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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DIAS SOMBRIOS / Derek Landy
DIAS SOMBRIOS / Derek Landy

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Quando Dreilho Escaravelho foi trancafiado naquela celinha, ele não pensava em nada além de assassinatos. Ele gostava de assassinatos. Assassinatos e longas caminhadas tinham sido duas das coisas favoritas dele, quando mais jovem. “Eu faria uma longa caminhada para assassinar alguém”, costumava dizer Escaravelho, “e assassinaria alguém por uma longa caminhada”. Porém, depois de quase 200 anos naquela cela, o sujeito meio que tinha perdido o interesse pelas caminhadas. A paixão que nutria pelos assassinatos, por outro lado, ardia mais forte do que nunca.
Escaravelho foi solto alguns dias antes da data marcada, e saiu para o sol do Arizona um homem velho. Eles tinham lhe tirado o poder mágico, e, sem poder mágico, o corpo de Escaravelho tinha mirrado e envelhecido. Mas a mente se mantivera afiada. Apesar de todos os esforços deles, os anos não lhe embotaram o intelecto. Mesmo assim, ele não gostava de ser velho. Escaravelho contou quanto tempo lhe foi necessário para atravessar a rua, e não ficou satisfeito com o resultado.
O velho ficou ali parado por duas horas. A poeira subiu e lhe entrou nos olhos. Escaravelho olhou em volta, procurando alguma coisa para matar, mas controlou o impulso. A entrada da prisão subterrânea ficava logo ali, a dois passos, e matar alguma coisa enquanto os guardas ainda o vigiavam provavelmente era uma má ideia. Além disso, a magia de Escaravelho ainda não tinha voltado, então mesmo que houvesse alguma coisa no deserto que valesse a pena assassinar, o velho talvez não fosse capaz de fazê-lo.

 


 


Uma forma surgiu por entre o tremeluzir do calor no ar, se solidificando num automóvel preto, com ar-condicionado. O carro parou e um homem saiu dele lentamente. Escaravelho levou um momento para reconhecê-lo.

— Por que infernos você não veio me libertar? — grunhiu Escaravelho. A própria voz o deprimiu. No ar aberto, longe do espaço fechado da prisão, até mesmo o grunhido soou idoso e frágil.

O homem deu de ombros.

— Eu meio que estava torcendo para você morrer lá dentro, pra ser honesto. Tem certeza de que não morreu? Parece bem morto. Cheira a morto também.

— Vou viver tempo suficiente para fazer o que precisa ser feito.

O outro homem concordou com a cabeça.

— Achei mesmo que você ia querer vingança. No entanto, Équus Meritório já capotou. Nefasto Serpênteo o matou. Alguns outros já foram despachados também, depois que você foi engaiolado.

Escaravelho estreitou os olhos.

— E o Ardiloso Cortês?

— Desaparecido. Uns dois Sem-Rosto vieram por um portalzinho faz uns dez, onze meses. Os bicharocos foram expulsos, mas arrastaram o esqueleto junto.

— Eu perdi toda a diversão — resmungou Escaravelho, sem achar graça.

— Os camaradas do detetive tão procurando por ele desde então. Se quiser minha opinião, ele tá morto. Definitivamente, desta vez. Mas você pode dar sorte, quem sabe. Talvez vão achar o cara e trazer ele de volta. Aí sim você vai poder matar o cara.

— E quanto a Grêmio?

O outro homem abriu um sorriso de dentes brancos.

— Ele é o novo Grande Mago na Irlanda. É um alvo perfeito pra você.

Escaravelho sentiu um formigar, um leve zumbido nos ossos, e seu coração se acelerou. Era a sensação da mágica retornando, depois de tanto tempo confinado. O velho conseguiu manter a voz, seca e rachada, livre do júbilo que sentia.

— Não. Não é só ele. São todos eles. Vou fazer com que todo mundo pague. O mundo vai desmoronar pelo que eles me fizeram.

— Então você tem um plano, pelo jeito.

— Vou destruir o Santuário.

O homem tirou os óculos e os limpou.

— Vai precisar de ajuda?

Escaravelho olhou para o homem, desconfiado.

— Não tenho nada com que lhe pagar, e não há lucros na vingança.

— Essa é pra ser de graça, velho. E conheço uns parceiros que vão se interessar em participar. Todos nós temos assuntos a resolver na Irlanda. — Billy-Ray Sanguíneo botou os óculos escuros, cobrindo os buracos negros onde os olhos um dia ficaram. — Estou pensando numa mocinha em particular.


2

INVASÃO DE DOMICÍLIO

Ela sentia saudades dele.

Sentia saudades da voz, do senso de humor e da arrogância calorosa. Sentia falta também daqueles momentos na companhia dele em que ela percebia que dessa forma se sentia viva; finalmente viva, ao lado de um homem morto.

Há onze meses ele se fora, e há quase um ano Valquíria estava procurando a caveira original dele, que serviria de ferramenta para a reabertura do portal. Então ela o resgataria. A adolescente dormia quando tinha de dormir, e comia quando precisava comer. Ela deixou que a busca a consumisse. Passava cada vez menos tempo com os pais. Esteve na Alemanha, na França e na Rússia. Chutou portas apodrecidas e correu por ruas escuras. Tinha seguido as pistas, tal e qual ele a ensinara, e agora, finalmente, estava perto.

Ardiloso uma vez lhe dissera que a cabeça que usava não era a verdadeira cabeça dele: ele a ganhara num jogo de pôquer. Contou que a cabeça verdadeira tinha sido roubada enquanto o esqueleto dormia, por coisinhas duêndicas que fugiram com ela no meio da noite. Naquela ocasião, Ardiloso não tinha dado mais detalhes, mas ela conseguiu preencher as lacunas depois.

Vinte anos antes, uma igrejinha no meio do interior da Irlanda tinha sido infestada com algo que parecia ser um poltergeist. O espírito furioso estava promovendo o caos, aterrorizando os habitantes e espantando a polícia, quando eles vieram investigar. Ardiloso foi convocado por um velho amigo e assim ele chegou, enrolado no cachecol com o chapéu bem puxado.

A primeira coisa que o detetive descobriu foi que o culpado não era um poltergeist. A segunda coisa que ele percebeu foi que provavelmente se tratava de algum tipo de duende, e que certamente era mais de um. O terceiro fato que o esqueleto desencavou era que a igreja, por menor e mais simples que fosse, tinha uma cruz de ouro sólido montada atrás do altar, e se tinha uma coisa que os duendes amavam, era o ouro.

— Na verdade, se há uma coisa que os duendes amam — comentou Ardiloso — é comer bebês, mas o ouro vem logo atrás.

Os duendes estavam tentando assustar e afastar todo mundo por tempo suficiente para que pudessem arrancar a cruz e fugir com ela. Ardiloso montou acampamento e esperou. Para passar o tempo, o esqueleto mergulhou num estado meditativo, de modo a ser acordado logo que alguém se aproximasse da igreja.

Naquela primeira noite, assim que os duendes chegaram, ele saltou, gritando e jogando bolas de fogo, dando um baita susto nos bichos. Na segunda noite eles se esgueiraram, sussurrando para encorajar uns aos outros; o detetive apareceu detrás deles, rugindo maldições, e as criaturinhas saíram correndo de novo, chorando de medo. Mas na terceira noite os monstrinhos o surpreenderam, e em vez de se esgueirarem até a igreja, eles se esgueiraram até ele e agarraram-lhe a cabeça, enquanto Ardiloso estava num transe meditativo profundo. Quando finalmente entendeu o que estava acontecendo, eles tinham sumido, e o Sr. Cortês não tinha mais onde colocar o chapéu.

Usando um crânio que não era o dele, as investigações de Ardiloso revelaram que os duendes tinham criado problemas com um mago chamado Travíssio, que tinha lhes roubado as parcas posses e vendido tudo. As investigações pararam aí, pois outros acontecimentos passaram a exigir a atenção de Ardiloso. Ele sempre planejara voltar ao assunto, mas nunca o fez, então o restante cabia a Valquíria.

A caveira, conforme ela descobriu, tinha sido comprada por uma mulher como presente-surpresa e, o que era ainda mais perturbador, um presente de casamento para o futuro marido. A mulher em seguida utilizou o crânio para espancar o cônjuge até uma morte sangrenta e suja, quando descobriu que ele a estava roubando. A investigação do homicídio foi conduzida pela polícia “mortal” (Valquíria odiava essa expressão), portanto a caveira tinha sido apreendida como uma das provas do crime. Agora conhecido como Caveira da Morte, o crânio foi parar no mercado negro, e mudou de dono quatro vezes até que um feiticeiro chamado Umbra sentiu os traços de magia contidos no objeto. Umbra comprou a caveira e, dentro de um ano, ela passou para as mãos de Tâmisa Camarada, um notório negociante, mercador inescrupuloso e personagem completamente questionável. Até onde todos sabiam, Camarada ainda estava com o crânio. Fora necessário um esforço tremendo para simplesmente entrar em contato com o homem, e Valquíria tinha sido obrigada a usar métodos nada ortodoxos para tanto.

O método nada ortodoxo estava na lateral da rua silenciosa, com as mãos nos bolsos. Ele se chamava Esguio. Tivera talvez uns 19, 20 anos quando morreu. Era alto, de cabelo negro e as maçãs do rosto eram riscos sombrios na face. O rapaz deu uma olhada em Valquíria quando esta se aproximou, em seguida desviando os olhos rapidamente. O crepúsculo se aproximava. Ele provavelmente estava ficando com fome. Era uma tendência muito comum entre os vampiros.

— Então, tudo combinado? — indagou a jovem.

— Camarada vai se encontrar com você às 10h — murmurou o vampiro. — Amanhã de manhã. A Muralha, na Grafton Street.

— Certo.

— Não se atrase. Ele não costuma esperar.

— E você tem certeza de que é a cabeça do Ardiloso?

— Foi o que o Camarada falou. No entanto, ele não sabe por que é tão valiosa para você.

Valquíria concordou com a cabeça, mas não respondeu. Ela não explicou sobre a Âncora de Istmo, um objeto que pertencia a uma realidade mas residia em outra. Não lhe contou como a âncora mantinha os portais entre as realidades abertos, como resultado, e também não disse que lhe bastariam apenas a cabeça original de Ardiloso e um Teleportador disposto para que ela conseguisse abrir um portal perto de Ardiloso. Ela tinha o Teleportador. Agora só faltava o crânio.

Esguio olhou para o sol poente.

— Melhor eu ir logo. Tá ficando tarde.

— Por que você está fazendo isto? — indagou Valquíria subitamente. — Não estou acostumada a ver pessoas me ajudando sem motivo nenhum.

Esguio evitou olhar a adolescente.

— Há algum tempo você aprisionou um homem chamado Crepúsculo. Eu não gosto dele.

— Também não sou muito fã desse cara.

— Você lhe deu uma cicatriz, ouvi dizer.

— Ele mereceu.

— É, mereceu, sim.

Esguio fez uma pausa e, em seguida, se afastou. Os movimentos dele faziam Valquíria lembrar da graça predatória e terrível de um tigre.

Depois que o vampiro se foi, Tanith Low emergiu do beco do outro lado da rua, superloira e supervestida de couro marrom, escondendo a espada por debaixo do sobretudo.

Tanith levou Valquíria para casa, e a adolescente parou sob a janela do quarto e abriu os braços para os lados, agarrando o ar penetrante e o usando para se erguer até o parapeito. Deu batidinhas no vidro, e uma luzinha se acendeu. A janela se abriu e o próprio rosto da adolescente — cabelos e olhos negros — a espiou de volta.

— Achei que você não voltaria mais hoje — disse o reflexo.

Valquíria entrou pela janela sem responder. O reflexo observou enquanto ela fechava o vidro e tirava o casaco. Estava tão frio dentro quanto do lado de fora, e Valquíria sentiu um calafrio. O reflexo fez o mesmo, imitando uma reação humana a uma condição que jamais experimentara.

— Comemos lasanha no jantar — anunciou. — Papai está tentando arrumar ingressos para a final do campeonato irlandês no domingo, mas ainda não conseguiu.

Valquíria estava cansada, então simplesmente fez um gesto indicando o grande espelho de corpo inteiro dentro da porta do armário. O reflexo, que não tinha sentimentos a serem feridos, entrou no vidro, em seguida se virando e esperando. A adolescente tocou o vidro e as memórias do reflexo fluíram para a mente dela, se ajeitando ao lado das memórias já estabelecidas. Valquíria fechou o armário e percebeu que não ia em casa havia oito dias. Sentiu uma vontade súbita de ver os pais, e não de apenas se contentar com memórias vistas pelos olhos de uma substituta desprovida de emoções. Mas os pais estavam adormecidos no outro quarto, e Valquíria sabia que teria de esperar até de manhã.

Ela tirou um anel negro do dedo e o colocou na mesinha de cabeceira. Medonho, Tanith e Porcelana não gostavam do anel; afinal, era uma ferramenta de Necromante. Mas Valquíria precisou de algo mais para lidar com tudo o que teve de encarar nos últimos onze meses, e a aptidão natural para a Necromancia a tinha provido com a pura força que lhe fora necessária.

Valquíria tirou a roupa, largando a blusa sem mangas e a calça no chão, sobre as botas. Nenhuma das roupas feitas por Medonho jamais ficava amassada, o que a deixava muito grata. Valquíria vestiu o short e uma camiseta do time de futebol de Dublin que tinha ganhado do pai no último natal, e então se deitou. Ela apagou a luz e puxou rapidamente o braço para baixo das cobertas.

Amanhã, pensou. Amanhã eles encontrariam o crânio e amanhã o usariam para abrir o portal. Onde quer que Ardiloso estivesse, o portal se abriria por perto. Valquíria pensou nisso e no que faria quando o visse novamente. Imaginou uma cena na qual ela correria até o detetive e o abraçaria, sentindo a armação por sob as roupas que lhe davam a aparência de massa, e tentou imaginar a primeira coisa que o esqueleto lhe diria. Algo seco, ela sabia. Algo sarcástico e engraçado. Provavelmente se gabaria.

Ao olhar para o despertador, Valquíria percebeu que já estava deitada havia uma hora. Suspirou, girou o travesseiro para o lado geladinho e se virou, espantando esses pensamentos da cabeça, e finalmente recebeu o abraço bem-vindo do sono.

Foi um sono inquieto, agitado. Valquíria acordou no meio da noite e viu que havia alguém de pé olhando para ela. O coração disparou, mas, mesmo em meio ao choque, ela repassou uma lista de possibilidades — mãe pai Tanith — e então o homem se abaixou e envolveu o pescoço da menina com as mãos.

Valquíria se contorceu, tentando chutar, mas as cobertas prendiam-lhe as pernas. Lutou para se livrar do enforcamento, mas o atacante era forte demais. Os dedos dele se cravaram na garganta da presa e o sangue latejava nas têmporas. Ela ia desmaiar.

As cobertas se soltaram e Valquíria chutou a coxa do homem. Este moveu a perna para trás, mas não afrouxou o estrangulamento. Ela apoiou os dois pés na barriga dele e tentou empurrar. A silhueta escura ficou onde estava, erguendo-se sobre a vítima. Ela ia morrer. Valquíria soltou o pulso do inimigo e empurrou o ar, mas o ataque foi muito fraco para ter efeito. Estendeu a mão para o anel de Necromante, desesperadamente pondo-o no dedo, e imediatamente sentiu as trevas nele contidas, frias e enrodilhadas. Ela fechou a mão e golpeou. Um punho de sombras acertou o peito do invasor e, de repente, os dedos sufocantes tinham sumido, e o homem estava cambaleando para trás. Valquíria saltou da cama, estendeu as palmas para a frente e o homem foi atirado. Ele acertou a parede e caiu, se esborrachando na escrivaninha. Ela estalou os dedos, conjurando uma chama na palma da mão e iluminando o quarto.

Por um momento, ela não o reconheceu. As roupas estavam uma bagunça — camadas de vestimentas rasgadas e imundas, botas cobertas de lama seca e luvas com dedos cortados. O cabelo estava mais longo e desgrenhado, e o rosto estava sujo. Mas foi a barba que o denunciou. A barbicha pontuda que Remus Crucial sempre usou para esconder o queixo fraco.

Valquíria ouviu o pai gritar seu nome, então apagou o fogo. Os pais dela entrariam a qualquer momento. A menina usou um chicote de sombras para arrastar a cama e bloquear a porta.

— Stephanie! — gritou a mãe, do corredor, quando a maçaneta se revelou inútil.

Valquíria se virou novamente para Crucial bem no momento em que ele a agarrou e a jogou contra a parede. Ela se recuperou e pulou sobre o ex-detetive, usando o joelho para empurrá-lo. A adolescente pulou de novo, estendendo as duas pernas e acertando os pés no peito dele. Ele recuou, tropeçou nas roupas largadas no chão e caiu. Bateu com a cabeça na mesinha de cabeceira.

Os pais dela faziam o máximo para arrombar a porta.

Num espaço tão pequeno, os poderes Elementais de Valquíria não resolveriam o problema. O anel de Necromante gelou no dedo quando a menina reuniu as trevas. Valquíria se concentrou num ponto e liberou a energia. O ataque atingiu o ombro de Crucial, que cambaleou para trás. A menina repetiu o golpe, acertando a perna esquerda do inimigo, que desabou no chão.

— Steph! — rugiu o pai dela. — Abra a porta! Abra essa porta agora!

Crucial avançou novamente antes que Valquíria pudesse atacar outra vez. Com uma das mãos ele lhe pegou o pulso, apontando o anel para longe, e com a outra agarrou-lhe o pescoço. O invasor prensou-a contra a parede, empurrando-a com o próprio corpo, impedindo que ela contra-atacasse. O homem estreitou os olhos, mas mesmo assim Valquíria conseguiu ver a loucura dentro deles.

A janela se estilhaçou sobre os dois. Valquíria ofegou quando Crucial foi arrancado de cima dela. Sombras turbilhonaram e mil flechas de trevas voaram contra o invasor, que saltou, quase não conseguindo escapar da barragem. O sujeito rosnou, se atirando para fora pela janela partida.

Salomão Mortalha virou-se para Valquíria, verificando se ela estava bem, enquanto sombras se entrelaçavam ao redor da bengala que ele trazia na mão.

A porta bateu na cama, que se moveu. Mortalha seguiu Crucial janela afora e Valquíria empurrou a cama para fora do caminho. Os pais dela entraram, a mãe envolvendo a filha num abraço enquanto o pai vasculhava o quarto, em busca de um intruso.

— Cadê ele? — gritou o pai.

Valquíria olhou para ele por sobre o ombro da mãe.

— Cadê quem? — indagou, sem precisar fingir muito, de modo a parecer abalada.

O pai se virou para a filha.

— Quem estava aqui?

— Ninguém.

A mãe segurou os ombros de Valquíria e deu um passo atrás, para olhá-la direito.

— O que aconteceu, Steph?

Valquíria olhou o quarto em volta.

— Um morcego — decidiu ela.

O pai ficou paralisado.

— O quê?

— Um morcego. Entrou pela janela.

— Um... morcego? Parecia que você estava sendo atacada aqui dentro.

— Espere — falou a mãe. — Não, nós ouvimos a janela quebrar depois de tudo mais.

Droga.

Valquíria concordou com a cabeça.

— Ele já estava aqui dentro. Acho que estava no canto. Deve ter entrado voando alguns dias atrás e, sei lá, hibernou, ou coisa assim.

— Stephanie — afirmou o pai. — Este quarto parece um campo de batalha.

— Eu entrei em pânico. Pai, era um morcego. Um bicho gigantesco. Acordei e ele estava esvoaçando pelo quarto, e eu caí em cima da escrivaninha. O bicho caiu no chão e eu tentei empurrar a cama em cima dele. Aí ele voou pela janela afora.

Valquíria torceu para que os pais não percebessem que todos os cacos de vidro estavam do lado de dentro.

O pai relaxou a postura, aliviado.

— Eu achei que estava acontecendo alguma coisa horrível.

A menina franziu a testa.

— E estava acontecendo alguma coisa horrível. Ele podia ter se embolado no meu cabelo!

Depois de ela aturar mais alguns minutos de preocupação dos pais, e de verificar se não tinha cortado os pés nos cacos, a mãe dela a ajudou a se ajeitar na cama do quarto de hóspedes e finalmente lhe deu boa-noite.

Valquíria esperou até que os pais estivessem de volta à cama para poder se esgueirar janela afora. Ela se deixou cair, aparando a descida com o ar. Os pés descalços tocaram a grama úmida e a menina se abraçou para afastar o frio intenso.

— Ele fugiu — anunciou Mortalha, detrás dela.

Valquíria se virou. Mortalha estava ali, alto e bonito, num estilo meio pálido, vestido de preto. Ele era tão alto quanto Ardiloso, e tão calmo, mas eles compartilhavam outras características também. Ambos eram excelentes professores. Ardiloso tinha ensinado magia Elemental a ela, e Mortalha a estava educando no caminho da Necromancia, porém os dois a tratavam como uma igual. Nem todos os magos que ela conhecera fizeram o mesmo. Outro talento de Ardiloso que Mortalha também tinha era a habilidade de aparecer na hora certa, coisa pela qual Valquíria lhes era muito grata.

— O que você está fazendo aqui? — indagou. Ela não o agradeceu. Mortalha não acreditava em agradecimentos.

Os olhos do Necromante brilhavam enquanto ele respondia.

— Ouvi que Remus Crucial tinha sido avistado nesta área — explicou —, e naturalmente presumi que ele viria atrás de você. Parece que eu estava certo.

— E por que você não me contou isso? — inquiriu Valquíria, batendo os dentes.

— A isca não precisa saber que é isca. Crucial poderia ter pressentido uma armadilha e teria voltado às sombras.

— Não gosto de ser isca, Salomão. Ele poderia ter tentado atacar minha família.

— Ele não quer nada com a sua família. Não sabemos por que ele está atrás de você, mas pelo menos sabemos que está.

Mortalha não ofereceu o casaco. Ardiloso já o teria feito.

— Não quero que isso aconteça de novo — afirmou ela. — Minha cidade não é lugar para essas coisas. Porcelana Tristeza pode preparar símbolos e signos que o impedirão de entrar em Haggard. E amanhã mesmo vou pedir a ela que faça isso.

— Muito bem.

— Salomão, da próxima vez que alguma coisa assim acontecer, quero que você me avise antes que eu seja atacada.

Ele sorriu.

— Tentarei me lembrar disso. Você pode voltar para casa em segurança. Ficarei de guarda até de manhã.

Valquíria concordou com a cabeça e se posicionou abaixo da janela do quarto de hóspedes.

— Ah, e o crânio? — indagou Mortalha. — Você está perto de recuperá-lo?

— Vamos nos encontrar com o vendedor amanhã.

— E você tem certeza de que se trata do crânio certo? Você já se decepcionou antes.

— Desta vez é diferente. Tem de ser.

Mortalha se despediu com uma reverência e bateu com a bengala no chão, convocando as sombras para envolvê-lo. Quando elas se dispersaram, ele tinha sumido. Era um truque de Necromancia, semelhante à teleportação, mas com alcance muito menor. Costumava impressioná-la. Agora não mais.

Valquíria levantou os braços e uma rajada de vento frio a ergueu. Ela entrou pela janela e a fechou em seguida, esfregando os pés no carpete para secá-los. Se enfiou debaixo das cobertas e se enrolou numa bola, tremendo.

Não conseguiu dormir muito.


3

O PLANO COMO ELE É

Na manhã seguinte, Valquíria voltou ao próprio quarto. Estava congelando. Havia vidro por toda parte, e a escrivaninha estava despedaçada. A adolescente ligou para Porcelana Tristeza e explicou o que precisava. Durante os últimos seis meses, Porcelana ensinava a linguagem da magia a jovens feiticeiros, e disse que mandaria os estudantes construírem um sistema de aviso por toda a cidade.

Valquíria agradeceu e desligou, em seguida abrindo o armário e tocando o espelho. O reflexo dela saiu e rastejou para debaixo da cama, de modo a ficar escondido enquanto Valquíria vestia o uniforme da escola e descia. Já fazia uma semana desde que tinha tomado café com os pais pela última vez, e a adolescente estava empolgada em passar algum tempo com eles. Também estava determinada a garantir que aquele seria o dia em que recuperaria Ardiloso.

Os pais falaram da janela quebrada, e o pai estava confiante de que conseguiria substituí-la, mas a mãe não tinha tanta certeza. Por fim, o pai anunciou os planos.

— Vou tirar metade do dia de folga — afirmou. — Vou me encontrar com alguns clientes e vou levá-los para uma volta rápida pelos nove.

A mãe olhou para o marido.

— Pelos nove o quê?

— Não sei bem — admitiu. — É um termo de golfe. Os caras da minha idade dizem isso toda hora. Eu queria levar os clientes à final do campeonato de futebol no domingo, mas o golfe hoje à tarde vai ter que resolver.

— Você não sabe jogar golfe.

— Mas eu já vi na tevê, e parece bem simples. Só precisa acertar a bola com a coisa.

— Taco.

— Viu? Nada mais fácil.

— Mas sua coordenação motora não é lá grande coisa, e você odeia caminhadas e carregar coisas. E você também vive dizendo que golfe é idiota.

— Golfe é idiota — concordou o pai.

— Então por que você quer levar seus clientes para jogar golfe?

— Basicamente por causa da roupa. Os coletes de gola V e a estampa de losangos, e as calças com as meias por cima.

— Acho que ninguém mais se veste assim.

— Ah.

Valquíria frequentemente pensava que os pais dela eram perfeitos um para o outro. Duvidava que alguém mais seria capaz de apreciar como eles eram realmente estranhos.

A adolescente terminou de tomar o café da manhã e voltou para o quarto, para vestir as roupas negras. O reflexo pegou cada peça do uniforme e vestiu, conforme Valquíria as tirou.

Numa cidade chamada Roarhaven, quase dois anos atrás, Ardiloso tinha dado um tiro no reflexo dela e o matou. O propósito original do reflexo tinha sido ocupar o lugar de Valquíria no “mundo normal” enquanto ela estivesse com Ardiloso; mas, como consequência do uso excessivo, ele começou a desenvolver alguns comportamentos estranhos, um problema que piorou quando ele “morreu”. Eles devolveram o “corpo” ao espelho, e o reflexo voltou à imitação de vida sozinho, mas depois disso ficou ainda mais imprevisível. A entidade tinha se libertado de alguns dos próprios limites, como, por exemplo, a nova capacidade de trocar de roupas, e de vez em quando havia falhas na memória.

Mas Valquíria não tinha tempo para se preocupar com nada disso agora. Ela precisava recuperar a cabeça de Ardiloso. Além disso, alguém tinha que ir para a escola hoje, e certamente não seria ela.

A adolescente abotoou as calças negras e calçou as botas, deixando a barra da calça cair por sobre o cano alto. A blusa não tinha mangas, mas era quente, e quando ela vestiu o casaco, era como se estivesse embrulhada num cobertor térmico. O material reagia à temperatura ambiente e do corpo dela, mantendo-a confortável em qualquer situação. O casaco era preto, mas as mangas eram do vermelho de sangue seco. Uma criação de Medonho Reservado.

O reflexo pegou a mochila de Valquíria no chão e saiu, fechando a porta atrás de si.

Valquíria ligou para Fletcher Renn, que surgiu no espaço vazio ao lado dela. O telefone chiou na mão da adolescente enquanto a rede telefônica tentava compensar o deslocamento, depois desistiu. O cabelo louro do rapaz estava cuidadosamente bagunçado, e ele trazia o sorriso arrogante e zombeteiro de sempre. Vestia um jeans velho, botas gastas e um casaco do exército, e o único problema com a aparência dele era que Fletcher sabia que era bonito.

— O que aconteceu aqui? — indagou o Teleportador, e o sorriso se desfez quando ele percebeu a confusão no quarto.

— Fui atacada.

Fletcher arregalou os olhos e agarrou a adolescente, como se quisesse se assegurar de que ela estava viva.

— Tá tudo bem? Você se machucou? Quem foi?

— Eu tô bem, Fletcher. Conto tudo pra você quando contar aos outros.

— Foi o vampiro, não foi?

— O quê?

Fletcher soltou Valquíria e deu um passo atrás.

— Aquele fulano de ontem à noite. O vampirinho sonso.

— O nome dele é Caelan. E não, claro que não.

Fletcher assentiu lentamente.

— Está bem, então. E você tem certeza de que tá tudo bem?

— Eu tô bem.

— O que ele falou, afinal? O “vamp”.

— Ele marcou uma reunião, como tinha dito que faria.

— Nada de papinho, então?

— Não é o estilo dele.

— Fortão e caladão, é?

— Acho que sim. E o sol tava se pondo.

— Ah, entendi. Ele provavelmente não queria se transformar num monstro horrível e fazer picadinho de você logo no primeiro encontro.

— Tô começando a desconfiar que você não gosta muito dele.

— Bem, não, por causa dessa coisa de monstro terrível. E você, gosta?

— Se eu gosto dele? Não. Nem conheço o cara.

— Certo, muito bem então — Fletcher parecia satisfeito. — Posso te perguntar uma coisa?

— Acabou de perguntar.

— Posso perguntar outra coisa?

— Você poderia perguntar coisas em algum lugar onde meus pais não vão escutar a gente?

Fletcher pegou a mão da menina e, num piscar de olhos, estavam no telhado da Alfaiataria Reservado. O teleporte nem tonteava mais Valquíria.

— Pode perguntar — falou Valquíria.

O rapaz hesitou e então perguntou, muito casualmente.

— Você acha que as coisas vão voltar ao normal pra você depois que resgatarmos o Ardiloso? Você e ele, por aí decifrando crimes e vivendo aventuras e coisas assim?

— Acho que sim. Não vejo por que não.

— Legal. — O rapaz concordou com a cabeça. — É bom que isso esteja finalmente terminando, né? Depois de tudo o que a gente fez e passou.

— Esses últimos meses foram horríveis mesmo — admitiu Valquíria.

— É, eu sei. Mas, ao mesmo tempo, tipo, eu até que, sabe, gostei.

Valquíria não disse nada.

— Não de um jeito ruim! — acrescentou Fletcher, rindo. — Eu não gostei do fato de ele ter se perdido, ou de você se preocupar tanto com ele. Só quis dizer que, para mim, ser parte disso tudo tem sido legal. Gostei de participar da equipe.

— Sei.

— Então, quer dizer, eu tava pensando, me perguntando, você acha que ele deixaria eu participar dos casos de vocês?

Valquíria inspirou fundo de repente.

— Eu... realmente não sei.

— Eu seria bem útil, você tem que admitir. Vocês não precisariam mais ficar andando por aí naquele carro velho dele.

— Ele ama o Bentley. E eu também.

— Eu sei, eu sei, mas, mesmo assim, você poderia talvez falar disso com ele, quando ele voltar.

— Eu vou — respondeu a jovem. — Tocar nesse assunto.

— A não ser que você não me queira por perto.

Valquíria ergueu uma das sobrancelhas.

— Por acaso eu disse isso?

— Não, mas... Bem, na verdade, sim, você já disse isso várias vezes.

A menina encolheu os ombros.

— Só quando você me chateia.

— E eu chateei você recentemente?

— Você está me chateando agora...

Fletcher sorriu e Valquíria estendeu a mão.

— Andar de baixo.

Ele tomou a mão dela e fez uma mesura.

— Sim, milady.

Instantaneamente, eles estavam nos fundos da Alfaiataria Reservado.

— Você já pode soltar minha mão — afirmou Valquíria.

— Eu sei — respondeu Fletcher. — Mas não estou a fim.

A menina girou o pulso, forçando-o a soltá-la de maneira relativamente indolor.

Os dois sentiram cheiro de café e ouviram vozes conversando e, ao emergir na loja, encontraram Tanith e Medonho Reservado sentados à mesinha junto à parede. Medonho estava balançando a cabeça cheia de cicatrizes, aborrecido.

— O que houve? — perguntou Valquíria.

— Dreilho Escaravelho saiu da prisão ontem — explicou Tanith.

— Quem é Dreilho Escaravelho? — perguntou Fletcher.

— É o assassino que matou Esryn Vanguarda.

— Quem é Esryn Vanguarda? — inquiriu Fletcher.

Valquíria estava grata pela presença de Fletcher. Finalmente alguém que sabia menos do que ela.

— Vanguarda era um ex-soldado que virou pacifista — contou Medonho. Valquíria percebeu a borda de uma atadura emergindo do colarinho da camisa dele. Não tocou no assunto. — Isso foi há o quê? Uns 200 anos? Ele falava numa solução pacífica para a guerra contra Malevolente, uma que não resultasse num lado subjugando o outro.

— Bom-senso, em outras palavras — acrescentou Tanith. — Isso foi muito antes do meu tempo, mas me lembro dos meus pais falando nele.

Medonho continuou.

— Malevolente se cansou de ver Vanguarda constantemente enfraquecendo o moral e a convicção das tropas dele, então mandou Escaravelho matá-lo.

— E agora, 200 anos depois — complementou Tanith —, Escaravelho cumpriu a sentença e está livre. Estou surpresa por ele ter durado tanto, na verdade. Após alguns poucos anos confinados numa cela, os feiticeiros começam a envelhecer de novo. Acho que todo mundo esperava que a idade acabasse com ele.

— Ele deveria estar morto — comentou Medonho, baixinho. — Ele matou um grande homem.

— Vocês sabem quem mais deveria estar morta? — indagou Fletcher, animado. — Valquíria. Ela foi atacada ontem à noite.

Tanith e Medonho a encararam e Valquíria suspirou, e em seguida contou do ataque de Crucial.

Medonho estreitou os olhos.

— Então Mortalha simplesmente calhou de estar passando por ali enquanto tudo isso acontecia? Até onde sabemos, ele pode ter orquestrado a coisa toda só para poder aparecer e salvar o dia. Digo, a noite.

— Ele não salvou nada — retrucou Valquíria, um tanto quanto na defensiva. — Eu teria vencido Crucial. De algum jeito.

— Medonho tem razão — opinou Tanith. — Não sabemos o que Crucial andou fazendo desde Aranmore. Aquele relance de Sem-Rosto que ele teve destruiu-lhe a mente, Val. Ele poderia muito bem estar sob o controle de Mortalha.

— Salomão Mortalha está do nosso lado — declarou Valquíria, cansada da discussão, que eles já tinham repetido dezenas de vezes. — E por que ele mandaria Crucial atrás de mim? O que ele ganharia com isso?

Tanith encolheu os ombros.

— Nós estamos quase resgatando Ardiloso, e ele quase perdendo a pupila preferida. Assim ele conquista a sua confiança e, com sorte, você acabará escolhendo a Necromancia em vez da magia Elemental.

Valquíria tateou o anel que tinha no dedo. Ela não o tirou a noite inteira.

— A gente se preocupa com isso mais tarde — desconversou.

— Um lunático atacou você no meio da madrugada — afirmou Tanith com uma sobrancelha levantada. — Um lunático que, mesmo enquanto era são, odiava você, e você quer que a gente esqueça?

Fletcher olhou para Medonho e, com sua costumeira falta de tato, comentou:

— Ei, qual é desse curativo?

Medonho ajeitou a gola.

— Não é nada — resmungou, ranzinza.

— Você se cortou fazendo a barba? Você se corta assim toda hora?

Medonho suspirou.

— Perguntei à Porcelana se ela poderia me ajudar a me misturar com as multidões. Estou cansado de disfarces. Então ela criou uma tatuagem de fachada. Só isso.

— O que é uma tatuagem de fachada? — perguntou Tanith.

— Não é nada importante.

— Então conte logo o que é isso, para que possamos falar de algo que seja importante.

— É um rosto falso — explicou, tentando esconder a vergonha com impaciência. — Ela tatuou dois símbolos nas minhas clavículas, e, quando estiverem sarados, teoricamente vão me fazer parecer normal por um curto intervalo de tempo.

— Normal?

— Sem cicatrizes.

— Uau.

— Como eu disse, nada importante.

— Quando você vai poder testar?

— Só depois de mais algumas horas. Pode ser que não funcione... mas vale a pena tentar. É melhor que usar um cachecol todas as vezes que eu sair. Acho que deveríamos voltar ao assunto principal. O avião de Chabon aterrissa em uma hora, certo?

— Ele já estaria aqui se tivesse deixado que eu fosse buscá-lo — comentou Fletcher.

— Ele não confia na gente — afirmou Valquíria. — O cara compra e vende, e as pessoas com quem ele negocia não são sempre tão honestas e confiáveis como nós somos.

Fletcher encolheu os ombros.

— Eu simplesmente teria roubado a caveira dele e teleportado de volta para cá.

Valquíria suspirou.

— Estamos com o dinheiro?

Tanith chutou uma bolsa de lona que estava no chão ao lado dela.

— Um pouquinho de grana de cada uma das nossas várias contas bancárias. Sorte que o dinheiro não é muito importante para gente como nós.

— Fale por si mesma — resmungou Fletcher.

— Você não fez contribuição nenhuma. — Tanith franziu a testa.

— E contribuir com tempo não é suficiente? — respondeu Fletcher, provocador.

— Não quando se está tentando comprar alguma coisa.

— Ah.

Tanith se virou para Valquíria.

— E, Val, relaxa, ok? Pensamos em tudo.

— Ardiloso me disse uma vez que só ele era capaz de pensar em tudo, mas ele não o faz com muita frequência porque estraga a surpresa.

Isso fez Tanith sorrir.

— Pensamos em tudo o que nós quatro poderíamos pensar, e não conseguimos pensar em mais nada. Não há absolutamente razão alguma para achar que vai ser mais complicado do que simplesmente encontrar com ele, entregar o dinheiro, pegar o crânio e agradecer. Hoje à tarde vamos fazer uma visita à fazenda Aranmore e Fletcher abrirá o portal. Então vamos entrar, encontrar Ardiloso e trazê-lo de volta. É mamão com o proverbial açúcar.

— A não ser que alguma coisa dê errado — comentou Valquíria.

— Bem, é. A não ser que alguma coisa dê horrivelmente, pavorosamente errado. Que é o que geralmente acontece.


4

TRAGA-ME A CABEÇA DE ARDILOSO CORTÊS

Chabon escolheu um café na Duke Street para realizar a troca. Valquíria e Tanith sentaram-se de frente para a porta. Fletcher estava ao lado da vitrine, lendo um gibi, tomando Coca e fazendo o possível para parecer discreto; um feito nada fácil, com aquele cabelo. Só Medonho estava ausente. As cicatrizes eram difíceis demais de se esconder do público por tempo suficiente.

Pouco depois do meio-dia, um homem entrou com uma pasta executiva. Ele viu as duas imediatamente e se aproximou. Não era o tipo de pessoa que Valquíria esperava. As roupas dele eram casuais, e ele não tinha um bigodinho fino de vilão, para começar.

— Boa tarde, senhoritas — cumprimentou, sorrindo educadamente. — Vocês trouxeram meu pagamento?

— Mostre o crânio — exigiu Valquíria.

Chabon colocou a pasta na mesa e deu tapinhas nela.

— Vocês não vão ver a mercadoria até que eu saiba que vocês estão com o pagamento. É assim que funciona. É assim que essas coisas acontecem.

Tanith ergueu a bolsa de lona e a abriu, deixando Chabon dar uma olhadinha no dinheiro. Ela fechou a bolsa e a pousou no colo.

Valquíria estendeu a mão para pegar a maleta, mas Chabon segurou-lhe o pulso.

— Você está ansiosa demais — comentou, com frieza na voz. O negociante virou o pulso da menina, estreitando os olhos ao ver o anel de perto. — Você é uma Necromante? Achei que vocês nunca saíssem do Templo até completarem 25 anos.

A menina puxou a mão de volta.

— Sou só uma curiosa — respondeu. — Sua vez.

Chabon pousou a mão sobre a maleta e as trancas se abriram. Ele ergueu a tampa o suficiente para Valquíria e Tanith verem o conteúdo.

— É a Caveira da Morte mesmo? — inquiriu Tanith. — Você tem certeza?

— Absoluta.

— Se você estiver mentindo... — começou a dizer Valquíria. Chabon balançou a cabeça.

— Não me ameace, garota. Já fui ameaçado por profissionais. Já tive essa discussão com seu amigo vampiro, e todos os fatos estabelecidos então continuam válidos hoje. Portanto, a não ser que você esteja planejando me sacanear, com a ajuda daquele sujeito de cabelo ridículo perto da vitrine, que tal realizarmos nossa transação comercial e nos separarmos para sempre? Tenho que pegar um avião.

Valquíria olhou para Tanith, que colocou a bolsa na mesa. Chabon tocou o dinheiro.

— Está tudo aí — anunciou Tanith.

Depois de um instante, Chabon concordou com a cabeça.

— Sim, está. — Ele retirou a mão e se levantou, pegando a bolsa e deixando a maleta na mesa. — Foi um prazer.

Elas olharam enquanto ele ia embora.

Fletcher veio até a mesa e Valquíria levantou a tampa da mala de leve. A maleta era forrada e acolchoada, com a caveira confortavelmente instalada dentro. Um enorme sorriso surgiu no rosto de Valquíria.

Eles conseguiram a caveira. Eles a conseguiram, e em algumas horas atravessariam o portal e resgatariam Ardiloso. Todo aquele trabalho duro seria recompensado; e, no fim daquele dia, a vida dela poderia finalmente voltar ao normal. O caso estava encerrado.

— Só para garantir — disse a adolescente, correndo em seguida até a porta. Ela saiu e viu Chabon prestes a virar a esquina da Grafton Street.

— Ei! — urrou Valquíria, com uma expressão furiosa.

Chabon se virou. Se o crânio fosse a Caveira da Morte, ele não teria motivos para se estressar. Se não fosse... Chabon entrou em pânico e saiu em disparada.

— É falsa! — gritou a adolescente para os outros e partiu atrás de Chabon, seguida por Tanith e Fletcher.

Valquíria se lançou em meio às pessoas na rua, lutando para manter contato visual com Chabon. Ela saltou sobre o chapéu de um músico de rua e contornou um homem pintado de prateado. Chabon virou para a direita, numa alameda longa e iluminada, com a bolsa de lona balançando violentamente.

Se a alameda estivesse vazia, Valquíria poderia ter lançado um tentáculo de sombras e enlaçado o tornozelo do negociante, derrubando-o de cara no chão. Mas havia pelo menos uma dúzia de pessoas olhando vitrines e uma mulher pedindo um trocado logo adiante. Pelo canto do olho, Valquíria viu Tanith disparar para um beco e subir correndo pela parede de um prédio. Valquíria perseguiu Chabon pela rua seguinte, onde ele olhou para cima e viu que Tanith corria pelos telhados, na tentativa de cortá-lo. O sujeito derrubou um idoso e entrou no shopping Powerscourt Center. Valquíria pegou a rua seguinte, avançando em paralelo a ele. Pelas janelas, ela viu o negociante se chocar contra os clientes que almoçavam, diminuindo a velocidade.

A adolescente chegou à South William Street assim que Chabon cambaleou pra fora do Powerscourt Center. O sujeito a viu, xingou e continuou correndo pelo Castle Market e direto para dentro do velho prédio vitoriano onde fica a galeria de lojas George’s Street Arcade. Ela sabia que tinha vencido. Chabon não tinha a menor chance de escapar agora.

Os estandes estavam montados no meio da galeria, afunilando os visitantes por caminhos dos dois lados. Havia estandes de roupas, joias e uma cartomante detrás de uma cortina vermelha. Chabon escolheu o caminho da esquerda, derrubando as pessoas que entravam no caminho dele. Ele tropeçou numa caixa de livros velhos, e Valquíria aproveitou a chance para correr mais rápido e pular, aterrissando com os joelhos nas costas do negociante. O sujeito se esparramou no chão e a adolescente ignorou os olhares surpresos das pessoas ao redor. Chabon estendeu a mão para a bolsa e Valquíria pisou nela com força. O negociante gritou, chutando, dando uma rasteira na adversária. Ela caiu no chão bem quando ele se levantou, com a bolsa na mão boa, mas a jovem detetive agarrou uma das alças e não soltou. Finalmente Chabon se lembrou, tarde demais, de que ela não estava sozinha.

Tanith chegou dando uma voadora por cima de Valquíria, e o salto da bota acertou o esterno de Chabon. Houve um estalo e o sujeito caiu, rolando algumas vezes antes de se encolher. Valquíria se levantou bem quando Fletcher as alcançou, bufando e resfolegando como alguém que não teve necessidade de ir correndo a lugar algum em muito tempo.

— Aqui está — disse Valquíria ao empurrar a bolsa nos braços de Fletcher. Ela sorriu para a multidão. — A bolsa deste pobre rapaz foi roubada pelo homem malvado.

Fletcher olhou feio para Valquíria enquanto a multidão aplaudia, e Tanith pegou Chabon e o escoltou para fora. Valquíria e Fletcher a seguiram.

— Isso foi desnecessário — rosnou Fletcher.

— Se você tivesse sido mais rápido — argumentou a detetive em voz baixa. — Talvez pudesse ter sido o herói... mas você não foi rápido, então acabou virando a vítima inocente. Aceite.

Tanith levou Chabon longe o bastante dos transeuntes para que eles pudessem conversar sem serem ouvidos. Ela o empurrou contra a parede. O negociante pressionava a mão contra o peito, obviamente sentindo muita dor.

— Cadê a verdadeira Caveira da Morte? — inquiriu Valquíria sem levantar a voz.

— Eu a entreguei a você — tentou Chabon. A detetive empurrou as mãos dele, que sibilou. — Tá bem! Chega! Estava comigo, eu juro que estava. Quando a gente conversou pelo telefone, ela tava comigo.

— E o que você fez com ela?

Chabon estava ficando bem pálido. O ferimento o fazia suar.

— Tem uma... Olha, tem uma regra no meu ramo de negócios. Se você encontra algo que alguém está disposto a pagar para conseguir, então há grandes chances que haja outra pessoa disposta a pagar mais.

— Você anunciou?

— Eu não sabia que vocês estariam tão interessados, então, sim, eu mencionei o produto aqui e ali, e apareceu alguém com uma oferta melhor.

— Quem?

— Eu não sei.

Valquíria cerrou o punho e empurrou com força contra as mãos de Chabon. Tanith teve que lutar para mantê-lo de pé.

— Uma mulher — ofegou. — Eu me encontrei com ela há uma hora. Ela me pagou o triplo. Eu não achei que você descobriria. É só a Caveira da Morte. Por que ela é tão importante?

— E como era essa mulher? — indagou Tanith.

— Cabelo negro. Bem bonitinha. Toda séria.

— Quero um nome — ordenou Valquíria. — Um número, endereço, qualquer coisa.

— Ela me ligou. Manteve o número oculto. Nos encontramos no desembarque do aeroporto. Ela tinha o dinheiro, então eu lhe entreguei a caveira. Trouxe outra para vocês.

— É melhor você nos dar alguma coisa que nos ajude a encontrá-la — rosnou Fletcher. — Ou eu o teleporto pro meio do Saara e largo você lá.

Chabon encarou o rapaz, como se estivesse avaliando se a ameaça era séria ou não. Obviamente, decidiu que era.

— Ela é americana, de Boston, pelo sotaque. E tem aquele lance dos olhos... um é verde, o outro azul.

— Heterocromia — identificou Tanith. — Davina Mácula.

Valquíria gelou na hora. Davina Mácula tinha sido trazida pelo Santuário irlandês para assumir o cargo de Primeira-Detetive. Valquíria já tinha esbarrado com ela algumas vezes, e aprendeu que a mulher era ambiciosa, condescendente e implacável.

— Se ela comprou o crânio — comentou Valquíria, sombria —, então Túrido Grêmio já está com ele agora, e vai trancá-lo para garantir que Ardiloso jamais volte.

— Então, o que a gente faz? — indagou Fletcher.

— A gente rouba ele — concluiu Valquíria.


5

O CLUBE DOS VINGATIVOS

Estava chovendo. De novo.

Escaravelho não gostava da Irlanda. Todas as grandes tragédias da vida dele aconteceram aqui. Todas as grandes derrotas. Mesmo que ele tivesse cumprido a sentença numa prisão americana, tinha sido capturado aqui na Irlanda; e estivera chovendo naquele momento também.

O castelo era frio e havia correntes de ar por toda parte. A maioria das portas tinha sido bloqueada recentemente, selando as masmorras e outras partes mais tenebrosas. Tais lugares ainda eram acessíveis por meio das muitas passagens secretas, mas era muito difícil se locomover. Ah, e o encanamento também era uma droga. A cela que fora o lar de Escaravelho por 200 anos o mantivera vivo, nutrido, mantivera seu corpo limpo e impedira que os músculos se atrofiassem. Durante 200 anos, ele nem precisou usar o banheiro. Para onde todos os dejetos tinham ido? Será mesmo que havia algum dejeto? Escaravelho não sabia, e ninguém se dera o trabalho de explicar-lhe.

E agora, de repente, ele era obrigado a comer e se lavar e visitar o banheiro em intervalos preocupantemente frequentes, e a porcaria da descarga não funcionava. Escaravelho procurou outro banheiro, mas logo se perdeu. Tateou no escuro por meia hora até encontrar o caminho de volta ao ponto de partida.

— Onde você andou? — perguntou Billy-Ray, passando apressado. — Eles chegaram.

O assassino desapareceu na sala seguinte.

Escaravelho andou com passos arrastados até a porta e ouviu Billy-Ray recebendo os convidados. A bexiga de Escaravelho ainda estava cheia, e ele se perguntou se teria tempo de procurar um vaso de plantas ou algo assim. Não que um lugar como aquele tivesse um vaso de plantas.

— Vocês estão se perguntando por que eu lhes convidei aqui — ouviu Billy-Ray começar. — Vocês tão olhando pro cara sentado do seu lado e se perguntando, “Ei, eu não odeio esse cara? Ele não tentou me matar outro dia?” Pois é, na verdade, a gente realmente já deve ter tentado se matar várias vezes ao longo dos anos, mas, sabem o que mais? Um montão de gente também tentou.

“E é essa, rapaziada, a razão de a gente estar aqui. Essa conexão que a gente compartilha. É o nosso mal comum e, por isso mesmo, nosso objetivo comum. Tenho um sujeito pra apresentar pra vocês. Vocês devem ter ouvido falar nele. É o cara que matou Esryn Vanguarda. Rapazes, quero que vocês conheçam o homem, a lenda, Dreilho Escaravelho!”

Escaravelho se endireitou e entrou, enquanto Billy-Ray ocupava o quinto assento. Escaravelho avançou, mas não se sentou. Ele conhecia cada um daqueles homens, mas nunca estivera com eles pessoalmente. As descrições que seu filho fez tinham sido mais do que adequadas.

Remus Crucial era o ex-Detetive do Santuário, atualmente um louco desvairado que não se dava mais ao trabalho de se lavar. Tinha se convertido recentemente à causa dos Sem-Rosto, de acordo com Billy-Ray, e tinha desenvolvido uma fixação homicida pela garota chamada Valquíria Caos, depois que ela matou dois dos deuses das trevas dele com o Cetro dos Antigos. Escaravelho sempre achara que o Cetro era um conto de fadas, e nunca teve muito tempo para os Sem-Rosto. Ele tinha concordado com a inclusão de Crucial, porém, porque, mesmo que ter um louco no grupo fosse um risco, às vezes o risco era tudo o que lhe restava.

O homem de cabelo negro ao lado de Crucial era pálido e estava vestido de preto. Caos, uma garota que parecia mais e mais ser uma ameaça concreta e viável, tinha cortado o rosto de Crepúsculo com a navalha de Billy-Ray, deixando uma cicatriz permanente. Os vampiros eram conhecidos por serem muito rancorosos. Crepúsculo era outra entidade imprevisível, pois um vampiro era mais criatura do que homem. Mas, devido ao imenso poder físico, ele era uma ferramenta que não poderia ser ignorada.

Sentado diante de Crepúsculo estava o autoproclamado Terror de Londres, Jack Saltador. A silhueta desengonçada estava enrodilhada na cadeira, com um joelho erguido até o peito. O terno era velho e esfarrapado, e a cartola estava encarapitada num ângulo instável na cabeça. Unhas endurecidas tamborilavam em um ritmo lento no tampo da mesa. Escaravelho não sabia que tipo de monstro era aquele, mas sabia que Jack tinha sido expulso da Inglaterra e estava sendo caçado pela Europa. Escaravelho gostava de gente que não tinha mais a quem recorrer. Eram pessoas com quem ele poderia contar.

O quarto membro deste grupinho, este Clube dos Vingativos, era aquele que eles menos conheciam. Billy-Ray tinha informado a Escaravelho que este homem afirmava ser um assassino incomparável, que tinha sofrido nas mãos do detetive esqueleto e da parceira dele, mas isso era tudo o que eles sabiam sobre o misterioso e letal Vaurien Patife.

Escaravelho estava de pé diante da cabeceira da mesa e invocou toda a aterrorizante autoridade que possuía.

— Vocês ouviram falar das coisas que eu fiz — começou. Eles o olhavam sem nada dizer. — Vocês ouviram falar das pessoas que matei. A maioria dessas histórias é verdadeira. Eu matei e ri e matei novamente. Assim como todos vocês.

“Cavalheiros, somos uma espécie em extinção. Daqui a cem anos, pessoas como nós serão punidas antes de cometerem qualquer crime. Seremos postos na prisão pelos pensamentos que temos e pelas coisas que sentimos. Somos os últimos dos realmente grandiosos, e os últimos dos verdadeiramente livres. E eles querem nos tomar esse privilégio.

“Sanguíneo estava lhes falando da conexão que compartilhamos, um desejo ardente que nos ilumina a todos. Somos homens livres, e para continuarmos assim precisamos rejeitar as leis que não nos definem e não se aplicam a nós. Temos que atacar nossos inimigos, derrubá-los e esmagá-los sob nossas botas.”

— Estou aqui porque estou curioso — afirmou Crepúsculo. Ele falou calmamente, sem esforço ou emoção. — Por que eu deveria ajudá-los?

— Eu te arranquei da prisão pra isso — retrucou Billy-Ray. — Você me deve uma, vampiro.

— Eu estava em dívida com o Barão Vingança — respondeu Crepúsculo. — Mas, quanto a você, não lhe devo nada. Assim sendo, pergunto novamente: por que eu deveria ajudá-los? Por que ajudar qualquer um de vocês? Aliás, nem creio que a maioria seja de confiança. Afinal, sentado aqui, entre nós, está alguém que salvou a vida de Valquíria Caos.

Jack Saltador sorriu. Os dentes dele eram estreitos, afiados e muitos.

— Eu não deixei você matar ela porque não gostei de vocês terem mentido pra mim, e eu não gosto dos seus chefes. Aí a chance de bagunçar os planos de vocês foi boa demais pra resistir. Me diz uma coisa: a surra que eu te dei ainda tá doendo muito?

Crepúsculo encarou a criatura.

— Se fôssemos nos enfrentar num combate justo, eu o reduziria a pedacinhos trêmulos e sangrentos. Como aqui mesmo, por exemplo.

— Não tá nem de noite ainda. — Jack sorriu. — Tem certeza que consegue tirar a coleira tão cedo?

Crepúsculo se atirou por sobre a mesa, ao que Jack riu e saltou para enfrentá-lo. Os dois caíram no chão, derrubando Patife da cadeira. Eles rolaram e se separaram e se atacaram novamente, rosnando fundo nas gargantas.

— Chega! — rugiu Escaravelho e a briga parou. Ele recomeçou a falar antes que os dois pudessem voltar a se enfrentar. — Estamos lutando uns contra os outros? É assim que vocês querem que este encontro termine? Temos uma chance de abalar as fundações do mundo, e vocês querem se matar? Deixe-me dizer uma coisa, e estou falando por experiência própria, sempre há alguém lá fora que mereça ainda mais morrer.

“Esta é nossa oportunidade de contra-atacar nossos inimigos. Temos uma chance de vencer onde todos os outros fracassaram. Nós testemunhamos os fracassos. Vimos os erros cometidos por gente como Malevolente e Serpênteo, e aprendemos com tais erros.”

— Eu quase matei Valquíria Caos ontem à noite — anunciou Crucial.

Todos olharam para ele.

— Você o quê? — indagou Billy-Ray.

— Minhas mãos — continuou Crucial. — No pescoço dela. Apertando. Eu vi o medo nos olhos dela. Medo de verdade. Quase a matei.

Crepúsculo se virou para Crucial.

— Você sabe onde ela mora?

Crucial fez que sim com a cabeça.

— Mas não dá mais para voltar lá. Vi um monte de magos marcando símbolos pela cidade. Tem um perímetro lá, agora. Não dá para entrar sem alertar os Talhadores. Não gosto de Talhadores.

— Por que não contou pra nós? — rosnou Billy-Ray. — A gente podia ter ido lá, reduzido a menina a pedacinhos e...

— Eu mato Caos — interrompeu Crucial, apontando um dedo para si mesmo. — Eu. Não você, não o vampiro, não o idiota.

Patife franziu a testa.

— Quem seria o idiota?

— Ela matou os Deuses das Trevas — ignorou-o Crucial. — Mas eles voltarão.

Escaravelho podia ver a raiva crescendo em Billy-Ray e Crepúsculo. Ele poderia usar os próprios conhecimentos da linguagem da magia para contornar o perímetro místico, mas, se o fizesse, perderia a maior parte da equipe antes mesmo de iniciarem a missão. Era necessário que todos continuassem sedentos por vingança. Escaravelho falou rapidamente, para acalmar a situação:

— Sr. Crucial, se você deseja o retorno dos Sem-Rosto, então terá que trabalhar por isso. E a primeira coisa a ser feita é nos livrarmos da oposição. Temos um plano que resultará exatamente nisso.

Crepúsculo parou de olhar Crucial.

— Você tem um plano — afirmou.

— Sim, é o meu plano — admitiu Escaravelho. — Mas ele pertence a todos nós. Vamos roubar o Engenho Desolador.

Três dos homens sorriram. Um deles parecia confuso.

— O que é o Engenho Desolador? — indagou Patife.

— É uma bomba — explicou Billy-Ray. — Não tem assim uma baita explosão ou um cabum alto, só a desintegração instantânea de tudo o que houver dentro do raio de efeito. Transforma tudo em poeira. Então a gente vai roubar ele e usar pra destruir o Santuário.

— Os outros Santuários ao redor do mundo sempre olharam para a Irlanda com inveja — complementou Escaravelho. — Eles adorariam a chance de vir aqui e tomar o controle, saquear tudo o que houver de mágico nesse paisinho ridículo e levar tudo de volta para casa consigo. Vamos garantir que eles consigam o que desejam, e vamos matar alguns dos nossos inimigos mais irritantes no processo.

— Eles nos desprezaram no passado — afirmou Billy-Ray. — Eles não nos consideram ameaças, não em comparação com Vingança e a Diablerie, gente desse calibre. Somos os capangas. Mas a gente vai mostrar pra eles. Vamos mostrar pra eles que deveriam ter tido medo da gente o tempo todo.

— Eles acham que sabem o que há por vir? — indagou Escaravelho. — Acham que sabem o que esperar? Não fazem ideia.


6

SANTUÁRIO ADENTRO

Ardiloso uma vez disse a Valquíria que os melhores planos eram os planos simples. O plano dela não era simples, mas era o único que tinham, então ficaram com ele mesmo.

— Vamos fazer o seguinte — anunciou Valquíria enquanto andava de um lado para o outro na loja de Medonho. — Vamos até o Santuário e pedimos para falar com Grêmio. Ele vai deixar a gente esperando, como sempre faz, porque não quer que nada pareça diferente até ter certeza de que nós sabemos que ele está com o crânio.

Tanith, Medonho e Fletcher olharam para ela e concordaram com a cabeça.

— Mas — continuou — pode ser também que ele esteja presumindo que nós sabemos que ele sabe, então ele vai esperar que a gente faça alguma coisa. Fletcher não estará conosco, o que fará Grêmio suspeitar que ele já se teleportou para dentro.

— E onde eu estarei? — indagou Fletcher, animado.

— Sei lá, fazendo escova no cabelo ou coisa assim. A questão é que a atenção de Grêmio estará em dois lugares: onde nós estamos e onde o crânio está.

— E como vamos descobrir onde o crânio está? — quis saber Tanith.

— O lugar lógico seria o Repositório — explicou Grêmio. — Guardá-lo com todos os outros artefatos e objetos mágicos. Mas ele não fará isso.

— É óbvio demais — concordou Valquíria. — É o primeiro lugar onde nós procuraríamos. É também o primeiro lugar onde nós vamos procurar.

Fletcher franziu a testa.

— Mas não estará lá.

— Não, mas a esfera de ocultamento está.

— A bola de invisibilidade? — indagou Fletcher.

— Esfera de ocultamento — insistiu Valquíria.

— Bola de invisibilidade soa melhor.

— Bola de invisibilidade soa ridículo. — A detetive se virou para os outros. — Depois que estivermos com a esfera, chamamos Fletcher. Ele chega, nós deixamos que eles venham atrás de nós e então usamos a esfera.

— E eles vão achar que nós nos teleportamos para fora — completou Tanith, sorrindo.

Valquíria concordou com a cabeça.

— E então, ou assim espero, Grêmio vai mandar alguém verificar o crânio. Nós seguimos essa pessoa, pegamos o crânio e então nos teleportamos. Se as coisas não correrem assim, pelo menos teremos a chance de procurar pelo crânio sem sermos vistos.

— Porcelana terá que estar pronta — comentou Medonho. — Assim que eles perceberem o que está acontecendo, Davina Mácula e os Talhadores virão atrás de nós.

