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DIAS DE SANGUE E ESTRELAS - Parte II
Series & Trilogias Literarias
51
PARA MATAR VOCÊS MELHOR
Karou se debruçou para examinar as mãos de Ziri e ver mais de perto a recuperação que havia operado. Sentiu uma perturbação no ar atrás de si, mas, quando ia se virar, os dedos de Ziri se fecharam em volta dos seus, e portanto ela não chegou a ver as fagulhas que surgiram da janela e se espalharam pelo chão sujo, onde se consumiram até desaparecer.
— Você está acordado — disse Karou.
Será que ele tinha ouvido o nome que ela falara?
— Que bom que estamos sozinhos — disse Ziri.
Em resposta, Karou soltou a mão e se afastou. O que ele quis dizer com isso? Surpreso com a reação dela, Ziri só então pareceu perceber a inesperada intimidade daquela cena.
— Não, não foi... — Ele parou de falar, ficou vermelho e se sentou, afastando-se um pouco dela na cama. O rubor o fazia parecer bem jovem. Então acrescentou, apressadamente: — Falei isso porque preciso lhe contar o que aconteceu. Antes que ele volte.
Ele? Quem? Por um aflitivo instante o nome de Akiva lhe voltou à mente. Frustrada, ela balançou a cabeça para afastá-lo.
— Thiago?
Ziri assentiu.
— Não posso contar a ele o que realmente aconteceu, Karou. Mas preciso contar a você. E... preciso da sua ajuda.
Karou olhou para ele sem entender. O que ele queria dizer com aquilo? Que tipo de ajuda? Sentia-se lenta, ainda envolta no feitiço perturbador dos sonhos, e alguma coisa que não conseguia definir bem o que era a incomodava.
Ziri se apressou em preencher o silêncio:
— Sei que não mereço sua ajuda, considerando a forma como a tratei. — Ele engoliu em seco, olhou para as mãos, flexionou os dedos. — Não mereço isso. Não devia ter dado ouvidos a ele. — A vergonha pesava em seu rosto. — Queria falar com você, e era o que devia ter feito. A ordem era de que não nos falássemos, mas sempre achei isso errado.
Karou levou um tempo para compreender o que ele dizia.
— Você está dizendo... que Thiago ordenou a vocês que não falassem comigo?
Ele assentiu, tenso e infeliz.
— Que razão ele deu para isso?
— Disse que não podíamos confiar em você. Mas eu confio. Karou... — respondeu ele, relutante.
— Ele disse isso? — Karou sentiu com se tivesse levado um tapa. Como era idiota. — Ele disse para mim que vinha conversando com vocês, que com o tempo acabariam todos confiando em mim assim como ele confiava.
Ziri não falou nada, mas a mensagem era clara: Thiago vinha mentindo para ela aquele tempo todo. Não que fosse uma surpresa.
— O que mais ele disse?
Ziri parecia desamparado.
— Ele nos lembrava o tempo todo da sua... traição. — Sua voz era suave, embora a postura estivesse encurvada. — De que você vendeu nosso segredo para os serafins.
Ela arregalou os olhos.
— Vendi...? — O quê? Isso sim a surpreendeu, a magnitude da mentira. — Ele disse isso? — Ziri assentiu, e Karou ficou zonza. Thiago vinha dizendo aos quimeras que ela vendera segredos aos serafins? Não era de se estranhar que a chamassem de traidora quando ela passava. — Eu nunca vendi nada.
E então lhe ocorreu: ela não vendera nada, e não contara nada também. Passara as últimas semanas tão ocupada em chafurdar na sua vergonha que nem sequer questionara do que deveria se envergonhar. Qual fora seu crime, exatamente? Amar o inimigo, isso era grave; libertá-lo, mais grave ainda, mas eles não sabiam que ela havia feito isso, e além do mais... não fora ela quem contara a Akiva o maior segredo dos quimeras.
Fora Thiago.
O Lobo Branco vinha lançando sobre suas costas o peso do crime que ele próprio cometera, mantendo-a isolada do restante da companhia, alimentando regularmente de mentiras os dois lados. Tudo para controlá-la, a ela e a sua magia. E vinha funcionando perfeitamente, não? Ela vinha acatando todos os seus pedidos.
Mas não faria mais isso. Seu coração batia disparado. Ela olhou para Ziri.
— Não é verdade. — Sua voz saiu como um sussurro distorcido. — Eu não contei... para o anjo. — Não era capaz de dizer seu nome de novo. — Nunca contei a ele sobre a ressurreição. Eu juro.
Se ao menos Ziri acreditasse nela, alguém saberia e acreditaria que embora ela pudesse, até certo ponto, ser uma traidora, aquilo não era obra sua. E então ocorreu-lhe que Brimstone devia ter pensado que tinha sido ela.
Uma náusea a dominou. Se ele de fato pensara isso, devia tê-la perdoado, porque lhe dera vida, segurança e até — embora ela só o tivesse percebido depois — amor. Era terrível pensar que ele talvez tivesse acreditado que ela traíra seu segredo, sua magia, sua dor. E mais: era terrível saber que nunca poderia lhe contar a verdade. Fosse lá o que Brimstone pensasse, ele morrera acreditando naquilo, e o caráter definitivo disso a fez sentir a morte dele como nada antes.
— Eu acredito em você — disse Ziri.
Isso já era alguma coisa, mas não o suficiente. Karou levou a mão ao estômago, que, apesar de vazio — ou talvez justamente por causa disso —, estava se revirando de náusea. Ziri estendeu a mão, vacilante, mas desistiu.
— Sinto muito — disse ele, angustiado.
Ela procurou se acalmar.
— Obrigada por me contar.
— E tem mais...
Mas então, assustadoramente alto, ouviram um som vindo lá de fora. Um grito, um choro. O coração de Karou bateu descompassado quando se deu conta do que a incomodava. Era a ausência. De Zuzana e Mik. Onde estavam seus amigos?
E quem tinha acabado de gritar?
* * *
No pátio, Zuzana cobriu os ouvidos e trincou os dentes.
Mik era mais diplomático. Assentiu para o quimera chamado Virko, que tinha acabado de arrancar um estridente e ensurdecedor iiiiiiiiirc do violino.
— Isso mesmo — disse Mik. — É assim que... hã... sai o som.
Virko segurava o instrumento mais ou menos da maneira correta. Embora o violino parecesse bem menor junto a seu maxilar proeminente, suas mãos enormes conseguiam manejar bem o arco. Uma coisa que Zuzana notara é que muitos quimeras tinham mãos humanas — ou quase humanas —, ainda que o restante do corpo fosse inteiramente de fera. A julgar pela coleção de espadas, machados, adagas, arcos e outros instrumentos de matar e desmembrar que carregavam, habilidade manual devia ser imperativo para aquele pessoal.
Para matar vocês melhor, meus queridos.
No entanto, apesar de tudo aquilo — armas, garras e coisa e tal —, eles não eram tão assustadores. Quer dizer, eram criaturas absurdamente assustadoras de se olhar, mas não agiam de forma ameaçadora. Talvez porque Zuzana e Mik tinham cruzado primeiro com Bast, aquela que estava no chão do quarto de Karou, e ela entendera quando os dois fizeram a mímica de comer e os levara até onde os quimeras faziam as refeições, apresentando-os com palavras que Zuzana e Mik não entenderam.
— O que vocês vão querer fazer com esses humanos, bife ou ensopado? — traduzira Mik, baixinho, mas Zuzana podia ver que ele estava mais impressionado do que assustado.
Os quimeras lhes pareceram mais curiosos do que qualquer outra coisa, na verdade. Talvez um pouco desconfiados, e alguns tinham feito o sangue de Zuzana gelar pelo simples fato de não piscarem enquanto os encaravam fixamente; ela tentara se manter afastada desses, mas no geral tinha corrido tudo bem. O jantar estava insosso, mas não chegava a ser pior do que a comida do péssimo restaurante para turistas de Marrakech em que haviam parado a caminho dali; e eles aprenderam algumas palavras em quimera: jantar, delicioso, pequena (essa última — e apenas essa, esperava Zuzana — em referência a ela). Zuzana despertara grande fascínio nos quimeras, e se submetera a tapinhas na cabeça com uma boa vontade que não lhe era nada usual.
Naquele momento, no pátio, era o violino de Mik o que os fascinava. Virko tirou do instrumento mais alguns guinchos estridentes e um som engasgado, até que outro quimera o empurrou e rosnou alguma coisa que devia significar Devolva isso, porque Virko então devolveu o violino a Mik e fez um gesto pedindo que ele tocasse. Mik atendeu prontamente. Zuzana, que agora já reconhecia algumas das músicas preferidas do namorado, identificou aquela como uma composição de Mendelssohn que sempre arrepiava os pelos de sua nuca e a fazia se sentir feliz e triste ao mesmo tempo, com um gosto agridoce na boca. Era grande e intrincada, meio... fofa em algumas partes e épica em outras, e perturbadora. Zuzana, parada atrás, viu a mudança que se operou nas criaturas ao seu redor.
Primeiro: o choque, a surpresa em ver que o mesmo instrumento que tinha produzido aqueles guinchos horríveis nas mãos de Virko pudesse fazer aquilo. Houve algumas trocas de olhares, alguns murmúrios, mas tudo isso passou rapidamente e só ficou o encantamento e o silêncio, a música e as estrelas. Alguns soldados se agacharam ou se empoleiraram nos muros, mas a maioria ficou de pé. Outros começaram a espiar de portas e janelas e a sair lentamente para o pátio, inclusive as figuras recurvadas das duas cozinheiras, que nada tinham de soldados.
Até o Duas Vezes Mais Branco parecia transfigurado, completamente imóvel em toda a sua beleza estranha e repulsiva, um olhar de terrível e profunda melancolia no rosto. Zuzana se perguntou se o tinha julgado mal, mas logo descartou a ideia.
Aquela história de só usar branco não era coisa de gente normal. Quando ela olhava para Thiago, só conseguia pensar em ter uma arma de paintball à mão, mas, droga, não dava para prever todas as possíveis eventualidades na hora de fazer a mala.
* * *
Karou balançou a cabeça, admirada. Zuzana se balançava levemente no pátio enquanto Mik tocava violino para uma audiência e tanto. Quando morava em Praga, Karou nunca teria imaginado aquela cena.
— Como eles vieram parar aqui? — perguntou Ziri.
Ele também tinha se levantado e estava de pé atrás dela, olhando por sobre seu ombro.
— Eles me encontraram.
A simplicidade daquilo a aqueceu por dentro. Eles tinham procurado por ela e a encontrado; ela não estava sozinha, afinal. E a música... A melodia se erguia e ondulava no ar, preenchendo o mundo inteiro. Ela não ouvia música fazia semanas, e era como se uma parte ofegante sua tragasse avidamente aqueles sons e voltasse à vida. Karou subiu no peitoril da janela, pronta para saltar lá de cima e se unir aos amigos no pátio, mas Ziri a deteve.
— Espere, por favor.
Ela olhou para trás.
— Não sei quando terei outra oportunidade de falar com você. Karou, eu... Eu não sei o que fazer.
— O que quer dizer?
— As almas. — Ele estava agitado. Virou-se de costas e afastou-se, depois curvou-se para pegar alguma coisa e voltou com um turíbulo nas mãos. — Minha equipe.
— Você os salvou? — Ela desceu do peitoril, voltando para o quarto. — Ah, Ziri. Isso é maravilhoso. Eu achei...
— Vou ter que relatar o que houve a Thiago, mas não sei se devo.
Ele sentiu o peso do receptáculo na palma das mãos.
Karou estava confusa.
— Não sabe se deve contar a ele que salvou sua equipe? E por que não contaria?
— Porque nós desobedecemos as ordens dele.
Karou não sabia o que dizer. Desobedeceram o Lobo? Isso simplesmente não acontecia. Depois de uma pausa, ela perguntou:
— Por quê?
Ziri estava sério, e falou com muito cuidado:
— Você sabe quais eram as ordens?
— As... As Terras Distantes. Defendê-las contra os soldados do Domínio — respondeu ela, apesar de não acreditar nisso.
Ele balançou a cabeça.
— Era um contra-ataque. Aos serafins civis.
Karou levou a mão à boca.
— O quê?
Sua voz saiu frágil como porcelana. Ziri continuou:
— É uma campanha de terror, Karou. — Ele parecia estar se sentindo mal. — É só o que podemos tentar fazer, diz ele, já que somos tão poucos.
Terror, pensou Karou. Sangue. Sangue. Quantos tinham morrido em Eretz, dos dois lados, nos últimos dias?
— Mas nós o desobedecemos. Fomos às Terras Distantes. Foi... — Ele tinha o olhar perdido, assombrado pelas lembranças. — Talvez Thiago tivesse razão. Não havia nada que pudéssemos fazer. Eles eram muitos. Eu fiquei para trás, em segurança, e vi minha equipe ser morta.
— Mas você conseguiu recuperar as almas deles. Você colheu...
— Era uma armadilha. E eu caí direitinho.
— Mas... você escapou. — Ela tentava entender. — E voltou.
— Sim. É isso que eu não entendo. — Antes que ela pudesse perguntar o que ele queria dizer, Ziri respirou fundo e enfiou a mão por dentro de sua túnica, toda suja de sangue e cinzas, e pegou algo de um bolso interno. Karou viu de relance um tom forte de verde, mas só isso. O que quer que fosse, era pequeno e cabia perfeitamente na mão dele. — Eles me pegaram, Karou. Jael me pegou. Ele ia me obrigar a contar. — Seus olhos, grandes e castanhos, marcados pela exaustão, se arregalaram com uma estranha intensidade. — Sobre você. E... eu ia acabar contando. Eu queria pensar que conseguiria resistir, mas não: eu teria contado. — Suas palavras saíam engasgadas. — Mais cedo ou mais tarde.
— Qualquer um contaria. — Karou manteve a voz sob controle, mas o pânico tomava conta dela. — Ziri, o que aconteceu?
52
EVOCANDO PÁSSAROS
— Akiva. — Era a voz de Liraz, pungente. Ela apontava para baixo, ao longe, na descida da encosta onde as rochas estriadas encontravam o verde, em direção a uma pequena clareira enevoada pela fumaça dos corpos queimados. Havia um borrão de cinzas no meio. E anjos. — Jael — sussurrou, e olhou para os irmãos, com uma expressão amarga; deixou que o restante eles mesmos vissem.
Os soldados de Jael tinham cercado um quimera.
Daquela distância, Akiva só conseguia distinguir que era um Kirin, o primeiro que via desde que Madrigal morrera, mas assim que o Kirin se moveu — cortando e matando, como em uma dança —, ele soube que não era um escravo liberto em fuga: era um soldado.
Jael encontrara um rebelde. Toda a compaixão inesgotável e o propósito frustrado de Akiva chegavam a um momento crucial. E, quando os soldados do Domínio finalmente derrubaram o Kirin no chão e Jael parou junto a ele, arregaçando as mangas, Akiva percebeu que toda a sua esperança dependia daquele momento. Um ressurreicionista. O turíbulo. Karou. Quem chegaria aos rebeldes, Jael ou ele?
Como Hazael tinha dito mesmo? “Você acha que vamos encontrar muitos pássaros por aí hoje?”
E, por um acaso, havia pássaros ali. Do alto da encosta, Akiva vasculhou o céu ao longe: aves carniceiras e squalls em grande número, voando em círculo, desapontados com o fogo que lhes privava da carne. É claro que Hazael não se referira a pássaros de verdade.
Mas nem Hazael sabia do que Akiva era capaz.
* * *
Começou com um som, Ziri contou a Karou. Um murmúrio trêmulo a se avolumar e a crescer, circundando-os e transformando-se em um forte zunido. A princípio ele achou que fosse coisa dos anjos, mas também eles se distraíram com o barulho. Seus captores olharam em volta, alarmados. Dois de cada lado mantinham Ziri subjugado, deitado de costas nas cinzas, os braços sendo puxados com força, as mãos... presas. Jael o pregara ao chão cravando em cada mão uma espada de um soldado morto por ele.
A cada chute que lhe davam, as lâminas vibravam, e a dor só começava nas mãos, não parava ali. Chegava até sua cabeça; dominava-o. A dor era tudo, e, nos pequenos intervalos entre os chutes, quando ele podia ficar imóvel e deixá-la abrandar, o medo voltava — o medo do que ele diria e faria para que aquilo parasse.
Ziri ainda não contara nada, mas os anjos estavam apenas começando. Jael se ajoelhou diante dele com um capacete cheio de cinzas.
— Isso era um amigo seu há apenas algumas horas. Abra bem a boca.
— Não!
Abriram sua boca à força. Ziri sentiu o aço quente do capacete nos lábios, sentiu o gosto das cinzas começando a cair. Fez força, debateu-se, mas o fluxo era incessante, enchendo-lhe a garganta, e ele sufocava em sua própria gente, afogando-se na morte. Arfando e lutando, acabou inspirando as cinzas e se viu queimando por dentro, só cinzas e nenhum ar, e o tempo se estendia eternamente. Pequenos pontos de luz e os serafins em visões borradas: seus rostos cruéis, o buraco de sucção que era a boca de Jael, salpicado de saliva devido ao esforço que fazia. A dor se tornava cada vez mais insuportável, a ardência, a falta de ar, a terrível aproximação da morte por asfixia...
Morte.
E então água.
Que também o sufocou, mas limpou as cinzas e o fez tossir e colocar tudo para fora, e respirar água e cinzas mas também ar, e ele já não estava mais morrendo.
— Conseguiu refrescar a memória? — perguntou Jael. — Posso fazer isso o dia todo.
A dor física era devastadora. Ziri viu como a agonia podia assumir o controle, como podia se tornar o titereiro e obrigá-lo a fazer coisas. Dizer coisas.
Não.
Mais uma vez o capacete. Ele se retesou, lutou. Trincou os dentes, e não conseguiram abrir sua boca.
Foi quando entalharam o sorriso em seu rosto.
Novamente o capacete aproximou-se de seus lábios, até que... o som. Os anjos pararam, e o capacete caiu de lado quando eles se viraram, confusos. Sacaram suas armas, e o ruído aumentou, transformando-se em um zumbido avassalador que dominava tudo e não parava de crescer. Acabou se tornando mais do que um som. Virou uma sombra.
O céu adquiriu vida própria. Caótico e multicor. Em movimento incessante. Barulhento. Fechando-se sobre eles.
Era um fenômeno.
Era... uma distração.
— Pássaros — contou Ziri a Karou, balançando a cabeça em assombro. — Primeiro aves carniceiras, depois outros também. De todos os tipos. Milhares deles, nem sei quantos. O céu se encheu de pássaros, Karou, se encheu de pássaros, e foram todos para cima de nós.
— Eles atacaram?
Karou se inclinou para frente, os olhos arregalados. Ziri fez que não.
— Só desceram. E nos cercaram. Estavam por toda parte. Fizeram os anjos recuarem.
Karou inclinou a cabeça daquele seu jeito tão dela, e Ziri teve vontade de estender a mão — sua mão recém-curada — e tocar seu pescoço pálido, ou, pensou, corando ao se lembrar do calor do corpo dela contra o seu quando estavam deitados lado a lado, apenas trazê-la para junto de si e abraçá-la. Desviou o olhar de novo e ficou encarando fixamente a parede, sem nem piscar.
Sua mão pulsava como se a pequena coisa que trazia ali ainda estivesse viva; não estava. Era seu próprio sangue pulsando nas veias... porque ele estava vivo. Ziri não entendia, e não sabia mais o que dizer, então estendeu a mão e abriu-a.
Karou viu o pequenino corpo emplumado. Apenas olhou, sem entender, sem fazer a ligação, e Ziri duvidou pela centésima vez de que aquela garota humana de cabelo azul fosse realmente Madrigal. Ela não se esqueceria daquilo.
E então ela arregalou os olhos, levantou a cabeça e o fitou, espantada.
Era uma mariposa-beija-flor. Suas asas macias, de um tom suave de cinza, estavam esmagadas; seu corpo era de um vívido verde-azulado, com uma faixa escarlate no pescoço. Quando os pássaros desceram — pássaros de todos os tipos, pássaros diurnos e noturnos, cotovias-das-sombras, evangelinas, corvos-morcego e aves carniceiras, aves canoras, aves de rapina, até mesmo caça-tempestades, com suas asas ainda cobertas de neve —, Ziri aproveitara a oportunidade para escapar. Para isso tivera que rasgar uma das mãos, para se soltar. As espadas que o prendiam estavam cravadas bem fundo na terra e não se moviam, então ele trincou os dentes e... puxou. Felizmente, a lâmina era bem afiada. Ele soltou a mão com um grito de agonia, uma luz vermelha pulsante preenchendo toda a sua visão, o caos e a adrenalina abafando um pouco a dor, talvez, e, sem saber como, ele conseguiu usar a mão mutilada para soltar a outra.
Os serafins tentaram pegá-lo. Ele não podia nem segurar as facas, então abaixou a cabeça e usou os chifres. Atingiu um soldado na lateral do corpo, mas conseguiu apenas derrubá-lo, já que seus chifres não eram afiados o bastante para perfurar a cota de malha. Então teve que acertá-lo com o joelho, esmagando o pescoço. Outro serafim foi derrubado com uma rasteira, e Ziri olhou em volta à procura de Jael, decidido a fazer o que prometera e matar o capitão do Domínio, mas não conseguiu encontrá-lo. O cajado do turíbulo ainda estava cravado na terra; ele pegou-o com as mãos destroçadas. Naquele momento a nuvem de pássaros formou uma espécie de redemoinho, de forma que ele mal podia ver seus inimigos através da fúria de penas. Nem ser visto.
Em meio àquela agitação de asas, ele decidiu voar.
Na hora ele não parou para pensar em como ou por que aquilo tinha acontecido, muito menos em quem o havia provocado — só lhe ocorreu que devia haver um responsável quando já estava bem longe dali, livre e sem ninguém em seu encalço, longe, bem longe. Pousou em uma árvore para recuperar o fôlego. A mariposa-beija-flor estava morta quando ele a descobriu, presa em sua cota de malha: uma pequena vítima do caos, e — foi o que lhe pareceu — um sinal.
Hesitante, ele contou a Karou:
— Não posso dizer com certeza que foi... ele... quem fez isso...
— Ele? — Ela ficou na defensiva. — Não sei do que você está falando.
Ziri olhou para ela por muito tempo, procurando algum sinal. Ela não lembrava Madrigal em absolutamente nada. O formato do rosto era diferente; os olhos eram pretos, não castanhos. A boca era mais estreita, o cabelo era azul, ela não tinha chifres, era humana. Com a lembrança de Madrigal vívida em sua mente — e da noite do aniversário do Comandante, o começo do fim —, não conseguia ver uma ligação entre Karou e tudo aquilo, e quase conseguiu acreditar na negativa dela. Então se perguntou se ela precisava mesmo saber. Não que ele quisesse falar sobre o anjo. O amante. Talvez fosse suficiente ter lhe mostrado o pássaro. Podia deixar que ela pensasse o que quisesse. Como ele já dissera, não tinha certeza.
Mas... ele acreditava que só havia uma explicação possível para estar vivo, e não podia guardar para si.
— Eu não o vi — insistiu Ziri. Karou não perguntou de quem ele estava falando. Mantinha-se em silêncio, prudente, cautelosa. — Posso estar enganado, mas não consigo pensar em nenhuma outra explicação. Nunca ouvi falar de mais ninguém evocando pássaros a não ser naquela noite, no baile do Comandante. O... xale.
Os olhos dela se arregalaram de surpresa.
— Como sabe disso?
Ziri sentiu o rosto arder. Então abaixou a cabeça e admitiu:
— Eu estava observando você escondido.
Dezoito anos antes, no baile do Comandante, Ziri, apenas mais um garoto na multidão, vira Madrigal dançar com um estranho e desejara que fosse ele, desejara já ser crescido, desejara, desejara, desejara, tudo inutilmente. É claro que não imaginara que o estranho fosse um serafim, mas viu algo que ninguém mais notou: que ele era o mesmo homem usando diferentes máscaras, e que ela dançou com ele muitas vezes seguidas. Algo de doce e suave nos movimentos dela sugeria um misterioso envolvimento de adultos — diferente da insegurança que dominava o comportamento de Karou quando estava perto de Thiago. Ziri viu também quando as mariposas-beija-flor desceram da constelação de lanternas para pousar nos ombros nus dela, e percebeu que aquilo era magia, e que fora obra do estranho. O homem levantou Madrigal, abrigada em seu xale vivo, e a colocou de volta no chão, e até mesmo um menino podia ver que havia magia entre eles, e mais do que magia.
Ziri tinha sido um garoto observador, e vira muitas coisas que era novo demais para entender. Obrigado a assistir à morte de Madrigal, não entendera o fervor — o êxtase — da multidão. Não entendera por que o único que pranteara sua perda tinha sido o inimigo, de joelhos, coberto de sangue pela tortura que sofrera. Ziri jamais esqueceria os gritos de Akiva, de desespero absoluto, ódio, impotência. Até hoje era a pior coisa que já ouvira.
Ele também viu Thiago naquele dia, sua presença branca gélida no balcão do palácio, imóvel e inabalável.
Naquele dia, Ziri começara a odiar alguém, e não era Akiva.
— Não sei por quê, Karou — disse ele —, mas acho que o anjo salvou minha vida.
53
HERÓIS
— Devíamos tê-lo matado quando tivemos a oportunidade — sussurrou Liraz, caminhando ao lado de Hazael pelo acampamento do Domínio.
— Nós não tivemos a oportunidade — lembrou Hazael à irmã. — Não com todos aqueles malditos pássaros no caminho.
— Se ao menos ele tivesse sufocado ali no meio ou sido bicado até a morte, qualquer coisa — replicou ela.
Estava falando de Jael, a quem os dois estavam indo ver agora. Por razões ainda misteriosas, seu adorável tio mandara chamá-los.
— Será que Akiva não podia ter feito os pássaros o matarem?
Hazael deu de ombros.
— Quem sabe o que nosso irmão pode fazer? Acho que nem ele mesmo sabe. E acho que ele nunca nem tinha tentado algo tão grande assim antes. Isso lhe custou muito.
De fato. O esforço de evocar os pássaros deixara Akiva trêmulo e ofegante; ele mantivera os olhos fechados com tanta força que só depois de tudo acabado é que Hazael e Liraz viram que os vasos sanguíneos tinham se rompido, deixando seus globos oculares vermelhos.
— Pela vida de um quimera — disse Liraz.
— Pela vida de um, sim, e a esperança de muitos mais — disse Hazael.
— A esperança de que ela volte — disse Liraz, não sem amargura.
Como ela podia não odiar o fantasma daquela garota que não estava nem viva nem morta, não era humana nem quimera — mas o que diabos ela era, afinal? Aquilo era tão diferente de tudo, tão profundamente anormal, e... Liraz sabia que no fundo sentia ciúme, e odiava isso. Akiva era dela.
Quer dizer, não desse jeito. Ele era seu irmão. Hazael e Akiva eram sua família, sua única família. Eles tinham centenas de outros irmãos e irmãs, mas a ligação entre os três era diferente. Sempre estiveram juntos, e, embora Liraz quase os tivesse perdido em batalhas mais de uma vez, até pouco antes nunca precisara se preocupar em perdê-los dessa forma. Ilegítimos não amavam e se casavam. Era proibido. E... seria ainda pior, pensou ela, porque seria por escolha deles. Não por terem morrido ou sido tirados dela. Iriam, por livre e espontânea vontade, construir suas vidas com outra pessoa, deixando-a para trás.
Ela dissera que não sentia medo, mas era mentira. Seu medo era ser deixada sozinha. Porque de uma coisa tinha certeza: nunca amaria ninguém, não daquele jeito. Confiar seu corpo a um estranho? A proximidade, o silêncio. Não conseguia nem imaginar. Respirar o hálito de outra pessoa enquanto ele respirava o seu, tocar alguém, abrir-se para ele? Só de pensar em tal vulnerabilidade ela corava. Significaria submissão, baixar a guarda, e ela nunca faria isso. Nunca. Só de pensar já se sentia pequena e fraca como uma criança — e Liraz não gostava de se sentir pequena e fraca. Não tinha boas lembranças da infância.
Só com a ajuda de Hazael e Akiva ela conseguira passar por aquilo. Liraz se julgava capaz de fazer qualquer coisa por eles, mas nunca lhe ocorrera que “qualquer coisa” podia incluir deixá-los partir.
— Será que ele os encontrou? — indagou ela, referindo-se aos rebeldes. Falava baixo; estavam quase chegando à barraca de Jael. — Devíamos ter ido com ele.
— Temos um papel a cumprir aqui.
Liraz apenas assentiu. Ela relutara em deixar Akiva ir embora sozinho de novo, mas como poderia impedi-lo? Acabaria fazendo com que ele a odiasse, e isso era impensável. Então esperaram que ele realizasse, com muito esforço, o encanto para ficar invisível — pois estava esgotado depois da evocação — e fosse atrás do Kirin, atravessando o céu tomado pelos pássaros. E os dois então voltaram ao acampamento. Para cumprir seu papel, assim como no passado, e acobertá-lo.
Mas nunca tinham sido chamados diante do capitão do Domínio para contar suas mentiras e meias verdades.
— Pronta? — perguntou Hazael.
Liraz assentiu e entrou primeiro na barraca. A mesma entrada por onde Loriel tinha passado... quando? No dia anterior? Liraz sentiu o breve toque dos dedos do irmão em suas costas e concentrou-se nesse contato para conseguir enfrentar Jael.
Loriel disse que estava bem. Que não tinha sido nada — que era só um homem, e homens a gente lava.
Ela era mais velha do que a maioria das soldadas, mais experiente. Tinha se oferecido voluntariamente — para poupar alguma virgem de ser atirada a Jael, dissera ela —, e, embora Liraz não corresse perigo, por ser da família, achou que era um ato de coragem como nenhum outro que já testemunhara. Mais corajoso do que seguir na linha de frente em uma batalha ou voltar para buscar companheiros feridos. Mais corajoso do que enfrentar um bando de espectros. Liraz já fizera essas coisas, mas sabia que nunca seria capaz de entrar na barraca dele e sair de lá depois, não com aquele propósito.
— Meu senhor — disse ela, com a reverência apropriada.
Hazael parou ao seu lado e fez o mesmo.
— Sobrinha, sobrinho — falou Jael, de modo arrastado.
Estava sendo debochado, mas Liraz gostou de vê-lo ressaltar o fato. E não se esqueça disso, pensou. Então ergueu o olhar para ele.
E não gostou nem um pouco do que viu em seu rosto. O olhar de Jael estava direcionado a ela, ignorando Hazael, e parecia... interessado. Inequívoca e perturbadoramente interessado.
— Qual é o seu nome? — perguntou Jael, dirigindo-se a ela.
Hazael foi quem respondeu:
— Minha irmã se chama Liraz. E meu nome é Hazael.
Mas Jael repetiu apenas o nome dela:
— Liraz — disse com um som úmido, seguido por um pesado suspiro. — Ilegítima. Que pena. Você é mais fresca do que outras frutas que apareceram no meu caminho. Mas meu irmão tem essa mania de... se meter.
Hazael riu.
— Entendi — disse ele, e dessa vez conseguiu fazer Jael tirar os olhos dela. — Mania de se meter. Essa foi engraçada.
Pare, suplicou Liraz mentalmente, mas Jael não ligou, apenas sorriu. O riso de Hazael soava verdadeiro. Ele tinha o dom de saber rir.
Agora que Jael se dera ao trabalho de olhar para Hazael, viu o que todos viam quando os dois estavam lado a lado, e ficou olhando de um para o outro.
— Gêmeos? — perguntou ele. — Não? Mesma mãe, pelo menos.
Mas Hazael balançou a cabeça em negativa.
— Não, senhor, é somente a força do sangue de nosso pai.
Liraz ficou tão surpresa que teve que se virar e olhar para ele. Chamar Joram de “pai” em uma conversa com Jael? Ela sabia o que ele estava fazendo, tentando manter o foco em si mesmo. Pare com isso, pensou de novo, mas Jael não encarou aquilo como ofensa. Talvez pelo jeito tolo e bem-humorado de Hazael, e talvez porque seus pensamentos estavam em outro lugar.
— Posso ver — disse o capitão. — Mas esse não é o caso do Príncipe dos Bastardos, é? Eu diria que a mancha Stelian é o que predomina.
Mancha? Era verdade que Akiva não se parecia em nada com Joram; mais do que isso, Liraz não sabia dizer. Ela não se lembrava da própria mãe, que dirá da de Akiva. O que Jael queria?
— Disseram-me que Akiva não está no acampamento. É verdade?
— Sim, senhor — responderam eles em uníssono.
— E disseram-me também que, se alguém sabe onde ele está, são vocês dois.
— Ele ainda está caçando, senhor — disse Hazael. — Rebeldes.
Nem é mentira, pensou Liraz.
— Admirável. O valente Ruína das Feras nunca descansa. Mas vocês voltaram sem ele?
— Eu estava com fome, senhor — disse Hazael, contrito.
— Bem, suponho que nem todos possam ser heróis.
Seu desdém irritou Liraz.
— E o senhor, capturou algum rebelde? — perguntou ela, sem a contrição cômica de Hazael.
Os olhos de Jael correram de volta para ela. Um segundo depois, ele respondeu com firmeza:
— Não.
Mentiroso, pensou Liraz, lembrando-se de Jael torturando o Kirin. Ele tinha se divertido. Tinha obrigado o quimera a engolir as cinzas de seus companheiros. Isso a fizera passar mal. Engraçado como era fácil torcer pelo inimigo quando este enfrentava Jael. Bem, com certeza a forma e a natureza do inimigo tinham ajudado. Se ele fosse um Heth ou um Akko ou algum espectro feroz a rosnar sem parar, teria sido mais difícil ficar do seu lado, fosse ou não Jael o oponente. Mas tinha sido emocionante ver o Kirin lutar — Liraz chegara mesmo a pensar que ele conseguiria escapar. Ele era tão rápido. Ela não via um Kirin desde que se tornara uma soldada; tinha esquecido como eles eram. Então, quando Akiva lhes contara, baixinho e em uma voz estrangulada, que Madrigal era uma Kirin também, o restante da repulsa de Liraz se esvaneceu.
Apesar das características ferais do rebelde, havia nele uma graça elegante e esguia que não era animalesca. Nem um pouco. Ela não queria que ele morresse.
Não podia dizer o mesmo de Jael. Nenhuma elegância, nenhuma graça. Ela teria ficado feliz em vê-lo sufocar com as cinzas. Quão gravemente Jael tinha ferido o soldado?, perguntou-se. E quantos outros tinha torturado com aquele mesmo prazer?
— Não? — ela se ouviu dizendo, provocativa. — Talvez sejam mesmo fantasmas.
Ah, sua idiota. O indolente olhar de interesse de Jael se reavivou.
— Eles são animais — replicou ele, de um jeito despreocupado, como se não pudesse se importar menos. E deu mais um passo na direção dela. — Sabe, você me lembra alguém — disse, observando-lhe o rosto e o corpo. — Não nos detalhes. Ela era morena, não clara como você, mas as duas têm o mesmo... fogo.
Tinha. Liraz se forçou a olhar para o chão. Não o pressione, não o provoque, ele é Jael. Você acha mesmo que o fato de ter sangue bastardo vai detê-lo se irritá-lo?
— Deseja enviar um recado para Akiva por nosso intermédio? — ofereceu Hazael, tentando novamente desviar a atenção do tio. — Ele deve estar de volta em um ou dois dias.
— Não. — Jael deu um passo para trás. — Nenhum recado. Estou voltando para Astrae. Mas nos encontraremos de novo, não tenho dúvida.
* * *
— Não acredito que vocês desceram sem mim — disse Karou, exasperada.
— O quê? — Zuzana não parecia nem um pouco arrependida. — Eu estava morrendo de fome, e nossa anfitriã estava desmaiada na cama com um monstro gatão.
Monstro gatão?
— Meu Deus. Falando desse jeito parece até...
Karou ergueu as mãos e balançou a cabeça. Era besteira ficar retroativamente nervosa por algo que não tinha acontecido, mas pensar no que aqueles dois haviam feito deixava Karou gelada. Quando finalmente descera até o pátio, encontrara Zuzana sentada justamente entre — de todos os quimeras possíveis — Tangris e Bashees, apontando e adivinhando coisas, ou seja, tendo o mesmo tipo de “conversa” que se tem em qualquer lugar em que as pessoas não falam sua língua. Só que... aquelas ali não eram “pessoas”.
— Você não entende. — Karou não quisera apavorar seus amigos antes, mas eles obviamente estavam tranquilos demais. — Você sabe como elas são chamadas? São as Sombras Vivas, Zuze. São assassinas.
— Como eu — disse Zuzana alegremente.
Karou só faltava segurar a própria cabeça para impedi-la de explodir.
— Não, não como você. Não assassinas de brincadeira. Assassinas de verdade. Elas cortaram as gargantas dos anjos enquanto eles estavam dormindo.
— Ui. — Zuzana fez uma careta e levou a mão ao pescoço. — Mas os anjos são os vilões, não são?
Karou realmente não sabia como responder a essa pergunta. Nada daquilo era real para Zuzana.
— Elas são bem assustadoras, entendeu? — Essa descrição parecia boba até para ela própria. Karou hesitou. Como podia ter certeza de qualquer coisa agora que sabia do teatro de mentiras em que vivia? — Não são, não?
Zuzana deu de ombros.
— Sei lá. Elas são legais.
Legais. As Sombras Vivas eram legais.
— E suponho que Thiago também seja um doce.
— Eca — disse Zuzana com um calafrio. — Não. Não tem nada de doce nele. Só se for um doce estragado.
Bem, pelo menos nesse assunto elas concordavam.
— Você devia dormir um pouco — disse Karou.
Mik já estava deitado na cama, quase adormecido, e a energia de Zuzana finalmente parecia estar se esgotando.
— Eu sei. — Ela bocejou. — Já vou. E você?
— Eu já dormi.
Com Ziri. Que estranho. E agora eles dois eram aliados que compartilhavam um segredo. Thiago nem suspeitava. No quarto, eles ouviram o Lobo se aproximando e tiveram tempo de fingir que dormiam antes que ele entrasse — de uma forma menos íntima do que antes, com Karou na cadeira ao lado da cama. Já tinham decidido que Ziri iria contar ao general sobre as almas colhidas e que Karou daria um jeito de fazer as ressurreições em particular, para que pudesse passar a Balieros e aos outros, quando acordassem, a história que tinha inventado com Ziri. Se tudo corresse bem, Thiago nunca precisaria saber que eles haviam desobedecido a suas ordens. Só não sabia ainda o que fazer com a alma extra que Ziri a alertara que talvez estivesse no turíbulo: o garoto Dashnag que tinha lutado e morrido com eles. Estase, pensou.
É claro, isso era apenas o começo do problema. A questão maior era: e agora? O que fazer? Aquela campanha de terror... Karou acreditara — até onde tinha conseguido deixar um pouco de lado a própria infelicidade para pensar a respeito — que o objetivo da rebelião era a proteção dos quimeras. Mas Thiago não estava protegendo ninguém. Talvez fosse verdade que, considerando os poucos soldados que tinha, não podia fazer muito mais do que isso, o que aliás ele diria ser culpa dela, mas... ele desistira de todo o resto?
— Duvido que você tenha descansado o bastante — disse Zuzana. — Pode dormir aqui também. Eu chego um pouco para o lado.
Karou fez que não.
— Fique à vontade. Eu não ia conseguir dormir mesmo. — Havia muita coisa girando em sua cabeça. O que fazer? O que fazer? — Acho que vou dar uma volta enquanto ainda está fresco. De manhã tenho que voltar ao trabalho. — O rosto de Zuzana se iluminou, e Karou disse: — Sim, Igor. Pode me ajudar. E obrigada pelo que fez. Você foi incrível.
— Eu? Você foi incrível. Meu Deus, Karou. Você é minha heroína.
— Ah, é? Bem, e você é a minha, então estamos quites.
Mik, que, ao contrário do que parecia, ainda não tinha dormido, interrompeu:
— Eu também quero ser o herói de alguém.
— Ah, você é — disse Zuzana, atirando-se em cima dele e lhe dando um beijo. — Meu herói de contos de fadas! Um desafio já foi, agora só faltam dois.
Karou não sabia que conversa era aquela, mas se afastou enquanto Zuzana continuava a plantar beijos confortadores e barulhentos por todo o rosto do namorado.
54
IDENTIFICAÇÃO
Karou imaginou que Ten estaria esperando do lado de fora para impor sua companhia aonde ela fosse, mas a mulher-lobo devia ter pensado que ela passaria a noite com os amigos, pois não estava em lugar algum à vista.
Empolgada com a liberdade inesperada, Karou saiu de fininho pelo portão dos fundos da casbá e seguiu pelas estreitas vielas da aldeia destruída em volta, ouvindo os ratos fugindo apressados à medida que passava. Precisou flutuar várias vezes para passar por sobre obstáculos e paredes desmoronadas, mas teve o cuidado de se manter abaixo dos telhados e fora do campo de visão da torre de sentinela. Não ia colocar a perder aquele raro momento de solidão.
Uma ou duas vezes teve a sensação de estar sendo seguida, mas, ao olhar para trás, não viu ninguém se esgueirando de maneira lupina nas sombras. O que viu, de relance, foi alguma coisa branca, e por um instante temeu que fosse o próprio Thiago, mas era apenas uma roupa, estendida no telhado para secar. Respirou aliviada. O Lobo Branco era a última pessoa que ela queria ver naquele momento.
Bem, talvez não exatamente a última. Essa posição ficava reservada a Akiva, mas esse risco ela não corria. Akiva estava bem longe dali, aparentemente nas Terras Distantes, e que diabos estaria tramando? Será que tinha mesmo salvado Ziri? As evidências disso não eram muito sólidas.
Uma mariposa-beija-flor morta.
Remotas lembranças ressurgiram: a sensação do xale vivo com que Akiva a presenteara na noite do baile do Comandante, o agitar das asas macias e suaves, e então as cócegas quando as aves começaram a lamber o açúcar que lhe cobria o colo, o pescoço e os ombros. Tantos anos depois e ela ainda sentia vergonha pelo açúcar — pois aquilo tinha sido feito para Thiago, e ela deixara que a polvilhassem, sem saber ao certo se estava pronta para se render a ele, para deixar que ele... a provasse. Estremeceu só de imaginar aquelas presas tocando sua pele.
Em vez dele, quem a provara foram as mariposas, e mais tarde... um anjo.
Como a vida era estranha e cruel. Se algo tivesse sussurrado em seu ouvido naquela manhã longínqua que, ao anoitecer, ela estaria nos braços do inimigo — e por sua própria vontade —, ela teria rido. Mas na hora em que acontecera, parecera-lhe tão natural e certo quanto os passos de uma dança familiar.
Então ela se perguntou: e se Akiva nunca tivesse ido a Loramendi, com aquelas suas palavras belas e surpreendentes — o amor é um elemento —, seu toque macio e sua doce magia, com seu calor, seu humor e seus olhos de fogo? E se ela nunca tivesse conhecido outro pretendente que não o Lobo?
Teria sido tão complacente a ponto de se deixar ser tomada, provada e reclamada por ele? Ela queria acreditar que teria acordado de sua insensatez mesmo se Akiva não tivesse aparecido, mas sua vergonha não diminuía. Talvez ela tivesse sentido nojo do toque de Thiago e percebido tudo, mas... sabia que o mais provável era que se tivesse deixado levar pela maré até ser tarde demais.
Bem, pelo menos seu povo ainda estaria vivo. O que era sua felicidade se comparada a isso?
Chegando ao rio, instalou-se no ponto da margem em que uma grande pedra lhe permitia ficar sentada sem que a vissem da casbá. Tirou os sapatos, colocou os pés nas pedras frias e molhadas e ficou vendo o reflexo das estrelas se transformar em longas linhas oscilantes na superfície em movimento da água. A extensão daquele céu cheio de pontos cintilantes a fazia se sentir muito pequena — minúscula, insignificante —, e ela percebeu que saboreava aquela sensação como uma forma de aliviar um pouco a pressão de ter que fazer alguma coisa.
Afinal, o que eu posso fazer?
Sério: o quê? Os quimeras eram leais a Thiago, e ele nunca cederia.
O que Brimstone faria?, perguntava-se ela.
A saudade que a invadiu naquele momento foi tamanha que chegou a quase se transformar em esperança — aquela falsa e doída esperança de que a morte dele não fosse verdade. Permitiu-se imaginar, apenas por um instante: Se Brimstone estivesse aqui, o que seria diferente?
Uma coisa, pelo menos. Eu seria amada.
— Karou.
Foi apenas um sussurro, mas ela deu um pulo ao ouvir seu nome. Quem...? Não viu ninguém, não ouvira ninguém se aproximar. Apenas...
Uma rajada de calor.
Uma chuva de faíscas.
Ah, meu Deus. Não.
E então, como que se desfazendo de um véu, o encanto se desfez e ele apareceu diante dela.
Akiva.
Uma luz a percorreu, seguida pela escuridão — queimando-a por dentro, gelando-a, brilho e sombras, gelo e fogo, sangue e estrelas, um alvoroço, um rugido, preenchendo-a. Choque e incredulidade. E rancor.
E raiva.
Ela se pôs de pé. Seus punhos se cerraram, fechados com tanta força que mais pareciam pedras, seu corpo inteiro tenso de ódio ao ver o anjo, cada tendão estendido ao máximo e tão tensa que ela sentia o sangue nas têmporas, pulsando, e a fúria nos pulsos, vibrando, e nas mãos fechadas: a ebulição. Seus hamsás queimavam. E então ela abriu e ergueu as mãos, e Akiva não tentou se defender.
Quando a magia das marcas o atingiu, ele abaixou a cabeça e aguentou.
A magia fluía de Karou, e Akiva tremia sob o ataque, mas não se mexeu — nem se afastou, nem avançou —, e Karou sabia que podia matá-lo. Ela não desejava ter feito isso? Pois ali estava ele para lhe dar outra chance. Por que mais ele estaria ali, por que outro motivo? E o que mais ela podia fazer a não ser matá-lo? Não havia nada mais, não depois do que ele fizera... depois do que ele fizera... depois do que ele fizera... mas... como ela podia matar Akiva?
Como podia não matar?
Já não bastava o que ele tinha feito, ainda precisava aparecer para forçá-la a fazer outra escolha impossível? Por que ele estava ali?
Akiva caiu de joelhos, e o ar entre eles ondulou, movido pela potente magia de Karou e pelas lembranças. No dia de sua morte, ela vira exatamente a mesma cena, aquilo: Akiva de joelhos, enfraquecido pela mesma magia, só que pelas mãos dos soldados de Thiago, e lutando para manter a cabeça erguida e olhar para ela — exatamente como agora, com horror e desespero e amor —, e o desejo dela era então, mais do que qualquer outra coisa, poder ir até ele e abraçá-lo, sussurrar em seu ouvido que o amava e que o salvaria, mas não podia, em nenhum dos casos, embora o que a impedisse naquela vez não fossem algemas ou o machado do carrasco, mas o fato de ele ser o inimigo. Ele tinha provado isso de uma forma que superava todo o horror que ela poderia sequer imaginar, qualquer traição com que poderia vir a sonhar, e nunca poderia ser perdoado, nunca.
Mas... então... ela abaixou as mãos.
