através de valas e chegou ao castelo muito antes dela. Quando chegou ao lugar que tinha conhecido toda a sua vida, pensou duas vezes na sua decisão de fugir. Lutara contra ladrões de gado e passara a vida inteira a perseguir e a conviver com o perigo. Porque o assustaria tanto uma jovem a ponto de fugir da sua própria casa?

Quando ela voltasse, contar-lhe-ia a verdade, que Malcolm lhe tinha pedido que fosse atrás dela e que julgara que corria perigo ao ver a sua cabeça desaparecer por trás dos arbustos. Como poderia saber que ela se escapara para desenhar um bando de aves? Ninguém lhe dissera que era isso que fazia sempre que ia passear. Ou dissera? Agora que pensava no assunto, recordou-se que alguém tinha falado nisso. Mas como poderia lembrar-se de tudo o que fora dito a seu respeito?

A sobrinha de Lawler apareceu no pátio apenas uns minutos depois dele e, quando Angus viu o estado em que se encontrava a sua égua, decidiu ralhar-lhe por ter submetido o animal a tamanho esforço.

Quando a jovem parou ao seu lado, não se afastou. Passou a perna por cima do alto cabeçote da sela e deslizou para o solo, ficando à sua frente.

– Você é repugnante – insultou. – Você...

Interrompeu-se ao ver que Angus lhe sorria. Desta vez não permitiria que a beleza dela o fizesse perder o autodomínio.

– Você é desprezível! – gritou.

Ao ver que ele não desfazia o sorriso, com um balanço da bota de montar de sola dura deu-lhe um pontapé na canela. Angus dobrou-se de dor e ela ergueu a chibata para lhe atingir o ombro, mas ele desviou-se e o pequeno chicote só lhe tocou no pescoço. Angus levou a mão ao pescoço e, ao retirá-la ensanguentada, perdeu completamente o domínio de si. Atrás dela havia um enorme bebedouro em pedra para os cavalos. Sem pensar duas vezes, pegou-lhe ao colo e atirou-a para dentro dele.

A jovem foi ao fundo, o chapelinho saltou-lhe da cabeça, e ela veio à tona, cuspindo.

Angus colocou as mãos nas ancas e olhou à sua volta. Sabia que todos estavam a observar, de olhos arregalados no que se passava e esperava que desatassem a rir ante o ridículo espetáculo que ela proporcionava, mas ninguém o fez. Em vez disso, reinou o silêncio e ninguém olhou para ele. Angus virou a cabeça para um e outro lado, mas nem uma única pessoa o olhou de frente, nem sequer Malcolm, que saíra dos estábulos ao aperceber-se do silêncio.

– Oh, pobre querida! – exclamou Morag, dirigindo-se à jovem e ajudando-a a sair do bebedouro sujo dos cavalos. – Venha para dentro para lhe mudarmos a roupa e a secarmos.

Escorrendo água e já a tremer, a jovem passou junto de Angus sem o fitar. Com as roupas de seda ensopadas e o cabelo descaído sobre os ombros assemelhava-se a uma criança pequena e assustada e não à víbora que ele julgara que era.

Depois de dar um passo à frente dele, estacou.

– Não vou fazer segredo disto. O meu tio vai saber o que se passou.

Devido ao silêncio que reinava no pátio, as palavras não escaparam a ninguém e, dessa vez, quando Angus ergueu o rosto, tinha todos os olhos em cima dele. O que fizera ele? O castigo de Angus podia ser severo, desde chicoteado a banido, expulso dali para sempre. Tudo dependia do humor de Lawler.

Angus percebeu que a sua estupidez ao tentar chegar primeiro ao castelo que a jovem para, em seguida, a atirar para dentro do bebedouro ia mudar-lhe a vida.

Malcolm aproximou-se dele.

– Devias partir, rapaz. Abandona a terra dos McTern antes que ela lhe conte.

– Não, não posso fazê-lo – retorquiu Angus, endireitando os ombros e dirigindo-se ao castelo.

Ouviu o suster das respirações à sua volta. Não tencionava fugir. Aceitaria qualquer castigo que lhe fosse imposto. Se a jovem que tinha sido tratada daquela maneira fosse sua... o quê? Irmã? Se um homem tivesse feito tal coisa a uma parente chegada, era muito provável que o matasse.

Angus subiu as velhas escadas de madeira de acesso ao segundo andar do castelo. Em tempo de guerra, os degraus de madeira eram suprimidos para impedir a entrada do inimigo. Contudo, já há muito que não acontecia uma guerra em grande escala na zona e por conseguinte os degraus haviam-se tornado velhos e decrépitos.

O castelo era apenas uma grande torre retangular com um retângulo mais pequeno metido de lado a fim de sustentar a escada de pedra em espiral. Havia outras escadas no interior, mas só aquela ia da base ao topo e, no segundo piso, abria-se para o grande salão onde Lawler passava a maior parte do tempo com os seus comparsas, homens que entravam, saíam e pouco mais faziam além de comer e de beber o que quer que Lawler – e os escoceses – pudessem fornecer.

Quando Angus entrou no grande salão, a jovem, com Morag ao seu lado, encontrava-se de pé, na frente do tio. Este estava sentado a uma mesa retangular na companhia de dois homens e jogava às cartas. Lawler era um homem feio, com um grande nariz vermelho e derrames no rosto. Era obrigado a trocar de guarda-roupa todos os anos porque a barriga aumentava e as pernas encolhiam. Chegado aos cinquenta e muitos anos, tinha as pernas tão finas como rebentos de árvore e a barriga tão grande que parecia prestes a dar à luz.

– O que se passa? – inquiriu Lawler, após levantar os olhos das cartas.

Ao lado dele sentava-se William Ballister, um inglês ainda mais velho e mais feio do que Lawler. Eram os melhores amigos, o que significava que Ballister ficava até Lawler se cansar dele e o mandar embora, o que acontecia cerca de duas vezes por ano. No lado oposto, encontrava-se Phillip Alvoy, que era mais novo e mais bonito, mas conhecido pela sua maldade. Ninguém se atrevia a irritá-lo ou enfrentaria problemas com Lawler.

– Ele... ele... – começou a jovem, mas tremia tanto devido ao frio que tinha dificuldade em falar.

– A culpa é minha – disse Angus que avançou, ficando entre ela e o tio. – Estava a espiá-la e ela tinha todo o direito de fazer o que fez. Só eu estou em falta.

Lawler virou as cartas para baixo no que foi imitado pelos amigos e todos observaram interessados Angus e a jovem atrás dele.

– Conta-me o que aconteceu.

– Essa grande besta tem andado a seguir-me durante toda a semana – retorquiu a rapariga, irritada. – Há uns dias, afrouxou-me a sela e fez-me cair no meio das pedras. Calei-me porque não queria causar problemas, mas o que ele fez hoje foi intolerável. Seguiu-me quando saí a cavalo, escondeu-se no meio da erva e saltou em cima de mim quando eu estava a desenhar. Se o Shamus não se encontrasse presente para me proteger, não sei o que me faria. Depois, afastou-se a correr. Tendo em conta o cobarde que é, fugiu de mim e tive de regressar a toda a pressa. Quando aqui cheguei chicoteei-o com a minha chibata.

– Entendo – comentou Neville Lawler, olhando para Angus. – É por isso que tens o pescoço ensanguentado?

– Sim – anuiu Angus num tom rígido.

– Porque está encharcada? – perguntou Alvoy à sobrinha de Lawler enquanto sorvia um gole de vinho do Porto.

O castelo bem podia estar a cair aos bocados, mas a bebida era sempre de ótima qualidade.

– Ele.... – Interrompeu-se pois tremia de mais para conseguir falar.

– Atirei-a para dentro de um bebedouro de cavalos – completou Angus.

Mantinha-se de ombros erguidos, com as pernas afastadas e as mãos atrás das costas. Estava disposto a aceitar qualquer castigo que lhe fosse aplicado.

– Atiraste-a para dentro de um bebedouro de cavalos? – inquiriu Ballister num tom surpreendido.

– Sim. Atirei – respondeu Angus, sem desviar os olhos de Lawler.

No segundo seguinte, os três homens entreolharam-se e desataram à gargalhada.

– O melhor lugar para ela – disse Lawler, quase sufocado de riso.

– Oh! Quem me dera ter assistido! – comentou Alvoy. – Talvez possas repetir a proeza para observarmos.

– Como se fosse uma peça ou uma pantomima – acrescentou Ballister. – Um bisar.

– Que boa ideia! – aprovou Lawler.

– Não vai castigá-lo? – perguntou a sobrinha.

– Porque iria castigá-lo por uma coisa que há muito devia ter sido feita? – replicou o tio. – Devia ter pensado nisso.

A jovem virou costas e saiu da sala a correr, fazendo sinal a Morag para que se afastasse quando a criada tentou segui-la.

Após brindar Angus com um olhar acusador de que devia ter vergonha, Morag virou as costas e abandonou a sala num passo pesado. Os três homens continuaram a rir nas suas costas, batendo com os copos num brinde e felicitando Angus pelo que fizera.

Angus não conseguiu aguentar mais e saiu do salão, mas parou nas escadas. Quando ela saíra a correr, vira-lhe lágrimas nos olhos. Nunca em toda a sua vida fizera chorar uma mulher.

Ao ouvir um ruído, olhou para as escadas e pareceu-lhe ver a ponta de uma saia. Conhecia a fortaleza o suficiente para ter a certeza de que o quarto dela ficava no quarto piso, mas avistara-a acima dele. Para onde iria? Mal pensou na pergunta, soube a resposta. Dirigia-se ao telhado. Mas porquê? Já estava com tanto frio que toda ela tremia. Ocorreu-lhe o pensamento assustador de que ela se dirigia ao telhado para se atirar lá de cima. No momento seguinte, subiu os degraus dois a dois.

Quando chegou ao telhado, lá estava ela, próximo da beira, apenas um muro baixo de pedra a separá-la do pátio lá em baixo.

Ao ouvir a porta, a jovem virou-se, avistou-o e deixou descair os ombros.

– Veio até aqui vangloriar-se, exultar com o seu feito?

– Não – respondeu. – Vim até aqui para ver se estava bem.

– E que lhe interessa isso? Tratou-me de uma forma tão insuportável como o meu tio. Todos os escoceses me trataram bem, menos você. Você... – Acenou com a mão, como se não conseguisse pensar em qualquer coisa suficientemente má que se lhe aplicasse.

– Acho que devia descer e vestir roupas secas.

Angus avançava lentamente na sua direção. Caso ela fizesse um movimento brusco para saltar, estaria suficientemente próximo para a agarrar.

Ela não se mexeu, nem o olhou.

– Possivelmente, teve razão em atirar-me para um bebedouro de cavalos. Desejava que me tivesse atirado do cimo deste monte de pedras em ruínas. Eu própria deveria fazê-lo.

– O que poderia levá-la a essa atitude? – perguntou Angus, verdadeiramente assustado com as suas palavras. – Não irá para o céu se se suicidar.

– Para onde quer que vá, não será pior do que aqui.

– O que poderia ser tão mau, rapariga? – replicou num tom suave, sem querer assustá-la.

– Conhece os amigos do tio Neville, aqueles dois que estavam lá em baixo, o Alvoy e o Ballister?

– Sim.

– Diga-me o que acha deles.

Angus encontrava-se a poucos metros dela e sentiu-se descontrair. Conseguiria agarrá-la se ela tentasse saltar. Quanto à pergunta, não ia responder-lhe honestamente. Talvez Shamus tivesse razão e Lawler não gostasse da sobrinha, mas Angus sabia que ele não tinha a mesma opinião quanto aos seus desprezíveis amigos e que a jovem poderia repetir o que Angus dissesse.

– Vá lá – disse ela. – Pode dizer-me. Depois de tudo o que passámos hoje, pode ser sincero comigo. Gostaria de ter qualquer daqueles homens como seu amigo? Confiaria em algum deles?

– Não – respondeu cautelosamente. – Não posso dizer que sim, mas sou escocês. Desconfio de todos os ingleses.

Esperara distraí-la daquele interrogatório, mas ela não se deixou dissuadir.

– Acha-os inteligentes?

– Depende do que considera inteligentes. Ambos são astuciosos, disso não duvido. Dizem ao seu tio o que ele quer ouvir e dessa forma conseguem comida e cama de graça, sem precisarem de trabalhar.

Ela assentiu com a cabeça, como se concordasse.

– E quanto à bondade? A uma companhia agradável?

– Não posso responder que o sejam para mim, mas o seu tio gosta bastante deles. – Ignorava se se tratava da raiva que a tomava, mas ela deixara de tremer, embora as roupas continuassem a pingar. – Não me cabe dar-lhe conselhos, mas, se estivesse no seu lugar, afastava-me desses dois homens. Não me parece que sejam uma companhia agradável para uma jovem.

– O que será um problema, pois o meu tio diz que devo casar-me com um deles.

Angus fitou-a, chocado, incapaz de pronunciar uma palavra. Não conseguia imaginá-la com qualquer daqueles dois homens horríveis que usavam o tio.

A jovem manteve-se de costas voltadas e os olhos fixos no pátio, lá em baixo.

– Daqui a quatro dias faço dezoito anos e a guarda do meu tio acabará. Planeia casar-me com um daqueles homens um minuto após a meia-noite e depois o meu dote pertencerá ao meu marido, que assinou um contrato para o devolver ao meu tio.

Angus esboçou um esgar. Era uma situação má, mas não podia fazer nada para a contrariar.

– Mas que problema, rapariga.

Ela virou-se e fitou-o com uma expressão de súplica nos olhos azuis.

– Ajude-me a fugir. Por favor.

– Não posso – disse Angus, recuando um passo. – Esta é a minha casa. Este é o meu povo.

– Eu sei. É por isso que lhe peço ajuda. As pessoas contaram-me como dependem de si. É o McTern dos McTern, não é verdade?

A forma como ela pronunciou as palavras fez com que desejasse defender-se.

– O meu avô era o laird deste clã e algumas pessoas ainda se lembram disso. O título de laird pode já não ter propriedades, mas sou responsável pelos McTern.

– Que romântico! – exclamou, avançando um passo na sua direção. – Isso significa que, se eu fosse uma McTern e fosse forçada a casar-me com um homem com o dobro da minha idade, entraria em cena e dar-me-ia a sua ajuda? – Estava a ser sarcástica, mas ao observar-lhe o rosto entendeu a verdade. – Ajudar-me-ia, não é verdade?

– Sentiria sem dúvida essa obrigação, mas isso nunca me aconteceu em toda a minha vida. Uma rapariga casa-se com quem quer. É essa a lei escocesa.

– É também a lei inglesa, mas possuo a maldição de ter um dote e um tio que precisa de dinheiro, além de não ter amigos nem parentes que me ajudem. E se lhe pagar? – acrescentou, respirando fundo.

– Não poderia ir contra o seu tio. É ele o dono desta propriedade.

Ela avançou um passo e ele recuou outro.

– E se o meu tio decidisse casar-se com uma bela rapariga da sua tribo?

– Clã – emendou-a, sem conseguir reprimir um sorriso.

– Muito bem, do seu clã. E se o meu tio decidisse que queria casar-se com... a sua irmã?

– Ela já é casada e tem três crianças.

– Tem três filhos, mas se não os tivesse e o tio Neville quisesse casar-se com ela, o que faria?

Não disse o que pensava e que era que Lawler jamais se casaria com ela. Poderia torná-la sua amante, mas o homem nunca mostrara qualquer interesse por mulheres. Todos o tinham ouvido dizer que preferia um bom cavalo a qualquer mulher.

A jovem continuava a fitá-lo com aqueles profundos olhos azuis, à espera da sua resposta.

– Teria de mandá-la para longe – disse.

– Faria isso por ela?

– Teria de fazê-lo, não teria? O seu tio é muitas coisas, mas não me parece que dê um bom marido.

Nesse momento espicaçava-a, mas ela não sorriu.

– Mas não a mim? – replicou. – Por conseguinte, o que ouvi é verdade, que ajudaria outra mulher, mas a mim não me ajudará. Porquê? Porque não sou sua parente? Ou é a mim que odeia? E, nesse caso, qual é o motivo? Porque lhe fiz frente? Bem vejo a maneira como as outras raparigas olham para si. Recusa ajudar-me porque não desmaio ao vê-lo?

Enquanto falava, avançou na sua direção e ele recuou, tendo dificuldade em dominar o riso que lhe subia à garganta.

– Está a rir-se de mim! – exclamou ela. – Divertiu-se a fazer-me cair, gostou de humilhar-me na frente de todos, não foi? Sabe o que você é? Um bruto. É um bruto e odeio-o! Odeio-o verdadeiramente do fundo do coração!

Pronunciadas aquelas palavras, voltou a servir-se da bota de sola dura e aplicou-lhe um pontapé exatamente no mesmo sítio onde já o tinha atingido.

Angus não conseguiu dominar-se. Talvez o facto se devesse ao alívio de não ter de se esconder para sempre envergonhado, após ser apanhado a «espiá-la», ou ao alívio de não ser castigado por a ter atirado para dentro de água fria. Ou talvez se tratasse apenas da vertigem por se encontrar tão perto daquela bonita jovem com o cabelo molhado a cair-lhe de uma forma encantadora pelo pescoço, e desatou a rir. Atirou para trás das costas dias de raiva, de medo e de vergonha, encostou-se à parede do telhado e riu.

– Você é desprezível! – exclamou ela, desdenhosa, enquanto atravessava a porta de regresso ao castelo.

Angus continuou a rir mesmo quando ouviu o fecho da porta a ser trancada por dentro.


3

Edilean Talbot encostou-se à fria parede de pedra do quarto e olhou através da estreita janela sem vidros para o pátio. Lá em baixo, todas as pessoas pareciam felizes e livres. Mas a verdade é que tinham famílias, amigos e motivos de alegria. Viu um homem que agarrava num menino e o atirava ao ar e conseguiu ouvir o riso da criança quatro andares acima.

Virou-se e encostou-se à parede e foi deslizando até se sentar no velho soalho de madeira. «Faltam apenas três dias», pensou. Dali a três dias estaria casada com um homem repulsivo. Os «amigos» do tio haviam estabelecido um pacto com ele de que não fariam qualquer esforço para a conquistar. Não haveria namoro, flores, nem cartas ou palavras em privado. No dia em que ela fizesse dezoito anos, seria interrogada pelo reverendo sobre o homem que escolhera e deveria dizer de quem se tratava.

Edilean sabia que, se acreditasse na concretização daquele casamento, se atiraria do telhado sem hesitar.

O pai, um militar reformado, soubera que ia morrer quando a sua única filha ainda era jovem e não se poupara a esforços para lhe garantir o futuro. Não fora culpa sua que isso não bastasse. Passara longas horas a elaborar o que havia julgado tratar-se de um testamento à prova de fogo. Tudo o que possuía deveria ser vendido e convertido em ouro, que deveria ser entregue à filha quando ela fizesse dezoito anos. Escrevera que ela deveria casar com um homem da sua própria escolha. Sabia que, se ela casasse, o domínio da propriedade reverteria para o marido, mas sentia-se confiante de que a filha escolheria um homem que não lhe desperdiçasse a herança. A falha do plano residiu em haver subestimado o único parente vivo da jovem, o irmão da sua falecida mãe, que seria seu tutor até ela cumprir os dezoito anos.

O pai de Edilean só tinha visto Neville Lawler uma ou duas vezes, mas não o conhecia verdadeiramente. Lawler garantira ao moribundo que tomaria conta de Edilean depois de ela acabar os estudos e que cumpriria escrupulosamente a sua vontade. Fora mesmo ao ponto de assinar um documento perante testemunhas, jurando manter o testamento. O testamento do pai de Edilean dizia ainda que, caso a filha morresse antes dos dezoito anos, o ouro iria para obras de caridade.

Na opinião de Neville Lawler, ele estava a seguir o testamento tal como fora escrito. Quando fizesse dezoito anos, Edilean teria de escolher entre dois homens e casaria com um deles sem qualquer demora.

Nem Edilean ou o pai haviam imaginado que existisse um homem tão ganancioso e desprovido de moral como Neville Lawler.

Nesse momento, Edilean sabia que lhe restava uma única esperança e que a mesma provinha do homem que amava: James Harcourt. Conhecera James por intermédio de uma companheira de estudos. A seguir à morte do pai e à venda da casa, Edilean tinha de ficar em casa de amigos na altura das férias. Todos apreciavam o seu sentido de humor e, dado que a sua beleza atraía a presença de jovens nas casas em que se hospedava, convites nunca lhe faltavam.

Porém, de entre todos os homens que, habitualmente, se comportavam como idiotas por sua causa, apenas James Harcourt lhe despertara interesse. Era alto, de ombros largos, louro e bonito. O avô tinha feito fortuna com um negócio qualquer – James mostrava-se vago em relação a pormenores – e era um gentleman por caráter e não por ascendência. Edilean não tardou a descobrir que James era sensível quanto ao seu passado e por isso fez-lhe poucas perguntas.

James era primo em segundo grau de uma das suas colegas de escola, que por sinal não lhe agradava particularmente, mas mesmo assim Edilean frequentava muitas vezes a casa dela na esperança de encontrar James.

De início, ele não lhe prestou atenção. Aparecia nas festas e nos lanches, mas mantinha-se sentado em silêncio, brincando com as rendas do pulso, raramente olhando para as pessoas presentes.

Aquela falta de atenção constituía uma novidade para Edilean. Desde criança que lhe tinham dito que era bonita e, portanto, estava mais habituada a homens como aquele escocês barbudo que a fitara boquiaberto do que a homens que nem sequer se dignavam olhá-la. A distração de James intrigava-a. Era um alívio que ele não a observasse de olhos arregalados e brilhantes. Na verdade, aquele desinteresse levou-a a fazer coisas para que reparasse nela.

Edilean tinha uma boa voz, tocava bem piano e habitualmente tocava e cantava depois das refeições. Contudo, James bocejava e quase adormecia.

Um dia, Edilean sugeriu que todos fossem até ao jardim e fizessem um esboço, pois desenhava bem. Mais tarde, todos disseram que o dela era, sem dúvida, o melhor, mas James mal o olhou.

Encomendou vestidos novos esperançada que lhe despertassem a atenção, mas mesmo quando lhe perguntou se ele gostava da guarnição junto ao cavado decote de um vestido ele apenas sorriu delicadamente.

Contudo, uma noite, estavam a jogar whist3 e a amiga mostrou-se aborrecida por perder sucessivamente.

– Tenho a certeza de que ganharás a próxima mão – disse Edilean, enquanto recolhia os ganhos da mesa.

– Para ti é fácil. Podes dar-te ao luxo de perderes o que quiseres.

Quando se procedeu à distribuição de cartas seguinte, James comentou:

– Julguei que estava em casa da minha prima por não ter onde ficar.

– É verdade – replicou Edilean, encantada por James lhe dirigir a palavra. – Antes de morrer, o meu pai vendeu tudo e deixou-me os rendimentos.

– Ela quer dizer que o pai converteu tudo em ouro e que Edilean o recebe quando fizer dezoito anos.

– Já os tem? – perguntou James, sem erguer os olhos.

A partir de então, James mostrou-se mais atento. Edilean não era estúpida; sabia que fora o dote o que o levara a mudar de opinião, mas também era realista. Para viver bem, uma pessoa precisava de dinheiro e notara algumas beiras puídas nos coletes de James. Pelos vistos, o dinheiro que o avô lhe deixara já havia desaparecido.

Fosse qual fosse o motivo que finalmente o levara a prestar-lhe atenção, valia a pena. Seguiram-se três semanas paradisíacas. James aparecia diariamente na casa da amiga em Londres e cantava e tocava piano com Edilean. Os seus duetos tornaram-se famosos no círculo de amigos. James posava para que ela fizesse o seu esboço e não se poupava a elogios quanto aos seus desenhos.

Talvez o dote tivesse sido o que levara James a prestar-lhe atenção, mas foi o seu mútuo interesse pela arte e pela música o motivo para que começassem a apaixonar-se.

Na primeira vez que ele a beijou, Edilean julgou que cairia no meio da relva e se lhe entregaria.

– Agora, não – sussurrou James. – Temos de esperar até seres minha e só minha.

– Sim – anuiu ela no mesmo tom. Estava tão apaixonada que faria tudo o que ele lhe pedisse.

Quando regressou ao colégio para o último semestre, Edilean escrevia-lhe diariamente. James respondia, não todos os dias mas com frequência e as suas cartas eram divertidas, interessantes e plenas de amor por ela. Dizia-lhe que ansiava vê-la de novo e que todas as noites, antes de adormecer, beijava o retrato em miniatura que ela lhe dera.

Edilean apertava as cartas de James de encontro ao peito, por vezes adormecia com elas, e contava os dias até ao final do semestre, quando ela e James pudessem casar-se.

Durante o namoro, Edilean não pensara uma única vez no seu tio Neville. Sabia que, legalmente, era o seu tutor e tinha-o visto uma vez em criança, mas nunca recebera uma palavra dele. Pouco sabia a seu respeito, exceto que vivia num castelo, na longínqua Escócia.

– Ele é um gentleman – dizia o pai. – Portanto, limita-se a caçar e a comer.

Aos olhos de Edilean isso parecia muito romântico e pensou que, um dia, ela e o seu marido James o visitariam.

Porém, uma noite, uma das professoras entrou no seu quarto e acordou-a.

– Tem de se ir embora – declarou.

– O que quer dizer? – perguntou Edilean, esfregando os olhos. Via a Lua através da janela e ainda era de noite.

– O seu tio veio buscá-la e vai partir com ele. Vista-se depressa. Ele diz para levar apenas o que tem no corpo e mais nada. Mandar-lhe-emos a sua roupa.

– O meu tio? – inquiriu Edilean, confusa e ensonada. – Mas o meu tio vive na Escócia.

– Sim, é verdade – anuiu a professora, exasperada. – E veio da Escócia para a levar com ele.

– Mas as aulas ainda não acabaram.

– Edilean! Levante-se! O seu tio está à espera e tem um temperamento violento. Gritou com a diretora. Quer que se vista e o acompanhe, já!

A professora puxou os cobertores para trás e Edilean saiu da cama, mas não compreendia o que se passava. Se outra pessoa tivesse vindo procurá-la, pensaria que o tio morrera, mas não era esse o caso e ele era o seu único parente, portanto, para quê aquela pressa?

A professora ajudou-a a vestir-se com a roupa mais quente.

– A Escócia é fria, por isso escolha as lãs mais pesadas.

– Mas preciso de levar... – começou Edilean.

– Não! Eu mando-lhe tudo, os seus livros, a sua roupa, tudo. Ele está à espera.

Apesar da advertência da professora, conseguiu meter o pacote das cartas de James num bolso das dobras da saia.

Depois de se vestir, Edilean sentiu-se cheia de expectativa. O tio estava tão impaciente por a ter com ele que a levava para a Escócia antes do fim das aulas! Edilean lamentou não poder despedir-se das amigas e das suas professoras favoritas, mas o entusiasmo superou essa tristeza.

«Escócia!», pensou. Edilean nunca tinha viajado muito. Vivera sempre em Londres com o pai, frequentava a escola em Hampshire e visitara as casas de campo de algumas das amigas. Contudo, nunca ultrapassara as fronteiras de Inglaterra.

O tio estava sentado no gabinete da diretora, a comer pão com mel e a beber chá. Quando Edilean entrou, examinou-a de alto a baixo com desinteresse e voltou a concentrar-se na comida. Aproximou-se para o beijar, mas ele desviou a cara com uma expressão que a fez pensar que se sentia horrorizado com o seu toque. Não se importou, pois ficou um tanto repugnada com a sua aparência. Tinha uma cara rubicunda, a pele áspera e olhos semelhantes aos de um pequeno animal.

Enquanto esperava que ele acabasse de comer – não lhe ofereceu nada, nem sequer lhe dirigiu a palavra –, duas das professoras esforçavam-se freneticamente por empacotar o máximo dos pertences de Edilean.

Lá fora, uma velha e pesada carruagem esperava-os e a diretora disse a Edilean que haviam conseguido embalar a maior parte das suas roupas e que as mesmas se encontravam na mala amarrada nas traseiras da carruagem.

– Os livros terão de esperar – disse a professora, quando partiram.

Mal Edilean se viu na carruagem com o tio perguntou-lhe porque tinha ido buscá-la.

Ele fitou-a como se a achasse pouco inteligente e respondeu-lhe que estava perto de fazer dezoito anos.

– Por que outro motivo viria buscar-te?

Edilean pensou em alguns comentários bruscos que poderia fazer, mas manteve-se calada. Tinha a sensação que seria preferível fazer todos os esforços para se dar bem com o tio e não para o hostilizar.

Levaram quase uma semana a chegar à casa de pedra dele. Paravam todas as noites numa estalagem para comerem uma refeição quente e dormirem. Algumas das estalagens eram agradáveis, mas outras eram horríveis. Na primeira noite, Edilean pediu que lhe trouxessem uma banheira ao quarto e provocara tanto riso que nunca mais voltou a fazê-lo. Contentou-se com a água que conseguia obter de qualquer criada com ar simpático.

Quando chegaram a casa do tio na Escócia, a tarde ia adiantada e Edilean sentia-se morta de cansaço. Tinha o cabelo agarrado ao rosto e estava tão suja que se coçava. Olhou através da janela da carruagem, avistou o alto, estreito e velho «castelo», e apeteceu-lhe chorar. Não se tratava de um castelo como imaginara, mas de uma torre feita de pedras que pareciam querer regressar à terra de onde tinham saído.

Durante a longa viagem o tio não lhe tinha dirigido uma dúzia de palavras e nem uma só vez se interessara por saber se ela estava confortável. Quando chegaram à Escócia, ela tinha a certeza que aquilo que o tio desejava dela não devia ser coisa boa.

Saiu da carruagem para um pátio de pedra onde parecia haver uma centena de pessoas, fitando-a com curiosidade. Todas usavam roupas de lã tecidas num padrão de quadrados e de linhas. As mulheres vestiam saias ásperas presas na cintura com cintos grossos de cabedal e os homens usavam calças de lã e camisas compridas.

O que agradou a Edilean foi o facto de alguns lhe sorrirem. Não lhe esboçavam um sorriso de orelha a orelha, mas conseguia olhá-los nos olhos. Sabia que devia estar com um aspeto horrível, mas, pelos vistos, eles não se importavam. Um homem mais velho avançou e estendeu-lhe a mão para a ajudar a descer os degraus da carruagem. Teve a sensação de que há um ano que não recebia um gesto tão terno. Virou-se e sorriu a todos.

– Obrigada – agradeceu em voz alta. – Obrigada pela vossa receção.

Várias pessoas pareceram embaraçadas com as suas palavras, mas outras alargaram o sorriso.

O tio dirigiu-se aos velhos degraus de madeira que conduziam ao primeiro andar da torre, deixando Edilean entregue a si própria. Nesse momento, ela percebeu que aquela era a única oportunidade de causar uma boa primeira impressão. Sempre fora de trato simpático e sentiu que aquelas pessoas estavam abertas à cordialidade. Em vez de seguir o tio até ao interior, percorreu o pátio e apresentou-se como Edilean Talbot. Admirou os bebés e elogiou os enormes alfinetes de peito que as mulheres usavam para segurar as mantas nos ombros. Entrou na estrebaria e conversou sobre cavalos com um homem maravilhoso chamado Malcolm.

– Acho que este lhe agradará – disse ele com um sotaque tão pronunciado que Edilean teve dificuldade em compreendê-lo.

Seguiu-o até ao fundo do estábulo e avistou Marmy, a sua égua cinzenta malhada. Edilean não conseguiu evitar as lágrimas ao acariciar o focinho do animal. A égua era uma constante na sua vida. Quando andava na escola, Marmy encontrava-se alojada perto e, sempre que ia visitar alguém, o animal era mandado com antecedência para que Edilean fosse na sua própria montada.

– Ela está contente por vê-la – disse Malcolm.

– E eu por vê-la a ela. Estamos juntas desde os meus doze anos. Ela gosta de aveia.

– Gosta mesmo.

Edilean passou alguns minutos a falar com o homem, obrigando-o a repetir coisas que não percebia e, por fim, entrou na torre.

O facto de o tio ter mandado trazer a sua égua para a Escócia tornava-o um pouco mais simpático e queria agradecer-lhe. Não o viu em lado algum, mas estava presente uma criada, uma mulher baixa chamada Morag, que conduziu Edilean quase até ao topo da torre e lhe mostrou o quarto frio e austero que lhe pertenceria. Edilean sentiu-se chocada com aquela fealdade, mas não deixou que o rosto transparecesse o que sentia quando se voltou para Morag e lhe agradeceu a ajuda.

Durante uns dias, Edilean quase não saiu do quarto. Morag zelou para que ela tivesse comida, água e o indispensável, mas Edilean precisava de descansar e de se preparar para o que quer que o tio tivesse planeado a seu respeito. A intuição segredava-lhe que não seria nada de bom.

Quando ele, por fim, a mandou chamar, foi pior do que pensara. O tio trancou a pesada porta atrás deles para que ninguém pudesse escutá-los e depois sentou-se entre dois homens que lhe causaram repulsa. Um era velho e feio; o outro era novo, mas tinha olhos de cão raivoso. O tio disse-lhe que, no dia do seu aniversário, um minuto após a meia-noite, teria de se casar com um daqueles homens.

– Tens de escolher um deles.

A forma como pronunciou as palavras deu a sensação de que o tio achava ter dito o maior gracejo do mundo.

– Lamento, mas não posso casar-me com nenhum deles, pois já estou comprometida – respondeu Edilean delicadamente.

Os três homens fitaram-na como se fosse a primeira vez que ouviam aquela palavra.

– Noiva – disse Edilean, desta vez num tom mais audível.

Não era exatamente verdade, James ainda não a tinha pedido em casamento, mas sabia que o faria.

– Esse noivado está desfeito – determinou finalmente o tio. – Tens de te casar com um destes homens. Queres escolher já?

– Não – respondeu Edilean, ao mesmo tempo que recuava.

– Nesse caso, esperaremos – decidiu o tio, virando as costas como se colocasse ponto final na questão.

– Desculpe, tio! – exclamou a jovem. – Não me vou casar com nenhum desses... – Fitou-os de alto a baixo com toda a repulsa que a invadia e baixou a voz. – No testamento do meu pai consta que posso casar com um homem da minha escolha e não vou certamente escolher nenhum desses... homens.

– Farás o que te disser – retorquiu o tio, erguendo o braço para a mandar embora.

– Não o farei! – gritou Edilean.

Passara a maior parte da vida em colégios internos e estava farta de que as pessoas lhe dissessem quando e como devia fazer as coisas.

– Farás – insistiu Neville Lawler. – E, se tentares desobedecer, tornar-te-ei a vida num tal inferno que desejarás nunca ter nascido. E, se falares disto a qualquer desses escoceses intrometidos, vais arrepender-te. Agora sai da minha vista!

Os dois homens que se encontravam ao lado dele lançaram um olhar triunfante a Edilean. O mais novo mirou-a de alto a baixo com uma expressão demonstrativa do que desejava dela.

Virou as costas e abandonou a sala a correr.

Depois desse dia, ficou declarada a guerra entre ela e o tio. Edilean escreveu uma carta a James a contar-lhe as circunstâncias horríveis em que se encontrava. Contudo, o tio tirou a carta a Morag que Edilean lhe dera para meter no correio e nessa noite leu-a com grande encenação na presença dos dois homens, Ballister e Alvoy. Em seguida, deitou-a na lareira.

– É melhor que te conformes com o teu destino – disse o tio. – Estás aqui e aqui ficarás. O ouro que o teu pai deixou vai-me ser enviado dois dias antes do teu aniversário. Nunca sairá daqui. Quanto a ti, farás o que o teu marido quiser que faças.

As palavras provocaram sonoras gargalhadas nos três homens.

Edilean passou o resto do dia no quarto e percebeu que só a ela competia salvar-se.

Quando Morag lhe trouxe o jantar numa bandeja, Edilean certificou-se que a bondosa mulher a via chorar.

– Oh, menina, o que a atormenta?

– Discuti com o homem que amo – respondeu Edilean. – Escrevi-lhe uma carta a pedir desculpa, mas o meu tio diz que ele não merece tanta preocupação e rasgou a minha carta.

Edilean observava Morag e notou que o sangue lhe afluía ao pescoço. Pelos vistos, a criada sentia-se um tanto culpada por ter deixado que apanhassem a carta que lhe fora confiada.

– Escreva-lhe outra vez e arranjarei maneira de que a carta chegue a Londres – disse Morag.

– Não deixará que o meu tio a veja?

– Confie em mim. Não me meto entre namorados. Também já fui nova.

– E aposto que teve muitos namorados.

– Nesse tempo, o laird gostava de mim, mas casou-se com outra – confessou Morag, sorrindo.

– O laird?

– O chefe.

– Oh, entendo! – exclamou Edilean, mas estava demasiado ocupada a escrever a sua carta a James para ouvir devidamente.

Uma das coisas em que tinha reparado quando o tio lera a primeira carta em voz alta, fora que a mesma era demasiado dramática, demasiado cheia de perigo e de avisos. A sua carta seguinte seria mais calma, limitada a uma exposição dos factos, e dizendo a James tudo o que sabia, incluindo o que o tio lhe contara sobre o ouro que viria para a Escócia.

Selou a carta e entregou-a a Morag, rezando para que a mulher não a traísse e a entregasse ao tio. Ao ver que o tio não lhe mencionava nada sobre a carta, esperou que tivesse chegado ao seu destino.

Além de pedir ajuda a James, Edilean decidiu tentar chamar o tio à razão. Discutiu com ele durante dias a fio e não tardou a perceber até onde podia ir antes que o tio ficasse tão exasperado que lhe erguesse a mão. Não lhe bateu, mas só porque ela aprendeu a desviar-se e a fugir rapidamente.

Fora da torre, ou «fortaleza» como soube que era chamada, os escoceses tratavam-na com muita simpatia. Andava diariamente a cavalo. No primeiro dia, tentou fugir, planeando cavalgar até Londres sozinha, mas o tio perseguiu-a. Apesar de ser gordo e de raramente se mexer, era um exímio cavaleiro. Montado no enorme cavalo de caça como se tivesse nascido em cima dele, segurou as rédeas do dela e obrigou-a a parar.

– Se voltares a repetir a graça, mando abater a tua égua – ameaçou e Edilean não duvidou de que ele falava a sério.

Durante semanas, portou-se bem e aguardou. Mantinha discussões com o tio e, como ele tinha sempre o cuidado de trancar as portas, Edilean ficou com a impressão de que sabia que, se ela pedisse ajuda aos escoceses, talvez a obtivesse.

Tam, um rapaz com cerca de quinze anos, tinha a incumbência de a ajudar a montar e a desmontar todos os dias e, após a sua tentativa de fuga, começou a segui-la num pónei. Porém, Edilean sabia que ele não podia ajudá-la, pois era demasiado jovem e inexperiente.

Contudo, por vezes, avistava um outro escocês ao fundo e ele parecia-lhe suficientemente forte para poder ajudar. Ignorava o que iria precisar, mas teria de escapar fosse como fosse e tencionava levar com ela o ouro do pai quando o fizesse.

O homem chamava-se Shamus e ela notou a forma como os outros abriam caminho à sua passagem. Para se afastar do tio, precisaria de alguém como ele.

À medida que os dias corriam, deixou de discutir com o tio e começou em vez disso a fazer-lhe perguntas. O que ela queria saber era quando o ouro chegaria e como seria transportado. O tio não se deixou iludir com o interrogatório e advertiu-a que se mantivesse longe dele.

Passaram vários dias e continuou sem ter notícias de James. Enganara-se a respeito dele? Ele não a desejava, nem ao dote? Limitar-se-ia a encolher os ombros e a deixá-la partir?

Pensava estar no auge da depressão quando um homem, que nunca tinha visto antes, tão alto e robusto como James, mas com farto cabelo negro que não apertava atrás e uma barba que parecia não ter sido cortada durante toda a vida, afrouxou a cilha da sua égua e fê-la aterrar em cima das pedras. A sua vida era já suficientemente difícil, não precisava de um homem que lhe pregasse partidas daquelas? Examinou o tamanho curto da sua roupa ousada – algo que nunca tinha visto antes – e atirou-lhe algumas observações cortantes. Ficou satisfeita quando, ao afastar-se, todos se puseram a troçar dele.

Todavia, mais tarde, sentiu-se irritada com o que o homem fizera, mas não o denunciou ao tio. Gostava dos escoceses e não queria traí-los. O facto de haver uma maçã podre não significava que os outros também o fossem. Além disso, todos a quem falou lhe disseram quem era o homem e que ele jamais lhe faria mal. Não diziam quem lhe afrouxara a cilha, apenas que não tinha sido o homem barbudo.

Durante dias, a vida de Edilean obedeceu à rotina que desenvolvera. Contudo, a cada dia que passava, sentia-se mais nervosa e assustada enquanto aguardava uma palavra de James. Teria ele recebido a carta? Talvez, nessa altura, estivesse em França e a carta o esperasse em Inglaterra. Talvez, quando a recebesse, já estivesse casada.

Quando só faltavam quatro dias para o seu aniversário e continuava sem notícias, Edilean sentia-se tão nervosa que quase gritava ao mínimo ruído. Morag perguntou-lhe o que se passava, mas Edilean não podia dizer-lhe.

Sempre que ia cavalgar, Shamus era a sua escolta, o que lhe agradava. Talvez pudesse falar com ele e contar-lhe... Não sabia o que podia contar-lhe. Tinha a certeza de que ele poderia tirá-la dali, mas e depois? Não tinha parentes para onde ir, as amigas ainda se encontravam na escola e eram demasiado jovens para a ajudarem.

Num dia em que se encontrava junto a uns arbustos a desenhar, como fazia diariamente, quase morreu de susto quando o homem barbudo saltou em cima dela. Quando ele gritou: «Apanhei-os!», Edilean interrogou-se como não caíra para o lado nesse momento. Pensou que ele queria dizer que o tio descobrira que ela escrevera uma carta a James.

Depois de ter saltado em cima dela e gritado, o homem fugiu como se tivesse cinco anos. Edilean chamara Shamus e ele apareceu a correr, mas apenas a tempo de ver o homem a desaparecer no meio dos arbustos.

– É o homem que me fez cair do cavalo – acusou.

– Ah, sim! É um verdadeiro terror com as mulheres. Se fosse a si, não me aproximava demasiado dele. Tem um parafuso a menos, se é que me entende.

– Onde é que ele vai?

– Vai para a fortaleza para contar a todos como ficou assustada quando saltou sobre si. Quer que eles trocem de si.

– Ai quer?

Desatou a correr na direção da égua, com Shamus atrás dela. Ele ergueu-a facilmente para cima da sela e Edilean partiu, usando trilhos que convencera Tam a mostrar-lhe. O jovem recebera ordens para se manter na estrada, mas Edilean sorrira-lhe e persuadira-o a mostrar-lhe os caminhos mais secretos.

Quando regressou à fortaleza, o homem já tinha chegado e ela ficou contente por ninguém estar a troçar por ter ouvido falar do susto que apanhara quando ele saltara do meio dos arbustos. Desmontou e foi como se semanas de frustração e de raiva se soltassem do seu íntimo e as despejasse em cima dele. Estava tão furiosa que lhe faltaram as palavras, mas deu-lhe um violento pontapé na canela e depois chicoteou-o com a chibata. Tencionara atingi-lo no braço que estava tapado por uma camisa grossa, mas ele dobrara-se e a chibata acertou-lhe no pescoço, produzindo um corte.

Estava, porém, quase a arrepender-se do que fizera, quando ele lhe pegou ao colo e a atirou para dentro de um bebedouro de cavalos. Mais uma vez, a sua única consolação foi a de que as pessoas pareceram estar do seu lado. A bondosa Morag ajudou-a a subir as escadas e Edilean foi direita ao tio para lhe contar o que o homem lhe tinha feito.

Ignorava a reação que esperava do tio, mas não era, decerto, que troçasse dela e tomasse o partido do homem barbudo que usava o que Edilean considerava ser roupa de mulher. Abandonou a sala, tentando impedir que os homens trocistas vissem as suas lágrimas.

Contudo, o homem que estava a tornar a sua vida pior do que já era seguiu-a até ao telhado. Ignorava o que ele tinha, mas talvez por faltar tão pouco para o seu aniversário e por ele ser o chefe dos McTern, apesar do aviso de Shamus, contou-lhe toda a verdade e pediu-lhe que a ajudasse a fugir.

Verificou, horrorizada, que o homem começou a rir-se dela.

Então, afastou-se dele a correr, bateu com a porta e deu a volta à chave, trancando-o no telhado. Estava tão furiosa que, se pudesse, o teria atirado do telhado e ficado a vê-lo estatelar-se lá em baixo, em cima das pedras.

Na manhã seguinte acordou com as palavras «três dias» na mente. Faltavam apenas três dias para o seu aniversário e para o final da sua vida, como bem sabia.

Nesse momento, enquanto estava sentada no chão a desejar que a sua vida acabasse, a porta abriu-se e Morag entrou.

– Aqui tem – disse, entregando a Edilean não só uma carta de James mas também um embrulho.

– Alguém sabe?

– Ninguém. A carta foi-me entregue e só eu a vi. Vá lê-la e oxalá a anime.

– Sim – concordou Edilean, mas apenas abriu o embrulho quando Morag saiu do quarto. No interior, havia um frasquinho com uma rolha e um selo de lacre vermelho.

«Querida», escrevia James. «Desculpa ter demorado tanto a comunicar, mas coloquei um plano em ação. Levei muito tempo a descobrir o que precisava de saber, mas consegui. Vais recompensar-me por isto com beijos.»

Edilean apertou a carta de encontro ao peito por um momento e fechou os olhos. Ele amava-a!

«Deves fazer tudo como te digo», continuava, «seguir à risca as minhas instruções ou o plano não resultará. Não podes desviar-te uma hora que seja, pois tudo está cronometrado com precisão. Entendes?»

Embora estivesse sozinha no quarto, Edilean assentiu com a cabeça e prosseguiu a leitura.

3 Whist – Jogo de cartas de duas duplas, com parceiros frente a frente. Este jogo é típico dos séculos XVIII e XIX em Inglaterra e é considerado o antecessor do brídege. (N. da T.)


4

–O aniversário dela é amanhã.

– O quê? – perguntou Malcolm ao sobrinho que recolhia uma pazada de aveia.

– O aniversário dela. É amanhã.

– Ah, sim! Dela. Sabes que ela tem nome?

– Constou-me, mas não me recordo.

Angus passara a noite toda fora a contar o gado, certificando-se de que nenhum animal tinha sido roubado. Porém, enquanto vagueava pelos montes, contava incessantemente as horas que faltavam para que a sobrinha de Lawler tivesse de casar com um daqueles demónios a que Lawler chamava amigos. Quando chegasse o momento, qual deles escolheria? O velho Ballister ou o jovem e irascível Alvoy? Naquela noite, Angus dera voltas e mais voltas na manta enquanto a imaginava sozinha com um deles.

Edilean pedira ajuda a Angus, que se limitara a troçar dela. Essa ideia tinha-o perseguido nos dois dias anteriores. Nesse momento, à tarde, sentado nos estábulos a ver Malcolm trabalhar, não conseguia desviar o pensamento do que havia feito.

– O que te mói, rapaz? – perguntou Malcolm.

Angus sentou-se no banco, morto de fadiga, e contou tudo a Malcolm.

Quando chegou ao fim, Malcolm fitou-o.

– O que vamos fazer para a salvar?

– Não vamos fazer nada – respondeu Angus. – Temos de pensar no clã. Temos de pensar nas crianças e em dar-lhes de comer. Se nos opusermos a Lawler, se nos revoltarmos, seremos nós a sofrer o castigo e não ela.

– Já desabafaste?

– Sim – respondeu Angus e ao olhar para Malcolm a fadiga começou a abandoná-lo. Sentiu a energia a tomar-lhe o corpo. – O que pensei foi que eles não podem casar sem a igreja.

– Queres deitar fogo à igreja? – inquiriu Malcolm de olhos arregalados.

– Não – respondeu Angus. – Apenas pensei em levar o pastor a passar uma noite fora daqui.

– Ele deve saber que o Lawler o quer aqui esta noite.

– Pensei... Foi só uma ideia que me passou pela cabeça, mas achei que podíamos convencer o Shamus a ajudar-nos a fazer com que o pastor esqueça o seu compromisso. Se aparecêssemos na paróquia com um pouco ou talvez muito do vinho do Porto de Lawler, talvez o velho se esqueça de que tem de estar na igreja esta noite.

– Porquê o Shamus? Desde quando começaste a confiar nele?

– A meu ver, isto é um pecado capaz de me mandar direito ao inferno. Se tiver de ser, quero ir acompanhado por alguém que mereça ir.

– Excelente ideia! – aprovou Malcolm, tentando manter um rosto sério, mas com o riso no canto dos lábios. – Contudo, se impedirmos o casamento esta noite, o que faremos amanhã? E no dia seguinte?

– Não sei – respondeu Angus. – Acho que teremos de a tirar daqui pela calada da noite e escondê-la em qualquer lado. Em seguida... Mas porque caem estes problemas sempre em cima de mim?

– Porque arranjas sempre uma solução para eles – respondeu Malcolm. – Queres que vá contigo falar com o Shamus?

– Não... Quero que roubes um barril de vinho do Porto.

– Isso é coisa para demorar – avisou Malcolm. – Vai lá então ter com o Shamus. Talvez tenhas de usar as moedas que tens escondidas no terceiro compartimento do estábulo para o subornar.

Angus não se deteve a perguntar ao tio como conhecia a existência do dinheiro. Não havia tempo a perder.

– O que queres dizer com isso de não poderes ir? – perguntou Angus a Shamus enquanto ele comia.

Estavam na pequena e velha cabana de chão térreo onde Shamus morava com a minúscula mãe e três irmãos mais novos. Os quatro irmãos mais velhos tinham-se ido embora mal haviam crescido o suficiente para enfrentar o violento pai. Ainda agora, algumas pessoas continuavam a interrogar-se como é que o pai de Shamus caíra de um penhasco em pleno dia. Qualquer que tivesse sido a causa, ninguém lamentara muito a sua morte.

– Esta noite tenho de conduzir uma carroça pesada até Glasgow – respondeu Shamus.

– Desde quando és cocheiro?

– Desde que a jovem me pediu que o fizesse.

Angus sentou-se na mesa na frente dele.

– Do que estás para aí a falar?

– A sobrinha do Lawler pediu-me que conduzisse uma carroça até Glasgow. O que podia eu dizer?

– A sobrinha? Não foi o Lawler?

– Ele não sabe de nada. Tive de ir buscar a carroça a três quilómetros daqui e neste momento está um dos meus irmãos a guardá-la. Vou sair quando acabar de comer.

– O que está na carroça? – quis saber Angus.

– Seis baús pesados. São estátuas de bronze da Grécia e ela tem alguém à espera em Glasgow para se encarregar da venda. Devo trazer o dinheiro de volta e entregar-lho.

– Tu? Ela confiou em ti para lhe trazeres o dinheiro de volta?

– Ela gosta de mim – respondeu Shamus com um esgar. – Diz que sou o único homem na Escócia com coragem bastante para a ajudar. Chama-me um homem de honra – acrescentou Shamus, rindo da própria ideia.

– Quanto é que te pagou?

– Não é da tua conta – respondeu ele.

Angus achou que descobrira o plano da jovem. Conseguira de qualquer maneira apoderar-se de objetos valiosos e ia vendê-los. Talvez, se arranjasse dinheiro suficiente, pudesse comprar uma forma de se escapar a um casamento indesejado. Em linhas gerais, tratava-se de um bom plano, à exceção de ter tentado servir-se de Shamus. Nunca veria um cêntimo daquele dinheiro. Shamus ficaria em Glasgow ou subiria a bordo de um navio e ninguém voltaria a pôr-lhe os olhos em cima.

Angus tinha de elaborar rapidamente um plano alternativo.

– Vou contigo – decidiu. – A estrada é perigosa e precisarás de alguém ao teu lado.

– Levo o meu irmão.

– Sendo assim, alertarei o Lawler quanto ao dinheiro.

Shamus deitou um olhar viperino a Angus. Percebeu que não conseguiria executar o plano original. Apenas poderia vender os objetos e ficar com o dinheiro se tudo fosse feito no maior segredo. Caso Angus desse com a língua nos dentes, Lawler mandaria cinquenta homens atrás dele antes de ter percorrido dez quilómetros.

– Leva tu a carroça – retorquiu Shamus com o rosto distorcido pela raiva. – Vendes as velharias e depois trazes o dinheiro. Tenho a certeza de que a jovem te ficará agradecida.

O tom em que pronunciara as palavras soou como se existisse algo de vergonhoso entre Angus e a sobrinha de Lawler.

A última coisa que Angus desejava fazer era conduzir uma carroça dali até à longínqua Glasgow, mas não conhecia ninguém que lhe merecesse confiança. Seguiu Shamus até ao exterior da pequena casa, encolhendo-se para passar pela ombreira baixa da porta, deu a volta à casa e avistou a carroça.

Ao vê-la, ficou estupefacto. Não era uma carroça normal, mas uma muito pesada que pelos vistos fora reforçada para poder aguentar uma carga pesada. Mais extraordinário ainda eram os cavalos atrelados. Tratava-se de dois belos Clydesdales, uns magníficos exemplares com patas pesadas e fartas crinas.

Enquanto fitava a cena boquiaberto, Angus percebeu porque é que Shamus estava tão furioso. Quem quer que tivesse preparado aquilo gastara uma enorme quantia de dinheiro com o equipamento. As estátuas deviam valer uma fortuna.

Shamus entregou-lhe um pedaço de papel.

– Foi escrito por ela. Tem o nome, a morada e a hora. James Harcourt. Red Lion Inn. Glasgow, à meia-noite de amanhã.

Enquanto metia o papel na bolsa em pele do cinto de couro, Angus pensou que ia ser difícil chegar a Glasgow a essa hora.

– O que está na parte de trás?

Shamus puxou a lona e revelou seis pesados baús revestidos de ferro que tinham sido fixados na parte de baixo da grande carroça.

– Também há um caixão – informou Shamus com um falso sorriso.

– Um caixão?

– A jovem disse que era uma múmia do Egito.

– Uma...? – gaguejou Angus ao mesmo tempo que um arrepio de repulsa lhe percorria o corpo. Porém, conseguiu dominar-se. – Espreitaste lá para dentro?

Shamus encolheu os ombros.

– Queria fazê-lo, mas a menina disse que tinha uma maldição e era melhor não olhar. Confiei na sua palavra.

– Acredito – replicou Angus, voltando a colocar a lona e amarrando-a. Preparava-se para viajar por estradas a meio da noite com uma múmia a bordo da carroça. Tudo por uma mulher que disse que o odiava! Angus fitou Shamus e, por um momento, sentiu-se culpado por lhe ter estragado os planos de fuga. – Guarda o dinheiro que ela te deu para fazeres isto – disse com generosidade – e o Malcolm dar-te-á mais se fizeres o que ele te mandar.

Angus subiu para o assento da carroça.

– Diz ao Malcolm que voltarei com algum dinheiro assim que puder e que depois a livraremos disto.

– A quem?

– À jovem – respondeu Angus, exasperado. – Shamus, por uma vez na vida, faz o que é certo. Vai ter com o Malcolm e diz-lhe que regressarei em breve. Sabes onde está a jovem neste momento? – perguntou, agarrando nas rédeas.

– A Morag disse que há dias que está fechada à chave no quarto.

Angus ergueu o rosto para a fortaleza, cujo topo mal se via acima das árvores. Olhou mais uma vez para trás e partiu em direção a Glasgow.

Mal percorrera um quilómetro pela estrada quando o jovem Tam surgiu a cavalo e o coração de Angus deu um salto no peito. Talvez o rapaz devesse acompanhá-lo.

– O Malcolm contou-me o que estás a fazer e mandou isto – disse, atirando um pacote a Angus. – Roupas e comida. Não quer ver-te na cidade assim vestido.

– Gostavas de vir comigo? – perguntou Angus. – Com estes belos cavalos?

– Não... não posso. Tenho de ficar com ela. Não podemos deixar que se case com um daqueles homens lascivos. Deve casar-se com um McTern e devolver as terras ao nome a que pertencem.

– Talvez ela se pudesse casar contigo – disse Angus com um sorriso.

Como filho único do segundo filho do velho laird, Tam era o seguinte na linha de sucessão a assumir a responsabilidade dos McTern.

– É essa a minha ideia quando estiveres longe – respondeu, sorrindo ao primo pela primeira vez desde há muitos dias. – Vejo-te quando regressares.

Virou o cavalo e ergueu o braço num aceno de despedida e Angus suspirou. Receava fazer aquela longa viagem sozinho.


5

Angus conduzia a carroça havia umas escassas três horas e já se sentia farto e cansado. Por causa «dela» não tinha dormido muito nos últimos dias e agora, por causa «dela», também não conseguia fazê-lo. Sempre que passava pelo sono, os cavalos bem treinados paravam. Por duas vezes, Angus acordou sobressaltado e avistou os belos cavalos a comer erva à beira da estrada. Àquele ritmo nunca mais chegaria a Glasgow. Por sua vontade, teria parado na floresta e dormido umas horas, mas não podia. Tinha um prazo a cumprir. Por «ela».

Pareceu-lhe que ainda mal escurecera quando ouviu o galope de cavalos e um tiro disparado para o ar. Estendeu a mão para a pistola carregada que tinha debaixo do banco, mas uma voz à sua direita disse:

– No seu lugar, não faria isso.

O cavalo atrás dele servira para o distrair. «Raios!», pensou Angus. Fora negligente. Preso entre a raiva e a fadiga, esquecera a vigilância. Porque não tinha arranjado alguém para o acompanhar?

Puxou as rédeas dos enormes cavalos e eles pararam.

Tratava-se de três bandidos, todos mascarados, com as pistolas erguidas e apontadas à cabeça de Angus.

– Que loucura é essa? – perguntou o homem que parecia ser o líder. – Enviam um homem sozinho numa carroça como esta? Só um dos cavalos vale a tua vida. – Enfiou a pistola no coldre do seu cavalo e examinou Angus vestido com o kilt proibido por lei. – Pareces um homem de um dos velhos clãs. Gosto de homens que se opõem aos ingleses. Desce e poupo-te a vida.

Uma coisa era tentar ajudar uma jovem que não conhecia, outra era morrer por ela.

– Nada disso me pertence – explicou Angus num tom afável e descendo da carroça. – Como tal, não perco nada.

Um dos homens avançou e tocou no pescoço de um dos grandes Clydesdales.

– Nunca vi cavalos tão bonitos. Quem é o teu patrão?

– Nenhum homem é meu patrão! – apressou-se Angus a responder, provocando o riso no primeiro homem.

– Palavras certas para um escocês. O que trazes aí? – inquiriu com um aceno de cabeça para a parte de trás.

– Coisas para um museu – disse Angus, recuando.

Embora parecessem afáveis e tivessem prometido que não lhe fariam mal, não confiava em ninguém que lhe apontasse uma pistola à cabeça. O primeiro homem guardara a arma, mas os outros dois ainda tinham as deles. Lá atrás, semioculto no escuro, encontrava-se um quarto homem que ainda nem sequer pestanejara. Conservava a pistola no braço estendido e apontava-a a Angus.

– Gostaria de ver isso – disse o primeiro homem enquanto desmontava.

Visto que ele se encontrava a poucos metros de Angus, ele pensou em atacá-lo e apoderar-se da arma, mas o assaltante lá atrás não desviava os olhos do alvo.

Angus desatou a ponta da lona e mostrou os baús.

– Parecem pesados – observou o ladrão.

– Estátuas em bronze da Grécia – disse Angus.

– Têm algum valor?

– Para mim, não – respondeu Angus.

O ladrão olhou para o homem que se encontrava mais afastado e ele indicou-lhe com um movimento da pistola que desejava ver o conteúdo da carroça.

Angus desamarrou o resto da lona e puxou-a para trás. Ao verem o caixão, o ladrão recuou e o homem montado no cavalo estremeceu.

– Que diabo é isso?

– Uma múmia – explicou Angus.

– Valha-me Deus! – exclamou o homem da frente ao mesmo tempo que fazia avançar o cavalo para examinar a caixa de madeira.

Nesse momento ouviu-se um som vindo de dentro do caixão e Angus quase desatou a correr para a floresta, mas percebeu logo que devia ter sido Shamus o autor da brincadeira. Metera sem dúvida um gato dentro do caixão para assustar Angus.

– É apenas uma múmia – disse Angus. – Há mil anos que está morta. Nada que possa meter medo.

Ao ver que os homens não despregavam os olhos do caixão, Angus aproveitou a oportunidade para entrar em ação. Atacou o homem que se encontrava ao seu lado, tirou-lhe a pistola e apontou-lha à cabeça.

Contudo, nada adiantou que o tivesse feito, pois no mesmo segundo a tampa do caixão moveu-se para um dos lados e uma mulher com uma pele e vestes de um branco-mármore sentou-se. O luar banhou-a de uma forma lúgubre e misteriosa que petrificou todos, inclusive Angus.

No segundo seguinte, os homens fugiram à velocidade de um raio. O ladrão a quem Angus apontava a pistola ignorou-o, deu um salto para cima do cavalo e desapareceu no escuro da floresta com os outros dois na sua peugada.

Angus manteve-se onde estava, dando a sensação de estar pregado ao chão. Reconheceu a sobrinha de Lawler, mas teria ela morrido e ressuscitado?

– Sempre pensei que limpariam isto – disse Edilean enquanto sacudia a serradura branca que lhe cobria o rosto e piscava os olhos com força, visto que até as pestanas estavam cobertas com o pó fino do caixão construído recentemente.

Angus conservava-se imóvel, fitando-a.

– Raios me partam! É você!

– E é você! – replicou ela, furiosa. – O que fez ao Shamus?

Angus ergueu momentaneamente os olhos para a Lua. Por fim, começava a entender o que acontecia.

– Já passa da meia-noite. Quem está no seu quarto, na fortaleza?

– Ninguém – respondeu ao mesmo tempo que esfregava o rosto e as roupas, tossindo com a poeira levantada. – A Morag sabe que não estou lá, mas encobriu-me. Ao contrário de si, há outras pessoas que não ficam paradas sem fazer nada enquanto a vida de outra é ameaçada.

– Custa-me a crer que o casamento seja uma ameaça de morte.

Edilean ergueu-se no caixão com movimentos vacilantes e agarrou-se ao encosto do banco da carroça.

– Se fosse um príncipe e fosse obrigado a casar com uma princesa feia não se mostraria tão calmo.

– Eu, um príncipe? – replicou, ainda sem se mexer e erguendo os olhos na direção dela.

– Podemos partir? Já passa da meia-noite e o meu tio não demorará a vir atrás de mim.

Angus tentava pensar no que fazer.

– Levá-la-ei de volta até ele o mais rapidamente possível e resolveremos este assunto do casamento.

– Não voltarei para junto dele.

– Ah, isso é que volta – decidiu Angus enquanto subia para o banco da carroça. – Falarei com ele. Falaremos todos e ele arranjará um bonito rapaz que se case consigo e...

– Bonito! – Ela encontrava-se de pé na parte de trás da carroça e ele estava sentado no banco, o que colocava os dois rostos quase ao mesmo nível. – Acha que é isso o que me preocupa? Acha que tudo isto se deve a se tenho ou não um marido bonito? Nada disso! O motivo é aquele! – concluiu, apontando para os baús.

– Umas estátuas antigas?

– Não são objetos históricos. Aqueles baús estão cheios de ouro e são o meu dote. Disse-lhe que o homem que se casar comigo recebe o ouro. Porém, o meu tio combinou com o Ballister e o Alvoy que, se eu casar com um deles, ele fica com o ouro, dando apenas dez por cento a mim e ao meu marido. Não estou apenas a fugir de um casamento horrível, fujo também da pobreza.

Angus começava a perceber tudo aquilo em que se metera. Ia parecer que tinha sequestrado a sobrinha de Lawler e roubado seis baús cheios de ouro. O enforcamento seria um castigo demasiado leve para ele. Aquele crime era tão hediondo que teriam de inventar uma nova forma de o matarem.

– Porque está tão pálido?

– Eles vão enforcar-me – sussurrou.

– Por que motivo? Estupidez?

– Por sequestro e roubo – quase gritou, aproximando o rosto do dela.

– Oh, percebo! Se isso serve de ajuda, posso esclarecer que o Shamus também não sabia que eu ia na carroça, nem que transportava ouro.

Angus enxugou o suor do rosto com a mão.

– E o que aconteceria quando descobrisse?

– Não era essa a ideia – respondeu, metendo a mão no bolso de onde tirou um frasquinho. – O James enviou-me um frasco de láudano para me manter a dormir durante todo o caminho. Ele deveria acordar-me com um beijo – concluiu com um ar sonhador.

Virando-se, Angus olhou por cima das cabeças dos cavalos para a estrada. Haveria alguma forma de endireitar as coisas?

– E esse tal James é...?

– O homem que amo. James Harcourt. Escrevi-lhe a contar a minha situação aflitiva e ele encarregou-se de tudo. Descobriu quando seria o ouro mandado de barco para o meu tio, apoderou-se dele e colocou-o nesta carroça. E também colocou na parte de trás o caixão que me era destinado. Bastava-me arranjar uma pessoa... Morag... que me tirasse do quarto e outra... Shamus... para se ocupar da carroça e conduzi-la de volta a James.

– Então, onde está ele?

– O meu tio?

– Não! Esse homem que diz amar. Onde está ele?

– À minha espera em Glasgow.

– Portanto, ele não correu riscos. Deu uma droga a uma mulher que ama, deixou-a viajar dentro de um caixão à mercê de um homem como Shamus, para já nem falar de ladrões de estradas, e ele...

– O que há de errado com Shamus?

– Precisaria de uma semana para lhe responder – respondeu, olhando na direção da floresta escura. – Temos de partir. Já.

– Para casa do meu tio?

– Acha que ele ia acreditar na verdade, que eu estava a milhas de tudo isto?

– O Shamus podia dizer-lhe...

– Esse Shamus que julga ser tão bondoso é... – Levantou os braços. – Temos de ir e eu preciso de ordenar as ideias.

– Não tenho de voltar para o caixão, pois não?

– Devia metê-la lá dentro e fechar a tampa com pregos.

Em vez disso, Angus teve praticamente de a soerguer por cima do encosto do banco para que se sentasse ao lado dele. Um minuto depois encontravam-se a caminho. Angus rangeu os dentes ao pensar na situação em que se encontrava e na forma como sair da mesma. Como poderia alguma vez regressar a casa?

– Não percebo porque está tão furioso comigo – disse ela. – Só tem de me conduzir até Glasgow e deixar-me lá. Em seguida, o James cuidará de tudo.

– E depois? Volto para o meu clã? Para junto da minha família? Acha que o seu tio é um idiota e não pensará que fugi com a sua rica sobrinha e lhe roubei o ouro?

– Não era isso o que devia acontecer. O Shamus...

– Não volte a pronunciar esse nome. Se ele tivesse levado a carroça até Glasgow, o que duvido, ficaria com todo o dinheiro que conseguisse e jamais voltaria ao clã McTern. Os irmãos foram-se embora, um por um, e ele faria o mesmo.

– E se eu tivesse acordado mais cedo do que previsto dentro do caixão? – inquiriu num sussurro, pois começava a entender as palavras dele.

– Digamos que quando chegasse junto desse John...

– James.

– Harmon...

– Harcourt.

– Para um homem incapaz de arriscar a pele para obter uma noiva e uma carroça cheia de ouro, você não seria algo que ele desejasse.

– Oh! – exclamou, chegando-se mais para junto de Angus e olhando em volta com um ar assustado. – O Shamus é mesmo mau?

– Muito, muito mau.

A jovem aproximou-se mais ainda.

– O pior que já vi.

Edilean enfiou o braço no dele e encostou-se mais de encontro ao corpo masculino.

Angus não conseguiu reprimir um sorriso sob a barba.

– Provavelmente, o Shamus mantê-la-ia presa durante dias nalgum lado e torturá-la-ia. Fazia-lhe cócegas com uma pena de ganso na planta dos pés.

Ela fitou-o estupefacta e em seguida sorriu.

– Está a troçar de mim.

– Sim. Não passo de um idiota. Agora, fique quieta e deixe-me pensar.

Angus tinha a certeza de que, quando dessem pela falta da jovem, Malcolm iria procurar Shamus e descobriria o que acontecera. Malcolm adivinharia quem ia dentro do caixão e enganaria Lawler o tempo suficiente para que Angus chegasse a Glasgow.

Ao pensar naquilo, Angus descontraiu-se um pouco e sentiu o corpo da jovem, tão inclinado sobre ele que se interrogou se ela teria adormecido. O láudano era uma droga forte e caso se tomasse uma grande quantidade nunca mais se acordava.

Enquanto conduzia, Angus começou a perceber a gravidade da situação. Nunca mais poderia regressar a casa. Nunca mais veria nenhuma das pessoas que tinha conhecido em toda a sua vida. Não assistiria ao crescimento dos filhos da irmã. Nem tão-pouco veria Tam a tornar-se um homem.

Não conseguiu reprimir uma lágrima que lhe correu pelo rosto e caiu em cima da jovem, fazendo-a estremecer.

– Chiu, rapariga, volte a dormir.

Se se tratasse de qualquer outra mulher, colocaria o braço à volta dela, agarrando-a durante o sono, mas não a ela.

Contudo, Edilean não voltou a adormecer.

– Estava a dizer a verdade quando disse que não pode regressar? Ou sentia-se apenas furioso comigo?

– Não posso regressar. Uma coisa é estar diante do seu tio e admitir que atirei a sobrinha para dentro de um bebedouro dos cavalos, mas outra é admitir... isto.

– Lamento ter-lhe batido no pescoço com a minha chibata. Tencionava atingi-lo no ombro, mas dobrou-se e...

– A chibata bateu-me no pescoço – finalizou a frase por ela. – Está curado.

– Como pode saber com todo esse cabelo?

– Algumas raparigas gostam do meu cabelo.

– Nunca gostei de homens com pelos na cara – retorquiu, calando-se um momento. – Onde irá viver?

– Tudo correrá bem. Não se preocupe.

– Lamento tê-lo metido nesta embrulhada. A culpa é toda minha, Mister McTern, eu sei! Porque não vem para o Novo Mundo com o James e comigo?

– Foi o que planearam?

– Sim. Os bilhetes estão com ele e temos o melhor camarote do navio, o Mary Elizabeth. O James tratou de tudo. Quando lhe escrevi a contar a minha situação e a traição do meu tio, ele planeou tudo.

– Então, ele tomará conta de si, quando a deixar lá?

– Claro! Ele vai encontrar-se comigo na estalagem e contratou homens para carregarem os baús até ao navio. No dia seguinte partiremos às quatro da tarde e o James diz que às oito estaremos casados. Casaremos a bordo do navio.

Ao ver que ele não se pronunciava, acrescentou:

– Por intermédio do capitão.

– Sim, compreendo.

Edilean ficou calada por momentos.

– Vai deixar para trás uma namorada? – inquiriu, fitando-o chocada. – Vai deixar a sua mulher?

– Não, nem mulher, nem fedelhos, mas haverá pelo menos uma dúzia de mulheres que ficarão com o coração destroçado.

Edilean sabia que ele estava a aligeirar a situação, mas tratava-se de um assunto sério. Ao tentar salvá-la, ele abdicara inadvertidamente de todo o seu mundo.

– O que vai fazer? – voltou a perguntar, sem saber o que mais podia dizer.

– Não se preocupe. Sei cuidar de mim.

– Acha que o meu tio mandará homens para o caçar?

– Receio bem que sim.

– Então, Mister McTern, tem de vir connosco para a América. Lá as pessoas são livres ou, pelo menos, mais livres do que aqui.

– O que faria eu num novo país?

– O que fará neste?

– Não sei, rapariga, mas é uma grande decisão. Deixar a minha pátria? Ignoro se serei capaz, mas é gentil da sua parte preocupar-se dessa maneira comigo.

Por um momento, com o luar a incidir sobre o bonito rosto, Angus deu por si a inclinar-se para ela.

Mas Edilean afastou-se e apressou-se a dizer:

– O James cuidará de si.

Angus endireitou os ombros ao ouvir o comentário. Aquelas palavras magoaram-no mais do que quando ela lhe batera no pescoço com a chibata. Tinha-lhe recordado a diferença de classes que os separava. Soube encarnar o papel de lady e falar em ajudá-lo, mas, quando ele se aproximou demasiado, afastou-se e disse que um homem de uma classe mais elevada «cuidaria» dele.

Sem saber o que lhe ia na mente, Edilean permaneceu sentada em silêncio por um momento, observando o escuro que os rodeava. A carroça tinha uma lanterna que lhes permitia ver a estrada, mas a escuridão imperava.

Angus ignorava o rumo que daria à sua vida, qual seria o seu futuro. A sua única certeza era que jamais se colocaria numa posição em que «James» tivesse de cuidar dele.


6

Edilean sabia que estava a falar demasiado, mas fazia-o para ocultar o nervosismo. Sentia-se incomodada por os seus problemas terem mudado a vida daquele homem. Pedira a Shamus que a conduzisse até ao porto perto de Glasgow, pois percebera que ele era um pária como ela. Contudo, aquele homem não o era.

Após o seu primeiro encontro com ele, as pessoas tinham feito tudo para lhe garantir que não era possível que Angus McTern tivesse afrouxado a sela.

– É ele que toma conta de nós – diziam-lhe.

Ao longo da semana, entre o momento em que ela lhe batera e aquele em que ele a atirara para dentro do bebedouro dos cavalos, só ouvira coisas boas a seu respeito. Para onde quer que fosse, havia sempre alguém que lhe falava de Angus. Por vezes, não o faziam diretamente. Quando ia visitar Marmy aos estábulos, as pessoas apareciam inesperadamente do lado de fora da divisória e iniciavam uma «conversa» sobre Angus.

Na opinião geral, Angus era a súmula de todas as virtudes conhecidas pela Humanidade. Passados quatro dias daquelas conversas encenadas, só lhe apetecera gritar:

– Estão à espera que me case com ele? É isso que querem?

No fim dessa semana, ao refletir sobre toda a sua vida, Edilean concluiu que não devia ter sido tão má para o homem. Devia ter-se esforçado mais para fazer com que gostasse dela. Nesse caso, talvez a tivesse ajudado quando lhe pedira que o fizesse. Chegou mesmo a pensar na hipótese de ter proposto o laird atual ao tio como um marido alternativo. Se Angus McTern possuísse metade da honra com que o haviam definido, talvez pudesse ser persuadido a renunciar ao ouro a favor do tio.

«Mas e depois?», pensou. «Teria de viver com ele numa daquelas casinhas em pedra de duas divisões e fazer um filho todos os anos?»

Naquele momento, sentia o calor dele ao seu lado. Estava frio e desejou poder aproximar-se mais, mas a situação tinha mudado quando ele se inclinara para ela e ela se afastara como se o considerasse repulsivo. Contudo, estava longe de ser verdade. Tratava-se apenas da atitude que a ajudara a sobreviver a anos de agressão por parte de homens atrevidos.

– Ainda estou coberta de poeira? – perguntou, passando as mãos pelo cabelo.

– Um pouco, mas tenho a certeza de que ele gostará de si.

Edilean esfregou as mãos para as aquecer e ergueu o rosto na sua direção, mas ele manteve-se calado.

– Talvez amanhã a esta hora eu já esteja casada.

Angus não se deixara enganar pela sua tentativa para ocultar o nervosismo.

– Vai sair-se bem, rapariga.

– Acha que o meu tio não tardará a perseguir-nos?

– Daqui a um ou dois dias – respondeu Angus num tom suave. – O Malcolm vai descobrir o que se passa e conseguirá dar-nos algum tempo.

– Então já estarei longe – disse ela.

Angus notou que ela coçava a poeira agarrada ao pescoço e resolveu ser mais indulgente. Parou os cavalos e a jovem mostrou-se imediatamente assustada. Contudo, ele acenou com a cabeça e disse que apenas precisava de um pouco de... privacidade. Tirou um saco grande de baixo do banco do veículo, atirou-o para o chão, desceu e levantou os braços para a agarrar.