— Posso só comentar uma coisa? — perguntou Fletcher. — Esse plano é horrível. Numa escala de um a dez, sendo o Cavalo de Troia o dez e o General Custer contra todos aqueles índios o um, seu plano é um zero. Aliás, nem acho que seja um plano. É só uma série de coincidências que, honestamente, tem pouquíssima chance de se desenrolar assim desse jeito que todos esperamos.

— Você tem um plano melhor? — indagou Valquíria.

— Claro que não. Sou um homem de ação, não de pensamento.

Valquíria concordou.

— Você certamente não é um homem de pensamento.

— E por que você está no comando, afinal? O que você sabe sobre o planejamento de algo assim?

— Eu acredito nela — disse Tanith.

— Eu também — concordou Medonho.

Valquíria sorriu para os dois, agradecida.

— Então vocês acham que o plano vai funcionar?

— Deus, não — admitiu Medonho.

— Desculpa, Val — comentou Tanith.

Valquíria estava com Tanith em frente ao velho Museu de Cera, deixando a chuva encharcar-lhe o cabelo. As janelas estavam cobertas com tábuas e havia um portão enferrujado encostado diante da porta. Mesmo antes de ter fechado, o museu nunca fora impressionante. A adolescente se lembrava das excursões escolares, andando por corredores escuros, olhando desinteressada para estátuas de cera de políticos chatos. Ela às vezes se perguntava como as coisas seriam agora se aquela menininha que ela fora um dia tivesse se separado do grupo e encontrado a porta oculta.

Se ela tivesse entrado no Santuário então, teria se tornado discípula de Ardiloso tão mais cedo? Ou talvez os Talhadores teriam lhe cortado a cabeça assim que a vissem? É, a segunda opção era mais provável.

Pelo menos, naqueles dias, Équus Meritório fora o Grande Mago do Conselho dos Anciãos. Hoje em dia eles nem tinham mais um Conselho, só o Grande Mago, Túrido Grêmio, que já fora suspeito de traição, aos olhos de Ardiloso. Mesmo agora, que Valquíria sabia que Grêmio não era culpado dessa acusação, ela ainda o considerava um indivíduo perigoso com seus planos particulares.

E agora Grêmio estava com o crânio.

Para substituir Remus Crucial, Grêmio “roubou” Davina Mácula e o subordinado dela, Galhardo, de um dos Santuários americanos, e lhes ofereceu tudo o que fosse necessário para executar o serviço. O primeiro decreto de Grêmio fora proibir a reabertura do portal, para evitar que mais Sem-Rosto viessem para cá. Ele sabia que Valquíria e os outros estavam caçando o crânio, e até hoje eles tinham se mantido um passo à frente dele. Mas agora, aparentemente, Grêmio os ultrapassara na reta final.

O vento fez a chuva cair em ângulo e Valquíria puxou o colarinho. Ela havia ligado para Porcelana, que ouvira o plano, tal como ele era, e garantira que, se de fato aquilo desse certo, ela estaria disponível para ajudar. A feiticeira também avisou que havia dois agentes do Santuário vigiando-a 24 horas por dia, e mais dois na Fazenda Aranmore. Ela mal conseguiu mandar os alunos dela montarem o perímetro ao redor de Haggard sem que os agentes percebessem. Valquíria não ligava. Só uma coisa era importante.

Um homem careca com um belo casaco sorriu ao passar. Tanith o ignorou, mas Valquíria sorriu de volta, educadamente. Havia algo de familiar nele. O homem passou e a adolescente olhou em volta, para ver se havia alguém tentando se esgueirar atrás delas.

— Damas.

Ela olhou de novo. Medonho ocupava o lugar onde o homem careca estivera um segundo atrás. Valquíria estava prestes a perguntar o que estava acontecendo, mas Tanith entendeu antes de a adolescente falar.

— A tatuagem de fachada! — exclamou Tanith, espantada. — Ela funciona!

Medonho sorriu.

— Chega de disfarces com chapéus e cachecóis, muito obrigado. Só posso usar por mais ou menos meia-hora por dia, mas Porcelana está estudando uma forma de estender esse tempo.

— Mostra! — exigiu Valquíria, incapaz de evitar que o próprio sorriso surgisse.

Medonho separou o colarinho da camisa e ela viu as pequenas tatuagens, recém-marcadas nos dois lados do pescoço. Ele as tocou e uma pele imaculada fluiu para cima, recobrindo as cicatrizes até ocupar a cabeça inteira.

— Ai, meu Deus — exclamou Valquíria.

Medonho sorriu novamente.

— O que você achou?

— Ai, meu Deus — repetiu a adolescente.

Os traços eram fortes, o queixo quadrado e a pele, mesmo um tanto reluzente, era limpa e sem marcas.

— Porcelana queria me dar cabelo, mas achei que seria um pouquinho demais, sabe?

— Ai, meu Deus.

— Você não parou de dizer isso. Tanith, o que você achou?

— Eu gostei — respondeu ela. — Mas gosto das cicatrizes também.

O alfaiate sorriu, tocou as tatuagens e a pele derreteu de volta para dentro delas, revelando as cicatrizes novamente.

— Estamos prontos? — indagou, olhando para o Museu de Cera.

— Não gosto de ir a lugar algum sem minha espada — resmungou Tanith. — Vocês estão cientes de que, se os Talhadores vierem nos pegar, eles não vão dar a mínima para o fato de estarmos do mesmo lado. Eles vão nos retalhar em pedacinhos mínimos só porque podem fazê-lo.

— Se isso acontecer — comentou Medonho —, você pelo menos morrerá confortada pelo fato de que tinha o moral elevado.

— É, isso será legal — resmungou novamente a guerreira.

Eles deram a volta no Museu de Cera e entraram pela porta aberta. Estava escuro e o corredor era estreito. Passaram por três estátuas de cera. Valquíria não estranhou que tivessem sido deixadas para trás quando o museu fechou. Não eram muito boas, e só uma delas tinha cabeça.

Eles finalmente chegaram a uma estátua de cera que parecia com a pessoa que deveria representar: Phil Lynott da banda de rock irlandesa Thin Lizzy. A estátua virou a cabeça quando eles se aproximaram.

— Oi — cumprimentou.

— Oi, Phil — respondeu Valquíria.

Tanith, que tinha conhecido o verdadeiro Phil Lynott quando ele ainda estava vivo, achava a estátua muito irritante, por isso ficou para trás e não olhou para ela.

— Requisitamos uma audiência com o Grande Mago — anunciou Medonho.

— Vocês têm hora marcada? — indagou a estátua, olhando a folha colada nas costas da guitarra. — Vocês não estão na lista.

— Não temos hora marcada, mas requisitamos uma reunião.

A cabeça de cera de Phil Lynott fechou a cara. Ela não gostava do novo papel. Originalmente, sua única obrigação era abrir e fechar a porta, mas agora que o Santuário estava sem Administrador, a lista de obrigações da estátua aumentou.

— Vou avisar que vocês estão aqui — informou e fechou os olhos.

Enquanto esperavam, Valquíria percebeu como seu coração estava batendo rápido. Se este plano não funcionasse, eles poderiam ser presos e seria tudo culpa dela. Pior, a única oportunidade de resgatar Ardiloso estaria perdida, e ela jamais o veria novamente.

A estátua de cera abriu um dos olhos.

— Algum de vocês vai à final? — perguntou.

Valquíria pensou por um momento.

— Perdão?

— Do campeonato irlandês — explicou a estátua. — Dublin contra Kerry. Vai ser um jogão. Eu perguntei se poderia ir. Nunca estive no estádio de Croke Park. O Grande Mago disse que não. Ele me falou que, se as pessoas me reconhecessem, seria muito suspeito.

— Ele provavelmente tem razão — respondeu Valquíria, lentamente.

A estátua abriu os dois olhos.

— O Grande Mago foi informado — declarou. — Ele instruiu um guia a levá-los ao Salão de Boas-Vindas e estará com vocês assim que tiver a oportunidade.

— Obrigada — agradeceu Valquíria, e a parede ao lado deles trovejou e se abriu. O trio entrou.

Eles chegaram ao fundo da escadaria de pedra e um homem de aparência amarga os chamou impacientemente. Valquíria lançou um olhar para os Talhadores ao passar por eles, cujos rostos se escondiam detrás de capacetes com visores. Ela costumava achá-los assustadores, mas, comparados ao Talhador Branco que vivia com os Necromantes, eles eram muito fofos.

O feiticeiro impaciente os guiou rapidamente pelos corredores.

— Não tenho tempo para isso — reclamou. — Tenho trabalho a fazer, pelo amor de Deus. Eles não sabem que eu tenho trabalho a fazer? Mostrar a vocês aonde ir é um serviço de Administrador. Você acha que eu tenho cara de Administrador?

— Não — concordou Tanith. — Você tem cara de ser um homenzinho incrivelmente ranzinza.

Ele olhou feio para a guerreira e ela estreitou os olhos. O burocrata desviou o olhar.

— É aqui — indicou o sujeito, apontando para uma sala. — O Grande Mago os verá quando bem entender. Se quiserem alguma coisa, chá ou café, podem ir pegar sozinhos e não me encham mais.

Ele foi embora e o trio se entreolhou.

— Grêmio quer que fiquemos sozinhos para que a gente vá procurar o crânio — comentou Medonho em voz baixa. — Ele quer nos prender e nos jogar nas celas. Está só esperando que a gente cometa um erro.

— Não vamos desapontá-lo, então — respondeu Tanith. Eles ignoraram o Salão das Boas-Vindas e pegaram o primeiro corredor à direita. As pessoas por quem os três passaram nem olharam para o grupo.

Passaram pela Prisão, onde os feiticeiros mais perversos e malévolos do país eram mantidos em celas suspensas. Um criminoso mediano seria enviado às prisões de segurança máxima, mas a Prisão era reservada aos piores dos piores.

Depois da Prisão ficava o Repositório. Após verificar se havia alguém olhando, Tanith abriu as portas duplas e eles se esgueiraram para dentro. Medonho ergueu a mão e leu o ar, sentindo qualquer movimento.

— Estamos sozinhos — anunciou, e imediatamente os três saíram andando decididos por entre as estantes mal-iluminadas, procurando uma esfera de madeira com o dobro do tamanho de uma bola de tênis.

Valquíria correu até o lugar onde a esfera de ocultação tinha estado guardada da última vez, mas o espaço estava vazio. Ela verificou rapidamente o resto da estante, passando os olhos por sobre os objetos arcanos. A coleção de artefatos mágicos nesta sala seria suficiente para causar inveja em colecionadores como Porcelana Tristeza.

Eles procuraram por cinco minutos e não encontraram nem vestígio.

— Isso não é bom — murmurou Medonho quando Valquíria passou por ele.

A menina estalou os dedos para invocar uma chama na mão e vasculhou os cantos mais escuros da sala. Não era nada bom.

— Temos um Plano B? — perguntou Tanith por detrás de uma pilha de pergaminhos.

— Nós mal temos um Plano A — murmurou Valquíria.

Medonho estava com a orelha encostada na porta e recuou com um passo.

— Eles estão chegando — avisou.

Furiosa, Valquíria puxou o telefone e ligou para Fletcher. O plano não tinha funcionado. A única coisa que poderiam fazer agora seria fugir antes de serem capturados.

— No Repositório — falou a adolescente e Fletcher apareceu atrás dela. Símbolos piscaram nas paredes e relâmpagos azuis dispararam até ele. O rapaz gritou enquanto os raios dançavam através dele. Quando os símbolos se apagaram, Fletcher desabou com um gemido.

Era uma armadilha e, no instante seguinte, as portas duplas se abriram e uma mulher de cabelos negros entrou, com um esquadrão de Talhadores logo atrás.

Medonho e Tanith foram até Valquíria quando ela se ajoelhou ao lado de Fletcher.

— Tire a gente daqui — ordenou a adolescente, mas os tremores dominavam o rapaz.

— Não consigo — murmurou ele.

Davina Mácula olhou para o grupo e sorriu.

— Bem-vindos ao Santuário. Vocês estão todos presos.


7

DE VOLTA A ARANMORE

A Sala de Interrogatório era protegida contra magia. Valquíria podia sentir a maré baixa dos próprios poderes, pouco além do alcance. Ela não gostava da sensação. Aumentava seu mal-estar.

A adolescente estava sentada diante de Mácula e fez o máximo possível para ignorar Galhardo, de pé ao lado da porta. Colocá-la virada para a porta fora o erro deles. Sempre que Ardiloso usava esta sala de interrogatório, ele posicionava os suspeitos de costas para a entrada. Assim eles eram obrigados a virar o pescoço para ver quem quer que entrasse. Do jeito que Mácula arrumou os lugares, era quase como se aquele fosse o escritório de Valquíria, que estava sentada à própria escrivaninha.

A adolescente se esforçou para parecer calma e esconder o pânico que sentia. Aquela fora a única chance deles de resgatar Ardiloso. Se Grêmio escondesse o crânio ou, pior, o destruísse, essa possibilidade desapareceria. Valquíria gelou por dentro ao pensar nisso.

— Valquíria — disse Mácula, afinal, erguendo os olhos de cores diferentes do papel que estava lendo. A adolescente duvidava que o arquivo tivesse alguma coisa a ver com ela. Era provavelmente só uma coleção aleatória de páginas que Mácula achou que seria intimidadora. — Você está metida numa encrenca e tanto.

Valquíria não disse nada e esfregou os dedos da mão direita um contra o outro. O anel de Necromante tinha sido confiscado. Ela sentia falta dele.

Mácula tinha cabelo negro, cortado à altura do pescoço. Ela era bonita, mas não uma figura muito marcante.

— Vocês foram pegos em flagrante tentando roubar propriedade do Santuário. Você sabe como isso é sério? Sabe por quanto tempo pode ficar presa por isso? — Mácula suspirou, como se estivesse desapontada. — Isto não é um jogo, Valquíria. Você faz parte de algo que está se tornando muito perigoso. Medonho Reservado e Tanith Low poderiam pegar 20 anos de cadeia, pelo menos. Vinte anos, Valquíria. O que você estava tentando roubar, afinal?

Valquíria fixou o olhar num pedacinho de linha no colarinho de Mácula e não respondeu.

— Nós temos a cabeça de Ardiloso Cortês. Sei que vocês vieram aqui roubá-la e, deixe-me lhe assegurar, nós entendemos. Ardiloso era seu amigo.

— É meu amigo — corrigiu a adolescente.

— Eu falei dele no passado? — indagou Mácula, parecendo envergonhada. — Ah, querida, lamento muito. Sim, ele é um amigo seu e tenho certeza de que você o considera um ótimo amigo. Todos nós temos ótimos amigos e faríamos muito por eles... dentro dos limites da razão, naturalmente. Mas essa sua cruzada, essa ideia de abrir o portal... francamente, não está nem perto dos limites da razão.

— Não sei do que você está falando — respondeu Valquíria.

O sorriso de Mácula estava se tornando tão irritante quanto os modos dela.

— É claro que você não sabe — sussurrou conspiratoriamente. — Mas vamos fingir que você sabe. Vamos fingir que você sabe. Vamos fingir, sem incriminar você, ou seja, sem lhe criar problemas, que você queria abrir o portal para tentar resgatar seu amigo. Isso quer dizer que você também estaria abrindo o portal para os Sem-Rosto. Você não vê isso? Você não entende?

Valquíria estava ficando obcecada pelo narizinho de Mácula. Era como um alvo, pedindo para ser esmagado com uma cadeira.

— Eles só vieram para cá da última vez porque receberam um sinal — argumentou a adolescente. — Hipoteticamente falando, se abríssemos o portal agora, eles não estariam esperando. Mas Ardiloso estaria.

— O Grande Mago proibiu expressamente a reabertura do portal. Sinto muito.

— Não trabalho para o Grande Mago.

— O Santuário policia toda a comunidade mágica da Irlanda, não apenas as pessoas que trabalham aqui. Valquíria, odeio ser a pessoa a lhe dizer isso, mas seu amigo provavelmente está morto.

— É claro que ele está morto. Ele é um esqueleto.

— Já faz quase um ano que ele está preso num mundo com os Sem-Rosto. Podemos apenas imaginar o horror e a agonia a que ele foi submetido antes que eles finalmente tenham decidido lhe encerrar a existência. Podemos apenas imaginar ao que ele foi reduzido... os gritos, o choro, implorando para morrer. Docinho, de certa forma, você tem sorte de ele não poder voltar. Se ele algum dia retornasse, você certamente o acharia... um tanto patético.

— Não me chame de docinho.

Mácula piscou, surpresa.

— Ah. Está bem.

— E nunca o chame de patético.

Mácula se inclinou para frente, apoiando os cotovelos na mesa.

— Posso ajudá-la. Quero ajudá-la. Diga-me quem planejou isto e você poderá ir embora. Vamos retirar todas as queixas contra você. Ajude-nos a punir as pessoas que merecem ser punidas: Medonho, Tanith e Porcelana. Ah, sim, sabemos que ela está envolvida. Ela está com os dedinhos metidos em todas as operações suspeitas do país. Santuários do mundo todo desejam ver a Srta. Tristeza atrás das grades por tudo o que ela fez no passado. Você prestará um grande serviço a todos.

Ao ver que não receberia uma resposta, Mácula balançou a cabeça.

— Esta é uma oferta por tempo limitado, Valquíria. Assim que eu sair por aquela porta você será levada de volta à cela, para aguardar transporte a uma prisão. Você ficará presa, docinho. Por favor, não quero ver isso acontecer a você. Fale comigo, deixe-me ajudar e você ficará livre.

Valquíria olhou Mácula nos olhos.

— E quanto a Fletcher?

Mácula acenou com a cabeça.

— O Sr. Renn está bem. Instalamos um sistema de segurança que distorce temporariamente alguns impulsos elétricos na mente dele. Não dá para se teleportar se a cabeça não estiver funcionando, dá? Mas eu lhe asseguro que ele está bem, agora.

— Você vai oferecer o mesmo acordo a ele?

— Você quer que a gente ofereça? Tem algum tipo de... conexão entre vocês dois? Serei honesta, Valquíria, se você nos ajudar, acho que consigo convencer o Grande Mago a libertá-lo. Acho que consigo fazer isso.

— E Grêmio vai deixá-lo ir? Não vai querer ficar com ele? Porque no fim das contas, Fletcher é o último teleportador vivo.

— Eu realmente não sei, docinho, o que o Grande Mago tem em mente. Se você está perguntando se ele gostaria que Fletcher trabalhasse para o Santuário, então, sim, tenho certeza que gostaria. Fletcher tem uma habilidade única e incrivelmente útil. Talvez, e o que pensa disso, talvez vocês dois pudessem trabalhar conosco? Você gostaria disso? Virar uma agente oficial do Santuário? Vocês poderiam formar uma boa equipe.

— Por que Grêmio não quer que a gente resgate Ardiloso?

Mácula balançou a cabeça.

— Você não entenderia. O Grande Mago tem que pesar todos os aspectos deste caso. Ele precisa avaliar o risco em relação ao benefício. Ele tomou uma decisão muito grande e importante, e acredito que foi a escolha certa. Ardiloso fez um sacrifício. Ele morreu para que pudéssemos viver. O Grande Mago respeita isso, e nós também deveríamos.

— Grêmio disse que Êxtase fez o sacrifício. Ele disse que Êxtase nos salvou a todos.

— O Sr. Êxtase deu a vida dele, Valquíria.

— Eu sei que deu. Eu estava lá. Eu vi acontecer. Você não, mas eu vi. Eu vi Êxtase morrer e também o que aconteceu depois. Vi Ardiloso ser arrastado por aquele portal. Ele me estendeu a mão, mas não consegui salvá-lo.

— Isso é muito triste — respondeu Mácula com gentileza.

— Mas Grêmio ignorou tudo isso. Ele deu todo o crédito a Êxtase porque não queria admitir que estivera errado quanto a Ardiloso.

— Não, Valquíria, não foi isso que aconteceu.

— Grêmio não quer nem que a gente tente resgatar Ardiloso porque ele não quer que Ardiloso retorne. Ele o odeia. Sempre odiou.

Mácula franziu o nariz.

— Porcelana fez uma lavagem cerebral em você, Valquíria — disse Mácula com tristeza. — Não vou permitir que isso continue. Vou ordenar que ela seja presa imediatamente.

— Porcelana não fez nada de errado — retrucou Valquíria, com raiva.

— Você faria qualquer coisa que ela mandasse. — Mácula suspirou, juntando os papéis. — O Detetive Galhardo vai levá-la de volta à sua cela.

Galhardo abriu a porta e Mácula fez que ia sair.

— Você vai se arrepender disso — anunciou Valquíria.

Mácula se virou.

— Está me ameaçando, garota?

— Não, estou só informando que você vai se arrepender disso. Todos que entram no caminho de Ardiloso sempre se arrependem. O Detetive que antecedeu você, por exemplo. Remus Crucial. Ouviu falar nele recentemente?

O rosto de Mácula ficou tenso, mas ela não respondeu.

— Ele entrou no caminho de Ardiloso — continuou Valquíria — e a mente dele foi reduzida a pedaços. Todos acabam se arrependendo, Srta. Mácula. Você se arrependerá também.

Mácula se virou para ir, mas se virou de volta em seguida.

— Mudei de ideia — anunciou. — Vou escoltá-la de volta à cela pessoalmente. Detetive Galhardo, você está dispensado.

Galhardo sorriu e saiu sem dizer nada. Mácula fez um gesto para a porta, como num convite.

— Você primeiro, Valquíria.

A adolescente se levantou e foi até a porta, esperando que Mácula a algemasse antes que saíssem da sala, mas passou livre pela porta e sentiu a magia retornando. Valquíria foi na frente, a caminho das celas de detenção temporária, com Mácula logo ao lado, e tentava entender o que estava acontecendo. Será que Mácula simplesmente se esquecera das algemas? Será que ela não considerava Valquíria uma ameaça real? Ou seria aquilo uma armadilha? Estaria Mácula esperando que Valquíria tentasse fugir? Quanto mais elas se aproximavam das celas mais confusa a adolescente ficava.

— Você disse que aqueles que entram no caminho do seu amigo esqueleto acabam se arrependendo — disse Mácula quando elas se aproximaram da esquina das celas. — Mas e aqueles que trilham o caminho dele? E, quanto a Êxtase, já que você falou nele. Como é que ele vai, hoje em dia?

Valquíria nada disse e virou a esquina. Franziu a testa. Geralmente havia alguém de serviço atrás da escrivaninha, mas hoje a cadeira estava vazia.

— Aquele esqueleto fazia as pessoas morrerem — murmurou Mácula no ouvido dela. — Amigos, entes queridos, a própria família. É um milagre que ele não tenha sido o seu fim também, antes de ir. É uma baita pena também, se você me perguntar.

Valquíria se voltou rapidamente, ao que Mácula a empurrou para trás e riu.

— Não se preocupe, docinho. Eu sei como é. Todos aqueles hormônios em fúria, todas aquelas emoções conflitantes...

Valquíria ergueu a mão para empurrar o ar, mas Mácula foi mais rápida. O ar envolveu a adolescente e Valquíria se chocou contra a parede, caindo no chão em seguida.

Mácula andou até ela.

— Você estava apaixonadinha por ele antes de ele ser sugado para o inferno, não estava? Um pouquinho? Pode me contar. É triste e patético e muito engraçado, mas prometo que não vou rir.

Valquíria estalou os dedos e Mácula lhe chutou o pulso. O fogo apagou e a adolescente foi erguida. Ela deu um soco que errou, e Mácula a atirou de cara na porta da cela.

— Ninguém gosta de novatos arrogantes — comentou Mácula. — Se começar a se comportar, talvez eu até deixe você se despedir da cabeça dele. Aliás, é um lindo enfeite para o gabinete do Grande Mago.

Mácula estava bem perto e Valquíria estendeu a mão e a agarrou. Passou a perna por trás da perna de Mácula, tentando dar um golpe de judô, mas ela dobrou os joelhos e se esquivou. Valquíria foi jogada para trás por sobre o quadril de Mácula. Ela caiu com todo o peso sobre o ombro e gritou. A mulher segurou-lhe o braço e torceu, enquanto se ajoelhava nas costelas da adversária.

— Agressão contra uma Agente do Santuário — anunciou Mácula, com tristeza. — Se você fosse adulta, pegaria anos de prisão por isso. Mas, como é só uma criança... Eu não sei. Talvez seja apenas marcada com alguns símbolos restritivos, desativando sua magia permanentemente. Isso não seria tão ruim, não é, sua criaturinha insolente?

— Sai de cima de mim!

— Ou o quê? — Mácula sorriu. — Você vai começar a chorar? Já posso até ver as lágrimas nos seus olhos. Olhe só para você. Tão indefesa. Tão fraca. Nem está com seu anelzinho, não é?

Com a mão livre, Mácula tirou o anel negro do bolso.

— Agora, como pode uma garotinha boazinha como você estudar uma disciplina tão malvada como Necromancia? Nós não gostamos de Necromantes por aqui, ainda não entendeu isso? Ninguém gosta deles. Não são confiáveis.

— Me solta.

Mácula largou o anel no chão e deu um tapa no rosto de Valquíria.

— Você não me diz o que fazer. — A detetive deu mais um tapa na adolescente. — Você não diz aos mais velhos o que fazer. Entendeu? — Outro tapa. — Diga que entendeu. Diga que entendeu.

— Eu vou matar você — respondeu Valquíria por entre dentes trincados.

Mácula pressionou o joelho com mais força contra as costelas da menina, e Valquíria gritou de novo.

— Quer que eu quebre seu braço, sua pivete? Quer que eu lhe quebre as costelas? Perfure um pulmão? Porque eu posso. Posso fazer qualquer coisa e ninguém vai me questionar. Então vá em frente. Fique aí deitada me ameaçando. Vamos ver o que você vai ganhar com isso.

Lutando contra as lágrimas, Valquíria olhou com ódio, mas não disse nada.

— Boa menina — disse Mácula, com olhos estreitos. — Agora peça desculpas.

Valquíria travou a mandíbula.

— Eu mandei se desculpar. Não tem ninguém aqui além de nós duas. Você não tem ninguém a impressionar. Peça desculpas e eu deixarei você se levantar e a colocarei na sua cela. Se não se desculpar...

Mácula lhe deu um tapa novamente e ergueu a mão para mais um golpe.

Valquíria se esforçou para ignorar o orgulho e a raiva provocada por aquela humilhação. Engoliu.

— Me desculpa.

Imediatamente, Mácula se suavizou.

— Está bem. Muito bem, Valquíria. Era só isso que eu precisava ouvir. — A pressão nas costelas foi removida. — Agora peça permissão para se levantar.

Valquíria hesitou por um momento.

— Posso me levantar?

— Diga por favor.

— Por favor... posso me levantar?

— É claro.

Mácula recuou e Valquíria se virou para ficar de quatro e começou a se erguer. Subitamente o ar começou a empurrá-la para baixo, mantendo-a curvada.

— Diga “obrigada” — ordenou Mácula, controlando o ar com a mão. Valquíria olhou para ela. — Diga “obrigada, Detetive Mácula, por deixar que eu me levante”.

E então Valquíria falou.

— Obrigada, Detetive Mácula, por devolver meu anel.

Os olhos de Mácula dardejaram para o chão, onde o anel tinha caído, mas não estava mais lá. Antes que ela pudesse fazer alguma coisa, Valquíria a golpeou no peito com punho de sombras.

Mácula cambaleou e Valquíria se endireitou, agarrando a escrivaninha com as sombras. O móvel disparou e acertou as pernas de Mácula, que girou e caiu sobre a mesma.

Valquíria abriu a gaveta da mesa, pegou as chaves e correu até as celas. Destrancou a porta de Medonho, que já saiu se jogando contra Mácula, que vinha na direção de Valquíria.

— Prisioneiros escapando — rugiu a Detetive do Santuário.

Valquíria destrancou a segunda porta e Tanith saiu bem quando os Talhadores apareceram virando a esquina.

— Solte Fletcher — sussurrou Tanith na orelha de Valquíria. — E depois vá buscar Ardiloso. — Com isso, a guerreira se lançou sobre os Talhadores.

Valquíria destrancou a última cela e arrastou Fletcher para fora.

— Peguem-nos! — guinchou Mácula. Os Talhadores já estavam com Medonho e Tanith no chão, com os braços presos para trás.

— Gabinete do Grêmio — disse Valquíria a Fletcher. O rapaz fez que sim com a cabeça e fechou os olhos, se obrigando a se acalmar e visualizar o destino.

E então eles estavam diante da porta de Grêmio. Valquíria entrou num rompante. As estantes grunhiam com o peso de livros e artefatos, e a mesa parecia ser feita de ouro sólido. Ao lado dela havia um armário com portas de vidro. O crânio de Ardiloso estava dentro.

As sombras envolveram o punho da menina enquanto ela socava o vidro e pegava o crânio. Ela sentiu a mão de Fletcher no ombro e piscou.

Eles agora estavam no labirinto de estantes da biblioteca de Porcelana.

Fletcher olhou para a adolescente.

— Você está bem?

— Não se preocupe comigo — respondeu Valquíria. Podia sentir o rosto ardendo onde Mácula a tinha esbofeteado repetidamente. — Temos que ir à fazenda Aranmore.

— Vamos abrir o portal? — indagou Fletcher, preocupado. — Só eu, você e Porcelana? E quem vai entrar com você?

— Ninguém. Eu vou sozinha.

— Não. — Ele balançou a cabeça. — É perigoso demais.

— Não temos tempo a perder! — exclamou Valquíria, subitamente com raiva. — Temos que fazer isso antes que nos achem de novo e nos prendam! Esta é minha única chance de resgatá-lo!

— Nossa única chance — retrucou Fletcher.

— É. Sim, era isso que eu queria... Fletcher, escute, Porcelana tem que ficar com você na fazenda. Ela tem que se assegurar de que você vai conseguir reabrir o portal para eu e Ardiloso voltarmos. Vou entrar sozinha, e fim de papo.

Fletcher olhou para ela, com a mandíbula travada.

— Está bem — respondeu rispidamente, e saiu andando pelo labirinto.

Valquíria não conhecia nenhum dos feiticeiros pelos quais eles passaram em meio às estantes, e nenhum deles ergueu os olhos dos livros abertos. A biblioteca era considerada território neutro, onde a privacidade imperava.

Porcelana Tristeza estava esperando por eles, vestindo uma calça preta e uma blusa azul simples. Como de costume, sua beleza sobrenatural elevou a roupa a algo além do ordinário. Uma correntinha delicada pendia do pulso esquerdo. O cabelo, negro como o mais profundo pecado, emoldurava o rosto enquanto os olhos, azuis como tinham sido os olhos do irmão dela, observavam a dupla que chegava.

Valquíria dominou os sentimentos que se agitavam dentro dela. Fletcher não foi tão bem-sucedido.

— Eu te amo — sussurrou para Porcelana e foi ignorado.

— O plano não deu certo — informou Valquíria. — Na verdade, provavelmente piorou tudo. Medonho e Tanith estão presos, e os agentes estão vindo para cá prender você.

Porcelana suspirou.

— E nós vamos resgatar Ardiloso agora, eu presumo? Com todo o poder do Santuário vindo atrás de nós?

— Vamos. Foi mal.

Porcelana deu de ombros.

— Você torna minha vida interessante, Valquíria. Me dê apenas um instante, tenho que me livrar de dois espiões desagradáveis.

Valquíria olhou para trás bem quando um homem e uma mulher avançavam, de algemas nas mãos.

Porcelana tocou os antebraços, e tatuagens luminosas se ergueram da pele. A mulher abriu os braços e uma muralha de energia azul se chocou contra os agentes, atirando-os para trás. Os dois estavam inconscientes antes mesmo de pararem de rolar pelo chão.

Uma feiticeira idosa espiou pela quina de uma estante e fez cara feia.

— Peço desculpas pela perturbação — disse Porcelana, graciosamente. — Eles não queriam pagar as multas de atraso.

A mulher deu de ombros e voltou a ler.

Porcelana deu as mãos a Valquíria e Fletcher.

— Provavelmente vou destruir estes sapatos — constatou a mulher. — Mas tenho certeza de que um de vocês informará a Ardiloso os sacrifícios que fiz para recuperá-lo. Leve-nos à fazenda, Sr. Renn.

A biblioteca desapareceu e o sol da tarde não parecia capaz de aquecer nada. Um vento frio soprava pelos campos de Aranmore e uivava baixinho pelas paredes arruinadas da casa grande.

— O rapaz é muito útil mesmo — comentou Porcelana, mas, para variar, Fletcher não estava fixado nela. Os olhos dele se viraram para Valquíria enquanto andavam.

— Você já se despediu dos seus pais? — perguntou.

— Cala a boca, Fletcher.

— Eu só achei que você ia querer dizer adeus, só isso. Uma despedida final antes de você se matar.

— Só vai ser uma despedida final se você não abrir o portal para o meu retorno.

O rapaz riu amargurado.

— Você vai entrar num mundo controlado por uma raça de deuses malignos. E para quê? Se Ardiloso não estiver morto, ele estará louco. Uma olhadinha num Sem-Rosto é suficiente para deixar qualquer um doido. Ele já está lá há quase um ano, Val. Quantas olhadinhas você acha que ele já deu?

— Você não o conhece. Ele está vivo e me esperando.

— Estamos falando de um grande risco, não estamos? Tipo, um riscão? Vamos abrir uma porta para um universo de coisas indizivelmente horríveis e torcendo para que eles não percebam. Será que Ardiloso vale a pena o preço que a gente vai pagar se tudo der errado?

— Se você não vai me ajudar — retrucou Valquíria —, não posso obrigá-lo. Mas, se você vai ajudar, cale a boca. Nenhum de nós estaria aqui se não fosse por ele, e ele não deixaria nenhum de nós lá naquele lugar. Nem mesmo você.

Eles chegaram à casa-sede e pararam subitamente. Um agente do Santuário perambulava lá dentro, bebericando uma xícara de chá. Ele franziu a testa e se virou, parecendo surpreso ao deparar com três pessoas o encarando pelo enorme buraco da parede.

— Hum — disse ele.

Valquíria estendeu a mão aberta. O ar ondulou e o feiticeiro foi lançado para trás, deslizando pelo chão. A adolescente entrou na casa, usando o anel para reunir as sombras que lá haviam e lançá-las com força sobre a cabeça dele. O feiticeiro não se levantou.

Porcelana e Fletcher se juntaram a ela e os três foram até o buraco na parede oposta, aquele que se abria para o pátio. Do outro lado, parado dentre o maquinário agrário enferrujado, estava o segundo feiticeiro. Ele os viu e meteu a mão no casaco, para pegar o telefone.

Fletcher desapareceu e reapareceu instantaneamente ao lado do mago. Pôs a mão no ombro do homem e eles sumiram. Um momento depois, Fletcher estava de volta, bem diante de Valquíria. Ela estava a ponto de perguntar onde ele tinha posto o agente do Santuário quando o pobre mago caiu do céu e se esborrachou no chão com força. Ele gemeu e parou de se mover.

Fletcher puxou Valquíria para si e, antes que ela pudesse reclamar, ele a beijou. A menina se enrijeceu nos braços dele, mas, quando a mão direita dele tocou-lhe o rosto, ela relaxou. A barriga da adolescente deu cambalhotas, e o beijo acabou.

— Se vamos mesmo fazer isso — disse ele com voz áspera —, vamos logo. Não é todo dia que eu mando alguém para o inferno.

Porcelana fez um círculo no chão e Fletcher se ajoelhou nele, segurando o crânio com as duas mãos. Ela riscou símbolos protetores ao redor dele. Se alguma coisa viesse pelo portal sem ser convidada, ela explicou, aqueles símbolos pelo menos manteriam Fletcher vivo por tempo suficiente para fechar o portal. O rapaz não pareceu muito reconfortado, mas não disse nada.

A feiticeira ativou os símbolos e uma fumaça vermelha começou a subir deles, se misturando à fumaça negra emitida pelo círculo. A fumaça toda formou uma coluna que se tornou mais violenta ao subir num torvelinho.

Fletcher sabia o que fazer, desta vez. Onze meses antes, forçado a abrir o portal, ele teve que aprender enquanto trabalhava. O teleportador teve que usar a Âncora de Istmo (da primeira vez foi o Grotesqueiro, agora era a caveira) sem preparação, e disse que foi como rasgar as próprias tripas. Hoje, pelo que Valquíria podia ver de relance por entre a fumaça, Fletcher mantinha tudo sob controle. Parecia determinado. Furioso, mas determinado.

Uma luz amarela surgiu, como um sol achatado, com bordas fervendo em chamas. A luz aumentou de tamanho.

Porcelana tomou o braço de Valquíria, inclinando-se para a frente para ser ouvida em meio ao rugido da coluna de fumaça.

— Você tem uma hora — gritou. — Em exatamente uma hora o portal se abrirá novamente. É melhor você estar pronta... com ou sem ele.

— Eu não vou deixá-lo lá — gritou Valquíria de volta. — Apenas garanta que Fletcher ainda estará aqui quando for a hora de voltarmos.

Porcelana olhou para Valquíria, com um brilho nos olhos azuis, e a abraçou.

— Obrigada por fazer isto — sussurrou Porcelana no ouvido da menina.

Porcelana recuou e Valquíria se virou para o portal. Estava mais alto do que ela, agora. A adolescente lambeu os lábios e andou. O vento lhe atiçava os cabelos e ela sentia a atração gravitacional, ansiosa por recebê-la. Valquíria hesitou e depois correu direto para o amarelo.


8

ESCOLHENDO INIMIGOS

Jack Saltador sentia saudades de Londres. Sentia saudades dos telhados, das torres e dos parapeitos. Sentia saudades de como era possível dançar, bem acima de todos, olhando as pessoinhas passando lá embaixo. Sentia saudades do barulho que os londrinos faziam quando ele os matava... como se estivessem ofendidos com o fato de alguém sequer ousar.

Jack não visitava a cidade havia mais de um ano. Eles o caçavam lá. Tinha experimentado Paris e Berlim e gostado dessas cidades, mas percebeu que estava morrendo de saudades de casa quando viu que só estava matando turistas ingleses. Isso o lançou numa espiral de depressão que durou meses. Finalmente, num esforço para enfrentar o problema, fez uma lista de todos aqueles que considerava responsáveis pelo exílio e se maravilhou com a forma como a depressão rapidamente se transformou em raiva. Todos os nomes da lista trabalhavam para um dos Santuários ao redor do mundo e, subitamente, a missão de Jack estava clara.

Destruir os Santuários.

E agora aqui estava ele, abençoado seja o acaso, de volta a Dublin, trabalhando com dois homens com quem ele jamais esperara dividir o mesmo aposento novamente, Billy-Ray Sanguíneo e Crepúsculo. Mas, já que Billy-Ray não estava mais se metendo com aqueles malucos fanáticos pelos Sem-Rosto, e já que a briga dele com Crepúsculo não tinha sido pessoal, Jack estava disposto a perdoar e esquecer. Eles estavam todos trabalhando para o mesmo fim: vingança contra aqueles que os prejudicaram.

— Eu quero Tanith Low — disse ele àquele outro sujeito, Patife, enquanto eles estavam de bobeira no castelo.

Patife ergueu os olhos, assustado por alguém estar falando com ele.

— Perdão?

— Tanith Low — repetiu Jack. — Aquela do couro marrom e da espada cantante. Quero ser aquele que vai matá-la.

— Ah — respondeu Patife.

— De certa forma, sabe, ela é a responsável por eu ser caçado. Ela me prendeu; me colocou na cela onde Sanguíneo me achou. Se eu não tivesse concordado em ajudá-lo em troca da liberdade, eu nunca teria sido caçado.

— Certo — concordou Patife.

— E você, então?

— Eu?

— De quem você quer se vingar?

— Ah, hum, Valquíria Caos.

— Ela é um alvo popular de vinganças. Quantos anos ela tem? Quinze? Quinze anos de idade e já tem quatro caras querendo matá-la.

— Bem — Patife se inclinou para a frente, como se estivesse confidenciando —, ela é responsável por estragar meus planos, entende?

— É mesmo?

— Ah, sim. Eu sou um artista. Transformo assassinato em arte. É tipo assim a coisa que eu faço; é o meu lance todo. E ela me impediu de fazê-lo repetidamente. Ah, e teve uma vez que ela me espancou quando eu já estava gravemente ferido.

— Uma garota de quinze anos te espancou?

— Quando eu estava gravemente ferido, sim. E ela tinha catorze, na época.

— Bem, vou te dizer que, num lugar apertado, deve ser bem difícil de se defender de magia Elemental.

— Ah, ela não usou magia nenhuma.

— Então ela simplesmente... espancou você?

— Quando eu estava gravemente ferido, sim.

— Até que ponto você tava ferido?

— Gravemente.

— Você tava gravemente ferido?

— Sim, eu estava. Você já foi espancado por uma menina de catorze anos?

— Olha, tenho que admitir que não.

— Não é nada legal.

— Tenho que concordar que não é.

— Então é por isso que eu quero vingança.

— Escuta, camarada, não tô querendo puxar briga nem nada, mas você se diz o Matador Supremo, né? Você realmente já matou alguém de verdade?

Patife irrompeu numa risada horrivelmente forçada, desesperada e carregada de pânico. Jack poderia jurar que o cara estava corando.

Jack não dava a mínima, é claro. Eles estavam ali para cumprir tabela, para ficar esperando enquanto Escaravelho e Sanguíneo davam as ordens. E então, quando a hora certa chegasse, eles atacariam.

Jack estava esperando feliz por essa hora certa.


9

ADMIRÁVEL MUNDO MORTO

Océu era vermelho.

O sol, diretamente acima dela, era uma bola de fogo. Era grande e quente, e ficava mais próximo que o sol de casa.

Um dia aquela cidade fora impressionante. Os habitantes teriam ocupado o alto penhasco, usando as cavernas como lar, escavando portas e janelas na rocha antes de se estenderem para fora. As casas de pedra que eles construíam uma em cima da outra se projetavam da face do penhasco e lembravam Valquíria das fotos que ela tinha visto das favelas do Brasil. A adolescente imaginou uma cidade coalhada de vida, energia e barulho, com centenas de milhares de pessoas sendo forçadas a viverem juntas e se entenderem.

No entanto, estava tudo quieto agora. Quieto e morto.

O portal se fechou atrás dela, e Valquíria estava num beco estreito de pedras esbranquiçadas pelo sol, que lhe faziam doer os olhos. A adolescente seguiu o beco, com os passos ruidosos no chão rachado. Ela espiou dentro das casas semidesmoronadas ao passar, mas todos os aposentos estavam vazios, despojados de tudo o que houvesse pelos elementos e pelo que mais assombrasse aquele mundo.

O beco se nivelou e se abriu numa praça. Valquíria andou até o meio, se virou num círculo lento, varrendo os arredores com o olhar. Ela olhou para cima, para a face do penhasco, cujo tamanho imenso finalmente ficou claro. Não seriam centenas de milhares de pessoas morando ali, a adolescente percebeu... Seriam milhões. Um pensamento traspassou a mente dela. Ela estava de pé num mundo alienígena.

Apesar de tudo, Valquíria sorriu.

Balançou a cabeça. Ela tinha um trabalho a fazer e um tempo limitado para fazê-lo. Entrou numa rua que ia para a direita. A rua se curvou e a adolescente estava andando sobre a areia que tinha sido soprada da imensidão do vale seco que cercava a cidade. A areia era de um dourado profundo.

Valquíria andou por alguns minutos, tomando o cuidado de avançar numa linha relativamente reta para poder encontrar o caminho de volta com segurança. Medonho tinha afirmado que as roupas dela conseguiriam regular a temperatura sob qualquer circunstância, mas havia algo errado. Ela estava transpirando. Um fio de suor lhe escorreu pelo rosto. Tirou o casaco e o deixou numa esquina, como sinalização, e sentiu o sol nos ombros nus. Abriu a blusa para deixar o ar entrar, mas qualquer brisa que pudesse ter soprado era bloqueada pelo labirinto de ruas. Então ela virou outra esquina e viu o corpo.

Estava sentado no chão, encostado numa parede. O peito era um buraco escancarado, com as entranhas ressecadas já havia muito tempo. A cabeça era lisa e sem feições. Aquele tinha sido o corpo de Batu, um corpo que tinha sido requisitado pelo último Sem-Rosto a entrar pelo portal. Mas não havia sinal de vida nele agora. Para os Sem-Rosto, corpos humanos eram meros receptáculos a serem usados e descartados. O corpo de Batu não era nada além de um velho barco esburacado ou um carro enferrujado. Que belo fim para o plano dele de se tornar um deus.

O corpo estava segurando algo na mão direita, um osso, quase todo coberto por trapos. Valquíria não queria imaginar que poderia ser um dos ossos de Ardiloso. Ela queria desesperadamente chamar o nome dele, mas a ideia de quebrar aquele silêncio fantasmagórico foi repelida. A adolescente não sabia mais o que fazer. Poderia passar meses vasculhando a cidade sem encontrá-lo. Não. Não, o portal teria que ser aberto em algum lugar próximo de Ardiloso. Ele estava perto. Tinha que estar.

Valquíria voltou por onde tinha vindo, pegando o casaco e andando rápido. Ela seguiu pelo beco onde o portal a tinha deixado. Foi por ele o mais longe que pôde, até que chegou a uma caverna. Largou novamente o casaco e invocou uma chama na mão. Em seguida, saiu do sol e entrou na treva.

Ao andar, ela viu prateleiras escavadas nas paredes e uma mesa que um dia fora um pedregulho. Havia grandes áreas da caverna onde a chama nem era necessária; janelas haviam sido construídas para deixar a luz do sol entrar e se espalhar. A caverna terminava numa parede. Quando Valquíria se virou para sair, viu um osso na terra e, ao lado dele, degraus de pedra que subiam. Ela foi por ali.

O sol entrava pelas três janelas ao longo da parede oposta e Valquíria deixou a chama se apagar. Parou ao lado dos degraus e não se moveu. No centro da sala jazia um esqueleto. As roupas dele estavam esfarrapadas e pendiam da armação que fora construída para criar a ilusão de volume. Pelo que ela podia ver, as pernas da calça estavam vazias, e o braço direito do esqueleto tinha sumido. Estava deitado de barriga para cima, com a caixa torácica exposta, suja de terra e coberta de poeira. Ele não se movia.

Alguma coisa apertou o coração de Valquíria e a sensação não passou mais. Ela fez um barulho como um gemido, mas, quando tentou dizer o nome dele, não conseguiu. O primeiro passo foi incerto porque as pernas estavam sem forças. Ela andou lentamente, muito lentamente, até o centro da sala.

— Olá? — sussurrou. O esqueleto jazia no chão, imóvel. — Sou eu. Vim buscar você. Pode me ouvir? Eu o encontrei.

Nem uma brisa fez estremecer as roupas esfarrapadas.

Valquíria se ajoelhou ao lado do esqueleto.

— Por favor, diga alguma coisa. Por favor. Senti tanto a sua falta e me esforcei tanto para reencontrá-lo. Por favor.

A adolescente estendeu a mão para tocá-lo, e Ardiloso Cortês girou a cabeça para ela e rugiu:

— Boo!

Valquíria gritou e correu para trás, e Ardiloso riu histericamente, como se aquela tivesse sido a coisa mais engraçada que ele já vira. O esqueleto ainda estava rindo quando a menina se levantou e, quando ela olhou feio para ele, Ardiloso riu ainda mais. Depois de algum tempo, com gargalhadas esparsas ainda chacoalhando os ossos, ele se apoiou no último cotovelo que lhe restava.

— Ah, raios — comentou. — Agora estou extraindo diversão do ato de assustar minhas próprias alucinações. Isso não pode ser muito bom para mim, do ponto de vista psicológico.

— Eu não sou uma alucinação.

O esqueleto olhou para ela.

— Sim, você é, minha cara, mas não se preocupe muito com isso. Ser uma alucinação é algo que colocam na sua cabeça, eu sempre digo.

— Ardiloso, eu sou real.

— Esse é o espírito da coisa.

— Não, quero dizer que sou real e que vim levá-lo para casa.

— Você é diferente das outras. Geralmente, minhas alucinações dançam e cantam muito mais.

— Sou eu. A Valquíria.

— Você ficaria surpresa com a quantidade de figuras imaginárias que me dizem isso. Você não trouxe um tabuleiro de xadrez consigo, não? Ando com vontade de jogar já há algum tempo, e como você é um aspecto da minha personalidade, deve ser uma oponente de qualidade.

— Como posso lhe provar que sou de verdade?

Isso o fez parar para pensar.

— Intrigante. Não é como se você pudesse me dizer alguma coisa que só nós saberíamos, pois minhas alucinações sabem tudo o que sei. Mas, na extensão teórica dessa abordagem, se você me dissesse alguma coisa que só você poderia saber, isso me provaria que eu não a conjurei da minha mente.

— Então... o que eu posso lhe dizer? Meu segredo mais sombrio e profundo? Minha primeira memória? Meu maior medo?

— Que tal me contar o que você comeu no café da manhã de hoje?

— Cereal com mel.

— Bem, aí está.

— Agora você acredita que eu sou de verdade?

— De maneira alguma. Posso ter simplesmente acabado de inventar isso.

— Eu encontrei sua caveira, aquela que os duendes levaram. Fletcher a usou como Âncora de Istmo para abrir o portal e eu vim para levar você de volta.

— Minha caveira?

— Faz sentido, não faz? É possível, não é?

— É... muito possível, na realidade.

— Você pensou nisso? Imaginou que sua caveira poderia ser usada como Âncora?

— Não, mas também andei muito ocupado com a tortura e a falta de boas conversas.

— Então, se isso era algo que você ainda não tinha pensado, como eu poderia lhe falar nesse plano se sou apenas um fragmento da sua imaginação?

— Bem — respondeu Ardiloso, lentamente —, você poderia ser um fragmento do meu subconsciente.

— Não sou seu subconsciente. Sou Valquíria. Sou de verdade. E vim aqui resgatar você.

— Se você conseguir recuperar meus membros, eu acreditarei em você.

— Ótimo — concordou Valquíria, olhando em volta.

Ardiloso continuou conversando enquanto ela buscava.

— Sinceramente, eu tinha abandonado qualquer esperança de ser resgatado, então esta cena inteira é um tanto redundante. Sem ofensa. No começo, achei que algum dos sobreviventes pudesse vir me salvar, mas já me reconciliei com o fato de que eles estão todos mortos, agora.

— Sobreviventes? — repetiu Valquíria. Ela pegou uma perna intacta e limpou a poeira antes de entregá-la a ele.

— Havia sobreviventes quando eu cheguei — contou ele, enquanto afixava o fêmur ao quadril daquela maneira conveniente, porém obviamente dolorosa. — Este foi o último mundo alcançado pelos Sem-Rosto, e eles não tiveram pressa em destruí-lo. Cheguei a conhecer alguns dos nativos antes que eles fossem mortos e eu capturado. Levei algum tempo para aprender a língua deles, mas, pelo que me contaram, este mundo um dia já foi cheio de magia. Então, há 300 anos, os Sem-Rosto apareceram.

— Mas os Sem-Rosto foram expulsos da nossa realidade há milhares de anos. — Valquíria desceu os degraus de pedra, em busca do osso que tinha visto antes. Era a outra perna, e ela catou um punhado de ossinhos que pareciam dedos dos pés.

— Ah, mas eles não foram exilados para cá — explicou Ardiloso, quando ela retornou. — Os Antigos os expulsaram do nosso mundo e os lançaram numa dimensão estéril. Mas os Sem-Rosto escaparam e rasgaram as muralhas da realidade, chegando a um universo cheio de vida. Com o passar dos anos, eles dizimaram aquele universo, matando todo mundo, destruindo os sóis, devastando galáxias inteiras. E, quando terminaram, eles seguiram em frente.

A adolescente entregou-lhe os ossos da outra perna.

— Para outra realidade?

— Uma após a outra, destruindo cada uma delas enquanto procuram uma forma de voltar para casa. Trezentos anos atrás eles chegaram aqui e não conseguiram mais ir adiante. Estão procurando uma saída desde então.

— Ah, meu Deus...

— E todo esse tempo nós pensamos que os Antigos os tinham exilado para algum lugar onde não poderiam fazer mal. Incontáveis trilhões de seres, Valquíria, mortos por nossa causa.

Ela não respondeu.

— Se você é real — continuou —, sei o que você está sentindo. Culpa, não é? Uma tremenda sensação de responsabilidade horrível por algo com o qual você não teve nada a ver. Essa foi minha reação quando ouvi a história pela primeira vez. Eu não sabia o que fazer. Talvez mandar um cartão para cada realidade, com um pedido de desculpas? Então, quando os Sem-Rosto nos encontraram, mataram os outros e me levaram, eu finalmente percebi que nada de bom poderia vir desse remorso inútil e o superei. A tortura constante provou ser uma ótima distração.

— Você... está bem?

— Nem um pouco. — Ardiloso fez uma pausa, no meio da tarefa de remontar a perna. — Eles não me mataram, e não tiraram minha mágica, porque me caçam todos os dias. Eles se revezam, eu acho, no uso do corpo de Batu. Me rastreiam, eu os enfrento, eles vencem com facilidade e então me reduzem a pedaços. Ontem, por exemplo, eles arrancaram minhas pernas e saíram por aí com meu braço. Depois me largam durante a noite para eu me recompor e assim ser caçado novamente no dia seguinte. A atividade toda é, como você pode supor, superdivertida.

— Bem, isso tudo acabou. Temos meia hora para o portal se abrir novamente e a gente escapar. Venha.

O esqueleto olhou para a menina.

— Está faltando um braço.

— E daí?

— Você não diria isso se fosse o seu braço. Não vou a lugar algum sem meu braço. Vá buscar meu braço, e eu atravessarei seu portal imaginário.

— Bom, você poderia me ajudar a procurar — disse Valquíria, estendendo a mão e tocando uma parede invisível. — O que é isso?

— Uma coisinha que eu andei desenvolvendo — respondeu o detetive, todo presunçoso. — Tive muito tempo livre e nada para fazer a não ser me concentrar na magia. Os Sem-Rosto não têm dificuldade nenhuma em atravessar essa paredezinha de ar, mas ela é bem sólida para meros fragmentos de imaginação como você. Também aprendi uns dois outros truques novos.

— Quer dizer que você vai ficar sentado aí enquanto faço o trabalho todo?

— De fato, vou. Se eu fosse você, procuraria o corpo que já foi de Batu. Se o braço ainda existir, está com ele.

— É, eu vi. Está lá fora, mais umas duas ruas adiante. A gente poderia andar até lá e voltar a tempo de encontrar o portal.

— E se você correr, poderá trazê-lo para mim mais rápido ainda.

Valquíria suspirou e deixou Ardiloso para trás, remontando a perna e murmurando uma musiquinha sobre ossos secos. Ela correu para o céu vermelho e refez o caminho, seguindo as próprias pegadas na areia. A adolescente queria muito um par de óculos escuros para reduzir o brilho de tudo ao redor. Os braços dela estavam ficando vermelhos rapidamente, e ela se perguntou como poderia explicar aos pais aquela queimadura de sol no fim do inverno.

O corpo estava onde ela o deixara, sem vida e com a cabeça abaixada. Ela passou a língua no lábio inferior enquanto pensava na melhor maneira de recuperar o braço, e chutou a cabeça do cadáver. Como ele não tentou agarrá-la, Valquíria se abaixou, puxou o braço de Ardiloso das garras do corpo e os ouvidos dela estalaram. A adolescente cambaleou, sentindo a pele se arrepiar. A boca secou, e parecia ser a pele do tambor tocado pelo coração, que batia forte. Ela tropeçou no cadáver e caiu, e agora estava rastejando. A cabeça estava cheia de sussurros ensurdecedores.

Os Sem-Rosto estavam vindo.


10

SANGUE E BALAS

Porcelana sempre sabia quando havia alguém olhando fixamente para ela. Era um sentido que a feiticeira tinha afiado ao longo das últimas centenas de anos, tão preciso quanto inútil. Afinal, as pessoas estavam sempre olhando fixamente para ela.

Porcelana olhou ao redor e Fletcher desviou o olhar, envergonhado.

— Quanto tempo você acha que ela vai demorar? — indagou o rapaz.

Porcelana não respondeu. Ela não gostava de conversa fiada. O teleportador encolheu os ombros e meteu as mãos nos bolsos. Só faltava começar a assobiar.

Se Porcelana gostasse de conversa fiada, teria dito ao pobre rapaz que esse lance com Valquíria não tinha o menor futuro, não depois que Ardiloso voltasse. A vida de Valquíria girava em torno de Ardiloso, agora; ela havia sido capturada pela órbita do detetive, e alguém como Fletcher não tinha a menor chance.

Ardiloso e Valquíria foram feitos um para o outro, Porcelana conseguia ver isso agora. Eles estavam predestinados a encontrar um ao outro, formar essa conexão e afetar a vida um do outro. O melhor que o rapaz poderia esperar, o melhor que qualquer um poderia esperar seria ficar nos bastidores e observar.

Uma tatuagem de crescente surgiu no pulso de Porcelana e começou a arder, sinal de que alguém tinha penetrado os alarmes de perímetro que ela havia instalado.

— Fique aqui — ordenou a mulher, que em seguida atravessou o pátio.

Eles vieram pela esquina da casa-sede: um agente do Santuário, que Porcelana reconheceu como sendo Galhardo, e quatro Talhadores. Com um aceno da cabeça do agente, os quatro Talhadores correram na direção dela; em seguida, Porcelana tocou símbolos nos antebraços e abriu bem os braços. Uma onda de energia azul acertou um dos Talhadores com força total, atirando-o para trás. No entanto, os outros três estavam preparados e furaram a onda com um giro, com a magia sendo repelida pelos uniformes.

Aquilo não era uma mera tentativa de captura, ela percebeu enquanto se esquivava das foices. Pela forma como eles atacavam, os Talhadores tinham permissão de usar força letal e não estavam com medo de empregá-la. Porcelana bateu os punhos cerrados e as tatuagens vermelhas nos nós dos dedos ficaram visíveis. A feiticeira se esquivou por baixo de um golpe e socou. Com o impacto, a cabeça do Talhador girou, e em seguida o guerreiro caiu e não se levantou. Ela acertou o seguinte no estômago, e ele se curvou.

O último Talhador acertou o cabo da foice no joelho de Porcelana, que gemeu de dor e quase não conseguiu evitar a lâmina que veio em seguida. O uniforme do agente do Santuário era protegido demais para aquela luta ser justa.

Porcelana se chocou contra o Talhador, segurou o braço dele e puxou a manga do uniforme para cima. A mão direita dela se cerrou, com as pontas dos dedos pressionando a palma com força, ativando o símbolo que ela havia marcado ali havia tanto tempo. Em seguida, Porcelana segurou o pulso exposto do Talhador. Este se enrijeceu e Porcelana podia jurar que tinha ouvido um grito por sob o capacete. Quando o Talhador caiu, a feiticeira se virou para Galhardo, que lhe deu um tiro.

A bala acertou Porcelana no peito, e ela andou para trás, tentando recuperar o equilíbrio. Ela agarrou o ferimento, com o sangue escuro jorrando por entre os dedos. As pernas cederam e Porcelana caiu desajeitada. Então ficou ali deitada, olhando para as nuvens.

— Ah — foi tudo o que ela disse.


11

OS SEM-ROSTO

O velho corpo de Batu se ergueu lentamente. As costas estavam curvadas e os braços magros estavam encolhidos. Do esconderijo, Valquíria observou a coisa andar para as trevas, se indagando por que os Sem-Rosto usavam um receptáculo tão danificado.

A pressão nos ouvidos voltou ao normal e, por mais que o coração dela estivesse batendo forte, não ameaçava mais saltar do peito. Quando teve certeza de que não ia vomitar, Valquíria seguiu a uma distância segura. Não havia muito o que ela pudesse fazer contra um Sem-Rosto, exceto morrer de maneira barulhenta. Se ele começasse a torturar Ardiloso novamente, ela simplesmente seria obrigada a assistir. A adolescente não gostava nada daquela ideia.

Ela ainda estava agarrada ao braço direito de Ardiloso. Estava intacto, com os dedos e tudo, e estalava baixinho enquanto ela andava.

O Sem-Rosto se arrastou pelos degraus acima e Valquíria se agachou, para o caso de ele dar uma olhada para trás. Ele não o fez, é claro. Os Sem-Rosto não eram do tipo que “davam olhadas”. Para começar, eles nem tinham olhos. Valquíria esperou até o monstro sair de vista e se esgueirou atrás dele. Ela tinha uma suspeita desagradável do verdadeiro motivo de os Sem-Rosto usarem o corpo de Batu: talvez a tortura fosse mais prazerosa quando era conduzida por um corpo humano. A adolescente subiu as escadas lentamente e, ao espiar, viu Ardiloso recuando enquanto o Sem-Rosto se aproximava.

— Eu sabia que ela não era real — dizia Ardiloso. — É tudo parte de um novo truque, não é?

O detetive grunhiu e foi erguido no ar, e subitamente o corpo dele se estirou. Valquíria assistiu horrorizada enquanto uma força invisível começava a separar todos os ossos um do outro, centímetro por centímetro. Os ruídos da dor dele começaram graves, e em seguida se retorceram, e Ardiloso jogou a cabeça para trás e berrou em agonia abjeta enquanto a mandíbula era lentamente arrancada do crânio.