Por quê? Não foi um gesto consciente. Seus hamsás ardiam em contato com as coxas, e sua respiração era entrecortada e desesperada. Karou não conseguia se obrigar a levantar as mãos de novo. Akiva tremia, em agonia, e ali estavam eles mais uma vez no olho de um furacão de extremo sofrimento — o mundo dos dois era um furacão de sofrimento, e eles estavam presos no meio, na enganosa quietude que um dia lhes permitira esquecer que tudo a sua volta era um redemoinho doloroso de ódio que mais cedo ou mais tarde os atingiria. Eles tinham sido tolos por pensar que poderiam manter seu pequeno esconderijo em segurança e que não seriam pegos naquele furacão como todas as outras criaturas vivas em Eretz.
Mas tinham aprendido, não tinham?
O ofegar de Karou estava quase virando soluços, e suas pernas tremiam. Ela também queria cair de joelhos, mas não podia. Seria o mesmo que lhe estender a mão. Então permaneceu de pé, junto dele. Sentia as palmas das mãos ainda quentes por causa da magia, mas não voltou a erguê-las.
— Achei que você tivesse morrido. — A voz dele saiu embargada. — E... eu quis... morrer também.
— E por que não morreu?
O rosto de Karou estava quente e molhado, e ela sentiu vergonha de suas lágrimas e vergonha por, depois de tudo, ainda não conseguir matá-lo. O que havia de errado com ela, que mesmo assim não conseguia vingar seu povo?
Akiva apoiou as mãos no chão e fez força para se levantar. Parecia esgotado e prestes a vomitar; estava pálido e trêmulo, o vermelho tingindo o branco de seus olhos, como tantos anos antes.
— Teria sido fácil demais — respondeu ele. — Eu não mereço a paz.
— E eu também não? Não mereço finalmente me ver livre de você?
A princípio ele não disse nada, deixando as palavras de Karou ecoarem no silêncio. Eram tão duras — com uma pontada de escárnio para disfarçar a angústia; ela odiou o som da própria voz. Quando ele respondeu, sua angústia era evidente:
— Merece, sim. Não vim aqui para atormentá-la...
— Então por que veio? — gritou ela.
Mesmo antes de Akiva se levantar, Karou já sentia como se estivesse lutando contra alguma coisa, mas, quando ele ficou de pé, incerto, e ela teve que se afastar e erguer a cabeça para conseguir olhar para o seu rosto, entendeu o que era. Ele: a largura e o contorno do peito dele, a linha bem definida do bico de viúva em seu cabelo, pelo qual ela passara os dedos tantas vezes, e os olhos dele, mais do que tudo os olhos... os olhos. Confrontada com sua presença, sua proximidade, Karou entendeu que vinha lutando contra a familiaridade — uma familiaridade tão profunda que era quase identificação.
Aquele era Akiva, e a identificação estivera lá mesmo quando ele ainda era um estranho, naquele dia em Bullfinch, quando pusera os olhos nele pela primeira vez. Por isso é que ela fizera aquele gesto tão surpreendente e salvara a vida do inimigo. A identificação estivera lá na dança em Loramendi, mesmo apesar da máscara que ele usava, e novamente no beco em Marrakech, quando ele voltara a ser, para todos os efeitos, um estranho.
Mas não.
Akiva nunca fora um estranho, e esse era o problema. Uma espécie de chamado ecoava entre eles, mesmo agora, e do vazio do coração de Karou, onde deveria haver apenas inimizade e amargura, veio um lento apelo de... saudade. Mas logo foi sufocada pela raiva. Coração vil! Melhor seria arrancá-lo fora.
Como ela ainda podia não odiá-lo?
* * *
E quando seus olhos se encontraram, foi isso que Akiva viu: não a saudade, mas um brilho repentino e violento de ódio. Não percebeu que aquele ódio era voltado para ela mesma, e sentiu-se em desalento. Desviou o olhar subitamente, só então dando-se conta — tolo — de que ainda nutria esperanças. De quê? Não de que Karou fosse ficar feliz em vê-lo — não era tão tolo assim —, mas de que talvez ele pudesse ter um rápido vislumbre, um sinal, de que restara nela algo além do ódio.
Mas essa esperança se desfez, deixando-o vazio, e quando ele recuperou a voz e conseguiu responder, também soou vazio. Ferido e seco.
— Vim descobrir quem era o novo ressurreicionista. Não sabia que era... você.
— Surpreso?
O ódio na voz dela era tão forte quanto em seu olhar, mas como condená-la por isso?
Surpreso?
— Sim — respondeu ele, embora essa não fosse a melhor palavra para descrever o que sentia. Estava destruído. — Pode-se dizer que sim.
Ela inclinou a cabeça daquele seu jeito, como um pássaro, fazendo doer o coração de Akiva. Ela viu, e entendeu.
— Você está se perguntando por que eu nunca lhe contei.
Ele fez que não, tentando negar, mas estava claro. Ela nunca lhe contara. No bosque de réquiem, naquele mês que fora o único período de verdadeira alegria da vida de Akiva, e todas as vezes em que falaram sobre paz e esperança, mesmo com todo o amor e as descobertas e os planos, tão grandiosos, a ponto de terem idealizado uma nova forma de viver — em nenhum momento Madrigal falara sobre ressurreição. Tinha sido o Lobo Branco quem revelara o grande segredo dos quimeras, gabando-se e tripudiando dele entre uma chicotada e outra na prisão de Loramendi.
Akiva nunca escondera nada dela. Queria, na época, que ela o conhecesse, verdadeiramente, por inteiro, desde a terrível contagem que seus dedos marcados exibiam até a tristeza de suas primeiras lembranças; queria que ela o amasse pelo que ele era, e por todos aqueles anos acreditara nesse amor. Mas o que pensar do fato de ela ter escondido um segredo tão grande? Era capaz até de ela um dia ter terminado seu trabalho de ressurreição e ido direto para seus braços, mas nunca mencionara uma palavra sequer a respeito.
— Vou lhe dizer por quê. — As palavras de Karou eram precisas, como uma faca penetrando por entre as costelas dele. — Nunca confiei em você.
Ele assentiu; não conseguia olhar para ela. O vazio então se encheu de náusea, tão intensa quanto se a sua volta houvesse mil espectros com os hamsás apontados para ele.
— Então você vai me matar? — perguntou ela. — Foi para isso que veio, não foi? Para matar outro ressurreicionista?
Akiva levantou a cabeça de repente.
— O quê? Não, Karou. Não. Nunca. — Como ela podia sequer perguntar isso? — Sei que você não tem motivo nenhum para acreditar em mim, mas meus dias de matar quimeras são passado agora.
— Você já me disse isso antes.
— Era verdade na época — disse ele. — E é verdade agora.
De fato, depois de Bullfinch ele havia parado de matar quimeras.
E após a morte dela, recomeçara.
Ele involuntariamente virou as mãos, tentando esconder as evidências marcadas a tinta. Queria explicar que só fizera tudo aquilo porque estava arrasado, destruído após vê-la morrer, mas não havia como dizer isso sem parecer que estava tentando se eximir da culpa. Não havia como falar sobre o que havia feito, como alegar atenuantes, como pedir alívio da pena. A cada vez que pensava em seus atos, Akiva se via forçado a enfrentar a terrível magnitude de sua culpa, e não havia o que dizer. Confissão e pedidos de desculpas seriam mais do que inadequados: seriam uma afronta; era impossível explicar. Mas ele precisava dizer alguma coisa.
Eu perdi minha alma.
— Eu perdi nosso sonho. A vingança tomou conta de todo o resto. Mal me lembro daquelas semanas e meses depois... — Depois de ver você morrer, e de parte de mim morrer também. — Não tem explicação para o que eu fiz, que dirá uma forma de reparar meus erros. Eu traria todos de volta se pudesse. Morreria uma vez para cada quimera morto. Faria qualquer coisa. E vou fazer toda e qualquer coisa, e eu sei... sei que nunca vai ser o bastante...
— Não, não vai. Jamais, porque eles se foram...
— Eu sei. Não estou buscando perdão. Mas ainda há vidas a serem salvas, e escolhas a serem feitas. Karou, os quimeras continuarão ou não a existir no futuro, dependendo do que nós façamos agora.
— Nós? — Karou parecia incrédula. — Que nós?
— Eu — ele se apressou em esclarecer. Akiva sabia que nenhum “nós” jamais voltaria a se referir a eles dois. — E nas fileiras dos serafins talvez haja outros que também estejam cansados, que queiram a vida e não a morte.
— Eles têm vida. Ao contrário do meu povo.
Akiva falara com as últimas palavras de Brimstone em mente: “É a vida a única capaz de crescer e preencher mundos.” Mas é claro que Karou não sabia disso. Ele queria lhe contar o que Brimstone dissera. Imaginava que ela fosse querer saber, mas, vindo dele, não pareceria uma provocação?
— Não é uma vida digna de ser vivida — retrucou Akiva. — Ou que valha a pena deixarmos para nossas crianças.
— Crianças — ecoou Karou, tão fria... e tão linda. Era mais forte que Akiva: ficou olhando para ela, olhando e olhando, e lhe doía olhar, por saber que nunca mais iria tocá-la ou ver seu sorriso. — Quando os dois lados começam a massacrar crianças, acho que se pode dizer que a vida perdeu esse jogo.
O que ela queria dizer com aquilo? Ela notou sua confusão.
— Ah, você ainda não sabe? — Um sorriso amargo. — Vai descobrir.
Ele teve um estalo. Thiago.
— O que ele fez?
— Nada que você não tenha feito.
— Eu nunca matei nenhuma criança.
— Você matou milhares de crianças, Ruína das Feras — sussurrou ela acidamente.
Ele se encolheu ao ser chamado assim por ela, mas não tinha como discutir.
Akiva não o fizera com as próprias espadas, mas abrira o caminho para os assassinos. Vira coisas que nunca poderia apagar da memória. As imagens eclodiram em sua mente como gritos: lembranças e flashes intermitentes, feios, feios, imperdoáveis. Fechou os olhos. Era isso que ele era para ela: um assassino de crianças, um monstro. Karou estava trabalhando lado a lado com o Lobo Branco, e Akiva é que era o monstro. Como o mundo acabara assim tão invertido?
Se Thiago não tivesse descoberto sobre eles e aparecido no bosque de réquiem naquela noite, o que eles poderiam ter feito?
Talvez nada. Talvez tivessem morrido de algum outro jeito sem conseguir fazer nada.
Não importava. O sonho tinha sido puro. Mesmo em seu desespero, Akiva sabia disso, sentia, mas sabia também que Karou nunca conseguiria imaginar isso. Ele deu um passo para trás, aventurou-se a olhar para ela de novo. Karou abraçava o próprio corpo, seu rosto a própria imagem da desolação. Estava dilacerada, como ele estivera tantos anos antes. E... fora ele quem a deixara assim.
— Vou embora — disse ele. — Não vim para lhe fazer sofrer, e por favor, acredite, não vim para matar. Vim porque... pensei que você tivesse morrido, Karou. Pensei...
Akiva levou a mão ao turíbulo. O que aquilo significaria para ela?, perguntou-se ele, sobre aquele receptáculo e a mensagem: Karou. Se não era sua alma, de quem era? Quando o encontrara, logo deduzira que o nome era um rótulo, mas agora ele tinha certeza de que era uma mensagem.
— Encontrei isso nas cavernas dos Kirin — disse o anjo, estendendo a mão. — Deve ter sido deixado lá para que você o encontrasse. — Karou pareceu surpresa ao ver um turíbulo nas mãos dele. Ele o manteve estendido, mas ela hesitou: não queria nem mesmo se aproximar. — Foi por isso que eu quis morrer — explicou, e virou o pequeno pedaço de papel para que ela pudesse ler. — Porque achei que fosse você.
* * *
Ela pegou o receptáculo bruscamente da mão dele e ficou olhando para o papel. Sem respirar.
Karou.
Quantas vezes, em Praga, ela recebera bilhetes exatamente como aquele? Na época, sempre vinham um pouco amassados e furados pelas garras de Kishmish, mas o papel era o mesmo, e a letra... Ela a reconheceria em qualquer lugar.
Era a caligrafia de Brimstone.
Ficou olhando fixamente para o papel até que uma rajada de faíscas a despertou do choque: Akiva tinha ido embora. Não precisou nem olhar em volta para saber. Sentiu sua ausência, como sempre sentira — como um frio que se apressava em preencher o vazio deixado por ele. Seu coração martelava. Ela levou o turíbulo ao peito e imaginou poder sentir a alma ali dentro vibrando junto com as batidas de seu coração. Era puro palpite; apenas pelo receptáculo de prata não dava para ter nenhuma pista do que — de quem — estava dentro. Mas só podia ser...
Tinha que ser.
Suas mãos tremiam. Bastava abrir o turíbulo. Uma impressão da alma fluiria lá de dentro e ela saberia na hora.
Posicionou a mão. Hesitou. E se não fosse ele?
Seus pensamentos estavam confusos; iam e vinham, mas um deles voltava sem parar a sua mente. Akiva lhe trouxera o turíbulo. Thiago — seu aliado — mentira para mantê-la isolada e sozinha. Akiva — seu inimigo — lhe trouxera o turíbulo que podia... que podia... que podia conter... Brimstone.
Será?
Com um girar do pulso, ela abriu o receptáculo. Meio segundo. A alma se mostrou.
E ela soube.
55
AS PROEZAS DO IMPERADOR
Um pé descalço, muito arqueado. Um tornozelo esguio enfeitado com correntes douradas.
Nevo não tinha a intenção de ver aquilo, mas a música das tornozeleiras chamou sua atenção no instante em que a garota atravessou a porta. Um rápido vislumbre da figura secreta antes que ele pudesse abaixar a cabeça às pressas e cravar os olhos no chão.
A concubina da noite, deixando o harém para ser escoltada pela passarela até o refúgio sagrado do imperador. Como era costume, estava coberta por um véu e por uma túnica com capuz que escondia até suas asas. Não fosse pelo pé visto de relance, mal se veria que era uma pessoa. Era o máximo que Nevo já tinha visto das concubinas de Joram, e foi pego de surpresa pelo efeito que isso provocou nele.
Na mesma hora quis ajudá-la.
Ajudá-la a quê? Escapar? Que piada. Era seu dever garantir que ela não tentasse fugir. Nevo fazia parte da escolta dos Espadas de Prata, que se preparava para levá-la até o outro lado da passarela. Eram seis ao todo, praticamente um cortejo. Chegava ao nível do ridículo: seis guardas para acompanhar uma garota por uma passarela.
Uma garota. Não seria uma mulher? Nevo não saberia dizer por que tinha achado isso — dificilmente seria por causa do pé —, mas a imaginava jovem. De repente, ela hesitou.
Quando ouviu o barulho das portas do harém se fechando ruidosamente atrás de si, a garota empacou.
Nevo sentiu que corria nela uma intensa energia por baixo de todo aquele tecido diáfano. Viu seu véu tremular com a respiração acelerada, assim como a túnica — por arrepios, e não de frio: de pavor. Sem dúvida era a primeira vez que fazia aquela caminhada.
Perceber isso o deixou tocado.
Trabalhando várias vezes por semana no chamado cortejo, Nevo aprendera que se podia inferir muito pela maneira como uma mulher se comportava, mesmo estando tão coberta. Passos lentos e firmes, ou passos agitados, curtos e rápidos; cabeça erguida, ou virando para um lado e para o outro, tentando espiar pela pequena rede do véu o mundo fora de sua prisão. Ele já vira — ou acreditara ter visto — cansaço e resignação, orgulho, depressão, mas nunca uma garota paralisada assim. Ficou tenso, achando que ela sairia correndo.
A passarela era um estreito caminho de vidro erguendo-se bem acima da cidade, de forma que às vezes as mulheres decidiam se jogar dali para não chegarem até o outro lado. Com as asas presas sob as túnicas, cair significava morrer — ou tentar morrer. Um guarda saltava atrás dela. Se a pegasse, ela era punida; se não, o punido era ele.
Não era algo inédito, mas desde que ele começara ali, nunca havia acontecido. Nevo tinha apenas vinte anos; fazia apenas dois que carregava a espada de prata, e tinha sido promovido à guarda pessoal do imperador havia apenas dois meses. Não sabia o que fazer numa situação como aquela.
Nenhum dos outros guardas se mexeu nem falou nada. Esperaram, e portanto ele fez o mesmo, inexplicavelmente nervoso. Quando a garota enfim pôs-se em movimento, trêmula e muito lentamente, Nevo entendeu uma coisa. Ele antes achava aquele cortejo de seis guardas uma ostentação ridícula; caso alguém deixasse de notar as proezas do imperador, ou de contar quantas mulheres e bastardos ele tinha, ali seguiam seis guardas, cada um com cerca de dois metros e meio de altura em extravagantes elmos emplumados, para atraírem toda a atenção para o espetáculo.
Mas talvez fosse mais do que isso. Naquele instante, se Nevo fosse o único a escoltar aquela garota, não tinha certeza de que faria seu serviço. Por maior que fosse sua lealdade ao imperador, havia impulsos mais fortes, como a necessidade de proteger os indefesos.
Mas que idiota, Nevo, repreendeu a si mesmo. Dizia-se que os magos de Joram podiam ler pensamentos; ele esperava que não fosse verdade, porque, em questão de segundos, permitira que algumas visões ridículas lhe passassem pela cabeça — cenas em que ele salvava a garota e a levava para um lugar seguro. Ah, pelos deuses da luz... Havia até uma casa com um telhado de meia-água na cena, um quintal atrás e um céu imenso sem nenhum pináculo até onde a vista alcançava, nenhuma Torre da Conquista, nada de Astrae, nada de império. Apenas um lugar pequeno e seguro, e ele como herói de uma anônima e desconhecida jovem.
Tudo por causa do vislumbre de um pé?
Patético. Talvez seus colegas de alojamento tivessem razão em dizer que ele precisava de alguns “cuidados” na casa de lazer dos soldados. Iria até lá, decidiu ele enquanto marchava, as solas de suas botas percorrendo muito lentamente a passarela de vidro. A escolta estava dividida em duas tríades, com a garota no meio. Nevo ia logo atrás dela, ajustando o passo a seu caminhar delicado. Ela parecia tão pequena... Mas se bem que todas pareciam, quando cercadas pelos gigantes da guarda. Ele ouvia a respiração dela, irregular — um arfar alto, beirando a histeria — e sentir as ondas de calor que emanavam de suas asas cobertas.
O perfume era tão delicado que podia até ser seu cheiro natural.
De que cor seria seu cabelo? E seus olhos?
Pare com isso. Você nunca vai saber.
Era um percurso curto pela passarela de vidro, Astrae se descortinando lá embaixo até o outro extremo da ponte. A garota foi entregue, um intendente a recebeu no Portão Alef, ela entrou e desapareceu lá dentro sem nem olhar para trás.
Por mais absurdo que parecesse, aquilo doeu. Como se ela devesse tê-lo notado, e percebido, de algum jeito, que ele lamentava por ela?
Nevo sabia que, em seu uniforme da Guarda Imperial, era tão anônimo para a garota quanto ela deveria ter sido para ele, e esse pensamento o deixou inquieto e irritado. Ele se perdera para um uniforme — aquele uniforme prateado reluzente com plumagem bufante e mangas longas demais, que atrapalhariam caso ele precisasse sacar a espada. Coisa que, aliás, nunca acontecia, a não ser na arena de treinamento, e mesmo nesses casos parecia mais uma aula de dança do que uma luta. Os Espadas de Prata não eram o que ele imaginara ao ser selecionado das fileiras do exército. Embora tivesse orgulho em ser excepcionalmente hábil com a espada, fora na verdade escolhido por sua altura, não pela habilidade. O recrutador nem o vira lutar. Estava interessado apenas em sua aparência, e o resultado disso era que Nevo, mesmo em sua roupa vistosa, era indistinguível de qualquer outro Espada de Prata em Astrae. Talvez sua mãe o identificasse, mas aquela concubina apavorada nunca o reconheceria se o visse de novo, fossem duas ou duzentas vezes.
E por que ele deveria se importar com isso?
Ele não se importava.
O Portão Alef se fechou. O perfume da concubina, suave demais, se desfez no ar. A garota tinha ido cumprir sua obrigação, e Nevo cumpriria a dele e pararia de pensar nela.
Quis o destino que seu posto de trabalho fosse ali no Portão Alef. Com outro de sua tríade, ele deixou a guarda e ambos assumiram seus lugares. O restante do cortejo foi cada um para seu respectivo posto, a maioria nas profundezas da grande torre de vidro, mais além do que Nevo jamais penetrara ali. Tinham-lhe descrito os aposentos particulares do imperador como uma espécie de castelo dentro do castelo, no centro da Torre da Conquista. O Portão Alef era a primeira entrada; passando por ele, corredores labirínticos se ramificavam, de forma que não havia um caminho direto para os sucessivos portões — Beit, Gimel, Dalet e assim por diante, seguindo o alfabeto. Nevo só tinha chegado ao Beit. Os outros guardas diziam que, a partir desse, achar o caminho lá dentro era um teste de memória. O lugar era todo de vidro fosco, um mar de vidro grosso, forte e com um brilho em tom de mel. Durante os treinamentos, eles eram incentivados a testar o vidro com suas espadas, e, mesmo forte como era, Nevo não conseguira quebrar as paredes nem com chutes, nem com o punho da espada. Os corredores seguiam sinuosos, voltas e mais voltas daquele vidro inquebrável, e eram repletos de portas falsas e becos sem saída, tudo para confundir ou capturar invasores e assassinos.
Boa sorte para eles, pensou Nevo. Dez portões fortemente vigiados interpunham-se entre ele e o imperador; ninguém passaria por ali. Naquela noite, ele estava feliz por ficar o mais longe possível do centro do labirinto. Os guardas do Portão Samekh às vezes ouviam... choro.
Choro.
As mulheres da casa de lazer podiam não chorar, mas Nevo sabia que não iria para lá. Durante aquela longa e tediosa noite, parado ali em seu posto, ele sentiu que o verdadeiro trabalho e desafio — além de ficar de pé por longos períodos de tempo — eram não pensar no que estava acontecendo lá dentro. Era ridículo como aquela fração de segundo em que ele avistara o pé da garota a tornara real, ao contrário de todas as outras que passaram por ele nos últimos dois meses. Bem, elas eram reais, claro, mas ele tinha conseguido ignorar isso. Mas será que conseguiria daquela vez?
Então entregou-se a outra tolice para se distrair. Era igualmente fútil, mas a probabilidade de enlouquecê-lo era menor: desejava nunca ter sido tirado do exército para se juntar aos Espadas de Prata.
Não era um desejo racional. O soldo dos guardas, que ia para sua família, era melhor, e as chances de sobrevivência, bem maiores do que no exército, mas, ao contrário de muitos Espadas de Prata, Nevo tinha sido um soldado primeiro, portanto sabia a diferença entre as duas funções. E a diferença era gritante.
Para além de Astrae, muito, muito distante dali, os soldados tinham mantido as feras afastadas por séculos, lutando, morrendo e por fim vencendo. Havia honra na luta, e até glória, e Nevo abriria mão da glória simplesmente pela honra — de se sentir bem durante seus dias e noites, de fazer alguma coisa...
É claro, agora era mais complicado. A Guerra Quimérica tinha acabado e uma nova se iniciava, mas era difícil sentir a pura retidão que havia em se lutar contra as feras.
Os Stelian eram serafins. Fora isso, Nevo não sabia praticamente nada a respeito deles; ninguém sabia. As Ilhas Longínquas ficavam, sem exagero, do outro lado do mundo. Quando era sol no império, nas Ilhas havia lua, e vice-versa, de forma que nunca compartilhavam dias, noites, nada. Se eles haviam ofendido o império de alguma forma, o povo do império não se sentia afetado por isso, pois não tinha nenhuma animosidade com relação a seus misteriosos e distantes primos. O termômetro de Nevo era sua própria família. Ele bem podia imaginar a conversa que teriam quando a declaração de guerra de Joram se tornasse pública.
— Contra quem? — perguntaria seu pai, chocado. — Contra um povo cujo rei ele não sabe nem como se chama?
— Se é que existe um rei — diria sua mãe. — Ouvi dizer que eles têm uma rainha.
— Ah, e o que mais você ouviu? Que os elementais do ar agem como espiões dela?
— Isso mesmo. E que ela pode matar só com o olhar, e que prepara tempestades em uma grande panela para lançar por sobre os mares.
Sua mãe estaria sorrindo. Tinha um sorriso brincalhão e um humor anárquico, e seu pai tinha uma risada estrondosa, mas também uma ruga de preocupação.
— Que briga mais inútil, essa que ele foi arranjar. — Nevo o imaginava falando, irritado. — É como atirar pedras em uma caverna e esperar para ver o que vai sair lá de dentro.
E Nevo de fato estava esperando para ver. Fazia duas semanas que os mensageiros com a declaração de guerra de Joram haviam sido enviados e nada de voltarem, nem de darem notícias. O que pensar? Talvez tivessem se perdido à procura das Ilhas Longínquas e nunca entregado a mensagem. Seria o império salvo da guerra por falta de direções?
Quem dera.
Ele conteve um bocejo. Finalmente estava amanhecendo, ou quase. Logo seria rendido no serviço...
O Portão Alef se abriu de repente.
Nevo levantou voo de um salto. Instaurou-se o caos. Barulho e asas e centelhas e corre-corre e gritaria e... qual era o protocolo? Ele protegia o portão do que viesse de fora. O que deveria fazer quando o caos vinha de dentro? Ninguém nunca lhe dissera, e quem eram aqueles ali na confusão? Intendentes e criados, e alguns Espadas de Prata também.
— O que houve? — gritou, mas ninguém o ouviu, com todo aquele barulho.
Os berros, a fúria.
Joram.
A garota, pensou Nevo. E enquanto intendentes e criados se acotovelavam na tentativa de escapar da ira do imperador, ele forçou sua entrada. Nenhum guarda no Portão Beit; onde estava Resheph? Será que estava entre aquele grupo que tinha debandado? Debandado? Inacreditável.
Nevo passou correndo pela porta, pisando pela primeira vez a parte mais interna do refúgio sagrado. Não conhecia o caminho, mas a fúria de Joram era como um rio, e ele navegava contra a corrente. Quando fazia uma curva errada, voltava e procurava o caminho certo. Perdeu minutos naquele labirinto de vidro. A voz do imperador agora sumia e voltava. Os urros deram lugar a palavras, embora Nevo não conseguisse entendê-las.
Portões Gimel, Dalat, Hei e Vav: não havia guarda em nenhum. Os Espadas de Prata ou tinham entrado, ou tinham saído correndo, deixando seus postos. A primeira reação de Nevo foi ficar horrorizado com aquela falta de disciplina, mas então se deu conta de que ele próprio também tinha deixado seu posto, e começou a ficar com medo. Foi o único momento em que hesitou; ainda podia voltar — talvez, em meio à loucura, sua transgressão passasse despercebida.
Mais tarde, seria um consolo saber que não teria feito a menor diferença. Naquele instante, nada do que ele dissesse ou fizesse importaria. Tudo já estava feito e decidido bem antes de ele irromper em uma corrida desesperada no quarto do imperador.
Fontes murmurantes, orquídeas, os chilreios e grasnidos de aves engaioladas. O teto parecia ficar quilômetros acima — todo feito de um vidro cintilante coberto por constelações de luzes que criavam a ilusão de um céu noturno. No meio daquilo tudo ficava a cama, em uma base elevada, como um monumento à virilidade. Estava vazia.
Joram estava de pé no centro do quarto, com as mãos na cintura. Ele era vigoroso, tendo engordado com a idade mas também se fortalecido, e marcado por antigas cicatrizes de batalha. Seu maxilar estava duro, o rosto vermelho de raiva e desprezo. Ele usava um robe que mostrava um pedaço triangular do peito e aquilo de alguma forma parecia um pouco vulgar.
Havia alguns outros guardas ali, de pé, todos grandes e — pensou Nevo — parecendo idiotas. Eliav era um deles. O próprio capitão dos Espadas de Prata estava antes no Portão Samekh e devia ter sido o primeiro a chegar à cena — sem contar Namais e Misorias, é claro, os guarda-costas pessoais de Joram, que se revezavam para dormir na antecâmara. Estavam a apenas alguns passos de seu senhor, o rosto mais parecendo esculturas de madeira. Byon, o primeiro-intendente, apoiava-se pesadamente na bengala, sua paralisia muito mais evidente do que de costume.
— Não foi você que colocou isso ali? — perguntou Joram ao velho serafim.
— Não, meu amo. Eu o teria acordado na mesma hora, é claro. Algo assim...
— Uma cesta de frutas? — Joram parecia incrédulo, e então sua fúria voltou e retumbou pelo quarto como um flash de luz e calor. — Uma cesta de frutas!
Nevo deu um passo para trás. Procurou a garota. Não estava pensando com a menor clareza; não lhe ocorrera até aquele momento que a veria sem véu, muito menos que ela, assim como o peito de Joram, pudesse estar... exposta. Assim que a viu — pela visão periférica, um borrão de pele no outro lado da cama elevada —, percebeu que era esse o caso, e seu instinto foi o de não olhar, não se virar em direção a ela, apenas passar pela porta e sair dali.
— Então me explique como isso veio parar aqui. — A fúria de Joram se transformou em gelo. — Passando por tantas portas vigiadas até chegar ao pé da minha cama.
Foi a imobilidade da garota que fez Nevo virar a cabeça.
Ela era mesmo jovem; Nevo tinha acertado. E estava exposta. Nua. Seu rosto era arredondado como o de uma menina, mas seus seios não tinham nada de infantil. Seu cabelo era vermelho e rebelde, e os olhos, castanhos. Ela estava caída, apoiada na parede, sem nem tentar se cobrir, olhando fixamente para ele — para ele —, sem expressão.
Sem se mexer.
Quase no mesmo instante em que Nevo pousou os olhos nela, a garota começou a tombar lentamente para o lado. Ele viu isso acontecer, e lembrou-se do lento caminhar dela pela passarela. Foi igual, sua mente tentava lhe dizer, igual. Mas então: o solavanco e os braços e pernas movendo-se desajeitados quando ela caiu no chão, o retinir de suas tornozeleiras, o silêncio. O fogo de suas asas se apagando. Morrendo. Na parede que antes a sustentava, uma faixa de sangue e uma mancha vermelha no vidro.
Uma mancha deixada pela cabeça dela.
A garota havia sido atirada contra a parede.
Nevo sentiu calor, frio e um mal-estar. Pensou nas Sombras Vivas — seu instinto era culpar as feras, e ele sabia que as lendárias assassinas estavam à solta de novo, ainda vivas, sabia-se lá como —, mas elas não faziam aquele tipo de coisa. As Sombras cortavam gargantas.
Além do mais, é claro que ele sabia quem tinha feito aquilo. Enquanto seus olhos corriam ferozmente pelo quarto luxuoso, ele começou a ouvir pedaços da conversa em meio a seu horror. Nevo sabia quem, mas não por quê.
— Todos os guardas que estavam de serviço — ouviu Joram dizer.
Eliav, aterrorizado, retrucou:
— Meu amo! Todos...?
— Sim, capitão. Todos. Os. Guardas. Você achou que poderiam continuar vivos depois de um deslize como esse?
— Meu amo, não houve deslize. Suas portas nunca foram abertas, eu juro. Foi alguma magia...
— Namais? — chamou Joram. — Misorias?
— Senhor?
— Cuidem disso antes que a cidade acorde.
— É claro — responderam os guardas.
O imperador chutou alguma coisa — uma cesta —, que emborcou, fazendo algumas esferas cor-de-rosa saírem rolando. Uma delas atingiu a base elevada da cama e explodiu com um barulho semelhante ao que o crânio da garota devia ter feito ao acertar a parede. Nevo olhou para ela de novo. Não pôde evitar. A visão dela ali, morta, quando ninguém mais parecia notar, fazia com que toda a cena parecesse uma alucinação vívida demais. Não era, é claro. Aquilo tudo estava acontecendo, e ele soube, com uma clareza que lentamente o alcançava, que seria enforcado.
Mas não soube por quê.
Só sabia que tinha algo a ver com uma cesta de frutas.
56
UMA SURPRESA
Zuzana foi acordada por alguém a sacudindo. Ergueu o corpo e se sentou na cama, desorientada. Estava escuro; o ar era pesado, e os cheiros, pungentes: terra, um forte odor animal e algo que lembrava decomposição. Então sentiu um toque delicado no ombro e ouviu a voz de Karou.
— Acorde — dizia a amiga suavemente.
Então seus músculos doloridos deram sinal de vida e ela se lembrou de tudo.
Ah, claro. O castelo de monstros.
Piscou repetidas vezes até Karou entrar em foco sob a luz bruxuleante das velas.
— Caramba, que horas são? — resmungou.
Sua boca estava tão seca que parecia que o próprio deserto tinha se enroscado e passado a noite lá dentro. Karou colocou uma garrafa de água nas mãos dela.
— Está cedo. Ainda nem amanheceu.
— Cedo idiota — gemeu Zuzana. Ao seu lado, Mik ainda dormia. Ela tomou um gole d’água e bochechou. Bem melhor. Piscou, tentando ver algo naquela luz fraca, e focou seu olhar em Karou. Ela se assustou, e a letargia desapareceu. — Você está chorando.
Os olhos de Karou estavam úmidos, brilhando quase sem piscar, e seu maxilar estava tenso. Zuzana tentou decifrar sua expressão, mas não conseguiu. Não sabia dizer se a amiga estava feliz ou triste, só que parecia resoluta.
— Eu estou bem — disse Karou. — Mas preciso da sua ajuda de novo.
— Ok. — Ela só esperava que aquilo não implicasse ter que limpar feridas horríveis. — Ajuda em quê?
— Uma ressurreição. Preciso terminá-la antes que Thiago ou Ten apareçam. — Karou sorriu, mas novamente foi impossível interpretar: nem feliz nem triste, mas firme. — Quero que seja uma surpresa.
57
UMA CESTA DE FRUTAS
— Uma cesta de frutas — repetiu Akiva, incrédulo.
Antes de declarar guerra aos Stelian, Joram devia ter se preparado para muitas possibilidades, mas nunca passara pela cabeça do imperador, imaginava Akiva, que seu inimigo eleito pudesse... recusar a oferta.
Akiva estava de volta ao cabo Armasin com seu regimento. As notícias chegavam ali pelas línguas de batedores e soldados e em pequenos pergaminhos amarrados às pernas dos squalls. Eram fragmentos e sussurros, mentiras e verdades e palpites misturados com relatos oficiais tão cheios de mentiras quanto os boatos. Por isso levou alguns dias até Akiva, Hazael e Liraz terem peças suficientes para montar uma imagem discernível com aquele quebra-cabeça.
Ao que parecia, a resposta dos Stelian não chegara pelos mensageiros de Joram. Na verdade, os mensageiros nunca retornaram, e, para piorar, a comunicação com as tropas avançadas em Caliphis tinha sido cortada, e uma missão de reconhecimento também sumira do mapa. Todos os serafins enviados às Ilhas Longínquas haviam desaparecido. Essa notícia por si só já fazia Akiva gelar, e também o instigava. O que estaria acontecendo no outro lado do mundo?
E então... uma cesta de frutas.
Essa era a resposta deles. Uma resposta totalmente inofensiva. Nada de cabeças ou entranhas de mensageiros; as frutas não estavam nem envenenadas. Só frutas mesmo, de uma variedade tropical desconhecida no império. Segundo os provadores do imperador, eram “doces”.
Um bilhete acompanhava a cesta. Quanto à mensagem que continha, cada um dizia uma coisa, mas Akiva acreditou na versão de um sobrinho de um intendente imperial, de que o breve texto viera escrito em serafim arcaico, com uma caligrafia feminina e um selo de cera que representava um escaravelho, e dizia o seguinte: Agradecemos a proposta, mas somos obrigados a respeitosamente decliná-la, ocupados que estamos no momento com atividades mais agradáveis.
O atrevimento dessa mensagem, a impressionante ousadia: era de tirar o fôlego.
— Ainda não entendo — disse Liraz, depois de passado o choque inicial. — Como isso explica os Lâminas Partidas?
“Lâminas Partidas” era como os Ilegítimos chamavam os Espadas de Prata, por causa de suas elegantes armas que não resistiriam a um só golpe em um combate de verdade — não que algum dia fossem enfrentar algum. O único fato indiscutível de todo o mistério era que, dois dias antes, Astrae tinha acordado com catorze Espadas de Prata pendurados no cadafalso do Setor Oeste.
— Bem, tem a ver com a entrega da tal cesta de frutas — disse Hazael. — Vejam bem, quando nosso pai acordou de manhã, a cesta estava simplesmente lá, ao pé da cama, e ninguém soube lhe dizer como tinha aparecido ali, passando por dez portões vigiados até chegar ao coração do refúgio sagrado onde ele se julgava a salvo de qualquer invasor, até mesmo das Sombras Vivas.
— Nem as Sombras Vivas poderiam ter feito isso — disse Akiva.
Ele tentava entender que tipo de magia poderia ser responsável por uma façanha como aquela. A invisibilidade por si só não ajudaria ninguém a passar por portas fechadas. Será que o emissário dos Stelian tinha atravessado paredes? Lançado encantos em um guarda após o outro? Simplesmente desejado que o presente aparecesse lá? Essas eram algumas possibilidades. Do que os Stelian eram capazes? Às vezes, quando estava imerso em si mesmo planejando alguma manipulação, Akiva imaginava fios de conexão traçando-se pelas extensas superfícies do oceano e chegando enfim às ilhas — ilhas verdes sob uma luz melíflua, o ar da manhã cintilante com a névoa, asas de pássaros iridescentes — e se perguntava: será que seu sangue fazia dele um Stelian? O sangue de Joram não tornava Akiva como ele; por que o de sua mãe o tornaria como ela?
— Catorze Lâminas Partidas pendurados no Setor Oeste. — Hazael deu um assobio. — Imaginem só, toda aquela prata brilhando sob o sol.
— E o cadafalso aguenta catorze Lâminas Partidas, com aquele tamanho todo? — perguntou Liraz.
— Tomara que venha abaixo com tanto peso. Não lamento nem um pouco — disse Akiva, referindo-se ao cadafalso, não aos guardas. Ele não gostava dos Lâminas Partidas, mas não desejava que morressem. Balançou a cabeça. — E o imperador está se sentindo mais seguro agora?
— É um idiota se estiver — disse Hazael. — A mensagem é clara: queira saborear esta cesta de frutas deliciosas enquanto pensa em todas as maneiras como poderíamos matar você enquanto dorme.
Por mais sinistro que fosse tudo aquilo — a lúgubre imagem do cadafalso arqueado pelo peso de catorze guardas —, a notícia mais perturbadora veio depois, de um Ilegítimo. De fato, apenas um Ilegítimo poderia ter observado aquilo, ou se importado.
Melliel era a meia-irmã mais velha que tinha falado em favor dos Ilegítimos no fim da guerra. Era grandalhona, cheia de cicatrizes e tatuagens nas mãos; lutava com um machado e mantinha o cabelo grisalho curto como o de um homem. Não havia nada de feminino em Melliel a não ser sua voz, que mesmo quando ela gritava cumprimentos tinha algo de musical. Algumas vezes ela cantava junto às fogueiras dos acampamentos durante os períodos de guerra, histórias cantadas que emocionavam como poucas coisas em um campo de batalha. Atuava na capital, pelo menos até o dia anterior. Agora seguia com um destacamento de Ilegítimos para oeste, em direção às névoas e aos mistérios das tropas desaparecidas. Como se o império não tivesse perdido soldados suficientes nas últimas batalhas da guerra. Todos os exércitos tinham sofrido perdas, mas nenhum mais do que os Ilegítimos.
— É claro que ele enviaria Ilegítimos — comentara Liraz com amargura, ao saber da missão. — Quem se importa se os bastardos vão voltar ou não?
Mas Melliel se dissera feliz em ir — feliz em ficar livre da teia de mentiras que era Astrae. Foi ela quem lhes contou o que mais tinha acontecido na Torre da Conquista enquanto os Lâminas Partidas balançavam no alto do cadafalso.
— Um corpo amortalhado foi... deixado... no Portão Tav naquela mesma manhã.
Tav era o último dos portões da Torre. Era a sarjeta, no subsolo, e servia somente como saída: era por onde o lixo era lançado no mar.
Akiva se preparou para a notícia.
— Quem?
Melliel trincou o maxilar.
— Não temos como saber com certeza, mas... aparentemente ninguém se lembrou de dispensar a escolta do harém. Eles esperaram por duas horas no Alef até um intendente se dar conta e liberá-los.
Akiva sentiu a notícia primeiro no estômago e depois nas mãos — uma onda de calor que o fez cerrar os punhos com tanta força que os músculos de seus braços ardiam. Liraz emitiu um som sufocado; a respiração de Hazael ficou rouca, e ele começou a caminhar para longe, deixando um rastro de fagulhas. Depois se virou e voltou. Seu rosto claro estava vermelho. Liraz tremia, os punhos tão cerrados quanto os de Akiva.
A escolta do harém era a procissão dos Espadas de Prata que levavam as concubinas até a cama do imperador e depois as acompanhavam de volta. O “cortejo”, como chamavam. A mãe de Akiva fizera aquela caminhada anos antes, sabe-se lá quantas vezes — em uma dessas vezes, lá estava ele, começando a se desenvolver dentro de sua barriga. O mesmo se passara com a mãe de Liraz, e a de Hazael, e a de Melliel, e com incontáveis outras mulheres e jovens. E na manhã dos enforcamentos, ao que parecia, a concubina que deveria ter saído do Alef tinha sido despachada pelo Tav, junto com o lixo recolhido naquela noite.
“Foi terrível o que houve com ela”, Akiva ouviu em sua mente a voz cruel e provocadora de seu pai na primeira vez que se dignara a falar com ele. Será que o corpo de sua mãe tinha sido despachado pelo Portão Tav também?
Uma onda de exaustão o atingiu. Como a vida podia ser tão impiedosamente ruim? A guerra tinha acabado, mas os dois lados ainda massacravam civis; o imperador matava casualmente concubinas em seu quarto e enviava seus bastardos ao desconhecido para morrer com anúncios de mais guerra. Não havia nada de bom no mundo, nada mesmo. E agora que até mesmo suas lembranças de felicidade tinham sido corrompidas, Akiva se sentia perdido.
Será que ela estava falando sério quando dissera que nunca tinha confiado nele? Seria verdade? Ele se recusava a acreditar; suas lembranças não lhe permitiam acreditar. As lembranças daqueles dias — daquelas noites — eram mais claras do que as de qualquer outro momento de sua vida, as lembranças dela se enroscando nele durante o sono, de como os olhos castanhos dela se iluminavam quando acordava e o via. Até mesmo no cadafalso, e de novo em Marrakech, depois de partirem o osso, mas antes que ela entendesse...
Antes que ela soubesse o que ele tinha feito.
Talvez ele só tivesse visto o que queria ver. Mas agora, de qualquer jeito, não importava. Não havia mais luz nos olhos dela, não para ele e, o que era pior: para nada.
Pela manhã, Akiva estava no baluarte com Liraz e Hazael, e observaram quando Melliel partiu com suas tropas. Parte dele queria ir junto, mesmo com a névoa, os mistérios, as tropas desaparecidas e tudo mais. Queria ir ver as Ilhas Longínquas e talvez encontrar a pessoa que tinha escrito aquela louca mensagem para o imperador.
Mas seu lugar era ali, naquele lado do mundo. Seu desafio estava ali, assim como sua penitência, que era fazer o que dissera a Karou que faria: toda e qualquer coisa.
Mas o que era qualquer coisa? O que eram todas as coisas?
Ele sabia, mas a resposta parecia assomar diante dele tão grande e intransponível quanto as montanhas do sul.
Rebelião.
Com Madrigal, no templo, tudo lhe parecera possível. Mas seria mesmo? Será que ele encontraria algum apoio nas fileiras? Que havia uma indocilidade nos soldados, isso ele sabia, e também um desespero silencioso. Lembrou-se de Noam no aqueduto, perguntando-se, abatido, quando aquilo tudo iria acabar. Devia haver outros como ele, mas também havia aqueles que incluiriam a morte de mulheres e crianças em sua contagem e ririam enquanto a tinta secava. Seria sempre assim; sempre haveria os dois tipos de soldado. Como ele iria encontrar os bons, recrutá-los e confiar na discrição deles enquanto cuidava do lento e difícil trabalho de dar início a uma rebelião?
As tropas de Melliel agora eram apenas um tremeluzir distante no horizonte. A elevação rochosa do cabo bloqueava a visão do mar dali de onde estavam, mas a maresia estava no ar, e o céu estendia-se infinito. Por fim seus irmãos Ilegítimos desapareceram na imensidão.
— E agora? — perguntou Liraz, virando-se para Akiva.
Ele não sabia do que ela estava falando. Liraz. Ele ainda não entendia a irmã. Ela havia cooperado, mesmo que com cautela, com a evocação dos pássaros e a libertação do Kirin, mas parecia atenta e vigilante desde que ele havia voltado do acampamento rebelde. Com a notícia de que os quimeras tinham revidado o ataque a civis, ele temia que ela tentasse convencê-lo a revelar a seus superiores a localização dos inimigos.
Uma impaciência emanava dela, suas asas emitindo faíscas enquanto ela caminhava de um lado a outro, inquieta.
— Como se começa? — perguntou Liraz. Então parou, olhou-o bem dentro de seus olhos e levantou as mãos. Mãos pretas de tinta. — Você disse que basta começar. Então como fazemos isso?
Começar? Compaixão gera compaixão, dissera-lhe Akiva. Ele nem sabia o que dizer.
— Você está falando de...?
— Harmonia com as feras? — completou ela. — Não sei. Só sei que já estou cheia de receber ordens de homens como Jael e Joram. Sei que todas as noites uma garota tem que atravessar a passarela sabendo que ninguém vai ajudá-la. Elas são como as nossas mães. — Sua voz soava doída. — Eles nos dizem que somos espadas, e que espadas não têm mãe nem pai, mas eu tive uma um dia, e não me lembro nem do nome dela. Não quero mais ser assim. — E levantou mais uma vez as mãos. — Eu fiz coisas... — Sua voz falhou.
Hazael a puxou para si.
— Todos nós fizemos, Lir.
Ela balançou a cabeça, os olhos arregalados e brilhantes. Mas sem lágrima, que Liraz não era disso.
— Não as coisas que eu fiz. Vocês nunca fariam isso. Vocês são bons. São melhores que eu. Estavam ajudando os quimeras, não é? Enquanto eu... enquanto eu... — Ela não terminou a frase.
Akiva pegou as mãos dela, cobrindo as marcas pretas para que ela não tivesse que vê-las. Lembrou-se do que Madrigal lhe dissera, anos antes, com a mão no coração dele e a dele no dela, e repetiu aquelas palavras à irmã:
— A guerra é tudo que nos ensinaram, Lir. Mas não precisamos mais ser assim. Ainda seremos nós, só que...
— Melhores?
Ele assentiu.
— Como? — A inquietação a dominou. Ela soltou as mãos e voltou a andar de um lado para o outro. — Preciso fazer alguma coisa. Agora.
— Começamos unindo forças, atraindo outros para a causa — disse Hazael. — É o primeiro passo. E eu sei com quem começar.
Sim, percebeu Akiva. Ele ajudaria.
— Isso demoraria muito — disse Liraz impetuosamente.