– Gostava de esticar um pouco as pernas?

Edilean assentiu com a cabeça e colocou as mãos nos ombros de Angus que lhe rodeou a cintura com as mãos enormes e pousou-a no chão. Por um segundo, os corpos ficaram unidos. Eram estranhos, mas estavam a enfrentar vidas novas. O facto criava um vínculo entre ambos, um vínculo que ela sabia que terminaria quando chegassem à cidade.

A jovem não se afastou muito da carroça para satisfazer as suas necessidades, mas ele ainda se despachou mais depressa. Tinha mudado de roupa, despindo o tartan e trocando-o por calças, uma camisa e um casaco grande. Em vez do herói de uma novela romântica, parecia um trabalhador das docas.

Ela sorriu-lhe, mas percebeu que ele sentia a diferença. Pensou novamente que não a achava bonita.

– Vamos ao encontro do seu futuro marido? – perguntou enquanto a erguia para cima da carroça.

Viajaram durante toda aquela noite e o dia seguinte. Quando chegaram à cidade, Angus contornou o centro o melhor que podia enquanto se dirigia à doca e à Red Lion Inn, que ficavam a sul da confusão e do movimento que tanto detestava.

Edilean bocejou. Tinha dormido durante metade do caminho com o pequeno corpo encostado ao de Angus. Por duas vezes ele adormecera, mas ela acordara-o. Numa delas, disse:

– Podia ser eu a conduzir os cavalos.

– Você? – retorquiu ele tão divertido que despertara por completo.

– Porque insiste em dizer-me que não posso fazer nada?

– Tem poeira no nariz – replicou.

– Oh! – exclamou Edilean, esfregando-o com força. Quando fitou Angus, semicerrou os olhos. – Está a provocar-me.

– Mantém-me acordado. O Harcourt nunca a provoca?

– Não – respondeu Edilean. – Ama-me tanto que nunca me arrelia.

– Não a faz rir?

– Canta comigo e andamos a cavalo. Sentamo-nos em caramanchões e lemos. Às vezes, ele lê-me poesia. Gosta de poesia, Mister McTern?

– Muito – respondeu ele. – Chego a ler um poema ou dois antes de adormecer. Ajuda-me a ficar calmo.

Edilean olhou-o fixamente.

– Está novamente a troçar de mim?

– Sim – admitiu ele, sorrindo. – Mas não é por mal, rapariga. A verdade é que ando normalmente demasiado ocupado a impedir que os ladrões roubem o gado do seu tio e não me sobra tempo para me sentar e cantar com uma rapariga.

– Mas vocês têm danças. A Morag falou-me delas e uma das mulheres contou-me que você é um bom dançarino.

– Não são as danças que conhece – disse ele.

Pouco depois, Edilean desistiu de tentar manter uma conversa com ele. Parecia acabar sempre com ela a não saber o suficiente sobre... Bom, sobre a vida para poder falar com ele. Tinha tentado abordar vários assuntos, mas ele insistia em troçar e fazer com que se sentisse inútil e incompetente.

Não o disse, mas jurou que não se pouparia a esforços para o compensar de ter feito com que ele perdesse tudo na vida. Perguntou-lhe porque mudara o seu plano de usar Shamus e, quando ele lhe contou a intenção de embebedar o pastor, ainda se sentiu mais culpada. Afinal, ele tentara salvá-la e apenas conseguira ser banido.

Uma ou duas vezes, Edilean lançou-lhe olhares furtivos, pensando que conhecia o tio muito melhor do que ele. Vira a forma como o tio fingira ser algo que não era quando os homens se encontravam por perto e sabia que ele jamais mostraria a sua verdadeira personalidade se algum dos escoceses estivesse presente. Eles não trabalhariam tão arduamente para ele se soubessem que ele levantava a mão para uma mulher de que todos tinham começado a gostar.

Edilean sabia que Angus – Mr. McTern – parecia acreditar que dispunham de algum tempo antes que o tio viesse atrás deles, mas ele nunca assistira ao comportamento ganancioso do homem como ela. Tinha de arranjar maneira de convencer aquele escocês a ir para a América com ela e com James. O plano consistia em fazer com que James abrisse um dos baús e desse a Angus uma elevada porção do ouro. Assim, Angus poderia comprar alguma terra na América, construir uma casa para ele e para a família que ia começar.

– O que significa esse olhar? – perguntou ele.

Era meio-dia e ela sentia-se com fome e cansada, mas também excitada. Não faltava muito tempo para ver James.

– Onde ficará quando lá chegarmos?

– Vou deitar-me na palha dos estábulos e dormir três dias.

– Não pode fazer isso. Perderá o navio.

– Oh, sim. O Mary Elizabeth. É então um grande navio? Será que tem espaço de sobra para um pobre escocês?

Ela ignorou o tom trocista.

– Encarregar-me-ei de que lhe deem um lugar no navio nem que o capitão tenha de partilhar o camarote.

– Fala como uma mulher que tem tido tudo na vida.

Edilean brindou-o com um olhar duro, mas ele não notou. Isso passara-se horas antes e agora encontravam-se na cidade e havia outras carroças. Angus tinha parado de vez em quando para que ela pudesse comprar-lhes comida enquanto ele se ocupava dos cavalos, mas na maior parte do tempo avançava penosamente.

O dia transformou-se em noite e estavam todos, incluindo os cavalos, muito cansados.

No preciso momento em que ela se preparava para anunciar que não aguentava mais, avistou a tabuleta da estalagem.

– Chegámos!

– Sim! – concordou Angus num tom fatigado. – Finalmente chegámos!

Conduziu os cavalos exaustos para as portas abertas do estábulo e um homem surgiu imediatamente da sombra. Estava vestido com requinte e tinha um rosto que Angus achou mais adequado a uma rapariga.

– Edilean! – exclamou num tom severo. – Estava quase a desistir. Passei horas neste imundo celeiro à tua espera. Não podias pelo menos ter tentado apressar-te?

Angus fitou o homem e, mesmo que ele não tivesse falado, sabia que lhe teria desagradado à primeira vista. Na sua mente, assemelhava-se a Ballister e Alvoy, apenas com uns anos a menos.

– Sabia que estarias com pressa para me ver! – disse Edilean lançando-se nos seus braços. Ele abraçou-a mas com pouco entusiasmo.

– Estás imunda! O que é isso que tens por todo o corpo?

– Poeira. O caixão que me mandaste estava cheio dela. James, meu querido, não estás contente por me ver?

– Claro que sim – respondeu, mas recuou quando ela tentou beijá-lo. – Vê o estado em que me puseste. Fiquei tão sujo como tu! Ei! Vocês! – gritou a dois homens corpulentos que estavam de pé na parte de trás da carroça. – Tenham cuidado com isso. Não quero que os fundos caiam.

Afastou-se dela para dirigir os homens na descarga dos baús cheios de ouro.

Angus continuava sentado no banco da carroça, demasiado cansado para descer. Dois homens tinham aparecido vindos de trás e estavam a desatrelar os cavalos.

– Vejam lá se os alimentam bem!

– Mister Thomas criou-os desde que eram potros e não gostará de ver que foram tão forçados – disse um dos homens.

– Nada que eu pudesse evitar – murmurou Angus entre dentes enquanto descia.

Percorreu as divisórias com o olhar, à espera de ver uma delas limpa onde pudesse dormir.

– Viu-o? – perguntou Edilean, dirigindo-se a Angus com o bonito rosto iluminado.

– Vi – respondeu, incapaz de conter um sorriso. – Ele é tão bonitinho como você. Deviam usar-lhe o rosto para um livro de histórias.

– Lá está outra vez a arreliar-me. Quero que fique aqui enquanto vou pedir algum dinheiro ao James. Quero pagar-lhe pelo seu tempo e os problemas que lhe causei.

– Cá me arranjarei – replicou ele num tom duro. – Fui eu que optei por fazer isto e pagou o trabalho ao Shamus. Não deve pagar a dobrar.

– Mas não pode ficar aqui sem dinheiro. Precisa pelo menos de um sítio onde dormir esta noite.

– Está a pedir-me que partilhe o seu quarto?

– Não! – exclamou Edilean abrindo muito os olhos mas logo abanando a cabeça. – Quando é que fica demasiado cansado para não me provocar?

– Isso nunca acontecerá. Agora deve ir ter com o seu jovem cavalheiro. Talvez amanhã a esta hora esteja casada com ele e seja uma noiva feliz.

– Sim – concordou ela, mas não se afastou. – Ficará bem?

– Claro.

Continuou a fitá-la e, embora se sentisse muito cansado, o que aquele homem dissera ao vê-la não lhe saía da cabeça. Nesse momento, ele estava a supervisionar a descarga do ouro, tendo deixado a noiva sozinha. Talvez Harcourt não percebesse o quanto ela desejava vê-lo nem o que tinha passado para chegar junto dele.

– Muito bem, então – disse ela. – Suponho que esta será a última vez que nos vemos.

– Amanhã já nem se lembrará do meu rosto feio e peludo.

– Não me parece que seja verdade – contrapôs ela num tom suave. – Nunca mais esquecerei o seu rosto. Acho que me lembrarei dele para o resto da vida.

Angus desejou tocar-lhe, colocar a mão no rosto delicado, mas não o fez.

– Vá lá, rapariga – disse. – Vá ter com o seu marido. – Custou-lhe um pouco, mas virou as costas e saiu dos estábulos, desaparecendo na noite.

A sua coragem manteve-se até chegar diante da estalagem quando avistou um panfleto com uma xilogravura do seu retrato. Fora pregado num dos lados de uma cerca e oferecia uma recompensa de cinco mil libras por ele. Angus arrancou o papel da cerca e examinou-o. Como haviam conseguido fazer aquilo tão rapidamente? E de onde viera a semelhança com as suas feições?

Perscrutou as ruas escuras com medo de que alguém o reconhecesse, mas ninguém olhava para ele. Era apenas mais um camponês a passear pelas ruas e à procura de uma maneira de gastar o seu dinheiro.

Angus regressou aos estábulos, a fim de refletir por algum tempo no que fazer. Confiara tanto que Malcolm manteria Lawler longe dele que nem sequer se sentira ansioso durante a viagem. Então, porque não o tinham apanhado?

Soube que a resposta era que alguém contara uma série de mentiras a Lawler. Caso a verdade tivesse sido dita, Angus teria sido capturado um dia antes.

Ficou de pé no interior de um dos compartimentos, encostado à parede, com o panfleto amarrotado na mão. Conseguia distinguir suficientemente os números para saber quanto Lawler oferecia pela sua captura, mas ignorava o que mais estava escrito a seu respeito.

– James – ouviu a voz de Edilean. – Não quero ficar no meu quarto todo o dia de amanhã. Quero ficar contigo.

– Impossível – ripostou Harcourt com dureza.

Virando-se, Angus conseguiu avistá-los através das aberturas entre as tábuas. Edilean parecia radiante, mesmo emocionada, por se encontrar finalmente junto do homem que amava, mas Harcourt não parecia feliz por vê-la. Não transmitia de forma alguma a imagem de um homem que estava prestes a casar-se com uma bela, inteligente e riquíssima jovem.

Harcourt libertou-se das mãos dela.

– Tenho coisas a fazer para preparar a nossa viagem – justificou num tom mais meigo. – E tu precisas de tomar um banho e dormir um pouco.

– Dormi demasiado – replicou ela. – Passei a maior parte do caminho a dormir.

– Edilean! – disse como se fosse um pai a falar com uma filha desobediente. – Tenho coisas a fazer para nós. Não parei de trabalhar desde que recebi a tua carta. Lamento que tivesses esperado tanto tempo para me contares o que se passava. Estive permanentemente ocupado com os preparativos da ida para outro país. Toma – acrescentou, entregando-lhe outro frasco de láudano. – Bebe isto e dormirás o dia todo. Virei buscar-te amanhã ao meio-dia e subiremos a bordo do navio. Depois, manter-te-ei acordada dias a fio. – Beijou-a ao de leve. – Então, vais obedecer-me?

– Sim, mas não me apetece – respondeu num tom amuado. – Gostava de passar todos os minutos contigo. Contactaste a minha costureira em Londres para me fazer um guarda-roupa? Não pude trazer nada comigo.

– Consegui o que pude, mas não houve tempo para trazer muita coisa. Quando estivermos na América, compraremos o que precisares.

– Mas estamos em Glasgow. Poderia fazer compras aqui.

– Edilean! – ripostou ele novamente. – Vamos passar toda a vida assim? Tencionas desobedecer a tudo o que te disser?

– Não – respondeu ela, baixando a cabeça. – É tudo porque me sinto assustada, James... – Ao ver a raiva que o rosto dele expressava, recuou. – De acordo. Estou bastante cansada. Vou dormir esta noite e ver-te-ei amanhã.

– Linda menina! – elogiou Harcourt. – Arranjarei alguém para te levar à estalagem. Esta não é segura e aquele teu condutor sabe onde fica. Não confio nele.

– Angus McTern? – surpreendeu-se ela. – Mas é a ele que devemos estarmos juntos. Se ele não tivesse...

– Sim, querida. Não duvido que é o melhor da sua classe. Agora, escuta. Aluguei-te um quarto no último andar do Green Dragon, e...

– Mas quero estar perto de ti.

– Estou instalado lá – respondeu ele impaciente e depois acalmou-se. – Terás sossego lá em cima e vou ver-te amanhã.

– Está bem – concordou ela, virando-se.

– Não tenho direito a um beijo da minha noiva? – perguntou Harcourt, mal a viu de costas.

– Claro que sim, James! – respondeu Edilean, rodeando-lhe o pescoço com os braços e pousando os lábios nos dele. Contudo, ele libertou-se rapidamente e pôs-se a sacudir a roupa.

– Se não me for embora já, não conseguirei deixar-te. Ver-te-ei amanhã, e Edilean... – A expressão do olhar suavizou-se. – Anseio pela nossa noite de núpcias.

Sorrindo e com um brilho de estrelas nos olhos, Edilean virou-se, dirigiu-se a uma criada que se encontrava na ombreira e seguiu-a até ao exterior dos estábulos.

Angus manteve-se onde estava, com a cabeça encostada às tábuas de madeira da divisória e fechou os olhos por um momento. Algo não batia certo. Sentia nos próprios ossos que qualquer coisa estava errada. Talvez fosse a maneira como o homem tratava a jovem, mas também havia algo de errado nas suas palavras. Angus desconhecia o motivo, mas não gostava de James Harcourt e muito menos confiava no homem.

Quando Harcourt abandonou os estábulos, Angus seguiu-o.


7

Angus passara toda uma vida a desaparecer no meio dos arbustos à luz do dia e portanto não teve dificuldade em esgueirar-se furtivamente pela cidade mergulhada nas trevas. Por duas vezes avistou panfletos com um desenho do seu rosto e não hesitou em arrancá-los e enfiá-los dentro da camisa.

Harcourt não foi longe. A duas ruas de distância, entrou num pub e Angus viu através da janela que se dirigia a uma mesa onde estavam sentados três homens que o receberam com grande alarido. E porque não?, pensou Angus. No dia seguinte o homem partiria para outro país e casaria. Talvez o motivo por que se mostrava tão ansioso por se escapar da noiva se devesse a querer fazer a despedida de solteiro com os amigos. Angus compreendia que assim fosse e, por um momento, ponderou em virar as costas. Talvez fosse para Edimburgo, embrenhando-se nas terras altas da Escócia, onde passaria a viver. Duvidava que os habitantes das montanhas fizessem demasiadas perguntas sobre de onde vinha.

Porém, Angus não conseguia decidir-se a partir. Havia qualquer coisa naquela jovem e na sua forma de confiar nas pessoas que o faziam sentir-se responsável por ela.

– Só até ela entrar no navio – murmurou entre dentes e entrou no pub.

Angus sabia que corria riscos ao expor-se, mas ninguém lhe prestou atenção. Tinha umas moedas com ele e assim pediu uma cerveja e levou-a para uma mesa próxima daquela onde os quatro homens estavam sentados. Por um momento, sentiu-se nervoso com medo de que Harcourt o reconhecesse, mas ele nem olhou para o homem sujo e barbudo que se sentou na mesa ao lado.

– Proponho um brinde à minha nova esposa – disse Harcourt. – Pode não ser uma beleza, mas, como filha de um conde, tem um título.

Angus pousou a caneca e não conseguiu impedir-se de fitar o homem. Não era uma beleza? Edilean não era uma beleza? E que título é que ela tinha? Contudo, os títulos nunca haviam feito parte do seu mundo e, portanto, talvez ela tivesse um título de que nunca ouvira falar.

– Então, o pai dela é rico, hein? – indagou um dos homens.

– Não há dote e ela não é uma beleza, mas os nossos filhos terão esse título – respondeu Harcourt.

– Mas com a tua elegância, James, podias ter sido mais ambicioso. Devias ter conseguido uma esposa que viesse juntamente com uma carroça cheia de ouro.

Ante aquele comentário, Harcourt riu com tanta vontade que quase se engasgou.

– Foi precisamente o que fiz. Consegui baús cheios de ouro, mas sem a filha do soldado que os possuía.

Angus não perdia pitada do que se passava, tentando perceber as palavras do homem.

– À minha esposa – brindou Harcourt. – Que ela durma bem esta noite, pois ao amanhecer subiremos a bordo do navio com destino ao Novo Mundo.

Ao amanhecer? Angus lembrava-se perfeitamente de que Harcourt dissera que iria buscar Edilean ao meio-dia, mas, a essa hora, já o navio estaria bem longe.

Angus esvaziou a caneca de cerveja e saiu calmamente do pub. Precisava de avisar Edilean. Tinha de... Parou o raciocínio a meio. O que poderia fazer para que ela acreditasse nele? Imaginou-se a invadir o quarto e a dizer-lhe que o homem com quem ela julgava ir casar era... o quê? Angus não sabia muito bem a resposta. Talvez tivesse entendido mal as palavras de Harcourt.

«Estou instalado lá.» As palavras pareciam ecoar na cabeça de Angus. Harcourt dissera que estava a enviar Edilean para a mesma estalagem onde ele se encontrava hospedado. É óbvio que se o homem já fosse casado não colocaria Edilean na mesma estalagem. Mas ele dera a Edilean aquele maldito láudano possivelmente com a esperança de que ela lhe obedecesse e dormisse o dia todo. Além disso, se tencionava partir de madrugada, quando ela acordasse já ele iria a bordo do navio com o ouro dela.

Angus percorreu a correr o caminho de volta por onde viera, mantendo-se a coberto das sombras para não ser visto, mas dirigindo-se à Red Lion. Se Edilean fora a pé, o Green Dragon não podia estar longe.

Avistou a pouca distância a tabuleta pintada com o dragão. A noite ia a meio. Como poderia descobrir qual era o quarto da mulher de Harcourt?

Dirigiu-se às traseiras da estalagem e escondeu-se nas sombras a pensar numa maneira de o fazer quando a porta se abriu e apareceu a criada que tinha escoltado Edilean do estábulo.

Angus saiu-lhe rapidamente ao caminho e, por um instante, ela pareceu assustada, mas em seguida mudou de expressão.

– Eu vi-o – disse com um sorrisinho. – Vi-o escondido no meio dos cavalos a espiar aqueles dois.

– E eu também a vi – respondeu Angus, olhando-a de alto a baixo. – Harcourt mandou-me verificar se você escolheu bem os quartos e não confundiu as mulheres.

– Como é que podia confundir aquelas duas? Não são nada parecidas, pois não?

– Colocou a mais pequena no último andar?

– Sim – confirmou e avançou um passo na sua direção.

– E a outra?

– No rés do chão, como ele disse. Ela comeu metade de um pernil de vaca ao jantar e fiquei contente por não ter de a levar pela escada acima. – Fitou-o com um olhar duro. – Não o tinha visto antes?

– A mim não, rapariga – respondeu, movendo-se para o escuro onde ela não podia vê-lo.

A criada gritou-lhe que voltasse, mas ele permaneceu onde estava até que ela soltou um pequeno grunhido e afastou-se. Sabia que fizera uma inimiga, mas, pior ainda, sabia que mais cedo ou mais tarde ela se lembraria de que o tinha visto nos panfletos que pareciam estar espalhados por toda a cidade.

Angus deu a volta à estalagem, examinando as janelas e tentando descobrir qual delas era a de um quarto. Visto que só havia duas janelas com os reposteiros corridos, concluiu que seriam uma boa aposta. Experimentou a primeira que não se abriu, mas a segunda cedeu.

Saltou para o interior da divisão e esperou que os olhos se habituassem ao escuro. Ouviu alguém na cama a ressonar baixinho. «Só me faltava ter entrado no quarto errado», pensou, imaginando um homem a dormir com a pistola carregada debaixo da almofada.

No entanto, estava habituado ao escuro e decorrido pouco tempo conseguia ver o suficiente para se mover. Quando se aproximou mais da cama, pareceu-lhe ver o contorno do corpo de uma mulher. Havia sílex e a mecha para fazer fogo na mesa de cabeceira e correu o risco de acender uma vela. Ao ver a pessoa deitada na cama, emitiu um suspiro. Era realmente uma mulher, mas tão feia como a bruxa de um conto de fadas infantil. Um grande nariz aquilino descaía sobre uns lábios finos e um queixo saliente. Tinha a cabeça coberta por uma enorme touca com folhos à volta.

E os seus olhinhos escuros estavam abertos.

– Desculpe, senhora – disse. – Devo ter-me enganado no quarto.

Num segundo estava de pé a fitá-la e no segundo seguinte encontrava-se na cama por cima dela, pois fora agarrado e puxado. Ela era uma mulher grande, não gorda mas cheia de músculo, com braços fortes e sentiu o seu corpo enorme por baixo dele.

– Você é um regalo – disse ela, tentando beijá-lo. – E acho que acertou no quarto.

– Minha senhora – começou, empurrando-a mas só conseguiu aterrar no outro lado da cama. Ela rolou imediatamente para cima dele.

– A porta está trancada, portanto, você entrou pela janela. Para que veio aqui? Para me roubar? Para se satisfazer comigo?

– Bem, não, eu, hum...

Ela estava sentada em cima dele com as fartas coxas a apertar-lhe os quadris. Tinha vestida uma camisa de noite branca tão curta que lhe permitia ver a maior parte dos seios pujantes. Não era jovem, talvez trinta e tal anos, e tinha muita força.

– Então? O que o fez vir aqui se não foi por mim? Foi por causa daquele magricela do meu marido?

– Sim – disse Angus agarrando-lhe nos pulsos e prendendo-os para que ela não lhe chegasse à cabeça. Era difícil pensar com uma mulher tão pesada em cima dele. Usando toda a força que conseguiu reunir, rolou debaixo dela. Quando ficou novamente em pé e lhe pareceu que ela se preparava para o atacar, ergueu a mão. – Tenha piedade, senhora.

Suspirando, a mulher voltou a deitar-se na cama.

– O que se passa? O James deve-lhe dinheiro e quer reavê-lo antes de partirmos?

– Sim – concordou Angus, radiante. – Isso mesmo. É então verdade que ele parte amanhã? Deve-me dez libras.

– Ele não as tem – informou a mulher, rolando o corpo para o encarar. – Porque não o humilha, passando a noite com a sua esposa?

– Por mais tentadora que seja a oferta... – replicou Angus tentando sorrir, mas continuando à defesa. – Então, ele casou? A senhora é a filha do conde?

– Sou – admitiu ela, virando-se de costas. – E sou muito parecida com o meu pai.

– Oh! Ele deve ter-se sentido orgulhoso – comentou Angus, tentando ser delicado.

– Tenho trinta e seis anos e acabei de me casar. O que lhe parece?

– Mas agora tem um marido – disse ele, começando a dar a volta à cama. Em cima da mesa de cabeceira encontrava-se uma daquelas garrafinhas que James Harcourt tanto gostava de dar a beber às mulheres da sua vida. Láudano. – Se é filha de um conde, então devo ir ter com o seu pai para cobrar a minha dívida.

– Ele tem menos dinheiro do que o James.

– Então... – começou Angus. Nesse momento, estava aos pés da cama e prestes a contorná-la para chegar à mesa. – Casou por amor.

A mulher soltou uma gargalhada e virou-se para ele.

– O James casou comigo por causa do título que passará para os nossos filhos. Sacana! Apenas fingiu que me amava. – Observava Angus à luz de uma única vela. – Por baixo de todo esse cabelo, você é um belo homem, não é? – No momento em que pronunciou as palavras, abriu muito os olhos e Angus percebeu que ela tinha visto os panfletos e o reconhecera.

– Acho que vai passar a noite comigo ou começo a gritar. Isso não lhe agradaria, pois não?

– Depende do motivo por que gritar – respondeu ele, aproximando-se.

– Não tem nada a ver com o meu marido – disse a mulher, de olhos brilhantes. – Não sei como teremos pirralhos, pois ele não é muito fornecido lá em baixo, se é que me entende.

– Entendo – replicou Angus, enquanto fazia deslizar a mão para o frasco com láudano. Pousou um joelho na cama e parou. – Como sei que é a noiva de James Harcourt?

– Pode procurar naquela arca. Todos os documentos estão lá dentro.

– Talvez, afinal, obtenha a paga junto da mulher de Harcourt – disse ele lentamente. – Mas tem alguma coisa que se beba? É o tipo de mulher capaz de pôr um homem com sede.

– Há uma garrafa de vinho na mesa.

– Ah, sim, estou a vê-la – disse Angus e apagou a vela.

Trinta minutos depois estava do lado de fora da porta e levava na mão uma carteira de cabedal cheia de papéis que encontrara na arca. Do interior do quarto chegava-lhe o som da mulher a ressonar. Acabara por ter de deitar a maior parte do láudano no seu vinho para a pôr a dormir. Na luta que antecedera o sono – com ela a puxá-lo e ele a empurrá-la – ficara com a roupa rasgada e desarranjada, mas descobrira o que tinha a certeza de se tratar de documentos comprovativos da relação dela com Harcourt.

– Ela não merece isto – murmurou em voz alta enquanto pensava em Edilean e tentava endireitar o que restava da camisa para esconder a carteira por dentro.

Em seguida, saiu pela porta da frente da estalagem. A próxima coisa a fazer era apanhar Harcourt e mantê-lo afastado do navio.


8

Angus dirigiu-se apressadamente ao pub e viu que Harcourt e os comparsas ainda continuavam a beber e a rir. Ao olhá-lo, Angus admirou-se como é que um homem podia viver com o que Harcourt planeava fazer. Casara com uma mulher para obter o título dela e roubava o dinheiro a outra para não ter de se sustentar.

E de que adiantava o título quando chegasse à América? Angus tinha ouvido dizer que aquela gente não acreditava na nobreza.

Angus estava demasiado cansado para pensar no assunto. Nesse momento, a raiva fervilhava-lhe no sangue e mantinha-o acordado, mas, quando tudo acabasse, quando a jovem partisse no navio, tencionava esconder-se em qualquer lado e dormir durante uma semana.

Harcourt saiu do pub na companhia dos outros homens, mas não tardaram a separar-se.

– Vais ter com a tua noiva, James? – gritou um deles num tom zombeteiro.

– Farás o primeiro filho esta noite?

– Talvez devesse contratar um desses escoceses para executar essa tarefa por mim – respondeu ele com voz arrastada.

Por um momento, Angus sentiu pena da mulher com quem ele tinha casado. Era grande, feia e muito forte, mas queria amor, como toda a gente.

Quando os homens se afastaram de Harcourt, Angus esgueirou-se para trás dele.

– O que quer de mim? – gritou Harcourt, assustado.

– Silêncio! Sou o condutor, lembra-se?

– Oh, sim, você. Sim, lembro-me de si. O que quer? Julgo que foi pago pelo seu serviço, portanto, vá-se embora.

– Ela quere-o.

– Quer sempre – replicou Harcourt, estremecendo. – De manhã, à tarde e à noite, ela quer mais.

– Mais do que você tem? – indagou Angus, baixinho.

– O quê?

– Você quer mais do que tem? – perguntou elevando o tom de voz.

– Do que está para aí a falar, homem? Desembuxe!

– Edilean Talbot quer vê-lo.

– Diga-lhe que a verei amanhã – respondeu Harcourt, começando a andar para a estalagem.

«Não está tão bêbado que esqueça as suas mentiras», pensou Angus.

– Não, sir – ripostou, quase se engasgando com o sir. – Ela quer vê-lo agora.

– Oh, percebo – redarguiu Harcourt com uma expressão no rosto que despertou em Angus o desejo de o esmurrar. – Agora. Esta noite. Sim, estou a perceber. O meu último hurra por assim dizer. A última vez...– acrescentou, examinando Angus atentamente. – E ela mandou-o para me dizer isso?

– Mandou.

– Suponho que lhe pagou para o fazer?

– Nem um cêntimo.

Angus sentiu novamente vontade de bater no homem.

– Acho que irei ter com ela. Você fica aqui. – Fitou Angus de alto a baixo, depois alisou a roupa e entrou.

Angus esgueirou-se atrás dele e, quando Harcourt chegou ao último andar, manteve-se escondido ao fundo do corredor.

Harcourt arranhou a porta com as unhas.

– Edilean? – sussurrou, deitando um olhar para as restantes portas do corredor. – Sou eu, James.

«Se ela tomou o láudano, nunca o ouvirá», pensou Angus, tentando urdir outro plano para chegar junto dela.

Contudo, subestimara Edilean. Ela abriu um pouco a porta e espreitou para fora.

– James? És tu?

– Sim, querida – respondeu ele, tentando não arrastar as palavras. – Não consegui ficar longe de ti. Quero ver-te uma última vez... quero dizer, antes de dormir. Posso entrar?

– Claro – anuiu ela. – És quase meu marido. – Abriu completamente a porta e Harcourt entrou no quarto com um tropeção.

Antes que ela fechasse a porta, Angus deslizou para o interior. Com um gesto rápido, agarrou num castiçal que se encontrava em cima da mesa junto à parede e atingiu Harcourt com força na cabeça. Ele caiu imediatamente no chão.

Ao ver que Edilean abria a boca para gritar, Angus fitou-a e disse:

– Não grite.

A jovem obedeceu, mas ajoelhou-se junto ao corpo de James.

– O que fez? Enlouqueceu? Dê-me aquele pano! Ele está a sangrar.

– Ele está bem – garantiu Angus, sentando-se numa cadeira. – Esta noite tem sido um inferno.

Edilean retirou um pano de uma bacia pousada na mesa e sentou-se no chão para limpar o sangue da cabeça de James.

– Fez isto por ciúmes? Não consegue suportar ver-me casar com outro homem? Qualquer homem? Até mesmo aquele que me ama? Ou é por causa do ouro? James, querido James, por favor, acorda.

Angus abanou a cabeça devido às coisas ridículas que ela dizia e tirou a carteira de dentro da camisa.

– Veja isto. Acho que servirá para explicar devidamente os meus atos.

– O que é isso? – perguntou ela, pegando na carteira, desapertando a fivela e examinando os documentos. – É a nossa passagem para a América. Tudo o que James e eu precisamos para entrar no navio está aqui. Até mesmo o nome do capitão. E eis a nossa certidão de casamento. É... – interrompeu-se. – Não entendo. O nome da certidão não é o meu e diz aqui que James casou na semana passada.

– O nome da mulher de Harcourt está aí, porque ele se casou com ela.

– Não – ripostou Edilean, impaciente. – Não é possível. Serei eu a mulher dele.

Angus encostou a cabeça ao espaldar da cadeira. Talvez adormecesse ali mesmo.

– Ele já tem uma mulher.

Edilean levantou-se e ficou em pé diante dele.

– Angus McTern, juro que se adormecer agora lhe baterei com o candelabro.

– À vontade – murmurou. – Assim, dormiria mesmo.

Edilean recuou o pé e deu-lhe um pontapé na canela, como já fizera por duas vezes. Contudo, esqueceu-se de que estava vestida com a camisa de noite e descalça.

Um momento depois, pôs-se a coxear pelo quarto, chorando de dor.

– Acho que parti os dedos do pé. A sua canela é dura como pedra! – exclamou, sentando-se ao fundo da cama para examinar os estragos.

Angus não conseguiu reprimir um sorriso. A jovem tinha um ar doce vestida com aquela camisa de noite branca, a agarrar no pé e a observá-lo. Ergueu-se da cadeira, sentou-se ao lado dela, levantou-lhe o pé e esticou cada um dos dedos.

– Nenhum deles está partido.

Edilean fitou-o, notou os olhos dele congestionados de fadiga, enquanto lhe segurava o pé na mão enorme e disse:

– Importa-se, por favor, de me dizer o que se passa? Porque bateu no James e quem é a mulher que consta da certidão de casamento?

Angus pôs-lhe o pé no chão, mas manteve-se sentado ao seu lado. Vestida com a roupa de dormir, ela parecia, se possível, ainda mais bonita.

– Como não confiava nele, segui-o e ouvi-o a falar sobre a mulher que é filha de um conde.

– Mas o meu pai não é conde.

– Eu sei – disse Angus. – É essa a questão.

Edilean começou finalmente a entender. Fitou James, deitado no chão, ainda inconsciente.

– A minha amiga, que é prima dele, contou-me que o James andava à procura de uma mulher com um título aristocrata.

– No entanto, concordou em casar consigo pelo dinheiro – disse Angus baixinho, admirando o cabelo dela à luz da vela. Ergueu a mão para lhe tocar, mas baixou-a mal ela se virou para ele.

– Ouvi o James a ordenar aos homens que metessem o ouro a bordo do navio. Ele planeava pôr-se ao largo com a sua mulher e o meu ouro?

– Sim – murmurou Angus.

– Mas ele não pode fazer uma coisa dessas – disse ela. – Esse ouro pertence-me, não a ele.

– Chama-se roubo e há muito tempo que se pratica.

– Por favor, pare de me tratar como se eu fosse uma criança idiota. E agora? O que hei de fazer?

– Acho que deveria partir para a América pelos seus meios. O seu dote já se encontra no navio e a passagem está reservada.

– Sozinha? Ir sozinha para um novo país?

Angus fitou o bonito rosto e pensou em como todos os bem-falantes e desonestos canalhas do país a perseguiriam e ela cairia diante do primeiro par de olhos azuis que lhe aparecesse.

– Apenas precisa de ter cuidado com os homens que andarão à sua volta – respondeu ele.

– O que significa isso? Até parece que sou algum monte de aveia.

– Da melhor qualidade.

Edilean inclinou-se para trás apoiada no braço e fitou-o.

– Porque tem as roupas rasgadas e que marca é essa no rosto?

– Eu, uh...– balbuciou Angus, tentando arranjar uma mentira.

– Obteve esses papéis da mulher dele, não foi?

– Sim.

Edilean saiu da cama e colocou as mãos nas ancas.

– Que encanto tem essa mulher para me privar do homem que amo e... e de si?

– De mim? – retorquiu surpreendido, mas os olhos brilharam-lhe de imediato. – Não são tanto as suas virtudes, como... bom, rapariga... – Esboçou um gesto com as mãos para mostrar uns seios enormes.

– Então, é isso? – disse Edilean. – Você e o James enamoraram-se de uma mulher com grandes...

Ao perceber que Angus estava outra vez a picá-la, abanou a cabeça com desdém e depois olhou para o corpo de James estendido no chão.

– Não posso ir sozinha para a América. Nunca fiz nada sozinha antes – decidiu, fitando-o novamente. – Você terá de ir falar com o capitão do navio e dizer-lhe que quero o meu ouro de volta.

– E digo que vou da parte de quem? De Mistress Harcourt? Esse ouro a bordo do navio está no nome dele e não no seu. Se qualquer de nós tentasse retirá-lo, levaria um tiro.

– Mas como viverei aqui sem dinheiro? Agora, não posso voltar para casa do meu tio, pois não?

– Não, não pode. Tem de fazer o que eu lhe disse: ir ao navio sozinha. Diga-lhes que é Mistress Harcourt e é viúva.

– Mas e se o capitão a conhece ou ao James?

– Leve um véu e ponha alguns enchumaços para parecer mais forte. Melhor ainda, informe o capitão de que se vai embora porque o Harcourt se casou.

– Não compreendo – disse ela, abrindo muito os olhos. – Oh, não, não. Não vou entrar naquele navio como... como a amante de James.

– É só por umas semanas. Quando chegar à América pode ser quem quiser. Mude de nome. Terá o ouro e ficará bem instalada na vida.

– E depois o que farei? Caso-me com um daqueles homens do Novo Mundo? Uns selvagens, como o meu tio lhes chama.

– Então, porque quis ir? – quase gritou Angus. Continuava sentado aos pés da cama e bastava-lhe inclinar-se para trás no colchão macio e fechar os olhos.

Foi com relutância que se levantou.

– Acho que... – começou, mas interrompeu-se visto que lhe caíra da camisa um dos cartazes que arrancara de um muro.

Edilean apanhou-o do chão e examinou-o.

– Este é o retrato que desenhei de si de memória. Acho que está bastante parecido, não está? – Ao ver que ele se limitava a ficar de pé a olhá-la, voltou a examinar o desenho e percebeu do que se tratava. – Isto é sério – sussurrou. – Tem de sair daqui. Tem de deixar a Escócia.

– Posso ir para Edimburgo ou para as montanhas. Posso...

– Não, não pode – discordou a jovem, ao mesmo tempo que se colocava na frente dele, com os olhos muito abertos. – Não conhece o meu tio como eu.

– Conheço-o há muito mais tempo do que você.

– Não se trata de uma questão de tempo, mas de o conhecer bem – quase gritou a jovem. – Não pode ficar aqui. O meu tio irá caçá-lo.

– Ficarei bem, rapariga – sorriu ele com um desejo tão forte de lhe tocar que quase se assemelhava a uma dor no peito.

Atrás deles, James gemeu e Angus estendeu a mão para o castiçal.


9

–Não se atreva! – ordenou ela e depois dirigiu-se à mesa de cabeceira, agarrou no frasco de láudano e despejou-o num copo de água. – Agarre-o enquanto o obrigo a beber isto.

Angus obedeceu.

– Então, não bebeu isso, como ele lhe disse que fizesse?

– Não, não gosto dessa mistela. Põe-me tonta. Vá lá, querido James, bebe o vinho. Isso mesmo. Lindo menino!

– Perdoou-lhe? – perguntou Angus, incrédulo.

– Ah! – exclamou Edilean dando um forte beliscão no braço de James. – Amanhã ele ficará com uma nódoa negra das grandes.

– Sem dúvida – concordou Angus.

– Se começar novamente a troçar de mim, não o ajudarei a fugir.

– Vai ajudar-me?

– Vou – disse ela, levantando-se. James rodeara-a com o braço, mas ela deixou-o tombar no chão. – Espero que parta o pulso – murmurou. – Enquanto você esteve para ali refastelado na cadeira e a cobiçar o meu pé, pus-me a imaginar um plano.

– Refastelado? – repetiu ele enquanto pousava a cabeça de James no chão. – A cobiçar? Isso não são maneiras de uma senhora falar.

– Nos últimos meses aconteceram-me coisas demasiado terríveis para que me porte como uma senhora. Se o fosse, não o deixaria ficar no meu quarto, estando eu com roupa de noite.

– Isso é verdade, mas gosto disso que tem vestido.

– Também gostou da mulher dele e, se se aproximar mais de mim, grito.

– É a segunda vez esta noite que uma mulher me diz isso.

Edilean voltou as costas e cruzou os braços sobre o peito.

– Muito bem – disse Angus, mas sem conseguir reprimir o riso. – Peço desculpa. Por favor, perdoe-me. E agora o que tem a dizer? Qual é esse seu plano?

Virando-se, Edilean olhou para James e depois para Angus.

– Já sei o que vamos fazer.

– Nós não vamos fazer coisa nenhuma. É você que vai subir para aquele barco e seguir para a América e depois...

– Você vai ser o meu marido.

– O quê?

– Diremos que é o irmão do James. Se o capitão conheceu o James, diremos apenas que houve um equívoco e que é o seu irmão Angus quem vai atravessar o oceano.

– Eu, seu marido? – ripostou Angus. – Enlouqueceu? Como é que posso ser seu marido? Olhe bem para mim.

– Usará a roupa do James. Se colocou o meu ouro a bordo, também deve ter levado roupas. Vestirá o que ele tem agora e mais tarde terá o guarda-roupa – decidiu, andando à volta dele. – Temos de lhe dar banho, cortar essa barba e lavar esse cabelo.

– Banho? Está doida, mulher? Morrerei.

– Terá uma morte muito pior se o meu tio o descobrir.

– Isto não me agrada.

– E acha que me agrada? O homem que amava... – Deu um pontapé nos pés de James, mas ele limitou-se a sorrir e enroscou-se no chão. Parecia bastante feliz.

Edilean olhou novamente para Angus.

– Tem razão. Não queremos que as pessoas o vejam. O retrato que fiz de si ficou demasiado parecido. Precisaremos de ajuda para um banho e portanto vamos esquecer essa parte.

O olhar de Angus deu-lhe a entender que achava a sua ideia disparatada.

– Como farei a barba? Não trouxe nenhuma navalha.

– E não saberia obviamente usá-la se tivesse uma.

Angus recuou na direção da porta.

– Tenho de arranjar maneira de voltar para o meu povo. Eles precisam de mim.

– Uma ova! – exclamou Edilean. – Ficarão muito bem sem si.

Angus afastou-se dela, mas levou a mão à barba. Tendo em conta que metade da Escócia andava à procura de um homem com uma barba enorme e cabelo desgrenhado, talvez não fosse má ideia cortar a barba.

Quanto às roupas, olhou para James enroscado no chão e não duvidou de que o seu colete era de seda. O que faria um homem como Angus com roupa de seda?

– Estou à espera – disse ela. – O que tem a dizer? É um cobarde ou tem coragem de ir para um país onde não conhece ninguém?

– Não posso fazer isso – respondeu ele –, mas talvez barbear-me e ficar diferente do retrato que fez de mim fosse boa ideia. Diga-me, rapariga, o que a possuiu para desenhar uma imagem tão parecida? Planeava colocá-la debaixo da almofada para sonhar comigo?

– Não tenho tempo para lidar com a sua vaidade. Tem de tomar uma decisão agora. E não o ajudarei a fazer a barba e a cortar o cabelo se não for para a América comigo.

– Vai fazer-me a barba? – perguntou ele com um olhar trocista. – Talvez, afinal, deva tomar um banho. Gostaria que me desse uma ajuda nisso.

– Está a abusar da minha paciência. Não vou permitir mais brincadeiras. Tem de decidir. Se não o fizer, sairá por aquela porta e nunca mais o verei.

– Nem uma única vez? – perguntou ele. – Todo o escocês precisa...

Edilean dirigiu-se à porta, abriu-a e ficou de pé junto dela, à espera que ele se fosse embora.

Angus não se mexeu. Sabia que deveria fazê-lo. Se lhe restasse algum juízo, sairia do quarto sem olhar para trás, mas uma parte dele reconhecia que aquela era uma oportunidade que só se tem uma vez na vida. Independentemente do que fizesse agora, sabia que não poderia regressar a casa. Não poderia ir ter com a irmã e nunca mais atiraria as crianças ao ar. Não voltaria a ver o seu tio Malcolm nem qualquer dos outros membros do clã McTern.

– Então? – perguntou Edilean. – Fica ou vai?

– Acho que vou ficar – respondeu baixinho.

– Irá para a América comigo?

– Sim, rapariga, irei.

Edilean fechou a porta e virou-lhe as costas, tentando compor a expressão para que ele não visse a sua alegria. Sabia que não poderia ficar em Inglaterra ou na Escócia, mas a ideia de ir para um novo país sozinha estava acima do limiar das suas forças. Quando se voltou novamente para ele, tinha controlado as emoções. Examinou-o e interrogou-se como ia transformá-lo para que as belas roupas de James não parecessem estranhas no seu corpo. Contudo, Edilean não tinha nada com ela. Vestira a camisa de noite por baixo do vestido e metera uma escova com cabo de tartaruga no bolso, mas não tinha tesoura, nem navalha.

Ao fitá-lo, verificou que ele começava a fechar os olhos. Que Deus a ajudasse, mas a verdade é que ele estava prestes a adormecer de pé!

– Como conseguiu os papéis da mulher de James? – inquiriu, quase se engasgando na palavra mulher.

– Láudano – murmurou ele. – O Harcourt dá-o a beber a todas as mulheres. Deve cultivar papoilas no quintal.

– Se o James pudesse dar-se ao luxo de ter um jardim, eu não estaria metida nesta confusão – comentou Edilean. – Está a querer dizer-me que ela ainda continua a dormir?

– Assim espero.

Edilean colocou a mão no fundo das costas dele e empurrou-o para a porta.

– Quero que volte ao quarto dela e me traga coisas. Preciso de uma tesoura, de um pente e de uma escova resistente, bem como de material para barbear.

– E como vou encontrar essas coisas? – retorquiu ele, despertando um pouco. – Não percebo de coisas de senhora.

– Se alguma vez cortasse o cabelo, saberia que os homens também usam um pente. E uma navalha. – Ao olhá-lo, percebeu que ele nunca arranjaria tudo o que ela precisava. – Como entrou no quarto?

– Pela janela. Mas saí pela porta. Se ela ainda estiver a dormir, a porta está destrancada.

– Então, irei consigo. Ajude-me a tirar o casaco ao James.

– Quer despir o homem?

– Por favor, não se ponha com pruridos. Vestirei o casaco por cima da camisa de noite e vamos vasculhar o quarto dessa mulher.

– Devia pôr a sua roupa – criticou ele num tom duro.

– Não tenho tempo para atar um espartilho e não caibo no meu vestido se não o puser. Despache-se. Só nos restam umas horas até amanhecer e depois temos de entrar no navio.

Angus abanou a cabeça algumas vezes para afastar o sono e depois ajudou-a a despir o casaco a James. Edilean deu-lhe mais um beliscão no braço quando ele estava apenas em camisa.

– Desavergonhado! – insultou.

– Apaixonou-se rapidamente por ele!

– Ele casou com outra e roubou-me o dote. São duas coisas que uma mulher não pode tolerar.

– Vou lembrar-me disso da próxima vez que uma mulher me ame.

– Devia lembrar, sim – concordou ela enquanto enfiava os braços no pesado casaco e alisava as mangas com as mãos. Dissesse o que se dissesse de James, bom gosto não lhe faltava. – Está pronto?

Angus sorriu-lhe. Ela ficava bem com a comprida camisa de noite branca e o casaco de homem por cima. O casaco era vermelho-escuro com forro de seda cor de vinho e as cores assentavam-lhe na perfeição. Agarrou na vela e saiu do quarto com Edilean atrás dele.

Ela estava descalça e, mal os pés tocaram no chão sujo do corredor, soltou um grito, mas Angus fitou-a com dureza e ela parou de se queixar. Desceram três lanços de escadas até ao rés do chão e Angus dirigiu-se à porta do fundo. Levou os dedos aos lábios, fazendo-lhe sinal para que ficasse quieta enquanto ele abria lentamente a porta. Ficou um momento à escuta, ouviu o ligeiro roncar da mulher de Harcourt e depois fez sinal a Edilean para que entrasse.

Quando se viram lá dentro e a porta se fechou atrás deles, Edilean dirigiu-se imediatamente à cama para ver a mulher. Angus impediu que o fizesse. Sabia que não havia qualquer razão para que ela deixasse de espreitar a mulher de James, mas não queria que o fizesse porque ela rir-se-ia e ficaria aliviada por James estar preso a uma mulher feia, por isso Angus não queria que Edilean visse a verdade.

Agarrou-lhe no braço e encaminhou-a para o baú que estava ao canto do quarto. Era pequeno, com uma tampa abaulada, e ele calculava que todos os pertences que ainda não se encontravam no navio estavam ali dentro e que o levariam com eles ao partirem de manhã.

Quando Angus acenou com a cabeça para a arca, Edilean avançou e abriu-a.

Em cima havia um estojo de cabedal com material da barba e por baixo o que pareciam ser vestidos dobrados. Edilean estendeu a mão para um deles, mas Angus indicou-lhe com um sinal de cabeça que não era o momento adequado para se pôr a ver a roupa. Sabia que ela tinha apenas o que vestira ao fugir, mas sabia também que os vestidos da arca seriam grandes de mais para ela.

Edilean obedeceu contrariada e pegou numa caixinha de costura que se encontrava enfiada num dos lados. Devia ter uma tesoura lá dentro.

Quando Angus se dirigiu à porta, julgou que Edilean ia atrás dele, mas, ao virar a cabeça, viu que ela estava junto à cama, puxando o cobertor para trás para espreitar a mulher adormecida. Angus prendeu-lhe a mão no preciso momento em que ela estava quase a ver o rosto da mulher.

Não a soltou até estarem fora da porta no corredor.

– Só queria vê-la – sussurrou ela. – O que tem de mal? Tanto você como o James elogiaram a beleza dela e disseram como gostariam de passar a vida ao seu lado, portanto, é muito natural que quisesse dar uma espreitadela.

– Passar a minha vida ao lado dela? – retorquiu Angus no mesmo tom, quando começaram a subir as escadas. – Enlouqueceu de vez? Foi mordida por um cão raivoso?

– Sim, por um chamado James Harcourt – murmurou Edilean irritada.

Angus parou nas escadas, ergueu a vela e disse:

– Quero acreditar que isso foi uma piada, rapariga.

– Foi mesmo. Talvez seja uma doença e a tenha apanhado de si – respondeu, passando por ele nas escadas, mas com um sorriso nos lábios.

Mal regressaram ao quarto, Edilean tirou o casaco, disse a Angus que se sentasse e depois começou a andar à volta dele, examinando-lhe a cabeça e tentando imaginar como levar a tarefa a bom termo.

– Isto é mais do que pode fazer – disse ele. – Acho melhor esquecermos tudo e eu partir para as montanhas esta noite.

Edilean pôs-lhe a mão no peito e empurrou-o para trás, na cadeira.

– O melhor seria rapar-lhe a cabeça e arranjar uma peruca.

Angus levou a mão à cabeça em sinal de protesto.

– Mas não temos tempo para isso. Primeiro, tenho de o desembaraçar e depois vou cortá-lo. Mal esteja atado atrás, passo à cara. Isso levará horas.

Angus não tinha a certeza se lhe agradaria que alguém se ocupasse dos seus cabelos, mas assim que ela lhe tocou, descontraiu-se.

– Vá lá. Adormeça – ordenou ela. – Dispenso a sua troça enquanto executo este trabalho.

– Adormecer tendo uma mulher armada com uma tesoura tão perto do meu rosto? Não confio em si a esse ponto – disse meio a sério, meio a brincar. Contudo, no minuto seguinte deixou pender a cabeça para a frente e adormeceu.

Edilean ficou satisfeita por ele ter adormecido, visto que podia finalmente descontrair-se. Roubava-lhe muita energia fingir que era forte e que sabia o que devia fazer com a sua vida – e o que outra pessoa devia fazer. No espaço de uma noite passara do estado de paixão por James Harcourt – fitou o corpo que permanecia estendido no chão – a ficar sozinha no mundo. Pelos vistos, de momento apenas lhe restava aquele homem que vincara frequentemente a sua opinião de que ela não servia para nada, que era alguém de quem ele tinha de cuidar dia e noite.

Quando a cabeça de Angus lhe descaiu sobre o peito, ela agarrou no jarro de água e começou a desfazer lentamente com o pente os milhares de nós do comprido e espesso cabelo de Angus. Não lhe contara, mas nunca estivera tão próximo de um homem. Passara obviamente alguns momentos com homens que roubavam beijos às escondidas, incluindo James, mas nunca estivera sozinha num quarto com um homem e a mexer-lhe no cabelo.

Levou mais de uma hora a desembaraçá-lo. Por duas vezes teve de usar a tesoura e cortar um nó que não conseguia desfazer. E por várias vezes ele quase acordou quando ela puxou com força de mais. Por fim tinha conseguido enfiar o pente pelo meio e depois apará-lo à altura dos ombros. Tirou a fita de seda preta de James e colocou-a no cabelo de Angus.

Quando terminou, pôs-se na frente dele para examinar a obra. Já conseguia ver-lhe a testa e o seu formato bem delineado. Passou-lhe os dedos pela face e retirou-os quando ele se mexeu no sono e quase acordou.

Em seguida, teve de lidar com aquela sua barba horrível. Tinha a certeza de que ele acordaria quando começasse a usar a tesoura, mas isso não aconteceu. Contudo, no íntimo, sabia que se fizesse algo como acionar o gatilho de uma arma, ele acordaria num segundo. Fazia-lhe bem pensar que confiava nela a ponto de a deixar usar a tesoura próximo do seu rosto.

Demorou algum tempo a cortar as patilhas a uma altura que lhe permitisse rapá-las. Nessa altura já tinha acumulado um grande monte de cabelo que juntou e atirou pela janela. Ao fazê-lo, olhou para o céu. A manhã estava a chegar, trazendo o sol. Dali a pouco estariam a bordo do navio.

Quando Edilean se virou, soltou uma exclamação abafada. Angus continuava a dormir, com a cabeça apoiada no espaldar da cadeira. O cabelo já não se destacava e estava habilmente amarrado na nuca. A barba já não lhe cobria o pescoço e limitava-se a alguns cabelos pretos.

Pestanejou várias vezes, observando-o atentamente. Não estava muito certa, mas achava que talvez fosse atraente. Não, não só atraente, mas bonito. Talvez até mais bem-parecido do que James, mas moreno, com cabelo preto e pestanas escuras.

Em miúda vira frequentemente o pai a barbear-se e esperava lembrar-se de como o fazer. Não tinha água quente e por isso teria de se contentar com água fria e a espuma perfumada de James.

Colocou a espuma fria no rosto e ele apenas se mexeu, porém, quando segurou na comprida navalha, ele agarrou-lhe no pulso de olhos bem abertos e fixos.

– Para lhe cortar a garganta, tem de me soltar – disse ela calmamente.

– Isso. Mate-me durante o sono – murmurou ele. – Quase me esqueci do plano.

Largou-lhe o pulso e adormeceu novamente.

Edilean maravilhou-se com a sua capacidade de dormir – e gracejar – durante todo o processo. Manteve-se totalmente imóvel enquanto ela o barbeou, removendo todos os pelos do rosto e do pescoço. Quando terminou, recuou e fitou-o incrédula. Angus tinha grossas sobrancelhas pretas, pestanas espessas, um nariz e lábios perfeitos... Achava que nunca tinha visto lábios tão bonitos num homem. Eram cheios e macios, esculpidos como os de uma estátua. Comparado com ele, James tinha uma aparência vulgar.

«Ele deve estar consciente disto», pensou. Ninguém poderia ter aquela aparência sem o saber. Teria deixado crescer aquela barba enorme para ocultar o rosto?

– Mister McTern – chamou baixinho. – Chegou a altura de se levantar. Tem de se vestir. Não tardaremos a subir para o navio.

Ele não se mexeu.

– Angus! – quase gritou. – Acorde!

Ele abriu lentamente os olhos e fitou-a com um sorriso. Ao virar a cabeça sentiu a leveza e passou a mão pela face barbeada.

– O que me fez?

– O que deveria ter sido feito há muito – respondeu. – Agora tem de parar de dormir e preparar-se para partirmos. Devemos tirar as roupas ao James e eu preciso de me vestir. Desculpe, mas terá de me ajudar com os atilhos do meu espartilho.

– Do seu...

Ao olhá-lo, viu que ele tinha corado.

– Deus do céu, McTern dos McTern, está a corar?

– Não... – disse ele, mas voltou costas quando se levantou. – Terá de me mostrar como... como fazer o que precisa que faça.

– Descanse que assim será – prometeu ela, dissimulando um sorriso.

Tirou do armário as roupas que usara no dia anterior e estendeu-as em cima da cama, sem deixar de observar Angus. Achara que ele gostaria de se ver num espelho. Devia ter passado muito tempo desde que se vira sem aquela barba, mas tanto quanto lhe pareceu, ele não mostrou a mínima curiosidade.

Viu-o inclinar-se e agarrar James por baixo dos braços, após o que o puxou para cima da cama. Por um momento, Angus manteve-se imóvel, fitando o homem deitado na cama, embrenhado num sono feliz.

– Isto não me agrada – disse Angus. – Não está certo roubar a roupa a um homem desta maneira.

Edilean rolou os olhos, dirigiu-se a James e desapertou-lhe o nó da gravata.

– Nesse caso, dispo-o eu.

– Nem pensar – ripostou Angus, parecendo chocado com a ideia. – Eu trato dele. Vá fazer o que precisa de fazer.

Edilean olhou pela janela. O tom rosa do alvorecer aproximava-se.

– Acho que devíamos ir ao quarto da mulher assim que estivermos vestidos. Tenho a certeza de que o James mandou alguém vir despertá-lo para chegar a tempo ao navio. Ele gosta de ficar levantado até tarde e detesta acordar cedo.

– Boa ideia – concordou Angus.

Estava do outro lado da cama e as cortinas do dossel não lhe permitiam ver o que ele fazia, mas a jovem ouviu o remexer de roupas enquanto ele despia as que tinha no corpo e enfiava as de James. Um sentimento estranho apoderou-se de Edilean. A poucos metros dela encontrava-se um homem em trajes menores. E não era um homem qualquer, mas aquele que a tratara com bondade. Nem sempre, mas a verdade é que tinha tomado conta dela. Sem o seu auxílio, naquele momento estaria a dormir na estalagem e James e a mulher não tardariam a seguir no navio com o seu dote.

– Preciso de ajuda com os atilhos – disse baixinho. Vestira o espartilho por cima da camisa de noite, mas os atilhos eram nas costas. – Posso chegar aí?

Angus deu alguns passos para alcançar os pés da cama e Edilean fitou-o boquiaberta. Ele tinha vestidos os calções justos cor de canela de James e a camisa de mangas compridas e nada mais. Uma vida ao ar livre, em cima de cavalos e a subir montanhas, tinha-o agraciado com pernas musculosas.

Angus sorriu-lhe e ela percebeu que ele lhe lera o pensamento.

Não estava disposta a dizer-lhe que ele tinha uma beleza de cortar a respiração. Virou-lhe as costas para que ele lhe apertasse os atilhos.

– Quando chegarmos ao navio, será melhor você não dizer nada – avisou ela.

– Nem uma palavra? – retorquiu Angus, agarrando nos resistentes atilhos e puxando o duro espartilho.

– O seu sotaque e a sua maneira de falar irão denunciá-lo. É melhor que seja eu a encarregar-me da conversa.

Angus deu um apertão tão forte nos atilhos do espartilho que quase lhe quebrou as costelas.

– Está a pensar cortar-me ao meio?

– Julguei que queria uma cintura tão fina como a das outras mulheres. Peço desculpa. Vou afrouxar os atilhos.

– Pode apertar ainda mais – disse Edilean, rangendo os dentes.

– Quer, então, uma cintura média?

– Eu... – começou, mas sabia que a culpa era dela. Agarrou-se ao poste da cama enquanto ele puxava. – Está bem! Tem uma boa aparência e pode dizer o que quiser. Quero lá saber. Pela minha parte, até pode dançar em cima de espadas cruzadas.

Quando ele amarrou os atilhos de baixo, ela fitou-o e detetou aquele olhar de troça que começava a conhecer.

– Você é um homem terrível, sabia?

Angus regressou ao outro lado da cama, agarrou no colete e vestiu-o enquanto Edilean enfiava o vestido. No dia anterior dera o seu melhor para sacudir a poeira, mas não fora totalmente bem sucedida. Esperava que houvesse um armário cheio de roupas a bordo do navio. Sabia que teria de apertar os vestidos, pelo menos no busto, mas conseguiria fazê-lo.

Quando ficou pronta e com o cabelo alisado para trás, avançou ao encontro de Angus. Ele estava encostado ao poste da cama, de olhos fechados e com o colete mal abotoado.

– Vá lá. Acorde – ordenou ela enquanto desapertava os botões do colete e os apertava devidamente.

– Tive um sonho consigo – disse ele baixinho, fitando-a à luz da vela e do alvorecer róseo que entrava pela janela.

– Um sonho bom? – perguntou enquanto segurava no casaco de James para que ele o vestisse.

– Do melhor que há. Estávamos os dois num campo. Via tudo com clareza. Não era a Escócia, mas um lugar que nunca tinha visto antes.

– Talvez fosse a América.

– Talvez – concordou ele num tom meigo e estendendo a mão para lhe tocar no cabelo. Ficaram uns momentos a olhar um para o outro e ela inclinou-se na sua direção. – Quando chegarmos à América, vou dar-lhe algum do meu ouro e poderá... – Interrompeu-se ante o olhar que ele lhe lançou.

– Se repetir isso, rapariga, afasto-me de vez.

Aquela irritação não deixou dúvidas a Edilean de que ele cumpriria a palavra. Ia a desculpar-se, mas no momento seguinte um raio de sol infiltrou-se no quarto e perdeu a oportunidade.

– Temos de ir – disse Angus.

Com uma das mãos agarrou nas botas de James e com a outra na de Edilean que levou com ela os utensílios de barbear e de costura.

Desceram as escadas a correr e Angus arrastou Edilean atrás dele, sem nunca a largar. Ao chegarem ao quarto, tinham acabado de fechar a porta atrás deles e mantinham-se de pé, ofegantes, quando o dono da pensão bateu.

– A sua carruagem chegou! – gritou ele, sem, pelos vistos, se preocupar por poder acordar os outros hóspedes.

Angus saiu do quarto com Edilean atrás dele, mas quando a jovem avistou o cocheiro na ombreira, voltou novamente ao quarto, fechou as cortinas da cama e disse ao cocheiro que fosse buscar o baú que estava no canto e não acordasse a irmã adormecida. Edilean certificou-se que Angus não dava pelo que ela fazia, pois sabia que ele não aprovaria. Ia levar as roupas da mulher. Edilean ignorava o que fora transportado para o navio e não queria passar as várias semanas de viagem com um único vestido.

No exterior da estalagem tinham à espera uma bela carruagem alugada puxada por quatro elegantes cavalos.

– O James não olha a gastos quando se trata dele, pois não? – comentou ela num tom sarcástico.

– Acha que podemos arranjar qualquer coisa para comer antes de partirmos? – perguntou Angus enquanto tentava mexer os braços dentro do casaco apertado.

– Pensa em mais alguma coisa além de comer e dormir? – ripostou Edilean.

– Sim – disse Angus lentamente –, mas não quando estou na companhia de alguém tão mal-humorado como você. Apertei-lhe demasiado os atilhos?

Edilean recostou-se no assento e fechou momentaneamente os olhos.

– Apenas me sinto nervosa. Sei que o meu tio sabe quem é o James através da carta que me roubou e ele...

– Contou isso ao Harcourt?

– Sim – disse Edilean. – Quando escrevi ao James da segunda vez contei-lhe tudo, mas o meu tio pode ter feito algumas investigações para descobrir se o James reservou passagem no navio. Ele podia...

Interrompeu-se porque a carruagem parou de repente e ouviu homens a gritar.

– Fique quieta – ordenou Angus. – Eu trato do assunto.

– Você? Mas... – Calou-se ante o olhar dele.

A porta da carruagem abriu-se com força para trás e dois homens de aparência rude espreitaram para o interior. Angus não se mexeu, mantendo-se encostado no banco e fingindo arrancar um fio de tecido do punho.

– Viu este homem? – perguntou um dos homens erguendo a fotografia de Angus diante dele.

– Não me parece – respondeu Angus, mal olhando para o panfleto. – Teria gritado por socorro caso tivesse visto um rufia como esse.

No banco em frente dele, Edilean deixou cair o queixo, surpreendida. O habitual sotaque escocês arrastado de Angus desaparecera e dava a sensação de que ele tinha sido educado nos salões londrinos.

– Quer fazer o favor de fechar a porta, meu bom homem? – pediu Angus ao mesmo tempo que levava um lenço rendado ao nariz. – O pó não me faz nada bem.

O homem a quem faltavam dois dentes à frente fitou Edilean e depois algo que tinha na mão.

– Eh, ela é parecida com a senhora que fugiu ao tio. Ele dá uma recompensa pelo seu regresso.

– Está a dizer que a minha mulher se parece com outra pessoa? E ele tem dinheiro? Onde é que mora esse homem, meu velho? Vamos visitá-lo e dizer-lhe que esta é a sobrinha fugitiva. Acha que ele acreditaria em nós?

– Maldito burlão – insultou o homem enquanto fechava a porta da carruagem com força. – Sigam.

Angus voltou a enfiar o lenço no bolso e fitou Edilean que o olhava boquiaberta.

– Tem alguma coisa a dizer?

– Não. Nada – respondeu ela, pestanejando. – Mas onde é que aprendeu a falar assim?

– De ouvido. Não é fácil – afirmou com o sotaque habitual. – Gostava que passasse a falar sempre como o Harcourt?

– Não – apressou-se ela a responder. – Não gostava.

Angus sorriu, virou-se para olhar através da janela e um momento depois disse:

– Já vejo o navio. Estamos quase a chegar.


10

Edilean sentia-se muito nervosa e não desviou o olhar de Angus enquanto subiam o passadiço de acesso ao navio.

– Acalme-se – pediu Angus. – Está a tremer tanto que receio que possa cair na baía.

– E se o capitão conhece o James e diz que o raptámos?

– Como iria ele saber isso? – perguntou Angus surpreendido e depois sorriu. – Quer que seja eu a encarregar-me da conversa? – Enquanto pronunciava as palavras ofereceu-lhe o braço e ela aceitou.

Edilean sabia que Angus estava a cobrar a paga por ter dito que devia ser ela a falar, mas sentia-se demasiado nervosa para retorquir.

– Ah, Mister e Mistress Harcourt – cumprimentou o capitão Inges, mal eles subiram a bordo. – Finalmente, conhecemo-nos.

Estendeu a mão para apertar a deles e recordou-lhes o seu nome. Era um homem mais velho, bastante alto e com um sorriso simpático e não conseguia desviar os olhos de Edilean.

– Não fazia ideia de que era tão bonita. Tinha ouvido... outra coisa – acrescentou.

Angus pousou a mão sobre a que ela mantinha no seu braço e esboçou um sorriso encantador.

– Minha querida, será que o patife do teu irmão andou novamente a contar mentiras a teu respeito? – Fitou o capitão. – Disseram-lhe que ela era alta, forte e nada que valesse a pena olhar?

O capitão esboçou um sorriso de entendimento.

– Sim, acredito que servi de alvo a esse gracejo, mas fico satisfeito por verificar que se tratava exatamente disso. Devem querer instalar-se e vou mandar o primeiro imediato mostrar-lhes o vosso camarote. Espero que jantem comigo esta noite e provavelmente vão desejar tomar o pequeno-almoço nos vossos aposentos.

– Sim – disse Edilean sem largar o braço de Angus. – O meu marido está com muita fome e gostaríamos de comer alguma coisa imediatamente.

– Por favor, venham por aqui.

Contudo, antes de darem um passo, o capitão franziu a testa quando um dos seus oficiais lhe sussurrou algo. O capitão Inges virou-se e fitou Angus e Edilean.

– Receio ter más notícias. Como sabem, não costumamos servir de navio de passageiros, mas, por vezes, como no vosso caso, transportamos algumas pessoas. Todavia, nesta viagem coube-me o infortúnio de ter de levar nove prisioneiras para a América.

Voltando-se, Edilean olhou para o cais e avistou várias mulheres com grilhões nos pés que os fitavam. Aproximou-se mais de Angus.

– Lamento – desculpou-se o capitão Inges – e compreenderia se preferissem adiar a viagem.

– Não! – recusaram Angus e Edilean ao mesmo tempo.

– Tudo correrá bem – pronunciou-se Angus. – Não somos sensíveis ao ponto de deixar que algumas prisioneiras nos incomodem, pois não, querida?

Ao ver que Edilean não dizia nada, percebeu que ela observava as mulheres enquanto subiam o passadiço. A maioria estava suja e parecia exausta e desamparada, mas a terceira da fila examinava o que a rodeava com um sorriso insolente, como se achasse que tudo aquilo era uma farsa. Tratava-se de uma mulher alta, com mais uns centímetros do que Edilean, forte e com uma cara bonita de faces rosadas.

Quando a mulher viu Angus, arregalou momentaneamente os olhos e depois bateu as pestanas de uma forma coquete.

Edilean chegou-se mais a ele e agarrou-lhe no braço com mais força. Angus baixou a cabeça e sorriu-lhe, julgando que ela estava com medo das prisioneiras. Recuou para as deixar passar, mantendo uma expressão séria quando algumas delas fizeram comentários a seu respeito.

– Ele não é mesmo uma beleza, Cor? – perguntou uma delas.

Quando finalmente as prisioneiras e os seus dois guardas se afastaram e as mulheres haviam sido levadas para dentro do navio, o capitão renovou as desculpas.

– Lamento esta situação. Faremos obviamente o possível por mantê-las afastadas da vossa presença.

– O que fizeram elas? – perguntou Edilean, olhando para a última mulher a descer a escada.

– Vários tipos de crimes. Sobretudo roubo. Contudo, não mereciam o enforcamento, apenas o degredo para a América. Nunca mais poderão regressar a Inglaterra.

– E isso é um castigo para elas? – indagou Edilean.

– Os juízes acham que sim, mas eu gosto do novo país, principalmente de Virgínia.

Edilean abriu muito os olhos.

– Terá de nos contar tudo sobre isso – disse ela, erguendo o rosto para Angus. – Não é verdade, querido?

Angus observava de sobrolho franzido o sítio para onde as mulheres tinham descido.

– Posso então esperá-los para jantar esta noite?

– Com todo o prazer, não é verdade? – disse Edilean olhando novamente para Angus, mas ele continuava de sobrolho franzido e ela beliscou-lhe o braço com força.

– Oh, sim – concordou ele, parecendo voltar a si.

– O capitão Inges convidou-nos para jantar com ele. Gostaríamos, não é verdade?

– Oh, sim – repetiu. – Isso seria... – Pareceu dar-se conta de que voltara ao antigo sotaque e corrigiu-se. – Claro que gostaríamos – anuiu com o sotaque de James Harcourt.

– Nesse caso vou deixar, Mister Jones mostrar-vos o vosso camarote.

Edilean e Angus seguiram o homem jovem pela escada situada num dos extremos do navio até ao convés inferior. Quando ele abriu a porta, Edilean sorriu. O fundo da divisão era uma janela.

– Que bonito! – disse ao jovem oficial.

– Este costuma ser o camarote do capitão, mas cedeu-vo-lo para esta viagem. Devem ter feito algo que lhe agradou.

– Precisarei de uma rede aqui – declarou Angus num tom brusco.

– Uma rede? – surpreendeu-se o oficial.

– Sim.... É onde os homens dormem, não é? – Havia uma cama estreita de madeira ao fundo do camarote. – Essa é demasiado pequena para mim – disse Angus.

– Mas o capitão mandou-a fazer para ele e ele é...– começou o oficial.

– O meu marido está a ser gentil – explicou Edilean. – É por minha causa. Estou... grávida e ele teme pela minha saúde, por isso precisa da sua própria cama.

– Ah, percebo – disse o homem com um sorriso. – Verei o que posso fazer. E aqui têm o pequeno-almoço. Apreciem a fruta, pois não durará muito tempo.

Um marinheiro trouxe uma bandeja com pão, ovos cozidos e cerejas, além de grandes canecas de cerveja e pousou-a em cima da mesa redonda junto à janela envidraçada.

Quando ficaram a sós, Angus e Edilean dirigiram-se à mesa e praticamente atacaram a comida.

– Grávida? – disse Angus. – Essa foi rápida.

– Não tanto como o que você fez com aquelas prisioneiras – replicou ela enquanto tirava a casca a um ovo. – O que lhe deu para as olhar daquela maneira?

– Recordaram-me de como estive próximo de me ver na mesma situação. Se as coisas tivessem corrido de outra maneira, eu poderia estar naquele porão.

– Mas não com aquelas mulheres – retorquiu Edilean.

– Não com aquelas mulheres – concordou, sorrindo. – Então, o que faremos nesta viagem? Vai demorar três semanas, talvez mesmo seis, se estiver mau tempo. Como vai ocupar-se?

– A ler, suponho. Interrogo-me se o capitão terá alguns livros que possa emprestar-nos. Talvez possa lê-los para mim.

Angus arqueou uma sobrancelha enquanto aceitava o ovo descascado que ela lhe estendeu.

– O que significa esse olhar?

– Quando teria eu ido à escola para aprender a ler e a escrever?

Edilean fez uma pausa com uma cereja na boca e a mão a agarrar no caule.

– Então serei sua professora.

– Não preciso que seja minha professora – retorquiu ele, com um esgar.

– Não é interessante como o seu humor muda completamente quando você deixa de ter o controlo? Porque o enfurece a ideia de que eu... uma inútil, sem préstimo... poderia ensinar o seu grande e glorioso ser?

Angus baixou mais a cabeça para o prato, mas ela apercebeu-se que o sorriso desaparecera.

– Glorioso, eu?

– Aos seus olhos, é o que parece – disse ela. – Espere aí! Não pode comer o resto da fruta!

– Acha que não? – respondeu ele enquanto agarrava num punhado de cerejas e se afastava.

– Seu porco! – insultou a jovem, correndo à volta da mesinha para as apanhar.

Angus manteve-as no ar e Edilean agarrou-lhe no pulso no preciso momento em que ele as mudava para a outra mão.

– Seu escocês... egoísta! – disse ela, tentando apanhar as cerejas.

Angus sorria.

– Isso é o pior que consegue para me chamar? Não aprendeu nada nessa escola de ricos onde andou?

– Nada que dissesse a um homem – respondeu e fez uma investida contra ele que os colocou peito a peito enquanto ela erguia a mão para conseguir as cerejas.

O rosto dele estava a menos de dois centímetros e ela sentiu o cheiro da espuma que usara para o barbear. E havia outro cheiro nele, o de homem.

– Está a pedir mais do que conseguirá aguentar? – perguntou ele e inclinou-se um pouco como se tencionasse beijá-la.

Edilean virou a cabeça, como se fosse aceitar o beijo, mas depois agarrou nas cerejas e fugiu para longe dele.

– Estas são mais doces – disse, levando uma cereja à boca.

– Como pode conhecer o sabor de uma fruta sem nunca a ter provado?

– Tenho uma grande imaginação – respondeu, acabando de comer as cerejas. – Mmmm! Que delícia!

Angus dispunha-se a correr atrás dela, mas parou e, em vez disso, sentou-se e fitou-a com uma expressão séria.

– Sinto-me tão feliz por estar longe de tudo aquilo que poderia... quase poderia voar. – Esticou os braços e pôs-se a dançar à volta da pequena divisão. – Não me casei com nenhum daqueles homens horríveis e vou para um país completamente novo. – Quando parou, olhou para ele e viu que estava de testa franzida.

– Ná... – disse ele. – Isto não pode ser assim.

Edilean sentou-se na cadeira em frente dele.

– O que é que não pode ser?

– Isto – respondeu ele baixinho. – Esta provocação, este... este jogo, este toca e foge.

– Não lhe agrada? – perguntou ela, sorrindo e batendo as pestanas.

– Agrada-me de mais.

– Então, qual é o problema?

– Pare com isso!

– Paro com o quê? – replicou, olhando-o.

– Não sou um dos seus janotas com quem pode namoriscar e gracejar à vontade. Embora me tenha vestido como um desses empinocados, continuo a ser Angus McTern, um homem que passou mais tempo ao ar livre do que dentro de uma casa. E nunca vivi numa dessas casas luxuosas onde você morou.

– Sou portanto uma snobe? – perguntou ela. – Acrescentamos isso à lista de coisas que me reprovou? Na sua opinião, não sei fazer nada, não tenho talentos que sejam úteis a alguém e agora acha que sou uma snobe.

– Por favor, não finja que me interpreta mal – replicou Angus, inclinando-se para ela com uma expressão séria. – Foi você que teve a ideia de eu viajar consigo como seu marido e concordei porque não havia tempo para fazer mais nada.

– E você precisava de sair da Escócia

– Sim, precisava de sair da Escócia, mas se tivesse ido num navio pelos meus meios, iria no interior com os marinheiros e não aqui – terminou, com um gesto para as belas janelas do camarote.