Valquíria correu para o círculo, com o anel necromântico recolhendo as sombras e enrolando-as no tornozelo esquerdo do Sem-Rosto. Ela continuou correndo e puxou as sombras com toda a força que tinha, mas as trevas se esticaram, as pernas da adolescente voaram e ela se esborrachou no chão. O Sem-Rosto não se moveu. A criatura virou a cabeça desprovida de feições e soltou Ardiloso, que se tornou um amontoado de gemidos. Valquíria lançou o braço que faltava para o detetive enquanto se levantava.

O Sem-Rosto observou a adolescente sem se mover. Ela já vira tal reação onze meses antes. Porcelana acreditava que os Sem-Rosto conseguiam detectar o sangue nas veias dela, o sangue do Último dos Antigos. Valquíria não sabia se essa era a razão real, mas tirava proveito de todas as vantagens que encontrava. Estendeu as palmas e o ar ondulou e se chocou contra o corpo arruinado da criatura. Os trapos que o Sem-Rosto vestia esvoaçaram na violenta rajada, mas o corpo permaneceu imóvel.

O anel estava gelado no dedo dela, bebendo a morte que aquela cidade já vira. Valquíria concentrou as sombras e lançou-as contra o inimigo. Uma lança de trevas entrou na cavidade do torso e saiu do outro lado. O Sem-Rosto cambaleou e olhou para baixo, para si mesmo.

Ardiloso estava sentado, flexionando os dedos nas duas mãos, e Valquíria o agarrou e o fez se levantar. O esqueleto era surpreendentemente pesado. A dupla chegou aos degraus, saltou para baixo e correu para a entrada da caverna.

— Mais rápido! — comandou Valquíria.

— Por quê? — indagou o detetive. — Eu ainda não tenho certeza de que você é real.

— Eu acabei de levantar você!

— Pode ter sido uma lufada de vento.

Os dois saíram da caverna. Valquíria pegou o casaco no chão e olhou para trás. O Sem-Rosto ainda não tinha nem chegado aos degraus. Ela se voltou para Ardiloso.

— Eu não sou uma lufada!

— Você parece uma lufada...

— Isso nem faz sentido.

— Meus duelos verbais andaram um tanto quanto solitários ultimamente. Acho que vou continuar fugindo. Você pode vir junto comigo.

— Mas o portal vai abrir aqui.

— Se a Âncora de Istmo está mesmo conectada a mim, o portal se abrirá perto de onde eu estiver. Vamos, não temos muito tempo.

— Como ele caçou você? — perguntou Valquíria enquanto eles corriam pelo beco estreito. — Ele mal consegue andar rápido.

— Ele tem mascotes — respondeu Ardiloso. — E as mascotes têm mascotes. — O detetive apontou para o céu vermelho. — Aí vêm elas.

Valquíria viu as criaturas, negras contra o rubro, batendo as imensas asas. Os corpos eram do tamanho de um ônibus, e as caudas serrilhadas eram duas vezes mais longas. A adolescente viu algo que pareciam ser tiras cruzadas na barriga e percebeu que os monstros carregavam uma dúzia ou mais de guerreiros nas costas.

— Dá para saber que elas nos viram quando berram — explicou Ardiloso.

As criaturas berraram.

Ardiloso e Valquíria saltaram uma parede baixa e passaram abaixados por uma porta, atravessando a casa vazia e saindo pela janela do outro lado. As bestas aladas deram um rasante sobre as ruas e os cavaleiros saltaram delas.

Dois dos cavaleiros de feras aterrissaram perto da dupla. Eram criaturas magricelas, com tatuagens primitivas recobrindo a pele amarela, vestiam couro e pele de animais e empunhavam lâminas finas e cruéis. Os dentes deles eram afiados, os olhos negros, e o cabelo era espetado como agulhas de porco-espinho.

Ardiloso partiu para cima deles, bloqueando o primeiro golpe de adaga e quebrando o braço do adversário na altura do cotovelo. Depois puxou o cavaleiro que berrava para o caminho do outro, aproveitando a confusão para chutar o joelho deste. O detetive abandonou os dois e tomou a mão de Valquíria novamente, guiando a menina por entre duas casas.

Um cavaleiro pulou do teto, mas Ardiloso empurrou o ar e o inimigo foi lançado para trás. Valquíria girou quando outro cavaleiro caiu atrás dela. A espada do sujeito era enorme, grande demais para um espaço tão limitado. Ela jogou o casaco na cara dele e empurrou a mão que segurava a espada para baixo, agarrou-lhe o ombro e chutou-lhe o tornozelo. O cavaleiro caiu, batendo forte com a cabeça na parede.

Valquíria recuperou o casaco e os dois continuaram correndo, entrando em outra casa quando um trio apareceu adiante. A dupla subiu as escadas, correu até a janela e saltou por ela como se os dois fossem corredores de obstáculos, pousando no teto da casa vizinha. Continuaram saltando de telhado em telhado, em disparada até a beirada final da cidade, conforme os cavaleiros escalavam as construções por todos os lados, para continuar a caçada.

— Você tem algum plano? — indagou Valquíria.

— Só de vez em quando — respondeu Ardiloso, em seguida abraçando a companheira e saltando. Não havia nada abaixo deles além de uma queda de mais de três quilômetros até o fundo do vale, e Valquíria começou a gritar.

— Por que você está gritando? — perguntou Ardiloso no ouvido dela enquanto os dois giravam no ar. Valquíria se virou para ele e continuou gritando na órbita ocular direita do esqueleto. Ele suspirou. — Tente se segurar, por favor.

O ângulo mudou de repente e agora eles estavam se movendo horizontalmente, para longe do alcance das facas que lhes eram atiradas da cidade.

Eles estavam voando.


12

CANO ADENTRO

Enquanto o sangue de Porcelana se esvaía, Galhardo foi até ela e apontou a arma novamente. Então Fletcher Renn surgiu do nada e acertou o braço de Galhardo com um taco de beisebol. O agente gritou e largou a arma, e Fletcher aproveitou para dar mais duas tacadas antes de sumir. O rapaz reapareceu um instante depois e acertou Galhardo no queixo com um peso de musculação. Galhardo girou como uma bailarina e caiu de joelhos. Fletcher deixou o peso cair e desapareceu, ressurgindo com uma arma de eletrochoque. Cravou a arma nas costas de Galhardo, e a eletricidade crepitou enquanto o homem teve um espasmo e caiu para a frente. O ar se fechou ao redor de Fletcher, que sumiu, levando o outro junto.

Porcelana tocou as tatuagens na articulação das mandíbulas, e o calor começou quase imediatamente, correndo pelo corpo inteiro e voltando. A sensação se concentrou ao redor do ferimento, e a feiticeira cerrou os dentes. Ela sentiu a bala se mover e se contorcer, e as lágrimas lhe encheram os olhos. A bala voltou pelo túnel que escavou ao entrar, e ela gritou quando o projétil chegou à superfície, agora só um amontoado disforme de chumbo.

Fletcher reapareceu ao lado dela, mas a feiticeira o afastou com um aceno da mão ensanguentada. O calor se intensificou e calcinou as bactérias que entraram atrás da bala. Lentamente, até demais para o gosto de Porcelana, a carne dentro dela começou a se regenerar.


13

NÃO, OBRIGADA

Valquíria se agarrou a Ardiloso e não estava mais gritando. Agora ela ria. O esqueleto voava como se estivesse em pé, e os levava pelo ar com uma tranquilidade irritante. Devia ser disso que ele estava falando quando mencionou os truques que tinha aprendido. A adolescente olhou para baixo. Todo aquele espaço vazio sob os dois, somado à realidade do que estavam fazendo, a deixou sem fôlego. Então Valquíria olhou para cima, para o céu vermelho, e viu as feras aladas mergulhando sobre eles.

Ardiloso alterou o curso, escapando das garras da besta mais próxima. Em seguida, o esqueleto girou e desviou para a esquerda e uma segunda fera atacou sem sucesso, guinchando de raiva. Era perigoso aqui em cima, ainda mais do que na cidade, portanto eles sobrevoaram novamente as ruas. A dupla se esquivou de mais uma criatura voadora e passou sobre os cavaleiros, até que Ardiloso encontrou um lugar adequado para aterrissar. Eles pousaram e entraram apressadamente por uma porta, chegando à penumbra silenciosa.

— Você sabe voar — sussurrou Valquíria.

— Fiquei de saco cheio de andar tanto o tempo todo. — Foi a resposta.

— Você pode me ensinar a voar?

— Você teria que dominar todos os outros aspectos da magia Elemental antes, mas sim. Se sobrevivermos a isto, e se você continuar seu treinamento, e se você for real, então, sim, eu a ensinarei a voar. Ensinarei todos os Elementais a voar. É divertido.

— E o que mais você sabe fazer?

O esqueleto olhou para a adolescente e inclinou a cabeça.

— Um monte de coisas.

Uma silhueta surgiu na entrada e o sorriso de Valquíria desapareceu. A dupla recuou quando o Sem-Rosto entrou. Ardiloso estalou os dedos das duas mãos e as estendeu completamente para a frente. Jatos gêmeos de chamas atingiram o Sem-Rosto, envolvendo-o completamente. Valquíria observou, espantada. Os fluxos ígneos eram contínuos, como dois lança-chamas. Ela nunca tinha visto magia Elemental usada assim antes; ela nem sabia que poderia ser usada assim. Mas não foi o suficiente para deter o Sem-Rosto ou mesmo atrasá-lo.

Ardiloso cortou os jatos e recuou.

— Nunca funciona — murmurou o esqueleto. — Nada do que eu faço nunca funciona.

Uma coisa brilhante chamou a atenção de Valquíria e ela olhou para algo atrás da figura cambaleante que um dia já fora Batu, além da porta por onde ele tinha entrado, e viu o portal amarelo.

— O portal! — exclamou ela. — Está aberto!

— É melhor você ir logo, então — disse Ardiloso, desanimado. Ele deixou as mãos penderem nas laterais do corpo e parou de recuar.

— Vamos lá! — gritou Valquíria.

— A mente faz brincadeiras tão cruéis — murmurou.

Valquíria se esquivou e passou pelo Sem-Rosto. O monstro virou a cabeça para olhá-la e voltou a prestar atenção em Ardiloso. O caminho até o portal estava livre para ela.

— Ardiloso!

— Você não é real.

— Por favor!

O Sem-Rosto ergueu a mão e Ardiloso gemeu um pouco. As pernas dele cederam e o esqueleto caiu de joelhos, com os ossos tremendo.

— Eu fiz coisas terríveis — conseguiu dizer.

Os cavaleiros vinham correndo pelas ruas na direção deles. Aqueles na dianteira tinham quase alcançado o portal. Valquíria não podia permitir que eles entrassem. Fletcher fecharia tudo caso alguma criatura estranha chegasse à terra.

Valquíria vestiu o casaco e correu contra o sol. Empurrou o ar, derrubando dois dos cavaleiros. Um terceiro atacou com uma adaga, mas ela bloqueou com a manga e encheu a cara dele de chamas. A menina chutou o inimigo para trás e chicoteou outro com as sombras, acertando-o no peito e lançando-o ao chão. Um cavaleiro caiu sobre ela por trás e a prendeu numa chave de pescoço. Valquíria lhe deu uma joelhada no músculo da coxa e socou-lhe o rim e a virilha, derrubando o adversário em seguida com um golpe de judô e pisando-lhe a garganta.

A adolescente se virou e levou um soco no rosto. Cambaleou, tentou se equilibrar e caiu. O cavaleiro veio chutá-la, mas ela acertou o pé esquerdo na canela do atacante e meteu o pé direito na parte de trás do joelho dele. Quando Valquíria girou, o cavaleiro caiu para a frente gemendo, com o pé preso. A menina rolou sobre o inimigo e ouviu a perna se quebrar. Ele gritou.

Ela atirou uma bola de fogo que incendiou os pelos da roupa de um cavaleiro que estava quase tocando o portal. Ele berrou e se afastou, desequilibrado, mas agora havia cavaleiros por toda parte, vindo de todos os lados, e Valquíria se virou e se virou novamente, de punhos erguidos.

— Ardiloso! — gritou ela. — Socorro!

Então Porcelana apareceu pelo portal.

Tatuagens brilharam enquanto ela lançava uma onda de energia azul contra os cavaleiros antes que eles tivessem a chance de reagir. A maga lançou adagas de luz vermelha e se esquivou de um cavaleiro que correu para cima dela com uma espada. Porcelana deu uma cabeçada no rosto dele e foi cuidar dos outros inimigos.

Valquíria se atirou contra um cavaleiro que tentou se esgueirar e atacar Porcelana por trás. Arrancou a faca da mão dele e empurrou o ar, fazendo a arma se cravar na perna de outro inimigo.

— Ardiloso? — inquiriu Porcelana, quebrando o pulso de um dos cavaleiros e metendo os dedos nos olhos dele.

Outro homem puxou o cabelo de Valquíria, que deu um passo atrás e lhe acertou uma cotovelada no nariz.

— Lá dentro — ofegou a menina. — Com um Sem-Rosto.

— Ardiloso Cortês! — rugiu Porcelana. — Saia já daí!

Valquíria cobriu a cabeça quando dois cavaleiros saltaram contra ela, mas, como eles não caíram, ela olhou para cima. Ambos estavam erguidos no ar, com expressões confusas no rosto, e foram jogados para trás quando Ardiloso cambaleou porta afora, com os braços esticados.

— Duas de vocês — exclamou, parecendo surpreso. — Mas as minhas alucinações nunca andam em pares...

Valquíria agarrou a mão do esqueleto e o puxou da porta quando o Sem-Rosto apareceu para puxá-lo de volta. Porcelana manteve os cavaleiros afastados e em seguida segurou a outra mão de Ardiloso, e os três saltaram pelo portal.

Um clarão amarelo veio e foi, e algo se enrolou nas pernas de Valquíria, que caiu. Em vez de se esborrachar num chão duro e arenoso, porém, ela tombou na grama, ainda molhada pela chuva de horas antes.

Valquíria piscou até ver novamente, percebendo que tinha tropeçado nas pernas de Ardiloso, que também tinha caído. Porcelana havia permanecido de pé, é claro, e estava mandando Fletcher fechar o portal. Valquíria olhou a passagem encolher quase instantaneamente até sumir por completo.

Os dois se levantaram e Fletcher saiu do círculo. Todos observaram Ardiloso enquanto ele olhava em volta de si para a fazenda Aranmore.

— Meu Deus — exclamou baixinho. — Estou em casa.

— Como você está? — perguntou Porcelana. Foi só então que Valquíria percebeu o sangue nas roupas e a palidez no rosto da feiticeira.

Ardiloso inclinou a cabeça e fez uma pausa antes de responder.

— Estou ótimo — disse. — Você levou um tiro.

— Estou bem, agora.

Fletcher foi até eles e entregou a Caveira da Morte.

— Acho que isto é seu.

Ardiloso recebeu o crânio e o fitou.

— Mas que bonitão! — E, em seguida: — Por que há pessoas inconscientes caídas por toda fazenda?

— Grêmio mandou alguns agentes para nos deter — explicou Porcelana. — Deve ter mais deles a caminho.

— Então é melhor não estarmos aqui quando eles chegarem. — O esqueleto olhou para Valquíria e parou por um momento.

— Você me salvou — afirmou.

— Salvei, sim.

Ela estava esperando um abraço. O abraço não veio.

— Bom trabalho — disse Ardiloso, e então começou a andar.


14

O ASSUNTO EM QUESTÃO

Nas profundezas da mente de Sanguíneo jazia uma pergunta que se infiltrava, ocasionalmente, nos pensamentos dele. Quantos desses homens ele teria de matar para conseguir o que queria?

Estava confiante de que não teria de matar Escaravelho. O velho estava concentrado no âmbito estratégico — vingança em grande escala. Jack Saltador provavelmente também não entraria no caminho dele. Jack simplesmente queria desforra contra todo mundo que algum dia o prejudicara. Sanguíneo reconhecia o valor disso.

Mas os outros... Todos queriam a mesma coisa. A motivação primária deles era se vingar da mesma pessoa.

Valquíria Caos.

O próprio Sanguíneo tinha um motivo pessoal para querer matar a garota, uma dor que o assolava desde o dia em que os Sem-Rosto tinham entrado pelo portal. O assassino realmente pretendia apoiar o plano de Escaravelho até onde fosse possível e, até agora, tinha feito sua parte. Roubara o que precisava ser roubado e libertara Crepúsculo da prisão, entrando por baixo da terra e lutando para sair. Crepúsculo agora estava construindo um exército e Sanguíneo construía outro. Estava coordenando e facilitando o plano. E, era preciso admitir, aquele era um bom plano. Se tudo desse certo, destruiria os inimigos deles, lhes satisfaria a sede de sangue e mudaria tudo.

Não era um plano isento de falhas, claro — sendo uma delas Vaurien Patife, que, até onde Sanguíneo tinha percebido, não era o Matador Supremo que afirmara ser. Isso, porém, era culpa de Sanguíneo, pois, afinal, ele o tinha recrutado. Portanto, era responsabilidade dele resolver o problema.

Mas o plano era essencialmente um bom plano, um plano sólido. Entretanto, assim que Sanguíneo percebesse uma oportunidade, tiraria proveito dela. Não dava a mínima para a possibilidade de isso arruinar tudo ou colocar todo mundo na cadeia ou no cemitério.

De um jeito ou de outro, Sanguíneo tinha decidido, Valquíria Caos ia morrer — e ele estava determinado a ser o assassino.


15

DE VOLTA A CEMETERY ROAD

A casa de Ardiloso estava fria e o ar estava estagnado. Valquíria checou as mensagens no celular enquanto Ardiloso pegou o crânio que Fletcher lhe dera e foi até a sala grande onde guardava todas as suas melhores roupas. Fletcher tentou ligar a TV, mas a energia tinha sido cortada. Subitamente eles ouviram um uivo agudo de dor, e Valquíria girou, assustada.

— Ardiloso — gritou ela enquanto corria. — Está tudo bem? Ardiloso?

A adolescente atravessou a casa correndo, abrindo portas enquanto passava. Ela chegou ao aposento final e bem quando ia entrar:

— Isso doeu — disse Ardiloso do lado de dentro.

Valquíria franziu a testa para a porta fechada.

— O que aconteceu?

— Eu estava trocando de cabeça. É uma sensação maravilhosa ter minha velha cabeça de volta. E agora tenho uma de reserva, o que é ótimo.

Valquíria deu um passo atrás quando a porta se abriu e Ardiloso apareceu. Vestia terno e gravata de cor azul-marinho e uma camisa branca engomada. Inclinou o queixo.

— O que você acha da cabeça?

— Hum, é... bem legal. Parece muito com a outra.

— Como assim, que conversa é essa? É completamente diferente. As maçãs do rosto são mais proeminentes.

— São?

— Não são?

— Imagino que... possam ser. É confortável?

— Muito. — Ardiloso passou por Valquíria a caminho da sala onde guardava os chapéus. — Cadê o Medonho? Já contou a ele que estou de volta?

— Hum, não.

— É possível que ele não acredite em você. Ele pode pensar que eu ainda estou alucinando. Melhor dizer a ele que não estou. Acho que ele gostaria de saber que não é uma invenção da minha cabeça. Eu sei que eu gostaria. — Ardiloso pôs um chapéu que combinava com o terno, inclinou-o baixo sobre as órbitas oculares e se admirou no espelho. — Senti falta disto — murmurou.

— Medonho foi preso — respondeu Valquíria, tentando fazer Ardiloso se concentrar. — Ele e Tanith. Estão detidos no Santuário.

— E por que motivo?

— Por me ajudarem a trazer você de volta. Grêmio deixou bem claro que não deveríamos abrir o portal de novo. Ele falou que não poderíamos correr o risco de deixar alguma coisa ruim entrar por ele.

— Hum. Isso foi muito sábio da parte dele.

Valquíria olhou furiosa para o detetive.

— Isso não me ajuda nem um pouco.

— Ora, Valquíria, abrir o portal foi muito perigoso. Às vezes você tem que admitir que está errada.

— Você nunca admite que está errado.

— Veja bem, é porque eu raramente estou errado. Você, por outro lado, está errada com uma frequência bizarramente alta. Estatisticamente falando, é muito impressionante.

O esqueleto abriu uma caixa de madeira e lentamente pôs a mão dentro. O revólver brilhou ao ser removido.

— Smith & Wesson — anunciou, carinhoso. — Você o limpou?

— Semana passada — respondeu Valquíria, sorrindo. — Achei que você ia querer usá-lo.

Ardiloso abriu o cilindro, tirou seis balas da caixa, colocou-as nas câmaras e o fechou novamente, acionando a trava de segurança. Ele guardou a arma no coldre sob o paletó.

— Pronto — anunciou. — Agora estou me sentindo completo de novo.

Fletcher entrou e disse oi.

— Fletcher. — Ardiloso acenou com a cabeça. — Eu lhe agradeci por ter aberto o portal e me trazido para casa?

— Não — respondeu Fletcher. — Mas não há de quê.

— Você poderia ter sido responsável pelo fim da raça humana — informou Ardiloso, feliz. — Mas, pessoalmente, não vou condená-lo por isso. Pode ir embora, agora.

— Posso o quê?

Ardiloso hesitou só por um momento.

— Seu cabelo. Ele me desconcentra. Lamento, achei que alguém deveria lhe avisar.

— Você quer que eu vá embora por causa do meu cabelo?

— É que você tem muito cabelo, sinceramente.

— Você está falando sério?

— Você não percebe?

— Sinceramente, não.

— Bem, para seu governo, esta é minha cara de sério.

Fletcher olhou para Valquíria, que encolheu os ombros.

— A gente te liga quando certas pessoas estiverem se sentindo... mais sensatas — falou a menina.

— Tá bom — respondeu o rapaz. — Então eu... eu vou, então.

Fletcher desapareceu e Ardiloso se virou para Valquíria.

— Então — indagou. — Onde está ele?

Os dois saíram e Valquíria abriu a garagem. A adolescente tirou a lona de cima do carro, um Bentley R-Type Continental ano 1954, um dos poucos 208 fabricados, equipado com todos os luxos modernos e a menina dos olhos de Ardiloso. Se ele tivesse olhos. O esqueleto passou a mão na lataria.

— Você precisa mesmo de um carro, agora? — indagou Valquíria. — Não vai simplesmente voar para todos os lados, de agora em diante?

— Voar é muito desgastante. — Foi a resposta. — E não é lá o modo de transporte mais discreto.

— Mas o Bentley é?

Ela ouviu algo que poderia ter sido uma risada e os dois entraram no carro. O Bentley saiu rasgando da garagem e voou até o ponto mais alto da rua, fazendo a curva numa velocidade que teria aterrorizado Valquíria se não fosse Ardiloso ao volante.

— Curioso — murmurou o esqueleto, reduzindo abruptamente a velocidade do Bentley.

— O que foi?

— Estamos sendo seguidos — disse Ardiloso. — E não muito bem.

Ardiloso virou casualmente à esquerda numa rua lateral deserta e em seguida pisou fundo. Valquíria foi espremida contra o banco. O esqueleto virou a próxima esquerda e parou no meio da rua. Verificou se o cachecol estava amarrado corretamente e saiu do carro, com o revólver na mão.

Um Volvo azul fez a curva rugindo e os freios guincharam quando o carro derrapou para não bater no Bentley. Chocou-se contra a parede e o motor morreu. Ardiloso foi até o Volvo, arrebentou o vidro com a coronha da arma e arrastou o motorista ruivo para fora, jogando-o no chão.

— Não gosto de ser seguido — anunciou Ardiloso, num tom agressivo.

— Não atire! — gritou o motorista.

— Estou farto de ser seguido — continuou Ardiloso, como se não tivesse ouvido o homem. — Não estou mais no clima para isso.

Valquíria reconheceu o jovem homem que tremia de medo no chão. Ele se chamava Cajadeiro Choroso. Ela o tinha visto no Santuário algumas vezes. O sujeito não tirava os olhos da arma de Ardiloso.

— Eu geralmente mato as pessoas que me seguem — murmurou Ardiloso, quase para si mesmo.

Valquíria franziu a testa.

— Ardiloso?

— É assim que acontece — continuou o esqueleto, falando baixinho. — Eles me caçam, eles morrem. Simples. Gosto de manter as coisas simples. Limpas.

Ardiloso ergueu a arma, Valquíria correu e agarrou o pulso dele.

— O que você está fazendo?

O esqueleto olhou para a parceira e inclinou a cabeça.

— Valquíria. O que você está fazendo aqui? — Ardiloso ficou imóvel por um momento e em seguida balançou a cabeça, guardando a arma no coldre. Ele foi até o carro e ficou parado ao lado dele, fitando o céu. Choroso ficou olhando fixamente o detetive, num estado de confusão aterrorizada, e Valquíria se colocou na frente dele.

— O que você quer? — perguntou. O sujeito olhou para ela.

— Vim prender você.

— Por que motivo?

— Você atacou a Detetive Mácula e obviamente abriu o portal, contrariando as ordens expressas do Grande Mago.

— Lamento, mas acho muito difícil que ele tenha mandado você para nos prender.

— Bem, originalmente era só para eu vigiar a casa de Ardiloso Cortês — admitiu Choroso. — Os outros detetives estão ocupados.

— Fazendo o quê?

— Ninguém quis me dizer. Ouvi falar que um dos Sensitivos teve uma visão que deixou todos preocupados... Os detetives não me contam essas coisas, na verdade. Não sou lá muito importante, você sabe, na constelação da magia.

Ardiloso veio andando casualmente, com as mãos nos bolsos, aparentemente de volta ao estado normal.

— Você não veio aqui me prender, veio?

Choroso se encolheu.

— Eu... Eu não sei.

— Porque, tecnicamente, não violei nenhuma lei recentemente. Não resgatei a mim mesmo, resgatei?

— Acho que não...

— Então é Valquíria que você quer, não é?

— Hum, sim.

— Excelente.

— Só que... — disse Choroso, hesitante.

— Só quê?

— Tecnicamente, você acabou de me atacar, e eu sou um agente do Santuário.

— Bem, sim — concordou Ardiloso. — Mas você não é lá um agente muito bom, é? Digo, mandaram você vigiar minha casa. Não é exatamente um caso importante. Há quanto tempo você está vigiando minha casa?

— Hum, três... Três meses.

— Três meses. E qual foi o resultado da sua investigação? Minha casa por acaso se meteu em alguma atividade ilegal? Ela roubou um banco? Assaltou alguém num beco escuro?

— Não...

— Ela se mexeu um pouquinho que fosse?

— Acho... que não.

— Passou algum trote?

— Não.

— Entendo. E, agora há pouco, fui eu quem fez você sair da pista, ou foi você que bateu sozinho?

— Eu acho, hum, que bati.

— E eu tirei você dos destroços, não tirei? Afinal, o carro poderia ter explodido. Eu salvei sua vida e agora você quer me prender por isso?

— Bem, não mais...

— Bom saber disso. Você quer se levantar?

— Sim, por favor.

— Então levante-se.

Choroso se levantou.

— Meus amigos foram detidos — disse Ardiloso. — Medonho Reservado e Tanith Low. O que você sabe sobre isso?

— Só as coisas que ouvi nos relatórios gerais. Eles invadiram o Santuário e um deles atacou a Detetive Mácula.

— Mácula — murmurou Ardiloso. — Davina Mácula? Americana?

— Ela mesma — confirmou Valquíria.

— Ah, ela me odeia — comentou Ardiloso. — Sem nenhum motivo, gostaria de acrescentar. Pelo menos nenhum motivo que me interesse. Garotinho frouxo, você poderia, por favor, dizer ao Grande Mago que eu voltei e que, pelo que você viu, eu fiquei um tanto quanto perturbado pelas minhas horríveis experiências numa dimensão alternativa? Você também poderia lhe dizer que eu gostaria muito que ele libertasse meus amigos assim que fosse possível?

— Sim. Claro. Certamente.

— E então ameace dar um tiro nele.

— Hum, não sei se é uma boa ideia.

— Bobagem — respondeu Ardiloso, dando tapinhas no ombro do rapaz. — O Grande Mago odeia levar tiros. É muito engraçado. Você vai ficar bem. Pode ir agora.

— Posso... posso voltar ao meu carro?

Ardiloso ponderou a questão e balançou a cabeça.

— Não.

Choroso ficou chateado.


16

O TEMPLO

— Você está calada — comentou Ardiloso quando eles estavam de volta à estrada.

— Pois é — concordou Valquíria.

— Espantada comigo?

— Algo assim.

Ardiloso concordou com a cabeça.

— Você está espantada comigo.

— Como você se sente?

— Esplêndido. — Foi a resposta.

— Você assustou ele mesmo — afirmou Valquíria.

— Quem, o garoto? Assustei mesmo?

— Por um momento, pareceu que você ia matá-lo.

— Pareceu?

— Pareceu.

— Ora, vejam só — exclamou o esqueleto.

— Você disse que estava perturbado.

— Humm? Ah, sim, eu disse. Muito inteligente, não foi? Veja bem, se eles acharem que eu enlouqueci, terão dificuldades em prever minhas ações. Eu me torno muito, muito perigoso para eles e, assim espero, dessa forma, Grêmio fará o que nós queremos.

— E você não está de verdade, não é? — indagou Valquíria cautelosamente. — Você não está perturbado?

— Ah, Deus, não! — Ardiloso riu. — Não, estou perfeitamente são. Enfim, você quer me contar alguma coisa sobre esse anel que está usando?

— Ah. Isso.

— Salomão Mortalha está lhe ensinando Necromancia, não está?

— Eu precisava de mais força para trazer você de volta — explicou Valquíria. — Sou apenas uma Elemental em treinamento, e precisava de toda a ajuda possível, sabe?

— E agora que eu voltei?

— Como assim?

— Você disse que precisava do anel para me trazer de volta. Então, agora que estou aqui, acabou? Vai jogá-lo fora?

Valquíria sentiu o metal frio em volta do dedo e como isso tinha se tornado reconfortante ultimamente.

— Se quiser que eu jogue — respondeu ela lentamente.

— O que você quer fazer?

— Eu não sei. — Ardiloso não disse nada, então ela teve que continuar. — Imagino que jogar fora outro conjunto de poderes... Quero dizer, não faz muito sentido. É uma arma da qual eu preciso para fazer o serviço.

— E ser uma Elemental não é suficiente para isso?

— Quando eu for poderosa o bastante certamente será, especialmente com todas essas coisas novas que você aprendeu a fazer, mas ainda estou aprendendo. E ainda tenho mais alguns anos antes que minha magia se assente, não é?

— É verdade. — Ardiloso concordou com a cabeça. — Você provavelmente terá uns vinte, talvez 21 anos, quando tiver que escolher um estilo específico.

— E, depois disso, não posso mais mudar?

O detetive hesitou.

— Não é impossível. Mas é raro.

— Então posso continuar usando o anel até a hora de me assentar, não posso, e aí devolvê-lo?

— Fácil assim?

— Por que não seria?

— A força é viciante.

— Eu consigo lidar com isso.

— Salomão Mortalha não é de confiança.

— Ele salvou minha vida ontem.

Ardiloso virou a cabeça para ela.

— O que aconteceu?

— Hum, Crucial invadiu minha casa e tentou me matar. Eu poderia ter cuidado dele. Tipo, não quis dizer que Mortalha salvou minha vida, mas ele, você sabe, ele ajudou. Mas o pessoal de Porcelana montou um perímetro ao redor de Haggard, então ninguém mágico pode entrar sem ser percebido. Exceto eu, é claro.

— Certo — comentou Ardiloso, virando o volante com força. — Preciso ter uma conversa com Mortalha.

Valquíria só tinha visitado o Templo dos Necromantes uma vez, para ver o anel sendo forjado na fornalha das sombras. Ela havia imaginado, quando ouviu falar no Templo, uma vasta construção com pináculos e longas janelas estreitas, com portas enormes e possivelmente algumas torres negras e terríveis. As expectativas foram demolidas quando Salomão Mortalha a guiou por um velho cemitério até uma cripta com portões de ferro enferrujados, coberta de ervas daninhas e hera. Sob a cripta, porém, se estendia o Templo: um labirinto frio e nada convidativo, banhado pelas trevas.

E lá estava ela novamente diante do portão enferrujado, ao lado de Ardiloso. O coração dela batia forte. Não por nervosismo ou empolgação, mas simplesmente pelo fato de ela estar num cemitério. Valquíria sentia os tentáculos da morte sendo atraídos para o anel no dedo dela, se espalhando pelo corpo. Tal pensamento fez com que ela se sentisse enjoada, mas a sensação era... eletrizante.

A porta da cripta se abriu pesadamente e Salomão Mortalha sorriu para os dois.

— ...de repente ouvi o que parecia o som de alguém que batia, batia levemente a meus umbrais.

— Que original — comentou Ardiloso, sem entusiasmo algum. — Um Necromante citando Poe.

O sorriso de Mortalha ficou ainda mais largo.

— Meu dedão está coçando. Vem algum patife andando.

— Shakespeare é o parque de diversões favorito das mentes que perderam o equilíbrio — respondeu Ardiloso. — Vamos agora nos gabar de todos os livros ótimos que lemos ou vamos conversar?

— Sobre?

— Valquíria.

— Entendo. Neste caso, entrem, por favor. — O portão se abriu rangendo para o Necromante e os dois entraram. — Como está você, aliás? Espero que a dimensão alternativa não tenha sido muito desconfortável.

— Não foi tão ruim assim — respondeu Ardiloso. — Aproveitei o tempo livre para ficar em dia com os meus gritos.

A dupla desceu os degraus de pedra seguindo Mortalha treva adentro.

— Acredito que lhe devo um agradecimento pela sugestão de usar minha caveira como Âncora de Istmo — continuou Ardiloso. — Se não fosse por você, eu ainda estaria lá.

— Não foi nada demais.

— É, provavelmente não foi.

Mortalha riu.

Agora eles estavam no labirinto de sombras, passando por câmaras escavadas nas paredes. Em algumas dessas salas, pessoas em vestes negras ergueram a cabeça, e a luz dos lampiões destacou a pele contra as sombras. Em outros aposentos, as silhuetas vestidas de negro estavam ocupadas demais para se darem ao trabalho de olhar. Mais adiante, as pessoas andavam apressadas.

— Parece haver algum problema — notou Ardiloso.

— Nada que lhes diga respeito — afirmou Mortalha. — Uma de nossas bugigangas está desaparecida. Estamos tentando encontrá-la. Mas chega de falar das tediosas tarefas cotidianas do Templo. Vocês vieram conversar, não vieram?

— Valquíria me contou que está tendo lições com você — disse Ardiloso, com a voz soando alta no silêncio frio.

— De fato, ela está — respondeu Mortalha. — Isso é um problema para você?

— A Necromancia é uma disciplina perigosa. Nem todos estão aptos a encará-la.

— Ora, convenhamos. — Mortalha sorriu. — Será possível que eu tenha mais fé nas habilidades de Valquíria que você?

— Não é uma questão de habilidade. — Foi a resposta seca de Ardiloso. — Trata-se de aptidão.

— Como assim? — indagou Valquíria.

— Para que você possa tomar uma decisão consciente, imagino que o velho Salomão tenha lhe falado das crenças dos Necromantes?

E Mortalha não parecia mais estar feliz.

— Nossas crenças são um assunto privativo. Não devem ser discutidas com...

— Com? — instigou Ardiloso.

— Incrédulos — respondeu Mortalha.

— Você pode abrir uma exceção para mim, não pode? — pressionou Ardiloso. De alguma forma, ele agora estava guiando o grupo, e Valquíria percebeu que eles se dirigiam à fonte da comoção silenciosa. — E, quanto a Valquíria, ela não ganhou o direito de ouvir isso ao iniciar as lições?

— Valquíria — disse Mortalha. — Você pode ser considerada uma das nossas aprendizes, uma de nossas recrutas; e, como tal, você aprenderia tais coisas gradualmente, ao longo dos próximos anos.

— Mas você vai ignorar as formalidades — insistiu Ardiloso. — Não vai?

Mortalha suspirou e começou a explicar.

— A morte faz parte da vida. Você certamente já ouviu isso. É uma platitude com a função de confortar os que sofrem e os que têm medo. Mas, na verdade, a vida flui para a morte, que flui de volta para a vida. As trevas que usamos em nossa magia são uma energia viva. Você já sentiu, não sentiu? É quase como se tivessem vida própria. Elas são vida e morte. As duas coisas são a mesma coisa: um fluxo constante e reciclável que permeia todo o universo.

— Conte a ela sobre o Arauto da Morte — disse Ardiloso, olhando em volta.

— O Arauto da Morte não é relevante para...

— Bem, você não pode mais esconder isso dela agora, pode? Então é melhor contar logo.

Mortalha respirou fundo para controlar o temperamento.

— Estamos esperando um Necromante poderoso o bastante para romper as muralhas entre vida e morte. Algumas pessoas se referem a ele como o Arauto da Morte. Já conduzimos testes, já pesquisamos; adotamos uma abordagem muito clínica a essa coisa toda. Não é uma profecia. Profecias não têm significado algum, são interpretações de possibilidades. Isto se trata de uma inevitabilidade. Vamos encontrar alguém poderoso o bastante para romper a muralha, e a energia dos mortos viverá ao nosso lado, e vamos evoluir para usá-la.

— Eles chamam esse evento de Passamento — explicou Ardiloso. — O velho Salomão aqui se esqueceu de dizer, é claro, os nomes das raras pessoas que os Necromantes já proclamaram ser o Arauto da Morte no passado.

— Ela não precisa saber disso — discordou Mortalha, com raiva nos olhos.

— Acho que precisa.

— Me contem — disse Valquíria aos dois.

Mortalha hesitou.

— A última pessoa que consideramos poderosa o bastante para possivelmente se tornar o Arauto da Morte surgiu durante a guerra. Dois anos após iniciar o treinamento de Necromante, Lorde Vil se equiparava a qualquer um dos nossos mestres.

— Vil? — exclamou Valquíria. — Lorde Vil era o seu salvador?

— Achávamos que ele poderia ser — respondeu Mortalha rapidamente. — Ele ascendeu em nossas fileiras de maneira inédita. Era impossível, ele era um prodígio. As trevas... elas não estavam só nele. Elas eram ele.

Os dois viraram uma esquina e seguiram um corredor até o fim. Ardiloso liderava o grupo sem parecer liderar.

— E então ele os abandonou — contou Ardiloso. — E se juntou ao exército de Malevolente. Aposto que isso ainda dói.

— Então vocês estão sem um Arauto da Morte desde então? — perguntou Valquíria.

— Sim — respondeu Mortalha. Ele olhou para Ardiloso. — Você veio aqui por isso, então? Para fazer esta tentativa desajeitada de me envergonhar?

— Inicialmente, sim — confirmou Ardiloso. — Mas agora estou curioso para saber mais dessa bugiganga que vocês perderam. Ora, vejam só onde estamos. Que ótima coincidência.

O trio chegou a uma pequena câmara com estantes de madeira organizadas em ângulos estranhos. Os dois Necromantes que estavam lá dentro se calaram imediatamente. Ardiloso tentou entrar, mas Mortalha lhe segurou o braço.

— Não pedimos a sua ajuda — afirmou, num tom severo. — Este é um assunto dos Necromantes.

— Estava aqui, então? — indagou Ardiloso. — A sua bugiganga? Por que não nos conta o que foi que sumiu, e eu lhe direi quem roubou.

Mortalha sorriu hesitante.

— Você já sabe quem foi?

— Eu sou um detetive.

Mortalha pensou por um momento e, em seguida, fez um gesto para os dois Necromantes, que foram embora. Ele deu um passo atrás enquanto Valquíria se juntava a Ardiloso para examinar a sala.

— O objeto desaparecido é uma esfera, mais ou menos do tamanho do seu punho, engastada num berço de obsidiana.

— Um Apanhador de Almas — disse Ardiloso.

— Um dos últimos que ainda existem — concordou Mortalha.

Valquíria franziu o cenho.

— Ele faz mesmo o que o nome diz? Por que alguém precisaria apanhar almas?

— O Apanhador de Almas era utilizado para capturar e conter a energia de um indivíduo — explicou Mortalha. — Para impedir que ela se reunisse ao fluxo. Era uma punição bárbara que proibimos há muito tempo. A última vez que fizemos um inventário foi há um mês. Se foi de fato roubado, pode ter sido levado há um mês ou pode ter sido levado ontem. O problema mais simples com essa teoria, porém, é que eu não consigo entender como um ladrão poderia ter chegado tão longe dentro do Templo sem ter sido visto.

— Ah, o item com certeza foi roubado — afirmou Ardiloso. — Mas o ladrão não usou a porta.

Valquíria olhou para o esqueleto.

— Então quem roubou? — indagou a adolescente. Ardiloso apontou para cima. Ela estalou os dedos e ergueu a mão, com as chamas tremeluzindo no trecho do teto que estava rachado e danificado, grande o bastante para dar passagem a um homem.

— Sanguíneo — disse Valquíria.

— Billy-Ray Sanguíneo? — inquiriu Mortalha, a expressão de dúvida. — Mas o que ele quer com um Apanhador de Almas?

— É só um palpite — comentou Ardiloso. — Mas acho que ele quer apanhar uma alma.


17

CONVERSA DE MORTO

Vaurien Patife estava morto e Billy-Ray Sanguíneo o havia assassinado.

Patife tinha quase certeza de que fora isso que acontecera. Ele não conseguia recordar a coisa toda.

Ele se lembrava de Sanguíneo o levando para o canto, e contando a ele que tinha dado alguns telefonemas e falado com algumas pessoas, e ninguém confirmou que Patife fosse o assassino impiedoso de habilidade ímpar que ele afirmou ser. Patife tinha tentado explicar que tudo bem, ele realmente não tinha matado ninguém ainda, mas era só uma questão de tempo e, se Sanguíneo e Escaravelho pudessem pelo menos lhe dar uma chance, ele provaria ser digno de ser incluído nos planos.

Pelo menos foi o que ele planejou dizer. Lembrava-se vagamente de chegar até o “tudo bem”, e então... nada.

Sanguíneo o havia matado.

Patife abriu os olhos numa masmorra escura e úmida e, ao olhar para cima, viu o rosto do Mestre.

— Finalmente — disse Escaravelho, e foi a palavra mais fantástica que Patife jamais ouvira ser dita. Finalmente. Eis o meu leal companheiro, que jamais me deixará. Patife sorriu ali deitado.

— Pare de caretas — ordenou Escaravelho. — Você fica parecendo deformado.

— Perdão, Mestre — desculpou-se Patife enquanto se sentava. Por que estava chamando Escaravelho de mestre? Ele não sabia o motivo, mas lhe soava tão certo que simplesmente continuou. — Mestre, o que aconteceu comigo?

— Você está morto — anunciou Mestre Escaravelho. — Você mentiu para nós, Patife. Você não é um assassino. Eu soube assim que o vi.

— Foi porque eu caí da cadeira?

— Não interessa por que foi. Mas, como você mentiu para nós, desperdiçou nosso tempo e nos obrigou a repensar nossos planos, decidimos aproveitar a sua morte. Nós o matamos e o trouxemos de volta. Você sabe o que é?

— Muito sortudo?

— Um zumbi.

Patife riu.

— Não, mestre, eu não.

Escaravelho tirou uma faca do bolso e a cravou no braço de Patife. Este apenas olhou.

— Você não sente dor — continuou Escaravelho.

— Ah.

— Seu cadáver está sendo sustentado por magia.

— Eu sou... um zumbi.

— Exato.

— Mas eu sou, eu sou como aquele Talhador Branco?

— Estive preso pelos últimos 200 anos. Não faço a menor ideia do quê você está falando. Com toda honestidade, você é um zumbi bem básico. Não é um daqueles exemplares completamente reanimados, “autocurantes”. Você é, digamos, de categoria inferior. Foi o melhor que eu pude fazer com o conhecimento que tenho.

— Ah, estou agradecido mesmo assim¸ Mestre.

— Cale a boca. Você sabe alguma coisa sobre zumbis?

— Honestamente, não.

— Você não tem poderes mágicos. A magia que você tinha está sendo usada para manter seu corpo em movimento e seu cérebro pensando... Não creio que seja necessária lá muita magia para esse feito em particular.

— Acredito que não, senhor.

— A vantagem de ser um zumbi tão básico, porém, é que você pode transmitir sua condição com uma simples mordida. Veja bem, quero que você saia e recrute.

— Recrutar?

— Basta uma mordida. Essas pessoas que você recrutará não precisam ser magos. De fato, será melhor se elas não o forem. Acontece que você é o único que pode morder alguém, entendeu? Nenhum dos outros, e eu quero dizer nenhum mesmo, pode jamais sentir o gosto de carne humana.

— E por que não?

— Porque eu estou dizendo que não. Você é o único que será imune aos efeitos dela. Eles serão sustentados por resquícios de magia, mas se decomporão mais rápido que você. Acontece que eles vão desejar carne humana. Eles vão necessitar de carne humana. Você tem que garantir que eles não a consigam.

— Pode contar comigo, Mestre.

Escaravelho suspirou e olhou para ele.

— Você vai matar pessoas, Sr. Patife. Finalmente se tornará o assassino que sempre quis ser. Não estrague isso.


18

TREVÁRIA

OBentley se afastava do cemitério.

— Alguma notícia de Sanguíneo? — indagou Ardiloso. — Ele foi visto alguma vez desde que eu parti?

— Ele desapareceu — respondeu Valquíria. — Não sabíamos se ele estava morto ou vivo. Acertei o sujeito com a espada de Tanith, bem na barriga. Imagino que um pedaço de mim acreditou que eu o tinha matado.

— Bem, não matou.

— Não sei se fico desapontada ou feliz.

— Fique feliz. Você tem muito tempo para se arrepender de coisas que ainda não fez.

— Eu... não sei se entendi o que você quis dizer.

— Leve o pensamento para casa e pense nele.

— Vou levar, obrigada. Então, de qualquer maneira, não temos como saber quando Sanguíneo roubou o Apanhador de Almas.

— Isso é irritante — murmurou Ardiloso. — Enfim, não é problema nosso.

Valquíria franziu a testa.

— Como assim?

— Não é nosso caso. Por que deveríamos nos preocupar com as coisas que Sanguíneo anda fazendo? Estou entediado com todos eles. Preciso de algo novo. Preciso de um novo mistério, com novas pessoas.

— E para onde vamos?

— Aquele garoto frouxo disse que os detetives do Santuário estão preocupados com uma visão de um dos Sensitivos. Isso soa intrigante, não soa?

— Soa?

— Soa. Soa novo e empolgante. Eu me pergunto se eles viram o fim do mundo. Adoro visões do fim do mundo. São sempre tão violentas.

— Não gosto nada de visões.

— É mesmo?

— Não gosto que as coisas sejam inevitáveis.

— Ah, mas as visões do futuro não são inevitáveis. O mero fato de alguém ter uma visão do que vai acontecer automaticamente muda o que vai acontecer. É claro, às vezes as mudanças são infinitesimais demais para serem percebidas, mas são mudanças. Acho a coisa toda muito fascinante, sinceramente. Afinal, assim estamos lutando contra o curso natural dos eventos. Estamos sempre lutando contra o nosso próprio destino.

— É um jeito de encarar as coisas.

— É o meu jeito de encarar as coisas — concluiu Ardiloso, feliz. — Me dê alguns minutos e esse jeito vai mudar.

Mesmo tão cedo de manhã, o estúdio de tatuagem estava aberto. O zumbido grave da agulha os recebeu assim que entraram pela porta. A dupla subiu os degraus estreitos, passando por todas aquelas fotos de pedaços tatuados de pessoas.

O único cliente no estúdio era um homem gordo deitado de barriga para baixo numa mesa inclinada. O tatuador magricela, com a cabeça raspada e a camisa do time de futebol de Dublin, ergueu o olhar e abriu um sorriso.

— Caveirão! — exclamou o tatuador enquanto vinha correndo apertar a mão de Ardiloso. — Como pode uma coisa dessas? Eu tinha escutado que você tava preso num mundo morto dominado por supermonstros transdimensionais malignos!

— Acabei de chegar — explicou Ardiloso, concordando com a cabeça.

— Cara, que maneiro. Legal. Então, trouxe algum presente para mim?

— Tipo... um suvenir? — perguntou Ardiloso, duvidoso.

— Não precisa ser nada grande. Um seixo, talvez, ou um graveto. É só ser alguma coisa de um universo alternativo, sacou? Seria um lance maneiro pra mostrar pro garoto quando ele crescer, contar que foi um presente de aniversário do Tio Ardiloso.

— Lamento, Finbar, não trouxe nada.

— Tudo bem, tudo bem. Acho que poderia dar qualquer pedra velha para ele, né não? O garoto não teria como saber que não veio de um universo alternativo. Ele ficaria tão feliz. Já posso até ver o moleque levando a pedra pra escola, mostrando pros amiguinhos, carregando pra todos os lados. Eu tinha uma pedra de estimação quando era pirralho, mas ela fugiu. Pelo menos minha mãe disse que ela fugiu, mas acho que meu pai catou a pedra uma tarde e a tacou pela janela. Eu saí pra procurar, mas... — A voz de Finbar falhou. — Elas são todas iguais, sabe? São todas iguais... — O tatuador estreitou os olhos. — Ei, Caveirão... você tá usando uma caveira nova?

— Sim, de fato estou — respondeu Ardiloso, soando muito satisfeito. — O que você acha?

— Ah, cara, gostei muito. Não me entenda mal, eu me amarrava na outra, mas essa é simplesmente... da hora, sacou? As maçãs do rosto são mais pronunciadas.

Ardiloso se virou para Valquíria, com o crânio-mais-da-hora inclinado num ângulo bem metido a besta. A adolescente suspirou e indicou o gordo na mesa.

— É seguro a gente falar de, hum, assuntos de negócios com...?

— Ah, não se preocupe com ele — tranquilizou Finbar. — O cara chegou assim que eu abri o estúdio hoje, pediu uma pantera rosnando na omoplata. Desmaiou assim que comecei.

— Uma pantera rosnando?

— É.

— Então, por que você está tatuando um gatinho nele?

Finbar encolheu os ombros.

— Tô num clima meio gatinhos hoje, tá ligado? Então, se você não veio me dar um presente, tá fazendo o que aqui?

— Você teve alguma visão particularmente esquisita ou perturbadora ultimamente? — indagou Ardiloso. — Temos escutado coisas...

— Trevária — respondeu Finbar imediatamente.

— Trevada? — indagou Valquíria, franzindo o cenho.

— Trevária, com r-i-a. Está causando o maior bafafá na comunidade dos Sensitivos, falando sério. E se tantos psíquicos estão tendo as mesmas visões, então só pode ser encrenca. Eu tô tendo umas visões muito horríveis. Elas aparecem dia e noite, e são tão... traumatizantes. É como assistir a um filme de terror sem pálpebras. Eu nem posso piscar.

— Quem ou o que é Trevária? — inquiriu Ardiloso.

— Trevária é a feiticeira que destrói o mundo — revelou Finbar. — E, quando digo isso, quero dizer que ela arrebenta com tudo. Vi cidades completamente devastadas, como se bombas nucleares tivessem explodido. Vejo pedacinhos da destruição acontecendo. Essa mulher vestida de negro... Malevolente não era nada, comparado a esse tipo de maldade.

— Você sabe quando isso vai acontecer? — perguntou Valquíria.

— Não, mas acho que a Cassandra Pitonisa pode ter alguma ideia. As visões surgem bem vívidas para ela, por algum motivo. Posso levar vocês lá, se quiserem. Sharon e o nosso menino estão numa sessão do culto dela, então não tenho nada pra fazer pelas próximas horas.

— Sharon está num culto?

— É, um daqueles engraçados que tentam convencer as mulheres a sacrificarem os maridos toda lua cheia ou algo assim. Não sei bem se essa é a melhor atmosfera para se criar um filho, mas todo mundo precisa de um hobby, não é verdade?

Valquíria não sabia bem o que responder a isso, então indicou o gordo desmaiado com um aceno de cabeça.

— E podemos deixar o cara aqui?

— Ele vai ficar bem — respondeu Finbar, pegando o casaco. — Vamos no seu carro ou no meu?

Ardiloso inclinou a cabeça.

— Você tem um carro?

— Não.

— Então vamos no meu.

— Ótima ideia. Acho que esqueci como se dirige.

O trio deixou a cidade e Finbar passou a viagem quase toda lamentando o fato de que os poderes psíquicos dele não eram capazes de prever quem venceria o campeonato irlandês. Qual era a utilidade dos poderes psíquicos, perguntou ele, se não lhe diziam quem seria o campeão?

Eles viajaram até chegar a um chalé cercado por campos, prados e colinas até onde a vista alcançava. Uma dor de cabeça leve pressionava as têmporas de Valquíria, mas ela se esforçou para ignorá-la.

— Cassandra é uma das melhores Sensitivas do mundo — proclamou Finbar enquanto eles saíam do Bentley. — O Caveirão conhece ela, né, Caveirão?

— Conheço — confirmou Ardiloso.

— Cassandra é uma coroa maneira — continuou Finbar, enquanto os levava até o chalé. — E ela tem um monte de trapizongas que ajudam ela com os lances do balacobaco místico. Cara, você tem que ver os sussurradores de sonhos dela, Val, parecem um troço da Bruxa de Blair.

Valquíria não sabia quem era essa Bruxa de Blair, mas, antes que pudesse perguntar, a porta do chalé se abriu e uma mulher apareceu. Parecia ter uns cinquenta e poucos anos, com longos cabelos grisalhos que estavam soltos sobre os ombros. Ela usava um vestido desbotado e um casaco de lã leve.

— Cassandra — cumprimentou Ardiloso. — Você está ótima.

— E você é um mentiroso — respondeu Cassandra Pitonisa. — Mas eu não ligo. Bom ver você de novo.

— Cassie — disse Finbar. — Esta é Valquíria Caos.

— Eu a vi em meus sonhos, Valquíria — anunciou Cassandra. — Mas, nos meus sonhos, você está mais velha do que agora. Isso é um bom sinal.

— Ahm, certo.

Cassandra colocou todos para dentro de casa e fechou a porta. Era um chalé quase perfeitamente comum. Tinha tapetes, um sofá, uma TV, uma estante de livros, um violão num canto e portas levando a outros aposentos. Mas o que diferenciava aquele chalé de todos os outros chalés que Valquíria visitara um dia eram as dezenas de bonequinhos de madeira pendurados nas vigas do teto.

Cada um deles era do tamanho da mão aberta da adolescente e era feito de um apanhado de gravetos, amarrados com fita negra. Dois braços, duas pernas, um torso e a cabeça. Cassandra viu que ela estava olhando.

— Minhas habilidades não funcionam como as de Finbar — explicou. — Preciso fazer um esforço muito maior para obter resultados significativamente menores. Para mim, os vislumbres do futuro podem vir durante a meditação, podem surgir na minha mente sem aviso ou podem aparecer nos meus sonhos. Tenho todo tipo de ferramenta do ofício para me ajudar, de todas as culturas e países.

Ela pegou um boneco numa prateleira e continuou a explicação.

— Isto é um sussurrador de sonhos. Aqueles sonhos que você esquece, que se esvaem da sua mente, estes bonecos coletam. Eles os contêm pelo tempo que for necessário e, quando a hora certa chega, eles lhe contam os sonhos. Porém, é necessário estar num silêncio muito profundo para ouvir os sussurros, e é por isso que eu vivo aqui no meio do nada.

Valquíria fez o melhor possível para parecer interessada, e não apavorada. Cassandra falava como se os bonecos estivessem vivos. A mulher sorriu e estendeu um deles.

— Tome. Você parece ter sonhos interessantes.

Valquíria hesitou e aceitou o objeto.

— Obrigada. É... lindo.

Não tinha feições, nem boca ou olhos, mas Valquíria ainda assim se sentia observada por ele. A adolescente tentou sorrir e guardou o boneco no bolso com cuidado.

Cassandra os levou por uma porta estreita e todos desceram até o porão. Num contraste brutal e desagradável com o aconchego do chalé, o porão era um aposento feio, de paredes feitas de tijolos de cimento e uma luz forte que fez a dor de cabeça de Valquíria piorar. O chão era um grelha de metal cobrindo carvão. Velhos canos enferrujados corriam de uma roda vermelha parede acima e cruzavam o teto. Sprinklers instalados nos canos desciam até meio metro abaixo das luzes protegidas. No meio da sala havia uma única cadeira, com um guarda-chuva amarelo ao lado.

— Esta é a Câmara dos Vapores — anunciou Cassandra enquanto se sentava na cadeira. — Aqui posso projetar imagens das coisas que eu vi. Às vezes são nebulosas, às vezes são cristalinas. Às vezes há som, às vezes não. No mínimo vocês terão uma ideia do que tenho em mente. Antes de começarmos, porém, vocês precisam entender uma coisa. Este futuro que vocês verão não está garantido. Vocês podem mudá-lo. Todos vocês.

Mesmo que Cassandra estivesse falando com os três visitantes, Valquíria tinha a impressão clara de que o comentário era especificamente direcionado a ela. Subitamente, não tinha muita certeza de que queria ver o que Cassandra tinha a mostrar.

— Por que vocês não foram até o Santuário? — perguntou a mulher. — Você e Finbar devem ser muito mais poderosos que os psíquicos que eles têm disponíveis. Eles provavelmente precisam muito de ajuda.

— Eu não falo com O Sistema. — Finbar fez cara feia. — O Sistema me oprime.

— De que maneira? — perguntou Valquíria, genuinamente curiosa.

Finbar hesitou.

— De maneira geral — falou, finalmente. — Tipo... de maneira geral, oprimindo os meus lances. As minhas paradas.

— Não somos grandes fãs do Santuário — disse Cassandra gentilmente. — Qualquer organização tão grande e poderosa assim está cheia de corrupção. Acho que podemos dizer que temos alma de ativista, mesmo depois de tantos anos.

— Abaixo O Sistema! — exclamou Finbar orgulhoso.

— Enfim — concluiu Cassandra —, vamos aos negócios. Ardiloso, por favor.

Ardiloso olhou para Valquíria.

— A chapa vai esquentar...

O esqueleto estalou os dedos, invocando chamas nas duas mãos, e jogou as bolas de fogo no chão. Elas caíram pela grade e, com um gesto de Ardiloso, as chamas se espalharam e incendiaram os carvões.

Cassandra fechou os olhos e ficou parada por um minuto ou dois. Valquíria queria perguntar se poderia abrir a porta no alto das escadas para deixar o ar entrar, porque Ardiloso tinha falado a verdade: estava ficando bem quente ali dentro.

Sem abrir os olhos, Cassandra pegou a sombrinha amarela e a abriu. Ela a apoiou sobre o ombro, cobrindo a cabeça, e fez um gesto positivo.

— Estou pronta.

Finbar girou a válvula vermelha na parede e Valquíria ouviu a água gorgolejando pelos canos. A adolescente deu um passo atrás quando os primeiros pingos começaram a cair dos sprinklers, e Ardiloso a moveu para trás mais três passos assim que o esguicho alcançou força total. Valquíria ficou encostada na parede, com o esguicho atingindo apenas as botas. A água passou pela grade no chão, sibilando ao cair nos carvões, e o vapor começou a subir.

Cassandra estava sentada no meio da sala, com a sombrinha amarela fazendo o possível para mantê-la seca, e então desapareceu de vista. O vapor era espesso como uma névoa, um nevoeiro, ficando mais denso a cada momento que passava. A cabeça de Valquíria agora latejava com força.

Ela ouviu Finbar girando a válvula novamente, mesmo que não pudesse vê-lo, e os sprinklers se desligaram. O vapor, entretanto, continuou.

Alguém se moveu diante de Valquíria, que estendeu a mão e depois a recolheu com força. Havia outra silhueta atrás da primeira e estava se movendo para a direita. Eles não estavam mais sozinhos ali.

Alguém apareceu ao lado da adolescente, que girou, atacando. Ardiloso segurou o punho dela na mão enluvada.

— Você não corre perigo algum — explicou.

— Tem gente aqui conosco — sussurrou Valquíria.

— Assista — respondeu o esqueleto, que em seguida a levou para o meio da sala.

Valquíria virou a cabeça quando uma silhueta correu pelo vapor na direção dela. A adolescente se esquivou, mas a água tinha deixado a grade de metal escorregadia, e a bota escorregou. Ela cambaleou e Medonho Reservado correu até ela, com o corpo se desfazendo no nevoeiro pouco antes de atingi-la.

Valquíria girou novamente, ciente da presença de Ardiloso ao lado dela, completamente calmo.

— Imagine que se trata de um holograma — explicou o esqueleto — projetado na névoa. Nada disso é real.

Havia prédios agora, dos dois lados, e uma rua aos pés deles. A rua estava rachada e os prédios arruinados. Era uma cidade morta, morta ou moribunda, e Valquíria ouviu gritos abafados ao longe. Uma silhueta se aproximou, caminhando pela rua de vapor com uma arma na mão. Ardiloso. O terno preto estava rasgado.

— Pelo menos ainda estou bonitão — comentou o Ardiloso real.

A imagem do detetive desapareceu. E então um barulho. Alguém gritando ao longe e um tiro. Em algum lugar no fundo da Câmara houve um clarão, como uma bola de fogo sendo atirada. O som vinha de todos os lados, de cima e de baixo, da frente e de trás, e era o som de uma batalha em curso.

Vultos de trevas eram visíveis agora, nos cantos da sala, e estavam lutando, correndo e saltando. Alguns deles carregavam armas, e Valquíria reconheceu o contorno dos Talhadores.

Havia uma sombra no vapor diante deles, atirando Talhadores para trás como se não fossem nada mais que um aborrecimento.