E Akiva concordou. A ideia de passos, de uma cuidadosa progressão de planos e recrutamento e maquinação e táticas, era lenta demais.
— Liraz tem razão. Quantos mais vão morrer enquanto trocamos segredos?
— Então o que fazer? — perguntou Hazael.
Ao longe, um bando de caça-tempestades em movimento dividia o céu. Alguma espécie de bússola interna os impelia para o centro de ventanias, inundações e tumultos e mares agitados, e granizo e naufrágios e relâmpagos; ninguém sabia por quê, mas, naquele instante, Akiva sentiu a mesma atração: de ir em direção ao centro da tempestade em formação dentro dele.
— O primeiro passo é o mesmo desde sempre — disse ele. — Só que está vindo dezoito anos depois.
Ele sabia o que fazer na época, e soube naquele momento também. Enquanto Joram permanecesse no poder, o mundo deles conheceria a guerra e apenas a guerra. Hazael e Liraz franziram o cenho, esperando. E então Akiva disse:
— Vou matar nosso pai.
58
MEL E VENENO
O corpo estava estirado no chão. Era praticamente idêntico àquele pelo qual Karou estivera de luto, de forma que, quando ela saiu de seu transe e o viu ali, deu um soluço baixinho e teve que lutar contra o impulso de cair de joelhos e enterrar o rosto na curva daquele pescoço. Mas o corpo ainda era só isso: um corpo, um invólucro, sem nenhuma alma para animá-lo e abraçá-la de volta. Ela procurou se acalmar; arrancou os tornos dos braços e mãos rapidamente — rápido demais. O sol já tinha nascido, sem dúvida Ten ia aparecer farejando por ali a qualquer minuto. Não querendo perder tempo desparafusando os tornos, puxou-os de uma vez e acabou tendo a pele rasgada em um ou dois pontos.
— Ai! Pare! — gritou Zuzana, agitando as mãos. — Não quero mais ver você se machucando!
Karou a ignorou.
— Depressa. Acenda o incenso.
— Acho que tem alguém vindo — disse Mik, da porta.
Karou assentiu e falou:
— As tábuas.
Ele fechou a porta, firmando-a com pedaços de madeira. A barra não tinha sido substituída; teria feito muito barulho martelar aqueles grandes pregos de ferro de volta na parede. Em vez disso, Mik tinha dado a ideia de cavarem dois sulcos no chão de terra, nos quais ele agora encaixou as tábuas, escorando-as em ângulo com a porta, e apoiando-as na maçaneta e nas dobradiças. Karou esperava que aquilo fosse o bastante.
Ouviram então o suave som de passos e o arranhar de garras nas escadas.
O incenso estava aceso, Zuzana o entregou a ela. A mão de Karou tremia ao colocá-lo na testa do corpo. A fumaça deixou uma ondulada trilha ascendente antes de se dispersar sob o sopro de Karou. Sentiu o cheiro de enxofre, e percebeu que era daí que vinha o nome Brimstone. Como teria sido a vida dele antes de se tornar o ressurreicionista?, perguntou-se Karou. Quando ele era apenas um servo da dor para os magos?
A porta estremeceu um pouco: era Ten tentando abri-la e encontrando uma resistência inesperada. Após um instante de silencioso espanto, ouviram o som surdo de uma batida na madeira.
— Karou?
Ela levantou os olhos, alarmada. Não era Ten, mas Thiago. Droga.
— Sim?
— Vim ver se você precisa de alguma coisa. O que está bloqueando a porta?
O que será, não é mesmo?, pensou Karou, que nunca tivera a oportunidade de perguntar a ele sobre a barra da porta. Ele achara que havia dado um jeito na irritante necessidade que Karou tinha de manter sua privacidade? Bem, há várias maneiras de se esfolar um gato. Ou um lobo. Ela respondeu apenas:
— Só um segundo.
Mais uma pausa, Karou mexendo meio atrapalhada no turíbulo — e se encolheu toda quando a corrente chacoalhou, pois teve medo de que ele percebesse o que ela estava fazendo —, até que ouviu mais uma batida na porta.
— Karou?
— Só um minutinhoooo! — cantarolou ela, usando a voz para encobrir o som que fez ao abrir o turíbulo.
Ela se ajoelhou ao lado do corpo. Observou, esperou.
A alma efundiu do receptáculo, sua presença a inundando. Eram vaga-lumes em um jardim. Eram olhos brilhando nas sombras. Um movimento rápido e uma bifurcação, mel e veneno, pupilas verticais e a pele lisa e quente.
Era Issa.
Karou ouvia as batidas do próprio coração, uma, duas, três; pulsações distintas e quase dolorosas. Quatro, cinco, e a mulher-serpente abriu os novos olhos e piscou.
Então Karou conteve um soluço; o tempo parecia ter parado, o soluço se expandindo dentro dela. Thiago bateu à porta com mais força.
— Abra — ordenou ele, sua voz em um simulacro de calma incapaz de esconder sua raiva crescente. Karou não respondeu. Olhava bem nos olhos de Issa.
Pelo que ela havia passado? Como tinha morrido? O que ela sabe? O que vai dizer?
O corpo novo, até então inerte, começou lentamente a ganhar vida. A sutil contração dos músculos, um crispar de dedos, a batida de um coração. O primeiro inspirar, e o peito de Issa subiu. Seus lábios se abriram, e, ao exalar o ar pela primeira vez — a primeiríssima vez —, soltaram junto a palavra Docinho.
Karou finalmente deixou escapar o soluço, e seu rosto encontrou o lugar que queria junto ao pescoço de Issa, onde a pele humana dava lugar ao capelo de cobra — a estranha mistura de quente e frio que Karou conhecia desde criança, quando Issa a carregava nos quadris e a embalava para dormir, brincava com ela e a ensinava a falar e a cantar, e a amava e era como uma meia mãe para ela. Yasri tinha sido a outra metade; as duas quimeras a haviam criado. Twiga nunca assumira um papel definido, e Brimstone...
Brimstone. Karou sabia que era ela desde o instante, lá no rio, em que tocara sua alma. O mais estranho conflito de emoções a invadira então: euforia e frustração, amor e decepção, alegria e alucinado desespero. Nenhum dos lados pesou mais do que o outro. Mesmo naquele instante as emoções eram uma balança equilibrada. Issa não era Brimstone, mas... Issa era Issa, e Karou a abraçou e a sentiu levantar os braços — trêmulos, inseguros e novos —, envolvendo-a também.
— Você me encontrou — sussurrou Issa.
E Karou, que vivia naquele estranho equilíbrio entre alegria e tristeza, sentiu aquelas palavras pesarem, deixando-a um pouco atordoada. Porque não tinha sido ela.
E sim Akiva.
Mas não havia tempo para pensar nisso. Karou a soltou, e, ao afastar-se, deu à mulher-serpente uma clara visão do que as cercava. Quando ela viu Mik e Zuzana, arregalou os olhos. E sorriu, e, ah, seu rosto era tão adorável — não o rosto que Karou conhecera e amara, mas um bem parecido, com a mesma beleza serena de madona, a pele perfeita e a doçura —, e sua alegria era tão pura e espontânea... Ela conhecia Zuzana da mesma forma que Zuzana a conhecia: dos cadernos de desenho de Karou; Mik ainda não havia entrado em cena quando os portais foram queimados. Zuze abriu um sorriso bobo e acenou, e Issa deu uma risadinha enferrujada.
Então, suavemente, Karou disse:
— Issa, tenho muito para lhe contar, assim como espero que você tenha também, mas é Thiago quem está aí... — Apontou para a porta bem na hora em que um chute fez a madeira vibrar.
Os olhos de Issa se enevoaram ao ouvir falar do Lobo.
— Ele está vivo — disse ela.
— Sim. E vai ficar muito surpreso em ver você.
Surpreso é pouco. Thiago não podia de forma alguma descobrir como Issa tinha ido parar ali; Karou disse isso a ela e a ajudou a erguer-se um pouco, colocando-a em uma posição recostada. Então fez sinal para que Mik pegasse uma das tábuas, enquanto ela pegava a outra.
— Karou — chamou Thiago. Sua falsa calma tinha evaporado por completo. — Abra a porta. Por favor.
A um sinal de Karou, Mik e ela, sem dizer nada, tiraram as tábuas e se afastaram. O chute seguinte de Thiago escancarou a porta, o estrondo surpreendendo a ele — e também a Ten, às suas costas.
— Bom dia? — disse Karou, em tom de indagação, olhando com inocência perplexa para a porta aberta à força. — Eu estava terminando uma ressurreição, me desculpem. Não queria ser interrompida no meio. — E, olhando para Ten, continuou: — Você sabe como eu sou com essas coisas.
Thiago franziu o cenho.
— Uma ressurreição? Quem?
Ele olhou em volta, mas só viu Zuzana e Mik. A porta aberta escondia Issa. Quando Karou a fechou, Thiago viu quem era, e arregalou os olhos para depois estreitá-los. Ten fez o mesmo, e em seguida lançou a Karou um olhar de grande desconfiança.
Antes que qualquer um dos dois pudesse se manifestar, Karou respondeu, em um tom de leve repreensão:
— Você nunca me falou que a alma de Issa estava aqui. — E indicou a pilha de turíbulos. — Tem ideia de como as ressurreições teriam sido mais rápidas se fosse ela me ajudando em vez de Ten?
Para sua grande satisfação, o Lobo Branco ficou sem palavras. Ele abriu a boca, mas nada saiu.
— Não é... — disse ele finalmente. — Não pode ser.
— É, sim — retrucou Karou. — Como você pode ver.
Não havia como a alma de Issa ter estado naquele amontoado de turíbulos, os dois sabiam disso. Aqueles eram todos soldados que haviam servido sob o comando de Thiago e morrido na batalha do cabo Armasin; Issa nunca estaria nem nunca poderia ter sido encontrada entre eles. E no entanto ali estava ela. Karou viu a expressão de Thiago mudar de espanto para confusão e depois frustração: estava tentando pensar em alguma explicação possível para aquilo.
Ele acabou optando pela incredulidade.
— De quem é realmente esta alma, e por que você desperdiçou recursos em um corpo como este?
Foi Issa mesma quem respondeu:
— Em um corpo como este? — Ela olhava para si mesma. — Desde quando um Naja é um desperdício de recursos?
Era uma pergunta justa; Issa não era uma guerreira, mas vários de seu povo, como Nisk e Lisseth, eram.
A resposta de Thiago foi direta:
— Desde que passamos a ter a necessidade premente de voar. Os Naja não têm asas.
— E onde estão as suas asas? — devolveu Issa. Depois se virou para olhar Ten de cima a baixo. — E as suas?
Perguntas também justas. Thiago não respondeu.
— Quem é você? — perguntou ele.
— Eu lhe garanto, Thiago, que sou quem Karou diz.
Ainda sem firmeza, ela tomou posse de seu corpo, erguendo-se lentamente em seus anéis de serpente, que formavam um feixe de músculos tão largo quanto os quadris de uma mulher. A ponta de sua cauda já se agitava da maneira como Karou se lembrava. A maravilha da criação a fulminou como não acontecia fazia várias semanas; andava tão exausta que tinha perdido o poder de se encantar — com a ressurreição, com a magia, consigo mesma. Ela refizera Issa. Sim, havia feito aquilo.
Issa disse então a Thiago:
— Eu sou Issa, dos Naja, e por oitenta e quatro anos servi ao lado de Brimstone. Naquela época, quantos corpos ele fez para você? O destemido Lobo. Pelo menos quinze, com certeza. E você não lhe agradeceu nem uma única vez.
O lindo sorriso dela fez com que aquilo soasse não como uma repreensão, mas quase como uma terna lembrança.
— Agradecer? Pelo quê? Brimstone fez o trabalho dele, e eu fiz o meu.
— De fato, e você nunca pediu nenhum agradecimento também. Ou adulação.
Não havia sarcasmo na voz dela. Seu tom era tão doce quanto seu sorriso, mas qualquer um que conhecesse Thiago minimamente saberia que ela estava debochando dele. Adulação era vinho para o Lobo Branco; mais ainda: era água e ar. Sempre que voltava a Loramendi de uma campanha bem-sucedida — na mesma hora, no mesmo momento —, estendia-se seu estandarte na fachada do palácio. Trombetas soavam, e ele era aclamado em sua travessia pela cidade. Mensageiros eram enviados antes dele para avisar às pessoas que se preparassem. Elas não se ofendiam com isso; apesar de a aclamação ser combinada, era sincera, e Thiago se deleitava com isso.
Uma nota de tensão se insinuou ao redor de sua boca, e ele retrucou:
— Está bem , Issa dos Naja, pois então me conte. Como sua alma veio parar aqui?
Issa não hesitou nem lançou olhares furtivos a Karou. Respondeu com a mais absoluta honestidade:
— Meu caro general, eu não sei. Não sei nem onde “aqui” fica.
Só então ela se virou para Karou, as sobrancelhas erguidas em uma expressão interrogativa.
— Estamos no mundo humano — explicou Karou, o que fez as sobrancelhas de Issa se erguerem ainda mais.
— Ora, que estranho. Pelo visto você tem muito a me contar.
E você a mim, pensou Karou. Espero. Agora mesmo, se ao menos ela pudesse se livrar do Lobo. E de sua espiã.
— De onde ela veio? — disse Thiago, em um tom de quem não estava com paciência para mentiras. — De onde ela veio de verdade?
Ele olhava incisivamente para Karou, mas ela nem vacilou.
— Já falei. — E apontou para a montanha de turíbulos.
— Isso é impossível.
— E, ainda assim, aqui está ela.
Ele apenas a encarou, como se pudesse arrancar a verdade dela com os olhos. Karou o encarou de volta sem medo. Você conta as suas mentiras, pensou ela. E eu, as minhas.
— E a melhor parte é que não vou mais precisar da ajuda de Ten — continuou ela. — Agora tenho Issa. E meus amigos.
E fez um gesto indicando Zuzana e Mik, que testemunhavam tudo da janela.
— Bem, que dia feliz, então — replicou Thiago, em um tom que transmitia tudo menos felicidade.
Karou já havia imaginado, é claro, que ele ficaria muito aborrecido — por ela ter bloqueado a porta, por ressuscitar alguém por conta própria, por ter misteriosamente trazido Issa de volta e por estar descaradamente mentindo para ele —, mas ainda assim o terrível olhar que ele lhe dirigiu a surpreendeu por sua intensidade fora de medida.
Terrível. Uma perversidade venenosa e clara.
Ok, nessa hora Karou se encolheu. Não via aquilo nos olhos dele desde... desde que ela era Madrigal. E lembrava muito bem no que aquilo tinha dado.
— E é mesmo, muito feliz — disse ela, sentindo-se recuar. Não que tivesse se esquecido daquele olhar, mas, ao vê-lo de novo, Karou se lembrou do calor da rocha negra sob seu rosto, do ar se rompendo ao cair da lâmina. Issa pegou sua mão, e Karou apertou a dela com força, feliz por tê-la ao seu lado. — Vou trabalhar bem mais rápido agora. Não é isso que importa?
Isso e o fato de que foi Akiva quem trouxe o turíbulo, e de que ele esteve bem aqui, debaixo do seu nariz.
— Claro — disse Thiago.
Ele então varreu o quarto com o olhar. Karou sabia que não estava imaginando coisas quando o viu erguer a cabeça do mesmo jeito que tinha feito ao sentir o cheiro dela do outro lado do pátio. Ele abriu a narinas de maneira sutil mas inequívoca e estreitou os olhos com desconfiança.
Ele só sentiria o cheiro do incenso ali, disse Karou a si mesma. Somente o odor pungente de enxofre.
Pelo menos era o que esperava, com todas as forças.
— Tenho certeza de que não preciso lembrar a você o que está em jogo — disse Thiago.
Karou fez que não, mas, quando ele se virou para sair, ela se perguntou a que ele se referia. Ao destino das pessoas? Ao sucesso da rebelião? Ela o desafiara, e não podia deixar de pensar que ele falava de algo mais pessoal do que isso.
O que estava em jogo? Sentia-se à beira de um precipício e fustigada por vendavais. O que não estava em jogo?
E então, à sua porta, o Lobo trocou um olhar com Ten, tão carregado de intriga — de planos frustrados — que Karou de repente compreendeu algo. Sentiu um calafrio, e sua mente repensou os últimos dias e semanas.
A vigilância constante, as perguntas, todas as pistas e presságios.
“Você poderia ser Kirin de novo”, dissera-lhe Ten. “Eu a ressuscitaria. Você só precisaria me mostrar como.”
A proposta tinha sido assustadora: colocar sua alma nas mãos de Ten? Mesmo que o fosso não fizesse parte do plano — e fazia —, aquilo lhe parecera muito errado. E agora Karou entendia por quê.
Ten deveria substituí-la. A ideia de Thiago, ao impor-lhe uma assistente, não era ajudar Karou. Era deixar de precisar dela.
Ela sentiu como se estivesse abrindo os olhos e vendo o Lobo Branco claramente pela primeira vez desde que ele a encontrara vagando pelas ruínas de Loramendi.
Ele ainda quer me matar.
Um calor crescia em seu peito, irradiava até seus membros e subia pelo pescoço, deixando sua pele vermelha. Ela queria gritar. Queria gritar na cara dele o mais alto que pudesse, e até mais do que isso, queria dar uma gargalhada. Ele achava mesmo que Ten poderia fazer aquele trabalho? Ela levara anos para aprendê-lo com Brimstone, e mesmo com a orientação dele era preciso ter o dom, não só a prática. Ela nunca se esqueceria do orgulho que sentira na primeira vez que merecera um “Muito bom”, ou da surpresa e do respeito na voz de Brimstone quando vira, contra todas as expectativas dele, que ela tinha jeito para magia.
Ten poderia conjurar um corpo tanto quanto Virko poderia dar um concerto com o violino de Mik.
Karou entendia o jogo de Thiago agora; mas seus planos não tinham dado certo, e ele ainda precisava dela. Então ele teria que mudar o jogo.
Como?
59
DOCINHO
— Pare de olhar para os peitos dela.
— O quê? — Mik se virou para Zuzana, suas bochechas pálidas ganhando um pontilhado cor-de-rosa. — Não estou olhando!
— Pois eu estou — retrucou Zuzana, olhando para Issa. — Não tem como não olhar. São perfeitos. Belo trabalho, Karou. Mas será que ela não podia usar uma camiseta?
— Sério? Quantos modelos nus você já desenhou?
— Nenhum — respondeu Mik por ela.
— Está certo. Talvez você não tenha desenhado, mas tenho certeza de que já viu uma boa quantidade de peitos.
— Na verdade, não. — Seus olhos correram de novo para Issa. — E, sabe, nunca vi os de uma deusa serpente.
— Ela não é uma deusa — disse Karou de modo carinhoso, embora Issa realmente parecesse uma deusa. Ela ainda estava maravilhada: Issa está viva. Está aqui. — Ela é uma Naja, e os Naja não usam roupas.
— Certo — disse Zuzana. — Só cobras.
— Isso aí.
A primeira coisa que Issa fizera, depois de cumprimentar o grupo de quimeras — o que tomara boa parte da manhã —, tinha sido sair pela casbá e evocar cobras. Karou a acompanhara, um pouco perturbada ao perceber que as serpentes tinham estado ali o tempo todo, inclusive uma naja egípcia extremamente venenosa. Agora, de volta ao seu quarto, as cobras tinham se enroscado na cintura e no pescoço da Naja, inclusive no seu cabelo. Enquanto Karou observava, o rabo de uma das cobras deslizou pela testa de Issa, indo descansar na ponte de seu nariz. Issa riu e colocou-a delicadamente de volta no lugar.
— Elas lhe contaram alguma coisa interessante? — perguntou Karou, deixando o tcheco para falar em quimera.
Estava se lembrando de Avigeth, a cobra-coral que contara a Issa que o caçador Bain escondia seus desejos na barba. Se não fosse por isso, Karou talvez nunca tivesse chegado a Eretz.
A gargalhada de Issa se evaporou. Seu rosto ficou sério.
— Sim — respondeu ela. — Estão dizendo que este lugar fede a morte desde que você chegou aqui.
Karou se sentiu repreendida, como se as cobras a tivessem entregado.
— Bem, é verdade — disse ela. — Nós fizemos o que era preciso.
Na mesma hora aquele “nós” lhe soou sujo, ao se lembrar de Thiago lhe falando: “Estamos nisso juntos.”
O que não era verdade. Estava claro agora que os dois seguiam caminhos muito, mas muito distintos.
Deve ter soado na defensiva, pois Issa olhou para ela com um ar curioso.
— Não tenho a menor dúvida disso, docinho.
Mas então pareceu repensar. Até mesmo as cobras pararam o que faziam, no meio do ato de se enroscar. Karou sabia que elas estavam em sintonia com a mente e as emoções de Issa, que sua imobilidade ecoava a dela, ou seja, que havia chegado a hora de conversarem. Muita coisa havia acontecido mais cedo, muitos quimeras em volta. Alguma coisa no mistério da aparição de Issa — ela era a única sobrevivente de Loramendi — os deixara animados.
A animação também contagiara a Zuzana e Mik. No café da manhã, Karou ficara impressionada ao ver a amiga, que nem falava a língua dos quimeras, fazer uma debochada imitação da performance de Virko ao violino, com direito até ao estridente iiiiirc que resultara da tentativa e à reação dela, bem ao estilo do quadro O grito. Com isso Zuzana arrancou gargalhadas estrondosas dos sisudos espectros, incluindo do próprio Virko. Em apenas uma refeição ela conseguiu se enturmar mais com aqueles soldados do que Karou conseguira em semanas.
Sua vergonha a impedira de tentar, ela via isso agora. Acreditara-se merecedora daquele desprezo. Mas será que ainda pensava assim? Não aquele desprezo todo, pelo menos — não a parte que resultava das mentiras de Thiago.
Ela vira Ziri no salão durante o café da manhã. Embora não tivessem se falado, sentira uma forte conexão no olhar que trocaram. Um segredo... e algo mais? Karou tanto havia desejado que Ziri fosse um amigo, e agora parecia que de fato ele era, e ela percebia que tinha que agradecer a Akiva por isso também. O anjo salvara a vida dele e lhe trouxera a alma de Issa.
Por quê?
Issa estava diante dela agora, as cobras imóveis a não ser pelo agitar das línguas. Seu rosto de madona estava sereno, mas atento. Esperando. Esperando pela pergunta de Karou?
A manhã inteira ela resistira à vontade de perguntar, com medo da resposta. Mas agora precisava saber. Respirou fundo.
— Ele se foi mesmo?
Os lábios de Issa tremeram, e ela entendeu. Sentiu os olhos arderem.
— Ele ainda estava vivo quando nos mandou embora — disse Issa. — Mas não tinha esperanças de permanecer assim por muito mais tempo.
— Mandou vocês embora? — É claro, Akiva encontrara o turíbulo nas cavernas dos Kirin. Por que ele fora até lá? Lar de sua primeira infância, aquele era também o lugar onde eles tinham planejado se encontrar, muito tempo antes. Onde tinham planejado dar início a uma rebelião. Então de repente o “nos” a fulminou. — Yasri e Twiga também?
— Brimstone permitiu que Twiga ficasse com ele, mas era preciso que Yasri e eu sobrevivêssemos. Por você, quando voltasse. Ele sabia que você voltaria.
— Ele sabia? — perguntou Karou, hesitante. Respirou fundo várias vezes, contendo as lágrimas com dificuldade. — Ele acreditava em mim?
Bem que ela dissera a Brimstone que não era uma borboleta que se enxotava pela janela.
— É claro. Ele a conhecia bem, criança. — Um esboço de sorriso, amargo e doce ao mesmo tempo. — Melhor do que você mesma.
Karou soltou uma pequena risada. Um breve soluço escapou junto.
— Ah, isso com certeza — disse ela.
Os olhos de Issa brilhavam, úmidos, mas ela conseguiu segurar as lágrimas. Karou pegou as mãos dela e apertou-as com força, e as duas ficaram assim enquanto contavam suas histórias.
Zuzana e Mik tinham voltado a dormir, embalados pelo calor da tarde, e os sons da casbá chegavam até elas através das venezianas fechadas: lutas no pátio, o retinir de lâminas. Vozes.
— Depois que os portais foram queimados, sabíamos que não demoraria muito — contava Issa. — Joram atacou com uma violência jamais vista. Nossos exércitos encolhiam a cada dia, e mais e mais quimeras chegavam aos portões, indo para Loramendi em busca de... segurança. — Issa engoliu em seco. Sua voz não passava de um sussurro. — A cidade estava tão cheia. — Ela olhou para suas mãos e as de Karou, ainda juntas. — Os serafins também sofreram grandes perdas. Joram os enviou para a morte, tantos, tantos... Ele sabia que ficaríamos sem soldados primeiro, e foi o que aconteceu. Um cálculo tão simples, no final das contas. Loramendi foi cercada. Foi então que Brimstone...
O tremor tomou conta de sua voz, e Issa puxou uma das mãos para levar à boca. Karou ainda segurava sua outra mão, e gostaria de poder fazer mais. Nada faz alguém se sentir tão inútil quanto a dor de outra pessoa.
Issa tentava dominar as emoções. Quando levantou os olhos de novo, parecia arrasada. Era um olhar tão aterrorizado pelas lembranças que Karou sentiu uma pontada de medo.
— Issa...
Mas ela a interrompeu.
— Queríamos ficar com ele até o fim. — Ela apertou as mãos de Karou. — É claro que eu queria ver você de novo, e ajudá-la, mas deixá-lo ali, depois de... — Issa não conseguiu terminar a frase. Apertou os lábios até ficarem brancos. Seu rosto inteiro estava tenso pelo esforço que fazia para não chorar. Ela respirou fundo. Mais uma vez. — Mas ele ainda precisava de nós. Então Yasri e eu... morremos também.
Também?
O que ela estava deixando de contar? Karou foi tomada pelo pavor. O que tinha acontecido em Loramendi? Imagens rodopiavam em sua mente. Ela balançou a cabeça. Viu Issa e Yasri sangrando serenamente de feridas indolores até seus cílios tremularem e seus olhos se fecharem. Ou será que elas tinham tomado chá de réquiem e adormecido, para não mais acordarem? E, no fim de tudo isso, imaginou Brimstone e Twiga curvados, estoicos e em silêncio, colhendo as almas das duas mulheres que tinham sido suas companheiras por décadas.
— Ele não poderia ter tirado vocês de lá vivas? — perguntou Karou, em um lamento.
Issa olhou para ela, e Karou soube que dissera a coisa errada. Até parece que aquela decisão tinha sido tomada levianamente!
— Não, criança. — Ela estava tão triste. — Mesmo que conseguíssemos sair, o que faríamos, esperando escondidas, aflitas e preocupadas? Passaríamos fome e sede, seríamos descobertas, mortas? A estase é boa; não precisamos nem ser corajosas. Éramos mensagens em garrafas. — Ela sorriu. — Mensageiras em garrafas.
E qual era a mensagem? Quando Brimstone vira que enfrentaria a morte, após uma vida que começara com escravidão, vivida com muita dor e sacrifício, prolongada pela guerra e que logo terminaria brutalmente, o que ele pensara em lhe dizer? Sentindo-se como se estivesse sendo reprovada em um teste, Karou não conseguiu perguntar. Pelo menos não ainda.
Issa lhe contou que foram pássaros mensageiros quem levou os turíbulos contendo as almas delas para longe: corvos-morcego, ou squalls, como Kishmish. Esconderam-nos em lugares em que Karou poderia vir a encontrá-los. A alma de Yasri, descobriu, estava nas ruínas do templo de Ellai.
— Ele achava que eu iria até lá? Que aquele lugar ainda teria algum significado para mim?
Issa ficou surpresa.
— Sim, criança. Quando você partiu o osso da sorte e lembrou...
— Quando eu lembrei que condenei o meu povo?
— Docinho, o que está dizendo? Não foi você que nos condenou. Foram milhares de anos de ódio.
— Milhares de anos de ódio nos condenaram à guerra, talvez. Não à aniquilação.
— O fim estava próximo de qualquer forma. Talvez viesse em um ano ou em cem, mas estava próximo. Quanto tempo uma guerra pode durar?
— Isso é uma charada? Quanto tempo uma guerra pode durar?
— Não, Karou. A charada é: como uma guerra pode terminar? Aniquilação é uma forma. Foi a escolhida por Joram. Ele fez isso, não você. Você sonhou com uma forma diferente. Akiva também. Vocês dois tiveram a capacidade de não odiar. A ousadia de amar. Você entende que presente incrível isso é?
— Um presente? — Karou sentiu-se sufocar. — Uma facada nas costas, isso sim! — Zuzana se mexeu na cama, e Karou abaixou a voz. — Foi uma ilusão. Uma loucura. Aquilo não era amor. Era estupidez...
— Foi corajoso — rebateu Issa. — Foi raro. Era amor, e foi lindo.
— Lindo. Estamos falando da mesma história? Eu morri, e ele traiu tudo com que tínhamos sonhado.
— Ele estava destruído, Karou. O que acha que você teria feito?
Karou olhava fixamente para Issa. Ela estava defendendo Akiva?
— O que você teria feito se tivesse sido você a ser levada pelos serafins, depois torturada e obrigada a assistir à decapitação dele? E pense: o que vocês poderiam ter feito, juntos, se Thiago não os tivesse detido? Como poderia ser o mundo agora?
— Eu... não sei. Talvez Thiago estivesse morto, e Brimstone, vivo.
Por um instante — ainda que apenas por um instante — parecia que a culpa era toda de Thiago, e não dela. Ela acreditara, na época, que eles tinham o Destino ao seu lado, mas o Lobo intimidara o destino, dobrara-o a sua submissão, e aquele era o resultado.
A mulher-serpente perguntou baixinho, suavemente:
— Vamos, me diga: o que é que você anda fazendo, criança?
Karou não podia responder. Matando anjos. Matando crianças. Apertou os lábios. Vingando sua morte, pensou em seguida, e a hipocrisia disso a abalou profundamente. Se era isso o que ela estava fazendo, como podia ser melhor do que ele?
Não. Não era a mesma coisa. Ela soltou o ar, aflita, e as palavras saíram junto:
— Lutando pela sobrevivência das raças quimeras.
Será mesmo? A rebelião estava nas mãos de Thiago, não nas dela, e com todo o sigilo que ele mantinha, como ela poderia saber pelo que estavam lutando?
O que Akiva lhe dissera no rio? Que poderia ou não haver quimeras no futuro, dependendo do que eles fizessem agora. Quer dizer, ele dissera várias coisas. Karou ficara tão abalada com a presença dele, com a própria fúria — com a saudade que sentia dele —, que não tinha pensado direito nisso na hora. Ele estava falando de vida, de escolhas. E do futuro, como se pudesse haver um.
E o que ela dissera? A primeira coisa capaz de magoá-lo que lhe ocorrera na hora.
Karou sabia que precisava contar tudo a Issa, principalmente como o turíbulo tinha chegado às mãos dela, mas como era difícil falar o nome de Akiva e ao mesmo tempo olhar nos olhos dela. Então contou do retorno de Ziri até a aparição de Akiva no rio, antes de falar sobre o que acontecera em Marrakech e até em Praga. É claro que Issa não sabia de nada disso, e Karou sentiu muita vergonha em admitir que tinha... se apaixonado por ele de novo. Omitiu a parte do beijo. Issa não fez nenhum julgamento, falando apenas quando queria incentivá-la a continuar, mas Karou sentia como se estivesse sendo avaliada. Tentou manter a voz tranquila, o rosto sereno, para provar que Akiva não era mais nada além de um serafim inimigo. Quanto terminou, Issa ficou em silêncio por um instante, pensativa.
— O que foi? — perguntou Karou, na defensiva.
— Então... — disse Issa, escolhendo as palavras com precisão, como se colocasse cartas em uma mesa. — Akiva seguiu Ziri até aqui. — Uma pausa. — Você tem medo de que ele possa revelar nossa localização para os serafins?
A pergunta lançou sobre ela uma rajada dormente de choque. Ah, pensou ela. Isso.
Ela vinha se preocupando em não deixar os quimeras descobrirem sobre a visita de Akiva, não em evitar que Akiva descobrisse mais sobre os rebeldes quimeras. O que isso significava? Ela lhe dissera que nunca confiara nele, e ele acreditara facilmente nessa mentira. Como ela podia continuar confiando nele?
Se não confiasse, não teria corrido para a casbá para convencer Thiago a cuidar logo dos preparativos para saírem dali? Mas não; isso nem lhe ocorrera.
Porque não era Akiva que ela temia.
— Aconteça o que acontecer — dissera-lhe ele em Marrakech, pouco antes de partirem o osso da sorte —, preciso que você se lembre de que eu a amo.
Ela prometera — ofegante, incapaz no momento de imaginar uma realidade em que desejaria não se lembrar disso. E mantivera a promessa, contra sua vontade: pois queria esquecer. Mas a certeza veio rápido: Akiva a amava. Não a magoaria. Ela sabia disso.
Com um fiapo de voz, e relutante em admitir — parecia que era ela que o estava defendendo agora —, Karou disse:
— Ele não vai fazer isso.
Issa assentiu, séria e triste, olhando para Karou. Ela a conhecia tão bem que Karou se sentia como um livro aberto, todos os seus segredos e fraquezas lá expostos e seu coração de traidora pulsando na página.
— Está bem, então — disse Issa, confiando na confiança de Karou, e pronto.
Issa então se virou em direção à mesa e às bandejas de dentes e, com forçada leveza, disse:
— Agora talvez seja melhor começarmos a trabalhar, para o Lobo não pensar que não valemos o aborrecimento causado por nossas bocas insolentes.
Havia mais a ser dito, e Karou sabia. Havia uma mensagem; havia a lacuna no relato de Issa, uma omissão que, fosse o que fosse, a assombrava. Karou nunca vira Issa abatida daquele jeito. Ela vai me contar quando estiver pronta, pensou, tentando acreditar que fora pensando no bem de Issa que não perguntara logo, mas no fundo sabendo muito bem que o que a impedira tinha sido apenas seu próprio medo.
60
O NOVO JOGO
Uma coisa era verdade: o trabalho realmente andava muito mais rápido com a ajuda de Issa e de Zuzana. Com dois pares de mãos hábeis a seu dispor, ela podia delegar toda tarefa que não fosse a conjuração em si. Agora então, com Ziri pagando o dízimo — ele se oferecera de maneira insistente, chegando até a implorar, como forma de recompensá-la por sua magia —, Karou sentia como se não estivesse fazendo praticamente nada. Seu quarto ficava cheio demais. Era sufocante, as asas de Ziri tomavam muito espaço, e a cauda de Issa parecia tomar o chão inteiro, mas Karou se sentia... feliz. Feliz de verdade, não feliz como em O cálice sagrado. E adivinhem qual era a tarefa que ela ficava mais feliz em delegar, mais até do que o dízimo? A matemática.
— Eu sou bom em matemática — ofereceu-se Mik, ao ouvir por acaso suas reclamações a respeito dos cálculos da proporção asa-peso. — Posso ajudar?
Quando viu que ele podia mesmo ajudar, Karou ajoelhou-se no chão.
— Deuses da matemática e da física — entoou —, aceito sua dádiva na forma deste garoto inteligente de cabelo claro.
— Este homem — corrigiu Mik, ofendido. — Veja: costeletas. Pelo no peito. Um pouco, pelo menos.
— Este homem — retificou Karou, levantando-se e se curvando de novo em uma falsa prece. — Obrigada, deuses, por este homem... — Ela parou o que dizia para perguntar a Zuzana, com sua voz normal: — Espere aí. Isso faz de você uma mulher?
Karou só queria dizer que era estranho pensar em Zuzana — e nela mesma também — não mais como uma garota, e sim como uma mulher. O termo soava estranhamente velho. Mas a resposta de Zuzana (usando todo o poder de suas sobrancelhas a serviço da lascívia) foi:
— Bem, sim, já que você perguntou. Este homem fez de mim uma mulher. Dói pra caramba no início, mas depois melhora. — Então sorriu como um personagem de animê. — Muito. Melhora muito.
O pobre Mik ficou vermelho como um tomate, e Karou cobriu os ouvidos com as mãos.
— Lá, lá, lá!
Quando Ziri lhe perguntou do que estavam falando, ela também ficou vermelha e não explicou, o que só fez com que ele também corasse, imaginando qual devia ser o assunto.
Ao fim daquele primeiro dia, tinham feito cinco novos soldados para a rebelião, o dobro da média de Karou quando trabalhava com Ten, mesmo tendo começado tarde, pois ela precisara explicar os conceitos básicos a Zuzana e Mik. Seguiram a ordem de nomes e as especificações de Thiago, para aplacá-lo, mesmo quando viram que o turíbulo que Zuzana pegara ao acaso — aquele com que vinha perturbando Karou desde o dia em que chegara — continha Haxaya. A soldada raposa fora amiga de Madrigal no passado, e sua alma a fazia lembrar-se do pôr do sol e de risadas, ferinas como seus dentes; Haxaya era agradável de se ter ao lado... o que fez Karou começar a pensar em lados.
Em quem ela podia confiar? Os soldados do exército quimérico eram e sempre tinham sido extremamente leais ao general. Mas Karou tinha Issa, é claro, e Ziri, que se arriscava quando ia ao quarto dela para pagar o dízimo. Talvez o restante da patrulha de Balieros. Eles continuavam em estase, então não dava para ter certeza. Talvez Amzallag estivesse insatisfeito com as táticas de Thiago, assim como Bast, provavelmente. E ela gostava de Virko. Gostava de sua natureza jovial e cooperativa, e, a julgar por aquele dia em que ele vomitara, não era muito fã daquelas missões de terror, mas ela não conseguia imaginá-lo desafiando o Lobo.
Mas que ideias eram aquelas? Karou não conseguia nem se imaginar desafiando o Lobo, que dirá cogitar pedir isso aos outros. Contara a Ziri sobre suas desconfianças, contara que o Lobo queria matá-la, e, para seu total desconforto, ele não demonstrara nenhuma surpresa.
— Ele quer estar no controle de tudo — respondera Ziri. — E você provou há muito tempo que não está sob o encanto dele.
Ah sim, ela havia provado isso mesmo. A pergunta que ecoava em sua mente agora era: O que eu posso fazer?
Não podia continuar cooperando com ele. O caminho que ele seguia era bárbaro, o que já era bem ruim, mas também significava a ruína. O que ele havia causado ao povo do sul, por exemplo. Ela às vezes pensava que, se os soldados entendessem os efeitos daquela estratégia — se conseguisse fazer com que eles enxergassem —, então deixariam de apoiar Thiago. Mas, é claro, eles entendiam. Essa era a pior parte. E tinham seguido suas ordens mesmo assim, exceto uma única equipe.
E tampouco ela podia enfrentá-lo. Thiago era como um deus para eles; e ela? O que era ela? Uma amante de anjo em pele de humana? E mesmo que alguém lhe desse ouvidos, ela não tinha jeito nenhum para líder. Fazia muito tempo desde que sequer lutara em uma batalha, e estava com medo. Da responsabilidade, do império, das poucas chances que tinham de sobreviver e, acima de tudo, do próprio Thiago. Naquele exato instante, tinha medo de ver aquela crueldade nos olhos dele de novo.
— Talvez outro dia — dissera ela a Zuzana, fechando o turíbulo de Haxaya e colocando-o de lado. — No momento vamos tentar deixar o Lobo feliz.
E Thiago estava feliz com o trabalho deles. Quando lhe apresentaram os cinco novos soldados, ele disse:
— Muito bem.
Sua máscara estava de volta. Ele era todo gentilezas durante o jantar, chegando até a servir-lhes vinho — vinho? Aquilo era mercadoria rara, e não fora Karou quem conseguira —, para um brinde aos cinco novos espectros.
— À sobrevivência — disse ele, e Karou se perguntou: De quem?
Ao entregar aqueles novos soldados a Thiago — aquelas armas —, ela não esqueceu, nem por um segundo, para que eles seriam usados. Era repugnante, mas desafiá-lo não ajudaria em nada. Ela via a maneira como os outros o olhavam: com um inflamado misto de respeito e temor, desejosos de sua atenção e radiantes quando a recebiam. E via como Thiago lidava com eles, persuadindo e conquistando seus soldados, fazendo com que se sentissem especiais, escolhidos, sua última força.
Ela observou enquanto Thiago servia o vinho, mas, quando viu o formato esférico da garrafa, perdeu o interesse pela bebida. Não era um vinho quimera, de cor verde-clara, e sim um vinho serafim, tinto. Um dos soldados devia ter trazido a bebida de alguma cidade saqueada.
Ela se recostou na cadeira, brincando com o cuscuz no prato.
— Não vai beber? — perguntou Thiago, sentando-se ao seu lado.
— Não, obrigada.
— Há quem acredite que dá azar recusar um brinde — disse ele. — Que assim a bênção do brinde não alcança a pessoa.
O quê, do brinde dele à sobrevivência?
— Então quer dizer que se eu não beber do seu vinho, não vou sobreviver?
Ele deu de ombros.
— Não sou supersticioso. Mas é um bom vinho. — Ele bebeu. — Temos tão poucos prazeres ultimamente, e concordamos hoje mais cedo que este é um bom dia. Cinco soldados se unindo à luta, Issa de volta... sabe-se lá como. — Os dois olharam para Issa, sentada mais adiante na mesa com Nisk e Lisseth, ambos Naja também (ou ao menos a reinterpretação que Karou fizera dos Naja). — E, é claro, você tem seus amigos. — Ele apontou com a cabeça em direção a Zuzana e Mik.
Os dois estavam sentados de pernas cruzadas no chão, em um círculo de soldados, apontando para algumas coisas e aprendendo mais palavras em quimera: sal, rato, comer, a combinação infeliz das três palavras fazendo Zuzana rejeitar a carne em seu prato.
— Parece frango — disse Mik, dando uma mordida.
— Só estou dizendo que havia muito mais ratos aqui hoje cedo.
— Provas circunstanciais. — Mik deu mais uma mordida e disse, em um quimera razoável e arrancando gargalhadas dos outros: — Delicioso rato salgado.
— É frango — insistiu uma das Sombras Vivas.
Karou não sabia ao certo qual das duas era, mas ela agitava os braços como se fossem asas e até ergueu alguns ossos de galinha, tirados só Deus sabia de onde, para provar. Agora eu já vi de tudo. As Sombras Vivas, imitando galinhas.
A presença de seus amigos tinha mudado muito o clima na casbá, e para melhor. Ela estava adorando poder contar com a ajuda deles, assim como adorava ter a companhia deles. Mas, observando os dois ali de onde estava, ao lado de Thiago, e sabendo o que agora sabia, começou a ter um mau pressentimento.
— Pois é — disse ela, tentando um tom de voz ameno e casual. — Tenho meus amigos. Mas eles estão só de visita. Logo devem ir embora.
— Ah, que pena. Eles têm ajudado tanto. Aposto que você consegue convencê-los a ficar.
— Duvido muito. Eles têm seus compromissos.
— Mas o que poderia ser mais importante do que ajudar você? — Karou sentiu seu campo de visão se estreitar, como uma lente focando em seus amigos. Então era esse o novo jogo dele. A voz de Thiago era macia como veludo. — Eu detestaria que você os perdesse.
Perdê-los? Karou sentiu o sangue pulsando nos ouvidos. As ameaças de Thiago eram tão claras quanto a pele dele, mas ela não tinha dúvida de que o que havia por trás daquilo era sangue. Seus amigos eram uma vulnerabilidade. Ela se preocupava com eles. Thiago não estava interessado nos dedos habilidosos de Zuzana ou nos cálculos rápidos de Mik. Só havia uma razão para ele querer mantê-los ali: para usá-los como um meio de controlá-la. Ela deixou o fingimento de lado.
— Eu fico com Ten no lugar deles — disse suavemente. — Mas deixe os dois irem embora.
— Ah, acho que não. Ten possui muitas qualidades, mas acho que podemos concordar que servem mais para compelir a ressurreicionista do que para tornar-se uma.
— Não preciso ser compelida. Fiz tudo o que você pediu.
— De onde Issa veio?
A pergunta a pegou de surpresa. Sua hesitação foi mínima, mas estava lá, e provocou um sorriso cansado nele.
— Eu já disse.
— De verdade.
Karou sentiu seu corpo gelar. Ficou ali sentada vendo Zuzana fazer uma marionete barulhenta com os ossos de galinha. O boneco tinha juntas de corda e uma tigela lascada no lugar da cabeça, mas de alguma forma ela conseguira fazer aquela coisa parecer viva, se aproximando dos soldados e implorando por restos de comida. Os soldados aplaudiam e tocavam os tambores que Karou levara. Zuzana fez a marionete dançar até cair a cabeça, e então começaram a pedir que Mik tocasse o violino.
— Experimente o vinho — disse Thiago, levantando-se para sair. — É excelente. Sabe o que dizem sobre o vinho dos anjos? Quanto mais sangrento, melhor.
Ela não bebeu. Depois, no pátio com Issa, Karou ficou observando Thiago, mas ele apenas se sentou recostado na parede, sozinho, a cabeça inclinada para trás e os olhos fechados, ouvindo a música.
Mas havia outros olhos abertos. Em meio às sombras, na galeria, Ten andava de um lado para o outro. Estava de olho em Karou, e nem tentava disfarçar. Não desviava o olhar nem quando girava para mudar de direção. De um lado para o outro, de um lado para o outro, incansavelmente. Era como se o próprio ódio do Lobo tivesse tomado corpo na forma dela — um corpo animal, com instinto de predador e dentes afiados, ávido pela ordem de matar que não tivera o prazer de receber.
Karou ficou toda arrepiada. Observou os soldados ali reunidos, todos arrebatados pela música de Mik. Alguns estavam de olhos fechados; outros, abertos. E ela nem sabia direito o que estava procurando.
— Não acho que ajudei você ao ressuscitá-la — disse gentilmente a Issa. O que ela lhe dissera antes mesmo, que a estase era tranquila? — Você estava mais segura no turíbulo.
A resposta de Issa foi igualmente gentil:
— Minha segurança não é importante.
— O quê? Para mim, é.
— Você é importante, Karou. E a mensagem é importante.
A mensagem. Karou ficou muda. Parecia haver uma lacuna pairando entre as duas — um silêncio mais profundo que a música, esperando que ela o preenchesse com uma pergunta. O que Brimstone queria que ela soubesse? Estava na hora de perguntar. Ela nunca mais ouviria a voz dele, mas pelo menos tinha suas palavras, sua mensagem.
— É uma mensagem boa ou ruim? — perguntou a Issa.
A pergunta errada, ela sabia. Mas não pôde evitar.
— Um pouco dos dois, docinho — respondeu Issa. — Como todas as coisas.
61
UM MONTE DE AKIVAS MORTOS
— Como os Stelian entraram no refúgio sagrado? — refletia Hazael. — Se Akiva pudesse descobrir isso...
Liraz cortou-o logo:
— Mesmo que ele pudesse, nós não somos assassinos.
— Não por falta de tentativa.
Após o episódio da cesta de frutas, a informação que chegara até eles fora a de que Joram se fechara na Torre da Conquista, e que tinha até mesmo suspendido suas audiências com os cidadãos. Não havia forma de se aproximar dele. Pelo menos ainda não haviam pensado em nenhuma.
— Você me entendeu. Não somos de entrar furtivamente nos lugares e não somos as Sombras Vivas. Nosso pai verá nosso rosto antes de morrer.