Edilean soltou um suspiro e recostou-se na cadeira.

– O que está a tentar dizer-me?

– Que não venho do seu mundo e não conheço esses jogos que vocês jogam. Eu não...

– O que significa esse vocês? Em que sou diferente de si?

Angus demorou algum tempo a responder.

– Ficarei consigo neste quarto com uma condição que é a de você não continuar com esse jogo de tentadora.

– De quê? – ripostou ela, ofendida com as suas palavras.

– De tentadora, de mulher que enfeitiça um homem e o leva a fazer o que ele não deveria fazer. Uma Eva com a maçã estendida para ele, tentando-o a pecar.

– Mas você... – começou e cruzou os braços sobre o peito. – Peço desculpa por tentar levá-lo a pecar. Diga-me, Mister McTern, o que posso fazer para o manter livre do pecado e puro?

– É a si que eu tento manter pura – sussurrou ele. – É uma mulher jovem e bonita e olhar para si é suficiente para pôr um homem louco de desejo. Não sei como vou aguentar ficar neste quarto consigo dia após dia e não... não a despir. O que quero dizer é que para ficar tão perto de si, deve tratar-me como... como seu irmão. E eu tenho de tentar pensar em si como minha irmã, embora isso seja quase impossível. Fiz-me entender?

– Eu, hum....

Edilean interrompeu-se pois não lhe ocorria nada para dizer. Namoriscar era realmente algo que fazia bem, algo muito usual nas casas das amigas por onde passava. De facto, no colégio, tinha dado muitas vezes lições às suas companheiras menos afortunadas sobre como namoriscar. Não podia irritar-se com ele por lhe ter dito a verdade. Ela andara a namoriscar. Além disso, era impossível zangar-se com um homem que lhe dissera que ela era tão bonita que sentia dificuldade em controlar-se.

– Se não fizer o que lhe disse, vou lá para baixo e durmo numa rede. Entendeu?

– Sim – respondeu ela.

Caso se tratasse de qualquer dos outros homens que conhecera ao longo da vida, teria batido as pestanas e perguntado se aquela ordem significava que nem sequer haveria beijos. Contudo, ao olhar para o atraente rosto de Angus, não se atreveu. Ocorreu-lhe que estava a lidar com um homem enquanto os outros não passavam de garotos.

– Vou facilitar-lhe a vida o mais que puder – prometeu. – Nada de risos, brincadeiras ou luta. É isso o que quer que diga?

– Quero que diga... – Olhou-a do outro lado da mesa. Sentia-se incomodado por as suas palavras lhe terem arrancado o desejo de voar de felicidade para se tornar tão séria. – Lamento muito a minha grosseria escocesa, jovem, mas sou um homem e não consigo aguentar estar tão próximo de si.

– Compreendo – disse ela, baixando os olhos para as mãos que mantinha no colo e em seguida erguendo o rosto para ele. – Mas se nos apaixonássemos?

Por um momento, Angus pareceu chocado mas depois sorriu-lhe com uma expressão paternal.

– Não me amou quando eu usava o que chamou de um vestido de mulher. E ainda há bem pouco afirmou que me odiava. Sabe quanto tempo levei a sair daquele telhado depois de me ter trancado lá?

– Não. Estava demasiado ocupada a tentar não congelar dentro das minhas roupas ensopadas por me ter atirado para dentro do bebedouro dos cavalos.

– Não é um ato de que me orgulhe. Contudo, deve ouvir o que lhe digo, rapariga. Agora, vê-me com estas roupas bonitas, o cabelo atado e o rosto barbeado e ri, namorisca comigo e fala de amor. Se ama alguma coisa é a roupa e não o homem. Por baixo desta seda, continuo a ser um pobre escocês que a envergonharia na frente das suas amigas finas.

– Acho que você é o meu...

– O seu salvador – completou Angus. – Acha que sou o homem que a salvou de um destino pior do que a morte. Sim, eu sei tudo isso, rapariga, mas nunca se esqueça de que não o fiz. Apenas tinha em mente embebedar o pastor e talvez salvá-la por uma noite. Foi por acidente que subi para aquela carroça e a descobri no caixão.

– Uma coisa asquerosa e imunda – murmurou Edilean. – Acho que estava cheio de serradura até meio e quando me meti lá dentro o pó levantou-se à minha volta e quase me sufocou. Já tinha bebido aquele horrível láudano que o James me deu e só consegui ficar acordada o tempo suficiente para baixar a tampa.

– Que susto nos pregou quando se sentou naquele caixão! – exclamou Angus. – Juro que o meu coração parou.

– Sabia quem eu era e portanto sabia que não estava morta.

– Pensei que talvez o seu tio a tivesse assassinado para ficar com o dote.

– Julgou então que eu era um fantasma?

– Sim, até você começar a queixar-se da sujidade e a dizer-me que voltara a fazer algo que lhe desagradou.

– Disse não disse? Julgo que foi o pó que me entrou pelo nariz que me acordou, ouvi gritos e doía-me a cabeça. Depois quando despertei e o vi a si e não ao Shamus, eu...

– Não podia ter escolhido pior pessoa para a ajudar. Se tivesse passado a pente fino todos os habitantes de Glasgow e de Edimburgo, não descobriria alguém menos nobre do que o Shamus.

– Mas você salvou-me... com relutância, é verdade... mas salvou-me e agora diz-me que devo ter o cuidado de não lhe tocar.

Angus percebeu pelo tom de voz que ela troçava dele.

– Estou a dizer-lhe que para a minha sanidade mental não deve tentar-me mais do que consigo aguentar.

– Darei o meu melhor – prometeu ela, sorrindo –, embora ache que o verdadeiro motivo por que estava a olhar daquela maneira para as mulheres esta manhã se deveu àquela bonita de peito grande.

– À...? – replicou ele, sorrindo também. – Sim, é verdade que gosto de peitos grandes. Mais carne para apertar numa dessas coisas com osso de baleia que você usa.

Fitou-lhe o peito que, embora não fosse «grande», era sem dúvida bastante cheio.

– E agora quem está a namoriscar e a troçar?

– Ah, mas não se sente tentada por mim – disse Angus. – É essa a diferença.

Ouviu-se uma pancada na porta e Angus levantou-se para ir abrir.

Enquanto ele atravessava o camarote, com toda aquela altura a mais do que ela, Edilean observou como o tecido lhe marcava as coxas fortes e musculadas. Não se sentia tentada? Estaria louco?

– O capitão mandou-me trazer isto – disse o oficial. – Achou que talvez lhes fizesse falta.

Atrás dele, quatro marinheiros carregavam dois pesados baús.

– Coloquem-nos naquele canto – disse Edilean por detrás de Angus. – E obrigada por os terem trazido.

Os marinheiros fitaram Edilean como se fosse a primeira vez que viam uma mulher e recuaram para fora do quarto com os bonés nas mãos.

– Acho que, se você fosse um marinheiro, seria como aqueles homens – comentou enquanto se dirigia aos baús.

– Se fosse um deles e uma mulher bonita estivesse a bordo do navio, faria o que pudesse para que reparasse em mim.

– Mas não agora, nem eu? – perguntou Edilean, curiosa.

Angus fitou-a com um olhar muito triste.

– Infelizmente, acabei por conhecê-la. Saber as mentiras e traições, as injustiças que lhe fizeram, dificulta os meus avanços.

– Como se isso lhe interessasse! – exclamou Edilean sem conseguir suster o riso. – Vamos ver o que o James roubou para nós?

Quando pronunciou as palavras, sentiram o navio a balançar e por um momento ela desequilibrou-se e quase caiu, mas Angus agarrou-a pelo braço.

– Enjoa? – perguntou ele.

– Não sei. Só andei em barcos pequenos em lagos tão parados como o vidro. E você?

– Também não sei.

Voltaram a sorrir, centraram a atenção nos baús e soltaram os fechos. O que ela abriu estivera no quarto da mulher de James.

Edilean soltou uma exclamação abafada ao ver que, no fundo, estavam dobrados o que pareciam ser muitos vestidos, cada um mais bonito do que o outro.

Angus observou-a enquanto retirava os vestidos do baú e os admirava, entusiasmada com as sedas bordadas em belos tons de damasco e amarelo-dourado.

– São divinos! – exclamou. – Uma verdadeira beleza. Nunca vi vestidos mais requintados do que estes. São...

Deteve-se ao ver alguns papéis no baú e, enquanto os lia, corou de raiva.

– O que é isso?

– Veja! – disse, passando-lhe os papéis para a mão.

– Sei ler os números, mas não percebo as letras – replicou ele bruscamente.

– Posso dizer-lhe. Aquele malvado... que apodreça no inferno... do James Harcourt cobrou-me todos os vestidos da mulher. As faturas estão em meu nome.

Angus esboçou um leve sorriso.

– Ele julgou que ia partir e portanto seria você a pagar por vestidos que nunca usaria, mas agora vão cobrar-lhe vestidos que ele não tem.

Edilean fitou-o por um momento e em seguida desatou a rir.

– Essa é boa! A minha modista de Londres contou-me que está tão farta de pessoas vigaristas que contratou homens armados com cacetes para as perseguirem. Posso garantir que eu lhe paguei de imediato.

Angus puxou para trás a tampa do segundo baú e, quando espreitou para o interior, viu as roupas de James. Remexeu-as e tirou do fundo um pedaço de papel que lhe estendeu.

– Essas também foram postas na minha conta – verificou Edilean com um sorriso. – Em nome do James, mas tendo o meu por baixo como fiadora da sua dívida.

Riram novamente e ela voltou para junto do outro baú a fim de ver o que mais continha.

– Oh, meu Deus! – exclamou quando chegou ao fundo. – Veja isto! – disse, abrindo uma grande caixa estreita azul-escura e mostrando o conteúdo. – É uma parure!

– Uma paru...? – repetiu ele, tentando imitar a entoação francesa que ela dera à palavra. – O que é isso? – Tirou-lhe a caixa da mão e examinou o conteúdo. No interior, elegantemente disposto sobre o forro em cetim estava um conjunto de joias com diamantes. Havia um colar de duas voltas com enfeites na segunda e três pulseiras. Os brincos tinham pendentes de diamante e um enorme alfinete exibia uma pedra preciosa do tamanho do seu polegar.

– O que é isso? Além de joias são alguma coisa especial?

– A nova mulher de James era filha de um conde, não era? Palpita-me que pertenciam à mãe e à avó dela e apostaria em como James nunca as viu. Se assim fosse, acho que as teria empenhado. Deixe-me ver – pediu, tirando-lhe por sua vez a caixa da mão e pegando em seguida num brinco, servindo-se das unhas para abrir um ganchinho. – Está a ver? Podem ser usados como pendentes ou um conjunto. – Voltou a colocar o brinco no sítio. – Imagino que todas as peças são assim. Provavelmente, o alfinete pode ser usado como está, dividido em dois, ou como uma joia mais pequena e é possível que o colar possa ser usado com uma ou duas voltas. Os ourives são pessoas tão inteligentes!

Entregou-lhe novamente a caixa.

– O que faço com isto? Pode usá-las no jantar desta noite.

– Preferia rapar a cabeça a usar qualquer dessas joias – disse Edilean, continuando a remexer no baú.

Angus pousou cuidadosamente o estojo ao lado dela.

– Deve ficar com elas – decidiu ela.

– Eu? O que lhes faria?

Edilean fitou-o, surpreendida.

– Não sabe que o uso de brincos de diamante é a última moda para homens em Londres? Tenho a certeza de que o capitão usará o dele esta noite.

Angus piscou os olhos algumas vezes e depois sorriu.

– Desta vez quase me apanhou, rapariga. Essas coisas são de mulher e deveria usá-las.

– Não – recusou Edilean voltando a sentar-se no chão. – Pertencem a outra mulher e não as porei.

Angus pegou no estojo e fez menção de as devolver ao baú.

– Então, vamos devolver-lhas.

– Também não lhe pertencem a esse ponto! – reagiu Edilean. – Tanto quanto sei, ela e o James foram cúmplices. Quero que fique com elas. Se não aceita ouro de mim, aceite as joias. Faça o que quiser com elas. Venda-as e compre terras, vacas, porcos, o que quiser.

– Ou dou-as à minha mulher? – sussurrou ele.

– Pelo que observei, o seu gosto por mulheres dirige-se às que são gordas de mais para as colocar no pescoço – comentou Edilean com um falso sorriso.

Angus riu.

– Não me parece...

– Não se atreva a dizer-me que não pode aceitá-las! Fez muita coisa e arriscou muito por mim. Não pode ser orgulhoso a ponto de ir parar a um novo país sem um tostão no bolso. O que fará? Vender-se como contratado? Passarão sete anos até ficar livre. Contudo, talvez o seu patrão seja bondoso e não o espanque muitas vezes e talvez lhe dê uma ou duas libras quando deixar o emprego.

– Tem uma língua afiada.

– Foi afiada por homens que me olham e apenas veem ouro.

Angus ficou silencioso por momentos, mas fitou-a com um olhar meigo. O cabelo descaíra-lhe sobre o rosto e ele não conseguiu resistir a puxar-lho para trás da orelha.

– Vejo ouro, mas não o que se encontra num banco. Isso vale mais do que ouro.

– Dignitas praeter aurum – disse Edilean traduzindo as palavras dele para latim.

Por um momento fitaram-se em silêncio e em seguida Edilean recordou-se de tudo o que ele lhe dissera pouco antes, quanto a manter a distância. Desviou os olhos, baixou-os para o vestido que tinha no colo e desdobrou-o entre os dois.

– Aquela mulher é tão grande como você. Como conseguirei que algum dos vestidos me sirva?

Angus colocou a mão sobre a dela e obrigou-a a baixar o vestido.

– Obrigado – agradeceu. – Aceitarei as joias. É muito generoso da sua parte dar-me isso.

A fim de disfarçar as faces coradas, Edilean inclinou-se para que o rosto ficasse no interior do baú.

– Desistiu de muito mais por mim do que apenas de um monte de joias feias e antigas.

– Então é isso, não é? Todas elas estão fora de moda?

– Completamente. A minha avó... se a tivesse... não usaria essas coisas. – A jovialidade voltara a reinar entre eles e a jovem sentiu-se aliviada. Enquanto retirava o último vestido do baú, acrescentou: – O que fará quando chegar à América?

– Ainda não tive tempo de pensar nesse assunto. – Levantou-se e espreguiçou-se, ficando muito acima dela. – Acho que gostaria de comprar um pedaço de terra. – Fitou o estojo com as joias junto aos pés. – Pensei que podia pedir à minha irmã que viesse ter comigo à América.

– E ao Tam – disse Edilean.

– O Tam? O rapaz que estava apaixonado por si?

– Todos os escoceses estavam apaixonados por mim – retorquiu ela. – Exceto você.

– Acho que sim – concordou Angus, sorrindo. – Até o meu tio Malcolm a adorava.

Edilean estendeu a mão e, enquanto ele a puxava para cima, entreolharam-se por um segundo.

– O que acha se fôssemos até ao convés para ver o vento a soprar as velas?

– Gostaria muito.

– Mas tenho de mantê-la em segurança – sorriu ele.

Pegou no estojo com as joias e olhou em volta. Avistou as portas de um armário por baixo da grande janela, abriu uma delas e colocou a caixa no interior, pondo-a de lado para que não pudesse ser vista de imediato.

– Porque é a minha segurança tão importante? – inquiriu a jovem quando ele se lhe juntou na ombreira da porta.

– Para proteger o meu bebé que vem aí – respondeu ele enquanto lhe oferecia o braço e abria a porta.

Os dois saíram do camarote a rir.


11

Ao observar o jovem casal a passear no convés, o capitão Inges suspirou. Ele e a mulher também tinham sido assim noutros tempos. Reparou na maneira como o alto Harcourt se inclinava sobre a bonita e jovem mulher, apenas tendo olhos para ela, escutando cada uma das suas palavras. E ela fitava-o com adoração.

– Um bonito casal.

O capitão virou-se para o seu primeiro imediato, Mr. Jones, e assentiu com a cabeça. Era a terceira viagem que faziam juntos e simpatizava com o jovem oficial.

– É verdade. Recordam-me a minha mulher e eu quando tínhamos a idade deles.

– Gostava de encontrar uma mulher que me olhasse assim – comentou Mr. Jones.

– Ou gostava de encontrar uma mulher parecida com ela?

– As duas coisas – disse Mr. Jones, sorrindo. – Acha que estão casados há muito tempo?

– Na minha opinião, há horas, mas pode ter sido há anos. Quem sabe?

Deixou-se ficar com Mr. Jones junto à amurada observando o jovem casal que passeava no convés e fitava o mar. O vento estava a favor e o navio avançava rapidamente. Àquela velocidade chegariam a Boston em apenas três semanas.

Quando Mrs. Harcourt se pôs em bicos de pés para espreitar sobre o parapeito do navio, o capitão e Mr. Jones sustiveram a respiração. Ela parecia tão pequena e debruçava-se muito. Devia ter preocupado igualmente Mr. Harcourt, pois ele rodeou-lhe a cintura com as mãos e agarrou-a para que não caísse. Quando ela se virou e lhe disse algo, ele abanou a cabeça. Ela voltou a falar e ele abanou novamente a cabeça com mais força. Ela franziu a testa e Mr. Harcourt descaiu um pouco os ombros, mas em seguida ergueu-a para que ela pudesse ver melhor sobre a borda. Ela abriu os braços por um momento, deixando que o vento lhe batesse no rosto.

Mr. Harcourt voltou a pousá-la no convés e o capitão e Mr. Jones respiraram de alívio.

– Ela leva a dela avante, não lhe parece? – perguntou Mr. Jones.

– Acho que talvez aquele homem faça tudo no mundo por ela. Caminhar sobre o fogo, atirar-se para a frente de um canhão. Fará tudo o que for necessário.

– Também eu faria – retorquiu Mr. Jones. – Se tivesse uma mulher daquelas, eu...

– Mister Jones – interrompeu o capitão Inges. – Não estou a falar da aparência, estou a falar de amor.

– Claro, sir. Desculpe, sir.

O capitão abandonou o convés e desceu.

– A minha mulher disse-me que sabe cantar, mas nunca a ouvi – disse Angus ao capitão quando estavam sentados à mesa de jantar na companhia dele e de Mr. Jones.

– Nunca ouviu a sua mulher cantar? – surpreendeu-se Mr. Jones e olhou para o capitão.

– Casámos rapidamente – explicou Angus.

– Sim – concordou Edilean. – O nosso primeiro encontro foi memorável e o segundo explosivo. Desde então raramente nos separámos.

Angus levou o guardanapo à boca para dissimular o sorriso ante aquelas palavras e os olhos brilharam. Apesar dos seus receios e apreensões – nenhum dos quais confessara a Edilean – saíra-se bem no jantar do capitão. Eram apenas quatro, o delicado capitão, o jovem Mr. Jones, Edilean e Angus. Preocupara-o conseguir manter uma boa conversa e o sotaque inglês que usava. Às vezes esquecia-se e voltava ao seu carregado e áspero escocês.

Contudo, era escusado ter-se preocupado, pois Edilean tomava o diálogo a seu cargo. Ao observá-la, viu que era perita em manter as pessoas interessadas. A experiência ensinara-lhe que as raparigas bonitas achavam que apenas precisavam de ficar sentadas e deixarem-se admirar. E, devido a algumas longas viagens que tinha feito na juventude, já tinha visto várias e belas anfitriãs.

Viu como ela levava Mr. Jones a falar de si próprio, envolvendo depois o capitão na conversa. Angus tinha a certeza de que no final da refeição os dois homens ficariam a saber mais um sobre o outro do que antes de se terem sentado à mesa.

E Edilean não o esqueceu. Quase não pronunciava três frases sem dizer «o meu marido». «O meu marido sabe de cavalos.» «O meu marido passou muito tempo na Escócia.» «O meu marido é muito bom nisso.»

Angus não conseguiu resistir e sempre que ela dizia «o meu marido» dava por si a sorrir.

No final da refeição – que foi excelente –, ela começou a falar dos planos que tinha com o marido.

– Queremos comprar um terreno e construir uma casa – disse.

– Nesse caso, vão para o país indicado. O solo é rico e fértil – informou o capitão. – Se se deixar um arado na terra durante duas semanas, brotarão folhas.

– É isso o que queríamos ouvir, não é? – perguntou ela.

Ele pestanejou.

– A minha... – Hesitou antes de pronunciar a palavra. – A minha mulher é que cuida da jardinagem e não eu. Não distingo uma erva daninha de um caule de trigo. – «Cultivarão trigo na América?», interrogou-se.

– É verdade – concordou Edilean. – O meu pai morreu quando eu era muito nova, portanto, fui educada com as minhas companheiras de escola. Se elas não me convidassem para casa delas durante as férias, tinha de ficar na escola com qualquer professora que fosse encarregada de me fazer companhia. Passei umas férias assim e posso garantir que depois aprendi a fazer amizades.

Mr. Jones e o capitão riram com a história, mas Angus fitou-a. Talvez o que lhe acontecera fosse o motivo por que, apesar da sua beleza, sabia como se esforçar para que gostassem dela.

– Deve ter tido muitos convites – disse o capitão. – Não acredito que a deixassem frequentemente para trás.

– Não, depois daquela primeira e solitária vez. Ninguém tem pior feitio do que uma jovem professora obrigada a cancelar as próprias férias para ficar com a única jovem da escola que não tem para onde ir. Mas, depois de aprender a fazer amizades, visitei algumas das melhores casas de Inglaterra. Adorava jardins e costumava desenhá-los na esperança de que um dia pudesse desenhar a minha própria terra.

– E vai dar-lha? – perguntou o capitão a Angus.

– Sim – apressou-se ele a responder. – Planeio dar-lhe a sua própria cidade para criar.

Sorriu ao pronunciar as palavras, mas, quando baixou a cabeça, o sorriso desvaneceu-se. O que tinha para dar a Edilean? Se ela não lhe tivesse oferecido as joias, nem sequer poderia comprar terra para si.

– E a vossa casa? – interessou-se o capitão.

– Também a desenharei – respondeu Edilean. – Sei exatamente o que quero. Diga-me, capitão, conhece bem a América?

Angus reparou que ela não permitia que a conversa se centrasse demasiado em si e levava os outros a falarem sobre si próprios, colocando-os à vontade com o interesse demonstrado. Angus escutou o capitão a falar da sua vida e de como ele e a mulher costumavam velejar juntos.

– Mas depois vieram os filhos e ela ficou em casa com eles. No próximo ano, espero tê-la de volta comigo.

– Maravilhoso! – exclamou Edilean. – Deve sentir-lhe muito a falta.

– Sinto. E, ao vê-los juntos, ainda tenho mais saudades dela.

Edilean pousou a mão na de Angus e segurou-a um momento.

– O meu marido e eu também queremos estar sempre juntos. Não é verdade, querido?

Foi nessa altura que Angus interrompeu com o comentário de que ouvira dizer que Edilean sabia cantar.

– Acertou em cheio – retorquiu Mr. Jones. – O capitão Inges adora tocar o seu bandolim e lamenta que eu não distinga uma nota de outra.

– Que género de música gosta? – perguntou ela ao capitão e os olhos pareciam dizer que nunca ouvira nada mais interessante do que ele saber tocar bandolim.

– Receio não tocar muito bem – respondeu ele. – Apenas dedilho umas coisas para me entreter.

– Ele está a ser modesto – acusou Mr. Jones. – Por vezes, brinca com os homens e dançamos a bordo.

– E agora tem mulheres com quem dançar – disse Edilean e os três homens fitaram-na surpreendidos. – As mulheres que estão lá em baixo.

– Oh! – exclamou Mr. Jones e baixou os olhos para o prato.

O capitão endireitou os ombros.

– Esta é a primeira vez que tenho prisioneiras a bordo e não sei muito bem o que fazer com elas.

– Deixe-as apanhar um pouco de ar fresco – apressou-se Angus a sugerir. – Não podem passar toda a viagem lá em baixo.

– Quando se recompuserem – disse o capitão Inges. – Todas, exceto duas, sofrem com o tempo.

– Enjoo – explicou Mr. Jones.

– Parece ser boa marinheira – dirigiu-se o capitão a Edilean. – Não enjoam? Nenhum dos dois?

– Sentimo-nos demasiado felizes por termos escapado para enjoarmos – respondeu Edilean, acrescentando quando eles a olharam surpreendidos: – Quero dizer que nos sentimos felizes por termos escapado aos nossos amigos e parentes bem-intencionados que não hesitavam em visitar a nossa casa em Londres para nos desejar felicidades pelo casamento.

– Ah! – exclamou o capitão Inges. – Então acertei na minha suposição de que estão em viagem de lua de mel?

– Sim – confirmou Edilean. – Uma viagem tardia – disse, voltando a agarrar na mão de Angus.

– Talvez possa convencê-la a cantar para nós, Mistress Harcourt? – disse o capitão. – Tentarei acompanhá-la com o meu bandolim.

– Gostaria muito – concordou, afastando a cadeira para trás quando o criado entrou e começou a levantar a mesa.

– O que gostariam de ouvir? Salmos? Um pouco de ópera? Ou talvez uma canção do folclore inglês?

– Que tal uma balada escocesa? – sugeriu Angus. – Uma coisa que todos conheçamos.

– Não sei se conheço alguma canção escocesa – retorquiu Edilean, fitando-o com curiosidade antes de se virar novamente para o capitão Inges. – O meu marido tem um tio que vive na Escócia e costumava passar os verões com ele num romântico e antigo forte erguido num monte e é por isso que sabe muito sobre os escoceses.

– Pareceu-me detetar um ligeiro arrastar na sua voz – declarou o capitão Inges. – Tem sorte por não estar neste momento na Escócia, pois há um assassino à solta. Talvez tenha visto os cartazes com o retrato dele quando estava em Glasgow.

– Vimos sim – disse Edilean. – Parecia bastante perigoso, embora tenha detetado um brilho bondoso nos olhos. Ou talvez isso se devesse à habilidade do artista que o desenhou.

Angus fitou-a como a dizer que não sabia se havia de rir ou fazer um esgar.

– Achei o desenho bastante vulgar – pronunciou-se Mr. Jones. – Pareceu-me um pouco desproporcionado, mas o pior é que ele deu um aspeto quase elegante ao algoz. Acredito que os nossos rostos refletem o que somos. Um homem tão mau como aquele podia apenas ser tão feio como o pecado.

– Concordo – disse Angus com um largo sorriso.

Era óbvio que o capitão planeara tocar depois do jantar, pois tinha o bandolim por perto e abriu o estojo de onde retirou cuidadosamente o bonito instrumento.

– Então, o que vai cantar?

Antes que Edilean pudesse responder, Angus interferiu:

– Conhece a melodia de Greensleeves?

– Claro – respondeu ele, satisfeito.

Começou a tocar bastante habilmente e a velha melodia encheu a pequena sala. Edilean conhecia a balada antiga que constava ser da autoria do rei Henrique VIII, mas, quando abriu a boca para entoar a primeira nota, Angus surpreendeu-a pondo-se a cantar. Tinha uma voz rica, profunda e bonita. Edilean manteve-se em silêncio a ouvi-lo.

Angus cantou o que era provavelmente uma antiga canção sobre um jovem lorde cujo pai o mandara para a escola aos cuidados de um servo. Mal se afastaram, o servo mostrou a sua verdadeira natureza, abandonando o jovem lorde sem dinheiro, com as roupas sujas e rasgadas ao mesmo tempo que ocupava o seu lugar e conhecia uma bela princesa.

Quando Angus chegou a essa parte, fitou Edilean: estava a cantar para ela. O pai da princesa queria casá-la com o homem que se dizia um lorde, mas ela suplicou-lhe que esperasse. Entretanto, apaixonou-se por um rapaz da estrebaria que era o verdadeiro lorde.

Nesse momento, Angus agarrou nas mãos de Edilean e segurou-as. Disse que o jovem tinha jurado não contar a verdade ou o servo mataria a sua família e a esperta rapariga convenceu-o a contar a história ao seu cavalo.

Edilean riu. Um príncipe com as roupas de um trabalhador e um belo cavalo tinham desempenhado um papel nas suas vidas.

Após a princesa ter ouvido a história, escreveu ao pai do jovem e ele apareceu com um exército e contou a verdade sobre quem era o verdadeiro príncipe. Por fim, o servo foi executado e o jovem lorde casou com a bela princesa.

Quando Angus acabou, o capitão dedilhou uns floreados e todos riram e aplaudiram.

– Foi fantástico! – elogiou Mr. Jones. – Uma história e uma canção em simultâneo. Talvez pudéssemos ouvir mais uma.

Angus ia a falar, mas Edilean abriu a boca num bocejo que tapou ostensivamente com a mão.

– Temo que seja impossível – disse, oferecendo o braço a Edilean. – Pelos vistos, a minha mulher já teve o suficiente para um dia. Queiram desculpar-nos.

Quando já se encontravam lá fora, ela não lhe largou o braço.

– Foi maravilhoso. Verdadeiramente bonito. Tem uma voz tão boa que poderia fazer carreira num palco.

– Talvez fosse melhor do que perseguir gado roubado – disse ele.

– Ou melhor do que a agricultura?

Ao regressarem ao camarote, viram que uma rede fora pendurada e os baús voltados a embalar. Edilean observou Angus enquanto ele verificava se a caixa das joias continuava onde a tinha escondido e sorriu quando verificou que estava no mesmo sítio.

Minutos depois pediu-lhe que desatasse os atilhos do espartilho e ele resmungou entre dentes.

– Impôs a regra de que eu não lhe tocasse, mas eu não fiz o mesmo – retorquiu ela.

– Retire o que disse ou deixarei que durma metida nessa jaula a noite toda.

– Nesse caso, terei de ir ao encontro daquele adorável Mister Jones e pedir-lhe ajuda – redarguiu ela com um sorriso malicioso.

– É uma mulher verdadeiramente perversa – reagiu Angus enquanto lhe desatava os atilhos, após o que se dirigiu ao extremo mais distante do camarote.

Edilean despiu-se lentamente, pensando naquela noite e na sensação de pertencer a alguém. Desde que o pai morrera que fora sempre hóspede de outras pessoas. Tivera sempre de cantar «a troco da ceia», era como encarava a situação. Tivera de caminhar quando não lhe apetecia, de falar quando desejava ficar calada. Fora sempre uma visita e não a dona da casa – e o pior acontecera na casa do próprio tio, onde fora uma prisioneira.

Contudo, agora era bom pensar que tinha o seu próprio marido, que iam para um novo mundo e construiriam a casa deles. Mesmo que não fosse verdade, agradava-lhe pensar assim.

Minutos depois estava deitada na cama e envolta nas sombras, observando Angus a lutar com a rede. Rolava de um lado para o outro e parecia prestes a cair.

– Quero ouvi-lo dizer o meu nome – ordenou ela.

– O quê?

– Ouviu-me perfeitamente. Nunca pronunciou o meu nome e por vezes interroguei-me se o sabe.

Angus demorou uns momentos antes de responder.

– Edilean – murmurou. – Edilean... Harcourt.

– Acho que sim. Se o capitão viu os cartazes com o seu retrato, deve ter ouvido falar da desaparecida Miss Talbot. E você é Angus Harcourt.

– De momento... sou. Quando chegar a Virgínia talvez chame Mansão McTern à minha casa.

– Quer então ir para Virgínia? – perguntou Edilean num tom calmo. Ouvia o oceano lá fora e, no interior, a respiração de Angus. – Não tenho a certeza, mas acho que a Virgínia fica muito longe de onde desembarcarmos em Boston.

– Gosto do som de Virgínia.

– Também eu – concordou Edilean, sonolenta.

Não dormira desde a noite anterior, quando cortara o cabelo de Angus e o barbeara e nesse dia tinha conhecido pessoas e vivido muitas experiências novas. Adormeceu tão profundamente que nem se apercebeu quando Angus caiu da rede e aterrou com força no chão. Tão-pouco acordou quando ele a tapou com a colcha e se deteve a observá-la durante muito tempo.

Serviu-se dos cobertores da rede para montar uma cama no chão no outro extremo do camarote e acomodou-se para dormir. Enquanto passava pelo sono lembrou-se de que lhe dissera que gostaria de lhe oferecer uma cidade para que a desenhasse.

– Edilean, Virgínia – sussurrou antes de adormecer e o som das palavras agradou-lhe.


12

–Não, não, não! – exclamou Angus, levantando-se da cadeira e afastando-se dela. – Sinto-me tão farto disto que estou a ficar louco. Ouve-me bem? Louco!

Edilean fitou-o, consternada. Há quatro dias que não parava de chover. Tinham permanecido dentro do camarote e ela começara a ensinar Angus a ler. O processo revelar-se-ia mais fácil se ele se preocupasse em aplicar-se, mas Angus mantinha-se junto da janela a olhar para o mar. Uma vez, perguntou-lhe em que estava a pensar e ele dissera que se recordava da Escócia e da sua família.

Quando ele lhe respondera daquela forma, Edilean tinha ido sentar-se no beliche para que ele pensasse à vontade. Estava contente por não haver deixado ninguém para trás de quem sentisse a falta. Tinha algumas amigas da escola com quem gostaria de trocar correspondência, mas ninguém que lhe provocasse saudades.

Pensava muitas vezes em James e interrogava-se se gostaria da vida ao lado da sua nova mulher. Sentia-se contente por, dado que se encontrava casado, jamais teria oportunidade de levar qualquer jovem a iludir-se de que estava apaixonado por ela.

Contudo, não tinha saudades dele, do homem. Na verdade, à medida que ia conhecendo Angus, percebeu que nunca conhecera James. Nos poucos dias que passara com Angus aprendera o que ele gostava de comer – carne –, o que detestava – marisco, ou algo que considerasse «suspeito». Sabia que se intimidava facilmente e que tinha o sentido de humor à flor da pele. Quando se mostrara frustrado ao tentar aprender as letras, compreendera que, se levasse tudo a brincar, ele recuperava o bom humor.

Pensara no que lhe dissera quanto a deixar de namoriscar com ele e a agir como se fossem irmão e irmã e dera o seu melhor nesse sentido. Não tinha sido fácil. Inclinar-se sobre ele durante horas a fio enquanto lhe corrigia o trabalho comprovara-se difícil. Por vezes, inalava o cheiro do seu cabelo e fechava os olhos, quase se sentindo esmagada pelo prazer físico da sua fragrância.

Nos dias que haviam passado juntos, desenvolveram hábitos que se tornaram naturais. Edilean escolhia-lhe as roupas diariamente enquanto Angus se barbeava – ele recusara que se encarregasse dessa tarefa – e fazia-lhe o nó da gravata, pois ele nunca se ajeitava. E ele ajudava-a com o espartilho de manhã e à noite e já se acostumara de tal maneira que por vezes bocejava enquanto puxava e atava.

Para Edilean aqueles dias haviam sido maravilhosos. Assemelhavam-se a ter uma casa e uma família, desde que o pai morrera. Mas naquele momento Angus dizia-lhe que os detestava.

– Porque está a tentar transformar-me nele? – perguntou, fitando-a.

– Em quem? – disse, recuando.

– Harcourt. Está a tentar transformar-me naquele pavão por quem se sentia tão apaixonada.

– Não estou nada – retorquiu. – Nunca tentei transformá-lo no James.

– Ah, não? E o que é isto? – disse ao mesmo tempo que despia o bonito casaco azul de seda e o atirava para a cadeira. – E isto? – acrescentou, desfazendo o nó e arremessando o laço de uma brancura alva sobre o casaco.

– Está a pensar despir mais alguma roupa? – inquiriu ela no tom mais frio de que foi capaz. – Se assim for, quero acomodar-me para ter uma visão mais clara.

– Brinque à vontade – disse ele, sem um sorriso. – Sou Angus McTern e não um jovem que dança ao seu compasso.

Edilean sentou-se na cadeira e fitou-o.

– Decidiu, por conseguinte, que tudo isto é por culpa minha? – perguntou baixinho.

– E de quem mais pode ser? Se não tivesse aparecido na minha terra, estaria lá agora. Estaria na urze neste momento e esta noite veria os meus sobrinhos e o Malcolm e... – Respirou fundo e baixou o tom de voz. – Em vez disso, vejo-me aqui neste oceano, a caminho de uma terra estrangeira, sem amigos nem família. E você está a tentar transformar-me em algo que nunca serei. O que quer realmente? Criar um homem que possa mostrar aos seus amigos nobres? – acrescentou, novamente irritado. – Devo ser o seu macaco treinado que veste e exibe perante os outros? Dirá: «Vejam o que fiz! Transformei um rufia analfabeto num cavalheiro.» E os seus amigos snobes aplaudirão?

Edilean estava tão surpreendida com aquelas palavras que mal conseguia falar.

– Que amigos tenho nesse novo país? – perguntou. – Estava a ensiná-lo a ler porque pensava que queria aprender. Desculpe.

– Para que preciso de ler? Que proveito tirarei disso? Vou comprar um terreno e trabalhar a terra. Deixarei de ter montes e urze. Contudo, está a tentar... – Interrompeu-se e no momento seguinte saiu do camarote, batendo com a porta atrás dele e deixando-a sozinha.

– Não chorarei – disse ela. – Não chorarei.

No entanto, chorou. Atirou-se para cima da cama e desfez-se em lágrimas. Nunca se sentira tão desconsolada desde que o tio a tinha arrancado à escola e lhe dissera mais tarde que a única coisa que desejava dela era o dinheiro.

Sabia que Angus tinha razão. Ao pensar como ele era quando o conhecera e na sua aparência agora – tudo pela sua mão – desejava pedir-lhe perdão. Não tentara conscientemente transformá-lo no homem que julgava que era James, mas fizera-o. Angus era o que ela desejara em James. Angus era tão bonito como James e quase tão bem-falante quando usava o sotaque inglês. Até sabia cantar e conquistava a simpatia geral. Um dia, a chuva tinha parado durante meia hora, tinham subido ao convés e, quando uma corda ficara presa, Angus ajudara os marinheiros a soltá-la. Desde então, conquistara os homens e os oficiais do navio. À noite, Mr. Jones e o capitão Inges pediam-lhe que cantasse uma das suas baladas escocesas. Gostavam mais dele do que quando Edilean cantava uma ária de ópera.

– Mas eu não mudei – disse, sentando-se na cama e enxugando os olhos.

Ela era exatamente a mesma que quando conhecera Angus e tinha de enfrentar o facto de que não lhe agradava. Ele nunca gostara dela e, pelos vistos, nunca viria a gostar. Não gostava do mundo em que ela fora criada e achava-a uma pessoa inútil – o que lhe dissera muitas vezes de uma ou de outra maneira.

Olhou através das grandes janelas e viu que a chuva havia parado. O capitão Inges dissera que em breve se afastariam dela e acertara. Edilean alisou o vestido – o único que conseguira reduzir de todos os outros enormes que se encontravam no baú – e decidiu subir ao convés. Se pedisse desculpa a Angus talvez ele lhe perdoasse. Não gostava de o ver irritado com ela.

Mal saiu apressadamente do camarote, Angus lamentou todas as palavras que dissera. Estar próximo de Edilean todos os dias era superior às suas forças. A sua bondade, o permanente desejo de lhe agradar, a forma como se ocupava dele e reparava no que gostava ou não era mais do que podia suportar.

Porque não era ela a snobe arrogante que inicialmente considerara? Porque não o tratava como o subalterno que devia achar que era? Lembrou-se de como se sentira dentro da razão ao atirá-la para o bebedouro. Contudo, Angus sabia que só a julgara com base na opinião que tinha dela. Não dera ouvidos a ninguém quando lhe haviam dito que a sobrinha de Lawler era meiga e gentil. Lembrava-se de ter troçado dessa ideia com Malcolm.

Ao pensar naquele nome, Angus subiu a escada até ao convés superior. Precisava de apanhar ar para manter a sanidade mental. Umas semanas antes, a vida encontrava-se delineada à sua frente. Sabia quais eram os seus deveres e onde se encaixava no mundo. Porém, de momento, estava confuso em relação ao futuro. E a própria alma parecia dilacerada por uma jovem e bonita rapariga que estava a fazer com que se esquecesse de tudo o que sabia sobre si próprio. Ela era uma mulher que nunca, nunca poderia ter... mas que desejava tanto.

Pela primeira vez, seis das prisioneiras estavam no convés. Sentiu-se satisfeito ao ver que lhes haviam tirado os grilhões, mas três pareciam doentes. Pelos vistos, a maior parte dos marinheiros subira ao convés e ocupava-se com tarefas desnecessárias enquanto fitavam sub-repticiamente as mulheres.

Noutras circunstâncias, a cena serviria para o divertir, mas não naquele momento. Angus dirigiu-se ao extremo do navio e olhou por cima da amurada.

– Discutiu com a patroa? – perguntou uma voz feminina e, ao virar-se, deparou com a bela mulher que o observara quando subira a bordo. – O meu nome é Tabitha.

– Angus Mc... – hesitou. – Harcourt – concluiu.

– Prazer em conhecê-lo, Angus Mc... Harcourt – respondeu com um brilho trocista nos olhos.

Ao ver que ele ficava calado, encostou-se à amurada apoiada nos cotovelos e fitou as outras mulheres.

– Passámos um mau bocado com a maior parte delas a vomitar as entranhas durante dias.

– E você não? – inquiriu Angus, continuando a observar o mar.

– Ná, o mar não me incomoda – respondeu, virando-se novamente para ele. – Portanto, discutiram?

Angus brindou-a com um olhar significativo de que não tinha nada que se meter na sua vida pessoal, mas a mulher riu ao ver a cara dele.

– Dantes trabalhava para uma mulher assim, com aquelas boas maneiras. Não conseguia agradar-lhe por mais que tentasse.

– Por conseguinte, roubou-a – concluiu Angus.

Na realidade, não lhe interessava o que ela fizera. Apenas conseguia pensar na sua discussão com Edilean. Ou teria sido uma verdadeira discussão quando lhe gritara e ela nada dissera em defesa própria?

– Não – explicou Tabitha calmamente. – O marido roubou-me a única coisa que tinha e era apenas minha.

De início, não sabia o que ela queria dizer, mas em seguida percebeu que se referia à sua virgindade.

– A mulher dele expulsou-me quando viu que eu estava grávida do marido. Sem referências, nem dinheiro. Fiquei apenas com as roupas que tinha no corpo e a criança na barriga. Roubei um pedaço de pão para sobreviver e fui apanhada. Nessa altura, estava demasiado cansada para fugir e a prisão pareceu-me uma boa coisa.

A mulher desviava a atenção dos seus problemas e agradava-lhe ouvir o seu sotaque escocês. Fitou-lhe a barriga lisa.

– Nado-morto – disse ela. – O pobrezinho não quis ter nada a ver com este mundo e não o culpo. O juiz apenas me condenou a este desterro para a América. Não deixei um país que me tivesse tratado bem. E você, porque se veio embora?

– Para construir uma nova vida – respondeu sem pensar. – A minha mulher e eu queremos comprar terra e... – Parou, incapaz de continuar a mentira.

Tabitha sorriu-lhe com um esgar experiente. Vira a expressão dele quando subira ao convés, uns minutos antes. Só uma pessoa muito próxima poderia fazê-lo tão infeliz.

– Então, porque discutiram?

– A minha mulher e eu... – começou, mas deteve-se. Estava tão farto de mentir! – Eu quero mais e ela quer menos. Por que outro motivo discutem os homens e as mulheres?

Ela riu tão alto que toda a gente no convés os fitou.

– E o que vai fazer na América? – perguntou Angus, mudando de assunto.

– Ouvi dizer que uma centena de pessoas estará na doca à nossa espera. Teremos de nos apresentar em tribunal, mas depois ficaremos por nossa conta. Podemos aceitar ofertas de emprego dessas pessoas que estão na doca. Ou... – Fitou-o com um olhar sugestivo. – Ou propostas de casamento. Posso casar com um desses americanos. Constou-me que são brutos, mas talvez consiga arranjar um homem forte e resistente e construir com ele uma vida. – Virou-se de novo para ele e baixou a voz. – O que quero é ter uma casa. É algo que nunca tive. Chorei durante semanas depois de o bebé nascer morto. Apesar de me custar tudo o que tinha, adorava aquela coisinha.

– Porque me está a contar tudo isso? – perguntou Angus.

– Por nada, mas sou boa a avaliar as pessoas e há algo que não está bem consigo. – Olhou-o de alto a baixo. – Roupas, mulher... algo não bate certo. Vi isso naquele primeiro dia. O facto de você falar com alguém como eu diz muito. Acho que talvez sejamos mais parecidos do que essas suas roupas dão a entender. – Observou as enormes pernas dele metidas nas calças justas e a camisa que se lhe ajustava ao peito com o vento. – Não acho que seja como ela.

Um dos marinheiros tinha subido ao convés com um acordeão e começara a tocar uma música tradicional escocesa.

– Vá lá! – convidou Tabitha. – Dance comigo.

– Não me parece que... – começou Angus, mas depois encolheu os ombros.

Porque não? Avançou até meio do convés. Um marinheiro acrescentou uma flauta ao acordeão e, sem dar por isso, estava a dançar com uma mulher atrás de outra. Todas, à exceção de uma delas, eram da Escócia e conheciam todas as danças que lhe recordavam a pátria.

Um dos marinheiros juntou-se-lhes e em breve rodopiavam pelo convés num frenesim de agitação. Angus sentia-se tão contente por fazer algum exercício que agarrou na mulher pela cintura e a ergueu no ar. Havia uma outra mulher, mais velha e bastante mais larga abaixo da cintura.

– Não será capaz de me erguer – gritou acima da música e das palmas dos que os observavam.

Angus agarrou-a e levantou-a pelo ar como se ela fosse uma menina.

– Casa comigo! Casa comigo! – gritou a mulher, provocando o riso geral.

Angus tinha a camisa aberta até à cintura e estava encharcado de suor, mas continuou a dançar tão rápida e furiosamente que nem notou quando Edilean apareceu no convés. Ela manteve-se na sombra, longe da ribalta, observando Angus a dançar com as mulheres e a divertir-se.

Contudo, Tabitha avistou-a e moveu-se por entre a multidão até chegar junto dela.

Edilean fitou a mulher e teve de resistir ao impulso de afastar a saia para que ela não lhe tocasse. Sabia, só de olhar para ela, de que tipo de mulher se tratava: era do género que agradava aos homens e que as mulheres odiavam.

– Se tivesse um homem daqueles na minha cama nunca sairia dela – comentou Tabitha, sem deixar sombra para dúvidas.

– Talvez por nunca sair da cama é que não tem um homem como ele – retorquiu Edilean por cima do ombro.

A mulher soltou uma gargalhada tão sonora que Angus se virou para ela e, ao avistar Edilean, o sorriso desapareceu-lhe do rosto.

Quando Tabitha viu a expressão de Angus, riu ainda com mais vontade. Voltou para junto do grupo, agitou a comprida saia e virou-se para Edilean.

– Tenha cuidado para que outra mulher não lho roube. E o meu nome é Tabitha – disse, após o que se virou e correu novamente para a dança. Quando Angus a agarrou pela cintura, tinha os olhos fixos em Edilean.

Edilean desviou o rosto e desceu novamente para o camarote.

Horas mais tarde Angus regressou ao camarote. Edilean estava lá com um dos vestidos sobre o regaço e a costurar.

– Sente-se melhor? – perguntou ela.

– Muito melhor – respondeu Angus, sorrindo.

Transpirava, tinha a camisa aberta exibindo o peito musculoso e o cabelo negro pendia-lhe em cachos sobre o rosto.

Edilean viu-se forçada a desviar o olhar para que a beleza dele não lhe enfraquecesse a determinação.

– Ótimo – disse, pousando a agulha. – Tenho um pedido a fazer. Como já me disse repetidamente, não me deve nada e eu devo-lhe tudo, mas peço-lhe que durante esta viagem não me humilhe.

– Eu não queria...

– Eu sei – interrompeu ela. – Aquela prisioneira é bastante bonita e gosta de si. Tem todo o direito de a perseguir.

– Não estava a «persegui-la» – contrapôs Angus. – Andei a dançar com todas as mulheres.

– Claro que sim. Peço-lhe novamente desculpa pelo que fiz à sua vida. Tinha razão quando disse que se nunca me tivesse conhecido ainda estaria em casa e extremamente feliz.

Ele enxugou o rosto suado com uma toalha que tirou da bacia e do jarro no extremo oposto do camarote.

– Rapariga – começou. – Quando um homem está furioso diz coisas que não queria dizer. Estar aqui sentado, dia após dia, sem mais nada para fazer a não ser lutar com palavras num livro quase me leva à loucura.

– Sim, deixou isso bem claro – disse Edilean, voltando a pegar no vestido. – Como disse, peço-lhe novamente desculpa pelo que fiz à sua vida. Sei que destruí para sempre a sua oportunidade de ser feliz.

– Não, rapariga, não destruiu.

Edilean atirou o vestido para cima da mesa.

– Quer fazer o favor de deixar de me tratar como se eu fosse uma criança? Pode ver-me dessa maneira, mas posso garantir-lhe que outros homens não o fazem. Estou a tentar pedir-lhe desculpa. Desejo de todo o coração ter pensado em dizer ao capitão que éramos irmão e irmã, mas não o fiz. Portanto, estamos presos um ao outro até ao fim desta longa e terrível viagem. Cometi um erro quando julguei recompensá-lo por tudo o que fez por mim, ensinando-o a ler. Parva que sou por ter pensado que desejava ser um homem diferente do que é. Estava errada. Considera-se perfeito tal como é e não quer mudar.

– Não acho que isso seja verdade – disse Angus. – Talvez aprender a ler fosse bom para mim. Na verdade... – Sorriu e dirigiu-se ao livro que ela usava como base. Edilean encontrara papel, penas e tinta, além de alguns romances no fundo do baú mais pequeno e usara-os para lhe mostrar como juntar as letras. Angus conhecia os números, sabia subtrair e somar de cabeça, mas não estava habituado a escrevê-los. – Acho que estou preparado para outra lição – acrescentou. – O exercício revigorou-me.

– Ainda bem – reagiu Edilean, correspondendo ao sorriso.

Angus sentou-se na frente dela, agarrou na pena, molhou-a na tinta e escreveu o seu nome. Demorou uns minutos, mas conseguiu.

– Aqui está. O que acha?

Edilean não levantou os olhos da costura.

– Mister McTern, nunca mais serei sua professora ou modista. Pode fazer o que quiser e não vou interferir.

– Entendo – disse Angus, pousando o papel. – É por causa dessa Tabitha, não é? Mas não devia ser tão dura com ela. Passou um mau bocado na vida. Contou-me a sua história e é terrível. Foi tratada injustamente pelas pessoas e pela lei.

– Pobrezinha! – lamentou Edilean num tom frio.

– Acho que devia sentir alguma caridade cristã para com ela. Não teve uma vida fácil como você.

– Eu? Uma vida fácil? Sim, tem razão, Mister McTern. A minha vida tem sido muito fácil. A minha mãe morreu quando nasci e fui criada pelo meu pai. Mas como ele era um oficial do exército só o via tão raramente que passei a minha vida em colégios internos. Um dia, o meu pai apareceu para me visitar e não sabia qual das raparigas era a sua filha. Morreu quando eu tinha doze anos e vi-me de repente sem casa nem família. Na escola, era obrigada a fingir que gostava de colegas que detestava só para ter um sítio onde passar o Natal. Depois, aos dezassete anos, fui levada do colégio por um tio que apenas se importava com o ouro que o meu pai me deixou. Desde então, tenho feito tudo para escapar a um futuro tão mau como o meu passado.

– Não queria dizer... – começou Angus, mas ela ergueu a mão.

– Infelizmente, nas últimas semanas você viu-se envolvido na minha vida, mas nunca foi essa a minha intenção. A primeira vez que lhe pedi ajuda, não só a recusou como troçou de mim. Portanto, aprendi a não lhe pedir mais nada.

– Peço desculpa por isso. Não queria...

– Não queria? – repetiu, erguendo o tom de voz. – Causou-me muito mal que não queria, não é verdade Mister McTern?

– É verdade – concordou ele com o maxilar rígido e fitando-a.

– Contudo, por fim, salvou-me. Devido à sua diligência não dormi o dia todo e em seguida descobri que o James se apoderara do meu dote. Não há nada suficiente no mundo que possa fazer por si ou dar-lhe como agradecimento. O facto de ter algum futuro resulta do seu cuidado e preocupação comigo.

– Rapariga, eu...

– Tenho um nome! – quase gritou.

Angus endireitou-se.

– Prefere Miss Talbot ou Mistress Harcourt?

– Mistress – respondeu, soltando um suspiro à medida que a raiva a abandonava. – Lamento realmente tudo isto. Tem razão ao dizer que tomei as rédeas. Não foi o que disse? Que estava a tratá-lo como a um macaco treinado? Que estava a tentar transformá-lo no que esperava que o James fosse?

Angus demorou algum tempo a responder.

– Sim – concordou finalmente. – Disse todas essas coisas num momento em que tinha tantas saudades de casa que não conseguia pensar em mais nada. Contudo, foi só um ataque de mau humor sem nenhuma importância.

– Para mim, teve toda a importância – ripostou Edilean. – Todas as palavras que disse eram verdadeiras. Juro-lhe que não voltarei a interferir na sua vida. Pode vestir o que quiser, falar como quiser, dançar com quem quiser. Apenas lhe peço que não me humilhe nesta viagem. Toda a gente pensa que somos casados e, portanto, imploro-lhe que não... demonstre a sua lascívia pelas prisioneiras a ponto de as pessoas me olharem com piedade. Até este momento da minha vida tenho evitado esse constrangimento particular e gostaria de continuar a fazê-lo. Temos um acordo?

Angus mantinha-se sentado muito direito na cadeira, pestanejando. Sentia-se mal por lhe ter gritado naquela manhã. Contudo, interrogou-se porque não reagia ela como as outras mulheres que davam troco de uma forma que acabava com Angus a abraçá-la e a confortá-la. Naquele momento, desejava ir ter com ela, apertá-la nos braços, espicaçá-la até a fazer sorrir, mas a maneira como ela o olhava impedia-o mesmo de dizer um gracejo.

– Temos um acordo? – repetiu Edilean.

Antes que Angus pudesse responder, soou uma pancada na porta.

Edilean levantou-se para ir abrir, mas fez uma pausa diante da porta fechada.

– Posso, por favor, ter a sua resposta?

– Sim, concordo em não a envergonhar – prometeu ele.

Edilean abriu a porta e deparou com uma das prisioneiras. Era a mulher pesada que Angus atirara ao ar na dança, uma hora antes.

– Esta é a Margaret – disse Edilean –, mas acho que já se conhecem.

– Sim, conhecemos – respondeu Margaret com um sorriso onde faltavam alguns dentes. – Acho que ele prometeu casar comigo. – Virou-se rapidamente para Edilean. – Desculpe, minha senhora.

– Não tem importância – retorquiu Edilean. – O meu... quero dizer, Mister Harcourt é senhor da sua vontade. Faz o que quer, quando quer e não interfiro na vida dele. Dão-me licença por um minuto? – acrescentou, saindo do camarote.

– Raios! – exclamou Margaret, sentando-se na mesa diante de Angus. – O que lhe fez? Foi a maneira como se pôs com olhinhos para a Tabitha?

Angus fitou a mulher. Sabia que não era correto sentir aquilo, mas a familiaridade daquela mulher desagradava-lhe. Tão-pouco gostava da maneira como ela se atirara pesadamente para a cadeira, como se fosse a dona do lugar. Ao sentir-se assim, disse para si próprio que estava a ser ridículo. Ele e a mulher eram iguais e ele não era um snobe. Era...

– Porque está aqui? – perguntou.

– Ela não disse? Perguntou ao capitão se alguma de nós sabia costurar. Prometeu-me dinheiro se lhe arranjasse os vestidos. – Fitou-o. – Pensava que uma mulher contaria ao marido uma coisa dessas. Convidar uma criminosa para o seu belo camarote e tudo o mais. – Passeou o olhar pela divisão. – É tão bonito como uma casa. Podia viver-se aqui. O sítio onde nos puseram cheira pior do que algumas cadeias onde estive.

Angus não conseguiu dominar a irritação. Sim, Edilean deveria ter falado com ele sobre contratar uma mulher que fizera só Deus sabia o quê para ser banida da sua pátria. Não fora uma atitude sensata. Se o camarote não estivesse tão cheio de objetos valiosos, teria ido atrás de Edilean para lhe dizer o que pensava sobre a contratação daquela mulher.

– Margaret – disse finalmente. – A minha mulher não se encontra no seu melhor estado. Talvez deva voltar mais tarde. Nós chamamo-la.

Foi até à porta e abriu-a, mas Edilean entrou no camarote. Dirigiu-se ao baú de onde retirou os vestidos que precisavam de ser quase totalmente arranjados.

– Está aqui um frio capaz de congelar neve – pronunciou Margaret, de olhos postos em Angus.

– O que disse? – perguntou Edilean enquanto presenteava a mulher com um olhar indicativo de que devia manter as suas opiniões para si própria.

– Peço perdão, minha senhora – respondeu Margaret com uma pequena vénia. – O que deseja então que faça?

* * *

Edilean sentou-se à mesa, contemplando o oceano através da janela. Tinha passado uma semana desde que dissera a Angus o que pensava do seu comportamento e agora tudo era diferente. Não havia um dia em que não se criticasse mentalmente pelos pensamentos estúpidos e infantis que tivera antes. Era verdade que tentara transformá-lo em algo que ele não era, mas na última semana havia-o compensado, deixando de interferir na sua vida. Os jantares com o capitão e Mr. Jones tinham mudado e deixaram de se verificar os simpáticos momentos anteriores. Na primeira noite a seguir à discussão, Angus dissera: «Lamento, mas a minha mulher não se sente bem» e tinham abandonado a sala logo após a refeição. Edilean passara a maior parte da semana no interior do camarote a ler qualquer livro que conseguisse encontrar. Angus passava o tempo no convés. Se com as prisioneiras ou não, era algo que ela não queria saber.

Quando a porta se abriu, Edilean voltou a concentrar-se no livro e ignorou Angus. Tão-pouco lhe escolhia as roupas e ele aprendera a fazer o nó da gravata. Tomara disposições para que Margaret aparecesse duas vezes por dia no camarote para a ajudar com o espartilho.

– No novo país precisarei de um trabalho e a senhora de uma criada – disse Margaret no segundo dia, sugerindo que Edilean deveria contratá-la.

Edilean sorrira friamente à mulher e respondera que pensaria no assunto. Contudo, a verdade é que nunca contrataria uma mulher que tinha feito o que quer que Margaret fizera para ser transportada no navio.

– Devia sair mais vezes daqui, rapariga – observou Angus nesse momento.

– Tenho trabalho para fazer antes de chegarmos à América e preciso de o completar.

– Que trabalho?

– Uma casa – respondeu, sem pensar. – Acho que terei uma casa construída segundo as minhas especificações.

– E quais serão?

Edilean não lhe respondeu, porque não estivera a pensar numa casa nem no futuro. Na verdade, quando pensava no novo país e em estar completamente sozinha, quase gelava de medo. Nunca na vida havia sido independente e agora o facto de passar da falta de liberdade para se encontrar entregue a si própria assustava-a.

– O que significa esse olhar?

– Nada – respondeu. – Divertiu-se a dançar?

– Divertiu-se com o seu mau humor?

Edilean não lhe respondeu, visto ter a sensação que cada palavra que pronunciava dava início a uma discussão entre os dois.

Angus agarrou na pena, mergulhou-a num boião de tinta e fez uma pausa sobre uma folha de papel.

– Há cerca de um ano, o seu tio mandou-me a Londres fazer um recado. – Traçou algumas linhas no papel e fitou-a. – Agora que penso no assunto, acho que esse recado lhe dizia respeito. Tive de me encontrar com um homem fora de um banco e ele deu-me uma carta para levar ao seu tio. Na altura interroguei-me porque não mandara ele a carta pelo correio, mas agora acho que se tratava do ouro e dizia a Lawler algo que supostamente ele não deveria saber.

Enquanto falava, Angus desenhava rapidamente no papel. Edilean desejava ver o que ele fazia, mas a pilha de livros que pedira emprestados ao capitão tapava-lhe a vista.

– De qualquer maneira – continuou Angus –, quando seguia a cavalo, avistei uma casa que só tinha sido construída há um ano. Era bastante vulgar e muito simples, mas achei que era a casa mais bonita que já vira.

Empurrou o papel na direção dela e Edilean verificou que ele tinha feito o esboço de uma casa verdadeiramente encantadora. Tal como afirmara, tratava-se de uma casa bastante vulgar com cinco janelas no primeiro andar e quatro janelas e uma porta no rés do chão.

– É linda – disse, incapaz de reter o elogio. – E o seu desenho está fantástico. Como era a decoração do interior?

– Não faço ideia. Não me convidaram para tomar chá. Se estivesse vestido com estas roupas e falasse como o James, decerto o teriam feito, mas não era esse o caso.

A surpresa não desaparecera do rosto de Edilean ao observar o seu desenho. Angus tinha noção das dimensões e, embora agarrasse na pena como se fosse um objeto estranho, o resultado era muito bom. Edilean baixou a cabeça para dissimular o sorriso que não escapou a Angus.

– Isso foi um sorriso?

– Não! – exclamou ela bruscamente.

– Esteve zangada comigo uma semana inteira! Não consegue ter coração para perdoar a um homem que trocou as saudades da pátria por si?

– Está sempre a culpar-me pelos seus infortúnios.

– Porque você os causou. – Ao ver que ela desviava a cara, acrescentou: – Mas agora que falei com algumas pessoas sobre essa América, acho que poderia gostar dela.

– Como é possível, tendo deixado a sua família na Escócia?

– Sobre isso, rapariga, talvez a minha vida não fosse tão boa como lhe disse.

– Segundo as suas palavras, era o paraíso na terra.

– Contei-lhe que o meu pai me deixou uma casa?

– Não. Na verdade, contou-me muito pouco a seu respeito, exceto que era o homem mais feliz do mundo e eu lhe destruí tudo.

– Talvez tivesse exagerado um bocadinho.

Por um momento, ela pensou em pegar no livro e afastar-se dele, mas sentira-lhe a falta durante aquela última semana de frieza.

– Tinha então uma casa de campo?

– Era um lugarzinho muito bonito com telhado de colmo e janelas rasgadas.

A minha mãe plantou rosas num dos lados e eu acordava com o cheiro delas.

– Nunca me falou da sua mãe – comentou Edilean. – Ou, a propósito, do seu pai.

– Morreu há muito tempo – disse Angus num tom que revelava que não adiantaria mais nada. – Ficámos apenas a minha irmã e eu e ela... – Fez uma pausa e abanou a cabeça. – Apaixonou-se por um homem que é muito preguiçoso e gosta muito de desdenhar os outros, a mim em particular.

– É pior do que o Shamus?

– Diferente. Se você tivesse um penny na mão e o Shamus o desejasse, seria capaz de lhe partir o braço para o conseguir. Mas o Gavin, o meu cunhado, chamar-lhe-ia gananciosa e diria que se tivesse um penny o daria à igreja. Teria obviamente que se desfazer dele. De uma maneira ou de outra, ficaria sem nada.

– Até que ponto se embebedou no casamento?

Aquela pergunta sobressaltou Angus e fê-lo rir.

– Oh, rapariga, senti a falta do seu humor. Mas tem razão. Bebi tanto que fiquei com ressaca durante uma semana. A minha irmã e o seu novo marido foram morar com a mãe do Gavin, mas a Kenna... a minha irmã... só aguentou seis meses. A mãe do Gavin era igual ao filho e fazia da Kenna uma criada.

– Portanto, mudaram-se para sua casa?

– Isso mesmo – respondeu Angus. – E três meses depois, ela teve o primeiro filho.

– Três meses? Não costuma demorar mais tempo? Ou a Escócia também é melhor nesse aspeto?

– Eles começaram cedo. Parece ser uma das coisas em que o Gavin não é preguiçoso. A minha irmã teve três crianças em dois anos de casamento.

Edilean não conseguiu reprimir um sorriso. Tinha sido uma semana longa e aborrecida com ela e Angus a falarem tão pouco.

– Quanto a esta semana – disse ele baixinho. – Não tem sido fácil para mim.

– Nem para mim.

– Mas desta vez deu-me uma oportunidade para pensar – prosseguiu ele. – O que me teria acontecido na Escócia? Estava onde ficaria. Contudo, graças a si, tenho a hipótese de uma nova vida.

– Demorou uma semana a chegar a essa conclusão?

– Três dias – respondeu com um leve sorriso. – Desde então, tenho falado com todos os que estiveram na América e feito perguntas. Acho que um homem pode fazer algo de si nessa nova terra.

– Como por exemplo?

Compreendeu pela expressão de Angus que ele se preparava para fazer uma réplica jocosa à sua pergunta, mas pareceu mudar de ideia.

– A minha própria casa – respondeu finalmente. – Ter os meus cavalos. O meu... tudo. Tudo de minha posse. Sem ter de passar os dias encharcado e com frio à procura das ovelhas perdidas de outro homem.

– Mas julguei que gostava do clima da Escócia. E detesta usar as roupas do James, mas são as que um proprietário usa.

– Talvez possa habituar-me a fazer a barba todos os dias – replicou com um brilho nos olhos.

Edilean examinou novamente o esboço dele.

– Se esta casa fosse minha, sabia exatamente como decorar o interior.

– E como seria?

Edilean pegou na pena para fazer o esboço, mas voltou a pousá-la.

– Alguns quartos. Tetos altos. Ouvi dizer que a Virgínia tem um clima quente, portanto, precisaríamos de altura para que o ar quente subisse. E um grande corredor central nos dois andares para se poder abrir as portas e deixar passar o ar.

– Agrada-lhe, portanto, o que ouviu sobre essa Virgínia?

Angus agarrou na pena e pôs-se a esboçar o plano que ela tinha descrito.

– O capitão Inges disse-me que era um sítio bonito e que quando se reformar tenciona viver lá. Disse ainda que os invernos em Boston são fantásticos.

Edilean observava-o atentamente enquanto ele desenhava e sentia-se contente que tivesse optado por deixar de culpá-la por lhe ter destruído a vida. Era um fardo de culpa demasiado pesado de transportar.

– O que vai fazer quando chegarmos lá? – murmurou.

Angus estava concentrado no desenho.

– Acho que irei a essa Williamsburg de que Mister Jones me falou. Parece ser o centro de tudo o que está para acontecer.

– O que significa isso? O que está para acontecer?

– Os americanos falam de se tornarem independentes de Inglaterra.

– Isso é absurdo. Como podem tornar-se independentes? Como podem fazê-lo sem um rei?

– Bastante bem, acho eu.

– Como pode dizer isso? Um rei é alguém que nasceu para governar. É um direito concedido por Deus. O rei...

– Quer começar outra discussão entre nós?

– Não – respondeu ela baixinho.

– Rapariga... quero dizer, Mistress Harcourt. Tive bastante tempo para pensar esta semana e ver como somos os dois diferentes. Acha que há um único assunto em que estejamos de acordo?

– Não, acho que não.

Queria confessar-lhe o medo que sentia de ficar sozinha naquele novo país, mas percebia que ele não tinha medo. Era um homem novo a caminho de uma aventura e, graças à oferta das joias, teria muito dinheiro. Pensou por momentos em dizer que queria as joias de volta. Se ele não tivesse dinheiro, talvez não fugisse, deixando-a sozinha no cais mal o navio baixasse a âncora.

– Porquê esse rosto triste? – perguntou ele.

– Está ansioso por chegar à América, não está?

Angus fitou-a por um momento, antes de se concentrar novamente no papel.

– Ponderou na hipótese de Harcourt ter tomado disposições para ele e para a mulher na América?

– Não – respondeu ela lentamente e o pensamento alegrou-a um pouco. – Refere-se a ter arranjado alojamento? – A ideia de ter um lugar para onde ir fazia com que se sentisse melhor. Nunca tinha vivido num hotel nem desejava viver e receava ver-se obrigada a fazê-lo.

– Acho que tudo o que fez lhe demorou muito tempo a planear. Sabia que ele reservou passagem neste navio com sete meses de antecedência?

– Mas como? Ele ignorava o que o meu tio ia fazer.

– Tem a certeza? Lawler era cauteloso, mas o mesmo não se aplicava aos dois homens que quase viviam com ele. Acho que o Harcourt planeou tudo para próximo dos seus dezoito anos. Duvido que ele fugisse com a filha do conde, portanto, deve tê-la cortejado enquanto lhe dizia que ficaria ao seu lado. Na minha opinião, o Harcourt planeava fazer uma falsa cerimónia de casamento consigo. Depois, quando tivesse o seu ouro... – Angus encolheu os ombros.

Edilean deixou-se ficar sentada, piscando os olhos, refletindo no que ele dissera. Não queria pensar na traição de James, mas ter uma casa era algo diferente.

– Portanto, acha que na América talvez haja uma casa ou, pelo menos, um sítio onde viver? Não que possa ir para lá, mas...

– Porque não? Passará um mês antes que Harcourt consiga receber uma carta aqui e todos a conhecerão como Mistress James Harcourt.

– E a você como meu marido – ripostou Edilean.

– Desaparecerei tranquilamente assim que chegarmos e ficará livre para ser quem quiser. Talvez uma viúva.

– E o que faço quando o James aparecer?

– Mostre-lhe a certidão de casamento em como ele está casado com a filha do conde e não consigo. Se existir uma casa, duvido que esteja paga, visto que ele esperava o seu ouro.

– Mas... – começou Edilean e em seguida interrompeu-se. – Acho que tem a mente de um criminoso.

– Obrigado – agradeceu Angus, estendendo-lhe o que tinha estado a desenhar. – É isso o que desejava?

Mostrou-lhe uma planta de proporções perfeitas. No andar de baixo havia um corredor enorme com uma grande escadaria. O corredor apresentava-se ladeado de quatro divisões, todas amplas e arejadas. O primeiro andar era praticamente o mesmo, mas num dos lados as duas divisões não eram do mesmo tamanho e uma tinha metade da outra.

– A sala grande é para os seus livros – disse ele. – Pode colocar prateleiras do chão ao teto em três lados e enchê-las de livros.

O facto de Angus ter pensado nela enquanto desenhava quase lhe encheu os olhos de lágrimas.

– Onde aprendeu a desenhar assim?

– Nem todos os homens que visitavam o seu tio eram como os dois que conheceu – respondeu, encolhendo os ombros. – Quando eu era um rapaz ainda mais novo do que o Tam, um homem jovem e rico apareceu de visita e queria desenhar os velhos castelos da Escócia. Pagou-me para viajar com ele até às Terras Altas enquanto desenhava. Observei e aprendi.

Ao ver que Edilean se mantinha silenciosa, fitou-a.

– Porque me olha dessa maneira?

– Porque consegue sempre surpreender-me.

– Só porque não sou o escocês ignorante que acha?

Edilean não sorriu.

– Pensei muita coisa a seu respeito, mas nunca que era... ignorante.

Angus franziu a testa e pôs-se a desenhar noutra folha de papel.

– Fez o que disse que faria e apaixonou-se por mim?

– Quando disse eu uma coisa dessas?

– Naqueles primeiros dias em que me fitava com olhos cheios de adoração.

– De quê? Posso garantir-lhe que nunca o «adorei».

– Depois de a ter salvo de Harcourt...

– Depois de o ter salvo da forca.

– Porque você se escondeu num caixão – ripostou ele.

Edilean não conseguiu reprimir um sorriso.

– Nunca mais me esquecerei do seu rosto. Estava mais branco do que o meu e eu tinha-o coberto de pó.

– Mesmo assim era a mais bonita... – Interrompeu-se e pousou a pena. – Preciso de sair – disse bruscamente e, em poucos passos, estava lá fora, deixando Edilean boquiaberta.

– O que fiz eu agora? – interrogou-se em voz alta, pegando no desenho de Angus. – Ele devia estudar arquitetura – sussurrou e ocorreu-lhe imediatamente a ideia dos dois a viverem juntos na casa que ele desenhara.

Angus trabalharia na grande sala do andar superior, cercado das folhas enroladas dos seus desenhos. E pedir-lhe-ia opinião sobre todos os edifícios. «Sabes que és melhor a decorar interiores do que eu», diria. E: «De que cor achas que pinte estas paredes?»

Edilean imaginou-se com um vestido de seda azul, o cabelo penteado em cachos sobre o pescoço – e um bebé nos braços e outro de pé, com as mãozinhas na sua saia. A visão era tão nítida que conseguia distinguir os rostos das crianças. O mais velho era um menino e parecia-se com Angus e a mais pequena era uma menina que se parecia com ela.

Levantou-se, foi até às janelas e olhou lá para fora, tentando libertar-se da visão, mas esta não a abandonou. Talvez fosse o desenho que ele fizera da casa que tornava tudo tão claro aos seus olhos, mas era como se contemplasse uma bola de cristal e visse o futuro.

Porém, tudo aquilo era ridículo! Angus McTern não deixara sombra para dúvidas de que não queria ter nada a ver com ela quando estivessem na América. Edilean estava entregue a si própria.

Virou-se e agarrou num dos livros que o capitão lhe emprestara e tentou concentrar-se na leitura.

Angus conservava-se de pé junto à amurada do navio, olhando por cima da borda. Parte dele desejava que o navio abrandasse e outra parte desejava que avançasse rapidamente para poder acabar com as despedidas. O capitão dissera que caso o tempo se mantivesse assim, desembarcariam no porto de Boston dali a cerca de uma semana.

«E isso será o fim de tudo», pensou. Seria a última vez que veria Edilean.

– Edilean – sussurrou, tendo apenas o mar como ouvinte.

Os últimos dias da frieza dela haviam sido difíceis de suportar, mas sentira-se satisfeito com a sua raiva. Sabia que, caso tivessem mantido a relação como estava, enlouqueceria de desejo por ela. Desejo não só de lhe tocar, mas também de a fazer sorrir, rir, de ouvir uma das suas respostas que o levavam a querer puxá-la para si e beijá-la.

Contudo, não podia fazê-lo. Oh, sabia que ela começava a pensar que estava apaixonada por ele, mas isso já tinha acontecido com outras raparigas. A diferença estava nos seus sentimentos por ela. Nenhuma mulher se aproximara sequer de o fazer sentir o que sentia por ela. Não o surpreenderia se lhe dissesse que acreditava que ele era capaz de voar. E, quando Edilean o fitava com aquela admiração nos belos olhos, Angus achava que talvez lhe pudessem nascer asas e afastar-se a voar.

Não, não poderia fazer isso. Ela era uma jovenzinha, com apenas dezoito anos, enquanto ele, aos vinte e cinco, não era velho, mas por comparação, sentia-se como se já tivesse vivido mil anos. Nunca lhe contara, mas o tio tinha-o encarregado de muitas missões, algumas delas muito menos nobres do que proteger um inglês medroso enquanto desenhava velhos castelos.

Angus sabia que Edilean achava que passara uma vida difícil por não ter uma mãe e um pai que lhe aconchegassem a roupa ao deitar, mas tinha consciência de que fora protegida e cuidada. O dinheiro do pai existira, ainda que ele não estivesse presente. Passara uma ou duas semanas com qualquer colega de que não gostava. E daí?

Não tinha visto o pai morrer diante dos olhos, como acontecera a Angus. Não tinha visto a mãe a definhar por excesso de trabalho e de solidão. E Edilean nunca ouvira dizer desde que nascera que era responsável pela saúde e o bem-estar de um clã inteiro. Malcolm encavalitara-o mais do que uma vez nos ombros e dissera-lhe: «O destino dos McTern está nas tuas mãos, rapaz. Tudo depende de ti. Tens de desfazer o que o teu avô, o meu pai, fez.»

Durante toda a vida Angus ouvira contar em pormenor o traste que o seu avô tinha sido. Roubara as ovelhas de outras pessoas de noite, roubara todos num raio de centenas de quilómetros. Tinha sido preso muitas vezes e escapara à morte por minutos. Aos trinta anos, uma jovem mulher, uma amante, salvara-o da forca. Três dias depois, a mulher dera à luz o pai de Angus. Contudo, a mulher perdoou-lhe o que fez. Dizia-se que as mulheres lhe perdoavam tudo.