Valquíria recuou até ficar ao lado de Ardiloso.

— O que estamos vendo?

— O futuro — anunciou lentamente o esqueleto.

As imagens sumiram e uma nova silhueta se formou. Valquíria viu ela mesma, alguns anos mais velha do que agora.

A Valquíria no vapor era mais alta e tinha braços musculosos mas elegantes, como os de Tanith. Uma tatuagem rodopiava do ombro ao cotovelo, e ela vestia uma luva de metal negro na mão direita. A calça preta e justa delineava as pernas fortes. As botas estavam gastas e sujas de sangue.

— Eu vi isto — disse a Valquíria de vapor, com os cabelos negros soprados sobre o rosto. — Estava olhando... — ela virou a cabeça e olhou diretamente para onde Valquíria estava. — ...ali.

A adolescente não conseguia se mover.

— É aqui que acontece — continuou a versão mais velha, com tristeza na voz.

— Stephanie!

Duas pessoas ao longe vinham correndo. A Valquíria mais velha balançou a cabeça lentamente.

— Por favor, não me faça assistir de novo.

Como se a prece tivesse sido atendida, a outra Valquíria desapareceu. As duas pessoas se aproximaram e o coração de Valquíria gelou. Desmond e Melissa Edgley corriam pela névoa.

Ardiloso segurou a menina contra a parede.

— Isso ainda não aconteceu — relembrou ele em voz baixa.

Os pais da menina pararam de correr e o vulto das trevas que Valquíria tinha entrevisto antes surgiu atrás deles.

— Não! — gritou Valquíria e Ardiloso a segurou com mais força enquanto ela via os pais se virando.

— Trevária — sussurrou Finbar.

A sombra chamada Trevária ergueu o braço e chamas negras engolfaram as imagens de vapor dos pais de Valquíria, transformando-os em cinzas antes que pudessem gritar em agonia.

Valquíria ficou gelada quando um sopro renovado de vapor levou a imagem. O som sumiu e o vapor se transformou em nuvens. Valquíria olhou para baixo e viu uma cidade.

Uma onda de vertigem a atingiu e ela cambaleou, de pé sobre o vazio e mais nada, a quilômetros de altura do chão; mas, sob a cidade, ela viu a grade de metal da Câmara. Valquíria respirou fundo e se obrigou a não vomitar. Eles estavam na mesma sala. Não tinham se movido. Eles não estavam de pé no céu.

Trevas se espalhavam pela cidade e devoravam o campo ao redor, como se a grama e as árvores morressem subitamente, como se toda a vida estivesse sendo apagada numa onda que se espalhava e se espalhava sem cessar. Dentro de segundos, a terra abaixo deles estava morta.

Por fim, a cidade sumiu e eles estavam na Câmara, enquanto o vapor rapidamente se dispersava. Valquíria percebeu pela primeira vez que o próprio rosto estava molhado de suor e o cabelo grudado na cabeça.

Cassandra se levantou, chacoalhando a água da sombrinha amarela.

— Esse é o futuro como eu o vi — anunciou. — Mas o futuro pode ser mudado. Venham. Acho que vocês precisam de um copo de água.

O grupo subiu as escadas e Finbar, que não falava nada havia vários minutos, foi para outro aposento. Enquanto Cassandra estava na cozinha, Valquíria olhava para Ardiloso. A dor de cabeça batia como uma britadeira. Até mexer os olhos era doloroso.

— Meus pais estavam lá — comentou baixinho.

— Podemos mudar o futuro.

— Meus pais, Ardiloso — repetiu, com voz trêmula.

O esqueleto pôs a mão no ombro dela e a tranquilizou, com voz suave.

— Você vai salvá-los.

— Você viu o que eu fiz. Eu os deixei morrer.

— Não. Ela os deixou morrer. Não você.

— Ela sou eu.

— Ainda não.

— Não adianta. Ela viu o que nós vimos, ela sabia o que ia acontecer e simplesmente ficou ali parada, deixando Trevária matar os dois. É isso que vai acontecer.

— Não, Valquíria. Você vai encontrar uma forma de salvá-los. Eu acredito em você.

— Minha cabeça está doendo.

Cassandra voltou com um copo de água e uma folha dobrada, do tipo que Conspícuo usava para reduzir a dor de cabeça. Valquíria tomou apenas um gole da água.

— Apenas posso imaginar como deve ter sido difícil assistir — disse Cassandra. — Mas o que está em jogo não é só a sua vida ou a de seus pais. Tudo o que existe está em jogo.

— O fim do mundo — concordou Finbar, voltando à sala. Ele parecia cansado. — Foi esse pedaço que apareceu na minha visão, a escuridão se espalhando pelo mundo. Não vi as outras coisas. — O tatuador olhou para Valquíria. — Não vi você e sua família, foi mal.

— Ainda não estamos mortos — exclamou Ardiloso. — Bem, eu estou, mas o restante de vocês ainda tem um tempinho pela frente.

— Você sabe muito bem — acrescentou Cassandra — que as visões do futuro estão sujeitas a mudanças e interpretações.

Ardiloso se virou para Cassandra e perguntou.

— Tem alguma ideia de quando tudo isso vai acontecer?

— Não. Valquíria parecia ser três ou quatro anos mais velha, mas não podemos ter certeza. A única coisa que sabemos com segurança é que Trevária está vindo, e que ela vem para matar todos nós.

Ardiloso colocou o chapéu, baixando-o sobre as órbitas oculares.

— Não se a matarmos antes.


19

A NOVIDADE

Valquíria tinha que ir para casa. Assim que ela saiu da cabana de Cassandra, sabia que tinha que ir para casa, ver os pais, ter certeza de que estavam bem. Valquíria estava fazendo um esforço enorme para não deixar Ardiloso perceber o quanto ela estava sofrendo, ou o quanto queria chorar. Ela mal falou na viagem de retorno a Haggard.

Ela ligou para o celular do próprio reflexo e combinou de buscá-lo no caminho de volta da escola. Ele se sentou no banco de trás e não fez qualquer pergunta. Fizeram uma parada alguns quilômetros depois e Ardiloso saiu do carro enquanto a menina e o reflexo trocavam de roupa. Dez minutos depois, eles chegaram a Haggard. O reflexo se esgueirou pelos fundos e se escondeu nos arbustos enquanto Valquíria entrava pela porta da frente. Era uma sensação estranha, ela percebeu, não entrar pela janela do quarto.

— Mãe — chamou, largando a mochila no hall de entrada. — Cheguei.

Por três longos segundos, não houve nada além de um silêncio pesado e aterrorizante, depois a mãe apareceu na porta da cozinha. Sorrindo. Em segurança. Viva.

— Como foi a escola? — indagou, e Valquíria saiu correndo e a abraçou. — Tão ruim assim, é?

Valquíria riu e torceu para ter sido convincente. Abraçou a mãe com força e se obrigou a soltá-la, indo imediatamente para a geladeira de modo a esconder as lágrimas que ameaçavam escorrer pelo rosto.

— A escola foi legal — respondeu, tão animada quanto possível. — A escola é sempre legal. Nada de interessante acontece lá.

A menina abriu a geladeira, respirou fundo e, depois de se recompor, fechou a porta e se virou.

— E como foi o seu dia?

— Cheio de aventura e drama — disse a mãe. — Acabei de chegar também. Seu pai deve chegar a qualquer minuto.

— Ele vai sair do trabalho mais cedo? Ele nunca sai mais cedo.

A mãe encolheu os ombros e as duas ouviram a porta da frente sendo aberta.

— Ela já chegou? — perguntou o pai de Valquíria enquanto tropeçava em algo no hall de entrada. Provavelmente na mochila dela. — Sim, ela está em casa — murmurou ele. Desmond foi até a cozinha e Valquíria o abraçou.

— Você já contou a ela? — indagou ele.

— Não — respondeu a mãe. — Ela simplesmente está num dia de abraços.

Valquíria deu um passo atrás.

— Me contou o quê?

O pai olhou para a filha.

— Você cresce mais um pouco todo dia, sabia?

Valquíria se esforçou para continuar sorrindo. Subitamente, não queria crescer mais nada. Não queria ficar mais velha. Ser mais alta e mais velha e mais forte significava se aproximar do tempo em que Trevária viria pegá-los. Ela queria ficar do mesmo tamanho e na mesma idade para sempre.

— Temos novidades — anunciou a mãe, passando um braço pela cintura do marido. Valquíria franziu a testa.

— Decidimos ter um bichinho — declarou o pai.

Valquíria riu, e foi uma risada real e genuína. Depois de tudo o que ela teve de enfrentar nos últimos meses, passar por algo tão gloriosamente normal e divertido quanto ter um novo bichinho de estimação oferecia níveis inimagináveis de conforto para o espírito. Além disso, ela sempre quis ter um bicho.

— Pode ser um cachorro? — perguntou. — Mas não um daqueles cachorrinhos latidores. A Hanna Foley tem um cachorro chinês que não tem pelo, e parece um daqueles monstrinhos que moram no teto do Jabba the Hutt. Não quero um desses. Eu não poderia levá-lo para passear sem passar vergonha.

O pai franziu a testa.

— Você viu Star Wars? Quando foi que você viu Star Wars? Estou tentando fazer você ver comigo há anos.

Valquíria hesitou. Tanith tinha obrigado Valquíria a se sentar e assistir aos filmes ao longo de um fim de semana. Foi uma experiência educativa.

— Eu gosto dos sabres de luz — respondeu.

— Não vamos pegar um cachorro — informou a mãe, levando a conversa de volta ao ponto de partida.

— Não podemos ter um gato — argumentou Valquíria. — Eles não fazem nada além de conspirar contra a gente e se multiplicar como gremlins.

— Também não vai ser um gato.

— Pode ser uma cobra?

— Não.

— Por favor? Eu guardaria ela no meu quarto e daria camundongos para ela comer e outras coisas e não mataria ela.

— Nada de cobras, hamsters, ratos ou porquinhos-da-índia.

Valquíria sorriu, esperançosa.

— Um cavalo?

— E que tal alguma coisa um pouco menor? — perguntou o pai. — Algo tipo, digamos, um irmãozinho ou irmãzinha?

— O quê?

O sorriso da mãe aumentou.

— Estou grávida, querida.

Um momento passou e, depois desse momento, Valquíria se deu conta de que estava saltando, atravessando a cozinha, agarrando a mãe e gritando “Ai, meu Deus” sem parar. Depois pensou que poderia machucar o bebê, então saltou para trás e pulou no pai e o abraçou e ele riu.

Mais tarde, no quarto, as lágrimas encheram-lhe os olhos quando pensou nos perigos que essa criança teria que correr.


20

A HORDA ZUMBI

Para se tornar um zumbi, a pessoa tem que passar por um processo muito específico. Patife não passou pelo processo porque foi reerguido da morte pela magia, mas, com um pouco de tentativa e erro, ele finalmente descobriu no que consistia o tal processo. A pessoa a ser recrutada precisava ser mordida enquanto ainda estivesse viva, para que a infecção tivesse tempo de se espalhar pelo sistema. Patife hesitou em morder num primeiro momento, pois estava preocupado com as aparências. Inicialmente tinha planejado atacar apenas mulheres atraentes, mas rapidamente percebeu que seria um critério demorado demais.

O primeiro recrutamento bem-sucedido foi no Phoenix Park. O recruta era um homem de meia-idade fazendo um passeio. Patife tinha esperado até que não houvesse mais ninguém por perto e então saiu do esconderijo. Saltou no homem e o arrastou para os arbustos, onde o mordeu. O homem tentou lutar, mas a infecção foi surpreendentemente rápida e, em sessenta segundos, ele estava morto. Depois de alguns instantes, porém, os olhos dele se abriram e ele olhou para Patife.

— Estou no céu? — perguntou.

— Não seja idiota — ralhou Patife.

— Desculpe — respondeu o homem e se levantou.

Patife olhou para o primeiro recruta. Um espécime lamentável, para ser sincero, que parecia ter uma expressão permanente de confusão no rosto.

— Qual é o seu nome? — indagou Patife.

— Gerald — respondeu o homem.

Patife ponderou. Gerald, o zumbi, não soava lá muito assustador.

— Vou chamá-lo de Esmagador — anunciou.

Esmagador piscou.

— Está bem — disse, incerto.

Patife concordou com a cabeça. Esmagador era um bom nome. Ele seria o braço direito dele no novo exército zumbi que Patife estava criando para o Mestre.

— Venha comigo, Esmagador — ordenou Patife, gostando do som da frase.

Ele recrutou mais um monte de gente naquela tarde. Apenas no Phoenix Park recrutou Rasgador, Espancador, Furador, Batedor, e em seguida todos pegaram a van de Espancador, e Patife recrutou Cortador, Picador, Demolidor e Fervedor. Fervedor marcou o fim da estratégia de batismo de Patife, e daí em diante ele simplesmente os chamou de Zumbi Um e Zumbi Dois e coisas do gênero. Ele tinha mais com que se preocupar do que inventar nomes idiotas para os zumbis.

Patife os levou de volta ao castelo do Mestre, e o primeiro problema que surgiu foi o fato de que nenhum deles parecia respeitar a autoridade de Esmagador. Era tarde demais para rebaixá-lo, pois tal ato seria visto como uma prova de liderança fraca. Os recrutas precisavam ver Patife como um ser infalível, como um Papa ou um político. Patife não podia admitir que nomear Esmagador como segundo-em-comando tinha sido um erro, e em vez disso simplesmente torceu que a cabeça de Esmagador caísse ou coisa assim.

O segundo problema era que Patife estava começando a feder, mas ele estava confiante de que o plano que tinha posto em prática resolveria a questão. Provavelmente havia até algum creme que pudesse ajudar. Patife agora usava aqueles odorizadores de carro pendurados no pescoço, enfiados debaixo da camisa.

Patife atravessou os corredores de pedra, a caminho da sala onde o novo exército zumbi estava alojado. Fez uma cara feroz, abriu a porta e entrou.

Eles estavam batendo papo, contando piadas e rindo. Esmagador estava na beirada, tentando rir com os outros, mas pareceu perturbadoramente feliz ao ver Patife entrar. O capanga foi até o chefe e ficou em posição de sentido.

— Boa tarde, senhor! — falou. Idiota. — Estamos todos presentes, senhor!

— É claro que vocês estão todos presentes — respondeu Patife, irritado.

— Senhor, um dos homens estava perguntando sobre comida, senhor.

Patife fez uma anotação mental de não se referir aos zumbis como sendo um exército novamente. Esmagador estava deixando aquilo subir à cabeça dele, e não era nada assustador. Horda seria melhor. A Horda Zumbi. Muito melhor.

— O que que tem a comida? — grunhiu Patife.

— Ele estava se perguntando o que nós comemos, senhor.

— Não comemos nada — respondeu Patife. — Somos sustentados pela magia. Não precisamos de comida.

— Vou informar os homens, senhor! — Esmagador deu meia-volta e se virou para os zumbis. — Atenção, prestem atenção! — gritou.

— Vá para o inferno, Gerald — retrucou um zumbi no fundo.

Esmagador parecia estar a ponto de chorar. Patife agora se arrependia amargamente do processo de recrutamento.

— Nós não comemos nada — anunciou Esmagador, tentando manter uma expressão corajosa enquanto o lábio inferior tremia. A horda zumbi parou de conversar e olhou para Patife.

— A gente não come? — inquiriu Cortador. — Como assim, nada?

— Nem mesmo cérebros? — indagou Zumbi Onze.

— Nada! — repetiu Patife. — Sob nenhuma circunstância vocês podem comer! Nem uma mordidinha de nada! Vocês entenderam?

Eles concordaram, emburrados, e Patife se virou para a porta. Antes mesmo de alcançá-la, eles começaram a discutir calorosamente sobre o que seria mais gostoso: cérebros ou carne. Aquelas não eram as criaturas com baba escorrendo e estúpidas que ele tinha esperado. Não eram nem um pouquinho assustadores. Os zumbis dele discutiam. Patife saiu rapidamente, fechando a porta para evitar que o som da conversinha fiada chegasse aos ouvidos do Mestre. Então fez o caminho de volta apressadamente, tentando não entrar em pânico.

Patife não queria desapontar o mestre. Ele tinha antecipado com tanta empolgação o momento em que apresentaria a horda zumbi e receberia o reconhecimento que buscava, os elogios de que precisava. Talvez até um abraço. Mas isso não ia acontecer. O Mestre daria uma olhada na horda e reconheceria instantaneamente o fracasso mesquinho que eles eram, e que desapontamento grotesco era o próprio Patife.

Patife chegou à saleta que lhe servia de alojamento particular, ouvindo o zunido grave. Ele abriu a porta apodrecida e entrou rapidamente, fechando-a em seguida. Uma das vantagens dos novos recrutas era que os cartões de crédito deles ainda poderiam ser usados, e Patife tinha mandado Esmagador lhe comprar um lugar para repousar.

— Tipo um caixão? — indagara Esmagador, de olhos arregalados e aparência burra. Patife tinha batido nele, mandado parar de fazer perguntas insolentes, dito para ele apenas obedecer ordens, e Esmagador tinha saído quase rastejando, quase chorando mais uma vez. Mas agora que Patife tinha pensado no assunto, ele até se animara com a ideia de ter um caixão ou algo do tipo. Ele reconhecia que era bem bacana. Não tinha falado nada com o Mestre a respeito, e se sentia terrível por isso, mas precisava daquilo. Patife não queria que o próprio corpo caísse aos pedaços e, até que conseguisse descobrir algum método para deter a decomposição, o enorme freezer horizontal teria que ser suficiente.

Patife abriu a tampa e entrou. Ele tinha que se encolher todo para caber, mas, fora isso, era bem confortável. Fechou a tampa e as trevas o envolveram. Confortado pela escuridão e pelo zumbido do motor, ficou ali deitado pensando em todas as formas de matar a menina.


21

O ATAQUE

— Sempre achei — comentou Ardiloso enquanto dirigia — que Ardiloso seria um ótimo nome para uma criança.

— Bem — respondeu Valquíria, concordando lentamente com a cabeça —, vou passar a sugestão aos meus pais, pode acreditar. Mas, e se for uma menina?

— Ardilosa — disse Ardiloso.

— Ardiloso menino, Ardilosa menina?

— Isso.

— Não acho que meus pais vão escolher Ardiloso ou Ardilosa, sinceramente. Se for menina, provavelmente vão chamá-la de Stephanie Número Dois, porque provavelmente nunca mais vão me ver de novo.

— Você é tão pessimista.

— Estamos a caminho do Santuário, onde todo mundo quer me prender.

— Mas você violou a lei.

— Porque estava resgatando você.

Ardiloso encolheu os ombros.

— Eu estava feliz por lá.

— Nunca mais fale comigo.

— Ainda não lhe agradeci adequadamente por ter me resgatado, agradeci?

— Nem perto disso.

— Eu o farei — afirmou, confirmando com a cabeça.

Estacionaram atrás do Museu de Cera e saltaram.

— Eles não vão prender você — falou Ardiloso enquanto entravam. — Eles podem olhar feio na sua direção e lhe dizer palavras raivosas, mas não vão prendê-la. Bem, talvez eles a prendam. Há uma grande chance disso. Mas o mais importante é que eu não fiz nada de errado.

— Para variar.

Ardiloso seguiu pelos corredores escuros e Valquíria franziu a testa. O anel de Necromante estava frio. Ardiloso murmurou alguma coisa e sacou o revólver. A porta do Santuário estava aberta e a estátua de Phil Lynott jazia imóvel no chão. Ela não olhou para a dupla quando estes passaram. Ardiloso desceu primeiro, com Valquíria logo atrás. Havia sangue manchando a parede.

Os dois chegaram ao Foyer. Havia Talhadores mortos. Valquíria não tinha como contar quantos. Tinham sido despedaçados.

Ardiloso indicou a porta aberta adiante com um gesto, e eles se apressaram. Um feiticeiro estava caído no corredor após a porta, com um enorme buraco no peito. A dupla continuou avançando, andando junto às paredes, sem fazer barulho. O Santuário estava imerso num silêncio perturbador e fora do comum.

Havia um vampiro morto após a esquina seguinte. O corpo branco como osso tinha sido quase cortado ao meio pela foice de um Talhador. Valquíria nunca havia tido uma chance de examinar um daqueles animais de perto — não sem estar lutando pela própria vida ao mesmo tempo. Era um espécime macho e careca, com a bocarra escancarada e uma língua pontuda vermelha pendurada sobre os dentes afiados. Os olhos negros fitavam o teto sem ver.

Seguiram em frente e encontraram outro vampiro, decapitado. Ao lado dele jazia um feiticeiro com quem Valquíria tinha batido papo um dia. O rosto dele tinha sido despedaçado por um golpe das garras do vampiro. Estava morto também.

Ardiloso a chamou com um gesto e apontou para um corredor adjacente que levava às celas. Valquíria concordou com a cabeça e eles mudaram de rota. A boca da menina estava seca. Ela percebeu que estava aterrorizada. Cada novo corredor continha mais cadáveres. Um exército de vampiros tinha passado por ali; até onde sabiam, um exército de vampiros ainda estava ali.

Viraram mais uma esquina e Davina Mácula girou para encará-los, com olhar selvagem. Ardiloso acenou e a arma voou da mão dela. O esqueleto empurrou e a adversária foi lançada para trás, acertando a parede. Ardiloso manteve a mão aberta, segurando-a lá.

— O que aconteceu? — sussurrou ele.

Mácula abriu a boca para gritar e Ardiloso chicoteou a mão para o lado. Mácula atingiu a parede oposta e caiu inconsciente.

Valquíria resistiu ao impulso de chutá-la ao passar, e a dupla continuou até alcançar as celas temporárias. Ardiloso ficou de guarda enquanto Valquíria libertava Medonho e Tanith. Movendo-se silenciosamente, Tanith abraçou Ardiloso, e Medonho apertou a mão do esqueleto.

— Bem-vindo de volta — cumprimentou Medonho, falando baixo. — Agora, o que está acontecendo?

— Vampiros.

— O quê?

— Não sabemos quantos ainda estão aqui, então vamos logo, e não façam barulho.

Eles voltaram rapidamente pelo caminho da vinda e viraram à direita. Tanith pegou a foice caída de um Talhador. O grupo passou pelas portas abertas do Repositório, depois pelas portas fechadas da Prisão e virou à esquerda. No corredor adiante, Túrido Grêmio estava apoiado contra a parede. Segurava o braço, que estava claramente quebrado, e o sangue escorria de um corte acima do olho.

O Grande Mago viu o grupo e balançou a cabeça. Eles pararam. O olhar do mago se voltou à esquerda.

Um vampiro chegou, com a boca suja do sangue alheio. Aproximou-se de Grêmio, que se encolheu. O monstro farejou o mago e rosnou. Grêmio ergueu a mão para empurrar o ar e o vampiro golpeou, quase preguiçosamente, decepando os dedos do Grande Mago, que caíram no chão. Grêmio gritou e o vampiro avançou. Ardiloso assobiou alto.

O vampiro virou a cabeça, com os olhos negros se arregalando ao ver carne fresca no pedaço. Ele esqueceu Grêmio e veio cavalgando contra os recém-chegados.

Valquíria, Ardiloso e Medonho empurraram o ar e o Vampiro se chocou contra uma parede invisível. Ele atacou, golpeou e rugiu, mas não havia fendas ou falhas. Ardiloso ergueu a outra mão e Valquíria sentiu o ar se deslocar, conforme outra parede invisível se fechava sobre o vampiro, vinda de trás dele. Ardiloso fechou a mão gentilmente, prendendo a criatura. O monstro foi erguido do chão, se contorcendo e debatendo, incapaz de se libertar.

— Fiquem aqui — murmurou Ardiloso, jogando o revólver para Medonho e voltando para as celas temporárias levando o vampiro consigo.

Os três foram até Grêmio, e Tanith o ajudou a se levantar. O Mago estava suando e batendo os dentes. Valquíria conhecia bem os sinais de que alguém estava entrando em choque.

— Pegue os dedos dele — pediu Tanith enquanto ajudava Grêmio a mancar pelos corredores, com Medonho à frente.

Valquíria ficou branca. Fazendo o melhor possível para não vomitar, catou os três dedos pálidos e os carregou com os braços estendidos, mantendo-os longe de si, enquanto seguia os outros. Ela deixou um dedo cair e pisou nele.

— Droga — exclamou.

— Por que ela disse droga? — murmurou Grêmio, fraco demais para olhar para trás. — O que ela está fazendo?

Tanith se virou e viu Valquíria pulando num pé só, tentando tirar o dedo das ranhuras do solado da bota.

— Nada — respondeu Tanith, olhando feio para a adolescente antes de se virar para a frente novamente.

Tendo recuperado os três dedos, Valquíria se apressou em seguir os amigos.

Os Talhadores estavam executando a terceira varredura do Santuário quando o reimplante dos dedos de Grêmio terminou. A contagem final foi de 14 vampiros, 17 feiticeiros e nove talhadores mortos e um vampiro vivo na cela temporária. Os feridos foram levados para a enfermaria e postos em quarentena enquanto os médicos do Santuário trabalhavam para livrar os organismos deles da infecção provocada pelas mordidas dos vampiros. Mais três morreram nas mesas de operação enquanto Valquíria esperava.

Contra as ordens médicas, Grêmio saiu da enfermaria assim que conseguiu se levantar. O braço quebrado estava numa tipoia e a mão ferida embrulhada numa luva criada para acelerar o processo de cura.

— Foi Crepúsculo — afirmou o Grande Mago enquanto o grupo andava pelos corredores ensanguentados. — Achávamos que ele ainda estava preso na Rússia. Eles não se deram o trabalho de nos avisar que o sujeito tinha escapado duas semanas atrás. Aparentemente, Billy-Ray Sanguíneo escavou até a cela dele e os dois fugiram matando todo mundo pelo caminho. Os russos também não se deram o trabalho de nos contar essa parte.

— Então Sanguíneo e Crepúsculo estão trabalhando juntos de novo — comentou Ardiloso. — Mas por quê? O que aconteceu aqui?

— Crepúsculo plantou explosivos na porta e liderou os invasores. Nunca vi tantos vampiros. Eles vieram como uma onda, sobrepujando todo mundo, e não paravam de avançar.

— Crepúsculo não tinha arrancado a própria pele? — indagou Ardiloso.

Grêmio balançou a cabeça.

— Ainda estava na forma humana. Deixou os vampiros nos atacarem, mas se separou deles e foi para a ala norte, para o Repositório. Meu pessoal está lá, tentando descobrir o que ele queria.

Alguém gritou de raiva e o grupo todo se virou e viu Davina Mácula apontando a arma para eles, com fúria nos olhos.

— Afastem-se do Grande Mago — comandou ela.

Grêmio balançou a cabeça.

— Abaixe sua arma, Detetive.

— Mas, senhor, são fugitivos! Cortês e Caos estavam em conluio com os vampiros! Eles me atacaram!

— Eles não estavam em conluio com os vampiros — respondeu Grêmio —, e, por mais que me doa admitir tal coisa, eles salvaram minha vida. Estão livres para partir, Detetive Mácula. Abaixe a arma. É uma ordem.

Mácula piscou e abaixou a arma.

— O Engenho Desolador — anunciou.

— O quê?

— Crepúsculo levou o Engenho Desolador. Estamos fazendo uma busca visual agora, mas parece ser o único item ausente.

— O que é o Engenho Desolador? — perguntou Valquíria.

— Basicamente, é uma bomba — explicou Medonho. — Ela oblitera qualquer coisa dentro do raio de ação dela, destrói tudo completamente. Hoje em dia, seria chamada de Arma de Destruição em Massa.

— Só foi usada uma vez — continuou Tanith. — Lá pelos idos de, quando foi mesmo? 1498? Uma cidadezinha perto de Nápoles. Todas as criaturas vivas, todas as construções, árvores e pedras, tudo vaporizado.

Valquíria franziu a testa.

— Por que vocês tinham uma bomba no Repositório?

— Ótima pergunta.

— Ela foi desarmada — disse Grêmio. — Não pode ser ativada. Era guardada aqui porque era a última. O Engenho é inútil para quem quer que o tenha.

— Tem certeza disso? — inquiriu Ardiloso.

— Absoluta. Não passa de um peso de papel.

— Mesmo assim, Crepúsculo tinha algum motivo para vir atrás do Engenho.

— Então recupere a bomba — retrucou Grêmio. — Faça o que for necessário para encontrá-los e detê-los. Você terá acesso a todos os recursos do Santuário enquanto a investigação durar. — O Grande Mago suspirou. — Cortês, não gosto de você, e saber que você ia passar o resto da sua existência preso em outro mundo com os Sem-Rosto realmente aqueceu meu coração nestes últimos meses. Minha mulher me disse outro dia que tinha percebido uma certa jovialidade no meu porte. Era porque eu acreditava que você tinha se ido para sempre.

— Também senti sua falta, Túrido.

— Mas chegou a hora de deixar de lado meu ódio pessoal por você. Acabamos de testemunhar um massacre, e precisamos pegar os responsáveis e fazê-los pagar.

— Você quer vingança — afirmou Ardiloso.

— Eu quero retribuição.

Ardiloso olhou para o Grande Mago e concordou com a cabeça. Valquíria e os outros seguiram o esqueleto enquanto ele ia embora. Mácula olhou para eles com raiva nos olhos, e o grupo a deixou para discutir o que quisesse com o chefe.

— Vou lhes contar apenas o mínimo absolutamente possível sobre o que eu fiz nos últimos onze meses — anunciou Ardiloso a Medonho e Tanith quando eles alcançaram o Foyer e começaram a subir as escadas. — Então tentem não se intrometer.

— Por mim, tudo bem — concordou Medonho.

— Um pouquinho de intromissão teria sido legal — resmungou Ardiloso. Eles passaram pelo Museu de Cera e emergiram na noite fria, deparando com Fletcher parado de braços cruzados ao lado do Bentley.

— Vocês estão me abandonando? — indagou irritado quando os amigos se aproximaram. — É isso que estão fazendo? Faço o que é necessário quando vocês precisam que eu faça, e depois vocês me descartam, é?

— Esta não é a melhor hora para ser mesquinho — retrucou Valquíria, franzindo a testa para ele.

— Muito pelo contrário — contrariou Ardiloso —, esta é uma excelente hora para ser mesquinho. Fletcher, não trouxemos você conosco porque não queríamos que você corresse riscos.

Fletcher estreitou os olhos.

— Então... ainda estou na equipe?

— É claro que está — respondeu Ardiloso alegremente. — Afora tudo mais, você é o único que pode garantir nossa fuga de quaisquer outros vampiros que aparecerem. Você vai prolongar todas as nossas vidas, meu garoto.

— Eu vou?

— Vai, sim. Você, Fletcher Renn, é bom para a nossa saúde.

Fletcher ficou orgulhoso.

— É como se você fosse nosso leguminho de estimação — continuou Ardiloso, e o sorriso de Fletcher desapareceu.

— Preciso da minha espada — comentou Tanith.

— Vou levar você até ela — respondeu Ardiloso. — Valquíria, pegue Fletcher e vá falar com Porcelana.

— Eu não sou um ônibus! — reclamou Fletcher, visivelmente contrariado. Ardiloso o ignorou.

— Se alguém ouviu algum rumor sobre Sanguíneo ou Crepúsculo, foi Porcelana. A questão é que Sanguíneo não faz nada de graça, então, se há alguém pagando as contas dele, precisamos descobrir quem é, e o que ele quer com o Engenho Desolador e o Apanhador de Almas.

— Ou o que ela quer — acrescentou Valquíria.

— É verdade — concordou Ardiloso. — Esta pode ser a primeira manobra de Trevária na estrada da destruição. Se for o caso, estaremos metidos numa encrenca enorme.

— E se não for?

— Sinceramente? — admitiu. — Provavelmente estamos metidos numa encrenca enorme do mesmo jeito.


22

O HOMEM QUE MATOU
ESRYN VANGUARDA

Valquíria e Fletcher apareceram na biblioteca de Porcelana. Era tarde da noite e não havia ninguém ali. Fletcher não disse nada enquanto eles andavam e Valquíria sabia que o rapaz estava pensando na atitude condescendente de Ardiloso. Fletcher não falava muito sobre a família. Valquíria sabia que a mãe dele tinha morrido, mas o rapaz raramente mencionava o pai. Era por isso que ele era tão inseguro e tão intimidado por Ardiloso? Será que Fletcher escondia uma necessidade secreta de receber aprovação de uma figura paterna?

A adolescente atravessou o corredor e bateu à porta do apartamento. Porcelana os mandou entrar. Valquíria se virou para Fletcher.

— Você fica aqui fora — determinou.

— Por quê? — perguntou ele, franzindo a testa.

— Porque Porcelana ainda está fraca depois do tiro e não precisa de nós dois lá dentro. Além disso, toda vez que você está perto dela, faz papel de idiota.

— Não é toda vez.

— Você fica aqui fora.

— Acho que você está me confundindo com um cachorro.

— Fica.

O teleportador parecia estar aborrecido, então Valquíria o deixou ali e entrou, fechando a porta em seguida.

Porcelana veio do quarto e Valquíria a olhou fixamente. A feiticeira estava com uma aparência péssima. Pálida demais, com olhos que pareciam estar roxos. Ela se movia com uma certa rigidez, e vestia um roupão de seda amarrado com uma faixa. Ainda linda, sobrenaturalmente linda, mas doente. Pela primeira vez, Valquíria viu Porcelana num momento de fraqueza, e não sabia o que dizer.

— Seu silêncio diz tudo — comentou Porcelana, com um leve sorriso nos lábios brancos.

— Desculpe.

— Bobagem. — A feiticeira afundou numa poltrona com um suspiro audível. — Sente-se, Valquíria. Sua reação é reconfortante. A maioria das pessoas faz o possível para escapar do meu olhar e tagarela como se nada estivesse diferente. Então, você esteve no Santuário?

— Estive — respondeu Valquíria, se sentando.

— Foi atacado, ouvi falar. Por vampiros.

— As notícias correm. Foi Crepúsculo quem os liderou.

— Ele de novo.

— Ele roubou o Engenho Desolador.

— Achei que isso tivesse sido desativado.

— E foi, então não sabemos por que ele o pegou.

Porcelana se ajeitou na poltrona e fez uma careta de dor. Valquíria hesitou.

— Está... tudo bem?

— Vou sobreviver. Isso é o que acontece quando você investe toda a sua magia na cura de um ferimento a bala. Não é nada bonito de se ver. Amanhã eu devo estar de volta ao normal.

— “Deve”?

Porcelana acenou com a mão delicada.

— Você se preocupa demais com pessoas que não significam nada para você.

Os olhos de Valquíria se arregalaram um pouco, mas Porcelana percebeu.

— Ah, me desculpe — continuou a feiticeira. — Não era minha intenção parecer tão fria. Quis dizer que há outras pessoas que merecem sua solidariedade muito mais do que eu. Fletcher, por exemplo. O rapaz está sempre se metendo em encrencas. Como ele está?

— Bem, imagino. Está lá fora, no corredor.

— Nossa, como você o treinou bem.

— Porcelana, você acha que eu não gosto de você?

Porcelana sorriu gentilmente.

— Não, querida, tenho certeza de que você gosta, sim. Você não deveria, mas sei que gosta de mim. Tem um coração enorme. Aliás, isso não é um elogio. É uma falha no seu caráter.

— Vou cuidar disso.

— É só o que lhe peço.

— Sanguíneo voltou. Ele roubou um Apanhador de Almas do Templo dos Necromantes e está trabalhando com Crepúsculo.

— Isso é interessante, mas temo não poder ajudá-la com Crepúsculo. Minha investigação corrente sobre Sanguíneo, por outro lado, finalmente deu frutos. O que você sabe sobre o assassinato de Esryn Vanguarda, durante a guerra?

— Só que ele era um pacifista e que o cara que o assassinou saiu da cadeia há alguns dias.

— Na época da morte dele, Vanguarda recebia apoio de soldados dos dois lados da guerra. Sempre desprezei o sujeito; afinal, nessa época eu estava do lado de Malevolente, você entende, e sei que Malevolente não apoiava as tentativas de Vanguarda de negociar a paz.

“Ele suspeitava que Vanguarda estivesse trabalhando para Équus Meritório, num esforço de roubar das tropas de Malevolente o impulso de morrer por ele. Uma suspeita razoável, acho que você concordaria.”

— Então ele mandou Dreilho Escaravelho matar Vanguarda.

— Eu já tinha abandonado os Sem-Rosto nessa época, mas, sim, pelo que fiquei sabendo, Escaravelho foi despachado para eliminar o problema. Uma flecha recoberta de veneno, enquanto Vanguarda discursava para um salão cheio de correligionários. Aconteceu tão rápido que ninguém teve tempo de fazer nada. Vanguarda estava morto em segundos. A multidão; e, veja bem, eram todos feiticeiros; vasculhou a área inteira, buscando o assassino, mas Escaravelho tinha sumido. Ardiloso o encontrou alguns dias depois e, com a ajuda de Grêmio, ele o prendeu.

Valquíria franziu o cenho.

— Grêmio?

— Grêmio era um dos homens de confiança de Meritório. Ele supervisionava determinados departamentos do Santuário, e suas responsabilidades incluíam interação direta com os investigadores.

— Não achava que Ardiloso e Grêmio já tinham sido amigos um dia.

— Ah, eles não eram. — Porcelana sorriu. — Eles se odiaram desde o primeiro momento, por motivos que não vou discutir agora. Mas trabalharam juntos ocasionalmente.

— Então eles prenderam Escaravelho e ele foi mandado a uma prisão americana. E onde Sanguíneo entra nessa história?

— Levei um tempo muito longo para adquirir esta humilde informação, então espero que você entenda o sacrifício que estou fazendo ao lhe cedê-la de graça.

— Não seria de graça — argumentou Valquíria. — Você terá minha gratidão eterna.

— De graça, então — suspirou Porcelana. — Escaravelho teve um filho, Valquíria. Você quer descobrir quem está manipulando os fios que controlam Sanguíneo? Eu iria atrás do pai dele.

— Escaravelho é o pai de Sanguíneo? — Valquíria se levantou. — Isso... isso é importantíssimo.

— Deveras.

— Porcelana, me desculpe, tenho que ir. Se eu tiver algum tempo livre, talvez volte mais tarde para ver como você está.

— Amanhã a esta hora eu já estarei de volta ao normal. Mas sua preocupação foi registrada, por mais inútil que seja. Obviamente, se nossas situações estivessem invertidas...

— Eu sei. — Valquíria sorriu. — Você faria o mesmo por mim.

Porcelana arqueou uma sobrancelha.

— Como assim? E eu tenho cara de quem faz visitinhas? Você pode ir agora.

— Obrigada, Porcelana — disse Valquíria, ao se virar para sair. — Ah, mais uma coisa. A tatuagem de fachada. Ficou ótima.

Porcelana sorriu.

— Ele gostou, não gostou? Levei um bom tempo para criá-la, mas acredito que tenha valido a pena.

— Eu também gostei — concordou Valquíria, sorrindo, enquanto saía para o corredor.

— E então? — perguntou Fletcher, mal-humorado.

— Temos a conexão — respondeu Valquíria, e imediatamente o mau humor desapareceu e eles deram as mãos.

Apareceram na alfaiataria de Medonho. Estava escuro, por isso eles acenderam as luzes e esperaram pela chegada de Ardiloso e dos outros. Valquíria cruzou os braços e olhou para Fletcher.

— O quê? — perguntou ele, com ar inocente.

— Você está louco para dizer.

— Não sei do que você está falando.

— Eles ainda estão voltando do Santuário. Nós visitamos Porcelana, descobrimos uma enorme peça do quebra-cabeça e chegamos aqui antes deles. Pode dizer.

— Lamento, Valquíria, mas não sei bem o que você espera que eu diga.

Ela esperou.

— Se bem que... — começou o rapaz.

— Lá vem.

— A teleportação é claramente o melhor de todos os poderes, e vocês todos deveriam ficar muito gratos por eu estar desse lado. Por que alguém ainda usa um carro, eu não faço ideia. Seria orgulho? Seria porque Ardiloso não quer admitir como sou útil? Não acho que sou tão apreciado quanto deveria, só isso.

— Certo.

— Estávamos indo muito bem sem ele, sabia?

— Não estávamos, não.

— Estávamos tocando o barco. Não era um desastre. Ninguém morreu por isso.

— Várias pessoas morreram.

— Mas nenhum de nós — retrucou o rapaz, exasperado.

— Mais alguma reclamação antes que ele chegue?

Fletcher riu.

— O quê, você acha mesmo que eu tenho medo dele? Eu não tenho medo dele. Mas, já que você perguntou, sim, tem mais uma coisa. Eu sou mais velho que você. Eu é que deveria mandar em você.

— Certo. Não vai acontecer.

— Eu tenho mais experiência de vida.

— Em fazer o cabelo.

— Qual é o problema de todo mundo com o meu cabelo? Meu cabelo é maneiro.

Fletcher continuou falando do cabelo até Valquíria mandá-lo calar a boca. Alguns minutos depois, Ardiloso e os outros chegaram e Valquíria contou o que tinha descoberto.

— É conveniente demais para ser uma coincidência — concordou Ardiloso. — Bem, excelente. Agora temos nosso vilão. Escaravelho foi solto, teve uma reunião emotiva de pai-e-filho com o rebento psicótico dele e os dois recrutaram Crepúsculo, talvez Remus Crucial e quem mais estivesse disponível e ressentido contra a sociedade.

— Mas o que Escaravelho quer? — indagou Tanith enquanto limpava a espada carinhosamente.

— Meu palpite é que ele quer vingança — respondeu Ardiloso.

— Pelo quê? Ele cometeu um crime e foi punido por isso. Se ia levar essas coisas para o lado pessoal, não deveria ter matado Vanguarda em primeiro lugar.

— Ah — retrucou Ardiloso. — Eis a questão. Sabe, não acho que ele realmente tenha matado Vanguarda. É uma suspeita minha já há algum tempo.

Medonho olhou para Ardiloso.

— Mas... você o prendeu.

— Porque todas as provas apontavam para ele — concordou Ardiloso. — Foi só mais tarde que comecei a suspeitar que as provas foram bem fáceis de encontrar.

— Escaravelho caiu numa cilada? — perguntou Valquíria. — Ele é inocente?

— Não inteiramente inocente. Nem mesmo remotamente inocente. Ele era o melhor assassino a serviço de Malevolente, lembre-se disso. Mas, quanto a esse crime em particular, sim, acredito que ele era inocente.

— Você tem uma teoria, então?

— Naturalmente.

— Então, quem armou para Escaravelho? Quem matou Vanguarda?

Ardiloso hesitou.

— Tenho a sensação horrível de que nós o matamos.


23

CRUCIAL

Remus Crucial sonhava com deuses que não tinham rosto e garotas sem cabeça. Ele sonhava com uma vasta floresta de árvores mortas, com coisas que berravam e o caçavam. Viu coisas nos sonhos que reconheceu como pedaços da velha vida. Essas coisas passavam por ele e ele as observava passar e não sentia falta delas.

Remus acordou.

Ele contou a Crepúsculo como penetrar as defesas do Santuário e aonde ir para pegar o que eles queriam, e agora que o vampiro tinha voltado com a missão cumprida, Crucial não sentia nem um pingo de remorso. Pessoas que um dia tinham sido colegas dele estavam mortas, e ele não se importava. Eram hereges, infiéis, inimigos dos Sem-Rosto.

Dreilho Escaravelho era um herege também, mas era um herege útil. Ele servia a um propósito. Crucial via Escaravelho e o Clubinho dos Vingativos dele como um meio para chegar aonde ele mesmo precisava estar. Depois que tivessem cumprido sua missão, Crucial os abandonaria ou mataria, o que fosse mais fácil. Mas, por enquanto, eles queriam destruir o Santuário quase tanto quanto Crucial, portanto não se incomodava em seguir o plano deles.

Remus sabia ser paciente. Sabia esperar. Ele teria a chance que queria. Afinal, a garota tinha matado dois dos Deuses das Trevas dele. Ela devia pagar por isso e pelo legado que recebera.

Crucial conhecia bem as lendas. Os Sem-Rosto tinham governado este mundo até que os primeiros feiticeiros, os Antigos, construíram o Cetro para matar os deuses e expulsá-los. Após banir os Sem-Rosto, os Antigos lutaram entre si, como insetos mesquinhos que eram, até que só restou um. Valquíria Caos descendia do último deles.

Agora era hora de ela pagar pelos crimes de seus ancestrais.


24

SEGREDOS E MENTIRAS

— Vanguarda tinha intenções nobres — afirmou Ardiloso, cuja voz preenchia os espaços do aposento. — O sonho de paz que ele pregava era um sonho que inspirava muitas pessoas cansadas de guerra, dos dois lados. Alguém disse uma vez que Vanguarda tinha visto do que ele mesmo era capaz, do que todos nós éramos capazes, e isso o assustou. Por isso ele tentou nos salvar.

“Ele acreditava que a resposta seria permitir que Malevolente e os asseclas dele adorassem os Sem-Rosto abertamente, como uma religião. Vanguarda tinha certeza de que, com o tempo, eles aprenderiam a limitar a própria brutalidade e a se comportar com... civilidade.

“Meritório não concordava. Não confiava em Malevolente nem em nenhum dos seguidores dele. E, apesar de Vanguarda ter começado como uma voz solidária, pregando compreensão e tolerância, essa voz ecoou e viajou longe. Logo tinha se tornado um rugido.

“O sonho da paz, entendam, é um sonho que conforta a todos, menos ao soldado no campo de batalha. Ele não pode pensar em paz. Não pode hesitar. O soldado vive na guerra. Durante o combate, a guerra é a mãe, o amigo e o deus dele. Acreditar em qualquer outra coisa é suicídio.

“Acredito que Meritório concluiu que a voz que tinha começado aquilo tudo precisava ser silenciada. Estava ficando perigosa demais. Muitas pessoas estavam começando a acreditar que havia uma saída fácil. Muitos soldados estavam passando a duvidar. Meritório precisava que eles lutassem contra Malevolente, não que eles sonhassem com a paz.”

— Mas isso tudo é teoria — retrucou Medonho. — Ardiloso, eu tive meus problemas com Meritório, mas ele era um bom homem. O que você está sugerindo é assassinato a sangue frio.

— Eu sei — concordou Ardiloso. — E é algo que, se viesse a público, teria destruído o Santuário. E foi por isso que ele deu o serviço para Túrido Grêmio.

Medonho se sentou pesadamente.

— É claro. Grêmio era o chefe do Programa de Contingência.

— E o que é isso? — perguntou Fletcher.

— Magos Contingentes são indivíduos altamente treinados empregados em ataques secretos contra o inimigo — explicou Ardiloso. — Assassinato. Sabotagem. Truques sujos. As coisas que eles fazem não são bonitas, mas são necessárias.

— Eles tentaram nos recrutar — contou Medonho. — Ardiloso, eu, alguns outros. Éramos uma unidade independente durante a guerra. Grêmio tentou nos recrutar, mas não gostamos do que ele queria que fizéssemos. — Medonho ergueu os olhos. — Então você acha que Grêmio mandou um desses caras executar o serviço?

— Faz sentido — concordou Ardiloso com um aceno de cabeça. — Meritório precisava de um assassino que pudesse desaparecer completamente depois do ato, e Grêmio teria oferecido os homens dele. Ele sempre foi corajoso assim.

— Você sabe quem foi? — indagou Valquíria.

— Não. Cada fiapo de prova apontou para os homens de Malevolente, Escaravelho em particular. Quando finalmente percebi que tudo tinha sido muito simples, direto, fácil, já tínhamos capturado Escaravelho e o atirado numa cela.

— Você poderia ter dito alguma coisa.

Ardiloso não respondeu.

— Digamos que você tenha razão — argumentou Tanith. — Digamos que Meritório e Grêmio realmente orquestraram o assassinato de Vanguarda e armaram para Escaravelho. Dreilho passou 200 anos sentado na cela. Depois de tanto tempo desprovido de magia, ele deve ter começado a envelhecer de novo, certo? Então ele está velho, está solto e está com raiva. Tem esse filho psicopata e a gangue de malucos, e todos querem vingança. Então roubam um Engenho Desolador que não explode e um Apanhador de Almas. Como é que eles vão se vingar assim?

— E contra quem eles vão se vingar? — acrescentou Fletcher. — Meritório está morto.

— Eles vão atrás de Grêmio — concluiu Ardiloso. — Precisamos avisá-lo. Provavelmente virão atrás de mim também, mas vocês não precisam me avisar. Eu já sei. E, quanto ao que eles querem com as coisas que roubaram, não resolvi esse problema ainda. Mas vou resolver.

“O lado bom é que, quanto mais pessoas trabalharem para Escaravelho, maiores serão nossas chances de encontrá-lo. Crucial foi visto pela última vez em Haggard, talvez ainda esteja lá, tentando encontrar uma forma de invadir o perímetro de Porcelana.”

— Eu conheço a região — afirmou Tanith. — Vou dar uma volta de moto por lá e ver se encontro alguma coisa.

— E eu sei de alguns bares que Sanguíneo costumava frequentar quando esteve por aqui da última vez — disse Medonho. — Ainda estarão abertos, mesmo sendo tão tarde. Posso perguntar se ele apareceu por lá recentemente.

Ardiloso gostou da ideia.

— Leve Fletcher, assim você chegará mais rápido. Infelizmente, não sabemos quase nada sobre Crepúsculo. O vampiro que eu tranquei na cela temporária não está cooperando, o que não é lá uma grande surpresa, e essas bestas são impermeáveis à maioria das leituras psíquicas.

— Então é só pedir para Valquíria perguntar ao amiguinho vampiro dela — sugeriu Fletcher.

Ardiloso se virou bruscamente.

— O o quê dela?

Valquíria olhou feio para Fletcher, que corou.

— Hum, ela não... não lhe contou?

— Eu não contei a ele — confirmou Valquíria, com os dentes cerrados.

Ardiloso olhou para a parceira.

— Você tem um amigo vampiro?

— Ele marcou o encontro com Chabon — explicou Valquíria. — Eu nunca fiquei sozinha com ele. Tanith ou Medonho estavam sempre...

Ardiloso girou para os dois.

— Vocês sabiam disso? Vocês sabiam que ela estava se encontrando com um vampiro e permitiram?

— Estava tudo sob controle — respondeu Tanith.

— Ninguém nunca tem um vampiro sob controle! — rugiu Ardiloso. — Ele poderia tê-la matado! E para quê? Por uma chance de me trazer de volta? Vocês deveriam ter me deixado lá!

Tanith olhou para o outro lado e Valquíria baixou o olhar, com o rosto vermelho. Só Medonho manteve o contato visual com Ardiloso.

— Foi um risco que corremos — concordou Medonho, calmo como sempre. — Mas foi um risco que decidimos correr. E agora que ela fez contato com esse vampiro, temos que considerar a possibilidade de usá-lo para tentar achar Crepúsculo. É uma opção lógica.

Ardiloso ficou parado por um momento.

— De acordo — respondeu, afinal, sem sequer um traço de raiva na voz. — Valquíria, você poderia organizar o encontro?

Ela concordou lentamente. As mudanças repentinas de humor estavam se tornando perturbadoras.

— Excelente. Se tivermos sorte, uma dessas três linhas de investigação nos levará até Escaravelho. Liguem se encontrarem alguma coisa. Valquíria, vamos?

Ela liderou a saída da alfaiataria. A noite estava fria, mas pelo menos ainda não tinha começado a chover. Eles andaram até o Bentley.

— Eu poderia ter dito alguma coisa — afirmou Ardiloso.

— O quê?

— Você disse que eu poderia ter dito alguma coisa, depois que percebi que Escaravelho tinha sido vítima de uma armação. Eu concordei com você.

— Então, por que não disse nada?

A dupla chegou ao carro. O detetive destrancou a porta, mas eles não entraram.

— Quando a guerra começou — falou Ardiloso —, eu era de carne e osso. Era pai e marido primeiro, e soldado em segundo lugar. Quando Serpênteo assassinou minha família e me matou, isso mudou. Eu voltei como um soldado. A guerra era tudo o que eu tinha.

“Eu não gostava de Esryn Vanguarda e não concordava com ele. Considerava o sujeito uma influência negativa que não podíamos tolerar. Se ele continuasse fazendo discursos, tentando negociar com Malevolente, eu realmente achava que perderíamos a guerra.

“Descobri, alguns anos mais tarde, que as suspeitas de Meritório eram justificadas. Malevolente planejava aceitar a paz que Vanguarda pregava e depois posicionar os capangas e atacar todos os inimigos numa única noite sangrenta. Eu me sinto reconfortado com isso: saber que o que Meritório fez foi, de fato, a coisa certa.”

— Então você aprova a ordem de assassinar um homem inocente?

— Estávamos no meio de uma guerra — justificou Ardiloso. — Decisões brutais eram necessárias todos os dias. Essa foi uma delas.

Os primeiros pingos anunciaram a chegada da chuva noturna. Valquíria continuou parada.

— Fiz coisas horríveis na minha vida, Valquíria. Coisas que me perseguem. Algumas dessas coisas eu fui obrigado a fazer. Outras... não. Mas eu as fiz de qualquer maneira. Pelos meus pecados, eu deveria ter ficado do outro lado daquele portal, meu lugar de direito. Deveria ter sido caçado e torturado até que meus ossos se tornassem pó. Mas você foi ao inferno e me trouxe de volta. Eu posso até desapontar você, mas você nunca me desapontou. E nunca o fará.

Ele entrou no carro. Alguns segundos depois, ela fez o mesmo. Eles partiram.

A adolescente dormiu no banco reclinado do Bentley, usando o casaco de cobertor. Quando acordou, logo após a alvorada, o sonho se desfez. Valquíria se sentou.

— Sonho ruim? — indagou Ardiloso.

— Será? Não lembro.

— Parecia um pesadelo, com tantos murmúrios. Não que você possa ser criticada por ter pesadelos.

Valquíria fez uma careta, com o sonho distante demais agora, se dispersando mesmo enquanto ela tentava agarrá-lo.

— Não sei — concluiu —, era um sonho estranho, é só do que me lembro. Eu disse alguma coisa constrangedora?

— Nada que pudesse ser usado contra você.

Valquíria sorriu e olhou para o armazém do outro lado da rua.

— Algum movimento?

— Ainda não, mas leva alguns minutos para a pele e o cabelo humanos de um vampiro crescerem de volta. Ele deve sair logo, se é que está lá dentro.

Valquíria ajeitou o banco do carro.

— É aí que fica a jaula dele.

— Por que ele ajudou você? Vampiros não são legais.

— Ele odeia Crepúsculo. Não quis me contar por que, mas odeia o sujeito. Caelan nos ajudou porque a gente pôs Crepúsculo na prisão. Ele não ficou muito tempo preso, mas Caelan apreciou o gesto mesmo assim.

A porta do armazém se abriu e Caelan saiu. Por um momento, Valquíria ficou calada. Ela não tinha percebido que ele era tão bonito. A pele nova era tão fresca que praticamente brilhava com saúde, e os cabelos negros reluziam. Ela o observou enquanto ele ia até um carro estacionado ali perto, até que o vampiro parou, virou a cabeça e olhou direto para a adolescente. Ardiloso saiu do carro e Valquíria fez o mesmo.

— Seja legal — murmurou ela enquanto os dois atravessavam a rua.

— Eu sempre sou legal — retrucou Ardiloso.

— Não aponte a arma para a cabeça dele.

— Ah, esse tipo de “legal”.

Caelan os saudou com um aceno de cabeça. Ele não perdeu tempo declarando o óbvio: que ela havia trazido Ardiloso de volta. Nem perdeu tempo esperando que eles fossem apresentados. Simplesmente aguardou que eles falassem.

— Não gosto de você — afirmou Ardiloso.

— Está bem — respondeu Caelan com um único aceno da cabeça.

— Não gosto de vampiros em geral — continuou Ardiloso —, não confio neles. Não confio em você.

— Eu mandei você ser legal — comentou Valquíria com um suspiro.

— Bem, eu ainda não dei um tiro nele.

Valquíria revirou os olhos.

— Precisamos da sua ajuda para encontrar Crepúsculo — pediu a adolescente ao vampiro.

— Lamento. Não saberia onde encontrá-lo mesmo que eu quisesse.

— Mas você conhece gente que saberia disso, não conhece? — perguntou Ardiloso. — Outros vampiros, como aqueles que invadiram o Santuário ontem à noite e mataram 29 pessoas. Eu me pergunto, teria você passado a noite inteira trancado, Caelan? Ou será que você saiu de fininho para fazer um lanche?

Caelan olhou o esqueleto.

— Minha jaula tem uma tranca com temporizador, programado para abrir só depois da alvorada.

— Você é um vampiro com consciência? É isso?

— Não, senhor — respondeu Caelan. — Sou um monstro, exatamente como você diz que sou. Eu me tranco à noite porque, se não o fizer, alguém como você virá me caçar. E alguém como você vai acabar encontrando uma forma de me matar.

Valquíria se enfiou entre os dois e Caelan voltou a olhar para ela. Os olhos dele eram escuros como os dela, talvez até mais.

— Caelan, eu sei que você me ajudou com Chabon, e sei que você não me deve nada, mas precisamos encontrar Crepúsculo e detê-lo.

— Eu sempre fico na minha.

— Eu sei.

Os olhos deles dardejaram para o ombro dela.

— Posso perguntar a Moloque, mas não posso ir sozinho.

— Vamos com você.

Caelan concordou com a cabeça.

— Não posso prometer que ele lhes dirá qualquer coisa importante, ou mesmo que concordará em nos ver. Mas, realmente, ele é o único que aceitaria falar comigo.

— Os outros vampiros não gostam de você? — perguntou Ardiloso. — E por quê?

Caelan hesitou.

— Na nossa cultura, é proibido um vampiro matar outro.

— Você matou outro vampiro?

— Sim, senhor, matei.

— Por quê?

Caelan encolheu os ombros.

— Ele fez por merecer.


25

O ÚLTIMO DOS VAMPIROS

Os blocos de apartamentos se erguiam do cimento como paredes lúgubres de um cânion, opressivas na estatura e depressivas na estrutura. Construídas na década de 1960, quase todas as torres já tinham sido demolidas décadas depois, numa tentativa de se livrar das drogas e dos crimes que se infiltraram, permeando tudo. Seis dos sete prédios de Ballymun Flats tinham sido arrasados, os Sheriff Street Flats foram destruídos e os apartamentos em Fatima Mansions foram reconstruídos e substituídos. Quando a câmara de vereadores de Dublin finalmente chegou a Faircourt Flats, entretanto, o dinheiro tinha acabado.

Torres com 13 andares recheados de apartamentinhos. Nada de grama, nada de árvores. Uma lojinha, rabiscada com pixações. Carrinhos de compras enferrujados e colchões velhos.

O Bentley reluzente estacionou ao lado de uma carcaça metálica calcinada e Ardiloso, Valquíria e Caelan saíram. Ardiloso ativou o alarme do carro e a dupla seguiu Caelan por um túnel cheio de lixo, tão cinzento quanto o céu que ocultava. Emergiram do outro lado e atravessaram uma praça de concreto até uma escadaria que fedia a dejetos humanos. Não passaram por ninguém.

O elevador estava quebrado e a subida deixou os músculos das pernas de Valquíria ardendo, mas Ardiloso e Caelan nem demonstraram cansaço.

Eles continuaram sem encontrar ninguém.

Chegaram ao topo, onde metade das portas era de aço com pintura descascada. As trancas e travas ficavam do lado de fora, como se prendessem alguma coisa dentro. Barras pesadas bloqueavam as janelas.

Caelan martelou uma das portas de aço com o punho e o grupo esperou. Ouviram o clique de uma tranca sendo desfeita do outro lado e a porta se entreabriu. Uma mulher jovem os espiou. Era pálida e suava, com olhos nervosos e vermelhos.

— Viemos falar com Moloque — anunciou Caelan. Em seguida, a mulher lambeu os lábios, olhou para trás e escapou. Valquíria viu a mulher se afastando apressada, de braços cruzados num abraço em si mesma.

O trio entrou no apartamento. Não tinha móveis. Havia sulcos nas paredes, longos e fundos, e mais arranhões do lado de dentro da porta de metal. Aqui era o lar de um vampiro, onde ele tinha acessos de fúria e lutava para fugir. Havia outra porta de aço na sala de estar, que levava ao apartamento seguinte. Da mesma forma que Porcelana tinha derrubado as paredes do prédio dela para acomodar a biblioteca, o vampiro Moloque tinha expandido o lar de modo a acomodar os dois lados da natureza dele.

Neste apartamento mobiliado eles encontraram Moloque. Parecia ter sido bonito um dia, mas os anos tinham tornado as feições dele cruéis. O cabelo estava rareando e os olhos ardiam com inteligência. Vestia calça de corrida e uma camiseta branca, e estava sentado no sofá com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça, como se fosse o lorde do castelo.

— Vocês espantaram o meu café da manhã — reclamou num forte sotaque dublinense. O olhar do vampiro dançou pela silhueta de Valquíria. — Mas parece que vocês me trouxeram uma opção mais saudável. Tem uma seringa na mesa ao seu lado, gata. Preciso só de meio litro do seu sangue.

— Muito legal esse seu esquema — afirmou Ardiloso, ignorando o comentário. — Deixe-me adivinhar. Os outros inquilinos fornecem alimentação a você e seu povo, enquanto vocês os protegem de traficantes e outros criminosos. Acertei?

— Você parece desaprovar nossa combinação — respondeu Moloque. — Mas isso não é melhor que os vampiros soltos por aí, matando mortais? Desse jeito, não precisamos ser caçadores e eles não precisam ter medo.