— Eu sei. Você prefere que suas vítimas saibam quem as matou — recitou Hazael, como quem já tivesse ouvido aquilo uma centena de vezes.
— Principalmente desta vez — disse Akiva. — E é preciso que haja testemunhas.
Os dois olharam para ele, surpresos. Akiva vinha fazendo o kata, procurando alcançar o sirithar. Tentava encontrar um lugar calmo onde pudesse pensar em uma solução, mas não tinha conseguido nenhuma das duas: nem calma, nem solução.
— As pessoas têm que saber que fomos nós — disse ele, embainhando as espadas. — Ou então vão culpar os Stelian ou as Sombras Vivas, e Japheth não terá escolha a não ser assumir as guerras do pai.
Japheth era o príncipe herdeiro. Isso porque o irmão mais velho tinha sido assassinado pelo irmão do meio, que depois também fora assassinado no templo, naquela mesma noite, enquanto rezava para que os deuses da luz perdoassem seu pecado. Era lembrado como o Imperdoado; o irmão que ele assassinara era o Vingado, e Japheth era apenas Japheth. Ele não era nenhum modelo de conduta; era um frouxo, que não gostava de sair da Torre da Conquista nem mesmo com escolta completa. Um covarde, mas o tipo certo de covarde: o que fugiria da guerra mesmo que ele próprio não precisasse lutar. Pelo menos era o que Akiva esperava.
— E assim os Ilegítimos se tornarão o inimigo — disse Hazael, melancolicamente.
— O povo já nos despreza mesmo — disse Liraz. — Vão ficar felizes por ser nossa culpa.
— Vão mesmo — disse Akiva. — Vão dizer que Joram deveria ter imaginado que isso aconteceria, que a culpa foi dele mesmo, por colocar tantos bastardos no mundo. Ficarão chocados, e será o nosso fim.
— E quando você diz nosso, está falando...
— De todos nós. — Eram palavras pesadas. — Isso vai custar a vida de todos nós.
— Então nós três decidiremos o destino de trezentos? — perguntou Hazael.
— Isso mesmo — disse Akiva.
Ele olhou para o mar. Trezentos. Só trezentos. Tantos já perdidos. Akiva decidira o destino deles, não? Tinha dado início àquilo tudo. A guerra vinha acontecendo fazia anos, mas, com os portais queimados, terminara de vez em questão de meses. Com Brimstone paralisado, sem ter como recuperar seu suprimento, Joram avançara sobre os quimeras com todo e qualquer possível soldado sob seu comando, e eles sofreram inúmeras perdas em todas as frentes: o Domínio, a Segunda Legião, até mesmo os batedores e a marinha do império, mas os Ilegítimos foram os mais duramente atingidos, por serem dispensáveis, infinitamente renováveis. Sendo seu número já pequeno para começar, o índice de baixas entre eles foi espantoso: apenas um em quatro conseguiu sobreviver.
— Vamos avisar os outros — disse Akiva. — Eles vão deixar seus regimentos e se juntar a nós. Vocês conseguem pensar em alguém que tenha menos a perder?
— Escravos — respondeu Hazael.
— Nós somos escravos — disse Akiva. — Mas não por muito mais tempo.
Ao longo dos dias que se seguiram, eles começaram a lançar cautelosos alertas a seus irmãos bastardos; apenas de boca em boca, à medida que as tropas passavam pelo cabo Armasin. Alguns voos noturnos foram necessários, ocultos por encanto, para alcançar destacamentos distantes. Os Ilegítimos estavam espalhados pelos quatro cantos do império, uns aqui, outros ali. Akiva pensou em Melliel e seu regimento, mas não tinha como alcançá-los. O que será que tinham encontrado além do horizonte? Será que estavam vivos, que alguma das tropas que eles tinham ido encontrar estava viva, que haviam conseguido voltar? Ninguém tinha retornado ainda, nenhum dos mensageiros, batedores ou tropas avançadas de Joram. Ninguém que voara em direção às Ilhas Longínquas retornara.
Seria de se pensar que isso esfriaria o ardor do imperador com relação à conquista, mas os boatos que vinham da capital sugeriam justamente o contrário. Hazael arrancava toda a informação possível dos passantes — e havia cada vez mais viajantes naqueles dias, pois nobres com uma pesada escolta cruzavam as águas para inspecionar suas novas propriedades —, e os fragmentos de notícias formavam um estranho mosaico.
— Ele está planejando uma invasão? — indagou Akiva. — Não faz o menor sentido.
— Mil túnicas completamente brancas — relatara Hazael. Eram boatos como este que eles ouviam dos senhores e seus criados. — Ele mandou fazer mil túnicas completamente brancas, com estandartes igualmente brancos. — Hazael fez uma pausa. — Para os soldados do Domínio.
— Do Domínio?
Fazia cada vez menos sentido. Em primeiro lugar, a cor do Domínio era vermelha. Branco significava rendição, e Joram não se rendia. Mas a cor era um mero detalhe comparado à questão mais importante: aquelas coisas estavam sendo preparadas para quê? Estandartes e túnicas novos... para impressionar o inimigo? Que tipo de impressão o branco causava? E o que poderia estar encorajando Joram a enviar mais tropas para aquele lugar ermo, e justo as tropas do Domínio? Ele nunca arriscaria perder seu exército de elite nas misteriosas brumas daquele lugar. Os Ilegítimos talvez, mas o Domínio?
— E isso por pressão do próprio Jael — continuou Hazael. — Estão dizendo por aí que a ideia é dele.
Jael? O capitão do Domínio podia ter vários defeitos monstruosos, mas não era burro. Sem contar a questão dos harpistas. Joram ordenara que os harpistas do monastério de Brightseeming interrompessem sua devoção aos deuses da luz e fossem para Astrae, onde se vestiriam de branco, como os soldados do Domínio.
— Tem alguma coisa acontecendo — disse Akiva. — Alguma coisa que ainda não se transformou em boato. Mas o quê?
— Acho que vocês vão descobrir agora.
Era Liraz, entrando no alojamento com um pergaminho na mão. Estendeu-o para Akiva: o pergaminho exibia o selo imperial. Ele congelou, sabendo o que poderia ser, e olhou para os irmãos.
— Rápido — apressou Hazael, tenso.
Então Akiva quebrou o selo, desenrolou o pergaminho e leu a convocação em voz alta:
— Vossa Eminência Joram, o Invencível, Primeiro Cidadão do Império dos Serafins, Protetor de Eretz, Pai de Legiões, Príncipe da Luz e Flagelo da Escuridão, Escolhido dos Deuses da Luz, Senhor das Cinzas, Senhor dos Queimados, Senhor de uma Terra de Fantasmas...
Hazael pegou o pergaminho para ver se os últimos três títulos estavam mesmo escritos e viu que não, então decidiu ele mesmo continuar a leitura.
— ... em reconhecimento aos serviços heroicos prestados ao reino, convoca a se apresentar em sua presença o soldado Akiva, da tropa dos Ilegítimos, sétimo de seu nome... — Hazael parou de ler e olhou para Akiva. — Você é o sétimo? Nossa, é um monte de Akivas mortos, meu irmão. Sabe o que isso significa? — Ele estava muito sério.
— Não. O que significa?
Akiva se preparou para ouvir um mau presságio inventado como zombaria. Seis bastardos tinham recebido aquele nome antes dele? Sim, era muita coisa. Alguns deviam ter morrido na infância, ou no campo de treinamento. Hazael provavelmente lhe diria que o nome era amaldiçoado.
Mas não. Em vez disso, seu irmão falou:
— Significa que a urna de cremação está cheia, não há espaço para as suas cinzas. Você não tem escolha. — Então abriu seu largo e infeliz sorriso. — Não pode morrer.
62
CORRENTE
Serviços heroicos prestados ao reino.
Akiva estava sendo convocado a se apresentar em Astrae pelos “serviços heroicos prestados ao reino”. Se isso tivesse acontecido meses antes, logo após a destruição de Loramendi, talvez fizesse algum sentido. Mas já fazia tempo que as medalhas tinham sido distribuídas, e os despojos, divididos. Akiva tinha sido esquecido, como todos os outros Ilegítimos, então por que aquela convocação?
Liraz estava apreensiva.
— E se Joram souber de alguma coisa?
Estavam voando, e tudo o que se via era o mar da Serenidade, em todas as direções. Ela gostava de sobrevoar o mar: a imensidão, o ar limpo e sem cinzas, o silêncio. Mas não gostava de para onde estava indo.
— O que ele poderia saber? — retrucou Akiva. — E, mesmo que saiba, talvez nunca mais tenhamos outra chance como esta.
Talvez nunca mais tivessem outra chance de ficarem cara a cara com o pai e de dar um fim à brutal vida que ele levava. Liraz nunca nem tinha visto Joram de perto. Mas o dia havia chegado, e seu sangue seria derramado.
— Eu sei — disse ela, e não insistiu mais na ideia. Qualquer protesto que fizesse poderia parecer medo. Medo de Joram. Do fracasso.
Liraz estava com medo. Era um medo pungente, como voar para dentro de uma tempestade de areia; isso a envergonhava, e ela nunca o admitiria. A destemida Liraz. Ah, se eles soubessem... Ela queria dizer: É perigoso demais. Queria convencer os irmãos de que em Astrae — na não menos sagrada Torre da Conquista — haveria muitos fatores além do controle deles. Melhor sumirmos agora, pensou ela, e derrubarmos Joram de fora do império do que voarmos em direção à armadilha. À teia dele.
Embora ela não externasse seus medos e, claro, não demonstrasse o que sentia, Hazael se aproximou dela e disse:
— Joram provavelmente só quer usar nosso ilustre irmão para atingir seus objetivos. Combater os rebeldes? Quem melhor que o Ruína das Feras? Ainda mais quando todo o foco está nessa guerra louca contra os Stelian.
— Ou talvez tenha a ver com essa guerra louca contra os Stelian. Bem ou mal, Akiva é o único elo entre Joram e as Ilhas Longínquas.
Akiva voava um pouco afastado, perdido em pensamentos, mas mesmo assim ouviu o que diziam.
— Não sou elo nenhum. Sei tanto sobre os Stelian como qualquer outro.
— Mas você tem os olhos deles — disse ela. — Isso pode ajudar você a conseguir pelo menos abrir o diálogo.
Akiva parecia enojado.
— Será que ele acha que eu bancaria o emissário? Ele acredita mesmo que sou um seguidor dele?
— Vamos torcer para que sim — disse Liraz, com voz firme. — Porque, se não for isso, então é porque ele desconfia de você.
Akiva ficou em silêncio por um bom tempo, até finalmente dizer:
— Vocês não precisam tomar parte nisso...
— Mas que droga, Akiva — disparou ela. — Eu faço parte disso.
— Eu também.
— Não quero colocá-los em perigo — continuou Akiva. — Posso matá-lo sozinho. Mesmo que ele suspeite de alguma coisa, não deve ter ideia do que sou capaz. Se eu conseguir chegar até ele, posso matá-lo.
— Você pode até matá-lo. Mas talvez não consiga sair — concluiu Liraz por ele, e o silêncio de Akiva confirmou o que ele pensava. — Então você morre, e pronto? Isso seria muito fácil para você, não é?
Liraz manifestava a maioria de suas emoções fortes na forma de raiva, mas naquele caso a emoção era raiva mesmo. Com aquilo que eles tinham começado, ela não teria nem mesmo um regimento para o qual voltar e a ilusão de uma vida. Seria uma proscrita, traidora do império, e sabia que não tinha como liderar um movimento. Akiva podia fazer isso; ele era o Ruína das Feras. E Hazael. Todo mundo gostava de Hazael. Mas quem era ela? Ninguém nem gostava dela a não ser aqueles dois, e às vezes ela pensava que era só por hábito.
— Eu não quero morrer, Lir — disse Akiva, com suavidade.
Ela não soube dizer se ele falava sério.
— Que bom — disse ela. — Porque você não vai morrer. Nós vamos com você. Qualquer morte que aconteça será na outra ponta de nossas espadas.
Hazael a apoiou, e, no rosto de Akiva, a gratidão rivalizava com o vazio que Liraz acreditava ser o olhar de quem busca a morte. Ela se lembrava de uma época em que Akiva gargalhava e sorria, quando, apesar da violência de suas vidas, ele era uma pessoa completa, com uma gama completa de emoções. Ele nunca tivera o comportamento esfuziante de Hazael — mas quem tinha? —, mas parecia vivo. Isso agora era passado.
A fúria fervia dentro de Liraz contra a garota que fizera isso com seu lindo e imponente irmão. Quantas vezes ele tinha saído para encontrar aquela... criatura... e voltado destruído? Muitas e muitas vezes. Criatura. Era feio chamá-la assim, mas Liraz não sabia como pensar nela: Madrigal, Karou, quimera, humana e, agora, ressurreicionista. O que ela era? Não era repulsa o que sentia por Karou, não mais; era indignação. Incredulidade. Um homem como Akiva atravessa mundos para encontrá-la, infiltra-se na capital inimiga só para dançar com ela, move céus e terras para vingar sua morte, salva seus companheiros e irmãos da morte e da tortura, para ela mandá-lo embora arrasado, humilhado, vazio por dentro?
Ela não sabia exatamente o que a garota dissera a Akiva da última vez, mas tinha certeza de que não havia sido nada muito agradável. Enquanto os três voavam em silêncio, Liraz se pegou pensando no que ela diria a Karou no improvável caso de um dia se virem cara a cara de novo. Era um passatempo surpreendentemente gratificante.
— Lá.
Akiva viu primeiro, e apontou. A Espada.
Em sua era de ouro, Astrae fora conhecida como a Cidade das Cem Torres. As torres, uma para cada um dos deuses da luz, eram finas e incrivelmente altas, como caules de flores crescendo em direção aos céus. Eram de cristal, às vezes refletindo as nuvens de chuva da costa esmeralda, outras irradiando prismas de luzes dançantes nos telhados abaixo.
A cidade fora destruída no levante do Comandante, fazia mil anos. Aquela era a nova Astrae, construída por Joram sobre as ruínas da antiga, mas, embora ele tivesse tentado restaurar a cidade morta de seus ancestrais, a anterior fora erguida pelas artes perdidas dos magos, e esta, por escravos. As torres não tinham nem a metade da altura de suas predecessoras, e, em vez de pináculos fluidos de cristal, eram feitas de vidro, coladas e pregadas, unidas por ferro e aço. De todas elas, a Torre da Conquista era a mais alta. Tinha a forma de uma espada — a Espada —, um símbolo perfeito para o império, ainda mais ao pôr do sol, quando sua ponta refletia o fogo do céu. Como acontecia agora.
Sangue e finitude, pensou Liraz ao ver aquela imensa lâmina erguendo-se rubra nos penhascos distantes. Impossível um símbolo mais perfeito.
Ela não gostava de Astrae; nunca tinha gostado. Havia uma atmosfera de tensão e medo difusos, uma cultura de sussurros e espiões. Como Melliel tinha razão em chamar a cidade de “teia de mentiras” — inclusive em face dos mortos pendurados à vista de quem quer que chegasse ali.
O cadafalso do Setor Oeste foi a primeira coisa que eles viram quando alcançaram a cidade. Além dos catorze guardas, havia outro corpo lá, mais antigo, que ela calculou que fosse a desafortunada sentinela de Thisalene, e ainda dois outros que tinham sido pendurados pelos tornozelos, as asas abertas pegando cada brisa que passava e fazendo-os girar em círculos como bonecos quebrados. Liraz não podia nem imaginar qual teria sido o crime — ou azar — deles. Teve o impulso de deixar uma marca negra na madeira do suporte para fazer o cadafalso queimar até o fim. A noite caía; o fogo azul lamberia o céu escuro, cheio de sonhos e visões. Ainda não, disse a si mesma.
Em breve.
Os três desceram ao Setor Oeste e se apresentaram para obter permissão de entrada da cidade. Liraz se pegou trincando os dentes, já esperando a recepção que os Espadas de Prata reservavam aos Ilegítimos: era, na melhor das hipóteses, ver quanto tempo conseguiam fazê-los esperar, e, na pior, provocá-los abertamente. Na opinião dos Lâminas Partidas, os soldados não tinham nenhuma serventia: enclausurados como ficavam na calma perfumada da cidade, só sabiam se perguntar por que os outros tinham demorado tanto para vencer a guerra. Quanto aos bastardos, especificamente, eram inferiores e não mereciam nenhuma atenção.
No caso de Liraz, literalmente inferior. Ela batia na altura da armadura peitoral deles, e os guardas se divertiam em fingir que não a viam. Como todos os Lâminas Partidas, aqueles dois tinham mais de dois metros de altura, sem contar seus elmos emplumados. Talvez alguns centímetros se devessem ao salto das botas, mas mesmo descalços seriam gigantes. Gigantes que, Liraz sabia, ela era capaz de derrubar com um só golpe, o que tornava ainda mais enlouquecedor ter que aturar aquele desrespeito.
— Escravos entram pelo Setor Leste — disse o da esquerda, entediado, sem nem olhar para eles.
Escravos.
A armadura deles deixava claro que eram Ilegítimos. Usavam um colete de cota de malha cinza-escuro sobre uma túnica preta grossa com protetores de ombro e calça de couro preto reforçada com placas de metal. O couro estava gasto; a cota de malha, sem brilho; e havia mossas e remendos nas placas. Em razão da audiência com o imperador, eles usavam também capas curtas, em melhor estado que o restante do uniforme por raramente serem usadas. Capas eram uma péssima ideia — serviam apenas para o inimigo ter por onde agarrá-los.
Bem, para isso e para exibir o emblema dos Ilegítimos: um brasão oval contendo elos de uma corrente. Corrente. Supostamente significava força pela solidariedade, mas todo mundo sabia que na verdade representava escravidão. Ao pensar nos rebeldes quimeras que fizeram os traficantes de escravos comerem suas correntes, Liraz entendeu o impulso. Ela podia se imaginar rasgando a própria capa e enfiando-a na garganta daquele Lâmina Partida ali, mas foi só uma fantasia. Não fez nada, não disse nada.
Hazael, no entanto, riu. Ele era a única pessoa que Liraz conhecia cuja risada falsa parecia real — e irresistível. O Lâmina Partida olhou para ele, franzindo a testa. Bruto e idiota, não sabia dizer se estavam debochando dele. Melhor sempre acreditar que sim, ela quis aconselhar. Hazael a cutucou com o cotovelo.
— Ele estava falando do emblema — disse, como se ela não tivesse entendido a piada.
Liraz não riu; não conseguia nem se imaginar capaz de rir como seu irmão — o som que rolava fácil, a naturalidade dos músculos soltos. Quando ela ria, o som era cáustico e áspero até para os próprios ouvidos, uma risada dura e rígida se comparada ao calor e à entrega de Hazael. Se eu fosse um pão, pensou ela, seria um daqueles amanhecidos, uma ração de soldado já meio estragada, que só serve quando é preciso sobreviver a qualquer custo.
Akiva também não riu. Desprovido de antagonismo ou mesmo qualquer reação, enfiou a convocação imperial na cara do Lâmina e esperou que ele lesse. Contrariado, o sujeito lhes deu passagem.
Meus irmãos, pensou Liraz, adentrando Astrae entre os dois. Como eram diferentes um do outro: Hazael com seu cabelo claro e sua risada, e Akiva, melancólico e calado. Sol e sombra. E o que eu sou? Ela não sabia. Pedra? Aço? Mãos negras e músculos tensos demais para rir?
Eu sou um elo em uma corrente, pensou ela. O emblema deles estava certo — não com relação à escravidão, mas à força. Ela caminhava entre os irmãos, os três lado a lado seguindo pelo meio da ampla avenida da cidade. Esta é minha corrente. A armadura deles não brilhava à luz da lua, à luz dos lampiões, à luz do fogo de suas asas, e o povo recuava quando eles passavam, com olhares de cautela. Ah, Astrae, pensou ela, nós a mantivemos segura demais se é a nós que você teme. Eles não eram nem amados, nem respeitados pelas pessoas, Liraz sabia, e em breve seriam execrados e proscritos, mas ela não ligava. Desde que tivesse seus irmãos.
63
FRICÇÃO DE SORTE
— Eles não existem, não é mesmo?
Ziri corou. Não tinha ouvido Karou chegar ao seu lado, e ela o pegara vendo seus amigos se beijarem. Será que ele os estava encarando com fascínio demais? O que ela vira em seu rosto? Ele tentou disfarçar o interesse.
— Acho que metade do ar que eles respiram vem da boca um do outro — continuou ela.
Parecia mesmo, mas Ziri não queria deixar transparecer que havia notado isso. Ele nunca conhecera ninguém que agia como Zuzana e Mik. O casal estava no galinheiro agora; difícil imaginar lugar menos propício ao romance, mas eles não pareciam se importar. Dava para ver os dois pela porta aberta, banhados de branco pela luz do sol. Zuzana se equilibrava no cercado dos animais, mais alta que Mik e inclinada na direção dele. As mãos abertas envolviam a cabeça dele, os dedos enroscados em seu cabelo. Já as mãos dele... As mãos dele envolviam a curva das pernas claras dela, correndo suavemente por trás dos joelhos, subindo pelas coxas e descendo de novo. Tinha sido isso, mais do que o beijo em si, o que fizera Ziri se distrair e ficar olhando os dois. A impressionante intimidade do toque.
Ele já vira gestos de afeição entre quimeras, e também paixão, mas os primeiros em geral se reservavam a mães e filhos, e a outra, a encontros em cantos escuros durante a folia ébria dos bailes do Comandante. Tinha vivido a vida inteira em uma cidade em guerra, passado a maior parte do tempo com soldados, e não conhecera seus pais; nunca vira afeição e paixão tão harmoniosamente unidas, e... doía, por algum motivo. Ali, ao observá-los, sentia uma dor oprimindo seu peito. Mal podia imaginar ter alguém que fosse dele, para tocá-la assim.
— Deve ter algo a ver com os humanos — disse ele, tentando soar indiferente.
— Não. — A voz de Karou soou melancólica. — Tem mais a ver com sorte. — Ele pensou ter visto um vislumbre de dor no rosto dela também, mas Karou sorriu, e, fosse o que fosse, desapareceu. — É engraçado pensar que há apenas alguns meses ela tinha medo até de falar com ele.
— Neek-neek, com medo? Não acredito.
A ferocidade da pequena Zuzana fizera Virko começar a chamá-la de neek-neek, uma espécie agressiva de escorpião-musaranho conhecido por enfrentar predadores dez vezes maiores que ele.
— Eu sei — disse Karou. — Ela não é exatamente tímida.
Estavam no salão de refeições; o café da manhã já tinha terminado. Ziri havia acabado de deixar o posto de sentinela e agora pegava sobras do café para ele: ovos frios, cuscuz frio, damascos. Será que Karou já tinha comido? Ela envolveu a cintura com os braços.
— Foi a única vez que a vi daquele jeito — continuou Karou, sorrindo com aquela suavidade típica das boas lembranças. Ela estava muito mais feliz desde que os amigos haviam chegado. — Zuzana passou um tempão sem nem saber o nome dele. Chamávamos o coitado de “garoto do violino”. Ela morria de nervosismo cada vez que achava que iria vê-lo.
Ziri tentou, sem sucesso — e não pela primeira vez —, imaginar a vida humana de Karou, mas não tinha como: nunca tinha visto nada do mundo humano além da casbá, do deserto e das montanhas que a circundavam.
— E o que aconteceu? — perguntou ele, colocando o prato na mesa.
O salão estava vazio; Thiago convocara uma reunião no pátio, portanto Ziri tinha pretendido comer rápido e ir logo para lá. Mas acabou ficando mais tempo quando se viu sozinho com Karou. Primeiro, porque não queria engolir correndo a comida na frente dela, e segundo, porque queria continuar ali, aproveitando sua companhia.
— E como eles... finalmente?
Ziri queria dizer “se apaixonaram”, mas ficava muito constrangido em falar de amor, ainda mais agora que ela sabia o que sentira por ela quando era garoto. Devia ter visto isso em seu rosto, no seu rubor, quando ele lhe contara que a tinha espiado no baile do Comandante, anos antes. Ziri se arrependia de lhe ter confessado aquilo. Não queria que ela o visse como o garoto que a seguia para todos os lados. Queria que o visse como ele era agora: um homem.
Mas Karou entendeu o que Ziri queria dizer, mesmo ele não tendo dito com todas as palavras.
— Bem, como Zuzana tinha muito medo de falar com ele, desenhou um mapa do tesouro. E o escondeu no estojo do violino dele quando Mik estava tocando. Eles trabalhavam no mesmo teatro, mas nunca tinham se falado. E ela foi embora mais cedo naquela noite para não ver quando ele encontrasse o mapa. Vai que ele ficava todo aflito ou coisa assim, sabe? Ela não iria aguentar. Zuzana já havia decidido que, se ele não seguisse o mapa do tesouro, ela nunca mais iria ao trabalho e aquilo seria o fim de tudo.
— E qual era o tesouro?
— Era ela. — Karou riu. — Essa é a Zuze tímida. Ela não queria falar com ele, mas sabia se fazer o objeto de uma caça ao tesouro. Bem no meio do mapa havia um desenho do rosto dela.
Ziri também riu.
— Obviamente ele decidiu ir atrás dela. Seguiu o mapa.
— Aham. Ele foi até o lugar e não a encontrou lá, mas havia outro mapa, que levava até outro, e finalmente até ela. E eles se apaixonaram e estão assim desde então.
Quando disse “assim”, ela apontou para a porta aberta, por onde dava para ver Zuzana agora cuidadosamente caminhando ao longo da cerca, segurando a mão de Mik.
Ziri nunca tinha ouvido falar de nada parecido com aquela história da trilha de mapas do tesouro. Exceto talvez pela história do anjo que entrara disfarçado na cidade do inimigo para dançar com sua amada.
Gostava mais da história de Zuzana.
— Tem a ver com sorte — repetiu ele.
— É. — Karou olhou para ele, depois desviou o olhar de novo. — Acho que os dois precisam ter sorte. É como uma fricção de sorte. Um é a rocha, e o outro, o aço, fazendo atrito juntos para criar fogo. — Ela apertou ainda mais os braços em volta do corpo. — A história é melhor quando eles mesmos contam. Não sou tão engraçada quanto esses dois.
— Vou pedir que eles me contem, então — disse Ziri. Ele sabia que a reunião convocada por Thiago devia estar começando, que precisava ir. — Do jeito como estão aprendendo a falar quimera, não vai demorar para que eles consigam.
Ela não disse nada. A ternura das boas lembranças se fora. Ela olhou furtivamente por sobre o ombro, depois para ele, um olhar incisivo.
— Ziri — disse baixinho —, preciso tirá-los daqui.
— O quê? Por quê?
— Thiago ameaçou os dois. Enquanto eles estiverem aqui, preciso fazer exatamente o que ele quiser. E quero muito parar de fazer justamente isso: o que ele quer.
Ela disse a última parte de maneira intensa, e Ziri teve a impressão de que alguma coisa mudava dentro dela, como se estivesse se preparando para alguma coisa, respirando fundo e reunindo forças.
— Zuzana e Mik sabem disso?
— Não, e eles não vão querer ir embora. Gostam daqui. Gostam de fazer parte de algo mágico.
Ziri também gostava. Adorava aquelas horas passadas no quarto de Karou com ela, Issa, Mik e Zuzana, mesmo que pagando o dízimo. Eram momentos cheios de vida, calor e risadas, dedicados a ressurreições em vez de mortes.
— Vou ajudar você. Vamos levá-los a um lugar seguro.
— Obrigada. — Karou tocou a mão dele e disse mais uma vez: — Obrigada.
Então Zuzana gritou alguma coisa para ela na língua humana que eles falavam e surgiu depressa à porta.
— Você vem? — perguntou Ziri a Karou. — A reunião já deve ter começado.
— Não fui convidada — disse ela. — Não é para eu me preocupar com essas questões. Você vai me contar depois? Vai me falar o que ele está planejando?
— Vou — prometeu Ziri.
— Eu também tenho uma coisa para lhe contar.
De novo aquela sensação de que ela estava se preparando e reunindo forças, com uma intensa determinação. A garota trêmula que Thiago encontrara nas ruínas já não existia mais.
— O que é? — perguntou Ziri, mas o pequeno furacão humano tinha chegado até eles.
— Mais tarde — disse Karou quando Zuzana a pegou pela mão e a arrastou para longe, cumprimentando Ziri com um distraído olá por cima do ombro.
Ele deixou o café da manhã intocado e saiu. O que será que ela queria lhe contar? Ainda podia sentir o toque dela em sua mão.
Uma vez, quando ele era garoto, e ela, Madrigal, ela o beijara. Pegara o rosto dele com as mãos e dera um beijo de leve em sua testa, e era ridículo quantas vezes ele pensara nisso desde então. Mas seus momentos de felicidade infelizmente eram poucos, e o beijo não tivera muitos concorrentes a melhores momentos, portanto ganhara fácil a competição. Agora tinha.
Agora ele tinha a lembrança da calidez do ombro de Karou junto ao seu quando dormiram lado a lado, e a lembrança de acordar ao lado dela. Como seria acordar ao lado dela todas as manhãs? Deitar-se com ela todas as noites? E... preencher com ela as horas entre esses dois momentos. Todas as horas da noite.
— Tem a ver com sorte — dissera ela.
Diziam que ele tinha sorte. Ziri Sortudo. Por ainda ter seu corpo original? Era algo que nenhum dos outros tinha, então ele não argumentava se queriam chamá-lo de sortudo, mas nunca se sentira um cara de sorte, crescendo sem seu povo, sem vida senão a guerra, e sentia-se até menos sortudo agora que a guerra tinha acabado — o que quer que isso significasse, uma vez que a matança continuava.
Então ele pensou nos gritos daqueles à beira da morte, na fumaça dos corpos, e ficou envergonhado por questionar a própria sorte. Ele estava vivo; não podia achar que aquilo não era nada, e ele não ficaria vivo para sempre.
Todos já estavam no pátio quando ele chegou lá — exceto Ten, que entrou às escondidas um instante depois de Ziri e aproximou-se em silêncio do Lobo para sussurrar algo em seu ouvido. Thiago parou para ouvi-la, e então seus olhos buscaram tranquilamente os de Ziri, que sentiu um arrepio.
— Como todos sabem, perdemos uma equipe em nossos ataques há pouco tempo. Foram nossas primeiras baixas, mas o responsável por colher as almas do grupo fez seu trabalho e voltou com todas elas. Ziri.
Thiago assentiu para ele ao terminar de falar. Os soldados reunidos comemoraram e deram gritos de alegria, e alguém deu um empurrão de brincadeira no ombro de Ziri. Mas Ziri em nenhum momento acreditou que aquele discurso levaria a qualquer coisa boa. Ele se preparou para as más notícias, então não se surpreendeu com o que veio a seguir.
— Mas você precisa de uma nova equipe agora. Será que Razor poderia aceitá-lo em seu grupo?
Thiago se virou para Razor. Não, pensou Ziri, trincando o maxilar. Todos menos ele.
— Como quiser, meu general — sibilou Razor. — Mas não posso prometer que ele vai brincar de “esconde-esconde” na minha equipe, ou conservar essa pelezinha bonita que tem.
“Esconde-esconde” era uma forma de difamar os soldados que ficavam em segurança para colher as almas, usada em bravatas estúpidas por quem não conseguia enxergar o valor de se preservar aquelas vidas. Ziri ficou tenso com a insinuação de que ele alguma vez escolheria se esconder, mas então pensou no que estariam fazendo de qualquer maneira, e perdeu a convicção na indignação que sentia. Ele realmente ia preferir se esconder. Melhor ainda, preferiria evitar que o massacre acontecesse.
Mas é claro que essa não seria uma opção. Ziri já tinha muitos anos como soldado. Nunca gostara muito daquela vida, mas era bom, e nunca, pelo menos não enquanto o Comandante era vivo, a abominara. No entanto, esse era o caso agora.
— Há uma série de cidades às margens do rio Tane, a leste de Balezir — prosseguiu Thiago. Ele sorriu com a exaltação doentia que Ziri sabia ser o prenúncio de estragos terríveis, e completou: — Quero que os anjos acordem em Balezir amanhã se perguntando por que o Tane está correndo vermelho.
64
UM NÚMERO BEM MELHOR
Karou estava debruçada sobre um colar quando Ten parou à porta do quarto, mas na verdade seus pensamentos estavam longe dali, em Loramendi. Ela mal assimilara ainda o que Issa havia lhe contado. A mensagem era boa e ruim, realmente. Mas boa e ruim eram palavras para uma cartilha infantil, não chegavam nem perto de representar a magnitude da tragédia que aquilo significava, por um lado, e, por outro... a esperança.
Esperança capaz de clarear a mente, erguer a cabeça e mudar tudo. Ou pelo menos poderia mudar tudo.
Ou Thiago poderia esmagá-la e seguir com sua campanha de terror até não haver mais esperança para os quimeras. Cabia a Karou persuadi-los. Tranquilo, pensou ela, olhando para os dentes que segurava na mão e contendo uma gargalhada. Todos me amam por aqui. Acho que vou convocar uma reunião.
À porta, Ten limpou a garganta.
Karou olhou meio de lado para ela, com ar de enfado.
— O que você quer?
— Quanta hostilidade — disse Ten, entrando sem ser convidada. — Só vim trazer uma mensagem. — Ela falou de forma tão casual que Karou achou que fosse uma mensagem de Thiago. Mas devia ter imaginado que havia algo de errado, pelo tom de diversão na voz de Ten. — Ficou chateado por não poder vir se despedir de você pessoalmente.
— Se despedir? — Essa era boa. — Aonde ele está indo?
Thiago já não liderava missões havia muito tempo. Ele quase fazia parte da decoração da casbá, assim como Karou. Mais, até, porque teoricamente ela podia sair voando quando quisesse.
— Para o Tane — respondeu a mulher-lobo.
O Tane era um rio a leste de Azenov, a área que constituía o coração do império. Karou ergueu os olhos de repente, mas foi Issa quem perguntou, com um desprezo evidente.
— E de quem é essa mensagem, mulher-lobo?
— É do seu amigo — disse Ten, como se fosse uma palavra proibida, um comportamento indecente que só podia ser mencionado às escondidas. — Por quê? De quem você achou que eu estava falando?
Karou foi até a janela: lá estava ele no pátio com sua nova equipe. Com Razor. Eles levantaram voo diante dos seus olhos, bem naquele momento. Dessa vez, Ziri olhou para sua janela, e à distância Karou viu que o rosto dele estava tenso de raiva, e os olhos, enquanto erguia a mão em despedida, cheios de tristeza.
Seu coração batia acelerado. Aquilo estava acontecendo porque ele lhe ajudara no dia anterior, ou talvez em razão do ocorrido daquela manhã. Qualquer que fosse o motivo, ela não tinha tomado os cuidados devidos.
— Aonde Ziri está indo? — perguntou Zuzana, inclinando-se ao lado dela para ver a equipe partir.
— Em uma missão — Karou se ouviu dizer.
— Com Razor? — Zuzana deixou escapar um som abafado de repulsa, que, por ser cômico, era totalmente inadequado. Ela não fazia ideia. — O que tem naquele saco horrível dele, afinal?
Acho que Ziri vai descobrir, pensou Karou, o que a deixou enjoada. Ela era a culpada por Razor. Fora ela quem colocara aquela alma ardilosa, que tinha lhe passado uma sensação tão ruim, em um corpo forte e poderoso, e depois o acordara. E agora Ziri estava à mercê dele — isso sem falar dos serafins que tinham morrido e dos que ainda morreriam pelas mãos dele.
Ela ouvira falar... que ele os comia.
Não queria acreditar nisso, mas bastava ficar perto dele, na direção que o vento soprava, para sentir o odor de matadouro que vinha de sua boca — fiapos de carne podre entre seus dentes de navalha. E quanto ao saco coberto de manchas, ela não queria saber. Nunca. Só queria que aquilo terminasse, mas lá ia ele, instaurar o caos no Tane.
— Sete é demais para uma equipe, não é? — observou Ten. — Seis é um número bem melhor.
Um número bem melhor? Karou entendeu e se virou de frente para ela na mesma hora.
— O quê? Diga o que você está pensando. Apenas seis vão voltar?
— Tudo pode acontecer — replicou Ten, dando de ombros. — Sabemos disso quando entramos em uma batalha.
O peito de Karou subia e descia com sua respiração acelerada.
— Você sabe mesmo? — devolveu ela. — Quando foi a última vez que participou de uma batalha? Você ou seu senhor?
Karou estendeu a mão de repente e pegou uma faca da mesa. Era a pequena, pouco maior do que uma lixa de unha; ela a usava para centenas de coisas, como cortar incenso e soltar dentes de maxilares, ou furar as pontas dos dedos para provocar pequenas dores das quais às vezes precisava para terminar uma conjuração.
— Venha, Ten — disse ela, segurando firme a faca. — Que tal uma ressurreiçãozinha? Você não vai nem precisar caminhar até o fosso. Eu jogo seu corpo pela janela mesmo.
Ten riu. Da faca pequena, e dela. Parecia um latido.
— Sério, Karou? Então é assim que você quer brincar? — Estendeu uma das mãos em direção a Zuzana e Mik. — E qual deles morre primeiro? O Lobo provavelmente vai deixar você escolher.
— Bem, você já vai estar morta, então acho que vai perder.
Issa agarrou a mão de Karou e pegou a faca.
— Docinho, pare com isso!
Então Karou, tremendo de raiva, rosnou:
— Saia!
Ainda rindo, Ten foi embora.
Karou se virou para Mik e Zuzana, que estavam colados à parede, de mãos dadas, com expressões idênticas de O que houve? no rosto. Ela passou por eles, voltou à janela e olhou para o imenso céu vazio. Ziri já havia desaparecido, e, lá embaixo no pátio, facilmente identificável em meio aos soldados do pequeno mas sempre crescente exército, estava Thiago. Olhando para ela.
Karou fechou as venezianas com força.
— O que houve? — perguntou Zuzana, começando a dar pulinhos, agitada. — O quê o quê o quê?
Karou soltou o ar trêmula e demoradamente. Ziri não só era um soldado como era um Kirin, pensava para tentar se confortar. Ele sabia cuidar de si mesmo. Pelo menos era nisso que ela queria acreditar. Em seu íntimo, nas profundezas terríveis e assustadoras da impotência, ela sabia... sabia que provavelmente nunca o veria de novo.
— Vou tirar vocês daqui — disse Karou. — Esta noite.
Zuzana tentou argumentar.
Karou a interrompeu:
— Este não é um bom lugar para vocês — disse ela, em um sussurro áspero, da maneira mais enfática que pôde. — Vocês nunca se perguntaram como eu morri?
— Como você...? Hã, acho que em uma batalha?
— Errou. Eu me apaixonei por Akiva, e Thiago mandou me decapitar. — Simples e brutal. Zuzana perdeu o fôlego. — Então, agora que vocês sabem, vão me deixar tirá-los daqui?
— Mas e quanto a você?
— Eu preciso cuidar disso. Tem que ser eu. Zuze, por favor.
Com a voz mais fraca que Karou já a ouvira usar, Zuzana respondeu:
— Está bem.
— Hã... mas como? — perguntou Mik.
Essa era uma boa pergunta. Karou estava sendo vigiada, isso dava para perceber, e não apenas por Ten. Não podia mais contar com Ziri, e não podia se arriscar a ressuscitar a patrulha de Balieros — seria óbvio demais. Não sabia ao certo com quem mais poderia contar, mas tinha uma ideia que não envolvia nenhum outro quimera.
Ainda abalada, ela respirou fundo de novo e olhou para Zuzana e Mik, avaliando os dois. Eles não tinham o menor jeito de soldados, e não só por serem humanos, mas também por serem muito... Primeiro Mundo, desacostumados com qualquer tipo de adversidade. A caminhada até ali quase os matara, e Zuzana não estava exatamente brincando quando falava que perder o bolo no parque de diversões tinha sido o pior dia de sua vida. Será que aguentariam pagar o dízimo? Bom, teriam que aguentar.
— Vocês conseguiriam ir embora daqui a pé, se fosse necessário? À noite, quando não está tão quente?
Eles assentiram, os olhos arregalados.
Karou mordeu o lábio, preocupada.
— Vocês acham... — perguntou, hesitante, torcendo para que não fosse a pior ideia que já tivera na vida — que gostariam de aprender a... hã, ficar invisível?
Ela daria tudo naquele instante para ter uma câmera e poder guardar para sempre a expressão no rosto da melhor amiga.
A resposta, é óbvio, foi sim.
* * *
Passaram o dia todo concentrados nisso.
— É um pouco menos incrível do que poderia ser — foi o mais perto que Zuzana chegou de reclamar do dízimo, mas sua alegria, quando voltou a ficar visível depois de conseguir realizar o encanto pela primeira vez, era linda e radiante, e ela estava linda e radiante.
Karou não conseguiu evitar: agarrou-a em um abraço extremamente longo e muito apertado que só podia querer dizer: Amei conhecer você. Quando ela por fim se afastou, Zuzana estava com os olhos úmidos, a boca em uma careta irritada para evitar as lágrimas, e não disse uma palavra.
Karou ainda tinha que concluir algumas ressurreições para poder apresentar os soldados a Thiago, a fim de que ele pensasse que sua atenção estivera em outro lugar naquele dia. Conseguiu isso com a ajuda de Issa — três novos soldados — e sobreviveu ao jantar também, comendo mecanicamente. Agora, mais do que nunca, observava o grupo e pensava: quais deles teriam coragem de enfrentar o Lobo?
Deveria haver alguns dispostos a isso, disse a si mesma, considerando o motivo que agora estava pronta para explicar.
Zuzana e Mik não deixaram transparecer nada. Sentaram-se no chão com os soldados, como de costume, aprendendo palavras de uma língua mística que nunca mais teriam a oportunidade de falar. Amigo, voar, eu amo você. Virko achou essas últimas hilárias, mas Karou ficou emocionada. Mik tocou Mozart aquela noite, e Karou viu Bast se derramar em lágrimas. Bem mais tarde, em seu quarto, entregou tornos a seus amigos, prendeu um em si mesma e conduziu-os, invisíveis, pela noite do deserto. Só levaram o que cabia em seus bolsos — dinheiro, os telefones que não funcionavam, passaportes, a bússola — e cantis pendurados nos ombros. Todo o resto deixaram para trás.
Karou caminhou um pouco com eles, depois voou de volta para a casbá para vigiar e garantir que ninguém notasse a ausência dos dois.
E ninguém notou.
Em sua bandeja de dentes, ela encontrou um papel dobrado: um desenho de Zuzana e Mik, e escritas foneticamente as palavras quimeras para “eu amo você”. Karou então desabou, e Issa a abraçou, e ela abraçou Issa, e as duas choraram, mas, quando o sol nasceu e a casbá retornou à vida, já tinham se acalmado. Pálidas e vencidas. Prontas.
A hora tinha chegado.
Era uma vez milhares de quimeras que desceram
até uma catedral subterrânea.
E jamais saíram de lá.
65
O RÉQUIEM DAS FERAS
Era uma escolha. Que, quando o fim chegou, se impôs a todo quimera em Loramendi. Bem, não aos soldados. Eles morreriam defendendo a cidade. E não às crianças. Os pais escolheram por elas, e os invasores serafins se lembrariam mais tarde de ver pouquíssimas crianças na cidade, quando o cerco finalmente invadiu as barras de ferro da Gaiola. Talvez nenhuma, na verdade. Tanta coisa já havia sido queimada e destruída; era difícil fazer um levantamento em meio a todos aqueles escombros.
De forma que os anjos nunca imaginaram o que havia enterrado sob seus pés.
Sigam para a catedral sob a cidade. Carreguem seus bebês e levem as crianças pela mão. Desçam até a escuridão abafada e nunca mais saiam de lá.
Ou fiquem na superfície e enfrentem os anjos.
Era uma escolha entre tipos diferentes de morte, e foi uma escolha fácil. A morte subterrânea seria mais suave. E talvez... quem sabe... menos permanente.
Brimstone não prometeu. Como poderia? Era apenas um sonho.
— De nós dois, você sempre foi o sonhador — disse-lhe o Comandante quando Brimstone propôs a ideia.
Eles eram dois velhos — “monstros velhos”, como o inimigo teria dito — que tinham se erguido da mais abjeta escravidão e destruído seus senhores, conseguindo, com muita luta, mil anos de liberdade para seu povo. Mil anos e nada mais. Estava tudo acabado, e os dois, muito cansados.
— Já tive sonhos melhores — disse Brimstone. — Que a catedral seria para bênçãos e casamentos, em vez de ressurreições. Nunca sonhei que seria uma tumba.
A catedral era a imensa caverna natural que ficava embaixo da cidade. Além dos espectros que acordavam em suas grandes mesas de pedra, poucos tinham visto as estalactites entalhadas em suas superfíciers internas. Por mais que tivesse sonhado com bênçãos e casamentos quando a encontrara e erguera acima uma cidade, a catedral só vira fumaça de espectro e hamsás, nada mais.
E agora isto.
— Tumba, não — disse o Comandante, tocando o ombro encurvado do amigo. — Não é justamente esta a questão? Não é uma tumba; é um turíbulo.
Os turíbulos, conquanto propriamente fechados, podiam preservar almas indefinidamente. E se a catedral em si fosse cerrada, os tubos de ventilação, fechados, e sua longa escada em espiral, destruída, Brimstone supunha que poderia servir como um gigantesco receptáculo para a preservação de milhares de almas.
— Talvez nunca passe de uma mera tumba — alertou ele.
— Mas de quem foi a ideia? — perguntou o Comandante. — Eu devo convencer você, que foi quem me sugeriu isso? Você poderia olhar pela janela hoje, ver chover fogo do céu e dizer que foi tudo em vão, tudo que já fizemos, porque perdemos. Mas vários foram os que nasceram e viveram e conheceram a amizade e a música nesta cidade, por mais feia que seja, e por toda esta terra pela qual batalhamos. Alguns envelheceram, outros tiveram menos sorte. Muitos tiveram filhos e os criaram, e tiveram o prazer de fazê-los, e proporcionamos isso a eles por todo o tempo que foi possível. Quem algum dia já fez mais do que isso, meu amigo?
— E agora é o fim do nosso tempo.
O Comandante abriu um sorriso pesaroso.
— Sim.
A tumba — o receptáculo — não seria o descanso deles, porque os anjos não deixariam pedra sobre pedra até encontrar o Comandante e o ressurreicionista. O imperador precisava de seu grande desfecho. Aquele podia ser o sonho de Brimstone, mas sua concretização dependeria de outra pessoa.
— Você acha que ela virá? — perguntou o Comandante.
Brimstone sentia o coração pesado. Não sabia se Karou algum dia encontraria o caminho de volta a Eretz; não a havia preparado para algo assim. Ele lhe dera uma vida humana e tentara acreditar que ela poderia escapar do destino de seu povo, da guerra sem fim, do mundo partido. E agora ia jogar tudo em cima dela? Pesadas, muito pesadas eram as chaves para um mundo destruído. O peso de todas aquelas almas seria como algemas para ela, mas Brimstone sabia que Karou não se esquivaria.
— Ela virá — disse ele. — Sei que virá.
— Bem, então vamos em frente. Você escolheu o nome apropriado para ela, seu velho tolo. Esperança, de fato.