Talvez a mulher lhe tivesse perdoado, mas os três filhos não. O mais velho viveu até à idade adulta, mas foi morto quando o filho, Angus, tinha apenas cinco anos. O filho do meio tentara seguir o pai, ser tão «duro» como ele, mas não conseguiu. Morreu durante um assalto noturno e um mês depois a sua jovem mulher deu à luz Tam. Malcolm foi o único que sobreviveu à traição do pai.

O pai de Angus dera o seu melhor para manter a unidade do clã, mas ao longo dos anos havia-se criado demasiado ódio. Durante um assalto às ovelhas McTern, o pai de Angus foi esfaqueado no estômago por um homem escondido nos arbustos. Vivera o suficiente para conseguir chegar a casa, mas morreu pouco depois, com a mulher e o filho pequeno ao lado. As suas últimas palavras haviam sido para o filho, dizendo-lhe que ele tinha de cuidar dos McTern. «Não lhes faças o mesmo que o meu pai.» Agarrara nas mãos da mulher e do filho. «Estou contente por não ir encontrar o velho sacana, pois sei que ele irá para o inferno.» Sorriu e depois fechou os olhos e morreu.

Constava que na noite em que o avô de Angus apostara tudo numa partida de cartas estava lua cheia e os lobos saíram dos covis e uivaram em protesto. Ninguém soube o que aconteceu ao velho depois disso. Tinha rido de todas as más ações cometidas, de todas as lágrimas – e de todas as mortes – que causara, mas perder o passado e o futuro da família fora de mais para ele. Três semanas mais tarde, encontraram-no sentado numa cadeira de um pub, em Edimburgo, morto.

A mãe de Angus morreu uns anos depois, deixando Angus e a irmã sozinhos.

– Porquê essa cara triste?

Voltando-se, deparou com Tabitha ao seu lado, com um brilho provocante nos olhos negros. Se a tivesse conhecido um ano antes, gostaria da maneira como ela o olhava.

– Discutiu outra vez com a patroa?

Quando Angus a brindou com uma expressão carrancuda, ela riu.

– Vou descobrir a verdade entre vocês os dois – garantiu ela.

– Não há nada para descobrir. Somos o que vê.

Tabitha soltou uma risada para lhe dar a entender que não acreditava nas suas palavras.

– Vão montar casa juntos na América?

– Claro – disse ele, rangendo os dentes. A mulher era realmente uma criatura irritante. Vira-a três vezes desde o primeiro dia e estava sempre a meter-se na sua vida... e acertava quase sempre. Via o que as outras não viam. – Se é assim tão perspicaz, porque é que se deixou apanhar por um homem?

– Amor – respondeu sem hesitar. – Não se pode evitar o que o amor nos faz, pois não?

Não se deu ao trabalho de responder, mas voltou a olhar para o mar. Atrás deles, um homem gritou que as mulheres deviam voltar lá para baixo.

– Têm medo de que corrompamos os homens – disse Tabitha.

– E não o fizeram?

– Qualquer corrupção que tenha feito foi mútua – respondeu antes de se dirigir até onde as mulheres estavam reunidas e a resmungar por terem de voltar para baixo.

Angus fixou novamente o mar e pensou nos ciúmes que Edilean tinha de Tabitha. Uma leve alusão da mulher bastava para que os olhos de Edilean deitassem fogo e parecesse desejar atacar alguém.

«Amor», pensou Angus. Tabitha dissera que tivera uma relação com o patrão por amor e Angus sabia que Edilean começava a achar que estava apaixonada por ele. Contudo, não estava. Apenas receava ver-se sozinha num novo país. E tinha mesmo de ficar sozinha. Ou, pelo menos, longe dele, de Angus McTern.

Era tentador – oh, muito, muito tentador – fazer alguns avanços, tocar-lhe «acidentalmente» na mão, fitá-la de maneira a que ela entendesse o que lhe ia na alma. Sabia que, se o fizesse, levaria apenas uns minutos até ela cair nos seus braços, até se lhe entregar.

«Mas e depois?», pensou. Teve de fechar os olhos enquanto imaginava deliciosas semanas, talvez mesmo meses a fazerem amor. Desfrutariam de jantares silenciosos que nunca terminariam pois estariam dentro do corpo um do outro.

Contudo, algo lhe dizia que as suas verdadeiras personalidades acabariam por vir ao de cima. Edilean passara a vida em colégios e Angus não sabia ler. Edilean adorava vestidos de seda e o chá da tarde; Angus gostava de se enrolar na manta e dormir no chão.

Não havia nada de comum entre eles. A bordo do navio, com Angus vestido com as roupas de outro homem e usando um falso sotaque, era quase como se fossem iguais. Ele bem via a maneira como o rosto dela brilhava ao ver que ele era capaz de fazer outras coisas além de correr pela urze.

Mas ele não era assim. Seria incapaz de passar a vida a fingir ser outra pessoa. Não demoraria muito tempo até que vissem através dele. A própria Tabitha, uma mulher que vivia à margem da sociedade, desvendara-o. Sabia que ele era um impostor.

Angus teve uma visão de um jovem elegante com um grau universitário a provocar o riso em Edilean devido a qualquer poeta francês. E, nessa noite, ela fitaria Angus com desprezo.

E se casassem? Conseguia vê-la a dizer aos filhos que não fizessem perguntas ao pai. «Ele não sabe nada», diria. Ou talvez fosse demasiado educada para pronunciar as palavras, mas eles iam saber. Estaria no meio de uma família que riria sobre poesia e histórias escritas em grego e Angus ficaria de fora.

Até nesse momento conseguia imaginar a sua raiva por ser tratado assim. O que faria? Teria uma relação com uma mulher como Tabitha? Enquanto a mulher e os filhos estivessem em casa nas suas puras e inocentes camas, seria como o avô e passaria as noites fora de casa com mulheres perdidas? Precisaria delas para se sentir um homem?

Angus passou a mão pelo rosto para afastar aqueles terríveis pensamentos. Tudo o que sabia ao certo era que não poderia continuar ao lado de Edilean após o final da viagem. Sabia que quando desembarcassem, ela ia fitá-lo com aqueles olhos que imploravam «salve-me». Estariam cheios de lágrimas e pareceria tão bonita que se sentiria disposto a pegar numa espada e a liderar um exército por ela. Contudo, tinha de lhe resistir.

Se sabia algo na vida era que se ficasse com ela, casado ou não, acabariam por se odiar um ao outro. Ela ia odiá-lo, ou pior, desprezá-lo, dado que, por baixo das roupas elegantes, ele não era um cavalheiro. E ele ia odiá-la porque não poderia transformar-se no que ela queria que ele fosse.

Respirou fundo algumas vezes e tentou firmar a sua resolução. Por mais que ela o fitasse, independentemente do que dissessem os seus olhos – duvidava que o orgulho a deixasse pronunciar as palavras – não cederia. Por mais que lhe agradasse pensar que ela era uma adulta, não o era.

Quando chegassem à América, ficaria ao seu lado o tempo suficiente para se certificar que estava inserida na sua sociedade e depois partiria. Por mais coisas agradáveis que ela dissesse sobre a Virgínia, apenas conseguia imaginá-la a viver numa cidade e, pelo que lhe constava, Boston era tão agressiva como Londres.

Angus afastou-se da amurada. Se alguma vez precisara de força na sua vida, era naquele momento.


13

No dia em que deveriam chegar a Boston, Edilean acordou, sentindo-se calma. Nas três noites anteriores não tinha dormido e ficara acordada, preocupando-se com o que a aguardava, mas a última fora diferente. Era como se o seu destino estivesse selado e nada pudesse fazer para o mudar. Por conseguinte, resignou-se.

Mas não poderia dizer o mesmo em relação a Angus. Na sua opinião, parecia-lhe uma pilha de nervos. No dia anterior, enquanto estavam a fazer as malas, não a abandonara um momento, perguntando se tinha tudo, se não estava a esquecer-se de nada.

– O capitão Inges disse que ficaria algumas semanas em Boston e, portanto, se deixar um alfinete que seja no navio, poderei vir buscá-lo – respondeu pacientemente. – Porque não se senta e desenha qualquer coisa? Ou não sobe ao convés para dançar com aquelas mulheres?

– Está a mandar-me para junto da Tabitha? Ou talvez gostasse que eu descesse ao porão e fosse vê-la?

– Se tenta fazer-me ciúmes, está muito longe de o conseguir. Quando chegarmos à América, é um homem livre. Pela minha parte, pode ir atrás da Tabitha e comprá-la.

– Comprá-la? Oh, os seus documentos de escravatura. Sim, poderia fazê-lo – disse, percorrendo o camarote com os olhos e andando de um lado para o outro. – E talvez casar com ela. Daria uma boa mulher.

Ao ver que Edilean não fazia nenhum comentário, prosseguiu:

– Ela já provou que é fértil.

Enquanto falava, não desviou os olhos de Edilean que se ajoelhara junto ao baú, guardando os vestidos que Margaret lhe tinha arranjado.

– Ah, sim? – retorquiu Edilean, sem se mostrar muito interessada. – Que bom para si. O pai ficou com a criança?

– Nasceu morto.

– Se é que alguma vez existiu.

– O que quer dizer com isso?

Edilean levantou-se para ir buscar um livro à mesa onde tinham tomado o pequeno-almoço juntos durante toda a viagem. Angus colocou-se atrás dela.

– Fala como se não acreditasse que Tabitha teve um bebé.

– Tenho a certeza de que fez o que é necessário para gerar um bebé – respondeu ela, metendo o livro no baú.

– E você não – comentou Angus, fitando-a.

Edilean virou-se, com as mãos nas ancas, e fulminou-o com o olhar.

– Porque não vai até ao convés e incomoda outra pessoa com as suas perguntas? Podia perguntar a cada uma das mulheres se tiveram uma vida difícil e em seguida dizer-lhes que, comparada com as delas, a minha foi fácil porque tenho dinheiro.

– Eu nunca disse... Nunca quis dizer... Não está a pensar que eu...

– Vá! – ordenou, colocando as mãos no fundo das costas dele e empurrando-o para a porta do camarote. – Saia daqui. Tenho trabalho para fazer e consigo a tentar começar uma discussão não sou capaz.

– Não estava a tentar fazer isso – ripostou ele, saindo.

Quando Angus se afastou, Edilean encostou-se à porta, fechou os olhos por um momento e sorriu. O nervosismo dele agradava-lhe, porque também ela se sentia assim. A perspetiva de um país totalmente novo era aterradora. Contudo, mais do que a ideia de um país, assustava-a pensar no futuro. Aceitara o facto de que ela e Angus iam separar-se à chegada, mas a situação era mais fácil para ele. Angus havia demonstrado que podia ser quem quisesse. Podia usar as roupas de um trabalhador e arranjar uma mulher que passasse os dias a esfregar o chão e à noite parisse gémeos de cinco quilos. Ou vestir as roupas de James e arranjar uma mulher que lesse Cícero no original grego. Podia ter tudo o que desejasse.

No entanto, Edilean sabia que as suas escolhas não seriam tão fáceis. Devido às suas maneiras e aparência, poderia ter apenas um tipo de homem, ou seja, alguém como James. Contudo, Angus fizera-a não desejar um homem como James. Ao passo que dantes havia considerado James como a elegância personificada, agora parecia-lhe bastante inútil sempre que pensava nele.

Mas sabia que não lhe restava alternativa quanto ao que faria da sua vida. Devido aos baús com ouro guardados no porão do navio – e que Angus fora verificar por quatro vezes –, o destino decidira por ela. A sua situação atual não se devia a uma opção, mas à existência do ouro.

Quando Angus regressou ao camarote algumas horas mais tarde, vinha a suar e de muito melhor humor.

– Esteve novamente a dançar?

– A trepar a cordas e a apostar – respondeu. – E ganhei.

Sorrindo, Edilean desejou tê-lo visto. Os marinheiros pensavam obviamente que Angus era, bom... o mais diferente de James possível.

– Os marinheiros devem ter ficado surpreendidos com as suas capacidades.

– Sim, ficaram – disse ele, sentando-se à mesa, agarrando na pena e começando a desenhar.

Desde que fizera os esboços da casa, não tinha parado de desenhar. Por uma questão de curiosidade, ela pedira-lhe que desenhasse outras coisas além de edifícios e chegara a posar para que lhe desenhasse o retrato, mas ele não conseguira. O resultado foi pouco melhor do que uma criança faria.

– Acho que me vou ficar pelos meus edifícios – decidira, e assim foi.

«Não posso pensar nisto», disse para si mesma. Se pensasse em afastar-se e nunca mais ver Angus, sabia que começaria a chorar desalmadamente.

Nesse momento, ao acordar, e como era seu hábito, olhou para Angus e invadiu-a uma calma que não sentia há dias. Levara-lhe uma semana, mas por fim ele aprendera a dormir na rede sem cair. Quando o fitou, estava a observá-la e tinha os olhos tão congestionados que, pelos vistos, passara a noite em claro.

– Sente-se bem, rapariga? – perguntou ele num tom meigo.

– Ótima – respondeu com sinceridade. Surpreendentemente, estava bem. Na verdade, invadia-a uma certa emoção ao pensar no que estava para acontecer nesse dia. Iam desembarcar num país novo em folha.

Era Angus quem estava nervoso.

– E se não tiver uma casa à sua espera? – perguntara no dia anterior. – E se Harcourt não tomou providências para si?

– Foi você quem disse que ele devia ter tomado providências para ele e por conseguinte vou usá-las enquanto puder. Por favor, deixe de se afligir tanto.

– Nunca me «afligi» em toda a minha vida – retorquiu Angus parecendo ofendido e Edilean teve de dissimular um sorriso.

Horas mais tarde, quando o navio baixou finalmente a âncora e se encontravam no porto de Boston, Edilean estava certa de nunca haver visto tanta confusão e agitação na sua vida. Passara uma grande parte dela em Londres, mas aquele lugar era diferente. Era mais barulhento, mais sujo e maior. Avistava pessoas, carroças e animais que enchiam as ruas. Contudo, apesar de todo o ruído e sujidade, reinava uma excitação que nunca detetara na velha Londres.

– É maravilhoso! – exclamou para Angus que se encontrava ao seu lado.

– Cheira mal – retorquiu ele, pegando-lhe no braço e agarrando-o com força.

– Não mais do que Londres – ripostou ela.

– Foi o que eu disse. Fede.

Edilean riu e soltou-se do braço dele.

– Venha. Precisamos de fiscalizar se descarregam os baús. Quero contá-los para ter a certeza de que ninguém foge com um deles.

– São demasiado pesados – resmungou Angus, mas foi atrás dela.

Minutos depois, encontravam-se de volta ao camarote e Edilean percorreu-o com um último olhar.

– Acho que levámos tudo. Não me parece que tenhamos esquecido algo.

Ia a dirigir-se à porta, mas Angus agarrou-lhe no braço e atraiu-a a si.

– Rapariga – disse, baixando os olhos para o seu rosto. – Se alguma vez precisar de alguma coisa, seja do que for, irei ter consigo. Sabe disso, não sabe?

Edilean pousou as pequenas mãos no peito dele e fitou-o com intensidade.

– Sim, sei. E se precisar de alguma coisa, ajudá-lo-ei.

– Eu? De que poderia precisar? – inquiriu, num tom divertido.

– Se casar com a Tabitha, precisará de muita coisa. Certifique-se que ela não o rouba.

– Não me parece que isso vá acontecer – replicou, sorrindo, rodeando-lhe a cintura com os braços.

– Largue-me – pediu e empurrou-o. – O capitão vai querer despedir-se de nós e preciso de ver se tenho alguém à minha espera. Acha que será um homem?

– Um homem?

– Sim – respondeu ela, alisando a saia. – Um homem. Já ouviu falar deles, não é verdade? Se vou ficar neste país, acho que vou precisar de um marido. Não gosto de viver sozinha.

– Um homem – repetiu Angus.

– Quer deixar de repetir isso? O que achou que eu faria quando aqui chegasse? Sentar-me na sala a bordar e a consumir-me por sua causa enquanto você se diverte com a Tabitha ou alguém da laia dela?

– Acho que devia conhecer qualquer homem com quem queira casar – replicou ele com o maxilar rígido.

– Mas não precisa de o fazer – contrapôs Edilean. – Passou três semanas a ensinar-me o que é valioso num homem. Não me deixarei arrastar novamente por um rosto bonito, nem me apaixonarei por um homem que apenas queira o meu dinheiro. Tenciono entregar-me a um homem que goste de mim e não me veja como uma criança aborrecida, como é o seu caso.

– Tem sido uma doce companheira – disse ele, fitando-a como se tentasse memorizar o seu rosto.

– E você foi... – hesitou. – Quando não estava a fazer figura de idiota por causa dos seios da Tabitha, também foi um bom companheiro.

– Idiota, eu? – perguntou, repetindo o que ela dissera em voz baixa, como se não conseguisse acreditar.

– Vamos? – disse Edilean, olhando para a porta, esperando que ele a abrisse.

– Sim – anuiu Angus, segurando a porta para que ela saísse.

Mal ficou de costas para Angus, Edilean respirou fundo. Felicitou-se por haver cumprido a tarefa o melhor que podia. Não tinha sido fácil fingir que o afastamento dele não a afetava. Embora se sentisse excitada com a perspetiva de uma nova vida, a ideia de se separar de Angus despedaçava-a. Caso se deixasse levar pelos seus sentimentos, ter-lhe-ia rodeado o pescoço com os braços e suplicado que ficasse ao seu lado. Contudo, sabia que ele lhe diria algo quanto a pertencerem a classes diferentes, a terem outra educação ou qualquer parvoíce do género e depois arvoraria a sua «expressão de herói» e faria o que achava que era nobre e generoso e deixá-la-ia. Dado não haver nenhuma esperança de conseguir mudar-lhe a mente dura e obstinada, não lhe daria a satisfação de conhecer o que sentia por ele.

– Mistress Harcourt – disse o capitão Inges mal se encontraram no convés. – Foi um prazer. Espero que nos voltemos a ver.

– Sim – disse ela. – Talvez nos vejamos aqui na cidade ou na Virgínia. Talvez... – Interrompeu-se ao ver que o capitão se virara e olhava para a doca.

– Ali está ela! – exclamou. – Começava a interrogar-me se a carta que o seu marido me mandou correspondia ou não à verdade.

– Carta? – perguntou ela.

– Quando reservou a passagem. Decerto lhe falou no assunto.

– Sim, claro – respondeu Edilean –, mas acho que me esqueci.

– A uma mulher no seu estado perdoam-se lapsos de memória – retorquiu ele, parecendo um avô babado.

Edilean quase havia esquecido de que dissera a Mr. Jones que estava grávida. Tudo isso lhe parecia tão distante. Naquele momento, Angus encontrava-se no porão a supervisionar o desembarque dos baús de ouro e de tudo o mais que James combinara que fosse enviado para o novo país para seu conforto e usufruto.

– O que constava exatamente da carta a que se referia? – inquiriu.

– A carruagem verde. Lá está ela – respondeu, fitando-a e percebendo que ela não se encontrava ao corrente. Olhou em volta, obviamente, à procura de Angus. – Espero não ter estragado uma surpresa. A irmã do seu marido deve vir ao vosso encontro aqui e disseram-me que procurasse uma carruagem verde-escura com uma coroa de conde no cimo. Não consigo avistar os dizeres do lado da carruagem, mas acho que deve ser ela, não lhe parece? Contudo, tenho a certeza de que reconhecerá a sua cunhada.

– Não. Nunca a vi – disse Edilean.

– Oh, meu Deus! Estraguei mesmo a surpresa. Peço desculpa.

Edilean fixou a carruagem, fascinada. O que poderia fazer? O passadiço não fora colocado e por conseguinte não podia correr. A irmã de James? Desconhecia que ele tinha uma irmã. Uma irmã saberia tudo sobre a mulher do irmão, sobre o ouro, e talvez tivesse sabido que Edilean drogara o irmão e o deixara no chão de um hotel. Pior ainda, talvez soubesse que Angus era procurado por rapto.

Edilean sentiu uma mão forte sobre o ombro e percebeu, sem olhar, que Angus estava ao seu lado e consciente do que se passava.

– Tenha calma – sussurrou ele. – Vamos resolver tudo e sair da situação.

Edilean fitou-o.

– Acho que devia ir-se embora – disse. – Acho que devia levar as joias e desaparecer daqui. Não fiz nada de errado. Só me apoderei do que me pertencia, mas você está acusado de rapto e não me parece que o juiz acredite em mim quando declarar que o acompanhei de livre vontade. Vá!

Angus não se mexeu e conservou-se ao lado dela, com a mão no seu ombro enquanto fitava a carruagem verde. Era tão luxuosa que não ficaria admirado se lhe dissessem que era a melhor de Boston. Já tinha visto carruagens idênticas antes e tinha a certeza de que fora construída em Inglaterra.

– Não tenciono deixá-la – disse Angus, apertando os dedos com força no seu ombro quando a portinhola da carruagem se abriu.

Do interior saiu uma mulher alta e magra e, devido ao cabelo grisalho, parecia ser muito mais velha do que James Harcourt. Protegeu os olhos do sol com a mão ao erguer os olhos para o navio, perscrutando os rostos dos que se encontravam na amurada. Angus e Edilean afastaram-se do seu campo de visão.

– Não pode ir comigo – disse Edilean, colocando as mãos no peito dele. – Não pode deixar que ela o veja. Se chamar as autoridades, metem-no na prisão.

Angus sabia que ela falava verdade e também sabia que, se lhe restasse algum bom senso, levaria o que pudesse nas mãos e afastar-se-ia. Contudo, mesmo ciente do que poderia acontecer, não deixaria Edilean desprotegida.

– Talvez não seja tão mau como pensa – disse. – Portanto, ficarei ao seu lado até que você saiba realmente o que vai acontecer.

– Não gostaria de alugar uma carruagem e levar-me e ao meu ouro até à Virgínia? – inquiriu meio a brincar.

– Não – respondeu baixinho e ergueu-lhe a mão para lhe beijar a palma. – Mas saiba que sentirei terrivelmente a sua falta.

– Angus... – começou, mas ele não a deixou acabar a frase.

– Vamos descer juntos, mas sem nos tocarmos. Pode dizer-lhe que sou um passageiro que se ocupou de si durante a viagem.

– E o que lhe respondo quando ela vir que o irmão não está comigo?

– Diga-lhe que se atrasou. Se ela o conhece, saberá que provavelmente fugiu com os companheiros de copos e não quis ter nada a ver consigo.

– Podia ter-me deixado sozinha, mas não com os baús de ouro.

– Tem razão nesse ponto – sorriu Angus –, mas talvez ela não o saiba. A minha irmã acha que tudo o que faço está certo e por isso talvez essa mulher sinta o mesmo quanto ao irmão.

– Mas você tende a fazer o bem, o que significa que a sua irmã o conhece – ripostou ela.

Angus abanou a cabeça.

– Sentirei a sua falta todos os dias. Sobretudo a maneira como me olha. Agora, vá! Deve ir ao encontro dela, antes que ela veja o capitão. Conte-lhe uma das suas histórias e leve-a a pensar que tudo isto foi ideia do James.

Edilean agarrou no braço de Angus, sem querer deixá-lo. Ele achava que ela estava a brincar quando lhe falara da carruagem e da fuga para a Virgínia, mas não estava.

– Vá lá! – incitou Angus. – Consegue fazer isso. Lembre-se de que se escondeu num caixão. Foi pior do que esta situação.

– Estava drogada – retorquiu ela e em seguida os olhos brilharam-lhe. – Ainda lhe resta algum láudano? Podia tomar um pouco e você dizia-lhe que morri durante a viagem. Sabe, como em Romeu e Julieta. Espere aí! Provavelmente, não conhece a história. Porque não descemos ao camarote para lhe contar tudo?

Enquanto ela falava, ele dirigia-a para o passadiço. Ao avistarem a carruagem lá em baixo, afastou as mãos.

– Endireite as costas – murmurou. – A Margaret não é tão boa como eu a apertar-lhe o espartilho. Devia ter-me deixado continuar a fazer-lhe isso.

– A Margaret deixa-me espaço para respirar e você divertia-se de mais com a tarefa para o meu gosto.

Angus soltou uma risada e deu-lhe um último empurrão pela rampa. Encontrava-se apenas a uns passos atrás dela, mas tentava parecer como se mal a conhecesse.

A mulher estava ao fundo do passadiço, fitando-a, observando cada passo que Edilean dava e franzia a testa.

– Você não é a filha do conde – disse a mulher quando Edilean ficou diante dela. Era elegante, na casa dos quarenta, muito mais alta do que Edilean, quase tão alta como Angus, que se mantinha por perto, examinando com interesse os caixotes que estavam a ser descarregados. – Parece-se mais com a outra.

– Sou, sim – retorquiu Edilean e depois susteve a respiração. Passara a maior parte da sua vida com mulheres e tinha aprendido a avaliá-las rapidamente. – Sou eu a mais bonita e a que tem o ouro.

Edilean ouviu um gemido horrorizado de Angus que estava de costas para ela.

– Como é que conseguiu arrancar o ouro às mãos peganhentas do meu irmão? – perguntou a mulher alta com um leve sorriso.

– Há sempre homens dispostos a salvar belas raparigas na posse de baús cheios de ouro.

– Como esse que paira à sua volta? Ouça! Você! Sim, você! – disse, quando Angus se virou para a olhar. – Pode ir-se embora. Não vou fazer-lhe mal.

– Ela... – começou Angus, mas a mulher interrompeu-o.

– Ela está aqui e vou cuidar dela – retorquiu, virando-se novamente para Edilean. – Trouxe o ouro?

– Sim.

– Ótimo. Tenho uma carroça que o transportará para um cofre do banco. Está tudo preparado. – Dirigiu-se à carruagem e parou diante de um lacaio fardado que lhe abriu a porta. – Venha. Não disponho do dia todo. Há pessoas à espera.

– Acho que houve um engano – disse Edilean, aproximando-se da mulher para não ser obrigada a gritar. – Não estou casada com o seu irmão – acrescentou calmamente. – Ele casou com outra pessoa. Ela...

– Sim – retorquiu a mulher, impaciente. – Sei o que ele planeou. Casou com uma mulher por causa do título, mas seduziu outra pelo seu dote. O seu plano era roubar o dote e manter o título. Falhou-me alguma coisa?

– Não – respondeu Edilean. – Mas não foi assim que as coisas se passaram. O James casou com a filha do conde, mas eu descobri o que estava a acontecer... na verdade, contaram-me. Não descobri nada por mim própria. Confiava inteiramente no seu irmão.

– Não devia tê-lo feito – disse a mulher. – O James nunca fez nada de honesto em toda a sua vida. As primeiras palavras que lhe saíram da boca enquanto bebé eram mentiras.

– Oh, percebo! – exclamou Edilean.

– Mais alguma coisa? – redarguiu a mulher, fitando-a com impaciência.

– Não – respondeu Edilean. – Apenas que não existe qualquer motivo para que... Bom, para que nos conheçamos.

A mulher virou-se para Edilean.

– Quero conhecer qualquer mulher que consiga superar o meu namoradeiro e desonesto irmão. E, quanto a si, presumo que fugiu apressadamente e portanto tem onde ficar em Boston?

– Não – respondeu Edilean que começava a gostar daquela mulher e das suas maneiras diretas.

– Tenho uma casa aqui. Não está obviamente paga, porque o meu irmão está metido no assunto, mas acho que pode resolver o caso. Pode instalar-se e a esse homem que não a larga num hotel, mas, se o fizer, será cercada por homens desconhecidos. Poderia ver-se novamente encantada por um rosto bonito. – Ao pronunciar as palavras, olhou diretamente para Angus como se ele fosse um homem atrás de todas as posses de Edilean.

Edilean limitou-se a fixar a mulher, sem saber o que deveria dizer. Ao longo da vida, demorara sempre semanas a tomar uma resolução. Um Natal, recebera três convites e levara quatro semanas a decidir-se. Contudo, desde a noite em que o tio a arrancara da escola, parecia haver tomado todas as decisões com a rapidez de um relâmpago.

A mulher esboçava um sorriso a Edilean, esperando que ela decidisse entrar ou não na carruagem. Ao ver que a mulher mais nova não avançava, a mais velha suspirou.

– Sou Harriet Harcourt. Tenho quarenta e cinco anos e há muito que me mantenho solteira, porque a minha família assustou todos os meus pretendentes. Não tenho rendimentos nem esperança de vir a tê-los. Participei neste último esquema, porque, caso contrário, teria de viver com a minha prima que me odeia e me forçaria a trabalhar até à morte. Há uns meses, o James mandou-me para a América para arranjar casa para ele e para a noiva com quem aparecesse. A casa foi garantida com o pouco dinheiro que me deu e, se não pagar o restante no prazo de uma semana, põem-me na rua. Isto responde às suas perguntas a meu respeito? – perguntou.

– Acho que sim. – Edilean hesitou.

Angus mantinha-se de costas e ela aguardava que lhe dissesse qualquer coisa, mas não sabia bem o quê. Tinha esperança de que se virasse, a tomasse nos braços e lhe dissesse que não podia viver sem ela e que o acompanhasse até Virgínia. Contudo, ele limitou-se a dar meia volta e a esboçar-lhe um leve aceno de cabeça. Estava a dar-lhe permissão para que acompanhasse a mulher. E esboçou um aceno de cabeça na direção dos baús de ouro para lhe dar a entender de que se certificaria que seriam depositados num banco.

Minutos depois, Edilean encontrava-se na carruagem, sentada nos belos assentos de couro grená e a fitar Miss Harcourt.

– Sabe se o James aparecerá brevemente em Boston? – inquiriu Edilean.

– Como poderá? Ele não tem dinheiro, nem tão-pouco a mulher – respondeu com um leve sorriso. – Não seria uma tragédia se tivesse de procurar um emprego?

Edilean reparou que se formavam algumas rugas à volta dos olhos da mulher e pouco depois puseram-se a rir. Apesar de tudo o que James fizera às duas mulheres, fora ele o único prejudicado.

Pararam diante de uma casa alta e estreita, próxima de outras numa bela rua ladeada de árvores.

Quando Edilean parou nos degraus de acesso à casa e olhou em volta, Harriet perguntou:

– O que se passa?

– Nada. Só que... – Hesitou. Iria jurar que avistara Angus, mas obviamente não fora o caso. Naquele momento, ele estava provavelmente a tentar vender as joias a fim de poder fugir para a Virgínia e colocar muitos quilómetros de distância entre ele e a mulher que lhe causara todos os problemas.

– Bom. Então entre e vamos tratar de negócios.

– Negócios? – retorquiu Edilean.

– Claro. Do que vai pagar-me por ser sua governanta e cuidar de si e desta casa que vai comprar.

– Entendo – comentou Edilean, observando os quatro andares.

Ergueu as saias ao entrarem. A casa apresentava-se escassamente decorada e o que havia era do gosto mais sombrio que pudesse imaginar-se.

– Como pode ver – disse Harriet –, não comprei muita mobília. Não tinha dinheiro nem fazia ideia do que a filha de um conde podia desejar. Espero que não goste de espelhos dourados e molduras douradas nas cadeiras.

– Não – disse Edilean. – Prefiro Chippendale. Vi muitas coisas dele na casa de outras pessoas e agrada-me.

– Então, espero que possa desenhar o que quer para podermos mandá-lo fazer aqui. Quanto a encontrar-lhe um marido, não tenho tido muito tempo para pensar no assunto, mas conheço alguns homens que podem servir de pretendentes.

– Marido – pronunciou Edilean, como se nunca tivesse ouvido essa palavra.

– Sim. É o que deseja, não é? É o que procurava com o meu irmão, não era?

– Julguei que estava apaixonada por ele – respondeu Edilean enquanto entravam na sala. Havia duas cadeiras de espaldar e almofadadas com um tecido vermelho, bem como uma mesinha de chá, mas nada mais.

– Claro. É fácil gostar da aparência do meu irmão. Só se torna insuportável quando se começa a conhecê-lo. Tem fome? Podemos tomar chá nesta sala.

– Um chá seria ótimo – disse Edilean, afundando-se numa cadeira e olhando em volta. As janelas não tinham cortinados e podia avistar as pessoas lá fora. Alguns transeuntes espreitavam curiosos para o interior.

Harriet saiu da sala e Edilean recostou-se na cadeira. Reposteiros, chá, Harriet, pretendentes, o rosto de James, tudo pareceu girar na sua cabeça até julgar que ia desmaiar.

Quando Harriet regressou com um tabuleiro com chá e biscoitos que ela própria fizera, Edilean estava recostada na cadeira e profundamente adormecida. Harriet pousou o tabuleiro em cima da mesa, sentou-se na cadeira em frente, fitou a jovem e mordiscou um biscoito.

De facto, Harriet sentia-se muito feliz pelo seu odioso irmão não ter aparecido com a filha de um conde. A verdade é que se sentia feliz por o irmão não ter dado sinal da sua presença. Já decidira que nessa noite lhe escreveria uma carta a dizer que fora esperar o navio onde ele devia ter vindo com o ouro, segundo a informara.

Como resultado, Harriet tivera de sair da casa que alugara e estava agora a viver com uma mulher velha e horrível como dama de companhia. Melhor ainda, talvez dissesse que estava a servir de governanta a uma viúva com seis filhos. Escreveria o que achasse que fosse necessário para impedir James de vir à América e arruinar o que poderia tornar-se um trabalho fantástico.

Quando Edilean se mexeu no sono, Harriet sorriu. Era uma jovem tão bonita e com aqueles olhos enormes parecia que achava que tudo na vida era maravilhoso. Harriet dirigiu-se em bicos de pés à salinha que ficava junto à cozinha, pegou numa manta de algodão e levou-a para tapar Edilean. Pobre querida, estava provavelmente cansada de morte.

Por um momento, Harriet inclinou-se sobre ela, depois estendeu a mão e puxou uma madeixa do cabelo de Edilean para trás da orelha. Se tivesse tido uma filha, gostaria que ela se parecesse exatamente com aquela jovem.

– Vamos dar-nos bem – sussurrou. – Construiremos uma vida para nós o melhor que pudermos.

Sorriu e dirigiu-se à cozinha, a fim de preparar o jantar. Talvez agora que tinham algum dinheiro pudessem contratar uma cozinheira.


14

Edilean estava a dormir na cama nova que comprara ao marceneiro e enrolada nos lençóis novos que comprara diretamente de um navio que aportara vindo de França. Em cima da mesa havia pratos e um candeeiro. A enorme cómoda provinha de um leilão de um homem que ia regressar a Inglaterra. Para conseguir os reposteiros da cama tivera de fazer três horas de carruagem por estradas que dificilmente mereciam esse nome até à propriedade da mulher que os havia bordado.

Quando Edilean ouviu o barulho na janela, não prestou atenção, limitando-se a pestanejar e a adormecer novamente. Nem sequer acordou quando o candeeiro se acendeu. Mas, quando a mão lhe tapou a boca, acordou sobressaltada e tentou gritar.

– Sou eu, rapariga.

Sentiu a mão grande e quente sobre a boca e, ao sentir o corpo de Angus junto ao dela na cama, abraçou-o e pôs-se a chorar, apertando-o e encostando a cabeça ao seu peito. Conseguia ouvir-lhe o bater do coração.

– Julguei que tinha ido para a Virgínia e que nunca, nunca mais o veria. Passaram meses desde que o vi, e...

– Chiu, rapariga – disse ele, acariciando-lhe o cabelo. – Só passaram seis semanas. A sua vida tem sido assim tão má que pense que foi há tanto tempo?

– Sim – respondeu ela. – Quero dizer, não, não foi má, mas estava habituada a vê-lo todos os dias.

Edilean apertava-o com toda a sua força, mas ele não a tinha abraçado. Conservava uma das mãos na cama e a outra sobre o seu cabelo.

A jovem virou a cabeça para o fitar. Há dias que não se barbeava e mostrava um olhar de preocupação.

– O que aconteceu?

– Nada – respondeu e foi sentar-se aos pés da cama. – Vim ver como estava. Como é que essa mulher a tem tratado?

– A Harriet?

– Sim, é esse o nome dela. A velha solteirona.

– Não lhe chame assim. É uma boa mulher. Tem sido muito boa para mim e passamos muito tempo juntas.

– Então, gosta dela?

– Muito. – Edilean estendeu-lhe as mãos que ele agarrou e examinou à luz pálida do quarto. – Alguma coisa se passa. Porque está aqui? Porque não está na Virgínia?

– Gosto disto por estas bandas, é tudo – respondeu sem lhe largar as mãos e observando-as. – Quase me tinha esquecido de que existem mãos tão pequenas e delicadas como as suas.

Angus tinha vestida a roupa de James sem o casaco, mas Edilean notou que algo estava diferente.

– Quero saber o que há de errado.

– Nada – garantiu ele em voz alta e depois olhou para a porta. – Onde está ela?

– Não se preocupe. A Harriet tem um sono de pedra. Nem sequer nos ouviria se começássemos a fazer amor.

Angus largou-lhe as mãos.

– Fala como se soubesse o que isso significa.

– Já ouvi falar o suficiente do assunto para saber – retorquiu ela com um leve sorriso.

– E o que significa?

– O que você acha, mas a verdade é que todos os homens deste país querem casar comigo. Velhos, jovens, baixos, gordos, solteiros, viúvos, todos eles vieram visitar-me e tentaram a sorte para me conquistar.

Angus encostou-se ao poste da cama, estendendo as compridas pernas.

– E qual deles deseja?

– Nenhum – respondeu, mas ao ver o sorriso dele, mudou de opinião quanto a dizer-lhe a verdade. – Houve alguns que me interessaram. Vários são cavalheiros elegantes.

– Mas disse que não queria nenhum?

– O que pretende? Veio aqui pedir-me que case consigo?

Sorrindo, Angus levantou-se da cama e pôs-se a andar pelo quarto.

– Nunca saí de Boston e ouvi falar a seu respeito. Está a causar bastante agitação entre os homens desta cidade. Uma jovem bonita e rica com uma bela casa. Sim, está a causar sensação na cidade.

– O que quer dizer com essa de não ter saído de Boston?

Angus sentou-se na cadeira ao lado da cama.

– Não vim aqui para falar de mim. Quero saber como está e o que tem feito. Como se dá com a irmã do Harcourt?

– Já lhe disse que ela é uma boa mulher – sublinhou Edilean fitando-o com atenção, observando-o. Passava-se alguma coisa de muito errado, mas não conseguia imaginar do que se tratava. – Perdeu peso? Parece magro.

– Não tive uma mulher a certificar-se de que eu comia – sorriu.

Edilean estava vestida com uma camisa de noite e ele nunca vira nada de mais belo em toda a sua vida.

– Angus – sussurrou a jovem, puxando a ponta do lençol para trás num gesto convidativo.

– Você é uma diabinha – disse ele. – Deixe de me tentar. Planeio deixar esta cidade amanhã e quis vir despedir-me e ouvir da sua boca que tudo corria bem.

– Sim, eu... – Calou-se e fitou as mãos por uns momentos antes de o olhar de frente. – Não! Não vou mentir. Estou quase morta de tédio! Oh, Angus, esses homens... São todos tão aborrecidos. Por vezes, tenho a sensação de que vou enlouquecer de tédio. Ou tentam impressionar-me com a sua boa educação ou falam-me das suas colheitas.

– Então, sabem ler? – perguntou ele, sorrindo.

– Tanto que, por vezes, desejava que não soubessem. Pensam conquistar-me com poemas ou serenatas. Acham que se me lerem em latim os olharei com amor.

– E não olha?

– Nem um pouco – respondeu Edilean com um gesto da mão. – Por favor, conte-me o que tem feito. Senti tanto a sua falta.

– A sério? – retorquiu Angus.

Não queria confessar-lhe que pensava nela todos os dias. Que fora incapaz de se afastar da cidade onde ela se encontrava. Sempre que tentava ir para a Virgínia, não conseguia. Era rara a noite em que não ficava na rua a olhar para a janela dela. Sabia quando Edilean apagava o candeeiro e sabia quando ficava levantada até tarde.

– Como está a Tabitha? – inquiriu Edilean, como se o nome da outra fosse uma imprecação.

– Ótima. Vamos casar-nos amanhã, antes de partirmos para a Virgínia.

Edilean arregalou tanto os olhos que quase fendeu a pele.

– Oh, rapariga! Também senti tanto a sua falta! Não vi a Tabitha desde que desembarcámos. Despedimo-nos... – não mencionou o empenho que Tabitha pusera na despedida – ... e depois ela foi-se embora. Tanto quanto sei, já pode estar casada com alguém neste momento.

– O que quer que tenha feito, aposto que não foi boa coisa.

– Porque a odeia tanto? Porque dancei com ela?

– Ela não tem moral.

– Está a ser um pouco dura, não acha?

– Não poderia importar-me menos com ela. Vai mesmo partir para a Virgínia amanhã?

– Vou. Tenho uma carruagem carregada à minha espera e uma parelha de bons cavalos.

– E o que fará quando lá chegar?

– Comprar terra. Construir uma casa.

– Em Williamsburg? – perguntou ela.

– Sabe que não suporto uma cidade. Boston é demasiado barulhenta para mim e há demasiadas pessoas. Gosto de um sítio onde conheça toda a gente.

– Como na Escócia – disse ela baixinho.

– É o que gosto – respondeu com um encolher de ombros. – E você? O que deseja? Além de um homem que não a aborreça?

– Não sei. – Puxou a roupa para trás, levantou-se e estendeu a mão para um roupão que se encontrava na cómoda aos pés da cama. Mas não lhe pegou. Preferia andar à volta dele vestida apenas com a camisa de noite. – Quando estava em Inglaterra, sabia exatamente o que queria fazer da minha vida, mas aqui é diferente. Não sei porquê, talvez seja de todo este sol, ou...

– Do calor sufocante – completou ele. – Está tão quente que mal consigo aguentar a roupa em cima do corpo.

– Constou-me que vai fazer mais calor – disse ela, avançando um passo na sua direção. Ele estava sentado na cadeira e ela de pé, vestida apenas com a camisa de noite, sem nada por baixo. – E está mais quente na Virgínia do que aqui.

– Acho que me habituarei.

Edilean aproximou-se mais.

– Qual é o seu jogo? – retorquiu ele, de cenho franzido. – Acho que não devia ter vindo.

– Angus... – começou. – Quero ir com...

– Não diga isso – pediu ele, levantando-se bruscamente. – Não me peça o que não posso dar.

– Por favor – disse ela. – Quando estou consigo, sinto-me viva e cheia de energia, como se pudesse planear coisas e levá-las por diante. Nesta casa, sinto que a minha vida é a mesma que teria sido em Inglaterra.

– E não lhe bastava?

– Perfeitamente, mas nessa altura não fazia ideia de que havia outras coisas lá fora.

Angus mantinha-se de costas para a janela e Edilean aproximou-se.

– Não sabe o que está para aí a dizer. Viveu nesses colégios com outras raparigas. Ignora como é quando um homem e uma mulher vivem juntos.

– Gostaria de saber – respondeu ela. – Podia dizer-me. Ou mostrar-me.

Angus pôs-lhe as mãos nos ombros e conservou-a afastada dele.

– Rapariga, por favor, acredite em mim quando lhe digo que o que pensa é impossível. Quer que eu seja algo que não sou.

Edilean afastou-lhe as mãos dos ombros e virou-lhe costas.

– Então, voltamos ao mesmo, não é verdade? Você teve uma vida de privações e eu fui sempre mimada.

– Mais ou menos – concordou ele.

– Está novamente a troçar de mim?

– É o que costumo fazer, ou não?

– Sim – disse ela, sorrindo. – E leva-me a rir de mim própria – acrescentou, sentando-se na beira da cama. – Oh, Angus, o que vou fazer com a minha vida?

– Casar com um homem bom e ter uma centena de filhos – respondeu, embora se lhe formasse um nó na garganta ao pronunciar as palavras. Não seriam os seus filhos. Ela estava sentada na beira da cama e apenas teria que empurrá-la delicadamente para trás. – Não deveria ter vindo aqui esta noite.

– Quer que lhe mande um convite para o meu casamento? – perguntou ela, irritada.

– Não – respondeu ele num murmúrio. – Acho que não o suportaria.

Edilean ergueu o rosto e detetou o desejo nos olhos dele. Levantou-se, aproximou-se e rodeou-lhe o pescoço com os braços. – Abrace-me. Só uma vez. Abrace-me como se não me considerasse uma criança mimada. Finja que sou a Tabitha e abrace-me como se fosse ela.

Angus passou-lhe a mão pelos cabelos que lhe caíam pelas costas em grandes caracóis, brilhando sob a luz.

– Este é o seu ouro que me agrada – disse, num sussurro. Pegou numa madeixa e levou-a até junto do nariz e em seguida aos lábios. – Todos esses homens são uns idiotas se não a fizerem rir, se não a colocarem em cima de um cavalo e fugirem consigo.

– Faria isso comigo? – perguntou, erguendo o rosto e sem despregar os olhos dos seus lábios.

– Não posso – respondeu com um sotaque acentuado.

– Porquê? – redarguiu ela, meneando as ancas junto dele. – Às vezes parece que todos os homens desta cidade me desejam mas nenhum me interessa e sabe porquê?

– Não – respondeu, encostando a face ao seu cabelo. – Porque não se apaixona por um desses jovens machos elegantes que vi entrar e sair da sua casa?

– Porque os comparo a si e lhes acho defeitos.

– A mim? – reagiu com um sorriso, acariciando-lhe o cabelo e depois a face. – Trata-se de homens que tiveram a sua educação e sabem o que fazer. O que é que eles não têm que eu tenho?

– O que algum deles faria se encontrasse uma mulher dentro de um caixão nas traseiras da sua carroça?

Angus riu de uma maneira que ela sentiu ao pressionar os seios de encontro ao seu peito.

– Antes de mais, nunca conduziriam uma carroça. Pagariam a alguém para que o fizesse.

– É isso o que acho – opinou ela. – Angus, não percebe que o amo?

– Não diga isso – pediu ele, soltando-lhe o cabelo. – Não está a falar verdade.

– Estou sim. E não me diga que ignoro o que é o amor. As pessoas já nascem com esse conhecimento. As próprias pessoas que nunca o sentiram sabem quando ele lhes falta na vida.

– Você é jovem e...

– Também você. Ao ouvi-lo falar, até parece que é velho, mas é um homem novo com toda a vida pela frente. Quero ir consigo. Quero partilhar a sua vida. Quero...

Angus afastou-lhe os braços do seu pescoço e colocou uma expressão sombria.

– Não sabe o que diz. Está apaixonada pelo que acha que sou. Na sua mente, sou um... um...

– Um escocês romântico? – completou, de braços descaídos e de punhos cerrados. Acabara de confessar que o amava, mas ele repelira-a. – Julga que o vejo saído de um romance, um homem sem defeitos?

– Acho...

Edilean não o deixou acabar a frase.

– Sei o que é. Conheço-o melhor do que pensa. É mais teimoso do que possa imaginar-se. Mesmo agora, quando tem a oferta de uma mulher que é rica e nada de se deitar fora, é tão teimoso que não a aceita.

«E tem um temperamento dos diabos – prosseguiu. – Despeja a sua raiva sobre mim. Gosta de troçar, mas quando respondo no mesmo tom, esse seu enorme orgulho transforma-lhe o corpo em mármore. Fica rígido e o seu rosto mostra-me que me atrevi a zombar do McTern dos McTern.

– Se me encontra tantos defeitos, não sei o que deseja de um homem como eu.

– Olhe bem para si! – disse ela. – Trepa uma parede para entrar às escondidas no meu quarto, senta-se na minha cama até o desejar loucamente, mas, quando lhe confesso que o amo, diz-me que sou demasiado jovem para saber o que é o amor. E agora está furioso comigo! Não só é inculto, como também idiota. Vá-se embora! Salte pela janela. Fuja para a Virgínia e...

Interrompeu-se porque ele a atraiu de encontro ao corpo e colou os lábios aos dela. Edilean achava que sabia beijar, pois fora um dos seus passatempos favoritos quando se encontrava de visita à casa das suas companheiras de estudos, mas aqueles beijos colegiais em nada se assemelhavam ao que Angus lhe deu.

O beijo dele não foi delicado, nem leve. Transbordava de toda a ânsia e desejo reprimido que sentira a partir do momento em que a tinha visto. Desde o pátio, na Escócia, em que ela o fizera passar por idiota diante de todos, desejava-a. Durante as semanas que haviam passado juntos no camarote do navio, ela enlouquecera-o de desejo Um vislumbre da sua mão ao puxar uma madeixa para trás das orelhas levara-o a desejá-la tanto que tivera de sair e ir para o convés.

Começou por beijá-la de lábios fechados, mas quando a jovem premiu totalmente o corpo contra o dele numa entrega, Angus abriu a boca. Quando a língua tocou na dela, Edilean soltou um leve gemido que lhe fez correr o sangue com mais força nas veias.

Quando as pernas cederam debaixo dela, Angus ergueu-a e transportou-a até à cama. Vira-a muitas vezes deitada e sempre desejara deitar-se ao seu lado, agarrá-la, tocar-lhe. Houvera noites em que se encontrava deitado na rede e se limitava a vê-la dormir. Conhecia todos os pequenos sons que ela emitia e todos lhe agradavam.

O beijo dele aumentou de intensidade e o corpo dela tornou-se mais flexível quando se estendeu ao seu lado. Passou a perna sobre as ancas dele e Angus meteu a mão por baixo da camisa de noite, subindo pela perna nua, a coxa e chegando ao pequeno e redondo traseiro.

– Edilean! – sussurrou, beijando-lhe o pescoço, as faces, cada polegada do bonito rosto por que tanto ansiara.

– Sim – disse ela. – Faz de mim o que quiseres.

Angus gemeu ao ouvi-la pronunciar as palavras. Jamais imaginara que se podia desejar uma pessoa como ele a desejava. À medida que a roupa subia, a jovem encostou ainda mais o corpo ao dele.

– Faz amor comigo – murmurou. – Por favor. Há tanto tempo que o desejo.

– Como eu a ti – disse ele no mesmo tom, beijando o ombro nu quando a camisa de noite descaiu para o lado. Tinha uma mão enterrada no cabelo macio e perfumado e a outra sob o tecido, na pele lisa e perfeita.

Edilean beijou-lhe a face e ele gemeu de prazer. Ela tinha uma respiração tão quente e doce.

Angus beijou-lhe novamente os lábios e, enquanto as mãos dela lhe percorriam o corpo, a voz prendeu-se-lhe na garganta.

– Faz amor comigo esta noite – repetiu ela. – E amanhã casaremos e partiremos para a Virgínia.

– Mmmm – foi tudo o que conseguiu dizer, enquanto ela lhe explorava o peito com os lábios e enfiava as mãos macias por baixo da camisa. Inclinou a cabeça para trás e não conseguia pensar com nitidez, mas uma palavra chegou-lhe ao cérebro.

– Casar? – sussurrou.

– Sim, casar – respondeu, voltando a beijar-lhe o pescoço.

– Não – disse ele, empurrando-a.

Quando a fitou, emitiu um novo gemido. Edilean num salão a beber chá era uma bela visão, mas aquela mulher com o cabelo espalhado sobre os ombros desnudos e os olhos semicerrados de desejo e paixão superava todos os seus sonhos.

Contudo, não podia deixar que a situação se prolongasse. Não suportaria ver aquele amor transformar-se em ódio. Não suportaria dar-lhe o que ela pensava que desejava e, mais tarde, vê-la olhar para ele com desprezo e repugnância. Preferia ir embora com aquela imagem dela na mente e mantê-la durante o resto da vida do que vê-la fitá-lo com ódio.

– Não posso – disse. – Não foste feita para mim e não vou desonrar-te.

Em apenas uns segundos, afastou-se dela e depois desapareceu, saindo pela janela do primeiro andar e seguindo o caminho por onde viera.

Edilean demorou uns minutos a sair do lago de êxtase em que mergulhara e a perceber que o homem que amava se tinha ido embora. Oferecera-lhe não só o corpo como também a sua vida. E ele deixara-a! Recusara tudo o que lhe oferecera.

Antes que conseguisse perceber o que realmente lhe acontecera, a porta do quarto abriu-se e apareceu Harriet, com o cabelo tapado por uma touca, um roupão sobre a camisa de noite branca de algodão e segurando uma vela.

– Ele foi-se embora – disse Harriet, fitando Edilean, deitada na cama, com os olhos a brilhar de desejo, mas deixando transparecer algo mais à medida que tomava consciência de que Angus voltara a abandoná-la.

– Ele foi-se embora – repetiu Harriet.

Sentou-se na cama ao lado de Edilean e puxou-lhe a camisa de noite para baixo.

– Ele deixou-me – sussurrou Edilean, com os olhos arregalados de descrença. – Disse-lhe que o amava e ele fugiu.

– Eu sei – comentou Harriet.

– Não, não sabes. Não podes saber.

– Sei – insistiu Harriet. – Quando tinha a tua idade, apaixonei-me por um jovem, mas depois de ele ter falado com o meu pai e descoberto que eu não tinha dinheiro, também me deixou. Sei o que é amar e perder.

– Mas eu tenho dinheiro – retorquiu Edilean, surpreendida. – Ele deixou-me porque... – Ergueu o rosto para Harriet. – Não sei porque me deixou. Não sei porque não me ama como eu o amo.

Ao pronunciar as palavras, começou a chorar. Harriet abriu os braços e Edilean acolheu-se neles, chorando ainda mais copiosamente.

– Amo-o – disse. – Amo-o, mas ele não acreditou em mim. Acha que não o conheço, mas conheço-o. Conheço-o bem.

Harriet nunca contaria a Edilean, mas ouvira todas as palavras que tinham sido proferidas. Não tinha conseguido adormecer e, do seu quarto no segundo andar da casa, ouvira alguém lá fora. Levantara-se para ir ter com Edilean e avisá-la, mas depois escutara as primeiras palavras que eles haviam trocado e soube de quem se tratava. Era o homem do navio. Interrogara Edilean a seu respeito, mas ela limitara-se a esboçar um gesto vago com a mão, respondendo que era alguém que tinha conhecido. Não era importante. Harriet não se deixara enganar. Sabia que Edilean estava apaixonada pelo homem jovem. E à medida que os dias passavam e Edilean achava «aborrecidos» todos os homens que conhecia, Harriet teve a certeza de que Edilean estava apaixonada por outra pessoa e concluiu que era o homem do navio.

Nessa noite, Harriet ficara descaradamente do lado de fora do quarto de Edilean de ouvido à escuta. Tudo a levou de volta à altura da sua vida em que estivera apaixonada daquela maneira. A diferença residia em que o seu namorado havia tentado por várias vezes fazer amor com ela, mas Harriet dissera-lhe que deviam esperar até à noite de núpcias. Depois de o homem ter feito as malas quando falara com o seu pai, Harriet desejou ter vivido noites de paixão com ele. Desejou ter concebido um filho e ser enviada para Devon, ou mesmo para a Cornualha, para educar a criança sozinha. Contudo, nessa altura não percebera que não teria uma segunda oportunidade de amar.

Quando Edilean e o seu jovem companheiro pareceram estar prestes a fazer amor, Harriet tinha-se afastado com um sorriso, feliz por ver que a jovem de quem aprendera a gostar encontraria a felicidade.

Contudo, uns minutos depois, Harriet ouviu um barulho no telhado. Ao olhar pela janela, avistou um vulto a afastar-se pela rua e percebeu que o homem não ficara com ela. Harriet levara alguns minutos a recuperar do choque antes de ir ter com Edilean para a consolar.

Nesse momento, abraçou-a como se fosse a filha que nunca tivera e deixou que chorasse no seu ombro.

– Vá lá – acalmou-a. – Podes não acreditar, mas vais sobreviver a isto.

– Não, não vou. Não compreendo. Ele parece amar-me, mas não ama.

Harriet tinha a noção de que ele amava Edilean tanto ou mais do que ela o amava, mas pertencia a uma invulgar raça de homens: um homem honrado. Quando Harriet se encontrava do lado de fora da porta, ouvira o suficiente para saber qual era o problema dele e estava de acordo. Por mais que Edilean gostasse de pensar que era como qualquer outra pessoa, não era. Fora mimada durante toda a vida. Não fazia ideia do que era desejar alguma coisa, até mesmo um vestido novo, e não o ter. Se ela casasse com Angus naquela altura, Harriet estava certa de que acabaria por detestá-lo.

– Chiu – disse Harriet baixinho. – Vou buscar-te um pouco de xerez e depois quero que durmas.

– Não consigo dormir – ripostou Edilean. – Não quero dormir.

– Eu sei – disse Harriet. – Mas precisas de dormir. Tudo irá parecer melhor de manhã.

– Não é verdade. Sei que nunca vou recuperar disto.

Harriet tomou as mãos de Edilean entre as suas e fitou-a.

– Não, não vais recuperar disto, mas, ao longo da vida, passarás por várias situações de que não conseguirás recuperar e a que dificilmente sobreviverás. É assim a vida nesta terra. Só no céu obteremos a verdadeira paz. Agora, deita-te e vou buscar-te um pouco de xerez. Talvez uma garrafa. Entendes-me?

– Sim – respondeu Edilean, recostando-se nas almofadas e puxando a roupa até ao pescoço.


15

–Por favor, suplico-te de joelhos que deixes de estar deprimida – pediu Harriet duas manhãs depois ao olhar para Edilean, sentada à mesa e sem tocar no pequeno-almoço que tinha na frente.

– Não estou deprimida – negou ela, mas após olhar para Harriet, suspirou. – Talvez esteja um bocado. Mas na verdade é mais do que isso... triste, talvez. A rejeição magoa.

– Ele não te rejeitou – disse Harriet pelo que devia ser a centésima vez. Obrigara Edilean a contar-lhe cada palavra do que acontecera para que pudesse falar-lhe sem que ela adivinhasse que estivera a escutar atrás da porta. – Tem muito bons motivos para o que fez. – Harriet não lhe confessou que achava que Angus tinha razão.

Mas independentemente do que ela pudesse dizer-lhe, Edilean continuava desgostosa. Remoera durante dias sobre o que acontecera. Talvez Angus tivesse razão e ela houvesse sido mimada toda a vida. Talvez os homens nunca lhe oferecessem dificuldades. Sabia que gostavam dela. Gostavam da sua beleza, da forma como lhes sorria e, gostavam, obviamente, que fosse acompanhada de um dote capaz de lhes proporcionar uma vida inteira de conforto.

Mas quando tomara finalmente uma decisão quanto a um homem, ele rejeitara-a.

– E vão dois – sussurrou.

– O quê, querida?

– Dois homens. Escolhi dois homens e ambos me rejeitaram.

– Ninguém te rejeitou, Edilean – ripostou Harriet. – Se queres ouvir falar de rejeição, permite que te conte a minha vida.

Edilean fitou Harriet. Ela estava a verificar o correio da manhã e todos os convites enviados. Sempre que alguém em Boston dava uma festa nunca se esquecia de convidar a bela Miss Edilean Harcourt. Enquanto observava a figura alta e magra de Harriet, o cabelo grisalho, e pensava em como ela fora empurrada de uns parentes para outros durante toda a vida, Edilean estremeceu. Acabaria como ela? Sozinha, sem que nenhum homem a desejasse? Ou teria de se contentar com algum de quem não gostava tanto como de Angus?

Levantou-se da mesa e subiu para o quarto. «Dois homens», continuava a pensar. Primeiro, James que a traíra de uma forma inacreditável e, se não fosse Angus... Não lhe agradava pensar no que a sua vida seria nesse momento caso James tivesse levado por diante o seu diabólico plano. Ver-se-ia obrigada a regressar para junto do tio e a aceitar a sua caridade durante o resto da vida. Afinal, se os homens por quem se apaixonava não a queriam, tendo ela um dote de ouro, quem a quereria quando não tivesse nada?

Olhou para a cama, acabada de fazer de lavado e parecendo acolhedora, mas lembrou-se de como se tinha atirado a Angus. Harriet contara-lhe como o seu ex-noivo fizera tudo para a levar para a cama, mas ela recusara.

– Mas não foi o meu caso! – exclamou Edilean em voz alta. – Ofereci-me a dois homens, mas nenhum deles me quis.

Não soube exatamente o que aconteceu, mas num momento encontrava-se na ombreira da porta e no momento seguinte estava a dar cabo do quarto. Havia uma mesinha com um canivete em cima e ela abriu a lâmina e pôs-se a esfaquear a cama. Rasgou lençóis, cobertores e depois o colchão, atacando tudo com a pequena lâmina afiada. Varreu o toucador com a mão, atirando todos os frascos para o chão e depois virou a mesa. Estava a empurrar a pesada cómoda quando um homem a agarrou pela cintura e a ergueu no ar. Ela bateu-lhe e arranhou-o, mas ele não a largou.

Ouviu vagamente a voz de Harriet acima do que pareciam gritos e depois alguém lhe encostou uma chávena aos lábios, dizendo-lhe que bebesse. Edilean lutou contra as mãos que a agarravam, mas alguém colocou uns dedos fortes no seu maxilar, obrigando-a a abrir a boca. Tentou cerrar os dentes, mas a mão pressionou com mais força e o líquido escorreu-lhe pela garganta. Engasgou-se e tossiu, porém foi inútil. Uma pessoa prendia-lhe os pés, enquanto outra lhe afastava os braços do corpo.

Passado algum tempo começou a sentir-se tonta e toda a raiva e fúria se esvaíram numa nuvem de calma e adormeceu.

Edilean acordou lentamente e não tinha a certeza de onde se encontrava. Quando tentou sentar-se, doía-lhe o corpo todo e fez um trejeito.

Um candeeiro acendeu-se de imediato e Harriet inclinou-se sobre ela.

– Como te sentes?

– Pessimamente – respondeu Edilean, olhando em volta. – Porque estou no teu quarto?

– Há uns dias que estás a dormir e era mais fácil para mim cuidar de ti aqui.

Edilean recostou-se nas almofadas.

– Porque estive a dormir?

– Droguei-te.

– Tu... – Sentou-se bruscamente, mas em seguida foi como se todo o sangue lhe afluísse à cabeça e pudesse explodir. Voltou a recostar-se nas almofadas com um gemido. – O que aconteceu?

– De que te lembras?

Edilean virou-se e fitou-a com um olhar tão duro como aço.

– Não sei do que me lembro. Quero saber a verdade. O que aconteceu?

Harriet sentou-se na cadeira junto da cama.

– Lembras-te de Angus ter ido ao teu quarto?

Edilean demorou um momento, mas depois lembrou-se de cada segundo daquela noite, de cada palavra, de cada carícia. Acima de tudo, lembrou-se da forma como lhe suplicara que casasse com ela e a levasse consigo. Mas ele tinha-a rejeitado. Desdenhado. Afastado como se fosse lixo.

– Sim – respondeu finalmente. – Lembro-me de tudo. Mas porque é que...? – Olhou para Harriet. – Destruí o meu quarto.

– Cortaste a cama às tiras com o canivete e deste cabo de todos os móveis à exceção da cómoda – disse Harriet. – Foste a ponto de rasgar os teus belos vestidos.

– Ótimo – exclamou Edilean. – De qualquer maneira, nunca foram meus. Quem me trouxe para aqui?

– O Cuddy.

Edilean fitou-a com um olhar interrogativo.

– Cuthbert, o segundo lacaio. Receio ter de o despedir. Gostou demasiado de te levar para a cama.

– Não o despeças. Aumenta-lhe o salário – retorquiu Edilean. – É simpático que um homem ao cimo da terra deseje tocar-me. Suponho que me deste láudano a beber. O teu irmão era um mestre a usá-lo.

Harriet manteve-se silenciosa por um momento, observando Edilean.

– Por favor, não deixes que isto te torne mais amarga.

– E o que deve tornar-me? Feliz por me ter afastado de um homem que não me deseja? Podia ter-me casado com ele e passar o resto da vida a tentar provar-lhe que não passo de uma inútil. Sabes o que me disse? Que devia casar-se com alguém como a Tabitha.

– E quem é a Tabitha?

– Uma ladra que ia no navio, uma das prisioneiras. Contou ao Angus uma história de como tinha sido punida injustamente por se apaixonar pelo patrão. Disse mesmo que dera à luz um nado-morto. Oh! E que o facto de estar grávida fora o que a levara a roubar. Segundo a Tabitha, a Virgem Maria não era tão boa como ela. – Edilean fitou Harriet. – Sabes qual era a verdade?

– Qual? – perguntou Harriet, de cenho franzido e mostrando a sua preocupação com a raiva de Edilean.

– A Margaret contou-me que a Tabitha era uma das melhores ladras de carteiras de Londres.

– A Margaret?

Edilean fez um gesto com a mão.

– Outra das prisioneiras. Fez uns trabalhos de costura para mim e disse-me que a Tabitha tinha crescido numa propriedade, mas fugiu porque desejava a animação da cidade e foi aí que aprendeu a roubar carteiras.

Edilean ergueu os punhos no ar.

– Contudo, o Angus acreditou em tudo o que aquela mentirosa lhe disse! Ela contou-lhe uma história triste sobre a sua vida e ele engoliu-a. Assemelhou-se a um peixe a morder o isco e à espera que o puxassem. Todavia, nunca acreditou em nada do que eu lhe disse. Contei-lhe que tivera uma vida difícil e respondeu que nunca me faltara a segurança do dinheiro do meu pai.

Harriet pousou as mãos no regaço e não fitou Edilean com medo de que ela visse a concordância nos seus olhos. Talvez Angus estivesse errado em acreditar numa ladra – se é que o fizera –, mas não errara quanto à avaliação de Edilean. Ela aceitava a forma como Harriet dirigia a casa e cuidava dela, sem jamais questionar que tinha direito a essas coisas.

Edilean tentou novamente sentar-se, mas descaiu sobre as almofadas, pois ainda estava tonta.

– Ainda tens o láudano no corpo – disse Harriet, aproximando-se. – Acho que devias dormir mais um pouco. Amanhã haverá tempo suficiente para...

– Começar uma nova vida? – retorquiu Edilean, erguendo uma sobrancelha. – Outra? Uma nova vida quando o meu pai morreu, uma nova vida com James e agora uma nova vida num novo país. O que vou fazer desta vez? Optar por um desses homens pretensiosos que me apresentas e casar com um deles?

Subitamente, Harriet não conseguiu aguentar mais.

– Se não queres um homem pretensioso, tens de parar de ser uma mulher mimada.

Com aquelas palavras, saiu do quarto, fechando a porta com força atrás das costas.

– O que significa isso? – gritou Edilean. – Não sou mimada. Sou... – Ia a levantar-se, mas doía-lhe tanto a cabeça que se deitou para trás.

Manteve-se na cama, mas não adormeceu. Mais tarde, ouviu Harriet a trancar a casa, antes de subir as escadas, percorrer o corredor até ao quarto de Edilean e fechar a porta. Não lhe deu as boas-noites.

– Porque toda a gente me acha uma inútil? – sussurrou no escuro.

Angus dissera que ela era uma mulher que esperava que um homem a resgatasse e que esses homens apareciam sempre. Embora fosse verdade que James a salvara do tio e que Angus a salvara de James, tinha havido alturas na vida em que fizera coisas de moto próprio. Ela...

Por mais que pensasse, não se lembrava de uma única vez em que agira sozinha. Tal como Angus dissera, sentava-se à espera de que aparecesse um homem e corrigisse o que havia de errado na sua vida.

Visto que estivera a dormir durante dias, não queria perder mais tempo da sua vida sem saber o que se passava. Ainda era noite quando se levantou e desceu as escadas até à grande secretária de Harriet, na sala.

Antes de mais, precisava de se ocupar de Angus. Quando pensava na noite em que ele tinha subido até ao seu quarto – se conseguisse não recordar as carícias, os beijos e a forma como a humilhara –, recordava-se de que pressentira que se passava algo de errado com ele. Por um lado, perdera peso. Por outro, tinha as mangas puídas. Os diamantes haviam sido suficientes para comprar roupa nova, mas não o fizera. Porquê? Era demasiado mesquinho para desembolsar o dinheiro? Embora o conhecesse, não sabia a forma como lidava com o dinheiro.

Passou horas a pensar, enquanto desenhava com caneta e tinta o esboço de um rosto que conhecia tão bem como o seu.

Quando o Sol nasceu, Edilean subiu as escadas para se preparar. Bateu calmamente à porta do quarto de Harriet e ela abriu. Já estava vestida.

– Continuas zangada comigo? – perguntou Edilean.

– Não me agrada a destruição de bens e detesto quando alguém tem pena de si próprio.

– Na verdade, já consegui dominar por completo esse sentimento – disse Edilean.

Harriet não conseguiu reprimir um sorriso.

– A partir de hoje, deixarei de ficar sentada à espera que um homem venha salvar-me – prometeu Edilean.

– O que significa isso?

– Não faço a mínima ideia – respondeu a jovem alegremente. – Mas sei que não quero acabar a minha vida velha e sozinha. Oh!

«Não tem importância. Também não era esse o meu desejo.

Edilean corou devido à gaffe cometida, mas sorriu.

– Quando conseguir fazer o que precisa de ser feito, vou arranjar-te um marido.

– Oh, essa é boa! – retorquiu Harriet. – E como o farás? Vais evocá-lo a partir de uma garrafa mágica?

– Se for necessário, compro-o.

Harriet pestanejou por momentos.

– Com uma propriedade? – perguntou baixinho. – Não muito grande, mas bonita e com árvores frondosas. Tudo o que desejo na vida é um viúvo com filhos.

Edilean fitou Harriet, incapaz de pronunciar uma palavra. Não estavam juntas há muito tempo, mas durante esse período nem por uma vez pensou que talvez Harriet gostasse de algo mais na vida além de cuidar de si e de ouvi-la lamentar-se o dia inteiro sobre como todos os seus pretendentes eram um tédio.

– Um viúvo com uma propriedade e filhos – repetiu. – Vou arranjar-to, nem que tenha de comprar toda a cidade de Boston. A tua convicção de que podes fazer tudo e de que mereces tudo é o que mais me agrada em ti e também o que me põe doida.

Harriet agarrou numa pilha de roupa lavada e saiu do quarto, mas ia a sorrir.

Edilean olhou em volta e verificou as consequências da destruição que tinha feito. As mesinhas haviam sido levadas, talvez para serem consertadas ou lançadas ao fogo, não sabia. A cama apresentava enormes buracos nos sítios onde a cortara com a navalha e notavam-se mais cortes na cómoda.

Ao perscrutar o interior, verificou que havia apenas dois vestidos. Tudo indicava que dera cabo dos outros.

Enfiou um dos que restavam e tomou mentalmente nota de ir à modista local. Contudo, primeiro tinha de tratar de outros assuntos.

Uma hora mais tarde, chamou o lacaio Cuddy à sala. Sentou-se enquanto ele se conservava de pé. Era um homem de estatura mediana, uma pessoa que passava ao esquecimento dez minutos depois de se conhecer e era exatamente por isso que o desejava para a incumbência.

– Já se sente melhor? – perguntou num tom insolente, mas ela já se habituara à maneira de ser dos americanos. Achavam que não eram criados de ninguém e vincavam isso mesmo aos patrões.

– Sinto-me muito bem – respondeu Edilean – e tenho um trabalho de que quero incumbi-lo.

– Tudo o que possa fazer para ajudar – disse ele com um leve sorriso.

– Antes de mais, pode tirar essa expressão do rosto – disse Edilean. – Se quer permanecer aqui, sugiro que aja como se quisesse o trabalho.

– Com certeza, minha senhora – retorquiu, endireitando-se.

– Quero que descubra este homem – prosseguiu Edilean, entregando-lhe o retrato de Angus que levara horas a desenhar. Parecia-se bastante com a imagem atual dele, sem a barba e o cabelo desgrenhado.

– Como se chama?

– Não sei o nome que usa.

– Esse é o homem que a atacou? – inquiriu o homem, de olhos arregalados.

– Que me atacou? Quem lhe contou isso?

– Miss Harriet disse que...

– Esqueça – ordenou Edilean. – Ninguém me atacou. Um homem... – Respirou fundo. – Armei uma birra infantil porque não consegui o que queria e ponto final. Acho que esse homem está com problemas e quero que você descubra o que puder a seu respeito.

– Ele está aqui em Boston?

– Julgo que sim. Pelo menos, esteve nas últimas seis semanas. Pode ter partido para a Virgínia, mas não me parece. Quero que descubra onde esteve nestas últimas semanas e o que tem feito.

Acha que consegue?

– É procurado por um crime?

– Não! – exclamou Edilean. – Pelo menos, não neste país. Tome – acrescentou, estendendo-lhe uma bolsinha de couro cheia de moedas. – Quero um relatório dos seus gastos. Se o descobrir em três dias, dou-lhe a mesma quantia.

– Sim, minha senhora – disse Cuddy e depois saiu da sala, levando o retrato no bolso do casaco.

Ao almoço, Harriet perguntou a Edilean porque estava tão nervosa.

– Por nada – respondeu a jovem. – Acho que ouvi um barulho, é tudo.

– Provavelmente foi outro homem que veio visitar-te. Preferia que não te mostrasses tão simpática. Fazes com que pensem que têm uma oportunidade contigo.

– Gostei de um deles, o jovem Thomas Jefferson. É bastante bem-parecido.

– Então, deves casar com ele! – retorquiu Harriet. – Aceita o que podes quando te é oferecido. Não esperes.

– O homem não me pediu em casamento. Limitou-se a uma visita com os outros jovens. Mas é tão alto como o Angus e quase tão elegante, mas falta-lhe... – Parou ao ver que Harriet se sentava na sua frente e a fitava.

– Por favor, não faças como eu e não compares todos a um deles. Quando o homem que amava me deixou, nenhum outro me convinha. Houve um deles que me desagradou pela maneira como espirrava.

– Não o farei – prometeu Edilean. – Garanto que, se este Thomas Jefferson me pedir que case com ele, aceitarei. Sentes-te melhor?

– Não – respondeu Harriet, levantando-se. – Ainda não te conheço o suficiente, mas acho que estás a tramar alguma coisa. Será que vi aquele horrível Cuddy a sair desta sala esta manhã?

– Acho que vou dar um passeio e comprar os jornais – disse Edilean, saindo rapidamente.

Cuddy demorou apenas dois dias a descobrir Angus e supôs corretamente que a informação devia ser escondida de Harriet. Por conseguinte, saiu repentinamente de um beco quando Edilean estava sozinha na cidade.

– Deus do céu! – exclamou Edilean. – Pregou-me um susto de morte.

– Julguei que talvez desejasse manter isto em segredo.

– E desejo – disse ela. Encontravam-se entre dois prédios altos e Edilean serviu-se do guarda-sol para se esconder dos transeuntes. – O que descobriu? Ele partiu para a Virgínia?

– Não. Continua aqui. Dirige uma taberna e um local de paragem de carruagens a uns dezasseis quilómetros, a sul. Não é o dono, mas faz todo o trabalho. Todas as pessoas que passam por lá gostam dele e é um sítio limpo.

Edilean olhou para Cuddy, mas não o viu.

– O Angus dirige uma taberna?

– O nome dele é Harcourt, tal como o seu. São irmãos?

– Não, ele não é decididamente meu irmão! – retorquiu ela. – O que viu? Com quem falou?

– Talvez não devesse dizer isto, mas foi fácil descobrir. Perguntei a um condutor de carruagens e ele conhecia-o e, por conseguinte, fui até lá e encontrei-o. O seu desenho está muito parecido. Bebi e comi, observei o que se passava e depois fui até ao pátio e falei com os rapazes da estrebaria. Todos gostam dele.

– Isso é bom, mas porque estava lá?

– Disseram que o dono era um preguiçoso e tinha contratado o Angus para trabalhar nos estábulos, mas ele era tão bom em tudo que o homem lhe entregou todo o negócio.

– Entendo que seja bom no que faz. Só não entendo porque está o Angus a trabalhar lá.

Falava mais para si do que para ele e quando ergueu o rosto viu que o homem não compreendia a sua pergunta. Não trabalhava toda a gente para viver?