— Era bom avisar isso àquela menina que fugiu daqui.

— A primeira vez é meio assustadora. — Moloque encolheu os ombros. — Mas já falamos muito do meu ganha-pão. Ouvi dizer que você já era. A história contava que você tinha sido arrastado para o inferno e estava perdido para sempre.

— Eu estava — confirmou o esqueleto. — Não estou mais.

Moloque abriu um sorriso.

— O detetive esqueleto em pessoa aqui na minha humilde morada. Imaginem só. Todo esse tempo conseguimos manter um perfil inexistente. Você nem sabia que estávamos aqui, sabia? E agora, eu me pergunto? Vai chamar os Talhadores?

— Eles estão procurando Crepúsculo — disse Caelan.

Moloque desapareceu do sofá e Caelan sumiu de onde estava, ao lado de Valquíria. Em seguida ouviu-se um estrondo e a adolescente girou. Moloque segurava Caelan pelo pescoço contra a parede oposta.

— Você os trouxe aqui — rosnou Moloque. — Você os trouxe à minha casa, seu filhote ignorante. Eu devia arrancar sua cabeça agora mesmo.

Ardiloso pôs as mãos nos bolsos, aparentemente nada incomodado com a possibilidade.

— Nós o obrigamos a nos trazer aqui — tentou justificar Valquíria.

Moloque apertou mais e Caelan chutou inutilmente, mas em seguida foi solto. Moloque se virou.

— Valquíria Caos — disse o anfitrião enquanto limpava o cuspe dos lábios. — Dois anos atrás você matou meus irmãos Infectados. Você os levou ao mar, foi o que me contaram.

— Eu pulei no mar — explicou Valquíria. — Não é culpa minha se eles pularam atrás.

— Você não me entendeu, garota. Eu estou lhe agradecendo. Se eles tivessem completado a transformação, um deles provavelmente teria saído pela cidade espalhando a destruição, ou teria sido flagrado por uma câmera, ou visto fazendo alguma coisa. Teria sido desastroso para nós.

“Criar novos vampiros é uma arte. Os Infectados precisam ser contidos, treinados, ensinados a se comportar. Não somos zumbis, pelo amor de Deus. Mas Crepúsculo os vê como um exército, e não parte da família.”

— Ele mandou 14 vampiros novos em folha atacarem o Santuário ontem à noite — contou Ardiloso.

— É mesmo?

— Você não sabia?

— Eu durmo tarde. E por que você acha que vou ajudá-los, afinal? Não somos todos almas torturadas como nosso amigo Caelan finge ser. Não trabalho com feiticeiros. E certamente não trabalho com agentes do Santuário.

— Você já se pergunta como resolver problemas como Crepúsculo há muito tempo. Toda manhã você acorda esperando que a oportunidade bata à sua porta. Bem, nós batemos.

Moloque considerou o argumento. Atrás dele, Caelan continuava encostado à parede, olhando fixamente para a nuca de Moloque como se estivesse fazendo um furo nela.

Moloque levantou o tapete, revelando um alçapão de aço. Era grande, redondo e parecia pesado, mas o vampiro o abriu sem dificuldade. Valquíria e Ardiloso foram até a beirada e olharam para as trevas.

— É aí que eu os guardo — contou Moloque. — Vocês ficariam surpresos com a quantidade de moradores destes prédios que querem ser como a gente. Força, velocidade, vida longa sem precisar ser mágico. Basta uma mordida. Bem, talvez vocês não ficassem surpresos, afinal. Pobreza, desemprego, falta de opções, falta de amor próprio... Com o que mais eles poderiam sonhar? Bem, o que quero dizer é o seguinte: virar um vampiro é como qualquer outra oportunidade de emprego atraente. Tem um monte de gente brigando por algumas poucas vagas.

“Então, sempre que precisamos de mais vampiros, reunimos os candidatos, damos uma mordidinha e os tacamos nesse buraco. Durante dois dias eles brigam entre si. Quem quer que sobre no fim, depois que a infecção esteja completa, se junta à família.”

— E o resto é massacrado no processo — comentou Ardiloso.

— É de uma simplicidade Darwiniana, não é mesmo?

— E como isso nos ajudaria a encontrar Crepúsculo? — perguntou Valquíria.

— Um dos meus irmãos em potencial lá embaixo não foi infectado por nós. Quem fez o serviço foi um dos vampiros de Crepúsculo. Ele esteve no covil deles antes de escapar e vir para cá.

A adolescente fez uma expressão de dúvida.

— E como podemos interrogá-lo?

— Você terá que fazê-lo pessoalmente — retrucou Moloque, agindo em seguida. Ele se atirou contra Ardiloso, derrubando o esqueleto para longe. Caelan avançou e Moloque o atirou para o outro lado da sala. Finalmente, o anfitrião agarrou Valquíria.

— Quando você matou aqueles Infectados — rosnou —, você nos fez um favor. Muito obrigado. Mas não posso deixar seu crime passar sem castigo.

Valquíria ergueu o braço tarde demais. O anfitrião já a estava empurrando, e ela gritou enquanto caía no buraco. A adolescente girou no ar, com as mãos estendidas contra as trevas, indo parar no apartamento de baixo. Sentiu a pressão nas palmas com a aproximação do chão e empurrou o ar. A descida desacelerou e a menina aterrissou de cócoras.

Lâmpadas fracas iluminavam precariamente o papel de parede desbotado, o carpete gasto e quase mais nada. Valquíria tinha sido jogada do 13º andar, atravessou o 12º e caiu no 11º. Moloque já tinha fechado o alçapão acima, prendendo-a ali. Valquíria se concentrou e sentiu o ar, captando movimento ao redor. Ela não estava sozinha.

A adolescente recuou até a parede, viu que alguém tinha aberto um buraco e passou por ele. Havia mais um buraco à frente e, em meio à névoa de poeira, ela podia ver outro mais adiante. Todos os apartamentos neste andar tinham sido conectados desajeitadamente e, pelo jeito, todas as portas e janelas tinham sido emparedadas com tijolos.

Não, disse ela a si mesma, nem todas as portas. Havia pelo menos uma porta, certamente de aço e trancada por fora, que permitiria que o último vampiro restante saísse dali.

Agora era só encontrá-la.

Um rosnado, vindo de algum lugar à esquerda. Alguma coisa se mexeu e um homem disparou luz adentro, ao que Valquíria empurrou o ar e o acertou bem quando ele saltou contra ela. A adolescente girou, agarrando as sombras e golpeando com elas o peito de uma mulher que veio por trás. Então Valquíria correu.

Saltou por um buraco na parede seguinte, direto nos braços de outro Infectado. Ele tinha escancarado a boca cheia de dentes afiados, mergulhando na direção da garganta dela. Valquíria lhe acertou uma cabeçada no rosto, o que fez o monstro uivar de dor e largá-la. Ela cambaleou, atordoada, e esbarrou numa mesinha. A mão dela encontrou um abajur, que Valquíria usou para acertar a cabeça do adversário. A lâmpada explodiu e as trevas os envolveram, mas Valquíria já tinha passado pelo monstro.

Havia três Infectados esperando por ela. Valquíria estalou os dedos e ateou fogo a um sofá, atirando-o contra os monstros em seguida. Os Infectados se esquivaram e Valquíria passou correndo por eles, atravessando a porta até uma cozinha escura, passando pela parede, tropeçando no próprio pé e chegando aos trambolhões ao quarto do apartamento seguinte.

Alguma coisa se lançou contra ela e, por um momento, Valquíria voou pelo vazio. Finalmente se chocou contra a parede e, ao cair, viu o homem atacar novamente num salto. A adolescente tentou empurrar o ar, mas o monstro agarrou-lhe o pulso. Ele apertou, e a dor fez com que ela caísse de joelhos. O Infectado usou a outra mão para erguê-la e em seguida girou, atirando-a na sala de estar. Valquíria aterrissou numa mesa, espalhando o lixo que tinha sido empilhado em cima, e rolou para fora.

Outro Infectado a agarrou. Valquíria deu-lhe uma cotovelada na boca quando ele tentou mordê-la, o que forçou a cabeça do monstro para trás e, com a mão livre, ela lhe deu um golpe na garganta com a mão semicerrada. O monstro engasgou e caiu, mas então um peso aterrissou nela. A menina caiu e levou um soco no rosto que fez o mundo girar. Valquíria se encolheu enquanto o Infectado a enchia de socos, protegida do pior pelas mangas do casaco. Os outros logo chegariam. Se ela ficasse ali no chão, eles a matariam.

Valquíria estalou os dedos e meteu uma mãozada de fogo na cara do Infectado, que gritou e recuou. Ela empurrou o ar e o jogou para trás, e o monstro bateu de cabeça na parede. A adolescente se levantou. Em meio à penumbra ela viu mais deles chegar correndo. Não ia dar certo. Ardiloso poderia ter lutado até chegar à porta, mas ela não era Ardiloso. Precisava de um novo plano.

— Parem! — gritou.

E, incrivelmente, os Infectados pararam.

— Não vim aqui lutar contra vocês — afirmou Valquíria, alto e claro. — Não estou aqui para machucá-los ou competir com vocês. Moloque me mandou aqui para conversar. Ele quer que um de vocês me ajude. Entenderam?

Eles a encaravam como se ela fosse comida, mas ficaram parados. Em algum lugar das trevas, um Infectado rosnou.

— Preciso encontrar Crepúsculo. Um dos vampiros dele infectou um de vocês. E esse Infectado foi levado ao covil dele. Preciso saber onde fica.

Em algum lugar à direita, outro rosnado.

— Se não me ajudarem — continuou a adolescente, olhando feio para eles —, vocês todos vão queimar. Ouviram? Moloque não quer saber de vampiros desobedientes.

Ela calculou que provavelmente metade deles estava rosnando agora, e começou a se arrepender amargamente do plano. Valquíria estava com as costas na parede e eles se reuniam diante dela, prontos para reduzi-la a pedaços assim que ela falasse a coisa errada.

— Meu nome é Valquíria Caos — gritou ela acima do barulho. — Vocês podem ter ouvido falar de mim. Matei vinte de vocês dois anos atrás, e matarei mais vinte hoje sem pensar duas vezes.

Os rosnados pararam.

— Não vim aqui pelas águas terapêuticas, então vou perguntar só mais uma vez. Quem aqui sabe onde Crepúsculo está?

Os Infectados se entreolharam e então um deles, uma garota com a cabeça raspada, deu um passo à frente. Ela apontou o Infectado inconsciente no chão, aquele que Valquíria tinha queimado.

— Ele sabe.

Valquíria se desanimou.

— Você só pode estar brincando...

— Ele estava falando nisso mais cedo, antes de trazerem a gente para cá.

— Ele chegou a comentar aonde tinha sido levado?

— Não que eu tenha escutado.

— Alguém aqui escutou? Ele mencionou mais alguma coisa?

Ninguém respondeu. Um deles começou a rosnar de novo.

— Onde fica a porta? — perguntou ela rapidamente, antes que os perdesse de vez. — A porta de aço, Moloque me mandou encontrá-la. Onde fica?

Os olhos da careca estavam cravados em Valquíria novamente, mas ela conseguiu indicar o apartamento seguinte com um aceno da cabeça.

— Ok — disse Valquíria, se preparando. — Ok.

O primeiro Infectado saltou como uma bala, e Valquíria desviou com um passo para o lado, socando-lhe as costas e lançando-o contra a parede atrás dela. A garota careca atacou e Valquíria chutou-lhe o joelho e lhe deu uma joelhada na cara. A adolescente chicoteou as sombras contra o Infectado seguinte e enviou uma onda de trevas contra outro. Estalou os dedos, jogou bolas de fogo e foi até onde o homem inconsciente estava caído.

Assim que houve uma pausa nos ataques, ela se agachou e o ergueu pelo colarinho da camisa. Estendeu as palmas, lançando o corpo do sujeito para longe, derrubando os Infectados como pinos de boliche.

Mãos tentaram agarrá-la enquanto ela corria atrás do sujeito. O ar tremeluziu e Valquíria abriu caminho, alcançando o alvo e arrastando-o pelo buraco na parede. Ela olhou por sobre o ombro e viu o contorno de uma porta nas trevas. Agora bastava mantê-los longe até que Ardiloso fizesse o que costumava fazer: chegar no último segundo.

O Infectado inconsciente murmurou.

— Ei — chamou Valquíria no ouvido dele. — Moloque quer saber onde está Crepúsculo.

O homem grunhiu de dor. Ela lhe deu um tapa forte no rosto.

— Cadê o Crepúsculo? Aonde levaram você?

— Um castelo — murmurou, bem quando um vulto sombrio veio pelo buraco e se chocou contra Valquíria.

Eles se esparramaram no meio da bagunça no chão. Valquíria agarrou um pedaço de parede e acertou na cara do atacante. Em seguida rolou, ficando por cima dele, e socou com a mão esquerda, que pareceu se quebrar. A adolescente se levantou e ele lhe deu uma rasteira.

A luz inundou a sala quando a porta se abriu, e mãos a agarraram. Subitamente ela estava sendo levada para fora.

— Não! — gritou. — Aquele ali sabe onde eles estão!

Valquíria estava do lado de fora agora, forçada contra o parapeito de concreto, olhando para a torre vizinha e o céu cinzento e a queda de 11 andares abaixo. Ela girou para mandar Ardiloso ir buscar o Infectado que ela havia queimado. Mas não era Ardiloso.

Crepúsculo a ergueu e a atirou por sobre o parapeito.


26

SEQUESTRADO

Atorre se afastou dela e não havia mais nada além de céu cinzento e o som do vento nos ouvidos.

As outras torres apareceram e o chão surgiu e sumiu de novo, e Valquíria girava enquanto caía. Lá estavam o céu e as nuvens e o cabelo dela, e um vulto, Ardiloso, caindo na mesma direção. Ela girou de novo e viu o chão, e ele a abraçou.

A queda se tornou uma descida e eles estavam flutuando lentamente. Então eles pararam e Ardiloso deixou que ela pusesse os pés no chão.

— Você está bem? — perguntou ele.

Ela não conseguiu responder. Mal conseguia respirar. Simplesmente segurou o ombro dele para não cair.

Havia pessoas olhando para eles. Os inquilinos normais do prédio tinham saído dos apartamentos e agora olhavam para os dois, silenciosamente.

— Crepúsculo — conseguiu dizer. — Está lá em cima.

Os únicos andares que não tinham uma fileira de pessoas nos parapeitos dos corredores abertos eram o 11º e o 13º, mas agora Valquíria via movimento no andar mais alto. Pessoas passavam por cima do parapeito. Oito delas.

Eles se soltaram.

Caíram graciosamente, três andares de cada vez, de sacada em sacada, pausando apenas por um momento antes de continuarem descendo. Metade deles saltou, se atirando para longe do prédio, enquanto os outros esperaram uma fração de segundo e mergulharam. Os oito vampiros deram mortais e aterrissaram num círculo perfeito ao redor de Ardiloso e Valquíria.

Os vampiros sorriam, sem nem ofegar.

Moloque veio por último, carregando algo grande sobre o ombro. Quando chegou à sacada do quarto andar, deixou a coisa cair. A coisa girou e rodou ao cair, e Valquíria viu que era Caelan. Ele atingiu o chão e ficou ali, inconsciente e sangrando.

Moloque aterrissou. O círculo de vampiros se abriu e ele entrou.

— Entregue-nos Crepúsculo — comandou Ardiloso.

— Ele já se foi — respondeu Moloque.

Ardiloso compreendeu, pensando no que diria em seguida, então sacou a arma do paletó. Moloque a atirou longe com um tapa. Outro vampiro a pegou. Um deles riu.

— Você não vai nos matar — disse Ardiloso a Moloque.

— É mesmo? — indagou Moloque. — E por que não?

— Porque não vai conseguir. Então nós voltaremos com um exército de Talhadores e derrubaremos essas torres ao seu redor. Queremos Crepúsculo.

— Eu fiz todo o possível para ajudar vocês. — Moloque encolheu os ombros.

— Nos ajudar? Você tentou matar Valquíria.

— Não, não tentei. Eu a coloquei numa situação na qual ela poderia ter morrido, sim, mas não tentei matá-la. Conseguiu o que queria, menina?

Valquíria olhou nos olhos dele.

— Ele só mencionou um castelo.

— Então, aí está. Ele foi levado a um castelo. É uma pista, não é? Quero dizer, quantos castelos há por aqui? Não muitos, aposto.

— Quando acabarmos com Crepúsculo — afirmou Ardiloso —, vamos acabar com todos que estiverem com ele.

A expressão de divertimento sumiu do rosto de Moloque.

— Não estamos com ele, esqueleto. Ele nos fez uma proposta e, se determinados eventos se desenrolarem de determinada forma, vamos pensar no caso dele. Se você acabar com ele antes disso, paciência.

— Então, o que ele veio fazer aqui?

— Requisitar alguns dos Infectados, como reposição dos rapazes que ele perdeu no ataque ao Santuário. Aparentemente, ele não pode se dar ao luxo de esperar as duas noites necessárias para se criar um vampiro por conta própria.

— E você lhe deu os Infectados?

— Claro que não. Ele não ficou lá muito feliz, mas azar o dele.

Ardiloso estendeu a mão para o vampiro com o revólver. Moloque acenou com a cabeça e a arma foi devolvida. Ardiloso a guardou no coldre.

— Vamos ficar de olho em você — avisou.

— É claro que vão — retrucou Moloque com amargor na voz. Atendendo a um sinal invisível, os oito vampiros partiram, caminhando silenciosamente. — Levem Caelan quando saírem — continuou Moloque. — Ele exauriu o resto da minha boa-vontade. Avisem-lhe para nunca mais voltar aqui.

Ardiloso fez que sim e os dois observaram o vampiro se afastar.

Deixaram Caelan no armazém, e ele se afastou do carro mancando sem olhar para trás. Valquíria se sentiu mal; afinal, ele tinha se machucado por causa deles. Mas não poderiam levá-lo junto ao cinema de Conspícuo Lamento, considerando que a vampirofobia do professor andava em alerta máximo ultimamente.

Estacionaram atrás do velho Cinema Hibernian e entraram. Agora que a adrenalina tinha baixado, a dor da mão quebrada num soco latejava em Valquíria. Ela aninhava o braço esquerdo no direito enquanto seguia Ardiloso pelo palco e pela porta projetada na tela.

Viraram no primeiro corredor à direita, quase esbarrando em Clarabela. Ela segurava dois longos tubos de ensaio, um em cada mão, os dois cheios de um líquido cristalino.

— Oi, Clarabela — cumprimentou Valquíria. — O professor está?

Os olhos de Clarabela dardejavam entre os dois tubos.

— Inofensivo, perigoso. Inofensivo, perigoso. Esquerdo inofensivo, direito perigoso. Esquerdo inofensivo, direito perigoso. — Então ela ergueu os olhos e abriu um sorriso luminoso. — Oi, Valquíria! Oi, Ardiloso! Nossa, não vejo você há milênios!

— Bem — respondeu Ardiloso —, eu andei...

— Já faz semanas, né? — continuou Clarabela, rindo. — Provavelmente foram só alguns dias, mas parece que foram semanas! Eu tomaria isso como um elogio, se fosse você.

— Vou tentar — murmurou Ardiloso.

Clarabela voltou a olhar os tubos.

— Esquerdo inofensivo, direito perigoso. Inofensivo, perigoso.

— O que é isso que você está carregando? — indagou Valquíria, pois não tinha como não fazê-lo; era impossível escapar.

— Ah, estas coisas? — Clarabela ainda sorria, agora orgulhosa. — Não são nada.

— Ah.

— Não são nada de verdade, porém. É só mais uma das experiências do professor, vocês sabem como ele é. Mas a coisa mais importante que eu preciso lembrar é que não posso beber nenhum dos dois. Foi isso que ele me falou. Disse que, acima de tudo, eu não posso beber. Então perguntei, mas e se eu bebesse, qual dos dois seria pior? Então o professor disse não beba. E eu falei, tudo bem, mas e se eu bebesse? E ele perguntou por que eu beberia, já que ele me mandou não beber? Mas eu falei sim, eu sei disso, mas digamos que eu acabei bebendo um deles, qual seria pior para mim? E ele me disse que seria o esquerdo.

— Mas esse é o inofensivo — comentou Valquíria.

— Perdão?

— Você estava dizendo “esquerdo inofensivo, direito perigoso” agorinha mesmo.

— Tem certeza? Tem certeza de que não era o contrário?

— O tubo da esquerda é o inofensivo — confirmou Ardiloso. — Era isso que você estava entoando.

Clarabela franziu a testa.

— Só que eu não sei qual é a esquerda e qual é a direita.

— Essa é a mão esquerda — apontou Ardiloso.

— Mas esse é o tubo perigoso.

— Tem certeza?

— Praticamente. Vou verificar.

Antes que eles pudessem impedi-la, Clarabela bebericou do tubo na mão direita. Ela bochechou o líquido, engoliu e fez que sim com a cabeça.

— Sim — declarou, satisfeita.

— Esse era o inofensivo? — indagou Valquíria.

— Não faço ideia — respondeu Clarabela, indo embora em seguida.

Conspícuo Lamento entrou apressado na Sala de Emergência adiante deles. A dupla entrou atrás dele. O professor escovava os cabelos brancos, de costas para os visitantes. Finalmente os viu no espelho.

— Não sei por que me dou o trabalho — resmungou. — Nunca deixa meu cabelo arrumado, só faz movê-lo de um lado para o outro.

— Olá, professor — cumprimentou Ardiloso.

— Ouvi falar que você tinha voltado. — Conspícuo se virou. Vestia calça social, um blazer e uma gravata-borboleta amarela. — Disse a mim mesmo, é só uma questão de tempo até que ele apareça aqui, trazendo Valquíria ferida novamente para que eu a cure. O que foi desta vez, Valquíria? Braço quebrado?

— Só a mão.

— Ah, muito melhor — retrucou, irônico. O professor pegou uma folha de uma tigela na mesa e a dobrou. — Abra a boca — comandou. A adolescente obedeceu e ele lhe deu a folha na boca. Conspícuo examinou a mão ferida enquanto a menina mastigava e a dor diminuiu imediatamente. Um bônus delicioso foi que a folha bloqueou outra dor de cabeça que ameaçava emergir.

— Encontramos Clarabela — contou Ardiloso. — Ela bebeu de um dos tubos de ensaio que estava levando.

Conspícuo abaixou a cabeça.

— Aquela garota — lamentou. — Um dia ela vai aprender. Não sei o que ela vai aprender, mas ela aprenderá e será um dia fantástico.

— Ela corre algum perigo?

O professor começou a procurar algo nas gavetas.

— Não. Os dois tubos contêm apenas água mineral. Vocês ficariam espantados em saber quantas vezes eu lhe dei água e disse a ela que era algo perigoso que ela não poderia beber. Mas ela sempre bebe. Sempre. É uma compulsão. — Conspícuo lhes mostrou uma enorme tigela irregular que parecia ter sido feita numa aula de escultura para idiotas. — Ela fez isso para mim, como uma demonstração de gratidão pelo emprego que eu lhe ofereci quando ninguém mais o fez.

— É bonita — mentiu Valquíria. — Colorida.

— Era para ser uma caneca — contou Conspícuo. — Que tamanho que ela acha que minha boca tem? Eu poderia botar minha cabeça inteira aí dentro, pelo amor de Deus. Nem tem uma alça. E olhem só isso... — Ele colocou a tigela na mesa, e ela se inclinou drasticamente. — É tão sem equilíbrio que corre o risco de cair de uma superfície plana.

O professor despejou vários líquidos e pós na tigela e olhou o relógio.

Valquíria franziu a testa.

— Você vai sair? — indagou a adolescente.

Conspícuo começou a mexer a mistura. A tigela balançava ritmicamente.

— Vou.

— Você está todo arrumadinho. Você nunca fica todo arrumadinho. Você vai... Você vai ter um encontro?

— Por que está tão surpresa? Porque eu sou idoso, é isso? Porque eu sou um velho e os velhos não podem ter encontros? Porque nós não precisamos de amor e companhia, e porque não nos sentimos solitários? É isso? É por isso que você está tão surpresa de eu ter um encontro?

— Não — respondeu ela. — É porque você está realmente ranzinza.

— Ah, sim. De fato, estou deveras ranzinza. Mas e daí? Algumas mulheres gostam disso.

— Quais mulheres?

— Aquelas que não esperam muito de um homem.

— E esse seu encontro é agora? Não deu nem a hora do almoço. Aonde você vai?

— Bingo.

— Bingo?

— Bingo. É a última moda, aparentemente. — O professor chamou Valquíria com um gesto e indicou a tigela, que agora continha uma gosma marrom. — Ponha a mão ali.

Ela o fez. Era uma gosma fria e arenosa.

— Deixe a mão aí dentro por uns três ou quatro minutos, até o formigamento passar. Não flexione os dedos, ouviu bem? Quando acabar, lave as mãos naquela pia. E lave bem. Não quero mais uma toalha estragada. Vai ficar com um leve hematoma, mas hoje à tarde você nem vai mais lembrar que a mão estava quebrada.

— Você está de saída?

— Tenho um encontro, Valquíria.

— Certo. Sim. Desculpe. Pode ir, vou ficar bem.

— Nossa, sua opinião médica vale tanto para mim, Valquíria, você não faz ideia. Detetive Cortês, por favor, assegure-se de que ela não quebrará nada mais enquanto estiver parada ali.

— Farei o meu melhor.

— É tudo o que lhe peço.

Ele se curvou para os dois e saiu.

— Ele está de bom humor — comentou a menina.

— Está, sim — concordou Ardiloso. — É desconcertante.

— E meio nojento.

— Isso também.

O telefone da menina tocou e ela atendeu com a mão livre. Era Fletcher. Ela explicou onde eles estavam e Fletcher disse que ia buscar Tanith. Um minuto depois, os dois apareceram ao lado de Valquíria.

Tanith arqueou uma sobrancelha para a mão gosmenta que Valquíria estava lavando na pia.

— O que aconteceu?

— Vampiros — respondeu Valquíria. — Descobrimos que o covil de Crepúsculo é um castelo.

— E como vocês se saíram? — perguntou Ardiloso.

— Não encontrei Remus Crucial em nenhum lugar dos arredores de Haggard — contou Tanith. — E nenhum dos selos foi rompido, então ele não andou tentando entrar.

— Eu e Medonho saímos procurando amigos de Sanguíneo — acrescentou Fletcher. — Descobrimos que ele não tem nenhum. Não posso dizer que eu esteja surpreso.

— Então nossa única pista é o castelo — concluiu Ardiloso. — Bem, pelo menos é uma pista.

Foi aí que eles ouviram o grito de socorro de Clarabela, que entrou correndo.

— Eles levaram o professor! — declarou.

Valquíria e Tanith seguraram os braços de Fletcher e Ardiloso pôs a mão no ombro dele.

— Fletcher, para fora — comandou o esqueleto e logo eles estavam na chuva ao lado do Bentley, enquanto Billy-Ray Sanguíneo jogava Conspícuo no banco de trás do carro.

Alguma coisa se moveu acima, Ardiloso grunhiu e foi jogado por sobre o capô do Bentley. Um homem aterrissou diante deles e imediatamente deu um mortal, acertando Tanith com um chute que a atirou de volta sobre Fletcher.

Jack Saltador girou para Valquíria, sorrindo. Ele tirou o chapéu num cumprimento e saltou para trás quando ela empurrou o ar. Pousou sobre o teto do carro de Sanguíneo, entrou pela janela aberta e o carro disparou.

O Bentley bipou quando o alarme foi desativado e as travas se abriram. Fletcher e Tanith entraram pelas portas de trás e Valquíria pôs o cinto de segurança. Ardiloso virou a chave e pisou fundo. O Bentley rugiu para a rua.

Seguiram o carro de Sanguíneo virando a esquina, dando uma guinada para evitar uma van na pista contrária. As ruas estavam escorregadias de chuva, e a traseira do Bentley derrapou forte, mas Ardiloso manteve o carro sob controle. Ultrapassaram um carro por dentro e depois outro, usando a pista na contramão. Meia dúzia de motoristas buzinou enquanto Ardiloso guiava o carro de volta à própria pista, e agora não havia nada entre eles e Sanguíneo além de um trecho de asfalto.

— Fletcher — chamou Ardiloso —, você consegue se teleportar até lá? Pegar o professor?

Fletcher olhou para o carro à frente, agarrando o encosto de cabeça do banco de Valquíria.

— Ele está correndo muito — respondeu. — Alvos móveis são muito difíceis.

O carro acelerou. Valquíria nunca tinha imaginado que o Bentley poderia correr tanto. Eles estavam se aproximando sem dificuldade.

O carro da frente fez uma curva muito fechada à direita. Os pneus cantaram quando o carro derrapou de lado, mas Sanguíneo era bom e disparou de novo com uma súbita arrancada.

Ardiloso virou o volante e deu uma pisada no freio, com a mão manejando a alavanca de câmbio, e o Bentley rosnou agradecido. O esqueleto endireitou o carro e o fez rugir de novo. Valquíria foi pressionada contra o banco. As ruas transversais passavam voando. A adolescente viu Jack Saltador abrir a porta do passageiro e botar o corpo um pouco para fora. Olhava o chão passando embaixo, como se estivesse avaliando a velocidade.

Fletcher se inclinou para a frente.

— O que diabos ele está fazendo? Não vai pular, vai?

Mas ele não pulou. Desafiando todas as leis da inércia e da velocidade, Jack plantou o pé no chão e simplesmente saiu, e agora estava de pé no meio da rua enquanto o Bentley avançava rugindo.

— Isso não é bom — murmurou Ardiloso.

Jack saltou antes que o carro o atingisse, aterrissando no capô sem nem mesmo balançar. Olhou para os ocupantes do automóvel, enquanto o casaco esfarrapado esvoaçava ao vento e o chapéu permanecia imóvel na cabeça.

— Se tem uma coisa que eu não suporto — comentou Ardiloso, botando a arma para fora da janela — são enfeites de capô.

Antes que o detetive pudesse atirar, Jack subiu no teto.

— Eu cuido dele — declarou Tanith, entregando a espada a Fletcher e abrindo a janela. Movendo-se com graça infalível, ela deslizou para fora do carro.

— Não podemos fazer isso — disse Valquíria, olhando de relance os rostos espantados das pessoas na rua. — Estamos em público, pelo amor de Deus! As pessoas estão nos vendo!

Mas Ardiloso continuou concentrado na tarefa de reduzir a distância do carro da frente. Viraram numa rua lateral e o Bentley rugiu. Estavam se aproximando de novo.

Jack se espatifou de volta no capô e Ardiloso murmurou um xingamento, esticando o pescoço para ver a rua. Tanith desceu do teto do carro sob o olhar atento de Valquíria. A guerreira chutou Jack, que rolou pela lateral do carro, mas, ao cair, conseguiu se segurar e, por um momento, ficou agarrado à porta, com o rosto disforme pressionado contra a janela de Valquíria.

Por fim, a criatura se puxou para cima, fora de vista, e Tanith foi atrás dele, os dois pisando pesado no teto.

— Por favor, parem de pisotear meu carro — resmungou Ardiloso baixinho.

Houve um momento de súbito silêncio e as botas de Tanith passaram diante do para-brisa, chutando. Jack veio atrás. Ele desceu do teto ao capô, com a mão direita no pescoço de Tanith, erguendo-a e segurando-a diante de si.

Valquíria assistiu horrorizada enquanto Jack segurava Tanith para fora da lateral do carro, com o chão voando sob ela. O monstro olhou para a adolescente e, ao fazê-lo, largou a guerreira.

Valquíria gritou o nome da amiga enquanto esta caía, mas o Bentley seguiu em frente e ela não viu Tanith atingir o chão.

Ardiloso pôs a mão para fora, mexendo os dedos, e adiante o ar começou a ondular. Jack se virou, percebendo o que acontecia, mas não pôde evitar. O Bentley atravessou a muralha de ar, mas Jack se esborrachou nela e foi jogado para trás.

Valquíria girou no banco do carro e conseguiu ver Jack aterrissando de pé no meio da rua, mas o Bentley já estava virando outra esquina.

— Ela vai ficar bem — assegurou Ardiloso, sem esperar que Valquíria perguntasse. — Tanith Low já caiu de mais carros do que você já foi passageira.

O esqueleto virou com força para a direita e o Bentley saiu de traseira um pouco, mas logo os pneus recuperaram a tração.

O carro adiante não se deu tão bem. Derrapou para fora da rua e os pedestres saltaram da frente quando o automóvel subiu na calçada e bateu num portão de ferro. O carro deu um tranco e girou, fazendo o portão dar uma cambalhota por cima e cair no chão. Ardiloso freou forte.

O automóvel adiante estava parado, com a frente amassada e uma fumaça grossa subindo do motor. Valquíria viu algo se mover.

— Ele está saindo — avisou, soltando o cinto de segurança e abrindo a porta. Foi aí que ela ouviu a sirene.

Valquíria passou por um adolescente de olhos arregalados e boquiaberto que erguia o celular para tirar uma foto. Ela arrancou o telefone da mão dele e saltou por cima do portão destroçado. A menina correu até o carro batido, empurrando o ar para limpar a fumaça que encobria a visão, mas o carro estava vazio. Ela viu Sanguíneo de relance, arrastando Conspícuo para trás de um prédio.

Valquíria agarrou a mão de Fletcher e apontou:

— Ali!

E um carro de polícia freou logo atrás deles.

A dupla congelou. Valquíria percebeu que Fletcher estava combatendo o instinto natural de se teleportar. A adolescente olhou rapidamente para Ardiloso. Todos estavam de costas para os guardas, mas Ardiloso tinha perdido o cachecol. Se ele se virasse, os policiais veriam o que ele era.

— Deitem-se no chão! — gritou um dos guardas. Valquíria os observou com o canto do olho enquanto eles avançavam cuidadosamente. Não estavam armados.

— Baixem quaisquer armas que estiverem portando e se deitem no chão! — ordenou o segundo guarda.

Valquíria não se moveu. Ardiloso ergueu as mãos sobre a cabeça. A menina ouviu o tilintar de algemas e viu o primeiro guarda estender as mãos para Ardiloso. O esqueleto girou, agarrando o pulso do policial e torcendo-o. O policial que estava atrás de Valquíria subitamente sacou o cassetete, mas a menina virou e deu uma rasteira quando o tira foi ajudar o colega.

Ardiloso passou o braço pelo pescoço do policial e o sufocou. Valquíria empurrou o ar e o segundo guarda deslizou pelo chão, batendo no carro de Sanguíneo e grunhindo.

Surgiram mais sirenes, ficando mais altas a cada segundo.

Ardiloso deitou o guarda inconsciente no chão e os três voltaram rápido para o carro. Valquíria tirou a bateria do telefone do garoto e jogou o aparelho de volta a ele. Entraram no carro e partiram velozmente, encostando para deixar mais três carros de polícia passar. Voltaram para onde tinham visto Tanith pela última vez e reduziram a velocidade. A rua estava vazia.

Valquíria pegou o celular e ligou para Tanith.

— Oi, gatinha — atendeu Jack Saltador depois de alguns toques, com uma voz sorridente. — Tanith não pode falar agora, já que tá tão assim inconsciente. Se tiver a fim de deixar um recado...

— Solte ela! — ordenou Valquíria.

— ...Eu passo pra ela sem falta. Bom dia procê.

O telefone ficou mudo.


27

CONSPÍCUO ENCONTRA ESCARAVELHO

Escaravelho pousou o Engenho Desolador na mesa de trabalho diante de Conspícuo Lamento. Era relativamente pequeno para uma arma tão destruidora, e parecia uma ampulheta de pedra do tamanho da mão de Escaravelho. Havia dois frascos de vidro dentro da armação de pedra, os dois meio cheios com um líquido verde imóvel.

— E o que você espera que eu faça com isso? — indagou o Professor Lamento com voz embargada.

— Espero que você o conserte — respondeu Escaravelho.

— Para que você possa usá-lo a fim de matar milhares de inocentes? Não.

— Professor, não vou perder o nosso tempo. Não vou lhe contar que fui vítima de uma armação que me botou na prisão por um crime que não cometi. Não vou narrar como vi minha juventude se desfazendo diante de mim enquanto ficava naquela cela. Não vou explicar a raiva ou a necessidade que tenho de ver meus inimigos sofrendo. Não vou lhe dizer nada disso.

— É mesmo? — perguntou Lamento. — Porque você acabou de dizer.

— Você prefere morrer a me ajudar, Professor. Sei disso muito bem. Mas você possui a habilidade, o talento e o conhecimento de que preciso, e a única coisa que lhe impede de fazer o que quero é... você.

— E então seu plano é...?

— Muito simples. Se não vai mudar de ideia, vou mudar sua ideia para você.


28

O HOTEL DA MEIA-NOITE

Grêmio estreitou os olhos ao vê-los chegar.

— Estou começando a me arrepender da minha decisão — declarou. — Uma perseguição automobilística? Em plena luz do dia? Talvez Mácula tivesse razão. Talvez fosse melhor se todos vocês estivessem presos.

— Talvez fosse melhor se você desse uma tarefa útil à Detetive Mácula — retrucou Ardiloso. — Neste momento, Medonho está verificando todos os castelos num raio de duas horas de carro daqui. Tenho certeza de que ele apreciaria alguma ajuda.

— Ah, sim, porque um informante que você não quer identificar lhe disse que a base de Escaravelho provavelmente fica num castelo. Isso é tudo que você descobriu?

— Trabalhamos com o que temos, Túrido.

— Bem, vocês têm alguma outra coisa?

— Temos uma motivação para os crimes — afirmou Valquíria. — Escaravelho quer se vingar das pessoas que o incriminaram.

Grêmio olhou para ela.

— Do que você está falando? — conseguiu perguntar, enfim.

— Vocês mataram aquele tal Esryn Vanguarda — acusou Fletcher. — Vocês não queriam que ele enfraquecesse o lado de vocês ou parasse a guerra ou seja lá o que fosse que vocês tinham medo que ele fizesse.

— Isso é ridículo.

Valquíria o encarou de volta.

— Você mandou um dos seus Magos de Contingência assassinar Vanguarda, depois incriminou Escaravelho e o trancafiou sem um julgamento justo.

— Você deveria estar investigando Escaravelho, e não eu — rosnou Grêmio para Ardiloso. — Está perdendo um tempo precioso...

— Se nosso objetivo é antecipar as manobras de Escaravelho — interrompeu Ardiloso —, precisamos saber a verdade. Ele está atrás de você ou de nós dois? Ou de todo mundo? Se ele realmente matou Vanguarda, basta colocar você em custódia protetora por mais ou menos um ano. Ele vai ficar entediado ou vai morrer e tudo estará encerrado.

“Mas se ele não matou Vanguarda, temos problemas mais sérios. E precisamos saber que problemas são esses agora.”

— Bem, por que você não trabalha sob a suposição de que temos problemas mais sérios e segue adiante? — perguntou Grêmio.

— Escaravelho matou Vanguarda?

— Isso não é...

— Escaravelho matou Vanguarda?

— Não — cedeu Grêmio.

— Meritório ordenou o assassinato — pressionou Valquíria.

— Era uma decisão que precisava ser tomada — justificou Grêmio.

— Vanguarda estava do seu lado.

— Vanguarda estava do lado dele mesmo e de mais ninguém.

— Isso não o tornava um inimigo.

— Não vou ficar aqui explicando nossas ações para você. Fizemos o que precisava ser feito e, se houver alguma ramificação, eu lidarei com ela depois que essa crise se encerrar. Estamos de acordo? Excelente. Então, agora que vocês estão cientes de todos os descontentamentos de Escaravelho, vão capturá-lo, pode ser?

— Estamos um pouco mais perto de conseguir — concordou Ardiloso. — Mas nossa preocupação principal é o Engenho Desolador.

— Está desativado — afirmou Grêmio. — É inútil. Por que seria uma preocupação?

— Porque há um único homem vivo possivelmente capaz de consertá-lo, e Escaravelho acabou de sequestrá-lo.

Grêmio empalideceu.

— Lamento é capaz de consertar o Engenho?

— O homem é um gênio científico. É capaz de qualquer coisa. A pergunta, na verdade, seria, é claro, se ele vai aceitar consertá-lo. E não acredito mesmo que ele o faça. Acho que Conspícuo preferiria morrer a ser responsável pela morte de alguém.

— É melhor que você esteja certo.

— Mas nós não queremos que ele morra — argumentou Valquíria, furiosa. — Se é para alguém morrer, deveria ser...

Grêmio olhou para a adolescente, que se calou.

— Será que vão torturá-lo? — indagou Fletcher, falando baixo. — Sei que vocês costumam fazer e passar por esse tipo de coisa toda hora... mas o professor é idoso. Não vai aguentar. Já foi ruim ele ter passado por um acidente de carro.

Valquíria franziu a testa, tomada por um pensamento súbito.

— Mas por que ele passou por um acidente de carro? Por que ele estava num carro, afinal? Sanguíneo poderia ter simplesmente agarrado Conspícuo e fugido por baixo da terra. Por que ele fugiu de carro?

— Eu estava me perguntando a mesma coisa — concordou Ardiloso. — A única explicação plausível é que eles queriam nos atrair para algum lugar.

— Uma armadilha?

— É a única opção que faz sentido.

— Então que ótimo que eles tenham batido.

— A história virou notícia — ralhou Grêmio. — Não foi nada ótimo que qualquer uma dessas coisas tenha acontecido. Se o pior acontecer, se Lamento realmente consertar o Engenho, para que Escaravelho o usará? Para me matar?

— Se ele quisesse simplesmente matar você, poderia tê-lo feito quando Crepúsculo entrou aqui com os vampiros. Ele provavelmente considera o Santuário como um todo responsável pelo encarceramento dele.

— Então é para isso que ele quer o Engenho. Para destruir isto aqui.

— Talvez — falou Ardiloso, e olhou para cima, de repente. — Eu sei por que eles roubaram o Apanhador de Almas.

— Sabe?

— Eu sei como eles vão obrigar o Professor Lamento a ajudá-los. Sei até onde pelo menos um deles estará esta noite.

— E você descobriu isso tudo enquanto estávamos aqui conversando?

— Eu sou um detetive, ora.

— Então, o que eles querem com o Engenho Desolador?

— Provavelmente isso mesmo que pensamos: querem destruir o Santuário. Mas não tenho certeza disso.

— Quando tiver certeza de alguma coisa — suspirou Grêmio —, você faria a gentileza de me contar? Espero ansioso pelo dia em que você será útil.

O trio se dirigiu para o Bentley.

— Fletcher — chamou Ardiloso. — Quero que ajude Medonho a encontrar o castelo que estamos procurando.

— E o que vocês dois vão fazer?

— E quem se importa? — retrucou Valquíria. — Eu quero é saber por que Sanguíneo roubou o Apanhador de Almas.

Ardiloso abriu o carro.

— Vocês já ouviram falar nos Remanescentes?

— São uma banda? — indagou Fletcher.

— Remanescentes são espíritos de trevas, seres infundidos em maldade absoluta. Perderam os corpos há muito tempo... então, sempre que possível, possuem os vivos, compartilhando das memórias, absorvendo as personalidades e tomando controle dos corpos. São uma praga. Na última vez que atacaram, em 1892, dominaram uma cidade inteira em Kerry e a queimaram completamente. O Santuário pediu a ajuda dos Necromantes na construção daquilo que seria basicamente um Apanhador de Almas gigante dentro de uma montanha na cordilheira de MacGillycuddy’s Reeks. Os Necromantes não quiseram ajudar, então o Santuário fez o melhor que pôde. O povo da cidade foi levado até a montanha e o Apanhador de Almas gigante acabou funcionando, milagrosamente, e os Remanescentes foram arrancados deles.

— Onde estão os Remanescentes agora?

— Aprisionados. Centenas deles, é impossível saber exatamente quantos, foram transferidos para uma sala de onde não podem escapar. Se algum dia eles se libertarem, seriam capazes de devastar este mundo, saltando de hospedeiro em hospedeiro, se fortalecendo, construindo um exército.

— Se Sanguíneo prender um deles no Apanhador de Almas — comentou Valquíria —, pode colocar o Remanescente em Conspícuo e usá-lo para controlar a mente dele?

— Acredito que esse seria o plano — concordou Ardiloso. — O Remanescente teria todas as memórias e habilidades do Professor, mas não seria ele, não de verdade. Certamente não teria a mesma consciência.

— Onde fica essa sala, então? — perguntou Fletcher. — Provavelmente eu os deixarei lá mais rápido.

— Desta vez não, Fletcher. Você só pode se teleportar a lugares onde você já esteve, e essa sala tem uma tendência a se mover muito.

Valquíria franziu a testa.

— O que isso quer dizer?

Fletcher saiu para ajudar Medonho, e Ardiloso e Valquíria saíram de carro da cidade. No caminho, ele contou tudo sobre o Hotel da Meia-Noite.

Era administrado por um feiticeiro chamado Anton Frêmito, um velho amigo de Ardiloso. Os dois lutaram lado a lado durante a guerra contra Malevolente. Insatisfeito com os vários Santuários espalhados pelo mundo, que, na opinião dele, tinham ficado muito poderosos e burocráticos, Anton construiu o hotel como um refúgio para aqueles que operavam fora das fronteiras oficiais. Os hóspedes frequentemente eram párias, foras-da-lei ou até mesmo criminosos perigosos, mas, desde que obedecessem à regra primordial do hotel, todos eram bem-vindos.

A regra primordial, explicou Ardiloso, era simples: nada de violência contra nenhum hóspede. Se uma luta acabasse começando, Frêmito pessoalmente lutaria ao lado da vítima, quem quer que fosse. E, aparentemente, ninguém queria enfrentar Frêmito.

— Ele deve ser muito bom — comentou Valquíria —, se todo mundo tem medo dele. É um Elemental ou Adepto?

— Adepto — respondeu Ardiloso. — Se você tiver sorte, jamais verá o que ele pode fazer.

No restante do caminho, Valquíria tentou identificar algo que já a incomodava havia algumas horas, uma sensação estranha no fundo da mente, que não ia embora. Chegaram a uma clareira na floresta, mas a adolescente ainda não fazia ideia de qual era esse pensamento perdido. Ardiloso estacionou e os dois saíram.

— É melhor você se segurar em mim — instruiu Ardiloso.

Valquíria se segurou no esqueleto e os dois subiram, deixando a estrada para trás ao tomar o ar. Passaram sobre as copas das árvores, com os pés tocando levemente os galhos. Ardiloso os manteve na rota certa, e de vez em quando ela ouvia o detetive falando sozinho, palavras que o vento levava daquela boca sem lábios antes que chegassem aos ouvidos dela.

Flutuaram até outra clareira, pousando com suavidade.

— O que estamos fazendo? — perguntou Valquíria. — Cadê o hotel?

— A qualquer momento a partir de agora — respondeu, olhando o relógio de bolso e guardando-o em seguida.

No instante seguinte, o chão da clareira rugiu e um prédio cresceu.

Vigas de madeira saltaram da terra e o concreto vazou da grama, endurecendo logo depois. As paredes desabrocharam ao redor da fundação, e do lado de dentro Valquíria viu quartos nascendo e mesas florescendo. Um segundo andar cresceu e depois um terceiro, e das paredes brotou um telhado que se fechou no meio. Vidro gotejou dos topos das janelas, formando painéis, e os batentes criaram portas. A última coisa a surgir foi um letreiro que dizia O Hotel da Meia-Noite.

— A cada doze horas ele cresce em outro local do mundo — explicou Ardiloso. — E todo mundo dentro é transportado junto. Ele poderia ter batizado o lugar de Hotel do Meio-Dia, suponho, mas Meia-Noite soa tão mais legal, não acha?

— Acho — concordou Valquíria, um tanto quanto atordoada. Ela entrou atrás do detetive.

Havia um balcão de recepção, e atrás dele um painel com uns 24 ganchos para chaves. Ao lado do painel havia uma porta aberta que levava a um escritório. Sobre o balcão estavam um abajur e um livro de hóspedes, além de uma única caneta.

A dupla foi até a sala de estar. Um par de velhas poltronas, um sofá e uma mesinha baixa estavam arrumados ao redor da lareira, um lugar onde os hóspedes poderiam relaxar à noite. Uma estante de livros estava encostada a uma parede e uma porta levava a algum lugar, provavelmente a cozinha ou o refeitório. Uma mulher desceu as escadas, ignorou os visitantes e saiu. Os dois voltaram à recepção. Agora havia um homem lá: alto, com um longo cabelo negro e vestido como um diretor de funerária. Ele sorriu gentilmente.

— Olá, meu amigo. — Ele cumprimentou Ardiloso. — Desde que não esteja aqui para incomodar meus hóspedes, é bom ver você.

— Igualmente. Valquíria Caos, este é Anton Frêmito, dono e gerente do Hotel da Meia-Noite.

Frêmito curvou a cabeça para ela.

— É um prazer conhecê-la, Valquíria. Ouvi histórias suas.

— Histórias boas ou histórias ruins?

— Todas as histórias são boas. — Ele sorriu. — Mesmo as ruins. O que posso fazer por vocês?

— Viemos verificar os Remanescentes — contou Ardiloso.

Frêmito levou um momento para reagir.

— Entendo — respondeu, afinal. — Vocês vieram contá-los?

— Só queremos nos assegurar de que estão onde deveriam estar.

— Vocês têm motivos para crer que não estariam? — perguntou Frêmito, dando a volta no balcão.

— Dreilho Escaravelho saiu da cadeia — explicou Ardiloso enquanto os três subiam as escadas. — Ele montou uma ganguezinha de assassinos do mesmo naipe e acreditamos que eles queiram libertar um Remanescente.

— E vocês acham que eles conseguiriam isso sem que eu soubesse?

— Eu não subestimo meus inimigos.

— Porém, você parece subestimar seus amigos. — Frêmito se virou para Valquíria. — Vinte e quatro quartos com paredes, portas e janelas reforçadas física e magicamente. Há selos místicos ao redor do perímetro, guardando o hotel contra certos tipos indesejáveis. Faço questão de oferecer a melhor proteção possível aos meus hóspedes. Há um quarto, porém, que é diferente de todos os outros.

Eles pararam diante de uma porta no segundo andar, marcada com o número 24.

— É aqui que eu guardo os Remanescentes — anunciou Frêmito. — Eles estão aqui há mais de cem anos, e nunca conseguiram escapar. Esta porta não foi aberta em mais de um século e não será aberta no próximo. Eles não vão a lugar algum.

Ardiloso tirou o chapéu e limpou um pedaço de sujeira imaginária.

— Estamos falando de pessoas muito capazes, Anton.

— Nesse caso, eles vão tentar e vão fracassar. Eu poderia oferecer a vocês o quarto em frente, para poderem ficar de olho, mas estou com o hotel lotado, com um último hóspede marcado para chegar a qualquer momento.

— Se não for problema, gostaríamos de ficar por aqui mais algumas horas.

A dupla seguiu Frêmito até a recepção, onde eles depararam com Billy-Ray Sanguíneo esperando no balcão.

Ardiloso sacou o revólver num piscar de olhos, ao que Sanguíneo riu e recuou, com as mãos erguidas.

— Não atire! — gritou ele, fingindo medo. — Tô desarmado!

Ardiloso não respondeu e a arma não se moveu.

Sanguíneo parou de rir.

— Ei, tô falando sério agora. Não atira em mim.

— Você está preso — anunciou Ardiloso.

— Agentes do Santuário não tem autoridade alguma dentro do Hotel da Meia-Noite — retrucou Sanguíneo. — Tô certo ou não tô? Eu olhei as regras antes de vir.

— Você está correto — confirmou Frêmito.

— Não faz diferença alguma — afirmou Ardiloso com frieza. — Posso jogá-lo para fora e então prendê-lo com facilidade.

— Você não pode tocar um dedo em mim. — Sanguíneo sorriu. — Você é o Frêmito, né? Sr. Frêmito, acredito que tenho uma reserva neste ótimo estabelecimento hoteleiro por uma noite. Está em nome de William-Raynold Sanguíneo. Billy-Ray pros meus camaradas.

Frêmito foi até o balcão e verificou o livro, em seguida olhando para Valquíria e Ardiloso.

— Ele é um hóspede — confirmou.

— Ainda não — disse Ardiloso e se aproximou de Sanguíneo. Frêmito se colocou entre os dois.

— Ardiloso, este homem é um hóspede no Hotel da Meia-Noite. Como tal, ele está sob minha proteção. Por favor, guarde sua arma.

Ardiloso ficou imóvel por um momento e, lentamente, guardou o revólver no coldre.

Frêmito se virou para Sanguíneo.

— O senhor trouxe alguma bagagem, Sr. Sanguíneo?

— Só essa aqui — respondeu o texano, cutucando uma pequena mala com o pé.

— O Apanhador de Almas está aí dentro, Sanguíneo? — indagou Valquíria.

— Valquíria, eu certamente não sei do que você tá falando. Eu só trouxe uma cueca limpa e um bom livro para me distrair. — O assassino se virou para Frêmito. — Bem, vamos oficializar o esquema. Onde que eu assino?


29

CONVERSA AMISTOSA

A sala de estar estava vazia, exceto por Valquíria e Ardiloso, que estavam sentados à mesa. A maioria dos hóspedes do hotel já tinha se retirado, deixando o lugar bem quieto. Isso mudou quando Sanguíneo desceu, assobiando. Ele viu os dois, acenou e se aproximou.

— Com licença? — perguntou, apontando uma das cadeiras vazias. Como ninguém se opôs, ele se sentou. Valquíria viu um reflexo sombrio de si mesma nas lentes dos óculos escuros dele.

— Bem, agora que estamos sentados aqui — começou o assassino, num clarão de dentes brancos —, não consigo pensar em nada interessante pra dizer.

— Que tal nos contar aonde vocês levaram Conspícuo Lamento e Tanith Low? — sugeriu Ardiloso. — E dizer exatamente onde vocês planejam detonar o Engenho Desolador, isso se vocês conseguirem consertá-lo? Aí nós poderemos seguir o rumo a que a conversa nos levar.

— E se eu não falar nada disso, você vai me bater?

— Com prazer.

— O proprietário não admite violência neste hotel — avisou Sanguíneo, feliz. — Confirmei com ele, e o cara é superneurótico com esses lances. Se você criar confusão comigo, ele vai criar confusão com você. Não é fantástico? Não é a regra mais legal que você já ouviu?

— Tenho certeza de que meu amigo abrirá uma exceção neste caso — retrucou Ardiloso.

— Talvez sim, talvez não.

— Onde está Tanith? — perguntou Valquíria.

— Está em segurança — respondeu Sanguíneo. — Relativamente ilesa. Bom, eu votei pra gente matar ela imediatamente. Sorte dela que o nosso pequeno Clube dos Vingativos é uma democracia. Pelo povo, para o povo.

— É esse o nome que vocês deram à gangue? — perguntou Ardiloso. — O Clube dos Vingativos?

— É, um nome bem sonoro, né? Não é tão sinistro quanto Diablerie, mas, raios, a gente não quer trazer de volta deuses das trevas ou destruir o mundo. Só queremos uma desforra.

Valquíria se inclinou para a frente.

— E o que você quer? Escaravelho está nessa porque acredita ter sido incriminado. Crucial está nessa porque enlouqueceu. Crepúsculo tem raiva de mim por causa da cicatriz. Por que você está metido nisso?

Sanguíneo examinou as unhas.

— Tenho meus motivos.

— Ah — murmurou Ardiloso. — É claro.

Valquíria olhou para o esqueleto, mas este estava com a atenção concentrada em Sanguíneo.

— Há algumas semanas, você entrou e saiu do Templo dos Necromantes pelo subterrâneo — afirmou Ardiloso. — Porém, mais tarde, quando libertou Crepúsculo da prisão, você só entrou escavando, e teve que sair lutando. Poderia ter capturado o Professor Lamento sem confusão, mas não o fez. Vocês o puseram num carro e você dirigiu. O que há de errado com você, Sanguíneo?

O assassino sorriu.

— Você não pode esperar que eu revele todos os meus segredos antes que...

— Você está ferido — interrompeu Ardiloso, e Billy-Ray cerrou os dentes. — Meu palpite é que o ferimento provocado por Valquíria na fazenda Aranmore, no ano passado, está criando mais problemas do que você imaginara. Você se machucou quando roubou o Apanhador de Almas, não foi? Talvez tenha arrebentado alguma coisa aí dentro. Foi isso que aconteceu? Você tentou resgatar Crepúsculo discretamente, mas não conseguiu aguentar a possibilidade de usar o poder na fuga. É por isso que você quer vingança, porque Valquíria roubou seu poder mágico.

Sanguíneo se atirou contra Valquíria, mas Ardiloso agarrou-lhe o pulso e chutou a cadeira debaixo dele. Sanguíneo se esparramou no chão e Frêmito veio até a sala.

— Está tudo bem aqui? — perguntou em voz baixa.

— Billy-Ray caiu da cadeira — disse Ardiloso. — Billy-Ray, está tudo bem aí embaixo?

Sanguíneo se levantou, com o rosto tenso. Ele trouxe a cadeira de volta à mesa.

— Tá tudo bem — respondeu. — Sou meio desajeitado, só isso.

Frêmito encarou o grupo por um momento, depois se aproximou e se sentou.

— Podem continuar conversando — falou.

Sanguíneo se sentou de lado, apoiando um dos cotovelos na mesa.

— Tem alguma regra contra ameaças? — indagou.

— Não — respondeu Frêmito.

— Tem alguma regra contra a promessa de uma morte violenta?

— Nenhuma.

— Certo, muito bem. — O fitar de olhos vazios de Sanguíneo se voltou para Valquíria. — Vou matar você. Você me cortou bem na barriga com aquela maldita espada, e eu não pude ir pra nenhum professor bam-bam-bam para ser costurado. Tive que correr atrás de um imbecil completo num beco escuro que tinha um discursinho, mas era uma porcaria de médico místico. Tenho certeza de que ele só piorou as coisas. Disse para esperar algumas semanas até ficar bom, e eu esperei um mês, mas quando fui escavar, era como se minhas tripas estivessem pegando fogo e meus pulmões enchendo de fumaça. Agora não posso ir lá pedir pra ele me consertar, porque ele já está morto, então a única pessoa que sobrou para eu botar culpa é a pirralha nojenta que me cortou.

— Foi em legítima defesa — argumentou Valquíria.

— Isso não é desculpa. Na verdade, só piora as coisas. Se você simplesmente tivesse deixado eu matar você como eu queria, não estaríamos nessa situação horrível. A coisa toda é culpa sua.

— Sua lógica é impecável — comentou Ardiloso. — E quanto ao Jack Saltador? Qual é a razão da sede de vingança dele?

Sanguíneo encolheu os ombros.

— O Jack tá fazendo o que o Jack sempre faz: criando confusão. Ele simplesmente quer criar muita confusão, numa escala maior, e quer se livrar de qualquer um que tente impedi-lo.

— Mas por que o Engenho? Por que se dar o trabalho de consertar uma bomba tão poderosa se tudo o que vocês querem é se vingar de alguns indivíduos específicos?

— Ah, pois é. — Sanguíneo voltou a sorrir. — Essa é a parte secreta do nosso plano secreto.

— Por que está aqui, Sr. Sanguíneo? — interrompeu Frêmito. — Faço questão de não me meter na vida pessoal dos meus hóspedes, mas Ardiloso afirmou que você veio aqui atrás de um Remanescente. Se isso for verdade, talvez tenhamos um problema.

— Bem — respondeu Sanguíneo. — Isso é verdade, então que tipo de problema nós temos?

Frêmito suspirou.

— Tenho vinte e três quartos neste hotel liberados para o uso de qualquer visitante. Aquele de número 24, todavia, está vedado a todos.

— Tô sabendo.

— Mesmo que você conseguisse usar seus poderes — continuou Frêmito —, não conseguiria entrar. O quarto número 24 é mais seguro que qualquer cela de prisão. Foi por isso que me pediram para guardar os Remanescentes.

— Ah, sim, sem sombra de dúvida.

— Não há janelas e apenas uma porta para o quarto número 24, e só existe uma chave para essa porta.

— Saquei, beleza.

— E ela fica comigo o tempo todo.

— Imaginei que ficaria.

— E mesmo assim você planeja levar um Remanescente consigo quando partir.

— Vou ter que ser honesto... sim, eu planejo. É um planinho sutil e muito bacana. Você vai gostar. Sem entrar em detalhes, quando chegar a hora, tenho certeza de que vão me entregar a chave ou que vou arrancá-la das suas mãos frias e mortas, e simplesmente abrirei a porta.

— Percebo — murmurou Frêmito. — Fique sabendo que tais eventos são muito improváveis.

— São improváveis agora. Quando a hora chegar, serão bem prováveis, pode crer. — O assassino olhou o relógio. — E a hora tá chegando...

Valquíria detectou movimento do lado de fora. Foi até a janela e olhou.

— Tem gente chegando — avisou.

Ardiloso e Frêmito se juntaram a ela. Havia pessoas se aproximando, vindas de todas as direções, dezenas delas. Tinham sangue seco nas roupas. Quando se aproximaram, Valquíria viu como eram pálidas e mal-ajambradas. Algumas cambaleavam ao andar. Os rostos não tinham expressão.

— Zumbis — afirmou Ardiloso. — Zumbis chegando. E você chama isso de sutil?

Sanguíneo se levantou e sorriu.