Então eles deixaram que o povo escolhesse, e a escolha foi fácil. Todos sabiam o que estava por vir; suas vidas tinham se resumido a aglomeração e fome — e fogo, sempre fogo — enquanto esperavam pelo fim. Agora o fim estava próximo, e então... como um sonho, a esperança surgia: insinuando-se aos sussurros até suas casas escuras, suas ruínas e refúgios. Eles conheciam, todos eles, a desolação de acordar de sonhos cheios de esperança em meio à escuridão e ao cheiro fétido do cerco. A esperança era uma miragem; não era fácil confiar nela. Mas aquilo era real. Não era uma promessa, apenas uma esperança: de que eles poderiam viver novamente, de que suas almas e as almas de seus filhos poderiam esperar em paz, em estase, até o dia...
E essa era a outra esperança, mais pesada ainda, que Brimstone depositava nos ombros de Karou, e de longe a tarefa mais difícil: de que esse dia fosse chegar, com um mundo para o qual pudessem despertar. Brimstone e o Comandante nunca conseguiram alcançar isso com seus exércitos, mas Madrigal e o anjo que ela amara tiveram juntos um sonho lindo, e, embora esse sonho tivesse morrido no cadafalso, Brimstone sabia melhor do que ninguém que a morte nem sempre é o fim que parece ser.
Aos milhares, quimeras de todas as tribos desceram em fila pela longa escada em espiral, que seria destruída logo depois; não haveria como escapar dali. Contemplaram a glória da catedral. Agruparam-se, bem juntos, e cantaram um hino. Era possível que a catedral nunca passasse de uma tumba para todos ali, mas ainda assim aquela era a opção mais fácil.
A escolha mais difícil, o verdadeiro heroísmo, foi daqueles que decidiram ficar lá em cima, porque afinal nem todos podiam ir. Se todos os quimeras desaparecessem de Loramendi, os serafins imaginariam que tinham se escondido e começariam a procurar. Então alguns cidadãos — muitos — tiveram que ficar na superfície para dar essa alegria aos anjos. Tiveram que ser a alegria dos anjos, vencidos com dificuldade para alimentar as fogueiras com seus corpos. Os mais velhos ficaram, assim como a maioria dos que tinham perdido seus filhos, e muitos refugiados devastados, que já haviam suportado tanta coisa que não tinham mais nada a perder.
Eles se sacrificaram para que outros pudessem voltar a viver em tempos melhores.
Foi com esse conhecimento que Karou se armou naquela manhã, e com suas armas de verdade: saiu com as lâminas de lua crescente presas à cintura e a pequena faca enfiada na lateral da bota. Com Issa ao lado, seguiu para o pátio, onde o Lobo e seus soldados já estavam acordados e reunidos no ar puro e fresco da manhã, várias equipes armadas e prontas para voar. Uma delas era a de Amzallag; Karou sentiu seu coração apertar em solidariedade a ele. Gostaria de poder lhe contar as novidades em particular, e para alguns dos outros também, os que seriam mais fortemente afetados.
Amzallag tinha filhos. Ou melhor, tivera, antes da queda de Loramendi.
— Atacaremos ao norte da capital — dizia Thiago. — As cidades não são muito bem protegidas e estão mal vigiadas. Os anjos não enfrentam uma batalha ali há centenas de anos. Meu pai já não os atacava com a força necessária. Ele assumiu uma postura defensiva. Agora não temos mais nada a defender.
Era uma declaração ousada, e foi recebida com desconforto por alguns soldados. Quase como se ele acusasse o Comandante pela queda de seu povo.
— Temos, sim — interrompeu Karou, saindo de sob o mesmo arco debaixo do qual se escondera para ver Ziri e Ixander lutarem. Thiago virou para ela sua máscara benevolente: como estava frágil e pouco convincente. — Temos algo a defender, sim.
— Karou — disse ele.
O Lobo virou-se, à procura de Ten, a babá de traidora. Pela visão periférica, Karou viu a mulher-lobo se aproximar.
— Ainda há vidas a serem salvas — prosseguiu ela —, escolhas a serem feitas.
Eram palavras de Akiva, percebeu ela assim que as pronunciou. Ficou vermelha, mesmo que ninguém pudesse saber que ela estava citando o Ruína das Feras. Bem, ele tinha razão. Mais do que imaginava.
— Escolhas?
O olhar de Thiago era frio, indiferente. A mão de Ten se fechou em torno do braço de Karou.
— Lembre-se da escolha de que falamos ontem — disse a mulher-lobo, em um rosnado baixo.
— Que escolha, Ten? — perguntou Karou, bem alto. — Entre Zuzana e Mik? Qual dos dois você ia matar primeiro? Pois eu não escolho nenhum dos dois, e eles estão fora do seu alcance. Tire a mão de mim. — Ela puxou o braço e se virou para o grupo. Viu alguma confusão, olhares correndo dela para Thiago. — A escolha de que estou falando é proteger nossos inocentes dos serafins, em vez de massacrar os deles.
— Não existem serafins inocentes — disse o Lobo.
— É o que eles dizem quanto matam nossas crianças. — Não pôde evitar olhar na direção de Amzallag. — E há até quem acredite nisso. Mas nós sabemos que todas as crianças são inocentes. Todas as crianças são sagradas.
— Não as deles — insistiu Thiago, um rosnado baixo ameaçando se manifestar.
— E quanto a todo o povo dos dois lados que só está tentando viver? — Karou deu um passo na direção dele. E outro. Não sentia seus pés; talvez não estivesse nem andando, e sim flutuando. Em seu estado de ansiedade e coragem exageradas, Karou ouvia as batidas do coração reverberarem em seus ouvidos. Sua coragem era só aparente. Ela se perguntava se era sempre assim, ou se havia aqueles que realmente não sentiam medo. — Thiago, eu tenho tentado entender uma coisa, mas tinha medo de perguntar. — Então examinou o grupo com atenção. Todos aqueles rostos, aqueles olhos que ela mesma criara, todas aquelas almas que tocara, algumas bonitas, outras não. — Será que todo mundo aqui entende menos eu, ou será que algum de vocês perde o sono pensando nisso também? — Virou-se novamente para Thiago. — Qual é o seu objetivo?
— Meu objetivo? Karou, não é necessário que você entenda de estratégia.
Ela podia ver que ele ainda estava tentando entender que audácia a levara a questioná-lo, e como ele poderia reafirmar seu controle sem ameaçá-la abertamente.
— Não perguntei qual é a sua estratégia, só o seu objetivo. É uma pergunta simples. A resposta deveria ser simples. Pelo que estamos lutando? Pelo que estamos matando? O que você vê quando olha para o futuro?
Quanta severidade nos olhos frios dele, quanta imobilidade em seu rosto imóvel. Uma fúria gelada. Ele não tinha uma resposta. Não uma boa resposta, ao menos. Estamos lutando para matar, poderia ter dito. Estamos matando por vingança. Não há futuro. Karou sentiu a espera coletiva dos quimeras e se perguntou quantos deles estariam felizes com aquilo. Quantos tinham perdido a capacidade de esperar por mais, e quantos poderiam encontrar um pouco de esperança quando soubessem o que Brimstone fizera.
— O futuro — disse Thiago, após uma pausa longa demais. — Uma vez eu ouvi você planejando o futuro. Nos braços do seu amante anjo. Vocês falavam em me matar.
Ah, claro, pensou Karou. Foi uma evasiva esperta da parte dele. Para os soldados, aquela imagem — uma quimera enroscada em um serafim — era suficiente para eclipsar sua pergunta.
— Eu nunca concordei com isso — disse Karou, o que era verdade, mas ela sentia que a curiosidade que tinha acendido se esvanecia; iria perder o pequeno terreno que tinha conquistado. — Responda a minha pergunta. Aonde você está nos levando? O que vê no futuro? Nós vamos viver? Teremos terras? Teremos paz?
— Terras? Paz? Você deveria perguntar isso ao imperador serafim, Karou, não a mim.
— Qual, aquele que diz que as feras devem morrer? Sempre soubemos qual é o objetivo dele, mas o Comandante nunca o imitou como você está fazendo. Esses assassinatos terroristas só fazem despertar mais fúria contra o povo que vocês abandonaram. — Virou-se para os soldados. — Vocês estão ao menos tentando salvar os quimeras, ou agora se trata apenas de vingança? Matar o maior número possível de anjos antes de morrer? É tão simples assim?
Ela queria poder lhes contar o que a patrulha de Balieros fizera, o que aqueles poucos soldados haviam testemunhado nas Terras Distantes, mas não podia revelar esse segredo. O que Thiago faria se soubesse?
— Você acha que há outra maneira, Karou? — Ele balançou a cabeça. — O tratamento gentil deles levou você a acreditar que são amigáveis? Só há um jeito de salvar os quimeras, e é matando os anjos.
— Matando todos eles? — indagou ela.
— Sim, Karou, matando todos eles — respondeu Thiago, de forma mordaz. — Imagino que deve ser dificil para você ouvir isso, já que seu amante é um deles.
Ele voltaria a esse mesmo ponto toda hora, e era curioso: quanto mais vezes ele o mencionava, menos vergonha Karou sentia. O que ela fizera, na verdade, além de se apaixonar e sonhar com a paz? Brimstone já a perdoara. Até mais do que isso; acreditara no sonho dela. E agora... confiara a ela — não a Thiago, a ela — a missão de encontrar um caminho para que seu povo pudesse viver novamente.
E ela achara que a pilha de turíbulos que lhe esperava em seu quarto era um fardo? Ah, o que um pouco de perspectiva não era capaz de fazer. Mas a sensação que a preenchera ao saber sobre a catedral não foi a de estar presa, como sempre acontecia enquanto cumpria as ordens de Thiago. Não. Foi como se ela estivesse de joelhos e Brimstone pegasse sua mão e a ajudasse a ficar de pé. Foi redenção.
Ela olhou para Issa, que assentiu brevemente. Respirou fundo. Então disse aos rebeldes:
— A maioria de vocês ou talvez até todos vocês comemoraram minha execução. Talvez me culpem por tudo isso. Não espero que queiram me ouvir, mas espero que ouçam Brimstone.
Isso provocou uma agitação.
— Brimstone? — disseram alguns, céticos.
Então olharam para Issa, como era de se esperar.
Thiago também olhou para ela.
— O que é isso? — perguntou ele. — O fantasma de Brimstone fala através de você, Naja?
— Se preferir assim, Lobo — rebateu Issa. Então se dirigiu aos soldados: — Vocês todos me conhecem. Durante anos fui companheira de Brimstone, e agora sou sua mensageira. Ele me enviou de Loramendi em um turíbulo para servir a esse propósito. Isso significava que eu não poderia morrer ao seu lado, como eu gostaria. Então, ouçam bem, para fazer valer o sacrifício dele e o meu. É grotesco imaginar que mortes, mutilações e terror poderão nos levar a uma vida digna de ser vivida. Tudo isso só trará o que sempre trouxe: mais mortes, mais mutilações, mais terror. Se vocês acreditam que vingança é tudo que lhes resta, ouçam-me.
Como ela estava linda, erguida bem alto nos anéis de sua cauda de serpente, e poderosa, com seu capelo de cobra bem aberto, as escamas brilhando como um verniz à luz da aurora. Estava exultante, beatífica e radiante de emoção.
Ela continuou:
— Vocês têm mais motivos para viver do que imaginam.
66
MATE O MONSTRO.
MUDE O MUNDO.
— O imperador vai recebê-los agora.
Akiva olhava por sobre a passarela para o vidro cinzento das cúpulas do harém onde havia nascido. Era demasiado fechado e silencioso, muito misterioso por fora, mas ele tinha vagas lembranças de barulhos e raios oblíquos de luz, crianças e bebês, brincadeiras e cantorias. Quando ouviu a voz, se virou. Era o primeiro-intendente, Byon, apoiado em sua bengala, minúsculo sob o grande e pesado arco do Portão Alef e entre os dois Espadas de Prata que flanqueavam a entrada. Com seu cabelo branco, quando olhado de relance ele parecia um vovô, mas só de relance. Era Byon quem atualizava a lista dos bastardos do imperador, riscando os mortos para que seus nomes pudessem ser dados aos recém-nascidos. Ao vê-lo, Akiva não pôde deixar de se perguntar se viveria mais do que o velho serafim ou se aquela mão enrugada ainda riscaria seu nome. Byon já riscara seis Akivas; o que seria mais um?
Por um instante ele sentiu como se não passasse de um mero receptáculo de nome — um em uma sucessão de receptáculos de carne e osso, pertencente, como todos os restantes e tudo o mais, ao imperador. Dispensável. Infinitamente renovável. Mas então se concentrou no que tinha ido fazer ali, e encontrou os olhos escuros de rato de Byon com a impassibilidade treinada que vinha sendo sua expressão-padrão fazia anos.
Ele não era nenhum receptáculo. Não haveria um oitavo Ilegítimo com seu nome; e gerar bastardos era apenas uma das muitas coisas que Joram não mais faria depois daquela noite. Além de começar guerras. Além de respirar.
— Deixem as armas — instruiu Byon.
Isso já era esperado. Nenhuma arma além das dos próprios guardas era permitida na presença do imperador. Akiva nem trouxera seu usual par de espadas cruzado nas costas — a capa, parte de seu uniforme formal, atrapalhava. Tinha prendido uma pequena espada à cintura só para poder fazer uma pequena encenação ao colocá-la no chão quando lhe fosse pedido.
Hazael e Liraz também se despojaram de suas armas, colocando-as no chão.
As que estavam visíveis, pelo menos.
Akiva trazia sua lâmina, oculta por encanto, presa ao outro lado do quadril. Mesmo invisível, porém, qualquer um que o observasse com atenção notaria algo de estranho na sombra daquela perna específica, e, é claro, qualquer um que chegasse muito perto ou pensasse em revistá-lo ou abraçá-lo sentiria o objeto: o aço frio. Mas era um risco pequeno — o abraço, ao menos; quanto à revista, seria o primeiro teste para se medir a desconfiança do imperador.
Ele tinha chamado o Príncipe dos Bastardos ali para usá-lo ou para desmascará-lo? Akiva acompanhou o olhar examinador do intendente. Nenhuma revista. Byon assentiu levemente e se virou, desaparecendo no interior da Torre da Conquista. Akiva o seguiu, com Hazael e Liraz atrás dele.
O refúgio sagrado do imperador. Hazael tinha investigado, portanto eles sabiam em linhas gerais o que esperar: corredores interligados feitos de vidro espesso em tom de mel, um portão vigiado após outro. Akiva decorou cada curva; aquele devia ser o único caminho para sair dali. Eles usariam o encanto para ficarem invisíveis; esse era o plano. Em meio ao tumulto que se seguiria ao assassinato, em meio à agitação e aos passos pesados dos guardas, eles sumiriam da vista de todos e fugiriam. E escapariam dali.
Assim Akiva esperava.
Mais um corredor, mais uma curva, mais um portão, mais um corredor. Penetrando mais e mais no refúgio sagrado do imperador. A expectativa deixava Akiva cada vez mais tenso.
Que exaustivo ter sempre a mesma resposta brutal para todos os problemas: matar o inimigo. Matar, matar. Mas naquele momento a resposta brutal era a única possível. Pelo bem de Eretz, pelo fim da guerra.
Joram tinha que morrer.
Akiva tentou alcançar o sirithar — o estado de calma em que os deuses da luz atuam através dos guerreiros —, mas não chegou nem perto. Conseguiu estabilizar as batidas do coração, mas sua mente estava em disparada — correndo por cenários, manipulações mágicas, até mesmo palavras. O que ele diria quando encarasse o pai e desembainhasse a espada? Não sabia. Talvez não dissesse nada. Não importava. Era a ação que contava, não as palavras.
Faça o que tem que ser feito. Mate o monstro. Mude o mundo.
67
A ÚNICA ESPERANÇA É A ESPERANÇA
Amzallag avançou em disparada e caiu de joelhos diante de Issa.
— Quem? — perguntou ele, quase em um sussurro. — Quem foi para a catedral?
Alguns outros soldados esticaram o corpo na direção deles, contendo a intensa dúvida.
— Milhares — respondeu Issa, afetuosamente. — Não havia tempo para se fazer um registro. Sinto muito.
Karou deu um passo à frente.
— Todas as crianças foram — disse ela, olhando para Issa em busca de confirmação. — E as mães. São grandes as chances de as suas famílias estarem lá.
Amzallag parecia atordoado. E, com suas feições de tigre, o “atordoado” se manifestava apenas nos olhos arregalados, como uma ligeira variação de sua constante ferocidade — ferocidade que era mais obra de Karou do que dele mesmo. Sua alma era pura como campos arados e tranquila como um cavalo de fazenda, mas, com aquele corpo novo, era quase impossível não parecer feroz. Sua mandíbula estava aberta, exibindo as presas afiadas como facas, e os olhos alaranjados nem piscavam. Mesmo de joelhos — as pernas dianteiras de veado estavam dobradas à frente do corpo, e as ancas de tigre, curvadas — ele ainda era mais alto do que Issa. Amzallag estendeu os braços cinzentos e imensos e pegou as mãos da Naja. Posso dar a ele uma forma mais gentil antes que ele reencontre a família, pensou Karou.
Mas era cedo para pensar nisso. Cedo demais.
Enquanto Amzallag segurava em suas enormes mãos as de Issa, Karou observava Thiago. Quando Amzallag agradeceu, em uma voz que parecia a nota mais triste de um violino, o Lobo arreganhou os dentes em um rosnado rápido.
— Sou só uma mensageira — disse Issa.
Foi então que os olhos de Thiago correram dela para Karou.
— Conte-nos de novo — disse ele — como examente isso aconteceu.
— Como o que aconteceu? — perguntou Issa.
Amzallag soltou as mãos dela e se levantou, virando-se com um movimento suave de tigre para se colocar ao lado de Issa — e de Karou —, oposto ao Lobo. O movimento foi deliberado, e passou uma mensagem clara de aliança. Mas a sensação de triunfo de Karou foi comprometida pelo inquérito que sentiu que viria.
— Como você chegou entre nós — continuou Thiago. — Um dia, de repente, aqui estava você. É muito estranho.
— Pode ser estranho, mas não tenho como esclarecer sua dúvida. A última coisa de que me lembro antes de acordar é, obviamente, de morrer.
— E para onde Brimstone planejava enviar sua alma nas garras do squall? Você deve saber isso, pelo menos.
Karou interrompeu:
— Isso é tudo o que você tem a dizer? Acabamos de contar que milhares de quimeras ainda podem ser salvos, e você fica falando sobre squalls? Thiago, nossas crianças podem viver novamente. Essa é uma notícia incrível. Você não está feliz?
— Minha felicidade, minha cara, é moderada pelo realismo, como a sua deveria ser. Viver onde? Como? Isso não muda nada.
— Isso muda tudo! — gritou ela. — Tudo o que você vem fazendo não traz nenhuma esperança. Será que não você vê? Nada disso traz nenhum futuro. Essa brutalidade, os ataques a civis? Seu pai não ficaria nada feliz com isso. Tudo o que você fizer aos serafins, Joram vai revidar cem vezes, mil vezes pior. — Então se dirigiu ao grupo: — Thisalene lhes deu alguma satisfação? Os anjos devem morrer?
Ela localizou Tangris e Bashees, e lutou contra o medo que não deixaria sua voz sair da garganta. Apelar para as Sombras Vivas? Estava ficando maluca? Lembre-se da imitação de galinha, disse a si mesma, tomada por uma súbita histeria.
— Em Thisalene, vocês mataram uma centena de anjos — disse Karou. As esfinges encontraram o olhar dela com seu ar inescrutável. — E centenas de quimeras morreram por isso. — Uma das esfinges piscou. Karou continuou, focalizando sua atenção na reação dos outros, o coração batendo furiosamente: — E vocês. Vocês os deixaram morrer. Vocês lhes deram esperança... Os sorrisos do Comandante, as mensagens. Nós renascemos? E então? Todos aqueles quimeras do sul, eles não acreditavam que vocês começariam essa luta, atrairiam os inimigos para cima deles em quantidades absurdas e depois os abandonariam. Vocês sabiam... — Karou engoliu em seco. Sua crueldade, ao falar as coisas daquela maneira, lhe parecia fria e pungente. — Sabiam que eles morreram olhando para o céu, à espera de vocês?
Ela viu Bast dar um passo cambaleante para trás. Alguns outros respiravam como se sentissem um bolo na garganta. Virko olhava para o chão.
— Não deem ouvidos a ela — rosnou Ten. — Ela não tem como saber o que aconteceu lá.
— Eu sei muito bem o que aconteceu lá. — Ela hesitou. Seria traição contar sobre a desobediência de Balieros? Ele lhes contaria, se estivesse ali; Karou tinha certeza. O futuro da rebelião estava em jogo, e ela podia usar aquela cartada para virar o jogo a seu favor. Como não usá-la? — Porque uma equipe tomou uma decisão diferente. Vocês acreditam mesmo que Balieros, Ixander, Viya, Azay e Minas sucumbiram à guarda de uma cidade qualquer? Eles morreram combatendo os soldados do Domínio no sul. Morreram defendendo os quimeras. Enquanto isso, vocês faziam o quê?
O sol se erguia no céu, o calor aumentava. O pátio estava claro e silencioso. Thiago respondeu:
— Fazíamos o que os anjos estavam fazendo, e ainda assim você nos critica, e não aos serafins. Quer que fiquemos deitados, com o pescoço exposto, à espera deles?
— Não.
Karou engoliu em seco de novo. Estava entrando em um terreno difícil: como argumentar para que tomassem um rumo diferente sem se passar por uma pacifista sonhadora? Ingênua, na melhor das hipóteses, ou simpatizante do inimigo, na pior, como eles já achavam. Tudo se resumia a isto: ela não podia lhes oferecer uma alternativa real de luta. Quando sonhara junto com Akiva com um mundo refeito, acreditara que ele traria seu povo e que ela, de alguma forma, traria o dela. Como se o futuro fosse um ponto no meio do caminho, uma terra com regras diferentes, onde o passado pudesse ser superado — ou esquecido? —, como se as tatuagens dos dedos dos serafim pudessem ser apagadas.
Agora, fora da bolha daquele amor tolo, Karou via como o sonho dos dois teria se tornado amargo se houvessem tido a chance de tentar concretizá-lo; teria se manchado, sujado. Aquelas marcas nunca se apagariam. Teriam existido para sempre — entre ela e Akiva, quimeras e serafins —, assim como os hamsás. Eles não podiam nem se tocar direito. Pensar que haviam acreditado ser possível unir dois pares de mãos assim fazia o sonho parecer mais louco do que nunca. E no entanto... a única esperança é a esperança. As palavras de Brimstone, na época e agora de volta, relembradas por Issa.
“Filha do meu coração”, dizia a mensagem que Brimstone deixara a Karou. Teve vontade de chorar de novo, bem ali no pátio, ao se lembrar dela. “Duas vezes minha filha, minha alegria. Seu sonho é o meu sonho, e seu nome é verdadeiro. Você é toda a nossa esperança.”
Seu sonho. Um sonho sujo e manchado é melhor que nenhum. Mas Karou tinha Akiva na época, tinha a esperança de que ele pudesse trazer os serafins para aquela nova maneira de viver. E o que tinha agora? Nada para prometer, nenhum plano. Nada além de seu nome.
— Não — disse ela de novo. — Não quero que fiquemos com o pescoço exposto, à espera deles. Nem deixaria você atirar nosso povo aos pés deles, em sua pressa para massacrá-los. Tampouco permitiria que você enterrasse nosso futuro sob cinzas, somente para poder fazer o mesmo com eles.
Thiago estreitou os olhos enquanto tentava sem sucesso encontrar rapidamente palavras para responder.
Karou prosseguiu:
— Brimstone me disse uma vez que permanecer leal diante do mal é um feito de força. Se deixarmos que eles nos transformem em monstros...
Ela olhou para Amzallag, para o tom cinzento de sua pele; para Nisk e Lisseth, que estavam logo atrás de Thiago, ambas ainda visivelmente Naja, mas sem um pingo da graça e da beleza de Issa; para todos os outros, grandes demais, com presas compridas demais, alados e com garras, tão pouco naturais. Ela fizera aquilo, o trabalho literal de transformar aqueles quimeras nos monstros que os anjos acreditavam serem.
— Alguém tem que parar com as mortes — implorou ela a Thiago. — Alguém tem que parar primeiro.
— Que sejam eles, então — replicou Thiago, tão frio, os lábios tremendo com o esforço de não soltar um rosnado. Sua fúria era palpável.
— Só podemos decidir por nós mesmos. Pelo menos poderíamos cessar os ataques por tempo suficiente para pensar em outra forma de agir, em vez de tornar tudo muito pior, sempre pior.
— Estamos destruídos, Karou. Não tem como ficar pior.
— Tem, sim. Já ficou. As Terras Distantes? O Tane? O que Razor está fazendo agora, e como os serafins vão responder? Pode ficar cada vez pior, até não restar mais ninguém. Ou talvez... talvez possa ficar melhor. — De novo as palavras de Akiva lhe vieram à mente, e de novo Karou as repetiu, dessa vez sem corar: — Os quimeras continuarão ou não a existir no futuro, dependendo do que nós façamos agora.
E foi então que as Sombras Vivas abriram suas silenciosas asas, levantaram voo com a graça dos sonhos e pesadelos, avançaram acima das cabeças de seus companheiros e aterrissaram suavemente ao lado de Karou. Não falaram nada; era raro falarem. A postura delas estava clara: a elegante cabeça erguida, os olhos desafiadores. Karou ficou sem ar, invadida por uma súbita onda de emoção. De poder. Amzallag, Tangris, Bashees, Issa. Quem mais? Olhou para os outros. A maioria parecia atordoada. Mas em vários olhares Karou viu uma crueldade equiparável à do Lobo, e soube que o ódio de alguns entre eles nunca mais seria tocado pela esperança. Em outros, ela viu medo.
Em muitos outros. Mas Bast viria para o seu lado; Karou esperou que ela desse um passo à frente. Estava quase. Emylion? Hvitha? Virko?
E Thiago? Ele olhava fixamente para Karou, e ela se lembrou dele a encarando no bosque de réquiem, em outra vida. Viu aquela crueldade de novo, as narinas abertas, o olhar selvagem, mas então... viu-o recuar. Percebeu o momento em que ele dominou sua fúria, e, de forma perspicaz e calculada, e com grande esforço, vestiu novamente sua máscara. Aquela moderação fingida era pior do que ódio ou medo. Aquela grande, imensa mentira.
— Minha senhora Karou — disse ele. — Seu argumento é poderoso.
Espere, pensou Karou. Não.
— Vou levá-lo em consideração — continuou ele. — É claro. Vamos pensar em todas as possibilidades. Vamos pensar inclusive em como, agora, com nossos corações felizes, vamos colher as almas da catedral.
A onda de poder que Karou sentira se desfez por completo. Ao lhe dar aquela pequena vitória, o Lobo lhe tirara a chance de uma ainda maior. Agora nenhum dos outros soldados precisava reunir coragem para se unir a ela, e dava para notar o profundo alívio que sentiam. Dava para ver isso na postura, no rosto deles. Não queriam escolher. Não queriam escolher Karou. Como era mais fácil se deixar guiar pelo general... Bast nem olhou para ela. Covardes, pensou, começando a tremer quando toda a sua coragem inflamada foi se transformando em frustração. Será que acreditavam mesmo que o Lobo Branco pensaria em encerrar — ou mesmo temporariamente suspender — sua cruzada? Vitória e vingança. Ele teria que destruir seu estandarte, fazer outro. Karou se lembrou com saudade do símbolo do Comandante: folhas brotando de chifres. Nascimento e crescimento. Tão perfeito e tão distante.
E de repente o restante dos soldados também estava distante. Thiago estava acostumado a exercer o poder, bem ao contrário dela. Sem dificuldade alguma, ele tomou de volta o pouco que ela havia ganhado e direcionou as energias do exército para seus planos.
Seus planos para a colheita das almas enterradas na catedral.
O próprio Amzallag foi o primeiro a se voluntariar. Deu um ávido passo à frente, e outros o seguiram. Karou ficou plantada no lugar, quase esquecida. Issa apertou sua mão, para mostrar que compartilhava de seu desânimo. Já as Sombras Vivas desapareceram antes mesmo que ela pudesse lhes agradecer, e logo o calor do sol fez com que a maioria deixasse o pátio.
O dia passou em meio a essa atmosfera de energia renovada. Karou e Issa observavam e ouviam, e Thiago parecia mesmo estar fazendo o que dissera: considerando todas as possibilidades, inclusive pensando como conduziriam uma escavação em território patrulhado pelo inimigo e até o que fariam no sul para ajudar mais quimeras a alcançar as Terras Distantes. Era exatamente o que Karou queria, e ela mal conseguia respirar, pois sabia que era apenas mais um lance no jogo do Lobo. Uma finta. Mas o que isso escondia? Qual seria seu verdadeiro jogo?
Quando a noite caiu, ela descobriu.
68
SIRITHAR
Akiva seguiu Byon pela última porta. Perfume e umidade o receberam; uma onda de vapor obscureceu sua visão no instante em que ele cruzou o umbral da porta, e ele ouviu a voz do pai antes de vê-lo.
— Ah, Lorde Bastardo. Como você nos honra com sua presença.
Era uma voz poderosa, fortalecida por tantos clamores pela morte das feras em batalhas passadas. Fosse o que fosse agora, Joram já fora um guerreiro um dia.
E era o que ele parecia. Akiva se curvou; começava a se erguer quando o vapor se dissipou, e ele viu que se encontravam em uma sala de banho, e que Joram estava nu. O imperador ficou de pé nos ladrilhos embaçados pelo vapor, forte e vigoroso, a pele avermelhada pelo calor, cercado pelo pequeno exército de criados aparentemente necessários para purificar sua pessoa real. Uma garota derramou um jarro d’água sobre a cabeça dele, que fechou os olhos. Outra, de joelhos, lavava-o com uma espuma grossa como chantilly.
Akiva tinha imaginado aquele encontro de muitas maneiras diferentes, mas em nenhuma delas seu pai estava nu. Ele não suspeita de nada, pensou. De outro modo, me receberia vestido e armado.
— Senhor imperador — disse —, a honra é toda minha.
— Nossa honra, sua honra — disse Joram, com a voz arrastada. — O que devemos fazer com tanta honra?
— Sempre podemos enforcá-la no Setor Oeste — disse outra voz, e Akiva nem precisou ver o rosto cortado ao meio para saber de quem era. Afundado em um banco de banho, em uma pose de informalidade a que somente ele se atreveria na presença do imperador, estava Jael. Bem, isso era conveniente, uma vez que, é claro, Jael, assim como Joram, não poderia continuar vivo. Para alívio de Akiva, o capitão estava inteiramente vestido. — Se ao menos houvesse espaço no cadafalso... — disse ele, como um lamento, arrancando risadas dos outros ali reunidos.
Akiva observou rapidamente o rosto deles. Embora não tão relaxados quanto Jael, todos pareciam tão à vontade que faziam entender que aquelas reuniões durante o banho deviam ser comuns.
O rosto cruel de Joram se abriu em um sorriso.
— Sempre se pode abrir espaço no cadafalso — disse ele.
Aquilo era uma ameaça? Akiva achou que não. Joram não estava nem olhando para ele; o imperador fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, para que a criada a molhasse novamente. Depois, sacudiu a cabeça com força, espirrando água para todo o lado. Namais e Misorias, de pé bem perto dele, piscaram quando foram atingidos pelos pingos d’água, mas fora isso não moveram um músculo. Dizia-se que os guardas pessoais de Joram — irmãos — eram guerreiros letais. Eram a primeira preocupação de Akiva. Havia também Espadas de Prata presentes ali, dois ao longo de cada parede: oito Lâminas Partidas com as armaduras de prata enevoadas pelo vapor condensado, as plumas caídas em razão da umidade. Akiva não estava preocupado com eles.
Na verdade, quando seu pai saiu da poça rasa de espuma, afastando-se das garotas de branco e indo em direção a um criado que estendia um robe, Akiva sentiu sua preocupação esmorecer. Ele podia não ter previsto uma sala de banho, mas, em todos os aspectos, aquele era o melhor cenário: poucos guardas em um ambiente reservado, um número limitado de testemunhas cujas palavras seriam levadas em conta e, o mais importante: a ausência de suspeita.
Nada no olhar daqueles serafins indicava cautela.
O príncipe herdeiro, Japheth, também estava ali, os olhos opacos de tédio. Era um serafim razoavelmente atraente. Devia ter mais ou menos a mesma idade de Akiva, suas feições permeadas por uma flacidez indefinível que passava uma imagem de fraqueza. Akiva sabia que Japheth não era nenhum modelo de conduta, mas seria melhor que seu pai — era isso o que importava. Ao lado dele estava Ur-Magus Hellas, com seu cabelo branco, chefe do círculo dos magos inúteis do imperador. Diziam que Joram o ouvia. Bastou ver seu olhar semicerrado de condescendência para Akiva saber que sua própria magia permanecia em segredo. Alguns outros rostos, igualmente arrogantes, não lhe eram familiares.
— Deixe-me ver você — ordenou Joram.
— Meu senhor — replicou Akiva, e ficou onde estava enquanto seu pai se colocava diante dele e o examinava, estreitando os olhos.
O imperador vestira o robe, mas não o fechara; Akiva torcia para que ele fizesse logo isso. Que intimidade estranha seria matar um homem nu. Joram estava tão perto que Akiva podia estender a mão e bater em seu peito. Ou perfurar seu coração. Teve a desagradável sensação que o peito de seu pai, rosado pelo vapor, cederia como manteiga mole. Estava consciente da tensão em sua mão ecoando as batidas de seu coração. A mão, o braço, o corpo inteiro queriam sacar a espada e acabar com tudo ali, mas sua mente fervilhava de perguntas.
O que ele quer comigo?
E não só isso. Foi terrível o que houve com ela. Se Akiva não descobrisse agora, jamais saberia.
Ele sustentava o olhar fixo do pai. Ou talvez o pai sustentasse o dele. Como os olhos de Joram eram parecidos com os de Liraz e Hazael: azuis, mais estreitos nos cantos externos e com fartos cílios dourados. Ao contrário dos olhos dos irmãos, no entanto, os de seu pai eram desprovidos de calor. Seu olhar era infame; um olhar em que se podia ver a própria morte, dizia-se, ou pelo menos a total insignificância da própria vida, um olhar que fazia os serafins se ajoelharem; e, dizia-se também, que fazia os indignos cortarem as próprias gargantas de tanta vergonha e pavor.
E Akiva viu mesmo a morte nos olhos do imperador, mas não a sua própria.
Ele sentiu algo preso na garganta. Sabia o que era: emoção, mas... por quê? Não por Joram, não era remorso pelo que estava prestes a fazer. Seria pela mulher sem rosto e quase esquecida que lhe dera seus olhos de tigre e se mantivera fora do caminho quando os guardas o levaram? Ou... pelo rosto que ele tinha visto espelhado em prata naquele dia, pequeno e assustado e refletido vezes sem conta nas placas metálicas das canelas dos Espadas de Prata. Por ele mesmo. Por tudo o que tinha perdido e por tudo que nunca tivera e nunca teria.
— Sim, você vai servir — disse Joram por fim. — Que sorte, afinal, eu ter deixado você viver. Se tivesse mandado matá-lo, quem eu mandaria até eles?
Mandar até eles.
— Mas eles podem decidir matar você. Afinal, o que sei eu a respeito dos Stelian? Faça suas despedidas, por via das dúvidas.
Do outro lado do quarto, Jael falou:
— Dá azar um soldado se despedir, irmão. Esqueceu? Despedidas provocam o destino.
Joram revirou os olhos, dando as costas a Akiva.
— Então não se despeça de ninguém. Que me importa? — Ele agora saíra de seu alcance imediato; e Namais e Misorias estavam bem ali. Akiva deixara passar uma oportunidade. Mas haveria outra. Ele criaria outra. — Esteja pronto para partir pela manhã. — Joram olhou para trás, em direção a Hazael e Liraz; se notou a semelhança dos dois com a própria fisionomia, não deixou transparecer. — Sozinho.
— Partir para onde, meu senhor? — perguntou Akiva.
Ele já tinha feito seus planos para a manhã seguinte, é claro — desaparecer sem deixar rastros —, mas a linha solta de um mistério estava esperando para ser puxada. Sua mãe.
— Para as Ilhas Longínquas, naturalmente. Os Stelian acreditam que tenho em minha posse algo que é deles. E a querem de volta. Jael, você se lembra? Nunca perdi meu tempo decorando o nome delas. Como ela se chamava?
— Lembro, sim — disse Jael. — Chamava-se Festival.
Festival.
— Festival. Com um nome desses, era de se esperar que ela fosse divertida. — Joram balançou a cabeça, como se lamentasse. — Será possível que eles acreditem que eu a mantive aqui esse tempo todo?
Festival.
O nome foi como uma faísca. Imagens. Perfume. Toque. O rosto dela. Por um instante Akiva se lembrou do rosto da mãe. Da voz dela. Fazia muito tempo — décadas — e eram apenas fragmentos, mas o efeito foi imediato: foco e clareza, como luz concentrada em um feixe.
O efeito foi o sirithar.
Akiva achava que conhecia o sirithar. Era parte de seu treinamento; ele passara anos fazendo katas ao amanhecer, buscando a serenidade dentro de si mesmo; era elusivo, mas ele acreditara saber o que era. Mas aquilo era diferente. Era verdadeiro e instantâneo e indelével. Não era de se admirar que ele não tivesse entendido; sem dúvida alguma que tampouco seus instrutores o tinham alcançado.
Era mágico.
Não o tipo de magia que ele descobrira sozinho, alcançada a partir de conjecturas e dor. Era como se ele tivesse passado a vida inteira cavando e arranhando a terra para só agora levantar a cabeça e ver o céu e seus infinitos horizontes, sua extensão insondável. Qualquer que fosse a fonte do poder ou o dízimo, não era dor. Na verdade, a dor em seu ombro tinha sumido. O que era aquilo? Luz e disposição e uma sensação de leveza, uma calma profunda que fazia o mundo ao seu redor parecer desacelerar e congelar para que ele visse tudo: o maxilar de Japheth se retesando para conter um bocejo, um olhar de relance trocado entre Hellas e Jael, a pulsação mínima da jugular de Joram. O calor e o agitar das asas e o respirar de todos ali, cada movimento pincelando o ar. Ele soube que a criada agachada iria se levantar antes que fizesse isso: a luz se moveu antes, e a garota pareceu segui-la. Joram ia levantar as mãos; Akiva o previu, e foi o que aconteceu. O imperador por fim fechou o robe, amarrando a faixa da cintura. Ele ainda estava falando, cada palavra real e límpida como seixos em um rio. Akiva compreendeu que o que ouvisse naquele estado ficaria gravado perfeitamente em sua memória.
Que nunca se esqueceria das últimas palavras de seu pai.
E que sabia quais seriam essas últimas palavras.
— Você vai até lá então — dizia Joram, com a certeza do poder pleno e absoluto. Foi quando Akiva percebeu que nunca precisava ter se preocupado com as suspeitas do pai. Tão inflado estava Joram com a lenda que se tornara que não lhe ocorria a possibilidade de ser desobedecido. — Mostre a eles quem você é. Se o ouvirem, dê-lhes minha promessa. Se eles se renderem agora e entregarem seus magos, não farei com eles o que fiz com as feras. Os Stelian têm se saído bem capturando mensageiros no ar, mas o que farão contra cinco mil soldados do Domínio? Será que sequer têm exército? Acham que conseguem se livrar tão facilmente de mim?
Você não faz ideia de como eles estão fora do seu alcance. Uma parte de Akiva queria girar e se maravilhar com os rios de luz nadando pelas muitas camadas de vidro da magnífica construção, levantar as mãos e contemplá-las como se tivessem sido refeitas, como se ele mesmo fosse uma criatura inteiramente nova, composta por aqueles raios de luz.
Luz velando fogo.
Uma voz, vinda do passado distante. “Você não pertence a ele.” Era a voz dela, um vibrato ressonante, modulado e cheio de poder. Tinha sido naquele dia. “Você não pertence a mim. Você pertence a si mesmo.” Ela não havia chorado. Festival. Não tentara segurá-lo ou lutar com os guardas, não dissera adeus. Despedidas provocam o destino, como Jael dissera.
Será que ela pensara que o veria de novo?
— Você a matou?
Ele se ouviu fazendo a pergunta e percebeu várias coisas ao mesmo tempo: o silêncio repentino do conselho; Namais e Misorias segurando os punhos de suas espadas; um lampejo de interesse por parte de Japheth, que perdera o anseio por bocejar. Não precisava nem ver Hazael e Liraz atrás de si para saber que os músculos deles relaxaram, de prontidão; sabia que Liraz já estava abrindo seu enervante sorriso de batalha.
— Você matou minha mãe?
E viu os olhos do pai, sem nenhuma surpresa, cheios de desprezo.
— Você não tem mãe. Assim como não tem pai. Você é um elo de uma corrente. Você é uma simples mão feita para brandir uma espada. Uma carcaça para vestir uma armadura. Esqueceu todo o seu treinamento, soldado? Você é uma arma. É uma coisa.
Eram essas as palavras. Akiva as ouvira pelo brilho do sirithar em um eco reverso. Já sabia que seriam as últimas de Joram.
Então retirou o encanto da espada e a desembainhou. Ele se movia na maré do tempo; tudo acabaria antes mesmo que as testemunhas pudessem levar um susto. Namais e Misorias puseram-se em movimento, mas estavam em outro plano de existência. Akiva era fogo velado em luz. Detê-lo era uma esperança vã. Akiva cruzou o espaço que o separava do imperador no tempo que levou para os frios olhos de Joram piscarem, surpresos.
Como ele pôde não ver como eu mudei?, perguntou-se Akiva, e fez a lâmina penetrar pela seda do robe do pai, deslizando até o coração.
69
ARRANHAR
Era Bast arranhando a janela de Karou. As venezianas estavam fechadas pelos compridos trincos de bronze e, do outro lado do quarto, as tábuas de Mik estavam enfiadas nos sulcos do chão, pressionando a maçaneta e as dobradiças. A porta e a janela estavam bem fechadas; Issa e Karou, dentro do quarto, inquietas. Karou andava de um lado para o outro. Issa agitava a cauda. Esperavam alguma coisa acontecer.
E aconteceu.
O arranhar nas venezianas. Um sussurro rouco.
— Karou. Karou, abra a janela.
Karou recuou, assustada.
— Quem está aí?
— Sou eu, Bast. Estou de sentinela, não devia ter vindo aqui.
— E por que veio? — retrucou Karou com raiva.
Se Bast tivesse atravessado o pátio de manhã para se colocar ao lado dela, outros poderiam ter feito isso também. E se eles tivessem lhe dado apoio? Karou nem sabia o que teria feito. Aquilo tudo parecia tão fora de sua zona de conforto que ela só queria se encolher em um canto e chorar. Ah, Brimstone, você achou mesmo que eu conseguiria fazer isso? Bem, ele não poderia saber que o Lobo sobreviveria à guerra, pronto para frustrar cada passo seu.
— É... É o Lobo — disse Bast em resposta, e Karou sentiu como se todo o ar tivesse sido sugado do quarto. Ali estava o que faltava. O que Thiago tinha feito? — Ele levou Amzallag e as esfinges. Eu os vi lá da torre.
Levou? Karou e Issa trocaram um olhar alarmado. Karou escancarou a janela. Bast se apoiou no peitoril estreito, batendo suavemente as asas semiabertas para se manter equilibrada.
— Levou para onde? — perguntou Karou.
Bast parecia abalada.
— Para o fosso — sussurrou ela.
Mais tarde Karou se perguntaria se Bast tinha sido cúmplice ou apenas um peão de Thiago, mas naquele momento não suspeitou. Seu horror parecia real, e talvez até fosse. Talvez estivesse pensando que poderia ser ela a próxima a fazer aquela caminhada, por ter chegado tão perto de apoiar Karou. E talvez — provavelmente — estivesse pensando que nunca mais pensaria em cometer esse erro.
Não se fica contra o Lobo.
Com mãos trêmulas, Karou prendeu de novo o cinto com suas facas. Sentiu-se melhor com o peso das lâminas em lua crescente na cintura. A janela aberta estava a sua frente. Issa, ao seu lado, não podia sair por ali. Karou olhou para ela.
— Vou atrás de você, docinho. — Issa seguiu para a porta, as escamas ondulando. — Vá. Estarei logo atrás de você.
Karou saiu para a noite lá fora. Já estava sobre o baluarte quando Issa tirou as tábuas, colocou-as de lado e abriu a porta.
E deu de cara com Ten.
70
VIDA LONGA AO IMPERADOR
O imperador caiu de joelhos. Seus olhos foram ficando sem vida, o ódio se apagando das órbitas à medida que a vida se esvaía no vermelho que tingia o seu peito. Ninguém o segurou; ele tombou na cuba de banho rasa, espirrando água. O líquido e a espuma ficaram rosados.
Uma criada gritou.
Namais e Misorias partiram para a ação. Akiva bloqueou seus golpes; nada nunca fora tão fácil.
Ele percebeu que os guardas junto às paredes se aproximavam, o choque embotando o ar. Pelo menos um se atrapalhou com a própria manga ao tentar alcançar o punho da espada, e xingou. Hazael e Liraz desembainharam as armas a um só tempo.
Os Espadas de Prata talvez acreditassem na suficiência da vantagem numérica — oito contra dois —, mas após os primeiros entrechoques das lâminas a confiança deles se evaporou. Aquilo não era nenhum exercício de ataque e defesa a que estavam acostumados, nenhum elegante retinir de prata. Hazael e Liraz seguravam suas longas espadas com as duas mãos, e seus golpes eram tão poderosos quanto os que já haviam rasgado a armadura e a pele de inúmeros espectros. Décadas de batalha, as mãos negras com sua terrível contagem, e a violência de seu ataque atingiu os guardas como uma força da natureza.
Não eram dois lutando contra oito. Eram dois massacrando oito. Liraz, esguia como era, conseguiu deslocar o ombro do guarda que bloqueou seu primeiro golpe. O gemido de dor dele foi seguido por um ruído alto da espada saindo voando de sua mão; ela não acabou com o guarda enquanto ele cambaleava para trás, mas girou em direção ao próximo com um chute baixo e veloz que o acertou no joelho. Ele também urrou de dor e caiu.
O primeiro golpe de Hazael cortou a lâmina de seu oponente, deixando o guarda com uma linda espada de prata partida na mão.
Tudo isso aconteceu em poucos instantes — os Ilegítimos ensinando aos arrogantes Espadas de Prata a vital diferença entre um guarda e um soldado —, e os olhos dos guardas se arregalaram ao perceber em que situação se encontravam. A postura dos cinco que sobraram mudou de uma segurança ameaçadora para um defensivo curvar-se. Eles seguraram firme suas espadas e formaram um círculo em torno dos Ilegítimos, trocando rápidos e desesperados olhares de fácil interpretação:
Vá em frente, ataque.
Ataque você.
Nem precisavam ter se preocupado. Liraz e Hazael não esperaram. Esperar dava ao inimigo tempo para pensar. E eles não precisavam pensar. Atacaram. Estavam em nithilam. O retinir era ensurdecedor, e o apelido “Lâminas Partidas” provou-se justificado, já que as armas frágeis e chamativas se quebravam sob o impacto do aço. Do outro lado do cômodo, um dos conselheiros que não lhes eram familiares abaixou-se bem a tempo de evitar ser atingido por um pedaço de prata, que passou voando e se cravou na parede bem onde sua cabeça estivera segundos antes.