Cuddy estendeu-lhe um papel com o nome da taberna com um pequeno mapa como lá chegar. Edilean agradeceu-lhe e, mais tarde, em casa, deu-lhe a segunda bolsa de moedas que lhe tinha prometido.

Porém, durante todo o dia, o motivo que levara Angus a aceitar trabalho numa taverna perseguiu-a. Porque não tinha vendido os diamantes e comprado a terra que desejava?

Nessa tarde, Harriet perguntou-lhe o que se passava.

– Estás muito distraída, como se pensasses seriamente em alguma coisa.

– Não é nada – respondeu Edilean.

Encontravam-se no pequeno jardim atrás da casa e Harriet arrancava as ervas daninhas à volta dos espargos. Não permitira que comessem todos os espargos, dizendo que era preciso deixar alguns para se transformarem em belos e altos fetos.

– Acho que ficariam bem com rosas – dissera Edilean.

– Então, arranja-nos rosas – replicara Harriet, mas, nessa altura, Edilean estava demasiado ocupada com a sua tristeza por Angus a ter abandonado para poder pensar noutra coisa. Então, naquele dia, Edilean estava a plantar rosas enquanto Harriet se ocupava das ervas daninhas.

– Não se passa nada.

– Hum! – exclamou Harriet. – O que andas para aí a engendrar?

– Nada! – respondeu Edilean baixinho e levantou-se. – Tão poucas pessoas nestas cidades têm jardins que talvez pudessem comprar as nossas rosas.

– Que ideia ridícula! – discordou Harriet. – Deixa que cultivem as suas próprias rosas. Quero saber o que te vai na cabeça. Não podes passar de destruir um quarto todo levada pela fúria a uma grande calma sem que tenhas algo de tortuoso em mente.

– Tortuoso não, mas talvez bom.

Edilean recuou para observar as rosas que tinha plantado. Já era o final da época, mas uma vizinha dera-lhe estacas que estavam bem enraizadas. Edilean sabia que a vizinha lhe tinha dado as plantas por uma questão de curiosidade quanto a quem ela era, o porquê e o quê da sua vida, mas Edilean limitara-se a sorrir, agradecera-lhe as rosas e não lhe dissera nada.

– Ignoro o que tenho em mente – disse, fitando Harriet. – É como se tivesse uma ideia na cabeça prestes a vir à superfície, mas ainda não sei o quê.

– Informa-me quando souberes para que possa guardar os móveis.

Edilean soltou uma pequena risada.

– Acho que isso foi um evento único na minha vida. Não tenciono repeti-lo.

– Ótimo! – aprovou Harriet, sentando-se no banco de madeira junto ao muro baixo que cercava o jardim e tirando as luvas. – Contei-te o que fiz depois de ser abandonada? Além de verter lágrimas a fio, claro.

– Não, não contaste – respondeu Edilean, sentando-se ao seu lado. – Quero saber tudo.

Nos dias seguintes, Edilean sentiu-se tentada a falar a Harriet da história dos diamantes e de Angus e a pedir-lhe opinião sobre o que se estava a passar. Contudo, a jovem não podia colocar Harriet a par dos diamantes, porque, legalmente, eles pertenciam à mulher de James, o que significava que pertenciam mais a Harriet do que a Edilean ou Angus. Não, o melhor era resolver o assunto sozinha.

Depois de muito pensar, ocorreram-lhe alguns motivos que levavam Angus a trabalhar numa taberna. Um deles era que desejava estar perto de Edilean e, por conseguinte, aceitara um emprego nas imediações. Contudo, isso não fazia sentido. Com o dinheiro da venda dos diamantes podia ter comprado um negócio fora de Boston. Não precisava de passar os dias a limpar os estábulos de outra pessoa.

A segunda ideia foi a de que ele já não tinha os diamantes. Interrogou-se sobre se, caso as joias houvessem sido roubadas, ele lhe contaria. Não. Podiam enterrar-lhe pregos no corpo que ele não diria a ninguém. O seu insuportável orgulho não lho permitiria.

Havia ainda uma terceira hipótese – a de que tivesse mudado de opinião sobre a venda dos diamantes e eles estivessem nesse momento guardados num cofre em qualquer lugar. No entanto, Edilean pôs essa ideia de lado. Lembrava-se de que Angus lhe confessara que queria ter a sua própria casa. Se é que o conhecia – e conhecia mesmo, independentemente do que ele dissesse – compraria um terreno e trabalharia até à morte para ganhar dinheiro ali e, provavelmente, para reembolsar Edilean.

Quanto mais pensava no assunto, mais certeza tinha de que qualquer catástrofe levara Angus a perder os diamantes.

– E sei exatamente onde foram parar – pronunciou baixinho.

– O que se passa, querida? – inquiriu Harriet.

– Nada. Estava apenas a pensar em voz alta.

– É o que pareces fazer ultimamente – comentou Harriet. – Não a parte da voz alta, mas o pensamento – explicou, franzindo o sobrolho por Edilean recusar dizer-lhe o que lhe ia na cabeça.

Nessa noite Harriet saiu para comprar peixe aos homens que regressavam nos seus barcos e Edilean voltou a chamar Cuddy à sua presença.

– Quero que descubra esta mulher – disse, entregando-lhe um esboço de Tabitha. Havia um rosto e ao lado um retrato de corpo inteiro de Tabitha com as suas roupas, os seios fartos e o farto traseiro.

– Claro, minha senhora – anuiu Cuddy. – Gostaria muito de encontrar esta mulher.

– Se se aproximar muito dela, fica sem bolsa – avisou Edilean. – Tem dedos semelhantes aos de uma enguia a deslizar através de geleia. Lembre-se disso e mantenha-se a dois metros dela.

Cuddy esboçou um grave aceno de cabeça e meteu o retrato no interior do casaco.

– Agora, vá-se embora e mantenha-se de olhos bem abertos. Acho que ela trabalha melhor durante a noite.

– Ela estará com o homem da taberna?

– Não – respondeu Edilean. – Pelo menos, acho que não. O Angus pode não perceber quem ela é, mas a Tabitha sabe que ele mais tarde ou mais cedo a iria apanhar. Agora vá e informe-me do que descobriu.

– Com certeza, minha senhora – disse ele, saindo apressadamente.


16

Cuddy levou mais de duas semanas para encontrar Tabitha. Durante esse tempo, Edilean teve de lidar com o facto de Harriet querer despedi-lo.

– Mas porque não devo livrar-me dele? Não está aqui para cumprir o trabalho.

Edilean teria feito mais do que o necessário para impedir Harriet de descobrir as suas andanças. Além das joias que pretendia esconder, prometera a Harriet que colocaria Angus para trás das costas.

– Eu encarrego-me das funções dele. O que cabe a um lacaio?

– Antes de mais, limpar os cavalos – respondeu Harriet com a mão na anca e presenteando Edilean com um olhar indicativo de que seria mais provável nevar em julho do que Edilean se incumbir de tal coisa.

Contudo, Harriet não tinha tomado em consideração os anos que Edilean passara na casa de outras pessoas e tudo o que fizera para se manter longe delas. Pediu emprestada uma das fardas de Harriet, prendeu-a com a ajuda de um cinto pesado e dirigiu-se aos estábulos. Quatro horas depois, havia um monte de esterco de cavalo no pátio de pedra e palha fresca nas divisórias.

Depois do trabalho, sentia-se cansada, mas sabia-lhe bem ter feito outra coisa além de estar sentada na sala a ouvir o discurso de jovens que tentavam impressioná-la. Harriet ficara tão chocada que nem tinha sido capaz de falar, o que Edilean considerou uma vitória.

Por fim, quando Cuddy regressou, vinha com um aspeto terrível. Tinha as roupas rasgadas e o rosto sujo.

– Desculpe, minha senhora – disse, sentando-se pesadamente numa cadeira da cozinha.

Edilean mandou sair a cozinheira.

– O que descobriu?

– Ela foi comprada por um homem, no cais.

– Uma escrava, portanto – concluiu Edilean. – Por sete anos, não é?

– Foi o que ela combinou, mas o homem contou que ela o roubou logo na primeira noite e depois fugiu. Gostava de não a ter encontrado. Se não conhecesse pessoas que pertencem, digamos, a uma classe inferior, nunca a teria encontrado.

Edilean sabia que ele estava a aprimorar a história para que lhe pagasse mais, mas não dispunha de tempo para tal.

– Descobriu-a? Viu-a?

– Sim – respondeu o homem. – Importa-se que coma e beba alguma coisa?

Edilean dirigiu-se impacientemente à dispensa de onde tirou um pedaço de queijo e pão, colocando-os sobre a mesa. Viu que também havia algumas garrafas de cerveja caseira no chão e agarrou numa delas.

– Não sei quem bebe cerveja nesta casa, mas pode servir-se de uma.

– Miss Harriet – denunciou ele, enquanto partia o queijo. – Ela própria a prepara e oferece-a aos homens. É uma boa fermentadora.

Edilean fitou-o durante uns momentos. Era a sua própria casa, paga por ela, mas aparentemente passavam-se coisas que ignorava. Sentou-se numa cadeira em frente dele, embora soubesse que sentar-se na cozinha com um criado era uma coisa que as suas amigas inglesas não fariam sob pena de morte.

– Onde está ela? – perguntou Edilean novamente.

– A viver nos bosques com um grupo de outros reclusos. Acho que tencionam ir para norte e comprar um sítio para morar, mas ainda vão ficar uns tempos por estas bandas.

– E como soube tudo isso?

– Fiquei com eles uma noite.

– Você? – questionou Edilean, baixando os olhos enquanto servia mais cerveja a Cuddy. – E viu a Tabitha?

– Obrigado – agradeceu ele, bebendo um enorme gole. – Sim. Aquele retrato que desenhou estava igualzinho a ela. Se fosse homem, podia deitar-se à estrada e desenhar retratos.

– Não me esquecerei disso. A Tabitha tinha algumas joias com ela?

– Não que me lembre – respondeu, erguendo a cabeça. – Espere aí! Uma manhã, vi uma pulseira brilhante e, quando ela me apanhou a olhar, puxou a manga para a tapar. Era apenas um bocado de vidro.

– Assim como carvão – replicou Edilean baixinho. – Quando terminar isto, quero que venha à sala e descreva tudo, desde o aspeto do acampamento à roupa usada pela Tabitha e pelos outros.

Cuddy parecia aflito.

– Não olhei para o que ela tinha vestido.

– Tinha uma roupa igual à minha? – inquiriu Edilean que pusera um vestido de seda cor de damasco, com um corpete bordado de ervilhas de cheiro.

– Nem pensar – comentou, rindo do seu gracejo.

– Então, reparou no que Tabitha tinha vestido.

– Acho que sim – concordou Cuddy, impressionado com a sua própria inteligência.

– Ficarei à espera, mas despache-se, porque a Harriet não tardará a voltar.

– De acordo, minha senhora. Chegarei lá em dois tempos.

* * *

Edilean teve de usar toda a sua astúcia para ocultar a Harriet o segredo do que andava a fazer. Desde que Edilean «perdera a cabeça», como Harriet dizia, e destruíra o quarto, que não a perdia de vista. Era como se pensasse que Edilean podia enlouquecer a qualquer momento. E todo o seu cantarolar, sorrisos e ocupações não enganavam Harriet por um único momento. Fitava Edilean com um olhar desconfiado.

Por fim, Edilean tivera de pagar uma quantia exorbitante a uma criada que trabalhava duas casas mais abaixo para que lhe fizesse um vestido à medida. Tratava-se de uma peça simples com uma saia de pano e uma touca branca de algodão. Da primeira vez que o provou estava sozinha no quarto e Harriet quase a apanhara ao querer entrar com uma pilha de roupa lavada. Edilean tivera de inventar rapidamente uma mentira sobre o que estava a fazer por trás de uma porta trancada.

Na noite em que Edilean planeava sair e encontrar Tabitha, sentiu-se tentada a colocar láudano no chá de Harriet, mas não o fez. Embora fosse verdade que tencionava esgueirar-se, disse para si própria que, se quisesse, sairia pela porta da frente, sem dizer a Harriet onde ia e porque o fazia. Contudo, Edilean sabia que o «hum!» de Harriet podia ser pior do que se lhe gritasse.

Em vez disso, a jovem combinou com Cuddy que encostasse uma escada à parede da casa por onde ela desceria depois da meia-noite.

– Tem a certeza de que quer fazer isso, minha senhora? – perguntou Cuddy. – Essa gente é perigosa.

– Tem a pistola?

– Carregada e pronta a disparar – respondeu –, o que não quer dizer que a situação me agrade. Se contasse o paradeiro deles aos oficiais de justiça, iriam lá cercá-los.

– E o que acha que aconteceu aos bens que roubaram? Acha que os ladrões em fuga os deixariam lá?

– É isso o que deseja? – inquiriu Cuddy, fitando-a chocado. – O que eles roubaram?

– Quero uma coisa – respondeu –, que não me pertence.

Cuddy olhou-a como se estivesse a juntar dois e dois, o facto de ter descoberto Angus Harcourt e de ela lhe perguntar porque estava ele a trabalhar para outra pessoa e, naquele momento, a falar da escrava que roubara algo que também pertencia a outra pessoa.

Mas Cuddy não fez comentários. Limitou-se a erguer a lanterna e a indicar o caminho até à estrebaria onde se encontravam dois cavalos selados.

– Tem a certeza de que sabe andar a cavalo, minha senhora? – perguntou. – Esse que montou pode ser difícil. Talvez devesse ser eu a levá-lo.

– Farei o possível por me aguentar – respondeu Edilean sem uma pitada de humor. – Acha que consegue encontrar esse lugar no escuro?

– É fácil – garantiu Cuddy, montando por sua vez. – Siga-me e tentarei ir devagar para que possa acompanhar-me.

– Muita bondade da sua parte – retorquiu Edilean, ajeitando-se na sela.

– Agora, minha senhora, se se afastar um pouco para que eu possa dar a volta e seguir, avançaremos.

Edilean agarrou nas rédeas com as duas mãos, emitiu alguns estalidos e fez recuar o cavalo para fora da porta. Contudo, mal o animal se viu ao ar livre, decidiu empinar-se nas patas traseiras.

– Para com isso! – ordenou Edilean, fazendo com que o animal voltasse a apoiar-se no solo. – Se continuares assim, corto-te a ração de aveia. – Virou-se para Cuddy que saía nesse momento.

– Nunca vi uma rapariga montar dessa maneira – comentou ele, de olhos arregalados.

– É bom saber que alguém, em algum lugar, me acha capaz de fazer algo – retorquiu, afastando-se para o lado, a fim de que ele pudesse liderar o caminho para fora do pátio e pela estrada.

Edilean planeara a viagem para uma noite de lua cheia, para que pudessem ver a estrada e onde se encontrava o atalho que conduzia a Tabitha e ao seu bando de ladrões. Talvez Cuddy tivesse razão e o melhor fosse dirigir-se às autoridades, mas Edilean sentia que se tratava de algo que precisava de fazer por si mesma. E sabia que, se desse uma pequena pista que fosse a Harriet sobre as suas intenções, ela diria que Edilean estava com ciúmes. Harriet afirmaria que ela se sentia furiosa porque Angus a trocara por uma rapariga pobre e oprimida que jamais teria o que ela tinha. Edilean não conseguiria defender-se, pois não podia falar a Harriet das joias.

Enquanto seguia Cuddy, pensava na sua montada, Marmy, que tivera de deixar para trás, em Inglaterra. Achava que, quando estivesse instalada, talvez pudesse recuperar a sua égua.

Porém, nem sequer os seus tristes pensamentos conseguiam aquietar-lhe a mente. Disse que seguiria na frente e se encontraria depois com ele. Não podia deixar que o cavalo fosse em linha reta, pois havia muitos buracos na estrada, mas podia deixar que ele avançasse à vontade, dançasse, e permitisse que Edilean exercitasse as coxas enquanto guiava o animal. O cavalo não estava tão treinado como Marmy, mas queria correr.

O passeio noturno recordou a Edilean a Escócia e a sua cavalgada infernal de regresso ao forte. Estava determinada a chegar antes de Angus para que ele não pudesse contar a sua versão da história antes dela.

Quando parou, inclinou-se para diante e acariciou o pescoço do cavalo. Parecia-lhe que desde que Angus McTern a fitara, como se nunca tivesse visto uma mulher até essa altura, a sua vida passara a girar à volta dele.

Quando chegou tão longe que sabia que Cuddy teria dificuldade em acompanhá-la, virou-se e aguardou. Não queria que o cavalo transpirasse demasiado na noite fria.

– Céus, minha senhora! – exclamou Cuddy, ao apanhá-la. – Onde aprendeu a montar assim?

– Em Inglaterra, muitas mulheres são conhecidas pela sua perícia na equitação. Sabe onde viramos?

– A cerca de dois quilómetros, mas não podemos levar os cavalos. Davam pela nossa presença.

– Não é essa a minha intenção – disse Edilean. – Planeio esgueirar-me e encostar isto à garganta da Tabitha – acrescentou, tirando uma comprida faca de lâmina fina de uma bainha que trazia à cintura, oculta pela jaqueta.

– Mas não me falou desse plano. Não pode... – começou Cuddy, mas interrompeu-se, limitando-se a fitá-la de olhos arregalados. – Vão matá-la – disse.

– Talvez – retorquiu Edilean. – Mas devo algo a uma pessoa e gostaria de pagar na mesma moeda. O que pretendo é criar uma distração que desvie a atenção de todos os que se encontram no acampamento. E, enquanto estiverem a olhar para algo diferente da tenda da Tabitha, quero que você entre lá dentro e se apodere das joias.

– Joias?

– Colar, brincos, tudo. Tanto podem estar numa caixa, como num saco. Seja lá no que for, quero que os agarre e depois saia.

– E o que vai fazer para os distrair? – inquiriu, desconfiado.

– Tenho algumas coisas em mente. Limite-se a seguir-me e tentarei evitar que o vejam. Entendeu? Tem alguma pergunta?

– Não, minha senhora – respondeu, de olhos muito abertos e pensando que talvez ela tivesse colocado um barril de pólvora algures e ele explodisse. Tal faria com que todos dispersassem.

Pouco depois, Cuddy cavalgou ao lado dela e sussurrou:

– É este o lugar. Estive a pensar e acho que não devia fazê-lo. É perigoso. Só conhece uma das mulheres e ela é uma ladra. Há homens por aqui e não se sabe o que fizeram. Acho que preferiam degolá-la a deixar que lhes tirasse alguma coisa.

– Então, vou ter de arriscar – decidiu Edilean. – Disse-lhe que devo algo a uma pessoa e tenciono pagar a dívida.

– Será que vale a sua vida? – disse Cuddy, num tom pouco respeitoso.

– Sim – respondeu, brindando-o com um olhar duro.

– Nesse caso, é melhor irmos andando.

– Não, Cuddy. Quero que fique aqui. Vou até lá sozinha e, quando ouvir confusão, apareça e sabe o que tem a fazer.

– Não seria uma atitude muito masculina se seguisse o seu plano à regra, pois não?

– Se me vir puxar da faca, saia do caminho. Posso muito bem degolar sem ajuda – retorquiu com um sorriso.

– Tenciono obedecer – disse ele, correspondendo ao sorriso.

Amarraram os cavalos às árvores e iniciaram o longo caminho até à floresta. A Lua estava brilhante, mas os ramos das árvores bloqueavam uma grande parte da luz.

Edilean, que caminhava atrás de Cuddy, sentia dificuldade em acompanhá-lo. Ele tinha uma passada muito maior do que a dela e Edilean tentava não tropeçar nos galhos caídos e nas pedras.

– Chegámos! – disse Cuddy finalmente.

Por entre as árvores, Edilean mal distinguia o que parecia ser uma pequena fogueira.

– Dá a sensação de que estão todos a dormir – sussurrou Cuddy –, mas têm provavelmente um vigia em qualquer lado, minha senhora. Acho que devíamos voltar para trás. Isto não é para nós.

Edilean limitou-se a abanar a cabeça e a fazer-lhe sinal para que a seguisse. Caminharam em silêncio e não tardaram a avistar o acampamento sem que soasse um alarme. Próximo da fogueira, havia cerca de meia dúzia de tendas, formadas sobretudo por cobertores colocados sobre uma corda, mas que serviriam como proteção para a chuva. No interior de cada uma, Edilean avistou as figuras escuras do que deviam ser pessoas.

– Qual é a dela? – sussurrou Cuddy.

Ele apontou para uma no extremo oposto.

– Fique aqui e irei até lá – murmurou Edilean, mas Cuddy abanou a cabeça.

Edilean correspondeu com outro aceno, dando a entender que ele não podia impedi-la de fazer aquilo.

Cuddy obedeceu-lhe com relutância ou assim pareceu. Dez segundos após ela desaparecer na floresta, ele seguiu-a.

Edilean avançou silenciosamente na direção da tenda que Cuddy indicara. O seu plano consistia em esgueirar-se para o interior, colocar a faca junto à garganta de Tabitha e dizer-lhe que tinha de escolher entre a vida e os diamantes.

Edilean colocou o cabo da faca entre os dentes e rastejou até à tenda. Tinha o coração acelerado e a respiração ofegante, mas não lhe restavam dúvidas de que era o que devia fazer.

Ergueu um dos cobertores da tenda e espreitou para o interior. Tabitha estava deitada, de braços estendidos e um ar tão inocente como apregoava. Mais um pouco e estaria junto dela. Ao chegar junto da cabeça de Tabitha, Edilean sentou-se sobre as pernas, ergueu a faca e...

No segundo seguinte, foi agarrada pela cintura e levada para fora da tenda, até ao ar frio. Por um momento, pensou que fora Cuddy a agarrá-la, mas apercebeu-se de que tinha sido um desconhecido. Tratava-se de um homem que nunca vira, com patilhas pretas e um hálito terrível.

– Largue-me! – ordenou, debatendo-se.

– Esperava que ele viesse salvá-la? – perguntou o homem, agarrando-a firmemente pela cintura.

Olhou para o lado e avistou Cuddy deitado no chão e sem parecer respirar.

– Matou-o!

– Ná. Ele está bem.

Edilean viu que Cuddy se mexia, mas não sabia até que ponto estava magoado.

– Que diabo está a fazer aqui? – perguntou Tabitha, rastejando para fora da tenda e fitando o homem que agarrava Edilean a contorcer-se e a lutar.

– Ela veio para matar-te – respondeu o homem num tom divertido. – É o que teria feito, se eu não a agarrasse.

Tabitha parecia verdadeiramente surpreendida.

– Queria matar-me? Porquê?

– Tem algo que me pertence – respondeu Edilean.

– O Angus não está aqui.

– Eu não... – Edilean deu uma forte cotovelada ao homem e ele largou-a.

– Eu devia...

– Vai-te embora – ordenou Tabitha ao homem como se ele não tivesse qualquer importância e olhando para Edilean. – Não roubei o seu homem.

– Ele é grande de mais para que o meta no bolso – retorquiu Edilean e ouviu alguém suster uma risada. Não olhou à volta, mas apercebeu-se do som de pessoas que se aproximavam para assistir à cena.

Tabitha apanhou a faca de Edilean do chão e fitou-a, surpreendida.

– Porque veio até aqui fazer isto? Não acha que a minha vida é suficientemente má?

– Má? – retorquiu Edilean, furiosa. – Mentiu ao Angus sobre o motivo por que tinha sido transportada e fugiu do homem que pagou o seu contrato. Parece-me que foi você a causar o mal.

Tabitha fulminou Edilean com o olhar sob o luar. Em seguida, puxou a blusa para baixo, mostrando o ombro. Edilean conseguiu ver as cicatrizes, mesmo àquela luz.

– Ele marcou-me! Pôs as suas iniciais no meu ombro com um ferro em brasa. Fê-lo porque lhe disse que trabalharia para ele, mas não dormiria com ele. Sou uma ladra, mas não uma prostituta.

Edilean recusou deixar-se influenciar pela espessa cicatriz avermelhada no ombro de Tabitha, pois viu um clarão ao luar. Tabitha usava três das pulseiras do conjunto que Edilean tinha dado a Angus.

– Essas são minhas – disse Edilean com um aceno de cabeça na direção das pulseiras.

Franzindo a testa, intrigada, Tabitha tocou nos diamantes e em seguida fitou Edilean com um olhar de descrença.

– São verdadeiras?

Ao ver que Edilean se mantinha silenciosa, Tabitha exclamou:

– Céus!

Recuou alguns passos.

– Roubou-os ao Angus e quero-as de volta – disse Edilean.

Tabitha fitou as pulseiras com um olhar surpreendido.

– Achei que eram bonitas, mas nunca pensei que eram... O quê? Diamantes?

Edilean não pronunciou uma palavra, limitando-se a olhar para Tabitha.

– Ia matar-me para as obter? – inquiriu Tabitha, de olhos arregalados. – Ia esgueirar-se por trás de mim e... – Levou a mão à garganta e fitou o homem que se encontrava nas suas costas.

– Vou levá-la para a floresta e fazer com que se arrependa de te ter incomodado – disse o homem.

Tabitha olhou para Edilean.

– Basta-me concordar e morrerá... ou desejará estar morta... daqui a dez minutos. – Olhou para o homem. – Leva-a e a esse homem para a estrada, mas não lhes faças mal – ordenou. – Entendes?

O homem agarrou no braço de Edilean, mas ela afastou-o.

– Não sairei daqui até me devolver a parure.

– O quê? – inquiriu Tabitha.

– O conjunto de joias – explicou Edilean. – Pertencem ao Angus.

– Então, porque não veio ele buscá-las? Porque a mandou fazer o trabalho sujo por ele?

– Ele não faz ideia de que estou aqui ou de que sei que roubou as jóias.

– Ele não sabe que as levei – disse Tabitha.

– Como assim?

– Ele gosta de mim – elucidou Tabitha com um leve sorriso. – Vi-o nos olhos dele naquele primeiro dia a bordo daquele podre e velho navio. Se você não estivesse por perto... – Encolheu os ombros. – Agora são minhas!

– Não, não são – gritou Edilean, atirando-se a Tabitha e deitando-a ao chão.

– É uma luta entre mulheres – disse o homem em voz baixa e no momento seguinte gritou: – Luta! Luta!

As pessoas que ainda estavam a dormir acorreram a toda a pressa.

– Saia de cima de mim – gritou Tabitha, tentando libertar-se de Edilean.

– Se não me devolver as joias, arranco-lhe os cabelos.

– Ah, sim? – retorquiu Tabitha. – Gostava de ver.

No momento seguinte, Edilean puxou com tanta força os cabelos de Tabitha que a cabeça dela ressaltou para trás e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

Tabitha tentou atingir a canela de Edilean com um pontapé, mas falhou quando ela desviou habilmente o corpo para o lado.

– Ela apanhou-te, Tabby – soou a voz de uma mulher.

Com ar de quem não conseguia acreditar no que estava a acontecer, Tabitha disse:

– Se não parar com isso, terei de a magoar.

– Pode tentar – redarguiu Edilean –, mas não sairei daqui até me dar as joias. E, se não o fizer, vou consegui-las.

– Não pode... – começou Tabitha, mas parou quando o punho de Edilean a atingiu no maxilar. Recuando, levou a mão ao rosto e moveu o queixo para ver se estava partido. No segundo seguinte, deu um salto e atacou Edilean que se moveu, fazendo Tabitha aterrar no chão. Todos os que se encontravam à volta das duas mulheres desataram a rir.

Edilean soubera que tal aconteceria. Convivera com mulheres durante toda a vida e sabia que, independentemente da sua origem, as mulheres podiam lutar como homens. Dissera a Cuddy que apenas queria que ele descobrisse onde se encontrava Tabitha e conseguisse as joias. Não achava que ganhar uma luta fizesse com que aqueles bandidos lhe devolvessem diamantes no valor de milhares de libras. A sua única esperança residia em que ninguém visse o que Cuddy estava a fazer.

Edilean olhou na direção de Cuddy e, ao ver que ele se mexia, se sentava e esfregava a cabeça dorida, suspirou de alívio. Obviamente, não ficara muito magoado. Tudo o que Edilean tinha a fazer era manter a multidão ocupada com ela e Tabitha para não se aperceber do que se passava.

Ao ver que o homem que a agarrara olhava na direção de Cuddy, cerrou o punho e voltou a atingir Tabitha no maxilar. O homem desviou o olhar de Cuddy.

Tabitha atacou Edilean, mas ela desviou-se para a esquerda, depois para a direita e os punhos erraram o alvo.

– Onde aprendeu a lutar assim? – perguntou Tabitha, de punhos erguidos e movendo-se de um lado para o outro.

– No colégio – respondeu Edilean. – E houve tantos homens apaixonados por mim que me ensinaram boxe e um pouco de luta livre.

– Apaixonados por si? – reagiu Tabitha. – Apaixonaram-se pela sua riqueza, nada mais. Foi o que o Angus me disse.

– Não acredito – exclamou Edilean, atacando Tabitha, mas errando o alvo.

– Sabe o que ele me disse? Na cama. É um belo e grande homem. Sabia que não era casado consigo. Ficava muito afastado de si, senhora de gelo. É como lhe chama. E deu-me aquelas joias.

Edilean não pensou e foi esse o seu erro. As provocações de Tabitha irritaram-na tanto que, quando saltou, falhou e aterrou no chão e ficou com a boca cheia de terra. Antes de conseguir rolar, Tabitha estava em cima dela e superava-a pelo menos em vinte e cinco quilos.

Tabitha agarrou no cabelo de Edilean, puxou-o com força para trás e depois bateu-lhe novamente com o rosto no chão, uma pedra atingiu-a e sentiu o gosto de sangue na boca.

Quando Edilean se virou e a multidão lhe viu o sangue na cara, pôs-se a aplaudir e a trocar dinheiro de apostas.

Edilean estava tão atordoada que, ao erguer-se, só viu o punho de Tabitha quando a atingiu no queixo, abaixo da orelha esquerda. Edilean recuou e, ao fazê-lo, avistou Cuddy a rebuscar os pertences no interior da barraca improvisada de Tabitha.

Edilean começou a andar em círculos, afastando-se cada vez mais de Tabitha para a afastar e à multidão da tenda e de Cuddy.

– Já chega? – perguntou Tabitha.

Tabitha era mais alta, mas Edilean mais ágil. Edilean esticou o pé calçado com bota, atingiu a perna nua de Tabitha e atacou. Esta aterrou no chão, rangendo os dentes e, quando olhou para Edilean, cuspiu sangue.

– Chega? – disse Edilean.

– Não o bastante. Nem de si nem do Angus.

Ao ouvir mencionar o nome, Edilean atingiu com o ombro o ventre de Tabitha.


17

Angus foi acordado pelo som de alguém que tentava derrubar a porta do celeiro.

– Sempre com pressa! – murmurou enquanto vestia as calças.

Estivera acordado até tarde na noite anterior, a tentar enfiar dois bêbados na cama. Quando lhes fechava as portas dos quartos, eles voltavam a sair e a esmurrar-se um ao outro. Por fim, dissera-lhes que se continuassem assim seria ele a socá-los. Isso tinha-os acalmado o suficiente para irem para os quartos e manterem-se lá.

Agora, ainda não amanhecera e alguém tentava entrar no celeiro. O quarto de Angus situava-se nas traseiras, ao lado da divisão das selas, afastado da taberna onde os hóspedes dormiam, o que lhe agradava. Dava-lhe algum tempo longe das constantes exigências de tomar conta das pessoas e dos animais.

As pancadas prosseguiram enquanto abotoava as calças. Praguejava em voz baixa quando ouviu o homem do lado de fora dizer algo parecido com «Edilean». Angus hesitou um momento sem acreditar no que ouvia e disse para si mesmo que era absurdo. Informara Edilean de que ia para Williamsburg e era onde ela pensava que ele se encontrava.

Após mais uma série de pancadas, ouviu a voz de um homem que repetia a palavra. «Edilean! Edilean!»

Angus percorreu a divisão em três passos, chegou à porta e ergueu a tranca. Diante dele encontrava-se um homem novo com roupa de trabalho e Edilean nos braços. Estava adormecida, ou desmaiada, e tinha o bonito rosto ferido e inchado, as roupas rasgadas e manchadas de sangue.

Angus meteu os braços por baixo dos do homem e agarrou em Edilean.

– O que aconteceu? – perguntou enquanto a levava para o seu pequeno quarto.

– Ela lutou com uma mulher chamada Tabitha por causa disto – explicou Cuddy ao mesmo tempo que retirava do bolso um grande punhado de joias com diamantes. – Espero que tenham valor para si. Podia ter-lhe custado a vida – acrescentou, irritado.

Angus fitou os diamantes, sem ter a certeza de compreender o que se passava ao inclinar-se para deitar Edilean na cama.

– Vá buscar água quente! – ordenou. – E deixe isso aí.

– Eu não tenho que... – começou Cuddy, mas ao olhar para Angus deixou cair os diamantes na sua mão estendida. – Ela disse que faltam um brinco e umas pulseiras – murmurou entre dentes, após o que virou as costas e saiu a correr do celeiro.

– Edilean! – pronunciou Angus, afastando-lhe carinhosamente o cabelo do rosto e tentando avaliar os danos.

Quando ela gemeu, percebeu que estava adormecida. Cheirou-lhe o hálito e pareceu-lhe que tinha bebido uísque.

Antes que o jovem voltasse, Angus despiu-a rapidamente. Precisava ver a extensão dos ferimentos. Teria alguns ossos partidos? Se possível, não queria chamar um médico. Consertara muitos ossos ao longo da vida e sabia o que fazer.

Quando ela ficou nua, não conseguiu deixar de observar o seu corpo bonito e perfeito, a curva das ancas, o subir dos seios. Lembrou-se de que ela se lhe oferecera e que a tinha recusado. Fora o ato mais difícil da sua vida. Desde essa noite que praticamente só pensava em Edilean e não havia um dia em que não quisesse voltar para ela e tomá-la nos braços.

Teve de abanar a cabeça para afastar aquelas ideias enquanto lhe passava as mãos pela pele lisa e perfeita, tentando ver se tinha alguns ossos partidos. Não encontrou nenhum. A jovem estremeceu por várias vezes quando lhe tocou num sítio dorido, mas, quando carregou com mais força, os ossos não cederam.

Tinha hematomas em quase todo o bonito corpo. Estavam a ficar negros, por conseguinte não passara ainda muito tempo desde que a haviam magoado. O belo rosto, pescoço e ombros eram os mais afetados. Havia um pequeno corte no queixo e outro mais profundo no ombro; os dois antebraços estavam em carne viva, mas não observou nada que necessitasse de ser cosido ou provocasse uma cicatriz.

– Edilean – sussurrou. – O que aconteceu com mil diabos?

Angus examinou as joias com diamantes que se encontravam na mesa junto à cama e interrogou-se de onde tinham vindo. Sabia que haviam estado no seu bolso no dia em que abandonara o navio e só dois dias depois de se terem separado é que Angus dera pela falta delas. Amaldiçoara o seu descuido, mas tinha a mente noutras coisas... ou seja em Edilean. Sentira-se tão desanimado desde o afastamento que não pensara em mais nada. Ela fazia-lhe imensa falta. Por várias vezes, deu por si a voltar-se para fazer um comentário, ou a sorrir ante a ideia do que ela diria se estivesse ao seu lado. Sempre que isso acontecia, abria-se uma nova ferida.

Passara tardes inteiras diante da casa dela na cidade, a observar. Dizia para si mesmo que estava a protegê-la, mas todos os homens que entravam assemelhavam-se a uma estaca que lhe espetavam no coração. Sabia que ela organizava imensos chás para os jovens estudantes que vinham da universidade de Havard. Chegara a vê-la no exterior, na companhia deles, a rir nos degraus com quatro ou cinco jovens de cada vez.

Todos os dias encarregava uma das criadas da taberna de ler os jornais; esperava ouvir dizer que Edilean ficara noiva de um deles. Imaginava que casaria com um homem dono de muitas terras. E o seu futuro marido ficaria provavelmente tão obcecado por ela que daria o nome de «Edilean» à propriedade. Ou talvez fosse esse apenas o desejo de Angus. Se fundasse uma cidade e ela estivesse ao lado dele, era Edilean o nome que daria ao lugar.

Quando Angus percebeu que as joias haviam sido roubadas, soube que nada podia fazer. Tanto quanto sabia, Edilean levara-as de volta. Não achava que ela o tivesse feito, mas talvez desejasse tanto que ele ficasse em Boston com ela que o impossibilitara de se ir embora.

Ou talvez fosse algo em que ele queria acreditar.

Edilean mexeu-se na cama, gemendo de dor.

– Chiu, rapariga – disse ele. – Estou aqui para cuidar de si.

Ao ouvir os passos de um homem a aproximar-se da porta, tapou o corpo de Edilean com um cobertor.

– Tive de esperar até a água aquecer – disse Cuddy da ombreira da porta e, ao olhar para Edilean deitada na cama, arregalou os olhos. – Tirou-lhe a roupa? – perguntou, evidenciando raiva contra Angus e a sua preocupação por Edilean.

– Se ouvir mais uma só palavra desrespeitosa da sua boca, vai lamentar toda a sua vida – retorquiu Angus com um brilho de ameaça nos olhos.

– Está bem – retorquiu Cuddy, deixando-se cair pesadamente numa cadeira no extremo oposto do quarto. – Não é da minha conta, embora quase me tenham morto enquanto a ajudava.

Angus mergulhou um pano na água quente e começou a lavar cuidadosamente o rosto de Edilean.

– Quero ouvir tudo o que aconteceu e não se esqueça de nada.

Cuddy não gostava da maneira como Angus o tratava, nem tão-pouco da forma como Miss Edilean lhe ordenara que o levasse até junto do escocês. Cuddy disse-lhe que Miss Harriet cuidaria dela melhor do que qualquer homem, mas Edilean tinha insistido. Afirmara que iria a pé se ele não lhe obedecesse. Cuddy cedera quando Edilean quase caíra do cavalo. Desmontara, subira para trás dela e, cinco minutos depois, ela adormecera contra o seu corpo. Sentira-se tentado a levá-la até Miss Harriet, mas não o fez. Desviou-se quilómetros do caminho para a entregar a um homem que a tinha despido e metido na cama.

Cuddy não gostava dele e deu-lho a entender pelo tom de voz. Contou relutantemente a história sobre Tabitha, mas omitiu a Angus que Edilean o tinha mandado a ele, Cuddy, à procura de Angus, umas semanas antes.

– Então, como sabia ela onde eu estava?

Cuddy manteve-se silencioso e Angus virou-se e fitou-o.

– Ela enviou-o à minha procura?

Cuddy assentiu com a cabeça.

– E contou-lhe em pormenor onde eu estava a trabalhar e que vivia no celeiro, não é verdade?

Cuddy esboçou um leve aceno e Angus abrandou.

– Não se preocupe, rapaz. Ela tem uma forma de levar os homens a fazer coisas que habitualmente não fariam.

– Ela faz isso comigo! – retorquiu Cuddy enquanto alguma raiva o abandonava. – Corri atrás dela como se fosse sua empregada.

– Também já me aconteceu – comentou Angus, levantando-se. – Não me parece que ela esteja ferida, mas apenas esgotada. Como ficou a Tabitha depois da luta?

– Pior do que Miss Edilean.

– A sério? – retorquiu Angus com uma ponta de orgulho na voz. – Lutou com uma rapariga forte como a Tabitha e ganhou?

– Sim – disse Cuddy, sorrindo. – Passei a maior parte do tempo na tenda, de gatas, a remexer nos espartilhos da mulher, mas vi o bastante da luta para saber que foi sangrenta. Nem acredito que elas não perderam os dentes e os olhos.

– Foi assim tão mau? – inquiriu Angus, franzindo o sobrolho.

– Pior do que possa imaginar – respondeu Cuddy, fitando Angus com um olhar de interrogação. – Então, ela estava a lutar por si? Chama-se Harcourt e são parentes?

– Sou o marido dela – respondeu Angus, sem pensar. – Mais ou menos. Teve uma noite difícil... porque não vai até lá dentro tomar o pequeno-almoço? Se quiser dormir, diga à Dolly que lhe mandei dar o melhor quarto.

– O marido dela? Mas os homens passam o dia a cortejá-la. Nem lhe passa pela cabeça a quantidade de cavalos que tenho de alimentar enquanto eles estão lá dentro a tentar fazê-la rir. Se me perguntar, desejam mais o seu dinheiro do que a ela. E acho que, se soubessem que ela é capaz de quebrar um maxilar com um soco e depois atacar com a esquerda – acrescentou, fazendo uma demonstração –, não sei se a desejariam.

Angus não conseguiu reprimir um sorriso ante o entusiasmo do jovem.

– Vá lá – disse num tom delicado. – Cuidarei dela. Coma qualquer coisa e durma um pouco. Pode ir para casa esta noite.

– Mas e Miss Edilean? Miss Harriet vai esfolar-me vivo se regressar sem ela.

– Ela irá consigo quando se for embora – prometeu Angus. – Está apenas magoada e dorida, nada de grave. Agora vá e deixe-a descansar.

Quando Cuddy saiu do celeiro, ouviu a porta a fechar-se atrás dele. Com que então marido dela? Não era à toa que Miss Edilean se mostrava tão cautelosa com os homens que a visitavam. Já estava casada com o dono de uma taberna, um homem que passava os dias a servir cerveja. Compreendia-se que não andasse por aí a exibi-lo. Com uma risada, Cuddy dirigiu-se à taverna e comeu um generoso pequeno-almoço.

Edilean acordou sobressaltada e sentiu um arrepio de pânico. Tapou o rosto com os braços num gesto de defesa.

– Então, rapariga, está a salvo comigo – disse Angus, sentando-se na cama ao lado dela.

Edilean tentou erguer-se, mas tinha o corpo todo dorido. Olhou à volta do quarto, reparando na austeridade.

– É esta a taberna onde trabalha? – perguntou.

– É o celeiro – disse ele. – Não valho o suficiente para que o dono me dê um quarto por cima da taberna.

Sabia que ele estava a dar-lhe uma oportunidade de gracejo, mas ignorou-a.

– O Cuddy deu-lhe as joias?

– Sim, deu.

– Posso ver?

– Não – sorriu. – Já sei que viu o que faltava.

– Mas preciso de...

Quando ela fez nova tentativa para se levantar, Angus empurrou-a suavemente para baixo.

– Ná, rapariga. Precisa de descansar. Constou-me que teve uma briga dos diabos.

– Nada que se compare com o que fiz à Bessie Hightop quando tínhamos as duas catorze anos. O pai dela era duque e ela chamou-me a parasita do colégio, sempre à procura de alguém para viver às custas nas férias.

– Então, deu-lhe uma lição?

– Na verdade, a longo prazo, perdi. O pai foi informado do que aconteceu e obrigou Bessie a convidar-me para casa dela na Páscoa. Na altura, fiquei muito orgulhosa e aceitei.

– E o que aconteceu?

– O avô da Bessie, o pai da mãe dela, pediu-me que casasse com ele.

Angus não conseguiu suster o riso.

– Gostava de ter estado presente para a ouvir dizer o que achou da sua proposta.

– Quando sugeriu que me sentasse ao colo dele, respondi que os seus joelhos ossudos me magoariam o traseiro.

– Oh, rapariga, tive tantas saudades!

– Eu não! – retorquiu Edilean, muito séria. – Depois de me pôr de lado como se fosse lixo, apenas queria acabar com a obrigação entre nós.

– Obrigação?

– O que lhe devo. Já me disse vezes bastantes que, se não fosse por mim, estaria agora na Escócia com a sua querida família.

– Também lhe disse que me deu uma oportunidade que nunca teria tido sem a sua ajuda.

– Sim. Quando lhe dei a parure, foi uma maneira de lhe comprar uma propriedada e de talvez mais tarde poder convidar a sua família para a América. Depois de o Cuddy me contar a sua situação aqui, soube que me encontrava novamente em dívida. Passara de laird de um clã a empregado de cavalariça.

– Não acho que fosse assim tão mau – retorquiu ele. – Se as coisas se mantiverem como até agora posso muito bem vir a ser o dono deste lugar algum dia.

– Ah! – exclamou Edilean rangendo os dentes para dominar a dor e sentando-se. – Se o proprietário tiver um primo em terceiro grau é mais provável que lhe deixe o lugar a ele. Quando se trata de bens, o sangue fala sempre mais forte.

– Edilean – disse Angus recuando e ficando a observá-la.

A jovem tinha o cobertor seguro sob os braços e não parecia nada preocupada com o facto de se encontrar nua por baixo. Contudo, o olhar dele recordou-lhe a situação e o que acontecera na última vez em que se tinham visto.

– Importa-se de me dar a minha roupa para que possa vestir-me e ir embora?

A frieza do tom de voz fê-lo encolher-se. Quando se encontravam no navio e ela se irritara, Angus troçara. Na sua opinião, tinha ciúmes de Tabitha e, para ser sincero, aquela raiva agradara-lhe. Contudo, a frieza atual não lhe dava qualquer prazer.

– Agradeço-lhe... – começou.

– Pare com isso! – ordenou Angus. – Quero que pare com isso já! Em que raio estava a pensar quando cavalgou até um acampamento cheio de criminosos e se meteu numa briga? Sabe o perigo que correu?

– Era algo que precisava de fazer – ripostou Edilean. – Dá-me as minhas roupas, por favor, para me poder ir embora?

– Não. Não sairá daqui até ter comido e dormido. Quero certificar-me que está bem.

– Ah, com que então agora é médico?

– Se achava que não podia cuidar de si, porque veio até cá? Porque não foi para a sua luxuosa casa e deixou que a irmã do Harcourt a tomasse a seu cargo?

Sentiu-se contente quando os olhos de Edilean deitaram chispas. Era preferível à frieza.

– Antes de mais, esqueceu-se do motivo que me levou até àquele bando de criminosos?

– Para me fazer passar por idiota?

– Não tive de me esforçar muito para isso, pois não?

Fulminaram-se com os olhos, sem que nenhum deles pronunciasse uma palavra. Decorridos uns minutos, Angus abriu um armário de onde retirou uma camisa lavada que lhe atirou.

– De momento, é tudo a que tem direito. Quero que fique nessa cama e descanse. – Expressou-se num tom furioso, mas depois parou e fitou-a com meiguice. – Edilean, o que lhe deu para fazer uma coisa daquelas?

Ela tinha a palavra «amor» na ponta da língua, mas não a pronunciou.

– Já expliquei que queria pagar a minha dívida para consigo – respondeu enquanto enfiava a camisa enorme pela cabeça.

– É tudo?

– É tudo e agora estamos quites. Não tenho de me sentir culpada por você ter deixado alguém por minha causa. Pode comprar terras, fundar uma aldeia McTern e trazer todos os seus amigos e parentes para a América. E pode voltar a ser o laird de um clã. Pode pavonear-se e despertar olhares de adoração.

– Pensa que é isso o que quero? – perguntou ele meigamente.

– Não tenho ideia do que quer – respondeu a jovem. – Não faço parte do seu clã.

Angus ia a redarguir, mas em vez disso encaminhou-se para a porta.

– Não é a altura de discutir o assunto. Quero que durma e mandarei recado à irmã da Harcourt a dizer que está a salvo.

Quando ele saiu do quarto, Edilean apercebeu-se de como estava cansada. Nesse momento, não conseguia lembrar-se porque dissera a Cuddy que a levasse até Angus. Sabia que devia ter regressado para Harriet, para a sua cama, mas agora sentia-se demasiado cansada para se preocupar com o sítio onde se encontrava. Deslizou pela cama e adormeceu imediatamente.

Angus manteve-se lá fora durante uns minutos com a cabeça encostada à parede, de olhos fechados. O facto de ter sido tão descuidado a ponto de deixar que lhe roubassem as joias já era humilhação bastante, mas que Edilean as tivesse encontrado e recuperado era mais do que conseguia aguentar. Fora vencido por uma rapariga!

Voltou a espreitar para o interior do quarto, a fim de verificar como ela estava. Tal como pensara, tinha adormecido. Tapou-a melhor com o cobertor e afastou-lhe o cabelo do rosto.

Ignorava que fosse possível amar tanto alguém como ele a amava.

A partir do momento em que a tinha conhecido, ela apoderara-se da sua mente, do seu coração, da sua própria vida. Lutara contra os sentimentos que lhe despertava. Na Escócia, combatera o desejo de estar com ela, de olhar para o seu bonito rosto, de estar próximo dela. A fúria que o invadira por ela ter entrado na sua vida, conquistando-a tão rapidamente, expressara-se de maneiras que não condiziam com a sua personalidade. Lamentava ter agido por vezes com violência, se é que atirá-la para dentro de um bebedouro de cavalos podia considerar-se violento.

Ninguém lhe explicara que o amor podia causar outros sentimentos além da felicidade. Pensara que, quando alguém se apaixonava, tinha... Não sabia muito bem o que pensara. Que ouvia anjos a cantar?

Contudo, Edilean provocara-lhe todas as emoções, só que dez vezes acima do normal. Quando os ladrões roubaram uma dúzia de ovelhas durante a noite, a raiva que lhe causaram não fora nada comparativamente ao que sentia perto de Edilean. Raiva, felicidade, fraqueza, força. Sentia tudo quando ela estava perto. Edilean fazia com que se julgasse o homem maior, o mais inteligente e o mais leal ao cimo da terra. Em seguida levara-o a sentir-se abaixo de um verme.

Abanando a cabeça, tocou-lhe na face e ela mexeu-se no sono. Não conseguia descrever o que tinha sentido ao ver aquele rapaz com Edilean desmaiada nos braços. Angus julgara que nunca mais a veria. Dissera a si próprio que, se lhe chegasse a notícia de que ela ia casar, se sentiria feliz por ela. Porém, a mera visão de um rapaz a tocar-lhe havia-lhe despertado vontade de matar. Se Angus fosse um dos seus antepassados, teria arrancado a cabeça do rapaz dos ombros antes de fazer qualquer pergunta.

Porém, todos os pensamentos e emoções de Angus se haviam transformado em receio ao ver como ela estava ferida, com o belo rosto oculto por camadas de sujidade e de sangue.

Angus saiu relutantemente do quarto para ir trabalhar. Mentira a Edilean quando dissera que tencionava comprar aquele lugar. A verdade é que detestava a taberna. Servir cerveja e comida o dia inteiro, ouvindo queixas intermináveis sobre tudo, desde a água demasiado quente à comida fria de mais, punha-o doente.

Quando tinha dado pela falta das joias, ficara tão furioso que, se fosse mais fraco, cairia para o lado, mas na noite em que se esgueirara para o quarto dela, pensara que ocultara tudo a Edilean. Antes queria morrer do que deixá-la perceber como fora idiota por permitir que o roubassem. O pior era que não conseguia imaginar onde e quando. Passara dias inteiros a refazer os passos para as procurar – procurar quem quer que as tivesse roubado –, mas acabara de mãos vazias. Não podia interrogar ninguém. Quem iria admitir ter visto sequer as joias?

Pensara sem dúvida nas reclusas do navio, mas achara ingenuamente que... Bom, que não o roubariam. Ou talvez não quisesse admitir que Edilean tinha razão quanto a Tabitha. Agradara-lhe pensar na inocência de Tabitha e nos ciúmes de Edilean.

Todavia, Edilean tivera razão e percebera o que Angus não fora capaz... e tomara providências.

Entrou relutantemente na taberna. Havia como sempre muito trabalho a fazer e o Sol pôs-se antes que se desse conta. De súbito, ocorreu-lhe o quanto era idiota. Ele estava na taberna e Edilean no quarto.

– Porque estás a sorrir? – perguntou Dolly, a empregada do balcão, enquanto enchia três canecas de cerveja do barril atrás do bar.

– Amor – respondeu com um sorriso que lhe ia de um canto ao outro da boca. Fitou os viajantes cansados que se encontravam na sala e em seguida rodeou a farta cintura de Dolly com as mãos e plantou-lhe um beijo na face. – Hoje, não vou trabalhar mais. Na verdade, talvez nunca mais volte a trabalhar aqui.

– O patrão esfola-te vivo!

– É provável, se conseguir encontrar-me.

No minuto seguinte encontrava-se de regresso ao quarto.

Quando abriu a porta, Edilean tinha acabado de acordar.

– Sinto-me pessimamente – murmurou a jovem. – Doem-me todos os músculos do corpo.

– Deixe-me ver – disse Angus, sentando-se na beira da cama e puxando o cobertor para trás. Tocou nos ombros através da camisa, massajando-a suavemente com os dedos.

– Angus... – sussurrou.

– Sim, o que se passa? – retorquiu ele com uma expressão preocupada.

– Se não for à latrina, vou explodir.

– Sempre prática, não é verdade? – riu ele, afastando as mãos.

– Bem mais do que prática. Tem de sair para que possa vestir-me.

– Isso significa saiotes, espartilho, meias e o resto? Preciso obviamente de a ajudar com o espartilho.

– Tenho um novo com atilhos na frente, mas mesmo assim levaria muito tempo. Nunca o conseguirei – redarguiu.

Com um gesto rápido ele ergueu-a, sem largar o cobertor.

– Esconda o rosto e ninguém saberá o que levo.

– Só que tenho os pés de fora.

– E uns pezinhos adoráveis.

Edilean tinha a cabeça debaixo do cobertor e apenas conseguia ver o rosto dele.

– Para onde me leva?

– Vou levá-la para o mato, o que acha? Ou prefere partilhar o nosso buraco das necessidades?

– O mato – disse ela. – O que se passa, Angus? Algo... – hesitou. – Algo mudou?

Sabia que estava a forçá-lo, tentando levá-lo a dizer o que tanto desejava ouvir, que ele compreendera finalmente que a amava e queria passar a vida ao seu lado.

– Não, nada mudou – respondeu ele. – Está tudo como era – acrescentou, sorrindo.

Sabia o que ela queria ouvir, mas ainda não era chegada a altura. Ele dissera-lhe a verdade. Nada tinha mudado. Continuava a amá-la como quando se haviam separado.

Edilean não sabia como responder-lhe e, um minuto depois, quando ele a pousou no chão, viu-se na frondosa relva do prado, à sombra das árvores.

– Vou deixá-la aqui – disse. – Depois venha ter comigo e levo-a de volta.

Edilean demorou uns escassos minutos a aliviar-se e depois levantou-se e olhou em redor. O Sol descia no horizonte e a luz que inundava o campo era linda. A relva apresentava-se pontilhada das cores vivas de flores silvestres.

Em vez de regressar para junto de Angus, avançou pelo campo até um grande carvalho. A terra por baixo estava remexida e lembrou-se de um sítio onde costumava ir para estar sozinha quando era criança. Tinha crescido na casa que a família do pai possuíra ao longo de quatro gerações. Como o pai raramente se encontrava presente, passara o começo da vida na companhia de governantas e amas e o carvalho era o lugar para onde lhes escapava. Sorrindo, recordou-se que, quando voltara à Escócia, levara na mala um saco de bolotas daquela árvore. Planeava manter a sua jura de infância e plantar uma bolota dessa árvore onde quer que se instalasse.

– Isto aqui é bonito, não é? – perguntou Angus meigamente nas suas costas.

– Sim.

– Venho muitas vezes até aqui para ficar longe da taberna.

– Então, não gosta do lugar? – disse ela, rindo.

– Detesto-o. – Não a olhou quando estendeu a mão e pegou na mão dela. – Edilean...

A jovem virou-se, olhando-o sob a luz suave. Não foram necessárias palavras entre os dois quando ele a abraçou e colou os lábios aos dela.

Estavam sozinhos debaixo de uma árvore, com a relva cheirosa por baixo e a mulher nos seus braços apenas tinha uma camisa vestida.

Os lábios dela entreabriram-se e Angus sentiu a sua inexperiência, mas em simultâneo a sua ânsia de aprender, o que era uma combinação irresistível.

Puxou-a para os seus braços e beijou-lhe o pescoço.

– Se começar, não serei capaz de parar.

– Ninguém pediu isso – disse ela, fazendo-o sorrir.

Angus colocou-lhe os braços sob as pernas e baixou-a até ao chão, deitando-se ao seu lado.

– Tens de me dizer se te magoar – retorquiu quando lhe tocou numa nódoa negra do ombro e ela estremeceu.

Puxou a camisa para o lado e beijou o hematoma.

– Melhor assim?

– Muito – sussurrou. – Mas tenho outros sítios que precisam de ser curados. Sinto as costelas muito doridas.

Angus pousou a mão na perna de Edilean e foi subindo por baixo da camisa larga.

– Algumas nódoas negras aqui?

Edilean mantinha os olhos fechados e a cabeça inclinada para o lado enquanto ele lhe beijava o pescoço. Angus sentiu-a cautelosa e retraída. Lembrou-se, com pesar, de quando ela se lhe entregara, com os olhos cheios de amor e de desejo. Desta vez, avançaria cuidadosamente. E depois... Não podia permitir-se pensar no assunto, mas algures na sua mente existia a noção de que, se ela o desejava e ele sabia que sim, então porque não? O amor não era algo que pudesse basear-se na lógica e na racionalidade.

– E aqui? – sussurrou. – Dói-te? E aqui?

Foi subindo com a mão pela coxa, até ao centro dela, e sentiu-a arquejar.

No segundo seguinte, despiu-lhe a camisa pela cabeça e ela ficou nua na sua frente. Desejava fitá-la com olhos de amor e de desejo e não como quando examinara o bonito corpo em busca de lesões. No escuro, as nódoas negras quase se assemelhavam a prata.

– Vou beijar cada uma delas – disse enquanto os lábios desciam para o seu seio e ainda mais para baixo.

Demorou um pouco, mas começou a sentir relutância em abandoná-la, dando lugar a uma crescente paixão. Levou algum tempo a beijá-la quase explodindo de desejo, mas sabia que tinha de avançar lentamente.

Quando ela começou a gemer, com as mãos entrelaçadas nos seus cabelos, Angus moveu-se para cima dela, receando esmagar o frágil corpo, mas ela puxou-o, com as pernas à volta do corpo masculino.

Ao penetrá-la, a jovem gritou, mas ele colou os lábios aos dela, acalmando-a. Minutos depois, ambos atingiram o orgasmo.


18

–Quero ouvir tudo – disse Angus. – Não omitas um único gesto.

Estavam no quarto dele. Edilean apoiava a cabeça no seu peito e era quase madrugada. Tinham feito amor durante a maior parte da noite, duas vezes por baixo da árvore e, quando escurecera, haviam ido para dentro de casa.

– Queres ouvir falar dos puxões de cabelos, dos pontapés e das dentadas?

– Não, dentadas não – retorquiu Edilean, passando a mão pelo peito nu de Angus. – Acho que a Tabitha não queria lutar, mas ela ignorava que as joias eram verdadeiras.

– E acreditaste nela?

Edilean ergueu-se sobre um cotovelo.

– Não te atrevas a falar-me de acreditar na Tabitha! Não acreditei no que ela disse sobre ti e ela.

– O que foi? – quis saber e Edilean repetiu-lhe as palavras de Tabitha sobre ter dormido com Angus e o que ele dissera a seu respeito.

– Não acreditaste nela? – inquiriu Angus meigamente.

– Não. Sempre soube que ela é uma mentirosa. Foste tu que acreditaste em cada palavra dela.

– Não é verdade! – exclamou, mas quando Edilean continuou a fitá-lo, acrescentou: – Talvez sim. Ela parecia tão doce.

– É uma ladra e uma mentirosa! – ripostou Edilean.

Angus voltou a puxar-lhe a cabeça para o ombro.

– Deixaste bem claro o que pensas a seu respeito, mas como adivinhaste que foi ela que roubou as joias?

– Multiplicação.

– O quê?

– Multipliquei a tua inteligência masculina pelo tamanho dos seios dela e nunca duvidei de quem havia roubado as joias.

– A minha inteligência masculina... – repetiu Angus, erguendo-a cuidadosamente, atento aos hematomas. – Vou fazer-te pagar por isso.

– E como me castigarás?

– Com beijos – respondeu, passando do gesto à palavra.

Contudo, Edilean afastou-se e tirou-lhe o cobertor. Quando ele quis voltar a tapar-se, ela colocou a mão em cima da dele. Queria vê-lo. Queria olhar o corpo que tinha visto tantas vezes, mas que estava sempre oculto sob as roupas.

Angus pareceu entender e manteve-se deitado, fitando-a com os olhos escuros. Edilean pousou a mão no seu ombro, indicando-lhe que queria que ele se virasse. Podia concentrar-se melhor se não se sentisse observada.

Angus tinha umas costas largas com músculos sob a pele lisa que não apresentava um grama de gordura. Passou as mãos pelos ombros até à cintura fina e, ao sentir as marcas, arquejou. O quarto estava escuro e ela esticou-se por cima dele, a fim de chegar ao candeeiro. Quando o fez, roçou com os seios no seu antebraço.

– Queres torturar-me? – perguntou ele.

Edilean acendeu o candeeiro e examinou-lhe as costas nuas. As grossas marcas que sentira eram cicatrizes e havia várias e bastantes. Passou a mão por cima de uma delas, que se estendia por debaixo do braço até à coluna.

– O que foi isto?

– Uma bala.

Quando ela se manteve silenciosa, limitando-se a olhá-lo, Angus esboçou um esgar.

– Tinha dezasseis anos, não era muito bom no disfarce e...

– Por «disfarce» referes-te a rastejar pela relva e a espiar pessoas que estavam a desenhar?

– Isso – disse ele. – Persegui uns ladrões. Aproximei-me de mais, eles avistaram-me e dispararam contra mim.

Edilean inclinou-se e beijou a longa cicatriz.

– Quem cuidou de ti?

– Kenna, a minha irmã.

Ao sentir que ele hesitava, Edilean ergueu a cabeça.

– Estás a pensar no bebé dela e a interrogares-te sobre o que teve, não é verdade?

– Sim, rapariga – respondeu. – Conheces-me assim tão bem?

– Melhor do que pensas.

Quando ele se dispunha a virar-se, ela empurrou-o para baixo e tocou numa outra cicatriz que se assemelhava a uma queimadura na parte de trás do braço.

– Caí numa fogueira quando tinha três anos.

– E estas?

Havia quatro elevações no lado direito da cintura.

– O Shamus empurrou-me do alto de um penhasco e aterrei em cima de pedras.

– Ah, o Shamus. E pensar que, se as circunstâncias tivessem sido outras, ele estaria agora aqui comigo.

Angus soltou uma risada e Edilean sentiu o seu corpo mover-se contra o dela. Puxou o lençol para baixo e percorreu com as mãos a curva das nádegas, passando às coxas musculosas.

– Rapariga! – exclamou ele com voz rouca. – Não me faças isto.

– Queres dizer que mais nenhuma mulher te olhou?

– Não desta maneira.

Ia a virar-se, mas ela colocou-lhe a mão nas costas e manteve-o na mesma posição.

– Ainda não acabei – retorquiu, apalpando outra cicatriz na sua coxa esquerda. – E esta?

– Arrastado por um cavalo por cima de um pedaço de ferro. Dessa vez quase perdi uma perna.

– E tinhas...?

– Dez anos.

– Ainda bem que vieste inteiro para mim.

– Inteiro e a crescer – murmurou. – Edilean! Não aguento muito mais.

A jovem passou aos seus pés. Havia várias cicatrizes pequenas à volta dos tornozelos, mas nenhuma que parecesse ter-lhe ameaçado a vida. Sentou-se aos pés dele e observou o enorme e sedutor corpo desnudo na sua frente. Como era estranho, pensou. Durante toda a vida, as amas e professoras tinham-na avisado para manter o corpo tapado, mas ali estava, completamente despida e a examinar aquele homem magnífico, também ele nu.

Fez deslizar vagarosamente o corpo sobre o dele, sentindo os seios em cada centímetro, percorrendo com os lábios a pele quente e morena. Quando chegou ao pescoço, Angus virou-se e puxou-a para cima dele.

– Espera! – disse ela. – Quero ver-te de frente.

– E se me observasses sentada em cima de mim?

– Sentada... – começou, mas ele ergueu-a e pousou-a na parte dele que a esperava ansiosamente. – Percebo! – disse. – Sentada! E o que faço agora?

– Tudo o que quiseres – respondeu de uma forma que a fez sorrir e sentir-se poderosa.

– É como montar um cavalo? Devo tentar cavalgar? – Pôs-se de joelhos e começou a mover-se para cima e para baixo, devagar e com ritmo. Passara a maior parte da vida em cima de cavalos e tinha coxas fortes.

– Que tal um galope? – perguntou.

Angus puxou-a para a cama, sem quebrar a ligação.

– E se o teu cavalo tomar o comando e fugir contigo? – retorquiu ele, impulsionando-se dentro dela.

– Sim – murmurou Edilean.

Uma hora mais tarde, Edilean estava adormecida com metade do corpo nu sobre o dele e a outra metade na cama e Angus desejava ficar eternamente ao seu lado, mas ouvia a agitação de pessoas por perto e sabia que tinha de se levantar. Se não o fizesse, dali a minutos alguém bateria à porta a querer saber o que se passava e porque é que ele não estava a lidar com qualquer problema surgido.

«Este vai ser o meu último dia aqui», pensou enquanto saía da cama cuidadosamente para não perturbar Edilean. Deixaria que ela dormisse mais algum tempo e depois regressaria ao quarto e eles... ainda não sabia muito bem o que fariam, mas sabia que o fariam juntos.

Enquanto se vestia, observou-a, fitou o seu belo rosto magoado e a forma como torcia o nariz durante o sono, os contornos do seu pequeno corpo sob os cobertores.

«Espero que esteja grávida», pensou e fez uma pausa enquanto calçava um dos sapatos. Sim, grávida de uma menina que se parecesse com ela. Chamar-lhe-iam Catherine em honra da avó dele. Catherine Edilean. Angus sorriu. Qual seria o apelido? Visto que ele era um homem procurado, não podiam usar McTern, mas também não queria continuar a usar o nome de Harcourt. Quando Edilean acordasse, teria de discutir o assunto com ela e juntos escolheriam outro nome.

Quando acabou de se vestir, saiu do quarto em bicos dos pés e dirigiu-se à taberna.

Dolly ergueu o rosto.

– Julguei que te tinhas ido embora. Ou talvez desejasses fazê-lo por causa da poldra que tens no quarto.

Angus sorriu. Estava habituado a viver num sítio onde não se guardavam segredos.

– É só mais uma – disse. – Nada de especial.

– Não foi isso o que ouvi – retorquiu com um aceno de cabeça para o homem jovem que lhe trouxera Edilean no dia anterior.

Ele estava sentado a uma mesa rodeado por meia dúzia de outros homens, a contar uma história que claramente os fascinava.

Angus virou as costas para que Dolly não o visse franzir o sobrolho.

– E o que tem ele andado para aí a espalhar?

– Que ela sabe lutar tão bem como um homem.

– E que mais?

– Há mais?

Angus desejava perguntar-lhe se o jovem linguarudo contara quem era Edilean, se lhes dissera onde ela morava.

Dolly aproximou-se mais.

– Ele não disse quem era a tua pequena dama, se é isso o que te preocupa. Na verdade, deu a entender que é uma dessas reclusas transportadas.

Angus fitou-a bruscamente.

– Eu vi-vos aos dois – prosseguiu Dolly, enrugando os olhos num sorriso. – Também já fui nova. Ela não é uma criminosa e aquele ali é um bom rapaz – concluiu, virando as costas e saindo de trás do balcão para servir o pequeno-almoço aos homens.

Angus encheu uma caneca de cerveja e bebeu-a de um trago. Não tinha dormido de noite, pois Edilean fora... Sorrindo, lembrou-se dos beijos, dos sons, das posições. A jovem envergonhara-o e surpreendera-o quando lhe examinara as costas, mas ele adorara. Aparentemente, a curiosidade dela em relação ao mundo abrangia mais do que países e costumes. Fora uma noite de um prazer tão imenso que achava que se morresse naquele momento não se arrependeria de nada.

Foi só quando pousou a caneca que avistou o cartaz na parede. Era o mesmo que tinha sido colocado na Escócia e era o esboço que Edilean desenhara quando ele tinha o cabelo desgrenhado e o rosto coberto de pelos.

Por um momento, Angus ficou paralisado, incapaz de se mexer enquanto fitava a fotografia pendurada num prego na parede. O cartaz não estivera ali na noite anterior.

Quando Dolly regressou ao bar, ele continuava sem se mexer. A empregada preparou bebidas e colocou-as numa bandeja, mas Angus manteve-se imóvel. Quando Dolly ia a afastar-se com a bandeja cheia, Angus agarrou-lhe no braço.

– De onde veio isto? – sussurrou, incapaz de se expressar num tom normal.

– Foi um homem que o trouxe na noite passada. Achei que se parecia um pouco contigo – disse num tom de mofa.

– Disseste-lhe isso? – quis saber Angus.

Dolly demorou um escasso segundo a ler-lhe o rosto.

– Não lhe disse nada. Não gostei dele. É bonito e sabe disso. Tratou-me como se fosse sua escrava.

– Onde está ele? – inquiriu Angus, engolindo em seco.

– A dormir, suponho. Vá – disse. – Faz o que precisas de fazer. Entretê-lo-ei o máximo que puder. Um homem como ele não gostará de sopa entornada nas roupas, mas é o que farei.

– Está sozinho?

– Não. Tem dois bandidos com ele. Homens com um ar assustador. Angus... – O rosto denotava um enorme medo e preocupação por ele. – Não podes enfrentá-los a todos. Tens de te ir embora!

Pela segunda vez em dois dias, Angus beijou a face de Dolly e em seguida saiu rapidamente da taberna. Ao chegar ao quarto, parou do lado de fora da porta. O seu instinto ditava-lhe que acordasse Edilean e lhe dissesse que James estava ali, que chegara à América com o cartaz e o mandado de prisão de Angus e que não viera sozinho.

Angus sempre soubera que havia a possibilidade de James vir à América em sua perseguição. Era impossível humilhar um homem como James Harcourt sem esperar vingança. Mesmo assim, o cartaz chocara-o! Se ao menos James tivesse chegado no dia anterior! Se tivesse chegado antes que Edilean e Angus passassem a noite juntos, tudo seria diferente. Angus podia esgueirar-se e ninguém ficaria magoado.

Contudo, agora teria de partir e haveria muita dor. Angus sabia que não podia ficar com Edilean. Nem sequer podia dizer-lhe que se ia embora. Ela nunca aceitaria que Angus tivesse de partir e deixá-la para trás. Desejaria ir com ele.

Por um momento, esfregou os olhos para pensar com mais clareza. Acima de tudo, não podia deixar que Edilean soubesse a verdade. Não podia ir ter com ela e dizer «Amo-te, mas tenho de te abandonar para te proteger». A jovem jamais concordaria com o seu afastamento, mas era o que teria de acontecer. Tinham de se separar para sempre.

Era como se olhasse para uma bola de cristal e adivinhasse o futuro. James perseguiria Angus para onde quer que ele fosse e, se Angus tivesse mulher e filhos, não deixaria de o encontrar. E depois? Se James não matasse Angus de imediato, gostaria de o ver ser preso. Mesmo que não pudesse ser levado a tribunal na América, James Harcourt descobriria sem dúvida um momento em que Angus estivesse desprevenido para o raptar e levá-lo de volta para a Escócia. Ali, seria julgado, declarado culpado e condenado à morte, ou talvez recebesse «apenas» uma sentença perpétua e apodrecesse na prisão.

E o que aconteceria a Edilean? Aos filhos de ambos? À casa que desejavam construir?

Angus sabia o que Edilean iria fazer. Lutaria por ele. Tal como lutara por ele com as joias, lutaria nos tribunais. Lutaria contra James Harcourt; lutaria contra o mundo para manter Angus fora da prisão. Contudo, não sairia vitoriosa. Angus tinha fugido com uma rapariga que ainda se encontrava sob a supervisão do tutor. O facto de ter casado com ela mais tarde apenas serviria para piorar em vez de melhorar a situação. Pareceria que a usara quando ela era apenas uma jovenzinha e contra o desejo do tutor.

E havia obviamente a questão do ouro. Quando Angus e Edilean fugiram, o ouro encontrava-se legalmente a cargo do tio. Angus «roubara-o» dele.

Não, não havia nenhuma maneira de um tribunal ouvir a sua versão ou compreender a verdade. Nunca acreditariam na história absurda de Angus e ele apanharia prisão perpétua.

Poderia levar Edilean na sua companhia? Era o que desejava para ela? Que passasse a vida a esconder-se para que ele não fosse capturado? E, se o apanhassem, ficaria condenada a idas diárias à prisão para o visitar? Ou teria de ficar por perto e assistir ao seu enforcamento?

Manteve-se do lado de fora do quarto, sabendo que Edilean se encontrava lá dentro, ainda a dormir, e que teria de a deixar. Novamente. Contudo, mais uma vez, teria de se afastar e deixar que ela pensasse que ele... O quê? Não a amava? Era possível que ela pensasse isso?

Tinha de levá-la a acreditar que não se importava com ela, pensou. Tinha de fazer tudo ao alcance das suas forças para que acreditasse que ele era o maior canalha do mundo. O pior dos vilões. Que apenas obtivera o que queria dela e ponto final.

Uma parte dele tinha a certeza de que, independentemente do que dissesse, ela saberia que a amava e lhe perdoaria. Pensara o pior a seu respeito depois daquela noite no seu quarto, mas perdoara-lhe. Quase sorriu ao recordar-se de como ela inicialmente se mostrara tão fria. Porém, demorara pouco a amolecê-la.

O amor era assim, pensou. Num momento distante e, no outro, ardente.

Nunca na sua vida tivera de fazer algo parecido com o que tinha de ser feito naquele momento e sabia que tal era imperdoável. Abriu vagarosamente a porta e esgueirou-se para o interior. Durante o sono, ela empurrara o cobertor, desnudando metade do corpo. Ia tapá-la, mas, em vez disso, sentou-se na beira da cama e deteve-se a olhar a subida e a descida dos seios enquanto ela dormia. Planeara pedir-lhe que se casasse com ele nesse dia. Enquanto ela se aconchegava nos seus braços, pensara na cerimónia e depois iriam juntos para a Virgínia para começar uma vida nova. Imaginara construírem a casa que ela tinha desenhado no navio. Guardava os desenhos como se fossem um tesouro.

Contudo, tudo isso acabara. Não fora suficientemente cauteloso e não levara a sério a raiva de James Harcourt. Tudo lhe tinha parecido tão distante e afastado no tempo que não se colocara no lugar do outro homem. Haviam frustrado os planos cuidadosamente elaborados de um homem que não tinha consciência nem moral. Acharam que ele ia ficar sentado sem reagir.

Angus acariciou o cabelo de Edilean. Sabia que estava a salvo de Harcourt. Ele nada podia fazer contra ela. A jovem já fizera dezoito anos e, segundo o testamento do pai, deixara de estar sob a tutela do tio e o ouro pertencia-lhe. Se casasse – Angus quase se engasgou ante essa ideia –, o marido podia protegê-la de quaisquer reivindicações de Harcourt. Seria fácil provar que ele casara com a filha do conde quando estava supostamente noivo de Edilean.

A única preocupação de Angus concentrava-se na irmã de Harcourt, Harriet. Ela tomaria o lado de Edilean ou do irmão? Contudo, já sabia a resposta. Edilean tinha o dinheiro. Era uma crueldade da vida, mas uma verdade. Pelo que Edilean lhe contara sobre Harriet, tratava-se de uma mulher sensível e desprezava o preguiçoso e manipulador irmão.

Angus agarrou na pequena mão de Edilean, beijou-lhe cada um dos dedos e a palma e encostou a mão dela ao seu rosto.

– Não me odeies demasiado – murmurou, mas sabia que tinha de fazer com que ela o odiasse. Caso contrário, iria atrás dele.

Levantou-se e começou a meter a roupa num saco. Hesitou em relação aos diamantes que ainda se encontravam na mesa junto à cama, se não os levasse, ela pensaria que desprezava o que fizera por ele. Pegou no colar e nas restantes peças – eram demasiado vistosas para que Edilean as usasse –, mas deixou o brinco desirmanado.

Depois de olhar mais uma vez o seu belo rosto, e antes de chegar a um ponto em que não conseguiria partir, saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Sentado do lado de fora, estava o jovem que a trouxera no dia anterior e deu um salto ao avistar Angus.