— Os mortos não conseguirão entrar — disse Frêmito. — Podem ficar lá fora até apodrecerem, e o hotel se moverá à meia-noite. Não vejo como isso poderia me obrigar a abrir a porta dos Remanescentes.

— Bem — falou Sanguíneo —, isso porque você não sabe de todos os detalhes. Você tem todo esse esquema de segurança funcionando, mantendo longe os indesejáveis como os mortos-vivos, e isso é muito legal. Mas, veja bem, o problema com os símbolos de segurança é que sempre tem um jeito de contornar eles. E esse lance aí de alfabeto mágico sempre foi tipo um hobby pro meu pai. Ele não é nenhum mestre da parada, mas sabe quais símbolos cancelam os outros símbolos, sacou? Tá vendo todos aqueles zumbis lá fora? Todos eles tão com este símbolo marcado na pele fedida e podre deles. — Sanguíneo entregou um papel amassado a Frêmito. — E aí, que que você acha? O rabisco vai funcionar?

Frêmito examinou o papel e estreitou os olhos. Não respondeu.

— Você sabe que aqueles monstrinhos nojentos vão conseguir entrar aqui, né? — continuou Sanguíneo. — Então, eis a minha proposta, Anton. Você abre aquela porta pra mim, deixa eu pegar o que vim buscar e eu dispenso a horda zumbi.

Frêmito olhou para o assassino e depois pela janela. Balançou a cabeça.

— Não.

Sanguíneo suspirou.

— Manobra errada, parceiro. Vai ser um banho de sangue depois que começar.

— Podemos detê-los — retrucou Frêmito. — O que você acha, Ardiloso?

— Vai ser divertido — concordou Ardiloso. — Valquíria nunca deteve uma horda zumbi antes. Será uma boa experiência para ela.

— Ah, que ótimo — murmurou a menina.

— Vocês, mocinhos — comentou Sanguíneo. — Sempre tão dispostos a morrer como heróis. Não tô a fim de sujar esse terno de sangue, então, se vocês não se incomodarem, vou esperar lá fora. Não tô querendo ficar no meio do massacre depois que começar.

Ele se virou para ir embora e Frêmito lhe acertou um soco. Sanguíneo girou e cambaleou para trás, quase tropeçando numa cadeira.

— E quanto à sua regra proibindo violência? — perguntou, esfregando a mandíbula.

— Eu proíbo violência contra os hóspedes — esclareceu Frêmito. — Você não é mais considerado um hóspede.

Ardiloso foi até o assassino, que se endireitou.

— Pode me socar à vontade — começou a falar Sanguíneo.

— Ah, ótimo — interrompeu Ardiloso, que em seguida lhe deu um soco. Sanguíneo tropeçou na mesinha de café e caiu de costas no chão.

— Não vai adiantar nada! — gritou. — Os zumbis estão chegando e não tem nada que você possa fazer para impedir.

— Mande-os embora — ordenou Ardiloso.

Sanguíneo cuspiu sangue e sorriu.

— Sem chance.

— Mande-os embora ou vou machucar você.

— E quanto você consegue me machucar em trinta segundos? Porque é esse o tempo que você tem. Eles vão entrar aqui e você vai ter que enfrentar eles... Vamos apostar quem vai morrer primeiro? Vou botar minha grana na pirralha. Eles vão despedaçar ela. Vão devorar ela viva e eu vou ficar olhando, e vai ser um show que eu nunca vou esquecer.

Uma musiquinha country terrivelmente aguda começou a tocar.

— Devem ser eles — anunciou Sanguíneo, puxando o celular. Ele se moveu lentamente, como se esperasse que Ardiloso fosse começar a chutá-lo. Em vez disso, Ardiloso fez um gesto e o telefone voou da mão de Sanguíneo até Valquíria. A adolescente atendeu.

— Hum, oi — falou um homem. Ela conhecia aquela voz de algum lugar. — Hum, pode ser que a gente tenha um probleminha. — Era Vaurien Patife. É claro. Com certeza ele estaria metido nisso. — Os outros, tipo assim, comeram alguém. Eu sei que você disse que não era para fazer isso, mas eles fizeram sem que eu soubesse... Em resumo, eles estão agindo de um jeito estranho, e eu preciso saber o que fazer.

Valquíria cobriu o telefone com a mão e olhou para Ardiloso.

— É Patife — informou. — Ele está lá fora com os zumbis e disse que eles estão agindo estranho. Falou que eles comeram alguém.

Sanguíneo se endireitou, empalidecendo completamente.

— Eles o quê?

Ardiloso inclinou a cabeça.

— Os zumbis costumam comer pessoas.

— Não estes. Me deixa falar com ele.

— Sem chance.

Sanguíneo se ajoelhou.

— Você tem que me deixar falar com ele. Juro por Deus. Se eu mandar eles atacarem, pode atirar em mim, ok? Mas eu tenho que falar com ele.

A voz dele estava carregada de pânico e medo verdadeiros. Ardiloso hesitou por um segundo mas concordou com a cabeça. Valquíria jogou o celular para Sanguíneo.

— Como assim eles comeram alguém? — perguntou ele. — Quem eles comeram? Não, não quero saber a droga do nome dele. Só quero saber se era alguém vivo. Ah, seu idiota. Ah, seu imbecil. Meu pai falou pra você. Ele disse uma coisa acima de tudo: não deixe eles comerem carne humana, e o que que você fez? O que que você fez? Exatamente. Você é um cretino. Sorte sua que você já tá morto.

Sanguíneo desligou, guardou o celular e olhou para eles.

— Pequena mudança de planos — anunciou. — Não vou mais sair.

— E por quê? — perguntou Ardiloso.

Sanguíneo se levantou, mantendo as mãos abertas e estendidas.

— Se você não deixar os zumbis comerem gente, eles ficam tranquilos. Apodrecem, fedem e ficam mais burros a cada dia, mas fazem o que a gente manda. Mas se eles derem uma mordidinha em carne humana de um humano vivo, eles viram bicho. A única coisa que têm em mente agora é matar e comer um montão de gente. Obviamente, essa era a ameaça que eu tava planejando usar contra vocês, mas eu meio que achava que ia estar lonjão daqui antes que o lance de comer carne humana acontecesse.

— Então você está preso aqui — concluiu Frêmito. — Conosco.

Sanguíneo tentou sorrir.

— Não é irônico?


30

ENTARDECER DOS MORTOS

— Eles estão chegando perto — avisou Valquíria, se afastando da janela.

Ardiloso sacou a arma e se voltou para Frêmito.

— Quantos hóspedes estão presentes agora?

— Cinco, todos nos quartos.

— Era melhor você mandar que eles se preparem. Quem quiser ajudar será bem-vindo. Os outros podem fazer barricadas nas próprias portas.

Frêmito concordou com a cabeça e desapareceu escada acima.

Havia mãos nas janelas, pressionando e batendo no vidro. Valquíria viu um rosto, esbugalhado e inconsciente. O zumbi a viu e rosnou. Ardiloso moveu a mão lentamente e a estante de livros deslizou, cobrindo a janela.

A dupla virou a mesa de lado e a encostaram à porta, em seguida empurrando o sofá para segurá-la no lugar. O hotel não tinha uma porta dos fundos, e não havia muito mais que eles pudessem fazer para bloquear as janelas além de fechar as cortinas. Pelo menos agora os zumbis não poderiam mais ver o que eles estavam fazendo. Frêmito desceu com uma mulher miúda e um sujeito careca.

— Temos dois voluntários — anunciou. — O Sr. Bujarrona é um Elemental e a Sra. Apostólica é uma Adepta.

— Bom saber que temos outro Elemental no grupo — comentou Ardiloso. — Sra. Apostólica, qual disciplina Adepta a senhora estudou?

— Linguística e etimologia — respondeu.

Ardiloso parou por um momento.

— Línguas?

A Sra. Apostólica concordou com a cabeça.

— Sou capaz de falar qualquer língua mortal que já foi falada.

— Bem, perdoe-me, madame — interveio Sanguíneo. — Mas como diabos isso vai nos ajudar a enfrentar uma horda de zumbis famintos? Você vai tacar uns dicionários neles ou só tagarelar até eles morrerem de tédio?

— O Sr. Frêmito afirmou que vocês precisavam de toda ajuda possível — respondeu a Sra. Apostólica. — Você presume que serei absolutamente inútil apenas porque decidi não dedicar minha vida inteira ao estudo da violência?

— Você é uma pacifista — grunhiu Sanguíneo.

— Sou uma realista, senhor. E se uma horda de zumbis famintos, como o senhor colocou, quiser me devorar, eu vou me defender, pode estar certo de tal fato.

— Entalar na garganta do zumbi, só pode ser esse o seu plano.

— Sanguíneo — interrompeu Valquíria —, cale a boca. Você é o único aqui embaixo que não pode usar magia nenhuma, então não tem o privilégio de dispensar quem pode.

— Eu te odeio.

Uma janela foi quebrada. E depois outra. O grupo foi para a sala de estar. Havia duas janelas ali. Uma estava bloqueada pela estante, a outra apenas por uma cortina. Um zumbi tentava entrar pela segunda. Os defensores olharam a cortina abanando como se estivesse viva até que ela se abriu. O zumbi estava com metade do corpo para dentro e olhou para o grupo. Rosnou e estendeu os braços para eles, portanto Ardiloso atirou nele.

— Tentem acertar a cabeça, se possível — instruiu. — Incendiá-los também funciona, mas demora muito tempo. Quebrem-lhes as pernas para deixá-los mais lentos. Não deixem que eles mordam vocês.

— Nunca enfrentei zumbis antes — comentou o Sr. Bujarrona. — Lutei contra todos os outros tipos de criaturas, mas nunca zumbis. No entanto, sempre quis fazê-lo.

— O Hotel da Meia-Noite — respondeu Frêmito, baixinho — faz tudo para agradar seus hóspedes.

Mais dois zumbis tentavam entrar pela janela, e Ardiloso atirou em ambos. A estante estava tremendo. Outra janela foi quebrada, em algum lugar dos fundos do hotel.

— Vou cuidar disso — declarou Frêmito, soturno, e saiu da sala de estar. A porta do estabelecimento estava levando uma surra.

Sanguíneo pegou uma mesa e a arrebentou contra a parede. Pegou uma das pernas do móvel e jogou-a para a Sra. Apostólica, que segurou a clava improvisada com as duas mãos. A segunda perna foi para o Sr. Bujarrona, e a terceira ele guardou para si.

Olhando feio para Sanguíneo, Valquíria estalou os dedos e evocou uma chama. Sanguíneo resmungou e lhe deu a quarta perna.

— Vamos lá — gritou o Sr. Bujarrona para os zumbis do lado de fora. — Não tenho a noite toda.

— Não provoque os zumbis — desaprovou Ardiloso.

— Esses caras são inofensivos. — O Sr. Bujarrona riu, se aproximando da janela. — O fedor vai matar a gente antes de eles nos pegarem.

A mão podre de um zumbi agarrou o pulso do Sr. Bujarrona, que foi puxado para a frente.

— Ei, não, espera — exclamou ele e logo em seguida foi arrancado pela janela afora antes que Ardiloso ou Valquíria pudessem alcançá-lo. Não teve tempo nem de gritar.

— Ah, meu Deus — disse a Sra. Apostólica.

— Você já viu muitos magos linguistas sendo devorados vivos? — indagou Sanguíneo preguiçosamente.

A porta do hotel foi arrombada, empurrando o sofá e a mesa para trás, e os zumbis começaram a invasão.

O revólver de Ardiloso rugiu repetidamente. Zumbis tropeçaram e caíram, e o esqueleto recarregou enquanto Valquíria atirava bolas de fogo. Um zumbi em chamas veio cambaleando e Valquíria lhe acertou uma pernada de mesa na cabeça. O monstro caiu no chão e tentou se levantar, mas os outros zumbis o pisotearam.

A estante desabou e a Sra. Apostólica correu até a janela, batendo nos demais que tentavam entrar. Um deles passou por Ardiloso e Valquíria e se lançou sobre Sanguíneo, que xingou e perdeu a perna da mesa. O zumbi empurrou o assassino até a parede, e os socos de Sanguíneo não surtiam efeito. Ele desistiu e agarrou a garganta do morto-vivo, empurrando com toda a força que tinha, mantendo as mandíbulas vorazes longe de si. O assassino girou e o zumbi acertou a parede, que cedeu ao impacto. O zumbi ficou ali confuso, preso com a cabeça enfiada na parede, depois que Sanguíneo saiu de perto.

Ardiloso ficou sem munição. Largou o revólver e crispou os dedos. O ar se fechou em volta do zumbi mais próximo, que ficou paralisado, gorgolejando de leve, até que Ardiloso abriu bem os braços e o monstro foi decapitado.

Valquíria abriu um buraco no peito de um morto-vivo com as sombras. O bicho cambaleou para a frente e ela se abaixou sob ele, trazendo as sombras de volta e tornando-as afiadas. Elas cortaram o tornozelo do zumbi, que caiu. A adolescente ergueu a perna da mesa nas mãos e a usou como se fosse um taco de beisebol no outro zumbi que chegou perto. Ele tropeçou no camarada caído e derrubou um terceiro. Eles não eram muito espertos, esses zumbis.

Um morto-vivo enorme partiu para cima de Valquíria e a agarrou. Meteu a boca no ombro dela, tentando mordê-la. A perna da mesa caiu das mãos da adolescente quando ela foi erguida do chão e carregada para trás. Bateu na parede ao lado da porta da cozinha, e o zumbizão tentou arrancar um pedaço do rosto dela com uma dentada. Valquíria ergueu os braços subitamente, se soltando, e se deixou cair no chão. O monstro gemeu alguma coisa, patético e desapontado, e a menina empurrou o ar, lançando-o para longe.

Quando Valquíria se levantou, Sanguíneo se chocou contra ela. Os dois se esparramaram no chão da cozinha, seguidos de perto pelo zumbi que jogou Sanguíneo.

Valquíria foi a primeira a se levantar. Agarrou um enorme cutelo de açougueiro da bancada e o atirou. O cutelo bateu de costas na cabeça do zumbi e caiu. Valquíria tacou outra faca e, desta vez, foi o cabo que acertou o monstro. Sanguíneo se levantou, arrumou os óculos escuros, procurou a navalha e viu o zumbi tentando pegá-lo. Ganiu e se abaixou, mas o monstro agarrou a jaqueta dele.

Valquíria correu até o morto-vivo, batendo na parte de trás do joelho dele com uma frigideira. O bicho caiu e Sanguíneo bateu a mão que tinha agarrado o casaco na parede. A parede se solidificou e o zumbi gemeu, preso ali.

Valquíria e Sanguíneo se afastaram, parando longe do alcance dele, e se entreolharam. Por um momento, foi apenas a apreciação de um trabalho bem-feito. Depois se transformou em outra coisa.

Sanguíneo deu um soco e Valquíria se esquivou por baixo, acertando uma cotovelada na barriga do assassino. Este grunhiu e cambaleou para trás, mas agarrou a menina ao cair, jogando-a no chão. Ela rolou e bateu na parede quando o adversário se abaixou para pegar a navalha, mas um movimento do pulso de Valquíria jogou a arma longe, girando. Sanguíneo grunhiu e chutou Valquíria, que estava deitada, mas ela se dobrou ao redor da perna dele e devolveu o chute, atingindo a lateral do joelho. Sanguíneo gritou ao cair. Valquíria se levantou e saltou sobre ele, mas o assassino pegou o tornozelo dela, que caiu novamente em seguida.

Valquíria rolou, se levantou, e Sanguíneo saltou contra ela. A adolescente tentou jogá-lo por sobre o quadril, num golpe de judô, mas ele era grande e pesado demais. Ela se virou para ele, e Sanguíneo agarrou o pescoço da inimiga. O cotovelo dela subiu por entre os braços dele e atingiu-lhe o queixo. A cabeça de Sanguíneo foi jogada para trás, boquiaberta, e ele afrouxou as mãos. Valquíria socou o peito dele com um punhado de sombras e Sanguíneo voou para longe, batendo na parede e caindo no chão. O zumbi preso tentou alcançá-lo, mas estava longe demais. Gemeu de novo.

Valquíria ouviu a Sra. Apostólica gritar e saiu correndo da cozinha.


31

BILLY-RAY

Sanguíneo ficou ali deitado um tempinho, esperando o cérebro voltar a funcionar.

Movendo-se lentamente, ele se levantou. Calculou que duas, talvez três costelas estivessem quebradas, graças à menina e àquele maldito anel de sombras dela. Tentou não pensar muito no fato de que esteve com as mãos no pescoço dela, mas não conseguiu matá-la. Já estava furioso o bastante.

Achou a navalha debaixo do fogão. As costelas espetaram a lateral do corpo quando ele se abaixou para pegá-la, mas, quando segurou a arma de novo, ele se sentiu melhor.

Sanguíneo saiu da cozinha, passando por cima de corpos de zumbis. Ele se assegurou de que a menina e o esqueleto estavam ocupados e correu para os fundos do hotel. Um zumbi apareceu diante dele, mas ele o pressionou contra a parede, que desabou. Sanguíneo empurrou o zumbi mais para dentro do buraco e a parede se solidificou em volta dele. Era isso que restava da magia dele: o equivalente mágico de abrir uma porta, mas sem conseguir passar por ela. O assassino rosnou e seguiu em frente. Por falar em portas...

Anton Frêmito tinha ficado ocupado contendo os zumbis nos fundos do hotel. Ele estava de joelhos, com a cabeça abaixada, exausto, e por todos os lados ao redor dele havia pedaços dos mortos.

— Conseguimos? — perguntou Frêmito, enfraquecido.

Sanguíneo se aproximou sem falar e chutou Frêmito no rosto. O chute ergueu o homem do chão e o lançou para trás. Sanguíneo uivou e agarrou as costelas. Cada movimento que fazia lançava ardentes tiros de dor ricocheteando por dentro do corpo. Cerrando os dentes, Sanguíneo cambaleou até Frêmito, se ajoelhou e procurou a chave.


32

AS COISAS FICAM PIORES

Ardiloso arrancou um grande pedaço de madeira da mesa quebrada e o cravou na cabeça do último zumbi. Olhou para Valquíria, do outro lado da sala. Entre eles jazia um mar de pedaços de corpos. Alguns gemiam e outros estremeciam, mas a maioria dos pedaços estava quieta, sem criar muita confusão.

A Sra. Apostólica estava morta. Ela estava contendo quatro deles quando escorregou nas tripas. Os zumbis caíram em cima dela, mordendo pedaços da mulher enquanto ela lutava e gritava, xingando os monstros em vinte línguas diferentes antes de se calar. A única coisa boa na morte dela foi que não restou o suficiente para que ela virasse zumbi.

Valquíria estava coberta de sangue. Os braços estavam tão cansados que ela não conseguia erguê-los, e as pernas tão exaustas que ela mal conseguia se manter de pé.

— Vou ver se está tudo bem com Anton — anunciou Ardiloso e saiu da sala.

Todos os sofás e cadeiras estavam despedaçados. Não havia mais onde se sentar. Arrastando os pés pesados, Valquíria atravessou a sala de estar, indo em direção à cadeira da recepção. Tudo o que ela queria no mundo era tomar um banho e se deitar. Isso, pensou ela, não seria pedir demais.

Quando a adolescente chegou à recepção, dois outros zumbis entraram correndo. Valquíria recuou e estalou os dedos, invocando uma chama na mão. Estava quase pedindo ajuda, mas parou quando viu quem era.

Vaurien Patife olhou feio para ela, e o zumbi de meia-idade que o acompanhava fez o melhor que pôde para parecer irritado.

— Minha arqui-inimiga — rosnou Patife.

— Eu? — indagou Valquíria, franzindo a testa.

— Você pode ter chacinado meus irmãos selvagens — continuou o morto-vivo —, mas agora vai enfrentar o Matador Supremo, e eu estou novo e melhorado.

— Patife, estou muito cansada.

— Eu não sinto dor — insistiu o sujeito, ignorando a menina —, não sinto pena e não sinto... — hesitou — mal. Eu não vou me sentir mal, quero dizer, quanto a matar você, que é o que vai acontecer logo, muito logo mesmo.

— Você quer, tipo, sair e ensaiar um pouco mais?

— Como ousa falar assim com o Matador Supremo? — guinchou o zumbi de meia-idade numa fúria súbita e dramática.

— Escutem aqui — retrucou a menina —, vocês não querem se envolver nisso. Patife, olhe só o que fizeram com você, pelo amor de Deus. Eles o transformaram num monstro.

— Eu sempre fui um monstro — retrucou Patife —, mas agora, finalmente, minha forma física reflete as trevas que em mim habitam.

— Você está com um fedor horrível.

— É o odor da maldade.

— Parece carne rançosa e ovo podre.

— Maldade! — insistiu Patife.

— Onde eles estão mantendo Tanith e o Professor? — perguntou Valquíria. — Vocês têm uma chance de nos ajudar a acabar com isso. Talvez a gente possa ajudar vocês, talvez exista uma cura para... zumbi.

— Não precisamos de uma cura — afirmou o outro zumbi.

— Isso mesmo — concordou Patife.

— Estamos felizes em ser como somos.

— Felizes com o poder — esclareceu Patife.

— Muito felizes, só nós dois, e também não há nada de errado conosco. É muito natural, na verdade, não há por que ter vergonha de...

— Esmagador — interrompeu Patife. — Cale a boca.

— Tá certo.

— Não vamos trair nosso Mestre — continuou Patife. — Eu me juntei à Brigada dos Vingadores por um motivo, e apenas um...

— Como assim?

— Como assim o quê?

— A Brigada dos Vingadores? É assim que você chama o grupo?

— E qual é o problema com esse nome?

— Nenhum... é ótimo. Só que o Sanguíneo chamou vocês de Clube dos Vingativos, só isso.

— Clube soa ridículo — justificou-se Patife. — Brigada é muito mais legal.

— Na verdade — comentou Esmagador —, uma brigada geralmente consiste em dois a cinco regimentos de exército, então não é lá muito acurado chamar assim.

Patife olhou feio para ele.

— Mas Regimento dos Vingadores não soa tão bem.

— Bem, isso também não seria acurado — argumentou Esmagador —, considerando que um regimento é composto de vários batalhões. Poderia talvez ser o Batalhão dos Vingadores, suponho, mas, na verdade, um batalhão geralmente tem mil soldados, e não há mil pessoas no seu grupo.

— E que tal Esquadrão dos Vingadores? — sugeriu Valquíria.

— Parece uma boa — concordou Esmagador.

— Prefiro Brigada — irritou-se Patife. — E agora perdi o fio da meada.

— Você ia me contar onde fica o cativeiro de Tanith e o Professor — afirmou Valquíria.

— Não — retrucou Patife. — Tenho certeza de que estava a ponto de matar você.

— Nem pense nisso.

— Sonhei com isso e nada mais pelos últimos dois anos.

— Você precisa de sonhos melhores.

— Valquíria Caos, seja bem-vinda à morte.

— Que frase mais idiota.

Patife partiu para cima dela e Valquíria jogou a bola de fogo que esteve segurando pelos últimos minutos. Patife foi imediatamente envolvido em chamas. Ficou correndo de um lado para o outro, gritando.

— Mestre Patife! — berrou Esmagador, horrorizado.

— Achei que ele não sentia dor — lembrou Valquíria, franzindo a testa.

Patife imediatamente parou de gritar e correr. Ele ficou ali parado, em chamas.

— Você está queimando bem até demais — comentou a adolescente. — É uma coisa de zumbi ou algo assim?

— Ele anda usando um monte de cremes de pele ultimamente — considerou Esmagador. — Talvez a mistura seja especialmente inflamável.

Valquíria acenou e o fogo se apagou.

— Essa não é a última vez que você me vê — ameaçou Patife sem entusiasmo, quando se virou e saiu do hotel, deixando um rastro de fumaça para trás. Esmagador deu um rosnado de despedida e rapidamente seguiu o rastro porta afora.

O aroma de carne queimada forçou Valquíria a ir procurar Ardiloso. Ela o encontrou na sala dos fundos, ajudando Frêmito a se levantar. As paredes estavam decoradas com pedaços de zumbis.

— Frêmito fez tudo isso? — exclamou, atordoada com a pura violência do que via. — Sozinho? Sem uma arma?

— Tecnicamente — respondeu Ardiloso. — Anton é uma arma. Ou pelo menos o âmago dele é.

— Como assim, âmago?

— É o meu lado ruim — respondeu Frêmito, falando como se cada palavra fosse dolorosa. — Quando preciso dele, deixo-o sair. Toda vez que faço isso, porém, demoro um pouco mais para me recuperar. — Franziu a testa. — Sanguíneo esteve aqui. Ele veio e... — Frêmito levantou a manga da camisa. Havia um bracelete de metal com uma corrente cortada. — Ele está com a chave.

Valquíria e Ardiloso subiram até o segundo andar. Chegaram ao quarto 24. A porta estava fechada, com a chave na fechadura.

— Ele conseguiu — afirmou Ardiloso.

— Como você sabe? Ele pode estar lá dentro ainda.

Ardiloso balançou a cabeça.

— Ele não botou um dedo dentro daquele quarto. Abriu a porta menos de um centímetro e o Remanescente mais próximo foi sugado pelo Apanhador de Almas. Se ele tivesse entrado, os espíritos o teriam atacado e depois teriam o hotel inteiro. Em seguida, teriam atacado o país. Nós fracassamos.

— E agora?

— Agora temos que encontrar o castelo de Escaravelho antes que Conspícuo conserte o Engenho Desolador. Sei de alguém que poderá nos ajudar... É uma chance mínima, mas não são todas assim, hoje em dia? Ficamos sem opções. — Ardiloso girou a chave até ouvir o estalo da fechadura se travando, depois a retirou. — E vamos dar porrada em qualquer um que se meter no nosso caminho.


33

POSSUÍDO

Escaravelho libertou o Remanescente, e em seguida saiu rapidamente e fechou a porta. Foi ao aposento seguinte, onde Billy-Ray tinha montado o monitor, e observou o Professor Lamento. Podia ver a raiva no rosto do cientista enquanto o Remanescente, quase nada mais que um fragmento de sombra, esvoaçava de canto em canto. O professor sabia o que ia acontecer, mas não chorou nem implorou. Escaravelho respeitou isso.

Uma vez satisfeita a curiosidade, o Remanescente voltou a atenção ao homem velho acorrentado à parede. O Professor não tirou os olhos do Remanescente enquanto este dardejava de um lado para o outro. Aproximou-se de Conspícuo, que se afastou institivamente. A coisa estava brincando com ele.

Disparou de novo e o Professor o xingou. Então atacou. Mergulhou para a boca do homem, que arregalou os olhos em pânico enquanto a sombra forçava a entrada. A garganta do velho inflou, o volume se moveu e desapareceu. Conspícuo Lamento ficou caído, pendurado pelas correntes.

Billy-Ray Sanguíneo balançou a cabeça.

— Odeio essas coisas — murmurou.

Escaravelho voltou à sala e o Professor Lamento olhou para ele.

— Você sabe por que está aqui — afirmou Escaravelho. — Tivemos um trabalho imenso para tirar você daquele quarto onde estava preso. Se você fizer o que queremos, será solto depois. Se não fizer, vamos colocá-lo de volta onde o encontramos e vamos coletar outro de seus semelhantes. Tenho certeza de que o próximo que trouxermos vai adorar a chance de ficar livre. O que você me diz?

— Não confio em você — respondeu Lamento numa voz que escolhia as palavras como um abutre bicando uma carcaça. O Remanescente estava desacostumado a falar em voz alta.

— Muito bem — retrucou Escaravelho. — Também não confio em você. Mas estamos numa situação em que podemos ajudar um ao outro. Como você já deve saber, esperamos que esse velho que você veste como um terno barato tenha todo o conhecimento necessário para o que queremos. Será que tem?

— Ah, tem, sim — confirmou Lamento. — Ah, tenho, sim. E tenho tanta coisa mais.

— Então, temos um acordo?

O velho olhou para ele e um sorriso se abriu como uma ferida infeccionada.

— Temos um acordo, Sr. Escaravelho.


34

O ENCONTRO

Davina Mácula foi até o balcão e explicou ao rapaz com cara de burro como era o sanduíche que ela queria. Depois repetiu o pedido lentamente, usando palavras menores. Ele finalmente concordou e se afastou, e Davina sabia que ele traria o sanduíche errado. Era isso que ela desprezava nos mortais. A incompetência. A ignorância casual. A pura burrice.

Mas ela não poderia comentar tais coisas em voz alta, não como agente do Santuário, e certamente não como Primeira Detetive. Proteger os mortais e mantê-los a salvo dos perigos oferecidos pela comunidade mágica eram algumas das obrigações dela. Mas seria ainda Davina a Primeira Detetive do Santuário, agora que Ardiloso Cortês estava de volta? Em vez de fazer o trabalho dela, que seria localizar o vampiro responsável pelo ataque ao Santuário, Mácula tinha sido relegada a visitar castelos, atendendo ao pedido do detetive esqueleto. Tal tarefa estava tão abaixo do nível de Davina que seria engraçada, se não fosse tão humilhante.

Mácula percebeu o homem parado ao lado dela, mas não olhou para ele.

— Você está atrasado.

— Eu tinha de me assegurar de que você não estava me atraindo para uma armadilha — respondeu o homem enquanto examinava o cardápio acima com olhos dourados. — Perdoe meu ceticismo, mas você já nos rejeitou duas vezes. Por que mudou de ideia?

— Estou vendo as coisas com mais clareza.

O garoto com cara de burro voltou, verificou o pedido e saiu de novo.

— Grêmio não está apto a administrar o Santuário — afirmou Mácula. — Está cometendo erros idiotas. Evitando as responsabilidades.

— Ouvimos falar que ele rebaixou você.

Mácula ficou vermelha, mas manteve a voz estável.

— Alteração temporária de missão — respondeu. — Só mais um dos recentes erros de julgamento dele.

— Você vai nos ajudar, então?

— Sim.

— O Sr. Êxtase tinha sido selecionado para tomar o poder — contou o homem. — A morte dele provocou uma mudança drástica em nossos planos. Espero que você entenda isso.

— Drástica até que ponto? — indagou Mácula.

— Vamos destruir o Santuário. — Foi a resposta. — E assumir o controle do que restar.

O rapaz com cara de burro voltou com o sanduíche. Estava completamente errado, mas Mácula não estava com fome, mesmo. Ela pagou e recebeu o troco, olhando nos olhos do homem ao se virar.

— Por mim está ótimo — afirmou e saiu.


35

MYRON DESGARRADO

A casa tinha um rosto.

As duas janelonas no primeiro andar espiavam o Bentley enquanto este estacionava. A tinta parecia pele ressecada, rachando e descascando, e a porta da frente estava aberta como uma bocarra escancarada. A casa seria assustadora, refletiu Valquíria, se não fossem as persianas semicerradas que davam ao rosto uma cara de sono. Do jeito que estava, ela parecia ter sido flagrada no meio de um bocejo gigante.

— Há muito tempo — começou Ardiloso —, Myron Desgarrado era um traficante de informações, que nem Porcelana é hoje. Era respeitado também, até que um dia tudo acabou para ele.

— O que aconteceu? — perguntou Valquíria.

— O Sr. Êxtase descobriu o nome verdadeiro de Myron. Êxtase e Myron nunca se deram bem, estavam sempre brigando. Uma bela noite, num pub em Belfast, onde deveriam estar planejando como derrotar Malevolente, eles se meteram numa discussão. Eu não estava lá, mas, pelo que ouvi, Myron estava provocando Êxtase, incitando-o a brigar, e Êxtase simplesmente ficou ali sentado até que, muito calmo e numa voz muito baixa, ele simplesmente disse “Laudigan, vá embora”. Myron ficou branco como um fantasma, aparentemente, e foi embora. O Sr. Êxtase simplesmente sorriu.

— Laudigan é o nome verdadeiro dele?

— Sim. Coisas assim se espalham como fogo em capim seco. E, simples assim, a vida de Myron, a vida que ele tinha construído para si mesmo, acabou. Ele negociava informações e agora qualquer um poderia usar o nome dele para controlá-lo, fazê-lo revelar segredos ou mentir para os inimigos. Os amigos o abandonaram. A mulher com quem ele vivia foi embora no dia seguinte. A vida dele desmoronou.

— Isso é horrível.

— Suponho que sim. Mas o grande erro de Myron foi provocar o Sr. Êxtase.

— Mas você continuou amigo dele, não foi? Amigo de Myron? Quando todo mundo o deixou na mão?

— Sinceramente, nunca fui amigo dele de verdade. E, mesmo que tivesse sido, não estava por perto naqueles dias. Estava farto daquilo tudo. Farto da guerra, e só queria que ela acabasse. Quando voltei e ouvi o que tinha acontecido, não havia muito mais que eu pudesse fazer para ajudá-lo, mesmo se quisesse.

— Mas você espera que ele ainda escute rumores, não espera?

— Porcelana ainda está se recuperando, ela pode ter perdido algum rumor importante. Não podemos nos dar ao luxo de esperar que ela se recupere, então, sim, somos obrigados a raspar o fundo do tacho. E se tem algum lugar onde Myron se sente em casa, hoje em dia, é no fundo do tacho.

Os dois saltaram do carro, passaram pelo portão quebrado e seguiram o caminho rachado até a casa. Espiaram pela porta aberta. As paredes úmidas estavam cobertas com papel de parede verde desbotado, descolorido pelo sol em alguns lugares. O chão estava nu, mas as escadas eram acarpetadas. Quem quer que tenha sido o dono da casa na década de 1970 obviamente tinha tentado combinar as escadas com o papel de parede, mas o melhor que conseguiu arranjar foi um carpete feio da cor de bile. Ardiloso bateu com os nós dos dedos no batente da porta e Valquíria ouviu alguém se movendo bem no fundo da casa.

Alguns instantes depois, Myron Desgarrado apareceu. Não era muito alto, não era muito magro e nem era muito bonito. De fato, não era muita coisa nenhuma. Era incrivelmente mediano, de um jeito pálido e com a barba por fazer.

— Ardiloso — cumprimentou. — Há tempos que você não vem emporcalhar minha casa.

— Eu estive fora.

— Fiquei sabendo. Esta deve ser Valquíria Caos, então.

Valquíria sorriu e estendeu a mão. Myron lhe deu as costas.

— Entrem — convidou.

Valquíria detestou o homem imediatamente. Eles o seguiram até a cozinha. A mesa era uma bagunça de caixas de pizza e garrafas de vinho, e a pia estava entulhada de louça. Substâncias que talvez um dia foram comida já tinham ressecado e endurecido nos pratos, e havia mofo escapando pela borda de todas as canecas. O ar fedia, rançoso, e moscas batiam repetidamente nas janelas sujas.

— Gostei muito da decoração — comentou Ardiloso, afinal.

Myron pegou uma lata de cerveja na geladeira e a abriu.

— Eu sempre quis que algum mago inventasse um truque estilo Mary Poppins. Sabe, aquela coisa de estalar os dedos e os pratos se lavam, o chão se esfrega e tudo mais. Eu ia economizar uma grana preta com a faxineira.

Valquíria pareceu incrédula.

— Você tem uma faxineira?

— Eu estava fazendo uma piada. Essa aí não é lá muito esperta, né, Ardiloso?

O rosto de Valquíria abandonou qualquer tentativa de cortesia, assumindo uma expressão de hostilidade clara e óbvia.

— Diferente do seu último parceiro — continuou Myron, sentando à mesa —, aquele que morreu. Como foi que ele morreu mesmo? Não estou lembrando direito.

— Horrivelmente — respondeu Ardiloso.

— Ele morreu gritando seu nome, não foi? É aí que as coisas ficam meio confusas. Quando ele gritava seu nome, estaria ele pedindo socorro ou amaldiçoando você?

— Um pouco de cada, imagino. Myron, não gosto das suas tentativas de insultar minha parceira. Teria saltado ao socorro dela, mas Valquíria é mais do que capaz de lutar as próprias batalhas. Valquíria, você pode responder do jeito que quiser.

— Obrigada — agradeceu Valquíria, com um leve sorriso. — Assim sendo, viemos aqui lhe perguntar algumas coisas, Myron, e é isso que vamos fazer. Não se incomoda se eu chamá-lo de Myron, não é? — O sujeito abriu a boca para dar uma resposta preguiçosa, mas a adolescente o cortou. — Obrigada. Não achei que se importaria. Precisamos ouvir tudo o que você souber a respeito de Dreilho Escaravelho e qualquer possível base de operações.

Myron encarou Valquíria por um longo tempo.

— Temo não poder ajudá-los.

— E eu temo ser forçada a insistir. Eu poderia continuar chamando você de Myron ou poderia usar seu outro nome. Qual era mesmo? O nome que obriga você a fazer tudo que mandarem?

O olhar de Myron endureceu e ele se virou para Ardiloso.

— Você me prometeu que jamais usaria meu verdadeiro nome contra mim.

— Sim, prometi — concordou Ardiloso, cruzando os braços e se encostando na parede. — E não usarei. Mas, infelizmente, você foi grosseiro com a minha parceira e amiga, e ela não lhe prometeu nada.

Valquíria puxou uma cadeira, limpou o assento e se sentou.

— Eu li uma vez — começou a adolescente — que é possível proteger o próprio nome verdadeiro. É verdade, não é? Existe uma forma de selá-lo de tal modo que não possa ser usado contra si mesmo? Por que você não fez isso?

Myron lambeu os lábios.

— Era tarde demais — respondeu, constrangido. — Só funciona se você selar o nome antes que seja usado.

— Entendo. — Valquíria concordou com um aceno de cabeça. — Mas você nem sabia qual era o nome, sabia? E o Sr. Êxtase sabia. E você o irritou. Eu não consigo imaginar como, considerando como você é tão simpático e educado, e uma companhia tão divertida.

Myron pousou a cerveja na mesa entulhada e olhou feio para eles.

— Vocês querem saber se ouvi alguma coisa? Eu ouvi coisas sobre vocês. Vocês dois. Os Sensitivos estão falando e estão dizendo que alguma abominação chamada Trevária vai matar vocês. Pessoalmente, mal posso esperar. Ardiloso, nós nunca gostamos um do outro e, garota, eu certamente não fui com a sua cara também. Se vocês querem saber, o quanto antes a abominação acabar com vocês, melhor.

— Ouvimos falar nessas visões — respondeu Ardiloso, calmamente. — Mas eu não ficaria tão feliz com elas, se fosse você. Travária vai nos matar, sim, mas também matará todo mundo no processo. Você deve ter perdido essa parte.

Myron esfregou a barba por fazer no queixo e não respondeu.

— Queremos saber onde Escaravelho está escondido — afirmou Valquíria.

— Eu não sei onde. Ninguém sabe. Aquele bando de psicopatas que anda com ele não deixa nada escapar aos amigos porque eles não têm amigo nenhum. Ninguém sabe onde eles estão.

— Sabemos que estão num castelo em algum lugar — informou Valquíria.

— Bem, por que vocês não disseram isso antes? — ralhou Myron. — Não prestei muita atenção a esse fato quando ouvi, mas parece que há muita atividade ao redor do velho castelo de Serpênteo ultimamente.

— O castelo de Serpênteo foi selado — disse Ardiloso.

— Bem, então eles encontraram algum jeito de quebrar o selo.

Ardiloso se levantou e pôs o chapéu. Tirou um rolo de dinheiro do bolso do paletó e deixou-o em cima de um balde de frango frito virado de cabeça para baixo na mesa.

— Obrigado pela ajuda.

— Não há de quê — grunhiu Myron.

Ardiloso inclinou o chapéu e saiu. Valquíria se levantou para segui-lo.

— Você está andando com um pessoal interessante — comentou Myron, e a adolescente olhou para ele. — Está aprendendo alguns maus hábitos também. Você é bem sarcástica, né?

— Suponho que sim.

— Só um aviso, então. Não há muita gente por aí que confie em mim, mas há ainda menos gente confiando no seu amigo. Só uma coisinha para você meditar.

Ele deu um gole na lata e Valquíria foi para o carro.


36

HORA DE BRINCAR

Escaravelho e Billy-Ray inspecionaram a bomba sobre a mesa.

— Foi bem rápido — murmurou Escaravelho. — Tínhamos toda a matéria-prima pronta para você, mas, mesmo assim, como você conseguiu tão rápido?

— Este aqui tem segredos — afirmou o Professor Lamento. As correntes que o prendiam ao outro lado da sala não estavam afixadas a nada, mas bastavam para deixá-lo lento. — Quem se importa? Eu fiz o serviço, não fiz? Não fiz o serviço? Agora o serviço está feito. Agora vocês me libertam, não?

— Você acrescentou as especificações que eu pedi?

— Sim, sim, sim — respondeu o professor. — Não foi problema, não para alguém como eu. Esta mente é uma coisa maravilhosa. Ficaria triste em abandoná-la, se o corpo não fosse tão decrépito.

Escaravelho não sabia lá muita coisa sobre Engenhos Desoladores, mas tudo parecia estar no lugar certo.

— Não vamos libertá-lo — revelou. — Você é muito moleque. Seria capaz de ir até nossos inimigos e contar-lhes onde estamos.

O sorriso desapareceu lentamente do rosto de Lamento.

— Seus inimigos são meus inimigos. Meus inimigos estão por toda parte. Todos são meus inimigos. Me solte agora!

— Não vai rolar — respondeu Billy-Ray. — Mas a gente gostou muito mesmo do trabalho que você fez. Se nosso plano der certo, a gente solta você depois.

— Vocês disseram agora!

— Acalme-se, Professor. Entendemos como o senhor deve estar aborrecido, por isso temos um presente para o senhor.

Lamento inclinou a cabeça, curioso.

— Um presente?

— Um lindo presente — repetiu Billy-Ray, sorrindo. — Pra você brincar até cansar.

A porta se abriu e, ao som das correntes, Tanith Low foi trazida.

Lamento bateu palmas e riu.


37

O SEGREDO SOMBRIO DE PORCELANA

Na parede sobre a cama havia um símbolo pintado que brilhava gentilmente enquanto o poder era drenado para o corpo de Porcelana. Ela estava deitada de olhos fechados, com as mãos sobre a barriga e a mente sintonizada no símbolo, manipulando as propriedades dele. O fluir da magia era furioso como um mar em tempestade, porém nada disso era visível de fora. O mar furioso parecia ser um plácido lago, sem sequer uma marola na superfície, exatamente como Porcelana queria.

O símbolo se apagou e os olhos da mulher se abriram. Ela se sentou com elegância, sem pressa. Enquanto se vestia, Porcelana se olhou no espelho. Parecia pálida e fraca. O corpo ainda estava cansado, a magia ainda exaurida. Não estava forte o suficiente para fazer o que era necessário, mas tinha de fazê-lo.

Porcelana saiu do quarto, pegou a arma na gaveta da escrivaninha e guardou-a na bolsa. Não podia correr o risco de ir num dos próprios carros, então chamou um táxi e teve que aguentar 45 minutos ouvindo o taxista lhe dizer o quanto a amava até chegar ao destino. O taxista chorou ao ir embora.

Porcelana saiu da calçada rachada e seguiu uma estreita trilha entre uma cerca alta apodrecida e um muro igualmente alto em ruínas. A trilha estava coberta de mato e capim e levava a uma casinha escondida de olhos curiosos e carros passando. A mulher bateu à porta e um homenzinho num terno de três peças atendeu. O rosto dele era um conjunto de desapontamentos, de desejada coesão, embora nunca alcançada. O nome dele era Depravo, e os olhos bulbosos se arregalaram tanto que praticamente irromperam das órbitas e rolaram rosto abaixo.

— Porcelana Tristeza — exclamou em voz baixa. Ela havia esquecido como a voz dele era nasalada. — Sabia que este dia ia chegar. Sabia. Você veio me matar, não veio?

— E por que eu faria uma coisa dessas? — indagou Porcelana. Ela não sorriu para ele. O sujeito não era digno de um sorriso dela. — Posso entrar?

— Não fiz nada de errado — afirmou o homenzinho rapidamente.

— Isso deve ser uma ótima mudança. Saia da frente, por favor.

Depravo obedeceu e Porcelana entrou. A casa tinha cem anos de idade e a mulher a conhecia bem, pois, após o fim da construção, a casa foi convertida numa igreja para os seguidores dos Sem-Rosto. A existência daquele lugar era um dos segredos mais bem-guardados da cidade, principalmente porque o homem que a administrava, Depravo, era um idiota ineficiente que não representava ameaça a ninguém. As paredes estavam decoradas com pinturas e ilustrações dos Deuses das Trevas, e na sala principal havia um altar e um carpete bem gasto, onde um punhado de discípulos desesperados tinham se ajoelhado e adorado e rezado pelo fim da humanidade.

— Onde ele está? — indagou Porcelana, folheando o livro no altar. Era uma edição especialmente surrada do Evangelho dos Sem-Rosto, um livro imbecil escrito por um imbecil numa tentativa de racionalizar o comportamento daquela corja.

Depravo balançou a cabeça.

— Não sei de quem você está falando, e, mesmo se soubesse, não lhe diria. Você é uma traidora e uma blasfemadora e uma herege.

— Aparentemente, sou muitas coisas. Estou procurando Remus Crucial.

Depravo assumiu uma atitude que provavelmente achava que pareceria indiferente.

— Não sei quem é essa pessoa. Muita coisa mudou depois que você embarcou nessa trilha de blasfêmias, Srta. Tristeza. Somos uma religião respeitável agora, e temos que ser tratados com respeito. Estamos cansados da perseguição que sofremos. Temos direitos agora, sabia?

— Não, vocês não têm.

— Bom, nós deveríamos ter. Não machucamos ninguém e não apoiamos o uso da violência contra ninguém.

— Então, quando os Sem-Rosto apareceram para uma visitinha onze meses atrás e mataram todas aquelas pessoas...

— Isso é diferente — argumentou Depravo. — Aquela gente merecia.

— Você está me irritando, Depravo, então é melhor me responder. Onde está Remus Crucial?

Depravo permaneceu desafiador por mais dois ou três segundos e murchou.

— Não sei — respondeu. — Ele apareceu aqui algumas vezes, mas sem regularidade. Gosta de se sentar por aí e ficar repetindo clichês sobre como os Sem-Rosto vão esmagar a humanidade e transformar o mundo em cinzas, essas coisas. Ele não entende a beleza do que eles fazem, está interessado apenas no resultado final. Pensei que falar com ele seria uma revelação, afinal a mente dele foi tocada pelos Deuses das Trevas. Mas não. Ele não contém nenhuma descoberta, nenhuma verdade espantosa. Está simplesmente... louco.

— Preciso encontrá-lo.

— Não posso ajudá-la. Não sei onde ele vive. Não sei nem com quem ele anda. Pelo que pude perceber, eu sou a única pessoa com quem ele fala e, mesmo assim, a maior parte do que ele diz não faz sentido.

— Isso deve fazer você questionar sua religião.

Depravo olhou feio.

— Nossos deuses vão recompensar nossa fé quando retornarem e varrerem os hereges da face da terra.

Ele não sabia mais nada de útil, e, mesmo se soubesse, ela não teria a força necessária para arrancar dele. Porcelana o deixou ao lado do altar e saiu. Ao chegar à trilha, percebeu que um homem vinha da rua. Ele estava com a cabeça baixa e as mãos nos bolsos e andava apressado. Chegou a dez passos de Porcelana quando olhou para cima.

— Olá, Remus — cumprimentou ela.

Ele não saiu correndo como ela esperava. Apenas ficou ali parado, olhando para ela, como um cervo diante dos faróis de um carro, um ladrão pego no flagra.

— Você foi um menino muito mau — afirmou ela. — Tentou matar Valquíria Caos, e eu gosto de Valquíria. Você se meteu com Escaravelho e os planos dele de mudar as coisas, e eu gosto das coisas como elas são. Não gosto de mudanças, não quando não estou preparada para elas.

— Eu sei sobre você — retrucou Crucial com a voz tensa.

— Você não devia ter se envolvido nisso. Devia ter permanecido escondido e o mais longe possível de mim.

— Eu sei seu segredo — respondeu ele, apressado. — E agora você está com medo. Medo do que ele fará a você quando descobrir.

— Você contou meu segredo a mais alguém, Remus?

— Todo mundo.

Porcelana sorriu.

— Mas que mentira. Acho que não contou a ninguém.

Ele balançou a cabeça.

— Contei. Contei, sim. Você não sabe.

A mulher pôs a mão na bolsa.

— Os últimos onze meses foram muito difíceis para você, não foram? Não tinha aonde ir, quem pudesse ajudá-lo. Nenhum amigo. Nenhum colega. Só você e sua cabecinha confusa. Você só precisava de um único momento de lucidez... mas não conseguiu, não foi?

Crucial lambeu os lábios.

— Todo mundo sabe o que você fez. Eu contei. Estão todos falando em você. Todos sussurrando. Porcelana Tristeza, Porcelana Tristeza, foi ela, estão dizendo. Foi ela. Nefasto Serpênteo matou Ardiloso Cortês, mas Porcelana Tristeza atraiu a família dele para a armadilha.

Porcelana deu um passo à frente. Crucial estalou os dedos e uma chama surgiu na mão dele. Porcelana puxou o gatilho. A bala arruinou uma bolsa em perfeito estado e destroçou o peito de Remus Crucial. Ele caiu para trás, com as chamas extintas, e já estava morto quando Porcelana passou por cima do corpo e foi embora.


38

O CASTELO

Na última vez em que Valquíria viu aquele castelo, ela estava correndo dele. Tinham acabado de resgatar Ardiloso Cortês e os Homens-Ocos de Serpênteo se aproximavam, vindos de todas as direções.

— Eu resgato você toda hora — murmurou ela.

— O que foi? — indagou Ardiloso, olhando para trás.

— Nada, não.

Todas as entradas do térreo tinham sido emparedadas com tijolos, então eles entraram por uma janela do primeiro andar e desceram. Estava frio e silencioso. Ardiloso desceu pelas escadas de pedra primeiro, seguido por Fletcher e Anton Frêmito. Valquíria e Medonho fechavam a retaguarda.

As escadas para o porão estavam cimentadas.

— Espalhem-se — ordenou Ardiloso. — Estamos procurando sinais de atividade recente.

Eles se dividiram. Valquíria foi para os fundos do castelo. Aqui e ali havia móveis velhos, cobertos de pó, solitários em salões vazios. A adolescente entrou numa sala de estar com uma lareira ornamentada, se virou para sair e parou. Percebeu como a luz marcava os sulcos escavados no chão diante da lareira. Abaixou-se junto a eles, passando os dedos nas bordas gastas. Valquíria não era especialista, mas calculou que aqueles sulcos rasos que se curvavam num padrão uniforme já estavam ali desde a construção do castelo. Alguma coisa pesada tinha se movido repetidamente naquela área ao longo dos anos... Mas teria isso acontecido recentemente?

Valquíria subiu na base da lareira e passou as mãos sobre a cornija. O canto direito era o único local livre de poeira, e os dedos deslizaram levemente sobre a pedra. Sentiu alguma coisa ceder e a lareira girou silenciosamente, carregando a menina junto para o outro lado da parede, para um corredor frio. A lareira completou a rotação com um clique suave. Valquíria não se moveu. O corredor era escuro e feito de pedra, iluminado por tochas montadas nas paredes. À esquerda havia uma grossa corrente que subia de um vão enorme do chão até um grande buraco no teto, como se fosse parte de um sistema de roldanas.

E, a não mais do que dois metros de distância, de costas para ela, havia um Homem-Oco.

A luz da tocha tremeluzia na pele de papel, marcando os pontos de costura e a tensão onde os braços eram puxados para baixo pelos punhos pesados.

Valquíria tentou acionar o botão novamente, mas o mecanismo estava travado. A cabeça do Homem-Oco estremeceu como se ele tivesse ouvido alguma coisa. Valquíria segurou a corrente com as duas mãos. A corrente a ergueu e a carregou pelo buraco no teto. Quando a menina olhou para baixo, o Homem-Oco se virou, tarde demais para vê-la.

Ela passou pelo espaço vazio e olhou em volta antes de largar as correntes. Pegou o telefone e verificou a recepção. O sinal estava bloqueado. Já esperava que isso fosse acontecer. Correu pelo corredor, se mantendo junto à parede, fazendo o possível para não deixar a própria sombra denunciar sua posição. Chegou a uma interseção, espiou e viu Jack Saltador.

Valquíria recuou e se abaixou. Em três passos ele passou por ela, mas não olhou para baixo. Quando conseguiu pensar de novo, a menina contou até dez e depois de novo até cinco antes de se levantar. Espiou, e o monstro tinha sumido, tendo virado em outro corredor. Valquíria se esgueirou na direção oposta, se afastando o máximo possível de Jack. Ela acreditava que conseguiria correr dos Homens-Ocos, se fosse necessário, mas dele? Não daria três passos.

Ouviu um homem falando. Uma risada nada agradável. Quanto mais se esgueirava, mais clara ficava a voz. Ainda não dava para distinguir as palavras. O som ficou mais claro quando a menina passou por uma porta, mas, mesmo colocando a orelha na porta, não dava para entender direito. Valquíria franziu a testa e deu um passo para trás, seguindo o som, baixando o olhar. No chão ao lado da porta havia uma abertura. Um duto de ventilação. Ouviu a voz de Conspícuo, mas ainda não dava para saber o que era dito.

Valquíria ficou de quatro e espiou pelo duto. Estava escuro. Muito escuro. Ela se deitou e rastejou para dentro dele. Deixou os olhos se ajustarem, sentindo a poeira grossa sob as mãos. Avançou apoiada nos cotovelos, batendo a cabeça no teto e trincando os dentes para conter a dor. Agora era possível distinguir as palavras.

— ...Muito legal da parte deles me dar um brinquedo, não acha? Tanta gentileza. Eles não querem que eu fique entediado, sabe?

Valquíria avançou e sentiu uma teia de aranha se desfazendo contra o rosto. Com um frenesi controlado, ela se limpou, tentando não pensar em aranhas andando pelo seu cabelo. Mais à frente havia uma junta, uma pausa na escuridão, onde o duto de ventilação se abria para a sala de onde vinha a voz. Valquíria rastejou, encostou o rosto na pedra fria e espiou.

Tanith não estava acorrentada ou agrilhoada a uma parede, como Valquíria tinha imaginado. Em vez disso, estava sentada numa poltrona, com as mãos abertas sobre os descansos para braços e as pernas cruzadas. Um velho estava sentado diante dela numa poltrona idêntica. O cabelo branco tinha tufos levantados e ela estava com olheiras profundas. A menina levou um momento para reconhecer Conspícuo.

Ao lado de cada poltrona havia uma mesinha. Na de Tanith tinha uma xícara num pires, na de Conspícuo uma chaleira e um pote de cubos de açúcar. A sala era de pedra, mas as poltronas ficavam sobre um tapete e havia tapeçarias esfarrapadas nas paredes. Havia um abajur sem a cúpula no canto distante da sala. A lâmpada estava quebrada. Era tudo uma tentativa frustrada de criar calor e normalidade num lugar medonho e bizarro, e só tornava a situação mais perturbadora.

Conspícuo tomou chá e recolocou a xícara no pires com um plink delicado.

O rosto de Tanith estava tenso e suado. Os olhos não tinham foco e o corpo estava rijo. Valquíria procurou por um grilhão ou algum sinal de que os poderes de Tanith estivessem sendo contidos, mas não conseguiu ver nada.

Havia uma pequena poça de sangue seco ao lado do braço da poltrona mais próxima do duto. O olhar de Valquíria seguiu o rastro de sangue, e percebeu pela primeira vez as mãos de Tanith. À primeira vista, não havia nada de extraordinário, mas era como se alguém tivesse pegado um pano e as limpado rapidamente, sem cuidado, não se dando o trabalho de remover todo o sangue.

Valquíria viu como a luz brilhava em algo metálico e percebeu, com ânsia de vômito, que as mãos de Tanith tinham sido pregadas nos braços da poltrona.

A menina quis chorar e os olhos se encheram de lágrimas. Viu mais dois pregos, grossos, que pareciam ser longos e velhos, cravados nas clavículas de Tanith para mantê-la ereta na poltrona. Um quinto prego entrava na perna direita, logo acima do joelho, atravessando também a perna esquerda e prendendo-as juntas.

Conspícuo estava falando outra vez, mas Valquíria não escutava as palavras. Olhava fixamente para a amiga. Não conseguia respirar. Subitamente sentia calor dentro do duto, e estava apertado ali, apertado demais. Ela tinha que sair. Tinha que recuar por onde viera, derrubar a porta e arrancar o Remanescente de dentro de Conspícuo. Era a única coisa a ser feita. Era a única coisa que importava.

Valquíria tentou recuar, com a raiva a todo vapor. Estava borbulhando, fervendo, subindo pela garganta. Mas não conseguiu se mover. Não dava para recuar. O pânico se misturou à raiva e a alimentou, e uma vozinha em algum lugar na mente de Valquíria disse para ela se acalmar, mas ela não ouviu.

A adolescente avançou, rastejando rapidamente, grunhindo, não se importando se aquela coisa que não era Conspícuo Lamento iria ouvi-la. Então não havia mais chão e Valquíria estava deslizando para baixo. Xingou ao cair, tentando agarrar um duto transversal, mas conseguiu apenas pegar um ninho de ratos. Os ratos guincharam debaixo e ao lado dela, e a menina chacoalhou a mão, tentando se livrar deles. A cabeça de Valquíria bateu em uma pedra. O corpo girou.

Abaixo, luz e calor.

Desabou pela abertura e caiu por um metro. Havia outra abertura logo abaixo e Valquíria abriu os braços e as pernas instintivamente, se prendendo acima da abertura e evitando a queda para a sala abaixo.

Valquíria olhou e viu uma grande mesa de madeira, com um Homem-Oco semicheio deitado.

Outro Homem-Oco surgiu, carregando um balde de lavagem e algo que parecia ser uma entranha. Ele não olhou para cima, e ela não fez nenhum barulho. O monstro foi até a fornalha embutida na parede, a única fonte de luz no aposento, e abriu a grelha acima das chamas. Sem se importar com o fato de ter derramado um pouco, o Homem-Oco despejou a lavagem e as tripas na fornalha. Os músculos de Valquíria começavam a doer.

O Homem-Oco pegou um enorme fole com mãos pesadas e desajeitadas e enfiou a ponta no buraco que havia no topo da fornalha. Separou os cabos, sugando os gases nojentos, e voltou à mesa. Enfiou a ponta do fole na pele do outro monstro e juntou os cabos, inflando o colega um pouco mais. Pegou uma agulha e costurou, para evitar que os gases escapassem.

Os braços de Valquíria estavam trêmulos. As pernas não iam traí-la, mas os braços estavam quase cedendo. Olhou de volta para baixo e viu que o Homem-Oco pegava o fole e voltava para a fornalha. Sentiu algo pesado se mexendo no cabelo e se retraiu, e os braços cederam. Caiu pelo buraco, sobre a mesa. Ouviu o fole cair e se deitou de barriga para cima, segurando a respiração. O Homem-Oco parcialmente inflado jazia ao lado dela, escondendo-a. Não sabia se a visão da criatura era boa, mas nesta penumbra ela esperava que não fosse grande coisa.

Valquíria cerrou os dentes ao sentir o rato novamente em seu cabelo. Cada célula do corpo queria arrancar o bicho, mas a adolescente permaneceu imóvel, mesmo quando o animal subiu em seu peito. Ficou ali por um momento e saltou para o Homem-Oco. Valquíria ouviu o rato pular no chão e fugir. Um segundo depois, o barulho do fole sendo apanhado. Voltou a respirar e se levantou um pouquinho, só o bastante para se assegurar de que não estava enganada.

E então o Homem-Oco ao lado virou a cabeça meio vazia para ela.


39

HOMEM-OCO

Valquíria agarrou o grosso fio que mantinha o Homem-Oco no lugar e puxou. A costura se desfez e o gás soprou no rosto dela enquanto a pele se esvaziava. Valquíria sentiu o gosto do fedor e se engasgou ao rolar da mesa. O gás fez a bile subir pela garganta e Valquíria vomitou, com olhos ardidos e lacrimejantes.

Sentiu mãos ásperas a agarrando e foi atirada contra a parede. Um punho lhe acertou as costelas e Valquíria gritou. Algo bateu na lateral da cabeça e a menina cambaleou, tropeçando numa cadeira e caindo dolorosamente no chão.

Valquíria não conseguia abrir os olhos. Tentou fugir engatinhando, mas foi agarrada pelo tornozelo e puxada para trás. Bateu o queixo no chão e sentiu gosto de sangue. Virou-se, dando um chute à altura do joelho. A bota acertou a perna macia do Homem-Oco, mas não havia joelho para se quebrar. O monstro soltou o tornozelo dela e a menina se encolheu, esperando nas trevas o golpe seguinte. A pancada veio por entre os joelhos erguidos e abaixo dos cotovelos, atingindo-lhe a barriga e deixando-a sem fôlego. Valquíria tentou rolar, mas as mãos a agarraram novamente, aqueles dedos ásperos e desajeitados, e a menina foi posta de pé e empurrada para a frente. Valquíria bateu o quadril na quina da mesa e se dobrou, caindo de joelhos.

Abriu os olhos, apenas uma fresta. Só conseguia ver um lamaçal borrado. Fechou os olhos. Não conseguia respirar. Ouviu o sussurro da pele de papel vindo de trás e se atirou na direção dele. Colidiu com o Homem-Oco, mas tinha calculado mal o ângulo e sentiu o monstro cambalear, mas ele não caiu. Baixou a cabeça ao rolar e parou de cócoras, pois os músculos da barriga ainda não a deixavam se endireitar. A adolescente sentiu lágrimas no rosto e novamente sentiu gosto de sangue e vômito.