Os Lâminas Partidas estavam todos desarmados e levemente feridos. Quando um deles fez uma tímida menção de pegar uma espada, bastou um sorriso e um balançar de cabeça de Liraz e ele parou na mesma hora, como uma criança travessa.
— Fiquem parados — disse ela. — Só queremos ver uma demonstração da grande habilidade que vocês têm de ficar parados.
Os outros também obedeceram e ficaram parados, tomando espaço — muito espaço: corpos tão grandes para um treinamento tão fraco. Suas vidas nunca tinham estado em perigo antes, e, se Liraz e Hazael quisessem matá-los, seria lamentavelmente fácil. Mas não era o que queriam. Mal haviam derramado sangue. Um dos alvos era Joram, que agora jazia morto, sem ninguém para acudi-lo, na água rasa, que agora tinha passado de cor-de-rosa para vermelha. Jael era o outro.
Mas ele tinha desaparecido.
— Akiva — disse Liraz. — Jael.
Akiva já sabia. Os três Ilegítimos estavam no centro da sala de banhos. O silêncio reinava. Deviam ter se passado apenas dois minutos desde que a lâmina de Akiva perfurara o coração de seu pai. Ele havia desarmado Namais e Misorias — os dois tinham oferecido maior resistência, mas ainda assim não fora o suficiente — e os fizera desmaiar com um golpe do punho da espada, para evitar qualquer tentativa de heroísmo que pudesse forçá-lo a matá-los. Um deles tinha caído com o rosto para baixo, e, no segundo que Akiva perdera para virá-lo com o pé para que não se afogasse na água vermelha, Jael havia desaparecido.
Para onde ele fora? Se tivesse escapado por alguma porta secreta, não conseguira levar seu sobrinho junto. Akiva olhou calma e demoradamente para o príncipe herdeiro. Japheth puxara uma das criadas, colocando-a na frente de si como um escudo vivo. Ela estava paralisada, esmagada contra o peito dele, sua longa trança presa na mão do príncipe — fosse ele um homem melhor, estaria segurando uma espada.
Eis o novo imperador, pensou Akiva.
Aonde quer que Jael tivesse ido, estaria agora lançando o alerta aos quatro ventos. Akiva se preparou para o que aconteceria a partir dali. Estava supreso por ainda não terem feito nada; imaginara que os guardas do Portão Samekh entrariam correndo ao ouvir o retinir das lâminas. Seria nesse instante que ele, Hazael e Liraz fariam o encanto para ficar invisíveis e tentariam achar a saída, aproveitando-se do caos.
Mas não havia nenhum caos.
Talvez, pensou ele, todas aquelas paredes de vidro interligadas não deixassem passar o som. Em meio àquela estranha quietude, Akiva foi abandonado por seu recém-descoberto estado de sirithar, que ia e vinha por vontade própria, e seus sentidos voltaram ao normal. Frustrado por aquela diminuição de poder, ele examinou o recinto. A galeria de bajuladores estava plantada no mesmo lugar, todos horrorizados; de boca aberta como peixes, engoliam o ar úmido com desespero. Akiva passou os olhos por eles. Hellas tinha perdido sua presunção.
E lá estava Japheth, ainda agarrado à criada. Aquilo não deveria ser surpresa alguma, mas ouvir falar da covardia de alguém é uma coisa, ver isso assim tão claramente era outra. O que fazer? O objetivo deles ali tinha que ficar claro: era o assassinato do fomentador da guerra, não uma rebelião contra todo o império; não uma tentativa de tomar o poder.
Então, olhando nos olhos do príncipe herdeiro, Akiva disse as palavras que proclamavam sua ascensão:
— O imperador está morto. Longa vida ao imperador.
Naquela atmosfera de vapor e medo, sua voz soou grave e solene. Ele levou a mão ao peito, batendo o cabo da espada na altura do coração, e deu um pequeno aceno de cabeça para Japheth. Atrás dele, Hazael e Liraz fizeram o mesmo.
O pavor de Japheth deu lugar a confusão. Ele olhou de soslaio para o conselho em busca de uma explicação, como se aquela possibilidade nunca lhe tivesse ocorrido. A jovem criada aproveitou para se soltar, correndo porta afora como uma criatura que escapou de uma armadilha. Akiva a deixou ir. Ela abriu a porta com um gesto violento e saiu em disparada. Agora com certeza os guardas viriam depressa.
Mas não. Nada aconteceu.
Sem seu escudo humano, Japheth deixou-se cair de joelhos e, trêmulo, começou a recuar lentamente. Akiva deu-lhe as costas, enojado.
— Já acabamos por aqui — disse aos irmãos.
O que quer que estivesse acontecedo fora daquela sala de banho, não fazia sentido esperar mais. Teria sido mais fácil utilizar-se do caos como cobertura para fugir — os guardas correndo para ver o que acontecia e nisso deixando os dez portões abertos —, mas eles dariam um jeito. Lutariam, se fosse preciso. Akiva estava pronto para sair, para deixar Astrae e a traição que cometera para trás.
Mas só chegou até a porta.
Não foram os Espadas de Prata, com sua pomposa incompetência e suas belas mas inúteis espadas, que o detiveram. Foi o Domínio. Não guardas: soldados. Alertas e tranquilos e muitos. Vinte, mais até. Quarenta, preenchendo toda a sala, mas sem trazer nenhum caos, nenhuma agitação para facilitar a fuga. Apenas rostos severos e espadas já pegajosas de sangue.
Sangue de quem?
E... traziam algo mais, algo completamente inesperado. Logo que sentiu aquela debilitante e tão familiar onda de náusea, Akiva entendeu. Os soldados começaram a fechar um cerco em volta dele e de seus irmãos, dos envergonhados Lâminas Partidas e do corpo do imperador, carregando troféus... medonhos troféus. Akiva percebeu que tudo aquilo tinha sido orquestrado. Ele tinha feito sua parte em uma trama escrita por Jael, e o fizera com perfeição.
Os soldados do Domínio seguravam mãos. Mãos secas e cortadas, marcadas com os olhos do demônio. Mãos de espectros, tão poderosas quanto costumavam ser quando erguidas por seus verdadeiros donos: os rebeldes quimeras que eles tinham matado e queimado nas Terras Distantes.
Akiva sentiu a magia atingi-lo como se penetrasse em sua corrente sanguínea, talhando-o por dentro. Tentou resistir, mas de nada adiantou. Começou a tremer e não conseguia parar.
— Graças aos deuses da luz — ouviu os conselheiros murmurarem. — Estamos salvos.
Mas que imbecis. Será que ainda não tinham se perguntado o que os soldados do Domínio faziam dentro da Torre da Conquista?
Seu capitão estava com eles.
— Meu sobrinho. — Por um instante Akiva pensou que Jael se dirigia a ele, mas não: estava olhando para Japheth. — Permita-me ser o primeiro a oferecer minhas felicitações. — Jael estava corado; pelo calor, por medo? Sua cicatriz era uma grande fenda branca. Ele aproximou-se de Japheth, que continuava de joelhos, e lhe disse: — Esta não é postura para o soberano do Império dos Serafins. Levante-se.
E estendeu a mão.
Akiva entendeu o que ia acontecer, mas a náusea pulsante dos hamsás se combinara ao embotamento que se abatera sobre ele após o sirithar, e não conseguiu fazer nada para impedir.
Japheth levantou a mão para Jael; ele a pegou, mas não ajudou o sobrinho a se levantar. Girou o braço de Japheth, colocando-se atrás dele. Japheth arfou de dor enquanto Jael esmagava a delicada mão do príncipe com sua força de espadachim, impedindo-o de se levantar. Um brilho de metal, um movimento brusco do braço e tudo acabou em uma questão de segundos: com sua adaga, Jael cortou a garganta do sobrinho, abrindo uma fina linha vermelha no pescoço dele.
Japheth arregalou e revirou os olhos. Sua boca se abriu, mas não emitiu nenhum som a não ser um leve gorgolejar. A linha vermelha foi se tornando mais espessa e borrada. Gotas se transformaram em um filete. E o filete, em um jorro.
— O imperador está morto — disse Jael, antes mesmo que fosse realmente verdade. Sorrindo, ele limpou a lâmina na manga de Japheth e depois o empurrou, atirando seu corpo junto ao de Joram na água vermelha. — Vida longa ao imperador.
Akiva se sentia tão atordoado e boquiaberto quanto os conselheiros.
Quanto a Jael, não poderia parecer mais satisfeito. Virou-se para Akiva e fez uma reverência debochada.
— Obrigado — continuou ele. — Eu estava torcendo tanto para que você fizesse isso.
A partir dali, o que Akiva acreditara ser um bom cenário se transformou na pior situação possível.
71
O FOSSO
Quando Karou chegou ao fosso, já era tarde demais.
Amzallag, Tangris, Bashees. Todos mortos sob as estrelas, e Thiago de pé ao lado dos corpos, tranquilo e resplandecente em todo o seu brancor, esperando. Esperando por ela. Havia outros ali por perto em um semicírculo; Karou devia ter dado uma olhada na cena, dado meia-volta ali mesmo no ar e voado de volta para a questionável segurança de seu quarto. Mas não podia, não com aqueles corpos estendidos ali, Amzallag e as esfinges, o sangue ainda pulsando de suas gargantas cortadas e escorrendo para o rochedo, suas almas fragilmente presas aos corpos. Por terem ficado do lado dela.
Seria esse o preço? Ela nunca mais teria outro aliado. Recuar naquele momento seria o mesmo que abandonar a causa quimera ali mesmo, naquele exato momento.
Karou estava entorpecida pela repulsa e a fúria quando desceu, aterrissando com força diante do Lobo. A mancha de sangue no peito e na manga da túnica dele parecia preta na escuridão da noite. Atrás dele havia montes de terra que sobraram da escavação do fosso; uma fileira de pás erguidas como estacas de uma cerca; Karou ouvia um zumbido baixo, como o de um motor distante, mas percebeu que eram moscas. Ao longe, no escuro. Examinou a terrível cena por um instante até finalmente encontrar a voz. Engasgada, disse:
— Eis aqui o grande herói dos quimeras, assassino de seus próprios soldados.
— Não creio que fossem soldados meus — replicou Thiago. — Azar o deles.
Então ele se virou de frente para o corpo de Amzallag, que estava bem na beirada do fosso. Preparou-se e, com o pé, as garras de lobo ajudando a conseguir um apoio, chutou com força o corpo, que saiu rolando. Devia pesar uns duzentos e cinquenta quilos, mas, quando os ombros passaram da beirada, seu peso arrastou sozinho o resto. Foi uma queda lenta, bem lenta no começo... e então repentina. O corpo de Amzallag caiu no fosso e desapareceu naquela escuridão fétida.
Lisseth fez o mesmo com os corpos das esfinges, que, bem mais leves, quase não fizeram barulho, como se a queda tivesse sido suave — Karou sabia, mas não queria imaginar o que as amortecera —, mas o mau cheiro subiu até eles, assim como moscas, centenas de moscas, uma nuvem escura a zunir, e era como se carregassem consigo a putrescência. Karou se afastou, lutando contra a ânsia de vômito. Quase podia sentir o ar dentro da boca, denso e sufocante, vapor e líquido. Cambaleou para trás, olhando horrorizada para Thiago.
— Eles não são todos monstros como você — disse ela. — Como alguns de vocês.
E olhou para os capitães ali reunidos em torno dos dois: Nisk, Lisseth, Virko, Rark, Sarsagon. Eles sustentaram seu olhar, indiferentes e sem o menor pudor — com exceção de Virko, que baixou o rosto.
— Monstros, sim, somos monstros — disse Thiago. — Vou dar aos anjos suas “feras”. Vou dar a eles pesadelos que irão assombrar seus sonhos até bem depois da minha morte.
— Então é isso? É esse o seu objetivo, deixar um legado de pesadelos para quando morrer? E por que não? Por que não resumir tudo a você? O grande Lobo Branco, assassino de anjos, redentor de ninguém.
— Redentor. — Ele riu. — É isso que você quer ser? Que meta ambiciosa para uma traidora.
— Nunca fui uma traidora. Se alguém é traidor aqui, é você. E toda aquela história hoje sobre a escavação da catedral? Foi tudo mentira?
— Karou, o que você acha? O que faríamos com aqueles milhares de almas? Nossa ressurreicionista mal consegue criar um exército.
Quanto desprezo na voz dele. Karou respondeu na mesma moeda:
— Bem, eu não vou mais criar seu exército, então vou precisar de algo para me manter ocupada.
Estava praticamente cuspindo agora; sua mente zunia de raiva. Ela ia colher a alma de Amzallag, e das esfinges também. Amzallag não tinha sentido a esperança de reencontrar sua família para morrer logo depois.
— Ah, não vai mais? — Thiago sorriu. Assassino, torturador, selvagem. Ele estava à vontade com aquela situação. — Acha mesmo que pode vencer este jogo? — Ele balançou a cabeça. — Karou, Karou. Ah, seu nome me diverte. Aquele idiota do Brimstone. Ele lhe deu o nome de esperança por você ter se deitado com um anjo? Devia tê-la chamado de luxúria. Ou vagabunda.
A palavra não doeu. Nada que Thiago dissesse poderia feri-la. Ao olhar para ele agora, Karou mal entendia como havia se deixado levar por tanto tempo, cumprindo suas ordens, criando monstros para seu legado de pesadelos. Ela pensou em Akiva, na noite em que ele fora ao encontro dela no rio, na dor e vergonha esmagadoras que vira no rosto dele, e amor, ainda amor — tristeza e amor e esperança —, e lembrou-se da noite do baile do Comandante, e em como Akiva sempre fora sua certeza enquanto Thiago era tudo de errado, o calor em oposição à frieza gélida do Lobo, a segurança protegendo-a da ameaça do monstro.
Ela olhou bem fundo nos olhos de Thiago e disse em voz baixa, friamente:
— Isso ainda acaba com você, não é? Eu ter escolhido Akiva em vez de você? Quer saber de uma coisa? — O amor é um elemento. — Você nunca foi uma opção.
Ela viu um espasmo de fúria desfazer na mesma hora a expressão fria e contida de Thiago. Aquele lindo receptáculo que Brimstone criara escondia algo sombrio e mortal por dentro.
— Deixem-nos a sós — ordenou ele por entre os dentes trincados.
Os outros já estavam batendo as asas em obediência antes mesmo que Karou tivesse a chance de se arrepender de suas palavras. Com o barulho das asas e o movimento intenso a levantar poeira, o bafo de podridão que se agitou no ar e a areia batendo em seus braços descobertos e seu rosto, ela teve a breve impressão de sentir as asas que tivera um dia, tão forte era seu impulso de fugir. Como na noite do baile do Comandante, ao dançar com Thiago, quando a cada segundo suas asas ansiavam por levá-la para longe dele.
Para longe. Vá para longe dele. Ela se preparou para saltar, mas antes que deixasse o chão, Thiago avançou. Depressa. Um brevíssimo movimento e ele agarrou seu braço — os hematomas gritaram de dor. Com força.
— Sim, acaba comigo, Karou. É isso o que você quer ouvir? Que você me humilhou? Eu a puni por isso, mas a punição foi... insatisfatória. Foi impessoal. Seu protetor Brimstone cuidou para que eu nunca ficasse sozinho com você. Sabia disso? Mas ele não está aqui agora, está?
Presa, Karou olhou para os soldados que partiam. Apenas Virko olhou para trás, mas não parou. De repente a escuridão o envolveu e ele desapareceu junto com os outros, o som das asas diminuindo, a poeira se assentando, e Karou ficou sozinha com Thiago.
A mão dele apertava seu braço como um torno; Karou sabia como Brimstone fizera os corpos do Lobo. Sabia a força que ele tinha, portanto não tinha esperanças de conseguir escapar.
— Me solta.
— Eu não fui amável? Não fui gentil? Pensei que fosse isso que você queria. Achei que seria a melhor maneira de lidar com você. Gentileza e agrados. Mas vejo que me enganei. E quer saber? Fico feliz. Existem outros meios de persuasão.
De repente sua mão livre estava na cintura dela, entrando por baixo da blusa para tocar sua pele. A mão livre de Karou voou para a lâmina de lua crescente presa à cintura, mas Thiago afastou-lhe a mão, agarrou a arma e atirou-a no fosso; segundos depos fez o mesmo com a outra. Karou empurrou inutilmente o peito dele, tentando se soltar.
Aconteceu tudo muito rápido; seus pés desprenderam-se do chão e seu corpo caiu com tanta força que sua visão escureceu e ela perdeu o ar. Karou arfava, com Thiago em cima dela, pesado e muito, muito forte, e o inútil pensamento que não lhe saía da cabeça era: Ele não pode fazer isso, não pode me machucar, ele precisa de mim. E o tempo todo ele ria.
Ria. Seu hálito no rosto dela. Karou tentou se afastar, lutou, todos os músculos se retesando para lutar contra ele, o pulmão se enchendo daquele ar fétido do fosso toda vez que engolia avidamente o ar.
Ela também era forte. Seu corpo era obra de Brimstone tanto quanto o dele, e tampouco era uma força vazia — ela treinara a vida inteira. Conseguiu soltar um braço e girou, colocando o ombro como um obstáculo entre eles, levantou um joelho e se soltou dele, rolando para longe enquanto ele se lançava de volta para cima dela, e levantou voo, subindo, tentando escapar, mas foi quando ele a pegou por trás e a derrubou com força de novo. Bateu com o rosto no chão dessa vez, a dor a inundando, e ficou presa de novo, sentindo o peso dele nos ombros de uma forma que não lhe dava chance de se soltar, e então ouviu a voz dele em seu ouvido:
— Vagabunda — sussurrou Thiago, e seu hálito era quente, seus lábios tocavam o lóbulo da orelha dela, e depois as pontas afiadas de suas presas.
Ele a mordeu. Rasgou sua pele.
Karou gritou, mas Thiago bateu a cabeça dela no rochedo outra vez, e a dor sufocou o grito.
Ela não conseguia vê-lo. Ele a prendia, mantendo seu rosto na areia e nas pedras, quando ela sentiu garras segurarem em sua calça jeans e puxarem. Por um segundo sua mente ficou vazia.
Não.
Não.
O grito não era sua voz. Era sua mente, repetindo os mesmos pensamentos tolos e horrorizados de antes: Ele não pode, não pode.
Mas ele podia. E estava fazendo.
Só que o jeans não saiu do lugar, mesmo quando ele puxou com tanta força que a arrastou meio metro pelo chão, sua face sentindo cada pedra, e então ele a virou para abrir o botão. Agora estava em cima dela, sorrindo, e Karou viu seu sangue nos lábios dele, nas presas dele. O sangue pingou em sua boca e ela sentiu o gosto. Olhou para as estrelas no céu além dele e, quando Thiago soltou seu braço para agarrar os dois lados da calça e tentar arrancá-la, ela agarrou uma pedra e esmagou o sorriso em seu rosto.
Ele grunhiu de dor, mas não saiu do lugar. O sangue de Thiago se juntou ao dela em suas presas, e seu sorriso voltou. A gargalhada também. Era obscena. Sua boca era uma careta vermelha, mas ele continuava em cima dela.
— Não! — gritou ela, e a palavra parecia saída de sua alma.
— Não banque a pura, Karou — disse ele. — Afinal, todos nós somos apenas receptáculos.
E, quando ele puxou dessa vez, a calça desceu e ficou presa nas botas dela, embolando na altura de suas panturrilhas. Ela sentiu as pedras machucando sua pele nua. Os gritos em sua cabeça eram ensurdecedores e pareciam inúteis quando ele conseguiu colocar o joelho entre os dela, separando-os. Ele rosnou de maneira animal, e Karou continuou lutando. Lutando. Não parava um segundo. Todos os seus músculos estavam em movimento, se movendo para impedi-lo. As garras das mãos de Thiago laceraram seus braços, prendendo-a, e as pedras cortavam suas costas e pernas, mas a dor parecia distante. Ela sabia que não podia ficar parada, não podia parar nunca. Ele então segurou os dois pulsos dela com uma das mãos — para ficar com a outra livre, para ficar com a outra livre —, mas Karou conseguiu livrar-se e tentou alcançar os olhos dele. Ele se afastou bem na hora, então ela só conseguiu arranhar seu rosto.
Ele deu-lhe um tapa com as costas da mão.
Karou piscava, as estrelas nadavam no céu. Ela balançava a cabeça para clarear a visão quando se lembrou da faca.
Na bota.
Como a bota parecia infinitamente longe das suas mãos. Ele segurava os pulsos dela com tanta força que Karou mal sentia os dedos. Quando se levantou um pouco para tentar tirar a própria roupa — não estava mais tão branca, ela se pegou pensando, muito distante dali —, teve que soltar uma das mãos dela. Karou deixou o braço cair para o lado dessa vez, sem se mover. Fechou os olhos. Sem contar com a respiração irregular deles, o silêncio do deserto era como um vácuo, que tragava o som e o engolia. Ela se perguntou: se gritasse, será que a ouviriam lá na casbá? E se ouvissem, será que alguém viria em seu socorro?
Issa. Issa já devia estar ali àquela altura.
O que tinham feito com Issa?
Karou não gritou.
Thiago esqueceu a mão livre dela ao se deitar novamente em cima de Karou, e ela virou a cabeça de lado e fechou os olhos com força. Ele parecia um lobo ofegante. Karou moveu os quadris e girou, se contorceu para evitá-lo, e não abriu os olhos enquanto tateava por baixo da calça jeans embolada, em busca da bota. Da faca. Sentiu o frio do cabo curto em sua mão quente. Em meio à dor e à falta de ar, à escuridão dos olhos cerrados, ao ar abafado e pútrido e ao zumbido das moscas, às pedras que arranhavam seu corpo e à pressão e força do corpo em cima dela, aquele cabo era tudo.
Ela puxou a faca com facilidade. Thiago tentava empurrar seus quadris para baixo.
— Vamos, meu amor — ronronou ele. — Quero entrar em você.
Nada nunca fora mais perverso do que aquela voz suave, e Karou sabia que, se olhasse para o rosto dele, veria um sorriso. Então não olhou.
Cravou a faca na base da garganta dele. Era uma faca pequena, mas foi o bastante.
Ao sentir o calor se derramar sobre si, ela soube que era sangue. As mãos de Thiago esqueceram os quadris dela. E, quando Karou abriu os olhos, ele não estava mais sorrindo.
72
UM LAMENTÁVEL DESPERDÍCIO DE DOR
— Matem todos — ordenou Jael a seus soldados, com um mórbido bom humor.
Akiva continuava de pé no meio da sala de banho, junto com seus irmãos. Os três ainda seguravam suas espadas, mesmo sabendo que, com o mal-estar causado pelas marcas do demônio, não tinham como se defender de tantos soldados.
— Não todos — corrigiu Ur-Magus Hellas, que tinha se colocado ao lado de Jael e que, ao contrário dos demais membros do conselho, não parecia chocado com tudo o que acontecera. Um cúmplice.
— Mas é claro — concordou Jael, com uma polidez afetada. — Erro meu. — Então se virou para os guardas: — Matem todos, menos os Ilegítimos.
O olhar de presunçosa complacência de Hellas desapareceu.
— O quê?
— Certamente. Traidores merecem uma execução pública, não é mesmo? — indagou Jael, deliberadamente deturpando o significado das palavras de Hellas. Então se virou para os bastardos, ainda com aquela alegria repulsiva. — Como meu irmão disse mais cedo, sempre se pode abrir espaço no cadafalso.
— Meu senhor — insistiu Hellas, ofendido e só então começando a ficar com medo —, estou falando de mim.
— Ah, pois é. Sinto muito, velho amigo, mas você tramou a morte do meu irmão. Como posso confiar que não vai trair também a mim?
— Eu? — Hellas ficou vermelho. — Eu tramei? Tramei com o senhor...
Jael estalou a língua.
— Viu? Já está inventando histórias a meu respeito. Todo mundo sabe que foi o Ruína das Feras quem matou Joram e o pobre Japheth, sangue de seu sangue. Como posso deixar que você saia desta sala e vá espalhar mentiras a meu respeito?
O rosto vermelho do mago empalideceu.
— Eu não faria isso. Sou leal. O senhor vai precisar de uma testemunha. O senhor disse...
— A criada vai servir como testemunha. Será até melhor, porque vai acreditar no que diz. Ela viu o bastardo matar o imperador. Quanto ao restante, estará confusa. Vai acreditar que viu tudo.
— Meu senhor. O senhor... precisa de um mago...
— Como se você fosse capaz de realizar alguma magia — zombou Jael. — Não preciso de impostores ou envenenadores. Veneno é para covardes. Os inimigos devem sangrar. Anime-se, meu amigo. Você morrerá em nobre companhia.
E, a um gesto sutil de Jael — pouco mais que um espasmo da mão —, os soldados se adiantaram.
Hellas procurou desesperadamente um protetor.
— Socorro! — gritou, embora certamente tivesse feito sua parte para que nenhum socorro aparecesse.
Os outros membros do conselho também gritaram. Akiva sentiu mais pena deles, embora sua infelicidade crescente não deixasse muito espaço para desperdiçar pena com aquele grupo de tolos cruéis escolhidos a dedo.
Foi um banho de sangue. Os Espadas de Prata, brutamontes inúteis e já desarmados, agonizaram e morreram. Um dos soldados do Domínio despachou Namais e Misorias — ainda inconscientes — com suaves golpes na garganta dos dois. Parecia estar ceifando ervas daninhas, tão impassíveis foram os gestos. Os olhos dos guarda-costas se abriram, e os dois se debateram um pouco antes de morrer, então escorregaram na mistura de água de banho e sangue. Nem as criadas foram poupadas; Akiva percebeu o que ia acontecer e tentou proteger a que estava mais perto, mas havia muitos soldados do Domínio, e muitos hamsás virados em sua direção. Os soldados o empurraram de volta para onde estavam Hazael e Liraz antes de silenciar os gritos da garota sem nenhum sinal de remorso.
Eram perfeitos soldados de seu líder, pensou Akiva enquanto a cena se desenrolava diante de seus olhos. Ele já testemunhara muitas carnificinas, já tomara parte de muitas também, mas aquele massacre o chocou pela frieza. E astúcia. Assistir àquilo tudo, sabendo que seria acusado por aqueles crimes — que a desonra seria dele enquanto Jael assumia o manto do imperador —, o fazia arder e suar frio, sentindo-se ao mesmo tempo furioso e impotente.
Ele procurou alucinadamente algum traço da clareza e do poder que o haviam inundado antes, mas não sentia nada além do desespero crescente. Olhou para seus irmãos, que estavam com as costas coladas um no outro. Era visível a tensão dos dois.
Os quatro conselheiros que ali estavam além de Hellas morreram mais ou menos como tinham visto seus imperadores morrerem: chocados, afrontados e indefesos. Hellas gritou. Tentou levantar voo, como se houvesse como escapar pelo teto abobadado de vidro, e nisso a espada do soldado acertou sua barriga em vez do coração. Os gritos do mago ficaram mais agudos, e ele agarrou a lâmina cravada em seu corpo; caiu olhando para o aço, sem conseguir acreditar, e quando o soldado puxou a espada, dedos voaram. Hellas ergueu as mãos mutiladas na frente do rosto — sangue, muito sangue jorrava dos cotos dos dedos —, e foi isso que viu, com horror abjeto e ainda aos berros, quando o soldado corrigiu a mira e acertou em cheio seu coração.
Ele parou de gritar.
— Duvido que ele tenha sequer tentado fazer alguma magia — observou Jael. — E toda aquela dor para pagar o dízimo... Que desperdício. Um lamentável desperdício de dor.
Então lançou um olhar penetrante para Akiva e apontou para ele. Akiva se preparou para se defender — ou tentar. Mal conseguia segurar a espada, e a fraqueza só aumentava com a sensação nauseante que o dominava de todos os lados. Mas os soldados entendiam bem os gestos do capitão; não atacaram.
— Agora, aqui sim temos um mago — disse Jael.
Akiva ainda estava de pé, embora achasse que não fosse aguentar por muito tempo. A sensação de ter tantos hamsás voltados para ele o levava de volta ao passado, ao cadafalso na ágora de Loramendi: lembrou-se de Madrigal, de como ela olhara para ele, do momento em que tinha colocado a cabeça na rocha, de como a cabeça dela caíra e quicara, e de como ele tinha gritado, sem poder fazer nada. Onde estivera aquele verdadeiro estado de sirithar então? Ele balançou a cabeça. Não era nenhum mago; um mago poderia tê-la salvado. Um mago poderia se salvar agora, e a seus irmãos, daqueles soldados com seus troféus nodosos e afiados, de sua força roubada.
Jael confundiu sua reação com modéstia.
— Ah, vamos lá — disse ele. — Você acha que eu não sei, mas está enganado. Ah, essa demonstração de encanto, as espadas invisíveis? Isso foi muito bom, mas os pássaros? Aquilo sim foi incrível.
Ele assobiou com um som úmido e balançou a cabeça: um elogio sincero.
Akiva tomou cuidado para não entregar nada. Jael podia suspeitar, mas não tinha como saber que os pássaros tinham sido obra sua.
— E tudo isso para salvar um quimera. Tenho que admitir que me confundiu. O Ruína das Feras salvando uma fera?
Jael olhava para ele, prolongando uma pausa. Akiva não gostou do olhar, nem da pausa. Seus encontros sempre pareceram jogos altamente arriscados: cortesia exagerada encobrindo uma desconfiança mútua e um ódio profundo. Daquela vez não havia mais por que manter a polidez, mas o capitão prosseguiu com a farsa, e havia um traço de alegria naquilo. Um sorriso brincava em seu rosto.
O que ele sabe?, perguntou-se Akiva, agora certo de que havia alguma coisa. Daria tudo naquele momento para colocar um fim à alegria de Jael.
— “Ela tem gosto de contos de fadas” — disse Jael. As palavras, familiares, fizeram Akiva sentir uma pontada de medo, mas ele não conseguia lembrar onde tinha ouvido aquilo. Não até Jael acrescentar, quase cantando: — Ela tem gosto de esperança. Ah, como será esse gosto? Pólen e estrelas, disse o Decaído. Ele falou tanto sobre isso, aquela coisa hedionda. Quase senti pena da garota por ter sentido o toque de uma língua como aquela.
Akiva ficou atordoado. Razgut. De algum jeito, Jael encontrara Razgut. O que a criatura lhe contara?
— Fico pensando se você chegou a encontrá-la — disse Jael.
— Não sei de quem você está falando — replicou Akiva.
Jael abriu um largo sorriso agora, sórdido, malicioso e excitado.
— Não? — indagou. — Fico feliz em saber disso, já que não havia nenhuma menção a qualquer garota em seu relatório. — Isso era verdade. Akiva não dissera nada sobre Karou, nem sobre o corcunda Izîl, que preferira se atirar de uma torre a contar o que sabia sobre Karou, nem sobre Razgut, que, na época, Akiva acreditava ter morrido junto com o corcunda. — Uma garota que trabalhava para Brimstone — continuou Jael. — Que foi criada por Brimstone. Uma história muito interessante. Mas bastante improvável. Que interesse Brimstone teria em uma garota humana? Aliás, que interesse você teria em uma garota humana? O de sempre?
Akiva não disse nada. Jael estava tão feliz; era óbvio que Razgut lhe contara tudo. A pergunta, então, era: o que Razgut sabia? Será que sabia onde Karou estava agora? Que tinha assumido o trabalho de Brimstone?
O que Jael queria?
E o capitão — não, Akiva lembrou a si mesmo, Jael era o imperador agora — falou, dando de ombros:
— É claro que o Decaído também disse que a garota tinha cabelo azul, o que me leva a questionar sua credibilidade, então pensei: como posso confiar em todas as outras coisas que ele me disse sobre o mundo humano? Todas as outras coisas fascinantes que você não mencionou em seu relatório? Tive que ser criativo. Por fim, acreditei que ele estava falando a verdade, por mais estranho que tudo aquilo parecesse. Mas o que não consigo entender é por que vocês três não falaram sobre os avanços deles. Seus dispositivos, sobrinho. Como deixaram de mencionar as incríveis e fantásticas armas que os humanos têm?
O mal-estar de Akiva se agravou, e não só por causa dos hamsás. Tudo começava a se encaixar agora. Razgut e as armas. Túnicas completamente brancas. Harpas. Esplendor. Para impressionar o inimigo, pensara ele ao ouvir os boatos, mas não fazia o menor sentido. Ninguém imaginaria que os Stelian se impressionariam com túnicas e harpas.
Já os humanos, por outro lado...
— Você não está preparando uma invasão aos Stelian — disse Akiva. — Vão invadir o mundo humano.
73
O GRITO
Thiago parecia não entender bem por que de repente não conseguia respirar, ou o que aquela fisgada que sentia na garganta tinha a ver com isso. Levou a mão à lâmina, arrancou-a e, quando seu sangue começou a jorrar mais rápido — caindo sobre Karou, todo sobre Karou —, olhou para a faca com... condescendência. Karou teve a impressão de que seu último pensamento foi: Esta faca é pequena demais para me matar.
Mas não era.
Seus olhos perderam o foco. O pescoço perdeu força. A cabeça tombou com violência no rosto dela; por um instante ele se debateu, depois sofreu um espasmo, e então parou. Era um peso morto. Estava morto. Thiago. Morto e pesado. O sangue continuava a escorrer. Karou estava presa embaixo do corpo dele, os joelhos ainda abertos, a calça jeans embolada na altura dos tornozelos, sua respiração arfante e em pânico ressoando tanto que talvez até as estrelas pudessem ouvir.
Ela o empurrou para o lado — parte do corpo dele, pelo menos — e arrastou-se de sob o Lobo, chutando-lhe as pernas para conseguir se libertar. Então se levantou, vacilante, e tentou erguer a calça. Caiu e se levantou de novo. Seus braços tremiam tanto que só depois de várias tentativas é que ela conseguiu finalmente vestir de novo a calça, mas depois teve dificuldade para fechar o botão. Não parava de tremer, mas não podia deixar de fechar a calça, era impensável, e foi isso o que provocou as lágrimas: a frustração por seus dedos serem incapazes de executar aquela simples ação, e ela tinha que conseguir, não podia simplesmente ficar daquele jeito. Estava aos soluços quando por fim encerrou aquele martírio.
E então olhou para Thiago.
Os olhos e a boca dele estavam abertos. As presas vermelhas, tingidas pelo sangue dela, e ela tingida de vermelho pelo sangue dele. A túnica dela, antes cinza, estava agora ensopada e negra sob a luz das estrelas, e o Lobo Branco, ele estava... despido, era obsceno, sua intenção exposta e tão morta quanto o restante dele.
Ela havia matado o Lobo Branco.
Ele tinha tentado...
Quem se importaria?
Ele era o Lobo Branco, herói das raças quimeras, arquiteto de vitórias impossíveis, a força de seu povo. Ela era a amante de anjo, a traidora. A vagabunda. Aqueles que ficariam ao seu lado já não estavam mais lá — tinham sido assassinados ali mesmo ou enviados para morrer. Ziri não voltaria. E Issa, o que tinham feito com ela?
Estou sozinha de novo?
Ela não poderia suportar ficar sozinha de novo.
Ainda não havia parado de tremer. Era convulsivo. Tinha dificuldade de respirar. Sentia-se zonza. Respire, disse a si mesma. Pense.
Mas os pensamentos não vinham, nem o ar.
Quais eram suas opções? Fugir ou ficar. Ir embora, deixá-los morrer — todos eles, todos os quimeras de Eretz, e deixar as almas enterradas como estavam —; ou ficar e... o quê? Ser forçada a ressuscitar Thiago?
Só de pensar nisso — sentir a alma dele, ver a vida retornar àqueles olhos pálidos, a força àquelas mãos ferozes — a fez cair de joelhos e vomitar. As duas opções eram intoleráveis. Ela não podia abandonar seu povo — Brimstone suportara aquele fardo por mil anos, para ela desistir em questão de meses? “Seu sonho é o meu sonho, e seu nome é verdadeiro. Você é toda a nossa esperança.”
Mas também não podia encarar o Lobo de novo, e, se continuasse na casbá, seria obrigada trazer Thiago de volta.
Ou seria morta.
Ah, meu Deus, meu Deus.
Vomitou outra vez. Ela se sacudia, espasmo após espamo, até ser apenas uma casca, tão dolorida por dentro quanto por fora — um receptáculo, ouviu a voz dele, todos nós somos apenas receptáculos, e vomitou de novo, dessa vez apenas bile. Sua garganta ardia. Quando finalmente deixou de ouvir o próprio engasgar rouco, notou um som. E estava próximo.
E eram asas.
Entrou em pânico.
Eles estavam voltando.
* * *
— Invadir o mundo humano? — Jael fez uma expressão ultrajada. — Mas que calúnia, sobrinho. Como pode chamar de invasão se somos bem-vindos?
— Bem-vindos?
— Sim. Razgut me garantiu que eles vão nos venerar como deuses. Que já nos veneram. Não é maravilhoso? Sempre quis ser um deus.
— Você não é nenhum deus — disse Akiva por entre os dentes trincados.
Ele pensou nas cidades humanas que tinha visto, imagens de terras em paz; como lhe pareceram diferentes daquilo a que estava acostumado quando chegou lá. Praga, com sua linda ponte, as pessoas se encontrando, passeando, trocando beijos no rosto. Marrakech, com sua praça agitada cheia de dançarinas e encantadores de serpentes, as fervilhantes vielas por onde ele tinha andado ao lado de Karou antes de... antes de partirem o osso da sorte. Depois disso, a frágil felicidade que ele conhecera tinha se tornado impossível de perdurar.
— Assim que olharem para o seu rosto vão chamá-lo de monstro.
Jael passou um dedo pela cicatriz.
— Por causa disto? — Ele deu de ombros, despreocupado. — É para isso que servem as máscaras. Acha mesmo que eles vão se importar se seu deus usar uma máscara? Vão me dar o que quero de bom grado. Não tenho dúvida.
E o que ele queria? Akiva não sabia muito a respeito das batalhas humanas, mas tinha alguma noção. Lembrava-se do estranho café de Praga aonde Karou o levara, decorado com máscaras de gás de uma guerra havia muito encerrada. Ele sabia que os humanos podiam envenenar o ar e fazer todas as criaturas morrerem sufocadas, que podiam encher uns aos outros de metal no segundo que levaria para um arqueiro puxar a corda do arco, e que Razgut não mentira para Jael. Os humanos veneravam mesmo os anjos. Não todos, mas muitos tinham sim essa devoção, o que podia ser tão letal quanto suas armas. Se juntassem as duas coisas — se levassem as duas coisas para Eretz —, a guerra dos últimos mil anos passaria a parecer uma briguinha de crianças.
— Você não sabe o que está fazendo — disse ele. — Será o fim de Eretz.
— O fim dos Stelian — corrigiu-o Jael. — Para o império, será um novo começo.
— Então isso tem a ver com os Stelian? Por quê? — Akiva não conseguia entender o que alimentava aquele ódio pelos Stelian. — Me mande até eles, como Joram queria. Serei seu enviado, seu espião. Levarei sua mensagem até eles, mas deixe as armas humanas no mundo deles.
Akiva detestava se humilhar daquele jeito para Jael, e recebeu apenas escárnio como resposta.
— Minha mensagem? Que mensagem eu poderia ter para aqueles selvagens de olhos de fogo? Estou indo aí matar vocês? Querido sobrinho, essa missão era idiotice, e Joram era o idiota. Você acreditou naquela história toda de servir como enviado? Eu só queria que ele o trouxesse até aqui. Por razões que acredito já ter deixado bem claras.
E, com um gesto, indicou a sala de banho manchada de sangue e cheia de corpos espalhados pelo chão.
Sim, as razões dele estavam bem claras, claras demais agora. Durante todo o tempo em que Akiva planejara livrar Eretz de Joram, Jael estava aguardando o momento certo de dar o bote. E não só aguardando. Orquestrando. Manobrando seu bode expiatório bastardo para que fizesse exatamente o que ele queria.
— E se eu não o tivesse matado? — perguntou Akiva, revoltado por não ter percebido em nenhum momento as cordas de marionete que o controlavam.
— Isso nunca foi um problema. — Akiva então entendeu que mesmo que não tivesse matado Joram, mesmo que, por acaso, tivesse ido até ali como um soldado leal para receber a gratidão do imperador e suas ordens, teria levado a culpa do mesmo jeito. — No momento em que você entrou por aquela porta, já era um assassino e traidor do reino. É claro que o fato de você realmente ser um traidor ajuda. É bom ter uma testemunha verdadeira. A criada deve sua vida a você. Hellas, infelizmente, lhe deve sua morte. Mas não se sinta mal. Ele era uma víbora.
Jael chamando alguém de víbora. Até ele próprio viu a hipocrisia disso, e deu uma gargalhada. Akiva achava que nunca tinha visto alguém se divertir tanto.
Hazael foi o primeiro a sucumbir ao mal-estar causado pelos olhos do demônio. Caiu de joelhos e vomitou no ladrilho coberto de sangue. Liraz se aproximou dele, prestes a fazer o mesmo.
— Você acha que não temos outros aliados? — disse Akiva. — Que ninguém mais vai se levantar contra você?
— Se você não conseguiu, sobrinho, quem conseguiria?
Era uma pergunta razoável. Devastadora. Estava tudo acabado, então? Ele tinha fracassado em tentar salvar seu mundo — e em sua promessa a Karou — de forma tão retumbante?
— Até lamento não poder tê-lo a meu serviço — disse Jael. — Um mago seria de grande valia, mas é que seria bem difícil confiar em você. Tenho a sensação de que você não gosta muito de mim...
Ele deu de ombros com pesar. E então seu olhar correu de Akiva para... Liraz.
Em meio à fraqueza e à náusea, Akiva sentiu uma explosão de fúria e pavor e impotência, mas havia também algo mais, algo pungente e radiante que ele esperava com todo o ardor que fosse o retorno do sirithar.
— Já você... — disse Jael a Liraz. — Tão linda. Parece que vou precisar de novas criadas para cuidar do meu banho quando eu me instalar aqui.
Ele olhou para uma das garotas mortas e abriu aquele seu sorriso chanfrado que repuxava e embranquecia a cicatriz, enrugando o que restava de seu nariz e sua boca.
Liraz deu uma gargalhada fria; Akiva sentiu a fraqueza de sua irmã naquela risada, seu esforço para se manter firme.
— Você não pode confiar nele, mas acha que pode confiar em mim?
— É claro que não. Mas nunca confiei nas mulheres. Uma lição que aprendi da maneira mais difícil.
Ele levou a mão à cicatriz, e, ao fazer isso, seus olhos correram brevemente para Akiva. Um olhar fugaz, mas foi o bastante.
Akiva descobriu quem cortara Jael.
Hazael, que estava de joelhos, se levantou. O movimento deve ter lhe exigido um esforço extraordinário, mas ainda assim ele conseguiu, de alguma forma, abrir seu sorriso indolente.
— Sabe, eu sempre quis ser um criado de banho. Você devia ficar comigo, isso sim. Sou mais legal que a minha irmã.
Jael devolveu o sorriso indolente.
— Você não faz o meu tipo.
— Pois você não faz o tipo de ninguém — retrucou Hazael. — Pensando bem, retiro o que eu disse. Minha espada disse que gostaria de conhecê-lo melhor.
— Infelizmente terei que lhe negar esse prazer. Já fui beijado por espadas antes, sabe.
— Reparei.
— Festival — disse Akiva abruptamente, e todos os olhares se voltaram para ele. Mas Akiva sustentou apenas o de Jael. — Foi minha mãe quem acertou você.
Ele não queria falar sobre sua mãe com Jael; não queria abrir a porta para as lembranças do tio — o que havia do outro lado só podia ser horrível —, mas precisava ganhar tempo. E... talvez o nome dela pudesse ser a chave para o sirithar. Não foi.
— Finalmente — disse Jael. — Sabe, acho que essa foi a melhor parte do dia... quando você achou que foi Joram quem a matou. Bem, foi como se tivesse matado mesmo. Afinal, ele a deu para mim.
Deu...? Akiva não conseguia nem pensar nisso.
— Não é possível que seja por causa dela que você odeia os Stelian. Uma única mulher?
— Ah, mas não uma mulher qualquer. Há mulheres em toda parte, mulheres bonitas em quase toda parte, mas Festival... ela era indomável como uma tempestade. E tempestades são perigosas. — Ele olhou para Liraz de novo. — Excitantes. Os caça-tempestades sabem bem disso. Não há nada no mundo como uma tempestade em fúria. — Fez um sinal para um dos soldados. — Leve-a.
Akiva se atirou na frente do soldado; sentia-se lento, moroso. Hazael também se adiantou. Liraz conseguiu brandir sua espada, mas o som da lâmina ao querenar sobre a do soldado do Domínio foi fraco, e a arma acabou escapando de sua mão, e caiu, com um som abafado, na pilha de corpos formada por Joram, Japheth, Namais e Misorias. Desarmada ou não, no entanto, ela não se amedrontou.
— Mate-me com meus irmãos, ou vai desejar ter feito isso — disparou ela.
— Agora me sinto insultado — disse Jael. — Você prefere morrer com eles a esfregar minhas costas?
— Mil vezes.
— Minha querida. — Ele levou a mão ao coração. — Será que não vê? Saber disso é o que torna tudo ainda mais delicioso.
Os soldados se aproximaram.
Quarenta homens do Domínio com as mãos dos espectros mortos erguidas em direção aos três, e Hazael ainda conseguiu matar um deles antes que sua própria morte chegasse.
Ele atingiu o rosto de um soldado. A lâmina se alojou no osso, e, quando o soldado caiu, o peso de seu corpo puxou Hazael para a frente, fazendo a espada que vinha em sua direção penetrar bem fundo sob o braço erguido, onde não havia nenhuma proteção de cota de malha, placa de metal ou mesmo couro. A lâmina atravessou seu corpo e saiu do outro lado, entre as asas. Ele vacilou, olhou para Akiva, depois para baixo, para a espada. Largou a arma, desistindo de tentar tirá-la do crânio em que estava presa, e, assim como Hellas, tentou levar as mãos à lâmina que o trespassava. Mas suas mãos não lhe obedeciam. Ele bateu no punho; então se curvou, e Akiva viu isso tudo através da claridade refulgente pela qual ansiara tão desesperadamente.
Sirithar; tarde demais. Como uma ave carniceira, chegando só depois da morte.
Hazael caiu. Liraz se atirou de joelhos para ampará-lo.
Foi através de uma luz intensa que Akiva viu o grito se formar na boca da irmã. Ouviu e viu o gemido demoníaco que ela emitiu. Era som e forma, o pesar era luz, tudo era luz, e tudo era pesar, e Liraz tentava segurar a cabeça de Hazael enquanto os olhos dele se vidraram, mas dois soldados do Domínio a agarraram e a arrastaram dali, e a cabeça de Hazael tombou. Akiva soube que o irmão estava morto mesmo antes de ver sua cabeça atingir o ladrilho. A vibração que sentiu no crânio foi como milhares de asas se agitando nos céus das Terras Distantes.