Olhou-o como se não soubesse se havia de tratá-lo por senhor ou esboçar um sorriso quanto ao que acontecera durante a noite. Atrás dele, os dois cavalos encontravam-se selados e prontos.

– Não sabia se ela ia querer partir esta manhã – disse Cuddy com uma voz de onde desaparecera a raiva do dia anterior. – Posso voltar para Boston, se ela assim o quiser.

– Ela pode fazer o que lhe apetecer – retorquiu Angus deitando um olhar malicioso ao jovem, como se ambos fossem dois homens que conheciam bem o mundo. – Já consegui o que queria dela, se é que me entendes.

Angus viu que as costas do jovem se contraíam e sabia que não tinha errado ao pensar que ele estava um pouco apaixonado por Edilean.

– Toma – disse Angus, atirando-lhe uma moeda. – Leva-a para casa agora. Acorda-a e leva-a de volta para... – Interrompeu-se com um gesto da mão antes de acrescentar: – Para onde vêm as da laia dela. Percebes? Leva-a já!

– Sim... – anuiu Cuddy, fitando Angus como se quisesse matá-lo. – Vou levá-la daqui e cuidarei dela.

– Faz isso – respondeu Angus, atirando o saco para cima do melhor dos dois cavalos.

– Esse é o cavalo de Miss Edilean – gritou Cuddy. – Não pode levá-lo!

Angus fitou o jovem do alto da sela.

– Já lhe tirei muito mais – redarguiu com um esgar inconfundível.

– Se tivesse uma arma, matava-te – murmurou Cuddy entre dentes.

– E poupavas esse trabalho ao diabo? – Angus fez exatamente o que Edilean tinha feito e obrigou o cavalo a recuar para sair do estábulo. – Diz-lhe da minha parte que foi muito agradável.

Cuddy ficou a observar o cavalo e o cavaleiro a saírem do celeiro depois proferiu os palavrões mais ordinários que conhecia. Não queria acordar Miss Edilean, mas, por outro lado, queria tirá-la dali. Seria preferível afastar-se daquele lugar o mais rapidamente possível.

Respirou fundo algumas vezes e depois bateu à porta do quarto.


19

–Não consegues enganar-me – disse Harriet, olhando para Edilean do outro lado da mesa do pequeno-almoço. – Algo te perturbou profundamente.

– Olha quem fala! – retorquiu.

Há três semanas que Edilean regressara da noite que passara com Angus e tudo tinha mudado. O facto de haver sido novamente posta de lado doera-lhe tanto que quase fora incapaz de o sentir. Na primeira vez que Angus a abandonara, despejara a raiva em algum mobiliário e nas roupas, mas agora a sua fúria fora tão profunda que era incapaz de lidar com ela. Assemelhava-se a terem-lhe espetado um carvão em brasa no peito que crescera dia após dia. Tudo o que fora agradável deixara de o ser. Os homens que a visitavam com flores e bombons não recebiam sorrisos. Em vez disso, Edilean fulminava-os com o olhar. Não se mostrava tímida e sedutora nem fazia com que se sentissem os homens mais espertos e inteligentes ao cimo da terra. Em vez disso, corrigia-lhes os erros de gramática e a declamação de poemas e em seguida dizia-lhes que precisavam de terminar os estudos. Os homens saíam da sua casa corados e a murmurar entre dentes que tinham outros compromissos. Não voltavam.

Na primeira vez que Edilean repelira um homem qualificado, esperara que Harriet lhe ralhasse, mas ela não o fez, o que era estranho. Desde que se haviam conhecido que a ocupação principal de Harriet parecera ser arranjar casamento a Edilean, mas desde Angus, desde a noite da luta com Tabitha, era como se Harriet tivesse mudado.

Após a sua noite com Angus, Edilean voltou para casa e achou que faria o mesmo que dantes, enfiando-se no quarto desfeita em lágrimas. Contudo, isso não aconteceu. Nem uma única lágrima derramara depois dessa altura.

Edilean esperara que Harriet a censurasse por causa das feridas e das roupas ensanguentadas, mas não o fizera. Em vez disso, dera ordens para que levassem água quente ao andar de cima para um banho e preparara-lhe roupas limpas. Não a questionou sobre onde estivera e o que tinha feito. Harriet parecia ter outra coisa em mente e sobressaltava-se a cada ruído.

Após a vigésima vez que Harriet se assustou com qualquer barulho habitual, Edilean disse:

– Achas que te vou bater?

– Por que motivo havias de me bater? – inquiriu Harriet.

– Porque foi numa luta que fiquei com todas estas contusões.

Harriet pareceu regressar ao presente para a fitar com curiosidade.

– Ah, sim? E contra quem lutaste?

– Com a Tabitha – respondeu Edilean. – Ela...

– Acho que não a conheço – apressou-se Harriet a comentar, mas distraiu-se novamente. – Aquilo foi uma pancada na porta?

– Não ouvi – reagiu Edilean. – Se for um homem, diz-lhe que pode ir para o inferno.

O próprio uso da expressão não provocou qualquer reação em Harriet. Saiu a correr da sala e Edilean ouviu-a a abrir a porta da frente, mas não estava ninguém lá fora.

Havia semanas que Harriet andava com os nervos à flor da pele, tão diferente da sua habitual postura tranquila.

Aquela manhã foi particularmente triste para Edilean. Não se permitira dizê-lo em voz alta, mas esperava ter engravidado. Era obviamente errado trazer ao mundo uma criança fora do casamento, mas isso não lhe destruíra a esperança. Quando o período lhe aparecera nessa manhã, soube que ela e Angus estavam realmente separados. Para sempre. Ignorava o que fizera de mal, mas estava certa de que ele não a queria e agora nunca teria nada dele.

Brindou Harriet com um olhar frio.

– Se queres saber – disse, espalhando manteiga num pãozinho –, estava a pensar na Tabitha.

– Na Tabitha? – retorquiu Harriet e deu um salto na cadeira quando a criada deixou cair algo na sala.

O facto de Harriet não se recordar das muitas histórias que Edilean lhe tinha contado sobre Tabitha era outro sinal de que a sua mente não se encontrava no presente.

– Quando vais contar-me o que te pôs assim? – inquiriu Edilean.

– Nada. Continua a tua história. O que há com essa Tabitha? Talvez possamos convidá-la para tomar chá.

– Com ou sem os grilhões nas pernas? – redarguiu Edilean, mas Harriet não a ouviu porque a criada deixara cair outra coisa.

– Não consigo aguentar isto! – gritou Harriet, abandonando rapidamente a sala.

– Não é permitido barulho – murmurou Edilean, empurrando o prato para longe.

Às vezes, pensava na diferença entre a pessoa que era nesse momento e a que fora antes de o tio a tirar do colégio. Embora fosse verdade que se vira obrigada a ser simpática para algumas pessoas desinteressantes, a fim de conseguir os melhores convites, sentira que era digna do melhor que a vida tinha para oferecer. Edilean Talbot tivera a certeza absoluta de que nessa altura era melhor e superior a mulheres como Tabitha. E Margaret. Aquela mulher tinha pedido trabalho a Edilean quando chegassem à América, mas ela nem sequer ponderara essa ideia.

Nas últimas semanas, cada vez pensava mais na luta travada com Tabitha. Na altura, Edilean sentira-se justificada. Todavia, nesse momento, interrogava-se sobre o que teria acontecido depois a Tabitha. Lembrava-se perfeitamente da cicatriz que Tabitha lhe tinha mostrado. Nunca na sua vida tivera de lidar com algo semelhante. Sim, o tio tentara levá-la a casar com um homem desprezível e sim...

Edilean sabia que havia uma série de respostas afirmativas a perguntas relativas à sua vida. Contudo, no final, acabara por sair vitoriosa.

Os homens tinham-na realmente magoado, mas acabara com uma bela casa e uma choruda conta bancária. Agora, quando ia ao banco, o presidente vinha recebê-la com uma cortesia exagerada.

«No entanto, o que aconteceu à Tabitha?», interrogou-se. «Depois de ter perdido as joias, o que lhe restou? O que aconteceu à Margaret e às outras mulheres do navio?» Na verdade, o que acontecera à maioria das reclusas enviadas para a América? Tê-las-iam marcado os homens que adquiriram os seus contratos?

– Oh, não! – exclamou Harriet.

Regressara à sala, sentou-se e pegou no jornal, mas Edilean nem dera por isso.

– O que se passa? – perguntou Edilean. – O preço das galinhas voltou a subir?

– Pior – respondeu Harriet. – Mister Sylvester morreu.

– Antes de eu casar com ele? – retorquiu Edilean. – Que pena!

– Antes que o humilhasses a ponto de desejar estar na sepultura – ripostou Harriet. – Mister Sylvester é o homem que planta a maioria do que comes.

– Oh! – exclamou Edilean, desinteressada.

Não fazia ideia de como ia aproveitar o dia. Se pintasse mais um único buquê de flores, achava que ficaria doente.

– A sua pobre mulher. Têm sete filhos e o mais velho apenas dez anos.

– Talvez o facto de fazer tantos filhos fosse a causa da morte – comentou Edilean.

– Estás de pior humor do que o habitual esta manhã. Mas, no fundo, é esse o teu estado normal, não é? Tens a certeza de que não queres falar sobre isso?

– Assim farei quando me contares porque dás um salto ao mínimo ruído que soa na casa.

Harriet fitou-a por um momento do outro lado da mesa e depois regressou à leitura do jornal.

– Interrogo-me sobre o que lhes vai acontecer. Não estou a ver Mistress Sylvester a cuidar da propriedade, tendo tantos filhos a cargo. Além disso, não me parece interessada em cultivar as melhores maçãs.

Edilean não conseguiu esconder o tédio que a invadia com aquela conversa.

– Que diferença faz? Uma maçã é uma maçã.

– Não pensarias dessa forma se me acompanhasses ao mercado.

– Acho que consigo encontrar melhor ocupação.

– Qual? Ficares o dia inteiro dentro de casa a sentires pena de ti própria? Desenhares mais esboços de rosas? Achas que lido mal com os meus problemas, mas tu és pior. És... Oh!

Harriet interrompeu a tirada ao ouvir um grito na rua e depois o que lhe pareceu um choque de carruagens uma contra a outra.

– Queres, por favor, deixar de pular? – gritou Edilean, pondo-se em pé. – Irei contigo ao mercado e examinarei todas as maçãs. Farei o que quiseres, desde que deixes de pular dessa maneira!

Harriet atirou o guardanapo para cima da mesa e levantou-se.

– Deixarei de me sobressaltar quando parares de te isolar sempre que esse renegado te faz algo terrível! Quando vais parar de permitir que um homem que provou que não te deseja domine todos os teus pensamentos e atos? Quando vais crescer e pensar noutra coisa além do teu prazer na vida? Não conseguiste o que desejas da vida. Nenhum de nós o conseguiu! Só que não temos o teu dinheiro nem a tua esmerada educação para podermos sentar-nos e ficar a pintar borboletas enquanto as outras pessoas nos servem.

Com aquele comentário saiu da sala e o ruído dos saltos ecoou enquanto subiu as escadas para o quarto e bateu com a porta.

Edilean permaneceu sentada num silêncio atordoado e a fixar o lugar onde Harriet estivera.

Ao virar-se, deparou com três criadas que a fitavam da ombreira da porta. Apressaram-se a fugir quando as viu, mas detetara-lhes o olhar. Tinham ouvido cada palavra que Harriet lhe gritara e as suas expressões denotavam que estavam de acordo com ela.

«Odeiam-me?», interrogou-se Edilean.

Entregava o governo da casa nas mãos de Harriet e pouco ligava às criadas. A verdade era que nem os nomes delas sabia.

Edilean tinha consciência de que as palavras de Harriet correspondiam à verdade. Desde o dia em que conhecera Angus McTern, ele dominara cada um dos seus pensamentos e atos. No navio, fora o pior. Se tudo corria bem entre ela e Angus, era feliz. Caso contrário, sentia-se infeliz. Felicidade, tristeza, todas as suas emoções eram controladas por um homem que, como tinha dito Harriet, não a desejava. Precisava de se lembrar dessas palavras. Contudo, tinha a certeza de que iria para a sepultura sem as esquecer. O que ficaria gravado na sua lápide?, interrogou-se. AQUI JAZ EDILEAN TALBOT QUE PASSOU A VIDA INFELIZ PORQUE ANGUS MCTERN NÃO A DESEJAVA.

Edilean pensou que era melhor ler sobre o verdadeiro amor do que experimentá-lo. Na vida real, o amor magoava mais do que dava felicidade.

O problema residia no que fazer. Como é que uma pessoa mudava? Em Inglaterra, ninguém questionara o seu valor. Ela era uma jovem rica, bonita e com todos os predicados. Ninguém esperava que fizesse algo mais do que um bom casamento. Porém, o testamento do pai modificara essa noção. Ele concedera-lhe direitos sobre o seu dinheiro e a sua vida.

A questão era que naquele novo país as pessoas pareciam esperar que todos puxassem a sua carroça. Por intermédio da igreja em Boston, tinha conhecido mulheres americanas de famílias ricas que trabalhavam mais do que as criadas. Confecionavam as suas compotas, semeavam as próprias batatas e uma hora depois davam à luz uma criança de quatro quilos e meio. Era o que receara se acabasse na Escócia.

Só de pensar em tudo isso, Edilean sentia vontade de se meter num navio e regressar a Inglaterra. Poderia comprar uma bela casa e... não sabia o que aconteceria depois. Ficar sentada à espera de que os pretendentes a procurassem?

Quando ouviu os passos de Harriet no corredor, Edilean levantou-se e foi ao seu encontro. Harriet tentava furiosamente atar as fitas do chapéu.

– Importas-te que vá contigo? – perguntou Edilean num tom gentil.

– Faz como quiseres, levas sempre a tua avante – respondeu Harriet, pegando num grande cesto de compras e abrindo a porta da frente.

Edilean agarrou no chapéu, mas não precisava de se apressar, pois Harriet parou na ombreira da porta e olhou em volta como se esperasse que alguém saltasse do meio dos arbustos. Edilean não a interrogou sobre quem procurava, pois sabia que ela não lhe contaria.

Harriet pôs-se a descer a rua tão depressa que Edilean teve de correr para a apanhar. Segurava no chapéu com uma das mãos, as fitas voando atrás dela. Quatro homens descobriram-se para a cumprimentar, mas não dispunha de tempo para eles.

Edilean nunca tinha ido a um mercado de rua, mas frequentara muitas das melhores lojas de Boston quando comprava o que precisavam para casa. Na sua perspetiva, a decoração de uma casa era algo que uma «senhora» fazia, porém, à exceção de supervisionar o jardim, a alimentação não era da sua conta. Podia discutir a ementa com a cozinheira, mas as «senhoras» não iam regatear ao mercado de peixe. Ao longo de toda a sua vida, deixara essa tarefa para outras pessoas.

Harriet dobrou uma esquina e Edilean parou, de olhos arregalados, ante o agitado caos na sua frente. Parecia haver uma centena de carroças, todas carregadas de legumes, carne e produtos caseiros que tinham sido levados para a cidade para serem vendidos nesse dia de mercado.

– É maravilhoso! – murmurou.

Harriet virou-se para a olhar sem que a raiva lhe tivesse desaparecido do rosto, mas suavizou-se ao ver a expressão de Edilean.

– Mantém-te perto de mim e não compres nada. Esses comerciantes discutirão contigo até te despojarem.

Edilean assentiu com a cabeça enquanto observava as pessoas e as carroças alinhadas na rua. Ia dar um passo em frente quando Harriet a puxou para trás. Quase pisara um monte de estrume de cavalo.

– O que posso vender a uma senhora tão bonita? – perguntou um homem com a maior parte dos dentes escurecidos.

– Nada! – respondeu Harriet, empurrando Edilean. – Ele é um homem terrível que venderia a própria mãe se achasse que poderia conseguir um bom preço.

– Conheces todos esses vendedores?

– A maioria – respondeu Harriet. – Tem de se aprender em quem se pode confiar.

– E confiavas em Mister Sylvester.

– Totalmente! Oh! Olha! A mulher dele tem ali a carroça. Anda ver o que ela trouxe.

Dirigiram-se a uma grande carroça onde os produtos estavam expostos de uma maneira casual que Edilean não achou muito apelativa, mas Harriet não deu mostras de reparar quando se pôs a examinar os legumes. Edilean deixou-se ficar para trás a observar o sítio. Reinava uma enorme agitação com o que parecia ser centenas de pessoas de um lado para o outro. A maior parte das mulheres carregava grandes cestos como o de Harriet e lutava contra multidões, discutindo com os vendedores a plenos pulmões.

Apesar de todo o movimento, pairava igualmente um ambiente de frustração no local, como se os homens estivessem a divertir-se, mas as mulheres apenas desejassem finalizar a tarefa.

Atrás da carroça estava uma jovem mulher grávida com um bebé escarranchado na anca. Chorava baixinho para um lenço enquanto três mulheres se inclinavam sobre ela com expressões de compaixão.

– É ela a viúva? – perguntou Edilean a Harriet.

– Sim. É muito mais jovem do que era o marido. Parece demasiado nova para ter sete filhos, não achas?

– Muito – concordou Edilean.

– Pobrezinha. Interrogo-me qual será o seu destino.

– Vender a propriedade, ganhar milhares e casar com outro – apressou-se Edilean a responder.

– Pareces muito segura – retorquiu Harriet, agarrando numa ameixa e inspecionando-a.

– É suficientemente boa para a nossa mesa? – retorquiu Edilean num tom divertido.

– Porque não vais por aí e vês o que os outros têm para oferecer? – sugeriu Harriet, impaciente. – Mas limita-te a observar. Não compres.

Quando Edilean aceitou a sugestão e começou a andar em volta, percebeu o que Harriet queria dizer. Várias das carroças exibiam produtos que não pareciam em bom estado. Tinham sido atirados para dentro da carroça e estavam pisados, o que significava que apodreceriam dali a um ou dois dias.

Ao chegar ao fundo da longa fila, avistou uma mulher de costas para ela que lhe pareceu familiar. Quando se virou, Edilean reconheceu Tabitha e sentiu involuntariamente que estava a encontrar uma velha amiga. Edilean conhecia poucas pessoas na América e ali estava uma delas.

Não tinha a certeza se Tabitha a avistara, mas, quando ela se afastou, Edilean seguiu-a. Virou uma esquina e depois parou, pois Tabitha havia desaparecido.

No segundo seguinte, Tabitha saiu de um prédio ao lado e enfrentou Edilean.

– O que quer? – perguntou Tabitha, furiosa. – Não lhe bastou o que me fez da última vez? Voltou para me magoar mais?

Enquanto falava, observou desdenhosamente Edilean e o seu vestido de seda.

– O que lhe aconteceu depois do nosso confronto? – perguntou Edilean, notando que Tabitha estava suja.

No navio, tivera orgulho bastante para manter o cabelo arranjado e as roupas limpas, mas nesse momento parecia ter desistido.

– O que é que lhe interessa?

– Nada – respondeu Edilean, dispondo-se a virar as costas.

– Podia matá-la pelo que me fez! – gritou Tabitha atrás dela.

– O que quer dizer? – retorquiu Edilean, voltando-se na sua direção. – É você a ladra e não eu.

– Como podia saber que o seu amante tinha diamantes? Julguei que era apenas vidro. Estavam dentro do seu bolso como lixo e, quando o rocei, limitei-me a tirá-los. Quem é que anda com diamantes no bolso?

Edilean interrogou-se sobre o mesmo, mas não se pronunciou.

– E eu tirei-lhos e devolvi-lhos. É por isso que está tão furiosa e tão...

Mirou-a de alto a baixo.

– Suja?

Edilean encolheu levemente os ombros.

– Eles... as pessoas do acampamento ficaram com as pulseiras e depois expulsaram-me por causa do que me fez. Disseram que não valia nada por ignorar o que roubara e deixar que uma senhora assim me derrotasse numa luta. Mas você estava a lutar pela vida e eu não.

– É verdade – concordou Edilean num tom frio. – Mas venci-a. – Sabia que logicamente não devia nada àquela mulher, mas não conseguia afastar-se. – Onde está a viver?

O rosto de Tabitha endureceu.

– Onde calha. Onde qualquer homem me aceite para passar a noite.

Um mês antes, Edilean não teria compreendido inteiramente o que Tabitha lhe dizia, mas agora compreendia. Pensar em fazer aquilo com um homem que não se amava! Quase lhe dava a volta ao estômago. E Edilean lembrava-se perfeitamente que Tabitha declarara que não era uma prostituta. Fora marcada a ferros por um homem em vez de dormir com ele. Contudo, dado o que Edilean fizera a Tabitha, ela agora andava pelas ruas.

– Preciso de ir – disse Edilean. – Tenho alguém à minha espera.

– As pessoas esperam sempre por mulheres ricas como você – retorquiu Tabitha com um esgar desdenhoso.

Edilean ficou furiosa e o sangue afluiu-lhe ao rosto.

– Pode achar que se saiu bem, mas fui atraiçoada tantas vezes como você!

– Então, não conseguiu o homem? – sorriu Tabitha. – Pelo menos hoje já ouvi uma boa notícia.

Edilean não conseguiu deixar de cerrar os punhos e sentiu o impulso de dar um soco em Tabitha. Fitavam-se como dois cães prestes a lutar, quando Edilean disse:

– Porque abandonou a propriedade do seu pai?

Por um momento, Tabitha pareceu assustada, mas depois endireitou os ombros.

– Não era meu pai, era meu padrasto e casou com a minha mãe para chegar às filhas. Passados três anos, fugi. Mas o que lhe interessa isso?

– Que tipo de propriedade era? – inquiriu Edilean, dando um passo na sua direção.

– O que quer dizer com isso?

Edilean fitou-a.

– Era uma propriedade com vacas, porcos e milho. Que mais poderia ser?

– E se eu comprar uma propriedade e lhe der emprego?

– Você? Comprar uma propriedade? – retorquiu Tabitha desdenhosamente.

Edilean virou as costas e começou a descer a rua.

– Espere! – chamou Tabitha.

Edilean parou, mas não se voltou.

– Quem mais estaria na propriedade? Não posso fazer tudo sozinha. Há muito trabalho numa propriedade.

Edilean virou-se.

– Não pensei nisso, portanto, desconheço os pormenores, mas um homem morreu há uns dias e acho que a sua propriedade vai ficar à venda.

– E lembrou-se de me pedir para a dirigir?

– Porque não? Ou prefere continuar a roubar ou a fazer coisas ordinárias com homens?

– Eu preferia... – Tabitha ia a fazer um comentário sarcástico, mas pensou melhor.

– Arranjará homens para dirigir o local? Tenho problemas com homens.

– Todas temos – retorquiu Edilean com um suspiro. – Eu era feliz até conhecer o James e depois o meu tio. E o Angus... – Acenou com o braço. – Tudo isso acabou. A Harriet, a mulher com quem vivo, acha-me uma inútil. Na verdade, quase todos os que conheci no último ano têm a mesma opinião. Gostava de lhes provar que estão errados.

– Não se pode dirigir uma propriedade apenas com mulheres.

– Porque não? – ripostou Edilean.

– Porque os homens têm de... têm de erguer coisas pesadas.

– Arranjaremos cavalos pujantes. Andei numa carroça puxada por Clydesdales e eles seriam capazes de arrastar montanhas.

Enquanto falava, o que fora apenas uma ideia passageira adquiria contornos sólidos na sua mente. Porque não podiam as mulheres gerir uma empresa agrícola? Seriam conhecidas por ter a melhor fruta do mercado. Não estaria pisada e saberiam expô-la com beleza. Edilean imaginou peras verdes em cima de seda amarela e regada.

Fitou Tabitha de alto a baixo, recordou-se de como ela parecia quando estava limpa e uma ideia começou a adquirir forma na sua mente.

– Mulheres Unidas – disse.

– O quê?

– Vou fundar uma empresa e é esse o nome que lhe darei.

– Empresa?

– Sim – respondeu Edilean, fitando Tabitha de olhos semicerrados. – Sei que é uma mentirosa e que inventa histórias, mas digo-lhe desde já que se me mentir e, se alguma vez me roubar um alfinete que seja, a expulsarei. Nada de segundas oportunidades. Nenhum pedido ou súplica me levará a perdoar-lhe e ficará entregue a si mesma. Entende?

– Sim – redarguiu Tabitha num tom insolente.

– Falo a sério e quero que também o faça. Temos acordo?

Tabitha pensou nas palavras de Edilean e o esgar trocista desapareceu-lhe do rosto.

– Se me tirar da rua, nunca vou roubá-la ou mentir-lhe. Não direi o mesmo em relação ao que farei a outros, mas ficarei longe de si.

– Roube os homens e acabará na prisão ou enforcada, mas isso é consigo – reagiu Edilean. – Agora venha comigo. Tenho de contar à Harriet.

Dez minutos mais tarde, tinham avançado pelo meio da multidão até junto de Harriet que discutia o preço do feijão com um homem.

– Ele é um ladrão – acusou ao ver Edilean. – E vê isto. Têm bicho.

– Quero lá saber se os leva ou não – disse o homem que se encontrava junto à carroça.

Resmungando entre dentes, Harriet meteu os feijões no cesto juntamente com os restantes produtos que tinha comprado e fitou Edilean.

– Porque tens esse olhar? – perguntou, inclinando-se na sua direção. – E porque te segue essa mulher horrível?

– É a Tabitha...

– Aquela que... – retorquiu Harriet, fitando Tabitha com um ar surpreendido. – Parece uma prostituta.

– E é mesmo, por minha culpa – disse Edilean, agarrando no braço de Harriet e puxando-a para o lado, onde não podiam ouvi-las. – Vou comprar a propriedade de Mister Sylvester.

– Ah, sim? – redarguiu Harriet com um ar divertido. – E o que farás com ela? Plantarás rosas?

– É uma boa ideia. Já estou a imaginar rosas brancas no meio de ameixas vermelhas.

Harriet pôs a mão na testa de Edilean.

– Apanhaste sol a mais.

– Apanhei demasiado de tudo e não o bastante do que quer que seja.

– Quando chegarmos a casa, vou dar-te a beber láudano e podes dormir.

– Tu, o teu irmão e o maldito láudano! – explodiu Edilean.

– O que há com o meu irmão? – retorquiu Harriet secamente.

– Nada, Harriet! Queres deixar de agir como se fosses minha mãe e dar-me ouvidos? Vou comprar uma propriedade e dirigi-la. Tu cuidarás do dinheiro, porque és boa a poupar até ao centavo, e eu vou...

Edilean não sabia o que ia fazer, mas nunca tivera tanta certeza na vida de que ia fazer aquilo.

– Não podes comprar uma propriedade. Não percebes nada de agricultura – ripostou Harriet. – Não podes...

– Esta manhã queixavas-te de que nunca tinha feito nada na vida e agora tudo o que dizes é que não posso fazer o que quero. Não! – ripostou Edilean quando Harriet começou a defender-se. – Ficarás aqui com a Tabitha enquanto vou falar com a viúva de Mister Sylvester.

– Não podes pensar deixar-me aqui com essa... essa mulher?

– Posso, sim – reclamou Edilean enquanto afastava os dedos de Harriet do seu braço. – Estarás perfeitamente a salvo, acredita, pois sei por experiência que ela não luta muito bem.

Harriet fitou-a como se fosse desmaiar.

Edilean virou-se para Tabitha.

– Não faça nada que a assuste ou deixo-a fora disto.

Tabitha assentiu com a cabeça mas fitou Harriet com um brilho perverso nos olhos.

– Anima-te, Harriet! – incitou Edilean. – Depois de lhe dares um banho e roupa lavada, verás que ela é bastante apresentável.

– Eu? – retorquiu Harriet. – Dar-lhe banho? Enlouqueceste?

– Talvez – respondeu Edilean por cima do ombro enquanto se afastava rapidamente na direção da carroça de Sylvester. – Talvez tenha enlouquecido de vez.


SEGUNDA PARTE

A FRONTEIRA AMERICANA
1770
QUATRO ANOS DEPOIS


20

–Harcourt – disse o coronel Wellman. – Quero encontrar o noivo... detesto dizer a palavra... da minha filha. O maldito deixou-se raptar pelos índios.

– Quais? – perguntou Angus.

– Quais, o quê?

– Que tribo de índios?

– Como raio posso saber? Os selvagens são da sua conta, não da minha. Apenas sei que o idiota desapareceu e a minha filha adormece a chorar todas as noites. Diga-me, Harcourt, entende as mulheres?

– Nem um pouco – respondeu Angus sinceramente.

– Ofereci um homem à minha filha, mas ela preferiu um inútil como o Matthew Aldredge. Quando ouvi dizer que a carruagem em que ele seguia fora atacada, senti-me tentado a dizer-lhe que o rapaz tinha morrido. Contudo, ela estava presente quando me deram a notícia e por isso soube a verdade.

Angus não respondeu aos comentários do coronel. Desde cedo aprendera que era preferível nunca dar uma opinião a alguém do exército e muito menos a um homem arrogante e prepotente como o coronel Wellman. Mas, visto que Angus não pertencia ao exército, Wellman sentia-se à vontade para lhe falar livremente, o que resultava no facto de Angus ter de ouvir horas de palestras sobre tudo, desde comida a cuidar de cavalos e à forma como uma pessoa devia organizar a vida.

A única fraqueza de Wellman era a sua bela e jovem filha, Betsy. Na sua opinião, a filha era virtuosa, tímida e necessitava de uma proteção constante. Betsy era, de facto, uma rapariguinha egocêntrica e petulante que usava a posição do pai para ameaçar quem tentasse opor-se-lhe. Fora ter com Angus duas vezes. Na primeira, ele mostrou-se delicado, mas na segunda disse que a levaria ao pai e lhe contaria a verdade. Depois disso, deixou-o em paz.

Os homens que aceitavam as suas ofertas viviam com medo de serem descobertos pelo pai. Nos três anos que Angus passara no forte, Betsy acusara em lágrimas os homens jovens de terem feito avanços inadequados. A verdade era que transformara as vidas deles num inferno. De início, haviam gostado dos desejos insaciáveis da jovem, mas quando ela começava a fazer com que chegassem atrasados aos treinos, quando se esgueirava pela janela do quartel às três da manhã a chorar porque eles já não a amavam, os homens tentavam escapar. Nessa altura, Betsy contava ao pai um monte de mentiras e os jovens eram enviados em missões perigosas. Nenhum deles tinha regressado com vida.

Mas tudo isso acontecera antes da chegada do capitão Austin à fortaleza. Era um homem baixo, robusto, feio e mesquinho, que não acreditava em misericórdia ou clemência. Acabara de chegar de Inglaterra, descendia de gerações de soldados e para ele só havia uma única maneira de fazer as coisas: a sua maneira. Porém, depois de Austin ter apanhado Betsy a esgueirar-se pela fortaleza de madrugada, colocou ponto final na situação. Disse ao pai que a sua filha era tão bonita que receava que um dos americanos lhe tirasse a virgindade. Foram colocadas grades de ferro na janela do seu quarto. Quando Betsy começou a fazer olhinhos a um atraente e jovem soldado que chegara recentemente da Carolina do Norte, Austin encarregou-se da transferência do homem.

A peripécia divertiu tanto os soldados como os vigias, como eram chamados os quatro homens que serviam de guias da fortaleza.

Mas todos ficaram chocados quando o coronel Wellman comunicou a alguém que queria que a filha casasse com o capitão Austin. Quanto a Betsy, dizia a todos que permaneciam no local que preferia casar com o diabo.

Nesse momento, Angus estava a ser posto ao corrente de que a jovem Betsy tinha um noivo inglês. O primeiro pensamento de Angus foi «pobre homem».

– Ele é um inútil! – exclamou o coronel Wellman. – Não tem o mínimo préstimo. É o filho mais novo de um homem rico, mas não herdará nada. Nem um cêntimo. E planeia tornar-se clérigo. Imagina a minha filha casada como um ministro da igreja?

Angus achou melhor não responder à pergunta. Wellman estava como sempre fardado da cabeça aos pés, com casaco vermelho e tudo. Corria o gracejo de que o uniforme era a sua pele. «Como uma tatuagem», dizia-se.

Quanto a Angus, usava o equipamento de um guarda de fronteira. Era todo feito de pele de veado, leve, e protegia-o dos elementos, visto que passava a maior parte do tempo ao ar livre. O seu trabalho como vigia consistia em certificar-se de que as fronteiras eram respeitadas. Os gananciosos colonos americanos não deviam invadir o território que o governo dizia pertencer aos índios e os índios não deviam destruir a propriedade e a vida dos colonos. Além disso, havia alguns raivosos franceses nas proximidades. A guerra entre franceses e índios tinha acabado oito anos antes, mas ainda existiam franceses a defender que a terra a oeste das montanhas Allegheny lhes pertencia.

– Quer que descubra o noivo dela? – perguntou Angus.

– Sim. Não. Ela quer, mas eu não. O que leva uma jovem corajosa como a minha Betsy a desejar um homem efeminado, inútil, cobarde...? – Acenou com a mão. – O capitão Austin disse que ele tinha sido raptado a oeste daqui, por conseguinte encontre o rapaz. Ou melhor ainda, traga o seu corpo de volta. Leve alguns homens e vá à procura do que quer que reste dele. Homens como ele não sobrevivem muito tempo por estas bandas.

– Mac, Connor e Welsch – decidiu Angus rapidamente.

A maioria dos soldados era inglesa, mas Mac provinha da região montanhosa da Escócia enquanto Connor e Welsh tinham nascido na América. Mac – Alexander McDowell –, de trinta e seis anos, era o soldado mais velho. Tinha sido promovido frequentemente por bravura, mas fora despromovido por insolência o mesmo número de vezes. Nesse momento, baixara à categoria de cabo e, pela forma como Austin andava de olho nele, não tardaria a ser soldado raso. T. C. Connor e Naphtali Welsch eram jovens e atraentes. E já se encontravam sob a mira de Betsy, o que significava que, sem ajuda, não iam viver muito tempo.

Ao escutar os nomes, Wellman fitou Angus bruscamente.

– Tem a certeza de que não quer homens mais experientes do que os dois últimos?

– Tenho – respondeu Angus, mas não se adiantou em explicações.

Wellman observou Angus com uma expressão dura, como que a tentar imaginar o que lhe ia na mente, mas em seguida virou as costas. Angus não era soldado e também não era inglês, portanto, Wellman jamais conseguiria entendê-lo.

Angus esperou pacientemente que o homem o dispensasse. Sabia muito bem que o coronel era um fanático da obediência às ordens e Angus dava o seu melhor para não arranjar problemas. Na maior parte das vezes, receber ordens assemelhava-se a um espinho cravado na garganta, mas não queria que ninguém rebuscasse o seu passado e descobrisse mais sobre um Angus McTern que era procurado por rapto e roubo.

– De que está à espera? – inquiriu Wellman, como se Angus se mantivesse perto por ociosidade.

Angus virou as costas antes que o homem detetasse a raiva que lhe subiu ao rosto. Sabia que teria de o aturar e àquele emprego durante mais um ou dois anos e, em seguida, George Mercer, um representante da Ohio Company, voltaria de Inglaterra com uma concessão do rei e Angus seria um dos homens que receberia quatrocentos hectares no novo território. Apenas precisava de manter a boca fechada, obedecer às regras impostas pelos ingleses e ficaria com a vida resolvida. Não era o que verdadeiramente queria – não desejava o que quer que fosse sem Edilean –, mas era o melhor que lhe restava dadas as circunstâncias.

Saiu do gabinete do coronel para o quente sol primaveril e viu que Mac, juntamente com os jovens Connor e Welsch, estavam à sua espera. Angus perscrutou as sombras perto do aquartelamento e detetou um pequeno sorriso no rosto do capitão Austin, antes de ele desaparecer no interior do edifício. O homem soubera da missão que o coronel tinha dado a Angus e sabia igualmente quem Angus escolhera para o acompanhar. «Raios o partam», pensou Angus. Detestava ser conhecido. Se Jackknife Austin sabia tanto a seu respeito, era provável que não ignorasse que se escondia de alguém.

– Mandou chamar-nos? – inquiriu Mac.

Toda a gente se queixava que Mac tinha um sotaque tão carregado que ninguém o entendia, mas aos ouvidos de Angus soava bem. Recordava-lhe as frias montanhas da Escócia e a sua família. Nunca fizera perguntas, mas passava-lhe pela cabeça que também Mac tinha um monte de segredos.

– Conto-vos tudo no caminho até lá – disse Angus a Mac.

Welsch e Connor eram tão novatos como soldados que olharam para Mac à espera de ordens. Ele acenou-lhes com a cabeça para que fossem buscar os cavalos e se preparassem para partir.

Uma hora mais tarde, os quatro enterravam-se na floresta daquilo que era basicamente terreno desconhecido. O caminho fora percorrido por gente durante séculos a fio, mas pouco constava dos mapas. Para Angus e Mac, habituados às montanhas selvagens da Escócia, tratava-se de um ambiente magnífico, mas Connor e Welsch olhavam em volta apreensivos.

– O que tramou Wellman agora? – perguntou Mac, deitando um olhar aos jovens homens que os seguiam.

Os dois tinham o ar de quem esperava que uma tribo guerreira de índios os atacasse a qualquer momento ou talvez um urso pardo. Todos tinham ouvido os caçadores que iam ao forte vender as suas peles contar histórias excitantes sobre os seus encontros com animais selvagens e gente ainda mais selvagem.

Angus abandonou o sotaque inglês que usava quando os soldados estavam por perto e adotou facilmente o seu escocês nativo.

– Betsy.

– O que é agora? – resmungou Mac. – Engravidou de alguém?

– Se pudesse, era o que faria – riu Angus. – Não. Parece que está noiva de um pastor da igreja.

– Talvez os santos nos salvem! – comentou Mac. – Ela casada com um homem da igreja! O Senhor vai mandar-nos um raio!

– Preocupa-me mais que o Austin use a navalha contra ele.

A alcunha de «Navalha» dada a Austin antecedera-o, visto que vários dos soldados haviam servido sob as suas ordens na guerra entre franceses e índios ou na Guerra dos Sete Anos, como os ingleses lhe chamavam. Os soldados tinham visto o que Austin podia fazer com uma navalha aos corpos dos prisioneiros.

– Não invejo o homem que esteja noivo de alguém que Jackknife queira.

– Nem eu – concordou Angus e falou a Mac do rapto do noivo dela. – Se ele ainda estiver vivo, quero avisá-lo do que o espera.

– Do Austin ou da Betsy?

– Dos dois – respondeu Angus. – Mas, se ele estiver apaixonado por ela, o que quer que lhe diga não terá importância.

– Falas por experiência, não? – perguntou Mac num tom de mofa.

Todavia, ao ver que Angus se mantinha em silêncio, fitou-o e viu que o rosto dele se ensombrara. Todos sabiam que Angus Harcourt não conversava com os outros homens, não lhes falava do seu passado, nem sequer sobre onde crescera. Mac sabia que Harcourt não era o seu verdadeiro nome, mas nenhuma insinuação levara Angus a revelar algo de privado sobre si mesmo.

Angus esboçou um aceno de cabeça aos homens que os seguiam.

– O Austin sabia que eu escolheria aqueles dois porque a Betsy andava de olho neles.

– E eles nela.

Mac virou-se na sela para contemplar os dois homens. T. C. Connor era alto, de ombros largos, e atraente. Era calado, atento a tudo o que se passava à sua volta e reservado.

Naphtali Welsch não era tão bonito, mas o cabelo ruivo e os olhos azuis e brilhantes levavam a que todos desejassem a sua companhia. Ria e cantava músicas ruidosas e fazia com que os homens rissem, independentemente do que Austin lhes fizera. Um dia, os colegas estavam a tratar dos pés cheios de bolhas depois de Austin os ter obrigado a uma marcha de quarenta quilómetros. Praguejavam contra a má alimentação, o calor, falavam em desertar, mas «Naps», como lhe chamavam, deu início a um jogo de quem inventaria o pior castigo para Austin. Por fim, tinha sido T. C. a ganhar quando inventara uma história elaborada sobre uma planta que apenas existia nos lugares mais longínquos do novo país. Quando acabou o fio à meada, os pés feridos haviam sido esquecidos e o humor geral melhorado.

Depois disso, os recém-chegados tinham-se tornado bastante populares, Naps pelo seu sentido de humor e T. C. pelas suas histórias – quando era persuadido a contar uma delas. Eram raras e envolviam sempre plantas de uma tal magnificência que deixavam os homens sem palavras.

– E ele sabia que me escolherias – comentou Mac. – Agora, interrogo-me porquê – acrescentou num tom jocoso.

– Talvez porque te odeia?

– Sim, é verdade – concordou Mac, divertido. – Sei mais sobre o exército do que ele e sou mais respeitado pelos homens.

– E és melhor a atirar uma navalha – acrescentou Angus. – Ele não gosta de ninguém que o supere em nada.

– Incluindo aquele pequeno namorico que ele resolveu que quer.

– Ela é mais do que um namorico – retorquiu Angus.

– Interrogo-me como ela ainda não engravidou – disse Mac, abanando a cabeça.

– Se fosse o caso, o pai matava o homem.

– Obrigava-o a casar com ela, e depois matava-o – redarguiu Mac.

– Algum de vocês sabe para onde vamos? – inquiriu Naps atrás deles.

– Miúdos! – murmurou Mac, acrescentando por cima do ombro: – Dizemos quando lá chegarmos. Até lá, mantenham-se calados!

– Percebeste o que ele disse? – perguntou Naps a T. C.

– O meu palpite é que te mandou estares calado e descobrires onde supostamente morrerás.

– És um pessimista.

– Gostaria de vir aqui sozinho e cortar alguns pés dessas plantas.

– Por favor! Esquece as plantas! – lamuriou Naps. – Tem-las por todo o lado. O que tencionas fazer com elas?

– Não sei – respondeu T. C. com um encolher de ombros. – Talvez abrir um museu. Gostava de aprender a pintar para as poder passar ao papel. Os espécimes secos perdem muito quando as cores desaparecem.

– Não queres algo sem ser plantas na tua cama? Algo quente e exuberante como aquela jovenzinha Betsy Wellman?

– Acho que Miss Wellman faz parte do motivo por que tu e eu fomos enviados nesta missão, seja ela qual for.

– Betsy? Mas o que tem ela a ver com isso? Temos andado a falar de casamento, sabes? Seria bom casar com a filha de um coronel.

T. C. afastou uns arbustos do sítio por onde passavam.

– Achas que o coronel ia permitir que a filha casasse com o filho de um fazendeiro do norte de Inglaterra?

– Tens ciúmes?

– Visto que Miss Wellman também me falou de casamento, não posso ter assim muitos ciúmes, não achas?

– A ti! – exclamou Naps ao mesmo tempo que se operava uma mudança na sua expressão normalmente alegre. – Olha lá! A Betsy Wellman é minha namorada, não tua! E se tu...

– Calem-se os dois – ordenou Mac por entre dentes. – Betsy Wellman fala de casamento a todos os jovens soldados bem-parecidos. A única coisa com que ela quer casar é com o que têm entre as calças.

Quando Mac virou novamente as costas, Naps sussurrou:

– O que disse ele?

– Que estava um belo dia e adorava ouvir-nos a discutir.

Naps piscou algumas vezes os olhos na direção de T. C. e depois riu.

– Tens razão. És um tanto intelectual a mais para uma rapariga como a Betsy, mas serves. Tens namorada em casa?

– Tinha, mas já não tenho – respondeu T. C. num tom determinado de que não ia adiantar-se mais sobre o assunto.

– Céus! Eles estão a discutir por causa daquela prostituta! – observou Mac para Angus. – Acho que, quando pararmos para passar a noite, lhes devias contar a verdade.

– Eu? – retorquiu Angus. – O que te leva a pensar que sou qualificado para falar a alguém sobre mulheres?

– Está bem. Digo-te o que deves dizer-lhes e assim farás. Eles conseguem perceber-te.

– Assim faz mais sentido – concordou Angus com um leve sorriso.

Durante algum tempo cavalgaram em silêncio e Angus pensou no que sabia sobre Austin e em como ele tivera os homens à sua espera. Austin sabia que Angus levaria para longe os homens que Betsy Wellman andava a perseguir, o que os colocaria fora do seu alcance durante alguns dias.

– Portanto, temos de encontrar esse pregador com quem Betty Wellman quer casar e levá-lo de volta para junto dela? Austin não gostará disso! – disse Mac.

Mal ouviu as palavras, Angus percebeu o que Austin estava a fazer.

– Seguimos pelo caminho errado! – exclamou, dando meia volta com o cavalo. – Temos de nos dirigir à carroça dos pagamentos.

Mac obedeceu a Angus, mas sem entender o que se passava.

– A carroça dos pagamentos? Julgava que tinham sido os índios a raptar o jovem.

– Isso é o que Wellman pensa. Mas como é que o rapaz se deslocou de leste para oeste? Porque não nos chegou aos ouvidos?

– Talvez uma das plantas de Connor o tivesse levado – gritou Mac enquanto Angus cavalgava na frente deles, mas sem ouvir.

Cavalgava a toda a velocidade na direção de um trilho que conhecia e os conduziria ao extremo oposto do forte. Uma vez por mês chegava a carroça dos pagamentos fortemente vigiada e estavam em cima da hora. Se o noivo de Betsy era esperado, fazia todo o sentido que viesse com o dinheiro. Se fora raptado, tinha sido dessa carroça. Angus não estava certo, mas parecia-lhe que havia sido enviado numa caça aos gambuzinos e tornava-se fácil adivinhar por quem e qual o motivo.

Conduziu os homens duramente. Em alguns sítios, o trilho era tão estreito que os cavalos mal conseguiam avançar, mas Angus não abrandou. Ignorava o que Austin planeara, mas tinha a certeza de que ele não permitiria que mais alguém casasse com a mulher que desejava.

Angus olhava de vez em quando para trás e via que Mac o seguia facilmente, mas os dois jovens soldados mal se aguentavam. Não estavam habituados a montar e muito menos a cavalgar por trilhos que eram na sua maioria usados por animais.

Uma hora depois do pôr do Sol sentiu pena dos rapazes e fez uma paragem. Mac abanou a cabeça desdenhosamente quando eles quase caíram das selas, doridos, empenados e cansados. Resmungando entre dentes que os jovens eram fracos, Mac apanhou lenha enquanto Angus se esgueirou pelos arbustos e voltou com três coelhos que Mac pôs a assar em espetos sobre a fogueira.

– Nunca mais conseguirei andar – queixou-se Naps. O cabelo ruivo brilhava à luz do fogo.

– Ótimo! – disse Angus num sotaque que eles conseguiam perceber. – Talvez isso te mantenha longe de Betsy Wellman.

– Mais um com ciúmes! – comentou Naps com um esgar ao mesmo tempo que tentava sentar-se.

Angus fitou T. C. que se mantinha calado mas com uma expressão demonstrativa do quanto estava dorido.

– E tu? Achas que a Betsy é o amor da tua vida?

– Gosto de uma mulher que saiba ler – respondeu T. C., estendendo as mãos para a fogueira.

– Nem todos podem frequentar uma sala de aula – retorquiu Angus com o seu sotaque mais denso e os dentes cerrados.

– O que ele quer dizer – traduziu Mac devagar para que os jovens pudessem entendê-lo – é que se querem manter-se vivos, têm de ficar longe da filha do coronel.

– Mas... – começou Naps.

– O Austin dará cabo de vocês – profetizou Mac.

– Como na Bíblia – retorquiu T. C.

Todos o olharam, como se esperassem que ele contasse uma das suas histórias, mas T. C. limitou-se a encolher os ombros e a acrescentar:

– O rei David desejava Bate-Seba e portanto mandou o marido dela para a frente de batalha, onde o mataram.

Quando ele se calou, os outros ficaram desapontados e Angus fitou intensamente o jovem. Tinham-lhe contado que o motivo por que Thomas Canon «T. C.» Connor se alistara no exército fora porque se apaixonara por uma jovem de Williamsburg, mas o pai casara-a com um velho rico. Desde essa altura, T. C. vagueara pelo novo país, colhendo variedades de plantas por onde passava. Angus ignorava se a história era verdadeira ou mera coscuvilhice e T. C. não respondia a perguntas sobre o seu passado.

– Acho que precisamos de descansar um pouco – resolveu Angus. – Eu faço o primeiro turno de vigilância e depois és tu – disse com um aceno de cabeça para T. C. – Depois o Naps e o Mac fica com o último turno. Partimos de madrugada.

– Podemos saber para onde vamos? – perguntou Naps.

Angus hesitou, mas depois cedeu.

– Acho que o Austin tomou medidas para que o noivo de Miss Wellman fosse morto.

Naps apenas pareceu ter ouvido a palavra «noivo.»

– Ela está comprometida com alguém?

Angus abanou a cabeça na direção do jovem e olhou para Mac como que a dizer que ele jamais aprenderia.

– Vão deitar-se. Acordo-vos quando chegar a vez do vosso turno. – Fitou Naps duramente. – E deixem-me dizer que a vossa vida não valerá muito se adormecerem quando estiverem de vigia.

Naps perscrutou a escuridão e estremeceu.

– Não precisa de se preocupar comigo. Este lugar assusta-me tanto que não conseguirei adormecer.

Dez minutos depois ressonava tão alto que Mac lhe deu um pontapé.

Na manhã seguinte, antes que o Sol se erguesse, os quatro homens estavam a caminho e Angus impôs-lhes um ritmo duro.

– Esse homem consegue cuidar de si mesmo? – perguntou Mac quando pararam para dar descanso aos cavalos.

– Não – respondeu Angus. – Wellman chamou-lhe «efeminado.»

– O que significa isso? – inquiriu Naps.

– Como uma menina – explicou T. C.

– Então, a Betsy não terá qualquer dificuldade em escolher o homem certo – retorquiu Naps, voltando a posicionar a questão à volta dela.

Angus ia fazer um comentário sobre a jovem, mas calou-se.

– Vamos. Sei onde é mais provável que a carroça dos pagamentos esteja emboscada.

Minutos depois retomaram caminho e, quando Angus avistou fumo, esporeou o seu cansado cavalo.

– Talvez tenhamos chegado tarde de mais – disse por cima do ombro.

Ao chegarem ao cimo de uma colina, Angus ergueu a mão para que parassem, deslizou do cavalo e agachou-se por entre as árvores. Mac indicou por gestos aos jovens soldados que deviam desmontar e manter-se em silêncio. Mac foi agachar-se junto de Angus.

Por baixo deles encontrava-se o que restava da carroça. Fora incendiada e perto dela jaziam os corpos de dois soldados.

– Onde estão os outros guardas? – sussurrou Mac.

– Não sei, mas suponho que o Austin ordenou que a carroça tivesse apenas dois guardas.

– Um convite aos ladrões – retorquiu Mac.

– Ladrões e assassínio.

– Achas que o corpo do pregador está do outro lado?

– Não o vejo – disse Angus –, mas tenho a certeza de que está próximo e apostaria que lhe tiraram o escalpe. O Austin havia de querer que as pessoas acreditassem que foi obra dos índios.

Mac não demonstrou o choque provocado pelas palavras de Angus.

– Uma coisa dessas provocaria uma guerra. O dinheiro pertence ao governo. Achas que o Austin correria esse risco apenas por uma jovem vulgar como a Betsy?

– Acho que ele gosta de ganhar em tudo e usará todos os métodos que puder – retorquiu Angus. – Vou levar o Welsch e seguir naquela direção. Leva o Connor e aparece do sul. Tem cuidado e faz o mínimo de ruído possível. Provavelmente, os assassinos levaram o dinheiro e fugiram, mas ainda podem estar por perto. Não corras riscos.

Mac assentiu com a cabeça e depois foi dar indicações aos homens que se encontravam atrás deles a esfregar as pernas doridas.

Angus desceu a colina em silêncio, ocultando o corpo no meio dos arbustos que cresciam pelo caminho. Por duas vezes, Welsch escorregou no cascalho solto e Angus franziu-lhe o sobrolho.

Quando chegaram ao fundo da colina, Angus fez um sinal de cabeça a Welsch para parar e ficar à espera e ele pareceu aliviado. Angus deu furtivamente a volta à carroça incendiada e lançou uma rápida vista de olhos aos dois homens estendidos no chão para ver se estavam mortos. Teve um palpite de que deveriam estar ali pelo menos há dia e meio e esperava estar enganado em relação ao jovem. Talvez os ladrões tivessem levado o dinheiro, assassinado os guardas e raptado o rapaz. Se assim fosse, encontravam-se no sítio errado. Nessa altura, o rapaz – caso ainda estivesse vivo – estaria a muitos quilómetros a oeste, como Wellman dissera.

Angus escondeu-se por trás de umas árvores e olhou em volta. Se os homens estavam mortos há mais de um dia, a carroça só fora incendiada recentemente, o que significava que alguém estivera ali depois dos assassínios.

Quando não viu nem ouviu ninguém, Angus saiu do esconderijo e começou a andar à volta da carroça. Havia leves pegadas na direção do sul, onde ele sabia existir um rio.

Calmamente, sem fazer barulho, Angus regressou para junto de Welsch, que estava sentado debaixo das árvores, à espera.

– Não se vê ninguém, mas não confio neste lugar – disse em voz baixa. – Chama os outros e encontramo-nos ali. Estás a ver aquele grande carvalho?

– Não distingo um carvalho de uma margarida – confessou Welsch.

– Pergunta ao Connor. Vai até lá e esperem por mim, sem serem vistos.

– Com todo o gosto – disse Welsch, erguendo-se nas pernas doridas.

Decorreu meia hora antes que Angus se encontrasse com os outros homens à sombra do carvalho.

– Vês alguma coisa? – perguntou Mac, estendendo-lhe um biscoito.

– Alguém fugiu. Quatro homens atacaram a carroça e eram todos brancos. Os índios têm um andar mais leve. Há um sítio com sangue onde um homem ferido ficou algum tempo e é possível que o dessem como morto.

– Talvez se tivesse arrastado até aos arbustos.

– É o que me parece. Estão prontos para ir até lá? – perguntou Angus a Welsch e a Connor.

Ambos assentiram com a cabeça e minutos depois os quatro tinham voltado a montar, com Angus na frente. Ele inclinava-se sobre a sela e os outros homens não percebiam porque não ia sentado. Olhava para o chão, seguindo o rasto que o homem ferido havia deixado atrás de si.

– Ele dirige-se ao rio – informou Angus enquanto levava o dedo aos lábios para que se mantivessem calados. Desmontou, agarrou nas rédeas do cavalo e começou a percorrer a pé o caminho rochoso. À distância, ouviam a água a correr.

No minuto seguinte, Angus saiu do meio dos arbustos e o que viu surpreendeu-o de tal forma que se limitou a ficar de pé, a observar. Curiosos, os outros três juntaram-se-lhe.

Sentado numa grande pedra junto a um riacho estava um jovem alto e louro. Tinha o rosto e os ombros cobertos de sangue e parecia tentar suturar o couro cabeludo.

Angus amarrou o cavalo a um arbusto e dirigiu-se ao homem.

– Precisa de ajuda?

– Não. Estou bem – respondeu ele, olhando para os outros homens que se encontravam mesmo atrás de Angus. – Queria seguir caminho e tentar chegar ao forte, mas a minha cabeça não parava de sangrar e o sangue corria-me com tal força sobre os olhos que me impedia de ver.

A cada ponto que o jovem dava, os outros esboçavam um trejeito. Tinha dedos compridos que se moviam facilmente enquanto juntava as bordas do escalpe e suturava.

– Já fez isso muitas vezes, rapaz? – perguntou Mac.

– A mim próprio, não – respondeu ele com um esboço de sorriso, mas tinha o rosto tão ensanguentado que parecia mais horrível do que simpático.

– Então, o que aconteceu? – inquiriu Angus, sentando-se na frente do jovem. – E quem é você?

– Matthew Aldredge – respondeu ao mesmo tempo que estendia a mão num cumprimento, mas ela estava coberta de sangue. – Desculpe. Limpo-a quando tiver acabado.

– Poderia... – começou Angus.

– Não! – recusou Matthew. – A sério. Prefiro ser eu a fazê-lo. Viu a carroça?

– Sim – respondeu T. C. – E os cadáveres.

– Pobres homens – lamentou Matthew. – Foram mortos imediatamente.

– Quem o fez? – inquiriu Angus.

Matthew deu alguns pontos na cabeça e em seguida baixou as mãos para descansar. A agulha e o fio balançaram junto ao olho direito, tornando-o ainda mais grotesco.

– Acho que queriam que se pensasse que se tratava de índios, mas além de se porem a falar francês, os homens estavam disfarçados. Suponho que a carroça em que seguia costuma transportar ouro?

– E não transportava? – inquiriu Angus.

– Nenhum que os assassinos conseguissem encontrar – respondeu Matthew enquanto se levantava e dirigia ao rio, inclinando-se e lavando as mãos na água. – Ficaram furiosos e mataram-nos a todos.

Naquele ponto da narração, T. C. e Naps fitaram-no de olhos arregalados.

– Quer dizer que o alvejaram na cabeça e julgaram que estava morto – concluiu Angus.

– Isso mesmo. Não sei quanto tempo permaneci ali com a cabeça aberta, mas foi mais de um dia. A única coisa que me serve de explicação para não ter sangrado até morrer é que o meu sangue parece coagular rapidamente.

– Atiraram contra os três e depois incendiaram a carroça? – perguntou Mac.

– Na verdade, fui eu que a incendiei. Imaginei que uma equipa de resgate andava à minha procura e decidi emitir um sinal.

– Arriscou muito – retorquiu Angus.

Matthew sentou-se e pôs-se novamente a suturar a cabeça.

– É mais fácil fazer isto numa vaca do que em mim.

Os quatro homens esboçaram um esgar. O homem estava realmente com um aspeto horrível. Como podia uma pessoa perder tanto sangue e continuar viva?

– É médico? – quis saber Naps.

– Não, apenas um agricultor.

– E está aqui para casar com a Betsy – prosseguiu Naps com um tom de irritação na voz.

– Na verdade, vim aqui para lhe dizer que não me casarei com ela. Pareceu-me muito mais simpático do que escrever-lhe uma carta.

– Mas ela está à espera de casar – retorquiu Naps dando a sensação de se dispor a lutar pela honra de Betsy.

– Eu sei – disse Matthew. – Foi tudo muito estranho. Quando estava com ela, não conseguia pensar em mais ninguém, mas depois de se ter ido embora, mal me recordava dela. Trocámos correspondência e... bom, quando se leem cartas escritas por alguém e não nos deixamos distrair por um rosto bonito, vemos coisas que não tínhamos visto antes.

– Tal como ela ser estúpida como um poste? – inquiriu Mac.

– Exato! – concordou Matthew.

– O que disse ele? – sussurrou Naps a T. C.

– Que não está à altura de uma rapariga como a Betsy – apressou-se T. C. a responder.

– De qualquer maneira – prosseguiu Matthew –, quando acordei o Sol havia descido no horizonte e soube que tinham passado horas desde que foramos atacados. Tinha visto que um dos cavalos fugira e esperava encontrá-lo, mas receio ter desmaiado. Isso foi ontem. Hoje, consegui deitar fogo à carroça e em seguida vim até ao rio.

– Não sabe para onde foram os homens que o atacaram, pois não? – perguntou Angus.

– O meu francês não é muito bom, mas a frase «três belas filhas» significa algo para vocês?

– McNalty – disseram Angus e Mac em uníssono.

– Sabe montar a cavalo? – perguntou Angus, olhando para Matthew.

– Claro – respondeu Matthew. – Se me der uns minutos, limpo todo este sangue.

– Não temos tempo – redarguiu Angus.

– Além do mais, agrada-me – observou Mac sorrindo a Matthew. – Aposto que por baixo dessa pasta, você é um rapaz bonito.

Matthew correspondeu ao sorriso, mostrando os dentes manchados de sangue.

– Feio que nem um bode.

Mac subiu para a montada e fitou os outros homens.

– Na verdade, diria que, à exceção de mim, os homens mais bonitos da fortaleza se encontram aqui.

Angus fez uma pausa com o pé no estribo e depois olhou para Mac.

– E tu és o homem que o Austin mais odeia.

– Quem é o Austin? – inquiriu Matt enquanto subia para o cavalo atrás de T. C.

– Pense no pior homem que já conheceu – elucidou T. C. – Triplique e mesmo assim não se aproximou do Austin.

Angus não sabia muito bem o que se passava, mas imaginava que não era nada bom. E a cada segundo aumentava a sua certeza de que Austin se encontrava por detrás de tudo. O facto de ele, Angus, haver sido encarregado de descobrir o noivo fazia aparentemente parte da trama.

Caso Angus estivesse sozinho, seguiria para leste e regressaria à civilização – que se lixasse o exército –, mas tinha a companhia de três soldados e de um homem que parecia mais morto do que vivo, portanto, cabia-lhe ir em frente. Achava que talvez aquilo sobre as «três belas filhas» fizesse parte da armadilha, mas não tinha a certeza. Detestava ter de abandonar sem sepultura os dois soldados mortos que se haviam inadvertidamente tornado parte da traição de Austin, mas precisavam de chegar à cabana dos McNalty o mais rapidamente possível.

– Onde diabo nos leva? – perguntou Mac enquanto tentava acompanhar a passada de Angus.

– Por um atalho – respondeu Angus por cima do ombro e olhando para os homens que o seguiam.

Ficou surpreendido mas agradado ao ver que Connor e Aldredge haviam trocado de lugares e o jovem com o rosto ensanguentado segurava nesse momento as rédeas enquanto Connor se aguentava como podia. Angus percebeu logo que Matthew Aldredge percebia muito de cavalos.

– Com que então efeminado? – perguntou Angus a Mac enquanto esboçava um aceno de cabeça na direção do jovem que conduzia o cavalo sobre um rio cheio de rochas escorregadias e cobertas de musgo. O pobre Welsch estava morto de medo.

– Trocarei de lugar com eles – disse Mac, lendo o pensamento de Angus. – Vai à frente e apanhamos-te.

– Deixarei um rasto – prometeu Angus, que desapareceu logo de seguida.

Mac mandou Connor e Welsch trocarem de lugar para que Naps pudesse descansar. Depois de montar, Naps rodeou a cintura de Aldredge com os braços, encostou a cabeça às costas dele e disse:

– Só ficas atrás da Betsy. – Todos riram.

Mac conduziu-os rápida e bruscamente enquanto tentava apanhar Angus. Sabia onde ficava a cabana dos McNalty, mas também sabia que Angus conhecia muito melhor o terreno do que ele.

Tentou seguir o rasto deixado por Angus, mas tinha dificuldade em avistar os ramos quebrados. Os arbustos pareciam-lhe todos iguais, mas não para T. C.

– Ali! – indicou T. C. – Naquele kalmia.

Mac deitou-lhe um olhar capaz de o fulminar.

– Esse arbusto à direita – disse T. C. humildemente.

Mac fez-lhe um sinal de cabeça para que avançasse e T. C., sozinho num cavalo que mal conseguia montar, tornou-se o líder. Conseguia perceber facilmente o que havia de errado com uma planta e onde Angus deixara o rasto. E até se surpreendeu a si próprio ao ajustar-se tão rapidamente ao seu novo posto de autoridade. Quando Naps, que continuava agarrado a Matt, estendeu a mão para tocar numa planta, T. C. ordenou-lhe que parasse.

– É venenosa! – exclamou. – Não toques em nada sem que te diga.

Naps ficou surpreendido, pois parecia que de um momento para o outro T. C. passara de seu igual a seu comandante.

Ao pôr do Sol tinham percorrido mais de vinte quilómetros e Mac sabia que estavam perto da cabana dos McNalty, mas não iria a lado nenhum sem Angus. Além disso, havia um rio tumultuoso nas proximidades e não queria atravessá-lo no escuro.

– Vamos acampar aqui e esperar.

– Então e a família McNalty? – perguntou T. C.

Porém, Mac estava farto de que o jovem tivesse feito de líder e bastou um olhar para que T. C. retirasse silenciosamente a sela do cavalo e ajudasse a montar o acampamento.

Tinham acabado de descarregar os cavalos quando Angus surgiu da escuridão.

– O que viste? – inquiriu Mac.

Angus concentrava-se em Matt. O jovem tinha o rosto coberto de sangue que se transformara numa mancha escura e estava com um aspeto terrível.

– Tens sabão?

– Claro – respondeu Mac com um meio sorriso para vincar o sarcasmo. – Como o desejas? Com perfume de rosa?

Angus olhou para T. C.

– Consegues encontrar algo com que ele possa limpar-se?

T. C. não conseguiu dissimular o orgulho ante aquele pedido de ajuda. Abandonou silenciosamente o acampamento e desapareceu no escuro.

Angus sentou-se ao lado de Mac.

– Fui até à cabana deles. Não entrei nem lhes dei a perceber a minha presença, observei. Não vi ninguém, mas descobri um monte de pegadas à volta do lugar. Passa-se algo de errado, ignoro, porém, do que se trata. – Baixou a voz e esboçou um aceno de cabeça na direção de Matt. – Para ser sincero, tenho medo de o entregar no forte. Ele bem pode dizer à filha de Wellman que não a quer, mas desconfio que, seja como for, o Austin desejará fazer mal ao jovem.

Mac preparava-se para atear uma fogueira, mas arrependeu-se.

– Acho que devíamos ter uma noite de acampamento frio. E amanhã...

– Vou levar o Aldredge de volta ao leste. Não me parece que esteja em segurança aqui. Leva os soldados para o forte.

– E deixo-os sob a alçada do Austin?

– Fá-los compreender que, se querem viver, terão de ficar longe da Betsy Wellman.

– E como? – perguntou Mac, meio a brincar.

– É contigo. Eu vou dormir ali – disse Angus, olhando para uma colina acima deles. – Desejava que tudo isto tivesse acabado. Preferia...

– Eu sei – retorquiu Mac. – Combater os Campbell.

Sorrindo, Angus levantou-se e desapareceu no escuro.

Uns minutos depois, T. C. regressou com grandes folhas cobertas de uma argila quase branca e ainda húmida do sítio onde a escavara junto a um rio. Tinha os bolsos cheios de longas folhas verdes.

– Espalha este barro na cara e, quando secar, desceremos até ao rio para a lavar.

– Essas plantas são venenosas? – perguntou Naps com uma certa inveja por T. C. não ser tão inútil como ele achava.

– Vão ajudar a curar as tuas feridas – disse T. C. a Matt, estendendo-lhe o barro.

Apenas podiam contar com o luar, mas o barro quase brilhava e T. C. certificou-se de que Matt cobria toda a sua pele ensanguentada. Quando ele finalizou a tarefa, T. C. conduziu-o pela encosta até ao rio para o ajudar a lavar-se. Ao ficar limpo, T. C. torceu as folhas de consolda e aplicou-as suavemente no profundo corte da cabeça de Matt. Regressaram juntos à colina, onde Mac e Naps os aguardavam. Depois de organizar os turnos, Mac acomodou-se para dormir.

Cerca de uma hora antes do amanhecer, Angus acordou-o, levando os dedos aos lábios para que se mantivesse calado. T. C. estava de pé, com uma espingarda ao ombro. Angus indicou por gestos a Mac que arrumasse tudo e saísse dali e depois acordou os outros dois homens. Matt despertou facilmente, mas Angus teve de tapar a boca de Naps para o silenciar. Minutos depois, tinham os cavalos selados e estavam prontos a deixar o acampamento.

No momento em que Angus colocou o pé no estribo, soou o primeiro tiro, a que se seguiu uma saraivada que ecoou pelos bosques.

Antes que os disparos parassem, Naps tinha caído. Angus agarrou o jovem sem que ele embatesse no chão, mas não conseguiu impedir que o cavalo fugisse.

Os tiros começaram a surgir à velocidade da luz. Angus colocou Naps em segurança atrás de umas árvores enquanto Mac tentava apanhar os cavalos. O de Angus foi o único a permanecer firme no meio dos silvos das balas.

– Para baixo! – gritou Angus a T. C. e a Matt. – Deitem-se no chão e fiquem quietos.

O único pensamento de Angus era que tinha de manter em segurança os homens ao seu cuidado. Baixou os olhos para Naps. O sangue escorria-lhe do ombro e tinha os olhos fechados, mas Angus achava que a lesão não era fatal.

– Não mexas um músculo – ordenou ao jovem.

Naps manteve os olhos fechados, limitando-se a esboçar um trejeito de dor e a assentir com a cabeça.

Agachado e correndo ao mesmo tempo, Angus cobriu a distância até Mac, que se mantinha atrás de uma árvore, com a espingarda pronta a disparar.

– Vês alguém? – perguntou Angus, acima do tiroteio.

– Ninguém, mas os tiros vêm de três lados.

Angus ficou satisfeito por Mac ter mantido a calma suficiente e não correr para o fogo aberto. Três dos cavalos haviam fugido e isso significava que tinham poucas munições. Se a batalha se prolongasse, precisariam de tudo o que possuíam.

– Muito bem! – elogiou Angus, pousando a mão no ombro de Mac. – Conheço este sítio, portanto, dá-me um minuto com os rapazes e vamos sair daqui.

Mac não respondeu, porém, ergueu a arma, apontou cuidadosamente e disparou. À distância, ouviu-se um grito. Mac atingira um deles, mas isso só contribuíra para que as balas adquirissem mais velocidade.

Sempre agachado, Angus regressou até junto dos arbustos onde T. C. e Matt continuavam escondidos atrás de uma rocha.

– Estão bem?

– Ótimos – respondeu T. C. enquanto disparava.

– Sem novas lesões – disse Matt, recarregando a arma.

Com o acréscimo de luz, Angus conseguiu finalmente avistar a cara limpa de Matthew Aldredge. Era, na verdade, um jovem atraente, com olhos azuis e um queixo firme. Angus podia ver o profundo corte no couro cabeludo e recordou o modo como Matt o tinha suturado sozinho. «É muito melhor do que a Betsy Wellman merece», pensou.

– Consegues distinguir o pio de um cardeal? – perguntou Angus, olhando para T. C.

– Sim.

– Quando eu assobiar, quero que vocês os dois venham imediatamente. Entendem? Parem de disparar e avancem ao meu encontro.

Os dois jovens assentiram com a cabeça e em seguida Angus regressou até onde Naps continuava deitado no chão, olhando para ele.

– Vou levar-te para um lugar mais seguro do que este. Consegues andar?

– Claro – respondeu Naps o que provocou um franzir de sobrolho em Angus. Reconhecia a falsa bravura quando a ouvia. Naps podia ter várias lesões, mas preferia morrer a deixar que os outros percebessem que estava gravemente ferido.

Angus baixou os olhos e viu uma mancha escura nas suas calças. Quando lhe tocou, Naps soltou um gemido abafado. Parecia que o jovem fora atingido pelo menos em dois sítios.

– Vou levar-te.

– Posso andar – declarou Naps. – Diga-me onde ir e chegarei lá.

– Cala a boca e não me dês problemas – ordenou Angus.

Inclinando-se, ergueu Naps para cima do ombro e começou a andar para norte. Não era fácil mover-se rapidamente com o peso do robusto jovem, mas Angus prosseguiu. Tinha acampado várias vezes naquela zona e sabia que nas proximidades havia uma pequena gruta. Ficava numa colina íngreme e de difícil acesso, mas já lhe servira de abrigo durante uma violenta tempestade.

Enquanto subia, Angus tentava planear o que ia fazer. Se conseguisse meter todos os homens na gruta, ficariam a salvo por três lados. Com base na quantidade de tiros que ouvia nas suas costas, havia pelo menos quatro homens armados. Quando ouviu um som à esquerda, parou à escuta, mas tratava-se somente de um animal e continuou a avançar.

A luta para chegar ao cimo da colina com Naps às costas fez com que Angus pensasse noutras coisas além de ter sido um idiota. Não demorara muito a descobrir que o capitão Austin se encontrava por trás de tudo, mas tinha descurado as precauções necessárias. Preocupara-se tanto com o facto de Austin poder prejudicar a família McNalty que não zelara pelos homens sob a sua alçada. Austin podia não conhecer muito bem o território, mas com as visitas frequentes dos comerciantes ao forte, tivera acesso aos homens que conheciam. Vários dos mercadores franceses eram implacáveis e ainda mais amargos por haverem perdido o território americano a favor dos ingleses.

Se os homens que se tinham vestido como índios e morto os soldados da carroça de pagamento eram caçadores de peles, conheciam muito melhor o território do que Angus. Alguns deles tinham passado ali a maior parte da vida. Conheceriam os trilhos que Angus usaria para chegar à cabana dos McNalty. E, se sabiam que ele se dirigia para lá, isso significava que sabiam que Aldredge não estava morto. Angus presumiu que, quando todos se haviam sentado a ver Matt suturar a cabeça, tinham sido vistos. Se fossem soldados nos bosques à volta deles, Angus tê-los-ia ouvido. Todavia, caçadores? Não. Conheciam tão bem a floresta como ele.

Quando Angus chegou à gruta, interrogou-se sobre se sairiam vivos dali. Havia água a escorrer pela parte de trás, mas dispunham de pouca comida, tinham poucas munições e, pior, um homem ferido. Como escapariam de homens que conseguiam caminhar silenciosamente sobe folhas secas? Como podiam enganar homens com roupas semelhantes às cores da floresta? Angus ficara muitas vezes a pouca distância dos soldados de Wellman sem que o vissem e sabia do que eram capazes os verdadeiros homens da fronteira.

Ao chegar à gruta, Angus pousou Naps suavemente no chão, mas o jovem continuou a gemer de dor. O lado direito do seu corpo estava coberto de sangue proveniente das duas feridas.

– Tenho de ir buscar os outros – disse Angus, interrogando-se sobre se voltaria a ver o jovem com vida.

Lembrou-se de que, quando se tinham servido da gruta, havia uma pilha de lenha seca num canto. Os lenhadores seguiam uma regra não escrita de substituírem o que tinham usado. Pelo menos, podiam acender uma fogueira.

– Com mil raios! – murmurou Angus entre dentes quando começou a descer a encosta.

O facto de ninguém disparar contra ele indicava-lhe exatamente o que se passava. Os homens que os alvejavam sabiam que um deles estava ferido e sabiam para onde Angus o levava. Contudo, a gruta constituía a única opção de momento. Com Welsch e Connor feridos, os dois mal se aguentando em cima do cavalo, seria impossível salvá-los a todos. Angus teria de os meter na gruta e deixá-los sob a proteção de Mac, enquanto ele ia pedir ajuda.

T. C., Matt e Mac permaneciam onde os deixara, mas os mais jovens não tinham munições.

– Eles atiram como se tivessem um barril de pólvora – resmungou Mac.

– Temos de levar os homens para o cimo da colina. Há lá uma gruta onde coloquei o Welsch.

– Como está ele?

– Não sei, mas tanto quanto presumo, diria que está a perder demasiado sangue para se safar.

Mac acenou com a cabeça na direção de T. C. e de Matt.

– Põe esses dois a vigiá-lo. São bons a suturar e com plantas.

Angus concordou e virou rumo à colina, com Mac atrás dele. Ao passar silenciosamente junto aos jovens, emitiu o assobio característico do cardeal e T. C. disse a Matt que tinham de partir.

Demoraram quase uma hora a chegar à gruta, porque tiveram de esperar atrás das árvores sempre que o tiroteio aumentava de intensidade. Observavam Angus, esperando que ele lhes indicasse o que fazer. Ele mantinha-se de pé a disparar enquanto Connor corria e depois recarregava a arma e permitia que Aldredge corresse. Mac era sempre o último e mostrava-se relutante em permitir que Angus mantivesse os pistoleiros à distância.

Quando finalmente chegaram à gruta, Matt dirigiu-se logo a Naps. Serviu-se da faca que usava à cintura para cortar as roupas de Naps e poder ver as feridas. Depois de as ter examinado, foi ter com os outros que o esperavam no centro da gruta.

– É preciso extrair as balas – disse Matt. – São de chumbo e, se permanecerem muito tempo no corpo, vão envenená-lo. Mesmo assim, não estou muito certo... – Interrompeu-se e olhou para trás na direção de Naps, que continuava deitado no chão frio a tentar respirar no meio da dor.