Valquíria se deslocou abaixada, se afastando dos passos do Homem-Oco. Manteve as mãos estendidas diante de si e se concentrou em sentir o ar contra a pele. Imediatamente tateou as correntes e o calor da fornalha se espalhando pela sala e subindo pelo duto por onde ela havia caído. Pisou em alguma coisa e quase tropeçou. O fole, talvez. A fornalha estava atrás dela, uma onda de calor, desconfortável de sentir.

O ar mudou de direção e Valquíria sentiu os movimentos do Homem-Oco, sentiu a criatura se deslocando pelas correntes de ar abafado, desfazendo-as ao avançar. Estava se aproximando, nada sutil, vindo direto contra ela, e a menina usou o ar, puxando-o para si e empurrando com força. A onda acertou o Homem-Oco e o fez recuar, para fora do alcance sensorial de Valquíria. Ela ouviu o monstro se chocar contra a mesa.

Valquíria esfregou os olhos antes de tentar abri-los. Eles ainda ardiam, mas era suportável. As lágrimas borravam tudo. Limpou o rosto com a manga e piscou várias vezes. O Homem-Oco entrou em foco. Estava no chão, se arrastando na direção da menina, com a própria agulha cravada na base das costas. As pernas já estavam semivazias, com o gás verde escapando lentamente pelo furo.

Valquíria deu um passo lateral para não ser agarrada. Foi até a cadeira, endireitou-a e se sentou com um grunhido. Concentrou-se em controlar a própria respiração enquanto observava o Homem-Oco mudar de direção e se arrastar até ela. Quando os olhos de Valquíria finalmente pararam de lacrimejar e ela conseguiu respirar fundo novamente, os dedos vazios e estendidos do Homem-Oco estavam a centímetros do pé dela. Tinha parado de se mover.

A adolescente se levantou e cuspiu, tentando se livrar do gosto horrível na boca. Foi até a porta, abriu, se assegurou de que não havia ninguém do lado de fora e saiu discretamente. Enquanto corria pelo corredor lambido de chamas, Valquíria sentiu dor, mas ignorou-a, da mesma forma que ignorou a parte dela que queria se sentar e chorar. Ela se concentrou na outra parte, a parte exultante de triunfo. Mais uma luta que ela havia vencido. Mais uma batalha na qual ela não tinha morrido.

Chegou ao corredor principal e encontrou as escadas para o andar de cima. Escutou por alguns segundos, se assegurou de que ninguém a surpreenderia e subiu. Os degraus se encaracolavam ao redor de uma grossa coluna de pedra, como uma gavinha ao redor de uma muda. Valquíria chegou ao topo e avançou numa direção que avaliou ser sul. Chegou a uma esquina e Billy-Ray Sanguíneo apareceu.

Ele olhou para a menina por um momento, um tanto surpreso, como se não pudesse bem identificá-la, e aquele sorriso de dentes brancos apareceu. Só que aí ela já estava correndo na direção oposta. Valquíria ouviu a risada dele enquanto se atropelava por uma porta adentro.

Havia gritos agora, vindos de todos os lados, os ecos ressoando nas pedras. Valquíria alcançou mais uma escadaria para cima e a escalou três degraus de cada vez. Havia dois Homens-Ocos no topo. Eles tentaram agarrá-la, mas a menina se esquivou e passou no meio deles. Valquíria chegou a um corredor com uma janela no fim e acelerou, ouvindo alguém chegando por trás. Além da janela havia um salão, cuja luz se derramava nas trevas. Tapeçarias cobriam as paredes do salão. Ela viu um candelabro. Era o salão principal do castelo. O que queria dizer que aquilo não era uma janela, e sim um espelho de dois lados.

Valquíria saltou, se encolhendo numa bola ao atingir o vidro. O mundo se fragmentou num estrondo que preencheu a mente da adolescente. O salão principal era mais baixo que o corredor, e a menina caiu rodeada de cacos. Atingiu o chão e rolou, esmagando o vidro sob si. Teve um relance de Ardiloso e então o esqueleto estava ao lado dela, ajudando-a a se levantar. Medonho, Fletcher e Frêmito chegavam correndo.

Alguém pigarreou. Alto. Todos olharam para o espelho quebrado. Billy-Ray Sanguíneo estava no corredor acima, com as mãos nos bolsos.

— E aí, pessoas, como vocês estão? — indagou. — A gente tinha que bater um papo mais tarde, falar dos velhos tempos e rir um pouco. Só que agora eu não posso, infelizmente. Tô meio sem tempo, considerando esse nosso plano secreto do mal e tal.

— Desça aqui, Sanguíneo — comandou Ardiloso.

— Pra você me prender?

— Não — respondeu Medonho. — Para nós lhe darmos uma surra dos infernos.

Um idoso surgiu ao lado de Sanguíneo, e Valquíria percebeu que era Escaravelho.

— Temos visitas? — perguntou Escaravelho.

— Sim, senhor, papai — confirmou Sanguíneo. — Mas a menina quebrou um espelho.

— Ah, sim, não há problema. — Escaravelho sorriu. — Não acredito naquela conversa fiada de “sete anos de azar”. Diabos, mesmo que acreditasse, não faria diferença... Eles todos estarão mortos amanhã, mesmo. Olá, Detetive Cortês. Há tempos que não nos vemos.

— Queremos que vocês nos devolvam Tanith Low e Conspícuo Lamento — exigiu Ardiloso. — E depois queremos que vocês todos se entreguem.

Escaravelho riu e Sanguíneo balançou a cabeça, divertido.

— Gosto de vocês — afirmou Sanguíneo. — Gosto mesmo. Querem saber por quê? Porque vocês são engraçados. Vocês têm caras esquisitas e dizem todas essas bobagens. É divertido, viu?

— Vocês agem como se não estivessem em uma terrível inferioridade numérica — disse Escaravelho. — Mesmo que estejam. Agem como se tivessem alguma chance contra todos os camaradas que temos aqui e todos os Homens-Ocos que andamos costurando, mesmo que não tenham. É impressionante.

Sanguíneo concordou com a cabeça.

— Isso tudo, e eu não me importo em dizer porque sei que não sairá desta sala, é muito lindo.

Eles estavam encenando um dueto psicopata, pai e filho insanos. Mas, mesmo assim, estavam falando demais. Ardiloso também percebeu isso.

— Então vocês não vão se render? — indagou.

— Na última vez que me prendeu — respondeu Escaravelho, sem mais traço algum de humor na voz —, você me trancou sem julgamento. Se não se importa, não cometerei mais os mesmos erros. Não haverá celas de prisão desta vez. Nem armações. Haverá justiça.

— Por isso você obrigou o Professor Lamento a consertar o Engenho Desolador? Acha que acioná-lo será justiça?

— Depende de quem eu matar, não é mesmo?

Ardiloso inclinou a cabeça.

— E o que vai nos impedir de acabar com todos os seus planos agora e lhes dar uma bela surra no processo?

Sanguíneo franziu a testa.

— Bem, a gente tá aqui tão alto... — esclareceu ele. — Ah, sim, e a gente tem reforços.

— Vejam bem — comentou Escaravelho. — Nós estávamos planejando usar os Homens-Ocos no nosso grand finale, mas, considerando que vocês encontraram nossa base, teremos de improvisar um pouco. Então vamos cair fora agora e, sem dúvida, nos veremos de novo para, vocês sabem, bater uns nos outros ou seja lá o que for que pessoas como nós fazem hoje em dia.

— A gente ainda bate uns nos outros — confirmou Sanguíneo.

— Bem, como vocês podem ver, os clássicos nunca morrem.

— Vocês podem tentar deter a gente — disse Sanguíneo. — Mas tô com a impressão de que estarão um pouquinho ocupados enfrentando o exército de Homens-Ocos que está a ponto de atacar.

Nesse momento, uma das paredes se abriu e um único Homem-Oco cambaleou e saiu. Sanguíneo estreitou os lábios. Um momento se passou.

— Constrangedor — murmurou.

Outra parede se abriu e Homens-Ocos foram despejados, dúzias deles, e Sanguíneo bateu palmas, deliciado, em seguida desaparecendo com o pai.

Valquíria, Ardiloso e Medonho estalaram os dedos, lançando bolas de fogo. As chamas incendiavam a pele dos Homens-Ocos, levando alguns segundos para penetrar, e inflamavam os gases internos. Ainda assim, eles continuavam avançando, dezenas deles, enxameando o salão.

— Os Talhadores estão a caminho — informou Ardiloso. — Mas não temos tempo para isso. Anton, você precisa destruí-los rápido.

Frêmito concordou com a cabeça. Fechou os olhos e cerrou os punhos. Finalmente, uma cabeça saiu do peito dele.

Valquíria recuou, chocada. A cabeça era nebulosa, como um fantasma, e era a exata cabeça de Frêmito, com algumas diferenças. O cabelo era mais comprido e os dentes eram afiados. Rosnava enquanto saía. Os ombros apareceram em seguida, depois os braços, por fim as mãos com garras. Vestia a mesma camisa e jaqueta preta que o verdadeiro Frêmito. Por um momento a “imagem” ficou onde estava e abriu os olhos, que eram pequenos e negros. A coisa viu os Homens-Ocos, contorceu o rosto de tanto esforço e atacou, deixando para trás um rastro de luz e sombras que ia do corpo dela até o peito de Frêmito. Voou até as criaturas mais próximas e golpeou, com garras sólidas o bastante para rasgar a pele que parecia papel.

A coisa seguiu adiante, esticando o rastro que a conectava a Frêmito, e uivava ao se mover, rasgando e cortando Homens-Ocos quando eles tentavam atacar. Girava, se enrolava, mergulhava e rodopiava, com o rastro passando por cima e por baixo. Esse Frêmito fantasmagórico, esse âmago, era incansável. Com cada ataque ele parecia mais feroz, e não estava mais tão enevoado ou transparente. Parecia demoníaco. Parecia maléfico.

O Frêmito real grunhiu. Valquíria viu o suor no rosto dele, viu a tensão nos músculos da nuca. O rastro que lhe fluía do peito ficou esticado e tenso, e o âmago urrou de raiva ao ser recolhido. Como um peixe fisgado, ele se retorcia e se debatia, mas não podia fazer nada para evitar ser levado de volta ao peito de Frêmito. A última parte que Valquíria viu dele foi uma garra estendida.

Frêmito cambaleou para trás, pálido e ofegante. Os Homens-Ocos sumiram, não restando deles nada além de retalhos e um fedor que fez os olhos de Valquíria arderem novamente.

— Você está bem? — perguntou Valquíria.

— Preciso de alguns minutos — respondeu Frêmito baixinho. — Para recuperar minhas forças.

— O que foi aquilo? — indagou Fletcher.

— Era o meu âmago — explicou. — Minha raiva, meu ódio, minha determinação. É a parte mais forte de mim, mas precisa ser cuidadosamente controlada. Âmagos não podem passar muito tempo fora do corpo do hospedeiro.

— Por que não?

Frêmito se virou para eles.

— Ele tomaria o controle, e eu seria reduzido a uma coisa que viveria dentro dele.

— Fletcher — chamou Ardiloso. — Leve Anton para fora. Espere por Mácula e os Talhadores. Diga-lhes onde estamos.

Fletcher olhou para Valquíria e obedeceu, sumindo com Frêmito.

— Vamos lá — disse Ardiloso a Medonho e Valquíria.

Usaram o ar para se erguer até o espelho quebrado, em seguida pousando e seguindo apressados pelo corredor. Havia mais Homens-Ocos no caminho, mas foram despachados com facilidade.

— Vamos por aqui para chegar a Tanith — afirmou Valquíria, tomando a liderança. — Conspícuo está com ela. Ele foi... Ela está ferida.

Continuaram correndo até Valquíria apontar para uma porta e Ardiloso arrebentá-la usando o ar.

Conspícuo Lamento se levantou num salto, rosnando. Tanith mal conseguia erguer a cabeça. Medonho avançou e acertou Conspícuo com um cruzado de direita. Conspícuo riu e empurrou Medonho, que atingiu a parede oposta. O Professor atirou a poltrona em Ardiloso como uma distração para poder chegar perto. Lamento riu novamente enquanto arrancava o braço do detetive. Ardiloso rugiu de dor e Conspícuo o empurrou para longe. Valquíria estendeu a mão aberta contra o ar e o velho cientista foi jogado para trás.

Passos ressoaram pelo corredor e Davina Mácula irrompeu na sala.

— Não se mova! — comandou a oficial do Santuário, apontando a arma para Conspícuo.

Conspícuo rosnou novamente e se virou, de joelhos, escancarando a boca. Alguma coisa cresceu na garganta dele, algo que tentava fugir. Se o Remanescente se libertasse ali dentro, poderia possuir qualquer um deles ou aproveitar a chance para escapar, e jamais seria recuperado. Valquíria correu e chutou, acertando a ponta da bota no queixo de Lamento. O velho foi erguido pelo impacto e caiu de costas.

Mácula correu até o cientista com algemas na mão. Atou os pulsos de Conspícuo atrás das costas, selando o Remanescente de volta dentro dele. Valquíria olhou em volta e viu que havia Talhadores ao redor de Tanith, libertando-a da poltrona.

— Isto não vai me segurar por muito tempo — rosnou Conspícuo, cuspindo sangue enquanto Mácula o erguia do chão. — Vou escapar. Vou atrás de vocês. Cada um de vocês.

— Talhadores — comandou Mácula —, levem-no daqui.

Fletcher chegou enquanto Conspícuo era levado para fora.

— Fletcher — disse Ardiloso, contendo um gemido enquanto colocava o braço de volta no lugar. — Leve Tanith ao Santuário. Ela precisa de atendimento médico urgente.

— É pra já — respondeu Fletcher, pondo a mão gentilmente no braço de Tanith. Eles sumiram.

— Vocês pegaram Escaravelho? — perguntou Medonho à Mácula ao se levantar. A detetive balançou a cabeça.

— Todos os figurões escaparam. Só encontramos Homens-Ocos.

— Olhem só o que encontrei — comentou o Detetive Galhardo ao entrar. Ele sorria triunfante com uma estranha ampulheta de pedra nas mãos. Um líquido verde chacoalhava nos frascos gêmeos. — Parece que eles fugiram sem o brinquedo.

— Isso é o Engenho Desolador? — Valquíria encarou o objeto.

— Achei mais outros trecos — continuou Galhardo. — Peças e ferramentas, lixo, na verdade. Um dos Talhadores está levando tudo aos cientistas, para deixá-los felizes. Mas isto... isto é o troféu.

— Essa bomba está ativa — afirmou Ardiloso baixinho.

Galhardo riu.

— Não pode estar ativa. O velho não teve tempo de consertar. Estamos falando em dias de trabalho, e ele teve o quê, algumas horas?

— Há três passos para disparar essa coisa. Você vê como o líquido está levemente luminoso? Isso quer dizer que a bomba está ativa. É o primeiro passo. O segundo passo seria armá-la. Quando isso acontecer, o líquido fica vermelho e começa a borbulhar. O terceiro e último passo é acioná-la. Detetive Galhardo, você está a dois passos de nos obliterar a todos. Talvez fosse melhor você me entregar isso.

Ardiloso deu um passo à frente, mas Mácula tomou a bomba de Galhardo antes que o esqueleto chegasse perto.

— O senhor pode ter recebido autoridade temporária, Sr. Cortês, mas ainda sou a Primeira Detetive e, como tal, isto é minha responsabilidade. Depois que a bomba for declarada segura pelos especialistas do Santuário, talvez então eu permita que você a examine. Mas, agora, ela é nossa.

Galhardo se esforçou em parecer profissional, mesmo enquanto se afastava da bomba.

Fletcher apareceu ao lado de Valquíria, que pulou de susto.

— Desculpe — disse o rapaz. — Os médicos estão cuidando de Tanith agora. — Ele viu Galhardo e acenou. — Oi. Eu não lhe dei uma surra, outro dia?

Galhardo olhou feio, mas nada disse.

— Vocês todos devem voltar ao Santuário conosco para interrogatório — afirmou Mácula. Ela nem olhou o Engenho. — Procedimento operacional padrão.

— Porém, como você mesma disse — retrucou Ardiloso —, não somos agentes oficiais do Santuário, então vamos pular essa parte do procedimento, se estiver tudo bem por você.

— Por mim não está tudo bem.

— Mesmo assim, vamos pular essa parte de qualquer maneira. Por favor, sinta-se livre para contar a Túrido Grêmio que isso tudo foi coisa sua, enquanto nos concentramos em ir atrás de Escaravelho e a turma dele. E, não se preocupe, quando nós o capturarmos, você poderá dizer a todo mundo que foi você que o fez. Não fazemos o que fazemos pela glória, fama ou crédito. Fazemos pela satisfação silenciosa de tornar o mundo um lugar melhor, salvar a vida de inocentes e sermos melhores que vocês.

Ardiloso inclinou a cabeça para o lado, e Valquíria sabia que ele estava sorrindo.


40

CONVERSA COM GORDON

Valquíria e Fletcher se teleportaram para a casa de Gordon, aparecendo na sala de estar enquanto o sol lutava para entrar pelas janelas.

— Voltarei num minuto — disse Valquíria, indo à escadaria.

— Vou com você — anunciou Fletcher, seguindo.

Valquíria se virou.

— Por quê?

— Por que o quê?

— Eu só vou dar um pulo no escritório.

— Eu ajudo.

— Você não lê.

— Eu leio pacas. Só quando você não está por perto.

— Leia aqui embaixo.

— Por que não posso subir?

— Porque o escritório é uma cornucópia de segredos, um lugar onde gosto de ficar sozinha. É o canto do meu tio.

— O que é uma cornucópia?

— Uma coisa de onde brotam coisas boas.

— E como é que você sabe disso?

— É o tipo de coisa que Ardiloso me conta.

— Vocês devem ter conversas coruscantes.

— São conversas que colocariam esta no chinelo. Falando nisso, adorei o “coruscante”.

— Achei que você se impressionaria. Então, posso ver o escritório?

— Você me pergunta isso como se tivesse argumentado de forma brilhante e vencido o debate.

— Não venci?

— Palavras grandes não vencem debates.

Valquíria subiu, deixando Fletcher na sala. O escritório estava como ela o tinha deixado: livros nas estantes, maços de anotações, prêmios servindo de peso de papel. Valquíria fechou a porta e puxou o livro falso na estante mais afastada, que se abriu. A adolescente entrou na sala secreta, a que continha os artefatos mágicos mais secretos de seu tio. A Pedra Eco brilhava na mesa, e a imagem de Gordon Edgley se formou diante da adolescente.

— E então? — indagou. — Como foi a missão de resgate? Como está Ardiloso?

— Ah, sim, nós o trouxemos de volta.

— Trouxeram? Bem, que notícia maravilhosa! Estou tão feliz!

— É.

Gordon olhou em volta.

— Estou sempre nesta sala. Não há janelas aqui. — Ele olhou de volta para a sobrinha. — O que houve? Você parece preocupada. Está se sentindo bem?

— Estou legal. É só mais uma dor de cabeça.

— Mais uma?

— Elas andam aparecendo nos últimos dias. Não é nada. Eu tenho uma coisa, bem no fundo da memória, sabe como é a sensação? Toda vez que tento tocar, ela se desfaz.

— Lembro da sensação. Muito irritante.

— Muito. Mas não é por isso que estou aqui. O que você sabe sobre Remanescentes?

— Um monte de coisas — disse. — Traga-me o caderno da escrivaninha. O grandão.

Valquíria voltou ao escritório e abriu a escrivaninha. Pilhas de cadernos. Ela escolheu o maior.

— Eu queria sair para uma caminhada — anunciou Gordon quando ela voltou. — Não saio para caminhar desde... bem, desde que eu estava vivo. Eu quase esqueci como é o mundo lá fora. Ainda é verde?

— Depende de onde estiver. Mas você pode mesmo, tipo, sair para uma caminhada?

— Não sozinho. Mas, se você puser a Pedra Eco no bolso, posso andar ao seu lado. Vai ser divertido. Lembra das caminhadas que a gente costumava fazer?

— Não muito.

— Nem eu — admitiu. — Eu não era lá um grande caminhador quando estava vivo, era? Era mais um sentador. — Gordon sorriu, lembrando. — Eu adorava me sentar e ler.

— Disso eu me lembro.

— Então? Podemos sair para caminhar? Só aqui em volta. Nada muito distante, prometo.

— Eu... acho que sim. Não pode demorar muito, só podemos ficar aqui por alguns minutos.

— Nós? Tem alguém lá embaixo?

— Tem, Fletcher.

— Ah! O misterioso Fletcher Renn!

Valquíria estreitou os olhos.

— Não fale assim.

— Assim como?

— Como se estivesse me provocando.

Gordon riu.

— Se você me levar para dar uma caminhada, prometo que não vou provocá-la. Ele é um Teleportador, não é? Mande-o embora por dez minutos. Ou podemos simplesmente sair de fininho. Não saio de fininho pela janela há mais de trinta anos!

— Eu saio de fininho todo dia... Tudo bem, mas é uma caminhada rápida e eu vou ler enquanto andar.

O tio sorriu.

— Perfeito.

Eles se aproximaram da mata pelo lado leste da casa, para que Fletcher não os visse. Era uma manhã surpreendentemente bela. A chuva tinha tirado um dia de folga e estava quente o bastante para que Valquíria levasse o casaco pendurado no braço.

— Está mais para o meio — instruiu Gordon, espiando sobre o ombro de Valquíria enquanto ela folheava o caderno. — Aí! As páginas seguintes contêm tudo o que já ouvi sobre os Remanescentes. Algumas partes são relatos e lendas, outras são fatos puros e garantidos. Há mais informações relevantes nessas poucas páginas do que em qualquer livro que você poderia ler.

— Sabia que você teria alguma coisa útil.

Ele tornou a olhar em volta enquanto os dois passeavam, e respirou bem fundo.

— Eu não respiro, na verdade — explicou, animado. — Mas é um ótimo hábito.

— Sempre pensei assim — concordou, olhando para trás em seguida, para as pegadas deixadas no gramado, as folhas de grama que lentamente voltavam ao normal. No entanto, havia apenas as pegadas dela. Para a grama e o mundo ao redor deles, Gordon era algo menos do que até mesmo um fantasma.

Ele começou a dizer os nomes dos pássaros que ouvia cantando nas árvores, e Valquíria tinha certeza de que os últimos quatro ou cinco eram completamente inventados. Mas não disse nada.

— O que você quer saber, exatamente? — perguntou o tio, distraído.

— Tem um Remanescente dentro de Conspícuo Lamento, e nós queremos tirá-lo dele.

— Ah, vocês vão precisar de Porcelana Tristeza e dos símbolos dela, além de mais umas coisinhas. Há quanto tempo Lamento está com o Remanescente? Se a criatura já o estiver possuindo há mais de quatro dias, temo que ela tenha se enxertado permanentemente nele. Não poderia sair nem se quisesse.

— Não se passaram quatro dias ainda.

— Então deve estar tudo bem. Está tudo aí nas anotações. — Ele olhou para cima. — Ouviu aquele pássaro, Stephanie, aquele que soa especialmente doce? É um Toleirão Chafurdante, se não me engano.

— Existe alguma coisa que você não saiba, Gordon? — indagou Valquíria enquanto folheava.

— Nada que seja importante.

Valquíria suspirou.

— Eu entendo por que você e Ardiloso se davam tão bem.

— Egos do tamanho de planetas costumam formar órbitas um em volta do outro. Então, onde você se encaixaria nisso, me pergunto?

— Eu não tenho ego.

— Então provavelmente seria uma lua.

— Não sou uma lua.

— Talvez uma gigante gasosa.

— Também não sou gasosa. Sou o sol, que tal? Vocês dois podem me orbitar, para variar. — A menina fechou o caderno. — Obrigada por isto, Gordon. Voltarei quando tiver tempo, está bem?

— Ficarei esperando ansioso. Cuide-se, Sobrinha Número Um.

— Sempre me cuido.


41

OS EXORCISTAS

Conspícuo estava amarrado a uma cadeira no meio da sala. Os pulsos estavam algemados atrás das costas, e Ardiloso atava as pernas e os braços dele com uma grossa corda. Conspícuo sorria.

O Remanescente dentro dele não se dava mais o trabalho de se esconder. Veias negras se espalhavam sob a pele subitamente pálida de Conspícuo, tornando os lábios dele negros e as gengivas cinzentas.

— Vocês nunca vão pegá-lo — disse Conspícuo numa voz que não lhe pertencia. — Ele é meu e não vou devolver.

Ardiloso não respondeu. Os olhos de Conspícuo dardejaram até Valquíria, e ele lhe lançou um olhar malicioso. O queixo do velho estava sujo de cuspe.

— Você vai me soltar — implorou Conspícuo. — Não vai? Depois de tudo o que eu fiz por você? Todas as vezes que ajudei você?

— Conspícuo me ajudou — respondeu ela. — Não você.

— Eu sou Conspícuo — retrucou o monstro com uma risadinha. — Tenho todas as memórias dele, não tenho? Posso não ser o Conspícuo que você conhecia, mas eu sou ele. Valquíria, por favor. Eu sou seu amigo.

— Vamos nos livrar de você — afirmou Valquíria. — Conspícuo mal tinha espaço para si mesmo dentro da cabeça dele... certamente não há lugar para um clandestino.

O sorriso se tornou um rosnado.

— Vou matar você.

— Já chega — falou Ardiloso.

— Eu vou matar todos vocês.

Porcelana chegou.

— E lá vem a bruxa. — Conspícuo fez uma careta de desprezo. — Vai desenhar um rabisquinho, é? Você acha que isso vai me expulsar? Isso nunca vai acontecer. Sou forte demais. Poderoso demais.

Porcelana não respondeu. Ela nem olhou para ele. Os alunos dela tinham passado horas trabalhando na sala antes mesmo que trouxessem Conspícuo. Ardiloso fez um sinal com a cabeça e Porcelana fechou os olhos. Os símbolos desenhados previamente na sala começaram a brilhar. Símbolos ornamentados e complicados apareceram nas paredes, deslizando para se juntar aos padrões no chão e subindo para se espalhar pelo teto. A arrogância de Conspícuo desapareceu.

— Isso vai matá-lo — afirmou, apressado. — Ouviram? Isso vai matar o velho.

— Não seja ridículo — ralhou Porcelana. — A Expulsão em Massa de 1892 deixou centenas de pessoas inconscientes, não mortas. Conspícuo Lamento vai acordar em alguns minutos com uma dor de cabeça e uma falha na memória, mas você, meu amigo, ficará preso nisto.

Ardiloso mostrou o Apanhador de Almas. Apesar da conotação sombria, o objeto fazia Valquíria se lembrar de um globo de neve.

— Você pode se poupar de muita dor, basta sair do corpo voluntariamente — disse Ardiloso.

Conspícuo o olhou com raiva.

— Não vou voltar àquele quarto.

— Só vai levar um instante — avisou Porcelana.

Os símbolos ficaram incandescentes, banhando a sala em luz azul, depois vermelha, depois verde. Conspícuo forçou as amarras, amaldiçoou todos eles e gritou e chorou e amaldiçoou de novo. Porcelana andou pela sala, tocando partes dos símbolos com os dedos, e a cada novo toque Conspícuo gritava outra vez.

— Está vindo — anunciou Porcelana.

Conspícuo arqueou a espinha, com o corpo rígido e a cabeça jogada para trás. Valquíria observou o Remanescente saindo pela boca que gritava. Ela pensou ter visto braços e olhos brancos, e a coisa se virou de lado e a menina viu as mandíbulas da criatura. O vulto disparou para o teto e Ardiloso ergueu o Apanhador de Almas. A terrível coisinha se contorceu e se debateu e gritou enquanto era arrastada para o globo, que imediatamente ficou preto e se apagou.

E tudo estava encerrado.


42

OS NECROMANTES

Mortalha deparou com o trio esperando por ele no cemitério sobre o Templo. Vestiam os mantos sombrios e conversavam entre si. Mortalha foi até eles, com as botas esmagando o cascalho que rodeava os túmulos, o elegante paletó de alfaiataria esvoaçando suavemente à brisa. Ele nunca teve tempo para a falsa humildade representada pelos mantos, uma ideia risível de que todos os Necromantes eram puros de coração, mente e propósito. Mortalha gostava de roupas de qualidade, portanto vestia roupas de qualidade. Na opinião dele, não havia nada mais puro e honesto que isso.

A conversa morreu quando os três o viram chegar. À direita de Mortalha estava Tremor, um homem alto e quase tão magro quanto Ardiloso. As bochechas de Tremor eram chupadas para dentro e os olhos reluziam de fundas órbitas escurecidas. Era um homem que só falava quando tinha algo que merecia ser dito, algo muito raro nos círculos de Necromantes, Mortalha tinha de admitir.

O homem à esquerda de Mortalha era o oposto perfeito de Tremor. Era bonito de uma forma insossa, mas um pouco pálido e fraco demais para ser memorável. As palavras aduladoras de Poltrão o tinham elevado a uma improvável posição de poder, mas, até agora, Mortalha não tinha visto qualquer prova de que isso o tivesse beneficiado. Como Poltrão passava o tempo inteiro concordando com tudo o que o Sumo-Sacerdote dizia, não tinha jamais um momento livre para exercer qualquer influência própria. Mortalha não conseguia entendê-lo e, assim sendo, confiava nele tanto quanto gostava dele. Ou seja, nem um pouco.

O Sumo-Sacerdote estava no meio, destacado pelo manto. O dele era um pouco mais esfarrapado, porém bem mais majestoso. Mortalha não ficaria surpreso se descobrisse que o Sumo-Sacerdote Tenebross vestia um manto novo em folha todos os dias, contando com uma equipe de puxa-sacos para esfarrapá-lo cuidadosamente todas as noites, de modo a causar o efeito necessário. Tal ideia quase fez Mortalha sorrir.

Tenebross cruzou as mãos de dedos longos dentro das enormes mangas e inclinou a cabeça sobre o esguio pescoço. Ele lembrava Mortalha de um daqueles pássaros ridículos que passavam o dia inteiro de pé na água; uma garça ou talvez um flamingo. O que fosse mais ridículo.

— Vossa Eminência — saudou Mortalha, se curvando com a devida reverência —, pensei que fôssemos ter esta conversa entre as paredes do Templo.

— As paredes têm ouvidos — anunciou Poltrão pomposamente.

— Não, elas não têm — lembrou Mortalha sem lhe conceder um olhar. — Quem tem ouvidos são as pessoas.

Poltrão fez cara de raiva e Mortalha o ignorou.

— Prefiro discutir o assunto aqui fora — esclareceu Tenebross —, onde não seremos ouvidos. Soube que o Apanhador de Almas foi recuperado.

— Sim — confirmou Mortalha. — Valquíria me informou que eles precisam do objeto para transferir um Remanescente de volta ao Hotel da Meia-Noite, mas, depois que isso for feito, eles o trarão de volta a nós.

— O Apanhador de Almas é propriedade nossa — disse Poltrão a Tenebross. — Eles não têm direito de nos dizer quando o teremos de volta. Deveríamos exigir que nos devolvessem o objeto imediatamente.

— E, nesse caso — comentou Mortalha —, eles ignorarão nossa exigência e nos farão parecer fracos e ineficientes.

— Eles não podem nos ignorar! — balbuciou Poltrão.

— Eles podem e vão fazê-lo. Se algum dia você deixar a segurança do Templo, descobrirá rapidamente que ninguém gosta de nós. Acham que somos perigosos e indignos de confiança.

— Eles deveriam nos temer.

— E se tivéssemos um histórico de sair para o mundo, eles certamente temeriam. Mas todos eles sabem muito bem que nós, Necromantes, gostamos de ficar nos nossos templos, com nossas armações e tramas, e não gostamos realmente de sujar as mãos. Lorde Vil, logicamente, é a óbvia exceção.

— Traidor — murmurou Tremor, num tom que quase comunicou emoção.

— Agora não é a hora de falar em Lorde Vil — disse Tenebross. — Ele um dia foi nosso Arauto da Morte, não é mais, e assim nossa busca continua. Salomão, você vai se oferecer para tirar o Apanhador de Almas das mãos deles assim que o Remanescente for aprisionado.

— Senhor?

— Diga-lhes que você levará o globo ao Hotel da Meia-Noite pessoalmente, ou que você pretende estudar o objeto enquanto ele contém uma alma. Não me importo com a mentira que vai usar, apenas me traga o Apanhador de Almas e o Remanescente. Pode fazer isso?

— Claro. Poderia perguntar por quê?

— Não, não poderia. — Poltrão fez cara feia. Mortalha olhou para ele e Poltrão sustentou o olhar por três segundos inteiros antes de desabar.

— A garota Caos — disse Tenebross, mudando de assunto sem perder tempo com sutilezas. — Ela sabe sobre a Passagem?

— Cortês me encurralou — admitiu Mortalha. — Eu tinha de contar ou correr o risco de perdê-la.

— Gostaria de lembrar você, Clérigo Mortalha, que nem todos compartilhamos da sua convicção de que ela seria aquela que procuramos. É jovem demais, para começar.

— Ela tem talento natural, Vossa Eminência. Aprendeu a Necromancia mais rápido do que qualquer outra pessoa desde Vil.

— Companhia nada auspiciosa — murmurou Tremor.

— Talvez não — disse Mortalha. — Mas ela tem potencial para ultrapassar até mesmo ele. É ela quem esperávamos. Tenho certeza disso.

— Sua Eminência tem toda razão, entretanto — interveio Poltrão, recuperando a voz rápido demais — ela é demasiado jovem. Além disso, está entrincheirada com o esqueleto detetive. Você realmente acha que vai conseguir arrancá-la do lado dele?

— Não será fácil — admitiu Mortalha. — Mas é possível. Ardiloso Cortês é um indivíduo incrivelmente defeituoso.

— Mais do que até mesmo você imagina — comentou Tenebross. — Temos que nos reunir com ela, é claro. Nossos encontros nos últimos meses foram breves demais, e precisamos formar uma opinião acurada das habilidades dela.

— É claro, Sumo-Sacerdote.

Tremor falou:

— Se ela for adequada, terá de ser monitorada atentamente de modo a permanecer no caminho certo. A História não pode se repetir.

— De acordo — concordou Mortalha, hesitando em seguida. — Vossa Eminência, se eu tiver permissão de voltar ao assunto delicado de Lorde Vil...

Tenebross parecia desagradado e Poltrão, ao lado dele, copiou a expressão notavelmente bem. Mesmo assim, Mortalha continuou.

— Tenho a impressão de que quanto mais perto chegarmos da Passagem, maior é a chance de enfrentarmos oposição severa dos infiéis e dos nossos inimigos. As notícias correm e os rumores se espalham.

— Você está com medo de rumores, Mortalha? — Poltrão riu. — Está com medo de conversas fiadas? Talvez não seja o homem que pensávamos ser. Talvez você não seja digno de nos representar fora do Templo.

— E quem tomará meu lugar? — inquiriu Mortalha gelidamente. — Você? Se tudo que meu posto exigisse fosse uma capacidade infinita de adular, você seria perfeito.

— Como ousa! — praticamente guinchou Poltrão.

Mortalha deu um passo súbito na direção de Poltrão, que tropeçou no próprio manto para escapar.

— Basta! — grunhiu o Sumo-Sacerdote. — Salomão, você está preocupado com a chegada desses rumores a ouvidos contrários, é isso?

— É isso, senhor.

— Tal preocupação é razoável, mas posso lhe garantir que é desnecessária. A Ordem de Necromantes está mais forte agora do que foi durante a guerra contra Malevolente. Somos mais do que capazes de lidar com problemas, caso eles surjam.

— Com todo respeito, senhor, mas estamos falando de algo maior do que meros problemas. Perdoe o melodrama no que vou lhe dizer, mas se as notícias de que estamos nos preparando para a Passagem chegarem ao canto do mundo onde ele se isolou, Lorde Vil vai voltar para nos destruir.

— Neste caso — respondeu o Sumo-Sacerdote Tenebross com um sorriso paciente —, teremos que nos assegurar de que Valquíria Caos é forte o bastante para matá-lo por nós, correto?


43

RUMO A CROKE PARK

Valquíria entrou numa sala com uma enorme banheira escavada no chão. Havia um buquê de flores num delicado vaso sobre uma mesa próxima. A banheira gigante estava cheia até a borda de lama e, por um momento, Valquíria achou que a lama tinha olhos, que se abriram quando a notaram e piscaram para ela.

— Oi, Val — cumprimentou a lama.

— Oi, Tanith — respondeu Valquíria. — Você tem uma coisinha no rosto...

As feições enlameadas de Tanith se abriram num sorrisinho.

— Medonho fez a mesma piada quando me trouxe as flores.

— Que legal da parte dele — comentou Valquíria, pegando a única cadeira da sala e se sentando. — Como estão suas mãos?

Tanith as ergueu para que Valquíria as visse. Estavam muito enfaixadas e embrulhadas em plástico, para que a lama não entrasse.

— O Professor disse que estarão boas em alguns dias. Os médicos do Santuário encharcaram as bandagens em alguma coisa de que nunca ouvi falar, para curar as feridas. Ele disse que essa coisa vai dar conta do serviço. Toda essa lama é para o inchaço e, você sabe, o trauma físico. Ele disse que vou ficar bem. Está fazendo tudo que pode para compensar.

— Ele se culpa — disse Valquíria. — Mesmo considerando que não poderia ter feito nada para deter o Remanescente e que não se lembra de nada do que aconteceu, ele ainda se culpa.

— Não estou surpresa — respondeu Tanith. — Quero dizer, eu sei que não foi ele quem fez isso comigo. Mas a coisa usou o rosto e a voz dele, e eu não sei... Acho que tem uma parte de mim que o odeia por isso.

— Mas você está aqui. — Valquíria franziu o cenho. — Se uma parte de você o odeia, por que não quis ficar no Santuário, longe dele?

— Sou uma garota prática, Val, e o lado prático do meu cérebro manda no lado burro. Então estou bem, aqui.

Tanith encolheu os ombros e estremeceu de dor, e Valquíria percebeu as bandagens nos ombros da amiga.

— E como você está? — perguntou a menina.

— Acabei de contar.

— Não, você me contou como estão os seus ferimentos.

— Tudo bem, então. Estou até bem, na verdade. A dor não foi pior do que quando o Talhador Branco me acertou a foice nas costas, mas o Talhador Branco não falava, sabe? Aquele Remanescente dentro do Professor não calava a boca.

— Tanith, você foi torturada.

— Todo mundo é torturado hoje em dia. Ardiloso foi torturado por Serpênteo, que depois se virou e fez aquele lance da mão vermelha em você. Então Ardiloso foi torturado de novo pelos Sem-Rosto. Achei que era a minha vez, sabe? Você não faz parte da equipe se nunca foi torturado, era o que eu sempre dizia. Bem, vou passar a dizer isso de agora em diante, pelo menos.

Valquíria ficou ali parada, sentindo-se burra e desajeitada. Tanith tinha passado por uma experiência horrível e Valquíria não fazia a menor ideia de como falar com ela sobre o assunto. A dor era evidente nos olhos da amiga, por mais que ela tentasse esconder. Valquíria procurou, atrapalhada, as palavras necessárias, mas elas não surgiam.

— O que eles vão fazer com o Remanescente? — perguntou Tanith, rompendo o silêncio.

— Nós o entregamos a Mortalha — contou Valquíria, e a expressão de Tanith ficou azeda.

— O que ele quer com aquilo?

— Bem, tecnicamente, o Apanhador de Almas é dele, e ele pediu de volta. Só quer estudar por algum tempo, agora que o troço contém uma alma de verdade. Ele vai devolver o Remanescente ao Hotel da Meia-Noite quando terminar.

— Não sei como você consegue confiar naquele cara, Val.

— Ele me ajudou muito durante o último ano. Ajudou todos nós.

Tanith parecia estar prestes a discutir o assunto, mas soou um bipe em algum lugar acima, e ela grunhiu.

— Bem quando eu tinha ficado confortável.

Tanith segurou as beiradas da banheira e se levantou, movendo-se rigidamente. A lama a recobria da cabeça aos pés quando ela estendeu o braço. Valquíria segurou o cotovelo da amiga com as duas mãos para garantir que ela não escorregasse e a ajudou a vestir um roupão branco. Tanith limpou o rosto com uma toalha.

Alguém bateu à porta. Valquíria olhou por sobre o ombro e viu Ardiloso na entrada.

— Tanith — cumprimentou ele. — Você está com uma aparência ótima.

— E estou pronta para ir — respondeu a guerreira.

— É mesmo?

— É só me dar minha espada que eu vou logo atrás de você.

Antes que Ardiloso pudesse responder, a perna esquerda de Tanith cedeu e Valquíria a segurou, levando-a até a cadeira.

— Inferno — grunhiu Tanith. — Isso dói.

— Tanith... — começou Ardiloso.

— Você quer saber se descobri alguma coisa, certo? — indagou a guerreira, com a dor afiando as palavras. — Quer saber se Sanguíneo ou algum deles deixou escapar alguma coisa enquanto se gabavam? Não deixaram. Eles me largaram algemada numa sala e depois me deram ao Professor. Perdoe-me, mas há partes das últimas 12 horas que estão meio nubladas.

— Não mencionaram nenhum nome? Lugar? Horário?

— O Remanescente dentro do Professor falou de um monte de coisas. Principalmente sobre como ele estava feliz de finalmente ter uma amiga.

Ardiloso concordou lentamente.

— Tudo bem. Certo, obrigado.

— Mas qual é a diferença? Nós estamos com o Engenho Desolador, não estamos?

— Estamos, mas eu gostaria de saber qual era o alvo deles. Já que não conseguiram destruí-lo com a bomba, podem tentar outro método.

— Ou estão todos fugindo — argumentou Tanith. — Vamos ser honestos... nenhum daqueles caras tem um grande espírito de equipe. Cada um entrou nessa pelos próprios motivos, e, no momento que o grande plano dá errado, acho que corre um para cada lado.

— É possível. E muito provável.

— Na minha opinião, acabou. Agora basta rastreá-los um de cada vez. E eu quero participar disso, Ardiloso. Jack Saltador me atirou de um carro em movimento. Eu lhe devo uns tapas.

— Assim que você estiver pronta para lutar, nós a chamamos.

— Estou pronta agora.

— Você mal consegue andar, Tanith.

— Preciso só de uma hora ou duas.

— Alguns dias de repouso, essas foram as ordens médicas.

— Bem, meu médico foi o cara que me torturou, pelo amor de Deus. Não acho que a opinião dele importa.

Valquíria encarou as botas. Ardiloso permaneceu calado.

— Tá bem — murmurou Tanith.

— Valquíria — chamou Ardiloso ao sair. — Temos trabalho a fazer.

A menina olhou para a guerreira.

— Você está bem mesmo, né?

— Não começa, Val.

Valquíria se abaixou até estar olhando Tanith direto nos olhos.

— Você é minha irmã — começou. — Tenho outra irmã ou talvez um irmão a caminho, mas você também é minha irmã. Quero que fique aqui e melhore e tente aceitar, com todas as partes de você, o fato de que não foi Conspícuo que fez isso. Quero que você fique bem, está bem?

— Está bem — respondeu Tanith, baixinho. Valquíria abraçou a amiga e lhe deu um beijo no rosto.

— Você está com lama no queixo — disse Tanith, sorrindo.

— É, mas eu fico bonita assim.

Medonho e Anton Frêmito esperavam por eles no cinema escuro. Fletcher apareceu no palco, de braços cruzados e olhos apertadinhos.

— Tem visita pra vocês — anunciou. — Seu amiguinho vampiro está lá fora. Ele quer falar com Valquíria.

— Certamente — respondeu Ardiloso. Então, para grande satisfação de Fletcher, o detetive acrescentou: — Fletcher, vá com ela. Caelan foi banido da sociedade vampírica por nossa causa. Ele pode estar aborrecido.

Valquíria olhou feio para o esqueleto.

— Eu não preciso de proteção.

— Um vampiro espera por você lá fora, é claro que precisa de proteção. Seja rápida. Vamos ficar esperando aqui.

Fletcher sorriu. Valquíria lhe lançou um olhar de fúria e pulou do palco. O rapaz a seguiu pelo corredor por entre os assentos, para fora da penumbra.

Caelan estava esperando logo do lado de fora. Virou-se para a dupla quando os dois se aproximaram, mantendo os olhos negros fixados em Valquíria. Era como se nem percebesse a existência de Fletcher.

— Oi — cumprimentou ela. — Alguma coisa errada?

— Minha casa foi incendiada — contou Caelan. — Minha jaula destruída. Moloque revogou a proteção dele. Os outros vampiros me consideram caça livre, agora.

— Ah, Deus — disse a menina. — Desculpe.

— É terrível mesmo — murmurou Fletcher.

— Eu não tenho mais nenhum amigo — continuou Caelan. — E não tenho aonde ir. Pensei que você e o esqueleto poderiam me sugerir alguma coisa. Preciso de um lugar seguro.

— Que tal o Hotel da Meia-Noite?

Ele pareceu surpreso.

— Isso... Isso seria ideal. Você sabe onde fica?

— Posso fazer algo ainda melhor: o proprietário está lá dentro.

Um carrão parou e Túrido Grêmio desceu. Dispensou o motorista com um aceno e veio na direção do trio. Pelos olhos estreitados do Grande Mago, Valquíria percebeu instantaneamente que ele sabia o que Caelan era, mas passou por eles sem dizer nada e entrou no cinema.

— Frêmito pode não querer um hóspede vampiro — comentou Fletcher depois que Grêmio passou. — Tipo, vamos ser sinceros, a maioria das pessoas não gosta de vampiros. Eu, por exemplo.

Valquíria olhou feio para Fletcher, mas suavizou o olhar para Caelan.

— Podemos perguntar — disse a menina. — Sei que ele não vai se importar.

— Muito bem — decidiu Caelan. — Obrigado.

Valquíria voltou ao cinema, seguida por Caelan e com Fletcher colado ao lado dela como uma craca num navio. Ardiloso, Medonho e Frêmito pararam de falar e observaram a aproximação dos três. Grêmio não se virou.

— Anton — começou Valquíria. — Este é Caelan. O lar dele foi destruído e ele precisa de um lugar para ficar.

Frêmito olhou fundo nos olhos de Caelan.

— Ao longo da história do hotel — respondeu —, tive dois hóspedes vampiros. E tive de matar um deles.

— Valquíria e eu somos responsáveis pela situação de Caelan — explicou Ardiloso. — Consideraria isso um favor pessoal.

Frêmito considerou a ideia por alguns instantes, depois inclinou a cabeça.

— Todos são bem-vindos, desde que obedeçam às regras. Trancarei você antes do crepúsculo e destrancarei a porta de manhã. Assim não teremos problemas.

Caelan concordou com a cabeça, sem dizer nada.

— A Srta. Low pode estar certa — Grêmio retomou a conversa. — Pode estar tudo encerrado. Escaravelho e seus capangas podem ter corrido de volta para baixo das pedras onde se escondem. É uma possibilidade.

— Não acredito nisso — discordou Ardiloso. — Escaravelho é um assassino. Ele nunca tem apenas um plano, uma rota para a morte final. Ele tem estratégias de reserva. Acredito que tenha algo preparado para isto também.

— Então a busca continua — concluiu Frêmito. — Mas agora poderia ser qualquer coisa, não poderia? Uma das rotas foi bloqueada, mas não fazemos ideia de qual poderia ser a segunda opção.

— Precisamos descobrir o que ele pretendia fazer com o Engenho Desolador — afirmou Medonho. — Podemos refazer o plano de trás para a frente.

— O alvo óbvio seria o Santuário — apontou Grêmio. — Nosso trabalho lá já foi atrapalhado imensamente com a evacuação. Só agora as pessoas estão retornando aos seus postos.

Conspícuo veio apressado pela porta na tela. Valquíria não o tinha visto direito desde que ele acordou, devido ao fato de ele ter se atirado imediatamente ao trabalho. A menina sabia muito bem o que ele estava fazendo. O cientista não sabia como lidar com as coisas que o Remanescente tinha feito quando estava no controle, então se concentrou naquilo com que sabia lidar: tratar pessoas feridas e desmantelar o Engenho.

— Há peças demais — afirmou, se aproximando dos outros. — Vocês me entendem? O tal lixo que foi encontrado com o Engenho Desolador no castelo, tem lixo demais!

Ele viu Caelan e ficou paralisado.

— Vampiro? — sussurrou, chocado.

Imediatamente, Valquíria pegou Caelan pelo braço e se afastou com ele.

— Ele tem fobia de pessoas como você — explicou baixinho. — Você se incomodaria em esperar lá fora?

— De maneira alguma — respondeu Caelan com elegância e saiu.

— Desculpe, Conspícuo — disse a menina.

Os olhos de Conspícuo estavam arregalados e ele segurava algo pendurado no pescoço. Valquíria sabia que era o frasco de água salgada que ele levava consigo para o caso de um ataque vampírico.

— Professor — chamou Ardiloso —, as peças que sobraram do Engenho Desolador. O que há de estranho nelas?

— E-eu não sei — respondeu Conspícuo. — Eu apenas... simplesmente não faz sentido.

— Muitas coisas não fazem sentido — comentou Grêmio. — Tais como sua capacidade de reativar o Engenho tão rapidamente. Pensamos que você levaria dias, isso se você conseguisse fazê-lo.

— É claro que eu era capaz de fazê-lo! — ralhou Lamento, subitamente de volta ao velho eu. — Nunca houve dúvida de que eu seria capaz de fazê-lo! Eles não sabiam disso, é claro. Simplesmente deram sorte de me escolher.

— Não interessa como você é inteligente — retrucou Grêmio. — Os especialistas do Santuário examinaram a bomba por décadas e ainda não fazem ideia de como ela funciona, muito menos como consertá-la numa única tarde.

— É claro que eles não fazem ideia, seu idiota. Não foram eles que construíram a coisa, foram?

Todos olharam para Conspícuo. Ele estava vermelho. Esfregou os olhos e respirou fundo.

— Você construiu aquilo? — perguntou Valquíria. O cientista olhou para ela.

— O quê?

— Você... acabou de dizer que construiu. O Engenho Desolador.

— Eu disse? Eu... suponho que tenha dito, sim. — Por um momento, ele pareceu muito velho e frágil, mas logo em seguida a irritação voltou-lhe à voz. — Sim, certo, nem sempre fui quem sou agora. Ninguém nunca foi. Passei a vida inteira me tornando quem eu sou. Finalmente, consegui chegar aqui e agora estou velho. É deprimente, realmente deprimente.

“Quando eu era jovem, não era menos inteligente, mas temo que não dispunha de um certo senso básico e fundamental. Via as coisas de um jeito diferente. Minha filosofia era diferente. Considerem o Engenho Desolador, por exemplo. Queria ver se conseguiria construí-lo. Ele existia em teoria, mas até aí ele sempre tinha existido em teoria. Meu objetivo era transformar a teoria mágico-científica em fato mágico-científico. E foi o que eu fiz.

“Não creio que eu tenha me importado em saber quem o usaria, ou onde, ou contra quem. Tais coisas eram irrelevantes. Quando soube da detonação em Nápoles, não me lembro de ter sido afetado de uma maneira ou de outra. Funcionou. Eu o construí, sabia que funcionaria, e funcionou. Projeto encerrado, hora de começar o próximo.

“Apenas anos mais tarde fui entender o que tinha feito e assumi a responsabilidade pelos meus atos. Não tinha levado o fator humano em consideração, entendem? Pensava apenas em magia e ciência. Todo o resto... passou despercebido.”

— E você vem compensando isso desde então — disse Medonho.

Conspícuo pareceu ficar ainda mais irritado.

— Não, não, não, não é nada disso. Eu simplesmente aprendi com meu erro e tomei a decisão de jamais machucar alguém novamente. Não se trata de redenção. Não estou buscando o perdão. Fiz o que fiz e vou sofrer por isso o resto da minha vida, que é o que eu mereço.

“E também não estou lhes contando isso porque busco a absolvição ou compreensão de vocês. Estou lhes dizendo isso tudo porque é necessário que entendam simplesmente como eu realmente sou inteligente. Tomei um conceito abstrato da teoria mágico-científica e o transformei em realidade. Sou muito, muito inteligente, e estou lhes dizendo que há algo errado. Há muitas peças sobrando.”

— E o que isso significa? — indagou Ardiloso.

— Creio que só há uma coisa que poderia significar — respondeu Conspícuo —, e é algo que só me ocorreu agora, enquanto falava. O problema não se resume às peças excedentes, mas diz respeito às peças que deveriam estar lá, mas não estavam. Não acredito que eu; ou o Remanescente que havia dentro de mim; tenha apenas consertado o Engenho Desolador que a Detetive Mácula tem em sua posse agora. Creio que Escaravelho me fez construir um Engenho novo em folha.

Ardiloso foi o primeiro a reagir.

— Você tem certeza?

— Não — respondeu Conspícuo de imediato. — Mas há uma grande possibilidade de que Escaravelho tenha um segundo Engenho.

— Vou alertar o Santuário — decidiu Grêmio, pegando o celular.

— Você faz ideia do raio de destruição? — perguntou Ardiloso a Conspícuo enquanto Grêmio dava o telefonema.

— Estimo um raio letal de 150, talvez 200 metros — calculou Conspícuo.

— Não consegui falar com Mácula — informou Grêmio, guardando o celular. — Mas o Santuário está sendo evacuado. De novo.

Ardiloso inclinou a cabeça.

— E se o alvo não for o Santuário? Se Escaravelho planejou ter duas bombas o tempo todo, ele deveria ter dois alvos. Qual seria o segundo?

— Se ele detonar a bomba numa rua lotada, teríamos uns dois mil mortos — afirmou Medonho.

Valquíria franziu a testa.

— E para que ele faria isso? Escaravelho quer se vingar do Santuário, não das pessoas normais.

— Mas atacar as pessoas normais seria um ataque ao Santuário — argumentou Medonho. — É para isso que ele existe, não é? Para proteger a população não mágica de nós?

— Então você acha que Escaravelho simplesmente vai massacrar milhares de inocentes? — indagou Conspícuo. Medonho se virou para ele.

— Por que não? O Santuário incriminou Escaravelho por um crime que ele não cometeu, e, em troca, ele comete um crime do qual o Santuário jamais se recuperará. Você acha que os outros Santuários pelo mundo afora vão ignorar algo assim? Eles vão cair sobre nós e devorar tudo. Vão destroçar este país e lutar pelos despojos.

— Não será numa rua — murmurou Ardiloso. — Mas será em algum lugar público. Algum lugar densamente lotado... como um estádio.

Valquíria olhou para o esqueleto.

— O Campeonato Irlandês. Meu pai estava tentando arranjar ingressos. Mas é hoje. Já deve ter começado.

— Meu Deus — disse Medonho em voz baixa. — Ele vai matar 80 mil pessoas ao vivo na TV.

Ardiloso se virou para Fletcher.

— Por favor — rogou —, me diga que você já esteve em Croke Park.

— É claro — respondeu Fletcher. — Na área VIP, quase sempre.

— Perfeito. É para lá que vamos.

— E eu vou junto — rosnou Grêmio.


44

VINGANÇA

Valquíria tinha 11 anos quando foi a Croke Park pela última vez. O pai dela a levara a um jogo do Dublin Kildare. Vestiu a camisa azul do time e gritou e berrou e torceu junto às milhares de pessoas nas arquibancadas. O sol estava forte, e ela se lembrava daquele dia como uma ocasião em que todos ao redor sorriam e gargalhavam. A menina ficou carregada de otimismo e falou sem parar no caminho de casa, um feito raro mesmo naquela época. O pai prometeu levá-la a outro jogo, mas nunca mais conseguiram marcar.

Eles se teleportaram numa larga rampa de concreto, e Valquíria foi imediatamente atingida pelo rugido da multidão no estádio. Ali fora, no entanto, eles estavam sozinhos, longe das ruas, com vista para Dublin. Fletcher os guiou até um par de portas que se abriu, dando passagem a um guarda de segurança.

— Esta é a Área Executiva — informou de forma educada mas firme, no tom de alguém que já tinha lidado com dezenas de pessoas que haviam se desgarrado de onde deveriam estar. — Exclusiva para VIPs.

— Nós somos VIPs — sorriu Medonho. Ele estava usando a fachada, para cobrir as cicatrizes. Foi até o segurança, pondo a mão no bolso. — Nossos ingressos estão aqui em algum lugar. Me diga uma coisa, você viu alguns amigos nossos? Um grupo de gente esquisita com um velho americano?

— Não vi ninguém assim — respondeu o guarda, esperando pelos ingressos.

— Que pena — disse Medonho, dando um soco no segurança e o aparando ao cair. Deitou o homem inconsciente no chão e adentrou pelas portas com o restante do grupo.

Paredes cor de creme e piso de madeira, fotografias emolduradas e arte de bom gosto. Tudo na área VIP era limpo, novo, bonito e seguro. A porta para um dos camarotes executivos estava aberta, e Valquíria viu o estádio além das pessoas reunidas no janelão. Estava completamente lotado; mais de 82 mil pessoas torcendo, cantando e esperando para morrer.

— Vamos precisar de um Sensitivo conosco — comentou Medonho enquanto eles procuravam. — Precisamos de alguém com habilidades psíquicas para encontrá-los nessa multidão.

— A gangue de Escaravelho não se mistura muito bem — respondeu Ardiloso. — Se estiverem aqui, estarão em algum lugar como este, longe das massas. Caelan está vindo a pé. O restante de nós terá de se separar e procurar em áreas diferentes.

— Não deveríamos confiar num vampiro — resmungou Fletcher.

— Mas podemos confiar na natureza de um vampiro — argumentou Frêmito. — Seja lá qual for o motivo, Caelan guarda rancor de Crepúsculo. Podemos confiar que ele levará isso até o fim.

— Fletcher, você precisa entender uma coisa muito importante — afirmou Ardiloso. — Se encontrar os inimigos, não entre em combate. Você pode significar a diferença entre o sucesso e um massacre.

— Está bem — concordou Fletcher sem muita empolgação.

— Grêmio, seria bom se você convocasse alguns agentes do Santuário. Tente falar com Davina Mácula novamente. Vamos cobrir uma área muito maior com ela e alguns Talhadores.

— Vamos tentar resolver isso sem ela — respondeu Grêmio.

— Você está disposto a arriscar 80 mil vidas só para proteger seu segredo? — indagou Frêmito.

— Contei a verdade sobre o assassinato de Vanguarda a Anton — explicou Ardiloso.

O rosto de Grêmio se contorceu de raiva.

— Você não tinha o direito de debater o assunto com mais ninguém!

— Anton é um de nós — argumentou Medonho. — Ele não vai usar seus erros passados contra você. Nenhum de nós o fará. E é por isso que você confia em nós na hora de perseguir a gangue de Escaravelho, e não em Davina Mácula.

— Eu conhecia Vanguarda — comentou Frêmito. — Era um bom homem. E, mesmo assim, consigo entender a decisão de Meritório. Não concordo e não gosto dela. Mas eu a entendo. Seu segredo está seguro comigo, Grande Mago.

Grêmio concordou com a cabeça. Valquíria percebeu que ele não gostava do fato de que eles tinham algo que poderia ser usado contra ele. Pelo que a adolescente sabia do homem, não se tratava de alguém capaz de confiar realmente nos outros. Ao não revelar o segredo que poderia derrubá-lo, eles estavam lhe fazendo um favor, e Grêmio sabia disso.

Chegaram à porta que dava acesso às escadas rolantes. À esquerda havia uma janela para o centro de Conferências, outro camarote executivo, um elevador e duas portas de madeira escancaradas. Parado naquela porta, sorridente, estava Dreilho Escaravelho.

Todos pararam: Grêmio na frente, Valquíria ao lado de Ardiloso, Frêmito e Fletcher à direita dela, Medonho à esquerda. Escaravelho não parecia estar alarmado.

— Mas que grupinho exótico — disse. — Detetives e desesperados. Foras-da-lei e agentes. E tantos de vocês... Como posso esperar vencer perante seus poderes combinados?

— Entregue-nos a bomba — ordenou Grêmio.

— Vocês estão com a bomba.

— A outra bomba.

— Ah! — Escaravelho sorriu. — Vocês descobriram, não foi? É claro, vocês entendem que isto não acabará sem uma batalha. Vocês têm seu grupinho exótico. Eu tenho meu Clube dos Vingativos.

— Aparentemente eles o abandonaram — comentou Medonho. Escaravelho balançou a cabeça.

— Perdemos um ou dois pelo caminho, mas os pesos pesados estão na área. Isso tudo faz parte do nosso planinho adorável, sabe. Tudo o que fizemos foi pela vingança. E, no que toca a vingança, timing é tudo.

Ardiloso se adiantou.

— Escaravelho, você está preso. Entregue o Engenho Desolador, renda-se e eu juro que você terá um julgamento justo.

— Se puser essas algemas em mim, estarei morto antes de chegar a uma cela, e você sabe disso. O Grande Mago providenciará a minha morte. Ele poderá muito bem providenciar a sua morte também. E a dos seus amigos. Sabemos demais, não é, Grande Mago?

— O detetive lhe ofereceu uma saída pacífica — retrucou Grêmio. — Sugiro que a aceite.

— Você também está disposto a me oferecer um julgamento justo, Grêmio?

— É claro.

Escaravelho riu.

— Para um mentiroso nato, até que você é bem ruim na hora de mentir. Você preparou um comitê de boas-vindas para o dia em que fui solto, não foi?