Mas não havia pássaros dessa vez. Ou, se havia, tinham sido trazidos pelo próprio céu, o próprio céu, que, naquele momento... se moveu. Lá fora, sobre a cidade e o mar, como se um punho gigante o pegasse com violência e o puxasse, o céu se moveu. Deslizou. Recolheu-se, contraindo-se e dragando tudo para seu centro: a Torre da Conquista. O céu era um novelo contínuo, fazendo sentir a perturbação por todo o globo de Eretz.
Fogueiras muito distantes no continente meridional se inflamaram com as repentinas correntes de vento. Nos afiados palácios de gelo empertigados nos topos das montanhas das Terras Distantes, caça-tempestades se agitaram e levantaram suas grandes cabeças. Do outro lado das montanhas, Sveva, Sarazal e os Caprina emergiram da longa travessia pelos túneis e estranharam quando viram um céu noturno que parecia se mover. E, do outro lado do mundo — de dia, pois era noite no império —, uma mulher de pé junto à balaustrada de uma sacada, olhando para um mar de águas verde-claras, sentiu o vento no cabelo e olhou para cima.
Ela era jovem e forte. Usava um diadema no cabelo preto, com um escaravelho de pedra em ouro polido; suas asas eram de fogo, assim como seus olhos, que se estreitaram quando, no alto, as nuvens viraram um borrão, de súbito levadas para longe. E o fenômeno prosseguia: as nuvens pareciam riscos no céus, pássaros e sombras rodopiando, levados por um vento inexorável. Os olhos dela faiscaram quando, por toda a sua cidade, sua ilha — suas ilhas —, seu povo parou o que fazia para observar o céu.
E quando tudo acabou, dando lugar a uma profunda quietude, ela soube o que iria acontecer. Segurou a balaustrada.
O repuxar dos céus fora como a inspiração que precede o grito, e então ele veio...
O grito.
Silencioso, expulsivo. As nuvens voltaram na mesma velocidade, correndo por sobre o mar de águas verde-claras.
E, do outro lado do mundo, de volta à fonte daquele grito violento e não natural, o inquebrável vidro da Torre da Conquista... se estilhaçou. A Espada, símbolo do Império dos Serafins, explodiu com uma força avassaladora.
As luas estavam vendo. Seu brilho foi refletido pelo ar em um milhão de cacos; poderia-se dizer, então, que os estilhaços — e, portanto, também Nitid e Ellai — se cravaram por toda parte. Quando o sol nasceu, havia fragmentos pontiagudos de vidro incrustados em árvores a muitos quilômetros de distância, assim como em corpos — estes, no entanto, em menor quantidade do que se aquilo tudo tivesse acontecido durante o dia. Havia anjos e pássaros caídos nos telhados, e um Espada de Prata destruíra a cúpula do harém, abrindo um buraco pelo qual dezenas de concubinas escaparam em meio à confusão, muitas carregando bebês de Joram na barriga ou aninhados nos braços.
A Espada era um esqueleto de aço quando viu surgir a aurora: todas as camadas de vidro destruídas, todos os labirínticos corredores arruinados. As gaiolas de pássaros, os biombos pintados e a cama elevada desapareceram como se nunca tivessem existido.
O dia — ofuscante e sem nuvens — se transformou, aos poucos, em uma colcha de retalhos de silêncio e horror, de correria e rumores e corpos indo dar em praias distantes como Thisalene.
O que havia acontecido?
Dizia-se que o imperador tinha morrido pelas mãos do Ruína das Feras, assim como o príncipe herdeiro. Não foi surpresa nenhuma quando se soube que o Ruína das Feras e seus cúmplices bastardos tinham desaparecido, e que os esfarrapados Espadas de Prata que sobreviveram àquela noite tinham encontrado, ao irromperem pelo acampamento dos Ilegítimos, o lugar vazio: nem um só fio de cabelo de um soldado bastardo restava em parte alguma de Astrae.
Por todo o império isso se provaria verdade. Os Ilegítimos tinham sumido junto com as nuvens, dizia-se.
Mas não. As nuvens haviam corrido para o outro lado do mundo, onde a jovem rainha dos Stelian tinha tirado seu diadema de escaravelho, prendido o cabelo escuro e agora, junto com seus magos, tentava localizar a fonte daquela extraordinária perturbação.
Quanto aos Ilegítimos, tinham ido se reunir nas cavernas dos Kirin, onde esperariam por seu irmão Akiva, sétimo do seu nome, para entregarem suas vidas e espadas à causa.
74
CURA PARA O TÉDIO
— Eu me sinto que nem uma mosca prestes a morrer tentando sair pela janela — disse Zuzana, sua voz soando tão sem vida quanto seu cabelo.
— Exatamente — concordou Mik. — Abane mais rápido.
Era a vez de Zuzana abanar o leque, feito a partir de frágeis folhas de palmeira que haviam encontrado no telhado do hotel. Mik, só de bermuda, estava reclinado na cadeira com os pés apoiados na cama e a cabeça para trás, deixando o pescoço exposto à brisa.
— Você é uma deusa da circulação de ar — disse ele.
— E você é um espécime de brilhante virilidade.
A risada de Mik saiu enfraquecida pelo calor excessivo.
— Passei uma semana cercado por soldados de torsos monstruosos. Estou mais para um espécime de brilhante magricelice.
— Você não é magricela.
O leque subia e descia enquanto Zuzana formulava um elogio. Era verdade que ficar cercada por peitorais duros como bronze e bíceps maiores que sua cabeça tinha lançado uma nova luz sobre o físico de Mik, mas, na verdade, quem precisava de bíceps maiores que a sua cabeça? Quer dizer, a não ser que o trabalho dos donos dos bíceps fosse matar anjos: nesse caso, seriam bem úteis.
— Você tem músculos perfeitos de violinista.
— E você, braços poderosos de titereira. Nós dois colocamos os quimeras no chinelo.
Ela parou de abanar e caiu para trás na cama. Era uma cama ruim, de um hotel barato, que fez seu corpo doer com o impacto.
— Ai — disse, sem muita convicção.
— Ei, o seu tempo de abanar não chegou nem na metade ainda.
— Eu sei. Mas o tédio me venceu.
— Bem agora?
— Neste segundo. Você viu o momento exato.
Mik deixou a cadeira cair para a frente e usou o impulso para se lançar na cama ao lado dela.
— Ai — repetiu Zuzana.
— Eu conheço uma boa cura para o tédio — disse ele, e chegou a começar a girar o corpo para ela, mas desistiu e se deixou cair de costas. — Mas está tão quente...
— Quente demais — concordou Zuzana, que não tinha dúvidas quanto ao tipo de cura a que ele se referia. — Como é que existem pessoas neste país? Quem consegue fazer bebês com um calor como esse?
— Então vamos embora — disse ele. — Para a costa. Para casa. A Austrália. Sei lá. Por que ainda estamos aqui, Zuze?
“Aqui” era Ouarzazate, a maior cidade do sul do Marrocos. Parecia o set do filme A múmia ou alguma coisa assim, e talvez até fosse mesmo, sendo uma cidade à beira do deserto do Saara que contava com um importante estúdio de cinema. Era um lugar muito quente, mas um tanto insosso, e embora o hotel tivesse ar-condicionado, o aparelho deixara de funcionar em algum momento da noite, o que eles não notaram porque as noites até que eram razoavelmente frescas — o bastante para curar o tédio e permitir que o país fosse povoado.
Por que eles ainda estavam ali um dia inteiro após escaparem invisíveis do castelo de monstros, os pés cheios de bolhas por causa da longa caminhada e o corpo cheio de hematomas do dízimo no auge de sua roxidão?
— Eu não quero ir embora — admitiu Zuzana, baixinho. — Voltar para os turistas e os cultos de anjos e as marionetes e a vida real? — Ela estava choramingando, e sabia disso. — Quero fazer monstros e magia e ajudar Karou.
— Isso também é a vida real. Mais precisamente, a morte real. É perigoso demais.
— Eu sei. — E sabia mesmo, mas parecia muito errado deixar Karou lá. Se Thiago a matara uma vez, por que não mataria de novo? — Que saco, por que ela não tem um maldito telefone? — resmungou.
Karou era rica, será que não podia esbanjar um pouco em um telefone via satélite ou algo do tipo? Enfim. Se ao menos Zuzana soubesse que sua amiga estava bem, ela também ficaria bem.
O que não significava que pararia de choramingar.
Ela havia concordado em sair da casbá, e ali estava. Bem, não dissera nada a respeito de sair do país. Tinha a inevitável sensação de que, se eles se afastassem ainda mais, todo o encanto da última semana evaporaria e a deixaria sem nada além de uma história maluca para contar aos netos sobre como, por uma semana, em um gigantesco castelo de areia às margens do Saara, tinha sido a aprendiz de uma ressurreicionista e feito enormes soldados alados para uma guerra de outro mundo.
E eles a chamariam de caduca pelas costas porque, convenhamos, parecia mesmo a maior maluquice.
E então o que ela faria? Não teria escolha a não ser ficar invisível — porque ah, meu Deus, agora ela sabia fazer isso —, dar tapas nos traseiros dos pestinhas e vê-los sair correndo aos berros de sua cozinha de velhinha viciada em sopa de repolho.
— Vou ser a avó mais assustadora do mundo — resmungou ela, aborrecida e meio que feliz com a ideia.
— Hein?
— Nada.
Ela se virou de bruços, enterrou o rosto no travesseiro e deu um grito. Sentindo na boca o gosto de travesseiro mofado de hotel, quis na mesma hora lavar a língua com bastante água. É claro que a fronha foi lavada depois do último hóspede, disse a si mesma. Claro. Era por isso que fedia a cabeça de estranho.
Mik estava com a mão em suas costas, traçando círculos lentos. Ela virou o rosto para ele.
— Estou desenhando no seu suor — explicou ele. — Fiz um coração.
— Um coração em suor. Que romântico.
— Ah, você quer romance? Está bem. Veja se descobre o que estou escrevendo nas suas costas.
Ela sentiu o dedo deslizando em sua pele, e falava cada letra que ele formava.
— Z-U-Z-A-N-A. Zuzana. V-O-C-E. Você. Q-U-E-R. — Fez uma pausa. — Quer. — Ficou imóvel, esperando a letra seguinte. — C. — Sua voz sumiu.
Olhou para o rosto de Mik. Ele sorria, travesso, os olhos concentrados no que estava fazendo. Uma barba rala cobria seu queixo. Um raio de sol entrou por uma ripa quebrada da veneziana e cintilou nos cílios dele, que pareciam cobertos de luz.
— A — continuou Zuzana. Ah, meu Deus. Zuzana, você quer C-A...
O coração dela disparou. Será que Mik conseguia sentir seu coração pelas costas? Quando eles tinham conversado sobre casamento em Praga, ela havia procurado não dar muita importância ao assunto. Bem, na verdade tinha ficado sem graça por ter sido pega pensando nisso. Ela não era assim, não era nenhuma garota boba que sonhava com vestidos de noiva. Além disso, era nova demais.
S, sentiu ela.
— S — sussurrou ela.
A mão dele parou de repente.
— Opa — disse Mik. — Era um F.
— F? Não é assim que se escreve... — Ela se interrompeu.
— Que se escreve o quê? — perguntou Mik, provocando. — Eu estava escrevendo: Zuzana, você quer cafungar o meu pescoço? Achou que fosse o quê?
Ela puxou a blusa para baixo, cobrindo as costas.
— Nada — disse ela, rolando para fora da cama.
Mik a segurou pela cintura, puxando-a de volta.
— Você não achou que...? Ah. Que vergonha, menina.
Zuzana ficou vermelha. Ele tinha feito aquilo de novo. Céus. Pelo visto ela era mesmo uma garota boba que sonhava com vestidos de noiva.
— Ah, me solte — disse Zuzana.
Mas ele não soltou. Em vez disso, segurou-a firme.
— Não posso lhe pedir isso agora — sussurrou no ouvido dela. — Ainda tenho dois desafios a cumprir.
— Muito engraçado.
— Não estou brincando. — Sua voz soava séria, e, quando ela olhou para ele, para seu rosto doce e sincero, ele parecia sério. — Você estava?
Bem, sim, ela estava brincando quando falara sobre os três desafios. Claro que Zuzana não era nenhuma princesa de contos de fadas. Por outro lado, ela meio que estava se sentindo como uma, e não era a pior coisa do mundo.
— Não — respondeu ela, e parou de tentar escapar. — Eu não estava brincando, e eis o seu segundo desafio: faça o ar-condicionado voltar a funcionar e venha curar o meu tédio.
75
ESTAVA PRÓXIMO, E ERAM ASAS
Karou estava em seu quarto. Era noite. De novo. Um dia se passara desde o que acontecera no fosso. Sabe-se lá como.
A porta estava fechada, mas as tábuas de Mik haviam sumido. Tinham-nas levado embora, assim como os trincos da veneziana, ou seja, sua segurança — que, estava claro agora, nunca passara de uma ilusão.
Ela pensou no movimento rápido da Lua em volta da Terra, e no curso apressado da Terra em volta do Sol, e no brilho das estrelas em seus arcos — mas... não. Também aquilo era uma ilusão, assim como o nascer e o pôr do sol eram um truque. Era o mundo que se movia, não as estrelas, não o Sol. O céu se movia, deslizando por aquela vastidão enquanto rolava pelo espaço, girando e girando, e aquela corrida era o que a mantinha ali. Uma em bilhões.
Não importa o que aconteça comigo, disse a si mesma. Sou uma em bilhões. Sou poeira estelar reunida transitoriamente em uma forma. Serei dispersa. A poeira estelar vai se transformar em outras coisas algum dia, e eu estarei livre. Como Brimstone está.
Poeira estelar. Isso era ciência, ela lera e ouvira falar a respeito — toda matéria vem de explosões das estrelas —, mas soava como a versão humana para os mitos de Eretz. Um pouco menos emocionante, talvez: nenhum sol estuprador, nenhuma lua tristonha. Nenhuma lua que apunhalava. Essa era a história dos Kirin: o sol tinha tentado possuir Ellai à força, e ela o esfaqueara, como Karou fizera com Thiago. Nitid chorara, e suas lágrimas se transformaram nos quimeras. Filhos do pesar.
Será que Ellai chorou?, perguntou-se Karou. Será que se banhou no mar, tentando voltar a se sentir limpa? Isso podia fazer parte da história: suas lágrimas deram aos mares o sal, e tudo no mundo nasceu de violência, traição e tristeza.
Karou se banhara no rio. Suas lágrimas não chegariam ao mar: regariam tamareiras em algum oásis, onde se tornariam frutos e seriam comidas, e talvez fossem choradas de novo através de outros olhos.
Não é assim que funciona.
Sim, é sim. Nada nunca se perde. Nem mesmo lágrimas.
E quanto à esperança?
Tinha se limpado o máximo que conseguira sem água quente e sabão. Submergira na água corrente até seus braços e pernas ficarem dormentes, até livrar sua pele arranhada e machucada de todo o sangue — o seu e... o que não era seu. A maior parte nem era seu.
Também não era só de Thiago.
Ela ouviu um som. Estava próximo, e eram asas.
Tentou afastar da mente aquela lembrança como se fosse um rosto em que pudesse bater.
Pense em outra coisa.
A dor que sentia. Isso serviria. Mas que dor? Eram tantas. Sem contar que, especialista em dores que se tornara, não conseguia mais deixar que se fundissem em uma coisa só. Cada arranhão, cada contusão tinha sua própria existência, como estrelas em uma constelação. Uma constelação chamada... A Vítima?
Que parecia uma vítima, parecia. Ferida. Torturada. O lado direito de seu rosto tinha sido arrastado nas pedras. Seu lábio estava cortado; sua bochecha, roxa, arranhada e cicatrizando. Bolhas abertas em sua mão exsudavam por causa da pá. A pá. Não pense. O lóbulo de sua orelha. Essa era a dor em que decidira se focar; isso ela podia enfrentar. Estava rasgada e inchada, pois o Lobo a mordera; pensou em remendá-la como fizera com as mãos e o sorriso cortado de Ziri, mas dificilmente conseguiria manter o foco necessário; além do mais, não podia nem pensar em usar os tornos. Seu corpo todo era dor e pontadas e gritos.
“Você deixa lindas marcas”, dissera-lhe Thiago uma vez.
Você não, pensou ela, olhando para os feios hematomas e arranhões que cobriam seus braços, os dedos abertos que mostravam o que ele lhe fizera.
Tentara fazer, lembrou a si mesma.
Será que Ellai esfaqueara o sol a tempo, perguntou-se ela, ou o sol tinha conseguido o que queria? A história não era clara quanto a isso. Decidiu acreditar que Ellai tinha evitado o pior, assim como ela. Karou segurava uma agulha curva na chama de uma vela para esterelizá-la. Um espelho de mão estava apoiado na mesa à sua frente; apontou-o na direção da orelha, evitando que refletisse seu rosto. Não queria ver o próprio rosto.
Tantos anos treinando artes marciais, pensou enquanto a agulha começava a brilhar. Era de se imaginar que a luta seria como as dos filmes: com espaço para uma coreografia elegante, chutes bem desenhados no ar e intensos olhares de fúria. Rá. Não houvera nenhum espaço, apenas aperto e pânico, e a força de Thiago tinha pesado muito mais do que o repertório de chutes estilosos dela.
É claro, ela o matara. Podia parecer a vítima, mas não era. Ela o detivera.
Se ao menos tivesse terminado ali.
Um som. Estava próximo, e eram asas.
Aquilo tudo ecoava em sua cabeça: as batidas das asas, o baque, o som surdo que a terra fazia ao ser lançada com a pá. E as moscas. Como as moscas achavam os cadáveres tão rápido?
Parecia que ainda estava lá, na beira do fosso, aquela escuridão fétida ameaçando arrastá-la para baixo. Ela enfiou a agulha no lóbulo da orelha, com força. Isso serviu para afastar a lembrança de novo, mas ela sabia que a lembrança era como as moscas — podia espantá-la, mas nada a impediria de voltar —, e aquilo doeu. O gemido de dor que deixou escapar, mesmo baixo, foi o suficiente para acordar Issa.
Issa. A única bênção da noite. Ela ainda tinha Issa.
— Docinho, o que está fazendo? — A mulher-serpente se desenrolou de seu lugar perto da porta e sibilou, irritada, quando viu a agulha enfiada na orelha de Karou como um anzol. — Eu faço isso.
Karou a deixou pegar a agulha. E se ela não tivesse mais Issa? Se, além de tudo, também a tivessem tirado dela?
— Eu não estava conseguindo dormir — sussurrou.
— Não? — A voz de Issa era suave, assim como suas mãos. Ela passou a agulha pela pele de Karou e puxou firme o primeiro ponto. — Ah, pobrezinha, não é para menos. Queria ter um pouco de chá dos sonhos para lhe dar.
— Ou chá de réquiem.
Então a voz de Issa não soou nada suave:
— Não diga uma coisa dessas! Você está viva. Desde que você esteja viva e ele... — Mas parou aí. Ele quem? O que quer que fosse dizer, ela mudou de ideia. — Desde você esteja viva, ainda há esperança. — Ela respirou fundo, firmou a mão e perguntou: — Pronta?
Só então enfiou a agulha de novo.
Karou se encolheu de dor. Esperou até a agulha atravessar a orelha.
— Sinto muito. Foi assim...? Foi assim que você e Yasri...?
— Foi — disse Issa. — Foi tranquilo, criança, não fique triste. — Issa suspirou. — Mas eu queria que ela estivesse aqui. Ela saberia o que lhe dar. Tinha vários truques para fazer Brimstone dormir.
— Nós vamos buscá-la — disse Karou, perguntando-se quando e como, e imaginando como estaria o lugar atualmente.
Thiago incendiara o templo e o bosque de réquiem. Isso tinha acontecido dezoito anos antes; será que as árvores tinham crescido de novo? O bosque era antigo. Ela se lembrava de chegar sob o luar e ver as copas das árvores e o telhado do templo brilhando através das folhas, de como seu coração disparava sabendo que Akiva a esperava lá embaixo. Akiva, esperando para buscá-la no ar. Akiva, deitando-se ao seu lado, passando os dedos por suas pálpebras, o toque dele tão suave quanto as mariposas-beija-flor, tão suave quanto as flores de réquiem caindo na escuridão.
Fechou os olhos e passou as mãos nos braços. Como estavam sensíveis seus hematomas. Thiago, seu aliado; Akiva, seu inimigo. Tudo tão distorcido. O que faz de alguém um inimigo?
Não. Ela não podia esquecer. Apertou os machucados para espantar as lembranças. Linhas de tinta tatuadas em mãos assassinas: era isso o que fazia de alguém um inimigo. Paliçadas queimadas onde antes havia cidades: isso fazia de alguém um inimigo.
Issa amarrou mais um ponto e cortou a linha. Karou lhe agradeceu e se perguntou: E agora?
O sol nasceria; ela não podia ficar ali em seu quarto para sempre. Teria que encarar os quimeras. Não podia esperar os hematomas sumirem. Será que eles sequer notariam? Estavam tão acostumados a vê-la com hematomas... Até que ponto sabiam sobre o que havia acontecido no fosso?
Não tudo, isso era certo, e — queridos deuses e poeira estelar — era melhor que nunca descobrissem.
Um som. Estava próximo, e eram...
— Karou.
Um sussurro abafado. Karou piscou, confusa.
— Quem está aí? — perguntou Issa, atenta, e Karou soube que não tinha imaginado coisas. A voz vinha da janela, e daquela vez não era Bast.
— Por favor.
A voz parecia desligada do corpo, as palavras se arrastavam, e era um sussurro muito baixo que não lembrava a força de sua voz, mas Karou sabia quem era. Seu corpo ficou quente e logo em seguida gelou. Por quê? Por que ele voltaria ali? Ela se levantou tão rápido que a cadeira bateu na parede.
Issa olhou para ela.
— Quem é, criança?
Mas Karou não teve tempo de responder. Já não havia mais trincos na veneziana. A janela se abriu. Issa se assustou, os fortes músculos de seu anel de serpente ondulando à luz das velas. A invasão — e o calor — fez Karou se encolher quando Akiva apareceu em meio ao brilho fraco do encanto que se desfazia e no mesmo instante aterrissou com força no chão.
76
PESOS MORTOS
Ele não estava sozinho. Karou sentiu outras presenças mesmo antes de os encantos se desfazerem. Os dois que encontrara na ponte Carlos. Reconheceu-os imediatamente, por mais diferentes que estivessem agora. O belo rosto da irmã dele — Liraz —, antes tão sério e ameaçador, estava transfigurado pelo sofrimento. Ela arfava, e seus olhos eram poços vermelhos de tristeza — embora nem de longe tão vermelhos quanto os de Akiva, que estavam como naquele dia tantos anos antes, o dia em que Madrigal tomara o corpo de outra pessoa para libertá-lo da prisão em Loramendi. A parte branca estava vermelha com o sangue dos vasos rompidos. O que o deixara assim? Ele estava lívido e tomado pela exaustão.
Mas nenhum dos dois estava tão desfigurado quanto o irmão. Que estava... morto.
Akiva e a irmã carregavam o corpo juntos, mesmo não parecendo aptos a fazer isso. Abaixaram o anjo até o chão, mas ele escorregou de suas mãos e caiu pesadamente. Liraz deixou escapar um gemido, caiu de joelhos e ergueu a cabeça dele com todo o carinho.
Hazael, lembrou-se Karou. O nome dele era Hazael. Seus olhos estavam abertos, fixos; a pele, muito pálida; o pescoço e os membros, já rígidos. Com o fogo extinto, suas asas tinham se apagado; as penas ardentes tinham sido reduzidas às raques, as barbas tendo virado cinzas e caído. Já estava morto fazia algum tempo.
O corpo de Karou continuava alternando rapidamente entre o calor e o frio. Paralisada no lugar, ela tentava entender a cena. Foi Issa quem avançou, lentamente, e se curvou sobre Hazael para tocar seu rosto. Karou só olhava, um estranho distanciamento se apoderando dela — aquela antiga irrealidade de volta, como se sua vida fosse um teatro de sombras projetado em uma parede. Achou que a impetuosa irmã de Akiva fosse ranger os dentes e empurrar Issa para longe, mas não: Liraz pegou a mão da Naja. As serpentes no cabelo de Issa e em volta de seu pescoço ficaram imóveis e retesadas, prontas para atacar se fosse preciso.
— Por favor. — A voz de Liraz saiu sufocada. Seus olhos correram de Issa para Karou, desesperados. — Salvem meu irmão.
Karou ouviu o que ela disse, mas, no estado de torpor em que se encontrava, teve a impressão de que as palavras pairavam no ar. Olhou para Akiva. A maneira como ele olhava para ela... era como se a estivesse tocando. Ela recuou um passo, involuntariamente. O rosto dele era uma súplica silenciosa; Akiva estava quase tão pálido quanto o irmão morto, que eles haviam deitado no espaço em que Karou conjurava os corpos. O piso da ressurreição. Todos olhavam para ela. Até mesmo Issa.
Salvá-lo?
Eles estavam lhe pedindo ajuda? Depois de queimarem os portais de Brimstone — e o próprio Brimstone —, depois de aniquilarem seu povo, tinham trazido seu irmão morto para que ela o ressuscitasse?
De que distância o traziam? Os dois tremiam, tamanho o esforço que haviam feito. Akiva desabou contra a parede, os braços soltos ao longo do corpo. Parecia mais morto do que vivo, mais morto até do que da primeira vez que o vira, sangrando no campo de batalha de Bullfinch.
— O que aconteceu com você?
Poderia ter sido ela lhe fazendo essa pergunta, mas não. Era Akiva, que olhava para seu rosto, seus lábios, sua orelha recém-costurada. Constrangida, ela tirou o cabelo de trás da orelha.
— Quem fez isso com você? — continuou ele. Por mais fraca que soasse, ainda assim sua voz fervia de raiva. — Foi ele, não foi? O Lobo?
Ele acertara em cheio. Karou só conseguiu pensar, ao ver a fúria em seu rosto, no xale vivo que ele lhe fizera uma vez, as asas macias das mariposas-beija-flor nos seus ombros; uma vez, eras antes, quando Thiago rasgara seu vestido e, sob as falsas estrelas das lanternas do festival, Akiva evocara um xale vivo para cobri-la.
Ela fizera uma escolha naquela noite, e não tinha sido a escolha errada.
Mas isso na época. Muitas coisas tinham acontecido desde então.
Coisas demais.
Ela ignorou a pergunta, odiando a evidência física da própria vulnerabilidade, desejando que seus braços estivessem cobertos e que tivesse reparado a pele. O que seria um pouco mais de dor, afinal de contas? Ela não podia demonstrar fraqueza, não agora. Deu um passo à frente, voltando sua atenção para Hazael. Akiva lhe trouxera seu irmão morto? Bem, ele também lhe trouxera Issa. E lhe devolvera Ziri, ela não podia se esquecer disso, não importava o que tivesse acontecido depois. Ajoelhou-se ao lado do corpo — lentamente; tudo doía — e se perguntou por que tinham trazido o corpo de tão longe.
Corpos são só pesos mortos — todos nós somos apenas receptáculos —, mas saber isso era uma coisa; deixar um corpo para trás era outra. Karou entendia isso muito bem. São os corpos que nos tornam reais. O que é uma alma sem olhos para se olhar, ou sem mãos para segurar? Ela fechou os punhos para fazê-los parar de tremer.
Encontrou o ferimento embaixo do braço esquerdo de Hazael. No coração. Devia ter sido uma morte rápida.
— Por favor — repetiu Liraz. — Salve meu irmão. Eu lhe dou qualquer coisa. Diga seu preço.
Preço? Karou lançou-lhe um olhar hostil, mas não viu nela nenhum sinal da crueldade ou severidade de que se lembrava, só angústia.
— Não tem preço nenhum — disse Karou, e olhou de relance para Akiva. Se houvesse, poderia ter acrescentado, o preço já foi pago.
— Você vai trazê-lo de volta, então? — As palavras de Liraz saíram trêmulas de esperança.
Ela ia? Karou sabia que era a única esperança deles — justo ela, a quem aqueles dois teriam matado em Praga só pelos hamsás em suas mãos. Havia uma ironia em tudo aquilo, mas que não lhe deu nenhum prazer. Ela não conseguia olhar para as mãos de Liraz — eram tão negras —, mas via que elas seguravam com ternura o pescoço do irmão morto, os dedos tocando suavemente o rosto dele. Karou sabia que não devia sentir pena daquela garota que ajudara a assassinar seu povo, mas sentia. Quem entre eles, afinal, tinha as mãos limpas? Não ela. Ah, Ellai, minhas mãos nunca mais ficarão limpas. Karou cerrou os punhos de repente, sentiu arderem as bolhas abertas pelo uso da pá. Sentia que fazer aquilo, salvar aquela vida... poderia ser um bálsamo. Não só para aqueles serafins, mas também para si mesma, depois daquele horror do fosso, da pá, do que tivera que fazer e... e da mentira que agora era obrigada a viver. Ela queria salvar o serafim. Uma marca no nó de seu dedo por uma vida salva em vez de assassinada.
— Não posso preservar este corpo — disse ela. — É tarde demais. E também não posso fazer outro corpo igual a este. — Talvez Brimstone soubesse como conjurar as asas de fogo, mas aquilo estava muito além da capacidade dela. — Ele vai deixar de ser um serafim.
— Não tem problema — disse Akiva. Ela olhou em seus olhos, seus olhos tão, tão vermelhos, e quis fazer aquilo por ele. — Desde que continue a ser ele. É só o que importa.
Sim, disse Karou a si mesma, e queria acreditar nisso com tanta firmeza quanto ele. A alma é o que importa. A carne é um receptáculo.
— Está bem. — Ela respirou fundo e olhou para Hazael. — Podem me dar o turíbulo.
Suas palavras foram recebidas com um silêncio que era como o de um abismo.
Um abismo.
Ah, não. Karou olhou para o rosto morto de Hazael, os olhos azuis abertos, as linhas de sorriso, e a dor que sentiu aflorar em seu peito a tomou por completo. Não. Ela mordeu o lábio, tentando impedir a boca de tremer. Estava controlada. Tinha que estar. Sua tristeza... se a deixasse sair, seria como o lenço de um mágico, uma tristeza amarrada a outra e outra e mais outra, sem nunca acabar. Ela não queria levantar o rosto e ver a devastação no rosto de Akiva e Liraz, seus semblantes congelados naquele terrível silêncio.
— Não tínhamos... Não tínhamos um — sussurrou Liraz. — Nós o trouxemos para cá. Para você.
Akiva, rouco, insistiu:
— Faz só um dia. Karou, por favor.
Como se fosse uma questão de persuadi-la.
Eles não entendiam. Como poderiam? Ela nunca contara a Akiva como funcionava, como a conexão com a alma ficava cada vez mais tênue após a morte, ou quão facilmente a alma poderia ficar à deriva se não fosse recolhida. Nunca lhe contara, e agora não havia nada no ar ou na aura daquele anjo morto — soldado, assassino, irmão amado —, nenhuma impressão de luz ou risada para acompanhar aqueles olhos azuis e aquelas rugas sorridentes, nenhuma vibração de nenhum tipo para tocar seus sentidos e lhe dizer quem ele era... porque ele já não era mais.
Ela levantou a cabeça. Então se forçou a olhar nos olhos de Akiva e de Liraz, para que vissem e entendessem sua tristeza.
E soubessem que a alma de Hazael estava perdida.
77
NÃO PODE MORRER
Foi sua tristeza que fez Akiva desabar. Bastou um olhar e ele entendeu. Hazael se fora.
— Não! — O grito de Liraz saiu sufocado, quase sem som, e ela avançou.
Akiva não teve forças para detê-la. Ela também não devia ter muito mais força. Mesmo depois de suportar o mal-estar causado pelos hamsás, ela carregara quase todo o peso de Hazael na longa jornada até ali — para quê?, tudo por nada —, e às vezes o peso dele também, puxando seu braço e gritando-lhe para que acordasse quando estava para se deixar levar pela escuridão. A escuridão, a escuridão. Mesmo naquele instante, ainda o envolvia.
O que ele fizera em Astrae?
Ele não sabia. Só se lembrava da vibração que sentira no crânio e da concentração, da pressão, da pressão, de pegar Liraz e abraçá-la, de cair sobre Hazael e abraçá-lo também, e de a explosão, quando veio — de onde? —, os levar embora em segurança. Para longe, muito longe, e nenhum pedaço de todo aquele vidro estilhaçado da Espada — nem um único caco — os alcançara.
Haviam levado Hazael para um campo, onde viram que ele já estava morto. Mas o que é a morte? Akiva então se lembrara de Karou. Claro. Esperança, dissera a si mesmo, de joelhos na grama, sentindo-se fraco, zonzo e entorpecido. “Karou” significa esperança.
Mas não na língua deles, não para eles.
Liraz avançou na direção de Karou. Akiva tentou alcançar a irmã, mas não foi rápido o suficiente. Ela empurrou Karou para trás. Havia uma cadeira virada no caminho. As duas caíram. Karou gritou de dor.
Liraz reencontrou o ar.
— Mentirosa! — gritou.
Gritou.
Akiva tentou chegar até elas, mas era como se ele se arrastasse com dificuldade pela escuridão. A mulher-serpente foi mais rápida — a mulher-serpente era Issa, ele a conhecia dos desenhos de Karou. Devia ser ela naquele turíbulo. Turíbulo, turíbulo, turíbulo. Por que ele não tinha um turíbulo à mão quando o irmão morrera? Mas talvez a explosão tivesse desligado a alma do corpo de Hazael; talvez sua alma já não estivesse mais ali quando eles o deitaram no campo, talvez nunca tivesse havido uma chance de salvá-lo. Eles nunca saberiam. Hazael se fora, era só o que importava.
E Liraz gritava.
Independentemente do que Karou houvesse decidido, não havia mais nada que ela pudesse fazer agora.
— Salve meu irmão! — gritava Liraz, um som terrível, doído, e tão alto que Akiva imaginou olhos se abrindo por toda a casbá.
Issa era forte, e Liraz estava fraca e arrasada. A mulher-serpente a afastou de Karou e jogou-a de volta em direção a Akiva. Poderia tê-la matado, as serpentes cravado as presas em sua pele, mas não. Issa a empurrou para Akiva, que a pegou. Liraz resistiu, começou a soluçar e desabou nos braços do irmão.
— Não não não — dizia. — Ele não pode morrer, não pode, não ele.
Akiva a abraçou e desabou junto com ela ao lado do corpo do irmão, aninhando-a em seus braços enquanto ela soluçava. Cada soluço era como uma tempestade fazendo ruir a rigidez dela, dominando-a, sacudindo-a. Akiva nunca sequer a vira chorar antes, e aquilo era muito mais que um simples choro. Ele a apertava, também chorando, e por sobre a cabeça dela viu Issa ajudando Karou a chegar até a cama.
Ele viu o cuidado com os movimentos, a dor no rosto dela, os cortes no rosto, e a tristeza nos seus olhos escuros quando ela olhou para ele, e as lágrimas silenciosas que deslizavam pelo seu rosto, mas não conseguia processar nada daquilo. A escuridão girava e se entrelaçava em volta dele, os soluços de Liraz enviando tremores direto ao seu coração, e Hazael estava morto.
A urna de cremação está cheia, ouviu dizer a voz indolente e jovial do irmão. Você não pode morrer.
E realmente, mais uma vez: ele estava vivo enquanto outros morriam. Ah, maldita exaustão. Ele só queria fechar os olhos.
Foi quando ouviram uma batida na porta. Karou olhou depressa para ele.
— Karou? O que está acontecendo aí? — perguntou uma voz gutural feminina.
Quando Karou olhou de volta para ele, ainda havia tristeza nos olhos dela, mas o desalento e a aflição distorciam sua expressão. Ela limpou as lágrimas com as costas da mão e se levantou com dificuldade. Seu rosto se contorceu com a dor — o que ele tinha feito, aquele... animal? —, e ela parecia querer dizer alguma coisa, mas não havia tempo, porque a porta começou a se abrir. Liraz ergueu a cabeça, os soluços diminuindo à medida que recuperava o controle e percebia o que tinha feito.
Ela estava alerta, o rosto pálido e os olhos úmidos e vermelhos. Pegou a mão rígida de Hazael e apertou-a. O pesar deixou seu rosto, a resignação moldando suas feições em uma calma nada natural.
Akiva entendeu que ela estava pronta para morrer.
Ele sabia que não tinha direito de se horrorizar — vinha lutando com aquele sentimento fazia tanto tempo —, mas ainda assim aquilo o abalou, lançando-o em uma espiral de desamparo. Então, prestes a se entregar à escuridão, preso na fortaleza inimiga de novo, sentiu a força voltar. Não estava pronto.
Queria viver. Queria terminar o que finalmente tinha começado com tantos anos de atraso. Queria reconstruir o mundo. Com Karou... Com Karou.
Mas duvidava muito que isso fosse acontecer.
A primeira figura a surgir à porta foi a mulher-lobo, braço direito de Thiago. Furtiva e brutal, a fera se arqueou e rosnou assim que viu os anjos. Mas Akiva nem olhou para ela, porque logo atrás, parado à porta, o rosto marcado por arranhões que confirmavam suas piores suspeitas, estava o Lobo Branco.
78
O ANJO E O LOBO
— Temos visita, Karou? Não sabia que você estava dando uma festa.
Ah, aquela voz, a calma e o desdém, a nota de diversão. Karou não conseguia olhar para ele. Vida naqueles olhos pálidos, força naquelas mãos e garras. Era errado, tão errado. E ela fizera aquilo. A bile lhe subiu à garganta; ela quase caiu de joelhos e vomitou tudo de novo.
— Eu também não.
Era a única maneira, disse ela a si mesma, mas os tremores aumentavam quanto mais tentava controlá-los. Karou fixou o olhar em um ponto atrás dele, mas Lisseth e Nisk chegaram deslizando, preenchendo o corredor, e ela também não queria olhar para eles. Nunca esqueceria ou perdoaria a frieza no rosto deles quando voltara mancando do fosso, trêmula e ensopada de sangue, em choque, arrastando-se atrás de Thiago.
Quanto ao próprio Thiago...
Ele entrou no quarto. Karou podia ouvir suas garras arranhando o piso de terra, podia sentir seu cheiro de almíscar, mas ainda não conseguia fitá-lo. Ele era uma forma branca indistinta em sua visão periférica, atravessando o quarto, e colocou-se ao lado dela e encarou os anjos. Ao lado dela, como se estivessem juntos naquilo.
E... estavam.
Ela fizera uma escolha. Merecer a confiança que Brimstone depositara nela e o nome que lhe dera. Trabalhar pela salvação — e ressurreição — de seu povo, da forma que fosse necessária, qualquer forma. E Thiago era necessário. Os quimeras o seguiam. Aquela era a única maneira, mas mesmo assim não era nada mais fácil ficar ao seu lado e sentir o peso do olhar de Akiva, ou — quando olhou de volta para ele, pois tinha que olhar para algum lugar — ver o ódio e a confusão em seu rosto, a incredulidade. Como se ele não pudesse acreditar que ela suportaria estar tão próxima daquele monstro.
Eu também sou um monstro, queria dizer a ele. Sou uma quimera, e farei o que for preciso pelo meu povo.
Que falsa coragem. Ela vestia uma expressão desafiadora, mas não passava disso. O fogo dos olhos de Akiva sempre fora como um estopim que acendia o ar em volta deles. Agora não era diferente. Ela queimava, mas de vergonha por estar ao lado do Lobo. O anjo e o Lobo, juntos no mesmo quarto. Parecia agora que tudo a conduzira para aquele momento, que finalmente chegara: o anjo e o Lobo cara a cara. Akiva tinha os olhos vermelhos, o rosto pálido, destruído, arruinado, tomado pela tristeza, e ela... ela estava ao lado do Lobo, como se os dois fossem o senhor e a senhora daquela rebelião sangrenta.
Não é o que está pensando, tinha vontade de dizer a Akiva.
É pior.
Mas não disse nada. Não lhe daria nenhuma explicação, nem lhe pediria desculpas. E então se forçou a virar. Para Thiago. Não colocara os olhos nele desde que tinham voltado do fosso. Mas se obrigou a olhar para ele agora. Se não conseguisse fazer isso, quais seriam as chances de conseguir fazer tudo que estava por vir?
Ela olhou.
O Lobo era o Lobo, majestoso e impressionante, uma das melhores obras de Brimstone. Não estava em sua usual forma impecável, o que não era nenhuma surpresa levando-se em consideração o último dia e meio. As mangas de sua túnica estavam puxadas para cima, dobradas e amassadas nos braços musculosos e bronzeados, e Ten tinha negligenciado o cabelo de seu senhor, que parecia ter sido puxado para trás por mãos apressadas e preso em um nó branco. Alguns fios tinham escapado, e, quando ele os jogou para trás, fez isso com certa impaciência. Quanto ao seu belo e odiável rosto, estava coberto de arranhões produzidos pelas unhas de Karou, mas a ferida por onde a lâmina dela penetrara, na garganta dele, havia sido fechada e reparada como se nunca tivesse existido. Essa parte fora fácil, nem de longe tão complicada quanto as mãos ou o sorriso de Ziri; apenas algumas camadas de tecido para juntar ao longo de um pequeno corte. Karou não poderia tê-lo matado de forma mais limpa nem se tivesse planejado trazê-lo de volta à vida, e tivera dor de sobra para pagar o dízimo.
Eram os olhos dele, ah, meu Deus... Eram os olhos dele o mais difícil de se ver. Vida naqueles olhos pálidos.
Afinal, todos nós somos apenas receptáculos.
Ela sentiu as lágrimas arderem e abaixou a cabeça. Não sabia o que fazer. Abraçou o corpo com os braços marcados pelos hematomas e procurou desesperadamente algo para dizer. Havia anjos em seu quarto, um deles morto, outro Akiva. Era complicada sua situação.
Fazia apenas alguns segundos desde que o Lobo havia entrado. Sua imobilidade e silêncio ainda não pareciam esquisitos, mas em pouco tempo alguém estranharia.
Se Liraz não tivesse gritado, Karou os teria ajudado a sair dali. Teria acendido um incenso para encobrir o cheiro deles. Devia isso a Akiva, isso e muito mais. Nimguém precisaria saber que eles tinham estado ali. Mas era tarde demais. Agora Thiago teria que fazer alguma coisa a respeito, e — Karou vira isso em seus olhos naquele relance — estava ainda mais perdido do que ela quanto a como agir.
Sua linha de ação deveria ser bem clara; ele já tinha lidado com Akiva antes: já o havia torturado e punido, não só por ser um serafim, mas também por ter sido o escolhido de Madrigal. Qualquer um que fosse próximo a Thiago sabia que ele ansiava por terminar o que tinha começado. O Lobo Branco deveria estar rindo agora; deveria estar embriagado em seu prazer sangrento.
Mas não estava.
Porque, é claro — é claro, é claro —, ele não era o Lobo Branco.
79
ESGOTADOS
— Então, isso é mesmo o que parece ser? — perguntou Thiago.
— E parece ser o quê? — indagou Akiva, odiando falar com o Lobo.
Eles não ficavam cara a cara desde o calabouço em Loramendi, e, agora que estavam, falar não era bem o que Akiva tinha em mente.
— Parece um anjo morto. — Indicando Hazael, Thiago se virou de Akiva para Karou e depois de volta com um sorriso insolente. — Veio fazer uma visita à nossa ressurreicionista? Sinto muito, mas não servimos à sua raça. Achei que você soubesse que estamos em guerra.
— A guerra acabou — rosnou Liraz, com uma paixão que, Akiva sabia, ela não sentia pela vitória. — Vocês perderam.
— Perdemos? Gosto de pensar que o resultado ainda não foi decidido.
Devagar, Akiva passou um braço em volta do ombro da irmã, para contê-la. Se ela se lançasse para cima do Lobo como tinha feito com Karou, a mulher-serpente não a empurraria de volta viva. Talvez fosse a morte o que Liraz queria (ou achasse que queria) em meio ao sofrimento, e talvez a morte fosse mesmo chegar para eles ali, naquela noite, não importava o que fizessem, mas Akiva não lhe daria mais chances do que já dera indo até ali, e aquilo tinha sido por puro desespero.
Ele olhou para Karou, tentando imaginar o que se passava em sua cabeça. Ela teria ajudado Hazael; ele tinha visto como era genuína sua tristeza. E agora? Ela iria ajudá-los? Será que podia? Aqueles hematomas em seus braços... Ela ainda abraçava o próprio corpo, e, embora Akiva tivesse quase certeza de que ela estava tentando esconder as marcas — por que parecia tão envergonhada? —, o resultado era o contrário: ele não conseguia deixar de olhar. Já tinha visto as marcas do dízimo nela quando fora até ali antes; a lembrança o assombrara. Mas aquelas eram diferentes.
Pois aquelas não tinham sido feitas por tornos, mas sim por mãos.
De repente, ele não conseguia ver mais nada além daquilo. Uma onda de fúria o dominou, e então era ele quem precisava ser contido. Ficou de pé e se lançou para a frente, ou caiu para a frente, e foi só devido ao insistente apelo da escuridão e à fraqueza enfurecedora que Karou — Karou — conseguiu se colocar entre ele e Thiago e empurrá-lo de volta. Com as sobrancelhas erguidas em irritação e os olhos com um brilho selvagem, sua expressão dizia: Você ficou louco?
Sim, ele estava louco. E patético. Tropeçou em Hazael ao cair para trás, e foi Liraz que o pegou daquela vez. Os dois estavam tão fracos, tão debilitados e desmoralizados que desabaram juntos no chão de terra ao lado do corpo do irmão. E os quimeras nem precisaram mostrar hamsás em sua direção. Estavam tão esgotados, tão dolorosa, óbvia e lamentavelmente esgotados.
— Acabem logo com isso — sibilou Liraz. Akiva nem conseguia se obrigar a argumentar. — Podem nos matar.
Karou olhou para os dois com aquela severidade que havia mostrado quando o empurrara — era raiva, pensou Akiva, por se ver forçada mais uma vez a decidir o destino dele. Como ela havia mudado em tão poucos meses. A dureza, o ar de tristeza. Ele se lembrou de como ela era em Praga e em Marrakech, durante o pouco tempo que passaram juntos antes de partirem o osso da sorte: a suavidade e a inconstância de suas expressões; os sorrisos tímidos e contraditórios; e o rubor que subia rapidamente por seu pescoço alvo. Até a raiva dela era antes algo vibrante, vital. Ele odiava aquela nova máscara de dureza, odiava saber que provocava isso nela. Mas, naquele momento, se lhe dessem a chance de escolher, ainda diria que preferia viver.
Foi só no instante seguinte que essa convicção foi abalada.
Karou se virou para Thiago — para Thiago, de todas as criaturas vivas em dois imensos mundos — e trocou com ele um olhar breve e secreto, íntimo e cheio de dor, um olhar que trazia uma dor compartilhada, um olhar... terno. Era de uma ternura tão profana, tão insuportável, que Akiva esqueceu todo o resto. Toda a pouca vitalidade que lhe restava se reuniu em uma última explosão de força e ele se lançou para cima de Thiago.
O Lobo o pegou pelo pescoço com as garras de uma das mãos. Segurava-o com o braço estendido, e até parecia fácil. Seus olhos se encontraram. Enquanto Akiva sentia seu pescoço ser comprimido pelo poderoso punho de Thiago, viu um traço daquela ternura perversa ainda no olhar do inimigo. Ao ver isso, Akiva simplesmente desistiu de lutar. Seus olhos se reviraram nas órbitas. Sua cabeça tombou.