– Então, fá-lo – retorquiu Angus. – Extrai as balas e embrulha-o o melhor que puderes. Vou tentar encontrar os cavalos para sairmos daqui.

– Eu? – começou Matt, mas um olhar de Angus interrompeu-o. – Claro, sir – disse. – Farei o que puder.

Angus fitou T. C. que estava a estudar algo que crescia na parede da gruta.

– Ajuda-o. Faz o que precisa de ser feito.

Angus aproximou-se da boca da gruta de onde podia ver sem ser visto. Mac encontrava-se ao seu lado.

– Sabes o que se está a passar, não sabes, rapaz?

– Acho que o Austin contratou alguns caçadores e penso que tencionam matar-nos.

– Por causa de uma rapariga tão inútil como a Betsy Wellman.

– Há mulheres por quem se luta e mulheres que não o merecem – disse Angus baixinho, mas Mac ouviu-o.

– Até parece que gostavas de ter lutado mais.

– Há coisas contra as quais um homem não pode lutar.

Angus afastou-se da parede e dirigiu-se ao sítio onde Mat se inclinava sobre Naps. Perguntou com os olhos se ficaria bem, mas Matt encolheu os ombros, indicando que não sabia.

– Vou descer – disse Angus. Fitou os quatro homens e detestou ter de deixá-los. Mac sabia tomar conta de si próprio, mas os outros eram jovens e inexperientes. – O meu cavalo virá quando o chamar e irei até ao forte. Não fica longe e trarei ajuda.

T. C. e Matt assentiram com a cabeça e Naps esboçou um leve sorriso, como se soubesse que seria salvo, mas Mac fitou Angus com uma expressão séria. Ficaria sozinho com três novatos, poucas munições e só Deus sabia com quantos homens a cercá-los.

– É a única maneira – declarou Angus. – Nenhum de vocês conseguiria passar pelo meio deles.

– Eu sei, rapaz – retorquiu Mac baixinho e os seus olhos diziam que quando Angus voltasse... se o fizesse... não estariam vivos.

– Agora tenho de ir – disse Angus. – Não posso esperar que escureça.

– Eu sei – concordou Mac. – Vai e cumprimenta o coronel da nossa parte. E, se vires o Austin, podes dar-lhe um murro por mim.

Angus pousou a mão no ombro de Mac.

– Se alguma coisa te acontecer, ou aos rapazes, matá-lo-ei.

– É justo – comentou Mac e, depois de um último olhar aos três jovens, Angus esgueirou-se da gruta para a luz do Sol.

Manteve-se atrás de rochas e de arbustos e moveu-se o mais silenciosamente possível, mesmo assim sentia que o observavam. Quem quer que tivesse disparado contra eles permitira-lhes entrarem na gruta, mas duvidava que deixassem Angus chegar junto do cavalo e seguir até ao forte.

A descida da encosta foi um processo moroso. Angus dava dois passos e depois aguardava. Era o que aprendera a fazer quando era miúdo, rastejar sobre a urze de barriga para baixo, à procura de algum sinal de ladrões.

Quando chegou a quinze metros do local onde haviam acampado na noite anterior, emitiu o assobio com que tinha treinado o cavalo a aproximar-se, mas o animal não apareceu. Não teve a certeza, mas pareceu-lhe ouvir um riso à distância. Se os homens eram caçadores e viviam nos bosques, conseguiam distinguir o assobio de um pássaro do de um homem.

Enquanto caminhava à beira do rio, Angus tentava calcular o tempo que levaria a percorrer a distância até ao forte. «Três dias», pensou, mas se conseguisse roubar um cavalo a um dos caçadores...

Devagar, muito de mansinho, avançou até onde se escondiam os pistoleiros. Achou que estava perto quando ouviu o silvo inconfundível de uma flecha. Agachando-se desviou-se dela, mas o pé escorregou na relva molhada e perdeu o equilíbrio. Tentou agarrar-se a uma árvore, mas falhou. No segundo seguinte, sentiu-se a cair do precipício para o rio. Ao tentar enroscar-se, protegendo a cabeça com as mãos, soube que ia morrer, pois teve a certeza de ouvir gaitas-de-foles.

Angus atingiu a água com força, mas veio rapidamente à superfície e, por um instante, a corrente arrastou-o. Ao passar junto a uma rocha elevada, agarrou-a e aguentou-se. Com a água a correr-lhe pelo rosto, olhou para a margem, tentando ver se havia ali algum atirador. Ou um homem com uma flecha. Em vez disso, pareceu-lhe ver Shamus, que lhe sorria, deliciado.

Angus abanou a cabeça para aclarar as ideias e olhou novamente para a margem, mas o que tinha visto desaparecera. Havia somente árvores e arbustos.

Angus observou a corrente e perguntou-se como sairia dali. Conhecia um lugar para atravessar as águas, mas ficava a cerca de um quilómetro e meio rio acima. Precisava de regressar à margem mais próxima e tentar encontrar o cavalo.

Moveu-se de rocha em rocha, servindo-se dos braços e das pernas para lutar contra a corrente. Quando julgou ouvir novamente gaitas-de-foles, teve a certeza de que, quando mergulhara, tinha batido com a cabeça. Ao chegar à margem estava cansado devido ao esforço, mas não parou. Faltava-lhe galgar o aterro.

Agarrou-se à raiz de uma árvore e içou-se, usando as raízes como uma corda. Ao chegar ao cimo, uma mão surgiu diante dele. Ficou tão assustado que quase caiu para trás, mas a mão manteve-se onde estava e uma voz familiar disse:

– Dá-me a tua mão, rapaz, e ajudo-te a subir.

Ao olhar para cima, Angus avistou o seu tio Malcolm deitado de bruços, com a mão estendida. Tinha uma gaita-de-foles nas costas.

Angus só conseguiu ficar ali, com os pés enterrados na margem escorregadia e lamacenta, com as mãos agarradas à raiz de uma árvore, de olhos arregalados e a boca aberta de espanto.

– Estou morto? – perguntou, finalmente.

– Sim, rapaz, e estou aqui para te receber no paraíso – respondeu Malcom num tom meigo. – Agarra na minha mão para que possamos ir ao encontro do Senhor.

Angus abriu muito os olhos, mas depois ouviu uma gargalhada que ouvira desde a infância. Ao virar-se, deparou com Shamus, rindo-se dele de uma maneira desdenhosa.

Angus voltou a fitar Malcolm.

– Agora sei que estás a mentir. O Shamus nunca seria aceite no paraíso.

Aceitou a mão de Malcolm e içou o corpo. Quando estava novamente em pé e a escorrer água só conseguia olhar para Malcolm e Shamus.

– O quê...? – começou. – Como...?

– Viemos visitar-te – disse Malcolm.

– E acabámos por salvar-te a vida! – completou Shamus, com um esboço de sorriso. – Se não fôssemos nós, estarias morto. Porque não conseguiste escapar-lhes? Eram apenas seis.

– E foram precisos vocês os dois para se livrarem deles? – retorquiu Angus, ainda em estado de choque por os ver.

– Ná – disse Malcolm. – Eu segui-te e o Tam subiu à gruta onde escondeste os outros. O Shamus encarregou-se dos franceses. Um escocês vale mais do que uma dúzia de franceses.

Shamus fitava Angus com um meio sorriso significativo de que era fácil ver quem era o homem superior.

– O Tam está aqui? – perguntou Angus.

– Está. A encarregar-se dos outros – respondeu Malcolm. – Não nos cumprimentas?

– Malcolm, eu... – começou Angus, mas em seguida deteve-se. – Não sei como...

– Ora, rapaz! – exclamou Malcolm, constrangido. – Não queria fazer-te chorar. Um gole de bom uísque basta para me agradecer.

– Vou comprar-te uma garrafa – prometeu Angus, enquanto colocava os braços à volta dos ombros largos de Malcolm e o abraçava com força.

Tudo o que acontecera desde a última vez que vira aquele homem passou-lhe pela cabeça numa série de visões. Parecia ter sido há tanto tempo e era tão inocente na altura. Lembrou-se de ter salvo Edilean de um casamento forçado e de como acabara com ela a bordo de um navio rumo a outro país. E tinha-se apaixonado tão intensamente pela jovem mulher que cada dia sem a ter ao seu lado lhe provocava uma dor no peito. Via o seu rosto a cada hora do dia, ansiava por ela, interrogava-se sobre onde se encontrava e o que estaria a fazer.

– Rapaz! – exclamou Malcolm. – Julguei que ficarias contente por nos ver.

– E fiquei – assegurou Angus, mas a voz prendeu-se-lhe na garganta e não conseguiu dizer mais nada.

– Onde está a jovem? – perguntou Shamus.

– Que jovem?

– Aquela com quem fugiste e a quem roubaste o ouro.

– Eu não... – começou Angus, mas Malcolm interrompeu-o.

– Será que podem aguardar um pouco antes de começarem a lutar, rapazes? Acho que precisamos de chegar junto dos outros e o Tam quer ver-te.

– Claro, o Tam – retorquiu Angus com um sorriso e continuando a rodear os fortes ombros de Malcolm com tanta força que lhe causava dor, mas Malcolm não se queixou. – Apanharam-nos a todos? – acrescentou Angus, fitando Shamus como se duvidasse que ele conseguiria abater seis homens.

– Hum! – bufou Shamus num tom desdenhoso. – Não levei mais do que um minuto. Eles estavam a descoberto. Qualquer pessoa poderia tê-los avistado.

Angus não conseguiu reprimir um sorriso ante a arrogância de Shamus.

– O que achas deste novo país? – inquiriu, virando-se para Malcolm.

– Demasiado quente – respondeu Malcolm. – Deem-me a frescura da Escócia. E o uísque deles não presta.

– E acham que somos ingleses – acrescentou Shamus, como se fosse o insulto final.

– Com o vosso sotaque? – redarguiu Angus alegremente. – Conseguem entendê-los?

– Não são muitos os que conseguem – disse Shamus e, por um momento, o olhar deu a entender a Angus que estava satisfeito por vê-lo.

– Por ali – indicou Angus, com um aceno de cabeça na direção do caminho até à gruta.

Shamus subiu, mas Angus manteve-se onde estava com o braço firmemente à volta dos ombros de Malcolm.

– Tens de largar-me, rapaz – disse Malcolm num tom carinhoso. – Não sou um fantasma e vim para ficar.

– Um fantasma – repetiu Angus, sorrindo. – Não vieste até aqui dentro de um caixão cheio de poeira, pois não?

– Não – respondeu Malcolm, devagar. – Mas porque perguntas isso? Foi assim que te esgueiraste para este país?

– Não – assegurou Angus com um sorriso enorme. – Vim até aqui como um cavalheiro inglês.

– Quero ouvir cada palavra dessa história – disse Malcolm.

– Terei todo o prazer em contar-ta.


21

–Nao! não! não! – exclamou Angus e as suas palavras ecoaram nas paredes da gruta. – Não o farei. Recuso. E é a última vez que o digo.

Na noite anterior, uma fogueira quase fizera com que a caverna se assemelhasse a um lar. Mac tinha levado o cavalo de Angus e estava de volta ao forte para pedir ajuda enquanto T. C., Matt e Naps haviam ficado com Angus. Graças à cirurgia de Matt e às plantas que T. C. descobrira, Naps descansava confortavelmente, acordando e voltando a adormecer com o preparado que T. C. lhe dera a beber.

Tam, Shamus, Malcolm e Angus sentaram-se à volta da fogueira a falar com o sotaque escocês arrastado que os outros homens não entendiam.

Tinham passado horas a trocar histórias. Angus fê-los rir a bom rir com a narrativa de como conseguira ajudar Edilean a escapar ao traiçoeiro plano do tio. Da primeira vez que pronunciou o nome dela, a voz prendeu-se-lhe na garganta e não soube se conseguiria prosseguir, mas da segunda foi mais fácil. À medida que avançava, já sorria e lembrava-se de tudo com carinho.

Pôs-se a falar aos homens da fealdade da mulher de James Harcourt e de como ela tentara metê-lo na cama, mas Malcolm interrompeu-o, enviando um ramo em brasa pelos ares. Quando o apagaram, Malcolm interrogou-o sobre James e Angus contou-lhe que o atingira na cabeça com um castiçal.

– E a Edilean fez-me a barba – confessou num tom quase sonhador.

– Ela rapou-te a barba? – retorquiu Shamus. – Bem me parecia que estavas diferente.

Durante a narrativa, Shamus não parou de abanar a cabeça e de murmurar:

– Uma carroça a abarrotar de ouro. Os baús estavam cheios de ouro.

Parecia não acreditar nos seus ouvidos e no que tinha perdido.

Angus contou que se vestira com a roupa de James e subira a bordo do navio. Por uns momentos permaneceu em silêncio enquanto se recordava do tempo que passara com Edilean no navio. Pensava em como lhe apertava o espartilho, troçava dela e a fazia rir. Via tudo com tanta clareza que era como se pudesse tocar-lhe.

– Angus! – chamou Tam, trazendo-o de volta à realidade.

Angus sorriu, embora mal o reconhecesse. Tam crescera e estava praticamente da altura de Angus. Deixara de ser o rapaz que seguia atrás do primo mais alto e mais velho. Nos quatro anos em que haviam estado separados, Tam tornara-se um homem e Angus lamentava não ter estado presente para o ver crescer e mudar. Contudo, Angus interrogava-se se seria esse o motivo por que Tam crescera tão rapidamente. Com a partida de Angus, Tam era agora o único a herdar... «O quê?», pensou Angus. Ao clã McTern somente restava o legado da responsabilidade.

– Já vos entretive o suficiente – disse finalmente Angus. – Não atravessaram o oceano só para ouvir as minhas histórias. Porque vieram?

– Nós... – começou Shamus, mas quando Malcolm lhe deu um forte empurrão, calou-se.

– A Kenna agradece-te o vestido de seda que lhe enviaste – disse Tam.

– E como está ela? – inquiriu Angus, tentando que a voz não lhe tremesse ao pensar na irmã a quem fora tão chegado. – Quantos filhos é que tem agora?

– Seis – respondeu Malcolm. – Gostou que o vestido que lhe mandaste tivesse... – Não sabia muito bem o que dizer.

– Uma frente larga – completou Angus.

– Ah, sim, foi o que ela disse – retorquiu Malcolm, após o que bebeu um gole de café e permaneceu silencioso.

– O que vieram fazer até aqui? – perguntou Angus, desconfiado. – Como me encontraram?

– Foi bastante fácil – disse Shamus. – Com o teu retrato pendurado por todo o lado, houve muitas pessoas que nos deram informações.

Angus esboçou um trejeito.

– É verdade – concordou Malcolm lentamente. – Contudo, também é verdade que queríamos ver-te – acrescentou, fitando as roupas de cabedal que Angus tinha vestido. – Este país convém-te.

– Se conseguires manter-te vivo – comentou Shamus.

– Digam o que têm a dizer! – ordenou Angus em voz alta, sobressaltando os homens que se encontravam no canto oposto da gruta. O próprio Naps agitou-se no sono.

– O tio de Miss Edilean morreu – explicou Tam.

– Ai sim? – redarguiu sem conseguir suster um leve sorriso.

Era uma pessoa a menos que andava atrás dele.

– E deixou todos os seus bens a Miss Edilean.

– Ótimo! – exclamou Angus, percorrendo todos com o olhar, mas eles conservaram-se em silêncio. – E vocês querem comprar-lhe a propriedade, não é?

– Por um grão de pimenta anual – apressou-se Malcolm a interferir.

– Acho que ela vai concordar.

– Ela não precisa do dinheiro com todas aquelas escravas que tem! – meteu-se Shamus.

– Escravas? – retorquiu Angus. – Não consigo imaginar a Edilean com escravas.

– Não foi o que ele quis dizer – disse Malcolm, fulminando Shamus com o olhar para que se calasse. – Miss Edilean tem... bom, é... – hesitou, fitando Tam num pedido de ajuda.

– Ela montou um negócio em Boston chamado Mulheres Unidas.

Angus olhou-o, surpreendido.

– Isso significa que ela abriu uma... uma casa de...?

– Este novo país tornou-te um ordinário? – indignou-se Malcolm. – Miss Edilean é uma senhora. Vê lá como falas dela, rapaz!

– Ou pões-me em cima do joelho e dás-me umas palmadas? – disse Angus, sorrindo com aquela imagem familiar.

Tam inclinou-se para diante e explicou:

– Ela vende os melhores legumes e fruta de Boston. É proprietária de uma empresa que gere com a ajuda de mulheres que dantes eram servas contratadas.

– Gosto do anúncio dela – declarou Shamus, sorrindo.

– De que está ele a falar? – quis saber Angus.

– Bom – disse Tam, lentamente. – Miss Edilean tem um folheto bastante atraente do seu negócio.

– Uma jovem grande e saudável, de mangas arregaçadas – prosseguiu Shamus. – Com bons músculos e... – acrescentou, com um gesto indicativo de seios grandes. – Uma mulher e peras!

Todos fitaram momentaneamente Shamus e em seguida voltaram a olhar para Angus.

– Isso é verdade? A Edilean está à frente de um negócio?

– Pelo que nos contaram, tem mais de uma centena de funcionários, na totalidade mulheres, e possui meia dúzia de propriedades – respondeu Malcolm. – Há quanto tempo não a vês?

– Quatro anos, três meses e vinte e dois dias – respondeu Angus, que a seguir pareceu constrangido. – Acho eu. É só um palpite.

– Sempre foste bom com palpites – comentou Malcolm, mas baixou a cabeça para dissimular o sorriso.

– Então, a Edilean montou um negócio? – retorquiu Angus, surpreendido. – E está a sair-se bem?

– Muito bem – respondeu Malcolm. – Ganha muito dinheiro e está a construir casas para mulheres sem marido, viúvas e outras que tal. Ajuda muitas mulheres.

– Quando chegámos havia nove reclusas no navio – disse Angus, olhando para a fogueira e recordando. – Porém, não agradavam à Edilean. Contratou uma delas para lhe fazer uns trabalhos de costura, mas iria jurar que não fazia tenção de mantê-la depois da viagem. É engraçado como pensamos que conhecemos alguém e estamos longe da verdade. Não consigo imaginar a Edilean à frente de um negócio e muito menos a contratar mulheres como elas.

Quando levantou a cabeça, estava a sorrir.

– Ela meteu-se numa briga, uma briga sangrenta com uma das presas chamada Tabitha. A Edilean...

– Uma rapariga alta? Bonita? – indagou Tam.

– Sim – respondeu Angus. – Não a conheceste, pois não?

– Se se trata da Tabitha de que ouvimos falar, é a gerente agrícola de Miss Edilean – disse Tam. – Está à frente de todas as propriedades e não deixa que ninguém lhe passe a perna.

Angus ficou boquiaberto.

– Edilean e Tabitha trabalham juntas?

– Porque discutiram elas? – interessou-se Shamus, de olhos brilhantes.

– Por causa de uns diamantes – respondeu Angus, fitando novamente Malcolm e Tam. – A Edilean e a Tabitha juntas. Mas que mundo este! Digam-me, a Edilean ainda continua a viver com a Harriet Harcourt?

– Sim – respondeu Tam. – É a Harriet que trata do dinheiro de todo o negócio.

– Há quanto tempo é que vocês os três se encontram neste país? – interrogou Angus, semicerrando os olhos.

– Algum – respondeu Malcolm.

– Há mais de três meses – disse Shamus. – Demorou algum tempo a encontrar-te. Não foi difícil, acredita, mas demorou o seu tempo. Sabias que podíamos entregar-te a troco de mil libras?

Angus ia a responder, mas Tam interrompeu-o.

– Não te preocupes. O assunto do James Harcourt está tratado. A sua irmã Harriet paga-lhe para que fique longe de Miss Edilean.

– Ela faz o quê?

– Paga-lhe para que fique longe – repetiu Shamus erguendo a voz, como se Angus fosse surdo. – Faz-lhe um pagamento em dinheiro. É bastante comum.

– Estão a dizer-me que passaram três meses a meter o nariz nos negócios privados da Edilean?

Malcolm olhou para Tam, que olhou para Shamus e depois todos voltaram a fitar Angus.

– Sim. É isso mesmo o que temos feito – anuiu Malcolm.

– E a Edilean sabe disso?

– Nada – elucidou Tam. – Tomámos o cuidado de nos manter longe dela. E não foi fácil, pois ela anda constantemente de um lado para o outro no seu pequeno coche. Lembro-me de que uma manhã ia a descer a rua e lá estava ela. Pensei que me reconheceria, mas estava a discutir com um homem sobre qualquer fruta... não gosta de a ver pisada... e não me viu.

A história adequava-se de tal maneira a Edilean que Angus sentiu uma dor no peito.

– Ela...? Quero dizer, há...?

– Homens? – completou Shamus e, ao ver que todos os outros o fitavam, ergueu os braços. – Qual é o vosso problema? Acho que devemos dizer-lhe.

– Dizer-me o quê? – perguntou Angus.

– Trabalhámos com um advogado – declarou Malcolm e virou-se para Tam. – Conta-lhe.

– Achámos que visto Miss Edilean ser tão rica, com todo o ouro e os negócios, podíamos convencê-la a devolver-nos a propriedade dos McTern. Pensamos que não a quer. Nada significa para ela.

– Já me disseram isso e respondi que não haveria problema. A Edilean é muito generosa. Tenho a certeza de que vos dará esse sítio em ruínas mesmo sem o grão de pimenta. Não me digam que têm medo de lhe perguntar.

– Não é isso... – começou Tam, olhando para Malcolm.

Angus virou-se para Shamus.

– Queres dizer-me o que aparentemente eles não conseguem deitar cá para fora?

Shamus abriu a boca para falar, mas Malcolm deixou transbordar a verdade.

– Tu és procurado por a raptares e, por conseguinte, ela tem de jurar perante um juiz que fugiu contigo de livre vontade. Quando estiveres ilibado, ela pode dar-te o lugar, porque és tu o laird, e depois podes passá-lo ao Tam, que é o segundo na descendência.

– Percebo – disse Angus.

Manteve-se sentado um momento e depois levantou-se e caminhou até ao fundo da gruta. Naps estava a dormir, mas T. C. e Matt pareciam bem acordados enquanto ouviam as palavras dos escoceses. Angus ignorava o que conseguiam entender, mas pelas expressões dos rostos, haviam apanhado a essência do que se passava. Angus pensou nas palavras rapto e procurado que estavam a ser usadas.

Pousou novamente o olhar em Malcolm.

– Estás a dizer que queres que vá ter com a Edilean e lhe peça que jure perante um juiz que não a raptei e que me acompanhou de livre vontade.

– Exato – concordou Malcolm, entusiasmado. – Ela podia dar o lugar diretamente a Tam, mas não é ele o laird. Tudo tem de obedecer à descendência pela ordem devida.

– E o problema reside em que me julgam um criminoso.

– O Lawler era o único que tinha o direito de te desejar morto – disse Tam.

– Porque ela era sua sobrinha e lhe roubaste o ouro dele – disse Shamus.

– Eu não... – começou Angus, mas depois parou. – Lamento, mas não posso fazer o que querem.

– Porque não? – retorquiu Tam com uma expressão de raiva. – Queres continuar a ser o laird, mesmo estando a viver aqui?

– Claro que não! – ripostou Angus, mas pensou nas palavras de Tam.

Desistir da sua progenitura? Poderia fazê-lo? Passara a maior parte da vida a tentar devolver a honra ao nome que o seu avô quase tinha destruído e poderia simplesmente abdicar disso?

– Ele não o fará – dirigiu-se Tam a Malcolm. – Bem te tinha dito.

– Queres regressar à Escócia? – inquiriu Malcolm baixinho, fitando Angus. – É isso que queres, rapaz?

Angus fitou-os e sabia que não podia dizer o que lhe ia na mente. Tinham saído tão recentemente do barco que os trouxera do antigo país que ainda cheiravam a urze, mas há anos que Angus vivia na América e gostava da sensação de um homem poder fazer ou ser o que quisesse. Nessa altura, caso aguardasse o tempo necessário, obteria quatrocentos hectares. A terra ficaria a pertencer-lhe e podia dar-lhe qualquer destino. Na Escócia, nada lhe tinha pertencido e os seus atos eram sempre vigiados por outros. Mesmo agora, se lhe fosse concedida a responsabilidade das terras McTern, todos esperariam que tomasse centenas de pessoas a seu cargo. Não, não queria regressar.

– Não – respondeu finalmente. – Quero ficar aqui.

A irritação desvaneceu-se do rosto de Tam e pareceu um pouco envergonhado pela maneira como quase atacara o primo.

– Então, voltarás connosco para falar com Miss Edilean – concluiu Malcolm, sorrindo aliviado.

– Lamento, mas não posso fazê-lo – disse Angus.

– Porque não? – perguntou Tam. – Não gostas dela?

Angus soltou uma pequena gargalhada ante aquele absurdo.

– Ela é que não gosta de mim – esclareceu.

– Você discutiram, não há dúvida – retorquiu Malcolm. – É por isso que estás aqui e ela lá?

– São ou não casados? – inquiriu Shamus. – E porque usas o nome Harcourt?

– É uma longa história – respondeu Angus.

– Tenho tempo – disse Shamus – e agrada-me uma boa mentira se for bem contada.

– É tudo verdade e garanto-te que não posso ir ter com a Edilean e pedir-lhe o que quer que seja. Ela... Bom, a verdade é que ela me odeia.

– Pelo que o capitão do Mary Elizabeth nos contou, não é essa a verdade – interferiu Tam.

– Ele disse que vocês estavam sempre juntos – ripostou Shamus, recuperando o habitual esgar. – Vocês... – Esboçou um gesto ordinário.

Angus levantou-se, de punhos cerrados, mas antes que Shamus se pusesse de pé, Malcolm chamou-os à ordem.

– Senta-te! – ordenou a Angus. – E tu fica onde estás – acrescentou, passando a mão pelo rosto. – Vocês lutam desde que nasceram.

– Tens ciúmes, velho? – redarguiu Shamus, sem descerrar os punhos e pronto para atacar Angus.

– Velho – repetiu Malcolm entre dentes e depois ergueu a cabeça. – Ainda sou suficientemente jovem para lidar com vocês os dois. Tu tens de ir falar com Miss Edilean e pedir-lhe que faça isto – vincou, olhando para Angus.

– Não entendes a questão – disse Angus. – Estou mais do que disposto a pedir-lhe, mas, se fosse ao seu encontro, ela recusaria só para se vingar.

– Porquê? – perguntaram Tam e Shamus em uníssono.

– Nada de que eu queira falar.

Malcolm respirou fundo.

– Todos temos problemas com mulheres, mas podem ser resolvidos.

– Preparem os documentos e assinarei o que quiserem – decidiu Angus.

– Não. Disseram-nos que um juiz tem de ver-te ao lado de Miss Edilean para se certificar de que os dois estão a falar verdade.

– Isso não resultará – opôs-se Angus num tom firme. – A Edilean vai dizer-lhe que me prendam.

– Talvez se contares o que aconteceu possamos fazer alguma coisa – sugeriu Malcolm, num tom de paciência exagerada.

Todos, mesmo os dois homens que estavam sentados de costas apoiadas na parede do fundo, fitaram Angus.

Angus pensou em como fizera amor com Edilean e em seguida a abandonara. Lembrou-se das coisas horríveis que dissera ao seu criado e que ele, sem dúvida, transmitira a Edilean. Sim, Angus tivera um motivo para todos os seus atos, mas, mesmo assim, o resultado não era algo que uma mulher perdoasse.

– Não – disse Angus. – Não vou contar nada a ninguém. Terão de descobrir uma forma diferente de obterem o que querem. Assinarei o que precisarem, mas não vou confrontar a Edilean e fazer-lhe este pedido.

A cena passara-se na noite anterior e nessa manhã eles ainda continuavam a insistir. Pelo menos era o que faziam Tam e Malcolm, enquanto Shamus se conservava mais atrás, fitando Angus com uma expressão indicativa de que considerava Angus um cobarde que nem sequer era capaz de fazer frente a uma rapariga.

– Não – repetiu Angus. – Não farei isso e podem deixar de insistir.

Quando o Sol já brilhava no horizonte há algumas horas, Mac regressou com uma carroça e meia dúzia de soldados. Angus afastou-se dos escoceses para ir falar com ele.

– Não lhes contei nada no forte – disse Mac. – Achei que ninguém acreditaria em mim se dissesse que achávamos que fora o Austin a fazer tudo. O coronel ficou furioso por Aldredge ainda permanecer vivo. Quando o informei que o jovem viera até cá para romper com Betsy, o velho ficou ainda mais furioso. Na minha opinião, Aldredge devia regressar a leste.

– Concordo – disse Angus.

Mac fitava os escoceses que se encontravam de pé ao fundo da gruta e observava os soldados que transportavam Naps para a carroça. Graças a Matt e a T. C., Naps estava muito melhor nessa manhã.

– Se fosse a ti também não voltaria ao forte – disse Mac, baixando a voz. – O Austin não se pronunciou muito, mas estava vermelho de raiva. Sente-se furioso por teres impedido que nos matassem.

Angus sentiu um aperto no coração. Se deixasse de trabalhar para o exército, quando Mercer regressasse de Inglaterra com a petição assinada pelo rei, Angus já não faria parte da lista para obter quatrocentos hectares de terra.

– De onde vieram aqueles? – perguntou Mac com um aceno de cabeça na direção dos três escoceses que se mantinham afastados dos outros.

– Da pátria – respondeu Angus. – Da Escócia.

– Como se eu não soubesse! – exclamou Mac, erguendo uma sobrancelha. – Importas-te que lhes dê uma palavra? Gostava de estar perto de alguém que consiga entender-me.

Angus encolheu os ombros, satisfeito por poder dispor de algum tempo sozinho para refletir. Por um momento, ponderou em amaldiçoar todas as mulheres do mundo. A sua vida tinha sido ótima até as mulheres a invadirem. Primeiro fora Edilean que ele tinha tentado ajudar e acabara perseguido por rapto e roubo. Seguira-se Tabitha, que provocara tantos ciúmes em Edilean a ponto de causar uma desavença entre eles. E agora, ali estava a jovem Betsy Wellman, que podia levá-lo a perder o futuro.

Angus dispôs de cinco minutos de calma antes que Malcolm viesse ao seu encontro.

– Um bom rapaz, aquele – disse com um aceno de cabeça na direção de Mac. – Fala como um americano, mas não o posso criticar por isso. Contou-me que se voltares ao forte há um homem que pode fazer com que te matem.

– Sei cuidar de mim – ripostou Angus.

– Parece-me que só te interessas por ti próprio – retorquiu Malcolm e voltou para junto dos outros.

Por um momento, Angus pensou em agarrar na espingarda e partir. Tornar-se-ia um mercador a viver do que apanhasse nos bosques. Dormiria no chão. Passaria o tempo sozinho, tendo os animais por única companhia. Ele...

Sabia o que faria. Ia ter com Edilean e resolver a questão de uma vez por todas. Talvez agora, decorridos quatro longos anos, ela lhe tivesse perdoado, pelo menos em parte. Talvez tivesse descoberto, ou calculado, porque agira ele daquela maneira. Era possível que tivesse visto que os cartazes estavam a ser distribuídos novamente e por conseguinte saberia o que levara Angus a abandoná-la.

E talvez, se mandasse recado ao coronel Wellman de que se dirigia ao deserto para procurar o assassino dos soldados, o seu posto se mantivesse em aberto e conseguisse obter a terra. Talvez...

Espreitou pela abertura da gruta e Malcolm fitava-o com uma expressão interrogativa. Angus esboçou-lhe um leve aceno de cabeça e o olhar de Malcolm suavizou-se.

Angus pensou na raiva de Edilean quando voltasse a vê-lo e murmurou:

– Que o Senhor tenha piedade de mim!


22

Angus sabia que nunca se tinha sentido tão nervoso em toda a vida. Ajeitou o laço à volta do pescoço e interrogou-se se o colocara corretamente. Talvez pedisse a Edilean que o ajudasse a fazer o nó. Mas então talvez ela o apertasse e o estrangulasse.

Ao seu lado, na carruagem, seguia Tam, com Shamus e Malcolm na sua frente. Todos pareciam um pouco surpreendidos ao verem Angus com as suas roupas de gentleman. Pertenciam a James Harcourt e tinham estado guardadas dentro de um baú nas traseiras da taberna onde Angus trabalhara.

Dolly ficou satisfeita ao vê-lo e queria que ele ficasse.

– Tem sido horrível desde que te foste embora. Não conseguimos manter o negócio de pé.

– Não posso ficar – disse Angus com o sotaque inglês que usava com ela. Atrás dele, Malcolm, Tam e Shamus conservavam-se recuados, a observar.

Quando Angus surgiu das traseiras da taberna vestido com as roupas de Harcourt, haviam-no fitado, surpreendidos.

– Pareces inglês – comentou Malcolm.

– Também acho – concordou Shamus. – Se houver uma guerra, de que lado ficarás?

– A única guerra será quando a Edilean me puser a vista em cima.

Tam baixou os olhos para as suas roupas que eram grosseiras e, naquele momento, estavam cobertas de pó e esfarrapadas.

– Ela não vai gostar de nós.

Angus abanou a cabeça.

– O desentendimento é comigo. Vocês não têm nada a ver com isso. Vamos lá acabar com o assunto?

– Sim, vamos – disse Shamus na sua versão de uma imitação do sotaque de Angus, mas que soou como um dialeto estranho e provocou o riso nos quatro.

– Ora, rapaz! – exclamou Malcolm. – Não pode ser assim tão mau como achas. Palpita-me que agora ela já esqueceu o que quer que a enfureceu.

– Talvez – retorquiu Angus, mas sem grande convicção.

Empilharam-se numa carruagem alugada e dirigiram-se à casa onde Edilean vivia com Harriet Harcourt. No último instante, Angus sentiu os joelhos a ceder, mas Shamus deliciou-se a empurrá-lo para fora da carruagem com tanta força que Angus quase caiu no chão. Recompôs-se, mas estava tão nervoso que nem sequer repreendeu Shamus.

Os três escoceses rodearam Angus para que ele não pudesse fugir e avançaram juntos até aos degraus da porta da frente. Quando Malcolm puxou o cordão da campainha, pousou a mão nas costas de Angus para o acalmar.

Uma bonita criada veio abrir a porta.

– Estamos aqui para falar com Miss Edilean – disse Malcolm, mas a rapariga fitou-o com uma expressão surpreendida.

– Miss Edilean – repetiu Angus com o seu sotaque inglês.

– Ela está à vossa espera? – perguntou a jovem bloqueando a ombreira da porta.

– Temos fruta para lhe vender – respondeu Shamus, que acrescentou mais alto: – Fruta, rapariga! Maçãs.

– Ah, sim, fruta. Entrem que eu vou chamá-la.

Conduziu-os a uma ampla divisão ensolarada com uma lareira em mármore numa das paredes. Diante dela havia duas cadeiras de espaldar de um lado e um sofá forrado de seda amarela do outro. O chão apresentava-se coberto por uma grande carpete bordada com flores silvestres nas extremidades. A sala era realmente muito bonita e os três escoceses mantinham-se na ombreira, a observar, mas sem entrarem.

– Venham lá – ordenou Angus, impaciente. – Ela não quererá encontrar-vos no corredor.

Shamus e Malcolm sentaram-se no sofá e olharam nervosamente à volta enquanto Tam e Angus ocupavam as cadeiras.

– Tu mudaste – disse Tam, fitando Angus do outro lado de uma pequena mesa.

– Roupas elegantes não mudam um homem por dentro – retorquiu Angus.

– Então, talvez já fosses assim antes de vestires essas roupas.

– Assim como? – inquiriu Angus, franzindo o sobrolho.

– Como esta sala. Como esta casa. Encaixas-te bem aqui – disse Tam, erguendo a mão. – E não são apenas as roupas e a maneira como falas. É outra coisa.

Angus não estava muito certo do significado das palavras de Tam, mas não considerou a altura indicada para lhe fazer mais perguntas, pois ouviu a voz de Edilean no corredor.

– Não lhes perguntaste quem são? – dirigia-se Edilean à criada.

– Não, minha senhora. Esqueci-me.

– A partir de agora, Lissie, não deixes pessoas entrarem aqui a menos que as conheças. Oh, meu Deus! Não ponhas essa cara de medo de que te bata! Vai para a cozinha e fala com a Harriet.

Ao ouvirem os passos da jovem a afastar-se, fitaram a ombreira da porta com expectativa.

Angus afundou-se na cadeira para que os lados elevados da mesma o ocultassem da entrada. Não estivera preparado para o efeito que a voz dela provocaria em si. Foi o que conseguiu fazer para evitar correr ao seu encontro e tomá-la nos braços. Não percebera como tinha sentido a falta dela! Do seu sentido de humor, da sua resoluta abordagem à vida, dos seus gostos e aversões. Recordou-se de como Edilean ganhara a batalha de que a acompanhasse à América. E ela tivera razão. Caso tivesse ficado na Escócia, estaria agora na prisão.

– E como posso ajudá-los neste...?

Ouviu a voz de Edilean, mas não conseguia vê-la devido ao espaldar da cadeira. Porém, sabia que ela se interrompera ao ver Malcolm, Shamus e Tam.

– Oh! – exclamou, deixando transparecer satisfação na voz. – Oh, que agradável! Nunca pensei que voltaria a vê-los. Eu...

Calou-se ao avistar Angus sentado na cadeira mais afastada.

Ele inclinou-se vagarosamente para diante e fitou-a. Estava tão bonita como dantes, talvez mais ainda. Usava uma comprida bata em linho por cima do vestido, tinha o cabelo desalinhado e alguns tufos soltos caíam-lhe sobre o rosto. Desejou abraçá-la, beijá-la.

– Tu! – exclamou Edilean que em seguida voltou costas e saiu da sala a correr.

Angus soltou um gemido e ia a levantar-se da cadeira.

– Senta-te! – ordenou Malcolm. – Disseste que farias isto e vais cumprir.

– Ela odeia-me!

– Não foi o que ouvi na voz dela – disse Malcolm. – E tu, Tam?

O rapaz estava de olhos arregalados, parecendo tão jovem como quando Angus o vira pela última vez.

– Ela está mais bonita do que me lembrava. Como pudeste magoá-la? – retorquiu, fulminando Angus com o olhar.

– Não a magoei de propósito – defendeu-se Angus. – Magoei-a para a salvar de algo pior.

– Do quê? – perguntou Tam num tom de voz hostil.

Antes que Angus pudesse responder, ouviram um movimento de pés no corredor.

– Ela vai voltar – disse Tam e endireitou as costas.

Não foi Edilean a entrar na sala, mas três criadas transportando grandes bandejas. Pousaram uma na mesa do centro da sala e em seguida puxaram mais duas mesas para o lado dessa, onde depositaram as outras. Tratava-se de um faustoso lanche, com bules de porcelana azul e branca cheios de chá fumegante e pratos cheios de pequenas sandes, scones, biscoitos e bolos com cobertura de açúcar colorido.

Depois de terem pousado as bandejas, as jovens saíram da sala, fechando a porta atrás delas.

Malcolm foi o primeiro a recuperar do choque.

– Não acho nada que ela esteja zangada contigo. Vá lá, rapazes! Comamos alguma coisa!

Agarrou num bule de chá e encheu quatro chávenas.

Shamus e Tam pegaram avidamente em pratos e puseram-se a enchê-los, mas Angus absteve-se.

Tam comeu três sandes pequenas umas atrás das outras e em seguida fitou Angus, admirado.

– O que quer que lhe tenhas feito, não pode ser assim tão mau. Olha para toda esta comida.

Angus continuava de sobrolho franzido, mas uma parte dele começava a descontrair-se. Talvez Edilean tivesse visto os cartazes. Talvez tivesse compreendido a razão por que Angus fugira. Talvez o admirasse mais por ele ter abdicado de tanta coisa para a proteger.

Malcolm estendeu uma chávena de chá a Angus.

– Vá lá, rapaz. Bebe enquanto está quente.

Angus estendeu a mão para a chávena, mas deteve-se ao ouvir um barulho do lado de fora da porta.

Parecia que qualquer coisa pesada fora atirada ao chão.

– Posso estar errado, mas acho que foi uma mala – disse Malcolm. – Parece que desta vez ela não tenciona deixar-te ir embora sozinho.

Angus agarrou na chávena de chá e bebeu-a de um trago enquanto se ouviam mais dois estrondos.

– Ela está, sem dúvida, a planear alguma coisa – comentou Tam, olhando nesse momento para Angus como se ele fosse o epítome da masculinidade. – O que fizeste para a levares a... bom, desejar-te.

– Não estou assim tão certo de que sejam malas – retorquiu Shamus, com a boca cheia. – Estes bolos são bons.

– É tudo bom – disse Malcolm ao mesmo tempo que se acomodava, com a chávena na mão e um prato cheio no colo. – Percebo porque gostarias de ficar aqui, rapaz. Ela sabe pôr uma mesa.

Angus pousou a chávena e foi colocar-se de pé em frente da lareira. Ouviu-se mais um estrondo.

– Isto não me agrada. Quero saber o que está ela a fazer.

Deu um passo na direção da entrada, mas as duas portas abriram-se de rompante e Edilean apareceu, com uma espingarda na mão. Duas mulheres mantinham-se atrás dela e no chão havia um arsenal de armas de fogo. Só faltava um canhão.

Angus deixou descair o maxilar tal a surpresa, mas tinha vivido demasiados anos a esquivar-se a balas para ficar quieto quando lhe apontavam uma arma.

– Baixem-se! – gritou enquanto mergulhava para se proteger atrás de uma cadeira.

Tam atirou-se ao chão, mas Malcolm e Shamus permaneceram onde estavam e continuaram a comer.

A bala falhou Angus por centímetros, atingindo a cadeira e fazendo voar o forro.

– Edilean! – disse ele, a coberto da cadeira. – Podemos discutir este assunto.

– Não tenciono voltar a falar-te – retorquiu ela, ao mesmo tempo que erguia uma outra espingarda comprida e pesada e disparava contra ele.

A bala atravessou o braço da cadeira. Ele desviou as pernas um segundo antes de ser atingido.

Angus olhou em volta da cadeira destruída. Edilean conservava-se de pé na ombreira e as duas jovens mulheres que a ladeavam reluziam de boa saúde e alegria. Enquanto uma carregava a espingarda que Edilean tinha acabado de disparar, a outra estendeu-lhe um revólver. As duas jovens pareciam muito felizes, como se tivessem desejado fazer aquilo toda a sua vida.

– Edilean, por favor – disse Angus.

Enquanto falava, fez um sinal de cabeça a Tam, que se mantinha escondido atrás da outra cadeira, para que corresse até à janela. Estava fechada, mas perto havia um pesado castiçal de prata em cima de um armário alto. Angus indicou a Tam que devia usá-lo para partir o vidro e fugir.

Edilean engatilhou um revólver, fez pontaria e disparou diretamente contra Angus, mas ele rolou e o tiro perdeu-se no chão, fazendo um buraco no bonito tapete. No segundo seguinte, Tam atirou o castiçal contra a janela, o vidro partiu-se e ele dispôs-se a sair. Contudo, lá fora, estavam duas jovens mulheres que lhe apontavam revólveres carregados. Deteve-se com o pé em cima do parapeito.

– Não sou quem vocês querem – disse Tam.

– Não podemos ter a certeza, pois não? – disse uma das jovens, erguendo a pistola.

– Mas nem sequer me pareço com ele! – retorquiu Tam.

– Informaram-nos de que ele é alto e bonito – pronunciou a segunda jovem, apontando a pistola à cabeça de Tam.

– Bom, acho que há uma certa semelhança entre nós – redarguiu Tam com um sorriso e começando a sair pela janela.

Porém, a primeira rapariga premiu o gatilho e só não acertou em Tam por pouco mais de um centímetro.

Ele voltou para dentro e agachou-se no chão, junto de Angus, que lhe deitou um olhar desdenhoso.

– Já ouviste falar de lealdade de clã? – inquiriu Angus.

– Esta é a tua luta pessoal – respondeu Tam com um encolher de ombros.

Angus esboçou um trejeito quando olhou à volta da cadeira e avistou Edilean a apontar-lhe outra pistola.

– Por amor de Deus, Malcolm. Ajuda-nos nisto.

– Não costumo interferir no amor – disse Malcolm enquanto lambia a compota dos dedos.

– Isto é amor? – retorquiu Angus rolando o corpo para escapar a outro tiro que falhou por pouco. – Então, prefiro o ódio.

– Gosto mesmo destes biscoitos – aprovou Malcolm.

Shamus fitou Edilean que se mantinha na ombreira da porta, munida de uma espingarda maior do que ela, e para as duas jovens mulheres ao seu lado, de revólveres nas mãos.

– Acho que tudo me agrada neste país.

– Edilean, se me deres um momento para explicar, posso esclarecer a situação – disse Angus. – Trata-se apenas de um mal-entendido.

Enquanto falava, foi rolando o corpo e quase correu até ao canto oposto da sala, agachando-se atrás do sofá. Achava que ela não ia disparar se Malcolm estivesse entre os dois.

– Malcolm, importa-se de se mover para a esquerda? – pediu Edilean, agarrando noutro revólver. Disparou através do sofá, mas a bala passou pela camisa de Malcolm, atingindo-lhe o antebraço de raspão. – Sinto muito – desculpou-se Edilean. – Referia-me à minha esquerda, não à sua.

Malcolm examinou a ferida e continuou a comer.

– Não faz mal, rapariga. É um erro bastante comum.

– Magoei-o? – perguntou Edilean.

– Não, nada – respondeu Malcolm. – Estes bolinhos de framboesa são mesmo bons.

Angus, que se mantinha atrás do sofá, rolou os olhos e em seguida levantou-se e disse num tom firme:

– Edilean, isto é ridículo. Acabarás por ferir alguém.

Ela tirou a pistola a uma das mulheres.

– Tenciono matar-te – pronunciou, de dentes cerrados.

Olhou para Malcolm e acrescentou num tom suave:

– Foi a Harriet que os fez. Vou pedir-lhe que lhe dê alguns.

– Edilean! – disse Angus. – Se me matares, enforcam-te.

– Não depois de lhes contar o que me fizeste – retorquiu a jovem. – É bom vê-lo novamente – prosseguiu, olhando para Shamus. – Tem passado bem?

– Bastante bem – respondeu Shamus. – Havia mesmo ouro naquela carroça que eu devia conduzir para si?

Edilean piscou os olhos várias vezes. Estivera tanto tempo longe da Escócia que não tinha compreendido o que ele dissera.

Angus, ainda de pé atrás do sofá que agora tinha um enorme buraco no centro, traduziu.

– Sim, era ouro – confirmou Edilean.

– Com mil raios! – praguejou Shamus.

– Ele disse... – começou Angus.

– Eu entendi – interrompeu Edilean, furiosa. – Sempre me achaste incompetente e inútil.

– Não achei nada disso! – ripostou Angus. – Se parares com esta loucura e me deres tempo para explicar, poderia dizer-te...

– Edilean! – exclamou uma mulher que surgiu na ombreira da porta. – O que estás a fazer?

– Tabitha? – perguntou Angus. – És tu?

Edilean olhou de um para o outro, detetou a forma como o rosto de Angus se abria num sorriso e voltou a disparar.

Angus apenas teve tempo para mergulhar atrás do sofá, ficando com a cabeça entre os pés de Shamus e de Malcolm.

No momento seguinte, uma mulher apareceu a correr, vinda das traseiras da casa, e Angus reconheceu-a como sendo Harriet Harcourt.

– Edilean! – exclamou Harriet. – Enlouqueceste?

– Dá-me uma pistola carregada – ordenou Edilean à mulher que se encontrava atrás de Harriet.

Harriet empurrou para o lado a mão da rapariga.

– Isto é um absurdo! Não podes disparar contra as pessoas nem voltar a destruir a mobília!

Angus saiu debaixo do sofá e levantou-se com uma expressão de alívio.

– É exatamente o que tenho estado a dizer-lhe.

Harriet fitou Angus com um ar furioso.

– Você! Dá-me já essa pistola!

Arrancou a arma das mãos da rapariga e disparou contra Angus que voltou para baixo do sofá.

Tam, que ainda se mantinha no canto oposto da sala, escondido atrás de uma cadeira, perguntou:

– O que diabo fizeste a estas mulheres?

– Prefiro não falar sobre isso – respondeu Angus do seu esconderijo.

Foi Malcolm que colocou ponto final na situação. Levantou-se de repente e fitou Harriet.

Shamus ergueu o rosto para ele.

– O que lhe deu? Se não se sentar, acabará com isto.

Edilean desviou o rosto de Malcolm para Harriet e em seguida de novo para Malcolm.

– Harriet – disse num tom suave. – Porque não levas o Malcolm para a cozinha? Podes tratar-lhe da ferida e dar-lhe mais alguns desses bolinhos que fizeste?

Harriet e Malcolm não se mexiam, limitando-se a olhar um para o outro.

Edilean virou-se para Tabitha que observava tudo com um sorriso rasgado.

– Queres fazer o favor de levar esses dois para a cozinha?

Angus fez um sinal de cabeça a Tam, que empurrou a cadeira. No meio da confusão provocada pelo ruído, Angus esgueirou-se da sala e colocou-se entre Edilean e as armas, mas não lhe tocou.

– Acabou-se o histerismo?

O rosto de Edilean demonstrava a raiva que a invadia e mantinha os punhos cerrados junto ao corpo.

– Se tivesse uma faca, cortava-te o pescoço. Quero que saias da minha casa para nunca mais voltares.

– O Tam tem algo a dizer-te.

– O Tam pode ficar. Na verdade, todos os outros podem passar a noite aqui. Mas tu... – acrescentou, fulminando Angus com o olhar – ... tens de ir.

– Edilean, sei que me odeias e talvez te caiba esse direito, mas...

– Talvez? – retorquiu ela num tom estridente.

– De acordo, tens todo o direito de me odiares, mas, por favor, escuta o que eles têm para te dizer. E quero que saibas que farei tudo para os ajudar.

Sem lhe dar tempo a pronunciar mais uma palavra, Angus transpôs os poucos passos que o separavam da porta. Tabitha fitava-o divertida, enquanto os olhos de Harriet despejavam ódio. Angus inclinou-se para Harriet e perguntou, baixinho:

– Como está o seu irmão? Bem de saúde?

Num segundo, a expressão de Harriet passou de raiva a medo e olhou para Edilean, como se receasse que ela o tivesse ouvido.

Angus saiu da casa, a porta bateu nas suas costas e desceu rapidamente as escadas. Havia uma multidão de gente lá fora que tinha ouvido os tiros.

– O que se passa aqui? – perguntou um homem.

– Uma limpeza de armas – respondeu Angus enquanto abria caminho pelo meio do grupo. Conseguiu boleia numa carroça de leite e regressou à taberna onde dantes trabalhara. Sabia que Malcolm quereria saber do seu paradeiro, por conseguinte seria melhor ficar num sítio conhecido. Além disso, Dolly mantinha os ouvidos bem abertos, saberia tanto como qualquer outro e Angus queria algumas informações.

Quando Malcolm lhe dissera que Harriet estava a pagar ao seu irmão James para se manter afastado de Edilean, Angus ficara tão preocupado com o facto de ter de confrontar Edilean com a situação, que não pensara muito nisso. Porém, agora pusera-se a refletir. Só mencionara o assunto a Harriet por acréscimo. Não gostara da maneira como ela olhava para Malcolm. O que pretendia a mulher ao atirar-se ao tio?

Porém, quando Angus mencionara James, a raiva de Harriet transformara-se em medo. Portanto, Edilean nada sabia sobre os pagamentos que eram feitos a Harcourt. Se Harriet geria o dinheiro de Edilean, como Tam dissera, tal significava que enganava Edilean?

Se Edilean desconhecia a traição de Harriet, como estava Malcolm a par dela? E, pensando bem, o que estavam eles a fazer na América há três meses? E quem lhes pagara a viagem através do oceano, bem como a hospedagem e a alimentação desde que tinham chegado?

Angus sabia que havia muito mais relativamente ao motivo por que Malcolm, Tam e Shamus se encontravam naquele país do que a assinatura de alguns papéis e tencionava descobrir o que eles não lhe contavam.


23

Harriet movia-se rapidamente à volta da sala de jantar, tirando para fora a melhor porcelana, polindo as pratas com o avental, verificando se havia manchas nos copos.

Edilean estava sentada à cabeceira da mesa a ler o jornal e a acabar de beber o chá.

– Harriet, queres fazer o favor de parar com esse nervosismo? Conheci o sítio onde vivem esses homens e posso garantir-te que não distinguem Wedgwood de Limoges. Ficariam satisfeitos se espalhasses todos esses alimentos numa fatia de pão.

– Existe uma coisa chamada linhagem e, embora os homens não tenham dinheiro, nota-se a sua ascendência.

– Ascendência? De que estás para aí a falar?

– O Tam será o laird do clã McTern – disse Harriet. – Não sabias? Quando o Angus abdicar do título, ele pertencerá ao jovem Tam.

– E se algo acontecer ao Tam passará para o Malcolm – declarou Edilean, baixinho. – Estás a pensar tornar-te a mulher do laird?

– Não sejas ridícula – reagiu Harriet virando as costas, mas não antes que Edilean visse o rubor que lhe tingiu as faces.

– Espero que a linhagem não signifique tanto para ti como para o teu irmão.

– Porque o mencionas? – inquiriu Harriet, voltando-se para fitar Edilean. – Ouviste alguma notícia dele?

– Não – respondeu Edilean. – Só o mencionei porque o teu gosto pela linhagem me recordou que ele me preteriu a favor da filha de um conde. Estás interessada em Malcolm por causa dos seus antepassados?

– Interessada nele? Não faço ideia do que pretendes dizer – retorquiu Harriet com arrogância.

– Tu... – começou Edilean, mas interrompeu-se.

Harriet estava tão desvairada por Malcolm que ambos causavam risadas onde quer que fossem. Todas as raparigas que trabalhavam para a empresa de Edilean se davam conta da situação e comentavam baixinho. Harriet correspondia à definição de uma velha solteirona. Tinha o ar de alguém que secara por dentro. Contudo, desde que conhecera Malcolm três semanas antes, começara a desabrochar. Assemelhava-se a uma planta que não tinha sido regada durante quarenta anos, mas regressava à vida às primeiras gotas de chuva.

Harriet sempre se mostrara severa com as raparigas que contratavam, mas elas tinham descoberto que, por baixo dos modos duros, havia um coração generoso. Em público, podia repreender uma delas por não fazer uma boa descrição das despesas, mas sabiam que, em privado, metia frequentemente às escondidas uma ou duas libras na mão de qualquer uma que estivesse numa situação desesperada.

E era Miss Harriet que ia esperar os navios e comprava os contratos de jovens mulheres que chegavam à América. Algumas mostravam-se assustadas, outras desejosas de aventura, mas outras eram criminosas perigosas em busca do que pudessem conseguir. Miss Harriet tinha bom olho quanto às que devia empregar e às que devia deixar entregues aos seus destinos. Cuidava das mulheres, arranjava-lhes um sítio para viverem e frequentemente vigiava-lhes a saúde. Por vezes, as condições a bordo dos navios eram tão más que quase chegavam mortas. Harriet zelava para que lhes dessem uma boa alimentação e um quarto limpo. Quando recuperavam, iam trabalhar nas propriedades.

Devido à bondade com que Harriet as tratara, elas sentiam-se felizes que tivesse conhecido Malcolm. Adoravam vê-la quase a pular de alegria e sorriam ao verem Malcolm colher uma flor e oferecer-lha.

Quanto a Edilean, ela só tinha regressado na noite anterior. Depois do dia em que expulsara Angus da sua casa, ela e Malcolm haviam passado horas juntos e ele falara-lhe da morte do tio e do plano para transformarem Tam em laird. Edilean acedera prontamente em devolver a propriedade que o tio lhes roubara, mas desagradava-lhe a ideia de comparecer diante de um juiz e falar bem de Angus. Teria de afirmar que fugira com ele de sua livre vontade, que a tratara bem e que nunca usara a força contra ela. Malcolm acrescentou que provavelmente lhe pediriam que embelezasse a história de forma a parecer que Angus tinha feito uma boa ação, que era o melhor dos homens e merecia ser ilibado de uma acusação injusta.

Tudo aquilo fazia sentido, mas Edilean continuava a odiar a ideia de passar algum tempo com Angus. Teriam de ensaiar a história antes de se apresentarem diante do juiz para se certificarem de que diziam as mesmas coisas, o que significava estarem horas juntos.

Quando Malcolm acabou de contar o que queriam dela, Edilean murmurou entre dentes que precisava de tempo para pensar no assunto. Nessa noite, atirou umas roupas para dentro de uma mala, mandou preparar a grande carruagem verde com o brasão na porta e Cuddy a servir de condutor e dirigiu-se para sul, rumo à colónia de Connecticut. Ouvira falar de uma propriedade que se encontrava à venda por essas bandas com vários hectares de pomares e queria examiná-la. Começara por decidir que se situava longe de mais de Boston para lhe interessar, mas depois de ver Angus, depois de tentar matá-lo, quis afastar-se.

Harriet, que adorava supervisionar todos os aspetos da vida de Edilean, não protestou quando ela se foi embora. De um momento para o outro, Harriet centrara todos os seus afetos maternais em Malcolm. Mantinha-se ao seu lado na cozinha e pôs quatro raparigas a subir e a descer as escadas enquanto preparava um quarto para ele.

O rápido afastamento de Harriet em relação a Edilean representou, no entanto, um golpe num dia em que houve muitos. Na verdade, Harriet mal se deu conta quando Edilean partiu.

Quando Edilean regressara no dia anterior, notou que a sua casa se transformara na «deles». Malcolm e Harriet eram um casal em tudo, à exceção da legalidade e da cama. Havia mobiliário novo na sala, lençóis novos nas camas e Harriet mudara-se para o quarto de Edilean. Cedera o dela a Malcolm com a desculpa de que não fazia ideia de quando ou se Edilean ia voltar.

– Por que razão não voltaria para a minha própria casa? – ripostou Edilean. – Em que outro sítio iria viver?

– Ora, raparigas – pronunciou-se Malcolm. – Podemos resolver tudo se eu e os rapazes nos formos embora.

– Não! – quase gritou Harriet, fulminando Edilean com o olhar.

– Não. Claro que não podem ir-se embora – retorquiu Edilean, que teve de morder a língua para se abster de um comentário sarcástico em relação a hóspedes que não tinham arredado pé durante três semanas a fio.

Ao jantar, sentiu-se a estranha, enquanto Tam, Shamus, Malcolm e Harriet se haviam tornado grandes amigos e falavam como se se tivessem conhecido toda a vida. Harriet desempenhava o papel de anfitriã na perfeição.

Edilean sentou-se à cabeceira da mesa e observou tudo com uma ponta de ciúme, mas também com a sensação de ser uma visita desnecessária e indesejável. Tornara-se a pessoa que não pertencia à sua própria casa.

Na realidade, sentira-se mais em casa nas três semanas que tinha passado em Connecticut. Apercebera-se de imediato que a propriedade era um lugar que queria comprar. Fora bem cuidada e a fruta cresceria em abundância. O proprietário tinha morrido de repente e deixara viúva uma mulher e duas filhas pequenas. Edilean desculpara-se dizendo que desejava ficar junto da mulher enquanto ela se preparava para deixar a propriedade, mas a verdade era que queria fazer qualquer coisa em vez de regressar à casa onde vira Angus pela última vez. Ainda não se tinha recomposto da violência das emoções de quando dera com ele. Todos os momentos que haviam passado juntos, tanto públicos como privados, tinham-lhe cruzado a mente. Contudo, a recordação mais viva era a de como ele a abandonara. Nem sequer permanecera o tempo bastante para lhe dizer cara a cara o que desejava dela e que tudo acabara. Não, dissera isso a Cuddy.

Cuddy levara quase dois dias a contar toda a verdade sobre o que Angus dissera, mas acabara por fazê-lo. O jovem perguntara, calmamente: «Quer que vá matá-lo em seu lugar?» Edilean sentira-se tentada a responder afirmativamente, mas não o fizera. Porém, com base na lealdade demonstrada, Cuddy era um dos únicos três homens que mantivera na empresa quando tinha fundado a Mulheres Unidas. Os outros dois eram demasiado velhos para que os despedisse.

Depois de Angus a abandonar tão friamente, Edilean aguentara o desgosto sem verter uma lágrima e nunca tinha contado a Harriet o que acontecera. Para compensar, Edilean fundara a empresa e entregara-se ao trabalho tanto quanto a força humana lhe permitia.

Tudo correra bem até ao momento em que, ao entrar na sala, dera de caras com ele. Estava sentado, fitando-a como se a tivesse visto na semana anterior e nesse momento desejasse abraçá-la. E depois? Levá-la para a cama, viver uma noite de êxtase e a seguir abandoná-la durante mais quatro anos? Era isso o que pensava dela?

Tal como já acontecera, Edilean perdera a cabeça. Saíra da sala a correr e disse às raparigas, que se encontravam nas traseiras a carregar caixotes de fruta, que precisava delas. Sabia que lhe estavam tão gratas por as haver salvo que fariam o que quer que desejasse. Se lhes tivesse dito que pegassem nas armas e abatessem Angus, não hesitariam e para o diabo com as consequências!

Porém, Edilean queria o prazer de vê-lo sofrer. Desejava vê-lo morto aos seus pés ou, pelo menos, fora o que dissera a si mesma.

Depois de tudo acabar e de lhe terem tirado as armas, não podia aguentar ficar naquela casa. Não queria ver nenhum deles. Não queria ver os três escoceses, que lhe recordavam Angus, não queria ver Harriet a sorrir afetadamente a Malcolm. Nem sequer queria ver as jovens, que lhe lembravam a empresa que fundara por causa do que Angus lhe tinha feito.

Quando entrou na carruagem, não sabia muito bem para onde ia. Foi só decorrida uma hora de percurso que se recordou do cartaz que Harriet lhe mostrara sobre a propriedade para venda, em Connecticut. Levou dias a chegar, mas, quando apareceu, a viúva, Abigail Prentiss, dera-lhe as boas-vindas e, na noite seguinte, haviam travado amizade. Abigail era da sua idade e, caso tivesse nascido em Inglaterra, pertenceriam à mesma classe. Até tinham conhecidos em comum.

Quando tinha apenas dezassete anos, Abby apaixonara-se por um homem mais velho que era dono de uma propriedade na América. A família dela opusera-se a que fosse para tão longe, mas Abby tomara a sua decisão. Casaram três meses após se conhecerem e Abby engravidara uma semana depois. Naquele momento, com duas filhas, de quatro e três anos, para sustentar, ignorava o que faria sozinha.

– Posso ajudá-la – dissera Edilean com um enorme suspiro.

Depois Abigail ouviu os problemas de Edilean; ela contou-lhe tudo sobre Angus. Embora fosse verdade que Abby estivera apaixonada por John Prentiss quando se casaram, confessou a Edilean que não se tratara de amor à primeira vista.

– Acho que queria imenso fugir à minha mãe e ali estava o John, um homem simpático, dono de uma grande propriedade na América, e vi uma maneira de deixar a minha mãe. Ele era um homem encantador.

– Contudo, não desejaria matá-lo se ele a atraiçoasse.

– Acho que não conseguiria pensar dessa maneira sobre qualquer homem – riu Abby.

– Muito bem! – exclamou Edilean. – É terrível. Não consigo decidir se o amo ou se o odeio.

– Não é a mesma coisa?

Encontravam-se no pomar, muitas das árvores estavam em flor e as abelhas zumbiam à volta delas. As meninas, louras e bonitas, perseguiam borboletas. Edilean sabia que invejava Abby. A amiga levara uma vida «correta», casando com um homem e depois tendo filhos. Edilean sentia que a sua vida fora sempre às avessas, tudo ao contrário do que deveria ser. Não tivera pais de quem falar, nem casamento, mas vivera uma noite de núpcias.

– O que tenciona fazer agora? – perguntou Abby.

– Voltar a Boston e... – Emitiu mais um suspiro. – Acho que ficarei à frente da empresa, embora me pareça que a Tabitha e a Harriet passariam bastante bem sem mim. Fui necessária para levá-las a acreditar que podiam iniciar uma empresa daquele género, mas agora são elas que fazem todo o trabalho. Eu... – A voz morreu-lhe na garganta.

Embora fosse verdade que trabalhava o dia inteiro e geria tudo, parecia que nos últimos tempos o coração se mantinha distante. Estava prestes a completar vinte e dois anos e não tinha casado nem sequer era cortejada por qualquer homem. Ainda havia muitos a tentar conquistá-la, mas pareciam envelhecer a cada ano que passava. Uma mulher bem sucedida num negócio não era algo que um homem mais novo desejasse. Embora lhes agradasse a ideia de casar com uma herdeira rica, uma mulher que se apoderara do mercado através da inteligência e decisões argutas não era o seu ideal de esposa.

– Não sei o que vou fazer – respondeu Edilean e teve uma visão de si mesma, parecida com Harriet, com quarenta anos ou mais, sem marido, nem família. Mesmo que fosse dona de todos os pomares de treze colónias, continuaria sozinha. – E a senhora? Depois de comprar a sua propriedade, para onde irá?

– Williamsburg – respondeu Abby, sem hesitar. – Fui uma vez lá com o John e adorei o sítio. É uma cidade, mas tem a atmosfera de uma vila inglesa. E a Virgínia é bonita.

– Com muitos solteiros desejáveis? – retorquiu Edilean, após o que se fitaram e riram.

Edilean tencionara permanecer em Connecticut só por uns dias, mas acabara por ficar três semanas na propriedade de Abby. Fora-se embora por recear que a empresa precisasse dela. Se Harriet continuasse enamorada de Malcolm, não prestaria atenção ao negócio, e se Tabitha não fosse constantemente vigiada, quem sabe o que poderia fazer? Edilean deixou relutantemente a propriedade e a sua nova amiga e regressou a Boston.

Todavia, ninguém prestou muita atenção à sua chegada. Não havia crises que apenas ela poderia resolver. Em apenas umas semanas, a sua casa mudara tanto que sentiu que não a conhecia. Todas as frases de Harriet pareciam começar com: «O Malcom diz...»

Quanto a Tabitha, aproveitara a oportunidade para comprar algumas carroças novas e pintá-las com o símbolo da empresa. Edilean achou-os bastante berrantes e expressou essa opinião.

– Contudo, vendem mais – respondeu Tabitah.

Nesse momento, Edilean observava Harriet a hesitar enquanto punha a mesa, como se esperasse a vinda do rei, quando se tratava meramente de Malcolm, Tam, e Shamus. Tanto quanto Edilean sabia, Shamus continuava a comer tudo com uma colher.

Saiu da mesa, incapaz de continuar sentada e... Odiava pensar que era tão frívola, mas tornava-se difícil não sentir ciúme e inveja da felicidade que todos naquela casa pareciam ter encontrado.

Dirigiu-se ao grande armazém onde guardavam o produto das propriedades. Por norma, estava tão ocupada que não conseguia pensar em mais nada, mas nesse dia sentia-se distante. Continuava a recordar-se de Abigail e das suas bonitas filhas.

Quando Tabitha lhe disse algo, Edilean limitou-se a fitá-la.

– Estás a chocar alguma coisa? – perguntou Tabitha.

– Sim. Não – respondeu Edilean enquanto observava duas jovens mulheres inclinadas sobre caixas de cerejas e verificou que a observavam e riam. Não havia dúvida de que todos em Boston sabiam que ela disparara contra um homem qualquer. E não tinham dificuldade em adivinhar o motivo.

Edilean agarrou nas saias e fugiu a correr do armazém. Afinal, seria preferível ter morto Angus e estar agora na cela de uma prisão.

Vagueou durante algum tempo por Boston, examinando o que as lojas tinham para oferecer e ouvindo os homens a queixar-se de Inglaterra. Edilean não entendia qual era o problema. Se os homens achavam que o rei George era mau, deviam ler os livros de História e inteirar-se sobre os reis anteriores. O que os americanos achavam que iam fazer? Iniciar um novo país sem um rei? Realmente! Por vezes, não os entendia.

Anoitecia quando regressou a casa e não tinha comido durante o dia inteiro. Pediu que lhe levassem uma bandeja ao quarto. Comeu pouco, em seguida tirou a roupa, vestiu a camisa de noite e deitou-se. Adormeceu imediatamente.

Foi acordada por um tiro e gritos raivosos vindos do andar inferior.

– O que se passa? – murmurou Edilean enquanto enfiava os braços num roupão e se dirigia à porta.

Teve de esperar a sua vez para descer as escadas, pois três homens e Harriet iam na sua frente.

Quando Edilean chegou à sala, os outros bloqueavam-lhe a vista. Mantinham-se na sua frente a olhar, paralisados ante o que se lhes deparava.

– Dão-me licença? – perguntou, abrindo caminho pelo meio deles.

Ao chegar à frente, também ela ficou parada e imóvel. Duas velas estavam acesas na sala e os seus castiçais de prata espreitavam do interior de um saco, pousado no chão. Ao lado do saco, estava o corpo de James Harcourt com o buraco de uma bala no meio da testa. Fitava o teto sem o ver.

Por cima dele, encontrava-se uma mulher enorme de costas para eles, mas podiam ver-lhe a pistola na mão.

– Esta é a recompensa por me teres roubado a vida – disse a mulher. – Filho da mãe. Espero que já estejas no inferno. Gostava que estivesses vivo para poder matar-te outra vez.

A mulher levou o pé atrás e pôs-se a dar pontapés no corpo inerte de James. De súbito, furiosa, começou a pontapeá-lo sem parar, movendo os pés tão rapidamente que pareciam um turbilhão.

– Odeio-te. Ouves-me bem? Odeio-te. Odeio-te!

Shamus empurrou os outros, chegou junto da mulher e agarrou-lhe no braço, mas ela lutou com ele. Virou a raiva contra Shamus e começou a bater-lhe com os punhos e a dar-lhe pontapés nas canelas com os sapatos de sola dura.

– Calma, calma! – disse Shamus, conseguindo imobilizar-lhe os braços entre o seu corpo e o dela.

Tratava-se de uma mulher grande e forte e Shamus era o único que poderia mantê-la quieta. Quando lhe prendeu os braços, impedindo que continuasse a bater, empurrou-lhe a cabeça para baixo do seu ombro e virou-lhe o rosto para os outros que ainda continuavam junto à ombreira da porta.

Edilean precisou de todo o seu autodomínio para não soltar uma exclamação, pois a mulher era de uma extrema fealdade. Tinha um nariz enorme e curvo e um queixo afiado.

– Prudence! – exclamou Harriet.

Edilean desconhecia o nome, mas sabia quem tinha mais razão para matar James Harcourt e ouvira falar da fealdade da sua esposa.

– A mulher do James – disse ela.

Edilean saiu do seu torpor.

– Harriet! – exclamou num tom brusco e em seguida teve de repetir. – Harriet! Ouve-me! Quero que vás lá acima e lhe dês algum do láudano de que o teu irmão tanto gosta... gostava. Estás a ouvir-me?

Ao ver que Harriet não reagia e continuava a fitar o corpo do irmão prostrado no chão, Edilean olhou para Malcolm, pedindo-lhe ajuda.

– Acabou tudo! – disse ele, meigamente, e abraçando Harriet. – Está tudo acabado. Ele já não te incomodará mais.

– Quando é que James a incomodou? – perguntou Edilean.

– Há anos que anda a chantagear a Harriet.

– Sabiam? – retorquiu Harriet, erguendo a cabeça do seu ombro para o olhar.

– Sim, sabíamos e temos estado à espera do seu regresso. Agora, vamos pô-las novamente na cama. Shamus! Leva Miss Prudence lá para cima. Colocaremos as mulheres na mesma cama e damos-lhes... – Olhou para Edilean.

– Láudano – completou ela, piscando os olhos.

Chantagem. Não conseguia deixar de se interrogar como Harriet teria pago a chantagem. James não seria barato.

– O que está a pensar é verdade – retorquiu ele, fitando-a com uma expressão furiosa. – Foi o dinheiro da sua empresa que pagou a chantagem, mas a Harriet estava a protegê-la. Se planeia tentar metê-la na prisão, terá de passar primeiro por cima de mim.

Com estas palavras, ajudou Harriet a subir as escadas. Shamus, encarregado de Prudence, seguia logo atrás.

Edilean ficou de pé, na ombreira da porta da sala, com o cadáver de James no chão, a poucos centímetros. Contudo, sentia-se muito mais chocada com o que Malcolm dissera do que com a morte de James. O que fizera para levá-lo, ou qualquer outra pessoa, a pensar que levantaria um processo a Harriet que tomara conta dela durante anos? Harriet tinha...

Edilean negou-se a continuar a pensar nas palavras que lhe haviam sido dirigidas. Naquele momento, o mais importante era saber o que fazer com o morto no chão da sua sala. Entrou lentamente na divisão e baixou os olhos para o examinar. A luz era escassa, mas permitia-lhe ver que perdera a beleza de outros tempos. Ou seria porque se habituara aos homens americanos que passavam a vida ao ar livre e trabalhavam no duro? Por comparação, James parecia pálido e fraco.

Fosse como fosse, interrogou-se sobre o que vira nele.

– Miss Edilean?

Virou-se e deparou com Malcolm de pé, na ombreira. Não conseguiu deixar de o fitar com uma expressão fria.

– A Harriet está bem?

– Muito melhor, obrigado – respondeu Malcolm, num tom constrangido. – Disse-lhe algumas coisas despropositadas. Foi no calor do momento e quero pedir desculpa. Sei que a Harriet quase foi levada à loucura por esse... esse homem – concluiu com um olhar desdenhoso para o corpo de James estendido no chão.

– Compreendo – retorquiu Edilean, mas estava a mentir, pois sentia-se magoada por ele achar que levantaria um processo a Harriet. – Seria incapaz de prejudicá-la.

– Eu sei, mas ela está tão preocupada.

– Agora, tem-no a si para cuidar dela – disse Edilean, erguendo a mão ao ver que ele se preparava para interromper. – Acho que tudo isto pode ser discutido mais tarde. De momento, precisamos de fazer algo quanto ao corpo deste homem.

– Tenciona chamar o xerife?

– Para ele oferecer uma medalha à Prudence?

Malcolm piscou os olhos algumas vezes e depois sorriu.

– É o que todos achamos, mas visto que dantes... – Encolheu os ombros.

– O amei? Talvez fosse verdade. Era uma ingénua e ele era bonito. Posso ser perdoada por essa idiotice, não posso?

– Acho que pode ser perdoada por tudo.

– Agora que está tudo resolvido, o que fazemos com ele? O chão da minha sala vai ficar arruinado.

– Com os tiros que foram disparados e agora com o sangue, penso que tem de substituir o chão – riu Malcolm. – A menos que haja mais homens na sua vida e devamos esperar um tiro de canhão a qualquer momento.

Edilean também se riu e afundou-se numa cadeira.

– O que vamos fazer com esse corpo?

– Tem de perguntar ao Angus.

Edilean achou que ele estava a brincar.

– Para que ele possa vesti-lo de índio e culpá-los por isto? Garanto que os americanos culpam esses índios por tudo o que acontece. Ainda na semana passada... – Interrompeu-se e fitou o rosto de Malcolm. Ele não estava a brincar.

– Muito bem – disse, finalmente. – Vá buscá-lo. E, enquanto estiver ausente, farei as malas e sairei daqui. Talvez me mude permanentemente para aquela propriedade no Connecticut.

– Não – ripostou Malcolm, enquanto se colocava do outro lado do corpo de James. – Tem de ser você a ir buscá-lo.

– Eu? Esqueceu-se de que sou aquela que tentou matá-lo nesta mesma sala há três semanas? Se não puder ir, mandarei o Tam. O Angus adora o seu jovem primo.

– O Angus está... bom, está um tanto zangado connosco neste momento e não vai falar-nos.

– O que lhe fez? Não, pensando bem, não me diga.

– Não lhe contámos toda a verdade sobre o motivo por que viemos para a América.

– Há mais alguma coisa do que a morte do meu tio?

– Foi Miss Prudence que nos pagou a viagem e nos contratou para descobrirmos o marido.

Edilean fitou-o durante um momento.