Grêmio estreitou os olhos.

— Isto não está nos levando a nada.

— Um belo grupo de Talhadores escolhidos a dedo, esperando por mim quando eu saísse da prisão. Sorte minha que o diretor da prisão não é um grande fã seu, então me soltou alguns dias antes.

— Prenda-o agora! — disse Grêmio a Ardiloso.

— Querem saber um segredo? — perguntou Escaravelho, sorrindo. — Acho que o Conselho Americano está torcendo pelo sucesso da minha trama de vingança. E o Conselho Russo não lhe contou quando Billy-Ray libertou Crepúsculo, contou? Aparentemente, há muita gente torcendo pelo meu sucesso. Todo mundo que é importante quer vê-lo morto.

Grêmio avançou, estalando os dedos e invocando uma chama.

— Se quiser algo bem-feito... — murmurou.

— Ah, ótimo — respondeu Escaravelho. — Hora da luta. — Ele se virou e correu, e Grêmio foi atrás dele.

O elevador se abriu atrás do grupo e Valquíria girou, deparando com Crepúsculo e Jack Saltador enquanto estes saíam. Eles ergueram as submetralhadoras silenciadas e abriram fogo.

Valquíria mergulhou, vendo de relance Medonho puxando Fletcher para o chão, e os dois desapareceram. Frêmito se esquivou para trás de um pilar. Ardiloso simplesmente ficou parado ali, com as mãos estendidas, e Valquíria viu as balas aparecendo diante dele, ficando visíveis conforme perdiam a velocidade.

Os tiros cessaram e a menina olhou. Fletcher e Medonho tinham se materializado atrás do inimigo. O alfaiate tinha posto Jack num mata-leão e Fletcher agarrou Crepúsculo. Os dois sumiram em seguida. Jack se debateu e se libertou, acertando um chute na mandíbula de Medonho. O boxeador empurrou o ar e a arma voou das mãos de Jack. Medonho meteu o punho na cara do monstro e continuou batendo. Três socos cantaram num ritmo doce, com um quarto derrubando o chapéu de Jack. Este cambaleou para longe, direto contra Frêmito, cujo cotovelo acertou o queixo de Jack, que finalmente caiu.

— Parem de me bater! — gritou. — Isso não é nada justo, é? Dois de vocês contra mim?

— Foi você que apareceu com uma arma — argumentou Medonho, parado acima dele.

— Mas era só uma brincadeira — mentiu Jack. — Eu não tava mirando em vocês, juro.

Valquíria olhou para trás e viu Ardiloso correndo atrás de Grêmio e Escaravelho.

— Além disso — continuou Jack —, a gente conseguiu fazer o que veio fazer aqui. — A criatura olhou para Medonho. — Você tá usando um creme novo ou coisa assim? Você tá diferente.

Frêmito encolheu os ombros.

— E o que foi que vocês conseguiram?

— Vocês têm um elemento imprevisível no seu grupinho — explicou Jack com um suspiro exagerado. — Com o tipo de poder que poderia zonear tudo. Nossa missão era tirar esse poder da equação.

Valquíria empalideceu.

— Onde está Fletcher? — perguntou Medonho.

Jack sorriu.

— Deve estar chegando...

Um punho frio como granito acertou Valquíria, que foi jogada longe. Frêmito tentou saltar sobre ela contra Crepúsculo, mas este atirou o corpo inconsciente de Fletcher contra ele. Os dois caíram embaralhados e Jack saltou, metendo o joelho direto no rosto de Medonho, em seguida saltando novamente e aterrissando atrás de Valquíria.

Jack agarrou a menina, respirando quente no ouvido dela.

— Um amigo meu quer levar um papo contigo.

Jack empurrou Valquíria contra Crepúsculo, que afastou a mão da menina com um tapa quando ela a ergueu. O vampiro não perdeu tempo falando, fazendo ameaças ou mesmo curtindo o momento. Ele simplesmente cravou os dentes afiados no pescoço dela.


45

EM BUSCA DE ESCARAVELHO

Durante alguns instantes houve apenas a dor e o bater do coração, rápido e barulhento. Quando a dor parou e os olhos dela recuperaram o foco, Valquíria viu que Crepúsculo a segurava com o braço estendido. Os lábios dele estavam vermelhos com o sangue da menina, mas os olhos estavam estreitados, confusos.

A janela atrás dele explodiu e Caelan apareceu, se chocando contra Crepúsculo e derrubando-o. Valquíria cambaleou para trás, tropeçando no corpo inconsciente de Fletcher e caindo. Crepúsculo agarrou Caelan e o jogou contra a parede, mas Caelan voltou rosnando.

Valquíria pressionou a mão contra a ferida no pescoço. O sangue era quente. Sentiu que escorria por entre os dedos. Caelan e Crepúsculo continuavam lutando, e mesmo de relance a adolescente percebeu que Caelan não tinha a menor chance. Não importava a rapidez com que se movesse, ele não era páreo para a velocidade de um vampiro como Crepúsculo.

A menina continuou deitada. Estava com sede. Os pensamentos estavam confusos. Virou a cabeça e viu Caelan caindo no chão. Ele não se levantou. Crepúsculo voltou a ficar ao lado de Jack Saltador.

Medonho e Frêmito se aproximaram, forçando Jack e o vampiro a recuarem na direção do elevador. Jack sorriu. Crepúsculo ficou atrás dele.

— Cuidado — disse Jack. — Não queremos nos machucar agora, queremos? Quero dizer, quem sabe? Depois de hoje, provavelmente vamos lutar no mesmo lado.

— Eu perguntaria do que você está falando — respondeu Medonho —, mas realmente não me importo.

— Ah, fala sério, não é óbvio? O que você acha que vai acontecer quando mais de 80 mil pessoas forem assassinadas na TV ao vivo por uma bomba que só poderia ser descrita como mágica? As pessoas vão saber, não vão? Vão acreditar em mágica e vão acreditar na gente. O bonitão aqui cansou de se esconder. Vou andar livre pelas ruas, fazer o que quiser, matar quem eu quiser. Vai ser um pedacinho do paraíso.

— É por isso que você está nesse plano? — A expressão de Frêmito era de incredulidade. — Para revelar a magia ao mundo?

— É por isso que eu estou no plano, sim. Os outros têm motivos próprios. Querem destruir o Santuário, querem ver a confusão de cada feiticeiro do mundo lutando por um pedaço do que restar... Não sei, não perguntei. Não somos o que você poderia chamar de grupinho amigável. É ou não é, Crepúsculo?

— É, sim — disse Crepúsculo atrás dele. — Mas não dou a mínima para o Santuário ou para a guerra que vocês querem começar.

Jack concordou com a cabeça.

— Os motivos de Crepúsculo são puros. Ele só está interessado na vingança. Então, parceiro, você conseguiu? Mordeu ela?

— Mordi.

— E aí? Sua sede de vingança foi saciada?

— Ainda não — respondeu Crepúsculo. — Valquíria Caos era apenas uma das vítimas da minha vingança.

— É mesmo? Você não me contou isso. Ah, bem, imagino que esse seja o castigo para quem não fala, né mesmo? Você acaba surpreso. Então vamos lá, Crepúsculo, quem mais está na sua lista?

— Você.

Jack franziu a testa e se virou bem quando as portas do elevador se fecharam e Crepúsculo sumiu. Subitamente sozinho, Jack se virou de volta na hora em que Frêmito e Medonho atacaram.

Valquíria se obrigou a se levantar, com uma das mãos no ferimento do pescoço, e correu. A ferida ardia, mas não havia uma grande perda de sangue. Ela seguiu o corredor e virou à esquerda, pulando o corpo desmaiado de outro segurança. Ardiloso veio correndo de volta.

— Onde está ele? — perguntou a menina.

— Grêmio foi atrás dele. Perdi os dois. — O esqueleto ia dizer alguma coisa, mas segurou os braços da menina. — Você foi mordida.

— Conspícuo pode me curar, não pode? Se eu for encontrá-lo nas próximas horas, ficarei bem. Crepúsculo me mordeu e basicamente me cuspiu fora. Nem está sangrando mais.

— Está, sim.

— Bem, não está sangrando muito.

— Valquíria, você precisa me escutar. Volte até Fletcher e se teleporte daqui com ele.

A menina se afastou do esqueleto.

— O quê?

— O Engenho Desolador pode detonar a qualquer momento. Se isso acontecer, não interessa o quão forte ou poderosa você é. Não é algo que se possa enfrentar.

— Vou ficar com você.

— Maldição, Valquíria, se aquela coisa explodir, eu não poderei salvá-la.

— Não precisarei que você me salve.

— Não meti você nisso tudo só para você morrer ao meu lado.

— Você não me meteu nisto; eu me meti. Fui atrás de você depois que Gordon morreu, fiz você me ensinar mágica; eu fiz tudo, está bem? Você não teve escolha.

— Só desta vez, por favor, faça o que lhe peço.

— Sem chance. E, quanto mais discutirmos, menos tempo teremos para deter Escaravelho.

Ardiloso olhou para a menina e cobriu o rosto com o cachecol.

— Ele estará na multidão — afirmou. — É o lugar mais seguro, agora que sabe que estamos atrás dele. Temos que ficar perto um do outro o tempo todo.

— Consigo andar mais rápido que você. Não preciso me preocupar com o disfarce escorregando.

— Você está coberta de sangue.

Valquíria levantou a gola do casaco.

— Melhor assim? Vamos, não temos tempo a perder.


46

FIM DE JOGO

Grêmio observou Escaravelho ocupar um lugar na arquibancada. Houve um tempo em que um assassino do calibre de Escaravelho jamais se permitiria ser seguido assim, mas esse tempo passou enquanto Escaravelho mofou na cela de prisão. Agora ele era apenas um velho que acreditava ter escapado. Havia um lugar vazio ao lado de Escaravelho, onde Grêmio se sentou.

— Olá, Dreilho — cumprimentou. — Não tente correr. Não quero que você passe vergonha.

A mandíbula de Escaravelho ficou tensa, mas ele não se moveu.

— Olhe só o que encontrei no Repositório — continuou Grêmio, abrindo a mão. O disco de cobre na palma dele era quase tão largo quanto a mão que o segurava, e a coisa tinha oito pernas finas enroladas para dentro, como uma aranha morta. — Reconhece isto? Tenho certeza que sim. Você que construiu, não foi? Quantas pessoas você matou com esta arminha, em particular?

— Não contei.

— Ela simplesmente se prende ao alvo, não é? E libera uma quantidade imensa de energia horrenda? Então, por exemplo, se eu pressioná-la contra você, o poder que ela liberaria seria suficiente para lhe provocar centenas de ataques cardíacos, não é?

As oito pernas se flexionaram, como se o dispositivo tivesse sentido a presença da nova vítima. Escaravelho engoliu.

— Sim.

A multidão rugiu e as pessoas se levantaram num salto ao redor deles. Grêmio e Escaravelho continuaram sentados.

— Onde está o Engenho Desolador, Escaravelho?

— No meu bolso.

— No bolso mais próximo?

— Esse mesmo.

Grêmio sorriu, colocando cuidadosamente a mão livre no paletó de Escaravelho. Os dedos encontraram a bomba e a puxaram para fora. O líquido dentro do vidro ainda estava verde plácido. O Engenho não tinha nem sido armado ainda. Grêmio o guardou no paletó, fora de vista.

— Você nos causou tantas preocupações — murmurou. — Ainda bem que o encontrei antes que fizesse algo que criasse problemas de verdade.

— Você vai me matar — indagou Escaravelho —, é isso mesmo? Bem aqui?

— Acho que seria melhor para todos.

Escaravelho encarou Grêmio.

— Mas você é mesmo capaz disso? De olhar nos olhos de um homem e matá-lo? Você já ordenou assassinatos. Já os orquestrou, facilitou, encobriu... Mas já esteve tão perto ao assassinar alguém? Perto o bastante para olhar nos olhos do sujeito enquanto ele morre?

— Não — admitiu Grêmio. — Mas estou curioso para saber como é.

— Posso ser honesto? Queria que Meritório ainda estivesse vivo. Teria preferido que fosse ele fazendo isso.

— Bem, nem sempre podemos escolher quem vai nos matar.

— Suponho que seja verdade. Quero dizer, eu escolhi você, mas nenhuma dessas pessoas aqui o fez.

— Não sei se compreendo seus desvarios, Escaravelho. Não vou matar nenhuma dessas pessoas.

— Na realidade, Grande Mago Grêmio, você meio que vai matá-las. Eu não mandei construir este Engenho para detoná-lo pessoalmente. Eu o encomendei para que você pudesse detoná-lo.

Grêmio riu.

— E por que diabos eu faria tal coisa?

— Porque eu vou mandar você fazer.

— Duzentos anos de solidão racharam seu cérebro, velho. Não vou matar ninguém. Não vou me matar. Vou matar apenas você.

— Você me matará, matará as pessoas, mas não morrerá. Mandei o professor se assegurar disso. A bomba foi desenhada para poupar sua vida, e apenas sua vida. Aliás, eu não a soltaria agora, se fosse você, pois é nessa hora que ela vai detonar.

— Do que você está falando? Ela não está nem armada.

— Após dez segundos nas suas mãos, Grande Mago, ela se arma automaticamente.

Grêmio franziu a testa e olhou a bomba que tinha na mão. O líquido estava vermelho, se revirando e borbulhando contra o vidro. O coração de Grêmio desabou no precipício que se abriu no peito dele.

— Oitenta mil pessoas — continuou Escaravelho. — Ao vivo na TV. Retransmitido pelo mundo afora como o momento que mudou tudo. E o Grande Mago do Conselho de Anciãos Irlandês será o responsável. É simplesmente... perfeito, não acha?

— Você está louco — exclamou Grêmio. — Mandarei alguém desativar a bomba, eu vou...

— Você vai descer até aquele campo de futebol — afirmou Escaravelho. — E vai soltar o Engenho Desolador. E ao seu redor 80 mil pessoas serão desintegradas.

— Por quê?

A multidão rugiu novamente.

— Eu jamais gostei de Nefasto Serpênteo — continuou Escaravelho, como se não tivesse ouvido a pergunta de Grêmio. — Vingança era um bom homem. Não cheguei a conhecer Lorde Vil, mas não suportava Serpênteo. Não conseguia entender por que Malevolente depositava tanta confiança nele. Mas tenho que admitir, ele sabia como afetar as pessoas. Foi assim que ele matou Ardiloso Cortês. Foi atrás da família do sujeito, sabe? Deixou o cara tão louco, tão tomado pela fúria, que ele não teve nem uma chance. A raiva nubla a mente. A vingança pode cegá-lo. Por isso é necessário esperar e escolher cuidadosamente o momento. O momento certo é tudo, como dizem.

— E este é o seu momento? — rosnou Grêmio. — Basta que eu pressione a aranha contra você e este será o último momento que você jamais terá.

— Meu último momento está chegando, não se preocupe. Mas, não, você não me entendeu. Serpênteo sabia como afetar as pessoas. A família é uma forma eficiente de fazê-lo. Vou pegar algo no meu casaco agora. Se eu fosse você, não me mataria ainda.

Movendo-se lentamente, Escaravelho tirou um celular do bolso.

— Talvez você tenha que proteger a tela da luz — disse, enquanto apertava alguns botões. — Senão fica difícil de ver a foto.

O velho estendeu o aparelho. Grêmio engoliu, guardou a aranha apressadamente e pegou o telefone. Virou num ângulo que protegesse a tela do sol e viu o que sabia que veria: a mulher e a filha, amarradas e amordaçadas.

— Elas estão bem — disse Escaravelho, voltando a observar o jogo de futebol. — Ilesas. E vão continuar assim, desde que você faça o que eu mandar.

— Solte-as — comandou Grêmio, completamente sem fôlego.

— Billy-Ray está com as duas agora, e estão todos vendo TV. Assim que você soltar o Engenho, ele as soltará. Não temos motivos para matá-las, Grande Mago. Sua família nunca fez mal a nenhum de nós.

— Não vou matar essas pessoas.

— Sim, você vai.

— Você está louco.

— Você já disse isso. Túrido, você nem gosta dessa gente, desses mortais. Pelo que ouvi, jamais gostou. Chegou a hora de quebrar as regras, Grande Mago.

— Eu não o farei.

— Você não só o fará, como fará nos próximos três minutos, ou Billy-Ray matará sua mulher e filha.

— Isso não é vingança. Essas pessoas nunca lhe fizeram nada. Você nem quer fazer isso. Você quer que eu pague, muito bem, me faça pagar caro. Não eles. Não a minha família.

— É tudo parte do mesmo plano. Com 80 mil mortes, os Santuários do mundo inteiro verão como são vulneráveis. Os Santuários deveriam ter sido desfeitos depois do fim da guerra contra Malevolente. Não precisávamos mais de vocês, Anciãos, montando seus lindos Conselhos, se elegendo para posições de autoridade sobre o restante de nós. Não gosto de gente me dizendo o que fazer. Tenho um problema sério com isso, na verdade. Um sistema como esse, bem, está aberto a todo tipo de abuso. Abortos da justiça, de fato. Seu sistema me deixou na mão e me mandou para a prisão por matar alguém que não tinha matado e, por causa disso, você vai para a prisão pelo assassinato de 80 mil mortais indefesos. Vamos ver se você vai gostar de passar o resto da vida sozinho numa cela. Grande Mago, você tem dois minutos para caminhar até o meio do campo. Acho que é melhor ir andando.

Grêmio não tinha fôlego para falar, e Escaravelho estava prestando atenção ao jogo. O Grande Mago se levantou, com o Engenho Desolador pesando nas mãos. Achou que podia sentir a bomba pulsando com uma vida grave e terrível, mas desconsiderou a ideia. O Engenho não estava vivo. Não tinha consciência ou mente. Não era um objeto malévolo; era apenas um simples objeto. O homem que o detonasse, porém, seria malévolo.

Havia uma brecha entre o lugar onde ele estava e o túnel pelo qual os oficiais entravam e saíam. Poderia passar rapidamente e chegar ao campo antes que alguém pudesse detê-lo. Olhou para Escaravelho. O homem nem sorria mais. Estava calmo perante a morte iminente. É claro que estava. Ele esperava por isso havia 200 anos.

Grêmio desceu da arquibancada, olhando fixamente para o chão adiante. Não queria erguer os olhos e ver as dezenas de pessoas em volta. Desejou poder bloquear todo o barulho: os gritos, os cantos, o trovão da vida; porém, mesmo que tivesse a opção, não sabia se a usaria. Era um homem prestes a cometer uma das maiores atrocidades jamais vistas pelo mundo. Não seria justo que sofresse por isso? Não deveria abreviar tal dor?

Percebeu que os pés ainda se moviam e que ele estava se aproximando do túnel dos oficiais, chegando perto das câmeras e do campo, e nenhuma ideia surgiu. Se não pensasse em algo agora, imediatamente, em alguns segundos ele estaria cometendo assassinato em massa ou condenando a própria família à morte.

— Grande Mago — sussurrou uma voz suave em seu ouvido —, poderíamos conversar?

Ardiloso Cortês segurou o braço de Grêmio, os ossos dos dedos espremendo o cotovelo dele como um torniquete, e subitamente Grêmio estava no túnel dos oficiais, passando pela interseção com o túnel principal que corria sob as arquibancadas. Soltou o braço e se virou, entrando em pânico. Cortês estava ali, com o cachecol escondendo o rosto, o chapéu baixo e o revólver apontado direto à barriga de Grêmio.

— Sanguíneo está com a minha família — contou Grêmio. — Você tem que me deixar fazer isso.

— Entregue o Engenho.

— Ele vai detonar se eu o soltar. Onde está Fletcher Renn? Ele pode salvar você e os outros. Se vocês correrem, podem salvar umas dez pessoas, talvez mais.

Cortês não se moveu.

— As vidas da sua mulher e da sua filha em troca das vidas de 80 mil estranhos? Isso não lhe parece um tanto injusto?

— Você, acima de todas as outras pessoas, deveria saber que farei qualquer coisa para proteger minha família. Pelo menos minha caminhada até o centro do campo lhes dará algum tempo.

— Tempo para salvar um punhado de pessoas e deixar o restante morrer?

— Se tentar me impedir, detonarei o Engenho aqui mesmo.

Cortês concordou com a cabeça e guardou a arma, mas Grêmio sabia o que ia acontecer. Quando Cortês fez o gesto com a mão, Grêmio já estava pressionando o ar. O espaço entre eles ondulou e uma brisa se moveu. Após instantes, o paletó de Grêmio se agitava num vento de furacão que ocorria dentro do túnel e em mais nenhum lugar. Isso não ia funcionar. Ele não tinha a menor chance contra alguém como o esqueleto.

Como se para provar o fato, Cortês subitamente mudou de posição e, ao invés de empurrar o vento, ele puxou. Grêmio cambaleou para a frente e Cortês foi parar atrás dele, passando-lhe um braço pelo pescoço e tentando sufocá-lo. Grêmio lutou, e Cortês soltou o braço e acertou um chute na perna de Grêmio. O Grande Mago quase caiu, mas Cortês estava bem atrás dele, não deixando que o engenho se soltasse. Grêmio deixou que o detetive chegasse mais perto e pressionou a aranha de cobre contra o lado da cabeça de Cortês. As pernas do objeto se abriram e se cravaram no osso, então houve um estalo, como um relâmpago acertando uma árvore. Cortês estremeceu de lado e desabou.

Grêmio não sabia como o Detetive Esqueleto registrava a dor; a mera existência dele era um mistério ainda irresoluto; mas duvidava que até mesmo o grande Ardiloso Cortês conseguisse receber um golpe daqueles e se levantar a tempo de detê-lo.

O mago se virou para o campo e viu Valquíria Caos correndo na direção dele. Tentou varrê-la para o lado, mas a menina era mais rápida, e um rastro de sombras golpeou-lhe o rosto. O tempo de Grêmio tinha acabado, e ele não podia correr o risco de deixar a menina acertá-lo novamente.

— Eu lamento — anunciou e tentou soltar o Engenho Desolador, mas seus dedos não se abriram.

Rosnou, sentindo o ar se fechando ao redor da sua mão, dolorosamente apertado. Era Cortês quem fazia aquilo, encostado na parede com a mão enluvada estendida. Grêmio correu na direção dele, com a intenção de acertar um chute na cabeça, mas Valquíria o golpeou por trás e Grêmio caiu de joelhos. A menina passou o braço pelo pescoço dele e não soltou.

Com a mão livre, Grêmio tentou soltar a chave de braço. Com a outra, ele acertou a bomba com força contra o cotovelo e ombro da menina, mas as roupas dela tinham sido feitas por Reservado. Ela provavelmente nem sentiu os impactos. Com o canto do olho, Grêmio viu Ardiloso se levantando, com a mão ainda estendida.

O Grande Mago se inclinou, puxando Caos para a frente, e bateu com a bomba na cabeça dela. A menina gritou e a chave de braço cessou. Grêmio empurrou o ar e acertou o peito de Cortês em cheio. O esqueleto foi jogado para trás, e a pressão ao redor da mão de Grêmio desapareceu.

Grêmio ficou ali parado, ofegando com o esforço, o coração disparado. Ele abriu a mão.


47

LOUCO

Grêmio desapareceu.

Valquíria olhou em volta. Ela havia percebido Fletcher correndo na direção do Grande Mago, mas agora ele também tinha sumido, e a menina soube imediatamente o que ele tinha feito. Ele viu que Grêmio estava a ponto de soltar o Engenho Desolador e cruzou a distância entre eles num piscar de olhos. Depois teleportou os dois para longe, para um lugar seguro, onde a bomba não pudesse machucar nenhum inocente. Mas teria sido rápido o suficiente para fazer isso e se teleportar para longe antes que a bomba detonasse? A mão de Grêmio estava aberta quando ele sumiu, e a bomba já tinha começado a cair.

Ela ajudou Ardiloso a se levantar. Ele tirou alguma coisa do lado da cabeça que parecia uma aranha de metal e a deixou cair.

— Você acha que Fletcher escapou? — indagou baixinho. Ardiloso não respondeu.

Valquíria ligou para o celular de Fletcher. Caiu direto na caixa postal. Ela acenou positivamente com a cabeça, bloqueando os pensamentos, lutando para se concentrar nos problemas atuais, mesmo que uma parte dela, lá no fundo, estivesse gritando. Não tinha percebido como Fletcher era importante para ela. Não tinha querido perceber.

— Escaravelho ainda está sentado ali — comentou ela.

— E Sanguíneo ainda está com a família de Grêmio — informou Ardiloso. Ele cambaleou e a menina o segurou. — Não posso sair agora. Preciso de alguns minutos para me recuperar.

— Eu cuido disso — disse Valquíria. Ela correu para fora do túnel. Um oficial fez cara feia e ela o ignorou, subiu as escadas e foi direto até Escaravelho, que observou a chegada dela. Nada de sorrisos agora.

— Grêmio se foi — contou ela, sentando-se ao lado dele. — Fletcher o teleportou para longe. Seu planinho acabou, está bem? Já era.

— Teleportadores — murmurou Escaravelho, balançando a cabeça. — Jamais gostei deles.

— Nós o derrotamos — afirmou a menina com ódio puro e real. — Todas essas coisas horríveis que você fez e todos os meus amigos que você feriu ou matou, foi tudo por nada. Derrotamos você e você fracassou. Cadê a família de Grêmio?

Escaravelho esfregou os olhos. As mãos dele tremiam. Parecia tão velho, agora. Velho e deprimente e patético.

Valquíria pôs a mão no ombro dele e pressionou um feixe de nervos. Ele se contorceu subitamente de dor, mas ela não soltou.

— Cadê a família dele?

— Estão com Billy-Ray — cuspiu.

— Elas estão vivas?

— Sei lá.

Ela apertou mais.

— Cadê elas?

— Não sei o nome da rua. Ligue para ele. Peça que ele explique o caminho, já que você está tão ansiosa para salvá-las.

Valquíria tomou o telefone do casaco dele e, ao fazê-lo, algemou-lhe o pulso. A adolescente se levantou, guardando o celular no bolso e puxando o velho. Quando chegaram aos degraus, ela algemou o outro pulso. Empurrou-o à frente, voltando para o túnel dos oficiais. O mesmo sujeito que tinha feito uma cara feia tentou bloquear a passagem da menina. Valquíria ergueu a mão até o peito dele e bateu com a palma. O ar ondulou de leve e o oficial foi lançado para trás. As pessoas ao redor dela, sem conhecer a magia que ela havia usado, acharam tudo muito engraçado.

Os dois desceram para o túnel e ela empurrou o velho para Ardiloso.

— A família de Grêmio? — indagou Ardiloso.

— Vou atrás deles agora — respondeu Valquíria, indo embora, ignorando os protestos do esqueleto.

Ela correu pelos degraus e olhou o telefone de Escaravelho. Havia apenas um número na agenda. Ela deixou para trás o rugido das torcidas e discou.

— Não tô vendo milhares de pessoas mortas na TV — reclamou Sanguíneo.

— Não vai rolar — respondeu a menina. — Seu papai está algemado e o Engenho Desolador está bem longe daqui. Todos os seus amiguinhos foram derrotados. Só sobrou você.

— E você tá vindo atrás de mim, é isso, Valquíria?

— Isso mesmo. Só eu e você, Billy-Ray.

— É impressão minha ou você tá assim particularmente raivosa hoje?

— Se Fletcher estiver morto, eu vou matar você.

— E você tá num clima meio vingativo, hein? Legal, uma mina tem que fazer o que uma mina tem que fazer, né verdade? Pegue um carro pra Howth. Nashville Drive, número 41.

— Estou a caminho.

— Estou esperando.

Desligou.

O táxi saiu rapidamente da cidade e em minutos eles estavam na estrada estreita que levava à península de Howth. Ela era capaz de fazer isso. Ela era capaz de vencê-lo. Se Billy-Ray ainda tivesse a magia dele, então, não, ela não seria tão burra assim. Mas ele não tinha mágica, ela sim, e planejava usá-la. No caminho a menina se concentrou, manteve a cabeça ligada naquilo que teria que fazer, naquilo que estava prestes a acontecer. Não em Fletcher. Ela não pensou em Fletcher. Não podia.

Valquíria pagou o taxista e correu até o número 41. Era uma bela casa, assim como todas as outras belas casas da Nashville Drive. Ela não sabia como Sanguíneo tinha vindo parar aqui, mas não importava. A única coisa relevante era se vingar dele. Ele tinha ferido Valquíria, então ela ia feri-lo. Se a família de Grêmio ainda estivesse viva, isso seria um bônus.

Ela não pretendia ser sutil. Não tinha tempo ou temperamento para tal. Estalou as duas mãos contra o ar, o espaço diante dela tremulou e a porta da frente voou das dobradiças.

Valquíria entrou com sombras se retorcendo ao redor da mão direita, chamas ardendo na esquerda. A sala de estar estava vazia, assim como a cozinha. A menina entrou mais, foi aos quartos. Havia uma mulher e uma garota algemadas juntas no chão, num canto do quarto principal, amordaçadas.

Valquíria se virou, esperando deparar com Sanguíneo atrás dela, mas o corredor estava vazio. Com dois pares de olhos assustados a vigiando, Valquíria voltou ao quarto, abrindo completamente a porta. Esta se abriu lentamente e bateu na parede. Foi até o banheiro da suíte, usando o espelho para ver se estava vazio, e correu para dentro, mas não havia nenhum lugar onde Sanguíneo pudesse estar escondido.

Voltou ao quarto. A mão direita chicoteou uma trilha de sombras por baixo da cama. Não tocaram nada. A adolescente olhou para o armário, com as duas portas fechadas. Se ele estivesse ali dentro, estaria vigiando ela agora, e veria como ela estava tensa. Assustada.

Valquíria apagou as chamas e abandonou as sombras. Empurrou o ar e o armário se despedaçou completamente. Roupas caíram dos cabides que voavam, mas, quando tudo se acalmou, não havia ninguém ali dentro.

A adolescente foi até a mulher e a garota e puxou as mordaças.

— Onde ele está? — perguntou.

— Não sei — respondeu a mulher. Era mais jovem do que Valquíria tinha esperado. A garota parecia ter 12 anos. — Ele nos trouxe para cá há dez minutos. Não o vimos desde então. Túrido está bem?

— Acho que sim — mentiu Valquíria. Não podia fazer nada quanto às algemas, mas queimou as cordas que prendiam os pés delas e ajudou-as a se levantarem. — Tire sua filha daqui.

— O que você vai fazer? Não pode enfrentá-lo sozinha!

— Claro que posso.

Valquíria usou as sombras para quebrar a janela e ajudou a mãe e a filha a saírem por ali. Pegou o celular e discou. De algum outro lugar da casa veio a musiquinha country.

A adolescente saiu para o corredor e estendeu a mão. As correntes naturais do ar passaram por ela, que as sentiu e buscou mais fundo. Mal sentiu um deslocamento no ar, mas não precisava de mais nada para avançar. O celular estava na mesa da sala de estar e parou de tocar quando Valquíria se aproximou. Esperou que ele estivesse bem atrás dela antes de se virar.

As sombras saltaram sobre ele, mas Sanguíneo rolou, riscando a navalha na perna de Valquíria, sem conseguir cortar. Em seguida ele se levantou e ela empurrou o ar, acertando o inimigo no ombro e fazendo-o girar. Sanguíneo completou a volta e atacou novamente.

O assassino se chocou contra a menina, que se espatifou na mesinha de centro, esparramando as revistas no tapete. Ela tentou se levantar, mas escorregou numa das revistas. O joelho de Sanguíneo veio na direção dela. O mundo piscou e a cabeça dela foi jogada para trás. O assassino ergueu a adolescente e a atirou contra a parede, e logo estava encostado nela outra vez, com a navalha na garganta da presa.

— Shhh — sibilou ele.

Valquíria não tinha nenhuma forma de impedir que Sanguíneo lhe cortasse a garganta. Ela parou de lutar.

— Ótimo — disse ele, sorrindo. — Você realmente veio até aqui sozinha, meu Deus. Você deve estar muito furiosa para deixar o esqueleto para trás. Você achou que seria capaz de me vencer?

— Achei — respondeu, por entre dentes.

— Realmente, podemos concordar que isso foi um erro. Acha que eu vou matar você? Eu deveria. Eu certamente deveria. Você acha que eu deveria?

Valquíria não respondeu.

— Você provavelmente diria não, mesmo se achasse que eu deveria, então não sei por que estou perguntando.

— Por que você não as matou?

— A mulher e a garota? Não tinha motivo. Eu só precisava delas para obrigar Grêmio a explodir a bomba. Apesar do que você possa pensar de mim, não costumo matar sem um bom motivo. Geralmente é dinheiro, às vezes é por causa de um capricho meu, e não era nenhum dos casos. Mas matar você, princesa, ah, eu tenho ótimos motivos para isso. Você tomou minha magia. Você estragou nosso plano. Cadê meu velho querido?

— Está com Ardiloso.

— Então pode estar algemado ou morto. Nunca dá para saber, no caso do detetive, né? É isso que me diverte... Vocês todos me chamam de psicopata, e vocês não percebem o óbvio... Seu amigo Ardiloso é um assassino de sangue frio. Tipo, o cara é seriamente doente. Um doente reconhece o outro, né?

— Ele está se reajustando.

Sanguíneo riu.

— Essa é ótima! Eu devia tentar essa aí! “Eu não queria matar todos aqueles órfãos, detetive... eu tô me reajustando!” Ah, hilário. Mas acho que você não me entendeu. Não foi essa viagenzinha dele que deixou o cara doido, ele sempre foi maluco! Vocês é que não viram ainda.

— Se você me matar — argumentou Valquíria —, ele vai matar você.

— Sem dúvida. Ainda bem que eu decidi não matar você. Crepúsculo ligou alguns minutos antes de você... Ele tava dando o fora de lá antes que a bomba explodisse. Contou que mordeu você, e eu vejo pelo lindo ferimento no seu pescoço que não era mentira. Enfim, ele me contou que te mordeu, e que eu deveria reconsiderar todo aquele lance de “Eu quero matar Valquíria Caos”, que nem ele fez. Você sabe por que ele me disse isso?

— Não sei.

— Não sabe? Quer que eu conte pra você por que ele me disse aquilo? Quer?

— Claro.

Sanguíneo sorriu.

— Ele provou do seu sangue. Você tem um sangue especial pacas. Sabia disso?

Valquíria olhou feio para ele.

— Sabia.

— Não — retrucou o assassino. — Acho que você não sabia. Veja bem, você descobriu que é descendente do Último dos Antigos e pronto, é só por isso que você é especial e nada mais. Estou aqui pra lhe dizer, senhorita, que não é só isso, não. Você tem mais uma pá de coisas legais rolando aí. Não que eu queira deixar você metida a besta, mas tudo em você grita ela é importante. E eu tô falando importante em escala cósmica. Tudo o que escuto sobre você só faz reforçar a ideia de que você, querida, é uma menina muito especial.

“Quando invadi o Templo dos Necromantes, ouvi alguns deles falando de você. Chamaram você de Arauto da Morte. Pela sua cara, tô ligado que você sabe o que é isso. Aparentemente você é a Grande Esperança das Trevas deles, agora que o Lorde Vil se foi. Imagine só. Você e Lorde Vil... farinha do mesmo saco, hein? Não é o máximo?”

Ele começou a bater levemente com a lâmina na pele dela.

— É uma grande responsabilidade, sabe? O Arauto da Morte é aquele que salva o mundo, não é mesmo? Você está pronta para salvar o mundo, Valquíria? E não digo salvá-lo de homens maus ou de deuses assustadores. Tô falando salvar o mundo dele mesmo. Você se acha digna disso?

— Não sei.

— Bem, você é honesta. Tenho que admitir.

Ele bateu mais uma vez com a lâmina e Valquíria esperou até que não estivesse lhe tocando mais a pele para lançar as trevas contra Sanguíneo. Ele foi jogado para trás, de cabeça para baixo, deixando os óculos escuros cair.

— Diacho — grunhiu. — Eu disse que não vou matar você, não disse? Não disse isso?

— Mas você não disse por quê.

Sanguíneo se levantou lentamente, limpando as roupas. Olhou para Valquíria sem precisar de olhos.

— Eu tô com a sensação de que coisas ruins vão acontecer, e tô com a sensação de que você estará bem no meio de tudo. Não vou matar você porque, honesta e sinceramente, queridinha, é muito mais divertido manter você viva. Isso, eu acho, vai ser minha verdadeira vingança. — Ele sorriu novamente e apontou os óculos escuros aos pés dela. — Você se importaria?

Valquíria pegou os óculos e pensou em esmagá-los, mas por fim jogou-os para ele.

Sanguíneo colocou os óculos.

— Muito agradecido.

— Na próxima vez que eu souber que você está no país — avisou Valquíria —, vou presumir que veio me matar e vou atrás de você. E não vou deixar você escapar.

— Sei que você fará o melhor. — Ele concordou com a cabeça. — Diga adeus a todos eles por mim, por favor. Especialmente à moça da espada. Tenho uma grande simpatia por ela, admito mesmo.

— Tenho certeza de que ela vai adorar.

Sanguíneo riu.

— Boa sorte pra você, Valquíria Caos. Você tem uma vida inteira de dias sombrios pela frente, se não me engano. Eu curtiria os momentos tranquilos, se fosse você.

Ele tocou a têmpora com o dedo, numa saudação, e foi embora.


48

UM MOMENTO TRANQUILO

Valquíria pegou outro táxi de volta ao Croke Park e chegou quando as torcidas deixavam o estádio. Metade cantava, a outra metade não. Ela não sabia quem tinha vencido o jogo. Não se importava.

Ligou para Ardiloso, que disse onde estava. Deu a volta pelos fundos do estádio, se esgueirando por uma porta marcada “Apenas Funcionários”. Viu Talhadores embarcando Jack Saltador nos fundos de uma van. Ele chutava e lutava. Eles fecharam a porta e os gritos do monstro foram cortados.

Ardiloso estava com Medonho e Frêmito junto a uma porta que dizia “Proibida a Entrada”. Caelan estava um pouco afastado. Todos se viraram para Valquíria enquanto ela chegava. A adolescente não falou nada.

Davina Mácula levou Escaravelho até uma segunda van. Ela entrou depois dele, seguida por um Talhador, e a van foi atrás da outra. Feiticeiros estavam por todos os lados no estádio, com a tarefa de encobrir tudo o que precisasse ser encoberto.

— Crepúsculo e Remus Crucial continuam desaparecidos — informou Medonho. — Vaurien Patife também, mas não sei se ele conta.

— Não sei quanto a Crucial ou Patife — comentou Valquíria —, mas Sanguíneo e Crepúsculo superaram esse negócio de vingança.

Ardiloso concordou com a cabeça e não perguntou nada. Valquíria sabia que as perguntas viriam mais tarde.

— Caramba, onde foi que vocês se meteram? — perguntou Fletcher Renn ao sair da chuva.

Valquíria se virou, viu o rapaz ali e no momento seguinte estava com os braços em volta dele e a cabeça no seu ombro. Fletcher riu e retribuiu o abraço. Ele estava encharcado, mas Valquíria não se incomodou.

Túrido Grêmio veio correndo depois dele e foi direto atrás de Ardiloso.

— Minha família — urgiu. — Sanguíneo está com...

— Eles estão bem — assegurou Valquíria, se afastando de Fletcher e se recompondo. — Estão em Howth, perto da Nashville Drive.

O Grande Mago olhou para a menina surpreso. Estava encharcado também.

— Ele as soltou?

— Eu as soltei — respondeu Valquíria. — Mas acho que ele não ia machucá-las. Era você que eles queriam ferir.

— O que aconteceu? — indagou Frêmito a Grêmio. — Onde está a bomba?

— O Sr. Renn nos teleportou para algum lugar acima do oceano — explicou Grêmio.

— Fiz um cruzeiro uma vez — contou Fletcher. — Achei que seria divertido. Foi chato, então fui embora no meio. Mas eu precisava de algum lugar seguro, um lugar sem nenhuma pessoa, e me lembrei desse. Me teleportei pra lá, larguei o Grande Mago e me teleportei para longe dali. — Ele se virou para Valquíria. — Falando nisso, já consertaram a sua janela.

Ela franziu a testa.

— Você se teleportou para o meu quarto?

— Não foi de propósito. Não tive tempo para pensar, sabe? Precisava ir a algum lugar seguro e fui parar lá. Ninguém me viu. No entanto, seu quarto ainda está uma zona.

Valquíria fez cara feia e ele riu.

— O Engenho Desolador detonou — disse Grêmio, retomando a história. — A explosão me deixou ileso, mas imagino que tenha vaporizado todos os peixes ao meu redor.

— Antes os peixes que as pessoas — comentou Medonho.

— Não se você for um peixe — discordou Frêmito.

— Eu estava no mar — continuou Grêmio. — E tentei imaginar o que teria acontecido se eu tivesse detonado a bomba com toda aquela gente em volta. Você salvou mais de 80 mil vidas hoje, rapaz.

O sorriso de Fletcher congelou.

— Eu... Eu não tinha pensado nesses termos.

— Eu lhe devo tudo.

— Hum. Uau.

— Eu devo tudo a todos vocês.

— Mas me deve mais — comentou Fletcher.

— Escaravelho está vivo — disse Ardiloso. — Mácula o levou preso.

Grêmio ficou pálido por um momento.

— Então ela vai descobrir a verdade.

— Talvez ela não conte nada a ninguém — disse Medonho.

— Não. Ela vai contar. E deveria. Depois de hoje, depois das coisas que estive prestes a fazer, acredito que mereço ser responsabilizado pelas minhas ações. Se for levado a julgamento, que seja.

— Túrido — disse Ardiloso —, estamos falando em uma provável sentença de prisão.

— Estou ciente das implicações, Detetive. Mas, por hora, vou cuidar da minha família. Estou muito grato a todos vocês. — E partiu.

— Mas mais grato a mim! — gritou Fletcher, e Valquíria lhe socou o braço. Assim que fizeram contato, se teleportaram.

Valquíria olhou em volta. Estavam na enfermaria de Conspícuo.

— Achei que você ia gostar de dar uma olhada nessa mordida. — Fletcher sorriu enquanto esfregava o braço. O cabelo dele estava achatado em algumas partes e espetado nos lugares errados.

— Seu cabelo está lindo.

Ele riu e estava prestes a responder quando Valquíria agarrou a gola dele e o puxou para si. Valquíria colou os lábios ao redor da boca do rapaz e empurrou o rosto contra o dele. Fletcher deu um passo atrás, surpreso, e ela foi junto, pisando numa poça. Valquíria escorregou e agitou os braços ao cair, acertando Fletcher na garganta. Ela olhou o rapaz do chão enquanto ele engasgava e tossia e, do outro lado do corredor, dava para ouvir Tanith rindo histericamente.

— Acho que preciso de prática — murmurou Valquíria.


49

ESCOLTANDO O PRISIONEIRO

— Quantas vezes já salvei sua vida? — perguntou Conspícuo Lamento. — Mais do que algumas, aposto. Já limpei cortes e suturei ferimentos e consertei ossos, e todas as vezes que você vai embora, recomendo cautela. E alguma vez você foi um pouco cautelosa? Parece-me que jamais. Você acha que estou brincando quando recomendo cautela? Quando mando você ficar fora de encrencas? Quando peço que você não se mate? A impressão que tenho, a impressão que este pobre, negligenciado, mal-entendido, nada apreciado velhinho aqui tem é que você realmente acha que eu estou brincando. Fora todos os outros problemas, isso me credita um senso de humor que não tenho nem desejo.

— Não acho que você esteja brincando — respondeu Valquíria, tentando apaziguá-lo.

— Uma mordida de vampiro — continuou Conspícuo. — Você foi vítima de uma mordida de vampiro. Você realmente acha que é um ferimento apropriado a uma jovem senhorita?

— Provavelmente não, mas agora estou curiosa para saber qual seria um ferimento apropriado.

— Você foi mordida, Valquíria. Suas roupas mágicas não a protegeram disso, protegeram? Sua língua afiada não rechaçou aqueles dentes afiados, rechaçou? Você poderia ter morrido, garota tola, ou no mínimo ter se transformado numa daquelas coisas.

Valquíria olhou para ele e não disse nada.

O rosto ranzinza se suavizou.

— A cura para mordidas de vampiros muda radicalmente dependendo do tempo que a vítima levar para procurar tratamento. Você teve sorte de me procurar imediatamente.

— Estou curada?

— Você está curada.

— Isso quer dizer que você vai parar de me chamar de vítima?

Ele suspirou.

— Às vezes as minhas boas maneiras deixam algo a desejar. Não é minha intenção fazer sermões o tempo todo.

— Eu não me incomodo.

— Mas eu realmente queria que você fosse mais cuidadosa.

— Eu também.

— E como vai a dor de cabeça?

— Quase boa. Não sei qual é a causa. Talvez meu cérebro esteja vazando.

— Para ter um vazamento de cérebro, você precisa ter um cérebro primeiro. — Conspícuo sorriu, mas depois o sorriso vacilou. — Acho que Tanith Low está com medo de mim.

— Tanith não tem medo de ninguém.

— Medo e ódio são facilmente confundidos.

— Dê algum tempo a ela. Tanith sabe que não foi você quem a machucou. Como vai você, aliás?

— Estou bem. Um pesadelo ou outro, de vez em quando, mas era de se esperar. É uma bênção, na verdade, minha incapacidade de me lembrar do que aconteceu. Acho que seria demais para mim. Queria nunca mais ferir alguém de novo.

— Você não feriu Tanith — afirmou Valquíria, com o máximo de firmeza possível. — O Remanescente feriu. Você é você agora, o Conspícuo que me passa sermões enquanto cuida de mim. Ele é o único Conspícuo real.

— Você é sábia além da sua idade.

— Sempre achei isso.

Conspícuo manteve Valquíria de cama por dois dias. Tanith foi transferida para a cama ao lado. Ardiloso as visitou várias vezes, e Medonho apareceu no segundo dia. Fletcher estava sempre por perto, e Porcelana, cumprindo a promessa, não deu as caras.

Ao deixar a enfermaria, as feridas de Valquíria estavam curadas e as cicatrizes quase desaparecidas. Mácula ligou para lhes dizer que Túrido Grêmio tinha requisitado que Ardiloso e Valquíria o escoltassem da cela temporária do Santuário até a prisão. Ardiloso concordou, mais por curiosidade do que qualquer outra coisa, e buscou Valquíria de manhã cedo na rua do prédio de Conspícuo.

— Estamos adiantados — comentou a adolescente enquanto atava o cinto de segurança.

— Duvido que Grêmio vá se importar — respondeu Ardiloso, com os óculos escuros, o cachecol sobre a mandíbula e o chapéu bem baixo. — Ele vai passar perto de 300 anos preso graças à participação dele no assassinato de Vanguarda e no acobertamento do crime. Acho que dez minutos não farão grande diferença para ele, honestamente.

— E qual seria o motivo de ele ter nos convidado, na sua opinião? Certamente existem pessoas mais amistosas para essa despedida?

— Era de se imaginar, não era? Talvez ele queira lhe agradecer novamente por ter salvado a família dele. Ou quer nos contar alguma coisa.

— Um segredo?

— Informações confidenciais, talvez. Ele é o Grande Mago, afinal.

— Era.

— Ah. Sim.

— Eu queria saber quem é que vai assumir o cargo. Eu me pergunto quem vai querer o cargo. Nos últimos três anos, um Grande Mago foi assassinado e o outro mandado para a prisão. Quem vai querer esse emprego?

— Sempre existirá gente atrás de poder, Valquíria. Nunca subestime a cobiça.

Eles pararam num sinal e um bando de garotos ficou olhando o Bentley até ele andar de novo.

— Às vezes eu gostaria que você pudesse dirigir um carro mais discreto — suspirou a adolescente.

— Eu posso — respondeu Ardiloso. — Só que eu não quero.

— Sabe, eu estava pensando...

— Péssimo jeito de começar uma conversa.

— Cala a boca. Bem, eu estava pensando, talvez você devesse pedir a Porcelana uma tatuagem de fachada, que nem ela fez para o Medonho. Assim você não teria que se preocupar com o cachecol e os óculos.

Ele encolheu os ombros.

— Estou pensando no assunto.

— Sério?

— Se ela consegue fazê-lo, por que não?

— Que tipo de rosto você teria? Seria seu? O seu próprio, quero dizer. Aquele que você costumava ter?

Ardiloso ficou quieto por um momento.

— Aquele rosto está morto — disse, afinal. — Trazê-lo de volta seria...

— Doloroso?

O esqueleto olhou para a adolescente.

— Imagino que sim.

Ela concordou com a cabeça e sorriu.

— Ver você com um rosto seria muito estranho. Você acha que vai ter cabelo?

— Ah, sim, cabelo é indispensável.

— E teria um bigode?

— Por que eu teria um bigode?

— Sei lá. E orelhas?

— Eu teria orelhas também, sim.

— Não consigo imaginar você com orelhas.

Alguns minutos depois eles pararam no estacionamento atrás do Museu de Cera e saltaram do carro. Foram até a porta do museu.

— Estou com Fletcher — anunciou Valquíria subitamente. Ardiloso se virou para ela e não disse nada.

— Estamos juntos, uma coisa assim, namorada e namorado — continuou a menina, perfeitamente ciente de como soava ridícula. Os dois caminhavam pelos corredores do museu.

— Bem? — indagou Valquíria. — O que você acha? Tem uma opinião sobre o assunto? Vai dizer alguma coisa?

— Vou — disse ele, afinal.

Ardiloso cumprimentou a estátua de cera de Phil Lynott, que disse que eles estavam sendo esperados, e Ardiloso desceu na frente. O Detetive Galhardo os recebeu no fim da escada e pediu que esperassem na Sala de Reuniões enquanto ele lhes traria Grêmio. Os dois voltaram a andar e Ardiloso falou.

— Valquíria, desde que você me trouxe de volta, eu ando distraído. Minha concentração não está 100% e meu foco é... insuficiente. Sabia que havia alguma coisa entre vocês, mas não vi o quê. Foi necessário que você me contasse. Quem sabe como tudo isso poderia ter se desenrolado se eu não estivesse tão distraído?

— Os Sem-Rosto caçaram e torturaram você — respondeu Valquíria. — Isso deixaria qualquer um distraído.

— Mas não posso mais arcar com o preço dessa distração. Trevária está vindo e precisamos estar em plena forma. De alguma forma, por algum motivo, você está intrinsecamente ligada a tudo o que vai acontecer.

— A mãe de Medonho era uma Sensitiva — contou Valquíria. — Ele me falou disso tudo pouco antes de você passar pelo portal. Ela olhou para o futuro e viu que eu e você lutaríamos contra uma criatura de trevas. Medonho afirmou que era um mal inimaginável; o mundo à beira da destruição.

— Parece muito com o que Finbar e Cassandra estão vendo.

Chegaram à Sala de Reuniões. Estava vazia. Valquíria respirou fundo e se obrigou a continuar falando.

— Todas as visões que nos contaram até agora — falou. — Todas elas terminam do mesmo jeito. Eu morro. Quero apenas ser forte o bastante para salvar todas as outras pessoas. Quero salvar minha família.

Ardiloso olhou para ela.

— Sendo assim — continuou Valquíria —, isso o que está acontecendo e o que vai acontecer, nada disso é culpa sua. Você não pode controlar tudo e nem tudo é responsabilidade sua. Em Croke Park, você disse algo sobre não querer me arrastar por aí só para que eu possa morrer ao seu lado. Eu queria lhe explicar então, mas não tinha as palavras necessárias e nem o tempo. Estou aqui porque escolhi estar. Você salva minha vida. Eu salvo a sua. É assim que nós trabalhamos.

— Até o fim.

— Até o fim.

Ele se aproximou dela.

— Obrigado por me salvar — agradeceu o detetive suavemente e a abraçou com os braços de esqueleto. Valquíria sorriu e retribuiu o abraço.

Eles se separaram quando a porta se abriu e Galhardo chegou com Túrido Grêmio. As mãos de Grêmio estavam algemadas diante dele.

— É todo seu — anunciou Galhardo e foi embora.

— Você chegou cedo — reclamou Grêmio. — Será que a ideia da minha prisão o deixa tão ansioso que não conseguiu esperar pela hora marcada?

— Bom ver você também, Túrido — cumprimentou Ardiloso. — Está pronto para ir?

Parecia que Grêmio estava prestes a responder com mais um comentário sarcástico, mas enrijeceu o rosto e fez que sim com a cabeça. Subitamente, Valquíria estava com pena dele. Era um homem que tinha tentado fazer a coisa certa e, por isso, seria tirado da família e provavelmente nunca mais os veria de novo.

Os três saíram, com Grêmio no meio, passando por feiticeiros que evitavam olhar o ex-Grande Mago. Valquíria não se sentia bem. A sensação era muito parecida com aquela de uma carrasca, levando um condenado à câmara de execução.

— Quanto tempo até o Santuário estar funcionando plenamente outra vez? — perguntou Ardiloso.

— Mais alguns dias — respondeu Grêmio, parecendo aliviado por poder falar de alguma coisa além do futuro dele. — A maioria dos artefatos foi devolvida ao Repositório, e alguns departamentos já voltaram a trabalhar. Os prisioneiros serão trazidos de volta à Prisão, sob segurança pesada, é claro. Não que eu me incomode. Imagino que eles estejam muito felizes em ter a chance de passar algum tempo fora daquelas jaulas. Pelo menos não terei de ficar enjaulado quando eu estiver preso.

— Faz muito bem — comentou Ardiloso. — Veja sempre o lado bom das coisas.

Grêmio olhou feio.

— E por que você está me transportando, afinal? Uma tentativa patética de conseguir alguns últimos insultos? É realmente ridículo.

Ardiloso inclinou a cabeça.

— Estamos transportando você porque você pediu.

Grêmio riu amargurado.

— Que bobagem é essa? Claro que não pedi.

— Falei com a Detetive Mácula. Ela me disse que você nos requisitou.

— Por que eu requisitaria vocês? Eu não gosto de vocês. Certamente não desejo passar meus últimos minutos fora de uma cela de prisão com vocês.

Viraram uma esquina e passaram por um homem que usava uma capa de chuva com o capuz levantado. Valquíria viu o rosto dele de relance.

— Myron? — chamou Valquíria, mas ele não se virou.

— Myron Desgarrado? — indagou Ardiloso.

— Era ele mesmo — respondeu Valquíria.

— Não pode ser — comentou Grêmio ao ver o homem continuar andando. — As únicas pessoas que podem passar pelos Talhadores são aqueles na lista, e Desgarrado jamais estaria na lista.

— Tenho certeza de que era ele — insistiu Valquíria.

— Myron — chamou Ardiloso em voz alta.

O detetive Galhardo virou a esquina oposta, ouviu o grito de Ardiloso e interceptou o homem de capa de chuva, arrancando-lhe o capuz. Myron Desgarrado tinha trilhas de sangue seco ao redor das orelhas e a boca estava bem fechada, mesmo enquanto os olhos estavam esbugalhados.

— Ele perfurou os tímpanos — afirmou Ardiloso.

— Por quê? — indagou Valquíria, franzindo o cenho.

— Porque alguém mandou.

Desgarrado se livrou de Galhardo com um tranco e acabou tirando a mão do bolso. Galhardo viu o Engenho Desolador, com o líquido vermelho em ebulição e imediatamente se afastou.

— Ele está sendo controlado! — gritou Ardiloso. — Corram! — urrou. — Evacuem o prédio!

Valquíria viu as lágrimas nos olhos de Desgarrado e a bomba detonou. Ela explodiu com um “whump” suave. O líquido se transformou numa bola de energia vermelha e a bola se expandiu. Ela calcinou a carne nos ossos de Desgarrado e ferveu o sangue dele. Viajou pelo corpo do homem, transformando os ossos em cinzas. O chão debaixo dele agora era um tapete de pó. Galhardo tentou correr, mas era lento demais. Nem teve tempo de gritar.

Ardiloso passou um braço pela cintura de Valquíria, segurou Grêmio com a outra mão e decolou. Voaram pelos corredores, passando por feiticeiros espantados que viam o que estava vindo, mas não tinham como escapar. Valquíria viu as paredes desabando e as pessoas morrendo, e ainda assim a bola de energia crescia e os perseguia, mais rápido do que eles poderiam se mover.

Quando as paredes cederam, o teto desabou e Ardiloso os levou para cima. Deram uma guinada para desviar dos escombros e a bola de energia tocou Grêmio, que gritou quando uma das pernas foi desintegrada. Subiram envoltos em trevas, ao som dos gritos de Grêmio, e irromperam em meio à luz e à chuva. Continuaram subindo, até que a bola de energia alcançou seu ápice e se retraiu.

Pousaram num telhado. Grêmio tinha desmaiado, com o toco da perna cauterizado pela própria energia que o havia mutilado. Ardiloso o deitou no chão e se juntou a Valquíria na beirada. O Museu de Cera rachou e desabou no abismo de poeira. Eles olharam quando o Bentley caiu e foi esmagado sob o nível da rua, sendo engolido pelo chão. O prédio onde eles estavam tremeu, mas permaneceu sólido. Enfim, o estrondo cessou, e restaram apenas nuvens de poeira e alarmes de carros.


50

DE VOLTA A HAGGARD

Um pouco mais de 22 horas depois, Valquíria entrou pela janela do quarto. O reflexo entrou no espelho e ela absorveu as memórias. A adolescente vestiu as roupas que o reflexo estivera usando e desceu. Fez uma xícara de chá para a mãe e ficou sentada à mesa da cozinha, vendo o pai fazer uma demonstração do novo assento de bebês que tinha comprado para o carro. Ela se esforçou para sorrir com as macaquices dele.

O Santuário não existia mais. Fora destruído. Vinte e nove feiticeiros e 21 Talhadores tinham morrido. Davina Mácula estava desaparecida e todos os agentes sobreviventes a estavam caçando.

Eles interrogaram Escaravelho, que negou saber do ataque. Alegou jamais ter falado com Mácula. Ela não fazia parte do plano dele. Escaravelho ficou feliz em saber que tamanha destruição tinha sido obra de um dos próprios agentes do Santuário.

Ardiloso não sabia por que Mácula fez o que fez, mas sabia como. O Engenho Desolador recuperado no castelo jamais fora entregue aos técnicos para ser desativado. Mácula o guardou e o entregou a Myron Desgarrado. Ela colocou o nome dele na lista, para que pudesse entrar no Santuário sem maiores problemas, e fez o possível para garantir que Ardiloso e Valquíria também estivessem lá. Usando o nome verdadeiro de Desgarrado, ela ordenou que ele estourasse os próprios tímpanos para não ouvir ordens contrárias às dela. Ardiloso acreditava que ela teria mandado ele manter a boca fechada, sem avisar a ninguém o que estava prestes a fazer. Ela deu todas as instruções a ele, menos que não tivesse medo, portanto Myron Desgarrado entrou no Santuário perfeitamente ciente do que estava prestes a fazer, mas completamente incapaz de evitá-lo.

Quanto ao restante do país, todos achavam que o Museu de Cera tinha desabado sozinho, e era um milagre que ninguém tivesse se machucado. A verdade não apareceria nos jornais. Os mortos foram velados em silêncio e privacidade, os escombros foram removidos e a enorme cratera foi aterrada. Em mais alguns dias, Ardiloso tinha dito, não restaria mais qualquer sinal da existência do Santuário ali.

Valquíria subiu as escadas, pôs shorts e uma blusa e se deitou cedo, com a chuva batendo gentilmente na janela. Cinco minutos depois, estava dormindo.


51

SUSSURROS

O pesadelo a acordou.

Ela se sentou e pôs as pernas para fora da cama. Estava frio e o quarto estava escuro. A casa estava silenciosa. Era o meio da madrugada. O pesadelo se agarrava a ela com tentáculos fumacentos, enevoando-lhe a mente, e Valquíria percebeu um sussurro tênue no quarto.

O sussurrador de sonhos que Cassandra lhe dera estava na prateleira onde a menina o deixara, e estava falando a Valquíria em tons murmurantes que pareciam alcançar o interior dos pensamentos dela, trazendo o pesadelo de volta bem quando a dor de cabeça começou a martelar as têmporas.

Então, finalmente, ela conseguiu ver. Finalmente, a adolescente conseguiu se lembrar da coisa que a atormentara desde que ouviu o nome havia dois dias.

O sussurrador continuava sussurrando, e Valquíria viu o pesadelo de novo na cabeça. Viu Serpênteo e seus olhos esmeraldinos cintilantes. Viu a luta no Repositório três anos antes, quando ele enfrentou Ardiloso Cortês. O Livro dos Nomes tinha caído e ela deu uma olhada. Tinha visto o próprio nome recebido, Stephanie Edgley, e o nome escolhido de Valquíria Caos. E, na última coluna, a coisa final que ela havia visto e só se recordava agora...

Não deveria ter ficado surpresa, é claro. Tinha sentido aquilo dentro de si, mesmo antes de conhecer a magia, aquela parte dela que descendia do matador de deuses. O Último dos Antigos tinha sido poderoso e forte, e tinha atirado o Cetro no fundo da terra... mas não havia como esquecer o fato de que ele também era um assassino. Depois de matar os próprios deuses, ele matou os irmãos.

Pois agora Valquíria se lembrava de onde tinha visto aquele nome antes. No Livro dos Nomes, naquela coluna final. Ao lado de Stephanie Edgley, ao lado de Valquíria Caos. O verdadeiro nome dela. O único nome que jamais importaria.

Trevária.

 

 

                                                   Derek Landy         

 

 

 

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