Ele se deixou envolver pela escuridão, uma parte sua desejando nunca mais voltar.
* * *
Quando Akiva desabou, o alívio do Lobo foi tão profundo quanto sua aversão às palavras que se forçara a dizer e ao som delas saindo de sua garganta, a garganta de Thiago. Afinal, aquela voz era a de Thiago. E aquelas mãos que combinavam perfeitamente com as marcas no corpo de Karou? Também eram de Thiago.
Mas o pesadelo? Esse era todo de Ziri.
Ele queria descer o anjo devagar até o chão, mas se forçou a atirá-lo bruscamente na direção da outra serafim, uma linda moça que parecia ao mesmo tempo perdida e feroz. Ela pegou Akiva, cambaleando sob o peso morto dele — mas não, ele não estava morto. O Lobo não deixaria o Ruína das Feras morrer assim de forma tão indolor. Quanto a Ziri... ele não o deixaria morrer e ponto, se pudesse evitar.
Se.
Era injusto que o primeiro teste de sua farsa fosse decidir o destino do serafim que salvara sua vida. Ele não estava pronto para ser testado. A pele ainda não se ajustava bem, ou talvez fosse ele que não soubesse usá-la. Não era uma questão física. Como receptáculo, era um corpo forte, gracioso, com uma flexibilidade e um poder de tração que pareciam aprimorados, além de belo aos olhos, mas ele não conseguia vencer a repulsa que sentia. Quando tomara posse daquele corpo... ah, Nitid, encontrara ainda o gosto do sangue de Karou na boca.
Agora já tinha saído, mas a repulsa permanecia, e, o que era pior: ela sentia o mesmo. Como esperar outra coisa? Ziri vira o estado de Thiago no fosso, sabia o que ele fizera com ela — ou tentara fazer; esperava que tivesse apenas tentado, mas não chegara a perguntar. Como poderia perguntar algo assim? Ele a encontrara ensopada de sangue, tremendo violentamente como se estivessem em um lugar muito frio, e mesmo agora ela mal conseguia olhar para ele.
Quantos dias tinham se passado desde que Ziri sentira a esperança de que ela pudesse vê-lo pelo que ele era — não mais uma criança, mas um homem e... talvez criar um pouco de sorte para os dois. Um homem que pudesse amar. E agora ele era aquilo?
Se havia uma força maior operando no cosmos, as estrelas estariam rindo agora. Até ele se sentia à beira das gargalhadas. Seria possível que alguma esperança já tivesse sido mais aniquilada de maneira tão terrível?
Mas, se era injusto, pelo menos tinha sido uma decisão sua. Ele vira o que precisava ser feito, e fizera.
Por ela. Pelos quimeras e por Eretz, sim, mas fora nela que pensara ao passar a lâmina na própria garganta. Nem soubera a quem rezar, se para a deusa da vida ou a dos assassinos. Que presente horrível ele dera a Karou: seu sacrifício. Seu corpo para ela enterrar. A enormidade daquela farsa para levar adiante.
E... a chance de mudar o curso da rebelião e tomar posse do futuro. O que também era colossal, mas naquele momento tudo o que Ziri sentia era o peso da farsa.
O que já tinha sido feito — morrer — era a parte fácil. Agora ele precisava ser Thiago. Se ele e Karou queriam que aquilo funcionasse, Ziri precisava ser convincente, começando ali, agora, com aqueles serafins. E por isso é que tinha ficado tão incomensuravelmente aliviado quando Akiva perdera a consciência, pois assim pudera dar um fim rápido ao encontro, ou pelo menos adiar o inevitável até tentar pensar no que fazer.
— Leve-os para o armazém — ordenou ele a Ten, com o que esperava ser a gentileza desprezível e autoritária costumeira do Lobo.
E, depois que Ten obedeceu — Issa ajudando a garota serafim com o corpo de Akiva, e Nisk e Lisseth carregando o morto —, bateu a porta e se apoiou na madeira. Fechou bem os olhos e levou as mãos ao rosto. Mas como ele odiava aquele toque... Então abaixou as mãos. Odiava sentir as próprias mãos. As mãos dele? Afastou-as do corpo — do corpo dele? Com a tensão da tristeza que sentia, sentiu-as ficarem rígidas como em rigor mortis, como as mãos do anjo de cuja morte ele se forçara a zombar.
Não havia como fugir do mal, porque o mal era ele.
— Eu sou Thiago — ele se ouviu dizer com uma voz baixa e sufocada pelo horror. — Eu sou o Lobo Branco.
E então, primeiro em uma de suas odiosas mãos, depois na outra, ele sentiu um toque. Abriu os olhos. Viu Karou diante de si, pálida e chorando, trêmula e machucada, os olhos escuros e o cabelo azul, linda e tão perto, e olhando para ele — dentro dele, para ele —, segurando suas mãos.
— Eu sei quem você é — disse ela, em um sussurro doce porém ardoroso. — Eu sei. E estou com você. Ziri, Ziri. Eu vejo você.
Ela apoiou a cabeça em seu peito e deixou que ele a envolvesse com seus braços assassinos. Ela cheirava à água do rio e tremia como uma asa de borboleta soprada pela brisa. Ziri a aninhou como se ela fosse a última esperança de seu mundo.
E talvez fosse.
80
FARSA
Um som. Estava próximo, e eram asas.
Karou tinha certeza de que eram os capatazes de Thiago voltando, mas não fugiu nem se escondeu. Congelada como uma presa, de joelhos na terra e nas pedras, no vômito, nas moscas e no horror, ela esperava ser encontrada.
E, quando viu quem era, quando ele aterrissou diante dela, os cascos de Kirin espalhando pedras, seu choque não deixava espaço para a alegria — Ziri estava vivo e ali —, porque o olhar arrasado dele só a abalava ainda mais. Ziri olhou para o Lobo e de volta para ela, boquiaberto; chegou a dar um passo vacilante para trás, e Karou viu como a grotesca cena devia parecer aos seus olhos. A indignidade da pose do Lobo, roupas emboladas e arrancadas aos pedaços em uma exibição inequívoca da sua vontade, a faquinha caída onde ele a tinha largado, quase como um abridor de cartas ou um brinquedo.
E ela. Trêmula. Ensanguentada. Culpada.
Karou havia matado o Lobo Branco. Se estivesse conseguindo pensar, não teria acreditado que aquilo poderia piorar.
Mas, ah, piorou sim.
Agora, em seu quarto, ela apoiou a cabeça no peito dele e sentiu as batidas do coração de Ziri contra o rosto — cada vez mais rápidas; ela sabia que era o coração de Ziri agora, não o de Thiago, e sabia também que estava acelerado por causa dela —, e tentou sufocar a repulsa, pelo bem dele.
Ela tivera a esperança de que sua pequena sombra Kirin pudesse se provar um aliado, mas nunca imaginara... aquilo.
Após aquele primeiro instante de espanto, ele correra para o seu lado e tinha sido tão carinhoso com ela, tão presente e bom e decidido — não tinha mais nada de tímido; era só foco e força. Segurou-a pelos ombros, com cuidado mas firmemente, e a fez olhar para ele.
— Está tudo bem — disse ele, quando teve certeza de que o sangue que cobria o seu corpo não era dela. — Karou. Olhe para mim. Está tudo bem. Ele não pode mais machucar você.
— Ele pode e vai — disse ela, beirando a histeria. — Não é possível que ele esteja morto, isso não vai durar. Vão me obrigar a trazê-lo de volta. Ele é o Lobo Branco. O Lobo Branco.
Era verdade, não havia o que discutir. Ziri também sabia; não precisavam fazer suposições. Foi Ziri quem viu o que era preciso fazer, e fez. Ela entendeu sua intenção quando ele pegou a lâmina de lua crescente; ficou sem ar, tentou impedi-lo. Ele disse que sentia muito.
— Mas não por mim. Quanto a isso estou tranquilo. Só sinto muito por deixá-la sozinha nesse intervalo de tempo.
Intervalo. Entre um corpo e outro.
— Não! Não! — Não não não não não não não. — Vamos conseguir encontrar alguma outra solução. Ziri, você não pode fazer isso...
Mas ele fez, com sua mão experiente, com sua lâmina afiadíssima.
Ele morreu em seus braços, os olhos redondos e castanhos e agora arregalados, mas sem nenhum medo, tão doces... e no instante seguinte os mesmos olhos ficaram vidrados, mas ainda eram tão doces e esperançosos quanto costumavam ser quando ele era um menino perseguindo-a por Loramendi. Foi em quem ela pensou enquanto o segurava morto, no menino que ele havia sido, assim como pensava agora, acolhida em seus novos braços. Pensou no garoto para que ele não se sentisse traído se sentisse sua repulsa. Era tão injusto, após a magnitude do sacrifício dele, tão cruel, mas era preciso, pois só assim ela conseguiria não se afastar dele. Afinal, embora fosse Ziri, seus braços eram os do Lobo, e seu abraço, uma sentença.
Quando ela não pôde suportar nem mais um instante, usou uma desculpa para se afastar. Levou a mão ao bolso, dando um passo para trás, e pegou o que tinha guardado ali alguns dias antes. Quase esquecera.
— Guardei isto — disse ela. — É... não sei.
Parecia uma ideia estúpida agora. Ridícula, até — o que ele faria com aquilo? Era a ponta de seu chifre que tinha se quebrado no pátio quando ele desmaiara. Ela não sabia ao certo o que a fizera guardar aquilo, e agora, mesmo enquanto enfiava a mão no bolso, desejava nunca ter recolhido aquele fragmento. Porque, quando ele falou, pelo acanhamento em sua voz ficou claro que ele via mais naquele gesto do que de fato existia.
— Você guardou isso.
— Para você. Achei que talvez fosse querer. Foi antes de...
Antes de ela enterrar o restante de seu corpo em uma cova rasa? Sentiu de novo um aperto no estômago. Era o melhor que ela conseguira fazer, e pelo menos não era o fosso. O último corpo Kirin verdadeiro não merecia o fosso, ó Ellai, mesmo sendo somente um monte de poeira estelar reunida transitoriamente em um corpo. Como tinha sido difícil jogar a terra seca sobre seu rosto. Só ficara pensando que ainda podia mudar de ideia. Afinal, a decisão estava em suas mãos. Podia recuperar qualquer um dos dois corpos recém-mortos. Podia ter colocado a alma de Ziri de volta no lugar; o gesto de grande bravura fora dele, mas agora o resto estava em suas mãos. A alma dele estava em suas mãos.
A alma de Ziri era como o vento que atravessava o alto das montanhas Adelphas, como o bater das asas dos caça-tempestades; era como a linda, eterna e triste música das flautas de bambu que costumava preencher as cavernas das Adelphas com sons dos quais ele nunca se lembraria. Era como um lar.
E ela a colocara em um receptáculo como aquele. Porque, no fim das contas, ele tinha razão. Aquela era a única forma de assumir o controle do destino dos quimeras. Com aquela farsa.
Se ao menos eles conseguissem levá-la adiante.
Não seria fácil nem sob circunstâncias normais, quanto mais sendo submetidos a um teste como aquele assim tão cedo, com os dois ainda meio zonzos e sem nem terem tido tempo de conversar ou pensar em um plano. Teriam que tomar alguma providência com relação aos anjos.
Karou se virou e foi em direção a sua mesa. Endireitou a cadeira que havia derrubado quando Akiva entrara em seu quarto pela janela e se sentou. A parte de trás de suas pernas estava muito ferida de tanto ter lutado sob o peso de Thiago, e seu corpo todo parecia ter sido torcido por tornos. Mas tudo aquilo passaria em um dia ou dois; todo o restante estava ali para ficar. Os problemas, a terrível responsabilidade e a mentira, que, custasse o que custasse, não podia sair daquele quarto.
Issa e Ten retornaram, sem Nisk e Lisseth.
— Não os quero mais aqui — disse Issa, em um tom incisivo. Karou sabia que ela estava se referindo a Nisk e Lisseth, não aos anjos. — Eles são selvagens. Imagine, deixarem você lá sozinha com Thiago daquele jeito. E os outros também.
Karou estava inclinada a concordar, mas ainda assim...
— Estavam apenas seguindo ordens. — E acrescentou que já tinham cumprido ordens piores que aquela.
— Não importa — insistiu Issa. Sua revolta só aumentava pelo fato de os dois serem Naja, pois queria acreditar que seu povo agiria melhor do que aquilo. — Deviam ter alguma noção do que é certo e do que é errado, mesmo quando se trata de ordens.
— Se formos pensar assim, não vai sobrar ninguém. Quer dizer... — Ela olhou de relance para o Lobo. Para Ziri. — Bem poucos. — A equipe de Balieros seria ressuscitada em breve, junto com Amzallag e as esfinges, cujas almas ela colhera do fosso. Ela precisava de soldados confiáveis. — Mas não podemos simplesmente começar a dar sumiço em todo mundo de quem não gostamos. Seria muito suspeito. E... errado.
De fato, eles não tinham sumido com ninguém, e ela não pretendia começar agora. Razor não contava. Morrera atacando uma fortaleza serafim chamada Glyss, no rio Tane — na mesma missão em que haviam perdido Ziri, para a tristeza de todos. Ninguém nunca precisaria saber o que realmente acontecera quando Razor tentara, sem sucesso, cumprir a ordem de Thiago, ou que um dos dois tinha voltado, embora depois tivesse ido parar em uma cova rosa e no papel principal daquele grande estratagema.
— Eu cuido dos dois Naja — disse Ten, batendo os dentes de gula. — Essa minha boca de lobo tem uma fome e tanto. Vou dizer que eles me pediram para comê-los.
— Não seja terrível — protestou brandamente Issa.
— Não? — Ten olhou para Karou. — Mas a ideia não era essa?
Karou não pôde deixar de rir, o que fez doer seu rosto ferido. Ten não era mais Ten, tanto quanto Thiago não era mais Thiago; ela era Haxaya, o que já facilitava bastante as coisas. Por mais que Karou odiasse a mulher-lobo, não tinha por ela o mesmo grau de aversão física que sentia por Thiago. Era bom ter o humor negro de Haxaya naquele corpo... mesmo que não desse para saber direito quando ela estava brincando ou não. Quando Karou acordara sua velha amiga no corpo de Ten — após Ten ter fatalmente subestimado Issa e os anéis em geral gentis da joia viva que era seu corpo —, fora direta: contara-lhe a terrível situação e o que ela deveria fazer, e esclareceu que, caso ela não concordasse, teria que ser devolvida imediatamente para o turíbulo.
E a resposta de Haxaya, com um sorriso que parecia ter sido feito especialmente para as mandíbulas de lobo de Ten, fora: “Eu sempre quis ser terrível.”
— Será que você pode ser só um pouquinho menos terrível? — perguntou-lhe Karou agora. — Nada de comer os Naja nem nenhum outro, por mais desprezíveis que sejam. — E acrescentou: — Por favor.
— Está bem. Mas se eles realmente me pedirem...
— Eles não vão pedir para você comê-los, Ten.
— Acho que não — concordou ela, fazendo-se de decepcionada de forma bem convincente; talvez estivesse mesmo.
E ali estavam os aliados de Karou: Thiago, Ten e Issa. Os três olhavam para ela. Ah, meu Deus, pensou Karou, sentindo-se zonza de pânico. E agora?
— Os anjos — disse ela, tentando controlar sua pulsação acelerada.
— Eles podem fugir — disse Issa. — Simples. Ele já fez isso antes.
Karou assentiu. Claro, então era isso. Tirá-los dali e ver Akiva pela última vez, definitivamente. Era isso o que ela queria.
Então por que aquela dor no peito?
Nós sonhamos juntos com um mundo refeito, ficava pensando. Tinha sido o sonho mais lindo, que só podia ter acontecido como acontecera: um sonho que nasceu da misericórdia e se alimentou de amor. E ela não conseguia pensar no futuro, na paz, sem se lembrar da mão de Akiva em seu coração e da sua no dele.
— Nós somos o começo — dissera ela então, no templo, e tudo parecera possível com o coração dele batendo sob sua mão.
E agora o coração dele batia tão perto dali, no escuro, no armazém. Tão perto e ao mesmo tempo tão distante. Ela não conseguia pensar em nada, nenhuma sucessão de eventos improváveis, que pudesse fazê-la algum dia voltar a sentir as batidas do coração dele, ou uni-los novamente no sonho que a eles pertencia — não a ela e Ziri, nem mesmo a ela e Brimstone, mas a ela e Akiva.
Ela não conseguia pensar em nada.
81
CAMINHOS DE ACASOS
Um mundo sozinho já é uma grande e estranha ebulição de desenrolares possíveis, caminhos incompreensíveis de acasos e planos traçados, mas dois? Quando dois mundos sentem o hálito um do outro através de fendas no céu, o estranho torna-se ainda mais estranho, e muitas coisas podem acontecer, compreensíveis apenas para poucos.
82
AS TRÊS MAIORES RAZÕES PARA VIVER
Zuzana e Mik estavam em Ait-Ben-Haddou quando aquilo começou. Aquilo. A coisa que nunca seria eclipsada, que sempre mereceria ser tratada pelo pronome indefinido aquilo.
Onde você estava no dia em que aquilo começou?
Ait-Ben-Haddou era a casbá mais famosa do Marrocos, muito maior que o castelo de areia de Karou, embora sem o atrativo dos monstros. Tinha sido restaurada com fundos da UNESCO e dinheiro da indústria do cinema — Russell Crowe tinha “digladiado” ali —, todo o lugar tendo sido limpo e preparado para receber os turistas. Lojas nas ruas, tapetes nos muros e, na entrada principal, camelos piscando e batendo seus incríveis cílios enquanto posavam para fotografias — por um preço, é claro. Tudo por um preço, e não se esqueça de pechinchar.
Mik estava pechinchando. Zuzana desenhava na sombra enquanto ele, fingindo examinar com atenção algumas chaleiras, comprava um anel de prata antigo que suspeitava não ser realmente de prata nem antigo, mas tratava-se indiscutivelmente de um anel, e isso era o que importava. Não um anel de noivado. Ele tinha feito o ar-condicionado voltar a funcionar, mas isso não contava como um de seus desafios, nem a... bem, a cura que arranjara para o tédio de Zuzana. Aquilo com certeza não tinha sido um desafio. Era uma das suas três maiores razões para viver — as outras duas eram tocar violino e segurar a mão de Zuzana —, e uma atividade que ele executava — da qual participava — com um sentimento de profunda gratidão ao universo.
Para ganhar a mão dela, porém, era preciso cumprir um desafio. Dois.
Ele sentia um curioso comprometimento com aquela história toda dos desafios. Quem tem a chance de fazer coisas assim? Monstros e anjos e portais e invisibilidade — mesmo que esse último fosse um pouco difícil de apreciar com todos os uis envolvidos. Aliás, quantas pessoas têm a chance de comprar anéis talvez antigos e talvez de prata para suas lindas namoradas em cidades de barro no norte da África, comer tâmaras secas de um saquinho de papel e ver cílios de camelos, meu Deus do céu, e... ei, aonde está todo mundo indo?
Houve uma agitação repentina, pessoas correndo pela rua estreita ao som de berros em árabe ou berbere ou em alguma língua que não era nem tcheco, nem inglês, nem alemão, nem francês. Mik assistia a tudo perplexo. Os marroquinos berravam e corriam até serem tragados pelas portas e só restarem os turistas nas ruas: turistas confusos, piscando sem parar enquanto literalmente a poeira baixava. Por trás das portas, a confusão só aumentava.
Mik guardou o anel no bolso e voltou para perto de Zuzana, que continuava sentada à sombra embora não estivesse mais desenhando. Ela olhou para ele, confusa.
— O que está acontecendo?
— Não sei.
Mik olhou em volta. Algumas famílias ainda moravam atrás daqueles muros; ele viu de relance o brilho de uma tela de TV quando uma porta se abriu e voltou a se fechar. Era um anacronismo tão grande: uma TV naquele lugar... e então... e então os gritos de tumulto deram lugar a gritos de medo. Gritos tão altos que pareciam um misto de alegria e pavor.
Mik pegou a mão de Zuzana — uma das três maiores razões para viver — e puxou-a na direção da TV para verem que diabos estava acontecendo.
83
ADEUS
Quando Akiva acordou, Liraz dormia ao seu lado. Estavam no escuro, embora, lógico, a escuridão nunca fosse total onde havia serafins. O fogo de suas asas, mesmo fraco da exaustão e do sono, projetava uma discreta luminosidade que chegava ao teto alto de madeira e às paredes inclinadas de barro. Era um espaço grande, sem janelas; ele não sabia se era dia ou noite. Por quanto tempo tinha dormido?
Ele se sentia... bem, revigorado era uma palavra forte demais naquelas circunstâncias, pois dava a entender que ele estava cheio de vida, o que não era o caso, mas estava bem melhor. Ergueu o corpo e se sentou.
A primeira coisa que viu foi seu irmão. Hazael estava deitado do outro lado de Liraz, o corpo dela curvado na direção dele, e por um louco instante Akiva foi invadido pela esperança de que eles fossem três de novo, de que Karou tivesse ressuscitado seu irmão, e Hazael se sentaria e começaria a contar histórias ridículas sobre tudo o que tinha visto e feito enquanto era uma alma desligada do corpo. Mas aquela esperança se desfez rapidamente, como acontece com a maioria das esperanças: devorada por uma amargura ácida, fazendo Akiva se sentir um idiota. É claro que Hazael estava morto, ainda, e estaria para sempre. Começavam a aparecer moscas; eles tinham que tomar alguma providência.
Acordou Liraz. Estava na hora de prestarem suas homenagens ao irmão.
A cerimônia não foi muito usual, mas as cerimônias deles nunca eram: o funeral de um soldado, o corpo sua própria pira. As palavras oficiais eram muito impessoais, então eles procuraram dizer algo que combinasse mais com Hazael.
— Ele vivia com fome — disse Liraz — e às vezes dormia enquanto estava de sentinela. E graças ao seu sorriso conseguiu escapar de ser castigado milhares de vezes.
— Hazael conseguia fazer qualquer um falar com ele — disse Akiva. — Nenhum segredo escapava do nosso irmão.
— Menos os seus — murmurou Liraz, e a verdade daquilo doeu.
— Ele devia ter tido uma vida de verdade — disse Akiva. — Saberia preenchê-la. Experimentaria de tudo.
Ele teria se casado, pensou. Poderia ter tido filhos. Akiva quase conseguia vê-lo: o Hazael que ele poderia ter sido se o mundo fosse melhor.
— A risada mais verdadeira de todos os tempos — disse Liraz. — Ele fazia o riso parecer fácil.
E deveria ser fácil, pensou Akiva, mas não era. Eles dois, por exemplo: mãos negras e almas estilhaçadas. Ele pegou a mão da irmã, que apertou a dele com tanta força quanto apertaria o cabo de uma espada, como se sua vida dependesse disso. Doeu, mas era uma dor que ele podia suportar facilmente.
Liraz estava mudada. Camadas tinham sido desveladas — toda a severidade e dureza, que mesmo ele mal conseguira atravessar desde que eram crianças, tinham sumido. Abraçando os joelhos, com os ombros curvados e o rosto suavizado pela tristeza, ela parecia vulnerável. Jovem. Quase outra pessoa.
— Ele morreu me defendendo — disse ela. — Se eu tivesse obedecido Jael, ele ainda estaria vivo.
— Não. Ele teria sido enforcado — disse Akiva. — Você seria levada, e ele morreria infeliz por não ter conseguido salvá-la. Ele teria preferido assim.
— Mas se ele tivesse vivido um pouco mais, poderia ter escapado de lá conosco. — Ela olhava fixamente para as chamas que consumiam seu irmão, mas então desviou os olhos para Akiva. — Akiva. O que foi aquilo que você fez?
Não perguntou “E por que não fez antes?, mas a pergunta estava escondida ali, de todo modo.
— Não sei — disse ele, em resposta tanto à pergunta formulada quanto à não formulada, e observou o fogo da cremação que queimava com rapidez e violência, deixando apenas cinzas para uma urna que não tinham.
O que havia dentro dele capaz de fazer algo como aquilo, e por que aquilo não se manifestara antes, quando ele mais precisara — não só a tempo de salvar a vida de Hazael, mas também anos antes, para salvar Madrigal? Os anos de dedicação ao sirithar tinham apurado sua afinidade com a magia? Ou aquilo tinha sido despertado pela repentina onda de lembranças de sua mãe?
— Você acha que Jael está vivo? — perguntou Liraz.
Akiva mais uma vez não soube o que responder. Não queria pensar em Jael, mas não dava muito para evitar.
— Talvez sim... — acabou dizendo. — E se estiver...
— Espero que esteja.
Ele olhou para a irmã. A dureza que a revestia ainda não tinha voltado. Ela ainda parecia jovem e vulnerável. Tinha dito aquilo sem nenhuma emoção, suavemente, e Akiva entendia. Uma parte dele queria o mesmo que ela. Jael não merecia uma morte rápida, como teria acontecido na explosão. Mas, se ele estivesse vivo, havia coisas a se fazer.
Ele se levantou e olhou em volta. Paredes de barro, porta de madeira, nenhum guarda apontando os hamsás para mantê-los enfraquecidos; aquele lugar escuro não poderia detê-los. Onde estava o Lobo, e por que ele permitira a seus prisioneiros descansar e recuperar as energias?
E onde estava Karou? Com Thiago? Só de pensar nisso ele sentiu uma dor como a de uma punhalada. Akiva não conseguia afastar a lembrança do olhar que os dois tinham trocado. Aquele olhar o fizera questionar tudo o que pensava saber a respeito de Karou.
— Acho que é hora de irmos.
Ele estendeu a mão para a irmã. Fosse outra época, Liraz teria revirado os olhos e se levantado sozinha. Naquele momento, porém, aceitou a ajuda. Mas quando ficou de pé, colocou-se ao lado dos restos da pira do irmão e ali ficou, olhando fixamente, sem sair do lugar.
— Sinto como se estivéssemos deixando Hazael aqui.
— Eu sei.
Ter carregado o peso dele até ali, vindos tão longe, e de repente abandoná-lo, parecia impensável. Ele olhou em volta de novo: viu um jarro.
— Água — disse Liraz. — Foi a mulher Naja quem deixou aí.
Akiva pegou o jarro, ofereceu água a Liraz e então também bebeu, avidamente. A água era doce, fresca, essencial naquele momento. Quando acabaram, ele encheu o jarro cuidadosamente com as cinzas de Hazael. Talvez fosse tolo ou mórbido guardar aquele tipo de resíduo físico, mas, por algum motivo, ajudava.
— Pronto — disse ele.
— Vamos para as cavernas? Os outros devem estar pensando que morremos na explosão.
As cavernas dos Kirin, onde, muito tempo antes, ele e Madrigal tinham combinado de se encontrar para darem início a sua revolução. Agora eram seus irmãos Ilegítimos que o esperavam lá, e, com eles, um futuro que ainda não parecia real. Seu propósito permanecia claro: terminar o que tinha começado, acabar com a matança, criar — embora não soubesse como — uma nova maneira de viver. Mas, sem Karou ao seu lado, aquele sonho parecia ter toda a magia de uma estrada de terra empoeirada levando a um horizonte vazio.
— Vamos — disse ele. — Mas antes precisamos fazer uma coisa.
Liraz exalou o ar demoradamente.
— Por favor me diga que isso não envolve dizer adeus.
Adeus. A palavra doeu. Adeus era a última coisa que Akiva queria dizer a Karou. Então ele se lembrou da primeira noite que passaram juntos, dos repetidos “olás” sussurrados que tinham dito um ao outro no baile do Comandante e depois, como um segredo compartilhado. Estava nos lábios dele na primeira vez que a beijara. Era o que diria a ela se pudesse. Olá.
— Não — disse ele a Liraz, lembrando-lhe que despedidas davam azar.
E ela respondeu friamente:
— Azar? É melhor começarmos a evitar isso, sem dúvida alguma.
* * *
Não foi “olá” nem “adeus” o que fez Akiva interromper sua fuga e voltar ao quarto escondido pelo encanto, para surpreender Karou e Issa.
O Lobo, graças aos deuses da luz, não estava lá, mas, quando Karou ficou de pé, ela lançou um olhar rápido e inseguro em direção à porta que foi como outra punhalada — um lembrete de que Thiago estava por perto e de que podia entrar ali a qualquer momento.
— O que está fazendo aqui? — perguntou Karou, assustada. Seu cabelo azul-pavão caía em uma trança por cima de um dos ombros, e as marcas em seus braços estavam agora cobertas pela roupa. O inchaço em seu rosto tinha diminuído um pouco, e a raiva parecia ter sumido. Um rubor subiu pelo seu pescoço, cobrindo repentinamente sua palidez. — Vocês já deviam ter ido embora.
Já deviam ter ido. Aquilo não causou a surpresa que poderia ter provocado. A prisão deles era uma farsa. Quando Akiva colocara a mão na porta para queimá-la, ela se abriu. Não estava nem trancada. Ele deixara escapar um sorriso, espiara pela abertura e vira um pequeno pátio sujo cheio de escombros; nenhum guarda.
— Estamos indo. Mas preciso lhe dizer uma coisa. — Akiva fez uma pausa e viu Karou ficar tensa. O que ela achava que ele iria dizer? Será que estava com medo de que ele tivesse ido até ali para falar de amor? Ele balançou a cabeça, querendo assegurá-la de que aqueles dias tinham acabado, de que ela não precisava mais temer que ele lhe causasse aquele tormento. Naquela noite, ele era o portador de outro tormento. Mais uma vez lhe trazia uma escolha impossível. — Vou fechar os portais.
Fosse lá o que ela tivesse imaginado, com certeza não estava preparada para aquilo.
— O quê? — indagou, em um fiapo de voz.
— Sinto muito — disse ele. — Queria avisá-la para que você pudesse escolher de que lado vai ficar.
Que lado: Eretz ou o mundo humano? De que vida você vai desistir?
— Que lado? — Ela saiu de trás da mesa. — Você não pode fazer isso. Não este portal. Eu preciso dele. Nós precisamos dele. — Ela havia começado a falar com espanto, mas depois pareceu se sentir afrontada, com uma pontada de pânico.
Issa ondulou o corpo e se colocou ao lado dela.
— Já não destruiu o suficiente? Por que você...?
— Para salvar os dois mundos — respondeu Liraz — de corromperem um ao outro.
— Do que você está falando?
— Armas — explicou Akiva, sem meandros. Então fez uma pausa. Ele não conseguia pensar em uma forma de resumir tudo o que tinha acontecido na Torre da Conquista, formular uma explicação clara. — Jael. Talvez ele esteja morto, mas, se não estiver, virá até aqui atrás de armas. Com o Domínio.
O branco dos olhos de Karou apareciam em toda a volta de suas íris pretas. Ela estendeu a mão para se apoiar na mesa.
— Como ele poderia saber sobre as armas humanas? — Uma súbita fúria. — Você contou a ele?
Outra punhalada: como ela podia acreditar que ele ajudaria Jael a conseguir armas? Mas foi sem alegria alguma que ele lhe disse a verdade; queria poder mentir e poupá-la.
— Razgut.
Karou ficou imóvel por um instante, depois fechou os olhos. Todo o rubor que cobria seu rosto se esvaneceu, e ela deixou escapar um gemido baixo e angustiado.
— Não é culpa sua, docinho — sussurrou Issa, ao lado dela.
— É, sim — retrucou Karou, abrindo os olhos. — Muitas outras coisas não são, mas isto é.
— E minha também — disse Akiva. — Eu encontrei um portal para o império.
Os serafins não tinham mais acesso aos portais — e, por conseguinte, ao mundo humano — fazia um milênio. Akiva mudara isso. Ele havia encontrado um portal, na Ásia Central, no Uzbequistão. Razgut mostrara a Karou o outro.
— Eles podem passar por qualquer um dos dois portais. Jael planejou isso como um desfile, com tudo o que os humanos acreditam que envolva os anjos.
Karou segurava a mão de Issa, sua respiração acelerada.
— Como se as coisas já não estivessem ruins o bastante — disse ela, e deu uma gargalhada sofrida que Akiva sentiu no coração.
Ele queria abraçá-la, dizer que ficaria tudo bem, mas não podia prometer isso e, é claro, não podia tocá-la.
— Os portais precisam ser fechados — disse ele. — Se você precisar de tempo para decidir...
— Decidir o quê? Em que mundo vou ficar? — Ela o encarou. — Como você pode me pedir isso?
E Akiva soube que Karou escolheria Eretz. É claro que já sabia disso. Senão, pensou, nenhum tipo de ameaça — mesmo com mundos e vidas em jogo — poderia levá-lo a fechar os portais entre eles, mantendo-o preso para sempre em um mundo sem ela.
— Você tem uma vida aqui — disse ele. — Talvez nunca mais haja uma forma de voltar.
— Voltar?
Ela inclinou a cabeça daquele jeito, como um pássaro, tão Madrigal. Estava ferida e confusa, ali de pé diante dele, arfando e reunindo coragem como se realizasse um encanto. Com o cabelo puxado para trás, a linha do seu pescoço parecia mais firme, como a representação que um artista faria da elegância. Os ângulos de seu rosto também estavam destacados — magros demais —, rivalizando com a suavidade, e aquela mistura parecia a própria essência da beleza. Seus olhos negros, iluminados pela luz das velas, brilhavam como os de um animal, e não houve dúvidas naquele momento de que, qualquer que fosse o corpo em que estivesse, sua alma pertencia ao imenso mundo selvagem de Eretz, terrível e lindo, com tantos lugares bravios e inexplorados, lar de feras e anjos, caça-tempestades e serpentes do mar, com uma história ainda a ser contada.
Então, em um misto de sibilar e ronronar, afiada como uma lâmina recém-amolada, ela disse:
— Eu sou uma quimera. Minha vida é lá.
Akiva sentiu alguma coisa percorrer seu corpo, talvez várias coisas: um tremor de amor e um calafrio de medo, um ímpeto de poder e uma onda de esperança. Esperança. Era verdade, nada podia matar a esperança, como os grandes besouros-escudo que ficavam inertes durante anos sob as areias do deserto, esperando que alguma presa passasse por perto. Que razões ele ainda tinha para sentir esperança?
Enquanto estiver vivo, dissera ele a Liraz, sem muita convicção, há sempre uma chance.
Bem, ele estava vivo, e Karou também, e ficariam no mesmo mundo. Eram provavelmente as razões mais frágeis para se ter esperança — estamos vivos e no mesmo mundo —, mas ele se agarrou àquilo enquanto lhe contava seus planos de voar até o portal de Samarcanda e queimá-lo primeiro, para então voltar ao do Marrocos. Queria lhe perguntar aonde os rebeldes iriam agora, mas não podia. Ele não podia saber aquilo. Ainda eram inimigos, e, quando saísse dali, Karou desapareceria de sua vida de novo — se por muito tempo ou se para sempre, ele não tinha como saber.
— De quanto tempo vocês precisam? — perguntou ele, sentindo um aperto na garganta. — Para voltarem?
Mais uma vez ela olhou em direção à porta, e Akiva sentiu o calor da fúria e da inveja, sabendo que ela iria até o Lobo assim que ele saísse dali, e que os dois planejariam juntos o que fazer em seguida e que, para onde quer que os rebeldes quimeras fossem, Karou ainda estaria com Thiago, e não — nunca — com ele. Então ele perdeu o controle. Deu um passo firme em direção a ela e disse:
— Karou, como...? Depois do que ele lhe fez?
Estendeu o braço para tocá-la, mas ela se encolheu e balançou a cabeça decididamente, uma única vez.
— Não.
Ele abaixou a mão.
— Você não pode me julgar — disse ela, em um sussurro alto e violento.
Os olhos dela estavam úmidos e arregalados e desesperadamente infelizes, e ele a viu levar a mão, por um antigo instinto, ao pescoço, onde costumava usar o cordão do osso da sorte. Ela o usava na primeira noite que passaram juntos; eles o partiram quando estava prestes a amanhecer e sabiam que era hora de se separarem, e nos dias que se seguiram aquilo se tornara um ritual. Sempre antes da partida. E, ainda que o desejo tivesse mudado com o passar dos dias e das semanas e se transformado no grande sonho deles de um mundo refeito, tinha começado bem mais simples: que eles pudessem se ver novamente.
Mas Karou não encontrou nada no pescoço, portanto abaixou a mão de novo. Então encarou Akiva diretamente e falou com frieza:
— Adeus.
Parecia o arrebentar de uma última corda. Enquanto estiver vivo, há sempre uma chance. Uma chance de quê?, perguntou-se Akiva, lançando um encanto sobre si mesmo e a irmã e então saindo para a noite. De que as coisas possam melhorar? Como tinha terminado a conversa naquele amargo campo de batalha, tantos dias antes?
Ou piorar. Era isso. Geralmente pioram.
84
APOCALIPSE
Karou sentiu a partida de Akiva como sempre sentia: com frio. O calor dele era como um presente que alguém dá para depois levar embora. Ela ficou lá, de costas para a janela, sentindo-se fria, destruída e abandonada. E irritada. Era uma raiva infantil: ao vê-lo, tivera vontade de socar seu peito e então desabar em cima dele e senti-lo abraçando-a.
Como se ele pudesse ser o porto seguro do qual ela estava sempre à procura sem nunca encontrar.
Respirou fundo. Achava que podia senti-lo se afastando, e a distância doía mais a cada bater de asas que imaginava. Inspirou várias vezes para se impedir de começar a soluçar. O braço de Issa estava em volta dela. Seja seu próprio porto seguro, disse a si mesma, empertigando-se. Nenhuma barra de madeira no mundo poderia protegê-la do que estava por vir, nem uma faquinha enfiada na bota — embora fosse continuar a carregá-la ali —, nem um homem, nem mesmo Akiva. Ela precisava ser a própria força, completa em si mesma.
Seja quem Brimstone acredita que você é, disse a si mesma, encorajando a força a surgir de repente de alguma profundeza desconhecida de si. Seja quem todas aquelas almas enterradas e todos os quimeras vivos precisam que você seja.
— Docinho, está tudo bem.
— Tudo bem?
Karou a encarou. Que parte estava bem? A ameaça de armas humanas em Eretz, ou a ameaça de serafins ali? Os anjos poderiam causar uma devastação imensa à sociedade humana só por existirem, que dirá solicitando armas para uma guerra além do conhecimento humano... O que ela tinha feito? Como podia ter deixado Razgut à solta em Eretz com aquela alma envenenada e o conhecimento letal que trazia consigo? Quantos mais erros desse tipo ela ainda poderia cometer, erros capazes de destruir mundos? Ela queria perguntar a Issa o que exatamente estava “bem”.
— Você amar Akiva. Não tem problema — disse Issa, e Karou sentiu um choque de surpresa percorrer seu corpo.
— Eu não... — tentou protestar, envergonhada, como de costume.
— Por favor, criança, você acha que eu não a conheço? Não vou dizer que existe um futuro fácil para vocês dois, ou mesmo qualquer futuro. Só não fique se punindo por isso. Você sempre sentiu a verdade no que ele é e diz, antes e agora. Seu coração não está enganado. Seu coração é a sua força. Você não precisa se envergonhar.
Karou olhou para ela, piscando para segurar as lágrimas. As palavras de Issa — sua permissão? — doeram mais do que ajudaram. Não havia como... E Issa com certeza sabia. Por que a torturava falando como se houvesse? Não havia. Não havia.
Karou procurou se conter. Seja aquele gato, pensou, lembrando-se de um desenho em seu caderno de desenho perdido. O gato que fica fora de alcance em um muro alto, sem precisar de ninguém. Nem mesmo de Akiva.
— Não importa — disse ela. — Ele foi embora, e precisamos ir também. Precisamos preparar todo mundo.
Ela olhou em volta. Dentes, ferramentas, turíbulos: teriam que levar tudo aquilo. Quando pensou na mesa, na cama e na porta, sentiu uma onda de tristeza. Por mais rústicos que fossem, eram muito mais do que ela tivera em sua jornada com os rebeldes antes de chegarem ali. Engoliu em seco, sentindo todo o horror de ser enxotada por uma porta em direção à escuridão.
— Issa — disse Karou, começando a tremer quando o medo daquele novo desafio tomou conta dela. — Para onde vamos?
* * *
Desenrolares possíveis, caminhos incompreensíveis de acasos e planos traçados. Mais tarde, Karou se perguntaria para onde eles teriam ido, e como tudo poderia ter sido imprevisivelmente diferente.
Se o Domínio já não tivesse chegado.
* * *
O grupo quimera estava reunido no pátio e pronto para voar quando ouviram um som à distância, um som tão trivial que parecia impossível de se ouvir ali, naquela desolação silenciosa. Era uma buzina. Uma buzina incessante e insistente, e o barulho dos pneus sobre pedras, com o descuido e a velocidade da urgência. Vários soldados saíram de formação, erguendo-se no ar para ver o que estava acontecendo além do muro. Karou foi a primeira.
Ficou sem ar, e seu coração disparou. Faróis na colina. Uma van. Alguém estava com o corpo para fora da janela de passageiro, balançando os braços, os gritos abafados pela buzina.
Esse alguém era Zuzana.
A van derrapou, guinou, parou. Zuzana saiu do carro, correndo em meio à poeira levantada, e Karou soube o que ela gritava antes mesmo de conseguir entender as palavras.
E soube que a responsabilidade pelo destino dos dois mundos estava de novo em seus ombros.
— Anjos! Anjos! Anjos!
Zuzana corria desesperadamente. Karou desceu, pegando a amiga pelos braços.
— Anjos — disse Zuzana, sem ar, com os olhos arregalados e o rosto pálido. — Minha Nossa, Karou. No céu. Centenas. Centenas. O mundo. Tá. Surtando.
Mik deu a volta depressa na van e veio para o lado de Zuzana, parando de repente. Karou ouviu um barulho na colina como um deslizamento de terra e sabia que os quimeras tinham se reunido atrás deles.
E então... ela sentiu calor. Zuzana, que olhava para além dela, perdeu o fôlego.
Calor.
Karou se virou, e ali estava Akiva. Por um longo instante, ele foi tudo o que ela viu. Até mesmo o Lobo era só um borrão branco, aproximando-se dela. Akiva voltara. Seu belo rosto estava tenso, sofrido.
— Tarde demais — disse ela suavemente, sabendo que aquele mundo que a abrigara, escondera, que lhe dera a arte e amigos e uma chance de uma vida normal, nunca mais seria o mesmo, independentemente do que acontecesse em seguida.
O grupo quimera, agitado com a presença do inimigo, observava Thiago, esperando pelo sinal que não veio. Os dois serafins estavam a menos que uma envergadura de asa de distância, e sua perfeição mítica e angelical era tudo o que as “feras” não eram. Karou os viu com seus olhos humanos, aquele exército que ela criara, mais monstruoso do que a natureza os fizera, e soube o que o mundo veria neles, caso voassem para combater o Domínio: demônios, pesadelos, o mal. A visão dos serafins seria anunciada como um milagre. Mas os quimeras?
O apocalipse.
— Não. Não é tarde demais — disse Akiva. — Isto é o começo.
Ele levou a mão ao coração. Só Karou podia saber o que ele queria dizer. E, ah... ela sabia — nós somos o começo —, então sentiu o calor se acender em seu próprio coração, como se tivesse sido ali que ele tocara.
— Venham conosco — continuou ele. Então se virou para Thiago, parado ao lado dela. Sua voz saiu arranhada, difícil, e seus olhos ardiam como fogo. Karou sabia o quanto era difícil para Akiva se dirigir ao Lobo, mas ele conseguiu: — Podemos combatê-los juntos. Eu também tenho um exército.
EPÍLOGO
As cavernas dos Kirin. Dois exércitos inquietos e desconfortáveis se agitam em nervosismo. Somente a grande extensão das cavernas garante a paz, mantendo-os afastados.
Os Ilegítimos alegam sentir o mal-estar causado pelos hamsás mesmo além das pedras. Os espectros, furiosos com as frias contagens marcadas em preto nos nós dos dedos dos inimigos, não desistem de colocar as mãos nas paredes que os separam. Não é um bom começo. Cada exército anseia por cortar as mãos dos soldados do outro e atirá-las no abismo gelado lá embaixo.
Akiva diz aos irmãos que a magia das marcas não passa pela pedra, mas eles não querem admitir. O tempo todo ele deseja que Hazael estivesse ali.
— A essa altura ele já teria feito todos jogarem uma partida de dados juntos — diz Akira para Liraz.
— Pelo menos a música ajuda — comenta ela.
Ela não se refere à música das cavernas. O som das flautas de bambu assombra a todos, fazendo tanto anjos quanto feras acordarem de pesadelos mais parecidos do que ambos poderiam imaginar. Os pesadelos dos Ilegítimos, de um país de fantasmas; os dos quimeras, de uma tumba cheia das almas dos seus amados. Só Karou se sente mais calma com a música do vento. É a canção de ninar da sua primeira infância, e ela foi surpreendida pelas duas noites de sono profundo e sem sonhos que passaram ali.
Mas não esta noite. É a véspera da batalha, e eles estão reunidos, várias centenas juntos, na caverna maior. O violino de Mik preenche o espaço com uma sonata de outro mundo, e estão todos em silêncio, ouvindo.
Inimigo em comum, seus comandantes lhes disseram. Causa em comum.
Por enquanto, pelo menos. Está implícito, ou assim se acredita, que em breve esta situação vai mudar — reverter — e que eles ficarão livres para mais uma vez perseguirem seu ódio como sempre fizeram, quimeras contra serafins, serafins contra quimeras. A esperança — a de Karou, a do Lobo, a de Akiva e até a de Liraz — é de que o ódio deles possa se transformar em algo diferente antes que esse dia chegue.
Parece um teste para o futuro em Eretz.
A cabeça de Zuzana está em um dos ombros de Karou, e Issa está do outro lado. O Lobo não está longe; Ziri ficou mais à vontade em seu novo corpo, e, deitado de costas, reclinado sobre os cotovelos, ao lado do fogo, ele parece elegante, a crueldade do antigo ocupante ausente de seu rosto a não ser quando ele se lembra de tentar colocá-la ali. Seus sorrisos não parecem mais saídos de um livro. Karou percebe que ele a olha, mas não retribui o olhar. Sua atenção é atraída para outra direção, para o outro lado da caverna, onde Akiva está sentado junto à outra fogueira com seus próprios soldados em volta.
Ele está olhando para ela.
Como sempre acontece quando estão juntos, é como se houvesse um estopim aceso queimando no ar que os separa. Nestes últimos dias, quando isso acontece, ou um ou outro desvia os olhos rapidamente, mas desta vez eles deixam o estopim queimar. Estão preenchidos pela visão um do outro. Ali, naquela caverna, aquela reunião extraordinária — aquele fervilhar de ódios em colisão, controlados temporariamente por um ódio em comum — podia ser seu sonho de tanto tempo atrás, visto através de um espelho distorcido. Não era assim que deveria ser. Eles não estão lado a lado como imaginaram um dia. Não estão exultantes e não se sentem mais como se fossem os instrumentos de uma força maior. São criaturas agarrando a vida com mãos manchadas. Há muita coisa entre os dois, todos os vivos e todos os mortos, mas por um instante tudo se desfaz e o estopim queima mais forte e com mais força, e Karou e Akiva quase sentem como se estivessem se tocando.
Amanhã eles vão dar início ao apocalipse.
Esta noite eles se permitem olhar um para o outro, apenas um pouco mais.
Laini Taylor
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