– Não conheço muito bem a lei, mas acho que vocês os três podem ser acusados de cúmplices do assassínio.

Malcolm encolheu os ombros.

– O Angus está irritado com a vossa participação neste processo? Desde quando é que se tornou um defensor do James Harcourt?

Malcolm olhou através da janela.

– Sabe, jovem, não quero apressá-la, mas acho que devia partir imediatamente. Ainda faltam horas para o amanhecer, mas podemos necessitar desse tempo de escuridão. Não me parece que, de manhã, a criada se mantenha calada ao descobrir um cadáver no chão da sala.

– Teria de ser a criada que foi condenada por violação de sepulturas ou a que foi condenada por ter chicoteado o padrasto?

Malcolm abanou a cabeça.

– Oh, rapariga, se ao menos eu fosse mais novo. Contudo, tem de ir buscar o Angus. Ele conhece este país, mas nós não. Saberá o que fazer e como esconder um cadáver. Iríamos nós, mas ele disse que não queria ter nada a ver connosco até lhe contarmos toda a verdade. Só que jurámos a Miss Prudence que não o faríamos.

– E o Angus tem um fraquinho por ela.

– Por favor, diga-me que está a brincar – pronunciou Malcolm com uma expressão séria. – O Shamus está completamente apaixonado pela mulher e ela por ele. Se o Angus também a desejar, teremos problemas dos grandes. Eles...

– Como posso saber o que ele quer? – quase berrou Edilean e depois olhou para o teto ao ouvir o que lhe pareceu um grito abafado.

– Tenho de ir – disse Malcolm. – E você também. O Angus está na taberna onde dantes trabalhava – acrescentou, saindo rapidamente da sala.

– Claro que sim. Onde mais estaria? – retorquiu Edilean. – No mesmo quarto, a dormir na mesma cama.

Desejava correr ao andar de cima e dizer aos homens que não podia fazer aquilo. Faria tudo menos ir ao encontro de Angus, mas olhou para o cadáver no chão da sala e pensou na pobre Prudence a ser enforcada por matar alguém que merecia ser morto e dirigiu-se à porta. Porém, voltou atrás e deu um rápido e forte pontapé nas costelas de James.

– Isto é por mim – disse e abandonou a sala.


24

–Angus! – chamou Edilean, baixando os olhos.

Angus estava deitado naquela cama, a que possuía tantas recordações para ela, e sorria. A jovem não duvidava de que estava a ter um sonho agradável. E porque não? Tinha tudo o que alguma vez quisera, não era assim? Nos quatro anos que haviam primado pela ausência de notícias, devia ter ido para a cama com uma centena de mulheres. Talvez mil.

Resistiu ao impulso de virar as costas e sair do quarto, mas Tam estava à espera do lado de fora do celeiro e pressupôs que a mandaria de volta. Malcolm tinha ficado chocado quando Edilean disse que iria sozinha ao encontro de Angus.

– Salteadores! – justificou ele, baixinho.

– Não os temos na América – retorquiu Edilean com uma expressão inocente.

Malcolm fitara-a surpreendido, mas Tam soltou uma gargalhada.

– Ela não tenciona ir ter com o Angus!

Edilean brindou-o com um olhar duro, pois era esse exatamente o seu plano.

– Irei consigo para a proteger – decidiu Tam –, embora este novo país não faça ideia do que é o crime.

Quando ele lhe disse que a aguardaria nas traseiras da casa com os cavalos prontos, Edilean acedera com relutância. Subiu as escadas para se vestir e, movida por um impulso, entrou no quarto de Tam e abriu o baú que se encontrava aos pés da cama. Aos dezanove anos, ele tinha mais vinte centímetros de altura do que ela, mas era muito magro e as suas roupas poderiam servir-lhe. Se ia esgueirar-se pela noite dentro, era impossível fazê-lo vestindo trinta e cinco metros de seda.

Estavam todos no quarto com Prudence e Harriet, de modo que ninguém viu Edilean a passar, com uma camisa branca larga, um colete com tamanho suficiente para lhe ocultar os seios, calções até ao joelho e meias brancas. Tinha calçados os sapatos de trabalho que eram pretos e lisos com fivelas em prata. Atara os cabelos na nuca e deixara-o pender sobre as costas.

Quando chegou ao exterior onde Tam a esperava impacientemente, o jovem arregalou os olhos, mas ela fitou-o com uma tal expressão que o impediu de fazer comentários. Contudo, quando ela subiu para a sela sem ajuda, ele disse: «Belo rapazinho!» e saiu do pátio à sua frente.

Levaram mais de uma hora a chegar à taberna em que Angus vivia e verificaram que o celeiro onde se situava o quarto estava trancado por dentro. Edilean disse a Tam que tinha de içá-la até ao primeiro andar para que pudesse subir ao sótão. O jovem conseguiu pôr-se em pé no cavalo e erguer Edilean até ela apanhar a corda que pendia da roldana por cima da porta do sótão. A jovem deu-se conta de que Tam lhe apalpara as costas mais do que o necessário, mas não disse nada.

Agarrou na corda e conseguiu trepar por ela até chegar à porta aberta. Teve de se balançar para a frente e, por baixo dela, escutou o arquejo de Tam, mas conseguiu entrar, aterrando no chão de madeira e rolando quase até à escada de mão que conduzia ao andar inferior.

– Não mereces o esforço – murmurou entre dentes, enquanto sacudia a poeira da roupa.

Quando esticou a perna para sacudir o feno, sentiu-se contente por estar sem espartilho e uma saia comprida que lhe impediria os movimentos. Olhando em volta para se certificar de que ninguém a via, executou uns passos de dança no chão de madeira, erguendo os joelhos quase até à cintura.

– Edilean! – sussurrou Tam de forma audível do lado de fora. – O que está para aí a fazer? Ouço-a aos saltos!

Com uma careta, a jovem parou de dançar e pensou nos tempos em que Tam estivera tão apaixonado por ela que a olhara fascinado. Agora, dizia-lhe que se apressasse.

Virou-se com um suspiro, desceu pela escada até ao chão e dirigiu-se em bicos de pés à porta de Angus. Quando todos os cavalos deitaram a cabeça para fora das divisórias para a observar, sentiu-se tentada a ficar com eles e a dizer a Tam que Angus não estava ali. Diria que provavelmente se encontrava com outra mulher. Talvez lhe dissesse que...

A recordação de James Harcourt estendido no chão da sua sala transportou-a de volta à realidade. A porta do quarto de Angus estava fechada e pensou em bater, mas receou que alguém pudesse ouvir. Não se haviam apercebido dos muitos ruídos que ela e Angus tinham produzido ao fazerem amor naquele quarto, mas talvez ele tivesse tomado providências.

Experimentou o trinco que se abriu, entrou e, um momento depois, estava a olhar para o rosto dele adormecido. Acendeu rapidamente uma vela e o facto de saber onde a mesma e o sílex se encontravam irritou-a ainda mais.

– Angus! – chamou. – Tens de acordar.

Ao ver que ele não se mexia, aproximou-se mais e Angus estendeu um dos seus compridos braços e puxou-a para cima dele. Antes que pudesse impedi-lo, tentou beijá-la, mas Edilean empurrou-o.

– Não tenho tempo para isso! – disse-lhe ao ouvido. – Há um cadáver no meu salão.

– É provavelmente o meu – retorquiu ele, sem abrir os olhos –, porque agora estou no céu.

Edilean empurrou-o com mais força, mas os braços dele continuaram a agarrá-la.

– Queres parar? Falo a sério. O James Harcourt está na minha casa e morto.

– Harcourt? – repetiu Angus, abrindo os olhos e fitando-a.

– Oh, afinal consegues ouvir-me!

– Ouvi-te aos pulos lá em cima. Edilean, uma coisa é disparares contra mim, embora tomando, sem dúvida, cuidado para não acertares, mas outra totalmente diferente é matar alguém.

– Idiota! – insultou dando-lhe um empurrão com mais força libertando-se dele e ficando junto à cama. – Eu não o matei!

Angus soergueu-se nos cotovelos.

– Mas, aparentemente gostas de disparar contra as pessoas. Está bem – prosseguiu ao ver a expressão dela. – Quem é que o matou?

Edilean colocou as mãos nas ancas.

– O que queres dizer com essa de ter tomado cuidado para não te acertar? Tentei atingir-te, mas não paravas de andar aos saltos. És pior do que as nossas cabras!

– Cabras? – disse Angus, passando a mão pelo rosto. – Edilean, do que estás para aí a falar?

– Estou a tentar que me ouças. Isso nunca aconteceu antes, mas ainda não desisti. O James Harcourt está morto e a esvair-se em sangue no chão da minha sala. Temos de livrar-nos do corpo e o Malcolm mandou-me vir buscar-te. Disse que sabes lidar com todas as coisas dissimuladas, desonestas, furtivas e ilegais que existem e saberias, por conseguinte, o que fazer para evitar que a Prudence seja enforcada.

Depois de a fitar em silêncio durante uns segundos, Angus atirou o cobertor para trás, saiu da cama e começou a vestir-se.

– Prudence? É uma das tuas escravas?

– Elas são jovens contratadas e não escravas. Não, não é minha empregada. Deves saber de quem se trata, pois já te enrolaste com ela na cama.

Angus resmungou enquanto vestia os calções.

– Não me venhas com mais um ataque de ciúmes!

– Ciúmes? – indignou-se Edilean, cerrando os punhos junto ao corpo. – Nunca tive ciúmes teus, independentemente das mulheres com quem dormiste.

– Ah, sim? Então por que outro motivo contrataste a Tabitha senão para a manter longe de mim?

– Seu convencido, arrogante... – Tentou dar-lhe um pontapé na canela, mas ele recuou.

– Não voltarás a apanhar-me desprevenido – sorriu Angus.

Edilean levou as mãos ao rosto, como se estivesse a chorar.

– Oh, Angus! Estou tão assustada. O James foi... Foi horrível!

Mal Angus se aproximou dela, a jovem deu-lhe um pontapé na canela e ele gemeu de dor.

– Sinto-me tentado a pôr-te em cima dos joelhos e a dar-te umas palmadas pelo que fizeste.

– Experimenta! – desafiou.

– Seria demasiado fácil. – Por momentos, fulminaram-se com o olhar. – Quem é a Prudence? – perguntou ele finalmente.

– A mulher do James.

– A mulher dele?

Por um instante, Angus pareceu surpreendido e depois compreendeu.

– Oh, claro. A condessa.

Edilean fitou-o com um leve esgar.

– Então, lembras-te dela. Lembro-me de que não deixaste que a visse, mas levaste-me a acreditar que era tão bonita que tinhas inveja do James.

– Não levei nada!

Edilean deitou-lhe um olhar furibundo.

Angus tentou reprimir um sorriso.

– Talvez o tivesse feito – admitiu. – Queres dar-me um pontapé na outra canela? Ainda não está a sangrar.

– Não vais dar-me a volta, Angus... Qual é o teu nome agora?

– Harcourt – respondeu ele com um encolher de ombros. – Era mais fácil do que pensar num novo nome. Vamos lá? Ou queres ficar a discutir um pouco mais?

– Não quero ter nada a ver contigo.

Angus abriu a porta do quarto e deu passagem a Edilean. No espaço apertado do quarto não conseguira distingui-la com clareza.

– O que diabo tens vestido? – perguntou num tom chocado.

– As roupas do Tam.

– Ah! – exclamou Angus com frieza. – O Tam. Ele ainda está contigo?

– Como se não soubesses tudo o que há para saber sobre a minha vida! – retorquiu Edilean enquanto Angus levantava o trinco da porta do celeiro.

Tam estava lá fora, montado e segurando as rédeas do cavalo de Edilean.

Angus olhou para Tam.

– Para fazer isto, quero saber tudo.

– Fizemos um juramento a Miss Prudence, mas acho que já não é válido.

Edilean pousou o pé no estribo do seu cavalo, mas Angus agarrou-a pela cintura e afastou-a.

– O que é que...? – começou ela, mas interrompeu-se quando Angus subiu para a sela e lhe estendeu a mão. – Preferia ir com o Tam – disse ela.

Angus começou a mover o cavalo.

Edilean praguejou entre dentes, pôs a mão na dele e Angus puxou-a para cima da sela, colocando-a na sua frente. Ainda não tinham passado dois segundos depois de partirem quando ele começou a falar-lhe, com a boca colada ao seu ouvido.

– Naquela manhã deixei-te porque o James apareceu na taberna. Pendurou cartazes com o meu retrato. Não queria que amasses um homem que ia ser executado.

– Isso deveria servir para que te perdoe?

Edilean tentava manter-se direita e afastada do corpo robusto e quente dele. Estava vestida apenas com uma camisa de algodão e um colete e fazia frio.

– Achei que, se soubesses o motivo que me levou a deixar-te naquela noite, poderias sentir-te mais compreensiva.

A respiração dele aquecia-lhe o rosto e ela lembrava-se perfeitamente do seu odor doce.

– Devo sentir-me compreensiva por teres decidido todo o meu futuro num segundo? Sem me perguntares o que eu queria fazer? Aproveitaste-te de mim e depois deixaste-me lá a apodrecer! A Tabitha prostituiu-se na rua e nunca foi tão maltratada.

Angus afastou-se dela, com as costas muito direitas.

– Contaste-lhe sobre mim?

– Sim.

– Falaste a Tabitha, uma das tuas empregadas, sobre ti e eu? – retorquiu num tom incrédulo.

– Cada palavra – confirmou Edilean, sorrindo. – E, para tua informação, a Tabitha e eu tornámo-nos boas amigas. De vez em quando, tenho de pagar-lhe a caução para a tirar da cadeia e fui obrigada a cortar-lhe mais de um ano de salários para devolver o dinheiro às pessoas que ela rouba, mas, se ignorarmos essa faceta da sua personalidade, pode ser uma companhia agradável. Sabe tudo a respeito de homens coleantes.

– Coleantes? Oh, como as cobras...

– Mentirosos, traiçoeiros...

– Entendi – suspirou Angus. – Conta-me, então, o que se passou com o James... se é que vais conseguir deixar de referir todos os meus defeitos.

– Será difícil, mas tive anos e anos e anos para pensar nos teus defeitos.

– Ao todo seis, mas só estive ausente quatro.

– Seis quê?

– Anos. Um «ano», mais outro «ano», mais... – Parou quando ela se torceu na sela para o fitar. – Desculpa. Ias a falar-me do Harcourt e da mulher. Não sei nada sobre eles.

– Exceto que ela o matou.

– Sim, isso eu sei, mas por que razão o matou?

Edilean virou-se e olhou-o.

– Oh, sim. Compreendo o teu ponto de vista. Ele merecia-o. Receio ter de concordar com ela. Onde está agora?

– Com o Shamus.

– Com...? – surpreendeu-se Angus com uma expressão horrorizada. – Deixaste aquela mulher assustada com o Shamus?

– Depois de a Prudence ter morto o James a tiro, começou a dar-lhe pontapés e o Shamus foi o único com força suficiente para a segurar. Mas acho que sabes tudo sobre o seu tamanho e as formas, dado teres passado tanto tempo na cama com ela.

– E ter vivido para contar – retorquiu Angus, baixinho.

– O quê?

– Nada. Estava a tentar pensar que destino vou dar a um corpo numa cidade do tamanho de Boston. Onde o atingiu?

– Já te disse. Na minha sala.

– Não. Em que parte do corpo?

– Na cabeça. No meio da testa. Um tiro perfeito.

– Ainda bem que não estava a disparar contra mim – murmurou Angus.

– Isso significa que ela dispara melhor do que eu?

– Não, querida. Jamais pensaria tal coisa. Edilean, por que razão deixaste aquela pobre mulher transtornada com um bandido como o Shamus?

– Sabes, tanto quanto posso dizer, és a única pessoa que considera o Shamus um malvado. O que aconteceu? Bateu-te quando eram crianças?

Edilean encontrava-se muito perto da verdade e, como estavam a aproximar-se da casa, não lhe respondeu.


25

A primeira coisa que ouviram ao abrir a porta foi o riso. Dadas as circunstâncias, tratava-se de um som absurdo e Angus deitou um olhar interrogativo a Edilean.

– Acho que se deve ao amor – disse ela com um encolher de ombros. – Parece estar por todo o lado à minha volta, não em mim, mas à minha volta. Semelhante a uma doença que não consigo apanhar.

Angus rolou os olhos e dirigiu-se à sala onde apenas três semanas antes Edilean quase lhe dera um tiro. Quando a jovem se encaminhou para a cozinha de onde vinha o riso, ele agarrou-lhe na mão.

– Não quero... vê-lo novamente.

– Se queres a minha ajuda, tens de ficar ao meu lado.

– E por que razão?

– Porque se o James Harcourt estiver morto, tenciono dar o meu melhor para obter o teu perdão por todo o mal que alguma vez te fiz.

Aquelas palavras quase lhe tiraram a respiração, mas preferia morrer a confessar-lhe isso.

– Nunca te perdoarei – garantiu.

– É engraçado como da tua boca saem palavras que não correspondem ao teu olhar – sorriu Angus e arrastou-a para a sala de estar.

Estendido no chão estava realmente James Harcourt e tinha um buraco de bala na testa. Sob a cabeça havia um grande oleado verde.

– Deve ter sido Harriet a fazer aquilo – disse Edilean com um sorriso meigo. – Queixei-me dos estragos do meu chão e ela protegeu-o.

– Acho que te cabia um pouco de respeito pelos mortos – comentou Angus, baixando os olhos para examinar o homem.

– Por ele, não. Julgo que sabias que o James andava a chantagear a Harriet.

– Só me informaram recentemente e posso assegurar-te que não me disseram muita coisa. – Angus inclinou-se para observar o corpo. – Tentei descobrir... – Foi interrompido por um coro de gargalhadas vindo da cozinha. – Quem está ali?

– Não tenho a certeza, mas presumo que se trate do Malcolm, da Harriet, do Shamus e da Prudence.

Angus abriu momentaneamente a boca e voltou a fechá-la.

– Estão acasalados assim?

– Porque não? – ripostou Edilean. – É uma coisa normal. Na verdade, acabei de conhecer uma jovem viúva que considero o par ideal para o Tam. Ela é apenas uns anos mais velha, mas acho que gostarão um do outro. Vou convidá-la a vir até cá. Sei que o Tam tenciona regressar à Escócia para ser o laird, mas talvez ela queira acompanhá-lo.

– E viver naquele velho castelo? Sem janelas envidraçadas? Gostará de cuidar das mais de duzentas pessoas que pertencem ao clã McTern?

– Não sei – respondeu Edilean. – Penso que isso será uma coisa mais do agrado da Harriet. Ela é a mãe de todas as jovens da empresa. Ela... – Interrompeu-se de olhos muito abertos.

Angus sorriu pois lera o que lhe ia no pensamento.

– Queres dizer que o Malcolm gosta de Harriet?

– Estavas presente quando eles se conheceram, portanto, viste como se olharam.

– Referes-te ao dia em que vocês disparavam contra mim? Desculpa ter estado demasiado ocupado com outras coisas e não ter percebido que os olhares da Harriet para o meu tio se deviam a um interesse amoroso.

Edilean ignorou a queixa.

– A Harriet e o Malcolm são inseparáveis. Ela iria atrás se ele dissesse que ia construir uma casa na Lua.

– Parece-me uma boa descrição do forte do clã McTern.

Ele endireitou-se e baixou os olhos para James.

– Primeiro, temos de livrar-nos do corpo dele e certificar-nos de que Mistress Harcourt não será acusada de assassínio. Em seguida, podemos planear outras coisas.

– Tais como mandar o Malcolm e a Harriet de volta à Escócia e manter o Tam aqui?

– Os nossos raciocínios coincidem – retorquiu Angus, sorrindo-lhe com um brilho de amor no olhar.

– Não coincidem nada – ripostou Edilean. – E agora que penso nisso, é uma péssima ideia. O Malcolm e a Harriet são demasiado velhos para terem filhos, portanto quem herdaria?

Entreolharam-se e responderam em uníssono:

– A Kenna.

– É bom ver que vocês fizeram as pazes – disse Malcolm, da ombreira da porta.

Edilean fitou Angus, como que a perguntar o que Malcolm ouvira.

– Tudo pode compor-se, mas nunca te perdoarei – disse Angus. – Isto aconteceu porque não me contaste por que razão vocês se encontravam neste país. Se o tivesses feito, podia ter evitado que isto acontecesse.

– E como o terias feito? – quis saber Malcolm, com uma expressão imperturbável. Segurava uma enorme caneca de cerveja na mão e aparentemente bebera mais algumas.

– Retirando Mistress Harcourt deste país – respondeu Angus.

– Ela não queria ir-se embora até concluir o que viera fazer.

– Queres dizer que a ajudaste a matá-lo?

– Ela não planeava fazê-lo, mas, se assim fosse, entenderia – respondeu Malcolm com um encolher de ombros. – Devias convencê-la a contar-te toda a história. Tu e Miss Edilean abandonaram a Escócia e divertiram-se a impedir a traição do Harcourt, mas deixaram a pobre Miss Prudence entregue à raiva dele. Ele não gostou de ser atraiçoado. Agora, rapaz, o que vais fazer para te livrares do corpo?

– Cortá-lo aos pedaços e levá-lo daqui aos poucos.

Edilean arquejou e levou as mãos à garganta, mas Malcolm soltou uma gargalhada.

– Vou buscar a minha serra.

– Diz ao Tam que tenha a carruagem grande pronta – ordenou e olhou para Edilean. – Ainda tens os pesados baús onde o ouro foi transportado?

– Estão no sótão – respondeu ela, assentindo com a cabeça.

– Então, manda o Shamus trazer um deles para baixo. – Fitou Malcolm e acrescentou: – A Prudence está em condições de viajar e de falar? Ou embebedaste-a tanto que não sabe o que faz?

Malcolm virou o rosto na direção da cozinha e baixou a voz.

– Não a conheces, pois não, rapaz? Ela consegue aguentar mais bebida do que o Shamus.

Angus ergueu tanto as sobrancelhas que quase lhe desapareceram no meio dos cabelos.

– Presumo que agora desejavas ter casado com ela – murmurou Edilean enquanto se dispunha a seguir Malcolm para fora da sala.

Contudo, Angus agarrou-lhe no braço e atraiu-a contra o seu corpo, baixou os lábios e beijou-a com toda a emoção reprimida e a saudade que sentira dela nos últimos quatro anos. Quando parou, Edilean erguera os pés do chão e estava totalmente nos seus braços.

– Quero deixar bem claro o seguinte – disse ele. – Estive apaixonado por ti durante o que me parece toda a vida. Desde o primeiro momento em que te vi que não consegui afastar-me. Em Glasgow, não pude suportar deixar-te.

«Edilean – sussurrou, colando os lábios ao pescoço dela. – Desculpa ter-te abandonado depois da única noite que passámos juntos, mas fui obrigado a fazê-lo. Havia mandados de captura contra mim. Se tivesse permanecido ao teu lado, apanhavam-me e depois o que farias?

– Teria ficado ao teu lado – respondeu ela, rodeando-lhe o pescoço com os braços e de olhos fechados ante os seus beijos.

– Exato – disse ele. – Ficarias a ver enquanto me arrastavam para a prisão ou para o cadafalso. E depois terias...

– Podem fazer isso mais tarde? – perguntou Tam, da ombreira.

– Só estás irritado porque não tens uma mulher – retorquiu Angus, sem desviar os olhos de Edilean.

– Se tivesse uma, desejaria protegê-la do nascer do Sol e de ser apanhada com um homem morto na sala.

Angus deu mais um beijo a Edilean e pousou-a no chão.

– Vai! – ordenou. – Manda o Shamus trazer esse baú para baixo. – Fitou Tam, que franzia o sobrolho. – A carruagem está pronta?

– Há cerca de uma hora – respondeu Tam, exagerando.

– Ótimo. Então, mete as mulheres lá dentro.

– Não acho... – começou Tam, mas Angus interrompeu-o.

– Tanto quanto sei, continuo a ser o laird e não te pedi opinião. Mete todas as mulheres dentro da carruagem e depressa.

Tam hesitou apenas um segundo antes de voltar a correr à cozinha.

Quando Angus ficou só na sala, olhou para o corpo de James Harcourt estendido no chão. Com a morte dele e a do tio de Edilean, o medo com que Angus vivera durante tanto tempo desaparecera. Não havia mais ninguém para testemunhar que Angus havia roubado o ouro... e Edilean.

Angus tinha a sensação de que passara a maior parte da vida a fugir e a esconder-se. Não era verdade, mas assim lhe parecia. Agora, estava livre e ele e Edilean poderiam finalmente ficar juntos, isto é, se ela o aceitasse. Sorriu ante esse pensamento. Talvez, no íntimo, ela ainda estivesse zangada com ele, mas acabara de se certificar que o mesmo não se passava com o seu corpo.

Levou quarenta e cinco minutos a meter James no baú e a pesada caixa nas traseiras da carruagem. Malcolm e Shamus subiram para a parte da frente, conduzindo os quatro cavalos, enquanto Tam seguiria na parte detrás, Angus no interior com Edilean ao seu lado, e Harriet e Prudence à frente dele. Malcolm sorrira quando Angus lhe indicara o nome e o local para onde iam.

– São do rapaz a quem salvaste a vida? – perguntou.

– Sim – respondeu Angus. – Matthew Aldredge. – Ele está em Boston e vai estudar por cá.

– Para se tornar médico? – inquiriu Malcolm.

Angus assentiu com a cabeça.

– Sim. Ele saberá o que fazer com um cadáver – respondeu, enquanto subia para a carruagem e se sentava ao lado de Edilean.

Houve uma breve discussão no interior, quando Harriet dissera que Edilean não poderia aparecer em público vestida com roupa de homem.

– As tuas... as tuas pernas estão à mostra! – observou ela.

– Pois estão! – anuiu Edilean, esticando uma das pernas e examinando-a nos calções que eram demasiado largos. – Mas que sensação maravilhosa. Estou a pensar em cortar o cabelo e passar a vestir-me como um rapaz.

– É bonita de mais para o fazer – retorquiu Prudence. – Não vai funcionar.

A solenidade com que se pronunciou trouxe-os de volta à realidade.

– A Edilean pode ficar na carruagem e ninguém a verá – decidiu Angus enquanto saíam do pátio que ficava entre a casa e o abrigo da carruagem. Recostou-se no banco, fitou Prudence no meio da penumbra e disse: – Quero ouvir toda a sua história.

Prudence começou por se desculpar a Angus pelo seu comportamento na noite em que o conhecera.

– Sentia-me infeliz com o meu casamento e julguei que você era um dos muitos credores de James.

Angus encolheu os ombros com indiferença e ignorou o olhar que Edilean lhe dirigiu. Pensou com um leve sorriso que se tratava de mais uma questão que teria de explicar.

Ainda não se habituara à aparência de Prudence. Tratava-se de uma mulher grande e masculina, com mãos enormes e ombros largos. O único pormenor feminino residia na farta cabeleira ruiva.

Harriet estendeu o braço e apertou a enorme mão de Prudence e Angus tomou consciência de que eram cunhadas e também pareciam amigas.

– Penso que devo ser eu a começar – disse Harriet, olhando para Edilean. – Lembras-te de quando voltaste há quatro anos depois do teu encontro com a Tabitha?

– Encontro? – retorquiu Edilean. – Queres dizer quando lutei com ela quase até à morte e depois passei a noite... – Fitou Angus. – Acho que me lembro dessa noite. Depois, ficaste tão nervosa que te sobressaltavas com o mínimo ruído.

– Isso foi porque o James tinha aparecido na noite anterior com documentos comprovativos de que eras sua mulher.

– Sua quê? – redarguiu Edilean. – Nunca me casei com ele.

– Eu sei, mas ele estava de posse de uma certidão de casamento com o teu nome. Disse-me que tencionava ir a um advogado para te processar porque vocês tinham casado em Inglaterra, mas usaras o nome e o ouro dele para fugires com o teu amante para a América.

– Isso é impossível! – exclamou Edilean.

– E também tinha uma declaração do capitão do navio em que vocês os dois viajaram como Mister e Mistress Harcourt. Continuaste a usar o apelido Harcourt.

– Mas... – começou Edilean.

– O James tinha o apoio do seu tio – interferiu Prudence. – Não a vi, mas disseram-me que havia uma carta do seu tio a certificar que era casada com o James Harcourt.

Edilean deixou-se cair no assento almofadado. Não conseguia entender aquelas mentiras descaradas.

Angus pegou-lhe na mão e conservou-a entre as dele.

– E quanto a si? – dirigiu-se a Prudence. – O que lhe aconteceu depois da noite em que nos... conhecemos?

– Regressei a casa do meu pai e estou satisfeita por poder dizer que ele ficou contente por me ver. Sem a minha presença, os poucos criados que tínhamos estavam a dirigir tudo e o meu pai nem uma refeição decente lhes arrancava. Voltei a pôr tudo na ordem e nunca falámos do meu marido nem do que acontecera.

– E você pagou ao James – concluiu Angus, fitando Harriet.

– Era a única coisa que podia fazer.

– Por que razão nunca me contaste? – perguntou Edilean. – Eu podia ter lidado com o James.

– Estavas tão infeliz com o que quer que acontecera nessa noite – respondeu Harriet com um olhar duro dirigido a Angus. – Era-me impossível aumentar a tua tristeza. Além disso, estavas sobrecarregada com o início do negócio. Não conseguia sobrecarregar-te ainda mais.

– Então, em vez disso, pagaste-lhe – disse Edilean. – Como o fizeste?

Angus apertou a mão de Edilean, mas ela não desviou os olhos de Harriet.

– Procedi a uns ajustes nos livros de contabilidade. Não foi muito difícil.

– Quanto lhe deste? – inquiriu Edilean. – O que quer que fosse, não bastaria ao James, visto ele achar que tinha direito a tudo.

– Podemos falar de números mais tarde – sugeriu Angus, fitando Prudence. – O que quero saber é como se meteu nisso e como envolveu a minha família.

– O James matou-me – disse Prudence.

Angus e Edilean fitaram-na.

Os olhos de Harriet encheram-se de lágrimas ao mesmo tempo que prendeu a mão de Prudence entre as dela.

– Foi tudo culpa minha – disse, olhando para Edilean. – Tinhas razão quanto ao dinheiro. O James continuava a exigir cada vez mais. Eu... tu pagaste a renda numa casa em Nova Iorque e compraste-lhe roupa. Pagaste-lhe as contas dos bares. Tu...

– Por quanto tempo? – indagou Edilean.

– Até eu não conseguir aguentar mais. Três anos.

– Nem sequer quero pensar no total – retorquiu Edilean. – O James é culpado pela diminuição dos lucros no terceiro ano do nosso negócio?

– Sim – respondeu Harriet enquanto as lágrimas começavam a molhar-lhe o rosto. – Edilean, lamento tanto. Deste-me toda a tua confiança e atraiçoei-te. Eu...

– Salvou-a – disse Angus num tom impaciente. – Como é que o James... – Olhou para Prudence e suavizou o tom de voz. – Como a «matou» ele? E porquê? Se estava em Inglaterra, que mal lhe fez?

– Quando deixei de pagar ao James – explicou Harriet –, ele ficou furioso, como é fácil de imaginar. Tivemos uma discussão horrível e ele jurou que se vingaria. Disse que iria ter com o tio da Edilean e faria com que ele o ajudasse. Lembre-se de que a Edilean continuava sob a tutela do tio quando fugiu consigo.

– E foi? – perguntou Angus.

– Sim – confirmou Prudence. – Desconheço os pormenores do encontro, mas acho que o Lawler troçou dele.

– Conhecendo o homem, não me espanto – comentou Angus.

– O que sei – prosseguiu Prudence, fitando Edilean – é que o seu tio disse ao James que não podia fazer nada porque ele estava casado comigo.

– Mostra-lhes – pediu Harriet, olhando para Prudence.

Após uma leve hesitação, ela desapertou o lenço à volta do espartilho e tirou-o. Edilean soltou uma exclamação abafada ao ver-lhe a cicatriz na garganta. Era profunda, vermelha e parecia rodear-lhe todo o pescoço.

– Naquele dia, eu estivera na casa da propriedade, pois tínhamos um vitelo novo que nascera durante a noite – contou Prudence. – Regressava quando dois homens a cavalo apareceram de repente na estrada. Afastei-me para lhes dar passagem, mas aproximaram-se tanto que caí para a berma. Quando ouvi um deles a desmontar, gritei-lhe que visse por onde andava.

Harriet agarrou a mão de Prudence com mais força.

– O homem era grande, ainda mais alto do que o meu Shamus.

Frente à palavra carinhosa, Angus apertou a mão de Edilean, mas não deu qualquer indício exterior de que a tinha ouvido.

– Ele... ele... – Prudence deixou de falar e virou a cabeça.

– O homem colocou um garrote à volta da cabeça dela e começou a estrangulá-la – explicou Harriet. – Torceu e puxou até que a Pru desmaiou e ele julgou que a matara – prosseguiu, respirando fundo. – Entretanto, o meu irmão estava sentado no cavalo a observar.

Edilean soltou uma exclamação abafada.

– Lamento muito – disse ela a Prudence. – A culpa é toda minha. Senti-me fascinada pelo James, porque ele não era igual aos outros. Foi o único homem que não me perseguiu. Se ele não tivesse...

– Não vou permitir que te culpes – interrompeu Harriet. – Mesmo em criança, o meu irmão era terrivelmente mimado. A nossa mãe usava-o contra o nosso pai. Mas isso já não interessa – acrescentou com um gesto do braço.

– A senhora conseguiu recuperar – disse Angus a Prudence.

– Sim, mas só por acaso. Esquecera-me do bolo que a mulher do fazendeiro tinha feito para o meu pai e ela apareceu a correr pela estrada montada no seu pequeno pónei, a tentar apanhar-me. Acho que foi essa a razão por que o James e o seu assassino a soldo não se detiveram a verificar se eu estava morta. Devem tê-la ouvido a aproximar-se, pois quando me viram estendida na estrada, desapareceram. – Parou para tomar fôlego. – Durante os três meses seguintes só consegui beber líquidos. Tinham de me esmagar a comida e passou quase um ano antes de conseguir recuperar totalmente a voz.

Harriet fitou Angus.

– Devido a toda a tensão, o coração do pai dela não aguentou.

– Após a sua morte – prosseguiu Prudence –, tive de vender tudo para pagar as dívidas. A mansão, a casa da propriedade, foi tudo vendido. Era o lugar onde a minha família vivia há quatrocentos anos, mas deixou de existir.

– Por conseguinte, veio à América para encontrar o James – concluiu Angus.

– Não. Primeiro fui visitar o seu tio – dirigiu-se a Edilean.

– Mas porquê? É impossível ter pensado que a ajudaria. Ele não era um homem que acreditasse na justiça.

Prudence manteve-se em silêncio e Angus perguntou:

– Como soube da existência dele?

– Naquele dia – respondeu Prudence, abanando a cabeça. – Naquele dia em que tudo mudou.

Fitou Angus com uma expressão que quase lhe provocou um sorriso, mas Edilean observava-o atentamente e ele reprimiu-se. A mulher referia-se ao dia em que Angus e Edilean haviam frustrado a tentativa de James de fugir para a América com o ouro.

– Dormi o dia todo – prosseguiu – e só acordei quando o James entrou no quarto. Ele vinha a cambalear sob o efeito da droga, mas estava suficientemente lúcido para dar vazão à raiva. Tinha apenas a roupa interior. – Prudence levou a mão à boca, como que para abafar uma risadinha. – Era a única que lhe restava; as outras encontravam-se no navio e no seu corpo.

Prudence pousou o olhar no colete de Angus.

– Acho que esse era o favorito do James.

– Ah, era? – retorquiu Edilean. – Também é o meu. Sempre considerei o James um homem de gosto refinado.

– Ele cobrou-lhe tudo – redarguiu Prudence.

– Eu sei. Vi as faturas. Mas não fui obrigada a pagá-las – rematou, sorrindo.

– O que fez ele quando descobriu que o navio tinha levantado âncora? – inquiriu Angus.

– Ficou louco de raiva. Tinha planeado tudo ao mínimo pormenor.

– Contou-lhe o que fizera? – quis saber Angus.

– Não diretamente, não como se estivesse a falar comigo. – Prudence premiu os lábios numa linha reta que os dissimulou e o queixo afilado quase tocou na ponta do nariz. – Mencionou, furioso, que desposara algo como eu para apanhar o ouro da jovem bonita, mas que você... – Olhou para Angus – ... lhe roubou tudo. O James disse que eu era...

– Acho que todos podemos adivinhar o que o James disse – interrompeu Edilean, erguendo o tom de voz. – Deixou-o nesse dia?

– Sim – anuiu Prudence. – Apanhei uma carruagem para casa do meu pai e nunca mais vi ou ouvi falar do James até três anos depois, quando estavam a estrangular-me e ele me observava, montado no cavalo, a sorrir.

– Porém, quando ficou curada foi visitar o Lawler – disse Angus.

– Queria descobrir se ele sabia onde você estava – retorquiu, dirigindo-se a Edilean.

– Eu? – surpreendeu-se a jovem, recuando no assento.

Edilean fora capaz de lutar com Tabitha, mas tinha consciência de que se aquela mulher a atacasse sairia derrotada.

Angus apertou-lhe a mão para a tranquilizar.

– Suponho que buscava algo que a Edilean tinha na sua posse – disse.

– Sim – anuiu Prudence, fitando Angus bem no fundo dos olhos.

Edilean manteve-se em silêncio, mas sentou-se mais direita na carruagem. A parure. Era isso o que Prudence procurava. Porém, há muito que ela desaparecera. Angus levara-a na noite em que tinha abandonado Edilean.

– O que deseja, encontra-se bem guardado num cofre aqui em Boston – disse Angus.

– O quê? – redarguiu Edilean. – Eu dei-ta. Queres dizer que depois de tudo o que passei para as recuperar das mãos da ladra da Tabitha, a puseste num banco e não a vendeste?

– As joias nunca me pertenceram – defendeu-se Angus. – Como poderia aceitar tal coisa?

– Importam-se de me dizer do que estão a falar? – perguntou Harriet.

– O conjunto está a salvo? – quis saber Prudence, e quando Angus assentiu com a cabeça, desatou a chorar ruidosamente. – Não foi vendido? Não se destinou a pagar as dívidas de jogo do James? Ainda o tem?

Por cima deles, Shamus espreitou através da janela para o interior da carruagem e fixou Angus.

– Se a fizeres chorar, desfaço-te.

– Está tudo bem, Shamus, meu querido – garantiu Prudence, fungando e assoando-se para o lenço que Harriet lhe estendeu. – Tudo muito bem. Conto-te mais tarde.

Depois de mais um olhar de aviso para Angus, Shamus voltou a endireitar-se no banco do condutor.

Angus estendeu a mão e fechou o vidro da janela.

– É um homem bom – elogiou Prudence, agarrando-lhe na mão.

– Às vezes – murmurou Edilean.

– Gostaria muito de saber do que estão para aí a falar – disse Harriet e Edilean fez-lhe a vontade.

– Uma parure? Um conjunto de joias?

– Diamantes – esclareceu Edilean.

Prudence assentiu com a cabeça.

– O meu pai falou-me delas pouco antes de morrer. Ignorava que ele as tinha e o banco também o ignorava. Disse-me que as guardara para o casamento da filha e que era esse o seu destino. – Voltou a assoar-se. – Podia tê-las vendido e saldar uma porção de dívidas, mas não o fez. Reservou-as para mim e colocou-as secretamente no meu baú. Não deixou que as visse antes do casamento, pois tinha medo de que o James as roubasse. Presumiu corretamente que ele nunca vasculharia o meu baú. Não tínhamos um casamento de intimidade.

– Quando tudo isto acabar, devolvo-lho tudo – prometeu Angus. – Falta um brinco e algumas pulseiras, mas...

– Eu tenho o resto – interrompeu Edilean e todos a fitaram. – O meu criado encontrou tudo depois de o homem que roubou os diamantes à Tabitha os vender.

– Por que razão querias o resto do conjunto? – perguntou Angus. – Achei que se me odiavas não desejarias ter nada a ver com o assunto.

Edilean manteve o olhar em Prudence e não lhe respondeu.

– Presumo que conheceu o Malcolm quando foi visitar o meu tio.

– Sim – anuiu Prudence com uma expressão mais suave. – E foi nessa altura que conheci o Shamus. Ele sabia muita coisa sobre vocês, para onde tinham ido e sobre a carruagem cheia de baús com ouro. Oh! – exclamou.

– O que se passa? – inquiriu Harriet.

– Os baús com o ouro. O James não falava praticamente de outra coisa quando descobriu que vocês tinham partido sem ele e agora... agora...

– Está dentro de um deles – disse Angus e sussurrou: – Temos de ter cuidado com o que desejamos.

– Conseguiu que o Malcolm, o Shamus e o Tam a ajudassem – observou Edilean.

– Sim – concordou Prudence. – Recebi algum dinheiro pela venda da propriedade e paguei a nossa viagem para a América.

– Veio, portanto, no navio com o Shamus? – perguntou Edilean.

– Sim – respondeu Prudence e todo o seu rosto brilhava.

– Que maravilha! – comentou Edilean.

– Que estranho! – murmurou Angus e em seguida afastou a perna de Edilean, antes que ela lhe desse um pontapé.

– Ele é um bom homem, mas foi maltratado durante toda a vida. O Shamus quer recomeçar onde as pessoas não o julguem pelo que o pai fez.

– Tal como soltar a cilha da sela de uma jovem? – murmurou Angus.

– Ele nunca faria tal coisa. É um homem bom e atencioso.

Prudence fitou Angus para que soubesse o que Shamus lhe contara a respeito dele.

Angus olhou para Edilean como que a pedir aprovação, mas ela sempre gostara de Shamus. Angus afastou a cortina de cabedal que tapava a janela e contemplou o exterior.

– Estamos quase a chegar – informou, fitando novamente Prudence. – Quero que me conte como acabou por disparar contra o James.

Todos os que seguiam na carruagem ficaram silenciosos, de olhos presos em Prudence.

– Não era essa a minha intenção – começou Prudence. – Eu estava... o Shamus e eu estávamos...

– No quarto do Cuddy por cima da cocheira – completou Harriet, impaciente. – Todos sabemos isso e, a propósito, acho que pagaste demasiado ao Cuddy pelo uso do seu quarto. – Harriet fitou Edilean. – Desde que te ajudou naquela noite quando tu e... – Parou um momento. – Seja como for, acho que o Cuthbert abusa da sua liberdade.

– Ele desviou metade dos lucros do ano? – ripostou Edilean.

– Fi-lo porque... – começou Harriet, mas Angus interrompeu-a.

– Podem ajustar essas contas mais tarde. Tenho por regra nunca discutir quando um cadáver se encontra na mesma carruagem que eu. Por conseguinte, Mistress Harcourt, dizia que...

– Por favor, não me trate assim – pediu Prudence. – Não consigo aguentar o nome. Terei todo o gosto em aceitar o apelido de Frazier, vindo do Shamus. Nós...

Angus fitou-a com uma expressão dura.

– Sim, voltemos aos tiros. Olhei lá para fora, avistei uma luz na cozinha, pensei que era a Harriet e que algo estava errado e entrei. Contudo, ao chegar, a luz passara para a sala. Ali estava o James a encher um saco com castiçais de prata. Acho que fiz barulho, porque ele virou-se e tinha uma pistola na mão. «Mas tu estás morta», disse ele. Tentei raciocinar rapidamente e respondi: «Estou sim e vou levar-te para a tumba comigo.» «Com os diabos é que vais», respondeu ele e apontou-me a arma. Saltei, enrolámo-nos, a pistola disparou e ele caiu no chão. Morto. Acho que gritei.

Por um momento, os outros ficaram silenciosos a olhá-la. Todos sabiam que a sua história era mentira, mas ninguém se pronunciou. Uma dupla a lutar com uma pistola não acaba com uma das partes a ficar com um buraco mesmo no meio da testa. Talvez na barriga, mas não na cabeça. Além disso, todos sabiam que a pistola de que Prudence se servira pertencia a Cuddy.

Harriet e Edilean fitaram Angus, aguardando a sua opinião.

– Foi o que pensei – disse ele. – Legítima defesa.

– Sim, claro – anuiu Harriet e fitou Edilean, que se pronunciou:

– Não podia ser outra coisa.

Ninguém se entreolhou com receio de que as dúvidas viessem à flor da pele.

Angus ficou satisfeito quando a carruagem parou.

– Chegámos. Acho que seria melhor eu entrar e falar a sós com o jovem. Conhecemo-nos, mas não muito bem, e receio que isto possa ser um choque para ele. Resolverei tudo e depois podemos ir para casa. De acordo?

As mulheres assentiram com a cabeça e mantiveram-se sentadas enquanto Angus saía da carruagem. Ao ficarem sós, Edilean olhou para as outras e perguntou:

– Quem vai ser a primeira a sair?

Como quando acabou a frase já se encontrava com o corpo metade de fora, tratava-se de uma pergunta retórica. Por uma questão de tamanho, Prudence foi a segunda e Harriet desceu em último lugar, alisando o cabelo e tentando parecer o melhor possível, como se estivesse em qualquer missão que em nada se relacionava com o que faziam.

Harriet observou Edilean vestida com a roupa masculina e dispunha-se a falar, mas Edilean fez uma expressão que a fez calar.

As três mulheres dirigiram-se à casa de Matthew Aldredge seguidas pelos três escoceses.


26

«Duas semanas», pensou Edilean. Duas semanas inteiras desde a última vez que vira Angus.

Depois daquela noite em que se haviam dirigido a casa de Matthew Aldredge e depois do que acontecera ao corpo do pobre James, Angus disse que não regressaria a casa com elas.

Foi só nesse instante que Edilean se apercebeu que ansiara pela discussão que os dois teriam. Angus dir-lhe-ia que estava arrependido por a haver deixado e ela responderia que jamais lhe perdoaria, depois... tudo acabaria com ele de joelhos, a implorar que o desposasse. Finalmente, ela acabaria por aceitar, mas levaria tempo e tencionava fazê-lo sofrer.

Edilean fora a ponto de imaginar como planearia com Harriet e Prudence o triplo casamento na igreja de Boston. Casariam juntos, mas depois separar-se-iam para as respetivas viagens de núpcias. Edilean sentia-se estonteada com todo aquele romantismo.

Porém, como sempre acontecia com Angus, nada se processou como ela tinha planeado. Angus ficou para trás com Matthew enquanto os outros regressavam a casa de Edilean. Durante dois dias, ela mantivera o sorriso, antecipando a chegada de Angus à porta da frente com os braços cheios de rosas e pedidos de desculpa nos lábios. Enquanto os outros casais arrulhavam e trocavam carícias, Edilean continuava a sorrir, imaginando o que aconteceria quando voltasse a ver Angus. Ele teria um anel para lhe oferecer?

Porém, os dias passaram e ele não apareceu. Ao quinto dia, Shamus ofereceu-se como voluntário para ir procurá-lo.

– E vou dizer-lhe o que penso por ele a tratar desta maneira, menina.

– Oh, Shamus! – exclamou Prudence, num tom apaixonado. – Ias magoá-lo.

– É o que tenciono fazer! – retorquiu Shamus num tom mais sombrio do que o normal.

Edilean quase imaginava Angus a rolar os olhos e a dizer a Shamus que estava pronto a defrontá-lo onde quer que fosse. Contudo, Angus não estava por perto, nem ninguém conhecia o seu paradeiro.

Tal como sabia que ia acontecer, os outros haviam-se acasalado. Malcolm pediu a Harriet que o desposasse e fosse viver para a Escócia. Ela aceitara imediatamente e tencionavam casar no final do verão. Desde essa altura que não paravam de falar em tudo o que iriam fazer no seu antigo país. Malcolm falou-lhe em pormenor de todas as pessoas do clã McTern e, por conseguinte, Harriet sentia que já as conhecia. Edilean ouviu Harriet a repetir os nomes das crianças.

– E a Kenna tem seis filhos, cinco rapazes e uma menina. O nome da filha é... Não! Não me digas, vou lembrar-me.

Edilean não conseguia suportar tamanha felicidade.

Quanto a Shamus e Prudence, apenas pareciam pensar numa coisa que era a parte física das suas vidas. Depois de uma tarde em que ela, Harriet e Malcolm tinham regressado a casa e ouvido alguns ruídos sonoros vindos do andar superior, Malcolm deu um raspanete a Shamus e o casamento deles ficou também agendado para o fim do verão.

Porém, verificou-se um acontecimento inesperado. Edilean observou, horrorizada, que Tam começara a fazer olhinhos a Tabitha e disse-lhe o que achava da situação.

– Ele é um jovem! – quase gritou a Tabitha. – Um rapazinho e tu és...

Tabitha mostrou-se imperturbável com a fúria de Edilean.

– Eu sou quem pode ensinar-lhe tudo o que ele precisa de saber – disse, fitando Edilean de alto a baixo. – Com que então, ele voltou a deixar-te?

– Não! – gritou Edilean. – Ele não me deixou. O Angus... – Interrompeu-se, pois não tinha ideia de onde Angus se encontrava nem do que estava a fazer. No dia a seguir a terem ido a casa de Matthew Aldredge, Malcolm insistira para que Edilean se sentasse na sala com ele e pudesse falar-lhe das belas qualidades de Angus.

– Rapariga! – começou Malcolm. – Ele nunca fará o que você pensa. Quando a abandonou, foi para seu bem.

Malcolm prosseguiu contando pormenorizadamente a Edilean o que Angus tinha feito depois de James voltar a pregar os cartazes para detenção de Angus. Anos mais tarde, Malcolm, Shamus e Tam tinham demorado muito tempo a encontrar Angus. Haviam-lhe dito que fora fácil descobri-lo, mas não correspondia à verdade. Era como se Angus tivesse desaparecido da face da terra e começaram a pensar que James Harcourt o tinha descoberto e matado.

Durante semanas, os três escoceses haviam viajado de cidade em cidade, à sua procura. O problema é que não tinham um retrato de Angus sem barba e não faziam ideia do nome que ele tinha adotado.

Foi Shamus, quando estava a beber numa taberna em Charleston, que ouviu falar de um homem chamado Angus Harcourt que colaborava com o exército no Oeste.

– Move-se no escuro como se fosse à luz do Sol – dissera o ex-soldado.

– Como é ele? – perguntara Shamus.

– Um homem alto.

– Da minha altura? – insistira Shamus.

– Já vi montanhas mais pequenas do que você – respondera o homem, provocando um sorriso em Shamus. – Não. O Angus é um homem alto, mas também bonito.

– Bonito? – repetira Shamus, incrédulo. – Como uma menina?

– Não, mais como... – O homem acenara com a mão. – As raparigas gostam dele, mas constou-me que tem tido problemas com a filha do comandante do forte.

– Ah! – exclamou Shamus com um leve sorriso. – Acha que casará com ela?

O homem soltou uma gargalhada.

– Não, se o capitão Austin tiver algo a ver com isso. Ele é mau, uma verdadeira besta.

– Então, onde está esse tal Angus Harcourt?

– Não posso dizer-lhe, mas posso desenhar um mapa.

– Então, o Angus esteve num forte qualquer com outra mulher – perguntou Edilean a Malcolm.

– Nada disso, rapariga – interferiu Malcolm, desapontado. – Angus não esteve com ela. Tanto quanto sabemos, ele não esteve com nenhuma mulher desde que a deixou.

– Não acredito. Acho que ele teve centenas, milhares de mulheres. Acho...

– Angus deixou-a porque a isso foi obrigado! – interrompeu-a Malcolm num tom firme. – Não percebe que o homem é louco por si e sempre foi? Por que razão pensa que rimos tanto na primeira vez que lhe pôs os olhos em cima? Todos sabíamos que tinha sido atingido por um raio. E quando ele a atirou para dentro do bebedouro dos cavalos! Ah, isso foi a prova de que...

– De que me odiava – completou Edilean num tom triste.

– Mostrou que estava a lutar contra o que sentia por si – retorquiu Malcolm enquanto estendia o braço, lhe pegava nas mãos e baixava a voz. – De certa forma, o Angus tinha sido o laird desde a morte do pai. Foi o meu pai que roubou aos McTern o que lhes pertencia, mas a categoria de laird passa para os filhos mais velhos. O nosso clã é antigo e pôs os olhos no filho mais velho do filho mais velho, embora ele não passasse de um jovem.

– Entendo – disse ela. – Como se fosse a divindade dos reis.

– Acho que sim. Contudo, mesmo na juventude, Angus tentou compensar-nos a todos pelo que o avô fez. Não teve vida própria até a conhecer, nem um pouquinho.

Erguendo-se, Edilean baixou os olhos para Malcolm com uma expressão fria.

– Estou farta de ouvir falar das qualidades do Angus McTern. Farta! Ouviu bem? Se ele está assim tão apaixonado por mim, onde se encontra? Por que razão não está aqui? Por que razão não estou a planear o meu casamento, tal como a Harriet e a Prudence? Por que razão um homem não me rouba beijos quando acha que os outros não estão a olhar? Porquê?

Não conseguiu pronunciar nem mais uma palavra, virou as costas e subiu rapidamente as escadas até ao quarto.

– Não sei – sussurrou Malcolm ao ficar sozinho na sala.

Com certeza que Angus não podia ter fugido novamente, pensou. Com certeza que o rapaz não podia ter abandonado Edilean. Era impossível.

Quando Shamus a brindou com uma expressão compassiva, Edilean mudou de opinião sobre Angus e começou a defendê-lo. Sempre que entrava numa sala, os casais apaixonados separavam-se e mostravam um ar culpado.

– Já chega! – exclamou Edilean uma vez, ao jantar, levantando-se e atirando o guardanapo ao chão. – Talvez nenhum de vocês acredite nele, mas eu acredito! Não sei o que o Angus anda a fazer, mas sei que, quando terminar, virá ter comigo.

As expressões dos outros não se alteraram. Harriet tentou dar a impressão de que acreditava em Edilean, mas os restantes fitaram-na com compaixão.

– Tenho a certeza de que o fará – retorquiu Tam, mas sem entusiasmo.

Depois daquela noite, Edilean resolveu parar de esperar e dedicar-se ao negócio. Encarregou-se antes de mais de Tam e de Tabitha. Consciente de que Tam tinha um coração bondoso, perguntou-lhe se poderia ajudá-la numa tarefa de que não podia incumbir-se sozinha. Precisava que ele fizesse a viagem até Williamsburg e fosse buscar Mrs. Abigail Prentiss para que ela assinasse os últimos documentos que transferiam a sua propriedade para a empresa das Mulheres Unidas. Edilean susteve a respiração ao dar os papéis a Tam, pois apostava tudo na certeza de que o rapaz não sabia ler. Deu-lhe um monte de papelada relativa a uma propriedade que tinha comprado três anos antes.

– Oh! E leve isto – acrescentou, entregando-lhe um rolo de seda amarela. – A Abby prometeu que me faria um vestido. É uma excelente costureira. – Edilean ignorava se Abby sabia ou não costurar. – E não volte sem o vestido, mesmo que tenha de esperar que ela o acabe.

Tam procurou a todo o custo livrar-se da longa viagem.

– Talvez o seu cocheiro Cuddy fosse mais indicado para isso – retorquiu.

– Mais indicado que você? – ripostou Edilean, batendo as pestanas. – Como pode dizer isso? Nunca poderia confiar-lhe esses documentos, pois não? Contudo, se acha que não é capaz...

– Sou, claro – suspirou Tam. – Mas talvez ela pudesse enviar o vestido mais tarde.

– Talvez – concordou Edilean. – Porém, ela enviuvou recentemente e pode gostar de ter alguém para conversar. Se vais ser o laird do clã, talvez devas aprender a consolar viúvas.

Tam endireitou um pouco os ombros e pegou na pasta de cabedal que ela lhe entregou.

– E pode ser bom para mim conhecer um pouco mais deste novo país.

– Acho uma ideia maravilhosa – disse Edilean.

No dia seguinte à partida de Tam, contou tudo a Tabitha que se riu e encolheu os ombros.

– Talvez convença a Harriet a levar-me com ela para a Escócia e arranje um homem por lá.

– Não há uma lei que te proíbe de voltares a Inglaterra?

– Então, acho que vou convencê-la a mandar-me um homem para cá – retorquiu Tabitha, encolhendo os ombros. – A propósito, quantas vezes viste o teu homem nos últimos cinco anos?

No passado, as insinuações de Tabitha tinham o condão de irritar Edilean, mas já não era esse o caso.

– Um homem leva tempo a recuperar de uma noite comigo – respondeu, virando as costas e saindo da sala.

A gargalhada de Tabitha ecoou atrás dela.

À quarta semana da ausência de Angus, os outros pareciam ter aceite que ele nunca mais voltaria. O próprio Malcolm perdera a fé de que Angus regressaria para junto deles.

Um dia, Edilean ouviu-o a falar com Harriet, confessando que se sentia desapontado com Angus, que fizera um juízo errado do rapaz. Edilean esteve quase a meter-se, mas não o fez. Eles iriam ver, pensou. Se Angus estivesse vivo, voltaria para ela.

No fim da sexta semana, quando Edilean se encontrava no mercado a examinar os quiosques de fruta que faziam a prosperidade da sua empresa, uma carruagem fechada parou ao seu lado. Tratava-se de uma carruagem normal, preta, gasta, obviamente alugada, mas que se movia acompanhando-a. Quando ela parava, a carruagem também parava. À quinta vez que tal aconteceu, soube que Angus se encontrava no interior.

– Desculpem – dirigiu-se às três mulheres que trabalhavam para ela e vigiavam a grande carroça dos produtos. – Podem dizer a Harriet que não irei jantar a casa, mas que não se preocupe comigo?

– Claro – respondeu uma das jovens. Havia sido transportada de navio por roubar uma taça de prata ao conde que era o proprietário da casa onde trabalhava desde os nove anos. O facto de o homem ter andado a violá-la desde os seus treze anos nada significou para o tribunal.

Quando Edilean começou a andar na direção da carruagem, a jovem gritou atrás dela:

– Onde lhe digo que foi?

– Para o paraíso – respondeu Edilean por cima do ombro no preciso momento em que a porta se abriu.

No interior estava escuro, mas conseguia avistar Angus vestido com o tartan que usara na primeira vez em que o tinha visto.

Ele inclinou-se apenas o suficiente para colocar a mão na porta. Edilean aceitou-a, subiu para a carruagem, fechou a porta atrás dela e puseram-se em movimento. Sentou-se no banco na frente dele e fitou-o, quase hesitando em falar com medo de que ele desaparecesse e tudo não passasse de um sonho.

– Suponho que pensaste que tinha voltado a deixar-te – disse ele, fitando-a na obscuridade e devorando-a com o olhar.

– Apenas durante as duas primeiras semanas.

O coração ameaçava saltar-lhe do peito e as pontas dos dedos pareciam vibrar com o desejo de tocar no corpo masculino. A pele continuaria tão quente quanto se recordava?

– Sabias que voltaria para ti? – inquiriu Angus, com o peculiar e leve sorriso.

– Claro.

– Confiavas em mim? – redarguiu, alargando o sorriso.

– Sim – disse ela.

Angus riu e, por momentos, os olhos de ambos fixaram-se. No momento seguinte, Edilean lançou-se nos seus braços. A boca de Angus colou-se à dela e beijou-a com ânsia e desejo.

– Senti a tua falta – disse ele, com os lábios junto ao seu pescoço. – Pensei em ti em cada segundo de cada dia.

– E eu não pensei em ti uma única vez – brincou ela, de olhos fechados e arqueando o pescoço.

Quando a boca de Angus se moveu do seu pescoço para os ombros, Edilean recostou-se no banco, deixando-se abarcar pelos robustos braços. Angus puxou-lhe a écharpe com os dentes e avançou até aos seios.

– Para onde me levas? – perguntou ela.

– Tem alguma importância? – retorquiu ele, movendo a mão por baixo da saia.

– Não – respondeu, acariciando-lhe o corpo. – Angus! Não tens nada vestido por baixo da saia.

– Do kilt. Afasta a mão para o lado. Não, para o outro lado.

– Oh! – exclamou Edilean ao pousar a mão naquela parte dele que mostrava quanto a desejava.

Angus soltou um gemido e voltou a recostar a cabeça contra o assento.

– És melhor do que me recordava.

A carruagem parou bruscamente e soou uma pancada no tejadilho.

– Chegámos, sir! – anunciou uma voz de homem.

– Mata-o por mim – sussurrou Angus.

Quando Edilean sentiu o movimento da carruagem indicativo de que o condutor ia descer, tirou a mão de baixo do tartan de Angus, sentou-se e agarrou na écharpe pousada no banco.

– Ele vai abrir a porta.

– Deixa-me morrer neste momento – disse Angus, mantendo os olhos fechados.

Edilean puxou o kilt para baixo, tapando-lhe metade do corpo e alisou o cabelo. Quando o condutor abriu a porta, encontravam-se sentados frente a frente e com um ar composto.

Edilean olhou para o exterior e viu que se encontravam no porto de Boston.

– Por que razão me trouxeste aqui? – perguntou a Angus. – Julguei que íamos para casa e...

Interrompeu-se e olhou em frente. No estuário estava o Mary Elizabeth, o navio onde ela e Angus tinham viajado até à América. Fixou-o novamente.

– O quê...? Como...?

Angus recompôs-se o suficiente para voltar a respirar.

– Estive ocupado com uns negócios e soube que o capitão Inges se preparava para fazer uma viagem de regresso a Glasgow e então pensei que podíamos ir com ele.

– De volta à Escócia? – retorquiu ela. – Oh! Para ver o teu clã.

Aparentemente ele mudara de opinião quanto a manter-se o laird. Teve uma visão do velho forte em ruínas e de todas as pessoas que erguiam o rosto para Angus e de como seria a dona do castelo. Voltaria a ver a América? Aquele novo país era onde tinha mostrado a todos, inclusive a si mesma, que valia algo.

– Não, não estás a perceber – disse Angus, saindo da carruagem e ajudando-a a descer. – Preciso de regressar a casa para passar o clã ao Tam. Temos de fazê-lo legalmente.

Estendeu-lhe o braço e ela aceitou. Angus, vestido com o kilt à moda antiga e os joelhos à mostra, causava bastante agitação. Homens e mulheres observavam-no, mas eram os olhos das mulheres que brilhavam.

Quando a conduziu na direção do navio, Edilean recuou.

– Todos sabiam disto? Contaste-lhes e a mim não? Está tudo embalado e a bordo do navio?

– Se por «todos» te referes ao Malcolm, ao Tam e...

– E à Harriet, à Prudence e ao Shamus.

– Sim. Todo o clã podia estar aqui também. A resposta é não, não lhes contei. Ninguém sabe nada.

– Tal como eu. – Edilean fincou os pés no chão e olhou-o. – Quero saber o que se passa. Onde estiveste?

Angus deu a sensação de estar a ponderar pegar-lhe ao colo e transportá-la ao longo da prancha de madeira até ao navio, mas depois pareceu refletir.

– Se queres saber... embora não estivesse a pensar contar-te aqui, em público... regressei ao forte.

– Mas isso é...

– Muito longe – completou Angus. – Não dormi nem comi, mas consegui. Vendi as minhas ações na Ohio Company ao capitão Austin.

– Oh, sim, o homem que está apaixonado por uma rapariga que desejavas.

Angus fitou-a.

– Desculpa – disse ela. – Estava só a repetir o que me contaram.

– Gostava que deixasses de dar ouvidos a coscuvilhices.

– É o que farei quando parares de fugir e me deixares sozinha a lidar com tudo.

Angus sorriu, agarrou-a pelos ombros e deu a sensação de que ia beijá-la, mas deteve-se ao olhar para as pessoas que os rodeavam.

– Prometo que te contarei tudo quando estivermos a bordo, mas em privado.

– Angus – disse Edilean –, não podes esperar que suba a bordo de um navio rumo à Escócia sem qualquer preparativo. Preciso de roupas, livros e de presentes. Não posso visitar a tua família de mãos vazias. E esqueceste o meu negócio? Quem pode dirigi-lo sem mim? Sei que me achas inútil, mas tenho muitas pessoas a meu encargo e elas...

– O capitão Inges disse que desta vez não podíamos viajar com ele sem estarmos legalmente casados, por conseguinte, está à nossa espera com a Bíblia para realizar a cerimónia.

Edilean pestanejou.

– Finalmente, disse algo para que não tens resposta – pronunciou Angus, maravilhado. – Agora, queres subir comigo a bordo e casar, ou voltar para aquela tua casa e regozijares-te com as pessoas que acham que te abandonei e assinar papéis relativos ao teu negócio?

Por um momento, Edilean apenas conseguiu abrir e fechar a boca algumas vezes. Por fim, perguntou:

– Tens uma aliança?

– De ouro – respondeu, estendendo a mão e acariciando-lhe o cabelo louro. – Não que precise de ouro, pois isto vale mais do que todo o ouro do mundo.

Edilean encostou a face à mão dele por um momento e em seguida agarrou na saia, levantou-a e pôs-se a correr na direção da prancha de embarque.

– Anda! – gritou-lhe. – Achas que temos o dia todo?

Rindo, Angus correu pela prancha atrás dela.


Epílogo

Estavam deitados na cama, no camarote do capitão, nus por baixo dos lençóis e Edilean não desviava os olhos da mão esquerda.

– Irás gastá-la de tanto olhares para ela – comentou Angus com um bocejo.

– És tu quem está gasto.

– Vou mostrar-te – retorquiu ele, mas depois bocejou novamente, fazendo estalar o maxilar e conservou-se deitado com a cabeça de Edilean no seu ombro.

O luar brilhava no camarote e a água provocava-lhe um embalo de sono.

– Porquê isto? – perguntou Edilean. – Porque não ficar em Boston e casarmos lá?

– E partilhar-te com todos os outros? – retorquiu ele.

– Estás a querer dizer que fui... que fui...?

– Que me foste infiel? – disse, beijando-lhe o ombro nu. – Não, rapariga, não estou. Falei com pessoas em Boston e não há indício de que qualquer homem tenha estado contigo.

– O que significa isso de teres «falado» com pessoas? Fizeste perguntas a meu respeito?

– Tinha de ser, não? A cidade de Boston inteira fala da bela Miss Edilean que dirige um negócio com todas aquelas mulheres. Fizeste algo que ninguém acreditava que pudesse ser feito.

– É verdade, não é? – disse ela, aconchegando-se contra o corpo dele. – Contudo, o que tem isso a ver com o que aconteceu? – quis saber, fazendo um gesto que abrangia o navio.

– Tem a ver com a maneira como cuidas das pessoas. Imaginei que desejarias casar-te na maior igreja e percorrer a nave com a Harriet e a Prudence ao teu lado. Então, teria de partilhar o dia do meu casamento com o Shamus.

– Fizeste tudo isto só para te afastares do Shamus?

– Ná – respondeu Angus num tom cansado. – Fiz isto para te ter para mim. Não quero partilhar-te no casamento, depois, nem nunca. Não voltarei a suportar estar separado de ti.

Durante algum tempo, Edilean contentou-se em estar deitada ao lado dele e sentiu-o a pegar no sono. Não tinha ouvido toda a história do que ele fizera depois da noite em que James fora morto, mas isso aconteceria um dia. Achou que dispunham de uma vida inteira para contarem tudo um ao outro. De momento, teriam pelo menos três semanas e, se o tempo estivesse mau, poderiam ficar mais tempo no navio. Quando chegassem a Glasgow, voltariam ao antigo forte onde ela o conhecera e... Sorriu ante a ideia dos escoceses a rirem e a dizerem que tinham sabido desde o primeiro dia que o seu amado Angus se apaixonara e como estavam satisfeitos.

Edilean fitou Angus, adormecido, e acariciou-lhe o tronco nu. Dela e só dela. «Para sempre», pensou.

E era bom que tivessem casado, pois ainda tinha de contar-lhe que recebera uma carta de Abigail Prentisse a contar que Tam queria ficar em Williamsburg e não regressar à Escócia. Quando Angus passasse o nome de laird a alguém, seria a Malcolm e não ao jovem Tam.

– Deixa de estar para aí a pensar e dorme – disse Angus.

– Não consigo – retorquiu Edilean. – Aconteceu tanta coisa e ... – Sentiu o corpo de Angus a estremecer, como se estivesse a rir.

– O que foi?

– O James – respondeu ele.

– Todos vocês acharam muita graça, mas eu não.

Angus fitou-a.

– Bom, passados os primeiros minutos, não achei.

Angus continuou sem desviar o olhar.

– Tens razão. Ri mais do que qualquer dos outros, mas não devia tê-lo feito. Interrogo-me sobre o que lhe aconteceu?

– O Matt disse que provavelmente seria vendido à faculdade para o usarem em dissecação.

– Que coisa horrível! – exclamou Edilean enquanto o pensamento recuava até àquela noite.

Angus não ficara muito satisfeito quando as três mulheres entraram precipitadamente na casinha de Matthew Aldredge logo atrás dele.

Os olhos das mulheres arregalaram-se ao depararem com o belo Matt e Angus baixou o rosto, avisando Edilean por entre dentes:

– Nem penses em casá-lo com alguém.

– Não percebo o que queres dizer – respondeu num tom arrogante e apertou a mão a Matt.

Malcolm e Tam entraram uns minutos depois, cumprimentaram Matt e os homens puseram-se a discutir sem erguer a voz sobre qual o destino a dar ao corpo de James Harcourt. Falavam tão baixo que as mulheres tiveram de apurar os ouvidos para os ouvir. Edilean foi a única a notar que Shamus se esgueirara para o interior da divisão. Apesar da sua altura, conseguia mover-se sem que dessem pela sua presença. Dirigiu-se à janela, a fim de poder observar a carruagem. Matt não passava de um estudante pobre e a sua pequena casa não se situava no melhor dos bairros.

Edilean não queria juntar-se ao grupo que estava a discutir a horrível tarefa de fazer desaparecer o corpo de James e, por conseguinte, foi colocar-se ao lado de Shamus.

Durante uns momentos, permaneceram em silêncio e em seguida Shamus disse num tom calmo:

– Fui eu quem cortou a cilha.

– Eu sei – reagiu Edilean, sem o fitar.

– E não teria trazido o seu dinheiro de volta.

Edilean sabia que lhe custava apresentar aquele pedido de desculpa e desejou facilitar-lhe as coisas.

– A Prudence não vai deixá-lo voltar a pisar o risco.

– Lá isso é verdade – concordou ele, num tom alegre. – Ela é igual a si e acha-me...

– Um homem honrado.

– É o que ela acha e assim serei, mas...

Shamus hesitou e Edilean fitou-o.

– Não para o Angus – disse ele baixinho.

Edilean quase desatou à gargalhada.

– Mas não para o Angus. – Dispunha-se a continuar, mas ao detetar um olhar surpreendido no rosto dele, olhou pela janela.

Ao lado da luxuosa carruagem verde encontrava-se uma velha carroça com três homens no interior. Moviam-se devagar sem produzir qualquer som e comunicavam por gestos uns com os outros.

– Nós... – começou Edilean fazendo tenção de ir chamar Angus, mas Shamus levou rapidamente o dedo aos lábios, indicando-lhe que se calasse.

Edilean ficou surpreendida mas, quando ele apontou lá para fora, olhou. Os homens da carroça eram ladrões e estavam a roubar o pesado baú das traseiras da carruagem.

De pé, ao lado de Shamus, Edilean observou fascinada enquanto os homens dedicavam toda a sua força a fazerem deslizar o baú para o chão da carroça. Quando o mesmo se encontrava a salvo na mesma, dois homens saltaram para o banco do condutor e partiram a toda a velocidade enquanto o terceiro se dirigia à carruagem com a intenção de roubá-la juntamente com os cavalos. Porém, Shamus disparou como um raio lá para fora no espaço de segundos.

O ladrão estava sozinho e ao deparar com a robustez de Shamus fugiu a ocultar-se no escuro.

Edilean encontrava-se atrás de Shamus e, por um momento, mantiveram-se em silêncio. A rua estava deserta, sem ninguém nas proximidades. Os dois concluíram em simultâneo que o grande problema de saberem o que fazer ao corpo de James estava solucionado.

Shamus olhou para Edilean, esboçou um leve sorriso, ela correspondeu e no minuto seguinte desataram à gargalhada. Edilean ria tanto que nem sequer conseguia endireitar-se e teria caído se Shamus não a agarrasse. Os dois amparavam-se enquanto quase rebentavam de tanto rir.

Os outros precipitaram-se para fora da casa, empurrando-se para se ultrapassarem na ombreira da porta.

– Que diabo aconteceu? – começou Angus enquanto agarrava fortemente em Edilean para a afastar de Shamus.

– Ursinho? – chamou Prudence num tom meigo que não escondia a irritação. – O que estavas a fazer cá fora com a Edilean?

Shamus ria demasiado para poder controlar-se. Apontou para Edilean, agarrou nas pernas à volta dos joelhos e continuou à gargalhada, tal como ela.

– Shamus! – exclamou Prudence num tom que afugentou os pássaros do cimo do telhado. Quatro cães puseram-se a uivar e um galo julgou que amanhecera e começou a cantar. – Exijo que me digas o que se passa.

– Acho que fomos roubados – disse Malcolm, das traseiras da carruagem.

– Tem havido uma série de roubos por estas bandas – retorquiu Matt. – É um sítio péssimo. O que roubaram?

Harriet levou a mão à boca.

– Eles não levaram o... o...?

Edilean desatou a rir ainda mais.

– Levaram, sim. Levaram o James.

– Oh! – exclamou Prudence, arregalando os olhos. – Levaram o baú?

– Raios! – pronunciou-se Tam pela primeira vez. – Para onde acha que o levaram?

– Para o inferno – respondeu Malcolm olhando para Harriet e também eles começaram a rir.

Harriet manteve o lenço a tapar-lhe a boca e fingiu que não se sentia aliviada – afinal, tratava-se do seu irmão –, mas era tão bom saber que ninguém iria preso nem seria enforcado que não conseguiu controlar-se. Não seriam apanhados a desfazer-se do corpo nem relacionados com o homem morto.

Entreolharam-se e os olhos de todos refletiam que tudo estava verdadeiramente terminado.

Contudo, depois dessa noite, Angus desapareceu sem dizer uma palavra a ninguém e decorrida a primeira semana todos recearam que alguém aparecesse a interrogá-los sobre James. No mínimo, esperavam que alguém lhes viesse comunicar que o corpo do irmão de Harriet tinha sido encontrado. Porém, à medida que os dias passavam e nada acontecia, deixaram de se preocupar com o assunto.

E, naquele momento, Edilean e Angus estavam casados, nos braços um do outro, e de regresso à Escócia para se ocuparem das questões legais quanto à devolução das terras do clã aos McTern.

– Ainda bem que tudo isto aconteceu – disse Edilean, sonolenta. – Se não tivesse um tio ganancioso, casar-me-ia com o James e...

– Estarias arruinada um ano depois – completou Angus. – Ele chupava-te os ossos até à medula.

– O que faremos quando voltarmos à América?

– Dirigir a tua empresa – respondeu Angus. – Estou ansioso por dizer a todas essas mulheres o que fazerem todos os dias.

– Tu? – disse ela, soerguendo-se no cotovelo. – Desde quando diriges a minha empresa?

– Se não quiseres que o faça, podemos ir para Williamsburg e construir uma cidade.

– De que estás a falar?

– Negociei as minhas terras com o capitão Austin.

– Não entendo.

Angus afastou-lhe uma madeixa para trás da orelha.

– Estás a olhar para o proprietário de quatrocentos hectares de terra nos arredores de Williamsburg. Vou construir uma casa para nós e projetar algumas ruas. Talvez vários membros do clã queiram voltar a Edilean connosco.

– Edilean?

– Foi o nome que dei à cidade.

Ela recostou-se contra o braço dele.

– Uma cidade com o meu nome. Achas que posso plantar um carvalho no centro?

– Faz o que quiseres com ela. É a tua cidade.

Mexeu-se e colocou a perna nua por cima das dela.

– Julguei que estavas exausto.

– Estava, mas deixei de estar.

Sorrindo, Edilean ofereceu-lhe os lábios para que os beijasse.

 

 

                                                                  Jude Deveraux

 

 

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